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COM O TITULO

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PARA A HISTORIA DO TEMPO QUE DUROU A USURPAÇÃO

D E

D. MIGUEL,

POR

JOSÉ' LIBERATO FREIRE DE CARVALHO.

VOLUME III»

«l?E COMPREHENDE OS ÀNNOS 1831 E 1832,

Opus aggredior opimiim casibus- í AriToVlivro 1.° das Hist. inprincip.

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LISBOA,

NA IMPRENSA NEVESIANA. 1842.

UTJA DO LOUREIRO N.° 15.

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III

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PROLOGO,

OU O QUE LHE QUIZEREM CHAMAR.

_A_inda um volume ; mas o leitor ou leito- res, que tiverem ou quizerem ter a paciência de me lerem , descançaráò depois de mais algum. Bom he saber de ante-mão qual he o termo da viagem ; e eu declaro que ella acabará nos acontecimentos do anno que vai, 1834, e no histórico campo de Evo- ra-Monte. Não prometto mais a meus leito- res, nem mesmo lhes posso affiançar que fa- rei quanto aqui lhes prometto ; porque quem pode dizer, e particularmente um velho, como eu, que amanhã ha de ter pernas para andar, ouvidos para ouvir, e mãos para es- crever? He este o grande segredo, que a ninguém se revela. No emtanto renovo os meus protestos que tenho feito nos livros antecedentes, isto he : que não sou inimigo nem panegyrista de pessoa alguma ; que es- crevo, como homem honesto e verdadeiro, o que vi , e ouvi ; e retrato fielmente os homens com a fysionomia que tinhão nas é- pochas a que esta minha historia se refere , sem me importar com o que tem sido ou

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fôrao depois, publicando com toda a impar- cialidade o mal e o bem que então fizerão ; porque , na frase de um author que li , •— je ne suis pas faché de mettre la main sur une vertu quand je la r encontre.

Lisboa , em 28 de julho de 1842.

José Liberato Freire de Carvalho,

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LIVRO IV.

D O S A N NA E S.

#\J\#\*\ Successos do anno 1831, quarto da usurpação»

vyoMEcou este anno com uma circumstan- cia muito favorável para a nossa liberdade, e para a expulsão da tyrannia usurpadora que barbaramente a tinha assassinado. Depois de termos a nosso favor a politica Europea dos governos que mais nos tinhão perseguido , isto he , os de França e de Inglaterra nos ministérios dePolignac, e Wellinghton, res- tava-nos ainda uma grande dificuldade para vencer, que era a falta de dinheiro, parti- cularmente depois da falta de generosidade com que o governo do Brazil , em que ti- nha figurado Barbacena , nos tinha tão cruel- mente tratado. Havia-se com eíFeito ajusta- do no fim do anno antecedente um emprés- timo com a casa de Maberly , mas logo de- pois se seguirão tantas indiscrições por par- te de alguns ou de todos os que directa ou

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indirectamente figurarão n*este negocio , que elle esteve a ponto de se perder. Concluio- se porém felizmente na primeira semana d'- este anno , e foi solemnisado com todas as formulas legaes, bem que pelas indiscrições mencionadas foi voz constante que as con- dições peorárão muito para nós. O marquez de Santo Amaro, embaixador e plenipoten- ciário do Brazil, concorreo para o bom êxito d'esta negociação não tanto, segundo creio, em virtude das suas directas instrucções, po- rém para salvar a honra, a dignidade, e a boa do imperador seu amo, e do gover- no, que certamente licarião infamados se el- le prudentemente os não tivesse salvado d'* esta infâmia. Foi também opinião geral ro- este tempo, que um dos grandes instrumen- tos que mais moverão o marquez plenipoten- ciário a garantir este empréstimo fora o con- selheiro José Balbino Barbosa e Araújo, anti- go secretario da embaixada de Londres, e então ali encarregado de negócios na ausên- cia do marquez de Palmella ; pessoa, que eu agora nomeio, porque um dos objectos d'estes Annaes he não expor os crimes ou desacertos dos homens que n'este tempo figurarão , porém mencionar as boas acções daquelles que as fizerão ; e esta julgo eu ter sido de summa importância.

Como este empréstimo involva em si círcumstancias de grande interesse, e como convenha, podendo ser, dar as causas e os

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motivos dos successos mais notáveis do tem- po, o que na realidade constitue a ver- dadeira filosofia da historia ; direi , por tan- to, agora qual foi a origem d'esta nego- ciação, os embaraços que teve, e as causas verdadeiras que os produzirão ; causas , que eu posso affiançar, e de que não dou os do- cumentos que vi , por não faltar á confiden- cia de quem delles he depositário. Haven- do-se tornado nullo o primeiro empréstimo de que fallei , e não fora ratificado pelo marquez de Barbacena, apesar de elle haver sido tratado em Londres com o seu consen- timento, e assignado por sua mão antes de ter partido para o Rio de Janeiro com a Rainha ; tentou depois a regência da Ter- ceira fazer outro, ou renovar o antigo com novas condições , e sempre com o primeiro emprestador mr. Maberly. Para este fim foi necessário nomear e mandar um agente ao Rio de Janeiro^ e este foi, como também disse, um negociante Portuguez de Londres, Henrique José da Silva. Era elle um verda- deiro plenipotenciário > porque levava cre- denciaes, e plenos poderes para este fim, e ainda em tempo em que o conde de Sabugal não havia sido reconhecido como ministro da regência em nome da Rainha, o que alguns dias depois foi pelo imperador, e então to- mou parte na negociação. Começou esta a ter dificuldades, e o ministério Brazileiro não parecia disposto a adoptar algum doâ

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projectos que lhe fôrão apresentados. Inda- gando-se porém quaes fossem os motivos d- estas dificuldades, veio-se a saber com mui- ta arte e perspicácia quaes elles erão. Nem mais nem menos consistião elles nas instruc- çoes que se tinhão dado ao marquez de San- to Amaro, que tinha partido para a Eu- ropa, e as quaes instrucçóes erão transigir com D. Miguel , segundo o plano proposto pela Inglaterra e a França, com a condição de elle casar com a Rainha. Consistião ain- da mais na persuasão em que estava o mi- nistério do Rio a este tempo, e persuasão, que muitas vezes dêo a entender , de que na épocha, em que o empréstimo se perten- dia negociar com a garantia do Brazil, Miguel devia estar reconhecido , ou a pon- to de o estar, pela França, Inglaterra, e Áustria ; e este reconhecimento devia também ter sido consentido e approvado pelo marquez de Santo Amaro. Consistião finalmente os mesmos motivos em se ter sabido também que o ministério Inglez, presidido por Wel- linghton , havia exigido do governo do Rio de Janeiro , que se suspendessem os subsídios aos emigrados, porque este era o meio se- guro para que desanimassem, e a ilha Ter- ceira se rendesse á discrição. O facto que depois se realisou da suspenção dos subsí- dios, e outros mais mostrão, que tudo isto era verdade , e que não havia engano na re- velação que se tinha podido obter de todos

estes tenebrosos mysterios da mais monstruo- sa iniquidade (a).

Em taes termos, e em taes circumstan- cias parecia que a negociação se tinha de to« do malogrado , e que não havia meio de a renovar. Gomtudo tomou-se ainda nm ex- pediente, que teve mui felizes resultados, e pelo qual se fez cahir em um laço aperta- do aquelles mesmos que nos pertendião pren- der n'elle de pés e mãos. Sem se lhes dar a entender que toda a sua politica estava dcscuberta , replicou-se-lhes que acabando * * *

(<0 Affirmou-se também n'este tempo que uma das con- dições , impostas a D. Miguel , era que elle perdoaria ao Brazil a divida em que eslava para com Portugal pelo tra- tado da separação. O que porém aclarou de todo este ne- gocio foi a moção que lord Aberdeen fez na casa dos lords sobre os Açores no dia $ d'agosto d'este anno iSjl. Ali disse, formaes palavras: ,, Que vendo D. Pedro no prin- j, cipio d'este anno que nada podia concluir contra seu ir» ,, mão, fizera uma declaração ojficial , pela qual se obri- ,, gára a nâo continuar a obrar hostilmente contra elle , ,, mas recorrer a termos de composição por via de nego- ,, ciaçÕes. Para este fim mandara um embaixador a Lon- s>. d-res, que no principio, como os seus antecessores, qui- 3, zera excitar uma invasão contra Portugal ; comtudo que ji o ultimo despacho ojficial de D. Pedro fora para negociar ,, amigavelmente com o irmão; e que para isto propoze- 3> ra certos meios, os quaes se elle então declarasse a ca- ,, sa não havia de ficar pouco admirada. ,, O tal embaixa- dor nâo podia ser outro senão o marquez de Santo Ama- ro , o qual, pela revelação, que n'esse tempo fez uma ga- zeta do Rio de Janeiro, veio á Europa á nossa custa , o- brigando-nos ainda assim D. Pedro a pagarmos o nosso pró- prio assassinio. Lord Aberdeen fez ainda o cumprimento a. D. Pedro de dizer , que havia sido expulso do Brazil pela unanimidade da nação, e que ninguém, tanto como ellje> tinha merecido aquelle tratamento»

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de ser reconhecido o embaixador da Rainha5 e sendo esta, por consequência, a legitima Rainha de Portugal, se o Brazil não quizes- se concorrer para se lhe restituir o throno usurpado , todo o mundo se persuadiria que o mesmo Brazil hia de acordo com os gabi- netes que auxiliaváo e sustentavao D. Mi- guel ; o que era inteiramente contrario ao que acabava de acontecer com o reconheci- mento do conde de Sabugal, e as reiteradas declarações que o imperador, seu pai, ti- nha feito de nunca transigir com seu irmão. Assim, para tirar esta suspeita, se vio o- brigado o ministério do Brazil a acceder á proposta que se lhe fez ; e o ministro secre- tario doestado Calmou , que tinha plenos po- deres para tratar este negocio, declarou en- tão oficialmente em uma nota (h) , que se transcreveo no protocolo da negociação , que o governo do Brazil hia transferir para o po- der da Rainha de Portugal, ou d'aquelles que governavão em seu nome , todo o di- nheiro que o Brazil ainda estava devendo á legitima coroa Portugueza, para que ella po- des se dispor delle como bem lhe parecesse.

Foi esta nota , ou declaração , o que sérvio de base para o empréstimo ; base , que não podia ser negada pelo governo Brazileiro sem cahir em toda a deshonra da

(£) Vejao«se as peças justificativas no fim cTeste livro % em que vai transcripta esta nota.

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fé, ou da falta de palavra. Comtudo, estando persuadido, como disse, o mes- mo ministério do Brazil que tudo o que ha- via promettido de nada valeria pela esperan- ça que tinha de que quando a sua nota offi- cial , em que havia uma tão positiva e so- lemne promessa, bem que illusoria , chegas- se á Europa ella não podia ter eíFeito , porque a este tempo D. Miguel estaria reconhecido, e o marquez de Santo Amaro teria accedido a este reconhecimento ; não dêo nenhumas ordens para a execução d'esta promessa ao encarregado de negócios, Mat- tos , que era o seu agente acreditado em Londres, D'aqui nasceo a dificuldade que logo manifestou o dito encarregado de ne- gócios em cumprir com o que se tinha pro- mettido no Rio de Janeiro ; mas a politica Europea tinha mudado com a grande sema- na de Paris, e com a queda do ministério Inglez Wellinghton ; e n'este caso era neces- sário pôr um termo a este negocio , ou ex- ecutando as promessas do Brazil, ou expon- do-se a que, pela imprensa, se fossem re- velar todas as torpezas que até ali tinháo andado escondidas nos tenebrosos mysterios da politica Brazileira para com Portugal e a Rainha D. Maria II. O marquez de Santo Amaro, que se achou involvido neste terrí- vel dilema, ou de consentir na publicação da deshonra do seu imperador e governo , ou de a prevenir \ servindo-se talvez de seus

poderes eventuaes , sanccionou e garantio as declarações e promessas do seu governo ; particularmente porque vio , que nem a sua missão , nem os planos , sobre que ella se tinha fundado, podiao ter effeito ; e as- sim se ultimou o empréstimo. Não foi elle, por tanto, obra primaria dos homens, mas a obra exclusiva dos novos acontecimentos politicos, que forçarão os mesmos homens a fazer o que nunca tinhão imaginado que podesse succeder.

Depois de concluído, e publicado es- te empréstimo vio-se ainda uma cousa bem extraordinária, e que será também ainda uma nova prova do que devemos aos Inglezes , assim como uma boa lição para sabermos em que linha de conta os havemos de ter para o futuro. Quando , segundo o costume , se an- nunciou este empréstimo no Stock Exchange, um dos logares da praça de Londres onde se costumão notar os preços dos empréstimos assim como as variações diárias que elles ge- ralmente tem; excitou-se immediatamenteu- ma forte opposição contra elle pelos subs- criptores d*aquelíe estabelecimento ; e depois das deliberações de alguns dias, em que hou- ve fortes debates , a final resolverão que não fosse ali admittido. Fundarão esta illiberal re- solução em uma anterior decisão, tomada por1 causa dos diversos empréstimos Hespanhoes, a qual era: que n'aquelle estabelecimento não podesse ser admittida a publicação de qual-

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quer outro empréstimo de uma nação que an- tes tivesse deixado de pagar os juros ou di- videndos de algum antecedente. Para fazer incluir o nosso nesta legislação recorrerão ao principio de que sendo este empréstimo Por' tiiguez, e tendo-se deixado de pagar os ju- ros ou dividendos do anrigo , não podia es- te novo ser ali admittido. Mas isto era um verdadeiro pretexto , porque o principio não era exacto. Quem tinha deixado de pagar era o governo do usurpador, debaixo de cujo po- der estava a primitiva e verdadeira hypothe- ca ; e este não requeria agora outro emprés- timo, pois que quem o pedia era o governo em nome da Rainha D. Maria II. , que nun- ca tinha pedido outro , e por conseguinte nunca tinha faltado á sua palavra. Apesar de todas estas razoes , que lhes fôrao pondera- das, os subscriptores do Stock Exchange, e todos os possuidores dos antigos fundos Por- tuguezes permanecerão na sua primeira re- solução , e fizerão quanto poderão para des- acreditar o empréstimo. N'este seu compor- tamento tão illiberal vião elles certamente o sacrifício do seu mais próximo interesse, que era o de serem quanto antes pagos dos seus juros, porque quanto mais depressa se des- truísse a usurpação mais probabilidades tinhão de os receber ; porém olhavão para o futuro, e não duvidavão sacrificar os interesses pre- sentes a outros que avaliavao em maior pre- ço. E quaes erão elles , ou quaes podião el-

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les ser? Não erão, nem podião ser outros se- não o illiberal e interessado projecto de nos conservarem escravos ; porque vião que por este empréstimo se abria caminho para der- ribar o usurpador, e sobre a sua queda se hia restabelecer a nossa liberdade politica, cou- sa que em geral os negociantes Inglezes de- testão em todas as nações com quem com- merceiao, por isso que seu egoísmo não se pôde satisfazer tanto nos governos livres co- mo nos despóticos e absolutos. Esta pois foi a verdadeira razão por que os nossos bons e antigos amigos Ingleses tanto trabalharão pa- ra fazer malograr o empréstimo : e com is- to nos derão ainda uma prova da sua costu- mada amisade, e de quanta confiança nelles devemos ter para o futuro. N'esta obra fô- rão admiravelmente auxiliados os nossos ami- gos Inglezes pelo cônsul de D. Miguel , Sampaio , irmão do conde da Povoa. Como elle estivesse costumado atirar bons interes- ses com as commissóes annuaes que lhe da- va o pagamento dos dividendos que o gover- no Portuguez antes fazia em Londres com o dinheiro que para isso mandava o Brazil em consequência da divida em que estava a Por- tugal ; e sendo além d*isto um devoto servi- dor de seu amo; não teve escrúpulo em refor- çar o esquadrão dos nossos inimigos , e em boa camaradagem advogar a sua causa , e a delles.

