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DE ANGOLA
A CONTRA-COSTA
DE ANGOLA
A CONTR A- COSTA
DESCRIPgiO DE UMA VIAGEM
ATRAVEZ DO
CONTINENTE AFRICANO
COMPREHENDENDO
NARBATIVA8 DIVERSAS, AVENTURAS E IMP0RTANTE8 DESC0BERTA8
ENTRE AS QUAE8 FIGURAM A DA8 ORIOENS DO LUALABA,
CAMINHO ENTRE AS DUAS COSTAS,
VISITA À8 TEBRAS DA GARANGANJA, KATANGA
E AO CURSO DO LUAPULA,
BEH COMO A DESCIDA DO ZAMBEZE, DO CHOA AO OCEANO
POR
H. CAPELLO-R. IVENS
Ollìcia^da Armada Real Portugueza
EDI9AO ILLU8TRADA COM MAPPAS E URAVirilAa
Volume I
LISBOA
IMPRESSA NACIONAL
1886
A
SUA MAGE8TADE EL-REI
0 SENIIOR
DOM LUIZ I
COM ESPECIAL PERMISSÀO
RK8PEITOSA1IKNTE DEDICAM E8TE LITRI»
\i\ atxdoit».
r
AO
POVO PORTUGUEZ
VIXCIJLAM N'ESTA PAGINA OS ArCTORES A MARCA INDELEVEL no SEU PROFUNDO RECONHECIMEMO
AO EXCELLENTISSIMO SENHOR
MANUEL PINHEIRO CHAGAS
MIMSTKO D ESTADO HONORARIO
A QUEM DEYEM 0 TER SIDO NOMEADOS PARA TAO ELEYADO CARGO
E A EXPEDICAO 0 SEU BOM EXITO
PELO DECIDIDO INTERESSE COM QUE A PROTEGEU
CONSAGRAM ESTÀ PAGINA
C/d avidott».
■N
RELACAO DOS INDIVIDUOS PERDIDOS DURANTE A EXPEDICAO AO INTERIOR DE AFRICA
1884-1885
Nome e naturalidadu
Qualidaflc da perda
Logar ein que se effectaou
GarangaDJa, chefe
2 Cacheque.
3 4 5 6
7
8 9 10
11
12
13
14 15 16 17
18
19 20 21 22 23 24
Caioqueza (Mucclli). Clia-note (Mueelli).. Dezesetc homem». . . Quiari-Ocainba
Gonga
Capenda
N'Gombo (Cabinda). Nambero
Samba (Ganguella) . .
Chiteta (Gangiiella). .
Sandéra (Ganguella).
Mabanda (Gauguclla)
F. (Ganguella)
Guenjo (Ganguella). . Chandalla
F. (Ganguella)
Ciuco (Quinbare)
Catinga (Lunda)
Sonuna (Nano)
Quinbangana (menor)
Bumba.
Chico
Fugido
Preso para a fortaleza
de S. Miguel. Morto de fadìgana fuga Morto de fadiga nafuga Fugidos em massa .... Morto de eongcstào pul-
monar, por ter caido
aos rapidos do rio.
Morto de tisica
Fugido
Perdido (aliena^ào). . . Perdido com carga de
mìssanga. Fugido com um fardo
de riscado. Fugido coni um fardo
de fazendas. Fugido com um fardo
de algodào. Fugido com o bote. . . . Fugido com o bote. . . .
Fugido do libamì)o
Fugido dolibambo pela
segunda vez. Fugido do libambopela
segunda vez. Morto de pneumouia. . Perdido, morto de fome
Perdido, morto (?)
Morto de pneumonia. . Morto de dysenteria (? ) No hospital
No Croque. £m Loanda.
No Croqui?. No Croque. No C'roque. No Croque.
Km Mossamedes. Na Huilla. Na Huilla. Chimpumpunhime.
No rio Iquebo.
No rio Iquelx).
No rio Iquebo.
No rio Iquel)o. No rio Iquebo. No rio Iquebo. No rio Iquebo.
No rio Iquebo.
No rio Cuatir. No rio Cuatir. No rio Cucio. No rio Iquebo. £m Mossamedes. Em Mossamedes.
xn
Rdagào dos individuos perdidos
Nome e naturalidade
25 26 27
28
29
30 31 32 33 34 35 36 37 38 39
40 41
42 43
44
45 46 47
48
49
50
51
52 53
Quizeuduca
Jimbi
Uamo (Moisumbi) —
Benedicto (Mossame
dea). Caxinda (Loballe) . . .
F. (menor)
F
ChiàJla
Joariuim
F
Quiluinbo (inulher). . .
Cahombo
Jainba
Bacaià
Cha-Casscuda
Quibanda
Chieo
Quipeio (inulher)
Catumbo
Cacbìpia
Calei
Domingos
Manico
Fé-Camjino
Caminho
Humbo (?)
N'gulo
Quinbanda ■ • .
F
Qualidade da perda
Desertou coni fonie . . . Desertou eom fome . . . Desertou eom um eu-
nhete. Morto de epylepsia e
queda no fogo. Morto de tremores ner-
Yosos e idiotismo.
Morto de enterite
Morto de anemia.
Morto de fadiga
Fugido
Abandonado, morto (?)
Evadida.
Evadido
tLvadido, morto (?). . . . Pordido, morto (?) .... Morto de fadiga.
Morto de fj^liga
Perdido, morto de fa- diga (V).
Evadida
Morto de fadiga, ane- mia e meningite.
Morto de fadiga, ane- mia e meningite.
Evadido, morto (?j.. . .
Evadido
Edema e fadiga, morto
Extraviado eom a mala dos instrumentos.
Morto de meningite e fadiga.
Morto de meningite e anemia.
Extraviado, morto (?) no mato.
Morto (?) (bobas)
Morto de tisica
Logar em que se effectuoa
No rio Luatuta. No rio Luatuta. Adiaute do Luata-
ta. Muene Chindoma.
Soana Quifoaco.
No rio Ninda. No rio Ninda. No rio Cabompo. No rio Caì>ompo. No rio Cabompo. Muene Caheta. Muene Furumana. Muene Furumana. No rio Mumbeje. No rio affluente do
Luengue. No Lualaba. No Lualaba.
Muene Canhinga. No rio Muana.
Cha-Malundo.
Cha-Malundo. Cha-Malundo. Cha-Malundo. Cha-Malundo.
No Quinguebe.
No Quinguebe.
No rio Moaclii.
No rio Clioa. Table bay.
INDICE DAS GKAVURAS
PftR
A bordo do paquete tU
Rapariga Celli 69
Homeiu do Nano 78
Bois-cavallos 85
Rapaz Coróca (de face) 89
Rapaz Coróca (de perfil) 93
Homem Coróca (de face) 97
Homem Coróca (de perfil) 101
Fuga de pretos 109
Um enorme leao approxiniou-sc i2i)
Morrò Cha-Malundo 132
Subindo a encosta 137
Bambi 144
Cascata da Huilla. opp. a 148
Um carro de boera 161
Typo mu-nhaneca lupollo 169
Senzalla em Quipungo 177
Ob elephantes 185
Mulheres ban-dimba 193
Rapariga mun-dimba. 197
Mulher mun-dimba 201
Soltando um latido, desapparece 205
Mulher do Humbe 208
Hyphoene guinensis 213
Homem do Humbe 221
Typos bana-cutuba 225
Homem do Humbe 229
XIV Indice das (jravuras
Pae.
As glrafas 242
M pala (macho) 249
Mullìcr da Haiida. 253
A flteatopxgia u*uiiia hotteiitot4' c»pp. a 2r>4
Nas margons do Cucio 2G5
Mulher amboclla do (.^ubango 2G9
Homem amboclla do Cubaiigo 273
Cabc^a de gunga ( Ehuid) 280
Passagem do Cuatir 289
Boi do mato 297
Habita^ocs do Cuito ^305
Naturai da Donga. 313
Indigena Ribeirinho do Cuito 321
Escorregando no lamciro 333
Typo cam-bunda 337
T2o grande era a abundancia e varirdadc de animacB opp. a 338
Capadji (cabra dos pantanos) 341
Peize do rio Conjunibia 345
Muene Caluri 349
Indigena iàuma 357
A zebra 3G5
E perscguindo urna recua de zebras, fcn; duas opii. a 3G8
Cabe9a de palanca 373
Homem do Lobale 377
Mupei 385
Antilope Caama 389
Indigena do Genji 397
Mulheres ba-runda » 405
Cabe^a de barrisbuck 409
Typo ca-rótze 413
PhacochceruB afr 417
Antonio empoleirado 425
Mulher amboclla 42f)
Homem amboclla. 433
Quissenia JEgoceros ellipsiprinums (fenica) 437
Quissema ^goceros cllipsiprimnu» (macho) 441
Narguilé gentilico 448
Mappas (quatro).
INDICE DOS CAPITULOS
ESBOgO HI8T0RIC0 pRg. 1 a 20
O CONGO PftR. 21 a 87
HISTORIA POIJTICA DO CONGO Pag. 39 a r.7
CAPITULO I .
NA COSTA OESTE
Km Angola — Anpecto do cord&o litoral e sua vegetala© — Terras do interior — Entrc Cuanza n Bongo, quadro triste — Problenias que nos propunhamos — Material epcs* 8oal — Considora^òcfl — Artigos da expodi^ilo — Francisco Forreira do Amarai — Urna noticia historica — Salvador Correla e a conquista de Loanda — Fortalezas e ediflcios publicos — Os jardius, os muctqw», avegcta^&o, a salubridado o a ilha — Os muxi-loandas e a suaopini&o aristocratica — Kondimcntos e governo — Tribunacs Judiciaes — Considera90e8 sobre os deportados e colonlas penaos Pag. 59 a 81
CAPITOLO II
PRIMEIROS PASSOS
O companheiro negro e a sna ingratid&o — A corveta Rainha dt Portugal e a abalada — > Porto Piuda — Os aroaes e a prìmoira noite — Ponto de partida o rasocs do sua es* colha — O homem poe e Deus dispòe — A primeira marcha e o aspecto do terreno — Caracteres gcologicos — Os habitantes do Conica e o dùptt dentai — Numera^fto — Dos trajes e mulheres — O adulterio e os funernes — O boi proto e a circumclsào — Terron's gentilicos — Vegeta^ào do Coróca — ?'auna oruithologica — Fuga do qua- rcnta e dois homens Pag. 83 a 106
XVIII Indice dos capitulos
CAPITULO IX
0 RIO CUBANGO
Boto annos depois — O ramlnho de Mo^amblque e ai carai voi vldaa ao «al — Maone Ca- tiba e a mandloca — Entra os amboollai — A conflaenria do Cutchi e a doen^a de Mapne Mionga — Um trabalho photographico iuterrompido — Scenao do fcitifarìa — Trìbunaes africanos e orna anecdota sobre o caso — Os ina-rhaca — (> rio Cuobo — Subitas dos«r9-5es e uina noite de auf^stla — Philosopbioas rouiiidcrafi^ns quo um ftineral remata — O rio Cueio e os atolelros que o roaririnam — Frios. sòde* e fomes
— O rio Cuatir — Natureza do solo e os pautanos intransponiveis — Aldolas lacustres
— Ainda um atoleiro e a pobresa das planta^òos — Um chefo mais hutnano o a morte de am companheiro — A fome — Duas considerafoes sobre a geolofiia africana — Adeus Cabango Pag. 263 a 2
CAPITULO X
A CAMINHO DO ZAMBEZE
As poeticas impressòes da chegada e a consequeuto dcsilluRào — Soffrimontos quo nos aguardam — Ainda o Cuatir e a jienla de um homom — O rio Luatuta ó corno o Cua- tir— Libata» ml»eravcÌH e a situn^fto do^ noM808 — A caravana torna-so n'um bando do salteadores —Visita do grupo Kingular — A mullior soba e a penuria de vivere» — Considcra^Ses e ingenuidadc sem igual — A partida e a fuga de dois homcns — (> Longa e a fuga de um outro — Continuam o deserto e as zonas arcosas — Asmupan- das 0 a altitude — Pouca ca9a e o rio &rpalina — Um acampamento cannibalesco — Ob ca^Jidores de rato» — Subsiste a fome — Mupei, o e«tp080 infeliz — Curiosldade dos man-banda — Os bois-cavallos e as suas vantagens em viagem — Effeitos de miragem e am animai corno o gnu — O Culto e sua noticia Pag. 2M7 a 309
CAPITULO XI
ACERC'A DO SEGUO
O indigena africano — Slmilhan^a de caractercs, difflculdade em doscriminar typos e fa- roilias de origem commam — Tra^ os caracteristicos do negro — Aspccto gcral — In- dlcaf(Vo8 scientificas sobre a coufonnaf&o craueana — O curo])eu e o ethiopc enea- rado pelo lado esthetico — Os hamitas e a philanthropia — Uniformidade de scr, »ub o ponto de vista intellcctual — Feitlfos — O Otjiruro, os Sondi» e o Zamòi— 8upor- stlfdes e o terror pelos mortos — Diffidi comprchensio — Dados cosmogonicos indi- genas — O sentimento moral e as lendaa — Dlfflcaldades de estudo — A lingua e os
Indice dos capitulos xvn
CAPITULO VI
AO SUL
ConRola^uos do qacni viaja — A abalada da HuiUa — Urna Alga e o abandono daR camaa — O Chimpumpunhimo — O caminho don Gambos e os csplnhoiros — O Tongo-tongo <>u o morrò sagrado — Oh dias nWta terra — A» florciitas o a fauna — Os ban-dimba o n 8ua voracidadc — Vestimniitaii e proceder para com os mortos — Confiderà^ Sos e a feflta da hda — foroouto e ama erupfio granitica — Cahama e Xicunse — A mesa e Auas confiola^òes — Quatro clephantcs e a fauna omithologioa — O croeodilo e a pomba — A fioresta que termina — Os ba-cancalla on ìnuhmtn; duas palavras a rcs- petto d*elIos — Tatouage, armas enveuenadas — Seu caracter — O Huinbe e a cafa couHidorada pelos ban-cumbi Pag. 183 a 210
CAPITULO VII
ENTUE OS BAN-KUMBI
O ITumbe — Sua posifio — Quadro historìco — Os ban-kumbi e os seus costumes — Habi- ta^òps 0 typo — O hamha — Homens e mulheres, seus trabalhos — Chronologia e fes- tas — FuneraeR — Mìahòcs catholicas — Os bana-cutuba e o Cuauhama — Proexas do Nampandi — Kiftuoza dos cuanhamas o um apejn;u geologico — O ronco do leao im- preHflionando no muudo animado — O cacimbo o as considera^òos — O Cunene e o alaganuMitn marginai — Mupei oncontra a mSo — A caonìui e o processo da vaccina — Oh roptis e a vegnta^&o — Zero de graus e a impress&o connequento — Umalmo^o de couro Pag. 211 a 237
CAPITULO Vili
ENTRE CUNENE E CUBANGO
A reluctancia dos gnias e o recurso dos bois — A forno e mn quadro do sertio — Disposi- 9S0 geologica das terras percorridas — llochas vulcanicas o minas — A vegeta^So, o frio e OS lobos — Cobra originai — A ca^a o as pégadas do elephante — A noite e o charivari das feras — As matas da Ilanda — Cachira — On povoadores d^all — As mu- pandas e a terra sem pedras — A cabra que assobia o os bushmen — A steatopygia — A natureza do solo; conversa com um indigena — Os ba-cua-neitunta — Exageros gentilicos — O leio o os mabeeoa — Oh macacos o o aimadilho — O Cubangro — Consi- dera(5es sobre o seu curso Pag. 239 a 2C2
XVIII Indice dos capitulos
CAPITULO IX
0 RIO CUBANGO
Soto annos depois — O caminho de Mo^ambique e ai caras volvidas ao sul — Mnene Ca- tlba e a maudiooa — Entro os ambocllas — A confluencia do Cutchi o a doen^a de Muene Mlonga — Vm trabalho photo^aphico Interrompido — Scenas dn feiti^arìa — Tribunaes africanos e uma anecdota sobre o caso — Os ma-chaca — () rio Cuebe — Subitas dosor^^es e uma notte de antnistia — Philosophicas ronsidera^rxts que um ftkncral remata — O rio Cueio e os atoleiros que o marginam — Frìos, sòdes e fomes
— O rio Cuatir— Natureza do solo e os pautanos Intransponlveis — Aldelas lacustres
— Ainda um atolelro e a pobreza das planta95es — Um chofe mais humano e a morte de um companheiro — A fome — Doas consideraf5es sobre a geologia africana — Adeus Cubango Pag. 263 a 2
CAPITULO X
A CAMINHO DO ZAMKEZE
As poetlcan impressSes da chcgada e a consequonte dcsillusio — Soffrimentos que nos agaardam — Aiuda o Cuatir e a porda de um homcm — O rio Luatuta é comò o Cua- tir— Libatas miseraveis o a situa^&o dos nossos — A caravaua toma-se n*uui bando de salteadores —Visita de grupo «iugular — A mulher soba e a penuria de viveres — Considera^Dos e ingenuidade sera igual — A partida e a fuga de dois homens— O Longa e a fuga de um outro — Continuam o deserto e as zonas areosas — As mupan- das e a altitudo — Pouca ca9a e o rio M*palina — Um acampamento cannibalesco — Ofl caf adores de ratos — Subsiste a forae — Mupoi, o esposo infeliz — Curiosidade dos man-bunda — Os bois-cavallos e as suas vantagens em viagem — Effeitos de miragem e um animai corno o gni'i — O Culto e sua noticia Pag. 287 a 300
CAPITOLO XI
ACERCA DO NEGRO
O indigena africano — Similhan9a do caractercs, difflculdade em descriminar typos e fa- mllias de origem commura — Tra^os caracteristlcos do negro — Aspecto goral — lu- dicafSes scientiflcas sobre a conformatilo craneana — O europeu e o ethiope enoa- rado pelo lado esthetico— Os hamitas e a philanthropia — Uuiformidade de ser, sob o ponto do vista intellectual — PeitÌ90s — O Otjiruro, os SandU e o Zamhi—iiupvr- stÌ95es e o terror pelos mortos — Difficil comprchensio — liados cosmogonicos Indi- genas — O sentimento moral e as lendas — Difficuldades de estudo — A lingua e os
Indice dos capitulos xix
costumes — Tra^os approximativos de tribua distantes — Dàmaras, ban-cumbi, ba- cuatir, baycye, ban-diriro, ctc. — Eutcrramnuto dos dcfuntos e pratica da circumci- 8&0 — Ba-yoye, noniacuas o ba-coróca, suas habita^òos — Os ba-vico oh ba-visa e o« dicka — Tendcncia Dotnada — Os bn-cuanniba e a Caflina — A emi^a^fio e a iuflucn- cia do pantano — Ot» ma-tchona e os dilmaras — Trìbus quc originaram — Os ba-uhu- neca e os ban-cunibi excoptuados — Oh dainaras e ainda urna tcutativa para attuar com a sua provcuiencla — Opiui&o dfi Anderson — A arvorc progenitora — Couclu- «•So rajr. 311 a y^JI
CAPITULO XII
LODAVAKS E LAGOAS
Adeus Ciito — A carne e a inorosidade das marchas — 0« ba-ouito o os ma-eòa — Planu- ras lUDuotonas e phenomcnos de iniragem — Libatas lacuritres e tiinidez dos indifre- nas — O bijou nfrioano e um tuinbo inupinado — Artigos do alimentavAo e trajo dos ba-ouitu — A AiUwita téchee f — As planuras e a ca^a — O /topo — Un» homein perdido
— A cobra da an'ia e as tìorc8ta« do Conjiunbia — Mani-buuda, trajon. funoraes dos Kobas — Um homem abandonado — As monins^ites cerebro-racliidianas — O muchi/o de Cajiiiballc e os olephantes — A terra do Cubangu ao Zauibezc, e as diftìculdades do tranitito — Considera9r*es amargas — O cyelone de 18 de agosto — Modo de attra- hir as gavellas pelo som — Mucnc Quitiaba e os ba-iauma — Os guias e o alagameuto
— Critica posi^-So dos cbefes e da caravaua entre o arando das margeus do Cuando
— O rio ìk. ao Zambeze? — Com o apparecimento do milho esquecem-se as fadigas --0 rio Culi e o trilho commercial do Bié — A bacia do Congo e a do Zambeze — Considera^òes consequentes — O paiz é park-like Pag. 331 a 3.'»-l
CAPITULO XIII XO VALLE UE BARÓTZE
A Ina de agosto e os nossos receios — Idèa gcral sobrc a distribuÌ92o das chuvas na Africa tropical do sul — 0 doud-ring e o seu movimento para o meio dia — Ketardamento na marcha pelo oriente — O limite sul e as quatro esta^Scs — As marehas do Cuti e Muene Lionze — Os atrampamentost de Silva Porto — Os man-bunda e o elephante — Curiofiidades — O Ninda e urna sepultura — Aspecto pittoresco do valle — O 6eo e o .«cu aroma — A cava e uni obito — Perda do corapauheiro — CJnù, cabra e n'caca — O silencio da notte — Calungo-lungo e os luinas — Typo d'estes, e pouca importancia das entrevistas africanas — O paiz è um parquc; abimdancia dos animaes niello — Oh càos e seu prestimo na cava do gnu — O alagamento crescente da terra — Ausen- eia do tabaco e presenva da palmeira — Gula feiticeiro e adivinha^So incsperada — Oh ba-nbengo Iadrr»i>s — Muene Munda e os seus dotes physicos — Um capote de tn- testinos de elephante — A musica e um bailo de doze horas — Im]>ressào pro<luzida I>elas beldades da terra nos auctores d'estas linhas — A ca^a e a quadra da crca^fto — O acampamento pela notte — Multtplicam-se as lagoas — A expediv&o emflm at- tinge o Zambeze Pag. 355 a 381
XX Indice dos capitulos
CAPITTILO XIV
LIIJONTA
Torritoriog «traveHRados o outros a porcorror— O quo havia para alom do Zambozo — A noflsa curìoitidade o o que no ponsa dobrc a Africa — O que ó a final o interior dr contiuonte — Ah ])Iamira8 zaiubozeaiias — A vt-nlado «obro eììan — DiflinildadcH, voi> toK e toniporatura — K urna dViiMaa rogioes de quo falla 8tniil<>y e undc LiviiiKHtoiP ])on»e«'U — Coutra.itfì coinitoiiMador naii scc>iia8 de ca^a — f^piiiirirH de Ltviiit^stone e noHNOH juizos aiitecipados — Aboudancia de antilope» o o hojn» — Libonta — A vedc- ta^Ho ao tempo d'aquelle viajante e a^ora — Seu a»pecto — A terra eiii re<lor — .\u- eo1>eMHa e os habitadoreH do (Jeuji — 8euR trajoK e porte das niullien*» — Tuo iiiiiio- derado do rapè e o leu^o do8 luinao — Profundo abatiinento pliy^ico da freutr da expedi^So — I>ia 13 de Keteinbro — A» niOKeaH de Libonta — Cavada à» rola^; — Or- nitholotda do Zambexe — CoiiHiderafùeM perae* Mobn» o valle de liarótze e trillio* quo ali conduzeni Vat; JHu a 4«U
CAPITULO XV DE LUJONTA AO C'AHOMl'O
Profrrainma de viapem — A uossa satlHfafSo e o gusto quo dominava o» cnrre^adores — KaHÒOH dVHHfì facto — Melos de quercrimpedil-o — O Liambae e o Cambae — Oh ma- róze, habita^òcR e trajo — Decoi)9ÒCM o roubos curioHos — Iu<»pinada not'eia nobre o apparecimento da monca — Palancai, lèchcc* e um leSo — A JlypJttme tmfricrwa e o jHìpyrxut — Encoutro com a tzé-tzé — Duati quiMmema». um Felix jubata eum honpo — De novo na flore»ta, vanta(r<>ns do apparecimento d*o«ta — Os ataquei do leùo e ax uoMsa» ordens por tal motivo — Nos limites do OHtado da Luuda — <> lluata lanvo e o »eu prentiirio — A liberdade do nepro •* dnax concidera^òes a rexpeito d'elle — A maior da» victimafl) a mulhcr — AfaHtamento d*etita de todos oh ne^ocios <; recop^r»eM, e condivAo Hoeial do nelvaifem de hoje — Mantini(>utoH ù flirta e h.itii«fa«.'ào rtm^e- qu<*nto — O ty]»o ca-ruuda e o ca-róze — Infonnavòi^H nobre o Cabonipo e etfeilo das ]ialavraH de Muene Chilembi — 0^ mangoia e o re<"eio da niOHca- Pn-tensao inespe- rada de um bando de saltcadores — Um dilemma para ponderar — Teutativa de fupa de um earrega«lor e o rio Cabom]»o Pag. 403 a 421
CAPITULO XVI FERA NATURA
ronsidera^òen triste» — O deserto e o silencio — O Cabompo e a nolte — O elephante e o arvorodo — Limito ao terreno pìHcìoho — Primeiras rochas — A floreala e os animaeH HilvoHtres — Perda de um companbeiro — Homem e cào morto« — Dois elepbanten — (ì Homno da girafa o obito de outro liomem — Fujra de um carregador — Morte de maiM um cào — Individuo penlido no bowjue — <> rhiuo<*erontc curioso e os crocodi- loH do Cabompo — Os destro^os do leSo — Vam-Bow — O leUo euma noiledopolein» — Beifos furados e seios pcndcutes — A primeira tempestadc Pag. 423 a 448
PREFACIO
Desde a publica^ao do nosso trabalho denominado De Benguella ds terras de lacca, em 1881, nao tivemos a satisfa9ao de ver livros, nera mappas ou outros im- pressos de ordera qualquer, que multo adiantassem OS conhecimentos africanos do mundo geographico da Europa.
Omittiremos, é claro, os esfor^os relativos à abertura do Congo, nos quaes alias se coraprehendem labores interessantes, mas que, pelo seu caracter essencial- mente pratico, executados n'uraa regiao era grande parte conhecida, nao devera aqui encorporar-se.
0 livro hoje subraettido ao publico encerra a histo- ria de urna peregrina^ao, modelada passo a passo nos apontaraentos do respectivo diario; e embora nao tenha a jactancia de descrever cousas fora do vulgar, nem por isso deixa de longe em longe transluzir a Intima
xxn Prefaxdo
convic^ao de que algum merecimento teve quanto em Africa fizemos.
Os resultados praticos que duella possam advir nao compete a nós aprecial-os, pois em geral o liomem que considera e mais tarde attenta na propria obra, é quem d'ella menos se satisfaz; nao nos e aprazivel, poréu), suppor que o facto de percorrermos com cuidado 4:500 millias de terreno sobre as zonas que mais nos pare- ciam proprias se nao necessarias de visita, deixe de li- sonjear o espirito dos africanistas, ou escape desaper- cebido, embora pouco luminoso, nas ignotas e escuras manchas da Africa selvagem.
E mesmo multo provavel que a parte do nosso tra- ballio do Zambeze para o oriente apresente alguma cousa de importante, por ser feito em uni novo canii- nho (o mais curto e mellior talvez), por onde a civili- sa9ao e o commercio da costa occidental podem facil- mente attingir a regiào dos lagos.
0 aspecto arido e inliospito do grande continente, o barbarismo dos seus liabitantes, os liorrores da vida selvagem, que outr'ora emmolduravam as idéas sobre aquella terra estranila, constituem notas que come^am a apagar-se no melo do concerto das acclama9oes vo- tadas a quem se empenha na difficil empreza de Ihe desvendar os mysterios, sao factos que impressionam ao presente, um pouco à similhan^a de quando, aj)Oz pliantastico sonilo, se passa a positiva realidade.
Hoje jà ninguem ve na Africa senao um dos vastos quarteiroes do mundo, tao proprio a vida comò qual-
Prefado xxiii
quer dos outros conhecidos, tao digno de desvelo corno o mais rico dos supracitados, ampio campo de afan commercial, cuja primeira base de segura civilisa^ao cumpre ou antes é dever do europea explorar, nao so no interesse dos seus habitadores, comò em proveito do trafego communi; emfim, de esquecido e occulto que foi* tomar-se-lia dentro em pouco opulento, cubi- 9avel e assàs visitado, transformando-se n'um grande centro de consumo para todo o excesso da nossa pro- duc9ao.
Longe vae a epoclia dos terrores que esse Sahara originou, comò barreira intransponivel à curiosidade, em que a Abyssinia era por assim dizer um sonho, Timbuctu um mysterio, as nascentes do Nilo um pesa- delo.
De vagar se proseguiu, e verdade; nao foi porém nossa a culpa, ou porque o homem, no ìrresistivel im- peto de tudo subordinar no pianeta terrestre ao domi- nio do seu querer, esquecesse esse immenso continente que proximo Ihe ficava; mas sim proveiu do subito ap- parecimento do outro campo de explora9ao — a Ame- rica, clieio de riquezas e em superiores termos de uti- lisar-se, mais consentanea a ser tratada pelos meios de que dispunhamos, a navega9ao, ligando-se à Europa finalmente pela melhor das estradas — o mar!
A America deve contar-se comò um dos factores que muito influiram para a demora na civilisa^ào do conti- nente negro, por absorver ahi durante seculos todos OS e8for90s da Europa, e, estendendo-se de um ao
XXIV Prefacio
outro polo, cingir nos dois hemispherios zonas varìa- veis, entre as quaes se contavam algumas de tropical caracter, onde so o preto podia trabalhar com o pre- ciso animo.
E o branco, procurando introduzil-o ahi, teve de o buscar e perseguir em Africa, impiantando com egois- mo n'aquella terra infeliz o maior dos flagellosj e pon- do-lhe o mais serio obstaculo ao humano progresso — a escravatura.
Agora, que da America jà nao trata, arrependido pe- nitenceia-se contricto, posto que interessado, e d'esse interesse despontou a aurora da liberdade em Africa e vae breve raiar com todo o esplendor o sol da sua felicidade.
Continue pois a boa vontade no trabalho, saiba o capital aproveitar-se do nmito jà feito, eis os nossos votos, convencidos de que mais duas duzias de annos bastarao para transformar radicalmente as cousas no extenso continente.
Concluidas estas considera^oes, benevolo leitor, res- ta-nos a tarefa pouco facil, embora menos escabrosa que uma travessia, de pegar-vos pela mao, e condu- zir-vos passo a passo n'essa tortuosa vereda por nós trilhada, desde Angola até Mo^ambique; de vos guiar por meio de serras e planuras, pantanos e desertos; de patentòar-vos emfim todos os soflFrimentos, fadi- gas, fomes, chuvas, angustias e mortes que nos ser- viram de lugubre cortejo desde o mar Atlantico ate ao Indico !
Prefacio xxvii
Moret, 0 testeiiiunho de milita sympatliia, bem corno às sociedades e associacjoes estrangeiras, e a taiitos cavalheiros illustres que nos sigiiificaram, pela sua li- sonjeira apreciacjao, o quanto valiam os servicjos que acabavamos de prestar, corno sao o nosso particular ainigo 0 ex.*"® sr. Francisco Joaquim da Costa e Silva, director geral do ultramar, e ainda aos cavalheiros do Cabo da Boa Esperan^a e ao prime minister Upin- gton, d'aqui enviàmos a nimia expressao do sentimento que nos domina.
Muito particularmente reservàmos urna especial re- cordacjao as terras da nossa naturalidade, pelas subidas demonstra^oes com que nos lionraram, bem comò aos nossos compatriotas no Brazil, e em especial àquelles que nos distinguiram com um precioso volume conten- do as suas assighaturas, e outros com pennas de oiro, enviàmos a nimia expressao do nosso grato sentir.
As Camaras Municipaes do paiz e das colonias, aos Clubs que nos honraram com especiaes sauda^oes e diplomas, à imprensa periodica que tao delicada e li- sonjeiramente apreciou os nossos trabalhos, e a quan- tos, emfim, possam involuntariamente ser olvidados, um sincero agradecimento.
E por ultimo cabe-nos aqui vincular o nosso reco- nhecimento à administra^ao geral da Imprensa Nacio- nal, aos srs. revisores, compositores e estampadores, pelo interesse e decidido apoio que nos dispensaram, e sem o qual este livro tarde appareceria a publico.
Lisboa, 30 de setembro de 1886.
ESBOgO HISTORICO
E Julgareii qnal é mail exceliente, Se ser do mando rei, le de tal ^nto.
CamÒU, LtuiadoMf canto i.
L^Afrlque Intérleurc a été découverte et parcotu rue par les portugaii au xvi* siècle. . . Lei portu- gala de cetto epoque connaissaicnt mieux Tlntérieur de ce continent, la région dea lacs, etc., qu*on ne la connaìt ai^ourd^hui. . . Liviugstone a donc retrouvé seulement co quo les ancieui portugai« avaient de* couvert, et encore il s'est servi de renseignements portugais sans avoir la loyauté de le dire.
L*abb£ Durakd, de la Société de Géographle de Paris, lettre du 16 septembre 1880.
As tentativas feitas pelos portnguezes para devas- sar a Africa e transpor aquelle continente, ligando a provincia de Angola à de Mo^ambiqiie, sao de bem velha data.
Se fóramos escavar no pò das bibliothecas*os livros e docTimentos que de similhante assumpto tratam, e folheando antigas chronicas transcrevessemos os capi- tulos que Ihes dizem respeito, veriamos que volumes eram necessarios para desenrolar similhante questao, que, por vezes estreitamente ligada às proezas pelos nossos antecessores praticadas no oriente, nos levaria à narrativa das nossas brilhantes tradicjoes, à exposi- 9S0 d'essa epopèa sem igual, de que deixàmos o vin- culo em gloriosos padrSes por todo o globo.
2 De Amjola d coiìfra-cosfa
Como, porem, nao é iiosso intuito dcmonstrar mais uma vez, o quo de resto toda a hiimanidade conlieoe, ser Portuj^al uma mi^ao que se ufiina de com o seu genio e com o bracco dos seus conquistadores ter tra- (;ado as mais brilliantes paginas dos annaes da civili- sac^ao, e se orgullia de ter primeiro que nenhum outro povo plantado a cruz e a bandeira nos mais remotos confins da terra, deixaremos em socego as vellias chro- nicas, para evitar digressoes, nao abandonando no eni- tanto a instruc^ào historica, j)ela qual vamos passar com a rapidez possi vel.
No comedo do xv seculo P()rtugal, após as gran- des convulsoes peninsulares, enceta com a tomada de Ceuta a grande tarefa de devassar o Negro Continen- te. E ali que D. llenrique, o infante sabio e principal lieroe d'esse assombroso feito de annas, em contacto com o torrao africano, e ouvindo as maravilhosas narrativas que Edrisi, naturai d'essa cliave do estrei- to, conta do interior, mais uma vez concerta o plano,, jd formulado, de procurar por-se em relac^oes com o mvsterioso Preste Joao.
Volve*à patria, e apenas descansado de tanìanlia fadiga, come^*a os seus empreliendimentos maritimos n'esse sentido, ao passo que, comò nos conta Azura- ra, se empenlia tambem em obter informa^'oes do in- terior do continente; d'esse continente que fascinerà o mundo romano e o medieval com as miragens de riquezas prodigiosas; d'esse paiz do sol, do oiro, do marfim e dos escravos, cujo amngo era um mysterio!
Assim, à mec^ida que vemos esse manto caliginoso, que a supersti^ao e a ignorancia haviam lancjado sobre
Eshoco Mstoinco 3
>
a vastidao do mar irrequieto, ir sendo rasgado pelo argenteo e luminoso sulco das caravélas, vemos tam- bem de par, aventurosos enviados do infante lan^a- rem-se na incerteza dos sertoes, para arrancarem ao desconhecido os segredos que a natureza parece tao avidamente occultar ahi,
Haviam-se apenas descoberto os Acjores e a Ma- deira, estava ainda presente no espirito de todos a lembrancja da passagem do terrivel Bojador, quando em 1445 Portugal laudava no interior do continente o primeiro explorador europeu, o primeiro homem que, abalado da velila Europa, punha ollios n'essa terra mvsteriosa.
Joao Femandes, companlieiro de Antao Goncjalves, que capitaneava uma caravéla em viagem para o rio do Oiro, e que estiverà captivo em Marrocos, conhe- cendo por isso a lingua arabe, ofFerece inteniar-se com OS azenegues, e sete mezes divaga pelo interior, penetrando até Tagazza, no paiz dos tuaregs. A sua relacjao, anterior um seculo a Leao Africano, dà-nos, Hcerca das caravanas, informacjoes em tudo conformes com as obtidas por este geograplio arabe, bem comò em acerto com as de Clapperton, Marmol, Jackson, Denham e os itinerarips do barao Walckenaer, Bur- ckardt, Oukney e Rennell.
No dizer do visconde de Santarem, toma-se sobre- tudo notavel a analogia que offerecem as mais sin- gelas particularidades de sua narrativa com aquellas mais tarde escriptas pelo infeliz Mungo Park.
Dois annos depois volve ainda Joao Femandes à provincia de Sus, a fim de vigiar em Messa as cara-
6 De Angola d coììtra^-costa
mento com os mundateque ou anzicos, quo nao sao outros senao os ba-tcque ou povos de Macoco, recom- mendando depois insistentemente aos portuguezes que passem para alem do tal lago.
O venturoso rei D. Manuel completa a obra ini- ciada pela escola de Sagres e continuada pelo Principe Perfetto. O dominio portuguez estende-se ao extremo oriente, todos os principes da Asia nos sao tributarios; e, desde Suez e Ormuz até Ceylào e Malaca, desde o Japao e China até às Molucas, tudo os portuguezes commandam, todos os mares elles cruzam.
0 continente africano passa entaó a occupar uma posÌ9ao secundaria no grande plano de dominar o glo- bo, nao deixando, por<5m, de merecer ainda cuidado, pois D. Manuel nao persiste agora so em relacionar- se com o Preste Joao, e intenta de novo cruzar esse paiz, que parece obstinar-se em negar o ingresso à expànsao europea.
Assim, em 1508 Affonso de Albuquerque manda por em terra no Porto Feliz, perto do cabo Guardafui, a Fernao Gonies Sardo, Joao Sanches e Cid Mohamed de Tunis com duas cartas para o Preste Joao. 0 mouro liavia afiancjado que a sua tornacja a Portugal seria por Timbuctu, e d'ali a Arguim pelo rio de (^s,n2i^2i, (Senegal), caminho que elle jà conhecia.
Em 1521, diz Damiao de Goes, envia D. Manuel a Gregorio de Quadra, homem experimentado e que percorrerà toda a Arabia, ao rio do Congo, com ordem expressa de procurar o caminlio d'ali até à Abyssinia.
A morte subita do monarcha, que teve logar n'esse mesmo anno, tolheu a empreza de ir por diante. Aclia-
Eshoqo historico 5
D. Joao II pretendia relacionar-se a todo o transe coni o Preste Joao, e para isso Ihe enviava carta» por estes cmissarios, ein quo Ihc significava o grande desejo que tinha de saber, se elle possnia cidades no Manicongo (costa Occidental), porque elle rei de Portugal ahi tra- zia suas caravelas.
Ao Egypto se dirigem seiis embaixadores, e depois de navegarem pelo mar Roxo até ao Aden, AfFonso de Paiva corta a Suaquem, na costa da Abyssinia, e d'ahi volve ao Cairo, onde fallece; emquanto que Pero da Covilha, depois de correr o golfo Persico e visitar a costa do Malabar, vem a Sofala, no oriente da Africa, sobe ao Cairo, onde recebe a noticia do fallecimento do seu companheiro, e recebendo tambem ordens do rei de Portugal, para se internar na Africa em busca do Preste Joao, dirige-se à Abyssinia. Ahi succumbiu o ousado viajante, pois jamais o imperador d'aquellc paiz Ihe consentiu regressasse à patria; nào deixàndo até a sua moi-te de incutir coin suas informaijoes novo fervor nos animos dos emprehendedores portuguezes, que ao tempo jà sulcavam as aguas do Indico.
Ao passo que pelo oriente isto succedia, Ruy de Sousa, no occidente, desembarcava em 1491 na bahia de Sonho (foz do Zaire), e, impulsado ainda pelas idéas e ordens de seu monarcha, procura intemar-se na Africa equatorial em cata do Preste Joao. Ao lado do rei do Congo, alliado dos portuguezes, investe com o sertao, e coadjuvando-o n'uma campanha contra certas tribus revoltosas do alto Zaire, que habitavam as ilhas e as margens do lago de onde sàe o grande rio (Stan- ley-Pool, sem duvida), Euy de Sousa toma conheci-
6 De Angola d coiitrcKosta
mento com os mundateque ou auzicos, quo nao sao outros senao os ba-teqiie ou povos de Macoco, recom- mendando depois insistentemente aos portuguezes qua passem para aleni do tal lago.
0 venturoso rei D. Manuel completa a obra ini- ciada pela escola de Sagres e continuada pelo Principe Perfeito. O dominio portuguez estende-se ao extremo oriente, todos os principes da Asia nos sao tributarios; e, desde Suez e Ornniz até Ceylao e Malaca, desde o Japao e China até às Molucas, tudo os portuguezes commandam, todos os mares elles cruzam.
0 continente africano passa entàó a occupar urna posÌ9ao secundaria no grande plano de dominar o glo- bo, nao deixando, porém, de merecer ainda cuidado, pois D. Manuel nao persiste agora so em relacionar- se com o Preste Joao, e intenta de novo cruzar esse paiz, que parece obstinar-se em negar o ingresso à expànsao europea.
Assim, em 1508 Affonso de Albuquerque manda por em terra no Porto Feliz, perto do cabo Guardafui, a Fernao Gonies Sardo, Joao Sanclies e Cid Mohamed de Tunis com duas cartas para o Preste Joao. 0 mouro havia afiancjado que a sua tornacja a Portugal seria por Timbuctu, e d'ali a Arguim pelo rio de ^anaga (Senegal), caminlio que elle jà conhecia.
Em 1521, diz Damiao de Goes, en\na D. Manuel a Gregorio de Quadra, homem experimentado e que percorrerà toda a Arabia, ao rio do Congo, com ordem expressa de procurar o caminho d'ali até à Abyssinia.
A morte subita do monarclia, que teve logar n'esse mesmo anno, tolheu a empreza de ir por diante. Aclia-
Esboqo histoinco 7
vam-se conitudo no Congo dois homens emprehende- dores, que èm longa pratica do sertao buscavam o projecto de percorrer o curso siiperior do rio, e esses homens eram Balthazar de Castro e Manuel Pacheco, aos quaes o rei defunto liavia em 1520 enviado ins- truccjoes para o completo descobrimento do reino de Angola. Balthazar permaneceu seis annos no interior, afian9ando, em carta datada de 1526, a D. Joao, ser navegavel o curso superior do rio; Manuel Pa^heco escrevia em 1536, que o rei do Congo tinha jà la- vrada madeira — acima da quebrada que o rio tem (Yelalla?) — para dois bergantins, onde elle esperava ir fazer o descobrimento do lago.
A 15 de mar^o de 1546, D. Joao HI escrevia aos portuguezes que residiam na Abyssinia, para tentarem descobrir e explorar o caminho entre aquelle paiz e o Congo, ordenando ào governador da India que Ihes mandasse instrumentos e Ihes desse instruc^oes àcerca do modo de determinar os diversos pontos do trajecto e OS trabalhos a fazer.
Em 1560 o padre Gonzalo da Silveira percorre a Mocaranga, indo morrer no corac^ao da Africa austral, na Limda do Cazembe, ao oriente do Luapula, logar onde, dois secidos mais tarde, outro martyr da explor- racjao africana, o dr. Lacerda, havia tambem de en- contrar a morte.
Logo em 1565 D. Joao Bemiudcs, patriarcha de Alexandria e Ethiopia, publica a rela9ao da embaixada ao Preste Joao, divulgando na Europa curiosas infor- ma^oes do que vira n'aquelle paiz, onde residiu mais de quinze annos.
8 De Aìigola d contra-costa
Cinco aimos depois Francisco Barreto, em procura das minas do oiro do Monomotapa, penetra até dez dias de jomada acima de Sena. Vasco Femandes Ho- mem, que llie succede, entra por Sofala e vae at<5 aleni da Chiconga. A estas expedÌ9oes pela costa orientai podemos ainda juntar, no firn d'aquelle seculo, multi- plicadas viagens feitas pelos portuguezes de Angola, no intuito de devassar os adustos sertoes do Negro Continente.
E assim que n'uma relac^ao coeva, ultimamente pu- blicada por Luciano Cordeiro, se allude às frequentes communica9oes dos portuguezes com os reinos do in- terior, no alto Zaire, fallando-se a miudo no paiz do Macoco *, Ibare e Bo-zanga, ainda nao ha muito visi- tados por Stanley.
Domingos Abreu de Brito tracjou, em 1592, um plano definitivo do seguro estabelecimcnto de corres- pondencia entre as duas costas, apontando a forma- <jao de urna linha estrategica de postos militares da banda do occidente. •
Findava o seculo xvi. A situacjao de Portugal cm face do imperio luso-asiatico modificàra-se profunda- mente, e, sem embargo, a nossa vitalidade fa sempre accentuando-se em labores differentes, entre os quaes se contam muitos no Negro Continente, e em que avul- tam tentativas para a sua travessia. A obra do infante
1 0 Macoco ou Micoco, ó sem duvida o mesmo de que ha poiico nos fallou De Brazza. Ibare nSo atinàmos muito bein com o que possa ser. Stanley chamou o Cuaugo, Ibare, e em quiniamczi este termo significa Bumptuoso, grande. Vide Memorias do ultramar e A questào do Zaire, de Luciano Cordeiro.
Esboqo historico 9
D. Henrique, ainda hoje por concluir, continuava a merecer-lhe as mesmas sympathias.
Em 1606 trata-se de novo ao oeste de urna viagem de travessia.
Era entao govenaador de Angola D. Manuel Pereira Forjaz, que, ordenando a reuniao de todos os elemen- tos para urna empreza de tal magnitude, encarregou de seu commando a Baltliazar Rebello de Aragao, re- commendando-llie espccialmente a descobei-ta de um caminlio para a contra-costa, o que elle sem duvida teria feito, se um ataque dirigido à fortaleza de Cam- bambe o nao liouvesse obrigado a retroceder*.
Penetrou elle multo no interior, segundo presumi- mos, pois se refere a um grande lago, do qual até indica o logar. Eis o que diz em sua rela^ao: «As provincias que encontrei no descobrimento que fazia para Monomotapa, por mandado de D, Manuel Pe- reira, téem um rei que chamam Cliicova; nào clie- guei là por se levantar o rei de Angola contra a for- taleza de Cambambe, a qual vim soccorrer, estando 80 leguas pela terra dentro e a 140 do mar». E mais adiante diz «este lago està em a altura de 16^», o que leva a crer fosse o Nyassa, devendo tambem suppor-se que as sobreditas 80 leguas se contavam a partir da fronteira de Angola.
Dois annos depois Estevao de Atliaide dirigia-se da costa orientai às minas de Monomotapa e Cliicova, ao passo que em 1613 o padre Fernandes vinha da Abyssinia a Melinde, por terra.
1 Vide Mtmorias do ultrainar, de Luciano Cordeìro.
10 De Angola d coìitra-costa
Nao decorrem cinco anno» qiie nao encoutremo8 nova» explora96es, virido o padre Fedro Paes, dois se- Culos antes de Briice, Burton, Speke e Grant, encon- trar na Ethiopia e no reino de Go-Gojan, territorio de Sacaliata, paiz dos agaus, uin don tributarios do Nilo, o rio Abai ou Nilo Azul.
Em 1624 sobe o padre Jerouymo Lobo o Jubo, a Abyssinia, seguindo-se logo depoi» o padre Manuel de Almeida, que, em proseguimento da obra d'aquelle, percorre grande parte d'este paiz. A relacjao de sua viagem, publicada pelo padre Balthazar Telles, sob o titulo de Histona geral da Ethiopia a Alta, ou Preste Joào, esclarece em muito a geographia e ethnogra- pliia d'aquella mysteriosa regiào, que durante tanto» seculos fora a esphinge da Europa curiosa; regiào que, quasi cem annos antes, havia sido percorrida por I). Christovào da Gama, com quatrocentos portugue- zes em expedic^ao militar, de que Miguel de Casta- nlioso nos deixou a narrativa.
Por este tempo Antonio de Oliveira Cadornega, na costa Occidental, percorre durante muitos annos a pro- vincia de Angola, trazendo noticias e infonnacjoes so- bre o Macoco e os anzicos.
Segiie-se em 1648 Salvador Correia de Sa lienevi- des, que, depois de restaurar Loanda do poder jiollan- dez, se dispoe a ir submetter o reino de Paté na Ethio- pia orientai, abrindo caminho entre ambas as costas.
Manuel Godinho, em 1663, publica em Lisboa a rela9ao da viagem que fizera da India a Portugal por terra e mar, assignalando um novo e breve caminho de Angola à contra-costa.
Esboqo historico 11
Ou9àmo8 o que em breves palavras elle diz d'està questao:
« 0 caminho de Angola por terra à India nao é ain- da descoberto, mas nao deixa de ser sabido, e sera facil em sendo cursado ; * porque de Angola à lagoa Zachaf *, que fica no sertao da Ethiopia e tem de largo 15 legiias, sem at<5 agora se Ihe saber o comprimento, sao menos de 250 leguas. Està lagoa poem os cosmo- graplios em 15^.50', e segimdo um mappa que eu vi feito por um portiiguez, que andou muitos annos pelos reinos de Monomotapa, Manica, Butua e outros d'aquella cafraria, fica està lagoa nao muito longe de Zembaué, quer dizer, córte do Mesura ou Marabià (Maravi?).
« Sàe d'ella o rio Aruvi, que por cima do nosso forte de Tete se mette no rio Zambeze.
«E tambem o rio Cliire, que, cortando por muitas terras, e ultimamente pelas do Eondo, se vae ajuntar com o rio de Cuama, para baixo de Sena.
«Isto supposto, digo agora: quem pretender fazer este caminho de Angola a Mo9ambique e d'aqui à India, atravessando o sertao da cafraria, deve deman- dar a sobredita lagoa Zachaf, e, em a achando, descer pelos rios aos nossos fortes de Tete e Sena; d'estes d barra de Quelimane, de Quelimane se vae por terra e mar a Mo^ambique, de Mo^ambique em um mez a Goa. » '
1 Zachaf. Aqui é de suppor haja confusilo do escripta ou omiss^io de letra, Zachafi ou Zachayi é o que Godinho quererìa dizcr, se nào Zachevi« que seria a lagoa dos a-chevi ou chevas, corno Ihe chama Gainitto, e que nos antigos mappas figura tambem com o nome de lago Maravi.
12 De Angola d contrd-costa
Està lagoa, de que falla Godinlio, e de que o8 por- tuguezes ouviam fallar em pontos diversos, pódc muito bein ser a faclia lacustre que sinuosamente se estende dc'norte-sul, compreliendendo Chirua, Nyassa, Hicua e Tanganika, que elles por coiifusao reuniam n'uma so. Parece està talvez a melhor maneìra de interpretar o texto de Manuel Godinlio, e se era n'essa idèa que escrevia, este livro mostrarà ao diante, que a viagem que levàmos a cabo 6 approximadamente aquella de que fallava o nosso compatriota lia duzentos e vinte aniios, e està coincidencia nos escusarà, de certo modo tambem, de liavermos sobre elle sido um pouco ex- tensos.
Em 1667 Manuel Barreto diz, fallando dos reinos de Manica, Maungo e Butica: «Este conquistou Sise- nando Dias Bayao (o Mossuampaca), capitao mór dos rìos, o mesmo que percorreu a Botonga, Mocaranga e Butua; para por elle communicar està conquista com a de Angola, que Ihe fica nas costas, o que sera grande utilidade de ambas as conquistas; mas vol- tando a Sena a descansar e conduzir soccorros, o ma- taraìn seus emulos com pedonila, invejosos do seu grande nome e poder, e da lionra que novamente ga- nliava com està conquista. Por sua morte se recolheu a gente que deixou nos chuamhos da Butica, e ficou aquelle reino levantado; mas sera facil a sua con- quista depois de conquistada Mocaranga e Manica».
Passados annos, em 1678, o governador de An- gola, Ayres de Saldanha, manda por sua vez mna expedi^ao para tentar a travessia, saindo de Massan- gano capitaneada por Jose da Rocha.
Eshoqo historico 13
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No seculo passado ainda, em 1795, vae a expedi- 9ao commercial de Assump9ào e Mello de Benguella pelo Bié ao Lovale, e no amao seguinte Mamiel Gae- tano Pereira tenta passar à contra-costa.
Fecha o xviii seculo com a mallograda expedicjao do dr. Lacerda, homem de sciencia e valor, de que tanto havia a esperar, e que saindo de Tete para Angola, foi infelizmente morrer no Cazembe em 1798.
0 padre Joao Finto, companheiro do dr. Lacerda e que mais tarde reconduziu a expedi^ao a Tete, fez ainda altas tentativas para atravessar do Cazembe para a nossa provincia de oeste.
Eis o que a proposito diz, na sua entrevista com o monarcha da terra :<(... proj^uz e fallei sobre a passa- gem de Angola e abertura de seu caminlio. Logo acu- diu o rei com difficuldades de guerras e fomes», etc.
Frustradas as tentativas do padre Joao Finto, com a decidida opposicjao do Cazembe e sua volta a Tete, so em 1802 temos noticia de se haverem renovado os esforcjos dos portuguezes durante o governo, ao que julgàmos, de Antonio Saldanha da Gama, no intuito de conseguir a resolu^ao do problema ha tanto ambi- cionado.
E d'està vez foram elles coroados por completo exito, se bem que os liomens em similliante servilo emprega- dos, nao eram de molde a poder garantir-lhe o mais singelo valor scientifico.
Foi de nove annos essa viagem, certamente clieia das mais notaveis peripecias, peripecias que ficaram no escuro pela falta de instruc^ao dos protogonistas, deixando suspeitar soffrimentos que deviam ter sido
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extraordinarioa, a julgar pelo tempo empregado e dis- tancia percorrida, e em que em nSo menor numero deviam ser as no^ocs de interesse, que a sciencia a final nao póde aproveitar.
Honorato, tenente coronel estabelecido em Cassan- ge, foi ao tempo o inieiador atrevido d'està empreza sympatliica.
Organisando uma expedi^ao de tudo supprida, poz à testa d'ella dois dos seus mais habeis pombeiros, Fe- dro Baptista e Amaro Jose, e soltando-os da margem esquerda do Cuango, ordenou-llies que procurassem a todo o transe cliegar a Tete.
Assim o fizeram estes, e liavendo abalado de Cas- sange em novembro de 1802, so cliegaram àquelle ponto em 2 de fé vereiro de 1 8 1 1 !
Tinham partido novos, ebegavam ali jà encanecidos.
Tres annos esteve a expedi^ao detida nas terras de Mussico, e quatro na d'esse grande descendente dos muropues que se chama Cazembe (Muata), exliaurindo certamente todos os seus recursos, e passando, Deus sabe, quantasj)ro\a96es estupendas!
Por isso a posteridade, registando este facto, presta agora um preito de liomenagem a esses bomens, que, embora obscuros, deram as mais evidentes provas de um arrojo e pertinacia sem iguaes, pela perseveranza com que le varani a cabo o trabalho que Ibes liavia sido commettido.
Cliega o anno de 1831, e Correla Monteiro e Anto- nio Pedroso Gamitto empreliendem e levam a cabo uma viagem do Zambeze à Lunda do Cazembe, e regressando a Tete, o ultimo publfca a sua rela^ao.
Eshoqo historico 15
Joaquim R. Gra9a, de 1843 a 1847, vae de Loanda às nascentes do Zambezc e visita o paiz da Lunda, governada por esse poderoso descendente dos muro- pues, que se denomina Muata-Ianvo.
Em 1852, cabe a Silva Porto*, negociante portu- guez estabelecido no Bié, o mesmo que encontrou
1 Acabando de nos chegar à mào um jomal quinzcnal que se pu- blica em Bruxellas, sob o titulo de Le mouvement géographigtte, n.« 18 de 6 de seterobro de 1885, cabe-nos aqui corrigir urna aprecia^So menos justa, feita pelo seu redactor em chefe mr. A. J. Wauters, na segunda pagina, quando irata das «Travesaias da Africa centrai» com relaQào a Silva Porto. Essa aprecia^ao, que sem duvida s. ex.* fez, por se ter in- formado no livro Misaionary TraveU in South Africa, escripto por esse celebre escossez, cujo odio e ma fé para com os portuguezes tanto o des- ntereceu aos olhos do publico em gcral, odio que mais de fei^^ estarìa n*um mercador de escravos do que em um homem revestido de tao es- p<;cial caracter e que tantos favorcs recebeu de nós, é de todo o ponto iucxacta.
Silva Porto nSo é un métia de la tribù des mamhari (Bié), embora Li- vingstone de proposito qucira insinuar isso na nota do seu livro a pag. 217, quando diz : «On asking the headman of the mambarì party, named Porto, wbether he had ever heard ...»
Silva Porto é um cidadao portuguez, naseido na cidade do Porto. Seus paes, tambcm portuguezes, educaram-no de modo, que se acha ha- bìlitado a redigir todos os seus diarios, com uma perfei^ào maior do que se imagina, e sobretudo apontaram-lhe bcm qual é o caminho da honra, porquc Silva Porto, com quem contrahimos rela^oes pessoaes, é um dos homens mais probos que temos encontrado. Ignoràmos se esteve para ser- vir jimto da cxpedi^ào de Serpa Pinto corno guia, mas sabemos nSo ser nm traficante, e que a sua mcrcadoria prìncipal nunca foi o homem !
As comitivas que envia por vezes ao sertào nSo Ihe pertencem exclusi- vamcnte ; vào a ella aggregados muitos seculos biénos, que fazem nego- cios por sua conta, scudo provavel que tambem fa^am trocas e compras tic gente, sem que Porto seja responsavel. A caravana que o illustre Cameron encontrou devia estar n*estas circumstancias.
Velho, com a sua longa barba branca, alquebrado pelas fadigas serta- nejas, nào merece este anello, no ultimo quartel da vida, o indigno epi- theto de mutato mercador .de escravos, Julgàmos assim, rendendo justÌ9a a quem a merece, ter sido agradaveis a mr. Wauters.
16 De Angola d controrcosta
Livingstone no Zambeze em Naliele, a lionra de fazer urna nova tentativa, para por em communica9ao as duas costa» africanas.
A testa de urna importante expedicjao commercial, por elle mesmo organisada, e que se dirigia para o Genji, seguiu o nosso ousado compatriota, e assen- tando OS sens arraiaes no alto Zambeze, destacou d'alii pombeiros e gente sua, a fim de levarem a Mo- (jambique dois officios do governo geral de Angola, pessoal que attingiu o Ibo.
Longa foi tambem essa jomada, onde sem duvida nao faltiu'am peripecias e contrariedades, a julgar pelo que mais de uma vez temos ouvido sobre ella, e que Silva Porto conta em seu roteiro, denominado Uma viagùm d contra-costa.
Os enviados, ao volver, liaviam feito tao exagerada noticia da extensao percorrida, que carteada ella por rumos e marclias, atirava a distancia tal, que punlia Mo^ambique a meio do Indico!
Mas, apesar d'isso, mìo parece que se houvessem elles afastado muito da verdade, sendo que tal distan- cia, por ser tomada approximadamente em linha se- guida, nao levava em conta as numerosissimas voltas por elles operadas.
De entao para cà o sertao e diariamente trilliado pelos portuguezes mercadores, em todos os sentidos, e Goni^alves, Joao Baptista*, etc, sao outros tantos que por ali divagam comò senliores.
1 Os individuos a que nos refcrimos s5o portuguezes e europeus; nao fallàinos dos afrieauos, corno Alves, que Camerou encontrou.
Eshocp historìco 17
Gon9alves explora por vezes o Mucusso; Baptista leva as suas explora9oes commerciaes sem igualavel arrojo até ao Cassongo Calombo, para as bandas de Nyangue, atravessando o Lobale, o Moio e Urua pela primeira vez em 1872; Silva Porto continua em suas viagens para o Genji e outros pontos.
Pelo oriente Montanha e Teixeira vao em 1855- 1856 a Zoutpansberg, atravessando os sertoes a leste do Limpopo; os negociantes do Zumbo percorrem as terras ao oriente do rio Aroangoa, aquellas da Manica (norte), Chuculumbes, etc, levando as suas excursoes até ao jà citado Genji.
Em 1877 é organisada uma nova expedicjao, que abaiando de Benguella se subdivide no Bié ; uma parte, sob o commando do major Serpa Pinto, dirige-se para o oriente e após attingir o curso do Zambeze, corta para a costa orientai, ao passo que a outra, sob a direc- 9ào dos auctores do presente livro, se diriga para o Quióco em busca das cabeceiras do Cuango, e, prolon- gando o curso d'este rio, vae até lacca, d'onde volve a Loanda.
Emfim, em 1884, frequentemente incitado pela So- ciedade de Geographia de Lisboa, ordena o governo de Sua Magestade uma outra expedi^ao, de que o pre- sente livro vos darà conta.
Eis resumidamente o que durante quatrocentos e quarenta annos fizeram os portuguezes, esse povo por vezes tao indelicadamente tratado por estranbos, para explorar e conseguir a liga^ao das duas costas Occi- dental e orientai da Africa, o que sempre se Ihes afi- gurou do maior interesse, a julgar pelos premios que
Esboqo histonco 19
et glorieuse campagne de Texploration interieure de TAfrique equatoriale, où seulement plusieurs siècles plus tard, les autres nations civilisées devaient venir nous faire concurrence ...
«Il convient de bien nous fìxer sur ce point. La de- couverte des régions interieures etait conduite et opé- rée en méme temps que celle du littoral, non point par une simple correlation (5vcntuelle du trafic, ni par des circonstances dues au liasard de Texploration maritime, mais bien par le désir persistant, manifeste et onéreux qui animait le gouvemement portugais, de connaltre le pays, de pénétrer dans ces régions et de les assujettir au commerce, à TEvangile, et à la domination nationale.» (Tm question du Zaire, Ih'oits du PortugaL)
H
0 CONGO
Le roi Jean II de Portugal, pen de tempB aprèi, ajoute à seti titrcB officiclB celui de seignenr de Gui- né : toutcB les cOtes jusqu'alorB reconnues par seB bu- jetB, ainsi que la mer Billonnée par Icurs caravelles, 8cmbU>reut désonnais former un Bcnl donialnc dout uno prise de poBseBsIon Bolennelle était conBtatée.
AvEZAC, Enry. de* gen» du mondt.
Por Bcn reino v&o ob portiiguczcs ao reino do Ma- ooco a negoclar, e aKHlm ao reino do Ybaro e ao de Bozanga, que é uui rei poderoso e se nSo póde Ir por outra parte . . .
O ARGIA MsNDsa Castxllo Brahco, Rda^So $olre o rtino do Congo, 1603, publicada por Lnciano Cordeiro.
Quatro annos liaviam decorrido desde que nós, vol- yendo da viagem a lacca, tiiiliamos deixado as afri- canas costas.
Tranquillos, despendiamos na Europa o nosso tem- po, nos ocios e distrac9oes que a civilisa9ao por toda a parte oiBEerece ao liomem que, arredado por annos, dd n'ella de subito ingresso, esquecidos e allieios um pouco ao movimento africanista, quando um inespe- rado facto nos collieu de surpreza.
Manuel Pinheiro Cliagas, o illustre ministro da ma- rinila e ultramar, que liavia apenas dias assumlra taes func9oes, resolvéra enviar uma expedÌ9ao à Africa, e
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collocando à sua frente os auctores d'este livro, orde- nàra-lhes que partissem sem perda de tempo, conce- dendo so o necessario para a organisa9ao do material.
Assìm, a 6 de Janeiro do anno do Senhor de 1884, pelas nove horas da manhà, acliavamo-nos a bordo do vapor S. Thomé, da empreza nacional de navega9ào, promptos a abaiar.
Tangéra a sineta pela segunda vez o signal de reti- rar, convidando a sair essa multìdao, que se agita sempre confusa no convez do barco que se apresta a partir, que gesticula, commenta e fica, uns porque os distrahe o que para elles e novidade, outros porque Ihes custa o separar-se dos entes queridos, e muitos porque nao sabem mesmo o que o signal significa, até que ao terceiro toque de todo se varreu a tolda.
Estremecéra o casco sob nossos pes, cessàra a vi- bra9ao incommoda que o vapor produz ao despedir- se pelo tubo da descarga, conio allivio d'esses pulmoes monstruosos que respiram atmospheras a setenta e ciuco libras ; redemoinliàra a agua na popa, partimos.
Adeus paixoes, e ficando-se de pò com a saudade, essa inseparavel companlieira das recorda9oes alBfe- ctuosas, cada qual se accommodou comò póde, em- quanto o navio, approximando-se da barra, arfava magestoso, encetando os primeiros galoes.
Era o aviso terrivel, para os que enjoam, do soflfri- mento que os esperava.
Come9am de empallidecer os rostos, aggravou-se a tristeza com um ar de vaga apprehensao, um acres- cimo de secre9ao salivar se adianta, para ceder logo o passo a torturas angustiosas e às primeiras contrac-
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^oes estomacaes, que iim sabor metallico e o cheiro dos oleados compromette fortemente, até alfim romper a formidavel symphonia em urro maior.
Quao invejavel nào sera n'esses momentos, para taes infelizes, a immunidade dos homens do mar? En- fada-os a nossa presen9a, porque nos observam des- peitados; no seu vago olhar, quando em nós se fita, transparecem por vezes lampejos à guisa de odio, e na contrac^ao dos labios transluz uma comò que paga em desprezo, ao nosso ar correntemente zombeteiro.
Sulcando donairoso pelo oeste dentro, avanza o na- vio emquanto o sol se occulta, e o cordao da terra pela popa come9a a esbater-se no azul dos céus.
Os ultimos claroes desappareceram, amortalhou-se a abobada no funereo manto da noite, entrou a bora das cogita^oes.
Junto à amurada, abysmado para o estendal dos céus, eil-o, o passageiro que nao enjóa, abra^ado à saudade em pieno cortejo de gratas e pungentes re- cordacjoes, perpassando-lhe pela mente, em kaleidos- copico movimento, quantas idéas estremecidas.
A esposa e os filliinbos, tudo que na terra, tem de caro, 0 lar domestico, esse ninho onde ainda na vespe- ra entràra distrabido, sem bem precisar quanto é duro o afastar-se d'elle, rodam constantes, apèrtando-o em angustioso scismar.
E nào Ihe póde fugir, nao póde desviar-se, agonia- se e a final apraz-lhe o sacrificio doloroso; ainda que o nao queira ha de pensar n'elle, percorrer-lhe todos os recantos, povoal-o dos seus habitadores estremecidos, ouvir-lhe as derradeiras palavras, receber-llie as ulti-
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mas caricias, até que o somno, amerciando-se d'elle, o prostre no acanhado esquife do camarote.
Entao socega.
Nao tencionànios, leitor, proseguir, porque nao é nosso firn o fazer-vos a monotona de8crip9ào de nma viagem a Angola, d'esses vinte e cinco dias aborreci- veis e invariaveis, de somnos altemados com refeicjoes, estas baralhadas com palestras banaes e consumindo charutos, vindo sempre a acliar o remate n'essa pseu- do-cogita^ao, que abysma sem pensar quem, recos- tado, contempla as vagas que se succedem, e procura aborrecido cerrar os ouvidos ao que Ihe nao interessa.
E depois uma viagem por mar e em paquete é de to- dos conbecida, igual pelas scenas, caracteristica pelo enfado, desde o momento de abaiar, symbolisada n'esse brouhaha de que ha pouco vos fallàmos, até ao avistar pela próa o cordao azulado da terra, que nos annuncia o teìminus do nosso percurso.
Tudo se passa da mesma fórma n'esse acanbado re- cinto que se cbama um navio e se repete diariamente, desde a baldea9ao, até às confidencias da noite, que um jantar, convenientemente regado, sempre provoca.
Passando pois pelos primeiros dias sem mencjao es- pecial, deixemos os pontos de escala comò a Madeira, essa graciosa ilha tantas vezes descripta, o archipe- lago de Cabo Verde, a Guiné e S. Tliomé em silencio, para nos approximarmos em linha directa do conti- nente.
A 30 de Janeiro de 1884, diz o nosso diario, come- (jàmos a navcgar desde o alvorecer nas aguas verde- barrentas que, espalhando-se em enorme sector para
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o noroeste, se escapam pela embocadura do Zaire; manchando na distancia de 3° a azulada superficie do oceano.
Aqui e alem, véem-se feixes de hervas a que ainda adhere o torrao, e por vezes, emergindo do meio com- pletas arvores, evidenceiam os esfor90s do colosso na lucta em abrir o seu caminho para o mar; esfor9os que se vao traduzindo no alargamento do leito na parte do curso junto às costas, e na forma9ao de um colossal delta a 15 milhas dà embocadura.
Pouco a pouco approximàmo-nos ; urna larga ondu- la^ao que o desnivelamento produz, impelle suave- mente o navio. Jà ao longe se distinguem no norte e no sul as barreiras avermelhadas caracteristicas da costa, que, baixando gradualmente, vem morrer em duas orlas verde-escuras de mangue que margina o rio, até que às onze horas se ve distinctamente a en- trada, à qual servem de marca pelo sul arvores da Monta Secca, e pelo norte os tectos brancos das fei- torias do Banana.
Rasgando a todo o vapor um sulco lamacento por meio d'essa corrente de 6 milhas, fundeàmos no porto interior, de 2 milhas de comprido a 0,5 de largo, a 50 metros de terra.
Confessàmos que, apenas chegados, nos impressio- nou o socego que ali reinava, e esperando vel-o alvo- rotado em virtude do recente apparecimento da ex- pedÌ9ao belga. Assodando Intemadonal (chamada) ou ainda Comité d'étvdes du haut Congo, que tudo julgàmos quer dizer a mesma cousa, nao volvemos da nossa surpreza em meio d'aquelle silencio.
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Era o mesmo Banana que conhecemos em 1872, quando fazìamos parte da esta9So naval de Angola, o que mostra ter o Zaire ainda multo maior importancia do que o barulho feito em redor dos traballios da asso- cia9ào.
Ao sulcar as aguas do formidavel rio, aqui apenas separadas do oceano por delgada linha de areia de 2,5 millias de comprido, onde se acham edificadas as feitorias de quasi todas as casas commerciaes da costa, e ao mirar suas margens de um lado e outro, per- correu-nos o corpo um estreme^ao, por lembrar as luctas e difficuldades que deviam ter passado os nossos antecessores que se extenuaram no trabaiho de sua explora9ao; por lembrar os nomes de Ruy de Sousa, de Gregorio de Quadra, de Francisco de Gouveia, o vencedor dos jaggas, de Duarte Lopes e outros!
Quantas decep9oes e quantos soffrimentos nào de- vem ter marcado ahi os passos d'esses liomens, que, impellidos pelo dever, no meio das contingencias de uma vida cheia de durezas, vida que ainda hoje, com todos OS recursos da moderna sciencia, é um valle de miseria! Basta relembrar os sympathicos vultos que derradeiramente ali encontraram um termo às suas aspira9oes; tentaram levar a civilisa9ào ao amago do continente, e a final de tamanho afan, apenas haviam ficado OS tra90s n'essa ingrata terra, verdadeira ma- drasta do branco, porque entao, comò hoje tambem està succedendo, se persuadiu o europeu que com a sua energica for9a podia desbravar e exercer dominio sobre selvas e negraria, sem reflectir que acima de tudo dictava a lei o clima, ao qual a constituÌ9ao phy-
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sica era dìfficil que resìstisse. — Hoje corno entao, està é a verdadé.
Com o vapor e o telegraplio, essas duas poderosa» alavancas de progresso, opdra actualmente o europeu maravilhas, onde, eiicontrando ponto de apoio, possa o seu bra^o manejal-as livremente; mas na Africa, onde a natureza llie poz o clima comò barreira aos esfor90s, e circumstancias de caracter meteorologico e tellurico, primeiro que cousa alguma Ihe quebraivi as for^as e minam a existencia; mal poderao aquelles dois elcmentos produzir aproveitamento, quando ma- nejados por sua mao. Na pretensao de se substituir ao indigena, enceta uma lucta em que o partido favora- vel é o da morte!
Mas apesar de tudo, embora assim considerasse- mos, assomava-nos ainda um lampejo de sympathia por esse curso de agua, por essas terras de monotono aspecto, porquc constituiam um dos titulos da nossa gloria, cuja propriedade muito apreciavamos, e no seu» progredir tinliamos o maior empenho ; era o rio a que pozeram o nome de Diogo Cam, comò liomenagem ilquelle que conseguiu levar as .explora9oes até Cabo Frio, e na volta, narrando taes descobertas, fez com que o monarcha juntasse aos seus titulos o de senhor da Guiné, facto este, acrescenta o nosso estimavel amigo e distincto africanista Luciano Cordeiro, no seu traballio intitulado A qaestào do Zaire, que posi- tivamente correspondia n'aquella epocha à affirma9ao intemacional de um direito de soberania e dominio, e, acrescentaremos nós, que nunca foi nos reinados sub- sequentes desmentido nem olvidado.
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Tudo mudàra em nossos dias. A fingida abertura ao commercio da embocadura d'este rio poderoso, corno llie chamàra Martim de Behaim*, la breve ser causa ou pretexto para que se espoliasse Portugal de sua posse, e se attribuisse a um monarcha europeu o estranho titulo de soberano de um estado livre, que so existe no papel, fazendo-se de necessidade o arrancal-o a este paiz, para ornar o nome do chefe de uma pe- quena na9ao, a fim de que os pavilhoes de todas as marinhas do globo podessem livremente tremular ali! E fingida, dizemol-o muito de proposito, porque de ha muito o mundo o sabe, ou para melhor dizer, o Zaire esteve sempre franco ao commercio de todos os pai- zes, nao podendo ser pois o facto da sua abertura ra- salo para que se espoliasse Portugal d'aquillo que em bom direito e rasao Ihe pertencia.
A tentativa da pesquiza e dependencia do seu curso superior tambem nao é argumento que se adduza a favor da citada espolia^ao, podendo accommodar-se as cousas satisfactoriamente para a Belgica, e no in- teresse de Portugal, tudo em fórma de justÌ9a, comò adiante lembraremos. E nao venham com o argumento estranho, jà empregado, de que, se é insalubre, pesti- lencial, inutil emfim, para que o queremos nós; ou ainda, se tanto affinco mostràmos na posse de um ter- ritorio sem provada vantagem, demonstra empenho de encobrir um interesse que nos nao convem eviden-
1 Martim de Behaim era cosmographo, dando-se comò certo que acom- panhou Diogo Cam em sua expedÌ9ao, sendo elle que fez a celebre es- pilerà de Nurembcrg; onde se achavam marcados os descobrimcntos dos portuguezes durante o seculo xv.
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ciar; porque nao so concebemos o possivel aproveita- mento do Zaire (alias seriamos cegos) pelo emprego systematico do indigena, mas comprehendemos igual- mente que a ninguem apraz ser espoliado, sirva ou nSo preste para alguma cousa.
Nào se julgarà de certo que aquelles que tanto se téem esfor9ado em desvendar o desconhecido cora- 9ao do Negro Continente possam achar-se movidos de sentimentos, que por serem em favor do seu paiz, pò- deriam ser contrarios ao interesse da abertura dos sertoes centraes ao commercio europeu ; um facto, pa- rece-nos, destroe o outro; e é simplesmente a causa da justÌ9a aquella que por isso nos leva a cortar està questao.
Nem se deverà pensar mesmo, comò de resto nos parece jà se fez, que quanto dissemos em nossas con- ferencias sobre a bacia do Congo, ao aprecial-a de- baixo do ponto de vista da salubridade, podia ter o menor viso a uma propaganda contra os trabalhos da Intemacional ali. Muito ao contrario, as palavras que de novo vamos aqui transcrever foram tra^adas sob o sentimento da obriga9ao que nos assiste de dizer a verdade, e no interesse do mesmo traballio da Inter- nacional, pois que, levando pelo seu caracter especial à pondera9ao, poderiam por vezes servir de freio a quaesquer impulsos menos meditados.
E nao somos so nós que sobre o clima do Congo te- mos fallado. 0 consul americano W. P. Tisdel, no seu relatorio de julho de 1885, diz:
ce A questao do clima é extremamente seria. Humido e enervante para brancos da Europa e America, resul-
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ta que sao iunumeras as doen^as. No primeiro anno de residencia toma-se aos incautos necessaria grande precau^ao, para nao sereni logo victimas da perniciosa influencia da malaria espalhada por todo o paiz. »
Eis o que nos acudiu dizer sobre o viver enropeu no Congo:
« Em Africa deve o europea residir em ponto alto . . . Viver no cordao litoral, na zona perto do mar, estabe- lecer-se no Còmpioir em meio d'essas planuras onde o ,bao-bab e o espìnlieiro vegetam e as aguas dos planai- tos se espraiam, formando por toda a parte pantanos ; procurar depressoes gigantescas corno a do Congo, para ahi aggremiar europeus, suppondo que basta fun- dar-llies estabelecimentos nas eminencias marginaes para os salvar da nefasta influencia climaterica, emi- nencias que, quando escalvadas e nuas, batidas pelos ventos, sao ainda as mais perigosas, comò póde servir de exemplo Vivi, e outras esta^oes do Congo inferior, 6 uni ludibrio, de que so sera victima a inexperiencia ou a pertinacia em nao querer ver e acceitar.
« Como quereis, senhores, phantasiar um futuro de prosperidades para o Congo, sonhar para as margeus dVsse rio Xinives e Biibvlonias, crear ahi centros de vida e movimento & europea, se so a simples inspecfào da C4vrta vos mostra que a 1:500 milhas da embocadu- ra^ approximadameiite, tem esse corso de agua 600 metros de cota?
«Ao fuiido d'essa gigamte depressao onde se accu- mulam toilas as aguas que derìvam do sul, desde o Quìoco ató Biibisa^ e pelo norte^ desde o Tanganika até aos afflueutes que entestam com o Ogowai, que
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collocada mesmo sob o equador està em permanente Cfnie pelo movimento altemado das cliuvas no norte e no sul, despejando para as zonas lateraes as aguas su- perabundantes, onde as calmas e um sol de fogo lu- ctam de esfor9o para aniquilar as organisa^oes, e tri- bus selvagens puUulam por toda a parte, nao espereis ver estabelecer-se com facilidade o europeu, nem tirar outros resultados senao a morte e o desolamento.
«De sobejo conheceis factos comprovativos, assàs <5 notorio que muitos jovens clieios de vida acabam nos ultimos tempos de dar com sua morte remate a esperan90sos futuros, para que adduzamos mais pro- vas sobre similhante assumpto.» Sem embargo mais duas palavras. «Nao julgàmos ter-nos, em todas estas considera9oes, afastado muito d'aquelles que desinte- ressadamente tratam da questao, ao dizer que nao so o clima, comò a selvageria dos naturaes, seria obsta- culo ao estabelecimento do europeu».
