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t «PRONTA A ANTÓNIO NOBRÍ

1

E' prazer irresistível do constructor, derruir para fazer melhor.

o Editor

CÊiSAF? de: f-rias

a afronta a aniúniq nobre:::

Saibam quantos. .

I O Poeta do «SÓ»

II Quem é o sr. Albino Forjaz de Sampaio

III O seu '«António Nobre»,

obra irreverente e mercantil

LIVRARIA CENTRAL, EDITORA

14-A, Avenida Almirante Beis, 1 4-G

LISBOA

SaiMm quantos. .

Saibam quantos estas laudas virem que eu não quis fazer com elas uma obra de estrondo, que me pusesse repentinamente em foco, dado que o sr. Albino Forjaz de Sampaio alcançou foros de consagrado e o autor é praça recente na milícia das letras. Demais, é óbvio que, nes- tas circunstâncias, o que eu teria a fazer, no interesse do meu futuro literário, em vez de hostilizar aquele sr., que pontifica para em coisas de pseudo-crítica e anda na roda dos imor- tais num tu cá, tu familiar, era dirigir-lhe vá- rios e curvadíssimos salamaleques, no intento de lhe captar as simpatias, para quando saisse a lume ter sempre sua eminência a benzer-me magnânimamente com o seu hissope. E>igo-o

de começo para murchar bastardas insinuações dos plumitivos vesgos, seus acólitos e panegi- ristas.

Nào amo a literatura-petardo. Nào. Pelo con- trário. Tendo as faculdades gostativas, nào sei se por excessivo requinte ou por embotamento mórbido, nada afeitas ao sabor de iguarias con- dimentadas de escândalo, peza-me bastante sentir que, de facto e contra a minha vonta- de, algum cheiro a escândalo daqui tresanda, roçando e açulando o olfacto e o apetite do público ledor gulosamente ávido de escritos em que tal excêntrico tempero seja certo e bravo.

E muito hesitei mesmo antes de acometer esta faina, cuja índole, pela sua tonalidade crí- tica, fica destoando no plano de trabalhos, que, obedecendo a um forte e actual pendor do meu espírito, eu estabelecera para o decurso do ci- clo inicial da minha vida escriturai, plano quási de todo em todo entretecido apenas de obras

III

de ficção artística. A emergência, pois, que me atirou para a tarefa presente constituiu para mim, primeiro do que para ninguém, a maior das surprezas. Tarefa agradável e consoladora ? Ou, antes, safara de gozo e mortificante? Uma e outra coisa, simultaneamente, com a dupla face, risonha e carrancuda, que todos os aspectos do mundD apresentam a olhos mortais. Se agra- dabilidade e consolo me ungiram a alma en- quanto nela, esquecido do seu motivo nodal o da réplica ao desageitado comentador do Poeta falei de António Nobre, esse alto e fulgentíssimo astro do lirismo português dos últimos tempos, a que devoto a mais enraizada e velha admiração, velha da velhice capaz/de caber nuns vinte e tantos anos, tédio e mágua me tol- daram breve as doces emoções hauridas naquela primeira parte da minha faina, ao lembrar-me de que a executava somente como alicerce duma outra mais áspera e para a qual, o disse,

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não me escasseia propensão, como até se levanta dentro de mim invencível repulsa: a de impugnar quem cometeu o desacato contra a memória do infeliz Poeta, não pela pessoa atacada que isso nada me importa mas apenas porque um ataque não se leva a cabo sem ferimentos e sem estridor, nem se com- padece do melindre dos espíritos contempla- tivos e tolerantes, que a custo consentem em amarrotar a túnica branca da serenidade que os veste sob a chispante e pesada cota de armas, forçosa de envergar para entrar em combate, sempre febril e sem tréguas, bastas vezes injusto e sem nobreza.

Mas o sr. Albino Forjaz de Sampaio assim o quis, publicando o seu último inferior e re- voltante livro, e assim o quiseram também os meus irmãos mais velhos nas letras, que egois- tamente se quedaram, silenciosos e neutrais, pe- rante a afronta que ele comporta, não vindo,

arrancar a carcassa infantil e delicada do Poeta àquelas màos profanadoras, reincidentes e velhuscas no crime de violar túmulos de mor- tos ilustres. E ficar-me-ha sempre a mágua de que outras penas, mais autorisadas, mais idosas e mais hábeis do que a minha, humil- de entre as humildes, outras penas, dizia, como, por exemplo, as de Justino de Mon- talvão, António Patrício, Antero de Figueire- do e Alberto de Oliveira, quatro Mestres da prosa portuguesa contemporânea e, para mais, quatro ferventes admiradores do Poeta do Só, ou por anquilosante desdém pelo seu detractor ou por simples desconhecimento do desacato, não tivessem tido o arranco de in- dignação esperado, para morderem, sulcarem, vertiginarem no papel, no cometimento da empreza justiceira a que eu me arrojei, mas quando vi que um silêncio demasiadamente longo, e possivelmente suspeito de cumplici-

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dade, envolvia o delito, como se nada houvesse a objectar ao ignominioso veridictum e de- pois de ter averiguado que ninguém mais tra- zia entre mãos obra similar, que, a publicar-se, me libertaria do encargo que penosamente ia tomar sobre os ombros.

Não alimento a ingenuidade de supor que em todos os espíritos esta defeza de António Nobre suscitar unânime e intenso entusias- mo e trazer-me a força da sua solidariedade. Demais sei que bastantes miopemente o con- sideram um Poeta de ordem menor, olhando mais para o continente pequeno da sua curta obra, curta como a sua vida, do que para o âmago rico de potência lírica do seu conteúdo. Eles terão sorrido, quem sabe se com prazer ?, da heresia do sr. Forjaz, como sorrirão àmanhan da minha réplica, achando que exagero e que o assunto não merece tanta importância e tanto alarme. Pois até para esses eu julgo que este

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caso nâo deve ser alvo de tão gelada apatia : O que o sr. Forjaz fez hoje com Anto, fá-lo ha àmanhan, como prometeu claramente, e usando decerto de igual, se não maior, vio- lência iconoclasta, com outras individualida- des, que mais alto e florido altar disfrutem no culto da gente desdenhadora do génio de Nobre. Sobre a pedra de alicerce desta de- feza restrita e actual poderá ser erguido o arca- boiço largo do edifício da generalidade, em que tenham asilo outros casos que a todos importam. Bem sabem : ontem, mal tinham entrado na Morte os cadáveres, ainda quentes, de Silva Pin- to, Ramalho, Bulhão Pato, correu logo, numa fúria irreverente, a cuspir-lhe sem cima. Agora, em nova sortida, sacou do sepulcrosito de An- tónio Nobre e revolveu-lhe as cinzas brancas com os estos raivosos que a mediocridade cos- tuma ranger à vista da grandeza. E, enquan- to bolsa insultos contra o Poeta do Só, que

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nào pode ter culpa de que o Destino lhe ti- vesse dado, e para seu mal, o que recusou ao desageitado crítico, declara não ficar por ali. Voltará àmanhan a quebrar as lousas das cam- pas de Camilo, de Fialho, de Eça, de Cesário Verde, de José Duro, e de muitos mais, no propósito evidente de apenumbrar, enferrujar, amachucar a auréola duns, e a outros na inten- ção esconsa e hipócrita, manhosa e ridícula, de lhes pôr os méritos em melhor destaque, de os sacudir do do esquecimento, em que a sua alma, boa e piedosa da última hora, não consente que vão cair. Como se os talentos raia- dos de génio de Camilo, do Fialho ou do Eça, necessitassem para circular no nosso entusiasmo admirativo da apresentação gaguejada dum sr. Albino Forja? de Sampaio!... Armou o ho- mem em porteiro-cicerone do Panteon : salte a nomeação no «Diário do Govêrno" e dêem- Ihe a farda agaloada !

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Mas voltemos ao sério, que o caso serio é. Demais tem sido a complacência de todos nós, ledores e escritores, velhos e novos, ante as suas arremetidas habilidosas de Jongleurjiterá- rio, complacência que vai tomando visos de cobardia. Urge entravar-Ihe o passo, pois mal irá a um povo que alarvemente se ri ou, pelo menos, não se indigna ao ver um funâmbulo no meio da praça esfarripar, caricaturar, cobrir de lama as memórias dos momentos mais altos da sua história e dos vultos tutelares e eleitos da sua estirpe 1 Urge despertar a consciência pública, por estas claras coisas ainda interessada, de modo a iniciar, a pôr em marcha, a intensificar um movimento de reprovação contra os pro- cessos literários do sr. Forjaz, que, obstinada- mente, quási sem um eclipse, desde a sua estreia, se caracterizam pela falta de escrúpulo na escolha dos assuntos, pela carência de higiene moral, pela ostentação de cinismos e torpezas, pela ausên-

cia de superiores motivos de beleza, pelo ar artificiosamente frondeiir das suas asserções) perseverando no erro, tão abusado nas gera- ções últimas, de imbuir de pessimismo e des- crença a mentalidade hodierna, condenável catequese que nele tem ainda a agravante de não ser espontânea, sincera, mas sim filha dum cálculo menos honroso. Livro após livro, numa produção diluviai e toda numa seqiiência de estampidos de morteiros, verruma-o o delírio de fugir ao esquecimento, essa suprema tortura dos artistas, mas para ele apenas o fantasma da ruina, o estancamento duma fonte de manantes proventos. O que mais teme é que os milha- res, verdadeiros ou fictícios, das suas edições encontrem um dia no indiferentismo público a eclusa que imobilise e estagne a massa liinosa e pútrida da sua torrente : por isso, aos pin- chos, aos urros, mantendo sempre viva ao re- dor de si a atmosfera vermelha do reclamo.

XI

tem conseguido, com provas medíocres de ta- lento, galgar vertiginosamente os postos da gerarquia literária, onde hoje ostenta largos e doirados galões.

Pois bem: erga-se de toda a parte um bra- do de indignação e de reprovação contra aquele autor, que arrancar as cataratas aos olhos dos que, por ausência de bom gosto e de or- denada cultura, vivem fanaticamente boquia- bertos diante do seu malabarismo, e que, para- lelamente, o force a parar e a arripiar caminho, sob pena de ser exautorado, de se lhe arran- carem os galões que pavoneia: ou aproveita as suas medianas qualidades de escritor em traba- lho sério e dalgum modo belo, ou o público se desinteressará dele e das suas malas-artes, relegando-o para o charco em que chafurdam os líteras sem mérito e sem vergonha.

Compreende-se, quási mesmo se desculpa,. o exotismo das suas Palavras Cínicas. Re-

Ali

presentam um golpe de estado literário para se apossar dum lugar a dentro do cercle da no- toriedade, barrado hermeticamente pelos con- sagrados. Quási todos os novos sentem neces- sidade de dá-lo, em vista do tradicional egois- mo daqueles, incapaz de se descerrar para aco- lher os recem-vindos. O sr. Forjaz deu o seu com um êxito pleno: as censuras e os aplau- sos silvaram à sua roda, foi discutido barulhen- tamente, decoraram-lhe o nome, compraram- Ihe o livro. Assim, forçada a porta do desta- que, impunha-se-lhe despir imediatamente a ves- timenta vistosa e jogralesca do assalto e, com- penetrado da linha fidalga da sua missão, deitar- se ao trabalho progressivo, a um trabalho pau- tado por normas do bom senso e inteligência equilibrada, seleccionando o pendor que lhe fosse próprio e construindo nesse terreno a sua catedral de beleza, com voadura de arcaria con- forme ao sopro íntimo de sua inspiração. Não

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o fez, porém. E não o fez até hoje, como toda a sua obra o demonstra à sobreposse, porque descobriu naquela ruim espécie de literatura de escândalo um inexgotável filão de oiro.

Ora, o seu último livro António Nobre nào é disso mais um documento, como até ameaça de enveredar decidido por caminho que se lhe deve desde tornar defêzo, e onde decerto fará a mais estouvada destruição num património que é de todos nós: a lembrança venerada daqueles que, de entre a mole escu- ra e razoirada da Raça se alçaram a atestar- Ihe valores mais altos e iluminados de luz eter- na, magníficas possibilidades de aquilares des- tinos, direitos incontestáveis à ressurreição do seu antigo e viril imperialismo, nas energias da sensibilidade, nas da acção.

Se o deixarmos sem freio, irá não sei a que vandálicas emprezas. Exgotado o património nacional, correndo do campo literário para o

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scientífico e deste para o guerreiro, irá depois por todo o universo, talando, rasgando, ensan- ^iientando, destruindo. Nào ficará pedra sobre pedra. Estou em crer que premeditou arran- car as barbas honradas de D. João de Castro, e consta-me que Aristóteles, assustado, do fundo da antiguidade, todos os dias implora de Jeová um raio que reduza a torresmos o Átila-anào. E' com o escopo de suscitar uma corrente de reacção contra tais processos que este livro se publica. Tem o significado dum protesto. E' esse o seu fulcro, atravessando o pretexto de desafrontar a memória de Anto duma diatribe incoerente e especuladora. Assim (divi- di o meu trabalho em três partes: na primeira, digo da minha impressão ante a individualidade artística do Poeta do Só; na segunda, foco •em conjunto a vida literária (a única ao meu jus- to alcance e ao do publico) do sr. Albino Forjaz de Sampaio; e, finalmente, na terceira, faço aau-

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tópsia ao livro António Nobre, a que este meu constitui réplica. Tanto numa como noutra destas duas últimas partes nào vou com o bistu- ri esgrimindo à laia de navalha, aceso na vesâ- nia de encontrar defeitos, manchas, falên- cias, com a cegueira que a paixão da hostilidade. Mas, também nào quebro o gume do instrumento, para suavisar o corte, para rombamente deixar indene muita fibra avaria- da, numa quebreira de piedade de que o ata- cado nào tem necessidade, nem merece, nem me agradeceria, estou certo. Nào tomo senho de carrasco nem sorriso untuoso de asperzidor de água-benta. E a sinceridade que me intu- mece as veias do pulso na hora em que manejo a pena neste pleito é, pelo menos para mim, o bastante fiador da justiça que preaide a estas páginas.

Poderiam elaster vindo a lume mais cedo, visto o livro do sr. Forjaz circular no mercado

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ha meses. Poderiam, mas nào deveriam, acho eu, se bem que a maior parte desse atrazo se deva apenas à circunstância de tardiamente eu ter tido conhecimento da essência da obra do sr. Forjaz, pois preocupado com outras fai- nas instantes no momento em que ela surgiu, mal tive tempo de lhe ler o título, ficando-me na presunção de que se tratava duma rememora- ção simpática, duma análise inteligente, duma homenagem enternecida a um dos mais originais e delicados Poetas da nossa Terra. Isto, apesar do pouco, mas bastante para formar tal juizo, que conhecia da bagagem escriturai daquele autor não me autorizar robustas esperanças nas suas aptidões para trabalhos dum tal jaez, reque- rentes, acima de tudo, de identidade poética e delicada ao serviço duma especial acuidade crí- tica. Semanas depois, o acaso da leitura dum jornal atirou-me para debaixo dos olhos com o registo do aparecimento do opúsculo, registo

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de aberta censura, e desvendou-me, então, o seu criminoso miôlo. Dando razào à anemia daquelas esperanças e arruinando a presunção que o seu título traiçoeiramente me impusera, o livro em debate, em vez de simpatia, compreen- são, admiração, vinha polvilhado de inveja, de insensibilidade e do desejo escuro de diminuir o renome de António Nobre. Renegando subita- mente a instância das fainas em decurso, pro- curei-© e li-o dum fôlego. E, ao cabo, compene- trado de que no seu autor se acentuava cada vez mais uma aguda crise de mercantilismo literário, cujos alarmantes sintomas vinham de longe, e necessário era, portanto, opôr-lhe um imediato e enérgico antídoto, lancei-me a prepará-lo. Fo- Ihiei livros e jornais e revistas, investiguei e até me impus o pesado sacrifício de ler toda a obra do sr. Forjaz de Sampaio, evitando precipita- ções, sempre temíveis em casos tais, e recrutan- do e coordenando com segurança todos os seus

F. 2

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elementos. Eí, a este respeito, julgo que me seii lícito o orgulho de supor que não realisei obra leviana, peca e falha de documentação. Fica as- sim justificado o atrazo, e a quem praticamente conheça as canseiras e o fatal consumo largo de tempo a que tarefas desta natureza obrigam, decerto até ele parecerá exíguo.

Sairá daqui mal-ferido o sr. Forjaz? Nào me regosijo com isso, creiam, nem o procurei, pois, aparte o meu desapreço pela sua obra, não me galvaniza qualquer particular sentimen- to de animosidade contra ele. Respondem es- tas palavras aos que, entre o gentio que lhe es- trondeia batuques cultuais, queiram insinuar que vim aqui saldar rancores antigos. Pessoal- mente, creio que nunca vi o sr. Albino Forjaz de Sampaio. Literariamente, estou até na con- vicção de que lhe devo uma fineza: a dumas re- ferências, curtas mas elogiosas sem parcimónia, que, a propósito dum trabalhosito meu em

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verso, publicado ha uns três anos, A Luta in- seriu entào, e que, embora não assinadas, me deixaram convencido, pelo toque, de que eram do seu punho. vêem. . .

Quero ainda fazer notar a esses mesmos que padecem de fanatismo pelo sr. Forjaz que nào abrigo a ingenuidade de esperar que ele, acossado por esta condenação, se pôr em fuga do campo das letras. Nào, nào é a vez primeira que esse gentio vê, com alma aperta- da, o seu manipanso foilemente zurzido. E ele, ora coxo, ora zarolho, ora manco, honra seja feita à sua indefectível valentia, jamais se arre- dou uma polegada da senda trilhada. Descon- fio mesmo que calejou e que as pancadas metaforicamente falando, claro está— que lhe caem no lombo lhe nào fazem móssega al- guma nem arrancam um pio sequer. De quatro tundas formidáveis me recordo agora. Uma, quando da morte de Silva Pinto, de que adian-

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te, por oportuna, farei larga menção. Outra, a que o sr. Avelino de Sousa, sem nem pieda- de, lhe aplicou a propósito do fado (.'O Fado e os seus censores» Lx^, 1912, edição do autor— pag.^ 13 a 38). Ministra-nos ali conheci- mentos interessantes sobre a nativa pecha do sr. Forjaz de não ter uma opinião sua e fixa sobre os assuntos-temas dos seus escritos, sempre acomodatícios ao momento que passa, na busca torturada de efeitos mirabolantes, numa lógica de pé-coxinho, que, de contínuo brigando consigo própria, não consegue crédito em espíritos rectos. Depois, temos a tunda mestra que o ilustre jornalista sr. Adeli- no Mendes lhe infligiu por ocasião da sua fa- mosa negociata da ida a França à custa do pró- digo papá-Estado, para escrever um livro de impressões sobre o front português, e a que também mais de espaço me refiro na segunda parte deste trabalho. Finalmente, a quarta das

que me lembram é a do Veneno— rtsposia. às Palavras Cínicas, do sr. João Coúho, soi-disant escritor brazileiro, e que foi a mais infeliz de to- das, pois, querem concepção, querem execução, as Palavras Cínicas, com todos os seus defeitos, valem bem mais do que esse livro de refuta- ção, género literatura gá-gá de que se ria Fia- lho, trôpego na forma e, para mais, com tão desgraçada revisão tipográfica, que deixa o lei- tor na dúvida de que o seu autor tivesse ja- mais pegado numa gramática. Em pontuação, é horrível! Em resumo, faz-nos ficar com mais piedade do espancador do que do espancado. Desculpou-oo editor, "'^ em conversa comigo, di-

(*) Compreende-se: desculpando-o, desculpava-se, pois aqui muito à puridade lhes digo que o autor do Vt- neno é simplesmente o sr. Ventura Abrantes, o próprio livreiro-editor do' livro. Seu título de escritor brazileiro é fictício e a lista de obras anteriormente publicadas, no ante-rosto do volume, fictícia é: constituem artifícios de mise-en-sccne para melhor imporem como nome verda- deiro o que não passa dum pseudónimo.

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zendo que o Veneno, fora escrito no veloz espaço de oito dias. Seria. E para que, se não havia ne- nhuma urgência a aguilhoá-lo, visto as Pala- vras Cínicas serem velhas de catorze anos? Seis meses ou um ano mais para essa respos- ta, se não lha dariam, também nào lhe tirariam a qualidade de oportuna, que, em qualquer ca- so, já não alcançava, e tinham permitido ao sr. João Coelho realisar obra mais capaz de me- recer elogios. Como veiu a público, resultou mais do que inane: contraproducente.

Desta feita, repito, vêem os senhores que o sr. Albino Forjaz de Sampaio, como de cos- tume, receberá, firme e cínico, este meu ataque e nenhuma melhoria para ele e para nós da- qui advirá, se não me secundarem todos, gritando-lhe a plena voz que se regenere e mude de processos, se quere continuar a viver literariamente, ou que, pelo menos, não alveje para assunto das suas cabriolices escriturais mo-

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tivos que quási todos nós temos como sagrados. E, então, aos de alma delicada, aos que têem sentido, como eu, o espírito deliciosa- mente estrelado de emoções dulcíssimas sem- pre que evocam a figura estranha de Anto, o Poeta singular e infeliz do

. . livro mais triste que lia em Portugal.

a esses não preciso de pedir que estejam comi- go nesta cruzada. Tenho até de mim para mim que, se tomei da pena para traçar estas páginas, não fiz mais do que obedecer, por um fenó- meno de telepatia, à sua dispersa mas poderosa sugestão, vibrando forte em todo o peito por- tuguês, de homem ou de mulher, ainda não dessorado do leite da humana ternura, de que falava Shakespeare, e ainda ungido de amor por estas claras e divinas coisas da Poesia e da Beleza. . .

C de F.

1-0 Poeta do 50'

Nascido no Porto, aos 16 de Agosto de 1867, António Nobre incrusta os seus dezas- seis anos, idade genericamente desabrochante das energias pensantes e sensoriais do homem, e, no caso particular do Poeta, idade que se ajusta à data de publicação dos seus primeiros versos, num ambiente heterogéneo, tumultuo- so, cortado de múltiplas e desencontradas exe- geses filosóficas e estéticas.

Ia entào por todo o mundo culto, irradian- do dos empórios mentais e artísticos, um ba- bélico bra-á-á de mil ritos diferentes, que ator- doava os cérebros, arrepelava os nervos, ele- vava as sensibilidades às mais altas e esgo- tantes tensões. Tantos eram os Rabis, e tão aparentemente sábias e inspiradas as suas cate-

A Afronta a António Nobre

queses, e tão vistosos e louçàos os seus para mentos verbais, que a uma consciência moça e débil, ainda em formação, e, portanto, fácil presa de enganadoras sugestões, não se podia deparar como tarefa branda e leve o pronun- ciamento por esta ou por aquela seita, arreba- nhando-se empós um ou outro pastor, batendo com os joelhos nas lages dum mais próximo ou mais longínquo templo. E, assim, com mil veredas sulcando em sua frente os horizontes, quem resolvesse encetar os passos numa, ao acaso, decerto bem pálida e escassa luz de levaria a alumiar-lhos, visto as sebes de rosas das certezas e as paliçadas de espinhos das dúvidas, que ladeavam todas essas veredas filosóficas e estéticas, em nenhuma se apresen- tarem mais olorosas e polícromas ou mais acu- tilantes e hirsutas do que noutra, afirmando ou desmentindo ser a escolhida a que levava direitinho à Terra da Promissão da Arte.

Para mais, conspirando a favor dum logro, era esta a promessa ridente que à entrada de todos os caminhos, pelas mesmas palavras e em letras de palmo e meio pintadas nas mes- mas álacres cores pelas taboletas, acenava ao viandante recem-vindo. Fosse alguém saber qual dizia a verdade ! . . .

Estavam, pois, convertidos em campos de feira os rincões do Pensamento e da Arte. As gentes, aos enxames, erravam de tenda para

A Afronta a António Nobre

tenda, provando, mercando, incaracterísticas, sem paladar certo. De quando em quando, os tendeiros, na exaltação ciumenta de seus eli- xires e panaceas, urravam entre si um dialecto bem pouco literário e digno das suas linha- gens olímpicas. Chegaram por vezes a vias de facto, e como o barulho e a desordem atraí- ram em todo o sempre melhor do que falas e gestos mansos, a nuvem forasteira era cada vez mais espessa em redor dos gritantes mer- cadores. Estava ali, talvez, o gérmen do que hoje se chama o reclamo à americana. . .

Simbolismo, parnasianismo, reacções clás- sica e romântica, positivismo, satanismo, pes- simismo, néo-idealismo, novos ímpetos da es- cola realista e outros fenómenos não menos de espantar, ia por ali uma confusão doida, poeirenta, cegante. E, claro está, que no horto da poesia, habitualmente remansoso, a bara- funda não era menor. Nada escapara ao flagelo.

-Menino e moço, abandonado por seu des- tino nesta encruzilhada, como nos velhos con- tos de fadas, e sentindo a sua alma palpitar e abrir as asas na ânsia irrepremível de atingir as mansões do Sonho, onde encontrasse do- çura e perfeição a compensarem-no das mi- sérias da vida terrena e vulgar que os seus olhos largos e reveladores iam descorti- nando em volta, que resolução tomou António-

A Afronta a António Nobre

Nobre ? Que vereda das mil que se lhe ofere- ciam o cativou mais ? E em qual, por íim, deci- dido ou vacilante, abriu a marcha ?

Em nenhuma. O seu orgulho enorme, Orgulho insupportavel tal o meu,. . .

peça saliente, peça-mestra do seu organismo moral, nào lhe permitia seguir na esteira de alguém por qualquer desses caminhos, alguém que nào visse de certeza ser maior do que ele próprio, alguém que o nào soubesse enfeitiçar pela mágica força dum prestígio sóbre-hu- mano. Nào havendo ali pastor algum com os excelsos predicados, não se arrebanhou. Deixou partir nas várias direcções, para ali, para àlêm, as longas caravanas dos outros poetas, e ficou-se, no meio da encruzilhada triste, orgulhoso e só.

Então, palpando, adivinhando um drama dentro de si, concentrou-se, volveu os largos olhos da sua inteligência e da sua sensibilidade para o próprio interior. Nesse ensimesmamento, nào mais descansou enquanto, de entre os meandros nebulosos do mundo da sua alma, ainda na confusão dos dias do génesis, não conseguiu aperceber bem e arrancar esse dra- ma, inteiro, ingente e convulso, para o pôr sob a bátega forte e alumiadora do seu gé- nio poético.

Embora sotálirio, ermo de viventes com- panhias, alguém, contudo, o ia às noites, horas

A Afronta a Antónfo Nobre

mortas, acarinhar. Era uma ronda de sombras, de sombras que a sua simpatia iluminava san- tificadoramente, e que, à sua voz de devoto e místico chamamento, acorriam a inspirá-lo, tute- lando sua obtinada pesquiza :

Sou médio, evoco-os, noite em meio, Vós não acreditaes, eu sei-o. . . Deixal-o não acreditar.

Mas, que sombras seriam essas que o visi- tavam, noite velha? De que fantasmas a sua bruxa evocação fazia desenhar no ar caliginoso os vultos diáfanos ? A' frente, vindo de muito longe, no tempo e no espaço, Shakespeare, o rival dos deuses, o portentoso criador de almas, cujas referências sào bastas na obra de Anto, como

O' Bancuos do remorso ! O' rainhas xMachebetts

Da ambição ! O' Reis Leais da loucura ! O' Hamlets

Da minha vingança ! O' Ophelias do perdão.. .

nos Males de Anto e ainda no final da mesma poesia

Mas uma coiza que lhe faz ainda peior, Que o faz saltar e lhe enche a testa de suor, E' um grande livro que elb traz sempre comsigo E nunca o larga : diz que é o seu melhor amigo, E lê, lê, chama-me «Carlota, anda ouvir I> Mas. . . nada oiço. Diz que é o Sr. Shakespeare.

A Afronta a António Nobre

A seguir, Camões, o grande épico da Raça,

Camões I ó lua do mar bravo ! Vem-me ajudar. . .

Depois, Garret, o delicado heleno que an- dou de joelhos a beijar a terra portuguesa,

O' Garrett adorado das mulheres,

Que falta fazes á Lisboa amena ! Anda vêr Portugal ! parece louco. . . Que pátria grande ! Como está pequena I

Ombro com este, Antero, o Santo, a cami- nho do ceu e duvidando da sua existência, com o cilício da dúvida a sangrar-lhe o espí- rito sem um momento de descanso.

Quero Mas é ir, á Ilha, orar sobre a cova do Anthero

aspirava religiosamente. E pedia ao sol de junho assim :

Sol de Junho queima as minhas estantes Poupa-me a Biblia, Anthero... e pouco mais !

Finalmente, de tropel, com os seus mortos, seus pais, sua ama, seus amigos, todos os fa- miliares da sua infância e da sua juventude, levados no tufão que tudo leva, Job e as de- mais figuras da Bíblia, dolorosas, arrepeladas, cheias de ira e de sublimidade, e, de mistura com elas, a raça lusa, a grei de outrora, a que andara no mar largo em meio de tempestades,

A Alront;i. :i António Nobre

a descobrir novos mundos e a atrigueirar a pele no incêndio de mil batalhas, o povo de santos e de heróis, a alta marinhagem da nau da Pátria, de quando ela singrara em horas di- vinas, sobre as ondas altas, de alto capita- neando as outras raças e jugulando os ímpetos hostis da Natureza.

Num ambiente político nacional sórdido e desnorteado, com o seu quê de desmanchar de feira, contrastando violentamente com esse passado de prestígio e de elevação; num mo- mento social espiralado de interrogações, em que começavam de fermentar as lutas teme- rosas que nos angustiam hoje; numa época de demolição das velhas crenças e dos velhos ideais e de ensaio de novos sistemas filosó- ficos, mal nascidos, logo moribundos; num pe- ríodo de assalto feroz a tudo que a tradição fortemente enraizada na alma humana ungira de fé, sonho e espiritualidade; enfim, num ambiente tenebroso, num momento rugidor e revolucionário, numa época irrequieta, num pe- ríodo de transição dum estado de coisas, que se dizia mau, para' um outro, que, envolto ainda na poeirada do que ruia, não se descor- tinava melhor nem mais belo; qual a saúde imperturbável e mansa que poderiam gosar os espíritos que medravam nessa convulsa e de- cadente era de ha trinta e tantos anos, em que António Nobre desabrochou o seu espírito fino

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e melindroso ? A mesma que nós, os de hoje, com esses trinta e tantos anos passados, pode- mos gosar, uma saúde precária, débil, cortada de dolorosidades e desânimos suicidantes, pois cada ano que sobre esse tão próximo ontem tem corrido não tem feito mais do que trazer novos e terríveis problemas aos nossos cére- bros, novos e sangrentos dramas aos nossos corações. Teem-se acogulado nos horizontes mais nuvens negras de tragédia, e o ar, cheio das emanações pútridas do cadáver da velha ética, que dia a dia mais se pulveriza, aos ponta-pés da turba truculenta, fede, asfi- xia, intoxica. Vejam-se os costumes, o con- gestionamento das cidades, o êxodo dos campos, o referver das ambições, a sede do ganho, o luxo sem freio, o alastramento dos hospitais e das cadeias, uma torrencial litera- tura feita quási com taras e anomalias. E, no meio disto, quem ousará, pois, escancarar aboca num riso aberto, vibrante e triunfal, num canto argênteo e apoteótico? Quem, àlêm das crian- ças, cuja ignorância da vida as imuniza do desgosto pelo mundo actual ? Quem, de en- tre os adultos, senão os ébrios e os loucos? Assim: com um meio tão crispado e in- certo a envolvê-lo; com aqueles elementos de cultura, a Bíblia, Shakespeare, Camões, Garret, Antero, como alimentos predilectos do seu espírito; com o seu enorme poder de evocação,

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€xercendo-se, ora sobre a ridente e despreocu- pada quadra da infância, ora sobre a virili- dace esplendente da sua raça; e, para mais, com o seu organismo fraco de doente do peito, juntando a tortura física à tortura psíquica originada nos males do mundo: a poesia de António Nobre não poderia resultar diferente da que ele nos deu —triste, elegíaca, febril, ladainhante, supersticiosa, sombria, desespe- rada, macabra, mas, acima de tudo e como melhor importa, radicalmente portuguesa, pro- fundamente sincera, magnificamente lírica e bela.

Se exagero parece haver por vezes nos seus lamentos, saidos duma concepção unila- teral e pessimista da vida, é que o dom da profecia, peculiar aos grandes Artistas, vibrava vigorosamente nele: sendo desolante o aspecto do mundo do seu tempo, o Poeta não via sinal de mutação à sua roda, não via que um movimento de reacção operasse a aleluia daquela sexta-feira de paixão. Pelo contrário. A directriz acentuada dos espíritos era exacta- mente para o pioramento dessa decadência das sociedades. E mentiu-lhe o seu sentir pro- fético ? corajosamente a resposta algum de nós, que, vivendo neste pgjidemónio actual, não seja por completo cego de entendimento. . .

