CAMÕES

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lusíadas

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CAMÕES

E OS

lusíadas

ENSAIO

fflSTORIGO-CRITIGO-LinERÂRIO

FRANCISCO EVARISTO LEONI

COMMENDAOOR DA OrdEM MiLITAR DE SaN' BeNTO QE ÀVÍS

Cavalleiro da mesma Ordem

E da Antiga e muito Nobre da Torre e Espada do Valor, Lealdade e Mérito

Sócio da Academu R. das Sciencus de Lisboa

E do Instituto Histórico Geographico e Ethnographico do Brasil

Gbmeral de Brigada Reformado &c.

LISBOA

LIVRARIA DE A. M. PEREIRA— EDITOR

50 RUA AUGUSTA 52

1872

Imprensa de Sousa Neves, Flua da Atalaia,

INTRODUCÇÃO

Do muito que á cerca de Luiz de Camões e dos Lu- siadas se-ha escripto, não em Portugal, senão em paizes extrangeiros, devêramos inferir que se-acha es- gottado o assumpto, e que nada que de novo nos-es- clareça sobre este homem extraordinário, e nos-faça me- lhor sentir e appreciar o mérito do seo poema, pôde hoje accrescentar-se ao investigado e sabido. E, to- davia, o que nos não parece; e mais nos-confirma 'nesta idéa o que ultimamente temos visto pubhcar.

Convencidos da verdade do que deixamos dicto, va- mos expor as reflexões que a critica nos-ha suggerido. ^As conjecturas, que se-ham aventurado sobre alguns ponctos controversos da vida do poeta, anteporemos as nossas conjecturas, e faremos ponderosas appreciações

6 CAMÕBS |! OS lusíadas

sobre os Lusíadas, pregão sublime das glorias da nossa pátria, e monumento perdurável e inconcusso que em vão a inveja tem pretendido abalar.

Para appreciar devidamente Luiz de Gamões é indes- pensavel conhecermos o século em que nasceu: o estado em que se-achavam as lettras, e as idéas que então pre- dominavam; porque, sendo estas idéas un como am- biente que todos respiram e do qual, mais, ou menos, não podem deixar de participar, é necessariamente por ellas que havemos de afferir as altas concepções do can- tor dos Lusiadas e avaliar o quanto sobresaíu aos gran- des homêes do seo tempo e poude mesmo competir com os da antiguidade.

Nos principios do século XVI achava-se a Europa fi- nalmente resgatada das trevas em que jazera involta durante a edade media ; o que foi devido aos successi- vos exforços que, para restaurar as lettras antigas, ha- viam impregado os homees mais eminentes. Com o começo do século XIV aponctara em Itaha a aurora da renascença; sendo Petrarca, Dante, e Boccacio os primeiros que deram impulso ao grande movimento lit- terario que depois se-desinvolveu e progrediu com un enthusiasmo de que não temos, talvez, exemplo em épo- chas mais recentes. O primeiro d'estes três poetas e eruditos formou uma eschola, que, comquanto não pro- duzisse discípulos que o-egualassem, exerceu, todavia, uma pasmosa influencia no estilo e na forma da poesia, não dentro da Itália, senão ainda em França, Hes- panha e Portugal. Tendo-se cuidadosamente appli- cado a aperfeiçoar a lingua italiana, conseguiu dar-lhe

INTRODUCÇ^O

a pureza e a elegância que não tinha; mas o maior ser- viço que prestou e que não Ihe-póde ser disputado, foi, seguramente, o de fazer reviver o gosto da antiguidade clássica. Dedicando-se com intranhavel zelo a desco- brir e a fazer copiar os manuscriptos dos auctores anti- gos, restituiu ás lettras as Instituições Oratórias de Quin- tiliano, uma parte das Epistolas familiares e das Ora- ções de Cicero, e, por ultimo, as Tragedias de Sopho- cles. Dante, o segundo dos que contribuiram para a renascença, foi quem verdadeiramente creou a poesia italiana na Divina Comedia, poema de uma força e con- cisão admiráveis, no qual cada palavra exprime un com- plexo de idéas, e cada terceto un principio de moral. Possuindo profundo conhecimento da antiguidade, e pro- pondo-se Virgilio por modelo, quanto a estilo e eloquên- cia, fez com que a lingua se-prestasse a todas as exi- gências, ao passo que a subjeitou a uma versificação nobre, rica e harmoniosa. Gomo, porém, o objecto daquelle poema seja em parte politico e de un inte- resse local, não podia exercer na htteratura geral da Europa a mesma influencia que produziu em Itália.

Coevo d'estes grandes homêes, e não menos sábio e indefesso investigador da antiguidade, foi Boccacio o terceiro que contribuiu para a restauração das lettras, descobrindo e fazendo copiar uma infinidade de manus- criptos gregos e latinos que jaziam sumidos e dispersos por desvairadas partes, e impregando assiduas locubra- ções em restituir os que se-incontravam incorrectos, mu- tilados, e a que muitas vezes faltavam principio e fin. A seos grandes exforços e fadigas deveu a Itália o

CAMÕES E OS lusíadas

haver recuperado Homero que então era conhecido pelo nome. Entre muitas obras importantes escreveu em latin un tractado da Genealogia dos Deoses, cheio da maior erudição e em que revelou os vastos conheci- mentos que possuia da mythologia, sciencia então des- conhecida, que elle resuscilou e da qual se-serviu para dar uma infinidade de noticias sobre a antiguidade clás- sica.— Esta obra foi como uma grande luz derramada de repente na Europa, e que fez conhecer á maior parte dos sábios daquelle tempo que Ihes-era inteiramente extra- nha tal matéria, ao passo que promoveu o gosto e faci- litou o estudo e as investigações sobre a historia antiga. Compôs também a Theseida, poema em 12 cantos no qual se-nos-depara o primeiro exemplo de versos em oitava rhythma. O que, porém, lhe grangeou a maior celebridade foi o Decamerone, compilação de cem no- vellas, em que fielmente retrata os costumes licenciosos daquella épocha, e nos-oíferece un modelo do romance moderno. 'Nesta composição que veiu a ser para a prosa italiana o que os sonetos de Petrarca e a Divina Come- dia de Dante haviam sido para a poesia, fez adquirir á lingua toda a flexibilidade, numero e graça de que era susceptível, imitando os longos e harmoniosos períodos de Cicero, e dando-nos ao mesmo tempo un exemplar de descripções, coisa que até alli se não conhecia e que foi outra sorte de progresso na moderna litteratura.

íktrodugçao

II

A estes três luminares da renascença succederam em Itália quasi sem interrupção homêes de insigne talento, prestantissimos, e como que destinados pela Providen- cia para dilatarem os inda acanhados horisontes do sa- ber humano. 'No século de que tratámos floresceu Go- luccio Salutato, celebre antiquário e erudito profundo, o qual pode com justo motivo reputar-se o primeiro cri- tico moderno. Havendo-se exclusivamente intregado ao estudo dos auctores antigos, conseguiu por seo grande discernimento, auxihado da analyse e de uma applica- ção continua, conhecer que a maior parte dos mencio- nados auctores estavam corrompidos e viciados. Ze- loso de reparar este mal, escreveu uma obra cheia de erudição e de critica em que mostrou o lastimoso estado em que geralmente se-achavam os livros antigos: o que era devido á imperícia e negligencia dos copistas, á te- meridade de alguns homêes que ouzavam corrigir o que não intendiam, e á malicia de outros que adrede alte- ravam aquelles escriptos para 'nelles inserir suas pró- prias opiniões. Tia mesma obra propunha e recom-

lo CAMÕES E OS lusíadas

mendava os meios que era forçoso adoptar para que taes erros e abusos se não repetissem.

Em seguida Poggio Bracciolini, philologo e amador apaixonadissimo da antiguidade, persuadido de que nas bibliothecas dos mais affamados mosteiros de AUe- manha, França e Itália se-achariam manuscriptos tam preciosos como ignorados de seos próprios possuidores, imprehendeu para tal fin differentes viagêes, e teve a fe- licidade de descobrir e desinterrar debaixo do pó, em que jaziam desde muitos séculos, as obras dos mais ce- lebres auctores que se-julgavam totalmente perdidas; taes foram oito orações de Gicero, as obras completas de Quintiliano, as de Golumela, as de Vegecio, as de Frontino, a architectura de Vitruvio, uma parte de Lu- crécio, três livros dos Argonautas de Valério Flacco, o poema astronómico de Manilio, o de Silio Itálico, Am- miano Marcellino, Tertuliano, Júlio Firmico, diversos grammaticos e outros auctores de menos nomeada. Ao mesmo tempo Gerardo Landriani descobria em Lodi entre acervos de ruinas a obra de Gicero de Inventione e os três livros do Orador. Em Allemanha foram tam- bém achadas as doze Gomedias de Planto, a obra de Salviano sobre a Providencia divina, e as poesias de Galpurnio e de Nemesiano *.

Gada uma d'estas descobertas era recebida e feste- jada com un alvoroço e applauso indizível : communi- cavam-na logo os sábios uns a os outros por chartas com que se-correspondiam ; e a admiração que excita-

Tiraboschi, Storia (iflla Litfor. ítal.

INTRODUCÇÃO 11

va a litteratura, a philosophia, o primor das artes, a civilisação e tudo que era antigo, recrescia com os novos conhecimentos que successivamente se-iam ob- tendo.

O impulso que haviam adquirido as lettras e que se- manifestava no ardor com que se-procuravam Uvros e se-formavam bibhothecas e coUecções de antiguidades, onde se-accumulavam as estatuas, os baixos relevos, os vasos etruscos e outras muitas raridades, além da pro- tecção que Ihe-prestavam muitos principes de Itália, sábios e favorecedores dos sábios, recebeu prosperrimo auxilio e redobrou de intensidade no século XV com a invenção da typographia, arte maravilhosa que, facili- tando o meio de extrahir com rapidez un grande nu- mero de copias, multiplica os exemplares e, tornando-os menos custosos, os-faz accessiveis a todo género de pes- soas. — Este invento feliz não contribuiu para a re- stauração das lettras e para o progresso e civilisação da Europa, mas inda Ihe-garantiu no futuro a impossibili- dade de recair no obscurantismo e na escravidão, dif- fundindo as luzes e exclarecendo o intendimento huma- no, a despeito de todos os Índices expurgatorios e de todas as leis tyrannicas do despotismo.

Quasi simultaneamente occorria un calamitoso evento, que veiu ainda favorecer as lettras em Itália; qual foi a tomada de Gonstantinopola por Mahomet II e a queda do império do oriente. Esta grande catastrophe, fa- zendo emigrar uma multidão de gregos daquella vasta metrópole e das cidades da Thessalia, do Epiro e do Peloponeso, conduziu ás cortes dos principes de Itaha,

12 CAMÕES E OS lusíadas

onde foram benevolamente acolhidos, os sábios d'aquella nação, que trouxeram uma infinidade de manuscriptos 6, com elles, outros tantos meios de conhecer e admirar a docta antiguidade.

III

Gomo resultado de tam auspiciosas circumstancias, generalisaram-se os conhecimentos, que até alli tinham estado concentrados no clero, representante da littera- tura na edade media. As academias rivalizaram entre si sobre qual havia de primar em saber e instrucção; e, começando a escrever os seculares, em pouco tempo produziram uma plêiade de litteratos, poetas e eruditos que echpsou o mesmo clero.

Então se-viram apparecer os primeiros ensaios da poesia dramática, e resurgir o gosto do theatro, que não podia deixar de ser considerado como un dos mais im- portantes objectos da antiguidade clássica, e que, tanto na Grécia, como em Roma, junctaments com os ludos, fizera parte de todas as festas publicas, e mesma da re- ligião.

As primeiras representações foram executadas poste- riormente a o anno de 1470 pela academia de antigui-

INTRODUCÇÃO 13

dades e bellas leltras de Roma, fundada por Pomponius Laetus, que pôs em scena algumas comedias de Plauto e Terêncio, recitadas em latin. Policiano, celebre philo- logo e poeta, que também contribuirá para a restaura- ção das lettras, compôs a Favola di Orfeo, primeiro drama italiano que se-representou na corte de Mantua, cerca do anno de 1480. Foi escripto em verso e consta de cinquo actos, accompanhados de choros, á guisa dos antigos. O das Dryades, que choram a morte desastrosa de Eurydice, é belhssimo: e o das Bacchantes, no gosto dithyrambico, é a primeira composição 'neste género, que se-conhece depois da renascença.

A Policiano seguiu-se no mesmo impenho o cardeal de Bibbiena, que compôs a Calandra, comedia imitada dos Menechmas de Plauto, referta de lances jocosos, mas também de hcenciosidades. Sendo Bibbiena quem dirigia todas as festas apparatosas da corte de Leão X, bem como as mascaradas e es mais divertimentos do carnaval, persuadiu o papa a que deixasse representar a Calandra cem a Mandragora de Machiavel: e as sce- nas altamente indecentes destas duas comedias fizeram rir o pontifico que assistia ao espectáculo 'n un camarote especial, assim como Isabel d'Este e as mais formosas e distinctas damas da Itaha.

Ariosto, auctor do Orlando furioso, escreveu também cinquo comedias, nas quaes procurou reproduzir as sce- nas do theatro romano, que todas se-passavam na rua, defronte das casas das principaes personagêes. 'Nellas se-incontra a mesma liberdade de expressão e se- vêem co- piadas as mesmas figuras: amas, escravos, parasitas, kc.

14' CAMÕES E OS lusíadas

Nos principios do século XVI appareceu a Sopho- nisba, primeira tragedia regular, composta por Trissino em versos soltos, e modelada no puro gosto dos trági- cos gregos, que o auctor se-exforçou por imitar dema- siado; não distinguindo as bellezas daquella procedên- cia, que sam appreciadas em todas as edades e em to- das as nações, das que, sendo próprias dos costu- mes obsoletos da antiguidade, perderam, por isso, o mé- rito, e deixaram de ter acceitação nos tempos modernos.

O mesmo Trissino compôs a Itália Liberata, primeiro poema épico que appareceu na Europa depois da re- nascença, e cujo assumpto é a guerra gothica descripta por Procopio; guerra que libertou a Itália do jugo dos ostragodos. O plano do poema não é de todo mal con^ cebido; mas havendo o auctor tomado Homero por mo- delo, seguiu-o sem gosto e sem discernimento, osten- tando uma erudição fastidiosa, e peccando pelos mes- mos defeitos que notámos na Sophonisba

INTRODUCgÃO 1 5

IV

Segundo o que acabamos de ver a renascença ope- rou-se exclusivamente no sentido das lettras, das artes e de tudo quanto era da antiga civilisação greco-roma- na, muito mais adeantada e perfeita que a de então. Gomo era natural que acontecesse, a instrucção abra- çou as idéas e assumiu as formas da sciencia e da lit- teratura clássica. A philosophia não inxergou outro saber, nem admittiu outras verdades que não fossem as que insinaram Aristóteles e Platão, de que se-formaram duas escholas adversarias.

Averrhoes, philosopho árabe e commentador de Aris- tóteles, que se-inclinava ao materialismo e ao pantheis- mo, sustentando que não ha senão un intellecto para todos os entes, e que o intendimento se-opéra pela con- juncção com o ser divino, foi introduzido por Pedro de Abano na universidade de Pádua, onde ganhou raizes. Caetano Tiena consolidou alh o ensino da unidade da inteUigencia, e Nicolau Vemia divulgou-o por outras partes. Nos fins do século XV vigorava esta doctrina nas escholas de Veneza, como o platonismo nas da Tos-

16 CAilÕBS K OS LUíJlADAS

cana; e o realismo racionalista, á sombra do qual se- abrigava o pensamento independente, conservou-se em Pádua até os fins do século XVII ^

A erudição e a poesia, bem como a pintura e a esculp- tura, tornaram-se também pagãas. Os auctores profa- nos eram tam citados no púlpito como os sagrados: e a mythologia, de involta com os mysterios da religião, en- trava em toda a espécie de litteratura; não havendo elo- quência sagrada sem allusões ao paganismo.

Sannazaro invocava as Musas para cantar o parto da Virgem, a quem chama spes fida deorum; e, no acto de ir ter com ella o anjo Gabriel, representa-a a ler o li- vro das Sibyllas: illi veteres de more Sibyllce in ma- nibus.

Havendo Gornelio Musso, bispo de Bitonto, sido en- carregado do discurso da abertura do concilio de Tren- to, compol-o de modoque Ortensio Landi diz que «era cheio de subtil artificio, esmaltado de flores de rhetori- ca, tauxiado de rubis e diamantes, e perfumado com os aromas preciosos de Aristóteles, Hippocrates e Gicero e com todos os sapientes preceitos de Hermogenes. » Quando isto não fosse sufficiente para fazermos idéa do tal dis- curso, bastara-nos saber que 'nelle se-convidavam os prelados a concorrer áquelle synodo como os impávidos da Grécia a o cavallo de Tróia.

O cardeal Bembo, escriptor puríssimo e secretario apostólico de Leão X junctamente com Sadoleto, diz que Johão de Medicis subiu ao pontificado por decreto dos

Hist. dos Uai. pelo senr. Gautu, T. 7.' L. 12, G. 134.

INTHODUCÇÃO 17

Deoses immortaes: chama á fenuaúonem e á excom- munhão aqua et igni inter dictionem. Escrevendo a Sa doleto, diz-lhe: Não leaes as epistolas de san' Paulo; por- quanto seo estilo bárbaro corromperia vosso bon gosto: abri mão de taes inepcias, indignas de un homem grave: Omitte has nugas, non enim decent gravem virum tales ineptifE.

Leão X excitava Francisco I contra os turcos per deos atque homines; e os escriptores chamavam Olympo ao paraiso; ao inferno Ereho; manes pios ás almas dos justos; lectisternia ás grandes solemnidades; archiflami- nes aos bispos; infula romulea á tiara, et cetera.

Sobre os altares do Vaticano expunham-se quadros que representavam a Virgem sob a figura das mais aífa- madas prostitutas. Alexandre VI foi retratado por Pin- turicchio como un rei mago prosternado ante uma ma- dona que era Júlia Farnese. Pordenone representou Affonso I de Ferrara ajoelhado aos pés de sancta Jus- tina, que era Laura Diante, sua concubina. As três Gra- ças nuas foram collocadas na sacristia de Siena, e os nús abundavam sobre a austera magestade dos túmulos, e até nas capellas pontifícias.

Raro acontece que a proximidade não desperte a idéa de comparação. As maravilhas da arte, que re- surgiam de todas as partes, excitando a admiração do que era passado, promoviam a displicência e o desprezo do presente e não deixavam de influir no próprio chris- tianismo. Boccaccio, Poggio, Policiano, e outros eruditos, haviam sido taxados de mais addictos ás idéas pagãas que ás do evangelho. A academia, instituída

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por Pomponius Lselus, composta de sábios tam enthu- siastas da civilisação anterior ao christianismo, que ha- viam trocado os nomes do baptismo por outros, que eram reminiscências da illustração pagãa, e que cele- bravam o anniversario da fundação de Roma, desper- tara a attenção suspicaz de Paulo II e attrahira uma perseguição atroz por parte d'este pontifice intolerante, e inimigo das lettras, que fez dar tractos a muitos só- cios d'aquella illustre academia, e ordenou, por ultimo, a extincção da mesma.

Operava-se, portanto, a reacção das idéas do passado sobre as do presente; reacção que em sua immensa es- phera de actividade devia comprehender e ameaçar a própria religião. Accrescia que a corrupção e a vena- lidade da corte de Roma; o trafico escandaloso e sór- dido que alli se-fazia das indulgências; bemcomo a igno- rância, a gluttonaria e a concupiscência dos frades, da- vam azo a uma critica mordaz que Ihes-disparava un chuveiro de epigrammas. De longe se-travara, pois, uma lucta que, não passando em seo começo de sarcás- tica e molejadora contra os abusos da religião, devia

INTRODUCÇio 19

desatar em acerbissima pugna que não respeitasse o mesmo dogma.

As canonizações eram un motivo de escândalo e uma decepção aos olhos dos homêes despreoccupados que viam 'n ellas a renovação das apotheoses da antiga ido- latria. — Boccaccio, para combatter semelhante abuso, imaginou a historia de CíappoUetto, o qual, sendo un grande malvado, impio, homicida e perpetrador de toda a sorte de crimes, faz á hora da morte uma confissão falsa, recebe os sacramentos e engana o frade que Ihe- assiste; o qual persuade aos outros frades do convento a que pertence que Ciappolletto é un sancto. Os frades levam-no para a egreja; celebram-lhe un officio com pre- gação, na qual sam relatadas as edificantes virtudes de Ciappolletto. Corre o povo a beijar os pés áquelle gran- de servo de Deos ; arranca-lhe pedaços do manto para reliquias; em seguida accendem-lhe velas, adoram-no; fica sendo sari Ciappolletto e faz muitos milagres. Pôde dar-se mais requintada e maliciosa critica do que 'n esta historia I

O mesmo Boccaccio, no conto do judeu Melchisedech, minando surdamente a religião christãa, dispunha os âni- mos ao scepticismo que chegou depois a generalizar-se em Itália.

Outros auctores, como Minuccio, compunham criti- cas pungentes em que zombeteavam dos frades, delei- tando-se em verberal-os por todos os modos.

Ulrico Hulten, cavalheiro allemão, na sua Trindade Romana, asseverava que três coisas se-traziam de Ro- ma: má consciência, estômago estragado e bolsa vazia;

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que três coisas havia em que 'n aquella cidade se não accreditava: na irrimortalidade da alma, na resurrecção dos mortos e no inferno; que alli se-fazia veniaga de três coisas: da graça de Christo, das dignidades eccle- siasticas e das mulheres.

Erasmo de Rotterdam, grande philologo e antiquá- rio, que também poderosamente contribuiu para a re- stauração das lettras, sendo dotado de un espirito obser- vador, philosophico e sarcástico, não escarnecia da hypocrisia e do pedantismo dos frades, senão ainda dos abusos que via praticar na religião. «Ha alguém no mundo (escrevia elle) que viva mais regaladamente do que estes vigários de Christo? Pensam que têem obra- do maravilhas por Deos, quando no meio das ceremo- nias mais fastosas, com un apparato mystico e quasi theatral, veiem lançar bênçãos, ou fulminar anathemas... E que havemos de dizer dos que, por meio de indulgên- cias, adormentam as consciências e medem quasi por un relógio a duração das penas do purgatório, da qual calculam os séculos, os annos, os dias e até as ho- ras? Não ha ahi chatin, soldado, ou juiz, que não creia que, dando un escudo, depois de ter roubado milhares d'elles, pôde abluir as torpezas de uma vida conspurca- da.»

Em presença de tam violentos attaques e da influen- cia e preponderância que iam ganhando as opiniões phi- losophicas das escholas da antiguidade, vê-se que o mun- do aspirava a reconquistar a liberdade do pensamento, saindo do circulo nebuloso dos mysterios em que até alli estivera encerrado, e a satisfazer a razão que recla-

ISTROUUCÇio 21

mava o direito que Ihe-assiste de ser convencida pri- meiro que accredite. As razões abslrusas, com que se- explicavam as causas de muitos phenomenos naturaes, não satisfaziam o intendimento, e as duvidas, que se-moviam e suscitavam a cada passo, faziam nascer e propagar o espirito de exame. Esta reacção era gran- demente auxiliada por un pasmosò numero de desco- bertas e invenções de todo o género. Os portugueses ha- viam dobrado o cabo da Boa-Esperança e passado á ín- dia e á China, resolvendo muitos problemas astronómi- cos e geographicos; haviam descoberto o Brasil e feito ver que o mundo não constava de três partes; pro- vava-se que não é o sol que gyra, mas a terra; que 'n ella ha antípodas, o que desmentia o asserto de san- cto Agostinho ; a agulha a que os nossos chamaram ge- nuisca, por terem, talvez, sido os genoveses os primei- ros que adaptaram o uso d'ella á navegação do Mediter- râneo, aperfeiçoava a náutica que eífectuava a circum- volução do globo; o emprego da pólvora fazia mudar o systema da guerra e o da construcção das praças; ha- via-se resuscitado a plástica, arte predilecta dos antigos tusculos ; desenvolvia-se a pintura a óleo ; e a gravura em cobre, reproduzindo as obras primas da arte, fazia-as chegar ás mãos de todos. A par de tam extraordiná- rias descobertas succedia un prodigioso desinvolvimen- to intellectual que, augmentando o septicismo em Itália, produziu em Allemanha a reforma religiosa.

Não vem a nosso propósito historiar este grande acon- tecimento; mas havemos de occupar-nos detidamente das medidas de rigor que em Portugal adoptou o fa-

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natismo para impedir a introducção das novas idéas, e da influencia perniciosa que taes medidas exerceram nos espirites e particularmente na litteratura.

VI

Em quanto as lettras cultivadas com esmero attin- giam tam brilhante grau de prosperidade em Itália, pode dizer-se que em França apenas davam ténues signaes de vida. No século XIV as invasões extrangeiras, a guerra civil e a anarchia mal podiam comportar que alli tivessem incremento as artes, e muito menos que as let- tras se-desinvolvessem e prosperassem. A França, onde em épochas anteriores nasceram os romances de cavallaria, repassados de vivissimo interesse por suas aventuras maravilhosas, narradas com ingénua e apra- zível simpleza de estilo; onde os gigantes, as fadas, os palácios incantados nos-revelam uma fecunda e inspi- rada imaginação: a França, que creara os contos fa- cetos (les fabliaux) cheios de chiste e de graciosa ma- lícia, não correspondia ao que então d'ella se-devia na- turalmente esperar. A primeira producção deste sé- culo que merece ser referida é o Romance da Rosa; o

INTRODUCÇAO

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qual, havendo sido começado quarenta annos antes por Guilherme de Lorris, foi continuado por Johão de Meung. Consiste 'n uma allegoria em que a Rosa representa a mulher desejada que não pode ser obtida, senão depois de infinitas provas. 'N este poema, composto de ver- sos octosyllabos, incontram-se historias de toda a espé- cie, subtilezas escholasticas, e satyras descabelladas con- tra a avareza, a ociosidade e a lascívia dos padres. Era un começo de reacção, uma tentativa da liberda- de de exame, que se-ensaiava e que, mais tarde, os prín- cipes seculares da Allemanha tacitamente protegeram para combater e reprimir as ameaças, as extorsões e outras demasias da corte de Roma.

O maior vulto litterario da França nos dois séculos da renascença (XIV e XV) é incontestavelmente o chro- nista e poeta Froissart. Este homem que foi padre e cujas inclinações, pouco conformes com o estado que escolhera, o-impelham a recrear-se e a passar vida folgazãa, propôs-se, comtudo, escrever a historia das guerras do seo tempo, e, para colligir as noticias que havia mister, imprehendeu uma serie de viagees, que, pode dizer-se, não o-deixaram nunqua estar parado. Isto Ihe-proporcionava, não obstante, uma diversidade de distracções e prazeres que o seo génio Ihe-pedia. Frequentava as cortes dos príncipes da Europa, onde era sempre bem recebido: assistia ás festas e ás núp- cias que alli se-celebravam e para as quaes compunha epithalamios ; e, no meio d'estes passatempos, registrava as aventuras e anecdotas que observava, ou Ihe-erara referidas. Na chronica que compôs, e que compre-

CAMÕES H OS lusíadas

hende quasi tudo o que succedeu na Europa des d'o an- no de 1322 até o fin do século XIV, não mostra impe- nho em descobrir a verdade, nern, tampouco, perquire a origem dos successos que reconta; mas os torneios, as festas, as batalhas, e tudo quanto é próprio para im- pressionar a imaginação, é por elle admiravelmente des- cripto. No génio deste homem singular affigura-se- nos ver characterizado o génio do povo francês: ami- go de prazeres, volúvel e imaginoso.

Depois da chronica de Froissart, podem apenas ci- tar-se algumas composições mais, ou menos espirituo- sas; mas nas quaes de balde se-procuraria incontrar o menor vestigio de erudição. Aponctaremos, por exem- plo a historia do Petit Jehan de Saintré, escripta com bastante chiste ; mas que não é outra coisa senão a cri- tica acerba de uma princeza libidinosa que tendo tido amores secretos com un formoso pagem da corte de França o-abandona pelo abbade vigoroso e membrudo de un mosteiro de san' Bernardo: o Advogado Pate- lin, farça de Pedro Blanchet, representada a primeira vez em 1480, e impressa dez annos depois; a qual, pelo que contêm de sal cómico, mereceu ser muitas vezes imitada: o Soláo de Aristóteles, por Henrique d'Andely, graciosa frioleira em que Aristóteles é posto em scena sellado e cavalgado por uma dama, que havendo pre- meditadamente feito apaixonar o philosopho, o-tracta assim em desforra dos conselhos que dera a seo discí- pulo, Alexandre Magno, para que se-apartasse d'ella. É o triumpho cómico do amor sobre a philosophia.

Tam succinctas producções não fariam, por certo,

UNTRODUCÇÃO 28

presagiar o futuro progresso da litteratura francesa, que, tendo tido seo começo nos fins do século XVI, chegou depois a conquistar o brilhante grau que hoje occupa entre todas as litteraturas da Europa.

vn

Em Hispanha, do mesmo modo que em França, as lettras não haviam accompanhado o prodigioso desin- volvimento que tiveram em Itália. Não haviam mes- mo correspondido aos magnificos prelúdios que Ihe-as- signalaram a existência na segunda metade do século XII, produzindo o Cid, que, comquanto não seja un poema épico, como alguns têem pretendido, é, sem du- vida, uma preciosa narrativa histórica em metro ape- nas balbuciado e em estilo simples e rude, que nos-pin- ta ao natural os costumes daquella épocha, e cujas cir- cumstancias despertam o maior interesse, ao passo que nobilitam o character do heróe, modelo de valor sem par, de independência e de lealdade cavalheirosa.

Foi indespensavel que decorressem duzentos annos, depois do começo da renascença em Itaha, para que a Hispanha, quasi sempre impenhada em guerras civis e

i8 GAMÕES E OS lusíadas

extrangeiras, e que contrahira o gosto da poesia árabe no tracto intimo que tivera com esta nação, podesse ap- preciar o maravilhoso primor do género clássico, essen- . cialmente diíferente por assentar 'n outra ordem de idéas. Antes disso apparece o mijsticismo insipido nas lendas dos sanctos, barbaramente metrificadas e care- centes de inspiração e de poesia, ou a erudição pedan- tesca, como no Centiloquio do marquez de Santilhana, collecção de máximas de moral e politica, e no Laby- rintho de Johão de Mena, poema allegorico e phantasti- co sobre a vida humana, imitado da Divina Comedia do Dante, e onde todos os sentimentos sam exagerados.

'N este longo periodo ha, porém, uma excepção a fa- zer; qual é a da Chronica dos reis de Castella de Pe- dro Lopes de Ayala, escripta em estilo simples, em lin- guagem correcta, e notavelmente curiosa pelo que re- conta das guerras que se-travaram entre Henrique de Transtamara e Pedro denominado o Cruel, que nos- descreve como singularmente perverso e dotado de hor- rível ferocidade.

Foi nos princípios do século XVI que a Hispanha co- meçou a ter uma poesia e litteratura differente no gos- to e na forma. Em 1510 publicou Fernando de Ro- jas a tragicomedia de Galisto e Mehbsea, ou a Celesti- na, cujo primeiro acto, attribuido a Rodrigo Gota, ha- via muito tempo se-achava composto. O inredo do drama, que inda participa da influencia árabe, consiste em que, contrariados os amores de Galisto e Melibsea pelos parentes d'esta, recorre Galisto á maga, ou feiti- ceira Gelestina, que, por meio de philtros e sortilégios,

INTRODUCGÃO 2t

favorece as pretenções do amante. A Celestina não é outra coisa, senão un romance dialogado, summamente licencioso; mas cujos characteres sam bem descriptos e sustentados, e cujo dialogo tem bastante animação. Pa- rece não ter nunqua sido representado; todavia, adqui- riu immensa voga, e o nome da Celestina ficou sendo proverbial para designar o de uma feiticeira que obra ' e consegue tudo por artes diabólicas.

Seguidamente Johão Boscan, que serviu e viajou era Itália, onde se-affeiçoou á musa suavíssima de Petrarca, operou uma profunda reforma na poesia, e temperou a agrura do estilo hespanhol, e o hyperbolico de suas ex- pressões apaixonadas com a graça e melodia do géne- ro italiano. Seo amigo, Garcilasso de la Vega, coad- juvou-o 'n esta empresa e conseguiu introduzir em His- panha os sonetos e as canções á imitação das rhythmas que nos-legou o insigne cantor de Laura. Camões, óptimo juiz em tal matéria, colloca-o a par de Petrarca e Sannazaro, e chama-lhe:

O brando e doce Lasso castelhano.

Citaremos mais un nome: qual é o de Diogo Furta- do de Mendonça, poeta e historiador, Foi elle o pri- meiro que em Hispanha escreveu epistolas didácticas e semi-satyricas á guisa do Horácio. Na historia que compôs da guerra contra os mouros de Granada, é ad- mirável pela elegância e concisão do estilo em que pro- curou imitar Salustio; sendo considerado pelos seos compatriotas como un modelo no género histórico.

%$ CA-MÕES E-ÚS lusíada»

Inda moço escreveu o romance de Lazarillo de Tormes, primeiro modelo no género picaresco que, muito depois, foi imitado por Le Sage no seo Gil Brás de Santilha- na. Pena é que este homem, que, como militar e poli- tico, passou a governar Siena e toda a Toscana, execu- tasse alli sevissimos actos de rigor que innegrescem a memoria do seo nome ; o qual, associando-se ao dos Pi- zarros e Cortezes, seos contemporâneos, representa a prepotência e a intolerância que constituem uma das feições mais prominentes e characteristicas do reinado de Carlos V.

VIU

Passemos hagora ao nosso Portugal e vejamos como 'n elle tiveram começo as lettras; que progresso adquiri- ram, e qual o estado em que se-achavam no tempo de Luiz de Camões.

Os primeiros alvores litterarios, que esclareceram o horisonte da nossa pátria, surgiram no reinado de Dom Dinis, a quem chamaram o rei lavrador pelo muito que protegeu a agricultura, e a quem não menos cabe o ti- tulo de civilisador e benemérito das lettras. pelo grande impenho que pôs na propagação das luzes, fundando as

INTHOBUCÇÃO 29

Escholas Geraes, que estabelecidas primeiro em Lisboa em 1290, passaram depois a ter assento em Coimbra; e ás quaes, por se-insinarem alli todas as boas-artes e sciencias, se-deu o nome de Universidade.

Para explicar aquellas disciplinas, mandou o mesmo rei com grande despendio de sua fazenda, vir os mais abalisados mestres de Itália e França, e, para auxiliar o ensinamento, fez verter em linguagem muitos livros hespanhoes e árabes; sendo o mais notável do primei- ros o das Leis das Septe Partidas, e dos segundos a obra do medico Rhasis. Outrosim proscreveu do fo- ro e dos documentos públicos o uso da lingua latina, fazendo, por conseguinte, desinvolver e aperfeiçoar a portuguesa.

Dotado do ingenho de trovar, cultivou Dom Dinis a poesia e compôs un Cancioneiro, ou livro de canções, no gosto das poesias dos trovadores provençaes, de cu- jo estilo, e forma claramente se-vê que houve conheci- mento.— Tendo este rei sido casado com Domna Isa- bel, aragonesa, assimcomo Dom Sancho I o-fôra com Domna Dulce, também aragonesa, e devendo estas se- nhoras ter vindo accompanhadas de muitos cavalheiros d'aquella nação, que ficassem residendo na corte de Portugal, e possuissem a gaia sciencia, que então era vulgar em Catalunha e Aragão, isso explica o motivo porque a poesia dos trovadores provençaes, transpondo o reino de Castella e Leão ^ se-introduziu em Portugal

' A poesia dos trovadores introu no reino de Castella e Leão passado mais de un século depois de haver sido introduzida em Portugal. Vid. Les Troubadours et leur Influence sur le Midi de TEurope, par E. Buret. 1867.

30 . CAMÕES K OS UISIADAS'

e communicou o estilo de suas trovas e cantares aos nossos poetas dos séculos XIII e XIV; devendo estes cantares influir na linguagem imperfeita d'aquelles tem- pos, na qual se-incontram muitos vocábulos que noto- riamente sam de origem limosina.

As trovas do Cancioneiro de que tractâmos, compos- tas quasi todas no género erótico e 'n uma linguagem summamente rude, sam faltas de poesia ; não têem re- ferencia alguma á mythologia, ou á historia, e exhi- bem pensamentos triviaes, sem conceito, e uniforme- mente repetidos: o que bem comprova que se-estava ainda na infância da arte. 'N algumas d'aquellas trovas, diversamente metrificadas, incontram-se, todavia, não poucos versos hendecasyllabos ; facto que attesta o co- nhecimento que então havia do metro toscano, e que não foi de Miranda, como alguns levemente afirma- ram quem entre nós o-introduziu.

Muitos cortesãos contemporâneos de Dom Dinis, e inda não poucos anteriores a este monarcha, foram da- dos a poetar, e sabemos que as suas trovas, ou canções, até hoje inéditas, se-conservam no mesmo códice da Va- ticana, d'onde foi extrahida a copia do Cancioneiro que em 1847 se-estampou em Paris; sendo, para lastimar que junctamente se não tirassem do olvido e se-dessem a lume as producções d'aquelles cultores da gaia scien-

cia*.

Dom Pedro, conde de Barcellos, filho natural de Dom

' Quando isto escrevíamos não estava inda publicada a edição que das referidas trovas fez em Vienna un antigo camarada e amigo nosso, o senr- F. A. Varnhagen, mi 1870.

INTRODUCÇÃO 31

Dinis, foi outrosim inclinado ás lettras, e se-lhe-attribue a composição de un Nobiliário, ou livro das linhagêes das principaes familias oriundas das Hispanhas; posto- que a moderna critica queira ver 'n aquella obra, não o livro de un individuo ; mas o de un povo e de uma épocha, e conjecture que seo pretendido auctor tives- se 'n elle uma parte assas diminuta.

IX

O século XV adquiriu notável progresso litterario e scientifico: e é ainda de un rei o nome do primeiro dos escriptores que o-illustraram. Foi este Dom Duarte, a quem as nossas chronicas chamam, por antonomásia, o Eloquente.

Nos descanços que mal podiam permittir-lhe os de- veres da realeza a que era obstricto, intregava-se Dom Duarte ao estudo das sciencias que o-desvelavam ; e foi 'n aquellas interruptas horas, em que poucas vezes Ihe- consentiriam ter o animo tranquillo os revezes de seo curto reinado, que, além de un Regimento da Justiça, escripto na lingua latina, compôs na vulgar a Ensinan- ça de bem cavalgar toda sella; assimcomo o Leal Con-

31 C.\MÕI:;S E os LUri-IADAS

selheiro, tractado de moral e de philosophia practica, on- de se-lêem capítulos inteiros que nos-revelam a bonda- de do character e a rectidão do espirito d'este excellente monarcha.

A linguagem do Leal Conselheiro sobreleva em me- lhoria a do século anterior ; e 'n aquelle livro, do qual, junctamente com o da Ensinança de bem cavalgar, se- íizeram ha poucosi annos duas edições, começa de ap- parecer uma tal, ou qual erudição.

Dom Pedro e Dom Henrique, irmãos de Dom Duar- te, foram também príncipes esclarecidos e contribuíram em grau eminente para o progresso litterario e scienti- íico da sua pátria.

Dom Pedro, depois de ter, durante doze annos viajado e percorrido quasi toda a Europa e uma parte do littoral da Ásia, o que deu motivo a dizer-se que andou as qua- tro partidas do mundo, regressou trazendo copiosas no- ticias das leis, dos usos e costumes das nações que per- lustrara; e não exhibiu provas de consumada pru- dência e de saber politico no modo por que adminis- trou a justiça na menoridade de seo sobrinho Dom Af- fonso V, em que foi incarregado da regência do reino; mas inda patenteou o vasto ingenho que possuía 'n un livro de coplas que compôs em lingua castelhana, o qual se-imprímiu pelos fins do século XV, e n outro da Vertuosa Benfeytorya, que nunqua chegou a ser impres- so.— Se o mérito incontestável deste príncipe precla- rissimo houvesse mister comprovado, fôra-o, sem duvi- da, pelo testímunho do povo que, reconhecido, preten- deu inaugurar-lhe uma estatua; e, não menos, pelo da

INTRODUGÇXO 33

inveja que, accesa em ódio furial, llie-preparou a mais triste e lamentável das catastropbes I

Dom Henrique havia-se applicado á cosmographia e á astronomia que profundava versando com mão diur- na e nocturna os livros de Ptolomeo; sentia-se domi- nado do gosto das descobertas maritimas, e não desis- tia do intento de leval-as á execução; mas como, para conseguir tal intento, Ihe-era indespensavel formar pri- meiro bons pilotos e propagar os conhecimentos astro- nómicos e náuticos, que estão dependendo do estudo prévio das mathematicas, fundou em Sagres uma escbola destas sciencias, bemcomo un observatório astronómico, e un estaleiro de construcções navaes. Dalli inviava todos os annos navios, tripulados a expensas suas, ao reconhecimento da costa occidental d'Africa, animando os navegantes com prémios promettidos, e desvanecen- do-lhes os espantos que Ihes-causava o terem de pas- sar além do temivel cabo Bojador e de impégar-se 'n un mar incógnito que então se-denominava tenebroso; nome proveniente de abusões firmemente arraigadas á cerca daquelle mar, e que mais tendia a augmentar- Ihe os phantasmas de que o suppunham povoado *.

vemos quantas difficuldades teve que superar o in- fante Dom Henrique para obter o fin proposto, e quam magna preseverança Ihe-foi mister impregar durante

' Deziam os mareantes que depois deste cabo nom ha hi gente, nem povoração algíia; a terra nom he menos areosa que os desertos de Libya, onde nom ha augua, nem arvor, nem herva verde; e o mar he tam baixo, que a hua legoa de terra nom ha de fundo mais que hua braça. As corren tes som tamanhas, que navyo que la passe, jamais nunca poderá tornar. Az\xr. Chron. do Desc. e Conq. de Guiné, Cap. VIII, p. 51. 3

34 CAMÕES E OS lusíadas

quarenta annos que trabalhou 'nesta impresa * em que chegou a descobrir toda a costa d'Africa até o 8.° grau de latitude septemtrional. Se junctarmos a isto o gran- de atraso em que ainda se-achavam os conhecimentos náuticos e que foi o mesmo infante que, para facilitar a navegação, inventou as chartas hydrographicas pla- nas, não podemos deixar de reconhecer o quanto 'n es- ta parte Ihe-é devedora a sciencia.

X

As facções militares que Dom Affonso V imprehendeu em Africa, bemcomo as guerras que houve de sustentar contra Gastella e que absorveram uma grande parte do seo reinado, não permittiram a este monarcha olhar demasiado pelas lettras, ás quaes, todavia não parece ter sido desaífeiçoado ; pois não cultivou as mathe- maticas e, com especialidade a astronomia, na qual se- mostrou perito escrevendo un opúsculo sobre a constel- lação do cão celeste^, mas ainda augmentou copiosa-

Bar. Dec. 1.» L. 1." C. 16 ad finem. ' Barb. Bibl. Lusit. T. l.» p. 17.

INTRODUCÇÃO 35

mente a livraria que herdara de elrei Dom Duarte, que a-formou em parte com a que adquiriu de elrei Dom Johão, seo pae, que foi o primeiro que junctou livros e teve uma bibliotheca em seo palácio.

Un suceesso transcendente, e como que auspicioso, occorreu durante o reinado d'este monarcha: qual foi que, havendo sido inventada em Allemanha a typogra- phia, ou a arte de imprimir com characteres metálicos moveis, não tardou un decennio que tal invento se-pra- cticasse em Portugal; sendo em Leiria que se-estabele- ceu a primeira officina typographica que houve em toda Peninsula-hispanica.

Dom Johão II, prosegindo no reconhecimento da cos- ta Occidental d' Africa, e no intento de descobrir uma passagem por onde os seos galeões podessem atraveçar para a índia, viu que Ihe-era forçoso abandonar o sys- tema, até alli seguido, da navegação costeira, e conse- guir que os mesmos galeões podessem, sem perigo, in- golfar-se na vastidão do pélago; e, para aperfeiçoar os conhecimentos astronómicos, que para tal fm se-re- querem, nomeou uma juncta de mathematicos dos quaes mestre Rodrigo e mestre Joseph, judeu, seos médicos, com un certo Martin Behain, natural de Nuremberg, promoveram o progresso scientifico da navegação, in- ventando o astrolábio, per cujo meio se-começou de na- vegar por alturas, compondo os mesmos, para este ef- feito, uma taboada da declinação do sol *.

Un facto digno de observação é: que, em quanto nas

' Rar.ncr. l.Mi. 4.» C. 2.»

36 CAMÕES E OS lusíadas

outras nações, segundo o natural progresso dos conhe- cimentos humanos, a cultura das boas-artes precedeu sempre a das sciencias exactas, género de estudo sum- mamente difficil, e que demanda muito maior grau de desinvolvimento intellectual, foram estas mesmas scien- cias, que primeiro em Portugal floreceram e que, em sua justa applicação, Ihe-grangearam os mais gloriosos e opulentos resultados.

Não deve, entretanto, presumir-se que ficassem des- curadas as boas-lettras ; pois 'n este tempo dois notá- veis escriptores, Fernão Lopes e Gomes Eannes de Azu- rara, haviam composto as chronicas de alguns dos reis de Portugal.

O primeiro d'estes historiadores escreveu as chroni- cas de Dom Pedro, Dom Fernando e Dom Johão I ; e crè-se, com bon fundamento, que também composera as dos outros monarchas anteriores, que hoje se-julgam de todo perdidas. Gomquanto a linguagem de Fernão Lopes seja ainda bastante rude, tem, comtudo, o seo estilo aquella gravidade e natural simpleza que é pró- pria do ton da verdade histórica: dando-se que todos os seos quadros sam traçados com uma animação tal que alvoroça o espirito dos leitores. Gomes Eannes de Azurara escreveu a terceira parte da Chronica de Dom Johão I, e as Chronicas do Conde Dom Pedro de Me- nezes e de Dom Duarte de Menezes, conde de Viana. O que, porém, Ihe-realça o mérito como historiador, é a Chronica do descobrimento e conquista de Guiné, na qual relata os exforços que impregou o infante Dom Henrique para eííectuar aquelle descobrimento, preludio

INTKODUCÇÃO 37

de ulteriores navegações e da portentosa descoberta da índia.

Gultivava-se, por outra parte, a poesia; e muitos fi- dalgos e cavalheiros da corte de elrei Dom Johão II poe- tavam; como foram Aires Telles de Menezes, mordomo- mór da rainha Domna Leonor; Pedro Homem, estribei- ro-mór d'elrei; Pêro Baião, camareiro do princepe Dom Aífonso, e Garcia de Resende, pagem da escrevaninha do mesmo rei ; o qual refere que este monarcha se-recreava em Ihe-ouvir recitar versos e gabava o trovar de mui singular manha *.

De outros muitos poetas d'aquelle tempo se-incon- tram composições no Cancioneiro Geral, que colligiu o referido Garcia de Resende, e que constam de trovas e versos de vários géneros ; taes como : amorosos, facetos e satyricos. Estes últimos, não obstante haverem per- dido muito de seo primitivo sal, por se-ignorarem hoje as allusões que contêem, sam ainda bastante chistosos.

Dos primeiros têem entre outros inquestionável mé- rito o Fingimento de Amores, composição de Diogo Brandão; postoque visivelmente imitada do Inferno de Dante. A deprecação que o poeta faz ás almas que estão penando, e a historia que Ihe-refere o amante de Eurydice, mostram uma perfeita imitação do episodio da Francesca de Rimini, com a diíferença de ser este episodio cem vezes mais interessante e pathetico e de nos-ulcerar o coração; o que não consegue o auctor do Fingimento de Amores, que, não por isto, senão

' Chron. de Dom Johão 11 Cap. 201.

38 CAMÕES E OS lusíadas

ainda pela rudeza da linguagem, é summamente infe- rior ao vate florentino.

XI

A épocha litteraria, que succedeu ao reinado de Dom Johão II, não podia deixar de ter sido de antemão pre- parada;— porquanto nenhuma litteratura se-cria e sur- ge de repente; do mesmo modo que não é logo que qual- quer nação perde os seos foros e publicas liberdades, segundo observa un judicioso critico moderno *, que se-lhe-abate o espirito e que declina e de todo se ex- tingue a sua litteratura. E, pois, incontestável que as lettras que tanto prosperaram no reinado de Dom Ma- nuel, e ainda no de Johão III, tiveram uma causa ante- rior que poderosamente influiu para se-effectuar aquel- le brilhante resultado ; e esta causa não podia deixar do ser a lucta que Dom Johão II travou com os gran- des e poderosos do seu reino para destruir e anniquilar o feudahsmo: lucta terrível em que Ihe-foi mister ap- poiar-se no favor e na alliança dos populares, a quem

1 Sismonde de Sismondi, De la Litter. du Midi de TEurope, Tom. S.""» p. 269.

INTROUUCGÃO 39

fez largas concessões <, e na qual se-propagaram idéas de justiça e de liberdade que sam sempre favoráveis ao progresso das lettras.