E ainda Tisdel que nol-o diz, ao fallar dos tra^os caracteristicos dos negros:
.<Com excep^ao das tribus de Loango e Cabin- da, as gentes do Congo, sao ferozes, selvagens e crucis. »
Asserto estc, que bcm evidencia a causa do retar- damento na assimila9ao d'aquellas tribus pelo esfor90 civilisador portuguez.
E proseguindo, ao fallar da facilidade com que um preto, mediocremente conhecedor de linguas, por ali transita, acrescenta:
«Este facto prova-me claramente, que um preto industrioso, com um mediocre conhecimenta da lin-
32 De Angola d contror-costa
gua fiote, sera mais capaz de exercer urna maior e melhor influencìa sobre estes povos, do que nunca sera capaz homem branco. »
Estamos d'aqui mesmo a ouvir a exclaina9ào im- mediata de muitos dos cavalheiros na questao inte- ressados :
— E precisamente pela rasao de serem selvagens e bravos que urge primeiro que tudo pensar em sub- mettel-os.
Muito verdade, sem duvida; nós porém, que escre- vemos n'este momento, nao so no interesse do indi- gena, mas muito particularmente no interesse dos capitaes europeus, perguntaremos àquelles que o des- embolsam:
— Tendo formosamente de ver-se na obra da Inter- nacional duas phases diflferentes de trabalho, e que devem fatalmente preceder-se uma à outra: o de submetter os liabitadores do Congo e civilisal-os — a que andam ligados vastos problemas sobre a via^ao — e o de explorar depois o commercio; estaes dispos- tos a arriscar os vossos capitaes na primeira para, depois de exhaustos, procederdes pacificamente à se- gunda?
Volvàmos à nossa questao, aquella de se liaver na conferencia de Bruxellas preparado a perda do Congo para Portugal *.
Sendo o direito a arma dos fracos, nao foi, nos pa- rece, de boa politica o afastar-se d'este axioma; e nao
1 Referimo-no8 sempre ao Congo inferior, é claro, aquellc que daria accesso por Noqui e S. Salvador para a bacia do Cuaugo.
0 Congo 33
é para admirar qiie estranhemos ser aquelles que se acham em taes circumstancias justamente os primeiros a fomecer armas, que mais tarde se podem voltar centra elles.
0 desejo de piantar definitivamente o estandarte da dvilisa^ào no solo da Africa centrai, pala\Tas da aren- ga real na conferencia de Bruxellas, se era o pensa- mento da Belgica, era tambem o anceio de ha muito em Portugal; que melhor exemplo, pois, podiamos dar ao mundo, que concertar-nos, e, fortes pela uniao, pro- ceder à grande obra?
Nào urgia seguramente'para isso isolar-se a Bel- gica primeiro, e procurando depois alheia protec9ao, ferir os interesses dos portuguezes que tao boa von- tade téem mostrado no empenlio de que tratàmos, e tao dispostos se acliavam a fazer quantas concessoes se Ihes pedissem.
E triste, e sentimos bem, que o subsequente pro- cedimento nos cohfunda por modo a tornal-o difficil de coadunar com as palavras que o illustre principe proferiu por occasiao da conferencia de Bruxellas em 1876, relativamente à obra que se dispunha a patro- cinar :
«H m'a paru que la Belgique, état centrai et neu- trej serait un terrain bien clioisi pour une semblable réunion, et c'est ce qui m'a enhardi à vous appeler tous, ici, cliez moi, dans la petite conférence que j'ai la grande satisfaction d'ouvrir aujourd'hui: Ai-je be- soin de dire qu'en vous conviant à Bruxelles, je n'ai pas été guide par des vues égoistes? Non, messieurs, si la Belgique est petite elle», etc.
34 De Angola d controncosta
Converteram-se em realidade, ha pouco consum- mada n'um congresso, onde se faziam representar algumas na9oes completamente estranhas à questao africana, as nossas suspeitas em 1884, quando escre- viamos o que se segue em nosso diario:
«E jà bastante fallàmos da questao do Congo; deixemos aqui agora registado e em remate o que pensàmos d'aquella que confiou aos delegados da com- missao reunida em Bruxellas, em junlio de 1877, a missao de fundar na sua bacia esta^oes scientificas e hospitaleiras.
«Civilisar a Africa cenfral, semente impulsado por um pouco vulgar affecto Immanitario, sómente mo- vido pelo originai desejo de fazer a felicidade do ne- gro, comò se deprehende das palavras de Stanley perante o club do seu nome, em Paris, que excla- mou: . . . o capital eTdregue d communidade dos bran- cos era para se applicar do modo mais conveniente ao bem estar dos natura£S da sua area; èra para se repartir corno beneficio . . . etc. ; e logo mais adiante acrescen- tou : 0 nosso intuito . . . é piantar e semear para o negro colher . • . etc. ; enviar, comò diziamos, para aqui lio- mens e milhoes, no elevado e santo intuito de llie preparar o frituro, ou mellior, dotal-os com um bem estar assàs problematico; sacrificando vidas e traba- llio a uma tao arrojada quanto imprudente empreza, que muitos entendidos consideram comò inexequivel, guiando-se so pelas vagas informa96es existentes; por em pratica um problema, por assim dizer, nao estu- dado e superior sem duvida à for^a e intelligencia de um so liomem, so porque esse homem afian^ava que
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com duas duzias de infelizes mancebos inexperientes o podia resolver; emfim dÌ8far9ar perante a Europa todo este proceder, com wai facies de decidida vontade e evangelica resigna^ao, mais propria de missionarios do que de homens afeitos ao manejo da espada; e por comò cupula d'este estranho edificio um homem, cuja bravura e temeridade nao podem contestar-se, mas a quem os consellios da prudencia devem por vezes quadrar de geito para soffrear as suas impetuosas paixoes, OS seus estranhos impulsos, para nos servir- mos de um termo por elle empregado, ao referir-se à sua propria pessoa e ao descrever de certa maneira o seu modo de ser e de obrar; em que debutou assim: Well you know! I am a very impulsive man; parece-nos, acima de tudo, urna suspeitosa mystifica9ao, encobrin- do pretensao ambiciosa!»
Isto escreviamos nós quando ainda se nao fallava na conferencia de Berlim, mas quando jà muito cer- tamente se macliinava contra a integridade do nosso territorio.
Se a abertura dos sertoes centraes à civilisa^ao e ao commercio era uma necessidade, repetimos, porque nao se tratou com aquelles que melhor podiam auxiliar tal empreza, e se preferiu deslealmente a intriga?
Porque, se nao fossem estranhas macliina9oes, ter- se-la a Belgica entendido muito bem comnosco, na tao meritoria obra de nos coadjuvar no interesse es- pecial da abertura d'aquelle sertao, e no geral de be- neficiar o negro. Mas entao, infelizmente, faltaria o titulo em tal caso! — verdadeira nota grave n'esta grande questao!
36 De Angola d controncosta
Aqui pomos a corda ao pe8C090 pelo nosso governo (e d'isto està a Belgica bem convencida), de que se empenharia elle com todas as suas for9a8 para auxi- liar tal empreza, nao comò està sendo posta em pra- * tica, à louca, na bacia pestilencial do Congo, com centos de europeus inexperientes que com a vida dia- riamente pagam a sua audacia; mas na justa medida do bom senso e do menor risco, pelo emprego racio- nal do indigena, de cuja coadjuva9ao e traballio, unica e exclusivamente, se póde conseguir aproveitamento.
E ainda Ihe afian9àmos, que ao lado dos illustres officiaes belgas que ali em tao grande numero téem encontrado a morte, havia cà muitos homens capazes de encontrar no sacrificio do dever o mesmo fim, e que aquelles que ainda ha pouco penetravam na Quimpata de Bunqueia com quatorze homens, e ahi encontrando Musiri, que dias antes fora visitado por lun explorador europeu, Ihe passavam um documen- to para sua salvaguarda, no caso da Europa o ac- cusar da morte for9ada de um companheiro do ci- tado europeu, e isto porque o sobredito Musiri assim o rogàra, seriam os primeiros a apoiar dentro do seu paiz o movimento em questao, pela mais energica das propagandas.
Infelizmente resta-lhes so o lamentar o rumo que as cousas tomaram, e fazer um sincero voto para que, com o aniquilamento do vigesimo milhao, nao vacille a coragem d'aquelles ainda em desembolso; e este voto, que de certo nao quadrarà de geito aos olhos de mui- tos, pelo espirito que anima as vistas d'està ncu^ào de esclavagistas, a primeira a iniciar o nefando trafico, e a
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vkima a acabal-o, na phrase, ineptamcnte calumniosa, de um dos agentes da Inteniacional, potencia cujos subditos em Africa ligados por la9os de sangue à afri- cana gente, se nao pejam de sentar pretos e pardos & sua mesa logo que d'isso sejam dignos; este voto, re- petimos, fica aqui registado com a mais inteira sin- ceridade.
Antes de partir para o sul, porcjm, permitti ainda duas palavras, leitor, no interesse da vulgarisa9ao so- bre o vasto paiz que este rio banha, palavras que vos farao compreliender quao justo 6 o resentimento dos portuguezes em face do proceder ultimamente havido com elles, e quao nmnerosos foram os trabalhos e as convulsoes por que passou o nosso dominio e politica ali.
HISTORIA POLITICA DO CONGO
Dcux rhoMCH 8ont à remaniuer: In promlòre cVst que (lopuÌ8 1512 Io roi du Couro est Io vassal du Por- tugal ; la Rccomlo, qu*au toinps dorétablissementdos porlufirais au Congo ot à Augola Io premier royaumo 8*étaiulait beaucoup plus au S. o à TE.
Luciano Cordkiro, L'hytìrograpfùe (tfricaine.
A importancia e extensao do cstado do Congo era tal, ao tempo da chegada dos portiiguezes ali, as lu- etas com os povos circumvizinlios, a successao repe- tida dos seus monarchas e as estreitas rela^oes com Portugal tao frisantes ao depois, que entendemos nao deixar fugir este ensejo, sem com dois tra90S darmos urna idèa da sua historia politica.
Sabido 6 que Diogo Cam, encarregado por carta regia de 14 de abril de 1484 de descobrir novos terri- torios na costa, entrou no Zaire e ahi estabeleceu um padrao na ponta sul da foz do rio, que denominou de S. Jorge, comò marca ou tignai de liaver tomado 2)osse d'aquellas terras eni nome do seu rei.
O navegador portuguez estabeleceu logo rela9oe8 com o rei do Sonho (tio do Muene), as quaes com o decorrer do tempo se estenderam ao Muene Congo,
40 De Angola d contra<osta
senhor do estado, conhecìdo tambem pelo nome de Mauicongo; poderoso potentado que dominava dire- ctamente ou por suzerania sobre um vastissimo impe- rio, que constava ir desde o Loango até ao Cabo Ne- gi'o pelo litoral, e, comprehendendo ao nordeste o Macoco ou Anzicana, se estendia até ao Muene Muezi, no Uniamezi!
Diz-nos Duarte Lopes, que esse importante monar- cha reunia ao titulo de rei do Congo o de senhor dos ambundos, da Matamba, da Quissama, de Angola e do Cacongo, sem contar os sete reinos de Congere-Amu- lalla, o dos ban-guelungos, o senhorio do rio Zaire, dos anzicos e o do Loango!
Dapper, geogi-aplio hollandez, e o seu traductor Ogilby, tambem de seus titulos nos faJlam, e se em verdade omittem alguns, trazem a lume outros novos. Assim dizem que ao de senhor do Congo, j untava o de Angola, Macomba, Ocanga, Cumba, Lula, Zenza, bem comò o senhorio dos ducados de Batta, Sunda, Bamba, Ambuilla e territorios dependentes, e ainda aquelle dos condados do Songo, Angoy, Cacongo, da monarchia dos ambundos e do grande e maravilhoso rio Zaire *.
Em todos OS casos, bastam as singelas enumera9oes precedentes para darem uma idèa do poderio dos mo- narchas do Congo ao tempo; esses descendentes de
1 É de todo 0 ponto acccitavel, que aos historiadores portuguezes seja devida a de8Ìgna9So ductido e condado, applicada à zona territorial quo tinha Bcm duvida nome éspecial, corno tambem é para notar qiic, esten- dendo-se OS estados do Congo até ao Uniamezi, nSo figure entro os titulos a zona ou terra do interior encravada no curso do rio.
Exstoria politica do Congo 41
Luqueni, ou Nimia-Luqueni, que, tendo vindo, cqp- forme parece, do oriente, investiram com as terras de que tratàmos, e desbaratando os tchenus ou ba-tchenu, seus habitadores, avassallaram os grupos dispersos, fundando o estado do Congo.
Mas volvàmos ao assumpto que nos interessa. A primeira expedÌ9ao portugueza dirigida ao Zaire safu do porto de Lisboa a 19 de dezembro de 1490. Ex- pressamente enviada pelo governo da metropole para explorar aquellas regioes, partiu, commandada . por Gron9alo de Sousa, que, morrendo em viagem, legou a sua direc9ao a Ruy de Sousa, seu irmao, e era com- posta de missionarios, operarios e colonos, que espe- ravam levar a luz e a arte aquellas terras.
Una mez depois de ali chegar, a expedÌ9ao entrava na Banza Real (hoje S. Salvador), cedendo às instan- cias do mesmo Muene Congo, que dizia querer ini- ciar-se na religiao dos brancos, estreitar assim a sua amisade e estabelecer rela9oes commerciaes com elles.
Reinava entao Nguiga-o-ciium, a quem Ruy de Sousa auxiliou n'uma expedÌ9ào contra os povos que se ti- nham revoltado no Alto Zaire, conliecidos por munda- quetes ou anzicos, no intuito de os submetter à vassal- lagem. E d'està epocha que data o descobrimento dos povos do Macoco, descrìptos em 1505 por Duarte Pacheco, e mais largamente depois por Duarte Lopes (Belatione del reame di Congo, Roma, 1591).
Estabelecida a amisade com os portuguezes, foi Jovi, em 1493, o primeiro dos monarchas do Congo que ao rei de Portugal prestou vassallagem, enviando para esse fim a D. Joào II o seu embaixador Pero Mani-
42 De Angola d contro-costa
Congo, que tempos depois volveu ao imperio acompa- nhado do residente portuguez Joao Soares.
Tomou entSo o monarcha africano o nome de Joao, e sua mulher Mani Mombada o de Leonor, em honra dos lusitanos reis.
Vacillou mais tarde a fé religiosa d'este principe, e, esquecendo os sabios principios da doutrina christà, entregou-se de novo ao grosseiro fetichismo, commet- tendo barbaridades so proprias de selvagem.
Affonso I (Mani Sundi), ou melhor N'pamba-cà- N'Ginga, que Ihe succedeu em 1509, foi um dos pri- meiros principes firmes na fé, e desviando-se do trilho do seu antecessor, manifestou em carta que escreveu a el-rei de Portugal em 1512, por via de seu embaixador Rodrigo Zacuteu, o desejo de conti- nuar sendo seu fiel vassallo.
N'ella accentuava o reconhecimento pelo auxilio que Ihe fora prestado na guerra que teve com seu irmao Mani Fango ou Pausa Aquitimo, que indo sub- metter OS muzumbis *, com elles se alliàra por occasiao de o elegerem, vindo atacar S. Salvador com cem mil pretos.
Era tal a amisade e considera9ao que pelos por- tuguezes tinha este principe, que, partindo para fazer a guerra aos ambimdos sublevados no sul, deixou por capitào no Congo, com todo o seu poder, Alvaro Lopes, feitor do rei de Portugal, comò elle mesmo D. Affonso communicou em carta datada de 4 de marcjo de 1516.
1 Muznmbo significa hometn branco na lingoa bunda, nSo sendo por isso facil comprehender tal indica^So.
Eistoria politica do Congo 43
Foi um verdadeiro apostolo da fé n'aquellas terras este principe, cujo zèlo o levou a dirigir-se ao papa Paulo m, rogando-lhe enviasse para o seu estado missionarios, de que là milito carecia. No reinado d'elle edificaram-se as igrejas de S. Salvador, Nossa Senhora do Soccorro e de S. Tliiago, terminando por enviar seu filho primogenito para Lisboa, a quem desejava proporcionar uma educa9ao christà, e à altura da po- 8Ì9ao que Ihe estava destinada no paiz natal.
Este, que em 1521 o substituiu no throno, tomando o nome de D. Fedro I, imitou o zèlo e piedade do pae.
Seu irmSo, D. Francisco, succedeu-lhe em 1530, nao esquecendo o justo proceder do predecessor. In- felizmente so cingiu a coróa por dois annos, legando-a por sua morte a um primo D. Diogo.
0 fervor religioso nao abrandava entao, e segundo Mérolla nos conta, foram tres dominicanos os primei- ros missionarios que Portugal enviou àquellas terras; tres martyres que breve succumbiram, dois sob a ac93o do clima, e o terceiro assassinado pelos jaggas, capitaneados por Zimbo. Logo depois conduziu Diogo Cam, em sua terceira viagem, doze franciscanos para àquellas desconliecidas paragens, sendo por està epo- cha, a 3 de outubro de 1534, creado o bispado de S. Thomé e Congo.
D. Diogo tomou-se notavel por grande coragem, prudencia, espirito liberal e fervoroso zèlo pelo chris- tianismo. Em poucos annos o genio militar levou-o à conquista de paizes vizinlios, e, alargando os seus es- tados, distinguiu-se sempre por sua affeÌ9ao aos por-
44 De Angola d controrcosta
tuguezes, de quem adoptàra os costumes, abandonan- do 08 habitos indigenas.
A sua magnìficencia excedia tudo quanto sié ali se tinha visto, manifestando-se, quer na omamenta9So do seu palacio, quer no modo de trajar. Uma fazenda boa nunca Ihe parecia cara, pois as cousas raras, di- zia elle, devem encontrar-se nas maos dos reis.
Levàra o requinte do luxo a usar apenas uma ou duas vezes o mesmo traje, offerecendo-o depois & gente do seu sequito. As tape9arias, os brocados de oiro, de seda e as fazendas mais ricas do reino come9aram no seu tempo a ter voga na terra do Congo.
Ensanguentou-se entào n'esta epocha o solio, pelas rivalidades que se levantaram entre pretendentes di- versps, discordias que baniram a dynastia reinante e a racja dos reis do Congo.
Morréra D. Diogo. Tres foram os individuos que appareceram pleiteando os seus direitos & coróa; o primeiro era filho do rei, mas embora destinado a succeder por direito de nascimento, era em geral tao detestado, que a morte violenta Ihe arrebatou subito as esperan9as.
Os dois outros eram tambem de sangue real, um porém favorecia-o o povo, emquanto que o outro pro- tegiam-no os portuguezes e muitos dos poderosos se- nliores do reino.
Como OS chefes dos dois partidos repellissem qual- quer tentativa de accordo, pretenderam os do derra- deiro impor-se ao povo por um attentado, e decidindo a morte do principe junto do aitar, ao assistir & cele- bra9ao dos officios divinos, ahi o assassinaram. 0 par-
JERstoria politica do Congo 45
tido opposto vingou-o, matando aquelle que os nobres propunham.
Havendo assim desapparecido os ultimos pretén- dentes ao throno, insurgiu-se o povo contra os por- tuguezes, a quem attribuiu as desgra9as nacìonaes, trucidando muitos d'estes que ali residiam.
Foi entao eleito D. Henrique, tio do rei defunto, em 1540. Logo depois teve este monarcha de decla- rar a guerra aos anzicos, deixando regente D. Alvaro.
N'uma batalha foi-lhe a sorte adversa, e, morrendo, extinguiu-se n'elle a ra9a dos antigos reis do Congo. D. Alvaro tinha vinte e seis annos quando foi elevado ao throno pelo consenso unanime da na9ao, em 1542.
No seu reinado teve logar um inquerito, com res- peito ao trafico da escravatura pelo rio Zaire, orde- nado por Simao da Motta (7 de maio de 1548), caval- leiro da casa de el-rei de Portugal e ouvidor e provedor com poder de al9ada no reino e senhorios do Congo, que deu comò resultado solicitar o Muene, do monarcha portuguez, que continuasse a manter a prohibÌ9So d'esse trafico nos portos do sul.
Seu successor, D. Alvaro II, teve um reinado infeliz, por isso que os jaggas, que haviam assolado a maior parte dos paizes vizinhos, invadiram o reino pela pro- vincia de Batta. Nào podendo o exercito enviado con- tra elles suster-lhes o impeto, avan9aram acto con- tinuo sobre a capital. 0 rei ainda quiz oppor-se-lhes & testa de algumas tropas, mas, nao se suppondo em for9a para dar batalha, recolheu precipitadamente à capital, passando d'ahi com o clero portuguez e a prin- cipal nobreza do paiz para uma ilha do Zaire.
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j 46 De Angola d contro-costa
Os jaggas, a quem Lopes d^ tambem o nome de jindes, habitavam o Monemuji (Uniamezi?) a leste de Angola, na regiao dos lagos d'onde sàe o Nilo *. f D. Alvaro II enviou seu primo, D. Sebastiao Al-
I vares, a pedir auxilio ao rei de Portugal, o qual Ihe
mandou soccorro por Francisco de Gouveia, que, per- manecendo por quatro annos no Congo, o restabele- ceu no throno.
D'este tempo data a cessao feita pelo Muene aos portugiiezes do Utoral, desde Pinda até Loanda. Teve este principe largas rela9oes com os monarclias lusi- tanos, enviando cartas ao cardeal D. Henrique, bem comò a D. Fillippe II por varios embaixadores, e nos ultimos tempos pelo proprio Duarte Lopes, auctor da
frela9ao de Pigafetta. Foi elle tambem que em 1578 mandou o seu lo- ' gar-tenente D. Sebastiao, duque de Bamba, acompa-
* nhado de cento e vinte portuguezes e cincoenta mil
* conguezes, auxiliar a Paulo Dias de Novaes na cele- \ bre batalha de Anzelle, bem comò em 1583 enviou \ numerosos ba-xicongo a Cambambe, com o firn de ^ còadjuvarem os quinhentos portuguezes que se aclia-
vam em defeza d'aquella pra9a.
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1 Battei, na collec^So de Purchas, affirma que os jaggas, com quem elle serviu dezeseis mezes, e no tempo d'elle assolaram o Congo, tinham vindo da Serra Leoa. Elles mesmos Ihe disseram que os portuguezes Ihes davam o nome de jaggas ; mas que entre si se denominavam im- bangollas. Eram doze mil commandados por Elembe. Parece-nos mais acceitavel a indica^So de Lopes, podendo comtudo admittir-se, sendo tSo nomerosas as hordas de jaggas que se espalharam por todo o occidente, que està confusSo provenha do apparecimento de um tro90 que, tendo ido primeiro pelo norte até à Mina, yolyesse depois para o sul.
JERstoria politica do Congo 47
No reinado d'este monarcha eflfcituoii-se, por bulla de 20 de maio de 1595, a separa^ao do bispado do Congo do de S. Thomé, ficando a sède em S. Sal- vador.
Emfim, fecliou este principe o seu reinado menos sympathicamente do que era de esjDerar dos seiis al- liados, pois, indo' em 1610 Antonio Gon^alves Pitta tratar com elle da construc9ao do forte de Pinda, a firn de sacudir os hoUandezes d'ali, elle, que ao temj^o come^àra por inclinar-se ao partido d'estes, procedevi com evasivas e falsas desciilpas, escrevendo ao mesmo tempo ao* Mani Sonho, para que llie enviasse unia carta sua ao conde Mauricio de Nassau, carta que sem duvida nao era tra^ada em nosso interesse.
A D. Alvaro II succedeu seu ii-mao D. Bernardo, em 1614. Lavravam entào graves discordias entre o Mani-Bamba e os affeÌ9oados do rei, o que deu em resultado, poucos mezes depois de subir ao tlirono, ser este principe morto na ermida de Santo Antonio pelo proprio duque de Bamba, que collocou em seu logar a um sobrinho do defunto e filho de D. Alvaro.
Pouco sobrio e assaz turbulento, o novo rei, logo que assumiu o governo em 1615, com o nome de D. Alvaro IH, come90u em disputas com seus vas- sallos, e em 1619 declarava a guerra ao mesmo Mani- Bamba D. JoSo da Silva, seu sogro, vindo so a con- seguir-se a paz, pela sensata interven^ao dos padres Duarte Vaz e Matheus Cardoso.
Dois annos depois d'està lucta succumbiu, e os reis que Ihe succederam, D. Pedro II (1622), D. Garcia I (1624), D. Ambrozio (1625), D. Alvaro IV (1631),
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e D. Alvaro V (1637), reinaram entre todos quinze annos, nao havendo durante todo este tempo facto digno de noticia, excepto no reinado de D. Ambro- zio a tran^ferencia da sé do Congo para Loanda, e li'aquelle do feroz Alvaro V guerras intestinas que Ihe mereceram a desgra9a de precipital-o do throno ao tumulo na fior da idade.
Principiàra a questào por' suspeitas mal fiindadas sobre o duque de Bamba e o marquez de Cliiona, oontra os quaes elle levantou um exercito.
Nao foi a guerra favoravel ao rei, e desbaratadas as suas forcjas, caiu prisioneiro em poder d'elles, que, em vez de abusarem da Victoria, o trataram com a con8Ìdera9ao devida & sua elevada categoria, recon- duzindo-o & capital, de que Ihe fizeram entrega.
Vexado por dever a corèa e a vida a seus vassal- los, o feroz Alvaro, logo que se viu livre, organisou novo exercito, e, marchando contra os seus vencedo- res, foi derrotado e morto.
Com o nome de Alvaro VI foi o Mani-Bamba pro- clamado rei, e pouco depois morto pelo marquez de Cliiona, seu irmao, que se fez acclamar em 1^38 com o titulo de D. Garcia II.
Posto que houvesse subido ao throno por um acto criminoso, D. Garcia deu a principio grandes espe- ran^as, pela sua capacidade no governo, rigorosa jus- tÌ9a e fervor religioso. A fatai ambi^ao, porém, tudo veiu obscurecer, e o malfadado principe, pretendendo fazer passar a corèa sem eleÌ9ao, e contra as leis, a D. Affonso seu filho primogenito, come90u a tramar o exterminio dos principes da familia real, que antes
Sistoria politica do Corico 49
do duque de Bainba e d'elle haviam direito ao logar que elle usurpàra.
Perseguindo-os, pois, D. Garcia nao poupou ne- nlium dos desventurados principes que póde descobrir, e corno OS padres catholicos Ihe censuraram severa- mente tal proceder, o selvagem monarclia lan90u-se nos bracjos dos feiticeiros.
Estes apoiaram D. Garcia, espirito credulo e «uper- sticioso, mas conhecendo que D. Affonso, seu filho, por muito affeÌ9oado ao christianismo, detestava os ritos ìdolatras, come9aram a malquistar o pae com o filho, dando logar este facto a que o primeiro, que tanta crueldade commetterà por causa do segundo, o accu- sasse perante os estados reunidos de o ter querido elle envenenar, declarando-o indigno do throno, e fa- zendo coroar em sua presen9a D. Antonio, seu fillio segundo.
Foi em seu reinado e no anno de 1645 que chega- ram ao Congo os primeiros capucliinlios italianos, com bullas de Urbano Vili, remessa que em 1647 se re- novou com mais quatorze frades d'està ordem.
Como muitos dos seus antecessores, D. Garcia era faustoso, e d'isso nos falla Dapper ao descrever a ma- gnificencia da sua córte, quando recebeu a embai- xada que os hollandezes Ihe enviaram em 1642, de- pois da tomada de Loanda por Cornelius Comelison Jol Houtebeen.
Morto D. Garcia, succedeu-lhe no throno D. Anto- nio em 1658.
O primeiro acto do seu governo, ao subir ao thro- no, foi mandar matar o irmào mais velho. D. Garcia
A
50 De Angola d contra-^osta
na liora do passamento parece Ihe havia recommen- dado isso muito expressamente, bem corno Ihe lem- bràra a conveniencia de nao poiij^ar neiilium dos prin- cipes de saugue real; indica^oes que elle facilmente executou, levando o cuidado ao ponto de se desfazer do irmao mais novo.
A maior jjarte dos princii)es qiie poderam escapar ao entello on punlial de D. Garcia haviam-se refii- . giado no reino de Angola; ì). Antonio até ahi se sup- poe OS foi buscar, assassinando todos sem piedade.
Nao Ihe aproveitavam as constantes admoesta96es dos missionarios, para impedirem taes crueldades, e comò novamente fosse por estes censurado, por haver contrahido um casamento incestuoso, tao indignado ficou, que retirou todos os bens ao clero, e promul- gando editos contra a religiào, declarou que faria cair a sua ii*a sobre todos os portugue^es.
0 seu successor D. Alvaro VII (1662), incitado pe- los feiticeiros, levantou contra os portuguezes um exer- cito numeroso, disposto a esmagal-os. N'essa epocha o absoluto poder que o rei do Congo exercia sobre os povos vizinhos era tal, que d'elles dispunha a seu bel-prazer. Ao minimo signal levantava exercitos in- numeraveis, pondo-se de subito em campo. Carli e outros viajantes contam que elle marchou contra os portuguezes à testa de novecentos mil homens, cifra estupenda, jjouco acceitavel mesmo, a nao queremios suppor que o audaz monarcha se dispunha a conquis- tar o mundo.
Os seus n ganga Ihe haviam predito a Victoria, bem comò urna entrada triumphal em Loanda, capital do
Histaria politica do Congo 51
reino que fa invadir, conduzido pelos principaes se- nhores portuguezes.
Alvaro, entontecido com similliantes idéas, avan90u sobre Angola em 1663.
Governava entao aquelle reino André Vidal de Ne- greiros, que enviou ao encontro da estranila multidao Luiz Lopes de Sequeira com duas pe9as, quatrocen- tos espingardeiros portuguezes e quatro mil pretos, commandados por Manuel Rebello de Brito, Diogo Rodrigues de Sa e Simao de Matos.
Quando se avistaram os belligerantes nas terras do dembo Ambulila, o cauteloso D. Antonio retirou-se para uma eminencia, a fim de observar a accjao.
Travou-se a lucta, e empenhando-se seriamente n'ella os portuguezes, desbarataram ao cabo de pou- cas horas as for9as do rei negj*o, calndo Luiz Lopes de Sequeira com sua columna sobre a eminencia onde estava D. Antonio, que pagou com a cabe^a a auda- cia de arremetter com Angola. Essa cabe^a foi levada em triumpho para Loanda, terminando assim a ques- tao por um desfecho bem differente d'aquelle que Ihe haviam prophetisado os ngangcts. Carli diz que Se- queira Ihe aflSrmàra que todas as guarni^oes das ar- mas e adere90s do rei eram de puro oiro batido. Em ac9ao de gr^,9as pela Victoria de Ambulila foi fundada na capital a igreja da Nazareth.
Assim terminou este infeliz monarcha, a quem o orgulho e a cegueira fizeram esquecer os favores nu- merosos recebidos dos seus alliados, levando-os contra vontade a inflingir-lhe um serio castigo.
Succedeu-lhe entao Alvaro Vili, que, fazendo as
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pazes com o governo de Angola, permittiu que se procedesse à explora9ào das suppostas minas de oiro do Congo.
Depois d'elle, MéroUa falla-nos de D. Joao Simao Tamba e de D. Sebastiào Grillio, até que em 1671 Luiz Lopes de Sequeira aniquila o poder do ultimo rei do Congo, D. Joao Hary.
Em 1680 OS portuguezes conquìstam o condado do Sonho, e logo o Mani, despeitado, escreveu ao nuncio de Bruxellas, para llie mandar outros missio- narios em substituÌ9ào dos capucliinhos, fa^to a que este nao accedeu, e se Uie enviou em verdade tres franciscanos, foi isso com a condi^ao de continuar a obedecer ao superior dos capucliinhos, que era en- tao o padre Thomaz de Sistula.
Havia no tempo de Mérolla dezoito igrejas no So- nilo, e Dapper diz que o mesmo paiz tinha muitas escolas, onde os naturaes aprendiam a religiao cliristà e a ler e escrever o portuguez, facto que, digàmos aqui, nao se limitava so àquelle ponto da costa, pois em 1684, ao tempo em que era govemador Luiz Lobo da Silva, fundou-se em Loanda um seminario para a educa9ao dos indigenas.
Em vista dos ultimos successos e da extinc^ao da dynastia reinante, achava-se o reino do Congo sem governo autonomo, quando el-rei de Portugal, D. Fe- dro II, se lembrou de remediar este grave estado de cousas, ordenando ao governador de Angola, por car- tas de 17 de mar^o (1690), 29 de abril (1691), e 24 de Janeiro (1693) que fizesse proceder a eleÌ9ao de novo rei.
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ERstoria politica do Congo 53
Preparou-se tudo, e por carta de 5 de mar90 de 1700 . é mandada reunir urna commissao composta dos vul- tos pri^cipae8 d'ali, corno o conde do Sonho, o duque de Bamba e o marquez de Pemba, para que, auxiliado pelo padre Francisco de Pavia, superior dos capuclii- nhos, procedesse à dita eleÌ9ao.
Foi indigitado e eleito D. Pedro de Agiia Rosada, que em 1702 recebeu a confirma9ao do governo de Portugal.
Continuaram os capuchinhos a obra dos seus pre- decessores no Congo, chegando mesmo em seus tra- balhos para o sul a fundar em 1703 um liospicio em Loanda. D'ahi para cà, come^ou de afrouxar o traballio dos missionarios por muitas rasoes, entre as quaes figura a extraordinaria mortalidade entre OS padres que se dedicavam a tao nobre fim, de mo- do que em 20 de mar 90 de 1814 D. Garcia V se queixava a el-rei de Portugal do abandono em que se encontrava o Congo, solicitando a remessa de novos missionarios.
Em 1859 dissensoes intestinas attrahem para ali de novo a atten9ao do governo portuguez.
Um pretendente à coróa empolga a capital, S. Sal- vador, fazendo com que o rei legitimo reclame o auxi- lio de Portugal. 0 capitao Zacharias da Silva parte do Bembe e entra em S. Salvador a 25 de junlio, ao mesmo tempo que outras for9as, sob o commando do capitao de fragata José Baptista de Andrade, coadju- vado por Theotonio M. Coelho Borges e pelo major Roberto dos Santos, investem coni o Bembe. Derro- tando o inimigo, avan9am para o norte e desbara-
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De Angola d controrcosta
tando o Dongo rebelde na capital, restituem a coróa ao Muene Totella, D. Fedro V, deixando ahi o major Ventura José com trezentos homens.
Eis muito summariamente exposta a resenha do movimento politico no estado do Congo, durante um lapso de trezentos e setenta annos, em que teve semj^re ac^ào activa Portugal, até ao dia em que, entendendo de necessidade, para evitar luctas, a annexa9ao a An- gola, o encorporou em seus dominlos.
Decaido do seu velho esplendor, transformado suc- cessivamente em districto e depois concelho da nossa provincia africana, esse antigo imperio nao conserva da passada grandeza outros vestigios senao nos tem- plos, nas ruinas e nos padroeB que por todo elle dei- xaram os portuguezes.
Para aquelles que pelos olhos passarem estas pagi- nas deve similhante facto impressionar profundamente, levando-os a considerar comò foi possivel apagar-se da superficie da terra, ou afogar-se no meio das sel- vas, 0 potente traballio de tantas gera^oes.
Deve ter sido a incuria governativa, dirao muitos ; o afrouxamento do zelo religioso, dirao outros; a in- fluencia nefasta da escravatura, dirao os mais atila- dos, a causa da desorganisa9ao d'esse estado, que mui proximo do curso de um grande rio, e portanto em faceis communica9oes com a Europa, naturai seria que prosperasse.
Nao suppomos ter sido, nem a incuria, nem o afrou- xamento, mas sim outro o motivo.
A enxada do progresso nao entra com igual facili- dade em todos as glebas, e assim comò o arado do
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ERstoria politica do Congo 55
lavrador em chao batido de argilla e semeado de rocha o rasga a custo, e partindo-se no cheque de encontro as arestas d'està, nao deixa siilco que abrigue a se- mente, que entao, exposta às intemperies, se decompoe e perde; assim a energia e os capitaes das na^oes, poderosos instriimentos a empregar na obra da civili- sa^ào e colonisa9ao do mundo, se embotam e perdem muitas vezes, por nao encontrarem meio proprio onde possam implantare fazervingar essa prèciosa semente, d'onde brotam as sociedades, o traballio e o progresso, e se denomina o colono.
A bacia do Congo parece-nos ser uma d'essas nu- merosas zonas que se aclia no caso citado, e comò a costa da Mina, o ardente Sahara, a terra Caliente do Mexico e tantas outras, ha de zombar sempre dos jesfor- 90S do europeu, e constituindo, por assim dizer, os der^ radeiros reductos onde a ra9a negra so poderà vingar e aquàrtelar-se, ha de tambem e infelizmente consti- tuir uma protec^ao à barbarie, envolvendo-a nas sel- vas e n'um meio onde o europeu succumbirà sempre.
Quantas nao foram, se compulsannos a historia, as tentativas feitas por Portugal para colonisar definitiva- mente aquella zona e introduzir ali os beneficios da ci- vilisa9ao, e quantos, se os contarmos, os revezes sof- fridos ?
Por centenas foram para ali os missionarios, por de- zenas as colonias, por duzias se contam as expedÌ9oes militares, e, sem embargo, essa na9ao que de um fo- lego fez o grande imperio do Brazil, apertada aqui no ferreo circulo da insalubridade em combate com o impossivel, viu desfazerem-se em pò todas as suas
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esperaiKjas, dembadas pela mortifera fouce qiie Ihe ceifava as vidas de quantos filhos là mandava. E uma hecatombe a historia d'essas tentativas, a sua enume- ra^ao urna a uma seria o De profundis entoado em louvor de victimas, pois outra cousa nao ha por ali a assignalar.
Attentemos no que se ve hoje, lembremos no meio da grande labuta9ao que por là vae (e sem embargo dos poderosos recursos da sciencia medica moderna), as numerosas victimas que vao marcando cada passo do progresso; escutemos os constantes consellios que OS liomens mais conhecedores a todo o momento duo sobre a hygiene a observ-ar; lembremos as declara- (joes comò a de Tisdel sobre a impossibilidade da ma- nuten9ao do europeu ali; e quando, reimindo todos esses factos, os sobra9ai-mos, abaiando para os tem- pos remotos, veremos que, se hoje a lucta é enorme e gigante, talvez impossivel, n'aquellas epochas* devia ter ido mais longe, devia ser insupportavel !
Quanto fica dito nao é mais do que a expressao da verdade ; o clima é sempre o factor mais valioso, se nao o preponderante no retardamento da obra da civi- lisa^ao em todas as terras tropicaes, muito principal- mente ali; e se os portuguezes que em todo o tempo se abalan^aram às emprezas mais atrevidas, recua- ram ou antes nao proseguiram no Congo, apesar da attrahente cobicja de devassar os grandes sertoes do norte, é porque alguma causa fora do commum os im- pediu, e essa causa de certo foi o clima.
Saneémos o Congo, se tal empreza é praticavel, e entao ver-se-ha para ali correr a torrente colonisado-
istoria politica do Congo 57
ra ; uas circumstancias actuaes digamos outra vez com Tisdel: «Um preto com certa instruccjao e mediocre conhecimento da lingua fioti, póde fazer entre os natu- raes o que o branco niinca farà»; acrescentando de nossa casa: «e esse preto, que nós prepararemos nos logares salubres, sera o unico colono capaz de ada- ptar-se n'aquelle ponto, o unico capaz de ter predo-' minio no Congo » .
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CAPITULO I
NA COSTA OESTE
Em Angola — Aspecto do coi*dao litoral e sua vcgcta^So — Terras do interior — Entre Cuanza e Bengo, quadro triste — Problemas que noB propunhamos — Material e pessoal — Considera^oes — Artigos da expedi- 9ao — Francisco Ferreira do Amarai — Urna notieia historica — Salvador Correia e a conquista de Loanda — Fortalezas e edifieios publicos — Os jardins, os muceques, a vcgeta^ào, a salubridadc e a ilha — Os muxi-loan- das e a sua opiniilo aristocratica — Rcudimcutos e governo — Tribuuaes judiciacs-^ Considera^ucs sobre os deportailos e colonias penaes.
A zona litoral das possessSes portuguezas na costa oeste tem um aspecto uui- foi-me e n'alguna pontos arido, que contrasta com as tcrraa do norte debaixo do equa- dor.
O viajante por toda a parte ve um longo cordSo '*"* ' franjado n'um ou n'outro ponto por pequcnas bahiaa areosas, ao fundo das quacs a mancha escura do mangue verde accusa a existencia du agua, e extensas barreiras aprumadaa
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e vennelhas entreligam, projectando-se sobre um fun- do longinquo de morros e serras elevadas. A vegeta- (jao, de triste aspecto em geral, acceutua-se pelo bao- bab, esse gigantesco vegetai, ciijos troncos medeni as vezes 20 e 30 metros de circumferencia, por euplior- bias corno a cassoneira, oiitra à simillian<;a de iim can- delabro, e que 6 supponios a Eajjluorbia hervientiana (V), algunias Hyplweiies, leguminosas rasteii'as, bosques de jasmineiros, aloes e sycomoros.
Junto ao mar, nas praias, arrastam-se tristes Con- volmdus, a fava do Calabar, etc.
No sul e nos areiaes safaros a Welwitsc/da mirabUis e ennegrecidas Bauhinias caracterisam a flora.
Logo para o interior o paiz é frequentemente park- like, e a scena a 8 ou 10 millias do mar modifica-se para dar logar a pittorescos golpes de vista, por Hieio de verdes campinas, onde avermelhados Coiivolvuli, amarellas Orchideas e brancos Commeleì/nce rivalisam de brillio, atapetando o terra d'onde emergem Erythe- Hnas de flores rutilantes e mais avultados exemplares do reino vegetai.
A disposi^ao, de mais em mais elevada, das terras opera notaveis mudancjas na vegeta9ao, e ao quadro que acabàmos de descrever succede-se, à medida que vamos para o interior, outro de mais risonilo aspecto, pelas arvores gigantes que tudo cobrem coni a sua fo- Ihagem, elevadas gramineas e numerosas palmeiras oleosas.
No parallelo de Loanda as grandes florestas appro- ximam-se muito do litoral, vendo-se em Cazengo e Go- lungo OS mais formidaveis exemplares a&icanos.
Na costa oeste 63
Junto ao mar, emfim, e entre os rios Bengo e Quan- za, é triste o quadro que se revela na nudez das bar- reiras avermelliadas do Cacuaco, Dande, etc, e nas ondula^oes interiores de Caculo-Cassongo e outros pontos, corno adiante veremos.
Foi em mar^o de 1884 que ahi comeiyou os seus traballios a nossa expedi^ao, esperan(;ada em resolver varios problemas, nos quaes figurava o de encontrar um caminlio commercial entre as provincias portu- guezas de Angola e Mo^ambique; inquirir nas regioes centraes as rela^oes das bacias liydrographicas do Zaire e Zambeze; e atravessar emfim pelo meio as zonas branqueadas que na carta existiam, taes corno a terra ao oeste do valle de Barotze, aquella que se estira para o nordeste do Cabompo até à regiao dos lagos, e emfim toda a que do sul do Bangueolo vae até ao Zambeze.
Ligavam-se a este triplo problema outros de im- portancia secundaria, que deixavamos ao acaso o cui- dado de nos fazer conhecidos; mas o nosso plano era principalmente estudar e esclarecer em definitivo toda a zona centrai da nossa provincia angolo-mozambi- cana, calculando até que ponto os ferteis sertoes que a constituem poderiam encontrar no Zambeze uma salda para os seus productos.
Como facilmente se póde deprehender, tao grave assumpto representava para os nossos interesses uma questào de summa impoi-tancia, e carecia de attento estudo, bem conio reclamava imia apropriada escolha de itinerario, que rpellior podesse decidir em materia de aproveitamento.
64 De Angola d contro-costa
Escusado é acrescentar que nao foi sem sèria he- sita9ào que tomàmos sobre os hombros està empreza que tao longe nos iria arrastar pèlos matos; rude ta- refa, quÌ9à um pouco superior aos recursos de que dis- punhamos, apesar de ter o governo de Sua Magestade ordenado que se nos entregasse tudo quanto para tal firn requisitassemos.
Contando porém com os conhecimentos na primeira viagem adquiridos, preparàmo-nos corno podémos, nao devendo por isso causar estranlieza o modo por que a ageitàmos, e sobretudo a exiguidade dos ar- tigos de que nos fomecemos, factos sobre que vamos dizer duas palavras.
Devia contar o nosso pessoal o limitado numero de cento vinte e quatro pessoas, numero sem duvida res- tricto, mas que nao convinha exceder, embora grande fosse o commettimento.
A pratica que temos do sertao ha muito nos evi- denciou que, quanto mais numerosa é a caravana, maiores sao os embara90s e mais graves as complica- 9oes que por toda a parte se Ihe deparam; bem comò é obvio que, para maior numero de cargas, mais cres- cido deve ser ò numero de carregadores, e que, em igualdade de circumstancias, tudo quanto excede uma centena de homens vae muito alem das necessidades de uma viagem ao mato, excedendo sobretudo em muito a cifra para que em geral se podem encontrar recursos ali.
Nao é so sob este ponto de vista que deve encarar- se a organisa9ao de uma comitiva preparada para lon- gos emprehendimentos, bem o sabemos ; da sua segu-
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Na costa ceste 65
ran^a atravez dos bosques africanos póde depender o exito dos trabalhos a executar, seguran9a que princi- palmente se baseia no numero, e d'este é consequencia tambem a maior ou menor somma de confortos de que precisa cercar-se o europeu quando percorre aquellas regioes.
Como, porém, a gente deve habituar-se um pouco a andar à mercé da sua boa estrella, e convencer-se de que n'este mundo nada resiste a uma for9a de vontade determinada, e que o principal é ter saude, lan^àmos de banda receios, prescindindo de tudo que podesse embara9ar a nossa marcila, oircumstancia da qual de- pendia, a nosso ver, o problema que nos propunliamos.
Considerando isto, em logar de uma centena de far- dos de fazenda, dispozemos e organisàmos vinte e sete de algodao e riscado; em vez de uma profusào de cargas de missanga, semente uma duzia de saccos de cincoenta libras; para miudezas, instrumentos e raros presentes tres caixas; quatro ditas para o que cha- mavamos rancho, isto é, clià, café, sai, assucar e adu- bos ou temperos; e, finalmente, uma para artigos de mesa *.
Duas grandes canoas, uma pharmacia, seis cunhe- tes de cartuchame Snider e dois de nossas armas, duas tendas, um fardo de arame de latSo, dois jliT^cos de Iona pintada, contendo fatos de flanella, e uma mu- hamba com artigos de cozinha, compunliam por assim dizer todo o material da expedÌ9ao.
1 As caixas eram forradas e de dimensocs proprias a poderem scr
couduzidas ao bombro.
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66 De Angola A cantra-costa
Ageitado este, ficava a parte mais aborrecida e en- fadonlia; a do engaj amento do pessoal, tarefa sempre chela de decep^oes e duro soflFrer para quem a sorte aprouve laiKjar em taes commettimentos, e a que so paciencia de a90 e desusada pertinacia, envelliecida no seu conliecimento, póde fazer frente.
Que o digam aquelles que, comò nós, ali téem tra- balhado, se alguma cousa ha que desafie ao desespero, comò essas scenas repetidas de fugas, enganos e per- fidias que acompanham sempre os preliminare» de uma expediijao africana.
Nenhum explorador póde isentar-se d'elles, nem um so deixou de relatar as angustias d'esses primeiros dias de mato, da desesperacjao causada pelas fugas, receios e conluios de carregadores e chefes, sem exprimir pro- funda tristeza.
Entretanto, nada aproveitam as suas sentidas des- crip^oes e os seus numerosos esclarecimentos; aquelle que infelizmente là volte, tem de passar pelos mes- mos dissabores, ficando-lhe semente dos camaradas a recorda9ao de os haver tido por companheiros no sof- frer.
Felizmente para nós, deu-se uma circumstancia que minorou todos estes obstaculos, a qual de bom grado aqui registàmos, comò tributo de serio reconhecimento ao homem que em Angola nos dispensou a mais apre- ciavel proteccjao.
Achava-se d testa do governo da provincia Fran- cisco Ferrei ra do Amarai, um dos mais sympathicos officiaes da marinila real portugueza, e foi elle que, por habituado as lides africanas e de intelligencia a coni-
Na costa oeste 67
prehender estes obstaculos, nos aplanou com o seu auxilìo e conselho bastantes difficuldades, Tudo se fez com ordem e por maiieira tal, que nos primeiros dias de mar90 lamos a caminho de Mossamedes, onde urna coi'veta de guerra nos devia receber e transportar, acto continuo, a Porto Pinda, ponto indicado corno ivicio para a partida.
Alegres e contentes se acliavam prestes a largar Loanda cento e duas pessoas do Celli, da Quisanga, de Novo Redondo e do Nano, que fam encontrar com- panlieiros em Benguella, e satisfeitos nós tanibeni de- sejariamos abaiar; nao o faremos, todavia, sem dizer duas palavras àcerca da posicjao geogi*apliica, aspecto e importancia da prinieira cidade da provincia de Angola e sede do seu governo.
Com grande receio vamos lancjar-nos ainda nos dominios da liistoria, pois tememos que por abuso d'ella se melindre a benevolencia do leitor; mas se na verdade é aborrecivel relembrar factos e datas que pela maior parte deviam existir na memoria de todos, nada ha tao agradavel corno restabelecel-os.
Acontece que, se de muitos e conliecida a liistoria e seus geraes detallies com referencia às nossas pos- sessoes mais importantes, outros parecem completa- mente ignoral-os, e nSo figuram pelo menor numero OS estrangeiros, que de resto, tendo estado n'ellas, as amesquinham e deturpam nos seus escriptos, espa- lliados com profusfto, produzindo nos espiritos idt'as en'oneas a nosso respeito!
Està n'este caso a nossa cidade de Loanda, capital da provincia, que, por desleixo incomprehensivel de
68 De Angola d contra-^osta
um escriptor, se nao por ma fé, ainda ha bem pouco foi alvo de urna injustissima de8crip9ao feita em volu- moso livro, que a arrastava pelo nivel da mais sordida das senzalas.
Urge pois, sem pretender eleval-a, dar à sobredita descrip9ao, em uma singela noticia, o cunlio verda- deiro de que carece.
A historia da conquista de Angola e funda9ao de Loanda seria longa tarefa, que os limites impostos a este capitulo nào permittem. Afastando-nos pois da narrativa das nossas descobertas na costa, e da expo- 8Ì9ao minuciosa dos trabalhos ali operados por Paulo Dias de Novaes, seu primeiro govemador, tao distincto diplomata' quanto intelligente general, assignemos a primeira data notavel.
E a de 1641, anno da conquista de Loanda pelos hoUandezes, que assim se achavam dominando na Africa Occidental, depois de possuirem uma grande parte do Brazil.
Salvador Correia de Sa Benevides, que paiifra de Portugal com uma frota para limpar as costas da America do sul, aportando ali pouco depois, trava lucta, e batendo os hollandezes no Recife e logo na Bahia, prosegue para leste, incumbido pelo monarcha D. Joào IV de erigir uma fortaleza na feitoria e porto de Quicombo, se infelizmente nSo podesse tomar posse de Loanda.
Foi a 12 de mar9o de 1648 que elle, capitaneando a refenda frota, composta de quinze navios, quatro dos quaes adquirfra e equipara à sua propria custa, soltou véla do Rio de Janeiro.
Ka costa oeste
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Chegado a Quicombo em agosto com cerca de no- vecentos homens, Salvador Correla reuniu acto contf- nuo conselho de oilìciaes, e explicando-llies a necessi- dade de livrar a villa interior de Massangano das mSos
dos inimigos, convidou-og a que o acompanhassem na empreza. Com tanta arte soube actuar no cora^So dos audazes companlieiros, por tal modo Ihea fallou nas esperamjas da patria, na grandiosidade dos feitos de outr'ora, e na honra e gloria que os esperava, que,
70 De Ali ff ola d cmìfra^os^fa
concliiido o conselho, tudo se dispoz da mellior von- tade para a partida.
Sendo mdnbitavelmente a cidade de Loanda cliave da conquista, para ali se fez a esquadra de véla, e em 12 de agosto surgia no seu porto.
Nao se deraorou Salvador Correia coni planos e delongas, e enviando um officiai a terra, intimou a guarni^ao da foj-taleza a que se rendesse, conceden- do-llie dois dia» para dar resposta.
Ao cabo de quarenta e oito lioras, corno se recu- sassem os lioUandezes a responder, fez um tiro o na- vio cliefe, deserabarcando da esquadra toda a for^a disponivel.
A principio quizeram os indigenas oppor tenaz re- sistencia, mas vendo o numero dos nossos fugiram aterrados, ao passo que Salvador CoiTcia, rompendo com a sua artillieria um vivo fogo, dava no dia 15 assalto geral a fortaleza.
Abandonados pelos naturaes seus alliados, comecja- ram os hollandezes de se arreceiar, até que pela tarde d'esse dia propozeram a capitula^ao, que foi pelo ge- neral immediatamente acceita.
Entregando assim as armas, safram ao todo mil e quatrocentos individuos, segundo parece, dos quaes trezeutos andavam jimtos a rainha Ginga, e, sendo mettidos em tres navios, foram enviados seni demora para a Europa.
No curto espacjo de dois dias, pois, e impellidos pelo genio de Salvador Correia, conquistaram os portu- guezes de novo a capital da sua provincia, que sete annos estiverà na posse dos hollandezes.
Na costa oeste 71
É na latitude 8\47' sul e longitude 13\7'.30" oeste de Greenwich ao fundo de formosa bahia, que està edificada a cidade de Loanda ; dividida em dois bairros distinctos^ respectivamente denominados alto e baixo; sendo o primeiro o bairro elegante e onde se acham OS edificios mais importantes, e o segundo aquelle propriamente commercial.
Defendem-na ao presente quatro ' fortalezas, que se denominam S, Miguel, S. Francisco do Penedo, S. Fedro do Morrò de Cassamdama e Nossa Senliora da Concei^ao^
A primeira, construida pelo systema Vauban, com a fórma de um polygono irregular, adaptada à con- fìgura9ao do morrò de S. Miguel, é de todas a mais importante.
Comeijada em 1638 pelo governador Francisco de Vasconcellos da Cunlia, foi concluida em 1689 por D. Joao de Lencastre, juntando-llie em 1770 o go vemador D. Francisco de Sousa Coutinlio a bateria, que ainda lioje se conhece pela do Cavaileiro, com dezeseis pe9as.
Para o lado do mar uma cortina com quatorze fa- ces póde montar setenta e oito bócas de fogo, sem contar, uma pequena bateria de seis pcijas, ao passo que pelo lado da terra dois valentes baluartes, com dez canlioes cada um, cinizam os seus fogos com a bateria do Cavaileiro.
1 Na ponta norie da ilha existlu em outro tempo, no comedo do seeulo xviii, 0 forte de Nossa Senhora da Fior da Rosa, de que hoje resta ape- nas a memoria, e na barra de Corimba o forte de S. Fernando.
72 De Angola d contr accosta
No seu vasto recinto ha residencia para o govema- dor, quarteis, paioes, e cistemas para mais de mil e quinhentas pipas de agua, comò tambem capella, pri- soes, etc.
Foi aqui que em 15 de agosto de 1648, sete an- nos depois de terem conquistado a cidade, corno dis- semos, 08 hollandezes capitularam.
Vem em segundo logar a do Penedo, systema Vaii- ban, cujos fundamentos foram lan9ado8 em 1687 pelo govemador Luiz Lobo da Silva, e que D. Francisco de Sousa Coutinlio completou em 1765, imindo urna roclia isolada no mar às penedias da terra firme, no curto espa90 de dezoito mezes.
Tem a bateria superior vinte e quatro pe^as, e a inferior trinta e sete d'estas machinas de guerra, fa- zendo com que o forte domine por completo a entrada do porto, bem comò o caminho do Cacuàco para Loan- da. No seu paiol armazenam-se 128:000 libras de pol- vora.
Successivamente encontra-se o forte de S. Fedro, obra do governador D. Antonio Alvares da Cunlia, que o come90u em 1703, acabando em 1705. Para o lado do mar duas baterias se sobrcpoem, a de cima com dez bócas de fogo e a de baixo oito, ao mesmo tempo que dois baluartes,, cada um tendo nove pe9as, a defendem dos ataques de terra.
0 governador possue ahi residencia, bem comò quarteis, depositos e cisterna para cincoenta pipas de agua.
Emfim, tem a de Nossa Senhora da ConceÌ9ao, de menos importancia, com quatro bòcas de fogo.
Na co^a oeste
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Loanda é urna cldade ampia, limpa e pittoresca. GracioBamente reclinada na encoata das terraa que miram ao noroeste, ostenta, quando vista do lado do mar, o aspecto de urna cidade europèa, com os aeus renques de asseiadas e bem dispostas casarias, que,
sobrepondo-se garrìdas umas às outra», se ligam por extensas cal<;adas.
Possue midtos edificios e seria longo aqui enumerar todos. Cìtaremos, entre os principaes, o hospital porto de Ponta Negra, verdadeiro scmatorium, que nSo tem igual em Africa; o palacio do govemador, obra im-
,74 De Angola d coTìtror-costa
portante; o palacio do bispo, a escola de artes e offi- cios, o tribunal da rela9ào, a casa da camara, a alfan- dega, officinas de fundÌ9ao, etc, sem contar muitos templos e grande numero de edificios particulares.
Existem varios jardins publicos, entre os quaes figura o da Ponta de Izabel, com quinhentas arv^ores de fructo, dividido em cinco avenidas, de que a cen- trai tem nove terra90s com uma pyramide em cada extremidade, cortando direita por um lado à casa de recreio do governador, construìda em 1817 pelo vice- almirante Mota Feo, e à igreja da Nazareth; o jardim do largo de Salvador Correla, etc.
Nas terras altas, que pelo nordeste a dominam, sao numerosas as casas de campo denominadas rruLce- qaes, onde os abastados de Loanda passam em ocios OS seus dias de ferias.
A cidade alta é indubitavelmente considerada a mais saudavel, e onde reside uma grande parte da populacjao branca.
A vegeta9ao é constituida em geral por euphorbias, bao-babs e aloes.
Completamente livre de pantanos, que tanto con- correm, comò é sabido, para a insalubridade de qual- quer regiao, Loanda soflEre um pouco de falta de agua, problema que nao seria difficil resolver, e està mesmo em via de 8olu9ao, fazendo-se o seu abastecimento de agua» do rio Bengo.
As ruas sao bem cal9adas, mas depois de termina- rem as chuvas é necessario desobstruil-as das areias que se accumulam, em consequencia da desaggrega- 9^0, nas encostas das terras altas.
Na costa deste 75
Dà este facto logar a que o recemchegado n'aquella epocha siipponha nao cal9ada a cidade baìxA, sendo este um defeito irremediavel até agora.
Fronteira à cidade està a illia, espécie de quebra- mar de areia, que, estirando-se do sul ao norte, abriga dos movimentos do oceano o porto interior, que se póde considerar um verdadeiro tanque.
Numerosos coqueiros vestem essa longa facka are- nosa, outr'ora importante pela collieita do cauri ^ Por meio do palmar, brancas casas de campo constituem o recreio de muitos senhores de Loanda, e à sua som- bra vive uma popula^ao de talvez mil e quinhentas almas, compondo-se a ter^a parte de pescadores.
Os habitantes da refenda ilha sao os muxi-loan- das, aristocraticos e directos descendentes dos mani- congo (em sua opiniao), povos que ali tiveram o seu ultimo asylo, fazendo de suas pessoas idea muito li- sonjeira*.
Em resumo, a capital da provincia de Angola, tem hoje uma populacjao de dezeseis mil almas, um movi- mento de importa^ao e exporta^ào de vulto e um ren- dimento para o thesouro assàs consideravel.
A sua for9a publica monta em caso de guerra a vinte mil liomens, quinze mil dos quaes sao de segunda linha, guerra preta e empacaceiros, e os restantes de prihieira.
' Cjiuri, zimbo, buzio. N'esta ilha residia, nos tcmpos da grandeza do Congo, um logar tenente do rei para apanliar o cauri.
2 No tempo de Merola e outros, havia n'csta ilha sete povoa^ues (li< batas), sendo a prineipal a do Espirìto Santo, com sua capella.
76 De Angola d contror-costa
A institui^So da sua camara municipal data do anno de 1648, e compSe-se de um presidente e seis mem- bros gratuitos, percebendo salano apenas o secretano d'aquelle corpo collectivo.
De longa data desappareceu a escravatura ali, e quando pelo decreto de 10 de dezembro de 1836 se proliibiu a entrada nas colonias de todos os escravos por mar, e em 14 de dezembro de 1854 a sua intro- duc^ao pela via terrestre, jà na cidade capital da pro- vincia se nSo pensava sequer no homem n'estas con- di^oes.
A sede do governo geral é n'esta cidade, e està in- vestido na pessoa de um govemador militar, officiai que logra as honras dos antigos capitaes generaes, supremo administrador, que faz todas as nomea^oes civis e militares com a conveniente sanc^ao do gover- no da metropole, e preside à junta governativa, com- posta das principaes summidades ecclesia^ticas, civis e militares,* assim comò sancciona todos os negocios de fazenda.
Nos tempos da conquista os negocios judiciaes de Loand^a e dos districtos em redor eram dirigidos pelo ouvidor geral, jurisconsulto para esse firn nomeado, com a assistencia de dois magistrados, um em Loanda, outro em Massangano.
Em todos OS presidios a magistratura era investida nos commandantes militares.
Em 1721 nomeou-se para ali o primeiro juìz de fora, e em 1837 foram creadas as comareas de Angola e Benguella; lioje sSo numerosas na provincia e todas téem seus juizes e delegados.
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Ha um tribunal judiciario com as varas respectivas do crime e civel, e urna rela9ao ; um procurador regio, um guarda mór ou ajudante completam o quadro, e alem d'estes um curador geral dos indigenas na costa.
Uma das grandes catastrophes que durante annos victimou a cidade capital de Angola, e quÌ9à os dis- trictos do sul, causando-lhe na metropole uma repu- ta9ao aterradora, foi a proveniente da remessa dos degradados para ali, facto que, occasionado por sen- ten9as condemnatorias de deporta9ao e degredo, espa- Ihou entre as popula9oes provinciaes de Portugal as mais negras suspeitas a proposito d'aquella parte da monarcliia. Muitas seriam as maes que consentissem a emigra9ao de seus filhos para o Brazil, com espe- ran9as no seu bom futuro; mas raro quem, ao ouvir dizer «o teu fillio vae partir para Angola», podesse conter as lagrimas.
Felizmente as cousas téem mudado com as sabias medidas do governo; e comò em capitulo adiante te- remos de fallar das zonas saudaveis da nossa colonia Occidental afiricana, e do interesse da sua povoa9ao, digamos alguma cousa sobre o modo de prover às menos salubres.
Se OS trabalhos publicos podem nas terras sas en- contrar nos agrupamentos de degradados um precioso recurso para o seu desenvolvimento, nao menos apro- veitam as zonas pouco saudaveis com a applica9ao re- grada dos esfor90s d'estes.
As grandes derrubadas, as multiplices drenagens e outros elementos de saneamento podiam ter no traba- llio do degredado um precioso auxiliar, e nao menos
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ganharìa a moral pelo emprego d'elle n'esta zona, pois a febre intermittente para o criminoso deve conside- rar-se a mellior das medidas sanitarids, debaixo d'este ponto de vista.
0 criminoso de boa constituÌ9ao physica e em geral um ente de instinctos brytaes, rebelde a (juaesquer sentimentos liumanitarios ; logo, porém, qiie a doen^a o domina, o seu modo de ver modifica-se e sob a suave pressào da morbidez o espirito comò que se pu- rifica!
Nao e necessario ir longe para encontrar denion- strac^oes a este facto (aos ollios da pliilanthropia talvez condemnavel por nipnstruoso); està elle no animo de muitos govemadores, cujas opinioes aqui podiamos facilmente citar, e diz-nol-o, emfim, um celebre via- jante, que em suas peregrina^oes passou por Angola, homem insuspeito, attento o caracter religioso que o rcvcstia.
wE um facto notavel, diz elle, que durante a noite quasi todas as armas de Loanda estào sem perigo nas maos de homens enviados para ali por degredo. Mui- tas sao as rasoes apresentadas a favor d'este suavo procedimento por parte das auctoridades ; mas nenhu- ma d'ella s, quando comparada coni o que sobre o caso conliecemos na Australia, nos parece valiosa. A reli- giào nao cremos que se relacione com a mudan^a ope- rada no europeu. 0 clima provavelmente tem influen- cia em dominar as suas turbulentas disposi<;6es; para 08 habitantes, etc. Se nós inglezes devemos ter colo- nias penaes, parecé-nos que um serio estudo àccrca do clima deve ter vantagens na selec^ao.»
Na costa oeste 79
Isto clizia iim liomem tao conhecedor do assùmpto corno nós da nossa casa; e isto, repetìmos, é um facto que merece muita atten^ao, ao qual se nao deve jogar a humamtaria pedrada de assassinar quem possue di- reito à vida.
Nao queremos de certo à morte do degradado, mas o que desejàmos é aproveitar d'elle o mais possivel, e concorrer efficazmente para regeneral-o em beneficio proprio e da patria.
Diminua-se, pois, o tempo do degredo a doze, sete e cinco annos; revogue-se de uma vez para sempre a reclusao em masmorras, que é a morte n'aquellas regioes; organisem-se coloiiias penaes agricolas em Ambaca, Malange, Duque, Cassanje e Cuango, e dis- tribuam-se por ellas os individuos condemnados a de- gredo que a metropole envia periodicamente para cumprirem sentenza.
Sejam arejadas as residencias, substancial a alimeii- ta^ao, bem distribuido o traballio. Estradas, edificios, arroteamentos de terras mandem-se fazer por elles, e em horas especiaes, das seis às dez da manha e das tres às seis da tarde. A ningnem se conceda isen9ao, cxcepto no caso de molestia, nem se permitta licenza para afastar-se do recinto da colonia senào após qua- tro annos de exemplar comportamento.
Proliiba-se toda a especie de transac9ao monetaria no primeiro espa90 de dois annos, aproveitando inva- riavelmente os esfor90s d'essa gente reunida, no bem da colonia e saneamento da zona. As febres virao sem duvida, mas para essas temos o quinino e as indica- 9oes de individuo conliecedor do mester, que s6 aucto-
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risarà o regresso à capital dado o caso de perigo de vida.
Do seu enervante influxo conseguir-se-ha a corres- pondente depressao de espirito, sendo o primeiro passo para o saneamento moral, corno que o sulco onde se lan9a a semente dd; regenera9So, que o traballio mo- derado e a fagueira esperan9a do indulto depois com- pletam.
E se infelizmente por systema tal nao se podérem obter OS desejados fins, legìsle-se de modo a crear mais energicos meios repressivos.
E deixemo-nos de temuras, repetimos, com a lem- bran9a dos effeitos do clima. Nào ha motivo plausivel para nos entemecermos mais por degradados do que pelos nossos officiaes, membros de magistratura e ou- tros que por là andam, e diariamente se empregam no servÌ90 do seu paiz.
Acima de tudo està o que propomos, sendo questao secundaria o meio de o conseguir.
Trata-se de evitar a liberdade contraproducente de que desfructa o deportado na colonia, liberdade que, dando largas ao vicio, aggrava a de8moralisa9ao, es- perdÌ9ando homens que aproveitados poderiam pro- duzir muitissimo; portanto tome-se uma resolu9ao; e aquella que apresentàmos, modificada ou desenvol- vida por individuos mais conhecedores do assumpto, é de todas a que nos parece mais acceitavel.
E uma tentativa, e quando nada mais se consiga, ter-se-ha ao menos ganho a certeza de que tarde ou nunca serSo colonisaveis as zonas assim trabalhadas e que o europeu difficilmente ali poderà viver.
Na costa ceste 81
A pliilantliropia quando vae alem de ccrtos limitcs descamba na loucura.
Eis em breves tra^os uni esbo^o da cidade de Loan- da, que so aguarda os beneficios da moderna via^ao para attingir a prosperidade que mereee, beni eomo o iiosso parecer sobre a questiio dos deportados; e agora que o tempo urge, abandonemol-a para, seguindo Atlantico afóra, ir até ao porto de Mossamedes.
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CAPITULO II
PRIMEIROS PASSOS
0 companheiro negro e a sua iugrutidao — A corvcta Rainha de Por- tu4jal e a abalada — Porto Pinda — Os areacs e a primcira noitc — Ponto de partida e rasòes de sua escolha — 0 honicm poe e Deus dispoe — A primcira marcha e o aspecto do terreno — Caractercs geologicos — Os liabitautes do Coróca e o dique dentai — Numera9ao — Dos trajcs e mu- lliercs — 0 adulterio e os fuueraes — 0 boi preto e a circuincisao — Ter- rores gentilicos — Vegeta^So do Coróca — Fauna ornitliologica — Fuga de quarcnta e dois homcns.
[1(1(1 ; nspri- nifiriLs alvo- i-fs dn manhfi, vadindo com a (»• sua Inz tfiiiie o ea- pa^o, come^avam de deixar perceber os contornos da vasta bahia, qiie em escuro cordào nos rodeava; as fulgiirantes constella- qòes do sul, dtsvanecendo-sc, desappareciam no fun- do ceruleo, quando nós preoccupados nos erguemo».
HG Do Amjoìa d contrd-costa
Cliegiira a liora de partir, hora sempre chela de cui- dados para quem se propoe a qualquer empreza arro- jada.
0 facto de organisar urna expedÌ9ao africana, e espe- cialmente o mcMnento da sua partida, embora a muitos pare<;am objectos de pequena monta, estao bem longe de o ser, repetimol-o mais ama vez.
0 companlieiro nejifro, verdadeira gazella voluvel, espirito irrcipiieto e vicioso, caracter fronxo e em extremo timido, difficilmente compreliendendo as ne- cessarias obriga^oes a que o liga um contrato, e nao acreditando de modo algum nos altos interesses de (piestoes d'està ordem, prepara a todo o momento, coni nma inconsciencia pueril, a sua perda nos mais singelos actos.
Xada Ihe importa depois de engajado e de recebi- dos OS adiantamentos; q n;iesmo volumoso material, cuja organisa^ao auxiliou durante dias, tem para elle um valor secundario, assim comò o interesì^e e o afan que OS chefes manifestam pelo lote de artigos que cui- dadosamcnte prepararam; scudo o seu sonho unico, feìtos OS avauf^os, burlar quem lli'os concedeu, e para isso |)oe em pratica todos os meios imaginaveis!
E nós, que os conhccemos, tremiamos de antemao.
Kngajac a vossa giunte em toda a costa, e dae-llie adiantado quanto cxigìnnn: rcuni-os em tomo de vós, dìsj>ondo tudo pani a paitìda: na vespera d'està abri tn^s ou quatn> fanlos de algi>dào, e, nìsgando ai direita o a osquonla, distnbui jv^r tiMÌos gratuitamente, a fini de OS atFcivH>;inlcs e j>n*ndonìos ji vossa pessoa; fazei mais, ohamac osohefcs, o presonteae-os coni um fato
Primeiros passos 8 7
completo, dmheiro, etc; pois bem, no momento de abaiar, desertar-vos-hao em massa metade d'aquelles a quem generosamente recompensastes !
A ingratidao e a perfidia, essas torpes faculdades tao communs nas intelligencias rudimentares, formam o tracjo caracteristico do negro.
E nao se imagine qiie jeremiàmos aqui para mais avnltar a nossa obra, ou creamios maior sympathia a està ordem de trabalhos; de modo algum é essa a idèa, e, sob o ponto de vista da verdade, julgàmo-nos tao felizes e afoitos comò todos os nossos predecessores.
Oucjamos sobre o caso Stanley, a quem no Tanga- nika fugiram de uma vez meia centena de homens:
«E a infidelidade dos seus carregadores qiie se de- vem attribuir os longos rodeios a que Livingstone foi obrigado em sua ultima viagem. Cameron, por sua vez, igualmente perdeu um g^-ande numero de homens, primeiro no Unyaniembé e depois em Udjiji. Eu por minha parte sabia, pela experiencia adquirida na pri- meira viagem na Africa centrai, que os ba-nguana aproveitariam todas as occasioes para desertar, espe- cialmente na vizinhancja dos depositos arabes.
«Foi para restringir o numero d'estas occasioes que eu deixei o caminho», etc.
Carece assim o explorador de toda a energia e boa- vontade para supportar os primeiros revezes e os fre- quentes golpes, e se em tirocinio anterior nao conse- guiu dominar de algum modo o indigena n'esta qua- dra dos seus trabalhos, póde convencer-se de que pouco farti, nao Ihe sendo tambem possivel a convi- vencia com elles.
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Preoccupados, corno dissemos, e com rasao, ergue- mo-nos.
Estavamos a bordo da corveta Rainha de Pm^ivr- gcH, do cominando do capitao tenente Gnilherme Au- ^sto de Brito Capello*, que, surta no porto de Mos- samedes, se aprestava a transportar a expedi^ao por nós capitaneada para Porto Pinda.
Por cima da tolda, em confuso borborinlio, agitam- se todos OS nossos companheiros de cor, ora escan- carando os ultimos bocejos, ora espreguicjando os membros envolvidos em pannos multicores, com ar de despreoccupados, quando o toque da cometa para a ra(;ao da aguardente os arrancou a inconsciente ta- refa.
Rodando a ceiba, comecjavam de aquecer os estoma- gos, emquanto no navio as cousas se dispunham, e tao regularmente tudo se fez que, escapando o vapor pelo tubò da descarga às ciuco lioras e mela, momen- tos depois estava a amarra guamecida ao cabrestan- te, e, achando-se de seguida postados ao leme e à pru- . mada os marinheiros especiaes d'esse servilo, subia o commandante a ponte trìnta minutos depois.
Viva; estd a piqué; an^amca; està a olho; engaia o turco, vira ao apparelho; dvante devagar; a estihordo o leme, foram as plirases que se seguiram no meio do silencio de uma manobra de bordo; e, n'um volver de ollios, a elegante corveta, fazendo cabe9a para o mar, seguia donairosa a bahia de Mossamedes afóra, e dando a popa a essas areias de monotono aspecto,
1 IriTìMO de uin dos auotorcs d'este livro.
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botava ao susudoeste parallelamente à costa, cujo cor- dSo ae distingiiia até morrer no sul em ponta avan- 9ada,
Urna brisa fagueira soprava no mar, qne, plano e corno que aìnda adormecido, miil embalava o navio.
= ^1 Mv'Pél
Subimo».
Era a nossa derradeira viagora pelo oceano n'esta « epoclia; e, na qualidade de marinbeiroB, queriamos desfructar o prazer de nos aiippor na ponte, encarre- gadoB de um quarto d'alva.
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- E que, apesar de tndo, embora seja duro o viver do liomem do mar, mal vae a qiiem, ao apartar-se por annos d'aquelles paiis ao alto, iiao sente confranger- se-lhe o corac^ao.
O navio é tudo para o marinlieiro. Ninho, lar, com- panlieiro inseparavel, especie de pedalo solto do paiz iiatal; lembru-llie a todo o momento este, acarician- do-o com a idea de que talvez um dia, arrastado nas azas do vento, para là o conduza.
Duas longas lioras passàmos, respirando a largos tragos as frescas brisas d'esse oceano que por tanto tempo iamos esquecer, e do qual nunca suspeitàmos afastar-nos tao contristados, soltando vóos com o pen- samento.
Ao cabo despertàmos; lam jà dobradas duas pon- tas, e transposta mais lima bahia, Cabo Negro app^i- receu, e logo depois demos vista de Porto Pinda, onde pelas doze horas e mela surgimos no ancoradouro.
Ao avistar os extensos areiaes que o foiinam e as soltas dunas que para o interior se alongam, seni o mais singelo signal de vegetacjào, se exceptuarmos uma lagoa que escoado o rio ali fica e que grupos de Borassus demarcam, pensàmos achar-nos abeirados de um Sahara. Comprimiu-se-nos o cora^ao à vista de tanta nudez, e embora habituados ao viver do mato, um sentimento desagradavel nos dominou, ao lembrar as fadigas que nos esperavam por meio d'es- ses areiaes estereis.
Como, porém, nao vinliamos a Pinda para fazer a singela experiencia de se ~ — sim ou nao — nos agra- dava o panorama que em redor da baliia se desdobra
Prìmeiros passos 9 1
aos ollios do viajante, lan<jàmos para longe impressoes, e no curto espac^o eie tres lioras mandavamos para a terra urna ceiitena de liomens e todo o material que iios pertencla.
Estavamos decididamente no Continente Negro, ur- gia proceder a moda do mato.
Foi o que se fez.
Depois de se construir o acampamento n'uma emi- nencia e de nos certificar que na proxima lagoa liavia agua, embora sulplmrosa, pozemos tudo em ordem, e ])ebendo um copo de vinlio à saude de Capello, que n'esse dia completava o seu quadragesimo terceiro anno, despedimo-nos dos sympathicos officiaes da cor- veta, que, voltando para o mundo que pensa, nos lan- ^avam um ultimo olliar de amigavel interesse.
Entràra a noite, e recolhendo-nos as pequenas ten- das fomos buscar no somno um allivio para as fadigas do dia, emquanto a corveta, fiizendo-se ao rumo do norte, desapparecia nas brumas escurecidas.
Profundo socego envolvéra o acampamento. Està sombria regiao, destituida de liabitadores humanos e apenas visitada pelos corvos, que coni o seu grasnar quebram pelo dia o encanto do mutismo naturai, e de noite pela hyena e outras feras, cujos liabitos se ac- commodam com a solidao perturbando o silencio, tem o quer que seja de tetrica e pavorosa.
Pelo immenso arcai afóra nem a brisa encontrava onde rumorejar, e, fugindo pressurosa em meio das planuras, fa talvez para as arvores longinquaS ciciar nas rarnagens, em pungentes queixumes, a aridez do deserto !
92 De Ampia d contra-costa
E a nossa imagina^ao, dominada por està scena, es- candecida pelo» calores do dia e cuidados do àmanha, fugia bidÌ90sa ao somno, atirando-nos irrequieta às mais estranhas considera^oes.
Ali estavamos, sós, separados de tudo e todos, es- tranhos aos ruidos do mundo, para dar comedo a urna empreza, que ninguem podia dizer onde nos levaria.