Filho legítimo do consórcio dum tempera- mento doente com uma época de decadência,

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O tem, portanto, na sua parte restrita,, individual, subjectiva, a maior, o valor duma minuciosa auto-biografia, e na sua parte ob- jectiva, geral, humana, o dum símbolo, crista- lizando nas suas estrofes as queixas do mal- -estar não da nacionalidade, como do uni- verso, ou, pelo menos, dos povos gastos da civilização europea mediterrânea, cujas ener- gias exaustivamente se aplicaram durante sécu- los, em esforços talvez superiores às suas fa- culdades. /^ A Morte tornou-se, portanto, o motivo ^central da sua inspiração. Viu que para ela a gente caminha a cada passo dado na vida. No torvelinho de incertezas em que a consciência do homem se debate, ela se divisa como certa, como inegável, como isenta dos desequilíbrios que em tudo o mais se constatam. Cogita a sciência em desarmá-la, estala os crâneos no interior dos laboratórios no intento de lhe opor uma defeza indestrutível, e, nessa cogi- tação profunda, nada resolvendo, mais dela se aproxima, definhando ou caindo nas fauces da loucura, sua filha. Procuram-se alegrias, pra- zeres, horas brandas, e tudo isso apenas com o fito de nos esquecermos dela, de nos iludirmos, julgando que ela nos perdeu a pista. O arti- fício é vão. A máscara que lhe pomos mal a cobre, e os nossos olhos pávidos não cessam de vê-la, ora longe, a seguir-nos, silenciosa,

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ora perto, deitada na nossa cama, sentada à mesa na nossa frente, rindo escarninhamente ^jio olhar e nas gargalhadas da mulher amada. O seu hálito transe-nos. Pelos crepúsculos, aninha-se nos recantos da nossa saleta, coalha- dos de sombra, e, de quando em quando, numa lúgubre carícia, avança para nós o seu enorme vulto de carne tecida da própria som- bra, lança-nos os braços em volta do pescoço é beija-nos num beijo gélido, que nos sacode o corpo num arrepio de passamento. E' a mais constante enfermeira de todos os enfermos. Solícita, não despega do seu leito dia e noite. Ninguém, por mais que se julgue, sofre do seu abandono. Ronda, ronda sempre em redor de nós, em passos furtivos, iguais, impertur- báveis. Insensível às nossas lisonjas, na inten- ção de desarmá-la, sorri-se com bonomia do nosso infantil estratagema e não se suborna por coisa alguma do mundo. Se a insultamos, raivosos de nos sabermos impotentes para fugir ao seu jugo, sorri-se ainda, ainda e sempre, certa da sua presa, zombando da nossa raiva inútil, ocultando-se um pouco às vezes, para logo de novo e mais perto nos surgir, ron- dando, rondando, solene, enorme, feiticeira, hipnótica, dominadora, imperial, divina, cheia do encanto do seu mistério, o maior de todos •os mistérios, que tanto nos aterra, para melhor nos seduzir.

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Foi assim que Anto vislumbrou a Morte. Elegeu-a para sua noiva. Vestiu-lhe o colo das jóias mais preciosas do seu lirismo opulento.. Prostou-se-lhe aos pés na mais incondicional das venerações. Rezou-lhe as jaculatórias mais rendidas. Teceu-Ihe os epitalâmios mais arden- tes e nupciais. E ninguém, de certo, nenhum poeta dos modernos ou dos antigos tempos, soube dirigir-lhe as frases de possessiva ter- nura que Anto entoou à sua beira. E, por isso, comovida, enternecida, quiçá pela vez primeira na sua existência de desapiedada c álgida, a Morte escutou-o sem sobranceria, sorriu-lhe com doçura, chamou-o a si amorosamente, abriu-lhe de par em par as portas do seu pa- lácio de mistério e sonho, deitou-o aconche- gadamente no seu tálamo negro de mil vezes possuída e, contudo, sempre virgem e sempre casta.

Ficou-nos desse amor desvairado, dessa paixão sem freio, a mais formosa e sentida colectânea de epístolas passionais que a nossa literatura possui: o Só. Ao enformá-la, dela irradiou o Poeta as poesias mais brandas, rea- lisadas nos armistícios das suas dores, doces confissões enamoradas perante uma mulher, suaves desabafos de pequenos afectos, que de modo algum chegaram a constituir traições àquele absorvente cuidado pela sua Maior-De- sejada, a Morte. Ali, no Só, procurando

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imprimir-lhe um tom de unidade, enfeixou, pois, os mais altos gritos do seu desespero, do tédio que o torturou enquanto teve de esperar no mundo o dia das suas voluptuosas bodas, da sua ansiedade sôfrega por ir des- cansar a cabeça no regaço misterioso da sua estranha Bem-Amada. a gente o e tem a ilusão de que passeia num fúnebre jar- dim da florações gigantescas e exóticas, em que um sopro ignoto e músico, de dedos sub- tis, desfere as liras das folhas e das pétalas e faz esvoaçar no espaço o sussurro harmonioso, mas grave e acabrunhante, dum De profundis.

Depois de longa peregrinação pelo mundo, parte dela buscando a saúde que lhe deser- tava velozmente do peito, peregrinação de que ficaram muitos marcos nas datas dos seus versos, a 18 de iVlarço de 1900, em Car- reiros (Foz do Douro), com trinta e três anos incompletos, levou-o a tísica, disse a medi- cina. Só ela? não acredito. Assim como não acredito que, sem essa circunstância da sua doença, António Nobre viesse a realisar uma obra totalmente diferente da que deixou ao nosso culto, isto é, uma obra mais optimista, mais consolada e consoladora, mais ciosa e amante da vida. Embalde me citarão certos trechos das Despedidas, seu livro póstumo, e desse volume inédito dos Primeiros versos,

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assim como o seu plano de obras, razoavel- mente longo, encontrado entre os seus papeis particulares, e que atinge meia dúzia de títulos, ou ainda passagens da sua correspondência para amigos, tendo na cura e em dias me- lhores,— embalde me citarão tudo isso a abo- nar a presunção da sua existência literária poder ter tomado outro rumo mais claro e desassombrado de ;imargura, se viesse a pro- longar a vida. Não foi apenas a doença que o matou repito. Ela foi somente o detalhe, a- forma, o instrumento. Mais do que ela, ma- tou-o o meio, matou-o o ambiente da época em que nasceu e dentro da qual o destino, por engano, o pusera. A síntese das suas quei- xas podia bem ser igual à dum outro inconso- lável, Musset, cujo grito maior foi: Je suis venu trop tard dans un monde trop vieiíxl Mátou-o a sua sensibilidade de grande Artista, de extraordinário Poeta. Não podia acomodar a grandeza do seu espírito na estreiteza do mundo. Sentia-se asfixiado, encarcerado. Como todas as inteligências do tempo, rudemente açoitadas por um vento de negativismo, e a este embate abrindo brecha nos alicerces, a sua também sofreu o choque, e disso resul- tou amargura, abatimento moral, astenia da vontade. Nào repudiou por inteiro as suas crenças, mas não conseguiu manter o espírito impermeável à endosmose tóxica e destruidora.

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A sciência trazia então como escopo des- pir a vida de todos os altos atributos que a poesia e a religião lhe haviam emprestado. Ficava um ermo a existência. O homem redu- zia-se à proporção do bípede vulgar, descen- dente do símio. Murchavam ao seu hálito os hortos do sonho. Secavam-se as fontes e mirra- vam-se os pomos da idealidade, e não mais, portanto, as almas insatisfeitas teriam onde mi- tigar suas fomes e sedes.

E, então, a de Anto, que pela sua condi- ção de excepcional, mais sôfregas e ardentes sentia essa fome e essa sede de ideal, como poderia subsistir doravante? Se os seus pul- mões se não tivessem tão cedo, ou mesmo nunca, desfeito em sangue, é possível, lógico mesmo, que a sua maneira tivesse evoluído, afastando-se dos extremismos subjectivistas, fa- tais no primeiro ciclo de todos os Artistas, as- cendendo a uma objectividade mais serena e desentranhando, assim, do seu estro potente e magnífico mais dois ou três volumes de belos poemetos. Teria deste modo deixado completo o seu lindo poema O Desejado, tão imbuído de sentido pátrio. Mas isso não bastaria para o acorrentar, resignadamente, à vida coeva, chan e baça. A imperfeição das coisas e dos seres postos à sua beira, num contacto forçado e quotidiano, imperfeição inconvertível ao influxo da sua vontade, imperfeição tornada orgânica e

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fixa, e que, para mais, nào lhe afrontava a sensibilidade delicada, como até lhe penetrava o espírito, contagiando-o da sua fealdade, man- chando-o, apoucando-o, havia sem dúvida de lhe desenrolar o cruel dilema: ou se integrava na vida mesquinha, amesquinhando-se, é bem de ver, ou seria impiedosamente triturado na sua bárbara engrenagem. E nào será de presu- mir antes a sua intransigência de que a sua rendição? Acrescente-se a estes motivos de desgosto pela existência ainda uma outra con- dição, também fatal na maioria dos verdadeiros Artistas. O aparecimento de antimonias, umas vezes entre a sua saúde e a sua ânsia de correr aventuras, esta forte, aquela débil, outras vezes, as mais, entre o espírito suave e cheio de requintes que lhes abaula o peito e a sociedade em que o seu destino os põe a viver. E começa então, feroz, despedaçadoramente, o pleito entre os contendores, pleito que finda sempre pela derrota sangrenta dos Artistas, que na sua es- pecial natureza de ser encontram, não um auxi- liar, mas sim um inimigo mais a corroer-lhes o aço das suas cotas de armas, pouco a pouco rendendo-os inermes e exaustos à truculência do inimigo externo. Esteve António Nobre su- jeito a esta condição, todos o sabem. Paradoxal- mente, mesmo os da sua roda, literatos como ele, que se sentiam atrair irresistivelmente pela originalidade do seu talento, não deixavam de

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acidular com despeito e inveja a sua admiração. Em Coimbra, os lentes reprovaram-no dois anos e os condiscípulos regosijaram-se sem re- buço com estes seus desastres nos estudos ofi- ciais. Teve de desertar e ir fazer o curso a Pa- ris, H foi sempre assim, enquanto em vida, por toda a parte onde passou. Queriam ajustá-lo à craveira vulgar, Excedia-a? Apedrejavam- -no. Faziam-lhe pagar caro o prestígio do seu estro, o encanto que de si emanava, o po- der pessoal de que impregnava todos à volta. Por isso, ainda os que mais ou menos com ele tinham afinidades, nào hesitaram em bandear-se com o vulgo, para a vingativa conjura. Saben- do-o ávido de companhias reverentes, afasta- ram-se dele, fizeram-lhe em torno o vácuo e o silêncio, no intento criminoso de o matarem à míngua desse sagrado pão que era indispensável à sua alma a simpatia. E conseguiram-no. Couraçava-o férreamente o orgulho, mas a vio- lência dos ataques excedia a fortaleza da cou- raça. Num dado momento sentiu-se perdido, derrotado, sem um arrimo sequer, louco D, Sebastião batalhando entre a chusma de infiéis, apenas seguido do seu agoirento áio, o tédio. Nem uma das suas quimeras soubera persistir em acompanhá-lo até a morte, denodadamente. Transidas de cobardia, deixaram-no, a distância bastante da linha de batalha. E quási o viram cair, trespassado, exangue, sem soltarem pie-

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dosameute um grito, um ái, um soluço. Até o Amor, o condestável dos Poetas, se rendeu bem cedo. Culpa de Anto? Talvez. Quis demais. Debruçou sempre a sua alma nos olhos das mulheres com a mira de ver o ceu, quando não é essa a paisagem, mas sim^ a da volúpia, para onde essas janelas encantadas olham .A Purinha, essa miragem maravilhosamente linda, exprime bemi o seu sonho romântico e errado de buscar anjos na terra, seres sobrenaturais com belezas célicas e virtudes de milagre. Por isso, o Amor, não lhe podendo ofertar o impossível, como a amisade, e como tudo o mais, o abandonou também. No ardor do combate, animou-o ape- nas o ritmo forte do coração dos simples, os pegureiros e pescadores da sua terra, em que, tal como no coração dos búzios, vago e distante, ressoa o marulhar das ondas largas, ele escutava a grita audaz e épica da raça lusíada de outrora. Caiu por fim. O seu AIcácer-Kibir foi num leito de doença. A lançada que lhe trespassou o flanco, arremessou-lha a tísica. Reatando e repetindo: esta foi mera comparsa na tragédia. Coube-lhe, por acaso, dizer a frase final. Des- consolado, traido, só, mesmo que a doença se lhe não tivesse enamorado dos pulmões, não morreria de velho. Mais dia, menos dia, roída a sua alma pela nevrose do talento, por essa outra incurável e galopante

Tysica de alma. . .

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chegaria a hora turva em que o seu braço se ergueria à altura do peito ou da fronte, empu- nhando o revólver libertador, quebrando os grilhões que o jungiam ao mundo de misérias, descerrando-lhe em frente a Jerusalém eterna, onde habitava a sua feiticeira noiva, de sorriso imutável e de misterioso encanto. A 11 de Se- tembro de 1891, quási nove anos antes, vira ele partir desse modo violento para a Cidade Santa um dos seus fantasmas tutelares. Se não fosse, pois, o episódio da tísica, iríamos hoje encontrar António Nobre incorporado na teoria dos nossos grandes suicidas, como irmão de An- tero, Camilo, Soares dos Reis, Trindade Coelho, Manuel Laranjeira, todos esses, que, sentindo suas almas de eleição com as largas asas prisio- neiras na estreita gaiola da vida, viram uma solução quebrarem-lhe as barreiras e arremes- sarem-se para o Infinito.

Uma criação de Deus, mas incompleta; Águia, encerrando um coração de pomba, Cedro que dava folhas de violeta I

Nestes trez versos da poesia Ca(ro) Da(ta) Ver(niibiis) parece Anto definir-se, com uma assombrosa clarividência.

Mas este e outros conceitos que no abundam, cheios de altivez e de convicção no próprio valor, e até coerentes com as doutrinas

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que, a despeito das tendências democratica- mente niveladoras então eclodindo com vi- gor, prenhavam a atmosfera mental da época, doutrinas de forte crença na acçào dos super- -homens, tendo Carlyle, Emerson e Nietzsche por apóstolos-pontífices, este e outros concei- tos, dizia, serviram de certo modo aos detracto- res de Nobre para o apodarem de vaidoso, exibitivo e ávido de notoriedade rápida.

A incompreensão dos Artistas pelo comum das gentes, às vezes, como neste caso, reforçada pela inveja dos que pertencem a uma esfera superior, é reincidente no velho erro de julgar aqueles à sua imagem. Não busca elevar-se, nivelar-se com eles nos seus momentos de genial intuição, meter-se na zona da áurea claridade que lhes dimana da alma e do cérebro. Em vez disso, e embora aproveite e muito da sua acção, urde-lhes de rastos. e ferozmente as maiores armadilhas, pretende aluir pela base o Sinai onde eles se erguem na inspiração que topeta o ceu, força por inquinar-lhes a fonte de Juvência onde se alimentam de ideal, na ânsia bastarda de os ver, quando derrubados, iguais a si, pigmeus e míseros, integrados na massa amorfa. Quando menos, comete o desa- cato de traduzi-los para figuras banais e isentas de prestígio.

Ora, porque se ha-de julgar um produto ar- tificial e rebuscado a excentridade de António

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Nobre, e não um fruto espontâneo da sua espe- cial estrutura íntima, impossível de arrancar da árvore humana donde brotara, sem a mutilar? Para mim, a chamada naturaHdade, feita de simpleza charra, das maiorias, é que seria nos marcados na fronte pelo fatídico sinal dos ra- ros um preciosismo monstruoso, um aborto condenável e falso, por estranho aos seus or- ganismos de excepção. Devemos tomar o mundo tal como é : vário, desigual, matizado de contrastes, não apedrejando os que fogem ao figurino previsto e à fórmula corriqueira.

Aliás, toda a mocidade talentosa é atreita a ímpetos exibicionistas, perdidos mais tarde por completo, e mais acentuados nuns ou mais ténues noutros, conforme os temperamentos. Nem Antero, cujas ambições literárias foram sempre tíbias, não publicando as obras senão a vivas instâncias dos amigos, e, para mais, se tornou no vulto de íntegra e magestosa beleza moral que todos ^admiramos, nem ele foi escapo a esses ímpetos moços. Dizem os seus biógrafos que em Coimbra bastante cultivou a excentridade.

Mas, focando sob este prisma António No- bre, e aparte a porção fugitiva que dessa pecha geral à mocidade lhe caberia, que outros moti- vos se deparam para à sua singularidade ser atribuída a índole dum arranjo, duma intenção, dum postiço? Pois não o contradiz com elo-

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quência o facto do seu isolamento em Paris, isolamento de monge, e, sobretudo, o cara- cter nacional que se obstinou em vincar no Só, apesar da sua elaboração ter decorrido quási toda longe de Portugal e entre o tumulto de civilizações intensas e absorventes, em pro- miscuidade com novas e arrevezadas estesias? Enquanto ele, num ambiente estrangeiro, não se estrangeirava e ficava fiel ao espírito da sua grei, outros, e tantos, escritores portugueses, sem porem sequer um fora da raia, apenas por snobismo, cuidavam de entornar nos seus livros ideias estranhas, na avidez dum sucesso retumbante, em cabotinas estilisações da paisa- gem e da fauna humana alheias, deixando as próprias em afrontoso repudio.

Em reforço deste argumento, colho em os Serões de Março de 1Q09, dum pequeno artigo intitulado .'António Nobre» e assinado pelo pseudónimo «Lia", os seguintes dizeres teste- munhais :

«Ha dias estive a lêr, ao acaso, versos de António Nobre, nas Despedidas, livro melancó- lico, publicado depois da morte do auctor. Isto fez-me recordar algumas horas da vida d'esse poeta, que passou pelo mundo rapida- mente, deixando em muitos espíritos a inolvi- dável suggestào do seu doloroso talento. Essas horas, insignificantes para elle, e de que, certa- mente nenhuma lembrança lhe ficou, fixaram-

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se-me na memoria, pois foram as únicas em que tive occasião de vêl-o, de ouvil-o conversar, de apreciar o seu espirito suavemente sombrio.

-<Eu não, conhecia António Nobre. Uma noite, ao entrar em ca>a da familia d'um amigo seu, disseram-me:

" —Sabe? Vem hoje o António Nobre.

"A noticia nâo rne alvoroçou. Interessava-me pouco o poeta, cujos versos não comprehendia.

"António Nobre appareceu e então comecei a perceber o dominio que exercia em todos que se approximavam da sua estranha persona- lidade. E exprimo-me d'esta forma absoluta, por que vi, n'aquella noite, o encanto invadir, sem excepção, as pessoas que o rodeavam.

'i António Nobre era n'esta época, 18Q8, um homem de figura delicada, rosto paílido, expres- sivo, completamente rapado, o que mais deixava admirar a finura extrema das suas feições, es- pecialmente a bocca, tão correcta, de linhas tão suaves, que ficaria bem em rosto de mulher. A fronte ampla, começava a tornar-se ainda maior pelo rarear do cabello, e n'aquella physionomia um pouco fatigada e doentia, os olhos abriam- se enormes, escuríssimos, profundos, admiravel- mente bellos.

«O poeta estava vestido negligentemente, calçava umas botas deselegantes e solidas. Achei-o despretencioso, como indifferénte ao effeito que a sua presença produzia. Eu tinha

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ouvido algumas vezes accusal-o de vaidoso, mas não me deu essa impressão a sua altitude. Pa- receu-me que n'elle a idéa do próprio valor, era uma convicção e não uma vaidade.

«Acceitava o facto simplesmente, conscen- ciosamente, e referia-se a isso com toda a natu- ralidade, como a coisa que não merecesse admiração. Pelo menos foi isto que julguei vêr.

«A sua maneira de conversar prendia, im- pressionava, penetrava. A voz lenta, grave, um pouco velada, com umas leves intonoções de ironia, deixava cair as palavras serenamente, e poucas vezes as suas mãos pallidas acompanha- vam com um gesto o que dizia".

E, ainda melhor do que este testemunho, en- contro no 1.° volume das Memorias de Raul Brandão, o grande prosador hodierno, um ir- mão gémeo de Dostoie>»'ski, nascido sob o ceu português, estas páginas de evocação do Poeta, formidáveis de sinceridade, num bater de peito, contrito e comovente, que espanta :

"18 de Março-1900.

"Faz hoje annos que morreu António Nobre, Em pequeno ia com Eduardo Caminha * en-

(*) Eduardo Caminha? Deve ser 'antes Eduardo Coimbra, o malogrado poeta dos Dispersos, morto aos 18 anos, e a cuja memória António Nobre escreveu as seis quadras da poesia Sepulchrosito, publicadas no n.° 6 da 2.* série de A Águia, com uma nota do autor

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terrar os seus versos no jardim solitário do Palácio, e pedia, com os olhos límpidos e sô- fregos, uma Biblia para repousar a cabeça quando o levassem no caixão. . . António Nobre usava uma abotoadura de cabeças de pregos e sorria com um modo e um ar de ternura e desdém. Fugiam delíe antes de publicar o Só; .os poetas do seu tempo odiaram-no depois de publicar o Só. Ser diferente dos outros é uma desgraça; ser superior aos outros é uma desgraça muito maior. Viveu sempre isolado. . .

Entrou na morte como tinha vivido

"Digamo-lo, digamo-lo... No fundo detes- taram-no, detestaram-no todos. Nào lhe pude- ram perdoar a impertinência, o desdém, o gé- nio. Era um ser diferente. Não agradava a nin- guém. Só as mulheres o amaram. Era um Poeta. Desconheceu a vida pratica. Tinha a consciência do seu valor, e uma superioridade que se nào podia aturar. Estávamos todos mortos por nos desfazermos d'esse ser aparte, d'esse eterno cônsul sem consulado, d'esse estudante de Coimbra que os lentes reprovavam e que nos fazia sombra. A\as debalde o arredámos : houve

indicando, bem explicitamente, qual a sua intenção come- morativa do enterro feito em 1883 de versos de ambos na gruta de Luís de Camões, no Palácio. Também a poesia do Só, Ca(ro) Da(ta) Ver(mibus) diz : «iMemoria a J. d'Oliveira Macedo, Eduardo iloimbra, António Fogaça».

C. de F.

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uma coisa nova que passou no mundo e que ficou no mundo que nos ficou *na alma .

«Agora estamos todos apaziguados, todt,'S podemos esquecer a superioridade, a afectação e o desdém infantil de António Nobre.

"Foi para a cova completar trinta e três anos n'um dia de chuva como este, frio e sujo, o poeta insolente como um principe e adorá- vel como uma creança. Quantos estavam alli á beira do tumulo ? Meia dúzia escassa, o Frei, o Justino, o Eduardo de Sousa, eu e quem mais? quantos mais? Os jornaes deram a sua morte em duas rápidas linhas. Respirou-se.

«Hoje é um dos poetas portuguezes com mais admiradores. E' um poeta de simpathia. Nunca teve sorte senão depois" de morto. Por- quê? Porque não misturou, como nós todos, o sonho com a vida pratica. Ao contrario, raros homens terão posto tão de acordo a vida com o sonho. Fez mais ; suprimiu a vida. Correu o globo e a si próprio se encontrou. Viu o mundo e nunca assistiu a outro drama que não fosse o da sua alma. E poentes, arvores, esírel- las ou pedras, entraram-lhe no coração como espadas. Nenhum outro exprimiu d'uma forma tão sua o universo.- Que universo, dirás? O meu ? o teu ? . Não, o que elle descobriu, scismando como um navegador, á proa do seu barco . . Por isso nui;ca hão-de faltar sonha- dores que evoquem essa singular figura de

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poeta, que uma vez atravessou a terra, soluçou, monologou como Hamlet e sumiu-se logo no sepulchro".

Este corajoso «mea culpa» chancela de ver- dadeiro o que afirmei, pois. Acompanha-o uma impressionante gravura "António Nobre no caixàO", nunca reproduzida, creio, em qualquer dos trabalhos até hoje publicados sobre o Poeta. Apresenta um aspecto muito diferente daquele que todas as outras suas conhecidas fotografias nos dão. Mais velho, o cabelo mais escasso, o bigode crescido e farto caindo ao abandono sobre a boca, a barba também envol- vendo-lhe cerradamente o queixo, tais como ele nào usau, - estas divergências fisionómicas, em relação aos retratos vulgares, lornam-no irreconhecível à primeira vista. Mas, se lhe fi- xarm.os os olhos apesar de cerrados, ó caso estranho ! logo o reconhecemos e identifi- camos. São os seus olhos, nào ha dúvida! Ás suas pupilas magas, largas e expressivas, co- brem-nas ciosamente as pálpebras, mas a gente, nào sei porquê, adivinha-as, vê-as, negras, bri- lhantes, profundas, misteriosas, carregadas de sonho, voltadas decerto para o oceano da eter- nidade, como «navegador, á proa do seu bar- co", que foi, no dizer de Raul Brandão.

Destacando-se na alvura da camisa, do co- larinho e da gravata e emergindo de entre tu- fos de hervagem e flores, parece até que a sua

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cabeça de dolorido ostenta na barba e no bigode bastos fios de prata, a mascararem com uma velhice jorematura os seus trinta e dois anos de plena vida. Fora a Morte, talvez, que, sentindo-se mais velha do que ele, oh ! muito mais velha! para dalgum modo atenuar a di- ferença entre a idade prrjpria e a do seu noivo, assim procurou aproximá-lo mais de si, enve- Ihecendo-o, num assomo violento de ciúme . .

De António Nobre, poucos ou nenhuns iné- ditos, no sentido rigoroso do termo, existirão hoje, visto A Águia, da Renascença Portuguesa, do Porto, num carinhoso preito de admiração, se ter dado por diversas vezes à louvável ta- refa de publicá-los, chegando mesmo, àlêm de editar o Só, a fazer do n.° 10 da 1." série, de julho de 1911, como que um opúsculo especial em sua memória. Trouxe a lume muitas poesias nunca anteriormente dadas à estampa umas, outras que o tinham sido mas não no nem nas Despedidas e, por isso, quási intangí- veis para o prazer espiritual de muitos dos de- votos do Poeta, soterradas como eram em páginas de jornais e revistas efémeras, e outras ainda que a mão de Auto, subitamente enfadada, numa dessas rajadas de tédio que tantas vezes enegreciam o firmamento claro do seu estro, afastara de si, a meio da realisaçào, e para

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sempre ficaram incompletas, mutiladas na sua beleza. Capitaneou essas poesias um desenho de António Carneiro, soberbo pela interpreta- ção psicológica dos seus traços, em que o lápis bruxo do artista-pintor nos deixa adivinhar o mundo complexo de pensamentos e sensações que tumultuava no íntimo do Poeta. Seguiram também esse retrato três curiosas reproduções fotográficas e o fac-siinile dum autógrafo de Nobre. É este número da excelente revista portuense, sem dúvida, um valioso e impres- cindível subsídio para o estudo completo do Poeta que se faça algum dia. Mais tarde, ainda ela voltou, em vários números da 2.^ série, a inserir novas poesias de António Nobre, tam- bém exiladas dos seus dois únicos livros, e que. futuramente, como é de justiça, se encon- trarem vontade piedosa e amiga a coligi-las num volume, - reavivando o antigo propósito, logo tomado quando da impressão das Despe- didas, e primitivamente cometido a Justino de Montalvão, creio, com outras se arregimenta- rão de modo a formar o texto dos Primeiros versos, livro anunciado mas nunca vindo a lume, atirados de prestes os versos que o com- punham para a penumbra empoeirada dos pa- peis íntimos e avulsos, não sei eu e não sabe ninguém ainda hoje ao peso de que rasoáveis motivos.

Assim, se me não é concedida a honra de va-

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lorizar estas (Dáginas com quaisquer produções de Nobre absolutamente inéditas, quis, contudo, um benéfico lance do acaso que me viessem cair entre as mãos uns recortes de jornais an- tigos com versos da sua primeira fase, documentando exuberantemente a riqueza do seu temperamento lírico e, sobretudo, inte- ressantes pela naturalidade, pela frescura da maneira, entào ainda bafejada por um espírito que trazia o sol doirado mocidade alegre a bater-lhe em cheio, scentelhando-o de excelsa graça, de fina bonomia, e mal deixando pres- sentir a aproximação sombria do pessimismo, que pouco mais tarde havia de começar a per- seguí-lo pela vida fora, braço dado com a doença, em conúbio trágico, para um apadri- nhamento sinistro e mortal.

Como nenhuma das poesias que seguem faça parte dos livros do Poeta ou das exuma- ções de A Águia realisadas até o presente, nem mesmo as tenha eu visto citadas por algum dos muitos escritores que, episodicamente ou longamente, teem versado a individualidade de António Nobre, concluí estarem elas em abso- luto esquecidas, e, deste modo, que um feliz acaso mas desvendava e punha sob os olhos, me competia divulgá-las aqui.

É esta a contribuição que posso deixar ao coleccionador que àmanhan surja a enfeixar as composições poéticas do ciclo inicial do

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Poeta, a sua primeira colheita de frutos de Beleza, de Graça e de Sonho, doirados e sa- borosos para quem os e lhes saboreia ape- nas o inebriante sumo da polpa, nem sequer adivinhando quanta dor dilacerou, triturou, rasgou primeiro as entranhas maternais do es- pírito criador que atirou para a luz solar, e em forma tão generosamente comunicativa, essa colheita magnífica.

Pequena contribuição, sim. Mas, reconhe- cendo a sua modéstia, não a considero, toda- via, importuna.

Faço transcrição fiel, respeitando rubricas e ortografia :

O ECLIPSE

{24 de setembro de 1884)

N'aquella tarde eii contemplava, ancioso,

A lua das marés : Ia ver um phenomeno curioso,

Pela primeira vez.

Desde as sete horas que eu me achava prompto,

Pois vinha no jornal Que se daria, ás sete e meia em ponto,

O eclypse total.

Na praia, Miss ! áquella hora havia

Enorme sensação : Enthusiasmada, a gente discutia

Com o óculo na mão

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E como, é certo, com a vista núa, Tam fraca e tam subtil,

Tu não podias observar a lua. Astrónomo gentil.

Um moço poeta, rouxinol das praias.

Um oculo offereceu A ti, meu doce Ptolomeu de saias,

Geometra do céu !

Assestaste-o, mas nada: uma imprevista Mancha aos teus olhos sáe,

Pois que estava graduado pela vista Do teu velhinho pae. .

Da praia, entanto, na deserta areia.

Caia o luar a flux, E nos céus fulgurava a lua cheia.

Cheia de tanta luz,

Que tu, imaginando ver da aurora,

O lúcido arrebol. Disseste : «Estou capaz de abrir, agora,

O meu chapéu de sol . »

Única phrase que tombou, creança,

Do róseo lábio teu, Porque depois, que súbita mudança !

Tornou-se escuro o ceu . .

E a lua, a pouco e pouco desmaiando,

Sumia-se no ar, Como se um monstro a fosse devorando,

Na sombra. . devagar. . .

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Á hiz da lua succedeu a treva,

Treva de horror sem fim,

Côr dos teus olhos, deliciosa Eva ! Meu pallido jasmim !

E ao ver-me nas trevas, de repente.

Clamei por ti, clamei. . . E interrogando a multidão, a gente,

Em vão ! Não te encontrei !

Ah, bem dizem as lendas, os adágios,

E as bruxas do Sabbat, Que os eclypses da lua são presagios,

Sinaes de coiza !

Por isso o Mal com sua garra adunca

Me separou de ti. Pois que. tu nunca mais me viste, nunca !

E eu nunca mais te vi .

E, hoje, nas trevas sepulchraes e calmas.

Eu vivo, por meu mal : É que também se deu de nossas almas

O eclypse total ! -

Do livro, no prélo : «Alicerces>.

António Nobre.

Tem esta poesia a nota interessante, por nova, de denunciar o título dum livro Alicer- ces, que não consta do «Plano das obras de António Nobre», publicado pelo sr. Visconde de Villa-Moura no seu notável Ifvro António

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Nobre (seu génio e sua obra) o único trabalho de vulto inteligentemente urdido, que até a data alguém deu a lume sobre a figura do Poeta, porque nào se detêm nele a catalogar poesias, na ânsia comezinha e burocrática de lhe abrir assento de baptismo nesta ou naquela escola literária, mas sim, armada a sua observação com a melhor e a mais subtil das lupas, que o seu próprio temperamento de Artista lhe forneceu na quási plena identi- dade de duas maneiras de ser psíquicas, a de si mesmo e a de Anto,— desceu ao íntimo deste, a sondar-lhe fibra por fibra a alma enorme e ondeada de crises supra-terrenas e infernais. Com exactidão, obstinou-se em des- cobrir primeiro o génio do Poeta e em de- monstrar depois que a sua obra ali embebe pro- fundamente as raízes, seguindo assim processo contrário ao usado pelo vulgo dos tratadores de coisas literárias, com óculos críticos enca- valitados no nariz, foscos de erudição, a ates- tar-Ihes à légua- a miopia, isto é, a impotência para lobrigarem algo àlêm do papel e dos ca- racteres nele exarados.

A poesia que segue nào a datou o Poeta, nem sei ao certo a data do periódico que a inseriu, pois o fragmento que possuo abran- ge ' apenas os versos. Contudo, à margem, alguém escreveu a lápis 1888, que julgo indicar o ano em qtie saiu o impresso.

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AO VIOLÃO

Manhã de junho. O céu é rubro. A lua, tonta

De somno, vae tombando. . . O sol no azul desponta

Apagam-se de todo os astros: pyrilampos

Que scintillam do céu nos azulados campos.

Dos olivaes do monte o rouxinol diz missa

Á natureza que o ouve, extactica e submissa.

Os pássaros gentis, vindos á luz este anno,

Andam em bando, aos mil, n'um labutar insano,

A alluir, a desfazer com o biquito e as azas,

Os ninhos virginaes, as suas aéreas casas

A luz do sol, desperta a aldeia socegada:

Os carros da lavoira alongam-se, na estrada.

D'um misero casal, á soleira da porta,

Uma velhinha mai^ra e doente, quasi morta,

Fia na sua roca o linho das estrigas.

Muito ao longe no monte, algumas raparigas

Andam á lenha. Sim; canta a cotovia:

É preciso cuidar da refeição do dia- . .

Vêm-se ao collo das mães, pequenos, a gritar,

Despenteados, sem graça, immundos, por lavar.

E vê-se, além, passando, a multidão cristã

Que vae para a capella ouvir a missa aldeã.

E eu, mal caiu no oceano a derradeira estrella.

Abri a larga, antiga, hierática janella,

Deixei que o ar lavasse os meus pulmões e vim

Postar-me, doce amadal ao do teu jardim.

Dormes ainda, eu sei: a tua alma habita,

Nesse Paiz, além da abobada infinita. . .