O reinado de Dom Manuel fora summamente glorio- so, se este monarcha não houvera practicado un acto de nefasta recordação; qual foi o de expulsar de seo reino os israelitas: acto não de intolerância religiosa e de barbárie execravel e inaudita pelas circumstancias atro- zes que o accompanharam, senão sobremaneira impoli- tico ; porquanto voluntariamente se-privou de un gran- de numero de súbditos dos mais intelligentes e industrio- sos, entre os quaes havia muitos commerciantes opulen- tos e argentarios que fizeram sair de Portugal copiosas riquezas, cuja falta arrastaria o reino ao maior apuro e indigência, se o descobrimento da índia, o ouro que dalli se-auferiu e as páreas que subsequentemente Ihe- pagaram todos os régulos e potentados do Oriente, não viessem salvar a monarchia de un cataclysmo infallivel que a-poria em risco de se-affundir e subverter. Não parece, todavia, que este acto de intolerância e perse- guição fosse próprio do character de Dom Manuel ; an- tes tudo nos-leva a crer que outra coisa não foi senão a subserviência forçada á condição que, para Ihe-con- ceder a mão de esposa, Ihe-impôs Domna Isabel, infan- te de Gastella, a qual, ou por curteza de intelligencia e exaltado fanatismo religioso, ou, com mais probabilida- de, por insinuação dos reis catholicos, exigiu de seo real pretensor, mancebo de vinte e oito annos, que ex-

Rui de Pina, Gliron. de Dora Johão H, Gap. V.

40 CAMÕES E OS lusíadas

tremosamente a adorava, un tam repugnante e brutal sacrifício.

Qualquer, porém, que fosse a causa de tam condem- navel procedimento, é certo que não passou d'este úni- co acto de rigor a perseguição religiosa que em toda a vida se-permittiu Dom Manuel.

É mesmo assas extraordinária e digna de assombro, por ser contraria a toda a expectação, depois de seme- lhante acto de rigor, não a tolerância, mas inda a complacência com que este monarcha nos graciosos au- tos de Gil Vicente, que mandava representar em seo próprio palácio, e a que assistia toda a corte, ouvia os motejos com que eram apodados e cobertos de ridículo os frades e clérigos, expondo-se-lhe á irrisão a lascívia, o concubinato, e outros muitos vicios e torpezas que practicavam.

A uma tam rara e appreciavel tolerância deve, sem duvida, attribuir-se a causa que mais efficazmente con- tribuiu para fazer do reinado de Dom Manuel a épocha áurea da nossa litteratura.

O descobrimento da índia que o mesmo rei, não per- dendo de vista os projectos de Dom Johão 11, commet- teu a Vasco da Gama, e que este intrépido navegante levou felizmente a cabo, foi o successo mais estupendo dos tempos modernos e que, além de encher de assom- bro toda a Europa, e de trazer a Portugal incalculáveis lucros commerciaes, inriqueceu a Historia, a Geogra- phia, a Astronomia, adeantou as Artes, aperfeiçoou a Botânica e subministrou á Medicina novos meios de combater e superar as enfermidades humanas. Tam

INTRODUCÇÃO 41

prodigioso evento pôs termo ao obscurantismo da eda- de media e abriu uma nova era nos annaes do mundo.

Então, a par dos grandes capitães e conquistadores do Oriente, íloreceram varões eminentíssimos em todo género de sciencias e litteratura.

As mathematicas e a astronomia que, ao primeiro alvorecer das lettras, tam notável incremento tiveram em Portugal, continuaram a ser cultivadas com esmero e adquiriram novos e indefessos cultores.

Abrahão Zacuto, astrónomo de elrei Dom Manuel, a quem este monarcha costumava consultar nas coisas concernentes á navegação e ao descobrimento da índia, compôs mi Almanack dos movimentos dos corpos ce- lestes.

Pedro Nunes, que indisputavelmente foi o maior ma- thematico e cosmographo do século XVI, escreveu un tractado da esphera com a theoria do sol e da lua; bem como un tractado dos crepúsculos, obra não original, mas que denota a mais rara e profunda sagacidade. Compôs também em latin un livro da arte e methodo de navegar, no qual desinvolveu a theoria das loxodro- mías. Este mesmo cosmographo foi inventor da inge- nhosa divisão do astrolábio, pela qual se-podem calcu- lar as alturas dos astros até minutos e segundos; posto que no limbo do instrumento se não achem marcados senão os graus: divisão que inda hoje se-practica nas alidades de todos os instrumentos astronómicos com que se-medem distancias angulares, e que, do nome do in- ventor, se-ficou chamando Nonius.

42 CAMÕES E us lusíadas

XII

o estudo das línguas sabias, especialmente o da la- tina, a que então se-dcdicavam todos os homees que as- piravam a figurar na republica das lettras, e que Ihes- consumia não poucos annos de assiduas lucubrações, não subjeitou os espíritos ao rigor e á precisão da grammatica, mas, depurando de sua ingenita rudeza a língua vulgar, fez que esta fosse escripta com correc- ção e com un começo de elegância. Por outra parte a leitura dos auctores clássicos despertou o gosto das an- tiguidades romanas de que tantos e tam preciosos mo- numentos se-íncontram dissíminados pelo solo da nossa pátria; os quaes não podiam deixar de attrahir e exci- tar a curiosidade dos eruditos.

André de Resende, celebre humanista e antiquário, escreveu em português a Historia das antiguidades de Évora, sua pátria, e, em latin, quatro livros das Anti- guidades da Lusitânia e un do Municipio Eborense; nos quaes mostrou o amplo conhecimento que possuía das coisas romanas, e o quanto era perito em interpre- tar as inscripções lapidares latinas, muitas das quaes se- achavam mutiladas e quasi de todo gastas e delidas do tempo.

ISTRODUCÇÃO 43

Tractando o mesmo assumpto Diogo Mendes de Vas- concellos, illustrou na dieta lingua o livro quarto das Antiguidades de Resende, e amplificou com vastissima erudição o do Municipio Eborense.

Nascia entretanto o drama popular nos autos e nas comedias de Gil Vicente, fundador do nosso theatro.

Gil Vicente, por seos motejos cómicos e satyricos, mereceu com razão ser denominado o Flauto Português. Conheceu elle os vicios todos e o ridiculo da socie- dade do seo tempo; bem como a hypocrisia, a avareza e a concupiscência do clero secular e regular, então bastante corrupto e devasso, ao qual dirigiu frisantes apodos recheados de mordacidade e, muitas vezes mes- mo, assas licenciosos, como estava no gosto e nos cos- tumes daquella épocha.

Para darmos uma idéa das facécias e dos sáes plau- tinos do nosso Gil Vicente, vamos trasladar o acto ver- dadeiramente cómico, em que Leonor Vaz, entrando em scena, na farça de Ignês Pereira, refere o como no ca- minho foi accommettida por un clérigo, e o modo por que Ihe-resistiu:

MÃE.

Aqui vem Leonor Vaz.

IGNÊZ.

E ella vem-se benzendo. (Enlra Leonor Vaz)

LEONOR.

Jesu, a que m'eu incommendo, Quanta coisa que se-faz

44 CAMÕES E OS lusíadas

MÃE.

Leonor Vaz, que foi isso?

LEONOR.

Venho eu, mana, amarella?

MÃE.

Mais ruiva que uma pauella.

LEONOR.

Não sei como tenho siso. Jesu! Jesu! que farei!? Não sei se me- á Elrei, Se me-vá ao Cardeal.

MÃE.

Como! e lammanho é o mal?

LEONOR.

Tammanho? eu t'o direi: Vinha hagora perelli, Ô redor da minha vinha, E un clérigo, mana minha, Pardeos, lançou mão de mi; Não me-podia valer: Diz que havia de saber Se era fêmea, se macho.

MÃE.

Hui! seria algun muchacho, Que brincava por prazer.

LEONOR.

Si, muchacho sobejava, Era um zóte tammanhouco!

INTRODUGÇÃO 45

Eu andava no retouço

Tam rouca que não falava,

Quando o-vi pegar commigo,

Que me-achei 'n aquelle p'rigo,

Assolv'rei, não assoWrás.

Jesus! homem, qu'has comtigo?

Irmãa, eu te assol verei

Co breviairo de Braga.

Que breviairo, ou que praga?

Que não quero : aqui d'elrei !

Quando viu revolto a voda,

Foi e esfarrapou-me toda

O cabeção da camisa.

MÃE.

Assi me fez d'essa guisa Outro, no tempo da poda. Eu cuidei que era jogo, E elle... dae-o vós ao fogo! Tomou-me tammanho riso, Riso em todo meo siso, E elle leixou-me logo.

LEONOR.

Si, agora, eramá. Também eu me ria Das coisas que me-dizia: Chamava-me luz do dia: Nunqua teo olho verá.

Si estivera de maneira Sem ser rouca, bradár'eu; Mas logo m'o demo deu Gatarrão e peitogueira. Cócegas e cór de rir, E coxa pêra fugir.

ifi CAMÕES E OS lusíadas

E fraca pêra vencer : Porém pude-me valer Sem me ninguém acudir. O demo (e não pôde ai ser) Se-chantou no corpo d'elle.

MÃE.

Mana, conhecia-te elle?

LEONOR.

Mas queria-me conhecer.

Outras muitas facécias e jogralidades se-incontram nos autos e comedias do nosso primeiro poeta dramáti- co; sendo notável a zombaria maliciosa e sarcástica com que elle se-impenhava em zurzir os clérigos e frades, e em desmascarar-lhes a hypocrisia.

O que em nossos tempos de liberdade constitucional e de tolerância religiosa se não consentiria no palco sce- nico e promoveria alto escândalo aos olhos dos beatos e tartufos, era então representado perante toda a corte, pondo-se em scena: hora un frade esgrimidor, fazendo jogo de espada ; hora outro trazendo atrelada a manceba com quem pretende intrar no céo: hora un clérigo que vai á caça com o filho que houve da amazia, que Ihe- joga valentes chufas: hora, finalmente, un hermitão que anda em procura de un retiro onde possa fazer vida de penitencia pela forma seguinte :

INTRODUCÇÃO 47

HERMITÃO.

Hagora quero eu dizer O que aqui venho buscar. Eu desejo de habitar 'N uma hermida a meo prazer, Onde podesse folgar.

E queria-a eu achar feita, Por não cansar em fazel-a; Que fosse a minha cella Antes bem larga que estreita, Que podesse eu dansar 'n ella: E que fosse 'n un deserto D'infindo vinho e pão, E a fonte muito perto E longe a contemplação.

Muita caça e pescaria. Que podesse eu ter coutada; E a casa temperada ; No verão que fosse fria, E quente na hynvernada. A cama muito mimosa, E un cravo á cabeceira. De cedro a sua madeira; Porque a vida religiosa Queria eu d'esta maneira.

E fosse o meo repousar E dormir até taes horas, Que não podesse rezar, Por ouvir cantar pastoras, E outras assobiar. A ceia e jantar perdiz. Ao almoço moxama, E vinho do seo matiz, E que a filha do juiz Me-fizesse sempre a cama.

48 GAMÕES E OS LUSÍADAS

Esquecesse eHa as ovelhas, E na cella me-abraçasse E mordesse nas orelhas, Inda que me-lastimasse »

se a razão porque as comedias de Gil Vicente foram tam acceitas a Erasmo. Este homem que detes- tava cordealmente os frades ; que teve a coragem de desmascaral-os, escrevendo que elles se-abstinham do mal que não podiam fazer ; e que não duvidou confir- mar a voz publica que os-accusava de terem propinado veneno aos prelados que tentaram reformar uma das suas ordêes: de haverem interrado vivos na crypta sub- terrânea de un mosteiro vários infelizes para com elles sepultar os escândalos de que haviam sido testimunhas; e de terem asphyxiado alguns virtuosos padres que pre- tenderam introduzir os bons costumes nos claustros: este homem, dizemos, apprendeu a lingua portuguesa para ler no original as comedias do nosso primeiro auc- tor dramático, cujas pungentes diatribes contra os fra- des tanto deviam recreal-o.

Tragicom. da Serra da Estrella.

INTRonurçlo 49

Xlíl

Ás farças e comedias populares de Gil Vicente suc- cedeu a Euphrosina, comedia de Jorge Ferreira de Vas- concellos; a qual, sendo, como elle diz, uma invenção nova 'n esta terra ^ é claro que antecedeu ás de de Miranda e António Ferreira. Tanto esla, como as ou- tras comedias de Jorge Ferreira, abundam em scenas de costumes; sam riquissimas em linguagem vernácula, e contêem uma inexhaurivel quantidade de provérbios e anexins, que, pelos preceitos e aphorismos ethicos que encerram, dam a medida do desinvolvimento intellectual e moral do nosso povo 'n aquelle tempo. Estas come- dias que, na essência, não passam de romances dialo- gados, estão refertas de erudição, e, comquanto con- stem de un enredo mui simples, têem scenas interminá- veis e outras que em nada prendem com o desenlace da acção; o que Ihes-diminue o interesse e as-torna de uma extensão imprópria para se-poderem representar.

Depois de Jorge Ferreira, a comedia tomou em tudo

' No proemio ao príncipe Dom Jolião,

50 CAMÕKS E OS lusíadas

O estilo e a forma da latina. de Miranda escreveu os Extrangeiros e os Vilhalpandos, comedias de uma contextura singela, em que entram aios, parasitos, me- retrizes e un soldado fanfarrão, personagem accessoria de muitas comedias de Plauto. Á semelhança destas, sam ambas precedidas de un prologo em que se-discre- têa, se-propôe o assumpto e se-pede attenção. A scena passa-se sempre na rua. E uma perfeita imitação da antiguidade clássica.

António Ferreira, tanto no Bristo, como no Cioso, seguiu o mesmo modelo. Na primeira un alcoviteiro, por nome Bristo, o titulo á comedia, em que também figuram uma meretriz e un soldado fanfarrão. Tem muita soltura de linguagem : a scena passa-se na rua, como nas comedias de Plauto e Terêncio : começa egual- mente por un prologo, e, para que em nada descrepe, termina com o usual Valete et Plaudite dos referidos cómicos.

No Cioso dá-se outra imitação da comedia antiga; qual é o reconhecimento de un filho que se-perdera em pequeno. 'N esta comedia, que tem scenas bastante in- decentes, entra uma mulher de vida airada, e uma medianeira, conforme o gosto do theatro latino. O character do Cioso, contra o preceito que recommenda servetur ad imiim, é, por ultimo, mal sustentado.

O mesmo Ferreira escreveu também uma tragedia regular cujo assumpto é a morte de Domna Ignês de Castro ; mas destituida de acção e de pathetico. Os versos de que se compõe sam duros e sem harmonia ; e os characteres das personagees que 'n ella figuram mal

INTRODUGÇÃO 51

representados; o que parece ter sido o defeito capitalis- simo do auctor. Todavia, foi sempre admirada esta tragedia pelos eruditos, por causa dos choros que a ador- nam, imitados do theatro grego.

XIV

Por este tempo appareceram os primeiros romances de cavallaria na Chronica do Imperador Clarimundo, por Johão de Barros; na de Palmeirin dlnglaterra, por Francisco de Moraes, e no Memorial das proesas da se- gunda tabula redonda, por Jorge Ferreira; o que prova que, junctamente com o gosto da antiguidade clássica, que de toda a parte resurgia, se não perdera o da ca- vallaria andante, que era geralmente o do povo.

A historia tomou então magestosas proporções sob a penna apurada de Fernão Lopes Castanheda e de Johão de Barros; os quaes tractaram de perpetuar a memoria dos feitos illustres dos portugueses nas partes do Orien- te: o primeiro escrevendo a Historia do descobrimento e conquista da índia pelos portugueses, e o segundo as Décadas da Ásia, monumento grandioso com que pre- tendeu salvar do olvido aquelles memorandos feitos;

52 CAMÕES E OS lusíadas

doendo-se.de que esta nação se-mostrasse descuidada da posteridade do seo nome, como se não fosse (diz elle) tão grande louvor dilatal-o per penna, como ga- nhal-o pela lança *.

As Décadas de Barros, além de narrarem os feitos inclytos que os portugueses practicaram no descobri- mento e conquista dos mares e terras do Oriente, o que abrange o espaço de cento e vinte annos, contêem pre- ciosas noções geographicas e interessantes relações his- tóricas de muitos povos da Ásia. O auctor descreve toda a região comprehendida entre os dois famosos rios Indo e Ganges, de cujos habitantes nos-faz conhecer os ritos, os usos e os costumes; dando-nos particular noti- cia das castas e da geração dos naires: informa-nos dos reinos de Sião e do Pegú; do império da China e de sua celebre muralha; das ilhas de Ceilão, de Sumatra, de Maldiva, de Moluca, e dos Celebes; faz uma bellis- sima descripção do coqueiro, outra do sagú, narra a in- venção do jogo do xadrez, e tracta dos amoucos, da zumbaia, do lápis e de outras muitas coisas notáveis e próprias daquellas partes, que então na Europa se-igno-- ravam.

Barros foi chamado o Tito Limo português pela scien- cia e facúndia com que escreveu a historia. O prologo que junctou á Década III é uma das mais eruditas coi- sas daquelles tempos; mas n'elle pretende que os cri- mes e as abominações dos reis e principes, por causa da reverencia que se-lhes deve, hajam sempre de occul-

' Dcc. I.» L. 4.» C. 1 1, íol. 81 V. ediç. de I6'28.

INTRODUCÇÃO

53

tar-se; sendo certo que, unia vez admiltida esta regra, de pouco proveito nos-ficara servindo a historia; por quanto nunqua chegáramos a conhecer a verdade in- teira.— Releva-nos ainda observar que a critica histó- rica não era então conhecida, pelo que, 'n esta parte, devia indefectivelmente tropeçar o auctor das Décadas. Não se-eximiu, outrosim, o mesmo auctor de alguns preconceitos vulgares e próprios do seo século ; sendo un delles o accreditar na astrologia judiciaria, da qual ingenuamente refere o methodo porque a mesma proce- dia para obter os seos prognósticos *. O estilo que im- prega é quasi sempre grave e culto, e a linguagem no- bre e decente; muitas vezes elegante, locupletissima no primor e novidade da expressão, e não poucas figurada: como quando diz que os nossos abandonaram a forta- leza de Pacêm com o temor no rosto e a vergonha nas costas; ou, quando, á cerca de uma traição tentada con- tra o guazil de Galaiate, em que pereceram muitos por- tugueses, profere: Este fin têem as obras que se-com- mettem dando o bejo na face com a espada escondida ^. Do estilo grave, e próprio da historia, descáe, porém, algumas vezes no rasteiro.

Aífonso de Albuquerque, filho do grande Afí'onso de Albuquerque, escreveu também nos seos Commentarios os successos e as facções maravilhosas dos portugueses

' Dec. III, L. 5.» C. 6.0

'^ De outras muitas locuções figuradas e metaphoras usou o elegante auctor das Décadas da Ásia, as quaes se-acliam colligidas e se-podem ver no opúsculo que tem por titulo: 'Espirito da Lingua Portuguesa» inserto no Tom. 3." das Mem. de Litter. da Acad. R. das Scien. de Lisboa.

54 CAMÕES E OS lusíadas

nas partes do Oriente : e Pedro de Magalhães Gandavo a Historia da Provinda Sancta Cruz, na qual relata o descobrimento do Brasil por Pedro Alvares Cabral; bem como os costumes dos Índios, e tudo o que é concer- nente á historia natural d'aquella parte do novo mun- do. — Este livro, que dedicou a Dom Leonís Pereira, foi recommendado por Luiz de Gamões ao magnânimo defensor de Malaca, dizendo-lhe:

Tem claro estiio, ingenho curioso, Para poder de vós ser recebido i.

É de crer que não seria menos grata a elegia que tam graciosamente patrocinava a oíferta do que o mes- mo don do oíferente.

Dois conspicuos escriptores, Damião de Góes e Dom Hieronymo Osório, bispo de Silves, illustraram ainda a historia, escrevendo : o primeiro, na lingua pátria, a chro- nica do Principe Dom Johão e a de Elrei Dom Manuel, e o segundo na de Gicero, que soube imitar na elegân- cia e pureza da dicção, os Feitos do mesmo felicíssimo rei, que intitulou: De Rehus Emanuelis.

Eleg. IV.

IMTRODDCÇÃO *5

XV

Sendo as viagêes uma parle não menos instructiva que interessante da Historia, cabe aqui mencionar o Iti- nerário de António Tenreiro e a Peregrinação de Fer- não Mendes Pinto ; obras ambas assas noticiosas e bem escriptas. Da primeira diz Johão de Barros que em alguma coisa deu lume á sua Geographia *; attenta a fidelidade com que aquelle viajante descreveu os paizes e as nações por onde transitou; sendo o primeiro que, por terra, veiu da índia a Portugal. Quanto á Pere- grinação de Fernão Mendes, é ella infinitamente inte- ressante pelas aventuras e peripécias que o auctor re- conta em prosa bellissima e em estilo tam natural e sin- gelo, que não nos-captiva a imaginação ; mas nos- persuade das espantosas e incrediveis coisas que viu e passou; sendo notáveis as descripções que faz de vários Ídolos e pagodes da China, da pirataria e das depreda-* ções que 'n aquelles mares practicavam os portugueses, e, por ultimo, a narração do que succedeu ao padre Francisco Xavier, quando introu no Japão, em que

Dec. III, L. 7.» C. 9.0 foi. 192, v. col. 2.» ediç. de 1628.

56 OAMÕES K OS LUSÍADAS

compta das disputas que alli sustentou com os bonzos ; o que tudo seguiu e textualmente copiou o jesuita Johão de Lucena na vida que escreveu do mesmo padre Fran- cisco Xavier *.

Sam tam extraordinários os successos relatados por Fernão Mendes, que houve quem se- persuadisse de que elie não fez mais do que romancear o que tinha podido saber das coisas da China e Japão, pondo em relevo o

' A confrontação que passamos a fazer, merece, porcerto, o reparo e a critica dos homens de lettras.

O que Fernão Mendes relata da armada dos achens e do padre Francisco Xavier no cap. 203 da Peregr. é narrado mais dififusamente nos cap. 7.», S.» e 9.» do L. 5.» da vida do dicto padre por Johão de Lucena.

O que se-contèm no cap. 204 da Peregr., acha-se sem differença algu- ma, senão nas palavras, nos cap. 10.», 11.» e 12 do L. 5.o de Lucena.

O que o primeiro narra nos cap. 205.» e 206.» é narrado por Lucena nos cap. 13.» e 14.» do L. 5.»

O substancial do cap. 207 do primeiro acha-se sem discrepância algu- ma, nos cap. 16.», 17.» e 18.» do segundo.

O conteúdo do cap. 209.» do primeiro é o mesmo que o do cap. 4.» do L. 9.» do segundo: e a charta que o rei de Bungo escreveu ao padre Fran- cisco Xavier, que se-incontra no mesmo cap. de Fernão Mendes, vem fiel- mente transcripta no citado cap. de Lucena.

O recebimento que ao padre Francisco Xavier fez o rei de Bungo, con- forme o descreve Fernão Mendes no cap. 210, é fielmente copiado por Lu- cena nos cap, 5.» e 6.» do L. 9.»

Tudo o que Fernão Mendes tracta no cap. 211.» é o mesmo que Lucena mais extensamente expõe nos cap. 7.» e 8.» do L. 9.», sem, todavia, Ihe-dar nova forma, e até, ás vezes, pelas próprias palavras do auctor da Peregr. onde se-comprehende a primeira disputa que o bonzo Fucarandono teve com o padre Francisco Xavier.

O que se acha relatado no cap. 212.» de Fernão Mendes, inclusive a se- gunda disputa de Fucarandono com o dicto padre é egualmente referido por Lucena nos cap. 9.» e 10.» do L. 9.»

Finalmente: Aviagem do padre Francisco Xavier do Japão para a China em a náu de Duarte da Gama; bem como a perda e a milagrosa apparição do batel da mesma náu com a gente que levava, conforme relata Fernão Mendes no cap. 214.", é referida por Lucena no cap. 15.» do L. 9.», omittin" do o que Fernão Mendes conta ter passado com o padre Francisco Xa- xier, como convinha ao mesmo Lucena occultar.

INTRODUCÇÃO 57

desenfreamento com que alguns bandos de portugueses andavam espancando aquelles mares e commettendo toda a qualidade de violências e rapinas. Todavia, não pôde hoje duvidar-se da veracidade do que nos-infor- ma, e particularmente do que diz respeito á pirataria a que muitos dos nossos se-entregavam; a qual, para maior escândalo, era de ordinário accompanhada com actos de religião christãa ; no que parece que o auctor quis adrede tecer uma satyra vehemente, comquanto habil- mente disfarçada, ao que então geralmente practicava- mos na índia, que era roubar e catechizar. Para que possa avaliar-se o fundamento do que deixámos dicto, copiaremos aqui a scena que o auctor nos-representa e se-passa dentro de uma lanteá que acabava de ser rou- bada a uns pobres chins:

«António de Faria vendo un menino, que lambem alli estava, de doze até treze annos, muito alvo e bem assombrado, Ihe-perguntou donde vinha aquella lan- teá, ou porque causa viera alli ter, cuja era, e para on- de ia? o qual Ihe-respondeu : era do sem-ventura de meo pae, a quem caiu em sorte triste e desventurada tomardes-lhe vós-outros em menos de uma. hora o que elle ganhou em mais de trinta annos; o qual vinha de un logar que se-chama Quoamão, onde, a troco de pra- ta, comprou toda essa fazenda que ahi tendes, para a ir vender aos juncos de Sião que estão no porto de Com- hay; e, porque Ihe-faltava a agua, quis sua triste fortu- na que a-viesse tomar aqui para vós Ihe-tomardes sua fazenda sem nenhun temor da justiça do céo. Antó- nio de Faria Ihe-dice que não chorasse, e o-afagou quan-

58 CAMÕES E OS lusíadas

to poude, promettendo-lhe que o-tractaria como filho, porque 'n essa compta o tinha e o-teria sempre; a que o moço, olhando para elle, respondeu com un surriso a modo de escarneo: Não cuides de mim, indaque me-ve- jas minino, que sou tam parvoo que possa cuidar de ti que, roubando-me meo pae, me-hajas a mim de tractar como filho; e se és esse que dizes, eu te-peço muito, muito, muito por amor do teo Deos que me-deixes bo- tar a nado a essa triste terra, onde fica quem me-gerou ; porque esse é o meo pae verdadeiro, com o qual quero antes morrer alli 'n aquelle mato, onde o-vejo estar-me chorando, que viver entre gente tam como vós-ou- tros sois. Alguns dos que aUi estavam o-reprehenderam e Ihe-diceram que não dicesse aquillo porque não era bem dicto; a que elle respondeu: sabeis porque vol-o digo, porque vos-vi louvar a Deos depois de fartos com as mãos alevantadas e com os beiços unctados, como homees que Ihes-parece que basta arreganhar os dentes ao céo, sem satisfazer o que têem roubado ; pois intendei que o Senhor da mão poderosa não nos-obriga tanto a bolir co'os beiços quanto nos-defende tomar o alheio; quanto mais roubar e mactar que sam dois peccados tam graves quanto depois de mortos conhecereis no rigoroso castigo de sua divina justiça. Espantado António de Fa- ria das razões d'este moço, lhe dice se queria ser chris- tão, a que o moço, pondo os olhos 'n elle, respondeu: não intendo isso que dizes, nem sei que coisa é essa que me-commettes; declara-m'o primeiro e então te-respon- derei a propósito. E declarando-lh'o António de Faria por palavras discretas ao seo modo, lhe não respondeu

INTRODUCÇÃO 59

O moço a ellas ; mas pondo os olhos no céo, com as mãos alevantadas dice chorando: Bemdicta seja, Senhor, a tua paciência, que soffre haver na terra gente que fale tam bem de ti, e use tam pouco da tua lei, come estes mi- seráveis e cegos que cuidam que furtar e pregar te-po- de satisfazer, como aos principes tyrannos que reinam na terra. E não querendo mais responder a pergunta nenhuma, se-foi pôr a un canto a chorar, sem em três dias querer comer coisa nenhuma de quantas lhe da- vam *. »

O trecho, que acabamos de transcrever, revela que uma profunda corrupção lavrava no corpo social na épocha a que nos-referimos; sendo fácil de prever que as lettras se-resentissem de tal corrupção, e começassem a declinar e a corromper-se.

Era, com eífeito, o que em Portugal acontecia pelo meado do século xvi.

« Peregr. C. 55, T. 1.» p. 210 e seg. ediç. de 1829.

60 GAMÕES K US lusíadas

XVI

No bosquejo que rapidamente traçámos, fizemos vêr quaes foram os progressos do espirito humano em todo p periodo da renascença. Mostrámos como em Itália o descobrimento dos manuscriptos gregos e romanos, patenteando o primor das leltras antigas, e excitando geral enthusiasmo, creou a moderna litteratura que se desenvolveu no gosto puramente clássico, cuja imitação chegou a ser exaggerada: como Petrarca, Dante, e Boccaccio exerceram uma poderosa influencia nas let- tras, e particularmente na poesia que se-propagou por toda a Europa néo-latina : como un pasmoso numero de descobertas, tanto antigas, como modernas, fez nas- cer o espirito de exame e, com elle, a opposição reli- giosa, que em Itália não passou de satyrica e sceptica, em quantoque, em Allemanha, sendo systematica, cheia de convicção e decidida a combater, trouxe, por fin, a reforma protestante: observámos que em França as invasões extrangeiras, as guerras civis e a anarchia, re- tardaram os progressos da renascença: e que em His- panha não as luctas intestinas e as guerras exterio- res, mas inda a influencia que no gosto daquella épo-

INTRODDCÇÃO 61

cha exercia a litteratura e a poesia árabe, obstaram á in- troducção das lettras clássicas, que chegaram a adop- tar-se no século xvi: dissemos, finalmente, como em Portugal, aos primeiros reflexos da renascença, se-cul- tivou a poesia: como prosperaram as sciencias exactas e se-aperfeiçoou a astrononia e a navegação : o auspi- cioso começo que teve a arte dramática e a facúndia e perspicuidade com que a historia traçou brilhantes pa- ginas. Tal era o estado do desinvolvimento intellectual do meio-dia da Europa nos principios do século xvi. A perspectiva scientifica e litteraria do nosso paiz fazia então presagiar que em breve attingiria un elevadissimo grau de perfeição. Bem longe, porém, de tal conse- guir, estava-lhe preparado o mais espantoso retrocesso. Por fallecimento de Dom Manuel, subira ao throno Dom Johão III, principe de acanhada intelligencia, fa- nático, intolerante, e que fora antes talhado para guar- dião de un convento de capuchos, do que para susten- tar o sceptro da ingente monarchia portuguesa. Diz Pedro de Mariz que no reinado de Dom Johão III se- foi consumindo e perdendo o que com a guerra se-adqui- riu: e que as conquistas que 'n elle se-fizeram e as vicia- rias que se-alcançaram, tudo foi obtido e executado pelos valorosos cavalleiros e experimentados capitães que na militar eschola de elrei seo pae se-criaram e fizeram fa- mosos *. Podemos accrescentar que os bons ingenhos que floreceram durante o reinado deste monarcha, fo- ram creados com a doctrina que beberam do tempo de

* Dial. de Varia Hist. Dial. V, in princ.

62 CAMÕES E OS lusíadas

elrei Dom Manuel e que inda subsistiu alguns annos de- pois, até que o mesmo Dom Johão III de todo a per- verteu e deu cabo d'ella.

Logo que este monarcha subiu ao throno, empregou todos os exforços para impetrar do pontifice uma bulia que o auctorizasse a estabelecer em seo reino o tribunal da inquisição. E não parece que taes exforços fossem tanto para impedir que em Portugal se-introduzissem as novas idéas, que então se-propagavam em Allemanha, como para perseguir e espoliar os christãos novos, cujas riquezas estimulavam a piedosa cubica do monarcha es- tulto e sem coração.

Diz um auctor moralista que : « todas as opiniões hu- manas, mesmo as dos theologos, têem motivos secretos no proceder e character dos que as-professam. » Deve- mos consequentemente presumir que, não obstante ser o fanatismo exaltado de Dom Johão III a causa osten- siva que o-fazia obrar, não era n'elle o zelo religioso desaccompanhado do desejo secreto e ignóbil de aug- mentar os seos haveres com os bees confiscados aos is- raelitas; porque foi expressamente contra elles que sem- pre forcejou por estabelecer o abominando tribunal.

Os judeus, excluidos da magistratura, da milicia, do professorado e de todos os empregos públicos, e fazen- do, como inda hoje, uma excepção na republica, não po- diam ter amor de pátria, nem interessar-se pela gloria e prosperidade da nação que os repellia e desherdava. Em resultado d'esta politica de ódio e exclusão ha- viam-se elles concentrado em seos interesses privados, applicando-se á medicina, á astronomia, ás artes mecha-

INTRODUCÇÃO 63

nicas e particularmente ao commercio. Tendo sido for- çados a acceitar o christianismo, não pela malque- rença que continuou a perseguil-os, e que, por isso, Ihes- despertava a natural argúcia, senão por serem grande- mente laboriosos e dados a toda a sorte de agencia, de que Ihes-provinha avultados lucros, tinham-se extraor- dinariamente locupletado. Era, portanto, 'n elles que a religião do monarcha podia utilmente explorar e colher abundante messe. Não obstante as contradições que Ihe-oppôs a própria cúria romana, tanto lidou no em- penho de obter o nefando tribunal, que, por ultimo, o conseguiu.

XVil

Apenas em Portugal se-estabeleceu a inquisição, co- meçou o fanatismo a produzir os seos terríveis effeitos. Surgiram as suspeitas, as denuncias, e, com ellas, os receios e os sobresaltos de que não podiam exemp- tar-se as consciências mais puras. Cessou todo o di- reito civil para inaugurar-se o governo theocratico e o império do terror. A imprensa passou a ser algemada pelo mais feroz despotismo, arrogando-se o sancto of- ficio a faculdade de examinar não os livros que hou-

CAMÕES K OS LUSIAUAS

vessem de imprimir-se, senão também os impressos. Consequentemente supprimiram-se e queimaram-se todos os que continham doctrinas que não agradavam á corte de Roma e ao poder absoluto : outros foram mu- tilados, ou nesciamente alterados, como mais tarde a- conteceu ás obras de Gil Vicente e aos Lusiadas de Ca- mões.— Tudo quanto a razão e a intelligencia podiam produzir de brilhante, creador e útil á humanidade, foi imprescriptivelmente trucidado á nascença. Tornou-se impossível o raciocinar ; porque estava alçado o hor- rendo tribunal que punia com fogo quem fizesse uso da razão. As naturaes expansões e á liberdade de falar succederam os recatos e as cautelas que era mister guar- dar não com os visinhos, senão com os próprios do- mésticos, de que tomou origem o proloquio popular que diz: as paredes têem ouvidos: o qual nos-dá a conhecer até que poncto o medo suspicaz se-incutira nos ânimos. A este estado de compressão devia necessariamente succeder o insulamento e a solidão ; porque a primeira e a mais geral das disposições que nos ânimos dos po- vos faz nascer o despotismo e a arbitrariedade dos go- vernos é a desconfiança, de que logo se-segue o inter- romperem-se todas as relações sociaes e o encerrar-se cada un no recôndito de seo lar. O mesmo paço dos nossos antigos reis, que dantes fora uma espirituosa academia de jogos, onde se-representavam farças e mo- mos e se-viam practicar as leis da mais apurada ga- lanteria: corte composta de fidalgos, que todos poeta- vam, e cujas producções, compiladas no Cancioneiro de Resende, nos mostram uma cultura intellectual e in-

INTRODUCÇÃO 65

strucção a que não havia attingido até alli nenhuma das cortes da Europa, excepto as de Itália: dominada por un rei ignorante e fanático que a-encheu de frades, caiu des de logo no mysticismo, na apathia estúpida, e na mais silenciosa tristeza de que tam sentidamente se- queixa o nosso de Miranda, dizendo:

Os momos e os serões de Portugal, Tam falados no mundo, onde sam idos, E as graças temperadas de seo sal ?

Dos motes o primor e altos sentidos, Os dictos avisados, cortesãos, Queéd'elles»?

Tudo isto havia desapparecido ; e note-se que foi no mesmo anno de 1536, em que se-estabeleceu a inquisi- ção, que,^e/Gt ultima vez, se-representaram no paço as co- medias de Gil Vicente, das quaes a Floresta de Ingannos foi a derradeira que alli se-pôs em scena: o que mostra o extenso predomínio que des de logo assumiu o horren- do tribunal, que fez que no próprio palácio do rei aca- bassem aquellas representações em que se-expunham á irrisão os vicios dos frades e clérigos: espectáculo, que não podia deixar de oífender o orgulho sacerdotal, e que, por isso, Ihe-convinha que nunqua mais se-repelisse ^•

' Charla a Dom Fernando de Menezes.

' Parece que J. V. Barreto Feio e o senr. Joseph Gomes Monteiro igno- raram a causa porque desde 1536 deixou o nosso Plauto de compor as suas tam chistosas comedias.— No Ensaio que escreveram sobre a vida e escri- ptos de Gil Vicente, lemos a pag. XX: «Que motivo impediria o poeta da corte de continuar a divertir os seos reaes patronos des de 1536, quando até então as suas producções eram quasi annuaes,, muitas vezes duas e três por anno?» '

66 CAMÕKS E OS lusíadas

XVIII

Quatro annos depois entravam em Portugal os jesuí- tas, chamados pelo mesmo Dom Johão III, e então de todo se-transformou o paço 'n un perfeito mosteiro, on- de, em vez dos saráos aprazíveis e esplendidos, ha- via devoções e se-practicavam os exercidos espirituaes de sancto Ignacio de Loyola, que todos alli cumpriam rigorosamente, sem excepção de um individuo. Era outra espécie de divertimento; porque o beaterio tam- bém se-diverte: recrea-se estupidamente em practicas de máo gosto com que pretende adquirir o céo, emquan- toque, na terra, não desdenha a fama de sanctidade, que, afagando-lhe uma vaidadezinha secreta, Ihe-aug- menta o numero de consolações espirituaes.

Não se-limitavam, porém, os jesuítas a estas sancti- monias e inanidades ascéticas. Mais importante mis- são era a sua que Ihes-cumpria executar. Instituídos defensores e guarda pretoriana do papa para Ihe-sus- tentarem a supremacia contra os attaques dos reformis- tas, era-lhes indispensável apoderarem-se das con- sciências, adquirirem numerosos adeptos, perverterem o inlendimento humano, e derramarem profusamente as

INTRODUGÇAO bl

trevas para fundar un poder incontroverso e perdu- rável.

Foi o que immediatamente tractaram de pôr em pra- ctica.

Aos seos confessados de ambos os sexos fizeram pro- metter voto de obediência a tudo quanto por elles Ihes- fosse ordenado, impondo-lhes assim despótico dominio e tornando-os instrumentos passivos de suas vontades *•

Com o fin de incutir no espirito da juventude suas perniciosas doctrinas, assenhorearam-se do ensino pu- blico, certos de que, em poucos annos, fariam surgir un cardume de fanáticos e néscios de que facilmente pode- riam dispor para seos nefandos designios. Este meio, suggerido por satânica inspiração, é o de que nunqua deixaram de servir-se, e que inda em nossos tempos subrepticiamente tentaram levar a eífeito, empregando as chamadas irmãas de charidade; porquanto os resul- tados de tal meio sam infalliveis, uma vez que a impre- vidência, ou a inépcia dos governos Iho-consinta.

Havendo Dom Johão III em 1537 reformado a Uni- versidade que fez trasladar para Coimbra, e para a qual chamara os mais insignes mestres das outras Universi- dades, foram estes os primeiros que os jesuitas perse- guiram, denunciando e fazendo prender a uns pelo san- eio officio e afugentando a outros com a medonha per- spectiva dos cárceres inquisitoriaes ; tudo a fin de se-a- poderarem dos estudos, como fizeram, começando pelo

' Vid. Charla do bispo Dom Hieronj mo Osório a Luiz Gonçalves da Ga- mara, mestre c confessor delrei Dom Sebaslião.

68 CAMÕES li OS LUSIADASi *

Gollegio das Aries, em que logo se-introduziram; e, pa- ra se-pôrem a coberto das apupadas que poderiam re- sultar-lhes dos ridículos estratagemas de que se-serviam e dos absurdos que alli ensinavam, fizeram que o Con- servador da Universidade expedisse un alvará para ser castigado qualquer individuo, indaque fosse estudante das escholas maiores, que ás menores fosse fazer algu- mas descortesias, ou as fizesse em outras partes aos mestres e estudantes d'ellas *•

Entretanto fomentavam a scissão, fazendo que cada dia se-tornasse mais odiosa a denominação de chris- tãos-novos com que eram designados e mal vistos os is- raelitas recentemente convertidos ao christianismo^ : o que practicavam para conservar o povo dividido ; tendo em vista a ominosa máxima politica: Divide para reinar.

Sendo o fin que se-propunham o estabelecer un ab- soluto predominio; o que podiam conseguir alimen- tando a superstição e estultificando todos os espíritos, começaram a exaltar a ignorância e a propalar nos con- fissionarios, nos púlpitos, e até mesmo nas ruas e pra- ças publicas onde pregavam, que as sciencias sam pe- rigosas: o que corroboravam com argumentos tirados de San' Paulo e da própria Escriptura. Esta máxima, digna de seos auctores, foi mais tarde por elles não defendida, mas ainda amplificada, a poncto de fazerem prevalecer como principio que o préstimo deve ceder o passo á incapacidade: facto que se-realisou no reinado

' Compond. Hist. da Univers. de Coimb. P. 1.» Prel. 1.» § 109. 2 Id. ij)id. Prel. 4.»

INTRODUCÇÃO 6í)

de Dom Sebastião, quando promoveram uma devassa geral, em que foram demittidos dos empregos públicos todos os homees que Ihes-eram desaííectos e substituí- dos pelos da sua parcialidade. E como os novos provi- dos fossem muito menos idóneos, e até alguns inteira- mente incapazes, sustentavam que faziam bem de saber pouco e que o saber muito e ser para muito é caso de menos valer*-

XIX

Augmentando prodigiosamente em numero os artei- ros filhos de sancto Ignacio, derramaram-se e introdu- ziram-se por toda a parte a fazer fructo ; de modo que as nossas armadas e as próprias fortalezas das conquis- tas se-não viam nunqua desaffrontadas d'elles, ao passo que nas mesmas se não encontrava un medico, ou ci- rurgião.— E crescendo junctamente em credito e aucto- ridade, nenhum commettimento terrestre, ou marítimo, se-emprehendia e executava, sem que por elles fosse ap- provado e dirigido ; como se- viu no estabelecimento dos

> Vid. a citada Charla do bispo Dom Hieronyino Usorio a Luiz Gonçal- ves da Gamara.

■70 CAMÕKS K Oa LUSIAUAS

portuguezes no Rio de Janeiro em que o jesuila Manuel da Nóbrega foi sempre o conselheiro e director que es- teve ao lado do capitão-mór Estacio de Sá, a quem foi expressamente ordenado no regimento que se-lhe deu que não obrasse coisa alguma de importância sem elle *•

Ao próprio Dom Johão de Castro, vice-rei da índia, escreveu Dom Johão III, que, inda sobre os casos de guerra, se-aconselhasse com o vigário geral Miguel Vaz, ^ e, ou fosse por esta determinação estulta, que o-submettia á vergonhosa dependência de un padre em coisa tam alheia de seo mister, ou também por que Dom Johão de Castro alli conheceu de perto os jesuitas e viu a preponderância, que des de logo tomaram, ingerindo- se em todos os negócios do estado, intrigando e man- dando avisos secretos a Dom Johão III, não Ihes-era nada aíTeiçoado: facto que o jesuita Johão de Lucena, sem embargo de Ihe-ser conveniente encobrir, por se-dar em varão de tanta virtude e auctoridade, chega, comtu- do, a confessar na vida do padre Francisco Xavier, di- zendo: Sobre tudo a gente não tinha a Dom Johão de Castro por muito affeiçoado ao Collegio de San' Paulo '.

E não o vice-rei da índia, senão também o pró- prio arcebispo de Goa, Dom Gaspar, houve de curvar a cerviz ante o poder jesuitico. Querendo aquelle pre- lado, na regência da rainha Domna Gatherina impedir (jue os padres da companhia lhe usurpassem a jurisdi-

' Simão de Vasconc. Gliron. da Coiiip. de Josii no Estado do Brasil. L. 3.» num. 57.

- Jac. Freire, Dom Jolião de Castro, L. 1.» nuin. G9. 3 Vid. do P. 1'raiic. Xavier. T. 2.» L. G.» C. t n, 294.

INTRODUCÇÃO 71

ção, por lai modo inlrigaram em Lisboa, que obrigaram a regente a escrever-lhe em nome de elrei para que, á cerca da conversão, houvesse de tractar sempre com os padres jesuitas, e que nada fizesse sem que os mesmos fossem ouvidos. E, em Roma, alcançaram que o pon- tífice Pio rV enviasse uma charta ao mesmo prelado, re- commendando-lhe que Ihes-désse toda a ajuda e favor, de modo que não Ihe-chegasse queixa alguma dos refe- ridos padres; e que não o-exhortava, mas ainda, se necessário fosse, o-admoestava para dar protecção e guardar os privilégios á companhia de Jesus *•

Comquanto houvessem adquirido tam incontrastavel poder, não desprezavam, todavia, servir-se de miserá- veis embustes para subjugar o espirito do povo, sempre disposto a accreditar o que é maravilhoso e sobrenatu- ral.— Forjavam, portanto, milagres, e inventavam pro- phecias tendentes a fortalecer o credito da formidável companhia. Uma das patranhas, que frequentemente em- pregavam, consistia em asseverar que nas batalhas que os nossos davam contra os mouros e gentios, fora a'vi- ctoria alcançada pela intervenção de algum sancto da sua escolha, que pessoalmente se-appresentara coberto de todas as irmas a combater os infiéis ; os quaes, de- pois da batalha perguntavam mui de siso quem era un cavalleiro, vestido de armas com tal divisa, que n elles fizera estragos de morte, e, pelos signaes que referiam, se-confirmava ser o sancto que elles queriam, e a quem

' Dom Man. de Menezes, Chron. de Dom Sebast. Prim. 1'arl. Cap. 4-2, p. t53 e seg.

72 CAMÕKS K OS LlISIAlJAb

exclusivamente se-ficava devendo o bom resultado da peleja.

De un sapateiro idiota e analphabeto, mas grande- mente fanático e devoto da companhia, tiveram a astú- cia de fazer un propheta que prognosticava o que elles Ihe-suggeriam e a quem, por ultimo, fizeram passar por sancto. O cardeal Dom Henrique o-mandou vir de Évora para Lisboa, e queria que se-hospedasse em seo palácio: o infante Dom Luiz com elle familiarmente se- entretinha muitas vezes, e, o que é mais, o próprio Dom Sebastião o-admittia e mandava chamar para, em seo Conselho, ser ouvido e dar alvitres * . 1 1 ! . . . Despois d'is- to, ou un hospital de doidos, ou os campos de Alcacer- Kebir.

' Elrei Dom Sebastião o-mandava chamar muitas vezes e practicava com elle mui de vagar, e para o não cansar de joelhos, o-fazia assentar em uma cadeirinha raza, e, talvez, o mandava chamar ao Conselho de Estado e lhe ouviam e seguiam o seo voto, alndaque poucas vezes.

TractadodaVida, virtudes etc. de Simão Gomes, português, vulgarmente chamado o Sapateiro Saneio, pelo jesuíta ftlanuel da Veiga.

INTRODUCr.ÃO - 73

XX

Em quanto estes manejos dolosos c perinfames eram systematicamente postos em practica para anniquilar as lettras e obscurecer o entendimento, lavrava a mais espantosa corrupção moral, consequência inevitável dos meios que se-empregavam.* O egoismo, a ambição e a hypocrisia tinham-se apoderado da maior parte dos individues. A inveja dos aulicos e dos aduladores ofiS- ciosos, que, sem nunqua se-expôrem aos perigos e ás fadigas da guerra, logravam os ócios da corte de Dom Johão III, afastava do throno e fazia denegar a recom- pensa aos que mais haviam merecido da pátria: e a in-

' Coisa digna de ser observada por todo o homem philosopho e pensa- dor é que, segundo o que a historia narra, e o que particularmente refere o docto hispo de Silves, que tinha razão de o-saber, sem embargo da reli- giosidade d'aquelles tempos, e a pezar de tanto frade, de tanto jesuíta, de tantissimo beaterio, e dos immanissimos rigores da inquisição, não hou- vesse diminuído a depravação moral, nem fosse menor o numero dos pec- cados; porque, dizia elle nunqua na terra houve tantos, nem tam preju- dícioes; porque aindaque nos da carne haja, por ventura, menos dissolu- ção^ (do que duvido muito,) de secreto ha os que sempre houve e que basta para condemnar as almas; e dos peccados de espírito, que não sam peio- res, quasi ninguém está exempto. . . e senão mande V. R.">* perguntar por esses confessionários.» Charta de Dom Hieronymo Osório a Luiz Gonçalves da Gamara, confessor de eirei.

74 CAMÕES E OS lusíadas

gratidão do monarcha iniquissimo, auscultando compla- cente e sem exame as mais calumniosas delações e ab- jectas intrigas, deixava morrer na miséria não poucos d'aquelles que Ihe-cumpria favorecer e galardoar.

