e4 ko , 4 " vs Ea q a | *iy te Er ii) s í o A A “ XY. o" dita + ea E 4 «s ÉS o cê a mia , E => q Aa ZACHARIAS D'AÇA Caçadas Vortuguezas : Paizagens — Figuras do campo LISBOA Secção Editorial da Companhia Nacional Editora ADM. — Justino GUEDES Largo do Conde Barão, 50 1898 EN , 4 À vi 4 Q DEC 1 9 1887. ) + y + RE (7. RA, | PR! Pod RA pa de PAS z DUAS PALAVRAS AF correr mundo este livro. Largando-o das mi- nhas mãos, faço votos para que elle não nau- frague no mar — umas vezes encapellado, outras ve- zes morto —da publicidade. Não arvora bandeira de facção litteraria, não lhe puz divisa, e, apesar do es- trondear da fuzilaria, não vae a conquistar: mas o titulo diz que o anima o espirito da nossa terra — fala de coisas portuguezas. De tigres e leões poderia eu contar historias tra- gicas e horripilantes, mas nunca me defrontei com elles, e não me seduz o papel de chronista incon- sciente de alheias proezas. O que se contém n estas "paginas são as minhas impressões dum mundo, muito proximo de nós, mas de que, quasi todos os que escrevemos, andamos muito alheiados —o mun- do dos campos. LO) DUAS PALAVRAS Os capitulos todos d'este livro — afora dois ou tres — são capitulos da minha vida, e quando os re- cordo, alegra-se-me ainda o coração. E signal certo de que foram dias bem passados, é que ainda não se me apagou da memoria o sol, que os alumiou. Sol que brilha no passado, sol poente hoje para mim'!... Mas as nuvens, que elle doirava nas suas phantas- ticas evoluções, eram brancas e transparentes; fugi- tivas, como os sonhos da mocidade, não faziam man- chas no céu, como tambem não me deixaram som- bras na vida. De quantos dias ella se compõe, estes de que aqui falo, e poucos mais, são os unicos que eu quereria reviver. Porque — não to direi, leitor amigo, se não és caçador, que não me entenderias, e aos que me podem entender não é necessario explicar-lh'o. Os enthusiasmos e os arroubos da paixão só os com- prehende bem quem já os experimentou. Do nascer ao pôr do sol sentimo-nos outros — es- tamos em contacto intimo e constante com a natu- reza. O corpo e a alma teem a consciencia, e estão no pleno exercicio de todas as suas faculdades, de todas as suas energias; manifestam-se, desenvol- vem-se, sem pelas, nem constrangimentos. Alegra-se- nos a alma espraiando a vista pela paizagem, e essa alacridade . sente-a tambem o corpo, recebendo, em cheio, as ondas d'esse banho enorme de luz; aspi- DUAS PALAVRAS 7 rando, a plenos pulmões, as largas correntes do ar puro e oxigenado dos campos e das norestas. Ha em todos nós alguma coisa do selvagem, um resto do homem primitivo, e esse, antes de tudo, foi cacador — preou, como quasi todos os animaes. O cimilisado, com requintes de trajo, de mesa, e de habitação, invenções de artes e sciencias, esse fez-se depois — é obra do tempo. Os historiadores relega- ram o primitivo para os primordios da historia, e parece-nos, ao lel-os, que o troglodyta lá ficou se- pultado nas suas cavernas. Mas não — elle vive, e, dentro de nós, como o escravo dos triumphos roma- nos, vencido e agrilhoado, veiu-nos acompanhando, assistindo e resistindo a todas as civilisações. E elle quem faz os caçadores —e é esta a philosophia da caça. É basta de prefacio e de philosophias. que me po- deriam levar longe, e fariam effeito contrario no lei- tor, que me deixaria ir— sem me acompanhar. Individualidade complexa, esta do caçador tem algo do soldado, do viajante, do aventureiro e do artista. De tudo isto parece-me que o leitor encontrará al- guns reflexos e vislumbres nas paginas d'estas nar- rativas. Quadros, scenas, paizagens, marinhas, figu- ras — tudo é desenhado ou esbocado do natural, com excepção da Tragedia na caca, que me foi contada por testemunha presencial, que não figura no lance, trabalho. “ale. anos 4 de junho de 1898. — pliq o vd 0:90 070,0 0 kr oo Si DT O LAO LT ECT (PC PE TT FORA cEr =D as 55 do cp di a OP CE TC CL o u Muro l ul x a i º ERC RECREIO GEiÇO E e " O mig sa R Ra Ns : PA ENT ANS A (E NT) DMD) o o Fl À ada Lob QUA LA ooo SE EG joio a 4 E racer med E EST -. a Tou gi il emo a HE o OLAMLERAEM Lo Ea E UEBA MT gd CRT oca gg TATA TRAS w “ooo o ooo ass ierprigeo erp o)o 0.6 ad LD à ERC LARO a Bulhão Pato Poeta — Pintor do mar — Sportsman . larmente dotados pela natureza, podemos di- ” zer que o decorrer do tempo, os baldões da ida, os assaltos da má fortuna, a inconstancia da arte, todo este mar revolto do mundo, o affrontam les com o olhar sereno, e o animo impavido. Nesta rtuosa navegação, com a experiencia de tantos nau- agios — os proprios e os alheios — elles são como sses grandes navegadores que, a despeito dos ven- )s, dos mares, e dos homens — ainda peores inimi- os, não desconfiam da sua estrella, e conseguem hegar ao porto do seu destino! São estes .os poetas de raça, os verdadeiros poe- 1s: para estes não ha annos de prosa. Cantam na o certas organisações poeticas, espiritos singu- IO CAÇADAS PORTUGUEZAS mocidade, na primavera qa vida; cantam no estio; o outono illumina-os, doira-os com os tons meian- colicos da saudade, e o inverno da vida-dá-lhes uma serenidade altiva, a tranquillidade das altas regiões espirituaes, em que a alma, sempre viva e lucida, na sua constante evolução, alheiada das paixões ter- renas, como a chrysálida vae-se transformando, para se abrir em novos mundos! A esta privilegiada familia, a esta aristocracia in- tellectual, pertence Bulhão Pato. Todos o conhecem, todos o sabem; não é isto novidade, que precise de demonstração. Neste logar não falaremos especialmente do grande escriptor, das suas altas e finas qualidades de prosador e de poeta. Aqui as lettras não são de certo nem extranhas, nem malvindas, mas nos cam- pos soam mais do que os accordes da lyra as trom- pas e o vozezr dos caçadores. O auctor da Paguita e do Livro do Monte — o seu ultimo e precioso livro — não é um escriptor se- dentario, não é um poeta de gabinete, inventando sensações, compondo com sentimentos imaginarios situações em que nunca se encontrou; não, e os seus livros — poemas, narrativas, cantos, e satiras —a sua prosa e a sua poesia, são obras vividas: estão alli os personagens, as scenas, os episodios, os lan- ces do drama da sua vida; são aquelles o céu, as terras, os mares, os homens e as mulheres, que elle viu. que elle conheceu e que elle amou. Alma curiosa e sedenta de impressões, não se li- mitava a gosar dos encantos do mundo das salas; CAÇADAS PORTUGUEZAS 8] e elle saía d'um baile e partia para uma caçada, e dahi para uma larga digressão pelas nossas pro- vincias, ou ia-se de foz em fóra até á ilha de S. Mi- guel, à Hespanha ou á Italia, com um verdadeiro prazer; e não era necessario que nol-o dissesse, por- que bem se lhe via no rosto, que o sentia. H São esplendidas de verdade as suas paizagens; com um toque ou dois dá-nos o artista a impressão do mundo real, e estamos vendo e ouvindo os seus al- deões, os seus rusticos. Os seus olhos fixam e gra- vam em si para sempre os movimentos, os gestos dos animaes —os da terra e os do ar, e os aspectos da natureza. As grandes scenas maritimas, as largas paizagens oceanicas que elle nos pinta — não digo descreve — na Paquita, são obras-primas, quadros agitados, em que o turvar da atmosphera, o assobiar do vento nas enxarcias, o fuzilar do raio e o estalar do trovão, teem tal certeza nos traços, tal viveza no colorido, que, quando os lemos, como que nos acon- chegamos no gabinete, tanto a realidade da descri- pção do tremendo espectaculo se impõe ao nosso espirito! No mar está o poeta no seu elemento. Nos mo- mentos solemnes, em pleno vendaval, no mar dos Açores, quando os passageiros recolhiam aos beli- ches, e no convéz só se viam os homens da faina com as suas japonas e os seus nordestes breados, T2 CAÇADAS PORTUGUEZAS eu vejo, na minha imaginação, na pôpa do vapor, quatro vultos, os dois homens do leme, o capitão Telles Machado, velho lobo do mar, e Bulhão Pato. É tudo a postos... Que um temporal naquelles ma- res é de tremer! Os naufragios são, ás vezes, às du- zias, quando o vento se levanta, e as ondas se enca- pellam naquellas costas! Era ahi que o poeta recebia a impressão directa do grandioso e medonho scenario das formidaveis tragedias do mar! Os originaes dos seus quadros viu-os o grande ar- tista bem de perto de dia, e mais temerosos ainda de noite! E com que alto estylo elle os pintou! Quando o mar, de improviso, se encapella, Quem nesse instante acorda, julga um sonho, Horrivel sonho, o assalto da procella! A faiscar, em virotões, O raio! Ribombava o trovão, inda distante: O sol. açafroado e de soslaio, Tocava as densas nuvens do levante: Dando ás cristas das ondas rebentadas, A espaco, uma tinta coruscante! Faina geral! O vento desgarrão, Austral, intercadente, a carregar, E a rajada maior que o recalmão ! Investindo furiosas, a intestar, As torvas ondas de fumante espuma, Co'as nuvens achatadas sobre o mar! CAÇADAS PORTUGUEZAS | (q a O' mar! quando a refrega violenta Em pyramide as ondas te alevanta, Quem se atreve comtigo na tormenta À besta féra ao teu bramir se espanta! Somente o homem te contrasta os impetos! Elle só contra ti se não quebranta ! Em tuas solidões desamparado, Olhando para o céu — que, em taes momentos Parece por Satan reconquistado ! — Mais audacioso que o furor dos ventos, Paira acima do horror da natureza, Como um Deus, por seus altos pensamentos ! , Tem o mar os seus amantes, os seus apaixona- dos, e nós comprehendemos o sentimento de orgu- lho, que as almas fortes devem experimentar, ao affrontarem as coleras immensas do Oceano! Levantarem-se-lhes as ondas em montanhas, e de subito, e logo em seguida, cavar-se-lhes o abysmo verde-negro e medonho, entrevendo-se, lá em baixo, as fauces do grande tragador, a bôcca escançarada e o seio da immensa sepultura! Soprar-lhes o vento nos-cabos o hymno desvairado da procella-—os in- tervallos do silencio tragico cortados pelo gemer ar- rastado do arvoredo!... E as investidas d'esse mar, o desabar d'essas montanhas, essa baldeacão enorme, em que ellas se precipitam, onda sobre onda, e cor- rem e lavam o convéz de prôa á pôpa, e levam e arrastam tudo! E as lufadas do vento, e as cam- I4 CAÇADAS PORTUGUEZAS biantes da atmosphera, e o fulgurar dos relampa- gos, e o scintillar do raio, os gritos de terror, a pal- lidez dos rostos, o tremor das vozes, o anceio dos animos, o trepidar dos corações!... E tudo isto a succeder-se na expressão dos olhos, espelhos da alma!... Oh! quem tiver assistido a taes scenas, se duraram horas, pode contal-as por seculos! Mas os que escapam ás furias da tempestade, não voltam as costas ao mar! Antes parece que mais lhe ficam querendo! Já o Camões pintou esse amor, quando poz na bôcca do Adamastor aquelles ver- sos, desesperados e saudosos: Todas as deusas desprezei do céu, só por amar das aguas a princeza! Tem sido navegador o nosso poeta, tambem foi cavalleiro; e quem escapou das tormentas do mar esteve a pique de perder-se em terra, e num rio sem agua! Um milagre este, se não maior, pelo me- nos mais verídico do que o succedido ao bom ca- valleiro D. Fuas Roupinho, que o nosso grande poeta Castilho immortalisou na sua Chácara da Senhora aa Nazareth. Deu-se o caso um dia que Bulhão Pato saíra a passeio pelos arredores da Arruda, na companhia do visconde de Asseca, Salvador Corrêa, pae do actual titular. O cavallo que elle montava, era um em CAÇADAS PORTUGUEZAS I potro d'Alter fogosissimo, e o poeta, então na exu- berancia de forças dos vinte annos, deu-lhe largas: o que a principio era trote passou a galope, e na desenfreada carreira chegaram á ponte, pequena e irregular, mas que mede talvez trinta pés d'alto... O parapeito é baixissimo, e o leito do rio estava sêcco, a descoberto. Bulhão Pato quiz voltar o potro, ao entrar na ponte, mas já não poude!... O impulso da corrida era maior, e cavallo e cavalleiro salvaram as guar- das, e caíram no leito pedregoso do Sizandro! O cavallo ficou inutilisado, o cavalleiro incolume! Não tinha uma beliscadura! Valeu-lhe o ser magro e de pequena estatura, dirão: valeu-lhe a fortuna, porque o salto era mortal! Quando alguns homens correram para o rio, já acharam o poeta de pé, sacudindo a terra de si, e aprestando-se para sair do que quasi lhe fôra tumu- lo! E” impossivel descrever o pasmo que d'elles se apossou, ao verem o cavalleiro dizer-lhes: — Vocês vinham para me levar!? Hein! Pois, obri- gado, eu cá vou andando. Se quizerem levem o ca- vallo: esse é que de certo não pode comsigo. Na villa apontavam o poeta, e olhavam-n-o depois com certa admiração respeitosa. Parecia com effeito que elle cruzara os terriveis humbraes da morte: Elle, todavia, preferiu as campinas e as varzeas, O mundo, a que tão cedo o quizera arrancar o fogoso corsel! - E por mares e rios, montes e'valles, o viemos acompanhando, e cá estamos com elle nas varzeas 10 CACADAS PORTUGUEZAS e nas campinas, nas vinhas e nos pinhaes — numa palavra, no campo das suas caçadas. HI No seu trajo de caçador, rodeado dos companhei- ros — grupo sempre pittoresco, pela variedade dos typos, e a que dão ainda mais vida e realce os cães, os perdigueiros, com a desenvoltura dos seus mo- vimentos — Bulhão Pato lembra-nos um d'esses fi- dalgos d'outro tempo, poetas cortesãos e fragueiros, tão conhecidos nos saraus do paço da Alcácova, como nas batidas e monterias de Salvaterra e d'Almei- rim; aquelles que corriam com egual ardor as aven- turas do amor e as da guerra, affrontando-lhes os perigos com a mesma galhardia. Individualidade como a sua, tão accentuada, tão cheia de caracter, não conheço outra entre os nos- sos poetas contemporaneos: é poetã em toda a parte, a toda a hora, com toda a gente — na rua, no café, á mesa d'um hotel como no lar domestico, no sa- lão das duquezas como nas salas da Academia! Em Veneza, um dia, entrando num dos hoteis mais ele- gantes, para jantar, o creado -- um original, que sa- bia o Dante de cór—a poucas palavras trocadas, encarando com o nosso amigo, disse-lhe, interro- gando e affirmando ao mesmo tempo com o gesto: — Voi siete poeta? E d'ahi a pouco os dois tinham travado dialogo sobre litteratura. CAÇADAS PORTUGUEZAS 7 Nasce-se caçador, como se nasce poeta, como se nasce orador. Bulhão Pato é tudo isto, de nacão, como diz ainda o nosso povo dos campos. Ser ca- cador é nelle quasi um talento, uma das formas do seu ser. Atirar às codornizes nos trigaes, perseguir as per- dizes nas vinhas, chofrar as narcejas nos alagamen- tos, descobrir as gallinholas nas estevas, nos pinhaes, esperar a passagem das rôlas e dos pombos, car- regar uma lebre na campina, correr um veado, em- prazar um javali, fazel-o sair da mancha, esperal-o de cara numa porta, é um prazer, para os que pro- curam essas sensações fóra da vida banal das cida- des, nos campos, nas florestas, nos mattos ermos e selvagens. E é mais facil sentil-o, do que explical-o aos que, extranhando-o, por isso mesmo não o po- dem comprehender. Tanto valeria explicar a um sur- do, ou a um cego, as bellezas da musica e da paizagem. Haurindo o ar fresco e embalsamado dos campos; dilatando a vista pelas verdes e extensas pradarias, ondulantes como o mar, pelos doirados vinhedos, pelos cimos quebrados das serras, entra-se em mais intima communhão com a natureza. Não são ruas alinhadas e poeirentas, edificios re- ctangulares, sombras geometricas no chão, nem céu recortado, aqui e alli, pelos telhados da casaria ur- bana. Terra, luz e ar, estão alli a descoberto, não nol-as encobre a mão do homem. O sol irradia es- 2 18 CAÇADAS PORTUGUEZAS plendido no limpo azul do firmamento, a aragem é pura, e a propria terra envia-nos o perfume das er- vas rasteiras e das florinhas agrestes, que pisamos. Neste contacto com a terra o homem rejuvenes- ce, e á serenidade dos campos responde em nós uma alegria, que não é a que rompe d'entre o convivio das festas ruidosas, mas outra, mais funda, de que depois nos lembramos, e nos apparece, no entarde- cer da vida, com o ineffavel encanto da saudade. E no meio d'esse scenario rustico aquelle poeta, que todos—os que sentimos e amamos a natureza, trazemos dentro de nós, occulto e tacito, acorda, e nós vamos seguindo-o, e a phantasia vae com elle a voejar, a voejar... Nascido em Bilbau e creado em Deusto, aldeia proxima, diz o poeta, nas suas'* Memorias, «que era a peste dos ninhos». All perto estavam as Encar-. taciones, onde nasceu Antonio de Trueba, o popu- larissimo auctor do Libro de los cantares, e por ventura então outro inimigo das avesinhas. Já La Fontaine o disse: Cet age est sans pitie, e ellas po- derão dizer que as outras edades não são melhores. Os cantos da infancia ouviu-os elle truncados pelo estrondear da fuzilaria: era a caca ao homem — as embuscadas e recontros de carlistas e de christinos. Scenas dramaticas, tragedias, como a da historia d'aquella Maria Salomé, que elles fuzilaram! Va- CAÇADAS PORTUGUEZAS it, lente mulher, destemido e dedicado coração! Era a ama do poeta. Aquellas paginas, que elle me dedicou -— em ter- mos para mim muito honrosos, e que eu aqui, em publico, lhe agradeço — aquelle nefando assassinio, não o releio sem um estremecção de horror ! Reconhece-se no homem feito o forte leite que be- beu, e as primeiras auras que respirou. Bulhão Pato “tem, com effeito, na sua accentuada physionomia, na entoação alta e viril da voz, nos ademanes, no porte elegante e erecto, apesar dos annos, algo, se não muito, da aristocratica altivez dos habitantes daquelle rincão da Hespanha, que é ainda hoje — em tempos de republicas — o baluarte, o castello ro- queiro, onde se abrigam as velhas tradições e cren- cas peninsulares. Não foi, porém, nos campos de Deusto que elle aprendeu a manejar a espingarda: saía apenas da infancia, quando Manuel de Bulhão, seu pae, voltou com a familia para Portugal. Abundavam então amadores illustres nas classe mais elevadas da sociedade portugueza. Na aristo- cracia, na alta magistratura, entre os grandes pro- prietarios, Redinhas, Atalaias, Arcos, Minas, Bacel- lar, Nizas, Antonio Borges, de S. Miguel, Mira, Vaz Preto, Laborim, Vimioso, tão firme na sella como na pontaria — e é o caso de se dizer mais uma vez — jen passe, et des meilleurs — todos notaveis, uns como atiradores, outros como cavalleiros, manti- nham alto o pendão da grande irmandade de Santo Huberto; sobresaindo-lhes. pelo fausto e pela ma- 20 — CAÇADAS PORTUGUEZAS gnificencia das suas caçadas, o fidalgo do Farrobo, em tudo grande — grande senhor e grande artista. Havia n'esse tempo mais riqueza nos palacios — e mais caça nos campos. Ficaram na memoria dos caçadores as pe: espingardas inglezas de Manton, de Purdey, que se pagavam de vinte a quarenta moedas; e os que viram, nesses dias afortunados, trabalhar os cães das raças do Marquez das Minas, do conde da Atalaia e do visconde da Praia, recordam-se ainda hoje com sau- dade da belleza de formas, da elegancia e da fir- meza d'esses magnificos animaes. Raças hoje extin- ctas e não substituídas. Os do visconde da Praia comprou-os elle em Paris, numa exposição, e deu, se não me engano, cincoenta libras pelo casal. E, se me engano no preço, é para menos. Não são menos famosas as caçadas principescas nas terras do Farrobo. Foi com estes amadores — em tudo mestres — nesta grande arte da caça, os curiosos, os amadores, é que são os mestres, e só elles o podem ser, tão complexa ella é, porque, sendo arte, é feita de scien- cias — foi, digo, com taes mestres que o joven poeta, tão precoce n'estes campos como no das lettras, fez as suas primeiras armas. Quando eu me alistei na venatoria confraria, foi Bulhão Pato meu padrinho, e na companhia d'elle CAÇADAS PORTUGUEZAS 21 perpetrei os meus primeiros crimes. Que Santo Hu- berto mos perdõe. A minha primeira victima foi um maçarico. lamos nó catraio do Lourenço para o Jun- cal da “Trafaria, que então — hélas! — ainda tinha codornizes, lebres e narcejas. Foi ha trinta annos, é parece-me que o estou vendo, ao pernalto, cair na agua! Antes disto já me tinha exercitado, atirando aos gaivões, que todas as tardes vinham fazer as suas correrias aereas no alto da quinta do Desembarga- dor, e por cima da minha casa, em S. Francisco de Paula. A anglomania não se apoderara do poeta, apesar da moda e da tradição, já antiga. A sua espingarda dentão era uma bella arma hespanhola de Eybar — canos de herraduras — como nelles se lia em let- tras doiro, e oitavados até um terço. D'oiro era a mira, e com elle discretamente ornada na bôcca e “emvolta da fecharia. Nada de oriental nesta or- namentação sobria — um filete apenas. O guarda- matto tinha mola de segurança. Elegante e solida, esta caçadeira havia dado as suas provas: a esse tempo entrara já em muitas batalhas, e pouco an- tes Lopes Cabral — um athleta — matou com ella, em um dia, na Gollegã, setenta e cinco codornizes! A Eybar succedeu Paris, e a espingarda que lhe conheco em effectivo servico, ha mais de vinte annos, é uma Gastine-Renette, do systema Lefaucheux, cin- zelada e acabada com a maior perfeição. Arma fina e de preço. Gastine-Renette é um dos mais illustres entre os 22 CAÇADAS PORTUGUEZAS fabricantes d'armas contemporaneos. Foi o Arque- buster de Napoleão II, o seu fornecedor predilecto de armas de caça e de guerra. No cabide de armas do poeta vêem-se mais duas — uma de fogo central, belga, e outra Flobert-Re- mington. Traicoeira esta ultima. — Como os machos d ar- rieiro morde e da couce! O cão levanta, e o tiro vem, ás vezes, tambem para a cara do atirador! Pe- rigoso systema. Dos cães da espingarda para os das perdizes a transição é facil, e está feita. E O capitulo dos nossos fieis alliados, e dedicados companheiros, é para nós ainda mais importante do que o das armas; com uma espingarda mediocre pode-se caçar — é com ella que atira a maior parte dos caçadores — mas com um cão mau é impossi- vel: a caça que levanta é por acaso, e, depois de morta ou ferida, uma não se acha, á outra perde-se o rastro, e a maior parte fica no campo para as ge- netas, rapozas e milhafres. Pois os paragraphos d'este capitulo são brilhantes; Bulhão Pato tem tido a fortuna de cacar na compa- nhia dos seus amigos, com optimos perdigueiros, e, entre os seus, conheci algumas espadas de primeira ordem. Teve o Pombo, soberbo animal — presente, se não me engano, do morgado Antonio Borges da CAÇADAS PORTUGUEZAS 25 Camara Medeiros, distincto amador, da ilha de S. Miguel; a Medóra, lindissima perdigueira, uma estampa, fina de desenho e de côr, e que era o en- levo de Alexandre Herculano, apesar d'elle não ser cacador. A estes seguiu-se o Mazeppa -— um verdadeiro ty- rano dos campos, que a nada perdoava: o que elle encontrava deante de sihavia de ir para o ar! Branco, todo elle, alto, a cabeca grande, a orelha curta, ro- busto de formas, dum enorme alcance de olfacto, cacando com uma certeza e a distancias, prodigio- sas, era um bello espectaculo vel-o trabalhar em campo largo. Apontava a caça de cabeca erguida, e ia direito a ella, com tal firmeza, que não seria maior, se elle a visse! Como todas as formosas tinha um senão — não trazia a caça ao dono! Porque um tal defeito em animal de raca, e tão fino como este era, ao certo não o sei. Podia tel-o de natureza ou adquirido. Of- ferecido ao illustre poeta pelo seu velho amigo, o general Schwalbach, mandara-lh'o este do Porto, ainda novo, mas, se bem me lembro, já feito, e a caçar. Talvez lá fosse ensinado por algum amador inglez, e estes, como se sabe, costumam, cacando com dois ou mais cães, delegar no retriever as fun- cções subalternas de procurar e trazer á mão a ave, “a lebre, ou o coelho, lev antados pelos seus nobres pointers ou setters. Fosse o que fosse, Mazeppa era, apesar d'esta falta, um brilhantissimo explorador. Lady, a cuja morte o poeta — como outros, By- ron, por exemplo — dedicou sentidos versos, não 24 CAÇADAS PORTUGUEZAS desmerecia d'estes, e era d uma meiguice notavel e d'uma rara dedicação. Eu não fiz versos aos meus, não sou poeta: mas quando elles fecharam os olhos para sempre, os meus nunca ficaram enxutos. IV: Madrugadas de caça O dia oito de setembro era o escolhido por Bulhao Pato para a abertura das suas caçadas do inverno no sul do Tejo, e o sitio preferido o Juncal da Tra- faria. A meia hora de caminho de Lisboa, e com uma tra- vessia encantadora nesses formosos dias do outono, tinhamos alli, por assim dizer, a nossa coutada — nossa e de poucos mais, felizmente. Os outros fre- quentadores eram os ranchos de' José Maria Villar, e de João Lourenco, ambos creados da Casa Real, e os srs. Gourlades, da Junqueira. Os caçadores de Lisboa, a uns desviava-os de lá o terem de ir em barco de vela, e a outros levava-os para os pinhaes de Corroios a falta de bons cães ou a ambição das gallinholas. Assim divertidos de concorrerem com- nosco, era raro encontrarmos competidores. Quando, pelas cinco da manhã, eu chegava, equi- pado e armado, à casa do poeta, que morava então — 1867 — na rua das Praças, á Lapa, já lá estavam, sentados à porta, dois vultos, que de longe e pelo CAÇADAS PORTUGUEZAS 25 escuro eu apenas distinguia: — eram o Lourenco da Pinha, o nosso barqueiro de Belem, e um dos fi- lhos. O bairro jazia, as ruas eram ermas, mas lá den- tro tudo estava a pé. A morada do poeta, que ainda hoje conserva o mesmo aspecto, é sobre si e tem a apparencia d'um cottage ——-rez-do-chão, primeiro an- dar, e, sobre este, outro pavimento mais baixo, com quatro janellas, d'onde se desfructa, por cima dos telhados fronteiros, o Tejo —vista que tanto realça e alegra a casaria destes bairros da Lapa e de Buenos Ayres. O Faliéro e a Medóra, já despertos, latiam no canil, ruidosos e contentes; na cozinha o José, ro- busto e sympathico rapaz, honra da ráça d'além Mi- nho, com as suas botas d'agua, a camisola de Ha- nella de listas, a sua cara sempre alegre, e a Ma- Tila, a creada, davam a ultima demão nos aprestos do almoço e no arranjo das bagagens, porque, ás vezes, estas excursões duravam dias. O poeta, ins- tallado no seu quartel general venatorio, em casa da sr.* Maria do Adrião, na Costa, havendo caça e dias amenos, deixava-se lá ficar, até que algum sudoeste bravio, dos que costumam acçoitar aquella planicie d'areia, o.forçava a levantar vôo e recolher aos abri- gos da cidade. A primeira pessoa que eu via áquelia hora mati- nal, e que, no alto da escada, me dava os bons dias, “era sua irmã, a sr.? D. Maria da Piedade, com o seu “ar senhoril, e a sua voz alta e vibrante. Muito pa- recida nas feições com elle, não o era menos no fino 26 CAÇADAS PORTUGUEZAS espirito e na amenidade do trato. Mais velha do que Raymundo foi, por assim dizer, sua segunda mãe. Acompanhou-o na vida, e tudo com elle participou — a gloria e a adversidade. Tinha um animo varo- mil a ilustre senhora: aquelles primeiros annos da sua mocidade, passados em Hespanha, no meio das guerras civis, deram-lhe a tempera. Era uma alma forte, e por isso mesmo egual, serena e resignada, na boa e na má fortuna. Estes Bulhões são de bom e antigo sangue. Ma- nuel de Bulhão foi um homem em toda a accepção da palavra — honrado, forte, e valente. Transposta esta primeira estação, em cima estava o poeta, já a pé, vestindo-se, espreitando pelas ja- ' nellas, voltadas ao sul, o cariz do céu, e o rumo do “vento, e fazendo o prognostico da caçada. Alh era o seu miradouro, o seu gabinete de tra- balho; alli recebia os seus intimos, ali compunha os seus poemas. Aposento modesto e simples, que ti- nha nas paredes, por unico ornato, uma cercadura feita com os bellos retratos dos contemporaneos il- lustres, gravados por Souza, para a Rerista Con- temporanea. la eu subindo a pequena escada de dois lancos, e já o ouvia falar. — Es tu, Zacharias? E logo, em seguida, quando eu abria a porta: CACADAS PORTUGUEZAS 27 — Temos caçada. O dia esplendido! Já lá está o Lourenco? É depois, sempre poeta, trocadas as primeiras pa- lavras, dizia, com a sua mascula e bella voz, os co- nhecidos versos da Chácara da Nazareth: Manhãs frescas de setembro, quando orvalho está a cair: « frescas manhãs de setembro, quem n-as podera dormir! Vo jonoL 6 o q «tum óia » alolennio alvo coiso E saltava para estes — tão vivos, que todos os di- rão dum caçador! Vôam corseis e sabujos! Apupa, apupa, clarim! Que esta sina de fragueiros não tem descançco, nem fim! E como commentario, a fechar, dizia: — Deixa-os lá. E um grande poeta. A toilette estava terminada. Afivellado o cinto, mettidas nelle as luvas de camurça, dando um re- lance d'olhos em volta do quarto, como a despedir-se: — Agora vamos ao café, que sem esse viatico não * ficamos amanhados. Vae tambem uma golada de co- guac? A manhã está fria. E, pondo-me a mão no hombro: --Rapaz, rapaz, dizia-me elle —estás nos teus vinte annos!... Datavam de pouco as nossas relações; eu tinha então vinte e sete annos cumpridos, elle devia ter trinta e seis. Os meus vinte já lá ficavam para traz 28 CAÇADAS PORTUGUEZAS na estrada, mas eu, felizmente, sempre fui mais novo que a minha edade. E ainda hoje tenho esse defeito. Surprehendo, às vezes, em mim ingenuidades infan- tis— auroras, esplendores, e soes poentes de dias, que ha muito passaram... Na minha memoria evoco esses phantasmas, que me apparecem vivos, e travo dialogo com elles... E tudo isto é pela virtude do muito imaginar. A phantasia, a memoria viva, fa- zem-nos o milagre d'estas resurreições! Tomado o viatico, accesos os cigarros — Pato pre- fere a cigarrilla ao havano — despediamo-nos de D. Maria da Piedade, e partiamos. Ella ficava — al- gumas vezes tambem nos acompanhou nestas ex- cursões — mas nós tinhamos a certeza de que o seu pensamento não nos desamparava, porque no seu espirito, como no de todos, à idea da caça andava associada a do perigo. Desciamos a rua de S. Domingos e chegavamos à rocha do Conde d'Obidos, atravessando as ruas, ainda desertas. Os Lourenços é o José tinham mar- chado na frente com as bagagens. Assim abriam para nós esses dias — jamais es- quecidos. Alvoradas alegres de rosado oriente e céu d'anil, ou manhãs pardacentas, humidas e tristes, encontravam em nós o mesmo animo. Nos dias bo- nitos tinhamos a crença; nos feios era a esperança, e em todos a grande poesia da mocidade... O tempo voou, mas, todos os annos, nos primei- CAÇADAS PORTUGUEZAS 20 ros dias de setembro, nas lindas madrugadas do ou- tono, serenas e cheias de luz, lembro-me com sau- dade de quando, ao entrar no quarto do poeta, eu era saudado com os versos da cacada do Alcaide- -Mór de Affonso Henriques: Manhãs frescas de setembro, quando orvalho está a cair; midias aviao Vo S/ 0,0 ayulo vis jo;s ciBiol a 0/8 À rocha do Conde de Obidos — João Lourenço Bulhão Pato no Juncal Aquella rocha do Conde d'Obidos — assim cha- mada por ser alli junto o solar, o palacio dos illustres fidalgos d'este titulo — vemol-a hoje mascarada com parapeitos, varandas e escadas, e coroada, no alto, com uma pequena praça ajardinada, donde se gosa a linda vista do nosso rio. Quantum mutata ab illo! Era então toda egual a uma nesga, que ainda lá se conserva — uma encosta pedregosa, adusta pelo sol, batida dos ventos, escalvada pelas chuvas, coberta aqui e alli por uma vegetação rachitica e parda. Um trecho da natureza selvagem, uma verdadeira arriba do mar! Descia-se para o rio por um longo corredor, en- tre dois muros —um do palacio, e outro da cêrca do convento das Albertas — e a escada que condu- zia ao pequenino caes, lá em baixo, era um verda- * O) (0) CAÇADAS PORTUGUEZAS deiro quebra-costas — tortuosa, os degraus irregula- res, abertos uns na rocha, outros na terra. Do alto da rampa, verdadeiro precipício, vi eu, um dia, sendo muito novo, cair um marinheiro inglez ébrio. Um horror ! Parece impossivel que aquillo fosse, até aos nos- sos dias, um dos caes de desembarque d'esta bella cidade! Era ahi que embarcavamos. , Arrumadas as malas, seguros os cães, os remos caiam na agua. — Jesus! dizia Lourenco. — Maria ! segundava o filho. E o catraio seguia, de voga arrancada, rio abaixo, . direito à Trafaria, quando não a Belem, onde iamos buscar o João Lourenco — o João da Burra, como lhe chamavam desde pequenino, duma burra com que da sua villa nos arredores — Cintra, creio eu — costumava elle vir á cidade. Cacador de El-Rei D. Luiz, morava em Belem, e, quando não tinha serviço no Paco, acompanhava- nos nestas digressões ao Juncal. De boa estatura, e robusto, o olho pequeno e vivo, a tez rosada, as feições regulares, o nariz aquilino, João parecia um abbade minhoto, dos que tem bons. presuntos na despensa e bom vinho na adega. Boa espingarda, bom garfo, bom copo, bom rosto, - e, portanto, bom companheiro, era, além de tudo isto, “ CAÇADAS PORTUGUEZAS di fino como um coral. Rapaz, filho do povo, fizera-se homem na cidade; tinha, o que é raro nos homens da sua classe e profissão, aprendido a sciencia difhi- cil de se manter sempre no seu logar. mas quando queria obsequiar alguem, fazia-o com a gentileza d'um fidalgo. Um exemplo. Homem videiro, abrira elle em Belem, defronte dos Jeronymos, um restaurante, a que poz o nome de Cacador. Um dia, em que eu fui visitar a egreja, demorei-me mais, e eram horas de jantar, quando de lá sai. A minha casa ficava longe, dirigi-me ao Caçador. + Prevenindo já a hypothese de lá estar o dono, en- trei pela porta do lado. O creado que veiu receber as minhas ordens, parece que me conhecia, porque elle a voltar costas, e João a apparecer com o seu rosto prazenteiro. Eu disse-lhe o que queria, elle sentou-se no logar fronteiro, e travámos a conversa, é claro, sobre a materia vasta—a caça, e artes e historias correlativas. * Quando eu ia no fim do primeiro prato, João, to- mando os ventos, disse-me : — Está-me cheirando bem. Parece-me que lhe faço companhia, se me dá licença. — Ora essa. O João está na sua casa. E jantámos os dois, entremeiando o paio com er- vilhas, e as eirozes grelhadas, com historias, algu- mas mais salgadas do que os guisados, que iamos saboreando. Quando accendemos os charutos, e eu pedi a 52 CAÇADAS PORTUGUEZAS conta, elle fez um signal ao servo, que desappare- ceu, e logo voltando-se para mim : — V. Ex.º deu-me a honra de jantar comigo na minha casa, e eu estou pago. Não deve nada. E' claro que não insisti. Se teimasse, eu é que era malcreado. Tempos antes fizera-lhe uma pequenina fineza, e elle quiz-me mostrar que não a havia esquecido. Po- dia contar delle outras historias. mas esta basta. * * João Lourenço trazia comsigo, para as nossas ca- cadas, os seus cães, na companhia dos quaes vinham alguns, que pertenciam á Casa Real, e que, seja dito de passagem, não envergonhavam os nossos. E não trazia só isso; muitas vezes vestia tambem o seu pit- toresco trajo do Real serviço, e com elle vinham ou- tros caçadores da Casa, bem armados, e bons atira- dores. Quem visse então no Juncal Bulhão Pato, e os seus amigos, com aquella comitiva de cacadores, perdigueiros, e batedores do sitio, que se nos aggre- gavam, e attentasse na chapa, com as armas reaes de prata reluzente, que ornava o chapéu à Mosque- teira do nosso moço do monte, cuidaria que eramos alguns principes saciados de caca, que, para variar o menu cynegetico de Mafra e Villa'Viçosa, iam, pe- destre e burguezmente, atirar alli ás codornizes e narcejas. 3, Safidpae CAÇADAS PORTUGUEZAS à Caçadores reaes e verdadeiros eramos nós, e prin- cipes tambem ás vezes iam dois: um era Lopes Ca- bral — que nós elevaramos a essa dignidade; o outro tinha-se elevado a si proprio, era Bulhão Pato — mas o seu principado era, e é, na Republica das Lettras. Tem menos fausto, menos representação, e incomparavelmente menos rendimentos, mas tem sobre os outros uma vantagem, uma absoluta supe- rioridade : os seus subditos podem não lhe tirar o chapéu, podem discutil-o, podem não o ler — que é a maxima affronta— mas o que não podem é obri- gal-o a abdicar ! As corôas dos poetas estão acima das revoluções! Rio abaixo No catraio do Lourenço NASCER" do sol no Tejo, o nosso formoso e grande rio, em dias de outono, é um dos mais encantadores espectaculos que os olhos po- “dem gosar, e esta digressão, rio abaixo, até Belem, e d'ahi para o-sul, era um delicioso lever de rideau das nossas caçadas, a que nem sempre correspon- dia o resto do divertimento. Nisto como em tudo. Preferiam os barqueiros ir á vela, nós a remos. Não tinhamos a distracção da manobra — o cam biar do panno, o procurar o vento, o regular o leme e a escota-—mas por isso iamos mais quietos, vendo tudo melhor e conversando. Em materia de conversar ha os que gostam de falar e os que preferem ouvir. Bulhão Pato é dos primeiros, eu dos segundos. O que eu sei não é novo para mim: o que os outros me dizem pode sel-o. E d'aqui não se segue que eu seja modesto, antes tal- vez se deva concluir que sou curioso. Talento e palavra espontaneos, e sempre em acção, 30 CAÇADAS PORTUGUEZAS o poeta de todos os assumptos tira partido; e elle, que não é um naturalista, um sabio, é -um fino observador da natureza, e na sua conversação o mundo real reforça e concretisa o imaginativo. Assim como os companheiros, variavam os assum- ptos. Se eram artistas, musicos, predominava o ly- rismo — S. Carlos, os tenores, as primas-donas, os maestros ; se nos acompanhava algum político — caso raro, que os politicos atiram a outra caça — era a oratoria tribunicia — José Estevam, Passos Manuel, Rodrigo, Rebello da Silva, Garrett; se iam munda- nos, então bailes, amores e aventuras. Não faltavam assumptos para os quadros, nem ao artista as côres para os pintar. À Uma coisa havia prohibida na nossa sociedade — o silencio. Quando nós, ao largar da Rocha, nos con- servavamos cinco minutos calados, Bulhão Pato pro- testava : — Leva de rumor! — dizia elle, apostrophando co- micamente o nosso mutismo. Parece que morreu aqui alguem! O” Diogo, tu passaste mal a noite ? D. Diogo, d'uma antiga e nobre familia do Alem- tejo, era um dos mais intimos amigos do poeta. Era-o desde a infancia: tinham frequentado juntos o collegio inglez da rua do Quelhas. Nascera na In- dia. Os olhos e os cabellos pretos, os dentes alvis- simos, e a côr bronzeada do rosto, denunciavam nelle o exotismo da procedencia, a influencia do sangue oriental. Excellente rapaz e intellgente, era um magnifico companheiro — d'estes que não se sen- tem, que não pesam. CAÇADAS PORTUGUEZAS 37 Como todos os caçadores que são um pouco ar- tistas, Diogo não desgostava do pittoresco, e tinha, de tempos a tempos, os seus caprichos de toilette. Um dia, depois de ostentar aos nossos olhos de amadores uns lindos ceifões amarellos de pelle de cabra, preparada á cordoveza, debruados de encar- nado, e orlados de phantasiosos florões, abertos so- bre panno da mesma côr — obra-prima d'algum ar- tista andaluz — para completar o effeito tirou da sacca um barrete vermelho, um fez, com uma longa e for- nida borla preta, e pol-o na cabeça, ageitando-o ar- tisticamente. Diogo não era bonito, mas aqui a côr salvava o desenho. Um “esplendido modêlo para um Fortuny! A pa- leta completa — uma orgia de côres! Vermelho, preto, encarnado, amarello, estrellantes, illuminados pelos raios do sol nascente, e destacando sobre o fundo glauco do mar! O que faltou foi o pintor. Chegou a vez do cigarro, e a bolsa do tabaco e o fuzil de Diogo tambem eram elegantemente histo- riados. Depois de o accender, elle relanceou os olhos ale- gres sobre nós, acabando pelos pôr em Bulhão Pato. No olhar de Diogo havia uma provocação à ga- lhofa, na sua bôca brincava um sorriso gaiato. Então Pato, que estivera a olhar para elle, desde a imprevista apparição do barrete vermelho, disse- lhe, com uma grande seriedade: — Estás bonito, estás. Pareces o bey de Tunis! O effeito foi fulminante, e a gargalhada geral. O proprio Diogo ria como um perdido. 