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O PAI DAS MISSÕES MODERNAS

TIPOGRAFIA MENDON RUA JORGE VITERBO FERREIRA, 12 PORTO

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CAREYC'"'-

O PAI DAS MISSÕES MODERNAS

Adaptação e compilação de ARTUR INGLEBY Tradução de ISABEL FREIRE

PUBLICAÇÕES EVANGÉLICAS Rua Fresca, 557

LEÇA DA PALMEIRA- PORTUGAS.

PREFACIO

Os pioneiros são sempre grandes individualistas. Para abrir caminho precisa-se duma dose muito forte de robustez; e, para conseguir um êxito permanente, é necessário ter uma personalidade dominante.

Contudo, na Obra do Senhor, não é o homem que se destaca, mas Deus, operando no homem, transformando a fraqueza em força, e a pobreza em recursos bem amplos.

Guilherme Carey era sapateiro; mas tornou-se o grande Apóstolo Evangélico da índia. A sua vida era uma semente insignificante, mas que, semeada nas terras pagãs do Oriente, produziu frutos extraordi- nários; c isto não apenas no vasto Continente onde trabalhou, mas em todo o mundo. O seu exemplo tem sido, pois, uma inspiração para todos os verdadeiros servos de Cristo.

Confesso que devo muito a esta história heróica de Carey, que tem exercido uma influência profunda sobre a minha orientação espiritual. Na vida deste homem humilde, mas totalmente consagrado a Deus, aprendi bastantes lições respeitantes aos princípios

básicos do Reino. É, por esta razão, que, muitos anos, tenho desejado que os meus irmãos mais novos possam participar da mesma bênção.

Neste livro, pois, se encontra a vencedora, e uma persistência, tal, que o leitor, ao chegar à última página, vai exclamar: «com Deus não existem impos- sibilidades!» Se fosse necessário resumir, o conteúdo deste volume, numa frase, sem dúvida que seria com as palavras escolhidas por Carey, no célebre ser- mão de Nottingham: Esperai grandes coisas de Deus. Tentai grandes coisas por Deus.

De muito interesse, também, é a maneira como figura nesta história o nobre e simpático português, Inácio Fernandes. Se é lícito chamar Carey «O Pai das Missões Modernas'», não é menos justo falar de Inácio Fernandes como «O Primeiro Missionário Evangélico Português no Oriente.»

Artur Inqleby

CAPÍTULO I

O NOVO NASCIMENTO

Carey nasceu ^nurna pequena vila de um dos ^condados centrais da Inglaterra. Seu pai era um tece- lão cujo amor aos livros lhe valera a nomeação de mestre-escola, cargo que desempenhava na pequena aldeia. Conquanto a casa onde vivia fosse pobre e a alimentação que recebia na escola, parca, a infân- cia de William Carey decorreu feliz. Gostava imen- samente de ler e vaguear pelos campos. O seu grande entretenimento e prazer consistia, porém, em colec- cionar flores, insectos e pássaros que sua mãe, por simpatizar com o passatempo, lhe permitia guardar no seu quarto. Ia enriquecendo assim o jardim e pomar da escola com as flores e plantas que des- cobria nas suas longínquas digressões.

Baixo de estatura, como seu pai, William subia às árvores mais inacessíveis para espreitar um pás- saro ou tirar um ovo. Uma vez, certa queda que o deixou sem sentidos e gravemente ferido, custou-lhe uns poucos de dias de isolamento.

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2 CAREY-O PAI DAS MISSÕES MODERNAS

Na primeira oportunidade tentou, porém, de novo, trepar à árvore, conseguindo-o.

A mãe ralhara-lhe: «Como te atreveste, Wil- liam»... Mas Carey replicara: «não pude deixar de o fazer, mãe. Quando começo uma coisa tenho que a terminar».

Com audácia e coragem semelhantes foi, noutra ocasião, o seu próprio dentista: ligando o dente a uma mó, pediu a um rapaz que andasse com a roda e... o dente apoquentador desapareceu!

Acordado pelos seus pássaros, ele erguia-se cedo para os saudar, limpar-lhes as gaiolas e tratar das casas dos seus outros favoritos; ia buscar-lhes ali- mentos aos caminhos e florestas, deliciando-se com cada borboleta ou mariposa com que se cruzava. Ao regressar, mondava e cultivava o jardim.

Ele próprio diria mais tarde ao seu sobri- nho Eustácio, negando todos os seus outros talen- tos: «Sei labutar; reside nisso o meu génio. Posso perseverar em qualquer esforço para atingir um objectivo definido. A isso devo tudo».

No entanto, a sua primeira tentativa no sentido de fazer vida, foi contrariada.

Quando saiu da escola, aos doze anos, quis ser jardineiro. Mas adveio-lhe uma irritação de pele nas mãos e no rosto, de tal forma agravada pela exposição ao sol, que à noite o impedia de conciliar o sono. Nada parecia poder aliviar esse tremendo mal. A saúde fugiu-lhe. Após dois anos de luta intensa foi forçado a desistir do seu trabalho favorito-

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O homem que devia mais tarde suportar durante quarenta anos o calor feroz da índia, tinha que renunciar à carreira que escolhera devido ao perigo que para a sua saúde representava o benigno sol inglês ! Tinha ainda que aprender que é Deus Quem prepara o nosso caminho. Mas os campos e florestas que circundavam a pequena casa na vila de Pury, tinham constituído terreno propício ao crescimento do rapaz que devia tornar-se um servo escolhido de Cristo.

Ao ser forçado a abandonar os campos e jar- dins, seu pai, em vez de o iniciar na tecelagem, a que se dedicava, escolheu-lhe o ofício de sapateiro, o mais importante no condado e de futuro mais rendoso. Isto, mal podendo custear as despesas de sete anos de aprendizagem. Ao procurar cuidadosa- mente um mestre a cuja casa pudesse confiar o filho, deparou-se-lhe Clarke Nichols, de Piddington. Muito se tinha falado deste Clarke Nichols na vila de Pury, pois, em Setembro de 1772 um seu aprendiz William Robinson, rapaz de 17 anos, natural daquela vila, fugira, tendo Nichols posto um anúncio pedindo a sua detenção ou a informação do seu paradeiro. Os habitantes de Pury haviam aparentemente tomado o partido do sapateiro, pois, em breve, um outro jovem da aldeia— de quem muito a dizer ocupava o lugar do aprendiz. E agora Edmund Carey escolhia Nichols para mestre do seu filho. Nichols era um artífice não capaz de consertar sapatos, como de os fazer completos. Além disso, o

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anúncio que pusera no jornal sobre o desertor pro- vara, de forma bem inconfundível, a sua energia e suma respeitabilidade... Tudo isto e ainda a sua reputação de assíduo e rigoroso frequentador da igreja, o recomendou a Edmund.

Mas não tinha ainda decorrido muito tempo e o pequeno Carey formava a sua opinião sobre o aprendiz Robinson, ou antes, lhe invejava a cora- gem para desertar do génio feroz e língua aguçada do patrão, das suas bebedeiras nocturnas de Sábado e dos recados de Domingo essas longas caminha- das às casas dos fregueses, com a mala a transbordar de sapatos novos e consertados.

E no entanto, certos livros que as estantes do sr. Nichols ostentavam, denotavam um certo interesse e simpatia de ordem religiosa. Mas esses livros pouco atraentes para Carey, não lhe eram, aliás, recomendados pelas faltas e asperezas do patrão. Muito ao contrário, Carey começava a enfastiar-se de tudo que se relacionasse com religião. Esse facto, e o de ter companheiros pouco escolhidos, puse- ram-no em grande risco de fugir à sua vocação. Piddington, embora mais pequena que Pury e situada a uns doze quilómetros desta, poderia, facilmente, vir a constituir o seu máximo horizonte... Salvou-o, porém, o seu companheiro de trabalho. John Warr era o rapaz que havia substituído Robinson como aprendiz na casa de Clarke Nichols. É possível que ele e Carey se conhecessem antes de se encontra- rem em Piddington. Para Carey, a companhia deste

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rapaz da sua vila que participava do seu trabalho e lhe quebrava a solidão, era inestimável. Warr ajuda- va-o também na confecção do calçado, pois era mais velho três anos e estava familiarizado com a indús- tria desde a infância, indústria a que o pai e avô se haviam dedicado. Estava, além disso, apto, a ensinar-lhe muitas outras coisas, pois o seu avô havia sido o principal fundador da igreja de Pury. Não sendo ainda propriamente um convertido quando Carey se lhe juntou na loja de Nichols era, no entanto, extremamente precoce em concepções reli- giosas, e frequentemente orientava a conversa para temas que em casa se lhe tinham tornado familiares. Mas Carey era teimoso e céptico. Diz ele: «Eu tinha orgulho desmedido, suficiente para sapiência mil vezes superior à minha. Detestava ver vencidos os meus argumentos e exigia sempre o privilégio da última palavra. Supria sempre numa afirmação cate- górica o que me faltava em raciocínio, saindo, geralmente, vitorioso. Muitas vezes, porém, ficava convencido de que, conquanto a última palavra fosse minha, pertencia ao meu companheiro o melhor argumento. Invadia-me então um grande desassossego e sentia aumentarem, gradualmente, as aguilhoadas da consciência. Não sabia, porém, que nada, a não ser uma completa mudança de coração, me modifi- caria».

No entretanto, John Warr procurava Deus com toda a diligência, vindo, afinal a reconhecer em Cristo o seu Salvador e Senhor. Compreendeu e

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passou pela experiência do novo nascimento. Tor- nou-se então imensamente rico; simples aprendiz de sapateiro, possuía a paz de Deus na alma. Cedo se apoderou dele o desejo de partilhar o segredo. Falou de Cristo a Carey e ao patrão, não pelo prazer de discutir, mas com o alvo de os conquistar para Cristo. Diz Carey: «Warr importunava-me com o empréstimo de livros (e possuia-os em grande abun- dância) que gradualmente iam operando uma mudança na minha maneira de raciocinar, provocan- do-me ao mesmo tempo um maior desassossego de espírito».

Mas a vida agora mais nobre do seu compa- nheiro, bem como as suas palavras persuasivas não podiam deixar de o impressionar. Warr conseguiu afinal levar Carey às reuniões de oração de Hackle- ton, onde se registava nessa altura um fervor estra- nho à então fria correcção da igreja anglicana, uma maior intensidade espiritual. Carey sentiu a atracção do mundo espiritual e desejou penetrá-lo. Passou também a assistir, três vezes por semana, à pregação do Evangelho na igreja paroquiana, procurando assim, por meio de crescentes exercícios religiosos libertar-se do fardo que lhe pesava sobre a alma.

«Também» diz ele, «decidi deixar de mentir, jurar, e praticar outros pecados a que era propenso. Muitas vezes, quando só, tentei orar. Devia, contudo, antes de ser salvo, passar pela experiência da humi- lhação. Eis o que escreve : «Tinha ido a Northampton onde fizera para mim. algumas compras cujo preço

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ultrapassava em cerca de 4$00 o meu salário. Pelo Natal, o sr. Hall, o ferreiro, havia-me dado um shilling que eu sabia ser falso. Veio-me então a tre- menda tentação de afirmar ao patrão que esse shilling pertencia a certa quantia que ele me havia confiado para fazer umas compras, o que solucionaria o meu débito particular. Lembro-me da luta que comigo próprio travei de caminho para casa, implorando a Deus, ainda por uma vez, o perdão para a minha desonestidade e mentira; jamais repetiria tal acção, acabaria de vez com o pecado. O mal triunfou e eu disse a mentira, aliás descoberta pelo patrão. Deus não me protegeu. Cedo se apoderou de mim a cer- teza de que o meu roubo era conhecido de toda a vila. Escondi-me de todos e tão acabrunhado pela vergonha me sentia que não saí de casa durante um considerável espaço de tempo».

Carey esperava a demissão, uma multa e a cólera e desgosto do pai, pois a mentira era, para Clarke Nichols, o mais negro dos pecados. Mas o patrão compadeceu-se, influenciado, talvez, por Frances Howes com quem nesse mesmo ano tinha casado. Carey durante toda a vida se lembrou desse Natal com horror e gratidão: horror pela sua falsidade e blasfémia; gratidão, porque tudo isso lhe revelara a sua tremenda necessidade de um Salvador. Aos dezassete anos e meio, trocou a rectidão de fariseu pela humildade de publicano. No seu coração con- trito havia agora lugar para o Senhor. No Redentor crucificado e ressurgido encontrava agora resgate e

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paz. Foi, a partir de então, um servo consagrado. E John Warr foi o «André» que primeiramente o levou a Cristo.

Carey não pôde nunca fixar o dia e hora do seu novo nascimento. Podia, no entanto, precisar o momento em que se tinha tornado não-conformista. Alarmado com os reveses dos ingleses na América, o rei proclamara o Domingo de 10 de Fevereiro de 1779 um dia de jejum e oração nacionais, Domingo que Warr persuadiu Carey a passar na pequena casa de cultos de Hackleton. Jamais tomara parte num culto de adoração.

Nesse dia falou Thomas Chater, um principiante em pregação secular. Fez um apelo para uma abso- luta consagração a Cristo, reforçando as suas palavras com «saiamos pois a Ele fora do arraial, levando o seu vitupério» Heb. 13-13, verso das escrituras que traspassou Carey até ao coração. O seu mais duro sacrifício seria, sabia-o bem, fazer o que durante semanas tinha constituído ordem imperiosa da sua consciência: associar-se aos humildes e desprezados da «Reunião», esses, por meio de cujo fervor ele fora levado a um conhecimento pessoal de Cristo. Cerca de dois anos atrás, a sua hostilidade por esses cultos levara-o a desejar a sua extinção; hoje era constrangido a associar-se-lhes.

Setembro de 1779 foi para Carey, um mês assi- nalado de tristeza. O seu mestre jazia moribundo dois anos apenas após o seu casamento. No entanto, foi a tristeza compensada pelo facto de ser ele

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levado, pelos seus dois aprendizes, a uma perfeita e pessoal confiança em Cristo. O leito de morte con- verteu-se-lhe no berço da alma. Apontava a todos que o visitavam o seu novo e firme ancoradouro e a todos suplicava que vissem em Cristo o amigo dos pecadores. Dois dias depois do funeral realizado em 5 de Outubro, Carey entrava ao serviço de Thomas Old de Hackleton, um parente de Nichols.

CAPÍTULO II

OS ÚLTIMOS SERÃO OS PRIMEIROS. . .

Como uma flor ao sol, assim se abriu a mente de Carey à luz do Evangelho. Cristo era o seu espí- rito inspirador. Cristo multiplicava as suas faculda- des. Alguns dos seus talentos começavam, distinta- mente, a desenvolver-se. No comentário ao Novo Testamento, que figurava na estante do mestre, atraíra-o o que se provou ser um verdadeiro tesouro de palavras e frases escritas numa língua desconhe- cida. Copiou as letras e levou-as a Tom Jones, um tecelão de Pury, do qual obteve preciosas informa- ções para a conquista dessa língua. Jones tinha rece- bido educação gramatical com o fim de seguir estudos que lhe proporcionariam uma formatura, oportunidade que, por loucura, desprezou. Pondo à disposição de Carey um dicionário e gramática de grego, guiava-o, todas as vezes que Carey vinha a casa, nos primeiros passos do estudo dessa língua. Cedo o discípulo ultrapassava em sabedoria o pro- fessor.

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Havia em Quinton, a cerca de uma milha de distância, um grupo de místicos, discípulos de William Law, cujo mestre convidou Carey para uma conversa sobre assuntos espirituais. Carey acedeu imediatamente, confiante em que, no caso de uma discussão teológica, poderia, com facilidade, manter e afirmar os seus princípios. Não obstante, estas conversas perturbaram-no grandemente, fazendo-o perder, durante um tempo, a certeza da sua salvação e enchendo-o de ansiedade. Além disso, os crentes de Hackleton, que o tinham acarinhado, sabendo da sua amizade com os místicos heréticos, e do inte- resse com que lia os seus escritos, principiaram a afastar-se. Três anos de luta intensa e solitária se passaram antes que Carey pudesse recuperar a sua pura e simples. Mas aprendeu uma lição preciosa: que as especulações dos homens são demasiado incertas para que nelas possamos confiar. Ele pro- curava uma rocha firme, inabalável, onde se pudesse firmar. Impôs-se, pois, o estudo profundo das Escri- turas, com o fim de nelas descobrir, tão exacta quanto possível, a sua mensagem.