Quando, sem querer o pensamento, comò que para nos castigar, fugia até ao Indico, e, perpassando sobre 08 vastos territorios africanos, lembrava a sua gran- deza, as convulsoes que llie atormentiim a superficie, OS rios, OS lagos, as luctas emfim que nos esperavam, nós, erguendo meio corpo na bragata, e mirando tudo em redor, sentiamos uma especie de desalento, e cal- culavamos a pequenez das nossas for^as.
E que apesar de tudo o homem é um pygmeu, e, embora saiba que pequenos esfor^os reunidos podem produzir uma grande for9a, amargarlhe sempre a no- (^ao do tempo, aterra-o o convivio d'essa fatai compa- nheira em todas as emprezas — a incerteza.
Mas prosigamos no que importa.
Por numerosas rasoes haviamos escolhido para pon- to de partida Pinda, logar meridional da provincia, e d'ellas vamos dar aqui rapida idèa.
1.* Sendo de ha muito costume transpòrtar-se a Benguella todo aquelle que deseja transitar para o interior, acontece que as grandes zonas e caminhos do sul téem sido esquecidos, e os sertoes por onde elles cortam mais ou menos ignorados.
2.* Succedendo, em geral, serem os individuos que o viajante comsigo leva engajados no norte, o facto
Primeiros passos
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de transportal-09 para o sul parece que devia evitar deser^Ses.
3.' A Buavidade do clima era urna garantia do suc- cesso, porque, sendo mais graduai a adapta^So do eu- ropeu, Ihe consente ir mais louge scm o castigo da febre.
4.' Intercssando-nos corrw diagonalmente o gran- de districto de Mossamedes, e visitando o Humbe conbecer do grau de facilidade do percurso até ao Zambeze, ainda Pinda ou qiialquer ponto no sul nos punlia em mcllior medida de o fazer.
94 De Angola d controH:osta
5/ Emfiiii, o reconhecimento do curso do Coróca, e o acertar se este rio tiiilia ligacjao com o Cuncue, corno suppunhamos e se vera pela descripcjào adiaii- te, era ainda urna rasao a additar.
Eis o que se aclia em nosso diario :
ccMuitas iiifomiacjoes nos levam a crer que o rio Coróca tein pelo sueste urna commiinica<;ao com algum rio, por damha^ ou valla, que em outros tempos dava talvez regular vasào às aguas, e agora se toriiou perio- dica por estar em parte obstruida, so dando passagem a està iias clieias exageradas.
«E se atteiitarmos em que toda a zona entre a bahia dos Tigres e o Cmiene e constituida por areias soltas, e que os ventos ali predominantes sao do susu- doeste, facilmente poderemos comprehender que, j un- tando-se aquellas conduzidas peloar ao constante tra- ballio das aguas, conseguiriam ao fim de um tempo qualquer embara^ar o cursQ que primitivamente li- gava o Cunene (?) ao Coróca, fazendo com que este fosse uma das suas embocaduras. Assim se explica- riam as extraordinaria s clieias do ultimo e a falta de aguas na barra do primeiro. »
Por todos estes motivos escolhemos Pinda corno ponto inicial da partida, convictos de que alii, melhor podendo dominar a gente, e resolver os problemas que primeiro interessavam, maior somma de garantia de exito teriamos para os trabalhos a effectuar-se.
Mas 0 ìiomem pòe e Deus dispoe, diz o popular rifòo, e beni verdadeiro e elle por vezes, pois breve vamos
1 Damhay rio cujo curso se couserva secco na estiagem.
Primeiros passos 95
ver, corno, apesar de toda a do^ura e perseveranza empregadas com o lim de persuadir os nossos com- panlieii'os a essa submissao que elles descoiiheciam, mas fatalmente necessaria; apesar de todo o esforijo para, sem rigor ou prepotencia, tornal-os de selva- gens em homens, elles, enganando-nos, tudo lam com- promettendo, comò expozemos no comezo do presente capitulo.
Erguendo-nos com a aurora do dia seguinte, reco- Ihemo-nos com o occaso, despendendo o espazo de tempo que mediou entre os dois phenomenos, com uma serie de observa^oes astronomicas, magneticas e meteorologicas, a que acrescentàmos uma excursào geologico-botanica e uni exercicio geral de tiro ao alvo.
Ao terceiro dia abalàmos areiaes afóra, em procura da fazenda de S. Bento do Sul, e escorrendo em suor por causa do excessivo calor, ali cliegàmos ao anoi- tecer, depois de percorridas 17 loìiyas milhas, pelo leito do rio Coróca, n'esta quadra completamente secco.
0 aspecto do paiz conservou-se o mesmo. Eis o que d'elle podemos dizer:
Imagine o leitor um vasto terreno pouco alto e for- mado por soltas e dispersas dunas, tendo pelo norte e a partir da costa em 10 milhas de extensào, uma fa- cha arenosa e lisa, que, correndo a leste, constitue o leito de um rio sem gota de agua ; acompanhe a banda opposta por mais elevado cordao em todo o dito per- curso, arido e secco comò a bacia de que vos fallà- mos; volva, ao cabo das milhas indicadas, està ordem de cousas ao rumo de sul; pare no fim de 5 ou 6 mi-
96 De Aìigola d conti^a-^osia
llias junto de umas edifica(;oes quadrangulares de ado- be, algumas vermelhas, outras caiadas, assentes corno ao acaso sobre o plano esteril que constitue està re- giao, e terà idèa approximada da terra vista por nós da costa até S. Sento.
Os caracteres geologicos da zona foram ligeiramen- te estudados. Antigo fundo do mar, està rcgiao, co- berta por inteiro, emergiu formando a linha litoral.
Tudo indica ser uma forma^ào terciaria que a des- coberto se aclia na linha da costa n'este parallelo. A superficie encontra-se um calcareo silicioso, compacto e cinzento, cortado de vincidos de quartzo e silex cin- zento atravessado por estes sub-parallelamente, que, representando certos accidentes do mesmo calcareo, se aclia disperso em calhaus à superficie do solo e n'uma altitude de 40 e 50 metros acima do mar.
Este é constituido por grès muito fino argillo-calca- rifero, de cor amarellada (molassa?) e por um calcareo argillo-arenoso compacto, encliendo moldes de Car- dium do typo de Cahians, Brocchi, etc.
Encontra-se um outro duro concrecionado stalacti- tico, com fi'agmentos de quartzo e pequenos calhaus rolados de quartzite avermelhada; para o interior e mais amarello e terroso, achando-se empregnado de crystaes de talcite, onde conchas petrificadas foram substituidas por està, e sao dos generos Natica, Nassa, Bucdnum ou Ehuima e Ostreas, todas de pequena es- tatura; e mais uma outra recente do genero Achatina; e eis quanto sobre o caso podemos dizer.
Os habitantes d'està pobre zona denominam-se, segundo nos informam, ba-ximba, ba-coróca e ba-
Primeiros paasos 9 7
coanhóca, parecendo que estes sào descendentea de cubaes, em outro tempo viiidos dog Gambos.
A sua simples inspec^So e lingiiagem evìdenciam logo estarmos entre gente quo proximas i*ela(;5e8 de parentesco deve ter coni as tribus do sul, iato é, entre
individuos d'essa grande famìlia que algiins auctores designam genericamente por a-bantu, e que compre- bende no sul OS dàmara e os ovambo; tem perto [oa ba-tchuana, e para o oriente o grande grupo ama-zulo e ama-xoza, assim corno a iufinìdade de tiibus do sul
98 De Angola d contra-costa
e margens do Zambeze. conhecidas por ba-nhungue (Tete), ban-sua (Zumbo), ma-bzite (Landim), ba-tonga, ba-nhiai, ba-zizulo, ba-tóca, ma-chona, ba-senga, ba- rara, ba-renguc, ma-cololo, ba-rounda, ba-góa, etc.
Um facto multo digno de notar-se n'estes povos é o celebrado clic/ite dentai, que eivando-llies a Hn- giiagem, estala em todas as suas phrases, ferindo o ouvido do viajante e levando a crer que, erabora nào seja està urna variante da lingua nama ou córa dos habitadores de Namaqua e terras do sul, tem seni em- bargo muitos termos d'ella. A numera9ao diflFere tanto das linguas do iiorte, que devemos pol-a aqui para dar unia idea *.
Singelos pastores, raras vezes cacando, fazem con- stituir a sua fortuna em algumas duzias de cabeijas de gado. Um sordido panno na cinta, um bordào ou za- gaia na destra, e um mólho de amuletos, paus e bu- zios ao pesco9o, juntos a iiadas de missanga, consti- tuem a suprema distincijao.
A sua pelle é extremamente retinta, untam com manteiga os cabellos, comò os ban-dombe do norte, amassando-os por maneira que o penteado parece uma verdadeira caba9a !
As mulheres, em geral, sao horrorosas, aggravando este desfavor da natureza com enfeites de missanga
i Um (r^'ui). Dois (Tz'ana), Tres (Dato). Quatro (Na). Cinco (Ta- ne). Seis (Tz'umho), Sete {Tz'aìo), Oito (Sebereto). Nove (Moia). Dez (Mola). Onze (rz'ui-sófa). Doze (Tz^ui-ana). Treze (Datui'a). Quatorze (Nei'a). Quinze (Tamud'a). Dezeseis (Nemora). Dezesete (7z*ai-nhoba ou Tuainhoba). Dezoito (Tz'ui-munho ou Sebereto). Dezenove (Mola- mola). Vinte (Tz'ui-mola).
Pnmeiros passos 9 9
em redor do pesco90 e rins, o que llies dà grotesco aspecto.
Pouca estima parece terem os homens por ellas, ou melhor estao n'estes inteiramente adormecidos os mais elementares sentimentos de dignidade, pois conside- ram o adulterio comò um negocio que, se o esposo sus- peita ou tem provas cabaes, nao pensa em castigar, mas ao contrario faz volver em seu proveito.
Assim, ao ter noticia do facto, é quem primeiro dà rebate, accusando perante a tribù o individuo que pretende espoliar, o qual, provando-se o crime, paga pelo menos um boi.
0 curioso, porém, é que a circumstancia de liaver satisfeito està imposÌ9ao confere de futuro ao espolia- do o direito de se introduzir em casa da sua adorada quantas vezes quizer. De maneira que se apontam esposos, possuindo manadas de gado que as pegueni- ThOLS faltas das levianas companheiras augmentam dia a dia, o qual dariam de bom grado para poderem um momento ter ingresso no proprio domicilio!
Os ba-coróca nao sepultam os mortos, contentan- do-se em lan^al-os nos vallados, onde as feras téem pela noite o cuidado de os fazer desapparecer.
Logo que um infeliz està para morrer prepara-se tudo na habita^ao, escolliendo-se dez homens dos mais possantes da tribù, para serem empregados na obra do seu afastamento. Estes aguardam o instante em que elle exhale o ultimo suspiro, e quando d'isso se con- vencem, envolvem-no n^um panno, que ajustam e amarram, pegando-lhe um dos dez, e abalam por determinado caminho.
100 De Angola d contro-costa
Seguem-no em Hnha os restantes.
Percomdo um certo espa^o de caminho, faz o da frente signal, e o que se Ihe segue approxima-se, re- cebendo d'elle o cadaver, e quem se libertou do fardo, volvendo-lhe as costas, parte a correr desordenada- mente para a retaguarda, iiao devendo urna so vez voltar OS olhos!
Por seu turno o segundo, ao cabo de algims pas- sos, faz signal ao terceiro, e assim vao successiva- mente até ao ultimo, que, completo o seu caminho, joga à terra o corpo, safando-se!
Quando o defunto é pessoa de considera9ao, comò, por exemplo, * soba, segue-se processo em quasi tudo analogo, diflFerindo so na circumstancia de ser este envolvido n'uma pelle de boi preto, morto para a oc- casiao, cuja carne nào póde ser comida por pessoa alguma, devendo por isso lan^ar-se fora.
É notavel a coincidencia d'este proceder com o que diz sir J. Lubbock no Homme avant Vhistoire, quando falla do tumulo de Treenhoi, na Jutlandia, e que diz: « onde o guerreiro, envolvido nos seus pannos, se acha encerrado n'uma pelle de boi » .
Ao inquirirmos por que devia o boi ser preto, res- poftderam-nos : poi^que é conio o sóba; rasao extraordi- naria que nada explica, e nós julgàmos ser preferido por se tornar mais facil adquirir para o rebanlio bois d'aquella cor.
Huca ou Suca é tambem de8Ìgna9ao por elles dada quando inquiridos de comò chamam a Deus. Zuaria, que era o mu-coróca interrogado, riu-se quando quize- mos sobre o caso adiantar mais alguma cousa, fazendo
Prìmdros passos
101
logo confusilo com o sol, dcmonstrando claramcnte que a aimilhante termo nao andava ligada idèa alguma bo- bre o Creador.
Praticam os ba-coróca a circumcisào, e o que se tor- na notavel é que a fazem quando jà proximoa da vi-
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rilidade. Emquanto adolescente conliece-se o nào cir- cumciso por urna faclia de cabello no alto da cabc^a, da nuca ^ testa, sendo o resto rapado, fónna extrava- gante que aó abaudonam depois do dia da operaijSo para deixarem inteira a trunfa, que, invariavelmente
102
De Angola d co7itrar<osta
untada com a jà refenda manteìga, umas vezes aper- tam com estreita correla por cima das orelhas, outras mettem inteira na panqa, limpa e preparada de um boi!
E apto o terreno d'aqui para a cultura do algodao, batata, milho, sorgilo, etc, sendo para lamentar que as prolongadas estiagens aniquilem em certos annos 08 esforijos dos agricultores.
Estudo attento das lagoas existentes, assim comò um traballio de reprezas e po^os, poderia talvez obviar a parte d'estes males.
A nossa chegada a este logar foi saudada dois dias depois por uma desercjao em massa de todos os co- rócas da localidade, e isto pela s^ngela causa de que, solicitando do soba uns vinte carregadores para nos levarem mantimentos até ao Cunene, este declarou que, nós iriamos certamente morrer, pois nunca pes- soa alguma ali fora.
Isto foi sufficiente, com uns additamentos que a imagina9ào gentilica costuma condimentar facilmente com pavores, para que os espiritos dos nossos come- ^assem a incitar-se.
Era infallivel a morte, a seu ver, e radicando-se-llies no espirito està convic9ao, todos viam jà o réspectivo esqueleto branqueado, marcando no arcai uma agonia de mais e uma vida de menos!
Comprehendendo com muito boas rasoes que qual-
.quer demora podia ser-nos nociva, aggravando uma
situa9ào jà de si tao sèria, dèmos aos nossos o signal
de leva-<irriba, e, coadjuvados por alguns homens do
estimavel proprietario d'ali, o sr. Emygdio de Figuei-
Primeiros passos 103
redo, abalàmos rio acima, escrevendo o que se segue em nosso diario:
«O terreno, ao principiò plano, torna-se a 3 mi- Ihas adiante ffagoso, embrenhando-nos por entre pe- nedias recortadas em sentidos diversos e que devem nas chuvas originar urna damba.
«O seu aspecto indica sereni cohstituidas pelo gneiss e schisto amphlbolico ; welwitchias e eupliorbias con- stituem a vegeta9ao da terra mais elevada, de envolta com toros de resequido capim, tra^ado pelo* dente dos antilopes, o qual reverdece às primeiras aguas.
«Na margem do rio uma graminea mais elevada, similhando o Ainmdo, e uma leguminosa arborescente, Acacia albida, à mistura com esse supposto cedro Ta- marix articidaia, entrela9am os seus ramos à beira da agua, que as depressoes represaram, d'onde emergem Hyhpcenes. Leoes, gazellas comò uma de barriga e lombo branco, A. euchore; antilopes comò o galengue, Oryx gazella^; o unjiri, Sterp. cudù, cuja femea des- provida de hastes, tem longas orelhas comò o burro, percorrem està zona à procura de alimento e agua.
«Um macaco, cuja pégada nao tem menos de 12 centimetros, de grande cauda e pello fulvo, que sup- pomos ser um cynoceplialo, por causa de arremetter, segundo disseram, encontra-se aqui.
«Um pequeno quadrupede, a que os indigenas clia- mam maboque, talvez uma genetta, vive nos penedos, em abundancia.
r
1 £ o galengue na fóruia tal corno o gcmsbok ; sóineute julgàmol-o differir um pouco na cor, que é castanha clara.
104 De Angola d controncosta
«Aves sao numerosas, sendo para notar o grande numero e variedade de patos.
«0 pato ferrao, Plectropterus (/ambensis; o pato com- muni, Poedlonetta erythrm^hyncha; o Spatulata capen- sis; o Querquedula hottentota; o Thalassiomis leuccniotay o Deadorocygna viduaia; sao outras tantas especies de que nos occorre fallar.
«Vé-se ainda o flamingo, Pìioenicopterus efì^ythrocus ; o pelicano, que os pretos chamam quiciia, Pd. rufes- cens, com a sua poupa, e a bolsa gutural amarella; pemaltas, especie de gar^as, Herodias alba e Herodias intermedia, que associadas andam n'esta epocha; o gallo das pedras, a que os naturaes chamam tiatra, Saoricola leucomelaenor-nioniicola, talvez nao conhecido scientificamente n'esta zona; uma pequena rolla de longa cauda e peito preto, cliamada tondul-lo, Oena capensis; um milharuco, Merops superciliosus , de com- prido bico e verde plumagem; emfim, voam tambem aqui OS corvos e as pintadas, de que ha duas varieda- des, bem comò na costa um coi'vo marinho, Graculus luddus. »
Emquanto nós socegados no acampamento, onde ti- nhamos chegado às ciuco horas, escrevendo estas linhas e fechando de manso o diario, nos preparavamos des- cuidosos para a refeÌ9ao improvisada em curto espa^o de tempo, um facto bem grave se dava no conce da co- mitiva, que ainda atrazada pelo tempo nao recolhéra.
E, inconscientes, sem de leve suspeitarmos o com- promettimento por que estavam passando nossos inte- resses, ao anoitecer, pelas oito horas, acrescentavamos no diario:
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Primeiros passos 105
«E singnlar, faltam quarenta e dois homens com as respectivas cargas, que embora se tivessem atrazado pelas horas de inaior calor, jà tinham tempo de sobra para chegar. Cansados, nao tiveram forcjas para arras- tar-se até aqui, e, acampando no primeiro logar apro- priado que encontraram, so pela manhà apparecerao. »
Cerrou-se a noite. Estirados, tendo a abobada ce- leste por tecto e^uma fogueira por manta, pois as tendas vinham na retaguarda, adormecemos n'aquelle somno consequente da fadiga, e proprio de urna saude sa e robusta, levanda de um folego todas as horas do escu- ro. E so quando o sol, com a sua aureola gloriosa, come^ou de espargir pelos espa90s torrentes de luz, animando e enchendo de mil ruidos o ambito enrege- lado, é que nós, descerrando as palpebras, compre- hendemos que urgia levantar.
Durante tres longas horas esperàmos a gente que atraz ficàra, dominados por aquelle anceio que ator- menta e mortifica quem espera; até que a final resol- vemos mandar em sua procura o chefe e dois homens de mais confiancja, ordenando-lhes que sem perda de tempo obrigassem taes mandrioes a caminhar.
Bem pouco haviam elles mandriado, ao que parece!
Mais duas horas ainda decorreram; jà o sol, abei- rando-se do zenith, escaldava a tudo e a todos com os seus fi:ementes raios, e o naturai quebramento nos convidava a repousar & sombra de um proximo espi- nheiro, quando subito ruido entre os nossos nos cha- mou a atten^ao para as bandas do norte.
Tres vultos ao longe avan^avam azafamados por meio do areal.
PS
106 De Angola d contro-costa
As duvidas que nas ultimas horas tinham domina- do o nosso espirito come9avain a fortalecer-se, e um presentimento qualquer nos dizia que se iam tornar em certeza; esperàmos ainda um momento, approxi- mam-se; jà se Ihe véem as caras, todos Ihe miram o olhar, com o intuito de por elle poderem alguma cousa concluir; cliegaram.
— Entao? onde està a gente?
Fugiu tudo, senhores! No meio do campo jazem os fardos abertos, tendo parte do conteiido roubado de misturk com caixas partidas, sextantes e theodolitos dispersos. E uma confusao tal, que so à vista podem apreciar.
CAPITULO III
NA REGIAO LITORAL
Mossainedes — Breve iioticia sobrc a historia da sua funda^tlo — Clima, consti tui^ao geologica e vegeta^So — Tribus indigenas — Habita^oes— Urna marcha vertiginosa — Cincoenta cquatro milhas em vinte e cinco horas — Urna necessaria refei^ilo e o encontro dos fugitivos — De novo no rio Coróca — Noticia sobre cstc — Suas margens — Fadiga da marcha — Urna chela — A solidSo e os animaes silvestres — Regresso a Mossame- dcs — Partida definitiva para o sertìio — A geologia e os odres - 0 pri- meiro bao-bab — A aridez do paiz e recuas de zebras — A couag-ghaV — Depositos de agiia — Fedra Pequena — Fedras Grande e Maior — Nestor, 0 ca9ador de leoes — Urna morte ridicala e urna visita inesperada — A agricultura no districto e a villa de Capangombe — A fortaleza e duas considera^oes geologicas.
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Em 1785, Bendo govcrnador goral de Angolii José de Almeìda - n Vasconcellos, barSo de Mossa-
^^ 'X medert/orgaiiisaram-se na capital
da provincia duas expedi^òcs, coni o proposito de es- tudarem " as ten-as que do districto 'de Bcnguella se estendiam para o sul.
A primeira, devendo ser intentada por mar, foì commettida ao coronel Luiz Candido Cordeiro Pinhei- ro Furtado, que para esse firn recebeu n'um navio equipado e prompto tudo o que podia necessitar.
A segunda, cujo firn era proseguir para as terras do interior e ahi fazer o rcconhecimento completo dos sertSea do sul, foi ctJnfiada a Gregorio José Men-
110 De Angola d contro-costa
des, homem assàs conhecido e respeitado na provin- cia.
Partindo em desempenho do servÌ90 que Ihes havia sido commettido, proseguiram por mar e terra respe- ctivamente para o sul, indo encontrar-se na ampia bahia que ao tempo era conhecida pela denominammo de Angra do Negro.
Ahi installados, e depois de a haverem baptisado com o nome de bahia de Mossamedes, em honra do goveniador geral, comemaram de entabolar rela^oes com OS indigenas, no intuito de os trazer à submissào e recónhecimento da nossa soberania.
Nào julgàmos que tivessem completo exito os tra- balhos d'està expedimao, alias tao bem organisada, a qual se assignalou pela lamentavel perda do tenente Sepulveda, do cirurgiào do navio de Pinheiro Furtado, e mais dois marinheiros assassinados pelos indigenas, rasào por que se deu ao rio Bero o nome de rio dos Mortos.
Em todo o caso, desde essa epocha para cà, os so- bas do Dombe, do Giraul, do Quipolla e Coróca fica- ram conhecendo os novos senhores da vasta regiao onde habitavam, e iniciados na formosa necessidade de se considerar em vassallos do rei de Portugal.
Passaram depois largos annos sem mais se pensar na Angra do Negro, que apenas era visitada por algum baleeiro desgarrado que vinha ali fazer a aguada, até que em 1839, sendo govemador de Angola D. Antonio de Noronha, enviou duas novas exi^edi^oes a Mossa- medes, uma por mar na escima Izabel Maria, sob o commando do primeiro tenente Pedro Alexandrino da
Na regiào litoral 111
Cunha, que mais tarde tambem govemou aquella pro- vincia, e outra por terra, sob a direccjSo do major Garcia.
Datam d'este tempo os verdadeiros trabalhos para a colonÌ8a9ào e dominio d'aquella regiào, que, pela sua distancia da capital e arido aspecto talvez, a tinha feito tanto tempo esquecer.-
Em 1840 decidiu-se construir o forte de Ponta Ne- gra, assim comò se assentaram os fundamentos de uma villa, estabelecendo-se ahi uma feitoria dirigida por dois negociantes Jacomo Filippe Torres e Antonio Joaquim Guimaraes, e pouco depois foi està terra colo- nisada por gente vinda da Madeira e do Brazil, que a 4 de agosto do anno de 1845 n'ella se installou definitivamente.
D'ahi para cà Mossamedes tem progredido por ma- neira, que é hoje um dos logares mais pittorescos e im- portantes da costa do ceste.
0 seu clima suave e temperado; as brisas que a refi'igeram, devidas à influencia da corrente oceanica que vinda do cabo da Boa Esperan9a parallelamente à costa sob ellas passa; as vi^osas hortas que a cir- cumdam, contrastando com a aspereza das encostas e planicies em redor, attrahem ali quantos individuos pretendem restabelecer a saude deteriorada pelos ca- lores do norte, e mostra bem quanto tem podido a vontade d'esse punliado de homens, que, ao entrarem em tal terreno, o encontraram quasi deserto e percor- rido de quando em quando por salteadores. Raras sao as febres de grave caracter, apenas as intermitten- tes, quando inunda o Bero, atacam a imi ou outro, e
112 De Angola d contro-costa
ainda as cephalalgias e conjunctivites sao frequentes, corno as ophthalmias, derivadas do reverbero da luz nas areias.
Acerca da constitui^ao geologica de Mossamedes pouco diremos por se terem perdido parte dos exem- plares que alcaiKjàmos n'aquella regiào, dando isto logar a que ao nosso sabio amigo e distincto geolo- go o sr. Nery Delgado se tornasse impossivel fazer qualquer traballio proficuo a respeito d'ella.
Eis OS unicos elementos que encontrou relativa- mente d baliia de Mossamedes, à costa do sul da ponta do Noronha e à bahia dos Elephantes no uorte.
Mossamedes:
Grès calcarifero amarello (molassa), com moldes de bivalvas, provavelmente da epocha terciaria^ eviden- ziando o mesmo deposito que nas margens do Coróca, bem comò um silex pyromaco.
Ao sul da ponta do Noronha, 150 metros de altltude:
Grès grosseiro amarello de cimento calcareo, pro- vavelmente terciario. Conchas* recentes dos generos Lespula, " Conus ou Erato, Purpura ou Caiicellaria, Fusus? Puirpura (subgenero Thalessa), Patella, Caly- ptraca (proxima de C. trochiformis, Grat.), Arca senilis. Nota-se serem as especies iguaes às da baliia dos Ele- phantes.
Bahia dos Elephantes, 170 metros de altitude:
Conchas recentes dos generos Phorus, Triton (T. succintum, Lank.J Patella, (duas especies de P. Lusi- tanica, Gmchin e P. coerulea Linn,), Calyptroea (simi- Ihante a C. trocJiifonnis, Grat.), Area senilis, Linn, (Senilia senilis, Gray) e Ledila sps.
Na regiào litorol 113
De tudo iste se infere a existencia a descoberto aqui, corno no Coróca e na baliia dos Elephantes, da forma9ao terciaria, sem que comtudo seja facil precisar a qual das sub-di visoes pertence a facha sub-alluvial, onde tambem se encontra urna rocha empregada na construc9ao, constituida por numerosas bivalvas ci- mentadas por um calcareo, conclias que nos parece- ram ser a Cyrena Cuneiformis, e outra no grès calca- rifero urna Cerithium?
Ao norte da bahia dos Elej^hantes no Dombe està a descoberto o terreno cretaceo, que se estende até Novo Redondo, onde parece existir a hulha e abun- dantes minas de chumbo.
0 que porém se nota de originai é o grande nume- ro de calhaus rolados que encontràmos a 150 e 160 metros de altura, por toda a parte, uns de calcareo silicioso, outros de textura porpliirica, etc, e que, recentemente traballiados, parecem evidenciar, ou um sublevamento assàs recente, ou uma lenta eleva9ao de toda a facha da costa, que de resto os colonos d'ali testemunliam, mostrando o logar onde outr'ora desem- barcaram, e que hoje està a 15 metros das maiores marés.
Outra circumstancia digna de toda a atten9ao é a seguinte. Trabalhando-se na perfiira9ao de um P090 em Mossamedes, encontrou-se, à proftindidade de 3 metros, um dente. Trazido para a Europa, este pare- ceu fora de toda a duvida ter pertencido a um hippo- pótamo pequeno.
A presen9a de tal quadrupede em similhante lo- gar, onde nao existe rio de vulto, e so a 180 millias
8
114 De Angola d contra-cosfa
se eiicontra o Cuneiie, parere indicar quo ii'iinia epo- cha nao nini distante desaguava na bahia uni grande rio, que mais tarde desappareceu por circumstancias quaesquer.
Nao onsiinios aventar tlieorias sobre o caso; mas, segmido presumimos, similliante facto confirma, até certo ponto, o sublevamento da terra, que póde ter originado uni desvio, se nao desseccamento do refe- rido leito, do mesmo modo que vae tornando agora apenas torrencial o curso dos existentes conio o Co- róca, etc.
Ficam expostas estas indica^oes, para que mais tarde alguem trate de aj^roveital-as, nao abandonan- do nós a idea de que a costa oeste da Africa, conio a Occidental da America, estao lentamente emergindo do scio do oceano que as banlia.
A vegeta9ao n'esta zona e extremamente rachitica e feia, fazendo em tudo lembrar a parte septentrional do deserto de Kalahari, essa extensa regiao que, vindo encontrar o mar na costa da terra de Namacjua e no paiz dos dàmaras, se prolonga para o norte a for- mar parte do districto de Mossamedes, conio diz o illustre botanico o sr. conde de Ficallio.
Assim comò da Dangoena e do Solle para o mar, atravessa o rio Cunene areias ou faclias rocliosas aridas, despidas de fertil vegeta9ao, e ainda para o norte, conio vinios em nossa viagem, o Coróca, es- trebuxando no apertado leito cavado nas ravinas das rochas gneissicas, sempre cobertas de franzina ver- dura, vem espraiar-se abaixo nos areaes e desertos de Pinda; assim estas terras correm para o norte, entre
Na reffiào litoral 115
o mar e a serra de Chella, até as altiiras do Bum- bo, com identico aspecto.
Adiante, funde-se gradiifilmente na vegeta9ao mais rica do districto de Bengiiella, emquanto pelo lado do oriente, e a medida (pie a altitude vae angmentando, se transforma na flora variadissima da Humpata e da Hiiilla.
Este caracter ijhytograidiico, acrescenta ainda o dis- tincto botanico, manifesta-se claramente na presenta de algumas fórmas typicas, corno sao a Welwitschia mirahilis, a Copaifcra mopanv, e especies espinliosas de acacia, a Horrida e outras, etc.
Nos Montes Negros, nos i)rimeiros contrafortes da Cliella e mesmo na Huilla, subindo para ali pelo lado do rio Caculovar, os esi^inheiros sao frequentes e va- riados, formando florestas baixas ou matos mais ou me- nos raros, attestando a evidencia de urna zona arida, que por aquella altura Vem terminar.
Uma rasteira eui)liorbia abunda nas planuras em redor, que os liabitantes colhem para com ella alimen tarem o fogo, bem conio uma acacia minuscula.
Acclimam-se todos os vegetaes da Europa, comò hoje e sabido, e desde a oliveira até à videira tudo ali progride.
Ila quatro tribus indigenas que i)ovoam està regiao, a saber: os quipóllas (mini-quipóllas, assim chamados), que residem pelo Valle dos Cavalleiros; os giraues, que se acliam estabelecidos nas margens do rio d'este nome; os corócas, com quem jà fizemos conhecimento no rio assim designado, e os ba-cuisso nas roclias do litoral.
116 De Angola d contra-costa
•
Duas d'estas sao sem duvida descendentes da gran- de familia dos cubaes, que se acha estabelecida n'este parallelo desde o mar até aos socalcos da Chella, e mesmo acima para o sul do Hoque; as duas outras, ba-coróca e ba-cuisso, provém certamente das terras meridionaes, por terem grandes tra90s de similhan^a com OS novos d'ali, etc, até mesmo no seu clique espe- cial e em outras affinidades, comò jà dissemos.
Pendem para a vida pastoni, alimentam-se muito de leite, que, quando cugulado e azedo, denominam n'gunde.
As suas liabitaijoes sao miseraveis e sordidas, bas- tando-lhes o tronco de uma especie de cari'apateiro com OS seus pequenos ramos, para que construam uma cu- bata.
Espetada a prumo no solo, curvam os ramos meno- res em roda, e, prendendo-os ao chao, cobrem-os com um pouco de capim, revestindo o todo com o excre- mento de boi.
Um pequeno buraco dà passagem para esses recin- tos, mais parecendo a fórma de forno do que liabita- 9ao de gente.
Supersticiosos em extremo, fallando tambem do celebre Huco (ente supremo?), téem o conhecido pavor pela lembran9a dos mortos, e runa grande venera^ao pelo gado vaccum.
Achàmo-nos em Mossamedes*, após as peripecias narradas no capitulo antecedente, onde nos trouxe
1 Està viagcm foi feita por um de nós, Ivens, emquanto o outro, Ca- pello, ficou com a comitiva e material.
Na regidx) litoral 117
urna marcha for^ada de 54 milhas, percorridas em vinte e cinco horas, quanta era a distancia que me- deava entre o ultimo acampamento do Coróca e està villa, cuja cifra, mais eloquentemente que uma des- crip^ao extensa, darà a medida da nossa angustia e soffrimentos.
Felizmente para nós achava-se o govemador geral ali, e ao ver-nos entrar pela residencia, estafado, sujo, com ar mais de salteador do que de pacato peonciro da sciencia, nao póde conter uma exclama<jao de es- panto:
— Que foi, que ventos contrarios o trazem por aqui, onde nao tencionava voi ver?
— 0 adiantarmo-nos a quarenta e dois homens nos- sos que fugiram, e devem a està hora vir a caminho d'este logar, respondemos com voz cavernosa.
E comò nos dispozessemos a encetar a descrip<jao do revez que nos acontecéra, elle cortou rapido, dizen- do: «Deixe-se d^sso; comò o negocio 6 so de gente, tem bom remedio »; e insinuando-nos graciosamente que para os males moraes a sciencia recommenda às vezes as consolacjoes physicas, ordenou que nos des- sem de comer, principal necessidade no momento.
E bem verdade era ! Desde as nove horas da ves- pera o nosso estomago recebéra apenas a visita de tmias tristes sardinhas de Nantes; que se ajuize pois o prazer experimentado após a ingestao da primeira travessa de bifes, porque ... foi mais de uma que nós com certeza devoràmos; e julgue-se da grandeza do nosso reconhecimento, ou melhor o do estomago, para com tal bemfeitor!
118 De Angola d carUror^osta
Apeiia8 U08 achàmos installados em Mossamedes, realisaram-se as nossas previsoes, apparecendo no dia , immediato o primeiro grupo de fugitivos.
Errando pelas aridas campinas do sul, vinliam es- faimados e sequiosos os miseraveis, e tanto soffreram no pouco tempo decorrido, que là haviam marcado o rastro da sua passagem com os cadaveres de dois companlieiros mortos pela fadiga.
Prevejiidos do seu apparecimento n'uma praia pro- xima, tivemos de por em execu^ao mais uni rasgo audacioso, qual foi o de montar um macho folgado, para llies sair ao encontro, facto que, para pèssimos cavalleiros comò nós, nao deixou de nos embara^ar seriamente.
Balou9ando-no8 comò se estiveramos em piena tol- da de navio sob o impulso de tempestuoso mar, para là nos dirigimos, e pouco a pouco, reunindo os que em redor appareciam, conseguimos alcan9ar metade d^elles, tendo os restantes desapparecido.
A idea de fazer caminho pelo rio Coróca com a nossa gente estava demonstrada impraticavel, urgindo procurar outro qualquer trilho, que llies nao inspirasse tao graves receios.
Após diversas considera9oes de cha pliilosophia, de- cidimos pelo da Huilla, nao abrindo comtudo mao da idèa de pelo menos fazer um pequeno reconliecimento àquelle rio.
Voi vendo de novo a S. Bento, preparou-se para isso uma pequena expedÌ9ao, com poucos dos nossos de mais confian9a, a fim de ver até que ponto seria possivel a fallada liga9ao do Coróca com o Cunene,
Na reyidx) litoral 119
expediijao que em seis dias de pe«quizas volveu, lia- veiido concluido e visto o seguinte:
O Coróca e uni rio torrcncial, iiiterinittente, impe- tuoso iias grandes clieias, cujas origens estao uas ver- tentes ^a Cliella, e cujo curso nada de communi póde ter com o Cunene, que llie fica para o sul.
0 seu leito, de 50 a 60 metros comò media, ergue- se rapidamente, sendo curiosò na parte mais inferior 0 contraste das terras que o marginam, pois e a mar- gem esquerda formada por duiias de areia solta, e a do noi*te por terras elevadas, archaicas, de feio aspe- cto, constituidas em geral pelo gneiss e scliisto am- phibolico.
A 30 milhas acima da embocadura cessa a areia da margeni meridional, jiinto ao curso de urna damba, denominada dos Carneiros, cujo leito superior ao do rio so recebe d'elle agiia por trasbordo em grandes enclieiites, agua que, demorada em po^os, deixa por evapora^ao coberto o lodo de efflorescencias de nitrato de soda.
0 seu curso e de encontro (i corrente do rio, o que evidenceia um canal de deriva^ào d'este e nunca um affluente que ali trouxesse as aguas do Cunene.
A montante do ponto citado, come^*am as margens a accidentar-se de mais em mais, e, erguendo-se e caindo, formam depois ravinas em todos os sentidos.
Torna-se entao a marcila para o viajante ii'uma fadiga permanente, pois, obrigado a caminliar pelas encostas que deitani sobre o rio, trope9a e resvala a todo o instante, quebrando-se-Uie o corpo com os es- for90s de equilibrio.
120 De Angola d contro-costa
Que diga o meu companheiro Guilherme Capello, distincto commandante da corveta que a Mossamedes nos transportou, quSo amargo Ihe foi aquelle primeiro tirocinio de explorador pelas encostas das serranias do Coróca sob um sol de escaldar, a despeito ^e toda a sua boa vontade!
Como fossemos avanzando dia a dia pelo curso do rio, antegostando a idèa de fazer um quasi completo reconhecimento do seu serpear, aprouve ao acaso im- pedir-nos o caminho com um embaracjo, que nos dissi- pou totalmente a satisfa9ao de tal conseguir.
Era ao alvorecer do terceiro dia. A aurora, desdo- brando o seu luminoso manto, come9àra de aclarar as terras em redor; uma brisa fresca, rociando-nos, re- temperava o animo, convidando a marchar; acabava de se erguer o acampamento, lamos partir, quando de subito, um ruido inesperado atroa os ares, rola o quer que seja perto de nós, um rumorejar estranilo adianta- se em meio d'està balburdia, uma exclama9ao unanime sauda emfim a causa originaria do inesperado pheno- meno !
N'uma curva do rio e a montante de nós, uma vaga espumante barra-lhe o curso de lado a lado, e galgan- do enfurecida por meio de penhascos e accidentes, es- padana aqui, salta acolà, espraiando-se ligeira pelo leito abaixo.
E um phenomeno curioso o d'essas enchentes tor- renciaes aqui, onde a agua com a sua presenta anima e vivifica tudo em poucos instantes.
Até entao, um silencio sepulchral nos envolvia, e o curso do rio secco e emmaranhado entre as rochas nuas
Na regiào litorol 121
e tisnadas que o apertam, mal deixa suspeitar ao via- jante a sua existencia.
Agora, cheio, entumecido, elevando-se a olhos vistos pelas margens que se alongam, absorvendo penhascos e ravinlfe, palpita a formidavel arteria, engrossada e resplandecente à luz do sol, e là vae corno longa fita a caminho do oceano, murmurando em todo o traje- cto. Foi corno que magica opera^ao, esse subito trans- formar de uma zona nua, secca e calada, em fresca, vivificante e ruidosa.
Penedias e accidentes do fiindo, tudo desappareceu, o humido len9ol estii*a-se-lhes por cima; e nós, que até entao, descendo por vezes para o seu leito, evitava- mos trabalhos e marcha pelas encostas, somos agora for9ados a caminhar sempre por ellas.
Nao foram muito longe os nossos esfor^os, porque, estreitando-se pouco a pouco as margens, que pro- gressivamente iam tambem subindo, chegàmos a uma garganta apertada, cujas paredes talliadas a piqué formam um vortice onde o rio redemoinha furioso, e que foi impossivel transpor.
For9ados a por ponto na excursao, volvemos, dando ao sexto dia entrada em S. Bento.
Pouco temos a acrescentar sobre està regiao, quasi esteril e alheia a factos de scientifico aproveitamento. Uma das facies sem duvida mais caracteristicas d'ella, e que nao tem seguramente outra comparavel na pro- vincia, e o estado de isolamento em que se acha.
Entrando, após meia duzia de leguas de marcha, parece que o viajante se afastou para os mais recon- ditos sertoes do Negro Continente.
122 De An<fola d cantra-costa
Nein ser liumaiio, nem a inarca da passagem do liomein ii'uma cabaiia ou em singola canoa de casca.
Apenas alguns ba-ximba nomadas por ahi às vezes se aventuram, corno depreUendemos de um tronco qneimado que encontràmos e por uns circuloPde pe- dras, talvez sepulturas, dispostas a fei(;ao dos cromh- clis, nas proximidades da garganta de que fallàmos; onde, sem embargo de muitas excavacjoes, nao en- contràmos despojoa, e isto nos levou a crer que, se para tal firn ali forani collocadas, era cir(*nnidando o cada- ver que as aves e feras devoraranx, se nao ao lado que o depunliam, segundo o nascente ou poente, corno ja no Senegal se encontrou.
VaVli compensa^ào, e em virtude d'este isolamento, abundam os animaes silvestres, tendo encontrado a expedi^ao constantes indicios da passagem de nume- rosos elephantes, de rhinocerontes, de leoes, de leo- pardos, de galengues e de ungiris; e, facto notavel, acliam-se estes animaes distribuidos nas margens coni rigorosa precisao. Assim nos areaes vé-se o Oryx <ja- zdla, esse antilope que tanto resiste à sede, e outros, percorrendo-os em todos os sentidos; emquanto que nas serranias téem Marida o leiio e as outras feras de que fallàmos.
So basta que o rei das selvas transponha o rio para encontrar failos recursos entre os infelizes nmii- nantes que por là divagam, e cujas brancas ossadas evidenceiam a miudo ao viajante uma agonia muda e luna lucta pela vida.
E tempo de terminar a descrip^ao d'essa triste zona do silencio, a fim de volver para o caminho sertanejo.
Na regiào liioral 123
Reuiiidos todos os elementos dispersos da expedi- (jao, assentt'imos de novo os nossos arraiaes em Mos- samedes, e, tendo tudo prompto, preparàmos a mar- cha, repetindo-se as mesmas fastidiosas scenas por qiie ha^amos passado no norte.
Estavamos decididamente agarrados ao oceano, e elle, de que com tanta saudade nos tinhamos separado, come^ava agora com a sua presenta a impressionar- nos de modo desagradavel, fazendo nascer em nosso espirito suspeitas de qne estaria escripto no livro do destino o nosso impossivel apartamento.
Os prejuizos que, impondo-se ao espirito, o domi- nam As vezes, de sorte que se torna difficil libertal-o, sao sempre causas attendiveis que urge prevenir.
Procedemos com urgencia aos arranjos indispensa- veis, preparando tudo no curto espa^o de uma semana.
A nossa partida teve logar a 24 de abril.
Depois de invariaveis peripecias, eis-nos de novo a caminho do interior, e, bifurcados nos bois-cavallos, despedimo-nos do oceano pela segunda vez.
Transpostas as liortas e jardins dependencia da villa, entràmos na estrada de Capangombe, que, ele- vando-se gradualmente, se desenrola sinuosa para o interior, atravez dos terrenos terciarios formados de rochas inconsistentes, comò o molasso que affloreia o terreno, o marne, etc, para logo encontrar comò succedaneos e interpostos entre elles e os primordiaes, OS secundarios do quaderstein, terminados no plano inferior pela forma9So laurenciana do gneiss amphi- bolico, que aqui é ainda separado das forma9oes se- dimentar es por uma facha de schisto primitivo.
1 24 De Angola d contro-costa
Impressionam de modo desagradavel as primeiras jomadas atravez d'essas terras aridas, onde apenas vegetam rachitica» acacias ou eupliorbias, que, entris- tecidas sob um sol abrazador, parecem esperar urna trovoada que Uies desembarace os estomatos da poeira accumulada, e Ihes restabele9a a re8pira9ao, trazeii- do-lhes à seiva a vivificante agua.
Por toda a parte, a perder de vista, emergem da terra morros de gneiss, que os musgos e o tempo téem manchado com negras tintas, e os raios do sol fenderam com profundos sulcos.
Entre os factos de digna men9ao, figura sem du- vida o que se refere a urna originai pianta, conliecida pelos odi'es.
Depois de transposto o curso do rio Giraul, sobe-se urna rampa da estrada, e adiante, no planalto supe- rior de scliistos primitivos, entra-se na pianura, onde aquelles em silencio aguardam do viajante as excla- ma9oes de espanto.
A um tronco rasteiro e tortuoso de folhas largas, duras e resistentes prende-se o celebrado fructo, cuja fórma e aspecto é inteiramente comò o de um odre de pelle de cabrito. 0 mais atilado odreiro tomal- os-la, quando suspensos entre outros, por obra de mao de mestre, e so se desenganaria ao apreciar-lhe 0 peso.
Encontràmos aqui o primeiro bao-bab a urna alti- tude proximamente de 500 metros, e comò n'um locai cliamado Fedra Maior nao houvesse sufficiente agua, proseguimos a caminho de outro chamada Fedra Fe- quena.
Na regiào litorol 125
Tem tao mediocre interesse està parte da viagem, que vamos proseguir, transcrevendo na integra o que em nosso diario se acha exarado.
«Dia 25 de abril.
« Prosegue o trilho pela mesma maneira e aspecto, so com a singela variante ao apparecimento de um ge- nero de cogumelo branco volunioso, que, aqui e alem, corta a arida monotonia.
« Desappareceram os odres; leguminosas de espinho arborescentes, com a copa d fei^ao de uma umbella, acompanham o viajante ao longo do trilho.
«Facto notavel e digno de men^'So! A vida vertebra- da minuscula (se isso se póde dizer para o caso) é por aqui escassa ou raramente representada. As mesmas aves quasi desappareceram, e os reptis, esses atrevi- dos habitadores de quantas pencdias e tractos aridos de terreno existem no mundo, tambem ali se nao ob- servam.
« Ao cafr do dia acampdmos na Fedra Pequena, hloc de gneiss cavado a meio, onde a agua existente era em tao pouca quantidade, que a nossa gente a es- gotou ao anoitecer.
« Grandes bandos ou recuas de zebras foram obser- vadas, bem comò nos affirmam que algumas eram bran- cas, 0 que nos levou a suppor seriam couagghas.
«Defronta-nos a leste uma regiao inteiramente se- meada de morros. »
«Dia 2G de abril.
«Ao alvorecer poz-se a caravana a caminho; 3 milhas adiante o trilho enfia por entre os cerros de que hontem fallàmos, verdadeiras massas, ou de grès
126 De Angola d contra-cosia
ou de gneiss, a mistura com peiiedias de seliistos mi- eaceos, etc.
« Vae variando o reino vegetai, que i)onco a pouco se toiTia mais opulento, fazendo lembrar uma zona por nós atravessada em a nossa primeira viagem do Dombe para Quillengues. Falham os espinheiros, ap- parecem acacias differentes, papilionaceas, algumas ervtlirinas de vemiellios caclios e outras.
M 0 reino animai vae guardando similhante propor- 9ao, sendo jà numerosas as especies de aves que nos distrahem com alegres gorgeios.
«As nove lioras da manlia chegàmos a Fedra Gran- de, que, comò as anteriores, nao passa de ser um aflo- ramento de gneiss com amplas depressòes ou vasios a meio, onde se accumula a agua da chuva, coberta lit- teralmente pela alfacinlia, que julgamos ser a Psistia stvdtiotes. E o recurso dos ban-dombe e viajantes em transito para o interior, bem comò das feras e anti- lopes.
« Abunda o leào n'esta terra, observando-se por toda a parte restos de suas presas.
<( Cometa precisamente aqui a apparecer essa arv ore denominada mutiate, uma Bauhhiia, segundo pensa- mos, ao passo que vao desapparecendo as legumino- sas de espinlio.
«Gazellas numerosas percorrem a pianura, assini comò bastos reptis liabitam quantos buracos se en- contram nos penedos circumvizinhos, e um càgado minusculo, na agua.
« Desappareceu o galengue, apparecem em bandos OS ungiris. Montados nos bois proseguimos em nossa
Na regimo litoì^al 127
•
viagem para a Fedra Providencia, aonde chegàmos pelas duas horas da tarde.
«Agrada jà o aspecto do paiz. Um manto de ver- dura cobre ao longe a terra, dando-lhe um ar de ale- gria e vida. »
«Dia 27 de abril.
«Percorremos durante està jomada toda a distan- cia que vae da Pedra Providencia à fazenda Nas- cente, na margem do rio Muninlio.
« E seu proprietario um cavalheiro chamado Nestor, afamado ca9ador de leoes, que até a presente data tem, ao que se diz, livrado a zona que liabita de vinte e seis d'estes ferozes animaes.
«Entre varias peripecias succedidas a este senlior (que téem sido muitas, pondo por vezes em risco a vida d'esse segundo Gerarci)? ouvimos narrar uma, que pelo ridiculo merece apontar-se.
«Versa sobre uma partida de ca^a ao leao.
« Succedeu um dia Nestor ser atacado em sua pro- pria casa por atrevido leao que Ihe farejava o curral. Saindo ao cercado, attrahido pelo barulho da gente, topou de frente com o animai, que, vendo-o, investiu.
«0 recurso do bravo homem foi ir recuando para o compartimento que servia de casa de jantar, cuja porta se acliava aberta, e onde sabia ter as suas ar- mas. Tendo por felicidade um candieiro acceso, sal- vou-o na surpreza, pois, batendo de frente no leao ao atirar-se, o fez estacar.
«Lan9ando mao da carabina, apontou e fez fogo. 0 animai, ao sentir-se ferido, saltou desnorteado, pe- netrando ao acaso pela porta da cozinha, cujas ca^a-
128 De Angola d coniror^osta
rolas e panellas n'um momento poz na mais comple- ta confusao!
«Revolvendo tudo, saltava em todas as direc9oe8, até que de uma vez com grande arranco cnfiou 9. cabe9a por entre as travessas de mna mesa de cozinha, e ahi acabou entalado, mais vilmente que o seu congenere da fabula !
c( Està accidentada regiSo é dividida do noroeste ao sueste pelo rio Muninho, em cujas margens se acham as planta^oes, compostas exclusivamente de algodoei- ros, unico artigo de exporta9ao, e milho, que se apro- veita so comò mantimento, segundo nos informaram, para os trabalhadores.
« E notavel que os agricultores de Mossamedes, os quaes com tanto afan buscam engajar gente e tao caro a pagam, estejam lioje quasi reduzidos a piantar mantimentos para essa gente.
« Com a baixa do algodao abalaram-se as suas espe- ran9as, e ainda se o mantimento podesse ser enviado à costa, para là ser vendido, bom seria, mas, na opiniao d^elles, sendo isso impossivel (e nós o acreditàmos), em virtude da exagerada despeza nos carretos, nao é facil perceber o que esperam.
«Assim, essas grandes propriedades do interior do districto estao hoje quasi so produzindo milho, que OS serviijaes cultivam, e elles mesmo comem, e isto quando as chuvas sao regulares, alias o agricultor tem de cair na mao dos especuladores do litoral.
«A situa9ao agricola n'esta parte da provincia é pouco prospera, e um estudo no sentido de conseguir agua permanente n'esta terra é de urgencia fazer-se,
Na regiào lito7'al 129
estudo que nSo parece multo tUfficil, pois por muìtos i n'esta importante terra nos fomeceram escla-
recimentos da provavel existencia de agua, e de nume- rosas naaccntcs que poderiam talvez aproveitar-se.»
130 De Angola d coìdra-costa
«Dia 28 de abril.
« Considera-se lioje dia de descanso para a gente. Fizeram-se variadas observa9oes. Deu-se pela noite iim facto originai.
«Como estivessemos exhauridos de mantimentos, abatenios uni boi, que veiu para junto das nossas ten- das, e ahi foi esfolado.
« Fictlra, comp e naturai, urna basta por9ao de san- gue, que, pelo adiantado da bora, se nao pensou em limpar. Entra o escuro, socega a gente.
« Seriam perto das duas horas, donnia tudo a somno solto e no mais sepulcbral silencio, quando ^^sita ines- perada penetrou no campo.
«Um enorme leao approximou-se, deu ingresso, e dirigindo-se às poijas de sangue, lambeu-o com toda a placidez.
«0 mais notavel, porém, foi lun dos moleques, que dormia junto às nossas barracas, despertou, mas te ve tanmnlio terror, que se conservou immovel, nao dando o menor signal.
«Era multo grande, senhor, dizia elle, e ao abaiar ia atirando com a tenda a ten-a, porque trope^ou nas cordas que pelos lados a seguram!
« Estranila crise devia ser a nossa, se no momento de retirar-se tal visita iios càe a babita^ao, deixando- nos entontecidos e abracjados com um animai d'aquella laia ! »
Abandonando o diario, prosigamos.
No intuito de nos internannos rapidamente, partimos com o findar do niez de abril a caminho de Capau- fombe, por meio de uma floresta de espiaheiros que
Na regiào Utcn^al 131
logo adiante se nos deparou, dardejados por sol de 40° centigrados.
Ao longe via-se, entre os socalcos da Chella, er- guer-se um morrò colossal denominado Cha-Malundo, do qual nos pretendiamos approximar, cortando por melo das planta^ocs.
Capangombe, logar chefe do concelho do Bumbo, està assente n'uma planicie pouco pittoresca, que en- costando por leste ao socalco das asperas serranias, recebe em baixo quanta agua espadana pelas ravinas d'aquellas.
A meio està a vasta fortaleza, protectora d'este lo- gar, a cuja escolha nao presidia o bom senso.
Existem varias planta9oes, sendo apenas recommen- davel o algodao, de que jà se exportam cerca de trinta mil arrobas.
Terminam aqui as terras inferiores com urna alti- tude media de 535 metros no sopé das aprumadas en- costas do planalto, cuja altura e vertical rasgado, ou viveza das testas das cumiadas do gneiss (comò diz o nosso illustre naturalista Ancliieta), bem evidenceiam a rapidez com que se produziu essa grande depressao do solo primordial, constituido nas mais profundas ca- madas da crusta terrestre por elementos que do gneiss ou do granito devem pelo menos ter a analogia com- ponente e igual reslstencia, e que so uma retrac9ao do globo ou grandes vacuos na profundidade podem ex- plicar.
Deu talvez orlgem a esses teiTenos inferiores o fundo do mar cretaceo, que em lucta se quebrou de encontro aos rochedos hoje visiveis, formando as costas do con-
132 De Angola d contro-costa
tinente por aquelle lado, e de ciijo sublevaniento inaia tarde veiu a fazer-se a zona litoral.
A petrographia, acrescenta ainda o nosao illustre compatriota e notabilissimo homem de scieneia, de- nota ter sido protunda junto da costa a dita dcpressSo ; Ì8to é, consideravel a differen9a de nivel entre o fundo e a linha daa rochas; parecendo que o movimento su-
blevador que este derradeiro phenomeno originou, o concernente à fonna^So da zona litoral, se estendeu ao solo primitivo, porquanto nenlmma das variadaa re- giòes ali se acham ìsentas d'elle, \'Ì8to estarem as mes- mas rochas inferiores às superfìcies do terreno sedi- mentar, emergindo quasi sempre d'este nas cumiadas.
Na regiàx) litoral 133
Em resumo, a verdade é que, embora nao seja facil ao explorador, n'um singelo golpe de vista e no resu- mido tempo da sua passagem, poder dar conta ou ap- proximada indìca9ao das convulsoes de que està terra foi theatro nas epochas geologicas, nem por isso elle deixa de as suspeitar e presentir ao encaral-as, obser- vando a grandeza e amplitude d'esses rasgados de ter- reno, que pela sua soberba altui-a liao de ser sempre um obstaculo ao accesso da onda civilisadora para o interior.
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CAPITULO IV
CHELLA ARRIBA
O cxplorador é o porcursor do colono ; o o co-
lono o humano instruinento emprcgado n^esNa fa-
brii'a — a maior e mais difHeil das emprezos — a
de eivilisar o mundo.
S. W. Bakbb.
A zona litoral e o planalto — 0 vento sueste e as accumula^oes de vapor — As portellas do Bruco, de Calleba e da Banja — A serra da Chella e as convulsoes geologicas ali — Antigo aspecto d'està — A esca- lada e a vegeta^ao — Sào 1:829 metros — Panorama — 0 terreno, a ca^a e duas considera^oes sobre a distribuÌ9ao zoologica dos animaes em Afri- ca— A cobra e o cameiro do Nano — Historias iudigenas — Phenomeno atinospherico notavel — A Huilla — Sua salubridade e vegetaQSo — Im- portancia agricola — Plantas uteis — A propaganda e os geographos — A via^ào accelerada — Directriz media da linlia a estabelecer para o inte- rior— ^Yantagens d'està — Colonisa^ao e con8idera90es sobre ella — Zonas mortiferas.
0 viajante que effectua a parti- (la (la costa Occi- dental da Africa na zona junto ' ao oceano experi- menta os primei- ros rigores do cli- ma, transudando Bob um sol de ea- caldar, soifrendo ; aa crueìs imprea- sòes do tirocinio, n'essa especie de adaptatjSo economica que Ihe perturba as func^òes e o volve corno que em indolente e constante man estar, considera o azul cordào das serras ao longe o aeu per- manente anlielo; a idi?a de se guindar às grandea alti- tudes o seu mais querido pensamento.
138 De Angola d contra-costa
E tem rasao, porque ahi tudo muda. O calor, as bonan^as, os miasmas, o constrangimento emfim, qiie tanto o agoiiiaram nas primeiras semanas, modifi- cam-se, porque nas terras elevadas o ar fresco e os ventos reinantes o refrigeram e tomam à vida, cons- tituindo-lhe, por assim dizer, um melo mais norma! ou proximo do que existe pela Europa.
E a segunda vez em nossas viagens que passàmos por està transi^ao, transportando-nos do terreno do bao-bab para o da acacia no curto espacjo de algumas lioras; e pela segunda vez tambem podemos apreciar o consolo que essa liberta(;ao subita de um clima em extremo tropical traz para o corpo e espirito d'aquelle que, apenas chegado da Europa, se viu inopinada- mente sob a sua influencia.
E uma sensa(;ào similhante talvez à experimentada pelo liomem que, preso durante tempos em escura masmorra, emerge para a claridade.
Esse banlio de luz e de ar deve desembara^ar-lhe o espirito, varrer-lhe os tetricos pensamentos que uma reclusao formosamente origina, rociando-o com o bal- samo consolador do allivio.
Assim tambem succedeu ao vermo-nos no cimo da serra.
Sopra ali em maio o vento de sueste. A atmosphera, até entao forrada de nimbos e grossos cumulos carre- gados de electricidade, que os ares atroam permanen- temente com o ribombar do trovao, despedindo em to- dos OS sentidos linhas de fogo, principia de limpar-se.
So pela banda do noroeste se véem as mais amea- (jadoras accumulamoes de vapor, so para essa banda
Chella arriba 139
fuzila, e no quadrante, por onde comecjaram as trovoa- das, vao agora tambem terminar.
Soltos novello» corno flocos de algodào correm pelo aziil dos céus, impellidos por urna brisa fresca que tudo varre, isto é, o vento geral de sueste sopra no planalto, do mesmo modo que no oceano.
Apenas no 1.^ de maio come9aram os alvores da manlià a esbater as sombras da noite, que nós de pé nos aprestàmos para a partida.
Urgia aproveitar para a escalada a frescura matu- tina, a fim de, quando colliidos pelo sol, jà em alto nos acharmos.
Depois espertava-nos o desejo de continuar a fugir a essa zona que atraz deixavamos, feia e esteril, cuja paizagetn solitaria e desoladora nos imprimira no es- pirito as mais tristes recorda^oes, e onde as penedias, escalvadas e ennegrecidas, corno que nos ameacjavam a todo o momento com a morte pela sede.
Podem escolher-se tres caminlios para de Capan- gombe subir a Chella, todos elles de muito mau aspe- cto, attento o aprumado declive das encostas.
0 primeiro é o da portella do Bruco (buraco tal- vez?), mais frequentemente trilhado; o segundo o da portella de Calleba, que fica mn pouco mais ao norte d'aquelle; e o terceiro, emfim, o da Banja, que, des- viando-se pai-a o sul, é principalmente escolliido por quem se dirige para as zonas meridionaes.
Foi o Bruco por nós preferido, e, logo que terminou a refeiijao matutina, entestàmos com a profunda que- brada, come9ando a ascensao pelas oito horas da ma- nhS.
140 De Angola d conironcosta
Um trilho em zig-zags debuta por entre as rochas e o arvoredo, seguindo approximadamente o curso de um ribeiro que se despenha das altiu'as, semeado em toda a extensSo de calhaus, ora soltos, ora melo enter- rados, e que com difficuldadede consente ao viajante o escalamente da formidavcl quebrada, cuja altitude, em rela9So à planicie de Capangombe, nao é menor de 1:200 metros.
A ascensao da serra da Chella divide-se na zona por que vamos caminliando em dois quarteis, se por- ventura é permittido exprimirmo-nos d'està maneira: a subida do Bruco e depois a da Chella propriamente
dita.
Tudo, caro leitor, se encontra no grande continente feito em exagerada escala, propor96es taes, qi\e exce- dem quanto de vulgar conliecemos, parecendo ter a natureza, ao cuidar d'elle, capricliado em produzir tudo gigantesco.
Basta que consideremos no reino vegetai, para nos persuadirmos d'isto, vendo quanto ella póde, vigorada pelo calor, desdobrar de magnificencia e surprezas por essas terras afóra; e se no reino animai admirànios ainda os mais crescidos exemplares da fauna actual, là estao os plienomenos meteoricos para exceder pelo seu apparato retumbante quanto d'esses factos conlie- cemos; e nao menos as convulsSes geólogicas, pelo geral de monta tambem a exigirem crescido respeito; pois rios, quebradas e serranias, tudo é enorme, so assenhoreavel por lucta porfiada.
A serra onde agora nos achàmos, e que se estende n'uma linha de quasi 400 millias do Cuanza à terra
Chdla arriba 141
de Namàqua, é um dos mais frisantes exemplos d'esses exagerados movimentos de terras.
Barreira gigante feita e ageitada durante as epochas geologicas remotas no gneiss e na quartrite, abrange longa linha de terrenos, formando pelo oeste um som- brio paredao que foi por espa9o de seculos sentinella ao continente e protec9ao ao movimento convidsio- nado do mar, defendendo coni a sua gneissica testada a ac9ao erosiva d'este na terra continental.
Outr'ora seu aspecto devia ser muito differente. Batidas pelos ventos marinhos, lavadas a miudo pelas aguas espumantes, essas penedias erguiam-se certa- mente aridas e ennegrecidas, contrastando pela tris- teza coni a paizagem mais suave de lioje.
O afastar do oceano, do ruido e da sua varia in- fluencia, desviou d^ili a causa originaria da pertinaz lucta entre o viver vegetai e a ac9ao triumphante das brisas do mar, e entao, em vez das salgadas aguas que llie lavavam os sopés, vieram ou continuaram os doces arroios do alto a sua obra benefica em favor do niundo vegetai.
E logo à aridez de uma costa maritima, s6 visitada pela gaivota, pelo corvo marinilo e outras aves do mar, que entre os seccos ramos das euphorbias e nas anfractuosidades do rochedo construiam seus ninhos, succedeu o verde manto da vegeta9ao tropical, que, recolliendo e eiila9ando com suas raizes e cypós os desaggregos e os humus vindos de cima, a tomaram de nua em fertil e vÌ9osa.
Pela encosta arriba sente-se o viajante extasiado em nieio da variabilidade de scenario que aos seus oUios
142 De Angola d contra-costa
se desdobra, e das profusas e variadas tran8Ì9oes qiie urna vegeta9ao exiiberante eia roda llie prepara.
Pouco depois de se erg-uer, desapparecem-Uie as le- guminosas de espinlio, as eupliorbias, as acacias ras- teiras, para ceder o logar às Bauhimas, miitiates, que por sua vez, alentando-se, se afastam a 800 metros, para as substituir o bao-bab, esse elephante do remo vegetai, que attinge aqiii propor^oes colossaes, aos Combretum lepidoptreum , verdadeiro cars^allio no aspe- cto, às mnsassas esgnias, etc. Està-se a meia encosta; ein redor a atmospliera embalsania-se coni o aroma das jasmineas, das papileoiiaceas odoriferas, de urna especie de malva coni o clieiro adocicado d'essa myrta- cea a que cliamam jambo, entrela^ando seus ramos coni uma arvore similliante à palmeira rasteira Phenix (?), com lij^hoenes, limoeiros, cidreiras, laranjeiras, ali dispostas pela mao do liomeni.
Entre as roclias serpeia a agua eni todos os seiiti- dos, e dez ou quiiize variedades de fetos revestem lit- teralmente o terreno, formando um verde tapete às arvores gigantescas que sàem do seu scio, e cuja abundante seiva e animada por innumeras raizes ad- venticias.
Estamos a 1:000 metros de altitude. N'unia cla- reira a vista estende-se por cima dos copados macis- sos d'esse oceano de verdura, e entao uni panorama pouco frequente se espraia aos olhos do viajante.
A direita e esquerda destacam-se as vivas aresta s das roclias, que se elevam muito acima de nossas cabe9as, e sao n'essa altitude limite for9ado ao desen- volvimento do arvoredo. D'alii até ao cume a barreira
Chella arriha 143
mancbada de pedra nao consente um pé do mais sin- gelo arbusto; e dominando senhoril o verde macisso onde assenta, parece nao consentir que tao alto ouse acompanhal-a.
Pela abertura media alongam-se, a perder de vista, as plamiras de Capangombe, indo confundir-se des- maiadas no cordao azul dos morros longinquos, em- quanto o viajante, sentado n'um penedo, descansa e prepara a derradeira avan^ada, aguardando a gente que se atrazou.
Uma brisa fresca Ihe roda por estas alturas o afo- gueado rosto e, rumorejando por entre o folliedo, des- pede para o chao as gotas crystallinas do orvalho que OS raios solares ainda nao poderam evaporar.
Continiia o tortuoso atalho por fimda ravina, serras acima, de mais em mais inclinado.
Jà sao 1:200 metros, depois 1:400; a agua salta por todos OS lados, atolam-se os pés no humus balofp; a atmosphera humida carrega o pulmao, o suor es- corre, vergam as pernas, parece quebrarem os joelhos; ainda supremo esfor9o; n'imi lacete horisontal a 1:600 metros resfolega-se, toma-se alento, està-se quasi no cimo, nao se respira, assobia-se; a seccura extrema aggrava por vezes a situacjào, os p(5s pesam duas ar- robas, o bordao vae a escapar-se das maos; uf . . . eis o plateau.
Sao 1:829 metros!
Milha e meia adiante acampàmos n'um logar deno- minado o arraial de Caionda, extenuados de for9as e tendo pago caro o anceio de nos vermos em cima, sof- frimento que foi de pronipto esquecido por mesa bem
144 De Ajigola d contro-costa
fomecida e o subsequente <loce considerar perante urna cliavena de café e um cacliìmbo carregado.
O aspecto do terreno e da vegeta^So na aba do pla- teau variou agora.
As rocbas vìvas de alem, succederam-se tractos argillosos coloridos pelo oxido de ferro; é. vigorosa vegeta^ao da encosta, um mato franziiio e racbitico, que por vezes desapparece totalmente, para substi- tuir-se por anharas, largas campìnas cobertas de ca- pim, corno nas margens da lagoa Inite, onde tivemos
de empregar serìos cuidados para precavcr os nossos c3.es dos ataques do crocodillo.
Pouqiiissima ca«;a vimos, so matando um bambi, CepJtalophìis mergens, e a esse respeito acode-nos agora uma breve consideracjao, em que jA no Coróca pensa- ramos,
E facto por nós mais de uma vez notado, que os grandes antilopes da Africa, cmbora pare<^a devercm procurar as regiÒes mais ferteis e que maior pasto offcrecem, fogem a ellas, preferindo eucurrallar-se es-
Chdla arìiba 145
faimados era tractos de terreno inculto, sem agua, quando nao povoados por feras.
Assim o galengue, Ori/x gazella, cuja falta jà no- tàramos em baixo, nao se encontra tambem aqui, posto que o separé um unico gran de distancia do rio Coró- ca, onde, abundando pelas margens, embora desnu- dadas e estereis, divaga aterrado por meio dos leoes, que ali vivem em numero extraordinario.
E difficil comprehender-se a causa da distribuÌ9ao zoologica dos animaes n'esta parte da Africa, que, de- vendo estar principalmente subordinada ao alimento, sem contarmos as variantes que a ella podem trazer determinados perigos, comò a proximidade do liomem, a presenta de animaes de presa, aqui faz completa ex- cep^ao a taes princij>ios.
Ha por aqui alguns reptis, entre os quaes figura certa cobra, que, existindo proximo dos rios, é por essa rasao denominada cobra de agua, e se arremessa comò dardo, picando e matando em pouco tempo um cavallo, segundo nos afian^aram.
Nao tivemos opportunidade de vel-a, pondo sempre de preven9ao o exagero da morte do cavallo em poucos minutos, facto que a final póde ter origem muito dif- ferente.
Os indigenas propendem, mais decididamente ainda que OS viajantes, para amplificar as suas narrativas, levando-se pela imagina9ao até ao inverosimil com extrema naturalidade.
Assim, ao informarmo-nos do reptil acima alludido, tivemos ensejo de ouvir historias de cobras de duas cabe9as, de cobras voadoras, etc.
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De Angola d contro-costa
\H
Um dos creados, cabinda ladino que nos acompa- nliàra jà na primeira viagem, narrou a proposito factoj estupendos succedidos na sua terra com està especi< de reptis, asseverando que ao entrarem nos curraei similhavam o balii- do bezerro, a firn de mammar nai vaccas; outras vezes, penetrando de noite nas cuba tas, afastavam os fillios dos seios matemos para en seu logar sugarem o leite!
Entre as diversas liistorietas ouvimos urna que alem de enunciar a audacia da cobra, dava a medidf do pesado somno da embriaguez dos conten^aneos de nosso creado.
Certo compatriota do cabinda, assistindo pela noit< a um batuque, deixou-se arraètar no meio das dansai pelos bacchicos deleites, a ponto de, ao concluir di festa, acbar-se nas mais criticas circumstancias.
A caminho de casa o infeliz, cambaleando, approxi mou-se da porta da babita9ao, mas, faltando-llie aj for9as, cafu adormecido.
Ao alvorecer o estonteado acordou, quiz mexer-se mas nao póde; gritou, bracejando; era impossivel le vantar-se: immobilidade estranila o dominava, tinlu as duas pernas mettidas no esophago de uma pytboi enorme !
A proposito de cobras ainda occorre dizermos o se guinte.
Existe por aqui um typo de carneiro (indigena, ac que parece, pois nos afian9am ser oriundo do Nano) de pequenos cbifres retorcidos, grande juba que lh( desce até ao peito, e é considerado comò o mais ter- rivel inimigo da cobra.
Chella arriha 147
Quando pressente algiim reptil d'aquella especie, poe-se de guarda à toca dias inteiros, até que o en- contra, e n'uma lucta de poucos momentos victima-o invariavelmente.
É notavel este animai por gostar multo da cerveja indigena, que nos asseguraram beber sofrega e em abundancia, sobretudo quando este liquido està fer- mentando.
Em seguida o seu maior prazer é deitar-se ao sol, notando, quem o obsei-va n'essa occasiao, uma grande quantidade de vapor que llie sae da pelle e se dissipa no ar!
A 2 de maio terminaram as clmvas no plateau da Huilla, camdo n'essa mesma noite pela primeira vez copioso cacimbo *.
Pela tarde assistimos a um singular phenomeno atmospherico.
0 céu, que durante o dia se conservàra coberto de cumulos minusculos, com aquelle aspecto que o vulgo designa por pedrento, come90u a limpar-se do lado do poente.
A corrente de ar, porém, que tal phenomeno ope- rava, fazia-o com tanta regularidade, que ao appro- ximiir-se do occaso o astro rei, formàra das nuvens uni regular e gracioso arco, com 45® de altura, que irisado com todas as cores do espectro, tinha a mais originai e bella apparencia, emmoldurado de raios brilhantes e divergentes.
1 Cacimbo é a quadra secca das vcntanias do sueste, que se esten- de desde maio a agosto n*esta regimo.
148 De Angola d controncosta
Schweinftirth parece ter observado alguiua cousa 8Ìmilhante no paiz dos bongos, e é notavel a coinci- dencia do mez da observa^ao, pois foi a 18 de maio que em sua viagem viu o phenomeno.
Do arraial de Caionda proseguiu a expedÌ9ao por- tugueza atravez dos virentes plateaux que a defron- tam a caminho directo da Huilla, onde chegou a 3 de maio.
A villa apregenta um aspecto agradavel, embora muito deixe ainda a desejar, com as suas casas bem situadas, tendo no meio a ampia fortaleza, mas que carece de reparos.
A frente estao as planta^oes e aos pés o rio LupoUo, correndo leste a oeste n'um risonilo e pittoresco valle, depois de derivar de uma cascata formosa de que da- mos o desenho.
Meia duzia de morros, dispersos em vasto semi-cir- culo de éste pelo norte, animam o panorama com os seus vultos gigantescos.
A importancia agricola da Huilla póde tomar-se grande, por emquanto nao o (5. Cada qual semeia para si trigo, centeio, milho, couves, batatas, e com isso se contenta. A distancia que a separa do litoral tem-lhe impedido o desenvolvimento, pois é impossivel enviar para a costa qualquer artigo, estando sòbrecarregado o carreto na rasao de 20 libras esterlinas por 100 ar- robas.
A expedi^ao portugueza demorou-se n'esta terra até 29 de maio, a fim de refazer-se de alguns artigos que precisava, e sobretudo esperar por vinte carregadores que da costa vinham em caminho.
Chdla arriha 149
Entre diversos estudos diurnos, ocios da tarde e urna viagem a Quipungo, na inten9ao de visitar o Cu- nene, passaram-se esses vinte e seis dias n'um dos mais salubres logares da nossa Africa occidental.
0 clima da Huilla nao carece de encomios. A sua altitude, temperatura moderada, brisa fresca, regula- ridade de esta9oes, tem-lhe valido justa reputa9ao.
Ahi vivem os europeus comò em piena Europa, tendo so a queixar-se de alguma bronchite ou pneu- monia, doencjas frequentes ; pouco visitados pela febre, fortes e robustos, apresentam frequentemente estra- nhos exemplos de longevidade.
A terra fertil d'esse paiz produz quanto se lembra- rem de lancjar-lhe ; desde o pecego e o trigo até à gin- guba ou mendobi, vimos que tudo vingava com igual facilidade.
As bastas florestas d'està pittoresca regiao abun- dam em numerosas especies uteis, hoje bem conheci- das, as quaes os indigenas com muito proveito appli- cam a diversos usos.
Assim se véem promiscuamente de um lado as fru- ctiferas Dio^yros inespili formis , arvore de boa madeira e fructo comestivel, que os indigenas denominam mu- lande, juntas com as erguidas nocheiras, Par. mabola, de folhas verde escuras de um lado e claras do outro, comò o platano, arvore que mais tarde nos foi tao pro- veitosa nas matas do Lualaba; e logo perto a Euclea lanceolata, cujo fructo vermelho muito appetecivel é conhecido por n'boto; e a ucha ou uxa, tambem ver- melha, maior qué uma cereja, e que jà haviamos en- contrado em Caconda; e ainda o gongó, d'onde se
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extrahe do fructo amarello urna bebida inebriante, a par da Striclnws sps.^ laraiija do niato, de que existem variedades de uni cinzento claro, que sao venenosas e OS iiidigenas chamam mabóca; e outras à mistura, conio as • combretaceas e a Terminalia anc/oleìisis; de formosas proteaceas; a IVicJios speciosa, de espigas floridas; de gigantes leginninosas, corno Pterocarpus erinaceus, cujo tronco exsuda vemiellia resina; de ru- beaceas, etc.
Ali se encontra o pan caniphora, t'chicongo, scien- tificamente conhecido pelo Ihrchonanthus camphoraius , que eni certos logares constitue parte dos bosques; o pan sandalo, Pterocarpus (?), muito estimado pelos indigena», e que, quando arde na fogueira, exhala aroma similhante ao da madeira da China, servindo para aquecer os quartos dos sobas e muitos outros usos.
Tiradas encomiasticas com respeito a està regiao, por todos conliecida e apreciada, tomam-se em ver- dade superfluas.
Ali acham-se reunidas as condi^oes para urna vasta colonisacjào europèa, e em circumstancias pouco faeeis de encontrar na Africa; e pois urgente tornal-a o alvo de todos OS nossos esforcjos e atten9oes, envidar todos OS recursos para que prospere, formando o grande cen- tro de nio\àmento que breve irradiarà para as terras do norte e nordeste.
Deixemo-nos de mais considera9oe8; capital e que se deseja, propaganda fazemol-a iiós aqui, recordando que n'uma terra que tao generosamente secunda os es- for90s do colono nada póde resistir a forcja de von- tade bem determinada; e sirva de cxemplo esse pu-
Chdla arriha 151
nhado de colonos que, tendo ido para ali em 1840, pela maior parte com os bolsos vasios, levantaram a esplendida villa de Mossamedes, e sao lioje pelo geral proprietarios.
Os geographos pela sua parte téem feito o que Ihes incumbe; continue o governo a empenhar-se com se- riedadè na obra; venliam para o interior o missiona- rio, o* mercador e o colono, e breve veremos operar-se a mais radicai transfòrmacjao.
A primeira cousa precisa e crear meios de transpor- te; de outra fórma todo o successo sera impossivel.
0 recemcliegado, negociante, mercador ou làvra- dor, por melhor que seja a sua vontade, nada póde no interesse de um paiz falto de bons caminhos e vias de communica^ao.
Que importa o facto da Huilla produzir multo tri- go, se cada carro boer, por exemplo, leva o excessivo precjo de meia libra esterlina por arroba para o trans- portar à costa?
Para que vos serve saber que das vertentes da Chella até à bacia de Quillengues póde colher-se todo o millio preciso para o consumo da provincia, e ainda para abastecer a colonia do Cabo, se nem uma espiga podeis trazer atravez das serranias do Munda?
A viacjao é o objecto capital, e isto em detrimento de todas as outras obras, comò hospitaes sumptuosos, residencias, quarteis, etc, de que de resto temos abu- sado multo.
Abrir caminhos, porém, atravez das terras aridas e em seguida dos matos interiores para se servirem com carros de bois, é um erro sem nenhuma vantagem.