38 CAÇADAS PORTUGUEZAS O ataque não ficou, porém, sem réplica. Cruza- dos os ferros, houve alguns coups de bouton bem executados, bons ataques e boas respostas, proprias de dois jogadores que se conheciam, que se estima- vam e que se respeitavam. Um assalto de chistes para a risota. Travado sobre a superficie das aguas, participou da natureza d'ellas — os golpes não eram sanguino- lentos, mas eram salgados... E por isso lá ficaram no salso argento. E nós ainda a rir, um barco a passar perto, e um dos filhos do Lourenço a gritar-lhe: — Ai, minha perna, sr. doutor! Os varinos acudiram á resposta, na linguagém que lhes é peculiar, e que, se é propria, não é correcta. Elles usam de bragas — mas não é na lingua. As nossas baterias voltaram-se então para elles, e quando, já longe, não os podiamos ouvir, ainda os viamos gesticular. .. Era uma diversão aquella quasi obrigada, entre os frequentadores do rio. As gaivotas vinham, às vezes, reconhecer-nos de tão perto, que, apesar de não cultivarmos este ge- nero de sport, se ellas se contassem à ida, haviam de achar alguma de menos. Isto, porém, era raro. Patos tambem, se passa- vam ao alcance, eram saudados, mas de ordinario alteavam, ao ver-nos, e apesar do que se costuma dizer, não lhes chegava o chumbo — não caiam. Um dia foi que o lever de rideau — o prologo — esteve quasi a ser a tragedia. A espingarda de Bu- lhão Pato — era a de Eybar — deixara-a elle ficar em CAGADAS PORTUGUEZAS 39 Alemquer, onde fôra caçar, e Cabral, que de lá a trou- xera, mandoulh'a na vespera. Cabral = um grande e experimentado caçador -- era tudo quanto ha de mais cuidadoso; podia-se-lhe chamar, sem trocadilho, o rei das cautelas. Mas uma vez todos erram, € quando Bulhão Pato, que tinha o costume de dar um fogacho à espingarda, antes de principiar a an- rar, O fez sem a menor desconfiança, porque nenhum dos pistons trazia fulminante, dum dos canos saiu incendiada a polvora sólta, mas o outro disparou um tiro a valer! Encarámo-nos todos... Estavamos fe- lizmente illesos. O que nos valeu foi o ter elle, tambem prudente, disparado, como usava sempre, por cima da borda. — Hein! disse o poeta -— de que nós escapúmos! Mestre Cabral d'esta vez esqueceu-se! E foi este, em tantos annos, o unico accidente, que teve assomos de gravidade. E o mar, nessas travessias? perguntará o leitor, curioso d'estes pormenores. Como ao outono se segue o inverno, algumas fi- zemos em que o catraio do patrão Lourenço dan- çava um tanto sobre as aguas... Um dia, que nós tinhamos escolhido para dar uma saltada ao Juncal, amanheceu-nos carregado o céu, asperrimo o sudoeste, promettendo agua... de inun- 40 CAÇADAS PORTUGUEZAS dar um Sahara!... A resolução estava tomada, e nós fomos por terra a Belem. Lourenço, que não nos viera buscar, por ver a feia catadura do tempo, levou-nos ao caes, e ahi, com os braços abertos e as mãos espalmadas, mostrando-nos as ondas verde-es- curas, crespas, picadas pelo vento, franjadas de es- puma, e o mar deserto, disse-nos: — Os senhores bem vêem... Nem um pau ao cimo d'agua! E accrescentou, para reforçar — Os outros senhores que aqui tambem costumam vir, fo- ram-se para casa... — Então você, Lourenço, não nos quer levar... Tem medo? perguntou Bulhão Pato, olhando depois para mim. — Eu não, senhor. Medo não tenho, mas é que os senhores ficam enxovalhados. Leval-os, levo-os eu. Agora enxutos... Por isso é que eu não res- pondo. E o intrepido algarvio — elle era de Ferragudo — chamou, com o mesmo rosto sereno, os filhos, e sal. támos todos para o barco. Armada a vela, que o vento logo enfunou, partimos. Atravessámos, com a borda quasi sempre rente da agua, e, uma ou duas vezes, eu senti fugir o banco debaixo de mim... Já está morto um dos nossos companheiros d'en- tão, que em taes casos se sentava logo em baixo, nos paneiros. Praticos do rio, habituados a viver nelle, os nos- sos homens conheciam-n-o como os seus dedos; as correntes da agua e do vento viam-n-as tam bem que, nesta manobra de virar de bordo, debaixo do vento, CAÇADAS PORTUGUEZAS 41 o catraio obedecia como um fino corcel, quasi sem parar na carreira, com tal certeza era feita, tão ajus- tados se concertavam os movimentos do que ia ao leme com o que cambiava o panno! lamos fazer o ultimo bordo, mais perto da terra, e que era o mais serio. — Agora! disse o velho Lourenço, com os olhos na vela, ao filho, que ia em pé junto do mastro. O catraio, que estava a tocar no vento, parou um ins- tante, atravessando; a vela cambiou e elle seguiu. Mas, nesses momentos, quem vae no barco e não é do mar, é que lhe sente o balanço... Conforme elle dissera, chegámos a salvo, se não enxutos. Ainda assim a aspersão foi levissima, se attendermos ao que promettiam o céu, e o mar!... Bulhão Pato teve muitas mais occasiões de affron- tar a torva catadura do Padre Tejo, e depois, ao largo, as temerosas iras do Oceano. Mas, como tanto se pode morrer afogado aqui como lá, sente-se um grande prazer, quando, roçando pelo perigo, lhe es- capamos... pela tangente. b) dE 285 E MEET A mi na A dir sec CARTA id os O Juncal da Trafaria QUELLA charneca do Juncal, descoberta, erma e agreste, onde, no verão, dardeja o sol impla- cavel, e no inverno sopra o sudoeste, ouvin- do-se ao longe o rolar das ondas, é uma paizagem profundamente triste, mas que não deixa de ter en- cantos. A solidão do deserto está alli, fronteira e contraposta ao bulicio da cidade! Um areal enorme, cortado de pequenos médãos, coberto d'uma alta, espessa, e hirta vegetação de juncos verde-negros, entresachados de raras moitas de joina. Arvores... apenas algumas figueiras na horta do Miranda, à beira do rio! Isto: e uns can- teiros de morangos, eram os unicos signaes da vida vegetativa, naquelle chão arido e inhospito! A vinha, que elle alli plantara, agonisava, rasteira, enfesada e rachitica. A gente pouca, pallida, anémica, dizimada de con- 44 CAÇADAS PORTUGUEZAS tinuo pelas febres. As aguas do inverno, estagnadas em charcos, tornados paúes, fermentando-as o sol ardente da canicula, evolavam de si miasmas mor- taes, que o vento não varria, e que não poupavam nem as creanças, nem os adultos. Em dias de sol, com o ar parado, aquelle ermo descampado é uma amostra da paizagem africana ! Ao fundo, para o lado do Oceano, as cabanas de colmo dos pescadores, baixas e negras, e perto d'el- las a capellinha branca; defronte o cemiterio, com os cyprestes esguios, baloucando — como nós — en- tre a vida e a morte; á esquerda o Monte — arida rocha a pique, com o seu aspecto de fortaleza; à direita a praia e o mar... Nada mais triste! Um dia, em que lá fiquei, ou- vindo, ao sol posto, o toque das Ave-Marias, deu em mim tal melancolia, que desatei a chorar! Não era ameno o sitio, tampouco o foi, em tempos, a fama-dos seus moradores. — Anda fugido na Costa — era uma phrase cor- rente na bôca do povo, quando se falava de algum criminoso façanhudo, que desapparecera de Lisboa. Transposto o Tejo, ladrões e assassinos all se acoitavam e escondiam nas companhas dos barcos de pesca. Assim escapavam no mar aos quadrilhei- ros de Lisboa, quando lá iam perseguil-os. Uma vi- CAÇADAS PORTUGUEZAS 45 sita da justiça á Costa-— quando a policia estava longe de ser o que é hoje — era uma expedição arris- cada, e quasi sempre inutil. A civilisação já lá chegou, e, se não mudou a na- tureza, mudaram os costumes. Ainda assim não po- demos dizer que reina alli sempre uma paz octa- viana. Um dia, logo depois de saírem de lá os nossos amigos, um homem, chamado Damião, foi esfa- queado. A casa da sr.* Maria do Adrião—o nosso hotel — era respeitada, e nós, saindo de lá, não faziamos detença na povoação. Os pescadores, pobre gente, quando ha peixe an- dam na sua faina; quando elle falta vêem-se á porta das choças, ou na praia, olhando, tristes e sombrios, para o mar alto. E' d'alli que lhes vem a ventura e a desgraça. Aquella vida, que para nós tem uma grande poesia, traz-lhes sempre deante dos olhos duas sombras negras — a fome em terra, quando es- casseta o peixe, e a morte, quando os surprehende o vendaval! Serios e concentrados, mantinham um discreto silencio, quando appareciam onde nós estavamos. Com os rostos semi-occultos, os gabões caidos em largas pregas, tinham um quer que de sombras, mo- vendo-se lentamente naquelle funebre scenario. A nota alegre, unica, mas esta vivissima, eram as creanças. Essas, sim, que vinham sempre visitar- nos. Nós, para elles, eramos a novidade — com os nossos trajos, armas, e perdigueiros. Elles — o bando buliçoso, saltão e gárrulo — corriam para nós, cheios 46 CAÇADAS PORTUGUEZAS de pittoresco e de vida. Uns de gabóesitos pardos, outros de camisolas riscadas, brancas, azues, verme- lhas; alguns semi-nús, mostrando pelos rasgões do fato a pelle trigueira, com os seus tons fulvos ; todos descalços; os cabellos, pretos, loiros, arruivados, crespos e revoltos; queimados os rostinhos pelo sol, e crestados pelo nordeste. . Algum, mais atrevido, colleava, lenta e sorratei- ramente, até á casa do jantar; os outros miravam- nos de longe por entre as portas, com os olhos vi vos, esperando a saída. Poderia a vista satisfazer- lhes a curiosidade, mas nós, a este prazer, puramente optico, ajuntavamos alguma coisa mais tangivel. Os primeiros a receber os nossos dons eram os mais velhos, os que nos tinham prestado algum ser- viço, que elles, no acto, não se esqueciam de alle- gar. A esta distribuição seguia-se outra, que era geral. Atiravamos para o monte. Tinha que ver então! O bando precipitava-se, ávido e furioso, sobre as mealhas esparsas na arêa. Era uma confusão vivissima de corpos ás rebatinhas, de cabecitas resfolegantes e afogueadas, de mãos aduncas, luctando, qual de baixo, qual de cima, pela posse do metal. Aqui e alli, d'entre a revôlta mole, erguiam-se alguns, cheios de alegria e de poeira, mostrando orgulhosos o premio da lucta. E ella re- petia-se, se um olho mais agudo descobria no chão algum cobre, que aos outros escapara. Depois os vencedores dispersavam. Alguns, raros, paravam nos limites da povoação, levando as mãos aos barretes; outros iam-se logo. retouçando, aos CAÇADAS PORTUGUEZAS 17 pulos, pelo areal. Mas alguns ainda nos acompanha- vam. Não era o amor, nem a gratidão... Não tinham apanhado nada, e vinham lastiman- do-se, até que alguma alma, impaciente ou apiedada, repartia com elles os ultimos miudos. Um vintem para cinco, dez réis para tres... Contas difficeis de fazer, mas que elles lá resolviam com a sua ari- thmetica de pequeninos. Eram os premios de consolação. Com titulos bastantes para ser procurado pelos mestres da venatoria, não os tinha eguaes este sitio para ser frequentado por senhoras. Quem alli as levava, não era a fama das amenidades do logar, eramos nós, os caçadores, auxiliados por um certo estimulo artistico, o da curiosidade do contraste — ver a povoação dos pescadores, com as suas casas de colmo, armadas sobre os barcos! Um trecho da Africa, á vista, e a dois passos de Lisboa! Das classes populares tambem alguns alli iam fa- zer as suas agapes campestres. Mas essas, não ra- ro, tinham um epilogo comico, quando não tragico. Vinho quasi sempre, e, ás vezes, sangue. Casas de cal e arêa havia lá então duas ou tres. Na parede exterior d'uma d'ellas lia-se uma inscrip- ção, em grossas lettras d'almagre, commemorando que a modesta vivenda fôra honrada, tal dia, por 48 CAÇADAS PORTUGUEZAS um rei nosso. Se bem me recordo, foi D. João VI. E tambem me mostraram o tinteiro de faiança na- cional, pintalgado de amarello, vermelho e verde — tons crus — de que elle se serviu para escrever ou assignar não me lembro o que. Este sertão, inhospito para gente civilisada, foi, durante muitos annos, talvez pelo seu estado de natureza primitiva, um paraiso para os caçadores! Um completo mattagal, alto, denso, e espinhoso. In- vernos havia, porém, abençoados, em que parecia ter-se alli aberto a arca de Noé! A caça de arriba- ção em bandos! Eram abibes, tarambolas, narcejas, patos, maçaricos reaes, gallinhas d'agua, borrelhos, toirões, codornizes, e depois lebres, e até gallnho- las e perdizes, que desciam do monte —tudo com o seu acompanhamento de aves carniceiras, corvos, grifos e milhafres ! Quando Bulhão Pato começou a frequental-o com os seus amigos, ainda o Juncal era isto. Hoje lem- bra o locus ubi Troja fu... Aqui foi o Juncal!... Catado de norte a sul, de leste a oeste, dizem-me que não deita de si quatro codornizes! Não vou lá, ha talvez quinze annos, e no ultimo | dia as minhas perdigueiras levantaram apenas duas ! Ephémeros todos os paraisos! Até os dos caça- dores ! qa É Rg o a o DT DORER RA ERPERDER ALHO CEPE ELO CEGO gr II CUDC DEM CRU AMAM EMA EA LO ponte o O) Y J “Und TOS DO TAS Tod TOS Uma caçada no Juncal A Emilio Achilles Monteverde AQUELLE dia, ao romper da manhã — uma ma- nhã de novembro, fresca e luminosa — abicava “ao caes do Aterro, fronteiro á Rocha, toda a esquadrilha do patrão Lourenço —tres bellos ca- traios, governados por elle, pelo seu filho mais velho, João — um rapagão desembaraçado, e por outro ar- raes, alto e membrudo como um athleta, e que hoje é mestre d'um dos vapores de Cacilhas. Mocos e velhos, eram todos maritimos ás direitas, e naquelles barquinhos iam elles á pesca, e por lá andavam, sem medo e á ventura, fóra da barra! Quantas vezes, para não faltarem á sua palavra, elles nos vinham buscar alli, tendo perdido a noite no mar! E isto percebiamol-o nós pelo arranjo do barco, denunciante do servico da noite. Da bôca não lhes saiu nunca uma palavra, que podesse ser 4 50 CAÇADAS PORTUGUEZAS tomada como um encarecimento interessado, um ap- pello á nossa generosidade! João Lourenço já vinha com elles de Belem, tra- zendo as suas melhores espadas — o Tluers, a Norma, o Tibau, e outros. Acompanhavam-n-o o Eusebio, e o Joaquim Tavares, da Junqueira, como elle creado da Casa Real, boa espingarda e sizudo companheiro. Um excellente rapaz. lam senhoras tambem comnosco, mas, se eu es- crevesse em estylo classico, não poderia dizer que nós formavamos o cortejo de Diana, a caçadora. Nem a sr.* D. Maria da Piedade, a irmã do illustre poeta, nem as outras senhoras, suas amigas, tinham a minima pretenção a sportsyomen. A maré era boa, e aproámos ao Torrão, evitando o fadigoso transito pelo areal. Bem auspiciado o dia. Encontrámos logo as co- dornizes á beira mar, no principio do matto. Cru- zavam-se os rastros, como de costume, mas os cães, praticos do terreno e conhecedores da caça, logo destrinçaram a meada. D'ahi a pouco estavam todos parados à mostra do que ia na frente. Formoso e singular espectaculo! Impressiona a todos este repentino estacar dos perdigueiros. A passo, a trote, a galope, que vam, ao sentirem a caça proxima, ficam de improviso immoveis, na po- CAÇADAS PORTUGUEZAS JI sição em que ella os surprehendeu! Apenas um quasi imperceptivel tremor denuncia nelles a vida. Os nossos — eram sete ou oito--pareciam fundi- dos! Todos firmes em diversas attitudes, conforme o seu estylo de cacar. Norma, na frente, de cabeça alta e dominadora, apontava a caça; ao lado della o Thiers, marcando de mais longe, inclinava-se para o lado d'onde lhe vinham os effluvios; o Tibau, um cão preto como azeviche, arrastara-se como um re- ptil até ao centro do grupo, estacando subito! Os “outros, mais affastados, vinham correndo e parando por sympathia, por influencia, e iam assim com- pondo e completando o maravilhoso quadro! Intei- riçados, alguns com o pello arripiado, não moviam um musculo ! Como eu registro aqui impressões antigas, direi que na minha vida de caçador nunca mais tornei a ver coisa assim. Um grupo como este jámais artista algum o compoz. Diversos os animaes na pelagem, no desenho, na estatura, alguns d'elles—o Thiers, a Norma, a Joia — eram verdadeiras estampas: a mesma variedade tinham nas attitudes elegantes. As senhoras, surprehendidas e encantadas pela belleza da scena, approximaram-se, e todos nós for- mámos um arco, tendo no centro os cães parados. Na ponta esquerda estava Bulhão Pato. A' sua voz Norma deu a pancada. Em vão —a codorniz tinha-se furtado. Então os perdigueiros romperam a mostra, e par- tiram de novo em todas as direcções, em busca da 52 CAÇADAS PORTUGUEZAS caça, que lhes fugira. Não tardaram em achal-a, e eil-os outra vez estacados. Norma mantinha a dian- teira—a codorniz tinha-a ella apontada. E como já não havia defeza, porque estava no limite do matto, ella pôz-se nas azas. O vôo, estridulo no arrancar, denunciava um ma- cho. Naquella estação, naquelles logares as codor- nizes encontram abundante e succulento pasto nas. myríadas de pequeninos caracoes, que cobrem litte- ralmente as joinas. All se preparam para a grande travessia da sua emigração para a Africa. Aquella, como não havia vento, voava baixo, mas distanciava-se rapidamente. Ouviu-se um tiro. A co- dorniz caíu. A pontaria certeira foi de Bulhão Pato — pensará o leitor, que vae seguindo, e ás vezes anticipando, os factos... Não foi, e devia ser. Era o mais velho, o mais graduado — era o cabeça, o chefe. Mas entre nós havia um que, por ser o mais novo, o menos experimentado, se esqueceu de tudo isso, e, enthusiasmado com os lances d'aquelle jogo, não se conteve... A codorniz caiu redonda, mas eu — que fui o tal atirador — tambem caí logo em mim, e vi que, apesar da pontaria certeira, havia errado! Aqui fica o meu — Peccari... Pato, confiado em si, tinha-a deixado alargar. Não viu d'onde partira o tiro, e perguntou de quem fôra. — Fui eu. — Está bem. Bom tiro. Deixa-a vêr — disse elle. — Está gorda. Mas aqui ha mais. Vamos devagar. CAÇADAS PORTUGUEZAS >> Effectivamente as paradas repetiram-se, e d'ahi a pouco dez codornizes tinham alli encontrado sua fim. Escusado é dizer que foram quasi todas mortas por elle, que era de todos nós a melhor espingarda. Coitadas, como o seu destino era atravessar um estreito, passaram por um — mas não foi o de Gi- braltar. O sol ia apertando. As senhoras deixaram-nos, e tomaram, com as creadas, o caminho da Costa. A” nossa esquerda tinhamos, em frente, a vinha do Miranda, bom abrigo para a caça, e, à direita, descobria-se a praia fronteira ao mar; mas no limite della, á beira do matto, appareciam-nos, aqui e alli, alguns lagos, que as chuvas do outono tinham for- mado. A agua era tão limpida, que se lhe via o fundo; apenas algumas moitas de juncos lhe som- breavam a superficie, que reflectia as raras nuvem- zinhas brancas, que pairavam quietas no ar. Aquelles lagos eram tentadores. Se elles tivessem narcejas... — Vou-me aos lagos — disse eu ao meu amigo. Está-me sorrindo a idéa de lá encontrar certas se- nhoras... — Pois vae. Eu não vou, não me quero agora mo- lhar. Tu não te importas com isso. Talvez lá este- jam algumas. Eu cá vou andando para a tapadinha. Eu fui, e ellas lá estavam. Não eram aos centos, 4 CAÇADAS PORTUGUEZAS ainda assim encontrei as bastantes para errar uma duzia de tiros. Mas não errei todas. Não sei o que as narcejas teem commigo; o que é certo é que eu — que em theoria, a frio, prefiro as perdizes e as gallinholas — quando defronto com ellas, nos terrenos alagadicos, que são os seus predilectos, perco a cabeca, e não ha lamas, nem aguas, nem lodos de marnotas, que me impeçam de as fuzilar! Será a difficuldade do tiro? Talvez. E é provavel que seja, porque é a caça que mais se erra. Entrar naquelles lagos era o mesmo que entrar em um tanque. A agua estava tão fria, e em alguns era tão alta, que tive de sair dum rapidamente: sentia já um começo de tontura. O que não me im- pediu de me metter logo em outro, e de andar assim mais duma hora, a entrar e sair da agua, debaixo d'um sol ardente, e num sitio tão sezonatico. Mas parece que eu andava então á guarda de Deus! Nem sezões, nem nada! As narcejas tinham já desapparecido deante de mim nos lagos, e a fuzilaria continuava a ouvir-se para as bandas da tapadinha. Encaminhei-me para lá. Boa caçada. Pato estava radiante —as codornizes saltavam-lhe das joinas aos pares! E elle já se firmava com ellas, por causa da brisa que se levantara, e tam- CAÇADAS PORTUGUEZAS 55 bem por causa dos cartuchos. Contava-as a ellas, e já os contava a elles, que iam rareando no cinto. — Então a tapadinha rende — disse-lhe eu. Merece o nome que lhe pozeste. — E” como vês. Tudo isto está cheio d'elias. Mas tu tambem achaste narcejas. — Trago aqui cinco, mas ficaram-me lá muitas. Estão um pouco asperas. — Olha os cães, Zacharias. Palavras não eram ditas e tres codornizes a sal- tarem. Estavam espertas, não esperavam. Bastava que os cães as apontassem. Tres tiros. Pato dobrou a duas, e eu matei a ter- ceira. — Dá cá, Thers. Olha, estão magnificas. E, di- zendo isto, passava-me á mão um esplendido macho. negro e de peito redondo. Todas assim tou elle. E' a sazão da partida. João Lourenço approximara-se com os seus com- panheiros. Estendemo-nos em ordem, e a fuzilaria continuou nutrida. Parecia o tiroteio d'uma linha de atiradores! Cruzavam-se, por vezes, os tiros, porque a caça, espalhada pelo Juncal, ia-se levantando deante de nós em toda a extensão da linha. Os nossos impro- visados mocos de monte —rapazitos do sitio, que sempre se nos aggregavam — ficavam-se atraz, a descançar nas raras sombras dos médãos, e Pato já ia repartindo comigo os despojos, que lhe começa- vam a pesar na rede. A brisa da manhã cessara, mas as nuvemzinhas accrescen- 56 CAÇADAS PORTUGUEZAS brancas quebravam, de quando em quando, o ardor do sol, que nos principiava a morder. Só as melgas nos perseguiam, obrigando-nos a fazer dos lenços guarda-nucas. — Aqui ha rastro d'uma lebre, sr. Pato — disse o João Lourenço, que ia atravessando um claro da areia. E lá vae ella! — gritou elle. Vae ao longo do médão! Ahi á sua direita! Com effeito ella ia-se furtando por entre as joinas e os juncos, aos saltos. Estava perto de nós. — Deixa-a endireitar a carreira — disse Pato. Era a primeira, que eu alh via. — Agora. É atirou-lhe. A lebre, ao tire, deu um salto, e atravessou, cor tando pelo Juncal. Ia ferida, e os cães, que a tinham visto, seguiram-n-a, e não tardou que a agarrassem. Estava crivada de chumbo. — Agora vae um cigarro. E vamos ás narcejas, emquanto o sol não aperta mais. Eu não entro na agua — apesar do nome — mas Vocês não fazem ce- remonias, e sacodem-m'as para fóra. Quando chegámos já lá estavam outra vez as re- gachas, como lhes chamam na provincia, e princi- piaram a espirrar d'entre os juncositos, que borda- vam os lagos. O tiroteio redobrou então de intensidade, porque ellas—ha pouco batidas por mim — andavam levan- tadas, e saltavam umas atraz das outras, á roda de nós, cruzando-se no ar em todas as direcções. A esta especie são dois os momentos em que se lhe pode atirar — quando levantam, e então é um CAÇADAS PORTUGUEZAS 57 tiro de chofre, ou quando, depois de fazerem os seus zigzagues, ellas acertam o vôo. O mais seguro é chofral-as—o que, em todo o caso, é um tiro de acaso — porque não ha tempo para apontar. Depois é quasi sempre tarde; ao endireitar vam saindo do alcance. Quem não é pratico, enthusiasma-se, dá muitos tiros, e não mata nenhuma. Foi o que me succe- deu nas primeiras vezes. O commum dos caçadores não gosta d'ellas por isso, mas os outros capricham em emendar a mão, e voltam. E ha tal que as pre- fere a tudo. O illustre poeta já então era optimo atirador. Eu admirava-o, quando o via dobrar os tiros, e tambem ingenuamente me admirava, quando via cair alguma daquellas bicudas, que eu mal entrevira, ao desfe- char. Para arredondar a conta das narcejas apparece- ram dois marrequinhos. Feliz a nossa visita à região dos lagos. Curtas as tardes do inverno. O sol descia rapida- mente sobre o horisonte, e as nossas sombras prin- cipiavam a alongar-se no chão. Era tempo de nos approximarmos da Costa. Iamos subindo pelo Juncal, quando a minha cadel- la— a Joia — que acabava de me apontar com grande SA! a) CAÇADAS PORTUGUEZAS frieza uma codorniz, deu uma fiada rapida, e logo outra, formando um angulo recto com a primeira, e ficou-se como uma rocha... Uma narceja perdida alli, e que apenas saltou caíu. E logo em seguida uma codorniz. Finissima perdigueira — cacada pelo Manuel Can- dido, da Charneca, ás narcejas, ás lebres, ás galli- nholas e ás perdizes— a primeira vez que a levei ao Juncal, vendo os outros cães accesos no rastro das codornizes, não fazia caso nenhum d'ellas; e parava a olhar para mim, como admirada, expro- brando-me talvez o eu tel-a arrancado aos seus frondosos pinhaes da Amora e de Corroios, para levantar passarinhos naquelle areal! Depois habi- tuou-se, não deixava escapar uma — mas era só por cumprir. Até chegarmos ao fim do Juncal, ás Cabanas, a caca não cessou de saltar. Ahi tivemos uma scena— armada de improviso, que se apresentou desde logo com torvo aspecto. Ao longo do caminho sobranceiro, que atravessa, no alto do Juncal, para as cabanas dos pescadores, havia uma nesga de chão, que o trabalho pertinaz do honíem tentara transformar em horta. Em cima, á beira do tal caminho, um poço explicava, e, até certo ponto, justificava aquella pretenção. Couves de talo rijo, esgrouviadas, e meio seccas, era apenas o que all se via! A' esquerda, em terreno mais alto, duas chocas de colmo dominavam esta horticultura, pobre, triste, e agreste, como toda a região d'aquella costa. O couval Tod Ro mo o CAÇADAS PORTUGUEZAS 50 não tinha sebes, que o defendessem, e por ahi costu- mavamos nós passar, à ida e á volta. A plantação era rara, e podiamos. transitar sem prejuizo. A invasão das codornizes chegara, naquelle dia, até lá, e quando Bulhão Pato, indo na nossa frente, a certa distancia, entrou na horta, os cães deram logo signal de algumas. Seguia-os elle, attento, quando à porta duma das choças assomou um ho- mem, que lhe falou grosseiramente, çomecando por um: — Ponha-se lá fóra! que soou muito mal aos ou- vidos do poeta. O dialogo travou-se assim rudemente, mas nós, eu e o Joaquim, que estavamos um pouco longe, não percebemos nem estas palavras, nem as que se lhe seguiram, e só conhecemos a gravidade da si- tuação, quando vimos Bulhão Pato, com gestos de ameaça, pôr a espingarda no chão, e avançar para o rustico. Apressámos então o passo, tanto mais que o homem, recuando, entrara bruscamente em casa. As primeiras palavras do dialogo não as ouvi, mas ouvi as ultimas — as do poeta. .. Não eram academicas, não, não as posso aqui repetir; mas, num crescendo formidavel de violencia e de injuria, foram subindo até terminarem no mais agudo dos insultos — agudo no sentido e na palavra — repetida tres vezes, a fechar a tremenda apostrophe! A mais eloquente de certo, que jámais trovejara naquelles campos. O homem podia voltar, mas não voltou. Temeu-se elle do cacador, cuja voz mascula tinha as impetuo- sas e dominadoras vibrações da colera, e que avan- do CAÇADAS PORTUGUEZAS cava para elle com os punhos cerrados — ou estaria lá alguem, que o segurou ? Quando nós, seguindo o mesmo trilho de Bulhão Pato, atravessámos a horta e depois, trepando pela rampa, passámos em frente da palhota, olhámos para lá. No escuro da porta não havia ninguem. Voltara o silencio áquelles logares. A nuvem ne- gra, que de repente surgiu, a turvar-nos a limpida atmosphera d'aquelle formoso dia, desapparecera, varrida pela voz do poeta. D'allh a pouco estavamos todos reunidos na casa de jantar da sr.: Maria do Adrião. Ao lado, na sala, de paredes estucadas, e tecto com relevos — uma surpresa para nós aquella restauração — a menina Cazimira extrahia das gavetas das suas bellas com- modas de polimento, e mostrava ingenuamente às senhoras, as riquezas e os primores da sua guarda- roupa — chales, vestidos de côres garridas, saias com rendas finas, camisas bordadas, lencos de seda de ramagens, que tão bem ficam, e tanto realce dam áquelles rostos campesinos, já illuminados de tons quentes pelo ar do campo e pelo sol. Uma figura gothica — esta menina Cazimira. Alta e Eles de corpo, nem pallida, nem córada, a voz d'um timbre algo dorido, avara de palavras, os olhos sempre postos no chão, e um não sei que de triste O oo CAÇADAS PORTUGUEZAS 61 e enigmatico, davam-me a impressão de quem não anda satisfeito cá na terra... Estas figuras, quando teem uma plastica indivi- dual, e caracteristica, por apagada que seja nellas a expressão da vida, são, como as estatuas, sugges- tivas. Imprimem-se indeleveis na memoria, e entram na galeria do nosso mundo interior. E' com estas imagens, cujos contornos o tempo vae esbatendo, que os artistas e os poetas compõem os seus qua- dros, os seus romances, e os seus poemas. Aquella donzella, serena e silenciosa, recortava-se alli, aos meus olhos — destacando do discorde sce- nario, e parecia ter saído d'algum velho painel fla- mengo, de Van Eyck ou de Memling — interior de cathedral gothica, ou comitiva castellã, em caçada fi- dalga, com pagens, lebreus e falcões. A's Ave-Marias vinhamos nós nos barcos, já de volta, aconchegados nas mantas, fumando e conver- sando. Nos paneiros os cães, enroscados, dormiam. Ouviam-se, rio acima, as sinetas de bórdo, e, para o norte, o tiro de peca da torre de Belem annuncia- va, com o seu ruidoso pregão, o pôr do sol —um sol poente de outono, illuminando e doirando os aereos castellos das nuvens, tão cambiantes, diaphanos, e fugitivos, como os da minha phantasia, naquelles aureos tempos da mocidade!... A DA e a E = * cd +, 4 ai = psd ES SRA Ad py MOTO No Cejo uanDo chegámos a Belem vinha rompendo a manhã. O mar estava sereno, o ceu azul fer- rete e limpo de nuvens; apenas uma brisa ligeira da terra encrespava a agua, que corria ra- pida na vasante, mostrando aqui e alli grandes man- chas escuras, junto ás duas margens, e em volta dos navios d'alto bórdo, surtos em frente do Lazareto. O sol, erguendo-se detraz d'umas nuvens diapha- nas. nacaradas, e com uns tons alaranjados no cen- tro, parecia affastar brandamente as faixas em que tinha jazido, e com toda a natureza acordar tambem para o trabalho, para a vida. As gaivotas, com os seus gritos estridulos, cruza- vam-se no ar, e desenhavam as suas graciosas cur- vas, ora subindo, ora descendo, a adejar, poisadas nas aguas quietas, mergulhando nos sitios onde a babugem lhes attrahia os olhos penetrantes e gu- losos. 64 CAÇADAS PORTUGUEZAS Já se ouvia o rumor da terra, que principiava a despertar. No rio o toque das sinetas, o virar dos cabrestantes, as cornetas a bórdo, a voz arrastada dos catraeiros, o som compassado dos remos, os apitos dos vapores, tudo mostrava que a faina do mar começava a par da labutação na terra. O frio da manhã entorpecera-me o corpo. Levan- tei-me, passei da pôpa para a prôa, aspirei a plenos pulmões a brisa do norte, saudei como um oriental o sol nascente, aconcheguei melhor o gabão, accendi um charuto, e sentei-me outra vez, e puz-me a olhar para tudo o que me cercava, neste vago scismar que sempre provoca em nós a contemplação dos grandes espectaculos da natureza. A” direita erguiam-se as rochas negras e escalya- das da Outra Banda; á esquerda as terras e colli- nas avermelhadas do norte; a cidade prolongando-se para o fundo, estendida em amphitheatro. Aqui e alli illuminavam-se as vidraças das torres e dos mi- rantes, as grimpas dos corucheus e campanarios, a frontaria da Ajuda, a torre das Necessidades, a cupola da Estrella: os primeiros fulgores do sol nas- cente iam accendendo nas alturas, como fachos de almenaras, focos deslumbrantes de luz faiscante e vivissima, que pareciam incendios, despedindo os seus reflexos irisados, fulvos e vermelhos como chammas. Ao centro, e enchendo o valle profun- dissimo que jaz entre as duas montanhas, o rio largo e tranquillo, recortando-se nas grandes curvas das margens, aqui pardacento e espelhado, além em plena luz; beijando mollemente a terra com o leve CAÇADAS PORTUGUEZAS 05 e fresco rumor das suas aguas, como um timido amante, que: murmurasse o seu affecto á mulher amada; deixando depois na praia as suas perolas vivas e espumosas, irisadas pelo sol, que parecia beijal-as tambem; embalando os barquinhos ele- gantes e os grandes navios; e indo depois por um lado lancar-se no mar, e pelo outro abrir, acima da cidade, a larga e admiravel bahia de Santa Apo- lonia ! O mar inspira os poetas, por que tem a grandeza e a solidão. Quem, no meio da vasta extensão das aguas, não sente o espirito levantado, e impellido irresistivelmente para a contemplação interior d'ou- tros mundos, d'outras épocas, d'outras sociedades, d outras civilisações? Isola-se a alma de tudo que a cerca, eleva-se, e paira nas regiões da historia. Neste logar em que estamos, quantas gerações passaram! Quantos homens illustres viram estes mesmos rochedos, aquellas mesmas torres, que agora contemplamos, nós, que passaremos tambem como elles! Sobre as aguas do mar quantas tragedias sangui- nolentas, quantas batalhas famosas, decidiram da sorte dos povos e dos reis! Aqui—diz o viajante -—-é Salamina, e julga ouvir o som das espadas e das lanças nos escudos gregos, acompanhando os hymnos frementes da victoria! Aqui é Actium, e as- E! 06 [CAÇADAS PORTUGUEZAS siste à fuga de Cleopatra, à deshonra de Marco An- tonio! Aqui é Lepanto, e vê as espadas hespanho- las e italianas tinctas no sângue dos orgulhosos Os- manlis, destrocados e mettidos a pique! Aqui é Tra- falgar, uma das feridas sempre abertas no flanco do moderno Prometheu! Aqui é Navarino, e vê surgir a Grecia livre ! E nós? Não foi d'aqui mesmo que levantaram ferro as naus de Vasco da Gama? E todas as da Africa, da America, e da India? Oh! os mares e os rios tambem teem a sua historia, e a historia do Tejo anda ligada à nossa, no assombroso periodo da sua grandeza ! Foi já moda, entre certos espiritos, fazer mofa do grande, do esplendido rio. Sem idéas, e até sem grammatica, alguns disseram mal d'elle, mas o Pa- -dre Tejo é generoso, esquece a injuria, lava-a na sua corrente, e tambem os lustra a elles, quando, pur acaso o procuram! Ora foi exactamente neste ponto de lavagens que estava a gente do nosso barco, quando eu acordei “das minhas divagações. A tripulação andava já na Jabuta diurna. Lourenço — o arraes — enxugava com um” panno os bancos, molhados pelo orvalho da noite, em- quanto o filho mais velho lavava com o lambaz.o exterior do bote. CAÇADAS PORTUGUEZAS 67 — "Temos um lindo dia, patrão. — Parece-lhe, Lourenço? Olhe que o tempo tem feito assim umas caretas. — Pois sim, senhor — mas hoje, graças a Deus, ha-de ter um bom dia. Veja o sol como vem. José '— gritou elle para o fundo do barco — leva arriba. De cima dos paneiros, d'entre as dobras d'um co- bertor, saiu um murmurio somnolento, remecheu-se um vulto, e depois surgiu uma cabecinha — um pe- querrucho, a esfregar os olhos, e, com a voz ainda entaramelada, disse : — Pae, já é dia? » -— Se é! O sol já vae alto. Anda, que temos que fazer, e não se ganha a vida a dormir. — Então hoje, pelo que vejo, foi noite de pesca, Lourenço ? | -— Sim, senhor, quando voltámos da barra havia de ser mais da uma. — E o pequeno tambem foi ?! '— Tudo quanto aqui está de lá veiu. O peque- «. + Isso não me larga já! Filho de peixe pucha para o mar. — Quantos filhos tem você : — Tres rapazes:e uma menina. — E sustenta-os todos ? — Os dois botes, .com a graça de Deus, dam para tudo, meu senhor. | O pequeno levantou-se, veiu pedir a benção ao pae, estirou os bracinhos como para sacudir os res- tos do somno, e, debruçando-se na borda do bote, metteu as mãos na agua, que lhe subiu até aos coto- 08 CAÇADAS. PORTUGUEZAS velos. com a força da corrente, e lavou a cara. De- pois foi á prôa, e ajoelhando, voltado para o sol nascente, resou. Percebi-o, quando elle se ben- zeu. Novo para mim, e inesperado, aquelle pequenino episodio, fiquei-me a scismar naquella. saudação oriental — aquelle dialogo de duas auroras. . Terminada a resa voltou e sentou-se no fundo do bote, a calcar os sapatos para ir a terra. — João — disse o arraes para o filho mais vel leva esse comtigo, e a mãe, que te dê o gabão. Talvez seja preciso, lá para a tarde — completou elle, e, olhando para mim: — O senhor ha-de querer o seu café, mas tenha paciencia de esperar um nadi- nha, porque o raio do fogareiro apagou-se, e agora vamos accendel-o outra vez. — Está fresquinho. Vae uma golada, Lourenço ? — Isto não é nada, já passa: é a aragem da ma- nhã. Obrigado, patrão. Esta é de Paraty. — E de Paraty no Brazil, mas aqui é para nós. — O senhor sempre está com a caninha na agua. Lourenco — o Lourenco da Pinha — era então o nosso barqueiro. Bulhão Pato, José Galache, Lopes Cabral, D. Diogo Botelho, Emilio Monteverde, quasi todos os caçadores de Belem, não queriam outro para as suas excursões ao sul. Trigueiro, robusto, curado pela brisa aspera do Tejo, apezar dos cincoenta já passados, fazia gosto velo encarar o mar e o vento, governar o barco e mandar a companha. E ninguem a tinha melhor: eram os seus filhos. CAÇADAS PORTUGUEZAS Og Quantas vezes, durante as nossas travessias, eu me surprehendi a observar aquelle homem, aquelles ra- pazes — alheios a tudo — falando só na sua vida, sem invejas, e sem ambições! Em terra o lar aconche- “gado, all á beira do rio; no mar os barcos — tinham dois —e as redes: nisto se cifrava o seu passado, o seu presente e o seu futuro. Deus, o mar, e a fa- milia, eis os pontos cardeaes do mundo d'aquelles ho- mens verdadeiramente simples — no bom sentido da palavra—e como hoje só se encontram, naquelle estado de pureza, na gente do mar e do campo. Aquelles espiritos, sinceros e crentes, eram vir- gens de todas as duvidas, de todas as negações do mundo moderno, e representavam aos meus olhos o povo de outras eras. Demoraram-se:na estrada da civilisação, chegaram mais tarde, e achavam-se no meio d'uma sociedade, formada de elementos para elles desconhecidos. Entre estes trabalhadores isolados — scismadores forçados pela sua vida, ora embalados no dorso das ondas, ora sacudidos pelo vento, e não raro afiron- tando a morte—e os operarios das cidades, sem edu- cação moral, e muitas vezes pervertidos pelas leitu- ras, onde elles procuram o recreio e a instrucção, e encontram o veneno dos odios, das ambições vãs, e das illusões de tanto visionario— ha um abysmo! Um espirito, cego e rebelde, que influe as gerações 70 CAÇADAS PORTUGUEZAS actuaes, orgulhosas pela sciencia, e desmoralisadas pela politica, e lhes dá o valor para insultarem todas as jerárchias e divindades, e, como o Ajax antigo, aifrontarem o céu, de punho cerrado, não pode mo- rar no peito d estes homens, porque, quando o vento levanta o oceano, lhe erriça as ondas, e o faz bra- mar como um leão enfurecido, elles sentem-se pe- quenos deante de tamanha grandeza!... ses (oia visou a 0d info top o elo ln o pro dê w ou no nn» oa dio 6) pib ab pane Ouviu-se o toque da sineta na ponte dos vapores. Era a realidade do mundo exterior a despertar-me outra vez das minhas meditações. Logo depois, no caes, a voz do João Lourenço, os latidos dos cães, c as saudações amigas dos companheiros, que vi- nham ao nosso encontro. A brisa refrescara um pouco. Armou-se a vela, arrumou-se a gente toda a uma banda, e o catraio do Lourenço largou e seguiu veloz, arfando, e cor- tando a agua, que aljofarava a prôa com a sua es- puma irisada e brilhante. Lourenço conseguira, finalmente, aquecer-nos o café: baptizamol-o com algumas gottas d'um cognac alambreado e finissimo, e brindámos alegremente ao ignoto, ao futuro ! O' mocidade! Approximavamo-nos do sul: aquella travessia com vento norte faz-se depressa. A Trafaria já rumore- E A CAÇADAS PORTUGUEZAS 72 java: OS rapazes e os cães retouçavam na praia. Tambem lá estava um amigo á nossa espera. Emilio Monteverde, rodeado de montes de peixes varios, dava as ultimas ordens, como general experi- mentado, e nós fomos recebidos com todas as honras do estylo e com uma saborosissima caldeirada, feita all, ao ar livre, e regada com um vinho branco ex- cepcional. A melhor caldeirada e o melhor vinho branco de que hei conservado memoria. Isto foi ha muitos annos. Que saudades desse tempo! Lembram-me, neste momento, aquelles sen- tidos versos da Introduccão do Fausto, de Gecthe, que o Garrett cita nas Viagens na minha terra: Resurgis outra vez, vagas figuras, Vacillantes imagens, que á turbada Vista acudieis d'antes... Trazeis-me a imagem de ditosos dias, E d'ahi se ergue muita sombra amada!... E lá, ao longe, perdidas nas brumas do espaço e do tempo, entrevejo agulhas de cyprestes... A ES Pa OA Pe iza e pras à. pod SE a qu ! ÁS E ay Y RD AD LA RD Do RD RD RD Do RD RD Do RS EM TITIM TIRO TINA ANUO PRIEC RCA FARA TUR TERES AO RR POA ERR RE RR OR ERR RR RD UR TR RR ER TR O TT | AL Pam À puto —(0—rê Uma partida de mestres ERDIZ ferida, com os pés desembaraçados, em terreno que a ajude a defender-se, quasi sem- pre dá agua pela barba a cães e cacadores. E ás vezes ella fica lá, e então o bigode é completo! Isto é velho, e todos temos casos d'estes para con- tar. Agora fazer uma codorniz o mesmo, ter as mes- mas habilidades!... é mais raro. Andando eu a caçar no Juncal, uma destas se- nhoras deu, deante de mim, sota e az ao Fadista, o melhor cão que eu conheci para codornizes naquelle sitio, então um campo unico de exame e provas publicas para bons narizes de perdigueiros: Pois era um mestre na arte de cobrar o ferido, o que se chama um tira-teimas, tanto nisso como em as levantar. Aponto o logar das suas proezas, e quem-o frequen- tou, ha vinte annos, fará idéa das ventas do animal. e, sobretudo, da sua pertinacia no atague ! 