SLG 4) c 62960 192! € MN PURCHASED FOR THE University of Toronto Library BY Mransazaaa LIMITED FOR THE SUPPORT OF Brazilian Studies g dad” - o DO RIO DE JANEIRO À CUYABÁ NOTAS DE UM NATURALISTA - POR HerBeRT H. SMmrrH Com umcapitulo de CARLOS VON.DEN STEINEN sobre a capital de Matto Grosso ixo tim 1922 COMPANHIA MELHORAMENTOS DE S. PAULO (Welszflog Irmãos Incorporado) CAYEIRAS, S. PAULO E RIO R. SÃO a s0- po PREFACIO A 27 de Dezembro de 1884 o Jornal do Commercio imprimiu uma communicação sobre a geographia physica do rio EUASUey aperta por Herbert H. Smith. “ Conhecia-o de nome desde sua ida ao Ceará, incumbido por um periodico estadosunidense de estudar a secca de 1877 e “seguintes, Com grande prazer lera a maior parte de seu volume sobre a Amazonia e o littoral brasilico. Sabia que andava em exploração scientífica pelos sertões. Não o julgava tão proximo. A noticia de sua chegada interessou-me sobremaneira. No mesmo dia encaminhei-me ao Museu Nacional para informar-me com o seu compatriota Orville Derby. Lá estava Smith. Derby apresentou-nos. Talvez por vel-o no meio de aves empalhadas deu-me a impressão de um pernalto, Descreve-o bem um fino observador que o conversou bas- tante naquella epoca. «Quando o conheci, escreve-me Castro Fonce- ca, poderia ter pouco mais ou menos uns trinta e cinco annos de idade. Era de estatura mediana, secco de corpo, mas de magreza rija. Sempre severamente trajado de sobrecasaca preta, um tanto longa talvez e um tanto usada, si bem que sem demonstrar a minimã discrepancia do aceio. Para a impressão geral, contribuia juntamente com a firmeza dos traços a accentuada pallidez do semblante, orlado por uma pequena barba negra, pouco densa e ligeiramente hispida, pallidez em que não seria errado divisar um leve tom de ascetismo, ou extremado devotamento pela sciencia, Todavia o que á primeira vista nelle ainda mais impres- 4 PREFACIO sionava era a fixidez do olhar de raro brilho e de uma serenidade penetrante, por onde deixava perceber o continuo esforço não só de procurar ouvir fallar pelos olhos, á maneira dos surdos de viva intelligencia e este era seu caso, sinão, tambem como um sincero desejo de perscrutar a sinceridade do acolhimento dos que com elle tratavam». - A apresentação de Derby resultou em sympathia instanta- nea, seguida logo de amizade solida, a que se associou Valle Cabral. O saudoso, o inesquecivel chefe da secção dos manus- critos da Bib. Nac. Cabral convidou-o para sua companhia. No - estudioso cubiculo da rua das Mangueiras, hoje demolido, na rua de D. Luisa aonde eu residia, no Passeio Publico, sempre que nos era permittido refocillavamos os trez em palestras interminaveis. Smith estudava na universidade de Cornell quando teve por professor Ch. Frederic Hartt, verdadeiro genio, intelligencia genuinamente universal, com um cabedal enorme de saber nos dominios mais remotos, ainda maior capacidade de adquirir e aprender, dizia Smith, em pleno accordo com Derby, para quem Hartt foi a grande adoração de toda a vida. O mestre, que a febre amarella havia de ceifar no pino da virilidade, persuadiu ao neophito de que diplomas academicos figuravam meras convenções estereis; o importante era arcar | com a realidade e arrancar-lhe os arcanos. Assim trouxe-o para o Brasil e atirou-o na carreira das explorações scientificas. Os primeiros amores de Smith foram a geologia, a geomorphia; agora preferia investigar a distribuição de vida no planeta, o que mais tarde se chamou biogeographia, a mais bella das sciencias, insis- tia convicto. Sobre a distribuição dos animaes nas mattas e nos campos do Brasil e a correspondencia das respectivas faunas com uma e outra formação vegetaes chegou a resultados novos e golpeantes. Que pena os não haja reduzido a escrita! Promet- teu-os para a segunda edição brasileira de Wappãus, que nunca sahiu. Que viera fazer á capital do Imperio? Sahira dos Estados Unidos com alguns subsídios e pro- messas particulares; aqui fizera um contracto vago com o Museu PREFACIO 5 Nacional; no ardor das pesquizas esvaiu-se a noção das cousas; os recursos foram definhando ao compasso do tempo; vinha ao Rio ver si no Museu obteria meios de trazer a Senhora e as collecções que deixara na Chapada, a poucos kilometros de Cuyabá. A seu favor empregamos nossa pouca valia. Uma cir- cumstancia fortuita veiu favorecer-nos quando menos espera- vamos. Em Fevereiro de 1885 assistimos os trez amigos á inauguração da estrada de ferro paranaense. Á bordo Smith foi apresentado ao conselheiro Carneiro da Rocha, ministro da agri- cultura, de que dependia o Museu; expoz com lisura seu caso, captóu-lhe a benevolencia, logrou o que pretendia, podendo as- sim trazer para o povoado o que tinha de mais precioso. Antes de voltar ao sertão cuyabano, Herbert Smith pediu- me arranjasse a publicação na Gazeta de Noticias de suas impres- sões de viagens: teria um achego quando tornasse á patria. Era conhecido na folha, creio, sem ter certeza, que já forne- “cera algumas notas. Ferreira de Araujo, o elephante virgem, na expressão symbolica de José do Patrocinio, era o mais bondoso dos homens. Accedeu ao pedido. — Mas a lingua? objectou — Smith escreve a nossa com facilidade e correcção, — mas não seja esta a duvida: elle me dará o original em inglez, a versão fica por minha conta, respondi. Assim se fez. O primeiro artigo sahiu na Gazeta de 21 de Julho de 1886; o ultimo na de 20 de Outubro de 1887. A versão da Gazeta é a que vai no presente volume com ligeiras modificações. De outras maiores sinto a necessidade depois do decurso de tantos annos; faltou-me o original inglez e nada pude fazer. * dk A 6 de Setembro de 1886 publicou a Gazeta: « Parte hoje para os Estados Unidos o nosso distincto col- « Jaborador Herbert H. Smith. É esta a quinta excursão scientifica « que faz ao Brasil. A primeira foi em 1870, como ajudante do « prof, Hartt e passou quatro mezes no Pará. A segunda foi de « 1873 a 1877, tempo de que passou a maior parte no Pará, na « commissão geologica, e algum no Rio. 6 . PREFACIO « Em 1878 fez duas pequenas excursões commissionado « pelo Scribners Monthly, uma ao Pará, outra ao Rio de Janeiro. « Na volta passou por Pernambuco e pelo Ceará, onde estudou «a secca e a epidemia que então assolavam a provincia. | « À ultima excursão começou em Maio de 1881. Depois « de alguns mezes passados no Pará, esteve dez dias em Pernam- « buco, seis mezes no Rio de Janeiro, seis no Rio Grande do «Sul e quatro annos em Matto Grosso. Dedicando-se de pri- « meiro aos estudos geologicos, passou depois á zoologia, princi- « palmente á distribuição geographica dos animaes. Sua collec- « ção zoologica é a mais rica que se tem feito no Brasil, pois « contem 10.060 especies de insectos, 10.000 specimens de aves. « 450 de mammiferos, muitos reptis e bactracios. Tem alem disto « muitos objectos ethnographicos e uma grande livraria bra- «sileira. Na sua ultima excursão foi acompanhado por sua jo- « vem senhora e um cunhado. A ausencia de nosso distincto « collaborador em nada influirá quanto á regularidade da publi- « cação de seus artigos. Antes de partir deixou prontos os 27 « de que se compõe “Do Rio de Janeiro a Cuyabá”, que depois « serão reunidos em volume. « Logo que chegar aos Estados Unidos, mandar-nos-á elle «a outra série de artigos relativos á provincia de Matto Grosso «de que é hoje um dos mais profimdos conhecedores sob os «mais variados aspectos. « Desejamos bôa viagem ao nosso illustre colláboridse e « que não demore muito a sua sexta excursão e a sua segunda « Serie. » * x * A continuação do trabalho de Herbert Smith, que devia estu- dar a remota provincia, nunca veiu. Para Cuyabá não figurar só na folha do rosto, juntam-se algumas paginas do livro de Carlos von den Steinen, tambem traduzidas por mim e impressas na Gazeta. Ferreira de Araujo, que concordára no aproveitamento da composição para dar em separata o delicioso volume do scintil- lante scientista allemão, mudou de idéa e a versão parou a meio caminho. = PREFACIO 7 Em appendice vão trez artigos de Smith, impressos durante sua estada nesta cidade. O seguinte é traduzido de Who's Who in America, vol. XI correspondente a 1920/1921. « Herbert Huntington Smith, nascido em Manlius, N. Y., a 21 de Janeiro de 1851, é filho de Charles e Julia Maria (Huntington) Smith; estudou na universidade de Cornell de 1868 a 1872; casou com Amelia Woolworth Smith de Brooklin, a 5 de Outu- bro de 1880. Melhor conhecido como colleccionador de specimens de His- toria Natural; viajou no Brasil em 1871, 1873/1877, em 1881-1886. No Mexico colleccionou para a Biologia Central-Americana, nas Indias Occidentaes para a W. Indian Com. of the Royal Society e British Association. Suas collecções (pelo menos 500.000 specimens) existem em quasi todos os grandes museus do globo. E Collaborou no Century Dictionary, Century Cyclopedia of names e Johnson Cyclopedia. Curador de Carnegie Museum em Pittsburg, 1896/1898, e ligado com aquella instituição em 1902; curador do Museu de Historia Natural, de Alabama desde 1917. Auctor: Brazil, the Amazonas and the Coast, 1880. Do Rio de Janeiro a Cuiabá, 1886, em portuguez. Publicou: His Majesty's Sloop Diamond Rock, com o pseudonymo de H. S. Huntington, 1904. * x * No dia 22 de Março de 1919 (escreve J. C. Branner, sem- pre amigo e sempre generoso), ás 7 !/, da manhã, Smith, indo de sua casa na villa de Tuscaloosa, Albama, para o museu da Uni- versidade, tendo de atravessar o leito de uma estrada de ferro, foi morto instantaneamente por um trem de carga. Desde moço era um pouco surdo e parece provavel que não sentiu a appro- ximação do trem. Rio, Agosto 1921. CAPISTRANO DE ABREU Da canção referida à pagina 80 vai na pagina seguinte com o texto a versão feita por Mario de Alencar, a pedido do seu velho amigo. AMERICA : - My country, tis of thee, Sweet land of liberty, ' Of thee I sing; Land where my fathers died! Land of the Pilgrinis' pride! From every mountain side Let freedom ring! H My native country, thee, Land of the noble free Thy name 1 love; I love thy rocks and rills, Thy woods and templed hills: My heart with rapture thrills Like that above. HH Let music swell the breeze, And ring from all the trees Sweet ireedom's song; "Let mortal tongues awake; Let all that breathe partake;. Let rocks their silence break, The sound prolong. IV Our father's God, to Thee, Author of liberty, To Thee we sing; Long may our land be bright With freedom's holy light; Protect us by Thy might, Great God, our King! AMERICA (TRADUCÇÃO) Canto-te a ti, patria minha, Doce terra em que se aninha A alma livre; eu canto a ti. Terra em que meus paes morreram, Terra orgulho dos que vieram Peregrinos para aqui: Resoe de cada vertente À liberdade estridente No paiz em que nasci. - Em teu solo, Patria, cobres Filhos mortos, livres, nobres. Teu nome, eu tenho-lhe amor ; Amo-te as pedras, ribeiros, Mattas; amo os teus outeiros, Com seus templos ao Senhor. Freme o meu peito e me exalto Como esses que lá no Alto, Gozam do eterno esplendor. Cante musicas a aragem, Vibre de toda a ramagem Da liberdade o almo som. Que as linguas mortaes acordem ; E os que respiram se accordem; No expandido doce tom. Que as rochas mesmas quebrando . O silencio, vão resoando De echo em echo o canto bom. Deus de nossos paes, Senhor, Que és da liberdade autor, A ti canto, o Deus dos Céus. Que a nossa terra aclarada Perdure na luz sagrada Da liberdade, e com teus Olhos, que podem, ampara Nossa terra doce e cara, “Tu, Rei Nosso, Grande Deus. I Em viagem. — A serra do Mar. As florestas do Brasil. Cerração espessa pairava sobre as montanhas, quando passámos o Pão de Assucar; porém fóra o mar secintillava ao sol grande; brilhantes arre- bentações na praia de Copacabana expunham, em contraste cru, as negras nuvens de cima e os flancos das montanhas, cobertos de floresta. Espectaculos. como estes são communs em todas as costas mon- “tanhosas; mas, sentado no tombadilho, observando as nuvens que se formavam por cima dos picos e por detraz desappareciam, afigurava-se peculiar- mente interessante este fragmento de physica. O vento de Suéste, que encrespava as aguas diante de nós, esteve colhendo humidade centenas de leguas pelo Oceano; batendo nos lados das mon- tanhas, é impellido pelas ladeiras acima e torveli- nhado pelas correntes mais frias do alto; o abaixa- mento repentino de temperatura condensa algum vapor e 'enroupa os cabeços de nuvens, as quaes, aqui e alli, despendem leves aguaceiros. O mesmo processo se intervalla por toda a serra do Mar; “os valles mais altos, especialmente, estão de tal modo expostos a estes banhos de vapor, que me- zes inteiros escorrem humidade suas encostas. Exa- ctamente n'estes logares encontra-se a mata mais alta e mais espessa: florestas como as que rodeiam o Rio não exigem sómente agua para molhar a raiz, mas uma atmosphera humida para se banha- 10 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' rem as folhas, Dá-se isto especialmente com certas plantas, como por exemplo os fetos, cujo numero e variedade na cordilheira maritima do Brasil é maior que em qualquer parte do mundo: só nas proximidades do Rio de Janeiro têm-se encontrado duzentas e cincoenta especies, si não me. engano. Estas e outras plantas amigas da humidade são mais abundantes nos valles elevados, onde, como disse, as florestas são mais bastas e alterosas, mais tro- picaes, diria um viajante europeu. D'ahi para baixo, pelas encostas, os nevoeiros são menos frequentes; ali a floresta é menos: luxuriante e nas planicies junto ao mar abre campo a mato claro, secco, ou a lagamares e mangues. As montanhas roubam, pois, aos ventos do mar sua. humidade, e o que as montanhas recolhem fica perdido para as terras mais baixas que demoram por traz. Si o planalto brasileiro só pudesse contar com a humidade proveniente dos ventos de Suéste, seria, penso, quasi sem chuva. As chuvas do im- terior — procurarei demonstral-o em outro artigo — provém de outras fontes; porém é significativo que a região immediata à serra do Mar seja quasi despida de floresta, tendo a trechos vegetação semelhante à do Estado-Oriental: só para o Sul deparam-se bosques de pinheiros (Araucaria), e aqui e all a Tloresta da cordilheira maritima prende-se à do Paraná, orlando os valles dos rios que das monta- nhas escorrem para Oéste. De resto, a floresta da serra do Mar Ífórma uma massa isolada, que se estende para o Sul até o rio Jacuhy, no Rio Grande do Sul, e para o Norte até o valle do S. Francisco. Para o imte- rior transpõe em alguns pontos a.serra da Man- tiqueira, de sorte que póde dizer-se que attinge a largura extrema de quinhentos a seiscentos ki- ms SERRAS E FLORESTAS 11 lometros, embora em muitos logares seja muito mais estreita: exceptuando, bem entendido, as selvas ama- zonicas, a maior, ou antes, a unica região grande de florestas do Brasil *). “A floresta do Amazonas pertence à planicie e é alimentada por ventos vaporiferos de Este e correntes que nascem do Equador, juntamente com os immensos pantanos e lagos das baixadas amazonenses, o que tudo se combina para produ- zir uma atmosphera humida e chuvas quasi quo- tidianas. Mas a floresta do Sul é propriamente ser- rana: deve sua existencia a estas rochas giganteas, pois sem ellas os ventos passariam inflexiveis para o 'grande planalto. Deduzidas estas duas regiões, nove decimos pelo menos do imperio são occupados de campos abertos ou cerrados, e verdadeiras florestas crescem apenas em ladeiras ou ao longo de rios. | As montanhas formam um bordo elevado ao “longo do lado sul-oriental do planalto brasileiro (si póde chamar-se planalto a superficie desigualmente elevada do interior). Quasi em toda a parte a serra “do Mar, tão precipitemente cortada para a costa, inclina gradualmente para o outro lado; em certos logares até parecem as serras simples escarpas das chapadas. Do lado do Oceano, achareis torrentes de montanhas e alguns pequenos rios; mas nas lon- gas encostas occidentaes as correntes reunem-se em canaes cada vez mais largos: alguns d'elles voltam atraz e abrem caminho pela serrania, como o Parahyba, porém a mór parte seguem as encostas até perderem-se no Paraná. O proprio Paraná tem seus fontanaes na serra do Mar. Seu curso, assim como o do S. Francisco, * Dever-se-ia talvez juntar a floresta do valle do Paraná; po- rém muito pouco se sabe quanto á sua extensão, ou relações com a serra do Mar, 12 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' parece ter sido determinado por dobras menores do mesmo systema de montanhas a que pertence a cordilheira maritima. Aqui, afinal, o sertão ganha tanto com as serras da costa quanto perde com ellas; em grande parte as aguas que essas rochas to- mam aos ventos oceanicos são levadas para alimentar estes dois grandes rios: si ha perda “em chuva, ba ganho proporcional em agua corrente. Estes pensamentos e outros occupavam-me o espirito, embevecido na contemplação dos cabeços annuviados. Cuidava nos milhares de seculos que se estampam n'estas rochas encanecidas, seculos necessarios, não tanto para eleval-as, como para denudal-as; porque, si o primeiro bloco tosco foi erguido do leito do Oceano pelo fogo, o Gigante de Pedra foi esculpido pela agua e pelo ar. Estas rochas de gmneiss se pulverizarão, depois de algum tempo, na atmosphera humida, e lambel-as-ão as torrentes das montanhas e as vagas do mar. Mas quanto tempo custou pulverizar e lavar a Gávea, por exemplo, e separal-a do massiço que outr'ora im- cluia, não só esta montanha, mas ainda o Corcovado, a Tijuca e — quem sabe? — talvez a serra dos Orgãos igualmente? A imaginação perde-se na tentativa de contar os annos que perpassaram, e as mudanças que ti- veram logar, desde a epoca d'estes velhos vulcões, ultimamente descobertos por meu illustrado amigo Dr. Derby. A montanha póde ter-se afundado no Oceano dezenas de vezes, póde ter-se erigido a duas vezes sua altura presente, no movimento irre- quieto d'esta terra que achamos firme. Provavel- mente está se movendo agora, posto que em pro- porção tão extremamente lenta, que seculos mal deixam entrever as mudanças. | ENTRE S. DOMINGOS E ICARAHY 13" Alguns dos antigos movimentos podem provar-3e geologicamente. Na margem oriental da bahia do Rio de- Janeiro, entre .S. Domingos e a praia de Icarahy, ha um trecho de recente geologia, que qualquer dos meus leitores póde examinar, que- rendo. É um banco, uns tres a quatro metros acima no nivel da preamar, composto de areia e argilla, “misturadas de grande numero de conchas de especies “que ainda vivem na bahia. O banco é uma antiga praia do mar: as conchas foram deixadas alli pelas vagas ha centenas ou milhares de annos, e por ulterior movimento ascendente da terra, — talvez uma pollegada por seculo — attingiu o banço o seu nivel presente. Praias levantadas como esta existem em outros pontos á roda da bahia e ao longo da costa, com outros signaes de elevação re- cente -— recente, bem entendido, na accepção geo- logica, pois que póde ser mais velha que nenhuma historia escripta. Si este movimento mais recente foi de elevação, não fallecem provas de movimento mais antigo é “muito mais importante de depressão: acham-se mes- mo na fórma da costa. Bahias alongadas, estreitas, só podem ser valles submersos de rios; ilhas ro- cheas decepadas do continente são cabeços de ele- vação, cujas fórmas cinzelaram chuvas e torrentes, quando assoberbavam o mar, pois a denudação de superficie que lapída blocos iguaes à Gavea e ao Pão de Assucar, cessa ao nivel do Oceano: a denu- dação pelas ondas póde estender-se alguns metros mais baixo; mas além é exactamente o inverso d'esse processo que se dá; as vagas e torrentes que estão moendo as montanhas, acarretam-nas para o fundo, enchem os valles immergidos com areia e argila, amaciando, arredondando, adelgaçando, estendendo uma planície sobre as desigualdades formadas pelas 14 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' [ / mesmas chuvas e ondas, quando o fundo do mar | era terra 'secca:. Si a costa brasileira queda estacionaria, ou si está se levantando lentamente, a tendencia é para encher, não para formar, estes prótunaaa canaes e bahias. As bahias de Paranaguá, Santos e Victoria — menos distinctamente a do Rio — são de facto semelhantes em sua natureza aos Fjords da Suecia e aos Lochs da Escocia, com esta differença que a acção glacial nenhuma parte provavelmente teve nesta formação. Rios que corriam das montanhas para o Oceano tinham escavado valles quasi até | o nivel do mar; quando a terra abateu, o mar investiu por estes valles acima, até que nada ficou dos rios originaes, além de seus mananciaes, pe- quenas torrentes que ainda correm nas testadas das bahias. j Talvez que uma submersão mais antiga da terra . se estampe nas estranhas fórmas das montanhas que circundam o Rio, e que vão para o Norte até o Espirito Santo. Vêm-nos tentações de suppôr que estas figuras grotescas foram produzidas em parte pela acção das ondas, emquanto a terra abatia ou solevava-se, antes que pelas forças ordinarias de chuvas e rios. Quem sabe? A historia geologica, na melhor hypothese, é fragmentaria: é especialmente fragmentaria no Bra- sil, onde restos fosseis — os unicos marcos seguros — rareiam tanto, e o largo sertão está explorado tão imperfeitamente. Fosseis maritimos devonianos têm sido encontrados no Paraná, à altura de quasi mil metros acima do mar; assim, nada tem de visionaria a idéa da submersão de toda a cordilheira maritima brasileira. II Santos. — Paranaguá. — A estrada de ferro do Paraná. — Passeio a Curitiba. — Desterro. — A barra do Rio- Grande. — Sua Magestade o Vento. — O barato sai caro. As fórmas grotescas das montanhas do Rio dão logar, um pouco mais ao Sul, a contornos mais regulares: as montanhas em geral separam-se do mar por uma estreita faixa de planicie, muitas vezes debruada de brancas praias arenosas. A ilha de S. Sebastião e o continente visinho recordam-me as Pequenas Antilhas. De peregrina belleza é esta ilha, com suas encostas relvadas e seus morros corôados de mata, aqui a casaria branca de uma povoação acalentada pelas aguas mansas do canal, além uma velha fazenda meio-embuçada entre o arvoredo. D'aqui a um ou dois seculos, será esta à ilha Wight do Brasil, um retiro á beira-mar para negociantes e politicos fatigados, o recolhimento quieto de homens de letras, a terra da musica € das artes. Os vapores da linha nacional passam por esta ilha à noite, amanhecendo ao outro dia em Santos, Velha cidade historica, rescendendo um ar indeseri- ptivel de antiguidade. Quasi esperavamos encontrar os graves Portuguezes de jaqueta, calção e sapatos de fivella, que existiam lá, pelo meiado do seculo dezoito. Como Santos conduz seu grande commercio / 16 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' com tão pouco barulho e ostentação, é para mim um mysterio. Vêem-se muitas embarcações em frente à cidade, e algumas estão indolentemente carregando de café; mas ninguem' parece ter pressa; ninguem parece incommodar-se que as saccas de café vão para o porão do navio ou fiquem rolando na praia; a idéa do telegrapho afigura-se extravagente, e mal se acredita ouvindo o sibilo da locomotiva. Apezar de sua importancia, o comimercio é quasi todo de transito, e não tem caracteristico que chame a at- tenção do observador .superficial. A cidade não é grande, e parece menos um porto de mar que uma villa de campo. Todavia, pequeno e rural como é o logar, duas cousas devo levar a seu activo: conserva em exposição uma colleeção de cheiros singulares, maior que qualquer cidade sul-americana, e possue um mercado maior que um caixão e menor “que uma casa, no qual estes cheiros todos se con- centram, de modo até agora desconhecido na, historia do mundo. Ainda mais socegado que Santos é Paranaguá, e aqui as apparencias' são menos enganadoras: Oo commercio da praça é pequeno, e o de Antonina, mais para dentro da bahia, ainda fica-lhe inferior. Quasi que exclusivamente exportam estas duas ci- dades, e, em geral, o Paraná, couros e outros pro- ductos bovinos, e mate. Quanto às cidades, as ruas são mal calçadas, e ás vezes nem isto; as casas são espalhadas, innocentes de ornamentação, caiadas de branco ou amarello; as lojas pequenas, - pen- dendo de muitas das portas couros de onça ou maracajá. Nada tem feito a arte por estas duas cidades; mas a natureza tem feito muito. Nen- huma arte poderia igualar ou estragar a gloria d'estas montanhas cobertas de matas, a placida belleza da bahia. A natureza vai dia a dia expun- A ESTRADA DE FERRO DO PARANA! 17 gindo os borrões que o homem' fez em seu painel: à verdura desce aos precintos das cidades e invadiria as ruas mal calçadas, se lh'o deixassem; os telhados estão cobertos de musgo; moitas e trepadeiras alisam as angulosidades das paredes; mesmo as caiaduras tornam-se attractivas sob o toque da artista mestra, onde quer que ella teve tempo para suavisal-a com a armação preta da idade. Em summa: dois sitios pittorescos, Paranaguá e Antonina; a ultima sobretudo, com sua antiga igreja, com suas ruas de grama crescida, é um prazer para os olhos. Fui, pela estrada de ferro, de Paranaguá a Curitiba, no tempo da inauguração, em Março do anno passado. Com os outros convidados, admirei a pericia technica que se revela em sua construc- “ção, e os magníficos aspectos da montanha que atravessa, aspectos mais grandiosos ainda que os da de D. Pedro II. Mas pensava então, e penso ainda agora, a construcção d'aquella estrada; foi um erro financeiro, despeza que não se justifica nem com a condição presente da provincia, nem com o seu progresso provavel. Quinze mil contos foram gastos na construcção de breve trecho, taes as difficuldades que se encontravam, e d'estes quinze mil têm onze mil garantia do governo. A estrada deve, pois, sua existencia a uma especie de sociedade entre capitalistas da Europa e o governo do Brasil, na qual forneceram aquelles os meios necessarios, e este, em consideração a isto, conveio em' chamar a si todos os prejuizos. Ambas as partes entraram na sociedade com intenções perfeitamente honestas, mas com objectos inteiramente diversos: o governo queria abrir a provincia do Paraná por meio de uma via ferrea; os capitalistas desejavam obter bom emprego para seu dinheiro, e não viam objecção em construir uma via ferrea, desde que o governo sas DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' garantia-os contra o prejuizo possivel ou provavel. Nas mesmas condições, cavariam um tunnel do Rio de Janeiro a Niteroi, ou armariam uma ponte pensil do Pão de Assucar ao Corcovado. Do ponto de vista em que se collocaram, amn- daram direito os capitalistas: o mesmo não creio que succedesse ao governo. É este mais um exemplo da illusão perniciosa que as estradas de ferro or- ganizam e aviventam de um jacto o terreno que atravessam. A mesma illusão uma e muitas vezes notei nos Estados Unidos, dando resultados desas- trosos. Felizmente, hoje já se reconhece" lá, que não ha estrada de ferro que, per “se, crêe ou desen- volva uma região: apenas póde aproveitar materiaes que já existiam, ou a que a estrada communica existencia. No caso da estrada de ferro do: Paraná, al- legou-se que, embora não désse proveitos imma- diatos, havia de dal-os no futuro, porque attrahiria trabalhadores agricolas ao chapadão do Paraná. Mas d'onde virão taes trabalhadores? Da Europa? Que tem de attractivo agora o planalto do Paraná para um immigrante, que já não tivesse antes da construc- ção da via-ferrea? Colloque-se qualquer de meus leitores no logar do immigrante italiano. ou allemão: imagine-se pobre, mas forte de corpo e disposto a solfrer privações para levantar um lar futuro. Deixando de parte quaesquer outras provincias, tem elle de escolher entre Paraná, Rio Grande do Sul ou: S. -Paulo. O Paraná tem estrada de ferro de Paranaguá à Curitiba; as outras provincias têm communicações por vias ferreas e navegação fluvial; os terrenos podem obter-se n'ellas em condições tão razoaveis como no Paraná; além de que, o immigrante ficará entre compatriotas, terá excellentes opportunida- Ed O, Ã PASSEIO A CURITIBA 19 des para a educação de seus filhos, e, sobretudo, fará parte de communidade que progride, Tal sendo o caso, sua constituição deve ser muito sin- gular, si preferir o Paraná a provincias de po- pulação mais densa. Si a corrente immigratoria para o Brasil fosse dez vezes maior do que é, seria razoavel esperar que das provincias mais ricas ex- travasasse para o Paraná; fraca como é, só mui lentamente irá se povoando esta provincia, pois, em- quanto encontrarem locação alhures, irão para lá só excepcionalmente. Um pobre não vem ao Brasil à procura de solidão; vem á procura de alimento, vestuario, casa: tudo isto achará mais depressa no Rio Grande ou em S. Paulo; a estrada de ferro não lhe serve de nada, porque não vem junto com “Outros attractivos.. - Espero sinceramente que o tempo me desminta; si houvesse alli sempre presidentes como o Dr. Tau- nay, o progresso dar-se-ia sem duvida possivel e rapidamente; nem por isso é menos certo que a estrada de ferro foi um saque contra o futuro, que este poderá ou não satisfazer. O passeio a Curitiba dá excellente idéa da fórma d'esta parte da cordilheira maritima. A prin- cipio a estrada atravessa terreno baixo, plano, mais ou menos paludoso, de mata pouco elevada, esten- dendo-se até o pé da serra, que-n'esta região er- gue-se de subito qual muralha; a bahia de Paranaguá demora entre morros mais baixos, especie de con- trafortes, ladeados de terrenos alluviaes, Subindo a serra, tirou-se proveito de um longo valle e de seus braços, em torno de cujos lados enroscam-se os trilhos com muitos desvios e declive por vezes de 3% tudo através de magnificas flo- restas alterosas. Escalada a montanha, começa a estrada a des- 20 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA cer, porém muito mais lentamente e sem curvas, seguindo a inclinação natural do terreno: a floresta vai rareando, dando margens a campinas abertas, onduladas, em que destacam capões de Araucaria. Estes terrenos, proprios para o pastio, alongam-se para Santa Catharina e Rio Grande do Sul, sempre encostando mansamente para os rios Paraná e Uru- guay, e terminando abruptamente para a costa, no paredão montanhoso, coberto de florestas. São os campos de cima da serra, os pastos altos, de ve- getação que se assemelha antes à do Estado Orien- tal, do que à do chapadão de Matto-Grosso, Sahindo de Paranaguá, foi parar o vapor em Desterro, ancorando longe da praia, para onde pas- sageiros e bagagens são transportados por uma es- quadrilha de uns vinte botes. De longe os viamos pontuando o mar com suas velas brancas, em ca- prichosa, regata, em que se deleitava a vista. À cidade é aprazivel, com sua casaria branca, que aqui e alli galga a encosta do morro, com as suas torres quadradas das igrejas, com a sua fortalezinha exquisita, com ponte de madeira em que os pas- sageiros desembarcam dos botes. As ruas pela ma- nhã são ruidosas e animadas, dando idéa de activi- dade inteiramente diversa da somnolencia de Santos e Paranaguá, e provavelmente não menos enga- nadora. O commereio do Desterro é pequeno, e em geral não ha no porto mais de meia duzia de embarcações. As mais das horas de que pudemos dispôr, passá- mos a vagar pelos morros e ao longo da praia, colli- gundo insectos e animaes marinhos, e fazendo as ob- servações imperfeitas que a opportunidade permittia, Tive tambem occasião de examinar a grande collee- ção de insectos, feita na provincia de Santa Cathari- na, que agora existe no Museu Nacional, de sorte que SUA MAGESTADE O VENTO A posso fallar com certa confiança de suas feições zoologicas. A fauna, tanto de terra como de mar, assemelha-se inteiramente à do Rijo de Janeiro, com as differenças que se poderiam esperar da distancia que separa os dois pontos. E aqui devo dizer que não observei differença essencial na fauna da serra do Mar, desde o Rio até o Norte do Rio Grande do Sul; talvez o mesmo succeda para o Norte: até o rio S. Francisco. Uma collecção completa de ani- maes terrestres, feita no Rio de Janeiro, represen- taria satisfactoriamente, segundo creio, toda a re- gião que indiquei. Mas além d'estes limites, e para Oéste, além dos limites da zona florestal da serra, . ha mudança parcial de especies e generos. Quando a sciencia de distribuição geographica dos animaes, “que agora está no berço, vier a ser estudada mais cuidadosamente, a região das florestas da serra do Mas será reconhecida como uma sub-provincia z60- logica, resto talvez de alguma zona maior, que sumiu o Oceano. O canal que separa do continente a ilha de Santa Catharina fórma excellente e formoso porto, com as montanhas verdejantes de um lado e os morros mais baixos da ilha do outro. Mais para o Sul, o paredão de montanhas afasta-se da costa, curva-se para Oéste e vai formar a serra Geral do Rio Grande do Sul. Em seu logar apparecem vastas dunas de areia, leguas e leguas de bran- cura monotona, algumas vezes salpicadas de mato secco e plantas rasteiras, especies rijas que con- seguem sugar a vida de qualquer modo, da areia arida e do ar oscillante: paizagens tristonhas como não se póde descrever. Para o interior, até onde a vista alcança, estendem-se comoros de areia, re- mexidos e empilhados e desfeitos, como si a mão 29 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' de algum gigante membrudo as tivera atirado em capricho: horrendo, suffocando com ellas a terra vívida .e deixando apenas morte e solidão. O gi- gante é o vento, e ainda agora brinca com a areia, pulverisando-a aqui, armazenando-a alli, além so- prando-a, como faz com a neve uma tempestade boreal. Algumas d'estás dunas têm trinta metros de altura e mais, e para Oéste, até onde não se póde mais enxergar do vapor, ainda ha milhas de lenções de areia. Este immenso deserto em movimento separa à lagõa dos Patos do Oceano: de Nordeste a Sudoéste alonga-se por 400 kilometros, e na média alarga-se 50 kilometros. De seu-interior pouco sei: contém muitas lagunas d'agua salobra ou doce, e banhados cobertos de macéga; ha tambem um ou dois po- voados de pescadores e caçadores de patos. Do lado que olha para a lagôa, a areia cede por vezes espaço à argila e lama, podendo ser cultivada, e dando, segundo me disseram, bôas safras de me- lões, inhames, mandioca e até milho. Até onde sei, a peninsula compõe-se inteiramente de areia e en- xurro, excepto onde se approxima do continente, A ponta meridional d'esta peninsula é separada pelo canal chamado rio Grande da ponta septen- trional de outra peninsula invertida, que, partindo do Estado-Oriental, divide do Oceano outra lagõa menor — a-lagõa Mirim. Um prolongamento oc- cidental da peninsula meridional divide a lagôa Mi- rim da lagõa dos Patos, e ambas as lagõas são communicadas pelo tortuoso rio S. Gonçalo, junto ao continente. Na ponta septentrional, a lagõa dos Patos recebe o rio Guahyba, propriamente foz do Jacuhy, que por sua vez recebe muitos afíluentes pequenos; além d'este, o Camaquam, é o unico rio de: importancia que desagua na lagôa dos Patos. A BARRA DO RIO-GRANDE 23 A lagôa Mirim apenas recebe o pequeno Jaguarão e alguns arroios. —s A agua que de todos estes rios corre para as lagôas, mal chega para contrabalançar a eva poração d'estas grandes superficies de agua rasa; por isso, o desaguadouro do rio Grande é pequeno “e irregular, dependendo antes dos ventos dominan- tes, que da drenagem das aguas interiores; as marés, muito baixas ao longo d'essa costa, não têm grande effeito sobre elle. Na cidade do Rio-Grandes a 25 kilometros do Oceano, a agua é quasi sempre salgada ou salobra, e durante ventanias continuadas de Este a agua salgada estende-se pela lagôa dos Patos e entra até na lagôa Mirim. Aqui temos, pois, uma das principaes causas “da tão calumniada barra do Rio-Grande. As ondas e correntes oceanicas, arrastando a areia através da bocca do canal, encontram pouco “obstaculo á sua obra, porque a corrente do rio é pequena e irregular, muitas vezes interrompida dias seguidos por uma contra-corrente, que, penetrando na Tagõa, auxilia antes do que impede a formação de bancos. Supprimento incessante de material para construil-os fornecem os ventos do Norte, que muitas vezes des- pejam no canal nuvens de areias das dunas adja- centes; fornecem ainda as correntes de dentro da lagõa que trazem mais areia e argilla. Entretanto, estes processos são muito lentos, e o trabalho de annos póde ser desmanchado por uma só tempestade. Diz-se que nos primeiros annos do seculo, a barra era: impraticavel, excepto para embarcações de pequeno calado. Cerca de 1820, si não me engano, foi arrombada por violenta tem- pestade de Este, de sorte que os maiores navios podiam entrar; mas desde então tem ido gradual- mente aterrando de novo. Ha duas passagens, a 24 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA do Norte e a do Sul: ora se prefere uma, ora outra, conforme o tempo. Ha cerca de um amnno, a passagem do Norte, que se tornára quasi im- praticavel, foi aberta de subjto, e agora é a que mais geralmente se usa. - pes O trabalho de melhorar a barra e o rio Grande limita-se agora a dragagens e ao estreitamento. ar- tificial do canal. Falta-me competencia. para julgar do valor d'estas obras e-decidir si os obstaculos e inconvenientes da barra são ou não superaveis: tambem os mais distinctos engenheiros não estão» de accordo a este respeito. Mas não ha duvidar que a questão é muito séria para o commercio, De Santa Catharina quasi até Montevidéo, a costa não possue outro ponto que, mesmo por figura de rhetorica, se possa chamar porto, e os perigos da navegação são bem visiveis nos numerosos des- troços encontrados a cada canto, restos medonhos dos temidos Pampeiros do Sul, e do ainda mais terrivel Carpinteiro, vento de Este, assim chamado porque junca as areias de vigas e taboas. | Por traz das dunas de areia, quasi sem com- municação por terra, fica: uma das mais prosperas e progressivas provincias do Brasil, provincia cujo commercio está completamente à mercê d'estes tra- balhadores irrequietos — os ventos e as ondas. Uma mudança temporaria de correntes, um vento continuado, podem segregar o Rio-Grande do com- mercio do mundo. Mesmo em cireumstancias nor- maes, os meios de transportes andam mutilados; erandes navios-não podem nunca passar à barra, e os que calam mais de tres metros são muitas vezes expostos a demoras longas e vexatorias. - Sei de uma barca ingleza, que esteve presa no Rio Grande quasi um anno inteiro, de 1880 a 1881. Calava doze pés inglezes, e durante longo Do O BARATO SAI CARO 2º tempo a barra foi-lhe inabordavel. Um dia, emfim, houve agua sulficiente; levantou-se ancora a toda pressa, e a embarcação moveu-se, mas, apenas che- gou à barra, desceu a agua a 111) pés, e foi obrigada a voltar. O capitão, segundo me disseram, ficou doido, em consequencia da decepção. Além dos varios planos de melhoramentos da barra, tem havido muitos outros para abrir a pro- vincia, de diversas maneiras. Um é cavar um canal navegavel através da peninsula que separa a lagôa dos Patos do Oceano, plano cujo resultado definitivo seria talvez deslocar a questão da barra para a bocca do canal. Outro é crear um porto artificial na costa e ligal-o a Porto Alegre por meio de estrada de ferro. O mais geralmente apregoado, e provavelmente o melhor, é ligar Porto-Alegre. a Santa-Catharina por meio de estrada de ferro, plano que sem. duvida será realisado mais cedo ou mais tarde. . -. O certo é que “qualquer systema efficaz para levantar o commercio do Rio Grande do Sul ha de envolver grande dispendio de dinheiro. É este um dos casos em que a economia acarretará mais con- sideraveis despezas, simplesmente porque os sys- temas economicos não attingem o fim almejado. Si se pudesse dispôr de todo o dinheiro que se vem gastando até hoje para meios melhoramentos da bar- ra, ter-se-ia recursos mais que sufficientes para aca- bar inteiramente com os obstaculos, quer construindo uma, estrada de, ferro,, quer abrindo um porto ar- a RA ao o III dim O inferno e um diabo. — S. José do Norte. — Cidade do Rio - Grande e suas celebridades. — O namoro e a «falta de braços ». — O elemento estrangeiro. — Os patos da Lagôa. — Passagem de Garibaldi. Os vapores da linha nacional foram especial- mente construidos para a barra do rio Grande. Quasi todos calam menos de tres metros de agua, e podem agora entrar em qualquer tempo; alguns annos atraz eram sujeitos a longas demoras. De resto, no tempo calmo nada ha na barra que inquiete de modo particular; vêem-se linhas de ondas que arrebentam espumosas à direita e á esquerda, com largo es- paço no meio; uma pequena embarcação, ancorada n'este espaço, apresenta varias bandeiras cabalis- ticas, mudadas a intervallos, mudanças a que cor- respondem outras de uma, torre da praia. A embar- cação anda cheia de gente, e duas pessoas estão constantemente sondando com varas compridas; as bandeiras indicam a profundidade, que é sujeita a constantes € rapidas variações. Si tivesse um inimigo de quem desejasse tomar alguma vingança exemplar, trataria de arranjar-lhe um emprego vitalicio na barca de signaes do Rio- Grande. Vel-a, basta para tornar doente uma pessoa: inclina-se, empina-se, desce, rodopia, faz todos os movimentos possiveis, excepto virar de bocca para baixo e por-se de pé. A vida é agradavel, quer horisontal, quer perpendicular; vida a um angulo O INFERNO E UM DIABO 24 de 45º grãos póde tolerar-se; mas a vida em curva parabolica movel, complicada de esguichos de agua salgada, chuva, sol que escalda, e responsabilidade official, não vale a pena viver-se. Tinham em outro tempo — não sei si têm ainda — um vaporsinho que servia de guia, chamado “Manuel Diabo, cujo officio era ir adiante das em- barcações que entravam, apontando-lhes o caminho. Com este guia satanico entrámos, trambolhando uma ou duas vezes nos baixios; mas já estavamos avi- sados e pouco susto tivemos, embora não pudessemos abster-nos de especular sobre a solidez do fundo do navio. Manuel Diabo, tendo-nos posto a paz e sal- vamento no caminho estreito que leva para o Rio- Grande, retirou-se roncando enxofre. Seguimos, pois, nossa viagem rio acima. Alar- ga-se elle uma meia legua, entre duas fileiras de comoros de areia abrasada, da qual é um allívio desviar os olhos, para fital-os nas aguas arrepiadas e nas graciosas embarcações que deitavam ancora, Uma barca, ao passarmos, ia dar à vela e o rhy- thmico Yo-heave-yo, yo-ho dos marinheiros inglezes, que chegava attenuado, trazia-nos à memoria dias que lá se foram. S. José do Norte é uma cidadezinha branca de cegar e sem sombra, situada ao pé de dunas de areia, à margem septentrional do canal. Foi este, creio, o estabelecimento mais antigo; agora, porém, é como um suburbio maritimo da cidade do Rio- Grande, que está situada um pouco adiante, da outra banda. Aqui anima-se o rio com as muitas embarca- ções ancoradas, umas no canal, ajoujadas outras ao bello e longo cáes de pedra que faz frente à agua. Por traz d'este cáes corre a primeira linha de casas e armazens, deixando um espaço largo, aberto, bello 28 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' passeio e ao mesmo tempo grande conveniencia para o commercio. 3 Os Jcõôes do Rio-Grande não pedem muito tempo: ha a alfandega Rio-Branco, coberta de cimento pardo para imitar marmore. A natureza, melhor imitadora que a arte, quando o quer, está puncejando o branco com aquelle esfuminho negro tão commum nos edi- ficios da America do Sul, pinceladas gentis que mitigam os contornos duros e as paredes rutilantes, até tornal-as um gosto para a vista: esperemos “que escape muito tempo ainda à escova vandalica do caiador. Quanto ao mais: igrejas que nada têm de especial, algumas bellas vivendas, um passeio pu- blico traçado com muito gosto, e o mercado com seu grupo pittoresco de carniceiros, pescadores, eria- dos e freguezes, que fazem seu negocio com a somma costumada de vozeria e gesticulação. Muito menos interessante que o mercado do Rio, só é notavel por seu asseio, € por seus cachos de uvas, peras, maçãs e ameixas, em vez de la- ranjas e bananas. As casas de negocio por atacado enfrentam o rio; as, lojas a retalho ficam-lhe por traz em outra rua, muitas d'estas pequenas, porque seu commercio limita-se á cidade: não ha freguezes do campo, simplesmente porque os vizinhos morros de areia e banhados são inhabitaveis. A cidade é cercada por todas as bandas, d'estes banhados; as ruas terminam em terrenos planos, tristonhos, humidos, cobertos de grama grosseira, e entremeiados de cacimbas, inçadas de mosquitos, rescendendo a lixo. Procurámos ir por estes ter- renos até às dunas; mas em breve detiveram-nos banhados insuperaveis, errámos o caminho e fomos dar em fossos, e só voltâmos depois de duas horas, suados, enlameados, desesperados com os mosquitos. Entretanto, o passeio não foi sem proveito; os pas- CIDADE DO RIO GRANDE 29 saros e animaes achados n'estes sítios são quasi todos peculiares, e muitos d'elles interessantes. As cacimbas tambem, apezar de sua apparencia de pou- cos amigos, estão cheias de peixes, carangueijos, camarões, planarios, insectos aquaticos: um zoologo lucraria passando aqui algumas semanas. A agua para a cidade vem de um poço aberto n'esta planicie; tirada à bomba e depois encanada, refrescada pela infiltração através da areia, é muito bôa. A -companhia que a fornece tornou-se ha al- guns annos tristemente conhecida, graças a um es- candalo financeiro: foram emittidas acções falsas em larga quantidade, e só descobertas depois dos accionistas soffrerem grandes perdas. A companhia não pactuou com a ladroeira, cuja culpa recahiu unicamente sobre certos individuos; mas uma or- ganisação, na qual se dão irregularidades d'esta ordem, sem que ninguem o soubesse, é pelo menos de um desmazelo criminoso. Do estado presente da companhia nada me. consta. | “À outra excursão que fizemos, foi em bonds, que vão por entre morros de areia ao chamado Par- que, bosquete de eucalypto, tão seccos e tesos aqui como alhures, com areia que chega ao tornozelo e sol que requeima como fornalha. Ao pé, fez-se a nova estação da estrada de ferro, ponto terminal de uma linha que vai por Pelotas a Bagé, e d'ahi deve chegar a Uruguayana. No plano primitivo o ponto terminal era Pelotas, porto até onde podem chegar todos os navios que passam a barra, embora seja um pouco difficil para os de vela. - A despeza de umas dez leguas de via ferrea por lagamares que accresceu, e a dispendiosa ponte de Pelotas, assim teriam sido poupadas. Porém os rio-grandenses, inquietos por causa de sua supremacia commercial, insistiram pela con- 30 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' tinuação da linha e obtiveram-n'a. Entretanto a su-. premacia commercial vai abandonando do mesmo modo. : E era de prever isto, mais cedo ou mais tarde, pois, tornando-se mais commum a navegação à va- por, sendo melhorado o canal de Pelotas, os ne- gociantes haviam de preferir embarcar n'este porto, a pagar o frete extra de estrada de ferro ao Rio- Grande. Ea Na manhã seguinte fomos transferidos a outro vapor da mesma linha, porque naquelle tempo os vapores maritimos não iam até Pelotas e Porto Alegre. O salão estava cheio de passageiros bem vestidos; mas não eram estes que me interessavam e sim os immigrantes italianos, que se apinhavam na prôa. Havia-os mais de cem, de ambos os sexos e de todas as idades, desde a criança que nasceu na travessia da Europa até à velha desdentada de setenta annos, que vem deixar os ossos lassos em terra estrangeira. Quasi todos eram da Campanha de Napoles, e muitos usavam as vestimentas ruraes napolitanas. Contavam-se meninos às duzias; gor- dos, alegres petizes, sujos de modo inverosimil e com tamanho pendor para pedir que em pouco limparam- nos os bolsos de cobres; rapariguinhas bonitas, de olhos brilhantes, encarregadas das crianças e logo regaladas de cascudos quando se descuidavam d'el- . las. Aqui está uma donzella de dezoito annos, mais aceiadamente vestida que suas companheiras, com um corpête côr de purpura sobre o vestido branco de saia curta, e o glorioso cabello negro colhido em pesadas tranças no gracioso penteado italiano. Senta-se a seu lado um rapaz trigueiro e bello, vestido toscamente de jaquêta curta, calções que chegam ao joelho, sapatos grossos e chapéu conico O NAMORO E A FALTA DE BRAÇOS 31 de feltro; tem a face grave, ardente, varonil, il- luminada á força de nobre paixão; a d'ella é mo- desta, mas esperta: os olhos estão baixos, e a côr acode-lhe e foge-lhe ás faces quando elle lhe falla rapidamente em seu italiano tão doge. Agora elle lhe toma a mão, ella ai retira a meio, e depois deixa-a ficar; então levanta os olhos para os delle com um sorriso que lhe entreabre o céu, e salta e corre antes que elle tome mais liberdades. Que importa a estes dois o panno fino e à seda do salão? Que lhes importam os negociantes a fazerem transacções em que ganham e perdem centenas de contos; os politicos a esgrimirem-se por questões de interesse nacional? Ora! Tambem elles têm seu interesse nacional! Dentro em pouco irão a um padre que os autorizará a augmentarem | a população segundo o methodo orthodoxo; ou — filhos do Sul ardente — dispensarão o padre o augmentarão a população do mesmo modo, conforme seus talentos; haverá rapazes sacudidos que brin- carão e brigarão e mais tarde trabalharão; haverá bonitas raparigas, que por seu turno encontrarão namorados e irão augmentando o censo ad infinitum. Assim é que a questão dos braços se encaminha para a solução pratica: de que servem vossas theo- rias diante d'isto, senhores Philosophos? Os Italianos que vêm para o Brasil são com certeza, como classe, melhores que os que vão para os Estados-Unidos. O Brasil obtem camponezes e lavradores, gente affeita ao labor agricola, que se estabelecem de uma vez para cultivar a terra, Para New-York vão os pobres das cidades, tocadores de realejo, vendedores de imagens, mendigos, que nunca emprehendem trabalhos de lavoura, e quando muito apenas servem para varredores de ruas e car- regadores. Os commissarios de immigrantes em Cas- 32 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA! tle-Garden fallam dos de esbgcases italiana como da peior classe que recebem: | Fr De alguns annos a esta pátiaoi a maioria | idos immigrantes do Rio Grande do Sul tem sido italianos: antes havia corrente firme de allemães, que agora diminuiu um pouco. Talvez sobre nenhuma, provin- cia tanto haja influido o elemento estrangeiro como aqui: na parte soptentrional, um quarto provavel-. mente da população é allemã ou italiana, e a pro- porção:val constantemente crescendo: Mas esta pro- porção não representa exactamente a importancia do elemento estrangeiro, especialmente do elemento allemão, que é a musculatura e a ossatura da pro- vincia., É verdade que a maior parte da industria pastoril continua nas mãos dos brasileiros. Mas a agricultura mal existiria, si não fossem as colonias allemãs. O commercio está em grande parte nas mãos de commerciantes allemães; quasi todas as emprêzas . manufatureiras são de origem allemã; membros allemães fazem parte da Assembléa Pro- vincial, onde votam: bem e com acerto; ha ad- vogados allemães, “medicos allemães, professores allemães, padres allemães; dois dos mais importantes jornaes de Porto Alegre são dirigidos pelo bem conhecido Carlos: von Koseritz, que redige com igual proficiencia um em portuguez, outro em al- lemão. Aqui, do mesmo modo que nos Estados-Uni- dos, os Allemães são excellentes cidadãos, adaptados rapidamente à sua nova vida e que sentem ver- dadeiro inheraaaa e orgulho por sua, pasria adoptiva, cf : Sri nd eis! o canal que leva à lagõa, dos Patos, os ireguaiiós têm de fazer um longo circuito a E, passando por S. José do Norte; o canal: é balisado por boias dé ambos os lados, plantadas a breve intervallo, de sorte: que se ii a: sensa- NA LAGOA DOS PATOS 33 ção de quem viaja em uma estrada entre duas linhas de defesa. Atravessámos o extremo da lagõa e en- trámos no S, Gonçalo, tocando em Pelotas, de que me occuparei mais demoradamente em outra carta; depois tornámos à lagôõa, esplendido estirão d'agua ao Norte e Nord'este. A agua é ligeiramente bar- renta e nunca muito funda; o canal navegavel é geralmente junto à margem oriental; perto do centro baixios, que se estendem quasi transversalmente, dificultam muito a navegação: ha aqui um pharol fluctuante. Vimos ao longe morros e montanhas azues, bra- cejos das serranias do Erval e Camaquam, a Oeste; para as bandas do Nascente havia apenas comoros de areia e lamaçaes, com milhares de grandes pa- tos, de que a lagõa tira o nome, Muitas vezes cor- riam atraz dé nós em innumeras revoadas, pousando na- agua ou nos bancos de lama, onde formavam em longas filas como regimentos de soldados. Estes patos não têm quasi valor para a alimentação; mas as pelles, depois de arrancadas as pennas maiores, têm o bello aspecto de um branco macio, cuja pen- nugem se assemelha muito á do eider. Ha outros patos menores, muito apreciados como comida, que são levados às centenas para os mercados de Porto- Alegre e Pelotas. “= Vapores pequenos, dos que se empenham em navegação fluvial, não podem navegar n'estas la- gôas, em consequencia das frequentes tempestades: as ondas elevam-se ás vezes tanto que elles cor- reriam perigo. Estas e os baixios fazem a navegação pouco segura para navios de vela, que raro vão até Porto-Alegre. Tivemos a prova d'isto n'uma tremenda trovoada que repentou durante a noite: o navio balançava como se estivesse em mar des- abrigado, e o capitão fez bem lançando ancora 34... DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' para deixar passar o ventaral. Quando na manhã seguinte subimos á coberta, estavamos á entrada do Guahyba, passando entre duas pontas de pedra, onde o canal se estreita abruptamente, para alargar- se de novo mais acima. Provavelmente nenhum de nossos immigrantes italianos sabia que este sitio assoclava-se à historia de seu heróe predilecto. Uma noite escura, durante a revolução de 35, um general republicano passou por aqui, remado por um joven italiano que era soldado em suas fileiras. Não me lembra o nome do general, mas o remeiro era Giu- seppe Garibaldi. Além d'esta Passagem do Garibaldi tornam-se pittorescas as margens do Guahyba. Immensos ro- chedos de granito ficam padrastos á agua, ou in- clinam-se precipites, sempre massiços, severos, sem os angulos agudos das outras rochas; seus lados toscos, escalvados e pardacentos, ou cobertos apenas de bromelias espinhosas e cactos, contrastam com os brilhantes campos verdejantes que ficam ao fundo, as manchas de florestas que alastram aqui e acolá, e as linhas das margens de areia branca que en- castoam lindas bahias. Ás vezes avistavamos casas de palha, e alguma vivenda campestre mais pre- tenciosa, formando tudo um conjuncto de belleza rural, dificilmente igualado nas costas do Brasil. Notámos, porém, que estes terrenos são pouco cul- tivados: a maior parte d'esta região serve: para o pastoreio, ficando os distritós agricaaa mais para o interior. | | Ev + IV O Jacuhy ha um milhão de annos. — Como se formaram a lagõa dos Patos e a Mirim. — Porto Alegre e Me- nino-Deus. — Onde acaba a dignidade. — Por que as perdizes são pintadas. — Scena de vida cigana. — Pois que morram! — Mel de abelhas. Rigorosamente o Guahyba é um prolongamento alargado do Jacuhy; si despejasse no mar, em vez de despejar na lagôa, chamal-o-iam estuario. Geo- logicamente é provavel que tanto a lagõa dos Patos como a lagõa Mirim são outros prolongamentos do Jacuhy e Guahyba muito modificados pela mesma depressão que encheu as bahias de Paranaguá e Santos. Um ou dois milhões de annos atraz, com o nivel da terra «mais alto, o rio Jacuhy era muito maior. O seu curso superior correspondia ao Guahyba e Jacuhy actuaes; mais abaixo, inclinava-se para o Sul, atravessando um longo valle, cuja posição é marcada pelas actuaes lagõas; e só desembocayva no mar lá pelos confins do Estado-Oriental: o Ca- maquam e o Jaguarão eram affluentes. Abatendo a terra, o mar foi gradualmente invadindo o valle, formando uma longa bahia Norte-Sul, separada do Oceano a E por uma estreita peninsula, e recebendo os rios mutilados, nas testadas. N'esta epoca asse- melhava-se á bahia de Chesapeake, na costa orien- tal dos Estados-Unidos. A peninsula foi se tornando menor, á medida que o movimento de depressão ia continuando, Mas 36 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' esta mudança dava-se de vagar, e simultaneamente occorria outro processo. Na ponta meridional da peninsula, constantemente minguante, havia! um bai- xio, que marcava o ponto da terra sobreaguado. Em tal baixio as ondas e correntes amontoavam ma- teriaes de construcção, n'este caso areia, e quando as aguas levantaram-na à altura da préamar, veiu o vento e apanhou-a, amontoou-a em dunas e trans- portou-a para formar morrarias. Assim, como a peninsula de terra firme ia adelgaçando a mais e mais, iam trabalhando ondas e ventos, até que nada mais ficou da terra original: o logar da primitiva peninsula rochea, foi oceupado, do lado do mar, por uma peninsula de areia, O lado occidental ou de terra foi coberta menos completamente, porque ondas e ventos não podiam all exercitar-se, e o Jacuhy e seus braços traziam tão pouca terra e areia que não podiam corresponder à depressão: assim uma, lagõa ou bahia ficou dentre da linha; de areias. Em um trecho o mar é os ventos Eri imperfeitamente, e ficou uma brecha na linha dos morros de areia, pela qual a agua da lagõa com- municou com o Oceano através da peninsula; mares e correntes foram aprofundando o canal, até for- mar-se o rio Grande. Neste canal tinha a lagõa sangradouro sufficiente; a antiga embocadura: no | Sul- foi enchendo eradualmente de areia, e afinal tapou-se de todo. D'este modo a parte meridional da lagôa tornou-se mera bahia, e por não haver correntes que a conservassem aberta, o sedimento accumulou-se em sua: parte septentrional, até que chegou à tona d'agua formando terrenos lisos e anegados estendidos quasi transversalmente; um estreito canal que ficou junto á terra alta a Oéste é o actual rio S. Gonçalo. A parte meridional : do PRIMEIRA VISTA DE PORTO ALEGRE 37 antigo lago, assim cortado do resto, ficou sendo a lagõa Mirim, e a parte septentrional é a lagõa dos Patos. Esta theoria da formação das lagôas será pro- “ vavelmente modificada por estudo mais cuidadoso, especialmente pelo estudo das peninsulas arenosas que medeiam entre ellas e o Oceano. Talvez o Jacuhy não se alongasse tanto para o Sul quanto suppuz; talvez a estructura das lagõas se modifi- casse por alguma, ligeira elevação recente da terra. Mas os pontos principaes — a formação das lagõas em antigo valle fluvial e a formação de peninsulas arenosas ao longo de uma antiga linha de costa — creio que se sustentarão. O mais difficil ponto a explicar é a origem da vasta quantidade de areia empregada na formação das peninsulas. Provavel- mente, grande parte d'ella foi trazida do Norte e do Sul por correntes oceanicas *). Nossos immigrantes italianos apinhavam- se no convéz para apanhar a primeira vista de Porto- Alegre, sua nova patria, ou pelo menos sua nova metropole. Com “certeza, indi muito cipa i este primeiro relance. Altos armazens enfrentavam a agua; atraz, as casas coroavam uma elevação, misturadas aqui e alli com o arvoredo verdejante dos jardins, e alguns edificios publicos mais pretenciosos, notaveis por sua posição no cimo do morro. Vapores e navios de vela enfileiravam-se diante de pontes de madeira; botes passavam aqui e alli, rapidamente, pela agua mansa; tudo [sob o sol rutilante da manhã, numa atmosphera lavada por tempestades recentes. A ci- *, A argumentação aq priori aqui empregada não se póde con- siderar conclusiva; mas os limites e natureza de um artigo. de jornal não admittiam raciocinio inductivo rigoroso, 38 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA dade está construida acima e em roda de uma ponta baixa de pedra, no lado septentrional do Guahyba,; a agua é profunda e os navios carregam directa- mente nos trapiches. Desembarcando em um d'estes e insinuando-nos pela turba pittoresca e ruidosa de cocheiros e car- regadores, fomos dar ás duas ou tres das ruas prin- cipaes da cidade. Era como uma mistura de Alle- manha e Brasil, com alguma cousa tambem da acti- vidade de uma cidade commercial da America do Norte. A cada canto encontravamos signaes de alle- mães. Negociantes, nas esquinas, fallavam uns com os outros no guttural de sua Vaterland. Carregadores allemães levaram nossa bagagem para um hotel allemão, cujo dono allemão com sua linda esposa, tambem allemã, recebeu-nos como velhos ami- gos — e não poz esta recepção na conta. O hotel era um brinco: os quartos limpos até onde sabão e agua podiam chegar; as criadas (nada dos criados sujos de outras partes) as criadas, lim- pas e frescas que nem lirios, lírios negros aqui para nós; e, cumulo das maravilhas, a cozinha tão aceiada como o resto da casa, o que não augmentou pouco o sabor do almoço. Para prolongar a illusão pedimos cerveja, em vez de vinho, e o dono do hotel trouxe-nos uma excellente, fabricada em Porto Alegre. Para fechar com chave de ouro: a conta muito moderada. E antes que digam que o homem me pagou para escrever isto, declaro desde já que fallo movido pela gratidão pura e simples, quando aconselho ao leitor que procure este hotel modelo, si tiver um dia a fortuna de ir a Porto ai Só lhe acho um defeito: é ter nome francez — Hotel du Brésil. oe Descrições de cidades raras vezes são in- teressantes, é não massarei o leitor com mais uma. PORTO ALEGRE 39 Ha em Porto Alegre o numero costumado de igre- jas, hospitaes e quarteis, theatro, lyceu, e o palacio da presidencia, edificio despretencioso plantado no ponto mais elevado. As ruas são todas largas, bem calçadas e notavelmente limpas. Feriu-nos a at- tenção o grande numero e importancia das casas - de grosso trato, muitas das quaes fariam honra ao Rio de Janeiro ou New-York. Têm commercio activissimo, em parte devido ás colonias agricolas que mandam seus productos a Porto Alegre trocar por generos europeus. As manufactaras são mais importantes aqui do que em qualquer outra cidade brasileira fóra do Rio: fabricam-se machinas, sellas, chapéus, mobilia, cerveja e grande variedade de outros objectos: quasi “todas as fabricas têm donos ou operarios allemães. — O mercado é dos mais bem suppridos do Brasil, e a reunião de productos dos tropicos e das zonas temperadas devéras curiosa. Vêem-se fi- las de pêras, uvas e pecegos e cestos de morangos ao lado de bananas, laranjas e ananazes; vêem-se bojudas ervilhas, aboboras retorcidas, confundidas com carás, melões, batatas doces e côcos. Cen- tenares de patos e grande variedade de excel- lente peixe são tirados da lagõa; as colonias dão aipim, feijão, milho e fumo; os campos contri- buem com a carne de vacca e de carneiro; e ha a variedade usual de pequenos generos europeus. Varias quitandas vendem cuias lindamente pintadas e esculpidas, para matte, muito usadas na provincia, Fizemos uma collecção d'ellas, pretas e verme- lhas, pintadas e recortadas de desenhos mais ou menos complicados. As mais bellas são muitas vezes embutidas de. prata, como na republica Argentina, Por traz do morro está um campo aberto, de perto de uma milha de extensão, muito extenso para 40 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' se chamar praça, e apenas rodeado parcialmente de casas. Serve para paradas militares e solem- nidades: n'um grande é a feira dos camponezes que vêm á cidade vender os seus productos. 'Tra- zem-nos ás vezes em mulas, porém mais -com- mummente em enormes carros de rodas de páu, com toldos de couro patriarchaes, sufficientes para abrigar uma familia, e puxados por seis ou sete juntas de grandes bois pacientes, de aspas que me- dem um metro. Não andam tão depressa como um trem de ferro, mas não lhe ficam atraz em barulho, Antes pelo contrario. dás q N'este campo, em 1881, esteve amantas a ex- posição teuto-brasileira, Tive occasião de vêl-a e surprehendeu-me a variedade e valôr dos objectos: nada poderia representar de modo mais vivido a importancia do elemento estrangeiro no Brasil. O leitor ha de lembrar-se como foi depois queimado o bello edificio, com grande porção dos objectos expostos. Este desastre foi tanto mais lamentavel por dar azo a accusações insensatas contra os di- rectores da empreza, na Ef Linhas de bonds atravessam este campo e eia vam para os suburbios, terreno aberto, ondulado, com cottages aqui e alli, Muitos d'estes proclamam sua origem allemã nas rosas e jasmins dispostos rusticamente junto ás portas, de muito mais gosto artistico do que os tesos jardins geometricos, tão communs no Brasil. Na jardinagem, como em tudo o mais, a arte só presta quando copia a natureza, Dá-se cousa mais feia do que um. canteiro qua- drado, ou um gramado triangular, bordado de con= chas ou pedrinhas brancas? Só abro excepção em favor das ruas de palmeiras e sebes espinhosas; . mas a belleza n'este caso depende da perspectiva, de que a jardinagem mathematica nenhum cabedal faz. AONDE ACABA A DIGNIDADE 41 O bond chega a umas tres milhas adiante, até Menino-Deus, bonito punhado de casas com uma capellinha branca, muito frequentada no tempo das festas annuaes. Fóra d'isto, o logar é muito so- cegado, — somnifero, pensavamos nós, sentados no pequeno restaurante do ponto dos bonds e cochilando diante de copos de cerveja branca. Depois da cer- veja subimos a um morro atraz da capella: o ar estava tão perfumado e a grama tão macia, que nos veiu a vontade de deitar e dormir á soalheira, Foi o momento que aproveitou um touro preto para apontar na crista do morro: parou, mediu-nos, decidiu que eramos uns intrusos, moveu os chifres para nós, abaixou a cabeça e carregou como a velha guarda em Waterloo. Fugimos com enthusiasmo. A digni- dade acaba onde as pontas de um touro bravo co- meçam;, | “Depois do touro, acordados de uma vez, conti- nuámos nosso passeio, botanizando um pouco, e co- lhendo nossas primeiras impressões das feições na- turaes d'esta região, tão diversas d'aquellas a que no Rio nos haviamos acostumado. Em vez das mon- tanhas nemorosas, morros arredondados, cobertos apenas de macia camiseta de grama, profundas bar- rocas cheias de moitas trançadas e arvores baixas, sem nada que se approximasse da mata virgem. Corujinhas de campo piscavam os olhos de buracos da margem; perdizes erguiam-se dos fetos seccos e liam pousar adiante; passarinhos escuros, muito semelhantes aos pardaes da Europa, e seus con- generes, fugiam em grandes bandos. Interessou-me observar quanto as perdizes eram resguardadas por suas côres e signaes. As linhas verticaes e as pintas de sua plumagem, vistas a pouca distancia, imitam perfeitamente os claros e escuros das folhas é talos do bamburral, de tal arte que, estando o passaro ) 42 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' pousado 1 na herva, se torna quasi invisivel á vista -mais exercitada, Estas semelhanças protectoras, como as.chamam, são muito mais communs do que geralmente se pensa. Jaguatiricas e gatos do mato pintados vivem entre folhas, em que a luz e a sombra se misturam em manchas; os tigres, com suas estrias verticaes, frequentam os cerrados ervosos da India; os leões trigueiros encontram-se nas amarellas areias afri- canas. Assim, os papagaios são verdes como as folhas; os insectos que carcomem madeiras são es- curos ou pardos, e asperos como as cascas a que se apegam; os gafanhotos parecem folhas ou capim, e assim por diante, ad infinitum. Sobre estas se- melhanças direi mais alguma cousa no correr destas viagens, A outra excursão que fizemos de Porto Alegre, Toi através do rio, a uma ilha baixa que defronta a cidade: esta ilha, ao contrario da terra firme, era coberta de floresta, não muito alta, mas tão intricada que mal" pudemos inserir-nos. Em um logar. de- terreno mais alto e secco descobrimos uma casinha de palha, ou antes um rancho, em que moravam um pescador mulato e sua familia. O homem, descalço, vestido de camisa e ceroula de algodão, estava se aquecendo ao sol quando chegá- mos; mas, vendo-nos, poz-se de pé e olfereceu- nos a casa; os meninos, semi-nus e emporcalhados, agarravam-se ao vestido da mãe, e olhavam es- pantados para a minha senhora. Tambem à dona da casa era arisca, e parecia ter vergonha de seu vestido de chita desbotada; provavelmente não ti nha melhor. A cabana possuia por unica mobilia alguns couros estendidos no chão para -camas, e um banco de Pó com uma canastrinha; havia al. POIS QUE MORRAM ! 