152 De Angola d contra-costa
Grande capital seria necessario para urna obra de que apenas ha a esperar resultado mediocre, sem com- prehender tempo, traballio e oiitros factores, comò morte de gados, etc.
Procuremos, portanto, na viacjao accelerada resol- ver este problema, e vamos ao caminho de ferro ou ao tramway a vapor, corno unico recurso para transfor- mar tudo aquillo. Toniemos Mossamedes comò ponto de partida, prosigàmos, por exemplo, pelo valle do Gi- raul ou do Bero.
Ganhando o interior, essa linlia attingirà a regiao proxima de Capangombe, procurando a directriz mais conveniente para vencer as alturas da Cliella.
Està aqui sem duvida a pedra angular do edificio, mas com estudo e traballio póde conseguir-se.
Podendo proseguir pelo valle do Muninlio, teriamos tiilvez a vantagem de* a levar para o nordeste, isto é, na direccjao dos centros mais productores; no caso con- trario dirigir-se-la para o sul do Hoque.
Das duas direccjoes porém a mais proveitosa, posto que a julgàmos mais difficil para o caso da subida, e a do sul, porque havendo de bifurcar-se no planalto, a fim de lanciar o ramai do Humbe, ficava assim dimi- nuido este, e o ramo directo iria a caminlio da Huilla e Handa para Caconda.
Escusado sera dizer que està direc9ao media da li- nlia, por nós apresentada pelo nordeste, nao se funda simplesmente na necessidade de servir aquelle presi- dio, pois, pela exigua importancia que tem o forte, po- dia ella desviar-se mais ao sul ou ao norte; mas por- que toda a tentativa ulterior de prolongamento para
Chella arriba x 153
o sertao La de ir approximar-se do Bié, a firn de buscar a linha divisoria das aguas no interior, na terra alterosa.
Assim, em pouco tempo veriamos nós Mossamedes ligada a Caconda por urna linha directa, que atraves- sando as terras elevadas teria, n'uma zona lateral de 20 kilometros, a area de 18:000 kilometros quadrados de terrenos ferteis.
Qualquer companhia qiie podesse dispor do capital necessario para o estabelecimento de urna tal empreza, toparia n'aquella regiào vantagens muito especiaes e em circumstancias raro encontraveis.
Primeiro, a sua construccjao seria relativamente pra- ticava na zona litoral, nao so pela facilidade em obter bragos, comò tambem, por nao offerecer exagerados obstaculos, estando alem d'isso proxima do mar e em vantajosa posicjao.
Protegida por todos os agricultores e negociantes, tendo infallivelmente o transito de todas as mercado- rias sem competencia, pois a tonelada de algodao que de Capangombe pagava 33^000 réis, pagaria agora, pela tarifa de 50 rcis o kilometro, 5|i000 réis; teria està linha comò poucas outras a immediata exploracjao de toda a salubre zona marginai, onde breve appare- ceriam aldeias e villas.
Nao podemos seguramente calcular a cifra que a produccjào agricola desde logo attingiria, mas por certo seria enonne. Os trigos, os milhos, os algodoes, os le- gimies, sem contar desde o principio com a salda de productos naturaes, que, desviados dos trilhos do nor- te, viriam ali buscar o terminus da mesma linha; al-
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ternaria sem duvida coni o transporte de gados, tam- bem representado por urna verba importante, e miiitas produc9oes novas.
0 caminho de ferro por modo nenhum póde sor mn desastre n'esta regiào, pelo simples motivp do seu tra9ado fazer-se n'uma zona em que o indigena nào predomina exclusivamente, e porque estamos conven- eidos de que procrearà vastos centros de populacjao branca, cujas necessidades, bem differentes das do ne- gro, dependerào das relacjoes exteriores.
Attentemos na situa^ao actual das cousas, e logo veremos, à luz do boni senso, as grandes vantageiis a advir do seu estabeleciniento n'esta regiao quasi inexplorada, e quanto d'ella tem a esperar o europeu, e o negro especialmente.
0 commercio na costa occidental da Africa està, por assim dizer, no estado primitivo.
Raras sao as exploracjoes agricolas de vulto, raros OS estabelecimentos fundados no intuito de arrancar à terra tudo quanto póde.
A explora(;ao dos productos naturaes é o grande problema quQ a todos fascina, comò fascinou recen- temente ainda estrangeiros nos seus calculos relati- vos ao commercio do Congo, e a final é um recurso mais variavel do que se suppoe, e meio pouco proprio a conseguir alguma cousa na questào do progresso dos naturaes.
0 marfim, a cera, o oiro, a borracha, etc, artigos que este facilmente encontra, sao nos mercados cen- traes permutados pelos cafuses ignorantes, que os tra- zem à costa, sem que o indigena sequer ganhe as van-
Chella arriha 155
tagens provenientes de urna viagem à mesma costa ou das relacjoes com o europea.
0 negro recolhe urna boia de borraclia, espera o mercador, vende-lli'a por urna jarda de fazenda, e quem a compra vae-^e, ficando elle corno até ali estava, ignorando tudo.
Nao e assim que se ci\41isam povos, nào e por meio de um tal trafico (erradamente chaniado commercio) que a civilisacjao tem a ganliar n'aquellas regioes, e apenas póde aproveitar d'elle a rabula mercantil do cafuz e até certo ponto a correspondencia ainda pouco facil com o interior.
Urge estabelecer-se entre os africanos, claro é que nos referimos às zonas onde o europeu póde viver; mos- trar-llies as vantagens a advir da cultura da terra, fa- zer-lhes, pelo gostoso exemplo da posse, crear affinco ao traballio; infundir-lhes, pela amostra progressiva do bem estar, o desejo do ganlio e a no9ao da proprie- dade; ligar com taes principios a idèa da familia, da successao, da garantia do traballio na descendencia ; constituir sociedades cujo modo de ser se aflPeicjoem ao que conliecemos n'esse sentido, com principios e ne- cessidades identicas aos nossos, e so assim teremos conseguido em Africa dar um grande passo na senda ci vilisadora ; so entao travarà com ella a Europa um commercio verdadeiro e regular.
Quando ao marfim se substituir a ginguba, à gomma as toneladas de assucar, aò oiro os carregamentos de algodao, vereis em Afii-ica pullular uma popula9ao in- dustriosa e activa, branca e de cor, capaz de fazer muito mais do que se pensa; emquanto o commercio se ba-
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sear nas contingencias da cacja ao elephante, em zonas asperas e insalubres, so observareis bandos de saltea- dores negros e a barbarie polygamica espalhada por sobre o continente.
Attente-se na questao principal, a salubridade, e fu- jàmos um pouco do norte.
Determinemo-nos a proceder com bom senso e a cessar de urna vez com essa dispersao irreflectida pela provincia, de dinheiro e vidas, que em muitos casos nào tem feito mais do que continuar uma terrivel re- putacjao para todos os districtos da colonia, e quando muitos tal nao merecem, sem vantagem alguma di- recta para a mesma colonia.
Querer adaptar o europeu recemvindo e nao de- portado a um meio comò o que se encontra no Bengo ou nas margens do Cuanza, em Ambaca ou Malanje; constrangel-o a estabelecer-se ahi com a mullier e fi- Ihinhos que o acompanham, e a empregar-se corno colono no amanho da terra; exigir que ahi edifique, cric, prospere e consiga ao cabo de annos converter n'um paraizo aquellas terras, é desconhecer a Africa, é positivamente matal-o!
Com alguns tra90s de penna jà Livingstone nos ar- guiu — e d'essa vez teve bastante rasao, — dizendo que nós nao faziamos muitas vezes mais do que estra- gar for9a e perder riqueza, sacrificando improficua- mente as vidas de tantos milhares de homens que para ali enviàmos, os quaes podiam occupar-se nas zonas salubres, para resolver problemas de muito interesse.
Estude-se com seriedade este assumpto, attente-se bem no que deixàmos dito na epigraphe do presente
Chdla arriha 157
capitalo sobre o colono, conceituosamente corno o hu- mano instrumeiito da magna erapreza de civilisar o mundo; considere-se que sem elle todo o progresso em Africa é urna chimera, porque so elle ha de assen- tar as verdadeiras bases de um commercio regalar, activando a exploracjao do paiz, comò contrabalan90 às necessidades qiic a indastria earopéa satisfaz; qae so com elle póde radicar-se o elemento social, a fami- lia, e constitair vastos centros civilisados, d'onde o indigena ha de approximar-se, segnindo-lhe as leis fataes; qae emfim elle, levando para ahi a nocjào exa- , età do direito da vida e da propriedade, ha de iniciar o negro na sablime obra da comprehensao d'esses no- bres sentimentos, que, principiando no respeito pelos progenitores, se alargam ao lar pela constitaicjao da familia, e estendendo-se saavemente à prole, acabam no homem a tendencia animai e egoista de apenas em si pensar, tornando-o bom filho, marido extremoso, temo e solfcito pae, e depois, quando ajustarmos nas precedentes considera^oes, veremos que a principal cousa a fazer para a colonisa9ao é crear ao colono, nas terras por onde elle se dirige, todos os confortos possiveis para resistir aos primeiros embara^os, todas as garantias para que do seu traballio derive um suc- cesso.
E nao é seguramente, repetimos, no valle do Bengo, do Cuanza, no Congo em Cabinda ou outro ponto de condicjoes similhantes, que elle ha de prosperar, dire- mos mesmo, viver!
Attentae infelizes, que, levados pela cobÌ9a de ad- quirir riqueza, vos illudis com palavras fallazes e
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enganadoras de qiiem nao sabe oii pretende à vossa custa fazer fortuna.
Fiigi com vossas familias da zona da costa até ao pa- rallelo do Anibriz vindo do norte, e para o intenor, do valle dos rios na regiao litoral e mesmo montanhosa n'esse parallelo; caminliae para o sul, e encontrareis no distrieto de Benguella e sobretudo de Mossamedes, vastos tractos de terreno, onde o vosso traballio se po- derà desenvolver e a saude correrà seni riseo no meio dos labores incessantes da mais rude das vidas — o arrancar à terra o sustento de cada dia.
Tudo o que fizerdes em contrario das infomia^oes que vos fornecemos aqui, sera o resvalar para a beira do abysmo, um passo inconsciente para esse termo fa- tal, que se chama o tumulo!
E se estas indiea^oes servirem àquelles que gover- nam, jà apoiando-vos com o seu inigualavel patroci- nio, jà auxiliando a organisacjào de companhias que vos possam coadjuvar na lucta dos primeiros tempo» em terras novas, nós d'aqui, afiancjando o rapido pros- perar da regiao sobre que ora escrevemos, agouràmo- vos um futuro de felicidade.
CAPITULO V
NA IIUILLA
Coinciileiicia feliz — Antonio Carlos Maria, o companlieiro ca^ador — 0 acampamento e o soba da Huilla — A fciti^aria — Suas rcla9oe8 com 08 rcgiilos — A habìta9ao do fcitiecLro e os ìnstrunicntos do officio — Pro- cesso de adivinha^ao — Urna scena pela noite — A niissSo da Huilla e os missionarios — Duparquet e a sua obra — Partida para Quipungo — Ab florestas e o passaro cabra — A fauna da Huilla e as penedias de leste — Os ba-nhaneca e os dentistas — Effeitos do tiro entre africanos — A ha- bita^ao do soba de Quipungo — Visita ao regulo — Um companheiro apeado e o regresso pelo sul — Casulo estranho — Considerayoes.
Desde o dia 3 de maio até 29 do mes- mo mez, dissemos no precedente capitulo, demorou-se a expe- di^aoportugiiezanaa terras da Huilla, or- ganisando, conforme era sempre seu cos- tume, um acampa- mento no mato.
Nada ha melhor,
para evitar as repe- tidas visitas de im-
portunos e prevenir deagostos provenientes de que- rélaa e complica95cs, frequentissimas entre africanos, do qiie isolar-se o explorador e a sua gente em acam- pamento afastado das aldciae.
162 De Angola d contr accosta
So assim descansa e póde disciplinar os seus, bem corno se faz traballio aproveitavel, e tal é a nossa con- vic9ao a este respeito, que, embora tivessemos urna fort^leza e a residencia da aiictoridade & nossa dis- posÌ9ao, i^referimos conservar-nos de longe no socego do bosque.
A inten9ao era aijroveitarmos aquella demora para visitar as terras do Quipungo, onde se dirigiria um de nós, avan9ando, se porventura podesse, até à margem do rio Cunene.
Por acaso o chefe do concellio precisava ir ali em objecto de servÌ90 do governo; urna tal circumstancia nos proporcionou o ensejo de ter por companlieiro um individuo conhecedor do paiz e prompto a auxi- liar-nos com a mellior vontade.
Està eventualidade feliz teve ainda um outro re- sultado, que foi travarmos rela9oes com um joven africano, Antonio Carlos Maria, que depois fez com- nosco a travessia & contra-costa na qualidade de ca- 9ador, e, seja dito sem rebu90, pela sua audacia e energia nas correrias cynegeticas, dez vezes salvou a expedÌ9ào de um dos mais desgra9ados fins — a morte pela fome!
Como houvessemos solicitado do sr. Cliaves o obse- quio de nos procurar um homem, conhecedor da lin- gua do paiz, para n'esta digressào auxiliar-nos com as informa9oes gentilicas que precisassemos, apresen- tou-nos o mancebo jà citado, com quem bastaram tres dias de convivio para reconhecermos um estimavel ca- valheiro de nao vulgar caracter; e decidimo-nos a todo o transe a contratal-o para a viageni.
Na malia 163
Antonio Carlos Maria é a perola dos rapazes afri- canos; seu pae, a quem corriam as lagrimas ao entre- gar-nol-o, conta jà oitenta e dois annosj e deve exul- tar, julgando-se pago dos sacrificios que por elle fez, quando ler estas breves linlias.
Terminada a construc^ao do grande acampamento fronteiro à villa, abrimos uni parenthesis de descanso, para em seguida nos lan^armos aos labores que nos esperavam.
E foram dias agradaveis esses, pas^sados à sombra de gigantesco sycomoro, no centro de paizagem sorri- dente, entregues a miudo aos prazeres de urna mesa bem servida, o que na Hiiilla é facil conseguir. Durante elles recebemos numerosas visitas, umas por curiosi- dade ou passatempo, ontras por dever de delicadeza, muitas para conseguir algum benefìcio em fazenda ou aguardente, etc, mediante artigos de negocio, que se- ria longo enumerar.
Entre os visitantes figurava sempre um velhote que se considera regulo ali, e que nas suas entrevistas pedia apenas aguardente.
Era o seu j^ensamento fixo, desde que saira do nosso campo e cremos que toda a noite, o inventar a ma- neira de no dia seguinte nos extorquir mais copos do enebriante liquido.
Ultimamente, para assegurar o exito, trazia comsigo uma macota, creatura feia e de repellente aspecto, mas em cujo olhar transluziam os coriscos de vellia- caria, e que se dizia ser um n ganga!
E um terrivel feiticeiro, afian90u alguem em àparte; possue o segredo de todos os ingredientes que podem
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matar; adivinlio fomiidavel que tiido sabe; bastando- llie olhar qualquer pessoa para que os Sandis se ape- ffuem COVI ellaK
Capaz até de adivinhar onde estava a agnardente, consideràmos nós!
Toda a cautela 6 pouca, foi a conclusao, e tal crea- tura nada aqui póde vir fazer de bom.
E nós, olhando para o n ganga, e logo para os inter- locutores, pasmavamos do quanto póde a 8uperstÌ9ao e a ignorancia n'um cerebro mal alumiado pelo juizo.
Entre as cren9a8 estranhas, arreigadas no espirito do negro, existe aquella — sabem-no todos — de que certos individuos teem o poder de adivinhar, e està triste conviccjào faz com que nas diversas tribus exista um ou mais d'esses individuos, ngangas ou adivinlios, que, valendo-se da cegueira dos seus conterraneos, commettem toda a casta de extorsoes e de infamias! E para la stimar, porém, que, estreitamente ligados à tribù onde residem pelos la90s da necessidade e do respeito, estes lieroes, embora odiados, sejam sempre um gi-ande recurso para os cliefes no processo de espo- liarem os vassallos, tornando-se por vezes instrumen- tos de oppressao e tyrannia, quando por conta propria OS seus perversos cora^oes nao os levam, arrastados pela cobÌ9a ou vingancja, a commetter actos da mais requintada barbaridade.
1 Sandis, segundo Magyar, é entre os binbundo o feiti^o do bem; segiindo nós é urna designa^ao generica de feitÌ90 e alma de mortos, ou o seu vulto, comò quizerem. No nosso primeiro livro, De Bengudla às ttr- ras de lacca, fallàmos do QuUulo N^Sandi, corno o grande feiti90 bieno, assim comò entre os dàmaras é o Otjiruro, absolutamente o mesmo.
Na Huilla 165
0 indigena africano, em tudo que seja menos vul- gar, encontra a expKca9ào na feitÌ9aria, e para isso toma-se-llie necessaria a presen9a do adivinhador!
A morte de qualquer parente, a fractura de uni membro, a mais simples doen9a, ou a perda de urna cabe9a de gado, sao questoes que nao passam sem elle ser chamado e ouvido.
Accumulando alem d'isso o conhecimento das her- vas do mato, e mézinlias a empregar em sua grosseira therapeutica, d'onde propriamente Ihe deriva o nome de ri ganga, é considerado corno verdadeiro Salvador, unico capaz de evitar esses grandes infortunios.
Os adivinhos sao pelo geral homens feios, mesmo defeituosos, e quasi sempre individuos a quem a de- cep9ao e sérias contrariedades tomaram biliosamente perversos e inimigos do seu similhante.
Vivem sós, em uma pequena cubata, no logar mais escuso da aldeia e afastados do rumor.
0 interior da liabita9ào, e frequentes vezes uma pequena gaiola fronteira, especie de miniatura da vul- gar casa africana, impressionam o viajante. Ahi se observam em pequenas hasteas craneos de diversos animaes desde o boi até ao macaco, panellas meio en- terradas, contendo chifres de antilope cheios de uma massa preta e outros minusculos de gazella, caudas de boi e de leopardo, unhas de leao, bicos de papa- gaio e cabe9as de morcego, à mistura com cascas de kagado, pés de pato, emfim quantos objectos pelo seu estranilo aspecto possam impressionar a imagina9ao!
Usam invariavelmente um adomo de cabe9a com plumas, uma vara com sementes clieias de cascalho,
166 De Angola d contro-costa
ruidosa ao agitar-se, bem corno determinados ingre- dientes para a pintura pcssoal, isto e, pós branco», oiitros vermelhos ou amarcllos, etc.
Estas creatura» cxerceni o seu malefico officio por diverso» modo» : dao a engulir aos accusado» o jura- mento (prova da bebida), prej^aram ciladas a qualquer, de queni o» parente» pretendam desfazer-»e, mini»- trando a e»tes beberagens vomitiva», em panellas que depoi» se encontram coni o» ingrediente» em casa do 8U»peito réu, por ahi liaverem sido posta» clande»ti- namente; n'outra» conjunctura» roubam e trocam ob- jectos, e, enteiTando-o» defronte da» porta», resultam por causaes coincidencias revelac^oes do criminoso.
0» processo» que se empregam na adivinha9ao va- riam conforme a» tribù» e o» ariolo», ma» con»tam »empre, e claro, de «cena» de magia mai» ou meno» phantastica».
Uma» veze» e mediante pau» e pedras redondas que conseguem conliecer os criminoso»; outras léem nas convulsoe» de uma gallinha ou cabra moribunda as scena» do futuro, e pelo» gritos nocturno» da coiiija ou da hyena, animae» em cujo corpo, pelo geral, »up- poem re»idir o e»pirito do» morto»; n'alguma», emfim, empregam fingido» exta»is, etc.
Torna-se hoje quasi importuno repetir similhantes factos, por isso limitar-nos-liemos, so para o ultimo dos dito» casos, a narrar quanto no» foi descripto.
Logo que por qualquer circumstancia, comò rou- bo, assassinio ou doen9a, o adivinhador (5 chamado por uma tribù, tudo ali se prepara para a ceremonia, que quasi sempre ù depois do accaso do sol, escolhendo-se
NaHuilla 167
noites escuras, e parece que às vezes na lua nova, a firn do feiticeiro poder tirar maior vantagem, impres- sionando a imagina^ào do publico com o contraste das trevas e do fogo, que para esse effeito ateiam em di- versos pontos.
Reunidos todos os individuos da terra em vasto cir- culo, dentro do qual crepitam, comò dissemos, foguei- ras que pela sua luz tremulante dao à scena phantas- tico aspecto, coUoca-se a meio o n' ganga, prompto e paramentado, a face riscada com tra90s de cores, um enorme pennacho, a cabe^a oniada de chifres de anti- lope, um hilhoquet na mao e às vezes caudas de ani- maes à cinta. Junto a elle, em pequena esteira, vé-se uma panella de barro contendo certo liquido especial, pequenos paus dispersos, e uma caba9a cortada em fórma de bacia, com varios objectos, cuja vista causa espanto, e que seria jdifficil descrever.
Bagos de missanga, buzios, pequenas imagens de pan, arremedando um homem ou uma mulher, pedras, bicos de aves, garras, i^és resequidos de corujas, etc, que ahi o visitante póde notar boquiaberto.
De subito o adivinho solta um silvo, e agitando o hilhoquet enceta uma dansa grotesca.
As mulheres cantam em còro ao compasso das pai- mas, emquanto elle, aos saltos, percorre os grupos e observa attentamente os circumstantes.
Aqui pergunta, acolà responde; finge afastar-se, de subito volve, mira, affirma-se, e comò esperto e obser- vador, espera a todo o momento ver transparecer no rosto ou nos movimentos inquietos de alguem as pro- vas do crime.
168 De Angola d controrcosta
Por vezes sàe do circulo, acocora-se, confunde-se com a multidào, e raro sera que, no caso de roubo, o supersticioso auctor, estando presente, nao se tràhia por algum signal.
Apenas iniciado volve, e, em pulos estranhos, appro- xima-se da esteira.
Acocoroii-se. Eil-o de joelho em terra, caba9a de feiti^os na destra, a mao esquerda estendida horison- talmente, a cabe9a curvada, acenando a compasso.
Ligeiros impulsos dados no sentido vertical deixam ver 08 objectos contidos no interior, até que, repetin- do o movimento com mais energia, um d'elles càe no terreno .
Largando a caba9a apodera»-se d'elle, mira com ar bestiai por momentòs, firme, emmudecido; depois co- me9a com esgares e momices, que poiico a pouco exa- gera, escancàra a bóca, e arregalando os olhos inje- ctados de sangue, eil-o que se levanta, e em saltos vertiginosos percorre a arena comò um louco!
A luz pallida dos madeiros que ardem, esse liomem sarapintado, agitando-se no meio das mais estranhas convulsSes, narinas entreabertas, labios espumantes, parece ^m verdadeiro demonio, revestido de todos os attribvi^Qs com que a imagina9ao adoma està casta de crea^oes !
Apoz a estranha lucta, càe emfim extenuado e, es- trebuxando, profere o nome da victima, que, cheia de espanto, pretende fugir, mas é acto continuo agarrada.
Poderiamos ainda relatar factos curiosos, principal- mente àcerca da cura de doen9as, por meio de en- cantamentos e scenas de feitÌ9aria; isso porém levar-
Na HuUla 169
nos-fa longe, em repeti^So de certo poiico proveitosa, pois raro é o viajante que a elles nào teuha aIlu<]ido. Alem de que entre oe ba-nhaneca téem cessado simi- Ihantes costumes, o que se deve à vìgìlancìa cxercida pela auctoridade locai.
Entre os cavalheiroa com quem uos relaciondmos na Huilla, e nos deixaram grata impressSo pelo affectuoso
recebùnento que nos fizeram, figuram sem duvida os missionarios, à frente dos quaes se acha um sacer- dote de multo merecimento e alto valor ìntellectual, o. reverendo Duparquet, hoje vice-prefeìto apostolico. Esse homem, a cuja persistencia e firmeza se deve em grande parte o estabelecimento da missSo e o seu estado prospero, cujos trabalhos, quer no interesse da
170 De Angola d controrcosta
propaganda religiosa, quer no da geographia, sSo conhecidos em todas as publicacjoes, desde o jomal das missoes até aos boletins das sociedades geogra- pliicas, cuja vida tem sido urna constante lucta no servilo da religiào, ora em Zanzibar, Kimberly, no Dàmara oii no Ovampo, ora na Huilla; esse liomem, dizemos, e beni digno que Deus Ihe conceda saude e prolongue a vida, para comjjleto exito do piedoso e relevantissimo servÌ90 em que està empenhado.
A missao, que està coUocada em risonilo valle por onde serpeia pittoresco rio, comp6e-se de vastos es- tabelecimentos bem construidos, cercados de jardins, hortas e terras de semeadura, devido tudo a grande esfor(;o*e traballio, tendo que drenar as terras em gran- de extensào, e dirigir as aguas do rio; é n'esse aprazi- vel sitio onde mais agradavelmente se passa na Huilla, e o recemcliegado se sente satisfeito ao entrar no ga- binete de leitura.
Exultàmos ao ver o sentido pratico que a missao dà aos seus traballios, a par d'aquelles da catecliese, der- ramando na area da sua ac9ao o gosto pelos labores de toda a ordem, principalmente agricolas.
Lembra-nos o que escrevemos ao concluir da nossa obra De Benguella ds ten^as de lacca, quando fallàmos do missionario, e apraz-nos notar que a missao da Huilla, embora nao tenha sido guiada pela singeleza das iiidica9oes, de resto sem a menor pretensào, vae casualmente em linha parallela com o nosso pensa- mento.
Diziamos nós entao: «0 negro, desde o primeiro dia que avistar o missionario, deve ver n'elle, nao urna
NaHuilla 171
creatura suspeita, revestida de caracter mais ou menos mysterioso; mas um bom guia, todo carinlio, juiz recto, de cujo contacto so Ihe resuite a felicidade.
«Deve successivamente encontrar um mestre, nao disposto a indicar-lhe com alambicado misticismo o caminho da bemaventuran^a, mas sim a ensinar-lhe o modo de regenerar-se, deixando os liabitos indolen- tes pelo traballio, fugiudo do crime pela constante pratica da virtude, e pondo-o à altura, sobretudo, de exercer qualquer industria util para si e para os seus similhantes.
«Ensinar o indigena a fazer a cliaiTua e extrahir o ferro pelo modo mais aproveitavel, a combinal-o com o ckrbone para produzir o acjo; incutir-llie a primeira no9ao do moinlio, revelar-llie o modo de aproveitar a forerà das aguas e as vantagens do amaidio da terra, eis em resumo o fim serio da missao ali.»
Taes eram as nossas palavras ao tempo, e que feliz- mente vamos vendo realisadas na Huilla.
Fazemos votos pela prosperidade da missao, con- vencidos de que o negro ha de sentir em curto espa90 de tempo os seus beneficos effeitos, acabando por modo graduai com essas repugnantes e torj)es scenas de fei- ti^aria, cuja descrip^ao, para bem frisante se tornar ao leitor, intencionalmente pozemos antes d'estas con- sideracjoes.
Apenas nos sentimos refeitos do causalo da via- geni, preparàmos tudo para abaiar. Dez dias levàmos n'unia digressao para o nascente, de que pouco se co- llieu, por causa de embaraijos imprevistos, nao conse- guindo a final ver o Cunene.
172 De Angola d corUrd-costa
Eis o que se encontra no diario, a proposito:
«A 6 partimos ao romper da aurora, acompanhados de trinta homens, o chefe do concelho e o nosso joven ca9ador, montando aquelle urna soberba egua, compra- da a Erikson, negociante inglez do Cabo, e nós em bois-cavallos ou typoia.
«Uma manha radiante e um tempo esplendido con- vida-nos a marchar. A estrada é de carro.
«0 caminho segue para leste, marginando pelo norte dois morros, Catalla e Nandumboe, por meio de es- pesso arvoredo, tendo na perpendicular depressoes que accusam pequenos riaclios na epoclia chuvosa.
«Mupandas, n'dumbiros, mutontos, mumóes e aca- cias pouco elevadas emergem do meio do tai)ete de fofo capim, protegendo-nos com a sombra de sua ra- magem.
«Quatro horas successivas a andar nos levam atra- vez dos bosques, que pela sua inyariabilidade come- (jam a tornar-se monotonos. Aqui e aleni mna rola foge espantada diante de nós, emquanto que o Schizorhis concolor, Smith., com o seu corpo cinzento, comprida cauda e popa elegante, nos acompanha pulando de ramo em ramo, e com ar de curiosidade solta de espa90 a espa90 um balido similhante ao da cabra.
«Antonio conta-nos em caminho historias das suas ca9adas, de comò matou o primeiro leopardo, e o des- dem que o leao Ihe inspira, esfor^ando-se por mostrar ser immerecido o titulo de m das selvas.
«Falla-nos da inveja que tem das armas dos boers, das ca9adas ao elephante, e ao referir-se a estes, exal- ta-lhe a intelligencia, a ponto de nos afian9ar que o
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elephante femea corrige o irregular proceder dos fi- llios, arrancando pequenas ai*\^ores para Ihes inflingir o necessario castigo!
«Pela tarde acampàmos, e, emquanto se preparava a comida, entretivemo-nos a desenhar alguns typos lupollos. Estavamos no limite das terras entre Huilla e Quipungo dos banhaneca.
«Durante o dia 7 fez-se marcila extensa, por meio de um panorama similliante ao do dia anterior. 0 ter- reno continua horisontal, sendo deserto de liabita9oes humanas.»
E abundante a cacja n'este districto, tendo nós occa- siào de saber da existencia de m'pallas, JEjpyceros me- lampus; de gungas, Boseleplms oreas (?); de nuimas, de unjiris, Sterpsiceros cudù; de quihunos, de bambis, Ce- phalophus mergens; de gazellas, Cervicapra hohor; sem contar zebras, elepliantes, leoes, leopardos, chacaes, hyenas, etc, nas florestas do sul.
A terra em todo o caminho tinlia pittoresco aspe- cto; a natureza do solo e quasi geralmente constituida por tractos argillosos, coni massas concretas, coradas pelo hydroxydo de ferro, assim comò por affloramen- tos de grès.
Sopra unia brisa do sueste, que mitiga extraordina- riamente os ardores do sol, alentando quem viaja. Durante o dia 8 proseguimos a principio por terra desliabitada, encontrando so as primeiras habita9oes pela tarde.
A circumstancia mais notavel é que logo de manha come90u o solo a apparecer semeado de negras pene- dias de gneiss, sobre as quaes se ergue uma pianta ori-
174 De Angola d controrcosta
ginal, cujo caule, negro, erecto e desnudado, termina por delgadas follia s, pianta qne entre os indigenas é conhecida por eachinde e a scien(*ia designa com o nome de Myrothamniis jìal)ellifolia.
Este facto, o do terreno come^ar em declive rapido para leste, e ainda o das penedias continuarem na li- nha norte-sul, indica claramente que o sublevamento que teve logar para o gneiss do subsolo vir à super- ficie, originou que se formasse a bacia do Cunene.
A vegeta9ào por sua parte varia ao oriente da zona pedi'egosa, desapparecendo as especies do genero Ber- linia, as mupandas, Bcichystegia spiceformis, etc, para ceder logar às leguminosas de espinho e de gomma, comò a Acacia alìnda, Acacia pennata (?) e outras. Caso notavel, topàmos aqui coni uni rachitico bao-bab, que n'estas altitudes se atreveu a vingar!
Durante o dia 9 proseguimos ligeiros para a em- balla do soba, atravez de enormes arimos de millio e sorgilo, planta^oes a que seni duvida a terra onde nos acliàmos, Quipungo, deve o seu nome, derivado de EpungOy millio.
Numerosos lameiros e pantanos embara^am o cami- nlio, levando-nos a suppor que as penedias ao oeste tra9am um comò que limite à vegeta^ao da Huilla e marcani tainbem o extremo da facha, alem da qual a salubridade poderà talvez soifrer alguma modificacjao.
Habitam està zona os ba-nlianeca, distinguindo-se dos ban-dimba no sul, por partirem os dois incisi vos medios de cima^ emquanto estes partem os dois de bai- xo, e dos cubaes no oeste, que arrancam uns e outros dentes.
Na Huilla 175
Assim, no plateau da HuiIIa, bastava-nos a simples inspec9ao da dentadura do primeiro indigena encon- trado, para sabermos a que familia pertencia.
0 processo de abIa9ao dos dentes, enij^regado pelos dentistas da terra, é curioso e de urna simplicidade in- comparavel. Apenas um paciente a isso se propoe, o operador pega dos ferros de duas machadinhas, e in- troduzindo um na bóca, encosta-o no rebordo da gen- giva de dentro para fora, emquanto com o outro, fa- zendo de martello, extrahe à terceira pancada o mais seguro dente. Rebenta, pelo geral, o sangue em abun- dancia, e entao um pau quasi em braza se introduz entre as gengivas do operado, que, apertando-o com for^a de encontro ao logar contendido, estanca a he- morrhagia !
0 originai é que este processo se emj^rega tambem para os queixaes, nao deixando nenhum à terceii-a pancada de ficar com as raizes ao ar!
Os ba-nlianeca sao em geral de boa presen9a e s}Tn- pathicos. Dividem-se em numerosas tribus com os nomes de ban-gambue, ban-jau, ban-pata, ba-pungo, ba-pollo, ba-hae e ba-quihita, occupando uma grande parte da terra em que nos achàmos, de que se consi- deram exclusivos liabitantes.
Empregam-se na agricultura e principalmente no mester de pastores, possuindo grandes manadas de ga- do. Doceis e laboriosos, é facil aproveital-os em muitos generos de traballio. D'elles ainda volveremos a fallar.
As duas lioras dèmos Arista da residencia do soba; approximàmo-nos, escolhemos logar apropriado, e em seguida mandàmos arriar as cargas.
176 De Angola d contro-costa
Pouco depois estavamos cercados de urna multidao de indigenas, typos variadissimos, apertando-se para observar o branco que vinha visitar o soba.
Era a segunda vez que nos achavamos entre es- tes povos, pois jà com os do norte haviamos em nossa primeira viagem feito conliecimento, quando de Quil- lengues fomos para Caconda.
Emquanto & sombra de urna arvore repousavamos, e esperando que terminasse o arranjo do acampamen- to, exhibiamos a nossa humilde pessoa à avida curiosi- dade dos indigenas, que commentarios faziam a nosso respeito, fomos esbo9ando alguns dos seus typos mais notaveis, facto que Ihes causou grande surpreza. Pas- sado algum tempo recebiamos um boi que o regulo nos enviava e um tiro certeiro prostrou immediata- mente, acrescentando mais o geral espanto.
Que impressao causa ao africano a rapidez e cer- teza do tiro feito por mao de europeu!
Ao pegar da carabina, observa-se sempre uma dis- posÌ9ao em todos para,fugirem ao minimo movimento suspeito; depois, ao verem apontar ao animai, appro- ximam-se, apertam-se, miram ora o atirador, ora o bi- cho, e quando de subito o tiro parte e a victima tomba, grande é a celeuma que se levanta, come9ando todos aos 3altos.
E ai d'aquelle que em scenas d'estas tenha a infe- licidade de errar o tiro. 0 seu prestigio entre os sel- vagens perderà logo metade da grandeza.
Duas horas depois, preparàmo-nos, partindo com o chefe da Huilla, e o novo companheiro de viagem, An- tonio, para a banza do regulo no intuito de o visitar.
Na malia 111
A residencia de um clicfe por estas terras coiiliece- se sempre pelos meìos de defeza que a circuindam. Vi- ctinias muitas vezes de hiciir»3es de ìnìmigos saltea- dores, e tendo de defender os povos das vìziuhan^as, tèeni for908amente de Ihes dar amplas porpor95e8 e
collocal-a8 em estado de nSo serein facilmente surpre- hendìdas.
Por isso a banza de Cunde-M'biimba, embora mo- desta e composta de casas distribnidas sem ordem, n'iim vasto recinto qiiadrangular, com o niesmo aspe- cto que todas as communs habita^Ses dos africanos do oeste, é defendida por uma forte pali^ada fixa até ao meio na accumida^So de terra alta, que a abertura
178 De Angola d contro-costa
de um fosso por fora originou. No interior ainda cor- rem linhas de estacaria em direc^ao diversa, e qiie pelas resi)ectivas portas dao accesso para quintaes oii recintos fechados, formando uma especie de lab^^rin- tho, ao meio do qual se aclia a vivenda particular do soba, dos seus guardas, mulheres, crean9as, etc.
Sentado o encontràmos nós a um canto do quinta!, cercando-o uma duzia de seus vassallos mais impor- tantes, entre os quaes figurava o calti^ esj)ecie de ge- neral, que se distingue por um pennaclio amarrado no alto da cabe^a e pendendo para a testa, o calfele, e um cavalheiro, que julgàmos ser o qidssongo grande, ou fallador mór da córte; singelamente vestido, coni um panno à cinta, sem amias, nem insignia alguma emfini, que denotasse a sua alta posicjao.
Um potè de j^ombé veiu cortar a monotonia d'està scena serio-grotesca, e emquanto os nossos compa- nheiros se regalayani coni cojios successivos, diverti- mo-nos a observar o caUi, personagem que nos pare ceu jiara tudo ter geito, menos para general.
Terminadas as liba<,»oes, vestiu o regulo uma farda que llie demos, permittindo-se entao proferir algumas palavras, que a turbanmlta se encarregava de abafar, por exclamarem, mal elle abria a bóca, Quieto! Quieto! Tate-Culo! Calunga! especie de agradecimento e baju- la^ao banal.
Dando-llie as costas, voltamos jiara o nosso campo, e, j)liilos()pliando sobre a misera vida que em pieno seculo XIX ])assa està gente, entre o pirao de millio e a ociosidade, uns coni os cabellos imtados, outros coni singela pelle de gato bravo pendente da cinta, a nós
NaHuilla 179
mesmo mentalmente perguntavamos se elles estariam condemnados a viver sempre assim, e em tal caso que 8atisfa9ao Ihes offerece a vida !
Metteu-se a noite, e, envolvendo-nos n'uma manta, adormecemos sobre a terra, para logo ao alvorecer nos mettermos de novo a caminho.
Muene Muanja, soba que adiante encontràmos, deu- nos seis ca^adores para guias, porque, dizia elle, as matas até ao Cunene eram bravas.
Andàmos até ao declinar da tarde, quando duas circumstancias imprevistas nos imj^ediram de ir mais longe.
A primeira foi um accesso febnl que nos sobreveiu, proveniente da ingestao de agua leitosa, unica que encontràmos n'uma po9a em Quipungo; a segunda consistiu na fuga para a retaguarda da egua em que um dos nossos companlieiros A^inha montado.
Rebentàra a corda que a segurava, e o animai, se- guindo vellios liabitos, talvez causa da sua venda por Erikson, partiu florestas a dentro, deixando o seu pos- suidor apeado, e sendo inuteis quantos esfor^os se fi- zeram para a alcan9ar.
Perdido o dia 1 1 na faina de a procurar, resolvemos retroceder, e passando de novo por Quipungo, cortà- mos pelo sul em direc9ao à Quihita, conduzindo comò despojo uma gazella que matàmos.
A zona percorrida no sul é inteiramente similhante, comò era de presumir, à do norte, optima para trilha- do de carro do systema boer. Pela mesma longitude encontràmos a zona pedregosa, bem conio identica variante na vegeta^ao.
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Grandes plainos se alongam pelo oriente do rio Cu- culo-baie, onde observàmos bandos de zebras, e al- guns macacos pulando de arvore em arvore, dos quaes matàmos um da especie denominada Cercopithecus Wemeri.
Notàmos frequentes vezes entre as follias do capini urna substancia branca em tudo similhante à secrcQao salivar. Inquìrindo da sua proveniencia, soubemos que um insecto, Boinbyx (?), fazia aquella especie de casulo, que mais tarde, sob a ac9ao dos raios solares, endure- cia, servindo para ahi collocar uma larva. 0 insecto nao o podémos ver.
Grandes morros se erguem mais adiante no terreno, por entre os quaes dois dias inteiros levàmos a cami- nliar até que, topando com o Cuculo-baie, o transpo- zemos no dia 15, e a 16 entràmos de novo no acampa- mento.
A digressao feita durante estes dias, se por um lado nao teve grande alcance scientifico, offereceu por outro suas vantagens, pois nos veiu evidenciar mais uma vez quanto é propria à colonisa9ao està terra, cujo salu- bre clima e feracidade resaltam aos olhos do mais in- differente.
Os mesmos lameiros que encontràmos na trilhada do norte estao circumscriptos a uma pequena zona, desapparecendo totalmente no sul para dar logar a um paiz aberto, fresco, saudavel e apto a variadissimas culturas.
0 que urge é arroteal-a, crear centros de colonisa- (jao, comò jà dissemos, promover a immigra9ao, offe- recendo todas as garantias de que carece o inicio de
Na Huilla 181
urna tao importante obra, e, digamos agora tambem a verdade, providencìar de um modo pratico ao traba- Iho do indigena.
Isto de reger colonia» em tao especial situa^ao, letra a letra pelo nosso codigo fundamental, de collocar o negro ao abrigo das leis benefica» n'elle outorgadas, de crear-lhe mesmo curadoria» por toda a provincia^ trazendo juizes e seu» subalterno» em constantes cor- reÌ9oes, no intuito de vigiar e impedir as exigencias do branco para com o preto; e deixar este na ociosi- dade, levando uma vida licenciosa, e quÌ9à tendo sen- zallas e banzas, às quaes elles se arrogam o direito de senhorio e goveman9a dentro da mesma provincia ; parece-nos que, se por um lado se póde considerar louvavel no intuito tocante à protec9ao, é assàs repre- liensivel sobre o ponto de vista moral e economico.
A protec9ao e a liberdade bem consideradas nao devem consistir n'esse ampio consentimento, qui3 hoje damos ao indigena africano de trabalhar so quando quer, com grave detrimento de quanta» industrias ali se iniciam e prejuizo do commercio e da propriedade rural.
Se a lavoura, por exemplo, em Africa nao dispensa o preto, e este no sertao, feito soba e encurralado na banza, despreza qualquer traballio, comò póde fazer-se prosperar a terra? E impossivel!
Ora, sendo de todos conliecido este facto, nao jul- gàmos conveniente conservar no centro dos mais ri- cos districtos o negro n'um estado de liberdade que nem na Europa conhecemos, so porque alguns igno- rantes, interessados pela situa9ao d'esse chamado in-
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feliz das selvas, clamam ao menor principio de repres- sào que Ihe diz respeito.
Pennittir-lhe a vadiagem é deixal-o contrahir na ociosidade repugnantes vicios, que pouco a pouco ori- ginam crimes ; e querer depois castigal-o coni a appli- ca9ao do codigo penai do reino, que elle nao com- prehende, nem sente, nem o molesta, garantindo-lhe, por exemplo, o alimento no caso de prisao (seu sonilo dourado, conier sem traballiar), toma-se uma verda- deira calamidade.
E digno de estudo este assumpto, que nos suscitou a visita pelas terras onde nos achàmos, objecto que fatalmente carece de leis e regulamentos especiaes, fundados em grandes recenseamentos e na ampia al^ada da auctoridade administrativa para extinguir a vadiagem do preto e submettel-o ao traballio ; preci- sando tanibem de penas adequadas para os crinies que pratica, a fini de afastal-o da directa intervenc^ao da tutela aiiida lioje existente.
Se o negro é cidadao portuguez, regendo-se pelos principios do codigo politico, que nos imjioe detemii- nados deveres, mas nos concede preciosos direitos, nao carece de tutela judicial.
Està é a verdade.
CAPITULO VI
AO SUL
Consola^ùes de quoni viaja — A abalada da Hnilla — Urna fuga e o abandono das cainas — O Cliiinpiiui|jiiiihimc — 0 eamiuho dos Gainbos e OS espinhoiros — 0 Toiigo-tongo oii o morrò sagrado — Os dias n'esta terra — As florestas e a fauna — Os bau-dimba e a sua voracidade — Ves- timentas e proceder para coin os mortos — Considera^òes e a festa da hela — loroeuto e urna erup^ao granitica — Caliaina e Xicusse — A mesa e suas consola^oes — Quatro elcpliantcs e a fauna omithologica — 0 cro- codilo e a pomba — A floresta que termina — Os ba-canealla ou bushmen, duas palavras a respeito d'elles — Tatouage, armas envenenadas — Scu earacter — 0 Hunibe e a ca^a considerada pelos ban-cumbi.
Entre os dìversos consolos que experi- mentdnios n'essa tri- Ihada de csperan^as e decep^oes, angiis- tias e Ifibox'es de urna A outra costa, figu- rarli sem duvida os da manlià do dia 29 de maio.
Contornadoa em todos OS sentidos pe- lo3 numerosos cou- celhos da provincia, ceiitrort agradaveis para o indigena, e de cnjo remanso Ihe é tSo custoso afastar-se, aasentes com a nosaa ca- ravana n'unì acainpamento aberto, d'onde era faeil evadir, n3o foi seni grande commo<;So que, depoia de
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tantos dias de anceio, nos erguemos, e ao fazer a clia- mada vimos quo nenhum homem, nem apenas urna carga faltavani.
Deii-nos aleuto este facto, pois, evidenciando que necessariaiiieiite uina optima dÌ8poHÌ<;ào continha agora OH espiritos, mostrava tambem que os receios eram iiifundados, e a final a nossa gente estava disposta a seguir-nos.
E persuadiu-nos ainda de que, se o goso da liber- dade no campo concorrerà em muito para bem os dispor, sobretudo liavia servido o systema de os des- embara(;ar de idéas sinistras, e que o processo agora seguido, de calar os nossos intuito», referindo-nos, quando interrogados sobre o firn da viagem, a sim- 2)les digressoes no districto, era o unico para dar bom resultado.
A idea de urna travessia, se i)ara nós era o supremo anlielo, para elles seria o signal de debandada geral; e a declara9ao de urna viagem até meio do continente, bastaria para nos limpar o quilombo de metade dos comjìanheiros.
0 segredo, pois, era a alma do negocio, urgindo e\4tar a todo o transe confidencias e expansoes, para nao ver reproduzir a estranila scena que as notas so- noras da trombeta de Jerichó provocaram, isto é, o desabamento completo do nosso edificio à mais j^e- quena phrase de revela^ao!
Continuando a narrativa da nossa peregrinacjao, que o leitor por vezes desculparà em seus candidos e pouco romanticos detallies, que a final nao deixam de approximar ali as nossas impressoes, dèmos a voz de
Ao sul 187
leva arriba, e, voltando as costas para a Huilla, parta- mos ao sul.
Eis o que no diario se acha em referencia a essa retirada, prova bem evidente da nossa disposi^ao ao efFeitual-a :
«As sete lioras largàmos. Em extensa linha desdo- brou-se a caravana para a banda do sueste, e serpean- do por entre os verdes capins, breve desappareceu por detraz dos morros.
«Estava urna manlia linda, liavia geada, calma, ti- nhamos fi-io ; os passarinhos gorgeiavam, sentiamo-nos bem, OS membros entorpecidos animavam-se, cavalgà- mos OS bois. Era tempo.»
E, na verdade, enfada muito o estar parado, quando se pensa no que ha a percorrer.
Em Africa sobretudo, longe do bulicio do mundo civ^lisado, e dos milhares de scenas attrahentes e con- stantes, a immobilidade n'um d'esses angulos socega- dos do mato faz fremitos, comò que frisa a nossa in- significancia, parece uma amostra do descanso final!
A primeira etape era até ao rio Cliimpumpunhime, que recolhe as aguas derivantes* ao oeste da serra da Nei va, e as envia pelo Caculovar para o Cunene; ali chegàmos pela tarde.
Sao as margens d'este rio constituidas por um dos mais ferteis tractos do planalto ; bem dispostas, pitto- rescas, em tudo proprias para estabelecimento de co- lonos.
0 clima ali 6 comò na Europa, podcndo o bra^o do liabitante do norte entrar comò factor assàs valioso no amanlio da terra.
188 De Angola d controrcosta
Multo acertadamente diz o rifSo portuguez, rulo ha bem que nào acabe, etc, e d'isso tivemos nós a eviden- cìa, pois a satisfa^ào da manhS acabou de se annuviar na entrada da noite, com um novo successo infeliz.
A caminho um dos carregadores, cogitando sobre as vicissitudes d'este genero de vida, e crendo que o me- llior que tinlia a fazer era alliviar-nos do exagerado carrego, partiu, roubando a carga de missanga que transportava.
Ao amanhecer do ^a seguinte, tendo adoecido um homem, come9àmos a reduc^ao da bagagem, e cortan- do pelos confortos, aquelles que se propunham ir até Mo9ambique tiveram de abandonar sem demora as respectivas camas de campanha.
Enfiando resolutos pelos matos, proseguimos até Maionje, onde um velho seciilo, que veiu espontanea- mente offerecer carregadores, nos ludibriou de modo vergonhoso. Ao cabo attingimos o Hai.
Largas planuras arborisadas constituem este tracto de terra, semeada de um sem numero de aldeias, que Ihe dao pittoresco aspecto ; desprovidas porém de agua corrente, véem-se os* seus liabitantes obrigados a tirar està de cacimbas, facto lamentavel, e que por certo tem impedido o desenvolvimento da popula^ao n'este aprazivel logar.
A caminho dos Gambos, o trilho, que até entao cor- tava por adustas florestas, entra de novo na zona do espinho, o que mostra ir baixando para o leito do Ca- culovar; ali o nosso fato e pelle ficaram em misero estado, por ser difficil sofrear o impeto dos bois na carreira. Por vezes a terra enxuga, e as Bauhvnias,
Ao sul 189
que haviamos encontrado nas faldas da serra da Chel- la, apparecem de novo, com a sua follia bipartida.
Enormes pencdos gneissicos emergem do terreno, observando-se fendas verticaes de fresca data, ao que parece. Notam-se com frequencia scliistos ampliiboli- cos e micaceos, ao passo que por toda a parte se véem vestigios do leopardo, da liyena e do cliacal, bem corno abundam perdizes e rolas, de que matàmos tres, elevando a cincoenta o numero dos exemplares d'està especie colhidos desde a costa.
As cubatas ficam longe do trilho, e por isso pouco podemos dizer dos liabitantes. 0 caminho apresenta-se aspero e tortuoso, visto ai)proximar-se do cordao oro- grapliico, cujo ponto culminante é o morrò Tongo- tongo.
As temperaturas minimas, i)ela noite, cliegaram a descer a 2° centigi-ados e mesmo a 1^,5, enregelando OS membros dos indigenas, que ninguem pela manlia conseguia arrancar de j unto do fogo.
Pela tarde observava-se a leste para o sertao uma negra barra de cacimbo, e logo em seguida amainava o vento do sueste.
Adiante passàmos em Nauéoa, proseguindo para a margem do Caculovar, que transpozemos no sitio onde se divide em dois bra90s.
Abunda por aqui o sesqui-oxido de ferro magnetico, encontrando-se grandes massas de magnetite, que pro- duzem sobre a agulha os mais extraordinarios desvios.
Logo ao amanliecer avistàmos o morrò Tongo-ton- go, de que jà fallàmos, conliecido tambem por morrò Sa^rado, onde os indigenas da localidade celebram an-
190 De Angola d contro-costa
nualmente urna festa; ao meio dia acampàmos na Chibemba, logar chefe do concelho dos Gambo», de- terminando acto continuo a posi^ao geographica.
D'aqui a vista espraia-se em grande distancia, ob- servando-se a todos os rumos numerosos morros e azuladas serranias ao longe, sobretudo para a banda dos Cubaes.
Fustigados toda a noite por vento rijo do suestc, que amea^ava levar as tendas pelos ares, almejavamos pelo dia, e assim que este assomou, pozemo-nos a ca- minho.
Tudo nos era favoravel.
Urna bella estrada carreteira, que, vindo da Huilla, continua aqui a principio por alluviao areosa e depois pelos tractos argillosos que o oxido de ferro coloriu, vestidos de Banhinias, de muitos sycomoros e de um ou outro rachitico bao-bab.
Bellos sao tambem os dias n'esta epocha. Illumina- dos pelo sol, que em todo o seu brillio esparge em atmospliera limpida comò o crystal milhares de fulgu- rantes raios, lembram ao viajante quào feliz sera quem de futuro alii residir, quando, pela frescura matutina, contemplar das varandas dos pequenos chalets os seus campos dourados pelo amadurecido trigo, os frondo- sos pomares vergando com os fructos, as longas ave- nidas ladeadas de sycomoros ; quando, emfim, ao rosto negro do indigena, e ao seu vulto desnudado, se sub- stituir a rubicunda face, os louros cabellos, a figura graciosa da joven europèa, que o viajante surprehen- derà fugindo envolta na sua matinée e sobra^adu de ramos de rosas!
Ao sul 191
Considerando na possivel realisa^ao d'este devaneio que a natiu'a em rcdor parecia condemnar pela suti fercza, proseguiram os aiictores d'estas linhas a mar- cila, e, tangendo os bois-cavallos, là se iani distrahindo na apanha de mineraes para a sua eollec9ao; perse- guidos pelas saudades e recorda^oes da Europa, dili- genciando afastar do pensamento certas idéas que por vezes Ihes assaltavam o espirito!
E beni tristes eram ellas!
Ao passar por Mucope, onde urna enorme mulolla deriva durante a epoclia das clmvas a agua do Cacu- lovar, e o caminlio para Quiteve se aparta para ir por lelobanda, apertàmos a marcila, a fini de cliegannos ao acampamento de Munguri antes de anoitecer.
As ciuco lioras acampàmos.
D'este logar para o sul terminam as habita^oes e come9a uma longa floresta, que nos levou tres dias a atravessar. Constitue ella n'esta zona a orla da mata com que defrontam pelo occidente o Quipungo, Quilii- ta, Gambos, etc, e que o Cunene delimita pelo oriente: valliacouto de quanto biclio bravio existe, pois, quasi iinpenetravel pela espessura do arvoredo, é composta na maior parte de espinlieiros.
Por là divagam elepliantes, rhinocerontes, bufalos e leopardos, a coberto de qualquer aggravo do rei da creacjao, pastando e entredevorando-se placidamente, seni que pessoa algunia pense em perturbal-os.
Atravessando as matas illuminadas pelos beneficos raios de uni sol matutinp, ladeados por duas nuirallias de verdura, onde a vista se perde n^nn labyrintlio de troncos, e o sentimento da dor por vezes acorda, em
194 De Angola d controncosta
A negra fonie deve apoquental-os multo, a julgar pelo seu proceder, pois ao rece])erem carne ou outro qualquer artigo em abundancìa, devoram-no sofrega- mente! 0 ventre distende-se-lhes, o estomago (avohi- niado eni consequencia da introduc^'ào diaria de fari- nlias e vegetaes, que por conterem poueos elementos nutrientes precisani ser ingeridos em quantidades exa- geradas), recolhe a carne em tal pro})or(^*ao, que deixa o oLservador abysmado.
As vestimentas d'estes indigenas sao de extrenia singeleza, reduzindo-se a pelles de animaes bravios, ou de boi preto, cor por elles muiìo estimada; a que juntam adornos com basta contaria.
Urna rapariga vimos nós, e a estampa póde dar idea, com o cabello dividido em tran9as carregadas de missanga, e que, nao contente com isso, trazia ao pes- coso monumentai coUar do mesnio artigo, addicionan- do, para aggravar este peso, um cinto de grossas con- tas, e tudo untado e a éscorrer em manteiga de vacca!
Entre os amuletos que està joven, de rosto galante, trazia ao pesco90, notàmos uma fecliadura de baliii e uma unlia de porco, sem contar outros artigos miudos de dubia proveniencia!
As mullieres sao em geral formosas, mas sordidas, o que 6 aggravado ainda pela alludida untura de man- teiga.
Limam ou partem os incisivos medios de cima; uma espirai de ferro de 30 centimetros de altura, perfei- tamente polida, enfeita-llies as pernas e bra9os, bera comò usam de infinidade de bocados de latao, cliapas de cobre, enfiadas de sementes, etc.
Ao sul
193
e ba-coróca, occupam sordidas habita^des e alimen- tam-se de leite.
Guata a comprehender na verdade comò està gente vìve, fazendo consistir a alimentatjào em tal artigo
e pequena por9ào de iiiaasa de milho urna vez ao dia, iste é, ao anoitecer, bó ingerindo a intcrvallos a cele- bre borlunga, garapa, feita tambem de milho.
194 De Angola d controncosta
A negra fome deve apoquental-os muito, a julgar pelo seu proceder, pois ao receberem carne ou outro qualquer artigo em abundancia, devoram-no sofrega- meiite! 0 ventre distende-se-lhes, o estomago (avolu- mado em consequencia da introduc^ao diaria de fari- nlias e vegetaes, que por conterem pouco» elementos nutrientes precisam ser ingeridos eni quantidades exa- geradas), recollie a carne em tal propor^ao, que deixa o ob?servador abysmado.
As vestimentas d'estes indigenas sao de extrema singeleza, reduzindo-se a pelles de animaes bravios, ou de boi preto, cor por elles muilo estimada; a que juntam adorno» coni basta contaria.
Urna rapariga vimos nós, e a estampa póde dar idea, coni o cabello dividido em tran<jas carregadas de missanga, e quo, nao contente coni isso, trazia ao pes- coso monumentai coUar do niesmo artigo, addicionan- do, para aggravar este peso, uni cinto de grossas con- tas, e tudo uiitado e a escorrer em manteiga de vacca!
Entre os amuletos que està joven, de rosto galante, trazia ao pescoso, notàmos uma fecliadura de baiai e uma unlia de porco, seni contar outros artigos miudos de dubia proveniencia!
As mullieres sao em geral formosas, mas sordidas, o que & aggravado ainda pela alludida untura de man- teiga.
Limam ou partem os incisivos medios de cima; uma espirai de ferro de 30 centimetros de altura, perfei- tamente polida, enfeita-llies as pernas e bra^os, beni comò iisam de infinidade de bocados de latao, cliapas de cobre, enfiadas de sementes, etc.
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Os liomcns trazem liabitualmente suspensa do pes- coso urna pequeua teiiaz de ferro, ou mellior pin<ja, com que se divertem a arrancar uni a uni os raros pellos da barba.
0 sexo forte, e sobretudo os velhos, usam do rape, as niulheres nao vimos que d'elle fizessem einprego.
Os ban-diinba, conio os ba-nlianeca, sao extreina- mente supersticiosos, e, se mìo teem a cren9a da outra Vida, pelo menos mostrani por vezes unia suspeita, facil de acreditar, na immortalidade da alma.
A rude ou grosseira metempsycose do sertao appa- rece aqui, sendo para elles conio certo o espirito dos mortos andar depois do apartamento, pelo geral, no corpo de animaes (caes, liyenas, etc), e as vezes no do liomem. E todo aquelle a quem esse espirito, Qui- lulìi, apparecer e perseguir n'este ultimo estado, consi- deraiii liomem prestes a inorrer!
Em resumo, os j)ovos dY'sta terra mostram recor- dar-se dos amigos fallecidos, o])servaiido-se nas occa- siòes de successos neftistos, attribuidos a influencia dos mortos, trazerem provisoes para junto dos tumu- los, onde sao collo(*adas, no intuito de os apaziguarem.
Elitre OS factos relativos ao modo conio procedem coni aquelles que partiram para nuiica mais voltarem, existe uni que, por originai, e nos ter creado uma pequena decep(;ao, aqui transcrevemos approximada- niente <lo nosso diario.
A 7 de junlio mettemo-nos a caminho ao alvorecer, de Munguri })ara o sul. Cliegados a uma volta do tri- llio observamos proximos dois circulos de pedras, a nieio dos qiiaes se viam numerosos ramos resequidos,
196 De Angola d controncosta
sem duvida ali coUocados pela mao do homem. Um d'elles estava cortado de fresco, e posto certamente pouco antes.
Inquirindo da significa^ao do que viamos, soubemos que é de uso entre estes povos, quando algum dos companheiros morre em viagem, marcar com os mon- ticulos de pedra o sitio onde cafu, e, afastando-o, en- terral-o logo na floresta proxima.
Volvendo entao ao logar do obito, cada companheiro corta um raminlio da arvore mais proxima, e, acercan- do-se das pedras, dep6e-no cuidadoso em cima, reti- rando-se.
NSo se limita porém so a isto, pois de futuro, sem- pre que qualquer conhecido ou amigo do defunto là passa, afasta-se respeitoso a cortar um ramo, voltando delicadamente a depol-o.
Escusado sera descrever a impressao que similhante narrativa nos causou.
Passar ali o indigena, apoderar-se do ramo, deixal-o respeitosamente no locai do apartamento do amigo, que quererà isto dizer, reflectiamos nós?
E logo acudia-nos a idèa de que os raminlios eram postos comò marca de aflfei^ao por quem estimaram na vida, e, sem querer, pensavamos na velila Europa, na viuva e na filhinha orpha, que nos tristes anniver- sarios do fallecimento d'aquelle que tanto estimaram na terra, sempre encontram em seu jardim perpetuas e goivos, para entretecer coróas com que vào adornar a sepultura, regada por lagrimas aferventadas pela cruciante saudade. Entao penitenciavamo-nos, repe- sos de termos por vezes condemnado o preto por in-
Ao svi
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differente e pouco caritativo, quando alias é acceesivel a sentimentos superiores.
Antonio, porém, cortou rapido a està ordem de sen- sa^Ses, contando-nos em breves palavras a veridica historia.
Informou-nos elle que, sobre eetes monte» e na sua
proximidade, se Kupp3c exiatirem sempre espiritos trc- mendos, cuja animadversSo tem as mais sèria» conse- quencias. Por isso, acrescentou, naturai algum do paiz ali passa seni expor religiosamente sobre o morrò um dos ditos raminhos e proferir urna formula so d'elles conhecida, pelo estranilo motivo de que, se o nSo fizer,
198 De Angola d contra-costa
sera, quando nienos, victiina de permanentes caimhras nas pernas !
Um liorrivel episodio se conta mesmo de certo lio- mem que seguiu caiiiiulio seni praticar as invariaveis ceremonias, e esse infeliz foi atacado de paralysia, que o prostrou para sempre! Claro e que muito commen- tàmos isto, e conio occasionalmente passasse toda a caravana seni laudar sobre os monticiilos os necessa- rios raminhos, cliegou-se à facil conclusao de que taes factos tinliam uni caracter especial referentes a indi- viduos isolados, nunca applicaveis às caravanas em marcila para Mo^ambique.
E o prosaico receio de que Ihes déem caimbras nas pernas, que os leva a proceder d'esse modo; e assilli por terra fìcou aquelle poetico castello de cartas!
Existem ainda factos mencionaveis na vida d'estes indigenas; taes sào as festas celebradas em epoclias certas, corno na de laudar o mantimento a terra, na da collieita, etc.
D'està ultima vanios em poucos tra^os dar uma ra- pida idea.
Denomina-se a festa da hela^, e e celebrada em ju-
^ No seu interessante livro intitulado A raga ìiegra falla-nos o sr. A. F. Nogiieira de uma festa feita n'esta epoeha proxiniamente, pelos ba-nha- neea do norte, e que tein por fini celebrar o cstado de paz e abundancia da terra, cujo synibolo é um boi a que dao o nome de Géroa, acompa- nhado de outro a que chamam Xicaca e um vitello Tembo-Onjuo,
Pela epoclia da lua nova esses 1)0Ì3 pereorrem proeessionalmente em cortejo de donzella» enfeitadas e homens sarapintados até arosidencia do regalo, e ahi Ihe cliegam a bóca o pò amargo da casca do ImnguruUoy que, conforme é laml)ido ou nao, assim constitue um presagio feliz ou agourento de revez. No caso aftirmativo feclia a ceremonia uma arenga do regulo, e uos dias subsequentes ha dansas cm honra das mulheres docile.
Aosul 199
nho, epoclia em que termina por estas regioes a co- llieìta.
Assim que a lua chela se approxima, conie^am as mulheres de todas as aldeias a fazer a Iieìa^ especie de cerveja confeccionada coni o sorgho, que depois de luimedecido, secco e triturado, é mettido n'um funil de capim para dirigir a agua coada atravez da massa, que mais tarde, fermentando, constitue a bebida.
Dois individuos dos mais importantes de qualquer aldeia sàem após, bem sarapintados, para, na quali- dade de festeiros, prepararem as cousas, e ao primeiro rebate acodem todos coni armas e grotescos tra^os pelo rosto, etc.
Attingido que seja uni determinado numero, cometa a scena, e de senzalla em senzalla prosegue a festa, tocando e cantando, recebendo aqui uni boi, aleni fa- rinlia, mais longe bebida, em inferneira continua, que por dias se prolonga.
Ai do liabitante encontrado em caminho, pois, vi- ctima d'estes energumenos que d solta pcrcorrem os campos, o roubani e mesmo espancam, escapando-lhes das maos a niuito custo.
0 mesmo viajante estranilo d terra, enibora o con- siderem mais, nao deixa por isso de ser roubado, fi- caiido invariavelmente em piena campina comò Adào andava no paraizo!
0 notavel, poréni, e que o regulo, cliefe supremo da terra, perde durante o primeiro dia todas as regalias e superioridade de que gosa em seus dominios. Assini, quando llie cliega a noticia dos festeiros terem partido para percorrer os primeiros logares, elle esconde-se.
200 De Angola d controrcosta
A multidSo avan9a entSo no sentido da sua residencia e para a grande distancia.
Tres latagoes armados e tintos de corea extrava- gantes partem na direcijào da emballa, e chegando ahi cautelosos, fazem nm giro em redor.
Nem alma viva apparece! Escondidos, os habitantes tremem de susto; o soba, recluso no quarto, nem res- pira: a sua presenta entao acarretar-lhe-fa immediato termo à existencia.
De uma das portas feitas na palÌ9ada sàem inopina- damente tres typos. Sao mulheres. A da frente, peque- nita, quando muito de oito annos, traz ao pescoso um amuleto, similhante a pà de ferro minuscula; a se- gunda, jà idosa, é a esposa mais velha do soba; a ter- ceira, especie de creada, conduz com todo o cuidado uma caba9a de hela.
Ao vel-as, os espioes afastam-se, depoem as armas e prostram-se por terra, emquanto a princeza donairosa caminha para o sitio onde se acha o grosso da gente, e entregando a caba9a da hela magica e a pequena pà que a ha de mexer, deixa-os feiticeiros que a esgotam, levantando o interdicto ao regulo.
Livre este, póde logo salr.
Nao atinàmos bem com a significa9ao d'està masca- rada, que finalisa por continuas dansas, parecendo intencionalmente mostrar uma comò que supremacia eventual do povo sobre o chef e supremo. Occorre-nos se isto terà alguma Hga9ao com o celebrado muquixé do Quióco, que tambem nas povoa9oes faz tudo quanto quer, aterrando todos, ou sera apenas reminiscencia dos jaggas devastadores, que, correndo na epocha da
Ao mi 201
matura^ào do maDtimento as tcrras, para roubarem, so se evitarìam as saan tyrannias pela» offerta» e con- cessSes!
Logo depois d'està festa faz-se outra, cujo firn é con- sagrar por urna ceremonia a idade nubil das donzellas, até ahi 11S.0 consideradas aptas para casar, abateado boi», de que ellas vestem a pelle, dansando, etc.
lorocuto, Cahama, Xicusse, foram pontos por que successivamente fomos acampando na grande mata, repetindo-se de modo invariavel as extravagantes sce- nas jà descriptas.
No primeiro d'estes pontos temoa a assignalar 0 in- opinado apparecìmento do granito, que em naturai erup^So por meio das rocha» laiirencìanas affloreia 0 terreno, erguendo-se de todos os lados.
202 De Angola d contro-costa
A marcila pelo bosque fa-se tornando de todo o ponto enfadonlia ; avalie-se pelo que encontràmos exa- rado eni nosso diario.
Nada mais banal, diz-se ali, do que viajar por uma deserta e longa floresta.
Depois de vinte e quatro lioras nada attraile e cousa algunia diverte; assim conio eiii liorisonte immenso, recortado por azulados montes, a vista se espraia })or vastas campiiias, onde se destacam pelas differentes grada^oes do verde os valles que se succedem e os brancos peiinachos aqui e alem das senzallas occultas pelo ai'voredo, dando inargem para divaga(;6es descri- ptivas e assumpto para distraliir quem viaja; do mes- mo modo a monotona repeti^ao dos troncos que nos ladeiam, no nieio de silencioso bosque, apenas convida a uni triste mutismo. Tudo se resumé a erguer de ma- nlia, marcliar durante o dia, acampando pela tarde ein sitio onde se encontre agua.
Inspeccionados invariavelmente os novos dominios, installavamo-nos na primeira clareira de cliao batido e plano que se nos offerecia, e onde Mupei, aeto conti- nuo, ageitando tres pedras, dava comedo à culinaria tarefa, essa mais seria das nossas preoecupa9oes, ver- dadeira questao importante do dia.
Difficilmente se póde compreliender os desejos e a satisfa(;ao que a vista dos fumegantes pratos inspira ao viajante africano, e conio contribuem para adorar as àgruras do mato, esses bocados de carne assada na braza ou nadando em uni mólho que póde ter por ori- g^m todos OS ingredientes, desde o azeite de palma até ao tutano de depilante!
Ao sul 203
Nimca na Europa, diante de bem scrvido jantar, nos seiitimos coni mais appetite do que eiii frente da nossa caixa arvorada em mesa, coni um guizado singelo em cima.
Activadas as func^oes vitaes por um exercicio exa- gerado cpie a temperatura, as aguas, etc, exaltam, alida o viajante sempre sob a impressilo de lima aniea- 9a de fonie, que Ihe orvalha a buca de agua ao aiite- gostar na imagina^ao um j)rato, que a necessidade llie pinta conio milito salioroso. A niingua de distrac^oes de espirito, torna-se mais imperativo o goso material de encher o estomago, aprecia mais essa idea, donii- iia-o grosseiramente o desejo sensual de ingerir o que ve, ti'azendo sempre interessado o receio constante das faltas frequentes.
Muitas vezes pensamos n'este facto, que de certa maneira explica as incliiia(;oes sofregas do preto, e ahi, mellior (pie em parte alguma, compreliendemos que nada iguala n'este peqiieno torrao a alegria de Ulna boa mesa, e serenamente apreciamos em sua gas- tronomica grandeza os Hortensius, Apicius e Lucul- lus, a qiiem a posteridade deve, pelo menos, conside- rar conio homens de boni gosto.
Entao a sós (^onsideravamos tambeni quanto neces- sarios sao os convivas, para tornar completo o siiave consolo de encher pausadamente o estomago; apre- ciavamos em devida escala as rasòes que deviani ter levado Miaraó Menes, esse sybarita da velha antigui- dade, a fazer da mesa quasi uma questao de estado; que arrastaram Solon, o celebre legislador atheniense, a sustentar que menos de trinta era numero inadmis-
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sivel em um jantar de tom, e que finalmente obrigou Vitellius a ter dentro do palacio todos os cozinheiros do imperio!
Assim muitas vezes se passava o tempo, que mais bem aproveitado podia ser, e, prolongando depois a conversa9ào até ao entrar da noite, almejavamos no regresso para as tendas pelo alimento da tarde seguin- te, porque sabiamos que durante ella se passariam as melhores horas do dia.
Adiante de Caliama tivemos pela primeira vez a agradavel surpreza de ver quatro elepliantes, que, ao avistar-nos, partiram floresta a dentro.
Nao ousando perseguir tao grossa ca9a, por nao es- tarmos ainda affeitos a ella, e porque a floresta, fecha- da completamente pelos espinheiros, apenas póde ser transitavel por animaes cuja pelle, comò a do elephan- te, so dà rasào de si a machado, abalàmos, consolan- do-nos com o registar em nosso diario o seu appare- cimento.
Pela nossa direita corre o Caculovar, e a presen9a da agua basta para que encham os ares os gorgeios de alados cantores.
Aves de bella plumagem avistavamos por toda a parte e a come9ar na Vidua paradisea^ notàmos uma outra preta avelludada, bem comò terceira vermelha e azul de longa cauda, e ainda uma especie de pópa de pintas brancas, cauda extensa e longo bico encar- nado, nao contando milhares de pintadas, da especie gallinacea.
Havendo pegado nas armas, seguimos até à margem do rio em busca de ca9a. Duas roUas, ciuco gallinhas
Ao sul
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e urna gazella, . Cephalophus mergeìis, eia o fructo do DOSSO passeio.
Pela tarde d'este dia deu-se a primeira morte entre 08 nossos càes, que foi iniseravelmente colhido pelo crocodilo.
Ao atirarmos à ultima pintada, as companheiras, levantando v6o para atravegsar o curso da agua, attra- hirani a atten<;ao de urna cadella, a Pomba, que, ven- do-as, se lan^ou com denodo ao rio.
Apenas tinha entrado na agua, uma cabe<;a hor- renda apparece à superficie, duas queixadas defendidas por agu<;ado8 dentea se abrem, mostrando escancara- da gliela vermellienta; grande redemoinho se segue, e o infeliz animai, soltando um ultimo latido, desappa- rece para sempre.
A estrada continua a prolongar com o rio, que tem aqui 30 a 40 metros de largo, 2 milhas ou menos de velocidade, agua barrenta, margens alagadas cobertas de gramineas, que vào morrer junto às acacias, que
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na for^a das chuvas devem ficar cobertas, nao abo- nando por isso a salubridade d'està zona.
A altitude diniinuiu, acliando-nos por aqui mais bai- xos cpie na Huilla, consequcncia de comecjar a floresta a rarear e a apparecer por toda a parte o bao-bab.
Adiante encoutram-se vestig'ios do laborioso traba- llio do homem e pouco depois véeni-se aa primeiras liabita(;oes.
Quando estas appareeeram, tivenios ensejo de ver e apalpar, pela prinieira vez em nossa vida, um dos mais estranlios tj'pos do continente africano, o niu- ciiancalla ou hushmnn, a leste conliecido por ba-clie- quelle *, ciijas pegadas nos caminhos os pretos distin- gnem coni a maior facilidade.
Nada ha mais abjecto e repugnante do que esse ar- remedo de homem, que hoje vagabundeia pelos bos- ques e campinas do grande continente, em lucta per- tinaz para se poder alimentar.
Tilo revoltante 6 està raridade do humano genero, tao mesquinho o seu ar, apoucado o vulto e estranilo o modo, que degrada e afflige ter que descrevel-o.
E corno se defronte de nós se erguera um cadaver, e parando nos fitasse envolto em miseria e frio.
A sua altura media e de 1",4 approximadamente, havendo muitos, porém, que nao chegam a està cra- veira.
A pelle 6 amarellada, as arcadas zygomaticas pro- eminentes, a face triangular e terminada em bico no queixo, deprimida a meio, nariz chato, bei^os grossos,
* Sao 03 mu-cusscquére de que nos falla Scrjia Fiuto.
Ao mi 207
olhos obliquos, pequenos, distantes, dispostos à feic^ao dos chinas: o seu aspecto é repellente.
Unia especie de tatouarje no rosto, resiiltado de pe- quenos golpes parallelos feitos com instrumento cor- tante, aggrava estes tra^os geraes, que se podem reniatar inferiormente, dizendo que o tronco é des- carnado, e os bra^os e pernas resequidos sao longos e nodosos nas juntas!
A descrip^ao das niulheres seria tal, que nol-a im- pede um respeito delicado pelo sexo amavel.
A vestimenta d'elles e, quando muito, urna pelle de gcneta ou de antilope ; as suas armas o arco e a fleelia, muitas vezes envenenada com o succo de uma euplior- bia, que suppomos ser a Amaryllis toodcarìa, e outras com o veneno da buta. Echidna arietans, que extrahem das vesiculas alveolares.
Vivem nos reconditos dos bosques, em miseras cu- batas; a sua alimentatilo consiste no mei e na carne; o seu maior prazer e o isolamento! Eis as informa^oes sobre essa degradada casta, de que encontràmos um grupo perto de Chipàlongo, do qual conservàmos triste recordacjao.
Muitos viajantes fallam do hushman e respectivo ca- racter, nos termos menos lisonjeiros.
Parece que a perfidia e a crueldade sao apanagio d'essas mesquinhas creaturas, transparecendo nota- velmente exageradas no cora^ao da mulher.
Assim se conta de maes que abandonam em piena floresta os filhos, por nao quererem carregar com elles, ou que OS atiram às feras, para fugirem à morte ine- vitavel, de preferencia às pobres crean9as ; de velbos,
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De Angola d contro-costa
emfim, deixados naa selvas ao desamparo, por Ihes faltarem jà for9as para acompanhar a caravana em viagem.
0 pouco tempo que com ellea nos demoràmos nào no8 consente garantir nenhuma d'estas asser<;5eB, as quaes de reato podem ser multo verdadeiras.
Continuando a marcila por meio de aldeias e cam- pos cultivados, transpozemos a fronteira de Humbe perto de um logar denominado Belavella, achando-nos n'uma tribù de uso» diiferentes, a avaliarmos pelo novo e originai penteado das mulheres, qvie parece terem ido buscar o modelo na configura^jSo da cabe9a do elephante!
Ao mi 209
Numerosos bao-bab vegetam na campina, para d« subito desapparecerem ao entrarmos n'uma zona pan- tanosa.
Um typo de periqiiìto ruidoso esvoa9a por aqui em bandos, atroando os ares com seiis gritos, e deixan- do-se levar à mercé do vento do sueste, que n'esta quadra sopra rijo e forte.
Debaixo do ponto de vista cynegetico, é està urna regiào altamente interessante, que pelo oeste os boers da Humpata jà come9aram nos ultimos annos a per- correr.
0 proprio Erikson, esse audaz ca9ador que trilha com seus carros muitos sertoes do sul, tambem dei- tou até aqui em suas ca9adoras pesquizas, no intuito de OS atulhar de marfim.
Sao numerosos os elepliantes a leste e oeste da es- trada, encontrando nós em muitas partes bem visiveis tra90S da sua passagem; assim comò abundam ali os rhinocerontes, bufalos e varios antilopes de grande tamanho.
A causa d'està frisante multiplica9ao de animaes de vulto, tao proximos da residencia do liomem, consiste em dois factos especiaes: a natureza das florestas, exclusivamente compostas em grandes zonas do espi- nlieiro, o que as toma impenetraveis, e a abundancia dos gados, fazendo com que o indigena pouco ou nada pense em ca9ar.
Assim, raro se ve um bando de ban-cumbi partir para a ca9a, e quando se Ihes falla d'isso, respondem sempre indifferentes, com ar de quem pouco pensa ou se emprega em tal,
14
210 De Angola d controncosta
O ponto refendo dista 12 millias da sède do conce- Ilio do Humbe.
Erguendo-nos com a aurora, bifurcàmo-nos em nossos bois-cavallos, e, entestando com o trilho por urna nianha primaveral, seguinios pelas plantacjoes e propriedades dos europeus e africanos ali residentes, até que alfim, transpbndo o Caculovar, acanipàmos à sombra de duas copadas arvores.