74 CAÇADAS PORTUGUEZAS Tira-teimas é que elle se devia chamar, é o que lhe assentava bem, porque de fadista é que elle não tinha nada. Com efeito nada, no seu physico, Jem- brava o exterior d'este typo original das nossas ci- dades. Ade mais um porco, do que um perdi- gueiro a e feio — absolutamente feio — rustico, grosseiro, sem um atomo de distincção. A pellagem castanha escura, longa, crespa e hirsuta; atarracado e baixo de pernas; a cabeca de um goso; os olhos pequenos, sumidos e humildes; as orelhas com a fle- xibilidade d'uma sola, e a cauda grossa e curta, com um longo pincel de pellos na extremidade: eis o in- volucro exterior! Mais um caso do feio de corpo, e bonito de... nariz. Genealogia ? Não lhe era conhecida. Não havia em todo o reino de Portugal e Algarve kennel-book aris- tocrata, burguez ou vilão, que lhe tivesse registrado a ascendencia: era um engeitado, um filho das ervas.: Mas D Alembert tambem o foi, e nem por isso o fi- lho de Madame de: Tencin deixou de ser um grande. sabio e fundador da Encyclopedia!... O nosso he- roe, não podendo ser um grande sabio, resignou-se com à sua sorte, e foi um grande... cão de codor- nizes! Vadio — tudo o que ha de mais bohemio, fazia elle uma ou duas apparições por dia em casa de Bulhão Pato, e à noite pedia hospitalidade a D. Diogo, que vaidosamente se intitulava seu dono. Ahi, em ves- pera de cacada, vigiavam-n-o cuidadosamente, para que, à hora da partida, elle estivesse presente à cha- Elo CAÇADAS PORTUGUEZAS 75 mada. Na comitiva ia sempre atraz de todos. Pare- cia ter a consciencia de ser um fraca-roupa, e então deixava aos outros os primeiros logares. Cabeçudo até mais não, no campo tambem se ficava para traz, a duzentos metros de nós, levan- tando e perseguindo as codornizes, dando-lhes, por sua conta, levantes sobre levantes ! E, por mais que o chamassemos, não havia apitos, que lhe abrandas- sem a furia — carregava-as a galope! E depois destas correrias voltava finalmente, e vinha rebolando-se pelo matto, até que, chegando mais perto de nós, lembrando-se da sua desobedien- cia, com medo do castigo, principiava a retardar a andadura. .. Percebendo que estava perdoado, ani- mava-se então, deitava-nos um olhar entre agrade- cido e desconfiado, e passava, muito de largo, sara- coteando-se, para a nossa frente. Um grande ratão este animal. Não conheci outro d'aquelle feitio. O dia—um dia de inverno, com o ceu nublado — ja já no entardecer, e nós retiravamo-nos em direcção á praia, para atravessarmos para o norte. Desagradavel a brisa, que nos vinha do mar. O Fo- dista, ao passar por umas moitas de joina, fez um reparo, e nós demorámos um pouco o passo. Mas como tinhamos pressa, e a nossa caçada estava feita, seguimos avante. Elle, porém, ficou. 70 CAÇADAS PORTUGUEZAS — A scena do costume! — disse Bulhão Pato. Fa- dista! Volta aqui! O cão ouviu, levantou a cabeça, olhou para nós, e... continuou na sua faina. Repetiram-se as chamadas em todos os tons agu- dos, e elle aos pulos, zigzagueando furioso por entre as joinas, não arredava pé de lá! Já ladrava! — Algum ouriço... lembrava um. — Uma cobra... dizia outro. — "Tudo isso pode ser, mas nós nem o deixamos cá, nem havemos de ficar aqui, à espera que lhe passe a phantasia — e dizendo isto encaminhei-me para as joinas. Não saltava nada, e o Fadista amarrava-se, des- amarrava-se, rodeava e cruzava as moitas, ladrando, e atirando-se para cima d'ellas... Parecia doido! Eu principiava a estar muito intrigado com aquella scena, cujo desenlace me apparecia um pouco nebu- loso, e já falava tambem ao cão, e já apostrophava o mysterioso, O esquivo animal, que tanto se escon- dia! O que estava alli, que se furtava constantemente, e que o cão, por vezes, parecia vêr? Umas poucas o deixei lá sósinho, a contas com aquella incoguita, e outras tantas, dados alguns passos, voltei atraz, partilhando já d'aquella especie de fascinação, que a elle o prendia all!... Finalmente, depois de muitos cercos, voltas, ré- viravoltas e saltos, o Fadista deu uma pancada ao centro d'um macisso de joinas, e saiu de lá com uma codorniz na bôca! Triumphara a sua pertinacia. CAÇADAS PORTUGUEZAS E? A codorniz, extenuada da lucta, agachou-se, € elle, que a viu, abocou-a. Estava ferida -daza— é claro. Quem fôra? Ne- nhuns outros caçadores, além de nós, andaram lá naquelle dia, e nós de manhã, encontrando alli caça. tinhamos-lhe atirado. Aquella codorniz, com que acabava de se illustrar mais uma vez o nosso cão, era alguma das que chumbámos, e que alli se conservou á espera d'a- quelle maurais quart d'heure, que foi o ultimo capi- tulo das suas peregrinações. O Fadista ganhara a partida. pa E Coelho por lebre A Jose Augusto Galache EBAIXO dos pés se levantam os coeihos e, ás vezes, ao mesmo tempo, os trabalhos. Este - Caso “que vou: contar, não foi, mas ia sendo serio. Era numerosa naquelle dia — um doming “cohorte dos caçadores, que nos aprazaramos para o Juncal. Muitos, e de diversas procedencias — o que, se é bom para a variedade, é mau para a ordem. Não cram os meus companheiros habituaes, com- tudo, como fossem todos conhecidos e bons rapazes, correu ás mil maravilhas a caçada. Havia muitas “codornizes; e todos estavam contentes. Tiveramos bom vento. á ida, e a tarde parecia amena para a volta. . Um bello dia de caça, emtim. Explorado o Juncal.fomos subindo, e achavamo- nos defronte das Cabanas da Costa, quando deante “de nós se levantou um animal, que partiu aos sal- “tos, por entre o matto, mais raro naquelle sitio. * 80 CAÇADAS PORTUGUEZAS — Uma lebre! Uma lebre! — gritou X, o meu companheiro da direita. — Uma lebre ! repetiram em toda a linha. — É' um coelho — disse eu ao amigo X. Não lhe atires — porque tens de pagal-o. — E” lebre — respondeu elle, e avançou rapida- mente, na direcção que elle levara. X era bacharel, e não desmentia a fama de que gosam os seus patrícios: — era muito teimoso, e le- vava muito tempo a descer da burrinha — como se costuma dizer. E como naquella occasião, não havia o tempo necessario, elle não desceu, atirou à lebre, e matou um coelho! Um bicho enorme, e o que havia de mais manso! Legitimo filho da coelheira, nascido e creado alli com as couves e as alfaces da horta. Quando X voltava com o innocente roedor sus- penso da mão, acariciando-o com um ar guloso, mas não glorioso, disse-lhe eu: — Então para isso foste tu a Coimbra formar-te em direito ! Para não respeitares a propriedade alheia! Até a tua espingarda está de bôca aberta! Que tal a lebre? Elle —mettia dó. Que comprimento de naviz! Santo Deus! Parecia ter morto alguem. — Calla-te, Zacharias, estou deshonrado ! E então deante d'esta gente, que eu não conheco, e que me vae pôr pelas ruas da amargura !... Não tens ahi uma lebre, que me passes ? — Para quê? Estás tonto! Aqui de cada vez não apparece senão uma... Vamos andando. Mette o CAÇADAS PORTUGUEZAS BI coelho na saca, e diz-se-lhes que foi lebre. Dentro da rede poderá passar.. Estava, porém, decidido-que o incidente não fi- casse por alli. D'umas choças à nossa esquerda, saiu uma mulheraça, gordânchuda, e detraz d'ella, a pou- cos passos, dois homens, novos, reforçados, triguei- ros e barbados, dirigindo-se todos para nós. Em frente e do lado das Cabanas, como era domingo, havia tâmbem espectadores, encostados às sebes. A matrona era a dona do coelho. O rosto cole- rico, e o ar assomado. '— Então' os senhores veem aqui matar a creação da gente?! vociferou ella n'um falsete, que não cor- a pondia ao agigantado da estatura. * Surprehendido com o coelho na mão, X travou um dialogo animadissimo com a velha matrona, que não mé pareceu logo de facil composição. Naquelle pleito o reu corria o risco de não salvar as suas pro- sapias de caçador. Fôra apanhado em flagrante. — Qtial creação, tiasinha'? replicou elle.. “— O meu coelho, esse que o senhor tem ahi na mão — disse ella com o gesto accusador e a voz irada. — Coelho ! A uma lebre é que eu atirei. — Ora vejam! — observou um dos do povo — ati- rou a -uma lebre, e matou um coelho ! X insistia em que era lebre. A parte queixosa cor- traditava, acerrima, que era coelho... 82 CAÇADAS PORTUGUEZAS Finalmente o doutor, forçado nos ultimos. entrin- cheiramentos, declarou terminantemente que não ti- nha obrigação de distinguir lebres de coelhos d'aquelle tamanho, a quarenta metros de distancia ! A sessão protrahia-se, e podia, d'um instante para o outro, tornar-se tumultuosa. Um conflicto alli seria caso gravissimo. Eramos muitos — talvez dez —e todos armados com espingar- “das de dois canos, de carregar pela culatra. Como eu todos tinham abundantes munições; eu, á mi- nha parte, no cihto e na bolsa, costumava levar setenta cartuchos, alguns embalados. Abatidos os que disparara, ainda me restariam cincoenta. E a maior - parte -des'-miéus companheiros não: eram ho- mens de voltar' as costas... Mas tinhamos o rio na retaguarda e haviamos de embarcar deante do ini- migo, e pelo flanco esquerdo teriamos contra nós a gente da Trafaria... Era um desastre certo, e não poderiamos voltar lá mais. Uma sensaboria enorme. Naquella situação uma palavra imprudente podia precipitar os acontecimentos. X mantivera-se até “al teimoso, mas correcto. Um dos outros é que principiou a altercar com os homens, e como as pa- lavras — diz o povo — são como as cerejas, o dialogo já se ia azedando. Era tempo de intervir na pendencia. Como eu:sei,' e nunca me esqueco, que estes casos, quando se CAÇADAS PORTUGUEZAS 83 lhes acode a tempo, se resolvem com boas manei- ras, acompanhadas por um sujeito, que gosa de grande prestigio, e que até, antigamente, tinha entre nós por divisa — In hocsigno vinces—eu sai do grupo, e, conservando a espingarda atravessada na mão es- querda — minha posição habitual — avancei para a queixosa, que estava vermelha como um pimentão, e, ao passo que mettia a mão na algibeira do meu co- lete, disse-lhe, com 'o tom mais sereno e amavel de que podia dispor naquelle momento : — Antes de tudo — faz-me favor — diz-me como se chama ? — Margarida, uma sua creada. O tom da voz com que ella me respondeu já era outro. As attenções todas concentraram-se em nós. — Pois bem, sr.? Margarida, nós não viemos aqui para lhe fazer mal a vocemecê, nem a ninguem. Basta olhar para nós, e para as armas que trazemos nas mãos, para se ver que não somos furta-gallinhas, nem coelhos. Eu venho aqui ha muitos annos. — Eu tambem não digo isso, nem V. S.º é pes- soa que acompanhasse... | Estava, como se costuma dizer, salva a situação. A senhora Margarida parecia já disposta a parla- mentar. — Ora então — continuei — já se vê que houve aqui um engano, que não tem remedio. O coelho era seu, mas a senhora deixava-o ahi á solta pelo matto; e por isso não admira que acontecesse o que acon- teceu. S4 CAÇADAS PORTUGUEZAS Nesta altura do dialogo tinham-se aproximado de mim uns pequenos, e um d'elles dizia : — Elle andava Ea ahi fugido, ha mais de quinze dias. x — E' verdade, segundou o, outro — e tambem ha mais de vinte. Ella nem-já sabia delle. Eu não lhe dava nem uma de X. Chamava-lhe um figo, ó Zé. — Agora, sr.2 Margarida, como nós não havemos de ficar aqui parados — continuei eu, que não per- dera as palavras dos rapazitos, vamos a falar serio : quer o coelho ou dinheiro ?. “— Ora essa! Leve V. S.2 o coelho —e que lhe faça muito bom proveito. Os pequenos continuavam os seus“apartes. -- — O" tia Margarida, você 'fez negocio. Tinha já perdido o animal, e agora compram-lh'o! — Deixa-me — resmungou ella sacudidamente. — Quanto vale o bicho? diga lá. a — O que o senhor quizer dar. — Não me serve essa resposta. Diga quanto quer. — Nada, não, senhor. (O) que V. S.a disser está bem dito. : PR — Então fica bem pago por doze vintens ? — Sim, senhor. Muito obrigada. Depois de lh'os dar, ainda insisti para que ella fi- casse com o coelho. Era grande generosidade da nossa parte, mas, ao. mesmo tempo, era boa poli- tica. EE A tia Margarida recusou-se, porém, a acceital-o. Os olhos Ao toda aquella gente, ha pouco amea- cadores, seguiam agora, serenos como os de simples . e h ' Ena ne mi pr Raio Meda na oa a nana a (ENANANANANANANANANANOS Dia) FRISO SANTISTA SUR SINTRA ca) Esposas siga 6% Aos patos Em Val de Zebro ESSA noite —a de 28 de novembro de 186. — que noite, e que frio! — nenhum de nós fal- tou ao praso dado, que era a meia-laranja do Terreiro do Paço. Receberamos o santo e a senha de Lopes Cabral — o chefe da expedição — e alli nos achámos todos, ás tres horas da manhã, com armas, cães e baga- gens. aa Eramos muitos, e tantos que o Lourenço —o nosso barqueiro, que o leitor já conhece — trouxera dois botes catraios magnificos, costumados com elle a af- frontar o mar da barra. ' Feita a chamada — presentes todos — os botes atra- caram ao caes, e procedemos ao embarque com as cautelas que exigiam o escorregadio do lagedo, as botas pregadas, os cães: buliçosos, que se nos em- 88" "CAÇADAS PORTUGUEZA Dm ame ão e DO baraçavam nas É perniã e-asondulação ora “trazia, ora «afiastâva «95. bárcos:: Dt a A noite estava eseuirascomo brêu: À comparação tem a côr local, e é verdádeira: quasi que não nos viamos uns aos outros ! Arrumadas as bagagens e os cães, e distribui- dos os logares, armaram-se as velas, e largámos, aproando ao sul. Pouco antes de nós partirmos ti- nham caído uns ligeiros borrtfos, mas o ceu limpara, e só viamos, na amplidão immensa, as estrellas scin- tillar vivissimas. Um de nós, notando o extraordinario brilho das constellações, disse: ” — Lavaram a cara com a agua da chuva. O dito foi festejado e pôz-nos logo de bom humor. E a apresentação: dos interessantes caçadores ? Ahi vae. sie h Bulhão Pato. José Jacintho Lopes Cabral de Medeiros; Se dê Villa Franca do Campo —um mestre na arte daçaça, perfeito em toda a especie de tiro, e milagroso. no das narcejas. — Il signore Cosselli, marido da prima-donna Car- lota Malcusão: grande amador de pintura e, de, ca- cadas —um cavalheiro magro, pallido, physionomia distincta, elegantemente vestido. 4a o Magia ça a delicadeza que este fosse o primeiro apresentado, visto ser extrangeiro — por isso peço desculpa da minha falta. .. 1 Dr. José d'Avellar — medico pela. escola de Lie boa — intelligencia e figura elevadas, e um dos mais Tem 4 Ma E fa E O: To8 Ro, ti o O RR 5 ES is E E nO. SG DM CAÇADAS PORTUGUEZAS o() formosos typos.de homem.; — olhos pretos, rosto oval e moreno, emmoldurado por uma bella barba preta assetinada, que dava à sua physionomia um aspe- cto oriental, sereno e magestoso, como o d'um filho do Propheta. Carlos e Jayme Bramão — este alto, forte e sym- pathico moço e agradabilisssmo companheiro, e o outro, Carlos, baixo, reforçado, rosto franco e ale- gre, muito estimado e distincto no mundo musical. Estes tres, no segundo bote, são o João Lourenço, o Eusebio, um excellente homem e uma boa espin- garda, e o Joaquim Tavares, da Junqueira, todos já nossos conhecidos. Resto eu — e al não digo: Quando chegámos a meio rio a corrente da maré vasante era rapida; a nortada, secca e rija, bojava as velas, e. mettia-nos a borda na agua. A noite, apesar do escuro da lua, não podia ser mais bella, naquella estição, mas, o frio tambem não podia ser maior — penetrava-nos até aos. ossos! | É — Vamos ao café, rapazes? disse Cabral. — O Lourenço, será possivel fazer; lume? —— rima a ver, meu senhor. Pts E Lourenco desencantoou da casinha, do cão, com pasmo nosso, um fogareiro, e carvão, e carqueja, e uma cafeteira cheia de café, e chicaras, e tudo 1010) CAÇADAS PORTUGUEZAS . Um esplendor! Lopes Cabral. não se esquecera de coisa alguma, segundo o seu costume. Mas era preciso contar com o mar: uma volta do barco voltou tambem o fogareiro, que se partiu! — Maldição ! clamámos nós, como um côro de tragedia antiga. A providencia, porém, velava ainda sobre nós. O principe mandara comprar dois fogareiros, e a ope- ração proseguiu, a despeito das iras do Tejo ! Dentro do catraio o nosso aspecto era immensa- mente pittoresco, quando as labaredas da carqueja lançaram sobre nós os seus clarões, vermelhos e in- termittentes. O norte a uns dera tons violaceos, a outros au- gmentara a nativa pallidez. Os gabões, as mantas lis- tradas e os vistosos cobrejões, variavam de aspecto com os effeitos da luz, vaga e incerta. As cabeças dos cães, friorentos, surgiam aqui e alli, tentando approximar-se do lume bemfazejo, e nós com os de- dos entorpecidos procuravamos, nas vastas algibeiras dos nossos casacos de caça, a cigarreira amiga. O Tejo, naquellas paragens e em noites escuras, toma umas proporções grandiosas e imponentes: — parece um mar! Os olhos, circumvagando, não en- contravam senão as luzes da illuminação de Lisboa, que se reflectiam na agua em longas fitas tremulas: — o-resto eram trevas. CAÇADAS PORTUGUEZAS 91 — Mais, c'est une mer! disse Cosselli. Cosselli viajara, e cruzara muitas vezes os lagos da Suissa. O Tejo de dia parecer-lhe-hia um d'elles, mas o vento soprava com violencia, a vasante dava de lado-no costado do barco, e inclipava-o demais, ás vezes, descobrindo-lhe a quilha na prôa; e, digamos a verdade, os passeios no lago de Como são menos perigosos do que .aquella travessia, debaixo da nor- tada rija, passando pelas bailadeiras de Cacilhas, já tantas vezes fataes aos caçadores... - Aos rebates do frio, que o apertava, acudiu o Co- gnac, que rechacou o inimigo. Carlos Bramão, esse jazia sentado no fundo do bote; e ahi se lamuriava tristemente — elle — um bravo! | Era profundamente lúgubre no mar o nosso amigo, tão jovial em terra. Acocorado sobre os paneiros, percorria de extremo a extremo a escala das apos- trophes com a mesma agilidade com que tocava a chromatica no piano, e ora se entregava a todos os santos, ora nos mandava. a todos-os diabos ! | — Valha-me Nossa Senhora! — dizia elle, com voz lastimosa e sumida, quando o barco dava algum solavanco maior. — Calla-te, mocho, não agoires a caçada! — res- pondia-lhe Bulhão Pato. — Os diabos te levem para as profundas ! —repli- cava o maestro, embrulhado numa grande pelle de tigre. E assim continuava o tiroteio entre os dois, e Bramão — o nosso bom Bramão — ia resando umas 92 CAÇADAS PORTUGUEZAS am an Adas picarescas, que nos faziam estalar de riso ! a Finalmente surgiu o café fumegante nas mãos do Lourenço, que tomara aos nossos olhos proporções épicas, e magicas, desde que saíra victorioso da sua lucta com as ondas revôltas do velho rio, appare- cendo-nos com aquelle liquido maravilhoso, que va- ha para nós, naquellas alturas, mais do que todos os elixires de longa vida dos velhos alchimistas ! E rompeu um. côro de .acclamações — tremulas de frio -— mas ardentes, enthusiasticas e convencidas — um côro em voz baixa-— como a gente ás vezes os: ouve: em S.-Carlos,. sem .a attenuante das tres horas da madrugada, no meio do Tejo! | E' porque o café era superior — Moka legitimo. Lopes: Cabral, primoroso nestas cojsas, achou um, café soberbo - digno. dum pachá de tres caudas — phrase que na bôca d'elle representava o cumulo do fausto e da riqueza! | Sobre o café appareceu um — V 1eUx Cognac — fine Champagne — conhecido dos frequentadores do antigo Hotel. Europe, e que tinha encanecido, na longa ociosidade de muitos annos. O Cognac da boa madame Radegonde ! x Iamo-nos chegando á terra. Entráramos no esteiro. de Val de Zebro. A | | — Quantas horas são? perguntou José d Avellar. CAÇADAS PORTUGUEZAS 9 — Está a romper o dia — respondeu um dos bar- «queiros. > — Ainda não — replicou outro. Estavamos a accender um phosphoro para ver quantas horas eram, quando, de repente e sobre as nossas cabeças, uma pequena nuvem branca prin- cipiou a tingir-se com a mais bella côr de laranja, que vi em vida minha! Um deslumbramento! Ficámos todos extaticos a olhar para ella, e Cos- selli, que era artista, correu á prôa, agarrou-se ao mastro, e alli esteve preso d'aquelle formosissimo espectaculo, em quanto elle durou. '— Bello! bello! — repetia elle, extasiado. Era bello e era singular! Toda a athmosphera ainda em trevas, e só aquella nuvem com o deslum- brante colorido, forte no centro e esbatido 'suave- mente nas orlas — reflectindo-se mais fraco na agua dormente! Que delicioso e arrebatador quadro, se fosse possivel reproduzil-o, como alli o viamos! Voltámos lá muitas vezes, mas nunca mais assis- timios a uma alvorada como aquella! Foi decerto um espectaculo semelhante que inspirou a poesia da velha Grecia, quando ella creou a radiosa figura da Aurora, abrindo, com os dedos rosados, as portas doiradas do oriente! = Attenção — disse Cabral em voz baixa. Olhem ahi-—e apontou com a espingarda para a nossa Pentes e 1 “Baixando os olhos na direcção indicada, e affir- mando-nos, vimos, sobre a agua! tranquilla e ainda mo escuro, uma larga mancha, mais espessa e carre- 94 CAÇADAS PORTUGUEZAS gada, e, continuando a olhar, lobrigámos dois vultos elevando-se sobre a mancha. Uma enorme bandada de patos. Os dois vultos. eram as sentinellas. Estavamos sobre elles. Rompia a manhã. — Cia á ré! — mandou o Lourenço. E de vagar... Os catraios recuaram. Estando muito chegados aos patos, o chumbo embalado pouco destroço faria nelles. A um signal de Lopes Cabral fizemos fogo. Os. patos levantaram, mas no ar ainda os alcançou a se- gunda descarga, e d'uma e outra ficaram muitos na agua, mortos uns, outros feridos, e forcejando por se escapar. Este segundo acto — o de recolher a caça estro- peada — é muito mais animado do que o primeiro : os barcos seguem-n-a, e os cães, saltando à agua, travam com os palmipedes uma lucta de velocidade com peripecias, que a tornam dramatica. Os marre- cos defendem a vida... E então, se as margens estão proximas, e teem juncos, onde elles se furtem aos. cães, ou estes cançcem e desanimem, alguns mancos. por lá ficam, para contarem aos outros da batalha. Levavamos bons cães para a caça d'agua, e por isso foram poucos os que conseguiram livrar-se do captiveiro... e do espeto. CAÇADAS PORTUGUEZAS 9> Saltámos em terra, e d'ahi a pouco estavamos al- moçando numa casinha de Val de Zebro, muito. aceiada e risonha, cuja porta, orlada de trepadeiras, com a sua folhagem verde e as floritas vermelhas, contrastava alegremente com a aridez da paizagem. Almoço que leváramos, é claro, mas a que o lo- cal forneceu um contingente de primeira ordem — as ostras. Ostras do Montijo, que nós alli encontrámos fres- quissimas, e que foram acompanhadas pelo sequito a que tinham legitimo direito — um alambreado Bu- cellas — o Bucellas da quinta das Romeiras — do marquez de Castello Melhor ! Boa caçada, boas ostras, bons vinhos e melhor conversa, ia já o sol bem alto, quando alguem per- guntou, se iriamos executar o segundo numero do nosso programma. — As narcejas ? disse o Cabral. — est un peu tard pour les bécassines — obser- vou Cosselli. — Tambem achamos. E' tarde, e o sol está quente — disseram todos. E ficaram as narcejas para outro dia. “(o O ot RS Eq sa ta EE E “Ds OA WO WA ESA NA NO é vz O 0 [ “0. RA COCONDUÓOO o o. -LLOONO o o LESUONO "0 oo “o ly FCC VANgE EEE RRR RA jo Uma caçada principesca Ao dr. Manuel Bento de Sousa STO, ás vezes, é suggestivo — dizia-me, ha dias, um amigo, a quem estava mostrando as minhas collecções de gravuras. Tinha razão o meu amigo. Uma d'essas gravuras — tirada da Chasse illustrée de 1867 — e que está deante de mim, traz-me viva á lembrança, com to- dos os seus episodios, uma das melhores caçadas que fizemos, e que todavia, por um acaso, é que não se transformou em tragedia para todos os que nella ti- veram parte! Um desenho de Riou, apenas regular. Não é pelo seu merecimento, que eu sinto prazer em a ver, não, não é por isso; é porque, sendo uma pura phan- tasia do artista francez, os quatro caçadores, que nella figuram, são quasi retratos de todos nós — os companheiros e amigos que, um dia, fomos, com / 9º CAÇADAS PORTUGUEZAS outros, atirar às narcejas, nos arrozaes de Val de Ze- bro. Este aqui, no primeiro plano, é Bulhão Pato, visto. de costas. Todo inteiro — como se costuma dizer — um prodigio de semelhança! A sua figura, os seus cabellos longos, apparecendo debaixo d'um chapéu de feltro, de abas largas, exactamente como o que: elle trazia, a sua tunica de belbutina franceza, e as. suas botas altas. Attentando nelle parece que da parte do artista houve a intenção de o retratar, como. se o conhecesse! Aquelle mais afíastado, à esquerda do illustre poeta, e mais alto e encorpado, com a barba toda, dá-me o contorno, o perfil athletico de Lopes Ca- bral. Pernalto e bracilongo, está parado, prompto a fuzilar as narcejas, e a dobrar os tiros, como se atirasse a codornizes! Estou a vel-o com o seu ja- quetão fewille-morte, o chapeu de palha, veterano de cem campanhas, e as altas botas francezas, for- radas de gutta-percha, com que elle se sentia capaz de aftrontar todos os lameiros, e as proprias tor- rentes do diluvio! Além, mais longe, está um com a cabeça muito. de escorço, mas que tem a corporatura do meu amigo Jayme Bramão; e, finalmente, o ultimo, o quarto, que vae atravessando o campo, ao fundo, voltando-se para os companheiros, parece-se com o que eu era então, aos trinta annos. Ao pé de Bulhão Pato, á esquerda, aquelle ele- gante pointer branco, malhado, é a minha cadella — a Joia — nome com que eu, propheticamente, a ba- CAÇADAS PORTUGUEZAS 99 ptisei, e que ella mereceu, sem favor; porque, salvo o respeito devido a todas as espadas, que tenho visto trabalhar no campo e no pinhal, e não tem sido pou- cas, nunca tive, nem vi jamais animal mais fino e bello de fórmas, mais elegante no caçar, mais firme nas mostras, e que melhor trouxesse, intacta e limpa, à mão do caçador, uma codorniz, uma perdiz, ou uma gallinhola. — Caça como uma duqueza! — disse-me um dia um companheiro, enthusiasmado, reparando nas ex- midades longas, e nervosas da minha perdigueira, e no garbo e subtileza com que ella pisava o terreno. Que as duquezas perdoem a comparação ao meu amigo, que tambem era fidalgo. Pobre Joia! Quem me dera voltar aos dias em que caçavamos juntos. ... O leitor, se pertence á grande irmandade de Santo Huberto, desculpa estes sentimentalismos re- trospectivos; e desculpa-os, porque os comprehende. Dos cães, como dos amigos, pode-se dizer que al- guns deixam no nosso espirito uma imagem, uma impressão indelevel, e complexa, porque é sugges- tiva de muitas saudades... Tambem temos lagri- mas para elles, quando os perdemos. A Joia foi o primeiro e o melhor de todos os meus perdigueiros. * * Antes de chegarmos aos terrenos onde iamos ca- car, os nossos barcos atravessaram aquelles mean- 100 CAÇADAS PORTUGUEZAS dros do Tejo, que vam dar a Val de Zebro. A um e outro lado as margens, lodacentas, cobertas d'uma relvazinha verde-escura, encobrem, sob essa appa- rencia innocente, um perigo, ás vezes mortal, para os que se arriscam a pôr-lhe o pé. Um abysmo de lama, um sorvedoiro, donde é quasi impossivel ar- rancar-se, sem auxilio extranho, quem tiver a infe- licidade de nelle cair! la romper a manhã, quando entrámos no esteiro. Contavamos encontrar patos, e não nos enganámos: lá estavam. A meio caminho uma mancha escura, d'onde se destacavam duas sentinellas, de cabeça erguida, de olho à mira, fez-nos engatilhar, silen- ciosa e rapidamente, as espingardas, apesar do frio. que nos inteiriçava os dedos. Ao mesmo tempo so- peavamos com o gesto o João Lourenco, que, pas- sando para a prôa do nosso catraio, se preparava para lhes dar a saudação matinal. Neste momento todos continhamos as respira- ções, encurtavam-se as remadas, para evitar quanto possivel o ruido, e avançavamos, lentamente, sobre a mancha, immovel na superficie da agua. De re- pente o João metteu a arma á cara. — O João, não atire. Por Deus, não atire. .. Ainda estão longe. Elle — um veterano — esquecendo-se de que a prudencia tambem é necessaria aos caçadores, ava- liando mal a distancia, e não podendo resistir ao de- sejo de ser o primeiro a estreiar-se, atirou. O chumbo deu na agua dois ou tres metros para cá, e a ban- dada levantou o vôo, dispersando-se intacta no ar! CAÇADAS PORTUGUEZAS 101 Uma descarga geral, mas precipitada, tirou-lhe muita penna, mas não caiu nem-um! “Tinham a pelle rija, e guardaram a carne para outros caça- dores. E para mais castigo nosso, logo adeante levan- tou-se outra, maior ainda, que alli estava encoberta por uma curva do terreno, e que nos achou já com as armas descarregadas! Naquella madrugada os patos fomos nós ! Á falta de prudencia recorremos á resignação, apellâmos para Santo Huberto e para as narcejas, e seguimos ávante. Os palmipedes libravam-se nas alturas, a cem metros, e pareciam-nos os seus bandos redes trian- gulares de cruzinhas, desdobradas no espaço, e levadas pelo vento... — Um extraviado! — gritou um dos nossos com- panheiros, que ia numa das chatas, que o Manuel da Charneca tinha alli à nossa disposição. Lopes Cabral, que dirigia a caçada, fazia as coisas em- grande, e mandara vir quatro canoas, sem quilha, para andarmos mais livremente naquellas aguas de pouco fundo. Era um pato, que vinha de peito para nós. Ou- viu-se um tiro, e elle volteou de cabeca, e caiu numa das margens lodosas. Ir lá buscal-o, era arriscado. Ainda assim um dos barqueiros, moco e leve, atre- 102 CAÇADAS PORTUGUEZAS veu-se a saltar, mas, a pouco trecho, estava empé- gado até á barriga, e ir avante não se atreve!... — Os cães do Cabral!... disse o que tinha ati- rado, e não queria perder a preza. Alguns protestaram; eu fui um d'elles. Não valia a pena arriscar um animal d'aquelles por causa dum pato, porque, se o cão não podesse livrar-se do lodo, ninguem o ia lá buscar. Cabral, sempre ama- vel para os seus companheiros, a desperto do pe- rigo, mandou saltar àá agua o seu Prompto. O Prompto obedeceu e atirou-se logo ao charco. Era um animal já velho, encanecido no serviço — cobrar o ferido na caça d'agua fôra sempre a sua especialidade — e nisto era de primeira ordem. O animo tinha-o o mesmo, as forças é que lhe es- casseavam, e quando o vimos. desapparecer numa dobra do terreno, ficámos todos com os olhos fixos naquelle ponto, com a respiração suspensa, como se estivesse alli correndo perigo a vida dum ho- mem!... Decorreram uns instantes, que nos pare- ceram horas, até que, finalmente, vimos surgir a cabeça do bravo animal, muito afirontado, com o pato na bôca, parando a cada passo, e fazendo grandes esforços para se desencravar do lodo, em que se enterrava. 7 — Bravo! Bravo! Prompto! gritâmos todos a um tempo. Foi uma festa. Não o abraçámos, porque vinha CAÇADAS PORTUGUEZAS 105 muito sujo — todo elle era lama — mas nesse dia fo- ram para elle os melhores bocados. E foi esta a sua ultima proeza. Estavamos finalmente chegados aos alagamentos, aos arrozaes. Repartiram-se os logares, e principiou a caçada. As narcejas saltavam ás quatro, e ás seis; espir- ravam, por assim dizer, de todos os lados: o tiro- teio tornou-se geral, e às vezes parecia um fogo de filas, bem sustentado. Nunca ouvi tanto tiro, nem vi tantas narcejas no ar! O Prompto não parava, andava n'uma roda viva. — Poz aqui, Prompto — dizia o Cabral, que aca- bava de dobrar os tiros. — Q' Cabral — gritava lá de longe Bulhão Pato — manda cá o Prompto. Está aqui uma, que não se acha. E Prompto cá, e Prompto lá, e todos os cães no arrozal, e as narcejas a saltarem, e a cairem! Era a desforra dos patos. Não andavam só os cães na lama, eu tambem, ao saltar uma aberta, não calculei bem a distancia... E ficámos todos sabendo, que ella não estava posi- tivamente cheia de agua de Colonia. Valeram-me um pouco uns ceifões de pelle de cabra, que enviei logo para as bagagens, para serem desinfectados. Uma peste! 104 CAÇADAS PORTUGUEZAS Nisto um grito, uma exclamação. — Outro pato! O marrequinho passou ao alcance do Bulhão, e elle fel-o descer com um tiro de rei, alto, magnt- fico. — Agora somos dois — disse o poeta, mettendo-o na saca, mas este é mudo e não faz versos. O sol ia subindo: eram horas de almoçar. O nosso pavilhão de caça, naquelles sitios, era a casa da sr.º Luzia. Entre os convivas havia medicos, litteratos, e artis- tas, e entre estes Cosselli. Ninguem faltou ao emprasamento, e à hora mar- cada todos se achavam reunidos na povoação, em frente da modesta venda, ao ar livre, à sombra dum velho palacio em ruinas, d'onde as sezões implaca- veis tinham afugentado para sempre os nobres ha- bitadores. Estavamos nós contemplando uns animaes heral- dicos — uns ursos muito feios — que se ameaçavam atravez dum brazão, que procuravamos decifrar, quando nos appareceu o Manuel da Charneca — ca- cador da Amora — acompanhado d'outro, para nós desconhecido, e que nos chamou desde logo a at- tenção. : Era um homem de trinta annos feitos; robusto, CAÇADAS PORTUGUEZAS 105 trigueiro, côr de azeitona, nariz aquilino, cabello e barba preta e revôlta, olhos escuros, muito redon- dos, com a pupilla a descoberto -- olhos d'animal de rapina. Trajava jaleco e calças de saragoça, com applicações de panno d'outras côres. Physionomia e trajo não eram d'aquelles sitios. Pareceu-me logo um cigano. Era-o effectivamente, e legitimo. Manuel Candido, interrogado por Lopes Cabral sobre a identidade do seu companheiro, affiançou-o. — EÉ' meu compadre, e andamos a caçar juntos ha quinze dias. Não ha de haver novidade, sr. Ca- bral. Fico por eile: esteja o senhor descançado. Cabral, como todos os homens prudentes e pra- ticos, não gostava de andar na companhia de indivi- duos, cujos habitos e prendas elle desconhecia. — Pois bem, seja assim, mas tenha-o você lá comsigo, porque nós cá não o conhecemos. É caminhando para nós, disse-nos, com uma certa visagem e um meneiar de cabeça, que elle tinha, quando as coisas não lhe corriam bem: — Basta de heraldica e de ciganos! Vamos ao al- moço. O oiro é magico — com dinheiro faz-se tudo. O principe transformara a casita pobre e humilde, e improvisara alli uma sala de jantar, como as dos melhores hoteis da capital! O que vimos, ao entrar, não era a fumegante as- 100 CAÇADAS PORTUGUEZAS sorda rustica, nem o bacalhau, pratos apreciados pelos estomagos que trabalham em sete diamantes, como dizia o nosso chorado e chistoso visconde de Benalcanfor — quandó são acompanhados com vinho mouro, tirado de sobre a mãe á nossa vista, e be- bido em altos e largos copos de figura — na phrase pittoresca dos amadores: não, não era esse o espe- ctaculo que se nos defrontava. A's duas mesas reuni- das — nós eramos muitos — cobria-as alvissima e luxuosa toalha, de elegantes e finos desenhos; a bai- xella era ingleza — flores ao centro. Não faltava nada — nem os christofles, nem os cristaes desdiziam do resto — e emquanto a manjares — ostras, mortadella de Milão, fambres, salame, peixe, assados, pasteis, torrão d'Alicante, emfim os mais aprimorados pro- ductos da cosinha do Hotel d'Europe e dos fornos do Baltresqui! E Bordeus, e Bucellas, e Champagne! Um festim do Café Riche ou do CAnglais, num ca- sebre de Coina! O" tempora! O' caçadas! Descrever uma d'estas ágapes ruidosas, hoje, à distancia de tantos annos — é empresa impossivel. Disse-lhes que era superior o elencho d'esta compa- nhia. Figuravam nella artistas de primo cartello, e, para a tornar de primeira ordem bastava-lhe a pre- sença de Bulhão Pato — estrella então na força da vida e na completa efiorescencia do seu brilhante es- pirito, do seu formoso talento, o poeta, de quem outro — Castilho — me dizia, por esse tempo, que de- via andar sempre acompanhado d'um stenographo, que nos conservasse os eloquentes e deslumbrantes CAÇADAS PORTUGUEZAS 107 improvisos, que elle costumava prodigalisar aos seus amigos nas mesas dos cafés, nos hoteis onde jantava, nos saraus, e em toda a parte, emfim, onde elle po- dia fazer ouvir a sua palavra quente e colorida, a sua eloquencia accentuadamente peninsular! E Cas- tilho tinha razão. Quantas d'essas perolas perdidas, esquecidas, formam hoje apenas — na nossa memo- ria — uma especie de nebulosa, quando podiam scin- tillar nos fastos da palavra, refulgir na eloquencia patria, como astros de primeira grandeza! Herculano Machado — um dos nossos convivas — não primava em dotes oratorios, mas possuia um largo repertorio de cantigas francezas —e disse-nos algumas das mais picantes, e em que mais abun- dava a veia mordente, o espirito salgado da raça gauleza. As anecdotas, e as gargalhadas, eram cortadas pelo disparar das rolhas do Champagne Cliquot e do Saint Emilion, e esfervilhavam frescas, como o vinho, que espumava nas taças! Bulhão Pato — um dos dois mais primorosos e dramaticos recitadores que tenho ouvido — o outro era Castilho — Bulhão Pato disse-nos versos da Paguita, e dum pocma anonymo, que infelizmente ficou inedito, e que Her- culano punha entre as obras capitaes do genero fo- lião—e para Cosselli, que não entendia a nossa lingua, recitou em hespanhol alguns dos cantares de Trueba, os que elle tão magistralmente traduziu, que ainda melhores me parecem em portuguez. As narcejas não figuravam no menu do nosso al- moço, mas entraram na conversa. E foi o caso que roS CAÇADAS PORTUGUEZAS alguem se referiu a uma receita infallivel, para as caçar, a pé enxuto! Uns servidores, leves e sem rheu- matismos, nem receio de os virem a ter, entram nos chaboucos, e fazem-n-as levantar. Os amadores hy- drophobos — não confundir com damnados — espe- ram-n-as, occultos, e armados com... binoculos; vêem-n-as poisar, alli perto, a oito ou dez metros, e fuzilam-n-as, no chão, sem misericordia! Uma ca- cada ideal! Era nova em folha: vinha na Chasse dlustrée. Bem dizia o outro, que tudo se encontra nos livros! Foi acclamado com calorosas gargalhadas o en- genhoso e anonymo inventor d'este novo methodo venatorio. Quando ellas serenaram, José d'Avellar — o medico que ha pouco falleceu —e que se con- servara triste e merencorio no meio da geral ale- gria, levantou-se, e apontando para as suas altas e elegantes botas — tambem novas em folha — disse : | — Pois, meus amigos, eu, pela minha parte, não preciso de recorrer a essa invenção, não careco do binoculo: substituo-o, e com vantagem, pelas obras do meu sapateiro. Estas botas, que hoje calcei pela primeira vez. são admiraveis: as outras botas são para andar, estas servem para estar parado, exacta- mente como os taes caçadores! Agora, emquanto a alcance, não são de sete leguas, deitam muito mais longe! Não são botas, são dois telescopios! Com ellas não me escapa nem uma narceja gallega, das mais pequenas ! — Não percebo bem... observou um. CAÇADAS PORTUGUEZAS LOS — E” porque eu com ellas vejo tudo. Se até vejo as estrellas! Calce-as você, e verá! A voz de José d'Avellar era dorida, mas as gar- galhadas retumbaram, estrugiram, por toda a casa. Cabral, que se levantara para dar as suas ordens para o regresso da expedição — appareceu entre por- tas, Já armado, e com tom imperativo, apontan- do-nos para o campo, disse : — Messieurs, ces dames nous attendent. Marchons! O dia estava esplendido. Atravessámos os tabo- leiros dos arrozaes e dirigimo-nos ao pinhal: era quasi certo encontrarmos alli as gallinholas. E' bom variar de caça, e depois tinhamos cães de primeira ordem, espadas para tudo. E com as sympathicas bicudas levantar-se-iam tambem narce- jas, que segundo o costume, se teriam lá refugiado, espantadas pela nossa fuzilaria. Para completar a trindade implumada tambem uma que outra codor- niz saltaria, de improviso, deante dos caçadores. Estava o terreno um pouco encharcado: chovera nos dias antecedentes. Entrados no pinhal os cães deram logo pelo rasto das gallinholas. A minha ca- della, a poucos passos achou uma; mas era uma mestra. Quatro levantes lhe deu, sem eu lhe poder atirar! Não esperava, mas a Joia parecia que a via -poisar, tão certeira lhe acudia á revoada! Primoroso 1iO CAÇADAS PORTUGUEZAS animal! Só quem vê trabalhar assim, deante de si, de cabeça alta, a ventos, um pointer, é que pode avaliar o prazer intenso, dramatico, que sentimos no seguimento d'uma perdiz, ou d'uma gallinhola, como. aquella, que mostrava conhecer todos os recantos do- pinhal, onde tão bem se defendia, e se furtava á nossa vista. Pois se ha bons olhos, eram os meus d'então. Mas afinal sempre veiu para Lisboa, com as suas primas do arrozal. Que ellas, a julgar pelo bico, de- vem ter entre st algum parentesco. Havia gallinholas no pinhal, mas não eram tantas como as narcejas em baixo, nos alagamentos. Vol- tâmos para ellas. Cabral e Bulhão Pato preferiam- n-as: eram dois especialistas e gostavam de fazer torneio. Quando desciamos a encosta, muito lamacenta e escorregadia, como era possivel que algum de nós apalpasse a mãe-terra, e alguma espingarda se dis- parasse, ouviu-se uma voz forte e breve: — Armas no descanço!! lamos todos, em magote, descendo a rampa. A' minha direita, e um pouco atraz — em serra-fila — vinha o cigano; — adeante de mim e um pouco so- bre a esquerda ia Lopes Cabral. De repente ou- viu-se um tiro, que partiu no meio de nós. Cabral, um pouco enfiado, mas com o olhar firme, voltou-se, e perguntou : — O que foi isso? Eu olhara para o cigano, que me seguia. — O cão da espingarda, que me escapou — disse elle, com a voz- sumida. CAÇADAS PORTUGUEZAS DJ A carga passou embalada entre o meu peito e as costas de Lopes Cabral, porque eu ainda vi a posi- ção em que o homem trazia a arma — uma caçadeira de dois canos, curta, polida e brilhante como prata. Posso dizer que tive a morte bem perto. O tiro era fatal. Uma pollegada de mais ou de menos, e um de nós estava morto. E" o caso de dizer que escapá” mos por uma unha negra — que as d'elle não deviam ser muito brancas, e nas suas mãos esteve a nossa vida. Tempos depois vio-o, uma noite, no theatro da Trindade, num baile de mascaras. Se não era elle, era o diabo por elle, como diz o povo. É não tar- dou muito que não fosse preso, e recolhido ao Li- moeiro. Quando o Manuel Candido, nol-o apresen- tou, andava elle fugido ás justiças de Vizeu. Dentro do Limoeiro, para entreter os ocios, parece que tam- bem fez das suas, de forma que, quando lhe deram , passagem para a Africa, devia levar a parte um pouco carregada. A consciencia talvez fosse leve — que a maioria dos criminosos diz-se innocente, e alguns parecem estar effectivamente convencidos de que o são. Quando matam, é porque os offenderam, e quando roubam, é porque precisam. Que Deus os allu- mie, e nos livre d'elles, emquanto a luz da sua Di- vina Graça os não esclarece e guia no caminho da salvação! Manuel Candido já morreu. Quero crer que elle não conhecia bem a vida do seu companheiro. Faço esta honra á sua memoria. 