Mas sei que tu, de mãos cruzadas sobre o peito,

Est.is, alli, n'um branco e pequenino leito.

Assim não ouves, não, uma canção secreta

Que eu vibro, baixo e baixo, cm meu violão de poeta.

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Acorda, meu Amor! Levanta-te, creança!

Desprende ao vento a longa e emmaranhada trança.

Ajiido-te a fazer, (por que isso me compete),

A tua delicada e simplice toilette.

te verá o mar, esse discreto velho . . .

O lago do jardim será o teu espelho.

E,— escuta!— banhar-te-has, n'um cálice de rosa:

Para o teu corpo, flor! é uma tina espaçosa! - . .

Hei-de enxugar-te o corpo, á luz dos meus desejos,

E cobrir te-hei, depois, com um lençol de beijos!

Vamos! acorda, amor! Levanta-te do ninho!

Descerra o meigo olhar; veste o roupão de arminho,

E vem comigo, vem, por esses campos fora:

Espera-nos o almoço a que preside a Aurora!

Ah, quanto é bello vêr a natureza era festa!

Que harmonias sem fim, nos ramos da floresta!

Como é viril e grande a voz que sae da Terra,

E vae de praia em praia, e vae de serra em serra!

As rolas passam, longe... e não sei que ave canta:

Que muzica divina e explendida garganta!

Mais uma vez: acorda! As doces cotovias

Clamam por ti do ceu e mandam-te os «Bons Dias».

Levanta-te e verás como é formoso isto: O céu é de rubins, como o lençol de Cristo! A Terra nada em luz; tem uma côr de festa, Piírece, até, meu Deus! que em cima da floresta Caiu o sangue hostil de trágicas batalhas. Os montes vêem-se além a arder, como fornalhas Onde se incinerasse o corpo d'um gigante! Os cravos do jardim parecem, n'este instante. Os cravos com os quaes pregaram, n'uma cruz, Os frios pés e as mãos tão brancas de Jesus! Os morangos sensuaes parecem corações Esfaqueados, vertendo o sangue, aos borbotões, E lagrimas de fogo as cerejas vermelhas!

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Nas amplidões do valle as fulgidas abelhas Andam chupando o mel e a virgindade ás rozas. Sente-se palpitar o coração das Cousas . . E o vinho da alvorada, em crispações doiradas, Escorre pelo mundo às ondas, ás golfadas!

Mas tu não ouves, não, e mais feliz do que eu Que não possuo a Graça e a protecção do ceu, Poisou agora mesmo, á beira do telhado Da tua casa esguia, um Dou Juan alado: Safou-se do beiral para um carvalho, em frente, E d'esse modo altivo, ignóbil, insolente. Sem o menor respeito e minimo decoro, Fica-se a olhar-te, assim, fazendo-te namoro, Vál Abre-lhe a janella e deixa-o entrar. Coitado! Beija-lhe as pennas, beija e affaga-o com cuidado. Que eu não me zango, não. Seja feita a vontade Ao brejeiro pardal, filho da Immensidade! Por mim, deixo-te em paz, digo-te adeus, Aurora! E, se não canto mais e, se me vou embora. Não é por ódio, crê; não é por ciúmes, não:

Partiram-se-me, filha! as cordas do violão . .

António Nobre.

» * *

O hoje se inscreve no número das obras clássicas da literatura portuguesa e a no- toriedade que disfruta, justa e calorosa, garante bem que será lido e amado enquanto se falar a nossa língua. no presente as Antologias arquivam trechos seus, criteriosamente escolhi- dos como paradigmas de beleza poética, na

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suavidade e equilíbrio do ritmo e no surto alto da inspiração, que o desprende da chateza dos versifícadores vulgares e o arremessa para as rejriões da violenta emoção, a única, ao certo, em que se aprovisionam de ar suficiente e vi- tal os pulmões dos grandes Poetas e Artistas, e ionge da qual eles asfixiam e abrem cavernas.

Fora disto, muito acima deste culto semí- oficial, o que se apresenta como mais impor- tante, como mais impressionante, pelo seu si- gnificado de espontaneidade, é a corrente de leitores, livres da menor coacção, cada vez en- grossando mais e mais e erguendo cm unísono coro as suas vibrantes confia 't <io encanta- mento sentido, num contágio c Inaçào que nào abranda de vitalidade por . anos que passem e outros livros tarnbêm .;. valor sur- jam a provocar a atracção simpáiica do publico.

Três edições conta o Só, todas exceden- do, pelas suas tiragens avultadas, a magreza clássica das edições do nosso estreito mercado literário, que então em livros de versos (e isto é num país de poetas! .) é duma debilida- de irrisória. Pelo contraste ressaltante deste facto tnais avulta ainda o sucesso da obra de António Nobre, ao presente por completo es- gotada e sem grandes esperanças de ser em breve reeditada de novo, por incompreensível recusa da família do Poeta às instâncias que nesse sentido de várias partes lhe têem sido

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feitas. Segundo depoimento de A Águia, do Brasil chegam frequentemente encomendas de 100, 500 e 1.000 exemplares, que, está claro, pela infeliz circunstância apontada, nào podem ser satisfeitas. Assim, sobre os raros exempla- res que aparecem à venda, em liquidações de bibliotecas particulares e fundos de livraria, a especulação galopa infrene, cabriola, delira. Por exemplares das 2.^= e 3."^ edições surgem ofer- tas gradas, de cincoenta escudos e mais. Quan- to aos da edição princeps, os poucos felizes que hoje os possuem, aferrolham-nos ciosamente, em ímpetos de bibliófilos avaros e loucos.

Contudo, e em inexpugnável oposição aos entraves levantados injustamente à sua expan- são, e às pedradas, não muitas, valha a verda- de, dum ou outro zoilo, que, de quando em longe, zunem desarmoniosamente na ambiên- cia carinhosa que o circunda, o interesse pelo livro mantêm-se sempre forte, palpitante e cá- lido, como se constata.

E porquê? Qual a causa desta violenta e estranha atracção pelo Só? Que procura nele essa corrente de leitores, dia a dia maior e mais- ávida? Decerto aspirar o mágico hálito, ora acre, ora doce, do mistério e da tristeza, que dos seus versos dimana, como se no facetado maravilhoso daquelas estrofes se encontrasse espelhado, retratado com espantosa nitidez e similhança o fundo revolvido e chagado das

F. 5

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suas almas, ainda teimosas, apesar do quoti- diano e brutal embate da realidade que as ro- deia e de contínuo as rasga com as garras aduncas, em vestirem-se da clâmide branca e Ihamada de oiro do Sonho. E' como se aque- las perturbadas almas, que se aglutinam na mul- tidão caudalosa dos seus leitores, pressentis- sem e adivinhassem quási, ao lerem essa auto- biografia sombria e convulsa, serem elas mes- mas pobres irmans da alma de Anto, tristes como ela, irmans pelo sangue negro e tóxico da dolorosidade que as intumece, pela com- plexidade, cheia de antagonismos, das ambi- ções que dentro redemoinham, pela submis- são, quási aprazível, quási voluptuosa, ao cilí- cio da dúvida que as flagela, pelo peso da des- crença que as abate e roja no cinzento e frio do tédio. Irmans, por um lado, incompara- velmente mais felizes, pois, desprovidas do sen- tir mago, da intuição feiticeira dos Artistas, sentem e sofrem, ao invez deles, apenas a agrura dos seus destinos, num pequeno quinhão, res- trito às suas personalidades vulgares, embora, por outro lado, se devam achar um tanto mais desgraçadas, porque, sentindo e sofrendo, elas, almas rasas, sem o condão excelso de, na voz divina, de oiro e cristal, do génio, dizerem alto, uivarem, rezarem, cantarem as sensações do seu martírio e os sofrimentos da sua tragédia ingente,— rudes, mudas, emparedadas, não po-

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dem alcançar a compensação que aos excepcio- nais, pela magestosa beleza que impregna os seus desabafos postos em Arte, acode a aliviar- -Ihes o fadário de viverem num mundo inferior e contrário à sua natureza melindrosa.

Se o culto pelo Só, expresso numa perma- nente e intensa leitura e desdobrando o seu fogo de Vesta em espíritos mais ou menos ar- tistas, embora apenas receptivos, assimiladores pois, quanto a mim, para admirar sincera- mente qualquer obra de arte é de absoluta e primacial necessidade ser-se de algum modo também um pouco artista, no que me ponho de inteiro acordo com uma opinião, ainda mais concreta sobre o assunto, de Fa;.met, o mestre- -crítico, le lecteur de poetes est un initié. . , é tão considerável, que em breve espaço de tempo lhe rarefaz no mercado as edições suces- sivas e grossas e origina um jogo diabólico de cifras sobre os poucos exemplares que ainda aparecem, como acabo de dizer, não deve igual- mente deixar de ser apontada, como não me- nor nem menos robusta, antes pelo contrário, a sugestão que ele exerceu, sobre os poetas contemporâneos do autor, já, e maiórmente, sobre os das nova e novíssima gerações. Acu- sam, bem acentuado, o seu ascendente, todos os que após ele vieram ao mundo, neste reta- lho da terra ocidental, com a dolorosa e estra-

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nha sina de vibrarem suas almas acima das al- mas do vulgo, como monges e levitas mais ou menos inspirados dessa religião de sempre, ou, de quando menos, de enquanto os Homens per- manecerem humanos a Poesia.

Exerceu sugestão disse. Direi melhor exerce, pois o facto dessa sugestão ainda hoje se constata dia a dia nos livros que vão apa- recendo. Sem grande arrojo poderia dizer mes- mo-exercerá, atendendo a que no ha um manancial inexgotável de poesia, de pensamen- to poético, a que, não é lícito alguém recor- rer como fonte inspiradora, mas até é de re- comendar que assim seja, pelo caracter nacio- nal, português, que da maior parte daquelas es- trofes transpira. Assim se terá sempre um ele- mento poderoso de salutar reacção contra as influências estrangeiras, que a moda versátil nos sopra, e ao peso das quais as virtudes .ma- ciças se derrancam e estiolam na literatura que fazemos.

Investigada com vagar, livro por livro, a produção literária portuguesa desde. 1892, ano em que o surgiu, até o presente, obras em prosa e em verso, tudo, e apartadas em ruma as páginas que a António Nobre e ao seu gé- nio poético se referem, atingiria essa ruma àe papel, sem exagero, um vulto montanhoso. No curso da minha longa leitura, quantos comen- tários, estirados ou curtos, quantas rememora-

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çòes, quantas citações de versos, a vigorisarem, a imprimirem o prestígio da graça e do senti- mento a impressões próprias, eu tenho encon- trado, e isto ao acaso, sem me nortear a inten- ção de encontrá-las?! E como eu, com certeza, toda a gente que lê. Ha até citações dos seus versos consideradas clássicas, tào usuais são. Por exemplo, aqueles dois versos evocados,

Qn'é dos pintores do meu paiz extranho, Onde estão elles que não vêm pintar?

sempre que se quere verberar o descuido, o desapreço dos nossos artistas da tela pelos en- cantos, tão fartos, louçàos e pitorescos, do nos- so torrão serrano e da beira-mar, em que o azul que o alpendra esconde a velha e acesa pugna do Deus-cristào e de Pan, ambos ciosos da primazia de derramarem sobre ele as suas bênçãos fecundas.

Os poetas, principalmente, como é natural, trazem uma abada de homenagens espantosa, cristalisando-as desde as simples quadras, iniiineros sonetos, até composições longas, sem- pre imbuídas fortemente de veneração pela sua delicada e gentil lembrança. Quem fizesse disto colectânea, quantos volumes de In Me- moriam obteria?

E sabe-se bem que tais juizos encomiásti- cos, rendidos de respeito, não sobem apenas da massa semi-anónima dos novos, dos neófitos das letras, muitos dos quais de novos não pas-

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sam, a nào ser para falidos, mortos e malogra- dos, uns pela débil compleição do seu estro, outros pela tão vulgar e estúpida incompreen- são do meio. Não. Bem fundos e luminosos rastros de beleza deixaram e deixarão, os ainda vivos, após si muitos dos que têem turibulado junto do túmulo de Anto. Foi e é gente de jupitereana estirpe a das romagens piedosas ao seu leito de morte. Foram e são das mais ilus- tres e mais fidalgas da nossa grei, mãos galhar- damente familiarisadas com um instrumento de trabalho, donde irradie a astral scentelha do talento, seja um cinzel, um lápis ou uma pena,, essas mãos postas em geito de oração à beira da sua campa e cobrindo-lhe a lousa branca de rosas e de louros.

Se António Nobre não fosse, pois, o alto Poeta que foi, se a sua obra não merecesse, apesar de pequena em vulto externo, ficar en- tre as mais perduráveis obras poéticas da lín- gua lusitana, contra o que arriscam os raros zoilos que o apedrejam, como compreender, como justificar, esta sinergia laudatória, tão vi- brante e partindo precisamente dos núcleos da multidão mais esclarecidos de luz mental e, por isso, mais aptos a formarem um juizo crítico,. severo e isento de falhas? Que estranho dalto- nismo o seu, se se tivessem prestado a colabo- rar num tal engano?!

Esta ininterrupta queima de incenso, feita

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àquêm e àlêm-mar, pois no Brasil esse culto nào é menor, em^ escritos, em trabalhos plás- ticos, enfim, nas múltiplas facetas da Arte, de- monstrando à sobreposse a larga esfera da influência do Poeta e o profundo conhecimen- to que ha dos seus versos, tem ainda outra ma- nifestação de cunho notável, que, em certos ca- sos, chega a ser antipática ou mesmo criminosa, diga-se o termo violento mas exacto. Ao lado de imitações numa ou noutra passagem, ténues, pálidas, e, por isso, toleráveis, e mesmo bastas vezes confessadas, sem rebuço hipócrita a amor- daçá-los, pelos próprios autores, quási sempre novatos e, assim, necessitados de moldarem a sua emoção na dos poetas consagrados, de- para a gente, em não menos vezes, com fla- grantes desonestidades de imitação, com inegá- veis decalcos da maneira e dos processos de Nobre, e até da seiva emocional dos seus ver- sos, imitação tão fora das fronteiras da crítica mais generosa, que perde qualquer jús a inti- tular-se honesta, e, sendo cópia servil, incorre na classificação condenatória de plagiato, de roubo literário. Muitas foram denunciadas e espiaram o crime com o merecido repudio público, suscitado por essas denúncias. Das que medram ainda, encapotadas, nào me sorri ser o delactor.

Não se dão estes decalcos apenas no inte- rior do Só, isto é, no seu miolo poético. Como

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as suas edições, principalmente as 2.^ e 3.^ se revestiram dum aspecto exótico, original, na disposição das páginas, na beleza das vinhetas, no formato, em resumo, em toda a sua figura material, logo outros autores se deram a co- piar-lhes o corte e os ornatos da vestimenta, desde o tipo aos desenhos. Ainda ha poucos dias me mostraram um livro brasileiro, Se- tembro, de Manuel do Carmo, que, sendo parte do seu conteúdo um inferioríssimo pas- tiche do poema de Anto, procurou também im- primir ao envólucro uma estreita aproximação com o semblante editorial daquele. E' um exem- plo, porque estes casos são muitos.

Este exagero de simpatia por António No- bre, tomando caracter de aberração, resolven- do-se em corrupto espírito imitativo, deu-se ainda com respeito à sua singularidade como homem. O snobismo, que de tudo se apossa, tomou-o à sua conta. Mordidos por essa tarân- tula, muitos de entre a roda literária e artística da sua época se atiraram a copiar-lhe os gestos e o da gravata, o modo de andar e as ati- tudes scismadoras, o erguer da cabeça altiva e os menores tics pessoais, embora insignifican- tes, tudo, numa palavra, que puderam da sua excentricidade instintiva, bem ou mal, mas mais vezes mal do que bem. Nem mesmo a sua doen- ça escapou santo Deus ! Estupidamente, filia- ram nela o seu poderoso e rútilo talento: e lo-

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go surgiram bandos de tísicos, de artificial pa- lidez, de tosse rebuscada, falando voluptuosa- mente em hemoptises, em pulmões desfeitos, em noivados com a morte. E, se um arsinho de geito versificador lhes bafejava o íntimo, pres- tes escorria a água-chilra dos seus versos pre- tensiosos, coxos, urdidos sobre os motivos mórbidos do cânon, mas sempre, pela falta de sinceridade bem reconhecível, soando a òco e enfastiando o público, que pretendiam épater. Como o arremedo das circunstâncias físicas era impotente para o milagre da eclosão dum en- genho onde nativamente ele não brotara, esta espectaculosa mise-en-scène patológica e ultra- -romântica, breve abriu falência. Mas isto nào impediu que talentos verdadeiros e recem-na- aos se asfixiassem dentro dela, podendo, a te- rem enveredado por caminho mais conforme à sua natureza, vingar, desabrochar, desenvo!- ver-se até robusta estatura. Foi longa a teoria destes arlequins de hospital. E o mais célebre é que ainda hoje, vinte e tantos anos idos, apa- recem . . .

Ha quem debite a António Nobre as culpas deste desvio, desta contrafacção baixa e gro- tesca. E' óbvia a iniquidade do débito. Se al- guém toma dum gomil de Falerno e o bebe até a embriaguês, se uma criança, brincando à beira dum lago, se descuida e afoga nele, se um insensato expõi longamente a cabeça ao

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sol de Agosto e se adoenta, de quem a culpa? Do vinho, do lago, e do sol?

E' precisamente um caso similar ao de Mau- rice Rollinat imitando à outrance Baudeíaire, forçando por viver-lhe os sentimentos, repu- diando a própria personalidade em homena- gem à musa satânica e delirante que o vate das FLears da Mal pusera em moda, conseguin- do apenas uma cópia«má à custa penosa do estrangulamento da sua índole poética, rústica, equilibrada e san, de que parece ter saudades quando escreve :

Heureiíx Thomme qui se guérií De la vénéneuse lecture, Du projet du songe et nourrit Sa pensée avec la nature.

Será, assim, justo que Baudeíaire sofra con^ denaçào pelo voluntário descaminho de Rol- linat ?

Para remate desta ligeira impressão sobre o feiticeiro Poeta do Só, que, sincero perante o seu próprio temperamento, e deixando, para mais, tauxiada magnificamente a sua bela obra com as duas mais altas virtudes exigidas em Arte— a originalidade e a irradiação emocional teve ainda o valor de ser o vidente intérprete da sentimentalidade convulsa e decadente da grei da sua era, e quiçá da nossa, seja-me lícito transcrever uma pequena parte dum. ar-

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tigo que o ilustre escritor sr. jiilio Dantas pu- blicou em 1915 a respeito da comemoração feita em Coimbra a António Nobre. Ti-anscre- vo essas frases do eminente e festejado autor da Ceia dos Cardeaes, porque vejo nelas uma formosa e eloquente síntese da medida lata daquele valor: "Nobre não foi apenas o autor d'um dos mais belos poemas que tem produzido a alma lírica moderna: é a figura que mais pro- fundamente incarnou a grande tristeza nacio- nal, expressão resignada e dolorosa de todas as fadigas da raça. Nenhum livro foi tão forte- mente sentido pela mocidade portuguesa, como o Só. Nenhum livro foi, por conseguinte, tão comovidamente amado. E porque? Porque nos seus desalentos profundos, nas suas renuncias doentias, nas suas agonias formidáveis, estamos todos nós. São os nossos estigmas. E' o nosso retrato. A minha geração reconheceu se, inteira, nas paginas confrangedoras avesses Luz iadas da. decadência. A geração novíssima parece ái d'ela e de nós! reconhecer-se também."

Quem é o sr. (Albino Forjaz de 5ampâio

Findo o ligeiro estudo impressionista que so- bre António Nobre, o notável Poeta do Só, atraz ficoU; e antes de examinar detidamente as pe- ças do processo contra ele organizado, surde agora o ensejo, ou melhor, o dever, de averi- guar quem é a personalidade que, ao convertê-lo em pretenso réu de imaginárias culpas, ousou saltear a jazida, pequena como um berço, onde, entre olorantes lembranças, repousava a sua ossada infantil e branca, revolvendo-a, arran- cando-a ao merecido repouso, desornando-a das grinaldas em que tantas mãos devotas a haviam aconchegado.

Se bem que esta empreza de quebrar lousas tumulares seja, por sinistra e arrepiadora, inca-

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paz de suscitar simpatia e angariar louvores de gente piedosa e boa, nào quero ater-me nesta questão a um aspecto de mero sentimentalismo e, antes, buscarei imprimir-lhe a feição mais prática aplicável ao caso: mensurar a estatura espiritual do juiz, comparando-a com a do réu, observar a imaculidade da toga que envergou para o julgamento, inquerir da gravidade que transpira do seu ciirriciiliim vUcb, fazer, enfim, um balanço, ainda que rápido, dos altos atri- butos que, assistindo-lhe, lhe outorgaram o di- reito de lavrar uma sentença condenatória con- tra o Poeta, com punho firme e de carranca fera e ríspida.

Como prometo no Saibam quantos... de prefácio a este despretensioso trabalho, pro- curarei caldear de calma imparcialidade a tinta que me vai servir para traçar, tanto este capí- tulo de comentário ao passado literário do sr. Albino Forjaz de Sampaio, como o seguinte e último, de decomposição do seu António No- bre que suscitou o presente opúsculo. Poderá a mihha pena aqui deixar exarada uma visão errónea, mas, se o fizer, de novo o garanto, não será no intento de estrondear efeitos de briga de arraial: se erros cometer, serão erros sinceros, reçumantes de convicção. Assim, em nada querendo exceder o limite que demarquei para os meus assertos, fujo a tratar duma ques- tão que a outro, que tivesse em mira o escân-

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dalo, sorriria: a legitimidade ou ilegitimidade com que o sr. Albino Forjaz de Sampaio faz uso deste apelido em vez do de "Cunca" ple- beu e chato, que lhe é atribuído por quem em , tempos na imprensa com fragor debateu o caso. E' a sua personalidade escriturai que me im- porta: nela me confinarei.

Por nào sei que misteriosa razào, desde as Palavras Cínicas que o sr. Albino Forjaz de Sampaio vem cuidadosamente apagando da lista das suas obras publicadas os seus primeiros trabalhos literários dados a lume. Modéstia mal compreendida? Nào o creio, porque a ser as- sim, faria ele, por coerência, igual táboa rasa dos demais livros. Formo a este respeito uma presunção, que mais adiante, em lugar próprio, como corolário do que fôr explanando, virá mais compreensível.

Três obrasinhas em verso antecedem o pri- meiro volume de prosa, tão reclamado, do sr. Forjaz, que, é evidente, não conseguiu furtar-se à trivial, clássica e lusitana costumeira duma estreiasinha poética.

São elas: Violáceas, em 1901; O Sol do Jordão, em 1Q02; e Ao cair da folha, em 1904.

Violáceas, é uma plaqueta com duas páginas impressas apenas e uma capa. A impressão a azul sobre papel couché, e este cortado mim formato acentuadamente oblongo, recordam lo- go a 2.^ edição do de António Nobre, de

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1898, de Guillard, Aillaiid & C", Lisboa, se, para mais, lhe observarmos a disposição das estro- fes. Mas vai ainda àlêm a similhança. Para pro- va, transcrevo grande parte dos versos:

Cachopas do Norte, ás Noites de Eira, A rir desgarradas, gemer violões. O' Noites de Neve! roda da lareira! Contos a contar! Velhas noites de Eira! Vida de Saudade, nossos Corações.

' O', Noites de Estriga, Noites de Luar, Com loiras Marias, alegres a cantar, Lindas, encostadas, hombro co'os Maneis, Que aspiram, sorrindo, a coifa d'anneis E a Lua Cheia ronda, a empoçar Em noites de Estriga, na eira o Luar.

Louco Coração! não me evoques Sonhos Nesgas d'ilIusão, Triste Mocidade. Não tornes mais agros teus dias tristonhos; cabo de ti o Sonho e a Saudade.

Ao Sol-Poente, grenha de cabeças loiras. Que longe esmaece como uma queimada, Morrendo, mui distante, na terra de moiras, A escura Noite veste, a opa estrellada E embrulha na treva, suas repas loiras.

Porque a Noite é, o manto de Nossa Senhora, Ceu cheeinho de estrellas, dos astros rosário Padres Nossos, tremem e luzem agora São astros, são estrellas, flux'straordinario Coipo luzes, que tremam, no cimo de mastros. ..

Depois duma quintilha no mesmo tom, que, por sem especial interesse, omito, continua:

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Tristes casas da Estrada, frias, ao recato

Tecm luzes, que brilham á Noite, ao serão,

As Estrellas da terra, que o são do niatto:

Na Estrada o Luar, assemelha um regato

Ou mesmo a Via Láctea, em ceu de escuridão. . .

E ao cimo passa, sombrio, um enterro

Com cirios accesos, dúbios, mui distantes

Luzinhas tremulantes á bruma do cerro. •■ .

passa! passa sombrio um enterro

De cirios trementes aos Ventos andantes.

E a Vida dos Mortos, é Noite sem fim,

Que dormem socegados, talvez a sonhar

E a nós, que sonhamos lábios de carmim,

Revela-nos a Noite, Visão singular

O Enterro dos Sonhos, na Noite sem fim.

Dormem os Mortos, calladinhos, Devem ter frio, coitadinhos: Na Solidão d'uma aldeia; Passam na Estrada, raparigas. Moças tão lindas, e cantigas Que ellas cantam, em sereia, A sirandar,

E, no Ceu, passa a Lua-Cheia. Os Mortos dormem, sem fadigas Sem accordar. Partes coração p'ra terra Estrangeira, P'ra Longe, p'rá Morte, p'rá Vidad'Alem, ficas, quieto, dormindo á soalheira, Na Paz do Senhor, não vae ninguém ! Alegre, na Rua, passa a tua Amada, Que linda que é, sanzinha, corada. Parece uma Santa, tão bonita vae E, um dia, vae-te visitar, Livida Santinha e descorada, Comtigo Verme, ha-de então Noivar!

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O' vós que ficaes, por mim rezae ! O Vento nas Cruzes, prepassa a lufar Os Mortos dormem, ao frio ao Luar.

Albino Forjaz de Sampayo.

(Da Via Dolorosa)

em preparação

Descortina-se facilmente e inegavelmente o figurino. Na forma, veja-se a poesia .-^Antonio" do Sd, com versos da mesma medida e for- mando dois temas, desenvolvendo-se paralela- mente, ou melhor, um cortando o outro, como um comentário, como um falar baixinho. E na essência, aparte, é bem de ver, a titubeaçào dos versos do sr. Forjaz, a estupenda orgia de maiúsculas, a nebulosidade espessa das ideias, a desordem da pontuação, a falta de vida poética de tudo aquilo, que se constata ? Quais os motivos que enchumaçam o tema dos versos do sr. Forjaz? O necrofilismo, a tristeza^ a desilusão : o verme, o enterro, o compungi- meiíto pelos mortos, o luar batendo nas cruzes, círios, noivados na campa, todo aquele ar de epicédio, não acusam bem o molde, ainda mais do que a configuração gráfica e a qualidade do papel ? E as reminiscências, ligeiras embora, de scenas aldeans, com noites de eira e laradas entretidas em velhos contos, reminiscências en- voltas no luar lindo e branco da saudade, e, de mistura, uma terminologia cristan, "Manto

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de Nossa Senhora»', "dos astros rosário ", "Pa- dres-Nossos", «na paz do Senhor»', terminologia que nào mais se repete na obra do sr. Forjaz e até bem colide com o ateismo à outrance que depois vem ostentando? Não se impòi tudo isso como postiço, como decalcado, como es- tranho à sua estrutura espiritual ?

Razão, pois, tinha eu quando, no capítulo an- tecedente, afirmava vastíssima a influência da obra de Nobre. E, pela situação especial que o sr. Forjaz com o seu livro sobre o Poeta se criou agora em relação a este, é sobremodo no- tável, e cheio de picaresco, o facto de se vir a reconhecer que nem ele próprio conseguiu exi- mir-se a essa sugestão, e que até, no contágio dela, nào pode dizer que fosse dos mais só- brios. . .

Esta Via Dolorosa, de título romântico, pes- simista, dita em preparação, e de que a pla- queta Violáceas constituiu guarda avançada, nào chegou, afinal, a aparecer. Costumam ser férteis. . . em títulos de obras os primeiros anos literários de todos nós, pelo que tal não admira. Em vez dela, no ano seguinte, foi publicado O Sol do Jordão, editado em Lisboa pelo livreiro Gomes de Carvalho. E' um trabalho mais de vulto, embora modesto. Denuncia uma reviravolta completa no espírito do autor, em relação à obrinha anterior. Isto mais confirma a qualidade de postiços e alheios à sua enverga-

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dura que atribuí aos versos dela. No Sol do Jor- dão o tom é outro. Nào ha delicadezas de sentir, ternas e piedosas, quási crentes. Apro- veitou, sim, motivos do cristianismo, mas na intenção desvirtuadora, herética. Era a feição da poesia em moda mais recente, e mais capaz de produzir barulho. Baudelaire tornara-se o orago do novo culto. Armou-lhe um altar, re- zou-lhe as FLeiírs da Mal, desatou a compor poemetos imbuídos de satanismo, de blasfémia, de amorosa apologia das mulheres prostituídas. Neste volumesinho de vinte e tantas páginas ha mesmo duas composições que o resumem, assim baptisadas '-Blasphemia" e ^Mulheres Perdidas», esta dedicada à memória de Baude- laire. A originalidade aqui, como àlêm, é es- cassa. A técnica do verso é melhor, tem algum pálido clarão de beleza lírica num ou noutro verso, (e quando assim, faz lembrar a Histó- ria de Jesus de Gomes Liai) mas, em, conjunto, ainda este seu trabalho, a que presidiu uma musa destrambelhada e exótica, cabotina e for- çada, nào é de molde a conseguír-lhe renome de poeta.

Seguíu-se em 1904, em edição da casa Viuva Tavares Cardoso, a plaqueta Ao cair da folha, soneto destacado do Sol do Jordão e acom- panhado de traduções em várias línguas.

Verdadeiramente, pasma o alarde feito com um soneto que nada tem de célebre e bem

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medíocre se pode considerar. Tecido em volta dum tema romanticamente piegas, até contêm versos errados, como os 3.-, 4.°, 5.° e 10.°:

Ao cair la folha

Quando ciir a folhae tu te fores A ter com minha mãe que morreu, Se não lhe posso dar mais que ílores, Leva-lhe beijos, abraços, Que sei eu !

Diz-lhe que eu ainda sou como era d'ante3 Assim sem esperanças, sempre sem amores.

Meus pobres olhos, sempre agonisantes Vão-se mirrando mais, pisam dores.

Diz que os meus versos são atormentados. Como sabem rimar os desgraçados, Diz-lhe que em breve. . . Não, mas deixa lá.

Podia a santa aftligir-se 1 E agora,

Sempre são mães I quando te fores embora Nunca lhe contes o que vae por cá.

Lisboa, 1902

Pois, qual se fosse o imortal soneto de Aivers. Ma vie a son secret, mon âme a son mystère, ou O maior poema de amor em catorze versos de todos os tempos

Alma minha gentil, que te partiste,

de Camões, ambos merecidamente repetidos pelo mundo fora, em todas as línguas, o so- neto do sr. Forjaz, imperfeito de forma, charro de ideia poética, ostenta nessa separata nada

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menos de que oito traduções, uma francesa, duas alemans, uma inglesa, uma italiana, duas em espanhol e outra em sueco, subscritas pelos nomes, a muitos respeitos ilustres, de Henri Faure, Louise Ey, Wilbelm Stork, Edgard Prés tage, Bobbio Porzia, D. Cármen de Burgos y Segui, D. Manuel Lorenzo D'Ayot e Dr. Oõran Bjõrkman. Como ? Porquê ? Que momentâneo e infeliz ataque de cegueira acometeu estes lú- cidos espíritos, levando-os a curvarem-se com in- teresse para o que nada de interessante continha, desperdiçando seus talentos subidos e seus zelos perseverados de lusófilos distintos ? Com que nuvem de lisonja os teria a todos incensa- do o sr. Forjaz, para assim os inebriar e lhes embotar a acuidade do gosto artístico e da vi- são crítica? Penalisa, na verdade, observar que um medíocre soneto alcançou uma homenagem que verdadeiras obras-primas da nossa poesia jamais lograram ou lograrão.

Deste modo, as traduções resultaram supe- riores ao original, pelo menos mais correctas estilisticamente, senão adquirindo alguma be- leza, como, por exemplo, a de D, Cármen de Burgos.

A respeito dos versos errados do sr. Forjaz, é curiosa a anedocta contada pelo sr. Avelino de Sousa no seu O fado e os seus censores, Lisboa, 1912, a páginas 19:

«Ha uns doze annos, se não estou em erro, um amigo

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meu actualmente residente fora da metrópole pediu- -me para fazer-Ihe um soneto dedicado a uma festa de sport. Alinhavei os mal amanhados versos como pude ; receoso, todavia, de que estivessem mal metrificados, mos- trei-os ao sr. Forjaz, que então frequentava a livraria Gui- marães & C.% onde eu era caixeiro. S. ex.^ levou o pobre soneto para concertar, e eu, no dia seguinte, fui buscal-o, correcto, a uma companhia de seguros da Baixa, onde o sr. Forjaz estava collocado, e, muito grato pela sua soli- citude em servir-me, vim todo inchado com a minha obra e cônscio de que a sua correcção era inexcedivel. Mais tarde o sr. Albino Forjaz fez publicar um soneto seu, de- dicado á memoria de sua ex.'"^ mãe, e tendo na mesma plaquette um mimo typographico impresso em bom papel a traducção, creio que em quatro idiomas. Qual não é, porém, o meu espanto, quando ouço um poeta muito illustre dizer, ao lêr o trabalho do sr. Forjaz : E fez este homem tanto reclamo a esta coisa, para afinal lan- çar no mercado um scneto errado !

Fiquei com uma enormissima cara de parvo por per- ceber que o sr. Forjaz, que, aliás, muito solicitamente me concertara os versos, percebia tanto de métrica como eu !