Assim: Domingos de Seixas, que serviu no Oriente, onde vinte e cinquo annos esteve captivo de elrei de Sião, e do qual diz Johão de Barros * que foi un dos homees de mais particular memoria com quem falou, principalmente nas coisas de geographia em que Ihe-deu gran' lume no que escreveu daquelle reino, não Ihe-ap- proveitou o captiveiro que padeceu, nem o serviço que 'n aquellas partes fez, e ser de boa linhagem para Ihe- darem de comer, impedindo que viesse a acabar os dias no hospital de Lisboa. António Galvão, o apos- tolo das Molucas, que, além de outros serviços, gastou dez mil cruzados em reduzir á obediência do Estado aquellas ilhas, sem querer ter parte no negocio do cravo cujo lucro fazia que revertesse todo para elrei: lucro que, se arrecadasse para si, como practicaram os demais capitães de Ternate, fizera que regressasse opulento ao reino, cheio de confiança em que, pelo que tinha obra- do havia de ser mais favorecido, jazeu dezesete annos n' un hospital, onde viveu de esmolas e veiu, por fim, a perecera O grande Nuno da Cunha, em recom- pensa das victorias que alcançou na índia, que gover- nou com inteireza por espaço de dez annos em que con- seguiu edificar três fortalezas, que foram Chalé, Baçaim

> Dec. 111, L. 8.0 C. 2.»

» Barros, Dec. IV, L. 9." C. 22 in íine.

INTRODUCÇÃO " 75

e Diu, em seo regresso a Portugal, por ignóbeis mexe- ricos, o-mandou Dom Johão III esperar ás ilhas dos Açores para alli Ihe-lançarem un pesado grilhão e com elle ser conduzido ao castello de Lisboa; o que poude evitar por haver fallecido depois de dobrado o cabo da Boa-Esperança ; sendo seo corpo lançado ao mar com algumas camarás de falcões, que mandava se-pagassem a elrei ; porque (dizia em seo testamento) pela hora em que estava de nenhuma outra coisa Ihe-era em incargo *. Dom Leonís Pereira, que se-cobrira de gloria na defesa de Malaca, sem obter premio algum e affrontado dos desprezos dos altivos cortesãos, veiu a morrer de misé- ria em Lisboa. E Fernão Mendes Pinto, de volta de sua longa peregrinação, quando governava a rainha Domna Catherina, de balde esperou a remuneração de seos padecimentos e serviços, que andou requerendo quatro annos e meio ; os quaes, diz elle, lhe foram não sabe se mais pesados de soífrer que quantos trabalhos^ passara no decurso de todo o tempo atrás ; e saiba-se que (segundo conta) foi treze vezes captivo e dezesepte vendido, a fora os naufrágios que padeceu e o numero quasi infinito de açoites que Ihe-foram dados.

Para completar o quadro, diremos que ao despotis- mo religioso que o clero exercia, e com que tomara a alçada a Deos, constituindo-se arbitro das consciências; á perseguição que os jesuitas promoviam contra as let- tras; ao fanatismo estúpido da corte; á postergação de toda a justiça e ao amortecimento dos brios guerreiros

» Couto, Dec. V. L. 5.» C. 5.»

CAMÕES E OS lusíadas

se-junctava a mais sórdida cubica, estimulada pelas ri- quezas do Oriente. 'N aquelle século corrupto dizia-se como proloquio mimoso e geralmente acceíto: Dos né- scios leaes se-enchem os hospitaes *. A nossa grandeza politica, as sciencias e a litteratura iam infallivelmente sepultar-se no mais tenebroso occaso.

Foi então que Luiz de Gamões, como se-fizesse un su- premo exforço contra a decadência da pátria e contra a corrupção das lettras que via imminente, invocava as Musas e se-penetrava das mais sublimes inspirações pa- ra compor o seo poema.

Gamões, altamente enthusiasta das glorias nacionaes, que celebrou na tuba épica fazendo resoar o canto com que pretendeu electrisar os ânimos e alevantal-os do abatimento em que os-tinha posto o governo de un rei estólido e imbelle, que espontaneamente entregara aos mouros as praças africanas de Alcácer, Azamor, Çafm e Arzila, canto que, como elle mesmo diz:

Resuscita

As honras sepultadas,

As palmas passadas

Dos bellicosos nossos Lusitanos,*

além de bem-merecer das Musas, procurou eífectuar un grande pensamento politico.

Os Lusíadas sam un brado sublime contra a deca- dência guerreira, moral e litteraria que se-operava por

* Bar. Dec. lII. L. 9." C. 1.» p. 223, Gol. 2.» ediç. 1628. 2 Ode VII.

INTRODUCÇÃO 77

maligna influição ; brado de patriótico alento com que aquella alma prodigiosamente grande, recordando nomes caros e heróicas virtudes, tentou regenerar o seo paiz; o que, se, todavia, não conseguiu, foi porque o mal não tinha remédio; mas alimentou e não deixou nunqua extinguir no peito dos portugueses os brios antigos e o espirito de independência com que elles mais tarde rei- vindicaram seos legitimos foros e resgataram da domi- nação de Gastella a pátria de Dom Afí'onso Henriques.

I

GAMÕE

C5

CAMÕES

Gamões foi tam extraordinário por seo génio assom- broso e transcendente, como por seo inexcedivel amor da pátria, á qual consagrou os bellos dotes da intelli- gencia: do que devendo resultar-lhe favores e premio subido, Ihe-advieram infortúnios, desterros e todos os males da vida.

Os primeiros biographos que d'elle se-occuparam e que, pela proximidade dos tempos, eram os que melhor nos-podiam informar de todos os successos que então Ihes-fôra fácil averiguar, tiveram mais cuidado em des- crever-nos a extensa genealogia do poeta do que em illustrar-nos á cerca das particularidades essenciaes da sua aventurosa carreira, da qual omittiram alguns fac- tos precipuos, tocando outros tam perfunctoriamente, que nos-deixaram incertezas e conjecturas. De quanto se-ha escripto sobre o auctor dos Lusíadas o que mais nos-dcsagrada é, sem duvida, o romance que

82 CAMOKS E OS lusíadas

se-ha querido fazer da sua vida, em vez de se-tentar escrever-lhe a historia fundada no que pôde deprehen- der-se e deduzir-se de alguns fados averiguados. Hou- ve, mesmo, un biographo que pretendeu exaltar Gamões e defender os jesuitas; como se taes factos podessem ja- mais conciliar-se : ou foi ignorar o que se-passou na épocha nefasta do dominio jesuitico, ou querer adrede falsear a historia. O que, sobretudo, nos-parece in- questionável é que Luiz de Camões não foi ainda devi- damente appreciado, por o não ter sido á luz da histo- ria e de uma critica investigadora e philosophica.

O mesmo biographo a que alludimos, querendo, como partidário da nobreza hereditária, ingrandecer Camões com accumular ao mérito litterario do poeta o que in- tendeu Ihe-provinha de uma nobre ascendência, escre- veu que o homem novo, que se-illustra e innobrece, é digno de consideração egual á que se-presta áquelle que a recebe transmittida : preposição dos tempos gothicos que não merece hoje refutada. Não seremos nós que tomaremos a gralha, revestida com as pennas do pavão, por aquillo que ella nos-pretende inculcar ; fora isso un grosseiro engano. Camões, illustre por si, pela alteza dos seos pensamentos, por sua nobre independência, por seo grande amor da pátria, e pelo ódio que profes- sava aos jesuitas e traidores que machinavam perdel-a, não carece de outros titulos que o-illustrem, e muito menos dos titulos vãos de uma nobreza artificial que servem de impor ao vulgo ignaro.

Quanto a nós, diremos simplesmente que foram seos progenitores Simão Vaz de Camões e Anna de de

CAMÕES 83

Macedo ; vindo o poeta, por parle de sua avó paterna, Guiomar Vaz da Gama, a ser parente dos Gamas do Algarve; circumstancia em si de pouca monta; mas que, aliás, nos-releva registrar, por ser indispensável ao que ao diante havemos de produzir.

A data do nascimento do poeta não nos-é directa- mente conhecida; mas tendo Manuel de Faria e Sousa examinado un registro auctentico em que se-continham os nomes das pessoas principaes, que, des d'o anno de lõOO passaram a servir na índia, no qual se-acha exa- rado que Luiz de Camões se-alistara para o mesmo íin no anno de 1550, tendo então 25 de edade, não nos fica a menor duvida de que nasceu no de 1524.

Postoque o licenciado Manuel Corrêa, em seos Com- mentarios sobre os Lusiadas, declare ter Luiz de Ca- mões nascido na cidade de Lisboa, ha hoje quem. fun- dado em documentos que inda não vimos pubhcados, assevere que foi Coimbra que Ihe-deu o berço. Na- da, portanto, afíirmaremos a tal respeito ; mas quer-nos parecer que, se não foi em Coimbra que nasceu, foi se- guramente alli que passou os annos flóreos da juventu- de, cursando os estudos da Universidade, que pouco ha- via se-reformara, e onde recebeu a instrucção litteraria e scientifica em que tanto primou e de que se-recorda com visivel saudade, quando, na estancia 97 do Cant. III dos Lusiadas, diz :

Quanto pódc de Athenas desejar- se Tudo o soberbo Apollo aqui reserva: Aqui as capei las tecidas de ouro Do bacharo c do sempre verde louro.

84 CAMÕKS K os LDSIADAS

II

Nenhun dos biograplios de Gamões nos-informa de quaes foram os estudos que elle cursou na Universida- de.— O senr. Visconde de Juromenha diz que é de crer que fossem os de theologia: o que não tem probabilida- de alguma ; não pelo desprendimento que n' elle ob- servámos de todas as idéas theologicas a que natural mente devera ser afferrado, se taes houvessem sido seos principaes estudos, senão porque claramente vemos que foram as sciencias naturaes, a philosophia, a cosmogra- phia e a historia a que especialmente se-applicou, e em que adquiriu profundos conhecimentos, a que junctou outros muitos em todos os ramos de litteratura.

vimos a que auge de progresso haviam chegado os conhecimentos humanos nos principios do século XVI, e quaes, portanto,' os recursos que d'elles podia tirar o génio superior e transcendente de Luiz de Ga- mões.— A renascença, que por toda a parte expandia

un reflexo vivifico e salutar, havia chegado alé nós, e iiíipellira o mesmo Dom Johão III á reforma da Univer- sidade, que fez de novo trasladar para Coimbra, cha- mando para alli ensinarem as sciencias não os pro- fessores nacionaes de reconhecida capacidade, senão os cathedraticos mais eminentes das outras Universidades; medida benéfica, que devera produzir os mais profícuos resultados, se a reacção jesuitica, coadjuvada pelo exe- crando tribunal da inquisição, não houvesse desde logo esterilizado tam útil medida e posto uma barreira insu- perável a todo o desinvolvimento intellectual. Nos poucos annos, porém, que antecederam a perseguição que os jesuitas poseram em practica para anniquilar as sciencias e em que vários lentes da mesma Universida- de foram sepultados nos medonhos cárceres inquisito- riaes, e outros compellidos a buscar un refugio em pai- zes extrangeiros, poude Luiz de Gamões aproveitar a lição de tam illustres professores.

O estudo das lettras clássicas, em que por elles foi habilmente doctrinado, fez-lhe nascer o gosto da my- thologia cujas ficções ridentes e graciosas, contrastando com os quadros lobregos e nimiamente severos do chris- tianismo, deviam amenizar-lhe o espirito, impressiona- do por aquelles quadros tétricos e sombrios, com as sce- nas vivazes e incantadoras da theogonia greco-romana. Sensivel aos incantos da poesia, apprendeu nos ver- sos percultos de Homero e VirgiHo a harmonia, a cor- recção, a belleza e a elegância das formas ; o que até alli se não conhecia na linguagem métrica que não pas- sava de uma simples imitação dos trovadores proveu-

86 CAMÕES K OS lusíadas

çaes. Dos modernos leu com avidez Sannazaro, Pe- trarca, Ariosto, Boscan e Garcilasso ; e foi na mansão aprazivel de Coimbra, e inda nos annos que viveu em Lisboa, que adquiriu a erudição vastissima que mani- festa nos Lusiadas; pois então poderia compulsar os livros que, sendo 'n aquelle tempo escassos e custosos na Europa, de todo Ihe-fôra impossivel obter no presi- dio militar de Ceuta, nas nossas conquistas da Ásia, e inda menos na colónia nascente e commercial de Ma- cau.— E, pois, evidente que, excepto a parte da epo- peia que escreveu em Portugal, o restante d'ella foi com- posto sem soccorro algum de livros, os quaes nem mes- mo Ihe-fôra possível transportar 'n uma quasi continua peregrinação em que passou a vida, e somente ajudado com os auxilies de uma memoria vastissima.

Não sem causa fizeram os antigos as Musas, e, por ellas as artes e as sciencias que representam, filhas de Mnemosine, Deosa da Memoria; porque, sem memoria, não é possível reter os factos, e, portanto, comparar e fazer raciocínios : ao passoque é d'ella que nascem e se- derivam as mais portentosas invenções do espirito hu- mano.— Por isto podemos fazer idéa das potentes fa- culdades de que dispunha Camões ; sendo, como 'n esta parte foi, tam prodigiosamente dotado da natureza.

CAMÕES 87

III

Se, pelos escriptos dos auctores, é dado conhecer e avaliar as qualidades moraes que os-distinguiram, e as opiniões que professaram, como até certo poncto deve- mos admittir, diremos que Luiz de Gamões a un extre- mado amor da pátria, amor desambicioso e nunqua des- mentido, reuniu outro amor não menos nobre e sublime, qual foi o da gloria. Similhante a Virgilio em tudo o que pode constituir un grande poeta; dotado, como elle, do fogo sagrado das Musas e de uma imaginação in- ventriz e graciosa, possuia egualmente aquella sensibi- lidade profunda que tanto nos-incanta e commove no cysne mavioso de Mantua. Era, outrosim, dotado de un grande espirito de rectidão e justiça, o que particu- larmente manifesta quando tracta da morte cruel e af- frontosa que Affonso de Albuquerque mandou dar a Rui Dias, cavalleiro natural de Alemquer, por haver ja- zido com uma moura captiva do mesmo Affonso de Al-

88 - GAMÕES E OS LUSIABAS

buquerque; e quando, depois de narrar os feitos pas- mosos de Duarte Pacheco, se-revolta contra a iniquida- de com que elrei Dom Manuel deixou de premiar aquel- le varão prestante.

Era também Luiz de Camões animado de espiritos bellicosos, como bem nos-deixa ver na fala de Dom Nu- no Alvares Pereira, na descripção da batalha de Alju- barrota, na de Tarifa, e no desafio dos doze de Ingla- terra.— Possuia, além d'isto, idéas summamente libe- raes e democráticas: o que revela quando approva a deposição de Dom Sancho II, com o fundamento de que o povo:

A rei não obedece, nem consente Que não for mais que todos excellente.

Quando na est. 28 do Gant. IX, ao ver que a auc- toridade regia se-robustecia e preponderava sobre a popular, exclama com manifesto sentimento:

Leis em favor do rei se-estabelecera : As em favor do povo perecem.

E, finalmente, quando na est. 93 do mesmo canto, tractando do que valem as honras e o ouro, diz:

Porque essas honras vãas, esse ouro puro Verdadeiro valor não dam á gente: Melhor é merecel-os, sem os-ter, Que possuilos, sem os merecer.

Tinha, sobre tudo, Luiz de Camões uma nobre alti-

CAMÕKS 89

vez, como claramente patentêa no Cant. VII, des de a est. 87 até o íin: em tempo que opprimido da desgra- ça, desvalido, contempto, calumniado, e parecendo que houvesse de succumbir a tammanho infortúnio, se-alça contra os seos perseguidores com un sentimento de di- gnidade próprio do varão forte que se-sente conculcado.

Este sentimento foi 'n elle tam indefectivel e chara- cteristico, como sabemos o-ter sido em Gesar, a quem não abandonou na hora suprema, quando, ferido no Se- nado pelos punhaes de Gassio e Bruto, instinctivamen- te compôs a toga de modoque, caindo, não ficasse em postura indecorosa.

Quanto a idéas de religião, parece-nos haver Luiz de Gamões participado do scepticismo que então era vul- gar na maior parte dos homêes doctos da Itaha; não que a incredulidade chegasse 'n elle a tocar as raias do atheismo ; porquanto possuia atilado ingenho para que podesse cair em semelhante absurdo. Sem a idéa de un Ente Supremo nada se-expHca, tanto na ordem phy- sica, como na moral. 'N esta a justiça não tem razão de ser: a clemência, a charidade, o perdão das injurias podem ter causa na crença de un Deos omnipotente e justo e no temor de uma responsabilidade futura: ti- rado este temor, apparece un vácuo medonho, e fica sendo un frio e calculado egoismo a origem de todas as nossas acções. Mas é facto que nutria o grande épico fortissimas duvidas sobre tudo o mais; como bem se- deprehende do seguinte soneto:

90 CAMÕES E OS lusíadas

Verdade, amor, razão, merecimento, Qualquer alma farão segura e forte; Porém fortuna, caso, tempo e sorte Teem do confuso mundo o regimento.

Effeitos mil revolve o pensamento, E não sabe a que causa se-reporte; Mas sabe que o que é mais que vida e morte Não se-alcança de humano intendimento.

Doctos varões darão razões subidas ; Mas sam experiências mais provadas E, por isso, é melhor ter muito visto.

Coisas ha hi que passam sem ser cridas, E coisas cridas ha, sem ser passadas; Mas o melhor de tudo é crer em Christo.

Bem se-deixa ver que este ultimo verso nada resolve sobre as duvidas expendidas; e que a clausula crer em Christo não é mais que o bolo soporifero da Sibylla, posto alli para adormentar o cão Gerbero da censura inquisitorial, que deixou passar o soneto sem fazer re- paro.

A epistola a Dom António de Noronha, sobre os des- concertos do mundo, comprova o que deixámos dicto; porquanto é concebida segundo uma ordem de idéas philosophicas de que não incontrâmos exemplo em ne- nhun dos nossos auctores daquella épocha.

Por ultimo, vemos que era Luiz de Gamões inimicis- simo dos jesuitas, cujas tramas e hypocrisias observara des d'o tempo que frequentara a Universidade de Coim- bra, onde, por certo, presenciou a farça indigna que se

CAMÕKS 9i

não pejou de representar o padre Manuel Godinho, que no anno de 1542 alli foi mandado em habito de estu- dante pelo façanhudo Simão Rodrigues *, para, sob tal disfarce, enganar os alumnos da mesma Universidade, procurando vencer-lhes a opposição e persuadil-os das virtudes dos referidos padres, cujos intentos eram de apoderar-se dos estudos superiores daquelle estabele- cimento scientifico e de attrahir para a companhia os mancebos mais distinctos que o-frequentavam; o que logo conseguiram, raptando, entre outros, a Dom Gon- çalo da Silveira, irmão do conde de Sortelha, e a Dom Rodrigo de Menezes, filho de Dom Henrique de Mene- zes, regedor da Casa do Givel, com inexplicável desgos- to de suas illustres familias ^.

Não pode duvidar-se de que é alludindo á ambição e ao espirito de predominio daquelles obnoxios padres que o poeta na est. 28 do Gant. IX dos Lusiadas es- creve com a liberdade que podia ter:

que aquelles, que devem á pobreza Amor divino, e ao povo ctiaridade, Amam somente mandos e riqueza V i^iniulando justiça e integridade.

E na est. 119 do Gant. X, com referencia a hypo- crisia com que os dictos padres se-intitulavam apósto- los, diz:

* Balth. Telles, Chron. da Comp. de Jesu na Prov. de Port. L. I, C. 28, p. 89, col. 1.»

* Id. iJDid. C.22p. 112eseg.

92 CAMÕES E OS lusíadas

E vós outros que os nomes usurpaes Dos mandados de Deos, como Thomé, Dizei, se sois mandados, como estaes Sem irdes a pregar a sancta fé?

Tal era Luiz de Gamões, quando, terminado o cur- riculo dos estudos da Universidade, pelos annos de 1544, ou 1545, se-transportou a Lisboa.

E obvio que, com un character independente, com un grande espirito de rectidão, com a consciência da su- perioridade do seo talento, e com o ódio que professa- va aos jesuitas, pouco acceito podia ser a uma corte es- túpida, fanática, profundamente corrompida e comple- tamente dominada pelos padres da companhia.

Foi, comtudo, benevolamente recebido e até mesmo festejado nas casas mais distinctas de Lisboa nos pri- meiros tempos que residiu 'n esta cidade, onde parece que de preferencia frequentava as das pessoas notoria- mente adversas aos jesuitas; como eram as do duque de Bragança, de seo irmão Dom Constantino de Bra- gança, do conde de Sortelha, etc.

Pretendem alguns biographos. e, entre elles, o senr.Vis- conde de Juromenha, que Luiz de Gamões teve ingresso no paço e que assistiu aos saráos esplendidos e ás fes- tas que então abrilhantavam a corte de Portugal. E tudo uma pura ficção que incontra nada menos que a verdade histórica. As representações dramáticas e os sa- ráos tinham, como fizemos ver, acabado com o es- tabelecimento da inquisição em 1536, em que o poeta contava apenas doze annos de edade. Sendo ainda

CAMÕES 93

uma creança, não sabemos com que pretexto, nem para que fm, podesse ser appresentado no paço. Un anno depois (em 1537), completando dezeseis de edade a in- fante Domna Maria, filha de el-rei Dom Manuel, que por sua illustração era a alma do paço, como fosse avul- tado o dote que Ihe-deixara seo pae, (diz o chronista d'esta illustre senhora) e podesse viver separada do pa- lácio de elrei seo irmão, foi-lhe posta casa própria^. Para a companhia da infante sairam do paço os fidal- gos mais distinctos por seo saber, bem como as senho- ras de maior nomeada, entre as quaes se-contavam as duas irmãas Sigéas, Luiza e Angela, ambas celebres por sua vasta erudição ^ ; vindo, portanto, a habitação real a ficar desprovida e exhausta de tudo quanto 'n ella havia dotado de ingenho e de capacidade.

É fora de duvida que Luiz de Gamões podia ser appresentado no paço quando, terminados os estudos da Universidade, regressou a Lisboa. Mas tendo en- tão o poeta pelo menos 20, ou 21 annos de edade, o que corresponde á era de 1544, ou 1545, em que o mesmo paço estava atulhado de frades e jesuitas, que iria elle alli fazer a não ser practicar os exercicios espirituaés de sancto Ignacio de Loyola? Alli, por certo, ninguém quereria ouvir falar de poesia, nem de coisa alguma espirituosa, ou que indicasse, sequer, senso com- mun.

rachcco, Vid. da Inf. D. Maria. L. II, G. 3.» foi. 91. - Id. ibid. onde vcin a extensa relação dos fidalgos e das damas que saíram do paço c passaram a coaipôr a casa da infante.

94 CAMÕES E OS LUSUÍIAS

A esta épocha se-referem os amoi'es que alguns pre- tendem que leve Camões com uma dama do paço. O primeiro que d elles fala é Pedro de Mariz no prologo que junclou á edição dos Lusíadas de 1613, onde ape- nas nos-informa de que alguns diziam que o poeta se- vira homiziado, ou desterrado por uns amores no paço da rainha.

Sobre esta asserção inteiramente vaga, e que tem por fundamento o dicto de alguns e o haver sido repro- duzida por quasi todos os biographos subsequentes, cujo teslimunho, por ser referido ao de Mariz, não tem mais validade que o d'elle, architectou o senr. Visconde de Juromenha un romance em que pretendeu ter descober- to quem foi a dama do paço, objecto d'aquelles preconi- zados amores.

Gomo Gamões celebrasse em seos versos certa senho- ra com o pseudonymo de Nathercia, anagramma de Ca-

CAMÕES 95

therina, procurou o senr. Visconde conhecer quem se- ria a dama deste nome, que, por aquellc tempo, exis- tisse no paço, para in continenti a dar como a amante e a causadora de todos os infortúnios do poeta. Depa- rou-se-lhe, porém, uma diíficuldade, que foi incontrar duas damas com o mesmo nome ; sendo uma a filha de Álvaro de Souza, e outra a de Dom António de Lima. Por esta ultima se-decidiu o citado biographo, e a ra- zão que o-convenceu nada tem de concludente; porquan- to se-funda n"un argumento negativo; o qual, ainda as- sim, não passa de suppositicio e inverosímil, como logo veremos.

Tractando de descriminar qual daquellas duas senho- ras fosse a amante do poeta, diz o senr. Visconde :

«Era uma d'ellas Domna Gatherina de Athaide, fi- lha de Álvaro de Souza, terceiro filho de Diogo de Sou- za Castellano de Arronches . . . que foi dama da rainha Domna Gatherina, é morreu moça pouco tempo depois de haver casado com Rui Pereira de Miranda Borges, senhor de Garvalhaes, e jaz sepultada na capella-mór do extincto convento de san' Domingos de Aveiro, onde tem un epitaphio pelo qual consta que falleceu aos 28 de septembro de 1551. Em uns aponctamentos ma- nuscriptos contemporâneos, datados do anno de 1573, que existiam entre os papeis d'este convento, e escrip- tos por un frade por nome fr. Johão do Rosário, havido em grande credito, conforme a tradição do convento, e que se-diz ter sido confessor d'esta senhora nos últi- mos tempos em que viveu, se-lêem cslas palavras:

« E todalas vezes que no poeta desterrado por ssa

96 CAMÕES K OP lusíadas

rasão lhe falava, sempre em reposta havia que assim não era, e que fora aquella alma grande que para em- prezas grandes e a regiões tam apartadas o-levara. »

D'aqui inferiu indirectamente, e por exclusão, o senr. Visconde que a amante de Camões foi a filha de Dom António de Lima.

Os taes aponctamentos não resistem a uma critica severa: quer sejam vistos á luz da sciencia litteraria, quer da histórica.

Pelo lado litterario temos â observar que, sem em- bargo de ser o sobredicto frade havido em grande cre- dito (circumstancia do estilo e que nada adeanta), tor- na-se-nos altamente suspeito o documento de que se- tracta, pela linguagem 'n elle empregada, a qual não era, porcerto, a de 1573, e muito menos se a-quisermos re- ferir a épocha posterior. A clausula por ssa razão está evidentemente provando que o tal documento foi feito á unha por quem, pretendendo antiquar a linguagem, lhe carregou a mão de mais. Pelo lado histórico diremos que, tractando-se de haver Camões passado a militar em Ceuta, onde regularmente iam fazer serviço os nos- sos cavalleiros, mal podia chamar-se a isso empresa grande, sendo, aliás, inadmissivel que uma dama illus- tre por seos conhecimentos, como sabemos que o-eram todas as do paço da rainha Domna Catherina, caisse na censura de dizer que aquella praça, situada no estreito de Gibraltar, e pouco distante das costas de Portugal, ficava em regiões apartadas! E se houvermos de refe- rir as dietas expressões á partida do poeta para a índia, caso em que foram menos impróprias, então sobresáe o

CAMÕES 97

absurdo de poder uma senhora, que falleceu em i551, alludir a un facto que se- verificou em 1553, dois annos depois de morta e sepultada I

Segundo o que deixámos exposto, vê-se que tudo o que pode allegar-se para attestar os amores de Camões com uma dama da rainha Domna Gatherina, consiste no dicto inane de Pedro de Mariz, na coincidência fortuita de un nome, e, por ultimo, 'n un documento apocrypho, que, quando mesmo fosse auctentico e genuino, nada abso- lutamente esclarecera. Se, além d'isto, notarmos que o poeta nunqua teve ingresso no paço, onde mesmo de- via ser mal visto, decresce a probabiUdade daquelles pretendidos amores e somos forçados a accreditar que tudo o que a tal respeito se-tem escripto não passa de un mytho poético, ou, quando muito, de un rumor des- tituído de fundamento.

98 CA.MÒr:s e os i.irpiAnAS

VI

É tal, porém, o poder do maravilhoso., que não se-tem accreditado nos amores de Camões com uma da- ma da rainha Domna Catherina, mas até chegou a af- firmar-se que foi na egreja, assistindo á celebração da missa, que elle a-viu e se-apaixonou por ella. Deu logar a esta asserção o soneto que começa : O culto di- vinal se-celebrava, etc. ; mas quem nos-assegura que a dama por quem elle 'n essa occasião se-apaixonou foi realmente aquella Domna Catherina de Athaide, dama da rainha? Não é mesmo provável que a idéa de ser durante a celebração do officio divino que elle viu pela primeira vez a sua dama, seja uma das muitas imita- ções que então se-faziam dos três grandes restaurado- res das lettras antigas, Petrarca, Dante e Boccaccio, os quaes (coisa mirífica!) todos se-deixaram captivar de amor na egreja?... Petrarca apaixonou-se por Laura na egreja, uma sexta feira sancta; Dante por Beatriz,

CAMÕES 93

no mesmo logar onde se-entoavam os louvores divinos ; e Boccaccio refere que Pamphilio se-enamorou de Fiam- metta n un templo, durante a missa ; o que é o mesmo que dizer que elle próprio se-apaixonou por uma filha de Roberto, rei de Nápoles, na indicada occasião. Como a moda pegasse, o bolonhês, mesire Onesto^ to- mou amores na egi^eja uma quinta feira de endoenças, e Firenzoula dia de todos os sanctos; Guilherme de Ne- vers captiva-se na egreja pela filha do conde de Ne- mours; Ausias March, de Valência, por Theresa de Momboy, sexta feira de paixão, etc. etc.

Quer-nos parecer que sendo então moda tomar amo- res na egreja, como quem toma agua benta, Camões, por ser da moda, seguisse poeticamente aquelle estilo.

Não impugnaremos, todavia, que amou Luiz de Ga- mões uma dama que havia nome Domna Gatherina de Athaide. A poesia acrostica que transcreve o senr. Visconde de Juromenha, onde se-lê o nome daquella senhora, e cujo estilo reconhecemos ser o do poeta, ne- nhuma duvida nos-permilte atai respeito. Não é, po- rém, 'n isto que bate o pondo; mas sobre a identidade d'esta senhora e a de outra do mesmo nome, dama da rainha Domna Gatherina; identidade que de nenhun modo vemos que se-próve; o que deixa, portanto, a questão no mesmo estado.

100 CAMÕES E OS lusíadas

VII

É também facto incontroverso que contrahiu Luiz de Gamões amorosas relações com uma senhora distin- cla, nos primeiros tempos que residiu na corte. Mas esta senhora, que os biographos pretendem ter sido Domna Gatherina de Athaide, qualquer que ella fosse, nada tem de commun com uma dama do paço da rai- nha.— Se algun fio de Ariadna pode conduzir-nos em tam intrinsicado labyrintho, é forçoso que seja o que sobre tal assumpto nos-subministra a egloga III.

O que, áluz tenuissima que alli se-diífunde, pode des- cobrir-se, é que a amante do poeta ou era noviça em algun convento de freiras, ou, pelo menos, pupila ou senhora secular 'n elle reclusa, que, por sua vocação, se-dedicava ao culto religioso. Tal é o que se-depre- hende do seguinte terceto :

Vós me-tirastes de meo peito exemplo O pensamento honesto e repousado, dedicado ao choro de Diana.

CAMÕES 101

Evidentemente a metaphora não tem applicação ao paço da rainha, onde sabemos que tomavam estado muitas senhoras solteiras que alli serviam, ás quaes fo- ra mal cabido o epitheto de choro de Diana, que o mes- mo é que consagrado á virgindade.

Note-se mais que a dama cujos amores o poeta ce- lebrou 'n esta egloga, que é continuação da II, tem o pseudonymo de Belisa, anagramma de Isabel; o que destrue a supposição de ser esta a tam decantada Dom- na Catherina de Athaide.

inda aqui uma coisa curiosa, que é dizer o poeta que foi ella que o-provocara ; e não parece que o-fizes- se pelo modo mais honesto e commedido. Vejamos como elle narra o gracioso lance:

Co'a maçãa da discórdia me-tiravas, Que a Vénus, que a-ganhou por formosura, Tu, como mais formosa, Ih' a-aganhavas.

E escondendo-te logo na espessura. Tas fugindo como vergonhosa Da namorada e doce travessura.

Não era esta a maçãa d'ouro formosa, Com que, incoberta assim de astúcia tanta, Cydippe se-ingannou de cubiçosa:

Nem a que o curso teve de Athalanta ; Mas era aquella com que Galatéa O pastor captivou, como elle canta.

A seducção amorosa que 'n estes formosíssimos ver-

102 CAMÕES E OS LUSÍADAS

SOS se- descreve, é, como vemos, comparada á que ao seo pastor fez a provocadora Galatéa, moça un tanto desinvolta, ou antes lasciva, como lhe Virgílio chama :

Maio me Galatea petit, lasciva puella, Et fugit ad salices et se cupit ante videri.

Não admira, portanto, que o joven poeta tomasse al- gumas liberdades com a sua amante; liberdades de que ella se-queixa; porque asinha deram de travez com a ventura que ambos fruiam.

Estas relações que nem sempre podem occultar-se a olhos investigadores e, muitas vezes, invejosos, vieram pôr macula na reputação d'aquella senhora e tornai -a mal vista das suas companheiras. E o que ella aponcta como causa da subsequente catastrophe:

Vês as Nymphas do Tejo, que mudando Me-vam pouco e pouco o claro gesto 'N outra forma mais dura traspassando?

O resuhado foi que a pobre donzella, segundo se- acha poeticamente descripto, se-converteu em arvore ; o que quer dizer que mudou de forma; porque, tendo si- do constrangida a tomar o habito de freira, veiu real- mente a transformar-se.

Quanto a haver a amante de Gamões professado em un convento de freiras, não pode suscitar-se a menor duvida, em presença do manuscripto citado por Faria e Souza; no qual, em vez da metamorphose uhimamente

CAMÕBS 103

adoptada para tornar o caso mais poético, se-lia que a desditosa dama tomara a resolução extrema de consagrar- se aos altares, perfugio de tantas que têem visto des- vanecer-se as mais doces esperanças de un coração de mulher. Alli diz ella:

É verdade ; mas tenho perdida Essa affeição, que em ti mal impreguei ; E n outra mais honesta convertida.

Amor casto, divino amor tomei; Amor a cujo amor está subjeito Quanto vive : por este te-deixei.

Para mais esclarecer o poncto, ajuncta Faria e Souza: En esto vénia a dezir claramente que avia dexado amo- res humanos y elegido el estado de monja *. Não era necessário o commento.

Agora faremos ver a contradicção em que caem quasi todos os biographos de Gamões, nomeadamente Faria e Souza e o senr. visconde de Juromenha; os quaes admit- tindo que os amores que 'n esta egloga se-tractam sam os que o poeta teve com a dama preferida do seo cora- ção, pretendem que a mesma, que elle terminantemente diz que tomou o habito de freira, seja a que foi dama da rainha Domna Gatherina, a qual sabemos que mor- reu inda moça com exercício no paçol

^ Comment. a las Egiogas, T. V, p. 247.

104 CAMÕES E OS lusíadas

VIII

Ainda que Luiz de Gamões em todo tempo que re- sidiu na corte tivesse o pensamento occupado com cui- dados amorosos, como era próprio de seos annos juve- nis, nem, porisso, descurava as lettras e deixava de cultivar a poesia, na qual se-lhe-deparavam então vários competidores que, havendo-se applicado aos estudos da renascença, aspiravam á porfia a merecer as honras do Parnasso.

Em succincta digressão os faremos particularmente conhecer, emittindo sobre elles juizo imparcial e breve.

Até os principies do século XVI reinara em Portugal a eschola dos trovadores, dos quaes foi o ultimo Ber- nardin Ribeiro. Por este tempo começou Francisco de de Miranda a imitar a poesia clássica e a culti- var o metro hendecassyllabo. Gomo, porém, as Mu- sas não Ihe-houvessem bafejado o berço, soccorreu-se ao estudo -e aos auxilies da arte, com a qual infeliz-

CAMÕES 105

mente não soube haver-se; porque, sem embargo do muito que riscou e emendou, como elle próprio confes- sa S nada nos-deixou que admirar, Miranda foi antes un philosopho moralista que un poeta ; o seo estilo é sobremaneira sentencioso; mas parece que não fazia idéa clara das coisas. Tudo o que diz é sempre de un modo enleiado, abstruso, e ao mesmo tempo tam con- ciso que não poucas vezes se-torna enigmático ; não ad- vertiu que da nimia concisão provêm o obscurus fio. Pode dizer-se que 'n elle teve começo a eschola dos poe- tas nebulosos.

As duas eglogas, que compôs em português, sam prova do que deixamos dicto. Na primeira representa un dialogo sem nexo entre vários pastores, no meio do qual un pastor canta o roubo de Prosérpina, e uma pastora toma por assumpto de uma cantiga a fabula de Psyche; mas tudo por tal modo enredado e tam confu- samente descripto, que o leitor que não tiver conheci- mento d'aquelles dois mythos, por forma nenhuma fará idéa do que alli se tracta. Na segunda põe na bocca de um pastor a satyra da Chuva do trovador Pedro Cardinal, que não relata de uma maneira obscura, senão que ainda altera sem razão e sem gosto.

Nas chartas, que escreveu em redondilhas maiores, e a que alguns deram o nome de satyras, pela critica que 'n ellas faz dos costumes do seo tempo, foi menos infeliz o nosso de Miranda ; e é, por ventura, d'estas chartas, onde expendeu alguns pensamentos de moral

No soneto III.

^G6 CAMÕES E OS lusíadas

philosophica, que Ihe-proveiu a denominação de Séneca português. Todavia, devemos confessar que nenhuma profundeza achamos 'n aquelles pensamentos; e não nos-parece que se-dê analogia alguma entre elle e o antigo philosopho estóico, a não ser no ton declamató- rio que emprega e com que expõe as suas idéas, quasi sempre sem connexão e sem ordem.

Cultores da poesia clássica, a exemplo de de Mi- randa, a quem tomaram por mestre, foram simultanea- mente António Ferreira, Pedro de Andrade Caminha e Diogo Bernardes : nenhun d'elles, porém, dotado de gé- nio, nem de inspiração poética.

Ferreira, conhecedor dos poetas da antiguidade clás- sica, estudou e seguiu particularmente a Horácio ; mas não comprehendeu o estilo da ode, e, por outra parte, destituído de ingenho flórido, e máo apreciador da har- monia métrica, debalde tentaria imitar a delicadeza da expressão e as graças nativas de un poeta tam espirituo- so e elegante.

Nas charlas que escreveu, mostra-se judicioso, e se-approxima un tanto mais do seo modelo ; mas nem a philosophia de Ferreira, nem a theologia escholastica que professava, e que podia embotar-lhe o espirito, Ihe-permittia que rastejasse sequer o dizer picante e ao mesmo tempo gracioso do vate de Venusia.

As eglogas sam, depois das chartas, a melhor pro- ducção de Ferreira, e, entre ellas, nos-parece sobresair a que tem o titulo de Magica, imitada da VIII de Vir- gílio.

Compôs também Ferreira em verso hendecassyllabo

107

a historia de Sancta Comba; mas n esta historia, insi- pidamente metrificada, reproduz o monstro de Horácio, pintando o mouro amante da donzella christãa,

Gomo usso velloso,

E uma orelha d 'asno, outra de cão.

A pouca critica de Ferreira não Ihe-deixou ver que a natureza não cria monstros de tal espécie, e que, quan- do algun podesse haver como o que descreve, não pre- cisava de ser muito casta, nem de ter muita virtude a sua heroina para que resistisse ás pretensões de un se- ductor de tam hedionda e repellente catadura.

Caminha, inferior a Ferreira em saber e invenção, não se-lhe-avantajava na arte de metrificar. Carecen- do do don sagrado das Musas, e sendo-lhe vedado o in- gresso no Parnasso, quis leval-o á escala vista. Para o-conseguir compôs differentes poesias; mas todos os seos versos sam por tal modo escabrosos e dissonantes, que parece os fazia invito e como em expiação de algun grande peccado que tivesse commettido ; como aquelle poeta do qual diz Horácio que compunha versos em pu- nição de haver urinado nas cinzas paternas, o que en- tre os romanos era horrendíssimo sacrilégio :

Ulrum

Mioxerit in pátrios cineres . . . '

Podemos dizer que eglogas, epistolas, odes e elegias,

> DeArtePoet. V. 469— 470.

408 CAMÕES £ OS lusíadas

tudo escreveu no mesmo estilo; sendo muitas vezes a phrase trivial e rasteira, e não contendo mais que pen- samentos de insipida vulgaridade.

Quanto a Bernardes, metrificava melhor que nenhun dos três; e nota-se-lhe mesmo uma certa amenidade que se não encontra, tanto em Miranda, como em Ferreira e Caminha; mas, a final, faltava-lhe invenção e origina- lidade.

Os quatro poetas, de que tractâmos, eram todos poe- tas de erudição; e, inda assim, devemos dizer que a eru- dição abunda 'n elles bem pouco. Diremos mais que nenhun nos-fala ao coração, nem nos-eleva o espirito. Em seo estilo, quasi sempre uniforme, não ha o géne- ro narrativo, nem o descriptivo, e muito menos o imi- tativo; não se-lhe-acha, finalmente, primor algun de elocução, ou coisa que denote, sequer, o instincto d'ella.

CAMÕES 109

IX

Se observarmos o grau de prosperidade a que, des d'a renascença, haviam ascendido as sciencias em Por- tugal, não podemos dizer que a poesia tivesse compa- rativamente alcançado eguaes progressos.

E, todavia, a pezar dos defeitos que acabamos de mencionar nos referidos poetas, era quanto os tempos podiam dar; porque sendo a poesia uma das principaes artes da imaginação, não Ihes-era permittido, a não ser por especial privilegio, tomar un vôo arrojado e alte- roso.

O pensamento estava então subjugado pelo despotis- mo feroz da inquisição. As livres aspirações periclita- vam ao mais leve indicio com que pretendessem mani- festar-se. Os frades, que, por sua ignorância crassis- sima, em toda a parte se-haviam mostrado adversos ás luzes que expandia a renascença, recrudesciam em Por- tugal na obra da intolerância, coadjuvados por estrénuos

110 CAMÕIJS K OS LUSÍADAS

auxiliares, quaes eram os jesuitas, empenhados em pro- pagar o obscurantismo, eque, nutrindo entranhavel ódio ás lettras antigas, era, sobretudo, contra as maravilhas da arte e contra as engenhosas ficções da mythologia greco-romana que se-lhes-exacerbava o fanatismo estú- pido.— O retrocesso era espantoso e chegou a poncto que o jesuita Gaspar Pinto Corrêa, commentando a de- licada ode de Horácio em que o poeta invoca Vénus e Ihe-roga que, deixando a amada Gypre, se-transfira ao templo que Ihe-erigiu Glycera, seguida de Cupido, das Graças, das Nymphas e de Mercúrio, não pode conter- se e prorompe possuído de sanha estulta e feroz: Com bons sanctinhos anda accompanhada a senhora Vénus! Ella e elles sam bons tições do Inferno * /

se-vê que o bestunto do jesuita Ihe-fazia julgar que seria muito mais próprio e conveniente que Vénus se-fizesse accompanhar com bentinhos, verónicas e agnus-dei 1

Gomquanto os mencionados poetas, contemporâneos de Camões, carecessem de inspiração e de génio, nem porisso, deixavam de blandiciar-se com incessantes lou- vaminhas que ás invejas se-tributavam. Tinham com- posto uma sociedade de louvor mutuo, como a que Ho- rácio nos-conta que houve em Roma^, e como a que em nossos tempos vimos formar-se de litteratos que re- ciprocamente se-admiravam, prodigalizando-se pela im- prensa espennejados encómios. Mas daquella socie-

^ Commentarii in Libros Quinti Horalii Fiarei Srribcbat Doctur Gaspar Pinto Corrêa, Coimbra, 1655. 2 Epist. II do L. II.

CAMÕi;S 1 1 1

dade de poetas era excluído Luiz de Gamões e nem uma palavra se-proferiu nunqua em seo abono; como se un tam prodigioso engenho podesse ser d'elles ignorado ; o que, certo não é crivei; porquanto Gamões se-havia então tornado celebre em Goimbra por suas admirá- veis poesias, harto superiores ás de seos rivaes. Miranda tinha-se por este tempo retirado ao seo latifúndio da Ta- pada, cerca de Ponte de Lima, desgostoso das intrigas palacianas; mas Ferreira, que foi desembargador na Relação de Lisboa, Gaminha, camareiro do infante Dom Duarte, e Diogo Bernardes, que, da Ponte da Barca, se- passara á corte, deviam ter pessoalmente conhecido Luiz de Gamões.

Não pode, pois, tam formal silencio deixar de repu- tar-se premeditado e de attribuir-se á emulação que a todos elles causava a superioridade do mancebo que concebera o projecto arrojado de compor uma epopeia da qual havia escripto os primeiros cantos. Gami- nha 'n uma serie de epigrammas, alguns dos quaes sam visivelmente feitos contra Gamões, manifesta a von- tade que Ihe-tinha ; e uma critica consequente nos-leva a accreditar que eguaes sentimentos influiam em seos amigos Íntimos, Ferreira, Miranda e Bernardes. Deve- mos, mesmo, suppôr que o fanatismo religioso de que todos elles participavam, não era extranho á inimizade que os-separava de Gamões ; o qual militava no partido anti-jesuitico: partido que, logo á chegada dos sectários de Ignacio de Loiola a Portugal, se-formou em Lisboa, Goimbra e Porto; chegando em Lisboa a propagar-se até as ultimas camadas do povo, que olhava com máos

112 CAMÕES E OS lusíadas

olhos aquelles pretendidos apóstolos; o que fez com que os mesmos jesuítas tomassem o expediente de transfor- mar o padre Affonso Barreto em mariola, ou moço da ceirinha, como Ihe-chama o seo chronista Balthazar Telles, para que, mettido entre a plebe e os moços de fretes, andasse captando a benevolência das regateiras e da gentalha da ribeira de Lisboa; velhacada a que o dicto chronista o nome de saneia traça, e que nos- faz ver que não havia meios ante os quaes os jesuítas recuassem para conseguir os seos fins.

Não sabemos se Gamões se-vingava do pouco appre- ço em que era tido pelos seos émulos com disparar-lhes acerados epigrammas, ou somente com o desprezo. Mas a vingança que effectivamente exercitava, e que era digna d'elle, consistia em compor aquellas formosas rhythmas em que tanto se-lhes avantajava e que de- viam fazel-os morder-se de inveja. 'N ellas junctava a harmonia ao conceito e accommodava o verso a todos os estilos; o que não alcançava a imperícia inflada dos seos rivaes. Un exemplo comprovará esta verda- de, e será o seguinte no estilo descriptivo :

A noite escura dava Repouso aos cansados Animaes esquecidos da verdura: O valle triste estava Cuns ramos corregados, Q'iuda a noite faziam mais escura: Mostrava a espessura Un temeroso espanto: As roucas rãas soavam

GAMÕES 115

'N un charco d'agua negra e ajudavam Do pássaro nocturno o Iriste canto: O Tejo com son grave Corria mais medonho que suave.

Como toda a tristeza No silencio consiste, Parecia que o valle estava mudo: B com esta graveza Estava tudo triste, Porém o triste Almeno mais que tudo. *

Versos assim não os faziam os contemptores de Ga- mões, e note-se que n este trecho não ha o descri- ptivo, mas também o imitativo; o que elles, por certo, não eram capazes de comprehender e muito menos de executar.

» Egloga II.

114 GAVIÕES £ OS lusíadas

Mas as rhythmas não passavam de ser uma aprazí- vel distracção, ou antes o lenitivo com que alquando mitigava suas saudosas magoas Luiz de Gamões. Pa- ra mais valioso emprego o-adextrara a musa altiloqua; e un cuidado assiduo e grande o-desvelava então, qual era o de compor os Lusíadas, poema cuja idéa Ihe-sug- gerira o mais puro amor da pátria.

A empresa confiada a Vasco da Gama, empresa não grandiosa em si, por ser un arrojado commettimento em que o saber e o exforço humano se-atreveram a contrastar a fúria dos elementos, senão também por seos pasmosos resultados, quaes foram: o fundarem os por- tugueses un império opulentíssimo na Ásia, fazendo tri- butários todos os reis e potentados do Oriente: o avas- salarem o sultão do Egypto, vedando-lhe a navegação e o commercio daquelles mares ; e, por ultimo, o faze- rem progredir as sciencias e as artes, abrindo novos ho-

115

risontes aos conhecimentos humanos; tal empresa, dize- mos, não podia deixar de influir no espirito enthusias- tico de Luiz de Gamões, e foi o assumpto que se-pro- pôs celebrar.

Gomquanto a natureza o-houvesse dotado de un gé- nio extraordinário e próprio para compor uma epopeia, fazia-se-lhe então indespensavel vencer uma grande dif- ficuldade, qual era a de criar uma linguagem poética que não tinhamos; mas entre as quaUdades perinsi- gnes com que aquelle grande ingenho sobresaiu a todos os escriptores seos contemporâneos, não foi, por certo, a somenos a de conhecer a fundo a lingua pátria: qua- lidade que o seo máximo detractor, o protervo ex-frade Joseph Agostinho de Macedo se-não altreveu a negar- Ihe *. e que Ihe-permittiu o aperfeiçoar-lhe a elocução, ao passoque a-enriqueceu com un grande numero de vo- cábulos novos. 'N aquelle século eram ainda os costu- mes destituídos de m-banidade e dehcadeza, do que for- çosamente devia resentir-se a mesma lingua ; mas o bon gosto e o atticismo do poeta corrigiu 'n esta parte o de- feito, pollindo e dando nobreza á dicção.