112 CAÇADAS PORTUGUEZAS Apenas pozemos de novo o pé nos arrozaes recome- cou o tiroteio. Ao cigano levantou-se-lhe uma nar- ceja, e elle, como para mostrar que sabia pegar numa espingarda, chofrou-a, e tão de perto o fez, que a esfrangalhou — ficou feita num bolo. Seguiu a caçada, e findou sem mais incidentes. Este passou rapido, e assim como o céu, naquelle dia, não tinha a mais pequena sombra, que lhe ma- culasse o puro azul, não mais nos lembrámos, nem do tiro, nem do desastrado caçador. Eramos muitos, e novos, e portanto alegres. Nas nossas almas havia tambem o azul do firmamento. Um dia cheio. E, graças a Deus, chegamos a Lis- boa todos É intactos. Quando entrávamos, ao cair da noite, no Baltresqui, da rua' dos Capellistas, a descançar e a beber o copo da despedida, entrou tambem um amigo e conhecido de quasi todos os que alli estavam, e, vendo um cesto cheio de caça, perguntou-nos quantos dias tinha durado a festa. — Fomos hoje de madrugada — respondeu Bulhão Pato. — Então, sim, senhor. Boa caçada — boa de lei! Quantas narcejas ? — Cincoenta e cinco — além do mais — patos, gal- linholas, e codornizes. — A minhacaça é maior, mas, quando estou feliz, o mais que dou é um tiro. CAÇADAS PORTUGUEZAS ER Era José Maria de Carvalho Costa, grande amigo do celebre Mira—o general dos caçadores do Alem- tejo, e seu companheiro nas famosas monterias aos javardos. — Pois mestre Cabral, que alli está, á sua parte matou vinte e duas, e dobrou duas vezes os tiros. Ellas amam-n-o muito, lançam-se-lhe nos braços ! — disse Bulhão Pato, olhando para o principe, que gostava immenso, e que ria como um perdido, quando o poeta o fazia alvo dos seus imaginosos e pittorescos gracejos. — Eu, continuou elle, tratei de não fazer má fi- gura, e andei assim ao réz do (Cabral, menos o dobrar, que em dobras é elle mais rico do que eu. Tem a fortuna de não ser poeta! Isso lhe basta. E seguiu alli o tiroteio de chistes, em que Bulhão Pato não tinha rival — porque os seus improvisos, neste genero, eram como uma deslumbrante may-on- naise, em que se saboreava a verve franceza, o salero andaluz, e a graça portugueza — tudo tempe- rado por mão de mestre. — E, finalmente, para fechar — disse elle — e por- que estes senhores estão a cair de somno com as minhas graças, gostos não se discutem, e uma caçada aos javardos, com portas e uma pessoa alli parada, de arma ao hombro, amigo Costa, para mim não é uma caçada, é uma sentinella. Tenho dito. — E agora a quarteis — disse Lopes Cabral. Cos- selli, au revoir. Esta caçada, que foi para nós uma festa por to- dos os motivos inolvidavel, fôra offerecida ao artista 8 II4 CAÇADAS PORTUGUEZAS austriaco, que, na sua qualidade de pintor, mostrara aos seus amigos desejos de ver os campos e a pai- zagem do sul do Tejo. Devia ficar satisfeito. Uma madrugada esplendida, um formoso dia, optimos atiradores, muita caça, uma paizagem sobria de effeitos, mas caracteristica, cavaco do mais fino, ruidoso, alegre, e espumante como o Champagne! E, finalmente, para que não faltasse nada a um amador de theatro, teve o an- tegosto d'uma tragedia! AL learn al. alo cdi AP: na Joe SEG . S e ] E ; PA A; E VS ED GASTA E EM 1Z E A ) VE? SAE (o aro Elsa à 845: LC) X LAN pn TE ke ero de gallinholas Thoma e variações 14 bom, ruim caçada — dizemos nós muita vez. Naquella tarde, ao entrar no vapor do Bar- reiro, despediamo-nos, sem saudades, do pi- nhal da Machada e dos arrozaes de Val de Zebro. Nas redes zero de narcgjas, zero de gallinholas! Tres grades magnificas! Nós eramos tres, como na Grá-“Duqueza, e em - balde procurámos o inimigo. O meu Djalma, esse, sim, descobriu e viu uma gallinhola, á borda do pinhal. O bom animal parou-a, olhou para nós, como a dizer-nos : — Venham cá, ella está aqui... Olhem que não ha outra.. Em vão. Levavamos nã nossa frente um d'estes companheiros cabeçudos e egoistas, que decre- ARO CAÇADAS PORTUGUEZAS tam, com ar solemne, os sitios onde ha caça e onde a não ha; que mandam em tudo; que passam o dia a cruzar o terreno em todas as direcções, fazendo rodar a linha a todo o momento, e dando, sem se cançarem, tremendas estafas nos desgraçados que vam na outra ponta! Uns senhores muito amigos de si, que nas paragens tomam a melhor sombra, ao jantar o melhor bocado, nas pousadas a melhor cama; que teem sempre os melhores cães, as melho- res espingardas, e as mais extraordinarias historias de tiros raros e de fabulosas aventuras, com que massam clero, nobreza e povo! Verdadeiros irmãos terriveis d'esta maçonaria de Santo Huberto, de que elle nos livre — a ti, honrado leitor, se és con- frade, e a mim emquanto o fôr! O nosso amigo, pois, naquelle momento o que que- ria era almoçar, e apesar dos meus protestos, leva- va-se como um galgo na direcção da casa, para onde o seu estomago faminto despoticamente o im- pellia. Farto de o chamar, voltei atraz, em busca da gallinhola, mas dona Bicuda não esperou por mim, levantou, e, adejando por entre os pinheiros, su- miu-se... E era uma vez uma gallinhola, e uma caçada! Dos alagamentos não saltou nem uma narceja, nem uma codorniz. Uma solidão completa! A's tres horas, terminada a exploração dos terre- nos, d'aquelles uberrimos arrozaes, d'onde Bulhão Pato, Lopes Cabral, José Galache, Antonio Alves, eu, e outros trouxeramos, um dia, cincoenta e cinco narcejas, além de patos, codornizes, e outras biche- CAÇADAS PORTUGUEZAS [17 zas, afamadas na gastronomia, disse-me X—o tal amigo — com ar merencorio: — Bem, a avaliação d'estas terras e d'estes pinhaes por hoje está feita; podemos voltar para Lisboa. Lá lavrarás o auto. Rimo-nos do gracejo, mas o riso devia ser um pouco amarello. — Para a outra vez será. Tambem nem sempre gallinholas!... Como para tudo ha compensações, Santo Huberto lembrou-se dos seus fieis, e, á volta para Lisboa, dois episodios indemnisaram-nos da semsaboria da ma- lograda excursão. Trazia muita gente o vapor na coberta, atravan- cada, demais, com grandes cestos, malas, e bahus. Os passageiros formavam grupos animados. Entre elles descobri alguns, meus conhecidos. — Então boa caçada? perguntou-me um. — Nada, o peor possivel. Viemos ás narcejas, mas o tempo aqueceu, e não vimos nem uma. E gal- linholas, uma por junto, e essa mesma levantou, e foi-se! — Pois eu fui mais feliz, replicou elle; e, desvian- do-se um pouco, mostrou-nos seis magnificas galli- nholas, presas pelo bico, secundum artem, e osten- tando-se — como uma estrella — sobre uma das esco- tilhas envidraçadas do vapor. IIS CAÇADAS PORTUGUEZAS — Dou-lhe os parabens, disse eu. Onde as encon- trou ? — Longe. Venho do Alemtejo, e de lá as trago. E não repare em eu estar assim vestido. Deixei lá tudo — farpella, cães e espingarda. Com effeito eu notara a elegancia e a improprie- dade do trajo do feliz caçador. Sapatos de polimen- to, calça preta, frak, capa á hespanhola, e sombreiro alto! Comtudo podia ser... — Então volta para lá? — Volto. Ainda lá vou estar uns dias. E 1a affas- tar-se... | — Deixa-as alli?! Olhe que ha aqui muita*gente... — Não tem duvida. Ficou por aqui o dialogo. Havia lá, a um canto, uns olhos negros, que o chamavam, impacientes já talvez da longa ausencia. Sentei-me, olhando ora os passageiros, ora o céu, que me offerecia um espectaculo bellissimo — um pôr do sol deslumbrante, ora as gallinholas, junto das quaes estavam de pé uns, que me pareciam ciganos, de rostos trigueiros e agudos, os olhos grandes e redondos, os narizes aduncos. E, ao vel-os alli, pas- sava-me pelo espirito a idéa de que o meu ditoso confrade não chegaria ao caes do Terreiro do Paço na posse effectiva das suas seis gallinholas. .. Ao meu lado viera sentar-se outro collega caça- CAÇADAS PORTUGUEZAS LIGO dor, tambem conhecido, que vinha não sei d'onde, e que fôra infeliz como eu. D'ahi a pouco elle queixou-se de frio, levantou-se, e foi para a camara, em baixo. Era mais agasalhada. Eu continuei a observar os homens, procurando ler-lhes, nos olhares furtivos e phosphorecentes, as intenções. — Serão honrados? dizia eu comigo. Gostarão de gallinholas ? % * Estava eu entretido com estas graves meditações, quando se levantou um reboliço, e logo vozes gri- tando : — Os pombos! Os pombos! Fugiram os pombos! Fomos ver o que era. A bórdo, á prôa, vinham umas gaiolas com pom- bos, e alguns conseguiram fugir da prisão. Soltos, vendo affastar-se a terra—a sua patria, sentiram a nostalgia do columbario, e desferiram o vôo nessa direcção. Foram talvez dizer-lhe o ultimo adeus — ao ninho seu paterno!... Con [ali aperte e ferme al dolce nido Volan per Paer, dal voler portate... Quantos dramas intimos, quantas dôres, torturam a alma dos animaes, e ahi ficam encerradas, como numa masmorra, pela fatalidade do silencio! Eu disse a alma... Como se ha de dizer, se não for assim? 120 CAÇADAS PORTUGUEZAS Todavia, decorridos minutos, os ingenuos e sen- timentaes foragidos voltaram ao vapor! E novos gritos — agora de admiração e de regosijo — sauda- ram o seu regresso! Se o amor os levara, o amor os trouxe, porque nas gaiolas tambem vinham as pombinhas, suas companheiras. E elles vieram. - dal disio chiamate como do Paolo e da Francesca de Rimini disse o grande florentino. Um idyllio — a que só faltou um Anacreonte, para o tornar immortal. Chegámos ao caes. Desembarcámos, e eu, depois de me despedir dos meus confrades da má fortuna, entreguei, na Arcada, os meus cães ao fiel Men- donça, antigo soldado, honrado homem de grandes barbas, que gosava e merecia a confiança de todo o bairro da Estrella. E estava eu parado á esquina da rua do Oiro, á espera dum carro, quando vi approximar-se o meu feliz confrade. — Olá! — O senhor viu aquellas gallinholas, que eu tra- zia. .. — disse-me elle com um ar dubio, e reticen- cias em cada palavra. — De certo que vi. Eram seis. Falta-lhe alguma? perguntei, lembrando-me logo dos ciganos. CAÇADAS PORTUGUEZAS 121 — Falta-me uma. (Quando desembarquei achei cinco. — Sinto muito, mas eu é que não a tenho. E levei a mão á saca, para lh'a mostrar. — Ora essa agora! Eu, nem por sombras... — Pois sim. Está claro que nem por sombras, mas veja sempre; pode ella ter-se cá mettido, sem eu dar por isso... Console-se, amigo, que ainda lhe deixaram cinco. Eu avisei-o, para que as guar- dasse, mas o senhor não fez caso. Queria gosar dos seus triumphos... É por isso pagou a patente. — Para a outra vez serei mais acautelado. — Lembre-se de que a occasião faz o ladrão. E com um nariz muito comprido, tão comprido como o da sua chorada bicuda, lá se foi o felizardo, favorito de Diana. Encerra esta historia dois segredos. Nenhum d'elles é raro, mas o encontro, a coincidencia dos dois, é que é curiosa e picante. Para mim — caçador de raça — que ainda aqui me estou deleitando com estas narrativas de ha vinte e trinta annos, uma grade de mais, ou de menos — tão frequentes são ellas entre os que não são donos de Mafra ou de Villa Viçosa — era quasi indiffe- rente. De toda a maneira eu tinha-me divertido. Nessas occasiões, sentiaame dominado por uma verdadeira febre. Trez dias antes já eu a tinha, etres 122 E CAÇADAS PORTUGUEZAS depois ainda ella durava. Uma caçada d'um dia tra- zia-me entretido uma semana! Ver romper a manhã em terra, ou sobre as aguas; atravessar as largas campinas da lezira ; embrenhar- me pela immensa floresta dos pinhaes do sul do Tejo — solitarios e sombrios; espreitar, aqui e alli, um lo- garejo rustico, pittoresco, isolado, perdido numa en- costa erma e pedregosa; descobrir ao longe uma paizagem verdejante, enquadrada entre duas renques de altos pinheiros, e logo occulta pela massa verde- escura do espesso arvoredo; observar uns effeitos de sol no delicioso verde e oiro dos pampanos... Tudo isto, que eu gosava intensamente, supria-me, nos maus dias, a ausencia da caça. Mas para os que não são artistas, uma caçada é um periodo com uma só oração, e essa é portanto a principal. Tirada ella não lhes resta nada. Ou an- tes resta no espirito uma impressão, talvez egual á d'um jogador, que perdeu. Gastou, e não ganhou nada. Depois ha as familias, as senhoras — as nossas e as suas amigas. Para umas e outras a caça é uma rival, naquelle momento preferida. E então, perante um revez, ellas, longe de terem a generosidade das grandes almas, são implacaveis! O drama da caça, para nós, passa-se no campo, mas ellas assobiam-nos em casa,quando não vêem o epilogo na mesa do jantar! Solteiro, e sem familia então, quando eu recolhia a Lisboa, e pendurava a minha saca, vasia de caça, não havia alli, ao pé de mim, ninguem que o extra- Us CAÇADAS PORTUGUEZAS 12 nhasse, que attribuisse a pouca destreza, o que fôra má fortuna, e que lamentasse o dinheiro, gasto inutil- mente em tão estereis excursões. A minha familia d'então eram os meus perdiguei- ros. Esses, cumplices dos meus desperdicios, tinham- se tambem divertido, e depois da ceia, iam dormir, e sonhar talvez. como eu, com outras caçadas. Este rodeio não me affastou do assumpto: tive-o sempre á vista. É cá estou com elle. Aquelle nosso confrade, que no vapor se quei- xara de frio, e fôra para a camara, não vinha con- tente. E mais o entristeceu talvez o espectaculo da felicidade alheia. O coração humano tem destas coisas. Aquella estrella de gallinholas, exposta all, apesar do sombrio das suas pennas tinha para elle extranhas fulgurações! Elle andara um dia todo em busca de caça, e trazia uma grade. O outro, de sa- patos de polimento e chapeu fino, ostentava os des- pojos opimos da victoria! Uma terrivel e lancinante ironia! E por isso elle foi esconder a sua vergonha, longe das nossas vistas, na sombria camara do va- por. Não era frio, era despeito... No dia seguinte encontrâmo-nos na rua. — Então — disse-me elle — vocês hontem tiveram azar. — Sim, não fizemos nada. Achei uma gallinhola, por junto, e não lhe pude atirar. 124. CAÇADAS PORTUGUEZAS — Eu tambem não. Encontrei cinco perdizes, e não trouxe nenhuma. Mas não diga isto, porque eu, ao passar pela Praça, vi lá uma gallinhola boa e fresca, e comprei-a, para levar alguma coisa para casa. Você comprehende... — Comprehendo, sim. Politica domestica... — E claro — disse elle, e foi-se. E tambem isto podia ser... Poucos dias depois, contando eu, numa reunião: de caçadores, os pequenos episodios desta excur- são, quando veiu o das seis gallinholas, um dos pre- sentes, a rir muito, disse : — Pois, sim, senhor, não foi má partida. As seis gallinholas vi-as eu comprar na estação do Barreiro a um regatão, dos que alli vendem caça. Da morte d'aquellas está o homem innocente. E quem lhe pilhou a elle a bicuda? Foram os ci- ganos?... Que fosse uma boa partida, não o direi eu, porque, comprada ou caçada, era d'elle, mas para a victima, quando, ao desembarcar, deu pela falta, foi decerto — uma má chegada! CR SD SI O RDNS MORE RR RN RN RT RR RR NR RI RIR CO RN RR RR O O - SE | a a) NOGÕ€E 0000000000000000004 i > SK! PN YVocovo do dv 00000000064 / k TICO iNininin ae RIR RR ETR Eua MONTETNTETE TETE arierareato | A” Campinos na lezira O maioral A Bulhão Pato ISTO da paizagem, como em tudo, os gostos são diversos. Uns gostam dos terrenos levemente accidentados, outros das altas serras: — eu, sem as desprezar, prefiro os grandes plainos, as leziras sem fim, que me dam a idéa, a impressão do mar sem limites. Os meus terrenos, para caçar, são a lezira e os pi- nhaes. E na lezira a figura que mais gosto de ver é o campino —o genuino, o typo antigo, de barrete verde ou preto, collete forrado e avivado de encarnado, calção de fivela, meia de lã, e sapato de prateleira. Se eu fosse senhor de terras no Riba-Tejo este “trajo, o tradicional, era de rigor nos meus creados — não lhes admittia a mais leve alteração: Sint ut sunt, aut non sint. 126 CAÇADAS PORTUGUEZAS O leitor perdoará esta irrupção do latim em plena campina — mas antes latim que francez — e d'ahi estas questões de gosto — questões d'arte para mim, que vivo e me preoccupo tanto com estas frivolida- des, como outros com a politica e outras materias de alta transcendencia — são da maior importancia, e não acho de mais uma citaçãozinha da lingua mãe. Citaria até sanskrito... se o soubesse. O campino é, de todos os habitantes das nossas terras — altas e baixas — o mais elegante e typico. Nenhum lhe soffre o confronto —- nem os dos plai- nos, nem os das serras, nem os das costas e arribas do mar. A um tempo povo e fidalgo — é peão e ca- valleiro. No olhar, no porte, tem o quer que de se- nhoril, de superior, de conscio de si, sem vaidade . nem ostentação. —E o que é— e no meio da lezira, o seu todo — não elle — parece dizer-nos, quando a vae cortando, ao passo seguro e firme do seu ca- vallo, e com o pampilho descaído sobre o hombro : — Nós — eu, o meu cavallo, e a minha vara — aqui governamos: isto é nosso! Elle, o seu cavallo, e a sua vara! Estes tres ele- mentos constituem a individualidade campino — o guardador. O homem, nascido e creado no campo, e por as- sim dizer entre a sella e a manta, é entresêcco, musculoso, agil, e bravo — como os animaes, os CAÇADAS PORTUGUEZAS 127 toiros com que vive. E sobrio e paciente. Está no campo, como em bivaque permanente; tem a sua companha, e com ella a disciplina; é moço, e obe- dece, ou maioral, e manda: o grande lavrador, o pa- trão, é o seu general. E tomaram todos os generaes que os seus soldados fossem tão sobrios, tão sub- missos, tão dedicados e tão valentes, como estes ca- valleiros da lezira! Uma vez, por semana, ao sab- bado, vae á povoação, ao Carregado, a Villa Fran- ca, á Gollegã, à Azambuja, fornecer-se de manti- mentos, e depois volta para o seu posto, e por lá está até ao sabbado seguinte, como uma sentinella perdida, na solidão da immensa campina, envolto na sua manta de listras, ou ao abrigo da barraca de pinho e colmo, de chão batido e rijo, varrido e aceitado como o d'um palacio. Passa a vida a cavallo — dia e noite. Vida agreste e dura— á chuva, aos soes intensos e abrasadores; no forte da canicula, e nos vendavaes do inverno, quando sopra o sudoeste, e a lestia, o palmellão, e os raios, cruzando-se nos ares, prenunciam as chu- vas torrenciaes, que lhe inundam de repente a lezira, e o fazem atravessar a galope desfechado os cam pos alagados, acudir ás comportas, e salvar d'um pulo as vallas reaes, largas como ribeiros, para li- vrar o gado, passando-o para as terras mais altas, onde a cheia o não alcance! E um servo, e, ás vezes, assume as proporções dum heroe, pela abnegação com que cumpre o seu dever, pelo valor temerario, com que affronta os. perigos! 128 CAÇADAS PORTUGUEZAS O seu cavallo — é como elle rustico e sobrio — «desconhece os conchegos, os confortos da civilisação. Nunca dormiu numa box elegante, nunca lhe vesti- ram pannos de côres de listões variados, nunca se mostrou em campos de corridas, nem galopou na pista, ouvindo os hurrahs dos sportsmen enthusias- mados. E' feio, esqualido e hirsuto, se o comparar- mos com um corredor, um charger de raça, e este vence-o na carreira. Mas em serviço, no campo — ao frio, ao sol, e ás chuvas — eu vou por elle. A vara — o pampilho — completa a physionomia do homem — com ella é o campino, sem ella um campo- nez a cavallo, como outro qualquer. A um tempo insi- gnia e arma — quando a empunha sente-se rei, tem nella o sceptro, e a lança, e com ella dirige, governa .e castiga os seus indomitos e feros subditos! Coisa singular — esta figura, tão original, mixto de pastor e de soldado, cuja vida— perpetua bucolica, ás vezes cortada por uma tragedia —nos parece tão suggestiva de poesia, tem passado, esquecida dos poetas, e não figura no cancioneiro popular da nossa terra! HM Andavamos ás codornizes nas hervas. Com bons cães, e quando as ha, é bonita caçada. De repente um aguaceiro em cima de nós. Não offerecia outro abrigo a immensa lezira, que se «estendia deante de nós, a não ser uma barraquinha de palha ponteaguda, que se via, lá ao longe, no meio da campina deserta. Corremos para lá. CAÇADAS PORTUGUEZAS 20 — Maioral — dá licença? disse José Galache — um dos nossos companheiros — dirigindo-se ao cam- pino, unico habitante d aquelle palacio. — (Os senhores, podem entrar. O caso é caberem — respondeu o guardador, levando a mão ao bar- rete verde. Era um homem de quarenta annos — meão d'es- “tatura, forte e atarracado, trigueiro, a barba rapada, um pouco picado de bexigas, olhos claros, olhos de homem valente — o que logo, à primeira vista, elle denunciava pelo bem plantado da figura e pela fir- meza dos movimentos. A chuva durou o "bastante para nos molharmos. Nós a chegarmos á palhota, e ella a parar. Saímos para fora, e emquando faziamos e accendiamos um cigarro, tinha-se travado conversa com o maioral. “A cem metros de nós estavam os toiros — uns ani- maes negros, de boa estampa. — De quem é este gado? — É do dr. José Vaz Monteiro. — É que tal? — Não é mau de todo. Os senhores lá o vêem em Lisboa. — Olhe, lá estão aquelles dois a quererem brigar — disse eu. — José, vae lá. O José, que assim foi mandado fazer a policia do campo, era um pequeno de dez annos, rolico e forte, mas de quem nós não deramos fé. Elle não hesitou —tinha-o já feito tanta vez — e, saltando do caminho onde estavamos para a lezira, foi direito à E) 130 CAÇADAS PORTUGUEZAS aos toiros, e com dois berros e quatro matacões de terra, que atirou aos desordeiros, acabou a contenda. Era um domingo. — Faz hoje oito dias, ia aqui havendo uma des-. graça. Dá-me o seu lume? — "Tome lá um charuto. — Muito obrigado — eu não fumo d'isso. Quem me tira o cachimbo, e o cigarrito. .. Pois foi assim como lhes digo. Estava eu aqui — alli na barraca — a comer, e vae que oiço, de repente, uns gritos de homem afflicto — Quem me acode!? quem me acode!? Salto logo fóra, e o que havia de ser? Um alma do diabo, montado num burro podre, e um d'aquelles toiros — aquelle, e apontou um caraça — a contas com elle, já para saltar a valla, esta valla aqui! Ai, senhores, debaixo dos pés se levantam os trabalhos! — bem se diz. Eu não sei como aquillo foi: tinha alh, felizmente, a egua e a vara. Num prompto estava em cima do toiro!... Mas podia-me levar o diabo o canastro, que elle é o mais valente dos que tenho á minha guarda! Custou-me a viral-o ! Queria ir á má cara para cima do homem, e deu- me agua pela barba para o arrancar d'aqui... Em fim, como eu era pessoa conhecida, lá me obedeceu -— disse elle, sorrindo do seu gracejo, e mostrando uma fiada de dentes brancos e curtos. Se eu aqui não estou, era um homem perdido. | Ahi ficava estripado, elle, burro e tudo! E olhem que a culpa era só d'elle. Elle proprio m'o disse. Sempre ha cada homem, que mais lhe valia ser burro! Ao menos ninguem se enganava com elles. CAÇADAS PORTUGUEZAS 151 “Pois de que se havia elle de lembrar ?! Como o toiro se poz a olhar, acenou-lhe de cá com o lenço! — Um lenço encarnado! Que lhes parece aos senhores: Era burro, ou não? Se fosse um garoto como esse, vá; mas, não, senhor, atirava já para ginja velho do que eu! '— Ora essa! — Sim, senhor, e depois, com fumaças! Quando se viu fóra do aperto, já se vê. Disse-me que tinha visto muitos toiros, que em rapaz tinha sido forcado, aqui e acolá... Muitas historias... De modo que, já abor- recido, perguntei-lhe — se elle era tão valente, por- que é que gritara por soccorro e não esperara O toiro—elle, mais o seu burro? Que já estava velho. Pois se está velho, vá-se com Deus, e não se metta em danças, que d'esta o livrámos nós — Deus e eu. Que neste caso Deus entrou por procuração — como dizia meu pae. Eu é que lhe fiz as vezes—e o maioral, dizendo isto, piscou os olhos garcos com certa malicia. — Lá estão os bois outra vez. José, vae lá, e aparta-os para longe. Andam naquilo, até que se pegam a valer, e então ha morte de homem! Lá está o Caraça a olhar para elles, mas vae lá sem- pre. — O que é isso do Caraca, maioral? — E' que aquelle toiro aparta as desordens dos outros. — Sim?! Como é isso ? perguntei eu. — Sim, senhor. Mas tem seus perigos... O animal, quando vê dois pegados á marrada, vae-se de cá di- eito a elles e joga a pancada ao meio; mas, ás vezes, mais 192 CAÇADAS PORTUGUEZAS ha um desvio, e lá vae um corno pelo peito ou pela barriga dos que estão bulhando, e era uma vez um toiro! Ainda ha poucos dias que isso aqui aconte- ceu. E o maioral, para fechar e commentar a narra- tiva, continuou: — sto é uma comparação. Arma-se uma questão com amigos nossos, e uma pessoa quer apartal-os, e vae, entra, e mette a navalha ao meio, e por des- graça apanha um corpo deante de si... A faca faz a sua obrigação... Aqui o campino, que não tirava os olhos da ma- nada, gritou para O rapaz: — Pára ahi, José — que eu lá vou. E, saltando d'um pulo para cima da egua, já com o pampilho ás costas, disse-nos: — Adeus, meus senhores. Desculpem, mas vou lá eu. Não me façam elles alguma desfeita ao pequeno. E” meu filho. E partiu, como um raio, a galope, pelo campo fóra. Nós voltámos para as codornizes. Havia muitas na lezira, e fizemos boa cacada. É. | a | pe —— um um 2 ea EE ESTO [GT [LA | GU [Es |O emo GR Ei k ar di, —— EAR LD 2 PAR É | Bela eee 55 gas oe MS CS, GU EMA GS er AP e— eme mens 334 Na Coutada Velha e Sesmarias “de Sua Alteza BENAVENTE A José Quaresma de Paula. oi à volta d'uma grande cacada, em dezembro de 187., que Bulhão Pato me disse, visitando-o eu na sua casa da rua das Praças: — Já viste, lá em baixo, o que veiu de Benavente? Uma das maiores cacadas que tenho feito. Aquillo era uma arca de Noé — menos tigres e leões! Foi pena que não acompanhasses; mas havemos de lá ir juntos. E que hospitalidade ! Has de gostar muito do nosso Quaresma. Que aconchego de casa! Have- mos de lá ir os dois — tornou elle a dizer-me. Ha de ser para o anno. Que a entrada deste foi um assombro, e provavelmente não se repete tão cedo; mas, em todo o caso, aquelles pinhaes sempre dei- tam de'si muita caça... E depois, que abertos que são, e que piso! Ainda se resentem do que foram... “ 134 CAÇADAS PORTUGUEZAS Pinhaes reaes! Has de gostar — affianco-t'o eu. E quando desceres, aparta o que quizeres. Cá em casa não se come tudo. Um anno depois, quasi dia por dia, numa bella manhã de dezembro, partiamos de Santa Apolonia, com destino a Benavente. O tempo uma formosura— o ar frio, o vento norte, alto, o ceu sem uma nuvem, e nas nossas almas muita alegria. E” caso de dizer aqui — oiro sobre azul: Na Azambuja entrámos no barco, que nos havia de levar, pela valla, até Benavente. Além de nós iam dois passageiros, um cavalheiro d'aquella villa, e um advogado de Lisboa, o sr. dr. L. F., que eu então apenas conhecia de vista. Este era consocio de Bu- lhão Pato, na. Academia das Sciencias. A conversação, a que a principio me conservei alheio, versou desde logo sobre litteratura, como era natural: houve, porém, um momento em que eu que- brei a minha habitual reserva, apoiando o meu amigo na discussão. Esta entrada deveu de certo parecer extranha ao illustre jurisconsuito. O barrete de lã preto, que eu levava descido até aos olhos — a ma- nhã estava fria—a manta de listras, os ceifões, as polainas, os sapatos de prateleira, o cinto cheio de cartuchos, a espingarda, e a trela de cães, que se- gurava na mão, todo este conjuncto era de certo pittoresco; mas ninguem suspeitaria, vendo-me as- sim trajado, quem eu era. Assim é que eu costumava sair de casa, fosse dia ou fosse noite. Quando tencionava demorar-me, a mala levava as vestes cidadãs. Era mais commodo, | BA ww CAÇADAS PORTUGUEZAS > e, quando chegava aos terrenos da caçada, estava prompto para entrar logo em acção. Foi, portanto, aqui mais uma vez verdade — que o habito não faz o monge. A bateira seguia, à sirga, lentamente, e, apesar da vela sentir a aragem fresca da manhã, os homens e os cavallos, que a puchavam, a pouco trecho iam já cobertos de suor. (Curioso assumpte para um quadro, este, em que se vêem associadas a viação terrestre e a fluvial, naquella formosa e tranquilla paizagem do Riba Tejo. Aqui fica a chamada aos meus amigos pintores. Das lettras a palestra derivou para as armas — o que tambem era natural. O doutor tinha uma espin- garda ingleza, e, carecendo para ella não me lembra o que, dei-lhe um bilhete para a casa Forjaz — en- tão estabelecida na rua do Arsenal, onde encontra- ria o que desejava. Dias depois, entrando eu alli, agradeceram-me o novo freguez que lhe havia enviado, dizendo-me que o dr. L. F. tinha lá ido com a minha recommenda- ção, e me qualificara de doutor! Pura generosidade de sua ex.: — eu nunca estive em Coimbra. Aquelle grau era, talvez, resultado da nossa conversação na barca da Azambuja, e da opi- nião que o illustre jurisconsulto formava, e decerto forma ainda, das estreitas relações, que devem exis- tir entre as lettras e os doutores. Devem existir — mas nem sempre existem. E neste caso tambem, muitas vezes, o habito não faz o monge. 136 CAÇADAS PORTUGUEZAS Conta Louis Viardot, nos seus Souvenirs de chas- se, que um dia em que sir Robert Peel, tão grande politico como apaixonado sportsman, andava, com grande comitiva de amigos e creados, cacando no Norfolkshire, um dos condados da Escocia mais abun- dantes de caça -— notou, entre os batedores, o reve- rendo cura da freguezia catholica! Quem sabe o que é uma caçada naquellas terras, comprehenderá o re- paro e o espanto de sir Robert! O game-book — diario da caça — da residencia para onde Viardot, em 1855, fora convidado, registava — em cinco dias de caça no mez de outubro de 1855 — dois mil quatro centos e quatro faisões! Repare o leitor bem — que não eram codornizes, nem perdizes. E mesmo que fossem ca- lhandras... Quando chegou a hora do lunch, o illustre esta- dista, dirigindo-se ao reverendo cura, e apontando : para o cajado que elle tinha na mão, perguntou-lhe se nunca havia caçado. | — Pelo contrario, respondeu o cura — cacei muito. Mas já lhe perdi o gosto. — Eu acreditava que esse gosto nunca se perdia!... Quando é que deixou de cacar ? — Quando deixei de errar. Sir Robert fez com a bôca um tregeito, que que- ria dizer que lhe custava a acredital-o, e que os ga- barolas appareciam em toda a parte — até no condado CAÇADAS PORTUGUEZAS 157 de Tyrone e sob as vestes humildes dum cura d'al- dêa! Este percebeu. — Duvidaes? Julgaes que minto? Permittis que eu prove o que disse ? E, pegando em uma das espingardas de sir Ro- bert, quando recomeçou a cacada, poz-se ao lado delle, e com doze tiros, e uma por uma, matou doze pecas. Então, voltando-se para elle, disse- lhe : — Acabaes de ver, que eu falava verdade. Foi desde que deixei de errar, que eu perdi oramor á caça. E, ditas estas palavras, restituiu-lhe a espingarda, com que justificara tão brilhantemente o quê disse- ra, e retomou o seu logar na linha dos batedores! O rev.º prior de Benavente, que com outros ami- gos seus e de Bulhão Pato, nos veiu esperar na ponte, e cuja hospitalidade iamos receber, não po- deria talvez disputar o campionato do tiro com este ideal cura escossez, adestrado em tão opulentas ca- poeiras — quero dizer em tão opulentas coutadas ; mas o que posso affirmar de vis, é que, durante os quatro dias que durou esta nossa cacada, não me lembro de elle errar um tiro. E” verdade que as gallinholas e as perdizes não saltavam aos milheiros, como nas abençoadas terras que Viardot— o feiizão — teve a ventura de explo- rar : todavia, se elle não era infallivel, se não attin- gira aquella semsaborona perfeição — digamos a ver- dade — o nosso amigo José Quaresma era uma boa “ 138 CAÇADAS PORTUGUEZAS espingarda — a good shot, como elles dizem —-os insulares do Reino-Unido. Não seria aqui de extranhar uma pequenina amos- tra da minha erudição archeologica, limitada que fosse ás antigas caçadas reaes nestas coutadas e ses- marias; mas, com a mão na consciencia e na me- moria, declaro, e até juro, se preciso for, que neste momento sou completamente ignorante em todos os capitulos da archeologia benaventina. O que espero me perdoarão os meus sabios col- legas da Comissão dos Monumentos; porque, quanto aos leitores, esses darão gracas a Deus d'este meu excesso de consciencia, e de... ignorancia. Fiquemos pois nas cacadas modernas, e ficamos bem. Benavente era, com effeito, merecedora dos gados do meu illustre amigo. A pura verdade, quanto elle me dissera de coisas e pessoas. O terreno admiravel — quasi plano em toda a par- te; magnificos os pinhaes, distanciadas as renques do arvoredo, .de fórma a poder-se seguir por entre ellas uma gallinhola à todo o alcance do tiro; e das vinhas e mattos, que marginavam os caminhos, até debaixo dos pés dos cavallos, na propria estrada, saltavam as codornizes! E, como se isto não fosse bastante para nos sa- CAÇADAS PORTUGUEZAS 150 tisfazer, iamos ter companheiros de primeira ordem, cortezes e bons cacadores — uns discipulos, outros contemporaneos dos mestres da velha escola. All, como se costuma dizer, era pedir por bôca, e ser logo servido. Tudo, pois, era de feição—a terra, a caça e os caçadores! Havia, portanto, por onde escolher, mas nós dé- mos sempre a preferencia ás gallinholas. A honra — a quem a merece! É era tanto assim que. quando nos dirigiamos' a cavallo para a Coutada Velha ou para as Sesmarias de Sua Alteza, e os cães, en- trando nas vinhas abertas, a um e outro lado da es- trada, paravam e levantavam alli codornizes, iam-se estas em paz, sem uma simples saudação! Não valia a pena apearmo-nos. Os pinhaes tinham hospedes de mais valia, e a essas se encaminhavam nossos “passos. Foi numa d'estas jornadas, que eu travei relações dorsaes com um animal extraordinario — um bur- ro, que poderia correr na pista, e ganhar premios num Derby da sua especie ! E passo a contar. Um dia, á hora de partirmos para os pinhaes, por uma circumstancia imprevista faltou o cavallo que eu costumava montar, e não era facil, de momento, descobrir outro, que o substi- uisse. Debatiamos nós este gravissimo caso, quando 140 CAÇADAS PORTUGUEZAS nos apparece um cavalheiro da terra, o sr. Eugenio Paim dos Reis, que, informado do incidente, com a maior amabilidade me offereceu o jerico que elle montava, perguntando, porém, previamente, se eu estava costumado a andar assim — e apontava para um magnifico albardão, sem estribos. Elle, ape- zar de reconhecer os: merecimentos do bicho, não lhe concedia as honras da cavallaria : transportava-se nelle sentado. Em tudo o mais o maior asseio e es- mero — o pêlo brossado, macio e luzidio como o: d'um puro-sangue — os arreios dos melhores — a fer- ragem completa e nova. Respondi-lhe, com o maior desplante, que sim! Não sei se cheguei a dizer-lhe, que nunca andara em bur- ros d' outra maneira ! Aquelle animal — que Deus me perdoe! — caira alli do ceu. É seria quasi offendel-o, não me aproveitar. Passar de cavallo para burro — não é bom, mas naquelle dia eu não perdi na troca — antes pelo con- trario. Os meus amigos — una voce — teceram o elogio do animal, enumerando as apostas, que o seu dono tinha ganho com elle: — em vista do que me recom- mendararn, que me segurasse. Eu, para não perder a caçada, sentia-me capaz de montar em pêlo um potro selvagem dos Pampas! Sentia-me gaúcho até á raiz dos cabellos! E, como não havia tempo a perder, saltei logo para cima do albardão. Partimos... a trote! Pato, o padre Quaresma, o doutor Borralho, Ma- nuel Coutinho, Thomaz da Rocha, e os outros com- CAÇADAS PORTUGUEZAS 141 panheiros, ficaram-me resando pela pelle, quando viram a andadura que o bicho tomara... Eu sou alto e grosso, e elle era baixo de pernas. Os menos ima- ginosos prophetisavam varias figueiras, a ensom- brar a estrada; os outros, mais assustadicos e tra- gicos, falavam em cabeca partida ou costella amol- gada!... Eu, que ia trotando, sentia-me admiravelmente, e posso afirmar que nunca tive melhor montada, como dizem, em calão de caserna, os da cavallaria. Aquelle podia levar um copo cheio de agua, que não a entor- .nava! A estrada ficou virgem de figueiras, por mim plan- tadas. E parece que, à rijeza dos musculos alliava a in- telligencia, aquelle raro animal: — foi o meu transpor- te, e seria tambem o meu guia, se fosse necessario. O -endemoninhado, firme e rapido como um charger, nunca mais parou, nem mudou de passo, até chegar- mos aos pinhaes! Montes de pedra britada, charcos, piteiras, que ameacavam a integridade das nossas respectivas epidermes, tudo elle saltava ou torneava, sem me dar tempo para eu fazer um movimento ! Os meus amigos, montados nos seus grandes ca- vallos, deixei-os logo para traz, e a poucos passos perdi-os completamente de vista ! Não tornei mais a encontrar o feliz possuidor d'a- “quelle maravilhoso exemplar d'uma especie, que não prima nem pela celeridade, nem pela esperteza; mas, apenas cheguei a Lisboa, na primeira carta que es- crevi ao nosso amavel e hospitaleiro amigo, pedi-lhe que lhe renovasse os meus agradecimentos pelo pra- 142 CAÇADAS PORTUGUEZAS zer daquellas duas corridas, que figuram na minha memoria de caçador, sem o enxovalho da mais leve sombra de figueira! Fôra excepcionalmente grande a entrada de gal- linholas em Portugal, nos dois annos anteriores — appareceram até em hortas e quintas dentro de Lis- boa! O Manuel Candido, da Amora, e o Antonio da Gata, tambem caçador de profissão, em um dia, até ás duas horas da tarde, metteram na saca, nos pinhaes da Amora e de Corroios, trinta e seis, aban- donando o terreno por se lhes terem acabado as munições ! E osr. Francisco Negrão — um distincto amador — tal abundancia encontrou em Salvaterra, que, tambem num dia matou vinte e oito! As nossas esperanças, ou melhor direi — os nossos desejos, não se realisaram, porém, de todo neste anno: ainda assim foi um anno regular. As taram- bolas e os abibes viam-se em bandos numerosos, revoluteando sobre os campos, porém as nossas quatro cacadas fizemol-as nos pinhaes, e apenas um dia atirâmos tambem ás perdizes, nas vinhas e na charneca. Dirigiu-as todas o nosso bom amigo José Quaresma, pratico nos terrenos, e, como já disse, bellissima espingarda. Caçavamos, segundo as boas praxes, em linha, mantendo cada um o- seu logar; e, quando entrava- mos em pinhal mais fechado, as vozes de alerta! CAÇADAS PORTUGUEZAS 143 repetidas por todos os caçadores, orientavam-nos, evitando-se assim desastres, infelizmente frequentes, quando se encontram muitos atiradores em mattos altos ou pinhaes cerrados. E apesar d'isto o perigo é sempre grande. O director ia sempre na ponta esquerda da linha, e eu procurava ser sempre o ultimo da direita. De- pois do logar na extrema esquerda, para mim é aquelle o melhor; — e isto não obstante o grande incon- veniente de ser o que mais tem que andar, quando a linha roda à ordem do chefe, indo este no extremo esquerdo. Mas, se anda mais, tambem tem compen- sações agradaveis, porque os seus cães exploram- lhe mais terreno, e a caça, levantada pelo grosso dos caçadores e dos cães, vem, ás vezes, ter com elle. E então, se a sabe aproveitar, é rei. No decurso das minhas caçadas tive muitas vezes o prazer de acclamar os reis, mas d'esta vez, e logo no primeiro dia, fui eu o coroado. Não dei beija-mão aos vassallos, nem distribuí mercês, mas posso dizer que já tive corôa. Não é das fixas, os subditos são poucos, e ella dura o que duram as rosas, mas não tem espinhos. E quando os tem, são pequeninos... Póe-lhos algum collega de ruim condição, dos que teem o mau gosto de disputar estes triumphos! Mas estes piques da inveja não tiram o somno a ninguem. I44 CAÇADAS PORTUGUEZAS Na caca, como no jogo, revezam-se a fortuna e o azar. Naquelle primeiro dia sorriu-me a sorte, e as gallinholas deram-me a preferencia, a que eu correspondi com egual cortezia:—bem saltadas, mal saltadas, não errei uma: a todas dei hospitali- dade na minha rede. Foi pena serem poucas, por- que eu estava afinado; e na saca, apesar de não ser grande, cabiam muitas mais. Ea a primeira vez que eu entrava naquelles pi- nhaes, os seus habitantes quizeram por isso obse- quiar-me, e cortezmente vieram ao meu encontro. No dia seguinte foi Bulhão Pato o rei, com muitas gallinholas —uma d'ellas morta com um tiro quasi a prumo, verdadeiramente real. Como disse, a minha estreia foi feliz. Cacavamos na Coutada Velha — velho era tambem o pinhal, aberto, com grandes claros no arvoredo — quando de repente me surde uma gallinhola, voando de bico para mim. Vinha baixa, a meia altura dos pinheiros, mas, quando me descobriu, quebrou d'aza sobre a direita. Estava quasi a cavaleiro, ao levantar, e su- bia obliquando: era um tiro verdadeiramente difficil de acaso; mas perdia-a, se a deixasse entrar na espessura do arvoredo. Atirei-lhe pois. Ella seguiu, e eu tambem a segui com os olhos até á grimpa dum pinheiro, onde, de repente, se sumiu. — Aquella vae escapa — disse um. — Não lhe deu — affirmou outro. 