No principio d'este anno morreo nas pri-

soes de Portugal uma victima illustre, o con- selheiro (Testado , Pedro de Mello Breiner» Este homem que sempre havia sido um in- tegro magistrado , servindo depois na carrei- ra diplomática no tempo da regeneração de 1820, nunca foi a ella addido do coração, e o seu comportamento em Roma foi equi- voco ; porém depois da publicação da carta constitucional, de que elle também no prin- cipio senão mostrou demasiadamente apaixo- nado, estando ministro em Paris, passou em pouco tempo a adherir a ella firmemente, e sempre a sustentou com honra e dignidade. Foi nomeado ministro e secretario destado na regência da infanta D. Isabel Maria, mas teve que largar logo aquelle emprego pelas intrigas que contra elle urdio a facção usur- padora, que então trabalhava por destruir a carta constitucional. Foi depois proposto pelo ministro conde de Saldanha para rege- dor das justiças, quando o mesmo conde pro- pôz outras mudanças essenciaes ; porém as mesmas intrigas inutilisárão aquella propos- ta , e accelerárao também a queda ministe- rial de Saldanha , motivada pelas manobras do ministro Inglez A Court, e pelas insinua- ções e conselhos de alguém mais que dos pai- zes estrangeiros apoiava as mesmas manobras, que não tendião a outra cousa mais do que a apressar a usurpação , e com ella a perda das nossas liberdades. Mostrando-se a final resolutamente opposto á usurpação , e ten-

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do contra si o crime imperdoável de ser bem- quisto dos homens de bem por sua probida- de e inteireza, cahio, como era natural, na desgraça do tyranno e da facção que o diri- gia ; e sem processo nem sentença , como se condemnão os innocentes , foi lançado em uma solitária prisão , onde por espaço de muito tempo se achou sepultado vivo, até que, fatigado pelo peso dos annos , e muito mais pelo peso das afflicçoes e dos tormentos largou a vida debaixo do cutelo moral da tyrannia.

No fim de janeiro d'este anno se sou- be na Europa da publicação de três novos decretos da regência da Terceira, dos quaes o primeiro, com data de novembro do an- no antecedente , era relativo á publicidade dos conselhos de justiça nos processos mili- tares ; o segundo , com data de 27 do mes- mo mez, destinado para a formação das no- vas camarás municipaes , segundo a carta constitucional ; e o terceiro , com data de 29 do mesmo mez, ordenava a abolição dos juizes ordinários , como preliminar da per- petuidade dos juizes, segundo a mesma car- ta. Apesar, comtudo , d'esta apparatosa de- monstração de constitucionalidade da regên- cia , vi eu n'aquelle tempo uma carta , vin- da da ilha , em que se dizia , que todas es- tas publicas demonstrações constitucionaes não erao devidas aos bons princípios políti- cos de quem os alardeava , porém ao espi-

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rito publico da guarnição, e emigrados ali residentes, os quaes, por sua resoluta e in- abalável constância no systema da liberda- de legal , tinhao como forçado a regência a ir dando alguns passos na estrada constitu- cional , ou da carta. Accrescentava-se ainda mais: que sem estas medidas, próprias pa- ra adoçar a opinião que havia contra os taes legisladores , elles teriao passado por uma crise , que talvez muito tivesse mudado a sua existência politica; e que em consequên- cia d'isto havião cedido á voz publica não por vontade, porém por prudência ou por medo. Nem isto era para admirar, porque, como antes referi, aquella regência co- meçou desembaraçadamente a fallar em car- ta, e a propor medidas nella ordenadas, de- pois que , pelos acontecimentos de Paris e de Londres, vio que lhe era absolutamente necessário tomar um novo caminho ou mor- rer. Assim, como todo o género de morte seja sempre feio , ella preferio abjurar seus antigos princípios, e tomou os ares de con- vertida.

Em quanto a mesma regência da Ter- ceira andava absorvida nas suas reformas le- gislativas nem por isso perdia de vista outros planos económicos ; e um delles foi a mu- dança do encarregado de negócios em Lon- dres. Estava este logar oceupado por José Balbino de Barbosa e Araújo, que, como secretario dembaixada , exercia as funcçòes

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diplomáticas depois da retirada do marquez de Palmella. Nenhum homem n'aquellas cir- cumstancias parecia mais próprio para exercer as funcções de encarregado de negócios em Londres, não por ter exercido depois de muito tempo este emprego , mas porque , sendo geralmente conhecido de todos os ho- mens públicos da adminstração Ingleza, era particularmente estimado delord Palmestron, o ministo dos negócios estrangeiros. Pela amisade e affeição que este lhe tinha havião sido revogadas as ordens que, como filhas de mesquinhez, e talvez de vingança, lord Aberdeen tinha dado para que a legação Por* tugueza da legitima Rainha não gosasse das immunidades próprias do caracter diplomá- tico que estava exercendo ; e em uma pala- vra, era individuo que, debaixo de taes aus- picios , parecia ser o mais capaz de tratar dos nossos negócios pela facilidade do ac- cesso que tinha á presente administração In* gleza. Por todas estas considerações saltou a regência da Terceira, porque sem lhes pres- tar nenhuma attenção, e levada de anti- gas prevenções, sacrificou o bem publico á satisfação de mesquinhos projectos. Ou Jo- sé Balbino era criminoso ou pelo menos sus- peito em alguma cousa , ou não era : se o era , devia ser absolutamente dimittido do serviço, e se lhe devião dar as razões deste procedimento ; e se o não era, commettêrão contra elle injustiça, e a esta injustiça sacri-

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ficarão o bem publico. Que fora injustiça cla- ramente o mostrou a mesma regência , or- denando-lhe, que ficasse em Londres para com seus conselhos, e amisade, que tinha com pessoas influentes, auxiliar e ajudar não o novo encarregado de negócios , porém D. Thomaz, o homem então incumbido da administração de todos os dinheiros.

Depois da dimissão de José Balbino pa- recia que a regência lhe daria por successor um homem que tivesse melhores qualificações, e cujos serviços relevantes fossem a base de uma publica e geral opinião. Não foi porém assim: a escolha recahio em um homem, en- tão pouco acreditado por seus princípios po- líticos , manifestados em alguns opúsculos (c) ; e pelas correspondências officiaes que ha- via tido na Bélgica com o general Azeredo ; correspondências, que se achavão publi- cas pela imprensa. Foi esse homem Abreo e Limeis de quem fallei quando citei essas mesmas correspondências que acabo de men- cionar. Dêo-se elle logo a conhecer por um acto, verdadeiramente cruel, que praticou em prejuizo de todos os emigrados. Estavão estes na posse de enviar pela legação Portu- gueza todas as suas correspondências tanto para Portugal como para outras partes do Con-

(c) La Legitimité et le Portugal : Rcveries d'un Portu? gais •, Bruxelles , 1829.

Investigations politiques par Mr. D'Albe;r.ireau Portu- gais; Bruxelles, 1830.

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tinente por onde estavão espalhados ; e nun- ca estas lhes havião sido vedadas em quanto o marquez de Palmella > e José Balbino pre- sidirão na mesma legação. Ao primeiro ou segundo dia, em que o novo ministro se ins- talou no officio , prohibio logo por meio de um edital , todas as correspondências parti- culares que não fossem para Portugal, ou d'- ali viessem , declarando , que nenhumas ou- tras se acceitarião na legação. Foi, por tantOj não cruel esta medida , porque indicava indole j e prohibia a fácil communicação de infelizes, que tinhão entre si relações ou de amisade ou de interesse, mas porque não custavão um real de despeza á legação, visto que a secretaria Ingleza dos negócios estrangeiros, em virtude dos bons ofícios de José Balbino , acceitava de muito boa von- tade todas estas correspondências , e as in- viava de graça para os seus competentes des* tinos. Assim este homem, que pelo seu em- prego devia ser o protector de seus compa- triotas , e não lhes aggravar as amarguras da sua triste situação , assumindo o caracter de um inquisidor politico , se declarou por seu inimigo, e usou de um despotismo, apenas crivei em taes circumstancias. Algumas lega- ções estrangeiras, taes como as do México e Brazil, horrorisadas com este acto de barba- ridade , immediatamente se ofFerecêrão aos emigrados para receberem e enviarem para qualquer parte as suas correspondências. E

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por este acto acharão elles nos estranhos a protecção , a sympathia , e os bons serviços que não poderão encontrar em um Portuguez ! Em Paris D. Francisco d* Almeida também adoptou esta medida, bem que, para ser jus- to , convém dizer o que n'esse mesmo tem- po constou ; e foi : que a ordem que elle de- ra para o mesmo fim não fora tão barbara ; porque pela sua nova legislação permittia que as cartas singelas podessem ser recebidas na sua legação , e ser d'ali enviadas para os seus respectivos destinos»

Por este mesmo tempo , isto he , no mez de fevereiro d'este anno, se publicou a noticia de que a regência da Terceira havia nomeado uma cõmmissão chamada consultiva para lhe ir servir junto d'ella de uma espé- cie de conselho cCestado. As pessoas, que ap- parecêráo nomeadas para esta missão, fôrão : O marquez de Lavradio ; D. Filippe de Sousa, irmão de Palmella; Mousinho da Sil- veira ; Filippe Ferreira; Manuel Gonçalves de Miranda; Francisco António de Campos; Cândido José Xavier ; marquez de Frontei- ra ; conde de S. Paio ; o general Pizarro , o mesmo, que acompanhou a tropa, e acom- mandou na sua retirada pela Galliza ; José da Silva Carvalho; e Joaquim António de Magalhães. Tudo isto tinha o ar de um ver- dadeiro embrogltOy ou de uma caricatura de conselheiros d'estado ; porque em que espi- rito, ou em que plano politico se tinhão

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malgamado indivíduos de cores politicas tão oppostas , ou tão discordantes ? Para delles tomarem conselho, não : porque se a regên- cia tivesse pensado que necessitava d'eilc , devia logo no principio da sua instalação for- tificar-se com estes ou outros conselheiros ; mas ella não o fez então , e não podia ser senão porque nunca duvidou de sua intelli- gencia , sabedoria , e talentos. Devia ter , por tanto, outros motivos, ou outras boas ra- zoes , e estas me parece que serião as que vou apontar, expondo-me talvez a errar em meus raciocínios , mas sempre com o desejo de acertar.

Como he provável que a regência sus* peitasse que não podia contar com as aíFei- çóes da generalidade dos Portuguezes tanto dentro como fora de Portugal ; e conceben- do já probabilidades de que a usurpação cor- ria para a sua queda, he também natural, que se quizesse de antemão preparar para esse tempo, e desde logo escoltar-se com certas notabilidade \r, que representassem os diversos partidos, ou as diversas opiniões que suppu- nha dominantes. Para este fim, que não dei- xa de ter probabilidades, creio que para com- por a sua commissao consultiva, escolheria indivíduos de todas as cores e feições poli- ticas, por meio das quaes podesse conservar e poder senão no todo ao menos em parte. Fôrão elles, pois, ou homens, que perten- cerão em outro tempo ao partido popular,

bem que depois alguns d'elles passassem a mostrar fazes bem diversas na emigração ; ou homens filhos da alta aristocracia j ou emfim homens indifferentes, que são do partido de César ou Pompeo , segundo seus interesses os dirigem; e que por esta habitual facilida- de em seguirem todos os rumos da politica, são homens sempre aptos para tomarem to- das as cores. Com os primeiros pensaria tal* vez a regência poder insinuar-se no espirito dos liberaes ; essa gente, que por alguns da mesma regência > e por todos os inimigos declarados dos princípios politicos de 1820, assim como pelos disfarçados e encubertos da carta de 1826 tinha sido, e ainda era de- nominada republicana. Com os segundos, ou com os filhos da alta aristocracia , também a regência se procurava escudar, procurando fa* zer, por intervenção d^lles , um partido en- tre a nobreza ; e com os últimos , que erão uma espécie de reserva, he de presumir qui- zesse amalgamar os dous partidos, lançando* os entre elles, como pacificadores moderados, e fazendo-os passar , quando lhe conviesse , para uma ou outra bandeira ; o que nunca he diíficil com homens sem caracter distincto; porque sempre estão promptos a fortificar to» do o poder em que podem achar interesses, importando-lhes pouco seguir este ou aquel* le partido para os ganhar. Parece, por tan* to , ter sido esta a plausível razão pela qual $e dirigío a regência nesta nomeação ? bem

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que, segundo ainda escreverei, pouco lhe va* leo , porque dos indivíduos nomeados bem poucos acceitárão.

No principio deste mesmo anno cons- tou em Londres que a academia real das scien- cias de Lisboa mandara cunhar uma medalha de cobre com data do anno 1829, em hon- ra de D. Miguel por ter permittido aos só- cios académicos a entrada do paço» Quem se disse, que mais concorrera para este acto de adulação foi o insigne, e depois de mui- to tempo conhecido, Monge Benedictino, Fr. Mattheus , o antigo elogiador da horro- rosa carniceria do campo de Santa Anna no anno de 1H17, e a quem eu n'esse tempo, escrevendo em Londres o Investigador Portu- guez, denominei o-^Anacreonte dos algozes do Rocio.