Vem isto a. talhe de foice, para prevenir o caso de s. ex.^ se lembrar e é muito capaz d'isso!^de me chamar poeta de pechisbeque, pelo facto de eu ter no mercado livros com versos errados.

O que succede commigo, succede com o sr. Forjaz; e quem tem telhados de vidro. ..

Ha, porém, uma differença: é que eu estudei a métrica o mais que pude— e estou sempre estudando e hoje deito tombas nos versos de quem menos sabe; e o sr. Albino Forjaz de Sampaio que, certamente, como eu, daria tudo para arrancar aos ^livreiros os versos errados que tem— foi sempre um péssimo poeta, embora seja imi prosador distinto.»

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Como a Via Dolorosa, anunciada pela pla- queta Violáceas, ti-.mbêm as obras poéticas» Aspasia, e Atfatkh, prometidas no ante-rosto do Sol do Jordão, ficaram apenas na pro- messa. E' que o sr. Forjaz viu bem, pulsando a sua constituição literária, a anemia extrema do seu estro. Sentiu-se impotente para cami- nhar àlêm do que havia feito, apesar da mes- quinhez dessa ida tarefa. Faltava-lhe o sopro íntimo, o arrebatamento, a rajada da emoção. Sem eles, e teimando no trilho encetado, leva- ria a vida a bater na tecla dos mesmos temas, numa curta escala de abafados sons, e isto ain- da com esforços desmedidos, .para, no final, não merecer senão o epíteto de infeliz versifi- cador. Não tinha propensão poética, não. Mas, admitindo que a tivesse, não se manteria a fa- zer versos muito tempo, pois com a febrici- tante ambição de sonoro renome e de farto estipêndio, que o sr. Forjaz tem vindo à larga demonstrando na sua carreira de escritor, não lhe sen/iria aquele campo para o desenvolvi- mento dessa dupla e aguda ambição. Os poetas, mesmo os bons, os grandes, têem entre nós um público pequeno, que não consome edições que dêem sustento a ninguém. Por isso, àlêm de tudo o mais, o sr. Forjaz licenciou as musas. E não se pode dizer que andasse mal avisado em fazê-lo. Agora, no que não merece elogios é nas m.os- tras de demasiada dureza de alma para os pri-

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mogénitos da sua prole escriturai. Embora alei- jados, ele, menos do que ninguém, devia votá- -los ao ostracismo. Bastava apontá-los como fi- lhos do primeiro ciclo da sua produtividade, em anos moços e incertos, para alcançar um be- nevolente juizo. Falido como poeta, goradas as suas tentativas para sê-Io, evita o mais possível lembrar esses frustres ensaios, que testemunham à sobreposse a sua astenia genésica de artista do verso. Nào tem a coragem moral de con- fessar fraquezas e faltas, e por isso, e por isso, é esta a presunção de que atraz falei e que emerge do exame da primeira fase da pro- dução do sr. Forjaz ele cuidadosamente apa- ga das guardas dos seus livros os títulos dos seus três primeiros trabalhos publicados, im- pondo-nos como obra de estreia as Palavras Cínicas.

Se eu os fui desenterrar de sob as pàzadas de silêncio que o autor, como pai desnaturado, lhes arremessara para cima, não tive apenas em propósito confundi-lo com tais atestados de fraqueza. Nào foi o fruto dum capricho mesqui- nho esta exumação. Fi-la, porque, se inicias- se este bosquejo de estudo nas Palavras Cíni- cas, ele ficaria incompleto, porque, embora transitório e na maior parte alheio ao arcabou- ço literário do sr. Forjaz, nào deixa esse ciclo primeiro da sua produção de conter em si al- guns gérmens dos elementos que mais tarde,

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ao longo da sua caminhada, o haviam de acom- panhar, como se verá.

Por 1905, data do aparecimento das Pala- vras Cínicas, a efervescência da escola rea- lista mal agitava o lago das letras lusas. Tinha deixado, claro está, bastantes resíduos, mas o seu maior ímpeto passara. Entre mais feições estéticas vindas após ela, a reacção néo-idea- lista, principalmente, amansara-a, adormen- tara-a, curara-a da epilepsia aguda.

Quando surgiu, todos o sabem, vinha pre- nhe de promessas o seu cartaz. Por isso, a multidão se lhe acogulou à porta, na ância de entrar e de mergulhar os espíritos na agua lus- tral dessa corrente, que se afirmava não preci- sar da mentira e da ilusão para produzir Be- leza. A verdade, e s(3 ela, luminosa e pura, na nudez da sua carne pagan e rígida, pontificaria ali dentro do templo. Ficaram, pois, desertas as capelinhas fronteiras, dos velhos cultos, e aquela, vistosa e fresca, viu num ápice encher- -se-lhe a nave das gentes letradas e artísticas. Fora, ficaram dois ou três caturras, padres- -oficiantes dos cultos velhos, de cérebro fóssil, a esvurmar o seu despeito contra a doutrina nova que lhes roubava os devotos e os réditos. Co- meçou, pois, sob a telha realista, o desenrolar dos ritos. Variados, revolteantes, agitando as-

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pectos diferentes, deleitaram logo a multidão cujos espíritos anquilosados pela monotonia anterior, encarcerados entre quatro paredes co- bertas de alto a baixo de bolorentos símbolos, ali, com um horizonte novo e mais vasto e ou- tro ar a fustigar-lhes a sensibilidade, de súbito se sentiram agradavelmente sacudidos, alegra- dos, inebriados. Era a natural agitação da co- piosa libação dum vinho rascante e novo. As- sim, seduzidos os olhos pelo rito espectaculoso e embrumadas as mentes pelo incenso das pala- vras fortes com que se fazia a exegese, assis. tiram longamente àquele suceder de quadros de mutação rápida, sem lógica, picantes, ermos da verdade prometida e do sentimento das pro- porções, como produtos duma fantasia mons. truosa. Os focos eléctricos batiam em cheio nos scenários pintalgados, e na indumentária lentejoulada dos figurantes, irisando-os, arran- cando-lhes brilhos estranhos e magnéticos. Co- meçaram então de desfilar os motivos, até ali tidos como mais sérios e veneráveis, como alvo das mais grotescas farças. Ora, era a turba, le- vada por um furor herético, a amachadar as portas das catedrais, onde outrora, durante sé- culos, tinha ajoelhado e queimado a mirra das suas preces, fazendo fugir os deuses, acos- sados pelo vandálico tropel, apressadamente, ridiculamente, de rotas túnicas ao vento e nimbos corroídos pela ferrugem. Em segui-

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da, essas mesmas mãos profanadoras iam-se às aras e substituiam-Ihes por esterco ignóbil as abadas de rosas que lhes atapetavam as pedras, enquanto, fora, nos terreiros, as carnes, pro- vectas e magras, dos filósofos que até ali ha- viam educado as gentes, rechinavam entre as línguas de fogo dos autos-de-fé a que essa mesma enlouquecida turba os ia condenando, um por um. Surgia depois a ética, velha ma- trona das relações de todos os lares e exemplo apontado às íilhas das famílias, dansando estou- vadamente no tablado fronteiro, semi-nua, es- perneante, obscena de trovas como a cortezan mais imunda. Regimes, crenças, preconceitos, prestígios, imunidades, virtudes, tudo sofria a ra- sante fúria apocalítica. Era o virar do avesso do mundo dos românticos. A scena final dava a exis- tência como um campo chào e despido dos poma- res da idealidade e do sonho. No meio do ermo, imerso em escuridão, o Homem, pávido, gritava que ia morrer à míngua. Mas, como nas apo- teoses das revistas de hoje, que procuram sem- pre para fecho da sua crítica irreverente uma nota optimista, ao fundo rasgava-se o pano ne- gro do ceu, entremostrando a figura alentada e façanhuda da Razão com o corpinho enfezado da Sciência nos braços, a chupar-lhe furiosa- mente os líberes, quási exaustos de leite.

Bêbeda de novidade, a todo este disparatado espectáculo assistiu, sem grandes mostras de

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escândalo e até com aprazimento notável, a multidão cativada pelo cartaz do naturalismo. Durante anos a embriaguez manteve-se, não permitindo que os cérebros e as sensibilidades se reapossassem de si, para verem claramente o quanto de ilusório e de mentiroso, de excessi- vo e de artificial existia nessa exegese estética^ vinda para combater uma outra, se não menos, também não mais, cheia de artifício e de ex- cesso, de mentira e de ilusão.

Ao cabo, porém, dalguns anos, com a re- petição do espectáculo, que, embora variado^ não podia elevar essa variedade ao infinito, a curiosidade sôfrega dos espectadores, não achan- do ali mais com que se alimentar, começou de cansar, de pender, de amolecer. Com esta fra- queza cja curiosidade forte que as comprimia, as consciências foram voltando a pouco e pou- co ao seu domínio e tiveram, então, em breve, o azo de, evocando as scenas espantosas a que haviam assistido, mostrarem a sua repulsa e o asco por elas. Revigoraram-se reacções apenas esboçadas, ergueram-se em pleno vulto, escor- raçaram o naturalismo para segundo plano. Á turbulência sucedera a mansidão.' Dali à mo- notonia antiga ia um passo.

Fracassado poeticamente, e com o seu nome de escritor quási tão virgem de notoriedade como quatro anos antes, ao parturejar as Vio- láceas e as duas seguintes produções, coisi.

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nhãs miúdas e pouco originais, embora gritan- tes como o Sol do Jordão, pôs-se decerto a cogitar o sr. Forjaz na maneira de agitar o mundo das letras em seu favor, num movimen- to de atenção que o arremessasse ao encontro do grande público. Cogitou nisso, e esperta foi sua cogitação. Em frente do bem defendido trono da celebridade, traçou o plano do seu golpe de estado, e logo se deu à faina de exe- cutá-lo.

Escreveu, assim, aquelas oito cartas das Pa- lavras Cínicas, cujo miolo traduziu à pressa e libérrimamente, e ainda atravez do francês, duma corrente literária, nascida do pessimismo scho- penhaueriano, arrumada fora, no país oriundo e nos que mais a tinham assimilado, nos baixos das estantes. Que importava a falta de originalidade, se aquelas páginas retumba- vam de atrevimento, coisa em que a maior parte do nosso público ledor, quási esquecido de todo das sensações do banho frio do realismo e de novo bastante amornado nas do período néo-romântico sucedido àquele, não deixaria de encontrar sabor exquisito e apetitoso ? Um brando nevoeiro de idealismo cobria, envolvia novamente as almas? de descerrar e&se manto suave, rasgá-lo a golpes bruscos, sacudir as almas nele imersas. Fez, pois, incursão no bric-à-brac das letras, foi ao recanto onde dor- miam sob o scenário e a indumentária do

A Afronta a António Nobre ^

realismo, espanejou-os, coseu-os, doirou-os, en- fiou-os na sua pena, ávida de chegar depressa e de fazer barulho, e logo as oito famosas car- tas sairam a lume, petulantes, com uma sonora campainha em cada frase e uma nota de ba- tuque cafreal em cada palavra. Amor, religião, amisade, altruismo, honestidade, todo o erário virtuoso do espírito humano, sofreram o seu ataque depredador e extremista. Temeroso de fracassar ainda nesta tentativa, não usou de meio termo. Excedeu, e em muito, os proces- sos mais violentos dos mais violentos cultores do realismo. Fez mais. No intento de melhor vitriolar os seus conceitos pessimistas, aliou à ressurreição da maneira desta escola a recor- rência aos motivos, tão censurados, do ultra- -romantismo. Pôs o seu eu a declamar ensan- decidamente, despótico, sádico, virulento.

Não errara na presunção que formara sobre o estado dos espíritos ledores. Foi nisso clari- vidente psicólogo talvez pela vez única na sua vida das letras.

Por uma reversão brusca e boémia do pala- dar, o público, ouvindo-lhe a chinfrinice ali- ciente, acorreu à sua beira, e provada a igua- ria cosinhada por ementa olvidada, não lhe recusou nem aplausos nem admiração. Antes lhos concedeu, de modo mesmo a /csvilir p^^lo pasmo dos pacóvios ante as sortes de prestidi- gitação dos artistas de feira.

F .7

74. A Afronta a António Nobre

E' quási sempre assim a multidão. Oiça rufar na praça, desencadeie-se fora uma descabe- ladora e rugente tempestade de sons, cheire-lhe a divertimento bravo, a bródio de arromba, e logo ela se sentirá animada a seguir até o fim do mundo a marcha espaventosa.

Assim sucedeu com as Palavras Cínicas. Toda aquela safra-nafra de conceitos de rubra apolo- gia do egoismo mais feroz e mais besta ia es- barrar nos seus modos de ser anteriores aní- micos e pensantes, maguando-os, ferindo-os, en- sanguentando-os? Mas era moda, julgava-se. Era civilização, era modernismo. Ser crédulo, senti- mental, piedoso, amorudo, desinteressado, pro- bo, estava nos domínios álgidos do fossilis- mo. Eram qualidades, essas, que rebaixavam, entibiavam.

Eclodiu entào o incrível snobismo da desver- gonha edo canalhismo. A nova e clara doutrina estava ali. Aquele rapaz é que filosofava com pro- fundeza, derrubando preconceitos, rasgando apa- rências ilusórias, raspando vernizes enganado- res. O que corria nas veias da humanidade era um rio negro de lama. A bondade era apenas a máscara da torpeza. Os chamados bons sentimen- tos constituíam um lugar-comum da ética, e tresandavam à légua a provincianismo, a gau- cherie. Urgia avaliar a sociedade como ela merecia: covil de ladrões, alcova de barregans, logradoiro de maus, capitólio de perversos.

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antro de viciosos, hospício de tarados. E, so- bretudo, não valia a pena viver, porque a vida era o mal e apenas o mal.

E o pobre burguez, até ali mecanicamente piedoso e honesto, com o livrinho em punho, na ânsia de em tudo se encontrar em perfeita identidade com os ditames do cânon, apalpava- -se ai na e corpo e sentia-se de súbito descon- solado de si próprio, por nào se ver ainda com ganas de matar alguém, de roubar o próximo, de atirar com a, mulher ou a filha para os bra- ços dum amigo, ou de furar os miolos com uma bala!. .

Nem toda a massa do público recebeu, claro está, desta forma acolhedora o atado das oito rubras cartas do sr. Forjaz. Em contraposição àquele núcleo que embasbacou perante a obra, deslumbrando-se com o arrojo, e dividido em dois afluentes dum lado, uma minoria de con- sciências depravadas, captadas pelo modelo que reconheciam exacto, deliciadamente mirando-se no lisongeiro espelho que o livro lhes apresen- tava, como um pântano verdoengo e fétido (o que surde como péssimo sintoma para os que se preocupam com a sanidade da raça), e dou- tro, a m.aioria composta dos eternos papalvos perante tudo o que traga o sinete de novo e faça estrondo, gente inofensiva e de espírito mole como cera, apto a receber de bom grado a dedada de todas as sugestões, boas ou más.

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em contraposição, dizia eu, surgiu uma mole de gente, mais senhora da sua mentalidade, mais equilibrada e san, que se escandalizou com a bruteza das doutrinas expedidas, repu- diando-as e criticando-as na mais acerada hos- tilidade e levantando celeuma rude e cerrada em sua volta.

Foram este choque de opiniões e esta diver- gência diametral de atitudes ante a sua obra de estreia em prosa, que salvaram o sr. Forjaz do enxurro do anonimato, erguendo-lhe o nome, fazendo-lhe a fortuna. Tinha, pois, a sua firma a circular nas duas vias mais rápidas de pro- paganda : o acordo entusiástico e a indignação es- brazeada, alimentando-se automaticamente uma à outra, transportando ambas, embora contrá- rias, uma reputação à áurea região do desta- que. Lançara-se propiciamente no cercle das le- tras. Eram pandas de forte vento as velas que o punham, assim, ao largo da perigosa costa, eriçada de baixios, da obscuridade, onde tantos outros, e por vezes magnificamente apetrecha- dos da pedraria sem jaca dos melhores talen- tos, naufragam irremediavelmente.

De passagem, e para desfazer possíveis equí- vocos, devo observar que os meus comentários não são em absoluto contrários ao realismo. Desta feição literária abjuro apenas dos seus excessos, da sua força truculenta, tão avonde posta a uivar nos seus corifeus. E' condição fa-

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tal a todos os movimentos revolucionários, quer políticos, quer estéticos, quer scientíficos, a vio- lência, arrasando-se assim sem conta nem me- dida, nào o mal que ha em vista arrasar, mas de igual modo o bem que lhe fica limí- trofe. Ora o realismo, na sua fase inicial e re- volucionária não foi escapo a esta fatalidade. Demoliu demais, demoliu às cegas. Trouxe van- tagens? Muitas, mas depois de asserenado, de- pois de conduzido ao leito da sua corrente. Quando fora dela, produziu inundações, atro- pelos, mutilações, monstruosidades. Quebrado o seu ímpeto feroz de conquista, passou de tu- fão a vento oxigenado e tónico, arejador e cla- rificador da atmosfera da arte, viciada pela lon- ga permanência de estéticas senis e paralíticas de inacção. Em nada mesmo me assustam as inovações, e, assim, vejo até com sadia tole- rância, senão com simpatia, o desabrochar das novas escolas de hoje, como o cubismo, o futu- rismo de Marinetti e outras, que, entre a sua desordem própria de assaltantes e conquistado- res, alguma coisa de bom trazem, que ficará a virilizar o sangue dos temperamentos literários e artísticos, sacudindo-os, impedindo -os de cair num letargo visinho da morte. O que é preciso é que destes movimentos rejuvenescedores se nào tomem como qualidades definitivas as transitórias, as do seu período de eclosão, e se lhes nào guarde o mal, deitando ao desbarato o

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bem, num daltonismo desastroso. Infelizmente, bastas vezes assim tem sucedido . .

Bastas vezes assim tem sucedido, sim. São longos os necrológios resultantes dessas des- orientações, nas várias escolas inovadoras.

O sr. Forjaz, em parte, inscreve o seu nome no do realismo. E com uma agravante. E' qne, tendo começado a sua produtividade fora, e muito, da poeirenta e confusa atmosfera do aparecimento da escola, não se pôs a seguir-lhe os cultores mais próximos de si e, portanto, mais equilibrados e possuídos de serena beleza. Não. Recuou. Foi aos inícios caóticos do rea- lismo e ali se aprovisionou da água torrencial e turva dos seus excessos. Foi o que trouxe para borrifar os seus escritos, ou melhor direi, para os abeberar, pois não são borrifos de vitríolo as suas notas mais salientes. Repre- sentam um mergulho demorado no corrosivo líquido. Assim, em obediência às laudas iracun- das do Alcorão, afivelou o elmo do materia- lismo e desatou às lançadas a tudo que na vida e nos costumes encontrou de delicado, do com- passivo de consolador. Apontou o Homem como o animal egoísta por excelência, a besta sem alma, que apenas os instintos maus conduzem. Isto eu disse. Não o repito. Mas, caso curio- so, tomando do realismo apenas o seu lado baixo, expresso no culto pelo vil, pelo nojento, pelo torpe, numa concepção unilateral, e, por-

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tanto, falsa da vida, foi também à extrema do rincão oposto, o do romantismo, e trouxe de lá, para seu uso, a maneira subjectivista ali pe- culiar, alucinada de vaidade, ardida de hiper- trofia do eu. São estes dois aspectos das duas escolas antagónicas que o sr. Forjaz conseguiu fundir nas Palavras Cínicas, piorando-as uma e outra o mais que poude, dando delas as fases mais retrógradas e rubras.

Porque, se delas tivesse escolhido as partes sadias e definitivas, consorciando-as, teria posto em acção a fórmula da literatura do futuro. Nem o pensamento esmagando o sentimento, nem este amolentando aquele. O cérebro e o coração, ambos librando alto e à mesma areja- da e luminosa altura. A vida dada em bloco, com as suas arestas e as suas maciezas, com as suas manchas e as suas belezas, na eterna ron- da do bem e do mal.

O que o sr. Forjaz deu foi o avesso desta fórmula. Casou a escória com a vasa.

De propósito, alonguei este asserto sobre as Ralavras Cínicas, talvez com prejuízo do es- paço reservado para o seguimento da obra des- te autor. De propósito, porque no seu primeiro livro de prosa escao bem patentes os gérmens que vivificam toda a sua restante produtivida- de. Não mudou ainda de motivos, tem mantido sempre a mesma directriz que presidiu a este tomo. E recordando agora o seu frustre ciclo

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poético, ver-se ha que o Sol do Jordão, em grande parcela, incluía os sintomas das quali- dades negativas que nas Palavras Cínicas se desenvolveram com exuberância, e que as Vio- láceas em nada acusam a chancela da sua ver- dadeira constituição mental, como fiz notar.

Crónicas imorais, em 1Q08; Lisboa Trágica, em 1910; Prosa Vil, em 1911. Três livros iguais, no mesmo género fragmentário, quási de todo em todo colectâneas de artigos e crónicas, vin- dos primeiro a público nas colunas dos jornais, onde o sr. Forjaz colabora.

Vejam-se os títulos, sempre alicientes, sem- pre prometedores de sensações fortes e ácidas. E o miolo? Sem homogeneidade, sem espírito de seqíiência, comentários ao acaso das impres- sões, sem nada de notável e roçando às vezes pela chateza.

Nas Crónicas imorais tropeça-se logo num prólogo de chalaça barata e mole, pueril mes- mo, que pôde ficar como tipo de todos os seus prólogos. E das suas páginas restantes se salvam as sete da crónica Artistas, justa e pie- dosa, que tem por tema a morte de Augusto Santo, o malogrado escultor, irmão de Soares dos Reis, outro mísero de génio.

A Lisboa Trágica pouco progresso marca so- bre os volumes anteriores. Também não é una

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de sentido. Como diz o sub-título Aspectos da cidade compòi-se de pequenos quadros, carre- gados intencionalmente de sombras, de crispa-' ções, de vultos torturados mal-entrevistos. Vê- se que leu algum dia Gorki. Mas a emoção não lhe molha a pena, e as figuras saem a custo, como títeres de trapos vestidos e de trapos formados. Não ha ali carne viva, não ha ho- mens sofredores, não ha tragédia convulsa. Ha apenas rabulistas num drama que o sr. Forjaz engendrou, e que o representam mal, dando a entender a avareza do emprezário-autor.

Em íntimo acordo com as " " » " abundan- tíssimas ao longo da sua obra, umas vezes in- dicando a paternidade da citação, mas outras, passando adiante, como a dar azo a que não se repare nas aspas e se lhe atribuam o conceito e a forma verbal, esta em geral mais pomposa do que a sua, está, numa ampliação destes seus velhos hábitos de enchumaçar de prosa alheia a prosa própria, a dedicatória desta Lisboa Trá- gica. E' uma página inteira de Fialho a de- dicatória dos Contos do grande escritor a Ca- milo. Isto uma vez, escapa; mas, vezes segui- das, como sistema e nestas proporções, é ver- dadeiramente abuso. E ousou ele censurar Sil- va Pinto a este respeito, como se verá ! . . A Sinfonia de abertura deste mesmo volume é uma romântica lenga-lenga de lamúria sobre a aspereza e a sordidez da existência, e as remi-

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niscências de leituras e de quadros vistos esta- deiam-se por ali abaixo. Zola, Daudet, Dante, o EvangeHio, Goethe, Molière, Balzac, Murger, Hugo, Bartrina, Mantegazza, Oerôme e mais que me não recordam, em dezoito páginas, salvo erro. No fim, perguntar-se ha, e com ra- zão, o que é propriamente seu.

A 1.'^ edição da Prosa Vil ainda melhor do- cumenta este defeito. No fecho, ostensivamen- te, envaidecido com a sua erudição, prega-nos diante da vista com um «índice dos autores citados ", que compreende uns cento e sessenta e tantos nomes, e alguns com mais duma cita- ção. Cento e sessenta e tantos nomes 1 . . Sa- bem em quantas páginas? Em duzentas e deza- nove; quási um autor para cada página !

Neste livro a melhor crónica é A alma das cousas. O resto é frouxo de interesse, tecido numa prosa evidentemente mal cuidada, decer- to escrita sobre o joelho, cheia de terminações estrondosas, próximas, repetidas passo a passo, quebrando o ritmo, dando-lhe sonância de ladri- dos: "O Cyrano, VAiglon, o que são senão a vibração da tecla patriótica no intuito de ganhar francos e notoriedade? E não é um homem de talento que se compraz em fabular bellezas, um artista que sonha a sua obra longe do bulicio da multidão, mas um charlatão vulgar, macrot da fama que ao bezerro d'oiro prostitue a sua lyra." Neste bocadinho de prosa, que a gente quási se

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esquece tratar de Rostand e tem vontade de creditar como auto-biográfica, Deus do ceu, tão bem lhe assenta o significado! apresenta cinco terminações em ão nas sete linhas que tem no livro.

Quebrando a vulgaridade do estilo, arreme- te de quando em logo, ou com termos vetus tos, carreados por Camilo e Fialho dos poei- rentos elucidários da língua, ou com neologis- mos da sua lavra, bárbaros, incríveis, dispen- sáveis, como este da mesma Prosa Vil: "Se in- vestigarmos juliomardelescamente, até aos avós, veremos. «etc. Juliomardelescamente! ...

Sintetisando: três volumes medíocres, apenas interessantes aqui e àlêm, sem surto largo, epi- sódicos, anedóticos, de efémeras impressões, es- critos segundo a necessidade da sua colabora- ção em jornais, ao sabor das sugestões disper- sivas e rápidas da vida hodierna.

A novela Qente da Rua, o seu trabalho de mais fôlego, com princípio, meio e rim, surge em 1914.

E' o seu trabalho de mais fôlego, sim, mas não de grande fôlego também. Vê-se que re- presenta um esforço desmedido para ele escre- ,ver cento e cincoenta páginas seguidas sobre um tema, quando a sua pena está afeita ape- nas a traçar crónicas miúdas de miúdo número de páginas.

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Gente da Rua pode considerar-se uma ten- tativa de romance. E como tentativa, padece da incerteza e do tacteamento, que caracterizam todos os traballios de experimentação de for- ças numa actividade nova.

O título vistoso, moderno e sugestivo, pro- mete o que o conteúdo nào dá: um estudo, ain- da que leve e adoçado, aformoseado por pro- cessos de arte, da questão social, tào complexa e tào vasta e tão eminente nos tempos de hoje.

Grevistas, pátios de fábricas, scenas dos bairros pobres e de míseras casas de hóspedes, gente de fraca mentalidade, com a matilha dos instintos à solta, scenário sórdido e comparsa- ria não menos sórdida, elementos estes bastan- tes para cobrir um milhar de páginas com uma tragédia viva, palpitante, convulsa e uivada de desgraça, com tudo isso o sr. Forjaz esbo- çou apenas e mal duas ou três figuras e amon- toou descrições de coisas e de gestos, nos seus aspectos exteriores, superficiais, periféricos.

Ao lê-la, pela classe dos personagens, pelo ambiente de bas-fonds onde eles se movem, pelo assunto da intriga, lembrou-me essa novela tan- tas outras obras, que têem versado, com supe- rior beleza e intuição decifradora de almas, a multidão dos famintos, dos deserdados, dos sem-pão, que fazem seu covil lôbrego e infecto nos pátios velhos das grandes cidades. Tantas e tantas ! Sem recorrer ao estranjeiro, leiam-se

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Os Podres, de Raul Brandão, Os Humildes, de Fidelino de Figueiredo, Os Famintos, de Joào Grave, e, sobretudo, mais concretamente sobre a questão tão momentosa dos conflitos entre o patronato e o operariado, esse Capital Bendito, da magnifica pena de D. Virgínia de Castro e Almeida, pena feminil de vigor mais viril do que muitas que mãos de homem em- punham. Todos estes livros e muitos outros a Gente da Rua me faz lembrar, e lembrar com saudade.

Falta na novela do sr. Forjaz a seiva emocio- nal, que o assunto não dispensa. O seu estilo não sobe, não soluça, não chora, não impreca, não sái da anotação fria e da indicação dos movimentos físicos das figuras. Os movimen- tos íntimos, os de alma, aqueles que determi- nam, galvanizam os externos, muito longe de os salientar, até os sufoca, os finge ignorar, ou ignora de facto, com a sua arreigada concepção materialista da existência. E' o realismo em bruto, o realismo não lapidado, que lhe em- bota a pena, que lha acorrenta, que lhe limita as faculdades.

A técnica é por igual falha. Não ha uma bem proporcionada dosagem dos episódios da intriga pelos capítulos em que a obra se divide. A lin- guagem, mesmo fora dos diáLogos que, pela na- tureza baixa dos personagens, se impunham simples, é chan em demasiado, linguagem im.

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própria de livro, linguagem mais de jornal, de narração de repórter, em que a necessidade de ser rápido não permite o mais leve adorno verbal, embora a pena que escreva seja hábil e amante de belezas de estilo. Nem gongorismo nem chateza. E a escrita para livro propicia, se é que a ela não obriga, por feita com mais vagar, a escolha dum talhe mais elegante para a vestimenta das ideias, sem que estas em nada percam da sua clareza. A monotonia do estilo da Gente da Rua é cortada pelos plebeís- mos mais chocantes e sem graça, mesmo fora dos dizeres das bocas das suas figuras, em que seriam talvez naturais, mas dispensáveis. Con- tumazmente, persegue-o a intenção chocarreira, scéptica, caricatural, deformadora. A maneira forte sedu-lo. Pratica-a, piorando-a. E' sempre a tara do realismo extremista a arremessá-lo com volúpia para o revolver do grosseiro e do violento.

*** Em 1916, a par de O livro das cortezãs, tra- balho modesto de compilação de escritos de outros autores sobre o assunto que o título indica, feito de parçaria com o ilustre homem de teatro Bento Mântua, deitou o sr. Forjaz a lume o volume Grilhetas. Como quási todos os seus anteriores e posteriores trabalhos, não é inédita a sua matéria. as suas parcelas ti- nham sido publicadas em jornais.

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Para mim, é o seu livro mais interessante, apezar da sua parte de depreciação de Silva Pinto, Bulhão Pato e Ramalho, que o tornam antipático em extremo, muito mais mesmo que as Palavras Cínicas, livro de estreia estrondosa por meio de blague.

Chamo-lhe, pois, interessante pelo que, em síntese, nos fornece da estrutura mental do seu autor, e dos seus dilectos processos de fazer escrita.

Pinceladas de vermelho cinismo, que é a tinta mais fiel da sua paleta, tem estas confis- sões na Resposta a um inquérito :

«Eu não nasci escritor. Nasci pobre. Devo declarar que não tive nunca bossa para meni- no prodígio.

"Nasci pobre e magro. Se me fiz escritor foi talvez por estas duas fatalidades do meu nasci- mento."

«Nasci pobre como disse. Quando se nasce pobre tem a gente de cavar-se para comer. Precisa de vender-se sob qualquer pretêsto. Experimentei uma boa diízia de profissões até que imaginei fazer-me literato.»

"Comecei por fazer versos. Não se vende- ram. Eram horríveis. Desisti de comprar o meu queijo com os meus lamentos poéticos. Luta- ra, sofrera e desesperava-me. Fartara-me de tudo e começava a fartar-me de mim. Fiz pro- sa. Vendeu-se e eu pude almoçar nesse dai

A Afronta a António Nobre

OS miolos de alguns meses. Não desistindo de almoçar, continuei a fazer prosa. De então para cá, meu amigo, tomei um pavor à caneta e ao papel branco que lhe pego quando necessito de almoçar novamente.

«Não sou artista, sou industrial. Fabrico pe- ríodos como um marceneiro cómodas ou um luveiro luvas. Procuro, estudando, torná-los mais perfeitos. Busco notas exactas e singula- res para eles, é certo. Mas isso não é preocupa- ção artística. Não é. São apenas melhoramentos que eu introduzo na minha indústria. Quero servir bem o meu freguês, que é o meu editor. Este, por seu turno, tem interesse em servir bem o público. E' claro que, gostando da mi- nha marca e exigindo-a ou gastando-a, o edi- tor se dirige a minha casa a buscar os meus produtos. Tem como no bom comércio, o des- conto para revender. O meu nom.e é a minha taboleta. Cumpre pois acreditar a taboleta."

Esta rebuscada nonchalance, este ar de mo- tejo persistente, a propósito de coisas e factos no geral tidos como elevados e obedecendo a forças esotéricas e fatalistas, formam um dos artifícios mais fecundos da sua prosa, no que diz respeito a angariar as graças do grosso pú- blico, grosso em numero e grosso de espírito, grosso público devorador das suas grossas edições.

Ha um fundo de verdade naquelas confis-

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soes. Mas decerto acentuou, vincou, alastrou intencionalmente a nota, numa lisonja à sua clientela de baixo gosto, a quem, numa errada catequese do sentido de democracia, ele e os seus próximos, têem procurado convencer de que a sociedade ideal é a sociedade rasa, sem cérebros criadores nem almas heróicas, e apon- tando à truculência do seu ódio os que trans- gridem essa uniformidade e elevam acima da planura humana uma insígnia de nobre e ta- lentosa excepção.

Para mais prodigamente receber os afagos e o? favores da turba, diz-se seu irmão gém.eo, despe de todo o prestígio a sua pena, baixa o seu mister das letras ao nível dos outros mis- teres, como a marcenaria, onde a máquina bruta e insensível hoje substitui, e com vantagem, o trabalho engenhoso do homem.

Esta transigência detractiva pôde ser inteira- mente sincera, como inculca? Não, é bem de ver. E' um chamariz, um visco para a simpatia das multidões, que incensam os que as li- songeiani, os que, se maiores, se diminuem de estatura moral e mental, para lhes darem a ilu- são duma irmandade completa.