48- guns utensilios de cozinha, feitos de barro, um ou dois pratos e colheres de ferro, e nada mais. Esta vida é pouco melhor que a de Indios brabos. A cabana mal protege do sol ou da chuva, e naquella ilha pantanosa ha perigo constante de febre, e exposição continua aos mosquitos. Entre- tanto, aquella gente continuará a viver do mesmo modo annos seguidos, e seus filhos viverão como ella até morrer. Invencivelmente os comparavamos com os immigrantes allemães, que, muito pobres que sejam, estão sempre tratando de melhorar sua condição, e prefeririam morrer de fome a morar n'aquelle casebre, — Ha uma classe como esta em todos os paizes, . strato inferior da civilisação, mais apparente talvez na America do Sul, porque é facil viver n'estas plagas ubertosas, e porque as raças mestiças, tão * communs aqui, herdaram os habitos inertes e des- cuidosos de seus antepassados indios e africanos; apenas alguns têm a*ambição de erguer-se da vida animal, Augmentam as listas da população, mas para o estado são verdadeiro zero, não fazendo bem nem mal; quasi nada trazem ao mercado e ainda menos levam para casa; vivem ao deus dará, satisfeitos quando têm provisões para um dia e palhoça que os abrigue. Hão de desapparecer em grande parte, à medida que da terra se forem apossando gentes mais industriosas; hão de submergir-se e morrer diante da onda de immigração européa. Pois que morram! É o unico serviço que podem prestar ao paiz, e a lei inexoravel do progresso determinou sua extincção. Não lhes contesto sua felicidade pre- sente, e seu viver pittoresco têm certo encanto, não ha duvida. Tambem uma arvore morta é pit- toresca, mas prefiro a viva. Não ha perigo de que a immigração européá 44 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA” avolume esta classe, excepto pela mistura, que raras vezes se ha de dar. Um homem que tem bastante caracter para emigrar — seja embora tocador de rea- lejo ou trocador de santos — é bôa materia prima para qualquer estado; bôa, porque, em virtude d'a- quelle caracter, procurará melhorar de condição; bôa, porque se erguerá mais ou menos na escala da civilisação. As aguas sociaes, mesmo lodosas, são bôas, quando revoltas; as aguas mortas estagnam e engendram impureza. Muito tempo ficámos sentados debaixo das ar- vores, apreciando a scena cigana que se antolhava, O sol da tarde dourava a folhagem e cahia em linhas tremulas sobre a relva; galhos verdejantes ramalhavam sobre as aguas seus arcos sombrios: peixes garridamente pintados nadavam junto ás raizes; e insectos aquaticos porejavam rapidamente à tona. Adiante, nossos catraieiros tinham acendido uma fogueira na praia e cozinhavam o peixe que apanharam, Os homens e a «mulher, esta, de có- coras em um couro, com seu filho de peito brin- cando-lhe ao lado, e os outros meninos juntos, fa- ziam um quadro em que qualquer artista sentir- se-ia enlevado. Depois de algum tempo, os meninos perderam o medo e induzi-os a caçarem insectos commigo: não foi a pequena sorpresa d'elles, quando lhe dava vin- tens (convertiveis em doces) por escaravelhos e gafanhotos. Então, o homem ajudou-me a collecio- nar peixinhos, emquanto meus ajudantes*) met- tiam-se pelas corôas colhendo moluscos de agua doce, Ampullariceo e Anodonte, de diversas espe- cles, *) Norte-americanos e parentes, que me acompanharam em to das as peregrinações, e a quem devo muito do que consegui, N'ºestes artigos serão conhecidos como Guilherme e Alberto, IMPRESSÕES NOCTURNAS 45 Quando estavamos merendando, a mulher trou- xe-nos uma cabacinha de mel, producto de alguma abelha da floresta, uma Melipona talvez. Era es- curo e não muito bom; comemos pouco d'elle, feliz- mente, porque poz-nos todos doentes. Ha muitas * especies de mel silvestre no Brasil, algumas muito bôas, outras decididamente deleterias; é preciso cui- dado com seu emprego. Ficámos aqui até cahir a noite, porque desejava que minha senhora prolongasse esta visão, quasi a primeira, da vida silvestre no Brasil. A noite estava quente e serena, quando os catraieiros nos guiaram indolentes sobre as aguas espelhantes. As estrellas e as luzes enfeixadas da cidade reflectiam-se em longos traços ondulosos, e o canto longinguo de um canoeiro chegava-nos fraco e doce como uma musica feiticeira. Lembrou-me uma passagem de um eseriptor in- elez — Clark Russel — suggerida por noite e mu- sica d'estas: «SL vozes tão grosseiras, ouvidas em cima d'agua, podem transformar-se em musica tão ma- viosa, que seria si ouvissemos um tenor magnifico em taes circumstancias ? » MY, Do palacio da presidencia. — Navegação do Cahy. — S. João do Montenegro. — Installação e começo de operações. — Porque os immigrantes gostam do Rio Grande do Sul. — Vida de aldeia. — Catholicos e Protestantes. Do palacio da presidencia em Porto-Alegre póde colher-se muito boa idéa da topographia da região adjacente. Ao Sul e Suéste alarga-se o Guahyba, dividido em alguns logares por ilhas baixas, e es- galhando-se a Oéste, acima da cidade, em muitos ramos ou dedos chamados Vi-a-mão, por causa da sua fórma; além do rio, para as bandas do Sul, enxergam-se morros baixos, que chegam até à la- cõa dos Patos; a Este o terreno é campo ondulado; a Nordeste é mais serrano, mas ainda aberto. Ao Norte azuleja alongada a serra Geral. N'aquella direcção a floresta é muito remota para se distinguir claramente, mas percebem-se cadarços de floresta verde-escura, embainhando aqui e além o rio, e cobrindo a planicie junto a Viamão. Além do Jacuhy, entram alguns outros rios no Viamão; um d'elles, o Cahy, é navegado por pe- quenos vapores até S. Sebastião, d'onde uma estrada galga a serra Geral para os campos de cima. Ha dois ou tres povoados n'este rumo, compostos quasi inteiramente de immigrantes allemães: em um d'el- les, S. João de Montenegro, estabelecemo-nos por al- guns mezes, NAVEGAÇÃO DO RIO CAHY 47 As embarcações são uns bichinhos bufadores, menores que rebocadores communs, com uma co- berta que os occupa de todo, arredondadas por diante e por traz, de modo a parecerem uma caixa de figos; as accommodações não peccam por luxuosas, porém são mais que sufficientes para sua curta via- gem, e-os preços extremamente baratos. Dos pas- sageiros em cuja companhia navegavamos mui- tos eram agricultores allemães, ou agentes com- merciaes de Porto Alegre; havia na praia muitos italianos chegados de fresco, que se dirigiam a S. Sebastião. Partindo de Porto-Alegre ás 8 da manhã, le- vou-nos o vaporzinho São João acima e através do Viamão, por entre muitas ilhas baixas, onde por vezes parámos para deitar passageiros nas fa- zendas. Pelas 11 horas, entrámos no Cahy, rio es- treito e muito flexuoso, de rapida agua barrenta: corre n'esta parte por terras lisas e muitas vezes anegadas. O nome indio Caá-ig, rio da floresta, ex- prime-lhe com exactidão o caracter: horas seguidas atravessámos linhas quasi ininterrompidas de mato, intricado e irregular nos trechos em que o terreno se encharcava, aberto e semelhando parque onde as margens se insurgiam. Á medida que avançava- mos, iam apparecendo morros .verdejantes: um d'el- les, massa alcantilada, quasi conica, de cimo seme- lhando um castello, oppõe suas ancas escuras co- bertas de florestas aos campos verdejantes. D'ahi o nome que lhe deram de monte Negro. Andámos mais uma legua do canal tortuoso, e uma volta subita do rio poz-nos à vista das poucas casas que marcam o porto de S. João do Monte- Negro. A parte principal do povoado está a meia milha do Cahy, junto à terra alta; o terreno inter medio é perfeitamente chato, elevado apenas alguns dá 48 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' metros acima do rio, e em parte coroado de floresta aberta. As margens são tão ingremes que houve alguma difficuldade em' desembarcar nossa pesada bagagem; algumas das caixas tiveram de ser pe xadas à corda. Galgando a -barranca, achámo-nos no meio de um grupo de camponezes, que olhavam descançados para o vapor. Vendo um rapazinho de olhos azues e cabello louro perguntei-lhe o caminho do hotel; o rapaz olhou, abanou a cabeça e nada disse. Voltando-me para um! homem que estava perto fumando comprido cachimbo de louça, repeti-lhe a pergunta: Ya, mein Herr, respondeu e, dando com à minha cara espantada, accrescentou: Ich spreche kein Portugwiesisch. Era de desanimar; entretanto, evocando o meu pequeno cabedal de allemão e au- xiliado por outro rapazinho de cabello louro que por um milagre arranhava seu tanto de portuguez, conseguimos as informações que desejavamos e a nossa bagagem foi levada em uma carroça que estava junto. O carroceiro era allemão; encami- nhando-nos para o povoado, encontrámos só alle- mães; o dono do hotelzinho era allemão bem como todos os logistas e cidadãos com quem tivemos de haver-nos o tempo da nossa estada. Si não fossem as florestas ja redor e a fami- liar architectura brasilio-romana, imaginar-nos-iamos transportados ás margens do Rheno, Ajudados pelo dono do hotel e por outros se- nhores, para quem; tinhamos trazido cartas, arran- jámos excellente casa. Convencionou-se que a co- mida iria do hotel; alugámos mesas e cadeiras, abrimos nossas caixas e dentro em poucas horas estavamos prontos a começar o aaa pela zona vizinha. TYPOS DE S. JOÃO DE MONTENEGRO 49 Durante nossa estadia fizemos muitas excursões breves em todos os sentidos e obtivemos collecções muito valiosas de mammiferos, aves e insectos. Os camponezes souberam que pagavamos bem quaes- quer animaes silvestres, e quasi não passava dia que não trouxesse algo de interesse. Decorrido al- gum tempo, empreguei caçadores que trabalhassem regularmente para nós, especialmente na collecção de aves. Eram uns typos. O primeiro, em conse- quencia de sua nacionalidade, chamava-se Para- 2uayo; si tinha outro nome, nunca o ouvimos. Pa- raguayo começou muito magro, muito rasgado, muito “obsequioso: 'ao nosso serviço tornou-se mais gordo, melhorou um tanto de roupa, mas nunca variou de polidez, nem mesmo quando estava bebado, o: "que lhe succedia uma vez por outra. Havia mais um velhote que appellidâmos o Conversador, por causa de seu talento oratorio, ta- lento que talvez lhe désse. nome como deputado, mas inutilisava-o como ornithologo. Afinal fui obrigado a despedil-o, para que não nos matasse a discurso. Finalmente contratei dois jovens allemães, irmãos, chamados Peter e Karl. Pedro era um latagão de vinte annos, um tanto desageitado, mas que servia bem para os trabalhos pesados. Carlos tinha qua- torze annos, era muito intelligente e vivo; dentro em pouco aprendeu a colleccionar aves e insectos, tornando-se auxiliar precioso. Fiquei tão satisfeito com ambos que os levei para Matto-Grosso, onde continuaram muito tempo a meu serviço. Para o futuro fallarei, portanto, d'elles como de membros integrantes de nossa, partida. Em redor da povoação, grande parte do terreno colonial tem sido desbastado e cavado, de sorte a 50 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' formar excellentes pastagens. A diligencia allemã . revela-se nas cercas cuidadosamente construidas em roda de cada lote. Aqui conservam os cavallos de sella e as vaccas de leite sempre à mão e livres de ladrões. Em muitos dos povoados brasileiros quem precisa de um cavallo ou de um copo de leite geralmente ha de esperar umas quatro ou cinco horas, emquanto vão campear os animaes, e muitas vezes nem assim os arranja. Este systema importa em immensa perda de tempo durante o anno, para não fallar dos serios inconvenientes que d'ahi podem provir. Em S. João andavamos quasi todos os dias a cavallo, e nunca encontrámos difficuldade em ar- ranjar um animal em cinco minutos. Quanto ao leite, era” mercado todas as manhãs pelas ruas. Encarregava-se disto um menino, o me- nor que jamais vi a negociar; não podia ter mais de sete annos, porém a sua gravidade e regularidade fariam honra ao velho Rothschild. Trepado na sua cavalgadura ossuda, com-as botijas de leite de uma banda e outra, parecia levar os negocios do mundo aos hombros; nenhum gracejo conseguia. desalfer- rolhar-lhe os labios em sorriso, nenhum agrado po- - deria induzil-o a afrouxar de vigilancia sobre as botijas e o dinheiro. Deus lhe dê muitas vaccas! S. João, como colonia, data de uns vinte annos atraz: antes era occupada apenas por poucos po- voadores. Hoje têm uns doze armazens, alguns dos quaes bem grandes, um cortume, duas serrarias, uma fabrica de cerveja, extensas pedreiras, e numerosas lojas de artistas, incluindo ferreiros, carpinteiros, sel- leiros, etc. Todos elles são sustentados pela gente da villa e“pelos lavradores vizinhos. Milho, feijão e fumo exportam-se em quantidades consideraveis; os pequenos, vapores fluviaes que tres vezes por semana vêm de Porto Alegre estão quasi sempre PORQUE AS PREFERENCIAS DOS IMMIGRANTES? 51 cheios de passageiros e levam o frete que com- portam; ha frete transportado por outros meios. À povoação sustenta um ou dois advogados e um medico; ha duas igrejas, uma catholica e outra lu- therana; as escolas são bem frequentadas, rapazes - e raparigas muitas vezes aprendem a lêr e escrever tanto portuguez como allemão. A villa propriamente dita póde ter uns seis ou sete centos de habitantes, mas depende d'ella população muito maior. Quasi to- . dos são cordialmente affeiçoados à terra que adopta- ram, tomam interesse activo nas questões politicas, e estão fazendo o possivel para adiantar os ne- gocios do Brasil. Factos como este fallam mais alto em favor da immigração do que qualquer carga de oratoria, “e deverão bastar para convencer os mais scepticos do valor do elemento estrangeiro no Brasil. Em summa, acho que hoje não são mais necessarios argumentos a favor de beneficio tão evidente como a immigração: a unica differença possivel da opinião * quanto aos meios de promovel-a. Naturalmente pergunta-se: porque motivo os im- migrantes preferem o Rio Grande do Sul a outras provincias que são pelo menos tão ferteis e avan- tajam-se-lhe em ficarem mais proximas da Europa? Tem-se dito que a raça teutonica prefere o clima d'esta provincia por ser mais frio e mais semelhante ao da .Allemanha. Porém os allemães são cosmopolitas; achal-os-eis em todas as terras, debaixo do Equador como no circulo Arctico, ada- ptando-se ao meio, como nenhum outro povo; além disto, o argumento não se applicaria aos italianos, que actualmente formam o volume da corrente im- migratoria, 52 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' Julgo que a verdadeira explicação está na di- visão das terras que actualmente vigora na provincia. Não se cultiva aqui assucar nem café, e a parte septentrional não se presta à creação de gado. As principaes colheitas são de milho, feijão e fumo, todas colheitas annuaes, que em nenhuma parte do Brasil se cultivam em escala muito extensa. Não ha, pois, a tentação de formar latifundios como os que existem em S. Paulo, Minas e alhures. Por. isso tudo tende a animar a pequena lavoura, que, digam o que disserem, é a unica base solida da prosperidade de um paiz agricola. Os immigrantes que chegam ao Rio Grande do Sul não têm difficuldades em conseguir terras, quer nos limites das colonias, quer fóra d'ellas. Os que primeiro chegaram compraram-nas directa- mente ao governo, ou receberam parcellas gratis, — qmethodo nem sempre o mais economico, porque os lotes do governo podem não convir ao comprador e as demoras na medição e no estabelecimento da propriedade são de irritar a paciencia do proprio Job. Actualmente o immigrante de juizo compra à um especulador de terras (peço desculpa a estes senhores de applicar termo tão feio a seu officio philantropico), que adquire largas porções de terreno, abre communicações para elle, vende-o parcellada- mente, recebe a paga, depois de alguns annos, em prestações, isto sem: delongas em medições, que o vendedor toma a si; e as escripturas são passadas logo, exactamente como nas outras propriedades. Sinto prazer em declarar que muitos rio-grandenses têm enriquecido n'este negocio de terras, fonte per- feitamente legitima de lucro e, nas actuaes cir- cumstancias, immensa vantagem para os immigran- tes e para o paiz. Parece que alguma cousa neste genero tem-se OS COLONOS DO MONTENEGRO 53 feito em outras provincias, porém nunca em tão extensa escala. Oxalá que o systema se universa- lisasse! O meio legislativo proprio seria a imposição de uma pequena taxa, pela qual os proprietarios fossem abrigados a parcellar suas terras. baldias. Quanto mais depressa livrar-se d'ella o paiz tanto melhor, Isto é com os legisladores; mas o que nem um homem “que pense negará é que a tão gabada gran- de lavoura tem servido para perpetuar males de toda ordem, e nunca produziu bem que durasse. Quasi todos os aldeãos, como disse, eram! alle- mães; alguns, como Pedro e Carlos, fallavam por- tuguez, porém a maioria entendia-o mal, ou mesmo nada. , Bôa e amavel gente! Defronte de nossa casa ficava uma familia que estava sempre a mandar-nos “bolos e frutas, e ás tardes convidava-nos para to- mar parte no seu Kaffeetrinken; esvasiadas as ta- ças, punha-se a bôa dona da casa a fallar, fallar o- mais idiomatiço dos allemães, pouco se lhe dando, ao que parece, que a entendessemos ou não. Havia o joven pastor lutherano, nosso vizinho, que às vezes nos visitava conversando em portuguez de Ollendorf, lardeado aqui e alli de uma palavra allemã ou latina. Sua igreja ficava perto, e nos domin- gos era curioso ver os lavradores que vinham para “o culto da manhã, montados em cavallos pelludos, trazendo à garúpia a mulher ou a filha, Vinham todos vestidos da melhor maneira: as mulheres, de corpete e saia de lã que já tinham usado em! alguma aldeia da Allemanha, e velhos chapéus exquisitos, som- breando-lhes a face; as raparigas, descobertas, com o louro cabello a escorrer-lhes pelas costas, em longas madeixas, e as faces brilhantes como pecegos. Os cavallos eram amarrados junto à igreja, e a 54 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' gente ficava um pouco de tempo á porta, nos com- primentos e na transmissão de noticias. Depois, pelas janellas abertas, podiamos vel-os sentados nos bamn- cos duros, todos os homens de um lado, todas as mulheres do outro; d'ahi a pouco levantavam-se todos, e ouviamos o zumbido do Vater Unser e do Credo. O silencio que succedia indicava a oração, finalizada por uma bella explosão de vozes fortes, no grandioso Ein fest Burg ist unser Gott, estre- pitoso qual musica marcial, que transportava o pen- samento tres seculos e meio atraz, à era em que os reformados de Wittenberg entoavam-no em de- safio a Roma e ao grande Imperador. Algumas vezes assistiamos ás solemnidades mais vistosas da igreja catholica. Aqui, como na Vaterland, as opiniões religiosas dividem-se quasi por igual entre as religiões romana e reformada. Mas não ha brigas; o tirocinio de seculos ou o bom senso natural deu ao espirito allemão idéa mais clara de tolerancia religiosa do que a nenhum outro povo. Notei isto nos Estados-Unidos, onde os ca- tholicos irlandezes ou francezes andam sempre de ponta com os seus vizinhos protestantes, ao passo que os catholicos allemães contentam-se de adorar Deus a seu modo, sem cahirem de accessos de frenesi porque alguns milhões de contemporaneos descobriram outro caminho para o céu. De passagem direi que tolerancia quasi igual tenho encontrado entre os brasileiros; e isto é tanto mais notavel, quanto quasi todos, activa ou nomi- nalmente, são membros da igreja catholica romana. Tem havido casos excepcionaes, em que pessoas de outra crença religiosa soffreram certa perse- guição de alguns fanaticos; mas, em honra da na- ção se diga, taes actos foram immediatamente con- demnados pela imprensa e por todos os brasileiros LIBERDADE RELIGIOSA 195) intelligentes. As opiniões podem variar quanto á religião do Estado, quanto ás peias impostas pela legislação aos acatholicos; mas, no que depende d> povo, um mahometano, um budhista, ou um pro- testante, têm liberdade aqui, como em poucos paizes do mundo. VI S. João de Montenegro. — O mato geral, o fachinal e a capoeira. — Fórmas zoologicas. — Nosso laboratorio. — Uma aranha revolucionaria e outra formicivora. S. João de Montenegro, como já disse, tira este nome de um monte que fica a uma legua, nas margens do Cahy. Por traz do povoado, a Oéste, ha dois ou tres outros montes, de uns 150 metros de altura, porém muito ingremes e de rocha; a cavalleiro sobre nossa 'aldeia allemã, poderiam pas- sar por mansões feudaes arruinadas. Por traz d'estes, ainda para Oéste, enfia-se outra morraria, e ao Norte espoja-se um bello tracto ondulado até as abas da serra Geral. Muitos d'estes montes com- põem-se de arenito vermelho, que junto à povoação é extensamente aproveitado; transportam-no para Porto-Alegre, onde se emprega muito nos passeios das ruas e na construcção de casas. Grande parte do povoado demora em terreno alluvial do Cahy, embora a igreja catholica e al- gumas casas estejam em terreno mais elevado. De- pois de chuvas fortes, o riote incha enormemente, transbordando das altas margens; duas a tres vezes por anno, fica a povoação alagada até as portas das casas, de sorte que a gente ha de recorrer a canôas. Algumas semanas antes de nossa chegada, houvera enchente extraordinaria, que invadiu à VEGETAÇÃO MONTENEGRINA 57 maior parte das casas; o vaporsinho, em vez de ficar mas barrancas, atirou-se meia milha pela, terra e descarregou os passageiros na saccada do hotel. Estas inundações pouco duram; as aguas cedem tão rapidamente quanto subiram, deixando atraz muita lama, porém geralmente poucos estragos. S. João está n'uma região de florestas. Junto ao povoado, grande parte do terreno tem sido des- bastado na terra alluvial para pastagens, e pelas ladeiras para plantações. Porém atraz dos morros baixos que descrevi, e leguas acompanhando o rio, a mata corre quasi intemerata. Varia grandemente de caracter, conforme a situação: entre os montes é muito alta e luxuriante; às vezes é difficil atra- vessar, mesmo de facão, taes e tão enredados são “OS cipós, trepadeiras e troncos de diversas especies. Apparecem aqui muitas especies de palmeiras; o solo é juncado de fetos e lycopodios; em logares favoraveis alfirgam-se grandes fetos arborescentes e os galhos vergam de epiphytos. Este é o mato geral, parecido com o da serra do Mar, do qual é apenas prolongamento. Algumas vezes nas en- costas mansas o arvoredo é mais espalhado, e a terra por baixo mais" aberta. Quem cavalga aqui ao sol posto, com a luz que remancha na ramada coberta de lichen e no chão esteirado de musgo, se Julgára n'um: parque do velho mundo, entre car- valhos e betulas datadas de mil annos. Mas si- tios d'estes raro assomiam, e alhures o caracter tropical da floresta palpita. Ha a mesma riqueza e variedade, o mesmo ennovelamento de plantas macias, de folhas compridas, com as palmeiras je acacias, as mesmas raizes aereas que pingam, e Bauhinias que trepam, e o mesmo exuberar de fetos da serra dos Orgãos. Achámos umas 150 especies destes, a uma ou duas leguas do pojvoado, e pro- - 58 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' vavelmente nossa colleeção estará muito longe do completo. Os logares pedregosos, os topetes dos morros e as ladeiras, são ás vezes vestidos de meia flo- resta, — arvores anãs ás touceiras, e moitas com espaços entreabertos, ou espinhentos gravatás (Bro- melia), semelhando ananaz. É este o fachinal, ar- voredo caracteristico do terreno pobre, aproveitado sómente: para o pastoradouro. .Aqui, como alhures, os roçados esquecidos cobrem-se de capoeira tão encarapinhada que quem prezar a roupa ou o corpo deve passar de largo: as moitas tacheiam-se de es- pimmhos e emmalham-se de tal arte com os cipós, que ficam impenetraveis como sebes. Junto às cor- rentes esta vegetação de soca attinge o maior viço. Mais de uma vez atravessei arroios por uma ponte natural d'estas, ou antes pelo, tecto de um tunnel, formado de cipós, arbustos e fetos, entreteiados a não darem passagem a um páu pela massa, - Nos terrenos alluviaes diversifica muito a ve- getação. Junto ao rio, onde as margens são bem elevadas, a floresta é regularmente alta e viçosa, porém aberta por baixo, permittindo que se ande a cavallo por entre o arvoredo. Não é facil emn- contrar palmeiras aqui, e os unicos fetos são epi- phytos nos troncos e galhos. Das touceiras, quando espacejadas, pendura-se barba de páu (Tillandsia), que relembra a vegetação lenteira do sul dos Es- tados-Unidos. Ha não sei que de lobrego, funereo, e, entretanto, admiravelmente bello n'estes epiphytos; sua côr pardo-escura, que alterca com a folhagem verde, e sua fórma divergente da outra vida da vegetação, quasi movem espanto;: dir-se-la que as arvores vestem: cilicio e cinza, em dó de algum mundo finado. NOSSO LABORATORIO 59 Ha trechos da varzea, alternados com esta mata, onde o solo é mais baixo e está frequente- mente de molho. Mais para traz do rio, a floresta emmaranha-se mais, e nos logares permanentemente alagados é de ver-se, porém não de penetrar-se: massa de touças, lianas e taquaras, garrulando verde e enfloradas em cima, caiadas pela secca lama do “rio abaixo, até onde a agua chegou limpando as folhas; coxim de podridão no fundo, onde se en- terraria até o pescoço quem arrostasse a super- ficie traiçoeira. Em breve nossa casa ficou com ares de ga- bimete de trabalho. Havia mesas occupadas de aves, caixas de insectos, plantas imprensadas e o mais; dependurou-se um armario, para defender dos ratos “e formigas as colleeções que estavam a seccar, € das paredes pendiam garruchas, sellas, martellos geologicos, redes de insectos e por ahi fóra. A cozinha no fundo servia para a preparação das “aves maiores e dos mammiferos. Estavam ás vezes duzias de pelles nos varios gráus de preparação, processo pouco cheiroso, mas familiar e qualquer zoologo que trabalha. Nosso viver diario era muito socegado, mas para nós muito interessante. Fazer collecções de historia natural tem, para os que a isto se entregam, encanto indefinivel. Mesmo quem não lhes sabe dar valor, encontra brando excitante: a esperança con- stante de obter alguma novidade, o prazer quando se junta alguma fórma rara ou curiosa à collec- ção, é o gozo artistico de todos os bellos animaes e plantas, gozo que os profanos não saboream. Mas para quem sabe lêr, — pouco embora —, no grande livro da natureza, tudo isto centuplica. Até o estudo de especies communs está constantemente revelando novas bellezas e pontos inesperados de structura, 60 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' e um novo insecto, uma ave que se colha, póde dar a chave da verdadeira classificação de uma familia, ou responder a alguma questão importante de distribuição geographica, Não tardou muito descobrirmos que as aves e insectos do mato geral eram quasi todos os mesmos do Rio de Janeiro; mas nos logares abertos e na floresta de terreno alluvial havia grande mescla de fórmas sulanas ou pampeiras. Notava-se isto principalmente nas borboletas. Nas terras baixas, as caracteristicas fórmas brasileiras tropicaes, como os esplendidos Morphos azues, os Heliconii de azas pandas, eram menos abundantes. Em seu logar, es» pennejavam-se muitas especies pequenas, amarellas ou brancas, alliadas à familia da borboleta couve (Pieris) da Europa e da America do Norte: estas o outras similares apparecem muito nos Pampas, mas no Rio de Janeiro e mais para o Norte repre- sentam-nas apenas poucas e raras especies. Assim era com outros grupos de insectos e aves: na floresta da serra quasi não havia mistura de fórmas pam-. peanas; mas na floresta da varzea e no terreno aberto eram as fórmas pampenses fortemente assi- naladas. Os poços e cacimbas à roda do povoado eram admiravelmente ricos de vida animal, peixinhos, mo- luscos, Coleopteros e Hemipteros aquaticos, crus- taceos, planarios, etc. Fulgidas Libellule, — que o povo do Rio Grande do Sul chama «lavandeirinhas » e o do Pará chama «jacinas» — fusilavam rubras e verdes pela superficie, emquanto seus delgados pri- minhos, os Agrions esvoaçavam fracamente pelas plantas aquaticas. Viamos estes algumas vezes es- gueirando por uma folhinha de capim á agua, com as azas brilhantes como prata. As Libellulas, ao contrario, gotejam os ovinhos na agua, quando per- ANIMAES MORTOS E VIVOS 61 passam arrufando a superficie. As larvas, tanto das Libellulas como dos Agrions, são inteiramente aqua- ticas; sustentam-se principalmente de larvas de ou- tros insectos aquaticos, e são excessivamente vo- razes, Estas são as Iárrdas conspicuas, em que repara- ria qualquer um; mas para O naturalista havia mi- lhares de outras, que só estudo cuidadoso revelaria. Havia insectos minusculos fossando na lama ao longo das margens; curiosas aranhas espiando das gretas ou correndo à flor da agua; e o mundo imicros- copico, que não tinhamos tempo nem aiii dd para estudar. A exuberancia da vida animal ná America do Sul tende a difficultar o trabalho do zoologo, que sente tentações de passar o tempo a colleccionar, em vez de entregar-se ao estudo. Não quero com isto dizer que o trabalho dos colleccionadores não sirva para a sciencia; si assim fôra, teria estragado grande parte de minha existencia. Mas specimens zoologicos, por bem conservados que sejam, raras vezes dão idéa perfeita, mesmo da morphologia ex- - terior: é preciso estudar specimens vivos e mortos. Conhecidos todos os detalhes de côr, ornamento e estructura, estamos apenas em começo. Não passa isto de uma apresentação casual, que nos dá o di- reito de reconhecimento, uma como carta de apre- sentação e nada mais. Para conhecer completamente qualquer especie, temos de acompanhal-a á casa, espial-a na mata ou no campo, no rio ou no poço, procurar com lente ou microscopio, notar cada mo- vimento, cada phase de evolução, cada traço de instincto, até que a historia de toda a vida calhe em nosso espirito como cantilena familiar. 62 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' Este estudo exige vasto cabedal de paciencia e perseverança, e mais tempo do «que o naturalista em viagem tem a seu dispôr. Deve, pois, contentar-se com estudos imperfeitos, fragmentos de historias da vida, que algum observador futuro completará. Ás vezes é apenas uma breve nota presa a um specimen ou apontada no diario; ás vezes uma descrição mais elaborada em qualquer revista scientifica; às vezes, emfim, um facto apparentemente sem im- portancia, notado na memoria, onde hiberna ou veraneia até que novas observações o acordem, Quizera convencer os jovens brasileiros da im- portancia e interesse dos estudos zoologicos, não em livros impressos, mas no grande livro inédito que nos rodeia. Ha entre elles muitos aspirantes e excellentes trabalhadores em outras sciencias, — botanica, geologia, anthropologia, astronomia; por- que só a zoologia, a mais interessante talvez de . todas, ha de ser tão desprezada? É este um es- tudo adaptado ao sabio, que póde consagrar-lhe a vida, e ao amador, medico, advogado ou negociante, que só póde conversal-o nos lazeres de outras 9e- cupações, É uma sciencia que não exige apparelhos: dispendiosos nem longas jornadas, que póde cultivar- se muitos annos em um só logar, e quasi que em qualquer logar. Offerece campo largo à investigação ; não ha ordem ou familia de animaes -brasileiros que não remunere generosamente a applicação, e os moradores que poderem empregar annos em um grupo particular, com certeza farão descobertas va- liozsas. É a sciencia que, per se, maior vantagem pro- porciona ao indigena sobre o estrangeiro, cujos vislumbres serão necessariamente imperfeitos; e, mais cedo ou mais tarde, a zoologia brasileira ha de deixar a Europa pelo Brasil, que é o seu logar. É um estudo attractivo de qualquer UMA ARANHA REVOLUCIONARIA 63 ponto de vista, quer consideremos a elegancia das fórmas, quer a belleza mais profunda da estructura, as leis em que esta assenta, ou as maravilhas da rasão animal, que nos comprazemos em chamar instincto. Finalmente, a zoologia é mais importante que qualquer outra sciencia como meio educador de faculdade tão importante e tão descurada — a observação: qualquer estudante ficará bem pago da attenção que lhe prestar com isto e, mais ainda, com o exercicio sadio para o corpo e para o espi- rito que o trabálho do campo offerece. Em S. João interessaram-me principalmente as aranhas, muito numerosas e de diversas especies. É uma ordem que merece estudo, porque a variedade de fórma e estructura é grande, e os habitos por “vezes admiravelmente curiosos. Aqui, pela primeira vez, observei uma pequena especie alliada á Eypeira, que construe uma teia oblonga de linhas horizontaes, cortando perpendiculares em angulos rectos, Esta fórma differe profundamente da architectura conhe- cida das aranhas. As tejas ordinarias e mais familia- res são circulos mais ou menos completos, consis- tindo em muitas linhas que irradiam do centro, e cruzados por uma só linha que espirala do centro para a peripheria. Em outros, a teia modifica-sa . em oval ou meia lua, ou parece uma tenda, mas sempre com as mesmas linhas radiantes e espiraes, que se encontram em todas as fórmas regulares ou geometricas das teias até agora observadas. Ora, à transgressão d'este plano parajo de teias quadradas ou oblongas de malhas rectangulares é enorme: equi- vale à differença entre a architectura gothica e a do Egypto, ou entre a lingua franceza e o chinez. -— Esta mudança suggere algumas reflexões curio- sas, associadas ás tLheorias correntes de evolução, Instinctos e habitos têm seu desenvolvimento, exa- 64 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA” ctamente com as fórmas e estructuras; todo in- stincto, e por conseguinte toda fórma de architectura animal, resulta de evolução gradual e regular. Ora, é impossivel conceber como a teia de malhas qua- dradas evoluiu da teia radiante ou espiral, e vice- versa; é tambem quasi inconcebivel que ambas te- nham evoluido de uma só fórma, por mais simples que seja. O que ainda mais embaraça o caso, é o facto que as aranhas de S. João, a julgar por mi- | nhas observações cursorias, não parecem differir muito em estructura dos outros generos que fiam. teias. O facto está solteiro, e pedirá cuidadoso es- tudo, antes de formular-se qualquer theoria. Tive occasião n'este logar de confirmar algumas observações previas sobre certas aranhas pequenas, que por sua fórma parecem formigas, embora es- tructuralmente pareçam tanto com ellas como as outras aranhas, São estas de diversos generos e especies, sempre raras e portanto de habitos difficeis de observar. Nenhuma d'ellas faz teias, vagam pelo chão, pelos galhos ou pelas folhas, e assemelham-se tanto ás formigas na côr, fórma ou movimento, que podem enganar ao naturalista mais esperto, Além disto, cada especie assemelha-se a uma es- pecie de formiga: assim, as formigas pretas, espi- nhentas e grandes (Oeketikus), tantas vezes. vistas nos troncos das arvores, são exactamente macaquea- das por uma aranha, e o mesmo se dá com outros generos. Essas aranhas frequentam os logares em que as formigas passam, embora não se misturem com ellas, e muitas vezes são vistas devorando for- migas que apanham. Depois de longa serie de ob- servações, estou convencido de que ellas se alimen- tam exclusivamente de formigas; além d'isto, cada aranha pega as formigas com que se parece, e não outra. Factos tanto mais notaveis, porque outras | UMA ARANHA FORMICIVORA 65 aranhas, assim como a grande maioria de insectos predatorios, aves e mammiferos, não comem abso- lutamente formigas: o acido formico, de que o corpo d'estes insectos está impregnado, torna-os desagra- daveis a todos, excepto ao tamanduás, algumas aves e reptis, e' a estas aranhas. | : VII S. João do Montenegro. Mammiferos. — Vida e feitos gloriosos de. um ilustre desconhecido. Os grandes mammiferos, — onças, antas e veados — raras vezes se encontram agora na parte oriental do Rio Grande do Sul; mas ha muitas especies me- nores, de grande interesse. Fallarei d'ellas adiante, em connexão com os animaes de Mato-Grosso, men- cionando aqui apenas um ou dois, que obtivemos em S. João de: Montenegro. O chamado furão (Mephitis suffocans, 11?), já- raquitaca de Mato-Grosso, é muito commum n'esta parte do Brasil, É um animal bonitinho, escuro, mais claro por cima, do tamanho de um gato domestico, mas alliado antes ás lontras e arminho do Norte. O furão goza de reputação pouco cheirosa, e é certo que, como os outros animaes do seu genero, tem a faculdade de emitir um licor horrivel, fetido, de uma glandula que fica por baixo da cauda. Porém as minhas observações levam-me a suppôr que este liquido é segregado apenas em certas estações, ou limita-se ao sexo masculino. Uma femea d'esta es- pecie foi trazida viva para a nossa casa, e conser- vei-a alguns dias sem inconveniencia alguma. Pre- parando o specimen, descobrimos depois, que a glan- dula de cheiro estava inteiramente vásia, e o mesmo se deu com outros specimens de femeas que nos trouxeram. Não conseguimos obter macho. UM ILLUSTRE DESCONHECIDO 67 Outro animal que nos trouxeram vivo foi um pequeno jaguatirica, de uma semana de nascido. Desejando crial-o, alimentamol-o com leite; como não podia beber de colher sem engasgar-se, arran- jámos uma garrafa com bico de borracha, como as mamadeiras usadas para crianças. O bichinho deu-se bem com este meio, e era muito comico o vel-o com a mamadeira entre as patas, chupando tão contente, como se nunca tivesse experimentado ou- tro. Em breve ficou muito: manso, e affeiçoou-se particularmente a um de meus ajudantes, Guilherme: seguia-o como um cão, miando de fazer pena, até que elle o pegava, e então a oncinha estirava-se-lhe no collo e pegava no somno. Por duas ou tres semanas pareceu ir bem, crescendo consideravel- “mente; depois adoeceu e morreu, victima, ao que parece, da mudança de diéta. Devo agora consagrar pequeno espaço à memo- ria de Billy, nosso macaco de estimação. Era um sa- gui escuro (provavelmente Hapale Jacchus) de Per- nambuco, que eu comprára a um marinheiro e dera a minha senhora. A especie para o Sul é commum até o Rio, onde muitas vezes a tenho visto no mercado, e bem conhecida dos zoologos; mas, como o nosso predilecto tinha: licença para percorrer a casa em S. João, onde foi sempre tratado com bon- dade, ficou extraordinariamente manso e tive ex- cellente ensejo de estudar-lhe os instinctos e o ca- racter. Por isso o menciono. Billy era tão pequeno que podia assentar-se com- modamente n'um copo ou entre as mãos fechadas de minha senhora. Como os outros saguis, era exclusivo em suas amisades, fugindo dos estranhos, embora viesse promptamente para nós quando lhe esten- diamos a mão. Si pelo contrario, tentavamos agar- 68 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' ral-o, respondia em geral com. dentadas, dentadinhas de amor, é verdade, porque o comprimento dos dentinhos mal chegava para penetrar-nos a pelle. Minha senhora era a sua predilecta, e elle pas- sava horas seguidas enrolado no seu collo ou esten- dido na cabeça com as quatro mãos agarradas ao cabello. As vezes o prendiamos, e elle não se amo- finava muito com' isto emquanto lhe faziamos com- panhia; mas era deixarmol-o só, um momento que fosse, e elle desabrir de medo em gritos penetrantes. O mesmo era fecharmol-o n'um, quarto, e mais de uma “vez, quando pousavaimos no hotel em Porto Alegre, tanto receio tivemos de suas estrepolias: que fomos obrigados a leval-o a jantar comnosco. Mettido n'uma algibeira ou na manga do casaco, ahi ficava socegadinho, apenas pronunciando a ca- beça para apanhar algum pedaço de bolo ou uma fruta. Quando sahiamos a passeio, minha senhora levava-o na bolsa ou debaixo do chapéu. Para as viagens, fizemos-lhe uma cestinha coberta, na qual quedava sem protesto emquanto a sentia em movi- mento. Si, porém, descançavamos a cestinha por um momento, Billy empurrava a tampa e espiava si o tinhamos abandonado. A mesma cestinha ser- via-lhe de cama à noite, e para ella o mandavamos regularmente logo que escurecia, enrolado em uma nesga de flanella. De madrugada, quando o ar res- friava, sahia- da coberta, trepava paira onde minha senhora estava dormindo, e estendia-se-lhe no pes- coço até amanhecer, Comia quasi tudo — pão, carne, frutas, ar- roz, etc. e fazia suas gatunices no assucareiro e na caneca de leite. Muitas vezes passava horas 'a apanhar moscas na janella, devorando-as com gosto evidente. A principio, tambem, roubava gafanhotos e outros insectos de nossa mesa de trabalho, antes UM ILLUSTRE DESCONHECIDO 69 para rasgal-os e destruil-os do que para alimen- tar-se. Depois de chamado energicamente á ordem umas duas ou tres vezes, aprendeu que estes eram prohibidos, e d'ahi por diante fingiu não fazer mais conta d'elles, embora uma vez por outra agar- “rasse algum, quando pensava que ninguem o ob- servava, Dava a vida por amendoas e queijo, e chorava por elles como criança; mas, como eram cousas que não combinavam com seu temperamento, fui obrigado a defender-lh'as. Havia uma cousa a que tudo sacrificava: era a gomma arabica dissol- vida, que algumas vezes empregavamos em nosso . trabalho, No momento em que a enxergava, Billy saltava em cima como um doido, breando a cara e as mãos tão deveras que. durante uma hora se apegava em quanto tocava, estragando mobilia, roupa e .a propria pelle, Bebia pouca agua' e fazia as mais fortes ob- jecções contra o banho, Eu banhava-o periodicamente em uma bacia, apezar de seus guinchos terriveis e pulos e dentadas vigorosas. Ainda hoje, recordo-me vividamente da sua cara dolorosa, quando afinal sahia, escorrendo agua e sabão, o pello grosso em- plastado na pelle, de modo a semelhar o esqueleto de seu antigo eu, os alhos rociados de lagrimas e a agonia de sua alminha a bradar aos céus em vozes indescritiveis. Depois de enxugal-o com uma toalha, punha-o no batente da janella para seccar ao “sol, porém sua equanimidade levava tempo a reapparecer e quem quer que se chegava recebia amostras de seu desagrado. -N'estas occasiões, só um pente podia revocal-o ao bom humor. Porque para Billy o paraizo con- sistia em ser penteado. No instante em que sentia o toque magico, expandia-se-lhe a face na expres- são da pura beatitude; inconsciente de tudo o mais, 0 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA” pousava nos joelhos ou nas mãos de uma pessoa, com os olhos fitos no vago, o corpo immovel, todo o ser em deliquio. Podiamos pentear-lhe o cabello de arrepio, da cauda à cabeça, dividil-o a meio pelas costas abaixo, distribuil-o de qualquer modo, — para elle era o mesmo; segurando-lhe as mãos emquanto com os pés agarralva-se à cadeira, podia- mos estendel-o ao comprido; quedava immovel, de papo, emquanto lhe penteavamos o estomago. Até consentia que o deixassemos de cabeça para baixo, seguro pelos pés ou pela cauda, embora no minuto em que o pente parava, lutasse para sahir da po- sição incommoda. No caracter combinava a timidez com a curio- sidade, com a malicia e uma indole óra doce, óra acida, conforme as circumstancias, e, em qualquer caso, tão puramente egoista como a de um enfant gáté. Da primeira vez que o levámos para a casa, começou por explorar o quarto; chegando ao es- pelho, viu o que suppunha outro mico e immediata- mente tentou entrar em relações com elle, Não podendo ultrapassar 0 espelho, passou as mãos por cima, depois espiou por traz, evidentemente admi- rado de nada encontrar. Dois ou tres dias, repetiu este manejo a intervallos; mas depois acostumou-se ao mysterio e não lhe prestou mais attenção. Tinha muito medo de animaes, especialmente de cães, e quando estes appareciam corria a es- conder-se onde estava minha senhora. Uma cobra, embora morta, lançava-o quasi em convulsões. Certo dia, n'um hotel do campo, trouxeram-nos cosida uma cabeça de leitão para o jantar, bellamente arranjada, com um limão na bocca arreganhada e olhos esbugalhados de azeitona. Quando Billy de- parou com esta apparição, todo o pello ficou de pé, encostou as mãosinhas fuscas na face, com as palmas “UM ILLUSTRE DESCONHECIDO 7 para fóra, como para exconjurar o espectro; em outro instante com um gougo de angustia fugiu para o canto mais afastado e ahi acuou tiritando até que lhe demos refugio n'um sacco, Era meu costume, á tardinha, deitar-me um quarto de hora, fumando um cigarro e corversando com minha senhora. Billy era sempre da partida, e levava o tempo a brincar. Primeiro escondia-se atraz dos meus pés; depois corria-me pelo corpo e mordia-me o nariz, refugiando-se immediatamente no bolso do meu casaco, e assim por diante, uns dez minutos. A intervallos, quando via que estava- mos olhando para elle, parava de repente e fazia-nos uma caratonha indescritivel, que vista pela mi- lesima vez nunca deixou de produzir gargalhadas. E Billy, conscio do valor de sua caratonha, raro ou nunca servia-a diante de estrangeiros; quando es- tavamos sós podiamos quasi sempre conseguil-a brincando um pouco com elle. Sinto só não tel-a conservado mediante uma photographia instantanea; é das taes cousas de que fallam os annuncios: ver para crêr. A Quando o tempo foi se tornando mais frio, Billy ficou menos brincalhão, e ia mais vezes á cesta, à procura de calôr; minha senhora fez-lhe um casaquinho de flanella, e era comico vel-o com a cabecinha herbacea e os bracinhos finos a emer- girem. Mas não houve salval-o: o inverno do Rio Grande era demasiado severo para o seu corposinho, acostumado só ao tepido ar dos tropicos. Uma ma- nhã fria veio-lhe uma série de convulsões; depois da ultima, pareceu melhor e minha senhora fez-lhe uma caminha na janella, onde o sol raiava quente. Ficou socegado um momento, depois ergucu-se fra- camente, olhou para nós todos, despediu-nos uma To DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' de suas carantonhas inimitaveis e de chofre cahiu - morto. | | Não houve quem não chorasse em casa, porque todos eramos muito affeiçoados ao bichinho. Minha senhora recusou-o absolutamente para nossa col- lecção, enterrou-o com honras funebres debaixo de uma roseira e semanas depois encontrei-a juncando- lhe de flores o tumulo saudoso. VII S. João de Montenegro. — Excursões maiores. — Mariasi- nha. — Mimosas. — Burro como uma capivara. — Quanto mais besta, mais... filhos. — Pica-paus e borbo- letas pretas. — Ainda fetos e insectos. — Estradas. — O Maratá. — Um insecto bem servido. -— Além de passeios menores á volta da. villa, fizemos outras excursões maiores, por agua. ou à “cavallo. Descreverei duas ou tres, não por terem de si grande importancia, mas porque dão muito boa idéa de' nosso viver quotidiano. - Um dos nossos pontos predilectos era um logar chamado Mariasinhá, a beira rio, a uma legua de S: João. Para este logar partimos uma manhã cedo, levando espingardas, redes e caixas para insectos, instrumentos para preparar aves. Carlos levava uma cesta com o almoço e o jantar, e o Paraguayo la carregado de ponchos e cobertores, porque devia- mos voltar á noite. Assim equipados, dirigimo-nos ao porto, onde Pedro nos aguardava com um bote velho de fundo chato, que costumavamos alugar para nossas excursões. N'elle nos mettemos, segu- rando Pedro e Paraguayo as pás, pois não havia remos. A manhã estava coruscante e limpa; o sol faceirava-se brilhante no rio, deixando sombras es- curas nas margens altas de argila, onde as touceiras que inclinavam para a agua, mostravam ainda à lama e a desordem do recente repiquete. Nosso rumo foi rio acima, que aqui faz uma curva aguda, q4 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' de modo a em pouco perdermos de vista as casas do porto. O terreno adluvial fôra aqui e alli des- bastado, mas a soca das capoeiras domina; nos logares mais baixos inseriam-se trechos de campos verdes ou moitas de mimosas e bromelias espi- nhentas. Parando em um logar, em que a margem de argilla foi arrombada, para fazer algumas observa- ções geologicas, encontrei uma panella de barro quebrada meio escondida na terra. De sua fórma peculiar, da grossura, das linhas toscamente tra- cadas, via-se clara; a origem india. Procurámos cui- dadosamente outras reliquias, mas não descobrimos mais que alguns fragmentos, que provaram per- tencer à mesma panella; reunimol-os no bote, para concertal-os com mais vagar *), Nesta margem argillenta, obtivemos alguns in- sectos curiosos, e quando iamos deixal-a, Pedro, que estava caçando, appareceu-nos com dois pas- sarinhos, ambos novos para nossa colleeção. Sa- tisfeitos com esta meia hora de trabalho, proseguimos a viagem entre barrancas cobertas de cerrados com. postos quasi exclusivamente de uma especie de Mi- mosa, muito commum ao longo dos rios por toda esta região. Com a sua folha macia, verde-clara, pendoando graciosa sobre a agua, dir-se-ia a mais terna e mais amavel das plantas; mas, ai do viajante bisonho que lhe cae nas unhas! Estas folhas delicadas em- buçam milhares de espinhos duros, agudos como *) Em outros pontos, na vizinhança de S. João fizemos con- sideraveis collecções archeologicas — louças e machados de pedra, prin- cipalmente. Além do simples facto de mostrarem que a região foi anti- gamente bem povoada, provavelmente por uma tribu agricola seme- lhante em seus habitos aos Tupis, não sei tirar outras deducções dos objectos collegidos. A “louça é grosseira e mui parcamente orna- mentada,. INTIMIDADES COM MIMOSAS 15 puas e fortes como ferro; estes galhos pendejantes em amarrar a infeliz victima de pés e mãos, esfolando-lhe roupa, couro e cabello com os es- pinhos abominaveis, arrancando-lhe o chapéu da cabeça e suspendendo-o a dez pés de distancia, laçando-o — ao viajante —, e expedindo-o de cabeça para baixo a um tijucal, onde cincoenta outras amaveis moitas e dez mil outros obsequiosos espinhos collaboram polidamente em seus esforços e tenta- tivas de evasão. : Fallo com esta convicção porque relações in- timas com as Mimosas dão-me este direito. Al- gumas das africas mais estrondosas em gymnastica, algumas das explosões mais vehementes de rhe- torica de que tenho lembrança associam-se a este a ee gracil. Não me chamem de vaidoso, quando uberem que o gymnhasta e o orador fui eu. Sahindo de uma volta do rio, avistamos duas grandes capivaras á beira da agua, bichos pretos, gordos, de cara estupida, analogos de aspecto aos porcos da India e seus alliados, mas do tamanho de bezerros de seis mezes. Alberto e Carlos empu- nharam a espingarda, esquecidos, com a excitação, de que estavam apenas carregadas de chumbo mos- tarda. Antes de chegarmos a distancia do tiro, uma sumira-se na agua: a outra ficou olhando para nós até que os rapazes fizeram fogo, polvilhando-lhe todo o corpo, mas apparentemente sem grande mal. À capivara escorregou da barranca e desappareceu como a outra, mas em pouco veiu de novo à tona, “atravessando o rio; immediatamente foi salvada com outro tiros, e não sei por que acaso, — pois o chumbo era n.º 12, quasi tão fino como areia, — ficou mortalmente ferida: lutou ainda um pouco, mas um tiro de revólver abreviou-lhe a agonia e conduzimol-a para terra. Era um exemplar perfei- 76 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' tamente desenvolvido, pesando provavelmente mais de uns 50 kilos. Infelizmente pouco arsenico tra- zlamos, que não bastava para conservar a pelle, e o dia estando muito quente, perdemol-a; mas o esqueleto, devido provavelmente ao chumbo fino, ficou perfeito e é hoje um dos mais valiosos spe- cimens de nossa colleeção. | À capivara interessa, por ser o maior represen- tante de uma ordem, a dos Roedores, ordem que apparece em todas as partes do mundo, excepto a Australia, porém na America do Sul em maior es- cala e mais caracteristicamente que em nenhuma outra. No meu entender, de todos os animaes são os Roedores os que menor gráu de intelligencia attestam, e a capivara não rompe em excepção á regra. É tão bronca de intellecto como de corpps; tão estupida e pesada que nem corre quando a perseguem, de sorte que com cedo desappareceria das regiões mais populosas, si, como outras da or- dem, não fôra muito prolifica. Poúco medo accusa, do homem ou de outros animaes; no baixo Ama- zonas vi-as muitas vezes pastando descuidosas entre bois e cavallos, e junto ao Pará uma levou-me de trambolhão, no esforço que fazia para abrir ca- minho por um cerrado. Póde amansar-se, mas nunca se afeiçõa. á gente e póde ser perigosa, porque é zangar-se e morder deveras. Seu nome indio capi-uara, habitante ou comedora de capim, exprime-lhe os habitos: é com- mum vel-a na macega alta, que beira os rios; nunca soe aparta muito da agua, seu refugio contra os que a perseguem, e abaixo de cuja superficie pausa longo tempo, se bem que não seja propriamente amphibia. Muitas tribus indias comem-lhe a carne, mas poucos brancos provam d'ella. Entretanto, por experiencia, dou testemunho de que é muito bôa FECUNDIDADE DEBE CAPIVARAS q quando lhe extrahem as visceras logo depois de morta. Ha alguns annos estava jantando em certa fazenda do Pará; os convivas, entre os quaes se contavam um vice-presidente. da provincia e um deputado geral, eram só louvores de um prato, de - que não ficou tico: acabado tudo, disse-nos o dono da casa que o que tinhamos comido era capivara. Muitos caçadores têm-me contado a respeito das capivaras uma historia exquisita, na qual não sei si acredite, mas que, com franqueza, não posso negar positivamente: em todo caso não é talvez mais incrivel que outros factos ultimamente pu- blicados a respeito de outros Roedores. É bem sa- bido, que as capivarinhas que correm com as máãis, quasi sempre são de tamanho diverso, desde as que "contam poucos dias até as que já attingiram à metade do desenvolvimento. Diz a historia que. quando se abre uma capivara amojada encontram-se tambem fetos de diversos tamanhos; diz mais que, embora muitos coexistam na barriga, nascem todos um a um, com intervallo de dias e semanas. Sup- pondo provadas estas affirmações, o resultado seria que nesta especie a concepção é possivel durante a gestação, processo de que não ha exemplo entre os outros mammiferos. Depois que me contaram isto, não tive ensejo de averiguar si é ou não exacto: deixo-o, pois, aqui de quarentena, à espera de algum naturalista ou amiador mais feliz que eu, que investigue assunto tão interessante. Devido ás varias demoras, era quasi meio-dia quando chegámos a, Mariasinha, trecho da floresta alta e aberta na aba de um' serrote de pedra. Gral- gando o barranco, estendemos os ponchos no solo, debaixo do grandioso arvoredo macrobio, e sen- tâmo-nos para. o almoço, — gallinha fria, pão, queijo, os inevitaveis doces e um cangirão de cer- 18 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' veja. Emquanto comjamos, reparámos que bandos de passaros revoavam pelas arvores em cima de nós, comendo uma frutinha de que os galhos estavam cobertos. Eram de muitas especies, Tanagre e Frin- gillide principalmente. Em pouco os matos come- caram a -ecoar os tiros de nossas espingardas, e. em menos de uma hora doze dos coitadinhos es- tavam no chão: um, amavel Tanagra de plumagem azul e brilhante crista carmezim, era novidade para nós, la terceira, ornithologicamente fallando, do dia *). Carlos accrescentou-lhe quarta: estivera ron- dando por traz do serrote e voltava com os dentes à mostra, de prazer, trazendo um pica-páu côr de havana muito curioso, de bico delgado, fortemente adunco, quasi do tamanho do corpo. | Foi esta uma das fórmas mais estranhas que obtivemos d'esta familia, aliás representada prodi- “gamente n'esta, região. Differe notavelmente dos outros confrades, dos quaes a maior parte tem bi- cos grossos e comparativamente curtos. De commum com muitos outros pica-páus, tem as pennas na cauda muito fortes, um tanto encurvadas na ponta, Quando o passaro atraca-se a um páu secco, cri- vando-o de buracos à cata de larvas de insectos, as pennas da cauda, descançando na casca, servem para aguentar o corpo e assim dão mais força e precisão às repetidas bicadas. As garras tambem são muito fortes e especialmente adaptadas à, tisga da casca ou do páu podre. | Minha senhora, que ficára com a parte bo-. tanica, estivera fazendo uma colleeção de fetos entre as rochas e paredões da aba do serrote. As ladeiras em muitos logares estavam completamente cober- * Novos para nós, não para a sciencia. Mesmo nos pontos menos devassados do Brasil, um ornithologo póde julgar-se feliz, en- contrando no correr de um anno duas ou tres especies por descrever. BORBOLETAS VARIAS “19 tas d'estas bellissimas plantas, desde os magnificos fetos arborescentes com suas frondes graciosas fina- mente franjadas, “de dois metros ou mais de com- primento, até ás especies mirins, que escapariam aos olhos de quem não lhes andar especialmente à cata. N'estes sitios humidos e somibriados, encontrei igualmente muitas borboletas raras, a maior parte negras, pouco vistosas, que tomavam assento no chão e fugiam fracamente, quando espantadas. En- tretanto, um specimen, o unico da sua especie e genero que obtive na provincia, era dos mais bellos d'este bello grupo: uma Hetaira, de azas perfei- tamente transparentes, excepto duas manchinhas es- carlates na margem: das de traz. Embora affigure-se exquisito, a superficie geral transparente e as maun- “chinhas brilhantes parecem esconder a borboleta; apezar de seu fraco esvoaçar, as Hetairas são dos insectos mais difficeis de colher, porque é quasi impossivel á vista seguil-as nas florestas escuras a que se avesam. As azas transparentes mal se vêem, e o effeito das manchinhas coloridas, vislumbradas um instante e depois encobertas, à feição que as azas abrem e fecham, é exactamente o de uma restea. de sol, frinchando pela folhagem e tocando em malhas tremulas o chão aqui e além. Em algumas das touceiras floridas que beiram a floresta, obtivemos numerosos insectos coleopte- ros, das familias Cerambycida, Buprestida e outros, e algumas Libellula raras encontrámos esvoaçando ao longo do rio. Poderia ir continuando neste tom, enumerando insectos e aves, conhecidos apenas por seu desengraçado nome latino, e que para à maioria de meus leitores seriam tão interessantes como uma encyclopedia japoneza, Basta dizer que ficámos satisfeitos com o nosso 80 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' aim de trabalho, e quando, à bocca da noite, des- cemos rio abaixo para S. João, ninguem se lem- brava de estar cançado. Alguem pôz-se a cantar e juntámo-nos todos com as vozes de que dispunha- mos. Pela primeira vez, talvez, o mato do Cahy reboou com as volatas de canções das universidades americanas, terminando com sentimento mais pro- fundo em: My country, tis oí thee, Sweet land of liberty, Of thee 1 sing! De nossas numerosas excursões a cavallo, uma ha de que.me lembro com especial prazer, porque o scenario não teve parelha, em. belleza, de tudo o que vi na provincia. Partimos — minha senhora e eu — uma manhã soalheira de Março, montados em excellentes cavallos, eu n'um grande alazão de sangue inglez que comprára, recentemente, ella em um escuro, pequeno, passeiro, e muito bom para pequenos passeios, mas pouço forte para viagens mais compridas. Levámos apenas uma prensa para plantas e frascos para os insectos que pudessemos colher. Nosso caminho esfiava-se para O., através da aldeia e por traz do monte de 8. João com suas extensas pedreiras; depois descia um valle umbroso, onde cruzámos um! arroio, agora simples fitinha de . agua clara, posto que com as chuvas inchasse a não dar váu; não ha ponte aqui, embora seja este um dos principaes caminhos das cercanias, que leva ás villas do Triumpho e S. J eronymo, no rio Ja- cuhy. "Deixando a estrada, seguimos por uma, azinhaga para NO., passando meia legua ou mais da, capoeira enredada com muitas inalhas de campo ou farripas UMA FAMILIA ALLEMÃ 81 de fachinal. É caracteristico da região ondulada que moldura S. João acharem-se differentes typos de vegetação viçando lado a lado em retalhos, como si cada um lutasse pela ascendencia. Entre os morros mais altos, a floresta conquistou completa- mente o mando; mas aqui apenas dispõe de inves- tidura passageira e precaria, e mal a deitam abaixo, a capoeira que a rende rapido assemelha-se antes a um retorno ao fachinal, do que a um esforço da floresta para reivindicar seus dominios. A azinhaga levou-nos à casa de um lavrador allemão, na aba de uma enfiada de paredões que se perfilam kilometros afóra para NE. A casa era simples e pobremente mobiliada, mas de todos os lados saltavam provas de industria e diligencia. - Um longo terreiro em frente à porta estava cheio de cavallos, vaccas, porcos, pintos e patos, e havia muitos puchados e alpendres com instrumentos e productos agricolas; duas grandes roças estavam plantadas de milho e fumo. O homem era criador de cavallos considerado, e ganhava muitos premios no prado de S. João, onde ha corrida quasi cada domingo. Morava aqui desde muitos annos, mas pouco fal- lava de portuguez; grande parte de nossa conversa, emquanto sentados na sala grande bebendo café, foi feita mediante um rapazinho sardento de cabello amarello, filho d'elle talvez; a dona da casa, Mar- trona de compostura severa, 'encadernada nº um ves- tido de lã azul desbotada, Tallou à minha senhora em allemão, e depois foi se pôr de pé na porta até sahirmos; duas filhas já moças, sympathicas, rechonchudas e rosadas, vieram juntar-se à mai, sem palavras nem comprimentos. Numa familia ma- tuta do Brasil, ou ficariam numa sala de traz, “espiando pelo buraco da. fechadura, ou então teriam ) 82 “DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' entrado, apertando desengonçadamente a mão da senhora, e sentado a seu lado. Questão de gosto. O rapaz prestou-se a mostrar-nos a floresta vizinha, que acompanha o paredão. Achámol-a tão amarrada que era preciso facão a cada passo; mas a colheita foi abundante, especialmente de fetos, "dos quaes obiivemos fórmas novas. Onde um iarro- io arrulava com os rochedos, achei muitos insectos pequenos — coleopteros e hemipteros, — procuran- do-os no musgo humido e debaixo das pedras. Ha uma familia de coleopteros — os Staphinilide, — muito numerosa em taes sitios e que sempre teve para mim interesse especial. Quasi todos são pe- quenos, parecendo meras nodoas a olho nú suas fórmas são delgadas; têm de notavel a elytra, ou chapas rijas que cobrem as azas, muito curtas, dando-lhes apparencia toda peculiar. — Os Staphinilide representam o mesmo. papel - entre os insectos que as doninhas e os arminhos aleonados, entre os Mammiferos do Norte, ou os Mar- supiaes entre os da America do Sul, Como elles, são delgados e de pés rapidos e muito fortes para seu tamanho, com dentes ou mandibulas longas e afiadas. Como elles, são carnivoros e capazes de atacar animaes muito maiores, segurando-se com dentes e garras até sugar-lhes o sangue. Os Sta- philinide são das familias mais extensas de im- sectos, mas por causa do seu tamanho minusculo têm sido estudados muito imperfeitamente, excepto na Europa e no Oriente dos Estados Unidos. Minha colleeção comprehende umas tres mil especies do Brasil, — isto é, quasi o triplo das que têm, sido descriptas dentro dos limites do imperio. | Sahindo da fazendola, mettemo-nos por outro caminho que ia para NE., quasi parallelo á linha de paredões. A terra aqui era quasi exclusivamente. RINCÃO DE FETOS 83 fachinal, excepto ao longo da base do morro, onde havia reboleiras de mata: ao longe, a Este e Nor- déste, na morraria, estendia-se a floresta escura, que n'aquella direcção não foi ainda violada pelo machado. Volvendo d'aquelle panorama, de um sombrio grandioso, defrontámos immediatamente uma scena de tal modo diversa, tão fortemente aprazivel, que involuntariamente colhemos as redeas n'um espasmo de admiração. A vereda internára-nos na floresta ao pé do paredão; a uns doze passos estava um espaço aberto, fronteiro ao penedo, que tem aqui uns trinta metros de alto e recolhe-se n'uma chamn- fradura de uns quarenta metros de largo, em parte. abrigada do sol. Um gomosinho d'agua saltitava no meio, e dissorava pelo rochedo abaixo até «ador- " mecer n'uma bacia socegada. De ambos os lados da cascata, desde o cocuruto até o esporão do ser- rote, estava tudo acolchoado de fetos de muitas especies; grandes frondes dengosamente rendadas flamulando umas sobre outras, ladeadas de outras menores, e aqui e além um feto arborescente que surgia: do massiço, como para contemplar a propria belleza na lympha crystallina. Havia uma nobre especie, de folhas de dois metros de comprido e outras tantas de largo, de-côr verde-azulada par- ticular, que-nos pontos sombrios imitava os effeitos de luar ou de fogos de Bengalla. Vi os palmares do Pará; vi grupos magnificos de arvores e cipós e parasitas no Amazonas; vi muitas combinações de folhagem, de que os fetos eram feição proeminente e bellissima; mas nunca imaginára o effeito admiravel que podia ser pro- duzido só por fetos. Ainda hoje esta scena esvoa- ça-me no-espirito como o lampejo de uma. terra “de fadas, cujo par nunca. mais vi e talvez nunca Ed 84 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' “veja. Assim haviam de ser as florestas nos periodos carbonifero e devoniano, quando os fetos eram as fórmas principaes da vegetação. Apeámo-nos e estacámos longo tempo, quasi embruxados pela belleza do sitio: parecia sacrilegio defloral-o, pelo simples gosto de colleccionar. En- tretanto, já tinhamos dado com algumas especies que ainda não encontraramos; em risco de quebrar o pescoço, obtive especimens dessas e de mais al- gumas em que a principio não reparára. Depois, com um olhar alongado naquelles rochedos en- cantadores, cavalgámos de novo, procurando agora a estrada de Taquary, que desgalha para O. da do Triumpho. Naquelle rumo cavalgámos milhas, parte por baixo de arvoredo alto, cujos ramos tre- mulavam para o caminho seus galhardetes de pa- rasitas, cujos troncos estavam lastrados de fetos e lycopodios, Nas florestas os caminhos são bastante simples, geralmente um trilho, com poucos esgalhos; mas nos campos e no fachinal proximos de S. João muitas vezes são de pôr uma pessoa doida. Abrem-se .du- alas de veredas, serpeando por uma área de vinte a trinta metros de largura; cada vereda é um espaço estreito, batido, onde os cavallos penetraram uns após outros, atalhando ou desviando aqui e alh, quando encontram obstaculos. Parallelas a estas, ou irradiando d'ellas, ou cortando-as em todos os angulos imaginaveis, ha outras veredas trilhadas por gados e cavalgaduras que pastam no campo. Quem quer que não seja pratico, expõe-se a metter-se por uma d'estas veredas de gado, que depois de uma a duas milhas tenece num capão ou num alaga- diço. % EXCURSÃO AO MARATA' 85 Propriamente não ha estradas publicas: toda a terra aberta é caminho para quem quer usal-o, e a trilha original em breve enreda em outras, fei- tas por transeuntes que descobriram ou julgam ter descoberto atalho mais commodo para contornar um capão, vencer um banhado ou sophismar um morro, Assim, em certo logar achámos um boqueirão- de cerca de meia milha, com uma estrada de cada lado, reunindo-se ambas no fim. Um viajante inex- periente, chegando a elle, hesitaria muito antes de tomar por um lado de preferencia ao outro, embora ambos os caminhos dessem certos. O boqueirão era simples fosso, agaloado de moi- tas enfesadas, e muito antipathico pelo exterior. Casualmente metti-me por elle, fazendo observações * geologicas, e com grande sorpresa encontrei uma scena apenas inferior em belleza à do paredão, embora muito diversa. As touceiras que cresciam pelas beiras arqueavam-se por cima em tecto ver- “dejante, iluminado aqui e além pelo sol que fil- trava pela ramagem. O boqueirão, de uns dois me- tros de largura e outros tantos de profundidade, estava perfeitamente abrigado do vento e quasi da “Chuva; medravam aqui os mais bellos fetos em perfeição admiravel, frondes longas, emplumadas, tão graciosamente recurvas que não ousavamos to- cal-as, de medo que se esvaissem sob nossos dedos, Trabalhámos alli até o pôr do sol e já era escuro quando chegámos à casa, Nossa excursão mais longinqua do Norte foi ao - riote Maratá, galho do Cahy, cerca de duas leguas de S. João, A estrada percorria uma série de mata- sinhas, roçados, capoeiras e manchas occasionaes de fachinal e um largo banhado que atravessamos com difficuldade, com os cavallos enterrando-se até á cilha. Afinal a tudo seguiu-se uma floresta continua 86 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA e muito grossa, pela qual perpassa o Maratá, fa-. cilmente vadeavel quando o visitâmos, mas que, como os outros rios da mesma região, empola des- medidamente quando chove de rijo. Pouco adiante do rio havia um roçadinho, cujo proprietario, um mulato, vivia aqui n'uma casa, ou “antes cochicholo feito de estacas .e barro (taipa), segundo o costume, com uma coberta de palha e apenas. dois quartinhos. A familia constava do ho- mem, de sua mulher e de cinco ou seis filhos, al- guns bem taludos. Meu ajudante, Alberto, ficou n'esta casa alguns dias, fazendo colleeções de in- sectos na floresta vizinha, Precisava-se de coragem para pousar aqui, pois as accommodações eram nullas. Alberto, felizmente, levou comsigo a rêde que trouxera do Pará, quasi que ainda não conhecida na provincia, e com alguma difficuldade encontrou-se espaço sufficiente para ar- mal-a. Uma canastra suspensa do tecto continha seus instrumentos e especimens; debaixo dormia um dos filhos do homem, e no quartinho havia mais tres moradores. Eu tratara antes com o mulato a respeito da comida, que constava de feijoada e arroz, commentados da caça que acaso apparecia. O mez — Março — não era o mais proprio para trabalhar em floresta; entretanto fez-se uma colleeção valiosa. As derrubadas de fresco e as trilhas florestaes, que alli se encontram, attrahem grande numero de insectos lignivoros, principalmente coleopteros, estabelecidos muitas vezes ás cen-. tenas em arvores recem-cortadas e troncos que es- tão apodrecendo. Um dos coleopteros mais communs era uma especie da familia Cerambycide e genero Scor- pionus, assim chamado porque as pontas das an- E Gero, UNS INSECTOS BEM SERVIDOS 87 tennas têm a fórma da ultima junta da cauda de um escorpião. Diversas especies d'este genero são muito communs em varias partes do Brasil: lar- gos, um tanto achatados, de côr pardo-escura e cobertos de pequenas asperezas e borbulhas irre- gulares, estes insectos parecem-se precisamente com cavacos de casca. Pregados a esta, segundo cos- tumam, com as antennas e pernas juntas ao corpo, só a vista mais penetrante os póde destacar da superficie geral. Muitas vezes, agarrando-os com as mãos nos troncos, estremeci com a ferroada que me davam, passageira, é verdade, mas quasi tão dolorosa como a da vespa. Em geral o resultado immediato era fazer-me soltar o insecto, que tambem não esperava por mais para voar embora. Nenhuma das especies d'este grupo tem ferrão e a principio não atinava eu com a explicação da dôr que me causavam. A experiencia mostrou-me, porém, que, quando eu pegava o insecto por cima, as antennas recuavam em movimento rapido, pi- cando-me os dedos com as agudas pontas terminaes, exactamente como o escorpião fere com a cauda; apenas, no caso do insecto, o effeito era comparati- vamente ligeiro. "Ás vezes a picada resolvia-se em ligeira in- Hlammação, que. me fazia suspeitar da presença do veneno; mãs não pude descobrir ducto ou glan- dula apropriados nos specimens que examinei. Tal- vez secrete-se alguma materia venenosa na super- ficie da junta que ferrôa, como se dá com as espinhas de certos peixes. Em todo caso é certo que as antennas do Scorpionus são defesas formidaveis - quanto basta para prestarem grande serviço ao in- secto, contra aves, reptís e outros pequenos animaes 88 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' insectivoros, pois que, agarrando-o estes de cima, ficariam feridos nas partes delicadas que cercam a bocca e o subito do ataque provavelmente obri- gal-os-ia a deixarem a preza, espantados *). * E este o unico exemplo que conheço de arma antennal em insectos. No tempo d'esta descoberta, escrevi a respeito uma. breve nota em The American Naturaist. “ IX : Os campos: physionomia, flora, fauna e sociologia. — Uma noite à la belle étoile. Já fiz o reparo de que o terreno junto a S. João é meramente uma região de florestas, apenas entremeiadas de sardas de fachinal, e às vezes pe- quenas manchas de campos, tão opprimídas pela ve- getação mais alta que parecem arroteados. De facto, junto à povoação é às vezes difficil distinguir o terreno roçado dos espaços naturalmente abertos. O caminho de S. Jeronymo, depois de transpor um arroio adiante de S. João, atravessa em rumo de S.W., uma legua, ou mais de terreno ondulado, em que a floresta é mais baixa e mais interrompida pelo fachinal. Além ha um grande estendal de floresta alta e seriada, onde outro riacho corre para o Cahy por um valle abrigado. Este estendal de floresta reproduz quasi inteiramente a vegetação typica da serra Geral; contém muitas palmeiras; os galhos marchetam-se de orchideas e outras parasitas, ci- pós de cincoenta especies encabrestam as arvores; por baixo, o tapete de fetos e lycopodios. Uns cincoenta metros adiante do arroio, a es- trada sae inteiramente da floresta e entra em terreno aberto. A transição faz-se tão de chofre e de sor- presa que dir-seiia uma magica. Para quem vem de cavalgar na floresta sombria e calada, salta aos olhos um mundo novo, — mundo d> paizagens 90 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' largas, abertas, de luz que caracola, de ventos que varrem victoriosos, mundo onde cada planta e ani- mal que vemos, differe dos da floresta. Andando cerca de um kilometro até o viso de um morro e olhando para traz, ainda mais ap- parente se torna o contraste. A linha da floresta corre quasi Este-Oéste, claramente destacando do campo por sua côr carregada. D'este ponto, o fa- chimal e as pequenas abertas de campo mal se avistam: para traz, em rumo à serra Geral, todo o paiz parece embuçado de arvoredo. Mas para o Sul e para Oéste derramam-se leguas após le- guas de campo ondulado até o horizonte, campo mais verdejante nos valles, mais sujo nos cabeços, quando a estação vai adiantada, interrompido apenas pur algumas linhas de arbustos junto aos arroios, e dois ou tres capõesinhos nas ladeiras abrigadas. Ao Sudoéste variam a terra alguns morros car- rancudos, mas mesmo ahi mal pôde estabelecer-se a mata. A transição, deve dizer-se, é maior ainda do que parece. Physicamente é aqui o “extremo do Brasil, e entramos. no Estado-Oriental. Plantas e animais, paizagens, a propria vida, industrias e commercio do Brasil ficaram atraz. Politicamente o imperio vai algumas centenas de kilometros adiante; socialmente todo o resto da provincia grar vita para as republicas platinas. Em poucos logares para o Sul, — especialmente entre os morros que avizinham Pelotas, — ha tirechos soltos de floresta *) e, vice-versa, nodoas salteadas de campo intervêm. na floresta paral o Norte; os campos de cima da serra, a muitos respeitos, asse- * Parece que para Oéste, beirando o Uruguay, o matto geral estende-se mais para o Sul. 6 PHYSIONOMIA DOS CAMPOS 91 melham-se aos que nos rodeiam. Mas são excepções “que confirmam a regra. O exercito invasor das arvores expediu sentinellas avançadas á terra do inimigo, e fragmentos estropeados do campo em derrota ficaram no meio da floresta; mas a linha de demarcação nem por isso é menos apparente. A mudança parece estender-se à tudo. É dif- ferente o clima — mais frio, chuvas menos fre- quentes, a estação da secca mais fortemente con- trastada com a das aguas. Após chuvas grossas, cada valle entrecha um corrego, que muitas ve- zes não dá passagem à gente, nem a cavallo, e horas mais tarde secca de todo, deixando apenas “profundos fossos, de lados perpendiculares, que o viajante tem. de evitar com desvios de milhas e leguas. Estes cursos d'agua são feição constante e assignalada dos campos até Montevidéu, e não me occorre ter visto alhures' cousa semelhante. É commum achal-os, com dous ou tres metros de lar- gura, sobre outros tantos de profundidade, com as margens de argila a prumo e formando leguas e leguas um angulo agudo com o nivel geral do ter- reno. Geologicamente, devem todos ser muito re- centes, embora sejam extremamente antigos os val- les de que provém sua origem, Rios permanentes são aqui menos communs do que na região das florestas; os alagadiços, ao con- trario, são mui numerosos, embora raras vezes gran- des; no Rio Grande. do Sul dão-lhes nome es- panhol de banhados. As plantas dos banhados são naturalmente bem diversas das dos campos altos, mas no aspecto geral não differem muito, excepto em seu brilhante colorido verde. Ai do viajante infeliz que se entrega a esta superficie verde! An- tes de dar por isso, enterrar-se-á até os joelhos, si não até a cintura, em lama e agua. Os cavallos, 92 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' quando affeitos aos campos, não ha meio de obri- gal-os a passarem um banhado, mesmo quando 0 caminho está batido, e em geral é mais seguro. evitar, por meio de longos desvios, os que não são bem conhecidos. A superficie geral do campo é inteiramente limpa e macia; bromelias e cactos espinhosos en- contram-se apenas nos logares de pedra; a grama é geralmente curta e misturada de grande variedade de plantas floridas. Muitas d'ellas são familiares nos jardins da Europa, entre ellas a verbena es- carlate, que estrella vividamente em muitos pontos. Da primeira á ultima, as plantas de campos differem das da floresta e a differença é quasi inteira para à vegetação dos cerrados do planalto brasileiro. Ha falta absoluta de fetos; apenas uma especie de pal- meira, do genero Cocos, estende-se para o Sul, além das serranias do Erval, mas limita-se a certos dis- tritos. É . Os capões são apenas punhados de floresta, ra- ras vezes de mais de um kilometro de extensão, dando quasi sempre em ladeiras, nunca em terrenos alagados, e, ao que parece, de todo independentes dos cursos d'agua. Algumas das arvores que nel- les se vêem differem das do mato geral; ha poucas palmeiras ou' grandes trepadeiras, e os fetos limi- tam-se a umas doze especies, de sorte que o facies é distinctamente menos tropical, — menos brasileiro, sil assim me posso exprimir, — do que o das flo- restas que rodeiam S. João. Geralmente, os riachos são ourelados sómente por tenues linhas de touças, Mimosas e outras; os arroios maiores, ao menos na região que avizinha o Jacuhy, são ás vezes ladeados de genuina flo- [4 resta, que nunca é muito alta ou luxuriante, e raro FAUNA DE MATTAS E CAMPOS 93 attinge a cincoenta metros da agua. Para o Sul estas matas ribeirinhas, bem como os capões, es- “casseiam, e nos confins do Estado-Oriental desap- parecem quasi inteiramente, “Grande proporção dos animaes das florestas brasileiras — mammiferos, aves*), reptís, bactra- cios, insectos e molluscos, são arboreos; outros, como muitos insectos plantivoros, vivem em plantas das florestas; outros não podem supportar o sol e se- gregam-se nos sitios umbrosos. Todos estes, natu- ralmente, faltam nos campos, onde rendem-nos espe- cies terrestres, herbivoras ou amantes da soalheira. Mas além d'esta ha uma distinceção marcada entre a fauna do campo e a da floresta, que se "estende não só a especies e generos, mas a grupos “maiores. De tal distincção e do que significa, fal- larei mais amplamente quando tratar dos campos de Mato Grosso; basta por ora chamar a attenção para certos factos, como a existencia exclusiva, na floresta, de Quadrumanos (especies terrestres e de campo encontram-se na Ásia e na Africa); dos Trogonide e Rhamphastide, entre as aves e de borboletas do grupo Heliconius entre os insectos. O campo, ao contrario, possue todos os Canida (mammiferos alliados ao cachorro); os coelhos e ta- tus, entre os mamaes; as emas entre as aves e, com poucas excepções, todas as especies da importante familia dos Mutillarae, entre os insectos. A floresta fornece a madeira e outros productos, e suas terras ferteis se prestam á agricultura, de- *) Póde parecer tautologico fallar em aves arboreas; porém, além do numero consideravel de especies propriamente terrestres, ha muitas aves scansoras que frequentam apenas a macega baixs dos descampados, 94 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' pois de derribadas; a terra de campo, ao contrario, não serve ou pelo menos não se usa para a agri- cultura, mas proporciona excellente pastoradouro ao gado. Assim foi que o Norte, ou a região da floresta do Rio Grande do Sul, produziu um systema de pequena lavoura, melhor e mais importante que em qualquer outra parte do Brasil; o Sul ou a zona do campo tem sido exclusivamente ocecupada na in- dustria pastoril, e cria-se mais gado aqui do que em nenhuma outra provincia do imperio. Com as occupações, variam grandemente os habitos e o caracter do povo. Os homens do Norte são lavradores, amigos de seu lar, donde pouco se apartam, adstritos ao solo que os alimenta. No Sul, todo o mundo é peão e vaqueano, acostumado a: correr dias e-pemanas pelas cochillas, e pouco tempo levando em casa. Vive onde está o seu gado, co- mendo o seu churrasco, embrulhando-se no seu pon- cho para dormir onde a noite o assalta. Ignorante quanto a letras, é sabido em tudo quanto diz res- peito a seu viver vag cabundo, desprezando seu irmão . mais laborioso do Norte. De indole é variavel; as exigencias do seu viver ensinaram-no a desconfiar dos estranhos, e sua rude hospitalidade é muitas vezes guardada pelo punhal ou pelo trabuco; por tanto o lavrador o considera como de maus instin- ctos é avido de sangue. No todo, as duas classes muito pouco têm entre si. Mas, além disto, o influxo dos immigrantes eu- ropeus produziu muito forte distincção de raça. Os allemães e italianos que vêm para aqui são quasi todos agricultores e naturalmente procuram o fertil Norte da provincia, e todas as colonias estão na região da matta. Calcula-se que da população do Rio Grande do Sul mais de 100 mil são allemães SOCIOLOGIA DOS MATOS E DOS CAMPOS | 95 de nascimento ou de origem; com excepção de uma colonia junto a Pelotas, e de negociantes, artistas e muito raramente algum criador, estão elles todos estabelecidos ao Norte do Jacuhy. Entre os italianos, à proporção que se encontra nos distritos agricolas é ainda maior, porque muito poucos delles se inte- ressam no commercio. Empregando as palavras em sua accepção so- ciologica e não politica, os lavradores da mata são conservadores; os gauchos do campo são liberaes, com pendor accusado para o radicalismo. No caso de alguma convulsão politica, o Norte da provincia, o elemento estrangeiro em especial, provavelmente receberia a senha do Rio de Janeiro, adherindo á monarchia ou a qualquer governo estavel que se formasse; a região do Sul do Jacuhy, embora quasi exelusivamente occupada por brasileiros natos, apro- veitaria o ensejo para a revolução de qualquer fórma, tornado á republica, que ainda e sempre é memorada com orgulho, — si unindo-se aos es- tados platinos, si de maneira diversa, é o que de- penderia do impulso do momento. O resultado em qualquer caso seria o mesmo; são hoje livres até à illegalidade; uma revolução augmentar-lhes-ia. a licença, mas nada à liberdade. No todo, os gauchos são elemento valioso do estado, embora não destituido de perigo; elemento que com o tempo e a mistura de outros materiaes promette dar de si uma das partes mais progres- sivas, mais liberaes e, afinal, mais leaes e legaes do Brasil. União mais intima entre o Norte e o Sul da provincia aproveitaria a-ambos, e poderia evitar grande somma de perturbações para o futuro, 96 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' Fizemos muitas excursões pelo campo, chegando uma ou duas vezes até o Triumpho, no Jacuhy *), a umas sete leguas de S. João. Havia uma simples casa occupada por um criador, no caminho: de resto, poucos sinaes deparámos de civilisação, a não ser a propria estrada e as manadas de gado. Lembra-me especialmente uma d'estas cavalga- tas. Levaramos um guia, porque a estrada muitas vezes não era mais que uma trilha, costurada a cada passo de veredas; mas, tendo reparado cuidadosa- mente nos sinaes, minha senhora e eu julgámo-nos habilitados a voltar sós para S. João. Era uma ma- nhã luminosa, muito sol e pouco calor, nuvensinhas a provocarem-se pelos céus afóra, e a grama do campo a cachear como lago aos bafejos da aragem fresca. Suspeito que até os nossos cavallos aspi- ravam a exhilarancia que desprendia esta scena, gallopando no terreno liso, adiante das sebes de pinhão do Triumpho, em que o orvalho distillava de cada talo e de cada flôr. t Os campos exuberam de vida animal, — menos variada que na mata, porém mais conspicua pelo grande numero de individuos. Dezenas de gaviões vellejavam pelos: cabeços, ou faziam sentinella de alguma arvore solteira; uma facha da varzea ti- tillava de pernaltos, e especies menores, brunas e amarellas, fugiam do macegal em largas revoadas; * Depois de mnossa estada, construiu-se uma via ferrea por estes campos até Taquary, no rio do mesmo nome, affluente do Ja- cuhy; é do plano estendel-a aos campos de cima da serra. Estes rios são ambos navegaveis por pequenos navios e podiam tornar-se taes para maiores: no estado actual do commercio a estrada já construida é, nada mais nada menos, uma superfluidade. Fazendo o ponto de par- tida no Taquary, já se poderiam ter estabelecido as communicações com os campos de cima, tão importantes para criação, Na Europa e nos Estados Unidos passa como axioma que nenhuma via-ferrea deve construir-se ao lado de via fluvial navegavel, excepto como sangra- douro de algum systema ferro-vial já existente, ou como meio de transporte rapido entre duas grandes cidades. EMAS E BICHOS DO CAMPO 9% de insectos haveria muitos, si estacassemos para reparar. Priásinhos e mocós escuros — roedores do genero Priá, a que se filia o porquinho da In- dia, — corriam desageitados do caminho, descuidosos quando fóra do alcance das patas de nossos cavallos. Uma ou duas milhas antes do povoado, espirrou das moitas uma raposa, atravessou o caminho e mergulhou além na macéga alta. Raposa e priá são generos peculiares ao campo: os ultimos oc- cupam o logar das cotias e pacas da mata, e os primeiros, com outros Canidae, representam no campo os numerosos Felidae ou gatos da floresta. Vimos ainda um tatú. A espaço notavam-se trilhas de ani- maes da floresta, que á noite visitaram o campo. Correndo pela lombada de um morro, sorpren- demos um magote de emas: voltaram o pescoço “para medir-nos, e então desandaram pela encosta numa corrida tremenda, mas tão ensossa como se usassem pernas de páu. Por desfastio, gallopámos atraz, mas era melhor que tivessemos dado caça a uma locomotiva: ainda está por nascer o cavallo é ha de alcançar uma ema em corrida direita. 