A experiência intensa, por que nessa altura pas- sou, quanto ao valor e verdade das Escrituras, sus- citou-lhe, pelo estudo destas, um entusiasmo que o havia de acompanhar a vida inteira. Foi um leitor infatigável e, com os seus colegas indianos, o funda- dor de uma grande biblioteca para o Ocidente e Oriente ; mas mais do que os seus contemporâneos, foi um tremendo entusiasta pelo Livro cujo acesso

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às massas populares se tornou o alvo máximo e paixão da sua vida.

Com vinte anos incompletos, ganhava o sufi- ciente para desposar uma irmã da esposa do seu novo mestre.

William Carey e Dorothy Plackett casaram-se na igreja de Piddington no Domingo de 10 de Junho de 1781. Era cinco anos mais novo do que a noiva, companheira que convinha ao seu espírito precoce e ponderado. Nem esta, nem Lucy, sua irmã, sabiam sequer escrever os seus nomes, pois não havia escola na vila. Se era iletrada, Dorothy era, em contra par- tida, caracterizada por belos dotes de carácter que em tudo a recomendavam como uma boa escolha. Seu pai era um dos principais dirigentes das reu- niões de Hackleton.

Decorreram felizes os dois primeiros anos para o casal. Carey habitava agora a sua casinha, grato por um lar, depois de 6 anos de pensionato. Amava a esposa, trabalhava de sapateiro, estudava, progre- dia no latim e no grego, cultivava e tratava do seu primeiro jardim e assistia aos cultos juntamente com os demais cristãos da vila. Em breve exultava com o nascimento de uma filha, a quem chamou «Ann», nome da sua avó e irmã. No ano seguinte eram, porém, ambos, vítimas de febres de que infelizmente a pequenita morreu, para angústia de seus pais e da sua tia Mary que, quarenta anos mais tarde ainda escreveria a Carey «como eu amava essa criança!». A Carey, dezoito meses de febre pri-

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varam-no do cabelo, ficando calvo aos vinte e dois anos.

Thomas Old morreu, tão inesperadamente como Clarke Nichols, no último dia de 1783, antes de atin- gir quarenta anos de idade. Carey teve que tomar conta do negócio e quase encarregar-se da viúva, irmã de sua mulher, e quatro órfãos. Por essa altura um cliente, valendo-se das circunstâncias, anulou uma grande encomenda, quase terminada, recaindo o inconveniente sobre os ombros de Carey. Esse inverno foi um dos mais rigorosos na Inglaterra central, tendo o negócio quase paralizado. Carey tinha que fazer longas caminhadas sobre a neve, solicitando encomendas e até comprando e conser- tando calçado velho para revenda. Pouco é de admirar que uma vez se tivesse impacientado com o seu empregado Park que deixara queimar-se e transvazar-se a cera, zurzindo-o valentemente com o avental de couro! Para aumentar os seus rendi- mentos, abriu, na vila, uma escola nocturna, ocultando de todos, e até de sua mãe, as suas privações. Logo, porém, que seu irmão soube das dificuldades por que passava, embora então jovem de quinze anos, vendeu os seus pequenos tesouros, e com o dinheiro que tinha poupado e a ajuda dos vizinhos, ofertou- -lhe uma bela quantia.

Cedo recebia o convite para pregar o Evangelho numa casa humilde a que alguns, por troça, chama- vam a loja das esteiras, por se juntarem pobres fabricantes de esteiras. Ficava situada numa vila

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chamada Earls Barton, a doze milhas de distância, que Carey percorria, a despeito da terrível condição das estradas, em dias de calma ou tempestade. Em 1783 assistiu a uma pregação cujo tema versava o baptismo; voltando a examinar o Novo Testamento chegou à convicção de que o rito envolvia cônscia e consagração. Às seis horas do primeiro Domingo de Outubro desse mesmo ano, com 23 anos de idade, era baptizado no rio Nen, em Northampton, por John Ryland. Anos depois, por altura do vigé- simo aniversário da Sociedade Missionária Baptista, Ryland dizia:

«Em 5 de Outubro de 1783 baptizei no Nen, um pouco além da casa de cultos de Doddridge, um pobre e humilde sapateiro viajante, mal sabendo eu que, antes de decorridos nove anos, ele se revelaria o primeiro instrumento para a formação de uma Sociedade que mandaria missionários da Inglaterra ao mundo pagão; mal sabendo que esse mesmo homem se tornaria mais tarde professor de línguas num colégio do Oriente, e o tradutor das Escrituras em onze idiomas diferentes».

O tema de que, nessa manhã, Ryland se serviu, no culto de pregação, tem sempre parecido estranha- mente profético: «Muitos dos primeiros serão os últi- mos, e os últimos os primeiros». Não que o pregador tivesse a menor noção da sua natureza profética.

Ainda menos consciente dessa natureza estava Carey, que nunca esperou vir a passar de simples sapateiro e pregador secular.

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Mas a sua alma despertava para a tristeza e miséria do paganismo. Nesse mesmo Outono de 1783 teve a sorte de lhe serem emprestados os livros que mais ambicionava, os dispendiosos fólios ou quartos das Viagens do Capitão Cook, com as suas fascinan- tes gravuras. Eram narrativas de viagens,— aventura, marinhagem, exploração, astronomia, arte, botânica, negócios de estado, e conquista imperial, se bem que pacífica, do mundo. Carey tudo devorou com avidez. O velho coveiro Westley observava a luz que no seu quarto ardia até altas horas da noite.

Mas esses livros transformaram-se em algo de mais profundo na revelação do pecado e dor, da imoralidade, crueldade e miséria de povos por evan- gelizar, num drama da trágica ignorância de Cristo, num vislumbre do inferno. Tudo se lhe gravou na alma a letras de fogo. Ouviu o que Richter chamou «o suspiro de Deus no coração do Mundo». A sua grande dor, a morte da filhinha, tornava-o ainda mais sensível. Os mares do sul principiaram a atraí-lo. Daí por diante jamais alguém o ouvia orar sem que intercedesse pelas ilhas de Cook.

Conquanto não tivesse esperança de seguir para os mares do Sul como embaixador de Cristo, deci- diu fazer, no entanto, o que estivesse dentro das suas possibilidades : tentaria levar as suas irmãs aos pés de Cristo, especialmente Mary, a sua alegre companheira de infância, que mais preocupações lhe dava por estar ameaçada de grave doença na espinha e os seus dias parecerem destinados a ser

CAREY- TRADUZINDO AS ESCRITURAS

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reduzidos. Procurou dar-lhe a conhecer a verdadeira vida e antes de abandonar Hackleton teve a indizível alegria de ver ambas Mary e Ann, convertidas e consagradas ao Senhor. Foram baptizadas em 1783 e tornaram-se magníficas cristãs. Ann foi uma verda- deira Marta; Mary, fiel ao seu nome de significado profundo e meditativo. Ann conquistou para Cristo o seu marido, um lavrador de nome William Hobson, que veio a ceder a sua herdade de Cottesbrook para a pregação do evangelho. Mary foi um dos principais sacerdotes da Missão cuja intercessão contínua subia a Deus como incenso fragrante.

Carey acumulou experiências preciosas nesses dez anos que passou na pequena aldeia da sua infân- cia: aprendeu um ofício; iniciou-se no estudo do grego; reconheceu os seus pecados e encontrou o Salvador; enfrentou o vitupério do não-confor- mismo; fortaleceu e apregoou a sua cristã, prepa- rando assim pés sãos para a sua peregrinação; provou a benção do matrimónio, as alegrias da paternidade, a angústia da perda de um filho, as agruras da pobreza. Adquiriu a sua primeira prática de ensino; deu o seu primeiro testemunho cristão, comungou pela primeira vez, aventurou as primeiras pregações, requereu o privilégio da inteira obediên- cia baptismal; ouviu o angustiante grito do paga- nismo, e guiou as suas irmãs no caminho do serviço do Mestre, caminho que elas haviam de trilhar a vida inteira.

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CAPÍTULO III

OS CAMPOS ESTÃO BRANCOS PARA A CEIFA

No quarto de Carey pendia da parede um mapa que ele próprio havia desenhado, e que era, afinal, um reflexo do que, de muito, trazia no coração. Continuando a ganhar a sua vida com o ofício de sapateiro e lições que dava numa escola muito humilde, dedicava, no entanto, muito tempo à pre- gação do Evangelho em pequenas igrejas de aldeias vizinhas. E tão ocupado o mantinha este ministério da palavra que um amigo o acusou de negligenciar o negócio. «Negligenciar o meu negócio» ? excla- mou Carey. «O meu negócio é a extensão do reino de Cristo. E se faço e conserto sapatos é para ajudar às despesas que isso implica».

Foi esse, para Carey, um período de calmo e desapercebido crescimento espiritual, tal como deve conhecer cada servo do Mestre que se prepara para ser usado em seara mais ampla. Foi admitido ao pastorado baptista, tendo entrado em contacto com

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Ryland, Sutcliff e Fuller, que estiveram presentes à sua ordenação, mal podendo, no entanto, prever a longa e futura camaradagem que para sempre os uniria.

Persistiu no estudo do latim e do grego não des- cansando enquanto a estes não juntou o do hebraico. Do latim passou ao italiano.

Apesar dos seus muitos afazeres e estudos, os vizinhos viam-no, às vezes, no seu jardim, durante uma hora ou mais, imóvel, como que absorvido nos seus pensamentos. Leu a vida de Eliot e Brainerd e soube como um, com a paciência de um estudioso e a graça de um apóstolo, tinha trabalhado durante quase sessenta anos entre os índios da América e fora o primeiro a traduzir a Bíblia inteira numa língua pagã ; como o outro, em três anos de verda- deira abnegação, se tinha sacrificado pelos índios e por Deus. Desde então, estes, com Paulo, foram os seus heróis canonizados.

Carey sentiu, profundamente, as trevas do mundo.

Os seus alunos surpreendiam-lhe, às vezes, os olhos inundados de lágrimas quando numa lição de geografia, apontava no mapa os continentes, ilhas e povos, ao mesmo tempo que dizia «e estes são pagãos, pagãos!».

Desde 1784 que a associação a que pertencia, formada por um grupo de pregadores baptistas, orava por uma grande ofensiva dos exércitos celes- tiais de Cristo, sem ver, todavia, que mais do que

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um mero tema de orações, o assunto constituía tarefa árdua exigindo rápida execução. Um mercador de nome Potts dirigiu-se a Carey e sugeriu-lhe a publicação dum folheto com o fim de instruir e des- pertar a igreja de Cristo. Carey respondeu que o havia tentado mas sem grande sucesso. Além disso, ainda que pudesse escrever a mensagem, não teria fundos necessários para a sua impressão. Potts repli- cou-lhe que se não podia escrever como queria, o fizesse como pudesse, que para impressão do folheto lhe forneceria ele a quantia de dez libras (1.000$00). Assim encorajado, Carey decidiu tentar de novo a experiência.

Tinha 28 anos de idade quando foi convidado a presidir à pequena congregação na cidade de Lei- cester. Devido à guerra com a França a alimentação era muitíssimo dispendiosa, o que o obrigou a con- tinuar com o ensino escolar e o seu ofício. Aparen- temente nada o recomendava como pregador. Era baixo, pobre, sem um curso ou educação especial ; as mãos apresentavam cicratizes e manchas do tra- balho grosseiro a que se dedicava; a sua aparência e maneiras eram as de um rústico. Mas à sua volta juntavam-se as gentes como à volta de um cujos lábios tivessem sido tocados com uma brasa vinda do altar. Não que ele lhes deliciasse os ouvidos com temas frívolos. Durante mais de um ano conduziu-as pelos tortuosos e complicados caminhos do Apoca- lipse. Não se contentando em pregar 3 ou 4 vezes por semana em Leicester, visitava ainda várias

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aldeias, tendo cavado alicerces para futuras igrejas em cinco lugares.

É a J. Roland Evans que devemos a narrativa de uma visita que, por essa altura, fez a casa de Carey:

«Tenha a bondade de entrar e sentar-se», disse uma voz suave, acolhedora, em resposta a uma pan- cada na porta. «O meu marido está ocupado mas dentro de um momento terá muito prazer em rece- bê-lo». Sentei-me a um cantinho do quarto, confor- tável e convidativo, perto de uma janela aberta. Uma brisa ligeira e delicada agitava de mansinho as imaculadas cortinas de chita, impregnando o quarto do aroma de flores. Era um quarto encantador, de tecto baixo, tal como os quartos das velhas casas de campo. A um canto, um velho e solene relógio parecia contemplar-nos cheio de dignidade, e nas paredes exibiam-se um mapa desenhado à mão e várias gravuras representando curiosas e interes- santes cenas estrangeiras. Reparei em vários livros que jaziam abertos sobre a mesa, o carácter erudito dos quais me surpreendeu.

«Imagine o que o meu marido trabalha» disse a esposa, voltando à sua costura. «A escola terminou uma hora e ele consertou um par de sapatos e fez alguns chapins». «É assim que passa os dias: a trabalhar e a ler, a ler e a trabalhar».

Em breve a porta se abria para dar passagem a uma garota que trazia nas mãos um pesado par de botas. «Poderiam estar prontas amanhã? o meu pai. . .».

CAREY O PAI DAS MISSÕES MODERNAS 23

«Se for possível. . .»,— respondeu a mulher do sapateiro ao mesmo tempo que acariciava a cabecita encaracolada da criança que se voltou para sair satisfeita com a promessa. Depois chamou os filhos que brincavam ao sol: «Felix, não brinques assim e cuida do William».

Dentro de momentos o sapateiro aparecia: era um rapaz baixo, apresentando no dorso a inconfun- dível curvatura do estudante. O avental de couro não escondia um fato puído e desbotado e a cabeleira postiça assentava-lhe mal. Com um rápido olhar em direcção ao novo par de botas, disse, um sorriso paciente aflorando -lhe aos lábios: «outro par»! Depois voltou-se para me cumprimentar e eu vi-lhe então, os belos olhos irradiantes de luz. Passados momentos, dirigiu-se à janela e tocou, com uma ternura imprópria de tão rudes mãos mãos endu- recidas e marcadas pela lida as flores que cresciam no peitoril. Pareceu-me que estas tinham algo que ver com o seu ar de felicidade quando disse: «vejo a mão de Deus em cada pétala, o Seu sorriso em cada flor».

Enquanto a sua esposa nos preparava uma refei- ção, subimos ambos uma pequena escada de caracol que conduzia a um andar superior. o sapateiro- -professor me mostrou alguns dos seus mais queri- dos livros e tinha-os em grande número para dentro em breve pegar naquele que, acima de todos, amava. Com este seguro, reverentemente, entre as mãos, principiou a falar-me de um grande sonho seu,

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aliás meu conhecido, e do sermão que em breve iria pregar em Nottingham.

«Este é o manuscrito» disse, cheio de entusiasmo. «Foi Deus quem mo inspirou. Oro para que o seu resultado seja a fundação de uma sociedade da nossa denominação, cujo fim seja levar á luz do Evangelho às gentes pagãs». Em seguida encaminhou-se para a janela. Eu estava a seu lado. O céu exibia um lindo manto azul e o sol, no declínio, beijava os campos por entre os quais se divisava um rio que corria suave e murmurante. Nas árvores cantavam pássaros e ouviam-se, vindos de longe, alegres gorjeios infantis. Falei de tudo isto. Mas as suas palavras vieram firmes, decididas: «Só posso con- templar os vastos campos do paganismo «brancos para a ceifa». São esses que me seduzem e para os quais me sinto chamado».

CAPÍTULO IV

A SARÇA ARDENTE

A chamada de Deus veio à igreja baptista, em Clipstone, no ano de 1791, pela Páscoa, na pequena casa de cultos do monte. Sutcliff e Fuller tinham desenvolvido, respectivamente, os temas de «Zelo de Deus» e «Consequências graves da demora» «Este povo diz: não veio ainda o tempo, o tempo em que a casa do Senhor deve ser edificada» (Ageu, 1:2), sendo o texto usado por Fuller. A atenção dos assistentes foi invulgarmente excitada. «Não sei, diz Ryland, qual dos sermões foi mais impressionante. A mente de cada ouvinte estava possuída de uma solene convicção da necessidade de mais zelo, do pecado da negligência. Nesse dia, na pequena esta- lagem da aldeia onde os pastores se haviam reunido para jantar, mal se falou. «Os corações estavam subju- gados», escreve Morris, o pastor de Clipstone. «Raras vezes se tem presenciado tão profunda solenidade».