Estavamos a GOO millias do ponto da partida, pois tal era a distancia pelo caminho por nós percorrido; e quando, ao pensar na regiao dos lagos, desdobràmos cautelosos a carta sobre o joellio, emmudecemos ante a zona que se alongava, e que passo a passo tinliamos de visitar.
CAPITULO VII
ENTRE OS BAN-KUMBI
O Huiiibe — Sua posi^'ao — Quadro historico — Os ])an-kumbi e os seus costumcs — Habita^oes e typo — 0 hamha — Homens e nuilheres, séustra- balhos — Chronologia e fcstas — Fuueraea — Missoes catholicas — Os ba- na-eutuba e o Cuauhatna — Proezas do Nainpaudi — Riqueza dos cuanha- nias e um aper^v geologico — 0 ronco do loùo impressionando no niundo aniuiado — 0 caoinibo e as eonsi(lcra9ucs — O Cuuenc e o alagamcnto marginai — Mupei cncontra a niao — A vaortha e o processo da vaccina — Os reptis e a vegetatilo — Zero de graus e a impressilo consequente — Um almo90 de couro.
A villa (lo lluiii-
be acha-se 8ituada
Ila conflueucia do
Uaculovar' e do
Cunene, sob o pa-
-^ 1 1 ^. lallelo 16".42'.00"
ui e lidi duo (le
nn««ai>a».a 15°.00'.24", a leste
de Greenwich; altitude proximamente de 1:067 metro».
Este ponto da iiossa provincia obrìga-nos, antea de
proseguir na viagem, objecto d'este livro, a um deva-
' Caculovar, conup^ do Caculo-Bale.
214 De Angola d contr(Kosta
neio historico, que, embora nos afaste do priucipal firn proposto, uem por isso deixa de ter um determi- nado valor para os que se interessam pela Africa.
Parec^e fora de duvida que ao tempo da conquista de Angola pelos portuguezes, um vasto districto ou pro- vincia se estendia desde o Bié até para aleni do Cu- nliama, e era govemado por um chefe conhecido pelo nome, de Humbi-Inéné *. Este chefe, alliado dos reis de Angola, preparou-se para correr em seu soccorro, (piando rebentou a guerra (*ontra os conquistadores; tal auxilio, porcm, nao póde ter logar, em vista da opposi(;ao de um dos seus vassallos no norte, o soba do Bié, que n'isso nao consentiu.
D'este facto deriva a independencia do ]iié, pois, (pierendo o Humbi castigar o soba d'està regiao, par- tilliou coni elle os azares de unia guerra civil, em que foi vencido e obrigado a pedir a paz, voltando para a siui cidade.
Nao e beni certo o logar d'està entao importante ca- pital, onde reinava comò despota o senhor de tao vastos dominios; tudo, porém, leva a crer que fosse approxi- madamente no ponto em que hoje se aclia o moderno Ilumbe, nao so pela coincidencia do nome, conio tam- beni pela posi(;ao estrategica que occupa, pois aclian- do-se assente n'essa nesga de terra encravada entre OS dois rios Caculovar e Cunene, naturalmente devia agradar ao liomem, cujo genero de vida o trazia sem- pre em lucta coni estranhos.
1 Inéné significa grande. 0 Humbi seria talvez um vassallo do grande ehefe dos mataman.
Elitre OS ban-kumbi 215
Sao curiosa s as informa9oes àcerca da conquista ou primeira occupacjao conliecida por parte dos indi- genas d'està ampia zona, quando se compulsa a his- toria.
No meio de uma confusao de factos estranhos ou exagerados, encontram-se alguns, que em duas pala- vras vamos frisar, e que deixarao ver para o caso apro- veitamento immediato.
Dissemos que o Humbe podia nmito beni ter sido o centro ou capital de uni grande imperio, de que hoje iiem restam as sombras, pois de velha data outras indica9oes existiam, iiao meno» aproveitaveis e con- ducentes ao mesmo evidenciar.
Segundo Gavazzi, Lopes, etc, os jaggas ou 9uiiibis appareceram no Congo pelo nieado do seculo xvi, ca- pitaneados pelo jagga Zinibo *, que, invadindo aquelle reino, o limpou dos seus habitadores, e queimando a cidade de S. Salvador, obrigou o rei a refugiar-se ii'unia illia do Zaire coni todo o pessoal importante da sua córte.
Nao contente com as vantagens obtidas, esse verda- deiro Attila africano, percebendo a impossibilidade de conservar quietas as liordas de seus guerreiros liabi- tuados a vencer, dividiu o exercito em grupos, que enviou il conquista para pontos differentes.
r
1 Ziml)o ou Xiiiibo, conforme o modo do pronunciar. E de crcr que ^ estas numcrosis9Ìmas liordas fossem formadas de tribus differentes, tornan- do umas vezes para a collectividade o nome do chefe, outras tornando oste para si o nome da tribù ou terra d'onde haviam saido. Assim os jag- gas seriam os mà-iàcca, os ^umbi eram os ban-cumbi, os ximbo os ba- ximba de hoje talvez.
216 De Angola d contrcKosta
Urna das columnas, capitaneada, ao que parece, pela propria esposa do monarcha, a feroz Temba-Ndumba, dirigiu-se pela Mina e costa da Malagueta até à serra Leoa; outra enviou Zimbo para a conquista da Abys- sinia (?) e Mo9ambiqiie, dando o commando d'ella ao seu logar-tenente Quizuva.
Este, investindo com o oriente, levou as suas con- quistas até perto do mar, e sendo batido pelos portu- guezes em Tete *, recuou suspendendo.
Zimbo, conhecedor do facto, prestou-llie aiixilio, e após mna serie de victorias, investindo com o reino de Melinde, ahi foi completamente derrotado, conse- guindo escapar-se com pequeno numero de compa- nlieiros.
Tomando entao pelo sul, transpoz o Zambeze, e, se- guindo talvez pelo norte do Calahari, veiu estabelecer- se nas margens do rio Cunene, avassallando os seus
1 £is a rasSo por que Duartc Lopes tanto falla das temerosas bata- Ihas travadas entre os jaggas pelo lado do Moneinueji, e as amazonas que dcfendiam o Monomotapa.
E d'estas amazonas està mais que provada a sua existencia, pois entre os jaggas as mulheres eram temiveis.
Teniba-Ndumba, de que fallÀmos, era mulher cruel, ardente e apaixo- nada que mal desprendia os amantes dos bra^os, os sacrificava, no nieio das maiores torturas.
Foi ella que se proclamou rainha dos jaggas, decretando que todas as crean^as do sexo masculino a quem nasccsscm prime irò os deutes de cima que os de baixo, fossem estranguladas pelas proprias mScs, para se Ihes transformarem os corpos n*um oleo especial ; ordenou, emfim, que OS prisioneiros machos, depois de servirem na perpetuammo da rama, fossem mortos e devorados, e mil outras monstruosidades.
Nào menos notavel foi sua màe Mussassa, mulher de um dos capitSes mais famosos d*aquelle tempo, Donji, que govemou largo tempo em Mh- tamba e cuja educammo feroz produziu a filha de que fallàmos.
Entre os han-hirnhi 217
habitadores. 0 ponto por elle escolhido nao està bein averiguado, porém póde tomar-se corno acceitavel que soflÉrendo derrota pouco antes, a experiencia Ibe pro- vocasse a idèa de assentar os seus arraiaes em logar naturalmente defendido, e sobre o Cunene nenlium melhor liavia que aquelle onde se acha o Hunibe *.
E se assim fez, se construiu o primeiro quilombo, porque nao seria elle o fundador do imperio de Hum- bi-Inéne? Demais, vemos que entre os companbeiros de Zimbo ou Ximbo deviam vir ban-ximba, bem corno 9umbis ou ban-kumbi, nomes que ainda hoje desi- gnam aquellas tribus, cujos costumes nos parece rela- cionarem por modo frisante coni os dos habitadores do norte.
E fora de duvida, porém, que os ban-kumbi con- trastam com tudo quanto os cerca, assim comò nos parece assente ser o paiz d'onde procedem multo dis- tante do que occupam agora, acreditar no que por mais de urna vez nos disseram, isto e, serem prove- nientes do norte.
E jà que fallàmos da impressao causada pelos cos- tumes e o modo de vida dos ban-kumbi, dèmos n'um momento a palavra ao sr. A. F. Nogueira, o illustre auctor da Rcu^a negi^a, que viveu multo tempo entre
1 De todas as informa^oes que podémos colher no Humbe, resultou chegarmos ao eonliecimento da existencia outr'ora de um povo que habitou este paiz largo tempo, conhecido pela designarlo de ba-cua-naiba. Fronteiro a Quiteve vimos mais tarde um morrò, onde parece tiveram uma grande libata, que se denomina Punda-ia-Cave. Nao podémos, porém, acertar se eram elles os representantes dos primeiros habitadores d'està zona, se tribus dispersas dos companbeiros dos jaggas, ou emfim, o que é a mesma cousa, descendentes dos dàmaras do sul.
218 De Angola d contra-costa
elles, tendo largo conhecimento dos seus habitos, e veremos talvez mais urna comprova(;ao do que avaii- (jàinos.
Eis o que elle nos diz ii'uma memoria apresentada a sociedade de geograpliia de Lisboa, sobre o dialecto luTi-kmnbi:
«Os costimies dos ban-kumbi téem miia notavel analogia coni os dos arabes. Como estes, elles rapam a cabe9a, deixando no occiput urna ou mais tran9as de 8 a 10 centimetros de comprido; repetem as sau- da96es, descal^am-se quando entram em casa de al- guem, e isto em signal de respeito, cantam pelas mas, teem uma fórma de casamento, cuja base ó a polyga- mia; quando morre alguem, os parentes e amigos do defunto despojam-se dos seus adornos mais vistosos, substituem por outros de cor preta, e celebram, can- tando coni uma triste melopéa e gestos doloridos, as qualidades e feitos do finado, e finalmente usam a cir- cumcisào, que, se nao é de origem arabe, foi desde tempos remotos adoptada por estes.
«As liabitac^oes ma-hurnho consistem n'um conjim- cto de vivendas particulares, em cada uma das quaes reside determinada fiimilia, so differindo das dos ara- bes no emprego de cabanas em vez de tendas circum- dando o curral e de correrem parallelamente na dis- tancia de 10 metros.
«Como nos duars arabes, etc.
«0 cliefe de cada um d'estes aggregados de liabi- ta9Òes, que se denomina é-uvìbo, e, comò os arabes, o cliefe da povoa9ao mu-cunda, que governa em nome do hamba (principe ou soberano), etc.
Entre os ban-kumbi 219
«È notavel, diz o sr. Nogiieira, a coincidencia de servir aqui o nome mu-cunda para designar a mesma cousa que entre os fiillas; assim^ fulla-amda significa, entre estes, aldeia ou povoacjao dos fullas.»
Todas estas considera^oes veni de certo modo ar- reigar em nosso espirito a idea da probabilidade de antigas rela96es dos ban-kumbi com os jaggas, o que nem de longe podemos garantir; mas esmiu9adas por mào habil poderao alguma cousa dar, e emfim, postas aqui, deixam assumpto interessante para a ethnogra- phia africana, fazendo mais tarde dissipar as discre- pancias entre Duarte Lopes e Alvares de Almada, quando aquelle falla do apparecimento dos jaggas no oriente.
Os ban-kumbi sao refor^ados, robustos e retintos; o aspecto d'elles nao é menos bello e sympatliico do que o dos ba-nano.
Trajam pelles de boi preto e nunca de cor, usando pelo geral uma collocada posteriormente, e, caso sin- gular, cortando-a em meia lua com a concavidade para cima e suspendendo-a nos quadris pelas pontas, de pouco ou nada serve, sobretudo quando estes se- nhores se curvam.
Como OS ban-dimba, as nmllieres por aqui sao bas- tante immoraes, usam os mais exquisitos penteados, addicionando-Uies, comò se disse, junto aos temporaes dois enfeites tecidos de cabello à feÌ9ào de orellias, que Ihes imprimem um ar muito estranbo.
Carregam-se de contaria no pesco90 e nos rins, e, do mesmo modo que todas as tribus pastoris, téem o repugnante costume de se untar com manteiga.
220 De Angola d contror-cosia
Os homens empregam-se em apascentar os reba- nhos, cortam madeiras e desbastam matas ; os rapazes mugem as vaccas e preparam a manteiga e o leite coalhado, seu principal se nao unico alimento, com a massa de sorgho; as mulheres amanham as terras, e nas epochas convenientes fazem as sementeiras, etc.
0 boi e para està gente tudo, riqueza, distrac9ao, base do seu sùstento e causa de quantas pendencias entre elles se levantam.
E notavel que os ban-kumbi nao usam para vestir fazenda de cores vistosas, sobretudo da encamada.
Por cousa alguma vestina qualquer d'elles panno vermelho, contentando-se de preferencia com o couro de boi preto, de que, é preciso dizer, so se servem, nao podendo fazel-o o hamba ou chefe, para quem sao reservadas as pelles de cabra preta.
Os penteados variam desde o rapado, com rabicho no occiput (mais geral), até aos mais caprichosos da arte. Os pastores divergem, usando sempre uma gran- de trunfa repuxada para traz, ligando-a por dois ou tres atilhos.
Segundo diversas narra96es, os ban-kumbi téem uma chronologia rudimentar que se reduz a fazer co- mecyar o anno em outubro e concluir em setembro, divi- dindo-o em luna96es ; para cada uma d'estas ha festas particulares, de duas ou tres das quaes daremos rapi- da idèa.
Fevereiro, festa do Gongó.
E n'este mez que termina a preparacjao da bebida feita com o fructo do gongó, que depois de fermentada é extremamente inebriante.
Enire os ban-kuTnM 221
A festa reduz-se simplesmente ao seguilite:
E de praxe guardar urna panella da primeira bebida
feita, que no anno seguinte ha de ser substituida por
outra com liquido novo.
Logo, pois, que se conclue està, junta-se o povo em
grande algazarra em redor de alguns homens aarapin-
tados e vestidos com eatranhos artigos, que tomam a direc^ào da festa, dìrigindo-se, com a nova panella, ao logar onde està guardada a antiga.
Quando chegam ahi, trocam-n'as, e partindo para a residencia do hamba, entre musìcas e danaas, entre- gam-lh'a, ao que elle retribue com um boi ou outro animai, come«;ando entSo o consumo da bebida por toda a terra.
222 De Angola d contro-costa
Setembro, festa do maiitiinento.
E d'està especialmente encarregada a niulher mais velha do hamha, apesar de elle abrilliantar a scena coni a sua presenta.
Pelo minguante da Ina de setembro, reunem-se to- das as nmlheres em circulo, junto da residencia do cliefe. No centro està a esposa citada, tendo junto a si urna quinda ou cesta de sementes, para a qual pas- sados momentos se dirige o feiticeiro da terra, todo emplumado, praticando determinadas scenas de en- canta^ao em volta da cesta; depois d'isso, a extrémosa cara metade do cliefe cometa a distribuir sementes por quantos d'ella se approximam, e quando ve a quin- da quasi a esgotar-se, ergue-se, partindo coni o resto para o mellior arimo do regulo. Seguindo-a todos, ro- deiain novamente a princeza, que tem junto a si uma nioleca conduzindo por^ao de ere, com o qual aquella se sarapinta, misturando o remanescente coni as se- mentes de virtude. Acto continuo cada qual deità al- gunias em pequena cova, e reserva para si o restante, principiando depois as dansas, que se prolongam por alguns dias.
A festa da cliuva segue-se a està, cercada de scenas de feiti^aria, pela maior parte siniilliantes às que inui- tos auctores téeni jà descripto.
Os ban-kumbi, ao contrario dos ba-coróca, enter- ram os mortos. Os seus funeraes sao ruidosos, conio por toda a Africa, tendo porém alguns tra^os origi- naes.
Assini, logo depois do passamento, quebram ao de- funto OS ossos principaes com um pau de pilao e, fa-
Entre os ban-kumbi 223
zendo-o n'um feixe, embriilliam-no seguidamente em panno.
E de uso so participarem a sua morte passados dias, na inten(;ao naturalmente de haver tempo para prepararem as festas, e logo que as cousas se acliam dispostas, collocam-no a meio da casa onde falleceu, dando entào a noticia.
Cometa invariavelmente a matan^a dos bois, as dansas e as bebedeiras, cortadas por intervallos de ridiculo clioro caramunhado pelas esposas do fallecido.
A medida que os dias passam, avanza a decomposi- 9ao cadaverica, formigando os vermes por toda a par- te, até chegar o dia em que, cansadosda fadigosa ta- refa, se decidem ao funeral.
Al)re-se o recinto em que estj'i o cadaver, e pene- trando ali OS membros da familia, reduzem este a uma boia, que e cuidadosamente cozida n'unì couro de boi preto. Acto continuo 6 este volume mettido em colos- sal panella, e pegando n'ella os coveiros (familia es- pecial a quem cumpre tanto este servilo, comò o de executores de alta justi^a), transportam-n'a para o lo- gar onde deve realisar-se a inhuma^ao.
Um boi preto e entao immolado sobre a sepultura, e regada està com o seu sangue, sendo a carne comi- da por aquelles que acima citàmos.
Existe no Humbe uma succursal da missao cattolica da Huilla, onde os reverendos padres buscam reunir quantos adeptos conseguem, para os trazerem ao gre- mio da religiao e do sentimento. Aquelle pequeno re- cinto, nao sendo assàs confortavel, é comtudo muito limpo, com as janellas alinhadas, o jardim proximo
224 De Angola d contrcb-costa
cuidadosamente cultivado, tendo urna pequena sala de estudo, em que o viajante póde encontrar varios Uvros e onde se véem faces radiantes de bonhomia e reina aquelle sorriso de suave consola9ao, que so illumina as consciencias propensas ao bem; esparge-se d'ali um perfume de unc9ao; circumda-o urna corno que atmosphera de virtude, que attrahe e captiva o ho- mem afFeito durante mezes ao viver com negros.
Urna vez assistimos ao sacrificio da missa, e ao per- correr o reverendo Campana as teclas do harmonium no momento da consagra9ao, nós, tao afastados do mundo que pensa, sentimos uma inefFavel do^ura em recordal-o, imaginaudo-nos de subito immersos n'elle.
Ali encontràmos tambem os reverendos Ogan, Del- pueche, e outros, luctando com innumeras diflSculda- des para continuarem a meritoria obra em que por- fiam, e que praza à Providencia levem a cabo.
Para alem do Cunene habitam os bana-cutuba, as- sim denominados pelo uso de um cinto, d'onde pende posteriormente uma pequena rodella de sola, da qual o desenlio j unto darà idèa; comprehendendo princi- palmente Cuanhama, a que nos vamos referir, homens do valle, etc.
0 Cuanhama é hoje um estado de que se falla, nao pela sua extensao, mas pelo pavor que os seus habi- tadores téem sabido incutir aos povos circumvizinhos, sobretudo no sul, e que ultimamente deveria ter pro- gredido multo se as luctas, em que seu chefe Nam- pandi anda sempre, a isso nao obstassem.
Este homem vae longe, dizia-nos um inglez com quem estivemos no Humbe, fallando d'elle; é um
Entre os han-kwmbi 225
vulto estranho entre os seus almilhantes, eapaz de empreliender grandes cousas e de as por mais tarde
f>-.
em pratica. Allìando a vontade de ferro e a energia de vinte e cinco annoB, dcterminadas qualidades que
226 De Angola d controncosta
constituem o tra<;o dos heroes, corno, por exemplo, o desprezo da vida, a arte de remunerar e o segredo de se impor, esse homein, qiie hoje manda n'um pequeno estado, que possue apenas trinta cavallos e tres mil homens amiados de Martinis e Ricliards, póde n'unì tempo multo proximo dominar grandes extensoes em redor!
Effectivamente assim poderia ser. Nampandi é um ente que se extrema entre todos os seus simìlhantes ; comtudo a todas as grandes qualidades acima enun- ciadas renne uma, que basta para destruir as outras.
Nampandi 6 feroz, bestialmente tyranno e sangui- nario.
Eis o que em nosso diario escrevemos a respeito d'esse mancebo:
«0 soba do Cuanliama, Nampandi, primo direito de Cliipandeca (Otjipandeca), seu antecessor, pois é filho de uma irma mais nova da mae d'aquelle, entrou no estado ha ciuco annos approximadamente.
((Beni parecido, clieio de vida e vigor, dotado tam- bem da mais desmedida ambitalo, com uma naturai tendencia para abusar do poder e tyrannisar, esse ho- niem é hoje a leste do Cunene, no territorio portuguez, o terror dos seus e de quantos indigenas ali appare- cem, exigindo que a auctoridade portugueza Ihe de jà uma seria li^ao, ou o fa9a banir*.
<(Traja sempre à europea, possuindo uma bem ar- mada guarda com carabinas modernas, que elle mes-
* A data em que escrevemos estas linhas, Nampandi jà nao é d'aste mundo.
Entre os ban-kumbi 227
mo ensina a atirar ao alvo, no qiie é artista consum- mado, a ponto de matar a baia passaros no vóo; de- safia ao alvo quantos branco» por ali passani, de quem zomba logo que erreni o mais simples tiro; possue soberbos cavallo» cm que liabitualmente anda mon- tado, e qiie ora lan^a a solta na carreira, galgando de um salto acima d'elles, ora, partindo direito à porta da palicjada, que cerca em Toquero a sua resi- dencia, desmonta de subito, por maneira que so o ca- vallo entra, ficando elle de pé junto da mesma porta. Pelo singelo entornar de um copo de agua que um infeliz vassallo llie vinlia servir em presenta de euro- peus, deu-llie em castigo a morte, disparando unia baia da propria carabina, e tendo igual correc^ao o facto de, acLando-se presente no acampamento dos euro- peus*, apparecerem ahi liomens coni quindas de fari- nlia para negocio. A mais grata das suas distraccjoes é espetar na sua zagaia ou lazer com que se espetem as suas mais galantes mullieres, para o que se colloca pela noite em escuro corredor da residencia, de lan9a em riste, clamando por ellas de modo imperativo. A unica boa qualidade que possue, é receber hospitaleira e galhardamente quantos europeus o visitam, presen- teando-os com generosidade. Nampandi, pelo que aca- bàmos de dizer, é um monstro (pie està precisando da mais seria e severa das correc^oes.»
Felizmente para o mundo civilisado, e sobretudo para nós portuguezes, esse malefico tyranno jà nao existe, conio indicamos em nota, evitando-nos com o
^ Eram dois inglezcs.
228 De Angola d amtrd-costa
seu desapparecimento o iucommodo de o subjugarmos pela for<;a, jà que nao queria ceder aos repetidos con- selhos.
Os ba-cuanhama, com quem nao travàmos conlieci- mento, parece serem mais audazes e bellicosos que os ban-kumbi, percorrendo a miudo os sertoes que Ihes ficam proximos com guerras devastadoras. 0 paiz terà, quando multo, 5:000 milhas quadradas de superficie; a capital, que elles denominam emballa do Toquero ou do poente, acha-se situada em Ghiva, no meio de extenàas planuras alagadicyas, despidas na sua maior parte de vegeta^ao, seccas durante a estiagem.
A riqueza d'elles consiste nas grandes manadas de gado, que facilmente augmentam com a rapina.
Similha-se muito nos costumes e habitos aos da- mar as.
0 tracto do terreno em que nos achavamos acam- pados difFere do anterior.
Constituido pelas rochas primitivas, onde nao podé- mos fazer especial estudo, é semeado de espinheiros, Bauhinias, Mopanes, bao-babs, e de uma arvore que OS indigenas muito apreciam, cujo fructo, quando ma- duro, com dois caro^os negi-os, é comestivel. Encon- tram-se alem d'isso ali sycomoros, hyphoenes e outras arvores.
0 aspecto locai difFere muito do planalto de Huilla, sendo pelos seus habitadores europeus considerado salubre.
A uma milha do Caculovar o terreno eleva-se al- gum tanto, achando-se ali edificadas todas as habita- 9oes, livres assim das grandes cheias no tempo inver-
Entre OS han-himìn 229
no80, epocha em que os crocodilos yem quasi junto ' das casas visitar seua moradores.
Desde que nos approximàmos do Humbe, come90u a acalentar-nos a idèa de fazer urna explora^So a esse mysterìoso curso do Cunene iiiferior, sobre o qual ainda hoje iiSo ha idt5a precìsa, A cataracta, subdi-
vidida em braQos variados, e as grandes perdas por evapora(j3o ou infiltra9ào, eram outros tantOB proble- mas que nos attrahiam ali antes de proseguirmos de- finitivamente para leste.
A nossa gente, pordm, nSo possuindo pelo Cunene a mesma admira^So e interesse que nós, mal suspei- taram do caso, tocaram a rebate aos receios!
— Eil-08 que tomam para a tal regiSo, exclamaram todos amedrontados.
•
•
230 De Aìigóla d contra-costa
• — E eil-os (le novo em debandada, volvemos por no88o tiu'iio, aiitevendo outras fugas e decejxjoes.
Coiiveiicidos de que qualquer teutativa no sentido de explorar o rio so podia acarretar-nos desgostos e conipronietter a nossa situacjao, entendenios necessa- rio abandonar o projecto para sempre, deixando a outros o gosto de resolvel-o, e a IG de jullio, logo qiie alvorecesse, voltar as costa» ao Hunibe, fazendo-Uie as nossas despedidas.
Erani diias horas da noite quando terniinamos estas considera^oes, e liaviamos apenas adormecido, quando fonios acordados de sobresalto. Uni rumor estupendo nos despertàra; julgavamos talvez unia debandada dos nossos, quando de subito uni ronco estranilo estron- deou iia floresta e repercutindo-se nas quebradas se perdeu ao longe, chamando-nos a realidade.
A claridade da lua, que suave illuminava a teri'a em redor, o rei das selvas passeava proximo, demons- trando coni seus rugidos o espanto que llie causava a nossa presen(;a.
Que impressào estranila causa no mundo animado o urro tremendo d'esse feroz quadrupede! Os proprios grillos e rallos emniudecem, os bois aconcliegam-se, as gallinhas acocoram-se: é corno se todos receiassem, coni o menor movimento, provocar as iras tremendas do bicho!
At- final, despontando a pregui<;osa aurora, dissipa- ram-se os sustos, e laii(;ando-nos aos bois-cavallos, fomos a caminlio de Quiteve.
0 primeiro acampamento foi na mu-^unda de Caon- go, o segundo na de Quima.
Entre os han-kumhi 231
Este paiz é park-like, frisando-se a vegetjKjao por adansonias e elegantes hyphoDnes.
O terreno é silicioso, alternando por vezes coni ar- gillas; o caminho coitc ao noi-te.
A viagem ia-se fazendo alegremente ; as nianlias ca- chubadas e frescas, e o sol um pouco encoberto, da- vam à paizagem um tom de nieia luz, que fazia leni- brar o romper de manlul primaveral na nossa querida patria. Parece pueril, mas e verdade; que influencia tem no espirito do viajante uma circumstaneia conio està! Que de idéas e recordacjoes nos acudiam, ao olliar para aquelle aspecto da natureza, tao diflferente do communi entre tropico»!
Poucas vezes a leiiibraiKja da terra natal nos cavou tao rapido e fuiido o soffrer, conio n'estes dias aqui.
Tinhamos saudade, seni a final compreliendermos milito beni a rasao; lenibran^as estranhas do céii, da brisa, do lar, que se nos afiguravam mais bellos do (pie nunca, acliando espelho na paizagem de agora, refle- ctiam-se ahi, e volvendo sobre nosso espirito, ao que parece, desenrolavam aos ollios da alma todo um pa- norama de recorda^oes e suave cogitar, que a labiita- (jao dos ultimos tempos liavia amortalliado no manto do olvido, e que a saudade n'unì momento despeda- 9ava coni tyranna.maò.
Felizmente, quando era mais intensa a dor, o sol, verdadeiro acoite de quantos sentimentos capazes de fazer titubear o viajante, descobria, dardejando-nos de prumo, e, varrendo id^as e emocjoes, transformava esse montao de confuso e?q)erimentar, em muda fadiga e catadupas do suor.
232 De Angola d contr arrosta
Adiante o aspecto da terra mudou mais urna vez, e, fechando-se em mata para a esquerda, dèmos entrada n'uma zona charcosa, coberta pelo Arando phragmites.
Era nada menos que o leito do rio Cunene na epo- cha das chuvas, e qiie estava agora a 3 milhas de nós.
Em roda viam-se, suspensos aos ramos dos espi- nheiros e dobrados no sentido da corrente a 1",5 e mais de altura, feixes de grammineas, que, arrastadas pelas aguas, ali tinham ficado detidas.
Calcule-se o aspecto imponente d'esse rio por aqui em tal epocha, a ajuizar por este volume de agua, e ter-se-ha a explica^ao d'essas informa^oes que muitos viajantes d'elle téem trazido, e que mais de uma vez se julgaram comò exageradas.
E facil sera tambem comprehender comò o Cunene, drenando todo o plateau de Galangue, chega ao mar com pouca agua; basta para isso considerarmos que pelo lado do valle as suas margens téem o mesmo as- pecto, e portanto, n'este colossal alagamento, vae elle em seu curso medio, perdendo parte das aguas por in- filtra9ao e estagnacjào, sobre centenas de kilometros quadrados.
A salubridade d'està zona poderia ainda considerar- se hypothetica, se toda a gente nao fosse unanime em declaral-a assàs saudavel.
Um objecto que nos prende a attencjao é a abun- dancia e variedade de aves, que esvoa^am, mergulham e vageiam pelas lagoas e suas margens.
Cegonlias, patos, gar^as, gaivotas pardas do inte- rior, pelicanos, pernaltas exoticas, comò se fosse um jardim de acclimacjao, vivem feliz nas lagoas.
Entre os han-ku/mM 233
Urna ave azul ferrete e que suppomos ser o Chara- driìts caruncola, pouco menor que a rola, attrahe-nos a vista pela sua pouca tìmidez, saltando de ramo em ramo, para nos mirar curiosa.
Todos OS rebanhos do sul para aqui vem n'esta epocha, pois os pastores sabem que por todo o leito do rio existem bellas pastagens.
Com mais uma marcha penetràmos no districto da Gamba, dominios do hamha N'gonga, sem ter ensejo de com elle fallarmos, e proseguindo no trilho, parallelo ao qual se estiram muitas lagoas em que liìppopotamos e crocodilos vivem na mais perfeita communidade, fi- zemos ponto n'um legar chamado Peonga.
Accorreu aqui uma scena, que em dois tracyos es- bo^aremos, por se referir a um rapaz africano, Au- gusto Mupei, que lioje passeia contente nas ruas da Europa, e jà por duas vezes foi comnosco à Africa, tendo todo o direito a figurar n'este livro.
Ao chegarmos a Peonga, e depois de acamparmos, disse-nos elle:
— Està é a minha terra, eis o logar em que passei OS meus primeiros annos, e d'onde fui afastado aos dez, pelos guerreiros do Nano, que, vindo aqui n'uma raz- zia, me roubaram à mae. Aqui residia por esse tempo toda a minha familia.
Mediocremente indifferentes a està subita revela^ao, nao achàmos melhor para Ihe responder:
— Procura-os e vae cumprir com as tuas obriga^oes de bom filho, isto é, vel-os e abra<;al-os.
Mal acabavamos de formular o nosso conselho ao filho extraviado, quando de subito entra no acampa-
234 De Angola d contro-costa
mento um indigena, e, topando coni Mupei de chapéu e paletot, reconlieceu-o e come^ou a rir corno* louco.
Findo tal exordio, encetaram-se explicacjoes, d'onde se conchiiu o segiiinte:
Mupei tinlia perdido o pae liavia poiico tempo.
E conio? Devorado ali mesmo por um leao! Mupei ouviu a narrativa seni pestanejar!
Um irmào succumbira tanibem. E de que modo? Colludo iia lagoa fronteira por enorme crocodilo.
Sua nuìe, emfim, conservava-se viva; mas, exda- mou o informador, parece que loiige d'aqui.
Estavam as cousas ii'este pé quando acto continuo ouviu-se clamar: «Mupei, ollia a mae de Mupei!»
Salmos das barracas. Fora acliava-se acocorada, lima velha coni lima quinda de fariiiLa defronte, duas bolas de ta])a(*o, e um tarro de horlunga (vaso de cer- veja de massambala), mirando tiido com espanto.
«E a mae de Mupei», repetia a gente em còro; e a velhinlia, circumvagando coni o olliar os que a rodea- vam, aconcliegava de si os ditos artigos, receiosa que toda aquella scena fosse feita no intuito de Ihe rouba- rem quanto possuia.
«Entao, Mupei, nao vaes comprimentar tua mae?» exclamàmos nós.
Erguendo-se, marcliou direito a ella, e observando-a de frente balbucioii: «Adeiis minila mae, entiio nao me conhece?»
Uni subito estremecimento percorreu o corpo da velliota; dez minutos decorreram seni ella proferir palavra, conservando-se espantada a miral-o sem se lembrar de tudo que a cercava.
^
Entre os han-kumhi 235
Era um quadro originai, a pose dos dois, causando interesse reflectir nos sentimentos que deviam n'esse momento animar quem, apesar de tudo, era mae.
A final a pobre creatura resolveu-se, e, pegando de quanto tinlia defronte de si, objectos que eram talvez o seu unico pensamento quando Veiu ao quilombo, e com que pretendia a compra de objectos de seus con- stantes sonhos, entregou-os ao fillio!
Assim Ihe mostrava todo o affecto; nao saberido dar-llie n'um osculo ou n'um abrado a prova da sua maternal satisfanno em vel-o junto a si, ofierecia-llie o capital com que vinha negociar.
Duas horas depois saia ella, coberta de fazendas de todas as cores e estampas.
Emquanto estas scenas se passavam, Antonio, o dex- tro ca^ador, mais disposto a espreitar a cana do que OS sentimentos que dominavam a mae de Mupei em presenta do fillio, mimoseou-nos com ciuco pintadas e dois patos reaes, optiiiio recurso para quem so ti- nlia carne de um boi que succumbira de caanha ^
r
1 £ a caonha um dos maiorcs flagellos do gado no plateau da Huilla, e para a qual as tentati vas de cura sào quasi infructifcras. 0 melhor mcio é afastar da manada o boi aehacado. Um dos processos, de que ou- vimos fallar corno talvez efficaz, é o da vaccina: logo que se pretende tornar imnmne um boi, amarra-se e, abrindo-lhe a cauda abaixo da ulti- ma vertebra, introduz-se ahi uma tira de fazenda que se empregnou de massa pulmonar de boi morto com a tuberculosc, ligando tudo com longa .percinta. Ao cabo de duas ou tres semanas cAe a ligadura, cicatriza a ferida, e diz-se que o animai póde viver indemne entre similhantes com caojJia, Outras vezes a inflamma^ao propaga-se para a parte superior e o animai succumbe. £ està doen^a extrcmamente contagiosa. Diz-se quo um touro procedente da Hollanda infficionàra com ella o Cabo e terras do norte, e Chapmann na primeira viagem a trouxera para N*gami.
236 De Angola d contra-costa
Sao multo numerosas as cobras por aqui, havendo nós encontrado durante o trajecto para Peonga tres, urna das quaes saltou defronte de nós; tambem na agua existe urna assàs perigosa.
A vegeta<;ao peln Hnlia por que vamos correndo en- contra-se distribuida em tres zonas distinctas. Na alta, caracterisa-a o bao-bab, o sycomoro, e algumas aca- cias de espinho, na baixa as Bauhinias, junto ao rio o espinheiro e o arundo; liabitadas, na parte superior, pelos antilopes, na media pelo javali, especie que jul- gàmos ser o Cochon à verrues, e a toupeira; perto da agua pelos liippopotamos e aves aquaticas.
Um frio extraordinario enregela n'esta quadra os membros, baixando à hora da lyiinima o themiometro a zero de graus centigrados, facto que talvez de certo modo tenda a explicar a salubridade d'està zona, tao coberta de pantanos, por impedir o desenvolvimento do germen miasmatico.
No acampamento seguinte, em Tcliinguembe, ficà- mos detidos na barraca e junto do fogo, corno se esti- vessemos na Siberia! As ciuco horas da manhà ainda o thermometro marcava proximo do zero, e um prato conservado com agua, continlia um disco de gèlo. Nu- merosas hyenas rodeavam esfaimadas o recinto, inci- tando-se-lhe o appetite por este frio apperitivo.
Ninguem imagina a impressao que uma tal tempe- ratura produz no europeu em Africa, quando pelo dia sobe a 28° e 30°.
Nào é comparavel este frio com o da Europa, natu- ralmente pelo contraste da noite com o dia; e na ver- dade toma-se doloroso e insupportavel. Ao metter as
Entre os ban-kumbi 237
màos em agua, parece que nos arrancam as unhas, ao molhar a cabe^a afigura-se-nos que nol-a esfregam com urna escova esbraseada!
Quando a final nos erguemos, topàmos com urna scena estranha, para devaneio.
Quatro carregadores da terra que comnosco vinham, tendo recebido na vespera urna por<;ao de couro de boi, para fazer alpercatas, entretinliam-se junto do fogo n'aquelle trabalho; o notavel, porém, é que, com todo o engenho proprio de um africano, tinham estes heroes achado outra applica^ao para o couro, nao me- nos util, e mais agradavel talvez.
A medida que procediam à feitura das alpercatas, lam almo9ando as aparas!
0 processo é em tudo singelo.
Apenas reunidos uns poucos de bocados, punham- os ao fogo, e logo que come^avam a encarquilhar- se, deitavam-os para o chao, e, assentando-lhes qua- tro ou seis pancadas para amollecerem, mesmo cheios de terra, os ingeriam.
Nem na retirada da Russia!
Emfim, a 22 de junho, abandonando a varzea ala- gada do rio e, seguindo por terra mais alta, atravez de densos bosques, entràmos em Quiteve, onde tem vas- ta residencia um portuguez ha annos ali estabelecido, n'uma das mais bellas posi<;oes da margem do rio Cu- nene, e que a simples vista basta para reconhecer comò exceliente e propria para uma colonia.
CAPITULO Vili
ENTRE CUNENE E CUBANGO
A reluctancia dos guias e o n^curso dos boi» — A fome e uni quadro do sertao — Disposi^ao geologica das terras percorridas — Roclias vulca- lìicas e minas — A vcgeta^ao, o frio e os lobo» — Cobra originai — A ca^a e as pégadas do elepliaute — A iioito e o charivari das feras — As matas da Hauda — Cachira — 0» imvoadoros d'ali — As mupandas e a terra Sem pedras — A cabra que asHobia e os bv^hmen — A steatopygia — A iiatureza do solo ; conversa com um indigena — Os ba-oua-neitunta — Exageros gen- tilicos — 0 leao e os niabecoa — Os macaco» e o arinadilho — 0 Cubango — ConsiderayOcs sobre o seu curso.
CAPITULO Vili
ENTRE CUNENE E CUBANGO
A rcluctancia dos guias e o rocurso doa l)ois — A fome e um quadro do sertao — Disposi^ao geologica das terras pereorridas — Rochas vulca- nicas e minas — A vcgetagao, o frio e os lobos — Cobra originai — A ca^a e as pégadas do depilante — A noitc e o charivari das fcras — As matas da Ilanda — Cacliira — Os povoadores d'ali — As uiupandas e a terra sem pedras — A cabra quo assobia e os hitahinen — A steatopygia — A natureza do solo ; conversa com uni indigena — Os ba-cua-neitunta — Exageros gen- tilicos — 0 leao e osmabecos — Os macacos e o arinadilho — O Cubango — Con8Ìdera95cs sobrc o seu curso.
Perguntae ao in- digena africano em sua terra a que dis- tancia fica determi- nida r^So, qual o caracter dos habi- tadoreB, qual a na^ tureza dos alimen- tos ali encontradoB, e vel-0-heÌB prestes erguer-se, estender o bra^o esqiierdo na direc9So de que se
irata, e, dando com a mSo direìta pequenos estalos,
responder: «E longe, senhor; ma gente a de Id; po-
bre, nSo tem para si de corner!"
E se acrescentardes que, sem embargo, quercia ali
ir, que tendes interesse em os visitar, e o convidaes
Perguntae ao in- f- digena africano em /' sua terra a que dis- tali eia fica determi- nada regiao, qual o cai'acter dos habi- tadores, qual a na- tureza dos alimen- tos ali encontrados, e vel-o-heis preetea erguer-se, estender obraijo esquerdo na direcQ^o de qua se trata, e, dando com a mao direita pequenos estalos, responder: «E longe, aenhor; ma gente a de là; po- bre, nJo tem para si de corner!»
E ee acrescentardes que, sem embargo, quereis ali ir, que tendea interesse em os visitar, e o convidaes
242 De Angola d coìitra-costa
a acompanliar-vos conio guia, elle retorquinl aiuda: «Isso para mais tarde, depois fallaremos, agora teiilio quc beber o meu ponibé!» E iiao insistir, iiao procurar couveucel-o, porque todas as diligencias ii'esse sentido serao frustradas, se nao perigosas aos ollios dos vossos compaidieiros, quando escutarem attentos as narra^'oes extraordinarias dos perigos a correr, que o infonnador irà exagerando seni duvida, na justa medida da iiisis- tencia.
Durante a iiossa demora em Quiteve dez vezes fi- zemos tentativas d'este genero, no intuito de arranjar uni guia que nos conduzisse à liabita<;ao do regulo portuguez da Handa, e outras tantas cortàmos de su- bito as negocia<;6es, ao ver e ouvir os exageros dos indigenas, que os nossos, approximando-se, come<;a- vain a commentar.
A id(ja de que o interior do continente africano e em vastas zonas ermo e coberto de areias, em outras po- voado de feras e cannìbaes, se de ha niuito se dissi- pou do espirito do europeu, pelas pesquizas de intel- ligentes e audaciosos viajantes, que llie trouxeram a certeza da fertilidade e riqueza do solo, e da densa popula<,»ao dos districtos, conserva-se, caso estranilo, ainda arreigada na imagina^ao do negro, repleta de brumas e clieia de perigos.
Ninguem o demove do seu proposito, e se seguindo uma linlia qualquer de trajecto encontra sempre popu- lac^oes pacificas que beni o recebain, resta-llie o recurso de considerar que se n'esse rumo nao existe o caso sus- peito, mais para uni lado ou outro sera facil acliar a prova de quanto affinila.
Entre Cunene e Cuhango 243
Assim, pois, o mellior e valer-se dos proprios recur- sos para conseguir os seus fins, absteiulo-se de fallar àeerca do caminlio por onde se dirige.
Tal era a impressào que nos dominava ao tempo da partida para a Handa, e, preparando as nossas dna» grandes canoas, a 26 de junho transpozemos o Cune- ne, acampando na sua margem esquerda.
Tem elle aqui 100 a 150 nietros de largo e 2™,5 de profundidade, margens elevadas e cobertas de arvore- do, e é livre de caclioeiras desde o Mulondo para baixo da Dangoena.
Até agora, a parte do paiz percorrida, frequentada de europeus, apresenta-se ao leitor pittoresca e limpa de obstaculos, por onde o viajante despreoccupado póde transitar de luva e l)adine.
Sujeitos aos trabalhos agricolas e commerciaes, os indigenas, sob a suave pressao da auctoridade, perde- ram a sua ferocidade nativa, entregando-se a uma vida de certo modo laboriosa, que pro])orciona ao viajante o modesto bem-estar de que carece.
Nào tanto assim para o diante.
Avanzando para as raias da nossa provincia, as cou- sas come^am a variar, e embora nao tenliamos que referir grandes obstaculos originados pelos indigenas, nem por isso deixaremos breve de entrar em lucta coni difliculdades d'està e outra natureza.
Os grandes rios, as planuras alagadas, os pantanos, a escassez dos mantimentos, e emfim a fome, sao cir- cumstancias graves que representam o mais impor- tante factor n'estas viagens, sendo a ultima merece- dora de toda a atten9ào.
244 De Angola d covtroncosta
Com receio de cairmos victimas de similhante fla- gello, mettemos em Quiteve mais vinte bois, que jun- tos aos jà possuidos perfaziam a cifra de trinta e dois, precioso recurso que muito concorreu para a nossa 8alva9ào.
E assim dizemos, porque em verdade, quando sal- mos d'essa terra, mal pensarìamos que d'ali até ao grande Zambeze so em dois ou tres logares se encon- traria mantimento em abundancia, caso estranho, que raras vezes em Africa o viajante terà topado, e nos proporcionou angustiosos dias, apertados por este ter- rivel mal.
A fome, eis o terror do sertao.
Chuvas, frios, feras, salteadores; nada perturba e apavora, comò essa terrivel idèa, que ao assomar logo desmoralisa.
Nao ha meio nem phrase para conter e animar o homem faminto!
Quereis vel-o, errante e desvairado, os membros niis e emmagrecidos, a pelle do ventre rugada, depri- mida em concavìdade, divagando com o olhar empar- vecido por entre a floresta em procura de qualquer cousa que Ihe mitigue a fome, volvendo-se ao menor rumor onde suppoe existir um reptil, mirando attento onde pensou ver uma abelha, indifferente aos vossos clamores, abandonando carga e companheiros, para vaguear em matos onde fatalmente tem de perder-se; ide à Africa, e embrenliae-vos por essas florestas onde so o elephante e o rhinoceronte vivem !
Ahi, quando ao acaso aprouver collocar-vos n'uma das muitas e tristes situa96es em que nos achàmos,
Entre Cunene e Cubango 245
apreciareis bem, leitor ; tudo quanto a penna aqui nao póde descrever-vos !
Antes de partir nao vem fora de proposito algumas resumidas considera^oes sobre os tra9os pliysicos ge- raes das terras atravessadas.
A vasta cordilheira, que corta de norte a sul o Fendi e determina n'esta altura pelo oriente a bacia do Cu- nene, desvia-se a caminlio do meio dia para leste, vin- do gradualmente transformar-se nas vastas ondula<;oes do plateau da Handa.
Assim nivelada, deprime-se para a banda do occi- dente, concorrendo de novo para a delimitacjao ao poente da mesma bacia.
E ella, póde dizer-se, o limite leste do enorme cordào orographico, que, correndo parallelamente à costa a 200 kilometros de distancia, come9a para alem dos contrafortes da Cliella, no limite dos schistos paleozoi- cos de que fallàmos, e vem morrer n'esta longitude, com o apparecimento da forma^ao laurenciana que a constitue, profondando para o nascente, sob um tra- cto de terrenos primarios pouco extensos e caracte- risticos.
E notavel porém a disposi^ao das terras sedimen- tares de uma banda e outra da imponente massa gneis- sica.
Para alem passàmos successivamente pelas forma- 9oes terciarias, com o seu gres grosseiro de cimento calcareo, grès calcariferos amarellos, comò a molas- sa, etc, para em seguida entrarmos nas secundarias com OS seus calcareos argillosos, marnes, e, transpondo um plateau schistoso, encontrar a laurenciana.
246 De Angola d contra-costa
Aqui largàniol-a agora, elitre scliistos niicaeeos, que breve desapparecem, para dar logar aos gres em ex- tremo iiiipregiiados de oxido de ferro, fendidos abru- ptamente e elieios de raviiias pela JU'^ao das aguas, que, desaggregando-os coni rapidez, llies (*oiisenteiii affe- ctar as mais estraiilias fóriiias; logo adiante se divisa o querque seja, conio caleareos, e, seguiido suppomos, coutinuam milito aiiida para o oriente.
A estratifìca<;ao do gneiss, por toda a parte onde a teiiios observado, é plana e liorisontal, por vezes ligei- ramente curva, prova de que quando o sublevamento primitivo se operou ainda ac^uelle permanecia no es- tado plastico, (àrcumstancia que nos induz a suspei- tar um traballio orogenico, de caracter assàs prinior- dial.
Até à presente data so unia vez tivemos occasiao de observar roclias eruptivas de origem ignea, encon- trando, conio jà dissemos, exemplares graniticos em lorocuto, promiscuamente coni gneiss.
De roclias vulcanicas nadà sabemos, e embora nos tenliam dito que para o oeste, entre Mossamedes e Cliella, se encontra uma ramje basaltica, nào demos noticia, posto que para essa regiao dizem existir a plionolite.
E de crer que toda a zona atravessada seja mineira, abundando os jazigos metalliferos, conio ha noticia na Pedra Grande, na Cliella, nos Gambos, no Humbe e no Hambo, e ate no planalto, na limonite dos panta- nos, d'onde os indigenas extrahem o minerio; conio, porém, é ponto melindroso a que difficilmente se póde attender em viagem de explora9ào geographica, abste-
Entre Cunene e Cuhango 247
mo-nos de n'elle entrar, deixando a pessoas mais com- petentes similliaute tarefa ^
A vegeta^ao falta facies especial n'este sitio; densa na margem do rio, cometa a rarear nas zonas do gres, mostrando leguminosas de espinlio e plantas de triste aspecto, qiie para o oriente sao substituidas por espe- cies de maior viilto.
Emfim, o frio qiie n'esta terra temos sentido impel- le-nos amiudadas vezes a pensar que a sua origem nao e devida à altitude, pois sendo certo estamios n'um plano inferior ao da lluilla (onde nao observàmos ta- manhas baixas de temperatura), talvez que a causa principal esteja na rapida evapora^ao ou em qualquer circumstancia similhante.
Abundam no rio os liippopotamos e os crocodilos, beni comò julgàmos existirem duas variedades de ba- gres ClaAas capensis, e outra de que nao conservàmos noticia, emquanto que na terra divagam leoes e ele- phantes (muito numerosos), rhinocerontes, leopardos e lobos, que nos mimo^aram com urna serenata na der- radeira noite ali passada, e no acampamento teve o seu eclio no permanente latido dos nossos caes.
0 apparecimento dos elephantes n'esta zona, que em redor (5 bastante povoada, foi um facto que nos cau- sou estranlieza, pois o colossal pacliyderme procura sempre os logares mais sombrios e retirados, parecen-
1 Variam as indica90cs niincralogicas com rela^So ao tracio de terra por nós atravessado, sendo conhccido na costa o feiTo magnetico dos Gambos, oligisto de Mossamedes, corno carvào de pedra da mesma proce- dencia, e ainda a malacliitc, e tambcm o cobrc nativo, o sai-gemma, eie.
■ Perguntae ao in-
'■ digena africano em
, sua terra a que dis-
-. tancia fica determi-
. nada regiSo, qual o
caracter dos habi-
1 tadores, qual a na-
tureza dos alimen-
tos ali encontrados,
e vel-o-heÌ8 prestes
erguer-se, estender
^ obrac^esqiierdona
j^>v|_ -rJ^%* - _ .-,^iv-..-w.x direci;ào de que se
trata, e, dando com a mSLo direita pequenos estalos,
responder: «E longe, senhor; ma gente a de là; pò-
bre, nào tem para si de corner!))
E se acrescentardes que, sem embargo, quereis ali ir, que tendes interesse em os visitar, e o convidaes
250 De Angola d amtra-costa
Coiitra teda a expectativa, porém, ao tentarem a passageiii os jjrinieiros, descobriram mais Ho do lado opposto!
E que urna longa illia nos liavia illudido, pela terra firme da outra extreinidade, e, dividindo-se o ciirso da agiia em dois bracjos, tiveinos de fazer segunda ponte.
Ao norte corre outro, o Cachitanda, que vem da terra dos amboellas e nlieml)as, cnjo deslisar, com o d'este, forma mna cunlia de terras alagadas impossi vel de percorrer, e na margem do qiial se aclia hoje esta- belecida uma delega^ao da missao catholica. Notavel doen^a acommette n'esta terra os europeus, queixan- do-se d'ella os reverendos padres: é o apparecimento de numerosas feridas iias periias, acompanliado de in- flammacjao ou sorte de edema.
Apenas liaviamos caminhado 3 ou 4 millias, demos com o quilombo de uma guerra que na vespera ali passàra, e devia conter muitas centenas de pessoas, a julgar pel OS numerosos fogos dispersos, e ainda crepi- tantes.
Tal encontro ter-nos-la sido fatai, pois estas enor- mes coliortes, vindas às vezes de longe, percorrem às soltas OS sertoes sem rei nem lei; e, dominadas apenas pela rapina e ancia de pilhar, desviam-se, respeitando so a for^a, sem attenderem jamais a reclama9oes de quem quer que seja.
E frequente a ca^a, matando nos logo no comedo da viagem uma m'j^ala, jEpyceros melampus, de cuja cabe9a damos um mau desenlio; assim conio as péga- das do elephante no terreno amollecido eram tantas, que difficilmente os bois-cavallos podiam transitar.
Entre Cunene e Cuhango 243
Assim, pois, o mellior e valer-se dos proprios reciir- sos para conseguir os seus fins, abstendo-se de fallar àcerca do caminho por onde se dirige.
Tal era a impressao que nos dominava ao tempo da partida para a Handa, e, preparando as nossas diias grandes canoas, a 26 de junlio transpozemos o Cune- ne, acampando na sua margem esquerda.
Tem elle aqui 100 a 150 metros de largo e 2"",5 de profundidade, margens elevadas e cobertas de arvore- do, e (5 livre de caclioeiras desde o Mulondo para baixo da Dangoena.
Até agora, a parte do ])aiz percorrida, frequentada de europeus, apresenta-se ao leitor pittoresca e limpa de obstaculos, por onde o viajante despreoccupado póde transitar de luva e Ijadine.
Sujeitos aos trabalhos agricolas e commerciaes, os indigenas, sob a suave pressào da auctoridade, perde- ram a sua ferocidade nativa, entregando-se a uma vida de certo modo laboriosa, que pro])orciona ao viajante o modesto bem-estar de que carece.
Nao tanto assim para o diante.
Avanzando para as raias da nossa provincia, as cou- sas come^am a variar, e embora nao tenliamos que referir grandes obstaculos originados pelos indigenas, nem por isso deixaremos breve de entrar em lucta coni ditficuldades dY^sta e outra natureza.
Os grandes rios, as planuras alagadas, os pantanos, a escassez dos mantimentos, e emfim a fonie, sao cir- cumstancias graves que representam o mais impor- tante fa(*tor n'estas viagens, sendo a ultima nierece- dora de toda a atten9ào.
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a acompanliar-vo8 corno gnìa, elle rttorqiiird aiii «Isso para mais tarde, clcipois fallarcmo», agora tei que beber o niou ponibé!» E nào iiiHÌstir, iiào procu conveiicel-o, porque todas as diligciitiaiS n'esse st'iit serao frustradas, se iiào pengosas aos oUios dos \o» compaiiheiroSj quando escutareni attentos as narrai extraordinarias dos perigos a correr, que o informai irà exageraudo sem duvida, na jii^ta medida da in; teiieia.
Durante a uossa demora em Quiteve dez vezes zemoa tentativas d'este genero, no intuito de arran um guia que uos conduzisse à liabita(,'iio do reg portuguez da Handa, e outras tantas cortànios de bito as negocia<;òe8, ao ver e ouvir os exageros i indigenas, que os nosaos, approxiniando-se, come vani a commentar.
A idea de que o interior do continente africano 6 vastaa zonas ermo e coberto de areias, em outras ] voado de feras e cannibaes, se de ba muito se di? pou do espirito do europeo, pelas pesquizas de ini ligentes e audaciosos viajantes, que Ihe trouxeran certeza da fertilidade e riqueza do solo, e da dei popula^'ào dos districtos, conserva-se, caso estran! ainda arrelgada na imagina^-So do negro, repleta brumas e chcia de perigos.
Ninguem o demove do seu proposito, e se seguili urna linha qualquer de trajeeto eneontra sempre poj lai^òes pacifìcas que beni o recebam, resta-lbe o recui de considerar que se n'esse rumò nao existe o caso si peito, mais para um lado cu outro sera facii acliai prova de quanto afiirnia.
Entre Cimene e Cuhango 243
Assim, pois, o mellior e valer-se dos proprios recur- sos para conseguir os seus fins, abstendo-sc de fallar àcerca do caminlio por onde se dirige.
Tal era a impressao qiie nos dominava ao tempo da partida para a Handa, e, preparando as nossas duas grandes canoas, a 2tì de junlio transpozemos o Cune- ne, acampando na sua nuirgem esquerda.
Tem elle aqui 100 a 150 metros de largo e 2™,5 de profundidade, margens elevadas e cobertas de arvore- do, e é livre de caclioeiras desde o Mulondo para baixo da Dangoena.
Até agora, a parte do ])aiz percorrida, frequentada de europeus, apresenta-se ao leitor pittoresca e linipa de obstaculos, por onde o viajante despreoccupado póde transitar de luva e badine.
Sujeitos aos traballios agricolas e commerciaes, os indigenas, sol) a suave pressao da auctoridade, perde- rani a sua ferocidade nativa, entregando-se a urna vida de certo modo laboriosa, que proporciona ao viajante o modesto bein-estar de que carece.
Nao tanto assim para o diante.
Avanzando para as raias da nossa provincia, as cou- sas come^am a variar, e embora nao tenhamos que referir grandes obstaculos originados pelos indigenas, nem por isso deixaremos breve de entrar em lucta com ditficuldades d'està e outra natureza.
Os grandes rios, as planuras alagadas, os pantanos, a escassez dos mantimentos, e emfim a fonie, sao cir- cumstancias graves que representam o mais impor- tante factor nestas viagens, sendo a ultima merece- dora de toda a atten9ao.
254 De Angola d contra-costa
Vieram as mupandas que nos liaviam de acompa- nliar à coiitra-costa, conio tambem, facto notavel, ap- pareceram rorlias affloreando o terreno, resultado sem duvida de unia ramifica<;ao da serra dos ainboellas (pie j)ara acpii deriva; e isto, cpie parece urna circum- slancia de nenlnnna monta, teve para a nossa gente multo valor, pois precisando cozinhar no cliào, assente a panella em tres pedras, andavam desde Quiteve a clamar: «N\ista terra, nem à pedrada se podem per- seguir OS inimigos; nao se encontra secpier uni ealhau para llies atirar! »
Sao raras as aves, emquanto que abunda a ca^a grossa, encontrando-se frequentemente palancas, Hyp- potrcufiis equinus^ zebras e urna (*abra de agua, conhe- cida na Huilla por N'diujhi, quem sabe se a Adenota Lechee (?), cujo assolno caracteristico se assimilha às vezes ao pio de certas aves nocturnas.
Estavamos entao no limite da terra dos amboellas, e foi aqui que novamente tivemos eiisejo de ver urna troupe d'esses infelizes de que jà fallàmos e que diva- gani pelos boscpies africanos, coidiecidos por hushmen. Tendo-nos avistado, al)alaram para o interior da flo- resta, dando porém o tempo necessario para notar um facto, para iiós duvidoso, e que sui)punliamos existir pai'ticularmente entre os hottentotes.
E a stéatopygia. Niìo podendo aqui representar a mulher por nós ol)servada de relance, damos ao leitor um exemplar hottentotc na gravura junta, copia fiel de uma photograpliia.
De todos e lioje conliecida essa particularidade pliy- sica da gente liottentote, que coni outras rasoes esteve
Entre Cunene e Cithango 255
para a collocar em grupo especial, constitiiindo urna ra9a unica, hyììio africanns ou homo hottentotus!
Originada por um desenvolvimento adiposo na re- giao glutica, que se exagera pela parte posterior em pr.gas da demie, està protuberancia, à medida que a niulher avanza em idade, tende a enrugar-se, e por vezes parece nao fazer parte integrante do corpo, ou, pelo menos, ser uma deformidade de doen^a estranila!
A cor amarellenta da pelle (igual & da follia de tabà- co secca), a sua pequena estatura, os tra^os repellen- tes do rosto, o aspecto de decrepitude prematura, a fatai e constante miseria, tornam ainda a mulher bus- kmen victima d'està deformidade, mais liedionda, se- gundo julgàmos, que a liottentote.
Vis arremedos da especie huniana, esses indescri- ptiveis seres parece que foram muito de proposito ar- chitectados para permanente insulto à plastica!
Os hushmen liabitam tambem nos povoados, ao que presumimos, e no sul, entre os ovamj^os, vivem em paz e n'uma especie de servidao. Estas rachiticas crea- turas nao suscitam muito dò comò à primeira vista poderia julgar-se, e o odio que em geral llies téem as tribus africanas é a consequencia dos seus actos ruins. Assim nos afiancjaram que muitos casos se teem dado de assassinios por elles commettidos, com a mira no roubo, ou por outro qualquer motivo, sendo as victi- mas preferidas quasi sempre as mulheres.
A grande mololla Mué marca pelo norte o limite da Handa.
Caminhando 3 milhas encontra-se uma serie de col- linas, erguendo-se gradualmente até se transformarem
256 De Angola d contro-costa
em altos morros, que desenham os arredondaàos dor- sos no azul dos céus e quebram de vez a monotonia das terras percorridas.
As densas matas d'aqui sao o retiro favorito da ca<;a, matando nós ao chegar ao campo uma enorme cutun- gué ou quissema femea, Aigoceros ellipsiprimnus.
0 aspecto do terreno, porém, é assàs tristonho n'esta epocha. 0 solo tisnado pelas recentes queimadas, as folhas resequidas pela severa geada, indicam que o sopro da morte passou por ali, pesando tal panorama melancolicamente no espirito do viajante.
0 leao faz tambem seus destro^os, encontrando nós a evidencia d'elle s junto ao rio Quimpolo, no esqueleto de uma girafa.
E deserta Ì;oda a regiao atravessada desde a Handa, e so aqui comeQàmos a avistar os arimos de Moi Cam- puUo. As marchas continuam em permanente excursao venatoria, tao numerosos se apresentam os animaes desde as toupeiras, furoes e lontras até às zebras e gi- rafas! 0 solo, porém, difficulta bastante este exercicio, por ser constituido por uma rocha quartzosa dura e branca, que, affloreando-o, contrasta com a sua enne- grecida cor.
De um amboella soubemos que o Cubango estava a tres marchas adiante, circumstancia està, que nos obrigou a alargar as jornadas, a fim de mais depressa ahi chegarmos.
Deu-se aqui um facto curioso, que mostra o exa- gero dos naturaes nas suas informa^oes. Tendo per- guntado ao mesmo indigena qual a direcQao do Cu- bango e onde la este confluir, respondeu-nos : para
Entre Cunene e Cuhango 257
um grande rio fillio do mar, acrescentando que os lia- bitantes d'esse sitio sao os ba-qua-neitunta — anoes*.
E tao volumosa a cabe^a d'estes indigenas, que, deitando-a, se toma difficil depois levantal-a; por isso durante a noite, emquanto o homem dorme^ véla junto d'elle a mulher, para o ajudar a erguer quando des- pérta, servilo que retribue à cara metade por fórma similliante!
A noite acampàmos junto de urna grande aldeia, d'onde nos fugiu um dos carregadores com um fardo de fazenda.
Cortando de novo a leste estivemos em Cabandje, sitio em que felizmente encontràmos algum mantimen- to, facto consolador, pois nos ultimos tempos quasi se vi via de carne.
Ao sueste avistàmos outro acampamento de hush- men, em meio de uma d'essas largas ondulaQoès que constituem o plateau.
A 9 de jullio podémos evitar a fuga de alguns com- panlieiros ganguellas, o que nos trouxe muitos dias em sobresalto, sendo necessario conduzil-os debaixo de escolta.
Ha tambem por aqui numerosos leoes; avistàmos dois ao terceiro dia de marcila, passando um perto de nós perseguido pelos mabecos, Cards mesoraeluSj
1 Parece que entre os dàmaras as trìbus se dividem em castas, a firn de cada qual encontrar a sua origem n*aquillo que mais Ihe appetece, de modo que uns descendem de arvores, outros de bichos, etc. Os ba-qua-iu- ba vem do sol, os ba-qua-nombula da chuva, os ba-qua-neitunta ou tunda dos bosques. Estas indica^oes do amboella poderiam refcrir-se a alguns dàmara-buslunen, que tivessem adoptado para si similhante designalo.
17
258 De Angola d contro-costa
corno se poderia facilmente inferir das pégadas que analvsàmos.
E curioso este pequeno animai, que tamanlio odio vota ao rei das selvas.
Diz-se sereni destros ca^adores, e, caso estranilo, marcbando sempre eni gi'andes matilhas, ao aperce- berem a cac^a, separam-se logo d'ellas dois para a per- seguirem directamente e seni ruido, emquanto (pie os outros, flanqueando-a, tentani cercal-a.
Na fórma do costume choveram a este respeito in- forma^oes e anecdotas, liavendo quem afiaiKjasse ser tal o respeito mutuo, que quando està a matillia a de- vorar uma rez e apparece outro mabeco a saltar-lhe em cima, e isto motivo para todos os mais abandona- reni o repasto!
Antes de acampar, fomos de subito surpreliendidos pelo grande rumor que fazia um bando de mais de ceni macacos, pulando de arvore em arvore. A rapi- dez coni que se precipita este animai é tanta, que no primeiro momento similliam uma mivem de passaros. Meia duzia de tiros, ao acaso, nao tiraram d'elles o menor partido.
Ao anoitecer apanluimos proximo do rio um animai pouco vulgar, a que os indigenas cliamam n'caca e scientificamente se denomina Manis multi scutatum ou Temiiìincki (V), similliante ao armadillio. Os naturaes consideram a cacja d'elle conio indifno de felicidade, sendo obrigado o soba da terra onde (5 colhido a matar um boi, cuja carne cozem com a do n'caca e as esca- mas d'este distribuem para amuleto entre os ca9adores da senzalla.
Entre Cunene e Cnhango 259
Coincìdeiicìa notavel: era o dia 10 de jullio, e fo- llieando iim calendario francez que levavamos, encon- tramos: «Dia de Santa Felicìdade!»
Na nianha segninte chegavamos às niargens do rio Cnl)ango, jà nosso conliecido da viagem de 1878, ciijo cnrso transpuzemos })ara a margem esquerda. Tem n'este logar 110 metros de largo sobre 3 de profun- didade media e corrente de 1,5 niillia.
As orlas sao regularmente cortadas e multo pittores- cas, ora vestidas do annido^ ora de densos arvoredos.
Sobre a direita a teiTa e deserta até a Cafima, falta de agiia para o sul e conio tal intransitavel, excepto na direcc^'So da mololla Ombongo, que veni do valle jiara o Cubango ao norte de Dirico; para o oriente, povoam-na as tribus amboellas, de que fallamos, acom- })anliando o seu curso em grande distancia.
Na beira de aleni acampou a expedi^ao para tomar folego, planeando coni conliecimento de causa a con- tinua(;ao dos nossos traballios.
Estavam percorridas até ali muitas millias geogra- l)liicas, fixadas numerosas j)osi(;oes, estudada a zona (pie exploràmos tanto quanto consentiam os recursos e () tempo de que dispunliamos.
() que urgia agora fazer?
Prolongando o curso do rio pelo nienos ate ao Mu- cusso (Bucusso), poderia a expedi^ao a nosso cargo resolver problemas importantes, e, descobrindo defini- tivamente o mysterioso destino d'este, volver ao nor- deste. Era longo o trajecto, e o receio das chuvas no norte fizeram-nos a principio liesitar, até que alfim de- cidimos seguir pelo sul, dispondo tudo para a viagem.
260 De Angola d controncosta
E o Cubango irla ao Zambeze?
Ao contemplar a sua largueza, e attentando no vo- lume de aguas que leva por està latitude, mal póde o viajante acceitar a idèa de similhante caudal ir per- der-se nas terras austraes *.
A quantidade de agua que n'este parallelo deriva para as regioes meridionaes, embora esteja por deter- minar, é consideravel.
As informa^oes de que deslisa todo para o sul, per- dendo-se ali em parte, por infiltra^ao ou evapora9ao, julgàmol-as inacceitaveis, tamanho é o fluido volume que corre pelo seu leito.
Depois, alem dos numerosos tributarios que conduz do norte, vae agora sobre elle o Cuito, à beira do qual breve nos achariamos, cuja drenagem nao Ihe é muito inferior, formando na esta9ao pluviosa um alagamen- to que inunda immenso territorio, e os indigenaa desi- gnam por lagóa Mamo. Entao recebe outros affluentes orientaes, indo, segundo dizem os indigenas, entrar n'um grande rio. Tamanha accumula^ao de aguas, que vae perder-se no N'gami, traria forQOsamente a neces- sidade de ser este um lago de maior amplitude.
0 Cubango é sem duvida um dos mais poderosos affluentes do Zambeze, deixando coiTer em epochas parte das suas aguas para o sul, comò vamos explicar; e se porventura ha conservado a sua direc^ao media desconhecida para os geographos, é isso devido a que,
r
^ £ escosado produzir aqui argumentos tendentes a demonstrar que nSo foi Anderson o descobridor do Cubango, pois dezenas de portngae- zes de ha muito por elle transitavam, corno Candimba, Gon^alves, etc.
Entre Cunene e Cvbango 261
na parte inferior da carreira, tendo de atravessar ex- tensas planicies cobertas de bastas gramineas, serpeia, alarga, subdivide-se, para adiante de novo se unir, e por maneira tao complicada, que com difficuldade se póde dar conta d'ella n'uma so viagem.
E isto, repetimos, foi corroborado em toda a parte pelas informa^oes dos indigenas, e assim nol-o affir- maram tanibem aquelles que comnosco aqui fallaram sobre o caso.
Eis pois quanto àcerca d'elle pensàmos.
Se attentarmos sobre o modo por que no plateau centrai se faz o movimento das aguas, veremos serem tres as especies de cursos (se assim póde dizer-se) que ahi se apresentam, e poderiamos mesmo designar rios correntes todo o anno, outros que deslisam so na epo- cha das chuvas, seccando na estiagem, denominados damhas, e emfim as molollas, ou cursos de movimento altemado, conforme a eleva9ao das aguas nos grandes leitos que as originam.
A Toololla é uma depressao lateral de terreno, que estando pouco superior ao nivel medio da extrema estiagem das aguas no rio, fica muito inferior ao nivel no tempo das chuvas e se liga com o rio pelos extre- mos ou por um so ponto.
Claro é pois que, na epocha da cheia, a agua, pene- trando ali, caminha mui vagarosa e parallela ao rio, até estabelecer-se o nivel; mas logo que este baixa ou despeja rapidamente, vé-se entao a agua da mololla no seu rumo superior retrogradar, ageitando-se ao nivel, emquanto que no rumo inferior caminha na mesma direccjao.
262 De Angola d contra^osta
•
Este facto succede quando estó a mololla ligada pelos doÌ8 extremos ao rio. Se poreui conaìderassenios o seu extrenio inferior cu meridional para o caso des- ligado, e terminando, por exemplo, n'uma depressilo, veriamos ([ue o dito movimento retroo-rado se nao operaria so na metade superior, mas sim em todo o comprimento, e cpie a agua viria assim a reentrar em parte no curso originario.
E este o caso ([ue se dà coni o Cubango e as molollas Tonque e Dzo, etc, que d'elle derivam j)ara o Negami, e onde, segundo as epoclias do amio, a agua tem mo- vimento directo ou retrogrado, conforme indicane )s.
O Macaricari completa este systema rej)ositorio no sul i^elo Zouga coni o N'gami, e quando no norte baixa de nivel a agua nos rios, reflue d'aquelle imme- diatamente para ali.
Tal e a idea que fazemos do curso do Cubango, em cuja margem nos achàmos, e ao longo do qual deter- mindmos novas marchas.
CAPITOLO IX
0 RIO CUBANGO
Sete annoH dopois — 0 caininho do Mo^nmìùque e as caras volvidas ao Hill — Miiene Catiba e a niandioea — Entro os aniboellas — A confluon- cia do Cutchi e a doen^a do Muono Mion^a — Uni traballio photograjihioo intorronipidu — Sconas de feiti^aria — Triìmnaes africanos o urna anecdo- ta 8obre o caso — Os ma-chaca — -0 rio Cue})e — Subitas desor^oos e urna noite de angustia — Pbilosopliicas considera^òes quo uni funeral remata — 0 rio Cuoio e os atoleiros quo o margiuam — Frios, sedos e fonios — 0 rio Cuatir — Naturoza do solo e os pantanos intransponiveis — Aldeias laoustres — Ainda uni atoloiro e a pol»roza das planta^òos — Um chefe mais buinauo e a morte de uni oompanboiro — A foine — Duas eonsidera- VÒos sobro a geologia africana — Adous Cubango.
Sete annos tinham decorrido desde que pela pri- meira vez havìamos vìsitado o Cubango no parallelo do Bié.
Attentando no limpido len^ol de suas aguas, que serenas derivavam a caminho do sul, recordavamos tao precisamente aa ìmpreBBÒes entao experimentadas, que nos parecia ter desapparecido o lapso de tempo que mediàra entre ambos os factos, que està vìagem, emfim, era corno sequencia da outra!
E, sem embargo, no limbo do olvido fam elles jà abysmados, a sexta parte da vida de um liomem em completo vigor; annos que passaram de mocidade e despreoccupa^So para jamais volverem.
266 De Angola d contror-costa
p]utao era a nossa primeira yiagem, chela de attra- ctivos e poetico» soiihos, tendo corno norte a aventu- ra, por camiiiho acjuelle que primeiro se deparasse, e a lima saiide de ferro respoiidia sempre vigor inque- l>rantavel, (pie tudo afigiirava doiirado.
Agora era urna missao reflectida e subordinada a determiuados fius, peregriiiacjào sem duvida loiiga, para que carecia poupar as for^as; era a reputa^ao e a pratica de doìs liomens jà com tirocinio, as quaes, pos- tus em ac(;ao, tinham fatalmente de corresponder ao «pie d'ellas se esperava.
Urgia pois marchar cautelosos, e, meditando seria- mente OS mais singelos devaneios, considerar de conti- nuo no equilil)rio das for^as de que se dispunha, nos lio- mens que possuiamos, nos recursos existentes, pondo, ccmio Artjns infatigavel d'està ordeni de cousas, o dever e a lenii )ran(;a da contra-costa.
Por isso, tendo de volver as frontes ao sul, visto conio o objectivo da expedi^ao consistia no reconheci- iiiento do curso do rio a cuja heira ncns achavamos, imo podiamos deixar de verno caso um facies desagrada- vel, para affrontar o qiial tivemos de revestir-nos de toda a boa vontade, pois nao e o caminlio do meio dia })recisainente acpielle que nos levaria a Mo^ambique.
A obriga^ao poréni venceii os nossos receios, e em- bora n'essa marcila pouco fizessemos de aproveitavel, em vista dos ol)staculos que se nos dej)araram, nem por isso inostrtlmos menos insistencia e energia, de que nos resta a consola^ao n'estas candidas declara^oes.
Muene Catiba, o regulo d'ali, homem velilo, de feio aspecto, coxo e sordidamente vestido, fez a sua visita
0 rio Cuhango 267
ao acampamento e preseiiteou-nos coni iim porco, ver- (ladeiro recurso inesperado para a nossa exliaiirida co- zinlia.
Foi em sua terra que primeiro vimos a mandioca, artij^o iiao existente para oeste, facto que de per si so explica a deprcssao eni que nos acliavamos, e que ef- fe(*tivamente era de 1:1 GO metros; tambem abundava o uiillio e a batata, generos naturalmente importados do Bié pelos mercadores poi-tuj'uezes, que ao longo do Cubango transitani para o Mucusso.
0 trilho que seguinios, contornando rigorosamente a margem do rio, era tra^ado em terreno que para diante se torna aspero, deixando ver pelas ravinas uni subsolo de rodia quartzosa, de (}ue resultam os ca- lliaus dis})ersos i)clas duas margens.
Cliamam-se and)oellas os lialntantes da zona que vanios percorrendo, e sào os jìretos de mellior appa- rencia que temos cncontrado.
Os seus pentcados, cntretecidos de trangas e conta- ria, distinguem-os logo, assim ('omo o uso de pannos, ao contrario dos congeneres do ocstc, que se cobrem coni j^elles.
As habitacjòes circulares de tecto ponteagudo sào barradas de argilla e postas coni ordeni.
A distancia media de uni dia de joniada e rumo que n'esta latitude corre approximadamente ao sueste, acliam-se estabelecidas, à beira do rio, as libatas dos regulos mais importantes, que em acto successivo fo- mos visitando.
E notavel o contraste das duas margens tao proxi- mas, pela sua anima9ào, flora e accidentes.
268 De Angola d contro-costa
D'aquem eleva-se o terreno, formando urna encos- ta, veste-o frondosa vegeta^ào, cobrem-no as aldeias e outras povoa^oes, affluem numerosos rios; para alem e plano e coberto de gramineas, deserto até à, Cafima, no dizer dos naturaes, nào possuindo, sequer, um so tri- butario.
Encontram-se bastas fiorestas de mupandas, moton- tos e ndumbiros, por onde numerosas aves. esvoaijam e no meio das quaes se observam habita^oes, em que pela tarde e noite ha ruidosos batuques para entrete- nimento dos indigenas.
Os amboellas sào grandes musicos, dextros ferreiros e habeis pescadores das lagoas, aventurando-se raras vezes a pescar no leito do rio.
Ao terceiro dia transpozemos o Cutchi, de 70 me- tros de largo, e com o qual jà haviamos feito conhe- cimento no norte, sendo as nossas canoas o objecto da mais embasbacada admira^ào.
Entre os amboellas, que se distinguem pelas cabe9as rapadas com pequenas trauQas no alto, véem-se ho- mens do sul, bana-catuba da Cafima e do Cuanhama, com o seu pittoresco trajo e a tez menos retinta que a d'aquelles.
Raros sao os gados por està parte, onde escasseia de novo a mandioca, assim comò o sorghum, cultivando- se exclusivamente o millio. 0 rio deslisa formidavel, sendo para lamentar o seu abandono pelos indigenas, que so possuem canoas para o transpor.
Um barco do molde da Lady Alice de Stanley, pres- taria um alto servilo na rapida explora9ao d'esse vasto len9ol de agua.
0 rio Cubango 269
Na libata de Muene Mionga, onde chegàmoa, acha- va-se a popula^ào azafamada com um negocio impor- tante. 0 rcgulo estava doente.
Dentro d'ella e n'um terreiro a meio, Muene Mion- ga via-se sentado. envolto em ampio cobertor, tendo a cajinga (barrete) na cabala; à direita e eaquerda
collocados quatro quinhandas, de frontes omadas de grinaldas de pcnnas, dois com caba^as na mSlo con- tendo peda^os de pan, ferro, etc, e os outroa dois com ferrinlios qne tangiain; em frente do aoba, esten- dìda no solo, urna cauda de elephante.
Procedem os quiiìbandas a encanta^òes, que nos di- zem tendente» a adìvinhar a causa da doen9a do re-
270 De Angola d coììtra-costa
gulo, ou mellior a conliecer quem por malefica ipiflucn- cia o enfeiticjou.
De roda a niultidào canta monotonamente, emquan- to nma especie de aranto, enfeitado dos mais estranhos ornamentos, pega j)or vezes do rabo do elepliante, come^ando em saltos pelo terreiro.