Em quanto a regência da ilha Terceira se procurava enfeitar com um apparatoso con- selho d' estado, deixava em Londres nas mãos de um homem, D. Thomaz Mascaranhas, toda a administração dos dinheiros públicos, e isto na mesma occasião em que se contra- tava um empréstimo de alguns milhões de cruzados. A elle , em quem , como deposi- tário e administrador de todos os nossos re- rursos pecuniários, estaváo depositados to- dos os destinos da realeza , da liberdade, e da pátria , não julgou a regência necessá- rio dar-lhe homens com quem se aconselhas- se , ou antes homens que o dirigissem ; e

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para si guardou esse faustoso apparato ; por- que na épocha em que o requereo não podia ter outro nome. Assim uma das fataes con- sequências desta imprevidência foi o acon- tecimento seguinte. Pouco antes da sahida do marquez de Palmella para a ilha Tercei- ra havia muitas letras saccadas sobre elle , tanto vindas da ilha como de outras partes , que elle não pôde pagar; sendo este talvez o motivo principal por que abreviou a sua viagem. Tinha chegado, como disse, por esse mesmo tempo a Londres , vindo do Rio de Janeiro, D. Thomaz Mascara- nhas com grandes poderes, e encarregado da administração dos dinheiros públicos. Não tendo, porém, dinheiro para pagar as divi- das, contrahidas em nome de Palmella, con- vocou os portadores das letras , que monta- vao pouco mais ou menos a 27 mil libras sterlinas ; e expondo-lhes a sua actual situa- ção, concordou com elles em lh'as pagar den- tro de um anno com o juro de $ por cento. Vencêrão-se as ditas letras no i.° de março d'este anno; e depois de se ter oíficialmen^ te publicado um empréstimo, nada era mais natural do que esperarem os credores rece- ber o seu dinheiro no dia aprazado. Chegou porém este, e D. Thomaz não pagou : hou- ve , por consequência , um grande descon- tentamento, misturado de invectivas, e jus- tos queixumes da parte dos credores , e ao mesmo tempo uma quebra da boa íéy e dq

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credito irreparável- O pouco juizo de D, Thomaz em não tomar conselho com pes- soas que lho podessem dar foi palpável, por- que ao menos oito dias antes do vencimen- to das letras devia elle ter examinado se tinha ou não dinheiro para as pagar; e não o tendo , devia convocar os credores , e ex* por-lhes amigavelmente o que havia, fazeii" do assim todo o possível para que este ne- gocio se não tornasse escandalosamente pu- blico. Não o fez porém assim ; esperou pe- lo dia em que devia pagar, e então he que se quiz compor com os credores ; e por isso aconteceo, que fosse obrigado a ter mui desagradáveis conferencias , e a patentear ao publico que não tinha juizo, nem dinheiro, nem credito. Este acontecimento tornou-se muito mais prejudicial por ser constante que havia um empréstimo, e por não poder vir á cabeça de ninguém que o mesmo homem, que affirmava ter feito aquelle empréstimo, quasi no mesmo momento se declarasse han- ca-rota. Esta falta de palavra , este descré- dito , e esta demência trouxerão logo , e ao mesmo tempo, comsigo outra ainda mais fa- tal consequência , a qual foi o mostrar-se a todo o mundo que tal empréstimo não exis- tia de facto, e era puramente nominal ; por- que a não ser assim como não haveria di- nheiro para pagar as letras , divida de tanta importância , e tão sagrada ? Desculpou-se D. Thomáz, ou o quizerão desculpar, di-

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zendo que o emprestador não quizera dar o dinheiro; mas d'esta repulsa, que foi ver- dadeira , eu darei ainda noticia , e explica- rei miudamente qual ella foi. O certo he que esta nova circumstancia foi de péssimo erfeito, porque revelou aos nossos inimigos a nossa fraqueza , o pouco discernimento dos nossos governantes, e o pouco medo que podião ter das nossas expedições, uma vez que se patenteava ao mundo que toda a idéa de um empréstimo era fantástica , que nada se podia recear de nossos esforços para reco- brarmos a liberdade e a pátria ; e em uma palavra , que não éramos nada , porque não linhamos credito nem dinheiro, e ainda, pa- re maior infelicidade, nem homens capazes de dirigirem nossos negócios. Toda a emi- gração íicou por então assaz desanimada ; e os opprimidos tanto dentro como fora de Portugal perderão de resolução e de força quanto seus oppressores ganharão de vigor e de audácia.

O homem, que D. Thomaz tinha mais próximo de si, e de quem poderia tomar conselho era Abreo e Limay mas este nenhu- ma opinião tinha entre os emigrados ; e am- bos elles mostravao a mesma ignorância pa- ra vencermos a causa por que andávamos ex- patriados, e servindo de ludibrio a nossos inimigos ; o que se patenteava por seus a- ctos. Por um d'elles se mostrou bem a igno- rância , porque uma das estipulações d'esse

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malfadado empréstimo de Maberly era: que o valor das apólices seria de 4 porcento me- nos do que n'aquella data estivessem as dos fundos Brazileiros ; ora como por todos era bem sabido que por um pequeno e muito or- dinário manejo estes se podião fazer descer, bem clara e visivel foi a pouca esperteza de quem consentio em similhante estipulação. Isto he uma amostra da intelligencia dos ne- gociadores ; quanto á boa vontade que elles mostravão de abreviar o nosso desterro , e todos os males a elle inherentes , está el- la mui patente nos dous casos que vou refe- rir, e que n'aquella épocha passarão por ver- dadeiros. O primeiro foi, que annunciando o conselheiro de embaixada , José Balbino de Barbosa e Araújo , uma proposta de em- préstimo feita pela casa de Rugemond em Londres, nem ao menos se quiz ouvir, e isto em tempo que não havia dinheiro para se pagarem letras vencidas, e se passava por esta vergonha, O segundo ainda foi mais no- tável , por ser muito mais importante. No fim do anno passado o capitão HM, que cos- tumava fazer algumas viagens á ilha Tercei- ra por conta da emigração, propôz ao mes- mo José Balbino, que elle promettia arran- jar navios para quatro mil homens com duas embarcações de guerra para os protegerem ; e que todas as despezas para este arranjo se farião com letras a pagar em Portugal, á ex- cepção de uma pequena quantia de dinhei^

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ro que immediatamente se devia pagar para comprar os víveres que se não podessem en- contrar na ilha Terceira. Estava então em Londres o Portuguez emigrado Leal, o mes- mo que depois desgraçadamente ali morreo cahindo de um cavallo abaixo. Este oíFere- ceo pelo seu credito e o da casa de Young apromptar setenta mil libras, que n'aquelle caso erão mais que sufficientes ; porque a ex- pedição , como disse, se fazia quasi toda a credito. Propôz isto José Balbino a D. Thomaz e ao Lima, que acabava de chegar da Bélgica, ao que elles não derão attenção alguma ; e a final fez a mesma proposta ao marquez de Palmella e seus companheiros na regência. Esta, bem como os seus agen- tes de Londres, nenhum caso fez d'este tão útil como vantajoso offerecimento ; e assim tanto uns como outros derão uma nova pro- va , de que estavao no segredo das intrigas que se passavão entre a Europa e o Brazil ; intrigas que erão nem mais nem menos do que a conservação de D. Miguel debaixo das illusorias condições propostas pelos gabinetes Europeos , e que D. Pedro esteve resolvi- do a acceitar , e acceitaria a não ser a gra- ve lição que levou o governo absoluto na re- volução Franceza de julho.

Os emigrados do deposito de Rennes em França , sendo do numero dos que mais calumniados erão por aquelles que nos go- yernavão em o nosso exilio, e porque ti*

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nhao acompanhado o conde de Saldanha na sua hida á Terceira , e não por isso lhe erão arfeiçoados, mas porque por via de suas diligencias não tinhão morrido de fome e miséria, fízerão em numero de 161 uma re- presentação á Rainha com data de 30 de ja- neiro deste anno, em que lhe pedião os empregasse no serviço da restauração do seu throno e da carta constitucional, porque pa- ra tudo isto offerecião do coração suas pes- soas e suas vidas. Este passo brioso e patrió- tico destruio as falsas calumnias e as miserá- veis invectivas com que uma facção servil de emigrados tinha querido denegrir aquel- ]es honrados e sempre leaes Portuguezes , denominando-os Saldanhlstas , porque se conservarão affeiçoados ao seu general , esse mesmo homem, que, por suas constantes di- ligencias, lhes tinha dado pão e vestido ; cou- sas , que os que governavão , e bem assim seus panegyristas e agentes, sempre lhes ti- nhão negado E com isto igualmente mos- trarão , que a melhor resposta que se pôde dar á criadagem do poder, qualquer que se- ja a libré com que se vista , assim como aos falsos patriotas, são as obras dhonra, patrio- tismo, e liberdade.

No dia 8 de fevereiro deste anno se malogrou outra revolução em Lisboa ; e pa- ra punir os individuos que ou os ódios par- ticulares, ou os factos verdadeiros podessem implicar naquelle acto de legitima resisten*

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cia ao poder usurpador e tyrannico , se no- meou logo uma commissão mista , composta de homens quasi todos conhecidos, para que nao houvesse receio de que faltassem vi- ctimas para offerecer á tyrannia. Fôrão da clas- se dos togados, presidente, António José Guião, e seus sócios, Joaquim Gomes Bel- ford ; Manuel Joaquim Barbosa ; e António Maciel Monteiro. Da classe militar fôrão o coronel do regimento n.° 17; dito do regi- mento n.° 13 ; eo tencnte-coronel do bata- lhão de caçadores n»° 4.

Entre as causas geraes , que fizerao ma- lograr esta e outras tentativas similhantes u- ma que mais particularmente se pode apon- tar he a geral desmoralisação , a que tinha chegado a nação pelo longo habito de um inveterado despotismo ; desmoralisação, que tinha extinguido em quasi todas as classes a energia, o patriotismo, e esse amor da li- berdade que inflamma a todo o homem que sabe sentir e pensar; desmoralisação emfim, que entre nós tinha creado, nutrido, e alen- tado um egoísmo tão profundo , que apenas se pôde descrever. Além d'estas se podem comtudo apontar outras mui peculiares, as quaes erao próprias do tempo. Apesar porém de todo esse egoísmo, e de toda essa ten- dência para a servidão, seria fazer uma in- juria a todos os Portuguezes se n ellest n- essa mesma épocha, não se encontrassem mui- tas e mui distinctas excepções de honrados

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indivíduos que preferião a liberdade aos fu- nestos prestígios do despotismo. Esses indi- víduos por muitas vezes tentarão oppôr-se á usurpação , e derribar o tyranno ; porém con- ferindo directa ou indirectamente com mui- tos dos emigrados de quem esperavão auxi- lio, porque erão os depositários da authori- dade legitima , e de certos meios pecuniá- rios, d'elles recebião instrucçóes, que mui- to variarão segundo as diversas épochas em que lhes fôrão transmittidas. Antes dos suc- cessos de julho da grande semana de Paris mandava- se-lhes constantemente dizer , que esperassem e nada fizessem sem que primeiro se lhes desse aviso; e he de notar, que is- to acontecia quando entre os gabinetes de Londres e Paris se estava negociando o ca- samento de D. Miguel com a Rainha D. Maria II. , como base do reconhecimento da sua usurpação ; negocio , que então era ca- balmente conhecido dos que figuravão coma governo na emigração. Vê-se, por tanto, que até esta épocha as tentativas e desejos dos. bons patriotas em Portugal se estiverão sys- tematicamente paralisando. Mudou porém a politica em França e Inglaterra, e as instruc- çóes tomarão por consequência um novo ca- racter, mas sempre illusorio. Dizia-se-lhes sim que fizessem uma revolução, e derribas- sem o tyranno , porém lhes prescrevião cer- tas formas, e lhes designavão pessoas para que o negocio fosse a seu geito. D'aqui sue-

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Cedia, que havendo tanto em Portugal corno na emigração indivíduos que querião uma re- volução completa nos homens e nas cousas, se achavão elles em opposição de planos e opposição de tentativas com os outros que tinhão a missão de fazer uma revolução de encommenda. Estas diversas opposições fazião, por conseguinte , com que nem uns nem ou- tros dessem um passo decisivo ; porque não podendo concordar em princípios mutuamen- te destruião os planos que cada um delles formava. A estas causas se devem , por tan- to, também attribuir todos os máos resulta- dos das tentativas que se íizerão para derri- bar o tyranno , assim como toda essa inde- cisão que sempre houve em as executar. Os delatores, que fizerão abortar esta conspira- ção, fòrão, segundo então se publicou, um sargento do regimento n.° 16, e o coronel Affonso Botelho.

Pelos princípios do mez de março d'es- te anno acontecerão em Londres dous factos, que eu julgo dignos de se relatarem por di- zerem respeito a dous grandes funccionarios nossos. Foi o primeiro a accusação que o cônsul Sampaio, que estava no partido de D. Miguel, fez ao ministro, em nome da Rai- nha, Abreo e Lima. Queixou-se elle a um dos tribunaes de policia de que Abreo e Lima lhe tinha aberto um masso de papeis, que de Lisboa lhe erão dirigidos ; esta accusação porém não teve cabimento, porque se vio

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que tudo havia sido obra de acaso, e des- cuido do correio na entrega. O cônsul Mi- guelista , que estava no campo contrario , a- penas ficou com a gloria de ter disparado um tiro ao inimigo ; e com isto mostrou que ze- lava a causa de seu amo. O segundo facto foi cómico, porque querendo a gazeta In- gleza Age do domingo 1 3 de março escar- necer D. Thomaz Mascaranhas (d) pelo em- préstimo i Ilusório e fantástico que havia con- trahido com mr. Maberly, designou-o por um titulo assaz ridiculo , que foi chamá-lo Dou- Tom-ass ; nome mui significativo na Jingua Ingleza j e que eu julgo desnecessário tra- duzir.

No dia 16 de março d'este anno se commetteo outro novo assassinato jurídico, que foi a consequência da malograda revolu- ção de 8 de fevereiro, que antes mencio- nei. As victimas assassinadas fôrão:— Joa- quim José Pedreira , negociante : António Germano Freitas, caxeiro de fanqueiro: Ma* noel Luiz da Silva, capitão de atiradores: Vicente Dias de Campos, sargento do regi- mento, n.° 16: Joaquim Lopes Martins, cabo do regimento, n." 13: Florêncio Pe- reira da Costa, soldado do regimento, n.° 7: e José de Magalhães, criado de servir. Os juizes , que assignárão a sentença , fôrao os seguintes pela ordem que nella se escre- . ■* 1. >

(d) A quem Abreo e Lima chamava o Melro»

verão : doutor Guião, como presidente : Bar- bosa : Nunes, coronel: Silva Belforte : Ro- za , coronel : Maciel Monteiro : e Araújo Carneiro.

Nos princípios d'este mesmo anno se tornou a malograr outra tentativa feita pelos Hespanhoes ao sul da Hespanha , tentativa emprehendida pelo ousado e infatigável Tor- rigos. Devia esta empreza começar pelo le- vantamento de Cadix, ponto, em que na rea- lidade começou o primeiro movimento com a morte do governador ; e ser depois apoia- da pelo desembarque de alguns emigrados Hespanhoes na ilha de Leão ; porém todas as combinações falharão , porque houve trai- ção. Faltou uma boa cooperação interna ; e os conjurados constitucionaes , obrigados a ir temar posições na serra de Ronda , ahi fôrão parte trahidos e agarrados, e parte se espalhou e dividio sem poderem consumar a grande obra da restauração politica d Hespa- nha. Todavia , todas estas tentativas fazião grande honra á pertinácia Hespanhola , e mostravão que mais dia menos dia havião de produzir o seu eíFeito. O progresso das lu- zes , que marcha a par do progresso do des- potismo, sempre cego e sempre teimoso em seus actos violentos e atrozes, ha de a final ser victorioso ; porque o reinado da oppres- são e tyrannia não pode ser eterno. Sim , o maior numero, o povo y bem que não possua D presente, ha de possuir o futuro*

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It aliam ! Ilaliam ! exclamarão os emi- grados de Tróia , commandados por Eneas ao avistarem as praias da bella e clássica Ita* lia ! Atisonia ! Ausonia \ devião também ago- ra exclamar os malfadados Italianos vendo suas terras pisadas por cohortes estrangeiras que lhes vierão suffocar sua restaurada liber- dade ! Foi, com effeito, ainda perdido este reiterado esforço que uma parte de Itália co- meçava a fazer para recobrar a sua indepen- dencia ; e as armas Austríacas fôrão o instru- mento desta sua nova calamidade. Esperan- çados os Italianos nas palavras e promessas da França regenerada em julho passado, qui- zerão realisar as suas esperanças, e dar á pá- tria os destinos que ha muito tempo elles tem jurado dar-lhe até á custa do sangue e das vidas. Mas como seus juramentos são fir- mes , são sinceros, e eminentemente nacio- naes e patrióticos, ha de chegar ainda um dia em que as novas leis, destinadas para a Au* sonia , venhão a ser proclamadas ; e que es- se bello paiz seja reunido em uma e úni- ca família de uma extremidade á outra dos limites que lhe pôz a natureza.

No dia 17 de abril d'este anno se com- pletarão três mezes depois do ultimo paga- mento de subsídios que se fez aos infelizes emigrados, que por tão honrada e justa cau- sa andavão separados de suas casas e fami^ lias , e dispersos pelo mundo. E isto acon- tecia depois de um chamado empréstimo,

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que D. Thomaz Mascaranhas tinha contra- hido , assignado , e pomposamente annun- ciado á emigração !