7 É assim, até ao fim da linha, todos a julgaram in- colume. A mim parecia-me, todavia, ter-lhe acer- tado; vira-a estremecer, e portanto, apesar da geral CAÇADAS PORTUGUEZAS 145 negação, como tinhamos feito uma paragem, eu andei direito ao pinheiro, onde ella se me furtara à vista; e, olhando attentamente em volta, vi que não me enganara— a gallinhola lá estava morta no chão. | Coisa singular — nem uma mancha de sangue nas pennas, nem vestígio dum bago de chumbo nas pernas, nas azas ou na cabeca! Um exemplar ma- gnifico para museu. Não morreu de susto, de certo, nem eu verifiquei depois por onde q morte lhe en- trara. Ver e crer, como S. Thomé — na caça, como em tudo. Se eu não visse, lá ficava almoço fino para algu- ma rapoza aventureira. Na queda a bicuda encobri- ra-se de tal modo com os troncos e a ramaria do pinheiro, que ninguem a viu caír! E todos iriam jurar que eu a tinha errado! Um dos nossos bons companheiros nestas excur- sões foi Manuel Coutinho. | Conhecia este nome, havia já muitos annos. Uma noite estavamos — eu e outros condiscipulos meus da Escola Polytechnica — na barraca da Lima, na feira das Amoreiras, que então se armava na Pa- triarchal — hoje praça do Principe Real... Onde isto vae ! Foi, talvez, em 1856 ou 57. O assumpto do cavaco eram toiradas. D'ellas passou-se a falar da vida do campo -— alguns dos que alli estavam eram IO 140 CAÇADAS FORTUGUEZAS filhos do Ribatejo. E d'ahi, das leziras, do gado e dos guardadores, pelo natural pendor, entrou-se no dramatico e inexgotavel capitulo das valentias. ; Rapazes e portuguezes — fidalgos, burguezes ou plebeus — quando conversam é de amores, ou de proezas e aventuras. Se são illustrados principiam pelos livros, romances, versos, ou theatro, mas d'ahi a pouco lá vam parar. São aquelles os eixos sobre que gira a conversação. Entre outros episodios, um dos presentes narrava uma grande desordem, numa feira, onde os pimpões, os gallos do campo, fizeram actos grandes de valen- tia; e pronunciou então o nome de Manuel Couti- nho, pondo-o em evidencia como homem agil e des- temido. Esqueceu a minha memoria os pormenores da briga, e tambem o nome do chronista, mas guar- dou o nome do heroe, com quem eu, quasi vinte annos depois, havia de cacar nos pinnaes de Bena- vente. Manuel Coutinho rastejava pelos sessenta annos. Homem de boas maneiras e poucas palavras. Baixo e secco de carnes, não teria sido de grandes forcas, mas tinha as condições apparentes da agilidade, e, apesar de já quebrado e doente, no campo ainda não fazia má figura ao pé dos novos. Era de boa tempera. Foi este o meu companheiro habitual, e o meu guia. Apesar das magnificas recordações que de lá trou- xe, nunca mais voltei a Benavente — a gente não faz . tudo o que deseja — e não me ficou de memoria a topographia dos terrenos em que nós cacámos; mas CAÇADAS PORTUGUEZAS 147 recordo-me muito bem de que andámos atirando ás gallinholas na Coutada Velha e nas Sesmarias de Sua Alteza. Foi em uma d'estas excursões que, logo depois de nos apearmos, elle me disse que iamos atra- vessar um pinhal, onde havia gado ás vezes, e que elle ia lá ver o seu Car ara O que faz o costume! Aquillo que Manuel Cou- tinho, sem mais, acabava de me dizer, seria, na bôca d'outro individuo, precedido de quaesquer palavras de prevenção — como o caso parecia pedir : elle disse-o com a maior naturalidade, como se fosse a coisa mais simples d'este mundo passar atravez d'uma manada de toiros ! Quando entráâmos no pinhal é que eu vi que o gado era bravo. Uns estavam ruminando á som- bra dos pinheiros; outros, de pé, miravam-nos com attenção; dois ou tres levantaram-se, mas tambem ficaram parados, olhando muito sesudos para nós. Lá estavao Caraça. Manuel Coutinho apontou-m o, e falou-lhe de perto. O cornupeto olhava fito para nós, e lá se ficou quedo a ver-nos passar pela sua frente. Era muito novo — um garraio de menos de tres annos: pareceu-me bem, mas eu sou profano. Mais adeante andavam dois guardadores. A manhã estava fria — mesmo muito fria, o norte cortava, e eu notara que o meu companheiro trazia as mãos cobertas de frieiras — algumas ulceradas. As minhas levava-as eu resguardadas por umas luvas de camurça finissima, presente d um collega, tambem caçador: tirei-as e offereci-lh'as. Falo d este porme- nor, porque o honrado homem nunca mais se esque- 145 CAÇADAS PORTUGUEZAS ceu daquella minha attenciosa fineza, como elle lhe chamou, e, em cartas que depois me escreveu, ainda a ellas se referia, dizendo que as conservava como lembranca minha. Alma ingenua e grata, lembrava-se de tal insigni- ficancia! Eu tirara-as das minhas mãos, para lh'as dar: era isto que o penhorara. Mas na caçada do dia seguinte, ficou-me elle devendo muito maior fi- neza... Se eu fôsse, como muitos, imprudente, tel-o-hia morto, ou, pelo menos, ferido gravemente. Das mãos d'outros talvez não escapasse sem grande avaria. Extenso o pinhal que iamos atravessando, e muito espesso e sombrio. (O) acampamento dos toiros já ficava para traz. De repente achámo-nos inundados de luz!... O contraste era violento, mas os nossos olhos tiveram mais, para os deslumbrar alegremente, o maravilhoso e encantador quadro, que alli se nos defrontou. E aqui não ha penna que valha, só o pincel d'um grande artista o poderia reproduzir. Estacámos to- dos, na orla do pinhal! E' que naquelle momento - todos se sentiram presos — tanta era a belleza do inesperado espectaculo ! Via-se, aspirava-se, sentia-se a fragrancia e a frescura das paizagens matinaes ! Em frente de nós, para o fundo e para os lados, estendia-se um viveiro cerrado de pinheirinhos, em CAÇADAS PORTUGUEZAS 140 toda a efilorescencia e vigor da seiva juvenil. Del- gados, flexuosos, elegantes, com toda a pujança e frescor da mocidade, mas pequenos e rasteiros ainda, ficariam sepultados na grande massa do arvoredo que os rodeava, se não fôsse a luz do sol, que, desco- brindo-se por cima da copa do pinhal, de improviso os illuminou ! A manhã ia ainda no seu crescer. Os raios solares obliquos, que primeiro lhes tocaram no alto as finas agulhas, iam descendo, revelando-os e colorindo-os. Verde e oiro a cór na caruma, vermelha e mais vi- gorosa nos troncos, mais clara nas rugosidades, car- regada e baça nos planos interiores. Por cima e ao longe sobresaia-lhes a grande mancha acinzentada e indecisa do pinheiral, que seguia. A luz continuava baixando; alastrando-se sobre o massiço do plantio, e, crescendo com ella o movi- mento e o effeito das suas cambiantes, mantinha o contraste com a sombra. Como se a terra quizesse amparar, no seu cresci- mento, aquelles vegetaes adolescentes, involviam-lhes os troncos os fetos e as estevas, enleiando-os, abra- cando-os, cobrindo-os e defendendo-os com as finas vergonteas, com o seu recortado e elegante folhe- do, tocado de tons roseos, verdes e nacarados! E o sol, subindo, continuava a variar e a fazer valer, aos nossos olhos, as harmonias do colorido. os tons e meios tons d'aquelle agreste mas sua- vissimo quadro, que a natureza— a suprema ar- tista — compozera, desenhara e esculpira, e que elle — o divino decorador —nos vinha alli revelar, ti- 150 CAÇADAS PORTUGUEZAS rando-o das trevas, dando-lhe a vida, illuminando-o com a sua paleta deslumbradora! No chão sombrio, as ervinhas sêcas, o matto ras- teiro, rude frouxel dos campos, tosado pelos reba- nhos, requeimado pelos estios, completava, com a mescla da sua morte-côr, a moldura d aquella pa- radisiaca paizagem, que tinha ao fundo, a massa escura do pinhal, e em cima, no alto, o puro e frio azul do céu! Corridas todas as escalas chromaticas, chegara ao seu termo a symphonia da luz !... Nenhumas sombras restavam — tudo illuminado !... Quebrámos, finalmente o encanto d'esta magia dominadora... E mandámos entrar os cães naquelle jardim, amostra, visão de paraiso ! Era quasi uma profanação ! A surpreza dos artistas succedeu a surpreza dos cacadores: o viveiro de pinheiros parecia tambem um viveiro de gallinholas ! Estava cheio! Nunca vi tantas, reunidas em tão curto espaço! As que não encontrámos em toda a manhã tinham-se recolhido naquelle sombrio e delicioso bosque. E é preciso confessar que tiveram bom gosto na escolha — bom gosto e até juizo, porque como defeza era optimo. Ao primeiro rebate, que os perdigueiros lhes de- ram, da nossa chegada, foi logo um levantar doido, CACADAS PORTUGUEZAS II em todas as direcções!... Eu, à minha parte, contei até vinte e cinco, mas fóram de certo mais as que vi! Saltavam ás duas, às tres, às quatro, para a frente, para a direita, e para a esquerda. Umas saíam para fóra do massico, outras iam baixas, e perdiam-se na espessura dos pinheiros. Divididos os cacadores em tres grupos, uns ha- viam entrado no recinto onde ellas se abrigavam, outros ladearam-n-o, para fuzilar as que saíssem. Eu fui dos que penetraram no viveiro, mas com isso apenas ganhei o vel-as de mais perto. Quasi me deram com as azas na cara, e não atirei a uma unica: eram tão juntos os pinheiritos, que não podia ser senhor da espingarda! E se o solatium est miseris socios habere... é verdadeiro, eu fiquei consolado, porque de toda aquella abastança de caça, só uma deu entrada no registro! Geral o azar — os atira-. dores dos flancos não foram mais felizes do que os do centro! Mas, como quem porfia mata caça, tivemos de- pois ensejo de reparar o desaire. Bem entrincheira- das alli onde estavam, não encontraram as mesmas defezas no chão aberto do velho pinhal, a que se acolheram, no matto rocado, nas ruas, largas como avenidas; e então ahi, aventadas de longe pelos cães —optimos perdigueiros —a descoberto no chão e no ar, deram-nos a desforra com toda a bisarria. Oito gallinholas nos acompanharam até Benavente, e dahi vieram com as outras para Lisboa, pagando-nos a visita. Encantadas comnosco, se não vinham pelo beico, traziamol-as pelo bico, que nellas é o mesmo. 152 CAÇADAS PORTUGUEZAS Mas o pinheiral novo, o viveiro, esse nunca mais o esqueci. Ficou-me nos olhos; ainda o estou vendo! A nossa excursão do dia seguinte — uma quarta feira, se não me engano — e a ultima, foi um mosaico de paizagens: corremos vinhas, charnecas, e pi- nhaes. E com os terrenos tambem variaram as es- pecies — atirâmos a codornizes, tarambolas, perdi- zes, lebres e gallinholas. Estes nomes, em rima, davam para uma quadra — famosa se o nosso companheiro e amigo Bulhão Pato a fizesse — e ainda sobejavam as lebres, que nas febres de Benavente tinham um terrivel con- soante! Nós aproveitâmos tudo, menos a quadra que não se fez, e as febres, que tambem lá ficaram. E, para despedida, esta caçada foi uma das melhores, e della rei o nosso amphitryão e amigo José Qua- resma, que na volta foi enthusiasticamente procla- mado e saudado, à mesa, com um eloquente impro- viso de Bulhão Pato. Comecámos pelas lebres. Acompanhava-nos um caçador da terra, que era nisto pratico, experimen- tado. Conhecia-lhes bem os habitos, e de longe as lobrigava na cama. Manuel Coutinho tambem tinha bom olho para as desencantar. E parece-me que gostava mais d'ellas que das gallinholas. A caça d'es- tas é mais artistica, a outra mais cosinheira. CAÇADAS PORTUGUEZAS 155 Saimos mais cedo da villa, e, apesar de irmos a cavallo, não tencionavamos correl-as: nenhum de nós — com excepção de Bulhão Pato e Manuel Cou- tinho — era corredor de lebres. A's nove da manhã tinhamos nas sacas tres saltadoras. Uma foi morta à minha vista. Caminhavamos pela orla d'um pinhal, quando Ma- nuel Coutinho me fez signal de parar, e, apontando na direcção dum pinheiro, que ficava na frente de Bulhão Pato, disse-me : * — Vê: Alh está uma na cama. Eu olhei, e nada vi. — Não vê assim um vaporzinho, ao de cima da terra *? insistiu elle. Baixei-me, para vêr melhor ao rez do chão, mas debalde. — Vamos de vagar, e faca signal ao sr. Pato para elle não avançar. E rodeamos, para lhe cortar a re- tirada do pinhal. Assim se fez. Mais perto é que eu percebi o tal nevoeiro, que elle de longe descobria. A lebre com o frio da manhã estava entorpecida, e com pouca vontade de abandonar o ninho. Deixou-nos approxi- mar a tiro, e só então é que levantou; mas queria-se desforrar da demora e salvar a pelle, porque partiu, como uma bala, em direcção ao pinhal. Na carreira cega que levava, ia topar com Bulhão Pato. Démos-lhe um grito, e ou por isso ou porque o viu, hesitou, e voltava já para fóra, quando foi alcançada pelo tiro certeiro, que elle lhe disparou. Uma cabriola no ar, e ficou-se: estava morta. Era uma maçarica. As ou- TI4 CAÇADAS PORTUGUEZAS tras duas cairam aos tiros do nosso amigo Qua- resma e de Manuel Coutinho. | O capitulo das lebres na cama estava fechado. Passámos ás vinhas, e ahi achámos codornizes bastantes para dobrar, e até triplicar os tiros ! As ce- pas desparradas não as defendiam, e ellas eram prom- ptas no levantar. Uma bonita caçada, que durou emquanto tivemos vinha a percorrer. — Continuam aqui a andar perdizes — observou o guia, quando chegámos ao extremo, onde come- cava a charneca. — Pois vamos a ellas — disse o nosso chefe. Ainda que ellas aqui estão no seu castello... É effectivamente estavam. Eram más de levantar, más de atirar, porque já corria uma brisa um nadi- nha forte, e más de achar — ou mortas ou feridas — pela espessura e fortaleza do esteval. Aos cães cheirava-lhes, mas as estevas e as sil- vas castigavam-n-os, e elles largavam a todo o ins- tante o rastro, para procurarem melhor trilho, e com estas manobras davam tempo ás perdizes, que se iam refugiando no mais cerrado do mattagal. Mas na primeira investida, à entrada, ainda se alcançaram algumas. Uma dellas, um tiro largo do meu amigo Qua- resma cortou-lhe o vôo; mas, ferida d'aza, caiu no matto, e lá ficaria, se elle não lhe tivesse marcado bem a pancada, e se as finas ventas da sua Pomba não lhe tivessem seguido, como á vista, a peúgada. A charneca era declive, e ella não corria. voava, porque para aquelle lado as estevas iam rareando. CAÇADAS PORTUGUEZAS 155 Sentindo-se perseguida de perto, ia aos saltos. Fi- nalmente a cadella alcancou-a. Era um vigoroso per- digão, com tres esporões, que já ouvira fogo. Uma das pernas tinha vestígios de fractura antiga, que a natureza concertara. Por tudo isto, e por ser um bello exemplar, trou- xe-o eu para Lisboa, e mandei-o embalsamar. Eu não sei se é a lua ou as estrellas quem influe no nascimento das perdizes: a estrella d'aquelle perdigão era funesta. Ferido primeiro, agora morto, veiu, finalmente, a desapparecer queimado, annos depois, no incendio da minha casa! Era o que lhe faltava ! Perdigão perdeu a penna: não ha mal que lhe não venha... Em frente de nós principiavam os pinhaes. Eram —-se bem me recordo — as Sesmarias de Sua Al- tera. Dos mais abertos e de melhor piso, que tenho encontrado. lamos em linha, e os cães cruzavam o terreno em todas as direcções. O Djalma e a Saida —os meus perdigueiros — pareciam ter pegado em ras- tro, quando de repente se me furtaram á vista, numa quebrada do terreno. Ia-os eu seguindo, eis que vejo surgir, em frente de mim, uma gallinhola. Tinham-n-a elles levantado, e vinha tão proxima e 156 CAÇADAS PORTUGUEZAS baixa, que era um mau tiro. Vendo-me, obliquou à direita, indo passar para a nossa retaguarda, pela mi- nha esquerda, entre mim e Manoel Coutinho. Con- tinuava a ser um tiro difficil e arriscado, porém eu tinha-a já na mira... Mas o meu companheiro, que momentos antes eu acabava de ver, desapparece- Rea Olhei, por cima da espingarda, para todos os la- dos... Nem sombras de Manoel Coutinho !... E a gallinhola ia voando, internando-se no pinhal... É eu não a queria perder, nem chumbal-o a elle. “Eu não o via, mas elle devia estar a poucos passos de mim 14 O leitor imagina bem os transes daqueles rapi- dos momentos. Eu fóra-me torcendo, girando sobre mim, para acompanhar a ave... Finalmente, quando a gallinhola ia já muito para traz de nós, completa- mente fóra da linha dos caçadores, atirei-lhe. Era quasi um tiro perdido. Apezar d'isso a minha Scott, e o chumbo, fizeram a sua obrigação : caiu redonda ! Ella no chão, e Manoel Coutinho a sair detraz d'uma machoca de pinheiros novos! Encobriam-n-o completamente, mas' não o defenderiam, se eu des- fechasse naquella direcção. Quando ella passou alli, é que estava a bom alcance, e se eu aproveitasse o ensejo — o que todos fariam, com raras exce- pcões — o pobre Manoel Coutinho seria um homem morto, ou, pelo menos, estropeado! A minha espin- garda era nova e muito forte, e os cartuchos esta- vam carregados por mim com polvora ingleza e chumbo n.º 5! Uma carga de respeito ! CAÇADAS PORTUGUEZAS l Em — Bravo ! Bello tiro, e que espingarda ! — Obrigado, Manoel Coutinho. Mas o que nós ambos tivemos foi oração boa! E expliquei-lhe o caso, para elle perceber bem as minhas palavras. — De que eu escapei! Como ás vezes se pode mandar uma pessoa para os anjinhos! Boa ora- cão!... Bom companheiro é que eu tive! Aqui o mais contente dos dois fui eu. Eu é que vi bem, e senti o perigo que elle correu. Com este episodio, que ia sendo tragico, termi- naram estas cacadas em Benavente. De tudo, e principalmente dos excellentes e amabilissimos com- panheiros. que alli encontrei, e dos quaes alguns já são mortos, conservo gratissimas recordações. Ás duas horas da madrugada de -14 de dezembro, despediamo-nos, Bulhão Pato e eu, do nosso bom amigo José Quaresma, que tão bisarramente nos recebera e hospedara, e nos veiu acompanhar. O tempo estava sereno, mas o frio era cortante. Duas horas da noite. No barco da valla havia grossos encerados e fogareiros accesos, e nós vinhamos res- guardados com encorpados gabões: eu trazia muitos casacos e grossas meias de campino, e polainas de coiro fortes e sapatos de tres sollas, e cobrira-me com a minha manta de Almodovar, que pesava como o peccado... Pois bem, apesar do nosso grosso e 128 CAÇADAS PORTUGUEZAS abundante equipamento, nunca senti tal frio, e nessa noite memoravel fiquei fazendo idéa perfeita da ver- dade desta phrase: o frio chegou-me aos ossos — que, ás vezes, a gente ouve, e que nos parece exa- gerada! Em vão me revolvia e approximava do foga- reiro, e aconchegava a roupa: só o calor do sol da manhã é que havia de pôr termo ás horrorosas dôó- res, que sentia em todo o corpo! Finalmente elle rompeu, e acabou com o meu martyrio! Abençoado astro ! Teve outr'ora o pinhal da Azambuja terrivel fama pelos seus salteadores. Os bandidos foram-se, mas ainda lá ficou aquelle ladrão do frio, que nos tor- tura e nos rouba o somno! Contra os outros re- corriam os medrosos ás pernas dum bom cavallo, os valentes aos canos das suas espingardas; mas contra este herdeiro dos antigos sicarios, contra o frio, só nos pode valer o sol! É ainda asssm ha de ser, quando as nuvens não estiverem na opposição ! é - f : [ed Ni DE esse paes na 9 esa - ea ea = a Sa ROS RX RX XxX » BR ES O ES? E x gs DANDAR KXx pre E TEfEro SA ANTAS A Z Uma conspiração contra a polvora PILANTASIA ” a tempos notava-se uma concorrencia extraor- dinaria de individuos de todas as classes da sociedade ao local onde, em Lisboa, se ven- dem os productos da fabrica de Barcarena, e os cu- riosos observadores já reparavam com extranheza nas physionomias sombrias de uns, zangadas de ou- tros, desapontadas de todos. A causa d'estas varia- das expressões era só uma, mas terrivel e esmaga- dora —não havia polvora ! A'cada nova interrogação de um recem-chegado, o depositario, o guarda do precioso pó, respondia fria e invariavelmente : — Não ha nenhuma. — Mas... . nenhuma! mesmo nenhuma?! replicava o freguez, attonito e ancioso. 100 CAÇADAS PORTUGUEZAS -— Nenhuma — repetia o funccionario, como o echo. j A noticia espalhou-se, chegou aos jornaes, e d'ahi a dias os periodicos de todas as côres pediam isto, aquillo e aquel"outro para o paiz e para elles — e tam- bem polvora para os caçadores. D'ahi a mais dias eram attendidos, in partibus, e o governo havia por bem conceder-lhes isto, aquiilo e aquell outro, mas a respeito de polvora, nem uma palavra — quero dizer, nem uma caixinha! O caso principiava-a intrigar-nos. Dirigimo-nos ao deposito de Alcantara, e pedimos polvora. Obrtive- mos a mesma laconica resposta : -— Não ha nenhuma. Empregámos todos os recursos da nossa eloquen- cia, desde a voz commovida até ás lagrimas, mas foram baldados os nossos esforços : nem Demosthe- nes seria bem succedido nesta empreza! Não havia nem um grão de polvora nos depositos do estado ! Saimos d'alh tristes e meditabundos, já amaldi- coando o monopolio, que nos privava da materia prima de que precisavamos, já suspeitando vaga- mente a existencia de alguma temerosa conspiração, preparada de longa data, e que, para os seus tene- brosos fins, fosse, a pouco e pouco, comprando toda a polvora que apparecia à venda nos depositos da fabrica de Barcarena. Recolhendo-nos a casa desalentados, achámos a visita de um nosso velho amigo, caçador, que vive no campo, nos suburbios da capital, e que nos deu o grande prazer de confirmar com a sua narração a CAÇADAS PORTUGUEZAS 161 a existencia da trama suspeitada, que hoje para nós é já uma certeza. Ha dias, estando elle a armar alguns laços para apanhar uns coelhos, que lhe andavam na horta co- lhendo as tenras primicias das suas murcianas, e jazendo tudo no mais profundo silencio, sentiu um pequeno rumor por entre as leiras do couval... A mão prompta estendeu-se para a espingarda, fiel compa- nheira, mas parou no seu movimento, quando o ca- cador ouviu um leve sussurro, como o de vozes fa- lando mansinho, quasi em segredo. Poz-se á escuta, embora não visse ninguem, e surprehendeu o se- guinte dialogo : — Então — sempre foste ? — Fui. — E que tal? — Bem. O ministro recebeu-nos perfeitamente, e -affianço-te que temos o. negocio resolvido a nosso favor, disse a segunda voz, com tom emphatico e importante. Mas, continuou ella, vejo que tens curio- sidade de saber como se passou tudo, o que lhe dis- semos, a resposta d'elle, etc. — Sim, muita curiosidade; todo eu sou orelhas. — Bem se vê. T'u não estiveste nunca em Lisboa ? — Não, nem tenho vontade. — Comprehende-se por um lado... pelo da co- sinha. Mas nós entrámos para a sala, e então cor- reu tudo ás mil maravilhas. Emquanto atravessei a cidade com os meus companheiros, vi que eramos alli muito estimados e conhecidos, e que, até mesmo depois de mortos, ainda nos procuravam; chegando a! 162 CAÇADAS PORTUGUEZAS o Interesse que mostram os habitantes, pelas nossas pessoas, ao ponto de darem muito bom dinheiro pelos nossos cadaveres, ás vezes já pôdres! Vê lá tu aonde pode chegar a paixão ! Mas vâmos ao caso. Fômos introduzidos no salão de s. ex.?, o grande ministro da guerra, e sempre te digo que ficámos um pouco encolhidos quando elle, levantando os olhos de cima de uns papeis, nos perguntou que negocio da publica administração nos levava alli. — Elle falou na publica administração ? Hum! -— Falou, sim, e nós, pequeninos... e com uma vontade de bater canella, que nem tu imaginas ! Mas cá em baixo, à porta, estava um malvado com uma espingarda... e então nós chegámo-nos uns para os outros, e o João Coelho, que era um dos da commissão, tomou a palavra, e fez um magnifico discurso, que produziu sobre o ministro grande effeito, porque o vimos todos cruzar primeiro as mãos, depois encostar-se para traz na cadeira, de- pois fechar os olhos, e ficar a... pensar. — A pensar, ou a dormir ? — A dormir?! Isso sim. Quem tem cuidados não dorme. Á pensar — digo-t'o eu. — Então o João Coelho falou bem ? — Se falou! Aquilo, tu sabes, é já de familia. São todos espertos. Vê lá tu, o Latino, o que está na Academia de Lisboa e que sabe tudo, ainda é parente d'este, eo que escreve no Diario de Noti- cias tambem; por isso o que elle disse fez um effei- tarrão! E depois apresenteu-se bem, ia bem enfar- pellado, e como elle é da quinta do nosso regedor, mal ml ( CAÇADAS PORTUGUEZAS 16 o ministro prestou-lhe toda a attenção. Já eram co- nhecidos lá da politica. .. — Então, em summa, o Coelho disse bocadinhos de oiro, hein ? — Se disse! Falou em Richelieu, em Colbert, no marquez de Pombal, e todos estes nomes eram apontados ao amor proprio de s. ex.*, e terminou invocando tambem o nome do Thomaz Ribeiro, que já tinha dedicado um canto da Delphina do Mal á defesa dos direitos da nossa familia. “Todo este discurso fez um tal effeito nos deputados e che- fes das repartições, que compunham a côrte do mi- nistro, que estavam todos, de bôca aberta, a olhar para o João, emquanto elle falou ! — Isso nelles é costume velho. Em nos vendo, abrem a bôca sempre, segundo me teem dito — que eu não vi ainda, nem tenho vontade. - — Depois do João terminar falou o Domingos Pêga—que tem bem bom bico, como mostrou naquel- las eleições em que desappareceram as actas. Tu sabes que foi elle que as abocou, e não houve mais pôr-lhes o olho em cima, e quem ganhou foi o de- putado do governo!... O Pêga, como esperto, refe- riu-se a este feito, e com graça, de fórma que agra-' dou muito o que disse, e o auditorio applaudiu esta parte do seu discurso. Seguiu-se o Antonio Lebre. Apenas elle se poz em pé, manifestando a elegancia da sua figura, e a elasticidade dos membros locomotores, como diz o primo Eduardo —s. ex.? foi todo olhos. Lebre, ape- sar dos seus cincoenta— a edade não faz ao caso — 164 CAÇADAS PORTUGUEZAS ainda tem umas pernas magnificas : tambem é de familia, e ahi, no Riba-Tejo, não havia quem lhe ganhasse na carreira! — Hoje ainda se mexe bem. Com a consciencia do seu merito discorreu larga- mente sobre a conveniencia que haveria em o go- verno ter á sua disposição um individuo como elle, e foi esplendido no momento em que, pintando com vivas côres as grandes luctas politicas, disse ao ministro : — «Chegado o momento solemne em que o paiz tem de manifestar a sua opinião, livre de to- das as coacções, como é proprio d'um povo civili- sado e liberal como o nosso, v. ex.2 pode ter a cer- teza de que não trepidaremos deante da execução das suas ordens, e que galopinaremos — sim, excellentis- simo senhor, galopinaremos. por montes e valles, a despeito de todos os obstaculos d'uma opposição, facciosa, ambiciosa do poder e ingrata, que não quer reconhecer os altos pensamentos do grande mi- nistro, que dirige os negocios da publica adminis- tração !» — Admiravel, é verdade. Esplendido ! Cem vezes esplendido ! — A cousa não ficou aqui. O ministro já se mos- “trava bem disposto, mas não dissera ainda nada po- sitivo. .. Saiu então d'um canto o Rapozo, e, adean- tando-se para o meio da sala, com aquelle ar que nós lhe conhecemos, principiou a falar. — A proposito, ha muito que elle não frequenta cá o sitio!... — Bem sei. Elle teve ahi uma questão com o guar- da, por causa d'umas gallinhas, que lhe desappare- CAÇADAS PORTUGUEZAS 105 ram. O guarda encontrou-o, pegaram-se, e o Ra- pozo ia apanhando uma.carga de chumbo! Mas olha, mano Coelho, que elle tem graça ás pilhas, isso é verdade. Sempre é um partidista! Elle largou umas poucas de piadas ao ministro, mas tão encobertas que quasi se não sentiam! Falou-lhe no seu. ante- passado Rodrigo e na primeira Regeneração, a gran- de, e de tal maneira discorreu que, sem faltar á ver- dade, louvou uma época, e deixou entrever uma cen- sura para a outra, isto recheiado de tantas anecdo- tas chistosas e de ditos tão picantes, que o Barjona, que estava presente, ria a bom rir, e queria já levar d'alli o Rapozo para o Gremio! Findara a audiencia. S. ex.º levantou-se, affagou o bigode, e, com o seu mais magnifico sorriso, des- pediu-nos, dizendo-nos que faria tudo o que nós, com tanta justiça, pediamos, e que fossemos em paz para os nossos campos. —E sublinhou estas ultimas pa- lavras. — Bravo! Vou já levar a noticia á familia. Adeus. — Adeus. Os interlocutores sumiram-se por entre as leiras, e o nosso amigo, depois de os procurar em vão para ter mais pormenores, retirou-se tambem, recapitu- lando o que escutara, e parecendo-lhe resolvida a questão, pelo que acabara de ouvir. As familias dos Coelhos, Lebres, Pêgas, Rapozos, e provavelmente mais algumas, tinham eleito uma commissão, que fôra a Lisboa procurar o sr. mi- nistro da guerra, oferecer-lhe os seus serviços poli- ticos, e pedir-lhe uma coisa.... 100 CAÇADAS PORTUGUEZAS Ora este pedido devia ser da maxima importancia para ellas, uma vez que os seus mais ilustres repre- sentantes tinham arrostado os perigos d'uma grande viagem!... Era, portanto, uma questão de vida ou de morte, cuja resolução dependia da vontade - do mi- nistro. — Logo era a questão da polvora. E aqui está o motivo porque em vão a procura- vam todos os caçadores ! 1883. ndo ala ma ala ala " ii ATT TATO pre do bem Hasan | DA aa PE fi ET TT DAL il Eh au ug! tt ER am = dum e VE ER ERRA li Mim O - Soo Vindimas e perdizes ARRUDA A Evaristo Monteiro Ramalho ETEMBRO é O mez das vindimas e das caçadas. As uvas e as perdizes crescem, .ao lado umas das outras, nos abrigos da encosta, e o sol, que doira e purpureia os rubros cachos, meio occultos pelas largas folhas verdes, é o mesmo ardente e es- plendoroso artista, que illumina e matiza a brilhante plumagem d'aquellas formosas aves. Quando chega esta feliz quadra. do anno opera- se uma revolução na vida dos campos. As collinas verdejantes e os oiteiros, até alli ermos e silenciosos, vêem-se de repente invadidos por uma multidão irre- quieta e rumorosa. Os maltezes beirões e as suas robustas compa- nheiras, com a tez requeimada pelos soes do estio nas ceifas do Alemtejo, as cabeças cobertas por largos chapéus de grandes abas, assentando sobre 168 CAÇADAS PORTUGUEZAS os pittorescos lenços de côres “garridas, curvam-se sobre as cepas avergadas, e alliviam-lhes as fortes varas dos ponderosos e já maduros cachos. Entre a vinha e o lagar cruzam-se os cestos, uns que vol- tam, e outros que vam — cheios, a tressuar e a ge- mer, como se a carga lhes pesasse. A poesia vem aligeirar essas horas de trabalho. Os cantares ao desafio, na redondilha peninsular, tão facil e tão harmoniosa, entoados pela voz alta e argentina das raparigas, a que respondem, em tom mais grave, os moços vindimadores, dam um singular encanto a esta scena, e transformam quasi em ale- gre festa, e, ás vezes, em poetico torneio, aquella dura faina, se entre elles se acha alguma cantadeira celebre, ou o travesso Cupido alli vem armar os seus arraiaes, e disparar os terriveis dardos contra esses agrestes, mas sensiveis corações. Além, na adega, o quadro é outro. As grandes portas encarnadas, abertas de par em par, deixam ver as renques dobradas dos vastos toneis, desta- cando sobre a alvura das paredes altas e nuas. Os lagareiros, descalços e arregacados, vam e vem,, preoccupados com es trabalhos preparatorios do fa- brico, e com o ar de quem tem a consciencia das importantes funcções que exerce. No meio d'elles o lavrador, com o seu grosso jaquetão abotoado, o chapéu sobre a orelha, uma vara na mão, attende a tudo como um general no calor da refrega: dirige os trabalhos, distribue as ta- refas, dá ordens ao caseiro, estimula os preguiço- sos, galhofa com as raparigas; e, recordando-se com CAÇADAS PORTUGUEZAS 169 as mais velhas d'um passado saudoso, vê o presente a sorrir-lhe nos amplos toneis que esperam o espu- moso licor, nos compradores que vam aflluir, e so- bretudo na alegria das creanças que o rodeiam, e dentre as quaes se destacam os rostos angelicos e os olhares, fagueiros e cheios de promessas, dos fi- lhos do seu amor! E rapida esta phase da vida agricola. cAdieu, pa- mers, vendanges sont faites — dizem os francezes. Vi- nhas, cestos e lagares, tudo volta à antiga quietação e isolamento, apenas acabam as vindimas. Ermam- se de novo os campos, já despojados das suas rique- zas; os bandos das perdizes expatriadas tornam a ser os unicos habitadores d'aquelles logares, ainda ha pouco tão cheios de bulicio, e o canto do perdi- são, reclamando as timidas companheiras, é a unica voz, que a espaços quebra o silencio d'aquellas soli- dões. .. Esta voz, que parece clamar no deserto, é ou- vida. D'entre os mattos e as penedias respondem- lhe outras; e, soltando o estridulo e largo vôo, eis as foragidas outra vez de volta ao patrio torrão, a “reconhecerem o sitio, e como que a tomarem de novo posse dos seus antigos dominios. E sedentaria a perdiz — não emigra como a poe- tica andorinha, a sombria gallinhola, a elegante e esquiva narceja. Activa e vigorosa, a formosa galli- 170 CAÇADAS PORTUGUEZAS nacea ama a terra em que nasceu: ahi vive e ahi morre. Eil-a, pois, a percorrer em todas as direcções, por entre as rugosas cepas, os seus trilhos conhecidos e predilectos. Os movimentos são rapidos; aqui e alli vai colhendo, ás bicadas e aos saltos, os fructos esquecidos ou despresados pela mão do homem. São esses fructos, é a uva, quem dá á sua carne o deli- cioso perfume, tão grato ao paladar, e que tanto a distingue das suas irmãs da charneca, menos favo- recidas da fortuna. Paz ephémera, fortuna pouco duradoira, é essa! Gosa a liberdade e os seus encantos, interessante ave: despede-te d'essas vinhas, tão banhadas pelo sol creador— dos abrigos ensombrados, que tu pro- curavas para as séstas do estio — da fonte escondida, rumorosa e sempre fresca do valle, onde te desse- dentavas — de tudo isso, que era teu, e que domi- navas do alto dos montes, castellos roqueiros, que -Julgavas inaccessiveis! Diz adeus a tudo e foge! Os teus dias estão contados. Neste theatro, onde ha pouco se representava uma bucolica virgiliana, toda rescendente dos suaves e penetrantes aromas do campo, vam entrar novos per- sonagens, succeder-se novas scenas, e tu serás a vi- ctima escolhida da nova e fatal tragedia ! Quem vem acordar agora os echos dos montes e animar esta paizagem, não é o côro alegre dos camponezes — ruidoso mas pacífico hymno do trabalho e do amor — é o estrondear da fuzilaria, os latidos das mati- lhas, os gritos dos caçadores! TO ui | PIC (js USE ER AR 4 c Uma tragedia na caça de 184... O sol doirava a crista da serra, uma aragem fresca do norte corria pelos campos, ciciava nas hervas, e agitava os arbustos, espalhando no ar os mil aromas das florinhas occultas na espes- sura dos mattos e silvedos. Na atmosphera azul fer- rete, deserta de nuvens, ouvia-se o canto matinal da calhandra, pairando invisivel, subindo e descendo, soltando as volatas e gorgeios da sua alegre canção. “Tudo annunciava um dia esplendido e uma optima caçada. Dava cinco horas um sino ao longe. O vasto pa- teo da bella vivenda d'um dos mais ricos proprieta- rios de T... tinha-se a pouco e pouco povoado de caçadores e de creados, e por entre elles agitavam- se, insoffridos, dez formosos perdigueiros, que ora Rica a manhã d'um formoso dia do outono 172 Ê CAÇADAS PORTUGUEZAS investiam com o portão, como se o quizessem levar de assalto, ora pulavam em volta dos donos, la- drando, como para os despertar d'aquella aborre- cida immobilidade. Eram esses bellos animaes, quasi todos, pointers inglezes, então ainda pouco conhecidos em Portu- gal. Pernaltos, elegantes e ardentes, tinham o craneo arredondado e proeminente, olhos grandes, cheios de fogo, ventas largas e humidas, a bôca sêca, o peito vasto, rins fortes e arqueados como os do galgo, a cauda fina e curta, as patas pequenas e nervosas, toda a musculatura desenvolvida, e dese- nhando-se vigorosamente debaixo da pelagem, finis- sima e rara. Raça fidalga e exotica, producto do hound e do navarro hespanhol— old spanish dog -— denunciavam nas qualidades a sua dupla origem. Esbeltos, rapidos nos movimentos, distanceando-se do caçador, e explorando em cinco minutos uma area em que outro perdigueiro gastaria meia hora, estes cães tinham herdado a celeridade do galgo cor- redor, o antigo companheiro, o lebréu dos ricos senhores dos tempos feudaes, porém no tirar a ven- tos a caça, fazendo-a a distancias prodigiosas, na certeza das mostras, na firmeza do parar, mostra- vam possuir as solidas qualidades do antigo perdi- gueiro navarro, que em nada tinham desmerecido com o cruzamento, antes pareciam ter requintado nas suas perfeições. Estava-se então no mais acceso da batalha entre os antigos e os modernos. Uns, os velhos amadores, o CAÇADAS PORTUGUEZAS 17 juravam ainda pelo navarro, os novos eram todos pelo pointer. Quantos. duellos, quantas victorias, quantas derrotas: O pointer, aventureiro desconhecido, invadira a peninsula, pela primeira vez; na'comitiva dos officiaes inglezes de Beresford e de Wellesley, e illustrou-se com altos feitos nas planicies e encostas de Torres Vedras! Se não trazia espada, elle proprio era uma espada, tão flexivel e brilhante como uma folha de Toledo, e o seu nariz podia competir em alcance e certeza com os mais destros e experimentados rifles dos fuzileiros escocezes de Spencer e de Picton! Como um meteoro este bello e veloz explorador passou e desappareceu, mas não ficou esquecido na memoria dos nossos caçadores; e alguns, mais intelligentes, procuraram conservar nos seus canis uma parcella do sangue generoso, que tanto os ma- ravilhara. Tempo depois, na epocha da nossa historia, tor- nam a apparecer estes heroes no campo das suas proezas, e ahi travam renhida peleja com os re- presentantes do passado, que elles pretendiam .des- thronar. O velho espirito nacional oppoz-lhes o na- varro, cão de porte severo e magestoso, espadaudo e possante, mas vagaroso e demorado nos movimen- tos — animal distincto pelas longas orelhas, que au- gmentavam as avantajadas dimensões da sua enorme cabeça. Grave e comedido, digno de figurar nas caçadas dos nobres e desembargadores do tempo d'elrei D. José e de D. Maria I, havia entre elle e o cão inglez a mesma differença que entre um poe- 174 CAÇADAS PORTUGUEZAS ma de Garrett e uma ode de Antonio Diniz — um mundo! i A caçada que tentamos descrever, foi mais um episodio d'essa longa campanha, mais um lance do encarniçado dueilo entre as duas raças, que só de- via terminar pela derrota e completa anniquilação dos fieis companheiros dos nossos avós. Hoje o na- parro portuguez pertence á historia. “Requiescat im pace. O estampido séco dos fogachos annunciara a ul- tima scena d'esse primeiro acto, preparatorio obri- gado de todas as antigas caçadas. O portão de fer- ro, que dava ingresso para o pateo, abriu-se de par em par, e toda a cohorte venatoria golfou impetuosa para o campo, e estendeu-se logo em linha de ati- radores, com um garbo e firmeza verdadeiramente marciaes. Detraz d'elles ouviu-se outra vez o ranger dos gonzos, e o som dos fechos, que José Domingos, o velho caseiro, corria lentamente, ao mesmo tempo que ia seguindo com os olhos pasmados a ala dos brilhantes caçadores. José Domingos, o tio Domingos, como lhe cha- mavam no sitio, tinha visto muita coisa na sua longa vida de guarda de vinhas e de caseiro d'aquella quinta, mas curiosos assim é que elle nunca vira. O bom do homem estava boguiaberto no pateo, quando Sa! CAÇADAS PORTUGUEZAS 1”; os hospedes do seu patrão vinham descendo dos quartos, já equipados e armados, e mirava e remi- rava, dos pés até á cabeça, os trajos variados, ricos e pittorescos dos forasteiros. —Uma hora depois ainda estavam presentes aos seus olhos as altas bo- tas á monteira, os calções de veludo azul ou folha sêca, os coletes á franceza, as caçcadeiras curtas com os seus grandes botões de metal, onde se viam em relevo cães, veados e javalis, os chapéus baixos de feltro e de castor, as vistosas rêdes, os cintos de coiro inglez, e sobretudo — o que mais o deslum- brara—as magnificas espingardas de: dois canos, cinzeladas e doiradas. Quando o tio Domingos voltou a si do extase em que ficara, cerrou tambem o postigo, e, levando as mãos á cabeça, como para conchegar o chapéu, gesto que lhe era familiar, e que correspondia nelle a alguma profunda meditação, atravessou lentamente o pateo, e deu entrada na vasta cosinha, onde cre- pitavam, na lareira, grossos troncos de azinho. — Ora então, guarde-o Deus, mestre Antonio — disse elle, dirigindo-se a um vulto que se destacava no fundo vermelho da chaminé, e que era nada menos que o cosinheiro, individuo de grandes presumpções culinarias, e conhecido como um Harpagão em dez leguas á volta. — Deus o guarde, tio Domingos. — Que me diz desta gente, sr. Antonio? Isto é de uma pessoa ficar assim, como quem diz... atto- lito! Como estes ainda cá não appareceram ne- nhuns. Não, como estes nenhuns ! 