Foi a ocasião de Carey intervir e chamar à expressão a impressão, ao serviço o sentimento. Suplicou-lhes, por amor de Cristo, que se tornassem

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Seus embaixadores na terra e se decidissem a fundar uma missão no ultramar. Para o seu ardente entu- siasmo tudo isto se lhe afigurava a realização de um plano de Cristo, como que uma nova Bethelem onde ia ter lugar o nascimento de um grande e futuro trabalho para glória do Mestre. Tivesse Cli- pstone obedecido a tal exortação, a sua igreja ter-se-ia colocado bem alto e revestido de glória imorredoira. Mas, para sua infelicidade, prevaleceram os sábios e prudentes que se não queriam arriscar e aconselhavam a não adesão. Nem mesmo os dois pregadores defenderam a sua causa. Não tinha sido seu propósito criar um zelo e entusiasmo assim. Recuaram perante tão drástica aplicação das suas exortações. «Sentindo a dificuldade», diz Fuller, «de empreender tarefa tão árdua em terreno tão inexplorado, os espíritos (incluindo o seu) revolta- vam-se à simples ideia de o tentar. Era como se se esforçassem por atingir coisa inteiramente fora do seu alcance». Não, não se levantariam para construir a casa do Senhor. Aconselhariam somente a rápida publicação do folheto de Carey. Ele que apresentasse o caso às igrejas. Ver-se-ia então a sua resposta.

Nesse livro de 87 páginas, «THE ENQUIRY», pôs Carey toda a essência dos seus estudos e meditações. Era na verdade um facho de luz erguido na escuri- dão, luz que perscrutava o mundo em exame minu- cioso; todos os homens, em todos os lugares, lhe despertavam interesse. Não se interessara somente pelos mares do sul de Cook, pela índia, ou pelos

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pobres negros do Ocidente. Amava o mundo inteiro desde Kamtschatka a Kaffraria, desde a Nova Zembla à Nova Zelândia. Pulsavam no seu as alegrias e tris- tezas dos corações de todos os homens. Até os pequeninos pontos à superfície dos Oceanos lhe eram preciosos. É especialmente notável o seu inte- resse pelas ilhas. Duzentas nomeava ele separada- mente ou em grupo. Mas eram trágicas as suas des- cobertas: dos setecentos e trinta e um milhões de habitantes do mundo, mais de um quinto eram mao- metanos, mais de metade pagãos, e sete nonos mao- metanos ou pagãos. Metade da Ásia, a maior parte da África, e a maior parte da América, excepção feita à costa do sul, com os seus povos canibais e os fogos de Moloch, estavam tão necessitadas de civilização como de religião verdadeira.

O maometanismo da Arábia tinha quase esface- lado a África com o comércio de escravos, do que as nações cristãs também eram culpadas. Jesuítas haviam revoltado o Extremo-Oriente contra a cris- tandade. Comerciantes europeus haviam corrompido os índios. As gentes das igrejas gregas eram iletra- das e supersticiosas. Os papistas tinham apenas um conhecimento superficial das coisas divinas. Mesmo na privilegiada Grã-Bretanha, tanto nas igrejas orga- nizadas, como nas livres, reinavam muitos erros e devassidão de vida, sendo o próprio Evangelho, por muitos odiado e atacado.

E todavia, no «Enquiry» não apareciam palavras de indecisão. Carey enfrentava o pior para crer no

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melhor. A bússola do marinheiro, tinha, dizia, tor- nado o Pacífico tão navegável como o Mediterrâneo. O comércio, que não conhecia distâncias, antes ia ao encontro do desconhecido, revelava, com cada avanço, a ignorância, a crueldade e a miséria do mundo por evangelizar.

Jamais o barbarismo tinha conseguido deter apóstolos ou seus iguais. Nem o deserto da Alema- nha e Gaul nem a bárbara Bretanha os intimidara. A sua senha não era «Civilização e Cristianismo» mas «Cristianismo, o caminho da conquista para uma civilização digna». Tertuliano havia afirmado que «aquelas partes da Grã-Bretanha que resistiam aos exércitos romanos, eram agora pertença de Cristo». Pelo poder do Evangelho, Eliot e Brainerd, tinham transformado os índios da América como jamais alguma civilização europeia o poderia ter conseguido.

O barbarismo não detinha o comércio. Até no Alaska ele se infiltrara em busca de lontras. Se nós, os cristãos, amássemos os homens como os comer- ciantes amam o dinheiro, não haveria ferocidade de gentes que nos detivesse.

Não devíamos, dizia, deixar sem Cristo quais- quer raças, nem mesmo as mais desumanizadas.

Os comerciantes aprendiam as línguas: também nós as podíamos aprender. Um ano, quando muito dois, deveriam, mesmo admitindo a ausência de talento linguístico, habilitar-nos a comunicar com as gentes estrangeiras.

«Escolhamos», exortava, «homens de piedade,

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prudência, coragem e renúncia; homens de são conhecimento da palavra e do Evangelho; homens dispostos a prescindir de confortos e a suportar vicissitudes; sociáveis, sempre lembrados da suave natureza da sua mensagem, não se ressentindo de injúrias, humildes, prestáveis, acima de tudo perse- verantes na oração. Homens assim, não falharão nos seus propósitos, especialmente se forem hábeis em discernir e desenvolver as faculdades dos seus con- vertidos que, com a inata compreensão do povo e a palpável transformação de suas vidas, como endosso e adorno da sua mensagem, deverão ser sempre os principais evangelistas do país».

Um ano depois, a Associação reunia-se na cidade de Nottingham. Decorrido o primeiro dia, dedicado a notícias das diferentes igrejas, Carey subiu ao púlpito e leu em Isaias, 54. Ao escolher os versos dois e três para tema da mensagem, os amigos ínti- mos compreenderam que ele ia derramar naquela hora a paixão que o havia avassalado durante oito anos. O apelo soou bem alto e nítido:

«Amplia o lugar da tua tenda e as cortinas das tuas habitações se estendam; não o impeças; alonga as tuas cordas e firma bem as tuas estacas. Porque transbordarás à mão direita e à esquerda; e a tua posteridade possuirá as nações e fará que sejam habitadas as cidades assoladas. Não temas». (Isaias 54 : 2 a 4).

O texto, em si, era verdadeiro tesouro. Não havia em todo o Livro mensagem missionária mais

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inspiradora ou adequada. Se é certo que até havia jazido no túmulo do esquecimento e do irrealizável, ela despertava agora Carey, prendendo-o com o seu novo e ressurgido poder. Isaias, especialmente desde o capítulo 40, tinha sido para Carey, durante anos, o profeta eleito. Agora, com a sua palavra, Carey acendia uma luz que jamais se apagaria. Era, como o Dr. Clifford lhe chamou, «a sarça ardente da reve- lação missionária».

Em primeiro lugar, como sempre, expôs a con- dição histórica dos diferentes países. Caldeia tinha destruído Jerusalém, devastado a Judeia, e deportado as gentes judaicas, ocasionando-lhes aflição e deses- pero indescritíveis. Judá, era como esposa outrora amada, mãe outrora abençoada por seus filhos, agora deserdada e votada ao abandono.

Contudo, o profeta trazia-lhe conforto. Divina piedade e amor, de acordo com o conteúdo do capí- tulo precedente justificavam-na. O seu Esposo Celestial perdoava-lhe e ia abençoá-la. Não ficaria deserdada para sempre; era somente submetida à disciplina, para purificação dos seus pecados. Ela era ainda a escolhida de Deus. Nunca, por Sua von- tade, ela ficaria desonrada, estéril, desgraçada. Pedia- -lhe que se despojasse do seu luto e se tornasse de novo a esposa amada e a mãe de seus filhos. Deus chamava-a a um destino novo e esplêndido. A velha tenda, rasgada pelo vento, onde ela mal podia abri- gar-se, cederia o lugar a um pavilhão a uma infi- nita e sempre crescente família de tendas, fortes

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e belas. «Ergue-te» dizia Deus, «procura tendas maiores, visões mais amplas. Habita um mundo mais vasto, empreende tarefas mais ousadas. O teu Senhor e Criador é Deus em toda a terra».

Na descrição, segundo o profeta, da viuvez de Israel, o pregador viu o reflexo da igreja nos dias actuais a sua derrota, desonra, esterilidade e deca- dência. Ele conhecia bem o estado de coisas nas aldeias e nas cidades, na igreja organizada e no seio dos não conformistas. Tudo tinha observado em Pury e Piddington, Moulton, Barton e em Leicester. Tinha sentido a frieza do anglicanismo, excepção feita às pregações de Newton e Scott. Sabia dos membros dispersos, das faltas dos componentes do coro, das paróquias abandonadas, e das pouco sãs è mundanas diversões aos domingos. No não-confor- mismo eram-lhe familiares os entusiasmos pouco duradouros, as estéreis e amargas disputas, a mes- quinhês de ideais e de vida. Bastava-lhe recordar quão decadentes tinha encontrado a causa e o edifí- cio baptistas em Moulton, quão fraca e desencorajada a «reunião de Earls Barton», quão desgraçada Harvey Lane com os seus alcoólicos pastores e diáconos.

Mas não lamentava esta infrutuosidade, classifi- cando-a de estranha tragédia. Não admitindo quais- quer desculpas, tudo atribuía ao pecado. As suas palavras eram como punhais. A desobediência da igreja tinha sido, disse, a sua ruina, tal como os pecados da Judeia haviam colocado esta sob o jugo dos Caldeus. «Não me admiraria» diz Ryland, «se os

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que o escutavam tivessem, tal como os filhos de Israel em Bochim, levantado as suas vozes e chorado, tal foi a clareza com que ele provou o crime da nossa negligência na causa de Deus».

Esta não era, contudo, mais do que a penosa preparação para a vinda de boas e alegres novas. Deus tinha-o incumbido de anunciar o Evangelho. Bastava pois de preâmbulos sobre desobediência e esterilidade. Deus chamava a sua igreja a um futuro diferente e brilhante convidava-a a abandonar as pobres, tristes, e solitárias tendas da sua debilidade para tomar posse de novas habitações dentro da amplitude do Seu propósito e do esplendor da Sua vontade.

Cria, como o havia indicado no «Enquiry»— o «Enquiry» que ali se encontrava à venda que a última década do século xvin seria para a nação e a igreja o prenúncio de grande desenvolvimento cujos sinais se apresentavam inúmeros e claros.

Resumiu a mensagem em duas exortações:

Esperai grandes coisas de Deus. Empreendei grandes coisas por Deus.

Durante dezassete anos confeccionara sapatos aos pares. O sermão caía sob o inconsciente poder do mesmo hábito. E essas exortações eram bem o calçado indispensável ao peregrino e soldado cristão.

Terminou simplesmente a sua mensagem. Como Pedro no Pentecostes, exortou à rendição e acção. De Nottingham tinha saído oito anos, a chamada

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à oração. Ele pedia agora que se avançasse, pondo de parte toda a desobediência e demora.

Na manhã seguinte, depois de uma reunião ao amanhecer, em que, segundo Fuller, os espíritos ansia- vam compreender-se, teve lugar a reunião particular dos ministros e mensageiros. Cedo teve de se enca- rar a questão levantada por Carey com o seu sermão da véspera acompanhado de tão final e peremptório apelo. Quando chegou, porém, a altura da decisão, permaneceram os velhos sentimentos de dúvida e tibieza. A reunião ia terminar sem que se chegasse a um resultado decisivo quando Carey interferiu. Mal podia crer que os seus irmãos cooperadores, juntamente com os co-delegados, depois de delibe- ração responsável, se recusassem de novo a agir e, tal como a guarda avançada de Kadesh, vissem Anakim e as impossibilidades. Defrontando a grande recusa dos que se esforçavam por extinguir o espí- rito — a alma dilacerada pelo desapontamento Carey voltou-se para Fuller e agarrando-lhe o braço perguntou em voz repassada de angústia: «ficaremos de novo inactivos?»

Foi um momento extraordinário na história do reinado de Cristo. O entusiasmo contagia. Fuller estremeceu durante um instante sob tanta insistên- cia e angústia, mas a sua alma despertou e foi cheio do Espírito Santo. Coube-lhe a vez de ouvir «o sus- piro de Deus no coração do mundo». Muitas vezes tinha ele simpatizado com a propaganda de Carey, embora a sua timidez o impedisse de lhe ceder.

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Agora tornava-sc, porém, seu camarada, o primeiro dos cativos de Carey.

Pôs ambas as mãos no arado para jamais recuar. Foi, desde esse momento, como Caleb com Josué. Carey e Fuller eram agora dois homens com uma alma. E quando conjuntamente, puseram todo o seu inspirado poder ao serviço da causa, as coisas muda- ram, os homens cederam. Antes de se separarem, nessa tarde de quinta-feira, Carey pode ler como resultado de uma proposta de Fuller:

«Decidido elaborar-se um plano a apresentar na próxima reunião dos pastores em Kettering, a fim de formar uma sociedade baptista para a pregação do Evangelho entre os pagãos».

Parece uma declaração sem consequências que chega mesmo a atingir a qualidade de pretexto para adiamento. Mas registou uma mudança. Transformou a inacção anterior. E, assim, a angústia de Carey transformou-se em cântico de louvor. Na de que a sociedade se tornaria uma realidade ergueu-se para ser o seu primeiro contribuinte. Era necessário dinheiro. Daria à causa todos os lucros do «Enquiry». Com os custos da impressão praticamente cobertos pelos 1.000$00 de Thomas Potts, e o crescente inte- resse no livro que se vendia à razão de 6$30 cada exemplar, os lucros deveriam ainda ser consideráveis. Depô-los-ia no altar.

E assim nasceu, em 1792, a Sociedade Missio- nária Baptista. Foi, nos tempos modernos a primeira associação voluntária de indivíduos, para fins missio-

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nários. Foram cinco os homens que lançaram este frágil barco às negras águas do paganismo: Carey, Fuller, Pearce, Ryland e Sutcliff. Eram homens deno- minacionais por necessidade, que não por escolha, diz Pearce Carey. «Perante as vastas multidões pagãs, eles sentiam a tragédia da divisão da cristandade evangélica tendo, no entanto, como homens práticos, que agir de acordo com ela. Os seus corações eram maiores que as oportunidades. Prova a sua atitude anti-sectária a decisão que tomaram de, caso se lhes não proporcionasse uma ida rápida para o campo missionário, enviarem as suas subscrições aos mora- vianos, aos quais, aliás, dentro de pouco tempo, faziam nobres concessões. Eram todos relativamente novos. Ryland tinha 39 anos de idade, Sutcliff qua- renta, Fuller trinta e oito, Carey trinta e um e Pearce vinte e seis. Jovens tiveram a visão, e como jovens lhe obedeceram. Daqui para o futuro passariam a viver inteiramente para a missão.

CAPÍTULO V

A ÍNDIA CHAMA

Foi o doutor John Thomas que incutiu em Carey o interesse pela índia. Ele ouvira falar da Sociedade recém-formada e decidira-se a conquistar o seu interesse por Bengal. Tinha sido cirurgião da marinha e vivera muito tempo em Calcutá, onde se lhe despertara uma grande compaixão pelas multidões. Aprendera Bengali e durante três anos não se cansara de falar às gentes do Amigo dos amigos. Mas quanto ao lado prático da vida o doutor Thomas era, no entanto, pessoa extremamente desorganizada. Vivia, pode bem dizer-se, nas nuvens, contraindo dívidas e planeando aventuras que complicavam cada vez mais, a sua situação.

O que contou das necessidades da índia cativou o coração de Carey e dos seus colegas. Quando se referiu às peregrinações e penitências, à grande ido- latria e lamentável pobreza, ao despertamento de alguns, incluindo o seu professor, Ram Ram Basu, que mandara uma carta à Sociedade dizendo: «tende

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compaixão de nós e mandai-nos pregadores e tradu- tores», Carey mal pode reprimir os seus sentimentos. Em breve o doutor Thomas era alvo de perguntas sobre costumes e meios, rendas de casa e preços de mercado. Não sabiam, porém, o sentusiastas inquiri- dores, que se dirigiam ao homem menos indicado para consultas do género. O doutor Thomas não podia dar-lhes informações exactas sobre questões financeiras. O seu desejo de regressar à índia fazia- -lhe honra mas levava-o involuntariamente a roman- tizar os factos. Em Maida podiam comprar-se aves ao preço de $50, patos a 1$00, porcos, ovelhas ou veados a 12$30, e carneiros ou cabritos a 4$00. Por 110$00 podia construir-se uma excelente casa com paredes de lama e telhado de colmo. Ele tinha-o feito, vivendo mais confortàvelmente do que em Ingla- terra. Milhares de famílias nativas faziam a despesa mensal de 60S00. O belo quadro tinha visos de ver- dade, mas prestava-se a conclusões bastante erróneas. C. B. Lewis chama-lhe «uma imprudente garantia do baixo custo de vida lamentavelmente contradita pelas intermináveis e numerosíssimas preocupações mone- tárias do próprio doutor Thomas». Tivesse a Socie- dade conhecido, em toda a sua extensão, a gravidade da tarefa que se propunha empreender, ter-se-ia evi- tado a tragédia que mais tarde teve lugar.