8 vezes caçam-na a cão e cavallo, mas para tanto é necessario muita gente, que possa atacar as aves de varias: bandas e obrigal-as a virem cahir no meio dos que as perseguem. Apezar do medo que têm ao homem, as emas não se espantam com o gado ou com o cavallo em pello. Muitas vezes se encontram pastando com as manadas, e um caçador aproveita-se disto para tomar chegada, escondido por algum cavallo que vai na frente. Estructuralmente, são notaveis estas aves pela sua semelhança com os Reptís. Sua alimentação consta de sementes, capim, insectos, etc.; dizem os gauchos que ellas comem tambem cobras, e por 98 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA” este motivo consideram-lhes a carne impropria para a alimentação. Depois, em Mato Grosso, onde ás vezes comem-n'a, experimentámol-a e achámol-a; muito bôa; mas os musculos andam quasi sempre enfestados de Entozoa, que a fazem repugnante, sinão perigosa. A femea põe de vinte a trinta ovos no chão, ovos alvos e quasi do tamanho de um copo ordinario. Não pude averiguar se os incuba; mas, como a temperatura d'esta região é muito irregular, parece improvavel que sejam chocados exclusiva- mente pelo calôr solar. Por algum tempo seguimos bem o caminho, guiando-nos por um serrote do campo que demora a meia distancia do Triumpho e de S. João. Este morro, chamado a Fortaleza, foi a scena de uma batalha ou escaramuça na revolução de 1835. Uma força republicana refugiara-se no cocuruto, d'onde a expulsaram os legalistas depois de renhida pen- dencia. A um velho, que tomara parte no feito, ouvi contar que aprisionara o chefe rebelde a ga- lope, atirando-lhe o laço e derribando-o do ca- vallo. “gt Confiados em nosso talento como vaqueanos, determináâmos abreviar a viagem com um atalho na grande volta da estrada. Atravessando um es- pigão pedregoso, descemos o svalle, onde nos de- teve um dos tais corregos interminaveis e insupe- raveis que já mencionei; margeámos pelo lado di- reito quasi uma legua, “até desembocar num ba- nhado, onde os cavallos tiveram o bom senso de empacar. Tornando atraz, achámos o caminho di- reito por onde nos mettemos alegres, até que, descrito: um meio circulo, descobrimos que estavamos vol- | tando para o Triumpho: tomámos então o rumo opposto, onde igualmente sumia-se a vereda n'outro banhado. A tarde ia adiantada e os nossos animaes NOITE AO SERENO 99 começavam a dar signaes de cansaço. Afinal, fi- zomos o que deviamos ter feito antes: voltámos sobre nossos passos e assim, posto quasi o sol, achâmos a estrada de S. João: para adiante o ca- minho era-nos familiar, mas faltavam ainda quatro “leguas. O cavallo de minha senhora, animal fraco e pequeno, arquejava ruidosamente e duas ou tres vezes esbarrou para descançar; por fim recusou-se a dar um passo e tornou-se claro que teriamos de passar a noite no campo. E: Estava muito escuro, mas eu sabia que não estava muito longe um capão; levando pela mão o cavallo cançado, conseguimos chegar alli, onde o pouso era muito mais conveniente que numa la- deira desabrigada. Tirando a sella aos cavallos, “'maneámo-los e deixámol-os soltos, certos de que não iriam para longe, até amanhecer. Então accendi uma fogueira emquanto minha senhora arranjava uma cama com as sellas e mantas, segundo a moda dos gaúchos. Felizmente, ainda tinhamos resto do lanche, e depois de comel-o, sem agua para beber, deitâmo-nos por baixo dos ponchos, embebidos no exame do jogo das labaredas sobre as Tolhas e troncos, até adormecermos. Foi esta a primeira ex- periencia que minha senhora fez da vida do mato no Brasil, experiencia que tinha de repetir muitas vezes nos quatro annos seguintes. Pela manhã, quando desciamos a encosta que fica adiante do capão, vimos uma camada de ne- voeiro branco que cobria todo o valle abaixo esten- dendo-se leguas e leguas, nivelada como um mar; “O sol nascente, ferindo-a, dava-lhe o aspecto de vasto campo de neve, como tantos vi ao Norte dos Estados Unidos. Subito estalou o nevoeiro, pri- meiro aqui, depois além, mais longe evolando em matagaes de fragmentos aereos, e “onde se armara 100 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' o campo de neve, avistáâmos o bello valle do Cahy, com suas florestas, morros e fazendas. Como as flôres da primavera e os frutos do outono suecedem aos plainos nevados do Norte, assim tenho fé e es- perança que a felicidade e a prosperidade e a riqueza “não tardarão para este valle formoso, onde agora jazem escondidos sous la neige. X ad O rio Jacuhy. — São Jeronymo e Triumpho. — Um hotel campestre. — Zona dos amoo — O gaucho. — O mate e sua preparação. o Não foi nossa primeira experiencia dos campos a cavalgata que venho de descrever. Antes de ir- mos para S. João, já passaramos algumas semanas explorando as terras abertas ao Sul do Jacuhy, “aquartelados em S. Jeronymo. Para ser mais claro, desprezei a ordem chronologica em minha narra- tiva. Olhando para um mappa, ver-se-àá que o Ja- cuhy nasce da serra Geral, curvando-se para o Sul até Cachoeira, d'onde corre para E com al- gumas curvas, até o Viamão. Os rapidos acabam na Cachoeira e, excepto nas seccas prolongadas, o rio é navegavel por pequenos vapores até aquelle ponto, que dista 244 kilometros de Porto-Alegre; grandes embarcações chegam a S. Jeronymo, 72 kilometros da capital. O rio Taquary, que entra no Jacuhy pela banda do Norte, quasi em frente a S. Jeronymo, é igualmente navegavel até à po- voação e colonia do Taquary, não muito longe da peanha da serra Geral. Ha uma linha regular de pequenos vapores en- tre Porto Alegre, S. Jeronymo, Rio-Pardo; Cachoeira e Taquary. De um d'estes vaporzinhos, uma aprazi- vel manhã de Janeiro, colhemos nossas primeiras impressões do baixo Jacuhy. 102 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' Atravessando o Viamão e entrando no Jacuhy propriamente dito, vimos por algum tempo apenas barrancas baixas, espertas, argilosas, cobertas em . muitas partes de mato de pouca altura, composto. principalmente do leguminosas, misturadas de uma especie (talvez do Psidium) muito semelhante ao Salia septentrional; faltavam absolutamente palmei- ras e cipós, de sorte que a vegetação apresentava o aspecto de uma floresta européa ou norte-ameri- cana. Esta cinta de floresta é simples anteparo, “que esconde prados lisos e abertos ou touceiras de mimosas. Touceiras e prados pertencem ás terras alluviaes do rio. Onde podiamos vel-as eram seccas ou apenas em parte alagadiças; mas, após chuvas grossas, São muitas vezes inundadas e impossiveis de passar, porque o Jacuhy sóbe a doze e treze metros. Como em muitos outros rios, as terras alluviaes são mais altas ao longo das margens onde o lôdo e a lama trazidos pelas enchentes primeiro se depositam. Es- tas margens altas são mais favoraveis ao crescimento de arvores e por isso cobre-as a linha de florestas que já descrevi; a facha baixa e alagad: ça age fica por traz só dá moitas e grama. A planicie alluvial do Jacuhy é de pequena extensão, raras vezes de mais de 2 kilometros de largura; compõe-se quasi exclusivamente de argila, embora sejam arenosas algumas “ilhas e margens do canal. O rio no curso inferior é de largura que varia de 500 a 900 metros, e geralmente é pro- fundo; a corrente é um tanto rapida; a agua bar- renta, porém não lodosa. Á medida que nos adiantavamos, viamos por traz da floresta e de. cada lado morros baixos, ar- redondados; cobertos apenas com uma pennugem macia de grama, contrastavam fortemente com S. JERONYMO E TRIUMPHO 103 a linha escura da mata.. Quinze kilometros antes de S. Jeronymo, a terra alluvial desapparece to- talmenta na margem meridional e o campo es- tira-se até o gume da agua em prados formosos e limpos, apenas em um ponto ou outro debruados de touceiras. Em nenhuma parte eram as margens muito altas, e apenas occasionalmente mostravam protuberancias de rochas macias, parecendo argila, com praias: seixosas por baixo, continuadas com poucas interrupções até um ponto pouco acima de S. Jeronymo, enchendo. o espaço entre o arroio dos Ratos e o arroio da Porteirinha, pequenos affluentes do Jacuhy. ÁS vezes avistavamos manadas de gado lustroso, pastando nas encostas, e aqui e alli alve-. javam as paredes brancas de alguma fazenda de criar, ou estancia, como as chamam para o Sul “da serra do Erval. Logo adiante da embocadura do Taquary, desap- parece tambem ao Norte o terreno alluvial e emerge a terra firme; aqui se construira o lindo povoado do Triumpho, em frente a S. Jeronymo, que oc- cupa uma planicie ao longo dos galhos meridionaes do Jacuhy. Triumpho é notavel por sua bonita igre- jnha branca, e um alto que domina o rio; quanto uo mais pouco ha que distingua os dois logares. São ambos assás pittorescos, fazendo fundo ás casas caiadas, de tecto vermelho, sebes, fruteiras ou en- " costas verdejantes. Rio acima ha ilhas alluviaes cobertas de mata, e uma massa. arredondada -de granito, que salta da agua em frente ao Triumpho, completa o lindo scenario. S. Jeronymo contém talvez mil habitantes, e é um bom exemplo da melhor especie de povoados d'esta parte da provincia. As ruas são regulares e largas, tendo por unico calçamento as pedras na- 104 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' turaes; como de costume, ha uma praça coberta de capim, sem sombra alguma, que nada orna é que para nada serve, a não ser de pasto aos ca- vallos do povoado. As casas em nada differem das vivendas rusticas de outras provincias, sinão em ser mais reforçada a construcção. Ha uma capellinha . curiosa, mas nem uma igreja grande. O logar pos- sue alguns armazens de bom tamanho, dois hoteis- zinhos, um boticario, ferreiro, selleiro, carpin- teiro, etc.; elevou-se uma serraria a vapor e ha um estabelecimento bem importante para preparar o mate vindo da serra do Erval, que dista 75 ki- metros. Tomamos dois quartinhos escuros em um dos. hoteis, cujo dono se esforçou bastante para nos ser - agradavel. Nossa sala de visita, que era tambem a de jantar e laboratorio, continha o bilhar in- fallivel nos hoteis da provincia; felizmente não jogavam muito, excepto aos domingos. Descobrimos, porém, que a casa era frequentada por uma troça de jogadores de cartas, barulhentos, cuja convi- vialidade muitas vezes nos roubou o somno. Tambem uma vez por outra reuniam-se para beber os ra- pazes, e tinhamos de fechar bem fechadas e tran- cadas as portas, para escaparmos aos pandegos. Ás vezes levavam a amabilidade ao ponto de vir bater à porta, e uma, em que vinha tarde de uma “excursão, atirou-me alguem um copo à cabeça, por- que não quiz beber com elle. Felizmente aparei o golpe no braço, sinão alli teriam acabado minhas viagens. Tambem não davamos grande importancia a taes incidentes, e, tirando isto, a casa era bem socegada e agradavel. Nossas occupações eram objecto de pasmo para a gente do povoado, que vinha frequentemente vi- sitar-nos; os rapazes, principalmente, passavam ho- - CERCANIAS DE S, JERONYMO 105 ras a olhar-nos pela janella aberta. Billy, o sagui, tinha sua parte na admiração; o genero é desco- nhecido aqui, e discutiam muito si era ou não macaco. Como elle nos acompanhava muitas vezes em nossos passeios, empoleirado no hombro de mi- nha senhora, em breve começaram a chamal-a a senhora Paquelle bichinho. Junto a S. Jeronymo estendem-se campos muito semelhantes aos descritos no ultimo artigo, mas com ondulações mais pronunciadas e morros mais altos. Variam-nos apenas capões occasionaes, com arvores que se alinham com os corregos maiores; entre os morros e em cima d'elles ha cavidades, muitas das quaes não têm sangradouro visivel, sempre preen- “chidas por banhados. A região é tenuemente po- “voada; as cercas são quasi desconhecidas, e póde dizer-se que não ha estradas, pois não merecem tal nome os trilhos mais ou menos marcados que se desnovellam pelos campos. Os arroios não têm pontés, e os banhados são uma obstrucção terrivel ao trafego. A produc- ção e as mercadorias são transportadas ás cos- tas de animaes, ou em grosseiros carros de rodas de madeira, a que alhures me referi; de longe an- nuncia-se a sua presença pelo canto doloroso que emittem e os gritos dos tocadores semi-barbaros. Os campos são excellentes para o pastoreio, e nelles vivem muitos milhares de cabeças de gado; um tanto pequeno, porém rijo e perfeitamente pro- prio para a vida meio selvagem que leva. Os ca- vallos criam-se em numero limitado para as ne- cessidades dos peões; são tambem pequenos e podem considerar-se raça degenerada. Os melhores d'entre elles são excellentes para pequenas viagens, mas não resistem muito. Creio 6 106 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA” que melhores raças, tanto de gado vaccum como de cavallos, poder-se-iam introduzir aqui com gran- de vantagem. Os carneiros, que uma vez por outra ' apparecem, poderiam dar-se bem; mas provavel- mente o clima da provincia é muito quente para, apurar bons resultados a producção da la. | Ha algumas arvores frutiferas, laranjeiras, li- meiras, pecegueiros, em roda do povoado e das fazendas de criar, e raras roças de mandioca e milho têm-se feito nos capões. Além d'isto, não pro- gride a agricultura, pois consideram os campos im- proprios de cultura. É provavel que 'o arado afi- nal acabe com esta idéa e revolucione as indus- trias da região do campo: o solo é amarello ou avermelhado, muito rijo para as raizes das plan- tas, quando atiram as sementes apenas na super- ficie; mas talvez seja capaz de dar bôas saíras quando o cultivarem convenientemente. Em todo caso, estou certo que os banhados, sujeitos à dre- nagem, forneceriam terrenos agricolas dos mais ricos do Brasil: são ricos de humo vegetal, que, unido à materia aluminosa do sub-solo, difficilmente deixa; ria de dar boas searas. é Os elementos allemão e italiano mal são repre- sentados em S. Jeronymo. O povo é geralmente de descendencia portuguesa, que nas classes mais pobres se mistura mais ou meénos com o sangue de africanos e indios; ha poucos escravos, e os negros forros não são muitos. De resto, a condição da população é mais semelhante à de outros dis- trictos do Brasil: — algumas familias educadas, com grande massa de gente pobre e sem educação, que entretanto não é destituida de intelligencia na- tiva. Os costumes variam como as classes. As fami- lias melhores guardam muito o estylo europeu; os homens andam de tamancos junto à casa e met- TRAJES DE GAUCHO 107 têm-se em largas botas com esporas, chapéu de feltro desabado e poncho, quando sahem a cavallo. - O poncho varia com a estação. Para o tempo chuvoso ou frio é um casaco circular de panno escuro, geralmente com debrum vermelho brilhante; a cabeça passa por um buraço, no meio do cir- culo, e o poncho cahe em roda do corpo. A ca- vallo cobre as ancas da cavalgadura, e o calôr do corpo do animal serve para aquecer o caval- leiro. Ponchos da mesma fórma, porém de panno fino, bordados nos hombros, vêem-se tambem no tempo brando. O poncho ordinario do verão é um manto escuro, de lã ou algodão, conforme a riqueza e condição do dono, riscado, com um buraco no meio para a cabeça; muitas vezes serve de paletot nas casas. Os ponchos mais caros, de vicuha, pro- cedentes do Chile, que estes ponchos riscados imi- tam, raro se vêem nesta parte da provincia. - O trajo do verdadeiro gaucho consta de camisa “de chita de collarinho alto, cinturão largo na cin- tura, calças muito fofas de algodão, ou antes ce- roulas pretas ou de chita vistosa, amarradas ao tornozelo e guarnecidas de pregas de cada lado. A isto junta-se geralmente um chapéu velho de feltro e um par de tamancos, que os cavalleiros podem levar na mão; ás vezes usa-se em logar de calças o chiripá, que é um ,panno amarrado á cintura. Levam elles facas compridas como espa- das 'e por vezes um trabuco comprido, antiquado, de dous canos, que lhes communica aspecto assás bellicoso. - A sella, á primeira vista, parece muito gros- seira. O assento é mui ligeiramente curvo e co- berto de sola dura; dous e ás vezes tres grandes pedaços de couro e um panno de lã chamado bai- 108 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' xeiro pôem-se por baixo, e por cima de tudo col- loca-se a pelle de algum animal, chamada manta; de sorte que o peso é o triplo ou quadruplo da sella ingleza commum. Mas a sella no Rio-Grande, além de servir de cadeira durante o dia, serve de cama à noite; espalham-se então no solo os dois pedaços de couro com o baixeiro e a manta por cima, o sellim serve de. travesseiro, e o gaucho, embrulhado no seu poncho quente, dorme alli tão satisfeito como n'um leito de plumas. Levam estes homens vida tão erradia, que pouco dão que fazer ás casas, as quaes são feitas de barro posto em uma, armação de estacas e cobertas de junco. São os principaes artigos de alimentação o xarque e feijão, com alguma farinha de: mandioca. Onde quer que paravamos em algumas d'estas casas, regalavam-nos com mate, a bebida univer- sal desta provincia, bem como dos estados platinos e do Paraguay. Nem um rio-grandense da cam- panha pensa em beber mate em chicara. É tirado de pequenos vasos globulares ou ovaes, que são muitas vezes pintados com gosto ou embutidos e ornamentados de prata. Enchem-se estas culas de folhas de mate, ajuntando ás vezes assucar; des- peja-se agua quente dentro e chupa-se a infusão por um tubo de estanho ou prata, com um bulbo perfurado na ponta. As mesmas folhas servem para muitas infusões. A cuia e a bombilha apresentadas ao viajante são o primeiro sinal de hospitalidade, do mesmo modo que a chicara de café nas pro- vincias do Norte, ou o copo de guaraná em Mato Grosso. Depois de sugado o liquido da cuia, en- chem-na de novo com agua fervendo e passam-na ao outro hospede, ou, si ha um só, a algum mem- bro da familia. Em geral a cuia e a bombilha PREPARO DO MATE 109 completam o circulo duas ou tres vezes, antes de serem encostadas. — O mate é um artigo tão importante de com- mercio, e ao mesmo tempo tão pouco conhecido ao Norte do Paraná, que tomo a liberdade de des- crever em poucas palavras o seu preparo, apro- aproveitando-me da excellente monographia do Dr. Couty para os processos a que não assisti. A planta (Ilex paraguariensis) dá nas florestas das terras altas que medeiam entre o Paraguay, o Paraná e o Atlantico. É uma arvore pequena, de tres a Seis metros de altura, coberta de folhas oblongas lanceoladas, que por baixo têm glandulas aromaticas peculiares. Os ervaes apparecem com- mummente em distritos montanhosos distantes dos povoados, e os sertanejos fazem longas jornadas para colherem o producto. Escolhida a localidade, examinam minuciosamente o terreno, cortando todos os ramos menores da arvore, deixando apenas os troncos e as partes inferiores dos galhos princi- paes. Apenas colhidos, são os galhos passados um a um pela labareda de uma fogueira alimentada com certas madeiras aromaticas. Esta operação dura apenas meio minuto para cada galho, porém exige destreza particular, que não se adquire facilmente; a mão inexperiente queimará as folhas ou seccal-as-á irregularmente Depois d'esta chamuscadura preliminar, cor- tam-se os galhos em pedaços menores, que se en- feixam e penduram sob o tecto de uma barraca baixa, onde ficam ao fogo vinte horas ou mais. Para obter mate de boa qualidade, deve tambem este fogo ser alimentado com madeiras odoriferas e outras que dêm labareda sem produzir fumaça; mas os operarios empregam a primeira lenha que encontram, em grande detrimento do producto. De- 110 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA pois de inteiramente secco, fica o mate na barraca até ser tempo de mandal-o para a fabrica; desatam-se então os feixes, espalham-se os raminhos por um espaço limpo de chão duro, préviamente preparado para o trabalho; batem-se com longas varas até reduzirem-se a pequenos fragmentos os ramos € folhas. Apanha-se depois a massa e recolhe-se a cestos ou surrões de couro, para serem transpor- tados. Em geral repete-se a colheita em cada erval no intervallo de cinco ou seis annos, e diz-se que o producto fica melhor depois que a arvore tem sido despojada muitas vezes; o primeiro córte póde ser quando a planta tem quinze annos. Tambem ha quem misture os galhos de outra especie de Ilex com o verdadeiro mate, com mais Edi do que bôa fé, já se vê. Tem-se tentado cultivar a arvore, mas sem re- sultado; a semente cresce naturalmente, apenas em estações peculiarmente favoraveis, e dizem que só germina a que passou pelos intestinos de passaros frugivoros. A ser isto exacto, o facto será uma addição importante à grande massa existente de provas que evidenciam que a propagação das plantas depende intimamente dos animaes. Diz-se que os Jesuitas do Paraguay antigamente aproveitavam os corpos dos seus Indios para provocar a germinação das sementes de Ilex em suas fazendas. Chegadas à fabrica, as folhas, quando humi- das, são novamente seccadas a fogo brando numa . fornalha ou forno. As partes ligneas são então re- duzidas a fragmentos mais tenues em pilões. À qualidade commercial do mate depende - principal- mente do apuro nestas ultimas operações; depende tambem da região em que se colheram as folhas, OS PRODUCTORES DE MATE 111 da distancia do mar ou das fabricas, e da pericia e cuidado na séca. “A gerba do Paraguay é talvez a- melhor, po- rém aquelle paiz fornece menos de um quarto do mate consumido na America do Sul; tres quintos pelo menos produz a provincia brasileira do Paraná; o resto procede de Santa Catharina e do Rio Grande do Sul. | XI O arroio dos Ratos. — As minas de carvão. Uns quatorze kilometros ao Sul de S. Jeronymo, estão as minas de carvão, agora possuidas pela companhia das minas do arroio dos Ratos. A com- panhia pretende minerar o carvão em extensa es- cala, e para este fim foi aberto ha pouco um novo poço e ligado por via ferrea à Xarqueada, no rio Jacuhy, uns doze kilometros abaixo de S. Jeronymo; trapiches, depositos e poderosos machinismos para fabricar tijolinhos foram erigidos na Xarqueada, porto accessivel a todos os navios que podem passar a barra do Rio-Grande. Tudo isto tem sido feito depois da nossa visita em 1882. As minas pertenciam então à firma com- mercial de Holtzweissig & C., de Porto-Alegre, e eram trafegadas em escala muito modesta; a unica sahida para o carvão era uma via-ferrea de carros puxados a animal, linha que ia ao Jacuhy n'um ponto logo abaixo de S. J eronymo. Nosso primeiro passeio á- mina foi por esta via-ferrea, a convite e em companhia do Sr. João Breyer, membro da firma já mencionada. Fomos de trolly, que é um caixão assentado sobre rodas, munido de bancos para a gente sentar-se e capaz de levar cinco ou seis pessoas. Prendeu-se á his- toria um cavallo grande e ossudo: entrámos, to- mando o Sr. Breyer as redeas, o cavallo murchou as orelhas e nós partimos á desfilada, com as abas A CAMINHO DO ARROIO DOS RATOS 113 do casaco a insurgirem-se, as fitas a esvoaçarem, as rodas a rincharem nos trilhos de ferro, e Billy a berrar como um possesso, por mais esta revo- lução na sua vida. Era esplendido o espectaculo lá fóra no campo, onde o sol rutilava pelas encostas mansas e o or- valho descoalhava em cada folha. O caminho evi- tava os altos, cingindo-se a terrenos baixos e ala- gados, que se prolongam até quasi às minas. Estes banhados estavam em muitos logares atestados de chuvas recentes, e milhares de aves aquaticas ap- pareciam: garças brancas, graudos João-Grandes de cabeça negra marcando passo militarmente, roseas colhereiras, pequenos quero-queros esvoaçando com gritos estridentes, quando iamos chegando. Si não fossem os morros do fundo, puderamos imaginar- nos nas varzeas do baixo Amazonas, onde muitas das mesmas aves são communs. Onde o. terreno se elevava, avistavamos manadas de gado que pas- tava na grama fresca, levantando a cabeça para mirar-nos, correndo ao sentir-nos, escouceando como: para mostrar quão bovinamente desdenhavam o nos- so vehiculo. Lá em cima pairavam gaviões, simples reticencias esmaiadas no azul do firmamento; pas- sarinhos innumeros celebravam seus parlamentosi- nhos minusculos nas moitas, interrompendo os ora- dores mais distinctos com apartes irreverentes e indifferentes, e em geral esbofando-se para impedir que o paiz fosse á garra por falta de discursos. Abelhas e vespas occupavam-se com as flôres, zum- bindo contentemente durante a faina, emquanto as borboletas, suas vizinhas mais -aristocraticas, em- pregavam-se em alardear suas roupagens pomposas voando indolentes de planta á planta. A mais bella feição do campo é o pullular d'esta feliz vida animal; alli, ao sol claro e á ara- 114 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA” gem fresca, o contagio morde-nos tambem, e a. gente atfoga todos os cuidados na méra alegria de viver. A mina fica em um largo valle que ;se estende para Este e Oéste, entre duas cochilhas parallelas. Marcava-a apenas o alto edificio sobre o poço, com as rimas de carvão preto em roda, a casa de ma- chinas vizinha, e uma duzia de cabanas de junco pertencentes aos mineiros; na circumferencia de al- gumas milhas não se avistava outro signal de ha- bitação. Fortalecidos com um lanche de sand-wiches e cerveja, envergáâmos roupas de mineiro e, lançando um adeus de despedida ao campo rutilo, mettemo- nos no caixão lóbrego que pendia sopre o poço. Começou então uma descida rapida, que produziu a sensação de estarmos suspensos no ar; o saguí, com um guincho, pulou do hombro da senhora para dentro do capacete, onde segurou-se-lhe ao cabello, piando de medo, à medida que nos internavamos pelo escuro. Durante um minuto, que” nos pareceu longuissimo, borrou-se o sentimento de tudo na in- tensidade das trevas; parou depois O vehiculo, e demos com um homem de pé, vestido de lona, sujo de impossibilitar descrição, segurando uma lampa- da para alumiar-nos o caminho. ; Seguiu-se um passeio horrivel: tacteando pela passagem estreita, levando lampadas fumarentas de mineiro, que nos pingavam sebo derretido na cabeça, e apenas serviam para sublinhar a escuridão; o negrume à frente, picado apenas por uma sentelha baça resolvida, à medida que avançavamos, em um mineiro spectral com sua lampada no chapéo. Depois ouvimos o som de instrumentos de ferro, o chio surdo de uma explosão; chegando ao logar em que trabalhavam, encontrámos uns doze homens, meio visiveis na poeira e fumaça, extrahindo o carvão PARA OS LEIGOS EM CARVÃO - 115 com barras de ferro e picões, ás vezes em posições intoleraveis, devido ao estreito do espaço. O carvão é em geral afrouxado por uma carga de polvora, e depois extrahido com instrumentos, Aos de meus leitores a quem não são familiares as minas, devo explicar que o carvão se encontra em camadas extensas, às vezes por baixo de grandes “espessuras de rocha: n'este caso era 57 metros abaixo da superficie, sendo a camada de 1.5m a 2 metros de grossura e quasi horizontal. O poço perpendi- cular é sómente para alcançar a jazida, a qual se, minera em galerias horizontaes, que correm em diversas direcções. É claro que não se tira todo o carvão em roda do poço, aliás o immenso peso da rocha que fica por cima, não tendo ponto de apoio, desabaria, sepultando a mina e os mineiros. “Deixa-se, pois, certa parte do minerio, e as galerias são sustentadas com estacas. Estas galerias podem formar uma verdadeira rêde; porém quanto mais são .ellas n'um dado espaço, tanto maior é o perigo - de desabarem as rochas; ás vezes é necessario aban- donar a mina ou cavar novo poço, para aproveitar outra parte da jazida. Pequenas vias ferreas correm pelas passagens, empurrando os mineiros os carros para o poço, à medida que ficam cheios; ahi pren- dem-nos a uma corrente, e a “machina de cima tira-os para fóra. A mesma machina serve para esgotar a agua que se accumula na mina. - Ao tempo da nossa visita percebiam os mineiros 1$:por cada carrada extrahida (tres dão uma to- nelada), e por este preço um bom operario podia fazer 1008 mensalmente. Muitos d'elles eram in- glezes e irlandezes, alguns apenas brasileiros: o numero de todos os empregados subia a quarenta, Depois visitámos a mina por diversas vezes, e passei algumas semanas explorando a geologia 116 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' da vizinhança. A excursão mais extensa foi à base septentrional da serra do Erval, que fica um dia de viagem a cavallo ao Sul da mina. Todo o ca- minho era através de campo aberto, que em algumas partes fornecia excellente pasto, mas em outras era tão pedregoso que mal-sustentava uma ligeira ba- bugem. Vimos muito pouco gado nesta excursão, e apenas duas casas de palha junto á serra. do Erval. De facto, pouco se servem d'estes campos ondulados, e é mais para o Sul que se desenvolve a industria de criação. | Dois corregos maiores, que passámos, o arroio dos Ratos e o arroio da Divisa, apresentavam uma ligeira prega de mata ao longo das margens, antes moitas que arvores. Capões eram raros, mas às vezes cresciam arvores salteadas no campo. Junto á serra do Erval, uma especie de palmeira, a Botiá, cresce aos milheiros, não em. grupos, mas esparsas pelo campo, dando-lhe aspecto muito peculiar e pit- toresco. Attinge a uns dez ou doze metros de al- tura e apresenta uma espessa copa arredondada de folhas penniformes presas a talos delgados. O fru- to é um coco envolto em polpa amarella e acida, que alguem come; depois do calôr da cavalgata, achámol-o um bom refresco. Muitas aves e mam- miferos são apreciadores d'este fruto, e é provavel que- sua esculencia concorra para propagal- -0. Os cocos são duros e pesados, e atravessam sem al- terar-se o corpo dos passaros que os deglutem; assim semeam-se pelo campo, onde alguns germinam e arborescem bem longe da planta materna. Nesta região quasi deserta, num logar cha- mado Dois Passaros, junto ás faldas da serra do Erval, ha uma mina de carvão abandonada: encontrei o poço abarrotado d'agua, e junto uma tapera co- COMPANHIA DO ARROIO DOS RATOS 117% berta de cipós intricados. Muitos annos ha que um inglez chamado Johnson, vagando pelos campos, en- controu carvão junto a este sitio, no leito de um arroio. Entendia algo de mineração e, auxiliado por um capitalista que adiantou algum dinheiro, cavou o poço que vimos, atravessando duas camadas de carvão, de que foram mandadas grandes quantidades a Porto-Alegre (que dista uns 100 kilometros), em carros de bois ou costas de mulas. Naturalmente este transporte era muito dispendioso e o carvão descobriu-se que era “de qualidade inferior, a mina nunca deu para as despezas, e afinal foi abando- nada. | Mas a descoberta de Johnson despertára inte- resse pela especie; novas buscas mostraram a exis- tencia de carvão em sitio mais accessivel, treze kilometros apenas do rio Jacuhy. Em 1870 fun- dou-se em Londres a Imperial Brasilian Collieries Company, no intuito de extrahir o carvão d'esta zona: subscreveram-se £ 100.000, e o governo bra- sileiro deu promptamente licença para explorar-se o districto de S. Jeronymo e estabelecerem-se mi- nas em qualquer parte d'elle. Sendo favoravel o relatorio dos engenheiros, deu-se começo às obras, vindo de Inglaterra mais de 50 mineiros. Ou por mã direcção, ou por qualquer outra causa, esgo- tou-se todo o capital em trabalhos preliminares, in- clusive a via-ferrea entre o poço e o rio S. Jero- nymo; a companhia falliu, e mina e estrada de ferro foram vendidas por preço muito baixo, sendo compradores a casa de Holtzweissig & O. Estes trafegaram a mina em escala muito pequena, pois, de facto, a empreza era superior aos recursos de que dispunham: o carvão quasi que só se vendia na provincia, onde o empregavam nos vapores flu- viaes e das lagõas, e em machinas fixas. 118 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' Em Outubro de 1883, a Companhia de Minas de Carvão do arroio dos Ratos constituiu-se no Rio de Janeiro com capital de 1200 contos; a mina, à linha ferrea e outras propriedades, bem como os privilegios do governo, foram comprados a Holtz- weissig & C., os quaes, entretanto, continuam activa- mente interessados no negocio, como accionistas. Até agora o trabalho da companhia tem sido em geral preliminar e consta da abertura de um novo poço, batisado com o nome de D. Isabel, em honra da Princeza Imperial; da construeção de uma linha ferrea de 19 kilometros entre a mina é a Xarqueada,; e de extensas obras no ultimo ponto, inha uma machina para fazer tijolinhos. Tudo isto, está claro, acarretou grossas des- pezas; a extracção tem sido naturalmente limitada e as receitas foram substancialmente feridas por um incendio na mina velha e pelo desabamento: de algumas galerias. A via-ferrea:- já está terminada, com uma locomotiva e vinte carros em serviço | activo e outros comprados; a machina de fazer bri- quettes estará pronta dentro de algumas semanas e diz-se que com ella pódem fabricar-se 120 to: neladas de tijolinhos, diariamente. | OL Da companhia e de seu estado financeiro mui pouco sei e não tenho direito de fallar bem nem mal; aos homens do commereio e aos que embar- caram capitaes na empreza é- que isto compete. Presumindo (e não tenho motivos em contrario) que as finanças são bem administradas,'o exito futuro da companhia depende de varios factores, dos aa os mais importantes são: 1º a quantidade de carvão que se “pode obter: 2.º Os meios EA dos pela companhia para conseguil-o; FUTURO DO ARROIO DOS RATOS +19 3.º a qualidade do carvão e a consequente pro- cura que haja delle. Quanto ao primeiro ponto, não hesito em pro- nunciar-me favoravelmente. Não ha probalidade de que uma companhia de 1.200 contos de capital esgote as minas do districto de 8. Jeronymo n'estes cin- coenta annos. — Quanto ao segundo, a companhia tem augmen- tado muito as faculdades de transporte com a in- troducção do vapor, e as facilidades de entrega pela transferencia do porto para Xarqueada, onde vapores de alto mar podem carregar nos trapiches, e ha muito espaço disponivel. Além disto não sei por que não se poderá obter mais mineiros e es- “* tender a extracção. - Quanto ao terceiro ponto, — a qualidade do producto, — receio muito emittir opinião. Numa questão d'estas, o exame de um chimico analytico - vale mais que o de um geologo, e a experiencia de um foguista ordinario mais que o de ambos. Além disto minhas observações foram feitas ha quatro annos, e consta que o carvão actualmente extrahido é sensivelmente melhor que o de então. Entretanto, comparando estas observações com as opiniões verbaes e escritas de mineiros, manufa- tureiros, foguistas e outros, opiniões tanto favoraveis como desfavoraveis, julgo poder chegar ao seguinte: | O carvão é da especie conhecida por bituminosa, em opposição ao anthracito, que é muito mais rijo e de maior valôr; comparado com o carvão inglez de Cardiff, o mais empregado no Brasil, contém maior porção de materia terrosa, de ferro e le enxofre. A camada, como já disse, é de 1,5 a 2 metros de espessura, porém não é da mesma qualidade desde a. superficie até o fundo, em todas as partes 120 DO RIO DE JANEIRO A CÚYABA' do campo; assim specimens escolhidos podem igua- lar os melhores de Cardiff, mas a média fica muito abaixo. | A melhor qualidade é nas camadas que se podem separar do resto. Deu isto azo à divisão em carvão de primeira classe e carvão de segunda. Até aqui tem sido difficil dispôr dos de segunda, por causa dos inconvenientes que acompanham seu emprego. A respeito do carvão de primeira classe, empregado extensamente, maxime nos vapores da provincia, variam bastante as opiniões: alguns engenheiros mostram-se muito satisfeitos, ao passo que outros não querem saber. d'elle. Na verdade é combustivel muito mais incommodo do que o de Cardiff, porque a combustão deixa mais cinza e residuos, d'onde maior trabalho em limpar as grelhas e remover as cinzas. Porém estes inconvenientes mais do que compensa a maior barateza do carvão do arroio dos Ratos, como se verá por esta lista de preços, por tonelada: Arroio dos Ratos Cardiff Na mA: sos Tea a Pr Em Porto-Alegre . . . . . 168000 358000 No Rio-Grande. . . . . . 208000 30$000 Assim, a differença a favôr do carvão de S. Jeronymo é de 10% por tonelada no Rio-Grande, e 198 em Porto-Alegre. Concedido que o carvão nacional contém 15 9% menos de materia. combus- tivel, e que se deduz mais 10 9% do trabalho extra, exigido para a remoção dos residuos, a balança ainda seria contra o carvão inglez, em qualquer porto da provincia. Na realidade estas porcentagens são muito desfavoraveis, e não póde haver duvida que economias consideraveis resultariam do uso do carvão nacional. Estes factos crearam e hão de CARVÕES DO ARROIO DOS RATOS 121 crear a procura d'elle no Rio Grande do Sul, e, quando for minerado em escala: maior, é possivel que possa competir com o carvão inglez em pontos mais afastados. A cinza deixada pelo carvão do arroio dos Ratos contém grandes torrões e pedaços de pedra, que é difficil remover das grelhas de uma fornalha; por isto não convem para locomotivas e longas viagens de vapores de alto-bordo. Talvez possa ven- cer-se esta difficuldade, modificando as grelhas; diz-se que o carvão nacional, misturado com certa quantidade do inglez, não apresenta o mesmo de- feito: - | RAR : Considerando todos estes pontos, e bem assim o facto que o carvão de S. Jeronymo não se tem mostrado proprio para a reduceção dos metaes, nem “para a manufatura do gaz, é, entretanto, certo que a companhia acha e achará venda para todo o carvão de primeira classe que extrahir, servindo para vapores ou machinas fixas. Portanto, a este respeito as perspectivas são favoraveis. A venda d'este carvão de primeira classe paga a despeza da mineração (tomados juntos carvão de primeira e segunda classe) e deixa lucro modesto, sufficiente para pagar pequeno juro do capital em- pregado. Resta o carvão de segunda classe, que actualmente só póde vender-se em pequenas quan- tidades. Para garantir-lhe melhor consumo, a com- panhia propõe-se a fabricar com elle tijolos. Estas briquettes formam-se reduzindo o carvão a pó ou a pequenos fragmentos, dando-lhe a fórma quadrada, mediante certa porção de breu, e comprimindo tudo fortemente. São usados extensamente, maxime nas estradas de ferro, tanto-na Europa como nos Estados- Unidos, onde têm sido muito bons os resultados; o pó de carvão e os typos inferiores podem usar-se ! 122 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' com vantagem no seu fabrico, e consideram-se mais economicos do que o combustivel ordinario. Si a companhia do arroio dos Ratos conseguir vender seus tijolos de carvão, é quasi certo seu bom exito financeiro, pois que as despezas de mi- neração cobre-as o carvão de primeira classe, A venda dos tijolos depende, no meu entender, da composição do carvão, sobre o qual não tenho com- petencia para decidir. Si as grandes massas ro- cheas descobertas nas cinzas preexistirem no carvão, este inconveniente será obviado pela reducção a pó o fragmentos. Mas si forem produzidos no acto da combustão, provavelmente os tijolinhos terão os in- convenientes do proprio carvão. Na Alilemanha minera-se com vantagem carvão muito inferior ao de S. Jeronymo; fôra, portanto, um erro desprezar o producto nacional, por ficar aquem do que se compra na Inglaterra. Emquanto se puder empregal-o, e empregal-o com proveito, é um elemento de riqueza para o paiz e para os individuos, tão importante como muitos outros a que se está prestando maior attenção. É sabido que o carvão existe em outras partes . do Rio Grande do Sul e de Santa-Catharina, e uma exploração geologica conveniente d'estas provincias provavelmente revelaria jazidas mais ricas do que as que até agora têm sido aproveitadas. Seja-me permittido chamar a attenção do go- verno para a importancia de taes operações, que difficilmente deixariam de dar bons resultados eco- nomiços n'esta direcção e em outras. XII * Geologia do distrito de S. Jeronymo. — Granito gneiss, basalto, arenito, ferro. Minhas excursões de S. Jeronymo estenderam-se por um espaço de cerca de 75 kilometros de ex- tensão do Norte ao Sul, e uns 30 de largura, com- prehendendo a zona do rio J acuhy, à serra do Erval, entre o arroio da Porteirinha a O e o arroio dos Ratos e o arroio da Divisa a “E. Descreverei “agora summariamente alguns dos pontos principaes da geologia d'este distrito interessantissimo, re- mettendo os leitores que desejarem mais minucias para um artigo meu publicado em 1882 por .The American Naturalist. De cima do alto morro que fica uns 10 kilo- metros a Suéste de S. Jeronymo, colhe-se excellente vista da região adjacente. Vemos que a superficie é muito irregular, com muitos morros que se levantam cx abrupto, ás vezes quasi despenhados, porém bran- dos e arredondados nos seus cimos, com o verde- jante do campo raras vezes interrompido por algum pequeno rochedo: taes esboços indicam a natureza das rochas que formam os morros, — granito ver- melho duro sem signaes de stratificação. Nota-se tambem certa ordem na posição dos morros: têm quasi sempre os diametros mais longos de Este a Oéste, de sorte que, na realidade, formam uma serie de lombadas parallelas ao Jacuhy: estas lombadas, muito communs na provincia, chamam-se 124 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' aqui coxilhas. Estudando-as mais attentamente, des- cobre-se que, por mais denudadas e quebradas que estejam, occupam certas linhas ou renques deter- minados. Reconstruindo pela imaginação as partes que foram desmontadas, vê-se que houve cinco mu- ralhas de granito que se estendiam para E e O, entremeiadas de longos valles: um d'estes é occupado pelo arroio dos Ratos, que corre de O para E antes de voltar-se para o Norte e, rompendo pelo granito, desemboca no Jacuhy. A primeira coxilha, a alguns kilometros do rio, tem menos de 200 metros de altura; as que se seguem são mais altas até chegar-se à serra do Erval, cuja altitude é provavelmente de uns 700 metros acima do Jacuhy. Estão er- rados os mappas que representam esta serra como curvando-se para o Norte; ella corre E-O, como as outras lombadas. Aqui e ali ha coxilhas ingremes, rochosas, que se conformam á orientação geral de E-0. Original- mente eram grandes veios de quartzo, formados por crystallisação em granito; sendo muito rijas e à prova d'agua, resistiram à denudação, melhor que o proprio granito e assim, à medida que este se esmoia, as veias dad uti domiiiao a sup geral. | Qualquer que seja a origem d'este granito, — quer fizesse parte da crosta original que se formou no liquido igneo da terra primitiva, quer fosse cus- pido do interior muito tempo depois, — uma cousa é certa: foi em outro tempo massa em fusão, que, endurecendo, se converteu em rocha. Si em cima acharmos rochas inalteradas, po- demos assegurar que são mais modernas do que o granito; mas, Si as rochas superpostas mostrarem signaes de alteração pelo calôr ou outros meios, é bem possivel que sejam mais antigas que o granito, COXILHAS DO JACUHY 125 o qual as levantou em sua superficie a escorrer liquido do interior. “A partir do Jacuhy, entre a terceira e a quarta e entre a quarta e a quinta coxilhas, encontrei estas rochas inalteradas, — camadas de gneiss e micaschisto. Estavam dobradas e retorcidas, mas ainda podia descobrir-se a stratificação em alguns logares, pois estas rochas, ao contrario das erupti- vas, estavam antigamente assentes sob o mar como areia e lama; subsequentemente, pela acção do calôr e outras Lorças nos longos periodos da historia da terra, foram sujeitas a mudanças crystallinas intimas e os stratos foram alterados como agora os vemos. Nada sabemos sobre sua extensão original nesta região, mas provavelmente era muito grande, pois o gneiss cobria outr'ora todo este granito. Foi des- montado pela agua ou coberto de rochas mais mo- dernas, e agora encontra-se apenas aqui e ali nos leitos das correntes ou nos poços de experiencia abertos pelos mineiros, como junto ao Jacuhy. As cinco lombadas graniticas são separadas umas de outras por espaços que variam de 2 e 3 a 10 kilometros de largura, espaços que são comparativamente nivelados. Nos leitos dos corren- tes, onde a agua desmontou o alluvio, encontram-se camadas de arenito e argilla schistosa, quasi ho- rizontaes e inteiramente inalteradas; em dois ou tres logares apparece o carvão nas encostas dos morros, e graças a estas exposições foi descoberto. Os poços da mina de carvão ensinam a respeito da successão mais que semanas de estudo no campo. O poço que descrevi, por exemplo, atravessa 57 metros de arenitos e argilla schistosa antes de che- gar à jazida carbonifera; uma escavação, feita para experiencia mais para baixo, mostrou cerca de 50 metros mais de materia semelhante, com algumas 126 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA/ camadas tenues de carvão, e finalmente a sonda bateu em micaschisto, onde parou. Si tivesse con- tinuado, teria atravessado schisto e gneiss até chegar ao granito, que é o mais baixo de tudo. O arenito e a argila schistosa são em camadas tenues que mudam de côr e aspecto e muitas vezes contêm materia carbonacea. Para o geologo à in- terpretação é simples. Como as outras rochas do mesmo typo, foram estas originalmente camadas de areia e lama que se accumularam' sob as aguas; as mudanças nos stratos indicam que a- agua era rasa e mudava constantemente de profundidade; pro- vavelmente ia a terra afundando lentamente ao com- passo que os detritos eram trazidos de algum rio. Ás vezes os bancos de areia e lama formaram-se rapidamente; ás vezes não podiam compassar-se com a terra que immergia. Mas uma vez ou duas os bancos alcançaram a superficie da agua, ou faltou pouco, e formou-se um plaino alagadiço. Cresceram plantas n'estes plainos; surgiram florestas e anno a anno as arvores máis velhas tombaram e apodre- ceram na agua e lama, e assim com sua ruina formaram uma camada de humo vegetal. Então immergiu de novo a terra e cobriram-náã outras camadas de lama e areia. Muito tempo depois exundou a massa inteira: então os bancos de areia são arenito, a lama é argila schistosa, e a materia, carbonacea deixada pelas plantas deterioradas é carvão. Querem prova d'isto? Examinem o carvão com microscopio e encontrarão signaes de tecidos ve- getaes. Fragmentos de folhas, ou antes suas im- pressões apparecem na argila schistosa que fica mais proxima da jazida de carvão, e os mineiros têm encontrado alguns fragmentos comprimidos e FORMAÇÃO DAS COXILHAS 127 quasi irreconheciveis de troncos fosseis de arvores. Um destes, um Lepidodendron, genero que só se têm achado nas rochas palaeozoicas, narra-nos em conclusão que estas camadas se alastraram na época palaezoica e, provavelmente, como muitas outras rochas carboniferas, no periodo do carvão, quando abundava o genero Lepidodendron. Em todo 0 elobo, este periodo da historia do mundo parece assignalado pela existencia de grandes banhados, accumuladores da força que está agora revolucionando a terra, o calôr latente que transforma a agua em vapor e move os milhares de nossas machinas de ferro, e liga todas as nações. Encontram-se as rochas stratificadas só nos val- les intermedios ás coxilhas. Por minha parte só as “encontrei entre a quarta e quinta lombada, a partir do Jacuhy; entre a primeira e a segunda e, fi- nalmente, ao Norte da primeira, junto ao J acuhy, onde, porém, não se deparou jazida aproveitavel de carvão. Naturalmente perguntarão si estes valles existiam quando se formou o carvão ou depois; e tambem si as coxilhas foram cortadas de um bloco solido de granito, pela denudação, ou amontoadas quando foi formado o granito, ou elevadas por mo- vimento subsequente da crosta da terra. Não é facil responder a estas perguntas. Grande parte do granito até agora estudado no Brasil é mais moderno que o gneiss, isto é, foi impellido do centro da terra em fusão depois de formado o gneiss, como o demonstra o facto que elle realmente se encontra atravessando os stratos de gneiss. Esta materia em fusão, intensamente quente e impellida com força tremenda, poderia ou le- vantar as rochas ou abrir n'ellas caminho irregu- “larmente, sem apparecer siquer no que era então a superficie. Subsequentemente, depois que o gra- 128 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' nito endureceu em rocha, o gneiss podia ser desmon- tado da sua superficie, deixando-a exposta em árcas mais ou menos extensas. É o que effectivamente se deu em varios pon- tos, e esta é provavelmente a verdadeira explicação da estructura da região de S. Jeronymo: os gneiss e os schistos, onde os deparei junto ao granito, eram tão retorcidos e comprimidos que suggeriam a idéa de sobre elles ter actuado com immensa força o proprio granito. Neste caso as lombadas parallelas que descrevi podem marcar a fórma que o granito assumiu quando IOTÇOM e fundiu seu ca- minho pelo gneiss. Só em um logar, do lado srta da quarta lombada a partir do Jacuhy, ha camadas de are- nito e argilla schistosa com duas jazidas de carvão inclinadas contra o lado do granito em um angulo de cerca de 20 gráus de horizontal. Isto suggere: a idéa de que a quarta lombada, pelo menos, exundou depois que se formaram as camadas carboniferas, “e, partindo d'esta asserção, inclinei-me algum tempo a acreditar que todas as lombadas parallelas foram produzidas pelas dobras das rochas depois do pe- riodo carbonifero e, naturalmente, muito depois da formação do gneiss e do granito. Mas, como alhures as camadas carboniferas são niveladas, o peso da prova é actualmente contrario a tal hypothese e menciono-a simplesmente para que se veja o que ha de duvidoso nas observações geologicas, duvidas que ao futuro e a estudos mais acurados cabe es- clarecer. Outra especie de rochas apparece a logares, ao longo do Jacuhy, de S. Jeronymo até a Xar- queada; é o basalto que se vê claramente a um kilometro a SO do povoado, onde tem verdadeira es- BASALTO E SUAS DECOMPOSIÇÕES 129 tructura columnar, melhor descrita comparando-se à um immenso ninho de vespas petrificado, em que as cellulas tenham um palmo de diametro. O basalto. é rocha eruptiva, isto é, foi empurrado de baixo em estado de fusão. Não me foi dado descobrir . se assenta ou não em cima dos stratos carboniferos; . assim póde ser mais antigo ou mais moderno que estes. Em todo caso formou-se muito depois do granito. Nas praias ao longo do Jacuhy podem apa- nhar-se centenas de fragmentos arredondados de agatha, coralina e chalcedonia, e em bancos junto | a S. Jeronymo, ou esparsos pelo campo, achámos massas de agatha maiores que a cabeça de um homem; os proprios seixos fronteiros á nossa porta eram às vezes bellissimos specimens, de sorte que parecia estarmos em a Nova Jerusalém, onde as - ruas eram calçadas a agatha. São produzidas por uma decomposição peculiar de basalto columnar, na qual a materia silicosa fórma anneis concentricos. Em uma pedreira junto ao povoado obtive uma série muito instructiva de specimens, mostrando todas as gradações desde o basalto quasi preto até às mais bellas agathas raia- das, produzidas pela decomposição das columnas ba- salticas em que ainda descançavam. Alguns exem- plares tinham sofírido apenas decomposição parcial e no mesmo fragmento o basalto passava gradual- mente a agatha. Como disse, ainda subsistem duvidas sobre as idades relativas do granito e do gmeiss, e sobre as causas a que são devidas as coxilhas. Admittindo que sejam correctas as explicações aqui dadas, isto é, que o granito foi massa eruptiva no gneiss ou abaixo d'elle, e que as coxilhas representam apro- ximadamente a fórma que a superficie externa d'esta 130 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' massa fundida assumiu, a historia esboçada nas ro- chas de S. Jeronymo será a seguinte: 1.º A formação das camadas de arenito, e ar- gila. schistosa em periodo geologico muito antigo. 2.º A transformação pelo calôr, pela pressão e: outras forças que não comprehendemos bem, mas que produziram mudanças crystallinas e chimicas em sua estructura, — do arenito e da argila schis- tosa em gneiss e micaschisto. 3.º (Talvez contemporanea com a transforma- "ção mencionada e causa d'ella), a injecção de im- - mensa quantidade . de materia mineral em fusão, vinda do interior da terra, levantando as rochas sedimentarias já formadas, ou abrindo violentamente o caminho entre os stratos e atravez d'elles: seu progresso para cima foi maior ao longo de varias linhas parallelas correspondentes ás coxilhas des- critas. 4.º -O endurecimento e crystallisação desta massa fundida em granito. 5.º Um longo periodo, durante o qual o gneiss (que então estavã acima do nivel do: mar) foi de-. composto pelo ar humido e lambido pelas chuvas e corregos, exactamente como ainda hoje é denudado ao longo da cordilheira maritima. Esta denudação (auxiliada, talvez, por outras forças que agora não são apparentes) finalmente removeu a maior parte de gneiss e descobriu algumas partes das lombadas graniticas. Entre estas lombadas havia valles, exa- ctamente como ainda os ha. 6.º Outro longo periodo de lenta subsidencia em que o mar se estendeu por estes valles a dentro, sem provavelmente cobrir o topo das coxilhas, al-. gumas das quaes estavam talvez separadas do con- ROCHAS DE S.. JERONYMO 131 tinente como ilhas. N'estas bahias e canaes corriam muitos arroios, trazendo areia e lama, que no- fundo formavam bancos. Algumas d'estas bahias foram aterradas e formaram pantanos, exactamente como os que existem: agora na extremidade superior da bahia do Rio de Janeiro, cobertos, porém, de flo- restas de aspecto muito diverso. Durante seculos “as folhas, os galhos e as proprias arvores morreram e cahiram no chão é apodresceram na lama até que formaram muitos metros de humo negro. Então, como a terra foi abaixando, foi este humo coberto d'agua e por cima depositaram-se novas camadas de areia e lama. Finalmente a areia endureceu em arenito, a lama em argila schistosa e o humo ve- getal em carvão. 7.º A denudação da maior parte das rochas carboniferas e do gneiss que restava no tempo em que a terra estava acima do mar. 8.º A formação: moderna da argila e do solo do campo pela decomposição das rochas, do solo dos banhados pela desmontagem d'estes materiaes decompostos para os vailes e a tmistura com materias putrefeitas, e a formação das terras alluviaes no valle de Jacuhy. Além destes stagios successivos, ha A as cujo logar na sério não podemos ainda fixar definitiva- mente. São: | 1.º “A formação de veios de quartzo pela acção crystallina no granito e no gmeiss, tempo depois d'eiles depostos. 2.º A erupção de materia fundida, quer antes, quer depois do periodo do carvão, e o endureci- mento d'esta materia em basalto. 3.º A formação subsequente de agathas, pela decomposição do basalto. . 132 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' "As mudanças que indiquei são umas entre mui- tas, pois aqui, como alhures, colhem-se fragmentos apenas da grande historia da terra. Longos periodos geologicos não deixaram vestigios de sua passagem, ou estes foram consumidos. Qual foi por exemplo, a condição d'esta região durante as longas épocas secundaria e terciaria? Qual foi depois da formação do gneiss e da erupção do granho, até o periodo. carbonifero ? As causas que levaram à formação de lombadas parallelas, arrumadas de Este a Oéste, pela erupção do granito, parecem ter actuado em outras partes da provincia: ha indicações de linhas de orientação, que assumem a mesma direcção em rochas mais modernas, e estas determinam o curso de alguns destes rios. O proprio Jacuhy corre n'um valle E.0O. de granito, que apparece ao lado septentrional em outra linha parallela ás coxilhas. Quantas mais destas existem ao Norte e ao Sul, não posso dizer; algumas, sem duvida, estão cobertas de rochas mais modernas. Provaveimente continuam para o Sul da serra do Erval, onde determinaram o rio Cama- quam a correr de O. para E. No leito do arroio da Porteirinha encontram-se fragmentos de madeira silicificada, evidentemente desmontada de rochas mais antigas, mas de cuja idade nada posso dizer. Madeira igualmente petrificada encontra-se em grandes quantidades no rio Taquary, d'onde se ex- porta alguma para a Allemanha, para ser empregada em artigos de fantasia. As agathas mais bellas são tambem colhidas para a exportação, vendidas em Porto-Alegre à razão de 108 o barril. No campo, não mui distante das minas de car- vão, encontra-se, minerio de ferro, em massãás ar- VESTIGIOS DE FERRO 133 redondadas, que, quando se quebram, apresentam a estructura curiosa de anneis concentricos. O mi- nerio é muito rico, e alguns specimens dão 60 9% “de ferro metalico. Não ha razão para estas massas, que estão na superficie, não serem aproveitadas, si puder-se obtei-as em quantidade sufficiente e sem grandes despezas. Será, porém, inutil esperar quantidades maiores da mineração. As massas provém do que se chama decomposição concentrica de uma camada de arenito ferruginoso, que de si é muito pobre de ferro para dar lucros; durante a decomposição da superficie, a maior parte da rocha foi lavada, e o ferro foi se reunindo em bolas, como vimos. Alguns pés abaixo do solo, a camada apparece por “decompor, assemelhando-se a qualquer arenito ver- melho. De facto, um dos poços da mina passa di- rectamente pela camada, mas os mineiros não ti- nham dado por isso. Para terminar, direi que me parece muito me- nos interessante a geologia do districto de S. João. Alli os morros são formados de arenito de época incerta, muito perturbado e obscurecido pelas ro- chas eruptivas: nem um carvão se tém encontrado ao Norte do Jacuhy e a E. do Taquary. XII S. Gonçalo. — Pelotas. — O xarque e as xarqueadas. a Em Abril de 1882, fiz uma pequena excursão ao Sul da provincia, em companhia do Sr. Eugen Daehne, joven engenheiro allemão. Tomando o vapor da lagôa, uma tarde, em Porto-Alegre, achâmo-nos na manhã seguinte à entrada do rio S.- Gonçalo, algumas milhas de Pelotas. É este um canal ligeiramente tortuoso, talvez de 400 metros 'de largura média, e ourelado de am- bos os lados por planicies baixas; só muitas leguas ao fundo, do tado do poente, avistavam-se morros arredondados. As planicies alluviaes ficavam bem acima do nivel do rio, cobertas em geral de macégas, porém com uns grupos occasionaes de arvores e uma linha tenue de florestas escostando as mar- gens. Era interessante encontrar-se n'esta floresta uma especie de palmeira; talvez nem uma outra de sua raça cresça naturalmente tanto para o Sul. Logo depois de entrar no canal de S. Gonçalo, attrae a vista espectaculo mui singular. Extensos campos, cuidadosamente cercados, são oceupados por linhas regulares de estacas horizontaes deitadas so- bre outras a pique, à altura de menos de dois me- tros do chão. Pendem de tais estacas objectos lisos, que variam na côr do verde obscuro ao anegrado, e muito semelhantes de longe ás pesadas peças de là que se vêm alhures nas tinturarias. Porém A CARNE SECCA EM PREPARAÇÃO - 135 muito antes de apparecerem os campos, já os nossos narizes nos tinham contado outra historia, e nuvens de urubús voavam suspeitamente junto à tal cousa. Era a carne secca ou xarque no processo de prepara-e ção; e em cada campo havia um edificio baixo, espa- çoso, onde a matança, a salga e outros processos preliminares se executavam. Os estrangeiros que vêm ao Brasil como visi- tantes de passagem, não fazem grande elogio à carne secca: «podre» e «nojenta» são dos termos mais brandos que lhe applicam. Quasi todo o mundo aborrece-a a principio, mas com um pouco de ex- periencia vem a disposição para gostar della. Quer | goste, quer não, qualquer viajante do interior têem de haver-se com ella, pois é o principal e quasi “unico genero alimenticio entre os sertanejos, apenas no Amazonas é substituida pelo peixe secco. Os maiores consumidores são os escravos. Usam-na tam- bem em alguns paizes hispano-americanos, e quan- tidades consideraveis são remettidas para Cuba. A gente do sertão em geral prepara a carne de que se serve, mas as cidades do litoral e as grandes fazendas são principalmente suppridas de Pelotas. Realmente é um genero alimenticio sadio e, quando bem preparado, saboroso. Muita da que os matutos usam é tratada mal e peior cozida, e repugna ao paladar não acostumado; mas tenho comido carne secca difficil de distinguir-se da fresca; sem o mi- nimo inconveniente passei tendo este por unico alimento animal, comido como churrasco ou na uni- versal feijoada. Em qualidades nutritivas, considero-a superior à carne salgada de que usam soldados e marinheiros de outros paizes, e nunca ouvi dizer que produzisse escorbuto ou qualquer outra doença. Tres ou quatro ruas de aspecto sujo, com ar- mazens desguarnecidos e caiados e algumas ven- 136 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' das, compõem o porto de Pelotas. Algumas das xarqueadas têm trapiches proprios, onde carregavam escunas e barcos. A actividade commercial da praça “denota o grande numero de embarcações do porto: contei não menos de cincoenta e quatro, ao tempo de nossa passagem, sem levar em conta os vasos miudos e as chatas. Do porto, uma tinha de bonds leva para a cidade, assentada a 'uma milha para o interior, em uma planície, entre dois pequenos galhos do 8. Gon- calo. Depois do porto antipathico, sorprendeu-nos agradavelmente quanto vimos. 