Uma circumstancia concorreu, sem duvida, para que elle podesse aprimorar a hnguagem poética; qual foi a que lhe proporcionou a fortuna adversa, compellindo-o a ver desvairadas terras; pois ás viagees que fez no Oriente, ás extensas navegações com que percorreu os

' Admiremos em Camões (diz elle) os agigantados passos que fez dar á lingua portuguesa para o seo estado de perfeição ; pois, sem controvér- sia, se-avantaja a todos os escriptores do seo século. Cens. dos Lusiad. T. II, p. 198 e seg.

116 CAMÕES E OS lusíadas

mares da índia e China, e aos combates em que entrou, deveu Luiz de Gamões muitas das bellezas de estilo e a propriedade das magnificas descripções do seo poema; do mesmo modo que Villehardoin e Joinville, segundo affirma Ghateaubriand, deveram os primores do seo es- tilo aos successos de uma vida aventurosa *•

' Villehardoin, Joinville, empruntent les felicites de ieur style des aven- tures de Ieur carrière. Mem. d'Outre-tombe, Pref.

CAMÕES í 17

XI

Sendo, como fizemos ver, desliluidos de funda- mento os amores de Gamões com uma dama do paço da rainha, cáe de per si a idéa do desterro que, segun- do dizem, experimentou por tal motivo. Não devemos, todavia, excluir a possibilidade de Ihe-haver sido im- posta aquella pena por causa da outra dama a que al- ludimos ; antes é de crer que as relações amorosas que com ella contrahiu, promovessem algun grande escân- dalo; o qual seguramente devia dar-se, se, como con- jecturámos, era noviça, ou recolhida, em algun conven- to ; e que, por tal motivo, o-fizessem desterrar da corte. Confirma, quanto a nós, a supposição de haver dado motivo a un escândalo publico o dizer o poeta, na pri- meira charta que da índia escreveu a un amigo, que, sem peccado que o-obrigasse a três dias de purgatório, passou três mil de más línguas.

Fazem ainda accreditar o mencionado desterro os

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versos da elegia III, em que elle se-compara a Ovidio exilado no Ponto Euxino.

Podemos, pois, ter como certo, que foi residindo parte do tempo em Lisboa, e parte desterrado 'n algun sitio próximo do Tejo, que, com bon fundamento, se-julga ser Punhete, que, occupado em compor os seos Lusia- das, passou Gamões os annos que decorreram até o de 1550, em que se-allistou para ir servir na índia; des- tino que não seguiu, preferindo, por ventura, exercitar as armas em Ceuta, praça fronteira de Africa e excel- lente eschola de cavallaria militar n'aquella épocha.

Pretende o senr. Visconde de Juromenha na vida que escreveu de Gamões, que o tempo que elle serviu em Africa se-deve computar entre os annos de 1546 e 1549; e accrescenta que: «sabendo Dom Johão III em 1549 haver fallecido Dom Johão de Gastro, nomeou para governar a índia a Dom Affonso de Noronha, que se-achava em Geuta; o qual se-fez logo prestes para o reino, e que com elle veiu Luiz de Gamões com tenção de se-alistar para a índia. » Sam tudo asserções va- gas de que o senr. Visconde não exhibe prova alguma, e que se-oppõem ao que vamos referir.

A epistola sobre os desconcertos do mundo, que Luiz de Gamões endereçou a D. António de Noronha, foi com certeza escripta em Geuta, como o demonstra a oitava XXIII da mesma epistola. Tendo Dom António nasci- do em 1536,* vê-se que entre os annos de 1546 a 1549 não podia ter mais de 10 a 13 annos. Gomo é

Esta dala é comprovada pela Hist. Geneal. da Casa Real, T. V. p. 259.

CAMÕES 119

pois, crivei que a um menino de tam tenra edade diri- gisse Camões uma epistola referta de erudição e de pen- samentos philosophicos, que elle não estava no caso de comprehender e muito menos de apreciar? E, portanto, fora de duvida que não passou a servir em Africa antes do anno de 1550, e que foi, seguramente, pelos prin- cipios de 1552 que regressou a Portugal.

Pretende mais o citado biographo que o ter Camões militado em uma das nossas fortalezas de Africa, foi por imposição de un segundo desterro; fundando-se nos dois versos em que o poeta diz que o seo degredo não será terminado,

Senão vindo aquelle dia,

Que ha de ser 6n de dois annos.

Mas quem nos-assegura que a palavra degredo não haja sido empregada em sentido metaphorico, e que o dicto prazo, em vez de ser o de un degi-edo, não fosse antes o do tempo de serviço a que eram adstrictos os nossos cavalleiros nas partes d' além?

O facto de ter Camões passado a servir em Africa, logo depois de alistado para a índia, destrue totalmente a idéa de un desterro. Que maior podia ser o de Ceuta que o da índia?!...

'N aquella praça, pois, gloriosa conquisfe de un rei cavalheiroso, se-iniciou Luiz de Camões nos arriscados deveres da milicia; e, não obstante as frequentes corre- rias dos mouros e os vários recontros que com elles te- ve, que quasi lhe não davam tréguas, carpia em verso

120 CAMÕES E OS lusíadas

OS seos passados errores, e mal podia defender-se das lembranças que o-pungiam e de que tam sentidamente nos-fala na elegia segunda:

Mas nem com isto, emfin, que estou dizendo, Nem com as armas tam continuadas De amorosas lembranças me-defendo.

'N un d'aquelles recontros, segundo alguns escreve- ram, e, segundo outros, em prélio naval, foi ferido de un pelouro de que perdeu o olho direito. Cumpridos os dois annos de serviço, regressou ao reino ; o que, co- mo já dicemos, devia ser pelos principies de 1552. Comquanto aífeiado por aquelle notável defeito, parece que não perdera o gosto de galanteador, e que não pou- cas vezes requestava as damas que, enlevando-se mais na gentileza do rosto que nos dotes do espirito, não ra- ro Ihe-retribuiam finezas amorosas com expressões in- delicadas, das quaes elle, em que Ihe-pezasse, se não mostrava offendido; antes, como extremado cortesão que era, Ihes-retorquia com chistes espirituosos e agudos *.

' Conta Manuel Severin de Faria que era chamado das damas diabo e cara sem olhos, a que elle respondeu miiilas rezes corlesãa e graciosamen- le, covio se-vê de seos versos.

CAMÕES 121

xn

Por un documento que no archivo nacional descobriu o senr. Visconde de Juromenha, investigador percurioso e deligentissimo das coisas de Camões, sabemos que no dia da festa de Corpus Christi do anno que alli se não declara, mas que, pelas razões que temos expendido, devia ser o de 1552, succedeu ser o poeta preso por un caso fortuito, que, segundo consta do dicto docu- mento, foi como vamos referir. Ao passar pela rua de Sancto Antão, além de San' Domingos, viu travar-se uma rixa entre dois homêes, immascharados e postos a cavallo, e un certo Gonçalo Borges, creado de el-rei, que também a cavallo andava passeiando. Como a contenda degenerasse em pugna de arrancar, e Camões reconhecesse os dois immascharados por seos amigos, acudiu por elles e feriu no pescoço o dicto Gonçalo Bor- ges, do que Ihe-resultou ser preso e metlido em pro- cesso.— Havendo, porém, em 1553 obtido o perdão da

122 CAMÕKS E OS lusíadas

parte queixosa, requereu a Dom Johão III que o-man- dasse soltar, allegando ser mancebo pobre e que esse anno o-ía servir na índia; o que conseguiu, não sem al- gumas difficuldades e despendio pecuniário em 7 de março do referido anno.

Pouco interesse resume em si este facto ; mas serve de mostrar que não era Gamões homem que se-recusas- se a esgrimir na primeira pendência que se-lhe oífere- cesse.

Em seguida se-alistou e se-fez prestes para embar- car na armada que 'n aquelle anno se-apparelhava para a índia e que desafferrou a 24 de março. Gompunha- se de quatro naus de que ia por capitão-mór Fernão Alvares Gabral. Na capitania, que se-chamava San' Bento, embarcou Luiz de Gamões, e as ultimas pala- vras, que n' ella proferiu, foram aquellas memoráveis de Scipião Africano : Ingrata pátria, non possidehis os- sa mea; as quaes provam que ia firmemente resoluto a não regressar á pátria ; sendo, porisso, evidente que le- vava de todo perdida a esperança de jamais possuir a dama que tanto idolatrara; a qual não podia ser a fi- lha de Dom António de Lima, que ficava incólume e inupta no paço da rainha : não havendo motivo plausi- vel, se tal dama fosse a escolhida do seo coração, para que, prosperando-o a sorte na índia, não conservasse a esperança de un dia voltar e de Ihe-obter a mão de es- posa.— E aqui achámos confirmada a conjectura que havemos feito de que aquella que fora objecto de seo estremecido amor Ihe-ficava irrevogavelmente vedada pela clausura de un mosteiro.

CAMÕES 123

Amargos e tétricos deviam ser os momentos em que o poeta, de mar em fora, foi perdendo de vista a ter- ra onde lhe ficava tudo o que no mundo podia mere- cer-lhe aíTeição. Quem seria capaz de descrever o que então se-passava 'n aquelle peito profundamente ma- goado, onde, para mor tormento, comprimia e calava todas as penas 1

A mortificação de se-ter visto desprezado dos poetas seos conterrâneos, que não tinham sabido appreciar-lhe o génio e as sublimes inspirações, junctava a dor ex- cruciante de haver irreparavelmente perdido a mulher formosa e querida que devera fazer a felicidade dos seos dias: junctava mais o despeito de não ter obtido remu- neração alguma pelos serviços que prestara em Africa, e, por ultimo, a amargura de deixar a pátria entregue ao fanatismo ignaro, e ás tenebrosas machinações dos jesuitas, resvalando no dechve de un abysmo insondá- vel

124 CAMÕES E OS lusíadas

XÍII

Seguindo sua derrota, navegou a armada algun tem- po juncta, até que os temporaes que sobre ella carrega- ram a fizeram separar-se, tomando cada uma das naus destino diverso. A capitania que passava por ser a maior e a melhor da carreira da índia, e que ia bem provida de piloto, poude dobrar o cabo da Boa-Espe- rança, soffrendo 'n aquella paragem horrorosa tempes- tade que o poeta descreve na elegia I. Não sendo tempo de aportar a Moçambique, tomou por fora do canal da ilha de San' Lourenço e conseguiu, depois de quasi seis meses de trabalhosa viagem, chegar a Goa nos principios de septembro.

Governava 'n aquelle tempo a índia Dom Affonso de Noronha que estava preparando uma expedição para ir contra o rei de Chembé, que usurpara uma ilha ao de Porca, nosso alliado. Accompanhou-o Gamões na em- presa que relata com un laconisnip characteristico da

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brevidade com que foi executada, e que faz lembrar o veni, vidi, de César, dando conta de un feito con- seguido com egual presteza.

Terminada a expedição, e recolhido o vice-rei a Goa, a primeira coisa em que intendeu foi em ordenar uma grossa armada que houvesse de ir ao estreito de Mekka, d'onde passasse depois a hynvernar a Ormuz, a fm de esperar as galés que em agosto saissem de Bassorá; e com tal diligencia se-houve, que no fm de fevereiro de 1554 a teve prestes e a-entregou a seo filho Dom Fer- nando de Menezes, com quem quis que fosse Manuel de Vasconcellos, fidalgo prudente e experimentado, para o aconselhar. 'Nesta armada embarcou Luiz de Gamões, e não na outra que, em fevereiro do anno seguinte de 1555, partiu com egual destino e de que foi por capitão- mór o mesmo Manuel de Vasconcellos. * Gontra o di- zer geral dos biographos, seguimos 'n esta parte a opi- nião do senr. Visconde de Juromenha; não pelo motivo que aponta de que não havia Camões de querer es- perdiçar uma occasião tam favorável de empregar o seo valor como aquella em que o vice-rei armava uma ex- pedição para seo filho: motivo pouco attendivel; pois não dependeria, por certo, da vontade de Gamões o ser, ou não, nomeado, para ir 'n aquella expedição. A ra- zão que nos-fórça a dizer que embarcou 'nesta, e não na armada que no anno seguinte de 1555 partiu para o estreito, é o-vermos a incompatibilidade que d'ahi se- seguira; porquanto a dieta armada, de que ia por capi-

« Couto, Dec. VII, L. 1.» Cap. 7.» p. 21.

126 CAMÕES E OS lusíadas

tão-mór Manuel de Vasconcellos, recolheu a Goa em outubro, * e nós sabemos que Luiz de Gamões se-acha- va em Goa não em junho daquelle anno em que tomou posse da governação Francisco Barreto ; como prova a sá- tyra com que zombeteou dalguns que figuraram nas fes- tas que por essa occasião alh se-fizeram ; mas inda em janeiro do mesmo anno, em que daquella cidade escre- veu para o reino a charta a que a trás nos-referimos.

Embarcou, pois, como dicemos, Luiz de Gamões na armada de Dom Fernando de Menezes e, seguindo esta a derrota que Ihe-estava marcada, foi pôr-se á vista do Monte Feliz, onde se-deteve cruzando a fin de descobrir as naus de Achem e de Gambaia, e d'alli expediu al- gumas fustas ligeiras até as portas do Estreito. Sendo entrado o mês de abril, tempo em que Ihe-era forço- so recolher-se a Ormuz, foi correndo a costa da Arábia até Mascate, onde Dom Fernando de Menezes entregou os galeões e as naus grossas a Manuel de Vasconcellos e se-passou a Ormuz com os navios ligeiros. ^

Deste enfadonho e monótono cruzeiro, que durou o espaço de un mês, quasi sempre á vista do cabo de Guardafui e do monte Feliz, sitios escalvados e agres- tes, que podiam intristecer os olhos dos navegantes, descreveu elle os trabalhos que Ihe-foram dobradamen- te penosos pelas acerbas recordações de un amor funes- to e sem ventura. 'N aquelle amor não havia sequer un vislumbre de esperança!

' Couto, Dec. MI, L. 1." Cap. 8.« ' Idem, Dec. VI, L. 10.» Gap. 18.

GAMÕES 127

Não somos nós, é o poeta que o-diz na Canção XIII :

Se de taatos trabalhos tirasse Saber inda por certo que alguma hora Lembrava a uns claros olhos que vi, E se esta triste voz, rompendo fora. As orelhas angélicas tocasse D'aquella em cuja vista vivi: A qual, tornada un pouco sobre si, Revolvendo na mente presurosa

Os tempos passados

De meos doces errores. De meos suaves males e furores Por ella padecidos e buscados, E (postoque tarde) piedosa

Un pouco Ihe-pezasse E comsigo por dura se-julgasse:

Isto que soubesse me-seria Descanso para a vida que me-fica.

Aqui se-nos-oíferece mais uma prova que confirma a nossa asserção. Gamões foi pouco cauteloso; talvez mesmo indiscreto nas relações que teve com a sua aman- te; o que deu motivo a un escândalo publico, repasto de más linguas. -A desditosa senhora, menoscabada na sua reputação, por causa do mancebo que muito a ama- va, mas que, por desfavoráveis circumstancias, não po- dia reparar-lh'a, sacriíicou-se ás conveniências sociaes e pronunciou os votos irrevogáveis que para sempre a-se- pararam d'elle. E por isto que o poeta, expondo os in- fortúnios que o-avexavam,. diz que se soubesse que ella,

128 CAMÕES E OS lusíadas

postoque tarde, se-compadecia do seo mal, isso Ihe-seria descanso para o resto da vida.

Vê-se, pois, que nenhuma esperança Ihe-era permit- tida, appellando para a triste consolação de saber que d'elle se-condoía a sua dama.

Não obstante, conservava todo o ardor de uma pai- xão vehementissima, que, por ventura, Ihe-atrophiara o coração, se outro amor, sublime, ardente e inextinguivel o não alentasse:

Este amor era o da pátria!

129

XIV

Em princípios de novembro de Í554 recolheu a Goa a armada de Dom Fernando de Menezes, sendo vice- rei Dom Pedro de Mascaranhas que havia succedido a Dom Aífonso de Noronha. Ti ella regressou Luiz de Camões, e, por noticias chegadas do reino, alli soube do fallecimento do principe Dom Johão e da morte de seo amigo Dom António de Noronha, que elle deixara em Seuta e que, propellido em temerária excursão, perdera a vida ás lançadas dos mouros : duplicado desastre que prancteou na egloga I. A morte de Dom António devia profundamente magoal-o por ser aquelle mancebo mui conforme com elle em characler e modo de pensar. E aqui vemos que se-lhe-amiudavam os golpes com que a fortuna desapiedadamente o-mallraclava.

130 GAMÕES E OS LUSÍADAS

Gomo Dom Pedro de Mascaranhas fosse de edade provecta e que mal podia comportar o peso dos negó- cios, finou-se a 16 de junho de 1555, e logo tomou posse da governança Francisco Barreto, que, segundo Diogo do Couto, foi o homem mais hberal do seo tem- po, quahdade que Ihe-grangeara numerosos amigos, os quaes grandemente se-alegraram, quando, aberta a suc- cessão, viram que era elle o nomeado. Devia, por ou- tra parte, o novo governador merecer as sympatliias e ser de aprazimento aos fidalgos e á gente principal de Goa, por esperarem, attenta a condição tolerante de que era dotado, que Ihes-consentiria toda a sorte de abusos e demasias: esperança que de facto se-realizou, chegan- do por tal modo a ser-lhes acceito, que, quando, depois de ter partido para o reino, Ihes-constou que era nova- mente chegado, por causa de un temporal que o-fizera arribar, se-despovoou a cidade, correndo todos a il-o ver e festejar; o que deu motivo a que o vice-rei Dom Constantino dicesse: «Quantas graças deve Francisco Barreto dar a Deos pelo fazer tam bemquisto ! » * Dicto que, devendo ser tomado em sentido de louvor, conti- nha, por certo, uma picante ironia. Os biographos de Camões que defenderam Francisco Barreto, e que o-con- sideraram digno de ter sido assumpto a tam importan- te cargo, não repararam que indirectamente caíam no contrasenso do approvar a soltura e a corrupção que cam{)cavam na índia c que clle não soube reprimir e castigar; chegando a cubica o a tyrannia a tal excesso

> Couto Dcc. Vil, L. 8." Gap. 13.

J31

«jue poscram aquelle estado em risco de totalmente se- perder. *

Para celebrar, pois, a successão do novo governador executaram-se em Goa estrondosos festejos, jogos e ou- tros divertimentos em que a devassidão e a crápula se- oslentaram publicamente ; não sendo alguns dos princi- paes individuos da cidade os que menos se-distinguiram em tam repugnante espectáculo. Gamões, severo re- prehensor dos vicios, indignado de ver tammanho avil- tamento, e impudência, escreveu uma satyra em que llagellava os que se-conspurcaram 'n aquella espécie de orgia: satyra que, promovendo as iras dos que a-haviam merecido, desafiou a prepotência do fumoso governa- dor que arbitrariamente desterrou o poeta para as Mo- lucas. A medida despótica estava na Índole do go- verno daquelle tempo e não desdizia do que então se- practicava na índia : não é 'n isso que fazemos reparo ; mas em que alguém houve que, para defender Francisco Barreto, pretendeu desculpar a immoralidade da me- dida.

Não menos é para nós motivo de reparo o ver que, entre todas as pessoas de auctoridade, mormente as ec- clesiaslicas que então deviam ter influencia nos actos do governo, nenhuma se-attreveu a advogar a causa da jus- tiça, expondo a iniquidade com que se-punia o homem que pugnava pelos sãos costumes, ao passoque se-ani- mavam a proseguir em seo desregramento os que aíTron- tosamente os-corrompiam c depravavam. E n isto se-

' Id. Dtr. V, L. l." Cai». 3.

132 CAMÕES E OS lusíadas

mostra que nunqua a preponderância do clero serviu para morigerar os povos; porquanto não podia ser maior a que elle então exercia; sendo 'n essa mesma épocha que se-desinvolveu a máxima corrupção e que, a par das mais atrozes injustiças e barbaridades, se-viram practicar omnimodas torpezas, extorsões e rapinas. *

> Vid. Diogo do Couto, Décadas, c Souza, Annaes de Doffl Johào III.

133

XV

Partiu Gamões para o seo desterro no anno de 1556, e quer o senr. Visconde de Juromenlia que imbarcasse na armada de que era capitão-mór un certo Francisco Martins: armada que Diogo do Couto não menciona e de que achamos noticia em Fernão Mendes Pinto, que diz a-incontrara no porto de Lampacau, quando re- gressava do Japão em principies de dezembro; * o que manifestamente contradiz o que relata o senr. Viscon- de, que escreve que tal incontro se-eíTectuou por meado de maio.

Pouco verosimil nos-parece que Luiz de Gamões par- tisse 'n uma armada que se não mostra ter sido impre- gada em serviço do estado ; visto que delia nos não fala Diogo do Gouto ; antes é de crer que houvesse sido ex- pedida para a Ghina a fazer veniaga por compta do go-

« Poregr. Gap. CCXXVI.

134" CAMÕES E OS lusíadas

vernador, de quem era feitura o capilão-mór Francisco Martins, como declara o mesmo Fernão Mendes Pinto. Temos, portanto, por mais provável que Luiz de Ga- mões imbarcasse na nau Sancta Maria dos Anjos que o citado Diogo do Couto nos-diz ter Francisco Barreto despachado para as Molucas no anno de 1556. ^

Para attenuar a justa indignação que a todas as al- mas rectas naturalmente causa o saber que o prepoten- te governador desterrou Camões para as Molucas por mero arbitrio e sem forma alguma de processo, preten- deu o senr. Visconde de Juromenha, a exemplo do que a tal respeito escreveu o bispo de Viseu, Dom Fran- cisco Alexandre Lobo, persuadir-nos de que não foi ri- gorosa a pena; porquanto adoçou o ostracismo do poe- ta, despachando-o provedor-mór dos defunctos de Macau.

Cumpre hagora advertir que Macau era ainda uma ilha deserta ; e que un anno depois é que os portu- gueses adquiriram a posse daquelle pequeno tracto de terreno, onde subsequentemente se-estabeleceram ; sen- do, portanto, inadmissivel que podesse dar-se a conces- são do pretendido despacho.

A impossibilidade de ser o governador Francisco Bar- reto quem despachou Luiz de Camões com a provedo- ria de Macau, é attestada pelo mesmo senr. Visconde, que dizendo ser provável que fosse a armada de Fran- cisco Martins que desbaratou un temeroso corsário que infestava com insultos e rapinas os mares da China e se-acoitava no porto de Macau, que depois d'este

' Dec. VII, L. 4.» Cap. 3." in princ.

GAMÕES 1 35

íeito é que adquirimos e povoámos, faz sobrcsair a in- congruência (lo poder ser conferida a provisão do men- cionado oflicio em tempo anterior ao da posse do ter- reno e ao da fundação da colónia onde devia exercer-se. *

Querem alguns biographos que o provimento do offi- cio de que se-tracta fosse conferido a Gamões pelo vice- rei Dom Constantino de Bragança; mas isto mesmo não deixa de ser para nós objecto de duvida; porquan- to sabemos que a nomeação das auctoridades dos vários portos da China, particularmente o de Chinchou, onde os portugueses tomaram assento depois que foram ex- pulsos de Liampoo (Ning-Pó), era feita por provisão do capitão de Malaca; ^ o que nos-leva a presumir que o mesmo devia dar-se a respeito de Macau, pelos menos nos primeiros annos da sua fundação.

Divagou Luiz de Gamões mais de un anno pelas Mo- lucas; porque, segundo o que acabámos de referir, não fora possível que saisse de Gôa com destino para Ma- cau.— Gomo, porém, depois se-fundasse n aquelle porto uma colónia portuguesa que foi successivamente adqui- rindo incremento e locupletando-se com os avultados lu- cros que auferia do commercio da China e do Japão, para alli se-transportou, não sabemos se auxiliado de alguns amigos e com o intento de fazer proveito, se despachado com o officio de provedor-mór dos defun- ctos pelo capitão de Malaca. 'N esta viagem naufragou na costa de Camboja, juncto da foz do rio Mecon, donde saiu a nado, salvando apenas o seo poema.

' Vida -de Luiz do Caraõos polo senr. Vise. (]o Jurom. p. 73. ' Fernão Mondes, Pereprr. Cap. 22.1 .

13G CAMÕFS K OS lusíadas

XVI

o ter Gamões naufragado á ida para Macau, c não no regresso para Goa, como escrevem quasi todos os seos biographos, é manifesto á vista do que elle mesmo diz na est. 80 do Gant. VII dos Lusiadas.

'N aquella estancia, feita no tempo em que inda esta- va soffrendo o rigoroso degredo a que fora condemna- do, fala do naufrágio, como de un desastre passado, entre os vários infortúnios que enumera:

Ilagora com pobreza abhorrccida Por hospícios alheios degradado: Hagora da esperança adquirida De novo mais que nunqua derribado; Hagora ás costas escapando a vida, Que de un fio pendia tam delgado

Não c possivel suppôr que esta estancia fosse feila

CAMÕES 137

em Goa, depois de levantado o degredo do poeta, sem attribuir-lhe dois grandes absurdos: o primeiro que se-considerasse por hospícios alheios degradado,, na oc- casião de achar-se em terra própria; e o segundo que se-imaginasse mais que nunqua derribado da esperança na mesma occasião em que sabemos que era protegido pelo vice-rei Dom Constantino.

O annotador da edição dos Lusíadas de 1584, que por haver sido coevo de Camões, deve suppôr-se ter alcançado particular noticia de todos os successos da vi- da do poeta, pode ser citado em abono da nossa affir- mativa. Em a nota á mesma est. 80 diz formalmente que foi na viagem para Macau que Ihe-succedeu o nau- frágio de que tractâmos. Sam suas textuaes palavras: Começando a fortuna a favorecei- o e tendo algun fato de seo, perdeu-se na viagem que fez para a China.

Isto tende a confirmar duas coisas: não que foi á ida para Macau que naufragou, senão também que, em- quanto divagou pelas Molucas, procurou remédio á sub- sistência impregando-se em mercadejar, com o que che- gou a ter algun fato de seo.

Foi, por ventura, durante o tempo que residiu nas mencionadas ilhas, em que a fortuna momenta,neamente llie-mostrou uma face auspiciosa, que adquiriu o escravo jáu que tam fiel companheiro Ihe-foi e ainda tam pro- fícuo e valedor nos últimos annos da vida.

Em Macau, 'n aquelle então ignorado recanto do mun- do, e no remanso de uma vida obscura proseguiu Ca- mões a tantas vezes interrompida composição dos seos Lusiadas, dos quaes c claro que escreveu o final do

138 CAMÕES R OS I-nSTADAS

Gant. VIL Alli se-qiieixa dos revezes da fortuna e al- lude ao recente naufrágio; bem como desabafa as justas iras que deviam causar-liie as injustiças que soíTrera, a privança em que via alguns homees indignos, e o abuso do poder que outros insolentemente practicavam.

E notável o ton de desconsolo e a phrase ao mesmo tempo sentida e severa que impregou 'n aquellas oita- vas, que foram, talvez, escriptas na grupta mysteriosa, que, segundo a tradição, era onde o poeta ia deliciar- se em coUoquio suave com as Musas.

Postoque o nosso fallecido amigo, Francisco Maria Bordalo, no seo Passeio de septe mil léguas, aíTirme que não incontrou em Macau un documento, uma palavra escripta que justifique a tradição de haver sido na mencionada grupta que o poeta escreveu algun dos cantos do seo poema, parece-nos, comtudo, fundada a tradição ; porquanto, sendo 'n aquelle tempo Macau uma espécie de feitoria com poucas habitações e povoada pela maior parte de commerciantes e adventicios, occu- pados somente em fazer grangearia, cujo tracto por ne- nhun modo podia ser agradável ao poeta, é bem de crer que elle, para esqui var-se ao bulicio e á conversa- ção de gente de tam oppostas inclinações, e para poder hvremente poetar, fosse muitas vezes refugiar-se na gru- pta silente e solitária que hoje conserva o seo nome.

139

XVII

Acabado o tempo a Francisco Barreto, succedeu lhe na governação o vice-rei Dom Constantino de Bragança, antigo protector de Camões. Então poude este obter que justiça Ihe-fosse feita, e que, abolido o bárbaro de- gredo, se-lhe-facultasse o voltar a Goa, para onde se- Iransferiu provavelmente no anno de 1560 ou nos prin- cipies do de 1561.

Segundo o que deixámos dicto, vê-se que inda 'n esta parte impugnámos o parecer do senr. Visconde de Ju- romenha, que escreveu que, mexericado Camões com o governador Francisco Barreto, veiu preso para Goa, an- tes d este haver acabado o seo triennio, que foi a 3 de septembro de 1558.

Sendo certo que os portugueses se-estabeleceram em Macau em 1557, * quando mesmo se-queira suppôr que

^ Todas ás relações á côrca de Macau assignalam o anno do 1557 ao estabelecimento d'esta colónia. Fernão Mendes finto diz positivamente que

140 CAMÕES E OS LUSÍADAS

logo no meado desse anno se transportasse Camões pa- ra aquella colónia, como c admissível que elle servisse alli algun tempo para dar motivo a uma queixa ; que tal queixa viesse a Goa; que de Goa fosse ordem de prisão e o accusado chegasse remettido ; tudo dentro de quatorze meses : dando-se que 'n aquelle tempo a nave- gação só se-fazia por monções? Parece-nos que a in- compatibilidade não pode ser maior.

Viveu o poeta sem ser incommodado, e até mesmo prospero e satisfeito, no tempo do vice-rei, a quem se- mostrou agradecido indereçando-lhe uma epistola, na qual o-louvava por haver reprimido o povo indómito, costumado á soltura do passado governo, e que, por is- so, soífria mal e blasphemava do de Dom Constantino. Então, diz Manuel Severin de Faria, eífectuou aquelle festival convívio a que convidou os seos amigos Dom Francisco de Almeida, Dom Vasco de Athaide, Heitor da Silveira, Johão Lopes Leilão e Francisco de Mello; os quaes, sentando-se á mesa e descobrindo os pratos, acharam, em vez de eguarias, versos chistosos que mui- to applaudiram. Este banquete, pretende o senr. Vis- conde de Juromenha ter sido dado durante o governo do conde de Rodondo : o que é contra o dizer geral dos biographos, que o-referem ao tempo de Dom Constan- tino; o que temos por mais plausível, por ser então que

foi no dicto anno que nós adquirimos aquelle porto.— Referindo-se a Lara- pacau, reconta que era onde 'n aquelle tempo os portugueses faziam sua ve- niaga cos chins & alli se-fez sem^)re até o anno de 1657 em que os Manda- rins de Cantão, a requerimento dos moradores da terra, nos-deram esle •porto de Macau, onde agora se-faz. Peregr. Gap. ccxxi, T. 3.» pag. 312, ediç. de 1829.

141

O poeta andava prospero e estimado de toda a fidalguia da Índia. 'N este mesmo tempo, escreve o citado Seve- rin de Faria, gastou liberalmente o que trouxe do sul e Ihe-deram seos amigos, e foi 'n isto tam largo que em breve tornou á pobreza com que começara: o que refor- ça o argumento que produzimos, de que não foi quando regressava de Macau que se-perdeu na costa de Cam- boja, de cujo naufrágio não havendo salvado mais que o seo poema, nenhuma outra coisa podia trazer ; e outro- sim nos-revela que foi Gamões de condição tam liberal, que chegou mesmo a ser pródigo do pouco que algumas vezes adquiriu ; podendo apphcar-se-lhe o que, á cerca de Dom Leonís Pereira, dice Manuel de Faria e Souza : No ay mano que tanto sepa largar el oro, como la que bien sabe apretar el hierro. *

Commeut. T. IV, 1', i.-» p. aG.

14" (,AMÕi;S E os LUSÍADAS

XVII!

Ao vice-rei Dom Constantino de Bragança succedeii em septembro de 1561 o conde deRodondo, Dom Fran- cisco Coutinho, que, comquanto não fosse desaffeiçoa- do a Camões, não Ihe-despensou, todavia, assas de va- limento para que os inimigos do poeta, aos quaes con- tivera até alli o respeito a Dom Constantino, se não atre- vessem a promover-lhe uma accusação com a qual o fizeram incarcerar. Não se-acham de accordo os bio- graphos sobre o motivo da accusação, que uns dizem ter sido por culpas commettidas na administração da provedoria de Macau, e outros por travessuras que pra- cticara. Tudo isto nos-parece altamente inverosimil e dicto mais para mitigar o prurido da curiosidade do que para satisfazer os reparos da critica; porque, nem as culpas commettidas na administração da provedoria dos defunctos de Macau, onde a este tempo havia ouvi-

143

dor e olliciaes de justiça \ leriam de vir a processar a Goa; nem Camões eslava então em edade própria de fa- zer travessuras. O verdadeiro motivo da accusação foi seguramente não terem perecido os antigos ódios origi- nados pela satyra que fizera; ao que, de certo, se-jun- ctava a malquerença dos jesuítas, que era impossível que o poeta, de seo natural dizidor e sarcástico, não ti- vesse ridiculizado ; principalmente por causa do celebre dente do bugio que Dom Constantino apprehendera em Jafanapatan, e por cujo resgate oíferecia uma avultada somma de ouro o rei do Pegú; não consentindo os je- suítas que o dente se-íntregasse, e compellíndo o ar- cebispo Dom Gaspar, que o papa subjeitara a os mes- mos jesuítas, a que se-opposesse áquelle resgate ; o qual diziam que era peccado que se não podia commetter aindaque se-arriscasse o estado e o mundo todo! " Que admirável bestunto!

O facto é que Luiz de Camões comptava poderosos inimigos ; e não duvidámos mesmo de asseverar que con- tra elle se-havía tramado uma espécie de conspiração ; porque, ainda bem não acabava de justificar-se da culpa que Ihe-fôra imputada e de obter mandado de soltura, quando um certo Miguel Rodrigues Coutinho, por alcu- nha o Fios-seccos, o-ímbargou na prízão por algun di- nheiro que Ihe-prestara. Era este Miguel Rodrigues

' No qual (porto de Macau) sendo antes ilha deserta, fizeram os nossos Ima nobre povoação de casas de três, quatro mil cruzados, & com if^rcija matriz cm (pie ha vigayro & beneliciados & tem capitão & ouvidor & ofíi- ciaes de justiça. Fern. Meiul. l'cregT. Cap. ccxxi.

- Couto, Dec. Vil, L. 0.» Cap. 17, p. 279, col. 2.'

144 CAMÕES E OS lusíadas

homem pecunioso e qae anteriormente fóra nomeado ca- pitão de dez navios para andar de armada de Goa até Dabul, fazendo cruelissima guerra ao Hidal-Khan, e que tivera a fortuna de aprezar uma náu pertencente áquelle imperador, aqual vinha de Mekka pejada de mercado- rias e dinheiro ; o que tudo foi dividido pelos capitães e soldados ; sendo tal a riqueza que trazia, que a parte que coube a el-rei se-avaliou em mais de trinta mil cru- zados. *

se- que não era a precisão urgente que obriga- va o tal Miguel Rodrigues a vexar Luiz de Gamões; nem o retel-o na prisão, impossibilitando-o de adquirir a somma que Ihe-exigia, era o meio próprio de re-imbol- sal-a. Torna-se, portanto, da máxima evidencia que o vilão mutuante não deixava de ser un torpíssimo in- strumento da vingança alheia.

Uma petição em verso e em estilo faceto, a qual, di- ga-se a verdade, não é das coisas mais felizes do nosso poeta, valeu-lhe o ser desimbargado pelo vice-rei na occasião em que este se-dispunha a imbarcar para ir assentar pazes com o Samorin; sendo provável que o poeta o accompanhasse na viagem para cximir-se a no- vas perseguições.

' Couto, Dec. Vil, L. 3." Gap. 3.» p. G7.

CAMÕES 145

XIX

Depois d'esla epocha, dizem todos os biographos que residiu Gamões em Goa até o anno de 1567, passando os hynvernos em terra e imbarcando os verões nas ar- madas.— Não obstante, julgou o senr. Visconde de Ju- romenha que devia fazel-o viajar todo este tempo pelas Molucas; porque, como o-houvesse inviado directamen- te de Goa a Macau, sem admittir o desterro que soffreu 'n aquellas ilhas, viu-se hagora forçado a conduzil-o até as mesmas, não podendo desprezar a tradição que as- segura ter o poeta discurrido por ellas algun tempo. Assim, o ter querido defender Francisco Barreto da ac- cusação que Ihe-fazem lodos os biographos e de cujo fundamento o mesmo Gamões nos-deixou testimunho ir- refragavel, fez cair o senr. Visconde 'n uma serie de erros que notámos, sendo, a final, compeUido a commelter mais este.

Não não temos noticia, ou tradição alguma da pre-

10

146 GAMÕES E OS lusíadas

tendida viagem feita 'n este tempo, mas o que racional- mente devemos presumir é que o poeta, valendo-se da boa sombra com que foi acolhido pelo vice-rei Dom Antão de Noronha, que succedeu ao conde de Redondo em septembro de 1564, e cuja amizade adquirira no tempo que com elle militara em Seuta, se-conservasse em Goa até concluir o seo poema.

No anno de 1567, havendo fallecido Fernão Martins Freire, que estava por capitão em Moçambique, succe- deu-lhe Pedro Barreto, que foi provido 'n aquella capi- tania para a qual se-dispôs logo a partir. Então se- impenhou este em levar comsigo Luiz de Gamões, se- duzindo-o com promessas vantajosas nas quaes se-occul- tava a mais negra perfídia que de memoria de homees se-ha concebido. Não nos-julgaremos temerários, se dicermos que os inimigos do poeta, não podendo haver d'elle a vingança que premeditavam, vista a amizade e a protecção que Ihe-concedia o vice-rei Dom Antão de Noronha, induziram Pedro Barreto a tiral-o de Goa e a conduzil-o a Moçambique, onde não o-abandonasse á penúria, senão ainda Ihe-fizesse tragar toda a sorte de humihações. O character vil de Pedro Barreto au- ctoriza-nos a fazer d'elle este conceito.

O caso é que em 1569, arribando áquella ilha a náu Sancta Fé, que partira de Goa para Portugal, e onde vinham vários fidalgos amigos do poeta, o-foram estes achar reduzido a extrema miséria, e, como quisessem transportal-o para o reino, se-lhes-oppôs o infame go- vernador, imbargando-o por duzentos cruzados, que dizia ter despendido com cUe na malalotagem de Goa

147

para alli : sendo forçoso, para o-livrar daquelle bárbaro captiveiro, que os dictos fidalgos seos amigos se-fintas- sem, a fm de apromptar-lhe o dinheiro do resgate, a que aquelle homem, sem estímulos e sem decoro, se não pejou de extender a mão para acceitar.

Sem imbargo do que deixámos referido, fez o senr. Visconde de Juromenha un raro e supremo exforço por desculpar Pedro Barreto.

Em a nota 50 á Vida que compôs de Luiz de Ca- mões, escreve:

«Não é liquido que Pedro Barreto levasse comsigo Camões e depois o-imbargasse pelos duzentos cruzados; pelo menos Diogo do Couto nada diz. Isto não tira que Pedro não fosse desaífeiçoado a Camões, o que é pre- sumível pelas relações de parentesco com Francisco Barreto, com quem o poeta estava em desharmonia; o abandono do poeta, em épocha em que elle trazia quasi o seo poema acabado, parece desabonar de alguma ma- neira a reputação de Pedro Barreto, aquém, talvez, a oífensa do parente desviasse de ser útil 'n esta occasião; mas se o facto é verdadeiro, como o-contam, elle Ihe- foi prestavel em outra; pois Ihe-tinha imprestado os du- zentos cruzados de que se-tracta. »

Não se-póde ser mais infeliz do que o-foi o senr. Vis- conde na intentada defesa.

Em primeiro logar diremos que é caso averiguado o ter Pedro Barreto levado comsigo e imbargado depois por duzentos cruzados a Luiz de Camões. Se o não diz Diogo do Couto, é porque o assumpto das Décadas o não comportava; mas dil-o terminantemente Manuel Severin

148 CAMÕES B OS lusíadas

de Faria, un dos mais antigo biographos do poeta. * O conceder o sr. Visconde que Pedro Barreto foi desaíTei- çoado a Gamões, ao passo que confessa ter-lhe abona do dinheiro para se-transportar de Goa para Moçambi- que, é o mesmo que reconhecer a premeditação da in- fâmia que elle practicou e convir na perfídia de que o-accusâmos. E o querer desculpar o mesmo Pedro Barreto, dizendo que talvez a offensa do parente o-des- viasse de ser útil ao poeta 'n esta occasião, é nada me- nos que pretender achar escusa a uma vilania com o pretexto de uma vingança cobarde.

Não temos intenção alguma de aggredir o senr. Vis- conde de Juromenha que sempre nos-ha dado provas de consideração e tractado com as maneiras distinctas que o-characterizam ; mas na dilucidação de ponctos histó- ricos é forçoso que digamos a verdade. Nem podemos attingir o motivo porque o senr. Visconde se-impe- nha em defender os dois Barretes. O que foi governa- dor da índia diz Diogo do Couto que era summamente vão e gastador, ^ qualidades que, por certo, o não ha-

' Tinha 'n este tempo composto o seo poema heróico dos Lusíadas e, como elle conhecia o grande preço d'esta obra, determinou de se-imbar- car para o reino a offerecel-a a elrei Dom Sebastião faindaque então, por ser de pouca edade, não governava.) Porém Pedro Barreto o-tirou d'esto pensamento por o-levar comsigo a Moçambique, onde ia iutrar por capitão de Sofala. Foi-se com elle Luiz de Camões movido de mas promessas; mas em breve se-viu desingannado d'ellas. Pelo que chegando áquella ilha a nàu Sancta que vinha para o reino, se-quis 'n ella imbarcar. Acudiu a lh'o- impedir Pêro Barreto e, ou movido do desejo de o-ter comsigo, ou por quacsquer outros respeitos, Ihe-pediu duzentos cruzados que gastara com elle na matalolagem de Goa até Moçambique. Severin de Faria, Vida de Ca- mões.

2 Eramuito vão c gastador grande. Dec.VlII, L. I.°cap.26,pag.403,col. 2.»

GAMÕES 149

bilitavam para reger e adiministrar aquelle importante estado: sendo a primeira d'estas qualidades que exube- rantemente manifesta a causa de haver perseguido Luiz de Gamões. Como fosse distituido de lettras, não as- appreciava, e julgando-se oífendido em sua túmida vai- dade pela satyra do poeta, vingou-se d'elle desterran- do-o arbitrariamente para asMolucas. Quanto ao ou- tro Barreto, nada mais ajunctaremos ao que dicemos.

150 CAMÕES E OS lusíadas

XX

Prestes a seguir viagem a náu Sancta Fé, 'n ella im- barcou Luiz de Gamões e, navegando sem contratempo notável, chegou a Lisboa em abril de 1570, quando apenas havia cessado a peste que afíligira o reino, achando-se a cidade quasi despovoada e todos os âni- mos consternados e inda conterritos. Mais desanima- dora perspectiva não podia oíferecer-se aos olhos do poeta que, a cabo de tantos annos de serviços feitos em Africa e nas partes do Oriente, chegava pobre e es- perançado no premio que Ihe-valeria a oíferta que ten- cionava fazer do seo poema a elrei Dom Sebastião.

Estava a este tempo o monarcha longe da capital, onde poucas vezes apparecia; não tendo mais imprego que andar continuamente a monte, caçando cerdos e veados; e, além de nada saber dos negócios do estado, e de não ter capacidade para os-gerir, por sua pouca edade, e pela educação mesquinha que recebera em

151

que Ihe-haviam incutido idéas do mais exaltado fa- natismo religioso, deixava-se em tudo governar pelos dois irmãos Camarás, dos quaes un era Martin Gonçal- ves, seo escrivão da Puridade, e o outro o jesuíta Luiz Gonçalves, seo mestre e confessor. Tinham-no estes afastado de todos os homêes de saber e capacidade, principalmente dos que podiam desinvolver-llie a intel- ligencia, em cujo numero intrava o cosmographo-mór Pedro Nunes, a quem logo despediram, porque, sendo seo mestre de geometria, intenderam que conseguiria, por meio d'esta sciencia, habilitai -o a discorrer com cla- reza e precisão. ^Receiavam, por outra parte os dois Gamaras que, se elrei practicasse homêes nobres e au- ctorizados, viesse a a£feiçoar-se a outros mais do que a elles ; e, por isso, o-traziam sequestrado da companhia dos fidalgos e dos cortesãos, que, havendo sempre vivi- do na familiaridade de seos monarchas, não podiam amar, nem tolerar um rei montesinho e intractavel que não via, nem conversava as pessoas de quem mais se- havia de servir. Daqui nascia un implacável ódio aos dois irmãos Gamaras e em geral á companhia de Jesus, de cuja politica de ambição e predominio os-suppunham fieis executores, em detrimento do rei e do estado. A tal poncto chegou o escândalo que, no anno seguinte de 1571, deu motivo á celebre charta que ao confessor do rei, Luiz Gonçalves da Gamara, escreveu o doctissimo bispo de Silves, Dom Hieronymo Osório, onde resumia todas as queixas que se-faziam contra os dois privados, os quaes, em nome de un soberano adolescente, que mantinham na mais completa subjeição, governavam

ISÍ CAMÕES E OS lusíadas

despoticamente o reino. E notável a liberdade com que o prelado Ihe-expunha os aggravos com que tanto elle, como seo irmão, Martin Gonçalves, estavam dando causa ás mais violentas accusações. Falando-lhe sem ambages, dizia-lhe: Primeiramente Vossa Rev."^^ está havido na opinião da mais gente doesta terra e ainda dos que mais salas lhe- fazem, e se-lhe mais submettem, por mais amigo do mundo e honra do que esse habito requer. Fazia-lhe depois saber que a linguagem das pessoas mais conspicuas era: terem un rei captivo de dois irmãos que pouco a pouco o-iam fazendo outro rei de Ormuz; tanto que tinha a mais da gente assentado que elle, por ter a elrei mais seguro, Ihe-fizera pro- metter voto de obediência como os da companhia cos- tumam a seos confessados. Com referencia aos dois validos dizia-lhe: Nunqua vi maior esquecimento que tractarem as coisas de maneira que se-façam a si, e a toda a companhia, e a pessoa de un rei de dezesepte an- nos, que naturalmente é amável, os mais abhorrecidos e os mais odiosos que quantos nunqua houve em Portu- gal, antes, nem depois de elrei Dom Pedro o Cru; em- tantoque, nos togares onde a gente de todos os estados fala sem medo, ouvirão que tomariam antes ser gover- nados por dois turcos que os-tractassem com amor e prudência, que do modo que hagora sam. Com a mesma severidade e franqueza de linguagem Ihe-fazia saber o grandíssimo escândalo e não menor convicio, que promovera a reformação das commendas com que muitos foram privados dos seos officios para estes se- darem a homêes da parcialidade dos dois validos e dos

CAMÕES 153

padres da companhia ; não para mais se-firmarem com estes esteios, senão para melhor se-justificarem do que quisessem fazer: e accrescentava: Se Vossa Rev.'^'^ cuida que isso é mostrar animo e inteireza, pequeno animo é ser severo e inteiro com a mão de un rei me- nino que não intende o que ganha no amor, nem o que perde no ódio dos vassalos; além d!isto, como lhe parece que receberia a terra a canonizar elrei pelo papa a des- honra de seos officiaes? Estar o reino perdido cuidam os mais dos homees que foi manha da companhia para grangear Sua Sanctidade com isto para suas preten- ções; o que, dizem, Ihe-succedeu como ella pintava; por- que até hagora dizem que não tem isto fundido mais que perda de fidalgos e proveito d^ella.

Não estas, senão inda outras queixas Ihe-repre- sentava o illustre prelado ; as quaes nos-fazem conhecer o estado lastimoso a que havia chegado o reino pela ominosa influencia jesuítica, e as diíBculdades com que tinha de luctar Luiz de Camões, a fin de obter as in- despensaveis hcenças para a publicação dos Lusíadas.

IM CAMÕES E OS lusíadas

XXI

Entretanto fazia Camões as ultimas correcções ao seo poema, que trouxera concluido e que escrevera em tam diversas situações da vida: em Portugal nos ócios e na quadra amorosa da juventude: em Africa, nos curtos intervallos das correrias contra os mouros de Tetuão: nos plainos immensos do oceano, ao son do rugir da tempestade: na índia, entre ódios e perseguições: no exilio das Molucas, e, finalmente, na grupta longiqua e hospitaleira de Macau.

A successiva composição dos Lusiadas é-nos indicada pelo mesmo poema.

Vê-se que foi começado em Lisboa pela invocação que o poeta faz ás Nymphas do Tejo, das quaes diz que recebeu un novo ingenho, com o que, de certo, quis si- gnificar as altas concepções da poesia épica:

E vós, Tágides minhas, pois criado Tendes em mim un novo ingcnho ardente,

Dae-me hagora uq soa alto e sublimado.

15§

No fin do Gant. VII, dirigindo-se ás Nymphas do Tejo e também ás do Mondego, se-expressa como achando-se longe da pátria e separado delias:

Mas, ó cego

Eu, que commetto insano e temerário Sem vós, Nymphas do Tejo e do Mondego, Por caminho tam árduo, longo e vario.