«Poderiam missionários manter-se em Bengala?» Foi a próxima pergunta. Evidentemente, conquanto de princípio, fossem de admitir certas dificuldades, foi a resposta. Foi então que Carey se ofereceu, bem

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consciente da sua vocação. Ele cria, como no seu livro «Enquiry» o afirmara, que a despesa inicial, no caso de pioneiros, deveria ser a única e a suficiente. Qumdo Thomas reforçou esta ideia, não hesitou portanto, em depor a sua vida no altar da causa. Thomas ergueu-se, e caiu nos braços de Carey, os olhos brilhantes de comoção.

Desde esse instante, profunda amizade havia de os unir.

A Sociedade não podia, à vista de semelhante amplexo, preocupar-se com questões de meios e despesas. Estavam abertas as portas para o profundo e o espiritual. Apressaram-se, portanto, a transpô-las. «Conhecendo», diz Fuller, «a rectidão de carácter de Carey, a sua genuína piedade, sãos princípios, crescentes habilitações e grande entusiasmo, res- tava aceitar o seu desinteressado oferecimento. muito que era considerado como pessoa especial- mente adequada a tão árduo trabalho.». Quanto a Carey, a grande surpresa dessa tarde fê-lo sentir-se como alguém que «foi arrebatado ao Paraíso e ouviu palavras inefáveis de que ao homem não é lícito falar». (2.* Cort. 12-4). Daqui em diante viveria intei- ramente para a índia.

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CAPÍTULO VI

A MONTANHA DO SACRIFÍCIO

Nessa noite e durante o caminho para Leicester, a presença da calma, fria, e severa voz da razão, principiou a fazer-se sentir na alma de Carey. Terreno que lhe parecera firme, estremecia agora. A coluna de fogo mudava-se em fumo. Como diria ele à sua querida esposa que se comprometera a acompanhar Thomas a Bengala, pelos princípios de Abril? A possibilidade de ela o acompanhar estava inteiramente fora de questão, pois dentro de um mês seria mãe. Como iria, pois, exigir-lhe o sacri- fício da separação e mais tarde o de seguir, com as crianças, para terras longínquas da índia, ela que nem sequer havia ainda visto o mar? Nas- cida em Piddington, no condado mais central da Inglaterra e onde vivera os seus primeiros vinte e nove anos, era extremamente afeiçoada à sua terra. Os mares estavam infestados de piratas. Nenhum navio ousava abandonar o fundeadouro sem escolta. Além disso, como poderia Dorothy habitar com quase

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quarenta anos de idade, entre gente estrangeira, quando depois do seu casamento aprendera a escrever a sua própria língua? Além de tudo isto e sobretudo, existia, como se disse, a circunstância da sua maternidade em Maio.

Dorothy resistiu, revoltou-se. Não consentiria na sua partida. Mas Carey não podia ceder. Como Bunyan, sentiu que «despedaçava a sua casa e os seus» mas tinha que o fazer, devia fazê-lo. «Quem ama pai ou mãe... filho ou filha... mais do que a Mim, não é digno de Mim». (Mateus, 10-37).

Ouvira a chamada inconfundível e prometera- -lhe obediência. No próximo Domingo fez a partici- pação à congregação de Leicester. «Jamais vi mani- festação de mágoa e tristeza como a que nesse dia, reinou na nossa casa de cultos», escreveria ele mais tarde. Tão pesarosa ficou a igreja e tão inconsolável estava a esposa, que Carey decidiu-se a suplicar a mediação de Fuller. Quão firme e inabalável era o seu propósito, prova-o a seguinte carta:

Leicester, 17 de Janeiro de 1793

Querido e venerado pai :

A importância de dedicarmos toda a nossa vida ^ao serviço de Deus, é o principal tema do Evangelho. «Rogo-vos, irmãos», diz S. Paulo, «pela compaixão de

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Deus, que apresenteis os vossos corpos em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional». Rom. 12.1.

Devotar-se inteiramente ao Senhor, em sacrifício por causas santas, deve ser o grande alvo do cristão. Considero-me, pois, consagrado ao serviço de Deus, e acabo de ser indicado para seguir para Bengala, nas índias Orientais, como missionário entre os índios. Terei como companheiro alguém que esteve cinco ou seis anos e conhece a língua. Os índios são dóceis e inofensivos de natureza, porém vitimas das mais terríveis superstições e crassa ignorância. A minha família e filhos ficarão em Inglaterra por enquanto, sendo-lhe o sustento assegurado durante a minha ausência; no caso de decidirem ir ter comigo, ser-lhes-ão pagas todas as despesas. Saímos de Inglaterra no dia três de Abril próximo. Espero, meu querido pai, que lhe seja possível renunciar-me, por amor do Senhor, para o trabalho mais árduo, honroso e importante que jamais aos filhos dos homens foi dado empreender. Esperam-me inúmeros sacrifícios. Tenho de separar-me dos meus queridos e de muitos amigos afectuosos. Jamais vi uma mani- festação de mágoa e tristeza como a que Domingo passado reinou na nossa casa de cultos. Mas deitei mão do arado. Não recuarei.

William

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Edmund Carey apelidou a decisão do filho de loucura. Não cria que ele persistisse nela. Como seu filho mais novo disse, «embora bem de saúde e forte, experimentava sempre todos os males ante- cipadamente». Evocou todos os perigos. Mas William tinha deitado mão do arado.

Fuller arrastou consigo Sutcliff na missão de mediador. Mas a esposa de Carey não se resignava. O seu marido não era forte; era atreito a febres; nunca poderia suportar as fadigas e clima da índia: estava certa de que não poderia ir ter com ele, de que nunca mais se tornariam a ver. Em Leicester presenciaram cena semelhante, mágoa como a que, segundo Lucas, teve lugar em Miletus e Cesareia. Carey tinha-os desviado das suas questiúnculas e desentendimentos para o amor, actividade e paz. Eram uma comunidade diferente. Um terço dos membros era bem pertença sua, fruto do seu labor. «Amavam-no», como diria o livro da Igreja meses depois, «como às suas almas». Como poderiam, pois, renunciar-lhe?

Em breve porém se levantou alguém que, vibrando notas fortes de encorajamento, lembrou à congregação como o pastor desta sempre tinha focado bem a importância da extensão do reino de Cristo na terra; como havia concedido às reuniões missionárias mensais um interesse todo especial, como tantas vezes tinha promovido estas reuniões nos dias de mercado, para que a ela assistissem os membros das terras circunvizinhas. Jamais, como

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então, se tinham sentido levados a interceder pelas almas. «E agora», dizia ele, Deus está-nos pedindo o sacrifício que provará a sinceridade das nossas orações. Ergamo-nos à Sua chamada e provemo-nos à altura das circunstâncias. Em vez de impedirmos a partida do nosso pastor ou meramente nela con- sentirmos, aprovemo-la». A este apelo, a igreja não pôde deixar de corresponder. Dispunha-se a escalar a íngreme montanha do sacrifício: prova certa de que Carey não trabalhara em vão.

«A minha esposa parece resignar-se à ideia da minha partida», escrevia Carey pouco depois.

Na semana seguinte desfizeram a casa de Lei- cester. Carey levou a esposa e os três pequenos para Piddington onde ficariam a residir com uma cunhada, irmã da esposa de Carey. Um diácono de Leicester, padeiro, comprou um vagão de trigo a um lavrador de Piddington para que este ao voltar à sua terra, transportasse a mobília de Carey para a baixo preço. Durante esses últimos dias, como não se conformasse com a ideia de seu marido partir sòzinho, Dorothy prometeu-lhe a companhia de Felix, o filho mais novo, rapazinho de oito anos, alegre e travesso ; sinal certo e inconfundível da sua própria e eventual partida.

Decidiu-se que Carey partiria para a índia com o dr. Thomas e a esposa deste. Nesse tempo a maior parte daquele país era administrada pela Companhia das índias Orientais, que tinha um alvará do governo britânico. Deviam ser obtidas licenças especiais, sem

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as quais o embarque seria ilegal ; a pena seria a volta forçada e a confiscação de todos os bens. Mas a Companhia não acarinhava a ideia de uma empresa missionária e não havia possibilidade de se obter permissão oficial. Um certo capitão White, prontifi- cou-se, contudo, a correr o risco, e assegurou-lhes passagens a bordo do seu navio, o «Oxford». Quando o navio estava para partir, chegou às mãos desse capitão o aviso de que, no caso de persistir em levar os missionários, se arriscaria a perder o seu posto. Alarmado com tal notícia, pediu a Thomas e a Carey que procurassem outro navio.

Carey ficou extremamente desanimado com a circunstância e escreveu a Fuller:

Ryde, 21 de Maio de 1793

Meu querido amigo

Lamento ter de informá-lo de que se frustraram todos os nossos planos. Por causa da forma ilegal por que embarcaríamos, o capitão é acusado (supo- nho por um dos credores de Thomas) de querer levar a bordo um passageiro sem a devida autoriza- ção da Companhia. Não sendo o nome da pessoa especificado, esta, bem como eu e outro passageiro, somos convidados a abandonar o navio. Vou neste momento levantar toda a minha bagagem. As nossas coisas devem seguir, ou correrão o risco de ser

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apanhadas pelos empregados alfandegários (isto é, material cuja venda na índia daria para o sustento do seu primeiro ano nesse país). À esposa de Thomas e sua filha seguem. Não sei o que fazer; escreverei mais detalhadamente sobre o assunto logo que possa. Saio da ilha hoje ou amanhã, e na Quinta-feira o navio parte sem nós. Por mais misteriosos que pare- çam os caminhos da Providência não duvido con- tudo, de que sejam traçados pela Mão infinitamente sábia de Deus. Não me resta tempo para escrever mais. T. foi de novo para Londres. Adeus Seu afectuosamente,

W. Carey

Thomas regressava no dia 23, mas unicamente para assistir com Carey e Felix à partida da frota. Seria este o triste fim daquelas seis semanas de espera, das suas orações e projectos desde Outubro? Quebrar-se-ia assim o cálix sem que o tivessem sequer levado aos lábios? E como contariam à Socie- dade e seus auxiliares o resultado de tanto sacrifício e zelo?

Exceptuando os dois de Emaús, aos quais tinham sido roubadas todas as esperanças, é de crer que nunca dois homens se encontrassem em mais triste situação o «Oxford» e os navios que o comboiavam desaparecendo no horizonte! Mas em vez de desper- diçarem a sua energia em lágrimas e lamentos, pro- curaram um barco para Portsmouth, e arrecadarem

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a sua bagagem, um acto de semelhante ao de José quando fez as suas disposições relativas aos ossos; esperavam ainda partir brevemente, recusando-se a ver no caso do «Oxford» a última decisão de Deus.

Nessa semana Thomas trilhou bem o caminho da realidade; não foi o visionário, o distraído habitual. Soube conduzir as coisas no sentimento da sua von- tade, moldando o barro das circunstâncias, compe- lindo o adversário a tornar-se seu aliado. E a sua nova atitude, longe de ser natural, era proveniente da no Deus vivo, essa que desenraíza árvores e precipita montanhas. Com essa solucionou pro- blemas, obteve promessas, da fraqueza fez forças, derrubou multidões de obstáculos. À sua voz caíram muralhas intransponíveis, ao toque do seu manto separaram-se águas profundas. Soltaram-se grilhões e abriram-se portas de ferro. Thomas andava como que inspirado, crescendo em sabedoria e estatura. Remediou a catástrofe para a qual as suas dívidas tinham contribuído. Incitava-o também o facto de ter partido a esposa. O que conseguiu efectuar nessa semana é verdadeiramente extraordinário. Não contente em solver os problemas do «Oxford», agra- vou-os, saindo mais do que vencedor; cria que Deus lhes havia destinado bênçãos para além da sua pri- meira expectativa. E não conseguiu passagens para ele, Carey e Félix, como para toda a família de Carey, que convenceu a embarcar. Descobriu um navio, constrangeu as pessoas, arranjou os fundos

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necessários, tratou de bagagens. Carey estava mara- vilhado.

Thomas dirigira-se a um café onde os mari- nheiros se juntavam e era provável saberem-se notí- cias do cais. Pedira ao criado a informação de que necessitava, isto é, se algum barco Sueco ou Dina- marquês partiria brevemente para Bengali ou para algum porto das índias Orientais. Para «infinito» alivio de um coração torturado, o prudente criado, perito em tais pesquisas, trouxera-lhe, directamente, a resposta escrita: «Dinamarquês, índia Oriental, Rua Cannon n.° 10.

Dinamarquês! Ia decerto para Calcutá, colónia Dinamarquesa ao longo de Hooggly! Nada melhor. «Cessaram as lágrimas», diz, «recuperou-se a cora- gem». Foram à Cannon n.° 10 e mesmo junto à Catedral deram com o escritório Smith & C.°. Na manhã seguinte voltaram para saber que Smith era irmão do capitão do barco dinamarquês e morava na rua Gower. para onde se dirigiram a toda a pressa. souberam que o barco seguia para Calcutá, vindo de Copenhagen, estava a caminho e era esperado dentro em pouco, se os ventos fossem favoráveis: pararia somente, não chegaria a ancorar ao largo de Dover, e demo- raria um máximo de cinco dias. Havia camarotes vagos ao preço de 10.000S00 para adultos, 5.000$00 para crianças e 2.500$00 para criados. Cairam então, os planos que tão alto tinham voado í O barco Dina- marquês, tal como o Oxford, iria sem eles. 15.000$00

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era todo o dinheiro que possuíam e lhes fora resti- tuído pelo capitão White.

Thomas propusera nobremente a ida de Carey e Felix. Ele iria mais tarde disse, quando Deus lho proporcionasse. Mas Carey repudiara a sugestão. Além disso queria convencer sua esposa a acompa- nhá-lo. Pediu a Thomas que juntasse às dele, as suas persuasões. E assim nessa Sexta-feira, às oito horas da noite, tomaram ambos a carruagem. . . Pelas cinco da manhã chegaram a Northampton e à hora do pequeno almoço estavam em Peddington em casa de Carey. Seria para censurar o facto de, com um filho de semanas e três rapazinhos de menos de nove anos de idade, não ter a esposa de Carey, com um dia de antecedência, podido encarar a separação dos seus, uma viagem de cinco meses e todo o risco e estranheza de Bengal? Não, ela não podia beber o cálix.

Thomas e Carey desistiram, mais tristes que nunca. Tão desolado se sentia Carey que Thomas não queria convencer-se de que tivesse de ser este o fim. Sugeriu uma nova tentativa junto da esposa de Carey, que este proibiu, não querendo renovar desgostos e angústias. Mas na estrada de Hackleton Thomas insistiu: «não quero saber do que você pensa», exclamou; «volto para trás; hei-de vencer». E a despeito de toda a oposição de Carey, Thomas voltou. Ao reentrar na pequena casa deixou trans- bordar toda a angústia que lhe ia na alma e contou a dor do seu camarada. «Eu tinha que voltar», disse

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ele. «Não podia deixar as coisas neste pé». Durante seis anos conheci o que é a solidão de uma família dispersa. Não vos condeneis a semelhante tortura. Sinto o dever de insistir convosco, para que o não façais. Se recusardes ir, arrepender-vos-eis disso toda a vossa vida». A isto a esposa de Carey, cho- rando, respondeu «Irei, se minha irmã me acompa- nhar». Quão humano e justo tal como Moisés aceitando a comissão de Deus ao saber que seu irmão partilharia da responsabilidade! E, como mais tarde ela mesma diria a Ryland, deixando entrever um quadro familiar, Kitty subiu ao seu quarto para orar. Ao voltar, vinha convencida e pronta.

«Ele faz os meus pés como os das cervas,» 1 Salmo, 18,33 podia ter dito Thomas. Antes que estivesse suficientemente perto para as suas palavras poderem ser ouvidas, Carey as tinha adivinhado e corria ao seu encontro. Nem mesmo na sua juventude amorosa e ardente havia Carey galgado o cume da colina a um tal passo. E cedo Dorothy compreendeu o que para ele representava o seu consentimento.

A próxima coisa a fazer era apresentarem-se a um dos membros da Comissão Executiva e pedir a soma necessária. «Agora» diz Thomas, «voltávamos para Northamptom dois homens diferentes; os nossos passos eram mais rápidos e sentíamos os corações mais leves, como os dois que regressaram de Emaus». Alas o custo das passagens era ainda, porém, sufi- ciente para lhes destruir as esperanças. Nada menos

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do que oito passageiros e a sua correspondente baga- gem; seriam necessários 70.000$00: 40.000$00 para os quatro adultos, 15.000$00 pelo menos, para as quatro crianças, e ainda 15.000$00 para bagagem e diferentes coisas. Mas Thomas tinha ainda fé.