'A cidade é bem tra- cada, com ruas largas e numero extraordinario de bellos edificios publicos e particulares; alguns d'aquelles defrontam um grande largo, plantado com muito gosto de um parque ou jardim; aqui está igual- mente o melhor hotel, e as ruas, esgalhando-se de ambos os lados, contêm as principaes casas de com- mercio. Admirou-me encontrar, n'uma cidade pe- quena como esta, armazens que fariam honra ao Rio de Janeiro, e ainda mais admirou-me o numero d'elles. As ruas, a fallar verdade, são bastante so- cegadas; paira, porém, sobre ellas um ar de con- tentamento e prosperidade que penetra a gente. Algumas das vivendas 'são muito lindas e quem entra n'ellas depara disposições de gosto e mobilia excepcionaes no Brasil, onde tanto ha que fazer ainda na decoração interior. Acham-se tambem pessoas agradaveis e intelligentes, das quaes poderia citar muitas de coração bondoso e pronta hospitalidade que sempre associarão reminiscencias prazenteiras a Pelotas em meu espirito. É de notar que o elemento allemão está muito menos fortemente representado aqui do. que em Porto-Alegre. Ha algumas casas allemãs, filiaes das da capital; mas não constituem grande parte da A TABLADA DE PELOTAS 137 riqueza commercial. Raro ouve-se fallar allemão nas ruas; falla-se porém com frequencia o castelhano e quasi todo o mundo 2 entende, e a praça tem communicações frequentes, e que vão annualmente crescendo, com seus vizinhos hispanó-americanos. Peiotas foi fundada em 1815, e agora contém cerca de 20.000 habitantes. Todo o. seu commercio deve-se, ou á industria do xarque, ou ao commercio com o interior, directamente dependente d'esta in- dustria. Este commercio estende-se por metade da provincia, para Oéste ao rio Uruguay e para o Sul até o Estado-Oriental. A parte meridional d'esta zona, mais para traz, é quasi plana; porém quasi em toda parte é coberta de terrenos abertos, pro- prios para pasto. No terreno ondulado vizinho a Pe- “Jotas ha algumas plantações; para o interior a agri- cultura é quasi desconhecida: onde o pasto é fa- voravel, as terras estão icobertas de estancias de gado, apresentando a mais importante região pas- tori do Brasil. Uma das mais caracteristicas e ao mesmo tempo mais selvagens e interessantes vistas de Pelotas é a Tablada. Chama-se assim um descampado ex- tenso e quasi liso, onde de Dezembro a Maio se vendem as manadas que chegam. Algumas trazem quinze dias de viagem. Póde hajver aqui ao mesmo tempo umas vinte datas, cada uma de centenas de cabeças; rudes gauchos, vestidos com a habitual camisa de chita, ceroulas fofas ou bombachas e pon- chos riscados, galopam em todas as direcções, conser- vando os animaes nos logares e impedindo que se misturem as tropas; o gado, cançado de longo cami- nho e espantado da scena estranha, conserva-se junto, movendo os chifres e urrando em tom de quei- xume. Os donos das xarqueadas movem-se rapida- 138 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' mente aqui e alli em bellos cavallos, examinando as varias tropas, calculando-lhes o valor com rapidez e precisão admiraveis, e fechando os negocios ás pres- sas com estancieiros e peões. O mercado é sempre activo, porque a concurrencia é muito forte entre os vinte ou trinta xarqueadores; em geral as boiadas inteiras estão vendidas: pouco tempo depois de che- gadas. Immediatamente levam-nas para uma das xar- queadas junto ao rio, onde as prendem algumas vezes por muitas horas, em cercados que se chamam mangueiras. Estas se adelgaçam em ponta numa das extremidades, onde communicam com um curral menor chamado mangueira da matança, capaz de conter trinta cabeças de gado juntas, afocinhando em ambas as extremidades, fortemente cercado, com: um pavimento de pedras lisas ou chaprões ineli-' nados para a extremidade opposta à entrada; por fóra da cerca, e rodeando-a, ha um passeio de ta- boões para os trabalhadores. A matança em «geral é de manhã. Cheia de gado a mangueira da matança, fecham-n'a, e atira-se um laço ao chifre ou á cabeça do animal ; esto laço, passado por um moitão, é preso a uma junta de bois ou cavallos, os quaes são tangidos immedia- tamente do curral, arrastando o animal laçado, pelo declive escorregadio até em baixo: aqui fica dire- ctamente debaixo da mão do desnucador, que le- vanta um punhal comprido e muito afiado e embebe-3 no pescoço do animal, geralmente entre o atlas e os ossos occipitaes. Este golpe não mata instantanea- mente, porém priva de toda. sensibilidade; o animal cai em um carro de platafórma, que é continuo com o soalho da mangueira; levanta-se uma porta, tira-se | rapidamente o carro, descarregam-n'o e põôem-n'o de novo no logar, a tempo de receber outro animal AS XARQUEADAS | 139 que, entrementes, foi laçado. A operação inteira leva cerca de um minuto, e muitas vezes n'um só estabelecimento no mesmo dia matam - se 600 e “700 cabeças de gado. — A carcassa, puchada do carro por um homem “a cavallo, está agora no grande edificio em que são executadas as operações restantes, quasi sempre por escravos. Esfola-se rapidamente o couro, to- mando cuidado, ao abrir o pescoço, de enterrar uma faca no coração, que ainda bate. Acabada a esfolação, tira-se limpamente a carne dos ossos em oito pedaços, que são lançados em estacas “ horizontaes; dous trabalhadores habeis cortam-n'a e retalham-n'a então de maneira quê cada pedaço fica reduzido a espessura uniforme de cerca de quinze milimetros. Para esta operação emprega-se um verbo especial — xarquear — e d'elle derivam os substantivos xarque, xarqueada, xarqueador. Esfregsado bem o sal na carne, empilham-na em camadas, primeiro sal, segundo carne, depois nova camada de sal e assim por diante; as pilhas chegam à altura de muitos metros, com o duplo effeito de impregnar a carne de materia salina e de escorrer os liquidos contidos n'ella, pela propria pressão: este effeito augmenta-se reempilhando no dia seguinte, de modo que as camadas de cima, tiradas primeiro, formam: a base da nova rima, e são comprimidas por sua vez. De 8 a 10 kilos de sal usam-se para a carne de cada animal, conforme o tamanho. - Passados um dia ou dois, si o tempo está suf- ficientemente limpo, desempilham a carne e pen- duram-na em páus ao ar livre, para seccar, to- mando cuidado de à noite puxal-a para uma ponta da vara e cobril-a de lona. Para a sécca preferem tempo um tanto ennuviado e ventoso; si intervem 140 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' chuva, empilha-se de novo a carne e para o fim da safra, quando as chuvas são grossas e frequentes, conservam-na empilhada até chegar o tempo secco de Setembro e Outubro: d'esta maneira conserva-se muitos mezes sem estragar-se. Os couros, bem limpos, são mettidos na sal- moura que escorre das pilhas de carne; depois de vinte e quatro horas tiram-nos, cobrem-nos de sal, dobram-nos, e estão prontos a embarcar para os mercados da Europa, onde estimam muito os que são preparados d'este modo. A gordura e o sebo são exprimidos por appa- reihos especiaes e dispendiosos, em que se emprega o vapôr de alta pressão. Os ossos encineram-se nas fornalhas que produzem este vapôr, e a cinza d'el. les resultante vai para a França, onde a empregam como fertilizante. As linguas vendem-se aos esta- belecimentos especiaes que as preparam; os chifres são exportados para varios usos, e em algumas xarqueadas servem-se do sangue para fazer gelatina. Em Pelotas não se aproveitam os intestinos, figado e bofes, que nos saladeros platinos convertem ; em es- trume ou dão aos porcos. Ha um não sei que de revoltante e ao mesmo tempo cativador n'estes grandes matadouros; os tra- balhadores negros, semi-nus, escorrendo sangue; os animaes que lutam, os soalhos e sargêtas correndo - rubros, os feitores estolidos, vigiando immoveis ses- senta mortes por hora, os montes de carne fresca dissorando, o vapôr assobiando das caldeiras, a con- fusão, que entretanto é ordem: tudo isto combina-se para formar uma pintura tão peregrina e horrida quanto póde caber na imaginação. De toda esta carnificina dimanou a riqueza de Pelotas, uma das mais prosperas entre as cidades menores do Brasil, Cerca de 400.000 cabeças de gado são mortas O XARQUE E A ESCRAVIDÃO 141 aqui annualmente, com pequenas variações, conforme os annos. Estes animaes, comprados na Tablada, representam o valôr de cêrca de 22 mil contos de réis, que vão para o bolso dos estancieiros. Estes homens pousam alguns dias na cidade a comprar fornecimentos para o anno seguinte, antes de vol- tarem para as suas remotas habitações. Os tropeiros, que receberam seus salarios, agglomeram-se nas lo- jas e tavernas; e assim, no fim das contas, grande parte do dinheiro que pagaram pelo gado volta nas compras aos negociantes. Como veremos, ha muitos grandes armazens da campanha que depen- dem dos de Pelotas; mas todos, directa ou indire- ctamente, assentam na industria pastoril e nas xar- queadas. | Ultimamente, e apezar das tarifas protectoras, tem havido no Brasil importação de carne secca dos saladeros do rio da Prata, que são agora concor- rentes perigosos de Pelotas. O Dr. Couty mostrou, do modo mais conclusivo, que a gravidade real da concorrencia resulta da qualidade differente do trabalho empregado, — escravos em Pelotas, e tra- balhadores livres nos estados platinos. Falha-me o espaço para reproduzir integralmente o raciocinio d'este distincto escritor: é um dos mais poderosos argumentos que tenho visto a favor da emancipa- ção, tanto mais poderoso por tratar da questão de- baixo do ponto de vista commercial, sem o minimo vislumbre de sentimentalismo, «e, apparentemente, sem saber que era um argumento applicavel a ou- “tras industrias. — Em summa, os factos estudados pelo Dr. Couty são os seguintes: No que diz respeito a pastos, meios de com- municação, preço de terra, qualidade e valôr do gado e despezas para crial-o, tudo é a favôr do 142 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' Rio Grande do Sul; o custo do material, em outros termos, é um pouco menor que em Montevidéo e na republica Argentina. Nos ultimos estados, porém, ha mais completa divisão de trabalho nos saladeiros, e cada trabalhador é pago pelo que faz, o carniceiro tanto por animal morto, o esfolador tanto por couro, e assim por diante. Por isso, quando o mercado está ruim, o proprietario póde reduzir o numero de tra- balhadores, e portanto a producção de seu esta- belecimento; póde até fechal-o um anno inteiro, sem incorrer em grande perda positiva. Ora, os escravos representam capital, e os senhores têm de ou con- serval-os a trabalhar, ou de conservar inerte este capital, além das perdas com a morte e o envelhe- cimento dos trabalhadores. O preço da carne secca e, até certo ponto, o dos outros productos, é variavel; porém mesmo com um máu mercado o proprietario de Pelotas é obrigado a matar certo numero de cabeças para os escravos não ficarem de mãos aba- nando. Em uma palavra: os mercados do rio da Prata são elasticos, ao passo que os de Pelotas não o são, e com estabelecimentos igualmente bons, com tudo o mais a seu favôr, os xarqueadores de Pelotas vão gradualmente perdendo terreno nesta importante industria. Para elles a emancipação é uma necessidade commercial que têm custado talvez a perceber, mas que nem por isso é menos certa. Felizmente, o povo do Rio Grande do Sul tem mais juizo de que.os que o governam; formaram um plano muito sensato e pratico de emancipação po- pular, e dentro de poucos annos estará a nobre, provincia livre da malvada maldição da escravidão. BEN ut = Viagem em diligencia. — A serra dos Tapes. — Geologia do Rio-Grande do Sul. — Cacimbinhas. — Pedras Altas. Bagé, importante cidadesinha do interior, fica a uns 300 kilometros de Pelotas, e é o ponto de separação das principaes estradas para Sul e Oéste, pelas quaes vão diligencias a Montevidéo e Uru- " guayana. Agora vai-se a Bagé por estrada de ferro em poucas horas, mas ha quatro annos a estrada estava ainda em construcção. Como desejavamos fazer algumas explorações por aquellas bandas, fo- mos obrigados a tomar as diligencias que ordina- riamente faziam o trajecto de Pelotas a Bagé em tres dias: comprámos passagens sómente até Ca- cimbinhas, povoado da serra, que escolheramos para centro de nossas operações. Eram 5 horas da madrugada quando sahimos do hotel, e, atravessando as ruas escuras e silen- ciosas, fomos ao escriptorio da diligencia, embru- ilhados em ponchos quentes, com o pescoço e ore- has bem cobertos, porque o tempo estava muito “Trio. A diligencia era uma cousa velha, abahulada, tirada por seis cavallinhos fogosos, dous na frente e quatro nos varaes. Atravessaram elles as ruas pacatamente, mas foi sahirem da cidade e o cocheiro chicoteal-os n'um galope damnado, e lá se foi tudo à razão de 15 kilometros por hora, o vento a si- 144 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA bilar, o boleeiro a gritar, as rodas tirando fogo das pedras, a diligencia ás guinadas e aos trancos, os passageiros segurando nos assentos às marradas e trambolhões, dando-se por muito felizes por es- caparem apenas com algumas pisaduras. Ao quebrar das barras estavamos nos descampados que limi- tam o S. Gonçalo; a estrada aqui é larga e bôa, e ao nascer do sol tinhamos chegado à primeira estação, a duas leguas de Pelotas: havia um ho- telzinho, onde engolimos ás pressas umas chicaras de café, emquanto trocavam os cavallos por mulas, muito mais lo ico para a estrada feia que iamos afrontar. Passam cinco minutos, e eis-nos de novo a caminho: o sol, ainda pouco alto para aquecer o ar, mas tão forte que assava a face, as orelhas, e punha lagrimas nos olhos; rasgando sempre para diante, ás vezes com a roda por cima de um bar- ranco, adiante esbarrando contra uma pedra, as mulas escouceando e suando, com o costado bruno endurecido a poder de chicote, as orelhas cahidas, nuvensinhas de vapôr branco desprendendo-se-lhe das ventas palpitantes: por montes, por valles, res- pingados pelos pequenos arroios, pausando apenas para demorar a passagem dos maiores em que a agua se precipitava ruidosa atraz das rodas; depois um trecho plano em que o boleeiro se põe de pé, enfurece-se, todo berros e todo rebenque, e as mulas ficaim doudas e os passageiros invocam os seus santos e pedem a Deus perdão de seus peccados. Já havia muito que despiramos os ponchos; o exercicio violento induzido pelo vehiculo era bas- tante para pôr-nos quentes. Vinte kilometros por hora! Ponchos e peccados e santos, lá se ia tudo de cambulhada, agua de Lethes abaixo e nós tam- bem lá iamos na borracheira do boleeiro e das EM DILIGENCIA 145 mulas, e gritavamos e cantavamos, e davamos valas nos viajantes que encontravamos, e atiravamos len- ços e chapéus, emfim um hospicio de Pedro II em cavallarias altas durante ferias. Um dos pas- sageiros, —- eramos seis —, encontrou uma gar- rafa de aguardente na algibeira e quasi se engasga todo a querer inserir golos nos solavancos. D'ahi a pouco surge um maço de cartas do mesmo re- ceptaculo, e fizemos tentativas idiotas de jogos, que davam sempre em misturar cartas e passappiros no mesmo baralho geral. Presto! Outra estação; as mulas fumegam e tremem, alegres sem duvida da tarefa acabada, em- bora gostassem da corrida tanto como nós, emquanto durou. Assim foi-se o dia. As mulas eram mu- dadas a intervallos regulares de uns quinze kilo- metros, mas o passo ia afrouxando à medida que a rudez da estrada progredia. Estas mulas pastam no descampado, cada lote com sua madrinha, de que nunca se separam. Para pegal-as é apenas ne- cessario segurar a madrinha, geralmente animal manso, que se leva com facilidade para o pequeno curral destinado a este fim; as mulas seguem-na cegamente, e, uma vez dentro, é facil apanhal-as e sellal-as; quando sahem, a madrinha dispara na frente, e se ha outros animaes na tropa, concorrem na mesma desfilada. Soltas na proxima estação, vol- tam para as suas antigas querencias ou ficam na vizinhança, até precisarem d'ellas outra vez, Deixando a planicie, enfia a estrada por um terreno escabroso, ondulado, cortado de coxilhas de rocha metamorphica e quartzo; a maior parte d'es- tas lombadas parecem correr de Nor-nor-nordéste à Su-su-sudoéste, ou parallelas ao rio S. Gonçalo. Em toda parte o terreno era campo, muito seixoso para permittir vegetação densa; a grama era curta 8 146 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' e de aspecto mirrado, misturado de ervas, e aqui e alli de moitas, mas quasi sem arvores. De hora a hora tornava-se mais difficil a es- trada; do galope foram as mulas rebaixadas ao trote e às vezes ao passo; então apeiavamos, sa- tisfeitos de esticar as pernas e de escapar aos so- luços do vehiculo. A longos intervallos passavamos casinhas brancas, residencia de algum pobre pro- prietario; quasi não havia casas grandes e o paiz parecia um deserto: os pastos ricos demoram mais para Oéste. De Pelotas a Cacimbinhas não vimos um só povoado, mas em quasi todas as povoações havia um hotelzinho, e n'um d'estes lográmos um almoço . de carne secca, feijão, arroz e ovos. À. bocca da noite parámos diante de outro hotel, onde jantâmos e dormimos nas luxiúosas camas que alh empregam, — lona estendida n'uma armação de páu, camas de vento, como as chamam alhures. O escabroso da estrada não permitte viagem à noite, e o povo têm o. temôr sadio de salteadores, embora pouco se ouça fallar d'elles agora, Ha vinte annos sim, um viajante julgava-se feliz escapando com a bolsa e a vida. Si uma vez por outra, nas partes mais atrazadas da provincia, ha depre- dações, isto não é muito honroso para as autoridades - policiaes. | Na tarde do segundo dia mourejavamos por um alto cerro granitico, a linha culminante de divisão entre os arroios que correm para S. Gonçalo, e os que passam para os rios Negro e Jaguarão. É a serra dos Tapes, elevada provavelmente uns 800. metros acima do nivel do mar, coxilha arredondada, mas muito ingreme, toda escarrada de massas de decomposição e sem outra vegetação que não seja macega rasteira, moitas enfezadas, com um curioso LINHAS. DE LEVANTAMENTO 147 feto de folhas grossas. A serra corre rumo de NNE, parallela ao canal de S. Gonçalo e à costa do Brasil. “Seguí pela imaginação a linha da massa que vamos galgando. Transpondo a serra do Erval e o rio Jacuhy, levar-vos-á á cordilheira maritima do Brasil, depois ao Rio de Janeiro, à Bahia, a Per- nambuco até o cabo de S. Roque. Podeis seguil-a para diante através do plató oceanico que as ex- plorações do Challenger descobriram, as ilhas do Cabo-Verde, ao longo das costas rochosas da Es- - panha e da França, através do Baltico e por toda: a extensão da peninsula scandinava até o oceano Ártico, — sempre nas linhas de cadeias de monta- nhas e parallelas ás costas, que foram formadas pe- las montanhas ou pelas dobras menores da mesma “perturbação na crosta de terra que as produziu. — Ágora, voltai e segui a linha de SSO. Baixas lombadas graniticas ou metamorphicas correm pa- rallelas á costa do Estado-Oriental, muitas vezes quebradas, mas conservando a mesma direcção ge- ral, até culminarem junto a Montevideu. Como é bem sabido, as fórmas de todos os continentes e as posições da maior parte das ilhas são devidas a algumas linhas de levantamento que actuaram sobre massas enormes. A cordilheira ma- ritima do Brasil, correndo aproximadamente para NNE., determinou a posição da costa, pelo menos até a Bahia: si a mesma linha de levantamento produziu a costa até o cabo de S. Roque, o plató oceanico com as ilhas do Cabo-Verde e a costa occidental da Europa é talvez duvidoso; más mesmo sem estas é sulficientemente importante. . Estas grandes linhas de levantamento forma- - Yam, não só as costas, como os valles de rios e lagos; determinaram. até, em muitos casos, as pos sições de diversas linhas de vegetação em linhas — 148 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' paradlelas à costa. Assim em um mappa geographico e physico haveis de encontrar costas, montanhas, os rios maiores, as florestas e os campos, correndo todos em linhas proximamente parallelas. As linhas geologicas, — as rochas eruptivas em longas ser- ranias e as dobras de stratos sedimentares —, conservam commummente o mesmo parallelismo; de sorte que um mappa geologico colorido de um distrito que demora n'uma destas grandes Ji- nhas de levantamento, póde muito bem mostrar es- trias coloridas, vermelhas, azues e amarellas, todas correndo na mesma, direcção. Tendo estes factos presentes, olhai agora para um mappa do Rio Grande do Sul. As lagôas e o rio de S.-Gonçalo vê-se logo que são parallelos, ou quasi, à linha de levantamento que se indicou. O mesmo succede com as cadeias de ee quase? especialmente as Pedras Altas, serra do Batovy, e Pau-Fincado, e esta em que agora estamos; com. alguns dos rios menores, formam ellas linhas que são approximadamente de NNE para SSO. Mas ou- tros rios, — o Jacuhy, Camacuam e Ibicuhy, — e outras cadeias de montanhas como a serra, Geral, a coxilha Grande e a serra do Erval com as co- xilhas vizinhas estão quasi Este-Oéste. Parece ha- ver dois systemas orographicos, que se cruzam aqui e alli, e formam uma rêde por toda à provincia, excepto no extremo Oéste, onde os cabeços vão abaixando e a dn nos pampas lisos do Uru- Suay. No distrito de S. Jeronymo, como já vimos, as coxilhas graniticas arrumam-se Este-Oéste, e em outros pontos, ao Norte do Jacuhy, as dobras das rochas sedimentares parecem seguir a mesma, divisão. Mas na região a O. de Pelotas, tanto quanto as observei, as rochas correm parallelas á costa. OROGRAPHIA DO RIO GRANDE DO SUL 149 Estas observações foram muito imperfeitas e esten- «deram-se apenas a pequena parte da provincia; mas, tomadas em conjuncção com as linhas geographicas dos mappas, suggeriram uma explicação possivel da estructura geologica da provincia, que dou aqui, não como theoria bem assentada, mas simplesmente como suggestão para algum explorador futuro. -— É em summa a seguinte: a grande linha de levantamento de NNE a SSO foi no Rio Grande do Sul modificada por levantamentos menores ao longo de linhas Este-Oéste. Isto é: a grande linha que deu o contorno a esta parte do continente foi que- brada aqui e ali e encoberta por ondulações me- nores. -— "Todo este tempo ficaramos na serra dos Tapes, bem embrulhados nos ponchos e com os ouvidos a zunirem. No tempo limpo, deve ser muito linda a vista d'este ponto, mas quando passámos espre- guiçava-se pelas terras baixas uma cerração densa que obscurecia tudo. Não havia signaes de habitação; apenas a serra esteril, com immensas massas negras, a que arbustos sem folhas pediam abrigo e onde os proprios cactos dir-se-iam doentios ealeijados. Um vento do Sul, cortante, varria a lombada, e o céo estava negro de nuvens doudejantes. Tiritando, apezar dos ponchos, descemos a serra a pé e aco- lhemo-nos a uma guarida que encontrámos por acaso, até chegar a diligencia. O cocheiro nos disse que por pouco que ella não virára. Passámos depois por terreno mais baixo, embora, montanhoso, encontrando algumas cabanas, até que à noite chegámos a Cacimbinhas. O povoado era tão triste e frio como a serra; campo esteril, semeado de massas em decomposição 150 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' por toda parte; e sem uma arvore na rua ou no grande largo desigual. O vento passara à ven- tania forte, e antes de jantarmos começou “a cahir neve. No dia seguinte houve neve a intervallos, ás vezes acompanhada, de chuva, e o chão ficou gelado deveras. Era, na realidade, um legitimo pampeiro, que nos deteve no hotelzinho. Apesar do frio, não havia fogo: embrulhados nos ponchos, ficavamos nos quartos ou levavamos a passear em roda do pobre bilhar, examinando os typos que vino para o jogo. À Muitos d” estes eram estancieiros rudes, robustos, de ponchos riscados, immensas botas e chilenas e chapéus desabados, todos armados de trabucos e facas, expostos com ostentação na cinta. Joga- vam muito mal bilhar e cartas, parando. sempre quantias fracas, e resmungando e brigando por causa do resultado; mas nem havia disturbio, nem bebiam: muito. No todo, gostava d'esta gente: embora por vezes de maus bofes, é genuina: seus modos, suas conversações turbulentas, até suas vestimentas, mos- travam desprezo pelos gostos mais apurados das cidades; mas havia igual desprezo pela hypocrisia, e um amor à liberdade manifesto com força quasi selvagem, e um homem d'estes só reconhece um senhor, que é elle proprio. Havia tambem feições amaveis, rasgos de polidez e generosidade em cousas pequenas, que, a meu ver, são de bom agouro para o DUGUPOS + Os pastos n'esta serra não são muito bons - as poucas estancias ficam em valles abrigados. To- das as vivendas são pequenas, e mesmo nas me- lhores d'ellas ha falta absoluta, não só de luxo, . mas das mais elementares commodidades. Os pa- vimentos são em geral de terra, raro de tijolo ou taboas; uma mesa grande por envernizar, bancos, CAVALLOS E GENTES 151 uma ou outra cadeira, camas cobertas de couro, eis toda a mobilia. Laços, ferros de ferrar e outros utensilios de peões ornamentam as paredes ou são empilhados a um canto. Está claro que não ha fogão; a cozinha faz-se num logar aberto, com a maior economia possivel de lenha, porque o campo . vizinho não a têm; o carvão é tirado das coxilhas mais ao Norte. Quando o tempo fica muito frio, os quartos são às vezes aquecidos por um braseiro, porém este luxo - mesmo é raro e restringe-se à gente mais rica. * Embora desprovidas as casas, seus donos são às vezes abastados, e poderiam facilmente melhorar de condição. Mas, como os outros matutos do Brasil, são estes muito tardos em receber idéas novas: vi- vem como viviam seus paes, bem satisfeitos de sua sorte, sem reflectir que luxos impossiveis para esta zona ha oitenta annos, agora estão bem ao al- cance, | Os cavallos são muito baratos por todo o Sul da provincia. Comprei um animal de sella excel- lente e novo por 458, e um mais ordinarió por 258. Como regra, são muito maiores e mais fortes que os que se vêm junto ao Jacuhy, mas ficam aquem dos do rio da Prata. Como em outros pontos do Brasil, raro se empregam éguas como cavalgaduras, embora não haja razão para isso; vendem-n'as por uma ninharia, e grandes tropas são ás vezes man- dadas aos matadouros de Montevidéo, onde as aba- tem para aproveitar os couros e os ossos. Nos intervallos em que o tempo melhorava, la passeiar e procurava fazer observações zoologi- cas; mas o campo esteril, gelado, parecia quasi despido de vida animal. Interessavam-me em ex- tremo alguns pequenos insectos da familia Coccide, 1592 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' que encontrei em cactos. Tinham uns tres milli- metros de comprimento, eram de côr escarlate se- melhando pedacinhos de lacre, e encobriam a ca- beça e as pernas sob uma crosta semelhando es- cama. Apertados entre os dedos escorrem um liquido | vermelho, que póde usar-se para tinta; um droguista da vizinhança empregava os insectos seccos para colorir liquidos. São de facto congeneres, senão iden- ticos ás cochonilhas do Mexico, e, obtidos em quan- tidade sufficiente, poderiam ser de consideravel valor commercial. Ficando o tempo mais brando, fizemos uma ex- cursão mais extensa ás coxilhas de Sueste, a um dis- tricto montanhoso chamado Pedras-Altas. A estrada, simples azinhaga, era picada aqui e alli de fra- gmentos agudos de quartzo, e havia numerosas mas- sas de decomposição, granito e gneiss; além d'es- tas indicações, não pude, durante uma cavalgata rapida, observar muito da estructura geologica. A vegetação, nestes sitios rochoscs, era muito seme- lhante à da serra dos Tapes; aqui e all appare- ciam manchas de touceiras e cactos, mas nada havia que mesmo de longe merecesse o nome de flo- resta. Depois de um intervallo, chegámos á serra mais macia, longa encosta corôada de grama, onde os seixos espalhados indicavam rochas metamorphi- cas e quartzo. Em um logar apanhámos pedacinhos de madeira petrificada. Não sei como explicar sua presença n'este logar, acima de stratos metamor- phicos e longe de quaesquer depositos conhecidos de materia semelhante: talvez fossem atirados alli - por algum geologo amador, apanhados alhures. Di- zem que materia silicificada se encontra em muitos pontos da provincia e quasi sempre na superficie. Este campo levou-nos ás Pedras- Altas, con- “tinuação meridional ou bracejo da serra dos Tapes, PEDRAS ALTAS 153 que se estende até Jaguarão. Toscas massas de quartzo corôam-lhe o cimo, mas as encostas de ambos os lados são macias, e passa por ellas uma excellente estrada que leva de Jaguarão a Bagé. Aqui, no ponto mais elevado, ha uma casa rustica de bom tamanho, a unica visivel a quem vem de Cacimbinhas. Admirou-me bastante encontrar neste edificio solteiro um armazem espaçoso e tão bem sortido como o de uma cidade. Armazens destes são communs nas principaes estradas, e não lhes faltam freguezes. Embora a terra pareça deserta, ha muitas estancias, ficando as casas em valles abrigados, invisiveis da estrada, aonde se vai por veredas de cinco a seis kilometros de extensão. A gente, que por assim dizer vive a eavallo, acha que não é nada andar cinco ou seis leguas para fazer com- pras; um armazem destes póde supprir grande ex- tensão de terra densamente povoada. Tambem faz-se negocio consideravel com os tropeiros que passam todos os amnnos e os viajantes. O dono desta casa ao mesmo tempo sustentava uma especie de hotel, onde achámos excellentes camas e mesa soffrivel por preços razoaveis. Aqui pousámos tres dias. | Deste ponto ha uma vista magnifica para SO, para as planicies de Bagé e o valle de Jaguarão. A duas ou tres milhas da casa, a serra québra-se abruptamente para estas planicies, e no lado da descida ingreme ha muitas grutas fundas, rocheas, que quasi todas partem de lombadas de quartzo e são oureladas de quartzo ou granito. Informa- ram-me que se tem encontrado ouro em algumas d'ellas, mas em quantidades que não são remu- neradoras. Em outras, moitas cresciam pelas ban- das e encontrei alguns fetos de aspecto doentio. Estas grutas evidentemente são muito antigas; em alguns logares o fundo é coberto de argilla e pe- 154 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' dras arredondadas até grande profundidade, e ar- roiosinhos correm por este deposito excavando n'elle novos leitos. Á margem de um d'estes corregos, em uma camada de. argila e seixos cobertos com alguns metros de cascalho, encontrámos os ossos fosseis de animal enorme, provavelmente algum megathe- rio. Infelizmente faltava a cabeça, e os outros ossos estavam tão embebidos d'agua que muito poucos conseguimos inteiros. Ao pé estavam ossos menores de bois e cavallos, juncando a superficie de ar- gila. Supponho que os animaes recentes e os ani- maes fosseis, andando ao lado de grotas, cahiam nas ribanceiras de pedra e ficavam mortos: a especie mais antiga foi coberta de argilla e pedras durante muitos seculos; os ossos dos animaes modernos estão alvejando na superficie; mas de qualquer sorte serão enxurrados para algum buraco, cobertos de detri- ctos, e afinal podem fossilizar-se exactamente como os. outros. | Havia numerosas pedras arredondadas esparsas pelo fundo das grotas e no campo acima, que à primeira vista suggeriam a idéa de acção glacial. Descobri, porém, que são estrictamente massas de decomposição, formadas in-situ pela acção d'agua e ar. Muitas d'ellas apparentemente derivavam de gneiss, e a decomposição deixou a superficie macia, descascando em camadas concentricas, porém o in- terior era duro como ferro. Algumas que vi, se- melhavam porphiro, e pódem indicar a pressão de rochas igneas. Mas a geologia de toda esta re- gião é mui obscura e exigirá longos e cuidadosos “estudos antes de revelar-nos o seu segredo. XV O gado. — Cacimbinhas. — Piratinim. —. A serra das Panellas. — Adeus ao Rio Grande do Sul. Os pastos mais ricos demoram nas grandes pla- nicies a O. de Bagé, mas ha muitas estancias con- sideraveis nas serranias proximas de Cacimbinhas. - Alguns estancieiros introduziram a novidade de pastos defendidos por cercas ou fossos, mas em geral deixa-se o gado andar á vontade, empregan- do-se os vaqueiros em conservar as rezes dentro de certos limites e em reunil-as uma ou duas ve- zes por anno; ahi as novas são ferradas, e cas- tram-se os que não são reservados para a pro- criação; aqui tambem escolhem-se alguns para o mercado, que ás vezes continuam soltos ainda por mezes. - O gado, vivendo assim quasi em estado de natureza, tem-se adaptado ás suas condições. Uma grande estancia póde ter muitos milhares de ani- maes, mas dividem-se instinctivamente em pequenos bandos de 100 a 150, sendo cada bando composto de touros novos, bois, vaccas e terneiros, sob a chefia de um touro velho *). Estes bandos frequentam regiões limitadas, que, em condições ordinarias, nunca abandonam; podem espalhar-se durante os-temporaes, e as estações ex- e * O bisonte americano, congenere do boi, que agora está quasi extincto, antigamente vagava pelos prados da America do Norte em bandos de muitos milhares de individuos, 156 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' cepcionalmente seecas podem forçal-os a procurar novos pastos; mas quando por estes accidentes se misturam as manadas, não tardam a separar-se e tornar aos antigos pastos. Como facilmente se vê, este instincto é de ma- xima importancia para o criador; de facto, raro se exige a intervenção de vaqueiro, excepto nos casos que mencionei e no tempo de procriação, em que os touros e por vezes as vaccas mostram disposição a passar de um bando para outro. Entretanto, mesmo neste tempo, os touros raras vezes abrem luta entre si, e, em vez de serem perigosos aos Via- jantes, a aproximação do homem faz-lhes antes medo do que raiva. E este medo é contagioso. Che- gando junto a qualquer manada, muitas vezes re- parei que o gado ficava a olhar-me, geralmente com o touro na frente, as vaccas um pouco atraz com os terneiros, porém todos fitando-me como que si se preparassem para a investida; subito um tinha medo e corria, e num instante a manada inteira desandava num galope rasgado, que só parava quando me perdia de vista ou julgava-se a salvo pela distancia. Tão forte é o instincto de aggremiação entre estes animaes semi-selvagens, que se torna extre- mamente difficil separar o gado para o mercado. Em geral constitue este 10 a 12 0 de cada manada, pois só se pegam os individuos erados, dando pre- ferencia aos bois e aos touros sobre as vaccas. Estes animaes, escolhidos de muitas ou poucas manadas, conforme o, tamanho da estancia, são reunidos e tocados para Pelotas. Durante dois ou tres dias fazem esforços constantes para separar-se, pondo à prova toda a vigilancia e cuidado dos vaqueiros; mas aos poucos vão se acostumando uns com outros, e, quando chegam à tablada, já estão transformados 1] GADO NO PARANA E RIO GRANDE DO SUL 157 em um todo coherente, cujos membros não trahem muitas disposições para extramalhar-se. A jornada é necessariamente lenta, com paradas numerosas para o gado poder comer: á noite fechami-nos em man- gueiras marginaes á estrada, nas quaes se abrigam os tocadores. Todos os factos referentes á theoria da selecção natural possuem interesse especial para o zoologo, e alguns delles fornece o estudo d'estes animaes semi-selvagens, descendentes de outros que estavam muito mais “lomesticados. Sabe-se, por exemplo, que o gado do Rio Grande do Sul mostra desenvolvi- mento mais rapido, porém mais irregular, que o. do Paraná; e. ao passo que nesta provincia se formou uma raça distincta e caracteristica, no Rio Grande “os individuos variam com o pasto e até dentro “da mesma manada. O Dr. Couty attribue isto à differença do clima e solo nas duas provincias. Nos chapadões do Paraná, ha uma estação secca pro- longada, porém muito regular, durante a qual o gado vai pedir abrigo à mata. O tempo do cio, determinado pela abundancia de pasto, cae con- stantemente em certa parte do anno, e por con: sequencia os terneiros quasi todos nascem ao mesmo tempo. Exceptuam-se apenas as vaccas fracas ou doentias, cujos filhos, nascendo mais tarde, quando o pasto é memos nutritivo, morrem, ou porque as vaccas não dão leite bastante para sustental-os, ou porque o capim, ficando mais secco e mais duro, se torna improprio para o alimento de animaes no- vos. Ha, portanto, uma especie de selecção natural, determinada pelas estações; os troncos mais fracos são constantemente eliminados, e todos os novos que sobrevivem, passando por alternativas de estação quasi identicas e pelas mesmas mudanças de pasto, mostram pouca tendencia para variar; porém em 158 - DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' todas as manadas o desenvolvimento atraza-se com as longas seccas, e o gado só completa o crpgaia mento passados quatro ou cinco annos. No Rio Grande do Sul dá-se o contrario: as “estações são muito irregulares, podem cahir chuvas grossas quasi em todos os mezes do anno, mas em alguns annos todo o Sul da provincia é fla- gellado pela secca, e centenas de rezes morrem à mingua d'agua e de alimento. N'estas circumstan- clas, ha uma tendencia constante para a variação. Sendo incerta a época da berra, os terneiros nascem a intervallos irregulares; alguns são bem alimenta- dos até que se firma a sua força, alguns soffrem muitos mezes da insufficiencia da alimentação e do tempo carrancudo, que lhes atrazam o cres- cimento. Por isso é commum verem-se animaes grandes e fortes pastando no mesmo ponto que pe- quenos e fracos, e ha pouca eliminação dos fracos, porque estão sujeitos às mesmas condições favora- veis ou desfavoraveis que os fortes. Às seccas a que me referi, são ás vezes muito devastadoras n'esta parte da provincia. Uma que occorreu em 1876, durou cinco mezes, e em alguns “distritos os gados ficaram quasi destruidos. O solo pedregoso ou arenoso é pouco proprio para prender humidade; depois de uma pancada d'agua, esta é quasi immediatamente levada pelos corregos, os quaes por sua vez se transformam em arroios impe- tuosos. Mas um prazo de secca prolongado faz desap- parecerem até os maiores arroios, e os pastos das ladeiras, resequidos e tostados, não dão mais ali-. mento ao gado. A não haver valles ferteis onde as rezes se abriguem, podem morrer de fome. Como nas outras provincias do Brasil, quei- mam-se aqui os pastos todos os annos, por via de regra; nova grama rebenta no distrito incine- DE CACIMBINHAS A PIRATINIM 159 rado, e o pasto das queimadas é preferido pelo gado a quaesquer outros. Além d'isto, pouco se im- — portam os donos com o seu sustento. Raras vezes lhe distribuem sal, alhures considerado absoluta- mente necessario à saude e até á vida d'estes ani- maes. Todavia, o gado do Rio Grande não parece sof- frer com esta privação: tambem é possivel que obtenha materias salinas da agua ou de certas plantas. De Cacimbinhas seguimos para ENE, por uma vereda pouco conhecida, até Piratinim, atraves- sando uma -«coxilha muito alta, esgalho da serra dos Tapes. No topo d'esta lombada, . crescendo en- tre os rochedos, havia arvores anãs e moitas em pequenas manchas, o que, desde que sahiramos de Pelotas, mais se parecia com floresta. Toda a re- “gião é muito selvatica; não passámos por nenhuma, casa, e pouco gado encontrámos em uma corrida de seis leguas. Uma vez demos em cima de um bando de emas, doze mais ou menos, que pastavam entre as moitas e as pedras; eram muito mansas e nem nos olharam, até chegarmos a tiro de pistola; então desataram nas suas passadas gingadas, e sumi- ram-se por traz de um morro. Piratinim é um povoado de bom tamanho, bel- lamente situado n'uma pequena chapada, abrigada por coxilhas mais altas ao Sul e a Oéste. Vistas à distancia, as casas brancas de telhas vermelhas são admiravelmente pittorescas. Costêa-as uma linha de eucalyptos, que algumas pessoas emprehendedo- ras introduziram, e no meio do povoado vêm-se as torres meio arruinadas da igreja antiga. Esta igreja e outros edificios do logar são de grande interesse historico, pois Piratinim durante muitos annos foi a capital dos revolucionarios rio-gran- 160 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' denses, a séde de sua legislatura republicana, e, nominalmente pelo menos, de seu presidente. His- torica e politicamente a revolução está morta, mas vive ainda na memoria do povos É curioso notar o tom entre orgulho e desafio com que alguns velhos falam de cousas que succederam «no tempo da Republica » ou «na independencia». A revolução póde ter sido insensata; mas o simples nome de liberdade exerce attracção admiravel sobre esta gente, e as sorpresas e retiradas rapidas, as longas cavalgatas pelas coxilhas, e as escaramuçasinhas ruidosas sa- tisfaziam, mais do que tudo, o seu amor selvatico de aventuras. Em toda a zona da serra, nunca en- contrei uma pessoa que não se orgulhasse da re- publica rio-grandense, morta como está. São partidarios exaltados, mas antes adeptos de um chefe politico do que de um partido, e isto deu-lhes um outro artigo de orgulho — Silveira ' Martins. No Rio de Janeiro a gente se ri quando chamam a este homem o-rei do Rio Grande do Sul; mas na provincia emprega-se muitas vezes a palavra em outro sentido. Na verdade, é muito raro que um politico exerça tanta influencia sobre os individuos de um povo quanto Silveira Martins sobre a gente do campo de sua provincia: olham-no com reve- rencia tal que equivale quasi a heroworship, a ado- ração dos heróes proclamada por Carlyle. Um velho gaucho disse-me um dia, confidencialmente, que era homem de mais peso que os seus vizinhos; era pobre, sim, e não muito corrido em livros, mas, — e aqui fez uma pausa para dar tempo de pre- parar-me para ouvir o facto estrondoso que ia nar- rar, — Silveira Martins fallára uma vez com elle. Nem um momento supponho que o illustre se- nador ganhou esta influencia por meios que não fossem os mais dignos; resultou parte de seus me- PIRATINIM 161 ritos reães, e mais ainda do caracter do povo. Po- rém digo que esta influencia impõe-lhe grande res- ponsabilidade, porque póde usal-a para o bem ou para o mal. Está claro que esta influencia se limita à gente do seu partido; os outros são seus inimigos na mesma proporção. Mas agóra acham-se em grande minoria, principalmente nos distritos que ainda pro- clamam a gloria de dez annos de republicanismo. Visitei a secretaria da camara municipal, mas não creio que se encontrem ali muitos papeis de interesse historico; muitos foram destruidos depois da rebellião, e outros têm sido tirados. Sem duvida, muitos factos importantes relativos á republica po- deriam ser respigados de papeis particulares e das lembranças dos velhos. Infelizmente, os historia- dores brasileiros julgam que o interesse real da historia se concentra no dominio dos documentos, que apenas chronicam os acontecimentos do modo mais secco, e esquecem que a verdadeira vida do povo só com o povo se póde aprender. “Piratinim é o centro de importante zona de criação. Diz-se que antigamente se colhia bastante trigo na vizinhança, porém este e outros generos de agricultura estão abandonados. Ha muitos ar- mazens de bom tamanho, algumas officinas pequenas e duas hospedarias; uma carreta passa pelo logar duas vezes por semana, mas não ha diligencias. Aqui e em Cacimbinhas ha estações telegraphicas, mas é de suppôr que os estacionarios não lhes dêem muito que fazer. Umas cinco ou seis milhas a NO de Piratinim, ha um morro alto, conhecido tradicionalmente pelo nome de serra das Panellas. Suspeitando que se poderia encontrar louça antiga dos indios, armei uma excursão em companhia de muitos cavalheiros 9 162 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' de Piratinim. A serra, uma das mais altas d'aquellas redondezas, compõe-se de gmneiss e granito, e serve de mãi a muitos arroios; aqui, pela primeira vez n'esta jornada, vi mata verdadeira, bosques iso- lados margeando os arroios. Debalde procurei re- liquias de Indios na terra aberta; mas, ao entrar na mata, encontrei diversas covas entre as massas cahidas de gneiss, e em uma d'ellas deparei di- versos fragmentos de vasos de barro. Cavando à terra, encontrei mais abaixo outros fragmentos, e, reunindo-os, consegui restaurar a vasilha quasi in- teiramente. Era da fórma usada ordinariamente pelos Indios para cozinharem, uma panella baixa, com as paredes bojantes, o fundo chato; o material era uma, argila arenosa, grosseira, misturada com cinzas, e não havia outro ornamento além de um bordo mais grosso, marcado a dedo. Havia ainda outros frag- mentos de duas ou tres vasilhas, algumas d'ellas com linhas toscas traçadas com um pausinho na superficie. Pedaços de madeira carbonizada esta- vam de envolta com a louça, e o tecto da cova mostrava-se tisnado, como si muito tempo estivera exposto ao fumo. Investigámos cuidadosamente as covas proximas, porém apenas encontrei dois ou tres cacos de louça. Com material tão insignificante, seria precipitado inferir que os louceiros viviam certamente nas covas. Entretanto, o facto de se encontrarem muitos cacos parece favorecer esta supposição, e o tecto ennegrecido indicava que es- tivera exposto a mais de um fogo. O lugar era secco, abrigado pela mata e proximo à agua cor- rente, e podia muito bem ter sido usado como ha- bitação por alguma familia de Indios, troglodytas por accidente, sinão por costume. Estas e algumas outras excursões menores to- maram muitos dias, e, dispondo de tempo limitado, PARTIDA DO RIO GRANDE DO SUL 163 decidi-me a ir directamente de Piratinim a Pelotas, à cavallo, trazendo Pedro, e deixando que meu companheiro voltasse pelo caminho de Cacimbinhas. A viagem durou tres dias, por uma estrada que em parte seguia o leito do arroio Piratinim, que entra no S. Gonçalo ao Sul de Pelotas. Junto ao povoado cruzámos uma lombada granitica, eviden- temente continuação da serra dos Tapes, mas cha- mada localmente serra das Cachoeiras, serra que corre para NNE. Transposta esta, andámos uns “0 kilometros por escarpas revoltas de rochas meta- morphicas, gneiss e schisto, que corriam parallelas à serrania e se inclinavam tão fortemente para ESE, que muitas vezes eram quasi perpendiculares. Como a estrada era quasi-em angulo recto ao horizonte geologico, ver-se-á que os 70 kilometros representam uma enorme densidade de rocha, 35,000 metros ou mais. | E Não é que supponha que tão enorme série exista, realmente aqui; entretanto, a successão bem mar- cada na propria rocha era quasi ininterrupta e nada havia que indicasse dobras revertidas. Minhas ob- servaições, notadas no curso de uma viagem ás pressas, foram necessariamente muito imperfeitas, e é possivel que me escapassem pontos importantes. Qualquer, porém, que seja a densidade da rocha, fica de pé o facto de que são parallelas à serra das Cachoeiras, nas quaes parecem encostar, e que este horizonte é na direcção da cordilheira ma- ritima do Brasil. De Pelotas voltei a Porto-Alegre e a S. João. Logo depois estavam encaixotadas nossas collec- ções, e deixámos nossa agradavel casinha campestre, en route para Mato (Grosso, é “eg terminou nossa estada no Rio Grande o Sul, XVI Do Rio Grande a Montevidéo. — Um pampeiro, | Sahimos do Rio-Grande depois do meio-dia, e à bocca da noite já estavamos muitas leguas ao Sul. Lembra-me bem aquella tarde: o sol que im- mergia num banho de ouro por traz das longingquas dunas pardacentas, e as aguas côr de azeitonas apenas rufadas pelo terral carinhoso; mesmo o longo ondular do Atlantico quasi não se sentia, e, sem a arfagem doce do vapor e a frescura salina do ar, julgaramo-nos em um lago placido. Depois o ouro do occidente mutou-se em carmezim; o crepusculo entornou-se pelos frisos das ondas, que ardiam como - cobre em fusão, emquanto o ambiente se embebia, embebia-se de purpura até nos imaginarmos sus- pensos n'uma vaporisação colorida. Visão como esta já tivera eu uma vez junto ao Equador; mas são estas cousas cuja reminiscencia só apaga o ultimo suspiro. Os passageiros quedavam-se silenciosos, como no receio de que uma palavra quebrasse o feitiço; mesmo os marinheiros suspendiam um pouco à la- buta e inclinavam-se da amurada, sem que os of- ficiaes lho levassem a mal. A visão durou apenas um instante; o carmezim carregou-se em vermelho e depois esmaiou; as es- trellas surgiram no firmamento escurecido; e nosso vapor, com seu coração de ferro a palpitar, e seus ARANHAS FILANDROSAS 165 insomnes olhos de fogo, seguia firme para diante. Olhando da amurada, vimos o mar flamejante de phosphorencias pallidas, como si algum lampejo in- dolente do erepusculo ainda lhe ficasse boiando na tona; cada ondasinha desfiando em gottas scintil- lantes sob as rodas, e a esteira, estrada longa e phantastica, a serpejar pela noite a fóra. Esta phos- phorescencia é devida a animaes minusculos de mui- tas e differentes ordens, que boiam na agua aos milhões. Ha fórmas phosphorescentes maiores, que “vi mais para o Norte, semelhando bolas de fogo abaixo da superficie. D'ahi a pouco assomou 0 capitão, e, sentando-se, à conversação versou naturalmente sobre phenome- nos maritimos. Fallou-nos em muitas scenas de suas viagens, pois era marinheiro velho e visitara mui- tos mares. Referiu-se a uma phosphorescencia se- melhante, que presenciára nas ilhas gregas, em que os remos gottejavam ouro, e grandes peixes eram visiveis no fundo, onde com o movimento convertiam a agua em luz. Fallou-nos em um espectaculo es- tranho que presenciara nesta mesma costa uma ou duas vezes; aranhas filandrosas fluctuando longe da terra, cahindo por toda a parte no navio, até mastros e cordas ficarem cobertos com suas teias pelliculentas, alvejantes como a mais pura prata, quando o vento as bafejava. Darwin, na Voyage of a Natwralist, archivou este phenomeno, que presenciou junto à foz do Prata, e presenciado ainda á distancia de mais de 100 ki- lometros do litoral*). Cada aranhasinha despede uma longa linha de sêda com que se atira ao ar, e póde ser carregada pelo vento a grandes distancias. *) Depois tambem assisti a este phenomeno no rio da Prata, As aranhas são pouco maiores que a cabeça de um alfinete; porém muitas das filandras tinham de seis a sete metros de comprimento. 166 . DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' Os marinheiros d'estas plagas acreditam que estes bandos de aranhas são precursores de pampeiros, e é possivel que tenham razão; as boas brisas de Oéste, que muitas vezes antecedem a estas tor- mentas, seriam, neste caso, as que soprariam as aranhas para o mar. | Quando viemos para o convez na manhã se- guinte, o sol brilhava ardente, mas notava-se um peso oppressivo no ar, muito differente da frescura da tarde anterior; o vento, muito leve, halitava de Sudoéste. Pelo meio dia reparei n'um' negrume que coalhava para o Sul, nuvem sem contorno, plum- bea de côr, como fumaça. O capitão estava tambem olhando para aquella nuvem, e notámos que os marinheiros colhiam cabos, apanhavam pequenos ob- jectos da coberta e seguravam os maiores com amar- rilhos. Ás duas horas o céo escureceu até o zenith, o vento virou para o Sul, soprando mais forte cada minuto; começaram a cahir gottas pesadas de chuva e tivemos de retirar-nos para o salão. Sentados alh, escureceu e entenebrou o ar de modo que parecia noite; o vapor começou a balançar pesadamente, e entre o fustigar da chuva podia ouvir-se o espumar e o fervilhar das ondas pelos cos- tados. Mas accenderam-se os camarotes, e serviu-se o jantar como de costume, fazendo-se, porém, grades para os pratos não cahirem; havia poucos passageiros à mesa, que fallavam entre si gravemente, em voz baixa, interrompendo-se a intervallos, quando al- guma onda mais forte acommettia a embarcação. Á tarde, uma ou duas vezes fomos lá fóra; mas a chuva tornara o convéz escorregadio, o vento uivava furioso, e uma cerração densa, que penetrava até os camarotes, aconselhou-nos que voltassemos para baixo. NOITE DE TEMPESTADE 167 O chá, às 8 horas, foi quasi um fiasco; o navio pendia tanto que tinhamos de ficar de chicaras na mão, e mais de um passageiro emborcou o liquido fervente na braguilha. A maior parte das senhoras já desde muito eram invisiveis, e uma pallidez, que poderia vir tanto do medo como do enjôo, es- EAapaNra-so na face dos homens que ainda resistiam. Julgámos acertado recolher-nos mais cedo para os nossos beliches, onde, como viajantes velhos, não tardámos a pegar no somno. Pela madrugada acordei com um balanço tre- “mendo, que quasi me atirou ao chão. Quando abri os olhos e segurei-me á beira do leito, deu-se como uma descida de entontecer, para baixo, para baixo,. qual si procurassemos o fundo de Oceano; depois o bramido de uma longa onda por fóra, seguida de outras e outras, à medida que subiamos; tudo acompanhado lugubremente pelo concerto de ma- deirás que rangiam, de bagagem que escabeceava pelo soalho, de agua que respingava pelos bordos, mas tambem, e em boa hora, pelas pulsações rhy- thmicas da machina. Então ouvi sons que não eram precisamente musicaes, partidos de um camarote vizinho, algum pobre diabo que afogava a revolução exterior nos horrores do seu terremoto intestinal, e às vezes gritos femininos echoando pelos cor- redores, quando o navio dava alguma guinada mais profunda. - Uma noite de tempestade no mar tem seus hor- rores, mesmo para os passageiros mais experimen- tados. Não é isto devido tanto aos movimentos como aos sons indistinctos que alarmam a imaginação antes do que os sentidos: o roçar das cadeias do leme; o rumor de pés correndo pelo convez; uma. corda ou um ferro atirado; as ordens de commando e os gritos dos passageiros mofinos e, mais que tudo, 168 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' os gemidos incessantes do proprio navio, semelhando pobre creatura a lutar com -as ondas, que batem, sacodem, empinam e afogam. Apenas um de nós era sujeito ao enjôo, e eu sabia que n'estas occasiões o melhor era deixal-o só: os outros subimos para o salão, que parecia um logar devastado. Não mais de cinco ou seis pas- sageiros appareceram, trepando como nós para os bancos, e conseguindo tomar café, Deus sabe como; as vigias estavam todas fechadas, e, quando o vapor balançava, viamos a agua escura a escorrer por ellas; alguma penetrava pelos caixilhos, e bancos e soalhos estavam humidos e repugnantes. O salão de cima estava um pouco melhor, e ahi nos con- servámos a mór parte do dia, procurando ler ou conversar, mas embebidos principalmente na preoc- cupação de mão sermos atirados fóra do assento. Passageiros timidos exprimiam grande ancie- dade. Sabia-se que o capitão, mui ajuizadamente, afastara-se da costa logo que o pampeiro começara, e pela manhã, devido á cerração grossa, era im- possivel determinar a nossa posição; o vapor mo- Via-se a meia força, o prumo era mergulhado a pequenos intervallos; já segredava-se que as bombas estavam trabalhando, e que havia agua no porão. Os viajantes velhos sabiam que isto não passava de medidas preventivas, e que agua no porão nada tem de extraordinario; sabiam tambem que a tem- pestade não era lá essas violencias, e com o nosso vapor possante corriamos quasi tanto perigo como em bonança. Mas só a experiencia communica esta confiança, 'e não ha argumentação bastante para convencer a um passageiro bisonho de que o mar irrequieto não é mais perigoso que uma via-ferrea ou uma diligencia: os sentidos são mais fortes que o juizo. DIA DE PAMPEIRO 169 Almoço e jantar foram servidos como se pôde: uns dez ou doze passageiros mal vestidos senta- ram-se no refeitorio, humido, escuro, miseravel, onde tudo escorregava pela mesa, e uma pessoa tanto podia levar a sopa aos joelhos como à bocca. O capitão appareceu quando o almoço estava em meio, e, tirada a japona de oleado, gottejante, tomou o assento habitual na cabeceira da mesa, e conver- sou animado; mas dentro em pouco disparou, e ao jantar não appareceu. Á tarde a cerração fen- dilhou-se, e nos intervallos da chuva fustigante pu- demos aventurar-nos a sahir, segurando nos cabos. “Um balanço mais violento atirou-me de cabeça ao soalho, ferindo-a fortemente; mas os outros pas- sageiros seguraram-me, e O desmaio foi de poucos momentos. Rc Dois ou tres d'entre nós aventurámo-nos a su- bir ao convéz. Não. demorámos muito, porque o vento era” tão rijo que tivemos de abaixar-nos e segurar-nos ás grades, para não sermos levados; mas a visão recompensava o trabalho. Da primeira coberta, a ondulação terrivel junto ao navio escondia o mar largo; mas d'esta elevação podiamos vêl-o milhas e milhas em todos os rumos: planicie immensa de espuma doudejante, pallida sob as nuvens negras da tempestade, resplandecente, nivea nos clarões instantaneos do sol, que agora começavam a porejar. Dois ou tres navios, todos com as velas colhidas, moviam-se junto a nós; ob- jectos mais perigosos que ondas e nuvens, e causa mais real de receio durante a tempestade. Em aguas muito frequentadas como estas, os navegantes estão sempre anciosos durante as cer- rações, especialmente quando cerração e tempestade apparecem juntas. Um abalroamento no mar é talvez 170 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' o mais terrivel de todos os desastres maritimos, e navio de velas colhidas póde numa tormenta muito menos evitar. a approximação de um vapor do que com ellas desfraldadas. Durante a tarde verificou-se afinal a nossa po- sição; o vento cedeu durante a noite, e ao amanhecer ancorámos diante de Montevideu. . chop ? XVII Montevideu. — A ilha das Flôres. — O Lazareto. Nossa primeira experiencia foi tudo, menos pit- toresca; para ser franco, foi positivamente nojenta. Depois de esperar uma a duas horas em frente a Montevideu, appareceu-nos a visita da saude, e: “ ordenou immediatamente ao vapor que fosse fazer quarentena na ilha das Flóres. “Foi um clamor igeral; nem um caso de enfermi- dade occorrera a bordo, e não houvera nem no Rio de Janeiro ou em qualquer dos portos em que o vapor tocára. A idea de quarentena, era um ab- surdo. Mas, por bem: ou por mal, tinhamos de obedecer; puxou-se a ancora da vasa montevideana e lá fo- mos para Este, o vapor a vomitar fumaça escura, os passageiros pragas ainda mais negras. Ê Duas horas depois ancorámos junto á ilha, que demora umas oito a dez leguas do continente, e o duplo d'isto da cidade. Ahi pudemos plenamente medir a extensão de nossa miseria: Uma rocha ne- gra, esteril, de menos de uma milha de extensão, em nenhuma parte mais larga que 300 metros; em uma ponta o pharol, com alguns edificios baixos, o lazareto e o hotel; o resto da ilha, defeso aos “quarentenarios, contém apenas um cemiterio (lu- gubre visão!) e uma a duas cabanas; algum gado pasta no capim rente, unica vegetação que se vê, além de um jardim devastado em [rente ao hotel. 12 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA. A ressaca bate pesadamente do lado do vento e na tormenta deve quasi lamber a ilha. O sol, n'estas rochas safaras e n'este capim secco, se- melha fornalha. Logar mais triste fora difficil ima- ginar. Depois de esperarmos outra hora, appareceu uma lancha com alguns officiaes e medico; exami- naram o vapor e disseram acreditar que ficariamos apenas um dia de observação, sem desembarcar; mas tinham que «telegraphar para pedir ordens ». O telegrapho deve ser instituição muito lenta naquel- las paragens, ou então os demorados são os fune- clonarios em resolverem-se, pois sua decisão final chegou-nos só oito horas mais tarde. Entrementes tivemos duas outras visitas, ou tres, «com ordens » contraditorias. Primeiro disseram-nos que tinhamos de mandar a roupa à terra para se lavar; depois que só os passageiros para Montevidéo seriam de- tidos, podendo os outros continuar com o vapor; finalmente, que tinhamos de desembarcar todos á espera do bel prazer official. | Havia duas inglezas, com tres crianças, que iam de viagem sós do Rio Grande para Montevideu; não sabendo portuguez nem espanhol, sua- posição era bastante triste, e minha senhora teve o prazer de convidal-as para juntarem-se à nossa partida. Desembarquei na primeira lancha, para, sendo pos- sivel, tomar um quarto para ellas, e fazer o .que pudesse para accommodal-as convenientemente. O hotel, creio eu (e espero por honra do Estado- Oriental) é empreza particular; creio tambem (e espero) que é o peior da America do Sul. O hotel é um edificio irregular, comprido e baixo, dividido em tres partes destinadas a pas- sageiros de diversos navios, entre os quaes mui ajuizadamente não se permitte communicação. A O HOTEL DO LAZARETO 173 parte que nos competia era da altura de dois -an- dares, com uma longa varanda defrontando um pa- teo arido; de ambos os lados d'este pateo havia barracas de madeira para os passageiros de se- gunda classe. Havia alguns quartos particulares e, felizmente, consegui um para as inglezas e outro para os ho- mens da nossa partida, quartos pequenos, um tanto sujos, com as paredes cobertas de nojentas rabiscas de lapis, e o tecto gretado aqui e acolá; as camas -não eram lá estas cousas, mas emfim estavam lim- pas e, por- felicidade, despovoadas. Em frente às portas, que davam para a varanda, cada quarto possuia uma janellinha que olhava para o mar, prospecto prazenteiro para quem conseguisse ab- strahir do meio. | Nestes quartos deleitosos, assentámos nosso acampamento, satisfeitos da cousa não ser peior; a mór parte dos passageiros teve de occupar es- paçosos dormitorios, dos quaes um reservado aos homens, outro ás senhoras. Comiamos todos juntos, apinhados a uma longa mesa, cuja toalha, origi- nariamente branca, estava agora cortida em banha e vinho. Serviram uns seis ou sete pratos, comida execravel, todos tresandando a alho, — para as nossas inglezas uma abominação, e não das me- lhores cousas para nós, americanos. O vinho era pouco melhor que vinagre e, em- bora pudesse obter-se Porto ou Chambertain pelo duplo do preço, garanto que seria igualmente pes- simo. O café, tão delicioso nos peiores hoteis do interior do Brasil, era de tal ordem que não se podia tragar. O pão e a sobremeza eram melhores e foi este na realidade -o jantar das senhoras de nossa partida. No dia seguinte, pagando liberal- mente aos criados, sempre arranjamos dous pratos, 174 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA. que tinham ao menos o merecimento de não tres- andarem a alho, mas foi tudo o que consegui. Nós, viajantes viajados, estavamos affeitos a estas e outras; mas para turistas européus, para senhoras delicadas e homens fastientos, uma demora forçada aqui deve ser verdadeira tortura. Por todo este luxo pagavamos dois pesos fortes diarios, isto é, o mesmo que em hoteis de primeira ordem em Montevideu ou no Rio. Naturalmente os passageiros de segunda classe arranjavam-se mais barato, porém passavam ainda peior: o dormitorio era immundo, e elles não podiam com despezas supplementares. Os immigrantes pagam de 25 cen- tesimos a meio peso diarios pela comida mais gros- seira e pelo pavimento, para se deitarem em cima; si, como succede muitas vezes, não têm dinheiro, to- mam-lhes a bagagem em segurança de pagamento futuro: e deitam-nos à praia, privados de tudo quanto possuiam, para sbaietóctaimo sua nova vida como pu- derem. A falta de medidas sanitarias na ilha era muito notavel. Por traz do hotel havia um pateo sujo, e junto um curral de gado e outro de porcos; es- crementos e restos de animaes mortos jaziam em diversos logares ao longo da praia, e cada viração trazia o cheiro ao nosso quarto. O ar pullulava de moscas verdes (Musca vomitaria), indício se- guro de immundicie. | Mas, o peior de tudo eram os empregados muito descortezes, tratando-nos como criminosos em uma ilha penal, dando-nos ordens no tom mais gros- seiro, embora não houvesse a menor razão para severidade, pois nenhum de nós pensava em trans- gredir o regulamento. Não quero ser injusto. Sei que regras estrictas são necessarias aqui. Sei que EMPREGADOS INCIVIS sd 175 empregados inferiores são impolidos em todo o mundo: ignorantes, usando dia apoz dia de auto- “ridade absóluta, não podem vêr que essa autoridade é limitada, e só por necessidade exercida sobre gente que lhes é igual ou superior; esquecem ou não sabem que a ordem mais severa póde ser dada cortezmente e que um pedido muitas vezes vale mais que uma ordem. O mesmo notei na secretaria da policia do Rio e na alfandega de New-York; mas 0 vexame era momentaneco e terminava com o exame da bagagem ou a assignatura do passaporte; aqui a tyrannia ridicula tem de ser soffrida dias seguidos, ás vezes semanas, humilhação constante e desne- cessaria; afinal basta a vista de um empregado para incommodar. Desembarcámos às 4 horas da tarde e disse- ram-nos que receberiamos a bagagem immediata- mente; não veiu e, não tendo feito provisão, fi- cámos sem mudar de roupa á noite e pela manhã. Ao amanhecer, acordaram-nos e disseram-nos que fossemos à praia abrir as nossas malas; mas apenas lá chegámos, mandaram-nos bruscamente para traz, até desembarcarem de outro navio uns cem im- migrantes. Enfim a bagagem só chegou horas mais tarde, demora vexatoria e desnecessaria. Foi levada para um logar aberto junto ao hotel, onde grande nu- mero de cordas estavam armadas entre estacas; ahi disseram-nos que abrissemos as malas, pendu- rassemos a roupa limpa ao sol, e dessemos a roupa servida para lavarem; aos immigrantes consentiu- se que elles mesmos a lavassem no mar. Depois de algumas horas deste labor oppressivo, deixaram-nos arrumar de novo as malas; um em- pregado despejou acido phenico na primeira peça que encontrou (vi um despejal-o n'um vestido de A 176 NO RIO DE JANEIRO A CUYABA. seda), e passou um risco de giz na tampa, para mostrar que o exame fôra feito. Tudo isto sem cuidado, sem vigilancia; alguns dos passágeiros não tiraram a roupa usada, e outros, que tiveram a pre- sença de espirito de apresentar algum trapo para ser molhado de acido phenico, deitaram-no fóra, logo que os empregados voltaram as costas. A roupa entregue foi devolvida no dia seguinte meio lavada, está claro que por engommar e acompanhada de contas bem salgadinhas. Tive de pagar uns dois pesos fortes por umas doze peças: estavam quast todas ainda molhadas e tomei o fartão de seccal-as como pude. Deixaram-nos então embarcar, depois de dois dias e duas noites passados n'esta ilha de Dolores, por antithese chamada das Flôres; os officiaes e marinheiros do navio não foram obrigados a desem- barcar, embora, ao que parece, fossem tão peri- gosos à saude de Montevideu como os passageiros em transito. Tinham despejado desinfectantes pelo vapor, mas não tinham mudado a roupa das camas, nem tomado quaesquer outras precauções. O que tornou a cousa ainda mais arbitraria, foi que, dois dias mais tarde, outro vapor, chegou, como o nosso, do Rio, no qual, —tenho certeza absoluta — se déra um caso de febre amarella a bordo; como o com- mandante era amigo intimo de um dos officiaes da saude, o seu vapor não passou por quarentena. Geralmente declaram que todo o systema de quarentenas aqui é menos para. proteger a cidade do que uma taxa arbitraria sobre os viajantes, para “dar dinheiro a certos felizardos. Justos ou não, taes boatos são corroborados pelas muitas extorsões pra- ticadas na ilha e por certos factos dubios que se têm passado. Fallaram-nos, por exemplo, n'um va- por que teve ordem de ficar seis dias na ilha; = EXPERIENCIAS DE QUARENTENR 17% pela influencia de um dos passageiros em Montevideu, sahiram passado um dia, pagando, porém, seis dias de hotel. Como um dos pacientes, hão de me julgar sus- peito. Direi apenas, que não costumo deixar que meus commodos ou descommodos pessoaes pesem em taes assumptos, e, como viajantes praticos, pen- diamos a vêr o lado brilhante das cousas. Pondo de lado a questão, si era ou não neces- saria a nossa quarentena, ou si não poderiamos tel-a feito a bordo, nossa rapida experiencia deu-nos motivos de queixa aos seguintes respeitos: 1.º Houve demora desnecessaria em resolver-se o que haviam de fazer comnosco, e depois em des- embarcar os passageiros e a bagagem. 2.º Os empregados foram sempre grosseiros e muitas vezes brutaes, especialmente com os pas- sageiros de segunda classe. 3.º As accommodações do hotel eram de todo inadequadas e más; bons quartos e bôa comida de- viam ser fornecidos a todos, e luxos razoaveis aos que os quizessem pagar. As leis quarêntenarias actuam principalmente sobre as procedencias do Brasil; como os vapores européus geralmente to- cam no Rio antes de vir a Montevideu, e os ame- ricanos preferem-nos para ir ao rio da Prata, qual- quer estrangeiro fórma as suas primeiras impressões por esta ilha deleitosa; ao menos por politica, para dar a outros Estados idéa favoravel da terra, con- viria suavizar os rigores necessarios da quarentena. 4.º As contas são exorbitantes, considerados os commodos e o passadio; sendo esta despeza quasi sempre imprevista, póde trazer inconvenientes muito 178 NO RIO DE JANEIRO A CUYABA' sérios, e por &quidade devia ser o menos pesada possivel. 5.º Os orulanientos sanitarios da ilha em si não são bons. Es 6.º Os meios usados para desinfecção eram de pouco valor, porque os applicam com tanto deleixo que é facil evital-os. 1.A lavagem de roupa é ladroeira cadima, e deve ser especulação mui lucrativa. Toda a lava- gem para o nosso vapor fizeram-n'a em um só dia cinco ou seis pessoas; mas as contas combi- nadas subiram a mais de 100 pesos fortes. As despezas não foram mais que o salario das lavadeiras e o sabão, ambos, a julgar pelo resul- tado, empregados com muita parcimonia. Talvez não custassem mais de uns 10 pesos, deixando, pois, o lucro liquido de 90 pesos. A roupa volta ás ve- zes molhada, o que causa transtorno; e ficando ape- nas meio limpa e não sendo engommada, deve la- var-se novamente para a gente poder vestil-a, O que dobra a despeza. 8.