Havendo, porém, Luiz de Gamões partido para a ín- dia em 1553, épocha em que inda não era nascido el- rei Dom Sebastião, não pode duvidar-se de que foi depois de estar na índia que escreveu a invocação ao mesmo rei, que se-segue immediatamente á das Nym- pbas do Tejo, mostrando-se por ella, que inda o dicto rei era menor, e que não tinha assumido as rédeas do governo, das quaes o poeta, suppondo, por ventura, que elle podesse melhorar o estado decadente da monarchia, lhe diz que se-apodere:

E emquanto eu estes canto e a vós não posso, Sublime Rei, que não me-attrevo a tanto. Tomae as rédeas vós do Reino vosso, Dareis matéria a nunqua ouvido canto.

Todavia, quando o poema se-concluiu e chegou a pu- blicar-se, reinava Dom Sebastião ; o que também pelo mesmo poema se-deixa ver:

Por isso, vós, ó Rei, que por divino Conselho estaes no régio sólio posto, Olhae que sois (e vede as outras gentes) Senhor de vassalos excellentes.

Cant. X, Est. 146.

156 CAMÕES E OS lusíadas

Qaando CamiSes chegou a Macau, depois de ter va- gueado pelas Molucas, achava-se o poema no fin do Gant. VIL Alli, como observámos, se-refere ao nau- frágio que padeceu em Camboja, e amargamente se- queixa dos que o-perseguiam e altribulavam ; dos quaes alguns, para mór vergonha e mais odiosa prova de in- gratidão, eram os próprios que o poeta então celebrava em seos versos.

Segundo o testimunho de Diogo do Couto, o hynver- no de 1569, que Luiz de Camões passou em Moçam- bique, foi por elle approveitado em aperfeiçoar os seos Lusiadas; o que nos-dá a certeza de que a este tem- po estavam concluídos. Pode, porém, asseverar-se que o epilogo do poema foi composto depois de Camões ha- ver regressado ao reino, e quando Dom Sebastião pro- jectava passar a primeira vez a Africa; * impresa que o poeta não desapprova, e que fora, em verdade, o des- impenho de uma grande idéa politica, se podesse ter si- do executada 'n outras circumstancias e dirigida por dif- ferente caudilho.

ímproba e porfiosa devia ser a lucta que o poeta teve de sustentar com o qualificador do sancto ofificio, a fin de obter a indespensavel licença para a impressão dos Lusiadas. Era este o dominicano fr. Bartholomeo Fer-

Garrett, n'uma nota ao acto 2.» do drama Fr. Luiz de Souza, diz que a invocação a Dom Sebastião nos Lusíadas, p&rece escripla depois da pri- meira jornada de elrei a 4/nca.—É o maior e o mais remontado disparate que se-ha impresso des de que lia lettra redonda.— A primeira jornada de Dom Sebastião a Africa foi em 1574, e os Lusiadas saíram á luz em 1572. Como é, pois, que a chamada invocação, que outra coisa não é senão ex- horlação, se-imprimiu dois annos antes de poder ser composta?

CAMÕES 157

reira, fanático e estulto de boa marca, como forçosamente devia ser un membro daquelle execrando tribunal, e co- mo elle próprio se-incarregou de nos-provar que o-era, escrevendo na censura que fez dos Lusiadas que os deo- ses dos gentios sam demónios Que objecções, que re- paros ineptos não faria a cada passo o tonsurado cen- sor, torturando o espirito do pobre poeta, e compellin- do-o a alterar e a supprimir estancias inteiras do seo poema?! Tudo nos-faz accreditar que os Lusiadas sof- freram sensiveis cortes, e alterações notáveis, imbora o senr. Visconde de Juromenha queira persuadir-nos que o poema dos Lusiadas saiu em vida do auctor como elle o-concebera, e que apenas o-emendou 'n alguns togares, acceitando espontaneamente os conselhos dos frades de san' Domingos ; se- por estes serem os mais idonios e intendidos não em autos de fé, senão também em poesia épica 1

158 CAMÕKS E OS LUSÍADAS

XXII

Sairam os Lusíadas a lume em 1572 e é de presu- mir que seo auctor alcançasse intregar un exemplar do poema nas mãos do soberano a quem o-dedicava; mas não accredilâmos que este jamais o-lêsse. Muito me- nos podemos admittir, como insinua o senr. Visconde de Juromenha, fundando-se n' uma ficção poética de Gar- rett, que Luiz de Camões fosse chamado ao paço para alli o-recitar. No dominio da historia deve rigorosa- mente proscrever-se o que é próprio e admissível no romance. Dos vários chronistas que teve elrei Dom Se- bastião, nem un menciona semelhante facto, que fize- ra tanta honra ao próprio rei como ao poeta ; ao passo que sabemos que aquelle monarcha mandava chamar un certo Simão Gomes, sapateiro analphabeto e mentecapto para com elle se-intreter e até mesmo para o consultar. deve fazer gosto a uma nação o ter un rei educa- do por jesuítas !

CAMÕES 139

A recompensa não podia deixar de corresponder a tal rei e a taes validos.

Foi remunerado Camões com a tença annual de quinze mil réis por três annos somente, * e inda assim não po- demos dizer que ella lhe fosse conferida em premio dos Lusiadas.

Contêm o alvará: «Havendo respeito ao serviço que Luiz de Camões, cavalleiro fidalgo de minha casa, me tem feito nas partes da índia por muitos annos e aos que espero que ao deante me-fará e á informação que tenho do seo ingenho e habilidade e á sufficiencia que mostrou no livro que fez das coisas da índia, hei por bem e me-praz de Ihe-fazer mercê de quinze mil réis de tença em cada un anno por tempo de três annos so- mente, &c.>

Não pode haver duvida de que o motivo principal da graça consistiu no serviço feito por muitos annos nas partes da Índia, e que os secundários, ou accessorios, foram a expectativa de outros serviços que ao deante havia de fazer o agraciado e a sufficiencia que mostrou no livro que fez das coisas da índia. De modo que, se dividirmos a recompensa por estas três espécies, ve- remos que vem a caber aos Lusiadas o premio de cin- quo mil réisl

Tal recompensa mostra visivelmente o resentimento e o ódio que os dois Camarás tributavam a Luiz de Ca- mões.— Gratificaram-no, porque não fora possivel des- attender os longos serviços prestados por un cavalleiro

' Obteve depois scr-lbe renovada a racrcè nos annos que inda viveu.

i60 GAMÕES E OS lusíadas

distincto nas partes da Índia, o que provocaria a indi- gnação de todos os mais cavalleiros que então serviam o rei, e cuja opinião era forçoso respeitar; mas além de ser mesquinha a recompensa, foi ainda attenuada com a clausula de que prestaria ao deante outros serviços e com o ónus expresso de que havia de residir na corte. Quanto aos Lusiadas, monumento grandioso de glo- ria nacional, é designado no alvará da mercê como li- vro das coisas da índia, sendo apenas considerado suf- ficiente, sem sequer obter a classificação de bon!

Escreve o bispo de Viseu, Dom Francisco Alexandre Lobo, que nem Camões invectivou determinadamente contra os Gamaras, nem estes se-reputaram em tempo algiin offendidos delle. * E a mais temerária proposi- ção que nunqua se-proferiu e que denota uma critica pouco apurada da parte daquelle prelado que não era, aliás, destituido de boas lettras. Quem conhecesse a fundo os grandes sentimentos patrióticos de Luiz de Ca- mões, e não ignorasse o espirito de rectidão de que era dotado e o pendor que o-impeUia a censurar os vicios,^ sem perdoar a injustiças e abusos, deveria des de logo suspeitar que elle não tivesse deixado 'n alguma parte das suas obras de vibrar o látego da censura contra a protervia dos dois privados, e abster-se de exarar se- melhante proposição, sem que primeiro procedesse a un exame reflectido e minucioso, que Ihe-daria provas do contrario do que 'n ella aífirmou.

' Mem. Hist. c Crit. à cerca de Luiz de Camões. Memor. da Acad. R. das Scicn. de Lisboa T. vii, p. 234, nota (b).

CAMÕES ' 161

O ter Gamões invectivado contra os dois validos de Dom Sebastião, particularmente contra o jesuita Luiz Gonçalves da Gamara, seo confessor, não pode ser posto em duvida á vista das est. 54 e 55 do Gant. VIII dos Lusiadas, onde diz:

Oh quanto deve o rei, que bem governa, De olhar que os conselheiros, ou privados, De consciência e de virtude interna E de sincero amor sejam dotados! Porque, como este posto na superna Cadeira, pôde mal dos apartados Negócios ter noticia mais inteira Do que Ihe-der a lingua conselheira.

Nem tampouco direi, que tome tanto *

Em grosso a consciência limpa e certa Que se-inleve n'un pobre e humilde manto, Onde ambição acaso ande incoberta; E quando un bon em tudo é justo e sancto, Em negócios do mundo pouco acerta: Que mal com elles poderá ter conta A quieta innocencia em Deos prompta.

O sentido d'estas duas estancias contêm uma allusão manifesta. O commenlador Ignacio Garcez Ferreira, discorrendo sobre o assumpto, diz com bastante chiste que o intento do poeta «é picar com determinação al- guns em particular e, n esta ultima estancia, algun sin- gtdarmeníe, cortando-lhe o manto do mesmo panno do habito. > *

* NoU 158 á est. 55 do Cant. VIII dos Lusiad. 11

162 ' CAMÕES E OS lusíadas

Quanto á segunda parte da proposição que é: não se-haverem os Camarás reputado em tempo algun of- fendidos de Camões, diremos que não nos-consta que d'elle se-mostrassem offendidos, declarando-o por pala- vras; mas expressaram-no bem por obras, como fize- mos vêr na analyse do alvará de mercê.

CAMÕES tOJ

xxni

Os Lusíadas tiveram des de logo immensa voga, e adquiriram o seo auctor uma gloria de que elle ainda se-gozou; podendo persagiar que cresceria sempre com louvou a fama do seo nome, do mesmo modo que de si vaticinou Horácio:

Usque ego póstera

Cresçam laude recens

Todavia a satisfação intima que Ihe-resultava de ha- ver levantado un tam prodigioso monumento á gloria da sua pátria devia ser-lhe grandemente dissaboriada pelos continues receios de que, denunciado por menos orthodoxo nos principies da catholica, viesse a expiar nas torturas da inquisição o ódio que professava aos jesuítas.

Não podiam ser mais justificados os motivos que se- davam para taes receios. A intolerância religiosa su-

164 CAMÕES E OS lusíadas

bira de pondo, contrastando com o que então practica- vam os próprios mouros; aquellesa quem nós appellida- vamos de bárbaros, e que depois da desastrosa batalha de Alcacer-Kebir, nos-deram lições de humanidade e de admirável tolerância, consentindo que os portugueses, que em Fez e Marrocos ficaram seus captivos, exerci- tassem o culto da religião christãa, celebrando missas rezadas e cantadas, tendo pregação, e chegando mesmo a sair em procissão uma quinta feira de induenças. *

No mesmo anno em que se-publicaram os Lusiadas, celebrou-se em Évora un apparatoso auto-de-fé em que foram queimadas dezoito victimas da inquisição, assis- tindo áquelle horrivel espectáculo o próprio Dom Se- bastião com seos dois thios, o cardeal Dom Henrique e o infante Dom Duarte, 'n uma tribuna armada juncto á casa da camará, tendo ante si o alferes -mor com o es- toque desimbainhado em signal de ser elle o defensor da fé. ^

1 Fr. Bem. da Cruz, Chron. de elrei Dom Sebastião, Gap. XGII.

Para que se-veja o quanto contrastava com a tolerância mahometana a obcecada intolerância dos cliristãos, poremos aqui o seguinte facto referi- do por fr. Pantalião de Aveiro, escriptor jesuíta, e, por isso, insuspeito.— Conta elle que, desejosos os príncipes christãos de re-adquirirem em Hie- rusalem a posse de un sacello, que fora tirado aos frades, e cuja tradição rezava que tinha sido o logar onde a virgem e os apóstolos se-achavam, á hora em que sobre elles desceu o espirito sancto em línguas de fogo, dia de pentecostes, o que mandando Henrique de França, a requerimento do papa, pedir com solemne embaxada e ricos presentes, aquelle logar a So- limão, este Ihe-dera em resposta, que Ihe-deixasse elle fazer uma mesquita dentro da cidade de Paris para que os da sua lei tivessem onde louvar a Deos e a Mafoma, e livremente mandaria tornar o logar aos frades Itiii. Cap. XXXVIl, foi. 111 V.

O resultado foi que a intolerância christãa quis antes deixar flcar o sa- cello nas mãos dos infleis do que consentir n'un acto de tanta justiça e equidade.

* Fr. Man. dos Santos, Hist. Sebast. l. 11. Cap. 18, p. 278 e seg.

CAMÕES 165

No mesmo anno a que nos-referimos, foi condemna- do pela inquisição a cárcere penitencial perpetuo, e a sequestro de todos os bêes para o fisco e camará real, Damião de Góes, varão clarissimo em lettras, conspicuo e benemérito, somente por algumas duvidas que muitos annos antes tivera n alguns ponctos da catholica; sendo denunciado pelo infame Simão Rodrigues, geral da companhia de Jesus, com o visivel propósito de o-inhibir de ser mestre do principe Dom Johão, impre- go que o mesmo denunciante, Simão Rodrigues, ambi- cionava e pretendia para si.

Adquirira Damião de Góes profundos conhecimentos em humanidades, estudando seis annos na Universidade de Pádua, ^ composta de cathedraticos insignes: fora muitas vezes incarregado por Dom Johão III de impor- tantes negócios nas cortes extrangeiras, onde versara os homêes mais notáveis do seo tempo; mas nem os servi- ços que prestara como politico, nem os livros de histo- ria que escrevera, e que Ihe-haviam grangeado summa consideração litteraria, nem, finalmente, o ser amigo de Sadoleto, secretario privado de Leão X, o poderam exi- mir dos medonhos cárceres inquisitoriaes e da sentença condemnatoria que Ihe-infligiu o abominando tribunal

Uma circumstancia occurreu que mostra até onde che- gara o fanatismo estúpido e o falso zelo da religião, que muitas vezes servia de acobertar a inveja, a malque- rença e outras ruins paixões. Entre as testimunhas

' D'esta circumstancia nos-informa elle mesmo na Chron. de eirei Dom Man. III Part Gap. LX, p. 229, v. col. 1.»

166 CAMÕES E OS lusíadas

accusatorias que 'n este iniquo processo figuram, appa- rece Pedro de Andrade Caminha, poeta destituido de ingenho e saber, mas fértil em escrúpulos de consciên- cia, depondo espontaneamente eontra o dicto Damião de Góes, por Ihe-ter ouvido dizer 'n uma practica que com elle tivera sobre as particularidades que occurreram no fallecimento do infante Dom Duarte, que não havia ho- mem que na morte não di cesse algumas 'parvoíces; o que não continha nada de herético ; mas contrariava os de- sejos dos parentes do infante e a opinião dos visioná- rios e milagreiros da corte, que pretendiam que elle tivesse morrido sancto, e que até houvesse vaticinado o dia em que havia de fallecer.

O espirito religioso daquelles tempos, que não era desaccompanhado de ambição e de vaidade, dava azo a que todos aspirassem a ser sanctos, ou a ter, sequer, algun parente canonizado: contraste singular com o que se-passa em nossos dias, em que ninguém quer ser sancto; mas sim visconde, ou, pelo menos, barão!

Claro se-vê quam fundados motivos teria Luiz de Camões para se-receiar das machinações de seos inimi- gos, e das denuncias de qualquer fanático, ou malévolo da estofa de Pedro de Andrade Caminha; porque de uma, ou de outra d'estas coisas, o-devemos ter por sus- peito, senão de ambas junctamente. E por isto que o mesmo Camões se-acautelava frequentando assiduo os frades do convento de san' Domingos; o que sendo at- tribuido por alguns biographos a estreita amizade, ou a devoção que Ihes-professava, não era, por certo, senão o meio com que procurava nos fautores da inquisição,

CAMÕES i67

com o gosto apparente de Ihes-ouvir lições de theologia, presidio e refugio contra o farejar suspicioso do feroz e sanguinário tribunal, que então trabalhava activamente 6 cujas terriíicas apprehensões, além da penúria e de- samparo, não deixariam de attribular os últimos annos do poeta.

168 GAMÕES E OS lusíadas

XXIV

Vendo-se elle indignamente remunerado, caiu do alto de todas as esperanças, abysmando-se n uma profunda melancolia, que não o-abandonou o resto de seos dias. Sobrevieram-lhe as infermidades próprias de uma ve- lhice prematura, aggravadas com a pobreza e a miséria, que chegou a tal extremo, que o escravo jáu, que trou- xera da índia, modelo de affeição e figura poética e in- ternecedora, que tanto nos-sensibiliza e commove, pedia de noite esmola para seo pobre senhor. ^Já defesso, e quando apenas da sua humilde habitação, na calçada de Sanct'-Anna, mal podia arrastar-se em muletas até o convento de San' Domingos, foi repentinamente ful- minado pela nova da tremenda catastrophe de Alcacer- Kebir, que veiu pôr no throno un padre decrépito, ulti- ma degeneração do robusto tronco de Avis, com o qual estava des de logo prevista a perda da nossa indepen- dência nacional.

GAMÕES 169

E com effeito, as duas primeiras raças de nossos reis, que ambas tiveram origem cm heróes famosos, a tal poncto degeneraram e se-perverleram, que a dos Capetos, começada em Dom Affonso Henriques, se- extinguiu por un rei fraco, descuidado e que, depois de ter posto o reino em grande aperto, o-deixou em estado que foi forçoso que os portugueses o-resgatas- sem nos campos de Aljubarrota. ^A de Avis, come- çada no invicto Dom Johão I, acabou por un padre imbecil, fanático, inxerto de rei, sem coração e sem patriotismo, de quem não se-podia esperar senão que intregasse Portugal a Castella, como era gosto seo, e como não deixou de practicar para que a influen- cia jesuitica e o dominio da inquisição se-pcrpetuas- sem com o despotismo politico, sanguinário e feroz d'a- quelle a quem hoje chamamos o Demónio do Meio- dia.

Não chegou Luiz de Camões a presenciar a escravi- dão da pátria e as calamidades que Ihe-advieram. Espirou no dia 10 de junho de 1580 no leito da dor que alguns pretendem ter sido o de un hospilal; mas que outros, com mais fundamento, asseguram que foi o da própria habitação, não menos triste e lastimoso, onde soltou o derradeiro gemido entre os gemidos da pátria agonizante.

Depois de morto, foi este insigne varão levado a egreja do convento de Sanct'Anna, onde Ihe-deram se- pultura raza á intrada da porta, do lado esquerdo, sem epitaphio algun; e assim permaneceu até que Dom Gonçalo Coutinho, tempos depois, lhe mandou pôr na

170 GAMÕES E OS lusíadas

sepultura uma campa de mármore em que fez gravar o seguinte epitaphio:

aqui jaz luiz de camões

príncipe

dos poetas do seo tempo

morreu no anno de 1579. *

esta campa lhe-mandou aqui pôr d. gonçalo coutinho

na qual se não interrará pessoa alguma.

Mais tarde foi este epitaphio substituido por outro em latin, nimiamente prolixo e emphatico, que Martin Gonçalves da Gamara incommendou ao padre Mattheos Cardoso, da companhia de Jesus, com o que, segura- mente, pretendeu abluir a mácula que Ihe-provinha de haver deixado perecer á mingua o homem que era proclamado Príncipe dos poetas de Hespanha, e por quem o mesmo Philippe, intrando em Portugal se não esqueceu de perguntar, querendo com isso lisonjear o amor próprio e captar a benevolência dos portugueses.

O caso é que o próprio bispo de Viseu, na vida do poeta, pôe em duvida se Martin Gonçalves da Gamara quis acudir com a justiça com que faltara 'n outro tem- po, ou, se, receioso da futura infâmia, quis anteparar-se com un estratagema, e lançar artificiosaníiente poeira

* Não estava em nossa mão alterar o epitaphio, segmido o-transcreve Fr. Fernando da Soledade na Historia Serapliica Chronologica da Ordem de San' Francisco na Provincia de Portugal, T. IV, L. 4.» Cap. 19, p. 526; mas pela ementa achada no Archivo Nacional pelo senr. Visconde de Jurome- nha, a qual reza que se-mandou pagar á mãe do poeta o saldo que a este se-flcou devendo do primeiro semestre do anno de 1580, é fora de duvida ter o mesmo fallecido a 10 de junho do dicto anno.

CAMÕES 171

nos olhos da posteridade. ' Esta segunda hypothese é a que tem, por certo, mais visos de probabilidade.

Eis o que nos-parece que a critica pode hoje apu- rar á cerca de Luiz de Camões.

Este homem, a quem seos concidadãos deixaram mor- rer nos desamparos e nas attribulações da pobreza, le- gou, todavia, á sua pátria não riquíssima herança de gloria, mas inda un tam patriótico enthusiasmo, que, fazendo-nos palpitar os corações, nos-infunde 'n elles os heróicos brios que serão em todo o tempo a garantia fiel da nossa independência nacional. ^

O conquistador, que pretender subjugar a nossa que- rida pátria, ha de primeiro rasgar, até a ultima pagina, o poema immortal dos Lusiadas.

* Memor. Hist. e Crit. á cerca de Luiz de Camões. Mem. da Acad. R. das Scien. de Lisboa, T. VII, p. 234.

» Johão Vicente Pimentel Maldonado, deputado ás Cortes de 1821, levan- tando alli a voz e exprobando a ingratidão com que em todos os tempos a pátria deixou de remunerar os homêes que maiores serviços Ihe-presta- ram, citou Duarte Pacheco, António Galvão, Nuno da Cunha, e, por ultimo, Luiz de Gamões: Luiz de Camões, exclamou elle, aquém devemos alingua que falámos, e com ella a independência; o que provaria, se estivesse 'n imia sessão académica.

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os lusíadas

li

os lusíadas

Fizemos ver a importância politica dos Lusiadas; a influencia que exerceram no animo abatido dos portu- gueses, e os patrióticos alentos que inda hoje nos-infun- dem para defendermos a nossa independência nacional. Gumpre-nos hagora expor algumas reflexões sobre os méritos litterarios do poema.

Comquanto o intento visivel de Camões fosse preco- nizar os feitos inclytos de todos os portugueses para in- grandecer as glorias da sua pátria, tomou, todavia, por assumpto especial a maior impresa dos tempos moder- nos, qual foi o descobrimento da índia. Fez, por este modo, que os Lusiadas constassem de uma acção única; porque intendeu com discernimento o poeta dever cha- mar a attenção e o interesse a un centro a que todos os episódios, por mais grandiosos e patheticos, houvessem de ficar sobordinados. Não procedeu, porém, assim quanto ao heróe do poema. À maneira de Apollonio

176 CAMÕES E OS lusíadas

Rhodio, que não cantou Jason, mas os Argonautas, Ga- mões não celebra exclusivamente o Gama: canta os he- rdes daquella gloriosa expedição. Haveria, por ventura, 'n este proceder uma intenção premeditada para com o chefe da impresa que sabemos era parente do poeta, e ao qual, porque nunqua a nenhun de seos descendentes me- receu protecção, negasse o grau de preeminência a que parece devia ter direito? É o que não podemos hoje em dia dilucidar e do que apenas nos-é permittido ter sus- peitas. *

Fosse, porém, este, ou outro, o motivo^ é certo que nos Lusíadas figura o Gama como o cabeça d'aquelle grande commetimento; mas não como o heróe exclusivo d'elle.

* Os descendentes de Vasco da Gama, que deviam ser gratos a Luiz de Camões, não não o-protegeram; mas até Ihe-foram desaffeiçoados.— A causa d'esta malquerença depreliende-se da est. 98 do Cant. V, em que o poeta, postoque de un modo indirecto, os descreve como homêes assas ignorantes e a quem se não dava mesmo de o serem.

Mas o peior de tudo é, que a ventura Tam ásperos os-fez, e tam austeros, Tam rudos, e de ingenlio tam remisso. Que a muitos llie-dá pouco, ou nada d isso.

As suspeitas que se-nos-oflferecem sam ainda corroboradas pela nota que á est. 99 do mesmo Canto se-acha exarada na edição dos Lusiadas, feita em Paris no anno de 1846, onde se lê:

«Os versos d'esta oitava parecem confirmar un antigo boato que corre: e é que inteirado o descendente, ou descendentes de Vasco da Gama, que estava para sair á luz un poema que immortalizava esse heróe, responde- ram com orgulhosa estultícia: Nós lemos os íilulos e não carecemos do poe- ma.»

Se este boato merece ser accreditado, é evidente que a homêes de tam extranho orgulho não podia ser acceito Luiz de Camões; tornando-se, por- tanto, fundadas as suspeitas de que, altamente despeitado o poeta, quisesse tirar d'elles uma justa vingança, deixando de fazer do Gama o único heróe do seo poema.

os lusíadas 177

Na proposição annuncia o poeta ter por objecto can- tar os varões assignalados que passaram inda além da Taprobana.

Na invocação a elrei Dom Sebastião diz, sem distin- guir o chefe da impresa:

E vereis ir cortando o salso argento

Os vossos Argonautas

Cant. I, Est. 18.

Aos negros de Moçambique que perguntavam aos nossos quem eram, respondem estes:

Os portugueses somos : do Occidente Imos buscando as terras do Oriente. '

Cant. I, Est. õO.

Referindo o Gama ao rei de Melinde como foi convo- cado e composto o pessoal da expedição, remata:

' Devemos aqui notar un erro que anda introduzido em todas as edi- ções dos Lusíadas, as quaes trazem:

Os portugueses somos do Occidente, Imos buscando as terras do Oriente.

Não é possivel que Luiz de Camões dicesse os portugueses do Occiden- te; como se alguns houvesse que fossem do Oriente.— A falta de ponctua- ção, que produz uma tam notável incongruência, é claramente manifesta; devendo ler-se :

Os portugueses somos:— do Occidente Imos buscando as terras do Oriente.

admira que ninguém, até hoje, advertisse n' un erro tam facíl de no- tar e corrigir. 12

178 CAMÕES E OS LUSUDAS

Assi foram os Miayas ajunclados, Para que o véo dourado combatessem, Na fatídica náu, que ousou primeira Tentar o mar Euxino aventureira. '

Cant. IV, Est. 83.

Chegando os nossos a avistar a costa de Malabar, termo que se-propunham, faz o poeta a seguinte apos-

trophe:

Ora sus, gente forte!

sois chegados, tendes deante A terra de riquezas abundante.

Cant. VI, Est. 1.»

Finalmente, estando de volta os afortunados navegan- tes, não é particularmente do Gama que o poeta faz men- ção, mas de todos os descobridores em geral:

Intraram pela foz do Tejo ameno E á sua pátria e rei temido e amado O premio e gloria dam; porque mandou E com titulos novos se-illustrou.

Cant. X, Est. 144.

os LUSUDAS 179

Se considerarmos a Índole c o characler dos Lusía- das, acharemos que se-compôem de uma mixtura do clássico genuino com o pm-o romântico: consequência do que se-passava no século XVI, em que as imaginações eram attrahidas pelas seductoras ficções da mylhologia pagãa, propagadas pela renascença; ao passoque subsis- tia o gosto das proezas cavalheirosas, das justas, dos tor- neios, das aventuras e inredos do amor; tudo isto de in- volta com uma crença viva na religião catholica romana, nos milagres dos sanctos, nos bruxedos, nos malefícios do diabo cujo poder corria parelhas e estava sempre em liça com o dos mesmos sanctos, do que se-compunham lendas e farças populares.

Nâo podia, portanto, o auctor dos Lusíadas deixar de alligar o que pertencia ao puro gosto clássico com o que era do gosto das scenas cavalheirosas da edade media, cujas remeniscencias estavam mui vivas e constituíam

ISn r.AMoKs !•; os lusíadas

nma das feições mais prominentes do charatcer nacio- nal.

Assim, vemos que no poema se-contêem ôs dois refe- ridos géneros, que se-acham dispostos e tractados com tal artificio, que nada oíTerecem que nos-repugne.

Ao género clássico pertencem: o concilio dos Deoses no Olympo; o episodio das Nereides pondo o peito á proa das naus para impedir que os portugueses entrem o porto de Mombaça e sejam alli destruidos; a formosa descripção de Vénus quando vai pedir favor a Júpiter para seos amados lusitanos; o sonho de elrei Dom Ma- nuel, em que Ihe-apparecem os dois celebres rios Indo e Ganges;— o soberbo episodio do Gigante Adamastor; a descripção dos paços Neptuninos e do concilio dos Deoses equoreos; a da tempestade no oceano Indico; o episodio dasNymphas abrandando a fúria dos Ven- tos;— a deliciosa descripção da ilha dos Amores; e, finalmente, o banquete dado por Tethys a Vasco da Ga- ma, em que uma Nympha canta os louvores dos varões preclaros que liam de assignalar-se nas parles do Orien- te; o que é outra imitação da antiguidade clássica.

Sam pertencentes ao género romântico: os feitos cavalheirosos de Dom Affonso Henriques; o episodio de Egas Moniz; d da rainha Domna Maria, vindo pe- dir a seo pae auxilio para seo marido Dom AíTonso, rei de Castella; a descripção da batalha de Tarifa;— o episodio trágico de Domna Ignês de Castro; a proso- peia de Dom Nuno Alvares Pereira; a descripção da batalha de Aljubarrota; o episodio de Velloso indo ter com os cafres na angra de Sancta Helena; o de Dom-

os LUíilAUAS 18 1

na Leonor de Sá; a historia dos doze de Inglaterra; e a lenda do apostolo San' Thomé.

AlgQns dos episódios d'este segundo género téem ain- da o estilo e a pomposa magnificência do género clás- sico.— O da rainha Domna Maria, vindo pedir soccorro a Dom Affonso IV, é un exemplo do que asseveramos. A fala de Dom Nuno Alvares Pereira pode comparar-se na cmphase e na sublime altivez da phrase ás mais enér- gicas e ostentosas dos heróes da Iliada.

Teceu Gamões a fabula épica do seo poema im pre- gando as divindades allegoricas do Paganismo, em vez de servir-se do maravilhoso da religião christãa; pelo que alguns o-têem censurado, pretendendo que do im- prego das machinas mythologicas resulta un antagonis- mo e conflicto entre as duas religiões ; e que, se houvesse feito uso do segundo meio, não evitara tal inconve- niente, senão que poderá obter egual numero de belle- zas poéticas. *

Não sabemos o que poderia obter Camões, se hou- vesse impregado este segundo meio; mas é certo que a

Esta opinião que ê, entre outros, a de Joseph Agostinlio de Macedo e Hieronymo Soares Barbosa, revela, quanto a nós, uma completa insciencia de tudo o que é attinente ao estudo das bellas-artes.— Eis o que, sobre tal objecto, acabámos de lêr n'uma obra recentemente publicada :

«Précédement la religion contribuait tout autant que Tart à inspirer les productions des peintres et des statuaires; mais aussilòt que lart a été tou- cbé par le souffle de Tantiquité, il s'est délivré des liens de la religion.— Nous pouvons remarquer combien ce fait est plus caracterisc dans Raphael même d'année en année. Critiquez ce resultat si vous voulez, toutefois serais porte à croire que Télément profane était nécessaire pour enfanter cette belle fleur d'art et de poésie.» L. Ranke, Hist. de la Papauté, pendant le seizième et le dix-septième siècles. Tom. L^Introd. par A. de Saint-Chc- ron, pag. 71.

182 CAMÕES E OS LUSIABAS

religião christãa não é susceptivel de outras bellezas que não sejam propriamente as moraes; accrescendo que os terrores e as macerações, que o obscurantismo havia en- tão posto em voga, imprimiam no christianismo un as- pecto pavoroso, carecente da poesia suave que o nosso século mais adeantado soube dar-lhe. Toda a poesia bafejada de mimos e de graças ridentes provinha da theogonia greco-romana. Por isso o poeta é essencial- mente ethnico; mas os seos heróes sam, e não podiam ser outra coisa senão christãos, sem que d'ahi resulte o conflicto que se-pretende. Se, todavia, n'isto peccou, felix culpa, que nos-dehcía com os incautos e as mara- vilhas de que, por outro modo, ficáramos seguramente privados.

Fazendo especial estudo dos grandes mestres da an- tiguidade clássica, quaes foram Homero, Apollonio Rho- dio e Virgilio, de todos mais, ou menos, se-aproveitou Gamões na composição do seo poema; mas foi particu- larmente a este ultimo que pretendeu imitar e a que não raras vezes sobresaíu.

Na contextura dos Lusiadas procurou visivelmente seguir a fabula épica da Eneida. Em ambos os poe- mas a acção começa no mar largo, depois de decor- rida uma grande parte da viagem e dos successos que ao deante se-referem. A narração que Enéas faz á rainha Dido do cerco de Tróia e de todos os aconteci- mentos posteriores, até aportar a Garthago, serviu de norma á narração que Vasco da Gama faz ao rei de Me- linde, na qual, começando por descrever a Europa, conta a historia de Portugal, a tentativa do descobrimento da

os lusíadas 183

índia por elrei Dom Manuel, e lodos os successos occor- ridos durante a viagem até o momento de aportar a Me- linde, cidade fronteira a Calecut, onde termina a narra- ção, do mesmo modo que Enéas termina a sua em Gar- thago, cidade fronteira a Itália e ás fozes do Tibre:

Italiam contra Tiberinaque longe

Ostia

Da cidade Tiria parte depois Enéas para Itália, ter- mo e complemento dos altos destinos que Ihe-estavam marcados: Vasco da Gama parte de Melinde para Cale- cut, termo e complemento da audaz impresa que Ihe-fôra commettida e a que põe glorioso remate. *

Tal é plano geral dos Lusiadas, modelado, segundo vemos, pelo da Eneida. Os accessorios não podiam deixar de ser differentes, e é delles que passamos a oc- cupar-nos.

* 'H outras partes do seo poema imitou Camões a Yirgilio; mas d'esta accusação não pôde exemptar-se o mesmo Yirgilio, que, a cada passo, imi- tou a Homero.— O banquete que a rainha Dido a Enéas, onde este Ihe- faz a narração do cerco de Tróia, é copia do banquete dado por Alcinoo a Biysses, no qual o rei de Ithaca Ihe-relata as suas aventuras des de que saiu da ilha Ogygia;— adescripção dos jogos da Sicilia sam em tudo semelhan- tes aos celebrados pela morte dePatroclo;— a descida de Enéas aos Infer- nos é conforme á que na Odysséa se-contaque efifectuouUlysses;— a scena pathetica do cavallo de batalha de Pallante, que derrama lagrymas nas exé- quias de seo domno, é tirada dos cavaUos de Achiiles que as-derramaram pela morte de Patroclo.— O episodio em que Vénus vai pedir a Vulcano que Ihe-fabrique armas para seo filho Enéas, teve origem na liiada, em que The- tis as-foi pedir ao mesmo Vulcano para seo filho AchUles.

De Apollonio Rhodio não sam menos frequentes as imitações:— a per- da dePalinuro, piloto da nàu de Enéas que caiu ao mar e se-afogou nas on- das, é tirada da de Tiphys, piloto da náu Argos, que também pereceu nas ondas:— o modo porque a Sibylla adormeceu o cão Gerbero, impregando un philtro, é o mesmo que impregouMedôa para adormentar o monstro que estava de guarda ao Vellocino, etc. etc.

184 CAMÕES E OS lusíadas

III

Depois da proposição e de duas bellissimas invoca ções, uma ás Nymphas do Tejo, e outra a elrei Dom Se- bastião, que inda era menor, * começa o poeta a narra- ção em que pinta a armada singrando no mar alto; e logo passa a descrever un solemne concilio dos Deoses convocado no Olympo por parte do Tonante, para alli se-tractarem as coisas futuras do Oriente, Júpiter, de- pois de un breve preambulo, relata que os navegantes veiem quebrantados da longa via do mar :

Nas aguas têem passado o duro hynverno, A gente vem perdida e trabalhada;

' Os Lusíadas foram começados em Lisboa, como attesta a invocação á Nymphas do Tejo :

E vós Tágides minhas etc.

Mas a invocação a elrei Dom Sebastião foi feita depois de haver par- tido o poeta para a índia; o que teve logar em 1553, tempo em que inda não era nascido o dicto rei.

os lusíadas 185

e julga, portanto, que devam ser agasalliados na cos- ta africana, donde depois de refeitos, tornarão a seguir sua derrota.

Trava-se em seguida un caloroso debate, no qual ca- da un dos Deoses, antevendo o resultado que do bon êxito da expedição poderá seguir-se, procura favorecel-o, ou impedil-o, segundo seos interesses e affeições.

Do tumulto que se-segue, offerece-nos o poeta un bel- lo e adequado simile:

Qual Austro fero, ou Borcas na espessura De sylvestre arvoredo abastecida, Rompendo os ramos vam da mata escura Com Ímpeto e braveza desmedida, Brama toda a montanha, o son murmura, Rompem-se as folhas, ferve a serra erguida: Tal andava o tumulto levantado Entre os Deos do Olympo consagrado.

Os costumes sam rigorosamente observados. Bac- cho, receiando que possa obscurecer-se a fama egrégia das suas conquistas na índia, se os portugueses che- garem, oppõe-se a que a armada por deante. Pro- tege Vénus a impresa; sendo congruente a razão porque se-declara a favor dos portugueses; que é por julgar ver n'elles os seos antigos romanos:

Affeiçoada á gente Lusitana

Por quantas qualidades via 'n ella

Da antiga tam amada sua Romana.

Com eíTeito, aquella Roma, que Vénus amou tanto;

186 CAMÕES E OS LUSUDAS

onde os descendentes de seo filho Enéas se-distinguiram por assombrosos feitos, não existia já. Un padre oc- cupava o throno dos Césares, e un collegio de cardeaes, em vez do Senado augusto e venerando, bemcomo uma nação de frades e castrados em logar do povo rei, de- viam fazer com que Vénus impregasse o seo amor nos lusitanos, herdeiros das virtudes heróicas dos nobres querites.

Marte abraça o partido de Vénus, ou pelo amor an- tigo que á Deosa tributara,

Ou porque a gente forte o-merecia.

A figura do Deos da guerra é nobre, imponente e, sem contradição, superior á que d esta Divindade nos- representa Homero:

D*entre os Deoses em se-levantava Merencório no gesto parecia: O forte escudo ao collo pendurado, Deitado para trás, medonho e irado.

A viseira do elmo de diamante Alevantando un pouco, mui seguro Por dar seo parecer, se-pôs deante De Júpiter, armado, forte e duro; E dando uma pancada penetrante Co'o conto do bastão no sólio puro, O céo tremeu, e Apollo de torvado Un pouco a luz perdeu, como inflado.

Propellindo as allegações de Baccho, a quem mina-

os lusíadas 187

cissimo impropera, roga Marte a Júpiter que invie Mer- cúrio a mostrar aos navegantes alguma terra onde se- informem da índia e possam recuperar as forças exhaus- tas.

Júpiter annúe e dispartem-se os Deoses.

188 GAMÕBS K OS lusíadas

IV

Navegava entretanto a armada entre a costa da Ethio- pia e a ilha de San' Lourenço.

Passado o promontório Prasso, avistam os nautas alguns bateis que, de uma das ilhas que demoravam perto da costa, vinham velejando para elles.

Eram os advenientes mouros de Moçambique, dos quaes o poeta faz uma fiel descripção. Os nossos in- direitam as proas para fundearem juncto das ilhas, onde lançam ferro, o que é elegantemente expressado:

Tomam velas, amaina-se a verga alta, Da anchora o mar ferido em cima salta.

Estes versos fazem lembrar os de Virgílio:

Haec Proteus : et se jactu dedit aequor in altum ; Quaque dedit, spumantem undam sub vértice torsit. Georg. L. IV, v. 528-529.

os lusíadas 189

Mas a idéa representada em Camões é mais piclu- resca.

Logo communicam os mouros com a armada, vindo a bordo da capitanea, onde sam bem recebidos. Infor- mam que a ilha a que pertencem ha nome Moçambique, a qual tem un Xeque, ou regedor, com quem acham con- veniente que os nossos se-avistem; e que d'elle poderão obter piloto para a índia.

No dia seguinte vem a bordo o regedor que, adqui- rindo conhecimento de serem os nossos christãos, Ihes- concebe implacável ódio, que, todavia, dissimula, para que melhor possa pôr em execução sua vontade.

E Baccho sabedor da ruin tenção do Xeque, e, logo, a íin de excitar-lhe o ódio, toma a figura de un mouro, seo privado: certifica-lhe serem piratas os recem-chega- dos, cujos intentos consistem em roubar-lhe os haveres, bemcomo as mulheres e os filhos; e instiga-o a que Ihes- arme uma cilada.

Dirigindo-se o capitão a terra com alguns bateis para fazer aguada, não os mouros lh'a-tolhem, senão ain- da se-appresentam em ton de guerra. 'n elles o Ga- ma determinadamente; desbarata-os, e, para completar a victoria, esbombardeia a povoação.

A pintura do combate é animada, e 'n ella sobresáem os seguintes traços de bellissima poesia:

Eis nos bateis o fogo sc-levanta Na furiosa e dura artiiheria: A plúmbea pella macta, o brado espanta Ferido o ar retumba e assobia.

Cant. I, Est. 89.

190 CAMÕES E OS lusíadas

Fugindo, a setta o mouro vai tirando Sem força, de covarde e de apressado, A pedra, o páo, o canto arremessando; Dá-lhe armas o furor desatinado.

Cant. I, Est. 91.

Estes últimos versos sam imitados de Virgilio:

Jamque faces et saxa volant; furor arma ministrai.

^N. L. I, V. 150.

Desbaratado o mouro, e recolhido á terra firme, com- mette pazes aos navegantes com o propósito occulto de Ihes-dar m piloto, de antemão peitado, para os-levar onde hajam de ser mortos, ou captivos. Recebem es- tes o piloto, que, por meio de falsas promessas, preten- de conduzil-os a Quilôa, ilha em poder e forças mui su- perior a Moçambique, na qual Ihes-estava preparada no- va traição. Não permitte, porém, a Deosa que tem sob seo presidio os portugueses, que elles alli aportem. Com ventos contrários desvia para longe a armada.

Não explica o poeta como Vénus poude dispor dos ventos sobre os quaes não tem poder algun; o que o mesmo poeta nos-faz sentir no Cant. VI, onde, para Ihes- applacar a fúria, e serenar a tempestade que haviam alevantado, é mister á Deosa impregar as seducções das Nymphas, que Ihe-formam o cortejo.

Não sendo possivel ao piloto mouro conduzir a arma- da a Quilôa, imprega outros imbusles com que a-leva ao porto de Mombaça.

os lusíadas 191

Logo que as naus chegaram defronte da cidade, sam os navegantes saudados da parte do rei daquella ilha, o qual se-achava prevenido por Baccho (que para isso tomara a figura de un mouro) e entre muitos oífe- recimentos capciosos, os-convida a que entrem no porto para alli se-repararem das fadigas do mar e proverem de mantimentos. Agradece-lhe o capitão as palavras, fazendo-lhe saber que não entra logo por ser noite; mas que assimque o dia raiar, e poder conduzir a frota sem perigo, se-prestará ao seu convite. Com os mou- ros que vieram com o recado invia dois portugueses de- gredados que trazia para servir-se d'elles em casos de risco, e junctamente remette alguns presentes para el- rei, incarregando os mensageiros de tudo observarem. Accolhe o rei benignamente os mensageiros para desta arte os illudir, c poder effectuar seo perverso designio,

|92 fiAMÕES E OS LUSÍADAS

O qual consistia em incendiar as naus, se chegassem a intrar no porto.

Desimbarcados os dois portugueses, percorrem a ci- dade e 'n ella vam ter a uma casa, onde se-lhes-offerece un altar em que estava representado o Espirito Sancto e a Virgem, queBaccho, em figura de mouro, fingia que adorava, com o propósito de os-ingannar; fazendo-lhe^ crer que na mesma cidade havia christãos.

Este episodio de máo gosto, e desnecessário ao inre- do da fabula épica, remata com un trocadilho a que os italianos chamam conceito, o qual é realmente desgra- cioso:

E assi, por derradeiro,

O falso Deos adora o verdadeiro.

Mas estes devios censuráveis do poeta vam ser em breve resgatados por bellezas de uma ordem tam supe- rior que logo os-farão olvidar.

Regressando os dois portugueses a bordo, relatam que foram bem accolhidos da parte do rei e da gente da terra, e que entre esta havia alguma que professava a lei de Chrislo- Logo o capitão manda suspender ancho- ras e, desfraldando as velas de proa, se-incaminha di- reito á barra.

Vénus, porém, que perattenta observa do alto o pe- rigo em que os portugueses vam cair, desce rápida e, convocando as alvas filhas de Nereo, todas á porfia met- tem hombros á capitanea, e, não obstante os exforços combinados da manobra, impellem a nau para trás.

'N este quadro, indisputavelmente bello, pretendeu.

os lusíadas tfl^'

sem duvida, Gamões imitar Apollonio Rhodio, o qual, no seo poema, para salvar a náu Argos das rochas Plan- cteas, faz que lhe-accorram a Deosa Thetis e as mesmas Nymphas filhas deNeréo. Comquanto, porém, imita- do na idéa primordial, é o presente quadro altamente superior no gracioso da descripção ao do poeta grego. Vejamol-o no nosso épico :

n' agua erguendo vara com grande pressa Com as argênteas caudas branca escuma: Doto co'o peito corta e atravessa Com mais furor o mar do que costuma: Salta Nise, Nerine se-arremessa Por cima da agua crespa em força summa: Abrem caminho as ondas incurvadas, De temor das Nereidas apressadas.

Nos hombros de un Tritão com gesto acceso Vai a linda Dione furiosa: Não sente quem a-leva o doce peso, De soberbo com carga tam formosa: chegam perto d'onde o vento teso Enche as velas da frota bellicosa: Repartem-se, e rodeiam 'n esse instante As naus ligeiras, que iam por deante.

Pôe-se a Deosa com outras em direito Da proa capitaina, e alli fechando O caminho da barra, estão de geito, Que em vão assopra o vento a vela inchando: Põem no madeiro duro o brando peito, Para de trás a forte náu forçando: Outras, em de redor, levando-a estavam, E da barra inimiga a-desviavam.

Cant. H, Est. 20, 21, 22. (3

194 CAMÕES E OS IiUSIADAS

'N esta pintura é notável a propriedade com que o poeta nos-mostra o gesto accesso de Dione, irritada por causa das insidias de Baccho; bemcomo a ofania com que o Tritão transporta nos hombros a Deosa dos Amo- res; o que é primorosamente descriplo 'n aquelles ópti- mos versos:

Nâó sente quem a-leva o doce peso, De soberbo com carga tam formosa.

Na faina de marear a náu, que pretendem fazer in- trar a barra, levantam os marinheiros alta celeuma com o que se -alvorotam os mouros que estavam a bordo, e que, julgando ver descobertas suas tramas, junctamente com o piloto que viera de Moçambique, se-lançam ao mar, manifestando assim a traição que premeditavam.

Então reconhece o Gama a perfídia dos mouros, e, alçando a voz, agradece á Providencia havel-o livrado dos perigos a que naquellas partes estivera exposto.

Commovida Vénus das palavras do varão pio, ascen- de ao céo, e, subridente e ao mesmo tempo magoada, fala a Júpiter a favor dos portugueses.

os MJSIADA! 196-

VI

É deliciosíssima a pintura que o poeta faz da Deosa; assimcomo não pode haver nada tam primoroso, nem tecido com tanto artificio oratório, como o discurso que ella indereça a Júpiter:

. Os crespos fios d'ouro se-esparziam Pelo collo que a neve escurecia: Andando as lácteas tetas Ihe-tremiam Com quem amor brincava e não se- via: Da alva petrina flammas Ihe-saíam, Onde o Menino as almas accendia : Pelas lisas columnas lhe- trepavam Desejos que, como hera, se-inrolavam.

Cun delgado cendal as partes cobre De quem vergonha é natural reparo; Porém nem tudo esconde, nem descobre O vêo dos roxos lírios pouco avaro:

Id6 CAMÕES E OS lusíadas

Mas para que o desejo accenda e dobre, Lhe-põe deante aquelle objecto raro: se-sentem no Céo por toda a parte Ciúmes em Vulcano, amor em Marte.

E mostrando no angélico semblante Co*o riso uma tristeza misturada; Como dama, que foi do incauto amante Em brincos amorosos maitractada, Que se-queixa e se-ri n'un mesmo instante E se-torna entre alegre magoada: D'esta arte a Deosa, a quem nenhuma eguala. Mais mimosa que triste ao Padre fala.

Sempre eu cuidei, ó Padre poderoso, Que para as coisas, que eu do peito amasse, Te-acbasse brando, affavel e amoroso; Postoque a algun contrario Ihe-pesasse; Mas, pois que contra mim te-vejo iroso, Sem que fo-merecesse, nem teerrasse; Faça-se como Baccho determina, Assentarei, emfin, que fui mofina.

Este povo, que é meo, por quem derramo As lagrymas que em vão caídas vejo. Que assas de mal Ihe-quero, pois que o-amo, Sendo tu tanto contra meo desejo: Por elle, a ti rogando, choro e bramo, E contra minha dita emfin pelejo. Ora pois; porque o-amo, é maltractado, Quero-lhe querer mal, será guardado.