Nessa manhã Ryland havia recebido a seguinte nota:

Kettering, 24 de Maio - Sexta-feira Meu caro Ryland:

É possível que Carey lho tenha participado : tudo sem efeito. Não é a primeira vez que Thomas, com as suas dívidas, me desaponta. Talvez valha mais que ele não vá. Receio que se não possam obter passagens para Carey ou qualquer outro. A «aventura» perdeu-se. Thomas não diz o que fez dos 25.000$00 para a viagem. Esperemos que se não tenha perdido esse dinheiro. Deve convocar-se o Comité imediatamente. Escreva para X. . . Eu escre- verei aos outros.

Sempre dedicado,

Fuller

Até a de Fuller tinha vacilado, fazendo-o concluir o pior. Ryland convocava urgentemente o Comité quando Thomas e Carey apareceram.

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«Tudo corre pelo melhor disse. Estivemos com a esposa de Carey que decidiu acompanhar seu marido uma vez que a irmã a acompanhe».

«Mas por que barco

«Há um barco Dinamarquês esperado aqui, dentro de quatro dias. Podemos embarcar em Dover, havendo lugar para todos nós. Devemos seguir amanhã para Londres.»

«Mas. . . e o dinheiro

«É essa a razão por que aqui viemos. Temos que arranjar pelo menos, outros 20.000$00.»

20.000$00 ! Isso é impossível. Dispomos de 1.300$00 somente.

«Mas nós precisamos de 20.000$00.»

«Agora me lembro: Temos a receber uma conta de exactamente 20.000S00 de Fawcett, de Yorkshire. Fuller poder-vos-á adiantar o dinheiro, em Kette- ring.»

«Não ternos tempo para fazer essa viagem. Temos que voltar esta manhã a Piddington para tratar da bagagem, e devemos estar amanhã em Londres; Não um minuto a perder-se.»

Então Ryland dominado por tal firmeza escreveu a diversos pastores de Londres, pedindo-lhes o adiantamento da quantia sob promessa de restituição rápida. E assim se separaram «para não mais se encontrarem na Terra.» Fawcett salvara a situação.

Mas mesmo com os 20.000$00 e os 15.000$00 que tinham, como poderiam pagar a quantia pedida por Smith? Decerto Thomas estava a cami-

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nho de novo e pior desapontamento. Mas não, ele saberia como agir. Uma vez em Piddington diri- giu-se a Catherine Plackett e confiou-lhe os seus propósitos. Passaria sem uma cabine e iria como criado de Carey, pagando a passagem correspon- dente, isto é de 2.500S00. Estaria ela pronta ao mesmo sacrifício indo como criada de sua irmã? Catherine acedeu. «Onde quer que este evangelho foi pregado... também será referido o que ele fez, para memória sua». S. Mateus, 26-13.

No último dia daquele mês de Maio Pearce escrevia, de Birmingham a sua esposa: «Prepara-te, minha querida, para uma grande e alegre notícia: na tarde do dia em que partiste recebi uma carta de Ryland participando-me que Carey e toda a sua família iam embarcar para a índia! Quando? Como?, perguntarás. Vou responder-te. «E depois de por- menorizar toda a história, acrescenta:

«Por esta altura devem ter embarcado. Que maravilhoso Deus é o nosso! Di-lo aos outros, para honra do nosso Redentor e encorajamento do seu povo. Usufruem-se assim, três vantagens: (1) os mis- sionários seguem mais honrosamente sem o perigo de que os inimigos da Causa acusem a sociedade de duplicidade enviando-os sob pretextos falsos; (2) como os dinamarqueses constituem um poder neutro, não o receio de serem capturados pelos franceses; (3) Carey tem a satisfação da companhia de toda a sua família e está assim (destruída) uma das objecções frequentemente levantadas à sua partida».

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Quinze dias se passaram sem que o «Kõrn Prin- cessa» chegasse. Por fim, numa certa madrugada, pelas três horas, avistou-se o navio e respectiva escolta. Pelas cinco horas estavam todos a bordo. Thomas enviou a seguinte nota aos seus amigos de Londres:

13 de Junno

soou o sinal da partida. Temos um belo vento a favor. Adeus meus queridos irmãos e irmãs. Possa o Deus de Jacob acompanhar-nos, no mar ou na terra, por toda a eternidade. Um afectuoso adeus.

E ao afastarem-se dos alvos rochedos de Kent (para jamais, excepto no caso de Catherine, os tor- narem a contemplar), bem podiam dizer: «Nunca homem algum regressou à sua Pátria com mais ale- gria do que aquela com que nós a deixamos».

CAPÍTULO VII

PIONEIRO DO EVANGELHO

O Capitão do navio tratou os novos passageiros com toda a consideração recusando-se a ver na irmã de Carey ou em Thomas, servos dos outros. Ao casal Carey, cedeu a mais espaçosa cabine do navio.

Ao largo do cabo da Boa Esperança o navio teve, porém, de se defrontar com uma tempestade de certo semelhante à que no mesmo ponto sofrera Vasco da Gama. Foram precisos onze dias para reparar todos os danos no navio. Mas ao cabo de uma longa viagem de cinco meses os missionários chegaram a são e salvo à índia— os primeiros ingleses ali a entrarem ao serviço do Mestre.

Muitos britânicos tinham ido para o Oriente como soldados, marinheiros, empregados civis, mer- cadores e negociantes, mas durante quase duzentos anos, isto é, desde a formação da Companhia das índias Orientais, nem um único missionário se encontrara entre essa multidão de gentes afadigadas. Thomas e Carey eram os primeiros.

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Calcutá apresentava-se-lhes agradável no fresco mês de Novembro. Carey jámais havia visto seme- lhantes multidões. Agora, até a própria cidade de Londres lhe parecia pouco populosa. Eram ambos jovens e confiantes e logo principiaram a marcar itinerários, sentindo-se Thomas grandemente encora- jado pelo entusiasmo dos seus companheiros. Visi- tava diariamente vilas nas quais eram escutados com avidez. «A sua atenção», escreve Carey, «é admirá- vel. Cada lugar se nos apresenta com agradáveis perspectivas de sucesso. Ver gente assim tão interes- sada, inquiridora e amável, ainda que ignorante, é o suficiente para despertar no coração, o amor de Cristo. Domingo passado Thomas pregou a umas duzentas pessoas, tendo algumas delas feito pergun- tas sobre o Caminho Celestial. São grandes as espe- ranças. Jamais encontrei tanta satisfação como a que este trabalho me proporciona. Espero que muito em breve seja possível a fundação de uma igreja».

O seu optimismo prematuro devia, no entanto, ser rudemente abalado por pesadas tribulações, sufi- cientes para quebrar o espírito de qualquer homem não sustentado e fortalecido pela potente mão de Deus. Poucos meses depois da sua chegada, a esposa de Carey adoeceu, bem como o seu filho, Felix, cuja vida chegou a estar em perigo. À família doente foi cedida uma humilde casa em Manicktolla, distrito pantanoso onde lavrava a malária e frequentado pelos dacoitas, ao norte da cidade de Calcutá. O homem que assim os ajudou, era um nativo que

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emprestava dinheiro a juros Nelu Datta cuja amabilidade foi mais tarde bem recompensada.

Mas dias mais tristes e dolorosos haviam de vir quando, em meados de Janeiro, Thomas, que era o tesoureiro, participou que todo o dinheiro destinado ao primeiro ano estava gasto, não havendo a mais pequena esperança de uma remessa vinda de Ingla- terra antes do Outono. Tinha lamentavelmente errado os cálculos quanto às despesas do primeiro ano, os recursos tinham sido os mais inadequados, e ele, o menos aconselhável dos economistas ; e para o desempenho da sua profissão arrendara uma con- fortável casa citadina!

Quem poderá avaliar a aflição de Carey com a sua numerosa família' de sete membros, a doença de sua esposa, o restabelecimento de Félix ainda duvi- doso, o desconforto de sua casa, sementes e ferra- mentas por adquirir, a despesa mensal de 20 rupias com o professor, os juros mínimos de 12 por cento pelo dinheiro emprestado, e nenhuma perspectiva de auxílio de Inglaterra antes de dez meses? Como poderia ele sentir-se senão desanimado, inquieto, perplexo? A cidade de sonho e sol perdera o seu encanto.

Procurou David Brown, capelão de Fort William e amigo de John Newton. Mas por ressentimento contra Thomas, David mostrou-se superior e gelado, não lhe oferecendo a mais pequena hospitali- dade depois de cinco milhas percorridas debaixo de sol.

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O desiquilíbrio mental e dor que durante os treze anos seguintes haviam de afligir a esposa de Carey, datam desta altura, e são provenientes desta miséria. Atacada de desinteria, com o seu filho mais velho gravemente doente, impossibilitada de com- prar alimentos, aterrada com semelhante situação em cidade estranha e inhospita o cérebro princi- piou a ressentir-se-lhe, a sua natureza amável a sofrer alteração. E quem poderá culpá-la? Mais do que censura, tudo isto inspira compaixão. As esposas dos missionários sofreram duramente nesses primei- ros dias do despertar do evangelho em terras lon- gínquas. A esposa de Carey, mais cedo e mais dura- mente que nenhuma.

Para Carey o cálix era pesado. Não podia, tal como Thomas, endividar-se levianamente, Thomas mal compreendia a sua angústia e vergonha.

Não obstante, lemos estas palavras no seu diário:

17 de Janeiro Senti hoje o poder todo sufi- ciente de Deus e a estabilidade das Suas promessas, o que muito consolo me trouxe. Ao caminhar, de noite, para casa, depus, aos pés do Senhor, todos os meus cuidados.

22 de Janeiro «No monte do Senhor se pro- verá». Quisera dar mais lugar a Deus na minha vida e sentir-me mais submisso à Sua vontade ; isso me bastaria.

23 de Janeiro Todos os meus amigos se resu- mem Num, mas Num Todo Poderoso. Porque se aflige então a minha alma? Nada é oculto ao Senhor,

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e Ele cuida da Missão. Rejubilo-me no empreendi- mento deste trabalho ; rejubilar-me-ei ainda que por Ele tenha de dar a vida.

25 de Janeiro Bendito seja o Senhor por este dia de bonança. Como lamento a estranha loucura do meu coração !

28 de Janeiro Encontrei extraordinária conso- lação relendo as palavras de Fuller a nosso respeito, em Leicester. Tendo-me desabituado ultimamente de demonstrações da simpatia, tanta afeição e bondade comovem-me profundamente. Se for oferecido em holocausto de Fé, será grande o meu orgulho e júbilo».

E numa carta:

«Quando a minha alma se dessedenta na Pala- vra de Deus, esqueço tudo o mais».

Por fim foi-lhe cedido um pedaço de terra nos Sundarbans, onde o tio de Ram Ram Basu havia sido governador —terreno grátis durante três anos, elevando-se a um máximo de oito «Annas» por «Bigah» a partir do sétimo ano, segundo o esquema de Henckell para a colonização dos Sundarbans. Era-lhe também concedida licença de habitar o Bun- galow do Departamento do sal em Debhatta, caso este estivesse vago.

Embora soubesse que estas florestas estavam infestadas de cobras e de tigres mais ferozes, Carey aceitou a proposta, confiante nas promessas de Cristo.

Cansado de caminhar durante muitas horas ao sol ardente do seu último dia em Manicktolla, Carey

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refez o espírito anunciando. Cristo a cambiadores que compreendiam um pouco de Inglês, não deixando de lançar a semente do evangelho nem mesmo em terreno endurecido e hostil como esse.

Ram Ram Basu e Carey tiveram de cuidar com ternura de Felix, ainda doente, e de sua mãe, durante os três dias de viagem por barco através dos lagos do Sal. Viagem extremamente perigosa em que eram por vezes impedidos de avançar devido à proximi- dade de tigres. No entanto no meio de todos estes perigos Carey mantinha comunhão com o seu Senhor.

Depois de quatro dias chegaram, de madru- gada, a Debhatta, para encontrarem, o Bungalow ocupado. Carey ter-se-ia encontrado na mais terrível das situações, sem abrigo para a sua família, ou ali- mento, se Charles Short, o assistente da Companhia do Sal, se não tivesse mostrado nessa ocasião, o melhor dos bons samaritanos. Charles Short, que andava nessa manhã à caça e viu chegar, com sincero espanto, o pequeno grupo de ingleses, apressou-se a convidá-los para sua casa. O facto de saber que eram missionários não arrefeceu, de forma alguma, o seu acolhimento, conquanto não pudesse deixar de ver em semelhante empresa um .absurdo. Depois do pequeno almoço instalou-os em sua casa como hós- pedes, insistindo em prover a todas as suas neces- sidades.

E assim levantou Deus, por intermédio deste inglês, o pesado fardo dos ombros de Carey. Short não professava qualquer religião, ainda menos con-

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fiava em Cristo, para profundo desgosto de Carey. Mas trilhava o caminho recto e mostrou-se um ver- dadeiro e oportuno amigo dos missionários. Cristo apresentava-se-lhe, mais uma vez, como um estranho, nas pessoas dos Seus representantes. O jovem inglês hospedou-0 em sua casa. Não ficou porém sem recompensa. Esse dia de 6 de Fevereiro marcou para ele o princípio de um romance.

CAPÍTULO VIII

BRILHA O SOL POR ENTRE NUVENS

O Bungalow do assistente da Companhia era uma linda casa construída em tijolo com varanda semi-circular que constituiu para os Careys, depois da delapidada casa de Nelu Datta, um verdadeiro palacete cheio de conforto.

A casa que havia sido cedida a Carey ficava do outro lado do rio, mais de uma milha para o norte, em Kalutala. Acostumado à vida campesina, que levara durante vinte e oito anos, Carey depressa se sentiu mais à vontade em Kalutala, grato pela boa fortuna de tornar, de novo, à vida aldeã. Estava certo de que seria bem sucedido pois amava a agricul- tura e o solo era fértil, devido à proximidade do rio.

A principal contrariedade era a incerteza do direito sobre as terras, devido a contínuas acusações ao governo, da parte dos chefes locais. Por outro lado, os dacoitas que infestavam a região, eram tão ferozes como as cobras e os pítons, os búfalos bravos e os crocodilos, os leopardos e os javalis.

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Os tigres eram, no entanto, de todos, os mais temi- dos. Vinte homens haviam sido devorados por eles no departamento de Debhata, nos últimos doze meses. Kalutala estava até, em grande parte, deserta, pois este perigo pusera em fuga muita gente. Para pessoas que pernoitassem ao relento, o perigo era grande. Não sendo Carey, como Thomas, bom ati- rador, bem poderia, e muito compreensivelmente, ter recuado ante tantos perigos, como, de resto, Short o aconselhara a fazer. Mas para onde iria ele sem dinheiro ou amigos?

Com a ajuda de nativos não tardou que fizesse uma clareira, poupando as árvores maiores, as tama- reiras, mangoeiras, coqueiros, etc. Começou também a edificar uma casa de bambu e junco, a cultivar um jardim à roda do qual plantou árvores de fruto e onde semeou lentilhas, mostarda, cebolas e ervi- lhas. «Jamais me senti tão feliz», escreveu ele. Tinha deposto um grande fardo de amargura. Dia após dia atravessava e tornava a atravessar o rio Jubuna, o coração leve como nunca. Gozava a sua nova ocupação ao ar livre. O calor era mais suportável que o de Calcutá. Além do que, a Bengali rural, era a verdadeira Bengali. Sentia que depressa aprenderia a língua e se integraria na vida e costumes do lugar, a que não tardaria a dar toda a sua amizade. Cada dia que passava lhe trazia novas surpresas em maté- ria de plantas, pássaros e insectos cuja vida ele observava e cujos nomes aprendia. Nesse clima mais saudável, a sua esposa e Felix restabeleceram-se.

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Os filhos acompanharam-no e ajudaram-no a limpar o mato e a construir as cabanas.

Uma outra felicidade lhe estava ainda reservada. Vendo a maneira como prosseguia na construção da casa do Sahib, as pessoas fugidas aos tigres ganha- ram coragem de reabitar as suas, tanto mais que Ram Ram Basii lhes afirmava que Carey seria para eles um verdadeiro pai. 400 ou 500 pessoas prepa- raram-se para regressar ao local. «Cedo teremos três ou quatro mil pessoas junto de nós», escre- veu Carey.

«Por nada renunciaria ao meu empreendimento. A população é numerosíssima. Os pregadores são mil vezes mais necessários do que pessoas a quem pregar», dizia.