º iNão se prestou attenção alguma à com- modidade dos passageiros; os empregados conside- ravam a quarentena um mal necessario, não para os quarentenarios, mas para si, e procuram sahir della com o minimo incommodo de suas pessoas. Seria facil até certo ponto remediar o tedio da demora aqui. Com despeza moderada, podia transfor- mar-se a ilha em passeios agradaveis. Pequeno como é o espaço e deshabitado, só admittem os passageiros em um fragmento, a pretexto que se não misturem os de diversos navios. Na realidade não se consegue tal objecto; vi passageiros de segunda classe do nosso vapor mis- turados com. immigrantes de um vapor francez. s ILHA DAS FLORES 179 A regra, em si acertada, podia ser mais etfebtiva, cividindo-se toda a ilha em tres ou quatro partes, cada uma com seu hotel, e separadas por muros ou largas estradas; cada uma destas poderia fran- quear-se aos viajantes, e, estando distantes os hoteis, “haveria pouco perigo que a infecção passasse de uns para outros. Poderia fornecer-se bilhares e ou- tros jogos com pequenas despezas; um viveiro, um aviario, ou um jardim extenso, serviriam de distrac- ão, e poderiam. expôr-se á venda livros baratos em differentes linguas. Tudo isto póde parecer in- significante; mas para quem fosse obrigado a passar duas ou tres semanas aqui, tudo isto é de muita importancia. Espero que alguem de influencia e intelligencia leia isto em Montevideu, onde ha tanta gente neste caso, e que, em vez de chocar-se com o escritor estrangeiro, por sua severidade para com esta in-' stituição, inquira si não ha alguma cousa nella digna de censura e que póde ser remediada. Certa- mente não posso ser considerado inimigo, porque aconselho o governo do Estado-Oriental a reprimir abusos que defamam o paiz, que afugentam os viajantes de Suas praias, e tornam Montevideu ri- diculo aos olhos das outras nações. Em New-York, no Rio e alhures, tenho muitas vezes ouvido com- merciantes e turistes fallarem da ilha das Flôres e sempre em termos de execração. Provavelmente fomos os unicos passageiros do “vapor que colhemos algum proveito da ilha das Flores. Passeiamos até onde o permittia o regula- mento, procurando: animaes marinhos e insectos, juntando não poucas especies interessantes à nossa collecção. Havia muitos poços profundos ao longo das praias rocheas, onde as aguas entravam e sa-. hiam, e que pullulavam de vida: caranguejos espi- 180 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' e: nhentos e pugnazes, espiando-nos com seus olhos alongados, e correndo de banda quando procura- vamos pegal-os; lindas conchas esculpidas; peixi- nhos mimosos, simples pygmeus de sua raça, mas pintados com as côres mais vividas, semelhando borboletas aquaticas ao abrolharem entre o sargaço | bruno. Estas especies marinhas eram em geral seme- lhantes ás do Rio; os insectos ao contrario eram notavelmente differentes, em sua mór parte ter- restres, taes como os que dominam nos pampas. As rochas eram metamorphicas, duros schistos voltados em angulo agudo e frestados pela agua em muitas fórmas pittorescas. Era interessante notar que a direcção horizontal d'estas rochas, — isto é, a linha rormada por suas extremidades revoltas, — e o diametro mais longo da ilha corriam de SO., isto é, do mesmo modo que nas costas do Brasil e do Uruguay. Realmente a ilha parece haver sido de- cepada do continente por uma depressão de terra, e sua fórma provavelmente foi determinada pelas mesmas forças que “alçaram a serra do Mar no Brasil e elaboraram todo o lado sul-oriental do con- tinente. | o XVIII Montevideu. — O espirito de partido. — Quando o Brasil poderá proclamar-se republica. Passado o purgatorio da ilha das Flores, che- gámos ao paraiso de Montevideu. S. Pedro, repre- sentado por um official pouco expansivo, examinou- nos as credenciaes, e deu-nos a permissão neces- saria de entrarmos nas portas celestes da alfandega; ahi examinaram-nos as malas, e, achando-as cheias de bôas obras, um: anjo de camisa azul sobraçou-as e guiou-nos atravez de ruas calçadas de crystal combinado com mica e feldspatho até um Gabriel hoteleiro, que nos disse descansassemos de nossos labores, à razão de dois pesos e meio por dia. . Temos aqui um ceu com certo elemento ma- hometano, como huris de olhos negros (com a dif- ferença essencial quanto à renovação diaria), e fru- tos sempre deliciosos ao paladar, mas que podem trazer colica. Como nossa demora foi de poucos dias, minhas notas apresentam lacunas quanto ás harpas de ouro, ás espadas de fogo e ás corôas de gloria: ater-me-ei, pois, ás feições mais ter- renas. O Estado-Oriental é uma região de campo, que produz gauchos, gado e revoluções; os dous ultimos generos são tambem exportados por Montevideu, uma das mais lindas cidades da America do Sul. Pilheria à parte, estes dados são bastante correctos. Toda 182 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA a riqueza, talento e iniciativa do paiz concentram-se aqui; não ha outras cidades ou- portos de impor- tancia, quasi nenhuma imanufactura e pouca agri- cultura: só ultimamente o cultivo de cereaes as- sumiu algum incremento. O terreno assemelha-se ao que viramos no meio-dia do Rio Grande do Sul, e como este criva-se de estancias de gado; a gente do campo occupa-se na industria pastoril, ou d'ella depende, e revela o mesmo pendor para as aven- turas, o mesmo odio à sujeição, que encontrámos entre os vaqueiros e proprietarios do districto a O. de Pelotas. Como elles, igualmente são partidarios calorosos; e como seu caracter turbulento é menos peado pela influencia conservadora dos districtos agricolas, explode muitas vezes em tentativas mais ou menos felizes de revolução. E aqui seja-me permittido exprimir-me com franqueza, a respeito de uma feição estranhamente assignalada na America do Sul, e que está pro- duzindo maior mal talvez que todos os outros males . reunidos: si incluo o Brasil é por espirito de ami- sade, e na esperança de que no que vou dizer possa prestar algum serviço. | Refiro-me a espirito de partido, mais assigna- lado e turbulento nas regiões pastorís, mas assaz evidente nas outras partes. É uma praga entre as nações civilisadas, porém é mais do que isto na America do Sul, onde é mais cégo. No Brasil e nas republicas espanholas vi- gora quasi universal a idéa que é uma deshonra para uma pessoa desertar do seu partido; os que fazem-no são estygmatisados .como traidores. Ora, este espirito de fidelidade é bom em 'si, porém mau na applicação: um homem não obra bem, quando deserta de um parente, de um amigo, de uma causa nobre; mas não obra necessariamente mal quando FIDELIDADE PARTIDARIA 183 deserta de um partido politico; às vezes o mal está em apegar-se a elle. Deixem explicar-me. Em uma monarchia con- stitucional como a Inglaterra eso Brasil, ha quasi sempre dois partidos, um dos quaes occupa os prin- cipaes logares, e o outro está na opposição. Qual- quer grande reforma, qualquer medida importante, é primeiro concebida por individuos, e depois aceita por um ou outro partido, — supponhamos pelo que está em opposição. Estando em opposição, está ne- cessariamente em minoria; só póde governar e exe- cutar a reforma recebendo em suas fileiras certo numero de votantes do outro partido; a reforma, portanto, a realisar-se, será devida, não aos que se ataram ao seu partido, mas aos homens pen- sadores que desertam delle. O mesmo raciocinio se applica à eleição de qualquer cargo. A maioria póde escolher um ho- mem que é imapto para o logar, e votantes que reconhecem está inaptidão podem elegel-o, porque este pertence ao seu partido; mas não seria melhor que se juntassem á minoria para dar o emprego a homem superior? | Nenhum partido, bom ou máu, vale cousa al- guma simplesmente como partido ; de facto, não póde ser bom, a menos que não seja mais que simples partido, que não o influenciem nobres idéas, que não inclua homens desejosos de sacrificarem sua parcialidade ao bem da patria. Um homem só in- fluenciado pelo seu apego a um chefe ou a um machinismo politico, abre mão voluntariamente de todos os direitos que grandes pensadores e bravos campeões lhe conquistaram durante quarenta se- culos, e reduz-se à escravidão moral e intellectual, Que independencia existe no eleitor que vai cegamente ás urnas e vota por um conservador ou 184 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' liberal, unicamente porque é liberal ou conservador? Que nobreza existe n'estes senadores ou deputados — quem quer que lê os jornaes bem os conhece — "cujos nomes se swuccedem sempre exactamente na mesma ordem na lista dos votantes? Lembro-me que, quando rapaz, vi uma mulher que procurava passar por uma manada de ovelhas em caminho estreito. A mulher trazia uma vas- soura na mão; estava um pouco espantada, abai- xou-se e poz a vassoura por cima da cabeça. O pai do chiqueiro que guiava-o rebanho, descobriu que o caminho mais curto para sahir da difficuldade era saltar por cima da vassoura; a mulher ainda ficou mais atarantada, e todos os carneiros e ovelhas saltaram-lhe por cima da vassoura, sem saber ou sem importar-se que havia muito terreno, de uma e outra banda, por onde podiam passar. Tal qual os deputados e senadores. Parece que todas as grandes questões que agi- tam o Brasil — emancipação, immigração, finanças e uma dezena de outras — já poderiam estar re- solvidas, si não fôra o espirito de partido. Penso que este máu espirito põe homens máus ou incom- petentes no governo, e deixa os bons de fóra ou inutiliza-os. Penso que exclusivamente a este espirito têm sido devidas quasi todas as despreziveis re- volucioniculas que polluiram alguns dos estados sul- americanos. Penso que hoje em dia, no Brasil, elle está carcomendo a constituição e pondo em perigo a paz publica. Os partidos conservador e liberal quasi que se contrabalançam; mas aqui, como al- gures, ha sempre eleitores que votam por mo-: tivos interessados. Á parte qualquer questão de peita effectiva, estes homens esperam por empregos e outros favores politicos do partido em que votam. Como as classes melhores e mais puras adherem, O IMPERADOR E OS PARTIDOS 185 sem reservas a seu partido, a balança depende das outras mais baixas, que em regra votam com o partido que está no poder; por conseguinte, pela parte dos eleitores o partido ficaria indefinidamente; as mudanças serão: apenas de uma a outra ala do partido, e estas determinam-as as paixões ou ca- prichos de parlamento, nunca o povo. A escolha dos partidos cabe, portanto, forço- samente ao Imperador, que ao inaugurar qualquer mudança deve acompanhal-a immediatamente da dissolução do parlamento; como a mudança precedeu a dissolução, a turba de votantes interesseiros afflue para o outro lado e sustenta a mudança, quer seja um bem para o paiz, quer não. O partido que cai ataca o Imperador, por ter feito"”a mudança contra o espirito da Constituição, e é uma verdade; mas como evital-o? Só os eleitores “são censuraveis, porque ataram as proprias mãos e forçaram o “Imperador a fazer por elles o que elles deveriam ter feito por si, si não houveram abdicado dos seus direitos. Como não folgaria Sua Magestade si um dia se visse livre de tal respon- sabilidade! Reparo que o leitor brasileiro está se zangando commigo: eis aqui um naturalista estrangeiro, diz lá comsigo, que, em vez de descompor Montevideu ou descrever os percevejos que lá encontrou, volta atraz para achar defeitos no Brasil. A fallar ver- dade, pouco se me dá de Montevideu ou do Estado- Oriental: mas tenho interesse real e fervoroso por este paiz, onde passei muitos dos melhores annos da minha vida; estou escrevendo para brasileiros, sinão como seu compatriota, ao menos como seu amigo; e estou commentando um mal encontrado em toda parte, em maior ou menor extensão, mal que dimana de. uma noção falsa de honra, e de O 186 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA! que uma nação intelligente como o Brasil pasta sentil-o para livrar-se. nat ir Tornando a meu assunto legitimo: Montevideu é uma cidade aprazivel, buliçosa, de ruas largas, oureladas muitas d'ellas de renques de verdadeiros palacios. O gosto para a decoração interna é muito mais geral e mais apurado que no Rio de Janeiro. Muitas das melhores residencias têm' um pateosinho | interior, coberto de tecto de vidro, calçado de mar- more e geralmente contendo uma fonte, com pal- meiras e outras plantas; o marmore é profusamente usado para as paredes de corredores, caixilhos de janellas, portaes, ete., e com muito bom effeito. Mobilia, quadros, bric-a-brac são quasi sempre ar- tisticos e bem dispostos; o uso de tapetes é quasi universal, e nisto especialmente contrastam as ca- sas fortemente com as das cidades do Brasil. As lojas tambem comparam-se muito favora- velmente com as do Rio, e têm a vantagem do es- paço, e corredores maiores para a exposição dos ob- jectos. O numero e tamanho dos hoteis é admiravel, e o que ainda mais estranho é, quasi todos são bons; recebem hospedes a preços razoaveis. Os restaurants e cafés, pelo contrario, são muito menos mumerosos do que no Rio. À diferença é signifi- cativa. No Rio uma grande porcentagem dos ho- mens de negocio e empregados têm seus aposentos proprios, porém almoçam nos restaurants; em Mon- tevidéo a mesma classe come em casa, almoçando um pouco mais cedo, para se accommodar ás horas em que estão occupados. Mas na cidade platina ha uma corrente constante de viajantes, commer- ciantes da Europa, que aqui passam alguns dias ou semanas; passageiros dos numerosos vapores que tocam no porto, e estancieiros do interior; todos CIDADE DE MONTEVIDEU 187% estes preferem hoteis e restaurants. Accresce que lindas ruas e largos abertos tornam os hoteis da parto commercial da cidade logares muito apra- “viveis para residencia. Os largos, com seus renques imponentes de edi- fícios, são de grande effeito architectonico, porém em belleza natural, ficam incomparavelmente atraz dos parques e jardins do Rio; o largo da Consti- tuição ou o Passeio Publico valem todas as plagas de Montevideu e Buenos-Ayres reunidas. A arbo- rização das ruas é quasi desconhecida, e tambem n'isto a comparação é toda em favor da capital do Brasil. Mas nos edificios publicos a vantagem fica inteira do outro lado: o Rio 'está variolado de monstruosidades architecturaes, e seus edificios, realmente bonitos, ficam muitas vezes em ruas es- treitas, onde o effeito se perde completamente Pessoas que a conheçam melhor do que eu, de- vem descrever as igrejas de Montevideu, a cathedral, o theatro Solís e o mais. Direi apenas que nos impressionou favoravelmente quanto vimos. Visi- támos o museu, que tem algumas colleeções bonitas e bem arranjadas da Europa, mas, quanto pude vêr, era pobre de producções naturaes do Estado- Oriental, que deveriam ser o seu principal orna- mento. Interessantissima achei uma serie de mine- raes, consistindo de alguns milhares de specimens. A situação da cidade, em uma lombada longa e baixa, favorece-lhe as condições sanitarias; as chuvas e pampeiros periodicos lavam-na e lim- pam-na, com muito pouco auxilio do governo. O defeito clamoroso é a falta de porto. A bahia Jaz entre duas pontas, a em que está construida a cidade e outra, quatro ou cinco kilometros a Su- doéste, que é marcada por um morro conico, O Cerro; a Suéste, é inteiramente aberta, e apenas 188 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' a parte exposta que defronta a cidade, tem pro- tundidade bastante para grandes embarcações. Pro- poz-se formar um porto artificial, construindo um paredão entre uma ponta e outra. Isto dotaria sem duvida Montevidéo com excellente porto; a duvida é si o plano póde realizar-se sem à fallencia da cidade e do paiz. Aos engenheiros e economistas cabe decidil-o. | Ha numerosos bonds, uma linha dos quaes corre em roda da cabeceira da bahia até o povoado do Cerro: alli ha muitos saladeros espaçosos, uma grande e bella doca secca; mas o povoado é sujo e pouco interessante. Outra linha corre até beira mar, a Este da cidade, onde tomâámos excellentes banhos: nos grandes estabelecimentos balnearios. Quanto ao mais, nossas excursões limitaram-se a passeios ex- tensos no campo, precisamente o mesmo campo en- rolado do Sul do Rio Grande do Sul. Excepto algum eucalypto, e outras arvores plantadas, não havia “vegetação mais alta do que moitas baixas ao longo das margens dos arroios. Fizemos extensa colleeção de insectos, quasi todos terrestres, e pela appa- rencia assemelhando-se antes aos dos Estados-Uni- dos do que aos do Brasil. As poucas exposições de rochas que observei eruptivas e metamorphicas, exigiriam longo e cui- dadoso estudo antes de serem bem comprehendidas. Algumas palavras mais para rematar estas su- perficialissimas notas. Montevideu é a metropole de um pequeno paiz, que é e deve ser essencialmente dependente de occupações pastoris. Commercial- mente, deriva consideravel vantagem de seu com- mercio de transito com o Paraguay e Mato-Grosso, que provavelmente avultará para o futuro. Não creio, porém, que o logar venha a ter grande importancia A NEUTRALIDADE URUGUAYA 189 politica nestes dous seculos; porque está offuscado por vizinhos mais poderosos. A força do paiz como estado dependerá, primeiro do progresso intellectual “e social do povo, segundo de conservar estreita neutralidade em todas as questões internacionaes, sem tratar de immiscuir-se de modo algum em ne- gocios de seus vizinhos, e contendo seus cidadãos estrictamente nos limites das leis. A historia apresenta mais de um exemplo de estado pequeno cujo governo sobreviveu aos mais poderosos que lhe ficavam perto; exemplo, a Pa- lestina, apezar de suas lutas intestinas, serviu al- guns seculos de baluarte entre o Egypto e as monar- chias asiaticas; a Suissa, republica federal, que não tem tido quasi nenhum abalo, emquanto a Europa inteira se convulsijonava em guerras. Si o Estado Oriental impuzer respeito por sua conducta, será de interesse para o Brasil, tanto como para a Re- publica Argentina, conservarem-no intacto: cada um d'estes fortes paizes se resente da interferencia do outro nos negocios d'este Estado mais fraco, porque tal intervenção tenderia a romper a barreira que os protege mutuamente. Si, porém, Montevideu intenta interessar-se nas luctas da Republica Ar- gentina ou do Brasil, quanto mais depressa unir-se permanentemente a um ou outro, tanto melhor. | Actualmente, o governo do Estado Oriental não é muito forte, em parte porque é mais ou menos corruto, e ainda mais porque constantemente a- ctuam mnelle as paixões politicas. Estes defeitos podem desapparecer quando a educação e a expe- riencia forem amansando o caracter turbulento do povo; mas offerecem ao Brasil uma lição que con- viria não desprezar, A mudança de monarchia em republica é sempre experiencia perigosa; para ter exito completo devem precedel-a a emancipação in- ft 190 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' telleetual do povo, a submissão voluntaria à mais alta de todas ais leis, o dever; deve além d'isso até cesto ponto ser uma evolução, a assunção gradual dos direitos soberanos pelo povo. Em qualquer outro . caso, uma republica recente póde resultar em nova monarchia, pela força pessoal de um individuo, como na França e no Paraguay, ou então em governo partidario corrompido, como o ido Estado-Oriental e outras republicas espano-americanas. Republicano como sou, e desejoso que os principios republicanos prevaleçam em todo o mundo, tenho certeza de que para o Brasil ainda não chegou o tempo de experimental-os. Deixem que a educação se alastre pela massa do “povo, em vez de circumscrever-se a uma parte; que todas as classes sejam influen- ciadas pelos sentimentos mais elevados do dever, em vez de sel-o por paixões partidarias; em uma palavra, que o povo saiba fazer uso das liberdades que já tem; e então será tempo para este povo de receber da familia reinante a autoridade que lhe commetteu. Uma monarchia constitucional é uma republica, na qual a influencia legal e pessoal de uma fa- milia serve de estorvo á ascendencia indebita dos individuos e ás paixões de partidos. Esta influencia póde não ser sempre bôa; si não fôr, ao povo cabe limital-a. Mas é melhor submetter-se a seus in- convenientes do que à tyrannia de um Lopez, ou à corrução de um corrilho. politico. Escravidão á parte, o Brasil é agora mais livre que o Estado- Oriental; haja vista ás luctas sanguinolentas e o amordaçamento da imprensa, que tem envergonhado Montevideu. Quando vir os eleitores brasileiros usarem de seus direitos, elegendo um parlamento em que à maioria, e não alguns, forem pensadores indepen- A REPUBLICA BRASILEIRA 91 dentes e escravos apenas do dever, declarar-me-ei em favôr de uma republica brasileira; até lá prefiro ver a constituição como está, embora nem sempre concorde com a sabedoria e acerto dos actos da -corôõa. Os jornaes brasileiros mais radicaes incon- scientemente sustentam o que digo: quasi não ha “dia em que não estygmatizem a inefficacia da camara dos deputados, que é eleita pelo povo; a legis- lação melhor e mais cuidadosa é do Senado uma especie de aristocracia essencialmente escolhida pelo Imperador. XIX . Buenos-Aires. — O Museu e o Dr. Burmeister. — A Republica Argentina em geral. Os vapores costeiros da linha nacional não vão adiante de Montevideu; aqui fomos transferidos para outro navio da mesma linha, em que deviamos fazer a viagem até Corumbá, em Mato Grosso. - São estas quasi que as unicas communicações entre Mato Grosso e o resto do mundo social e commercial; os vapores partem de Montevideu uma vez por mez, e quasi sempre levam frete quanto comportam e grande porção de passageiros. São vasos grandes, razoavelmente luxuosos, mas a alguns respeitos não muito proprios para a na- - vegação do alto Paraguay; são, excepto um, de calado demasiado grande, e defeituosos quanto á ventilação, tão importante aliás naquella região quente. Acecrescentarei ainda, que os empregados não acreditam muito o serviço. Além d'estes pontos, que pessoalmente não nos importavam, só sei que dizer bem da. companhia. ; A travessia até Buenos-Aires foi feita em uma só nolte, e não offereceu- incidente digno de reparo. Ao amanhecer ancorámos diante da cidade argentina, a tres kilometros da praia, pois a agua rasa veda maior approximação; nas vasantes ou nas tor- mentas, tem-se de ficar ainda mais longe, a 6 ou 7 kilometros. Defrontam a cidade bancos de lama e O PORTO DE BUENOS AIRES 193 areia, que ficam descobertos nas aguas baixas. Lon- gos molhes estendem-se por estes bancos, para con-. veniencia das embarcações miudas; as cargas vão para os navios em chatas, e para as chatas em carros, que são tangidos pela agua quasi um ki- lometro, cousa singular de= vêr-se. O porto, ou antes o ancoradouro de Buenos-Ai- res é ainda peior que o de Montevideu, por causa da distancia de terra; é um tanto protegido dos pampeiros por sua posição relativamente à praia; porém, mesmo com isto a seu favor, ha frequentes sinistros, até no ancoradouro interno. Em um só anno, o de 1882, houve 104 dias em que os navios não puderam carregar ou descarregar no ancora- douro exterior, que fica uns 20 kilometros da ci- dade. | O logar possue, porém, decidida vantagem sobre Montevideu em um pequeno porto artificial chamado à Boca, um pouco ao Sul da cidade; fizeram-no aprofundando o canal do pequeno rio Riachuelo, e unindo sua foz ao ancoradouro por uma passagem dragada com grande trabalho, que levou annos. Agora a Boca é um porto regular para vapores e navios de vela, que navegam nos rios vizinhos, e até certo ponto tambem para os de procedencia estrangeira. Ha outros planos para augmentar as facilidades do porto, alguns dos quaes, sem duvida, serão realizados mais tarde. São urgentemente ne- cessarios, porque Buenos-Aires têm agora cêrca de 75 9% do commercio da republica, seguindo-se-lhe Rosario, que tem. cerca de 12 0%. Estes dois portos são os centros principaes do trafego fluvial, que já é grande e vai sempre crescendo, e tres quartos do qual são feitos em vapores. Buenos-Aires, com uma população de cêrca de 375 mil habitantes, póde bem disputar ao Rio de 194 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' Janeiro a honra de ser a maior cidade da America | do Sul. Nada tem de pittoresca a sua situação; o terreno em que a construiram é perfeitamente liso como os pampas que a rodeiam, e não fica mais de. 25 metros acima do rio da Prata. Militarmente é quasi tão indefensavel como uma cidade póde sel-o; uma frota inimiga póde crival-a do ancoradouro interno, ou um exercito marchar pelas suas ruas do lado de terra, sem encontrar obstaculo, além da frota, exercito ou bateria que se lhe poderem oppôr. Considerando isto e a falta de poxto natural, não posso extasiar-me diante da sabedoria dos seus | fundadores, embora reconheça que pouco tinham onde escolher nas margens do Prata. Entretanto, aqui está e aqui naturalmente continuará o centro commercial e politico da republica Argentina, n'estes dous seculos. Os viajantes que vêm ao ancoradouro aberto e batido pelos ventos e desembarcam em botesinhos incommodos, hão de encontrar defeitos em cousas de que o povo não tem culpa; seu espirito em- prehendedor é sufficientemente attestado pela ci- dade e por suas estatisticas. Como Montevideu, é regularmente disposta, em ruas largas. Architecturalmente, não impressiona de modo tão favoravel como aquella cidade; ha, é ver- dade, muitos edifícios bonitos, mais do que em Mon- tevideu; mas estão misturados com outros mesqui- nhos e surrados, de modo: a perturbar o bom effeito. Sem duvida o tempo ha de dar remedio a isto; e a cidade será aformoseada pelo crescimento das arvores que têm sido plantadas em muitas partes, embora a tal respeito nunca possa competir com o Rio, onde a natureza tanto se esmera em collaborar com a arte. O unico parque que vimos em Buenos- DOUTOR H. BURMEISTER 195 Aires era um fiasco completo; entretanto, ha muitos jardins apraziveis nos suburbios. A unica instituição publica que tivemos tempo de visitar foi o museu, que é o melhor da America do Sul, e acreditaria qualquer paiz. Seu progresso foi quasi inteiramente devido aos esforços pessoaes do seu director, o Dr. Burmeister, scientista melhor conhecido na Europa e nos Estados-Unidos do que no Brasil. Ha annos elle viajou no imperio e offe- receu seus serviços ao governo do Rio; é uma pena que o Brasil não aproveitasse esta opportuni- dade aurea, pois o Dr. Burmeister teria sido aqui o que foi na republica Argentina, o pai da sciencia e seu melhor ornamento. Já roça pelos oitenta, está encanecido e coxo de um accidente que lhe acon- teceu durante suas explorações no Brasil; mas o seu enthusiasmo é ainda tamanho e seu cerebro tão activo como sempre. Sua posição honrosa na scien- cia e na literatura foi ganha simplesmente pelo valôr da sua obra. Um tanto petulante de manei- ras, indifferente à opinião que d'elle fazem, seria provavelmente impopular entre a gente incapaz de apreciar-lhe o valor. As collecções procedem quasi exclusivamente da republica, e em grande parte foi o proprio doutor Burmeister que as grangeou. Destaca-se natural- mentes dellas a magnifica serie de fosseis verte- brados extrahidos dos Pampas, que no seu genero é a mais bella do mundo. Os specimens mais per- feitos estão montados, occupando grandes vidraças em todas as salas do Museu. Além dos Megathereos e Glyptodons, de que todo o mundo têm ouvido fallar, ha uma grande serie de outros, cada um com sua arrevezada e quasi impronunciavel denominação la- tina ou grega; muitos dos esqueletos são quasi tão 196 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' perfeitos como os dos: veados e jaguares modernos que ficam em caixas vizinhas. A feição predominante desta colecção: e da fauna vertebrada mais antiga da America do Sul, é a preponderancia em numero, variedade e ta- manho dos Desdentados. Os membros d'esta ordem que sobrevivem, são ainda quasi que exclusivamente pertencentes à America do Sul; mas os tatús, ta- manduás e preguiças actuaes não passam de meros pygmeus comparados com seus antecessores. | A colleeção de Vertebrados recentes é grande, e os specimens montados pareceram-me em condições muito bôas; as aves, especialmente, devem ter sido preparadas por um artista peritissimo, e dir-sé-ia que estavam vivas, facto que póde ser apreciado por quem está acostumado ás monstruosidades taxider- maes commummente expostas nos museus. Graças à bondade do Dr. Burmeister, pude exa- minar a extensissima collecção de insectos argenti- nos, que com tóda a razão se conserva em caixas fechadas. Impressiongu-me o contraste assignalado entre estas e as fórmas do Brasil, a que estava habituado. As fórmas terrestres, Carabide, Tenebrio- nide, etc. eram muito numerosas, e muitas das especies grandes e lindas; de outro lado os Ceram- bycide e Curculionide, tão conspicuos no Brasil, eram pobremente representados, e a maior parte dos generos de que se sabe que frequentam os descampados. A ausencia de florestas em erande parte da republica Argentina explica a sua pobreza em in- sectos Sylvanos; mas não creio que o contraste entre as faunas brasileira e argentina proceda só- mente da differença de vegetação e clima. Ha muitos descampados no Brasil, onde não faltam insectos terrestres, porém contrastam com as fórmas argen- GEOGRAPHIA ARGENTINA 197 tinas quasi tanto como as especies florestaes. Este contraste estende-se a generos e sub-familias, e pa- rece indicar que as duas derivam em parte de fontes differentes. A sub-região pampeana está bem reco- nhecida quanto ao estudo da distribuição geogra- phica, mas seus limites e natureza até agora não andam claramente definidos. Propriamente, parece incluir não só a republica Argentina, como o Estado- Oriental, todo o Rio Grande do Sul até uma linha um pouco ao Norte do rio Jacuhy.. . Não posso deixar de encarecer o zelo que o “governo argentino tem revelado no adiantamento da sciencia; não só tem sustentado esta e outras instituições, como quasi todas as suas numerosas ex- pedições às fronteiras despovoadas levam naturalis- tas. Os boletins e investigações originaes das varias sociedades scientificas argentinas são agora con- stantemente citados na Europa e na America do Norte. Em duas sciencias, pelo menos — a zoologia e a anthropologia — a Republica está muito adianto do Imperio. “Não é fóra de proposito dar aqui algumas notas geraes sobre a republica Argentina, referentes com especialidade 4 sua geographia, physica e progresso social. Estamos Rodstaniado: a consideral-a como uma região de pampas immensos e baixos, com muito pouca diversidade do solo, clima, e producções. Nada, porém, dista tanto da realidade. Os pampas occupam apenas uma parte do paiz, e variam muito de natu- reza. Lembrem-se que a Argentina se estende pela ladeira oriental dos Andes, onde a superficie é tão montanhosa como a do Chile: ha alli picos de 5.400 metros de altitude; por dous graus de longitude 198 DO RIO DE JANEIRO A Rosaa nesta parte ocecidental calcula-se que a altitude geral é de cerca de 4.000 metros. A Este d'esta zona, ha uma região ainda mon- tanhosa, mas não tão alta, que atravessa as pro- vincias de Santiago del Estero e Cordoba, e d'ahi até beira-mar estiram-se os pampas, com seu pro- longamento septentrional, o Gran Chaco. A parte meridional, a Patagonia, é principalmente um ta- boleiro, montanhoso em sua parte occidental. Estendendo-se da latitude de 22º S. até o cabo Horn e variando tanto de elevação, a alçada do clima é nella muito maior que no Brasil. Ha regiões - de ricas florestas tropicaes, onde abundam palmeiras e orchideas, onde o café, a canna de assucar e o algodão medram tão bem como junto ao Equador; ha desertos frios e cimos cuja neve perpetua contrasta estranhamente com os ricos valles que lhes ficam aos pés. Excluidos estes picos e a parte meridional da Patagonia, póde-se dizer que a temperatura mé- dia não é muito baixa; mas a esphera de variação é muito grande, especialmente nos distritos an- dinos. Assim, em Buenos-Aires a temperatura ma- xima é cerca de 38º C., a minima — 2º, média l7o 11"; em Santiago, varia entre 45º é — J995 sendo a média de 19; em Catamarca a média é quasi a mesma, com uma variação, entre 42º e — 6º; e na bahia Blanca, bem para o Sul, o ther- mometro tem subido a 39º 2º, sem nunca passar de — 4º, e com uma média de quasi 16% A diver- sidade de chuvas nos differentes distritos é ex- traordinaria, e provavelmente maior que a de qual- quer outro paiz do mundo. O Dr. Gould affirma que as observações feitas - durante tres annos em Villa Formosa dão a média de não menos de 1m,85; ao passo que em S. Juan E RD PAMPAS E IMMIGRAÇÃO 199 é apenas de 0m,?, e ha logares, especialmente nas espaldas dos Andes e nas planícies de Rioja, onde quasi não se sabe o que é chuva. De facto, ha agora grandes regiões completamente: desaprovei- tadas pela carencia d'agua, ao passo que outras soffrem inundações periodicas. E curioso lermos em jornal argentino que em uma provincia o gado e carneiros estão morrendo com a secca, ao passo que em outras estão se afogando aos milhares. Os pampas foram as regiões primeiro povoadas e as que determinaram o desenvolvimento do paiz. Nos tempos coloniaes e durante a longa dictadura de Rosas, o crescimento não foi sadio; a propriedade era insegura, e os homens receiavam entregar-se à agricultura; então suppunha-se até que o solo dos pampas era improprio para a lavoura. A attenção toda do povo concentrava-se na criação do gado, e mais tarde de carneiros; estes vagavam quasi à tôa, pelas planícies immensas, e não importava ainda a melhora de raças. Mas o preço baixo da terra attrahiu compradores européus que tambem se entregaram á criação. Quando Rosas cahiu, estes estrangeiros foram os primeiros a empenhar-se em planos mais progressivos. Desperto da lethargia, um entiisidemo subito “pareceu apoderar-se do paiz inteiro; os immigrantes começaram a affluir, e o governo atirou-se a planos immensos de melhoramentos interiores, construindo vias-ferreas, promovendo a educação e a sciencia, estendendo seu poder nas regiões despovoadas, desde a Patagonia até o Grão Chaco. Como era de an- tecipar, andou mais depressa do que podia fazel-o com segurança; o paiz está agora carregado de dividas, seu credito é máu, o meio circulante está depreciado, e o systema de taxação é muito pesado. Entretanto, com cuidado estes males desapparecerão; 200 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' o progresso real é admiravel. As estradas de ferro saem geralmente productivas, porque as industrias do paiz são de natureza a dar-lhes bons fretes; a criação de gado-e a cultura dos cereaes têm à “este respeito grande vantagem sobre o café e o assucar. Si a politica argentina de endividar-se têm sido cega, pelo menos aquelle paiz ficou isento da loucura ainda maior das garantias de juros. A criação é ainda a oceupação principal; os couros e a lã são os principaes generos de expor- tação. Calcula-se que o paiz tem agora 15 milhões de gado cornigero, 80 milhões de carneiros e 4 milhões e quinhentos mil cavallos. Mas o desenvol- vimento das industrias agricolas tem sido notavel “nos ultimos annos; milho, trigo, farinha e alfafa, são largamente gxportados, além de satisfazerem a quasi todas as necessidades interiores. Além .d'isso ha tendencia constante para melhorar os methodos; tanto da criação, como da agricultura. A este respeito posso mencionar um item da estatistica da importação, que póde bem ser ponde- rado por aquelles que perguntam por que motivo a republica Argentina está fazendo tão notaveis progressos. .-Em 1883 (não disponho de estatistica | mais recente) foram importados 24.172 arados. Ouso alfirmar que estes arados trouxeram mais riqueza genuina e vitalidade ao paiz do que poderia ser produzida por. dez vezes seu valor em machinas agricolas mais complicadas. Procurei debalde meio de comparação no Brasil: não ha estatistica de arados. Mas recorri á pessoa que mais instrumentos e machinas agricolas importa no Rio e se interessa intelligentemente por tudo que se refere a seu negocio. Mostrou-me em seu armazem alguns arados de modelos aperfeiçoados, mas cobertos de poeira, e em que evidentemente VANTAGENS DA ARGENTINA 201 não se tocara havia mezes. « Perco neste genero, disse-me elle; não creio que no Brasil importem -500 por anno. » Outra industria para a qual a Argentina está peculiarmente apropriada, e que ultimamente tem se desenvolvido e promette ainda. mais progredir para o futuro, é a cultura dá uva e fabrico do. vinho. O assucar actualmente é producto impor- tante, embora provavelmente nunca venha a ser exportado em grande; o algodão não se cultiva, - apezar de haver distritos proprios. As manufacturas ainda estão atrazadas. O Brasil tem muitas vantagens naturaes sobre a Argentina. Possue mais terras e provavelmente melhores; tem excellentes portos, de que tanta po- breza ha na republica Argentina; tem mais rios navegaveis, tem immensas riquezas de metaes pre- ciosos ainda intactos, que a republica Argentina, a julgar pelos resultados de suas operações mineiras, não possue; seus productos florestaes são muito mais valiosos; e está mais proximo dos grandes mercados da Europa. | | As vantagens do lado da Argentina são suas terras abertas, proprias para a cultura de cereaes e para a criação de gado, e as extensas planicies que favorecem a construeção de vias-ferreas, em- quanto que os cereaes e productos pastoris asse- guram-lhe a prosperidade financeira. Claramente a balança pende para o Brasil; agora é tirar proveito d'essa vantagem. Mas isto leva-me a assumpto tão importante, que aventurar-me-ei a consagrar-lhe um artigo separado, mesmo em risco de interromper indevidamente o curso de minha narrativa. 1 +. A questão da immigração. — Sua mercê o Sr. Immigrante. — O salario. — O sustento. — Por que o salario é mais = baixo no Brasil do que na Argentina. — Meios de 1le- - vantar o salario, — A questão da immigração só póde ser resolvida por meios indirectos. O rapido desenvolvimento da Argentina é phe-- nomenal entre os estados sul-americanos, e não póde deixar de attrahir a attenção muito séria dos Bra- Sileiros pensadores. Não sou amigo de ciumadas e contendas entre estados; logre a Argentina de tudo quanto tem ganhado e reunam-se todas as nações civilizadas em congratulações. Mas uma rivalidade honesta e pacifica é cousa diversa; promove o pro- egresso em vez de estorval-o. 'As circumstancias le- varam o Brasil e a Argentina a esta rivalidade, com a qual ambos afinal hão de lucrar. Si na corrida do progresso, a Argentina parece ter ga- nhado vantagem sensivel, não é motivo para o Bra- sil zangar-se com ella; procure antes saber como toi ganho o avanço, de modo a poder remediar os seus defeitos e fazer pender a balança. A população da Argentina póde caleular-se em tres milhões, numero redondo, e d'estes um quarto é de extracção estrangeira, principalmente do Sul da Europa. Escriptores estrangeiros e nacionaes concordam em attribuir os progressos do estado em grande. parte a este elemento. Peço licença para citar as notas de um cavalheiro que passou largos annos em Buenos-Aires, e que, por sua posição e caracter, não é suspeito nos seus juizos: A QUESTÃO DA IMMIGRAÇÃO 203 «Todos os progressos que a Argentina está fazendo na industria, todo o desenvolvimento que está conseguindo nas manufacturas ou na lavoura, em grande parte se deve ao elemento extrangeiro... As terras da Espanha, da França e especialmente da Italia fornecem a maior parte dos artifices, me- canicos e officiaes, e quasi todos os agricultores. « Geralmente os argentinos não têm aptidão para os oficios, nem proficiencia em trabalho que de- mande pericia ou precisão... Educam seus filhos para advogados, medicos, padres ou politicos, ou arranjam-lhes logares no exercito ou na armada, ou enviam-nos às suas estancias, para olharem para o gado e ovelhas. Mesmo os gauchos dos pampas São, com raras excepções, mui arrogantes ou pre- guiçosos para darem conta de qualquer trabalho que não possa fazer-se a cavalo ». A corrente de immigração para a Argentina vai crescendo firme. Faltam estatisticas completas para o Brasil; aproveitar-me-ei, porém, de alguns alga- rismos publicados ultimamente no Jornal do Com- mercio; referem-se apenas ao porto do Rio, mas incluem immigrantes em transito para os portos do Sul. A immigração para os outros portos é notoria- mente pequena; juntando, pois, 25 % aos algarismos dados pelo Jornal, não se póde dizer que avaliei em menos à immigração para o Brasil. Comparando esta lista com as que o governo argentino tem publicado, achamos: Immi r mig. Annos DR ra 1880 — 1881... ... 50.724 73.465 1882. Pa 32.306 51.503 CO see A 33.486 63.242 DR e e ue 22407 103.189 1885 A 36.760 1886 (1.º sem.) . . 15187 204 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' Não tenho á mão a estatistica dos ultimos 18 mezes para a republica Argentina, na qual consta-me que a immigração tem decahido um pouco. Entre- tanto, póde dizer-se que a immigração para a Argen- tina, já superior em 1880, augmentou com firmeza, emquanto que no Brasil quando muito ficou es- tacionaria. Supponho que todo brasileiro pensador está con- vencido do valôr da immigração: a questão é quanto ao modo de attrahil-a. Porque os immigrantes dão preferencia à republica Argentina sobre o Brasil. que fica mais proximo da Europa, e que offerece tantos attrativos? A questão da immigração tantas vezes tem sido estudada, por tantos escriptores e 'sob tantos as- pectos, que parecerá atrevimento meu entrar tambem em campo. É mais avisado, pois, que me conserve em segundo plano, referindo-me aos argumentos de uma humilde individualidade, de cujas opiniões pouca gente faz cabedal, embora tenha forte interesse pes- soal no assumpto. Este não escreve livros, suas opiniões têm sido menosprezadas na discussão; e, todavia, elle às vezes se exprime, sinão em linguagem castiça, pelo menos energicamente. Licença, pois, para apresentar aos economistas este novo orador, — Sua Mercê o Sr. Immigrante. Seu exordio é que já está cançado da constante e renhida lucta pela existencia, e deseja melhorar de sorte, transferindo-se e a sua familia para Ame- rica; que conseguiu economizar dinheiro bastante para pagar as passagens da Europa, mas não sabe ainda para onde ir. O Brasil offerece-lhe varios attrativos, pelo que respeita a passagens nas linhas ferreas, riqueza de -sólo, colonias já formadas, etc. IDEAS. DO IMMIGRANTE 205 A Argentina apresenta-lhe attrativos de outra or- dem. Como escolher? Ora, o meu amigo: Sr. Immigrante aprendeu, a golpe de experiencia, a desconfiar dos engodos vistosos das pessoas que precisam dos seus serviços. Não é muito capaz de comprehender a bellesa re- lativa de uma floresta tropical e de um pampa herbaceo; não tem opinião quanto a seu valor para à lavoura. Mas uma cousa ha que elle comprehende como ninguem: o valor do salario de um dia. E outra ainda: o custo da comida e moradia de um dia. Assim faz Sua Mercê duas perguntas: 1.º Quanto. me pagam os senhores por um dia de serviço? 2.º Quanto gastarei por dia para ter casa e comida? Vou resumir as respostas dos dous paizes, quanto a alguns officios e occupações, avisando que meus algarismos são tirados em grande parte de relatorios officiaes dos consules dos Estados-Unidos, no Rio de Janeiro e em Buenos-Aires. Foram feitos re- centemente, em resposta a uma circular de inque- rito da Secretaria de Estado, em Washington; foram independentes um do outro, e provavelmente nin- guem os comparou antes. O relatorio do consul em Buenos-Aires concluiu contra a emigração dos Es- tados-Unidos para a Argentina; o do Rio não ex- primiu opinião a tal respeito. Os calculos são feitos sobre a base de 1% em ouro. Officios Rio de Janeiro Buenos-Aires RO qo Eri 28150 4$200 RRPNTEITOS cr ss 28500 3$150 CE NEAR RD E NR 28580 3$920 Co AR SA MR 3$200 5$320 NMAFEINCITOS e. 38870 38660 Tardineiros ii. so. 1$430 3$000 Camegadores ... cs. 1$500 18620 BRUTO . sto, 28000 28000 Foguista de estrada de ferro 28150 2$450 RR Ses ao 8700 $800 206 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' - Os relatorios dos consules dão listas muito mais extensas, mas o resultado da comparação é o mesmo que dos officios que escolhi ao acaso; quasi sempre os Salarios são mais elevados em Buenos- Aires is no. Rio. | Os salarios dos officiaes peritos, em ambos os paizes, são um pouco mais altos nas cidades do interior, variando conforme o preço da vida. A respeito dos trabalhadores agricolas não é | tão Tacil a comparação. Sei, porém, que um peão, na -Argentina, ganha tanto quanto um vaqueiro ou ca- marada, no Brasil; que um trabalhador livre, nos cafezaes e engenhos de assucar, ganha um pouco mais que um vaqueiro, ao passo que na ArEqnaA recebe quasi o duplo do peão. O custo da vida para a gente pobre é quasi o mesmo, no Rio e em Buenos-Aires. No interior, “si ha alguma vantagem, é do lado da Argentina, onde a carne fresca se vende a preço meramente nominal, e as carrocinhas de padeiros ambulantes fornecem pão apreço razoavel. Quanto aos resultados, minhas observações pes- Soaes concordam com os relatorios dos consules do Rio e Pernambuco, que quasi ninguem das classes operarias ajunta dinheiro. Fallando das classes ope- rarias de Buenos-Aires, escreve ao contrario o con- sul Baker: «a grande maioria d'elles aceumula di- nheiro; não poucos têm contas com bancos». Fal- lando das estancias, diz ainda: « O costume é dar-lhes carneiros e gados puesteros para tomarem conta, par- tilhando depois com o estancieiro. Partindo de prin- cipios muito modestos, d'esta maneira quando ha uma série de annos felizes, nasce facilmente a con- currencia, e em alguns casos têm-se amontoado as maiores fortunas do paiz»: DS SALARIOS NO BRASIL 20% Em ambos os paizes a sorte do pobre é bem dura. O conventillo de Buenos-Aires não pede meças ao cortiço do Rio! É igualmente sujo e sem conforto e igualmente productor de enfermidades. O traba- lhador da Argentina, excepto nas estancias mais centraes, geralmente póde comer pão, alimento muito mais nutritivo que a mandioca do Brasil. “Taes são as respostas que os dous paizes of- ferecem ao nosso immigrante problematico. Elle com- para-os, acha que pode ganhar mais salario na Ar- gentina, sem despender mais com casa, comida e roupa, e com o prospecto de accumular dinheiro para seus filhos, e decide passar pelo Brasil e ir a Buenos-Aires. Deixando agora o immigrante, consideremos a questão dos salarios, respectivamente ás suas causas e remedios. Porque o preço do trabalho é mais baixo no Brasil? Como póde ser levantado? O trabalho, como a comida, a roupa e o di- nheiro, é artigo de commercio e segue as mesmas leis que os outros artigos. Si- a offerta excede a procura, haverá baixa no preço; si a procura fôr maior que a offerta, dar-se-á alta. De accôrdo com os mais simples rudimentos de economia, só posso achar duas explicações paxa..o estado de cou- sas indicado: ou o mercado de trabalho no Brasil superabunda, ou o preço do trabalho tem sido con- servado em baixa artificialmente. Julgo que estas explicações em parte são cor- rectas ambas. Ha mais mecanicos e trabalhadores de cidade no Brasil do que trabalho para elles à todo tempo; por isso ha muita concurrencia entre elles e os preços baixaram. Sua prosperidade de- “ pende, em grande parte, da prosperidade da com- mumnidade agricola; si houver colheitas mais abun- 208 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' dantes, si maior numero de homens se apphcarem a lavrar o solo; os negocios geraes do paiz augmen- tarão, e os mecanicos terão bastante que fazer. Alguma cousa tambem se poderia fazer animando as manufacturas por todos os meios sãos. Isto quanto ao mecanico. Quanto ao trabalhador agricola, creio que seus salarios são conservados baixos artificialmente de varios modos. Notarei al- guns d'estes, com os remedios suggeridos a meu espirito. 1.º À eiado ao mesmo tempo que é ruinosa em si, é um competidor injusto e ruinoso do trabalho livre. O remedio é obvio. Vassoura, vassoura com esta Immundicie! 2.º Tem havido excesso de produeção de café; isto tem conservado em baixa o preço do genero e com elle o preço do trabalro, do qual em summa depende sua producção. O remedio natural é animar outras industrias agricolas, e especialmente a cul- tura de cereaes. 3.º O preço elevado das taxas e transportes tende a abaixar o preço do trabalho, pois que são uma taxa a deduzir do preço de venda do pro- duto, deixando comparativamente pouco para o agri- cultor. Os remedios devem ser mais radicaes do que os até agora applicados. Dae de graça as terras publicas aos immigrantes que nellas quizerem esta- belecer-se; imponde uma pequena taxa territorial para provocar a divisão das grandes propriedades e a cultura das terras baldias; procurae concentrar a população agricola em torno das vias fluviaes navegaveis, em vez de espalhal-a ao longo das vias ferreas. 4.º A procura de trabalho é diminuida pela exorbitancia dos juros que impedem o uso do ca- PARA ATTRAHIR IMMIGRANTES 209 pital, e, por conseguinte, o emprego de operarios em muitas emprezas; quanto ao capital, estes juros elevados dão-lhe uma vantagem injusta sobre 'o trabalho, e assim diminuem os salarios. Melhorando as finanças e aumentando por todos os meios sadios a segurança do capital, a taxa de juros irá de- crescendo. 5.º O uso de machinas dispendiosas nas fa- zendas de café e nos engenhos de assucar, embora em si valioso, tende a reduzir a procura de trabalho. No interesse tanto do trabalho como do capital, deveria completar-se este uso por methodos aper- feiçoados de agricultura. A imposição de uma taxa territorial seria util ainda a este respeito, redu- zindo as grandes propriedades e obrigando assim á melhor cultura do que ficasse. 6.º Ha tambem grande falta de educação entre as classes mais pobres; apreciando melhor as ne- cessidades proprias, os trabalhadores combinar-se- iam para mutuamente proteger-se, como têm feito nos estados platinos. Associações operarias, quaes- quer que sejam os abusos a que dêm origem, são no todo um benefício para qualquer paiz; combi- nadas com a educação geral, são um meio de pro- egresso social que a nem um cede. Animando a educação, e dando aos trabalhadores meios legaes de se resguardarem e dirigirem, a immigração to- mará grande incremento. 7.º Ha falta de verdadeiro respeito aos traba- lhadores entre aquelles que os empregam; por isso tiram estes as vantagens que podem da ignorancia d'aquelles. O remedio moral só o tempo póde minis- tral-o; o mal vem de traz, é fruto da escravidão. Os meios legislativos são animar por todos os meios possiveis a pequena lavoura, 210 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' E de certo, fallando em termos latos, esta in- clue tudo o mais; a escravidão não poderia subsistir sob um systema de pequena propriedade, como o da França; é exactamente o systema que remedeia seus defeitos quanto ao excesso de produceção; desen- volveria melhor segurança commercial e melhor sys- tema de cultura; todos os outros remedios que pro- ponho, são ou meios conducentes para ella, ou con- sequencia sua. Já mostrei em outro artigo o que ella tem feito no Rio Grande do Sul, onde as cir- cumstancias animaram a divisão da terra; e posso accrescentar que os salarios são mais altos alli que em qualquer outra parte do Brasil, iguaes, pare- ce-me, aos da Argentina. Traz-me isto ao ponto principal de meu argu- mento: é um erro actualmente animar qualquer sys- tema para introduzir immigrantes que venham tra- balhar em grandes fazendas; muito poucos hão de vir e, si vierem, viverão miseravelmente, e per- petuariam um mal clamoroso. | Pelo contrario, tódo o esforço Ava tender a estabelecer o immigrante em terra propria, e con- serval-o nella. Pouco importa que esta terra seja em uma colonia ou alhures, comtanto que o solo seja bem e facil de alcançar-se um bom mercado. As colonias não são más, porém estão sujeitas a abusos, e o mesmo se dá com os burgos agricolas e outros planos semelhantes. O plano verdadeiro é escolher cuidadosamente algumas das terras publicas mais ricas e mais. ac- cessiveis, e offerecer aos immigrantes um lote ra- soavel de graça, com a condição de nelle estabe- lecer-se, sugeitos apenas às despezas de medição, que deve ser feita, não por engenheiros com gordo vencimento, mas por agrimensores licenciados; dar ao immigrante desde logo os direitos de que goza PARA FAVORECER A IMMIGRAÇÃO 211 qualquer outro estrangeiro, sem fiscalisação official particular, e sujeito apenas ás leis geraes do paiz. Entretanto, dae as colonias actuaes privilegios que lhe assegurem o crescimento, e previnam queixa d'aquelles que já pagaram suas terras. Si o terreno que o immigrante escolher fôr de campo, dae-lhe porção maior em que haja espaço para poder criar. gado. Sejam as medições e titulos feitos um anno ou dois depois da chegada do immigrante, para que tenha a chança . de rectificar sua escolha de - locação, que deve ser perfeitamente livre. Em alguns casos conviria fornecer instrumentos agricolas; mas este será sempre expediente duvidoso. Dae ao bra- sileiro pobre o mesmo direito que ao immigrante estrangeiro. A politica de pagar passagens aos immigrantes é contestavel, embora o governo deva certamente cumprir sua promessa a tal respeito. A objecção a este e semelhantes expedientes é que tende a pauperizar e a introduzir material infimo. O at- trativo especial que se deve apresentar ao im- migrante é a terra livre; foi dada livre muitos annos nos Estados-Unidos e si desde pouco não se faz mais isto, é porque quasi todas as terras publicas já estavam occupadas. Não só será acto de caridade, mas de politica à mais acertada para o Brasil, abrir mão agora de terras actualmente improdutivas, e que, sendo usadas, contribuirão com o tempo para as despezas do Estado. Os outros meios que apontarei são indirectos; à immigração prende-se indissoluvelmente a todas as questões do Brasil, e resolvendo estas está re- solvida aquella. Mas quaesquer actos legislativos qué tendam à protecção do immigrante, são bons. Entre estes sobrelevam: lei de casamento civil; ta- [d 212 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA rifa que pese o menos possivel em todas as ne- cessidades da vida; libertação de mesquinhas vexa- ções officiaes. Lucra mais o Estado protegendo um coli do que protegendo um rico. Em poucas palavras: não é com actos do par- lamento que tereis immigração. Abrí o paiz, col- locae o trabalho no seu proprio assento, :garantí sua remuneração justa, e assim, mais de vagar, porém mais seguro, attrahireis a corrente de im- migração da Europa. XXI Partida de Buenos-Aires. — O estuario do Prata. — Mo- notonia do baixo Paraná. — Geologia do Prata: as ro- chas fundamentaes, os pampas, as rochas alluviaes. — A paisagem. — Os morros. Ficam-nos atraz os tectos e torres de Bue- nos-Aires, a próa do vapor volta-se para NO, Prata arriba. Eis-nos pois a caminho, n'uma jor- nada que levar-nos-á do mar quasi aos limites ex- tremos d'este grande systema fluvial, na gemma do continente. Veremos, pouco a pouco, claros olhos d'agua e riachos, dos quaes derivam algumas das aguas que nos rodeiam; arroios que se uniram a milhares de outros, em canaes cada vez maiores, até que se despejam no Prata, com volume tamanho que repellem o mar e mancham-lhe a superficie uma centena de leguas. O Prata por sua fórma é simplesmente um es- tuario em que o Paraná e o Uruguay deságuam: poderiamos esperar agua salobra, mas não 0 é, ex- cepto na parte oriental, após ventos de Sueste pro- longados. Em Buenos-Aires é doce; a superficie apparece vermelho-carregada; parda de côr, a agua é apenas ligeiramente turva observada em copo. Em tempo calmo, o Prata semelha um lago; o ondular do Oceano é quasi ausente, e a vista não percebe a correnteza. Com vento forte, a navegação torna-se difficil e ás vezes perigosa, especialmente junto á bocca do Paraná. Nosso vapor conservava-se à distancia da terra, que acima de Buenos-Aires “q 214 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' vai flanqueada de extensos baixios. Gradualmente per- demos a visão da longa linha plana dos pampas; em seu logar, ao longo da margem occidental, as- somavam baixas ilhas alluviaes, com uma ou outra mais alta e rochea, como a de Martim Garcia, cele- brada nos annaes diplomaticos. A Nordéste pode- riamos ver cabeços baixos e não escalavrados, mas evidentemente de formação diversa dos lisos pampas. — Compõem-se de rochas igneas e metamorphi- cas, que se estendem ao longo de toda aquella banda . do Prata. Passam por baixo do rio tambem, e na banda sul-occidental são a base em que assentam as argilas dos pampas. Cavando poços em Buenos- Aires, têm-se encontrado estas rochas mais antigas sotopostas a rochas terciarias e quaternarias e não muito longe da superficie. Fallando geralmente toda a terra à roda. do Prata se póde dividir em tres partes, segundo a estructura geologica: 1.2 as rochas fundamentaes, que podem ter se formado em periodos muito di- versos, mas todas mais antigas que o Prata; 2.º as argilas calcareas dos pampas que assentam sôbre ellas; 3.2 as ilhas alluviaes. Convém conservar esta classificação presente, porque voltaremos a ella den- j tro em pouco. O Paraná entra no Prata por' muitas boccas, separadas umas das outras por ilhas baixas, ver- dadeira formação de delta; o Uruguay, que desagua um pouco mais para E., tem tambem suas ilhas alluviaes e os dous systemas correram juntos for- mando um trançado immenso de canaes e braços, baixios de lama, e planicies que ficaram apenas um metro ou dous acima da agua. Nosso caminho era Paraná arriba. Antes de entrarmos n'este labyrintho perde- ramos de todo a vista das terras altas; horas após e 4 MONOTONIA DO BAIXO: PARANA 215 iamos enfiando canaes, ás vezes de um kilometro de largura, outros rasgados em grandes expansões lacustires, emquanto as ilhas figuravam tenues alças - entre estirões do horizonte aberto. Horas e horas à mesma successão monotona de terras lisas, apenas mais altas que a superficie do rio, ás vezes cobertas de macega, espreguiçando-se leguas e leguas; ás vezes delgadas touceiras de folhas, crescendo api- “nhadas e curvas na direcção para onde a inun- dação as empurrara. Horas e horas a mesma tris- teza opaca, sem signaes de casa, gado ou plantações; terras inhabitadas e inhabitaveis, pantanos desespe- rados, alagados todos os annos, febrigenos em qual- quer tempo, destinados a ficarem no que estão para sempre. Para sempre? Quem sabe? Ha dous mil annos, Cesar encontrou uma região de panta- nos exactamente tão desolados na embocadura do ' Rheno, e elle e seus legiónarios abandonaram-na ás aves bravias e ao gentio ainda mais feroz que a frequentavam. Mas d'aquella desolação os descen- dentes d'esses selvagens construiram a riqueza de uma Hollanda; e d'estas terras lançaram o desafio ao rei mais forte da Europa, e d'ellas mandaram colonos que ameaçaram cobrir o Brasil. - As ilhas semelham pela sua formação ás que vizinham com a embocadura do Amazonas, mas differem muito de aspecto por causa da vegetação. Ali os canaes são murados de florestas, seve gi- gantesca de arvores e cipós, palmeiras e parasitas, amontoadas em massa gloriosa que não têm igual em parte alguma do mundo. As florestas amazonicas encobrem os alagados em que crescem, e sua bel- lesa sempre variante é um enlevo para o viajeiro. No Paraná a monotonia é quasi perenne, um mundo “morto, sem mortalha, Os canaes e ilhas que vimos são apenas pequena 216 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' parte do systema fluvial n'esta região: de terra alta à terra alta a rêde estende-se talvez por uma vintena de leguas; subindo até a juneção do Pa- raguay, creio que não ha ponto da derrota do vapor onde ambos os lados da planicie alluvial possam avistar-se ao mesmo tempo. Subindo d'ahi para diante, as ilhas vão decrescendo em numero e o rio corre geralmente em um canal, sendo as terras alluviaes continuas com os pampas de uma ou de outra banda. Podiamos estar a uns cento e cincoenta ki- lometros da embocadura do Paraná, no Prata, quando começámos a avistar uma linha de morros baixos, na margem occidental por traz das ilhas; mais adiante as ilhas sumiram-se de todo d'este lado e o rio começou a correr na base dos morros. Tinham estes uns trinta metros de altura, eram inteiramente perpendiculares, com uma ligeira restinga em baixo, ' perfeitamente nivelados e ininterrompidos até onde os olhos alcançavam, excepto quando algum cor- rego, resvallando pela ladeira, fossára algum ca- naliculo. A argila de que são formados é pardo- clara, lavrada pela agua em formas curiosas, bo- taréu, bastiões e algumas massas ilhadas na frente; uma ou outra arvore cresce ali; mas no topo ha um buçozinho macio de relva sublinhando o nivel per- feito. Em geral não é visivel arvore alguma: as poucas que existem foram plantadas. Um dia inteiro levámos a passar estes morros, sempre os mesmos de aspecto e variando apenas de altura. Adiante o canal transpôi as terras allu- viaes, e somem-se os morros no Occidente; passadas duas a tres horas, assomou ao nascente linha seme- lhante, porém muito mais alta, e d'ahi fica à mostra constantemente d'esta banda dias seguidos. Na realidade, embóra não pudessemos enxergar MORROS E PAMPAS PLATINOS 217 atravez do valle, os morros formavam muralhas de ambos os seus lados, aproximadamente parallelas uma a outra, é quasi rectas, por centenas de leguas. Onde o rio transpôi a planicie alluvial (provavelmen- te uns 150 kilometros acima do Rosario) calculei que à menor distancia dos morros orientaes aos occi- dentaes não podia ser inferior a 50 kilometros. Estes morros são os bordos cortados dos pam- pas, que agora encaixilham ambos os lados do valle alluvial; as rochas mais antigas que vimos de uma banda do Prata, não são aqui visiveis, embora so- toponham-se a toda região, alicerce em que os pam- pas descansam. A mesma horizontalidade patente no topo dos morros estende-se pela superficie cen- tenas de kilometros do lado occidental e a menor distancia, para o Oriente; calcula-se que ha 1000 leguas quadradas d'estes pampas lisos na Argen- tina, apenas interrompidos pelos fossos, antes que valles, excavados pelos rios e arroios. Estendem-se para o Sul, beirando o Prata, em Buenos-Aires, e muito adiante até o Oceano; apenas em aquella região são cortados um pouco menos abruptamente, formando as arestas, antes ribanceiras do que mor- ros. É de notar que a horizontalidade não é ab- soluta: o olhar mal póde descobrir qualquer mu- dança, porém algumas partes dos pampas ficam mais altas que outras e ha uma inflação muito branda na direcção de Oéste para os Andes e na do Norte para Mato Grosso. Si assim não fôra, as aguas escorreriam muito devagar e toda a região seria um pantanal. Na realidade porções d'elles são sobreaguado em certas épocas, como mencionarei em outro artigo. Esta immensa planicie é em toda parte de ar- gila, com maior ou menor mistura de materia cal- 218 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' carea, que por vezes forma porções separadas, de modo a poder-se aproveitar no fabrico da cal. As argilas não são todas precisamente da mesma idade geologica; mas todas são muito mais modernas do que as rochas em que assentam e sua espessura, provavelmente nunca é maior de 100 metros, ge- ralmente muito menos. | Sepultados nellas ha milhares, — quiçã iasiões, — de grandes animaes, pela maior parte de fórmas que existiram na America do Sul durante o periodo que immediatamente precede áquelle em que vi- vemos, periodo que, — é bom não esquecer — passa ao nosso não repentina: mas gradualmente e deixou descendentes d'estes proprios animaes em Ifórmas encontradiças ainda em nossos animaes e campos. Ao longo d'estes morros do Paraná, ou para o in-: terior, onde os rias cortaram a argila ou se têm feito excavações para estradas de ferro ou alicerces para. casas, encontram-se ossadas d'estes animaes Megatherio, Glyptodon, Mylodon e dezenas de ou- tros. Alguns conservam-se no museu de Buenos- Aires; alguns foram remeittidos para a Europa; outros, sem duvida, foram simples objecto de curio- sidade passageira para a gente do campo, e depois postos de lado ou. perdidos. Em outros pontos dos pampas ha camas de conchas, as mesmas especies que vivem agora na agua salobra ou salgada ao longo desta costa. Fo- ram contemporaneas ou quasi dos animaes maiores; pois é facto bem sabido que a mudança de es- -pecies, que se tem constantemente effectuado atravez da época geologica, foi muito menos rapida para estas fórmas marinhas inferiores do que para os vertebrados superiores. Os moluscos do periodo, qua- ternario, quando estes: pampas se formaram, eram álio odiaá A, TN ANTES DO PARANA E DO PARAGUAY 219 quasi ou absolutamente os mesmos que os de hoje; porém os Mammiferos eram quasi todos differentes. Imaginai, si puderdes, que todas estas argilas pampeiras são removidas; restaria uma superficie de rocha mais antiga, um tanto desigual provavel- mente, mas formando extenso valle, a trechos de largura de milhares de kilometros, sinão mais. Ima. einai que esta superficie era um pouco mais baixa do que o nivel do mar, e haveria immensa bahia estendendo-se até á ponta meridional do Paraguay ou mais adiante, e recebendo tres grandes rios, O Uruguay, o Paraná e 0 Paraguay, que seria o maior e o mais importante. Estes rios trariam mais ou menos lama e detritos, exactamente como ainda hoje o vemos, e seculo após seculo tenderiam a aterrar a bahia, primeiro em roda da cabeceira, formando ilhas de delta a mais e a mais, até que todo o es- paço fosse occupado por uma planicie alluvial, perfei- tamente chata e encobrindo a superficie desigual do “valle em que fôra deposta. Haveria inundações pe- riodicas n'estas planicies, quando os rios cresciam com longas chuvas continuadas; animaes que por: ahi vagavam podiam arrebatal-os as correntes e afogal-os; outros podiam ser cambulhados pelas aguas das serras, onde morreram. Muitas vezes fi- cariam na superficie e corromper-se-ia a carne, e espalhar-se-ia a ossada, destruindo-se; mas outras vezes podiam ser enxurrados em cavidades ou po- cos, cobertos de lama, e conservados mais ou menos perfeitamente. Entrementes, nas partes da bahia onde a agua era salgada ou salobra, formar-se-iam camadas de conchas; tambem estas podiam ficar cobertas de lama e conservar-se como as ossadas. Pois tudo isto que estivemos a imaginar foi o que realmente succedeu. O valle e bahia que "290 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' suppuz, existiram realmente, estendendo-se a agua salgada muito pelo continente a dentro, e os tres rios operando nato milhares de seculos talvez arrasaram a bahia que descrevi. .Subsequentemente, ou, talvez mais exactamente, emquanto este processo seguia, levantou-se a terra e as planicies alluviaes tornaram-se os pampas chatos; os animaes que ti- nham sido enterrados são extrahidos agora para adornar os nossos museus. | O Paraná e outros que atravessavam estes pa- ramos excavaram novos valles para si, como a terra se foi levantando; à semelhança dos outros rios, alteraram seus cursos gradualmente, de tem- pos em tempos, e assim alargaram seus valles. Os morros que descrevi foram assim cortados em parte pelo Paraná. Este processo está se copoLimos A grande bahia não foi inteiramente aterrada e as planicies allu- viaes estenderam-se apenas ao redor de suas ca- beceiras, e ao longo de suas margens, onde talvez outros rios tenham ajudado a formal-as. Depois que a terra exundou, houve ainda longo estuario, quasi sitiado de pampas; as ondas e marés tenderiam a adargal-o e a enfileirar morros, esmo- endo os pampas. Desde então;o Paraná e o Uruguay porfiam em: aterrar este estuario com planicies al- luviaes, formadas do mesmo modo que os pampas; 6 provavelmente os ossos dos veados, dos jaguares dos tatús é tamanduás serão encarneirados n 'estas planicies, exactamente como os Mylodons e Mega- therios foram amortalhados nos lenções de lama que são agora-os pampas; podem' ser expostos nos museus do anno 500.000 da era christa, quando as especies estiverem extinctas, mas ainda repre- sentadas por descendentes de fórmas congeneres, Si um de nós fôr enterrado em alguma ilha do OS MOINHOS DIVINOS 221 Paraná (quod Deus avertat) alguns futuros sabios de oculos doutoraes farão cursos sobre nossa ossada e demonstrarão, pela fórma de nosso craneo, que eramos selvagens em estagio muito inferior, coevos do jacaré de que nos sustentavamos e conversando sómente por signaes. Descrevendo as mudanças que occorreram, fal- lei d'ellas como consecutivas; mas na realidade fo- ram mais ou menos contemporaneas; a formação das ilhas continuava n'este entretempo, durante a emer- são lenta da terra e depois d'ella ter attingido a sua altura presente; o rio estava abrindo seu ca- minho nos pampas, emquanto estes iam crescendo exactamente como agora e, si a terra ficar esta- clonaria ou quasi estacionaria, o processo irá por diante indefinidamente. A parte mais baixa do es- tuario ainda existe como o rio da Prata; si este com o tempo aterrar, o delta póde alongar-se pelo Oceano a fóra, como o do Missisipe no golfo do "Mexico. | The mills of the gods grind slowly. XXII O rio Paraná. — Rosario. — Os pampas orientaes e ocei- dentaes. — Corrientes. — O rio Paraguay. — ari Sri '— O commercio do Paraguay. Algumas das mais importantes cidades com- merciaes da Argentina medraram ao longo do Pa- raná, à beira dos morros pampenses. Podas são dispostas na moda quadrangular moderna, e algu- mas architecturalmente muito lindas; com seus ren- ques de construcções recentes e suas ruas que ter- “minam em pampas abertos, tinham um ar de novidade que.nos lembrava as cidades do Oéste dos Estados- Unidos. As mais importantes são o Rosario, na margem occidental, e o Paraná, na margem oriental, conspicuas por seu tamanho e por seus portos activos. Rosario liga-se a Buenos-Aires por uma via ferrea parallela ao rio; linha de utilidade duvidosa; mas o governo argentino não está isento do erro de con- struir vias ferreas ao lado de vias fluviaes nave- gaveis, e a este, como a outros respeitos, parece ter esquecido que a plethora de meios de communi- cação é tão pesada como a carencia d'elles. Só convém construir uma estrada de ferro dis- pendiosa quando com esta se effectua uma economia, cquivalente à despeza, barateando os meios de trans- porte. Não convém construir uma estrada de ferro (excepto em exemplos raro); quando ha outros samn- gradouros commerciaes bons, e não convém con- struir duas estradas de ferro quando uma é suffi- cado do O PARANA” ARRIBA 223 ciente. A proposito d'isto, como o presidente Lincoln costumava dizer, lembra-me uma historia. Uma velha estava examinando umas lampadas n'uma loja, com a intenção de comprar. — Compre esta, disse o caixeiro; que poupa a metade de seu kerosene. — Compro, disse a velha, e compro mais outra para economizar a outra metade. 4 Além das cidades, passámos por muitas po- voações bonitas e numerosos- sitios; aqui e alli avis- tavam-se rebanhos de carneiros e manadas de gado. pastando nos pampas. Mas como adiantavamos, os signaes de prosperidade rareavam; as cidades min- guavam e appareciam a longos intervallos, e o des- campado parecia quasi deserto. Havia mudanças “tambem quanto á vegetação; na terra firme a relva e as ervas dos pampas affirmavam-se ainda, mas estrias de florestas começavam a apparecer ao longo das margens e nos valletes que encostavam para ellas; as terras alluviaes eram mais altas, ás vezes cobertas de arbustos, e afinal com mata embastida, onde aqui e alli se avistavam lenhadores. As ter- ras abertas são muito menos paludosas que às que ficam abaixo, e quando cessa a inundação podem servir de pasto; propriamente protegidas por levees, - como as vargens do Mississipe, seriam sem duvida valiosas para a lavoura. Disse que onde o rio transpôi as planicies allu- viaes, entre Paraná e Rosario, os morros da banda oriental são um pouco mais altos que os da margem occidental; em alguns logares elevam-se talvez 60 metros acima do rio. Isto póde haver sido causado por um movimento desigual do terreno, durante a elevação de que fallei. E mais provavel, porém, que os pampas orien- taes sejam formação mais antiga que os occidentaes. “Onde um movimento lento de elevação é contem- - 294 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' poraneo de extensos depositos de detritos, como na grande bahia quaternaria que aqui existiu, O resultado é muitas vezes uma série de terras pla- nas, que jazem em niveis diversos, umas abaixo das outras, ou o que em geologia se chama formação de terraço. Os depositos alluviaes encheriam a bahia primeiro ao longo de suas margens, e o movimento de elevação em pouco pôl-as-ia fóra do alcance das inundações, que iriam formando outras terras em nivel mais baixo; estas terras mais modernas seriam alçadas por sua vez, e assim por diante, até que o movimento de elevação estacasse, ou a bahia fosse aterrada. Ordinariamente, em uma região de rochas elementares não perturbadas, as terras que estão mais em cima são as mais modernas; mas nas formações do terraço dá-se exactamente o con- trario, e os terraços mais elevados são os mais antigos. Entretanto, não se deve esquecer que, si as formações originaes ainda existissem completas, os stratos d'estas terras mais altas achar-se-iam ligeiramente inclinados, e passando sob as terras mais baixas, pois embora os depositos alluviaes che- gassem primeiro á superficie da agua, ao longo das margens da bahia, succedeu isto só porque alli à bahia era mais raza,; os depositos assentavam atra- vés de toda a extensão, por baixo d'agua, e serviam de alicerces em que se construiram as terras mais modernas. A linha de morros foi devida a causas subsequentes. A idéa que os pampas a Este do Paraná são mais antigos que os que demoram a Oéste, é até certo ponto confirmada por seu aspecto. À superficie vai se enrolando um pouco, em vez de ser per- feitamente lisa, como a da terra que cérca o Rosario. Esta superficie irregular resultou provavelmente da denudação, que ainda não teve tempo para denudar DO PARANA A CORRIENTES 225 os pampas mais modernos, da banda occidental do rio. á De Paraná a Corrientes, quasi cinco gráus de latitude, a altura dos pampas orientaes acima do mar não varia muito; si alguma differença ha, é. para o Norte. Mas, subindo o rio, os morros vão se tornando cada vez mais baixos; de cerca de 60 metros no Paraná, minguam a 10 ou 12 metros em Corrientes, e, quanto posso julgar, a mesma regra verifica-se na margem occidental; as pla- nicies do Grão-Chaco, apenas levantadas acima-das inundações annuaes do Paraguay, são continuas com os pampas do Rosario, que estão pelo menos 30 metros acima do Paraná. E a explicação é simples: o Paraná, que corre quasi à superficie dos pampas na confluencia do Paraguay, foi para o Sul cavando o seu valle cada vez mais profundamente. E isto era de esperar da geologia do seu valle: o levanta- mento da terra e o aterro gradual do valle deram ao rio curso cada vez mais longo; e tendo este de trabalhar sómente em camadas brandas, formou para si um declive regular de Norte a Sul, exacta- mente como qualquer outro rio o fará, dadas cir-. cumstancias semelhantes. Si o movimento para cima houvesse sido rapido e muito recente, achariamos o Paraná correndo no topo dos pampas quasi até o oceano. Corrientes, cidade pequena e pouco interessante, foi o ultimo porto commercial argentino que pas- sámos, embora adiante haja ainda alguns postos militares e povoados na margem occidental. N'esta região o Paraná estreita-se um pouco mais que abaixo, embora seja ainda um rio magnifico, de dois a tres kilometros de largura, com muitas ilhas e canaes lateraes. 12 2926 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' Da cidade do Paraná por diante, tinhamos en- contrado poucos vapores, porém muitos navios de vela, todos muito parecidos, com dois mastros e velas quadradas: estes navios, universalmente usa- dos no commercio fluvial do Paraná, chamam-se . goletas; estendem: suas excursões até o Paraguay, e raras vezes a Mato Grosso. “Pouco acima de Corrientes, vimos uma ponta de terra alluvial longa e muito baixa, simples banhado coberto de macega alta e dividindo dois largos ca- naes que se unem em baixo; o canal oriental era o-mais volumoso, e a agua opaca, pardacenta, da argila que trazia em solução; a agua do canal oe- cidental era clara e preta, e longo espaço abaixo da ponta distinguia-se muito nitidamente a linha de contacto entre as duas. Esta ponta era o extremo meridional do Paraguay, o canal occidental era o rio Paraguay, e o oriental era o alto Paraná. Geographica, historica e commercialmente, O rio Paraguay é o mais importante dos dois, e é pelo menos duvidoso .si no correr de um anno elle não despenderá mais agua do que o alto Paraná. Em suas feições physicas e geologicas, o Paraguay é continuação do baixo Paraná, ao passo que o alto Paraná em grande parte não o é. Menciono estes pontos, não porque deseje levantar questões do no- menclatura geographica, mas porque desejo escla- recer o espirito do leitor, si imagina que, entrando no Paraguay, vamos abandonar a região que estamos descrevendo. De resto, discussões de nomes geo- graphicos são inuteis e em geral ridiculas; os rios correriam sempre e do mesmo modo, congregas- sem-se embora todos os sabios da christandade para rebatisal-os. ENTRADA NO RIO PARAGUAY 22% Deixámos, pois, o Paraná e entrámos no Pa-. raguay, sem notar mudança essencial, excepto na côr das aguas; havia as mesmas ilhas baixas, agora cobertas -ou oureladas de matas pela maior parte, "e os mesmos canaes, geralmente um pouco mais estreitos que abaixo. Tinhamos perdido de vista a morraria oriental, que continua Paraná acima; a terra firme de Oéste, quando a viamos, era planicie, apenas alguns metros acima da agua e geralmente de arvoredo embastido; mas é physicamente con- tinua, como disse, com os pampas do Rosario; a floresta é um simples galão junto ao rio, às vezes com planicies relvosas por traz. É aqui o Grão- Chaco, uma das provincias argentinas mais Tua mente povoadas e menos exploradas. As planicies pampeiras continuam, pois, tanto na margem occidental como na oriental, acima da juncção do Paraguay e do alto Paraná; mas seus gumes, em vez de serem quasi parallelos, conti- “-nuam a separar-s2 um do outro para o Norte, se- guindo a banda oriental do Paraná e a banda oc- cidental do Paraguay. No espaço assim deixado, está inserida uma cunha de terra muito mais an- tiga, inteiramente distincta das formações pampei- ras, é que provavelmente já havia antes da existen- cia do Paraguay ou do Paraná. As formações pam- peiras, como vimos, originaram-se n'uma grande bahia; mas acima d'este ponto, a bahia, nos tempos primitivos, dividiu-se em dois galhos, com a cunha de terra mais antiga entre ambos. Esta é agora a republica do Paraguay. Pequenas porções de formações pampeiras en- contram-se, é verdade, na margem oriental, consti- tuindo planícies de floresta ou campo, muito se- melhantes aos do Chaco; mas para o interior em 228 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' breve cedem logar a terrenos ondulados e até mon- tanhosos. A Oéste, pelo contrario, as planicies do Chaco estendem-se por muitas centenas de kilometros. Po- demos, pois, concluir que o Paraguay corre muito junto ao que era o lado oriental da bahia, ou antes do galho occidental d'esta bahia; quanto ao galho oriental, era comparativamente de pouca importan- cia, pois, à distancia não muito grande da junção, o alto Paraná é inteiramente guarnecido de rochas mais antiga do que a formação pampense. A vegetação carateristica dos pampas estende-se um tanto mais para o Norte, mas à distancia do rio: subindo o Paraguay nunca 'a vimos. Quasi em toda parte as margens eram de florestas, que se tornavam cada vez mais tropicaes, à medida que avançavamos. A terra montanhosa do Para- cuay fica muito longe do rio para ser vista d'elle: avistámos apenas morros baixos, vestidos de flo- resta grossa ou variados com parches brilhantes eram quasi os unicos. sinaes de habitação do lado de campo, que nos recordavam nossa antiga morada de S. João, no Rio Grande do Sul. Dous ou tres postos militares de aspecto desolado eram quasi os unicos signaes de habitação do lado do Chaco; e pela maior parte a terra firme naquella, direcção era encoberta pelo grande systema de ilhas pantanosas que arrostam os rios Bermejo e Pil- comayo. O Chaco até agora é immenso deserto, com algumas colonias e missões, que mal podem Sustentar-se contra os indios erradios. A terra é tão baixa e lisa que grandes porções ficam de molho na estação das chuvas; em compensação nos outros mezes são recozidas pelo sol. Diz-se, entretanto, que ha muita terra bôa, com pastos proprios para a criação de gado, e florestas de madeiras preciosas. AONDE FOI HUMAYTA' 229 Muitas tentativas se têm feito para abrir com- municações com a Bolívia por meio do Bermejo e Pilcomayo; mas as explorações quasi sempre deram em nada, e algumas vezes em morte às mãos dos indios, como recentemente succedeu com o explo- rador francez Crevaux e seus companheiros. Os rios são em grânde parte navegaveis; mas outras porções d'elles são obstruidas por baixios e corre- deiras que estorvam, a subida de vapores. Com o tem- po estes obstaculos serão talvez vencidos por canaes e outros meios; mas tenho minhas duvidas si o commercio da Bolivia procurará afinal estes rumos. O sangradouro natural é, ou pelo rio Paraguay, ou pelo Madeira e Amazonas. Da banda paraguaya passámos por uma porção de aldeias todas pequenas e de pouca importancia commercial; porém são marcos da historia. Quasi a cada hora os officiaes brasileiros que iam a bordo “mostravam a scena de alguma batalha ou esca- ramuça. Aqui as canhoneiras nacionaes repelliram um ataque nocturno dos paraguayos; alli os soldados passaram com agua pela cintura por terras inunda- “das, ou construiram estradas de troncos de palmeiras para a artilharia e carros de bagagem. Humaytá jaz lastimada, quasi sem vestigios de suas formidaveis fortificações, que tantos mezes paralysaram os exer- citos alliados; seus quarteis sumiram-se; está de pé sómente a igrejinha arruinada, triste môimento de proezas historicas. Agora comprehendo a importan- cia que Lopez ligava a este logar: é a chave mi- litar do paiz. O rio é tão estreito aqui que cada navio que subia roçava quasi pelas baterias pa- raguayas, e o sitio possue muitas vantagens natu- raes pela banda de terra. Humaytá, como Pilar e Villeta, e outras povoa- ções acima, só é importante agora por seus la 230 DO RIO DE JANEIRO A- CUYABA' ranjaes; a fruta exporta-se em grandes quantidades para Montevideu, Buenos-Aires e. Rosario. De Maio à Dezembro quasi não ha vapor que desça que não traga algumas centenas de milhares de laranjas. Lembra-me agora a scena pittoresca em Villeta, alguns mezes atraz, quando tornavamos de Mato Grosso. Nosso vapor encostava a um trapichete ve- lho de madeira, junto a um telhado onde a fruta estava empilhada em morros dourados; era trans- portada por trinta ou quarenta mulheres, vestidas, como é costume no paiz, de algodão branco, com as camisas arregaçadas até os joelhos, cada uma com um grande charuto mal feito na bocca. Tra- balhavam rapidamente, passando as cestas de mão em mão, ou marchando em linha, cada uma de cesto na cabeça; as laranjas eram despejadas em espaços que se tinham apropriado para ellas na co- berta do vapor. Estivemos quasi meio dia, tomando umas 300 mil laranjas; as mulheres são pagas áà razão de 25 centesimos, ou 500rs. por dia. Muitas das laranjas apodreceram antes de chegar a seu destino em Montevideu; entretanto o carregamento deve ter sido lucrativo, porque no trapiche de Vil- leta custa apenas um peso o milheiro, ao - passo . que em Montevideu foram vendidas promptamente a peso o cento. Si houvesse estatistica, as laranjas formariam um item importante das exportações paraguayas. Outro é o fumo; os charutos feitos em Assumpção exportam-se em grandes quantidades e são muito baratos. Supponho que ha gente capaz de fumal-os. Quanto a mim, um fumante empedernido, imagino que um curso de charutos paraguayos curar-me-ia de vez. Não consegui nunca levar um ao fim. Muito provavelmente melhor cultura ou melhor preparo aperfeiçoariam a qualidade do fumo. COMMERCIO DO PARAGUAY 231. Ha muitas fazendas de gado espalhadas pelo territorio, e exportam-se couros; cavallos em gran- des pontas são tambem mandados para os paizes vizinhos; têm-se feito plantações de canna de as- sucar no alto Paraná e alhures, e o mate para- guayo, trazido das serras, é notado por sua excel- lente qualidade, mas a quantidade é pequena. “Às unicas outras exportações de que me lem- bro, são o anjico, madeira empregada na França para dar côr a uma cousa que agora é moda cha- mar vinho Bordeaux, e cal produzida em pequenas quantidades na parte septentrional do paiz. - A gente do campo naturalmente tem suas ro- cinhas, onde planta mandioca, milho, abobora e fei- jão para o consumo proprio; mas ahi acaba a pro- dução do Paraguay. '* Todo o paiz está gafado pela pobreza. Os povoados com seus laranjaes sombrios e os morros umbrosos por traz são muito pittorescos; mas as casas são pequenas e esqualidas, e a gente misera- velmente destituida de recursos. Quasi não se vêem “homens; a guerra tragou-os todos, e os rapazes que cresceram depois procuram empregos na ci- dade ou na labuta do rio. Agora os povoados têm quasi exclusivamente por habitantes mulheres e crianças. XXI Republica do Paraguay. — Assunção. — O palacio de Lopez. — O instituto da obediencia e os Jesuitas. — A classe alta. — A regeneração do Paraguay. — Um pe- dido aos brasileiros. Na manhã do nono dia depois da partida de Montevideu, lançámos ancora diante da desolada cidade de Assunção. Desolada de facto, pittoresca em suas ruinas, mas achámo-la o lugar mais triste que nunca -vi- ramos. Grandes armazens e arsenaes ahi estavam sem tecto, com as paredes esboroando-se e prestes a cahir; ruas transformadas em sargetas, oureladas de casas lugubres e immundas, de grades enfer- rujadas nas janellas, como se foram prisões; os - suburbios, meras linhas irregulares de cabanas de taipa, cobertas de palha. 