No dia 22 d'este mesmo mez de abril ganhou o rei de Inglaterra, Guilherme IV. , uma das maiores honras que pode ganhar um monarcha : isto he, identiíicou-se com o seu povo , e se pôz do seu lado contra a pode- rosíssima aristocracia Britânica. Uma das con- dições do novo ministério , quando concor- dou em entrar na administração, tinha sido o propor a medida de uma reforma parlamen- tar, porque com effeito a representação na- cional era nominal , e toda ella dependia em grande parte da influencia immediata da alta aristocracia, e do governo, quando com- posto de indivíduos da mesma classe. Con- tra este absurdo politico clamava depois de muitos annos a maioria do povo Inglez; e a este clamor chamavao os aristocratas o clamor dos radicaes , porque estes pedião u- ma reforma radical em sua representação na- cional ; mas estes clamores tomarão novo vi- gor depois dos acontecimentos de Paris em julho passado. Assim , vendo-se o ministé- rio na alternativa ou de passar por uma revo- lução violenta , para a qual o povo se mos- trava cada dia mais disposto, ou de elle fa* zer a reforma ; adoptou este ultimo judicio- so e necessário partido, e encontrou um rei com bastante intelligencia para decididamen- te o apoiar n'esta grande medida. A alta a-

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ristocracia, sempre teimosa, e sempre infle- xível nas suas pertenções de dominar, per- suadio-se que ainda ganharia a victoria , rc- geitando a lei , e obrigando por isso o mi- nistério a dimittir-se. Comtudo, a constân- cia dos ministros e a prudência do rei trans- tornarão em um dia todos esses projectos iiberticidas. A dissolução da camará , não prevista e até julgada impossível , collocou a aristocracia em uma posição não espera- da , e lhe fez ver que d'esta vez tinha erra- do em seus cálculos. O povo agradecido dêo a Guilherme IV. os nomes de rei -patriota , de rei restaurador , e de rei triunfante , no- mes que mereceo por este grande acto de intrepidez e resolução.

Em quanto isto se passava em Inglater- ra , outros cuidados, e bem diversos, occu- pavão o ministério de D. Miguel em Lisboa. n'estes Annaes mencionei o ultimo assas- sinato jurídico que ali se perpetrara, e em consequência do qual muitas victimas havião sido condemnadas ou á morte ou a outros castigos de crueldade e infâmia. Entre ellas fôrao envolvidos dous Francezes , os quaes reclamarão a protecção do seu governo , e rfelle com eífeito a encontrarão. O cônsul de França, por ordens positivas que para is- so teve, pedio satisfações, e entre ellas a annullação de tão illegaes e barbaras senten- ças ; mas o usurpador (e) e seus ministros to-

(O Para se fazer idéa do conceito que o ministério Fran»

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rnárão diversos pretextos , e se recusarão a dar-lhas. Em consequência disto o cônsul Francez, com muitos dos seus compatriotas, sahio de Lisboa no dia 19 de abril; e por este acto se collocou o tyranno em verdadei- ra hostilidade com a França. O resultado po- rém deste negocio ainda será um dos as- sumptos dos successos d'este anno.

No meio das suas calamidades também nos princípios d'este anno oito Portuguezes, desterrados como constitucionaes para um de- gredo perpetuo em Angola, e outros diver- sos presídios, tiverão a boa fortuna de es- caparem á tyrannia de seus oppressores e poderem abordar ao Rio de Janeiro. Náo pude saber os nomes de todos, e os dos quatro seguintes, que fôrao : Francisco An- tónio de Abreo e Lima ; José das Neves Mas- caranhas e Mello ; José Ferreira Pestana ; e José Maria Moreira deBergára \ o primeiro, corregedor do Porto ; o segundo provedor de Aveiro ; o terceiro , lente de mathema- tica na universidade de Coimbra ; e o quar- to, primeiro-tenente do corpo de engenhei- ros. Neves Mascaranhas, e Ferreira Pesta- na poderão salvar igualmente suas esposas, que havião tido a nobre coragem de os a- companhar naquelles apurados lances de in- fortúnio, e tormento, e fugir com estes seus

cez fazia de D. Miguel, deve saber-se que o general Selas- tiarii publicamente disse: que era vergonha que tal monstro estivesse manchando um dos mais nobres thronos da Europa.

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inapreciáveis thesouros, na verdade bem ra= ros nas grandes desgraças da vida. Tendo fugido em uma lancha , escapando-se á vi- gilância das guardas e sentinellas de Loan- da , se dirigirão a um brigue Inglez, que estava em Ambriz, mas não o tendo en- contrado, e navegando com grande perigo ao longo da costa, por fim se acharão á vis- ta de uma galera Portugueza , que genero- samente os recebeo e salvou. O nobre capi- tão, o primeiro commandante Portuguez de navio de guerra ou mercante que tinha dado protecção a algum martyr da liberdade, á excepção do fiel e honrado AufFdiener, que desde o principio abraçou a causa constitu- cional , conduzio aquellas heróicas victimas ao Rio de Janeiro , onde tomarão terra no principio d*este anno. Grande pena, com ef- feito, tenho, ao escrever estas linhas, de não saber o nome do capitão , ou mestre que acção tão nobre e de tanta humanidade executou , porque o queria depositar n'estes meus Annaes para exemplo dos bons , e vi- tupério de todos esses algozes do mais feroz dos tyrannos : comtudo seu honrado e vir- tuoso nome não poderá esquecer aos que el- le salvou : e algum delles haverá que, com muito prazer, faça o que eu, involuntariamen- te , agora deixo de fazer. No dia 17 de fe- vereiro fôrão estes martyres da liberdade a- presentados à Rainha, que os recebeo com toda a afíabilidade , e regosijo.

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Nos principios do mez de maio d'este mesmo anno tornou a sahir para a ilha Ter- ceira Mousinho de Albuquerque , o secretario da regência, que tinha vindo a Londres pa- ra concluir grandes negócios, que não con- cluio, não deixando de si recordações favo- ráveis. Tanto que chegara a Londres tinha mandado logo embarcar certas fazendas que a regência havia encommendado a José Bal- bino para serem mandadas para a ilha. Che- gou porém o dia de pagamento na occasião que estava a partir, e levava comsigo cousa de 3 mil libras sterlinas; parecia, por tan- to , não haver duvida de que pagasse as di- tas fazendas , mormente porque apenas im- portavão em trezentas libras, pouco mais ou menos. Não o fez porém assim ; não lhe im- portou o seu credito, nem o da regência; e, o que he mais, deixou José Balbino em um terrível embaraço, porque na boa ti- nha feito aquella encommenda , e por esta falta esteve em termos de ir para a cadêa.

Como negociador não deixou também boa nomeada ; porque se ausentou no pró- prio momento em que poderia ter consegui- do alguns recursos pecuniários, se admittis- se os conselhos de quem o podesse bem di- rigir. Duas cousas exigia o emprestador Ma- berly, e com elle alguns individuas mais que quizerão entrar no contrato do emprés- timo, e erão ellas: i.a que a regência da Terceira mandasse uma authorisaçao formal

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para que o dinheiro do Brazil , destinado para os dividendos de Londres, lhe passasse directamente para as mãos ; o que antes não acontecia , porque era remettido, e entregue ao ministro Portuguez : 2.a que o Brazil ra- tificasse formalmente a promessa de entregar ao governo, em nome da Rainha, todo o importe da divida de que Portugal era cre- dor, e que estava reconhecida e authori- sada por uma lei. Ambas estas cousas vie- rão quasi a um tempo, ainda que a ultima não tivesse ainda todo o caracter oificial ; porque a regência mandou o documento que se lhe exigia, e o marquez de Santo Amaro teve approvaçao da garantia que havia dado ao empréstimo em nome do seu governo, e em consequência da nota oflkial que a este respeito tinha passado o ministro Calmou (f) com a declaração que a solemne ratifica- ção d'isto mesmo em pouco tempo se daria. Parece , por tanto, que com estes dous do- cumentos á vista a negociação poderia tomar melhor figura , e d'elles se deveria ter apro- veitado Mouzinho: comtudo , não se apro- veitou, porque teve a facilidade de remetter, sem mais preliminar algum, a Maberly a de- claração ou authorisação da regência, que foi o que elle quiz apanhar; e nem d'ella, nem da mencionada ratificação da garantia do empréstimo se prevaleceo para renovar a ne-

(/") Vejão-íe as peças justificativas no fim d'este livro.

gociaçao com vantagem. Retirou-se, e dei- xou sacrificado José Balbino, expondo-o a todos os vexames legaes de credores alheios. Como este notável empréstimo fosse li- ma das causas da prolongação das nossas ca- hm idades tanto pelos termos em que foi con- cebido como pela inhabilidade , e até pelas combinações, talvez interessadas, de alguns que n'elle tiverao parte ,. mencionarei ainda agora algumas circumstancias que ignorava quando pela primeira vez fallei a este res- peito , circumstancias , que impedirão que então se realisasse, e por conseguinte fôrão causas mui efficientes de todos os prejuízos que depois se padecerão. Concluído o dito empréstimo, e depositado no banco de Lon- dres o contrato authentico , alguém houve que logo aconselhasse D. Thomaz para que immediatamente exigisse de Maberly o pri- meiro pagamento em dinheiro, e letras so- bre os últimos para serem pagas pelo ban- queiro do emprestador ; pois que a esse tem- po ainda elle estava prompto a pagar. Con- cordou-se n'isto, e estando as letras fei- tas, e vindo para serem assignadas por D. Thomaz, suecedeo que com ellas também vinha uma para o pagamento da commissão que Henrique José da Silva devia ter em ra- zão da sua agencia neste negocio. D. Tho- maz, e não sei se também Abreo e Lima, entrarão então a disputar a quantia da dita commissão, querendo que fosse levada so-

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bre o liquido, e não sobre o nominal: o re- sultado foi , que se não assignárão as letras, que assim se passarão alguns dias ; e que no emtanto começando Maberly a pensar no ne- gocio, e vendo a opposição que no Stock Exchange se fazia ao seu empréstimo , final- mente declarou, que não pagava nada em quanto do Rio de Janeiro não viesse a ra- tifícação authentica da sua garantia ou hypo- theca. Para esta resolução de Maberly con- correrão ainda outros motivos, que fôrão os seguintes. Tinhão D. Thomaz, e Abreo e Lima ajustado com Maberly, que por via d'elle se havião de arranjar navios necessá- rios para hirem buscar e proteger a guarni- ção da Terceira , e a conduzirem a Portu- gal ; mas como ao lado dos nossos agentes andassem sempre bons espreitadores de in- teresses, e agora quizessem saborear-se com algumas gorduras do empréstimo , metêrão- lhes em cabeça que havião de fazer a cou- sa mais barata , e que por isso convinha ti- rá-la da administração de Maberly- D. Tho- maz, e Abreo e Lima accedêrão a esta in- sinuação, e o resultado d'isto foi, que par- ticipando-o a Maberly , este se eseandalisou, e aborreceo, vindo a conhecer os motivos d'esta mudança : desde então não quiz ter mais contratos com D. Thomaz, nem com a gente que o dirigia. Tão disposto estava Maberly no principio a dar o dinheiro ne- cessário para tentarmos logo uma expedi-

çao para Portugal, que immediatamente , e sem difficuldade entregou 18^000 libras ster- linas , pouco mais ou menos , das quaes o único proveito que tirarão os desgraçados emigrados foi o receberem dous mezes de subsídios. D'estas tão boas disposições em- fim se não souberão aproveitar os agentes de nossos negócios, e antes muito concorrerão para as contrariar. Porque D. Thomazquiz re- ceber para si individualmente certas quantias , e Abreo e Lima mostrou iguaes pertenções , este procedimento fez crer ao empresta- dor, que lançando o dinheiro em muitas bolsas não serviria este para os negócios pú- blicos , mas para fins particulares e próprios. Todas estas circumstancias juntas não derão conseguintemente a Maberly boa idéa da ad- ministração dos nossos agentes ; e por uma vez os deixou, declarando abertamente que nada mais queria com elles.

Os destinos fôrão sempre de sermos mal representados e servidos em todas as par- tes durante o tempo da nossa dura emigra- ção ; e o que se passava em Londres, pou- co mais ou menos , com maior ou menor incapacidade, se passava em Paris. D. Fran- cisco de Almeida, que á força queria pas- sar por ministro da regência da Terceira , bem que ali ninguém o reconhecesse como tal, publicou, com data de 18 de abril d'- este anno, o importantíssimo documento se- guinte : ~ .,, III.™ snr. A regência em nome

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da Rainha authorisa a v.a s.a e aos outros 5, Portuguezes residentes rTessa cidade a a- j, listarem-se na legião estrangeira que, se- gundo as ordens deste governo , deve 5, ser formada para ser empregada fora do ?, território Francez. Será muito para dese- jar que aquelles que se alistarem na dita legião declarem que terão a faculdade de ?, largar o serviço Francez logo que possao empregar-se no serviço da sua pátria. A- presso-me a fazer a v/ s.a esta communi- cação (da qual v.a s.a dará conhecimento a todos os Portuguezes residentes n'essa cidade) em consequência da circular do mi- nistro do interior, com data de 3 do cor- rente, da qual remetto inclusa uma copia. 5, U> Deus guarde a v.a s.a Paris, 18 de abril de 1 83 1. ** Ill.m0 sr. José Júlio de Car- ,, valho. *a D. Francisco d'Almeida. ,,

Esta peça he notável pela forma , e substancia. D. Francisco cTÁlmeida não se ennunciou de uma maneira como se fosse um secretario d'estado, que fallasse em nome da Rainha, porém passou mais avante , por- que tomou a cathegoria de legislador; e com poder absoluto, e de sciencia certa derogou o artigo 8.°, titulo 2.0 da carta constitucio- nal Portugueza. Muito melhor figura repre- sentou n'este caso o conde de Saldanha na resposta que dêo ao prefeito da policia com data de fpf de maio deste mesmo anno, a qual foi publicada em o Nacional de 31 do

mesmo mez. N'ella , com toda a cortezia , mostrou o impedimento politico que os e- migrados Portuguezes tinhão para se alis- tarem ; e ao mesmo passo oíFereceo os ser- viços d^elles como voluntários no caso de que a França entrasse em guerra ; o que certa- mente não se lhe podia censurar, porque el- le erá o commandante reconhecido da tropa que tinha vindo buscar hospitalidade em França ; e nisto não fazia mais do que pagar uma divida de gratidão pelo genero- so acolhimento que tinha encontrado não so- mente no governo, mas em todo o povo Francez. Apesar d'esta diíFerença de proce- dimento achou D. Francisco elogios a mon- tes no Paquete de Portugal , escripto em Londres (g) ; e a par d'este incenso encon- trou o conde de Saldanha nas mesmas pagi- nas ou seguintes amargas censuras. Mas , então era moda insultar e aviltar o Saldanha para se elogiar um homem, o Palmella, a quem , depois que um novo idolo o subs- tituio, sem nenhum pejo escarrarão na ca- ra !

n'estes mesmos Annaes mencionei co- mo , em consequência do que se passou em Lisboa por eíFeito dos processos criminaesda conspiração d^ste anno, o cônsul Francez se ausentara por não ter recebido as satisfações

(g) N.° 8.° do vol. 7.0 pag. 47 e seguintes com data de 12 d'abtil d'e$te aunot

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que exigira. O cônsul Inglez, em nome do seu governo, fez também outras reclamações que merecerão mais contemplação ; e ás quaes D. Miguel accedeo, apesar de serem as mais insultadoras que um governo pode fazer a ou- tro , ou a uma nação , que passa por inde- pendente. Exigio-se d'elle não uma forte indemnisação em dinheiro, porém a dimis- são de alguns empregados públicos, que mais notáveis se tinhão feito como agentes de seus despotismos. Enão contente ainda com isto o mesmo cônsul exigio mais, que estes actos de vergonhosa e baixa submissão se publicas- sem na gazeta official de Lisboa ; o que se executou na folha do dia 4 de maio d'este anno. A todas estas affrontas se sujeitou ou=- surpador : mas quem roubara a coroa a seu irmão, e a liberdade a todo um povo por meio de crimes e baixezas, por crimes e baixe-» zas a podia sustentar. O que porém em tur do isto se deve particularmente notar he o procedimento do governo Inglez. Empregan- do todas as tramas , todas as seducções , e todos os enganos, e até horrorosas violências, elle tinha collocado D. Miguel no throno ; e agora não teve ao menos a cortezia de não o enxovalhar, e escarnecer , quando lhe con- vinha conservá-lo ! Mas não foi ao instru- mento, obra de suas mãos, que o gabinete Britânico insultou e punio, porém ao povo Portuguez, a quem, depois de o ter lança- do nos braços da escravidão e tyrannia, ain«

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da espoliou de seus bens > como tinha es- poliado da liberdade.