176 CAÇADAS PORTUGUEZAS — São alguns principes encobertos — respondeu o cosinheiro, que estava sempre em opposição com o seu interlocutor, apesar, ou por causa, d'umas fric- ções de marmeleiro, que o guarda lhe applicara certo dia em que elle se excedera. — Eu sei lá se são, ou deixam de ser... O que sei, e o que você não pode negar, nem ninguem, é a maneira porque cá o patrão os trata-—e que é gente muito rica tambem é certo. Basta olhar para elles. Eu cá não sou como certas pessoas: sempre gostei de vêr homens que sabem empregar o seu dinheiro. Sem fazer offensa a ninguem, cá nos sitios ninguem se apresenta assim. Elles, hontem á ceia, ó Joanna — continuou o caseiro, voltando-se para um canto da casa —olha que não falaram senão de es- pingardas inglezas de quarenta moedas, de setenta moedas! Eu sei lá!... Tambem, elle é verdade, quando a gente vê assim uma coisa mais fina — ainda que mal pareça, eu sempre digo—ha de ser extrangeira. Elle, d'antes, tambem cá se faziam ricas armas: eu, quando estive em Salvaterra, lá as vi. Eram do sr. D. Miguel. Que riqueza d'espingardas, e como aquillo punha, santo Deus! Era como se a gente pozesse o chumbo com a mão! Falando e gesticulando, o tio Domingos fôra-se chegando para a chaminé, e pegando num tição accendera o cigarro; depois, silencioso, principiou com o pau tostado a fazer pontos negros na parede caiada de fresco. — Ahi está você a sujar-me a parede! — vociferou, fóra de si, o Vatel sertanejo. CAÇADAS PORTUGUEZAS 177 — Não é por sua conta—respondeu serenamente Domingos. Olhe, era assim juntinho, que as espin- gardas de Salvaterra punham o chumbo. — Ora esta! Para que havia agora de lhe dar! resmungou mestre Antonio. Se o patrão vê aquillo vae ahi tudo pelos ares! Volta-se contra mim, e eu é que tenho de o ouvir! —E, virando-se para o tio Domingos, que o olhava de soslaio e se lembrava do marmeleiro, continuou: Leve o diabo as espingar- das! Você diz que custam quarenta moedas! Então é um predio de casas, que cada um d'esses homens leva ás costas! Já é mania! São cinco. A quarenta moedas — faz duzentas moedas. Duzentas! E acha «que é bem empregado tanto dinheiro?! Hein! Pois eu não digo o mesmo. Aquillo fazia a sua fortuna ou a minha... e a elles de que lhes serve? Para “andarem por ahi aos tiros ás perdizes e aos coelhos? Para isso qualquer chanfalho velho serve—e mes- tre Antonio, cheio de avareza e d'inveja, apontava, com o labio inferior desdenhosamente descaído, para a velha caçadeira do caseiro, encostada a um «canto. — Aquillo, sr. Domingos, ás vezes é a per- dição dum homem. Olhe que é. — Jesus! Credo! Você sempre tem coisas, sr. An- tonio! Não diga tal: nem pensar nisso é bom! Longe vá o seu agoiro! Umas pessoas tão honradas e boas como aquellas!... Deus os livre! Amen. A voz dolente e cançada da tia Joanna, que rom- pera o silencio, provocada pelas sinistras reflexões «do cosinheiro, baixou logo de tom, e continuou quasi sumida as suas rezas, marcadas pelas contas escu- Lo 178 CAÇADAS PORTUGUEZAS ras e pólidas d'um velho rosario, que lhe passavam vagarosas por entre os dedos vermelhos, ossudos e lustrosos, curtidos pelas geadas de sessenta inver- nos. | Ninguem replicou á velha caseira, e tudo recaiu no mais profundo silencio. Apenas se ouvia o cre- pitar dos ramos verdes, que se torciam e queimavam na lareira. O tio Domingos pegou num podão, sobraçou a espingarda, e saiu em direcção da vinha, cantaro- lando uma cantiga. Mestre Antonio, depois de atiçar o lume, metti- das as mãos nos bolsos das calças, ficou quedo, encostado à hombreira da chaminé, e parecia, pelo vago do olhar e pela completa immobilidade do vulto, achar-se talvez entregue a profundas cogitações sobre a injustiça da fortuna, que a uns dava riquezas fabu- losas, e condemnava outros, como elle, á eterna manipulação do perú recheiado e do paio com ervi- lhas, numa cosinha provinciana! & Os terrenos, em que se fazia a caçada, eram do- brados e trabalhosos; as cepas altas, as varas for- tissimas, o chão revolto, o torrão duro como pedra. Para todos os lados só se viam collinas, montes e encostas cobertas de vinha, e apenas, de longe em longe, uma pequena chapada, revestida de matto, CAÇADAS PORTUGUEZAS 170 quebrava com o tom da urze a monotonia das gran- des massas de vinhedo. O sol subia e já queimava. Cessara completa- mente a aragem fria da madrugada, e a cigarra co- meçava a fazer ouvir o seu canto estridulo e sêco. “Nuvens de mosquitos e de melgas redemoinhavam no ar, que tremia no alto dos cabeços, e as linhas sinuosas dos montes recortavam-se com dureza so- bre o azul vigoroso dum ceu africano. De quando em quando corria uma brisa, mas era quente e aba- fadiça: o ar parecia ter passado por uma terra de fogo, e não trazia nenhum refrigerio aos pulmões escandecidos! Um dia de perdizes! Ao longe vêem-se reluzir os canos das espingar- das: são os nossos caçadores. Na frente da linha os cães exploram ao largo o terreno em todos os sen- tidos. Caminham todos para cá e em breve estarão comnosco. Duas nuvens de fumo, logo depois o som de dois tiros, dobrados sobre: uma banda que se levantou, abrindo como um leque, e as vozes: — Dá cá, Diana — Aqui, Sultão — annunciam-nos que mais duas perdizes vam entrar na saca d'um dos habeis atira- dores. Pararam todos e approximaram-se do que vinha na ponta esquerda, emquanto elle carregava a espingarda, com que-acabara de fazer um magnifico double. — Como sempre, doutor — disse um dos compa- nheiros, comprimentando cordealmente o feliz mor- tal, que dera mais uma prova da sua destreza. 180 CAÇADAS PORTUGUEZAS — Muito obrigado, estavam perto: assim fossem todas. João de Bettencourt — o doutor — que dirigia a caçada, por ser dos mais praticos nos sitios, era um homem entre trinta e seis a quarenta annos, de es- tatura mediana e reforçado, mas enxuto de carnes; uma barba preta e assetinada emmoldurava-lhe o rosto trigueiro, e o "bigode farto, mas cortado nas pontas, á moda da epocha, sombreava-lhe a bôca fina e bem fechada, indicio de grande firmeza: os olhos pretos e vivos eram cheios de vivacidade e ener- gia. Vestia elegantemente uma caçadeira clara com. botões de metal, um colete direito, calções de ve- ludo côr de vinho e grandes botas, que lhe desenha- vam as pernas, bem torneadas e musculosas. Trazia um chapeu de castor alvadio. Um duplo chumbeiro e um polvorinho de segurança ornavam-lhe a cintura ; e neste momento acabava de escorvar a magnifica espingarda de dois tiros, em cuja fita se lia o nome celebre de Joseph Manton, de Londres. Fóôra este, de todos os hospedes do seu patrão, o que mais attrahira as attenções e o olhar experimen- tado do nosso tio Domingos. Não lhe era extranha aquella figura. Avivando recordações, lembrava-se de ter visto o doutor em Salvaterra, que foi antigamente, no tempo das coutadas reaes, uma especie de aca- demia, onde se formaram os mais afamados caçado- CAÇADAS PORTUGUEZAS 151 res. Effectivamente o doutor, ao voltar de Coimbra, frequentara, no inverno. Salvaterra e Benavente, e conquistara os seus primeiros loiros, matando gali- nholas na Coutada velha e nas Sesmarias de Sua Alteza. João de Bettencourt era um dos mais afamados atiradores do seu tempo, e não havia reunião de sportsmen em que não se narrassem as admiraveis proezas dos seus cães e da sua espingarda, saída das officinas do grande arcabuzeiro inglez. As suas opi- niões, em materia de caça, eram um evangelho ; os seus tiros reputavam-se infalliveis; a admissão na roda que elle presidia equivalia a um titulo honori- fico; caçar na sua companhia era favor a poucos concedido; ser elogiado por elle, no synhedrio em que se reuniam os mestres, ainda era mais raro; e, sobretudo, o mais difficil de alcançar, o que os neo- phitos consideravam como a maxima honra, er: se presenteado por elle com um cão da sua apurauis- sima raça. Isto correspondia a uma*medalha de honra, no exercito dos caçadores ! O doutor mandava matar todos os filhos das suas perdigueiras; reservando apenas algum para si ou para um amigo muito intimo. Não era isto avareza, era amor á pureza da raça, que elle não queria vêr abastardada por caçadores menos escrupulosos. Um dia, sabendo que um dos seus creados não executara rigorosamente as suas ordens e vendera um cachorro, chamou-o ao seu quarto, tosou-o, e despediu-o! 1582 CAÇADAS PORTUGUEZAS * * Carregada a espingarda, todos os caçadores reto- maram os seus logares, e a ala avançou, silenciosa e lentamente, pela encosta. Os pointers brancos, malhados, uns de preto, ou- tros de castanho ou amarello, das raças de maior nomeada então, francezes de Saint-Germain, ou in- glezes, rapidos na busca, seguros nas mostras, eram o que nós chamamos, espadas de primeira ordem. Na frente do doutor trabalhavam admiravelmente dois soberbos perdigueiros brancos e castanhos, e elle seguia-os, attento aos seus movimentos, que de- nunciavam caça já proxima. Aos primeiros reparos d'um d'elles correra o outro e confirmara-os; se- guiram-se as mostras, e de fiada em fiada, até que chegaram á parada firme: a perdiz tinha ferrado. Os cães pareciam duas rochas. — Está á Diana — disse o doutor ao seu compa- nheiro da direita. Quer-lhe atirar ? — Muito obrigado, mas parece-me: que já se pas- sou e está ao cão. — Não, replicou o doutor, ha de saltar á cadella : ella pára mais longe, correm-lhe mais os ventos. Entra, Diana ! A cadella deu a pancada, e a perdiz levantou-se. Ouviu-se um tiro, e a ave, que tomara para a es- querda, subiu a prumo e foi cair dentro duma quinta, conhecida por ser o couto das perdizes d'aquel- les arredores. CAÇADAS PORTUGUEZAS 155 — Bravo! Bello tiro! la encastellada ! Está morta ! — gritaram em toda a linha os caçadores. — Bom, disse o doutor, aquella está segura, foi cair em casa. Contrariame um pouco ir buscal-a, porque devemos aproveitar o dia, que está excel- lente; mas podem caçar esta vinha toda, e depois nos encontraremos lá em cima — e desceu a procu- rar a entrada da quinta. Pouco tinha elle andado, quando ouviu dois tiros : era uma banda, que se levantara aos companheiros, e que, depois de deixar uma perdiz, quebrara d'aza, fazendo tambem a sua revoada para dentro da quinta. Seguindo-a com os olhos, chegado ao por- tão, entrou desassombradamente, como costumava, e caminhou rapido em direcção á vinha, onde julgava encontrar a perdiz morta, disposto a atirar tam- bem ás outras; porém, apenas dera alguns passos naquella direcção, parou, fazendo um gesto de sur- preza. A' porta do caseiro, outr'ora sempre hospitaleira, e onde elle era o bemvindo, apparecera um homem de má catadura, que, em tom desabrido, o inter- pellou grosseiramente. Houvera all mudança re- cente no pessoal, e o novo caseiro era-lhe com- pletamente desconhecido: o seu aspecto brutal e provocante contrastava com o rosto agradavel e bondoso do seu antecessor. O doutor, emquanto attentava no rustico não lhe respondera, e o Cerbéro, que não era para gracas, largou o seu posto e velu direito ao intruso. —-- Quem é você? Não ouve? Ponha-se lá fóra! 184 CAÇADAS PORTUGUEZAS Foram as primeiras palavras que elle dirigiu ao doutor. João de Bettencourt, mediu o homem, e viu im- mediatamente que tinha deante de si um d'estes. guardas do campo, ás vezes assassinos façanhudos,. que alguns proprietarios ruraes encarregam da de- feza das suas quintas e herdades, sem se lembra- rem do odioso que isso acarreta sobre elles, e dos. grandes prejuizos e perigos, que d'ahi lhes podem advir. — Sou um caçador, e venho buscar uma perdiz, que caiu morta naquella vinha — replicou o doutor, como se não tivesse reparado nas palavras e no tom: insolentissimo do caseiro. — Qual perdiz, nem qual diabo! Você não me em- baça a mim! O que você quer é caçar as perdizes aqui da quinta, e então vem deitar-me lôas, a ver se eu caio. Olhe, isso era bom no tempo do outro : para cá não pega. — Rua! — Já lhe disse o que devia dizer. A perdiz está alli morta, e eu não saio d'aqui sem ella. Foi para isso que vim cá, entenda vocemecê — replicou o doutor, apparentando uma grande serenidade. — E. principiou a caminhar para o logar que apontara. Debaixo dos pés se levantam os trabalhos, diz o povo, e é verdade. A resolução do doutor estava tomada: havia de sair d'alli com a perdiz, custasse. o que custasse. Era sua, tinha consciencia do seu direito, e pela primeira vez lh'o negavam com um modo tão insolente. Estava costumado a ser respei- tado em toda a parte, e não era homem que se dei- CAÇADAS PORTUGUEZAS [85 xasse enxovalhar impunemente: não seria aquelle villão quem o faria recuar. O guarda, vendo o movimento do caçador, rosnou uma praga, e atravessou-se, vociferando, na frente do seu contendor. — Saia já d'aqui para fóra, seu alma do diabo!... Você, cães e tudo — e depressa, que já o não vejo! — É o rosto negro do caseiro tinha uma expressão de ferocidade bestial, os olhos infectados pareciam querer sair-lhe das orbitas, a voz tremia-lhe e os ges- tos eram furiosos! — Sae, ou não sae?—rugiu elle, chegando, com os punhos cerrados, quasi a tocar na espingarda do doutor. — Não saio d'aqui sem a perdiz, e, se não quer que eu entre na vinha, leve os cães, e vá-m'a bus- car. Se não, vou eu... — Vae?! disse elle, como admirado d'uma tal au- dacia, e com um sorriso terrivel. — Vou, e já— respondeu o doutor, dando logo um passo avante. — Espere, que eu já lh'a dou — e dizendo isto o guarda correu á casa. O doutor seguiu-o, mas pou- cos passos tinha dado, no pequeno terreiro que a defrontava, que já o homem estava de volta, com uma . foice roçadoira, e arremettia contra elle, atirando-lhe estas palavras : — Tome lá a perdiz — acompanhadas d'um golpe temeroso á cabeça—uma pancada redonda — como lhe chamam no jogo do pau, e que dada com uma foice é sempre mortal. João de Bettencourt conhecia todos os segredos 186 CAÇADAS PORTUGUEZAS d'aquelle jogo. Nas suas visitas a Salvaterra frequen- tara os melhores jogadores do Riba-Tejo, aperfei- coara-se em Lisboa, na escola do celebre José Maria, o Saloio (4), e nos logares por onde passara tinha dei- xado recordações da força do seu braço, da sua des- treza e agilidade. Deu um salto á retaguarda, e a foice passou-lhe, como um relampago, deante dos olhos. Cresceu o outro sobre elle, e atirou-lhe o segundo golpe tambem atravessado, que não o aicançou, e ao terceiro, de ponta, o doutor, furtando o corpo, desfe- -chou... O estrondo do tiro confundiu-se com um grito: -o malvado caíu. Estava morto! — Assim o quizeste— disse o doutor, encarando o cadaver, que lhe jazia aos pés, e carregando a es- pingarda. Depois, com a physionomia contrahida pela im- pressão da tragedia, de que a sua má fortuna o fizera protagonista, olhou em volta de si, Não havia nin- guem. Deante delle estava só a fiel Diana com uma perdiz na bôca. | O pobre animal, ouvindo o tiro, entrara na vinha, e de lá trouxera a causa innocente d'aquella triste aventura. — Dá cá, Diana — disse o caçador, voltando-lhe as costas, e, pegando na perdiz, relanceou os olhos à casa solitaria do guarda, seguiu pela rua larga da (1) José Maria da Silveira --o Saloio, apesar da alcunha mão o era, porque nasceu em Lisboa, na calçada da Graça. CAÇADAS PORTUGUEZAS 187 quinta, cortou pelas terras de semeadura e dahi passou ás vinhas. Caminhando com passo rapido chegou a um portello, que dava saída para os cam- pos, transpol-o, e achou-se no meio dos seus com- panheiros. — Então sempre aproveitou o passeio — observou um d'elles—nós cá ouvimos um tiro. — Sim, foi um perdigão — respondeu o doutor la- conicamente e com uma expressão singular, de que depois elles nunca mais se lembraram sem um cala- frio, quando narravam o tragico episodio d'aquella caçada. Um perdigão! Que fibras, as d'aquelle homem! A caçada continuou animada, mas, já para o fim da tarde, os amigos do doutor repararam que elle, ás vezes, não atirava ás perdizes que se lhe levan- tavam, e parecia distraido — elle, o mais attento e prompto de todos os caçadores! Findara o dia. O sol desapparecera além dos 'montes, e ouvia-se o tilintar das campainhas dos rebanhos, que recolhiam da serra. Ao passar por uma modesta ermida, cujas portas estavam abertas, João de Bettencourt deu a espingarda a um dos com- panheiros, e, dizendo-lhe : — Vamo-nos pôr bem com Deus — entrou e ajoelhou... Dava a sineta as Ave-Marias, e o som melancolico 188 CAÇADAS PORTUGUEZAS do bronze christão, chamando os fieis á oração da tarde, perdeu-se lentamente na atmosphera triste dos campos abandonados ! No dia seguinte espalhou-se no sitio a noticia de ter sido encontrado morto com um tiro o Miguel Maltez, caseiro da quinta, e tempos depois o tio Do- mingos, que sabia tudo, contava na cosinha aos tra- balhadores, reunidos em volta da lareira, a historia da perdiz e do perdigão. O alo o alo cada aja alo - lo alo aja e o 9 pm e ms en] (Ipem PEER A!) CALA ATA or CCE CR TT TA a] h o A A Mt do di Mo ho hi | LEDS 4 US .. E o. — .. e — .. — e] || , O a mm A A Os Pias INHA-ME, na vespera, dito o nosso hospedeiro e bom amigo, Ulpio da Veiga, que iriamos ás per- dizes, e teriamos para guia o Antonio Pias. Com effeito, ao romper da manhã — uma formosa manhã dos principios de setembro de 1870 — punha- mo-nos a caminho, e iamos bater á porta do rustico caçador. Um casebre grande de pedra quasi ensossa, com uma cobertura de telha vã, e outro egual, contiguo, para o gado e utensilios agricolas. — Na frente da casa um grande terreiro — a eira. O modesto casal assentava numa pequena chapa- da, na encosta d'um terreno de vinha — as famosas vinhas da Arruda —bom couto de perdizes, onde é dificil batel-as e caçal-as, tam dobrado é o chão, tam altas e valentes são as varas do vinhedo! A familia dormia ainda. Procurava eu com os Igo CAÇADAS PORTUGUEZAS olhos a porta, quando um dos companheiros apon- tou para um grande buraco na parede, uma especie de janella, que o tempo alli tinha aberto, e por onde: entrava o ar e a luz. Espreitei para dentro. Encos- tada à parede estava uma cama; estendi a mão e to- quei num hombro. O homem acordou: era o An- tonio, um dos filhos do velho Pias. D'ahi a nadinha, a Diana, uma Diana muito feia: e desengraçada de formas, mas muito melhor caça- dora do que outras Dianas de mais altos e ele- gantes cothurnos, veiu comprimentar-nos, a nós, e aos seus irmãos do mesmo pêlo, que do alto das suas brilhantes colleiras olhavam desdenhosamente para a velha perdigueira. Um instante depois appareceram-nos os-dois irmãos —homens de trinta a quarenta annos, feios, caras angulosas — de barretes na mão. Physionomias in- genuas, humildes e boas. — Então os senhores querem caçar ? perguntou um d'elles. | — Queremos, sim. — E' que nós ainda não dissemos nada ao pae.... Uns rapazes de dez annos — dos bem educados, já se vê, o que principia a ser raro — não pronun- ciariam aquellas palavras com o tom de desaffectado- respeito com que elles as disseram! Estavamos em frente da porta. O pae approxi- mou-se. Era um velho — uma cabeça fina, rosado, de feições correctissimas, olhos brilhantes, nariz aqui- lino, cabello anelado, branco como a neve. Tinha oi-- tenta annos feitos, mas ninguem o diria, tam apru-- CAÇADAS PORTUGUEZAS IgL mada era a figura, tam ageis os movimentos! Pa- recia impossivel como d'aquelle tronco robusto e ele- gante tinham saído estas duas vergonteas desen- gonçadas e toscas. Algum caso de atavismo, que se deu no pai, e não se reproduziu nos filhos. — Podes ir, disse elle ao Antonio. Partimos encosta abaixo, e depois encosta acima, atravessando o Sizandro —rio da familia dos rios sêcos, mas que se dá ares. Tinha umas poldras — como se tivesse agua! — umas pedras muito agudas e irregulares, mais difficeis de passar do que um ribeiro caudaloso! E depois mais encostas a subir, e mais encostas a descer — que a phrase andar por montes e valles foi decerto feita por algum caçador d'aquel- les sitios, aliás optimo creadouro de perdizes ! E que perdizes! Formosas, corpulentas, e saborosas então ! Sustentadas a trincadeira e a arintho d'aquelles torrões abençoados, como não haviam de ser assim! Acabavamos de entrar numa vinha já vindimada, onde ellas andavam ao rebusco, quando se levantou uma na minha frente. Atirei-lhe. — Leva sangue — grita-me um dos companheiros, lá de longe, em tom faceto. — Dentro e fóra — respondi eu, que vira contrahir as azas da minha victima. — Lá vae para a Erich re plieon elle, com ar vencedor. 192 CAÇADAS PORTUGUEZAS A ave, com efeito, depois do estremeção que “dera ao receber o tiro, seguira com o mesmo vigor, e baixou a grande distancia de nós, como se não fosse tocada. No emtanto o Pias, que se afastara, achava dois coelhos e uma perdiz, na sua volta, e trazia-os já á cinta, todo ufano, não de si, mas da sua espingar- da — uma caçadeira brilhante como prata, já com um malhete de estanho num dos canos, attestando não a excellencia do torchado, mas a imprevidencia e a ignorancia do homem, que trazia nas mãos tal inimigo ! —E certa para a caça — disse-me elle, acari- ciando a escopêta, quando eu lhe gabava a des- treza., — E certa para a caça, é, e incerta para você — observei eu, apontando para o malhete, accusador d'um accidente. — Isto não foi nada. Até ficou mais forte! Por aqui não torna ella a rebentar. Aqui onde está, cus- tou-me doze mil réis. A gente é pobresinha, o se- nhor bem vê. E desgraças a todos acontecem. .. Em- fim, andamos todos á mercê de Deus. Ignorantes e pobres, extenuados do trabalho, mal comidos, mal dormidos, estes homens são mais felizes do que muitos de nós. Teem as mesmas CAÇADAS PORTUGUEZAS 19) alegrias e as mesmas tristezas, mas aquellas mais intensas, mais despreoccupadas, mais naturaes; e teem, sobre tudo isto, uma coisa, que nós já não temos, um sentimento que elles não analysam, e que nem podem discutir, nem justificar — a crença in- abalavel e absoluta na intervenção constante da Pro- videncia ! — Para elles o bem é sempre um premio, e o mal um castigo. São mais felizes, são. Quando encontro alguma d'estas almas, singelas e crentes, nunca me vem ao espirito o perturbar-lhe a serenidade, levantar a mais leve ruga, lançar a mais pequena nuvem sobre a superficie d'esse lago, que só reflecte o azul e as estrellas do ceu!... Que lhe daria eu em troca da sua fé, que o faz encarar a morte como uma introducção à Divina Presença, á vida eterna ? As minhas duvidas ? Nada mais. O roubado, o espoliado seria elle, e o que lucraria eu com isso? Tanto mais que as minhas sombras, lançadas nesse espirito desarmado, tornar- se-lhe-iam logo em trevas ! — Mas, ó Antonio, continuei eu—a sua espin- garda não cursa tanto como a minha. — Lá isso, com perdão do senhor, cursa ella. — Ora vamos vêr. Tinhamos feito alto á sombra d'um moinho. Saíu 15 194 CAÇADAS: PORTUGUEZAS um Diario de Noticias de dentro da saca dum de nós, e dividido ao meio, pregadas as duas meias folhas com dois pausitos agucados na parede do moinho, serviram-nos d'alvo. Medimos cincoenta passos, e disparámos. A minha espingarda crivou o papel, a d'elle metteu um bago aqui, outro acolá! Pias via, e não queria acreditar nos seus olhos. O ar victorioso que elle tinha, quando, depois de atirarmos, caminhou para o jornal, tornou-se-lhe na expressão triste dos vencidos. Uma illusão de me- nos ! Pobre Antonio ! — Pois sim, senhor — dizia elle, sentando-se numa pedra, e cruzando a sua companheira sobre os joe- lhos. Vencida está ella por essa fidalga, porque o dinheiro sempre mostra o que é, mas aqui por es- tes arredores não appareceu ainda quem a batesse. — São as mãos do dono, que a fazem valer — An- tonio. — Não, senhor, desculpe a sua palavra honrada, não, senhor — é que canos como estes, não queria que os houvesse melhores... E não sou eu que o digo. O mestre Augusto, que o senhor ha de conhe- cer muito bem, tambem me disse o mesmo, quando ella lá esteve em Lisboa a concertar... — Isso será tudo verdade, mas quem bate aqui | tudo, todas as espingardas presentes, passadas e futuras, é a minha reyuna ! Voltámo-nos todos para o novo interlocutor. Era um rapaz reforçado, louro, de cara boa e jovial, que até alli nos acompanhara, sem dizer palavra, e sem dar um tiro. Elle empunhava e expunha aos nossos olhos “ E al CAÇADAS PORTUGUEZAS Ig assombrados, uma colubrina immensa, de coronha curta de nogueira, em meias canas, com o cano todo vermelho, não do sangue das victimas, mas da ferrugem dos muitos annos, e que, tendo nascido na edade do silex, fôra transformada para a percussão moderna, systema de cão e borrachinha: Uma arma, talvez inoffensiva, em taes mãos, para quem estivesse ao alcance do tiro, mas com certeza assassina, para os que não se resguardassem dos estilhaços ! O formidavel aspecto, a feia catadura do terrivel instrumento, chamaram todas as attenções para o seu possuidor, e choveram logo sobre elle os motejos, e os dichotes. — Trouxeste isso das Indias? E' a irmã mais velha da peca de Diu! disse um. — Recolhe para lá o arcabuz, que espantas a caça, mesmo sem dar fogo! acrescentava outro. — Você com essa arma é capaz de metter uma bala no olho direito da lua! dizia um terceiro, que tinha bom bico para a troça. Xavier, assim se chamava o rapaz, recebeu im- pávido o ataque, e propôz o duello a todos os pre- sentes. Foi-lhe acceite. O pobre moço, que já af, frontara os perigos do mar, parecia não ter medo de coisa alguma em terra. Tinham-lhe emprestado aquella sucata, e elle dispunha-se a dar tiros com 196 CAÇADAS PORTUGUEZAS ella! Observei-lhe o risco, que todos iam correr com aquella visinhança... — Não ha medo. Isto é solido : é capaz de aguen- tar um paiol, quanto mais uma carga! E, dizendo isto, foi carregando a arma, a olho — uma mão cheia de polvgras outra de chumbo! Uma enormidade ! — Agora marquem a distancia — gritou elle. — Cem passos — será bastante? perguntou um. — Vá os cem. Contaram-se os cem passos. A tout seigneur tout honneur. Eu e os outros collocámo-nos a respeitosa distan- cia. — Preparar! Apontar! Fogo! disse um. A' terceira voz o tiro partiu. E, com sobresalto e terror de todos, Xavier caiu redondo, de costas no chão, levando as mãos á cabeça! Corremos a levantal-o. Não estava ferido feliz- mente, mas na testa tinha uma grande mancha, ne- gra e vermelha. Fomos examinar a colubrina. A borrachinha ti- nha desapparecido, e fôra ella que, projectada à ca- beca do pobre rapaz pela violencia do tiro, o deitara ao chão. — D'esta vez escapou, mas sirva-lhe de lição, e não torne a atirar com espingardas ferrugentas — disse-lhe um dos nossos companheiros, pondo ao hombro a sua caçadeira de ferro fundido. — Bem o prega fr. Thomaz — pensei eu, vendo este tão arriscado como o outro! CAÇADAS PORTUGUEZAS 197 O sol principiava a descer, e estavamos longe de casa. Fizemo-nos de volta, e fomos engordando as sacas, victimando aqui uma perdiz, além um coe- lho, até que démos entrada no nosso quartel-gene- ral. A' porta José Diniz —o velho caseiro — apresen- tou-me uma perdiz. — EÉ' aquella, a que o senhor atirou de manhã, e que foi para a Martinacha. la ferida —eu bem vi. Ella depois voltou, e veiu morrer lá em baixo, ao pé do rio. — E que não me quiz deixar por mentiroso. a ni cocamanteamemcem a E ETICO NC NIE CCC TER CCEE CRER CE CCC a JaiPa Nai) DR CENTRO CECICICOCACICICACa LI BORN RR nene URU Ra LM! Mestre Dominguizo ESCIAMOS à encosta, e 1amos cortando por uma E vinha, acabada de vindimar. Verdejava ainda a folhagem, malhada, aqui e acolá, pelo tom avermelhado das parras sêcas. O sitio era dos mais creadores de perdizes. — São certas aqui — dizia-me mestre Dominguizo, apontando-me os terrenos, que elle delimitava, des- crevendo um meio circulo com a sua espingarda. Não as haverá em parte alguma d'estes arredores, mas aqui não falham. E estão aqui, estão a saltar. Os cães já ahi vam no rastro d'ellas. Olhe... Effectivamente, os nossos perdigueiros, que as vi- nham tirando a ventos, iam-n-as já fazendo, iam-se ficando. Approximava-se o momento psychologico... 200 CAÇADAS PORTUGUEZAS Mestre Dominguizo não era um camponio vulgar, distinguia-se entre os seus patrícios — era um typo. Dez legoas à volta do torrão que o vira nascer, cita- vam-se as suas historias, a sua espingarda, as suas botas, e o seu nariz! Comquanto as Graças não ti- vessem de certo auspiciado o seu despontar neste mundo, era engraçado, e onde elle estivesse não pa- rava a tristeza. Tinham um quer que de comico as feições e a fi- gura do meu companheiro de caça. Meão de estatura e entresêco, o que avultava em mestre Dominguizo era o nariz — um nariz enorme, cuja aresta, sinuosa e fina, vinha terminar em ponta aguda, ladeada por duas largas narinas deseguaes e dotadas d'uma mo- bilidade espantosa. Quando elle contava alguma das innumeras his- torietas do seu vasto repertorio, era de ver como ellas tam acompanhando os lances da narrativa — bran- das e suaves no idyllo, lubricas na scena amorosa, frementes no drama, dilatadas e furiosas na trage- dia! Um nariz assim valia meio talento... Estava pedindo um Talma, um Frédérick Lemaitre! Se um grande actor o possuisse, que effeitos não tiraria de tão portentoso orgão, de tão flexivel e vi- brante instrumento ! Ao appendice nasal devia o nosso homem o co- gnome, com que o appelidavam—o Picanço. Bem CAÇADAS PORTUGUEZAS 201 sabia elle isso, mas não se lhe dava de tal, antes commentava a alcunha:-com variações da sua lavra, e historias, facetas e garotas, de monges narigudos — unica herança que tivera de seu pae e mestre, que fôra sapateiro dos frades da villa. É que fres- cas, que eram as taes historias! Umas, apesar do “seu trajo rustico, conhecia-se que vinham directa- mente do Boccaccio — por intermedio dos reverendos monges; outras acceital-as-hia de bom grado o Ar- 'mand Silvestre para as vestir, ou, antes, para as des- pir com a sua penna ultra-gauleza ! No fim do jantar, entre a pitada e c cigarro — «Sou um poço de vicios !», costumava elle dizer — é gue mestre Dominguizo gostava de ostentar os seus talentos de narrador. Então era difficil, ainda ao mais fleugmatico dos seus ouvintes, conservar o serio, prin- cipalmente se lhe attentasse na physionomia, e visse a mascara do artista acompanhar a phrase, subli- nhando os pontos mais interessantes da narrativa! Esquecia-me dizer que, além do nariz extraordina- rio, um dos seus olhos era um tanto vesgo. Do trajo; que direi! Quando, ao romper da ma- nhã, um pouco ennevoada, elle me entrou pela porta da quinta envolto no gabão, e depois o largou, mos- trando-se na sua brilhante toilette, semi-dominguei- ra, semi-caçadora, o pescoço envolto num cache-nez branco com listras azues, e atravessando atraz, na cinta, um enorme guarda-chuva, azul, de castão de buxo e grande ponteira de latão — o tempo estava de aguaceiros — eu tive pena de não ter de meu o lapis do Ramalho-ou do Gameiro, para o retratar! 202 CAÇADAS PORTUGUEZAS Que figurão que elle faria, no salão do Gremio Ar- tistico! Era com certeza um dos clous da Exposição. Os nossos artistas, ou viajam pouco, ou não apro- veitam o que vêem. Perdem joias, como esta, e quantas mais! Mas do que mestre Dominguizo mais se vanglo- riava não era dos seus triumphos de contista, nem da' firmeza e rapidez das suas pontarias, não — do que elle mais se presava era da sua pericia na arte. — Uns sapatos, umas botas, saídas da minha mão, dão-se logo a conhecer — dizia elle, e accrescentava com orgulhosa intimativa — Aqui, dez leguas em roda, não ha quem talhe e metta uma florêta como eu! E nisto é que está todo o segredo, e onde se conhece a mão do mestre. Assim se conta de Lord Byron — mal comparado — que apreciava mais os elogios que Ali, o famoso pachá de Janina, lhe fez um dia à pequenez das orelhas e à finura aristocratica das mãos, do que os maiores louvores que a critica lhe teceu ás bellezas do Child Harold e do D. Juan! — Lá estão parados os cães. Uma, duas... Mal mestre Dominguizo pronunciara estas pala- vras, accentuando-as com dois movimentos perpen- diculares da espingarda, saltaram duas perdizes, e CAÇADAS PORTUGUEZAS 205 ouviram-se dois tiros. Um era d'elle, e a ave caiu redonda. A outra perdiz escapou incolume. Atirara- lhe o meu visinho da direita. — Bem castigado — observou, voltando-se para mim, o Picanco — porque já ia muito larga para elle; e, demais, o tiro tambem não lhe pertencia, porque não foi parada pelos seus cães — visto que não traz nenhum! E porque não atirou V. S.º? — Queria vel-o dobrar os tiros. — Seria atrevimento da minha parte... Todos caçam, mas nem todos sabem caçar. Eu sei. Caçador educado na velha escola, mestre Domin- guizo era correctissimo, e respeitava, como um Evan- gelho, as praxes da boa cortezia. — Vamos andando — disse elle, depois de escor- var cuidadosamente a sua Angelica. E accreszentou — Está velhinha, como a outra, mas ainda é um ve- neno! Bom homem, modelo dos maridos, emquanto foi viva a mulher, não havia festa em que os não vis- sem juntos, a todo o momento falava nella. Enviu- vando, principiou a dar á sua caçadeira o nome da companheira, que perdera! Causou isto extranheza nos primeiros tempos, mas depois já ninguem repa- rava em tal. — Coisas do Picanço... Bôlha — diziam uns. — Um modo de matar dad — aventavam ou- tros, com um vago, mas talvez mais verdadeiro in- stincto do sentir do velho caçador. Emquanto elles carregavam, vira eu, lá em baixo, ao fundo, sobre a direita, erguer-se d'entre a vinha 204. CAÇADAS PORTUGUEZAS um homem, que falava para nós, gesticulando com violencia, mas o vento era contrario e não percebi o que elle dizia. Fomo-nos approximando, e vimos então o que era. Estava ferido — tinha sido alcançado pelo chumbo do meu visinho abelhudo. Pasmo em toda a linha! Como podia elle ser ferido, se nos ficava muito à direita, quando a perdiz e o tiro foram ambos para esquerda?! Não havendo arvores em que o chumbo fizesse ricochete, como podia elle mudar de direc- cão no ar?! Hão de confessar que era caso este, apparentemente, de difficil explicação. Todos falavam a um tempo, olhando para a vi- ctima, e a todos parecia impossivel a realidade, a co- meçar pelo auctor, pelo protagonista daquelle triste episodio! Não caçara nunca, e pegara na primeira escopêta que encontrou! Joaquim estava pallido como um defunto, vendo o sangue que corria de duas fe- ridas, que o vinhateiro mostrava em uma das fa- ces. Depois de examinarmos o homem, que tinha mais doze ou quatorze grãos de chumbo, espalhados pelo corpo, pegámos no instrumento do involuntario cri- me para o examinar, a ver se elle nos explicava com a sua bôca silenciosa, o que nós com a nossa des- vairada loquela não poderamos fazer. Era na bôca da espingarda, que estava com ef- feito a resposta, a solução do problema, que em vão buscavamos; no cano direito, do lado de fóra, havia uma fractura de fórma triangular. Foi para mim, CAÇADAS PORTUGUEZAS 205 desde logo, evidente ser aquella a causa do desvio e do desastre. Tinham atirado muitas vezes com ella, sem ferir ninguem? Teriam, sim, porque a aba do chumbo . desviado nunca encontrara ninguem; mas era ques- tão de tempo, e mais dia, menos dia, um homem, ou algum cão dos proprios caçadores, seriam victimas da imprevidencia do seu possuidor. Foi uma lição para os que assistiram a esta scena, e sel-o-ha tambem, decerto, para os que a lerem, narrada aqui por um dos espectadores, que nesse momento não estava tão sereno, como agora que a descreve. | — Não ganhou para o susto — dirá algum leitor, pensando no pobre jornaleiro. Se o susto d'elle foi grande não sei — creio mes- mo que não foi, mas o que posso affirmar é que re- tirou para casa logo, e que no dia seguinte já lá an- dava na faina! Tomara elle ter mais jornas como a d'aquelle dia... menos o chumbo. Ganhou quinze tostões ! Mestre Dominguizo enfiou mais uma historia no - seu rosario, e d'ahi por deante, sempre que, em casa do prior, ou do seu compadre Silva, o barbeiro, elle se propunha a entreter a sociedade, se acertava es- tar presente o Joaquim — que, entre parenthesis, era 206 CAÇADAS PORTUGUEZAS bom moço — o “Picanço, piscando-lhe o olho, e ap- proximando-se d'elle, dizia-lhe ao ouvido : — Fica, fica. Podes ficar, que eu não conto a his- toria. Mas contava-a, se o outro saia. Não fosse elle ar- tista! O sr. Manuel do Jaleco A Caetano Alberto AQUELLA manhã o sr. Manuel do Jaleco, ao entrar em casa, depois do seu passeio pela quinta, vinha sorumbatico, e quando os pe- querruchos irromperam da porta da cosinha e o ro- dearam no pateo, pedindo-lhe com grande algazarra a benção, elle, pela primeira vez da sua vida de pae,, affastou-os com a mão, e, resmungando um Deus os abençoe collectivo, atirou-se para cima d'um banco, e ficou-se de cabeça baixa, olhando para o chão, e descrevendo curvas no lagedo com uma varita, que trazia na mão. Ás creanças acompanharam de longe o pae, olhan- do-o com um ar admirado, e depois, como elle con- tinuasse absorto, sem fazer caso d'elles, foram-se escoando um a um, e dahi a pouco ouviam-se re- toiçar no pateo, fazendo um alarido dos demonios. 208 CAÇADAS PORTUGUEZAS — Pequenos! Filhos! Que bulha é essa? Se eu lá vou!... gritou-lhes a mãe — a sr.º Maria Do- mingas — a tia Domingas, como lhe chamavam. — Deixa lá os rapazes. Estão na sua edade. Que hão de elles fazer? observou o Manuel. — Sim, tu dizes sempre isso, mas eu é que cá estou, para os lavar e coser. Aquellas calças, que o Antonio estreiou domingo de Paschoa, já estão todas esfrangalhadas, mesmo um lixo, uma vergo- nha!... Se a gente os deixa rasgam-se todos, e nós é que o pagamos. Eu não sou da tua systema. De pequenino se torce o pepino. O Manuel não replicou. — Queres almoçar? As migas estão promptas. E que boas que ellas estão! — Quero, sim. A tia Domingas chegou á porta do pateo. A bulha do rapazio cessou de repente. — Andae cá, meninos. Vamos almoçar. Ai, Fer- nandinho! Como vindes asseado e composto! E vós, Antonico, olhae, como trazeis as calças! Cá tendes a escrava, para vos remendar ! A pequenada entrou de roldão pela porta, atro- pelando-se com receio d'alguma cacholeta. Que el- les bem sabiam que a mereciam. — Foi o Atoino... — Deixe falar, mãe, foi elle que me botou ao chão — retrucou o outro, ameaçando com a mãosita o accusador. — Caluda! Nem mais pio! A esta intimação da mãe, os grulhitas calaram-se, a CAÇADAS PORTUGUEZAS 200 sentando-se nos bancos, e investindo vorazmente com as migas fumegantes, depois de um relance d'olhos aos pratos, a ver se algum tinha mais. — Agora reparo, Manuel — disse Domingas, a meio do almoço — tu tens alguma coisa, homem; não falas, não dizes nada! Aquillo que eu disse... — Não, não, não é isso. Nem me lembra já o que tu disseste... A tia Domingas olhou para elle fixamente com um modo interrogativo, e depois continuou: — Então, Manuel, se não foi isso, é outra coisa. Porque tu tens alguma coisa hoje... — Não tenho nada. — Tens, tens. Dize lá o que é. Quem é para o amor, é para os trabalhos, e eu sou tua mulher —tu bem o sabes. Maria Domingas era uma mulher decidida — mu- lher d'armas, como se costuma dizer —-e em caso de necessidade manejava uma roçadoira com um vigor masculino. Nem todos lhe mettiam medo. Em casa a voz mais alta que se ouvia, era a della, e no sitio, quando se falava d'ella, dizia-se: — Vae a casa da tia Domingas. — Venho de casa da tia Domingas. — As vaccas da tia Domingas... Elle — o Manuel do Jaleco — vivia na sombra: era um bom homem, que nunca dera que falar, numa 14 210 CAÇADAS PORTUGUEZAS palavra, um pobre homem. Nessa conta o tinham, e assim fôra até alli. Uma vez acordada a curiosidade na cabeça duma filha d'Eva, quaesquer que sejam as suas virtudes, não descança, emquanto lh'a não satisfazem — ainda que seja com uma mentira. Mas o Manuel é que não era de guardar segredos com a familia. — Como eu já sei que tu me vaes matar o bicho do ouvido com as tuas perguntas, já te digo o que é, para ficares socegada. Chega-me para aqui o café. Olha o pequeno, que quer mais pão. Tu sa- bes que esta quinta d'antes tinham por costume entrar nella, lá ao fundo junto ás oliveiras, pelo muro que estava derrubado, e faziam por aqui ser- ventia para a estrada. O doutor Mendes, que é quem a tinha, quando eu a comprei, mandou levantar os muros, e, como era o juiz e tinha cá um creado e um feitor que não eram para graças, o povo respei- tava-lhe a casa, e perdeu o veso ao caminho, e dava a volta em redor da quinta. Agora parece-me que querem tornar á antiga... — (Como tornar á antiga? !