Por isso nega a sua condição de artista: «Não sou artista. Sou industrial. Fabrico períodos. . Procuro, estudando, torná-los miiis perfeitos.. . São apenas melhoramentos que eu introduzo na minha indústria. Quero servir bem o meu

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freguês. . - " Mas como o freguês não é gran- demente exigente, as melhorias, os progressos, são pequenos. Das Palavras Cínicas ao volu- me Grilhetas vão onze anos (1905-1916), e nas obras deste lapso de tempo não se desenha a trajectória da sua carreira em curva ascensio- nal, senão mui lenta, quási insensível. Ha mesmo declínios, retrocessos, desfalecimen- tos.

Interessantes, pois, e muito, sob o ponto de vista da psicologia do autor, estas confissões do Grilhetas, ainda com o desconto do excesso artificial que as sobrecarrega, e que não deixam de ser um tanto desastrosas para o sr. Forjaz, àlêm do dano que podem causar a todos que cultivam a alta profissão das letras. Ele pró- prio, decerto, bastas vezes se terá arrependido de levianamente as ter bolsado.

Ficaria este volume Grilhetas como o seu melhor livro, se não fosse a nota de atrevimen- to, demasiado forte, que pôs a vibrar nos seus capítulos Máscaras— Silva Pinto e Na hora da morte coin os três artigos Silva Pinto, Bulhão Pato e Ramalho Ortigão.

Como disse, feito o volume de escritos anteriormente publicados na imprensa, como os outros, os artigos Máscaras Silva Pinto e Silva Pinto, tinham vindo a lume, o primeiro pouco tempo antes da morte do vigoroso pan-

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fletário dos Combates e criticas, e o segundo logo a seguir ao seu passamento, em 1911.

Essa atitude irreverente para com um homem que fora um grande e honesto trabalhador das letras, suscitou logo frases de reprovação ar- dente. Em A Capital de 30 de Novembro des- se ano de 1911, CA., que julgo ser abrevia- tura do nome do ilustre jornalista sr. Carlos Amaro, diz assim na secção Teatros, em crítica a uma peça do República. "Alem disso, um critico agoniado que, ainda ha dias, escarrava sobre o cadáver de um escritor notável sob a forma de injurias, o resto das lisonjas com que o sujou em vida, vem hoje com. . ." etc. Refe- ria-se ao sr. Forjaz, que atacara a peça. Este, sentido, vem ao mesmo jornal em 2 de Dezem- bro com uma carta, reptando C. A. a provar que dirigira lisonjas a Silva Pinto. Dois dias depois C. A. responde:

«Esqueceu-nos, hontem, de nos referir a uma carta aqui publicada a propósito da nossa crí- tica á comedia O sr. Freitas, em que se pediam provas de que o seu autor tinha lisongeado Silva Pinto em vida.

«O caso pouco interessa o publico e deixa- ríamos a carta sem resposta ante a massada de termos de percorrer a collecção d'um jornal á procura das referencias elogiosas que muita gente se lembra de ter lido se n'um livro do agoniado crítico a que nos referimos não en-

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contrassemos o nome de Silva Pinto citado en- tre os nomes de Turguenef, Gorki, M. du Camp, d'Annunzio, Eugénio de Castro, Zola, Hart- mann, Fialho, Camões, Schopenhauer, Antero, Michelet. Não ha mais nomes e o leitor con- cluirá das intenções do homem que entre os Grandes, citava a Silva Pinto em vida, e lhe vem agora cuspir injurias sobre o cadáver.

"As citações vêem ao fundo de cada pagina, respeitosamente, n'uma atitude bem diversa d'aquella em que vimos o citador, de perna alçada, esguichando misérias sobre um caixão ainda mal fechado, onde dormia para sempre um rijo e desgraçado trabalhador.

«Nem mais palavra sobre este caso triste e esta rápida e ultima explicação é dada pelo respeito devido ao jornal em que veio a carta e não ao escriba que a assina, ancioso por uma polémica que lhe servisse de reclame. «Vá bater a outra porta. , . C. A." O sr. Forjaz respondeu a isto não sei que cínica e trivial asserção. E C. A., em 7 de De- zembro, a propósito duma festa que Afonso Gaio propunha se realisasse para despedida do grande actor Joaquim de Almeida, aplaudindo a ideia, volta, apezar da sua promessa, ao as- sunto :

"E além de tudo será ainda um nobre pre- texto para tratar de nobres coisas de Arte, lon- ge, bem longe dos paues onde os Albinos me-

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dram, latejando como vermes na babugem das aguas lamacentas ; .

«Que de estranhas coisas acontecem á gente! Até íigora nos aparece o orphão Albino que nós julgávamos perdido desde os tempos omi- nosos!. Bicho o"minoso e deplorável !

'"Este anthipatico desgraçado sob a acusação ultra-infamante de escarrar as misérias da pró- pria alma sobre um morto iilustre nem uma palavra gasta a defender-se, acceita tudo como bom e se íinge offendido por lhe dizerem que o tinha lisongeado em vida !

"Não é lisongear, diz, citar respeitosamente entre os Mestres o homem que depois de mor- to e enterrado lhe merece vaias e referen- cias insultuosas.

«Triste mistura de faia e de gato pingado, o nosso misero orphão !. . .

«Mas ha peor agora, mmito peor ainda. As creaturas que teem andado a açular Albino sem piedade alguma pela sua desgraça, dei- xam-n'o ir á degradação da carta ultima que nos faz faltar ao silencio promettido, pois como caso hospitalar o achamos digno de observa- ção mais cuidadosa.

"Vem agora Albino evocar a amisade de Sil- va Pinto e ornamentar-se com os elogios que o notável escriptor lhe fez em livros!... nos lembra d'um caso semelhante succedido

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ha annos, n'um cemitério de Lamego: Uns sinis- tros ratoneiros despiam, batiam nos mortos e roubavam-lhes os anneis. Foram parar á Peni- tenciaria estes, emquanto orphão Albino por ahi ginga á solta e toma descaradamente o ar de quem faz perguntas.

"Quer saber Albino o que é preciso para conversar humanamente comnosco. Ser bacha- rel formado^ ser administrador, ser pae da pá- tria, ser grão-vizir, ser lord Byron, ter génio com grande O, ou ter como elle uma obra ex- traordinária, dez volumes de arte requintada e subtil?

"Não, gelatinoso orphào, nada d'isso. Basta ser decente. E um insultador de cadáveres, es- pécie repugnante de lombriga tumular, pode uma pessoa esmagal-o debaixo da bota, mas nunca com elle conversar humanamente.

"Não conversaremos.

"A orphào Albino, misero exilado da vergo- nha, só um direito talvez lhe assista: o direito de possuir orelhas.

«E d'ahi, talvez nem isso. . . »

E' difícil estigmatizar ombro de criminoso com ferrete mais profundo e infamante.

E, contudo... Contudo, tendo em 1911 re- cebido este violento castigo, não se coibiu o sr. Forjaz de aproveitar os escritos que o tinham arrastado ao ferro do carrasco, para avolumar o livro Grilhetas, cinco anos volvidos. Ao con-

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trário de mostras de arrependimento, perseve- rou no crime, gritou-o envaidecidamente. No Este livro,.., duas páginas com que prefacia o tomo, volta a afirmar que não lisongeou Sil- va Pinto. Álêm do que C. A. em contradita ga- rante e bem, encontra-se muitas vezes na sua obra, a mais de outras, como a páginas 164 do 1.° milhar da Prosa Vil, a frase do autor da Pkilosopliia de João Braz sobre Camilo : «a for- midável corda das lagrimas; a formidável cor- da do riso. Diz tudo a frase de Silva Pinto. For- midável, sim. Nunca adjectivo aplicado teve tanta precisão.» Não será isto mostrar incondi- cional concordância, pelo m.enos, com a opinião do forte panfletário? E depois, no artigo Más caras, entre anedoctas mal cabidas, define-o as- sim, aleivosamente: «Azedo, azedo e azedo." "Discrasia, verrina & lingua." E intriga:

"Querem saber como ele faz um livro? Prin- cipia por cortar dos jornais bocadinhos precio- sos. Põe-lhe depois por baixo uma sentença ou um comentário também precioso. Por exem- plo:

"Chiça, chiça, chiça», ou então "raio de vida esta", «porca de vida^ etc. Feito isto, reúne 4 his- tórias que lhe contaram (quási sempre quem aquilo lhe contou foi o Camilo) e põe por bai- xo: "Está certo! Está feito o livro. São 200 pá- ginas: 180 dos jornais, 14 do que lhe contaram e dele 3 páginas fora o ante-rosto e rosto. As-

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sina e sào quinhentos réis. Vende-se na Parce- ria Pereira."

Usando do exagero que o sr. Forjaz usou para com Silva Pinto, não haverá ensejo de aplicar igual e depreciativo juizo a respeito do seu próprio processo de fazer livros, onde, como notei, as citações e as reminiscências sào numa abundância pasmosa? Irradiadas elas, quantas páginas legitimamente filhas do seu engenho, propriamente originais? Com argueiros dessa índole nos próprios olhos, não os viu senão nos dos outros. ..

Foi aquela opinião sobre Silva Pinto ainda publicada em vida deste escritor. Sim, em vi- da aparente. Por essa época Silva Pinto es- tava à beira do túmulo, era apenas uma som- bra do que fora, o seu braço estava refece para brandir a clava temível da sua pena. Por isso, se Silva Pinto teve conhecimento da dia- tribe do sr. Forjaz, decerto a recebeu com a indignação recalcada dum doente que fora po- deroso, e a cuja cabeceira alguém agora, ven- do-o inofensivo pelo maniatamento da doença, se valesse disto para o insultar, dizendo-lhe o ódio que sempre calara, cobardemente. Talvez lhe tivesse ocorrido à mente, num sorriso scép- tico de débil consolo, a fábula do Mo mori- bundo e do burro. .

Mas tal diatribe ainda parece suave e mode- rada ao lado da que, logo que o cadáver do

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panfletário desceu à terra, traçou e deu a pú- blico em A Luta, creio. Parece que o ódio ali enfreado, aqui perdeu o freio', ao saber decidi- damente, definitivamente, inerme e fria a mào que poderia castigar o seu atrevimento. Nada havia a temer. Desrolhou o frasco do vitríolo, Derramou-o sobre o papel. Foi o delírio da in- júria. Catou-lhe os livros, em busca de defeitos. Coleccionou picaras e sujas anedoctas. Disse tudo quanto uma alma cheia de fel pôde dizer. «O ha- bitante dessa carcaça que encerraram num caixào não passou de um azedo, de um sinistro, de um aziumado." «A sua obra foi a sua imagem. Pilhé- rias, comentários, farsolices, zargunchadas, ma- lícia, asperidão e sobretudo azedume, um aze- dume resmungadamente pessoal. ^ Foi talvez in- vejoso este pobre diabo? Tudo me leva a crer que sim. Mas que êle foi zanagamente cruel não res- ta duvida. Êle nào deixou uma grande página, nem sequer uma página bela.'" «Foi impenetrá- vel de orgulho, e jamais sentiu de fora para dentro, visto que nula era a sua receptividade. E nào passava no seu horizonte homem que nào fosse latrinário, mulher que nào trouxesse entre o corpete e o seio o livrete da polícia. Amargo e impiedoso, esse velho terrível, de juba branca e larga fronte, que, quancio descia à rua com a sua velha caneta ferrugenta, ainda abria clareiras de terror. . . " Terrível velho com a sua caneta abrindo cia-

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reiras de terror .. Sim: Por isso, quando ain- da em pleno vigor, o sr. Forjaz o lambuzou de lisonja, se atrevendo a beliscá-lo quando a morte andava a rondar-lhe o leito. Depois, mal o viu hirto no caixão, é que surdiu a es- bofetear-lhe as faces geladas, valentemente, num ímpeto de ódio, cujas determinantes não vejo, ou talvez mesmo apenas por malvadez instinti- va, tarada.

Morto Bulhão Pato, o mimoso autor da Pa- qiiita, também o sr. Forjaz pouco melhor trato deu à sua memória do que dera à de Silva Pinto. Negou-lhe o talento : « . . como artista foi uma figura subalterna que por suas cãs e al- guns bambúrrios se achou guindado ao olimpo das letras." «A sua prosa é de uma banalidade que transpõe quási o tapume da chateza.» «A Paquita os senhores sabem o que é. Uma coisa mais intragável do que piorno." E mais ou menos, todos os seus assertos são assim, ir- reverentes, chocarreiros, negativos. Esíá-lhe no feitio a maledicência.

Está-lhe no feitio, mas a expressa às cla- ras, alto e bom som, quando apanha os alveja- dos impotentes para lhe responder. assim. Porque, parece que com Bulhão Pato se deu o mesmo que com Silva Pinto, no que diz res- peito ao acatamento que em vida lhe mostrou o sr. Forjaz, para na morte lhe gritar desapreço,

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e mais que desapreço rancor. Nuno de Bulhão Pato, sobrinho do Poeta, e meu amigo, e tam- bém um temperamento poético de valor, que infelizmente a burocracia absorveu e encarce- rou, afirmou-me que se lembrava de ter visto entre a correspondência de seu tio uma ou mais cartas do sr. Forjaz, em termos amistosos e en- comiásticos, talvez quando lhe ofertou exem- plares dos livros que publicava. Seriam mesmo para o caso muito curiosas de ver as dedica- tórias destes. Decerto, não seriam, e assim aquela ou aquelas cartas, no mesmo estilo do ar- tigo do livro Grilhetas... Mas, contra o meu gosto em testemunhar, com documentos escritos pelo seu próprio punho, a hipocrisia do sr. Forjaz, lisongeando agora o que mais tarde ha-de ata- car furiosamente, a correspondência e a livra- ria do Poeta Bulhão Pato, dispersas ambas pela família basta, não permitem uma pes- quiza nesse sentido. E" pena. Tenho, pois, de me contentar com o testemunho verbal de Nuno de Bulhão Pato, que, embora vago, não deixa de ser dalgum modo valioso.

Com a morte de Ramalho Ortigão estron- deou o mesmo desacato. Parece que o regosija ver rolarem por terra as árvores humanas mais altivas e de melhor seiva. Vendo em todos con- correntes, rivais, oficiais do mesmo ofício, desa- bafa quando os sabe a caminho do exílio éter-

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no, deixando-lhe o campo da sua indãsiria mais livre e mais apto, assim, para expandir o seu negócio.

Ha quem se lembre de ter lido ha anos qual- quer referência elogiosa do sr. Forjaz a Rama- lho Ortigão, antes, muito antes da morte do ilustre autor da Holanda. Busquei-a, mas em vão. Era difícil encontrá-la, aliás, pois que não fora arquivada em livro, mas sim aparecera apenas nas páginas efémeras dum jornal. Isto não importa. se viu que é possível, que é lógica, a existência dessas linhas, poucas ou muitas, aqui, àlêm, onde não sei. Possíveis e ló- gicas (na lógica especial do sr. Forjaz), pelo que sucedera com Silva Pinto e Bulhão Pato.

Duma citação sei eu. É na Prosa Vil. Não a acompanha, é certo, qualquer palavra de encó- mio. Mas demonstra ela, pelo menos, concor- dância.

Escusado é dizer que julgo inteiramente in justo o seu juizo sobre a individualidade de Ra- malho: "Quanto ao escritor, êle foi sempre um sorna de períodos geométricos, angulosos, pre- nhes de estatísticas fora do propósito e sem um vocabulário capaz de faiscar imagens rútilas e inesquecíveis." Segue neste teor, amachadando valores, fazendo comparações desrazoáveis, em detrimento de Ramalho, com D'Amicis, Alfre- do de Mesquita, Ricardo Jorge, a respeito da Holanda e das Praias e Aouas.

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No parti-pris da oposição, cega-se, obstina-se em negar, em apoucar. Ramalho Ortigão, to- dos o sabem, se não foi um Cellini da prosa, nenhuma qualidade de escritor de pulso lhe faltou. A sua obra merece o nosso respeito e até a nossa gratidão. Em grande parte dela foi português, bem português. Saudável, saudável- mente a escreveu. Trouxe ensinamento para a nossa sociedade, induziu melhorias e reformas. Ninguém tem o direito de sepultá-la a um canto, como falha, inútil, mumificada.

Fialho empregou muitas vezes o seu subido talento em hostilidades levianas e injustas. Um dia deu-lhe para classificar a doutrinação de Ramalho deste modo: «biologices e socio- logices da biblioteca de dois soiis.» Foi talvez o que arrastou o sr. Forjaz a expedir os seus comentários de desapreço pela obra de Rama- lho Ortigão. No seu fanatismo pelo Mestre, fanatismo que, obedecendo à fatalidade de to- dos os sentimentos extremos, é incondicional e não distingue as altas qualidades dos peque- nos defeitos que assistiam, umas e outros, no espírito superior e requintado do grande Ar- tista da prosa portuguesa,— o sr. Forjaz, assimi- lando-lhe em bloco todas as sugestões, e tal- vez mais depressa as turbulentas e desequili- bradas, e por isso inferiores, do que as outras, ampliou o dito que o Mestre num momento de mau humor atirara ao papel, glosando-o atra-

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vez do seu temperamento sarcástico e sistema- ticamente adverso.

Vindo ao encontro da indignação que adivi- nhava (ia a dizer desejava, tendo em vista o seu ardente desejo de reclamo. . .) irem levan- tar os três artigos sobre Silva Pinto, Bulhão Pato e Ramalho, como de costume, pediu mu- leta. "Disse Voltaire que para com os vivos deve haver deferências, mas para com os mortos a nada mais estamos obrigados do que à verda- de. D. Francisco Manuel de Mello diz: Se os mortos vos não dào medo, tratai dêlès. Concor- dando com ambos, eu sinto que é quando uma crec- tura morre que o seu espólio se arrola emeirinha.»

Deve-se a verdade aos mortos, concordo. A avaliação do espólio é feita após a morte de alguém, é certo. Mas a verdade é o insulto, o extravasamento de bílis, o ataque feroz ao espírito dos mortos? Ha, por acaso, nesses três artigos do sr. Forjaz sobre as individualidades de três notáveis escritores, o tom calmo duma crítica mensuradora de valores? De ponta a ponta, os lambe uma chama voraz de nega- tivismo. O vocabulário neles usado é acintoso, satírico, propositadamente escaldante. Nem a vida particular escapou à sua hostilidade. Ver- dade, não. A verdade em nada temperou aquelas páginas. a mentira, ao serviço, nem sei se dum despeito ou se da sua mania icono- clasta, impeliu a pena do sr. Forjaz ao traça-

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-las. Depois, ante um féretro ninguém é obrigado a descobrir-se, ao geito cristão, reverente para com o exílio duma alma, na sua viagem longa para o maior mistério. Mas o que não é per- mitido, o que representa desacato de demente, é atirar mancheias de lama sobre um caixão ou retalhar-lhe à navalha o manto lentejoulado que a piedade dos outros pôs a cobri-lo.

Sem esta nefanda parte, como disse, o livro OriLhetas ficaria talvez como a melhor e mais interessante obra do sr. Forjaz. Representa, em técnica de estilo, o acúmen do seu processo. O vocabulário ali é mais rico. Os artigos sobre Eça e Camilo, sobre Fialho e Latino Coelho e sobre Júlio Dantas, Eduardo de Noronha, Shwalbach, Mântua, estes bem atochados de elogios (pudera ! tratava com vivos ! mas te- nham SS. Ex.^' a infelicidade de marchar adiante do sr. Forjaz, e ver-se hão novas mos- tras da sua especialidade necrológica ), e os inquéritos de jornais, sào curiosos, entretêem, embora, por fragmentários, nào sejam destina- dos a perdurar. Ha neles uma parte útil. A divulgação de factos e particularidades que, por dizerem respeito a figuras de destaque, mereciam sair da penumbra e do silêncio. Exi- giram estudo, trabalho paciente. As notas bi- bliográficas, mesmo as dos três incriminados artigos, são também de louvar. O pior é o adubo dos comentários..

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Em 1917, publica as Vidas Sombrias. Livro de crónicas, editadas em jornais, tresmalha- damente, e agora acolhidas sob o alpendre dum título pretensiosamente romântico, explo- rando a nota melancólica, tem as qualidades, quer positivas, quer negativas, os altos e os baixos, em assuntos e estilo, da trilogia das Crónicas imorais, Lisboa Trágica e Prosa Vil. Sem grande vulto e sem novas características, dispensa especial anotação.

E' do geral conhecimento a maneira como Portugal foi levado a cooperar no grande conflito mundial, desencadeado em 1914. Quási extinto de todo o espírito guerreiro da raça, não foi sem relutância da grande massa do povo, é doloroso dizer-se, que se começou a organizar e efectivar o envio do nosso con- tingente de forças para os campos de batalha da Flandres, A uma política internacional de aberta simpatia pela causa dos Aliados inicia- da pelos governos ,de então, opunha-se uma outra corrente de opinião, que, temerosa dos avultados encargo que sobre o tesouro por- tuguês impenderiam se tal intervenção se rea- lizasse, preconizava antes uma política neutral, embora complacente para com a Enterite, as- sim à maneira da que a nossa visinha Espanha

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resolveu seguir, e donde, se nào lhe veiu pres- tígio bem claro e épico, alcançou um largo e lisongeiro desenvolvimento do sen imperialis- mo, na forma mais pacífica, mais moderna e mais isenta de perigos a da melhoria da sua balança económ.ica.

Esqueciam os dessa campanha defectista que a Espanha nào estava, em relação aos Aliados, no mesmo ambiente histórico em que se en- contrava o nosso país e que, portanto, a polí- tica escolhida por ela e que lhe levou caudais de oiro aos cofres da nação, ainda que, impos- ta ao nosso povo, viesse a dar os mesmos re- sultados económicos, o que é duvidoso, não nos não era moralmente aplicável, como até a escolhermo-la, cairíamos no perigo de sermos dados por relapsos aos tratados com a Ingla- terra.

Não é aqui o campo azado para ressurgir essa questão, juntando-lhe quaisquer comentários a favor dum critério ou doutro, O que importa ao meu escopo é perante o facto da nossa en- trada na guerra com os Impérios Centrais, cons- tatar que em certas camadas do público essa cooperação esteve bem longe de ser entusiástica.

Por isso, como sucedera em todos os países arrastados ao conflito, criou o nosso governo um organismo oficial que tinha por missão fa- zer a propaganda intensa do nosso esforço bé- lico, não dentro de Portugal, com o intuito

F. 9

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de levantar o espírito popular, incendiando-o de simpatia pela causa em que fôramos a par- ticipar, mas também fora, no estranjeiro, com um caracter mais genérico nessa propaganda^ que sempre deveria ter existido e é de desejar que, bem orientada, se perpetue e se fixe, para atenuar a pasmosa ignorância em que a nossa nacionalidade se debate nos outros países, mui- tas vezes recebendo bastamente o oiro luso^ mas confundindo-o com o da Espanha.

Criou-se, pois, uma rq^artição especial para esse fim. Mas, ao que parece, pelos depoimen- tos de peso que têem vinde a lume, a pecha de administração que corrói toda a nossa engrenagem burocrática, logo invadiu o recem- -nado organismo, depauperando-lhe os recur- sos, consumindo-lhe as verbas num abrir e fe- char de olhos, quási, a bem dizer, sem nenhuma propaganda se ter feito. Quem devorou tanto dinheiro? Sabe-se bem!. . Bem nào se sabe, mas, contudo, um ou outro caso foi denunciado, como aquele que é agora ocasião de com.entar: o do sr. Forjaz, o da côdea farta que nesse bodo foi dada a roer ao afortunado plumitivo. Este caso do negócio do sr. Forjaz com a tal repartição de propaganda foi deixado em he- rança, em Dezembro de 1917, à situação co- nhecida pelo dezenibrismo. Nada melhor do que uma transcrição de certas passagens dos jornais a esse respeito poderá instruir-nos. Em

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A Luta de 21 de Janeiro de 1918 estampou o sr. Forjaz quási duas insolentes colunas de pro- sa, em troco de várias alusões adversas que di- versos orgàos da imprensa haviam publicado dias antes. Ei-las :

CRÓÍsTIC^

A^spectos & Impressões

O ESCAI^DÃLÕ FORJAZ

Ora vamos' a isto.

Havia no ministcrio da Instrucção uma comissão cujo fim único era a propaganda de Portugal intra e extra fron- teiras, comissão de que faziam parte creaturas que muito ■considero e de quem me tionro de ser amigo. Um belo dia propuz a compra de uma edição de artigos meus, cró- nicas que tinha publicado sobre a Alemanha. A comissão achou que seria melhor fazer eu um livro novo, de im- pressões directamente colhidas no front, livro curioso e vivido. Concordei e propuz-me fazêl-o. Receberia para isso 3:000 francos, foi o que pedi. Em troca daria artigos de propaganda nos jcrnaes onde costumo colaborar, pu- blicaria um livro de 240 paginas, com um minimo de ti- ragem de 3:000 exemplares e daria á comissão, que é como <iuem diz ao governo, 200 exemplares. Tal o negocio. Foi o caso aprovado pela comissão e aprovado pelo conselho de ministros Afonso Costa. Estava a coisa neste pé, isto é, fechado o contracto entre o escritor Albino Forjaz de Sampaio e o governo portuguez, quando a revolução sur- ge. Todos os negócios de publicidade foram novamente a •conselho e o conselho aprovou novamente o que apro- ■vado estava. E' que o conselho reconheceu que o nego- cio nada tinha de imoral.

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O governo dava-me 3:000 francos, 858S03 escudos ao cambio. Eu dava-lhe além da publicidade, da propaganda, do meu nome e do meu trabalho 200 exemplares, que a 60 centavos cada, valem 120 escudos. Dir-se-ha que os exemplares não são dinheiro? Pois são, porque o editor os paga ao deposito de papel, á tipografia e impressão, ao-brochador e ao moço e eu lh'os pago a ele, porque o governo m'os pagou a mim.

Ouro é o que ouro vale ou íes affaires sontles ajfaires. Ficou a verba moralmente reduzida a setecentos e tal mil réis, um fortunão.

Ora, houve um jornal do Porto, o Jornal de Noticias, informado pela prenda do seu correspondente de Lisboa, que dizia que a «revolução veiu encontrar muita gente com o taçalho na boca, sem lhe dar tempo de o engulir.» E di- zia mais que, (era comigoj, havia individuos contractados para ir ao front, recebendo para viagens, 3:000 fran- cos. O sublinhado é meu. Em primeiro logar, murche a orelha do cronista. Eu comi o taçalho. Em segundo logar os taes 3:000 francos foram para tudo, sem encargos de maior. Para eu pagar comboios, comedorias e fretes, para publicar um livro, para escrever artigos, para dar du- zentos exemplares ao governo, para sofrer frio e neve, para dormir incomodamente, para poder ter ficado com uma bala na cabeça, porque, julgo que é uma coisa que na guerra possa acontecer semi parecer extraordinário a ninguém, nem mesmo a quem morre. Ora tudo isto por 846$00, para mim, que tenho uma casa com arte, uma li- vraria preciosa, comida regular e bôa cama, acho que não é de locupletar-se a gente. Grande negocio na verdade para quem fosse descobrir Paris, como aconteceu a alguns colegas parolosos.

Mas ainda ha mais. No dia 18 de Dezembro o sr. For- jaz de Sampaio comprou na casa Thos, Cook & Son um bilhete de ida e volta a Paris. Custou-lhe 1095640 réis. Ora os malvados 700 escudos estão em ÕCO apenas. O

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sr. Forjaz demorou-se na viagem 24 dias. Numa média de 50 francos por dia, pão negro e café sem assucar, o sr. Forjaz gastou mais 1.200 francos. Os javardos julgarão que eu tenho medo das suas jornalices ou das suas insi- nuações. Agora ponham cartas, guias e plantas, trabalhos publicados sobre a guerra e ha-os bem curiosos, bem in- teressantes, quer como técnica, quer como arte, Le Feu e L'Enfer, de Barbusse, a Ma Pièce, de Paul Lintiér, Los cuafro-ginetes dei apocalipsis, de Blasco Ibanes, Les pre- mièrs cent mille, de lan Hay. Tudo isto havia que se com- prar. Resumo: os senhores sabem qnanto eu ganhei com o escândalo da minha ida ao front? Os senhores sabem com quanto eu regressei a Lisboa, com quanto num envelope eu dei entrada na estação do Rocio? Pois com uma nota de 100 francos que rebatida dois dias denois no Credit me deu 295400 e duas moedas hespanholas de 10 cênti- mos e 2 francezas de 5. Conservo-as para recordação.

Agora outra coisa. Eu fui como tenente. Parece extra- ordinário e todavia não houve coisa mais regular. Como quereriam os taes, os outros, os aqueles, que eu fosse? A' paizana. Ignora-se em Portugal que é defezo a paiza- nos o campo das operações. Para ir ao froní vesti-me de tenente. E' uma coisa que sem favor a lei me concede. tinha vestido a casaca para ir a uma festa em casa do dr. Manuel de Arriaga; para ir numa das maquinas do rá- pido do Porto me vestira de ganga azul, e para fazer uma viagem na casa das maquinas do paquete Porto me ves- tira de fogueiro.

Tenho ainda um smoking, um frak e tudo isto compra- do antes da famosa negociata dos três mil francos, que um famoso sucio julgava serem três contos de réis.

Embora a farda de tenente me ficasse a matar, despi-a em Bayonna. E' que eu tive sempre pouca querença para as fardas. E entre a de tenente que um decreto me em- prestou e a da Academia que ganhei pelo meu trabalho, a da Academia é muito mais vistosa. Mete espadim, chapéu

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armado e não é ainda acessivel aos garujas literários que dão facadas nas gazetas.

Tem a minfia ida uma outra parte, reservada até seu tempo. Essa porém não custou um real ao Estado. Parece que ficamos entendidos, hein?

Percorro as gazetas. A Capital perguntava Tenente de que? insinuando que este governo estava a talhar fa- tias para os afilhados e que eu ia substituir o sr. Augusto Pina. Enganou-se a Capital. Não fui. O governo disse á Capital por que me tinha feito tenente. A Capital não disse nada aos seus leitores. Também é um processo jornalistico. Creaturas mal intencionadas vieram dizer-me que a noticia da Capital e o taçaiho do Jornal de Noti- cias eram prosa do meu amigo Adelino Mendes. Não acre- ditei, claro. Adelino Mendes esteve em França e sabe que três mil francos mesmo fardados são nada, a não ser que a creatura vá, como c'esí la guerre, dar tiros - passe o calão de algumas centenas de francos aos compatrio- tas que tope. A Opinião fazia O Caso Forjaz como se fosse o caso Caillaiíx. As outras abundavam nas aguas do escândalo. Está pois a cousa explicada, se bem que eu po- deria ter comido o taçaiho como diz o outro e não vir agora aqui dizer que estou gratissimo a todos por tantas provas de amisade.

Pois é verdade! Valem um poema, os inventores do es- cândalo . .

Sinto nos bicos da pena as cócegas vocabulares do pa- dre José Agostinho. Ficam de remissa, embora isso me uma pena que nem os senhores podem imaginar.

íllbino Forjaz de Sampaio

Por mais fleugma que nos assista, não se po- dem ler sem revolta, sem indignação, estas pa- lavras de filáucia e de descaramento, dando em

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insignificante conta o emprego dos dinheiros públicos.

Aparte ainda o tom chalaceador e irritante dessa crónica, cumpre fixar-lhe certas afirma- ções com respeito à indole do negócio contrac- tado, para a gente se certificar se foi ou não cumprido: "A comissão achou que seria melhor fazer eu um livro novo, de impressões directa- mente colhidas no front, livro curioso e vivido." «Em troca daria artigos de propaganda nos jornaes onde costumo colaborar, publicaria um livro de 240 páginas, com um mínimo de ti- ragem ..." etc. Ver-se ha que não.

Vários jornais lhe deram resposta enérgica. Como súmula dessa oposição, aqui está uma local de A Capital do dia seguinte :

O caso Forjaz de Sampaio

o sr. Albino Forjaz de Sampaio regressou do front portuguez. E hontem, para elucidar o publico, publicou na Lucta um longo artigo, no qual explicava, como elle próprio diz, o escândalo Forjaz, pondo em pratos limpos tudo o que a esse mesmo escândalo diz respeito. Se não fosse uma alusão directa á Capital, pouco nos interessa- ria o relatório do sr. Albino Forjaz de Sampaio. Mas como o commissionado pelo governo portuguez para ir a França desempenhar uma mysteriosa e urgente commissào de serviço nos diz que não quizemos publicar a explica- ção que o governo para aqui enviara, somos forçados a pôr as coisas no que lhes pertence. Effectivamente, não publicámos a nota explicativa do governo. E sabe o sr.

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Forjaz de Sampaio porquê? Porque não a entendemos. Succede-nos sempre isso quando vemos citados, em docu- mentos officiaes ou officiosos, um rosário d'artigos de lei, que nem os próprios juizes da relação se atrevem, as mais das vezes, a decifrar.

E não nos arrependemos do que fizemos. O nosso ins- tincto valeu-nos uma vez mais. E' que entre a nota eluci- dativa, recheiada de citações de artigos de decretos appli- caveis ao escândalo Forjaz, e o que conta, no seu artigo da Liicta, o sr. Albino Forjaz de Sampaio, ha uma discor- dância absoluta. O governo dizia que incumbiu aquelle es- criptor de ir ao C. E. P. desempenhar uma commissão de sua confiança e declarava que opportunamente informaria o paiz. O sr. Albino Forjaz de Sampaio assevera que foi ao front portuguez para escrever um livro, do qual forne- cerá ao Estado duzentos exemplares, tendo recebido para isso a bagatela de 3.000 francos, ou sejam, segundo as contas do interessado, 858$00 escudos. O estado realisava, portanto, um excellente negocio, comprando cada exem- plar do livro que o sr. Albino Forjaz de -Sampaio escreve- ria a 4.290 reis cada volume. São estas as objecções que temos por bem fazer á referencia que endereçou á Capi- tal o auctor do artigo da Liida. Não nos parece que não sejam claras e elucidativas , . .