4 calle de las Palmas e uma ou duas outras ruas eram melhores, com armazens e casas. de bom aspecto e modernas; mas mesmo estas eram tão mal calçadas que quasi não se póde passar por ellas, quando chove. Ha uma. linha de bond, e da cidade irradia uma via ferrea para o interior; mas não me pareceu que fizessem muito negocio. Talvez a parte de Assunção que mais parece prosperar é o mercado, que achá- mos bem supprido de carne e vegetaes. Estava cheio de compradores e vendedores, na maior parte mulheres, vestidas de algodão branco e um lençól branco posto na cabeça e hombros, cos- TRAJES E LINGUA DE ASSUNÇÃO 233 tume muito semelhante ao do sertão do Ceará e Pernambuco. Quanto aos homens, os da classe baixa vestem quasi como os peões do Rio Grande do Sul: bombaxas pretas, muito largas, com fitas em pregas que acompanham a costura, camisa de algodão, ponchos riscados e chapéus da palha ou feltro preto. Toda a gente pobre, RrrABRAS e até soldados andam de pé no chão. No tempo de Lopez, o uso de id era pro- hibido a todos, excepto uma pequena classe pri- vilegiada; no exercito a todas as patentes abaixo de major. Senhoras de bôa familia estavam acostuma- das a usar de sapatos ou chinellos em casa; mas tiravam-nos sempre que tinham de ir à missa ou a qualquer festa publica. Hoje, os costumes têm naturalmente mudado um pouco, e a classe mais rica vai se vestindo à européa. No mercado e nas ruas, à lingua commummente ouvida é o guarany, — não a lingua pura dos indios, mas uma forma muito modificada, com mis- tura consideravel de palavras espanholas; apenas a classe alta usa do castelhano na conversação or- dinaria; mas todos entendiam o guarany. Em uma das duas igrejas que visitámos, o padre estava pré- gande um sermão em guarany; já foi até publi- cado um jornal guarany, em Assunção. A lingua foi adoptada pelos filhos dos primeiros colonos bran- cos e perpetuada e universalizada pelos missiona- rios jesuitas, que procuravam sempre generalizar a lingua dominante na região em que ensinavam. Raro se vê uma paraguaya da classe baixa sem charuto na bocca. Estes charutos são curtos e em fórma de apagador de vela; vendem-se em maços de 25, por dois ou tres centesimos, e têm a vantagem de uma força de todo desproporcionada ao seu tamanho: um chupo é capaz de produzir a 234 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' collapso total em um fumante ordinario. Os homens preferem charutos compridos e finos, que não são tão fortes; os cigarros não são tão usados como no Brasil. Junto ao rio, e defrontando uma larga praça desigual, está o mais estranho monumento de am- bição e loucura politica talvez do mundo: o palacio abandonado do Lopez. É de vastas proporções, tem tres andares, com uma grande torre quadrada er- guida no centro, um portico de columnas e alas transversaes. Os cantos das paredes e da torre es- tão se esborcelhando, e o tecto e os soalhos estão cheios de buracos; mas o edificio não é uma ruina: o corpo continua intacto, e seria facil restaural-o. Ti- rando estas feições architectonicas incongruentes, o effeito geral é imponente, e mesmo agora talvez seja este o mais bello edificio da America do Sul. Mas a inspecção mais detida mostra que o ma- terial é apenas vistoso e a mão de obra desastrada. E certo que os alicerces são de cantaria, e im- mensamente superiores ao resto do edificio, mis- cellanea de tijolos, adobo, madeiras e ferro, reves- tido de gesso, que está descascando aqui e. alli. Algumas das coluimnas corynthias são feitas de ti- jolo; outras de madeira, com cacos de telha pre- gados para segurar o gesso. Nos cantos do portico estão leões deitados, e na face do edificio principal um grupo de estatuaria; estes e outros ornamentos são de pedra, porém miseravelmente esculpturados o muito quebrados, dizem que pelas balas dos mos- quetes dos soldados brasileiros, que se divertiam em desfigural-os. Só o frontão do portico está quasi intacto, e no meio d'elle, terrivel satyra do palacio e homem, póde ler-se ainda F. S. Li. — Francisco Solano Lopez. Seu despotismo estava firmemente estabelecido ; O PALACIO DE LOPEZ 235 toda a terra do Paraguay era sua, o povo obe- decia-lhe como a um deus, e este palacio devia - ser a séde de sua gloria; elle não viveu para ha- bital-o permanentemente, e morreu miseravel; seu palacio está cahindo em ruina, antes de terem pas- sado vinte annos. e Diz-se que o edificio foi começado por um es- trangeiro, que não passou além dos alicerces; Lo- pez, inquieto com as despezas, despediu-o, e não pôde mais encontrar-se alguem capaz de acabar a obra como fôra principiada. O ultimo andar está inutilizado; mas subimos ao segundo, e d'ahi olhá- mos para o rio. Alguns navios lá estavam, no- tando-se entre elles as canhoneiras brasileiras que estacionam sempre em Assunção. Não posso deixar de pensar que esta vigilancia é um insulto desne- cessario e desacertado a um inimigo decahido. Não ha o minimo perigo de que o Paraguay incommode os seus vizinhos durante um seculo; o paíiz não foi sómente vencido: como poder militar, foi ani- -Quilado; quasi todos os homens foram mortos. Mesmo em. Assunção, uma | proporção muito grande da população consiste ainda de mulheres e crianças. Não conheço historia mais dia nem tra- sedia mais negra do que a do Paraguay. Uma das mais antigas colonias européas da America foi di- vidida entre seus conquistadores espanhões, que re- duziram os guaranys á condição de servos; dos homens faziam seus soldados, das mulheres suas amantes, e d'esta união originou-se uma raça, que é agora a dominante na terra. Os jesuitas salvaram os indios do exterminio, e fizeram do paiz um jar- dim; mas a companhia de Jesus, desde o geral até o neophyto, era uma vasta machina humana; 236 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' os indios, doceis por natureza, tornaram-se escravos: voluntarios dos missionarios, sob cuja autoridade veio cahir com o tempo toda a população mixta; os Jesuitas reinaram no Paraguay, como em nenhuma outra parte do mundo. A unica lei era a obediencia: garantiu a ordem e a prosperidade, mas preparou o caminho para o que devia seguir-se. Depois de expulsos os jesuitas, o povo ignorante e affeito á obediencia céga cahiu rapidamente sob . “à verga de qualquer superior; adheriu, natural- mente, às revoluções de seus amos; acceitou sem murmurar a tyrannia do primeiro Lopez e o des- potismo do seu filho. O governo d'estes dous ho- mens era simples adaptação da lei jesuita da obe- diencia, mas com um motivo mais interesseiro. O segundo Lopez, especialmente, tratou o Paraguay como sua propriedade pessoal, fazenda que o povo cultivava para seu prazer e proveito. Julgo que havia algo de astucia politica em sua tactica de fechar o Paraguay ao mundo ci- vilisado; sabia que só dispunha do mando absoluto pela cegueira do povo, e temia a influencia dos estrangeiros. Si houvera se contentado em deixar as cousas como estavam, poderia ainda ser o senhor, e o Paraguay seria a Coréa da America. Mas de tal modo acostumou-se ao dominio sobre um povo cégo que acabou por cegar tambem e imaginou que poderia exercer sua tyrania além dos limites do Paraguay. Lopez e não o Paraguay moveu guerra ao Brasil, e, quando os exercitos alliados invadiram o paiz, Lopez vibrou contra elles a machina humana que existia desde o tempo dos jesuitas. Lopez e não a nação, foi o responsavel pelas calamidades que infamaram esta guerra; Lopez assassinou ho- mens e deshonrou mulheres, perseguiu um exercito em retirada com fogo, e matou os doentes que A OBEDIENCIA INSTRUCTIVA DOS PARAGUAYOS 237 ficavam atraz; as ordens ou o espirito do tyranno governavam os actos de todos os homens no exer- cito. Mas havia um quê de pasmoso na bravura “d'estes escravos descalços; à palavra do seu dono, atiravam-se à morte certa, com o mesmo instincto cégo que se fizera cultivar a terra para elle, ou submetterem-se às suas extorsões ao commercio, Esta é a palavra exacta: instincto. Não era pa- triotismo; não era medo, que seria recalcado por outro medo maior: era um instincto adquirido de obediencia, tal como o mundo não vira outro antes. De nenhum outro modo posso explicar esta guerra, especialmente os dous ultimos annos. Lo- pez, a julgar por alguns de seus actos, ficou doido, sob a guarda de sua ruiva amante, que foi a responsavel por muitas de suas cruelda- des derradeiras. Mas o povo obedeceu-lhe do mesmo modo; obedeceu-lhe quando sua tyrannia se tornou uma tragedia peior que a guerra; obedeceu-lhe quando já sabia que tinham sido batidos; obedeceu- lhe quando as batalhas se tornavam puras matan- ças, -sem resultado possivel, além de satisfazer o despeito de seu tyranno louco. Lopez commandou até à nação paraguaya ficar destruida quasi; e entre- tanto, quando elle morreu, não houve um só dos sobreviventes que se regosijasse. Póde a historia mostrar outro exemplo, como este, de devoção de um povo por um homem a quem odeia? “Os soldados brasileiros tambem combateram bra- vamente; porém mal dirigidos em grande numero de casos, mal organizados, mal providos, e muitas vezes morrendo sem necessidade. A historia da guerra do Paraguay —; a historia real da bravura e dos soffrimentos d'aquella hoste de homens desconhecidos, — está ainda por es- 238 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' crever. Sua tragedia está escrita em milhares: de tumulos desprezados e de casas desertas. Fallando da -nação paraguaya e de sua servidão a Lopez não pretendo incluir uma pequena classe superior, de que o proprio Lopez descendia. Esta classe originou-se primeiro de semente mestiça, a prole dos primeiros conquistadores e suas amantes indias; desde então tem sido modificada pelo sangue branco vindo da Europa, porém não com a mis- tura com outros indios, pois nenhum homem indio podia aspirar a um logar n'ella, e as descendencias das mulheres indias ou da classe baixa, quem quer que hajam sido seus pais, ficavam onde estavam suas mães. Formou-se uma especie de aristocracia, que o primeiro Lopez prendeu com favores e seu filho conservou açamada pela rude lei militar. Sem du- vida, havia muitos homens bons e patriotas n'esta classe, que desprezavam Lopez e licariam alegres por ver-se livres d'elle; mas a força immensa, que este possuia nas classes inferiores, peiava-os e inu- tilizava-os. É de observar que ambos os Lopez pro- curaram perpetuar esta aristocracia, apartando-a do povo; mas ao mesmo tempo enfraqueciam-lhe a força politica por seu systema militar de governo. O povo, do primeiro ao ultimo, era tratado como re- banho, pouco melhor que um animal. Não tinham direitos legaes, nem instrucção, nem meio de me- lhorar a sorte. Entre elles o casamento era desa- nimado, sinão prohibido, e ainda hoje é raro; pro- vavelmente 9 decimos dos: filhos são illegitimos, e a concubinagem é o systema de familia commum na cidade e fóra d'ella. Exceptuando sempre a classe privilegiada, a paraguaya respeitavel é a que vive continuamente com um homem como sua amante; a classe mais baixa e mais numerosa é a das aman- tes interinas ou prostitutas communs. Hão de dizer A REGENERAÇÃO DO PARAGUAY 239 que são palavras duras; não são mais do que a verdade; é a mais pungente e mais desesperado- ra das miserias devidas áquelles tyrannos sem con- sciencia. Será possivel a regeneração? Espero que sim e penso que é. Mas esta regeneração mesmo póde “ser 0 ultimo acto da tragedia. Reduzida em numero, miseravel, pobre, ignorante, esta classe popular não poderá arcar contra o elemento estrangeiro mais forte. A immigração para o Paraguay significa o exterminio da classe mais pobre agora existente; os immigrantes não se misturarão muito com ella, que se extinguirá de fraqueza e consunção. Assim, o sertanejo e o matuto hão de morrer no Brasil e o gaucho nos Estados platinos; porém são poucos: os paraguayos da classe baixa, mesmo depois de quatro annos de matança, ainda são a massa da nação. A esperança do Paraguay é a classe elevada: ella e a immigração que puder attrahir, pois não é de si bastante forte para salvar a classe baixa e reerguer o paiz. Tem ainda homens intelligentes e patrioticos, posto que desunidos tristemente. Mas à nova geração que está crescendo é mais nu- merosa e emprehendedora; já nestes ultimos quatro annos ha sinaes de melhoras em Assunção e alhu- res, e quando passei por: lá ultimamente o senti- mento de esperança era geral. Pobre, flagellada terra! Espero que suas desgraças terminaram e que ainda ha futuro brilhante para ella. O Brasil deve ser o primeiro a dizer-lhe: Deus te abençõe! e a mostrar por palavras e obras que a guerra de seu lado não foi contra a nação paraguaya, porém contra o tyranno que reduziu aquella nação a escravatura, No Natal passado (885), eu andava passeando com alguns amigos brasileiros pelas ruas de As- 240 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' sunção. As igrejas estavam todas fechadas e não havia signaes de regosijo publico; o povo é muito pobre para festas como os do Riôó e Buenos-Aires; mas em uma casa, olhando pela porta aberta, vi. uma especie de arvore feita de galhos verdes, na grama do pateo interior; todas as especies de tetéas, bonecos, cavallos de pau, soldados de es- tanho, ballas esmaltadas e muitas outras cousas es- tavam depostas no capim e entre as folhas, tudo Uluminado por umas velinhas. A dona da casa con- vidou-nos para entrar, dando-nos cadeira, para me- lhor examinarmos sua pobre exposição. Pobre ex- posição em verdade; mas acho que todos ficaram. “commovidos exactamente por sua pobreza. O Rio poderia monstrar-nos igrejas suntuosas, com orgãos murmures e fumarada de incenso; poderia mostrar- nos palacios onde a intelligencia e a belleza se agre- miassem para festejar o dia. Esta pobre casa mos- trou-nos tudo que tinha, deu-nos as bôas vindas e agradeceu-nos por termos vindo: obrariamos mal, st a desprezassemos. E eu digo a todos os brasileiros de coração generoso: não desprezeis esta pobre terra sertaneja com seu presepe de campós de capim e folhas verdejantes, seus cavalleiros de VranquEdo e infantes de arvore de Natal. E por amor da piedade, da decencia, tirai vossas canhoneiras de ferro, que estão vigiando esta pobre exposição, como si pudesse haver perigo n'ella. XXIV As faunas do Paraguay. — Concepcion, — O rio Paraguay ; em Julho e Dezembro. — Onde faz falta a penna do Romão. — O rio Apa. — Os Carandaes. Assuncion está construida em terreno que en: costa suavemente para o rio, terminando alli em outeiros baixos; por traz da cidade, o solo mostra-se com moitas e arvoredo pouco elevado, especie de” capoeira; e seis a sete kilometros do rio ha morros de altura mediocre, cobertos de mata. A vegetação é distinctamente tropical, semelhante de aspecto à do Rio de Janeiro, embora as especies em grande parte divirjam. Muito do terreno do Paraguay occidental é as- sim: solo ondulado ou morraria, com vegetação flo- restal que predomina junto ao rio Paraguay e seus tributarios, e mais para o interior abre logar a tre- chos de campo; o centro do paiz é mais alto, por vezes montanhoso; e, a julgar por alguns mappas physicos que tenho visto, ha uma extensa região de mata ao nascente, debruando o Paraná... Subindo o rio, aproveitâmos todos os ensejos para fazer collecções de insectos nos varios portos, e pequenas como eram, forneceram-nos estas col-. lecções alguns factos interessantes. Fórmas seme- lhantes ás de Buenos-Aires e Montevideu eram communs até perto de 27º S. (na margem oriental do Paraná), mas além deu-se mudança decidida: começaram a apparecer especies arboreas nas pe- 13 2492 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' 4 quenas reboleiras de mata, e os typos terrestres eram de especies e generos diversos dos dos Pam- pas. Subindo o Paraná e o Paraguay, este segundo congresso de especies continuava a figurar até As- suncion e até um pouco além; mas junto a Con- cepcion (23º24'S), dava-se nova mudança. Concepeion é o unico porto paraguayo de im- portancia, além de Assuncion; era, antigamente, al- deia jesuitica, e cuido que mui pouco mudou o as- pecto do logar desde o tempo em que aqui dou- trinavam os missionarios. Ha a grande praça do costume, com a igreja a um lado e à roda algumas ruas que se córtam em angulos rectos, quasi nem um sobrado, e fóra da praça uma meada de casas de pa- “lha. Uma das primeiras pessõas que vimos ao desem-. barcar foi um indio, tendo por unica vestimenta uma rodilha de panno sujo á cintura, com a cara e o corpo pintados de pustulas de genipapo e barro vermelho. Tanto elle como seus companheiros, que depois appareceram em numero de dez ou doze, pertenciam 'aos Enimas, tribu do Chaco, que tem alguma conversação com os brancos do Paraguay. Muitos d'elles traziam ornamentos feitos de conchas nos lobulos das orelhas, e mostravam os braços aper- tados acima dos cotovellos com tiras de. panno ver- melhos; eram altos e corpulentos, semelhantes de as- pecto aos Cadiuéos de Mato-Grosso, dos quaes prova velmente são parentes. Possuiam canôas, um pouco parecidas com as dos pescadores do Rio, e ma- nobravam-nas com grande pericia, usando de pás “longas, em fórma de lanças. Alguns vieram a bordo do vapor, onde os passageiros deram-lhe biscoitos e outras cousinhas; mas nada tinham para vender, e na hora de que dispunhamos, nem uma observação de valor colhemos d'elles. Não fallavam castelhano, e muito pouco guarany. O PARAGUAY EM JULHO E EM DEZEMBRO 243 Entre Assuncion e Concepcion, a terra mais alta do lado oriental era muitas vezes separada do rio por planicies baixas. Acima de Concepcion repetiam-se occasionalmente as mesmas feições, mas em geral o rio corria junto à terra alta, — serrotes “de pedra, longos barrancos de calcareo, de 50 metros de altura e mais, extremamente pittorescos, e que se estendem quasi até o rio Apa. Havia algumas ilhas no rio, e uma indicaram-nos'como o logar em que o primeiro Lopez conservava uma vigia para dar noticia das embarcações que desciam de Mato- Grosso. Ao tempo de nossa viagem, em Julho, o Pa- raguay estava muito alto; porém de Dezembro. a Mar- ço, quando as aguas abaixam, a navegação nesta parte do rio é por vezes difficultosa; ha occasiões em que os grandes vapores da Companhia Nacional não podem ir adiante de Conceição, ou mesmo de Assunção; então os passageiros são transferidos ad para embarcações menores. Não tive a fortuna de: fazer a viagem a Mato-Grosso por este modo; mas uma vez partilhei com uns cincoenta passageiros dos descommodos de uma demora de dous dias, não longe de Conceição, emquanto mudavam a carga do nosso vapor para duas chatas, que traziamos a reboque. A baldeação era necessaria para podermos passar um baixio do rio; mesmo assim, mal pudemos transpol-o, encalhando em mais de um logar *). — Por toda esta viagem de Dezembro soffremos cruelmente de calor; nosso unico lenitivo era um banho diario em um quartinho abafado. Como era- mos muitos, a posse do banheiro tornou-se caso de importancia. Esperava-se pacientemente uma hora - *) O autor teve occasião de fazer esta viagem no rio Paraguay uatro vezes e em epochas differentes, -—- duas indo para Cuyabá q uas voltando, : 244 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' diante da porta, de toalha e roupa no braço, até chegar a vez. Lembro-me das pragas rogadas a um passageiro, que, depois de apossar-se do cobiçado thesouro, esqueceu-se e pegou no somno dentro da bacia; ahi quedou-se indifferente ás pancadas e coi- ces na porta, até que um criado trepou pag janella “e acordou-o. "Tudo isto é um parenthesis de Dezembro; a nossa viagem em Julho foi bastante aprazivel, o calôr nunca excedeu-se, e os mosquitos poucas vezes nos faziam nojo. Mas perdemos as paradas frequentes, as cidades e aldeias do Paraná e ido baixo Paraguay. Tudo isto ficara-nos por traz; entravamos no grande sertão, a região central, quasi inhabitada da America do Sul. Ao Norte de Concepcion as margens do Paraguay apresentavam apenas um ou dois povoa- - dos miseraveis, e talvez uma duzia de pequenas haciendas; mostraram-nos uma casa abandonada, onde indios partidos do Chaco recentemente tinham feito uma matança. Em outro logar, na margem oceidental, havia uma derrubada recente na mata, com uma ou duas casas pouco melhores que cabanas; não nos sor- prehendeu pouco vermos que o nosso vapor dava fundo aqui para desembarcar uns machinismos, in- clusive uma caldeira, que devia ser de muitas to- neladas. O sitio pertencia a dois francezes, que começavam um engenho de assucar com todos os apparelhos modernos, no meio d'este paiz deserto. As difficuldades de trazer o machinismo por aqui deviam ter sido enormes; bastantes para desanimar o mais corajoso. A caldeira, por exemplo, era muito | pesada para descarregar em qualquer bote, e foram precisas talhas muito fortes para tiral-a do vapor; sendo, porém, ouca, Íluctou e foi puxada para terra. ENTRE ASSUNCION E CONCEPCION 245 Para levar este immenso peso acima da barranca ingreme e fixal-a em seu-logar, a unica força apro- veltavel era de bois e homens. Entretanto os dois lavradores fallavam muito esperançosos no futuro; ao que parecia, desanuviados do trabalho que ainda “havia a fazer. A esposa de um d'elles, senhora muito estimavel e intelligente, fôra nossa companheira de viagem; desembarcou aqui e não pudemos deixar de admirar a coragem que mostrava, acompanhando o marido áquellas brenhas: só a vista daquellas casas toscas, com a mata virgem, intemerata das cer- canias bastara para amedrontar outra qualquer. Nesta região as terras baixas eram de dois typos: as ilhas e planicies alluviaes, que ficam dentro da alçada das inundações do rio e que não são muito extensas por aqui; e para Oéste, as planicies mais altas do Chaco, com seus prolongamentos de algumas leguas ou kilometros de extensão na mar- gem oriental. Tanto umas como as outras, entre Assuncion e Concepcion, estavam quasi por toda par- te cobertas de matos, mas as arvores dos plainos alluviaes eram de especies differentes, e a vegetação apresentava-se até mais densa e mais intricada. Al- gumas vezes tambem arregaçavam-se campos aber- tos da banda do Chaco, arvores esparsas inseriam-se “de moitas e macega. Nestes logares passavamos às vezes por ninhos de aranhas enormes, formados ao feitio de tendas invertidas, de textura tão apertada que parecia panno de linho, com linhas que se eru- Zzavam toscamente por cima: notei exemplares que deviam ter vinte metros de largura e cinco ou seis de altura. Cada ninho é habitado por milhares de grandes aranhas, de uma especie que vive sempre em communidades. Adiante fallarei de uma especie de aranhas tambem sociaes, porém menores, que descobrimos em Mato-Grosso, 246 - DO RIO DE JANEIRO A CUYABA! O ultimo estabelecimento do Paraguay é uma estação militar na margem meridional do rio Apa, junto à foz; quasi em frente ha estação semelhante do Brasil. Ambas se compõem quasi inteiramente de palhoças, com uma ou duas casas mais preten- ciosas e caiadas, em que residem os respectivos commandantes. Numerosos indios, Cadiuéos e Gua- nás, que estão situados junto à estação brasileira, vieram em canoas ao encontro do vapor, trazendo arcos e flexas e pelles de diversos animaes para vender. Fallarei depois d'estes indios. | Os insectos de Concepcion differem muito dos de Assuncion, embóra. os dous logares não distem um do outro mais de 250 kilometros; mas depois descobrimos que no fundo eram os mesmos que os de Cuyabá, que dista quatro vezes mais. De sorte que seguindo de Montevideu a Cuyabá, nossas colleeções indicavam tres faunas entomologicas distinctas na margem oriental do Paraná e do Paraguay: a mais ppa bee estendia-se desde o Oceano até 27º S.; “a segunda de 27º à latitude de 23º 30”, pouco mais ou menos; a terceira de 23º 30" 8. para o Norte, pelo menos até Cuyabá. A julgar por minhas ob- servações imperfeitas, as mesmas regiões assigna- lam-se na distribuição dos vertebrados e das plantas. Não. quero com isto dizer que as mudanças indicadas sobrevêm. de chofre: natura non facil saltus. Até certo ponto a passagem de uma fauna à ouira é gradual; dão-se além d'isto especies que se estendem pelas duas regiões, e algumas até pelas tres. Mas us distincções, no todo, estão bem caracterizadas, estendendo-se a muitas das especies, à metade pelo menos dos generos e até a algumas sub-familias. Sem metter-me a arrazoar muito com material tão modesto, julgo muito provavel que o valle do PARA TRATAR DOS MOSQUITOS 247 alto-Paraná é uma sub-região zoologica, que inclue tambem todo o Paraguay. É de notar que nossas colleeções paraguayas differiam muito das que fi- zeramos na região costeira do Brasil. Suspeito que a sub-região pampeira tem um prolongamento sep- tentrional entre o valle do alto-Paraná e a serra do Mar; ao passo que em S. Paulo e Minas Geraes a” fauna do Paraná e a da cordilheira maritima podem passar uma á outra. O meu amigo professor Derby informa-me que a região da mata do alto- Paraná quasi por toda a parte está separada da cordilheira maritima por campos mais ou menos extensos. Este isolamento favoreceria uma fauna distincta. Notarei aqui, que as sub-regiões do pla- . nalto brasileiro, da serra do Mar e dos pampas estão bem reconhecidas; mas seus limites não têm sido bem determinados, e ninguem que eu saiba suspeitou ainda da existencia de uma fauna distincta no alto-Paraná. Repito: não affirmo que esta fauna distincta exista com certeza; aventuro a idéa como simples suggestão para futuros exploradores, não como facto estabelecido. Era Dezembro, e o calor terrivel: todo o santo dia levavamos a ferver e a assar; e á noite, para romper a monotonia, vinham os mosquitos impel- lir-nos para a beira do desespero. Mas é melhor não estender-me sobre este assunto: para tratal-o con- dignamente só a penna afiada de Romão José de Lima*). Basta dizer que todas as noites estes mos- quitos barbaros despejavam suas moradas no Chaco, atiravam-se a nós, inermes e indefesos, e retira- vam-se victoriosos, depois de uma batalha renhida *) Romão José de Lima tornou-se notavel por assumir a res- ponsabilidade legal dos apedidos insultuosos impressos nas folhas ca- “riocas; durante muitos annos foi o testa de ferro por excellencia, (Nota do traductor). 248 | DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' de doze horas. Nosso consolo era vêr no outro dia, “com o sangue que nos tinham sugado, si o vapor “já desencalhara. As unicas horas toleraveis eram ao amanhecer, antes do sol ter tempo de aquentar o ambiente, O resto do dia passavamos como podiamos, esguei- rando-nos por baixo da coberta, receiosos do toque de jantar no salão, que era uma fornalha, onde os criados serviam pingando de suor e. nós tinhamos que enxugar-nos nos lenços a cada bocado. Lêr ou escrever fôra impossivel; era tal a languidez que a gente sentia preguiça de fallar. Um dia, de desesperados, pedimos um bote em- prestado e remámos para terra. j Achámos uma floresta baixa, tão carapinhada que não conseguimos penetrar mais de vinte me- tros, mesmo porque, com os numerosos rastos de onça que se notavam na margem, esfriou-nos um pouco a coragem. Apanhei alguns insectos, e depois toca a remar novamente para bordo. Nisto sobre- vém uma tempestade de cima, e não sendo nós lá essas cousas como marinheiros, fomos levados para muito longe do vapor. Agarrados aos remos e suando por quantos póros tinhamos no corpo, gozámos a satisfação suprema de ouvir as observações de ca- racter pessoal, feitas por passageiros sentados com- modamente no convéz, saboreando a brisa inespe- rada, divertindo-se inconvenientemente com a ras- cada em que nos metteramos. Um pedia-nos que parassemos para dar-lhe lume para o charuto; outro perguntava-nos se queriamos levar-lhe uma carta para a Assuncion; e uma senhora suggeriu caridosa- mente que nos atirassem um salvavidas. Remámos tristemente para terra e ahi ficâmos uma meia hora debaixo de chuva violenta, por-entre a qual po- diamos ver os acenos de lenços feitos do vapor. ENTRE O APA E CORUMBA' 249 Depois puxámos o bote rio acima com uma corda até além do ponto que buscavamos, e assim afinal chegámos à bordo, onde nos receberam com muitos . apertos de mão e parabens, que foram repetidos ainda dois ou tres dias. Havia quem se risse quando alguem se congratulava comnosco pela decima vez; nós é que não viamos onde estava a graça. O rio Apa é importante apenas como limite entre o Paraguay e o Brasil. Na fóz póde ter uns duzentos metros de largura; divide-a em duas partes uma ilha baixa e gramada; ha morros baixos ao Sul e terra firme ainda mais baixa ao Norte, onde demora a estação brasileira. Entre esta estação e Corumbá, cerca de 550 kilometros pelo rio, ha duas pequenas aldeias de indios, quatro ou cinco fazendas de gado e um forte e estação militar, tudo à margem do rio; para o interior não ha absolutamente brancos, e muito pou- cos indios selvagens, que raro ou nunca chegam ao rio Paraguay. Passámos por quasi todas as fazendas de noite; vinham dias, iam dias, sem vermos sequer uma cabana, ou uma canôa, ou qualquer signal de vida humana. Manadas de capivaras estupidas choteavam ao longo das margens relvadas: ás vezes fuzilava-nos um veado no descampado, e mais de uma vez, ao amanhecer, vimos onças bebendo à beira do rio. Grandes cegonhas tuyuyu e centenas de garças brancas ou azues pairavam junto aos alagados; uma vez por outra viamos algum jacaré tomando sol n'uma praia arenosa. Experiencia estranha era esta de viajar por uma soledade apparentemente infinda, como si o nosso vapor moderno immergira subito em algum paiz prehistorico, onde o homem nunca plantara 250 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' o pé e a natureza sonhava ainda na; castidade pu mitiva! Nesta região vê-se perfeitamente um dos traços mais notaveis do rio Paraguay, que, aliás, começára a apparecer mais ao Sul, desde Assunção. Mas é de um pouco ao Sul do Apa até o forte de Coimbra que, por excellencia, se estendem os páramos im- mensos chamados os Carandaes. Imaginai um terreno perfeitamente nivelado, terminando abruptamente no rio, em barranco per- pendicular de argila, e que nunca fica mais de dous a tres metros a cavalleiro da enchente. Ima- cinai este terreno armado com uma alcatifa de lu- zente grama verdejante, sem moltas ou plantas altas; espalhadas por elles, nunca em grupos, mas sol- teiras, e a intervallos graudos, estão centenas de milhares de palmeiras, todas de uma especie, todas de quasi o mesmo tamanho, com troncos direitos e um tanto delgados, com corôas redondas de folhas em fórma de leque. Imaginai-as por leguas e leguas, dias e dias seguidos, às vezes a uma banda, ás vezes de ambos os lados do rio, só raras vezes en- cobertas por um reposteiro de mata ou baixas ilhas alluviaes, ou interrompidas por lampejos de campo limpo. Ás vezes os carandaes conjugam-se com arvo- res baixas de duas ou tres especies peculiares, arre- dondadas, que se entrecham nas palmeiras; mas isto não é commum. Em geral, o terreno é perfeitamente limpo de qualquer vegetação que não seja o capim e os carandás; estes ficam tão espalhados que se póde enxergar um grande trecho entre os troncos; e como não ha outras conhecenças, o olhar não póde medir as distancias; é como olhar para uma eva- poração. Os carandaes alongados semelham camadas de fumaça pardacenta, pendentes sobre varzea ver- “A REGIÃO DOS CARANDAES 251 dejante, com uma floresta de leques de palmeira no topo da fumarada. Não posso encontrar outros termos para descrever esta estranha, sim, estranhis- sima paizagem. Mais tarde o effeito é o de uma latada verde, sustentada por uma multidão de co- lumnas esguias, e, mais perto ainda, cada palmeira affirma-se como objecto separado. Dizem que esta palmeira é a Copernicia cerifera, a mesma carnauba do Ceará e de Pernambuco. Duvido que a especie seja absolutamente identica; mas o carandá com certeza está estreitamente ligado” à carnaubeira, e provavelmente é tão util e pre- “cioso como esta: fruto, folha e madeira podem ser empregadas para fins uteis. Centenas de troncos de carandás são mandados rio abaixo a Montevidéu e a Buenos-Aires, onde os empregam em vigas para as casas. Dizem-nos que são excellentes dor- mentes para as estradas de ferro, mais duradouros que a madeira ordinaria. Si assim fôr, a expor-. tação dos troncos de carandá em grandes quanti- dades é apenas questão de tempo. -« XXV: Fecho dos Morros. — Pão de Assucar. — Os pampas e o Chaco. -— Duas planicies fluviaes. — O forte de Coim- bra. — Serra do Albuquerque. Os altos do Paraguay continuam ao Norte do Apa até Miranda e além, mas apartam-se do rio o do vapor não podiamos enxergal-os; de ambos os lados do canal havia apenas os carandás a esten- der-se pelo horizonte a fóra, nivel morto, apenas dois metros acima do rio. Não é necessario ser geologo para comprehender que toda esta região foi antigamente mar interior, que aterrou gradual- mente ccm o barro, a arêa; e os detritos acarretados pelos rios durante milhares de seculos. Como iamos subindo, começaram a apparecer curiosos morros de pedra, protuberancias avulsas nas planicies que os embutiam:; erguendo-se de cho- fre do chão liso, dir-se-iam ilhas. E ilhas de mar interior foram effectivamente, e as planicies for- maram-se em torno d'elles. Alguns d'estes morros têm centenas de metros de altura. 7 Perto de uns cem kilometros acima do Apa. (210 27º S.), ha um grupo d'estes morros, ligados talvez à terra alta de Miranda. O Paraguay, ser- peando junto ao extremo occidental d'este grupo, atravessa em certo logar pequena parte d'elle, em passagem estreita, com morros altos da banda ori- ental e parte do corpo principal e morros mais altos FECHO DOS MORROS E PÃO DE ASSUCAR 253 e isolados ao Occidente. É este o famoso Fecho dos Morros que se tem chamado a porta do Paraguay. O panorama é aqui grandioso, tanto mais quanto é flagrante o contraste com as terras lisas que precederam. Reduzido à metade de sua largura nor- mal, o rio despenha-se pela passagem com força tal que mal podem os vapores vencer a corrente. Grandes massas de rocha escoltam a beira d'agua, entre um enredo de moitas, cipós e cactos; além, morros mais altos euroupam-se de meia floresta. O Pão de Assucar na margem brasileira surge quasi 400 metros acima do Paraguay, e outros picos do grupo ha talvez ainda mais altos: de suas fórmas estranhas concluo que se compõem de rochas me- tamorphicas. Da banda occidental ou boliviana, os morros são mais baixos e não se prolongam tanto. Ha muitas ilhas no rio, uma das quaes foi algum tempo occupada por forças brasileiras. De facto, este ponto é a chave militar da provincia de Mato- Grosso, de muito mais importancia que qualquer mais adiante. Um forte em alguma d'estas ilhas ou no continente poderia tornar-se inexpugnavel; e um na- vio de guerra que subisse seria obrigado a passar a 100 metros dos canhões, e a passagem necessa- riamente seria demorada por causa da corrente rapida. Fôra erro dizer que o rio cavou o seu leito por entre estes morros, pois já existiam e mui appro- ximadamente com sua fórma presente bem antes que o Paraguay corresse por ahi. Os morros eram uma grande ponta de pedra que invadia o mar interior; no fim desta ponta havia algumas ilhas pequenas, que são agora os morros da banda bo- liviana. Como o mar foi aterrando, ficou um canal 254 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' para sangrar as aguas de cima, canal cujo curso foi determinado por muitas causas: em alguns lo- gares Ífluia por planicies recentemente formadas, em outros cingia-se ás terras altas de uma ou outra banda; aqui passou entre a ponta de pedra e as ilhas. O canal é o rio Paraguay, sua passa- [4 gem por este ponto é o Fecho dos Morros. Além desta porta de ferro, reassume o rio sua largura normal, e ha as mesmas immensas planicies bLaixas, de que os campos embebidos de sol e os carandaes se destacam em contraste crú com as mon-* tanhas que nos ficaram pelas costas. Ha outros morros isolados além, ilhas da planicie; um grupo, os Tres Irmãos, é o sitio do abandonado forte Olympo, notavel na istonia de Mato Grosso e do Paraguay. Esta parte do Paraguay separa o Brasil da Bolivia; porém como nação a Bolivia fica 100 le- guas atraz, no taboleiro que guarnece os Andes. Desde o tempo dos primeiros missionarios jesuitas tem-se tentado vencer o Chaco boliviano e esta- belecer communicações entre o Paraguay e Santa Cruz de la Sierra. Ultimamente descobriu-se uma vereda praticavel, e está-se construindo uma estrada, que se aparta do Paraguay no aid do Pacheco, junto a 18º 5. Quando voltámos de Mato-Grosso, em Maio de 1886, vimos que o trabalho ia bem: num ponto em que as margens eram! um pouco mais altas e co- bertas de mata, fôra limpo um grande .espaço e construidas muitas barracas para os trabalhadores; vimos a estrada estendendo-se, alameda deserta, pela . floresta a féra, e grupos de trabalhadores, em grande parte indios, apinhados na barranca, á nossa pas- sagem. A secena affigurava-se estranha bastante m OS PAMPAS E O CHACO 250 n'esta solidão, porém a mudança era aprazivel. Tal- vez este caminho produza uma estrada de ferro, que dê sahida á Bolivia nesta direcção. Mas, ao subirmos, toda esta extensão era deserto completo; os unicos sinaes de civilisação que vi- mos durante um dia inteiro foram os pilares bran- cos na foz da bahia Negra (20º 8'S.), collocados alli pela commissão de 1875. Aqui a fronteira da Bolivia aparta-se do Paraguay, que acima corre inteira- mente em territorio brasileiro. “Chegados a este ponto da jornada, tornemos atraz um momento, para apanhar a linha de nossa geographia physica onde a deixámos, nos pampas. Disse que as planícies do Chaco são continuas com os pampas do Rosario e de Buenos-Aires; isto é, que, indo para o Norte, não ha subida ou descida marcada, mas um nivel continuado, apenas interrom- pido pelos rios e suas terras alluviaes. Ha diffe- rença de vegetação; farrapos de mata começam à apparecer abaixo da junção do Paraguay, e para o Norte aumentando de extensão, especialmente junto aos rios; assim, subindo o Paraguay, achámos esta mata quasi seguida, de sorte que a terra differia “muito em aspecto dos pampas. Mas isto não nos deve iludir; a vegetação é feição. muito moderna, e suas mudanças tendem a encobrir a unidade real de estructura: o Chaco, na realidade, é a continuação dos pampas como elles composto (em grande parte pelo menos) de argilas comparativamente modernas, e como elles estendendo-se para traz até os Andes. N'esta connexão, naturalmente não importa que o Chaco esteja dividido politicamente; que uma fatia d'elle pertença ao Paraguay, emquanto o resto pas- sou para o poder da Argentina e da Bolivia, 256 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' Nem tão pouco importa que estas tres partes sejam quasi igualmente desertas, excepto de indios nomadas, com algum posto militar isolado ou mis- sões estabelecidas pelos brancos. O Chaco estende-se atravez do rio. Eiloenti: à roda de cuja bocca é separado do Paraguay por um grande systema de terras baixas, ilhas alluviaes e banhados. Mais para o Norte apparece abaixo de Concepcion e defronte, onde: é vestido de mata grossa; ainda mais para o Norte, porém, sumiu-se esta floresta e as planicies do Chaco tornaram-se os carandaes. Ha pois uma planicie continua que se estende desde o Oceano, na banda occidental do Paraná e do Paraguay, até o ponto a que somos chegados, acima do Fecho dos Morros; e ha extensões menos importantes d'esta planicie ao oriente dos dois rios. Já fiz notar que desde Rosario até a junção do Paraguay o nivel absoluto acima do mar não varia muito; ao Norte d'aquelle ponto deve haver insur- reição muito gradual. Porém, medida do nivel” do rio, à altitude vai constantemente minguando para ' o Norte: dos pampas do Rosario, trinta metros acima da agua, passamos pelo Chaco meridional, com mar- sem de dez metros apenas; depois pelo Chaco mais. baixo fronteiro a Concepcion; e finalmente chegá- mos aos carandaes, baixos, tão baixos que da coberta do vapor era-nos facil ver-lhes a superticie toda. Desde o Oceano o nivel das enchentes é marcado pelas superficies das ilhas alluviaes; estas ilhas tor- nam-se cada vez menores em numero, e ao Norte do Apa mal se podem distinguir da terra firme, excepto por sua vegetação. As margens de argila dos carandaes, o Chaco e os Pampas vão marcando onde o rio tem excavado seu leito, sempre mais profundo para o Sul; as DUAS PLANICIES FLUVIAES 251 ilhas mostram onde elle tem estado construindo, sempre mais e mais para o Sul. Porém os niveis das duas planicies, uma que o rio está desgastando e esmoendo, a outra que elle está edificando, ap- proximaram-se rapidamente do Rosario até o Apa. Si isto continuar mais para o Norte, encontraremos um ponto em que os dois niveis são exactamente os mesmos, de sorte que as ilhas alluviaes são exa- ctamente tão altas como as planicies mais antigas; e ainda mais para o Norte poderemos encontrar uma região onde o rio derrama-se por estas planicies e está edificando-lhes no topo. É isto o que veremos realmente, continuando a nossa viagem. “Os primeiros signaes da mudança assomaram já ao Sul do Fecho dos Morros; pequenas depressões na superficie dos plainos, fóssos rasos onde a agua escorre, ou logares em que a terra original era um pouco mais baixa, são marcados por vegetação differente: a grama é mais alta e mais brilhante- mente verde na côr, e os carandás não dão ahi. Quando o Paraguay sobe muito sua superficie fica ainda abaixo do nivel geral dos carandaes, mas al- guma agua corre por essas depressões, e já está enchendo-as de detritos; muitas das plantas que alli crescem são as mesmas que as das ilhas al- luviaes. Um pouco ao Norte do Fecho dos Morros, repa- rámos em partes das planicies, onde os carandás se espalhavam a mais e mais, até desapparecerem de todo, deixando apenas carapo limpo. A vista não póde descobrir o que realmente se dá, isto é, que estes descampados ficam algumas polegadas mais baixos que a superficie geral da planicie, e por isso ao alcance das enchentes mais altas do Paraguay. Os carandás não podem crescer em terra perio- dicamente inundada; seu, adelgaçamento marca os o 258 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' limites das inundações, que aqui alastram pela, su- perficie geral da planicie. Gradualmente estes descampados toridráaa mais frequentes e de maior extensão; touceiras de Mimosas e de outras plantas de terras baixas guar- neciam-lhes a superficie, e aqui e além apanhava- mos espelhamentos de lagos e poços rasos, muito longe do rio. Vimos então manchas occasionaes de mata lacustre; os carandaes reduziam-se a pequenos trechos, afinal desappareciam de todo, e pelo 20º 58. alcançámos um ponto onde a vegetação que cobria as planicies não se podia distinguir da das ilhas recentemente formadas no rio; d'este ponto para o Norte, as inundações annuaes estendem-se. para Este e para Oéste até a base das terras altas *). Temos assim acompanhado a grande planicie em todo o seu dominio a partir do Oceano, até a gemma da America do Sul, e alcançámos uma parte d'ella em que o rio, em vez de esmoer, está edificando, juntando nova superficie aos stratos mais antigos. E aqui desejo chamar a attenção para um facto geologico singular. É muito possivel que as argilas quaternarias dos Pampas, com seus megatherios e elyptodons fosseis se estendam para o Norte até a latitude de 20º, sendo ahi encobertos por depositos mais modernos, que o rio está formando sobre ellas; estes depositos mais modernos, geologicamente, são montes, como o são as ilhas alluviaes do Paraná. D'aqui a seculos, quando este periodo recente tiver cedido logar a outro, um geologo poderá es- tudar os stratos da grande planicie. Junto ao Oceano * Em um artigo. publicado ha mezes no Jornal do Commercio, descrevi as terras inundadas como começando immediatamente acima do Fecho dos Morros. Com effeito a mudança tem logar naquela visinhança, ; porém observações subsequentes convenceram-me de que é mais gradual do que o artigo o indicava, começando a ser appa- rente abaixo do Fecho dos Morros, “Que em nenhum sentido serve de barreira. (O artigo vai adiante, p. 285. N.º do trad,). DUAS PLANÍCIES FLUVIAES 259 achará restos das ilhas alluviaes do Paraná, ca- madas com ossos de capivaras e onças, abaixo do nível de camadas semelhantes proximas que contêm megatherios; seguindo para o Norte, acharia as ca- madas de capivara, por cima das que contêm me- megatherio. No primeiro caso concluiriamos que as capivaras viveram antes da era dos meigatherios, no segundo, concluiria certamente que a capivara foi o animal mais moderno. O engano no primeiro caso viria de suppôr que as camadas de capivara se estendiam por baixo das camadas de megatherio; estudo mais detido mostraria, porém, que simples- mente jaziam contra ellas. Enganos d'esta ordem são muito possiveis para o geologo do presente. Embora, como disse, camadas quaternarias, quaes as dos Pampas, possam prolongar-se até Mato Grosso, provavelmente são alli de pouca extensão. Parece bastante claro que o mediterraneo sul-ame- ricano foi até lá pelo continente a dentro; mas deve ter sido necessario tempo immenso para encher tal mar, e portanto algumas partes das planicies pertencem a periodos zoologicos mais antigos que o quaternario. Si a parte septentrional do mar foi a aterrada primeiro (como é muito provavel), as argilas dos carandaes devem ser geologicamente muito mais antigas do que os pampas do Rosario; si, pelo contrario, a parte meridional do mar foi aterrada primeiro, a parte septentrional, separada do Oceano e tendo por sangradouros o Paraguay “e o Paraná, deve ter sido iago de agua doce, e os depositos n'elle formado mostrarão differença cor- respondente de caracter. São questões estas que devem determinar-se por estudo aturado e .cuida- - doso; a resposta será talvez fornecida pêlo exame microscopico das argilas de partes differentes da planicie. Estas argilas contêm. restos de Forami- Bo. DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' nifera e Diatomes minusculos, cujo estudo habili- tar-nos-á a determinar o caracter da agua, doce ou salgada, em que viveram. | Proximo à latitude de 20º S., os barros mais: antigos da grande planicie têm desapparecido sob depositos alluviaes mais modernos. E não longe d'aquelle ponto, segundo creio, cessam de todo, ao longo do curso do Paraguay; entre estas ilhas ro- cheas o mediterraneo sul-americano attingiu seu extremo morte-oriental, embora possa ter se esten- dido um pouco mais para o Norte, do lado da Bolivia. Os limites exactos não poderiam ser determinados em nenhum caso; mas devemos lembrar que a ex- tensão da agua do Oceano, mesmo até a latitude de 20º S., só poderia ter-se dado si esta parte do continente estivesse 120 metros mais baixo do que agora, e as argilas dos pampas não vão muito além da metade d'esta espessura. Atravez da parte oriental da Bolivia, póde a agua do Oceano ter-se ligado com outro grande mar, no que agora se chama o valle do Amazonas e. do Madeira; e n'esse tempo o proprio Brasil póde ter sido uma ilha. Mas, deixando de parte esta questão por agora, suppondo que o mar não se estendia além do que dissémos, mesmo assim deve ter havido aqui uma massa d'agua comparavel em tamanho ao actual Mediterraneo do continente oriental, em- bora provavelmente não fosse tão fundo. Foi aterrado inteiramente com a lama e areia que os rios car- regavam das terras altas que o molduravam. Quaes os rios que fizeram esta obra? D'onde veiuro ma- terial de que formaram os Pampas, o Chaco e as planicies em que assentam os carandaes? O alto Paraná, o Bermejo e o Pilcomayo sem duvida fizeram grande parte da obra; mas estes rios têm cabeceiras entre rijas rochas metamor- A FORTE DE COIMBRA 261 phicas ou arenitos, e devem ter trabalhado de vagar. Pequenas torrentes tiveram tambem o seu quinhão, e talvez houvesse outros rios de que não sabemos mais; mas o principal trabalho de construcção, não ha duvidar, fel-o o Paraguay. E o grande armazem de que se obteve o material, foi a região em que vamos entrar, e de que tratarei mais demoradamente no proximo artigo. Novamente assomou terra alta, e na latitude 19ºS., passamos o forte de Coimbra, defesa principal de Mato Grosso. É talvez este o forte mais indefen- savel que jámais se edificou. A fortaleza está con- struida no lado ingreme de um morro, à margem oriental de um rio, e dominado por outro morro na margem oriental, e mesmo da coberta do nosso: vapor podiamos devassar-lhe todo o interior. Sup- ponho que as canhoneiras de uma frota inimiga colheriam vista igualmente interessante do interior do forte, e a idéa de atirar metralhas, para não dizer granadas de mão, se antolharia immediata- mente. Assim parece-me, a mim que como paisano | não entendo do riscado, nem vendo muito caro a minha sciencia das minucias da engenharia militar. "Sei que o forte por duas vezes foi defendido bravamente contra forças vindas do Paraguay; da primeira vez, em 1801, o inimigo foi repellido; o segundo ataque, em 1864, foi sustentado durante dois dias por uma guarnição de menos de 200 bra- sileiros contra milhares de paraguayos e uma frota de guerra. Acabadas as munições, este punhado de homens fugiu à noite, facto que se affigura mais milagroso ainda que a defesa, considerada a natureza do terreno. Certamente esta primeira ba- talha da campanha paraguaya reflecte o maior ere- dito sobre os brasileiros, e absolutamente nenhum 262 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' sobre os paraguayos, que, é de pensar, poderiam tomar o forte em tres horas. | A unica hora que aqui parámos não nos per- “mittiu examinar o forte historico mais aturadamente, nem visitar a celebre gruta do Inferno, que fica a dois kilometros. A gruta foi bem descrita pelo Dr. Alexandre Rodrigues Ferreira e outros, e ul- timamente por Severiano da Fonseca. É uma das muitas que existem em Mato Grosso, onde quer que, como em- Coimbra, os morros são compostos de calcareo. Diz-se que no Paraguay-mirim ha uma muito mais extensa que a gruta do Inferno; esta é melhor conhecida apenas por causa de sua posição junto ao forte. Fôra interessante saber se estas grutas contêm restos de animaes extintos, como as que Lund descreveu. | Para quem sóbe o Paraguay, Coimbra é o se- gundo ponto onde o rio se ampara de ambos os lados ide terra alta, e aqui, como no Fecho dos Morros, os morros são massas solteiras na grande planície. Estendem-se apenais a pouca distancia acima, do forte; além o rio faz uma grande curva para o Oriente e vimos um! dia inteiro sómente varzeas immensas e florestas aquaticas, apenas elevadas acima da superficie do Paraguay; quando as aguas crescem, todos estas terras ficam de molho dias seguidos. Somos .entrados n'aquella grande trança do terra, agua e lama, canaes e lagos, ilhas e banhados, chamados Pantanaes no Mato Grosso, mas conhecidos dos geographos pelo nome de Xaraes. Na ponta oriental d'esta curva dois grandes tributarios, o Miranda e o Taquary, entram no Pa- raguay. Acima d'elles, voltâmos de novo para Oéste e depois antolhou-se-nos um grupo magnifico de montanhas, mais altas que qualquer das que até aqui tinhamos passado: a massa principal, que jaz SERRA DE ALBUQUERQUE 263 quasi parallela ao rio, e em parte em sua curva oriental, deve ter uns trinta kilometros de com- primento, e talvez mil metros de altura: como os cabeços adjacentes, é de fórma massica, com la- deiras abruptas, porém suavemente arredondadas em cima e coberta na maior parte de campos. É esta a serra do Albuquerque: proximo a seu extremo oriental está a aldeia quasi abandonada d'onde tirou seu nome, e mais adiante, onde o canal do Paraguay volta abruptamente para o Norte, está a cidade de Corumbá. XXVI Corumbá. — A bordo do «Rio Verde ». — Os passageiros para Mato Grosso. — Os igapés. — Ilhas fluctuantes. — As bahias e pantanaes. — O S. Lourenço, De Corumbá e de sua vizinhança tratarei em ou- tro artigo. D'esta vez parámos aqui apenas vinte e quatro horas, e o tempo passou todo nos ar- ranjos necessarios. É este o porto de entrada para toda a provincia, e todo o frete e bagagem que sóbe o rio tem de passar pela alfandega. Trouxera uma carta para o Presidente da provincia, coronel José Maria de Alencastro; felizmente para nós este cavalheiro estava em Corumbá ao tempo da nossa passagem e, graças à sua recommendação, tirámos nossa pesada bagagem da alfandega sem muita mas- sada. Acerescentarei que o coronel Alencastro e os outros presidentes que succederam durante nossa, estadia em Mato Grosso, mostraram-se sempre mui obsequiosos e dispostos a auxiliar-nos em qo podiam. Os grandes vapores da linha nacional não vão além de Corumbá: aqui transferiram-nos para o Rio Verde, no qual deviamos continuar a viagem para Cuyabá. Quando vimos esta embarcação de primeira vez, pareceu impossivel a nossos olhos es- pantados que ella pudesse accommodar os quarenta passageiros de primeira classe que seguiam viagem. Tinha uns 25 metros de comprimento, e seis ou sete de largura entre a caixa das rodas; metade do A BORDO DO RIO VERDE 265 espaço era occupado pela machina e pela cozinha; havia um espaço adiante para os passageiros de segunda classe, e o salão comprehendia os 10 me- tros ou menos que restavam, fechado apenas por cortinas dos lados, com um grande banco que corria em torno, e uma longa mesa no centro. Acima de tudo isto havia uma especie de segundo andar, em parte occupado por um compartimento, em que estava um camarote de senhoras, que media dois metros sobre cinco; dois quartinhos de apparato, cada um com dois leitos, e dois quartos pertencentes aos officiaes, quartos que geralmente são cedidos aos * passageiros. O vapor toma apenas passageiros, ba- gagens e malas, e depois de carregado cala menos de um metro d'agua. Aos quarenta passageiros que foram baldeados juntaram-se alguns de Corumbá, incluindo o Pre- sidente e sua comitiva; havia uns vinte de segunda classe; de sorte que, com os empregados do vapor, iamos perto de noventa pessoas. Tinhamos carvão para muitos dias; o porão, ou o que chamavam com este nome, estava abarrotado de bagagem, e duas vaccas e um carneiro foram accommodados entre os passageiros de segunda classe. Fomos para bordo dispostos a arranjar-nos como pudessemos, e quasi à boquinha da noite sahimos de Corumbá: uma bateria em frente á cidade salvou o presidente, quando passavamos. Ao jantar, em- pilhámos-nos junto à mesa comprida do salão, e à noite alli tomámos o nosso chá, em ambos os casos sendo tão bem servidos como no vapor grande. Acabado o chá, começaram os criados a Tazer as camas nos bancos que rodeavam o salão e em outros da coberta: isto accommodou uns tantos passageiros, | cada um dos quaes ficava com a cabeça ou os pés na cabeça ou nos pés do outro. Alguns deitaram-se 14 266 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA na mesa, que, como mais larga que os bancos, tor- nou-se objecto de rivalidade amigavel e de uma ou duas disputas entre nós. O espaço aproveitavel que ficara no salão encheu-se de redes, amarradas: junto. Para chegar á minha cama, que era em um banco na outra extremidade, tinha de ir me arras- tando por baixo de sete redes; retirando-me um pouco mais tarde, todas ellas estavam occupadas. Como não podia avançar rojando de barriga, pro- curei fazel-o de gatinhas, systema pelo qual minhas costas entravam em contacto com os sete dormentes, que sem demora acordavam e agradeciam em lin- guagem eloquente. Chegando à minha cama, suc- cedeu que o meu vizinho estava ainda acordado; sug- geriu-me que nos arranjassemos no banco, de ma- neira que os seus pés ficassem para a minha ca- beça. Preferi o arranjo contrario, ao que accedeu, estipulando que eu tiraria os sapatos antes de dei- tar-me. Despi-me com alguma difficuldade e es- pojei-me no banco, protegido do ar da noite apenas por uma cortina de lona. Uma vez, certa rêde que estava armada por cima de mim, estando mal segura, cedeu, e o dono cahiu-me em cima; desculpâmo-nos mutuamente, e ajudei-o a armar a rede melhor. Passado este pequeno incidente, dormi em paz até amanhecer. No todo, nós homens não nos demos: mal de ficar assim apinhados. Feitas as camas, costumava- mos reunir-nos em roda da mesa, vestidos e despidos de todos os modos imaginaveis, e abriamos uma conversação animada, lardeada de canto, gymnastica e caçoadas, até meia noite; si algum se aventurava a ir para a cama emquanto nosso parlamento fune- “cionava, d'ahi a pouco acordava com o peso de algum passageiro, ou com o côro da musica mais desbragada em volta da rêde. Pela manhã, iamos ao ; PASSAGEIROS PARA CUYABA' 267 banho nas duas banheiras que havia, no que le- vavamos uma a duas horas; e como as senhoras só appareciam ao almoço, vestiamo-nos com todo o vagar. Ellas é que passavam peior do que nós: apinharam-nas como sardinha em lata, occupando não só os bancos, mas o soalho dos camarotes. Minha senhora, mais independente, deu o exemplo de dormir em um dos bancos de fóra, no que não tardou a ser imitada por outras. A lista de nossos passageiros daria idéa bem apropriada da classe dos viajantes que vão a Cuyabá. Além do Presidente e seu sequito, havia um ou “dois empregados civis, um padre, um negociante vindo do Rio, onde fôra comprar generos, meia duzia de fazendeiros ou criadores, e nossa partida de naturalistas. Os mais eram inilitares, capitães e tenentes, pertencentes aos varios regimentos esta- cionados em Mato Grosso. Iam na prôa varios “soldados, alguns*commerciantes mais pobres e dois escravos. Tres quartos dos passageiros dependiam de um modo ou de outro do governo, e o facto se repete em quasi cada viagem dos vapores fluviaes. Nesta região ha dois canaes principaes: o que - é usado pelos vapores, e o Paraguay-mirim, mais para Este. Navios que subissem 0 rio pelo Paraguay - mirim, poderiam passar inteiramente desafrontados de Corumbá; portanto, as fortificações aqui exis- tentes não se pódem considerar como defesa para o resto da provincia. As terras altas de Corumbá, logo acima da cidade, apartam-se do rio, passando para a Bolivia; porém. outros morros foram assomando á medida que avançavamos. Primeiro foi o Castello, onde o rio se comprime entre dois serrotes cobertos de mata ; depois o esplendido grupo dos Dowrados, 268 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' debruando a banda occidental do rio com as fór- mas asperas de montanha bem differentes da ser- rania de Albuquerque: alguns dos picos orçam por 800 metros acima do rio. Adiante dos Dourados, passámos as Pedras de Amolar, que fórmam parte da mesma cordilheira; e a Este do Paraguay havia salteados dois ou tres serrotes de pedra; plantados em planicies allúviaes. Entre essas massas de terra alta estendem-se os pantanaes, amplo deserto de terra e agua. Ás vezes appareciam varzeas limpas com lagoas e po- ços na superficie; depois tricas de mimosas e macega leguas e leguas, emfim borrões de matta, onde as margens eram mais altas. Pelo meio, esquivava-se o Paraguay: mais den- teado aqui do que abaixo, a sua largura, muyitas vezes de kilometro, é pouco, menor que ao longo da fronteira da republica do Paraguay: sempre a mesma agua escura, profunda, cuja corrente rapida apenas se vê aqui e alli na superficie macia — um rio manso, segundo a expressão popular. Para cortar esta corrente tanto quanto possivel, nosso vaporzinho encostava-se ás margens, roçando nas massas de iguapés, que quasi as ,guarnecem. O iguapé associa-se em meu espirito a toidal as pinturas do Paraguay: os canteiros brilhantes, de escuro carregado, aqui e alli pendoados de flores azul-pallidas, os insectos luminosos que seintillam por cima, as aves aquaticas que desferem o vôo à proporção que vamos passando, a agua escura e mansa que afaga as raizes, onde os peixes nadam prazenteiros; tudo isto contrasta de modo estranho | com os campos e os galhos das arvores que escorrem das margens da corrente. Quando as aguas sóbem, fluctuam bancos de iguapé, sos vão acamar nas rl- ILHAS FLUCTUANTES E PANTANOS 269 banceiras, além; ás vezes vimos a superficie toda coberta com elles. Durante as enchentes, desta- cam-se tambem dos campos, grandes massas de grama, — as ilhas fluctuantes descriptas nos livros de viagens. São às vezes bem grandes; porém du- vido muito da historia, tantas vezes repetida, de onças alli carregadas e presas. As onças nadam muito bem, e facilmente se libertariam de taes pri- sões. Além de que é mais facil romper com uma canôa atravez d'estas ilhas do que andar por cima: experimentei-o uma vez, e tomei um banho invo- luntario. . Defronte da serra dos Dourados, os pantanaes são muito largos, estendendo-se para E. talvez uns 400 kilometros, sem um só ponto de terra alta que os interrompa; mesmo durante as vasantes, a me- tade permanece de molho, tão infinito é o systema de pequenos lagos; e durante cinco mezes do anno, de Março a Agosto, toda a região envolve-se em um lençol d'agua, ficando apenas aqui e alli um ou outro torrão, algumas polegadas acima da super- ficie. Durante o seculo dezoito os Paulistas, que iam a Cuyabá pelos rios, costumavam atravessar por estes campos em suas canôas pesadas, desde o Taquary até o Paraguay, cerca de oitenta kilo- metros. O canal do rio é geralmente amparado de ribanceiras, que são um pouco mais altas, e não raro cobertas de arvoredo; mas n'esta região as ribanceiras são ás vezes interrompidas, e o rio mostra tendencia a confundir-se com a enrediça de lagos e pequenos canaes. Aqui e alli apparecem grandes abertas, maiores muitas vezes que o proprio rio, e que é. difficil distinguir d'elle; só pilotos experientes podem entender-se n'esta região, pois 270 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' ha perigo constante para o navegante de desviar-se e perder-se entre os lagos. Assim perdeu-se ha qua- renta annos Castelnau e seu rancho, e só ficaram livres depois que encontraram uns indios Guatós, que. lhes serviram de praticos. O termo bahia, universalmente applicado aos lagos dos pantanaes, é expressivo; especialmente nas enchentes, são antes bahias que abrem para o Tio, do que traços separados d'agua. No Amazonas ou no baixo Paraguay, um lago, por grande que seja, communica sempre com o rio por canal estreito e às vezes muito comprido e torto; aqui quasi que não se distinguem os lagos e os sangradouros; o proprio Paraguay a trechos torna-se uma enfiada de lagos, com um canal mais profundo, que entre elles corre. Procurando a razão d'isto, achámos que o Pa- raguay differe notavelmente da maior parte dos outros rios em um ponto importante: durante as enchentes annuaes, as terras alluviaes são primeiro cobertas de agua, que em muitos logares corre d'el- las para o rio; o resultado é a ausencia parcial de margens elevadas. Quando o Amazonas e o Missis- sipi enchem, a agua escorre do rio para as planicies marginaes; a agua assim espalhada torna-se quasi tranquilla, e a lama e o barro que estavam em suspensão vão ao fundo. Naturalmente os primeiros depositos são junto ao rio, e por isso estas partes da planicie de alluvião constituem-se mais depressa, as margens são quasi sempre mais altas que as terras que lhe ficam por traz, e formam uma especie de parede, através da qual, excepto na enchentes mais altas, a agua só passa por alguns canaes estreitos. Ribanceiras como estas não faltam no Paraguay, porém são PAIZAGENS DO S. LOURENÇO 271 menos assinaladas e muitas vezes se interrompem leguas e leguas: assim as terras baixas estão menos distintamente separadas do canal do rio e os lagos tornam-se bahias; quando as enchentes sóbem muito, a região dos pantanos póde considerar-se vastis- simo lago raso, com uma corrente geral, porém lenta, para o Sul, e tendencia para concentrar suas aguas em alguns canaes. Logo acima das Pedras de Amolar, deixâmos o Paraguay e enfiámos pelo S. Lourenço. Simples mudança de nome; nova direcção no trançado dos canaes, dos quaes um é talvez tão importante quanto o outro. Os pilotos fallam em duas ou tres boccas do S. Lourenço; nas enchentes os Guatós atra- vessam em suas canôas ligeiras por quasi todos os pontos da planicie. Vimos uma ou duas vezes estes indios andando ao longo das margens, e pas- Samos por suas casas, simples ramada em algum ponto da terra secca. Mas agora perdemos de vista as montanhas, e durante dois dias fomos sempre vencendo ba- nhados e alagadiços e-lagos sem conta, por canaes ora largos, ora estreitos e sinuosos, por ilhas cujas poucas arvores penduravam as raizes na agua, por trechos de mata que um bote poderia atravessar para outro canal, por um enliço interminavel de terra e agua, porém sempre mais agua do que terra. Milhares de aves aquaticas aqui se congre- gavam; poderia dizer milhões, pois onde quer que se abria o terreno inundado, viam-se sempre, pon- teando a superficie em toda parte, estacionando na relva com os pés na agua, revoando em nuvem quando nos sentiam. As garças brancas eram tantas que nos lembravam flócos de neve a revolutear em uma tempestade de inverno do Norte; com ellas 272 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' estavam colhereiras de côr de rosa, socós azulados, grandes tuyuyus de cabeça preta, uma phalange. de pernaltos. Lembra-me um descampado por onde passámos ao pôr do sol, onde estavam pelo menos umas vinte mil d'estas grandes aves, formando um “espectaculo como nunca vira antes. Havia outras aves ainda; anhumas do ta- manho de perús, voando pesadamente á nossa chegada, e assentando sempre no topo de um gas lho ou de uma arvore quando o galho parece muito franzino para aguental-as; bandos de patos, disparando ao alvorecer; biguás pretos pousados em um ramo por cima do canal, e saltando d'elle para mergulhar na agua; depois apparecem na- dando adiante do vapor com o corpo debaixo d'agua, deixando apenas visivel a cabeça alongada, ser- pentina. Passarinhos innumeros pairavam junto as touças, differentes quasi todos dos das serras, por- que os pantanaes são mundo separado, com: fauna e flora exclusivamente suas. Ha tambem aqui muitos grandes manamiferos, onças e veados, mas na passagem não os vimos; as aguas estavam crescidas e elles tinham fugido para a terra firme. Uma ou duas vezes passámos ca- ravanas de macacos na mata, e vimos frequentes vezes lontras e ariranhas que nadavam nos canaes. Si pudessemos parar junto aos campos inundados, teriamos achado milhares de insectos, todos de es- pecies peculiares aos pantanaes. Si traçarmos em um mappa os limites. dos pan- tanaes, veremos que occupam espaço quasi circular, por 400 kilometros de Norte a Sul e outros tantos de Este a Oéste, com pequenos prolongamentos ag longo dos rios que nelles escorrem, e tambem para o Sul, acompanhando o Paraguay: este ultimo corre ALTO PARAGUAY . 274 ao longo do lado occidental do circulo. Os pantanaes são continuos com a grande planicie que se es- tende do rio da Prata para o Norte, porém estão parcialmente separados della, e creio que estructu- ralmente são muito differentes; que o grande mar mediterraneo não se estendeu além do extremo me- ridional da região que indiquei. Na banda occidental do Paraguay, desde a jun- ção do Jaurú até Corumbá, ha uma linha de terra alta, não inteiramente continua, antes formando massas avulsas: os Dourados, o Castello, o morro do Albuquerque e outros. Em Corumbá o Paraguay deixa a serra, voltando-se para Este, mas não tarda a retroceder, rompendo pela linha em Coimbra; mais além a mesma linha continua para Sueste até O oriente do Paraguay, prendendo-se ao planalto bra- sileiro ao Norte do Apa. Existe pois um systema de cabeços que corre desde a terra firme do Norte até a que fica a E., dos pantanaes. Si esta linha “fosse continua, os pantanaes jazeriam em bacia fe- chada, com uma sahida apenas, em Coimbra. Mas não é cadeia continua: é uma serie de morros ou morrarias cada qual imbutida em planicies de allu- vião; é uma parede arrombada entre os pantanaes e'o “resto da grande planicie. Os lados septentrional e oriental, e até certo ponto o lado meridional dos pantanaes, são limi- tados por terra pedregosa, que não é muito mais alta que a superficie dos banhados. Mas é simples vedeta esta terra pedregosa; alguns kilometros ou leguas atraz, existe uma elevação abrupta, quasi sempre em despenhadeiro, elevação para o grande altiplano. Si nossa vista pudesse abarcar uma cen- tena de leguas ou mais, ser-nos-ia facil de cima da serra dos Dourados acompanhar esta escarpa 274 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' do planalto, que se estende qual paredão gigantesco à roda dos tres lados dos pantanaes, com longas projecções aqui e além, e quebradas occasionaes, por onde correm alguns rios. A altura média do paredão acima do 'Paraguay é talvez de 600 metros, e a parte superior d'elle compõe-se toda de rochas macias, argila e arenito. Acredito que, quando existia o mediterraneo da America do Sul, o planalto cobria toda a região dos pantanaes até a morraria dos Dourados, Al- buquerque, Coimbra, e talvez além; e toda esta massa immensa, de 400 kilometros de extensão, de 400 kilometros de largura, e meio kilometro de profundidade, têm: sido desgastada pela agua pos- teriormente. O Paraguay foi o principal sangradouro e o principal agente, mas póde ter havido outras ' correntes dirmgidas para o Poente, no que agora é a Bolivia. Todo o barro e toda a areia que o enxurro levava foi para o mar mediterraneo e “* formou 'alli ilhas e baixios. Assim, d'este bloco rou- bado ao Brasil fórmou-se grande parte da enorme planicie, os Carandaes, o Chaco e partes do Pampas. Ficou um vasio vastissimo, quasi liso no fundo, onde as rochas eram mais duras, erguendo-se abru- ptamente dos lados. Entrementes, parte do mar fôra aterrado, deixando apenas um canal para o Para- guay; mas, como o aterro progrediu, o canal foi tornando-se mais longo, o declive foi tornando-se insufficiente para arrastar todos os detritos, e o rio, na parte superior, começou a construir o proprio leito; seu nivel foi se tornando assim mais alto e elle inundou a terra que excavava, formando grande lago ou banhado, que agora vai se aterrando muito gradualmente. Assim formaram-se os pantanaes, não em terreno que fôra coberto pelo mar, mas no IDADE DOS MORROS OCCIDENTAES 2415 espaço que ficou onde o planalto foi cavado para aterrar aquelle mar. A linha dos morros que ficam da banda occi- dental é mais velha que o proprio planalto; foram cobertos de argila e arenito, que depois foram de- nudados a Oéste e Sul, e a cavidade assim formada foi occupada durante um periodo de depressão pelo mar mediterraneo; desde então o lado interno têm sido desgastado pelas aguas do Paraguay e seus alíluentes, e os morros roidos e meio cobertos com os detritos dos banhados persistem, paredão arrom- bado, como vimos. XXVII Enchentes dos pantanaes. — Os Coroados do S. Lourenço. — O Bananal Grande. — O valle do Cuyabá. — Cuyahbá. Pequenas porções dos Pantanaes são bastante altas para se prestarem a pasto de gado, embora durante as inundações o gado só possa alimentar-se vadeando pelos campos alagados ; à noite retiram-se para os poucos logares que ficaram seccos. Ha uma ou duas d'estas fazendas de criação no baixo 58. Lourenço, e até algumas roças de mandioca, embora todos os annos fiquem sobreaguados. Um torrão é oe- cupado por destacamento de soldados de miserrimo aspecto, que aqui estacionam, Deus sabe porque, pois para nada podem servir nestes banhados. As inundações annuaes dos pantanaes variam bastante quanto à altura: em Corumbá tem-se re- gistrado 11 metros de differença entre as aguas mais altas e as mais baixas, mas em outros annos não ha mais de 5 ou 6. Como a superficie geral dos pantanaes — as partes não occupadas por lagos — não está mais de um metro ou metro e meio acima das aguas na vasante, é claro que mesmo as menores inundações encobrem a totalidade dos pan- tanaes. As aguas sóbem vagarosamente, começando a enchente em Fevereiro ou Março, e attingindo a inundação sua maior altura em Junho ou Julho, e raras vezes no fim de Maio. Merece reparo que estes periodos de RR não correspondem á estação chuvosa dé Mato - AS ENCHENTES DOS PANTANAES 241 Grosso. As chuvas no planalto amiudam-se em No- vembro, chegam à maior força em Fevereiro e cessam de todo em Maio.» Os rios das serras, como o Cuyabá, já estão bastante crescidos em Novembro, e suas inundações mais fortes são geralmente em Fevereiro ou Março; depois d'isto começam a vasar, e em Junho suas aguas estão muito baixas. Assim, durante certo tempo, os rios das terras. altas vão crescendo, em- quanto o Paraguay vai minguando, e vice-versa. A razão disto é que a agua das primeiras chuvas se espalha pela superficie dos pantanaes, onde se perdem pela evaporação ou embebem-se no sólo secco dos campos. Só quando as chuvas se tornam constantes nos proprios pantanaes — em Fevereiro e Março — é que o sólo fica ensopado, e a agua que vem dos rios das serras remancha na superficie: leva muito tempo para cobrir toda esta esta vasta planicie, e por isso as inundações dos pantanaes chegam á sua altura maxima pelo tempo em que os rios das serras já deixaram de vasar. Depois d'isto a agua das planicies desapparece, sen- do parte evaporada, parte levada para o Paraguay. - Ha estirões de pantanaes ao longo dos rios que vêm das serras altas; quando estes rios estão en- chendo, inundam suas margens ao longo d'estes es- tirões, e a agua, que assim corre para a planicie, só póde alcançar de novo os canaes muito para o Sul; quando pelo contrario os rios das terras altas estão vasando, sua agua em grande parte ajunta-se ao grande lençol nos pantanaes inundados. Estes factos dão força aos que já indiquei -—— isto é, que -os canaes dos pantanaes são um labyrintho na superficie, constituindo antes um systema separado do que continuações dos rios da serra. 