Nào tendo o menor interesse em conliecer a enfeiti- ^ada causa de que o soba fora victima, voltàmos as costas a està scena banal e assàs conliecida, j)rose- giiindo impavidos para leste.
Ao cabo de nmas poucas de lioras de marcila, clie- gamos à aldeia de Mnene Moloino, sitiiada n'uma enii- neiicia que o rio contorna, e que pelo seu aspecto j)ittoresco nos levou a preparar um cliché.
Estes traballios no matdfcao, poréni, muito differen- tes dos operados no remanso de uni atelier da Europa, e, quando satisfeitos acabavamos de tapara objectiva, j)()r estar feita a exposÌ9ao, eis que macliina, tripé e artigos relativos, se derrubam, cafiido cada objecto para seu lado.
Uma cobra liavia saltado junto de nós, e na ancia de evitar o seu contacto, cada qual se escapou conio póde, esquecendo a machina, que, victima dos emba- tes do reptil, foi cair entre as liervas, do que resultou, na volta ao vellio mundo, esse clicM nao dar cousa al- guma, por ter apanliado luz, segundo parece.
Estava-se em piena pliase de adivinliac^oes e sorti- legios.
Na libata d'este regulo tangiam tambem os ferri- nlios e procedia-se a similhantes scenas de feitÌ9aria com estranilo bambare.
(J rio Cubango 271
Era^o caso (alias pouco frequente em Africa), ter certo rapaz cravado urna faca em pieno abdonien de outro; o réu negava, declarando haver ac^uelle sido ferido no niato por um animai qualquer.
Tratava-se de adivinhar a verdade d'este protesto, por isso era grande a confusao.
Tencionavam no seguinte dia matar um boi, para d'elle extrahirem o milongo (remedio) apropriado jìara tal adivinha^ao, esperando deduzir por cabalisticas ar- timanhas e pelas contrac^oes das visceras a causa do crime.
Nào soubemos as consequencias de todo este longo processo, que devia ser curioso, a julgar pelo negocio em questao; pois occasionam frequentemente debates, cuja originalidade e finura deixam nao poucas vezes o europeu admirado.
Eis, conio exemj^lo frisante, uma anecdota que le- mos ou ouvimos algures a i)roposito da deliberac^ào tomada n'um tribunal indigena.
Aconteceu que um individuo possuidor de grande manada accusava outro de llie haver morto um boi coni mna zagaia, queixa de que elle se defendia, re- })licando nao ter sido elle, mas sim outro boi, que em lucta o prostrerà coni uma chifrada.
( ) trilìunal, a que fora sujeito o caso, após muita dis- cussao, fa decidir-se alfim a favor do accusado, (piando um velilo da tribù, erguendo-se, ordenou que suspen- dessem o veredictum.
— Ou^am! exclamou elle em toni imperioso, vol- tando-se para a victima da accusacjao. Onde téem os bois o rabo?
272 De Angola d contro-costa
A està pergimta o criminoso mirou-o com espanto e respondeu, indicando com a mao direita o respectivo logar :
— Aqui.
— E comò anda o rabo: cafdo para baixo, erguido para cima ou pendente do lado?
— Para baixo.
— E onde téem os bois as armas?
— Na cabe9a.
— E sào para baixo, para cima ou para o lado que ellas se acham dispostas?
— Para cima.
— Beni; se uni boi entao ferir outro, a ferida deve ser de baixo para cima ou vice-versa? proseguiu elle, virando-se para o tribunal.
— De baixo para cima, disseram todos.
— Vamos pois ver o boi, replicou o ladino vellio, e se assim estiver disposta a ferida, fica livre este lio- mem, e é falsa a accusacjao que Ihe fazem!
Infelizmente a ferida, feita com uma zagaia por mao de homem, era de cima para baixo, e o accusado sof- freu portanto penalidade!
Muene Mionga era extremamente velho; os vassal- los d'elle constituem uma tribù um pouco differente dos amboellas, denominam-se ma-chaca, téem as faces angulosas e sao mais feios no todo do que os jà cita- dos.
Para leste ficava-nos o Cuebe, rio caudaloso e que na fórma dos anteriores leva as aguas ao Cubango, a par do Cuatir e outros. Como os indigenas nos afian- ^aram que na confluencia havia gi'ande accumula^ao
0 Ho Cuhango 273
de pantanoa difficilmente transìtaveis, decidimo-nos, por consellio seu, a transpor 03 dois, e, seguindo 0 curso d'este para o sul, ganhar de novo o d'aquelle
Denaos boaques eobrem para alem do Cuebe toda a zona que medeia entre elle e o Cuatir, desprovidoe de agua em muitos logarea, cujo solo, conatituido por onduIa<;5es de grès e cortado por fundos sulcos, aflfe- cta aqui e alem as mais estranlias fórmas.
Junto do rio Mabanda acampàmoa n'uma encosta, onde precisamente come^am os tractos sìliciosos. A
274 De Angola d contra-<osta
areia branca inipede a inarclia e fatiga os viajantes; ahi comeCj'aram para a expedic^'ao iiovas fatalidades, pois ao chegar o tercciro dia de jornada desertaram nns poucos dos nossos eiii caminho, continuando as tentativas nos segiiinte.s, conio succedeu })erto do rio Icpiebo, onde coni desespero procuraram evadir-se em massa, abaiando a tóa pelos niatos, nuiitos conipanhei- ros nas noites de 20 e 23 de jnllio.
N'esta ultima, sobretudo, a nossa an<»;ustia cresceu de maneira, que fìcamos convictos de ser abandona- dos em pieno sertào.
Antonio partiu para a retaj^uarda em cata dos pri- meiros, que tinliam fugido coni tres fardos de fazenda e uina das canoas de desarmar; nós, prevenidos de que se preparavam outras fugas, haviamos amarrado OS ganguellas suspeitos de cliefes do movimento, dei- xando-os pelas lioras do sonino coni sentinellas a vista. Inutil empenho; pois, (piando mais socegados e segu- ros nos julgavamos, elles de subito, desprendendo-se, abalaram em boni numero, iiào tornando mais a appa- recer.
Noite terrivel foi essa, em que tivemos de largar fogo a Ulna enorme floresta, na esi)eran9a de ver oii cercar aquelles que n'ella suspeitavanios escondidos, e em que de carabina em punlio coni os restantes (pie se conservaram fieis, percorremos em cac^a da diabo- lica turnia por nieio de matas em cliammas e troncos esbrazeados, jogando conio loucos inna cartada de vida Oli morte!
Morrer ou avante, era o dilemma formidavel que se levantava espeetral ali a europeus e africanos!
0 rio Cuhamjo 275
Tal proeediniento da parte de lioniens a cpiem nós deranios exuberaiites })rovas de affei(;ao era iiidescul- pavel, e o tratamento sempre bondoso e indulgente pa{^ava-nos essa eoliorte de ingratos eoni a })ei*tìdia, se nào coni o roubo. Qiiebrando seni eonsciencia os eontratos (pie eoninosco haviani feito, abandonavam- nos, levando o que nos perteneia!
Neni um setpier se (lueixjira até ali, pela simples rasào de faltar motivo para isso.
Nos dias mais aziaj^os, nos dias de fonie, para o honieni do mato semj)re de nini serio caraeter, elles sal)iani beni (pie cpiando (bi ra(,*a morta honvesse para n(')s duas ra(;(")es, liavia tambem para elles, e que um punliado de fariidia (pie no aeann)amento apparecesse era por todos ij»ualmente dividido, enibora a cada qual eoubesse apenas um simples bago.
Mas, leitor, o negro e a expressao embryonaria do sentimento, e na sua rude inconnu'ehensào do de ver e (bi dignidade, faz parentbesis eni (piasi todos os prin- ei{)ios (bi nobilita(;ao buniana.
Coni isto nao queremos afiam^ar (pie elle pende por in(b)le ])ara o mal; scimente sup])omos que exereita este por ignorancia oii })or desconliecer a sublimidacLe da pratica do beni.
E nào se imagine que tambem isto (3 pbilosophia, e muito menos pretendem as nossas pabivras fazer doutrina eni materia nova; S(>niente mirani a tornar conn)reliensivel uni facto em (pie todos errani, ten- tando porventura acliar n'elle unia cousa (pie precisa- mente nào podeni ver, i)or imaginarem n'essa creatura uni conio espellio onde se reproduzem directamente
276 De Angola d corUra-costa
as imagens, quando nao passa de um arremedo enga- nador^ em cnjo cerebro o principio do bem é diffidi de fixar-se, se nao refractado pelo prisma da manha, se dispersa e mesmo inverte, produzindo phenomenos similhantes àquelles da miragem para o viajante do deserto, isto é, o contrario do que deve ser!
Inconscientemente e sem o notar, os europeus tra- tam o negro corno de igual a igual, exigem d'elle urna declaraijao, empenham a sua palavra, consideram o contrato feito in(iuebrantavel, por ser baseado na obri- ga9ao e no dever, e eis que de subito foge, deixando-os a piqué de urna perda e quieta da morte; e entao que levados pela ira o condemnam, pensam em castigal-o!
E a final os verdadeiros culpados somos nós, que o julgàmos pela amplificadora lente da ingenuidade e da boa fé.
Pois que sao a dignidade e a honra senao virtudes provenientes do contacto do liomem sociavel, que, co- nhecendo a sua superioridade intellectual, Ihe servem de penlior à demonstra^ao de que, alem dos singelos instinctos naturaes, alguma cousa mais sublime existe n'elle?
E se isto assim é, acaso o negro no estado da mo- ralidade inicial em que se o^cha, elle que tem para o evidenciar por companheira uma mulher que desco- nhece o pudor, esse delicadissimo sentimento que pri- meiro que nenhum nos parece deve ter assomado ru- bro às faces das nossas selvagens antecessoras ; sujeito à egoista necessidade de prover à subsistencia, presos a quantas materialidades, que, por obcecarem o espi- rito, o for9am a rodar n'um circulo restricto de satis-
0 rio Cuhangp 277
facjoes mal remediadas; acaso, repetlmos, póde elle comprehender o que seja o dever, a honra empenhada?
Nào precisànios responder, os factos estao por iiós, e a verdade é que em todos os assumptos importantes coni negros, tanto mais duvidavamos d'elles quanto mais afinco e boa fé pretendiam mostrar-nos.
Se um negro se vos mostrar recalcitrante ou mesmo indifferente, excitae-lhe a cubica, e tereis d'elle alguma cousa; ao contrario, se o virdes fazer protestos de de- dica^ao à vossa causa e generoso afian9ar-vos o seu apoio, abaiidonae-o, porque de certo sereis breve en- ganado !
Apraz-lhe o ludibrio, e no exercicio d'essa infima faculdade intellectual — a astucia, pareceu-nos perce- ber por vezes, no preparar de trama velliaco, um ine- vitavel antegosto na idea malefica.
Entretanto para o liomem selvagem assim deve ser. Elle, que na escola da natureza aprende na lucta de cada dia so a defender-se dos males que Ihe aniea- (jam a triste existencia, acaba por identificar-se com este estado de cousas, e, vendo n'aquella a imagem da grandeza, trata, quando pensa engrandecer-se, em praticar o mal, que de resto mais facilmente inspira a admira^ao que o bem!
Consternados por este estado de cousas, conservà- nio-nos no Iquebo até à volta de Antonio, ora ageitan- do cargas e desistindo de artigos de conforto por falta de portador, ora vigiando pela noite aquelles dos nos- sos que mais suspeitas inspiravam. Pela manlià voltou Antonio com a triste nova de que nem um sequer fora possivel encontrar; està noticia cliegava precisamente
278 De Angola d contra-costa
na tetrica occasiao eni (jiie era inliuniada unia rapa- riga (pie suecunibira pela noite a (luj)la pneiiiiioiiia.
Concluida a funebre eerenionia, pozémo-iios pelas oito lioras da tarde a eaminlio, tanianlia era a ancia que nos dominava de deixar acinelle logar de nefasta reeorda(,*ao.
Coine(,*jira a noite, e quein visse n'esse momento a expedic^ao portugiieza, triste, o])])ressa, avan(;aiido ein linlia })or meio das matas e areiaes que a defrontavam, dizimada pelas ultimas fugas e persejifuida pelo frio, carregando com agiia pela ineerteza de a eneontrar adiante, e pensasse tambem que esse bando de homens se destinava a atravessar todo o continente africano, uao garantiria tal empenho com a mais singela phra- 86 de consolo!
Pelo escuro acampamos, esperando a todo o mo- mento ser surpreliendidos pelo grito de alarme das sentinellas, que annunciavam alguma nova evasao.
Uni silencio sepulcliral eiivcdvia o campo, so inter- rompido ao longe })elos gi'itos das hyenas. Tristonlios presentimentos dominavam o espirito de todos com a lembraiKja de (pie se consumira a maior parte dos mantimentos na demora junto ao rio Icpiebo.
A terra e deserta pelo eaminlio que levamos; ao cabo de um dia de marcila avistamos a agua do rio Cucio, que para o meio dia deslisa ligeiro.
Nos terrenos pantanosos que o marginam gastamos as for(;as no aturado labor de obrigar os bois a traiis- pól-o, pois OS miseros animaes, caminhando pelos pan- tanos, atolavam-se por maneira que apenas a cabecja e o dorso llies ficavam de fora.
0 Ho Cuhango 279
Ramos de arvorcs e até os proprios troncos laiKjados para o lamacjal, tudo era insuificiente para tornal-o via- vel; <)8 pobres cliefes e mais pessoal da expèdi^ao, of- fegaiites, escorreudo agiia, aiiida pelas nove lioras da noite, a claridade da lua qiie parecia carpil-os, traba- lliavam na suspeiisao dos bois e seu transporte para a marg-eni opposta.
Diiras scenas eram essas.
Do Ciieio para o nascente continuam as matas es- ])essas, intervalladas por valles Mesnudados, entre as (piaes })roseoniinos a tóa, esperando a toda a bora en- eontrar agua; baldado enipeidio, que sempre prepa- rou unia decejx^'ào!
Pouco a pouco o trilbo quasi imperceptivel cortou ao sueste, no meio de urna terra cnjo silencio era corno sepulcliral.
A gente, desanimada, segnia emmudecida, comò se a levassemos para o cadafalso, imprimindo com està disposÌ9ao um ar estranliamente tetrico a tudo quanto nos cercava.
Emfim, após dois dias de caminbar, encontràmos o leito do rio Cuatir.
Eis algumas Knlias do nosso diario a proposito d'esse facto.
«Logo ao romper do dia agitou-se o acampamento com uma desagradavel noticia. Somma, rapaz do Nano, evadira-se pebi noite com armas e respectiva baga- gem, deixando-nos perplexos pela sua audacia, e im- pressionados pelo fim que o aguardava, isolado em meio d'estas matas.
E o medo da fonie que os afugenta!
280
De Angola d amira-costa
0 frio, que ttni crescido, amca^a os nossos com- panlieiroB africanos coni doerHjas do» orgàos respi- ratorios.
Ciuco, naturai de Uenguolla, està a braijos com urna pneumonia dupla, de que uiìo escapa certamente.
Pelaa dez lioras topàmos de subito com agua, onde todos se dessedentaram, prosegtiindo àvante atravez das terras onduladas.
Quando pela tarde, extenuados e clieios de fadigas, jà desesperavamos de novo encontrar bebìda, aprouve à Providencia abeirar-nos de urna vasta planicie, a meìo da qual serpeia um rio de algunia importancia. Era o Cuatir, segundo nos disse de longe um negro que
0 Ho Cubanyo 281
veiu espreitar-nos, primeiro vulto humano, de quem dèmos vista depois dos ultimos dias, que tao attribu- lados no 8 f or ani.
Antilopes numerosos vagueiavam, entre os quaes vimos gungas, de que danios o desenho.
Duas niilhas de terra alagadÌ9a nos separam do car- so d'este tributario do Cubango.
0 solo nas margens e bastante variavel^ tornando- se, à medida que avan^àmos para o sul, de mais em mais silicioso.
Ao norte é composto de tractos argillosos, mistura- dos à superficie coni fina areia branca, sendo o subsolo constituido por uni tufo calcarifero córado pelo oxido de ferro, vendo-se apparecer em abundancia em todos OS pantanos, avermelliando-os a limonite, cuja base movedicja os transfornui em perigosos atoleiros capa- zes de abysmar completamente os bois.
Os poucos lialiitadorcs dV»sta terra téeni as suas cu- batas a nieio do curso do rio sobre estacarias, consti- tuindo verdadeiras aldeias lacustres, defendidas pelos loda^aes que as cercani.
De longe em longe v6em-se cupulas conicas emer- gindo do meio do cannÌ90, evidenciando a residencia do liomeni.
Parece que reiteradas perseguiijoes, quer dos man- bunda, quer da gente do sul, que denominam ma-ciias, OS teem levado a està precaucjao, tornando-os por isso em extremo suspeitosos.
Infelizmente para nós, logo a j usante encontràmos um bra9o, que d'elle deriva, chamado moloUa, onde quasi todos os bois de subito se atolaram.
282 De Angola d contra-costa
Xào (? fcicil descrever as an}>['ustias acini experinieii- tadas, iiem convein repetil-as para nao causar o leitor.
Calciile-as (|iu*ni (|uizer, e (luando tenlia esbo(;ado eni niente o ([nadro, enfeite-o coni a fadi<»a do dia, o frio da noite, e cnnnoldnr(*-o por fini coni a fonie, jiois a està data liaviani-se acaliado os inantinientos.
Apenas conse;»'ninios ver-nos para aleni da niololla, espraiando a vista jiela lonf>*a bacia do Cnatir, litteral- niente coberta ])elo Arumb) jfhrdijìiiita^, jio/A'nio-nos <le novo a caniinbo.
Do meio do cannical sonios vifiia<los pelos naturaes, (pie o binocnlo nos deixa descortinar envolvidos no ca- pini. X'nni jionto ou oiitro snspende-se, clama-se, ace- na-se, inoveni-se iins viiltos ao redor das casas; n'nni instante sn})ponios (pie al}»nein veni; triste anceio, des- aj)})areceraiii, caiii tudo eni Inj^iibre silencio.
As iinicas plaiita(;(Vs (pie existeni sào de Penisetum, inassanjro, e essas, einl)ora pelo direito da tome nos acliasseinos dispostos a pillial-as, se porventnra eais- seni ein nossa trilliada, estao long-e e feitas nas illias.
Supjdicio de Tantalo este qiie nos aconipanlioii atcj ao limite meridicmal da nossa exciirsào, onde emfìm lini cliefe mais Imniano nos soccorren, indicando o ca- niinlio (pie para traz fieava.
Tomando ao norte, desalentados por tanta contra- riedade, abandonanios a id(ia de attinj^ir o Ciibango, e prevendo qiie ([iianto mais para o snl, mais se aggra- varia a nossa sitiiac^'ào, deixamo-nos giiiar ])elo regiilo, (pie ao cabo de dois dias nos mostrou uni sitio onde as canoas poderam vogar, embora coni difficiihbide, pois ali tambem os pantanos se aeoitavam trai^oeiros.
0 rio Cuhamjo 283
Iniagiiie-se a alejrrici quasi ìnfaiitil qne de nós se a])0(ler(>u, ao vermo-noa livres d'esses labyrinthos fei- tos ])ara enil)ranquecer os mais negros cal)ellos.
Era conio se tivessemos sido laiKjados por largo tempo em negra ])ris{ìo, e, eneontrando de subito a porta aberta, nos escapassenios.
Tao poueo l)asta [)ara contentar uni espirito op])ri- niido! Apenas acanipados celebrou-se gentilic«aniente a ventura do dia, abatendo uni boi.
Nao terininou, jiorcni, seni registarnios um funebre aconteciniento, e liavendo ordcnado a uns rapazes que fossem CUI procura do infeliz (Miico, (pie para traz fi- cara, voltarain trazendo-nos a noticia de que era ja cadaveri
Para nos eiitristecer tainbeni, indo os bois a diminuir ra])idaniente, a negra imageni (bt fonie come^ava a er- guer-se ante nós, facto gravissimo, (jiie nao sabiamos conio remediar, tao pol)res eram as terras (pie iamos atravessando. O triste seciilo (pie nos acompaiibilra havia-nos vendido unicamente um y<^/yy/6a//a (cesta) de feijào, e esse miserrimo recurso, dividido por cento e tantos esfaimados, desapparecéra n'um momento; o nosso desanimo ain(bi augmentava ao presencearmos a aridez do solo (pie pela sua natureza esteril pouco nos poderia fornecer. As mesnias plaiita(;()es do Peni- spfum eram racliiti(*as iiV*ste cluìo ingrato de que ja fallamos.
Registemos (bias consi(lera9(les aiiubi.
Todos OS factos aio A jiresente data nos arreigam a convic(^ao, de resto lioje geralmente acceita, de que a Africa centrai iiunca soffreu urna d'essas completa»
284 De Angola d controrcosta
submersoes por que passaram os grandes contineiites, corno a Europa, Asia e America, nas epoclias secun- daria, terciaria e mesmo recente.
E, a nosso ver, o mais velho de todos elles, haven- do-se durante os periodos geologicos conservado tal- vez erguido, todo ou pelo menos parte, em meio das ondas revoltas dos mares que o circumdam.
Sempre que tivemos ensejo d'està banda, jà em ravi- nas profundas, jà em cortes abruptos, de ver a desco- berto terrenos inferiores, remexemos e escavàmos no sentido de encontrar algum calcareo com fosseis ma- rinlios, que provasse que està terra, comò em outros pontos, estiverà em condi96es de submersao, e nem uma so vez podémos obter prova que nos servisse.
Para àquem da barreira do granito^ e entre as ro- chas igneas, do gneiss e outras metamorpliicas, temos encontrado forma^oes schistosas, ondula(,'6es de gr(?s mais ou menos silicios, tractos argillosos, em meio dos quaes se acliam massas concrecionadas de hydroxido de ferro, rochas quartzosas, etc, todas em partes cobertas pelo desaggrego devido às condÌ96es atmos- pliericas ordinarias.
Mais para dentro, nas grandes depressoes, comò n'aquella em que ora nos achàmos na bacia do Zam- beze, o solo, ou mais propriamente o subsolo, que é formado por um tufo calcarifero de mistura com de- positos ferruginosos, e todo recoberto de areias, accu- mulaijao consequente dos alagamentos prolongados.
1 Està exprc8sao nSo é correcta, pois entre a rocha fundamental, o gneiss, é onde se ve às vezcs aquelle affloreando o terreno.
0 rio Cubango 285
A antiga e especial condicjao em que se tem conser- vado a superficie do continente, apenas actuada por influencias aereas e lacustre», é a causa d'essa estra- nheza de quasi todos os viajantes, pelo caracter de uniformidade que em toda a parte Ihe observam.
A falta frequente de rochas eruptivas e de massas vulcanicas, companheiras das grandes convulsoes sub- terraneas, póde até certo ponto corroborar os factos in- dicados, que fazem da Africa um continente de aspecto singular, pela immutabilidade das suas condÌ9oes ter- restres atravez de um longo periodo, a par das mu- dan^as operadas em todas as outras partes do mundo.
D'este concurso de circumstancias de permanente caracter resalta logo a idea de que, admittido o tra- ballio regular das aguas atravez da successao dos seculos, nas vertentes das linlias orograpliicas, occi- dentaes e orientaes, quer para o oceano, quer para a depressilo centrai, devem hoje ser mais fundos os leitos dos rios, e portanto em igualdade de tempo e chuva, mais rapida a drenagem para aquelle, ao passo que identico facto dando-se para està, os desaggregos na bacia centrai elevam-se de nivel, e portanto tornam maior o desnivelamento, que abreviarà com sua parte a mencionada drenagem.
D'aqui o fatai saneamento do sertào pelo esgoto rapido das aguas, que para diante deve talvez come- 9ar a manifestar-se em zonas que se esterilisem, a que nao faltarà o concurso do homem com a derrubada das matas, diminuindo assim as causas da humidade.
E se considerarmos ainda que a eleva^ao de nivel na depressilo centrai é feita à custa do desaggrego
286 De Angola d cantra-costa
(le rochas, que por sua especial iiatureza produzeni eni alto orali a areia, que està parte do anno submersa, po- derenios tanibeni assentar que uas profundezas d'este valle é mais difficil a vida para o homem, em coiise- (jnencia da exigua cultura, pois a semente fermenta e perde-se por afo<ì^ada durante niezes, oii pouco produz, visto crear raiz em terra seni a precisa substancia, e comprehender a rasào das nossas anteriores phrases, beni conio o receio de })ara diante e longe continuareni as cousas por maneira identica, se mìo agoravadas.
Assim, pois, a idea de ter cortado })ara leste, a fini de evitar os alagamentos da confluencia do Cuatir, se por uni lado nos liavia lan(;ado nas suas pantanosas margens, inliibindo-nos de proseguir, por outro sai- vara a expedi(;ào de gravissimos embara(,*os, se acaso ella, prolongando pelo oeste o Cubango (conio ainda pensàmos primeiro), o tivesse transposto no Cuangar, proseguindo diagonalmente para Libonta.
E portanto a parte do curso do Cubango que medeia entre os Macliaca e o Cuangar, continuou inexplorada, porqiie tortuoso nos foi desistir d'essa empreza no inte- resse de salvar as nossas vidas.
E conio Anderson no sul, nós diremos tainbem:
Uma retirada immediata tornava-se inn)erativa; mìo foi seni lucta seria entre o boni senso e o desejo de ser iiteis (pie nós tomàmos està resohu^'ao, e obede- cendo aos inn)ulsos da consciencia, dirigimos uni olliar de despedida })ara esse trillio interessante que nos le- varia de certo a deterniina(^*ào de iim problema valioso.
Por tal modo concluiu a nossa memoravel visita ao Cubango.
CAPITULO X
A CAMINHO DO ZAMBEZE
A 8 pootieas imprcssòcs da chc^ada e a conscquonto do8Ìlhisao — Sof- frimciito8 (jiie nos a«xiiardaiii — Aiii<ia e» Cuatir o a perda de lun homoin — O rio Luatiita é comò o C'uatir^ — Libatas iniscraveÌB e a BÌtiia^'ilo dos noHsos — A caravana torna-so n'unì hando de salteadorcs — Visita do grupo siiif^ular — A iiiulhor sciba e a jx'iiuria do vivoros — Considoravòc» e in- genuidado Rom igual — A partida o a fugjf do dois liouìons — () Lonp^a e a fuga do lun outro — Coiitiiìuani o dosorto o as zona» areosas — A» nnipandas o a altitudo — Pouoa oa^a o o rio M'palina — Uni acanipa- Hiouto oannibaloHOo— ()?< oa^adoros ih' ratos — Subsisto a fouio — Mupoi, o o8poso infoliz — Curiot^idado doa man-))un(bi — Os bois-oavallos o as sua» vaiitagous vm viagoni — Effoitos de niiragoni o uni animai comò o gnu — O Cuito e Kua noticia.
Vìajando Africa a dentro, pormeio tlos desertoB ser- toes d'aquellt; continente, deixando após de si, sepa- rados por centenas de millias, os bulifjosos centros da civilisaijào, o explorador mal suspeita, a principio, os soffrimentos que o esperam.
Prepara-lhe a natureza, por toda a parte, é verdade, n'uma vegetatjào esuberante, as mais pittorescas pai- zagens; mostra-lhe no» extensos azues da distancia ffolpes de vista soberbos, que o cobalto nSo imitaria; dardeja com os raios de um glorioso sol quadros in- imitaveis de colorido e oiro, que pincel algum seria capaz de reproduzir; bafeja-o emfim pela tarde com aromaticas e tepidas auras, que o incitam ao repouso;
290 De Angola d contro-costa
mas quando o viajante, dominado por toda està prodi- galidade, ergile os ollios ao céii, conio para agradecer tanianhos favores, ella, qiie ao fiindo de cada consolo esconde iim esjnnho, seni se desniascarar, desillude!
O sol, esse agente inexliaurivel de todos os bens, torna-se ali o principal dos niales ; coni os raios escan- decentes, qiie tudo fereni, amea^a de morte o europeii, e, robustecendo a vegetacjao por uma seiva exeessiva, que constantemente se substitue, cria no humus orga- nisnios que, fermentando, envenenam a pouco e pouco aqiielle que póde resistir a primeira lucta.
As aromaticas iiragens ra])ido se tornam em tempes- tades medonhas, e os agentes meteorologicos, juntos coni a malaria, breve extenuam o organismo liumano.
A paizagem, ao principio attraliente, jà nììo prende a atteiKjao de (iiiem a observa; o siiave gosto de bem- estar em face de iim miindo sorridente cedeii a iiiquie- ta(;ào nervosa de uni cerebro escandecido; a vontade irrequieta pousa variavel no mais singelo facto: qiier e logo liesita, apraz-llie a incolierencia!
A par d'isto augmenta a secre(;ao sudoral, que as influencias depressivas aggravam de mais em mais, e o elevado calor exige conio contrabalan<jo a sua ac(;ao, que se traduz por vezes em permanente fonie e em es- tranilo activar do orgao digestivo.
Depois OS phenomenos da sede e da fonie exage- rada desappurecem gradualmente, para seguirem-se morosas digestoes, pregui(;a de intestino, pouca flui- dez segregaticia, constipai^ào rebelde.
Comecjam a perturbar-se as funccjoes e apparecem OS primeiros symptomas da febre, que o tempo torna
A caminho do Zambeze 291
lenta e era pouco se denuncia pelo augmento de vo- lume do figado ou pelo excesso de bilis.
0 estado oppresso do peito accelera a respiracjao do ar niorno e rarefeito pelo calor, a fadiga permanente convida ao descanso, que uni aborrecimento indefini- vel conio que repulsa; o caracter do individuo perver- te-se; na ancia de questionar de ludo e coni todos, a gente desconliece-se, & menor contrariedade irrita-se; o lioniem emfiin é outro!
pjstranlia-se, quer reprimir-se; porém uni prurido nervoso, uni conio que vacuo de senso inorai, uni in- ([uieto nial-estar impelle-o; deixa-se dominar pela ira, encolerisa-se, grita, ainea(;a, o causalo enifini pros- tra-o, cae, arrcpeiide-se e adornicce!
E uni iiieio desmoralisador onde o individuo pouco a pouco se desjic da soberania dos seus mais nobres sentimentos, onde a doen<ja pliysica arrasta e desnor- teia a consciencia, e, calando o vibrar das mais sensi- veis tìbras do cora(,*jìo liumano, deixa so campo para as impulsoes animaes se expandirem seni freio.
O seu sonino, a principio pesado e morbigeno, en- trecorta-se breve d'esses pesadelos e tremores sempre coinj)anlieiros da perturbatilo funccional; o suor es- corre-llie lentamente do tronco fatigado, e pelos labios resequidos escapa sibilante o ar calido da respiracjao opprimida.
Quando desperta, devoradora sede o domina e um quebramento geral o prostra; quer erguer-se, càe, a coniida repugna-llie, bebé, amarga-llie!
A percep(;ao dos objectos que o cercara e lenta; mo- mentos se passam antes de relacionar-^e com o mundo
292 De Angola d contro-costa
que o rodeia; boceja, senta-se, apraz-lhe e8preguÌ9ar- se; o pulso é lento e filiforme; urna vaga oppressao epigastrica o agonia; pesa-lhe a cabe9a, apoiando-a no punho cerrado; fica abstracto.
Eis que està prestes a febre, pouco demorada em manifestar-se, so esperando singelo desequilibrio de temperatura ou o primeiro desgosto.
E se por acertadas medidas prophylacticas o infeliz consegue evital-a, e, repetindo-as, obsta ao desfecho final; entao dizemos-lhe n^este logar: attente nas indi- cacfoes hygienicas que Ihe houverem sido fomecidas, e evite sobretudo os desgostos profundos, para que na repeti<;ào dos phenomenos jà enumerados Ihe nSo suc- ceda aquillo de que foram victimas Capello e Ivens; isto, é, andar sob a influencia do receio de inopinada febre, por se verem a bracjos com decepcjoes crucis!
E bem verdade é o que acabàmos de dizer.
Poucas vezes, leitor, terà o cliefe de urna expe- di<;ào soffrido privacjoes physicas e torturas moraes, comò aquellas por nós experimentadas durante os pri- meiros mezes que vamos descrevendo, porque tambem poucas vezes mais estranilo concurso de circumstan- cias se póde reunir, para contrariar quaesquer desi- gnios.
Fomes, sédes, desertos alternavam-se systematica- mente, para produzirem o seu maximo effeito no espi- rito da desnorteada caravana; era comò se muito de proposito as cousas se houvessem disposto para ani- quilar todos os nossos esforcfos. Mas prosigamos.
Do lado esquerdo corria agora lamacento o Cuatir, emquanto nós, deixando o velho regulo, cuja cubifa
A caminho do Zambeze 293
nao conseguimos excitar a firn de o ter por guia, nos dirigiamos para o norte, no intuito de achar o trilho, que, segundo elle, deslisava a leste.
Pelas duas horas entràmos n'este, e proseguindo por meio de terras areosas esse dia e o seguinte, vienios alfim às margens do rio Luatuta, depois de nos atolar- mos um cento de vezes nos riachos, mollolas e varzeas alagadas que cobrem aquella regiao, e havermos per- dido um rapaz que transportava os encerados, facto que breve nos la por as cargas à mercé das chuvas.
Aqui esperavam-nos iguaes difficuldades, e se ao apartarmo-nos do Cuatir tinhamos soltado um sus- piro de allivio, ao avistar o Luatuta proferimos tre- menda impreca9ao!
Feito à imagem e simillian^a do antecedente, de que (3 tributario, o Luatuta corre n'um valle, que em outras circumstancias poderiamos descrever ao leitor comò risonho; largo, coberto de gramineas, mas marginado por uma faclia lodosa de 1 millia, em que nos atas- càmos até à cintura.
0 lodo silicioso, avermelliado superiormente pelos depositos da limonite, desloca-se ao menor impulso, e, cedendo ao mais pequeno peso, conio que absorve o que n^elle se encrava! Sob as indica<;oes dos indigenas conseguimos alfim transpol-o, nao sem liaver um a um atolado todos os bois!
Depois, nas libatas miseraveis do meio do rio, diziam nao liaver nada para comer!
Imagine-se um bando de liomens oppressos pelo ca- lor, abatidos pelo cansa9o, gemendo semanas e mezes sob a carga de 60 libras; famintos, vendo nos compa-
294 De Angola d contra-costa
nlieiros desanimados a prova da gravidade dos faetos que 08 assediavam, e nas miserias qiie os persegiiiam urna conio fatai sentenza de morte; eolloqueni-se aqui em pianura ardente onde a sede os devora, aleni n'unì lameiro difficil onde cada passo e objecto de Incta, obriguem-os a percorrer d'este modo a distancia de 15 milhas, e digam-nos coni que coragem, depois de tudo isto, liaviamos de obrigal-os a arrastar duas du- zias de bois immersos no lodo?!
Antonio, que fora em niissào a aldeia proxima, voi- tou pelas seis lioras coni os saccos vasios e a ccmsola- dora noticia de que o dono da libata nao era lio- mem, mas sim uma muUier de provecta idade!
Acrescentou ainda que no dia seguinte receberia- mos a sua visita, pois a nobre senliora-, nada tendo que nos desse, neni niesmo vendesse, estava na me- Ihor disposi^ao de tudo acc^iitar!
A caravana tornàra-se agora n'unì bando de saltea- dores, e pela noite, abaiando pelo escuro, là foram n'uma razzia roubar quanto encontrassem, seni qiie nós tivessemos a coragem de os impedir.
Logo ao alvorecer recebemos a visita annunciada ; eis em breves palavras o quadro que d'ella se encontra em nosso diario:
Socegados à porta das cubatas, aguardavamos o regresso dos nossos, quando deu entrada no acam- pamento uma vellia esguia, rugosa e sordida, seguida de outra creatura cujo sexo nao podémos determinar, tao anguloso, reintrante, antigeometrico e pouco com- mum era o seu contorno, de tres cavallieiros liedion- dos e desdentados, e de uma entidade, verdadeira tou-
A caminho do Zamheze 295
peira hiimana, pelo feitio e pequenez dos ollios impos- siveis de aperceber.
Que casal esvaparia da arca, para oinfjinar est e ga- laide (jvujjoì pensamos, mirando os recemvindos, e so- bretiido os cabellos da velila, que, eseorreudo gordura e enfeitados coni canulas de porco espinlio, llie davam o aspecto de uni ouri^o; emquanto no pesco90 enima- grecido uni formidavel kisto sebaceo, aneurisma ou o que fosse, se niovia a merce do musculo mais proximo, atropellando um collar de contas e cliifres de antilope, e OS seios, estirados na direc(;ao dos graves, oseillavam pendentes e graciosos em busca da nornial!
— kSìÌo ba-qua-tir, disse Antonio fleugmaticamente, e miseraveis conio nao ha outros.
A repellente velila, approximando-se de iiós, acoco- rou-se .
Uni trapo immundo, conio defeza do casto pudor d'està d'iva, caia por diante até aos nodosos joellios, que, cansados de supj)ortar (ao qiie parecia) tanta sqr- didez, estavam dispostos a fugir de elitre feinurs e tibias !
Encetada a invariavel pasmaceira, conservdmo-nos em exliibicjao, até que demasiadamente enfastiados ex- clamamos.
— ^las a final que veiu isto cA fazer?
— Neni mais iiem nienos, retorquiu o interprete, do que ver os brancos, receber d'elles uni brinde e apre- sentar uni guia (apontando para o tmipeira), ao passo que aquelle senlior veni propor certo negocio, termi- nou elle, indicando um dos vellios desdentados, que tiiilia na inao uina gallinlia.
296 De Angola d contro-costa
Trazer-nos o toupeira para guia, um individuo seni olhos ou pelo nieno8 com elles invisiveis, era um cu- mulo, era a mais atrevida das zombarias!
— E de corner? tomàmos.
— Nem nada, respondeu elle aìnda.
— Està terra nào tem bois, nem porcos, nem milho, nem mandioca, nem. . . cousa alguma, acrescentou a illustre dama; e à medida que isto dizia, cruzava os bracjos sobre o peito, batendo palmadas nos hombros, perante as nossas pessoas pei-plejxas!
— E ella o que faz, perguntàmos espantados; corno vive ?
— E viuva, responde zombeteiramente o interprete!
— Nào e isso que se deseja saber, dissemos; o que come para subsistir, é a pergunta.
— Ab! raizes, additou elle com ar mysterioso!
Enviuvàra, aborrecia os liomens, gostava do fogo, tendo por alimento raizes ; taes eram as qualidades e afFeÌ96es d'està triste creatura, segundo as informa- 9oes obtidas.
E quando, ao olliar attentos para tao infeliz arre- medo da humana especie, comecjàmos a reflectir fran- camente, sentimo-nos amesquinhados e rebatidos ao nivel da animalidade.
A final era um ente da nossa especie, uma creatura similhante a nós, cujos dotes physicos nos podiam ter pertencido, se acaso a natureza se bouvesse lembrado de atirar para a Africa, em vez de por na Europa, OS nossos respeitaveis progenitores !
Dèmos gracjas à Providencia, leitor, porque a posse de um tal envolucro em vida, seria para o espirito edu-
A canwifio do Zambeze
297
cado Oli, a imposÌ9ao do suicidio, ou a fatalìdade de urna reclusSo perpetua!
E para desopilar-nos d'està deprìmente obsessào mental, liouvemos por mellior apenaa pensar na velha Europa, e buscando aquelks cujos fins eram na terra 08 mesmos, aprouve-nos trazel-as dos polos oppostos, e juxtapo]-as em nossa escaldada ìmagìna^So.
Era urna d'essas jovens graciosas e bellas, cnjos ollios coruscantes zombam da castidade, ao passo que o alabastrino collo, de loiyas niadeixas inundado, Ra- pliael e Angelo, pincel e cìnzeÌB jamais reproduziram; bóca que diz enigmas, fórmas que recordam myate-
2i)8 De Angola d contraH:osta
rios e accendem febricitantes arripios; pé ligeiro conio a fìmbria (jue o encobre, mais de geito para aereo caminho, de que para pisar a terrena superficie: mii- Iher magica, scentelha divinai, que so onsaria approxi- mar-se de nos para nos tocar no espirito coni o rocio dos céiis, e que nós mentahnente punliamos eni con- fronto coni o vulto tetrico da nossa interlocutora! Coni- parae!
Gloria in cxcelsis, et in terram pax hominibus! 0 que nos tinliamos era fonie!
Yj a final acrescentiimos:
— 0 que deseja aquelle senlior que traz a gallinlia? — Este cavallieii'o quer fazer negocio, retorquiu q
interprete, pois e ca^ador, e deseja possuir uni pol- vorinlio.
— Nao temos polvorinlios para vender, foi a res- })osta; e famos a levantar a sessao, quando o velilo, adiantando-se, insistiu :
— E falso, téem aqni niuitos!
— Aonde? volvemos nos.
-^— Ali, disse elle, apontando para as cabe^as dos bois.
— E entao?
— E entao, arranquem o cliifre de uni boi, que eu don por elle està galHnlia!
Parallelamente ao Luatuta, e a 12 millias de distan- cia, corre o rio Lunga, o mais importante affluente do Cuito, cujo curso veloz desliza por entre terrenos al- cantilados e pittorescos, a que nao faltam todavia as margens pantanosas, e para onde nos dirigdinos logo ao alvorecer.
A caminho do Zamheze 299
i\Ial o dia assoniAra, e o radiante sol, ergiiendo-se, delirava os encimados ramos da floresta, que resoou aos iiossos ouvidos, despertaiido-iios, o gerito: «Fiigi- raiu mais dois liomens! Urge diminuir as cargas».
Queimando meio quartel de uma das canoas, e lan- ciando ao rio uni cunliete inteiro de Siiider, assini nos ' fumos alliviando, e pela tarde ao aeampar junto do Longa, retumbou de novo a exclama^ao: «Mais uni lioniem fu"iu ein via<>eni!))
Era estupendo conio em piena Africa centrai, tao longe de sua terra, estes miseraveis abandonavam o campo, e, impellidos pela fonie, ìain buscar talvez a escravidao elitre estranlios.
A terra e agora deserta, e uma libata encontrada d'aleni a beira rio, fora seni duvida, pela desordem em que estava, assaltada pelos man-bunda, em alguma das siias guerras.
Faltam-nos informa^òes acerca dos seiis habitantes, porcine andamos sós, mas e de crer que sejani milito similliantes aos do Luatuta, gente misera, so conipa- ravel ao esteril e arenoso torrao onde viveni, cujas se- menteiras apenas se fazem nos liiiios do rio.
Pouco ha a dizer da natureza geologica do terreno, podendo apenas affirmar-se que a superficie (5 coberta de areia, e o subsolo constituido por gres silicioso que naturalmente a origina.
Vanios caminliando n'uma altitude tal, que é inte- ressante notar as variantes da vegeta(;ao. Assim, na linlia divisoria do Cubango-Cuito, aj)enas deixàmos a bacia do primeiro, viiiios as verdejantes mupandas, que tanto alegram a vista, desapparecendo estas logo
300 De Angola d contror^osta
que se fez a descida para a segunda, ficando em seu logar 08 tortuoso» n^jangòs e mucaratis.
Seguindo pelas terras àreosas e desertas que nos defrontavam, ora em matas lavradas pelas ultimas queimas, ora em planicies nuas e despidas, levando o cora<;ao denegrido corno ellas, là fomos sobresalta- dos, ora pela fome, ora pelo receio das desercjoes.
Era urna iievrose, urna verdadeira loiiciira a idea de fugir, e apenas qualquer se lembrava de tal, logo dois e tres o imitavam, nào se recordando que por estas matas, sem norte nem bussola, nenhum d'elles, conio nós, saberia aonde dirigir-se, e succumbiria for908a- mente à sua audacia.
Depois, muito ao contrario do que ao diante succe- deu nas florestas do Luapula, olliavam-nos corno igno- rantes, liomens desaffeitos ao mato, nao acreditando que lamos de rumo para o Liambae, onde llies asse- guravamos que se encontraria mantimento, e so con- vencidos de que os impelliamos a uma perda certa.
A cacja encontrada nos campos é pouca, sendo nota- vel tambem a ausencia de cacja do ar, talvez devida à falta de arimos, ou a outra circumstancia por nós des- conhecida.
Ao fundo de uma encosta acampàmos ao anoitecer na margem do M'palina, aflfluente do Cuito.
Ao longe viam-se as cubatas de uma antiga aldeia agora deserta, e emquanto abatidos consideravamos a nossa misera situa9ao, a bracjos coni a fome desde o Cubango, à luz das fogueiras esfolava-se um boi, que mandaramos matar para distribuir pelos estomagos o conveniente consolo, desannuviando sombrios rostos.
A caminho do Zambeze 301
Durante a noite estalaram permanentemente os os- 80S sob o pesado ferro dos machados, emquanto a com- passo as maxillas rangiam, triturando nervosas os en- durecidos musculos.
O aspecto do acampamento, a ferocidade dos rostos, a ancia na ingestào e a magreza dos extenuados corpos faziam lembrar ao observador uma scena de campo cannibalesco, onde avido e suspeitoso o bomem devo- rasse o seu similhante!
Nós mesmo nao podiamos eximir-nos a um precìpì- tado agarrar do alimento que nos apresentavam, e ao ver exsudando sangue a carne assada nas brazas, que o cozinbeiro nos enviava, sentiamos vontade de nos arrojarmos a ella, devorando-a por inteiro.
E se ao acaso pensavamos no longo trajecto que jà fa feito, no meio da estranha escassez de recursos, e consideravamos que os bois tinliam sido a nossa sal- va9ao, seni os quaes jà liaveriamos todos perecido miseravelmente, nao podiamos deixar de pensar que ao compràl-os na costa, a Providencia velava por nós.
Assim caminliando fomos ao longo do rio, ora em varzeas, ora pelas matas que o orlam de espa9o a espa90, sobresaltados com o apparecimento de habi- tacjoes, que depois se reconbeciam desertas, até que pelas onze lioras suspendemos.
Achavamo-nos à sombra de uma arvore, descan- sando das fadigas da marcha, e fazendo planos com relacjao ao nosso destino e ao caminho a seguir, em- quanto OS bois pastavam tranquillos, esse recurso que dia a dia minguava, quando de repente fomos sur- prehendidos pelos acenos de muitos dos nossos.
302 De Angola d contror-costa
Convictos de quo alji[iinia colisa importante succede- rà, er{»*iienio-nos, dej)aran(lo logo coni dois individnos, que pela sua niidez e comj)li(*ada cabelleira differiani da j^ente que nos aconipanhava.
Erani man-bunda, ca(,*adores de ratos, de cujos ani- niaes traziani unia entìada de trinta e tantos.
Inforniados por elles de (pie proximo liavia libata» e arinios, resolveraos acampar ali, e coniprando-lhes OS ratos, que os nossos niiravani soffreg-os, enviàmos OS dois luan-bunda ao rejifulo, coni o con vite de nos visitar e trazer inaiitiinentos.
Até ao cair da noite conseguiiiios alcan^ar trinta espigas de niillio e cpiarenta raizes de inandioca, arti- gos (pie s(') reproduzindo a scena niilagrosa da iiinlti- })lica(,»ao, operada pelo Redeniptor, poderiain aprovei- tar a caravana.
No eintanto, ratos a uns, inillio e inandioca a outros, là se conseguiu uni relativo contentamento, adorine- cendo todos confiados iia fartura do dia seguinte.
O typo negro d'atpii e sympatliico, intelligente e beni apessoado.
Apresentàmos ao leitor uni specimen, o (piai, me- llior (pie descrip^oes, llie darà idea d'elles.
Mupei, o chete de cozinlia, (pie na costa, obtida a necessaria licenza, se eiila(;àra matrimonialmente coni lima das graciosas beldades viiidas de Novo Redondo, andava ag^^ra desgostoso, por modo que esquecia às vezes o exercicio do mester, coni grave prejuizo dos nossos estomagos. Pela noite fizera grande barullio, dando-nos parte das suas suspeitas. A esposa, contra toda a espectativa, liavendo adormecido a seu lado,
A caminho do Zamheze 303
acorddra pela manha nos bra^os de iim outro, plieno- meiio estranilo para que elle no prhneiro momento nao póde achar explica^ao acceitavel! Mais tarde, após prolongada niedita(;ao, tradnziu-se-llie o soffrer em grave explosao de despeito, a que se succederam crneis amea9as de matar a culpada!
Coni grande espanto iiosso, poréni, dez lioras bas- tarain para tudo liarnionisar; pela tarde, junto do fogo, OS dois conversavam tranquillamente!
O amor é conio esse fabuloso passaro, de cujo nome taiitas companliias de seguro se tee;n apropriado; ape- nas reduzido a cinzas, renasce bello conio d'antes!
Superfluo sei-ci aqui acrescentar (jue todo o dia se- guinte se esperou em vào por mantimentos, e que de- pois da visita de Muene Cuando, liavendo comprado tanto conio na vespera, partimos apenas coni dois com- panlieiros para indicarem a trilliada.
Yamos no prolongamento do rio M'palina, procu- rando elitre as cliatas canipinas o caminho a seguir, e scudo em cada libata objecto da indigena curiosidade.
Os man-bunda sao assas curiosos e ingenuos. Ulti- mamente, pela tarde e iias lioras do ocio, tenios des- pendido o iiosso teiii])o em notar os seus actos e as suas conversas, conio distrac(;ao as fadigas do dia.
Assilli, liontem, 5 de agosto, cliegàmos ao acanipa- iiiento de Muene Cuando aiites do iiieio dia, esbafo- ridos e correndo suor. Despindo-nos quasi totalmente, pozemos o instrumento em estacjao, e tomando uiiia altura meridiana, sentàmo-nos d porta da cubata, a fini de termos o scientifico lenitivo de determinar o parallelo em que estavamos.
304 De Angola d contro-costa
Perante non agachavam-se em grupo umas velha.s damas, a quem uni cavalheiro acocorado explicava todos 08 nossos actos.
Uni dos casos quo mais as interessava, conforme parece, coiisistia em saber se o nosso corpo era branco conio a cara, e scudo impossivel resolver-se isto seni conveniente exhibiijao, o iiiesmo siijeito pediu-nos por acenos qiie puxassemos a caniìsa, a firn de coiivencer aquellas senlioras do (pie debalde Ihes afian9ava.
Feito isto, deixàmos uni quadril a descoberto, facto (jue causou verdadeiro assombro, se nào receio pouco lisonjeiro para o exemplar.
Kao se restringili ainda assim a curiosidade femi- nil, e areugando coni o interlocutor, pretendiam, ao que suppomos, saber mais algunia cousa!
Inquirindo-o, pois, disse-nos que ellas desejavam saber a rasao de sermos brancos; respondendo-lhe o cavalheiro, muito atiladamente, «porque nfio eramos pretos», argumento que, por inacceitavel, foi exposto da seguinte estranila maneira, para se tornar mais compreliensivel.
«Os liomens sao brancos por fora, porque sào pretos por dentro». E, iiao scudo facil verificar està circum- stancia, ficoii tudo explicado a contento!
Os guias que Miiene Cuando iios forneceu levavani- iios a caminlio, sempre com pouco de comer, deixan- do-nos convencidos de que, apesar das infonna^oes dos naturaes, so encontrarianios niantimento no Zambeze.
Jà nao baixa^ o tliermometro a zero, consentindo que coniecemos cedo as jornadas, as quaes d'este modo se anipliam sensivelmente.
A caminko do Zambeze
305,
O emprego dos bois-cavalloa é o mais precioso re- curso que se conhece no mato, sendo diffieilìmo de outra fórma poder resistir às nossas marclias for<;a- daa, as quaes ainda assim, feitas n'estas circmnstan- cias relativamente favoraveis, fatigam muito, poi» so do Cnnene até aquì andàmos cerca de 500 mìlhas.
Pela manhii, e depois de nos habìtuannos ao choìto especial do boi e ao movimento da pelle que faz com que o apparelho role com o cavalleiro, lembrando os balan<;o8 de um navio em mar suavemeiite ondulado, este genero de transporte tem o seu tanto de agrada- vel.
306 De Angola d contro-costa
0 viajante, depois de singola refeì<;ao, bifurca-se, e dissipados os tetricos pensamentos da noite, là vae, rociado pela aura niatutiiia, poiipaiido for^as que a mareha a pé rapido gattaria.
Està disposicjao de espirito iias priineiras horas é reeurso precioso para o resto do dia, evitando mais tarde, pelo calor e pela fadiga, a desproj30sitada ten- deneia para o hiimorismo.
Muitas vezes eonsideràmos n'isto, e frequentemente nos conveucemos de que, se de principio tivessemos caminhado a p($, marcariamos lioje coni a ossada al- guma clareira no mato, nao tendo a alegi'ia de cliegar a MoCj^ambique.
Os males moraes sao taes e tantos que bem deve- mos a salvatilo a uni cuidadoso poupar de for9as, que contrabalan<;ou em grande parte os soffrimentos do espirito.
E mais tarde, quando, sob as j)icadas da mosca, nos cairarii todos os bois, entào em marcila sob o acjoìte das chuvas a ainarga experiencia beni iiol-o eviden- ciou.
A teiTa onde corre o M'palina 6 por tal maneira pla- na, (pie por toda a parte de nianlià se observavam ex- traordinarios phenomenos de miragem. Foi aqui que pela prinieira vez encontràmos um animai, que Anto- nio designava por gallengue, nome na costa applicado ao Oryx gazella, e que assimilliando-se ao gnii, nao e propriamente este, segundo parece, pela difl'erente dis- posi^ào das defensas.
A sua longa cauda de cavallo, a juba felpuda e a cor escura, dao-llie um aspecto nobre entre os outros ani-
A caininho do Zambeze 307
luaes, seiido notavel que, corno o Onjx, quando aper- tado pelos caes, nao foge; ao contrario, para a firn de investir coni elles, dando ao ca(;ador tenq)o de se ap- proximar.
Aqui matàmos uni, do qual damos o desenho ao leitor. Mais adiante, depois de uina marcila de 18 nii- llias, transpozemos o Cuito.
Ilio formidavel e caudaloso, diz o nosso diario.
De mais de 100 metros de largo eni niuitos pontos, serpeia a ampia faclia de agua em leito extremamente sinuoso, deixando derivar muitos bra^os, que, aqui saindo e aleni entrando, llie semeiain o curso de illias, nao cedendo na apparencia ao Cubango.
Ulna varzea de 2 a 3 niilhas consente o voltear des- enibaracjado, sendo que pela margem direita o terre- no mais alto se approxima do leito, permittindo ao viajante em caminlio pela beira gosar de poiitos de vista pittorescos.
0 Cuito e navegavel em grande extensao. Eis quanto d'elle disse Muene Mussongo, soba do sul, e que em sua canòa viera para nos ver.
0 rio (t largo e seni enibara9os até ao Cubango, onde entra n'unì sitio cliamado Cangungo, formando coni este iinia grande lagòa denominada Marno coni lima illia arborisada a nieio, terra em que està a li- bata do soba Mabanja, cliefe do Bucusso.
D'alii deslisam os dois na dii'cc^ao sueste, deixando para o sul derivar parte da sua agua, jior grandes mo- lollas, seguindo depois em voltas capricliosas através de jilanicies cobertas de Arundo, até que por fim lan- 9am as aguas restantes no Cliobe.
308 De Angola d controrcosta
A jusante de Cangungo, cerca de 15 a 20 milhas, deriva um prinieiro len9ol de agua, a moloUa Chindon- ga (Omaramba Oudonga), que cortando para o oeste vae direita ao Cuanhama, e devia ser, quando aprovei- tada, um optimo caminho para ligar esses dois pontos.
Mais abaixo fica o Dirico, e adiante urna cachoeira que quasi se cobre na for9a da chuva.
Os habitadores sao os ba-n'dirico e os cangungo proximo da lagoa, povos que entretéem Tela96es com- merciaes com a Cafima e o Vale, assim comò frequen- tes vezes com o Bié e os bin-bundo, que em viagem com OS portuguezes para os ba-vico por là transitam.
0 Cuangar està da banda de là e proximo do Di- rico; a terra, emfim e plana e alagada, conforme nos disse Muene Mussongo.
Para alem do Dirico ficam, comò é sabldo, os ba-vico, cuja capital e Libebe, paiz que pelo meio dia defronta com as tribus ma-tzanhama, que por sua parte confi- nam com os ba-yeye, povoadores da mololla Teoge e outras. 0 aspecto d'estas terras, d'aqui para o sul, e sempre monotono. Extensas planuras se alongam a perder de vista, coberta^ de gramineas, semeadas aqui e alem de manchas escuras de mais densa vegeta9ao. Entre os ba-yeye avultam HypìuBues elegantes para cortar a monotonia da paizagem. Todos os viajantes dao noticia de zonas alagadas, o que, comò jà disse- mos, tem concorrido para tornar difficil discriminar o leito do Cubango e a complicada distribuÌ9ao de suas aguas.
0 que todavia nos parece (repetimos ainda) comple- tamente assente, é. que as mais distantes cabeceiras
A caminho do Zambeze 309
do Zambeze estao no planalto do Bié, junto aos morros Manso e Chinbango, d'onde originalmente deriva o Cubango, cujo curso imponente drena toda a depressao centrai que do Cunene vae ao Barótze.
0 mesmo systema do Cuerrai nos parece ligar-se a elle pela grande mololla Cliindonga, notando-se comò tambem dissemos a particularidade de estar a lagoa Etocha para o curso d'està, corno o-N'gami para o Cu- bango, ambos reservatorios que recolliem aguas super- abundantes.
Assim o colosso que a Quelimane vae desaguar, tri- buta ao Indico aguas originarias do Bié e de Babisa, n'uma distancia media de 1:500 millias geographicas.
Il
CAPITULO XI
ACERCA DO NEGRO
Do todoB OS factos enumerados, vé-se que a es- tructura do negro approxima-se hiequfvocamente d'aquella do macaco. Nfto diflToro simplesmente do typo caucasico, mas distingue-se d'elle exn dois res- poitu8: reduc^àb de caractercs intellectuaes e fa- cies animai amplindo em oxagcro.
I^AWRENCE, Ethiopian Variefy.
0 indigena africano — Siniilban^a de caracteres, difficuldade em dis- criminar typos e familias de origom communi — Tra^os caracteriscos do negro — Aspocto geral — Indica^òos scientificas sobre a conformammo cranoana — 0 em*opcu e o etliiope encartido pelo lado esthetico — 08 ha- mitas e a philantliropia — Unifornùdade de ser, sob o ponto de vista intellcctual — Feitivos. — 0 OtjinirOy os Saiidis e o Zamhi — Supersti- ^.oes e o tciTor pclos mortos — Difficil comprelionsao — Dados cosmogo- nicos indigcnas — (.) sentimento moral e as lendas — Difficuldades de cstu- do — A lingua e os costumes — Tramos approximativos de tribus distantes — Dàmaras, ban-cumbi, ba-qua-tlr, ba-yeye, ban-dirico, ete. — Enterra- mento dos defunto» e pratica da circumcisao — 13a-yeye, namàcuas e ba- eoróca, suas habitamòes — Os ba-vieo os ba-visa e os clicks — Tendeiicia nomada — Os ba-qua-iiaiba e a Cafima — A cmigra^ao e a influeiicia do pantano — Os ma-teliona e os djlmaras — Tribus que originaram — Os ba- nhaneca e os ban-cumbi exeeptuados — Os dàmaras e ainda urna tenta- tiva para atinar com a sua proveniencia — Opiniììo de Anderson — A ar- vore j)rogenitora — Conclusilo.
No intuito de variar a monotona narrativa da nossa marcila por entre lamcno-) e pantano», lu- ctìndo coni fomes e sé- dci ft^àinos urna pausa por momentos a firn de disti ahir o leitor com algiimas considera^òes geraes sobre o indigena africano e particularmente o da zona por nós percor- rida.
Nào é por certo assumpto facil, mas (quando tra^a as grandes linhas geographicas do continente, esbo- ^ando OS seus tratjos physicos, deve o viajante por vezes tentar reuiiir o que viu àcerca dos i-especti- V08 habitantes.
314 De Angola d contrci-costa
Colleetivameiite os negros, talvez sujeitos a um cli- ma poiico variavel, apresentam urna tal unifomiidade de caracteres pliysicos e mentaes, mostram-se tao cou- stantes ein seu modo de ser e operar, téem norma de vida tao primitiva e organisa<;ào de sociedade tao siii- o-ela e jieral, que difficilmente, quando dispersos por trilms distantes, se aelia o fio originario (pie entreliga membro» da mesma familia.
Porque, a final, quaes sao os tra(;os que distinguem o negro?
Todos téem a pelle preta, excepto nas palmas das •maos e sola dos pes, onde o pigmento foi naturalmente removido pela prolongada Fric9ào; assim corno toda ella e mais ou menos fina, afóra os logares menciona- dos, vendo-se por isso, em geral, o africano, pegar no earvao em brasa e depol-o no caehimbo seni a menor impressilo!
O negro typico tem sempre basta earapinha, espessa conio a la, e raras.vezes barba ou bigode.
A sua estatura e mediana, angular, mais grosseira (pie a do l)ranco. 0 craneo fortemente ligado, depri- mida a fronte, proeminente o occiput, bem conio as queixadas e arcadas zygomaticas, adiantando-se-llie, do mesmo modo que nos (juadrupedes glutoes, a bóca, guarnecida de largos e grossos labios.
O nariz e acliatado, estreito o pescoso, ao passo (pie a columna vertebral extremamente curva para a frente, logo aeima da ba(!Ìa, parecendo tal conforma- ^ao prestar-se mais k marcila sobre quatro pés!
Os membros loeomotores afastam-se do parallelis- mo, curvando-se externa mente, as rotulas sao proemi-
Acerca do negro 315
nentes, os calcanhares excedem a Hnha vertical do tendao de Achilles, as maos, quando caidas ao longo do corpo, tocam quasi nos joelhos.
Mais scientificamente acrescentaremos :
A capacidade do craneo aclia-se reduzida quando comparada com a do europeu, sobretudo na regiao anterior.
A face, porém, avulta.
0 osso frontal e os parietaes sao curtos e menos escavados, tendo aquelle menos capacidade que estes.
A frente do craneo acha-se comprimida e elevada n'uma corno que nervura entre os poderosos muscidos temporaes, que nascem proximo da parte mais elevada da cabe^a, avultando assim, cm consequencia da gros- sui'a dos mesmos musculos.
A substancia ossea e mais resistente e densa, os rochedos extremamente grossos, o peso do craneo consideravel.
0 fovamon maijmni} e maior, collocado muito atraz, e maiores sao tambem todas as outras aberturas para a passagem dos nervos.
Tanto o apparelho osseo da mastiga(;ào com as cavidades-receptaculos para os orgaos dos sentidos, dentes, etc, sao grandes, solidos, e mais poderosa- mente construidos no negro, mais aptos a satisfazerem as exigencias animaes do que nas ra^as civilisadas, onde certas func^oes se attenuam pelo extensivo uso da rasào e da experiencia.
A fossa tempora! e grande, o seu limite pela parte superior està collocado mais alto no crianeo do negro do que no do europeu.
/ 316 De Angola d contro-costa
As orbitas e zygomas sao enonnes, bem corno rs narinas, ampia a cavidade nazal e ob cometoò do etlimoide, mais extensa a lamina cribifoniie.
O maxillar superior prolonga-se notavelmeiite eni frente, e a por9ao alveolar vé-se obliqua comò no ma- caco.
A espinba nazal 6 reduzida, a abobada palatina lon- ga e mais elliptica, o queixo, em logar de vir à verti- cal dos dentes, recolhe de modo sensivel.
O angulo facial e em media de 65®, a distancia da base das narinas à parte proeminente do occiput exagerada, o perfil de um prognatismo frisante.
Comparado com as fórmas, propor^oes e còres, que todos admiràmos nas bellas figuras da Grecia, o la- nudo cabello, o acliatado nariz, os grossos bei(;os, a deprimida fronte, as maxillas avancjadas, a pelle tis- nada, e o rude vulto do negro, fazem um contraste esrtanho !
Nào acrescentaremos a estes caracteres physicos extemos outros especiaes que a sciencia se tem encar- regado de estudar na compara9ao da ra9a negra com a aryana, taes comò differen<jas de pigmento, de bilis, de manchas escuras da pia-inater, porque nao é nosso intuito aqui expor essa compara^ào, nem discutir se nos excedem ou sao inferiores, deixando em completo socego a pliilantliropia meticulosa, que facilmente se consideraria insultada com o aventar de similhante tes- temunlio.
Debaixo do ponto de vista intellectual, tambem cus- ta a differen^al-os (referimo-nos sempre aos negro» do sertao).
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Acerca do tic grò 317
Em materia de religiao, por exemplo, ainda formà- mos o mesmo jiiizo que emittimos ao escrever o iiosso primeiro livro sobre Africa, isto é, que o negro nao a professa ou tem a do feiticjo, que é completa negativa d'ella, em que todos procedem por igual fórma, coni identicos preceitos, tornando-se difficil distinguil-os.
Assim o dàmara tem o Otjiruro, o mu-nhaneca os Sandis, comò os quiocos o Zartìhi, e os niam-niam* o muqivisso, sendo para elles o feiti^o uma idea tetrica, aterradora, com influencia nefasta, que elles tratam de conjurar por todos os modos possi veis.
0 bieno diz : e feitiqariay pregou4he um jinwingi, o que quer exprimir: pol-o sob a accjao do feitÌ90, de que tem de se livràr por qualquer medicina, se nao quizer ser victima.
0 mu-nhaneca exclama: olita nào se apeguem os San- dis comtigo, querendo significar que para tao grande mal faltarà remedio. IC se Ihes perguntardes : mas o que é isto que tanto mal me faz? Elles apenas attri- buirao ao terror inspirado pelo possivel aj^parecimento do morto!
Nem mesmo é uma transmigi-a^ao a guisa de me- tempsicose, porque, quando os gritos da liyena Ihe suggerem a idea de qualquer que^ desappareceu, nao é o espirito que imaginam incubado no corpo do ani- mal, porquanto carecem de similhante no^ao, mas sim o homem transformado em hyena, com o mesmo cor- po, OS mesmos olhos, semente coberto de pellos e com quatro patas!
1 Niam-niam ou inelhor Nhuin-nliainos.
318 De Angola d contro-costa
A coniprehen.sao de tudo qiie os cerca e difficil, se iiao erronea e inipo^sivel, nivelada pela rnesma fórma em quasi todas as tribus.
Assilli vereis o indigena africano facilmente suppor, conio muitos acreditam, que o sol nascente difiere do visto no dia anterior, do qne explicar na rota9ao com- pleta o reapparecimento do mesmo astro!
Verdade e que às vezes os seus argumentos téem a for9a de deixar boquiaberto o viajante.
Assilli um dia, assentados d porta de nossa tenda, satisfeitos por ter acliado uni preto esperto, a quem iamos arrancar no(;oes de cosmogonia, perguntàmos- llie, apontando para a abobada celeste, o que e o céii? inquiricjao em verdade estranila a que muito camponez na Europa deixaria de responder, elle disse: «0 ceu é de pedra, ou mellior, urna serra enorme que està por cima das nossas cabe^as!» E comò Ihe obtemperasse- mos, tomando uma pedra do cliao, que nos nao pare- cia o celi ter pontos de contacio com aquillo, pois Ibe bastava a cor, replicou: «E boa; vé-se azul porquc està longe, assim comò as serranias quando vistas a distancia!»
0 sentimento inorai, a conscieiicia do bem e do mal, embryonarios, tambem diversificam tao pouco entre todas as tribus, que é ditììcil por essa circuin- stancia encontrar facies por onde possa operar-se a meiior discriiiiina(;ao.
Emfim, as lendas, tornam-se tao confusas, que mal se póde aproveitar indicios d'ellas, e sobretudo encon- trar tribus que, enibora da niesma origeni, conseguis- sem conserval-as immaculadas.
Acerca do neyro 319
Passando de uns a oiitros povos, alteradas pela fa- culdade mais ou menos imagiiiativa do narrador, qiie as adapta multo naturalmente as circumstancias de le- gar e impressao de momento, exaltadas na Loca dos homens por tendencias arrogantes, pervertidas nos •contos da mae ao fillio pelo sentimento do medo, mu- dam de gera^ao em gera^ao e perdem-se pliantasistas de tribù em tribù.
De que laudar mao, pois, para fazer uni estudo su- perficialmente ethnogi*apliieo dos povos por onde se decorre? Da lingua e de alguns usos e costumes mais ou menos tradicionaes, espalhados entre elles, é a res- posta. Acontece porém que ao explorador e sempre difficil assenliorear-se da priineira, pelo pouco espa<;o de tempo de que dispoe, e do seu desconliecimento veni o embaracjo de poder aproveitar-se das descri- P9oes sobre o modo de proceder do indigena, ficando assim à mercé de interpretes, que tudo confundem e alteram.
Nao deve admirar, pois, qye todo o traballio ii'esse sentido e feito por homens que rapidamente atravcssa- ram as tribus de que pretendem tratar, seja deficiente e incapaz de satisfazer k naturai exigencia de queiii deseja informar-se.
Desde a costa Occidental até à bacia do Cuito per- corremos varias zoiias povoadas de negraria, onde, pelo menos sob o ponto de vista dos caracteres pliy- sicos, notiimos algumas differen9as, que exultariamos em poder apresentar ao leitor.
Ao baralharmo-nos, porém, agora entre as notas multiplicadas do diario, vemo-nos por tal modo con-
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fusos, achàmos entre ellas tao estranhas indica9oes, qne se toma quasi impossivel delimitar tribus e expor casualmente a sua proveniencia.
Assim o córoca, para exemplificar, parece-se com esses aborigenes do sul do Càoco, liill-dàmaras clia- mados, e mais longe com os ba-qua-tir.
As mulheres dàmara, ban-cumbi, ban-dirico e ba- yeye ou ba-cóca vestem do mesmo modo a pelle de boi, enfeitando-se com missanga, emquanto as do 0 vampo empregam, comò as do Valle, uma especie de cutuba, ou melLor uma pelle cortada em triangulo, ageitando-a posteriormente*.
Os bana-cutuba, os ba-tchuana os dàmaras e a gente do Cuangar enterram os mortos pela mesma maneira, quebrando-llies a colunma vertebra!, e envol- vendo-os n'uma pelle para os coUocarem com a cara para o norte, ao passo que os ba-qua-róca e ba-ximba OS deixam insepultos ou marcam o logar em que os abandonaram com circulos de penedos.
Os bana-cutuba, os ba-qua-róca, os dàmara, e sup- pomos que os habitadores do sul do Cubango, circum- cisam-se à fei^ao dos ban-galla de Cassange, jaggas, etc, emquanto que os lupollo, ba-nhaneca chamados, OS amboellas e outros do norte nao o fazem.
Os dàmaras, os ovampos e os corócas tiram as san- dalias ao entrar na residencia do europeu, emquanto que biénos e amboellas nao os imitam; as suas dansas representam quasi sempre, em mimica, ac96e8 do boi,
1 E notavcl està cspceic de cauda usada pelos qua-nhama e pelos uham-ubamos.
Àcerca do negro 321
da cabra e de outros animaea, ao passo qiie as d'estes téeni logar em vastos circulo», onde por cada vez sàe um figurante que se mencia isolado.
Os ba-yeye, segando a aifirmativa de Anderson, construem habita^Òes redondas conio os naniàqua.
Os ba-qua-róca e ban-dombe fazem-nas identicas, à medida que os bandas, cafimas, ban-db^co, ba^qua-tir, as formani altas e conicas.
Os ba-vìco, ao sul do ponto onde nos achàmos, ves- tem, diz um escriptor, corno os ba-visa de Mo9ambi- que, emquanto que o dialecto lu-yeye comò o lu-crero, o dAmara e o coróca pareceni assimilhar-se às lingua» da mesma costa orientai, apesar dos cHcks, que nioa- tram iutcrven^So Iiottentotica.
322 . De Angola d contro-costa
0 mesmo dàmara, inteiramente siniilliantc ao iiiu- erero e ao mu-qua-róea, tem o typo do» ma-liniansì, tribù da costa de leste.
De tudo isto nao vanios conci uir que as tribus eni questao se estendem ii urna facha de territorio atra- vez da Africa de uiiia a outra costa, nem acertar coni a sua proveniencia e esj^t^cial distribuÌ9ào ; mas ver se dos pontos de contacto ìndicados se póde laudar algu- nia luz.
Unia parte das tribus que povoam as planuras do sul téem decidida tendencia para a vida nomada, de resto uni tanto concomitante coni a pastoril quando escasseiam os pastos, e grande facilidade em emigra- reni, ou porque as terras siliciosas, causando rapida- mente, OS obriguem a procurar novos campos para a semeadura, ou por outra qualquer rasào que desco- nhecemos.
Assim, ao transpor o Quiteve, disseram-nos que existira ali em tempo (cincoenta ou setenta annos) o poderoso estado dos ba-qua-naiba, que de subito des- apparecera *.
A Handa era um deserto, que gente de proveniencia desconhecida povoàra, tambem de data nào muito re- mota, conforme se suppoe.
1 Ptu'ece que anterioniiciite a osta epocha existia no plateau, que iiio- (leia entro o Cunone o a serra da Ohella, urna densa populayào, eonsti- tuiudo um reiuo sub a dcsigna<;ào de Mataman. Os Iiabitant(;s eram som duvida dàmaras, pois que ainda entro ollcs ha a tradiyào, que, forQados i>or povos invasores, tivoram de ceder a sua ton'a, transpondo o rio na Quia- bicua, corno em outros tempos elles haviara por sua vez dcrrotado os que là residiam, talyez partidarios do celebre Humbi-Iénene.
Aceixa do neg^ì'o 323
A Cafima, lia poucos annos ainda urna terra assàs povoada, està hoje (iiiasi em ahandono, devido, se- guiido afiaii^avain pessoas d'ali, a escassez das aguas; eiufini as margens do Ciibango, que de Massacra até a Bunja eram bastante povoadas, estào presentemente quasi desertas.
P^stas tendencias migratorias, se nao encontrarem so causa no proprio solo e n'uma disposi^ao naturai dos indigenas para a instabilidade, o que explicaria talvez a existencia eiu suas veias de sangue bu^hmen , deveni ter a origeni nas invasoes de territorio e na naturai liesita(,*ao de (piem està habituado a retirar-se CUI presen<;a de outros mais foi-tes; d'onde se infere que a menos guerreira, menos forte e qui^à menos nol)re e de erer fosse a rac^'a que povoava as planuras (pie oceupam a depressilo centrai da Africa.
E se o nao foram ao tempo d'esses movimento», sao hoje, porque e facto conhecido que os indigenas que residem permanentemente nas regiOes pantanosa» soffrem profundas modifìca(j6es physicas e mentaes por inhala<;ao sol) a constante influencia deleteria.
Os liomens da beira dos pantanos, os babitadores das aldeias lacustres, avelhantam-se coni rapidez, sào })reinaturaniente senis, assim comò os descendentes fracos, racliiticos, pallidos, tendo o abdomen proemi- . nente, a figura curvada e os caracterc^s moraes e intel- lectuaes deprimidos e degradados.
Raras vezes attingem urna idade avan9ada, e tanto na bacia do Nilo, na Virginia, corno aqui, o limite da vida regula entre quarenta e cincoenta annos appro- xìmadamente.
324 De Angola d controrcosta
Das presentes considera^oes podemos jà concluir que todos os habitantes da grande depressao centrai norte do Calahari apresenta, em seus tra^os geraes, urna inferioridade manifesta, quando se comparam com 08 robustos ba-bie, os elegantes mam-boella e outros povoadores do norte, e que portanto este facto caracteristico nos leva a isolal-os, considerando-os mais ou menos originarios da mesma tribù, e a accei- tar emfim que, se nào provieram do sul, nao derivam pelo menos directamente das gentes do norte.
Mas quem foram os seus progenitores? Quaes os povos originarios d'essas tribus dispersas desde a ba- cia do Cunene, com o nome de ba-qua-róca e ba-xim- ba, e mais a leste ovampos e ba-qua-nhama, e ainda adiante com a designa9ao de cafima, de ba-rongo, de ba-qua-tir, de ba-qua-n'gar, ba-yeye, etc?
Eis a resposta:
Parece que n'uma epocha multo remota existia por toda a zona que se estende entre o Ovampo e o curso inferior do Cubango um poderoso estado, que se de- nominava dos ma-tchona *.
Este povo, que, segundo se presume, vivia pacifica- mente ao longo do curso dos rios mais importantes^ alimentando-se naturalmente da ca^a e da pesca, foi um dia surprehendido pelo inopinado apparecimento
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1 E notayel a coincideucia dos ma-tcbona com os ma-tcheno, de que nos falla Bastian corno povoadores do Congo, ao tempo da chegada dos jaggas. Està circumstancia pelo menos lembra, para ntto dizer corrobora, o que dissemos n^outro capitulo sobre o jagga Ximbo, e mostra a probabilidade de bayer trazido comsigo tribus avassalladas de ma-tcbeno, quando inves- tiu com Mo^ambiquci tribus que depois na retirada se estabeleceram alL
Acerca do negro 325
de tribus numerosas que se chamavam dàmaras, bem corno o foram tambem os povos do sul que com elles tinham rela9oes, isto é, hushmen e talvez as tribus hot- tentotes.
Derrotados e vencidos, dìspersaram-se em todas as direc^oes, e aquelles que escaparam ao cutello ou à escravidao, foram procurar guarida em logares reti- rados, mais ou menos accessìveis.
Diffundido por elles em grande abundancia o sangue hushmen, veiu agora pouco a pouco fazer sua entrada o dos dàmaras, e separando-se em todos os sentidos para fugir à aridez das terras primeiro conquistadas, ficaram os propriamente dàmaras na terra; entre o Cunene e Chella, d'onde depois salram comò jà disse- mos, acossados pelos nano ou por quem fosse, distri- buindo-se os outros, comò os vemos desde a emboca- dura do Cunene até a altura do Cuatir e do Culto, e incursando a pouco e pouco entre man-bunda, mam- boella, bienos, gente do Nano, ban-cumbi e quantos appareceram a final, com os nomes de ba-qua-róca ao norte do Cunene, bana-qua-tuba e ba-nbemba a leste d'este rio, ao longo da Chella com o de ba-qua- balle, para alem de Cuanhama com os de Cafima, ba- qua-n'gar, ba-qua-tir, etq.
Uma unica circumstancia nos confunde em meio d'està discrimina9ao, e vem a ser que, suppondo nós OS ba-nhaneca e os ban-cmnbi oriundos multo do norte, e talvez directos descendentes dos jaggas, comò jà dissemos, vemos entre elles e em parte dos povos de que acima tratàmos, a permanente pratica da cir- cumcisao, assim comò entre os ban-cumbi seguir-se
326 De Angola d contra-^osta
na inhuma^ao dos niortos nm processo identico ao d'aquelles.
pjsta circumstancia, porém, podera explicar-se, ad- mitindo que os ban-cumbi, por multo proxìmos e em contacto coin elles, tendo de modificar os seus habitos e talvez passado da agricultura si vida pastoni, aJo- ptassem os costumes dos povos coni quem tivessem re- laijoes e sobretudo aquelles que por mnito estninlios mais OS impressiona vani.