Também no Jornal de Notícias de 26 de ja- neiro o ilustre jornalista Adelino Mendes saiu à estacada, respondendo com merecida violên- cia à insinuação do sr. Forjaz duma preten- dida má do correspondente daquela folha em Lisboa. Entre outras coisas, diz-lhe: « . . o ar de mártir com que se reveste, querendo fa- zer-se passar por ter prestado um serviço, quan- do foi ele que recebeu dinheiro da Nação para servir os seus interesses" . . «O sr. Albino For-

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jaz não pôde ofender ninguém, nem mesmo a memória de Fialho que é a muleta literária que lhe tem servido para tudo até para ser sócio da Academia.'/ Remata: «E não julgue o cínico das Palavras Cínicas que fico com có- cegas nos bicos da pena, para desembestar em impropérios contra quem, sem ter a coragem de se me dirigir cara a cara, pretendeu naifar- -me pelas costas. Nào. Fico com cócegas mas é na biqueira do sapato. E essas pôde o cava- lheiro estar certo de qiie, se fôr preciso, nào as deixarei eternamente a roer, como comichão maldita, das que levam coiro e cabelo. Porque a respeito de resistência moral e física o meu ilustre camarada Herculano Nunes que diga e testemunhe até onde ela vai, quando se trata de chegar a roupa ao pêlo ao sr. Forjaz de Sampaio."

Tão escandaloso proteccionismo revelava c caso, proteccionismo que nunca o Estado bron- co e avarento dispensara a nenhum artista da pena deveras necessitado dele e a ele tendo jus por subidos méritos, que, mesmo sem se ver o livro, os protestos se erguiam nesta grita reprovadora e bem legítima

Porque teria sido o sr. Forjaz o beneficiado, o único beneficiado, quando, se se compulsar a imprensa anterior mas desses mesmos anos de guerra, ver-se ha que muitos outros escritores desenvolveram uma vasta propaganda do nosso

14 A Afronta a António Nobre

esforço no conflito, sem que o Estado, num ge- neroso gesto de Mecenas, os tivesse chamado a si, recompensando-os, dando-lhes chorudo dinheiro para uma viagem em terras de Fran- ça? Porque? Porque o sr. Forjaz teve o atre- vimento de fazer a proposta da pubHcaçào do livro famigerado? Talvez por isso. Mas o que ninguém poderá aprovar é que tão levia- namente essa proposta tivesse sido aceita, mal- baratando dinheir-os que tanto custam a pagar ao pobre contribuinte português. Quem quere regalos, paga-os, e não se deita a chuchar na exangue teta estadual.

Diversos jornais mantiveram à sua exclusiva custa correspondentes fora, em França, no intento meritório de darem passo a passo ao público o relato dos feitos da nossa soldades- ca. Por exemplo, A Capital dois enviados teve, nada menos: Adelino Mendes e Mário de Al- meida, a quem se devem dois belos livros so- bre a guerra.— Cartas da guerra e O Clarão da Epopeia. Como estes, outros jornalistas e escri- tores por andaram e dos seus trabalhos ficou uma propaganda enorme e bem feita, que nem um ceitil custou aos cofres públicos.

Depois deste estampido de ataques ao es- cândalo e da fumaceira que o rodeou por mo- mentos, fez-se um silêncio longo. Rolaram os meses, e o luso pagante à espera do decantado livro, que lhe custara a bagatela de 3:000 fran-

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COS ! Quási decerto se esquecera dele, tão habi- tuado anda de ha longas eras a pagar tanta coisa inútil e, o que é mais, tanta coisa que nào vê. . .

Rolaram os meses, rolaram, e, por fim, quási à beira da assinatura do armistício, surge um livro do sr. Forjaz, de título estranjeirado A Avalanche que, por certas passagens, e mais ainda porque nenhum livro mais ele tenha publi- cado com temas sobre o prélio, deixa a gente na presunção de ser este 'o '< livro novo, de im- pressões directamente colhidas no front, livro curioso e vivido», «um livro de 240 páginas».

Este!.., pasmará o leitor, como eu pasmei, ao folheá-lo. Primeiramente, com uma publica- ção tão tardia, quási fora do tempo do con- flito, o livro, por melhor que fosse, resultaria inútil, tendo em vista o fim a que se propu- nha—manter aceso o interesse do povo portu- guês pela acção dos seus soldados, que valen- temente se estavam batendo e morrendo, co- bertos de glória, longe, na Flandres, honran- do o sagrado nome da Pátria. Depois, o livro não não é melhor do que os outros publi- cados sem subsídio oficial, como até é pior, como nào é bom, como é inferior. «Livro novo, de impressões directamente colhidas no front». «Novo», é falso. Folheie-se uma colecção de A Luta e será encontrada a maior parte dos artigos que constituem esse capítulo do livro

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Á margem da grande guerra, que se estende por cento e vinte páginas, isto é, mais de me- tade do volume, que, ao todo, tem 220 em vez das 240 páginas contractadas.

Duas transgressões, portanto, se apontam ao contracto: a falta da qualidade de inédita de metade do livro e o seu menor número de páginas.

Para quem conheça um. pouco a obra do sr. Forjaz, irreverente, sarcástica, indiferente ao sentimento de patriotismo, franca vontade de rir o estilo da dedicatória: nA todos, que ao frio, à neve, à chama rubra dos incêndios, ao troar do canhão, ao enervante crepitar da fuzilaria, na incei teza das águas do mar, na planície desolada da Flandres, na noite negra das trincheiras ou na noite vermelha dos hos- pitais, souberam lutar, combater, sofrer, mor- rer, honrar a Pátria Soldados de Portugal dedica o autor". Como sôa falso tudo isto! Co- mo isto é postiço no temperamento do sr. Forjaz! Tanto, que as palavras lhe sairam sem alma, alinhadas ali a custo.

Em seguida, á laia de prefácio, sumaria os motivos do conflito grandioso, com estafados lugares comuns do jornalismo e sabença do Larousse. Com os mesmos elementos cozi- nhou as vinte crónicas da primeira parte do volum.e. E caso célebre e risível! em algu- mas delas de tal modo estira por páginas e

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páginas o relato, túrgido de algarismos, do poderio multiforme dos alemães, que, apezar do fecho das crónicas vaticinar a derrota dos Impérios Centrais, se chega a acreditar que aquilo tudo não é mais do que um dos muitos elementos de propaganda anti-aliada, isto é, pró--Gerniânia, pago generosamente com o pér- fido e execrando oiro alemão, tal é a impressão de força e de superioridade da energia da Ale- manha que esses assertos nos introduzem no espírito!... Leia-se: «A sua (da Alemanha) marinha é enorme, o seu exército não cessa de aumentar, as praças fortes da fronteira multi- plicam-se e com elas a espantosa rede de ca- minhos de ferro ". «Passou a fronteira e na luta económica que caracteriza a vida moderna, a indiístria e o comércio alemão dia a dia maio- res e mais pujantes se fazem». «Foi isso o que tornou Hamburgo o terceiro porto do mundo e fêz de Bremen um grande império. Por Ham- burgo tudo passava. Havia o navio carvoeiro, o de carnes congeladas, o que levava frutas. O café do Brasil, a borracha e o cacau das nossas Africas, as rendas da Madeira, as louças do Japão, porcelanas, sedas, livros, cantaria, papeis, de tudo Hamburgo era o grande mer- cado. Só a sua praça tinha 430 vapores mon- tando 637:000 toneladas, com 16:000 tripulan- tes." Não tem qualquer coisa de relatório dum cônsul alemão, encarecendo os méritos da sua

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orgulhosa Pátria? "A sua marinha de guerra. . . a segunda marinha do mundo.. " «O exérci- to, que nos Hohenzollerns é «uma tradição de família», é o primeiro do mundo, com os seus formidáveis 23 corpos". "O comércio e a in- dústria alemã são coisas espantosas de desen- volvimento." Etc, etc. Que veemente panegíri- co, triunfal, apoteótico; para ''digno remate, soas notas clamorosas do Deutschland uber alies! . . . A segunda parte do volume intitula-se No coração da guerra e tem como sub-título Sol- dados de Portugal. Começa a páginas 129. Em oito crónicas, que abrangem mais de quarenta páginas, diz-nos o que passou a sua importan- te pessoa «a caminho do front", bem minucio- samente, com horas de partida de comboios, o frio que fazia, a fome que sentiu a ccirta altura do trajecto, as olhadelas que deitou à paisa- gem, os episódios pícaros da viagem, o bom gosto dum jantar em Valência, a delícia do vinho ingerido a regá-lo, a recordação duma zurrapa que lhe molhara as tripas treze anos antes, coisas estas e outras todas muito homé- ricas e dignas duma epopeia.

Tanc-tan,tanc-tan, o comboio silva, o com- boio rola, o comboio desdobra por ali fora o corpo serpenteante de anéis de aço. Bargas, Agonias, Cabailas, Madrid, por fim. Primeira étape do seu calvário. «Frio laminante, pneu- mónico". Pobre sr. Forjaz de Sampaio! En-

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quanto longe, comodamente instalados nos covis das trincheiras, os soldados bisonhos de Portugal se entregam à orgia da guerra, ele, em alto serviço da Pátria, em abnegado sacri- fício pela grei, arrosta com aquela intempérie, com aquela algidez do ar, no deserto de Ma- drid, que lhe faz ter imensas saudades de Lis- boa! O' Lísbia, ó Pátria, ó numes, como pa- gardes os favores do ínclito cidadão?!

Parte de novo. Segunda étape, terceira, quar- ta, muitas. San Sebastian, Bordéus, Paris. de evocar o Paris doutros tempos, revolteante, boémio, colmeia de lindas fêmeas. Mesmo as- sim mudado e despido dos atractivos de outro- ra, ainda se compraz em esboçar-lhe aspectos em duas ou três ciónicas. Revistas, mulheres de pernas ao léu, o sorriso pecador de Rose Amy e o bacante olhar da Gaby Deslys. O que o homem sofre atravez daquilo tudo, em que jamais esqueceu a magestade da sua missão: "E, quando no fim subo a escada do hotel, pi- sando a passadeira com as minhas fortes botas impermeáveis, eu penso na loucura, no vorti- Ihão, no sonho de luz e carne que passou ante os meus olhos e agora é somente um sonho. Penso também se voltarei a vê-lo, se não fica- rei, pelo acaso de uma inevitável fatalidade, nesse front para onde a minha guia em inglês diz que eu devo partir amanhã, da gare do Norte às 9 horas.

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"Sei lá! Sabemos nós por acaso alguma coi- sa!.. ."

Vale uma lágrima este final!

Partiu, seguiu, viu campos desolados, apro- ximou-se da no nian's land. Melancolicamente to- cado do pavor da morte, confidencia: «No comboio scismo um pouco em mim. vou. Para onde? Para o desconhecido. E' curioso isto, pois não é? E chega o comboio ao Aire. São 9 e meia de uma soturna manhã de neve».

Página 177. Entra na zona do front. Lamen- tos dum galucho, o encontro com um amigo velho, o regalo do almoço. Depois, a caminho da escola dos gazes, uma caminhada longa so- bre a neve e sob neve, que lhe arranca uns quei- xumes de poltrão "... por vergonha é que eu não confesso que sou um pobre farrapo de alma a quem a neve perturba e mata.» «Se eu caisse varado à beira daquela estrada de prata fosca que não acaba mais, a neve me amor- talharia e os corvos saberiam de mim, tal é a impressão de solidão que agora na minha alma." »Eles batem-se. E na minha mente ima- gino o inferno que deve ser por lá. Na es- curidão da noite eles batem-se. Um camion passa. Tudo estremece. E eu, encolhido entre os lençóis, caio a pique no sono, primo-ir- mão da Morte, como lhe chamou o Eça de Queiroz".

Avança para a linha de batalha. Fala muito

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de si. Descreve-se, relata-se com vagar e pre- sunção, julga-se o eixo do mundo. Mais ane- docta, mais chalaça, mais invectiva contra o frio e a neve, e a respeito da soldadesca portugue- sa, nada ainda, a valer. ela nos aparece a páginas 194, incarnada no galucho Joaquim. Homenagem ao heroísmo luso, preito fervoroso às altas qualidades de bravura da nossa gente? Meia lauda, se tanto, para tal: meia dúzia de frases banais, sem entusiasmo, sem comoção, sem força de sinceridade. A seguir, doze pági- nas com ditos da soldadesca, episódios grotes- cos dos interv^alos das batalhas, calão das trin- cheiras, entre-tens singelos, e pouco mais.

Avista-se o termo do volume. Mais o XIV capítulo com a descrição monótona do cami- nho para Bethune, dentro dum automóvel. Um avião boche em cima, pairando, moendo sons. Longe, o troar do canhão.

«A trincha", capítulo final, que dá? Impressão ligeira dum rápido contacto com a linha de- marcadora da Terra de ninguêni. Desvaira en- tão, engrandece-se, glorifica-se, julga se integra- do no pavoroso conflito, danao a vida em ho- locausto à Pátria, à Civilização, à Humanidade, como os outros seres humanos que ha longos dias, intérminos dias, ali se batem, denodada- mente, almas fortes e viris compondo estrofes dum novo Lusíadas. Esqucce-se de que foi ali apenas por passeio, com 3.000 francos na

F.IO

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algibeira, para escrever um livro sobre o mar- tírio dos outros. Supõi-se irmão de heróis, com- partilhando do mesmo alto e trágico destino: "pode-se com cuidado olhar a Terra de nin- guém, fazer mesmo gestos ao irmào boche que do outro lado morre como nós outros.» «E transida, bafejando as màos, sem sono, a gente escuta os ecos e o nosso coração doento é como um velho relógio tonto oscilando entre a sau- dade dos que estão longe e a idea de morrer ali, armado e equipado, sonolento e triste, como um cão sem forças.»

As linhas de mais beleza que traz o livro são as poucas em que transmite a impressão dum oficial que escapou ao 9 de Abril, o nosso Al- cácer-Kibir do século XX.

Ocamente, como na dedicatória farfalhuda, finda: «E o boche viu como se batem e morrem os portugueses, os soldados sofredores, herói- cos, humildes deste encantado e lindo Por- tugal. E eu recordo a nossa terra, os nossos soldados, e lembro comovidamente uma qua- dra que ao sabor popular um coração de por- tuguês deu forma:. etc.

Fazendo balanço ao livro. Não é ele em tudo inferior ao seu desígnio? fiz notar que, ten- do o seu autor tomado o compromisso de fa- zê-lo novo, lhe meteu muito original ante- riormente publicado em jornais. Em seguida, bem exígua parte dele tem por assunto o tema

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proposto— O duma impressão do esforço por- tuguês na Grande Guerra. Por último, esta parte não é pequena em quantidade ; a sua quali- dade é nua de interesse, fria de emoção, erma de simpatia. Não ha ali uma nota rugente e alta de heroísmo, de sublimidade, que repercuta na nossa alma, que nos incendeie de entusiasmo, que nos ponha o espírito em vibração. Nada, sob este ponto de vista. Ora, não foi decerto para repetir o que em todos os tons e em toda a imprensa mundial se dissera sobre a Alemanha, nem para narrar com insulsa hiper- trofia do eu a sua rota até o front, atravez de Portugal, Espanha e França, que o Estado com dinheiro de todos nós o subsidiou fartamente nessa viagem. E' esta circunstância que piora o livro, que lhe salienta a falta de valor. De res- to, a crítica não teria diante dele de tomar se- não a atitude que lhe compete perante qual- quer livro saido a público aplaudindo ou ne- gando aplausos. Aqui, e naquela circunstância, o caso é outro. O caracter de oficial que tem a obra exige, legitima maior severidade da críti- ca. Considera o sr. Forjaz uma ínfima bagatela a quantia de 3.000 francos que recebeu. Con- vêm-lhe assim, e o seu desejo teria sido rece- ber muito mais. Mas os contribuintes do Esta- do é que não podem ter tão desenfastiada e pródiga concepção do valor da pecúnia nacio- nal. E, então, nem ao menos teve um gesto,

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uma palavra, um impulso de agradecimento : bem podia, se nào fosse duma ruim ingratidão, ali no pórtico do livro, em vez daquela farfa- Ihuda dedicatória, de retórica vazia e álgida, exarar uma saudação a todos nós, a todos que, sem vontade embora, tivemos de custear-!he o passeio pelo estranjeiro. . .

E com isto provou o Estado à sobreposse a sua falta de vocação para Mecenas: entre toda a bibliografia portuguesa do grande conflito mundial, é o livro que ele estipendiou o de menor valor e destinado a mais depressa es- quecer!

E assim também, melhor teria sido o sr. Forjaz não ter escrito aquele leviano e espalhafatoso ar- tigo de A Luta, que atraz transcrevo na íntegra. foram eficazes em comprometerem-no aque- las palavras, em que a vaidade espinoteia à larga, alardeando um serviço à Nação, quando dela, por malas-artes e compadrios políticos e literários, recebeu nào insignificante maquia. Quando não indigne, faz rir o que ele diz nesse teor: « . .os taes 3.000 francos foram para tudo, sem encargos de maior. Para eu pagar com- boios, comedorias e fretes, para publicar um livro, para escrever artigos, para dar duzentos exemplares ao governo, para sofrer frio e neve, para dormir incomodamente, para poder ter ficado com uma bala na cabeça, porque, julgo que é uma coisa que na guerra possa aconte-

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cer sem parecer extraordinário a ninguém, nem mesmo a quem morre. Ora tudo isto por 846§00, para mim, que tenho uma casa com arte, uma livraria preciosa, comida regular e boa cama, acho que não é de locupletar-se a gente.»

Na verdade, pensando bem, tudo isto por 846S00, é um ovo por um rial. Bem teria an- dado o governo, contractando, a este módico preço, preço para amigos, em vez de uma, meia dúzia de Avalanches! Um verdadeiro negócio da Chma para ... o sr. Forjaz! . - E praza a Deus que não acuda ao sacrificado escritor a ideia de, perante a enormidade da sua abnega- ção, nos pedir ainda um suplementesinho aos 3.000 francos, a título de indemnisação.

Depois do esboço dum rol de despezas de transporte e comedorias, diz: «Agora ponham cartas, guias e plantas, trabalhos publicados so- bre a guerra e ha-os bem curiosos, bem inte- ressantes, quer como técnica, quer como arte, Le Feii e L'Enfer, de Barbusse, a Ma Pièce, de Paul Lintiér, Los cuatro ginetes dei apocali- psis, de Blasco I banes, Les premièrs cent niille, de lan Hay. Tudo isto havia que se comprar.* Mas, para quê? Pois, para escrever aquelas mor- nas páginas de A Avalanche ainda foi preciso recorrer à leitura desses alheios livros sobre a guerra? Que desastrada confissão: claudicante por natureza, o sr. Forjaz, pelo visto, não passo sem muleta!

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Irritante, malcriado, insultuoso, cheio de ba- sófia, infeliz sob todos os aspectos, aquele arti- go, na verdade. . .

Na esteira de A Avalanche, e dentro do mes- mo ano de 1918, saiu o volume Tibério filóso- fo e moralista. Taboleta longa e vistosa, que nada tem por detraz, a nào ser um cerzido me- díocremente habilidoso de palavras, com ber- nardices sem graça e sem uma ideia que se di- ga original e interessante. Parece escrito o vo- lume com a tinta, mas aguada, muito aguada mesmo, com que o autor traçou as Palavras Cínicas. Filosofices baratas e que chispam de todo o cérebro, por mais rocaz e bruto, mora- lidades chatas* e no género das que salpicam toda a sua anterior obra, com uma ironia for- çada, sem scintilação ofuscante. Até a lingua- gem é menos impressiva do que em outros vo- lumes do sr. Forjaz.

Livro mínimo, de crise, de depressão, por- tanto.

Ora, a propósito deste trabalho, li eu ha tem- pos, não sei quando nem firmado por quem, um artigo em que, perante a silografia contu- maz do sr. Forjaz de Sampaio, se lhe estabele- cia estreito parentesco com Léon Bloy, o gran- de panfletário, cuja morte, ocorrida no sufo-

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cante e absortivo tempo de guerra, sofreu do inundo culto uma insultuosa apatia. Esmagada pelo horrível cauchemar, sôfrega de lhe regis- tar todos os episódios, até a imprensa mais próxima, a francesa, mal reparou no passa- mento do temível fundibulário da pena. Des- ceu à terra envolto na mortalha do silêncio, de que em vida se dissera tão vitimado. Dir-se hia que até na morte o conseguiram diminuir os seus inimigos, furtando-lhe as orações de gran- de e pomposa retórica de que fora sempre tão amante a sua alma de católico e de artista.

Sintoma do vício da desproporção que é tão vulgar entre nós em todas as coisas, esse arti- go, que pòi a par o sr. Forjaz e Léon Bloy re- vela, àlêm de miopia crítica acentuada no seu autor, um conhecimento incompleto, bem pior do que um completo desconhecimento, do ta- lento desse tigre da literatura francesa, da sua maneira furibunda, convulsiva, olímpica, tantas vezes empregada em esfarrapar, entre as garras afiadas da sua portentosa ironia, as maiores re- putações de tantos dos seus contemporâneos e confrades artistas, reduzindo-as a risíveis tra- pos, rojando-as pelo do desprezo, mas tu- do isto gritado a plena voz, em frente dos tú- mulos e em frente das casas dos vivos, com inquebrável coragem e suprema sinceridade, não poupando ninguém, morasse em mísero albergue ou em altaneiro capitólio.

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Dí-lo eloquentemente assim: "J'ai vécu dans une extraordinaire solitude, peuplée des ressenti- menís et des désirs fauves que mon exécration des contemporains engendrait, vociférant ce qui me paraissait juste, fallut-il en crever."

Tinha amargas queixas da vida e dos ho- mens. "Ma vie est un pélerinage infernal, un prodige de douleurs; j'ai crevé de íaim pour Jésus-Christ. Je suis abhorré, maudit, renié, conspué, inaperçu- . ."

Os seus quatro volumes, curiosíssimos, Le De- sespere, Le Mendiant Ingrat, Mon Journal, V Invendable, narram, com uma estranha elo- quência, a su^ vida acidentada e cheia de ba- talhas quotidianas, ferindo e sendo ferido, fa- zendo sangrar orgulhos e saindo delas com o seu orgulho enorme também tauxiado de cica- trizes.

lei on assassine les grands hommes é o su- gestivo título de um dos seus livros. E vai dando as punhaladas. Brunetière para eleé «um um imponderável pedante gaguejando em calão» Paul Adam um "crotomaníaco», Flaubert um «vómito sobre o século próximo», Anatole Fran- ce um «retórico pusilânime", Bourget «um sim- ples eunuco»', os Goncourt «dois adelos unidos por uma membrana», Balzac «um olho imenso nada mais que um olho», Ibsen «um gorila escrevendo a palavra fatalidade^. Como estas definiçõeSj muitas outras, violentas, brutais,

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candentes, mas vivas, originais e duma exótica e pujante beleza.

Claro é que esta fúria apocalítica, diabólica histérica, lhe grangeou uma atmosfera esbra- zeada de ódios. Pois isso mesmo converteu ele no seu mais alto e nobre pergaminho, dizendo ser o maior sonho da sua vida «ser o escarra- dor das maldições do universo, andar vestido, como num manto luminoso, pelo desprezo in- finitamente agradável das pessoas honestas, re- ceber apenas injúrias porcalhonas e desafios crapulosos, parecer, enfim, a mais baixa lama do capacho literário e atolar-se gloriosamente nas dejecções dos mais lodosos porcos do jornalismo. . . »

Paradoxal, suntuoso, hiperbólico, iracundo como um deus das velhas teogonias, da sua Femnie pauvre disse iMseterlinck: «cet ouvrage est Ia seule des oeuvres de ce jour ou il y ait des marques evidentes de génie."

Como, pois, aproximar o sr. Forjaz de Sam- paio do grande panfletário, aparentando-os, descobrindo-lhes afinidades? porque a obra do sr. Forjaz tem uma tonalidade rubra de irreverência, de cinismo, de virulência, de bru- talidade? Mas, aparte a diferença de grau des- sas características num e noutro, diferença enorme, ha a considerar que o que em Léon Bloy é sincero, inato, orgânico, é no sr. Forjaz postiço, artificial, mero truc de niise-en-scène.

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Servem-me estas palavras, em que disse um pouco da minha entusiástica admiração perante o alto valor de Léon Bloy, aíargando-me quiçá demais, para repudiar uma aproximação injus- ta,— servem-me elas à maravilha como ponte para, fechando este longo capítulo, amassar numa visão de conjunto, rápida, as sínteses que atraz ficaram das parcelas da obra do sr. For- jaz puMicada até hoje. Cumpre fazê-lo agora, visto ser o seu António Nobre a obra que se seguiu ao Tibério filósofo e moralista e querer eu fazer-lhe comentário em capítulo privativo, como fulcro deste trabalho.

Profissional das letras, vivendo quási exclusi- vamente delas, mercando pão e agasalho com o produto dos seus livros, e para isto traba- lhando muito e muito, deitando às vezes para o público mais de um livro por ano, - como sempre sucede, a qualidade na obra do sr. For- jaz é prejudicada grandemente pela quantida- de. Não tem tempo de joeirar, seleccionar, ele- ger m.otivos de escrita. Tudo aproveita, a es- mo. Daí o caracter fragmentário da sua pro- dução. Não tem espírito de sequência, não possui sentido unificador. Mas, mesmo, frag- mentários, poderiam os seus livros recomendar- -se por um brilhante poder expressivo, por um cuidado lavor da forma. Pois nem isso. A maio-

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ria das suas páginas é fosca, não scintiia a jóia duma imagem, não espelha, não contêm uma irradiação de luz. Aqui, àlêm, raras como os oásis nos desertos, encontram-se umas ou outras paragens interessantes, mais sentidas, revelando um criador contacto com a vida. Mas, fugidias, estas notas, tão pequenas e escassas se enxer- gam, que pacientemente, catando com va- gar os seus milheiros de páginas, se conseguem encontrar. O estilo normal ida. sua obra é o vul- gar, chão, plebeu. Com obras igualmente frag- mentárias e dispersivas, apontam -se na litera- tura portuguesa muitos e muitos nomes, gran- des, prestigiosos, dignos do nosso amor. Fialho, o criador de tantas páginas que são verdadeiras montras de joalharia, D. Maria Amália Vaz de Carvalho, com um longo principado, de litera- tura, sem um momento de crepúsculo no seu fastígio, Júlio Dantas, Augusto de Castro, Car- los Malheiro Dias, na sua última fase de cro- nista, esquecido como anda do romance, e tan- tos, tantos outros, cujos nomes encheriam pá- ginas. Por isto se que o sr. Forjaz no gé- nero de crónica, que mais cultiva, poderia bem, se melhores dotes lhe assistissem e mais atento labor pusesse no que faz, subir a um mais alto nível de valia. Não é o género que é inferior. Neste caso, quem o maneja é que não sabe aproveitar-lhe os recursos, até a sua maior la- titude.

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Como apontei, um dos seus trucs favori- tos é a concepção pessimista da existência hu- mana. Teimou para ali um dia, no alvor da mo- cidade, embebeu-se de doutrinas que, como ou- tras, fulgiram lim instante no ceu da filosofia para logo desaparecerem, e desde então, fossi- lizando a passageira moda, atravez do prisma dessa concepção pessimista tem-se mantido obs- tinadamente a julgar os episódios da vida, os sentimentos, os homens, as coisas.

E" árida, por isso, a sua obra. Não tem flo- rescências de ternura, silvas de piedade, pra- dos idílicos e pastoris. Tem antros, mansardas, recantos sombrios da cidade, interiores de hos- pital e de morgue. A dor, mais a dor, a dor. iMas é mais o vocábulo doloroso do que propriamente a sensação dolorosa. Não tem garra emotiva. Deixa o ledor de espírito frio. Perde laudas a descrever aspectos trágicos e, ao fim, quem o nada de tragédia sentiu, e teve sempre bem presente que tudo aquilo é apenas literatura, que está a ler um livro, que não ha o perigo de a tragédia descrita o con- tagiar. Não empolga, não hipnotiza, não possui. As suas descrições amarguradas estào para a vida realmente trágica na mesma relação em que um gato-pingado está, num enterro duma crian- cinha, para com a mãi desta, que se convulsio- na e se arrepela, bramindo o seu desespero, enquanto aquele, insensível a tais espectá-

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culos, forçosos de assistir no seu mister, se mantêm fleugmático e como estranho. Pois, sal- vo seja, o sr. Forjaz, com as suas doloras, tem um ar de cangalheiro . .

Algumas das suas paginas fazem supor que o sr. Forjaz é um desgraçado, um mísero, roído de necessidades, estalando nervos na luta pela vida, e que daí lhe advêm a sua amargura, o seu desespero, o seu sombrio e revolucionário lance de olhos sobre as coisas do mundo. Pois, confirmando a debilidade de convicção que os seus assertos apresentam, no citado artigo de A Luta bem claramente ele desmente a supo- sição romântica e piedosamente simpática exis- tente nalguns dos seus leitores mais ingénuos, que o tomam a sério: «para mim, que tenho uma casa com arte, uma livraria preciosa, co- mida regular e boa cama. . ." Um perfeito bur- guês, comodamente instalado na vida, é, pois, o autor de mil apóstrofes violentas contra a agrura da existência, o que decreta a inanidade do esforço, a falência da felicidade. Que tal? Oh ! eu gostava bem de que lesse estas linhas um pobre-diabo que ha tempos, ali no Rocio, quando duma greve dos eléctricos, vociferava contra a traição dos amarelos, dos que se ti- nham apresentado ao serviço, e exclamava para uma companha descalça e vcciferante como ele: «Quem diz bem é o Forjaz de Sampaio. . . Aquele, sim, é que diz o que a vida vale. . . Ele

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é que é bem um irmào do povo, explorado pela burguesia. . . Leiam as Palavras Cínicas ...>' Que redondíssima cara de asno o homem apre- sentaria se soubesse ter o sr. Forjaz boa casa, boa mesa e boa cama!. . .

Por esta fisionomia lamurienta, tão do agra- do do jbaixo público, aliada ao outro pertinaz recurso da irreverência, da mordacidade, da chalaça forte, tem conseguido o sr. Forjaz uma grande notoriedade. Tem uma clientela vasta e fiel, recrutada entre a gente mais inculta. Ven- de bem os livros, e é esse o seu mal, sob o ponto de vista moral, tào antagónico por vezes ao material. Para servir quem lhe paga, nào pode melhorar os seus processos, ascender a uma atmosfera mais límpida de arte. Industrial das letras, como confessou nos Grilhetas, bem se importa ele com a crítica, se tem sempre uma rumorejante freguesia acogulada diante do seu mostruário !

A fauna mal esboçada da sua obra é toda in- tencionalmente composta de exemplares tara- dos, monstruosos, escravos de maus instintos. Corpos, animalidade, carne apenas. Espíritos nenhuns. Paisagem, também nela se nào encon- tra. Vive longe da Natureza. Circunscreveu a sua observação aos acidentes da urbs incarac- terística e tumultuaria. Para o sr. Forjaz nào ha leiras fecundas, nào ha almas boas e iriadas de honestidade. E' um catalogador de museu pa-

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tológico. Neste tom, a sua obra nào desperta simpatia, nào ergue o espírito, nào suscita me- lhoria de caracter, nào torna coesa e amorosa a multidào. E' um exegeta do egoismo, na sua forma mais brutal.

E sentido rácico, sentido lusitano? Nenhum, é triste constatá-lo. Se os seus vocábulos per- tencem à língua poriuguesa, os assuntos nada têem que os mostrem enraizados no espírito da grei. tlagelando, queimando, motejando, dizendo mal, tem tomado a nossa gente e as nossas coisas para temas da sua faina escriturai. Virtudes, nunca lhas encontrou, nunca uma coisa nossa o entusiasmou, nunca teve uma pa- lavra de carinho para qualquer aspecto da vida colectiva de Portugal.

E' muito novo^ muito original nas imagens da sua escrita, clamam os seus devotos. Um, certo dia, por paradigma, apontou-me esta de A Avalanche: "Porque o sono em caminho de ferro é como o cão do ferreiro. O viajante dor- me emquanto o comboio marcha; o cão acor- da quando o martelo pára." Era flagrante de verdade e nunca expresso tal pensamento, ga- rantia o leitor assíduo do sr. Forjaz. Pois a pag. 20 de Les Opinions et les Croyances, de Le Bon, datado de 1913, lê-se: «Ladiscontinuité du plaisir et de la douleur represente la consé- quence de cette loi physiologique que^le change- ment est la condition de la sensation. Nous ne

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percevons pas des états continus, mais des dif- férences entre des états simultanés ou succes- sifs. Le tic tac de la plus bruyante horloge fi- nit à Ia longue par ne plus être entendu et le meunier ne será pas réveillé par le bruit des roues de son moulin, mais par leur arrêt."

Não se julgue que insinuo um plagiato co- metido pelo sr. Forjaz sobre a passagem de Le Bon, anterior à dele, pois é de 1913, com esta comparação dos dois trechos, cujo sentido é extremamente próximo. Creio pouco em pla- giatos, pelo que ainda não ha muitos meses, quando iniciei este trabalho, repeli indignada- mente a colaboração que alguém me ofereceu, e que teria a forma de uma longa relação dos plagiatos de que, no entender desse alguém, a obra do sr, Forjaz está inçada. Repeli essa co- laboração, porque a julguei antipática e falsa, visto que a obra do sr. Sampaio, não sendo de um cunho superior, é, contudo, bem digna da média capacidade escriturai que reconheço exis- tir naquele autor. Se para fazer o que ele tem feito fosse preciso recorrer a fonte estranha, teríamos de concluir ser o sr. Forjaz uma com- pleta negação literária. E disse o defendo eu, sinceramente.