D. Miguel e seu governo, que nãoha- vião tido dificuldade em reconhecer no côn- sul Inglez poderes , e authoridade sufficiente para tratarem com elle, não reconhecerão por uma absurda contradicção os mesmos poderes e a mesma authoridade no cônsul Francez. Em consequência desta contradicção o cônsul Francez se retirou de Lisboa com todos os Francezes que o quizerão acompanhar. No dia 16 de maio porém, estando á vista da barra uma esquadra Franceza, entrou den- tro do porto uma embarcação de guerra, cu- jo commandante mandou intimar a D. Mi- guel que exigia dentro de 48 horas uma res- posta positiva ás reclamações antes feitas pelo cônsul. Gomo esta resposta se lhe não desse, começarão as hostilidades no dia 23, que consistirão em passarem a tomar todo£ os navios com bandeira Portugueza. O go- verno Francez seguio neste ponto a mesma politica Britânica , que foi a de fazer gueif» ra não ao usurpador, porém aos desgraçados Portuguezes que , depois de tão flagella- dos pelo tyranno, fôrão ainda obrigados a soffrer esta nova calamidade. Se o ministé- rio Francez , que denominava o usurpador com o nome de monstro, e se o Inglez, que lhe dava outros epithetos similhantes, o querião castigar , porque não o atacarão de frente, em vez de se unirem com elle,

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e de o conservarem, depois de o terem tão vergonhosamente enxovalhado ? Vio-se po- rém, que o homem ainda assim mesmo lhes servia ; porque a única cousa que d'elle exi- girão foi hum ajuste de contas puramente mercantil. A esquadra Ingleza , para que a Franceza ajustasse livremente as suas contas, fez-lhe o cumprimento de sahir immediata- mente do Tejo no mesmo dia 23 de maio. Este procedimento se tornou muito mais es- candaloso por se ver que nesse mesmo tem- po estavão ambos os governos interferindo mui directa e violentamente nos negócios da Bélgica ; por maneira que o interferir nos arranjos domésticos de um povo livre lhes pareceo muito justo ; porém o fazer o mes- mo na causa de um povo opprimido pela mais barbara tyrannia lhes pareceo um gran- de attentado \ em uma palavra, não ti verão duvida em se unirem para restringir a liber- dade dos Belgas , e tiverão escrúpulo de quebrar o sceptro do tyranno usurpador Por- tuguez 1 Máxima geral : as nações não con- tão amigos ; tem interesses ; e a estes tu- do sacrificão , até ás vezes a honra !

Por um dos paquetes que sahio do Rio de Janeiro no meado de março deste anno soube-se que o ministério Brazileiro recusa- ra confirmar a garantia que o marquez de San- to Amaro tinha dado em Londres para se efTeituar o empréstimo contratado com mr. Maberly em nome da Rainha D. Maria II.

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Este procedimento cTaquelle ministério foi coherente com o grande plano que depois de muito tempo estava traçado para tirar ao imperador do Brazil todo o apoio que podia ter em Portugal , e emflm para o expulsar do Brazil. Este plano com effeito se execu- tou no dia 7 de abril , em que o mesmo imperador foi forçado a abdicar, e partir pa- ra a Europa ; o que executou com sua filha, a Rainha de Portugal, no dia 13 do mes- mo mez. Depois da sua volta de Minas a- chou elle a facção, que o pertendia perder, toda disposta a consumar a sua obra. De- balde quiz aparar o golpe , e desviá-lo de si, convocando cortes extraordinárias no dia 3 de abril , e nomeando um novo ministé- rio ; porém não era tempo , porque esta mesma nomeação foi o pretexto de uma re- volta , em consequência da qual , achando- se trahido por todos , e com especialidade pelo commandante da força armada o briga- deiro Francisco Joaquim de Lima, tomou a resolução de abdicar, como disse, e se foi immediatamente refugiar em uma embar- cação de guerra Ingleza.

Grandes inconsiderações , grandes er- ros, e grande falta de caracter levarão o im- perador D. Pedro a este precipício logo des- de o momento que se associou inconsidera- damente com a causa do Brazil. A primei- ra inconsideração foi o não ver, que o re- belar-se contra o pai e contra a pátria era

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erro grandíssimo ; e depois disto nem sé» quer pensar, que elle mesmo se constituía o próprio assassino dos seus melhores inte- resses. Com eíFeito , sendo elle o herdeiro do Brazil e Portugal , quem poderia imagi- nar que voluntariamente cooperasse para per* der uma tão valiosa porção da sua herança? Além disto, pela sua inexperiência não pô- de conhecer o caracter dos homens a quem servia ; e , mais que cego, não vio, que el- le não era mais, nem mais podia ser do que um mero instrumento dos interesses daquel- les que o trahião. Quem escreve estes An- naes bem clara e positivamente lh'o prognos- ticou em uma das cartas que lhe escreveo no Campeão Portuguez em Lisboa com data do dia 3 de agosto do anno 1822. Nella lhe disse, que os instrumentos, uma vez que acabão de servir, ou se põem para o la- do} ou se quebrao ; e a profecia do anno 1822 se realisou no anno 183 1 !

O imperador D. Pedro, associando-se debaixo de tão máos auspícios com a causa Brazileira, coliocou-se logo em uma mui fal- sa posição j porque, em vez de se fazer cor- tejar pelos Brazileiros, foi elle quem se a- baixou a indignamente cortejá-los , acompa» nhando-os , animando-os , e até satisfazendo seus ódios e vinganças contra os Portuguezes. Foi, por tanto, este um grande erro, porque n - aquellas circumstancias os Brazileiros mais dependião do seu instrumento do que este

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delles dependia ; pois como seria possivel , que sem tão poderoso auxilio podessem el- les realisar a sua independência? Sim, esta havia de chegar-lhes um dia, porém este dia ainda estava distante ; e quem lh'o aproxi- mou foi o imperador D. Pedro. Qyaes fos- sem os intentos dos que o tinhão seduzido para a impolitica empreza da independência do Brazil conheceo elle logo dentro de pou- co tempo , quando , depois de ter convoca- do a primeira assemblea constituinte, foi o- brigado a violentamente dissolvê-la. Os Bra- sileiros, que se viáo independentes, e tinhão ganhado a causa por que tanto ha- vião trabalhado , quizerão desde logo desfa- zer-se do seu instrumento ; porém o impe- rador ainda nesse momento teve bastante energia para suíFocar a Conspiração tramada contra elle; e salvou-se. Comtudo, a sua perda irrevogável foi immediatamente jura- da ; e elle , que , depois d'este acto de vi- gor , devia tornar-se mais respeitado e enér- gico, começou por um extraordinário con- traste a gradualmente se enfraquecer, ao pas- so que seus inimigos cada dia crescião em audácia.

A morte de seu pai D. João VI. , que o deixou herdeiro de ambas as coroas , mi- nistrou bem depressa mil pretextos aos Bra- sileiros para se desfazerem do instrumento que lhes não parecia necessário. Um gran- de acto de justiça fez elle certamente tanto

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que recebeo a noticia da morte de seu pai ; e este foi restituir aos Portuguezes os seus direitos políticos por meio da carta consti- tucional. E a este acto unio outro de gran- de prudência , abdicando a coroa Portugue- za em sua filha, para com esta abdicação firmar para sempre a independência do Bra- zil, Mas nem com isto contentou os Brazi- leiros, porque na realidade nada os po- dia contentar, uma vez que todos os seus occultos pensamentos erão inutilisar para sem- pre o instrumento que os tinha tornado in- dependentes. Diz-se que a ingratidão nas- ce geralmente de um grande beneficio que se não pode pagar; e este axioma se verifi- cou ainda no procedimento dos Brazileiros para com o fundador da sua independência 9 o imperador D. Pedro. Este, persuadido que pelo acto franco e decisivo de abdicar a co- roa de Portugal tinha ganhado as afFeições e amor dos habitantes da nova pátria que havia adoptado, enganou-se ; porque elles tiverão a audácia de exigir ainda do seu ins- trumento um novo sacrifício, que foi que des- amparasse a causa de sua filha, e consentis- se que a coroa lhe fosse roubada por um in- grato, por um perjuro , e um usurpador j tal como seu irmão D. Miguel ! Achando-se o imperador D. Pedro n'esta inesperada alter- nativa, faltou-lhe a energia e a força de ca- racter, que lhe erão precisas para nobremen- te sahir d'esta dificuldade. Sem tomar uma

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resolução decidida , e sem aífbutamente de- clarar aos Brazileiros que seria faltar á sua honra e dignidade desamparar a causa de sua filha , e o deixar-se ludibriar tanto por seu irmão como pela politica estrangeira, tomou o partido dos Fracos , que foi o pertender concordar por um meio termo duas cousas absolutamente oppostas que erão , ntm auxi- liar com empenho a causa Portugueza , nem também de todo a desamparar Este partido o perdeo, assim como outros iguaes sempre tem perdido os que os tem tomado. Em con- sequência d'isto todos os seus actos futuros fôráo erros Capitães. Sem ouvir os conselhos dos seus melhores amigos, nomeou regen- te a seu irmão quando tanto conhecia a per- versidade de seu caracter; para maior incon- sideração o nomeou ainda depois que for- malmente lhe desobedeceo , não querendo ir para o Rio de Janeiro. Abdicou depois absolutamente a coroa sem saber qual seria o comportamento do irmão ; e depois de o sa- ber, ladeou, duvidou, e fraqueou por tal maneira em caso tão grave e importante , que se tornou um verdadeiro objecto de lu- dibrio tanto para os seus como para os es- tranhos. Em tal posição politica, em que des- avisadamente se collocára, como podia elle ser respeitado dos Brazileiros, se impunemen- te se deixava escarnecer por seu irmão, e por todas as intrigas da diplomacia estrangeira? Perdida a dignidade de homem, de rei, ede

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pai, não podia conservar a de imperador ; £ isto he o que lhe veio a acontecer. Agora restituído á Europa com a Rainha sua filha, ainda poderia cubrir com um véo brilhante todos os seus erros passados ; mas que fez elle ? No seguimento d'estes Annaes os meus leitores o verão.

A regência da Terceira, vendo se sem dinheiro, começou a fazer, quando pobre, o que antes devia ter feito ou tentado quan- do rica. Lançou-se a fazer a conquista de algumas das ilhas suas visinhas; e no dia 21 de abril tomou posse da ilha do Pico. Não podendo eífeituar-se o desembarque no Faial, dirigio-se a expedição á ilha de S. George, que se tomou no dia 9 de maio , depois de uma forte resistência, que todavia se ven- ceo pela intrepidez de parte da guarnição da Terceira que entrou n'este glorioso fei- to. Ao mesmo tempo porém que adquiria muita honra com estes esforços, mereceo, não sei se com toda a justiça , ser accusada de despótica e cruel pela medida violenta que tomou de expulsar da ilha a muitos in- dividuos. Neste ostracismo foi envolvido um homem de grandes serviços , e foi elle o major Quintino , commandante que fora do brioso batalhão 5:.° de caçadores. Manda- do sahir da ilha sem processo nem sentença em três horas com sua mulher e seus filhos, deo- se-lhe o destino para Londres debaixo da miserável capa de uma commissão^ e esta

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foi-, o ser inscripto na lista dos emigrados* a quem se não pagavão subsídios havia dezoito mezes \ Todo o governo , que he justo f não escarnece assim das victimas , que com razão ou sem ella se determina a pu- nir; e o da regência não o foi n este caso. Ao major Quintino (b) devia a regência da Ter- ceira o estar naquelle logar ; porque fora elle quem com um pequeno destacamento do seu batalhão, tendo contra si toda a ilha,

(A) Quando em pag. 79 , vol. i.° cTestes Annacs men- cionei o nome do major Quintino pelo feito brioso de ter proclamado na ilha Terceira, em 22 de junho de 1828, o governo da liberdade e da Rainha , deitando abaixo o de D. Aliguel , não tinha as informações que hoje tenho , e por isso o mencionei só. Agora sei que para esta acção heróica , que abrio a porta para o denodado arrojo do ge- neral Cabreira , também concorrera efficazmente outro di- gníssimo official , o sr. António Homem da Costa Noronha , que então commandava , com a patente de tenente , o ba- talhão de artilharia. A ambos estes officiaes , e com espe- cialidade ao sr. Noronha, pelo seu valor e conselhos, se deve pois o glorioso feito do dia 22 de junho do anno 1828 pelo que diz respeito á parte militar. Quanto ao mais, também sei, que nelle tivera a paste mais distincta , se- não toda , o sr. Thcotonio, de Ornellas , hoje visconde de Bruges; o qual, com as suas riquezas e patriotismo, que então e depois sempre tem mostrado , auxiliou effectiva- mente o bom resultado deste importante acontecimento politico. O sr. Nqronha he hoje, com a patente de majoe, commandante interino de todo o material da artilharia das ilhas dos Açores. Mas, apesar de que, desde o anno 1820, tem sido sempre um fiel e constante defensor da liber- dade , não tem deixado de soffrer desgostos e injustiças. Ainda actualmente (14 de junho de 1842) está major, sen- do um official hábil , com muitos serviços , muita instruc- çâo , e muita probidade ; em quanto outros d3 sua mes- ma arma, porem mais modernos e mais felizes } estão te- nentes-coroneis , e coronéis I

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deitara abaixo a usurpação de D. Miguel , c ali proclamara a Rainha D. Maria II, e a carta constitucional no dia 22 de junho de 1828. Fiel e intrépido soubera elle manter- se firme na briosa posição que tomara ; e foi n'ella que o veio achar o valente general Cabreira , quando ali desembarcou com os poucos destemidos que o acompanhavão. En- tão este general dêo nova vida aos bravos , que tão honrosamente se havião ali susten^ tado, e preparou o caminho para a entrada d'essa valorosa guarnição, que tamanhos lou- ros depois ganhou , repellindo os ataques dos rebeldes no glorioso dia de 11 de agos* to de 1829.