Assim foi que, fundidos os ma-tchona coni os dama- ras e dosado o seu sangue com uma boa por^ao do da racja hishmen^ se estabeleceram por toda a regiao de que temos fallado, e, tomando ao principio designa^oes comò aquellas a que jà nos referimos, a saber: ba- qua-naiba, ou ba-qua-naiiiba, descendentes do sol ; ba- qua-numbula, da cliuva; ba-qua-naitunta ou ba-qua- naitunda, da floresta*, etc, modificaram-nas pouco a pouco, substituindo-as pelas das terras que liabitavam, ou por appellativos designando a sua occupa^ào ou modo de ser, taes comò ba-qua-ito, ba-qua-tir, ba-qua- n'gar, ba-qua-niama, ba-qua-vaiija, ba-qua-bicua, etc.
Curioso seria aqui, embora se referisse esse traba- Iho a tribus que ficaram distantes do nosso caminho, acertar com a proveniencia dos dàmaras, os verdadei- ros povos originarios de todas estas tribus.
Apenas Anderson diz alguma cousa, e isso mesmo e pouco para chegar a qualquer conclusao. Oucjamol-o:
«Que OS dàmaras nao residem de longa data no paiz que ora liabitam, e muito de crer, comquanto seja du-
1 Efltes mais earaotcristipamontc hnshmen.
Acerca do negro 327
vidoso o logar d'onde ellea vieram. Apontam alguns para o norte corno patria originai, outros afian^am qne viéram do nordeste, e descendcm de urna arvore qiie denominam m'borambonga, collocada n'um logar cliamado Mar uni *.
«Ora corno elles nao sao agricultores, pois nem termo téem em sua linguagem para designar cercai, e as tribus do norte o sao, é de crer que fossem vindos das terras do nordeste ou leste, onde existem povos pastores.
«Mas, seja corno for, o que parece é que, ha setenta ou oitenta annos, nem um dàmara se achava ao sul do Caóco, mas que por essa epoclia elles invadiram o paiz, habitado por bushmen e hill-dàmaras, sendo os derradeiros naturalmente os aborigenes.
«Os dàmaras formavam uma grande na^So, que mais tarde se desmembrou, subdividindo-se.
«Depois da conquista estenderam-se até ao lago N'gami, quando entjxo os namaqua-hottentote os guer- rearam ajudados por outros do sul, e se tornaram de opprimidos em oppressorcs.»
Mais adiante diz elle ainda:
«A divindade principal dos damaras denomina-se Omuhuru.
«A sua influencia parece residir muito no norte, e difficil seria especificar os seus attributos. Cada tribù tem o seu oninkuni^ com seus supersticiosos habitos
1 Maniru ou malulu paroce-nos o plural do quilulu, desigiia^So bieua de feiti^o (o quUulu-n'aandi), que mais se deve dirigir à arvore feiticeira do que ao logar.
328 De Angola d contru-costa
e costumes, pecuHaridades, etc, e cada urna d'ellas se divide em castas a eandas yy .
Muhiru ou mukuìv^ é um termo muito empregado no interior, sobretudo n'esta regiao, para designar um curso de agua, ou mais correntemente exprimir rio ; e comò uma tal lembran9a para homens que viveni em terra arida e falta de agua deve ser grata, nao admira que elles vissem em qualquer curso de agua um ele- mento de prosperidade, e portanto o deificassem (se isso se póde dizer)!
Mas tambem isto faria lembrar que se téem tal idèa a respeito de um rio, é porque alguma tradÌ9ao correu entre elles de tempos felizes ali passados, implicando a consequente deduc^ao de que originariamente resi- diram nas suas margens.
Qual seria elle, o Cunene?
E mais provavel que assim fosse, que os dàmaras,
* comò viraos, liabitassem a sua margem norte, havendo
d'ali saldo por causas que nao é facil conhecer, mas
muito frequentes ali em consequencia do naturai de-
sejo das tribus pòderosas em dominar junto da agua.
Assim as asser96es de Anderson coincidem de certo modo com as nossas; a idea de terem os dàmaras sido uma grande na^ào, bem comò o seu movimento de leste, tambem encontra n'ellas confirma^ao, e ainda se nota n'elle disposi^ao a acceitar que desde o Ovampo até ba-yeye* todas as tribus centraes tiveram uma proxima proveniencia.
Cooly suppòe que os ba-ycye vieram tambem do ceste.
Àcerca do inegro 329
Em resumo, parte dos povos que deram logar a estas considera9oes sao parentes, e espalliados n'uma Hnha obliqua, que desde o parallelo de 15° na Handa vae até à embocadura do Chobé, representando elementos disperso» de tribus orìginarias, mas sobretudo dàma- ra, hoje cruzados com bushmen e hottentote, que quanto mais para o interior, tanto mais deprimido Ihes tomam o typo.
Estabeleceram-se nos limite» impostos pela gente do Nano, que quanto a nós comprehende bienos, ganguel- las e outros, e se acham estabelecidos nas regioes supe- riores, em posse de terras ferteis e abundantes, que singularmente frizam com a aridez e pobreza das do sul, contrastando tambem no corpo avultado e robus- tez naturai com o rachitismo e fealdade dos habita- dores da Cafima, Cuatir, baixo Cuito, etc.
Remataremos por aqui as considera9oes que nos propozemos sobre assumpto tao obscuro, quanto cu- rioso, convencidos de que, sendo sempre materia diffi- cil explicar satisfactoriamente a proveniencia, causas de transforma9ao, etc, de muitos povos da Africa cen- trai, so poderà conseguir-se isso por uma longa serie de observacjoes e cuidadoso estudo philologico.
Sem embargo, e se o tempo nol-o permittir, volve- remos no volume ii d'està obra a entrar em tao inte- ressante quao espinhoso estudo.
CAPITULO XII
LODACAES E I.AGOAS
Lea oinbrfìR de la nuit oiit fnit pince nu mntin, riiucun (tMt ù son poMte, on ho mot en rhcniiii. Lii terrò «òoho ot duro, oi IVau daii» Io» oniicTo», <)M pasKo «loH ruiriHcaux, <»n franchit do» riviòr*'»; Lrs piods tumX tìiiììH In faiifro ot Ioh frunts niiKuolant», So cuiirbont harasHÓn moum d<>M rayoiiM bnilaiits.
J. ] U- MtfMiiitn- — Vavki.1.0 K Ive!(S. oto.
Aden» Cuito — A csirnc e a morosidadc <l}is inarchas — Os l»a-cuito e os ma-eòa — Plamiras inonotonas e jdicMiomoiiOH d<? iiiira^em — Libatas hicus- tres e tiniidez dos indifroiuis — O bijou africano (» uni tombo inopinado — Artip)8 de alinicntavào v trajo dos ba-cuito — A Adenota Ucheef — Aspla- nnras e a ea^a — 0 Uopo — Uni lionicni jiordido — A ('ol)ra da areia e as florestas do C'onjundiia^Mani-l)unda, trajos, funoraes dos sobas— Um honHMii aliandonado — As nieningitos ccrebro-rachidianas — Omuchito de C^ajindmllo o 08 eloiihantcs — A teiTa do Cubango ao Zanibezo, e as dif- iiculdades do transito — Considoraf^oes amargjis — 0 cyclono de 18 de agosto — Modo de attraliir as gazelbis pelo som — Miiene Quitialia e as l>a-iaiima — Os guias e o alagamento — Critiea posi^^o dos chefes e da earavana entre o artindo da» margcus do Quando — 0 rio ira ao Zamlie- zoV — Coni o apparecimento do milho esqueeem-se as fadigas — C) rio Cu- ti e o trilho commercial do Bi«i — A ba^*ia do Congo e a do Zambeze — Considcra^òcs conscquentes — 0 paiz v park-like.
Deixando atraz a varzea do Cuito, entràmos em ter- reno ligeiramente ondulado, de meio grau talvez de extensSo, onde nem um so riaclio se encontra. E a terra elevada, que separa a bacia d'este rio d'aquella do Cuando, e onde comecja o dominio dos man-bunda.
Depois de muito tempo que a alimentajjào da cara- vana era exclueivamente constituida pela carne. Por esse motivo comeijavamoB a notar entre a gente phe- nomenos estranhos de fraqueza, cuja causa a principio desconheciamos. Jd nSo supportavam as marchas lon- gas e regulares de outr'ora, pois mal partiam do acam- pamento, viam-se-lhe signaes evidentes de fadiga e de cansa90, e eram forfjados frequentemente a arrear as cargas pelo caminho.
334 De Angola d controb-costa
Os vultos esqueleticos dos carregaclores inspiravani eonipaixao tal, qiie iiiio ousavamos insistir para pro- seguirein, e descaiisaiido a niiiido no trajecto de uiiia joruada, viamos tristeniente decorrer o tempo .seni o podermos aprovoitar.
Desde este ponto, o trillio dirige-se a les-nordeste, conservando està direc<;ao até à margeni do Cuando, unico logar onde este e facilmente transponivel. Nas primeiras aldeias (pie attingimos, os lial)itantes raianos receberam-nos desconfiados, por julgarem, segun<lo suppomos, que eram ma-cóa os recemcliegados.
Jà em capitalo anterior fizemos notar ao leitor a desconfian^a d'estes ((pie ao principio julgàmos ma-co- lolos) sereni brancos, caso certo no dizer dos indige- iias, e que vivem para as bandas da confluencia do Cliobe, onde fabricam pannos e facas, inspirando aos ribeirinlios da bacia do Zambeze uni permanente re- ceio.
Tal facto teni for(josanieiite algunia explica(;ào, (jue nós nào aventuràmos, por falta de segiiras indicacjoes para a basear; comtudo aqui fica registada, a fini de que outros a procurem.
Os exploradores sào lioje os Argus sertanejos, e se llies cumpre informar-se do modo de proceder dos in- dividuos estabelecidos no interior, torna-se tambem obrigatorio a exploradores portuguezes fazel-o, nao s(> para alijar suspeitas, destruindo as accusa^oes tantas vezes assacadas aos seus compatriotas, mas para co- liibir (visto serem os que coni mais frequencia là an- dam), no interesse da liumanìdade, scenas repellentes de pilhagem.
Lodaxpes e lagoas 335
0 solo vae seguindo areento, ondulado, denegrido em parte pelas ultimas queimadas, e a sua vegeta9ao consiste apenas em algumas mupandas, tortuosos niu- caratis e n'jangos.
Sopra um vento fresco do sueste, que refrigera os calores do dia. Ao cabo de duas marchas encontràinos o rio Cuma, derradeiro affluente do Cuito.
Transpostas as ultimas collinas que delimitam a sua bacia, alongam-se planuras monotonas a perder de vista, e onde os effeitos da miragem pela manhà nos levavam a crer na existencia de lagoas por toda a parte.
Numerosas libatas de man-bunda se véem, sempre no centro de estacaria, e dispostas de modo a ficarem cercadas de agua, o que Ihes dà o aspecto, observan- do-as a distancia, de grandes monitores coura9ados.
Os naturaes sao timidos ou de nós se arreceiavam, pois nas recentes marchas nem uma mulher logràmos ver, apparecendo no acampamento so os representan- tes do sexo forte.
Abunda a cacja, e n'este logar pela primeira vez tivemos ensejo de observar de perto um gnu * ou bison africano.
Antonio, que safra ao acaso, apertou com um bando d'estes quadrupedes, um dos quaes, tresmalliando-se, veiu passar junto ao acampamento.
Ao vel-o approximar-se, partiu um de nós de arma em punho ao seu encontro; em tao ma bora poréni o
1 Assiinilha-se uo corpo ao giià de que falla Livingstone, Catoplebas Gnu, mas tem as defensas n'uma PO8Ì9S0 inteiramente differente.
336 De Angola d contra-costa
fez, que, escorregando no lameiro do rio, estendeu-se horisontalmente e desfechou a arma na direc9ao do quilombo !
Com gi-ande felicidade encontràmos mantimentos na regiao de que estamos tratando, e embora nao fosse em grande abundancia, sempre mitigou por vezes o fastio da carne.
Muene Caluri, soba ratao de mna tribù de ba-cuito, e cujo retrato apresentàmos, offereceu-nos massango, Penisetum, e mandioca de suas lavras, allegando nao trazer milho por haver pouco na terra.
Tabaco nao possuem, e o sai de Quitengue é urna mistura ennegrecida de chloreto, azotato de soda e outras impurezas, que so a necessidade obriga a apro- veitar.
Larga correia à cinta, pelles, ampia patrona collo- cada posteriormente, e uma faca com o cabo mettido entre o ventre e a correia, a foiba em linha vertical de ponta para cima, eis a suprema distinc9ao na terra.
0 uso das transinhas é commum.
Foi por estes plainos, e sempre proximo de lagoas ou regioes alagadÌ9as, que demos vista de um antilope elegante, à feÌ9ao do j^piceros melampus ou m'palla, cujos chifres téem a graciosa curva d'aquelles da quis- sema, cor amarello torrado, peito e barriga brancos, vivendo em bandos numerosos; julgàmos ser o mesmo que a Adenota léchee.
Extremamente timidos, fogem rapidos comò o vento ao mais pequeno ruido, acompanhando as femeas, que, desprovidas de hastes, pulam ligeiras em seu segui- mento.
Lodaqaes e lagoas 337
E um quadro interessante e pittoresco ver milhares de elegantes animaes cobrindo inteiramente urna cam- pina e abaiando agitados ao menor rumor. Quem pela primeira vez corno nós os observar, nSo deixarà de sentir urna admira^So naturai, considerando a super- abundancia de vida espalhada n'aquelles logares.
Por estas extensas planuras cobertas de fina relva, verdadeiro paraizo de herbivoros, encontram elles muitas especies do seu normal sustento, por isso ahi divagam em grande numero, podendo qualquer via- jante certificar-se d'este facto, pela observa<jao da» milhares de pegadas que existem sobre o solo, circum- stancia ponderosa que tambem denuncia a proximida- de da agua.
338 De Angola d conira-^osta
Nas margens do Lomba estivemos durante urna bora boquiabcrtos, tao grande era a abundancia e va- riedade de aniniaes que perante nós se agitavam.
Consistiam eni zebras, que a galope coni as peque- nas crias se collocam a distancia em observa^ao; bi- sons, que se ditferencjam pelo ennegrecido vulto e pelos vagarosos niovimentos; eapadjis; graciosas cabras dos pantanos, que assobiam muito caracteristicamente, e cujo correr intervallado por saltos, em que levantam as ancas similliando o movimento do conce, impressiona de prompto o viajante; e outros animaes de que nào nos recordàmos.
Que esplendido campo para urna excursao cynege- tica, conio essas feitas no sul do Zambeze, de que nos falla Livingstone sob a designacjào de Itojìo^ e que con- siste ii'uina colossal annadilha em fórma de V, tendo no vertice urna estreita passagem adiante da qual um precipicio recolhe os animaes acossados pelas correrias dos negros!
No rio Conjumbia perdeu a ex})edi(^*ao mais um lio- mem, que, soffrendo de epylepsia, caiu no fogo, ficando em estado deploravel. O mais notavel, porém, foi que preparava a ceia coni um companlieiro, e ao succe- der-lhe similhante fatalidade, este, contem})lando por momentos o infeliz que estrebucliava, ergueu-se alfim serenamente, pegou da arma e parti u })ara junto de outro grupo, seni se lembrar de prevenir ninguem.
Tirilia feitiqo do fogo, foi a resposta do imbecil ao inquiril-o sobre a causa da sua desliumanidade!
Sào frequentes aqui as cobras brancas chamadas da areia, tomandp-se necessaria toda a cautela ao fazer
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Lodaqaes e lagoas 339
o acampamento. Havendo-a observado com attencjao, achàmos ser identica àquella nossa conliecida de Mos- samedes no oeste.
0 aspecto do paiz modificàra-se, parecendo até aqui feito por quarteiroea, que se repetiam com enfadonha constancia, pois deixava-se urna encosta, vestida de mupandas, mumóes, n'jaiigos e mucaratis para entrar em intensissima anhara de capim, e logo n'outra zona arborisada, a que se seguia nova anhara, para volver a caminho coberto por densa floresta.
Achàmo-nos proxinios do limite das terras dos man- bunda, que por este lado acaba no rio Cuchó.
Pelo geral estes povos, de que em breve nos vamos afastar, nao sao inferiores aos amboellas, e se em seu todo ha o quer que seja de asselvajado, concorre para isso o modo corno se adornam e penteam.
Pelles de cobra enroladas ao pescoso, d'onde pen- dem dentes e garras de leao; grossas trancjas dispersas na cabe^a em todos os sentidos, dando-lhes por vezes aspecto de medusas; enorme faca à cintura e uma cau- da de gnii pendente do lado, nao podem formar um conjuncto que os tome attrahentes.
Pobres em extremo, vivem divididos sob a direc^ao de secùlos, isolados nas matas e margens dos rios, ali- mentando-se de massango. Nao possuem gados, mas' ca^am com frequencia o elephante.
As mulheres sao mais feias que as suas congcneres amboellas.
Tendo morrido ha pouco um soba d'està terra, ouvi- mos narrar scenas, pelas quaes concluimos serem elles mu'ito deshumanos.
340 De Angola d contra-<osta
Contava-se que, quando este adoeceu, se tratou de inquirir a causa da molestia, e liavendo-se numerosos quimbandas empregado na operacjào, chegaram ao co- nliecimento de que o espirito de um certo fulano, que o regulo mandàra matar eia tempos remotos, era, pelo seu constante sobresalto, a verdadeira causa de taes perturba9oes.
Mortas algumas cabras e aspergido com o sangue o logar onde habitava, conseguiu-se urna comò que sus- pensao de hostilidades ; breve porém, exasperado, voi- tou o espirìto a carga, nao liavendo cabras e gallinlias que, enchendo o estomago dos quimbandas, apaziguas- sem as formidaveis iras.
0 remedio unico foi passar o soba para melhor exis- tencia, e enterral-o, para o que se faz uma grande cova no recinto da residencia do defunto, e juntando fazen- das, estrangulam-se duas pobres creancjas, uma de cada sexo, para Ihe servirem no outro mimdo o cachimbo e o tabaco ; envolvidos depois com elle nas fazendas, um pela frente e a outra por traz, là vao para a cova, que nunca é coberta de terra.
0 que se tornou notavel, porém, foi que inquirindo sobre o desagradavel cheiro que na libata haviam de exhalar os cadaveres em putrefaccjao, so cobertos de fa- zendas, fetido que sem duvida devia incommodar os habitantes, obtivemos a seguinte laconica resposta:
(f A libata e terra e d'elle, està no seu direito de chei- rar mal!»
Muene Mungamba, o soba da localidade, tendo de- clarado que as margens do Cucio eram por tal fórma lodosas que seria impossivel transpol-as sem indica-
Loda^aes e lagoas 341
9S0, decidiu-ae vir em pessoa (depois de avultado pre- sente, é claro), mostrar-nos a passagem mais conve- niente.
Nada mais foi preciso para que, apenas traneposto o rio, nos atolassemos todos, gente e gado, sendo ne-
cessario puxar com corda a um e um os boÌs totalmente eniodados!
Abandonàmos n'este logar um oiitro homem, por incapaz de caminhar.
342 De Angola d contro-costa
Foi por està epoclia que comecjou a apparecer, conio se disse, urna doencja terrivel, que mais tarde havia de arremessar muita gente para o sepulcliro.
Come9ava por uns syniptomas de cansacjo, a que logo se seguia magreza esqiieletica, ligeiros tremores e tendencia para a abstrac(;ao.
Cliegados que eram ao acampamento os atacados, sentavam-se e, indifferentes a tudo, ali passavam mui- tas lioras absortos.
Primeiro comiam, depois era-llies isso difficil, a fa- diga crescia, augmentavam os tremores nervosos, a posicjao vertical tomava-se intoleravel, sobrevinham dejecijoes alvinas, logo suores frios, e no curto espaijo de ciuco ou seis dias succumbiam!
Diverso foi o tratamento que Ihes fizemos, mas a tudo resistia a terrivel doenija, que por vezes se mani- festava, momentos antes da moi-te, por uma desorga- nisaijào nervosa, que levava o individuo a ver os obje- ctos, e querendo d'elles apoderar-se, errar o sitio onde estavam.
Attribuimos este estado de cousas a uma sorte de meningite cerebro-rachidiana, que teria a sua origeni na insola^ào, na fadiga, mau alimento e sobretudo no habito de muitas das victimas trazerem a carga com frequencia à cabecja, a ponto de llies tirar o cabello, em vez de a levarem alternadamente nos honibros para mellior descanso.
Para alem do Cucio, o plateau alonga-se mais plano e monotono, sem a menor depressao, corno um mar de areia resplandecente sob a accjao do sol, algumas vezes coberto de rasteiros capins, d'onde emergiam
Lodaqaes e lagoas 343
ai-vores nodosas e enncgrecidas pelo fumo das recentes queimadas.
Proximo do rio Donerà Aljenofue entràmos em co- lossal floresta, deserta, souibria e enorme, cujo aspe- cto fazia frio, ape.sar do intenso calor que nos darde- java.
Era o miicldto de Cajimballe, selvagem, bravio, pri- mitivo, cujo amago emmaranhado nos suscitou, quando espraiàmos a vista por meio d'esses troncos, tetricos pensamentos de fraqueza e isolamento.
So o elephante consegue abrir passagem por entre esses macissos arvoredos e espessos matagaes, e ali vive isolado dos plainos que o circumdam, zombando dos esfor^os do liomem, que nào se atreve a transpor OS seus limites.
Pela tarde saimos d'elle, seguindo as pégadas de dois elepliantes, e viemos aeampar junto de imi rio.
Deixando as florestas, entramos em planuras alaga- das, onde serpeavam alguns riaclios, cobertas de in- tenso capim, e n'um ou outro ponto de houquets de pe- quenas arvores.
Aconteceu niuitas vezes tomarmos de um salto ba- nlios involuntarios, embora fossem constantes as pre- cau^oes.
Por nuiis attento (pie se caminlie, guiando cuidado- samente o boi-cavallo .sobre o taj)ete extenso de relva, a travessia das margens lodosas dos rios e sempre perigosa, pois onde a agua e mais baixa e o terreno parece nuiis duro, o animai, atolando-se de subito, projecta o cavalleiro, após um salto de acrobata, de costas em piena lama!
344 De Angola d controrcosta
Póde imaginar-se quào penoso deveria ser o traba- Iho de desatolar um cavalleiro, em solo escorregadlo, debaixo de sol tropical.
Um vento de les-sueste soprou rigissinio durante o dia 18 de agosto*, e similhando o simoun cobriu a atmospbera de poeira e cinza. Grossos cumulos ao mesmo tempo appareceram dos quadrantes meridio- naes, e pela primeira vez, depois de quatro mezes, nos achàmos à sombra de uma nuvem.
As difficuldades encontradas pela expedicjao em todo o trajecto desde o Cubango até este ponto, foram taes, que de fórma alguma convem deixar de aqui no- tar a impossibilidade de poder de futuro, em similhante facha de terra, tra9ar-se caminbo commercial entre costas.
A zona plana que se comprehende entre o Cubango e o Zambeze, e que o Lobale delimita pelo norte, fi- cando pelo sul o Chobe, parece-nos de todo o ponto impropria, se nao quasi impossivel, em parte do anno, de ser cruzada de leste a oeste, com carregadores ou animaes de qualquer genero.
0 viajante que a ella se aventurar conte com mezes de dissabor, no meio de embara^os de todo o genero; e se, caminhando vagaroso, o surprehenderem as aguas, fique na certeza que, embora longe do Zambeze, po- derà muito bem deixar com a ossada a unica marca da sua passagem ali!
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J E facto curioso e digno de notar-se, que a 20 de agosto de 1878 encontrou o major Serpa Pinto no Ninda, a leste d'este logar, um pheno- meno em tudo similhante ao que citàmos.
Lodo/^obes e lagoas 345
Nao é facil descrever com precisào, sem enfastiar o leitor, as tremendas difficuldades que devem deparar- se a quem a esta9ao pluviosa ahi surprehender.
Na compaiihia de numerosa comitiva, oppresso pela fome que por toda essa terra reina, circumdado de agua nas planuras, ou entre loda9ae8 na proximidade dos rios, envolto nas gramineas, batido pelas chuvas e ven- tos da quadra das trovoadas, immerso emfim n'uma atmosphera pestilencial, sem um palmo de terreno en- xuto para abrigo, quem em tal jneio estivesse, deve- ria considerar-se feliz, se conseguisse escapar a tao estranho curso de contratempos.
PEIXE DO RIO CONJUMBIA
Nós — que tudo haviamos calculado para transpor està regiao na melhor quadra, e, levando ca9adores e bois, lamos de certo modo prevenidos contra o maior dos perigos, a fome, — ainda hoje recordàmos com terror essa travessia angustiosa, onde cada jomada nos deixou uma decep9ao, e cada anoitecer uma que- bra de animo.
Ah! scenas d'estas experimentam-se, nao se julgam, e quando o auctor insiste em descrevel-as, obtem comò recompensa quasi sempre um inopinado cerrar de pal- pebras, preambulo de gostoso somno!
Depois o isolamento, a separa9ao dos seres civilisa- dos é comò um a90Ìte que traz a campo tetricos pen-
346 De Angola d controncosta
samentos, e com elles vem o desanimo pouco de fei^ao con a audacia de qiie fatalmente deve achar-se reves- tido quem joga a taes emprezas. Ha milita gente que diz nao existir mais aborrecida solidao do que a das grandes cidades, e similliante asserto so póde ter ori- gem no fiicto de nunca se liaverem achado n'uma zona toda deserta do grande continente africano.
Na monotona Africa, nem os mesmos ollios podem muitas vezes alliviar o espirito do triste considerar, tao invariavel 6 o que nos cerca; e no aborrecimento profundo que envolve a mente comò um véu, apenas a dor consegue rasgar de longe em longe pequenis- sima fenda por onde a luz da realidade penetra, fe- rindo o intellecto.
N'esta terra de tedio, à medida que o corpo enfra- quece, o pensar, tendo na robustez d'este a garantia, vae por grada^oes fraquejando tambem, e, alterada a necessaria coordena9ao de seu vibrar, modifica as imagens e no^oes que nós temos de tudo, por urna maneira singularissima.
Perde-se ou esquece-se, ao cabo de tanta injuria, o amor à vida, desprende-se de nós a nocjao da propria conserva9ao, porque là abandonados olvida-se o seu proprio valor; a par d'isto afiguram-se-nos ridiculos OS mais nobres sentimentos, e, duvidando por fini do successo da empreza em que nos acliamos empenlia- dos, cremo-nos illudidos, por todos ludibriados, con- siderando com màglia n'aquillo que antes liouveramos de fazer.
A montmiania suicida aclia aqiii elementos para se aggravar, e aquelle que iiifelizmente d'ella se possuir,
Loda^aes e lagoas 347
com facilidade toparà argumento convincente para llie dar execu9ao.
Agoitados pelo cyclone, percorremos rapidos corno a imagina^ao, pelas reflexoes expendidas; e atraves- sando a direito a extensa pianura, entràmos em outra floresta tambem deserta.
N'essa especie de labyrintho teve a expedi^ao quc deter-se largo tempo, a firn de metter em frente ho- niens qiie de machado em punho abrissem uma vereda a caravana.
Antonio, incansavel perseguidor de quanto antilope pastava em socego, nao se detinlia, e no desespero de OS nao encontrar ao alcance da espingarda, preferia o partido de attraliil-os.
Assim, momentos depois de termos alcan9ado a orla orientai da mata, quando, estirados à sombra de um arvore, fumavamos em comprido cacliimbo, contem- plando reflexivos o céu africano, um estranilo som nos chegou aos ouvidos, fazendo lembrar uma gazella, que, transviada, procurasse a mae.
Nao mediou muito tempo sem que uma denota9ao se ouvisse e o clamor dos nossos evidenciasse presa re- cente.
Dirigindo-nos para o logar da ac9ao, vimos uma ga- zella, que Antonio acabava de traÌ9oeiramente ludi- briar e ferir, e que, mirando-nos com seus grandes e . ternos ollios, no supremo arranco da agonia, parecia lan9ar-nos uma derradeira censura por tao torpe pro- ceder.
Simples tubo de cannÌ90 fendido de um lado, para dar entrada a peda90 de foiba de qualquer arvore, eia
348 De Angola d controncosta
o instriimento de que Antonio se servia para attrahir esses timidos animaes.
Em seguida a urna marcha da floresta entràmos fé- lizmente nos dominios e residencia de Muene Quìtìaba, regulo de urna tribù ba-iauma, que assim se chamam 08 povos ribeirinlios do Quando, apesar de confundidos pelo norte com os amboellas, de quem se distinguem no uso dos comprimentos, acompanhados de ruidosas palmas, conforme o costume d'estes.
DiflPerindo no aspecto dos liomens do sul, é, con- forme julgàmos, gente proxima ainda dos ba-uano.
Estavamos abeirados do caudaloso Quando, cujas varzeas alagadas, de 2 milhas por banda, so podem transpor-se na confluencia do Quembo.
Muene Quitiaba, que d'isto nos preveniu, oflPereceu, após um avultado presente, guias para nos conduzi- rem ao ponto de passagem, prestando para isso as suas canoas.
0 disco do sol nascente, rubro, em meio de uma atmosphera cacimbada, encontrou-nos, ao erguer-se, jà em aprestos de partida.
A caminho, e mal nos approximàmos do curso do rio, compreliendemos o traballio que nos estava des- tinado.
De alem a terra eleva-se, e o Cuando, escostando-se a ella, deslisa, mal consentindo A^arzea. Do nosso lado, porém, um len9ol de cannÌ90 se estendia até onde a vista alcancjava, nao permittindo distinguir o limite da margem.
Montando os bois-cavallos, entestàmos sob a direc- 9ào dos guias com a campina, sumindo-nos em breve
Lodaqaes e lagoas 349
por meio do emmaranhado arundo. Pouco a pouco o terreno amollece, logo depois surge a agua, onde os bois patinham. A meia niilha jà dava peloa joelhos ao» auimacs, a tres quartos pelo ventre, mais àvante cobria-lhes os peitos, fazendo nós e ellcs curso no ìrn- mido fluido, rompendo a casto pelo denso cannavial.
Por vezes urna depress5o ou outra obriga os ani- maes a movimentos irregulares, que aniea^am o equi- librio do8 cavalleiros; a agua dd-nos pelos joellios, e, esfriando os menibros inferiores, prosegue vagarosa pelo effeito da osmose sobre a flanella.
O teiTeno 1:iaixa, a agua jà cliega à garupa; de su- bito 08 bois come9ani a nadar, e, desequilibrando os cavalleiros, atiram com elles em sentidos diversos!
350 De Angola d contrd-costa
Uf! iim banho inesperado, a que os guias respon- (lem erguendo os pannos à altura da cabe^a e mos- trando graciosamente diias fiadas de dentes brancos conio o jaspe!
Proseguindo coni agua pelos peitos, fonio» andando na extensao de 2 niilhas, até que, abeirando-nos de unia pequena illia, apenas elevada 2 pahnos acima do nivel, ahi suspendemos, por nos aeliarmos na con- fluencia dos rios.
O Queinbo renne n'este logar as suas aguas às do Cuando, e olhando em redor mal poderianios dizer se estavamos na confluencia ou no nieio de qnalqner d'elles.
Era um mar em volta da caravana, extenso e co- berto de cannic^o, onde o leito do Cuando so se eviden- ciava pelo movimento da agua para o sul.
0 rio propriamente tem agora 70 a 80 metros de largo; na quadra das cliuvas o seu curso deverà ser de 3 millias, ou pouco menos, tomando-se entào so navegavel por caiioas de grande tamanlio.
Extenuados e tiritando, ali passàmos tres etemas horas, assistindo cuidadosos ao transporte do material, d espera a todo o momento de ver abysmar-se para sempre o exito dos nossos esforcjos, confiado aos es- treitos esquifes de que os indigenas se servem.
Depois chegou a vez do transporte do gado, que^ derivando rio abaixo, esteve em perigo de perder-se por nao poderem algiins escalar a encosta fronteii'a, até que alfim se seguiram os tristes chefes, os quaes, ensopados e famintos, transpozeram pelas tres horas d'este memoravel dia o rio Cuando!
Lodaqaes e lagoas 351
Nao podemos rigorosamente concluir se este rio afflile ao Zambeze* ou ao Cliobe; o qiie nos afian^a- ram, porém, os naturaes foi que o Oliando, antes de affluir ao grande rio, estreita para passar debaixo (ou entre?) grandes rochas, e alarga depois até ir desa- guar n'elle.
Para o sul, alongam-se a perder de vista plainos immensos, que nós almejavamos abandonar. Arvorada a bandeira das quinas, acampou em redor a expedi- 9ao n'esse sitio, onde nunca europeu estiverà, e corno tivessemos comprado mantimentos, passou-se a noite em galhofa junto das fogueiras. Uma densa floresta de espinheiros veste as 20 milhas que distam do Cuando ao rio Muesse, que a caravana atravessou sem descan- sar, deixando n'ella o fato e uma parte da pelle.
Encontràmos aqiii millio, de que nos refizemos para as marchas futuras, pois que mais longe nos assegura- ram nao liaver abundancia. 0 massango tende a des- apparecer, porque a fraqueza das terras e tal que nem tabaco dào, produzindo mantimento so nas varzeas dos rios. As diflferen^as de longitude por nós encontradas jà montam a 24 milhas n'este meridiano, levando-nos a crer que grandes diflferen^as existem para o diante.
Abaiando do Muesse cortàmos por meio de terras aridas, ou mal arborisadas para les-nordeste, topando ao cabo de 12 milhas com um rio.
1 De numcrosos aziinuths tomados d'oste logar, segundo a direc^jlo iudicada pelos indigenaS) devia deprehendcr-sc estju* a conflueucia no Zainbeze, e mesmo proximo de Litofe; nào é està, porém, uma iudica9ào que mere^a confian^a.
352 De Angola d controncosta
Era o Cuti, conhecido no Nano por Cussibi.
0 grande trilho commercial do Bié sobre qua estava- mos prolonga-se pelo lado norte do dito rio, para n'esta altura o cortar, dirigindo-se ao valle do Ninda.
Tra<;aram-no assim os bienos por saber a impossi- bilidade em que se achariam, no tempo das aguas, de transpor com cargas o curso alagado do Quando e as varzeas lamacentas do Cuti.
Agora mesmo, no tempo da estiagem, o solo tremia sob OS nossos pés.
Apenas estariamos 3** ao sul de Quioco, e sem embar- go, quao grande era a diiFeren^a entre està terra e aquella onde ora nos achavamos, assim comò entre a regiào drenada pelo Congo e a alagada do Zambeze.
0 Quioco — esse paiz magnifico, coberto de bos- ques, sulcado de limpidos regatos, varrido- por ventos frescos; abundante em ferro, que por toda a parte se encontra em limonite e pepitas, no qual os indigenas trabalham com muita habilidade; com uma flora que sustenta milhoes de republicas de abelhas, origem da principal riqueza do paiz, a cera e o mei; cujos habi- tantes, altos e esbeltos, nos haviam recebido aiFavel- mente — era aqui substituido por uma campina rasa, alagada, triste, onde os liomens suspeitosos nada ti- nham que nos ofi*erecer, e a natureza, comò zombando d'aquelles para quem a comida e a aguardente consti- tuia o tliema unico dos seus pensamentos e sonlios, Ihes mostra invejaveis volumes de carne, sobre as rapidas pemas das zebras e gazellas.
Existe ainda hoje no vulgo, e mesmo entre pessoas distinctas, que mais ou menos conhecem a Africa por
Lodaqaes e lagoas 353
d'ella ouvirem fallar, a idèa de que é em grande parte constituida por um paiz plaino, arido, areioso e mono- tono, onde o viajante, escorrendo sob um sol abraza- dor, se afadiga a marchar em terreno movedÌ90.
E està idèa, quando apurada para comparar com as descripcjoes feitas por muitos viajantes do aspecto das terras por elles percorridas, onde figuram zonas montanbosas, cordilheiras correndo parallelamente aos merìdianos, serras comò Kilimandjaro e o Kenia, con- trasta por tal maneira com ellas, que tem sido em geral condemnada.
Ora é isso que inteiramente se nao póde fazer em rigor, e esses senbores, que desgostosos devem ter fi- cado ao dissipar-se-lbes unia idea querida, que tinbam pliantasiado àcerca das luctas e soffrimentos experi- mentados pelos viajantes em Africa, devem saber que alguma cousa ba com effeito de verdade, pelo menos quanto aos i)lainos e areias, e que é no Lobale onde elles podem dar-se o prazer de encontrar a realisa9ao dos seus pensamentos.
Este enorme continente, de 60.000:000 kilometros quadrados de superficie, guarda cuidadoso um variado menu de paizagem, onde golpes de vista pittorescos se alternam com a decep9ao inopinada de quadros de tristeza, proprios a satisfazer todos os gostos de touris- te, e onde, se è facil encontrar a montanba de impossi- vel accesso, nao menos o é descobrir a pianura, que esteril umas vezes, alagada outras, confirma as idèas citadas.
Foi por estas rasoes que a bacia do alto Zambeze muito nos impressionou ao descer das vertentes dos
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354 De Angola d contra-costa
plateaus do oeste, e quc n'essa terra sem pedras (no dizer dos nossos conipanliciros) todos os soflPrimentos augmentarani.
Paiz de franzina vegetaijào a principio, toma-se para aleni do Cuti, conio 6 de uso inodemamente dizer, Ijark'like.
CAPITITLO XlìI
NO VALLE DE BAROTZE
Lobnlo, is a land of inorasse^ and dangerous boga in which ini-nutiouH wiiyfarers ofteu perifth.
cooLEY. — Inner Africa La'td open.
A Ina de agosto e os iiossos reciùos — Idra gcral sobro a distril)uivao das oliuvas iia Africa tropical do sul — O doud-ring o o scii movimento para o meio dia — Kctardaiiiciito na marclui pelo oriento — 0 limite sul e as quatro estavòo» — As marchas do Cuti e Muene Lionze — 0» acampa- mentos de Silva Porto — O.^ man-bunda e o elcpliante — Curiosidades — 0 Ninda e unui sepultura — Aspecto pittoresco do valle — 0 òco e o seu aroma — A caya e um obito Perda de eomiianlieiro — Gnu, cabra e n*caca — 0 sileucio da noite — C'alungo-lungo e os luinas — Typo d'oste», e pouca importancia das entrevistas africanas — 0 paiz é um pai'que ; abun- dancia dos aninuies n'elle — Os càos e seu prestimo na ca^*a do gnu — 0 alagamento crescente da terra — Ausencia do tabaco e preaenva da pal- meira — Guia fejticeiro e adivinlmvào inesperada — Os ba-nliengo ladròes — Muene Munda e os seus dotes physicos — Um capote de intestinos de elepbante — A uuisica e um baile de doze lioras — Impressilo {U'oduzida pela» beldades da terra nos auctores d'estas linlias — A caga e a quadra da creac^'ào — 0 acampamento pela noite — Multiplicam-sc as lagoas — A cxpediySo emfim attinge o Zambeze.
A Ina nova de agosto passdra sem chuva e 08 nos- B08 receios (liminuìram, pela certeza de, pelo menos, termos mais um mez de estìagem por aquellas terras; circumstancia està de alta ìmportancia na execmjao do nosso plano, pois, desejando cortar n'uraa dìagonal do Cuando para a conflucncia do Lungué-Bungo com o Liambae, pensavamos (caso nos surprehendesse) fi- car envolvìdos no Lobale em melo de lagoas e panta- no8, que talvez inhibiasem a caravana de proseguir.
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E il final eram j)recii)itados os nossos receios, loiige ainda vinlia a quadra em que fariam o seu appareci- mento.
Doseonhecendo a epocha eni quo principiani as tro- voadas por aqiiella regiao, ou niellior, faltando-nos so- bre isso infornia^oes exactas, andavam nossas suspei- tas à revelia, e, aggravando-se agora pela lembran^a da immobilidade, traziam-nos em constante sobresalto, à espera das primeiras tenqjestades n'iima epocha em que nunca ali se realisani.
Poucos sao ainda lioje os logares em Africa onde se tenliam feito exactas observa(;oes sobre està ordem de plienomenos. Ila apenas indicios vagos aqui e alem, provenientes do traballio de viajantes, que, pelo cara- cter de mobilidade de suas missoes, mal podem para determinado ])ont() coordenar d'ellas uma ou duas du- zìas. E por esse motivo e tambein diffieil ao que se aventura pelo interior, corrigir pequenas differen^as nas epocha s mais aproveitaveis para a travessia d'està ou d'aciuella zona.
Achando-nos nas mesmas circumstancias, torna-se impossivel sobre o assumpto e em limitadas linlias lau- dar segura luz ; todavia, podendo a este respeito dizer alguma cousa em face da nossa pratica, e justo que o consigiiemos aqui.
Convem j)rimeiro lembrar que a Africa tropical do sul, cercada ao oeste, leste e meio dia por oceanos que pela evaporacelo llie devem fornecer copiosissimas chuvas, e varrida por ventos que, embora no mar te- nliam uma directriz fixa, comò o sueste do Indico e o su-sudoeste do golfo de Guiné, variam um pouco na
No Valle de Barótze 359
terra firme, coni o movimento do sol entre o equador e o tropico, resultando que aqiielles principios, em vez de seguirem leis geraes e invariaveis comò era de es- perar, se modifiquem as vezes frisantemente e escapem a rigorosa siibordina(;ao (pie tinhamos na idea imi)or- llies.
As chuvas da Africa intertropical do sul regulam pelo movimento pendular da verticalidade do sol so- bre OS diversos pontos do continente, subordinadas ainda ao sopro constante das mon(;6es de um e outro lado. D'estes dois factores combinados, porcm, procede a nosso ver, para a zona nublosa equatorial (cloud- rhì<])y um movimento especialissimo, cuja no^ao ahi fica esbo^ada.
Se, compulsando as narrativas dos viajantes africa- nos, procedessemos a compila(;ao rigorosa, alias in- admissivel nos limites de um capitulo, acliariamos que no Chinclionxo e no Congo comec;a a chuva em princi- pios de setembro; que no Cuango as tivemos emnossa primitiva viagem em fins de agosto; que na costa de Angola come9arani ellas nos primeiros dias do dito mez de setembro; que no Manuyema sao em outubro, beni comò no Bangueolo e nos fins dV*ste mez no alto Zambeze, no Aroangua, e ainda em Zanzibar, para em uovembro apparecerem pela terra que medeia entre o Xyassa e a costa, caindo tambem n'esta mesma qua- dra em Mo^ambicpie.
De tudo isto parece inferir-se que a linlia que de- limita pelo sul (se assim nos e licito exprimir) a faclia nublada da Africa tropico-meridional, e (pie nos me- zes de junlio, jullio e agosto se conserva estacionaria
360 De Angola d controrcosta
& beira do parallelo de 4** sul, so cometa a mover-se com a proximidade do equinocio do outono a cami- nlio do meio dia, nao conservando a perpendiculari- dade ao meridiano, mas inclinando-se e proseguindo parallelamente àquella que vae de Benguella à illia de Zanzibar.
Està direc9ao faz adiantar a parte occidental, do que resulta o caso notado em toda a metade de oeste do continente, se nao na orientai tambem, de virem pelo noroeste as primeiras trovoadas de setembro, cor- roborando um facto assàs conhecido, e que observàmos nas indica9oes dos viajantes, a saber: que para iguaes latitudes n'uma e outra costa da terra africana, as chu- vas apparecem mais tarde a leste do que no oeste, e do mesmo modo a meio do continente ellas se verifi- cam n'uma epocha intermedia ou proxima, onde pre- cisamente a igualdade da declina9ao e latitude marca o come90 das primeiras tempestades, e grandes quédas de agua.
Este retardamento de marcha pelo oriente, segundo vemos, se póde ter origem nos caracteres physicos do continente, nao deixa comtudo de ir buscar uma causa no rumo dos ventos reinantes e sua influencia, encon- trando muito naturai explica^ao no esfor90 opposto do sueste do Indico, que, invadindo a superficie da terra negra, se Ihe oppoe ao caminhar, impellindo-a para o (quadrante do occaso do sol, bem comò na abundancia de vapor que os ventos do sul do Atlantico Ihe enviam de ponto proximo, preparando-lhe ao mesmo tempo a condensa9ao pela baixa da temperatura nas terras ele- vadas.
No Valle de Barótze 361
Entao (lesencadeiam-se os elementos, constituindo a pequena estacjao chuvosa, que segue ininterrupta- mente até come908 de dezembro, e pouco a pouco a facha nublosa, alastrando por toda a parte, desde o occidente até ao oriente, desfaz-se eni catadupas, que a principio sempre trovoadas do noroeste produzem e depois formam pela banda do sueste, d'onde nas gran- des chuvas sopraram constantemente as mais terriveis tempestades.
Nao é facil acertar aqui, nem ha mesmo elementos sufficientes para isso, coni a latitude attingida em seu movimento para o meio dia pela zona nublosa equato- rial atravez do continente, sob a influencia do sol ; tudo leva a crer porém que, ao menos na costa de oeste, ella nao vae muito longe do parallelo austral de 12® ou 13®, pois, conio de sobra està conliecido, as cliuvas sao ir- regulares ou raras pela latitude de Mossamedes, muito para o sul mesmo, e até para o interior no Cubango por 16® e 18®.
Em resumo, póde dizer-se, a fim de terminar sob ponto de vista um pouco generico, porquanto para o oriente as cousas se retardam de algum modo, que, sendo quatro as esta9oes por aqui, duas de estiagem e duas de chuva, se acliam approximadamente distribui- das da seguinte fórma:
1.* Pequena esta9ao das cliuvas, aquella que come- ta com a passagem do sol no zenith, quando este vem do tropico de cancer.
2.* Pequena estacjao de estiagem, a que tem logar quando o astro do dia descreve o tropico de capricor- nio.
3G2 De Angola d contro-costa
3.* Grande estac^iio das chiivas, quc principia com a passageni do sol no zenitli, quando se dirige do tro- pico de capricomio.
4.* Grande esta^ào da secca, a que tem logar quan- do o sol se avizinha do tropico de cancer.
Yj aqui se podenl tambem acrescentar, que, se mais cuidadosamente houveramos meditado todas estas cir- cumstancias, nao so poupariamos o tempo que leva- mos a reflectir n'esse problema de importancia pra- tica, mas teriamos evitado os estranilo» sobresaltos de que fomos victimas, esperando logo em agosto as chu- vas no Zambeze e terras adjacentes.
0 rio Cuti é aproveitado pelos indigenas para a na- vega^ao, vendo-se constantemente numerosas canoas subindo e descendo carregadas de generos e de gente, de proveniencias diversas.
Os ba-iàuma sào habeis marinheiros, assim comò as mulheres, que por vezes observamos de vara na mao, dirigindo as embarcacjoes.
As varzeas d'este curso de agua, enibora seccas e endurecidas pela superficie, acham-se inferiormente n'um tal estado de lodosa consistencia, oscillando sob OS nossos passos, que so conseguimos que o gado trans- pozesse o rio com o auxilio dos indigenas. 0 sobeto da localidade, um d'esses transfugas que, para descredito nosso, se apresentam nao raras vezes comò portu- guezes aos viajantes, intitulava-se Muene Liovze, e era mais nem menos de que um desertor, o onze de qualquer companhia de ca^adores, que, evadin- do-se de Benguella com a propria arma, para ali viera estabelecer-se. Exigia cartuchame Snider com
No Valle de Barótze 363
tal atrevimento, que liouvemos por mellior offerecer- Ihe com urna cabala de jjoinbé na physionomia, a firn de o conter nos limites do respeito que se obstinava em esquecer, lamentando que nao fosse o nosso carni - nlio para a costa de oeste, a firn de o levar de presente à auctoridade.
Allegava em defeza da sua insistencia o facto de llie ter Serpa Finto dado muito cartuchame, do que tambem duvidàmos, por sabermos quanto elle e cioso e economico de similliante genero de artigos, tao ra- ros no mato.
Depois de atravessarnios urna longa floresta, onde a natureza siliciosa do terreno se accentua em tractos de areia, transpozemos o Cliicolui no meio de uma nu- vem de lepidopteros de variegadas cores, encontrando n'este locai uni recente acampamento de Silva Porto. 0 ousado sertanejo devia mez e meio antes ter passado por ali, em viagem do Lui para o Bit'.
Estivemos uni dia todo junto ao rio, em consequen- cia dos esforcjos empregados para o atravessar com o^ gado.
Uma comitiva de man-bunda (ca9adores) appareceu ali, carregada de carne secca de depilante, e pela primeira vez em iiossa vida tivemos occasiao de ver a descoberto os musculos do enorme pachyderme, que em verdade se os liouveramos encontrado dispersos pelo elmo, mais depressa tomariamos por peda(;os de madeira ennegrecida pelo fumo, do que parte inte- grante de (piahpier organismo animai.
Divagavam estes homens havia mezes pelas selvas, comendo mei oii carne, e tao nedios e luzidios se acha
364 De Angola d contro-costa
vam, que comecjàmos soffregos a appetecer essa cho- ruda alimentacjao !
Contaram elles que, tempo antes, um dos seus com- panheiros fora atacado por grande elephante, cujo, col- locando-o cuidadosamente sob urna das patas, o havia reduzìdo ali às tristes propor^oes de enorme pastelao! 0 mais notavel, porém, foi que o cruel proboscida, depois de finda a triste tarefa, nao querendo que o infeliz corresse os perigos talvez da insola9ao, diri- giu-se cauteloso à arvore proxima, e, esgalhando os ramos que Ihe aprouve, cobriu delicadamente os restos informes da victima.
«Sao muito curiosos os elepliantes ! » replicou logo um interlocutor, descrevendo enthusiasmado comò um d'estes animaes, em sua pre8en9a, colhéra um liomem com a tromba, e o entalàra de ventre para o ar, em grosso tronco previamente rachado, abaiando no meio da mais galhofeira alegria!
Que originai! . . .
0 Combulé, rio que adiante deslisa no meio de branca e solta areia, é o divisorio das terras dos ba- iàuma e dos ba-róze, pelos bienos denominados lui- nas.
E deserto aqui o terreno, coberto de matas, onde ha muito mei n'esta quadra, vendo-se por toda a parte gente a chupar nos dedos.
Para attingir as nascentes do Ninda, tivemos de atravessar nova floresta fecliada, em que uma sub- vegetacjao de mupas, agora despidas de folhas, nos fustigava constantemente com as rigidas varas, dei- xando-nos em deploravel estado.
No Valle de Barótze
365
Quando chegàmoa àquelle rio, deparou-ae-nos um eapectaculo commovente, especie de visSo ineaperada em meìo do deserto, que nos levou o espirito a consi- dera9oea de ordem triste,. entibiando-nos o animo por alguns momentos, e recordando-nos corno podem ter- minar as mais arrojadaa emprezas humanaa.
Era a cruz symbolica erguida na cabeceìra de uma modesta scpultura, marcando o logar de descanso de compatriota nosso, que fora victima de mal ferido bu- falo.
O valle do Ninda é extremamente pittoresco e odo- rifero n'esta epocha, pois abunda n'elle uma ai-vore que 08 naturaes cbamam 6co, cujas flores, espalliadas pelo vento, atapetam o solo, rescendeiido d'ellas deli- cioso aroma.
366 De Angola d contrd-costa
Serpeando em larga varzea de capim, na qual se apascentam bufalos, gniis e zebras, ladeado por dois renques de fechada mata, onde o elepliante e o leao se acoutam, o alegre valle, com seu risonho aspecto, desannuviàra tristezas, parecendo levar-nos para a terra da promissao.
Ao acam})ar do primeiro dia demos em terra com urna formosa palanca, Hypp. eqrnnus,, ciijo desenho apresentàmos.
Sepultiimos ahi uma pequenita qiie morreu ao nas- cer, succumbindo taiiibeni na segiinda marcila um car- regador àqnella sorte de meningite de que jà tivemos ensejo de fallar.
Continuando a caravana em perseguitilo da ca^a, cairam um gnii e uma cabra de agua, bem comò uma especie de tartaruga, Emìjdes? e um n'caca, Manis tnìi- mincld.
Continuam as matas desertas, dominio so de ele- phantes, macacos, liyenas e girafas, de que julgàmos ter visto pégadas.
Silencio se})ulchral envolve pela noite a extensa zona, onde vagueiam cautelosos e esfaimados todos esses haljitadores dos bosques em procura de alimen- to. Apenas de quando em quando o pio dq desconhe- cida ave nocturna, com dois assobios e um trilo final, quebra o profimdo socego d'estas solidoes, a que por vezes respondem os gritos do malarico, ao elevar-se estremunhado da margem do rio, })rovando seni du- vida que algum quadrupede se approximàra da agua. O vento abrandou, e apenas comò lenitivo d'este som- brio quadro, se nao para entristecer com penosas re-
No Valle de Barótze 367
cordacjoes, tudo branqueia de prata a brilliante lua de agosto.
Luctam de esfor90s o silencio e a solidao, e ein- quanto a sombra da meia noite de pc e aprumada no ponto mais distante do dia caminlia pela superficie da terra à cata de uma luz que jamais logrq, encontrar, a imaginacjao assombreada por tetricos pensamentos assalta o inquieto espirito, revolve-o, escurecendo-o tambem.
E nós, erguendo-nos, niiravanios em volta os vultos tisnados dos nossos companheiros de infortunio, e ao vel-os pacificamente adormecidos, tendo apenas no cre- pitar das fogueiras uma l)arreira as famintas guelas que de longe os appetecem, reflectiamos na miseria da nossa situa9ao, para depois, contemplando o astro da noite, dirigirmos pungente saudade para a distancia ainda a percorrer.
0 trillio e feito ao longo do rio; a caravana, anciosa por cliegar ao Zambeze, caminlia rapida por elle.
Nem um ser humano se encontrou em todo o traje- cto do Ninda, a nao ser na proximidade da confluen- cia coni o Nliengo, onde vimos as primeiras liabita- 9oes.
Muene Calungo-lungo era regulo n'esses sitios, cu- jos povoadores nos pareceram um mixto de man-bun- da e barótze, de mais feia catadura que os encontra- dos até ali, differindo muito os seus comprimentos, feitos n'um aperto reciproco das duas maos, dos que usam OS ba-iàuma, que se limitam a um })unhado de terra arremettido ao peito, a que se seguem palmas compassadas.
368 De Angola d contro-costa
Pela tarde passou uni bando de luinas pelo nosso campo, coni as suas pelles ao liombro, penteados de tran^as coni contarla» e pennas, inanìllias de cobre, longas zagaias de niadeira e ponta de ferro, amplos escudos, lembrando os dos landin», cor esciira, aspe- cto robusto, o todo enifini attraliente. Embora nasci- dos e creados em regiào plana e pantanosa, onde, por varia» vezes tenios dito, o liomeni deve fatalmente soffrer pela influencia miasmatica, perdendo em vigor a sua constitui^So pliysica e inental pelo envenena- mento palustre; os que observàmos constituiam urna perfeita excep^ao.
Viam-se liomens vellios e niocjos, e em nenhuns d'elles notdmos essa pallidez, depressilo corporea, ru- gas e tra9os de prematura velliice, que formam o facies typico das organisacjoes arruinadas; ao contrario, via- mol-os todos robustos, denotando excepcional audacia e decisao.
Calungo-lungo visitou-nos; abstemo-nos de descre- ver essa scena, porque as entrevistas africanas téem tal similhancja, que a Listoria de uma basta para toda a vida de liomem curioso.
Sempre o mesnio quadro!
E ainda 6 tao ridicula a gravidade d'esses encon- tros, que às vezes o mais absurdo incidente quebra de modo pueril ; sao tao stultas as ceremonias e iiiter- minaveis os speeches, em que os negi-os, propensos para OS circumloquios, exibeni a sua altiloquencia em esti- radas ora^oes, tratando em geral de todos os assum- ptos, menos d'aquelle para cujo fini se reuniram, que estremecemos coni a idea de ter agora de as explicar,
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cansados, corno estamos das vezes que fomos constran- gidos a supportal-as.
Aguardemos a nossa chegada à Garanganja, onde o leitor ficarà ao facto do que se passa n'essas aborre- cidas visitas.
Partindo de Cubango-lungo, dèmos ingresso nova- mente n'uma zona deserta, e, passada uma noite junto ao rio Colombeu, deixàmos no dia immediato o trilho commercial do Genji, 3 millias adiante d'aquelle rio, seguindo ao nordeste pela immensa campina, que, aqui comò em parte alguma, se assimilila a um longo par- que.
Diffidi nos 6 agora caminhar desembara9ados, por causa dos numerosos desvios a que constantemente obriga a busca da ca9a. Em roda da caravana saltam OS gniis, as zebras e antilopes em tal quantidade, que a multo custo conseguimos ficar indifferentes. As pe- ripecias succedem-se. Aqui Antonio dà em terra com elegante Adenota lechee, e perseguindo uma récua de zebras, fere duas, emquanto da parte opposta lun de nós vara grande gnii, e o outro, exasperado, solta al- luviao de impreca9oes por Ihe ter a arma feito chap quando deu ao gatillio!
Os caes prestam excellente servÌ90, sendo conve- niente a sua companhia a todos os viajantes n'estas paragens, sobretudo para a ca9a e perseguÌ9ao do ultimo dos bichos citados.
Quando ouve o latido do cao junto a si, este animai,
embora levado pela mais vertiginosa das carreiras,
suspende, e virando-se para elle, esfor9a-se em ata-
cal-o, esquecendo a presen9a do ca9ador, que em taes
ti
2f70 De Angola d contro-costa
circumstancias póde perfeitamente atirar-lhe à queima roupa.
Com frequencia tivemos occasiao de assistir a sce- nas d'estas, e raras vezes, quando era pequena a dis- tancia que nos separava, deixou Antonio de abater um dos ditos quadrupedes.
0 terreno toma-se progressivamente alagadi90, an- dando a caravana em marcila por agua desde a mar- gem direita do Lia-Mu cussi, onde se enloda a cada passo. Junto a este rio encontràmos umas miseraveis senzallas de ba-nhengo, que, ao avistarem-nos, abala- ram. As mulheres sobretudo, ao presentir-nos, fugiam, parecendo uma nuvem de passaros, so deixando si- gnaes da sua presen9a pelas pégadas no movedicjo la- ma^al.
O solo é tao pouco proprio para a cultura, que se veem os naturaes na necessidade de cavar grandes vallas em volta do recinto da plantacjao, accumulando a terra na altura de 50 centimetros, para que a semen- te nao apodre^a mergulhada n'agua. Apenas produz o Pinisetum e nunca o tabaco, que nao se encontra d'està banda do valle do Zambeze, onde por contraste comecjàmos a notar desde o Ninda numerosas Hyphce- nes e uma palmeira rasteira, sorte de Rapida, dispersa pela campina. Por causa da fraqueza da terra que duas ou tres sementeiras seguidas deixam extenuada, sao OS indigenas obrigados a mudar com frequencia o logar das suas habita^oes, procurando no solo virgem a riqueza de que precisam.
Dois man-bunda, um dos quaes é feiticeiro, nos ser- vem de guias por meio d'esses atoleiros, até à libata
No Valle de Barófze 371
(lo regulo Muene Munda; o nosso gaia entrega-se a sortilegios, passando longas horas da noite em eiican- tamentos e adivinha9oes com a sua caba9a de artigos a isso apropriados.
N'um logar cliamado Quiiila deu-se com elle certo caso que nos deixou vexados aos olhos dos nossos, ar- reigando-se ainda urna vez em seu espirito a idea de que OS ngangas possuem o segredo de poder adivinhar.
Eis o facto.
Quando proseguiamos por meio das planuras, pas- sando proximos de planta(;oes ou senzallas desertas de ba-nhengo, avisou-nos ao segundo dia o 7i ganga, de que urgia tornar toda a cautela com os povoadores, porque, sendo pelo geral liostis, comò quasi todos os ba-lobale, eram sobretudo e muito especialmente con- sunmiados ladroes!
Està declara^ao na bòca de um preto do mato nao nos mereceu grande confian^a, pois o gentio, por andar sempre fugido, parecia extremamente timido, e pouco disposto a qualquer tentativa audaciosa.
Desprezando assim as suas indica^oes, alvitràmos- Ihe um outro modo de ganliar a vida, pela improficui- dade d'aquelle; recommenda9ao que ouviu attento, e depois afastou-se para o mato, procedendo de cabala na mao a outras adivinha^oes, às quaes de longe as- sistiamos, quando por vezes nos davamos ao trabalho de observal-o.
Approximava-se o sol do horisonte,- e tinliamos aca- bado de jantar, quando o nosso Lomem de novo se apresentou, encontrando-nos entao em mellior dispo- siijào que de manha.
372 De Angola d ccmtra-costa
Vinha satisfeito e com ar de quem decidlra questào importante, após as profundas locubra9oes a que se entregsira.
Chamado o interprete Fedro, rapaz da nossa comi- tiva, acocoraram-se os dois, come^ando o n ganga a fal- lar. A complicada oraijao prolongou-se por um bom quarto de liora.
— Entao, que disse elle? inquirimos nós a Fedro, esperando alguma revela9ao estupenda.
— For ora, respondeu este muito fleugmaticamente, ainda nào disse nada!
Escusado sera descrever aqui o nosso espanto pe- rante similliante facto, que so julgavamos apanagio dos tribunos da velha Europa, e, silenciosos, esperà- mos se dignasse proferir alguma cousa. Entao?
Tornando a tornar a palavra, arengou longo tem- po o quer que fosse. Fedro nos explicou ser urna es- pecie de fabula, relativa a scenas passadas entre cor- pulento depilante que se nao arreceàra das amea9as de um grupo de ìnssonde (formigas guerreiras), as quaes, colhendo-o a dormir pela noite, se Ihe enfiaram pela tromba, levando o animai no desespero a suicidar-se, batendo com ella pelas arvores.
Additou outra, concernente à entrada dos ratos pela noite nos celleiros, etc, que, por mal interpretada, fi- càmos sem comprehender o que elle desejava e se nos eram applicaveis similhantes narrativas, até que dis- postos a deixar de escutal-o, famos levantar a sessao, quando o mysterioso interlocutor se decidiu por fini a explicar-se.
No Valle de Barótze 373
Queria primeiro que tudo quatro jardas de fazenda, corno pagamento do servÌ90 que se propunha fazer- 1109 ; logo depois de recebidas, declarou que acabava de adivinhar que dentro de limitadissuno e8pa9o, quan- do multo de dois sóes, serìanios infalHvelniente rou- bados pelos naturaes da terra onde estavamos.
Atii aqui nSo offerece origìnalìdade a bistoria, nem credito deviani valer as indicaQSes do negro; o certo, porém, é que n'essa noite àa duas boras eramos effe- ctivamente roubados, Bendo para lamentar que elle n'gaTiya nào tivesse aproveitado para si a parte que Ihe cabia da rcvelafjao, pois foi tambem umadas vi- ctinias, perdendo o proprio macbado!
374 De Angola d contro-costa
Introduzìndo-se de subito no acampamento, os ba- nhengo furtaram-nos urna arma, urna espada, os pan- nos de um homem e o niachado; caso estupendo, e quo jamais em nossa viagem se toniou a repetir, pois nSo ousam OS indigcnas penetrar nos acampamentos pela noite, fìcando os nossos convencidos que nada ha corno um uijawja para adivinhar, sendo tambem certo nao haver quem conio elle fìque tao tranquillo quando o expoliam!
Proseguindo em cynegetica excursao canìinhava a comitiva desi^reoccupada das tenebrosas idéas da fonie elitre alluvioes de antilojies, esperando a todo o mo- mento soborear a carne que por todos os lados se of- ferecia comò estimulo appetitoso, até que cheg^mos a habita^'ao de Muene Munda, sobeto man-bunda, que outr'ora residiu em Colombeu, d'onde se retirou por serem fracas e pouco productivas as terras que llic circumdavam a aldeia:
Muene Munda e em extremo feio. Physicamente des- favorecido pela natureza, possue, entre varios defeitos que o tornam repellente, uma bronchite chronica, coni a qual anda em permanente lucta, e que o leva a in- terromper a conversa^ao com repetidos ataques de tosse!
— Ja vos esperava, disse-nos elle radiante de ale- gria e dispersando perdigotos em todos os sentidos; ao mesmo tempo contemplava os nossos fardos de fa- zenda e o seu originai capote de hitestino de depilante surrado e batido, com ar de quem pensava que emfim se la emancipar da suja companhia do sordido manto, curioso sobretudo pelos numerosos exemplares d'essa
No Valle de Barótze 375
fauna minuscula e cosmopolita, que se apostou em ser companlieira do liomem, logo que esque9a ou desco- nlie^a a liygienica necessidade da ablucjao!
As mulheres d'està aldeia gostam muito da musica, mas principalmente da dansa. Possuem um talento es- tranilo na apreciacjao da liarmonia, executando córos com proficiencia notavel, e sobretudo desusada ex- tensao.
Os seus instrumentos musicaes sao em absoluto ru- dimentares, reduzindo-se a marimba e tambor, mas OS treclios de canto agradaveis e suaves, inspirando, quando ouvidos pelo socego da noite, uma emo9ao, a que estavamos longe de nos suppor accessiveis no amago dos sertoes africanos.
No furioso afan com que se entregam aos exerci- cios choreograpliicos, excedem })orém toda a expecta- tiva.
Pelas sete horas da noite deram ingresso no acam- pamento as beldades da terra, para dansar em nossa lionra, e às sete e meia os prìmeiros iiifos annuncia- ram o come9o da scena, em vasto circulo junto das tendas.
Os tra^os geraes das mulheres d'ali nao imprimem repulsa, e o seu aspecto, embora isento de encantos e pouco digno de aturada contemplacjao, perturba a paz dos sentidos, quando vivifìcado pelas fórmas da joven- tude !
Ao vel-as menear-se com donaire ao compasso das palmas e do canto, lan9ando por momentos para os brancos um olliar de maravilliada e suspeitosa 9uriosi- dade, os tristes auctores d'estas linhas, acocorados
376 De Angola d contra-costa
junto das tend^s, esqueceram por mais de urna vez o rumo a que Ihe fica va Mocjambìque!
Pelas sete e mela, dissemos nós, come^ou a dansa, a qual so concluiu às sete da manhà.
Durante doze horas conseciitìvas cantaram e dan- saram essas filhas de Eva, com o intuito de dar urna prova da sua alta consideracjao pelas nossas humildes pessoas, prova que, por demasiado extensa, nao po- démos acolher acordados, mas a que nem por isso fomos menos sensiveis depois, reflectindo na pertina- cia e resistencia que é mister para supportar urna noite inteira de tal exercicio.
Traduzido o nosso reconhecimento em len<jos de cores e contarias às gentis da terra, envolvemos o catarrho de Muene Munda n'um panno, promettendo- Ihe que na volta seriamos mais generosos, e tomando de novo o caminho das campinas alagadas, deixàniol-o pavonear-se entre os seus.
Por meio dos canni^aes tivemos durante o dia de fazer as mais estranhas voltas, para tornear os gran- des alagamentos que cobriam a superficie do solo, to- mando por vezes banhos involuntarios; e atolando-nos aqui para mais adiante nos levantarmos, fomos assim dirigindo a nossa comitiva pelas tristes terras dos ba- lobale.
Junto à lagoa Lissale-ia-Muringa vimos abundancia de cacja, fazendo-se larga colheita de varios animaes, figurando entre elles duas formosas zebras, que foram acto continuo devoradas.
E està a quadra da crea^ao, principalmente para gnus, palancas e outros antilopes, andando as femeas
Ko Vaile de Barótze 377
com OS filhinhos ou proxinio a tel-os, de maneira qiie sao ellas quasi sempre as victìmas da persegui- 9ào dos ca^adores.
Quem obser\'asse pela noite n'esse acampamento, illuminados pela luz avermelhada das fogueiras, de- zenas de liomens de facas em punho e de aspecto pa-
tibolar, rodando aa pe^aa de cacja, extrahindo aquì as visceras de urna zebra, e esvasiando-as por movimen- tos de bra^o, à moda de quem mede fitas, esfolando alem um gnii, cuja carcassa pouco a pouco emerge do negro envolucro, disputando entre si a cauda ou as mÈlos, e quasi esfaqueando-se na divisSo da pelle; mais jnlgaria eatar entre cannibaes, do que entre homens ao servilo da causa da sciencia e dirig^dos por euro- peus!
378 De Angola d corUra-costa
Nós mesmos, de ha multo habituados a estas scenas, quando a melo d'este movimento attentavamos nos actos dos nossos companheiros, e eramos testemunhas da ancia selvagem com que estes esbrugavam a apo- physe de um femur, e aquelle devorava sofrego os tendoes agarrados a uma tibia, nao podiamos deixar de reflectir quanto o homem se rebaixa ao nivel da ani- malidade sempre que a falta de recursos o obriga à lucta para alimentar-se ; e quanto o infeliz perde da superioridade, e se apresenta aos olhos do investiga- dor comò o mais vii e despresivel dos irracionaes.
A medida que do Zambeze nos lamos approximan- do, as cousas peoravam.
Nao era jà o simples alagamento do solo n'um ou n'outro ponto, mas lagoas que se alongavam em todos OS rumos da agiilha, e que tinhamos de atravessar com agua pela cintura.
A caravana, oppressa de causalo e sob um sol de queimar, que esses atoleiros recoze, e dos quaes ao me- nor movimento se exlialam gazes envenenadores para as mais robustas organisa9oes, continuou ainda assim para o nordeste, e transpondo lamas, derribando gra- mineas, propunha-se attingir o grande rio na sua con- fluencia com o Lungué-Bungo.
Pouco a pouco, porem, tudo se aggravou, e adiante do Malauca fechou-nos pelo oriente a passagem uma linha de pantanos a come^ar na lagoa Icanhocando, que se tornou impenetravel.
Arquejantes e esbaforidos no meio d'esses matagaes, e dando a Satanaz tao rude trabalho, ora desatolava- mos OS bois, ora tinhamos de safar dois homens enter-
No Valle de Barótze 379
rados com as respectivas cargas, ora inopinadamente, fallando o pé aos bois-caVallos, batiamos com o corpo em clieio iia agua ! D'ahi para diante foi mister cortar ao norte, e volvendo mais longe ao oeste, por se mnl- tiplicarem os embara^os, tivemos que voltar para o sul após dois dias de marcila, e passando de novo por Icanhocando, seguir direitos a Libonta.
De dia para dia se emaranham os matagaes, unem- se OS ribeiros, alastram-se as lagoas, fazendo d'este paiz o labyrintho de mais estranho caracter que temos visto.
Era um martyrio o avanzo de urna milha em tal solo, tao numerosos e repetidos foram os fracassos succedidos, assim corno enfadonlio o procurar cami- nho dir cito.
Ilouve mesmo occasioes em que desesperàmos da empreza de attingir o Zambeze, acreditando que a ex- pedi^ao a nosso cargo nao prose«uiria na linlia itine- raria que projectàra, e ao contrario tinlia de volver ao norte, se nao para a retaguarda, e assim, enfurecidos, desesperados, rodando oppressos pelos lameiros em busca de salda, comò a fera em apertada jaula, per- diamos a no9ao da serenidade, desentranhando-nos em imprecacjoes.
No rio Loanguinga, estirada e ennegrecida faxa de agua, que deslisando n'um leito lodoso, intransitavel, draina as regioes superiores do Lobale e que de subito se nos atravessou no caminho, estivemos a ponto de perder a rasao em face de tanto obstaculo.
Parecia que a lama, o capim, as contrariedades dos nossos e a perfidia gentilica se haviam coUigado trai-
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^oeiramente para nos derrotar o animo e impedir a passagem.
Foi aqui que recebemos os primeiros emissarios de Luanhica, o chefe maior do Genji, com que o major Serpa Finto estiverà em viagem para o Natal, e de sua parte nos vinliam convidar a que o visitassemos em Lialui.
Aquelles mesmos que encontràmos, tinham conhe- cido e fallado com o nosso compatriota, cujo porte e trajo descreviam.
Tal visita, porém, so podia ser feita por canoas no lo- gar em que estavamos, e nSo tendo os indigenas as suf- ficientes para conduzir Loanguinga abaixo toda a co- mitiva a nosso cargo, declinàmos similhante con vite, enviando ao regulo os nossos emboras.
E extremamente abundante o peixe no Valle de Ba- róze, tendo nós occasiào de ver e provar o Mugil afri- canus, o Glanis sUuris, o Clarion capensis e outros cujos nomes nSo nos occorrem n'este momento.
Do solo tambem pouco podémos dizer, tao diffidi era o seu estudo e principalmente a conserva9ao de qualquer exemplar. Pareceu-nos porém ser constituido inferiormente por um sandstohe em desaggrego, co- berto de um tuff ou quer que seja de caracter alluvial, semeado de uma sorte de conglomerados ferruginosos, alternando com tractos de areia mais ou menos longos.
E pobre, corno jà mais de luna vez o dissemos, de todo improprio para as culturas que carecem cuidado, e a nossos olhos incapaz de mellior amento.
Apenas produz uma colheita, urgindo depois aban- donal-o à influencia dos depositos da quadra pluviosa.
No Valle de Barótze 381
Transposto o Luanguinga, após as mais enfadonhas scenas, entestàmos com a linha de leste, atufando-nos de novo nos lameiros e pantanos.
Os carregadores mais possantes haviam quebrado nos ultimos tempos, e na lucta do transporte de um pesado volume e do constante esfor90 de se desenter- rarem, caiam por terra, abafados pela fadiga.
Urgia suspender ou procurar terra onde as circum- stancias fossem outras, alias em pouco tudo se perde- ria.
Fazendo urna ultima diligencia avan9àmo8.
A 11 de setembro, pelo meio dia, deu a expedÌQao vista do Zambeze, e, soltando um huìrak de alegria. acampou na sua margoni.
^1 1-1
F.
I
CAPITULO XIV
LIBOXTA
. . . mas fui infomindo quo era parte algnina està regiào é oaudavcl. Quando as aguas come^aiu a re- tirar (lo vallo, tae8 e tamanhaa s&o a8 massas vege- tilo» eni (UH'oinpOMÌv&o, e expostaa a um torrido sol, quo 08 iudigeuas soffrein de febre.
liiviNdSTOKE — Mi»9Ìonary travd*.
Territorios atravossados e outros a percorrer — O qiie liavia para aloin do Zambczc — A iiossa curiosidade e o que se pensa sobre a Africa — O que é a final o interior do continente — As planuras zambezeanas — A verdadc sobre cllas — I)itHcul(hides,ventos e temperatura — E urna d'essas regiOes de que falbi Stanley e onde Livingstone pereceu — Contraste com- pensjidor nas scenas de caya — Opiuiòes de Livingstone e uossos juizos autecipados — Aliundancia de antilopes e ohopo — l^ibouta — Avcgcta^ao ao tempo d'aquelle viajante e agora — Seu aspecto — A teiTa em redor — Mucobessa e os babitadorcs do Geuji — Seus trajos e porte das mulheres — Uso immoderado do rapè e o lenyo dos luinas — Profundo abatimento jiliysico da gente da expedi^ao — Dia 13 de setembro — As moscas de Libonta — Ca^»ada jIs rollas — Ornitbologia do Zambeze — Considerayoes geraes sobre o valle de Barótze e trilhos que ali eonduzcm.
Os teri-itorios que acabavamoa de atravessar, embora d'elles hou- vesse urna no^ao mais ou menoa vaga, pelas grandes linhae na car- ta tra^adas, nem por isso deixa- h vam de ter iim caracter de novi- dade, de que evitàmos abrir mSo. O curso do Cubango a montante do Bucusso (Mucusao), bem comò o de todo8 OS seus grandes affluen- tes, eatava por visitar, e ainda boje reclama desvelada atten^So.
O aspecto das terras e a natureza do solo das duas margena d'este rio tambem era em grande parte Ìgno- rado, pois viajante algum por là se aventuràra, para poder dizer-nos em livro quanto vira, e apenas Dufour n'uraa correspondencia deu indìca^Ses multo confusas àcerca dos amboellas.
386 De Angola d contro-costa
Urna mancha branca estendia-se no mappa, que o nosso itinerario, cortando pelo meio, de certo modo illuminou agora.
Mas se até aqui era necesario um estudo interes- sante, e n'elle alguma cousa se fez, adianle havia mais e melhor.
Ahi principiava a parte mais seria da nossa viagem de exploracjao atravez do continente africano, assim comò iam ter comedo os soffrimentos da caravana, os quaes até tao longe a tinham de acompanhar, ceifando a vida de tantos dos nossos companheiros.
Para alem do Zambeze estendia-se uma regiao enorme coberta de florestas, onde tudo era novidade, tudo estava por descobrir e fazer; facies que muito naturalmente, comò deve suppor-se, nos attrahia cu- riosos, sem embargo dos receios que os indigenas com suas informa9oes terriveis tinham derramado no ani- mo de todos.
A Africa, verdadeiro nadir da civilisa9ao, quando se considere a Europa comò zenith, continiia a ser o ultimo refugio do maravilhoso e do romanesco. E uma terra estranha, pensa-se geralmente, muito elevada di- zem OS que a conhecem, e comò tal salubre na opiniao dos que julgam saber, pela necessaria invencjao de grandes correntes aereas por essas altitudes; mas in- felizmente cercada de uma zona baixa, onde a mala- ria, a insola9ao e muitas outras causas impedem o seu regular accesso. No centro d'ella presume-se que exis- tem as mais extraordinarias cousas desconhecidas de nós, e^ se nao é completo mysterio, comò nos tempos de Herodoto e de Plinio, esse vasto territorio, ora se-
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meado de serranias, ora divìdido por extensos e areno- sos valles, conserva pontos fora do alcance da inves- tiga9ao.
Qiiem se nao recorda ainda do homem cynocephalo do primeiro dos historiadores acima alludìdos, dos in- dividuos com cauda, dos navegadores do oriente, de quem Gastelnau nos falla, corno muitos outros, refe- rindo-se espantados a essa peculiaridade organica, que a tradicjao conservava; do unlcornio fabuloso que os primitivos colonos liollandezes do sul viram, e no secu- lo XVI osnossos compatriotas testemunharam a existen- cia, aggravando a originai dcscoberta com um movi- mento especial da defensa; de milliares, emfìm, de outras crea^oes da liumana concep^ao, que càem sem- pre no absurdo?