278 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' Praticamente, o alto S. Lourenço, o Cuyabá e alto Paraguay, e outros rios que descem do pla- nalto, desembocam nos pantanaes, onde sua agua póde ou espalhar-se pela superficie geral, ou entrar para qualquer dos canaes, e emfim toda sangra pelo Paraguay junto ao forte de Coimbra. Posso exprimir a geographia d'esta região do seguinte modo: o Paraguay nasce pelos 20º S., em um grande lago, em parte aterrado, chamado os Pantanaes; e este lago ou banhado recebe muitos rios pequenos do Norte e do Nascente. Todavia, em certo sentido os canaes principaes são prolongamentos dos rios serranos, e conservam seus nomes por distancia maior ou menor. É assim que o canal mais oriental se considera como parte do Paraguay, recebendo o S. Lourenço, que por sua vez recebe o Cuyabá. Mas isto é simples questão de nomenclatura, e que só tem importancia porque póde transviar os estudantes de. geographia physica. Nossos mappas dão apenas os canaes principaes e assim tendem a augmentar a illusão. Os vapores que sobem não se atêm inteira- mente aos canaes principaes de S. Lourenço e de Cuyabá, mas encurtam a distancia e evitam as cor- rentes mais rapidas atravessando por canaes la- teraes. Um d'elles, chamado o Bananal Grande, é separado do Cuyabá por uma ilha do mesmo nome. Na ponta inferior d'esta ilha ha um torrão de cerca de kilometro de comprimento, occupado por gran- des bosques de bananeiras, do qual ilha e canal tiraram o nome. As plantas existem aqui de tempos immemoriaes; diz a tradição que foram plantadas pelos primeiros Paulistas que vieram a Mato Grosso, Dão ainda excellente fruta, que é apanhada livre- mente pelos canoeiros que passam. OS COROADOS DO S. LOURENCO 249 A superficie geral d'esta ilha é um pouco mais elevada que os pantanaes, e n'ellas formam-se muitas rocinhas e fazendolas; é accessivel da terra firme quando as aguas baixam, e este facto tem dado logar a terriveis tragedias. Os Coroados, cujas ca- bildas demoram nas cabeceiras do S. Lourenço, mui- tas vezes descem ás varzeas, depois que as aguas se retiram, e os sitios do Bananal por mais de uma vez têm soffrido de seus ataques. Mostraram-nos uma casa onde mezes antes foram mortos uma se- nhora e duas crianças. A casa pertencia a pessoa de alguma impor- tancia na provincia, e a senhora filiava-se a uma das melhores familias de Cuyabá. Entre seus criados havia uma india, que, não sei como, soube que os Coroados estavam na vizinhança e planejando um ataque; avisou a familia, mas infelizmente não lhe deram credito, e o dono da casa foi para a roça, levando comsigo todos os homens da casa. Apenas sahira, cahiram de chofre os indios, matando a se- nhora com os filhos e mutilando-lhes os corpos hor- rivelmente. Voltando para a casa, o marido ficou fóra de si com o espectaculo; só, perseguiu os indios dias inteiros, sem poder encontral-os, e depois enlou- queceu de pezar. Em outra casa os indios foram re- pellidos por um escravo fiel, que lhes fazia fogo das janellas. Mais acima apontaram-nos terceira casa agora deserta, que fôra scena de duas matanças. Direi mais alguma cousa sobre os Coroados em outro artigo. Registrarei, porém, aqui minha sincera admiração e respeito ao Presidente de Mato Grosso, Dr. Galdino Pimentel, que, com seus sabios esforços para pacifical-os, parece trilhar o bom caminho para conciliar esta tribu, que é a mais perigosa da pro: vincia. 280 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' O canal do Bananal é muito sinuoso e em muitos logares tão estreito, que na passagem das curvas o vaporzinho roçava na mata de ambos os lados; em taes casos havia sempre corrida de passageiros, para evitar os galhos que estalavam. Uma vez ti- vemos a desgraça de cahir em um ninho de mari- bondos, que lançaram uma sortida desesperada para repellir o ataque. Mas são estes incidentes minusculos na belleza grandiosa do scenario, cambiante a cada momento, à medida que avançavamos pelo canal tortuoso. Aqui eram vastos descampados aspergi- ' dos de aves aquaticas; além o campo escondia-se nos capões; adiante a mata murava o rio de ambos os lados, com os galhos descahindo em docel sobre as aguas, e sombra acariciadora no meio; alhures as arvores armavam-se de cipós floridos, que roça- " gavam em cortinas luxuosas até os canteiros escuros -de iguapé. As arvores eram de muitas especies, destacando leguminosas e myrtaceas; enfeitiçavam os ingás com sua folhagem macia e as brancas flôres pennu- gentas, e as innumeras especies de mimosas e acacias. Os capões eram formados de muitas especies de arbustos e ervas altas, com arvores dispersas que. os dominavam, imbauúbas que apresentavam o avesso prateado das folhas a cada bafejo da viração, e paus de novatos, os taixy do Pará, rutilantes com suas massas de cravos. As ilhas e margens baixas estavam cobertas de moitas de sará (Psidiut, sp.), cujas folhas têm carreiras de espinhos nas ourelas, que lhes dão aspecto: muito peculiar. De palmeiras havia apenas uma ou duas es- pecies, das quaes a mais commum é uma especie pequena, espinhosa (Bactris, sp.), que dá em tou- O VALLE DO CUYABA” 281 ceiras, que ás vezes cobrem o solo de modo a excluir quaesquer outras plantas. Chamam-lhe tucum, mas differe do tucum do planalto, que é um As- trocaryum. - Acima do canal do Bananal o Cuyabá têm margens mais levantadas e algumas ilhas espaço- sas; aqui, menos em um ou dois mezes do anno, a agua cabe em um canal definido, e a mór par- te do terreno fica pe ineo apenas a inundações transitorias. Deixámos de facto os pantanaes e entrámos em nova região, o valle do rio Cuyabá. As margens são geralmente acompanhadas de florestas, como no Bananal, mas de pequena ex- tensão, escondendo por traz grandes varzeas; onde a linha da mata se interrompia, avistámos milhas e milhas d'estas varzeas gramadas, muito seme- lhantes de aspecto ás que margeiam o Paraguay, abaixo do forte de Coimbra. Aqui e ali appareciam veados brancos, olhando o vapor e escaramuçando graciosamente á nossa chegada; uma vez ou outra, viamos manadas de gado pastando. As poucas casas que vimos eram de taipa, quasi sempre de telha, e pelo tamanho mostravam ter sido outr'ora es- tabelecimentos importantes; mas quasi todas estavam desprezadas e meio arruinadas, Quando passavámos, uma mulher ou outra e alguns meninos nús ou em mangas de camisa sahiam para espiar-nos. Parámos alguns minutos em logar mais pre- tencioso, onde havia cannavial, engenhoca de páu e alambique para distillar cachaça. A agua para o alambique era tirada a bomba, do rio para um tubo de palmeira, pelo qual corria para o alam- bique. Ao chegarmos, estava um negro a dar à bomba com toda a força, e continuou sem nos ligar importancia; havia um buraco no cano, por cima / 15 2892 DO RIO DE JANEIRO A CUYABA' de sua cabeça, e quasi toda a agua despejava-se. no bombeiro, com grande satisfação sua, pois o dia estava quente; mas o resultado na ponta era necessariamente quasi nil. O dono do sitio com toda a sua familia e uns vinte escravos estacionavam na ribanceira, junto a este mariola improductivo, e ninguem parecia reparar no absurdo da cousa. Só quando um dos passageiros chamou a attenção para aquillo, foi que mandaram o escravo tapar o buraco com barro. Durante nossa estada em Mato Grosso, assistimos à mais de uma scena d'este genero, O Paraguay estava cheio quando passámos, mas aqui as aguas eram baixas, correndo rapidas entre as margens de argila empinadas; o rio tinha a largura média de uns 200 metros; ilhéos e praias inclinadas debruçavam-se á cada curva, e appa- receu-nos nova phase da vida animal: o jacaré. Já os tinhamos visto embaixo, mettidos na agua, apenas com os olhos e-as ventas na superficie, ou aque- cendo-se um ou dois nas ilhas. Aqui, porém, eram litteralmente aos milheiros. Contei mais de sessenta n'uma praia que não tinha mais de vinte metros de comprimento, apinhados e rastejando uns por cima dos outros, por falta de espaço; e havia outras praias quasi igualmente cheias. Quando passavamos, erguiam-se as cabeças hediondas para fitar-nos, ou mettiam-se pela agua, atropellando-se entre si e arremettendo aos baixios para sahirem de nosso caminho, O que me admirou, é como elles acham o que comer. Estes jacarés não são muito grandes, — no maximo attingem a quatro metros, e a media é muito inferior. Creio que é esta a mesma especie que se encontra mo Pará; mas os jacarés sul-ame- ricanos são conhecidos muito imperfeitamente, e ainda não ha discriminação satisfactoria das especies. , | ] CHEGADA A CUYABA. 283 Esta ou outra semelhante encontra-se por toda a extensão do Paraguay, e menos frequentemente no Paraná. Os passageiros divertiam-se em atirar aos jacarés, matando alguns depois de gastar muita pol- vora. Um caçador que tivesse vagar para percorrer estes logares, encontraria caça mais respeitavel. Além dos veados brancos ou campineiros (cervus campestris), vimos mais de um cervo (cervus palu- dosus), especie esplendida, de chifres que esgalham um metro. Estavam na macega manadas de ca- pivaras; atravessavam a mata patuléas de maca- cos, que paravam para bispar-nos entre a ramada,; uma vez, ao amanhecer, vimos uma onça atraves- sando o rio a nado em nossa frente, e sumindo-se. no mato uns trinta metros do vapor. Mas agora começaram a transparecer morros alongados ao- Nascente e ao Norte; pontas de terra mais alta e rochea conchegavam-se ao rio, e as plantações amiudavam-se. Passando um morro alto, conico, o morro de Santo Antonio, faz-se grande curva para o Occidente, e a terra alluvial reduz-se a tiras estreitas de uma e outra banda, com morros baixos no fundo. Notavam-se baixios com rochas acima da superficie aqui e além, e a navegação, mesmo para vaporzinho exiguo como o nosso, tor- nava-se muito difficil. Mas por tudo passámos a salvamento, e diante de nós appareceu uma praia. baixa, aprumadamente cortada, coroada com uma carreira de casaria branca, coberta de telhas ver- melhas. Eramos chegados a Cuyabá. FIM ! E dice 2 a Rem F É ELO PS APPENDICES GEOLOGIA DO RIO PARAGUAY (Jornal do Commercio) -- Haverá dois lannos noticiámos que o Sr. Herbert H. Smith, illustre naturalista e geologo, chegára à nossa Provincia de Mato-Grosso com o intuito de estudar, pelo aspecto da historia natural, aquetla circumseripção do Imperio, .tão pouco conhecida ainda debaixo de todas as relações que interessam a sciencia. ; | O Sr. Herbert Smith acaba de chegar ao Rio de Janeiro, após longa viagem pelo interior de Mato-Grosso, onde colligio, coordenou e classificou | numerosas collecções do reino animal. Geologo ao mesmo tempo que naturalista, o Sr. Herbert Smith deu-se tambem a estudos geologicos da região e, emquanto, prepara trabalho completo acêrca de suas investigações, lembrou-se de communicar-nos algu- mas de suas observações pelas seguintes linhas, cheias de interesse para a sciencia. Nellas indica o au- tor solução proposta pela primeira vez, da qual lhe cabe, portanto, a honra da prioridade cujo di- reito fica assim firmado: «Sr. Redactor. — Voltando ultimamente ao Rio de Janeiro de longa viagem a Mato-Grosso, li em sua folha a noticia da magnifica exploração do 286 APPENDICE rio Xingu pelo Dr. von den Steinen e seus com: panheiros. Permitta que manifeste, ainda que tar- diamente, minha viva admiração por exploração tão bem executada, quão modestamente relatada. Ha tempos sonhei tambem explorar o Xingú; aban- donando esse sonho, tanto mais razão tenho para admirar aquelles que o realisaram e o meu tri- buto de admiração talvez tenha algum valôr, visto como sei alguma cousa do interior do Brasil. Não conheço pessoalmente os membros da. commissão allemã; entretanto, estou certo que elles foram bem succedidos não por qualquer combinação de cir- cumstancias felizes, mas porque eram homens para successo. Em nome de todos os arrojados explo- radores, eu os saúdo. « Esta recente viagem despertou tanto interesse por Mato-Grosso, que os seus leitores devem que- rer conhecer mais aquelle paiz. As minhas explo- rações limitaram-se ás partes Norte e Leste de Cuyabá; mas durante uma residencia de mais de dous annos, colligi informações de todas as fontes à minha disposição, com o. intuito de realisar para o futuro estudos mais extensos. « Subindo os rios Paraná e Paraguay nos va- pores da Companhia Nacional, notam-se caracte- res physicos bem pronunciados. O Paraná. corre sobre uma planicie pantanosa, muito larga ao Sul, mas estreitando-se cada vez mais rio acima; ás vezes, as curvas do canal approximam-se da terra firme que limita os pantanos. Esta terra firme e perfeitamente chata, coberta na maior parte de grama e ervas, é cortada quasi verticalmente ao rio ou ás varzeas. No Rosario, a sua altura so- bre o nivel ordinario do rio não «excede de 20 metros. Esta terra constitue os Pampas da Con- federação Argentina. GEOLOGIA DO RIO PARAGUAY | 287 « Acompanhando as margens talhadas destes . pampas para o Norte, isto é, subindo o Paraná, parece que elles diminuem de altura gradualmente, Esta diminuição é apenas apparente, visto que os pampas se elevam um pouco para o Norte; a vista, porém, mede a altura das barreiras sómente do nivel do rio, Geologicamente fallando, o Paraná pouco têm escavado os pampas perto da juncção com o Paraguay, mas abaixo a excavação têm sido maior. « Deixando o Paraná e entrando no Paraguay, nota-se que as planicies pantanosas desapparecem quasi inteiramente; do lado oriental, ha morros e collinas mais ou menos irregulares, formando parte ' do territorio da republica do Paraguay; do lado occidental, os pampas nivelam-se com as planicies baixas do Grão Chaco. Ainda ahi, porém, o abai- xamento é apenas apparente; o Chaco forma uma parte dos pampas, sendo um pouco mais alto em “relação ao nivel do mar, porém mais baixo em relação ao nivel do rio. Em frente de Assuncion as margens talhadas do Chaco não têm mais de quatro metros sobre o nivel do rio, mais para O norte são ainda menos elevadas. «Até esse ponto, a differença entre o nivel dos pampas e do Chaco e o do rio diminue gra- dualmente. Se continuar esse decrescimento, de- ve-se attingir um ponto onde a differença seja nulla e, nesse caso, a agua do rio ha de cobrir a planicie do Chaco. É isto que acontece actualmente, «As planicies do Chaco, propriamente ditas, es- tendem-se até o Fecho dos Morros, estreita gar- ganta por onde o Paraguay corre com violencia entre dous morros altos e rochosos, São estes morros parte de uma cadêa quebrada que ahi passa através das planicies, apparentemente de NNO. para SSE. 288 APPENDICE As planicies estendem-se em torno dos morros, que formam grupos isolados no meio das terras baixas, «Passando o Fecho dos Morros ha mudança repentina e saliente nas feições physicas, mas à causa desta mudança não é desde logo apparente, Ha as mesmas planicies, muito semelhantes às do Chaco, mas um pouco mais baixas e com vege- tação mui differente. Isto é tudo quanto se nota quando o rio está baixo; mas em Julho, durante as maiores enchentes, observa-se que as aguas se espalham sobre as planicies, cobrindo-as quasi in- teiramente, mas com pouca profundidade e só du- rante duas ou tres semanas cada anno, «Subindo ainda o Paraguay, nota-se que as planicies são cada vez mais pantanosas. Perto de Coimbra ellas cobrem-se d'agua durante dois mezes ou mais; em Corumbá, durante tres ou quatro me- zes; e perto da fóz de S. Lourenço, ellas attin- gem ao nivel mais baixo em relação ao rio. Ahi toda a immensa extensão das varzeas reduz-se quasi à fórma de lagôa, coberta d'agua durante nove me- zes do anno, e em parte. coberta d'agua e lama durante os outros tres. fi este 0 lago dos Xaraes dos mappas antigos. Passando em revista o que fica dito e o que se sabe a respeito da extensão lateral destas planícies, somos levadus ás seguin- tes conclusões: «1. — Uma area immensa de terras, nivela- das estende-se ao longo do Paraguay e do Paraná, desde a latitude 16º Sul, até além de Buenos Aires. Esta planicie, em algumas partes, tem proxima- mente uma largura de 1.000 kilometros. Ella é atravessada diagonalmente por duas cadêas que- bradas de morros, que apparecem no Paraguay, em Coimbra e no Fecho dos Morros. Pa As GEOLOGIA DO RIO PARAGUAY 289 «2. — A parte desta planicie que fica ao Norte do Fecho dos Morros está abaixo do nivel das enchentes do rio; e a parte mais septentrional é tão baixa que apenas se eleva acima das vasantes, Do Fecho dos Morros para o Sul, a planicie está acima do nivel das enchentes e sempre mais alta em relação a ellas, rio abaixo. «3. — Portanto, geologicamente, a parte da planicie que fica ao Norte do Fecho dos Morros está crescendo á custa dos detritos do rio. Ao Sul do Fecho dos Morros o rio está corroendo a pla- nicie, escavando-a cada vez mais fundo. «4. — Por inferencia, toda a planicie, como a do Amazonas, deve a sua existencia a um braço immenso do mar, ou talvez a uma lagõa d'agua doce, que fosse cheia pelos detritos do rio. De- pois de formar a planicie, o rio está hoje cor- tando um canal atravez d'ella. A esté respeito im- porta notar que em Assumpção vi conchas fosseis do genero Ostrea, genero que vive em aguas sa- lobras, “como nos braços do mar em que desa- guam rios, | - «Sem insistir agora nas idades geologicas das dilferentes partes das planicies, o que sá póde ser resolvido apóz estudos minuciosos, é incontes- tavel que a planicie se formou dos detritos tra- “zidos pelos rios, quer sejam os que constituem hoje o systema do Paraguay, quer outros que lhes cor- respondessem. Surge, portanto, a questão da pro- cedencia do material da planicie, a que pretendo responder. «Do Fecho dos Morros à fóz do Jaurú, e do Coxim a Corumbá, os pantanaes do Paraguay 0e- cupam' uma extensão não menor de 120.000 kilo- metros quadrados. Elles são marginados -a Oeste (od 290 APPENDICE pela serra dos Dourados, além da qual ha outras planicies muito baixas, continuação das do Grão Chaco, e estendendo-se até os taboleiros da Bo- livia. «A Leste do Paraguay ha uma zona de terras baixas, mas rochosas, acompanhando as margens dos pantanaes. « Passando esta zona a terra eleva-se abrupta- mente, ás vezes em precipicios, à uma altura de 100 a 800 metros, « Nada mais singular do que esta gigantesca mu- ralha, estendendo-se desde as fronteiras do Para- guay em linha irregular, primeiro para o Norte, depois para Noroeste, passando em volta das ca- beceiras do Paraguay, até reunir-se às terras al- tas que bordam os valles do Guaporé e do Ma- deira, «É esta a margem talhada do grande planalto brasileiro, «Não é certo que este planalto brasileiro fosse antigamente continuo com o da Bolivia, mas não ha duvida que elle se estendeu até á serra dos Dourados quasi nas fronteiras da Bolivia, Tomando isto para base do calculo, podemos avaliar appro: ximadamente a denudação do Paraguay. Os pantanaes, como tenho mostrado, occupam pelo menos 120.000 kilometros quadrados; as pla- nicies baixas rochosas a Leste e ao Norte, junta- mente com as do districto de Miranda, devem at- tingir no todo area igual. Ajuntem-se as extensões lateraes da planicie ao longo dos braços do Pa- raguay, e podemos dizer que a grande bacia tem 250.000 kilometros quadrados. As margens talhadas. do planalto mostram que elle teve uma altura de 700 metros pelo menos acima do nivel actual das planicies; logo, 700 metros de rochas foram re- GEOLOGIA DO RIO PARAGUAY 291 tiradas sobre uma extensão de 250.000 kilometros ou 175.000.000 000 de metros cubicos foram tirados de Mato-Grosso e levados Paraguay abaixo. Obser- var-se-a que tenho fallado apenas das partes da provincia que estão reduzidas approximadamente ao nivel actual do rio, A maior parte ido planalto, que ainda existe tem soffrido uma denudação mais ou menos importante, de maneira que a superfi- cie é extremamente: irregular. « Ajuntando-se ao nosso calculo o material as- sim tirado do planalto, não podemos suppôr que fosse de menos de 300.000.000.000 de metros cubicos a denudação acima do Fecho dos Morros. «Grande partie desta immensa massa deve ter sido espalhada sobre a planicie do Grão-Chaco e dos Pampas, «Não pretendo dizer que estas Aditica foram inteiramente formadas de material derivado de Mato- Grosso; o rio Pilcomayo e o Bermejo concorreram muito para a formação do Chaco, assim; como o Paraná para a dos Pampas. Porém, estou convencido de que a maior parte do material que actualmente fórma a planicie argentina, foi tirada de Mato- Grosso, Os Pampas foram roubados do Brasil. Rio de Janeiro, 26 de Dezembro de 1884. HeRrBERT H, SMITH, A REGIÃO DOS CAMPOS NO BRASIL (Sociedade de Geographia do Rio) | A maior parte do territorio do Brasil, con- junetamente com a Republica do Paraguay e o Es- tado Oriental, forma uma especie de planalto modi-: ficado, situado na vertente de Noroéste das monta- nhas da Serra da Costa, e limitada ao Norte e à Leste pelas planicies do Amazonas e do Paraguay. Este planalto é muito cortado por valles de rios, e é atravessado em partes por cadeias de montanhas. A região do Amazonas e a Serra da Costa são co- bertas de mata densa; o planalto propriamente dito é mais ou menos -oceupado por terrenos .abertos, a que no Brasil se dá o nome de campos. Estes campos são inteiramente continuos; são interrompi- dos aqui e alli por pequenas porções de mata, de que fallarei adeante. Tambem os campos não são de todo restrictos ao planalto brasileiro; en- contram-se porções distantes delle cercadas de ma tas, ao longo dos tributarios meridionaes do Ama- zonas; na vizinhança desse rio e para lá delle, occupam extensas regiões nas terras altas da Guiana. Considerando-se aqui sómente a porção princi- pal (o coração) da região dos campos, pode-se dizer | que ella cobre quasi toda a provincia de Mato- Grosso, as provincias de Goyaz, do Piauhy, do Rio Grande do Norte, da Parahyba e do Ceará; gran- des zonas das de Pernambuco, Bahia e Minas Ge- A REGIÃO DOS CAMPOS NO BRASIL 293 raes e eg das do Maranhão, Sergipe, Alagõas, S. Paulo, e Paraná. Na verdade, si considerármos as tona porções externas, não existe talvez nem uma provincia no Brasil na qual não se extenda a Tora dos « Campos». Deve-se, todavia, observar que as campinas do Rio Grande do Sul e do Estado Oriental pertencem mais á região dos pampas me-, ridionaes do que à que se acaba de descrever. A vegetação caracteristica dos « campos » parece ter o seu mais completo desenvolvimento nos cha- mados cerrados. Os cerrados são mais exuberantes nos, logares em que o solo é composto de areia solta; mas extendem-se por terrenos pedregosos e até certo ponto por terrenos de argila. As plantas são principalmente arvores baixas e arbustos, for- mando uma especie ' de semi-floresta; as arvores acham-se separadas umas das outras, ou crescem em pequenos grupos, interlaçando mui raramente os seus ramos, e fornecendo sombra mui insigni- ficante ainda nas epocas em que a folhagem se acha na maior força de exuberancia. As arvores em geral não têm mais de tres ou quatro metros de altura; são nodosas e tortuosas, com poucos ra- mos copados, que saem do tronco a um ou dous me- . tros do chão. A casca é quasi que invariavelmente muito negrosa, fendida e cheia de tuberculos, mas raramente espinhosa, de modo que a vegetação, só. por essa feição, apresenta uma face especial. O terreno por baixo e em redor das arvores é em parte coberto de relvas e de ervas; as ervas, de poucas especies, nascendo em tufos, mas nunca for- mando densos taboleiros; as relvas, de muitas espe- cies, mas muito espalhadas. Em alguns logares se vêem Bromelias espinhosas ou arbustos. espinhosos de genero Mimosa; nos terrenos rochosos, as Bro- melias se misturam com os Cactos, quer os peque- 294 APPENDICE nos, da especie globolosa, quer os de grandes fór- mas, que se ramificam. Algumas palmeiras peque- nas são peculiares aos «campos »; uma, pelo menos, sem haste, e com as folhas de menos de um metro de comprimento. As arvores abraçam muitas Myrta- ceas, Leguminosas (taes como Acacias, Mimosas, Bauhinias), Combretaceas, Sapotaceas, Compositas, Melastomaceas, Anomaceas, Malpighiaceas, Rubiace- as, Bignoniaçeas, occasionalmente Solanaceas, e ou- tras. Em geral, como na mata virgem, as differentes especies se acham confundidas; n'um kilometro qua- drado de terreno pode-se encontrar cem ou mais especies de arvores. Por vezes, uma particularidade do solo ou do logar favoreceu o desenvolvimento de uma espe- cie unica, a qual então se encontra em consideraveis extensões, com exclusão quasi absoluta das outras. As trepadeiras e epiphytas faltam quasi que com- pletamente: as arvores raramente tem ramos que se interlaçam; e, com pequeno incommodo, a gente pode andar a cavallo por quasi todos os logares no campo coberto. | St. Hilaire comparou a apparencia desses cer- - rados com. a dos pomares de macieiras. Muito antes de lêr as descripções delle, eu mesmo escrevi que os «campos» se assemelhavam a velhos pomares abandonados, cujas arvores, não podadas, tinham ficado cheias de nós e enfezadas, e ao redor de cujas raizes haviam nascido ervas e arbustos. Es- tas plantas rasteiras crescem frequentemente ao abrigo das arvores maiores, formando assim pe- quenas matas circulares, Como bem se pode suppôr á vista da immensa extensão da região dos «campos», a vegetação não é sempre a mesma; varia grandemente com a la- titude, elevação, solo, a quantidade de humidade, s A REGIÃO DOS CAMPOS NO BRASIL 295 duração da estação da secca, a declividade do ter- reno, etc. De todas estas causas a latitude é talvez a que exerce menor influencia; e a quantidade e du- ração das chuvas, maior. É nos terrenos seccos, arenosos e abrigados, nos valles pouco profundos, nos longos declives em di- reeção do Sul, e frequentemente nas orlas das flo- restas, que as arvores dos «campos» attingem ao seu maior desenvolvimento; são esses os cerradões, nos quaes a vegetação têm alguma cousa de verda- deira floresta, attingindo muitas vezes as arvores à consideravel altura de 10 ou mesmo 12 metros; os seus troncos são longos e quasi direitos; as ramas, tendendo em geral para o alto em vez de se alar- garem e as das differentes arvores se interlaça- rem; a casca muito mais lisa. Occasionalmente, tre- padeiras e epiphytos agarrados ás arvores. Os cer- radões, porem, só differem em grau das outras partes da região dos «campos». É verdade que algumas das especies são distinctas; e onde os cerradões estão adjacentes a trechos da mata, póde existir uma mescla de fórmas de florestas; mas essas fei- ções são devidas unicamente ao facto de que certas especies crescem melhor em certas situações. A altura e a tendencia para o alto tornam-se mais notaveis porque as arvores se acham mais proxi- mas e se interlaçam umas com outras: é regra em todas as arvores que o crescimento, interrompido em uma direcção, toma outra. A variação de grau ou direcção opposta, pode-se observar nas vertentes expostas, e nos terrenos alu- minosos, que são menos favoraveis à vegetação ty- pica dos «campos ». Aqui as arvores tornam-se menores ou mais 296 APPENDICE espalhadas, e as relvas e ervas formam um tapete mais espesso; por vezes as arvores acham-se tão afastadas que o terreno parece todo nú e semelha um parque; mas, mesmo essas arvores espalhadas são, com poucas excepções, das mesmas especies que as que se encontram nos cerrados. Desses campos abertos vai apenas um passo para as pastagens, os tabeleiros descobertos de Mi- nas Geraes, nas quaes as arvores desappareceram completamente. Devido a alguma particularidade do solo ou do clima, esses campos abertos occupam quasi inteiramente uma larga zona ao Oéste da serra do Espinhaço, em S. Paulo, Minas Geraes, Paraná e outras provincias; mas, elles encontram-se, com maior ou menor extensão, em toda região dos « campos ». ! Em Mato-Grosso, onde a vegetação dos campos pode ser considerada como typica, a estação chuvosa termina em Maio; Junho e Julho são, em geral, sem chuva; Agosto e a primeira metade de Se- tembro são quasi iguaes; e a estação chuvosa prin- cipia mais ou menos em. primeiro de Outubro; as maiores chuvas são de Janeiro em deante. As ar- vores da região dos «campos » começam a rebentar com as primeiras chuvas, às vezes antes dellas; as relvas e as ervas começam a nascer um pouco mais tarde, e em Outubro a folhagem. está Tóra. O solo apparece então! vestido de um bello verde claro, assumindo gradualmente um cambiante mais carregado; depois, as folhas tornam-se mais espes- sas e mais duras e frequentemente asperas: à pro- porção que a estação secca se adianta, algumas das arvores deixam cahir completamente a folha- gem, e outras conservam somente parte das folhas, seccas e quasi murchas. Á pequena distancia esta folhagem parece mais castanha, que verde; as ervas a MATAS E CAMPOS 29% estão resequidas; a relva amarellece, e em deter- minadas regiões o campo está incendiado deixan- do tudo preto e desolado até que a relva de novo brote. A estação da inflorescencia é em Setembro e Outubro, algumas arvores cobrindo-se de flores antes de apparecerem as folhãs; não faltam, po- rém, especies que florescem em outras epocas e no mais forte da estação mais secca. O effeito de um clima humido e de uma es- tação secca mais curta -vê-se nos campos isolados do Pará, onde bem poucas arvores perdem de todo as folhas e os campos conservam-se ricos, durante todo o anno. Porem, em Janeiro (o começo da ver- dadeira estação chuvosa nessa região) occorre a mesma exuberante inflorescencia de vida na ve- getação do campo; ou como diz o Sr. Bates: «O solo rebenta-se em uma erupção de verdura ». Uma região na parte Nordéste do Brasil, in- cluindo o Ceará, o Rio Grande do Norte e terras do Piauhy, da Parahyba, de Pernambuco e Ba- hia, é assignalada pela grande duração e secca da estação não chuvosa; é torna-se ella ainda mais distincta do resto do Brasil por haver por vezes interrupção de chuvas quasi total: durante muitos annos essas epocas de suspensão de chuvas causam terríveis seccas, nas quaes as plantações se destroem, o gado perece, e ás vezes morrem milhares de individuos. A vegetação do campo cobre toda essa zona, sob fórmas grandemente modificadas: as es- pecies de plantas são, até certo ponto, differentes; e todas, ou quasi todas as arvores deixam cahir as folhas no principio da estação secca. A folhagem não torna a apparecer senão depois que .de novo chega a epoca das chuvas e tal é a vitalidade dessas plantas que ellas continuam a viver muito depois de ter o solo perdido a sua ultima gotta 298 APPENDICE de humidade, conservando-se com varas mortas du- rante tres ou quatro annos de secca. Logo que as chuvas vivificadoras apparecem, ellas rebentam de novo como se apenas tivessem atravessado os mezes regulares da estação secca. As arvores como que parecem economizar nutrição nos troncos e ramos, para uso das folhas novas. À região do campo não é, como já disse, in- teiramente continua. Em situações favoraveis, nas margens dos rios, cresce mata virgem; e nos logares cuja elevação é consideravel e o solo argiloso, este crescimento Lá é muito elevado, exuberante e luxurioso. Em Mato-Grosso os terrenos de mata virgem augmentam de extensão e de exuberancia na di- recção do Norte até perderem-se nas vastas flo- restas do Amazonas. A mata virgem varia muito nas differentes licalidades: qualquer, porém, que seja a sua na- tureza, é sempre clara e accusada, fortemente dis- tincta do campo: os espessos e mais altos cerradões não podem nunca ser confundidos com os. matos embora estes ultimos se reduzam ás vezes a me- ros matagases. As plantas do campo, arvores, relvas, ervas e palmeiras, são, desde a primeira até a ultima, dif- ferentes das da mata virgem: a unica mescla pos- sivel é onde as duas regiões são adjacentes uma a outra; então, em um espaço muito estreito, pode-se notar - uma ligeira mistura de plantas do campo e de mata virgem. Essa mistura pode, porem ser comparada com a que se dá ao longo do limite de dous campos ad- jacentes, que foram plantados de grãos divsrsos: algumas sementes podem ter-se espalhado de um “A REGIÃO DOS CAMPOS NO BRASIL 299 para outro campo, mas a linha limitrophe não é por isso menos distincta. A distincção entre a região do campo e a de mata virgem estende-se aos animaes; não sómente os insectos plantiferos, mas tambem os mammiferos, passaros, reptis, os insectos terrestres e de rapina, as aranhas e moluscos terrestres são accentuada- mente distinguiveis nas duas regiões. N'este caso, porem, os limites não são tão apparentes. Os ani- maes, por sua natureza, estão menos restrictos a regiões particulares do que as plantas. Individuos de especies da mata virgem podem vagar pelo campo por acaso ou em procura de alimento, e especies do campo podem frequentemente buscar o abrigo das florestas. As aranhas florestaes ou myriapodos podem muito bem viver em muitos dos cerradões cobertos; insectos e passaros que gostam de estender suas azas ao sol, podem-se encontrar indiscriminadamente no campo aberto ou nas ca- poeiras novas. A observação aturada, porem, mos- trará sempre que cada especie tem o seu verdadeiro domicilio em uma ou em outra região. Assim, diver- sos passaros e abelhas, que se vêm mais frequente- mente nos campos, fazem sempre os seus ninhos na floresta; o veado, o tapir e o jaguar, que va- gueiam pelos campos à noite, recolhem-se a floresta durante o dia e alli criam os filhos; o tatu e a ema pódem internar-se pela mata, mas nunca dei- xam de voltar para o campo aberto. Um facto importante é que a distincção bo- tanica entre a floresta e o campo é limitada; ella inclue todas as especies, mas. estende-se somente a uma parte dos generos e raramente ás familias. Na floresta ha a mesma prepoderancia de Myrtaceas, Leguminosas e de certas outras familias como nos cerrados; alguns generos, como Mimosa, são igual- 300 APPENDICE mente bem representados nas duas regiões; e se as palmeiras e os fetos são mais conspicuos na floresta, ou as relvas nos campos, estas distineções firmam-se na propria natureza das plantas, que ou: procuram logares humidos e sombrios, ou situações abertas. Algumas vezes até, as especies acham-se tão intimamente alliadas que podem ser conside- radas «representativas»; é assim que no Pará ha um Caju do mato (Anacardium), que quasi se não destingue da fórma do campo, a não ser o seu exuberante crescimento e o tamanho das flores e do fruto. Por outro lado, porem, certos grupos considera- veis, tanto de plantas como de animaes, são encon- trados exclusiva ou preponderamente em uma ou outra região; e essas distineções nem sempre podem ser explicadas por causas physicas. | "É digno de nota que sempre que a vegetação da florestaXchega a criar raizes a vegetação do campo fica excluida; as arvores da floresta vão crescendo de anno a anno, fazendo constantemente nascer outras e conservando o solo sempre humido e fresco; o humo vegetal vai-se formando gra- dualmente embora nunca chegue a ser muito es- pesso senão nos terrenos pantanosos; € tornando-se constantemente mais rico, vai de anno em anno ficando mais proprio para as plantas de mata vir- gem e menos para as. do campo. 7 Nas capoeiras novas encontra-se ás vezes mis- tura de plantas do campo; mas, a proporção que à vegetação cresce em altura, ellas morrem. Nos proprios logares em que se conservou limpo, o solo nunca mais volta à fórma do campo. igualmente difficil, porém, a mata virgem tomar pé no campo, si não é estimulada por solo humido e situação favoravel. A semente da mata, A REGIÃO DOS CAMPOS NO BRASIL 301 plantada nessa arêa ardente, ficaria dentro em pouco queimada, perdendo toda a sua vitalidade; precisa de ter humidade e frescura. para desenvolver-se. Por isso se observa que estreitas fitas de mata se encontram frequentemente ao longo das bases dos rochedos, onde o solo é em parte coberto de sombra; ou marginando pequenos lagrimaes, cuja infiltração d'agua conserva o solo sempre humido e fresco. A mata virgem, uma vez alli estabelecida, pode estender-se indefinidamente, porque os braços desdobrados das arvores mais externas dão sombra ao chão é protegem as sementes e plantas novas. Esse desdobramento deve ser necessariamente muito vagaroso; a não ser que pronta o solo e a, sl- tuação. D'esses factos só posso tirar uma conclusão: que a mata virgem tende constantemente a in- Dem O campo, ao passo que a vegetação do campo, “não ser por accidentes geologicos raros, nunca tio recuperar o terreno perdido. | E, admittindo isto, somos forçados a suppôr que a vegetação do campo é um typo mais velho que vai sendo gradualmente deslocado pelo da mata virgem. Esta theoria explicará a existencia de porções isoladas de campos como as do Pará; a maia vir- gem, no seu crescimento irregular, tem circumdado esses logares, e hade em tempo cobril-os e acabar com elles, não deixando vestigio da sua existen- cia, senão talvez em folhas e madeira fossilizadas nos raros logares em hp ellas puderem ser con- servadas. As matas virgens maiores do Mato Grosso assemelham-se ás da região da costa, comquanto as especies ahi sejam, em grande parte, differentes; ha outras semelhanças imenos notaveis com as flo- 302 APPENDICE restas amazonicas; os botanicos, por isso, hão de sempre collocar a flora silvestre brasileira em uma | grande provincia (divisão) geographica, quer se trate da flora das planicies, quer das dos planaltos ou das montanhas. As florestas de Mato-Grosso, ainda de ' pequena extensão, foram provavelmente derivadas das do Norte e do Léste, talvez com uma adaptação de certas fórmas do campo, ou de outras fórmas das terras baixas sobrevizinhas ou dos planaltos da Bolivia. . As florestas da costa podem ter sido derivadas, - do mesmo: modo, de regiões florestaes mais antigas, das quaes nada sabemos; e, finalmente, parecer-nos- la que as matas do Amazonas, nascendo nos val- les quentes e humidos da proximidade dos Andes, foram sa alongando gradualmente para Léste, re- cebendo umas especies, talves, das matas menores que ellas invadiam e cobriam, adaptando outras do campo; mas, cobrindo e quasi fazendo desapparecer a verdadeira flora do campo da região equatorial. Isto nos leva a outra questão mais difficil: qual foi a origem desta flora mais antiga? Foram as arvores do campo formadas pela ada- ptação de especies florestaes a um solo secco e arenoso ? Ou' desenvolveram-se ellas de especies menores, ervas e espinheiros, como as dos Pampas? Estas questões não têm resposta no estado actual da sciencia; e talvez nunca a tenham. Ha, todavia, uma explicação possivel n'uma theoria de origem, que, confesso, mais me attrae à proporção que mais” penso nella. Parece mais facil as plantas do campo adapta- rem-se à vida da mata virgem do que as desta mudarem-se para o campo aberto. A mata virgem mostra uma gradação regular, A REGIÃO DOS CAMPOS NO BRASIL 303 desde o alto e exuberante crescimento do Pará até as catingas das provincias de Léste, que deixam " cahir as folhas durante a estação secca e rara- mente attingem uma altura maior de 15 metros. Nesses matos tão baixos, as plantas dos campos ainda poderiam viver; mas os cerradões mais ex- pessos não poderiam nunca abrigar os -ternos re- bentãos das arvores das florestas, ainda mesmo que as sementes pudessem resistir ao requeimado pelo qual têm de passar. E no caso de uma arvore florestal apenas criar raizes, ella formaria um cen- tro em redor do qual haveriam de crescer outras, extinguindo, em vez de enriquecer, a flora do campo. É certo que, no decurso das mudanças geo- logicas, adaptações de plantas florestaes do campo poderiam occorrer — e talvez mesmo tenham oc- corrido. Mas, é um facto mui significativo o de sempre que se encontram na mata virgem ou no campo, formas inteiramente alliadas, estas perten- cem em geral aos typos do campo. Não creio, por tanto, que especies isoladas do campo se derivem frequentemente das da mata virgem. É, porém, possivel, e até provavel, que toda a flora do «campo» se derivou de uma flo- resta pre-existente, que outr'ora cobriu todo, ou parte do planalto brasileiro. Pelas alterações geologicas o terreno tornou-se mais secco, o solo mais arenoso, o clima menos hu- mido e a região foi ficando gradualmente menos pro- pria para soffrer a vegetação florestal: de geração em geração as arvores foram-se tornando menos vigorosas, morrendo aqui e alli, atrophiando-se e enchendo-se de nós e envelhecendo antes do tempo até que nada mais reste senão essa rasteira vegetação dos cerrados: arvores ainda, mas arvores que não» passam de arbustos, florescendo e dando frutos 304 APPENDICE ainda, mas anãs até nisto; conservando ainda as suas feições de familia ou genericas, mas mudadas como especies para se adaptarem a sua nova vida. À apparencia dellas, mesmo n'esse estado, suggere a sua origem florestal; não se pode deixar de acre- ditar que ellas cresceriam direitas e alcançariam erande altura em solo mais generoso, do: mesmo modo que se pode pela cultura inocular vida nova em uma arvore frutifera, atrophiada e abandonada. A arvore do campo, porém, nunca chegará a com- parar-se com o viço dos seus antepassados; de- crepitas demais para sustentar as riquezas que nu- triam as florestas antigas, ellas ficam como que obstruindo o solo: uma raça cançada, condemnada a ser invadida pelos seus vizinhos mais moços, do mesmo modo que o moribundo imperio romano foi extincto pelos barbaros gigantes do Norte. Si esta theoria é correcta, proporciona ella. ex- plicações provaveis para as semelhanças. mais re- motas como tambem para as differenças entre a flora florestal. Ambas tiveram a mesma origem; talvez mesmo algumas porções das florestas ainda existentes sejam restos dessas antigas florestas, al- teradas, sem duvida, em fórmal e especies: do mesmo modo que os Romanos e os Godos descendiam de paes communs, que não pareciam com nenhuns des- ses seus descendentes. Rio, 10 de Fevereiro de 1885 HerBERT H. SMITH, Traducção de Carlos Americo dos Santos, NOTA. — Os principios de evolução pelos quaes as especies de ani- maes e de plantas alteram-se gradualmente para se adaptarem a novos meios são hoje tão geralmente - conhecidos que não julguei necessario explical-os neste escrito. Sempre que tratei de questões estrictamente botanicas, vi-me obrigado a basear-me sobre outras autoridades, por serem meus estudos neste ramo muito superficiaes. Este escrito é de facto mais propriamente uma contribuição á pgeographia physica do Brasil do que à botanica; naturalmente decorreram della questões de etiologia e de botanica.- O FABRICO DE LOUÇA ENTRE OS CADIVEUS “(Gazeta de Noticias) L O fabrico de louça é entre os Cadiueus uma arte universal e, ao que parece, indigena. Quasi todos os objectos que vi são ornamentados de ma- mneira peculiar, e, considerando-se o gráu inferior de civilisação destes indios, é muito notavel o gosto que se revela n'esta ornamentação. Ainda mais no- tavel é que tamanho progresso haja conseguido uma tribu essencialmente erradia, a qual, até muito “pouco, não tinha plantações nem casas dignas deste nome, A pericia, no fabrico e ornamentação da louça até agora só se tem encontrado entre tribus agri- colas que têm habitações fixas. Fiz uma grande colleeção de louça dos Cadiueus, constando de quasi duzentos specimens, que se acham agora em poder do Dr. Orville A. Derby. Seria impossivel, sem o auxilio de gravuras, dar uma idéa clara da ornamentação: direi apenas que os desenhos apresentam variedade quasi infinita, desde as rectas e curvas mais simples, até os modelos mais complicados, alguns de peregrina belleza, Varias pessoas, examinando alguns dos spe- cimens, têm reparado na sua semelhança com os artefactos gregos e etruscos, 6 a mim sempre im- pressionou a semelhança, Deve- -se, porém, obser- var que a louça é grosseiramente feita, muito in- ferior, nho meu conceito, ás panellas de barro dos o 16 306 'APPENDICE indios do Pará; mesmo nos ornamentos a execução é inferior ao desenho. A colleeção mostra de facto antes gosto ar- tistico delicado, do que progresso apreciavel em uma industria. Desenvolver-se-ia este gosto intei- ramente pelo trabalho em louça? Não é provavel: penso antes que procedeu do costume, immemorial nesta tribu, de pintarem.a face e o corpo em mo- delos. variados, e sua applicação à louça póde ser comparativamente recente. Até hoje os desenhos pin- tados no corpo são em geral mais delicados e com- plicados que os da louça, e a sua execusão é im- mensamente superior. Tambem alguns dos desenhos mais toscos do corpo são reproduzidos na louça e varios outros utensilios. A collecção consta de panellas, jarras, algui- dares e pratos de varias fórmas, e mais alguns specimens como assobios, imitações de passaros, etc,, productos evidentes de um momento de ocio e de uma imaginação phantastica. As panellas são de fórma ordinaria entre a gente do sertão do Brasil, redondas, com as paredes em bojo e um tanto baixas; algumas tem fundo chato e paredes perpendiculares. Das jarras ha algumas grandes e arredondadas; outras menores, cylindricas e de pescoço curto. Os pratos e alguidares, em cuja. ornamentação mais se esmeram, são umas vezes redondos com o fundo regularmente encurvado, outros quadrados com am- gulos arredondados (fórma muito linda), ou oblongos ou Ovaes com azas nos extremos. Todos estes são feitos de modo essencialmente o mesmo, mas uns | são muito mais ornamentados que outros, e alguns são perfeitamente simples. Descreverei o processo da manufactura, como vi nos ranchos dos Cadiueus. Fóra do rancho, num couro coberto com um panno velho, ha geralmente uma pilha de barro LOUÇA DOS CADIUEUS 307 pardo-escuro de côr e muito tenaz. Os homens obtem este barro em varios pontos das baixadas do rio Paraguay, e muitas vezes têm que fazer viagens estiradas à sua procura; cavam-no das margens com as pagaias e trazem-no para o rancho em canôas. Feito isto, nada mais têm com a louça: corre tudo por conta das mulheres, facto que combina com à conclusão do fallecido professor Hartt, segundo o qual o fabrico e ornamentação da louça entre os selvagens são devidos ao sexo feminino, O interior do rancho é uma scena de confusão: caixas, gamellas, pagaias, armas, está tudo empi- lhado junto; cachorros e crianças andam aos em- contrões, as raparigas estão pintando as caras dos namorados, ou arrancando as sobrancelhas com pe- quenos forceps; os homens dormem, comem ou be- bem em vasos pretos; as mulheres olham desenfa-- dadas para a scena, ou trocam entre si sons gut- turaes; o rancho, quando velho, é muito porco, e com o barulho e desordem que imperam, parece o peior logar possivel para lavor delicado. Entretanto, geralmente, notam-se umas duas ou tres mulheres, sentadas em - couros e empenhadas no fabrico e na ornamentação. | As mais moças e bonitas pouco têm com este trabalho; já não é pouco entreterem os namorados ou fazerem os collares de contas com que se adornam. É a mulher de meia idade, são as velhas que n'isto se occupam, trabalhando horas inteiras, vestidas apenas com um saiote curto ou um pedaço de al- godão amarrado ao corpo, mãos e roupa sujas de barro, as pinturas da face meio desmaiadas e in- distinctas, os cabellos, como de costume, apanhados em uma trança e amarrados fortemente com uma liga de lã. Aqui está uma a triturar cacos de louça velha 308 APPENDICE em uma pedra lisa e ligeiramente escavada, tendo uma pedra oblonga por. mão de pilão. O pó ou areia que resulta, vai juntando em um couro ao lado, é quando acha sufficiente a porção, toma um pouco de barro molhado e mistura-o completamente com. este pó, esfregando e amassando os dois juntos no couro como um padeiro; de vez em quando poem um pouco d'agua, Pronto o barro, senta-se a mulher no couro, com a perna esquerda descoberta e voltada para baixo, de modo que senta-se no pé; o pé direito fica livre. Tomando: o bolão de barro, esfrega-o entre as mãos numa especie de corda, de um meio metro pouco mais ou menos de comprido e talvez uma pollegada de grossura. Segurando-a com a mão esquerda, amarra-a em espiral à perna esquerda acima do joelho, apertando os circulos, à medida que vão -apparecendo, com os dedos da mão direita; o bolo que assim se fórma, é raspado com uma con- cha de agua doce (Anodonta) até ficar todo macio. No raspamiento usa-se o gume da concha, na di- recção dos circulos, esfregando de vez em quando o bolo na perna. É este um fundo de panella ou de prato. Quando a mulher occupa-se em fazer uma pa- nella, as paredes são construidas do mesmo modo com circulos successivos de barro, cada um dos quaes esbeiça sobre o exterior do que lhe fica em baixo, ao qual o prendem apertando-o com os dedos; a intervallos a superficie é alisada com a concha de que já fallei Quando a panella assume sua fórma, a mulher firma-a na perna esquerda com o pé direito, ficando com ambas as mãos livres para trabalhar. Ao chegar a altura desejada, a beira é adel- gaçada é virada para fóra pelo roçamento da concha LOUÇA ENTRE OS CADIUEUS - 309 no interior; ás vezes é ornamentado com uma série de impressões feitas pelos dedos. Então, põôem-na a seccar vinte e quatro horas ou mais conservando-a, em logar sombrio durante o dia ou, quando não ha chuva, em cima do rancho, á noite; ahi é de novo alisada cuidadosamente, por dentro e por fóra, -com a concha. Si, entrementes, sobrevier alguma tempestade, ficará provavelmente estragada a pa- nella, Os pratos e moringas são feitos do mesmo modo, variando a fórma, á medida que as paredes vão subindo. Si a louça é simples, não ha mais que cozel-a; mas, como já disse, quasi toda ella é or- namentada e n'este lavor addicional é que as ar- tistas indias acham seu maior enlevo. Vejamos duas ou tres que trabalham no mesmo rancho. Está aqui uma com um prato que fez hontem, - e que ainda se conserva molhado; tem-n'o ao collo, de fundo para cima, e occupa-se em pintar-lhe a superficie. Seu instrumento unico é uma cordinha feita de fibra de uma bromelia selvagem. Põe a corda no prato em que quer formar uma linha, e com os dedos comprime-a no barro, formando assim uma marca denteada da largura da corda; o mesmo processo é repetido para prolongar a linha ou fazer outras, Não houve desenho prévio, nem ha modelo; é difficil dizer si a concepção artistica existe prévia- mente no espirito da operaria, ou se evolue á medida que avança: inclino-me à primeira supposição, por- que semelhantes modelos são ás vezes reproduzidos, Estes desenhos à corda podem ser rectos, ou curvos, ou angulares; em geral ha uma cinta mais ou menos complicada, com um desenho symetrico no meio, quando nos pratos. Para ornamentar o interior de qualquer peça de louça, nunca servem-se de corda, X 310 APPENDICE ; Alli está outra mulher empenhada no segundo egráu de ornamentação, Um pedaço de oxido de ferro, que os indios acham facilmente junto-ás al- deias, é ralado numa pedra com alguma agua; a mulher mergulha o indicador no liquido vermelho assim obtido, e com elle marca certas partes do prato ou panella, entre as linhas da corda; quando trabalha n'um prato muitas vezes traça desenhos no interior, do mesmo modo: apenas n'este caso não ha linhas prévias para guiarem-n'a, Feito isto, | põe-se de lado a louça até chegar o tempo de cosel-a. Ajuntam-se então achas de lenha secca e põem-se em cima de um fogo meio apagado fóra do rancho, e por cima da superficie assim formada, depositam as panellas; faz-se uma especie de gaiola em roda d'ellas com outras achas e cobre-se por cima. Abana-se então o borralho até ficar labareda, que lambe a gaiola de lenha e dá igual calor a | todos os lados da louça, Entretanto, é preciso cuidado com o tempo; sobrevindo chuva, os indios põem um couro por cima do fogo até consumir-se de todo a lenha, Começa agora o terceiro gráu de ornamentação. Tirando as vasilhas do fogo com uns páus, as mu-: lheres collocam-nas no chão; então, com pedaços de resina preta obtida de páu-santo, enchem rapida- mente na superficie quente as partes do desenho ' que não foram pintadas com oxido de ferro. A resina dá uma brilhante superficie preta, que con- trasta muito bem com o. vermelho do oxido. O processo final póde seguir-se logo que a louça esfrie. Mistura-se com agua uh barro cal- careo branco, ou cal obtida de caieira, e lava-se: toda a panella com o fluido lacteo, Depois de secco, é tudo estregado com um panno velho ou com as. LOUÇA ENTRE OS CADIUEUS 311 mãos, resultando que a cal ou o barro sahe da su- perficie geral, porém incrusta-se nas linhas de corda, "que assim tornam-se bellamente- brancas. Assim acabada a vasilha, ha quatro cores: a amarella da panella, a vermelha do oxido de ferro, a preta da resina, e a branca das linhas, No fundo dos pratos a primeira é em geral inteiramente coberta, e no interior faltam as linhas brancas e os espaços pretos; o desenho, quando ha algum, é simplesmente vermelho, sobre amarello carregado. Ás vezes a resina preta não se applica ao lavor externo, e então as cores são vermelhas e amarellas com linhas brancas, — combinação muito agradavel. O fundo das panelas. e jarros não têm ornamento algum, Os pratos, como disse, apresentam o lavor mais artistico de todos. Ás vezes, como remate final, prende-se por fóra da beira uma fieira de contas brancas e azues, prezas por fios, que passam por buracos feitos antes da louça ir para o fogo, Os passaros e outros artigos de fantasia são ornamen- tados com linhas de ponta e superficies dg e vermelhas, : Quasi todas as velhas dos Cadiuéus, assim como suas escravas de outras tribus, fazem louça de al- guma especie, mas variam muito em sua pericia artistica. Uma mulher só fazia panellas e jarras notaveis pela sua fealdade; outras empregavam ape- nas desenhos simples; e as melhores peças da minha colleeção foram do feitio de duas ou tres mulheres, Acham evidentemente prazer em ornamentar OS vasos, mas, apenas acabam, pouco se importam com elles, vendendo-os prontamente por contas, te- souras, roupas, etc. Em Corumbá, geralmente cus- tavam-nos o valôr de 400 a 500 réis as melhores peças, mas nas aldeias dos Cadiueus obtéem-se muito (e 312 APPENDICE - mais barato. Uma bôa operaria fará quatro ou cinco peças por dia, ornamentando - -as e cozendo-as no dia seguinte. O uso dos ornamentos de corda, que eu saiba, só se encontra mesta tribu, e a belleza de desenhos que nelles se mostra é talvez superior à de qual- quer tribu de indios existentes na America. Os specimens de louça que vi no Museu Nacional e que foram obtidos no Mato-Grosso ou Paraguay, mostram ornamentos vermelhos e negros, um tanto semelhantes, porém muito inferiores aos dos Ca- diuveus. De resto, os desenhos da colleeção relacio- nam-se com os das antigas nações do Mediterra- neo, ou com a tatuagem das ilhas do Pacifico, . antes do que com o trabalho de qualquer das tri- bus americanas que conheço, Rio de Janeiro, 15 de Agosto de 1886 HEenrnBERT H. SMmÍrrH GENERALIDADES- SOBRE CUYABÁ (Durch Central Brasilien, Leipzig, 1886) Cuyabá, a capital idyllica no meio do sertão, hospedou-nos perto de dois mezes. Si, como affirmam as más lingas, mora. den- tro dos cuyabanos certa indolencia e estreiteza, que permitte aos immigrantes emprehendedores colher muito proveito dos filhos da provincia, não pro- vem isto do sangue dos seus antepassados. Os ho- mens que no começo do seculo XVIII penetraram até este canto perdido do mundo, eram aventu- reiros atrevidos que se entregavam á mais bar- bara de todas as profissões, a de caçadores de homens. Porem, ponhamos o motivo impuro á con- ta de seu seculo e de sua historia, e exclama- remos. pasmos: Si tivessemos hoje mais d'aquella força indomita, d'aquella impavidez caracteristica dos bravos Paulistas, que desdenhavam o perigo na luta contra forças superiores e zombavam da fome e da doença, bem poderiamos em troca dar- lhe alguma cousa da nossa manifesta philantrophia. Estudem-se commodamente nos livros e mappas os seus roteiros; calculem-se as enormes distancias que venceram por florestas e desertos, sem saber para onde iam, com a simples palavra-Avante, e digam si é possivel resistir ao sentimento de inveja. E a felicidade, reservada ao audaz, como diz o optimista; que precipita o louco no abysmo de suas paixões por meio de novos enganos, como 314 ; APPENDICE affirma o pessimista; essa felicidade, a mancheias, cobria de ouro os aventureiros, capitães do mat- to, que mal precisavam apanhar o precioso metal. Quem dá um passeio ao redor de Cuyabá, achá “ainda por toda a parte os vestigios de actividade febril; o solo está tão cavado e revolto ao redor que é de crer que a superficie da área em que assenta a cidade já tenha sido peneirada. Gradual- mente foi mudando tudo. Sem capital europeu as riquezas ainda exis- tentes ficarão inexploradas. Como satira à gran-' desa decahida, accentua-se ainda agora, depois de fortes chuvas, verem-se meninos ou negras velhas, na praça fronteira -á Sé, à cata de grãos de ouro; o que encontram não compensa o tempo nem o trabalho. Algo de romantico associa-se ao caso de um caçador a quem succedeu achar granulos de ouro no papo de perdizes. Bb o antigo proverbio americano: quem acha mina de chumbo fica rico, quem acha mina de ouro, pobre fica. Apezar do ouro na terra e diamantes nos rios, o matogrossense é um pobre; faltam-lhe as neces- sarias forças, falta-lhe a sufficiente disposição para o trabalho. Acredita que quando tiver sua estra- da de ferro, surgirá sem a menor duvida um gran- dioso progresso. Mas cumpre não esquecer quantos outros ter- ritorios do vasto Imperio, não menos dotados de thesouros naturaes, esperam remir-se pelos meios modernos de communicação. Conseguil-o-ão antes porque as difficuldades e despezas são menores; e mais tarde, quando a locomotiva ligar as cabeceiras do Paraguay com o littoral, hão de saber desfru- tar a vantagem de sua posição. As perspectivas são, pois, peiores do que 9 GENERALIDADES SOBRE CUYABA' 315 "Cuyabano queira ouvir ou suppôr; não é debalde que se mora no coração de tal continente. O que cumpre antes de tudo é, na maior es- cala possivel, attrahir ao trabalho a população abo- rigene, e offerecer aos colonos estrangeiros as con- dições mais favoraveis; mas esperar inactivo e des- contente o tempo da estrada de ferro, fazer de politico que malbarata o dinheiro do estado, diri- gir a attenção para as minas em vez de concen- tra-la na criação de gado e na agricultura, em uma palavra, procurar apenas os meios mais com- modos de lucro; não é isto que ha de trazer o progresso. — - Entretanto, nota-se um symptoma bom, anima- dor; as idéas aqui expendidas sobre as circumstan- cias da provincia são vivamente partilhadas e de- fendidas por muitos habitantes; não são, pois, só- mente simples opinião do estrangeiro que toca de passagem na terra. Ao contrario, o visitante encontra muita coisa “melhor do que esperava e é sorpreendido do mo- do mais agradavel pelo aspecto sympathico da ca- pitalzinha. Em summa, que esperava elle? Uma al- deia de Indios no sertão, alguns edificios publicos, poucas casas melhores dos magmnatas e graudos; o mais, palhoças. Entretanto a cidade tem uma historia dema- siado longa para não se ter desenvolvido mais fa- voravelmente, Fundou-a em 1718 Paschoal Moreira Cabral de Leme, descendente de Pedro Alvares Cabral, que uma bella tarde da terça-feira de Paschoa desco- briu o Brasil, graças a uma corrente propicia do Oceano. O nome Paschoal dado ao primeiro mon- te que elle avistou, parece ter favorecido tambem a gerações posteriores. Em 1726, o arraial foi of- 316 APPENDICE ficialmente. elevado a villa 'com o nome de Bom Jesus de Cuyabá; as armas então escolhidas mostram um monte. conico verdejante, em cujo topo está uma arvore de copa arredondada coberta de flo- res de ouro. A descoberta de metaes preciosos caro. custou; os primeiros exploradores soffreram de mo- “do incrivel as privações resultantes da má ad- ministração; e não menos soffreram das chicanas do governo ganancioso e dos ataques de Indios. . Uma monção de 660 homens foi toda aniquilada pelos Payaguás em 1725, escapando apenas um ao banho de sangue. | Capital do territorio aurifero, que em meiados do seculo XVIII foi convertido em capitania im- dependente, residencia do governador, era Mato- Grosso, sobre o Guaporé, primitivamente chama- do Villa-Bella. Em 1818 Cuyabá e Mato-Grosso fo- ram elevadas a cidades. Um censo de 1817 dá pa- ra a população do distrito de Cuyabá: 1109 livres e 982 escravos ou seja um total de 2091 almas. Quasi ao mesmo tempo, em 1816, contava a cidade de Mato-Grosso 3347 livres, 2475 escravos, total 5822, portanto, mais que o dobro. Entretanto o eli- ma insalubre, que provocava especialmente febre pa- lustre intermittente, obrigou o governo em 1820 a transferir sua séde para Cuyabá. Em 1833, o pri- meiro bispo fez sua entrada na diocese deste no- me, creada por bulla de Leão XII. Cuyabá foi de- clarada capital da provincia em 1835. De aperios de guerra immediatos nunca soffreu a cidade. Entretanto, em 1801 mandou numerosos auxilios em contingentes e provisões para Coimbra, apertada pelos Espanhões. O anno de 1834 escon- de triste macula para a: sua chronica. Os odiados Portuguezes foram expulsos da terra por um le- vante, e uns trinta delles cahiram victimas do pri- GENERALIDADES SOBRE CUYABA' 847 meiro furor da populaça. Na sangrenta guerra do Paraguay naturalmente decahiu o commercio e o bem estar, embora alguns individuos, que por terra com- merciavam com o Rio em caravanas, adquirissem riquezas consideraveis. | Entrementes a cidade de Mato-Grosso decahiu; o numero dos seus habitantes é agora menor que o de Cuyabá em 1817, e embora cruelmente flagel- lada em 1867 por uma epidemia de variola tra- zida dos campos de batalha para Corumbá, não se tem desenvolvimento pouco no correr deste seculo. Na propria cidade, em geral, estima-se o nu- mero de habitantes em 13 a 14 mil; o censo de 1872 dá resultado favoravel: c | Homens Mulheres Total Livres 8000 6528 14528 Escravos 882 802 1684 8882 7330 16212 O recenseamento de 1.º de agosto 1872, o pri- meiro de um povo já então independente -havia cincoenta annos, é accusado de graves erros; en- tretanto, sendo o unico, é o que deve servir de base. Não é sem interesse a disposição segundo a cor, embora só na generalidade mereça confiança, pois o predicado de branco, desejado socialmente, não corresponde precisamente ao numero 24 das tabellas de Broca. Os pardos são o produto da mistura geral de cores e incluem todos os cruza- mentos de qualquer grau entre brancos, pretos e amarellos. Caboclos são os cidadãos de puro sangue indio. 318 APPENDICE Brancos Pardos Pretos Caboclos Total Lida Homens 2780 2674 1813. 833 8100 | Mulheres 2058 2499 1149 822 6528 Futtavos Homens — 347 Dr p — 882 Mulheres. — 274 529 e! | 803 4838 5794 4026 1655 16313 Portanto: 14.628 livres e 1685 escravos. (Es- tes numeros não correspondem precisamente aos Su- pra citados). A cidade fica aos 15.º 36' de lat. S., e aos 56.º 1º 46” O. de Greenwich, nos contrafortes on- dulados que das encostas ingremes do planalto se estende até o rio Cuyabá, numa distancia media de 40 kms. Com uma largura que em varios logares ex- cede a um kilometro, a cidade estende-se por ou- tros tres; o chamado Porto, situado junto ao rio, fórma freguezia à parte, com o nome de S. Gon- çalo de Pedro II. Aqui acha-se o arsenal de guerra, com seu portão imponente, a cadeia e o quartel do 8.º Ba- talhão. Uma barca serve ás communicações com a margem direita, um escaler unico satisfaz as ne- cessidades do porto. Um segundo que o comman- dante do nosso vapor trouxe para negocio não achou comprador. Uma rua espaçosa leva ao largo da Sé; ahi está a igreja matriz, começada em 1722, edificio simples, de uma só torre de um lado, obra essa prejudicada pela conhecida asymetria da falta de dinheiro; o interior, foi riecentemente restaurado. Em frente à matriz, ergue-se um alto cruzeiro de pau; ao lado algumas figueiras; na praça, o quartel do 21.º batalhão, algumas lojas e duas boticas, das GENERALIDADES SOBRE CUYABA 319- quaes uma é notavel, pois funcciona no primeiro andar a sociedade Terpsychore. Passando a cathe- dral, chega-se a um bonito sitio com bancos para "* descanço, canteiros floridos e arvores novas; aqui nos domingos, com a musica militar, julga-se a gente transplantada a alguma linda estação balnearia da Allemanha. O sympathico estabelecimento, caiado de azul, de um só andar, é dominado por palmeiras imperiaes, cujo longo renque occupa um dos lados do jardim; quasi juntos, ficam a vivenda do barão de Diamantino, o paço da presidencia com o com- mando das armas e a thesouraria provincial. Ha mais quatro igrejas: da Bôa Morte, do Se- nhor dos Passos, de N.S. do Rosario e de Nossa Senhora do Bom Despacho, em parte situadas tão alto que proporcionam vista encantadora das lon- ginquas serranias mal debuxadas e para o pano- rama da cidade, brilhante ao sol, mas sempre es- fumada de verde chibante. Cuyabá não tem edificio publico de valor ar- chitectonico; aos mencionados accrescentem-se o pa- lacio episcopal e a Santa Casa de Misericordia. Grande acquisição dos ultimos annos é o en- canamento de agua, porque o modesto corrego da Prainha nem de longe satisfazia as necessidades. Obras de arte? Quem as inspiraria, quem as exe- cutaria? a quem poderiam ser dedicadas? Em honra do barão de Melgaço, geographo benemerito que mais de uma vez presidiu a provincia, deu-se o seu nome a uma rua. Em nem uma parte quadro de santo ou figura de pedra. No portão do ce- miterio encontra-se um baixo relevo, no qual se vê uma chusma de almas contentes, expostas, ás penas do purgatorio. No proprio heroismo a arte nativa não desdenha o humor. No templo eginense os mo- ribundos sorriam, e, aqui, mesmo o purgatorio não 320 APPENDICE provoca nos peccadores mais que um risinho gaia- to. “Tão sómente para um chafariz que não jorra mais, edificaram uma casinhola de um quê mo- numental. As casas, construidas de adobe e cobertas de telhas, apezar de modestas, parecem graciosas e aceiadas, porque são frequentemente caiadas de no- vo, e as portas e janellas pintadas a côres. As paredes das casas mais pobres são de simples bar-. ro, socada entre duas taboas parallelas (taipa). Como grandes e pequenos dormem em redes, aproveita-se muito espaço; n'um momento transfor- ma-se o salão em dormitorio. Junto a esta invenção dos Indios sul-americanos, que se tem desenvolvido com grande luxo e muito gosto, tambem se encon- tram camas nas casas dos mais abastados; entre- tanto, para a media dos cidadãos ellas são tão desconhecidas como os raia. para os nossos aldeães. : Nas ruas mal se percebe que se vive nos tro- picos. Este solo ondulado, este calçamento exemplar, estas casinhas estreitas, estes candieiros de azeite, desprendendo-se das paredes, esta independencia pa- triarchal do bom gado, tudo nos envolve num ba- fejo de idyllico repouso, tão indescriptivel que dir- se-ia uma aldeola rural da Thuringia. Nas ruas cursam mais porcos do que cães, e destes por selecção natural resultou uma espécie mestiça, av enturosa e terrivel. Ageis pulam as ca- bras pelo calçamento. Como é atilado este bichame de quatro pés, especie de pequeno estado no estado, vê-se com admiração, quando inesperadamente desaba a chuva; por toda parte atira-se então uma tropilha para as casas competentes. À noite, quem se recolhe topa muitas vezes, em uma massa escura atravessada no caminho, que solta um som surdo GENERALIDADES SOBRE CUYABA 321 de descontentamento: Uma vacca que julgava po- der entregar-se ao somno, sem perigo de ser in- commodada. Principalmente na rua larga que vai para o porto e em que residiamos, reinava paz rustica. - Quem passa? Mulheres vestidas de cores ber- rantes, offerecendo peixes, frutas ou rapadura, doce primitivo do tamanho de tijolo; uma rapariga ven- “dendo cigarros escuros embrulhados em palha de milho, outra vendendo refrescos em garrafas de vi- nho ou cerveja, todas balançando os braços pen- dentes, trazendo mercadorias sobre a cabeça, ainda que fosse um unico limão; alguns rapazes chupan- do canna, um negro velho monologando animada- mente, o bobo Totó de cartola amassada, laço de côr na lapella do casaco, consumindo a roupa já sovada, acompanhado da mocidade esperançosa; de vez em quando alguns soldados; um esmoleiro sem chapeu, legitimado pela opa vermelho-cereja, de man- gas pretas; uma velha horrenda trazendo, envolto num lenço, um santo, que pode ser beijado. me- diante alguns cobres. De longe annuncia-se com seu chiar fino, mui- tas vezes não destituido de melodia, que augmenta gradualmente, um carro puxado por seis ou oito bois, carregado de lenha, com suas gigantescas e musicaes rodas quadradas, que vencem todas as difficuldades do terreno. Passa um cavalleiro, de perneiras brancas, longa sobrecasaca preta, cha- peu alto, preto, chapeu de sól, grande, preto, que tanto lhe serve para chuva como para o sól. — Como passou, senhor doutor? —- Bom dia, senhor collega! Na praça da matriz, à sombra das figueiras, estacionam algumas mulas carregadas, ou bois de monta, que pertencem a uma fazenda. Sem baru- 17 322 APPENDICE lho, sem azafama, correm os negocios nas lojas, em parte depositos importantes de todos os generos de importação: conservas, artigos de moda, brinque- dos, manufacturas, ferragens, e mil outros objectos caseiros. Trocas. de novidades e noticias entre os homens, fazem-se na botica da esquina; ahi é um comprimentar, um parar, um passar continuo; os freguezes habituaes ficam sentados diante da porta, Um acontecimento apenas perturba esta agra-. davel pasmaceira; só uma vez por mez troa a voz do seculo, XIX no rio Cuyabá. Um tiro de canhão, toque de cornetas nos quarteis; o vapor chegou. Corre-se para o correio; em pouco reune-se ali pará a chamada quasi tudo que sabe ler e escrever. (Que se passou nas quatro ultimas se- manas? Guerra na Europa? Europa! Quem se im- porta com suas provincias? Saiba o habitante das capitaes européas, que a falta de interesse que mostra pelo cuyabano, retribue-lhe este na mes- ma moeda. Que novidades ha na cóôrte? Quem morreu? Algum deputado disse realmente a verdade ao governo? (Que impressão fez a nossa resposta ao miseravel N.N. que chamou Mato-Grosso um covil de ladrões, e a quem mostrámos que elle, sim, é um refinado tratante? O vapor em geral não demora mais de 24 horas; as pennas correm sobre o papel, trabalha-se até alta noite, levam-se alguns amigos a bordo, e respira-se alliviado quando a machina inquieta põe-se outra vez em movimento. Vinte e quatro horas doze vezes por anno de trabalho forçado! Louvado seja Deus! póde-se refocillar o resto do tempo. Insipidez é a queixa commum dos filhos de outras provincias pertencentes às melhores classes, O indigena pouco se lhe dá d'isso;- tem o seu mo- GENERALIDADES SOBRE CUYABA' 323 do de gozar a vida. É impossivel que haja cidade. no mundo em que mais se faça musica, mais se dance, mais se joguem cartas; impossivel que em qualquer outro logar mais frequentemente se agi- tem as bandeiras de procissões, e melhor se saiba combinar as devoções collectivas com os prazeres sociaes. A natureza do cuyabano, dormente e unila- teral pela longa segregação, não possue o espirito de iniciativa industrial; a população lavra politi- ca e vive do dinheiro que o estado paga. Um em- prego, um empreguinho publico que seja, é o objecto de todas as lutas e de todos os calculos, Os dois partidos principaes, o liberal e o conser- vador, se contrapõem reciprocamente como o pro- prietario e o que nada tem. Tome-se um exemplo desagradavel, porém frisante, infelizmente: vive um bando de cães e gatos na mesma casa; ao meio dia põe-se um pratarraz de carne no quintal; quando os gatos conseguem apoderar-se d'elle, uivam os cães famintos; quando os cães o conquistam, fi- cam os gatos de parte, miando, lambendo as patas, Sobre as differenças de principios nos program- mas dos dois partidos, paira, ao que parece, mys- teriosa obscuridade. As palavras liberal e conser- vador não passam de palavras. As informações co- lhidas referem-se a questões pessoaes dos chefes, dizem respeito, no melhor caso, ao desenvolvi- mento historico; com muitos circumloquios diz-se que ainda pode haver outros partidos. Isto deve ser exacto, porque segreda-se não sei que, de repu- blicanos monarchistas ou monarchistas republicanos, Quando cai o ministerio liberal, cai o presi- dente e quem está em cima da escada; vai ao chão toda a massa até o ultimo escriturario li- beral. Ao mesmo tempo a fileira conservadora que 324 APPENDICE esperava: impaciente, atira-se aos degráos, e trepa, depressa quanto pode, para as alturas. O effeito mais agradavel d'estas circumstancias manifesta-se na vida social. Acostumada às vicis- situdes da sorte, a gente diverte-se a valer, e não faz cabedal de distincções de fortuna e hierarchia. Não se conhece o exclusivismo e a difficuldade de accesso aos medalhões, embora commummente taes distancias tanto mais se manifestem, quanto mais | modestas são as condições. O Presidente, que é um reisinho em terra gran- de, convive sem cerimonia e sem nada perder de sua dignidade com quem quer que encontre na agitação um tanto misturada da sociedade. O es- trangeiro sente-se mais em republica do que em. imperio e, si muita cousa á- primeira vista lhe parece extravagante, por fim louva de boa vontade a vida livre, que lhe proporciona o maior proveito. Casualmente em conversa, descobre que o homem obscuro com quem está fallando já occupou logar de destaque. Anda tudo em confusão. Um negociante quebra hoje, e amanhã apparece como inspector da thesouraria. Um official que fez politica desas- trada e foi demittido, abre uma sala de bilhar, dá lições de piano e nada soffre nas relações so- ciaes. — O major N.N. foi preso duas vezes por desvios de sommas consideraveis, — isto segreda-te à puridade o amavel hospede, que entretanto vos convidou a ambos, No uso dos tratamentos ha todo o cuidado de não omittir nada. Antes de mais que de menos, como aquella doente cortez do hospital de Vienna, que chamava ao medico Senhor de Doutor. Já o mortal commum, que entre nós se contentaria com o Wohlgeboren, recebe no sobrescrito o Illustrissimo ou Excellentissimo senhor. E de bom tom, quando GENERALIDADES SOBRE CUYABA 325 se quer mostrar respeito, tratar o que têm Mercê por vossa Senhoria, e por Vossa Excellencia a quem tem Senhoria. Na conversa, as senhoras têm di- reito a vossa excellencia. Apezar de toda a cortezia e sem ceremonia no trato social, aproveita-se este tambem nos interesses dos partidos. Os conservadores dão seus saraus no Recreio Cuyabano, os liberaes no Terpsychore. Of- ficialmente devem algumas pessoas pertencer a am- bas as sociedades, mas a separação é apurada, prin- cipalmente da parte da mais bella metade do mun- do político. Deste modo torna-se inevitavel a in- fluencia sobre as relações de familia; quanto pos- sivel, procura-se mulher do mesmo credo; entre- tanto não são raras as excepções, como não o é a mudança de partido por motivos commerciaes. Com violencia a luta se trava em sua arena publica, a imprensa. Revistemos os jornaes que existiam no verão de 1884. A «Provincia de Mato- Grosso» fundada em 1880, orgam do partido libe-. ral, com subvenção do governo, e a «Situação », fundada em 1867, orgam do partido conservador, eram as folhas principaes. «Orgam dos interesses sociaes», era o « Espe- ctador », redigido por um allemão, fundado em 1884 com o mote: Ridendo castigat mores. Fiel escu- deiro da «Situação », appareceu em campo (1884) o «Echo de Cuyabá», que não durou mais de dois mezes e meio. Finalmente, mais modesto, em plano inferior, a « Brisa», para «os interesses geraes da provincia» (1.