Em quanto isto se passava na ilha Ter* ceira trabalhava o general Saldanha em Paris para ver se podia auxiliar a causa geral por algum nobre e brioso feito. Mas ainda des- ta vez fôrão mal succedidos os seus bons desejos nas tentativas que fez. Foi a primei- ra pedir ao governo Francez, quando este abrio hostilidades contra D. Miguel , que lhe concedesse i.° ou formar um batalhão dos emigrados que estavão em França e na Bélgica , e ir com o apoio dos navios Fran- cezes tentar um golpe de mão sobre Peni- che : 2." ou a permissão de ir á ilha Tercei- ra, em quanto a esquadra Franceza bloqueas- se Lisboa e o Porto, tomar ali a guarnição, e com ella saltar em Cascaes : 3.0 ou emfim poder com 20 ou 30 ofíiciaes da sua conflan*

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ça embarcar a bordo de algum dos navios de guerra Francezes, e ir para junto ou den- tro do Tejo tentar o espirito , e resolução dos habitantes da capital. Todas estas pro- postas lhe fòrão porém recusadas pelo mi- nistério Perier. Vendo que nada podia con- seguir por esta via , recorreo então ao pa- triotismo de alguns Portuguezes ricos , co- mo João de Carvalhal e outros, para que lhe ministrassem meios para fretar um ou dous barcos, de vapor, e rTelles ir com £0 ou 60 companheiros fiéis ou á ilha de S. Miguel % para onde era expressamente convidado , ou a algum dos portos do norte de Portugal, onde também sabiá que seria muito bem re- cebido. Também nelles não achou apoio nem auxilio; e bem que alguns bons Portugue- zes , que menos podião , estivessem prom- ptos a auxiliar a expedição, como seus meios pecuniários não fossem suíEcientes, nada ten- tou e nada fez

A regência da Terceira , que , como antes disse, se tinha querido enfeitar com o apparato de um simulacro de conselho d es- tado debaixo do modesto nome de commis' são consultiva , realisou depois mais appara- tosamente esta sua creação por um decreto de 3 de junho d'este anno com o titulo de junta consultiva. Os indivíduos, que para el- la nomeou , fòrão os seguintes : ~ Conde dAlva , pai : brigadeiro , Sebastião Cabrei- ra : brigadeiro , Joaquim Pizarro : Coronel 3

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José António da Silva Torres : coronel , Theotonio de Ornellas Bruges d' Ávila : des- embargador, José António Ferreira Brackla- mi : coronel , Francisco da Gama Lobo : tenente-coronel, Manuel de Souza Raivoso: doutor, Joaquim António de Magalhães: co- ronel, Henrique da Silva da Fonseca : Tho- maz de Mello Breiner: e tenente-coronel d'engenheiros, José Carlos de Figueiredo.

Um dia depois da data do decreto d'- estas nomeações, isto he em 4 de junho, passava-se em Londres um caso notável. Jo- sé Balbino de Barbosa Araújo, secretario d^ embaixada em Londres, e ali por algum tem- po encarregado de negócios, recebia dous convites da Rainha de Inglaterra para os dias 17 e 30 do mesmo mez. Este aconte- cimento, que parece insignificante, não o era, e um tal convite foi na verdade bem ex- traordinário ; porque estando n esse tempo em Londres um homem que pertendia ter caracter publico, dado pela regência da Ter- ceira , o qual era Abreo e Lima , não teve este um igual convite, ao passo que elle se fazia a um individuo que não era mais que um simples particular. A corte Ingleza quiz sem duvida mostrar n'esta occásião, que não estava satisfeita com o homem que á força querião que representasse de ministro ; e que de algum modo se julgava orTendida por lhe haverem tirado da qualificação diplomá- tica aquelle com quem estava costumada a

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tratar oíficialmente. Com effeito , um dos grandes despropósitos da regência foi des- tituir um homem que ella sabia estar reco- nhecido, ou pelo menos tolerado pelo mi- nistério Britânico, e substituir-lhe outro que não não tinha sido bem recebido, mas até tratado por um tal modo, que bem mos- trava que nenhum caso d'elle se fazia. N'es- sa e n'outras nomeações via-se que a regên- cia só queria dar de comer a afíilhados : e que do resto muito se descuidava ; porque na occasião em que os ministérios Francez e Inglez estavão manifestamente indispostos contra D. Miguel , o aviltavão , ou lhe fa- zião a guerra, e em que finalmente D. Pedro chegava á Europa, e desembarcava em Fran- ça ; achava-se a emigração sem ninguém que oficialmente podesse advogar a sua causa. As sommas que estes anilhados ganhavão , bem que não fossem reconhecidos perante as cor- tes onde residião, erão, por exemplo, as se- guintes , segundo o que n'aquelle tempo me constou, e me foi afiançado. D. Francisco d'- Almeida recebia em Paris mensalmente 5^000 francos , pouco mais ou menos ; Abreo e Lima , em Londres , outro tanto ou mais ; e D. Thomaz, para tudo andar em harmo- nia, noventa e tantas libras mensaes ; e tu- do isto , quando os emigrados morrião de fome (/) !

(0 No livro do sr. Ferreira Borges , impresso em Lon- dres no anno 1831 , com o titulo de Princípios de $yn-

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No dia 28 de maio d'este mesmo anim morreo em Paris um homem mui respeitável, o antigo bispo de Blois, Henri Gregoire» Ten- do-o eu pessoalmente conhecido, e sendo um dos seus amigos, lançarei aqui algumas linhas em honra de sua memoria, a qual o fanatis- mo, a intolerância, e a perseguição quize- rão manchar, porém debalde e sem fructo. Este venerável ecclesiastico, um dos poucos que na revolução Franceza advogou e defen- deo constante e corajosamente a religião ca- tholica, e a liberdade civil e religiosa; que por esta causa se expôz então a todos os pe- rigos, e a todos os insultos; que na tribuna publica foi igualmente o animoso defensor de todos os ecclesiasticos , que não tinhão pres- tado o juramento requerido, e os salvou ou das prisões, ou dos pontoes em que estavao amontoados tanto em Rochefort como em outros portos ; e emfim que, por seu zelo, sua charidade., e sua inalterável, pura e cons- tante intrepidez religiosa, fez com que em

telologla , acha-se a nota seguinte em pag. 40. ,, He tal 3 ,, nossa mania de embaixadas, que hnje (março de 18 ji) que nâo temos Portugal , que temos uma regência nâo ,, reconhecida por nenhum estado Europeo , temos toda» j, via embaixadores nominaes em Londres e Paris , e tal- vez em Roma, os quaes nenhum dos respectivos gover« nos reconhece como taes , tratando apenas com os nos* ,, sos precedentes encarregados de negócios , ou secreta- ,, rios de embaixada por commiseração. He impossível que ,, a adminhtraçâo Portugueza , que se seguir , possa ap* ,, provar similhante despeza. ,, (Eu diria simiihante ics\ yerdiíio).

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1796, apesar de todos os furores revolucio- nários, houvesse em França 32,214 parochias abertas para o culto catholico : não obstante isto, porque proclamou a republica em 1792, e porque foi religioso sem superstição, sem fanatismo , e sem intolerância, foi cruelmen- te perseguido não na vida , porém ás portas da sepultura por esses mesmos eccle- siasticos, e essa mesma igreja que elle de- fen<ieo, até á custa da sua vida. A primei- ra perseguição, e perseguição que nunca ti~ nha encontrado nem nos terríveis tumultos da revolução , nem nos despotismos do im- pério, achou elle logo na entrada dosBour- bons , que lhe levantarão o aleive de regici- da, quando havia sido o mesmo que propo- zera na tribuna da convenção nacional a abo- lição da pena de morte; e que o primeiro que gosasse d'esta graça fosse Luiz XVI. ! Foi tal o ódio que contra elle manifestou o hypocrita Luiz XVIII. , que até ordenou que o seu nome fosse riscado da lista dos sócios do instituto nacional de França. Na aproxi- mação da sua morte o arcebispo de Paris , e por ordem delle o parodio da sua freguezia, lhe negarão os sacramentos , e pertendêrão jgualmente negar lhe a sepultura religiosa; porém obteve de outros ecclesiasticos, e da prudência e firmeza do governo que nenhu- ma d'estas cousas se lhe negasse. Exigia-se d'elle uma solerane abjuração dos seus prin- cípios políticos 5 e de ter accedido á consti-

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tuição civil do clero ; o que elle firmemen- te sempre recusou: e assim morreo como ti- nha vivido, isto he, exemplar ecclesiastico, e cidadão livre e virtuoso. D este facto, po- rém, se deve tirar uma conclusão muito ins« tructiva a respeito d'essa potencia ecclesiasti- ca que, collocada no meio das nações, per- tende ser sempre a arbitra dos destinos po- líticos dos povos. Em quanto era Paris o fa- natismo religioso perseguia um ecclesiastico e um bispo venerável por suas virtudes , porque os seus princípios políticos erão op- postos ao despotismo que os padres sempro pregão , insinuão , e defendem , outros pa- dres em Portugal prégavão, insinuavão, e de- fendi ão a usurpação e o perjúrio , porque isto lhes servia para manterem o mesmo des- potismo; o único governo que pode sus* tentar a hypocrisia, e as fraudes com que de ordinário se alcanção dignidades, e riquezas mal merecidas. Era uma das máximas deste respeitável e religioso bispo que— < a historia dos reis era o martyrologio das nações. E se nós olharmos para o que em nossos dias se tem passado nos dous reinos da nossa penin^ sula , durante os governos detestáveis dos dous monstros que a tem regido, Fernando , e Miguel, veremos que o santo prelado ti* nha sobeja razão para assim fallar.

No dia 26 de junho chegou a Londres o ex-imperador D. Pedro. A sua vinda, que para muitos foi objecto de alegria, para ou-

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ífos o não foi , porque receando-se da poli- tica Ingleza, sempre interessada e falaz, com razão temião , que se viesse enredar n'ella , e perdesse a mui favorável occasião de ter- minar por si a nossa grande questão, á sombra do systema hostil que a França se- guia n'aquella mesma occasião contra D. Mi- guel. A tudo isto se seguirão logo mui for- tes motivos, que fizerão desanimar os homens verdadeiramente amigos da sua pátria , e da sua liberdade. Parecia que D. Pedro apenas se achasse entre Portuguezes , que muito o podião il lustrar sobre o verdadeiro estado dos negócios tanto passados como presentes, con- vocasse ou chamasse a si alguns que, por seu caracter, antigos empregos, e conhecida pro- bidade, melhor o podessem informar com ver- dade esem lisonja. Não aconteceo assim; e com muita dificuldade , e por empenhos dos seus dous antigos validos Rocha Pinto, e Francisco Gomes, que tinhão sido os seus pre- cursores , recebeo um ou outro escolhido , porque se fez do dia da sua chegada um ob- jecto do mais mysterioso segredo. A final , para não deixar em duvida qual fosse o seu modo de pensar , e o que delle tinhão que esperar os Portuguezes , um dos homens a quem immediatamente dêo a preferencia pa- ra ser da sua intimidade foi o barão de Ren- da/e, o único individuo que, sendo elle rei, tinha dimíttido dos seus empregos, e então oc- cupava o logar de intendente geral da policia.

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Passados oito dias mandou emfim decla- rar que se faria visível a todos os Portugue- zes, porque durante todo esse tempo o foi aos seus escolhidos. Destinou-se para es- te acto o domingo, 3 de julho; mas esta sua primeira apresentação publica diante dos que havião sido seus súbditos , que actualmente o erão da Rainha sua filha, e quasi todos tra- zião a marca honrosa da fidelidade e da hon- ra, foi tão desanimadora, que creio a nenhum dos assistentes deixou contente* Nem uma palavra , quer de agradecimento a tão cor- deal cortejo , quer de consolação ou de es- peranças, dêo a quantos o fôrão cumprimen- tar; e acabada que foi esta espécie de sce- na de theatro $ em que representou de mudOj retirou-se de repente. Eu não assisti a este acto; e quanto refiro he o que sube pelas in- formações de pessoas serias e honestas, que a elle assistirão.

Outro grande serviço fez ainda o con- de de Saldanha a uma porção de emigrados que, vindos do Rio de Janeiro , onde não tinhão achado a esperada protecção na pes- soa do imperador D* Pedro, que havia sido seu rei, desembarcarão em Brest , transpor- tados pela philantropia e generosidade de al- guns honrados Brazileiros , e commandado9 pelo emigrado José Vkíorino Barreto Feio, a quem elles tinhão escolhido para seu com- mandante. Este*, ao pôr o em França 9 sabendo que o agente ostensivo Portuguez,

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que ali residia, era D. Francisco de Àlmei* da , a elle se dirigio para que providencias- se alguma cousa a favor daquelles infelizes. Por cincoenta e tantos dias esteve esperando por algum resultado , durante o qual tempo estiverão os pobres emigrados reduzidos a to- dos os apuros da miséria ; e como nenhum houvesse , nem o esperasse , tomou a a- certada resolução de se dirigir ao conde de Saldanha para ver se elle , pelo bom nome , e respeito de que gosava para com o minis- tério e povo Francez , podia conseguir para estes novos emigrados o que tão humana- mente tinha conseguido para tantos outros. O conde se preparou immediatamente para ir fazer as diligencias requeridas \ e dirigindo- se em 30 de junho com o mesmo Barreto Feio á presença do primeiro ministro Francez, mr, Casimir Perier , d'estc, sem mais demo- ra, recebeo a agradável resposta de que os novos emigrados hião a ser tratados como os antigos , e a receber os mesmos subsídios. Este facto foi mais uma prova de quão lou- ca , e injusta era a conservação diplomática de um homem de nenhum préstimo, como D. Francisco de Almeida, que occupava aquelle logar nominal paragosar de um enor- me ordenado, dado pela regência da Tercei- ra ; assim como também sérvio para mostrar a indignidade com que certa facção , órgão de outra poderosa e temivel, tinha, depois de muito tempo, tomado á sua conta desacredi-

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tat* e denegrir as mais bellas acções do con- de de Saldanha,

Com perto de 95: dias de viagem che- gou emfim a Brest , porto de França, a Rai- nha D. Alaria II. Durante o intervallo entre a sua chegada e a de seu pai D. Pedro, que havia tomado o titulo de duque de Bragança, passou este quasi todos os dias em Londres em divertimentos, e festejos. Constou, com- tudo, n'esse tempo que os dous conselheiros antigos , que tinha encontrado em Londres, e que o tinhão precedido, como disse, a- gora auxiliados com os novos que chamara pa- ra seu lado, o chegarão a persuadir, de que ainda podia annullar a sua solemne abdica- ção , e tornar a ser rei de Portugal debaixo do antigo titulo de Pedro IV. Isto , que ao principio passou como boato, adquirio depois grande certeza por factos que se virão, ou fôrão espalhando. Um delles foi o affirmar- se positivamente, que para este fim tinha ha- vido um conselho diplomático entre os mi- nistros de Inglaterra e de França, no qual se havia decidido que a proposta feita por D. Pedro era inexequivel, emfim impraticável. (k) N'essa mesma épocha o Courier9 gazeta

(£) Encontrando eu n'esse tempo em uma rua de Londres ao general Valdez , hoje conde do Bom fim , disse me elle : Agora estive com um dos ajudantes delrei, (official que tinha feito a guerra da Península) o qual me certificou , que em casa do príncipe Talleirand, (então ministro Fran- cez em Londres) estando algum dos ministros Inglezes, declarara não ser possível a pertenção de D. Pedro pa«

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Ingleza , e quasi ministerial, corroborou es- sa noticia , porque positivamente disse , que a primeira negociação diplomática em que havia entrado D. Pedro na sua chegada a Lon- dres havia falhado em razão de ponderosas circumstancias. A verdade he que todos es- tes boatos, todos estes ditos, ou como lhes quizerem chamar, não fôrão favoráveis ao caracter de D. Pedro , porque estavão em completa contradicção com o que elle um mez antes escrevera em uma carta com data de 30 de maio , e a bordo da fragata Volage , de- fronte do Faial, ao conde de Villa-Flòr; na qual formalmente lhe tinha declarado: que se- ria incansável em -promover na Europa os inte- resses de sua filha , como pai , e simples par- ticular.