Mas morra, emfin, nas mãos das brutas gentes;

Que pois eu fui E 'n isto de mimosa

O rosto banha em lagrymas ardentes, Como co'o orvalho fica a fresca rosa:

os lusíadas 197

Calada un pouco, como se entre os dentes Se-lhe-impedira a fala piedosa, Torna a seguil-a: e, indo por deante, Lhe-atalha o poderoso e gran' Tonante.

Cant. II, Est. 36, 37, 38, 39, 40 e 41.

Aqui tudo é admirável! A comparação de Vénus com a dama que, sendo em brincos amorosos maltractada do amante incauto, se-queixa e se-ri no mesmo instante, além de expressar un facto sobremaneira aprazente, observado nos humanos affectos, é inteiramente nova.

A persuasão que a Deosa finge de que Jove está, sem motivo, aggravado d'ella, e de que Baccho Ihe-é mais acceito :

Aquella conformidade maliciosa:

Faça-se como Baccho determina,

que deve produzir no animo de Jove o eífeito contrario, por Ihe-despertar un sentimento de emulação:

O attribuir á sua mofina e falta de valimento o ver opprimido o povo que ella ama e a que chama seo:

A reticencia motivada por uma súbita soffocação, tam própria de un despeito de mulher formosa que se-vê desattendida, e logo aquellas ardentes lagrymas com que de mimosa inunda o rosto. . . Tudo isto completa un ety- mo de belleza tam especial e superlativa, que não conhe- cemos tanto em Homero e VirgiUo, como nos mais poe- tas da antiguidade, coisa que Ihe-possa ser comparada.

A fala de Júpiter reúne a mais sublime eloquência á dignidade que é própria do Pae dos Deoses; sendo o es-

198 CAMÕES E OS lusíadas

tilo d'esta fala persimile ao dos mais apparalosos dis- cursos que na bocca do Tonante põem os vates de Smyr- na e Mantua. E aqui se ofíereceu a Gamões insejo op- portuno de preconizar as proezas dos portugueses nas partes do Oriente. Assimcomo Virgilio não desperdi- çou occasião alguma de memorar os feitos portentosos dos romanos, tanto no que o velho Anchises relata a seo filho Enéas, quando este o-foi procurar aos Infernos; co- mo na pintura do escudo que, a rogo de Vénus, Vulca- no fabricou para aquelle heróe: assim Gamões, primeiro 'n esta fala de Júpiter: logo na extensa narração que o Gama faz ao rei de Melinde: depois na pintura das ban- deiras das naus, e, por ultimo, no que Tethys declara ao mesmo Gama na ilha dos Amores, não desprezou a opportunidade de celebrar os feitos inclytos dos portu- gueses e de ingrandecer a gloria da sua pátria.

Antes, porém, de Jove inceptar o discurso, como se- sentisse abalado e commovido do prancto de Vénus, afa- ga carinhoso a Deosa, com o que ella augmenta os sus- piros e as lagrymas; sendo maravilhosa a comparação que d'este lance faz o poeta:

Como menino da ama castigado,

Que, quem o-afaga, o choro liíe-accrescenta.

Então falando o Nume Supremo, Ihe-declara que ham de os portugueses descobrir a índia, onde edificarão for- talezas e cidades: que alcançarão assignaladas victorias no mar Roxo: que duas vezes ham de subjugar o reino de Ormuz: que, na mesma índia, sustentarão apertados

os lusíadas 199

cercos: tomarão Gôa e Diu, e que, emfin, por armas- se- farão senhores de todo o Oriente.

E logo manda ao filho de Maia que indicar aos navegantes un porto seguro; e que, em sonhos, avise o Gama que nâo se-demore mais 'n aquella paragem.

Parte accelerado Mercúrio, do qual o poeta faz uma breve, mas fiel descripção. Leva comsigo a Fama para que em Melinde apregoe as maravilhas dos portugueses e os-faça alli desejados. Transporta-se em seguida a Mombaça: apparece em sonhos a Vasco da Gama; diz- Ihe quanto é perigoso aquelle porto: que fuja d'elle e que, mais a deante na mesma costa, achará un rei be- nigno que Ihe-dará honesto gazalhado.

Dicto isto afasta o somno dos olhos do illustre capi- tão, que acorda maravilhado, e conhecendo o quanto Ihe-releva não se-deter mais tempo juncto d'aquella bar- ra inimiga, ordena ao mestre que largue velas ao vento. 'N essa mesma occasião, favorecidos da noite, tenta- vam os mouros picar as amarras das naus para que des- sem á costa. Sendo, porém, presentidos, á voga arran- cada se-poseram em salvo.

Desfere entretanto as velas a armada e, depois de dois dias de navegação, em que os portugueses incontram dois navios de mouros dos quaes un, querendo evadir-se, dáá costa, e o outro se-lhes-intrega, chegam,emfin, a Melinde.

Devemos confessar que, em tudo quanto fica expos- to, se-adstringiu o poeta demasiado á historia. Toda- via, ha bastantes bellezas que admirar 'n estes dois cantos, que compõem a primeira parte do plano geral do poema, traçado, segundo vimos, pelo da Eneida.

lOP CAMÕES S OS lusíadas

VII

A chegada da frota a Melinde é pomposamente des- cripta:

Era no tempo alegre, quando intrava No roubador de Europa a luz Phebea; Quando un e outro corno Ibe-aquentava E Flora derramava o de Amalthea: ' A memoria do dia renovava O pressuroso Sol, que o ceo rodea, Em que aquelle, a quem tudo está subjeito, O sello pôs a quanto tinba feito.

* Não é possível representar mais poeticamente a conjuncçâo do sol com o signo de Tauro, a qual acontece no mês de abril, que é o tempo que o sublime Camões pretendeu designar. Todavia, Hieronyrao Soares Barbo- sa, não intendendo nada de astronomia, julgou que era o nascer do sol que o poeta aqui descreve, e diz a tal propósito un tam ingente acervo de des- conchavos, como, por desfastio, pode ver o leitor curioso a pag. 45 da sua Analyse dos Lusíadas.

os lusíadas 201

Quando chegava a frota áquella parte Onde o reino Melinde se- via, De toldos adornada, e leda de arte Que bem mostra estimar o sancto dia: Treme a bandeira, vôa o estandarte, A cór purpúrea ao longe apparecia; Soam 03 atambores e pandeiros: E assi intravam ledos e guerreiros.

Havendo o Gama aportado a Melinde, invia-lhe o rei un refresco e ou*ro-sim rogar que desça em terra e se- utilize de tudo que de seo reino houver mister. Da sua parte expede o Gama un embaxador a agradecer-lhe aquellas demonstrações benévolas e a pedir-lhe descul- pa de não sair das naus, por lh'o-vedar o regimento que traz.

A fala que ao rei de Melinde dirige o embaxador é sobremodo eloquente e, em parte, imitada da que na Eneida faz o troiano Ilioneo á rainha de Car- thago.

Constitue a dieta fala uma oração completa, que se- compõe de exórdio, narração, confirmação e perora- ção.

No exórdio procura captar a benevolência do rei, in- vocando-o com louvor:

Sublime Rei, a quem do Olympo puro Foi da Summa Justiça concedido Refrear o soberbo povo duro, Nio menos d'elie amado, que temido.

202 CAMÕES E OS lusíadas

Este exórdio é imitado do começo do discurso de Ilio- neo:

O regina, novam cui condere Júpiter urbem Jústitíaque dedit gentes frenare superbas.

Mn. L. I. V. 522—523.

Mas maito melhorado com a idéa que alli se não in- contra e se-contêm no verso :

Não menos d'elle amado que temido,

a qual sobreleva grandemente o louvor. Na estancia immediata começa a narração:

Não somos roubadores que, passando Pelas fracas cidades descuidadas, A ferro e a fogo as gentes vam mactando, Por roubar-lhe as fazendas cubicadas.

O que é outra imitação do referido logar:

Non nos aut ferro Lybicos populare Penates Venimus, aut raptas ad littora vertere praedas.

Proseguindo, faz-lhe saber que havendo os navegan- tes partido da Europa, é seo propósito descobrir a ín- dia.— Gondemna a malvadez e a perfídia dos habitan- tes dos portos precedentes, que nâo Ihes-negaram hospitalidade, mas inda Ihes-armaram ciladas para os- destruir. -— E d'aqui tira assumpto para novamente elo- giar o rei:

os lusíadas

Mas tu, em quem mui certo confiámos Achar-se mais verdade, ó Rei benino, E aquella certa ajuda em ti esperámos Que teve o perdido Ittiaco em Alcino, A teo porto seguro navegámos, Conduzidos do Interprete divino; Que, pois, a ti nos-mandu, está mui claro Que és de peito sincero, humano e raro.

Passa depois a declarar-lhe o motivo porque não des- imbarca e vai vêl-o o capitão da armada; motivo que procura justificar na confirmação:

E porque é de vassalos o exercido, Que os membros têem regidos da cabeça, Não quererás, pois têes de Rei o oflQcio, Que ninguém a seo Rei desobedeça.

E remata com esta elegante peroração:

Mas as mercês e o grande beneficio, Que hora acha em ti, promelte que conheça Em tudo aquillo que elle e os seos poderem. Em quanto os rios para o mar correrem.

Este ultimo verso é imitado não do discurso de Ilioneo; mas do que Enéas dirigiu á rainha Dido:

1q freta dum fluvii current. . . .

Mji. L. I, V. 607.

O discurso do embaxador ao rei de Melinde é un dos mais ricos trechos dos Lusiadas, e, postoque imitado do

204 CAMÕES E OS lusíadas

de Ilioneo em Virgílio, é-lhe indisputavelmente superior; porque, além de constituir uma oração completa, como notámos, 'n elle se-guardam as devidas conveniências, não contendo coisa alguma de censurável; tal como a supposição offensiva e a ameaça feita pelo mencionado Ilioneo á rainha de Garthago:

Si genus humanum et mortalia temnitis arma, At sperate Deos memores fandi atque nefandi. íEn. L. 1, V. 542-543.

Não *n este, mas *n outros logares dos Lusiadas, imitou Camões a Virgílio; mas Gamões imitando, con- serva-se sempre original; porque o ser original não con- siste em dizer o que nunqua ninguém dice; mas em ex- pressar o que embora foi dicto, de un modo novo e que ninguém possa imitar. *

Adduzamos d'isto un exemplo:

Depois do descobrimento da índia, das Molucas, da China, do Japão e do Brasil, a admiração e o pasmo de tantas descobertas, que quasi comprehendiam a periphe- ria das três maiores partes do globo, facilmente fariam dizer a qualquer que: se Deos houvera creado outros mundos, iriam os portugueses arvorar seos gloriosos estandartes. E o que dice Barros que, de certo, não

* Le style original n'est pas celui qui n'emprunte rien de personne, mais celui qui personne ne peut imiter. On peut rester fort commun en n'écri- tant que d'après soi. Chateaubriand, Genie du Christian. T. II.

os lusíadas 205

foi O primeiro a quem esta idéa occurreu: «Certo grave e piedosa coisa de ouvir, ver uma nação a quem Deos deu tanto animo, que, se tivera creado outros mundos, tivera mettido outros padrões de victorias. » * Mas Camões, dizendo isto mesmo, dice-o de un modo novo, conciso, e tam frisante, que passou mesmo a ser pro- verbial:

Na quarla parte nova os campos ara, E, se mais mundo houvera, chegara. Cant. VII, Est. 14.

A fala do embaxador responde o rei acceitando as desculpas do capitão e fazendo-lhe saber que no dia se- guinte irá vizital-o.

Apenas alvorece a manhãa do dia seguinte, imbarca em uma almadia, toldada da sedas de diversas cores, accompanhado dos principaes do seo reino. Em seos bateis lustrosamente guarnecidos, sáe o Gama a rece- bel-o no mar. Do apparato e modo porque vinha ves- tido o rei de Melinde faz o poeta uma curiosa descri- pção; bemcomo do accompanhamento e vestuário do Ga- ma.

Logoque se-incontram, entra o rei no batel do capi- tão; o qual Ihe-dirige uma fala appropriada e eloquente, que termina com os seguintes versos que os eruditos não podem deixar de saborear, por acharem 'n elles gosto- sas reminiscências da antiguidade :

* Dec. I, L. 4.» Gap. 11, foi. 81 v.

206 CAMÕES E os mSlADAS

Emquanto apascentar o largo pólo As estrellas, e o sol der luz ao mundo, Ondequer que eu viver, com fama e gloria Vivirão teos louvores na memoria. *

Cant. II, Est. 105.

Em seguida remam para juncto das naus, que feste- jam o advento do monarcha melindano com trombetas e salvas de artilheria.

Depois de haver rodeado cada uma das naus, e obser- vado tudo attentamente, manda o rei parar o batel pa- ra poder practicar mais de espaço com o capitão, a quem pede Ihe-conte a origem e a historia do reino de que é natural, bemcomo os successos de toda a viagem.

Gingiu-se ainda aqui o poeta quasi sem discrepância, ao que nos-refere a historia; mas toda esta parte é por elle descripta, não no ton magestoso da epopeia, mas ainda com un colorido local que Ihe-realça o preço de maravilha.

Quiséramos que o poeta, alterando a verdade históri- ca, fizesse que o monarcha melindano subisse á náu al-

* o logar, que 'n estes versos imitou Camões, é como passamos a trans- crever:

. . . Polus dum sidera pascet, Semper honos, nomenque tuum, laudesque manebunt, Quae me cumque vocant terrae.

Mn. L. I. V. 608—610.

D'este logar fez também imitação Ovidio nas eicruciantes agonias do Ponto, escrevendo a sua mullier:

Quantumcumque tamen praeconia nostra valebunt, Carminibus vives tempus in omne méis.

Trist. L. I, Eleg. 6.« in fine.

os LTJ8IADAS 207

mirante, e que fosse na respectiva camará que o capitão Ihe-narrasse a longa historia de Portugal e os successos da viagem que passou a contar-lhe.

Todavia, faz-nos saber que a conjunctura do tempo e do mar bonançoso era a própria para que a narração podesse ser ouvida distinctamente, pondo na bocca do rei estes formosos versos:

Conta; que hagora veiem co'os áureos freios Os cavallos, que o carro marchetado Do novo sol da fria aurora trazem; O vento dorme, o mar e as ondas jazem. Cant. II, Est. 110

' *M6 CAMÕ£S E OS LUSUDAS

vm

Incepta o Gama a narração, declarando que a-divide em duas partes:

Primeiro tractarei da larga terra: Depois direi da sanguinosa guerra.

E, pois, da Europa onde está situado o reino de Por- tugal, cuja historia vai referir, que primeiro passa a dar noticia, para que assim se-adquira mais perfeita idéa do local que o dicto reino occupa 'n esta parte do globo.

A descripção da Europa faz-se admirar, quer seja considerada pelo lado da poesia, quer pelo da historia e geographia.

Sob este ultimo aspecto foi ella devidamente appre- ciada por Humboldt, un dos mais distinctos sábios da Allemanha; o qual não duvidou de classificar Luiz de Camões como pintor primoroso das scenas da natureza.

os lusíadas 20.)

'N un opúsculo que ha poucos annos publicou o senr. conselheiro Joseph Silvestre Ribeiro, homem que honra a nossa terra, e a quem tributamos particular estima, não por sua illustração, mas inda pela summa probi- dade e modéstia de que é dotado, procurou o seo digno auctor dar a conhecer o juizo que o sábio allemão na sua grande obra=0 Kosmos=íormou das descripções da natureza do cantor dos Lusiadas: juizo a que junctou as próprias considerações. E, pois, do mencionado opúsculo ' que passámos a transcrever o que alli se- incontra sobre a descripção scientifica da Eurcpa, por nos-parecer escripto com apurada critica.

« Mas não é na descripção de phenomenos isolados que o poeta é grande pintor no conceito de Humboldt; Gamões sobresáe egualmente em abraçar os grandes gruppos com un lançar dolhos. O terceiro Canto, diz o sábio allemão, reproduz com alguns traços a con- figuração da Europa, des de as mais frias regiões do norte até o reino da Lusitânia e o estreito onde Her- cules terminou o seo derradeiro trabalho, sem se-esque- cer de ir alludindo aos costumes e á civilisação dos po- vos que habitam esta parte do mundo, tam ricamente disposta e constituída.

«x\ descripção da Europa é na verdade uma obra prima no seo género, un quadro de mão de mestre, (jue, ainda destacado do poema, seria muilo apreciável como ihesouro de apurada sciencia, de admiiavol pre-

IntUu!a-se : Os Lusiadas e o Cosmos. 14

210 GAMÕES t; os lusíadas

cisão philosophica e de primorosos traços no gosto da antiguidade clássica:

Entre a zona que o Cancro senhorea, Meta septemtrional do Sol luzente, E aquella, que, por fria, se-arrecea Tanto, como a do meio, por ardente, Jaz a soberba Europa, a quem rodea Pela parte do Arcturo e do Occidente Com suas salsas ondas o Oceano, E pela Austral o mar Mediterrano.

«Assim rompe o poeta a descripção, a qual começa na Est. 6/ e termina em a 20.'' O que a Humboldt muito agrada é o admirável arrojo com que o poeta characteriza de uma pincelada os diversos paizes. Quando Camões quer pintar as regiões hyperboreas, a sua Musa Ihe-inspira estes versos:

Aqui Iam pouca força tèem de Apollo Os raios, que no mundo resplandecem. Que a neve está contino pelos montes, Gelado o mar, geladas sempre as fontes.

« Em duas estancias abrange todos os povos do norte da Europa, juntando-os a largos traços, e assignalando os seos characteres com alguma indicação significativa:

llagora 'n estas partes se-nomea A Lappia fria, a inculta Noroega, Escandinávia ilha, que se-arrea Das victorias que Itália não jhc-ncga:

os lusíadas 2 1 1

Aqui, em quanto as aguas não refrea O congelado hynverno, se-navega Un braço do Sarmatico Oceano Pelo Brusio, Suecio e frio Dano.

Entre este mar e o Tanais vive cxtranha Gente, Rhuthnos, Moscos e Livonios, Sarmatas outro tempo, e na montanha Hircinia os Marcomanos sam Polónios. Subjeitos ao império de AUemanha Sam Saxones, Bohemios e Pannonios, E outras varias nações que o Rheno frio Lava e o Danúbio, Amásis e Albis rio.

Cant. m. Est. 10-12.

«Quando Gamões quer memorar os deliciosos cam- pos da Grécia, a sua rica e sabia phantasia Ihe-suggere un dizer sentencioso que acorda na alma do leitor as re- miniscências da antiga historia desse paiz incantador:

E vós também, ó terras excellentes

Nos costumes, ingenho e ouzadia,

Que creastes os peitos eloquentes

E os juízos de alta phantasia,

Com que tu, clara Grécia, o ceo penetras,

E não menos por armas que por lettras.

«Quando Camões fala de Veneza, os breves traços com que a-desenha appresentam, não uma imagem da romântica cidade do Adriático, mas também uma idéa da sua historia :

E no seio

Onde Antenor muros levantou,

212 CAMÕES E OS lusíadas

A soberba Veneza está no meio Das aguas; que tam taxa começou.

«Vejamos a descripção da Itália:

Da terra un braço vem ao mar, que cheio De exforço nações varias subjeitou; Braço forte de gente sublimada Não menos nos ingenhos, que na espada.

Em torno o-cerca o reino Neptunino, Co'os os muros naturaes por outra parte: Pelo meio o-divide o Apennino, Que tam illustre fez o pátrio Marte: Mas depois que o Porteiro tem divino, Perdendo o exforço veiu, e bellica arte: Pobre está de antigua potestade : , Tanto Deos se -contenta de humildade!

«Esta descripção é primorosa, não geographica- mente, mas também debaxo do poncto de vista politi- co. E admirável o modo ingenhoso porque o poeta ap- presenta o contraste da Itália dos antigos romanos, a Itália dos Césares, com a Itália dos tempos modernos, a Itália catholica. Aquella cheia de vida e exforço, sub- jeitando o mundo ao seo dominio, e povoada por uma raça forte, não menos famosa pelo ingenho que pela guerra; esta perdendo os antiga brios, as disposições bellicosas e o poder dos passados tempos, des de que tem o Porteiro divino. »

os lusíadas 213

IX

Depois de dar noticia de Gallia e de Hispanha, passa o poeta a descrever o reino Lusitano, que não devemos confundir com a antiga Lusitânia, postoque comprehen- da uma grande parte d'ella:

Eis aqui, quasi cume" da cabeça De Europa toda, o reino Lusitano, Onde a terra se-acaba e o mar começa, E onde Phebo repousa no Oceano: Este quis o Ceo justo que floreça Nas armas contra o torpe Mauritano, Deitando-o de si fora, e na ardente Africa estar quieto o não consente.

A estes bellos versos juncta logo os seguintes, cheios de saudosa melancolia:

Esta é a ditosa pátria minha amada, Á qual se o Ceo me-dá, que, sem perigo, Torne com esta impresa acabada, Acabe-se esta luz alli commigo.

Í14 (CAMÕES E OS LUSUPAS

Ao ler estes versos, que se-referem a Vasco da Ga- ma é a expedição que imprehendera, vem naturalmente á idea referil-os ao poeta e á composição dos Lusiadas; sendo de crer que, se, concluido o poema, Ihe-fosse dado tornar a ver a pátria que tanto amava, por si dicesse:

Acabe-se esta luz alli commigo.

Começando a historia de Portugal, remonta-se aos tempos fabulosos de Luso; recorda Viriato; passa a tra- ctar do conde Dom Henrique, e logo do primeiro Affon- so, fundador da monarchia, de quem refere as grandes cavallarias contra os saracenos; conta o desimpenho da palavra dada por Egas Moniz ao rei de Gastella, e re- lata a batalha de Ourique e a estupenda apparição de Ghristo a Dom Affonso Henriques, em cuja bocca põe estes versos:

Aos infiéis, Senhor, aos infiéis,

E não a mim que creio o que podeis;

os quaes sam un verdadeiro quinau dado ao mesmo Ghristo, de que, todavia, os milagreiros se-regozijam muito.

Refere Gamões não esta, mas, como ao deante ve- remos, outras tradições das que em toda a parte incon- tram e se-perpetuam nas crenças populares; do mes- mo modoque practicaram Apollonio Rhodio e Virgiho. Este ultimo, invocando as Musas para narrar a transfor- mação das naus de Enéas em Nymphas equóreas, não deixa de alludir a esta circumstancia:

orf lusíadas 2 li O Musae

Dicite: prisca Qdes facto, sed fama perennis. Mn. L. IX, V. 77-79.

Fôra, porém, melhor que Virgílio omittisse este epi- sodio, que é, na verdade, de máo gosto.

Prosegue Gamões, pintando com cores fieis e próprias o retrato de cada un dos nossos reis, até Dom Manuel, que foi o que commetteu o descobrimento da índia a Vasco da Gama; e sendo este o narrador da historia, é claro que não podia ir com ella além do seo tempo.

Observaremos (e é o que nos-parece não ter sido até hoje notado,) que un dos grandes méritos de Gamões consiste na fidelidade com que desenha com traços bre- ves e characteristicos o retrato de cada un dos heróes da nossa historia; * e 'n isto leva a palma a Virgilio, que pintou frouxamente os characteres dos heróes do seo poema.

* Camões, além de delinear com traços characteristicos os retra/os dos nossos reis, desenha egualmente os de muitos varões insignes que honra- ram a pátria, dos quaes forma uma extensa galeria; taes sam: os de Veria- to, G. Ill E. 22 e VIII-6.»;— Sertório VIII-G.» e seg.;— Egas Moniz 111-38 e seg.; Vlll-13.— Dom Fuás Roupinho VIII-I6 e seg.;— :Mem Moniz VIII-20;— Geraldo Sem Pavor VIll-21;— Dom Paio Correia VIII-26;— Gonçalo Ribeiro Vlll-27;— Gondestavel Dom Nuno Alvares Pereira IV- 14 e seg. VlII-28 e seg.; Mem Rodrigues de Vasconcellos IV-24;— Antão Vasques de Almada IV-25>' —Magriço VI-53 e seg.;— Álvaro Vaz de Almada VI-59;— Rui Pereira \'lIl-34' —Gil Fernandes, ibid.— Pêro Rodrigues Vni-33;— Conde Dom Pedro de Me- nezes VlII-38;— Conde Dom Duarte de Menezes, ibid.;— Infante Dom Pedro VIII-37;— Infante Dom Henrique, ibid.;— Infante Dom Fernando lV-52;— Ma- nuel de Sousa de Sepúlveda VIIl-26 e seg.;— Fernão de Magalhães 11-55' X-140;— Duarte Pacheco X-12 e seg.;— Pedro da Nliaia X-94;— Dom Fran" cisco de Almeida V-45, X-26, 33 e seg.— Dom Lourenço de Almeida X-26 e seg.— Tristão da Cunha X-39;— AfTonso d'Albuquerque X-40 e seg.;— Lopo Soares de Albergaria X-50 e seg.;— Dom Duarte de Menezes X-53;— Dom

2IG C.UIÕK.S K O? LUS1AÍ).\S'

Historiando o reinado de Dom Affonso IV, no qual succedeu a invasão de Hispanha pelo rei de Marrocos, colligado com o de Granada e com outros reis mou- ros almoades, narra que, temendo elrei de Gastella ser por elles desbaratado e vir a perder o throno, Ín- via a rainha Domna Maria, sua mulher, a pedir soc- corro ao monarcha português, seo sogro. A intrada da rainha nos paços régios e a fala que indereça a elrei seo

Hearique de Menezes X-54 e seg;— Dom Pedro Mascaranhas X-56 e seg.; —Lopo Vaz de Sampaio X-59;— Heitor da Silveira X-60;— Dora Nuno da Cu- niia X-61;— Dom Garcia de Noronha X-62;— António da Silveira, ibid.;— Dom Estevão da Gama, ibid.;— Martin Affonso de Sousa X-63;— Dom Johão de Castro X-67 e seg.;— Dom Fernando e Dom Álvaro de Castro X-70;— Dom João Mascaranhas X-69.

Alguns dos characteres d'estes heróes sam apenas designados com un qualificativo; v. gr.

Un Pacheco forlissimo e os temidos

Almeidas

Albuquerque terrível, Castro forte.

os LUSÍADAS 2i7

pae, é outro trecho de sublime poesia que não podemos deixar de transcrever:

Inlrava a formosissima Maria Pelos palemaes paços sublimados, Lindo o gesto, mas fora de alegria, E seos olhos em lagrymas banhados: Os cabellos angélicos trazia Pelos ebúrneos hombros espalhados; Deante do pae ledo, que a-agasalha. Estas palavras taes chorando espalha:

Quantos povos a terra produziu De Africa toda, gente fera e extranha, O gran' Rei de Marrocos conduziu, Para vir possuir a nobre Hispanha: Poder tammanho juncto não se-viu. Depois que o salso mar a terra banha: Trazem ferocidade e furor tanto. Que a vivos medo, e a mortos faz espanto.

Aquelle, que me-deste por marido. Por defender sua terra amedrentada Co' o pequeno poder offerecido Ao duro golpe está da maura espada; E se não for comtigo soccorrido, Ver-me-has d'elle e do reino ser privada. Viuva e triste, e posta em vida escura. Sem marido, sem reino, e sem ventura.

Por tanto, ó Rei, de quem com puro medo O corrente Molucha se-congela, Rompe toda a tardança, açude cedo Á miseranda gente de Castella:

318 CAMÕES K OS lusíadas

Se esse gesto, que mostras claro e ledo, De pae o verdadeiro amor assella, Açude e corre, Pae, que, senão corres, Pôde ser que não aches quem soccorres.

Cant. Ill, Est. 102, 103, 104, 105.

Este discurso é un primor de poesia e de oratória. Não tem exórdio, começando a rainha ex abrupto, co- mo ê adequado á vehemencia dos affectos. Exaggera a multidão e a ferocidade do exercito invasor, ao qual antepõe o pequeno poder do rei de Gastella, menos pró- prio para resistir-lhe, do que para ser por elle sacrifi- cado; com o que em poucos versos nos-appresenta uma perfeita enargueia:

Co' o pequeno poder offerecido

Ao duro golpe está da maura espada.

Expõe em seguida as consequências previstas de não alcançar o soccorro que implora para elrei seo marido:

Ver-me-has d'elle e do reino ser privada.

Na peroração invoca o monarcha de maneira própria a conciliar-lhe a benevolência, representando-o timivel aos mouros:

Portanto, ó Rei, de quem com puro medo O corrente Molucha se-congela.

e, por ultimo, a excitar-lhe a commiseração :

Açude e corre, Pae, que, se não corres. Pode ser que não aches quem soccorres.

os lusíadas 21!)

A fala da rainha Domna Maria, tem, como n' ou- tra parte notámos, a pomposa magnificência do género clássico, e accrescentaremos que não este discurso, mas todos os que Luiz de Gamões põe na bocca dos seos heróes, em nada cedem aos mais bellos do vate de Smyrna; opinião, que podemos corroborar com a de un escriptor extrangeiro que de certo não foi mordido pela Inveja. *

Offerece-nos logo o poeta uma bellissima pintura do exercito português posto em campo e marchando contra os saracenos:

Mas CO* os esquadrões da gente armada Os Eborenses campos vam coalhados: Lustra co' o sol o arnês, a lança, a espada, Vam rinchando os cavallos jaezados : A canora trombeta imbandeirada Os corações á paz acostumados Vai ás fulgentes armas incitando, Pelas concavidades retumbando.

Outra pintura, não menos bella, nos-oíferece o poeta da batalha de Tarifa, em que o monarcha português, havendo desbaratado o rei mouro de Granada, vai dar soccorro ao de Gastella, ficando ambos vencedores no campo'.

* Les discours que le Camouens mêt dans la bouche de ses héros ne le cédent point aux plus beauí d'Homère.— Ses descriptions sont sublimes et ses images pleines de noblesse et de vérité. Le Clievalier de Mahegan, Ta- bleau de THist. Modèrae.

220 CAMÕES E OS lusíadas

XI

Foi depois de haver regressado Dom Aífonso IV d'es- ta guerra em que, por ventura, habituara o animo ás mais horrorosas scenas de canificina, que ordenou a morte da formosa e innocente Domna Ignês de Castro.

O episodio em que o poeta nos pinta os amores e o trágico fm da malfadada amante de Dom Pedro, assu- me as proporções do drama terrivel e pathetico.

E é no pathetico, 'n aquillo em que realmente sobre- sáe e refulge o mérito incontestável de Virgilio que Luiz de Camões pode disputar-lhe honrosa competenoja.

Se analysarmos a Eneida, não deixaremos de desco- brir-lhe notáveis defeitos. Do principal objecto, que é a origem e a fundação de Roma, tracta o poema nos seis últimos livros; sendo, por isso, taxado de conter uma dupla acção: os characteres que o poeta descreve sam mal traçados; e os costumes nem sempre exemptos

os lusíadas . 22 1

de censura. Mas a Eneida é admirável pelo estilo e, sobre tudo, pelo pathetico.

Fazendo comparação de Tasso com Virgílio, é pelas ternas commoções da alma, expressas com uma verda- de que nos-arranca suspiros e lagrymas, que Ghateau- briand conferiu a este ultimo a merecida preferencia. *

Foi, com effeito, Virgilio dotado de uma sensibilida- de extrema; o que nos-manifesta no bellissimo episodio das Georgicas em que descreve a descida de Orphéo aos Infernos para dalli trazer a formosa Eurydice; e, sobre tudo, na descripção dos amores infelizes de Dido com Enéas, os quaes nos-diz o próprio bispo de Hippona que, lendo-os, em menino, o-faziam chorar. ^ E', so- bremodo internecedora a scena que o poeta nos-repre- senta do incontro que nos Infernos teve Enéas com a rainha Phenissa, a quem involuntariamente causara a morte. Vendo-a o heróe Troiano derrama lagrymas ar- dentes, e diz-lhe com a mais doce expressão de amor:

lafelix Dido, verus mihi nuatius ergo Venerai exstinctam, ferroque extrema secutam! Funeris heu! tibi causa fui! Per sidera juro, Per Superos, et si qua fides tellure sub ima est, Invitus, regina, tuo de littore cessi.

' On ne balancerait plus sur la place que le poete italicn doit occuper, s'il avait une seule de cos graces reveuses, qui rendent si doux les soupirs du Gygne de Mantoue; car il lui est três superieur dans Ics caracteres, les batailles. et la composition.— Mais le Tasse est presque toujours faux quand il fait parler le coeur; etcommc les traits de 1'áuxc soiit les véritables beau- tés, il dcraeure necessairement au dcssous de Virgilc. Genie du Christiau. Tom. II.

2 Confess. Lib. 1, Gap. 13.

222 GA51ÕES E OS lusíadas

Sed rne jussa Deum, qusE nunc has ire per urnbras, Per loca senta situ cogunt, notemque profundam, Imperiis 'egere suis; nec credere quivi Hunc tantum tibi me discessu ferre dolorcm. Siste gradum, teque adspectu ne subtrahe nostro. Quem fugis? extremum fato, quod te alloquor, hoc est.

íEn. L. VI, V. 456-466.

Dido fica immovel; não se-deixa commover, nem lhe- re&ponde; mas olha-o de soslaio, torva tuentem; e 'n is- to, além do pathetico, nos-mostra Virgilio un perfeito conhecimento do coração humano. Como, sendo ella mulher, não teria a curiosidade de ver ainda uma vez aquelle por quem de amor se-mactara?!

É, pois, no que Virgilio mais sobresaiu e primou, que o-imita e Ihe-póde ser comparado Lui? de Camões. *

Para que a catastrophe lastimosa de Domna Ignês offereça mór contraste com dias tranquillos e de ven- tura que ella passava nos campos do Mondego, começa o poeta com ingenhoso artificio por descrever a felicida- de daquelles dias de remanso que se-lhe-deslisavam no inlevo do amor do principe que tanto a extremecia:

' Joseph Agostinho de Macedo, o zoilo audaz que concebeu o louco pro- jecto de compor un poema que eclipsasse os Lusíadas, como fosse desti- tuído dos dotes naturaes que constituem un grande poeta, alheio a todos os sentimentos generosos, repassado de egoismo, de inveja, de rancor, e, sobretudo, homem sem coraíião, não poderia nunqua rivalizar com Camões, que, além do seo grande génio, era dotado de uma sensibilidade profunda e de uma suave melancolia que tanto nos-incanta em seos versos harmo- niosos.—Os de Joseph Agostinho, ao invez, sam duros, monótonos, tene- brosos, recendem ao gosto monástico, e, não raro, degeneram no ton de- clamatório que contrahira na frequência do púlpito.— A anecdota que pas- sámos a referir, confirma, por certo, o juizo que do celebre detractor de Camões acabamos de expor :

Achando-se Bocage accomraettido da perigosa infermidade de que veiu

os lusíadas 223

Estavas, linda Ignês, posta em socego, De teos annos colhendo doce fruito, 'N aquelle inganno da alma ledo e cego, Que a fortuna não deixa durar muito: Nos saudosos campos do Mondego, De teos formosos olhos nunqua inxuito. Aos montes insinando e ás hervinhas O nome que no peito escripto tinhas.

De teo príncipe alli te-respondiam As lembranças que 'n a alma Ihe-moravam, Que sempre ante teos olhos te-traziam Quando dos teos formosos se-apartavam : De noite em doces sonhos que mentiam, De dia em pensamentos que voavam: E quanto, ^mfin, cuidava, e quanto via, Eram tudo memorias de alegria.

Do quadro aprazível d'esta ventura passa o poeta por uma rápida, mas natural transição, a referir o caso in- fando da morte da misérrima Ignês:

De outras bellas senhoras e princezas Os desejados thálamos injeita; Que tudo, emfin, tu, puro Amor, desprezas. Quando un gesto suave te-subjeita.

a fallecerftodos os poetas contemporâneos Ihe-indereçaram poesias enco- miásticas que expressavam os yotSs que faziam por que houvesse de me- lhorar e restabelecer-se.— Foi por esta occasião que Joseph Agostinho Ihe- inviou a poesia que começa :

Troou no seio da abalada Terra

Trovão medonho, que bramiu três vezes.

Lida a poesia, dice Bocage para os amigos que Ihe-rodeavam o leito :— Não vos-parece que estes versos são feitos á morte do Redemptor? Pois estais ingannados : sam á infermidade de loi poeta que se chama Bocage.

2'24 C\MÕKS E os LUSÍADAS

Vendo estas namoradas extranbezas O velho pae sisudo, que respeita O murmurar do povo, e a phantasia Do filho, que casar-se não queria:

Tirar Ignes ao mundo determina; Por Ihe-tirar o filho que tem preso; Crendo co' o sangue da morte indina Mactar do firme amor o fogo acceso.

Representa-nos Gamões haver sido Domna Ignês con- duzida perante Affonso IV, e que, 'n esse acto, un dos bárbaros conselheiros do rei Ihe-hgava as mãos; no que manifestamente se-afastou do que é constante da historia :

Para o ceo crystalino alevantando Com lagrymas os olhos piedosos. Os olhos; porque as mãos Ihe-estava atando Un dos duros ministros rigorosos.

Fel-0, porém, decerto, assim, para que a scena se- tornasse mais pungente e pathetica, imitando 'n este lo- gar o que Virgilio refere de Cassandra:

Eccc trahebatur passis Priamcia virgo *

Crinibus a templo Cassandra adystisque Minervae, Ad coBlum tendens ardentia kiraina frustra, Lumina, nam teceras arcebant vincula palmas.

JEN. L. II, V. 403—406.

Não se-dá, porém, no caso de Domna Ignês a impos- sibilidade da circumstancia que notámos no de Cassan- dra em Virgilio. Camões diz que foi a amante do prin-

^•"'''ÒS lusíadas 225

cipe Dom Pedro levada á presença do rei, mas não de- clara se foi de dia, ou de noite. E quando mesmo se- presuma ter sido de noite, devemos suppôr que o mo- narcha estivesse n uma sala bastantemente illuminada para que os circumstantes podessem ver a desditosa Ignês levantar os olhos ao ceo. Em Virgilio o caso passa-se de outro modo. Cassandra era levada pelos gregos com as mãos atadas por entre a confusão e o tu- multo de uma cidade invadida pelos inimigos na 06- scuridade da noite:

Multaque per csecam congressi preiia nocteúi

Conserimus

^N. Ib. V..397.

Gomo era, em tal caso, possivel que alguém conse- guisse ver Cassandra alevantar, ou abaxar os olhos, se mesmo é difficil de conceber que ella podesse então ser conhecida; tanto mais que levava os cabellos derruba- dos, passis crinibus, que deviam occullar-lhe o rosto? *

Chegada Domna Ignês á presença de Aífonso IV, di- rige-lhe uma fala internecedora em que allega não ter culpa de haver captivado o coração do principe, e Ihe- expõe a triste orphandade em que por sua morte, fica- rão os filhinhos que Ihe-appresenta. Esta fala é sobre- modo pathetica, e somente se-lhe-notam alguns trechos

Notámos estes defeitos em Virgilio para tapar a bocca aos invejosos e malévolos que dizem que em Camões se-incontram ; quando, aliás, não sam poucos os que poderamos patentear do celebre Mantuano se d'isso nos-resultasse alguma gloria, como elles julgam adquirir em menoscabar o primeiro épico dos tempos modernos, e em deprimir a honra nacional. 15

CA>IOBS E OS lusíadas

de erudição, imprópria de uma dama que se-vê n' un transe de suprema agonia.

As duas ultimas estancias d'esle episodio transfun- dem 'nalma uma saudade e melancolia ineífaveis:

Àssi como a boDÍoa, que cortada Antes do tempo foi, cândida e bella, Sendo das mãos lascivas maltractada Da menina, que a trouxe na capella, O cheiro traz perdido e a côr murchada: Tal está morta a pallida donzela, Seccas do rosto as rosas e perdida A branca e viya cór co' a doce vida.

Ás filhas do Mondego a morte escura, Longo tempo chorando, memoraram; E, por memoria eterna, em fonte pura As lagrymas choradas transformaram: O nome Ihe-poseram, que inda dura, Dos amores de Ignôs, que alií passaram. Vede que fresca fonte rega as flores; Que lagrymas sam agua e o nome amores.

Cant. III, Est. 134—135.

A bella ficção das lagrymas das filhas do Mondego, pela morte de Domna Ignês transformadas em fonte, como se-contêm na ultima estancia, foi imitada de Apol- lonio Rhodio.— A imitação, é, porém, mui superior ao original, como imos ver na traducção de J. M. da Gosta e Silva:

Nem Glite, a esposa, seo esposo extincto Deixar quer; juncta ao mal outro mais triste

os LVSIADAS 227

'E a cerviz deu a uq laço: a morte sua Dos bosques choram as sensíveis Nymphas, E as derramadas lagrymas tornaram Em fonte pura que appellidam Clito, Do nome illustre da infeliz esposa.

Os ÂRaoN. L. 1, p. 35.

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22S CAMÕES B OS LUSUDAS

XII

Proseguindo o poeta a narrativa, e chegando ás al- terações que, por morte de Dom Fernando, se-derara na regência impopular da rainha Domna Leonor, conta como foi acclamado Dom Johão I. E aqui nos repre- senta o vulto Homérico do Gondestavel, e o gesto pu- gnacissimo com que, collidido em seos sentimentos pa- trióticos, arrosta impávido e ameaça em violenta allo- cução, e em phrase rude e improperante os que vacil- lavam entre o partido do Mestre de Avis e o do rei de Gastella :

Reprovando as vontades inconstantes, ' Àquellas duvidosas gentes dice

Com palavras mais duras, que elegantes, A mão na espada, irado e não facundo, Ameaçando a terra, o mar e o mundo:

Como da gente illustre portuguesa Ha de haver quem refuse o pátrio Marte ? Como d'esla Província, que Princeza Foi das gentes na guerra em toda parte, ^

os lusíadas i29

Ha de sair qnem negue ter defesa, Quem negue a fé, o araor, o exforço e arte De Portugufís, e por nenhun respeito O próprio reino queira ver subjeito?

Como? Não sois vós inda os descendentes D'aquelles, que debaxo da bandeira Do grande Henriques, feros e valentes Venceram esta gente tam guerreira? Quando tantas bandeiras, tantas gentes Poseram em fugida, de maneira Que septe illustres condes Ibe-trouxeram Presos, a fora a preza, que tiveram?

Com quem foram contino soppeados Est€S, de quem o estaes hagora vós, Por Dinis e seo filho sublimados, Senão co' os vossos fortes pães e avós? Pois, se com seos descuidos, ou peccados Fernando em tal fraqueza assi A'os-pôs, Torne-vos vossas forças o Rei novo, Se é certo que, co' o Rei se-muda o povo.

Rei tendes tal, que, se o valor tiverdes Egual ao Rei, que hagora alevantastes, Desbaratareis tudo o, que quiserdes. Quanto mais a quem desbaratastes : E, se com isto, emfin, vos não moverdes Do penetrante medo, que tomastes, Atae as mãos a vosso vão receio Que eu resistirei ao jugo alheio :

Eu com meos vassalos e com esta (E, dizendo isto, arranca meia espada) Defenderei da força dura e infesta  terra nunqua de outrem subjugada;. . .

290 CAMÕES E OS lusíadas

Em virtude do Rei, da Pátria mesta, Da lealdade por vós negada, Vencerei não estes adversários, Mas quantos a meo Rei forem contrários.

Cant. IV, Est. 14, 15, 16, 17, 18 e 19.

O retrato do Gondestavel, ao passo que o-representa ao natural em seo inabalável exforço e brios patrióticos, tem todos os traços characteristicos dos heróes Homéri- cos.— 'N elle achamos a mesma rudeza nas palavras, e o mesmo arrebatamento injurioso do próprio Ajax Oi- léo.

Partindo Dom Johão I de Abrantes contra as hostes invasoras de Gastella, offerece-nos o poeta un primoroso quadro da trepidação das damas ao verem perpassar o exercito português que avança para a peleja que vai tra- var-se nos campos de Aljubarrota.

Sabemos que em todo o quadro, ou pintura própria para produzir un grande eífeito, a mais importante coisa que se-requer, é que não tenha circumstancia alguma inútil, e que todas se-achem em seo devido logar; por- que, tudo quanto não contribue para o eífeito final, serve de infraquecel-o.

Este preceito acha- se rigorosamente observado na se- guinte estancia:

Estavam pelos muros temerosas, E de un alegre medo quasi frias. Rezando as mães, irmãas, damas e esposas, Promettendo jejuns e romarias. chegam as esquadras bellicosas Defronte das imigas companhias.

06 LTT6IÁSAS 2Si

Que com grita grandíssima os- recebem E todas grande duvida concebem.

Cant. IV, Est. 26.

Aqui nada sobeja e nada falta; e note-se a novidade da expressão alegre medo, que pinta com tanta proprie- dade o estado do animo das damas, que junctamente se- alvoroça na esperança da victoria e liberdade dos que Ibes-sam conjunctos, e no temor de os-ver perecer pelo ferro dos aggressores.

O signal para romper a peleja sôa horrendamente, e repercute-se ao longe infundindo geral terror:

Deu signal a trombeta Castelhana Horrendo, fero, ingente e temeroso: Ouviu-o o monte Artúbro, e Guadiana A trás tornou as ondas de medroso: Ouviu-o o Douro e a terra Transtagana; Correu ao mar o Tejo du\ idoso: £ as mães, que son terribil escuitaram, Aos peitos os filhinhos apertaram.

Cant. IV, Est. 28.

'N esta estancia ha duas imitações de Virgílio; sendo a primeira a da trombeta que despede o son de guerra:

Bello da signum rauca cruentum

Buccioa

Ms. L. XI, V. 474 e seg.

A segunda é a do effeito produzido pelo clangor do instrumento bellico:

23^ GAMÕES E OS X.USIADAS

Protinus omne

Contremuit nemus, et silvas iatonuere profundae: Âudiit et Triviae longe lacus; audiit amnis Sulfúrea Nar albus aqua, fontesque Velini; , , Et trepidaB malres pressere ad pectora natos, .buhívon n 8í-m.n '^ '^' Ib,d. L. VII, v. 514 e seg. ^ •ynqoiq f.ti

DeíApollonio Rhodio copiou Virgílio este logar; as- simcomo outros o-copiaram de Virgilio, ,ou^o mesmo Apollonio. ::íIm! ^: "Í''^*n f

Descreve o poeta a batalha de Aljubarrota, pondo- nos ante os olhos as differentes peripécias da peleja, que rompe de ambas as partes com tiros de arremeço, seguidos logo de furiosas cargas de cavallaria:

pelo espesso ar os estridentes -jj?

Farpões, seitas e vários tiros voam : Debaxo dos pés duros dos ardentes Cavallos treme a terra, os valles soam : Espedaçara-se as lanças e as frequentes Quedas co' as duras armas tudo atroam: , '-^ Recrescem os imigos sobre a, pouca Gente dx) fero Nunç, que os-apouca.

Cant. IV, Est. 31.

^'^^intando Gamões o aperto em que foi posto o Con- destavel, representa-o semelhante ao leão que, cercado dos cavalleiros de Seuta que o-investem com as lanças, se-mostra imperterrito; formoso simile que não real- ça o exforço do magnânimo defensor de Dom Johão 1, mas junctamente nos-recorda as distracções dos portu- gt^esei na épocha que logo se-inaugurou das nossas conquistas em Africa; distracções que Qçnsistiam.em

os lusíadas 233

caçar liões nas fundas devesas e nos fraguedos imper- vios ás abas do Atlante. *

Rompem-se aqui dos nossos os primeiros Tantos dos inimigos a elles vam: , ^ Eslá alli Nuno, qual pelos oiteiros De Seuta está o fortíssimo leão, Que cercado se-vê dos cavalleiros, O 0IV-9éQjjg Qg campos vam correr de Tetuão: ••'. ' >i^l Persegucm-no co' as lanças; e elle iroso •^^ Torvado un pouco está, mas não medroso.

Com torva vista os-vê ; mas a natura Ferina e a ira não Ihe-compadecem Que as costas dê; mas antes na espessura Das lanças se-arremeça, que recrecem. Tal está o cavalieiro que a verdura Tinge co' o sangue alheio: alli perecem Alguns dos seos; que o animo valente Perde a virtude contra tanta gente.

Este simile, imitado de outro de Virgílio, L. IX, v. 792, não exhibe egual viveza e propriedade; mas é de mais aquilatado preço por ter uma côr local.

Corre Dom Johão I a soccorrer o Gondestavel na af- fronta em que era posto; e exhortando os cavalleiros que o-seguiam, dirige-lhes estas palavras que nos-insinam o modo porque havemos de defender e conservar a nos- sa independência nacional:

' Vid. Souza, Ann. de Dom Jobão IH, P. I, L. 5.* C. õ.»

HJU CAMÕES E OS lusíadas

6 fortes companheiros, ó subidos Cavalieiros, a quem nenhun se-eguala, Defendei vossas terras; que a esperança Da liberdade está na vossa lança.

Cant. IV, Est. 37.

A batalha de Aljubarrota, como todas as què nos Lusíadas se-acham descriptas, é representada com a ex- pressão da verdade de quem mais de uma vez se- viu e exercitou nas pugnas de Marte. E ainda 'n isto se- avantaja Gamões ao poeta latino, que em pinturas de batalhas apenas consegue promover mediano interesse.