Quando a construção da sua casa de bambu ia adiantada, o dia um de Março trouxe-lhe uma grande surpresa um convite de Thomas, para que se lhe juntasse no distrito de Maida, para com ele ocupar posição de importância. A oportunidade surgira assim: uns amigos de Thomas, os Udnys, haviam sofrido um tremendo desgosto a morte do jovem casal Udny que, em Calcutá, ao atravessar de noite o rio Hooghly, havia perecido afogado. Thomas escreveu imediatamente à mãe de Udny, uma carta cheia de palavras de conforto. Seu filho, Jorge Udny, Residente Comercial pedira-lhe então para o visitar, cedo lhe oferecendo o cargo duma plantação de anil em Mahipaldighi. Thomas, então, solicitara e conseguira para Carey cargo idêntico em Mudna-

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bati. Era esta a sua notícia, transmitida em carta verdadeiramente afectuosa. É certo que Carey sentia tristeza em deixar o seu pequeno terreno nos Sun- darbas e as gentes que regressavam a Kalutala, mas não podia duvidar de que o convite de Thomas era uma porta aberta por Deus. Um salário fixo e libe- ral, a associação com um patrão cristão, a reasso- ciação com Thomas e dinheiro para a publicação das Escrituras— que cálix transbordante! Aceitou sem hesitar. Não podia no entanto partir já, pois devia esperar pelo envio de dinheiro de Maida para as despesas de uma viagem de trezentas milhas, ao largo do rio. Além do que a sua esposa se encon- trava de novo doente.

Mas outra novidade havia de surpreender a família Carey. Charles Short conquistara Kitty Plackett a quem, decorridos meses, desposava.

Cada um enchia o coração do outro. Tinham ambos sido generosos. Eram agora amplamente recompensados. A alegria de Carey era porém tol- dada por uma única nuvem aquele que para eles fora tão bondoso, não conhecia a bondade e a graça de Cristo.

Em Debhatta, Carey presenciou o chamado balouço que ele descreve assim:

«O homem que vai balouçar-se prostra-se, pri- meiro, perante uma árvore enquanto alguém com os dedos empoeirados marca o sítio onde os ganchos se hão-de dependurar. Imediatamente outra pessoa lhe uma palmada num dos lados das costas, agar-

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rando e esticando com os dedos um bocado de pele pela qual outra pessoa passa um gancho a uma pole- gada de profundidade. Outro gancho é, de maneira semelhante, colocado no outro lado das costas, depois do que o homem se levanta. Ao erguer-se, é-lhe atirada água ao rosto. Sobe então para o dorso de um homem e as cordas atadas aos ganchos são por sua vez amarradas a outra corda numa das extremidades de um bambú horizontal. Na outra extremidade a corda é agarrada por vários homens que puxando-a, elevam a ponta da qual o homem está suspenso. É movendo a corda no sentido cir- cular que se põe a máquina em andamento. Ao balouçar o homem descreve um círculo de cerca de trinta pés de diâmetro enquanto espalha ervas oferecidas a Siva e fuma talvez o seu cachimbo. Pre- senciei um espectáculo destes que durou um quarto de hora».

Para Carey tudo era tão repulsivo e digno de piedade que mais uma vez prometeu consagrar toda a sua vida à índia e à propagação do Evangelho de Cristo. Liberto, pela perspectiva de Mudnabati, do prosseguimento da construção de cabanas em Kalu- tala, decidiu dedicar-se com mais assiduidade ao estudo da língua. Escreve ele: «é uma língua rica e cheia de encanto ».

E um pouco mais tarde:

«A esperança de cedo poder dominar a língua alegra a minha alma. Começo a parecer-me com o viajante que quase pereceu na tempestade mas que, as

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roupas ainda repassadas de água, o céu a desa- nuviar-se».

E dois dias depois: «sinto-me como o prisio- neiro a quem arrancaram as cadeias».

Um problema mais grave que a língua o ator- mentava: o do seu coração.

«A minha alma é como o mato, quando devia ser um jardim».

«Mal posso dizer se tenho, ou não, a graça de Deus».

Como ajudarei a índia— eu, o imperfeito?»

Não que o seu diário fosse todo condenação pró- pria e queixumes.

«Posso dizer como Habacuc: Embora a figueira não floresça, rejubilo-me no Senhor».

«Não descanso senão em Deus».

«Sinto um desejo ardente de que todo o mundo conheça a Deus».

«Jamais me arrependi de qualquer sacrifício por Ele».

«Pensei que hoje era Domingo. Alegra-me o meu erro. Fui grandemente abençoado».

«Esta tarde, ao aproximar-se uma tremenda tem- pestade, enquanto caminhava sozinho, gozei de doce comunhão com o Senhor. Fora, a tempestade; dentro da alma, o brilhar do sol em toda a sua intensidade».

«Ao partir de Inglaterra cria ardentemente na conversão da índia; essa esperança, teria, no entanto, perecido, se, defrontando-me com tantos obstáculos, não tivesse Deus a sustentar-me. Mas acompanham-me

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Deus e a fidelidade da sua palavra. Ainda que as superstições do paganismo fossem mil vezes mais fortes e o exemplo dos europeus mil vezes pior; ainda que eu fosse por todos abandonado, por todos perseguido, a minha firmada na palavra erguer- -se-ia vitoriosa sobre todos os obstáculos, sobre todas as provas. A causa de Deus triunfará». E de novo:

«Ao meditar na maneira por que Deus me escutou, na maneira pela qual Ele me abriu o caminho é grande a minha confiança nas suas promessas, profunda e inabalável a minha paz».

Na madrugada de 23 de Maio principiaram os Careys a sua longa viagem para Maida, que devia durar 23 dias.

CAPÍTULO IX

MALDA

A primeira ocupação de Carey foi a de se fami- liarizar com a sua nova indústria. Udny proporcio- nara-lhe uma visita às melhores plantações de anil de Maida e Goamalti, e em fins de Junho, davam ingresso nas fábricas fardos de anil cujo tratamento e transposição de umas vasilhas para as outras, Carey apreciou cuidadosamente. Observou a purifi- cação do valioso sedimento, o processo de secagem, o corte em cubos, a embalagem em caixotes ou barris para Calcutá. Para quem, como ele, tinha feito longo e aturado estudo sobre plantas e o seu uso, estas operações constituíam fonte de inesgotável interesse, congénitas, na sua requerida exactidão, sua mente científica.

Quando em três e quatro de Agosto ele levou a família para a sua primeira casa indiana, essa casa recém construída, de dois andares, quartos espaço- sos e janelas venezianas, Carey sentiu-se feliz e orgulhoso. Era como que a chegada a um porto

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depois de violenta tempestade. Que vantagens não tinha a casa sobre as de Manicktolla e Kalutala! Além disto tinha ainda à sua disposição um bom pedaço de terra que, logo que terminasse a estação das chuvas iria transformar num grande jardim. Com um salário mensal de duzentas rupias— então muito mais valiosas do que actualmente— ele sentia-se, depois da miséria de Manicktolla, um verdadeiro Crésus. No dia seguinte escrevia ao Comité:

«Posso informar a Sociedade de que, possuindo agora meios de subsistência, dispenso o seu auxílio monetário. Agradeço sinceramente todos os esforços e sacrifícios feitos a meu favor e espero que a quan- tia destinada a suprir as minhas faltas seja enviada a outra missão. Ao mesmo tempo é meu desejo e privilégio ficar no mesmo de relações com a Sociedade e, tal como se dela dependera, manter a mesma correspondência».

Em seguida escreveu pedindo alguns instru- mentos de agricultura e um sortimento anual de árvores, de sombra, fruto, campo e floresta, para benefício do que chamava agora o seu país. Remete- ria regularmente o devido pagamento. Uma larga porta dizia ele, se abriu, e são grandes as minhas esperanças... Poderei agora garantir emprego a alguém que, por amor do evangelho, perca a sua casta.

A primeira estação foi, no entanto, muito doen- tia. Eram tantos os doentes que Carey mal podia continuar o negócio. Ele próprio contraiu febres

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tendo, em Outubro, uma alarmante recaída. Foi então que o seu filho Pedro de cinco anos de idade que quase falava o Bengali como um nativo, contraiu febres mais perigosas ainda do que as suas. Durante uma quinzena lutaram pela sua vida; mas o pequeno não se restabeleceu. Seguiram-se dias de tremenda prova pois, devido às leis rígidas do povo, respei- tantes ao contacto com os mortos— especialmente com os mortos não ortodoxos— nenhum índio ou maometano podia oferecer-se para ajudar no funeral da criança. Nem mesmo os carpinteiros ousavam oferecer-se para fazer o caixão; e ninguém se atrevia a abrir a cova. Por fim um grupo de quatro deixou- -se persuadir a correr o risco— abrindo a cova no lado sul do lago, longe da vila e das sepulturas dos maometanos. Mas ninguém queria transportar o corpo, conquanto se tivessem mandado mensageiros a sete milhas de distância em busca de homens. Prontificava-se a pobre família a transportar à sepultura o corpo quando, no último momento, lhes foi poupada essa dor pelo seu varredor e um pária. Dentro de dois dias o chefe da vila expulsava os quatro homens que haviam aberto a cova, proibindo quem quer que fosse de comer, beber, ou fumar com eles. Embora doente e afligido pela sua mágoa, Carey teve de enfrentar uma feroz contenda à qual pôde pôr termo ameaçando o chefe de prisão, até comunicar com o juiz europeu em Dinajpur.

Este desgosto pesou tremendamente sobre Dorothy Carey. Em princípios de 1795 ela caiu de

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novo gravemente doente tornando-se-lhe o cérebro em sede das mais mórbidas fantasias e atormentado- res receios. Tornou-se então no contrário do que, por natureza, era. Voltava-se contra os que mais amava. Envolvia-lhe o espírito uma tristeza perma- nente. Era o preço da sua aventura nessa índia dos primeiros dias do Evangelho. E ninguém, conhecendo os factos, ousará condená-la. Piedade, é o único sen- timento indicado.

É inenarrável a amargura de Carey, especial- mente antes de atingir o verdadeiro significado de tal calamidade e a poder encarar com infinita compaixão.

«Este é na verdade, para mim, o vale da sombra da morte» escrevia Carey no seu diário em três de Fevereiro de 1795, «com a diferença de que a minha alma é mais insensível do que a do peregrino de Bunyan.

«Oh! quanto daria por um amigo a quem pudesse abrir o meu coração ! Mas Deus está comigo, Deus que não se compadece da minha dor mas dela me pode libertar».

Em 5 de Fevereiro: «escrever para Inglaterra é como um bálsamo para a minha alma».

Em 7 de Fevereiro: «Oh, que este dia caisse no olvido!»

Em 14 de Março: «é e triste a minha vida».

Thomas escreveu-lhe: «deve esforçar-se por ver no caso de sua esposa uma doença e, lembrar-se de que são muitos os olhos que o fitam, muitos os

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ouvidos que o escutam, muitas as línguas prontas a caluniar. No seu caso, eu procederia, talvez, com violência. Mas bendigamos ao Senhor que nos as tribulações de acordo com a nossa capaci- dade de as suportarmos. Oro ardentemente por si, e sinto profundamente a sua mágoa. Pense em Job. Pense em Jesus. Ainda um pouco, e tudo terá passado».

Mas a solidão em que vivia, podê-la-ia ter suportado melhor se à sua mão chegassem cartas vindas de Inglaterra. No entanto, embora três barcos tivessem chegado e os seus amigos continuassem leais, as notícias tinham-se, de alguma maneira, extraviado. O silêncio de quase dois anos foi, para ele, como se o houvessem esquecido. Nas «cordas» que por assim dizer estabeleciam o contacto com o fundo da mina não se fazia sentir o mais pequeno tremor, o mais desapercebido estremecimento. Em Maio de 1795 vieram, enfim notícias. Fuller dava notícias das irmãs e pai de Carey e da promoção militar de seu irmão; dava notícias das irmãs da esposa de Carey, notícias da Revolução Francesa, das suas pregações e colectas para a missão, da surpreen- dente generosidade das igrejas, do interesse sempre crescente em Londres e da nova missão da Socie- dade em Serra Leoa; do próspero ministério de Pearce em Cannon Street e do trabalho e baptismo em Harvey Lane. Vinha-lhe também a notícia de que de tal forma havia Deus recompensado a igreja de Leicester que esta era, de todas as da associação, a

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mais próspera. E tais cartas foram como água viva para os seus lábios sequiosos.

As frequentes viagens no distrito, viagens que duravam nove meses no ano, e tinham como fim assegurar a devida cultura do anil e solucionar as disputas que constantemente se erguiam, contribuí- ram grandemente para a familiarização de Carey com o Norte de Bengali. Conhecia cada pormenor da sua fauna e flora; tomava minuciosos apontamen- tos sobre os animais, peixes, insectos, e pássaros que existiam, indagando os seus nomes, e fazendo um sem número de perguntas.

Na segunda estação fria recebeu uma carta do tesoureiro em nome do Comité exprimindo o seu desgosto quanto aos negócios que ele e Thomas haviam empreendido. Rogava-se-lhes ardentemente que se não prendessem em demasia com as coisas deste mundo para que o seu ardor missionário não esfriasse e se não desviassem do seu alvo máximo. Carey, que sempre defendera com ardor a causa da manutenção própria do missionário pioneiro, condição em que se oferecera para o trabalho, replicou : «Sinto grande relutância em justificar o meu espírito ou conduta pois que uma conduta que se não justifica ela própria, não deve, nem vale a pena justificar-se. Pensámos, na ver- dade, estar procedendo de acordo com a vontade da Sociedade. É certo que esta nunca especificou o negócio do anil, no entanto sugeriu o negócio de madeiras, agricultura etc. Se o espírito missionário

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é ou não extinto pelos esforços comerciais, não cabe a mim dizer. O nosso trabalho falará por nós. Declaro que, além do suficiente para manter a minha família, todo o meu rendimento, e algumas vezes mais, é empregue em fins evangelísticos, na manu- tenção de professores, etc. Não é o amor do dinheiro que me impele ao negócio. Sou pobre e continuarei a sê-lo enquanto a Bíblia não for publicada em Bengali e Industani e o povo necessitar de ins- trução».

Fuller, por motivo de doença, não tinha estado presente na reunião do Comité que decidira enviar a carta de admoestação a Carey. A sua presença nessa reunião teria, provàvelmente, evitado essa decisão e, consequentemente, um grande desgosto a Carey. Se a este se não tivesse providencialmente deparado o negócio, a sua família teria, sem dúvida, morrido de fome, dado a morosidade de comunica- ção com a Inglaterra e mesmo a frequência do extravio de encomendas. Um estojo de peças de cutelaria, destinado a representar a quantia de cento e quarenta e cinco libras que ajudariam a suprir as necessidades dos missionários durante o seu segundo ano, e que fora despachado por Thomas Potts em Agosto de 1794 para um armazém de Cripplegate, ficou por erro de alguém até Abril de 1796 em riscos de ter que ser vendido para pagamento da armazenagem. Chegou por fim a Calcutá em Junho de 1797, onde não rendeu afinal a quantia desejada. Sem o rendimento do negócio, indubitàvelmente

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proporcionado por Deus, a missão teria perecido sob tais condições.

Todos os Domingos, dia em que a fábrica fechava, e duas ou três vezes por semana excepto por altura das chuvas— Carey visitava algumas das suas duzentas vilas. Não havendo estradas à volta de Mudnabati tinha de trilhar os estreitos cami- nhos abertos entre as pequenas cultivações de arroz. Muitas vezes percorria assim uns 35 kl. por dia. Mas era de Novembro a Fevereiro que empreendia as maiores viagens. A ou a cavalo, percorria metade do distrito cada ano. Pregar o Evangelho, dizia, é a minha vocação máxima. Anunciei o nome de Cristo numa extensão de 35 kl. quadrados.

No entanto, embora as gentes que o escutavam se sentissem gratas e interessadas, não tinham a coragem de obedecer. O preço social era por dema- siado terrível. Thomas e Carey continuavam espe- rando, mas o fruto tardava. O nosso coração inclina- -se à nova doutrina, dizia o povo; mas dessa mesma inclinação ele fugia.

Dos filhos da índia, Carey esperara que Ram Basu seria o primeiro a desejar o baptismo. Mas no verão de 1796 provou-se que levava uma vida peca- minosa. Abatido, Carey escreve: é como se tudo se afundasse. . . para sempre!