-— perguntou a tia Do- mingas, fincando os cotovellos na mesa, e franzindo lentamente as grossas sobrancelhas. Então a gente já não é senhora do que é seu?! Mas eu ainda hon- tem dei a volta da quinta, e não vi nada! — Não viste nada, porque eu compuz o que elles derrubaram. Olha, e entram exactamente pelo mesmo sitio, por onde costumavam d'antes. Ha tres dias que acho algumas pedras caídas em baixo, ao pé da oliveira grande. CAÇADAS PORTUGUEZAS 211 — Então que volta se ha de dar a isso? Porque se nos devassam a terra, d'aqui a pouco estamos a pedir! Vae-se-nos o milho, a vinha, a fructa ! Esta- mos asseados! Roubam-nos de dia e de noite! A gente não pode estar sempre de guarda. — Que volta se lhe ha de dar ? dizes tu... Por causa das voltas é que isto é. Volta é o que elles não que- rem dar. — Mas alguma lhe havemos de achar, Manuel, que a terra é nossa, e foi paga com o nosso dinheiro, com o suor do nosso rosto. Assim á valentona é que a não levam. Isso não. — Assim deve ser, mulher, mas o que será é que eu não sei. H Passaram-se dias, depois d'esta conversa, sem que nem ao jantar, nem á ceia, as duas occasiões em que o casal discutia os seus negocios — as semen- teiras, a colheita, os alugueis do gado, as decimas, os estrumes, as jornas —se tornasse a falar no caso do muro. A questão jazia, porém não estava morta, e, o que mais é, ambos, dia e noite, pensa- vam nella: é que para elles era de vida ou de morte. A propriedade fechada valia muito, valia tudo, mas aberta e devassada não valia nada. E tanto isto era assim que, todos os dias, ao rom- per da manhã, a tia Domingas fazia tambem a sua ronda, agora mais demorada do que o costume, to- mando logo a direcção do Altinho da oliveira gran- LD CAÇADAS PORTUGUEZAS de, logar por onde o seu Manuel lhe dissera que en- travam. Estas inspecções, por infructiferas, principiaram a serenar-lhe um pouco o espirito, porque, por mais matinaes que ella as fizesse, e chegara a ponto de lá estar de vigia ainda com as estrellas no ceu, não conseguira vêr o atrevido invasor. Elle, todavia, quem quer que era, continuava a violar o muro, atraves- sando a quinta para a estrada. Como é então que ella não o vira nunca, nem des- cobria os vestigios da sua passagem — as pedras caídas e as pégadas no chão? Não querendo alterar a paz domestica, a santa paz, em que até ali tinham vivido, e contrariar a sua companheira, prohibindo-a de se intrometter naquelle caso — que elle entendia ser da sua jurisdicção, como homem — não lhe occultou o facto, mas quando se tratou do sitio assaltado, não lhe apontou o verda- deiro. E era por varios a entrada. De forma que, ao passo que a tia Domingas se ía tranquillisando, a ponto de não insistir já no assum- pto, a elle é que lhe custava muito occultar-lhe a preoccupação, que o dominava. Tinha exgotado todos os modos de avisar o in- vasor de que fôra descoberto, desde as pedras, cui- dadosamente repostas no mesmo logar, d'onde as ti- nham tirado, até aos dois paus, que elle se lembrou de armar em cruz, bem á vista; pensando que esta ameaça seria entendida, e poria fim aos assaltos. Nada, porém, surtira effeito, e elles repetiam-se como d'antes, não conseguindo elle ainda vêr quem CAÇADAS PORTUGUEZAS 215 era o audacioso, que, a horas tam desencontradas, por ali transitava. Manuel do Jaleco era, a este tempo, um homem de trinta e cinco annos, meão de estatura, largo de hombros, de grandes forças e de aspecto robustis- simo ; mas, pertencendo a uma familia de rixosos e valentões, tinha tal bonhomia e pacatez, que a to- dos admirava. O que fazia dizer à tia Domingas, na sua linguagem sentenciosa e pittoresca, que, ás vezes, d'uma ovelha preta nascia um cordeiro branco! Na sua alma, forte e soffredora, a paciencia quasi não tinha limites. Em certas occasiões viam-n-o fe- char os punhos, como para sentir a força dos seus braços herculeos; iniciar a acção de arregaçar as mangas da camisa; mas cerrava os dentes, e ficava- se. Estas ameaças de tempestade tinham, porém, tal eloquencia, que eram logo percebidas! Não era elle d'aquelle sitio, mas comsigo trouxera a tradição dos seus parentes — façanhudos brigões. E, um dia, quando voltara costas, um, que o conhecia de mais longe, disse na venda do logar proximo : — E' o tio, o José do Jaleco, como quem o pintou. É, mansinho como um cordeiro, é ter cautella com elle. E" da mesma raça, e, bem procurado, tem os mesmos figados. Vossemecês não o conhecem. Eu vio, aqui ha dez annos, na feira da Athouguia. Deixou ás portas da morte cinco ou seis, e não se 214. CAÇADAS PORTUGUEZAS deu à prisão senão ao sargento da cavallaria do des- tacamento! E olhem que no fim da baralha não tinha uma beliscadura ! — Este ?-—observou um dos assistentes. — Sim, este — respondeu o outro — e se tem du- vida vá-lh'o perguntar, que elle é homem para lhe responder. HI Estavam as coisas nesta altura em casa da tia Domingas, quando, num domingo de manhã, lhes entrou pela porta dentro o seu compadre João An- dré. Eram raras, e em dias certos do anno, as visitas do sr. Andrésinho — diminutivo que não lhe assen- tava, porque o recem-chegado era de agigantada estatura; porém, como de pequenino assim lhe cha- maram, ficou-lhe ao que elle achava graça, porque, dizia, não gostava de ser tão alto, não pertencendo á familia dos Pinheiros. Mais velho do que o Manuel do Jaleco, padrinho do casamento e amigo da sua familia, o dr. João An- dré era o homem de maior porte e valimento que transpunha os humbraes da casa do nosso lavrador. Rico, fôra elle quem dera a mão ao afilhado, lhe arranjara o casamento com a Domingas, e lhe em- prestara algum dinheiro, quando elle comprou a quinta aos herdeiros do fallecido juiz de direito. Era portantô um amigo deveras, e para os Jale- cos — grandes e pequenos — não havia pessoa mais 91 CAÇADAS PORTUGUEZAS 21 grada no mundo, nem que mais estima e conside- ração lhes merecesse. Quando se apeou da sua possante egua russa-cardã, João André viu-se logo rodeado de toda a familia. — Cá estou, compadre — disse elle, abraçando e beijando os pequenos, que queriam trepar pelo pa- drinho, disputando-lhe já o chicote, que ainda tinha na mão. — Desculpe-os, mas estes rapazes envergonham a gente. Fernandinho, olhe que suja o sr. padrinho. Com as mãos nesse estado!... Largue já o chicote. — Então vim a horas — estão almoçando. — Sim, senhor. Como é domingo hoje foi mais tardinho — disse a tia Domingas. — E o mais é que cheira bem. E” coelho guisado ? — E'. Topei-o hontem lá no fim da quinta: andava- me na vinha, e como comia e não pagava, pagou com a vida. Entram pelos boeiros do muro, e já me fazem seu estragosito. — Mas como não saem todos os que entram, e alguns ficam para o almoço, vamos lá, que já não são dos peores hospedes— observou João André. E pelo que vejo, não dam só calor ao estomago, tam- bem aquecem a cabeça — continuou elle — apontando com os olhos para um barrete de pelles, que Manuel acabava de pôr sobre a arca. — Aquillo, compadre, é uma lembrança da Do- mingas: ha de me fazer o favor de o acceitar, e de o pôr já na cabeça, porque vejo que vem suado. O sol já vae alto, e o seu caminho para aqui é todo a descoberto. 216 CAÇADAS PORTUGUEZAS — Pois sim, eu ponho-o na cabeça, porque isso te dá gosto, mas tu sabes que eu estou costumado ao tempo. E está-me bem, está. Quem é que me tomou a medida? — dize lá, Maria Domingas — por- que quem o fez já eu sei. Ainda são as mesmas mãosinhas de prata, como diziam minhas irmãs, quando tu lá estavas. — Isso era favor das senhoras. E como estão ellas ? perguntou Domingas. — Vam vivendo. Estão boas. Mandam-te recados. É por cá não ha novidade, Manuel. — Ha as novidades da terra—e, antes que me esqueça, cá recebi o dinheiro do vinho. Não era pressa, e muito obrigado. — Não t'o demorei, porque podias precisar para o amanho da vinha, ou para outra coisa. Tu ainda estás em principio de vida. — Mas, graças a Deus, outros irão peor. O que . me fundiu menos do que nos outros annos foi a vi- nha; tive menos, mas mais maduro. Eu deixei-lhe cair o sol, e vindimei-a no tarde. Pagaram-m'o bem — pena foi ser pouco, mas isso não está na nossa mão, está na vontade de Deus. — E' verdade, a mim tambem me succedeu o mes- mo. E' mal geral, que a todos persegue. Vae vivendo a gallinha com a sua pevide. Este, que estás beben- do, é do teu do anno passado ? — E” sim, senhor. Tive mais meia duzia de pipa- sitas, e guardei algum para nós. Tambem somos fi- lhos de Deus. — O meu compadre dá licença — disse a tia Do- CAÇADAS PORTUGUEZAS 217 mingas — pondo-se em pé. Meninos — Padre nos- Jo Os pequerruchos com as suas vozitas foram acom- panhando a mãe, que, no fim da reza, lhes deitou a benção. — Fazes bem em educar assim os teus filhos, para não veres aqui o que se vê ahi em muitas casas... — E" como fui creada, e não me tenho dado mal com Isso. — Agora vamos dar uma volta pela quinta, em- quanto o sol não aperta mais; que depois o que ha mais, para vêr, é á sombra — disse o dono da casa, levantando-se. — Vamos todos — disse João André — eu gosto de vêr correr os pequenos. Quantos são elles já ? — Quatro, com a graça de Deus. O Fernando, o Antonio, a Isabel e a Mariquinhas. — Vamos lá, Manuel, que já podes ficar por ahi. O Jaleco encolheu os hombros, e respondeu : — Oito eramos nós, os filhos de meu pai, e todos nos creámos. E” verdade que os tempos então eram outros. lam andando e conversando, até que chegaram junto da oliveira grande. D'ahi dominava-se toda a quinta, o terreno elevava-se um pouco: os de casa chamavam-lhe o Altinho. -— Sentemo-nos aqui. Toma lá um charuto, Ma- nuel. A Maria dá licença. 218 CAÇADAS PORTUGUEZAS — Dou, dou, mas desculpe, o meu compadre anda a metter-lhe o vicio no corpo, e elle, de vez em quando, já ahi me apparece de charuto na bôca, como um senhorito. — Não te assustes, não te afogues em pouca agua. Quando elle te apparece cá a fumar de charuto, quem lh'os dá sou eu. E se não, repara, que é só nos dias que lá vae a casa. — O meu compadre bem sabe que de vagar se vae ao longe... — Sim, e o que eu tambem sei é que esta quinta está-se fazendo bem bonita. Quando cá vim a ul- tima vez estava um tempo frio como o demo, e não a pude vêr á vontade. Agora, sim. Faz muita diffe- rença para melhor do que era, quando para cá vie- ram. Tu, Manuel, estás um lavrador ás direitas! E” que está tudo no seu logar, cada cultura no sitio pro- prio! Onde aprendeste ? Porque tu sempre fôste gei- toso, mas o saber é outra coisa. Quem te ensinou ? — Eu lhe digo, compadre. Aqui perto ha uma quinta bem amanhada, e ainda lá havemos de ir; que eu bem sei que o meu compadre tem visto tudo o que é bom — mas é para a ver. Lá é que eu tenho observado alguma coisa, e d'ahi faço aqui como vejo que lá Pai — E que bonita vista a d'esse val que vae por ahi fóra! Não tinha reparado nisto das outras vezes. E' talvez porque não estivemos parados aqui. A casa tambem faz muito melhor vista: augmentaste a adega. E aquellas bacelladas são novas, Manuel? — São, sim, senhor. E tambem é novo aquelle po- CAÇADAS PORTUGUEZAS 210 mar, e as duas ruas de limoeiros, que pegam com elle. E o pomar velho está todo plantado de novo, assim como a vinha, que mais de metade d'ella é já de bacello americano. É ha ainda outra novidade, é que mandei concertar o lagar do azeite, que estava muito desprezado. Serve para mim, e, como não ha por aqui outro melhor, todos o mandam cá fazer, a ponto de me terem já faltado ceiras e tarefas, tan- tos são os moinhos d'azeitona, que ahi acodem. E' um dos meus melhores remedios a maquia que cá me deixam. Maria Domingas escutara toda esta conversação no mais completo silencio, comprazendo-se em ouvir os gabos á sua propriedade, mas principiou a dar mostras de querer interromper o dialogo, como quem tem medo de que fuja a occasião de dizer al- guma coisa importante, e, aproveitando um momento de silencio, disse: — Os senhores têem estado de paleio, e eu a ou- vil-os com todo o gosto — basta falar quem fala; mas ha uma coisa sobre que eu quero ouvir o senhor meu compadre. Eu digo. Quando viemos para aqui, o povo d'estes sitios estava costumado a respeitar a casa do doutor Mendes, e ninguem se atrevia a pôr pé dentro desta quinta, sem entrar pelo portão ; mas agora parece que nós não somos tam donos d'ella como elle, e já ha quem entre aqui pelo muro, der- rubando-o sem ceremonia, como se entrasse em terra sua! Que lhe parece, sr. Andrésinho ? Isto é direito? Esta quinta é nossa, ou é do povo? João André, que nunca lera Proudhon, e ainda que 220 CAÇADAS PORTUGUEZAS o lesse, não lhe tomaria as doutrinas, em materia de propriedade, respondeu, confirmando com as pala- vras e o gesto a opinião da sua interlocutora, vol- tando-se ao mesmo tempo para o Jaleco, como dese- jando ouvil-o sobre o caso. — E' verdade o que ella diz, é —disse este. Eu é que dei pela marosca, mas, apesar das minhas es- peras, ainda não descobri o marau. — E eu tambem não —accrescentou a Domingas. — EÉ' que talvez elle mudasse de sitio — replicou o Manuel sorrindo. | — Mas, entre elle por onde entrar, o que é pre- ciso é agarral-o — observou o doutor. — O meu compadre diz bem, diz até muitissimo bem... Mas se elle não se deixar agarrar? E eu posso prendel-o, não sendo auctoridade ? — Podes. Prende-o como um ladrão, que entrou na tua quinta. -—— E se elle resistir, e me der ? — Nesse caso, como tu estás em tua casa, e és o atacado, dás-lhe tambem. Estás no teu direito, de- fendes-te. E eu cá estou tambem, para o que fôr preciso. Mas, olha lá, não mates o homem. — Qra isso é que é falar — apoiou a tia Domingas. Essa lingua entendo eu. Olha. Manuel, tu és bom de mais; ao tio José Jaleco é que elles não faziam esta arrelia. Já a estas horas tinham as costellas num feixe. — Por isso tambem o mataram a tiro—disse o Manuel, muito sereno, como se aquella citação do nome do tio o não estimulasse lá no intimo. CAÇADAS PORTUGUEZAS 221 João André, entretanto, tirava da algibeira uma caixa, que passou ás mãos da afilhada. — São já horas de retirada; ainda vou por casa do Antonio Ricardo, e tudo isso deita-me lá para a noite. Ahi te fica essa lembrança; quem t'a manda é a Isabel, que sempre foi muito tua amiga. E' para a afilhada, a Isabelinha. — Ora! As senhoras !... Eu não sei como hei de agradecer tantas finezas... Olha, Manuel, que brincos tam bonitos! — São muito lindos, são. Quando lá formos, do- mingo que vem, ha de leval-os. Não os estreia antes. Mais para agradecer, meu compadre. Quando já estava a cavallo, João André, despe- dindo-se, disse para o afilhado, que lhe segurava o estribo : — Olha, Manuel, quanto ao homemzinho o dito, dito. Segura-o, mas com geito. E eu cá estou. Adeus, Maria. Adeus, rapazes. | E já na estrada, voltando-se para traz, gritou- lhes: — Levem os pequenos. Venham todos. IV Nesse dia, depois da partida do doutor, os dois conjuges não trocaram mais palavra sobre o assum- pto que os trazia preoccupados, mas o dono da casa já tinha tomado a sua resolução. A” noite, depois da ceia, deitados os filhos, foram á adega, e lá estive- 222 CAÇADAS PORTUGUEZAS ram labutando numa coisa e noutra, até que a tia Domingas, não desconfiando de nada, o deixou só e foi-se deitar. Apenas se apanhou sósinho o Jaleco fechou a por- ta, encostando a roda de coiro da chave á fecha- dura. D'ahi foi a uma grande arca de carvalho, toda cha- peada de ferro, com bonitos lavores, que elle tinha comprado no leilão do convento, abriu-a, tirou para fóra uma espingarda de dois canos, e arrumou-a a um canto com todo o cuidado. Estes movimentos eram acompanhados de meias palavras, de phrases entrecortadas, . ditas muito baixinho, como se re- ceiasse das proprias paredes. — Com que então... Sim, querem ver quem é o Manuel... Se é sobrinho do José Jaleco... hein! E sobrinho, é —e uma casquinada em surdina acom- panhou estas palavras. Depois da espingarda arrumada voltou á arca, que era o seu arsenal, e, mergulhando o braço, trouxe do fundo tres paus ferrados e uma foice rocadoira, polida e brilhante como a folha duma espada. — O armamento já aqui está. Vamos a escolher. Todos os paus são bons — disse elle, passando-os em revista; e pegando num — mas este é restio, é de mais confiança. Isto é um pau real. E prolongando-se com elle, deu um pulo, fez dois sarilhos, e atirou dois golpes no ar, que assobiaram como duas balas. — Está na conta; não me deixa ficar mal gurando-o, carregou-lhe com a mão no meio. e, se- t3 +3 Ú CAÇADAS PORTUGUEZAS — Um pau real! Um pau para uma feira! Dito o que o nosso homem recolheu os outros à arca, que fechou, e mettendo a chave na algibeira, principiou a fazer um cigarro. — "Tomemos uma fumaça, que isto não vae a ma- tar. E agora me lembra a recommendação do compa- dre: — Não mates o homem. Não mato, não, que isso ainda assim não o posso jurar. Mas hei de fazer a diligencia. . Até mesmo porque não o quero pa- gar por bom, ao tal sujeito... ou sujeitos. Que elle bem pode ser mais de um. Até agora creio que tem sido um, mas, ás vezes o diabo arma-as, e em logar d'um posso topar com dois ou tres... que sei eu! E, depois d'uma pausa, continuou: — Anda pelo se- guro, Manuel, que o Seguro morreu de velho. Nada de creancices: vae tudo —o pau, a foice e a esco- pêta. Se o caso ficar em palavras bem vae, e Deus o queira; se não, tenho por onde escolher. Restava examinar a espingarda, que, havia muito, não servia; em casa havia outra somenos, com que espantavam os passaros, no tempo das sementeiras. Manuel passou a examinal-a, peça por peça —os ca- nos, a coronha, os fechos, os gatilhos, tudo viu e limpou como se fosse para uma revista, e, depois carregou os dois canos com zagalotes, escorvou os pistons com todo o cuidado, e pôz-lhe os fulminan- tes, que segurou, carregando-os com os cães. Terminada esta operação, saíu da adega, e foi-se deitar. adormecendo serenamente, como se não es- tivesse em vesperas d'um lance como aquelle, que podia ter tam sérias consequencias. 224. CAÇADAS PORTUQUEZAS 1% Seriam pouco mais de tres horas, e ainda mal se entrevia a primeira claridade, a dubia luz do cre- pusculo da manhã, quando se abriu e cerrou caute- losamente a porta da cosinha, e um vulto, atraves- sando o pateo, entrou na quinta, deitando.logo fóra o cigarro que levava acceso, parando de quando em quando, com o ouvido á escuta; e, procurando como que romper as trevas com o olhar fixo e prescruta- dor, tomou pela rua que circumdava as terras, por ser caminho batido onde os passos menos ruido ha- viam de fazer. Era o nosso Manuel. Chegado ao sitio, que elle agora escolhera, encostou a espingarda ao muro, depois de pôr os cães no primeiro descanço, e com a foice ao lado, ficando com o pau ferrado na mão, sentou-se num tronco d'arvore caído, onde já passara algumas horas de inutil sentinella. Teria decorrido o tempo de fumar um cigarro, que elle não fumou, para não denunciar a sua presenca, quando lhe pareceu ouvir ao longe rumor de passos. Prestou o ouvido e reconheceu que não se enganava: os passos approximavam-se, e deixaram de se sentir mesmo junto do muro. Manuel poz-se em pé, e em- costou-se á parede, encobrindo-se com ella. Acabava elle de fazer isto, quando assomou no alto uma ca- beca, e logo em seguida, lestamente, um homem saltou para dentro, a quatro ou cinco passos. Era chegado o momento. 295 CAÇADAS PORTUGUEZAS 2 — Até que finalmente ! — disse Manuel, avançando para o desconhecido com passo firme, e de modo a cortar-lhe a deanteira. Ao ouvir estas palavras o homem parou, e, vol- tando-se de repellão, perguntou ao Jaleco desabrida- mente o que é que lhe queria. — Quero varias coisas — repondeu-lhe este muito sereno. A primeira é dizer-lhe que ha muitas nor- tes, estou á sua espera, para lhe receber a vi- sita — gosto que só tenho nesta occasião. Depois quero me diga o que o traz aqui, e com quem é o negocio, visto que não é comigo... E não sendo negocio, nem de macho, nem de femea, quem lhe deu licença para entrar por aqui na minha quinta ? Esta interpellação ao seu intruso hospede, pronun- ciou-a o quinteiro com uma tranquillidade assusta- dora, que impressionaria outro que não fosse aquelle a quem fôra dirigida, e que era, nem mais nem me- nos, um dos mais temiveis e temidos contrabandistas d aquelles sitios. — Pois sim, senhor, gostei de o ouvir. Vossemecê fala bem, e, se eu não estivesse com pressa, talvez conversassemos um bocadinho, mas agora não tenho tempo — e, ditas estas palavras, o outro fez o gesto de se despedir. — Venha cá, homem de Deus, que ainda tenho mais uma coisa para lhe dizer. Vossemecê vae er- rado por esse caminho: o caminho é aquelle — e. o Jaleco apontou-lhe com o pau o muro por onde o contrabandista saltara. — Agora já percebo. Vossemecê está ahi de guar- 15 226 CAÇADAS PORTUGUEZAS da, e quer-se entreter; mas, eu já lhe disse, não lhe posso dar trela, e o meu caminho eu é que o sei— E, como o Jaleco desse um passo para a frente, elle, mudando de tom, levou a mão á altura da cara, e perfilando um dedo, em ar de ameaça, disse-lhe: — Olhe que eu sou o Simão Contrabandista. — Fico sabendo, e eu sou o Manuel de Sousa, o Manuel Jaleco. Somos ambos baptisados, mas o caso é outro agora. O seu caminho, sr. Simão, é por alli; eu não o encarreguei de abrir caminho pela minha terra, e portanto vae vossemecê desandar o que an- dou, sae por aquelle muro, e não volta aqui mais! — Isso é muito comprido, seu Jaleco; torne lá a dizer. — Eu estou falando com o sr. Simão, mas o sr. Simão é que não sabe com quem fala. Você está a brincar com o fogo, homem de Deus! Veja lá, que se queima ! — Isso é somno, seu Manuel. Vá-se deitar, que as pulgas estão á sua espera— replicou o contraban- dista, com um ar insolentissimo. O conflicto estava imminente. Simão, homem de- cidido e de pulso—os guardas fiscaes conheciam-lhe a astucia e a bravura — não recuava facilmente deante d'outro. O Jaleco lembrou-se neste momento da recom- mendação do compadre, — «Não mates o homem» — e, como grande jogador que era, tinha já feito mentalmente o golpe, antes de o executar. A's ul- timas palavras do seu adversario, dando dois passos. estendeu a mão, e com um gesto imperioso disse-lhe : Des CAÇADAS PORTUGUEZAS 227 — Ponha-se lá fóra, seu garoto! Ao Simão faiscaram-lhe os olhos. Cresceu para o quinteiro, e atirou-lhe uma paulada d'alto a baixo, ás mãos ambas. O golpe foi rapido, e seria mortal, mas bateu no chão, e quando elle ia retirar o pau ferrado, Ma- nuel, que se furtara á pancada, respondeu-lhe com um rebate, e fez-lh'o saltar das mãos. De navalha em punho o contrabandista investiu então furioso, mas de nada lhe valeu a violencia do “ataque; o Jaleco varreu-lhe as facadas, e poz ter- mo á contenda, partindo-lhe um braco. Simão, com a violencia da pancada e da dôr, lar- gou a cuchilla. Quando correu a apanhal-a, o Ja- leco já lhe tinha o pé em cima, varrendo-lhe o ter- reno, e o contrabandista sentiu o braço direito inerte. — Estou arranjado! — disse elle, lançando um olhar feroz para o quinteiro—mas você ha de mas pagar. — Assim o quiz. E dê gracas a Deus, que o caso podia sair-lhe mais caro... Vamos embora, que te- mos de ir á villa. '— Quem me manda a mim ser tolo — resmungou Simão, mordendo-se com a dôr e com a raiva. Se eu tivesse trazido a espingarda, não me acontecia esta! — Se a trouxesse, estava alli outra — respondeu- lhe o Jaleco, apontando para o muro. O contrabandista olhou, encolheu os hombros, e, “pondo os olhos no chão, rosnou entre dentes: — Tinha de ser! Uma vez é a primeira. | (O) 13 Fá) í CAÇADAS PORTUGUEZAS VI Neste lance final os veiu encontrar a tia Maria Do- mingas. Não vira nada, mas o silencio e a attitude dos dois homens, a expressão da physionomia do contrabandista, que era de si mal encarado, e o sor- riso contrafeito com que o Manuela acolheu, tudo lhe dizia que houvera novidade, porém foi em vão que os seus olhos curiosos procuraram os vestigios da lucta entre os dois. — Então era este... O Jaleco não a deixou proseguir, acenou-lhe com a mão, e disse-lhe: — Appareceste em boa occasião. Manda metter os bois ao carro, e que me arranjem a egua, porque nós vamos já para a villa. Este homem, ao saltar aqui o muro, caiu mal, e vim achal-o com um braço desmanchado, ou coisa que o valha. Anda, vae de- pressa, que eu almoco lá em casa do compadre. A pouco espaco atraz da tia Domingas seguiram os dois, ambos cabisbaixos e tristes, um por se ver ferido, humilhado e preso, e o outro por estar met- tido em trabalhos por culpa alheia. Não tinham trocado uma palavra entre si, quando chegaram perto da casa. Já se ouvia a voz da patrôa e os gritos alegres dos pequenos, que vinham cor- rendo ao encontro do pae. Os moços atravessavam açodados o pateo, para onde dava tambem uma das portas da estrebaria, trazendo já os bois, dois animaes corpulentos e ne- CAÇADAS LORTUGUEZAS 220 dios, que attestavam o esmero do tratamento. A uma argola, presa por uma corda, e já arreiada e prom- pta, estava a egua. — À egua já está arraçoada, patrão — disse o moco, e vae-se metter o gado ao carro. Agora vossemecê dirá se manda mais alguma coisa. — Olha, Antonio, ainda ahi está uma pipa, que “havia de ir para casa do boticario. Mettam-n-a ahino carro, que aproveito a occasião, e deixo-lh'a lá. É voltando-se para o contrabandista : — A vossemecê vinho não lhe offereco, porque sei que agora lhe faz mal, mas se quer comer alguma coisa, está às suas ordens. — Obrigado, não tenho vontade — respondeu o outro. A atmosphera, a principio ennevoada, fôra cla- reando no rapido decorrer d'estas scenas, e quando a tia Domingas, chegou ao pé dos recem-chegados, e se affirmou no contrabandista, reconheceu-o: fôra o seu primeiro conversado, quando ella estivera em Quadrazaes. Passava já de doze annos que isso tinha sido, mas elle não lhe escapou, e, quando lhe ouviu a voz, ficou certa de quem era o desconhecido. — Guarde-a Deus, sr.* Maria Domingas — disse elle. levando a mão ao chapeu. — Então é vossemecê quem nos deu estes tra- balhos... 230 CAÇADAS PORTUGUEZAS — Por meu mal, sou eu, sou... Nós vamos em- bora, e eu quero deixar tudo bem claro aqui. Assim como assim, já não tenho nada a perder em dizer a verdade. Eu ando a monte... Entende-me? Ando fugido da terra. Vae já para nove mezes que saí de Quadrazaes... — Por causa dos guardas? perguntou o Jaleco. — Por outra coisa... Aconteceu-me uma desgra- Eai — Alguma morte ? Simão ficou silencioso, e depois, meneiando a ca- beca, como se lhe custasse falar: — Lá vae tudo. Tanto se me dá... Denunciaram- nos, e os guardas eram muitos em nossa persegui- ção, e quasi todos a cavallo. Tivemos de largar a carga, e perdemos tudo, a fazenda e as bestas. An- dou talvez por seiscentos mil réis o prejuizo. Um dia encontrei-me com o denunciante numa serra. Quando o vi, vio diabo! Fugiu-me a luz dos olhos... Foi a minha perdição! Agora aqui estou, e será o que Deus quizer. — Dá cá uma cinta, Maria, para este homem met ter o braço ao peito. — Está tudo prompto, patrão —veiu dizer neste momento o Antonio. — Então vamos. Tome lá a cinta, e suba para o carro, sr. Simão. Ajuda esse homem, Antonio. É o Manuel Jaleco, afastando-se com a mulher, disse-lhe algumas palavras em voz baixa. A tia Do- mingas empallideceu. — E agora? — perguntou ella, com a voz anciosa. CAÇADAS PORTUGUEZAS 251 Vaes entregal-o á justiça? Que tu, tambem, com a avaria que lhe fizeste... — Não te enfades por minha causa, por mim não temas. Eu vou ter com o compadre, e o que elle disser é o que se ha de fazer. As novidades que houver, se eu não voltar já, mando-t'as pelo Anto- não. O carro ia a sair. Manuel, já a cavallo, atraves- sando o pau na sella, donde pendia uma clavina, — precaução da tia Domingas —-voltou-se para a mulher, e pondo um dedo na bôca, recommendou- lhe silencio sobre o caso. Depois, dando uma pal- mada no pescoço da egua, disse: — Vamos, Bonita. Maria Domingas foi-os seguindo com os olhos pela estrada, e, quando todos desappareceram na primeira volta do caminho, virou para dentro, preoccupada e triste. — Pobre rapaz ! Bem creado e mal fadado! Quem diria. .. murmurou ella. Recordação d'outros tempos. Era mulher e tinha coração. VI — Então, Manuel, que novas me trazes ? — per- guntava arrastadamente o dr. Andrésinho ao seu compadre, esfregando as mãos, e com o rosto pra- senteiro com que se acolhe um amigo. — Senta-te. Eu bem sei que vieste a cavallo e o cansaço não ha de . 232 CAÇADAS PORTUGUEZAS ser muito, mas não gosto de ver de pé deante de mim se não os meus creados. Vieste acompanhando o carro. O que trouxeste ? — Trouxe o vinho para o sr. Almeida. — O boticario ? Fizeste bem, que elle já me tinha dito que o esperava. Com aquella gente é bom es- tarmos de boas avencas, por causa das doencas, como diz cá o nosso prior. — E além do vinho tambem lá vem outra encom- menda, e essa é para o sr. doutor. — Para mim ? — Sim, senhor; para o meu compadre. Talvez seja depois tambem para outras pessoas, mas, por ora, é só para o senhor; e depois o senhor dirá o destino, que se lhe ha de pa — Homem, desembucha lá com isso. Estás assim com os modos de quem enguliu um marmello, e o tem atravessado nas goelas ! — A falar a era não anda longe d'isso, que elle não é mau marmello; e até é certo que já hoje o provou, e quem lh'o deu a provar fui eu. — Bem digo eu, Manuel. Isso é alguma adivinha- cão. Se é, já te digo que as massadas estão prohi- bidas. Leva essa para o Almeida, que elle dá o cavaquinho por uma charada. — Ora chá tem elle lá muito na botica! O caso é outro, sr. compadre. — Então rebenta para ahi com isso! O les é, fi- nalmente ? — Lá vae. Trago al o homem. — Qual homem, Manuel ? Estás-me intrigando, e CAÇADAS PORTUGUEZAS 233 João André cofiava a barba, e na physionomia at- tenta lia-se-lhe a curiosidade. — Eu de intrigas é que não sou. Então o meu com- padre não adivinha o que é, que eu lhe trago ?! — Não, e renão ! Desembucha por uma vez ! — O homem que saltava o muro! — Ta, ta, ta! Então apanhaste-o, hein! Caiu o lobo na ratoeira finalmente. Já não era sem tempo. Ainda bem, agora estás descançado. — Isso de descançado é um modo de dizer ; quem tem casa, tem cuidados. Mas é que o caso ainda não está limpo. — Como não está! Tu agora, já se vê, que o tra- zes prezo, para o entregares á justiça. E' o que tens a fazer, eo que te convem para escarmento d'outros. — Pois ahi é que bate o ponto. Elle cairá nos fer- ros d'el-Rei, mas nanja que eu lh'o vá entregar! — Então porque?! E” teu amigo, teu parente, ou tens medo d'elle ? — Não é nenhuma d'essas coisas — nem amigo, nem parente, nem medo. Eu lhe digo, compadre, como o caso se passou. E o Manuel Jaleco narrou, com todos os pormeno- res, os incidentes do lance, a que o leitor já assistiu, até ao ponto em que o desconhecido se desmasca- rou, dizendo quem era. Ao ouvir o nome do Simão Contrabandista João André abriu muito os olhos, e deu um assobio muito prolongado. — Conhece-o, compadre ?— perguntou o Jaleco. — Se conheço! Isso é um meninó! Não é só con- trabandista, é matador! 234 CAÇADAS PORTUGUEZAS — Bem sei. Elle contou-me tudo. Como já não tem nada a perder, veiu dizendo-me, pelo caminho, como tinha sido a morte que fizera, e outras coisas, que até me metteram tristeza. E tanto é que eu mu- dei de tenção, e venho pedir-lhe para lhe fazer o curativo, e depois elle que fuja, que se vá com Deus, ou com Satanaz... — Tu estás doido — Manuel! — Não, senhor, nunca estive mais em meu juizo. Mas entregal-o eu ú justiça, isso é que nunca! Juro- lhe por alma de meu pae, que Deus tem. Nunca tal farei ! Assim como ha almas essencialmente perversas, ha outras essencialmente boas, tão inaccessiveis ás suggestões do mal, que não ha no mundo força ca- paz de as fazer desviar uma linha do trilho do bem. Aos que são assim, ainda quando não receberam educação de especie alguma, parece que a virtude os illumina, e lhes desfaz os sophismas tenebrosos com que, ás vezes, o vicio veste e encobre, aos olhos dos simples e dos ignorantes, os actos mais torpes, os crimes mais hediondos! Manuel Jaleco era um destes homens sinceros, honrados, absolutamente bons. O doutor André olhava para elle espantado. Nunca o julgara capaz de o impressionar, a elle! — Anda cá, homem. Então esse salteador entra na tua casa, insulta-te, tenta matar-te, e matava-te, se tu não fosses mais valente do que elle; e agora tu, depois d'isso, e de saberes pela sua propria bôca que elle anda fugido por uma morte que fez, queres RD Ro CAÇADAS PORTUGUEZAS 255 dar-lhe fuga! E" extraordinario isso, que queres fa- zer! Não, não estás em ti, Manuel. Eu curo-o, va- mos já a isso. Onde está elle ? — E João André levan- tou-se. — Curo-t'o, mas, depois de curado vae para a cadeia. Olé, que vae! Do ceu lhe venha o reme- dio. — Desculpe o compadre o eu não respeitar a sua palavra honrada, mas eu... mas a mim parece-me que seria o mais reles, o mais vil dos homens, se fosse entregar o Simão áà justiça! Foi elle que se veiu metter nas minhas mãos — não fui eu que corri sobre elle. Eu não sabia nada da sua vida, foi elle que m'a contou... E eu hei de ir accusal-o, e dizer: Aqui está o homem, que matou: —prendam-n-o?! E elle vae para a Africa por toda a vida, e os filhos, que elle tem quatro como eu, ahi ficam aos paus, sem culpa nenhuma, a pedirem esmola, mais a mãe, cheios de fome!... Não, senhor, eu não quero ficar com um peccado na consciencia... deshonrado para toda a vida! Não. O meu compadre ha de me fazer este favor. E' um favor que faz à minha alma... Não sei se me entende... porque, se tal acontecer, eu sou uma alma perdida!... Se tal me acontecer, olhe, meu rico compadre, elle a ser preso, e eu air a Quadrazaes á busca da mulher, e a trazel-a, mais os filhos, lá para casa. São cinco bôcas a mais, mas, paciencia, ha de haver uma fatia para todos. E não ha nada como o socego da nossa alma! — Dá cá um abraço, Manuel. Ainda ha homens... — e João André voltou a cara, para esconder a com- moção. — Eu bem sei que és capaz de o fazer, mas 236 CAÇADAS PORTUGUEZAS não ha de ser preciso. Vamos lá ver o homem — e, depois d'uma pausa, o doutor acrescentou: — Sem- pre te digo que elle saltou na,tua quinta com o pé direito... Deu comtigo, porque, se fosse com outro, a estas horas estava abacellado. — E que eu tinha-o já na frente, e ainda me es- tava a lembrar da sua recommendação: — Olha, Manuel, não mates o homem. IX O doutor estava aturdido. Emquanto fazia o penso da fractura olhava attentamente ora para o ferido, ora para Manuel Jaleco, mas quando fitava este era de soslaio, e nos seus olhos lia-se o espanto e a ad- miração. — Que homem! pensava elle comsigo. Terminada a operação, que era simples, voltaram para almoçar. Nunca os guisados sem pretenções da sua cosinha provinciana tinham parecido a João An- dré tão saborosos, e o cavaco dos melhores conver- sadores dos hoteis de Lisboa e do Porto achava-o pallido ao pé do modesto e familiar dialogo, travado com o.seu conviva. A” despedida o doutor pegou em meia duzia de charutos : — "Toma lá. E tua mulher, quando te vir de cha- ruto na bôca, pode dizer-te, sem mentir, que são fumaças de valente! — Adeus, compadre. E' o melhor dia da minha vida este. Quando entrei aqui trazia o coração pe- CAÇADAS PORTUGUEZAS 257 quenino como isto. Obrigado, muito obrigado — e abraçou-se ao outro, & chorar. D'ahi a pouco os jornaleiros que se cruzavam com elle, e que o viam bem montado, ao lado do seu carro, de charuto na bôca, rosto alegre, saudan- do-os, e cantarolando pela estrada fóra, diziam uns para os outros: “E o Jaleco. Amanha-se bem. — Ora, aquilo vae num sinol] -- Bom negocio fez elle. Vac cantando! Não fôra bom negocio, foi mais do que isso, foi uma boa acção. “Quando chegou a casa, Maria Domingas, que O esperava anciosa, apenas de longe o viu, correu para elle. E tam principiava a estar com cuidado em ti... E então... ficou preso — Não o entreguei á justiça. Mudei de tenção. Lá o deixei nas mãos do compadre —€ Manuel fez um signal á mulher. D'ahi a pouco, na adega, Maria Domingas ouvia da bôca de seu marido a narrativa da vida do con- trabandista, como este lh'a contara, e todos Os mais pormenores do que se passara naquella manhã. — E agora, depois de curado? perguntou ella. E Que fia Nque procure a sua vida. O resto é com elle e com Deus, que é Pae de misericordia A corda do enforcado Ao dr. Trindade Coelho — Então —ha novidade ? — Nada, tudo em paz, mestre João. — Pois, senhores, sempre lhes digo que ha muitos annos a esta parte não se faz aqui uma festa, que vá até ao fim, como esta tem corrido! E está ahi O poder do mundo !—Bons caminhos, o tempo é como se vê — uma lindeza, que até mette gosto andar pelo campo! Os milharaes e as vinhas estão, que é um louvar a Deus! Isto assim dá alegria á gente, e en- tão veio tudo á festa. Nem ha rasão para o contra- rio. — Inda é influencia do tempo este socego — mes- tre João — observou pausadamente o sr. Joaquim do Giestal. Estão ahi todos os pimpões d'esses logare- jos, e gente de mais longe, que eu até nem os co- 240 CAÇADAS PORTUGUEZAS a nheco! Cada garimpo! E raparigas então! Mocetonas de verga alta, vestidas e oiradas a preceito! Algumas vi eu agora, que, quando não tenham mais nada, o que trazem em cima de si é já uma boa folha, para um rapaz de porte se governar. O meu José lá es- tava de conversa com uma. Eu bem o vi, mas fiz que não. Que elle para alli não vae mal guiado. Toda ella era oiro! Arrecadas, aos pares, em cada oreiha; cordões assim ás voltas, e grossos; corações, alguns tres; e cruzes muito bonitas — duas pequenas e uma grande! É tudo aquillo se via que era novo. — Dinheirinho fresco.. Umas partilhas de ha pouco. É filha de lavrador. O pae dizem que deixou um casão ás filhas, que são duas. Foi o que me disseram. — De forma — disse mestre João — que a você tambem lhe não vae mal na festa, faz negocio — sem comprar, nem vender: emprega o seu filho. Elle tambem merece-o — que, sem offender ninguem, é um rapaz como uma flôr. —Mal me fica dizel-o— mas lá isso é. E apesar. de ter aquelle corpo, e ser homem ás direitas, olhe que nunca me faltou ao respeito. Nem a mim, nem à mãe, que Deus haja. Ainda não me deu um desgosto como isto. E com o pollegar o Joaquim apontava a cabeça do dedo minimo. — E verdade, é verdade — disseram os que esta- vam presentes na loja do mestre João — o regedor — no largo, em frente da egreja. — Eu tambem os ouvi hontem, sr. Joaquim. — Lá estavam ao desafio. E mais é que ella, sobre ser bonita cachopa, canta bem. D'aquella pode-se dizer CAÇADAS PORTUGUEZAS 241 que se o peito é d'oiro, a garganta é de prata. E lindas cantigas, que ella tem no registro! Ainda me lembra esta: Descei, anjos! Descei, anjos! Vinde poisar no Calvario! Vinde cobrir com as azas a Senhora do Rosario! Ora a festa é á Senhora do Rosario, e então já vêem como a cantiga vinha á justa. E todas eram assim, finas, como esta. Aquillo juntou-se alli gente, que, se caisse um alfinete, não caía no chão. — É o amigo Silva apanhou-lhe logo a cantiga, Não fosse você tambem cantador. — Aprendemos uns com os outros. Isto não anda nos livros, e então vae de outiva. Quem mais e me- lhor ouve, mais sabe. Mestre João, que, sentado na sua cadeira, dentro do balcão, presidia a esta academia rustica, era o regedor da terra. O sr. Joaquim do Giestal, que voltara da sua ronda pela feira, exercia as funcções de cabo geral. Refrescara-se com um copo de vinho verde, e sentara-se tambem. Os outros socios esta- vam de pé, encostados ao balcão e ás portas. Proprietario, lavrador e logista —o digno funccio- nario era das pessoas mais gradas do logar, e por todos estimado. Quem o visse com a sua barba ainda negra, espessa e crescida, grandes sobrancelhas, as mãos fortes e cabelludas, e a voz grossa de baixo profundo, tomal-o-ia por um Ferrabraz de respei- to, mas todos affirmavam que era a bondade em 16 242 CAÇADAS PORTUGUEZAS pessoa. Apenas alguns, dos que lhe faziam opposi- ção nas eleições, diziam que elle, quando moço, se pegara um dia com um dos valentes do logar, o des- armara, e deitara por uma ribanceira. Outros affir- mavam que não, e eram invenções dos seus inimigos politicos. Tudo podia ser— que os homens bons, quando teem força, e os provocam, fazem como os outros — saem dos seus eixos e dam para baixo. De poucas palavras, isso era elle. Mas havia uma phrase, que lhe andava sempre na bôca: era esta — Tempos calamitosos! — Tempos calamitosos! — costumava elle dizer, à mais leve sombra, que surgisse no seu horizonte de homem, de lavrador ou de auctoridade. Tornar-se-ia uma alcunha, e moeriam-n-o com ella os seus adversarios, se fossem seus inimigos pes- soaes; mas a verdade é que elle não os tinha, e d'ahi a dicacidade sertaneja não repara em coisas tão pe- quenas. Mestre João ouvira aquellas palavras a um candidato a deputado, discorrendo deante dos seus eleitores —e, como o orador as repetira varias vezes, deram-lhe no goto, e elle guardou-as, e recorria a ellas nos casos graves. Eram o seu bordão. Transbordava o Mondego, inundavam-se os cam- pos; faltavam as chuvas, e morria o gado á sêde; caía o ministerio, que era da sua politica; chegava- lhe a noticia d'algum motim eleitoral numa terra vi- sinha; afundava um temporal duas ou tres lanchas poveiras; vinha algum destacamento, que elle tinha de aboletar. .. Tudo isto elle commentava com a sua CAÇADAS PORTUGUEZAS 245 phrase, dita lenta e melancolicamente, umas vezes com as mãos assentes, e espalmadas sobre os joe- lhos e a cabeça um pouco pendida para o chão, ou- tras, erguendo os olhos, como invocando a assisten- cia divina para tamanhas desgraças! — Tempos calamitosos! A phrase era sempre a mesma —a voz e os ges- tos é que variavam. Se tantos oradores e regedores, grandes e pequenos, fossem tam parcos de rhetori- ca, tam concisos na eloquencia... O dialogo cessara, fizera-se silencio na illustre as- sembléa; a conversação carecia d'algum novo ali- mento, que lhe desse forças para proseguir, quando de fóra soaram, ao longe, uns clamores agudos, tre- mulos, e entrecortados, como de quem, afílicto, vem correndo e gritando!... E outros, e outros... Vinham-se approximando. Saíram todos á rua, e a gente das casas visinhas assomou ás janelias, debruçando-se, com os olhos agudos da curiosidade. O povo da feira accorreu tambem. Era a Mariquinhas, a Russa, a filha do Domingos da Azenha. E com ella mais gente. — Acudam! acudam! Um ladrão, lá em casa!... clamava ella, endireitando a carreira para a loja do regedor.. Foram-lhe ao encontro os que alli estavam. — Então o que é isso, pequena? — perguntou mestre João. O que é? '— Um ladrão enforcado, lá em casa! Venham cá, venha cá, ó sr. João! -- E a rapariguita, com os olhos 244 CAÇADAS PORTUGUEZAS das desvairados, e offegante da corrida, levou as mãos enclavinhadas quasi á cara do regedor. — Vamos lá. Vamos — disse elle. Mas o que é? Dize-me, Mariquinhas ! Ella, sem responder, voltara costas, partindo, a gritar como louca, pela rua fóra: — Que desgraça na minha casa! Acudam! Acu- dam! Quando mestre João chegou á porta do Domin- gos da Azenha, e ia a entrar, estacou de repente. Os que o acompanhavam fizeram o mesmo. — Jesus! — disse elle, abrindo os braços, com as mãos levantadas, no gesto de quem repelle alguma coisa, e recuando. — Jesus! O que é? E o Domingos?! repetiam e perguntavam, no povoleu, os que não viam a causa do espanto do regedor. Ao meio da casa de entrada, d'uma das traves do tecto, pendia, suspenso no ar, um grande vulto. A quadra era grande e escura, e de fóra para dentro não se via bem, mas mestre João affirmara-se, e vira que era com effeito um homem enforcado. — Não é o Domingos. E quem é morreu agora — disse elle, voltando-se para os outros. As ultimas contorsões da morte acabava de as vêr, e por isso recuara. Suspensos deante do extranho e sinistro especta- , CAÇADAS PORTUGUEZAS 245 culo, ninguem se atreveu a entrar, e nos primeiros momentos ficaram todos em frente da porta, olhando para dentro, immoveis como estatuas. Os gritos da Russa e a presença da auctoridade chamaram logo alli toda a gente, que os ouvira. — O que é, tia Maria? — O que foi? — Mataram o Domingos! respondeu um. — Nada, não. Enforcou-se elle-— emendava ou- tro. — Porque seria ? — insistiam as curiosidades, agu- cadas já para os pormenores. — Não se sabe — disse um terceiro, com ares gra- ves, dando o caso já por certo. E assim iam os curiosos e alvicareiros discreteando- de grupo em grupo, ouvindo, inventando, e espa- lhando dislates e mentiras — como é de uso tambem nas grandes cidades. Ao longe ouvia-se o som grave do bombo e as notas agudas e sibilantes d'uma gaita de folles, re- boando nas quebradas da serra fronteira, e pela estrada vinha um rancho para a festa, cantando a Farrapeira. — O" ai! O” ai! Quem 'scorrega, tambem cae ! 