O que eu lhe nego é o direito à notorieda- de, com aura de consagração, de que disfruta, pois não tem bagagem para isso. Conquistou-a por leviano bafo da sorte cega e por demasia-

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da transigência do público ledor. Sabe viver, eis tudo. E com esta habilidade, tem suprido a falta dum grande espírito e duma imaginação fecunda, dum espírito e duma imaginação, sen- síveis, de largo surto e de estrutura delicada. E, se hoje, ao publicar os seus volumes, se enfeita com o título «da Academia das Sciênci- as de Lisboa»', pelo que filàuciosamente escre- veu "E entre a (a farda) de tenente que um decreto me emprestou e a da Academia que ganhei pelo meu trabalho, a da Academia é muito mais vistosa. Mete espadim, chapéu ar- mado e não é ainda acessível aos garujas lite- rários que dão facadas nas gazetas», se poude ter este desabafo vaidoso e insolente, deve-o, mais do que ao seu trabalho, que não tem ca- tegoria para tão elevada distinção, a uma soma de circunstâncias casualmente felizes para ele, e que, vadiamente, não surgiram a apadrinhar grandes nomes da nossa literatura, como Go- mes Liai e mais, que morrerão sem terem to- mado assento no seio da douta instituição, en- quanto num seu fauteuil o sr. Forjaz se ame- senda, apezar de na Prosa Vil lhe ter dado es- ta bicada, a propósito da questão ortográfica : "Cumpre ao instituto de surdos-mudos que pelo nome de Academia Rial das Sciências re- solvel-aw. Instituto de surdos-mudos... e de cegos, principalmente, pelo menos, quando abriu as portas para o ingresso do sr. Forjaz. . .

F. 11

138 A Afionla a António Nobre

Afortunado e habilidoso sào, em resumo e olhando em globo o seu passado, os mais justos qualificativos que cabem ao sr, Forjaz.

Longe ainda do termo da vida, não tendo ainda mesmo dobrado o promontório dos qua- renta anos, poderá ser que àmanhan, em plena maturidade do seu temíberamento, nos uma obra mais vultosa e mais bela, mais construtiva e mais simpática.

Oxalá assim seja, para que eu possa entào dar largas à faculdade mais querida do meu espírito: a admiração.

Mas nisso não deposito grandes esperanças santo Deus!. .

1-0 seu "fíntónio ho- bre'\ obra irreveren- te e mercantil.

Foi para dar uma ideia, quanto possível justa, da envergadura intelectual do sr. Forjaz, enca- rada sob o especial ponto de vista da sua auto- ridade para emitir um juizo condenatório so- bre a figura poética de António Nobre, expresso no seu mais recente livro ha meses aparecido, que vim no capítulo antecedente em excursão pela sua obra, nào pequena em volume, de es- tação em estação, observando, comentando, dis- cutindo.

Chego, pois, agora ao fim desta viagem : ao seu ponto capital.

António Nobre inculca-se o primeiro vo- lume de uma série subordinada ao título Os Bárbaros. Di-lo o autor na meia dúzia de li-

142 A Afronta a António Nobre

nhãs do intróito, chamando ao trabalho «es- corço de estudo sem pretensões." Diz mais. «São páginas de análise, em que se procura, não exal- tar ou deprimir mas, serenamente, buscar a verdade." "Estas páginas nào representam um estudo. Falta-lhes muito pari isso e a crítica moderna tem exigências não compadecidas do nosso tempo e competência. São apenas no- tas " No início da obra pede bordão a Théo- gnis de Mégara e com ele invoca ardentemente a verdade, «a mais justa de todas as coisas.»

Vamos a ver como a pulcra divindade invo- cada o tutelou.

Antes de mais nada, vou a uma colecção de A Luta e do seu número de 10 de Março de 1915, transcrevo as passagens mais importantes de um artigo ali publicado pelo sr. Forjaz, de co- mentário oposicionista à forma como a acade- mia de Coimbra fizera dias antes a comemora- ção do aniversário da morte do Poeta do num número especial de A Galera, revista pu- blicada naquela cidade. Citando trechos do ori- ginal da publicação comemorativa, e bordando sobre eles um nem sempre feliz humorismo, tem aliás nesse artigo notas sensatas e justas, principalmente quando verbera a pobreza da homenagem, não proporcional aos méritos do homenageado.

"Não. O que havia a fazer seria uma série de artigos na forma do de Ferreira Lima, cada um

A Afronta a António Nobre 143

tratando o poeta sob a sua feição. Um, estudan- do a sua biografia: Outro o mal de viver dos seus versos: Outros a influência das viagens no seu temperamento. Um com gana medicatriz estudaria António Nobre nosograficamente. Ou- tro veria António Nobre sob ponto de vista amoroso.

"Um terceiro investigaria da saudade na sua obra. Inéditos do poeta ou poesias pouco co- nhecidas seriam publicadas. A sua biografia se- ria estudada. Os seus Íntimos diriam da sua in- timidade. E no fim de tudo isto A Oalera da- ria matéria para um estudo definitivo sobre o poeta.

"Não o fez. Porque? Primeiro por madracice, cousa nata do portuguez. Depois por incompe- tência, cousa que este número prova á socieda- de. Que os moços da Galera são decerto bons rapazes e não se lembraram do poeta senão para se fazerem lembrados," etc.

E finda assim, deveras indignado :

«Ha uma cousa que no meio de tudo isto eu não compreendo. Que demónio veio o pobre António Nobre ali fazer. Pois nem a escuridão da campa dará o socego, Senhor Deus dos li- teratos amargurados? Que é preciso ser-se in- feliz para inda depois de morto ter ás canelas uma recua de líteras assim tão petulantes como idiotas ..."

Qual o tom destas linhas? De desapreço por

144 A Afronta a António Nobre

Nobre? Evidentemente que nào. Bem pelo con- trário. Ataca sem parcimónia os promotores duma homenagem ao Poeta, que não se dis- tinguiu senào por um ar pelintra e mesquinho. Lamenta António Nobre, a vítima dessa rapa- ziada leviana, e indica com vagar o largo pro- grama do estudo complexo que sobre a indivi- dualidade do Poeta poderia e deveria ter sido feito.

Cumpre, pois, fixar esta observação: que em 1915, se o sr. Albino Forjaz de Sampaio nào se declarava incondicional sósista, pelo menos, e numa ocasião que às largas lhe dava ensejo para isso, não fez a menor profissão de anti- -sósista.

E cumpre, não menos, registar esta citação da Prosa Vil: "Dizia António Nobre ao falar das inegualaveis paizagens de Portugal, das suas árvores, dos seus regatos, dos seus poentes,

Que é dos pintores do meu paiz extranho, Onde estão elles, que não vêm pintar

"Como valia a pena ter o seu talento para fa- zer a elegia da mocidade saudosa, da mocida- de gloriosa que passou, que desterraram, que morreu. . ."

Pois quem, numa parte e noutra, assim fala- va, é precisamente quem hoje, quatro anos vol- vidos apenas, surge com um livro sobre o Poeta do Só, cuja seiva é inquinada do veneno da an-

A AtYonta a António Xobre 145

tipatia, cujo escopo é reduzir, senào anular, o intenso culto que Nobre disfruta num largo pú- blico, isto apezar da promessa de «não exalçar ou deprimir mas, serenamente, buscar a verda- dew e da sua oração ardente a esta deusa.

Começa a catilinária: «António Nobre é dos poetas mais queridos do público snob que poetas para apenas lhes citar o nome em mo- nossílabos de admirativo êxtase. E emquanto Guilherme de Azevedo, Cesário Verde, José Duro e outros são impiedosamente esquecidos, António Nobre é moda, as suas edições esgo- tam-se e o poeta tem, ainda hoje, quem lhe pretenda continuar a obra, restaurando o só- sismo como se êle não fosse coisa que com o seu autor nasceu, morreu e com êle foi defini- tivamente enterrada."

O qualificativo de moda dado à admiração pelo Poeta é faccioso e erróneo. A moda é por natureza efémera e inconstante. As suas incli- nações duram, quando muito, meses, e nunca espaços de tempo tão longos como o dos quási trinta anos que são passados sobre o apareci- mento da 1.* edição do Só. Veja-se o número de estéticas novas e de vultos oficiantes de no- vos credos literários que têem sulcado este lar- go período e averigúe-se se alguma e algum deixaram após si uma tão clara e florida esteira como o 5d e o Poeta, seu autor. Nenhuma es- tética e nenhum vulto, é forçoso dizer-se.

146 A Afronta a António Nobre

Não vejo também que responsabilidade terá António Nobre na afervorada estima que o pií- blico lhe devota, ao passo que deita ao ostra- cismo outros poetas de valor, como Duro, Ver- de e Guilherme de Azevedo. Não é a glória sa- boroso pitéu de acanhado tamanho, que seja preciso aquinhoar em taçalhos iguais, para que todos fiquem contemplados. Tem valor José Duro? E' livro de superior emoção o Fel? Cesário Verde foi um poeta de talento, digno de menção? Guilherme de Azevedo deixou uma obra reveladora dum temperamento artista de escol? Quetn o nega? Mas para reconhecer isso é preciso ir apear António Nobre do erguido al- tar em que o instinto sagrador do povo o colocou, amachucar-lhe a auréola que lhe cir- cunda a fronte, roubar-lhe as mãos-cheias de rosas que atapetam a sua pedra de ara?

Não é baixar os que mais altos estão ao ní- vel dos que jazem baixo demais que remedeia a injustiça das desproporções que porventura existam, julgo eu. Estabelecer nível, sim, entre o que possa ser nivelado, claro está, mas de maneira contrária à preconizada pelo sr. For- jaz elevando, descobrindo méritos ocultos, construindo novos altares ao lado dos velhos, porque o entusiasmo admirativo não tem li- mites na sua capacidade e o templo da Arte roça a abóbada da sua nave pelas arcarias do céu.

Para amar mais e melhor José Duro ou Ce-

A Afronta a António Nobre 147

sário Verde nào é necessário amar menos nem pior António Nobre. Perante o facto de haver nomes e obras esquecidos, soterrados, fora da zona luminosa da notoriedade a que têeni di- reito, o que ha a fazer é chamar a atenção do grande púbHco, pelo Hvro, pelo jornal, pela conferência, por todos os meios, enfim, ao al- cance dos familiares da literatura, para esses olvidados autores e para os seus trabalhos, reeditando estes, quando exgotadas as suas edi- ções, e aditando prefácios de estudo e de justo encómio a essas novas tiragens.

Ha esquecidos em todas as literaturas. Toda a gente de medianas curiosidades literárias co- nhece o caso do poeta e romancista irlandês Maturin (1782-1825), que Balzac enfileirava en- tre "les plus grands génies de TEurope»', no que foi acompanhado por Vitor Hugo e Char- les Nodier, e que, afinal, a posteridade deixou sepultado no mais escuro desapreço. E' um exemplo.

Pois com g simpático desígnio de erguer e impor ao nosso amor alguns dos nossos esque- cidos, subordinada a este mesmo título, o ilus- tre jornalista e poeta, sr. Mayer Garção, trouxe a lume em A Capital de 1914, pelos meses de Abril e Maio, uma série de artigos de recorda- ção de vultos, uns mortos, outros ainda vi- vos, que na política, no jornalismo, na arte, na poesia, na prosa de livro, em resumo, em qual-

143 A Afronta a António Nobic

quer manifestação duma actividade notável, por um momento passaram em plena luz, para lo- go, ou ceifados pela morte, ou tragados por exigências da vida material, mergulharem na massa anónima e rasa. Lima Bastos, o imagi- noso e potente romancista; Costa Alegre, o ne- gro, o «doce poeta do amor,"' de quem outro poeta, Paulino de Oliveira, escreveu :

Sabei, ó brancos de alma hedionda e preta, Que ha pretos de alma niveamente clara !

Heliodoro Salgado, o apaixonado republica- no; Beldemónio (Eduardo de Barros Lobo), o fino e poético prosador da Musa Loira, nào obstante o seu humorismo picante, mordaz ; Fernando Liai, o boémio cantor dos Relâmpa- gos; José Duro, o desgraçado poeta do Fel; José Climaco, outro suave poeta, que nem um livro deixou; José Newton e Alfredo Serrano, o dos modestos Versos e o da maviosa Manhã doirada; Moniz Barreto, a estranha organiza- ção de crítico, tão cedo arrastado para o turbi- lhão do Nada; Eduardo Perez, o contista do Casal do Caruncho; Nunes Claro, ainda feliz- mente vivo, belíssimo e claro estro, como o seu apelido, que ainda hoje, mas de longe em longe, nos delicia com os cantos da sua musa; Manuel Cárdia, o malogrado jornalista; e mais alguns, cujos nomes nào tenho presentes.

Em ressurreições similhantes se íêem empre-

A Afronta a António Nobre 149

gado muitas vezes outras penas não menos ilus- tres. Quantas crónicas interessantíssimas e piedo- sas se encontram, biografando artistas e in- telectuais e políticos, nos volumes Cérebros e Corações, Ao correr do tempo, Alguns homens do meu tempo, Figuras de hoje e de hontem, de D. Maria Amália Vaz de Carvalho, nas Figuras Literárias, do Dr. Cândido de Figueiredo, nas Figuras Humanas, de Alberto Pimentel, nas In- dividualidades, de Henrique das Neves, e em mais da numerosa coorte dos que escrevem ?

Ha ainda esquecidos que nem" uma linha se- quer lograram dos seus pósteros? Acredito. Lembro-me de utn: Eduardo Coimbra, compa- nheiro de António Nobre, e que ha pouco ain- da um grande poeta, que por sua demasiada modéstia não traz todos os dias o seu glorioso nome na boca de todos nós, João Saraiva, o encantador vate das Líricas e Sátiras, me evo- cou em palavras de impressionante saudade.

Álvaro Carvalhal, outro delicado e infeliz poeta, também teve a lembrar-se dele o es- pírito fino de Augusto de Castro, numa crónica dos Fantoches e Manequins.

Por isso, e apezar destes casos, não se pôde dizer qne sejam muito carinhosos uns para os outros os nossos literatos e demais notáveis. E, claro está, que o público menos o é ainda. Ha um lamentável e acentuado divórcio entre o povo e os artistas, parece-me bem que por cul-

150 A Afronta a António Nobre

pa destes, que, alardeando suas intestinas lutas, se desprestigiam mais e mais aos olhos daquele, quando deviam ser os primeiros a dar um alto exemplo de coesão e harmonia, condições es- tas imprescindíveis ao bom viver das colectivi- dades, quer profissionais, quer nacionais.

uma vez o sr. Forjaz mereceu bem-hajas sob tal ponto de vista, quando prefaciou a 2/ edição do Fel de José Duro.

No que os não merece é no trabalho que es- tou agora comentando e em que lançou estas palavras :

que António Nobre exerceu e exerce uma acção deletéria, dissolvente e a essa acção ne- cessário é contrapor livros sadios, poetas en- corajantes, porque a vida e a literatura são a acção, a luta e nunca o desejo mórbido de mor- rer ou a confissão deprimente, o exibitivo osten- toso de misérias orgânicas e tristezas lamechas."

Que assim fosse, onde sobeja autoridade ao sr. Forjaz para falar em acções deletérias e dis- solventes produzidas por um livro, quando ele é o autor das Palavras Cínicas, obra voluptuo- samente tecida de torpezas e grossarias, incita- mentos ao abandono dos bons princípios e ao amor pela vida?! Todo e qualquer poderia exa- rar aquele juizo sobre a natureza do Só, menos o sr. Forjaz. Depois, àlêm do poema de Nobre ser prenhe de emoção, de intensa emoção, como afirmei no primeiro capítulo deste trabalho,

A Afronta a António Nobre 151

e não do relato de " misérias orgânicas e triste- zas lameciías", a sua influência sobre a turba, sobre o que propriamente este termo indica» seria nula, visto que o culto de António Nobre onde mais reside não é aí, mas sim numa ca- mada de gente de mais bem ordenada cultura, que nào cede, por isso mesmo, com facilidade a desorientadoras sugestões, e antes lhes neu- traliza a virulência.

O tem milhares de exemplares vendidos e é sofregamente procurado. Mas nào anda po- sitivamente entre as mãos do baixo povo, e mesmo os milhares das suas edições, se bem que alguns, nào atingem o número dos milha- res de tiragem das Palavras Cínicas, que vào em perto de vinte, se nào é artificial a indica- ção das tiragens neles estampada. E a este vo- lume,— enfeite-se o sr. Forjaz com essa glória, se a acha envaidecedora, tenho eu visto gente de todo o estofo, ainda o mais semi-analfabeto, procurar e ler avidamente, decorando passa- gens, servindo-se delas para desculpar uma ac- ção menos meritória, usando-o como um câ- non, como um Alcorão das suas almas incer- tas, que a triste e falsa beleza dum intento ruim seduz e estonteia. Não invento, nào ca- lunio. Constato apenas. Nos meus tempos de liceu, muitas vezes escutei dos rapazes meus condiscípulos referências ultrajantes para as pró- prias mais, moldadas, como confessavam, pelas

152 A Afronta a António Nobre

de uma das catorze cartas das Palavras Cíni- cas. Imagine- se por que catecismos recebiam aqueles espíritos desabrochantes as iniciais li- ções de moral, que os deviam alumiar pela vi- da fora ! . .

As afirmações valem conforme quem as faz, conforme o coturno moral de quem as emite.

Por isso, pasma de ver a inconsciência do sr. Forjaz ao exigir "livros sadios, poetas enco- rajantes", quando escreveu os livros menos sa- dios e menos encorajantes que conta a nossa literatura de hoje e talvez de todo o tempo, afora, é evidente, essas miunças livrescas, anó- nimas e soezes, de venda clandestina, que a polícia persegue nos quiosques de morte.

«António Nobre foi um moço rico, inteligen- te e é um poeta excelente se o considerarmos como um caso isolado, único, original, por isso mesmo não destituído de interesse. Outra é a nossa opiniào se o analisarmos, o comparar- mos, o considerarmos como um poeta que in- flui na turba e pesa nefastamente na multidão. Como poeta para ler sem mais cuidado está bem. Como poeta para ter altar, embora late- ral, no culto literário, achamos mau. E acha- mos mau porque êle foi um snob, não teve sin- ceridade, e a sua obra escalpelizada mostra apenas que fáceis são de contentar os seus fi- éis»', diz o sr. Forjaz.

«Foi um moço rico". Não foi rico afirmam

A Afronta a António Nobre 153

OS seus íntimos. Mas nào foi também um po- bretão, um miserável vate de trapeira, com muito sonho de banquetes pantagruéiicos no sentido e no estômago... apenas hipóteses de jantar. Não foi rico, mas possuiu os cómodos d'uma situação de abastada mediania. Ora é esta circunstância que parece açular, alucinar a sanha crítica do sr. Forjaz. Nào perdoa a quem, por bom olhado da fortuna, não ande respigando em despejos de repastos de outrem a côdea dura que rilhe para calar a fome e deixar o estro salmear um pouco.

Lembrando talvez os seus dias maus, antes de ser burguês, antes de conquistar a boa ca- ma, a boa casa e a boa mesa, de que se ufana hoje, não perdoa que António Nobre, sem nunca ter passado necessidades materiais, saiba falar no «mal de viver». concebe a tortura quando gritada, uivada por um ventre esfo- meado: «Fosse ele um homem que tivesse dia a dia de cavar o seu passadio», diz adiante. O seu critério materialista não lhe permite lobri- gar àlêm do corpo, não o deixa trespassar o carnal envólucro e assistir às grandes tragédias interiores, aos pavorosos conflitos espirituais, aos dramas ingentes que escolhem para tabla- do uma alma de excepção. Com o registo frio e míope dos esgares, dos gestos, das convul- sões e dos momos externos adquire o bastante alimento para a sua curiosidade fastienta e jul-

F.12

i54 A Afronta a António Nobre

ga ter apercebido o mundo em globo, integral- mente.

Snob o Poeta, snob o público seu devoto, acusa. Mas snob porque? Nas multidões o sno- bismo nào tem um pendor certo e persistente. Se não fosse bem íntima a sua admiração pelo Poeta, a multidão que lhe reza o nome teria tido de sobra tempo para mostrar o seu enfa- do e polarizar o seu afecto em individuali- dade mais recente, com mais seduções de novi- dade, porquanto o snobismo vive destas contí- nuas e rápidas transferências de objectivo. E' o reconhecimento duma grande parte de bele- za fixa e compreensível em todo o tempo e por toda a gente existente no que não deixa o estranho livro cair no esquecimento.

Também é leviana, senão conscientemente forçada, a acusação de ter sido um snob, um falho de sinceridade, António Nobre. Com o espírito faccioso que o impele por todas as páginas desse seu trabalho, e castrado de in- tuição psicológica, como logo no início da sua carreira literária se evidenciou, o sr. Forjaz tei- ma em não ver, ou não pôde ver de facto, a cons- tituição íntima do Poeta, os especiais compo- nentes da sua alma de artista. Concebido um molde anímico, ó seu talvez apenas, obstina-se em deitar-lhe dentro todos os espíritos com que depara, e sempre que algum extravasa, ex- cede as medidas do recipiente, se confessa ina-

A Afronta a António Nobre 155

daptável à estreiteza daquela bitola, logo auda- ciosamente decreta e grita que o temperamen- to esquivo à acomodação forçada peca por artifi- cialismo, pretende grangear reparo do público pela sua saliência, infringe as regras sadias da sin- ceridade. Com isto, demonstra à sobreposse a carência de dotes críticos, que implicam nos seus detentores um completo abandono de ideias preconcebidas e a abstracção da própria personalidade.

António Nobre foi, pois, sincero perante si mesmo, perante a singular estrutura do seu temperamento. O sr. Forjaz, mesmo, contradi- zendo-se, o reconhece. «Se detidamente anali- sarmos o que é o Só, veremos que o é êle apenas. . E' um livro pessoal, uma autobio- grafia, um desabafo em verso, como essência a sua tristeza. . -

«Não é pois um livro que emprimaveresca as almas. Não as tonifica, não as eleva, nào as consola. Nào estimula, acelera, revigora. Muito ao contrário deprime, esgota, maleficia. Melan- colia pegadiça, doloras ternas, ritmo mole e dulçoroso, êle nào é mais que a boceta onde o poeta em vida depositou a sua dor com a un- ção com que os antigos gregos depositavam as cinzas dos antepassados a quem muito amaram. A sua dor, cultivada, narcizada, contada pelos dedos em todos os ritmos, dia a dia aumenta- da a juros compostos.

156 A Afronta a António Nobre

"Sofrer em António Nobre é um ofício. Êle é um profissional da Dor e a sua lamúria é a lamúria de um mendigo de estrada, »

«Fora de si não ha dor que o impressione. Fora de si o sofrimento é mínimo, nào existe. Fora de si o sofrimento plebeíza-se.»

'<£' que o desejo de morrer no poeta do Só, seria um preságio, seria uma famisterie, mas não era um desejo. Era apenas um processo li- terário ! . . . "

A todos que tenham lido o 5^ acudirá instinti- vamente uma fácil e enérgica refutação a estes conceitos detractivos, que resumem o intento do livro e, com mais palavra, menos palavra, enchem as páginas que nele são originais e que bem redu- zidas são em número, na verdade: nas 108 que enformam o volume apenns 30 e tantas contê- em matéria da lavra do autor. O resto tem tra- balho, sim, mas sem nenhum interesse e nenhu- ma utilidade, afinal.

A dor é o maior motivo de todas as literatu- ras. Já ha três 'mil anos o era: talvez daqui a três mil anos o seja ainda. Poder-se hão contar as obras que ao seu empolgante influxo se te- nham conseguido mostrar estranhas e imper- meáveis. Em contraste, a bibliografia que a his- toria, que lhe narra as variantes, que lhe mono- grafa as nuanças, tantas tpiantos os temperamen- tos humanos, que faz a crónica viva e palpitante do reinado tumultuário e trágico mas belo e

A Afronta a António Nobre 157

magesíoso dessa suprema e tirânica Imperatriz, velha como o mundo e que jamais com o cor- rer dos séculos envelhecerá, é caudalosa, in- catalogável, impossível de abrigar na mais vas- ta das bibliotecas.

O riso, a alegria, a visão descuidada e opti- mista da existência, nunca inspiraram grande- mente os homens. quando inflados os seus pulmões por um sopro trágico, alteiam as suas means estaturas, partem, em rasgos de heroís- mo, ao encontro de terríveis enigmas, invadem a moradia dos deuses, irmanando-se com eles. Quantas vezes mesmo o riso não é índice do que vulgarmente se tem por a alegria, mas sim um enviado da dor, sua antagonista?! Que é o riso, expresso na ironia, na caricatura, na sá- tira? Que é o sarcasmo senão uma extravagan- te máscara do mais dolorido choro?

A dor tem Dante, tem Shakespeare, tem B)^- ron, tem os maiores génios no número dos seus apaixonados amantes. Escravizaram-se-lhe e, a dizerem alto a deliciosa pungência dessa es- cravidão, cheios de febre mística, convulsos, histéricos, tornaram-se sobre-humanos, atingi- ram o sublime.

E nem por isso a narração desses oaristos sombrios enfraqueceu a energia dos homens. Bem pelo contrário. A carne, quando numa temperatura cálida e doce, tende ao repouso estagnante vizinho da morte, adormece, perde

158 A Afronta a António Nobre

O ardor que é condição imanente da existência, o éLaii vital de Bergson. E" preciso que a alma a fustigue, a acorde, a incite, a encaminhe para a acçào. E nada melhor e mais eficaz para esse desideratum do que o violento chicoteio da dor, o espectáculo de injustiças a reparar, a imposição de dificiências a prover.

Demais o sabe o sr. Forjaz. E sabendo-o, apezar de apontar em Nobre a recorrência ao motivo da dor como um defeito, o sr. Forjaz tam.bêm insistentemente recorreu a ele na sua obra, desde os títulos aos conteúdos, como comentei atraz.

xMas como uma diferença, em desabono do autor das Palavras Cínicas: a sua dor, a dor de qoie fala a cada passo, a dor de que aduba centenas de páginas, não se mostra com aquele não sei quê vivido e real, aquele poder trans- missor de emoção que dimana duma ade- quada disposição de palavras; vêem para ali os vocábulos como despojados da sua alma pie- dosa e sentida, como para uma parada especta- culosa e frívola, vocábulos tornados inertes, ressequidos, cadáveres já, porque os não sabe vivificar, pôr em estreito contacto com a vida, introduzir-lhes o soro puro da dolorosidade, o autor das páginas em que ficam encerrados, como em táboas de caixotaria funerária.

E em António Nobre, diga-o e torne-o a di- zer o sr. Forjaz, mas em vão decerto para os

A Afronta a António Xobre 159

que leram e souberam ler o Só, a influência emotiva é flagrante, intensa, forte: arrasta, pren- de, faz confranger, gera simpatia.

Nào é apenas uma dor do Poeta, restrita ao seu caso de doença, ignorando as torturas da demais humanidade. Leia-se A Vida:

Mas dize, meu amor I ó Dona de olhos taes I De que te serve ter um astros sem eguaes ? Olha em redor, poiza os teus olhos '. O que vês ? O mar a uivar I A espuma verde das marés I Escarros ! A traição, o ódio, a agonia,, a inveja ! - Toda uma cathedral de lutas, uma igreja A arder entre clarões de cóleras 1 O orgulho Insupportavel tal o meu, e o sol de Julho ! Jesus I Jesus ! Quantos doentinhos sèm botica ! Quantos lares sem lume e quanta gente rica ! Quantos reis em palácio e quanta alma sem ferias ! Quantas torturas '. Quantas Londres de mizerias ! Quanta injustiça, quanta dor ! quantas desgraç is 1 Quantos suores sem proveito I quantas taças A transbordar veneno em espumantes boccas ! Quantos martyrios, ai I quantas cabeças loucas, N'este macomio do Planeta I E as orfandades ! E os vapores no mar, doidos, ás tempestades I E os defuntos, meu Deus I que o vento traz á praia ! E aquella que não sae por ter uzada a saia ! E os que sossobram entre a vaidade e o dever 1 E os que têm, amanhã, uma lettra a vencer ! Olha essa procissão que passa: um torturado De Infinito 1 Um rapaz que ama sem ser amado, E para ser feliz fez todos os esforços. . . Olha as insomnias d'uma noite de remorsos, Como dez annos de prizão maior-cellular ! Olha esse tysico a tossir, á beira-mar. .

160 A Afronta a António Nobre

Olha o bebé que teve Torre de coral

De lindas illuzões, mas que uma águia, afinal,

Devorou, pois, ao vel-a ao longe, avermelhada,

Cuidou, ingénua ! que era carne ensanguentada !

Quantos são, hoje? Horror ! A lembrança das datas. . .

Olha essas rugas que têm certos diplomatas I

Olha esse olhar qíie têm os homens da politica !

Olha um artista a ler, soluçando, uma critica.

Olha esse que não tem talento e o julga ter

E aquelle outro que o tem. . . mas não sabe escrever !

Olha, acolá, a Estupidez ! Olha a Vaidade I

Olha os Afflitos ! A Mentira na Verdade !

Olha um filho a espancar o pae que tem cem annos !

Olha um moço a chorar seus cruéis desenganos I

Olha o nome de Deus, cuspido n'um jornal !

Olha aquelle que habita uma Torre de sal,

Muros e andaimes feitos, não de ondas coalhadas.

Mas de outras que chorou, de lagr3'mas salgadas !

Olha um velhinho a carregar com a farinha

E o filho no arraial, jogando a vermelhinha 1

Olha a sair a barra a galera Gentil

E a Anna a chorar p'lo João que parte p'ro Brazil I

Olha, acolá, no cães uma outra como chora:

É o marido, um ladrão que vae «p'la barra fora

Olha esta noiva amortalhada, n'um caixão .

Jesus 1 Jesus ! Jesus ! o que hi vae de afflicção !

Como se vê, ha aqui bastas referências, rápi- das, dadas em formosas sínteses, mas impressi- vas, dos vários aspectos da dor universal. E não nesta poesia, mas em mais do volume, pelo que de se pôde afirmar ter vivi- do o Poeta apenas confinado nas tristes e es- trangulantes quatro paredes da sua dor, sem uma fresta para a paisagem anímica dos ou-

A Afronta a António Nobre 16]

tros, como se vivesse num planeta ermo de mais seres viventes.

E ainda quando narrava o seu sofrer, o des- fibrar da própria alma, nessa narração surgia como um símbolo da atmosfera mental e senti- mental da época nevrozada, devorada de fo- mes espirituais, que uma religião em deca- dência e uma sciência ainda mal vingada não conseguiam mitigar. Era, pois, o reflexo, a cris- talização do dorido pensamento errante e da sentimentalidade doentia que não sabia tam- bém onde encontrar albergue. E nisto, nisto só, nesta conformação espiritual, existente entre o Poeta e as gentes, é que se firmou o gosto destas por a obra daquele: viam-se espelhadas nele, procuravam-no, aplaudiam-no, amavam-no. Não foi, pois, um impulso do snobismo a de- terminante desse acordo, desse aplauso, desse amor.

«E assistimos a um caso de injustiça das multidões. Èle é grande. Cesário e José Duro são esquecidos. Todavia a sua musa não é nem a musa serena, olímpica de Cesário Verde, nem a sua Dor é o trágico vortilhão de José Duro», volta o sr. Forjaz, sempre esquecido de que não é lícito estabelecer comparações entre esses três tão diferentes temperamentos de Du- ro, Nobre e Cesário, para mais ainda sujeitos a ambientes diversos. José Duro é grande no Fel, sim. Mas também é muito pessoal, muito

162 A Afronta a António Nobre

egotista na dor, quando a toma para tema dos seus versos. Cesário Verde deixou matéria pa- ra um livro, livro que piedosamente Silva Pin- to deu a lume, que vale sobretudo como docu- mentação da fase realista na poesia. O âmbito da sua visão foi acanhado, não passou os mu- ros da cidade, e no seu fetichismo do objecto, esqueceu-se em demasiado do elemento huma- no, visto integralmente, alma e corpo. A não evolucionar, e muito, nas suas ideias poéticas, pouco mais daria do que o livro, aliás valoro- so, que deixou.

Como o sr. Forjaz apresenta este caso, colo- ca António Nobre em inferior plano, em rela- ção a Duro e Cesário, quando nessa hierarqui- zação de valores não ha réstia sequer de justi- ça. E repito: torne-se José Duro amado pelas multidões, imponha-se ao espírito destas o no- me de Cesário Verde, como dum poeta di- gno de estima, mas deixe-se António Nobre onde está, amado e lido como merece.

Negar é fácil, a maledicência não carece de engenho para brotar em torrentes. E como o sr. Forjaz se impôs essa faina de diminuir o renome consagrado de Nobre, esquece-se por completo de que prometeu «não exalçar ou de- primir mas, serenamente, buscar a verdade.» E disto esquecido, perdido o freio, delira, esca- buja, torce a lógica, atira às cegas tagantadas à memória do Poeta.

A Afronta a António Nobre 163_

Depois de lhe chamar snob, de lhe negar sin- ceridade, de o acusar do uso da dor como dum processo literário, de ser apenas na exterioriza- ção dessa dor um lamuriento, de cultivá-la co- mo uma planta de estufa, de ser um madraço e um vadio, e dessa falta de ocupação lhe ad- vir o spleen e o tédio, e isto em frases cheias de atrevimento e de irreverência chocarreira, que nunca um espírito de crítico pôde arqui- tectar, como estas: «Doente rico por todo o mundo vadiou a sua carcaça, a sua doença é em parte filha da madracice.", «Tem a mania das grandezas dando-se ares de príncipe exi- lado... e escreve com letra grande, como os matoides de Lom.broso, palavras de signifi- cação corrente e vulgar», depois de tudo is- to, sem o menor senso equilibrado dum críti- co, entra na parte mais avultada da sua obra, que consisto em pôr em confronto as duas edi- ções do Só, a l.'"^ e a 2.^ vagarosamente, abor- recidamente, inutilmente, apontando onde a 2.^ edição alterou o texto da 1.% numa palavra ou num verso inteiro, numa estrofe ou num poemeto completo, para concluir leviana- mente: "Assim todos os que confiarem credula- mente em que o poeta era uma espécie de ser vindo de Deus, para em versos candentes, lím- pidos, serenos, cantar a sua dor, assistem agora ao açacalar dessas tristezas, não espontâneas mas paciente, torturante, fatigantemente poli-

164 A Afronta a António Xobre

das e trabalhadas. A espontaneidade é pois uma coisa larga e severamente premeditada."