Durante mais de nove anos Ram Ram Basu fora professor e colega, primeiro, de Thomas, depois dele, Carey. «Um estudioso,» escreve, «possuidor dos melhores dons e um conselheiro fiel: Jamais

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haviam desejado a conversão com tanto ardor; jamais por alguém haviam trabalhado tanto. Ele vivera sob a sua influência diária e conhecera-lhes bem os propósitos. Cantara com eles os doces hinos que falavam do poder de Jesus sobre o pecado. Com o seu auxílio, Tomas e Carey tinham podido traduzir três quintos do Pentateuco e quase todo o Novo Testamento. Num poema de valor, na língua nativa, ele satirizara os ensinamentos e o espírito dos brâmanes contra o Evangelho de Cristo. Agora atirava por terra a missão e tinha de ser expulso. Carey sentia-se tremendamente desanimado. Com a partida deste amigo, com quem poderiam contar? Além do que, vexado com a sua expulsão, o profes- sor da escola indígena de Carey (na qual este acu- mulava muito material) fora-se também, ficando a escola fechada durante semanas. Contudo, depois de escrever a Fuller contando-lhe este duplo desgosto, Carey acrescenta: «Só abandonaremos o trabalho com a perda das nossas vidas. Estamos determinados a persistir, embora sejam as desilusões e desânimos mil vezes maiores. Temos aqui a mesma garantia que vós em Inglaterra— a promessa, poder e fideli- dade de Deus».

Pedia insistentemente a vinda de mais coopera- dores: «a vinda de alguém representaria para mim benção e alegria inexplicáveis». Em começos da pró- xima estação fria chegou, inesperadamente, o coope- rador tão ansiado.

KUm dia» escreve «foi em 10 de Outubro

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de 1796, estava eu sentado à secretária com o Sucessor de Ram Ram Basu— um jovem de grande talento musi- cal— estudando sânscrito, quando me apareceu um homem acompanhado de um meu vizinho, que encontrara a doze quilómetros; antes de ter tempo de fazer quaisquer perguntas compreendi que se tratava de um irmão missionário. Esse facto trans- tornou-me o estudo do sânscrito nesse dia mas... deliciou-me!»

Tratava-se de John Fountain, o primeiro recruta da missão. Carey e ele depressa descobriram ter muito em comum. Nesse mesmo ano de 1796 a missão encontrou outro precioso cooperador na pessoa de Inácio Fernandes. Nascido em Macau, ele> havia sido educado para o sacerdócio por um frade Agostinho com quem viajara para Bengala. Desgostado com a adoração das imagens definida por Roma num país de si tão idólatra, abjurou os votos sacerdotais. Depois de dez anos de traba- lho de escritório na índia tornou-se mercador de tecidos em Dinajpur, construindo uma grande fábrica de velas. Entrando de posse, por intermédio de um amigo indiano, de um Novo Testamento em português, foi despertado espiritualmente e levado, em 1796, pela influência da missão, ao verdadeiro discipulado cristão. Daí em diante foi para os mis- sionários um verdadeiro cooperador e camaradar devotando os seus haveres ao trabalho. Edificou também um salão para a pregação do Evangelho a indianos e europeus. Logo de início, deu a Thomas e

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Carey a quantia de 4. 000 $00 para ser utilizada em livros, a qual Carey usou mandando vir de Ingla- terra valiosas obras de Filosofia e Teologia.

Em poucos anos tornou-se missionário honorá- rio e fez de Dinajpur uma estação missionária de grande actividade. Morreu, aos setenta e três anos, tendo conquistado uma multidão de troféus para a causa de Cristo.

Carey bendizia as velas de Fernandes. Quantas vezes estudara, noite após noite, à luz das fracas lamparinas de óleo de mostarda!

No segundo ano de estadia em Mudnabati, Carey começou a estudar o sânscrito, conhecedor já, a fundo, da língua Bengali. O sânscrito é a pedra da cultura indiana na qual estão escritas as suas gran- des obras clássicas, a mãe e rainha de todos os ver- naculistas. Ao estudo do sânscrito depressa acres- centou o do industani. Três anos e meio após a sua chegada à índia, tinha completado a tradução do Novo Testamento na língua Bengali.

CAPÍTULO X

ALEGRIAS E DESÂNIMOS

Eis o que Carey escrevia a Fuller: «enquanto que em qualquer terra existem apenas dois obstáculos ao trabalho de Deus o pecado do coração humano e a falta das Escrituras aqui, este último, está remo- vido, pois o Novo Testamento está traduzido em Bengali. E o valor de semelhante tesouro é superior ao de diamantes.»

Ele sentia bem a excessiva responsabilidade de tal empreendimento e o perigo que representava um erro grave. «O meu professor examina o estilo e sintaxe da minha tradução: eu, a sua exactidão e fidelidade. Ele lê-me a tradução e eu sei, pela forma e ênfase com que lê, se a compreende. Se ele falha, tenho razões para duvidar do meu trabalho conquanto não seja fácil para o leitor ordinário dar expressão na leitura do Bengali pois, exceptuando o ponto final, não tem qualquer espécie de pontuação».

Mas como, uma vez traduzidas, conseguiria ele imprimir as Escrituras? Quando pensou mandar vir

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de Inglaterra os instrumentos necessários cada um deles custando mais de 100$00 ficou alarmado com o preço: 440.000S00 para uma tiragem de dez mi! exemplares do Novo Testamento! Mas em Dezembro de 1797 soube que tinha aberto em Calcutá a pri- meira casa comercial de fundição para tipos verna- culares e, uns meses mais tarde, que estava à venda pelo preço de 4.600$00 uma máquina de imprensa recentemente chegada de Inglaterra. E com tal entu- siasmo começou Carey a falar do serviço que a máquina prestaria à missão, que Udny, sempre inte- ressado na circulação das Escrituras, decidiu com- prá-la. Chegou em Setembro seguinte. Excitados como estavam não a foram buscar, pois era domingo. Mas recolheram-se e deram sinceras graças a Deus. Quando as gentes nativas viram a máquina que tão extraordinário interesse parecia merecer a Carey e Fountain, chamaram-lhe, inocentemente, o ídolo dos sahibs!

Antes da impressão e circulação das Escrituras não podia esperar-se o progresso espiritual daquele pobre povo. «Há quatro anos que trabalhamos no deserto»— escreve Carey «temo-nos ocupado em remexer o solo, desarreigando as plantas ruins e venenosas e semeando a boa semente. Pouco fruto surgiu ainda; mas o agricultor sábio espera-o pacien- temente».

É certo que as suas mãos se encontravam lametr tàvelmente vazias, não exibindo o fruto do seu esforço. De entre os professores e interessados um

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linha provado ser mentiroso; outro era culpado de adultério; um outro, de temperamento meigo e extremamente apto na expressão das suas ideias, parecia ter esquecido tudo aquilo de que uma vez tão entusiàsticamente falara: e assim por diante. Em Mudnabati dois continuavam a ser para Carey «raios de esperança». Um deles, porém, sempre aflito com preocupações pecuniárias! Ridículo produto, na verdade, de tão aturado labor! Os interessados eram como a erva dos telhados que seca antes que a arranquem, com a qual o segador não enche a sua mão, nem o que ata os feixes enche o seu braço! Carey contou a Pearce e a Blundel o seu amargo desapontamento: «sinto-me quase endurecido, e sou tentado a pregar como se os seus corações fossem invulneráveis. Mas este espírito desonra o poder de Deus, que prometeu estar com os Seus até o fim; destrói também toda a energia e torna a pre- gação um mero formalismo.

Culpava-se sobretudo a si próprio:

«Não existe, decerto, alma fria como a minha*. O meu crime é incompreensão espiritual».

«Sou talvez a mais fleumática, fria e negligente criatura que jamais possuiu a graça de Cristo».

«Não sinto amor... em mim. Oh Deus, faze de mim um verdadeiro cristão!» Usa-me, oh Deus!»

KA minha alma é como a tamargueira do deserto a que se refere o profeta; murcha antes de desa- brochar.*

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«Falei hoje com um maometano, mas não me sinto melhor do que ele.»

«Não sou pessoa de espírito forte e empreende- dor. Receio, na verdade, vir a desonrar a missão.»

Contudo, estava decidido a viver e a morrer pelo trabalho. A Pearce escreveu: «Não trocaria a missão pelos melhores círculos espirituais de Ingla- terra. A minha maior infelicidade seria separar-me deste trabalho. Que o Senhor me possa usar no lan- çamento dos alicerces da Igreja de Cristo na índia; não desejo maior recompensa nem posso conceber mais alta honra. O trabalho ao qual Deus a sua aprovação terá infalivèlmente, que prosperar. Cristo principiou a cercar esta velha e poderosa fortaleza e há-de tomá-la. Ele não costuma abandonar a tarefa que uma vez empreende».

Havia, sentia-se bem, um «mover do espírito sobre a face das águas», conquanto ainda se não registasse qualquer acto de criação. Carey escreveu a Ryland: Se, como David, estou destinado a juntar o material com que outro há-de edificar a Casa, a minha alegria não será menor. E a grande neces- sidade do Industão apreciou-a ele, como nunca na primavera de 1799 quando, em Noaserai, uma tarde, a trinta quilómetros de Calcutá presenciou a queima de uma viúva. Fora à cidade visitar Charles Short que estava gravemente doente. Será ele quem descreverá o facto:

«Deparando com uma aglomeração de gente na margem do rio, perguntámos de que se tratava.

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Disseram-nos que se ia queimar o corpo de um fale- cido. Quando inquiri se a esposa morreria com o marido, responderam-me afirmativamente indican- do-a. Ela estava, de pé, junto ao monte de lenha, no cimo do qual jazia o corpo do marido. O seu parente mais próximo acompanhava-a ; perto dela estava um cesto contendo doces. Perguntei se o acto era voluntário ou coagido. Responderam-me que era absolutamente voluntário. Falei e argumen- tei quanto pude e por fim comecei a gritar toda a minha repugnância, todo o meu horror pelo acto que não podia senão classificar de assassínio. Disse- ram-me que, pelo contrário, era um grande acto de santidade, acrescentando de maneira desabrida que se me repugnava, poderia retirar-me o que, até, me aconselhavam. Eu disse que ficaria, estando determi- nado a assistir ao assassínio contra o qual seria cha- mado a depor no tribunal de Deus. Roguei à mulher que não desprezasse a sua vida; que nada receasse, que nenhum mal lhe sobreviria se se recusasse a ser queimada. Mas como resposta ela subiu o monte, dançando, as mãos estendidas na maior tranquilidade de espírito. Previamente o parente, a quem cabia o mister de lançar fogo à lenha, guiara-a seis vezes à volta desta, ao mesmo tempo que ela distribuía os doces pelo povo, que os comia com reverência. Abraçada agora ao cadáver do marido esperava serenamente a morte. Sobre os corpos de ambos foi então empilhada uma grande quanti- dade de plantas de cacau e outras substâncias sobre

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as quais se derramou um líquido. Em seguida colo- caram-se sobre as plantas dois bambus, depois do que se lançou fogo à pilha que, devido às matérias secas e combustíveis de que era composta, logo se inflamou. Mal o fogo começou, o povo ergueu um clamoroso grito de alegria entrecortado de invoca- ções a Siva. Seria impossível distinguir por entre os gritos do povo os gemidos ou gritos da mulher. A esta ser-lhe-ia também impossível mexer-se ou lutar, pois os bambus pesavam sobre ela como cha- pas de ferro. Objectámos fortemente ao uso destes, falando-lhes da coacção que significavam impe- dindo a pobre mulher de se erguer. Mas eles decla- raram-nos que os bambus tinham o fim de evitar que o fogo caísse. Não podíamos presenciar durante mais tempo semelhante espectáculo e afastámo-nos gritando contra o assassínio e barbaridade do que havíamos visto».

O espírito de Carey angustiara-se ; ardera com o corpo dessa própria mulher todo o seu ser. Jurou, tal como Lincoln ante a escravatura das mulheres, extinguir, com a ajuda de Deus, semelhantes actos de crueldade e loucura. Uma tal ignorância de Deus, fazia-o ansiar por mais missionários. Mas a sua voz era simples eco no deserto indiano. Estava-lhe porém reservada, para Maio desse ano, uma surpresa que seria como uma porta de esperança no seu Vale de Achor!

CAPÍTULO XI

ÚLTIMOS OBSTÁCULOS

Outubro de 1798.

Prezado senhor Carey,

Não sei se se recordará de um jovem impressor, com quem uma vez conversou, à saída da capela de Rippon, sobre a sua viagem à índia. Esse jovem espera vê-lo em breve e é o que lhe escreve. Os seus serviços foram aceitos pela sociedade missio- nária em 16 do corrente. Foi uma reunião bem feliz a desse dia, em que se manifestou, e de forma bem viva, o espírito missionário. Pearce comunicou entusiasmo a todos. Não faltaram revelações missio- nárias. Na primavera espero partir com outros. É meu desejo viver e morrer a seu lado, consagrar- -me consigo ao trabalho. Sei que poderei contar com as suas orações a favor da viagem. Não duvido ser grandemente ajudado por si. Possa Deus fazer- -me fiel até à morte, dando-me paciência, coragem

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e zelo para tão grande empresa. Seu afectuosamente, W. Ward.

Nesse mesmo mês de Maio, Udny decidiu aban- donar Mudnabati no fim do ano. A estação prece- dente havia sido de resultados desastrosos. Em Julho, Carey escrevera:

«Tenho que empregar todo o meu esforço no sentido de reparar tanto quanto possível os prejuí- zos de uma cheia que acaba de destruir todas as esperanças do ano. cerca de dez dias percorri todas estas vizinhanças e as perspectivas eram exce- lentes. Os campos apresentavam-se cobertos de arroz, cânhamo, anil, pepino e abóbora. Na sexta- feira passada tornei a visitar os mesmos lugares de barco. Não restavam vestígios de coisa alguma. Tudo se tinha transformado numa enorme planície de água de dois a vinte pés de profundidade. Os rios formaram dois grandes lagos de três milhas de lar- gura e cinquenta de comprimento».

Pouco tempo depois chegou ao conhecimento de Carey que nada menos de quatro missionários, três dos quais com as suas famílias, haviam chegado —os jVlarshmans, Brunsdons, Grants e Ward. Tinham desembarcado em Serampore, perto de Calcutá, então território dinamarquês. Poucos dias depois, Carey recebia notícias da morte de Grant, vítima de febres. Deixava dois órfãos. Para cúmulo de infe- licidade as autoridades britânicas, logo que soube- ram que se tratava de um grupo de missionários, ordenaram o regresso imediato de todos a Inglaterra,

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recusando-lhes a permissão de transferência do ter- ritório dinamarquês para o território da companhia. Este ataque súbito do inimigo parecia significar o completo insucesso da empresa missionária ainda nos seus princípios. Mas Deus estava presidindo a tudo com infinita sabedoria. Sabendo da medidj. tomada pelos ingleses, o governador dinamarquês Bie, que conhecia algo do valor das missões evan- gélicas, abriu-lhes as portas de Serampore— onde estava pronto a conceder-lhes absoluta liberdade para a fundação de escolas, impressão das escrituras e pregação do Evangelho.

«Segunda-feira, 2 de Dezembro.— Carey decidiu deixar tudo e seguir para Serampore. Na verdade ao abrir essa porta o Senhor parece ter fechado todas as outras».

E depressa se manifestava a direcção Divina. Quase a seguir Jorge Udny era transferido para Cal- cutá. O seu sucessor em Maida, fortemente hostil às missões, teria impedido todo o trabalho.

Na primeira manhã de 1800, após ternas despe- didas, barcos carregados com máquina de impres- são e bagagem de Carey e Fountain partiam em direcção a Serampore. Terminara para Carey o tempo de aprendizagem. De agora em diante seria mestre e dirigente.

Alguns meses após a sua chegada a Serampore, a morte levou Fountain e Brunsdon, deixando Carey Ward e Marshman. Influenciados pelo método Mora- viano de bens em comum, fundiram as famílias

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numa. Desprezando o seu direito de chefia, Carey fundou «Serampore» em bases de igualdade que a ninguém admitiam a proeminência; a lei era feita por todos e todos a ela se submetiam. Distribuíam- -se os trabalhos por votos colectivos; a superinten- dência de cada era mensal, incluindo a compra de mantimentos, presidência à mesa, trabalho de contas, direcção de criados, recepção a visitantes e a condu- ção do culto semanal em inglês.

E o processo adoptado triunfou. Estas bases democráticas da missão e da família foram o segredo da sua força e do seu sucesso. Carey jamais consen- tia que a qualquer homem se chamasse mestre, muito menos a si. Um era o seu mestre Cristo.

A salvação da instituição estava na abstenção de remuneração individual, na colecção de todos os ganhos, na justiça de pagamento a cada família de acordo com as suas necessidades e na consagração de todo o dinheiro que restava à expansão da mis- são. Seguiram assim estritamente a fórmula Mora- viana, extinguindo à nascença todos os impulsos de avidez e egoísmo.