CAMÕkí; 235

XJJl

Depois de narrar a victoria de Aljubarrota e outros eventos posteriores, chega o poeta a tractar do desco- brimento da índia, cujo projecto teve inicio no reinado de Dom Johão II. Então refere como andando seo suc- cessor, elrei Dom Manuel, preoccupado com a idéa de dar execução áquelle grande commettimento, estando uma noite deitado em seo leito, Ihe-appareceram em so- nho os dois famosos rios Indo e Ganges, a fm de o-per- suadirem a mandal-os descobrir.

A descripção dos mencionados rios sob as formas de dois velhos venerandos, é conforme ás ficções da my- thologia pagãa; sendo a figura do Ganges, por ter mais dilatado curso que o Indo, propriamente representada; por indicar o cansaço de quem ha percorrido mor ex- tensão de caminho:

236 CAMÕES E OS lusíadas

D'ambos de dois a fronte coroada Ramos não conhecidos e hervas tinha; Un d'elles a presença traz cansada, Gomo quem de mais longe ai li caminha. Cant. IV, Est. 72.

O motivo pelo qual os dois illustres rios, que em seo curso abrangem todo o território Indico, se-appresentam a elrei Dom Manuel, é altamente glorioso para o monar- cha e, por conseguinte, para a nação que elle represen- tava; objecto que o poeta se-propôs, e que nunqua dei- xa de ter em vista:

Nós outros, cuja fama tanto vôa, Cuja cerviz bera nunqua foi domada, Te-avisâmos, que é tempo, que mandes A receber de nós tributos grandes.

Cant. IV, Est. 73.

Assimque Dom Manuel se-desprende dos braços de Morpheu, impressionado pelo mirifico sonho, ordena que se-apparelhe a armada que deve ir ao descobrimento da Índia, e confere o mando supremo delia a Vasco da Gama.

As palavras com que o monarcha llie-participa a elei- ção que delle ha feito para executar aquelle audaz com- mettimento, sam ponderosas e dignas da magestade de un grande rei:

E com rogo e palavras amorosas, Que é un mando nos reis que a mais obriga, Me-dice: As coisas árduas e lustrosas Se-alcançam com trabalho e com fadiga:

CAMÕES 237

Faz as pessoas altas e famosas

A vida que se-perde e que periga;

Que, quando ao medo infame não se-rende, .

Então, se menos dura, mais se-extende.

Eu vos-tenho entre todos escolhido Para uma impresa, qual a vós se-deve: Trabalho illustre, duro e esclarecido, O que eu sei que por mi vos-será leve.

Cant. IV, Est. 78—79.

Prestes as naus a desferir velas, ostentam-se no Tejo imbandeiradas com soberba galhardia:

Nas fortes naus os ventos socegados Ondêam os aerios estandartes : Elias prometlem, vendo os mares largos, De ser no Olympo estrellas, como a de Argos. Inm. Est. 85.

No acto de suspender ferro a armada, as lagrymas e os clamores das mães e das esposas, que vêem partir os filhos e os maridos para tam longa e arriscada navegação, oíferece un dos quadros mais palheticos dos Lusiadas :

Qual vai dizendo: Ò Qlho, a quem eu tinha para refrigério e doce amparo D'e»ta cansada velhice minha, Que em choro acabará penoso e amaro: Porque me-deixas mísera e mesquinha? Porque de mi te-vás, ó filho caro, A fazer o funéreo interramento, Onde sejas dos peixes mantimento?

238 GAMÕES E OS lusíadas

Qual em cabello: ô doce e amado esposo, Sem quem não quis amor que viver possa, Porque is aventurar ao mar iroso Essa vida que é minha e não é vossa? Gomo, por un caminho duvidoso, Vos esquece a affeição Iam doce nossa? Nosso amor, nosso vão contentamento Quereis que, com as velas, leve o vento?

'N estas e 'n outras palavras, que diziam De amor e de piedosa humanidade, Os velhos e os meninos os seguiam, Em quem menos exforço põe a edade. Os montes de mais perto respondiam Quasi movidos de alta piedade: Â branca área as lagrymas banhavam, Que em multidão com ellas se egualavam.

Cant. IV, Est. 90, 91, 92.

Aqui teve o poeta occasiâo de introduzir un velho ve- nerando a vociferar contra a temerária impresa a que a armada se-destinava.

Na prosopeia do velho resumem-se as principaes ra- zões e os argumentos que alguns políticos do tempo ex- pendiam contra aquelle grande commettimento: razões e argumentos que consistiam em que o reino se-despo- voaria em guerras e conquistas longiquas, ao passo que se-deixava criar ás portas o inimigo, que fora mais útil combater e debellar.

Representando a armada de foz em fora, põe-nos o poeta ante os olhos o bellissimo panorama que de bor- do se-descobre e que insensivelmente se-vai perdendo da vista até que de todo desapparece no horisonte:

CAMÕES

a vista pouco e pouco se-desterra D'aquelles pátrios montes que ficavam : Ficava o claro Tejo e a fresca serra De Cintra, e n' ella os olhos se-alongavam : Ficava-nos também na amada terra O coração, que as magoas deixavam: E depois que toda se-escondeu, Não vimos mais, emfin, que mar e ceo. Cant. V, Est. 9.'

Então começa a descripçâo da longa rota marítima em torno da costa de Africa.

CAMÕES E OS lusíadas

KIH

XIV

A narrativa da viagem do Tejo a Melinde, que o poe- ta põe na bocca do Gama, é exornada de interessantes noções geographicas e astronómicas, de quadros mariti- mos, de scenas dos costumes dos povos da Africa onde os nautas desimbarcaram e de admiráveis episódios, en- tre os quaes avulta o do Gigante Adamastor.

A descripção da tromba marinha foi sobremaneira elogiada por Humboldt, avaliador competente da exac- ção e fidelidade com que aquelle maravilhoso pheno- meno se-acha representado nos Lusiadas, e que é como passamos a transcrever:

Não menos foi a todos excessivo Milagre, e coisa, certo, de alto espanto Ver as nuvêes do mar com largo cano Sorver as altas aguas do oceano.

os lusíadas 241

Eu o-vi certamente (e não presumo Que a vista me ingannava) levantar-se No ar un vaporzinho e subtil fumo, E, do vento trazido, rodear-se: D'aqui levado un cano ao polo summo Se-via, tam delgado que inxergar-se Dos olhos facilmente não podia: Da matéria das nuvêes parecia.

la-se pouco e pouco accrescentando, E mais que un largo mastro se-ingrossava: Aqui se-estreita, aqui se-alarga, quando Os golpes grandes de agua era si xupava: Estava-se co' as ondas ondeando; Em cima d'elle úa nuveji se-espessava. Fazendo-se maior, mais carregada Co' o cargo grande d'agua em si tomada.

Qual roxa sariguisuga se-veria Nos beiços da alimária (que imprudente Bebendo a-recolheu na fonte fria) Fartar co' o sangue alheio a sede ardente: Xupando, mais e mais se-ingrossa e cria, AUi se-enche e se-alarga grandemente: Tal a grande columna, inchendo, augmenia A si, e a nuvem negra que sustenta.

Mas depois que de todo se-fartou, O pé, que tem no mar, a si recolhe, E pelo ceo chovendo emBn voou ; Porque co' a agua a jacente agua molhe: Às ondas torna as ondas, que tomou; Mas o sabor do sal lhe tira e tolhe. 16

! ?242 GAMÕES E OS lusíadas

Vejam hagora os sábios na escriplura . Que segredos sam estes da natura.

Cant. V, Est. 18, 19,20, 21, 22.

O episodio do Gigante Adamastor é a ereação altis- sima do mais feliz e portentoso ingenho; e tanto mais admirável que delia não incontrou Gamões modelo al- gun, quer nos auetores contemporâneos, quer em todos os que se-conhecem da antiguidade.

Jòseph Agostinho de Macedo, o malévolo detractor de Luiz de Gamões, diz que o mencionado episodio é o maior dos disparates, e exforça-se por provar que a idéa do Gigante não é invenção do poeta. Não soube o zoilo usar da critica velhaca que Ihe-era própria e que, 'n es- te caso, Ihe-fôra mister para disfarçar-se; porquanto pre- tendendo deprimir Gamões, se realmente intendesse que a invenção era un absurdo, não devera attribuir a outro a originalidade delia; mas exclusivamente ao auctor dos Lusiadas.

O Gigante Adamastor figura ser o arbitro das tem- pestades e dos furiosos ventos, que sam próprios dos mares confinantes do Gabo a que os nautas deram o no- me de Tormentório; mas que submettidos, por esta bel- la ficção, ao dominio do Gigante, fazem d'elle o guarda espantoso da paragem por onde os navegantes ham de de forçosamente passar para chegarem á índia.

se-vê que a invenção do Adamastor foi inspirada por uma particularidade local; o que desde logo afasta toda a suspeita de imitação. E, porém, a menos ad- missível a que julgou achar-lhe o mesmo Joseph Agos-

os LDSUDAS 243

tinho, que insinua ser a idéa do Gigante copia da Ima- gem plangente da pátria, que, na passagem do Rubicon, apparecea a Júlio Gesar, segundo inventou Lucano, e se-lé no Livro 1 da Pharsalia.

Escusado é dizer que a pretendida imitação não tem paridade alguma.

Voltaire que, em tacto fino, discernimento e bon gos- to, valia quarenta vezes o ex-frade Joseph Agostinho, e que, 'n este caso, é insuspeito, tractando da ficção do Adamastor, não a-acha maravilhosa e original, mas diz que terá acceitação em todos os tempos e entre to- das as nações. *

A apparição do Adamastor aos nautas, quando a ar- mada dobrava o Gabo Tormentório, é precedida de uma nuvem negra que assombra os ares. O oceano agita- se tempestuosamente e brame de un modo sinistro que infunde terror:

Bramindo o negro mar de longe brada, Como se desse em vão n' algun rochedo.

Então apparece a figura do Gigante descompassada, monstruosa, ameaçadora; e logo fala aos navegantes:

Cun ton de voz nos-fala horrendo e grosso, Que pareceu sair do mar profundo: Arrepiam-se as carnes e o cabello A mi, e a todos, de ouvil-o e vôl-o.

Essai sur la Pões. Épique, Chap. VI. CEuvr. Compl. T. U, pag. 367, Ed. de Paris, 1859.

244 CAMÕES E OS lusíadas

E dice: ó gente onzada mais, que quantas No mundo commetteram grandes cousas, Tu, que por guerras cruas, laes e tantas, E por trabalhos vãos nunqua repousas: Pois os vedados términos quebrantas, E navegar meos longos mares ouzas. Que eu tanto tempo ba que guardo e tenbo Nunqua arados de extranho, ou próprio lenho:

Pois yens ver os segredos escondidos Da natureza e do húmido elemento, A nenhun grande humano concedidos De nobre, ou de immortal merecimento: Ouve os damnos de mi, que apercebidos Estão a teo sobejo atrevimento Por todo o largo mar, e pela terra, Que inda has de subjugar com dura guerra.

Sabe que quantas naus esta viagem, Que tu fazes, fizerem de atrevidas, Inimiga terão esta paragem. Com ventos e tormentas desmedidas.

Cant. V, Est. 40, 41.

É, pois, O guarda do Gabo, o Gigante terrível a quem obedecem as tempestades, que apparece e fala aos nau- tas, prognosticando-lhes os naufrágios e as tremendas catastrophes que alli ham de experimentar os futuros navegadores.

Gomo elle fosse enumerando uns após outros os des- astres que preparava aos que sulcassem aquellas ondas, e não satisfeito de relatar o caso lastimoso de Domna Leonor de Sá, se-disposesse a proseguir, o-atalha o Ga-

os lusíadas 245r

ma e Ihe-inquire quem ó?... Gomquanlo magoado da pergunta, não duvida o Gigante responder-lhe, e diz:

Eu sou aquelltí occulto e grande Cabo A quem chamaes vós-outros Tormentório, Que nunqua a Ptolomeo, Pomponio, Estrabo, Plinio e quantos passaram foi notório: Aqui toda a Africana cosia acabo 'N este meo nunqua visto promontório, Que para o polo Antárctico se-extende, A quem vossa ouzadia tanto ofFende.

Cant. V, Est. 50.

'N esta estancia vemos habilmente desenhada a con- figuração da parte do território Africano que se-prolon- ga e estreita para o sul, até terminar no famoso Gabo onde se levanta o promontório em que foi transformado o Gigante; o qual, como bem se-deprehende, não é pro- priamente o que apparece aos nautas; mas o phantas- ma, ou o espectro d'elle.

A idéa poética do Gigante deu logar a outra bella ficção, que é a dos amores que elle pretendeu ter com a Deosa Thetis, de quem foi amargamente escarnecido. Depois de contar estes amores, prosegue dizendo, co- mo em castigo da guerra que movera contra os Deoses, foi por elles convertido no promontório que jaz sobran- ceiro áquelle Gabo. Então desfaz-se a nuvem; soa o mar com un bramido que retumba ao longe e desappa- rece o phantasma.

Tudo^isto é bello e, além de bello, tem uma supposta

246 CAMÕES E OS lusíadas

razão de ser; o que se não no episodio do Gigante Poliphemo de Virgílio.

Descripla a passagem do Cabo Tormentório, conta o Gama os successos que decorreram até que a armada aportou a Melinde; sendo a ultima parte d'estes succes- sos tocada apenas por alto, por haver sido extensa- mente referida nos Cantos I e II.

os lusíadas 247

XV

Aqui finda a narração que ao rei de Melinde fez o Ga- ma; a qual alguns criticos, tendo em vista que os discur- sos devem ser adequados á capacidade das pessoas a quem se-dirigem, censuram de conter referencias á his- toria e comparações que aquelle rei mouro não estava no caso de comprehender e avaliar. Não achamos pon- derosa a objecção; porque não vemos impossibihdade alguma em suppôr que o dicto monarcha podesse ser instruido; fundando-se esta supposição em que ao reino de Melinde aportavam commerciantes que navegavam não dos portos da índia, mas também dos que ficam para dentro do estreito, como sam os de Giddah e Suez, e podendo alguns destes commerciantes ter estado no Kairo, em Alexandria, ou mesmo na Europa, não repu- gna admittir que por meio de frequentes practicas com elles, houvesse o rei de Melinde adquirido muitos conhe- cimentos da Europa e de seos usos e costumes. O mes-

248 CAMÕES E OS lusíadas

mo Gamões parece ter querido prevenir esta objecção, pondo nabocca do monarchaMelindano as seguintes pa- lavras dirigidas ao capitão da armada:

Diz-lhe mais, quR por fama bom conhece A gente Lusitana, sem que a visse; Que J!i ouviu dizer, que 'n outra terra Com gente de sua lei tivesse guerra.

Cant. II, Est. 102.

O que nnicamenlo acliâmos censurável é as muitas apostrophes que o poela accumulou; o que se não com- padece com oc^lilo narralivo de que esle discurso é, sem imbargo, uu perfeito modelo.

Terminada a primeira parle da impresa, fatiava para o toinl fom()lcmcn1o delia que os audazes nave- gantes atravessassem o grande golfão que separa o lit- toral Afiicano da costa de Malabar. Despedido o Ga- ma do rei de Melinde, e oblido un piloto experiente, des- fere novamente as velas a armada, pondo a proa ao Oriente.

Então, a fin de frustrar o êxito da descoberta, recor- re Baccho a un expediente do qual espera lograr a exe- cução.— Vai procurar ao fundo aquoso o Nume potente do Mar para que, por meio de uma súbita procella, se- pulte nos abysmos a armada Lusitana. Descreve o poeta a riqueza deslumbrante dos paços Neptuninos, que Baccho, alheado e inattento se não demora em contem- plar, obsecrando que, para negocio urgente, se-reunam em concelho todas as Deidades maritimas.

os LUSUUAS 249

Accede Neptuno ás snpplicas de Bacdio o logo man- da convocar as referidas Deidades, que sam chamadas por Tritão, o qual imbocca un busio de que tira un son canoro que retumba ao longe.

Deste Deos marinho nos-offerece o poeta uma pin- tura que é realmente bella e que em nada desmerece, senão em represeiital-o com a cabeça extravagantemen- te coberta com uma casca de lagosta :

Julgando Neptuno, que seria Extranho caso aquelle, logo manda Tritão que chame os Deoses da agua fria. Que o mar habitam d'uma e d'oulra banda: Tritão que de ser filho se-gloría Do Hei e de Salacia veneranda, Era mancebo grande, negro e feio, Trombeta de seu pae e seo correio.

Os cabellos da barba e os que decem Da cabeça nos-hombros, lodos eram Uns limos prenhes d'agua e bem parecem, Que nunqua brando pentem conheceram: Nas ponctas pendurados não fallecem Os negros misilhões, que alli se-geram; Na cabeça, por gorra, tinha posta Uma mui grande casca de lagosta.

O corpo nú, e os membros genitaes, Por não ter ao nadar impedimento; Mas porém de pequenos animaes Do mar todos cobertos cento e cento: Camarões e cangrejos, e outros mais Que recebem de Phebe crescimento:

250 CAMÕES E OS lusíadas

Ostras e breguigões do musgo sujos, As costas com a casca os caramujos.

Na mão a grande concha retorcida, Que trazia, com força locava: A voz grande canora foi ouvida Por todo o mar, que longe retumbava.

Gant. VI, Est. 16, 17, 18, 19.

Janctos os Deoses em concelho, expõe Baccho a pre- terição que tem de que sejam submergidos nas ondas os varões fortíssimos que navegavam no mar do Orien- te, e que prevê Ihe-offuscarão a gloria que adquiriu na índia. É a proposta approvada sem contrariedade, ou, como hoje diriamos, por acclamação. Apenas Proteo mostrou indicios de querer fazer alguma importante re- velação que devesse ser attendida; mas foi atalhado por Tethys com uma coarctada que nos-desgosta pelo ton de vulgaridade com que é dieta.

Em resultado da decisão tomada, intima Neptuno a Eolo que solte os ventos indómitos para que façam sos- sobrar no pélago os navegantes.

Quando se-espera e se-teme uma grande catastrophe, é seguramente un meio darte o demorar em expectação o leitor, a fin o-ter o maior tempo possivel na incerteza, e de augmentar-lhe a anxiedade com o temor do que está para sobrevir.

Este meio, que Virgílio não soube impregar em caso idêntico, é aqui admiravelmente posto em practica por Gamões.

Antes que descreva a tempestade, que aguardamos,

os lusíadas 251

e que sabemos que rebentará medonha, faz-nos o poeta presenciar uma interessante scsna de costumes marítimos, a 'jiie se-segue a historia que un dos nautas conta para se-destrahirem do somno.

Transpunha a armada o oceano Indico, naveganda com vento prospero. Era noite: e a bordo os do quar- to da prima iam ser rendidos pelos do segundo :

Em quanto este concelho se-fazia No fundo aquoso, a leda e lassa frota Com vento socegado proseguia Pelo tranquillo mar a longa rota: Era no tempo quando a luz do dia Do Eoo bemispherio esta remota : Os do quarto da prima se-deitavam Para o segundo os outros despertavam.

Vencidos veiem do somno, e mal despertos Bocejando a miude se-incostavam Pelas antennas, todos mal cobertos Contra os agudos ares que assopravam: Os olhos contra o seo querer abertos, Mas esfregando, os membros estiravam: Remédios contra o somno buscar querem, Historias contam, casos mil referem.

Com que melhor podemos, un dizia, Este tempo passar, quo é tam pesado, Senão com algun conto de alegria Com que nos-deixe o somno carregado? Responde Leonardo, que trazia Pensamentos de firme namorado: Que contos poderemos ler melhores Para passar o tempo, que de amores?

252 ' GAMÕES E OS LUSÍADAS

Não é, dice Velloso, coisa justa Tractar branduras em tanta aspereza; Que o trabalho do mar, que tanto custa, Não soffre amores, nem delicadeza: Antes de guerra férvida e robusta A nossa historia seja; pois dureza Nossa vida ha de ser, segundo intendo; Que o trabalho por vir m'o está dizendo.

Consentem 'n isto todos e incommendam A Velloso, que conte isto que approva.

Cant. VI. EST.-38, 39, 40, 41, 42.

Passa então Velloso a contar a historia dos doze de Inglaterra, formoso Ireclia em que o poeta celebra uma donosa cavallaria dos fidalgos da corte de Dom Johão i, pondo-nos ante os olhos em todo o seo luzimento e ap- parato uma das mais interessantes scenas da edade media:

No tempo que do reino a rédea leve Johão, filho de Pedro, moderava: Depois que socegado e livro o-leve Do vizinho poder, que o-molestava, na grande Inglaterra, que da neve Boreal sempre abunda, semeava A fera Erinnys dura e cizânia. Que lustre fosse á nossa Lusitânia.

Entre as damas gentis da corte Inglesa, E nobres cortesãos a caso un dia ' Se-levantou Discórdia em ira accesa, Ou foi opinião, ou foi porfia: Os cortesãos, a quem tam pouco pesa Soltar palavras graves de ouzadia.

os lusíadas 253

Dizem, que provarão, que honras e famas Em taes damas não ha para ser damas.

E que, se houver alguém, com lança e espada Que queira sustentar a parte sua, Que elies em campo razo, ou estacada Lhe-darão feia Infâmia, ou morte crua. A feminil fraqueza pouco usada. Ou nunqua, a opprobrios taes, vendo-se nua De forças naturaes convenientes, Soccorro pede a amigos e parentes.

Mas como fossem grandes e possantes No reino os inimigos, não se-atrevem Nem parentes, nem férvidos amantes A sustentar as damas, como devem: Com lagrymas formosas e bastantes A fazer que em soccorro os Deoses levem De todo o Ceo, por rostos de alabastro; Se-vam todas ao Duque de Alencaslro.

Era este Inglês potente, e militara Co' os portugueses contra Castella, Onde as forças magnânimas provara Dos companheiros, e benigna estrella: Não menos 'n esta terra exp'rimentara Namorados affeitos, quando 'n ella A 61ha viu, que tanto o peito doma Do forte Rei, que por mulher a toma.

Este que soccorrer-lhe não queria, Por não causar discórdias intestinas, Lhe-diz : Quando o direito pretendia Do reino nas terras Iberinas,

254 CAMÒES E OS lusíadas

Nos Lusitanos vi tania ouzadia, Tanto primor, e partes tam divinas, Que elles sós poderiam, se não erro, Sustentar vossa parte a fogo e ferro.

E se, aggravadas damas, sois servidas. Por vós Ihe-mandarei embaxadores Que por cliartas discretas e polidas De vosso aggravo os-façam sabedores: Também por vossa parte incarecidas Com palavras d'afagos e d'amores Lbe-sejam vossas lagrymas; que eu creio Que alli tereis soccorro e forte esteio.

D'cst'artc as-acconselha o Duque experto E logo Ihe-nomêa doze fortes: E, porque cada dama un lenha certo, Lhe-manda que sobre elles lancem sortes; Que ellas doze sam: e descoberto Qual a qual tem caído das consortes," Cada uma escreve ao seo por vários modos, E todas ao seo Rei, c o Duque a todos.

chega a Portugal o mensageiro, Toda a corte alvoroça a novidade: Quisera o Rei sublime ser primeiro. Mas não lh'o-soffre a Regia magestade: Qualquer dos cortesãos aventureiro Deseja ser com férvida vontade, E fica por bem aventurado Quem vem pelo Duque nomeado.

na leal cidade, d'onde tira Origem (como é fama) o nome eterno De Portugal, armar madeiro leve Manda o que tem o leme do governo.

os lusíadas 255

Apercebem-se os doze em tempo breve D'arraas, e roupas de uso mais moderno, De elmos, cimeiras, iellras e primores, Cavallos, e concertos de mil cores.

de seo Rei tomado téem licença, Para partir do Douro celebrado Aquelles, que escolhidos por sentença Foram do Duque Inglês exp'rimentado. Não ha na companhia differença De cavalleiro, dextro, ou exforçado; Mas un só, que Magriço se-dizia, D'est'arte fala á forte companhia:

Fortíssimos consócios, eu desejo Ha muito de andar torras extranhas ; Por ver mais aguas, que as do Douro e Tejo, Varias gentes e leis, e varias manhas: Hagora, que apparelho certo vejo, (Pois que do mundo as coisas sam tammauhas) Quero, se me-deixais, ir por terra; Por que eu serei comvosco em Inglaterra.

E quando caso for, que eu, impedido Por quem das coisas é ultima linha, Não for comvosco ao prazo instituído, Pouca falta vos-faz a falta minha; Todos por mi fareis o que é devido: Mas, se a verdade o esp'rito me-adivinha, Rios, montes, fortuna, ou sua inveja. Não farão, que eu comvosco não seja.

Assi diz: e, abraçados os amigos, E tomada licença, emQn se-parlc: Passa Leão, Gaslella, vendo antigos Logares, que ganhara o pátrio Marte ;

256 CAMÕES E OS lusíadas

Navarra, co' os allissimos perigos Do Pyreneo, que Hispanha e Gallia parle: Vistas, emfin, de França as coisas grandes, No grande empório foi parar de Frandes.

AUi chegado, ou fosse caso, ou manha, Sem passar se-deteve muitos dias: Mas dos onze a iilustrissima companha Cortam do mar do Norte as ondas frias. Chegados de Inglaterra á costa extranha, Para Londres fazem todos vias: Do Duque sam com festa agasalhados, E das damas servidos e amimados.

Chega-se o prazo e dia assignalado De inlrar em campo co' os doze Ingleses, Que pelo Rei tinham segurado : Armam-se d'elmos, grevas e de arneses: as damas toem por si fulgente e armado

O Mavorte feroz dos portugueses: Vestem-se cilas de cores e de sedas. De ouro e de jóias mil, ricas e ledas.

Mas aquella, a quem fora em sorte dado Magriço, que não vinha, com tristeza Se-veste; por não ter quem nomeado Seja seo cavalleiro 'n esta impresa; Bem que os onze apregoam, que acahado' Será o negocio assi na corte Inglesa, Que as damas vencedoras se-conheçam, Postoque dois e três dos seos falleçam.

'n uu suhlime e publico theatro Se-assenta o Rei Inglês com toda a corte: Estavam três e três, e quatro e quatro, Bem como a cada qual coubera em sorte.

os LUSUDAS 257

Não sara vistos do Sol, do Tejo ao Bactro, De força, exforço e d'aDÍmo mais forte Outros doze sair, como os Ingleses, No campo contra os onze Portugueses.

Mastigam os cavailos escumando Os áureos freios com feroz semblante : Estava o Sol nas armas rutilando, Como em crystal, ou rígido diamante: Mas inxerga-se 'n un e 'n outro bando Partido desegual e dissonante Dos onze contra os doze : quando a gente " Começa a alvoraçar-se geralmente.

Viram todos o rosto aonde havia A causa principal do reboliço : Eis entra un cavalleiro, que trazia Armas, cavallo, ao bellico serviço: Ao Rei e ás damas fala, e logo se-ia Para os onze; que este era o gran' Magriço: Abraça os companheiros, como amigos, A quem não falta certo nos perigos.

A dama, como ouviu, que este era aquelle, Que vinha a defender seo nome e fama, Se-alegra e veste alli do animal de Helle, Que a gente bruta mais, que virtude ama. dam signal, e o son da tuba impelle Os bellicosos ânimos, que inílamma: Picam d'esporas, largam rédeas logo, Abãxam lanças, fere a terra fogo.

Dos cavailos o estrépito parece Que faz que o chão debaxo todo treme: O coração no peito, que estremece, De quem os- olha, se- alvoroça e teme: 17

iíé- CAMÕES E OS LUSUUAS

Qual do cavallo vôa, que não dece: Qual, CO* o cavallo em terra dando, geme: Qual vermelhas as armas faz de brancas: Qual co' 03 pennachos do cimo açoita as ancas.

Algun d'alli tomou perpetuo sorano, E fez da vida ao fin breve intervallo: Correndo algun cavallo vai sem domno, E n' outra parte o domno sem cavallo : Cáe a soberba Inglesa do seo throno; Que dois, ou três fora vam do vallo: Os que de espada veiem fazer batalha, Mais acham que arnês, escudo c malha.

Gastar palavras em contar extremos De golpes feros, cruas estocadas, É d'esses gastadores, que sabemos, Mãos do tempo com fabulas sonhadas: Basta por fm do caso, que intendemos, Que com finezas altas e afamadas Co' os nossos fica a palma da victoria, E as damas vencedoras, e com gloria.

Cant. VI, Est. 43. e seg.

os LUSUDAS 259

XVI

Diz Hieronymo Soares Barbosa na sua Ana^yse dos Lusíadas, que a historia dos doze de Inglaterra é inve- rosímil, extrangeira á fabula, e de uma digressão im- própria. * Tudo isto, porém, não passa de meramente fútil; cumprindo observar que o mesmo Barbosa se-con- tradiz logo a deante, escrevendo: que é verosímil sim, que Velloso com seos companheiros para expellir o som- no, dicessem alguns contos e historias; mas que não é nem necessário, nem verosímil (mas somente possível) que a historia que contassem fosse justamente a dos do- ze cavalleiros.

Reduz-se, portanto, o argumento a não ser mais admissivel do que outra qualquer, a historia de que se- tracta. Mas como o argumento tanto colhe para esta, como para outra que se-queira imaginar, segue-se que,

* Observações ao Cant. VI pag. 91.

260 CAMÕES B os lusíadas

por exclusão, nenhuma fora admissível; o que implica com ter diclo que é verosímil que Velloso com seos com- panheiros dicessem alguns contos, e historias.

Hora, da escolha d'esta o mesmo Camões deu a ra- zão pela bocca de Velloso, fazendo-lhe dizer:

Que o trabalho do mar, que tanto custa, Não soffre amores, etc.

Quanto a ser a historia dos doze de Inglaterra alheia á fabula épica, como também escreveu Joseph Agosti- nho, de quem parece que o citado Barbosa copiou 'n esta parte tudo o que diz, observaremos que a asserção se- funda em considerar a dieta historia un episodio do poe- ma; quando, aliás, não deve ser tida em mais do que uma diversão própria da vida náutica. Mas quando se-insista em chamar-lhe episodio; o qual, por constar de assumpto que se não liga com a acção principal, é, por isso, extranho á fabula épica, diremos que em caso idêntico está a narração do combate de Hercules e Caco na Eneida: a do combate do mesmo Hercules e Antêo, na Pharsalia, e, para não citarmos outros, o episodio de Olindo e Sofronia na Jerusalém Libertada, que o men- cionado Joseph Agostinho achou digno de desculpa, não devendo merecer-lhe menos indulgência a historia dos doze de Inglaterra, da qual chega a confessar que, quan- to á versificação, ás imag^es, ao andamento, á força icastica, ou representativa, nada ha mais perfeito, apon- ctado e acabado em todo o poema. *

* Censura dos Lusiad. T. II, pag. 49.

os LUSIADAS 261

O que o auclor da Analyse taxa de digressão impró- pria, tem a manifesta propriedade de produzir o effeito que notámos, e que elle não foi capaz sequer de com- prehender.

Contada a historia por Velloso, e começando este de divagar: eis que rebenta a tempestade, que o poeta primorosamente descreve, fazendo-nos ver aquella ter- rível scena do mar em todo o seo horror:

Mas 'n este passo assi promplos estando, Eis o mestre, que olhando os ares anda, O apito toca: acordam despertando Os marinheiros d'uma e d'outra banda: E, porque o vento vinha refrescando. Os traquetes das gáveas tomar manda: Alerta, dice, estae, que o vento crece D'aquella nuvem negra, que apparece.

Não eram os traquetes bem tomados. Quando a grande e súbita procella: Amaina, dice o mestre a grandes brados. Amaina, dice, amaina a grande vela. Não esperam os ventos indignados Que amainassem; mas, junctos dando 'n ella, Em pedaços a fazem c'un ruido Que o mundo pareceu ser destruido.

O ceo fere com gritos 'n isto a gente. Com súbito temor e desaccordo; Que, no romper da vela, a náu pendente Toma gran' somma d'agua pelo bordo: Alija, dice o mestre rijamente. Alija tudo ao mar, não falte accordo,

262 CAMÕES E OS lusíadas

Vam outros dar á bomba não cessando: Á bomba; que nos-imos alagando.

Correm logo os soldados animosos A dar à bomba, e tanto quo chegaram, Os balanços, que os mares temerosos Deram á núu, 'n un bordo os-derribaram : Três marinheiros duros e forçosos A manear o leme não bastaram, Talhas Ihe-punham d'uma e d'outra parte, approveitar dos homêes força e arte.

Ilagora sobre as ondas os-subiam As ondas do Neptuno furibundo: Hagora a ver parece que desciam As intimas intranhas do profundo Noto, Auslro, Boreas, Aquilo queriam Arruinar a machina do mundo: A noite negra e feia se-allumia Co' os raios em que o polo todo ardia.

Cant. VI, Est. 70, 71, 72, 73, 76.

Esta descripção é sem contrariedade alguma superior á que Virgilio faz da tempestade no Liv. I da Eneida. Em Gamões nota-se mais propriedade, mais movi- mento: as cores não sam menos vivas; nem menos ma- gestosa a terribilidade da scena.

No perigo imminente da procella invoca Vasco da Gama a protecção divina; o que practíca como homem piedoso, e como christão; nem outra coisa Ihe-cumpria

os lusíadas

t63

uma vez que fossem observados os costumes. O poe- ta, porém, que tracta o assumpto mythologicamente, não discrepa em fazer que seja Vénus quem de novo soccorre o heróico navegante. Isto accende em cholera o auctor da citada Analyse, que exclama : Não se-póde supportar a incoherencia que se-vê em invocar Vasco da Gama un anjo e ser soccorrido por uma falsa e gentíli- ca Deidade! Note-sc, porém, que Luiz de Camões evi- tou habilmente a pretendida incoherencia; porque não diz que Vénus acudisse em virtude da supplica do Ga- ma.— A Deosa protectora dos Lusitanos, vendo dos ares o perigo da armada, corre açodada a prestar-lhe auxi- lio, e segundo a supposta crença do poeta é a mesma Deosa quem remove e abranda a tempestade. Admit- tida em Camões a crença da Theogonia pagãa, é tam natural attribuir elle á intervenção de Vénus o socorro da armada, como é natural a qualquer christão, ao ver un navio de infiéis escapar a un terrivel naufrágio, attri- buir o estupendo successo a Christo. ou a algun sancto; não obstante haverem os nautas invocado Mahomet. Nem pareça coisa extranha poder o poeta reputar-se possuido das idéas do Paganismo; porquanto, observa Sismondi, a educação dos collegios e a leitura dos livros clássicos haviam dado a todas estas allegorias uma força tal, que quasi egualava a da própria crença. *

« De la Litterat. du Midi de TEurope. T. IV, chap. 27, p. 340.

Ajunctaremos que os nossos costumes, abusões e preconceitos nos-fa- zem ainda hoje participar em muitas coisas das crenças dos antigos roma- nos. Pôde mesmo asseverar-se que tanto em Itália, como em Portugal, nun- qua se-deixou inteiramente de ser pagão.— A un Núncio do Papa ouvimos nós mais de uma vez (coisa inQnitamente chistosa!) jurar como ua gentio:

264 CAMÕES E OS lusíadas

Acode, pois, a Deose protectora dos Lusitanos, não por ser invocada, mas porque o perigo da armada, 6, para soccorrel-a, vale-se de un dos attributos da sua divindade, impregando, para applacar a fúria dos Ven- tos, as seducções das Nymphas que Ihe-formam o cor- tejo: graciosa ficção na gosto da antiguidade clássica:

Mas a amorosa estrella scintillava De ante do Sol claro no horizonte, Mensageira do dia e vizitava A terra e o largo mar com leda fronte: A Deosa que nos ceos a governava, De quecn foge o ensifero Orionte, Tanto que o mar e a cara armada vira, Tocada juncto foi de medo e de ira.

Estas obras de Baccho sam, por certo, Dicc: mas não será que avante leve Tam damnada tenção; que descoberto Me-será sempre o mal a que se-atreve: Isto dizendo, desce ao mar aberto, No caminho gastando espaço breve, Em quanto manda ás Nymphas amorosas Grinaldas nas cabeças pôr de rosas.

Grinaldas manda pôr de varias cores, Sobre cabellos louros á porfia: Quem não dirá que nascem roxas flores Sobre ouro natural que amor infia?

per corpo di Baco : E ainda em nossos dias incutiam tanto receio as crenças do Paganismo, que quando se-editava algun livro que falasse, ou contivesse áHusões a Júpiter, Juno, Marte, etc, não deixava logo o A. de junctar-lhe uma ediQcante profissão de em que protestava não accreditar 'n aqueJlas Divindades.

os LUSIAUAS 265

Abrandar determina por amorcí? Dos ventos a nojosa companhia, Mostrando-Ihe as amadas Nymphas bellas, Que mais formosas vinham, que as eslrellas,

Assi foi: porque tanto que chegaram Á vista delias, logo Ibe-fallecem As forças, com que d'antes pelejavam, E já, como rendidos, Ihe-obcdecem : Os pés e mãos, parece, que Ihe-ataram Os cabellos, que os raios escurecem. A Boreas, que do peito mais queria, Assi dice a bellissima Orilhya:

Não creias, fero Boreas, que te creio, Que me-tiveste nunqua amor conslante; Que brandura é de amor mais corto arreio, E não convêm furor a firme amante: Se não pões a tanta insânia freio. Não esperes de mi, d'aqui om deante Que possa mais amar-te, mas temer-te; Que amor comtigo em medo se-converte.

Assi mesmo a formosa Galatea Dizia ao fero Noto; que bem sabe Que dias ba, que em vel-a se-recrea, E bem cré, que com elle tudo acabe: Não sabe o bravo tanto bem se ocrea; Que o coração no peito lhe não cabe: De contente de vêr, que a dama o-manda, Pouco cuida que faz, se logo abranda.

Desta maneira as outras amansavam Subitamente os outros amadores; E logo á linda Vénus se-intregavam, Amansadas as iras e os furores:

266 CAMÕES E OS lusíadas

Ella lhe-prometteu, vendo que amavam, Sempiterno faVor em seos amores, Nas bellas mãos lomando-lhe homenagem De Ihe-serem leaes, esta viagem.

Cant. VI, Est. 85 e seg.

Subjugados os ventos, e acalmada a tempestade, pro- segue o capitão illustre a viagem, e, a pouco espaço, sem experimentar novos revezes, descobre a índia.

Aqui termina o Canto VI dos Lusiadas.

os lusíadas 267

XVII

Gomo que reflectindo sobre o êxito da descoberta prosperamente conseguido, começa Gamões o Gant. Vil com uma invectiva contra as varias nações da Europa, que no seo tempo se-digladiavam e destruíam em guer- ras de religião. Esta invectiva, que o Morgado de Ma- theus * adverte ser un artificio do patriotismo do poeta para sobrelevar a gloria da sua nação e dar realce á grandiosa impresa que ella havia effectuado, lem, com- tudo, o grave defeito de interromper a narração do poe- ma.— Õ contraste que oíTerece é, porém, naturalmente suscitado e sobresae no dizer da seguinte estancia:

Mas emtanto que cpgos e sedentos Andaes de vosso sangue, ó genle insana, Não faltarão christãos atrevimentos 'Nesta pequena casa Lusitana:

» Os Lusíadas. Ediç. de Paris ; 1847. Vida de Camões, p. 66.

268 CAMÕES E OS lusíadas

De Africa tem maritimos assentos, É na Ásia mais, que todas, soberana. Na quarta parte nova os campos ara, E, se mais mundo houvera, chegara.

Cant. VII, Est. 14.

A tentativa da passagem da Europa á índia, pelo Gabo da Boa-Esperança, estava pois realizada; mas tam maravilhoso resultado fora de nenhun valor, se Vasco da Gama não regressasse a Portugal a fazel-o saber ao monarcha, que Ihe-confiara aquelle temerário imprehen- dimento. Não podia, portanto, considerar-se completa a acção do poema, se no mesmo se não tractasse do re- gresso da armada.

Cumpria, porém, que Vasco da Gama não partisse da índia antes de haver adquirido conhecimento da si- tuação e grandeza d'aquelle paiz; bemcomo da religião, das leis e costumes dos seos naturaes; e antes, sobre tudo, de estabelecer relações de amizade entre o monar- cha Português e o mór potentado do vasto território In- diano, que então era o Samorin. D'isto julgou com razão dever informar-nos o poeta; mas não omittiu, co- mo devera, algumas circumstancias que, comquanto exi- gidas pelo rigor histórico, e consentâneas de uma nar- rativa de outro género, rebaxam, comtudo, a grandeza do assumpto e do heróe, e sam, por isso, incompativeis com a magestade sublime da epopeia. Concernente a Homero, observou Horácio:

Et quae

Disperat tractata niliscere posse relinquit.

De Art. Poet. v. 148—149.

os lusíadas 269

Depois de fazer a descripção geographica da índia, refere Gamões que, havendo Vasco da Gama aportado a Calecut, expede un mensageiro ao Samorin, a fazel-o sabedor da sua vinda. O mensageiro incontra em terra un mouro natural de Berbéria, por noine Monçaide, que falava a lingua hispânica, o qual Ihe-diz que o rei esta- va fora da cidade; mas em logar que não era dalli dis- tante.— Entretanto agasalha-o o mouro e vem com elle a bordo da capitanea, onde relata ao capitão a historia do Malabar e Ihe-dá noticia dos Naires, dos Brahme- nes, dos ritos d'estes e dos usos e costumes do paiz.

Obtendo Vasco da Gama licença para desimbarcar e para ir dar sua embaxada ao Samorin, sáe das naus com luzido accompanhamenlo, e, depois de atraveçar o mar interposto, entra remando por un rio a dentro; o que é expressado com poética elegância:

O remo compassado fere frio Hagora o mar, depois o fresco rio.

Cant. VII, Est. 43.

Dirigindo-se o Gama ao palácio do Samorin, contem- pla as figuras que o poeta finge gravadas nos portaes da cerca do mesmo palácio, e logo é introduzido na sa- la, onde o monarcha Indiano o-recebe recostado 'n un sumptuoso leito, á guisa oriental.

Dada a embaxada, o Gatual, espécie de regedor da cidade, a fin de indagar que qualidade de gente seja a portuguesa, vai a bordo da capitanea, onde Paulo da Gama, irmão do almirante, o-recebe com as devidas ho-

270 CAMÕES E OS lusíadas

menagees e Ihe-explica o qiio representam as figuras que o poeta incoherentemente suppõe pintadas nas bandei- ras das naus; pelo que merece com razão a censura que Ihe-fazem; por ser coisa imprópria pôrem-se em bandei- ras pinturas de homêes e batalhas.

Entretanto a un sacerdote da seita Mahometana, es- tante em Calecut, apparece Baccho em sonhos, sob a figura do próprio Propheta, prevenindo-o e estimulan- do-o contra os perigos e os damnos incalculáveis que aos da sua religião se-preparavam com a vinda dos por- tugueses.— Despertado o mouro, convoca logo os seos sequazes e, depois de vários pareceres, accordam em corromper com dadivas e peitas os regedores e os prin- cipaes do Malabar; fazendo-lhes crer que os recemche- gados sam piratas, que, discurrendo os mares do Occi- dente, vivem de rapinas, sem ter rei, nem lei a que obedeçam; os quaes ham de causar a perdição da gente da terra, se Ihes-permittirem ingresso e com elles hou- verem tracto.

Fora de todo o poncto desnecessário que o poeta re- curresse ás insidias de Baccho para dar origem ás hos- tilidades dos mouros contra os portugueses; porque não o ódio de raça que elles Ihes-professavam, senão ain- da a sanha de se- verem esbulhar do trafico exclusivo de que, desde largos annos, estavam de posse em todo o Malabar, eram per si bastantes para os-incitar a que se-valessem das mais odiosas tramas e perfidias, a fin de os-pôr em guerra com os naturaes, e de promover que fossem lançados da índia.

D'aqui por deante, em tudo o que aos portugueses

os lusíadas 271

aconteceu em Calecut, até que Vasco da Gama partiu d'aquella cidade para o reino, não fez o poeta senão co- piar o que sobre este assumpto escreveram Johão de Barros e Castanheda ; não omittindo, como observá- mos, alguns lances menos próprios da dignidade do he- róe; taes como o ter elle sido preso em terra pelo Ca- tual, e o haver-se resgatado pelas mercadorias que Ihe- foi mister mandar ir de bordo. 'Nisto peccou indes- culpavelmente o cantor dos Lusiadas.

272 GAiMÕES E OS lusíadas

XVIII

Regressando os afortunados navegantes á sua que- rida pátria, sam recebidos e festejados 'n uma ilha de- liciosa, que Vénus Ihes-ha de ante mão preparado, e onde com os afagos de amorosas Nymphas Ihes-confere o galardão dos trabalhos que padeceram e da perseve- rança com que arrostaram as ondas e os ventos, devas- sando mares não conhecidos.

Sobre a situação d'esta ilha maravilhosa têem larga- mente dissertado diílérentes commentadores; pretenden- do uns que é a de Anchidiva; outros a de Ceilão; estes que é a de Sancta Helena; aquelles que não passa de uma ilha phantastica, creada pela imaginação do poeta. Por ultimo, un distincto litterato, o senr. Joseph Go- mes Monteiro, escreveu un erudito opúsculo, expressa- mente destinado a provar que a ilha de que se-tracta é a de Zenzibar, na costa oriental de Africa. *

Charla ao ill.»» senr. Thomaz Norton sobre a situação da ilha de Vé- nus. Porto.— 1849.

os lusíadas 273

A estancia em que Luiz de Gamões menciona esta ilha e que tem dado margem a tam incontradas opiniões é a seguinte:

Isto bem resolvido, determina De ter-lhe apparelhada no meio Das aguas alguma insula divina, Ornada de esmaltado e verde arreio; Que muitas tem no reino, que confina Da primeira com o terreno seio, A fora as que possue soberanas Para dentro das portas Herculanas.

Cant. IX, Est. 21.

Na edição de 1609, por Pedro Graesbeck, appare- ceu pela primeira vez o sexto verso desta estancia al- terado pela seguinte forma:

Da mãe primeira co' o terreno seio.

Julga-se, porém, que o verdadeiro auctor da emenda fosse o castelhano Benito Caldera, na sua traducção pu- blicada em 1580.

Depois da edição de 1609 reproduziram-se outras muitas em que foi adoptada a lição referida.

Diz o senr. Joseph Gomes Monteiro 'n uma nota a pag. 20 do citado opúsculo, que o monosyllabo mãe é a única palavra que podia aqui satisfazer simultaneamente as necessidades do metro, da syntaxe e do sentido; e no texto, a pag. 22, escreve: Ou estes versos se-tomem co- mo uma periphrase do paraiso terreal, ou de toda a Ásia, como berço do género humano, segundo a historia

18

274 CAMÕES B OS lusíadas

e a revelação^ era a ilha de Vénus uma das muitas que a Deosa possue nos mares orientaes. Para ser cohe- rente com a opinião que emitte, devia o auctor fazer- nos ver que a ilha de Vénus, ou dos Amores, era algu- ma das da Ásia; mas, ao invez d'esla opinião, pretende que não é outra senão a de Zenzibar, adjacente á costa oriental da Africa, e que nada tem que ver com as da Asial

Manuel Correia, annotando a referida estancia, de- clara que o verso em questão deve lêr-se como se-acha originalmente escripto e que assim o ouviu a Luiz de Camões. Quando, porem, tal declaração não fosse leita por un homem cujo testimunho é irrefragavel por ter si- do amigo do poeta, para nós a lição genuina d'aquelle celebre verso fora sempre a que se-incontra nas duas edições de 1572:

Da primeira com o terreno seio.

Expuncto este verso da palavra mãe, que, como vi- mos, Ihe-foi introduzida, tem uma exphcação clara, que, aliás, não saberiamos dar-lhe.

O reino que confina com o terreno seio da primeira é o oceano Atlântico, que confina e communica com o Mediterrâneo (terreno seio por ser mar fechado entre terras) no qual está situada a ilha de Gypre, primeira das pertencentes a Vénus; por ser alli que tinha seo prin- cipal culto nas cidades de Idalia, Paphos e Amathunta.

A ilha dos Amores, ou seja alguma das Canárias (as Fortunadas dos antigos) ou uma ilha que Vénus expres-

os lusíadas 275

sãmente fizesse sair do seio das aguas para 'n ella re- ceber e premiar os heróicos navegantes, não pode dei- xar de considerar-se situada no oceano Atlântico, e não no mar das índias. Vem confirmar a interpretação que damos a este logar a estancia I do Gant. X, onde se-lê :

Mas o claro amador de Larissôa Adultera inclinava os animaes para o grande lago, que rodea Temistitão nos fins occidentaes.

Se a ilha dos Amores estivesse situada no oceano In- dico, não diria o poeta que o sol se-inclinava, ou diri- gia sobre o grande lago que rodeia Temistitão, isto é, sobre o golfo do México ; porque então a parte do globo que Ihe-ficara ao occidente fora a Africa. Isto, além do que dicemos, confirma que a mencionada ilha é supposta demorar fronteira á costa oriental da America, o que vale o mesmo que estar situada no oceano Atlân- tico.

Por outra parte, dizendo o poeta que o sol se-incli- nava sobre o México, fal-o corresponder ao signo de Câncer, sob cujo trópico está situado aquelle paiz; e in- trando o sol em Câncer a 20 ou 21 de junho, devia a este tempo Vasco da Gama, que dobrou o Cabo da Boa- Esperança a 20 de março, achar-se na altura das Ca- nárias, que estão no mesmo parallelo que o México, vis- to o singrar moroso de tam prolixa e trabalhosa nave- gação.