Durante este mesmo intervallo convo- cou para virem estar a seu lado certos indi- víduos, que pela escolha que d'elles fez não dêo consoladoras esperanças do futuro j por- que as pessoas, que nomeou, erão, entre outras muitas , as que especialmente tinhão concorrido para a usurpação do throno da Rainha , e perda da liberdade da nação. Mandou chamar de França Cândido José Xa- vier, e Mousinho da Silveira, denominado o Mousinho dalfandega. O primeiro era no- ra assumir a coroa Portugueza. Não sei se D. Pedro tam- bém lá estava.

Era também moda dizerem os chamados amigos de D. Pedro : não queremos rei mulher.

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toríamente conhecido pelo seu ministério du* rante o tempo em que existio a sombra da carta constitucional desde o anno 1826 até 1828 ; e do qual fallei no meu Ensaio Po* litico sobre a usurpação de D. Miguel , e no primeiro anno d'estes meus Annaes. O segundo tinha seguido , naquella primeira epocha, todas as inspirações politicas do as- tucioso ministro Inglez ACourt ; e era in- felizmente conhecido por ter sido o único secretario d'est3do que no anno 1823 D. João VI. achara capaz de lhe referendar o decre- to assassino com que , faltando á sua pala- vra e juramentos, tinha dado a morte á cons- tituição politica do anno 1822.

No dia 1 1 de julho a esquadra France- 7a 5 commandada pelo almirante Roussin , forçou o porto de Lisboa; eno dia 14 oot- ficial de secretaria , Castello branco , assi- gnou uma convenção, em nome do visconde de Santarém, com o dito commandante, em virtude da qual o usurpador, e seus compli- ces se entregarão á discrição do vencedor» D. Miguel foi tratado n'esta occasião com mais desprezo e insulto do que o havia si- do o dey de Argel *, e com eíFeito o mere- ceo , porque tanto elle como os seus parti- distas se portarão n'esta occasião com uma covardia sem exemplo. O tyranno, colloca- do entre a deshonra , se não resistisse, e a continuação da posse de um throno usurpa- do, preterio a ultima, voltando suas armas

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não para uma briosa defeza i mas contra os habitantes d aquella desgraçada cidade, pre- ferindo assim a sorte de um covarde usurpa- dor á de um homem brioso que se sabe de- fender. Isto pois explica a apathia em que ficou o povo da capital ; porque rodeado de assassinos , e vendo toda a cidade reduzida a um verdadeiro campo inimigo, cuberto de artilharia , tropa , e algozes , não quiz , e com razão, levantar os braços para fortificar o jugo de ferro e de sangue com que se via opprimido.

No dia 23 d'este mesmo mez convo^ cou D. Pedro para o hotel em que residia grande numero de Portuguezes para lhes pro- por um empréstimo, ou a mediação para èl- )e , afim de ser empregado na expedição de Portugal. Constou-me que nessa occasiao se houvera elle com mais aíFabilidade do que antes tinha mostrado quando pela primeira vez se achou entre os Portuguezes emigra- dos em Londres. Apesar d'isso nenhuma das suas propostas teve o effeito desejado , por- que a gente rica da emigração, e a outra que a ella não pertencia , ou por falta de meios disponiveis, ou de confiança na pes- soa que pedia , não resolverão a entrar em uma especulação , que , n*aquella épo- cha, ainda não apresentava felizes ou pelo menos prováveis resultados. D. Pedro partio então no dia 24 para França com tenção de ir buscar a mulher e a filha 3, mas como

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*®3 68 fe^

Jhe fosse insinuado que o rei Luiz FHippe lhe levaria muito a mal se não fosse a Paris, para foi com efFeito, e chegou no dia 26, hindo-se, indiscretamente, alojar na casa da legação Brazileira. Em três dias que esteve em Paris , e dias de grandes recordações , porque erão o anniversario da grande sema- na do anno antecedente , recebeo elle as maiores honras, e as mais decisivas demons- trações de civilidade, cortezia, e affeiçao ; porém, mal avisado, ou inconsideradamen- te influído, constou recusara as mais vanta- josas oíFertas que se lhe lizerão, e assim per- dera uma das melhores occasióes de apressar a queda do usurpador, e com ella a restau- ração do throno de sua filha. Pessoa de mui- to credito, e bem instruída em os negócios d'aquella épocha , me aifírmou então , que a D. Pedro oíferecêra o rei Luiz Filippe, de a- côrdo com o seu conselho, reconhecer prom- ptamente sua filha como Rainha de Portugal, e collocá-la no throno , se elle a trouxesse para Paris , e ali a deixasse residir. Mas a nada d'isto dêo elle conveniente resposta, ou antes uma , que muito desagradou ao gabi- nete Francez; e por esse modo se expôz a perder a causa de sua filha e dos emigrados ; ou pelo menos a retardá-la, e sujeita la a mil duvidosos azares (/).

ÇO Esta recusaçâo de D. Pedro , que pareceo bem ex» traordinaria, attribuio muita gente i esperança que elle ain-

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No emtanto que isto assim passava hou- ve , por combinação de alguns Portuguezes , residentes em Londres, entre os quaes figu- rou José Ferreira Borges , um ajuntamento na casa da legação Portugueza afim de ver se, em virtude de um novo plano, se po- deria arranjar um empréstimo unicamente Por- tuguez. Mostrou n'esta occasião um raro pa- triotismo o negociante Manoel Joaquim Soa- res , natural do Porto , que offereceo toda a sua fortuna e o seu credito para sobre elle se procurar o dito empréstimo; mas como este não bastasse , tornava-se necessário que mais dous ou três indivíduos, como ca- pitalistas, e de um nome conhecido na pra- ça de Londres , fizessem a mesma oíFertaè Desgraçadamente não apparecêrão esses in- divíduos, e por falta d'elles falhou ainda es- te projecto. Para honra porém dos emigra- dos, que erão proprietários, e não capi- talistas , devo declarar , que não houve um que deixasse de offerecer os seus bens em Portugal para hypotheca deste empréstimo se lhos quizessem acceitar j e n:isto se mos- trarão mais Portuguezes e generosos do que os homens ãinheirosos , que estimarão em mais o seu dinheira do que a pátria e a li- berdade.

No dia 2 de agosto chegou D. Pedro a Londres com sua mulher e sua filha , a

da tinha de ser açchmado Rei quando chegasse ás ilhas j otí a Pottugah

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Rainha de Portugal , D. Maria II. ; e foi alojar-se no mesmo hotel em que antes ha- via estado , (Clarendon Hotel). Desprezou , como disse, todas as amigáveis offertas que em Paris se lhe tinhão feito; e até pou- ca attenção dêo ás insinuações que lhe fize- rão para adquirir duas embarcações de guer«* ra Portuguezas , que havião sido tomadas pelos Francezes , quando entrarão no Tejo , e estavão em Brest ; as quaes erlo a corve- ta Tirania , e a charrua Orestes. Tinha-se-lhe insinuado que não sendo da politica France- za intrometter-se directamente na questão Portugueza , e não lhe convindo por isso entregar, sem algum pretexto, aquelles dous navios a sua filha , havia comtudo para isso um meio muito fácil , o qual era fazer, por um hábil manejo , que não seria mui difi- cultoso , que as guarnições se declarassem peia Rainha ; porque n'esse caso lhas fariao logo entregar. A nada d'isto dêo ouvidos ; e, por assim dizer, collocado debaixo da vara encantadora da politica Britânica , que era a de seus conselheiros, correo novamen- te a entregar se, e a embrulhar-se nos laços dessa mesma politica,.

No dia 7 a Rainha recebeo formalmen- te todos os Portuguezes que a quizerão ir ver e cumprimentar; e a esta cerimonia assistio seu pai , estando ao lado esquerdo d'ella , ç mostrando-se d'esta vez mui polido, e afía- vel para todos. Ainda que elle, como acabo

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de dizer, se não podesse soltar da politica Ingleza, nem por isso esta era sempre para elle generosa, e nem mesmo nas apparencias, que a cortezia e os usos do mundo raras ve- zes deixão de empregar. Depois de elle estar em Londres, e no dia $ d'este mesmo mez de agosto , lord Aberdeen fez uma pro- posta na casa dos lords acerca da ilha Ter- ceira , e da restauração de algumas outras i- Ihas que a primeira acabava de fazer. Fallan- do de Di Pedro, disse aquelle lord, ex-mi- nistro dos negócios estrangeiros : Que o mesmo D. Pedro , no principio do anno antecedente, vendo que nada podia con- ,, seguir contra seu irmão, fizera uma decla- ração oficial , pela qual se obrigara a não continuar a obrar hostilmente contra elle, mas recorrer a termos de composição. por via de negociações. Que para este fim ,, mandara um embaixador a Londres , (»;) o qual, no principio, como os seus ante- cessores, quizera em vez de negociações, excitar a invasão contra Portugal (») ; com- tudo , que o ultimo despacho oficial de D. Pedro fâra para negociar amigavelmente com

(jn) Foi elle o marquez de Santo Amaro. E por este naesmo tempo, de que estou fatiando, se soube, ainda paia maior desgraça nossa , que a sua viagem fora feita á custa do dinheiro devido a Portugal. Esta circumstancia se decla- rou nas camarás do Erazii.

(n) Lord Aberdeen alludio provavelmente aqui i garan- tia do empréstimo de Maberly , que o marquez foi força- do a dar.

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^, seu irmão; c que para isto propozera cer- tos meios , os quaes , se clle (lord Aber- deen) então declarasse, a casa ou a cama- 3) ra «#0 havia de fie ar pouco admirada !,, Ac- crescentou : Que D. Pedro havia sido ex- pulso do Brazil pela unanimidade nacional, e que ninguém ainda tinha merecido tan- to como elle aquelle tratamento. Assim he que foi hospedado D. Pedro pelos ami- gos a quem até ali tinha sacrificado todos os interesses de sua filha , e talvez os seus.

Mas D. Pedro tinha a sina de não dar quasi um passo que não fosse errado , e que não compromettesse ou a sua reputação ou a sua dignidade. Pelo caso seguinte verão meus leitores se sou exaggerado. No dia 10 d'es- te mesmo mez ordenou elle a D. Thomaz de Mascarenhas que fosse participar a certos credores, a quem, em seu nome, d'elle D. Pedro , se havia promettido que serião pa- gos, que. elle se não julgava obrigado a a- quelle pagamento, porque o dito D. Tho- maz tinha excedido nesta promessa os seus poderes. Para esclarecer este facto de sum- mo descrédito farei d'elle uma breve expo- sição, para que por ella os Portuguezes pos- sao avaliar a importância d'este caso. Na oc- casião em que o marquez de Palmella esta- va para partir para a ilha Terceira, tinhão vindo muitas letras da mesma ilha sacadas sobre elle pelo conde de Villa-Flôr. A este tempo não havia real, porque a adminis-

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tração do marquez tudo tinha consumido, e por isso não foi possível pagar então as di- tas letras ; e até foi isto talvez o motivo prin- cipal da pressa com que Palmclla partio, re- ceoso de ser preso em Londres por falta d*- este pagamento Nesta épocha porém acaba- va de chegar do Rio de Janeiro D. Thomaz de Mascarenhas com plenos poderes de D. Pedro para ser em Londres o archi-thesourei- ro dos fundos que ainda mandava o Brazil. Munido d'estes poderes convocou os porta- dores das letras , e disse-lhes , que não ha- vendo então dinheiro para as pagar , elle lhes dava por ellas bonds , ou obrigações, pa- gáveis em um anno com o vencimento de $ por cento. Acceitárão os portadores das le- tras esta proposta , e por então ficou o ne- gocio concluido. Chegou porém o anno , e sem que D. Thomaz tivesse prevenido com anticipação os portadores dos bonds , outra nova inconsideração das muitas que antes havia tido , apparecêrão-lhe elles em casa a exigirem o seu pagamento. D. Thomaz não pagou , e seguio á letra o procedimento do marquez de Palmella. Os portadores dos bon- ds ficarão altamente indignados , como era de esperar, e quizerão proceder contra elle ; mas como em nome de D. Pedro he que ti- nha feito aquelle ajuste , e debaixo d'esta garantia he que elle havia sido acceite, não houve procedimento contra a sua pessoa , e procurarão dirigir-se directamente a D. Pe-

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Jro que ainda suppunhão no Brazil. Mas env quanto isto se passava appareceo elle em Londres ^ e os portadores dos bonãs pensa- rão que tinhão o seu negocio acabado. Diri- girão-se immediatamente a elle, e, depois de muitos dias de espera , receberão a noti* íicação que acima referi , e que se redu- zia a dizer-lhes : que elle não pagava , por- que D. Thomaz tinha excedido os poderes 3, com que linha sido authorisado, Esta mes- ma resposta repetio D. Thomaz aos porta- dores dos bonds ; e ao mesmo tempo lhes mostrou a authorisação em que se tinha fun- dado para lhes prometter o pagamento. E accrescentou , com muita honra, que he jus- to não negar-lhe , que ali eslava a sua pes- soa , e d'ella podião dispor no caso que vissem- ter elle excedido os seus poderes. Sendo estes bem examinados , vio-se que D. Thomaz não era culpado, que tinha obrado legitima- mente , e por consequência que toda a falta de palavra devia recahir em D. Pedro, e não n'elle. Daqui resultou que houve lem- brança de pedir uma ordem de prisão contra elle; e mesmo constou que essa se tinha pedido j mas foi recusada , segundo a opi- nião de lord Chanceller , por terem os bonds ou as obrigações perdido a natureza de le- tras. He isto o que então foi publico em Londres, e que também mui miudamente me foi contado por pessoa que me merecia muito credito.

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No mesmo tempo aconteceo outro ca- so análogo a este com o qual a reputação de D. Pedro não melhorou. Quando o governo do Brazil tinha suspendido as sommas men- saes, que costumava entregar para a emigra- ção mandou o imperador do Brazil um credi- to de 12 mil libras sterlinas sobre Rotchilã, que este não acceitou ; mas como o credito era positivo, porque nelle se dizia que as letras sacadas sobre o Brazil serião pagas pelo thesoureiro imperial, houve pessoas que tomarão essas letras , ainda quando se não sabião os successos políticos do Rio de Ja- neiro, Quando pois D. Pedro chegou a Lon- dres, e soube que as letras hião em ca- minho para o Brazil para serem pagas por elle, não negou a divida, porém pagou-a de um modo bem singular. Foi-se ter com sua iilha, a Rainha D. Maria II., e delia exi- gio que lhe desse todas as suas jóias , que foi empenhar nas mãos do Judeo Samuel , para que lhe servissem de hypotheca para o pagamento daquella divida.