«Muitos são os que troçam de nós», escreveu Carey, «mas nós preparamos material para a cons- trução do templo de Deus neste país, e é n'EIe que está a nossa confiança». Para se manter em contacto vital com Ele, Carey construiu o que chamava o san- tuário, no jardim murado. ao nascer do sol, antes do chá e depois da ceia (quando o luar o defendia

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das cobras) ele orava e meditava; o livro que inces- santemente traduzia para os outros, tornava-se então no seu maná oculto.

No fim do ano, notas de alegria ecoaram na mis- são. Começavam a brotar da terra os primeiros fru- tos de sete anos de trabalho duro e incessante: Fakira, Krishna, Jaymani, Rasamayl, e Annada.

O testemunho dos novos crentes era de natu- reza inconfundível. «As palavras de Cristo confor- tam as nossas mentes. Ele livrou-nos dos nossos pecados. Ele é tudo para nós. O amor que O levou a morrer por nós é maravilhoso. Os nossos corações estão crucificados com Ele. De ora em diante nada significarão para nós as bênçãos ou maldições Brâ- manes!» Fixou-se o dia do seu baptismo, que seria domingo seguinte. Thomas sentia-se possuído de alegria indescritível. Esperara durante quinze anos esta hora.

Mas os 8 lobos» cercaram a casa de Krishna. De madrugada arrastaram-no à presença do magistrado, que os enviou ao governador. «Este homem»— grita- vam,— «come com os europeus, tendo-se tornado como um deles>. «Não», respondeu o velho governa- dor ao ter conhecimento dos factos. «Ele tornou-se simplesmente cristão, não europeu. Responderei por ele e proíbo-vos de o molestar». Retiraram-se da pre- sença do governador mais ferozes que nunca. A filha mais velha de Krishna prometida em casa- mento a um conterrâneo, lhe havia sido tirada. Centenas de índios o perseguiam e troçavam. Carey

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encontrou numa estrada, aterrorizada e soluçante, a pequena Rasamayi e chorou com ela o que ela jamais esqueceu proferindo ternas palavras de con- solação: «É a fidelidade a Cristo que te causa esta tribulação. Ele guardará as tuas lágrimas como tesouros e jamais te abandonará». Teriam, contudo sido todos assassinados nessa noite se o governador, tendo conhecimento prévio do plano, os não tivesse protegido com um corpo de guarda.

Cerca de seis meses depois destes primeiros baptismos foi oferecido a Carey o lugar de profes- sor na Universidade do governo recentemente fun- dada em Calcutá. Devia ensinar Bengali, Sânscrito e línguas Marathi. Os seus alunos eram da nobreza inglesa e destinados a ocupar postos administrativos em toda a índia e a exercer profunda influência no país. A remuneração era óptima e, de acordo com a fórmula «Serampore» ia para o fundo comum. Marshman abriu uma escola interna para crianças que teve muito bom êxito e ajudou grandemente a missão. Sem os ganhos destes homens dedicados, o grande trabalho de tradução e impressão das Escri- turas teria, sem dúvida, perecido.

Do dia da sua ordenação em 1793 ao dia da sua morte, Carey não recebeu, da Sociedade Missionária Baptista mais do que seiscentas libras. Proveu sem- pre às suas necessidades e contribuiu com mais de 40.000 libras para o trabalho missionário baptista na índia.

Entretanto, os convertidos cresciam em graça

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tornando-se testemunhas vivas do poder do Evan- gelho. Krishna fez-se um pregador apaixonado que não desprezava a mínima oportunidade de levar aos seus compatriotas a mensagem da vida.

«Segui a religião Indu» costumava ele dizer. «Banhei-me no Ganges. Adorei ídolos mudos. Pros- trei-me, vezes sem conta, aos seus pés. Fiz as minhas ofertas aos sacerdotes, visitei os lugares santos. Repetia continuadamente o nome do meu deus pro- tector. Mas nada me consolou, nada me aliviou dos meus pecados, Ouvi então falar de Jesus Cristo; como Ele se tinha feito homem para habitar entre os homens aos quais servira, chegando mesmo a dar a sua vida por eles. Interroguei-me sobre tão extraordinário amor e pus-me a pensar qual dos nossos deuses havia jamais mostrado amor seme- lhante. Tinham porventura Durga, Kali, ou Krishna morrido pelos pecadores? Enquanto esses deuses inacessíveis e orgulhosos pareciam troçar dos seus adoradores, Cristo banhara os pés aos discípulos. Que humildade se podia encontrar comparável a esta?»

Jaymani e Annada, como ele convertidos, con- quistaram para Cristo algumas mulheres vizinhas e em Chamdernagore às três irmãs de Crishna Jay- manni dizia « O Evangelho é árvore muito plantada na Europa; transplantou-se uma vergontea para Bengali que começa a dar fruto. Quero fami- liarizar-me bem com o seu gosto para com perfeição, poder anunciar a sua doçura aos outros».

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Krishna pagou bem cara a sua conversão ao Cristianismo especialmente na tragédia de Golap, a sua filha mais velha, que embora de treze anos, fora prometida em casamento pelos seus pais, antes da conversão destes, a um certo Moham. Ao conhecer o amor de Cristo, Golap não podia deixar de se revoltar contra o seu casamento com um idó- latra. Porque haviam de constrangê-la a semelhante tortura? Não poderiam os seus pais salvá-la? Mas legalmente o compromisso era irrevogável. Numa manhã de Abril de 1801, Mohan e outros rapta- ram-na quando ela enchia na fonte o seu cântaro. Amordaçando-a levaram-na por estradas e campos cerca de 24 Kl para Calcutá. Ao pai, agredi- ram cruelmente. Em Calcutá, Golap mais uma vez gritou a sua revolta: não quero casar com este homem; conheço agora a graça de Cristo e quero segui-lo !

Na manhã seguinte repetiu estas palavras a um magistrado que de boa vontade a teria libertado do jugo, mas que lhe podia prometer a sua pro- tecção. Abandonada às mãos dos idólatras ela recusou-se a seu marido declarando com inquebran- tável resolução que viva ou morta pertencia a Cristo. Carey aconselhou-a, no entanto, a suportar o casa- mento indissolúvel tentando, pela paciência, con- quistar Moham para a fé. Ousou mesmo, com propó- sitos de reconciliação, visitar Moham escapando nessa altura, quase milagrosamente, ao ataque furioso da multidão.

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Durante o ano de 1801 a missão devotou-se com amor ao crescimento espiritual deste pequeno grupo. Às sextas-feiras, Carey instruia-os nas Escri- turas, e aos domingos, todas as horas livres lhes eram dedicadas. Na pequena e pobre cabana de Krishna tinham também lugar os cultos em Bengali. Tornou-se cristã toda a família— pai, mãe, tia, os amigos mais íntimos e as crianças, cujos progressos em matéria de leitura e instrução bíblica muito deleitavam os missionários. O Coronel Bie, cha- mando-as um dia ao palácio governamental ficou sinceramente surpreendido com a forma por que liam e cantavam os hinos. O maior prazer que a missão proporcionou a Chamberlain o seu novo recruta, foi, quando da sua chegada, um serão musi- cal nessa casa indiana transformada pelo Evangelho, em que muitos hinos que se cantaram eram da auto- ria de Krishna.

Esta casa tornou-se a base de todo o pro- gresso, progresso maravilhoso depois de tão longa espera. O ensino que Krishna na sua casa dava aos rapazes, e aos seus próprios filhos, tornou-se o núcleo da escola livre. Para muitos essa escola representava a etapa intermediária que lhes evi- tava contacto directo com a missão e contribuía para a formação das suas primeiras impressões cristãs.

podiam abrir os corações. Muitos eram os que, na casa de Krishna fumavam, conversavam e comiam até altas horas da noite. A Missão permitia

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e custeava estas reuniões, reconhecendo a sua extrema utilidade.

«Que maravilhas o Senhor tem operado escreveu Carey a Williams no verão de 1802. «18 meses atrás ter-nos-ia encantado o facto de um índio comer connosco; agora é difícil arranjar espaço para todos os que vêm. foram baptizados nove índios, sete dos quais dão um belo testemunho cristão. Espera- mos baptizar um muçulmano e um outro índio antes da partida do capitão Hague».

Mas a par de todas as as bênçãos não podiam deixar de sentir os efeitos da serpente venenosa que persistia em impedir o progresso do trabalho. Um brâmane ameaçou Carey de lhe cuspir no rosto. Os barbeiros negavam-se a barbear cristãos; os nego- ciantes recusavam-se a vender-lhes os seus produtos. Fakira desapareceu misteriosamente, e Syam Das foi assassinado nove meses depois de receber o bap- tismo. Ram Dahn foi levado para casa a pretexto de que sua mãe havia sido mordida por uma cobra, jamais lhe sendo permitido o regresso. Pitambar Mitra, foi envenenado pelo pai e, recaiu em pro- funda melancolia que nada podia remediar. Kasi Nath foi de tal maneira agredido pelos seus vizi- nhos, que, aterrorizado, se retratou.

Os últimos vinte e seis anos da vida de Carey foram extraordinàriamente frutíferos; Deus abençoou o seu servo muito mais abundantemente do que ele jamais ousara pedir ou pensar.

CAPÍTULO XII

ÚLTIMAS BÊNÇÃOS

A história do trabalho levado a cabo pelos mis- sionários de Sarampore é um verdadeiro romance oriental. Criaram a literatura nacional de Bengali ; estabeleceram um método moderno de educação popular; fundaram a actual igreja protestante indiana do Norte: deram o primeiro impulso à imprensa nativa. Introduziram na índia a primeira máquina a vapor; e com a sua ajuda a manufactura do papel em larga escala. Traduziram e imprimiram a Bíblia, ou grandes porções dela, em mais de trinta e um idio- mas conseguindo a maior parte dos fundos neces- sários com o trabalho das suas mãos. Edificaram uma Escola que ainda hoje se conta entre os melhores edifícios educacionais da índia. Ao contemplar-se a sua magnificente frontaria de pilares dominando o Hooghly, ao subir-se a sua majestosa escadaria, não se pode deixar de sentir admiração pela dos três homens que assim ousaram trabalhar.

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Mas este trabalho não se fez sem muita fadiga e esforço, pois as autoridades britânicas tentavam a cada passo destruir a obra da Missão. Uma vez foram amargamente criticados e caluniados pelos que em Inglaterra deviam estar do seu lado. Um grupo de missionários mais novos separou-se deles e pro- vocou a divisão aprovada pela Sociedade inglesa que os desejava subjugar por completo. Mas através de tudo isto o Senhor os guiou e amparou levando-os por fim à vitória.

Uma das suas tribulações mais penosas teve lu- gar em 1812 quando cinco mortes tinham ocorrido na família no curto espaço de três meses. Uma quinta-feira de manhã Marshman irrompeu no quarto de Carey participando-lhe que a casa da imprensa não mais era de que um esqueleto de paredes nuas e queimadas. A perda em manuscritos foi tremenda, pois representavam anos de trabalho constante. Fora-se todo o Novo Testamento de Carey em Kanarese, a sua gramática Telegu, e não restavam vestígios do seu quase completo dicionário de sânscrito o trabalho magno da sua vida linguística. Perderam-se além disto grandes quantidades de papel, tipos de máquinas, máquinas etc, etc, no valor de 1 . 000 . 000S00. No domingo seguinte Carey pôde tomar como tema para a sua pregação o texto «Aquietai-vos e sabei que eu sou Deus!» (Salmo 46,10).

E resolutamente os três missionários depuseram nas mãos do Senhor todo o seu cuidado.

CÁREY— O PAI DAS MISSÕES MODERNAS 103

Não foi a sua confiança.

Na próxima semana receberam ajuda em cartas, dinheiro, material impressor e mobiliário. Uma ins- crição que rendeu sete mil rupias foi levada a cabo por pessoas como, Thomason, George Undy, Ellerton, Gaoler Gordon, um príncipe javanês da escola de Marshman, alunos de Carey, antigos e actuais (mil e duzentas rupias), e até por Scott Waring filho do major que em Inglaterra os tinha calu- niado.

A notícia do fogo chegou a Ryland a nove de Setembro e a Fuller em virtude da sua ausência temporária do país, a dezoito do mesmo mês. Mas com que ardor este convocou voluntários para auxi- liar os missionários! A Grã-Bretanha estava então a braços com o problema napoleónico. Os géneros alimentícios eram a preços inacessíveis e as responsa- bilidades maiores do que nunca. No entanto as igrejas responderam ao apelo de forma surpreendente ; não a igreja inglesa como a escocesa, a baptista, e as chamadas igrejas livres; assim como muitas angli- canas. Quando do vigésimo aniversário da fundação da Sociedade Fuller escreveu «A vossa triste notícia teve forte repercussão em todo o país. Nâo adentro da nossa igreja como em todos os meios religiosos se manifestou o desejo de remediar tanto quanto possível a grande perda. Norwich, que havia contribuído com duzentas libras para a Socie- dade, acrescentou quinhentas. Em Cambridge anga- riaram-se mais £ 165. A Sociedade Bíblica enviar-

104 CAREY -O PAI DAS MISSÕES MODERNAS

-vos-á duas mil resmas de papel e a L. M. S. cem guinéus ».

Em dois meses a perda financeira estava repa- rada. Mas tão dramático acontecimento foi neces- sário para revelar à cristandade britânica o valor de uma missão que num edifício podia perder de 900 a 1.000 contos, além de manifestar a existência de tão magnífica e poliglota obra de tradução. Até não medira o alcance da obra. A catástrofe cons- tituiu uma revelação. Nas chamas desse fogo todos puderam ver a grandeza do empreendimento ; os factos transpareciam. A destruição multipli- cou portanto o número de zelosos amigos da missão.

Foi ao nascer do sol de 9 de Junho de 1834, que Carey transpôs as portas eternas, dois meses antes de completar setenta e três anos de idade. Dezoito horas antes, Marshman, seu companheiro na tribu- lação e na paciência de Jesus Cristo ajoelhara perto dele agradecendo a Deus a misericórdia e bondade para com Carey durante os seus quarenta anos na índia. Nas últimas semanas, alheio a visões arreba- tadoras ou temores, Carey gozara de completa e tranquila confiança no seu Senhor crucificado e glorificado.

A sua vida é um exemplo vívido da maneira como Deus utiliza fracos e humildes instrumentos para cumprimento dos seus mais elevados propósitos. Nada impossível para o Senhor. Nada que Ele não possa fazer por meio de um homem ou

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mulher que a todo o custo se prontifica a obede- cer-lhe.

Carey teve uma visão da grande necessidade do mundo. Não esperando que alguma grande oportu- nidade surgisse, contentou-se em seguir o Senhor passo a passo na realização de tarefas humildes, preparando-se assim para mais amplas esferas de acção no futuro.

Foi desta forma que o humilde sapateiro de aldeia se tornou no principal pioneiro das missões moder- nas, preparando o caminho para a mais grandiosa expansão do Evangelho desde Pentecostes.

John Marshman conta como mesmo nos seus últimos dias, mais do que uma vez, Carey citara as grandes palavras de incitamento: « As cortinas das , tuas habitações se estendam, alonga as tuas cordas, e firma bem às tuas estacas ». (Isaías 54,2).

E a essa incitação responderam estudantes de espírito cultivado, aptos segundo o desejo de Carey, a proverem às suas próprias despesas, enquanto pregavam o evangelho de Cristo. Um deles, John Leechman, escreveu aos amigos de Serampore em Inglaterra:

«Que faremos? Deus arrebatou hoje para Si o nosso Elias o nosso mestre. Mas não nos deixemos abater. O Deus das missões vive eternamente. A Sua Causa persistirá; as portas da morte, o passamento dos mais eminentes servos, não impedirão o seu progresso, não obstarão à sua vitória. Tenhamos coragem: espera-nos algo de mais nobre do que o

106 CAREY-O PAÍ DAS MISSÕES MODERNAS

choro e o desânimo. A morte do chefe não nos deterá a meio do caminho que ele tão gloriosamente trilhou. Espera-nos trabalho mais árduo do que nunca. Que sobre nós desça o Espírito Santo em toda a sua plenitude ».

F I M

ÍNDICE

Pág.

I O Novo Nascimento 1

II Os Últimos serão os Primeiros 11

III Os Campos estão Brancos para a Ceifa .... 19

IV A Sarça Ardente 25

V A índia Chama 37

VI A Montanha do Sacrifício 41

VII Pioneiro do Evangelho 57

VIII Brilha o Sol por entre Nuvens 65

IX -Maida . 73

X Alegrias e Desânimos 85

XI Últimos Obstáculos 91

XII Últimas Bênçãos 101

Acabou de imprimir-se este livro na Tipografia Mendonça, Rua de Jorge Viterbo Ferreira, 12-2.°— Porto, aos 28 de Junho de 1956

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