Ainda mais: achando-se os nautas nos fins de junho

276 CAMÕES E OS lusíadas

na ilha dos Amores, não pode esla ilha, qualquer que se-imagine, suppôr-se no oceano Indico, por haver Vas- co da Gama passado o Gabo da Boa-Esperança no cita- do dia 20 de março: logo é forçoso que seja uma das Canárias, ilhas dos antigos conhecidas, ou, com mais probabilidade, alguma ilha que Vénus expressamente fizesse sair do seio do Atlântico e na altura das Caná- rias, que é o poncto sobre que bate a questão.

os lusíadas 277

XIX

Para conseguir que as Nereidas se nâo mostrem es- quivas aos exforçados navegantes, a quem pretende fe- licitar, dirige-se Vénus aos montes Idalios, onde estava então seo filho Cupido, que preparava uma famosa ex- pedição de frecheiros com que se-dispunha a corrigir os erros e os desvarios que no mundo se-haviam intro- duzido.— E aqui insere o poeta uma vehemente e mal- disfarçada invectiva contra elrei Dom Sebastião, que, descurando os negócios do estado e fugindo do tracto e sociedade dos fidalgos mancebos, com quem devia con- viver e recrear-se em seos passatempos, se-impregava em montear; e bemassim contra os jesuitas, conse- lheiros subdolos e nefastos do mesmo rei, a quem este incarregara de todo o governo do reino.

Via Acteon na caça tam austero, De cego na alegria bruta, insana, Que, por seguir un feio animal fero, Foge da gente e bella forma humana:

278 CAMÕES E OS lusíadas

E por castigo quer doce e severo Mostrar-]he a formosura de Diana, E guarde-se não seja inda comido D'esses cães, que hagora ama, e consumido.

E do mundo todo os principaes. Que nenhun no bem publico imagina: 'n elles que não toem amor a mais Que a si somente, e a quem Philaucia insina: que esses, que frequentam os reaes Paços, por verdadeira e sãa doctrina, Vendem adulação, que mal consente Mondar-se o novo trigo florecente.

que aquelles que devem á pobreza Amor divino, e ao povo charidade. Amam somente mandos e riqueza, Simulando justiça e integridade: Da feia tyrannia e de aspereza Fazem direito e vãa severidade: Leis em favor do Rei se-estabelecem, As em favor do povo perecem.

Cant. IX, Est. 26, 27, 28.

A descripção das obras em que se-impregavam os cupidinhos é digna de referir-se:

Muitos d'estes meninos voadores Estão em varias obras trabalhando, Uns amolando ferros passadores, Outros hasteas de settas delgaçando: Trabalhando, cantando estão de amores, Vários casos em verso modulando, Melodia sonora, e concertada. Suave a lettra, angélica a toada.

os lusíadas 279

Nas fragoas iramortaes, onde forjavam Para as settas as ponclas penetrantes, Por lenha, corações ardendo estavam, Vivas intranhas inda palpitantes: As aguas, onde os ferros temperavam, Lagrymas sam de miseros amantes: A viva flamma, o nunqua morto lume Desejo é só, que queima, e não consume.

Alguns exercitando a mão andavam Nos duros corações da plebe ruda: Crebros suspiros pelo ar soavam Dos, que feridos vam da setta aguda: Formosas Nymphas sam as, que curavam As chagas recebidas, cuja ajuda Não somente vida aos mal feridos. Mas põe em vida os inda não nascidos.

Cant. IX, Est. 30, 31, 32.

Havendo Vénus exposto a seo filho os motivos que 'n ella imperavam para desejar premiar os intrépidos navegantes, presta-se elle aos rogos da Deosa; mas in- tende dever ser coadjuvado pela Fama que, apregoan- do os louvores de tam insignes varões, incline a seo fa- vor o animo das Nereidas. Recorrem, pois, á Fama, que preconiza e ingrandece o valor dos nautas que veiem cortando as ondas, e logo Cupido faz seo officio:

Despede 'n isto o fero moço as settas Uma a pós outra, geme o mar com tiros: Direitas pelas ondas inquietas Algumas vam, e algumas fazem gyros:

280 CAMÕES E OS lusíadas

Caem as Nymphas, lançam das secretas Intranhas ardentíssimos suspiros: Cáe qualquer, sem ver o vulto que ama; Que tanto, como a vista, pôde a fama.

Cant. IX, Est. 47.

Gracioso quadro nos-oíTerecem estes versos ; mas ter- minam com un dictame que nada tem de verdadeiro; antes expressa o contrario do que realmente se-observa na natureza, e que Horácio nos-quis fixar na memoria, dizendo:

Segnius irritant ânimos demissa per aurem, Quam quae sunt oculis subjecta fidelibus. . .

De Art. Poet. v. 179—180.

Feridas de amor as cândidas Nereidas, sam con- duzidas por Vénus á ilha namorada a que os nautas ham de aportar; e, entretanto que para caminham, vam tecendo gentis choréas.

os lusíadas 281

XX

A descripção da ilha dos Amores é uma das mais de- liciosas coisas não dos tempos modernos, senão de tudo o que conhecemos da formosa antiguidade. Pos- toque a linguagem se4enha grandemente aprimorado de então para cá, tem a d'aquella descripção un tam suave colorido, sente-se 'n ella un mimo e suavidade tal que junctamente nos-sobreprehende e arrebata. É o qua- dro da mais apurada esthetica, em que nos-inlevam os sentidos a jucunda feracidade do solo; o viço luxurian- te das arvores; a fragrância das flores; a transparência das aguas; a harmonia das aves; o ruido dos arroios e a voluptuosa seducção das Nymphas, que, assaltadas de improviso no banho, vam fugindo nuas pelas florestas, para depois se-intregarem nos braços dos seos ardentes perseguidores.

A parte descriptiva é, sobre tudo, de uma tam notó- ria e especial belleza, que o próprio zoilo de Camões

282 GAMÕES E OS lusíadas

não se não atreveu a critical-a, senão que ainda al- tamente a-elogiou. * Seria falta imperdoável, se aqui não transcrevêssemos un tam primoroso trecho de poe- sia:

Três formosos outeiros se-mostravam Erguidos com soberba graciosa, Que de gramineo esmalte se-adornavam, Na formosa ilha alegre e deleitosa: Claras fontes e límpidas manavam Do cume, que a verdura tem viçosa: Por entre as pedras alvas se-deriva A sonorosa lympha fugitiva.

'N un valle ameno, que os outeiros fende, Vinham as claras aguas ajunctar-se. Onde uma mesa fazem que se-extende Tam bella quanto pode imaginar-se: Arvoredo gentil sobre ella pende. Como que prompto esfá para affeitar-se, Vendo-se no crystal resplandecente, Que em si o-está pintando propriamente.

Mil arvores estão ao ceo subindo Com pomos odoríferos e bellos: A laranjeira tem no fructo lindo A côr, que tinha Daphne nos cabellos: Incosta-se no chão, que está caindo A cidreira co' os pesos amarelos: Os formosos limões alli cheirando Estão virgíneas tetas imitando.

Vid. Cens. dos Lusiad. por. J. Agost. de Macedo, T. II, pag. 210.

os lusíadas 283

As arvores agrestes que os outeiros Têem com frondente côraa innobrecidos, Alemos sam de Alcides, e os loureiros Do louro Deos amados e queridos. Myrtos de Cytheréa, co' os pinheiros De Cybele, por outro amor vencidos: Está aponctando o agudo cypariso Para onde é posto o ethereo paraíso.

Os dõcs, que Pomona, alli uatura Produze differentes nos sabores, Sem ter necessidade de cultura. Que sem ella se-dam muito melhores: As cerejas purpúreas na pintura: As amoras, que o nome téem de amores: O pomo que da pátria Pérsia veiu, Melhor tornado no terreno alheio.

Abre a romãa, mostrando a rubicunda Côr com que tu, rubi, teo preço perdes: Entre os braços do ulmeiro está a jucunda Vide c' uns cachos roxos e outros verdes : E vós, se na vossa arvore fecunda, Peras pyramidaes, viver quiserdes, Intregae-vos ao darano que, co' os bicos Em vós fazem os pássaros inicos.

Pois a tapeçaria bella e fina. Com que se-cobre o rústico terreno. Faz ser a de Achemenia menos dina, Mas o sombrio vallc mais ameno: Alli a cabeça a flor Cephisia inclina Sôbolo tanque lúcido e sereno : Florece o filho e neto de Ginyras, Por quem tu, Deosa Puphia, inda suspiras.

CAMÕES E OS lusíadas

Para julgar difflcil coisa fora, No ceo vendo, e na terra as mesmas cores, Se dava ás flores côr a bella Aurora, Ou se lh'a dam a ella as bellas flores. Pintando estava alli Zephyro e Flora As violas da côr dos amadores: O lirio roxo, a fresca rosa bella, Qual reluze nas faces da donzela.

A cândida cecém, das matutinas Lagrymas rociada, e a mangerona: Vêem-se as lettras nas flores Hyacinthinas, Tam queridas do fllho de Latona: Bem se-inxerga nos pomos e boninas Que competia Chloris com Pomona. Pois se as aves no ar cantando voam, Alegres animaes o chão povoam:

Ao longo da agua o niveo cysne canta, Responde-lhe do ramo philoraela: Da sombra de seos cornos não se-espanta Acteon 'n agua crystalina e bella : Aqui a fugace lebre se-levanta Da espessa mata, ou timida gazella: Alli no bico traz ao caro ninho O mantimento o leve passarinho.

Cant. IX, Est. 54 e seg.

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285

XXI

Logo que os nautas desimbarcam na ilha deliciosa, avistam as Nymphas; das quaes umas se-banhavam em liffpidos lagos, emquantoque outras pelas frescas ribei- ras e florestas se-deixavam andar como incautas: e o mesmo foi vel-as que desfecharem em veloz corrida a pós ellas. Accelera Leonardo a carreira por alcançar a formosa Ephyre que, mais que as outras, se-impenha- va 'n uma ficta esquivança ; e as namoradas magoas que Ihe-vai dizendo (excepto alguns chites e conceitos) têem o ton da verdade; porque sam queixumes que faz con- tra a sua fortuna; meio natural de que todos os amantes se-servem para commover e captar o coração das suas bellas.

Ouçamos-lhe as sentidas queixas:

286 GAMÕES E OS lusíadas

Todas de correr cansam, Nympha pura, Rendendo-se á vontade do inimigo, Tu de mi foges na espessura? Quem te-dice que eu era o que te-sigo? Se t'o tem dicto aquella ventura. Que em toda a parte sempre anda commigo, ó não na creas; porque eu, quando acria, Mil vezes cada hora me-mentia.

Não canses; que me-cansas: e se queres Fugir-me; porque não possa tocar- te, Minha ventura é tal, que, indaque esperes, Ella fará, que não possa alcançar- te. Espera: quero ver, se tu quiseres, Que subtil modo busca de escapar-te, E notarás no fin d'este successo «Tra la spica e la man qual muro è messo.»

Ó não me-fujas! Assi nunqua o breve Tempo fuja da tua formosura! Que, com refrear o passo leve, Vencerás da fortuna a força dura. Que imperador, que exercito se-atreve A quebrantar a fúria da ventura. Que, emquanto desejei, me-vai seguindo, O que tu farás não me-fugindo?

Pões-te da parte da desdita minha? Fraqueza é dar ajuda ao mais potente. Levas-me un coração, que livre tinha? Solta-m'o, e correrás mais levemente. Não te-carrega essa alma tam mesquinha. Que 'n esses fios de ouro reluzente Atada levas? Ou, depois de presa, Lhe-mudaste a ventura, e menos pesa?

Gant. IX, Est. 77 e seg.

os lusíadas 287

'N estas amorosas queixas inconlram-se alguns pen- samentos, que deixam de ser bellos por Ihes-faltar un fundamento de verdade; por exemplo:

Minha ventura é tal, que, indaque esperes, Ella fará, que não possa alcangar-ío.

Não te carrega essa alma tani mesquinha Que 'n esses fios de ouro reluzente Atada levas? Ou, dapois de presa, Lhe-mudaste a ventura, e menos pesa?

Sam indubitavelmente idéas falsas, que hoje não têem merecimento algun; mas estavam no gosto do tempo em que o poeta escreveu. Não dizia Petrarca :

Questi son que' begli occhi che mi stanno Sempre nel cor con le faville accese? *

E pode dar-se maior disparate? Se pintarmos un co- ração e dentro delle dois olhos despedindo chammas, ou faiscas accesas, ninguém, por certo, deixará de con- fessar que a pintura é de péssimo effeito.

Qualquer idéa, ou concepção, que, posta em pintu- ra, produzir un todo informe, incoherente, sem propor- ções, ou sem belleza artistica, será sempre inacceitavel, e digna da mais severa reprovação.

Quando uma idéa é falsa frustra necessariamente a

« Sonetto LV.

288 GAMÕES E OS lusíadas

arte, e recusa-se á forma que Ihe-é própria; a qual, co- mo se-appresenta defeituosa e contrafeita, põe então em relevo o absurdo da idéa.

Irmãas sam a poesia e a pintura, que cumpre nun- qua ver divorsiadas.

Estas impropriedades, que, a cada passo, se-incon- tram não em Petrarca, senão em todos os poetas seos imitadores, devem merecer desculpa a Camões, que fo- ra irapossivel que não sacrificasse ao gosto do século em que nasceu; note-se, porém, que as-impregou com a mor sobriedade, no que nos-deu uma prova do seo bon senso. Demais, não as-incontrâmos nós inda hoje em obras de reconhecido mérito? António Dinis da Cruz dice nas odes Pindaricas: *

Eu que, apezar da Inveja e seos furores Aos astros levo o nome Lusitano,

Á minha lyra o panno Peio mar soltarei dos teos louvores.

Admitte-se que se-diga un mar de louvores; mas pin- tar uma lyra á vela, navegando como se fosse un na- vio, é, na verdade, un destempero que não pôde deixar de ser reprovado pela critica e pelo bon gosto.

O senr. Johão de Lemos na sua delicadissima com- posição=il Lua de Lowííres,=repassada do mais achry- solado amor da pátria, e na qual se-incontram bellezas de poesia que somos o primeiro a reconhecer e a louvar, apostrophando a lua, diz:

» Ode I, Estr. 1.»

os lusíadas 219

Eia, pois, õ Astro amigo, Voltemos aos puros ceos: Leva-me, ó Lua, comtigo, Preso 'n un raio dos teos.

Estando o A. em Londres, nunqua a lua, segundo o seo curso diuturno, quer real, quer apparente, o-pode- ria trazer a Portugal; mas isto é o menos. A pintura que nos-representa un homem suspenso por un raio da lua, além do absurdo, offerece uma idéa injucunda e re- pugnante; porque nos-faz lembrar uma aranha, suspen- sa por fio do tecto de uma casa.

Desculpemos, portanto, 'n esta parte o cantor dos Lu- siadas.

19

290 GAMÕES E OS lusíadas

íjUHí^

XXII

Perseguidas as Nymphas em rápida corrida ao longo das ribeiras, e por entre as florestas,

Pouco e pouco surrindo e gritos dando, Se-deixam ir dos galgos alcançando.

Ccetera quk nescit? . . . Depostas, emfin, todas as mos- tras de esquivança e mui conformes com os seos ama- dos perseguidores,

Os ornam de capellas deleitosas,

De louro e de ouro e flores abundantes.

Tethys, Deosa do mar, como devesse por sua alta hierarchia pertencer a Vasco da Gama, não ha mister perseguida, nem isso fora consentâneo com a dignidade do heróe. Ella mesma, tomando-o pela mão, o-conduz a un palácio radiante de crystal e ouro, onde se-esforça

os lusíadas 9|i

por lhe-ser agradável, e Ihe-concede os Íntimos favores que confirmam e assellam un formal conjugio.

Observa Sismondi que a allegoria dos esponsaes de Tethys com o almirante português, no momento em que o sceptro dos mares passava das mãos da republica de Veneza para as do rei de Portugal, parece ter sido sug- gerida pela ceremonia annual em que o Doge esposava o mar em nome daquella republica. * Julgámos, po- rém, que 'n esta allegoria teve antes Camões a idéa po- litica de annullar a dieta ceremonia, invalidando-lhe o fundamento, do que somente a poética de imital-a.

Houve quem, ostentando-se assas zeloso da honra das Nereidas, ouzou acoimar Camões de immoral. E a mais torpe e odiosa calumnia que jamais inventou a inveja nequissima. Gamões é, sem duvida voluptuoso; mas, por nenhun modo, immoral. Ninguém, pelo con- trario, foi mais severo censor dos vicios que reprehende tanto nos reis, como nos grandes e no clero: o que no seo tempo era o maior arrojamento a que podia abalan- çar-se. A Dom Manuel, e ao próprio Dom Sebastião a quem dedica o seo poema, não poupa a rigidez do seo character ; e diffundidos pelo mesmo poema acham- se a cada passo aphorismos e máximas de tam evidente moral, que a improbidade e a malicia poderão des- conhecer.— Foram até o assumpto de un estudo espe-

* II parait probable que la cérémonie annuelle de Tascension à Venise , oíi le doge épousait la mer au nom de la répubrique, a fait inventer au Ca- moens cette allégorie.— Un nouveau mariage de Tethys avec Tamiral por- tugais est célebre daos cette ile, au moment la dominatioa des mers passe de la republique de Veoise au rol de Portugal. De la Litterat. du Midi de l'Europe, Tom. IV, Chap. 37, pag. 407.

Hk CAMÕES E 08 lusíadas

ciai que ha poucos annos publicou o nosso estimável consócio, o senr. Joseph Silvestre Ribeiro. *

No mesmo palácio maravilhoso em que Tethys rece- be Vasco da Gama, faz depois a Deosa preparar lautas mesas cobertas de opiparos manjares, a que sam con- vidadas as Nereidas com os seos novos amantes; e, du- rante o banquete, accompanhada de instrumentos músi- cos, canta uma Nympha os feitos portentosos dos por- tugueses que ham de vir e assignalar-se nas partes do Oriente. Esta invenção está no gosto da antiguidade clássica : sendo junctamente un artificio de que o poeta se- vale para exaltar aquelles varões preclarissimos e pôr o ultimo remate ás glorias da sua pátria.

Aos festins dos antigos era costume assistirem músi- cos que, ao son da lyra, cantavam os louvores dos he- róes insignes, os prodigios dos Deoses, e as maravilhas da natureza. O mesmo Gamões commemora este cos- tume consagrado na antiguidade, referindo-se a Demo- co e lopas, dois músicos celebres, dos quaes o primeiro cantou no banquete dado por Alcinoo a Ulysses na ilha dos Pheaces, ^ e o segundo no que Dido deu a Enéas em Garthago: ^

Matéria é de cothurno, e não de sócco, A que a Nympha apprendeu no immenso lago, Qual lopas não soube, ou Demodoco, Entre os Pheaces un, outro em Garthago. Cant. X, Est. 8.

* Estudo Moral e Politico sobre os Lusíadas. Lisboa.— 1853. s Odyss. Cant. VIU. « Mn, L. I.

os lusíadas .mjW3

No poema Telemaco, escripto no puro gosto da anti- guidade, em que tanto se-imbebera a grande alma de Fénélon, vemos egualmente imitado aquelle costume, as- sim no banquete dado por Galipso ao filho de Ulysses, 6 a Mentor, onde cantam as Nymphas que compõem a côrte d'aquella Deosa; * como no que aos mesmos foi dado por Adoão a bordo do navio Tyrio, onde primeiro canta Achitoas, e depois o próprio Mentor. '

« Uv. I.

» Liv. vm.

294 CAMÕES E 08 LUSUDAS

.'jIj iy,

XXIII

Começa a Nympha intoando os louvores de Duarte Pacheco, a quem denomina O Achilles Lusitano, pelas gentilezas darmas que obrou na índia; particularmente em Gochin, combatendo contra toda a potencia do im- perador de Calecut; e conclue com a seguinte estancia:

Aquelle, que nos campos Marathonios O gran' poder de Dário estrue e rende, Ou quem com quatro mil Lacedemonios O passo das Thermopylas defende, Nem o mancebo Cocles dos Ausonios, Que com todo o poder Tusco contende Em defensa da ponte, ou Quinto Fábio. Foi como este na guerra forte e sábio. Cant. X, Est. 21.

A comparação de Duarte Pacheco com Leonidas e Horácio Cocles, dos quaes o primeiro defendeu a pas- sagem das Thermopylas, e o segundo a ponte do Tibre,

08 LUSUDAS 295

é appropriada; porque assenta na analogia dos feitos, que estes practicaram, com o que executou o mesmo Pa- checo defendendo o passo de Gambalan, por onde os inimigos do rei de Gochin pretendiam invadir aquelle reino.

Havendo a ingratidão de elrei Dom Manuel permit- tido que este heróe, que tam assignalados serviços Ihe- prestou, chegasse á mor indigência, vindo por íin a mor- rer de miséria 'n un hospital, desabafa o poeta contra o dicto rei, pondo na bocca da Nympha este supremo bra- do de indignação:

Morrer nos hospitaes em pobres leitos Os que ao rei e á lei servem de muro! Isto fazem os reis, cuja Tontade Manda mais, que a justiça e que a verdade :

Isto fazem os reis, quando imbebidos 'N uma apparencia branda, que os-contenta, Dam os prémios, de Aiace merecidos, k lingua vâa de Ulysses fraudulenta: Mas vingo-me; que os bées mal repartidos Por quem doces sombras appresenta, Se não os-dam a sábios cavalleiros, Dam*os logo a avarentos lisongeiros.

Mas tu, de quem ficou tam mal pagado Un tal vassalo, ô rei, 'n isto inico, Se nâo és para dar-lhe honroso estado, É elle para dar-te un reino rico: Emquanto fôr o mundo rodeado Dos ÂpoUineos raios, eu te-fíco,

296 GAMÕES E 08 LUSÍADAS

Que elle seja entre a gente illustre e claro, E tu 'n isto culpado por avaro.

Cant. X, Est. 23, 24, 25.

Proseguindo os louvores dos heróes que na índia ham de practicar acções famosas, e, chegando a cele- brar Affonso de Albuquerque, não deixa de infligir-lhe aspérrima censura pelo rigor summo com que se-houve com Rui Dias, mancebo de clara procedência, a quem, todavia, mandou inforcar por este se-ter introduzido na camará da sua náu, a fm de obter os favores de uma moura captiva de quem se-agradara: pena, em verdade, não proporcionada ao delicto; e da qual o poeta, esti- gmatizando pela bocca da Nympha a iniquissima sen- tença, nos-faz ver até que poncto pugnava pela justiça e equidade :

Mas em tempo, que fomes e asperezas Doenças, frechas, e trovões ardentes, A sasão e o logar fazem cruezas Nos soldados a tudo obedientes, Parece de selváticas brutezas. De peitos inhumanos e insolentes, Dar extremo supplicio pela culpa, Que a fraca humanidade e amor desculpa. Cant. X, Est. 46.

Tendo a Nympha cantado os louvores dos portugue- ses que ham de colher victoriosas palmas no Oriente, logo a soberana Tethys conduz Vasco da Gama a un monte elevado, em cujo cimo Ihe-mostra un globo dia-

os lusíadas 297

phano dentro do qual se-viam os movimentos dos cor- pos celestes.

Na descripção da esphera que a Deosa Ihe-faz, se- guiu Gamões o systema astronómico de Ptolomeo, em vez de adoptar o de Koperniko, que foi publicado em 1543, e do qual não deixaria de ter conhecimento. E outro motivo de censura que alguns críticos Ihe-irro- gam; mas poderia o poeta seguir un systema que a egreja reprovava como herético, e que, mais tarde, a in- quisição de Roma fez abjurar a Galileo, como contrario á lettra da Escriptura? *

íí

' Em 1615 condemnou a mesma inquisição a obra de KoperniJvo sobre a astronomia De revolulionibus orbium cateslibus, impressa era 1543, e de- clarou como formalmenie herética, falsa, e absurda emphilosophia, a opi- nião que põe o sol no cenlro do mundo, e como errónea na a que alln- bue movimenlo á terra.

298 CAMÕES E OS lusíadas

XXIV

A. descripção astronómica não passa, porém, de uma introducção á geographica, que era o objecto que o poe- ta propriamente se-propunha, a fin de declarar os rei- nos e as provincias que iam formar o império português no Oriente, ou ser franqueados ao seo commercio, em resultado do descobrimento da índia, cuja incalculável importância nos-dá por este modo a conhecer. Faz, portanto, que a Deosa tracte com especialidade de todas as descobertas que logo effectuou a nossa navegação, a partir do reino de Monomotapa, na costa oriental de Africa, d'onde vai seguindo até o cabo de Guardafui (o Arómata dos antigos) chega ao estreito de Bab-el- Mandeb, entra no mar Roxo, vista de Giddah, Toro, e Suez, passa á costa da Arábia, golfo Pérsico, reino de Ormuz, inseada de Cambaia, costa de Malabar e Go- romandel, reinos de Arracão, Pegú e Sião, e assim suc- cessivamente até á China e Japão : dalli volta, assigna-

06 lusíadas 299

lando muitas ilhas que se-lhe-deparam no longo rodeio que faz; como sam: Tidore, Ternate, Banda, Borneo, Ti- mor, Sunda, Sumatra, Ceilão, Maldivas, Socotorá e, por ultimo, Madagáscar, fronteira ao reino de Monomotapa, que foi d'onde começou a descripção, na qual não dei- xa de mencionar as victorias que os nossos haviam de obter em muitas d'estas partes; referindo outro-sim al- guns successos, e, entre elles, a lenda do apostolo san' Thomé, que, posta na bocca de Tethys, é uma notável incongruência. Opinamos, todavia, que o poeta foi coe- gido a tractar de un milagre que, no seo tempo, causa- va o maior pasmo e admiração, segundo o-tinham for- jado os jesuitas, que, a final, o não souberam tirar da sua cabeça, moldando-o, sem ceremonia, por ou!,ro que relata Ovidio, acontecido a Claudia Quinta á intrada do Tibre, e em presença de innumero povo, por occasião da chegada da Deosa Cybele, que da Phrygia vinha tras- ladada para Roma.

Começaremos por fazer conhecer o maravilhoso caso de Claudia Quinta, que é o original, servindo-nos da óptima versão dos Fastos do senr. António Feliciano de Castilho. Em seguida poremos a copia rasteira, ou o milagre de san' Thomé:

Imboccam pela foz, por onde o Tibre Contente sáe para a amplidão íluctigera.

Plebe, senado, cavalleiros, tudo Conflue alvoroçado á tusca praia, A saudar des de a barra a immortal hospeda. Domnas, donzelas, noivas, e as que, ó Vesta,

300 GAMÕES E OS lusíadas

Virgèes velam no aliar teo sancto lume, ^,-,1

vam correndo em confusão festiva.

Mas em vão longo cabo, atado á proa. Valentes braços puxam, suam, cansam; Pela corrente o lenho peregrino Recusa remontar.

Seccura extranha Tisnava de muito os chãos hervosos ; No alveo inlodado se interrava a quilha. Sem ouzar a surdir; todos no impenho Põem mais que humano esforço; alta celeuma Dobra vigor nos obstinados pulsos; Que prol, se firme a náu mostras d'ilha. Que tem saxea raiz no mar profundo!

pasmo, pavor domina o povo!

Claudia Quinta, do antigo Clauso prole, E bella quanto illustre, era uma d'es8as Que a pudica innocencia em vão defende Contra a calumnia atroz ; pura na vida. De torpeza era na voz da fama. Seo luxo no trajar, o esmero extremo Dos penteados seos, e a lingua solta Entre os graves anciãos a-condemnavam. Forte co' a approvação da consciência Dos rumores plebeus zombava e ria; E emtanto (a crer no mal propendem todos) De hora em hora o descrédito medrara.

Claudia, que entre as matronas virtuosas se-achava também, rompe da turba. Chega ao Tibre, enche d'agua as palmas concavas, Sobre a cabeça a-chove por três vezes,

os lusíadas 301

Por três vezes as mãos aos ceos levanta;

(Delirante a crêem todos) ajoelha;

Co' os olhos fitos na divina imagem,

E demolidas pela espalda as tranças,

« Mãe das Deidades clama Omnipotente

«Greadora Cybele, ouve os meos rogos,

«E o meo contracto por piedade acceita:

•Sou innocente, negam-n'o; decide.

Se me-fores contraria, acceito a morte;

«Signal é que a-mereço; eu, pobre humana,

•De uma sentença tua appellaria?!

•Mas, se innocente sou, que un teo prodígio

•0-comprove e me-salve. ô tu, que és pura,

•Deosa, de puras mãos levar-te deixa. »

Diz, puxa manso a chorda (o que refiro É portento, que inda hoje espanta em scena). Bóia a náu ! Fende o rio ! A Deosa avança ! E, seguindo a formosa conductora, Ante o povo a-protege, a-glorifica. Sobe unísono aos ceos clamor fervente.

Os Fastos, Tom. II, p. 137 e seg.

Hagora a mal-disfarçada copia do milagre de Cybele:

«Accertou de vir á costa do mar * un grandíssimo páo, e desejando elrei de o-tirar em terra, pêra delle fazer uma pouca de obra em uns seos paços, ajunctou muita gente, até vir grande numero de elephantes, e nimqua o-poude mover do logar onde estava. E vendo o Sancto o que era passado, pediu ao rei que lh'o desse e permittisse que, no logar onde o elle levasse, fizesse

1 Em Meliapor.

CAMÕES E OS lusíadas

com elle un templo para o Deos que elle pregava: o que lhe elrei concedeu em modo de zombaria, por haver isto por impossivel; mas o Sancto, desatado un cordão com que se-cingia, o-atou em un esgalho do páo, e, fazendo o signal da cruz, o-levou a rojões até áquelle logar on- de fez a casa. »

Barros, Dec. III, L. 7.» Cap. 11, foi. 198. v.

Este milagre é seguido de outro, obra também dos jesuitas ; o qual reza que vendo-se certo bonzo affronta- do do sancto, com quem media competências e arcava sobre coisas de religião, trucidara un filho que tinha, para imputar o homicídio ao seo competidor e haver d'elle vingança: e que o sancto, condemnado a pena ul- tima, se-justificara, fazendo que o defuncto falasse e de- clarasse quem o-tinha mactado: milagre pouco edifican- te; porque nos-representa un apostolo de Christo coe- gindo un filho a denunciar seo próprio pae por macta- dor. *

Taes sam os dois milagres de que se-compõe a lenda de san Thomé, que o poeta, forçado, sem duvida, por imperiosa exigência, inseriu no seo poema ; sendo a peior deliberação que podia tomar a de a-pôr na bocca da Deosa Tethys.

* Os mesmos jesuitas inventaram também que san' Thomé esteve no Brasil; sendo a prova d'isto uma pegada juncto ás praias do mar que, se- gundo a tradição dos Índios, deixou alli o referido sancto !

Os Índios não tinham sequer conhecimento de Christo; mas conheceram logo san' Thomé por uma pegada !

é serem expertos ! ! !

Vid. Chron. da Gomp. de Jesu no Estado do Brasil pelo jesuíta Simão de Vasconcellos, L. II, p. 111. ahmjh.u-, i--i

os lusíadas 303

A outra exigência, não menos lastimosa, houve de subjeitar-se Luiz de Gamões; a qual, segundo todas as probabilidades, Ihe-foi imposta pelo dominicano Bar- tholomeo Ferreira, censor dos Lusiadas: consistindo em fazer dizer a Tethys, que, tanto ella, como os outros Deoses, sam fabulosos e ideaes ; o que, além de ser re- pugnantissimo absurdo, destrue completamente o effeito produzido pela mais graciosa das ficções. Era, porém, a expressa profissão de fé, que do auctor se-pretendia, e, sem a qual, lhe seria denegada a licença de impri- mir os Lusiadas, se inda com a recusa não provocasse as iras do sancto officio. Não attribuamos, pois, ao poeta o que deve ser imputado á calamidade dos tem- pos.

Terminada a descripção geographica, despede-se Te- thys de Vasco da Gama, dizendo-lhe que pôde imbar- car para a pátria; pois tem mar tranquillo e vento fa- vorável.— Deixam os nautas a ilha deliciosa: navegam sem obstáculo, e, intrando pela foz do Tejo, exaltam e glorificam o monarcha eximio, que a tammanha impre- sa os-inviou.

Em seguida dirige-se o poeta a elrei Dom Sebastião, a quem dedicara o seo poema sendo menino, e que então governava o reino ; e 'n uma eloquente exhorta- ção dá-lhe conselhos profícuos, dictados pela experiên- cia, e inculca-lhe máximas de bem governar.

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^ CAMÕES E OS lusíadas

XXV

Ao que deixamos esboçado ajunctaremos hagora al- gumas observações que a rapidez da analyse nos-fez pretermittir.

Mostrámos ter sido Gamões pintor fidelissimo das scenas da natureza. Gumpre-nos também mostrar que o não foi menos das scenas marítimas e de costumas. Alguns logares que passámos a transcrever, servirão de comprovar o que affirmâmos.

Vindo o Xeque de Moçambique a bordo da náu ca- pitanea, pinta-nos o poeta com extrema propriedade a admiração da marinhagem portuguesa, e o inleio do mouro obstupido ante o que vê:

Está a gente maritíma do Luso ' Subida pela ÍDxarcia de admirada, Notando o extrangeiro modo e uso, E a linguagem tam barbara e inleada.

os lusíadas 305

Também o Mouro astuto está confuso, Olhando a côr, o trajo e a forte armada, E, perguntando tudo, Ihe-dizia Se, por ventura, vinham de Turquia.

Cant. 1, Est. 62.

Imbarcando o rei de Melinde para se-avistar com Vasco da Gama, offerece nos outro quadro, assas verí- dico e cheio de animação, do apparato e festejo com que o dicto monarcha se-appresenta e é recebido:

Sonorosas trombetas incitavam Os ânimos alegres, resoando: Dos mouros os bateis o mar coalhavam, Os toldos pelas aguas arrojando: As bombardas horrisonas bramavam, Com as nuvêes de fumo o sol tomando: Amiúdam- se os brados accendidos. Tampam co' as mãos os mouros os ouvidos. Cant. II, Est. 100.

E também admirável de precisão e verdade a pintu- ra do que a bordo se-passa, quando os nautas avistam terra:

Mas o planeta, que no ceo primeiro Habita, cinquo vezes apressada Hagora meio rosto, hagora inteiro Mostrara, emquanto o mar cortava a armada: Quando da etherea gávea un marinheiro Prompto co' a vista: Terra, Terra, brada: Salta n' un bordo alvoraçada a gente Co' os olhos no horizonte do Oriente. 20

306 GAMÕES E OS lusíadas

Á maneirçi de nuvêes se-começam A descobrir os montes que inxergiimos: As anchoras pesadas se- adereçam, As velas chegados amainámos.

Cant. V, Est. 24, 25.

Dos quadros de costumes citaremos como propriissi- mo, o do selvagem que os nossos tomaram na Angra de Sancta-Helena:

Eis de meos companheiros rodeado, Vejo un extranho vir de pelle preta, Que tomaram por força, em quanho apanha De mel os doces favos na montanha.

Torvado vem na vista, como aquelle, Que não se-vira nunqua em tal extremo. Nem elle intende a nós, nem nós a elle. Selvagem mais, que o bruto Polyphemo: Começo a Ihe-mostrar da rica pelle De Colchos o gentil metal supremo, A prata 6na, a quente especiaria: A nada d'isto o bruto se-movia.

Mando mostrar-lhe peças mais somenos, Contas de crystallino transparente. Alguns soantes cascavéis pequenos, Un barrete vermelho, côr contente. Vi logo por signaes e por acenos Que com isto se-alegra grandemente: Mando-o soltar com tudo, e assi caminha Para a povoação que perto tinha.

Cant. V, Est. 27, 28, 29.

os lusíadas 307

Não é menos natural e própria a descripçâo dos cos- tumes dos selvagees da Aguada de San' Brás:

A gente que esta terra possuía, Postoque todos ethiópes eram, Mais humana no tracto parecia, Que os outros que tam mal nos-receberam : Com bailes e com festas de alegria Pela praia arenosa a nós vieram, As mulheres comsigo e o manso gado. Que apascentavam, gordo e bem creado.

As mulheres queimadas veiem em cima Dos vagarosos bois alli sentadas, Animaes, que elles tèem em mais estima, Que todo o outro gado das manadas: Cantigas pastoris, ou prosa, ou rhythma, Em sua lingua cantam, concertadas Co' o doce son das rústicas avenas, Imitando de Tityro as Camenas.

Cant. V, Est. 62, 63.

Entre as incontestáveis bellezas, que nos Lusiadas se-incontram, não podemos deixar de mencionar os si- miles em que o poeta é riquissimo e nos-mostra a ima- ginação pictoresca e summamente graciosa que possuia.

Os símiles, ou comparações, oíferecem a idéa de un equivalente pelo qual se-torna mais claro e comprehen- sivel o quadro que se-appresenta, fazendo-nos ver a iden- tidade, ou a semelhança que tem com un prototypo co- nhecido.— Para que o simile seja perfeito é indespensa- vel que n elle se-dê a circumstancia de que o termo da

30ft. GAMÕES E OS LUSÍADAS

comparação não seja ignorado, ou, por qualquer modo, obscuro; o que, aliás, redundaria em vermos compara- do un objecto, de que não tivéssemos noções claras, a outro de que não formássemos idéa alguma.

Na comparação lia sempre approximação. D'aqui provêm que todas as vezes que no discurso fazemos uma approximação naturalmente suscitamos a idéa de com- paração, aindaque não tenhamos intenção de compa- rar. Por isto devemos evitar taes approximações ; sobre tudo quando com ellas podermos despertar alguma idéa injuriosa, como adrede practicou Gil Vicente para pro- duzir eíTeito cómico; v.gr.

o asno, senhor Juiz, Que estes veiem a demandar, A mi o-haveis de julgar, E o direito assi o diz.

Auto do Juiz da Beira, p. 187.

Ou como deliberadamente fez Pato Moniz, no Exame Critico do Oriente, para vilipendear o padre Joseph Agos- tinho ; dizendo : Tam asno o Reverendo Épico suppõe Velloso como o Diabo, p. 227.

Homero comparou Ajax, combatendo obstinadamente contra os troianos, a un burro pertinaz, a quem as pau- ladas repetidas de un bando de rapazes não conse- guem afastar de un campo de trigo. (Iliad. Gant. XI, pag. 127.)

Sendo esta comparação de uma maravilhosa proprie- dade, attinente á obstinação que o poeta nos-quer pin-

08 lusíadas

tar, choca-nos, todavia, pela approximação de Ajax e do burro, com o qual parece que o heróe é posto em pa- rallelo.

Nos símiles, que Luiz de Gamões imprega, além de se não darem os defeitos aponctados, concorrem todas as circumstancias que se requerem e con veiem, não para exclarecer e exemplicar os objectos que pinta, mas inda para os-imbellezar, procurando-nos uma agradável diversão.

Alguns, como, por exemplo, o da dama a quem ma- goou o amante incauto; o do menino da ama castiga- do,— e o da bonina maltractada das mãos da joven que a-trouxe na capella, têem un mimo e belleza inexcedi- vel.

Un mérito incontestável possue ainda Gamões que nos-cumpre aqui registrar; o qual consiste no imprego que faz dos euphemismos, por cujo meio consegue abs- conder e disfarçar as idéas tristes e displicentes.

Assim, para attenuar a imagem repugnante da mor^ te, vale-se sempre de alguma circumlocução; v.gr.

A pallida doença Ihe-tocava Com fria mão o corpo infraquecido, E pagaram seos annos d'este geito Á triste Libitina seo direito.

Gant. in, Est. 83.

A escura noite eterna

Affonso apposentou no ceo sereno.

Cant. IV, Est. 60.

ItQ SAMÕES E OS lusíadas

Mas aquella fatal necessidade, De quem ninguém se-exime dos humanos, lllustrado cg' a regia dignidade, Te-tirará do mundo, e seos ingannos.

Cant. X, Est. 54.

Querendo exprimir o acto de saciar a fome, não o- declara abertamente; serve-se de periphrases que o-fa- zem subintender:

Mesas d'altos manjares excellentes Lhe-tinha appareihadas, que a fraqueza Restaurem da cansada natureza.

Cant. X, Est. 2.*

Depois que a corporal necessidade Se satisfez do mantimento nobre.

Inro. Est. 75.

Para designar un guarda-sol, nome que não podia ter cabimento em poesia: em vez de nomeal-o, des- creve-o :

Com un redondo amparo alto de seda, 'N uma alta e dourada haste inxerido, Un ministro à solar quentura veda, Que não offenda e queime o rei subido. Cant. H, Est. 96.

os lusíadas 311

XXVI

Hagora duas palavras sobre o rhythmo e a elocução dos Lusíadas.

Dicemos que no tempo de Gamões nâo possuíamos ainda uma língua poética, e que foi elle quem a for- mou. * É fora de duvida que, além de a-haver locu- pletado com un grande numero de vocábulos novos em que imprimiu o cunho português, a-despiu da rudeza innata que conservava, dando- lhe formas regulares, ac- centuação, harmonia e suavidade. Não era, por outra parte, a mesma lingua dotada da flexibilidade e rhy- thmo indespensavel para que vantajosamente se-pre- stasse ao verso solto ; por isso preferiu com discernimen- to escrever a sua epopeia em estancias heróicas', por ser este rhythmo grandemente pomposo e próprio para fa- zer realçar os feitos insignes dos varões que se-propu-

« Parte I, pag. 115.

312 CAMÕES E OS LU^UDAS

nha celebrar. Devemos, porém, advertir que n uma longa serie de estancias se-torna un tanto monótono es- te metro pela repetição dos dois versos constantemente rhythmados no fin de cada estancia. Mas tal defeito, que não pode disfarçar -se 'n un poema como a Hieru- salem Libertada do Tasso, é não desculpável nos Lu- síadas, senão que ainda tem o merecimento de ser fa- vorável ao estilo imitativo; por constar este poema da exposição de uma impresa maritima e da narração de uma longa viagem de mar, em que o estilo deve casar- se com o assumpto: o que é não o que a arte nos- recommenda, senão o que observámos na natureza. O canto do nauta é monótono e cadenciado como o su- surro das vagas; como o rugir surdo do vento e o arfar do navio com que parece estar em harmonia.

Temos notado que nas ilhas do Atlântico, e em todas as povoações marítimas onde nos-hemos achado, as can- ções populares têem un accento arrastado, e participam do ton monótono e surdo do mar: sam repassadas de uma melancolia filha d'aquellas localidades.

La Martine diz na Graziella que os modilhos maríti- mos de Nápoles se-fazem notar que un accento arrasta- do, ou vibrante, que imita o quer que seja do gemer do costado do baxel, batido pelas ondas; e Stendhal, nos seos Passeios em Roma, refere ter ouvido uma cantiga de remaâores napolitanos cuja toada era essencialmente lastimosa e triste. Eis as próprias palavras do auctor:

«Fomos interrompidos por uma deliciosa cantiga na- politana, que muito me fez lembrar a nossa residência

os lusíadas

em Ischia. Canta vam-na os barqueiros á noite, reman- do terra a terra. Tem a toada plangente e melancóli- ca ; o sentido da lettra é :

«Quero construir uma casa no meio do mar (sim, no meio do mar) ha de ser feita de pennas (sim, de pen- nas) de pavão ; terá as escadas de ouro e prata e as ja- nelas de pedras preciosas. Quando a minha formosa Ne- na se-levanta (se-levanta) de seo leito, parece que vai nascer o dia. » *

Pena é que Stendhal nos não conservasse a lettra no original. Podemos, todavia, ver na repetição das pa- lavras a monotonia imitativa de que tractàmos.

Gamões não appropria o estilo a cada un dos as- sumptos, mas inda imprega os meios de elocução ade- quados a excitar os vários affectos; sendo un destes meios a conveniente escolha que faz dos vocábulos cu- jas vogaes predominantes exprimem as intoações em que os mesmos affectos se-manifestam, e o collocar os referidos vocábulos de modoque aquellas vogaes pre- dominantes venham a coincidir sempre nos logares onde a metrificação requer que os versos sejam accentuados. 'N isto consiste o principal segredo da elocução, co- mo já 'n outra parte mostrámos. *

O imprego que faz dos agudos e dos exdruxulos, não é menos artificioso; como também tivemos occasião de expor. ^

« Tom. II, pag. 333 e seg.

« Génio da Ling. Portug. Part. IV.

» Ibid.

m CAMÕES B OS lusíadas

Quando quer retardar o movimento da oração, recua os accentos predominantes, impregando este meio cun- ctatorio para produzir o indicado effeito; v.gr.

aqui tínhamos dado un gran' rodeio Á costa negra d' Africa, e tornava A proa a demandar o ardente meio Do ceo, e o pólo Antárctico ficava: Aquelie ilbeo deixámos, onde veiu Outra armada primeira, que buscava O Tormentório cabo, e, descoberto, 'N aquelie ilhéo fez seo limite certo.

D'aqui fomos cortando muitos dias Entre tormentas tristes e bonanças, No largo mar fazendo novas vias. conduzidos de árduas esperanças: Co' o mar un tempo andámos em porfias ; Que, como tudo 'n elle sam mudanças, Corrente 'n elle achámos tam possante, Que passar não deixava por deante.

Gant. V, Est. 65, 66.

Quando, pelo contrario, quer accelerar o movimento da oração, escolhe as palavras que, pela accentuação, se-prestam a este fm; comio é notório no, seguinte exem- plo: fVf" ^«•f> VPÍ "í'p 'i'»iV]V

Alguns que em espingardas e nas bestas Para ferir os cervos se-fiavam, Pelos sombrios matos e florestas Determinadamente se-lançavam.

Cant. IX, Est. 67.

06 lusíadas 315

Na fala do Gondestavel imprega o poeta o mesmo ingenhoso artificio, a fin de accelerar o recitativo das palavras e precipitar a oração; como é próprio do ar- rebatamento com que aquelle herde indignado e chole- rico increpa e ameaça os seos adversários.

Tal é a brevissima analyse que havemos feito dos Lu- siadas, do poema que resume todas as glorias da nossa pátria; no qual, em verdade, se-incontram defeitos que a critica e o bon gosto não podem deixar de condem- nar; mas em que também ha quadros assombrosos que concebe a mens divinior, e bellezas de tam su- bidos quilates que contrastam com tudo o que de mais sublime e gracioso inspiraram as Musas de Homero e Virgilio sob os ceos hmpidos da Grécia e Itália.

Os Lusiadas estão marcados com un inin itavel cunho de grandeza e subhmidade. Gontêem formosas descri- pções, imagêes e pensamentos elevados, similes frisan- tes, episódios terríveis, grandiosos e patheticos.

Se houvermos de comparar Gamões a Homero e a Virgilio, diremos que excede o primeiro tanto no pathe- tico, como na belleza das comparações de que o vate Meonio fez un imprego assas frequente. E inferior ao segundo na doçura e harmonia do metro ; mas eguala-o na sensibilidade profunda, e leva-Ihe a palma na seme- lhança e propriedade com que pinta os characteres e na descripção das batalhas.— Junctamente a Virgilio e Ho- mero excede Gamões nos aphorismos, nas sentenças mo- raes, e nas máximas philosophicas, politicas e militares.

FIN

índice

Introducção Pag. 5

I Camões » 81

II Os Lusíadas » 1 75

Hl^l

r\

M

ERRATA

Pao. 7 9 12 13 19 20 26 29

40 43 44 49 >

57 62

63 64

»

65 66

»

67 69

74 »

75 82 86 91

96 99

105 108 110 111 114 118 122

126 224 242 251 268

Lm.

Erros

Emendas

6

Quintiliano

Quinctiliano

4

horisontes

horizontes

18

mesma

mesmo

30

parasitas

parasitos

10

engana

ingaima

30

encerrado

inserrado

12

exagerados

exaggerados

8

ensmamento

insinamento

9

do

dos

30

enfermidades

infermidades

18

entrando

intrando

10

á Elrei

a Elrei

10

encerram

insorram

14

enredo

inredo

6

se-entregavam

se-intrcgavam

4

empregou

im pregou

24

empregos empenho

impregos

10

imçenho

14

vismhos

vizmhos

23

encerrar-se

inserrar-se

3

encheu

incheu

1

entravam

intravam

7

um

un

10

ensino

insino

2

empregos

impregos

17

se-emprehendia

se-imprehendia

22

dezesete

dezesepte

23

fim

íln

11

algum

algun

22

engano

inganno

8

Ceuta

Seuta

4

enganar

ingannar

23

a hypocrisia

á hypocrisia

21

Ceuta

Seuta

1

entoavam

intoavam

7

endoencas

induenças

17

enredado

inredado

6

encontra

incontra

2

entranhavel

intranhavel

3

engenho

ingenho

8

empresa

impresa

10

Ceuta

Seuta

10

embarcar

imbarcar

14

capitania

capitanea intadonho

20

enfadonho

20

Priamcia

Priameia

11

exforça-se

esforça-se

5

naveg'anda

navegando

29

nitiscere

nitescere

N.B. A maior parte dos erros anonctados provêm, como facilmente sc- notarà, de não haver sido observada a orthographia etymologica, que o'A. segue, e que o revisor, por descostume, conlundiu com a vulgar, ou me- nos correcta.

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PQ Leoni, Francisco Evaristo

9224 Gamões e Os Lusiadas

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