Pois mais de 40 páginas emprega nesta faina do confronto das duas edições, tão minucioso, que roça pela infantilidade ou a entender que, tendo em vista publicar um livro com uma centena de páginas, pelo menos, não sube o que lhe ha de meter dentro e resolve, num achado, atirar-se àquele trabalho de cópia de passagens várias do Só, que, por mutiladas, truncadas, mal deixam adivinhar a beleza do poema, o que não é pequeno delito.

Infantil tarefa, sim, para encher papel, de- certo. Senão, vejam-se algumas transcrições con- frontadas ali: Uma:

"O verso

«O que isto para mim seria, Amigo, quando, «foi emendado para «O que isto para mim seria, Manuel, quando»

Outra, não menos supérflua, e por isso típica:

"No verso

«Por esses lindos, deliciozos arredores, «o lindos foi substituído por doces."

Outra ainda:

"N'0 Somno de João as alterações são mini- «mas e constam apenas do verso

«O João dorme.,. Innocente!

'para

A Afronta a António Nobre 165

íO João dorme, o Innocente!»

Como se observa, apenas uma variante na pontuação não deixou de ser indicada, e assim, a par, também regista esta :

'<Na 1.^ é

«Ó Carlota! ó Carlota!

'.Na 2.

<A Carlota! A Carlota !

Decididamente, e perante tais exemplos, se pode interpretar o trabalho do sr. Forjaz como eu interpretei : a necessidade de enegre- cer papel com palavras, fossem quais fossem. Porque, é de notar que mesmo assim, isto re- vela trabalho, trabalho paciente e demorado. O que é é um trabalho inútil e sem mérito nenhum de originalidade.

Achou o contrário o sr. Forjaz, como diz: "O leitor vai ver por que transformações pas- sou o Só. Tem tanto maior utilidade este tra- balho quanto é certo que o da 1/ ediçào se acha literalmente esgotado.-." Mas, para que precisa o leitor vulgar, o que procura na obra a sensação, a força emocional, e apenas isto, saber que uma dada passagem da 2.^ ediçào do poema não existiu primitivamente, na l,'* ou que teve forma diferente? Para o leitor especial, que é o estudioso, o que com intenção critica, o

166 A Afronta a António Nobre

que vai em busca do processo de elaboração, para esse não basta o cotejo fragmentário que o sr. Forjaz pôs a engordar o seu franzino opús- culo.

Se Nobre emendou muito os seus versos, foi porque o anseio pela perfeição torturava o seu espírito. Este anseio é mesmo condição orgâ- nica nos artistas. Eça foi um torturado da for- ma, Fialho não o foi menos, Flaubert foi-o tanto que consumiu com a factura da Madame Bovary catorze anos e ainda, depois de vê-la lançada a público, procurou sustar-lhe a venda. E não fo- ram grandes, grandes entre os máximos, Eça, Fialho e Flaubert?

Não ha obras de jacto. Os repentistas são raros, e produzem coisas mínimas e pálidas. Entre a concepção e a realização vai um labor intenso e longo. E por mais treino, por mais engenho, que residam numa actividade artís- tica, raríssimas vezes a primitiva modalidade duma ideia traz o cunho definitivo. Porque re- cusar, pois, a António Nobre o direito de emen- dar, a seu bel-prazer, os versos que escreveu, mudando-lhes trechos, acrescentando, cortando, pontuando diferentemente? A pôr neste facto um sinal de inferioridade, quantas obras, tidas como obras-primas, em todas as literaturas, te- rão de sofrer igual ataque e ser apeadas do pe- destal em que se erguem perante nós?! Quan- tas?!

A Afronta a António Nobre 167

Afirma o sr. Forjaz que em muitis dessas al- terações deu-se um pioramento. E' um crité- rio, é uma opinião sua. Com ela não concordo, e comigo estará muito leitor que se ao es- forço de ler atentamente essas variantes, uma a uma. Em quási todas, o pensamento vincou-se, o ritmo cadenciou-se melhor, o vocabulário enriqueceu-se.

Portanto . . Portanto, o sr. Forjaz querendo ver defeitos, defeitos vê. . .

A páginas 78 escreve o sr. Forjaz: "Para se ver como a forma espontânea, sentida e simples prevalece sobre a forma complicada e jDara se ver como o natural excede o artificioso damos a seguir dois sonetos. O primeiro, de António Nobre, tem a data de 188.^ e o que reproduzi- mos é, exacto, o que saiu na segunda ediçào do Só. O outro é o conhecido soneto de Raimun- do Correia e tem também a data de 1885. Não se julgue que os pomos em confronto para se dizer que António Nobre plagiou Raimundo Correia visto o soneto deste ter primeiramente visto a luz da publicidade. Não. Isso nada nos interessa, pois nos diz ali um amigo, escritor ilustre, que os dois plagiaram a poesia Les Co- lombes de Teófile (sic) Gauthier. O que nos apraz é constatar a vitória da forma simples em

168 A Afronta a António Nobre

que a intensidade é dada pelo talento, sobre a forma original, complicada, rebuscada, em que a intensidade é dada pelo vocábulo, ou por ar- tifícios de técnica."

Releve-se-me o tamanho da transcrição. As- sim era preciso, porque este ponto do livro en- cerra uma das notas mais antipáticas ali enfeixa- das. Nega o intento de induzir um plagiato de Nobre sobre o soneto de Raimundo Correia. Ha negativas que valem por afirmações: esta é uma delas. Se assim- não fosse, não teria o sr. Forjaz escolhido para o cotejo que faz a segun- da versão do soneto de Nobre, diferente da da l."" edição, que tem fíoí//as em vez de pombas. O termo pombas convinha-lhe mais para o seu es- curo propósito, pois, à primeira vista, e embora no resto não houvesse grande aproximação, esse termo, comum a ambos os sonetos, seria no- tado.

Vou, pois, transcrever eu da 1.^ edição do o difamado soneto:

Menino e moço

Tombou da haste a flor da minha infância alada, Murchou na jarra de oiro o pudico jasmim : Voou aos altos céus St.* Águia, linda fada, Que d'antes estendia as azas sobre mim.

Julguei que fosse eterna a luz d'essa alvorada, E que era sempre dia, e nunca tinha fim Essa vizão de luar que vivia encantada N'um castello de prata embutido a marfim 1

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Mas, hoje, as águias de oiro, águias da minha infância, Que me enchiam de lua o coração, outrora. Partiram e no ceu evolam-se, a distancia!

Debalde clamo e choro, erguendo aos céus meus ais: Voltam na aza do vento os ais que a alma chora, Elias, porém, Senhor, ellas não voltam mais . .

Leça, 1885.

E recordar devo também, assim, o soneto de Raimundo Correia:

As pombas . .

Vae-se a primeira pomba despertada . Vae-se outra . . mais outra . emfim dezenas De pombas vão-se dos pombaes, apenas Raia, sanguinea e fresca, a madrugada. . .

E á tarde, quando a rigida nortada Sopra, aos pombaes de novo ellas, serenas, Rufiando as azas, sacudindo as pennas, Voltam todas em bando e em revoada. . .

Também dos corações onde abotoam. Os sonhos, um por um, céleres voam. Como voam as pombas dos pombaes;

No azul da adolescência as azas soltam. Fogem > . . mas aos pombaes as pombas voltam, E elles aos corações não voltam mais. . ,

Apenas no fecho, nas palavras terminais do verso último, este belo soneto coincide com o soneto de Nobre. E isto é pouco, muito pouco, mesmo nada, melhor direi, para poder concluir um plagiato, como, parecendo negar, esperta- mente afirma o sr. Forjaz. No resto, nos senti-

F. 13

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dos que enseivam as duas produções, não ha pontos de contacto. E, como quere o detractor do Poeta do Só, o soneto deste é inferior na mineira de transmitir a sua ideia, ao de Rai- mundo Correia? Não vejo em quê. E também não vejo que o de Nobre seja carregado de artifício, rebuscado na forma, gongórico de ex- pressões. E' belo no seu género, como é belo noutro, o do poeta brasileiro, em resumo.

Mas o sr. Forjaz, com o impulso da von- tade que o guia atravez do seu opúsculo em questão, apraz-se muito em confundir, compli- car, pôr em dúvida, despertar desconfianças fazer confrontos entre coisas que nenhum con- fronto podem ter.

fizera assim atraz, comparando, não sei para quê, estes versos de Nobre, parece que para superiorizar o. engenho de Cesário:

Os mestres ainda são os mesmos d'ante5: vae o Bernardo da Silva do Mar, A mail-os quatro filhinhos. Vascos da Gama, que andam a ensaiar ,

com a quadra de Cesário Verde :

Vêm sacudindo as ancas opulentas ! Seus troncos varonis recordam-me pilastras; E algumas, á cabeça, embalam nas canastras Os filhos que depois naufragam nas tormentas.

Mas voltemos ao plagiato insinuado. Acober- tando-se com a opinião dum ilustre escritor, naturalmente tão ilustre como anónimo, pois

A Afronta a António Nobre 17]

que ihe esconde a graça, o que faz supor seja ele próprio, pega na acusação que esboçara a respeito de Nobre e desdobra-a, de modo a cobrir com o seu nojento pano os dois poetas, Nobre e Correia: aponta-os como plagiários am- bos nos sonetos discutidos da poesia Les Colom- bes de Théophiie Gautier.

Esperava eu, nesta altura, ver estampada a poesia que sofreu o roubo denunciado. Seria este o processo honesto e representaria, para mais, a confirmação, a documentação irrefutá- vel da sentença que condena os dois poetas. Pois não. Sciente de que a torpe calúnia sempre deixa vestígios, e conhecendo talvez a vacuidade da afirmação que fazia, deu a alfinetada, instilou a gota da triaga e passou adiante, sem mais ex- plicações, porque tinha a consciência de que claudicaria se as tentasse dar.

Mas eu, por acaso, conheço a poesia de Gau- tier referida, Conheço-a e até entre os meus papeis velhos encontro uma sua tradução, da- tada de 1914, que, para instrução dos menos familiarizados com o- idioma francês, me per- mito copiar.

No original, a poesia de Gautier é assim:

Les colombes

Sur le coteau, là-bas oíi sont les tombes, Un beau palmier, comine un panache vert, Dresse sa tête, oíi le soir les colombes Viennent nicher et .se mettre à couvert.

172 A Afronta a António Nobre

Mais le matin elles quittent les branches; Comme un collier qui s'égrène, on les voit S'éparpiller dans Tair bleu, íoutes blanciíes, ht se poser plus loin sur quelque toit.

Mon âme est Tarbre oii, tous les soirs, comme elles, De blancs essaims, de douces visions, Tombent des cieux, en palpitant des ailes, Pour s'envoler dès les premiers rayons.

Eis a poesia pretensa vítima da depredação dupla. Que se vê? Que, se entre os dois sone- tos não ha similhanças que autorizem nem muito nem pouco a presunção aleivosamente aventa- da pelo sr. Forjaz, menos existe aqui seja o que fôr que se possa apontar como fonte de inspi- ração de um ou outro dos poetas incriminados.

^5 pombas

Álêm, sobre a colina, em cujas lombas Os mortos cavam sua cidadela, Aninha à tarde multidões de pombas Uma verde palmeira, altiva e bela.

Mas, mal ascende o sol, a caravana, Como um colar que desbagôa as pérolas, Desfaz as brancas tendas, sobe e plana, Sulcando o largo mar das ondas cérulas.

Também, pelo crepúsculo, minha alma. Como essas frondes, se engrinalda de asas. Mas, colmeia de sonhos, áurea e calma. Em breve a aurora a cresta em suas brazas.

Tradução de

. César de Frias.

A Afronta a António Nobre 173

Demais o sabia o acusador, pelo que não apre- sentou a prova, limitando-se a bolsar a insinua- ção gratuita e nua.

Raimundo Correia tão honesto foi em de- nunciar as sugestões recebidas doutrem, que na 2.^ edição correcta e aumentada das Poesias, de 1906, com prefácio de D. João da Câmara, confessa numa nota colocada no seu termo "a influência dos poetas extrangeiros então mais em voga alli (S. Paulo), de V. Hugo, de Th, Gautier.» E cita com precisão as poesias que sofreram essa influência, como o soneto Vinho de Hebe, de uma ideia haurida nas Pre- mières Poésies de Madame de Ackermann. A não ser, pois, inteiramente original no seu soneto As pombas, porque não o confessaria também?

Mas, nada mais é preciso: a transcrição dos versos de Gautier, permitindo o cotejo ime- diato com os sonetos de Nobre e do posta das Sinfonias, dispensa outra argumentação: fornece a mais poderosa, a mais convincente.

E, agora, salvas da mesma assentada, as re- putações dos dois excelentes artistas do verso, pergunto eu se não é merecedora de severa crítica a leviandade com que se arremessa uma acusação tão grave, como é a do plagiato, so- bre o renome jubilado de dois insignes poetas, com o propósito de denegri-los, de sujar- -Ihes a pureza, servindo um ponto de vista arti- ficialmente condenatório e negativista?

174 A Afronta a António Nobre

E se eu usasse de igual processo na aprecia- ção da obra de quem em tào pouco apreço tem a honestidade literária dos outros? Pode ria bem fazê-lo, quando encontrei aquela sua plaqueta Violáceas, cujos versos tanto se aproximam, pela forma e pelo sentido, de uma poesia da sua ví- tima de hoje: António Nobre. Chamei-lhe ape- nas ali uma sugestão, quando a critiquei. Pois bem intensa e flagrante se mostra essa suges- tão, onde até nem falta a escrita "Com letra grande, como os matoides de Lombroso» de «palavras de significação corrente e vulgar". vejo que se o sr. Forjaz estivesse na minha situação não hesitaria em tais casos e, fugin- do a meias medidas, classificaria o facto de plagiato escrito e escarrado, com todas as le- tras, sem apelo nem agravo. E, quando me ofe- receram a colaboração de que falo atraz, duma lista de plagiatos do sr. Forjaz, te-ia hia acei- tado, contente em extremo por poder confun- di-lo, chamando-lhe ladrão literário, em vez de repelir, como repeli, com nojo, essa contribui- ção de escândalo para o presente trabalho. Tam- bém, a ser leviano e mal intencionado como o sr. Forjaz, poderia lembrar que o Fel de José Duro, de quem se armou agora gritante advo- gado, anuncia na 1.^ edição, no verso da capa, a obra "'AN'ATKH" poema, e que O Sol do Jordão do sr. Forjaz, editado quatro anos de- pois, também declara em preparação uma obra

A Afronta a António Nobre 175

com igual título. Poderia ainda apontar o quási paralelismo dalguns títulos das suas obras com os de obras de Fialho, o Mestre, um dos pou- cos mortos que o sr. Forjaz, talvez por su- perstição e por saber que tudo literariamente lhe deve, não foi ainda maltratar na campa: Lisboa Galante, de Fialho, 1903 Lisboa Trá- gica, do sr. Forjaz, 1910; Vida Irónica, daquele, 1914 Vidas Sombrias, deste, 1917; Jornal dum Vagabundo, sub-título em Fialho de quatro li- vros, Pasquinadas (1904), a citada Vida Iróni- ca, Á Esquina (1915) e Barbear, Pentear ^916) —Jornal dum Rebelde, livro que o sr. Forjaz promete em A Avalanche.

Mas não. Não o fiz. E com essa abstenção me encho de orgulho. Não procuro cimentar gloríolas fáceis com trucs escuros e caluniado- res, e para as festejar fazer uso de estrondosas bombas de clorato de potassa, azumbando es- candalosamente os ouvidos da gentana.

Reconhece o sr. Forjaz que António Nobre teve encomiásticos julgamentos dos seus con- temporâneos, e não destes como de eminen- tes espíritos da geração posterior. Cita neste teor palavras de Alberto de Oliveira, Antero de Figueiredo e Júlio Dantas, comentando-as num tom de mofa e concluindo que elas não valem como críticas mas como panegíricos.

176 A Afronta a António Nobre

Foi, pois, com gáudio qne deu com o artigo de Moniz Barreto na Revista de Portugal de 1892, artigo que, na verdade, tem mais tonali- dade crítica do que os outros, porque, indis- cutivelmente, Moniz Barreto, por des fortuna das nossas letras, tâo cedo ceifado pela morte, em qualquer hospital de Paris, a braços com a miséria, foi uma autêntica e forte compleição literária destinada a erguer à merecida altura um género que entre nós é tào precário— o da ponderada análise de valores mentais. Pelo me- nos, em independência de juizos, cultura, dis- ciplina intelectual e intuição emotiva, documen- tadas no seu artigo de perfeita sintese A lite- ratura portugueza contemporânea que veiu a lume na Revista de Eça, jamais foi excedido por qualquer outra actividade escriturai que tenha tentado o género na nossa grei lite- rária.

Encontrou o sr. Forjaz o artigo de Moniz Barreto e vendo nele umas ou outras passa- gens que poderiam servir a sua campanha contra o Poeta do Só, foí-se a elas e copiou-as, isolando-as do resto do texto, alterando-lhes assim o sentido, como é manifesto.

Se Moniz Barreto escreveu "Só é uma collecção de versos, entremeados de prosas, impressas como versos», que o sr. Forjaz transcreve, acrescentou «e ao longo da qual desabafa e se manifesta a alma d'um verdadeiro

A Afronta a António Ncbic 177

poeta". Diz que «Alma doente, o sr. António Nobre soube extrahir da sua doença effeitos de Arte singulares e ás vezes intensos." Mais: "Em primeiro logar devo declarar uma coisa que nunca é indifferente a um escriptor, mesmo pessimista e possuído da nostalgia do nada. O livro do sr. António Nobre é uma considerá- vel manifestação de talento e um dos mais no- táveis que se tem publicado ultimamente. O seu auctor tem lembranças de grande poeta. Algumas das peças que o constituem, como a Vida, Os Cavalleiros, são jóias lyricas."

E se comenta «A variedade dos themas ex- plorados não é grande. Uma certa pobreza d'invenção se fará sentir depressa. N'este livro de versos que não tem as dimensões do Maha- bharata esse efeito é visivel. As repetições não escasseiam, ' logo ele próprio desculpa «e seria injusto lançal-as á conta do poeta. E' que a expressão do desespero é de sua natureza mo- nótona, e o cadáver é susceptível de poucas attitudes."

Chama, na verdade, "deprimentes» àquelas impressões e sentimentos que António Nobre utilizou para tecer os versos do Só. E eis aqui descoberta a razão por que o sr. Forjaz, contra o seu costume, não foi muito longo nas trans- crições do artigo de Moniz Barreto nem lhe apontou as partes mais salientemente oposicio- nistas à estética de Nobre. Bebeu-lhe sim as

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ideias, e, mais adiante, mais atraz, vestiu-as com palavras suas, para convencer de que o seu juízo sobre a essência do é legítimo filho do seu critério, é por inteiro original. Nào é, conclúí-se agora ao ver o artigo de Moniz Barreto, que nào copio integralmente, por es- cassez de espaço neste volume, que vai longo. Moniz Barreto estivera em atitude condena- tória para com o Só, mas com a diferença que, como crítico verdadeiro que foi, guardou a precisa serenidade nos assertos que expediu, ao passo que o sr. Forjaz, apezar da sua pro- messa de ser sereno, logo às primeiras pala- vras se destrambelhou, e, vindo por fora numa sarabanda epiléptica, nào reproduziu ape- nas as opiniões críticas daquele, mas traduziu-as antesjpara linguagem baixa de insulto e de de- sordem. E' a diferença, e nào pequena.

Mas, perguntar-me hào agora : se reconheço em Moniz Barreto uma superior capacidade de crítico e se ele se pronunciou, em parte, bem desfavoravelmente a respeito do Só, nào se abala, em consequência, a minha admiraçào por An- tónio Nobre? Nào. E nào, porque o artigo de Moniz Barreto foi escrito numas condições de tempo muito diferentes das que vigoram hoje, e que permitem ver a personalidade do Poeta por outra prisma, que obriga a certas correc- ções naqueles juizos. Moniz Barreto escreveu logo após a saida do Só, com o seu autor vivo

A Afronta a António Nobre 179

e nào mostrando em nada conhecer-lhe a psi- cologia. Quem escreva hoje sobre António No- bre está perante um fenómeno literário comple- to e consumado, obra e autor como objectos da crítica, àlêm de que, fora do ambiente que circundou o Poeta, mais nítido e desapaixonado lance de olhos pode ter também para o estudo do estádio mental e artístico de que ele fez parte. E isto nào é de somenos importância. Moniz Barreto tinha perante si apenas a obra. Hoje, o crítico tem como termos da sua equa- ção, àlêm da obra, a biografia do autor e a pers- pectiva da época.

E, sobretudo, Moniz Barreto podia afoitamen- te verberara recorrência a '«impressões e senti- mentos que aPsychoIogia moderna classifica de deprimentes, e que Espinoza condemnava na sua Ethica como destruidoras da energia e da integridade da alma»», porque não tinha na sua bagagem literária umas Palavras Cínicas, umas Vidas Sombrias ou um Tibério filosofo e mo- ralista, corpo o sr. For jaz, e que desautorizam por completo este sr. quando se ponha a exigir «livros sadios, poetas encorajantes", «livros que tragam e nào livros que esgotem."

de escrever as últimas páginas deste tra- balho.

180 A Afronta a António Nobre

de tirar as conclusões que ressaltam do que atraz ficou.

Censurava em 1915 o sr. Forjaz os moços de A Galera, pela falta de biilho e de beleza de que se ressentiu a sua homenagem então pres- tada a António Nobre. Tinha o sr. Forjaz bas- tante razão nessas censuras. Tinha-a nesse tempo.

Hoje, perdeu-a por completo, e colocou-sena situação de poderem os homenageadores de 1915 vir bater-lhe à porta, devolveu do-lhe os termos acres que então sobre eles ousou expe- dir: «recua de líteras assim tão petulantes como idiotas."

Porque o livro António Nobre é bem mais pobre do que o número especial daquela re- vista coimbran, dedicado ao Poeta do Só. Ali, ainda ha, ao lado das titubeantes primícias dos organizadores da homenagem, um belo artigo inédito do Mestre-Prosador Antero de Figuei- redo e um outro de Alves dos Santos, bem in- teressante, àlêm do de Ferreira Lima, que o sr. Forjaz elogiou.

Mas os moços de A Galera tinham em seu abono, atenuando-lhes a falta, a sua idade juve- nil e inexperiente, a sua bem recente familiari- dade com as coisas literárias.

Nenhum, como o sr. Forjaz, tinha quási um decénio de literatura no pêlo e dez celebrados volumes sobre o lombo.

Eles nada fizeram de grande. Pois o sr. For-

A Afronta a António Nobre 181

jaz nada de grande fazendo também, quando deitou mãos ao mesmo cometimento, fez mau, fez ruim, fez especulação grosseira, errou in- tencionalmente, para armar a um determinado efeito.

Senão, folheie-se o livro do sr. Forjaz e pro- cure-se o que ele exigia houvesse no citado número de A Galera: «O que havia a fazer se- ria uma série de artigos na forma do de Fer- reira Lima, cada um tratando o poeta sob a sua feição. Um, estudando a sua biografia: Ou- tro o mal de viver dos seus versos: Outros a influência das viagens no seu temperamento. Um com gana medicatriz estudaria António No- bre sob ponto de vista amoroso. Um terceiro investigaria da saudade na sua obra. Inéditos do poeta ou poesias pouco conhecidas seriam publicadas. A sua biografia seria estudada. Os seus Íntimos diriam da sua intimidade."

Exigia tudo isto, e veja-se agora o que fez. Colocou-se em frente do Poeta e crivou-o de invectivas, ácidas em extremo. Substituiu aque- le programa por um plano de ataque intensivo e sem quartel. Negou, negou, negou. Conce- deu, como por favor, que Nobre tivesse tido talento. De resto, nada: nem sinceridade, nem emoção, nem receptividade artística. E chega aos epítetos de «cabotino» e «criatura inferior»-... Pois, onde está ali o estudo atento da bio- grafia do Poeta ? Onde uma interpretação in-

182 A Afronta a António Nobre

teligente do mal de viver dos versos do ? Onde a demonstração de que o nomadismo de Nobre lhe deu feição especial ao temperamen- to? Análise medicatriz, existe ali alguma? Dos casos amorosos dele diz-nos o quê? O elemen- to da saudade na obra de Anto foi posto em destaque? Traz à luz inéditos ou poesias es- quecidas ? Entrevistou os íntimos do Poeta, pa- ra alguma coisa nos contar da sua intimidade?

Nada. Nada. Perante estas exigências feitas aos outros, faliu, faliu miseravelmente. Com esse escopo, nada nos deu de novo.

De novo, o seu ponto de vista adverso ao Poeta, aluindo-lhe o crédito, pretendendo arrefecer-lhe em roda a temperatura de simpa- tia.

Novo, é como quem diz. Novo com pano velho: ressuscitando e vertendo para dialecto de insultos um juizo crítico de Moniz Barreto, como provei.

E entreteve-se então com bugigangarias, co- mo a do minucioso cotejo das duas edições do Só, registando em mais de metade do volume as menores variantes, letra a mais, vírgula a menos, dando-se nisto uns ares de quem pres- ta estimável serviço !

Para satisfazer ao estudo da influência das viagens de Nobre no seu temperamento, que faz? Vai ao Só, às Despedidas o. 2. A Águia, que publicou muitos inéditos do Poeta, e três-

A Afronta a António Nobre 183

lada as datas e as designações das localidades onde as poesias foram escritas, copia trechos destas, referentes a esta ou àquela terra, e nada mais. Onde está a influência das viagens no temperamento ?

E, sempre obediente ao seu desígnio detrac- tor, diz:

« ..nào sentia decididamente amor pela França, nem mesmo por esse Paris.

Paris de Baudelaire I

Paris de Verlaine e poetas sonhadores !

Mais de mendigos ricos, de fidalgos salteadores;

(Despedidas, pag. 82 )

"Ele mesmo o confessa nos seguintes dois versos:

Paris que me acolheste n'agreste mocidade, Eu não te amo não, mas dou-te uma saudade.

(Despedidas, pag. 82)

"Nào. Ele não amava esse Paris que não re- parou nele."

Soberba e imperiosa conclusão: Nobre não amava o grande e babilónico Paris, por despeito, por não sentir que esse Paris se interessasse por ele! E' espantosa a audácia da malévola con- clusão! O arreigado e profundo nacionalismo de Nobre, tão avonde documentado nos seus ver- sos, sempre luarizados de saudades do torrão na-

Í84 A Afronta a António Nobre

tal, não lembrou ao sr. Forjaz para explicar aque- le desamor por Paris!... O despeito, sim, o amor-próprio ferido, a vaidade insatisfeita. . . Como se o Poeta pudesse megalomânicamente sonhar com dominar em Paris, o grande almo- fariz de potentados, reis, príncipes, rajás, gé- nios, sábios!. . .

é facciosismo. .

Na biografia do Poeta que traz no fecho do volume dá-nos alguma novidade? Nenhuma. Similhante, mais completa mesmo, publicou-a ,0 ilustre escritor sr. Visconde de Vila-Moura no seu livro sobre António Nobre.

Ha no trabalho do sr. Forjaz uma parcela de louvar. A bibliografia, se bem que na parte que aponta e cataloga os escritos sobre o Poeta seja ainda, e muito, deficiente. Ha muitos mais tra- balhos ali não citados, focando aspectos da vida de Nobre e da sua obra.

Iconográficamente, também o opúsculo é po- bríssimo. Das 10 gravuras que estampa o desenho de Roque Gameiro e o autógrafo cons- tituem novidade. Todas as outras são os retra- tos mais divulgados de Nobre, ainda bem re- centemente aparecidos no livro do Visconde de Vila-Moura, em A Águia e nas edições do e das Despedidas, n'A Qalera, etc.

Mesmo: este mínimo coeficiente de estudo útil, que veiu ali fazer, num livro que tem por fulcro demonstrar que António Nobre vive de-

A Afronta a António Nobre 185

masiado no culto das multidões, usurpando um lugar que de direito pertence a outros poetas maiores, como Cesário, Duro e Guilherme de Azevedo? Pois se injustamente o nome do Poeta do e a sua obra não cessam de ine- briar, e nefastamente, no entender do sr. Forjaz, o cérebro do grosso público, para que apre- sentar ali a reprodução dos retratos, elaborar quadros comparativos e táboas cronológicas, em cuidados quí melhor ficavam, e aí, num tra- balho de homenagem ao Poeta, e não num de oposição, como é o opilsculo em debate? Ver- bera que uma fogueira se mantenha viva e de tào altas chamas que ares de fogo sagrado, e, contudo, vai lançando também uma acha na fogueira ! . .

Grande contradição esta, que, aliás, nào é virginal no volume do autor da Prosa Vil! Muitas mais apresenta, como, por exemplo, quando afirma num ponto que o sôsismo "Com o seu autor nasceu, morreu e com éle foi defi- nitivatriente enterrado", para afirmar logo nas duas linhas seguintes a vitalidade desse sósismo: "E' que António Nobre exerceu e exerce uma acçào deletéria, dissolvente . . " E' como o conto infantil do Era, não era, andava na serra, . .

Por isto e pelo teor das duas transcrições que puz no inicio deste capítulo, duns pará- grafos do artigo do sr. Forjaz nA Luta e da Prosa Vil, descobre-se bem nitidamente como

186 A Afronta. a António Nobre

é forçado e da última hora este critério adverso ao grande renome literário do Poeta do Só.

E' um truc, um postiço, uma máscara, afive- lada por um momento ao rosto, para provocar, pela excentricidade, a atenção do público seu predilecto, a quem ele habituou o paladar ao gosto de iguarias fortes e picantes.

Decerto viu que resultaria coxa, por falha de sinceridade, a diatribe que engendrava contra Nobre. Decerto viu como era ridículo e indi- ciava inconsciência o apodo de dissolvente e de- letéria lançado sobre a obra do Poeta, sendo ele, o sr. Forjaz, o desbragado produtor dum rol de livros, donde escorrem teorias veneno- sas e donde, por uma sistemática exegese do egoismo mais truculento e sórdido, tem ema- nado nào pequena parcela da efervescência mórbida que pulveriza a nossa sociedade ho- dierna e ameaça levá-la ao maior cataclismo so- cial: commis-voyageur da corrupção e do delí- rio, esquecia a fazenda antiga dos seus mostruá- rios, que lhe tem enchido de lucros as algibei- ras, e desatava agora num berreiro a reclamar mercadoria de alto valor ético e saudável!. .

Decerto o sr. Forjaz viu tudo isto: decerto, porque é inteligente. Mas, acima da sua inteli- gência pôs sua esperteza de industrial de perío- dos, como se intitula, e, ante a necessidade pa- ra o seu negócio de fazer mais um livro, ocor- rendo-lhe a ideia de escrevê-lo tendo por te-

A Afronta a António Nobre 187

ma António Nobre, filosofou assim: se o escre- vesse homenageando o Poeta, desde que no seu temperamento nào existe forte intuição psi- cológica, nada sobre ele poderia dizer de novo, tanto mais que o assunto, depois de tantos tra- balhos sobre ele publicados, estava por assim dizer exausto; restava o recurso, inédito, fecun- do, detonante, de, embora torcendo-se, negan- do-se no que anteriormente escrevera, operar um movimento de reacção contra o culto acen- drado pelo Poeta. Encontraria nisto resistên- cia? Melhor. O embate da sua arremetida nes- sa mur.ilha de almas defensoras de Nobre pro- duziria estrondo, e feito assim, pelo escânda- lo, pela irritação despertada, o reclamo do li- vro, estava, implicitamente, decretado o seu bom êxito de venda. O encontro do artigo de Moniz Barreto, dando-lhe bordào, servi-lhe hia magnificamente, para dar à empreza uns vizos de seriedade.

Com tão sorridentes planos, pôs màos à ta- refa. Fez em sarrafos o bordão por fortuna achado, falquejoulhe a seu bel-prazer os con- ceitos, pincelou-os à doida, a esmo, com a ru- bicunda tinta do insulto, e, como aparafuzados uns aos outros, davam pequeno volume, para atingir a costumada centena de páginas, meteu- -Ihe os chumaços de algodão que indiquei.

E assim, de túnica vermelha como todos os seus livros, fero, gritante, demoníaco, o livro

188 A Afronta a António Nobre

corre no mercado, sem atestar que no seu autor vibre o desejo de progredir e de fazer melhor e mais belo hoje do que ontem. Bem pelo contrário. Pois, em meu juizo, o seu An- tónio Nobre ficará na sua bagagem como a obra" mais ilógica, antipática, desinteressante, inútil, exibitiva e irreverente à sobreposse.

E, se a série prometida Os Bárbaros, que es- te volume iniciou, fôr toda assim, pobre Fia- lho, pobre Camilo, pobre Eça! pobres todos os outros! O bárbaro de Os Bárbaros é muito capaz de pegar-lhes nos venerandos ossos, embrulhá-los nas capas encarnadas dos seus li- vros e cometer a barbaridade de ir vendê-los a uma refinação de açúcar!. .•

E se dos moços de A Oalera disse o sr. Forjaz serem eles bons rapazes e nâo se terem lem- brado do poeta senào para se fazerem lembra dos, eu, com franqueza, e como, graças ao Pai do céu !, não o conheço <le perto, não direi que o cínico autor é bom rapaz, mas o que não hesito em dizer é que ele não se lembrou do Poeta senào para, mercantil e substanciosa- mente, ganhar mais uns cobres...

Finis : Laus vitae

Pag.

Saibam quantos I

I O Poeta do «Só» 1

II Quem é o sr. Albino Forjaz de Sampaio 53

III O seu «António Nobre», obra irreverente e

mercantil 139

o

A faina de composição c de impressão desta obra, executada nos prelos da Imprensa Africana, na rua de S.Julião, 58 e 60, desta cidade de Lisboa, começou em 1 de Fevereiro de 1920 e findou em 8 de Maio do mesmo ano.

PQ Frias, César de

9261 A afronta a António Nobre

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