Ninguem, certamente; e a verdade é que no meio de tao interessantes e attrahentes casos, faz pena que appare^am os singelos pioneiros da epocha actual, e largando o bordao para calcar a hi va, e, acto succes- sivo, descalcjando està para pegar da penna, venham com dois rabiscos dissipar tao phantasiosas idéas, var- rer com as illusSes desde o unicomio fabuloso, até as serranias tremendas, cujas cabe9as branqueadas pelas neves perpetuas contrastavam com os pés immerso» nas areias ardentes!
Lamentàmos, e mais somos do officio, pela dupla rasao de que, se tal existisse, seria mais vasto o campo que teriamos a explorar em nossas narrativas, e por havermos sido victimas da mais cruel das desillusoes no mesmo cora9ào da Africa, quando nos preparava- mos para ver e notar tanta cousa extraordinaria.
388 De Angola d contra-^osta
0 interior do continente nào passa, é certo, de ser em muitos logares, corno todas as regioes centraes das differentes partes do mundo, urna terra na generalidade mais elevada, vegetante e salubre do que o cordao li- toral, tendo là dentro, para mostrar ao viajante, muita cousa que elle de resto póde ver no exterior.
Està é a verdade, e por isso foi triste a impressào, ao abeirarmo-nos do curso do grande Zambeze.
Intenso desanimo experimentàmos ao chegar a essa regiao desolada pelos ardores de um sol de chumbo, onde nem sequer um arbusto nos salvaguardava da sua perniciosa influencia! Bem phantasiavamos nós o rio caudaloso, espadanando por meio de penedias em escumados len^oes, e que trazendo em seu caminho amea^as de destrui^ao e ruina, cavava persistente as rochas e raizes encravadas no argilloso leito; assom- breado o imaginavamos por frondosos arvoredos, nos quaes m'bafus, taculas, mupandas e mutontos erguiam à porfia OS ramos em desafio com a elegante hyphoene e outras plantas dos tropicos, onde a tempestade desfe- riria comò nas cor das de uma harpa numerosas notas tetricas dos seus córos dissonantes, para depois estalar medonha, echoando ao longe nas encostas das serra- nias ; e ao cabo viemos bater em cheio n'um areal, por onde deslisa prateada fita, de quando muito 400 me- tros de largo, tendo nas margens d'aqui e d'alem zonas de 150 metros que nas chuvas o rio cobre, sem mon- tes, sem arvores, sem attractivos emfim.
Era um Zambeze chato, arido de descrever.
Perplexos à sua beira, os auctores da narrativa que vae seguindo, apoz a inspec^ao do barometro, obser-
Ubonta
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vando cuidadosamente quanto os cercava, chegaram a concluir que entre muitas cousas pela Europa aìnda ignoradas, figura a do interior da Africa, e isto pelo simples motivo de que aos viajantes apraz, segando parece, deturpar com muita frequencia as notas sin- gelas que nos seuB diario» devem conter-se,
Porque, em summa, qual é a rasSo de occultarmos a verdade, e pelo contrario esagerar quanto observà- mos, incitando futuros infelizei^ viandantes a que to- mem sobre si a empreza de curtir illusÒes e fa<;am des- eambar para a realidade phantasias mais ou nienos gratas sobre o assumpto?!
Dizer que o valle do Zambeze é urna maravilha de riqueza, um prodigio de scenario, um eden emfim,
390 De Angola d contro-costa
idèa que entao nos dominava comò a miiitos, importa substituir o ludibrio à verdade, pois o valle do grande rio (pelo menos n'este parallelo) é um pantano, verde corno panno de bilhar, menos liso do que este, depri- mido, triste, cercado de urna atmospliera de estufa!
Aquelle que de là se abeirar, depois de transpor terras altas e arejadas, ha de fatalmente sentir7se do- minado pela mesma impressao desagradavel que nós experimentàmos, imaginando-se comò que submerso no fundo de uma ravina, d'onde anceia por sair.
E ainda està bacia, lavrada em cliào plano, nao e isenta de obstaculos. Escondida nos grossos e bastos capins que por toda a banda a cobrem, cheias de la- goas e atoleiros, que os espinhos e altas gramineas guardam cuidadosos, impedindo todo o trilho regular, offerece-se ao que viaja comò um vasto campo, onde a cada momento se perde offegante, sem mira ou ponto de referencia que sirva de guia.
Os ventos, de uma variabilidade extrema, augmen- tam as difficuldades pelas alternativas de calmas e ven- davaes, que na epocha pluviosa devem ser grande em- bara9o n'esta terra, onde tudo causa e aborrece.
0 tliermometro sobe com frequencia e extraordina- riamente, comò se póde ver das temperaturas observa- das, de fórma que no meio dos espessos macissos das gramineas, sobre o terreno molhado e balofo, em piena calma, nós abafavamos, nao sabendo a que recorrer para nos refrigerar.
E uma d'essas regioes liumidas, perigosas, indesori- ptiveis, onde, os viajantes atormentados pela tempera- tura e humidade de um lado, e pelos reptis e insectos
Libonta 391
do outro, enfraquecidos quasi sempre pela febre após dias de lucta, soflrem cruelmente, e do que, se téem a felicidade de éscapar, se lembrarao com horror!
Muitos, no curso das suas aventurosas expedicjoes, d'ellas fallam, e alfim ahi veiu tambem Livingstone a succumbir, enterrado durante semanas na margem sul do Bangueolo.
Os animaes ferozes pareceu-nos nao se arriscarem muito pelo Lobale, difficilmente trilhavel para aquelles de maior vulto, sem embargo de nos dizer o dito explo- rador que ao tempo da sua passagem muitos leoes an- davam de roda de Libonta.
Em compensa9ao nunca em paiz algum estivemos tao ricos de ca9a conio n'este, porque a Africa dooeste, e sobretudo o norte de Angola, sao pobres a este res- peito, tendo pouco ou nada visto em nossa primeira viagem.
Parece mesmo que muito de proposito o acaso nos preparou scenas maravilhosas, para que, presencian- do-as, nos penitenciassemos das primitivas idéas.
Foi aqui que vimos primeiro o Ant. Caama de que damos desenho.
Effectivamente quando em outro tempo nos veiu à mao o livro de Livingstone, traduzido e illustrado no j ornai francez o Tour du monde, impressionaram-nos de todo o ponto as gravuras relativas a ca9adas.
As armadilhas gigantes de que o explorador inglez falla no Zambeze, as hecatonibes estupendas de nao sei quantos animaes caidos n'ellas, pareceram aos nossos olhos tao exageradas, que (sinceramente aqui confes- sàmos) nao soffremos deixal-as passar sem as ter con-
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demnado corno devaneio, pelo menos, do artista que fizera os desenhos!
Assim, empoleirados em nossos alias pretenciosos conhecimentos sobre cousas de Africa, estranhàmos o que dizia o dito explorador, com a aggravante de ter consentido que taes gravuras salssem à luz, sem sus- peitarmos que poucos annos depois teriamos de cor- roborar quanto elle dissera, assistindo a scenas simi- Ihantes e em circumstancias que so a cegueira poderia oppor-se à nossa inteira convic^ao.
E na verdade, podemol-o exprimir, é estupendo!
Toda a terra que pelo oeste do Zambeze se estende até às margens do Cubango, e para o norte constitue na epocha pluviosa a alagada e nào transitavel pianura de Lobale é, corno dissemos, pela sua especial natu- reza, magnificas pastagens, desembara9ados horison- tes, etc, procurada por quantos lierbivoros as flores- tas distantes acoutaram em suas densas ramagens.
Similhando um immenso jardim corno que batido e relvado por mao de liomem, esse à primeira vista attrahente paiz completa tal illusào, por ser semeado de numerosas placas de terra, que por mais altas dei- xam vegetar arvores e plantas diversas, afigurando com exactidao os irregulares canteiros de um parque inglez.
Pelos fins do mez de agosto, n^forqa da sécca, comò dizem os cacjadores portuguezes, é, ao que nos parece, a epocha mais favoravel para as excursoes venatorias, pois que na das chuvas so se fossem feitas em canòas. Ahi chegàmos cheios de fome, e bem dispostos a dizi- mar n'esses infelizes antilopes, cuja existencia està su-
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jeita a urna constante lucta para escapar dos perigos que OS amea^am.
Foi com effeito aqui que assistimos à maior diver- sao cynegetica de que temos memoria, matando deze- nas d'esses timidos quadrupedes, nao proseguindo na ardua tarefa, por'nos faltarem litteralmente as for^as, sobretudo a Antonio, que andava desorientado.
A todo o momento achavamo-nos entre nuvens de animaes, que, debandando em varias direc^oes, nos deixavam estupefactos, comò que presos de urna mys- tifica9ao.
Os indigenas, conscios d'este precioso recurso, de- dicam-se com afan aos cynegeticos devaneios, e pre- parando em epochas proprias essas formidaveis arma- dilhas jà citadas sob a designa^ao de ìwpo, apanham em verdadeiras hecatombes duzias de infelizes e timo- ratos antilopes.
Nao se nos proporcionou ensejo de assistir a algu- ma d'estas extraordinarias scenas, que devem ter para o recemchegado muito interesse, assimilhando-se tal- vez ao que em nossa primeira viagem testemunhàmos no Quioco.
Estavamos acampados junto a Libonta, ultima po- voa9ao dos ma-cololo ao tempo da passagem de Li- vingstone, e hoje habitada por uma popula9ao mixta de ba-lui e ma-róze, sob a direc9ao de Mucobessa, vas- sallo de Luanhica, soba do Genji.
A julgar pelo que o viajante inglez diz d'este sitio, deve ter progredido muito desde a morte das duas viuvas de Sebituane, assim comò variou de aspecto o terreno e a natureza em redor.
394 De Angola d controH^osta
«Libonta, diz-nos elle, està collocada em iim oiiteiro* conio o resto das aldeias do valle de Barótze; e só- mente n'este as zonas cobertas de arvoredo se appro- ximam aqui mais da inargem do rio.»
Ora corno os bosques desappareceram na regiao em que se aclia estabelecida, é de crer que no citàdo lapso de tempo fossem as florestas derribadas pelos indige- nas da localidade, do que resulta serpear o Zambeze ali entre terras cujo aspecto jà descrevemos, onde so vegeta a marianga.
Vista em distancia pela banda do noroeste, qua- drante d'onde primeiro a observàmos, tem està povoa- 9ao unia apparencia originai e mesmo imponente, que contrasta com a aridez das terras em que assenta.
Sobre a eminencia que, a distancia de 1,5 milha, acompanlia o curso do rio, ergue-se, ou melhor empo- leira-se, a populosa villa, que jà trasborda na planicie.
ErÌ9ada de centenas de agudas cupulas de colmo, amea9ando os ares com as suae vivas arestas, similha, quando vista de longe, estampada no limpido azul dos céus, o extenso cerro cuja pouco resistente estructura liouvesse cedido ao lavor prolongado das chuvas dos tropicos.
A meio levanta-se isolada, comò que para escarne- cer dos capins circumvizinhos, lima unica ai-vore, um espinheiro, esguio, debru9ado para o nascente, pare-»
1 As villas o aldeias no valle de Barótze sao por toda a parte estabe- lecidas em morros e ccrros. Por vezes sào estes artificiacs, corno aconte- ceu coni a que outr'ora Santuru edifieou ao sul de Naliele, antiga capital do districto.
Lìbonta 395
cendo espreitar o curso do rio, qiie o observador ve marcado na pianura por tortuosa fita de alvacenta areia.
Em roda estiria-se adormecida a campina em ineio da calma, coberta por um céu anilado, e cortando-se ao longe em circulo bem definido comò de horisonte maritimo.
Pelo dia tudo convida ao somno, e emquanto o rei da crea9ao dentro da cubata deixa descuidado correr as horas, sacudindo na ociosidade as moscas importu- nas, OS antilopes retiram, o crocodilo na varzea amos- tra o aspero lombo ao sol, espreitando com toda a sua paciencia a preza que d'elle se abeira pouco cautelosa, ò hyppopotamo emerge a miudo bufando, as aves e OS insectos percorrem azafamados o ar e a praia em busca de alimento.
Ilhas se destacam pela face do rio, cujo desnivela- mento no tempo das chuvas vae 1"*,5 do nivel actual, drainando todas as aguas da enorme pianura do no- roeste.
Libonta tem um chefe supremo, comò dissemos, que se denomina Mucobessa, sorte de mytho, a suppor pelas contradictorias informa9oe8 que nos foram fomecidas sobre o seu modo de existir e àcerca do logar onde ao presente liabita.
A verdade é que nunca o podemos ver, apesar de dois dias o esperarmos.
Os liabitadores luinas ou ba-genji, pelo geral altos, esbeltos, usam pelles ou pannos; sendo que as primei- ras muito compridas os cobrem elegantemente, amar- radas com garbo em redor do pe8C090.
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As damas podem dizer-se galantes, trajam coni gosto, corno se ve pelo desenho, usando quasi sempre pelles de boi preto.
Ostentam-se assàs senhoris, e parece pelo seu ar que a metade mais forte nào propoe e dispoe d'ellas, corno de resto é de uso em muitos logares do sertào africano.
SSo vivas, e a final, à guisa do que é frequente, em jovens diveHem-se ; em adultas pervertem-se, às vezes; em velhas, eu sei. . . convertem-se , talvez!
Os ba-genji fazem uso immoderado do rapè, tendo suspensa do pesco90 uma pequena espatula de ferro, que à laia de len90 empregam na limpeza do labio su- perior.
Dois dias nos demoràmos ali, alentados pela espe- ran^a de comprar mantimento que nos chegasse para longe; mas foi frustrada, attenta a carestia e a falta d'elle.
Desde a partida do Cunene, nSo logràmos comprar um dia de farinha para toda a gente, havendo vivido, comò fica dito, da ca^a e do gado, que comnosco trans- portavamos, mercé de Deus, recurso sem o qual teria- mos certamente succumbido.
Acresce nao ser està a alimenta9ao mais conveniente a quem trabalha com ardor, notando-se portanto em todos profundo abatimento physico. Nós mesmo nao escapémos a elle, e se é verdade que à for9a de riscos e soffrimentos temos vivido no meio de tantos obsta- culos, com a indifferenza bemfazeja que constitue o apanagio de quem a miudo affronta o perigo, nem por isso deixavamos de estar apprehensivos sobre a futura
Lihonta
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sorte, em frente da ardua empreza que nos propunlia- mos.
Eis o que se encontra corno remate nas paginas derradeiras do nosso diario:
A 13 de setembro dispozemo-nos a transpor o Zam- beze, cortando por tal fórma na perpendicular a der- rota do velho Livingstone para Lobale.
Tendo-se porém levantado vento rijo, as ondas que- bravam com tal furia na praia, que so pelas trea ho- ras póde comefjar a faina.
Foi, porém, vantajosa essa delonga, attenta a diffi- culdade em conseguir que os naturaes nos coadju- vassem com as suas rapidas pìrogas, auxilio que so prestaram depois de agu^ada a cubica por um bom
398 De Angola d contror-costa
pagamento, e mediante ainda dois ou tres disciirsos suasorios.
Assim n'uma liora estava a expedÌ9ao portugueza dirigida por Capello e Ivens do outro lado do Liam- bae, tendo terminado a primeira parte de sua viagem para o oriente.
Se a animalidade de grande vulto està milito espa- lliada por toda està terra, comò jà notàmos, nao me- nos abundante é a mìnuscula, esvoacjando aos milhoes pelos ares moscas e mosquitos, o que julgàmos devido aos amplos pantanos que marginam o rio.
Emquanto estivemos em Libonta tomou-se um mar- tyrio a presen9a dos dypteros no acampamento. Era impossivel socegar um instante, e dentro da tenda ou fora, escorrendo agua a temperatura elevada, achava- mo-nos sempre cobertos d'elles.
Importunos e vorazes, atiravam-se acima de tudo, cobrindo cargas e barracas comò um negro sudario, nao ousando pessoa alguma saf r de sua casa, sem mu- nir-se com pennacho feito de cauda de boi ou de gnii, que constantemente precisava agitar.
A ornithologia tem aqui largo estudo para .fazer, pois sao numerosissimas as especies de aves que ha- bitam por estas terras.
So nas margena do rio existem aquellas por muitas dezenas.
N'um pequenissimo espinheiro, junto ao nosso cam- po, ponto escolhido pelas rolas para descanso da noi- te, matàmos duas duzias na primeira tarde.
Os indigenas jamais atiram às aves, so as perse- guem nos ninhos ou nas armadilhas, de maneira que
Libonta 399
OS innocentes animaes, nao se arreceiando dos tiros, eram victimas de todas as descargas.
Ao longo do Liambae véem-se pelicanos ibis, n'esta epocha pouco frequentes, patos pretos, outros mergii- lliadores, gaivotins, bicos de tesoura, com a mandibula inferior meia pollegada mais longa, urna especie de pequena garcja de bico curvo para cima, Recurvirostra avocetta, a Parrà afrìcana, ma9aricos, passeando à su- perficie da agua, e quantas aves um tao importante lenQol com seus alagamentos póde attrahir.
Em terra percorrem os ares as rolas cinzentas, os pombos verdes, as nduas de typos diversos, os Textor erythr. e a ardetta, Herodias huhulcus, que pousam nds bois e nos elephantes, e aiiida outras aves, comò o passaro do mei C. indicatola o ferreiro, ou campainha, Pluvianus armatiis, o passaro que espreita, Charadrius canincula, ave originai, cuja curiosidade attrahe as at- ten9oes do viajante, a quem elle acompanha de ramo em ramo ; e ainda a Numida melegrés, e muitos outros.
Libonta é necessariamente insalubre. Collocada no fundo da depressao onde corre o Zambeze, a pequena altitude, cercada de pantanos pela frente e por detraz, deve ser nociva à saude dos europeus.
Pela pouca riqueza do solo extremamente silicioso, abundancia de pantanos, temperatura exagerada, pe- quena elevacjao, etc, este districto da Africa centrai, onde ainda de subito apparece a tzé-tzé, està condem- nado a um permanente abandono por parte dos euro- peus.
Ninguem n'elle pensarà, porque nao se presta a cousa alguma, so escolhendo-o, quando multo, comò
400 De Angola d contra-costa
terra de passagem para alcan^ar os sertSes orientaes. Em parte nenhuma, corno aqui, o viajante que partir de qualquer das costas encontrarà embara908, sobre- tudo se for pesada a sua caravana e levar animaes de carga.
Do Bié, OS trilhos para attingir o valle sào indubi- tavelmente aquelles de Silva Porto ; o logar para trans- por o Quando, este onde nós o cortàmos. Nao pense ninguem em se aventurar, sobretudo na quadra das chuvas, mais para o meio dia ao longo d'elle; encon- trarà aponas ahi obstaculos sempre crescentes; nSo imagine qualquer buscar variantes para um lado ou outro, porque sera fatalmente victima dos seus atre- ' vidos devaneios.
Cuatir, Luatuta, Longa e Cuito serao caminhos tanto peiores, quanto mais proximos do Zambeze se fizerem, e que nem mesmo para os ba-vico darSo facil accesso ; assim comò é justo avisar, que nao pensem os viageiros do sul vir do N'gami ou de outro qualquer ponto com carros ao longo d'esses rios, porque os perderao entra OS loda^aes dos parallelos de 15° e 18®; ou para es- capar serao for(;ados a retroceder.
0 terreno movedi9o, marginando sempre os rios, e estes correndo uns sobre os outros, formam uma rede complicada, cujos cruzamentos é impossivel evitar. Mais aqui ou mais alem aquelle que transita encontra uma confluencia, d'onde sàe so ao cabo de innumeras fadigas.
0 mesmo caminho do Bié para o Mucusso, ao longo do Cubango, unico trilhavel em boas circumstancias, come9a a modificar-se do Dirico e Sambio em diante,
Lihonta 401
vindo nas plamiras de Sulatebele, onde derivam as grandes mollolas do sul, a alagar-se por modo tal, que é perigoso aventurar-se n'elle.
— Nós, disseram-nos uns rapazes viajantes do Bie, na primeira excursao, prosegiiimos urna vez do Mu- ciisso para o sul, no intuito de tentar negocio com os ba-cóca e outros povos que habitam aquellas terras, e conseguir orientar-nos sobre a bifurcacjao do rio, que nos diziam ser em Sulatebele ou Clmlatebele. A medida porém que avan9avamos, as cousas oflFereciam peior aspecto, e após oito ou dez dias de viagem, tivemos de suspender, emmaranhados entre a mananr/a e o mahu, que tudo cobria, e os numerosos bra^os de agua que recortavam a terra em todos os sentidos. Era um immenso loda^al, que provavelmente na epocha das chuvas ^ iJa de tornar n^im lago.
Estas indica9oes, que nós reputàmos verdadeiras, confirmam as nossas suspeitas quanto ao valle de Ba- rótze, e podem aproveitar àquelles que, propondo-se seguir por estas paragens, se derem ao incommodo de ler as presentes linlias.
E deixando aos mais ousados o verificar se sim ou nao (3 exacto aquillo que assertàmos, abalemos à aven- tura, dando gra^as à Providencia por nos ter consen- tido sair illesos d'essa terra de triste recorda9ao.
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CAPITULO XV
DE LIBONTA AO CABOMPO
Programma de viagem — A nossa aatisfavào e o susto quc dominava OS Ciirrcgadorcs — Rasoes d'esse facto — Melos de querer impedil-o — O Liambae e o Caiiibae — Os ma-róze, haliitavòes e trajo — Deeep^òes e roubos curioHOS — luopinada notieia sobre o appareeimento da mosca — Palaucas, lécbces e uni leào — A Hyphfvnt vcntrì'cosa e o papi/ìnis — En- contro coni a tzé-tzc — Duas quisseinas, uni Felix j ubata e um songo — De novo na floresta, vantagens do appareeimento d'està — Os ataques do leào e as nossas ordeijs por tal motivo — Nos limites do estado da Lunda — 0 Muata lanvo e o seu prestigio — A liberdadc do negro e duas eonsi- dera^òcs a respeito d'eHe — A maior das vietimas, a mulher — Afasta- mento d'està de todos os iiegfxùos e reeep9Òes, e coiidiyào social do sel- vagem de hoje — Mantimentos à farta e satisfaQÌlo eonsequentc — 0 typo ca-runda e o ca-rózc — Informa9oes sobre o Cabomjio e effeito das pala- vras de Muene Cliilembi — Os mangoia e o reccio da mosca — Pretensa© inesperada de uni bando de salteadores — Um dilemma para ponderar — Tentativa de fuga de um carregador e o rio Cabonipo.
Colie luul OS
o» preparati- V08 de Jorna- da e depoi«< dt havemios sof- frido coni iii- crìvel pacicn- cia as centra- -•".'•^'b» «.m»!..
riedadus e vexames que acompanliam sempre a par- tida de grande caravana de qualqiier povoa93o impor- tante, eis-n08 a 14 de setembro a caniiiilio do norte ao longo do Liaiiibae.
0 1108S0 programma de viagem fora feito junto a este rio, e, depois de discutido termo a termo, adopta- do definitivamente. Ba8eava.-se elle na eseollia de uni itinerario que, atravessando pelo meio aa zonaa bran- queadas da carta, ligast^e os mercados ccntraes mais
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importantes, accommodando-se tanto quanto possivel a resolver se o Cabompo era ou nào o Zambeze, se acaso derivava do laji^o Bahgueolo^ e podesse ao mes- mo tempo interpretar as relacjoes daa bacias liydrogra- pliicas do Zaire e o dito rio. Escnnado sera considerar sobre o que a carta mostra coni evidencia, bem corno dizer que a linha de Libonta ao lago Moero era aquella que, prplongada para o nascente, resolveria por in- teiro o problema.
Assim, ao partir do Liambae, a expedi^ao- portu- gueza destinava-se a transpor as florestas do nor- deste, e, visitando o Musiri e o Cazembe, tornear o Bangueolo, para depois seguir por Ulalla a caminho de Mo^ambique.
Grande era a alegria que nos animava por essas chaìias alagadas, afóra a idea dos problemas que breve se nos podiam deparar; mas, se liavia exagero em a nossa satisfacjao, tremendo era o receio e o susto de (piem nos acompanbava.
Internados no amago do continente, esses homens que apenas conheciam Angola, e quando muito ti- nham ouvido ftillar dos ma-quioco, consideravam-se envolvidos na mais estupenda das emprezas, olhando- nos conio uns loucos a correr a morte certa! Vaofos rumores corriam entre a caravana sobre os nossos in- tuitos, cliegando a afiancjar-se (|ue procuravamos cami- nho para Portugal por melo das matas africanas, nao deixando os mais imaginosos de acrescentar de sua casa liistorias sol)re os obstaculos que nos esperavani.
Erara cannibaes a cortar-nos o caminho, anoes de cabe^as disformes que nos aterrorizariam, desertos
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sem agua a percorrer, feras, cobras a debellar, emfim sofiFrimentos, cujo remate seria a fome e a morte!
Comprebende-se facilmente quanto melindrosa era està conjunctura, nao dando nós, apesar de interessa- dos, o valor de uma carga de missanga pelo exito do trabalbo. A diivida pungente assoberbava-nos a inter- vallos o animo, sumindo no tedio a satisfaxjao que nos animàra ao relembrar descobertas e estudos scientificos pelos sertoes; e corno o espectador retardatario, apoz um quadro final de gloria em magica de vulto, trope- (ja, ao tenue brilho dos ultimos lumes, com os bancos, remirando triste o panno que o separa da attrahente visao, nós, escurecida a alegria das conquistas neces- sarias para a sciencia, pelo subito fenecer da esperan- 9a, topavamos irritados nos receios dos nossos compa- nheiros, conio barreira que nos separava dos sonlios de cada instante.
— Sabem ou nao sabem para onde se dirigem? Dizia um mais atilado. Se sabem, porque o occultam? Se ignoram, para que proseguem?
E nós, calando as explosoes communicativas, con- servavamo-nos n'um silencio impertinente, que os tra- zia na mais completa perplexidade.
0 negro tem uma antipatica especial ou mesmo desconfian9a por tudo que desconhece, e no receio de se perder, assim comò no desejo de conjurar o perigo, procura esclarecer-se, ou entao fugir.
Regularmente conhecedores d'està circumstancia, tremiamos a todo o instante pelo desfecbo, e redobran- do de vigilancia, pensavamos no modo de evital-o. Dansava-se pela noite, apesar das miserias que nos
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rodeavam, e isso porque o ordenavamos; comprava-se quanto poinbé apparecia, abatiain-se bois, distribuia-se fazenda aos mais ladinos; mas, apenas passada qual- quer d'estas distrac96es, recafa o acampamento no te- trico silencio do costmne.
Era lima caravana de crentes ao approximar-se re- lif^osa da Caaba!
0 Liaml)ae divide-se, na regiao em que nos achà- mos, n'um bra^o formidavel denominado Cambae, que entra no grande rio, logo a jusante de Libonta, margi- nado ao nascente por grandes lagoas e pantanos.
Nas ondulacjoes da terra à direita ficavam as ca- banas dos ma-róze, pescadores na maior parte e per- feitos marinlieiros. Em suas longas piroga», munidos sempre de fisga e zagaia, operam j)ro(Hgios de evolu- ^iio e rapidez, deixando-nos maravnlliados coni taes exercicios.
As suas miseraveis haìjitacjoes mudam, ao que pa- rece, conforme as estacjoes, da zona alagada para aquella mais firme. 0 seu trajo é singelo; a pelle de leopardo, o lenco metaUico e a cabala de rapé^ ou pe- quenas espheras de marfim lavrado, sao objectos in- dispensaveis para quantos se prezam.
De catadura feroz, o seu modo de fallar e curioso, guttural, semeado por uns constantes Euli! Euh! que similliando ao recemcliegado traduzir o espanto, nao passam de uma banalidade interjectiva. A rapina e a sua occupacjao mais predilecta.
Seria ocioso aqui contar a serie de decep^oes que nos primeiros dias de marcba nos succederam, origi- nadas pela perfidia do negro. Basta dizer, para ava-
De Lihonta ao Cabompo 409
liar-se o caracter d'estes indigenaa, que no pequeno periodo de qnatro diaa, seis d'elles, que servìam de guias, fugiram, rouI>ando-nos.
Eis ainda uni facto comprovatìvo :
Em Libouta apparetieram no campo tres sevhoras de aspecto jiivenil u rtcatado, a queni iim cavaVmro
introduziu, diziMido que eram tres daa mais dilectas esposas de Mucubessa, (pie nos vinliara visitar eni no- me d'elle.
Attrahidos pelo seu ar de honeatidade e de candura, e pai'a scmios ajiiradaveis ao fatno»o regulo, que a fi- nal nào conhccianioa, houvemos por mclhor abrir um fardo, preparando a cada urna vohiinoso regalo.
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Infelizmente fomos ludibriados, pois ao quarto dia de iiiarcha para o norte encontràmos o citado cava- Iheiro enverg-ando os pannos que tinliamos offerecido lis beldades, indo estas atraz d'elle, quasi niias, earre- gadas corno uns camellos com artigos da casa do dito seiìhor, o qual n'este momento se mudava.
Ao avistar-nos veiu a falla, sorrindo-nos com appa- rencia de Victoria!
Entre todas as decep^oes a mais cruci e inopinada, porém, foi a produzida pela noticia da proximidade da tzé-tzé. Quando ouvimos assim fallar da mosca, que presumiamos acoit^da muito para o oriente, todos os planos se confundiram, todas as suspeitas se aggrava- ram, temendo a cada instante perder os bois e caes que levavamos.
A expedi^ao, tendo transposto o alagado circulo dos lameiros, que a extenuàra, mas sa e salva proseguirà, la agora entrar n'aquella regiao mortifera da mosca, onde llie estavam certamente preparadas grandes per- das. Assim nos acbavamos por uni lado cercados de pantanos, por outro de florestas infestadas pelo mais terrivel diptero, ao qual adiante dedicaremos caj)itu- lo especial. A caija ali abunda, matando nós nos pri- meiros dias algumas palancas e léchees. No dia 17 caimos sobre a trilhada de uni leào que se acoitou nas gramineas, evidenciando-nos a existencia n'estas pa- ragens de grandes animaes silvestres, de que até ahi duvidavamos.
0 aspecto do paiz é ainda o mesmo, notando-se o apparecimento do Papyrus e de numerosas Hyphosnes com uma intumescencia a meio da liastea, que julgà-
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mos ser a Hyphcene ventricosa, bcm corno de urna eu- plìorbia elevada. Abunda por aqui a cacja avistando nós por està occasiao o liarrisbuck, que ainda nao ti- nhamos visto.
Foi nas iiiargens do Lueti, onde primeiro se nos deparou a tzé-tze, vendo-nos obrigados a partir coni o gado às tres horas da madrugada, a firn de pelo escuro transpormos a orla de urna grande floresta por ella in- vadida.
N'esta viagem matanios duas (piissemas, um felino conliecido ])or felix jubata e uni songo.
xV terra eleva-se gradualmente, bastas florestas co- nie^ani a vestil-a, consolando-nos com a amenidade da sombra e a idea da sua exi stenda, para nós jà quasi esquecida e tao preeiosa; pois vivendo em cubatas fei- tas a moda indigena, haviamos, por falta de arvores, nos ultimos tenipos, quasi dormido à la belle étoile^ ou em miseras clio(;as feitas de cannicjo, que pela noite ao menor movimento ameai^avam (lesal)ar.
Depois o cercado de ramos no acampamento e urna questao importante em zonas onde vive o leao, e so- bretudo quando se levani bois. Defendido o quilombo apenas por fogueiras, que pela noite amortecem, està o viajante e o gado um pouco a merce das incursoes do formidavel felino, que de subito com a sua presenta tudo póde comprometter.
Raro e, bem o sabemos, atacar o leao na Africa me- ridional um acampamento, e isto pelo muito naturai motivo de que nao anda esfaimado conio o seu conge- nere do Atlas; mas, conio unia vez póde fazer exce- pcjào, conveni mais prevenir do que lamentar.
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A qudda (le similhante quadrupede sobre urna co- luitìva so póde trazer desgracjas, que conveni impedir por todos OS meios. Basta lembrar o numero de mu- Iheres e crean^as que nos aeompanliavam, para ealcu- larmos quantas nao seriam as victimas, caso se lem- brasse de nos acommetter.
Para evitannos quanto possivel um tal accidente, haviamos ordenado aos nossos carregadores que nun- ca fizessem fogo sobre o leao, amea^ando mesmo coni um tiro quem se atrevesse a transgredir as nossas or- dens.
Coni o apparecimento das florestas conliecemos que nos approximavamos do limite da terra do Genji, ter- ra dos llanos e campinas alagadas, que confinam coni OS estados da Lunda.
Esse immenso paiz, que so no parallelo de 10° teni 540 niilhas de largo, e governado pelo omnipotente Muata-Ianvo \ tendo muitos dos seus vassallos disse- minados por està latitude, a uma distancia de 400 mi- Ihas da capital.
E seni embargo regulo algum do sertao é mais res- peitado do que esse lioniem, o qual reside no interior da Africa, ao nascente do rio Lulua. Todos os liabi- tantes de seus vastos dominios sao tributados, e ne- nlium, embora inorando nos confins, deixa de pagar integralmente o devido imposto. E ai d'aquelle que se lembrar de fugir ao pagamento, que em breve o Muene Cutapa ou qualquer cdcuoia, vira sem delonga tirar- llie rasao da cabecja!
Muata-Ianvo, ou Mata-Iafa sao corrup^oes de Muato-Nvo.
De LiboiUa ao Cabompo 413
Muene Chilcmbi foi o rejfulo ea-ninda ou ca-lunda que prinioiro encontnlmos ali, iiiformamlo-notì de que poiic'O tempo antes tiiiham partìdo da terra os envia- dos do Muata, rpic por sua ordem cobraiii impostos iia zona do 3ueste.
Nào causa estranheza o modo preciso por que se tratain estas qiiestoes i'azeiidarias n'um dominio bar-
baresco, encravado entre ontroa mio menos gelvageiis tambem ?
E a liistoria de todos os povos na infancia: a vio- lencia fazendo o seu pape! na fomiatjàc dos estados, a forQa brutal dìspomlo da sua consideravel iiiflucncia para maiiter priiicipios e uni tanto direitos contesta- veis.
UiH bomem a (pieni so o preHti<rio do teiTor póde conservar solu-anccìro ao nivel dos seiiK contoiTaiicoH,
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acerca-se ou rodeia-se de uiii grupo de sequazes, e coinpreliendendo aquella necesBidade, espallia-os de cutello Ila niào, derribando coni as cabe9as os protes- tos que em caminlio se Ihe erguem.
Iniciada a obra de devastacjào, o terror apodera-se das iiiassas, cada qual treme por si e pelo que tem de caro, e tanto basta para conservar millioes de liomens acorrentados a urna so vontade!
Quao nienos livre é o selvageni ao presente do que o liomem da civilisada Europa!
Esses filbos das selvas — que na plirase dos poetas apparecem livremente pintados conio a veloz gazella ou a graciosa ave dos bosques, e, irrequietos conio as brisas, os ditos vates poem bulicjosos por matagaes e florestas, inipellidos pelos inipetos da propria vontade, seni iiorte neiii peias que Uies restrinjam os desejos, levando urna vida a seus ollios invejosa — sao as mais infelizes e escravisadas creaturas da terra, a quem urna infinidade de costumes barbaros e absurdas leis re- pressivas apertaiii em ferreo circulo no viver quoti- diano !
Yàva vez de urna completa liberdade pessoal, conio à primeira vista se poderia presumir, o negro tem su- perior a si o regulo, que estuda constantemente o nie- llior modo de aproveitar-se d'elle, envolvendo-o n'um sem numero de preceitos e imposicjoes que llie tolliem todo o meio de ac9ao.
Mesmo dentro da propria casa o triste iiào gosa pre- rogativas sobre os seus, porque o cliefe n'um momento póde tudo aniquilar, tirando-llie mullier e filbos. Fora, no arimo e na terra que a familia agricultou, nada pos-
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sue tambeni, porque, sendo o torrao propriedade do regulo, d'elle dispoe a seu belprazer. Mais longe, se, afastando-se, o misero, após prolongada fadiga, con- segue abater um animai em terra de vizinlios, eis que o chefe d'ali, acercando-se, Ihe exige o mellior producto do seu traballio, ficaiido o remanescente à mercé do outro.
Emfim, se, transitando em campo alheio, occasio- nalmente ultrapassou praxes por elle ignoradas, ou ofiFendeu interesses de alguem, eil-o perseguido conio uma fera, tendo de pagar cara a sua ignorancia ou imprevidencia, n'um cliamado mucano!
Ya um codigo de tyrannias que vigora no interior do continente africano, contendo disposÌ9oes espantosas que nada teeni de similliante no mundo civilisado, ten- dentes a suj citar niìo so a voiitade, mas ainda os lia- veres, os interesses e a vida do fraco a ordem do mais ' forte.
Os privilegios sào exclusivo apanagio do regulo. Os melliores animaes e alimentos, os mais excellentes objectos eniiim, sao interdictos a todos e para elle ex- clusivamente reservados.
E naó ousàmos entrar a(|ui iia mais grave das ques- toes, apontando a maior das victimas — a niulher.
Para essa infeliz ha na terra apenas os labores, as proliibicjoes e o esquecimento, ou antes o desprezo na velliice! E se e verdade que por vezes o preto parece estimar sua mulher emquanto joven, e isso antes a expressao de egoismo, porque tem n'ella a garantia de uma relativa somma de bem-estar, do que a evi- dencia de sentimento affectuoso. 0 desgracjado, vieti-
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ma da repressào por parte do cliefe, toma-se tambem, emquanto póde, um pequeno tyranno entre os seus, impondo-lhes a sua voutade coni determina^òes op- pressiva».
Assim isola-se para corner, devora os melhores bo- eados que a mullier preparou, proliibindo-lhe o toear ou separar para si uni quinhao, aproveita as canies, os mais superiores vegetaes, e deixa-lhe, corno a um eào, o que llie uao appetece ou apraz !
E uma vida de miserias e prepotencias, omle a fra- queza caminlia, subjugada, sem murmurio, a mercé da vontade do forte; onde nem sequer a eonsola^ào do convivio e consentida àquella que a natureza deu ao homem para sua companheira.
Quem viu jamais, n'essas recep^oes publicas, cheias de formalidades fastidiosas, onde a par das palmas a compasso o negro introduz uma serie de sauda^oes e respostas apropriadas, que proseguem em arengas in- terminaveis, apparecer uma mullier? Ninguem, e in- feliz d'aquella que tal ousasse.
De longe, escondida e timida, ella, naturalmente cu- riosa, observa quantas scenas se passam, desejosa de approximar-se, ver e fallar, mas, là estao os olbos do chefe ou do companlieiro para Ibe conter os impetos, là està o uso feito lei, que a inliibe de intervir na mais singela controversia. Como o cao, ou qualquer outro animai domestico, o seu logar é quasi sempre junto à palbota !
Comparando a condicjao das popula9oes que se agi- tam pela superficie do nosso pequeno pianeta, o esta- do social do selvagem abre, na tendencia liumana de
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De Lihcmta ao Cabompo
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caminhar para a perfectibilidade, um parenthese, que confonde todos oa calculos, tornando o indigena de hoje a per8onÌfica9ào immutavel, a expressSo fiel de urna das primeiras phasea por que passou a ra^a hu- mana!
Voivàmos ao assTUnpto.
Durante o dia passado com Muene Chilembi, en- cheu-se a caravana, fazendo [)ela vez primeira depois
da partida de oeste lun fomecimento completo de fa- rinhas e cereaes, gallinhas, etc. ; e tamanho era o con- tentamento, que nós mesmoa, possuidos de urna infan- ti! alegria, riamos e galhofavamos de tudo, corno se da memoria se nos liouvera varrido a lembran<;a dos antigos sofFrimentos e a idèa do futuro que nos espe- rava!
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A gallinha, essa etema «gallinha» da Africa inte- rior, rara avis que acabavamos de encontrar, tomava- se agora para nós um enlevo, sonho das semanas an- teriores, na ancia de substituir a monotonia da carne fumada.
Bem pouco é preciso para mitigar desalentos e con- solar desejos!
0 typo ca-runda é differente do ca-róze. Pelo geral aquelles sao mais altos, esbeltos e svmpathicos do que estes, recordando-nos os ma-quióco, com quem con- trahimos rela96es em nossa primeira viagem.
0 trajo das mulheres e assàs originai e constituido por uma especie de panno feito do entrecasco de certa arvore, que, depois de puxado e batido, ellas lan^am sobre o corpo, corno a gravura do principio d'este ca- pitulo indica.
Muene Chilembi infonnou-nos minuciosamente so- bre a existencia e direc9ào do Cabompo, bem corno refutou todas as nossas idéas relativas à possibilidade de ser aquelle rio o Liambae.
— Este rio nasce em Quissenga, disse-nos elle, onde o vi sair com nienos porcjao de agua do que a contida n'uma cabala; recebe a caminho do Genji muitos tri- butarios, dos quaes um é o Cabompo. Por seu lado este deriva do sertao do nordeste ; onde nasce, porém, nao o sei, porque as terras para essa banda sao deser- tas, nao ousando os mesmos ca^adores aventurar-se por ellas; elephantes e moscas é o que por là se encon- tra, habitantes nenhuns!
Calcule-se o effeito d'estas palavras, que, comò lima bomba arremessada aos nossosjà pouco animosos com-
De Libonta ao Cahompo 419
panheiros, nada mais fa fazer do que descoro9oal-08 completamente, e avaliem-se tanibem as alternativas de alegria e tristeza em que andavam os chefes da expedicjao !
As largas chanas do Liambae terminaram, e logo ao sair da libata entràmos em densa mata, dominio do rhinoceronte de dois chifres, de que vimos um bello exemplar, e do porco de que damos desenho.
A estreita nesga das terras do lanvo é apertada a leste pela zona que umas tribus de borrendo aspecto occupam, sem armas de fogo e apenas zagaias e arcos, e nos disseram cliamarem-se mangoia, por aonde cor- tàmos no intuito de apanhar o Cabompo a montante da longitude de Chilembi, evitando com a maior rapi- dez a mosca tzé-tzé e a alluviào de outras que, em- bora nao perigosas corno està, affligem o gado por maneira tal, que nem mesmo junto as fogueiras con- segue comer.
Adiante de Muene Cliingongocliella, a 22 de setem- bro, caminhavamos socegadamente por uma campina, quando Antonio, que ia na testa da caravana, deu vista ao longe de muitos vultos negros, que suppoz serem gniis.
Partindo a correr, eil-o que de subito estaca, e, volvendo-se apressado, retrocede. Os gnùs haviam-se transformado n'um bando de homens, nao inspirando pelo seu aspecto confiancja alguma. Avancjavam em linlia, tendo na vanguarda uma banda de musicos com marimbas e bombos, e deixando ver a meio um in- dividuo, que, por envolyido em pannos de cor e vir acompanliado de um servo de umbella, para o abrigar
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dos ardores do sol, nós julgàmos ser creatura impor- tante.
Assim que se acharam em frente de nós acocora- ram-se para parlamentar; e foram tao infelizes as ne- gocia<;oes, que, ao cabo de meia bora, erguendo-nos e carregando armas, cobriamos a retirada da carava- na contra esse bando de salteadores, pois outra cousa nao eram aquelles cuja presenta nos surprehendéra, nem o seu chef e, Muene Oianda, irmào do Lobossi do Genji.
Ao que suppomos, era tao grande a insaciedade do tal sujeito, que so se contentaria com toda a nossa fazenda; e comò o facto tinha contra si a muito natu- rai circumstancia da impossibilidade, entendemos por bem e mesmo para contrastar, dar-lhe apenas seis len- 90S de pintado para seu uso; collocando todas as suas pretensoes perante o formidavel dilenuna de nada mais receber e retirar-se em paz, ou tomar a fazenda por inteiro, levando ao mesmo tempo um tiro de revolver na cabega!
Hesitou o heroe por momentos, mas, convencido al- fim que feitigo de branco p6de mais que o de preto, ficou-se quédo, emquanto os exploradores, seguindo prestes a caravana, volviam gi'aciosamente as costas a tao antipathica creatura.
Assim nos descartàmos sem mais ceremonias dos importunos rapinantes, que nao passavam de uns pu- sillanimes.
Em Moi Cafuta achavamo-nos a 8 milhas do Ca- bompo, e tornando dois guias para nos mostrarem o logar da passagem, para là nos dirigimos a 24 de se-
N
De Libonta ao Cabompo 421
tembro, depois de submettido um homem que se eva- dlra e de termos notado a altitude de mna cachoeira no rio, que embaracja a navega9ao, lamentando mais mna vez a proximidade das chuvas, pois nmnerosos e grossos cumulos semeavàm a abobada celeste em todos OS quadrantes, prognostico desagradavel dos ba- nhos que se nos estavam preparando.
As onze horas chegàmos à beira do Cabompo, rio que tem n'este locai 150 a 200 metros de largo, agua verdenegra e as margens occultas em frondoso arvo- redo.
CAPI TU LO XVI
FERA NATITKA
Kt devant oiix s'élòvfì une immense fopèt, Dout tout hommc uouvoau ignoro le serret. Iinprnrtrable. . .
J. li. J/f*ft»<T — Cai*elx.o b Ivexs, etc.
Considera^Oes tristos — 0 d(^sorto e o silencio — 0 Cabompo e anoite — 0 elephante e o an'oredo — Limite ao torreno silìcioso — Primeiras ro- chas — A floresta e 08 aniiiiaes silvcstres — Pc^rda do uni oompanhoìro — Homem e eào inortos — Doìs elcphantos — 0 sonmo da girafa e obito de outro homem — Fuga de um caiTegador — Morte de mais um eao — Indi- viduo i)erdido no bosque — 0 rhinoeeronte curioso e os erocodilos do Cabompo — Os destro^os do leao — Vam-Boòé — 0 leào e uina noite de poleiro — lieÌ908 funidos e seios pcudeutes — A primeira tempestHde.
Fiitre OS va- Iissimos fa- qne podem (listingiiiro cur- o II edio de um 1 o los seus af- fi RI tc9, figuram 1 n sso ver, co- rno principaes, I OS qiie se refe- ì rem à disposi- ii^a orographi- UJjNSca do9 terrenOB p r elle drena- d '• il 3ua lar- gura mèdia à cor mais ou menos constante da agua, à velocìdade, a que ainda se podem juntar outros, comò, por esemplo, indica^So indigena sobre o modo de de- signar tal bra*;o, o calculo do volume de fluido, etc.
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Apenas installados à beira do Cabompo, come^àmos, depois de attentar bem nos seus tra^os mais salientes, a comparal-o com o rio Zambeze, e, approximando da nossa observacjao pessoal o que os naturaes dìziam a esse respeito, viemos a conclusao de que o Cabompo e indiscutivelmente um affluente do Zambeze e nunca o seu ramo medio. A agua d'este é verde um tanto claro e por vezes pendendo para azulada, a d'aquelle verde- negra, comò se salra de vasto lago.
A sua largura, no sitio em que nos achàmos, oscillarà entre 100 e 150 metros, ao passo que o Zambeze tem 300 ou mais, e uma corrente de 3 milhas de velocida- de, emquanto, n'esta quadra, pelo menos, o Cabompo sera de 0,5 milha, se tanto.
As terras que para o norte se alongam pelas do lunda Shinte extremam pelo oeste uma vasta chana^, que, acompanhando a parte superior do Zambeze, Ihe dao em tudo o aspecto do curso medio; e o Cabompo, logo a montante da cachoeira Lumupa, corre entro terrenos alcantilados, que, erguendo-se, vao até ganhar o pla- teau elevado que divide os systemas Congo-Zambeze.
0 valle de Barótze é aìnda, geologicamente fallan- do, constituido nos seus tra90s mais geraes por tuff calcarifero, assente sobre um deposito de grès mais ou menos endurecido, amarello ou um tanto vermellio, perfurado em zonas por molluscos lithophagos, trans- formando-se, quando limpo e separado da parte menos densa, em tractos arenosos estereis ou fracos, ao passo que subindo o Cabompo, ve o viajante apparecerem-lhe
1 Ghana, pianura coberta de gramincas.
Fera natura 427
as terras argillosas vermelho sangue, de envolta com um conglomerado ferruginoso, cobrindo rochas, comò o gneiss, outras de grès, etc, muito ferteis e cobertas de arvoredo.
Em resumo, a quantos ìndigenas e guias inquirimos, todos invariavelmente nos responderam no mesmo sen- tido do que nós imaginavamos, isto é, que o Cabompo é um affluente do Liambae e nao o mesmo Liambae, comò se poderia acreditar.
0 notavel, porém, é que jamais ouvimos fallar em Liba, esse rio que Livingstone cita, comò percorrido em viagem para Loanda, e por elle pittorescamente descripto, facto que nos leva a crer na sua existencia, trocado o nome em Liambae, ou seja uma confusao do mesmo termo.
E nao tem isto muito de extraordinario, se conside- rarmos nas numerosissimas transfonna9oe8 ou mesmo na corrup^ao de nomes que por toda a parte se notam em Africa e cada viajante emprega a seu bel-prazer.
Assim o rio Aruangóa, que affine ao Zambeze, é por uns chamado Luangóa, por outros Luanga e até Ruan- ga, ao passo que vemos no norte estabelecida a con- fusao no paiz de Lunda e seus povoadores ba-lunda, onde promiscuamente se encontram Lunda, Runda, Urunda com o prefixo U designativo da terra. Urna e Lua, e OS povoadores ba-lunda, ca-lunda, mu-lua e ba-lua, ca-runda, etc, citados no mesmo documento.
Nao admira, pois, que o viajante inglez, fallando uma lingua tao estranha, embora percorresse tantos pxiizes, tivesse difficuldade em pronunciar correcta- mente os dialectos africanos, e transformasse o Liam-
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badji dog ba-lunda no Liambae dos ma-róze e no Liba de qualquer que por ahi Ihe fosse guia.
A verdade é que tal rio para nós ficou letra morta.
Transposto o Cabompo, acampàmos na outra mar- gem, depois de passarmos as mais crueis angustias na tarefa do transporte de nossos bois, pois era a riba direita talhada quasi a piqué, nào podendo os animaes, ao abordar a terra, finnar-se de modo que podessem vencer o seu aspero declive.
Achavamo-nos na mais estranha perplexidade, la- 9ando aqui um, clamando por outro, que embaracjado nos ramos do arvoredo pendente amea9ava asphixiar- se, sem saber que partido tomar, quando um indige- na, que até ao rio acompanhàra a caravana, nos deu o mais intelligente quinau, e revelou a nossa triste igno- r ancia ou pouco senso pratico.
Gritavamos, remexiamos, serviamo-nos de cordas, sem nada conseguirmos; de subito, a jusante, os bois come9am a subir a encosta com a maior naturalidade. Approximando-nos do logar, vimos entao operado com a maior esperteza um trabalho que mais cedo nos de- véra ter occorrido, e que um negro do mato, a sós, ti- nha posto em pratica.
Empregando a machadinha corno enxada, havia elle rapidamente feito um carreiro em lacetes até ao nivel da agua, por onde os animaes trepavam à vontade.
0 aspecto selvagem de tudo quanto nos cercava, as numerosas pégadas de elephante, os cipós e as urzel- las, tudo emfim evidenciava que tinhamos dado entra- da n'uma terra erma, onde os trabalhos e as difficulda- des corriam naturalmente parelhas com a sua braveza.
Fera natura 429
Antonio, lego ao entrar n'ella, abatéra duas formo- Has quissemas e urna gazella, quc ptila noite se prepa- raram e mesmo desappareceram em parte, emquanto urna manada de elephantes se approximou do acampa- mento, atroando tudo; eram dez horas da noite. Eis o que no8 diz o diario, rubrìcado sob a impressao do momento :
«... scenas estranbas sào aquellas a que assisti- mo8 agora, e bem dignas de penna melhor maneja- da. Imagine-se uma noite muito escura, envolveudo tudo. . .
<(Den8Ì88Ìma mata debru^a-se sobre o curso do rio, e alastrando para leste, abre a 100 metros d'este uma pequena clareira, ao meio da qual um espinbeiro gi- gante se copa à fei^ào de pàra-sol. Dola europeus estSo sentados em caixas e, fumando socegados em longo cachimbo, contemplam tudo que os cerca. Em vasto
43^0 De Angola d contror-costa
circulo urna centena de homens, à luz de numerosas fogueiras, se agita em faina de interesse, correndo pres- surosos n'um e n'outro sentido. Ao clarSo canibiante dos brazeiros os vultos tisnados, gesticulando e brace- jando por meio dos troncos e linguas de fogo, similham urna caterva de demonios na tremenda tarefa que os espiritos timidos e apprehensivos llies apraz imaginar. Tres antilopes mortos, jà despidos da pelle e conve- nientemente abertos, estao prestes a serem esquarteja- dos, emquanto alguns individuos aproveitam o sangue, outros OS intestinos, disputando-se as mais pequenas parcellas.
«Diligentes, as mulheres buscam os utensilios de cozinha que os companlieiros Ihes pedem, ao passo que 08 filhos, por momentos abandonados, tiritam de frio, rompendo n'um charivan de guinchos.
«Estourada medonha atroa os ares em roda, an- nunciando que urna manada de elephantes entregues a gostosa tarefa de procurar repasto, esgar9am e que- bram quantas arvores e ramos encontram no caminho.
«Ladram os caes, ronca no rio o liyppopotamo, ru- moreja tristonho o vento na folhagem, rangem os ossos sob as poderosas maxillas dos nossos companheiros, chiam as cames no brazeiro, e, despedindo a gordura para o fogo, alentam de subito as labaredas, que, so- brepujando os grupos, comò que amea9am o arvoredo; trocam-se os gi-itos e as phrases asselvajadas, emfim vae luna noite prehistorica!»
Como primeiro debute defrontava-nos floresta de- serta, que oito dias nos levaria a passar sem trilhos nem indicios.
Fera natura 431
A narrativa dos soffrimentos experimentados pela expedicjao n'esses bosques que se alongam pela mar- gem do Cabompo, é difficil de apreciar no remanso do nosso gabinete na Europa, e por isso pedimos ve- nia ao leitor para transcrever na integra quanto em nosso diario se aclia exarado, convictos de que assim obedecemos mais à necessaria obriga9ao de sermos fieis.
Foi urna corno que marcila funebre por esses sertoes, dissemos nós em nossa conferencia de Madrid, e assim exprimimos a singola verdade.
Especie de marcila funebre, repetimos, em que a suspeita da morte imminente arrastava a caravana em tetrico silencio, o medo do deserto abaiava os animos mais firmes, a ancia de se alimentar fazia de cada liomem um egoista terrivel, prompto a sacrificar o seu companheiro para salvar a propria vida; em que, em- fim, a idea da propria conserva^ao havia varrido todo o sentimento de caridade, e uma provacjao mais basta- ria talvez para iniciar as hediondas scenas de desen- freado cannibalismo!
Que triste espectaculo!
Quantos liomens marcaram na terra com seus cor- pos a trilhada da comitiva por essas sombrias flo- restas, onde o depilante em bandos numerosos tudo devasta, o rliinoceronte divaga solitario, a mosca cam- peia voraz, amea9ando de morte quantos animaes do- mesticos d'ali se approximem ; onde, finalmente, pas- seia comò senhor o rei das selvas, atroando pela noite OS ares com a sua voz formidavel, e espavorindo o mundo animai com o seu rugir tremendo!
432 De Angola d contrcu-costa
Bem nefastos dias e duras scenas foram essas que ainda hoje, ao lanciar mao da penna para as descrever, nos sentimos dominados pelas mais lugubres e tetri- cas recordaijoes.
Nem um vnlto humano sequer por esses sombrìos bosques, para nos dizer: «Por ali é o caminho!» Nem uma indica9ao que nos servisse, no meio d'esse intrin- cado dedalo de soffrimentos e amea9as, de norte ou guia, para nos livrar do desfecho a todo o momento esperado, a morte!
Sempre o silencio da floresta, apenas cortado por esses ruidos originaes e inexplicaveis, que sao o se- gredo da natureza selvagem, corno um murmurio de mysterios que so despertam terror; sempre a igno- rancia do nosso fim, o angustioso lembrar das miserias que nos esperavam, excruciando-nos a alma, repu- gnando à consciencia o facto de havermos provocado tamanho soflFrer!
E quando pela noite toda essa agglomera9ao de homens nus, famintos, entristecìdo8,'Uns estirados em redor das fogueiras, outros divagando absortos à luz das labaredas, calam alfim sob o imperio do somno, gemendo aqui, resonando acolà; nós, dominados pelos negros pensamentos do dia seguinte, apprehensivos com a idèa do risco imminente em que se achava a missao que nos era tanto cara, contemplavamos taci- tumos sìmilhante scena; e esentando esse còro, que nos parecia um lamento de condemnados pedindo a sua redemp9ào, marejavam-se-nos os olhos de lagrimas, convictos de sermos os unicos culpados de tao grandes desgra9as.
Fpra natura 433
Diario :
«Diii 24 de setembro,
« Estamos acampados uà margem direita do Ca- boiiipo, tendo-o transposto com gi-aves difficuldades.
»0 rio tem aqui lóO a 200 metros de largo, com a profundidade media de 3 metros, agua esverdeada,
margens fechadas de frondosissima vegeta»;So, cor- rente fraca.
«Logo ao amanhecer desertou-noa um homem, que mais tarde, batida a floresta, póde ser colhido às mSos.
«Para està banda os matos fecliam de mais em mais, tuniando-se extremamente selvagem o aspecto da na- turerà.
«Longe estào as habita^Òes hiimanas, funebre sìlen- cio domina por aqui; um presentimento nos diz que adiante nos esperam dui-os soffrimentos.
434 De. Angola d contro-costa
«Xos plateaiix ao lado encontraiii-se por toda a par- te numerosas pégadas de elephante, sigimi evidente de regiao deserta.
«Assalta-nos de novo a idea de (jue o C^ihompo po- desse vir do lago Bangiieolo.
«A sua agua, um tanto eseura, a pequ(»na velc^eida- de, a dire(*9ao do curso, quem sabe?
«Depois lenibrou-nos lioje a deelara^ao de Jacob Wainriglit, o fiel servidor de Livingstone.
« 0 Luapula, disse elle, corre para o por do sol.
«A nossa gente està beni disposta, apesar das deser- <;!oes dos iJtiinos dias, e das aftìrniatìvas dos indigenas, de que para està banda lia apeiias elephantes e nioseas.
"Dia 25 de setembro.
« Ao amanliecer pozemo-nos a caniinho. Estamos in- fatigaveis e decididos a concluir a enipreza que pro- jcctàmos, euste o que eustar.
«Sao longas as niatas que iios defrontam; muito em- bora, liao de transpor-se. Adiante é o caminlio, e que a Providencia se amercie de nós. Para as regioes des- eonliecidas é que tem merito o avanzar, pois por ca- niinlios trilhados toda a gente o faz.
«Aqui o norte e a bussola, a indicacjao, o palpite, o apoio, a vontade; retroceder 6 inipossivel!
«Caminhàmos até ao meio dia ao longo do rio, por valles e serras do mais pittoresco aspecto, atravessando zoiias extensas, densamente vestidas, sómente habita- das pelo elephante.
((() terreno accidenta-se de todo o ponto, appare- cendo a affloreal-o roclias variadas, e tendendo a des- apparecer as terras arenosas do valle de Barótze.
Fera natura 4.^5
«Vae-se elevando o-radualmente; o rio serpeia tor- tuoso em sileneio, coni a mesma largura e as marjLfens a piqué.
«Por toda a parte se encontram arvores recente- mente derribadas, outras fendidas e com as raizes a descoberto, conio prova do traballio do maior dos ani- niaes terrestres conhecidos.
« 0 espinlieiro e sobretudo o mais procurado, por «j^ostar o elepliante multo das pontas dos ramos.
«No caso de sermos atacados por uni d'estes ani- niaes, nao poderia servir de defeza o empoleirarmo-iios n'unia arvore, i)()rque, segundo aftirmou uni dos nossos liomens, enibora o elepliante iiào consiga derribal-a, atira coni paus a (pieni pretende assiin escapar-se-lhe!
((E Ulna estranila habilidade, que carece de coniir- ma(^Ȉo.
<( Redobra o calor, castigando severamente pelas lio- ras em (pie é mais intenso.
<( Alguns liomens cansam rapidamente, atrazando-se na marcila.
<(() aspecto bravo da natureza testemunlia as indica- ^oes (pie nos deram.
«Su8i)eitamos liaver ja por aqui a tzé-tz(5.
«Dia 26 de setembro.
«Estamos junto a margem do Cabompo, coberta a(iiii (l(ìs espinlieiros (bi gomma.
«A marcila o})erou-se por unia densa floresta, milito abuii(biiite em ca(^a; abatemos liqje tres quissemas for- midaveis.
«pjxtremamente emmaranliada por cipós e ramos (pie se cruzani e entrela(;am, e nos difficultam a mar-
436 De Angola d controtesta
cha, tomou-se necessario levar gente na vanguarda, que de niachados eni punbo foi desembara^ando o caminho.
«Por vezes a mata està intransitavel, tao grandes, numerosas e fundas sao as pégadas dos elephantes que se atolaram no terreno argilloso.
«Temos a registar um funebre successo, que muito nos impressionou.
«Um dos nossos rapazes, que, andando ao bote, ha dias se queixava de fadiga, lioje, logo depois de sair do acampamento, caiu por terra, morrendo em poucos momentos. E singular! Emmagrecem rapidamente, perturbam-se-lhe as idéas e os movimentos. Esten- dem a mao, querendo colher cousas que nao existem no logar a que se dirigem, suspiram, cobrem-se de suo- res frios, o pulso fraqueja, succumbem.
«Infeliz! Continuàmos a suspeitar ser a molestia unui meningite. A insolacjao, a carga à cabe^a, o can- sa^o, a estranba perturba^ao, tudo indica a causa ori- ginaria do rapido desfeclio.
«Silencio lugubre reina por essas matas afóra, so in- terrompido durante a noite pelos rugidos dos animaes silvestres.
«0 rio segue socegado, limpo de cachoeiras, occulto na vegetacjao das margens.
«Dia 27 de setembro.
«A Jornada de lioje foi longa pelas campinas que marginam aqui o Cabompo.
«Parecia um jardim zoologico a terra atravessada, tao numerosas e differentes sao as especies animaes que observàmos.
Fera natura
437
«Gazellas, zeJmis, elephantus, quissemas, palancas, rhmoceronttis, jiivardos, ctc, fugiam eupavoridos ante nós.
"D'estos matdinos doi«, proto», inttira mente d fei^So dos nossos da Kiiropa.
«Ainda um facto triste a ri-gistar. Um dos nosHog cSes (o Pnmbo), o iiiellior sera duvida qne poBsuiamos, dcsapparoceu de subito no rio, colbido por grande cro- codilo, quando perseguia urna pe(;a de ca^a.
«0 numero d'estes animaes no Cabonipo é uxtraor- dinario, assini comò as«ombrosa a dcvasta9ào que fa- zem nos antilopes.
«Àinda lioje tìvemos occasiào obscrvar isso.
43S De Angola d contra-cmia
« Ha vendo apertado coni uni cabra assobiadora, fe- riniol-a leveniente. 0 animai, atordoado, fujpa, conio sempre fazeni os seus similhantes, para o rio, no intuito de se metter a a;^ua; mal porcim liavia caldo, que um vulto enorme redemoinlia, um dorso eri^ado de aspe- rezas eiicurva-se, es(*an(;ara-se nma guella, defendida por aj^udos dentes, n'um relampago abysma-se tudo, ficando so a superficie o revoltear da ugna após uma submersao.
« Cometa a dar-nos serio cuidado a falta de farinlias.
w Alfifuns dos nossos liomens comeram tao precipita- damente a matalotagem, que pouco ou nada teem, e a carne parece nao ser para elles alimento sufficiente, 011 pela rapida digestao, ou por outro qualcpier motivo.
« EmmagTccem muitos coni rapidez, domina-os coni frequencia a fadiga.
«Dias 28 e 29 de setembro.
<( Continuam a aggravar-se os padecimcntos de mui- tos dos nossos homens. Sào taes as difliculdades da marcila, onde a todo o instante urge arriar cargas, cor- tando OS matos, e succedendo-se os accideiites e ob- staculos, que vae tudo em caminho, aterrado, clieio de cansa(;o, avanzando por esses desertos afóra.
«O fogo em varios pontos devastou as selvas, tis- nando coni negros residuos vastas extensoes de terra, onde uni ou outro escpieleto marca o logar de pungente angustia, envolvendo em sombrios pensamentos os der- rotados animos.
c(Uma triste admira^ao se apodera do mesnio via- jante em face de taes scenas, fazendo anceiar pelo bu- licio da gente. A tzé-tzé e outros dipteros infestam as
Fera natuni 439
matas liniitroplies do rio, perse}>'uiiido 08 bois impla- ca\'eliiiente.
(cHoje 2i), pelas dez lioras, nioiTeu outro lioiiiein, deiioiiiiiiado Chialla, uni dos iiossos iiielhores conipa- nheiros.
« Ha poucos dias, aiiida alej»Te e contente pro.se{*;uia de carii'a as eostas na vanaiuirda da comitiva. Victinia ibi seni (Invida de doenca identica, perecendo eni pou- cos moinentos.
«Dois liomens, andando ao mei, depararam ao sues- te coni ig'ual numero de elepliantes enormes fugando espavoridos. Proseguiu-se-llies na pista, nao sendo possivel tornar a encontral-os. Um grande quadru- mano vive n'estes sitios, de que ohserviimos as pcga- das, beni conio viiiios ao oeste do campo as do leao, ([ue proximo deve residir, a julgar pelos destro(;os que se notam dispersos.
«Dia 30 de setembro.
((A primeira consa a fazer e registar mais um obito.
«Logo de nianha tivemos que abandonar um rapaz do Celli, completamente perdido, prestes a expirar.
«A raj)idez da doen(,*a, que ha dias Ihe minava a exis- tencia, aggravou-se com a necessidade de farinha, ou o exclusivo regimen animai, que Ihe repugnava ao ex- tremo.
«Os symptomas eram em tudo os mesmos que nos precedentes casos, apparecendo comò variante a abun- dancia de dejectos alvinos.
«E notavel a fonie com (lue toda a gente anda, ape- sar da abundancia de ca(;a que se tem morto. Apenas suspendem, eil-os a assar na braza quanta carne pò-
440 De Angola d contra-costa
dem, e a devoral-a sofregos, accusando na deprejij:iao abdominal a necessidade qiie os opprime.
«Em caminho, pela sombria mata que vem sobre o rio Maninga, e ciijo nome acaso soubemos pela rasSo adiante exposta, encontràmos os ossos de urna girafa, que ha pouco fora devorada pelas bestas de preza. Ouvìmos que este animai, cujo habitat nao suppunha- mos vir até aqui, se colloca junto às ai-vores para dor- mir, mettendo a cabe^a entre dois galhos.
«Foi a meio do trajecto de hoje que tivemos a estra- nila surpreza de encontrar ciuco homens, ca^adores, segundo nos disseram, de Muene Chinhama, e que, vindos do noroeste, se aventuraram por estes desertos para cliegar ao Genji.
«A muito custo conseguimos trazel-os à falla, afian- ^ando-nos que, seguindo sempre Cabompo arriba, en- contrariamos gente d'aqui a cinco dias no ponto de encontro de um affluente, o Lunga.
«Praza a Deus que assim seja, pois a nossa gente vae em progressivo desalento.
«Dia 1 de outubro.
<(Temos que lastimar ainda hoje a perda de outro homem. Chamava-se Joaquim, e no intuito de seguir talvez a trilhada dos ca^adores de hontem para se sal- var, fugiu, vindo a ser victima das feras ou da fome por esses desertos.
«Um dos melhores caes, o Atrevido, desappareceu tambem no rio, quando ahi saltou atraz de urna ga- zella.
«Os crocodilos téem tido largo repasto com a nossa passagem.
Fera naivra 441
«Gra^as ti Provklencia, carne nào falta, abatendo Antonio aindii hojc dna» quissemas. Ninguem jà possile uin 2:)uiihado de farinha, e apeuas nós consenàmos para dmanhà um pouco df feijào. Ao sueste urna ra- vina corta o rio perpendiciilarmente, formando ca- chocira.
«A vegetatilo em tudo identica. Jnnto à margem a Acacia alhida, cnja gomma os uossos devoram em ca- minlio. Para longe aa innpandas, os mutoiitOB, ctc.
«Dia 2 de oiitubro.
«Hojc em viagem perdc\i-sc entro liomem, Mazom- bo, que se extraviou com a carga, sem que se podesse
442 De Angola d contra-costa
coniprelieiider a causa, e que la vae coiidemiiado a servir de pasto as hyeiias.
"Largas canipiiias por vezes se achaiii elitre o arvo- redo, e entào póde ver-se a intìiiidade de animaes que divaji'am por està terra. A meio da joiiiada ferimos unia quissema, que, saltando ao rio, Ibi collùda por um crocodilo, ao passo que adiaute tivemos occasiao de ver a ossada de um elephaute mettida no extrenio de «gigante armadillia. Era urna cova eircular de fuiido mais largo, feita junto a arvore de tronco derruido, que estes animaes eseolliem para se eo<;ar, e onde o colosso cafra!
«Antonio teve lioje uni encontro perigoso. Haviamos acampado pelas duas lioras, quando elle, pegando da ca(;adeira, abalou jielo campo, em procura de galli- nlias do mato.
«Pouco depois ouviram-se tiros, e muito natural- mente suppozemos que andava elle em faina, nao dando a isso atten^ào. Declinava o sol, apropinquan- do-se mesmo do occaso, quando, suspeitosos pelo si- lencio de tantas lioras, mandamos bater mato e pro- cural-o. () audaz ca(;ador, perseguido por um rhinoce- ronte, e tendo em mao uma carabina com chumbo, nada encontràra de mellior de ([ue largar a arma, tre- pando para uma arvore à espera que o livrassem. ( ) notavel, porém, e que o animai nao o abandonava, e rodando comò que enfurecido, fazia sentinella ao po- leiro, so fugindo a approximacjao da gente.
«Estranilo ciuadrupede este, que por vezes parece andar acommettido de vertigens ou accessos de lou- cura.
Fera natura 443
«Antonio, para se vinfi^ar, logo que ehegou ao qui- lombo, feriu de morte um hyppopotamo, o qual la foi rio abaixo. (>ho\eu hoje pela primeira vez.
wDia o (le outubro.
«De entre os flagellos que nos perseguem n'estas niatas interminaveis, nao figura por menos esse até agora para nós desconliecido, a tzé-tzé! Bois, caes, tudo anda furioso, nào escapando os proprios lioniens, que silo victimas dos seus ataques. Os magros doentes, coni andrajos em redor da cinta, seguem na retaguar- da da caravana, em funebre fileira, similhando um bando de resurrectos erguidos no momento do tumu- lo, e luctando em viìo contra os assaltos da terrivel glosdìui,
«Estamos acampados ao nordeste de um quilombo de ca(,*adores Vam-Booé, provavelmente luinas, que para aqui vieram do sul no intuito de se estabelecer. Extremamente miseraveis, teem repellente aspècto, li- mam em ponta os dentes, e fumam de continuo por narguilés feitos de pequenas convolvulaceas. So pos- suiam para vender pilhas de um endurecido tabaco, que ainda assim compramos, pois é o unico de que nos servimos. D'este logar as origens do Lualaba se- nio nns doze dias, segundo elles, e a terra para essa banda e deserta. Dizem-nos qué iimanhà, no Lunga, talvez arranjemos guias para duas ou tres jomadas. 0 solo, pela zona que vamos percorrendo, e em geral constituido por uma roclia de gres abundante em con- crecjoes siliciosas com affloreamento de quartzo hya- lino, etc. Encontram-se tractos argillosos, ve-se com frequencia a limonite, ferro pisolitico, quartzites, ou-
444 De Angola d cuntra-costa
tros minerae» corno laseas de silex pyromacho, e al- guns que nào reconliecemos. A vejreta^ao é densa, pò- rem de peqiieno viilto.
«Dia 4 de outubro.
wO dia de lioje Ibi enipregado em transpor o Lunga, importante affluente do Cabompo, a fim de nos abeirar- mos da residencia de Muene Calieta. Tornou-se neces- sario abater um boi, uni d'esses infelizes companheiros, cuja presenta na comitiva serve de grande auxilio para consolar estomagos, visto nào se ter ca^ado nos ulti- nios dois dias. O nosso regimen agora e puramente animai. A carne assada na braza, sem condimento nera sai, que jà ha muito acabou, constitue o prato inva- ria vel.
«O tempo continua amea^ador, o que nos contraria seriamente. Grossos cumulos forram em todos os sen- tidos o céu, ribonibando a curtos intervallos o trovao.
« Atufada nas florestas e envolvida pelas cliuvas, a caravana vae sem duvida atravessar uma seria qua- dra. Quando acampavamos appareceu-nos um homem que suppunliamos extraviado, a quem um leao conteve suspenso n'uma arvore toda a noite de hontem.
« Dia 5 de outubro.
«Acampàmos alfim entre gente. Muene Calieta e o regido luina d'aqui. Velilo e descortez teve comnosco uma questào logo ao cliegar, o que impediu por algum tempo a compra de mantimentos, que so tarde appare- ceram. Loucos, os nossos dao tudo por um punliado de feijao da terra, e sem reflectirem que se desarmam, largam pela mais pequena cesta uma duzia de cartu- clios Snider!
Fera natura 445
«As mulheres (raqiii furam o labio superior, iutro- (luziiido ii'elle uni grosso eorai, e teem o depravado costume desde joveiis de amarrar os seios, de maneira que se proloiigam até o abdomen.
«Pouco mantlmento ha. Desertou uma mullier, nao podendo sal)er-se iiotieias da infeliz.
«Dia 6 de outubro.
«A Jornada de lioje foi longa e feita ao rumo do nor- fe, por terreno eoberto de calila us e roehas quartzosas fragmentadas. Aeami)amos n'uma densa mata para nos defendermos de trovoada inmiinente, fechando o campo e cobrindo cargas. Dois liomens acabam de de- sertar em direeeào desconliecida. Ennegreceu o céu. Calma multo al)afadora domina o ambiente, transu- dando nós. Eil-as as primeiras aragens. Come^ou a tempestade.))
Transportae-vos, leitores, pela imagina(,*ao, para o melo de floresta espessa e sombria, em que arvores gigantes, que januiis desi)em sua folliagem, entrela- (jam ramos e feeliam o espa(;o eom uma rede de cipós.
Assentae-a em suave encosta, que uma sub-vegeta- (jào forra completamente, cercando-a pelo longe das ondulacjòes de altas terras.
A melo vae uni curso de agua escura e rapida, que murmura em lodoso leito, cavando entre podres tron- cos e nodosas raizes a lama que llie tinge a transpa- rencia.
Aos lados largas orlas lamacentas vem bater de encontro a terras mais elevadas de humus ennegreci- do, que uma cobertura de fetos esconde com suas fo- Ihas rendilhadas.
446 De Angola d contra-^osfa
XV'ste sombrio retiro, inipede em larga volta a vista o coniplieado macisso dos troncos e ramos do arvo- redo.
Eiivolvei este todo no negro manto da noite, a quo o caliginoso escuro da imminente tempestade (hi um aspecto sinist4'0 e funerario.
Accommodae a està scena o tremendo ronco do rei das selvas, que })or vezes o assobiar do vento acompa- nlia rijo e tetrico. Emmoldurae este estranilo (juadro coni o exagerado calor que no ambiente reina, fazendo transudar em suor liomens e animaes entristecidos ; lembrae-vos (pie nem um liabitante existe iias terras proximas, que nao ha alimenta(;ao a esperar, excepto se o acaso a pozer ao alcance da vossa carabina; con- siderae (jiie uma dezena de feras vos espiam n'esse momento, completando este todo coni a agonia e os repux(")es da fonie; accommodae. emfini, ao nieio de tao extraordinario (juadro o sentido gemer de um compa- nlieiro moribundo.
Crepitam as fogueiras a intervallos e, amortecendo a pouco e pouco, enviam com sens lampejos uma tenue anima^ao em derredor.
Por vezes um tronco, a que faltou o necessario apoio, despede-se e, estourando coni fragor, rola para o ter- reno ao lado.
Ja uns ultimos vultos (|ue se liaviam conservado de có(*oras, o))servaiido melancolicos os ti^'oes fronteiros, abandonaram a statica c(mteinpla(;*ào, e estirand(ì-se j)arallelos roncam pausadameiite.
Por vezes uni urro, grito angustioso ou pio sinistro ([uebram està monotcuiia, conio annuncio de que o clia-
Fei'n nati fra 447
cai descontento cu ave no(*turna, eneontrando o acani- ])anìento, se desvia d'elle pressuroso.
Seguiu-se sileneio profundo, preeursor das gigantes convulsoes da natureza.
Todos esses niunnurios e ruidos estranhos, que se (»seapani de bosques e valles, notas tristes e agourei- ras, sìniilliando sorriso de denionios, estertor de ago- nisantes, eii sei qiie mais — para iniagina^oes exalta- das — acabani de sus])ender, conio ([ue esentando qnanto vae pelo espa(;o!
(^oberta de negro a abobada celeste, e apenas lis- trada a intervallos pelas iaiscas, (pie ora distantes franjani o liorisonte, ora proxinias pareceni cair sobre nós, lendjra uni grande manto de atande, que, propin- (pio às nossas cabec^'as, (piizesse envolver-nos.
As togneiras oscillam, alumiando coni a sua Inz amarellada corpos magros, a quem a fonie concede na fraqneza algunia bora de allivio.
De subito, illuminando de alto a baixo, o relampago deslund)ra o ambiente, para repercutir medonlio e ras- gar coni scintillante faisca o fundo retinto dos céiis.
(jrossos pingos fustigam as fracas tendas, que, a(;òitadas pelos rijos repelloes do vento crescente, amea(;ain fugir a tempestade, escapando-se pelo inato.
llibomba o trovao incessante, succedem-se ininter- ruptas as descargas electricas, sopra furioso o vento por elitre os troncos das arvores vizinlias e dos cipos que as entrelacam, abalando-as conio simples arbus- tos, assobiando terrivel, corno se n'unì momento gran- de numero de serpeiites bouvesse penetrado n'aqnelb» recinto.
448 De Angola d cmitrar^osta
Os vclho8 C0I0SSO8 da floresta gemem sobre as no- (losas raizes, similhando despedir-sc da terra, que por tanto tempo as alimentou; as escarpadas penedias, as cavernas distantes roiieam e urram com ruidos sinis- tro» de monstros descoiihecidos!
Sombriameiite illuminada pelos relampagos, a flo- resta braceja com os iiumerosos ramos, traliindo o mysterio de taiitos liorrores, por iim chanvaH de gid- tos, de lameiitos, de gemidos, de suspiros; eonvulsoes que sao iim protesto enorme contra as iras dos ventos desencadeados.
Era lima tarde da crea^ào, ou melhor urna noite do chaos !
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