246 CAÇADAS PORTUGUEZAS Uma choréa rustica, alegre e ruidosa. Elles — os rapazes — com os grandes chapeus bra- guezes, ornados de enormes borlas de torçal preto, camisas de preguinhas, algumas com botões de pra- ta, jaquetas de alamares, largas cintas vermelhas, amarellas, pretas, azues, verdes; outros de barretes, tambem de côres variegadas; todos de sapatos bran- cos com os seus pespontos vistosos, e grandes ca- jados, com as ponteiras brilhantes como oiro. Nos de mais edade as côres eram neutras, fazendo des- tacar aquelles tons vivos e crus, que, como os d'um kaleidóscopo, remoinhavam na dança. Ellas — com as suas camisas bordadas, os corpe- tes justos, apertados na cinta, e avivados de côres, com botões de metal luzente — contornando-lhes os bustos fortes e elegantes; as satas rodadas e curtas, as meias brancas, as chinelitas de bico revolto, a meio pé, e na cabeça o chapelinho, á lavradeira, sobre garridos lenços de ramagens, que, na desen- voltura dos movimentos, ora cobriam ora descobriam os rostos morenos e rosados, d'onde lhes saltavam os olhos alegres e buliçosos. Olhos peninsulares, olhos de vinte annos, que, na sua viveza, faziam concorrencia vencedora ao esplendor das arrecadas, aos grandes corações de filigrana e d'oiro batido, e ás côres estrellantes dos lenços, que esvoacavam! Sobre esta symphonia polychroma, desordenada nos pormenores, mas harmoniosa no conjuncto, des- tacavam — como uns pizqicatos, cheios de esponta- neidade e de frescura — as vivas notas coloridas das flôóres do campo, com que elles e ellas pelo cami- , CAÇADAS PORTUGUEZAS 247 nho tinham enfeitado as cintas, o peito e os cha- peus. E queimados do sol, affogueados, o suor em ba- gas, e cheios de pó, vinham a cantar: Menina, chegue á janella, já que varanda não tem: venha ver o seu amor, se é algum dos que aqui vêm. — O ai! ó ai! Se é algum dos que aqui vêm. Aquella gente, alli reunida á porta da casa, deu- lhes rebate de bailarico e o pittoresco bando parou. — O que é?—perguntou o da viola, o da frente — um rapagão como uma torre. — Diz que é um morto, que se.enforcou! — repli- cou-lhe o cantador, que veiu espreitar e era gracioso. — Ah! Arreda-te, João! Vae-te, Maria! — E siga o rancho! E lá se fóram, pela estrada fóra, dançando e can- tando : A viola vae na rua: perto vem o tocador! Menina, chegue á janella: venha vêr o seu amor ! E as vozes altas e argentinas das raparigas, vi- brantes, já longe, repetiam: OFai! O ai! Venha vêr o seu amor ! 248 CAÇADAS PORTUGUEZAS O! A filha do Domingos da Azenha entrara, sem he- sitar, e sumira-se no interior. Era animosa a peque- na. Fôra dar uma volta pela casa — não se tivesse lá mettido alguem, emquanto ella foi chamar soc- corro. Mestre João, depois de falar com o seu cabo ge- ral, entrou, descobrindo-se. Atraz d'elle seguiram to- dos, deixando no meio, em volta do morto, um es- paço livre. Era o natural respeito pelos mortos, e a idéa do crime, o que os aftastava do sinistro vulto do enforcado. Alguns, mais atrevidos, correram os quartos todos, como em busca da explicação d'aquelle mysterio. Com effeito o caso era para fazer pensar! Um ladrão enforcar-se na propria casa, que queria roubar!... Nunca se vira tal coisa! E em testos rijos, como aquelles, não entrava facilmente a possibilidade de semelhante tragedia! Esquadrinhados todos os recantos, voltaram e es- tacaram deante do morto, olhando ora para elle, ora para o regedor, ora para a Mariquinhas, que, ainda soluçando, estava a um canto, encostada à arca, so- bre a qual se via uma grande faca. Mestre João sentara-se, percorrendo com os olhos a casa, e encarando attentamente o enforcado — que elle já reconhecera. Depois levantou-se, e, como para tirar duvidas, foi ao pé delle, e examinou-o de perto. o CAÇADAS PORTUGUEZAS 249 — E elle, é. Está disfarçado, mas bem se conhece. Cortou a barba, encarvoou-se, e amarrou um lenço aos queixos. —Enganou a pequena, mas a mim não me embacava. E terminado este monologo interior, chamou o fiel Joaquim e disse-lhe em segredo: — É' o José Tanoeiro. Mas como elle arranjou este par de botas para ir para o outro mundo, é que eu não posso atinar! — Elle sempre foi má rez. E por isso veiu corrido lá de Villa Nova de Gaia — disse o cabo geral. —Que elle não é nascido aqui. Má rez — sim, mas não era tolo. Ahi já se rosnava d'elle, « eu, cá por coisas, trazia-o já de olho. — Vamos lá ouvir a pequena — disse alto mestre João. — E o sr. Joaquim tome note das respostas della, e os senhores presentes sejam testemunhas. Que eu disto lavrarei auto — cá para meu gover- no — auto que os senhores assignarão como soube- rem. — Ora anda cá, menina, e agora, que já estás mais socegada, conta-nos como foi isto tudo. Eu quero saber tudo, desde o principio. E quem é este ho- mem, se tu o conheces. Em fim tudo — que é para eu dizer á justiça, e tu descançares, e teu pae não ter trabalhos — porque, no fim de tudo, o que nós vemos, por agora, aqui, é um homem morto em tua casa, e então é preciso sabermos como isto foi. E depois d'este preambulo, que não foi ciceroni- co, mas que todos entenderam, fez-se silencio. 250 CAÇADAS PORTUGUEZAS A “Russa saíra do seu canto, e já estava em pé defronte de mestre João. — Eu vou dizer como foi. Ao principio não o co- nheci... — Ão principio? — observou o regedor. Isso as- sim parece-me que não vae bem. — Sim, senhor, ao principio —repetiu ella. Por- que elle trazia a cara tapada, e falava com outra VOAUSA — Mas olha, menina, ha de haver outro princi- pio antes d'esse. — Desculpe o sr. João. — Eu ainda não estou bem em mim. Dá-me assim baques a cabeça... Parece- me que me falta o ar! Mas eu conto... Eu vou con- tar tudo desde o principio. Quando meu pae, hoje de manhã cedo, foi para a azenha, levou a espingarda, e disse-me que não abrisse a porta a ninguem, e que, se elle matasse alguma perdiz na serra, m'a mandava cá, ou vinha elle trazel-a, mas que o mais certo era mandal-a. E foi-se, repetindo-me: Tem cuidado com a porta. Parecia elle que adivinhava! Eu creio que elle andava desconfiado d'alguma coisa, porque já não saía de casa sem a arma... Ha pedaço, estava eu lá dentro, senti mecher na porta, e perguntei, mesmo de lá, quem era. A voz que me respondeu, pareceu-me a do Cabaca, que é CAÇADAS PORTUGUEZAS 251 o guarda lá da azenha: vim e abri. A porta veiu logo para dentro empurrada, entrando aquelle ho- mem, que eu não conheci. Deitou logo a mão á chave e, dando a volta, tirou-a e metteu-a na algi- beira... Imaginem como eu fiquei! — E depois? — Depois perguntou-me, com a tal voz fingida, onde é que meu pae tinha o dinheiro. — Meu pae não tem dinheiro — respondi-lhe eu. — Tem, sim. Tu é que não tens amor á vida! — e puchou d'aquella faca, veiu para mim, e agarrou- me. Como eu gritei, segurou-me com mais força e ameaçou-me de me matar logo, se eu não lhe dis- sesse a verdade. Eu estava aqui só com elle — ninguem me acu- dia... Elle esfaqueava-me!... Que havia de fazer? Disse-lhe onde estava o saquinho com o dinheiro — lá em cima, no sotão, que tem uma janella, que dá para o quintal. Não me deixou lá ir só, e foi comigo. Como sa- bia os cantos á nossa casa, teve medo que eu fugisse, e chamasse gente. E mais é que não se enganava. Elle vinha mascarado, mas pela voz é que eu, lá em cima, desconfiei quem elle era. E a chorar dis- se-lhe assim : — Ora como o visinho tem animo de fazer isto a meu pae! — Ah! tu conheces-me?! — voltou elle, com uma cara muito feia, e a voz assim sumida... — Conheço, sim, senhor. — Conheçes! Vê o que dizes!... 252 CAÇADAS PORTUGUEZAS E eu, toda a tremer, ficou-me aqui a voz presa, e puz a cara no chão. Já estavamos cá em baixo — alli, áquella porta — e a “Russa apontou para a porta interior. Elle não tinha largado a faca da mão. Agarrou-me pelo pes- coço, e com uns olhos assim, que lhe saltavam da cara, diz-me : — Como queres tu morrer ? — Com a faca não! Não! — gritei eu. — Não grites, que ninguem te acode. Vaes então morrer enforcada. Uma corda! Vae buscar uma corda. — Não sei onde está. Apezar do medo grande, eu ia-lhe respondendo. Queria viver.... — Olha, está alli uma naquelle prego —e foi bus- cal-a. — Ai! senhores, de que eu escapei! Foi Nossa Senhora que me valeu !... E num instante fez um laço, e, subindo áquelle banco, armou-o na trave, puchou por elle com força, e chamou-me, que lhe segurasse o banco. É quando eu lh'o estáva segu- rando, e tremia como varas verdes, o malvado diz- me assim, com uma cara... Ai! sr. João, eu ainda isto me parece mentira! — Mas o que te disse elle ? — Que queria experimentar, ver se o laço corria bem, para não fazer doer... — Que grande malvado! O patife, ainda em cima, estava a mangar comtigo! — É vae, metteu elle a cabeça no laço... CAÇADAS PORTUGUEZAS 253 — E depois ? — perguntaram todos, que iam acom- panhando, com os olhos attentos na rapariga, a nar- rativa. — Depois, não sei como foi... Eu não lhe segu- rava já o banco, que lhe fugiu dos pés .. E elle fi- cou assim no ar!... Eu, quando o vi a dar com as pernas, e com as mãos agarradas ao pescoço, corri ao sotão, saltei para o quintal, e de lá deitei pela estrada fóra, a gritar... — Porque não foste por esta porta ? — Não, senhor, que elle tinha mettido a chave na algibeira. Eu já disse. E ella lá ha de estar, mais o dinheiro. — Mas ella estava aberta... — E que a arrombaram, depois de eu sair d'aqui. — Então tu não o ajudaste a bem morrer 2... Dize lá! Tu serias capaz de lhe puchar pelas pernas, ven- do-o alli seguro, hein? — E mestre João fitava os olhos da Russa, a ver se descobria nelles a confir- mação da suspeita, que lhe passara pelo espirito. — Eu! senhor João! — respondeu ella, com o olhar espantado, e um ar de medo e pasmo. E recuando deu um grito, e caiu no chão, escondendo o rosto nas mãos convulsas. Correram a levantal-a. e — Ainda está vivo! — gritava ella, debatendo-se espavorida, apontando para o morto, que balouçava no ar. — Foste tu que lhe deste com as costas, quando recuaste. Socega, pequena, que elle está morto e bem morto. Tirem-n-o d'ahi, e ponham-n-o aqui no chão. 254 CAÇADAS PORTUGUEZAS O José da Magdalena — disse o regedor, apontando para um dos presentes — é que fica de guarda á casa, e vam avisar o Domingos de que tem cá um hospede, e que, se matou a perdiz, ha aqui quem lh'a ajude a comer. E vamo-nos embora, que esta estava-nos guardada para o fim da festa! — E o dinheiro de meu pae, que elle tem alli na algibeira? — perguntou a Russa. — Já lá vamos, menina. Tu sabes quanto era? — Eu não, senhor. . — Então vae-se vêr. Dá-m'o cá. — Eu! — disse a pequena, toda encolhida. — O senhor José... — José, dá-m'o tu. — Vamos lá, que o ladrão tinha faro! Olé, se ti- nha... Tem seu peso — observou o José, sopesando o saco, quando o tirou das algibeiras do morto. Os que estavam alli fitaram os olhos no thesou- ro, que passara ás mãos de mestre João. O regedor vasou-o em cima da arca, e contou para si o di- nheiro. Depois do que tornou a mettel-o no saco, que atou muito bem, e, abrindo a arca, deixou-o cair dentro e fechcu-a. — Agora fica aqui. O que tu dirás, José, ao tio Domingos, quando elle vier. E cá levo a chave da arca. Tu tens medo de aqui ficar? ! Estás assim coma cara de gallinha cosida! Todo arripiado ! ; — Se lhe parece que o caso não é para isso, mes- tre João! — Olha lá. — Como a casa tem saída pelo quintal, que fique outro de vocês de guarda ás trazeiras. CAÇADAS PORTUGUEZAS 255 Manda lá o teu filho — que isto tem pouca demora. O Domingos não deve tardar. — Mariquinhas —tu ficas? Ou queres vir comigo, e voltas quando vier teu pae ? — Eu vou com o senhor João, se me faz favor. E a “Russa, ao responder, apontava com os olhos enviezados para o cadaver, que jazia a um canto, es- tendido no chão, e fazia-lhe com as mãos um gesto “de repulsão e affastamento. — E tens razão, pequena— confirmou o regedor — que elle, valha a verdade, se em vida não era bo- nito, agora parece o diabo! Cruzes, canhoto! Na aldeia já vagamente se sabia do acontecido. Um ladrão enforcado! — diziam todos, e discorriam ácerca do extranho facto, que para elles tinha ares de mysterioso. Quando chegou mestre João rodearam-n-o logo. Elle, depois de tomar o seu posto habitual, esten- deu as largas mãos sobre os braços da sua grande cadeira, —que já fora de conegos — e percorrendo com os olhos o numeroso auditorio, que até á porta lhe enchia a loja, — chamou a Mariquinhas, e man- dou-lhe contar a historia. — Então é ella quem conta! —observou, em voz baixa, o sr. Manuel Esteves — um dos da opposição da terra. 256 CAÇADAS PORTUGUEZAS Mestre João ouviu, e, voltando-se para o lado d'onde partira a censura, disse: — Eu quero que seja ella quem fale aqui deante de todos, porque dos dois, que entraram neste caso, um já não fala, e ainda que falasse era suspeito: resta a rapariga. Eu já a interroguei lá, no local do crime, e já fiz a minha idéa. Mas é preciso tambem que os senhores a ouçam. E eu tambem quero ficar sem a sombra d'uma duvida acerca do modo por que aquillo se passou. Como regedor tenho de dar parte do caso ao senhor administrador do concelho e ao senhor prior da freguezia — aqui mestre João fez um apausa respeitosa. — Quero por isso estar bem certo do que lhes tenho a dizer. Agora dize tu, Mariquinhas, como tudo se passou. Estes senhores, que são todos ami- gos de teu pae, teem muita vontade de te ouvir. Terminada a narrativa, a assembléa lá -se sasedrida lentamente, impressionada pelo tragico aconteci- mento, e admirando, ao mesmo tempo, o sangue frio da rapariga, que, em tão apertado lance, não perdera de todo a cabeça, e procurara defender o dinheiro do pae, e a vida, tão sériamente amea- cada! Nas fileiras da opposição fizera escandalo o gracejo do regedor, quando se referiu ao hospede, que o Do- mingos vinha achar em casa, para o ajudar a comer a perdiz. Um horror! O Esteves, quando o soube, foi logo contal-o ao Gonçalves, e este passou-o ao Tavares da Gallinheira — antigo regedor — que o as- sentou no caderno das accusações, que elle havia de CAÇADAS PORTUGUEZAS 257 fazer valer eontra o mestre João, quando o seu par- tido subisse ao poder. O da Gallinheira — alcunha que lhe viera da mãe — ao ouvir a historia, olhou para o seu compadre Silva, e, piscando o olho, replicou-lhe : — Não me admira. Elle sempre foi leve de lingua e de mãos... O rival vencido e despeitado alludia maliciosa- mente ao caso da ribanceira. — Sim, sim — confirmou o outro, com tom sen- tencioso. Nestes logares tem a gente obrigação de medir as palavras. IL com os mortos não se brinca. O nosso prior tambem não ha de gostar, quando o souber. — E naturalmente não ha de tardar muito. Eu vou lá agora, e já vou encontrar a novidade, aposto. E vou, porque tenho que falar com elle por causa duma certidão. Estas ultimas palavras disse-as o Esteves por dis- farce. O unico motivo que o levava a procurar o prior, era informal-o do escandaloso procedimento do regedor. Não podia perder uma occasião tão azada para o intrigar. Mestre João, quando se viu só na loja com o Joaquim do Giestal, depois d'um silencio d'alguns minutos, em que esteve de certo mergulhado em io 258 CAÇADAS PORTUGUEZAS tétricos pensamentos, suspirou, levantou os olhos ao alto, e exclamou: “— Joaquim, Joaquim! Tempos calamitosos — Desculpe eu contradizer a sua palavra hon- rada — replicou o outro —mas o que devemos di- zer neste caso, 'é que onde ellas se fazem, ahi se pagam! — E tambem é certo que Deus escreve direito por linhas tortas, estava eu cá pensando agora — acrescentou mestre João, levantando-se e pondo a mão no hombro do Joaquim. — Como assim? — perguntou 'o do Giestal, sem perceber o sentido das palavras do seu amigo. — Você não entende? Eu lh'o explico. Quando o homem se viu descoberto, perdeu a cabeca, e, se não acha uma corda alli á mão, era uma vez a Rus- sa! Elle degolava a pequena. Que a furia dos me- drosos é de temer! E nós tinhamos agua pela barba para darmos com o ladrão, com tanta gente, que ahi está de fóra! E foi este o calculo d'elle, apro- veitando esta occasião. No que se enganou, e tam- bem em julgar que ella não o conhecia, assim dis- “farçado. Mas o diabo cobre com uma manta, e des- cobre com um chocalho, e a Russa pescou o marau pela voz. Já se vê d'aqui, que, quem salvou a vida da Russa e o dinheiro do pae, foi a corda. Se ella não apparece alli elle matava e roubava!... E tal- vez se ficasse a rir da tropa! Assim, agora, ficou tudo como estava, e ha um ladrão a menos! Deus escreve direito por linhas tortas! — A linha aqui é a corda, que é tambem uma linha grossa e torta. E CAÇADAS PORTUGUEZAS 2509 agora — disse o mestre João, abrindo muito os olhos — vae você ouvir o final d'esta historia ! Hontem, por esta hora, estava eu aqui, quando entrou o Domingos, que havia muito que eu o não via. Vinha procurar-me cordas, de que precisava lá para a azenha. Escolheu, apartou duas, e experi- mentou-as. — Pode puchar por ellas — disse-lhe eu. E elle, que é forçoso, puchou. — Então servem-lhe ? — Se servem... Até para enforcar um homem! É, rindo-se, pagou e foi-se embora. Mal diriamos —-os dois — que o dito se tornaria verdadeiro, e que a corda, que eu lhe vendi, havia de ser—a corda do enforcado! Um oasis em Carnaxide Ao dr. Lucas Falcão. Andavamos, João Forjaz, eu, e outros, atirando ás perdizes nos arredores de Lisboa. Caçavamos em terrenos desconhecidos, abrazava- nos o calor, a sêde começara a torturar-me, e não viamos fonte alguma! Aproximámo-nos, portanto, do povoado, e, avistando uma quinta de bella apparen- cia, muros altos, e largo portão, dirigimo-nos para lá. A' falta de perdizes, que não encontraramos, iamos matar a sêde. E poderiamos tambem d'este modo sophismar agradavelmente a vergonhosa grade, que já nos ameaçava. O magestoso portão estava cerrado, mas, apro- ximando-me, senti o grato murmurio da agua cor- rente ! Um oasis no deserto, aquella vivenda, que alli se nos deparava! Uma verdadeira salvação — porque 262 CAÇADAS PORTUGUEZAS ainda que, em vez de Zacharias, eu me chamasse Moysés, e tivesse nas mãos a milagrosa vara, fal- tava-me o rochedo ! Ao perto e ao longe, quanto os olhos podiam alcançar, não viamos senão restolho e. calhaus:! Uma verdadeira desolação! Uma d'aquellas aridas paizagens do Oriente, que Loti nos pinta em quatro traços ! Faltavam-lhe só os camellos e os beduinos ! Mas se a sêde continuasse, quem sabe se nós che- gariamos ás allucinações da miragem, e então com- pletar-se-ia a visão, para alli transposta, do Grande Deserto! E veriamos camellos, beduinos, e tudo! A porta, com a sua grande argola e a alta e larga moldura de cantaria, tinha a assignatura do se- culo xvilt, € impunha respeito. Espreitei pela fechadura. Em frente, num espa- coso pateo, vi uma fonte, d'onde corria um largo jorro d'agua cristalina ! Levantei o argolão e bati, e ao creado, que immediatamente nos appareceu, pedi agua para mim e para os meus companheiros. Man- dou-nos logo entrar, facultando-nos a almejada lym- pha. Ao ruido da nossa entrada e á apparição dos in- “discretos perdigueiros, assomou á porta da magni- fica vivenda o seu proprietario. Reconheci-o logo: era o meu companheiro da barca da Azambuja. Re- conheceu-me elle tambem, e com este animo hospi- taleiro, tão nosso, convidou-nos a descançar, e tive- mos que lhe agradecer não só a deliciosa agua da sua fonte, mas a cerveja e as bolachas que, em se- guida, nos offereceu, levando a amabilidade ao ponto CAÇADAS PORTUGUEZAS 263 de nos apresentar á sua ex.”* esposa, patenteando- nos a sua residencia e o seu jardim. A milla cuja historia nós não conheciamos, é uma construcção do seculo passado. (!) Respeitada até aquelle momento pelos seus proprietarios, seria para mim uma agradabilissima vivenda. Largas salas com fortes paredes, revestidas todas, em volta, de altos azulejos, admiravelmente conservados. E o que mais lhes accentuava a data da fundação, e o ar antigo, era verem-se ainda ornadas de gravuras inglezas coloridas, contemporaneas dos seus fundadores. Se a casa nos transportava á edade d'oiro da co- lonia ingleza de Lisboa, quando, na companhia do seu amavel dono, entrámos no jardim, a illusão foi completa, e as ruas sombrias de murta, com os seus alinhados canteiros em curvas e rectas, tosquiados a regua e compasso; as estatuas mythologicas, osten- tando, nos recantos mais sombrios, a nudez dos seus marmores, já musgosos, aquellas Venus, a que as sinceras velhinhas de Nicolau Tolentino faziam me- sura e oração; e aquellas verdes mvurteiras, d'entre as quaes, Em suavissimos accentos, com segundas e primeiras, sobem, nas azas dos ventos, as modinhas brazileiras ; (1) Segundo nos disse, ha pouco, o nosso amigo comprou-a aos herdeiros d'um homem muito conhecido, em tempo, em Lisboa, pelo cognome do Agua de Inglaterra; cedendo-a de- pois ao hoje fallecido visconde de Moreira de Rey. 264 CAÇADAS PORTUGUEZAS evocavam-nos alguns dos personagens, que entre- vemos, tão bem desenhados, nas famosas cartas de William Beckford. Era aquella, decerto, uma das elegantes quintas, de que elle nos fala, em bellissi- mas descripções, e poderia bem ser a que inspirou as famosas quintilhas do nosso chistoso poeta. Um typo, um specimen este, admiravelmente con- servado dos symetricos jardins — estylo Luiz XIV — do classico Lenôtre. Uma espaçosa e encantadora vivenda, dominando um valle, que vae descendo suavemente, e, apertando-se entre accidentadas e graciosas collinas, deixa ver lá em baixo, ao fundo, o Tejo e os montes da Outra Banda. Maus conselheiros diziam ao doutor que fizesse surgir a arte moderna no logar d'aquella velharia ! Elle perguntou-me a minha opinião. O leitor ima- gina bem qual foi. Votei, votámos todos pela conservação do passado. Destruir um exemplar tão perfeito, como aquelle, e duma época tão caracteristica na arte dos jardins, quando elles, infelizmente, já são rarissimos entre nós, substituindo-o por uns canteiros rasos, pelas banaes corbeilles, que se encontram em todos os jardinzinhos e praças da cidade, seria um acto de iconoclastismo, altamente burguez e deploravel! E tanto mais digno de censura, quanto elle—o dou- tor— é um amador das artes, e, depois de cançar os olhos com a calygraphia arrevezada dos proces- sos, gosta de os descançar, na sua galeria, numa paizagem, numa scena; flamenga ou hollandeza, d'algum mestre dos bons tempos. CAÇADAS PORTUGUEZAS 265 Saímos finalmente do oasis, e achámo-nos outra vez no deserto! — Restolho, e calhaus, e um sol de rachar! Valles e encostas, tudo o mesmo! Sombra nenhuma!... Nem mesmo... a das perdizes! Estava escripto — mais uma janella! Um dos meus companheiros, que era folgazão, dizia-nos que já viera de casa com ruim agoiro. Ouvira de noite ptar um mocho nos corucheus da egreja de S. Fran- cisco de Paula, e de manhã, logo ao sair, dera uma topada! E por isso não topámos nós com as perdi- ges! Mas, se eu de lá não trouxe caça, trouxe a im- pressão agradabilissima da minha imprevista visita ao meu amigo, o dr. Lucas Falcão; e verá aqui o illustre jurisconsulto, neste auto descriptivo, que a conservo tam fresca na memoria, como o era a agua da Nayade da sua bella casa de campo da Quinta de Cima de Carnaxide. Ed DOS AO AD Aa ADO APT SAND AD Sa SANDS ASSIS ADA SANDS ANDA ADA ADS AD 49H ado -———"— À a q PLLETII |) O final d'uma caçada A Gabriel Pereira. PROLOGO As duas historias, que figuram nesta narrativa, são ambas tradições da minha familia. José Nogueira de Araujo —o protagonista da scena da phantasma — era meu bisavô paterno. D'uma raça de gente brava e destemida, primo, creio eu, de Faustino de Sá No- gueira, avô de Bernardo de Sá Nogueira — o heroico marquez de Sá da Bandeira — vivia elle nos Bairros de Santarem, d'onde era natural, quando um acon- tecimento tragico, dos então muito frequentes na- quellas terras de brigões, o obrigou a sair de lá, indo estabelecer-se em Beja. Grande jogador de es- pada, e não sendo já novo, quando elle lançava a capa no chão, não havia alli quem o fizesse sair de cima d'ella! José Pedro, a principal figura, d'entre os cinco 268 CAÇADAS PORTUGUEZAS caçadores — José Pedro da Costa — falleceu ainda novo, em 1824. Primo e concunhado de meu pae, foi grande caçador. Esta historia, tão dolorosa e tragica recordação nos deixou, que só a minha irmã a ouvi, e a muito custo a repetia. Era extremamente devota, a boa se- nhora, e, no decurso da narrativa do caso nefando, lembro-me que, ás vezes, se benzia, como se o espi- rito mau lhe apparecesse alli, e ella o quizesse es- conjurar! Nós — eu e as outras creanças de casa — era exa- ctamente a que mais gostavamos de ouvir. E, com effeito, não tinhamos mau gosto. Era uma vez... Como isto se passou ha muito, pode a historia principiar assim. Era, pois, uma vez um caçador... Não, não digo bem — não era um, porque eram cinco os que anda- vam caçando, no Alemtejo —nas immediações de Moura, Ferreira, ou Serpa? Ao certo não o sei— se mo disseram, esqueci-o. Elles eram d'essas ter- ras, mas, para não mentir, nesta historia verdadeira, fica em branco o nome do sitio— que elle tambem pouco importa para o caso. Andavam, pois, cacando os bons caçadores, quando, longe de todo o povoado, os surprehenderam as som- bras da noite. Muita vez tal lhes succedera nas suas excursões, nem elles, habituados à vida fragueira, CAÇADAS PORTUGUEZAS 269 estranharam isso: eram cinco homens fortes e va- lentes, costumados a levantar e forçar os lobos e os javardos no covil, de dia e de noite, á faca e a tiro; mas tambem tinham, como os fracos, vontade de ceiar, e não lhes sorria de fórma alguma a perspe- ctiva de uma noite passada ao relento, observando a rotação dos astros. É iam caminhando, e não viam nada. Nem gente, nem vislumbre d'uma casa! E a noite ia crescendo, e em vão procuravam lo- brigar alguma luz, que os guiasse naquellas trevas. Nada viam. E applicavam o ouvido á terra, deitando-se no chão como os selvagens, a vêr se percebiam algum rumor, que denunciasse proximidade de gente viva. É nada ouviam. Tudo deserto, tudo silencioso, naquelles campos e charnecas! Nem viv'alma! E as trevas crescendo, e a noite avançando. É iam caminhando... Senão quando, lá ao longe, furando as trevas, appareceu-lhes uma luzinha, que ora brilhava, ora se sumia. — Olha além. Uma luz! — Estamos salvos! — gritou um. — Estamos salvos! — repetiram todos. — Em boa hora o digamos — disse José Pedro, o mais velho dos cinco. | E estugaram o passo os bons caçadores. Eis que lhes apparece um vulto. Era uma velhinha. 270 CAÇADAS PORTUGUEZAS — Tiasinha, guarde-a Deus. — Que Deus os guarde, senhores. — O que ha naquella casa? — Mau couto para caçadores. — Vá de brincadeira. Não é o sitio azado para outeiros. Vocês parece que estão a fazer versos! Mora gente alli? — perguntou José Pedro. — Morava sim, senhor. Era o Luiz Preto, o guarda —mas agora não está lá ninguem vivo. — E aquella luz? — Está-o allumiando, que elle morreu hoje. Eu venho de lá agora. E a velha sumiu-se na escuridão da noite. — Olha que encontro! Ada SE velha e um defuncto! O' José, não te cheira aqui a enxofre ? Aquillo é alguma bruxa, ou o diabo em pessoa! Cruzes! — disse um dos companheiros, com voz grossa, que queria parecer firme, — Aqui nestas alturas, amigos, não ha por onde escolher. Na guerra como na guerra. Vamos ter com o morto. — Talvez que fosse ceiar com o diabo — observou o da voz grossa. Pois fez mal, que, se esperasse por nós, ia aconchegadinho. — Se morreu de fome, com este paio e esta pinga ainda era capaz de resuscitar! — acrescentou ou- tro. E, discorrendo neste estylo, que não é o do medo, mas que ás vezes o encobre, chegaram ao tugurio os cinco caçadores. CAÇADAS PORTUGUEZAS t> =] NH — Seja Deus nesta casa — disse José Pedro, ao cruzar a porta, tirando o chapéu, e olhando a um e outro lado. Os outros repetiram: — Seja Deus nesta casa—e tiraram tambem os chapéus, correndo os olhos em volta. Houve um momento de silencio. — Não ha aqui ninguem? — perguntou José Pedro. — Ha o morto — disse um, apontando para o canto mais escuro. Os olhos dos recemchegados dirigiram-se todos para lá. Num catre estava um vulto deitado, hirto, com os pés levantados e as mãos postas, todo co- berto com um lençol. Na parede, em frente da porta, negrejava um crucifixo, e uma candeia, que lhe ficava sobranceira, dava luz e sombras — mais sombras do que luz — ao sinistro aposento, prolongando na parede a man- cha negra ondulante da figura do Crucificado. Um quadro, um capricho de Goya. — Então vamos passar a noite com este cava lheiro? — perguntou o Alexandre, o da voz grossa. — Que se quêde em paz com Deus, se elle o qui- zer para st—respondeu José Pedro. Tratemos de nós. É, dizendo isto, ia fazendo fogo na lareira. — Que pobreza de casa! Na arca nem nada! — E' que elle metteu tudo no farnel. Não, que a viagem é longa!... fe 272 CAÇADAS PORTUGUEZAS A lareira já crepitava, e os alegres companheiros, uns sentados, outros encostados á parede, lamenta- vam que o catre estivesse occupado por quem já não apreciava os regalos e as doçuras da vida. — E' que se arreia ao chão; vae para cima da manta. Elle já lhe não dóe nada— dizia um creado. Cama fôfa ou terra dura — para aquelle é tudo o mesmo. Quantas vezes dormiria esse fidalgo no pro- prio do chão, para o estranhar agora, depois de morto! — Mas nós ainda não lhe vimos o rosto!'— e o que dizia estas palavras —o Alexandre — rapagão vermelho, alto e espadaúdo, approximou-se do ca- tre, e levantou o lencol. — Caramba! Mala cara tiene! — disse elle, re- cuando um pouco, com os olhos pregados no cada- | ver. E' grande, e negro como o demonio! Parece de pau santo! Isto andou na Serra Morena! — Pois se andou, olha, Alexandre, que não enri- queceu no officio. — Cá está a espingarda do homem! — gritou de um canto um dos caçadores. Se ella falasse... — Que grande gilvaz elle tem na cara! Agora re- paro — continuou o Alexandre, baixando-se para vêr melhor — são dois golpes assim — e com os dedos fez uma cruz. — E' a Cruz do mau ladrão! E; rindo a bom rir, dirigindo-se para a lareira, - Alexandre abriu uma grande cuchilla, e dizpoz-se a atacar um gordo paio. As borrachas negras tinham já saído dos surrões, e ostentavam os bojudos ven- tres á luz viva do brazido d'um tronco de azinho, CAÇADAS PORTUGUEZAS 273 que José Pedro descobrira afinal no pobre alber- gue. — iintão, Alexandre, tem má cara o nosso pa- trão? — perguntou José Pedro. — Se tem! Bons ossos é que elle mostra. Sêco como um pau! Que pena elle não arranchar á ceia! E historias, que aquillo havia de saber! Agora já não dá horas, está parado. Pois não sabes o que perdes! — disse o faceto latagão, voltando-se para o catre, com a borracha já numa das mãos e um grande naco de paio na outra. — Com os mortos não se brinca — disse José Pe- dro, com um tom sêco. 8 — Elle não tem de que se offender. Até, se me ouvisse, havia de agradecer a lembrança... Nisto é que elle nunca pôz os beiços — e mostrou o paio. Aquellas carnes crearam-se com bacalhau! É com uma gargalhada acompanhou o gracejo o forte Alexandre. HI Houve uma pausa. José Pedro, depois das ulti- mas palavras do seu companheiro, ficara muito se- rio. Os outros rodeavam-n-o, em frente do lar. Vol- tando-se para os dois, que lhe estavam mais proxi- mos, elle estendeu a mão, como quem vae falar. — Parece-me que vocês estão ahi conversando de alminhas do outro mundo... -— Estavamos, sim... Mas nós não acreditamos. Era por falar e por causa do encontro. 18 274 CAÇADAS PORTUGUEZAS = — Sim, a occasião é propria—a noite escura e feia, a velha, o morto alli... O scenario está com: pleto. Só faltam as vassouras para as bruxas mon- tarem: aqui é coisa que não ha. Emquanto ellas — as bruxas — não apparecem por ahi, vou-lhes eu contar a historia duma alma do outro mundo, mas verdadeira. — Verdadeira!? A alma, ou a historia? Como foi então? — Verdadeira a historia, sim. Estão vivos muitos d'esse tempo, que conheceram os actores: o prin- cipal foi o José Nogueira de Araujo. Lembram-se delle? — Se lembramos! Valente homem, que elle era! Deixou fama. — Pois o caso foi assim. — Conta lá, conta lá — disseram todos, e accesos os cigarros, ficaram immoveis. — Não posso — disse José Pedro — marcar, ao certo, quando isto foi. José Nogueira era já velho — devia andar pelos sessenta, mas a fibra era ainda a mesma. Uma noite, em casa, á ceia, disseram deante d'elle que, havia dias, pela volta das duas ho- ras da noite, apparecia naquelles sitios uma grande phantasma branca, d'uma altura enorme, arrastando ferros. Era grande o pavor com tal apparição, e da meia noite em deante não havia já quem se atre- vesse a sair á rua! José Nogueira ouviu com grande attenção a nar- rativa, que todos lhe affirmavam ser verdadeira, e, sorrindo, disse : CAÇADAS PORTUGUEZAS 275 — Pois então eu sempre quero vêr a cara á tal phantasma. — Ora que idéa ! —observaram as senhoras, que lhe conheciam o genio, e temiam as consequencias da empreza. — Que idéa ! Então que tem isto de extraordina- rio? D'esta edade que tenho nunca vi uma alma do outro mundo. Offerece-se-me agora occasião, e eu aproveito-a. Ahi está a minha idéa: é a mais natu- ral d'este mundo. A phantasma passa por aqui ás duas horas da noite, e eu espero-a. — Na janella — arriscou uma das pessoas presen- tes. — Não. Qual janella, nem meia janella ! Na rua. Quero vel-a bem de perto; quero ficar conhecendo-a. -—-- Então vamos todos esperal-a. — Não, não é preciso incommodarem-se. Deitem- se, que cu cá fico de sentinella. Não tenho medo. — Mas... — Não ha mas. Eu não preciso de companhia. Já disse. Ninguem mais tugiu naquella casa. Quando o ve- lho Nogueira dizia — Já disse — todos sabiam o que tinham a fazer — calar-se e obedecer. — Como o vento zurra lá fóra! Que noite! Vá lá uma golada — disse, nesta altura, o Alexandre, apro- veitando o movimento de José Pedro, que estava chegando mais para dentro da chaminé o toro de azinho. — Ainda bem que nós vinhamos preveni- dos. - — Nessa noite, escusado é dizel-o — continuou o 276 CAÇADAS PORTUGUEZAS narrador — ninguem se despiu em casa do José No- gueira. Fizeram semblante de se deitar, mas todos ficaram nos quartos, de ouvido á escuta, promptos a saír á rua, apenas ouvissem vozes, e rumor de lucta. Approximavam-se as duas horas — a hora da phan- tasma. Na rua Ancha estava um vulto, embuçado no capote, e encostado a uma esquina. Era elle—o nosso homem. Duas horas a dar na egreja mais proxima, e a ouvir-se um som de ferros, arrastando-se lentamente pela calçada. José Nogueira voltou-se logo para o lado d'onde elle vinha, principiando a andar nessa direcção. De repente apparece a phantasma na bôca da rua. Era como lh'a tinham descripto. Ao vel-a elle parou, e esperou, desembainhando a sua Negra — uma espada preta, colubrina, que entrara em muita refrega e vira muito sangue. Vinha já perto a aventesma. Quando a julgou a boa distancia atravessou-se-lhe deante, e mandou-a parar. A phantasma não respondeu, e continuou a caminhar. José Nogueira deu um passo á frente, desembuçando-se todo, e, levando da espada, fez segunda intimação. — Você pára, ou não pára? E como a phantasma não parou, a espada revo- luteou, sibilando no ar, e ella, dando um agudo grito, veiu a terra. Ao baque, ao ruido dos ferros e aos gemidos do homem, abriram-se as portas dos visinhos, que acudiram com lanternas. A alma pe- .. t = CAÇADAS PORTUGUEZAS 277 nada era um cabo do regimento de cavallaria, alli aquartelado, que julgara aquelle disfarce o melhor, para realisar umas entrevistas amorosas! O infeliz namorado, além da grande queda, que deu das an- das em que vinha trepado, tinha um raspão numa perna! É acabou-se a historia. Ao ferido, corrido de ver- gonha, e muito amofinado, quebrou-se-lhe o encan- to, e foi curar-se, senão da paixão, pelo menos do gilvaz. Os visinhos puderam d'ahi por deante andar na rua, a horas mortas, sem receio do ruim encon- tro; a familia de José Nogueira ficou socegada, e elle, o velho brigão, contando singelamente o caso, e referindo-se á sua espada, a Negra— dizia com graça: — É agora marquem mais uma á preta! IV A historia acabara-se. O vinho, esse é que não tinha ainda saído todo das borrachas dos bons ca- cadores, e com longos tragos lhes foram correndo as horas desenfastiadas e despercebidas, ao contra- rio do que era de esperar, no principio d'aquella te- nebrosa noite, tam mal auspiciada. E elles — como dê costume — se tinham bom vi- nho nas suas borrachas, tambem tinham largo pro- vimento de boas historias, alegres, salgadas, e pican- tes como o pimentão que lhes temperara os paios, e lhes accirrava o appetite de amiudarem as goladas, 278 CAÇADAS PORTUGUEZAS E o vento continuava a assobiar nos soutos, € os lobos, ao longe, uivavam na charneca!! Elles estavam bem alli, á lareira. A caçada fôra boa, e sentiam-se contentes naquelle desamparado albergue, que, comparado com as suas habitações, parecia uma caverna de bandidos ! A lareira crepitava, parecia rir. Nunca vira tama- nha folia, tão ruidosos e joviaes convivas! Afóra o grosso tronco de azinho, ardia quanta madeira en- contraram á mão, e a casa, com as suas paredes par- das de pedra ensossa, estava illuminada como se tivesse dentro o sol! Subira de ponto a hilaridade; as gargalhadas suc- cediam-se: eram atroadoras! Do morto, que alli ja- zia, ninguem já se lembrava! E que se lembrasse... Elle estava morto. Um morto é um ausente. Está, e é como se não estivesse! Beberam á memoria de José Nogueira, e depois á d'outros e outros, e, finalmente, aquelle que dava pelo nome de Alexandre — uma alma damnada, como lhe chamavam os seus companheiros, um es- pirito forte, como então diziam os francelhos — to- mou á sua conta O finado, que jazia hirto, ao fundo, no seu pobre catre ! Estamos chegados á scena final. Aqui vae, como a ouvi contar. O caso deu-se, e a lesão mortal, que arrebatou José Pedro ainda moço, na força da vida, *” CAÇADAS PORTUGUEZAS 279 se não se originou alli, aggravou-se com as impres- sões, verdadeiramente tragicas, d'essa noite terri- vel! Alexandre continuava com as suas sacrilegas jo- cosidades. Chegara ao ponto de offerecer vinho ao morto! — Vae uma golada, compadre?... Então lá vae à sua! Neste momento — com espanto e terror de todos, o morto revolveu-se no leito, soltou as mãos, esfre- gou os olhos, como quem desperta d'um longo e pe- sado somno, e sentou-se na cama! Depois, fitando o olhar esgazeado nos caçadores, pallidos e attoni- tos, ergueu-se, e caminhou direito a elles! Aquelles homens, todos destemidos, que não re- cuariam facilmente deante de dez ou de vinte, fugi- ram, e, José Pedro, o ultimo a levantar-se, achou-se sósinho! Defrontaram-se os dois no meio da casa, e, por um d'estes impulsos inconscientes, e quasi animaes, travaram-se, braço a braço!... Era dotado José Pedro de grandes forças, mas o inesperado do lance tambem, no primeiro momento, lh'as quebrara. Com effeito, quem ficaria alli impas- sivel?! A lucta foi desesperada; finalmente, num impeto, José Pedro conseguiu levar o outro até á porta, deixada aberta pelos espavoridos caçadores, e, arrojando-o de si com um supremo esforço, fe- chou-se por dentro. E alli esperou que o sol viesse illuminar aquella scena, que elle nunca mais esque- ceu! Que noite aquela! Ainda mal vinha rompendo a manhã, repetidos 280 CAÇADAS PORTUGUEZAS assobios denunciaram-lhe a presença dos compa- nheiros. Abriu a porta. Eram elles, e muito povo, alvorotado com a nar- rativa do estranho successo. Estavam affastados, to- dos, em frente da casa, como receiando approximar- se! Defronte, a dois passos, estava estendido, e sem movimento, um homem. Era o Luiz Preto, o guarda, agora realmente morto! E este foi o final da caçada dos bons caçadores! ul TM o vi a . a R a at ê a ar Ei - + , a? » P Wa . + BioMed PLEASE DO NOT REMOVE CARDS OR SLIPS FROM THIS POCKET UNIVERSITY OF TORONTO LIBRARY