º anno). Começou então a sua vida, com muitas desculpas de faltar-lhe a intelligencia indispensavel aos jornalistas, o imparcial « Athleta ». Todos estes jornaes sahiam uma vez por semana, aos domingos. Não traziam mais do que politica partidaria, acontecimentos locaes, noticias varias, ” do 326 APPENDICE injurias pessoaes e poesias. Durante nossa estadia nada se continha referente ao alem-mar ou siquer ao Paraguay. Entretanto, foi mudada a redacção da «Provincia», e confiada a um official muito instruido. | A polemica dos redactores occupa grande es- paço: com o aprumo classico do rhetorico penetrado da perfeita elegancia de seu estylo, atira-se um ao adversario atrevido, e mede-o, fulmina-o, ani- quila-o. Depois sobe do palco uma nebula de in- censo de erudição tão pujante de concentração phi- losophica tão profunda que o pobre leitor passa por um arrepio de febre de devoção. E que tem o cão no bucho? (Gótz bate a janella). Ninharias, chalaças e... Por toda parte exageros bombasticos: com O processo do'coronel X, «occupam-se todos os jornaes da terra», diz a «Provincia». Um laço cordeal prende a redaçção aos assignantes. Ella deseja aos illustres recem casados Joaquim Eulalio e Balbina Rosalina um futuro risonho, semeado de fores; envia ao velho Agostinho um aperto de mão no dia de seus annos; implora aos céos para à sympathica Jacinthinha ainda muitos annos de exis- tencia e uma fonte inexhaurivel de felicidades e bem estar; divulga que a joven Ermelinda, de 12 annos de idade, que está em um collegio da provincia do Rio. Grande do Sul, recebeu no ulti- mo exame o segundo premio e congratula-se com o seu pai por sua. filhinha esperançosa, Aos annuncios consagra-se espaço relativa- mente menor. Quem, porém, duvidar que estas idéas modernas chegaram tambem ao fim do mundo, “leia o seguinte annuncio do barbeiro Theobaldino Seve- rino, que apresenta a seus freguezes um estabe- lecimento novamente montado. N'elle desap parecem todos os inconvenientes, que costuma haver com + GENERALIDADES SOBRE CUYABA. 39% o processo geralmente seguido: «todas as vezes que - empregar a navalha, leval-a-á a uma chamma de espirito, para evitar que passem de um a outro os parasitas microscopicos do systema pilloso; para cada pessoa usará de sabão novo». Em contraste a isto pode a seguinte ordem da policia mostrar quantos espiritos de povos e éras differentes entrechocam-se em Cuyabá: «é pro- hibido nas ruas d'esta cidade o uso das seguintes armas offensivas: espingardas carabina, pistolas, re- volveres, espadas, floretes, punhaes, navalhas, facas de ponta, facas de mola, tio ceia de estoque, so- velões e massas. Altamente caracteristica é a historieta da mor- te da .figueira.. Em uma calida noite de Março, foi posta abai- Xo, por mão criminosa, uma das figueiras bravas do largo da Sé. Para tognar mais desagradavel a cousa, foi o crime commettido defronte . de um posto policial. O proprio chefe da policia fez rigo- roso interrogatorio. Tal e qual: o sentinella João Albino da Cruz tinha se deitado no calçamento e adormecido. Dezassete pessõas da vizinhança, a que tambem pertence a casa do chefe de policia, foram interrogadas. Um barbeiro, dez minutos an- tes de derrubada a arvore, tinha visto o Sr. Hemn- rique, e notado um vulto como o do Dr. Antonio, O chefe de policia publicou o seu inquerito, em que concluia que estes dois senhores, pertencentes a melhor sociedade, eram fortemente suspeitos no crime, Vejamos agora os protestos valentes dos ac- cusados. Primeiro apparece o seu advogado, e, com a cortezia profissional, dilacera a logica do digno funccionario. Vem depois o Dr. Antonio e como o trata! «V,. Ex. é sem duvida incapaz do elevado E 328 APPENDICE cargo que oceupa. Fraco de intelligencia, nullo de vontade, pobre de conhecimentos, não reparou. se- quer no papel ridiculo que representou de bo- neco nas mãos de-um palhaço: ahi tem V. Ex. o seu retrato». E continua: «É mais que ridiculo que a primeira autoridade policial da provincia de-Ma- to-Grosso se occupe com o córte de uma figueira brava. Si eu podesse dar um conselho profissional sobre as faculdades mentaes de V. Ex., eu não he- sitaria em recommendar-lhe um bom aposento no Rio de Janeiro, no magnifico palacio da praia da Saudade». O Sr. Henrique, finalmente, não é menos escolhido em suas expressões e caracterisa o cum- plice do chefe de policia «o chamado redactor de um orgam politico» cpmo «a petrificação de um vomito » Além disso, foram distribuidos dois avulsos humoristicos pela cidade, dos quaes um, em papel vermelho, decanta na forma predilecta da glosa os elfeitos da terrivel desgraça da morte da figueira. A primeira estrophe reza: Seis dias em Cuyabá Ouviu-se um grande ruido, Desmaiou esmorecido nd Na chefia Ali-Babá. Lá da margem do Aricá, Dentro, a dentro da mineira, O clamor tomou carreira, .Morreu gente em Poconé Tremeu terra em Lavapé Foi a queda da figueira “9. Só se vendo a satisfação perversa com que o papelucho vermelho era lido! Mas quem foi o malfeitor? E o que não se descobriu. Não ha duvida que o Sr. Henrique, com ni *) Esta decima foi bondosamente retraduzida do allemão ao vernaculo por Machado de Assis, a pedido de quem escreve esta nota. Particularmente mão amiga indicou o original nas Datas Mattogrossenses de Estevão de Men- donça, Rio 1919. GENERALIDADES SOBRE CUYABA 329 o desapparecimento da frondosa arvore, podia olhar livremente para as janellas de certa moça bonita; tambem é certo que o Dr. Antonio não era af- feiçoado ao chefe de policia. Teriam o amor e a vingança se unido para o desatino? Acaso a poli- cia, que possue muita finura quando querem incom- modal-a, teria acertado? Quem sabe? 18 de Março 1884. A deshoras da noite, os moradores do largo da Sé — hoje praça da Republica — são despertados pela quéda de uma das alterosas figueiras que exis- tiam em frente ao sobrado do capitão Antonio Ro- drigues de Araujo, agora occupado pelo Hotel Universal. | O caso produzio ruido, commentando-se pela cidade o motivo por que fôra a arvore serrada, não faltando quem apontasse como autores do fa- cto o dr. Costa Barros e o negociante Henri raue “Sant'anna. O chefe de policia abrio rigoroso inquerito para apurar a responsabilidade devida, mas desistio desse intento tão logo veio a esbarrar com o ridiculo que o caso envolvia, e que a imprensa local ali- mentava. A proposito da «morte da figueira» não fal- taram versinhos cortantes, e na “tipographia d'O Povo foram impressos e distribuidos em avulsos 2»08 que aqui transcrevemos: x MOTTE A queda de um vegetal Lá no largo da Matriz se Foi um gracejo infeliz Causou um damno geral. 330 APPENDICE GLOZA Seis dias em Cuiabá Durou horrendo estampido, Na policia, sem sentidos, Desmaiou o Ali-Babá; Desde as margens do Aricá A's minas do Cabaçal, Houve um sussurro geral; Morreu gente em Poconé, Abalou o Lava-pé — À queda de um vegetal. Estupenda inquirição Fez-se no largo da Sé; Fardas, casacas, libré Deram sua opinião: Todo o povo em coniusão Aquella arvore bemdiz Quando, Bertholdo feliz, Coçando a sua caréca, Brada ás armas, diz: — Eureka... — Lá no largo da Matriz. Um barbeiro esbodegado Vem trazer luz á questão, Vendo com a serra na mão Um vulto gordo abaixado; O Bertholdo orientado Grita da cam'ra aos edis: “Achei o valor do X No grão problema da praça Pois pr'a ser simples chalaça — Foi um gracejo infeliz. O vinte e um resentio-se A policia estremeceu Da Prainha o morro abrio-se O S. Jeronimo gemeu; O Apa retrocedeu, E dessa quéda fatal, GENERALIDADES SOBRE CUYABA' id é Que nos fez um grande mal, Seis dias em Cuiabá Não se ralou guaraná, — Causou um damno geral. ed Como pseudonimo lia-se Um devoto de Sant'anna, não se tendo chegado a descobrir o verdadeiro autor de taes versos, porquanto varios foram os indicados, entre os quaes os de Pedro Placido Pei- xoto Pitaluga, Custodio Alves Ferreira e Flavio de Mattos. * A traducção do livro do Dr. Carlos von den Steinen, Durch Central- Brasilien, Leipzig, 1886, começou a ser publicada sob o titulo “Na gema do Brasil” no numero 203 da Gazeta de Noticias de 22 de Julho de 1888 e pro- seguiu nos numeros 204, 205, 206, 207, 208, 209. 210, 211, 212, 213, 214, 215, IT, 218, 220, 229, 295. 231, 234, 254, 261, 264, 267. Foi suspensa no numero 302, 29 de Outubro, pelos motivos expostos no prefacio. A parte vertida comprehende as primeiras 115 paginas do original allemão. ESTADIA EM CUYABÁ Cousá que se pareça com hotel, não havia em Mato-Grosso; o que ficava mais á mão, distava tanto de Cuyabá, como a corte de Berlim do cabo do Norte. Um italiano rico e avarento, Pascoal, que, apezar de sua demencia senil, ainda sabia contar bem, recebeu-nos, cedendo dois agradaveis quar- tos espaçosos. Um, o salão, era mobiliado com a elegancia sem solidez de um café duvidoso — mesa de marmore, cadeiras de pés quebrados e encostos torcidos, lustre mal prateado, nas paredes uma col- lecção de estampas da mythologia amorosa da Gre- cia, uma heroica aquarella de cores, fabricada em um dia, que produzira o dono da casa em sua epoca brilhante, e, muito mais parecido com elle, um velho espelho despolido em moldura dourada. O quarto de dormir continha uma cama com mosquiteiro, armado- res para redes, tres cadeiras, uma banheira, um moringue, e mais não sei que. A cama tinha bas- tante roupa, mas nunca foi feita durante a nossa estadia de quasi dois mezes. Não levando em conta a visita occasional de alguma andorinha, morcego, alguns lagartos e bandos de formigas, eram nossos companheiros permanentes de casa, baratas de ta- manho e quantidades tão notaveis, como não as conheci nem maiores nem mais numerosas nos be- liches de um veleiro do mar do Sul. O tecto era de telha vã. Embora a casa fosse nova e vistosa fui obrigado uma noite de chuva a despachar mi- ESTADIA EM CUYABA É 339 nha correspondencia debaixo de um guarda-chuva; assim fiquei sentado e escrevendo até os gallos cantarem. Nossa roupa estragou-se por uma vez; o mofo alastrou por ella á vontade; nossas malas, apezar do rigoroso systema prohibitivo, foram su- jeitas à mania colonisadora de baratinhas, que im- migravam em massa, augmentavam de modo in- crivel e entregavam-se á rapinagem enthusiastica. Com predilecção pofecigm exportar a naphtalina espalhada. A parte mais agradavel e mais fresca pare- ceu-nos a extensa varanda, e não vão pensar que era algum corredor acarramanchado; porém o sa- guão da casa, ladrilhado de pedras como os quar- tos, que occupava quasi todo o fundo da casa, por causa das numerosas janellas, era claro e bem arejado. Todas as paredes, graças à veia artistica de Pascoal, achavam-se lastradas com fres- cos de vivas cores. Que mundo opulento em espaço acanhado! Pincaros cobertos de gelo, o arroio cre- scendo rapidamente, a precipitar-se a prumo para o valle, uma aldeiola suissa, porém immediatamente demorando a marcha n'um jardim da Renascença italiana; atraz de um portal de marmore sai e ser- penteia para cima, em busca de campinas semeadas de flores, para, alem destas, desembocar n'um lago azulado, onde formigam vapores de todas as ban- deiras, em cujas margens homens bem vestidos pe- “rambulam ou pescam. Pascoal tinha chegado a Mato-Grosso com um velho realejo, em cuja frente, durante a musica e cantoria, mimosos bonequinhos executavam um bailado; em Diamantina fora protegido pela sorte em seu mister de garimpeiro, e aos cuyabanos fôra elle o primeiro a dar a conhecer pão todos.os dias. Suas fornadas souberam conquistar logar ao lado 334 ; APPENDICE da farinha de mandioca, e, posto que fosse preciso importar toda a farinha de trigo, a nova hds com tornou-se rendosa. O velho permanecia todo o santo dia no mesmo lugar, de onde dominava com o olhar de general a varanda, a cosinha, e uma janella que dava para a rua, expedindo d'alli mesmo as suas ordens. Com vinte cigarros, a ração de que se munia, e uma caixinha de Jonkopings n'uma mesinha ao lado, sempre de casaco, collete e meias, cochilava muito contente da sua vida ou incubava desgosto pro- fundo; de quando em vez monologava em voz alta, e quando não passava o mau humor sovava uma creolinha, cuja educação tinha tomado a si. De noite, quando estava de bom humor, cantava com voz somnolenta alguma copla do seu tempo de ar- | tista. Elle era surdo como uma porta, e possuia um idioma peculiar, marchetado de portuguez- e ita- liano e mesmo de alguns vocabulos gregos. Sua cachaça era o Levante, onde passara a mocidade. A's vezes chegava de perna tesa, arxrastando-se nos seus chinellos, segurando as calças com as duas mãos, e narrava, desprendendo em cada arroubo uma, das mãos para atirar um beijo com as pontas dos dedos, narrava as pompas de Athenas antiga, quando Aristides-oh! que bello homem! — ainda vivia, e a cidade-chi! -—- ainda contava milhões de habi- tantes. O nosso companheiro de casa e mesa era um general brasileiro, de origem allemã, que no ex- terior tinha muita cousa de D. Quixote, possuindo. um genio bellicoso mas amavel, que o levava a zombar de nós, cada vez que nos enthusiasmavamos pelo nosso Xingu. Que era uma empreza inutil e superílua. Que alli mesmo na visinhança havia tanta cousa desconhecida. Para que explorar o ESTADIA EM CUYABA 335 Xingu? O Xingu não foge, era a sua chapa. Deu-nos muitos bons conselhos, e foi amigo sincero e bem intencionado, apezar de seus motejos. "De etiqueta e toilette naturalmente ninguem se preoccupava em seu trato; à mesa de Pascoal, aliás teria sido ridiculo. Comiamos no mais pri- mitivo desalinho. Nunca me esquecerei da figura comprida do general, quando pela manhã, embru- lhado n'um ponche e arrimado n'uma especie de bordão dos Alpes, apparecia para o passeio que nós todos, em seguida, cada um por sua vez, ti- nhamos de dar ao jardim grande e bello, que of- ferecia varios recantos calmosos. Embora lembrem os cuyabanos um pouco os cidadãos de Scehild, comtudo não os imitaram, edificando suas casas sem janellas. Pascoal tinha um esplendido relogio de ouro, mas a negra cozinheira era de uma impontualidade à toda prova. Desesperado, annunciava-se geral- mente em primeiro logar o general, que, entrando na varanda, batia palmas e praguejava; em seguida, à fome impellia qualquer um de nós a entrar em scena; por fim, todos os quatro nos achavamos muito desconsolados diante da cadeira de Pascoal; o general dava berros aos ouvidos do velho e nós tres levavamos-lhe um relogio á cara. Falhando todos os meios pacificos, davamos tiros de revolver na varanda; a cada tiro, o nosso hospede estre- mecia como uma boneca, colhia as calças e pre- cipitava-se furioso para a tenebrosa cozinha da bruxa. O menu era uniforme: sopa, dois pratos de carne, ou então peixe, feijão, arroz e salada; de quando em quando aves, bananas e queijo do reino. Se a comida levava tempo em vir à mesa, em com- pensação tudo apparecia ao mesmo tempo. Quando a 336 APPENDICE sopa estava demasiado quente, podia-se principiar pelo assado. De guardanapo servia a barra da toa- Jha. O tempero em geral nada deixava a desejar e sempre ficavamos contentes, quando finalmente tinhamos alcançado a meta dos nossos desejos. O general caçoava com a mulatinha Amalia, que nos sorria, não sem dengues; nós nos exercitavamos, segundo à moda brasileira, a atirar farinha à boc- ca com a colher e comiamos pimenta até appa- recerem manchas vermelhas nas faces. Descança- dos facas e garfos, para preencher o intervallo até o calé, manejava-se o palito, cuja applicação por cavalheiros e damas é feita escrupulosamente. Uma chicarasinha do excellente Moka, um cigarro preto e mais um palito para o caminho era o ram-ram de todos os dias. Ás vezes vinha um major velho buscar o general: sentava-se ainda um pouco com- nosco e fumava um cachimbo. Tambem elle pa- decia da mania cuyabana, que tantas vezes nos expoz a verdadeiros martyrios, da mania -dos curan- deiros, — sou obrigado infelizmente a mostrar-me tão severo na minha posição de profissional. Além disto o collega major era homeopatha declarado; «o que Jesus foi para a humanidade, explicava elle, ao meu ver tambem o foi Hahnemann». A respeito da nossa viagem, sacudia ominosamente a cabeça. « Sem duvida alguma, o senhor ha de deixar os ossos no caminho, profetisava-me o pobre, isto estou vendo na sua cara; o Guilherme tambem mais tarde; só o Othão ha de safar-se». Não acon- teceu tanto assim; porém emquanto à intensidade e serie do adoecer, elle teve razão. Leve o diabo a homeopathia, As noites passavamos quasi sempre fóra, a sa- ber que não chovesse, porque neste caso nos con- formavamos com a triste realidade. ESTADIA EM CUYABA. ko No principio de nossa estadia, tinhamos sido convidados a passar a noite com um nosso amigo, allemão, professor de piano. Apezar do tempo ter- -rivel, fizemos a longa caminhada até a casa do Sr. Carlos, amaldiçoando as muitas poças de agua. Pouco depois das 8 horas chegámos. Portas, ja- nellas estavam fechadas, a casa estava na mais profunda paz, não havia viv'alma na rua, e a chuva cahia a cantaros. Nem campainha, nem aldrava, Espantados batemos às janellas. Afinal abriram-se, e o Sr. Carlos appareceu no escuro em trajes de dormir. — D'onde vem? que é que querem? foi à sua saudação cordial. — Ora, neste tempo, quando chove, replicou quando ijhe lembramos a conven- ção, aqui todos vão dormir. Tambem que se ha de fazer melhor? Não se pode fazer visitas. A expedição recolheu-se. Muito agradaveis eram as noites no paço do presidente. À. primeira autoridade de Mato-Grosso era en- tão excellentemente representada pelo barão de Batovy; embora naturalmente pertencesse ao par- tido liberal que então governava, sabia por seu amor à justiça e sua natureza conciliavel tratar tão bem os conservadores, que todos eram unani- mes em Jouval-o. Depois gentleman da cabeça ás pontas dos pés, esplendida figura militar em seu uniforme dourado de general, lembramo-nos d'elle com a maior gratidão. Mostrou-se muito bem dis- posto para com nosso intento e com seu apoio fa- voreceu extraordinariamente a nossa empreza; foi talvez quem a tornou possivel. O interior do palacio, que constava apenas de um rez de chão elevado, era simples e prazen- teiro; na frente ante-sala e sala de visita; n'esta duas pinturas, os retratos das magestades; junto á 338 APPENDICE primeira o gabinete do barão, contiguas saleta e alcova, e como sempre, no fundo, a varanda. Na sala um docel azul, um sofá e mais nada. Encontramos sempre o barão com dois ou tres companheiros jogando o solo, de que gostava muito, no espaçoso e confortavel gabinete. Recebiamos um excellente charuto do Paraguay, assistiamos ao jo- go, e, nas pausas, em palestras despreoccupadas, tinhamos occasião de aperfeiçoar nossos conheci- mentos ainda muito incompletos do portuguez. Por traz da cadeira do presidente, estava Lucia, en- cantadora mulata originariamente escrava, que o senhor libertara — se fosse eu não vê... — Quando o bom do amo acabava um cigarro, ella levava outro á bocca, accendia-o, tirava uma baforada e passava-o candidamente ao barão. A nós só dava phosphoros. Mas a nossa melhor professora era a baroneza, que geralmente apparecia mais tarde. Ninguem diria que a esposa do presidente, se- nhora extraordinariamente viva, tinha um filho que estava terminando o curso academico.: Era enthu- siasta de sua terra, a provincia do Rio Grande do Sul, e elogiava muito nossos compatriotas, cujas colonias estavam em condições florescentes e eram felicidade para a provincia. Não cançava em nos instruir sobre os homens, as instituições e os produ- ctos do Brasil. Muito affeita à sociedade para sen- tir-se feliz em Mato-Grosso e não motejar um pouco de suas condições primitivas, insistia, porém, que tudo era melhor do que fora de esperar e admirava exaltada a pujante vegetação. «Onde ha terra em que as laranjas maduras quando não são colhidas, ficam verdes outra vez, conservam-se frescas um anno e até augmentam de gosto»? Dava-nos la- ESTADIA EM CUYABA' 339 ranjas e mandava-nos muitas fructas que ainda não conheciamos. — Já viram caju? perguntou-nos uma noite. Tivemos de provar e admirar a fructa adocicada e com certo gosto de therebentina, que melhor nos sabia em limonada. — Ora, temos uma arvore lá fora, quero que os senhores fiquem conhecendo. Disse-o, poz-se de pé, Lucia tomou uma vela, e assim sahimos os tres jovens curiosos de saber, atraz das duas. Com a vela, a cuja luz scintillavam suaves - seus olhos esplendidos, de cilios gregros, collocou-se Lucia debaixo da arvore, e nós dissemos a uma: Oh! que bella arvore o cajueiro! — “A baroneza era tambem homeopatha; a allopathia, assegurava, mata as crianças. A's 9 horas servia-se o mate e chá, acom- panhados de excellente mistura; pouco a pouco ter- minavam os jogadores, contando seus grãos de milho; conversava-se ainda um pouco e despedia- mo-nos pontualmente. Só aos Domingos a reunião era mais numerosa. Fóra, no bonito jardim fronteiro ao paço, tocavam bandas militares, e todo o povo passeava para um lado e outro, defronte das janellas illuminadas da presidencia. Revistemos o que ha ainda de ver-se. A so- ciedade « Amor á Arte», em que os dous partidos encontravam campo neutro, era consagrada -aos im- teresses dramaticos. Assistimos a uma representa- ção que ella deu em seu beneficio. O theatro, con- struido por um tenente da armada, tem no interior, ao que se diz, semelhança com um navio. Construc- ção simples de madeira, galerias em que se se- paravam espaços por meio de postes e travessas, em frente ao palco, o camarote do presidente. Os camarotes eram principalmente occupados por se- 340 APPENDICE nhoras; ao longo da parede no segundo plano, aco- coravam-se escravos de promptidão. O preço de entrada deixava-se á generosidade das pessoas. Nós tinhamos encommendado um camarote a dois 3o0- lennes senhores, que nos procuraram em casa, e, como felizmente nos avisaram com antecedencia do necessario, mandamos o numero correspondente de cadeiras para o theatro. Representava-se Caim e Abel, peça moderna, apesar do titulo: um dos heróes era tão justo como o outro infame; entretanto, até onde entendi, as desa- venças entre irmão não foram questão de fumo, mas de fogo, que o amor tem. Para diletanti, os artistas iam muito bem; não ha duvida que nada é impos- sivel, quando esforços d'esta ordem dão resultado em lugar como Cuyabá. O ponto, cuja sombra, de chapeu na cabeça, apparecia às vezes em um bas- tidor, era notavel; conhecemo-lo mais tarde; ti- nham-no tomado porque não tinha voz; ha annos aphonico, cochichava com superioridade; porém, mesmo no maior enthusiasmo pelo autor, nunca a sua dicção podia comparar-se com a do actor. Minha attenção occupou-se mais com o publico; achei-o extraordinariamente frio e calmo. Eu pen- sava que alli todo o navio arrebentaria até as jun- tas pelo estrondo do applauso. Qual! Parecia antes reunião academica em aula de Universidade, do que representação theatral. Uma banda militar servia de orchestra; mas-que é isso? Um carneiro pas- seava pelo centro da platéa, alguns rapazes di- vertiam-se em puxal-o e o bicho assumia zanga- do a posição ameaçadora: de sua especie, invadi- ria a peça, os dominios da Biblia, e no fim ainda fugiria de Abel? Não; era o carneiro do batalhão, para o qual em Corumbá abriam-se as portas da igreja e aqui ESTADIA EM CUYABA' 341 as do templo da arte. Mas para mim tudo assumia o tom de Velho Testamento: a arca, Abel, Caim, o carneiro e um anjo de moça no camarote con- tiguo. Estas brasileiras, aos 12 e 13 annos de idade, quando já na puberdade, e a mãi começa a pensar seriamente em casamento, encantam e en- leiam com sua belleza florescente. No Oceano Pa- cifico não raro apparece uma ilha que ha muito se procurava, e subito ondula uma brisa suave de aroma de flores; a gente embebe-se na aragem prazenteira, respira-a satisfeito e a saude cresce. — ÀÁssim, caro leitor, — desculpa-me a paixão e inveja-me antes, si não a viste tambem, — pois evola-se d'estas criaturas tropicaes, antes da com- pleta maturidade, tão delicado, tão delicioso perfume de feminilidade, como não o possuem os ,nossos botões de rosas européus. Ellas o ignoram, e por isso tão puro como o do mar é este aroma. De resto não quero adduzir nenhuma contribui- ção para à theoria psychologica de Jaeger; assim, emquanto, como julgo, Caim matava Abel, eu en- toava meu psalmo silencioso á encantadora don- zella, e não pensava mais no palco e no carneiro que os rapazes perseguiam. Bem bonita que era; como não tornei mais a vel-a, assim ficou-me. D'esta maneira terminou o espetaculo. O Club Familiar dos Liberaes, a Terpsichore, nos convidara para uma partida. á — Apromptamo-nos como pudemos; fizemos todo o possivel para escovar o deposito de mofo de nossas casacas; Clauss coseu os botões do collete com agulhas enferrujadas, que se quebraram; Gui- lherme cançou-se em concertar as molas tortas do claque; eu sahi e procurei o melhor barbeiro. Tres pentes, duas escovas, uma lata com pó, um vidro de oleo para o cabello, um frasco de espirito, uma 342 APPENDICE cadeira, um espelho, e n'elle o avulso da morte da figueira. Durante o corte do cabello, o Figaro diligente não abriu a bocca; eu fumava, elle fu- mava; apagando-se-lhe o cigarro na sua faina, fez uma pausa calado; dei-lhe fogo; fumegando outra vez, elle continuou a aparar. Acabada- a operação, dei-lhe 1%; agradecendo, guardou; calado estendi-lhe de novo a mão; então procurou na algibeira, de- volveu-me quasi a metade, e despediu-me n'um tur- bilhão de comprimentos. Ás 8 horas começou a partida, no sobrado da praça da igreja. O barão de Batovy, tambem pre- sidente da Terpsychore, recebeu-nos amavelmente; eramos as unicas casacas, porem todos os homens estavam de preto. Uma sala pequena, especie de auditorio, tribuna, mesa para a directoria, piano, um camarote para senhoras; portas abertas, uma phalange de cavalheiros, sala de jogar, buffet, e no patamar da escada uma banda militar. O divertimento, devia constar de tres partes: 1,2 discurso e discussão, sciencia; 2.2 canto e re- presentação, arte, 3.2 dança. Primeiro, um socio fez um discurso vivamente declamado, em que deu um esboço da historia dos imperadores romanos. Enumerou todos os cezares, e não se esqueceu de distinguir cada um por epi- theto correspondente; tão pouco deixou escapar os nomes coevos, relativos a litteratura e philosophia. Não houve discussão. Duas senhoras cantaram um duetto; terceira tocou com muito sentimento uma phantasia sobre «A ultima rosa». Como foguetes de uma peça py- rotechnica que rebetam em todas as direcções, os de- dinhos fuzilavam, atiravam-se sobre o teclado, eru-. zando-se; ficava-se abysmado. | ESTADIA EM CUYABA' 343 A cada parte, cimibem no fim e imperio ro- mano, rompeu a musica ruidosamente. Já ha muito as mãos dos velhos e os pés dos moços estavam de comichões; d'estes para dançar, dos outros para, pegar nas cartas. Eu fiquei neutro, e bebi cerveja de Elberfeld, marca Jacaré. Entre nós tres os papeis estavam distribuidos do modo que Clauss dansava, Guilherme desenhava e eu fallava. Hoje o dia era de Clauss. Polckas e quadrilhas alternavam; as ultimas parecem inven- tadas para os climas quentes. Seria erro acreditar que aqui se dança com ' mais animação com maior paixão que em nossa terra. Ao contrario, a perpetua uniformidade de polcka e quadrilha raras vezes Re eepada por valsa ou habanera. Os trajos, talvez não dernier gout, geralmente davam boa impressão, e certamente poderiam fi- gurar em qualquer baile das classes abastadas de qualquer cidadesinha provincial allemã; pensei que as cores carregadas fossem por demais berrantes, comitudo parece agradar muito às senhoras serem obrigadas a coser os seus proprios vestidos; isto bem poucas cuyabanas pódem evitar. As faces das senhoras conservam-se ligeira- mente coradas; tal e qual como se dá lá com- nosco, (na Europa), tão bem se está informado do penteado da visinha, como aqui, a brasileira do tom do sombreado do semblante de “Sua amiga; não é preciso empregar-se uma escala” chromatica nu- merada para uma verificação exacta. Queria saber si o discurso cahira em terreno fertil; encontrei pura rocha, Para onde levara o vento as sementes? 344 APPENDICE Lá estava uma alegre moreninha de um quê ardoroso, de faces lisas e cheias, olhos pretos, com vestidinho de seda azul celeste, um grande laço- borboleta, amarello, nos cabellos negros: não tinha guardado a menor lembrança de Deocleciano e He- “leogabalo. Se eu lhe contasse que vira na America do Norte um canhão de legitimo ouro de California deixado por um imperador romano que fugia dos chinezes, a pequena teria me acreditado sob pa- lavra, e teria corado lisongeada de sua erudição. Era na vespera da Paschoa. A's 4 horas da madrugada. devia haver uma procissão, em que to- - mava parte a guarda nacional. Já à meia-noite appareciam officiaes que tinham sido destacados e que formariam a guarda de honra na igreja do Rosario. O baile acabou pelas 2 horas. Todos fo- ram ás pressas para casa e fardaram-se. A mu- sica, da Terpsychore esmoreceu e da montanha ou-' via-se a campainha. As familias conservadoras tinham seu centro no Recreio Cuyabano. Seu chefe era um velho de bom genio e ricaço. Este nos mostrou com muito orgulho o retrato, feito em Lisboa, de sua fallecida, esposa. Ella foi, disse-nos elle, a primeira moça da provincia. E fora elfectivamente bem bonita. N'um baile do Recreio, na casa do chefe do partido, a sociedade era muito mais mesclada. As cores pendiam para o escuro. Isto dava tanto mais na vista, quando compareciam a senhora do pre- sidente e outras filhas de provincias estranhas. Aqui principiou-se logo pela terceira parte; em tres gran- des salas dançou-se a valer. Todos os aposentos estavam abertos. Na varanda ou n'um quarto, os meninos celebravam baile particular. Esta mocidade em parte ainda de collegios, absorveu as longas quadrilhas de principio a fim com perfeita serie- ESTADIA EM CUYABA. 345 * dade, não obstante, de vez em quando, comerem um pedacinho de doce. Vi um rapaz que tinha idea muito mais sensata a respeito das danças, que os velhos. Elle por força queria beijar o par, e como esta recusava, dava-lhe de rijo. Que podia fazer a mocinha? Offereceu a outra face ao beijo, e ambos logo acharam a dança muito mais bonita “que antes. De repente apresentou-se-me um senhor já idoso, que eu não conhecia, cruzou os braços sobre o peito e perguntou-me em tom inquisitorial: — Que idade tem o senhor? Respondi-lhe com todo o acatamento. — E aquelle outro senhor? — Tanto e tanto. — E aquelle alh? Outra vez disse o numero. — Bem! disse, carrancudo, e sahiu. Este era um typo. Typo é aquelle que tem uma ou outra rodinha do cerebro que nega serviço. E quando o relojoeiro, então não póde mais concertar o desarranjo, então o sugeito é typão. - Embora esta especie de homo sapiens não seja especialidade de Cuyabá, tem aqui muito espaço para apparecer, graças ás condições livres da so- ciedade. Já na Terpsychore não me admirara pouco, quando um senhor, pallido, de barba preta cerrada, chapeu e guarda-sol na mão, chegou-se a mim e disse-me: — O senhor já bebeu cerveja? — Não, senhor, ainda não. Satisfeito da resposta, disse-me: — Então de-me a honra de beber um copo com- migo? Fomos ao buffet, elle pediu uma garrafa e repartiu-a. Esvasiou o copo e não se dignou di- rigir-me palavra. Com Clauss e com meu primo aconteceu a mesmissima cousa. E hoje, estando eu “na abertura de uma janella, saboreando o ar no- cturno, senti que alguem batia-me no hombro. Bra outra vez o sujeito pallido com o chapeu o o guarda-sol na mão. — O senhor já bebeu cer- 18 346 APPENDICE veja? — Sim, Senhor, já bebi cerveja. — Não quer tomar um copo commigo? — Muito obrigado, senhor, agora não quero. Longa pausa. Eu olhava para fora, e elle fitava calado o interior do seu chapeu. De repente principiou em tom triste: De- veras não quer beber cerveja agora? Fiquei firme. Lançou um olhar contristado para o buffet e su- miu-se. Com satisfação vi-o pouco depois, de cara radiante, approximar-se com sue ao “buffet. Este era um typão. A vida social é o lado luminoso de Cuyabá. Uma festa rende a outra; por toda parte a gente é bem vinda. Á visita de manhã oiferece-se um calice de licor, em geral preparado em casa e excellente, guaraná de gosto innocuo ou pura cachaça indigena; pode-se ficar para o almoço. A mobilia é simples; tambem Imagine-se que caminho tem de andar cada peça. Infelizmente quasi nunca falta piano. Havia então mais de 60; quando nosso Carlos lá apportou, não eram mais de 5. Até nos beccos mais escuros, ba- dalavam todas as noites os sinos do mosteiro ou atirava-se aos ceus La priere d'une vierge. A principio sentia falta de quadros nas salas; mas depois alegrava-me com os tapetes substituindo- os. O que tivemos occasião de ver procedia de dilettanti fracos, aqui chamados curiosos, e bastan- te curiosa era de facto a pintura. Dois photogra- phos não eram maus; porém um precisaria de re- formar os scenarios; onde quer que fossemos, es- tavam sentados ou em pé o pai, a mãi e o fi- lho, diante da mesma cabana de pastor suisso, ten- do por traz um monte coberto de neve. Possuo até o retrato de um; indio Coroá, que esteve na cidade, diante da tal cabana; é de se tiritar vel-o ESTADIA EM CUYABA' 347 assim tão só n'aquellas alturas, envolto de simples tanga de pennas. Não ha objectos de luxo, e não era preciso muito cuidado nas salas de visita. Espantamo-nos um dia, que estavamos sentados n'uma sala com a dona da casa. De repente saltaram da varanda por cima do piano tres cabras malhadas, que depois de alguns pulos fugiram para a rua pela porta entre-aberta. Envergonhou-nos, porém, termos perdido tão de- pressa o sangue frio, porque a senhora .não fez o minimo cáso dos bichinhos galopantes. “Nas visitas de noite, o tratamento é sempre cordial e agradavel. Muita cerveja e musica. Sem- pre visinhos ou filhos de visinhos. A grande li- berdade que se deixa á rapaziada que move-se e porta-se como gente grande, muito nos sur- prehendeu. Timidez e embaraço não se notam; nem o menino chóra quando tem de dar a mão à estranho, nem a mocinha treme quando, corada, apresenta-lhe um copo; mas em compensação, ella tem de escutar com solenne admiração os dedilhados penosos no piano-tacho e de affirmar com um riso cordial a satisfação intima que lhe causa a energia do homenzinho que na mesa chóra e esperneia: “Não quero! Um papai causou-nos muito prazer com a Sua maneira original com que baptisava os filhos, ou por muito amôr á ordem, ou humor de espirito creador. Os nomes dos rapazes começavam todos por A: Alberto, Arthur, Alfredo, Ancanor e Achil- les, — elle chamava-se Augusto os nomes das filhas começavam todos por C: Constança, Cordolina e Corina; infelizmente a mãi chamava-se. Maria da Gloria, - A cerveja cujo consumo é enorme e que é barata (18 a garrafa) era toda de procedencia. al- lemã, e em geral importada de Elberfeld, por ca- 348 APPENDICE sas do Rio e Montevidéo. Para mim e meu primo, serviu de recommendação o sermos de Dusseldorf, Por amor á- verdade explicamos que apezar do ro- tulo, os cervejeiros do rio Wupper não eram in- quietados por jacarés e crocodilos. Tambem as se- nhoras apreciavam a cerveja, — pelo menos as gordas, de idade. Generalisada entre velhos e moços, machos e femeas, era a paixão pelos doces, que, provavel- mente porque tanto apreciam, sabem preparar muito bem. Em, pouco tempo, adquirimos o' mesmo vicio. Nas grandes reuniões, appareciam ás vezes com bandejas gigantescas de gostoso manjar, pessoas ami- gas da casa que assim procuravam tornar-se uteis- utili cum dulci. — Quadros fugitivos de momento, desappareciam aquelles montes em poucos minutos, Especialmente o bolo de coco e mandioca feito pela senhora do commandante do 21 era tão bom, que só por elle sou capaz de ainda voltar a Cuyabá, Nunca se ficava aborrecido n'estas reuniões; iniciavam-nos na situação do visinho, e tambem cordialmente nas proprias; quando preciso, alludia-se ao Xingu e falava-se amigavelmente de nossa pa- tria. No Brasil é geral a sympathia pelos allemães por causa de suas felizes qualidades colonisadoras; alem d'isso, em logar em que o elemento militar representa tal papel como em Mato-Grosso, pre- valecia a consideração pelas victorias de nosso exercito. Este thema de conversa era sempre re-: volvido. Com veneração exprimiam-se os entendi- dos sobre o estado maior da Allemanha. Que os de- feitos principaes das tropas brasileiras eram dois, diziam-nos; combatia-se com armas modernas, se- gundo systemas antigos; com divisões não com-=. pactas, porém espalhadas. Alem d'isso que a edu- cação individual dos soldados era insufficiente; co- ESTADIA EM CUYABA 349 nhecia muito pouco sua arma; escolheu-se a es- - pingarda Comblain, porque com mecanismo enge- nhoso relativamente é a que possue maior solidez. Relata refero. Passamos horas muito agradaveis em casa de um collega em Esculapio, cuyabano de nascimento ; sua jovem senhora, filha do Rio, era pianista de valôr, e o filhinho chamava-se Tartini. D. Eugenia estudava quatro horas por dia e possuia agilidade espantosa. « Venham ver», costumava dizer o ma- rido, chegando as cadeiras ao instrumento; e com os dedos tocava piano no ar o mais depressa que podia. Um dia encontramos n'uma sala um altar le- vantado, por cima do qual estava uma corôa e um sceptro. O collega fora feito Imperador. Iamos entrar na festa das esmolas, preludio para a do Espirito Santo que se celebra logo de- pois da Paschoa. É escolhida a sorte uma pessoa que durante este tempo é obrigada a dar festas em casa. A hospitalidade é illimitada e por isso cada um traz suas esmolas. O imperador sai de porta em porta com numeroso sequito, para re- colher contribuições em dinheiro. Além d'isso man- da-se para a casa da festa donativos de qualquer ordem, que mais tarde são arrematados. Até os mais pobres tomam parte nisto; em annos ante- riores, quando não havia encanamento, os que não tinham mais que dar, traziam uma cabacinha d'agua, que iam buscar ao rio. No quintal formigavam lei- tões, cabras, gallinhas, um sem numero de papa- galos resoavam na turba variegada, macacos sal- tavam nas correntes, e até nos jardins mostraram- nos uma grande ema, que alguem enviara de pre- sente. Na varanda reunia-se uma alluvião de bolos e flores, Tres altas pyramides de fios d'ovos com 350 APPENDICE bandeirolas, dominavam todo aquelle alardo de gu- lozeimas. Duas cidadãs entraram; uma deu um laço | azul, a outra um par de brincos. Quem chegasse era servido. A actividade era geral, Muito commovidos, fomos para casa; tambem quizemos dar nossa esmola, que, como criamos, ser-. visse para os pobres. Guilherme teve de sentar-se e desenhar; mas desenhar o que? Foram despre- zados todos os motivos profanos, porque nossos dis- posições eram só para a piedade. Assim originou-se um anjo pairado; na fronte brilhava-lhe uma es- trella, embaixo extendia-se Cuyabá ao amanhecer. O anjo tinha nas mãos um livro em que se lia: « Quem dá esmolas aos pobres empresta a Deus». Ti- nhamos tirado custosamente este motte de um livro escolastico, porque biblias não havia, — o bispo não as tolerava, — e ficamos satisfeitos. Lá foi o quadro para a casa da Testa. Na mesa não tivemos de soffrer pouco dos mo- tejos -do general. (Que o festeiro ficava com as esmolas ou a importancia apurada em leilão para cobrir parte das despezas. As ultimas subiam ás vezes a 2:0008000 ou 3:0008000, sempre a mais de 1:000$000. Quem dá esmolas ao festeiro, empresta ao diabo, rosnava o general, rindo sardonicamente. Na noite marcada fomos ao leilão. Na entrada, à direita e à esquerda uma sala, no fundo a va- randa, à direita o altar illuminado, à esquerda re- cepção de hospedes; na varanda as senhoras for- mavam uma bella grinalda; todo o espaço, cadeira encostada a cadeira, tão cheio que apenas havia uma passagem para o quintal, onde era o leilão. A. cousa durou das 81/, às 103/,; em todo este tempo ficaram as senhoras sentadas, immoveis no mesmo logar. Em nossos bazares ellas tem com certeza papel mais agradavel. As pessoas que que- ESTADIA EM CUYABA) 351 riam comprar estavam reunidas no quintal; a um canto, para dar-lhes coragem, uma grande mesa com . cerveja e bebidas semelhantes. Um major Eduardo e o directorzinho do correio iam tirando os pre- sentes peça por peça e apregoando. O costume exige que o objecto arrematado seja entregue a uma senhora; segreda-se o nome ao leiloeiro, e este desempenha-se da commissão na varanda, antes de apregoar outro objecto. Paga-se dias depois; o dinheiro vão receber em casa. Ha- via ramalhetes de mão, cobertas, almofadas, laços, marcas de livros, tortas, empadas, corôas de flo- res, etc. A bolsa, no dizer dos contendores, estava frouxa; a importancia total foi de 6008000. Cada um manifestante tinha resolvido que di- nheiro havia de gastar; applicar este dinheiro em uma colcha rica ou em duas flores atadas juntas - era-lhe indifferente, porque tinha de offerecer a que arrematasse. Assim naturalmente estabeleceu-se o uso cavalheiresco de dar os preços mais elevados por algumas flores. Dois cravos, 208000; o ramalhete geralmente entre 88000 e 12$000. Como os preços são sempre gritados, as senhoras que prestam um pouco de attenção sabem sempre quanto seus ad- miradores estão promptos a sacrificar por ellas. No principio não sabiamos nada d'isso; assim Clauss comprou uma gravata encarnada de senhora por 13000, e metteu-a no bolso muito satisfeito da compra, sem saber que tinha de passal-a adeante; em breve, porém, comprehendemos o processo e'com- penetrando-nos do uso estabelecido, alistamo-nos en- tre os compradores das amaveis filhas de Flora. O bom «anjo das esmolas» attingiu preço re- gular. Quando descobriram que a cidade a seus pés representava Cuyabá, chegaram-se todos avi- damente e cada um poz-se a procurar sua casa. 352 APPENDICE Em conclusão, uma parte dos bichos: um ma- caco que por cima das senhoras trepava brejeiro pelas portas e cortinas, 108; alguns papagaios, preços baixos; um ria como perdido, ao entrar na sala; a ema 68, só. Os leitões não vieram à scena, Digno de menção ainda é um valente pedaço de canna, de 7 metros de comprimento, sustentado por duas pessoas — verdadeiro arco de triumpho. Depois do leilão, as senhoras, cançadas como deviam estar, tiveram de ir para a dança; havia-as em maior numero do que homens, embora diga a Biblia que dar é melhor que tomar; passada meia noite, começaram muitas a retirar-se. O directorzi- nho do correio serviu ainda bello muscatel, à roda, não se esquecendo de que tambem era gente. Em- quanto o vinho subia e descia inquieto na garrafa de crystal, fez-me um discurso agigantado que cul- minou na proposição que, como Colombo descobrira a America, eu havia de descobrir o Xingu, e que a provincia. ficaria devendo gratidão immensa a este novo Colombo.-« Pois assegurava elle, quem “dá uma estrada à provincia sempre...» Aqui pau- sou, viu que a palavra emprestar não servia. Mas de subito: «Quem: dá uma estrada à provincia em... é um empregado de Deus». Excellente directorzinho do correio: à vista d'isto tivemos os dois empre- gados de beber ainda o muscatel, de despedida e de rigor. Domingo de Ramos. Deviamos vêr a procissão; assim nos recommendou o Pascoal. O Santo seria carregado da igreja do Seminario à do Rosario, acompanhado pelo bispo, pelo presidente e officia- lidade, e um padre faria um discurso muito bonito na rua. Ás 5 horas subimos o morro em que está a primeira igreja; diante d'ella levanta-se um eru- + ESTADIA EM CUYABA. 353 zeiro visivel de longe, com a lança, a canna com a esponja, tudo coberto. Duas alas extensas de soldados achavam-se de promptidão, tres bandas de musica ao lado; muitos officiaes e senhoras de preto; collegiaes com o distico no bonnet: Collegio da - Constituição. Lá em baixo no. valle jazia Cuyabá na paz dominical; suave socego verpertino pousava sobre as paredes brancas e os tectos encarnados, sobre os jardins alegres e sobre os morros vestidos de arvoredo verdejante. Sentiamo-nos tocados de maneira exquisita pelo conjunto do scenario e da assembléa festiva. Fi- nalmente subiram as pessoas esperadas, pela esca- da comprida que leva da rua ao adro da igreja; o bispo, ainda moço, com sorriso franco, sympathico; o barão, na farda verde escuro de general, o chefe de policia, ofíiciaes, padres; a multidão de crianças atirou-se ao bispo para beijar-lhe o annel. Elle com seu sequito entrou na igreja. Fóra arranjaram-se as irmandades; descoberto, empunhando velas, em tres grupos, vestiam opas compridas, que se dis- tinguiam pelas cores encarnada, verde e violeta: o trio magnifico dos santeiros. Os opas encarnados eram todos negros; entre os violetas observamos caras conhecidas da melhor sociedade. Sem can- çar, badalava um sino n'uma janella da cumieira da modesta igrejinha. Carregado em andor, assomou á porta a ima- gem de Christo, bem duas viezes maior que o na- tural, vergando ao peso da cruz, vestido de purpura escura, um cordão dourado à cinta; debaixo de um pallio, seguia o Santissimo, atraz o bispo com os dignitarios ecclesiasticos e seculares com as velas à frente, a procissão desceu em compasso vagiaroso, fechando o prestito a musica e uma companhia de soldados com baionetas caladas. Ao pé da ladeira, E) 354 APPENDICE virou a procissão para a rua, ladeando uma arvore frondosa. As velas que flamejavam pallidas ao cre- pusculo incipiente, o andor que pendia pesado sobre as cabeças, carregado com o collosso ajoelhado, as cores magmnificas nas quaes a tarde e o excesso de figuras pretas esbatiam os efíeitos chocantes, a columna militar com as bayonetas lustrosas, — du- rante aquella volta da arvore, apresentavam as- pecto incomparavelmente pittoresco. Ah! se a mu- sica não tocasse a marcha de Boccacio. Apressa- mo-nos a seguir, e de muito boa vontade nos in- corporamos á procissão; não sabiamos mais onde estavamos; certamente não era na America do Sul, tão pouco na Palestina; em epocha inteiramente outra, em que ainda não haviamos vivido, — paiz inteiramente diverso, que ainda não tinhamos pisado. As ruas ficavam mais estreitas, o céu coloria-se de chumbo carregado, fusilava sem cessar, avultava a onda popular; estariamos n'um theatro? estariamos assistindo à uma festa de paixão à maneira Oberam- mergauer? No centro da cidadesinha, onde se cruzavam algumas ruas, deixando livre um campo circumdado de casebres baixos, paráâmos. No canto de uma d'estas casas, tinha-se arranjado um pulpito, apenas alguns pés abaixo das goteiras; a gente acotovelava-se; a luz das tochas resplandecia nas faces sombreadas, e, como se todo o apparelho de- corativo da natureza tivesse de ser apresentado, sobre este canto de terra medieval levantou-se o disco da lua cheia; relampagos surdos esfusiavam nas massas de nuvens ameaçadoras. Então inter- rompeu-se a tranquilidade; um sacerdote galgava o pulpito, e, estendendo os braços, principiara com emphase sonora: Que estupendo espetaculo! Emquanto pregava, a multidão subito recuou; da rua opposta, approximavam-se solemnemente, me ESTADIA EM CUYABA' 355 achando apenas logar, novas tochas, novas bandei- ras, uma segunda procissão, e acima das cabeças a Mãi de Deus, erecta, de manto azul estrellado. Ficou de pé em frente de seu filho. O pregador calou-se. Certamente se Maria houvesse ajoelhado neste instante, e, volvendo o rosto dolorido para o filho infeliz, torcesse as mãos desesperada, quem estranharia? O estranho é que assim não succe- desse. Outra vez soou a voz eloquente do pulpito. Não prestei attenção ás palavras. Este era «o encontro». . Unidas, as duas procissões foram para a igreja do Rosario, onde o acto terminou com uma breve oração. A procissão do enterro do Senhor na sexta-feira da Paixão edificou-me muito menos. Á noite, fomos á igreja do Rosario; a concurrencia era muito grande; fóra, em volta do cruzeiro, sentavam-se os irmãos de opas verdes e fumavam como centuriões — não digo romanos — até que appareceu o prestito. Tres mestiçazinhas de 4 a 7 annos estavam enfeitadas de anjos, murta ao cabello, espargido de lentejoilas de prata, azas feitas de uma especie de palhinha, per- ninhas tortas. Duas bandas de musica. Uma mocinha representava Santa Veronica, desdobrava o sudario e cantava em tom alto e agudo um canto quei- xoso: Aa... a... à..., repetido a cada estação. Pre- tos, grandes e pequenos, com umas folhas de mu- sica, cantavam em toada monotona, e com um certo instrumento produziam tons exquisitos de matraca. Christo no ataude era representado por um caixão rectangular, que era carregado debaixo de um pallio e diante do qual todos se ajoelhavam reverentes. A figura de Maria cambaleava por traz; um padre magro seguia, de nariz comprido, pontudo, oculos e sobrancelhas arregaçadas. Depois o bispo, o presidente, etc. Emfim, os fumantes, o falsete da 356 APPENDICE feia veronica e o caixão, roubaram-me toda a il- lusão. O sabbado de alleluia foi festejado como uma especie de Paschoa previa, pois ao meio-dia tiros de espingardas e repiques de sinos annunciavam que Christo resuscitara e era passado o tempo de luto. Abriram-se as lojas, e á noite toda a cidade dançava. | Em muitas arvores da praça ou nos “Cantos das ruas pendiam empalhados, bonecos, de tamanho na- tural, com Ou sem sapatos, representando Judas Iscariótes, que foi e -se enforcou como diz o Evan- gelho. Com grande algazarra, elle foi derrubado, es- patifado e queimado, pela mocidade enthusiasta. Já contei das festividades que antecediam a festa do Espirito Santo. O Porto, formando fre- guezia à parte, tambem tem Imperador proprio, Aqui tambem houve leilão, que esteve algo mais desafogado e sem ceremonia. Os preços tambem foram mais baixos. No dia da Ascenção tivemos mascarada. Mascaras características não houve, a - não ser talvez uma: um viajante n'uma mula, bem vestido, e, a julgar pelas bochechas de azarcão, bem nutrido. No chapeu tinha um escudo com a inseripção: Rio Xingu. Ah! se tivessemos chegado daquelha maneira ao Pará. Rio Xingu! D'elle não se fallava. Espero que o leitor benevolo não tenha julgado que em Cuyabá apenas bebemos cerveja, comemos doces, frequen- tamos bailes e igrejas, e em relação ao rio estives- semos. tranquilos com a palavra do general: O Xingu não foge. Um pouco de verdade se acharia em tal juizo. Não é só para o paiz de Cocagne que o ca- minho atravessa um monte de doces. Era intei- ramente necessario que ficassemos mais ou menos ESTADIA EM CUYABA 3517 conhecidos na. sociedade, cujo auxilio para nós se tornava absolutamente indispensavel. E, mesmo se tudo isto não fosse necessario, ainda assim teria “acontecido, pois paciencia, meu caro leitor, e ama- nha... entender e reconhecer isto, é a primeira condição para tratar com brasileiros. Tinhamos debalde esperado encontrar muita cousa util nos archivos de Cuyabá; o unico n'aquella epoca versado na geographia de Mato-Grosso e dono' de muitos documentos e manuscriptos refe- rentes ao assumpto era o agrimensor João Augusto Caldas, capitão da guarda nacional. Mostrou-se-nos muito obsequioso, mas não poude nos dizer o que ninguem sabia. Escrevera uma obra extensa sobre a provincia, para a qual não encontrara editor. Dividia-se em duas partes: Memorias chorographicas para a-his- toria de Mato-Grosso e Diccionario topographico, historico e descriptivo da provincia de Mato-Grosso, Penso que a obra é muito prolixa, e, tanto quanto possa concluir de um exame de poucas ho- ras, antes compilação do que critica; mas a ex- traordinaria diligencia, os incansaveis estudos ar- chivaes honram muito ao modesto collecionador e fôra para lastimar que se perdessem os fructos de uma curiosidade séria, e duplamente meritoria pelo meio mundano em que appareceu. Caldas reclama “para si a descoberta da viagem de Peixoto ao Paranatinga, que Severiano da Fonseca, attri- bue a Melgaço, e queixa-se que Severiano apro- veitou-se de tres planos seus sem citar-lhe o nome, Quanto ao primeiro plano pelo menos, tenho minhas duvidas, porém dado mesmo que elle reclame me- recimentos que não lhe competem, o certo é que trabalha em campo fertil, que outros deixam mani- nho e selvatico. 358 APPENDICE O barão de Batovy interessou-se amigavelmente por nossos planos, Acreditava, porém, que, depois de descobertas felizmente as cabeceiras do Xingu, torna- riamos para Cuyabá, é não se espantou pouco ao sa- ber que alli é que começava nossa tarefa principal. Parecia quasi impossivel. Sua competencia para nos dar escolta militar, — explicou a 1.º de Abril —, ter- minava com as fronteiras da provincia. O ministerio a 28 de Janeiro communicara-lhe nossa idéa e nos recommendara com empenho, porque a viagem era da maior importancia para o governo. De força militar não se fallava; entretanto, como a carta do ministro brasileiro em Buenos-Aires, de que fo- ramos portadores, assegurava que o ministro da guerra dispuzera de uma em nosso favor, estava prompto a assumir a responsabilidade da combi- nação dos dois avisos e preparar os soldados para, nos acompanhar. Ficamos muito alegres com isso. Os limites en- tre as províncias do Pará e Mato-Grosso, supposto affluente do Xingu, o rio Fresco, aos 8º, jazia alem da metade do caminho, e era puramente imagi- nario. D'onde viriam, porém, os animaes para tran- sporte? Pagar não só os nossos mas tambem os 30 soldados, excedia nossas posses. N'este interim atamos conhecimento com o ca- pitão Tupy, o commandante em perspectiva, que nos devia acompanhar. Tinha elle um modo albgro: animoso, de tratar as cousas; muita gente fazia-nos elogios a seu res- peito; chegamo-nos, pois, a elle em expectativa confiante. Para as questões dos animaes de transporte re- commendaram-nos uma proposta. Fizessemos contra: cto com o sertanejo N.N., homem muito abastado; ESTADIA EM CUYABA 359 queria visitar a terra alem de Paranatinga, por causa dos ricos seringaes que provavelmente encontraria; mas não se atrevia a fazel-o por si só, e mostrar-se-ia | reconhecido pelo serviço que lhe prestassemos com "a companhia, alugando os animaes o mais. barato possivel. Contracto até o ponto de embarque; eco- nomisariamos muito dinheiro, porque não precisa- vamos de comprar animaes, teriamos de graça gente que sabia tratal-os, viajariamos da maneira mais commoda do mundo. E se elle: não cumprir o contracto? Oh! exclamavam todos offendidos, N. N. é um homem sério; para taes casos se estabelece uma multa. "Que nos importava a nós chamar a contas o homem, se elle nos lograsse? Era muito grande o perigo do fiasco, fosse a culpa do sertanejo ou nossa. Tambem Tupy declarou-se muito vivamente por este contracto. A pedido nosso fez um orçamento. A base de todo o calculo assentava na circumstan- cia de que quando os soldados são destacados do lo- gar da guarnição, entrega-se ao commandante a etapa, que importa em 650rs. “diarios. Tupy recebia assim para 30 pessoas, dous mezes, alem do soldo, para etapa dos soldados 1:1708000. — Para se conhecer melhor a situação, não é “inutil apresentar os numeros. 1.º Alem do Parana- tinga. Para nós e os camaradas, calculava-se viveres, 80%, parte para os animaes de carga 958-1758, que se deviam descontar dos 9208000. Por conseguinte, Tupy, segundo seus calculos, tinha de despender 7458, de 1:1708 da etapa. 360 APPENDICE 2.º De Cuyabá ao Paranatinga. (Os soldados deviam levar as provisões para a viagem de 10 a 12 dias, nas costas, em: mo- chilas). Em summa (sem os outros até Paranatinga) nós: 7808 Tupy 7458. Por que a differença entre a etapa 1:1708 e os 7458? Onde estava o resto? O dinheiro dos soldados? O orçamento soube-nos mal e despertou em nós a primeira desconfiança contra a pessoa de nosso futuro companheiro de viagem. O facto de Tupy defender com tal animação o negocio do alu- guel das mulas não nos agradou absolutamente. Se fossemos nós que o preferissemos por mo- tivo de barateza! Porém querer o commandante, como de mãos atadas, internar-se por terreno to- talmente desconhecido, fez-nos recear que fosse du- vidosa, ou sua capacidade, ou a pureza de suas intenções. Estavamos em situação critica. Nós, que suportavamos com a metade da des- peza, tinhamos alem disso de nos apparelhar de maneira que não nos parecia nada segura? Não; antes procurarmos salvar-nos por nossas mãos, acom- panhados de poucas pessoas destemidas, independen- tes, do que de uma escolta de 28 a. 30 pessoas e animaes alugados. Ao numero de expedições mal- logradas partidas de Cuyabá não queriamos acres- centar mais uma. Entretanto, a cousa deu-se de outro modo. Um official brasileiro, de origem allemã, que nos foi muito cordialmente prestimoso, poz-nos em relação com seu amigo, o capitão Francisco de Paula Castro. Este mostrou o desejo de nos acompanhar, mas pouco a pouco foi desistindo desta idéa quando viu que Tupy fora designado. ESTADIA EM CUYABA 361 Castro declarou-nos decididamente contra o alu- * guel dos animaes; deviamos levar, em vez de mulas, bois, que, sendo bem tratados, poderiam fazer longas caminhadas : seriam pagos com o dinheiro de tres mezes de etapa, e os soldados não teriam de tran- -sportar provisões à nossa custa. Os bois deviam ser sacrificados á medida que as provisões fossem escasseando. Castro calculava da seguinte maneira: A etapa para 30 pessoas durante tres mezes importava em 1:755%; era, pois, superior a somma necessaria para os bois, viveres, fumo e ferramentas (1:6998). O arsenal podia emprestar as tendas e forne- ceria o' cartuchame. O piquete que estava á dis- posição do barão, daria as mulas para nós e para os officiaes. Castro apresentou seu orçamento ao presidente, juntando-lhe uma introducção geral. Nos dias seguintes appareceu Tupy e não quiz mais saber de mulas alugadas. Conversara com algumas pessoas praticas; os bois eram muito uteis; poupados durante o calor do meio-dia, e empre- gados somente das 4 ás 9 horas da manhã, e das 3 ás 6 da tarde, marchariam «ao fim do mundo ». A 25 de Abril tivemos conversa mais longa com o barão; quiz que lhe apresentassemos um memorial, Fez-se. Pedimos a approvação do orça- mento de Castro, a designação de dois officiaes e 25 praças para a expedição, dois officiaes para o caso de doença, desastre ou divisão de destacamento. A 6 de Maio recebemos a resposta do barão: « Compenetrado da importancia da empreza, tanto para o paiz em geral como para esta provincia em particular, porque é para ambos do maior interesse o conhecimento perfeito do rio Xingu, até hoje não 19 362 APPENDICE explorado, sem fallar de outras descobertas valiosas que a viagem pode trazer, decidi auxiliar a VV.SS. não só com uma força de que precisam para sua protecção e defesa, como tambem com algu- mas ferramentas e provisões ». A questão relativa aos dois officiaes ficou ainda alguns dias indecisa; desejavamos Castro em qual- quer circumstancia; Castro, porem, não queria ter de acompanhar Tupy, com quem não sympathisava, e a quem, como mais amigo, embora da mesma, pa- tente, teria de ficar subordinado. O barão já de- signara Tupy. Foi esse o unico travo em nossa alegria. Pois então começaram a chegar-nos, — não sabemos como, — uma porção de noticias des- agradaveis sobre nosso futuro companheiro de via- gem: que era jogador de profissão. Que elle não andava com as finanças em ordem, parecia certo, - porque já me pedira pequenas sommas. Sua partida um dia esteve muito duvidosa; soubemos de bôa fonte que elle ficaria, si não pudesse satisfazer aos seus compromissos. ; Mas conseguiu e partiu. — Eu teria de certo deixado intactas estas cousas desagradaveis, se não houvessem actuádo tão fa- talmente sobre a historia da expedição; prova de que estava disposto a calal-as, é que no Rio, es- quecendo com o bom exito os desgostos superados, calei-as effectivamente no relatorio official, e nem uma vez referi-me, ao capitão Tupy. Qual foi a consequencia? Acreditou-se naturalmente que de- - viamos ter boas razões para isso e que não es- tavamos a coberto de reproche. Da discussão amarga que esta idéa então pro- vocou em mim, quando estava nervoso e doente, ha muito que me libertei; entretanto decidi-me a contar a historia franca e veridica, estrictamente ESTADIA EM CUYABA. 363 segundo meus apontamentos; ver-se-á que a pessoa do capitão Tupy, por causa de sua incompetencia demonstrada, era impropria, para a taréfa que se lhe confiou. Da circumstancia de o obrigarmos a tornar para Cuyabá, não temos que enrubecer, por- . que sem a eliminação do homem que mostrou-me indigno da confiança do Presidente, a empreza fi- caria irremediavelmente perdida, segundo à con- vieção de todos nós. Nós, isto, é, Castro, os bra- vos soldados, meus dois amigos e eu, não fizemos a expedição com Tupy, mas apezar de Tupy. Peço perdão por ter antecipado os aconteci- mentos: para a comprehensão dos successos futu- ros era indispensavel, e para a sua descripção util, porque adiante proporcionalmente me absterei de critica. Pouco a pouco os preparativos foram ganhando * forma definida. Tupy foi nomeado commandante do destacamento; tratou da compra dos bois e das fer- ragens. Castro recebeu a commissão de fazer o. relatorio ao governo. O barão declarou-se prompto para tudo que estivesse em suas forças. Autorisou tambem o pagamento dos camaradas, de que pre- tendiamos tomar dois, e prometteu apressar as pro- videncias para podermos partir em breve. “Por causa dos logares de camaradas, recebe- mos muitas visitas; um pobre escravo atormentou- nos para lhe proporcionarmos esta occasião de ob- ter sua liberdade; deviamos entregar à sua senhora, velha viuva, uma somma consideravel, que elle pa- garia com o trabalho; infelizmente nossos meios não davam para tanto. A 19 de Maio, apresentou-se-nos um velho de cara de indio, curtida pelas intemperies, cuja pes- soa sacudida e manhosa foi-nos ao coração; o velho Daniel Alvares, de 65 annos, com seu filho Pedro, 364 APPENDICE de 14; Daniel morava alem da Guia, por onde pas-. sava nosso caminho; já navegara um pedaço do Paranatinga, e affirmava, — não sem fundamento — que ninguem entendia de sertão como elle. Nossa, escolha estava feita: Daniel e Pedro seriam os nos- sos camaradas. Tupy escolheu os soldados; foram designados apenas voluntarios. Comprou os bois. Foram-nos concedidos burros do piquete, que deviam voltar, do logar em que embarcassemos, para Cuyabá. Tupy arranjou finalmente as ferragens; subentendia-se que fariamos canôõas regulares; portanto, era necessa- rio uma porção de ferramentas, aqui muito caras. : Tambem nós desenvolvemos grande actividade: Tinhamos trazido de Buenos-Ayres nossas roupas de couro inglez. Mandamos fazer redes de linho, simples, leves, porém fortes, e os indispensaveis mosquiteiros, tenda aérea de gaze, que cerca a rede, cahindo até ao chão; os punhos das redes pas- savam pelas mangas apertadas dos mosquiteiros. No chão põe-se, quando se quer a cousa com todos os ff e rr, um couro de boi, de sorte que tambem por ahi os insectos não têm entrada. Outra pessoa pode dormir n'este couro, aproveitando assim a pro- tecção do mosquiteiro. Para nosso trajo faltava ainda um chapeu de palha desabado; compramol-o na cadeia; Os srs. presos, que enchiam duas grandes salas, passaram-nos os chapeus pelas grades de ferro, para os experimentarmos; preços baratos, mas custa- mos a achar numeros que não fossem demasiado pe- quenos. Além de sapatos, levamos de reserva para. calçar, as chinellas de couro, aqui tão apreciadas. “Gastou-se uma manhã inteira a fazer cartuchos. O curioso Pascoal, que ficou inteiramente gira à vista de tantos preparativos, atrapalhava-nos a cada passo. O pobre diabo passava por mãos dias; um portuguez ESTADIA EM CUYABA' 365 miseravel roubara uma somma importante, da mala de Clauss; ameaçamos a Pascoal que era elle quem a havia de restituir; desde então, estorcia-se “o velho na rede sem poder dormir, e arquejava como um condemnado na vespera da execução. Nossos papeis, os objectos para desenho, de Gui- lherme, estavam mettidos em caixa de folha; os mais importantes reunira cada um numa bolsa pra- tica; o resto arrumava-se em bruacas, que são umas malas de couro cru, de que cada animal carrega duas, e nas quaes guardámos as nossas bolsas. Pro- vemo-nos de café, mate e algumas conservas que tam- bem não ha muitas por ahi; as eternas sardinhas de Nantes naturalmente não faltavam. Para, poder for- mar uma pequena colleeção zoologica, levára es- pirito e varios vidros. Do primeiro precisamos tam- bem para o hypsometro. Petroleo para as observa- ções astronomicas, velas, phosphoros suecos, isquei- ros, barbantes, cordas, arames, pregos, anzóes, linhas, innumeras outras cousinhas, que quando uma nos falta pela primeira vez, parece que o mundo vai acabar, e de que entretanto a gente vai prescin- dindo, excepto isqueiro, faca, espingarda, polvora, chumbo e fumo. . Uma pechincha, como dizem os portenhos, offereceu-se-nos em uma casa que liquidava. All compramos joias reluzentes, para nossos futuros hos- pedes, pulseiras, amneis, brincos, espelhos, etc. e especialmente perolas. Não esquecemos tambem uma porção de facas, e finalmente algumas duzias de foguetes. Nossos instrumentos mais importantes eram: um pequeno theodolito inglez muito maneiro, dois aneroides, dois thermometros simples, um ther- mometro de maxima e minima, um hypsometro, uma bussola, e craniometro de Virschow. 366. APPENDICE Não estava arrumado ainda o ultimo traste, nem escripta a ultima carta para a familia, e já raiava a manhã de 26 de Maio sobre nosso cahos. Combinou-se que Tupy sahiria adiante de ma- nhã com a caravana; nós e Castro seguiriamos ao meio-dia. Por mais justificado que fosse nosso desejo de não tornar a vêr tão cedo os muros de Cuyabá, não sahimos da cidadesinha idyllica sem pesar, o que é a melhor garantia de recordação grata. Mesmo nosso velho hospede estava commovido, e chegara ao excesso de apparecer com uma pequena bateria de garrafas de cerveja para a despedida; até, quando pela ultima vez berrei-lhe como é que elle aco- lhia em sua casa um traste que nos tinha roubado, foi procurar humildemente um rolo de excelente fumo e radiou de prazer quando lhe recebemos das mãos tremulas o penhor da reconciliação. Queria antes passar dois mezes na cama com febre algida, do que ter visto que aro esta rapina GERRIXO de seu tecto. Para 1 hora estava naPEIA a partida. Diante da casa estacionava uma longa carreira de cavallos sellados e mulas; segundo o lindo costume da terra, appareceu uma porção de conhecidos, para acompanhar os viajantes um pedaço do caminho. Assim arrancamos, cavalgada magnifica, pittoresca; nós tres usando ao redor do chapeu de palha desa- bado, uma fita de cores brasileiras, e na frente uma roseta preto-branco-vermelha, armas lustrosas, ca- misa de flanella riscada,' solta para cima do cinto de couro, carregado de cartuchos; eramos tudo con- fiança, e espirito de aventuras. Cavalgamos juntos | até a frente do palacio; o presidente estava à janella, « Viemos receber as ultimas ordens de V. Ex.,» disse eu. E, com a sua amabilidade sympathica, o ancião ESTADIA EM CUYABA 367 veio à porta e desejou-nos feliz viagem. Tambem à baroneza disse-nos da janella um amistoso adeus, Vamos! - Uma legua fóra da cidade, esvasiámos os ul- timos copos, trocaram-se os ultimos abraços, reu- nimo-nos á caravana, e não nos alegrou pouco 0 quadro da manobra em terra estrangeira, em que eramos irrevogavelmente recebidos como socios activos. TNDICE, Prefacio . America . CAPITULO 1 Em viagem. — À Serra do Mar. As florestas do Brasil. (CAPITULO H Santos. — Paranaguá. — A estrada de ferro do Paraná. — Passeio a Curitiba. — Desterro. — A barra do Rio Grande. — Sua Magestade o Vento. — O barato sai RR... ... CAPITULO III O inferno e um diabo. —- S. José do Norte. — Cidade do Rio - Grande e suas celebridades. — O namoro e a «falta de braços». — O elemento estrangeiro. —Os pa- tos da Lagõa. — Passagem de Garibaldi . Loro? CAPITULO IV O Jacuhy ha um milhão de annos. — Como se formaram a lagõa dos Patos e a Mirim. — Porto Alegre e Menino- Deus. — Onde acaba a dignidade. — Por que as perdi- zes são pintadas. — Scena de vida cigana. — Pois « que morram ! — Mel de abelhas . CAPITULO V Do palacio da presidencia. — Navegação do Cahy. —sS. João de Montenegro. — Installação e começo de opera- ções. — Porque os immigrantes gostam. do Rio (Grande “do Sul. — Vida de aldeia. — Catholicos e Protestantes Pags. 26 46 370 | INDICE CAPITULO VI S. João de Montenegro. — O mato geral, o fachinal e a “capoeira. — Fórmas zoologicas. — Nosso laboratorio. — Uma aranha revolucionaria e outra formicivora CAPITULO VII S. João de Montenegro: — Mammiferos. — Vida e feitos gloriosos de um illustre desconhecido CAPITULO VIII S. João de Montenegro. — Excursões maiores. — Maria- sinha. — Mimosas. — Burro como uma capivara. — Quanto mais besta, mais... filhos. — Pica-paus e bor- boletas pretas. — Ainda fetos e insectos. — Estradas. — O Maratá. — Um insecto bem servido CAPITULO IX Os campos: physionomia, flora, fauna e sociologia. — Uma noite à la belle étoile Re CAPITULO X O rio Jacuhy. — São Jeronymo e Triumpho. — Um hotel campestre. — Zona dós campos. — O gaucho. — O mate e sua preparação . AR SR CAPITULO XI O arroio dos Ratos. — As minas de carvão . CAPITULO XII Creologia do districto de S. Jeronymo. — Granito, gneiss, | basalto, arenito, ferro . CAPITULO XHI 3. Gonçalo. — Pelotas. — O xarque e as xarqueadas. CAPITULO XIV Pags. 56 66 13 Ra 101 112 Viagem em diligencia. — A serra dos Tapes. — Geologia | do Rio Grande do Sul. — Cacimbinhas? — Pedras Altas 143 INDICE CAPITULO XV O “gado. — Cacimbinhas. — Piratinim. — A serra das Pa- nellas. — Adeus ao Rio Grande do Sul. CAPITULO XVI Do Rio Grande a Montevideu. — Um pampeiro . CAPITULO XVII Montevideu. — A ilha das Flóres. — O Lazareto . CAPITULO XVIII Montevideo: sb “espirito de partbido. — ba 0 Brasil - poderá proclamar-se republica . : CAPITULO XIX Buenos-Aires. — O Museu e o Dr. Burmeister, — À Repu- blica Argentina em geral CAPITULO XX A questão da immigração. — Sua mercê o Sr. Immigrante. — —O salario. — O sustento. — Porque o salario é mais baixo no Brasil do que na Argentina. — Meios de levantar o salario. — A questão da immigração só póde ser resolvida por meios indirectos . CAPITULO XXI Partida de Buenos-Aires. — O estuario do Prata. — Monoto- nia do baixo Paraná. — Geologia do Prata: as rochas fundamentaes, os pampas, as rochas alluviaes. — A paizagem. — Os morros-. . scenes, CAPITULO XXII O rio Paraná. — Rosario. — Os. pampas orientaes e occi- dentaes. — Corrientes, — O rio, da mi pe AD, — O commercio do Paraguay. 311 Pags. 155 164 171 181 202 213 222 372 INDICE CAPITULO XXHI Republica do Paraguay. — Assumpção. — O palacio de Lo- pez. — O instituto da obediencia e os Jesuitas. — À classe alta. — A regeneração do Fama — Um pe- dido aos brasileiros ERR ; ; CAPITULO XXIV As faunas do Paraguay. — Concepcion. — O rio Paraguay em Julho e Dezembro. — Onde faz falta a penna do Romão. — O rio Apa. — Os carandaes E CAPITULO XXYV Fecho dos Morros. — Pão de Assucar. — Os pampas e O Chaco. — Duas planicies' fluviaes. — O forte de (Coina bra. — Serra do Albuquerque sb CAPITULO XXVI. Corumbá. — À bordo do «Rio Verde». —Us passageiros para Mato Grosso. — Os igapés. — Ilhas fluctuantes. — As bahias e pantanaes. — O.S. Lourenço . CAPITULO XXVII - Enchentes dos pantanaes. — Os Coroados do S. Lourenço. 232 241 .- 264 — O Bananal Grande. — O valle do Cuyabá. — Cuyabá 276 APPENDICES : t Geologia. do rio Paraguay . 285 A região dos campos no Brasil . 292 O fabrico de lóuça entre os Cadineus . « 305 Generalidades sobre Cuyabá . 813 332 - Estadia em Cuyabá . pi ro ij) Ei Ee Tí AA PLEASE DO NOT REMOVE CARDS OR SLIPS FROM THIS POCKET UNIVERSITY OF TORONTO LIBRARY ami ana “% á j 14 ay Cine Fes ARA dedos Raia hei SE e Seita ra se Gn o no ERA a erro rats eh amo ry att) iba, e ar Eiras DAS DURE DAMA paia Erg dpi bein Cali Ca) e PIA Eis E atol ao rn opue INE Peatas va mEaA pa 3 Es A pi ir Re o sr ) Ê. rato Pedrá ria 29) dd BI IND peniana! 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