No dia 15" d'este mesmo mcz de agos- to uma commissao de alguns Portuguezes foi entregar, em nome de todos elles , um rico sceptro de ouro , e um magnifico exem- plar da carta constitucional á Rainha. Havia mais de dous annos que quasi todos os emi- grados , então residentes em diversas partes de Inglaterra, tinhão feito uma subscripção voluntária para lhe darem aquelle presente

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na primeira vez que tinha estado em Lon- dres. A politica porém do marquez de Pal- mella , que nesse tempo figurava de secre- tario d'estado da Rainha, não consentio que se lhe fizesse esta oáerta. Estava elle de certo então capacitado das probabilidades que tinha D. Miguel de conservar o throno usurpado; e como assim não convinha tor- nar-se hostil, por qualquer forma que fosse, ao homem sob cujo mando elle ainda sus- peitava poderia viver. Além disto , ainda em outra supposição , esta oíFerta similhava um acto de soberania do povo , e tal idea nem sequer se devia lembrar. Assim não foi permittido então oíFerecer á Rainha es* te symbolo do poder, porque se teve por crime , ou pelo menos por uma grande in- discrição. Córou-se este facto com o suppos- to ou verdadeiro pretexto de que o gover- no Inglez, então composto de Wellinghton,, Aberdeen, e companhia, havia de levar is- to muito a mal ; e esta razão, dada por um homem, iniciado em todos os segredos da> politica Britânica, relativa ás nossas cousas, foi olhada como um rigoroso preceito, ao qual os Portuguezes estavão obrigados a o- bedecer. Como porém a grande semana de Paris fizesse ver não ao marquez de Pal- mella, mas a muita gente que os homens erão, ou podião ser, mais alguma cousa do que instrumentos natas , das vontades e ca- prichos dos reis, não houve agora nenhuma-

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dífficuldade em se fazer, e se acceitar c<an agrado esta oíFerua.

No dia seguinte 16 partio para Paris D. Pedro com sua mulher e a E^ainha. Os motivos desta apressada sahida de Londres fôrão, além do receio que teve da ordem de prisão , que mencionei , ou de uma citação legal para pagar, os desgostos em que andava de elle e sua mulher não terem recebido asdistincções que julgava lhes erão devidas. Pela sua irreflexão, tinha-se persua- dido que elle devia figurar em primeiro logar, e a Rainha sua filha em segundo (o) ; e esta falsa idéa, ou falsa concepção foi a

(o) Este desejo de figurar só, independentemente da Rai- ilha sua filha , mostrava estar ligado com a idéa que ainda conservava de poder reassumir a coroa Portugue2a. Ao me- nos muitos dos seus actos faziâo com que de necessidade similhantes intenções geralmente se acereditassem. Por ex- emplo , tinha dado ordem para que a Rainha nâo fallasss a nenhum Portuguez sem sua licença , ou elle estar pre- sente; e era tal, por assim dizer, a sua reclusão no hotel em que estava, que era mui difficil nâo digo fallar-lhe» porém vê-la. A estes factos aceresce outro bem extraordi- nário, que vou referir, fundado na authoridade de um ho- mem dos mais probos que na minha vida tenho conheci- do (J. A. F.). Lembrando'Se algumas pessoas , que acom- panhavâo a Rainha na sua volta do Rio de Janeiro, que seria bom que ella , ao passar na altura das ilhas, desem- barcasse por alguns dias na Terceira para com a sua presen- ça alegrar, e consolar os emigrados, que, por sua causa, ali estaváo , oppôz se a esta lembrança o capitão da embar- cação , apresentando uma ordem por escripto de D. Pedro, em que positivamente lhe mandava que não consentisse que o Rainha desembarcasse cm terra oceupada por Portugueses ! Quem isto me contou citou-me uma das primeiras pessoas que acompanhavão a Rainha, e pessoa, que ainda vive ao escrever esta nota (17 de novembro, 1840}.

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causa do pouco caso que (Testa vez se fez da Rainha em Inglaterra. Antes de ella che- gar á França tinha o ministério Inglez dado a entender que ella seria recebida como Rai- nha reinante de Portugal; e n'esta qualida- de se lhe daria um palácio para viver. Ape- sar d'isto D. Pedro , sem antes ter preveni- do oficialmente o governo Britânico da sua vinda, e da Rainha, foi meter-se com el- la em um hotel y onde elle figurava, por estar alugado em seu nome. O governo In- glez, que isto vio, considerou logo a Rai- nha como hospeda de seu pai, e não cuidou mais em lhe dar guarda de honra, nem oífe-* recer-lhe palácio, e nem emfim de a rece- ber em publico como soberana. Perguntando alguém a um oíficial da casa real por que motivo o governo tratava d'esta vez tão in- diíFerentemente a Rainha de Portugal , res- pondeo elle : Como ella está com seu pai ! . . . Isto quiz dizer que o governo não queria tributar a D. Pedro, que pertendia figurar como primeira personagem , aquellas honras que estava determinado a fazer á Rainha } se em vez de ser hospeda de seu pai , este o fosse d'ella como convinha ; pois que na qualidade de duque de Bragança, titulo que tinha assumido, e com elle o de súbdito de sua filha , não podia receber os mesmos cortejos que a ella erao devidos. Mas es- tas razoes nunca poderão ter peso na inte- lectualidade de D. Pedro, e muito menos

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na de seus conselheiros; e por isso, ferido no seu amor próprio , e recordando-se então dos oíFereci mentos que antes se lhe havião feito em França, e que tão mal avisado re- cusara ; resolveo-se emfim a sahir precipita- damente de Londres, e partir para Franqa. Chegando ali foi magnificamente recebido , e a Rainha teve distincçoes cjue não se lhe fizerão em Londres. O rei Filippe lhe dêo o palácio de Meudon , junto de Paris, para sua residência ; e ali a Rainha recebeo to- das as honras que competião á sua dignida- de, taes como uma guarda de honra tanto de infantaria como de cavallaria , e uma ha- bitação preparada com toda a magnificência Teal ; porém o governo Francez tinha então interesses superiores aos que no mesmo tem- po tinha a este respeito o governo Britâni- co ; e todo o mal esteve em que D. Pedro , assim como seus conselheiros, os não conhe- cessem , e d'elles não tirassem o proveito que podião.

No principio deste mesmo mez de agos- to parte da guarnição da ilha Terceira, com- mandada pelo conde de Villa-Flôr executou uma acção brilhante , tomando a ilha de S, Miguel. Houve bastante resistência da par- te das tropas que estavão no partido da u- surpação ; mas o valor assaz conhecido do brioso regimento 18 de infantaria, e do ba- talhão $." de caçadores, de que a expedição particularmente se compunha , venceo todos

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os obstáculos , e sem artilharia , e com a que pôde ir tomando aos vencidos , levou diante de suas baionetas todos os rebeldes , que ousarão oppôr-se a seu valor e lealdade. Ao mesmo passo os habitantes da cidade de Ponte-Delgada , sempre constantes no seu a- mor da liberdade, e desejosos de quebrar o jugo dos satellites do usurpador , se le- vantarão immediatamente em massa , fôrão tomar o castello, prenderão muitos dos seus oppressores , e proclamarão a carta e a le- gitima Rainha D. Maria II. Honra e glo- ria sejão pois dadas aos leaes e livres habi- tantes da ilha de S. Miguel ; e nunca seu patriotismo, sua lealdade, e serviços sejão esquecidos por seus irmãos de Portugal. Com a tomada d'esta ilha concluio-se a conquista de todos os Açores.

Este mez, fértil em successos, ora tris- tes,, ora agradáveis, dêo ainda logar a muitos acontecimentos notáveis. Chegou a Londres uma das victimas da brutal usurpação de D. Miguel, depois de ter estado .mais de dous annos nos cárceres de Portugal , e particu- larmente no que era governado por esse ti- gre , com íigura humana , Telles Jordão ; e ainda depois mandado para as mortíferas praias dAfrica, d'onde teve a fortuna de se escapar. Foi essa victima, que se evadio de uma das ilhas de Cabo-Verde, Leonel Steli- ta Fernandes , natural de Coimbra, e bacha- rel formado em medicina,, o qual chegou a

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Inglaterra no principio deste mez (p). Nn mesma épocha, em 19 de agosto, morreo em Remes, na França, um illustre emigrado, Cae- tano Rodrigues de Macedo, também natural de Coimbra, doutor em filosofia , e um dos substitutos da mesma faculdade na universi- dade daquella cidade. Por duas vezes foi nomeado deputado ás cortes nacionaes, pri- meiramente nas constituintes de 1821, e ul- timamente nas do anno 1826, que D. Mi- guel dissolveo , e depois assassinou. Moço de muitos talentos, a estes juntou sempre muita probidade, e um decidido amor pelos princípios liberaes , o que lhe excitou o o- dio do partido absolutista usurpador, e o obri- gou a emigrar para não ser victima , como tantos outros , d'essa monstruosa tyrannia , por meio da qual a demência e a ferocidade estultamente se persuadirão que podião ex- terminar, e anniquilar a liberdade. Morreo moço, e por efFeito de uma moléstia de con- sumpçâo, de que antes tinha sido por al- gumas vezes ameaçado, e que emfim muito se lhe aggravou, e chegou a seu ultimo ter- mo em consequência dos trabalhos de uma longa emigração. Pago este tributo á sua me- moria não porque o merecia , mas por- que as razoes de amisade , e afinidade de parentesco devem dar desculpa ao desejo que

(/O f°' wlvo pelo commandante Inglez da fragata Edenu Depois foi morrer i ilha Terceira, »em poder tornai a vêc a pátria.

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tive de perpetuar seu nome n'estes meus Àn- ttaes.

Houve ainda em a noite do dia 21 d'- este mez uma nova tentativa em Lisboa , e ainda frustrada , para derribar o tyranno , e quebrar por uma vez seu sceptro de ferro , horrivelmente maculado com sangue e mil atrocidades. O author deste movimento em favor da liberdade e da justiça foi o heróico e valente regimento 4.0 de infantaria ; mas quer fosse por faka de boas combinações, quer por outros accidentes, que em geral fazem perder quasi todas as revoluções, não achou o apoio que esperava; e vendo-se a- tacado por forças numerosas, cedeo a ellas, sem comtudo perder a honra e a gloria que tal feito, por emprendê-lo, lhe ganhou. Um dos sargentos (q) daquelle brioso cor- po, que agarrou das bandeiras, e matou o offícial que o pertendia impedir, teve a for- tuna de se escapar; e auxiliado pelo honra- do cônsul Inglez, mr. Hopner , chegou fe- rido, porém salvo, a Falmouth ; para o qual logo em Londres o conselheiro José Balbino âe Barbosa e Ar anjo abrio uma subscripção. Para ella muitos Portuguezes immediatamen- to e de boa vontade concorrerão, senão com quanto desejavão por se acharem no dester- ro , e alguns quasi na miséria , ao menos com aquillo que poderão; tirando-o talvez

(?) Constou-me ser o seu nome António da Silva,,

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naquelle dia da boca para soccorrer a quem tinha exposto a vida para os salvar. Assim este pequeno auxilio valeo mais em mereci- mento para aquelles que o derao, do que se fosse dado pela infatuação e vaidade, ain- da mesmo em grandes sommas. Este aconte* cimento, bem que não tivesse um favorável resultado , mostrou ao menos ao tyranno e seus algozes quanto a sua existência era pre- cária e duvidosa j assim como declarou ás nações estrangeiras, que ainda em Portugal havia vida, e que a causa da liberdade não estava de todo ainda perdida.

No dia 30 do mesmo mez mandou de Paris o general conde de Saldanha ao author destes Annaes uma letra de 30 libras ster- linas (r) para que remettesse o seu importe para Plymouth , afim de com elle soccorrer a alguns dos mais necessitados emigrados que ali estavão, e pô-los em circumstancias de se passarem á França , onde o mesmo conde esperava que fossem admittidos a par- ticipar do auxilio que o governo Francez da- va aos que estavão nos depósitos. Por este modo confundia o conde de Saldanha os a- leives que contra elle diariamente seus ini- migos espalhavão , inimigos que não erão seus porém da carta constitucional e da ver- dadeira liberdade.

CO Píoducto de uma subscripçâo que para este fim pro- moveo em Paris. Vejão-se as peças justificativa? no fim d'- cbte livro.

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Concluirei os successos deste mez com o primeiro publico rasgo diplomático de A- breo e Lima, que se achava em Londres com o titulo de ministro Portuguez, e como tal para ali havia sido nomeado pela regência da Terceira. Este diplomático tinha vindo da Bélgica, aonde era tolerado por ter a sua nomeação de antiga data , para ser ministro plenipotenciário em Londres. Nunca o mi- nistério Inglez o tinha querido reconhecer n'este caracter, e até mesmo o havia muito mal tratado, como antes mencionei, quan- do pedira franquia para receber nas alfande- gas as cousas para o seu uso. Achando-se n- estas circumstancias não se atreveo logo a dar passaportes em seu nome ; e estes se ex- pedião em nome do marquez de Palmella , antigo e reconhecido embaixador Portuguez ; e erão assignados pelo antigo secretario de embaixada, José Balbino de Barbosa e Araú- jo, que na falta do ministro reconhecido era a pessoa a quem isto competia. Comtudo, com a chegada de D. Pedro a Londres achou Abreo e Lima mais algum agasalho no ga- binete Britânico ; e á sombra d'aquella cir- circumstancia concebeo elle então o proje- cto de se dar a conhecer por verdadeiro mi- nistro Portuguez, e n'esta qualidade fazer correr seu nome pelo mundo. Porém, como a forma destes seus passaportes se fizesse notável , e desse occasião a diversos com* mentarioSj dá-la-hei aqui n'estes Annaes co-

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mo objecto de curiosidade. Foi ella literal- mente a seguinte : Luiz António de A- breo e Lima, do conselho de S. M. F. , fidal- v cavalleiro da sua real casa, commen- ,, dador da ordem de N. Sr.a da Conceição de Villa-Viçosa , cavalleiro das de Avis ,, e de S. Wladomiro, tenente-coronel dos ,, reaes exércitos , enviado extraordinário e 5, ministro plenipotenciário , &c. ,, Agora se pode ver e ajuizar, se os que sobre ella fa- zião seus commentarios tinhão ou não razão para os fazer. Dizia que era do conselho de S. M. F. ; mas qual era essa magestade , a quem se referia ? Em Lisboa era ella D. Miguel ; e na ilha Terceira , era a Rainha D. Maria II. : não se sabia por tanto de qual das duas magestades o diplomático era con- selheiro. Além d'isto annunciava-se como of- íicial dos reaes exércitos, e enviado e mi- nistro , &c ; porém a que reaes exércitos pertencia, porque havia dous \ e de quem era enviado extraordinário , e ministro ple- nipotenciário? Em toda esta algaravia diplo- mática via muita gente profundas restricçoes mentaes, e he por isso que lhe faziáo com- mentarios.

O mez de setembro d'este anno prin- cipiou em Portugal debaixo de funestíssimos agouros, porque nelle se tornou a vêr cor- rer immensa copia de sangue derramado pe- las mãos da usurpação. Dezoito victimas per- derão as vidas no dia io d'este mezj mez e

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dia assignalados nos fastos tyrannicos do absolutismo (j). Pertencião todas estas victi- mas ao regimento 4." de infantaria, do qual referi a infeliz tentativa que fizera no dia 21 do mez de agosto próximo passado, e fôrão ellas : ~ Um alferes, um cadete, alguns sargentos , um tambor , e cinco soldados ; dos quaes quasi todos, e particularmente o cadete, segundo geralmente se afKrmou, mor- rerão com uma intrepidez digna da nobre causa por que padecerão. Os seus nomes , que se devem conservar como exemplo he- róico de virtudes Portuguezas, são os se- guintes: —João Gonçalves Pereira, sargen- to da íJ: companhia; Caetano Alberto, i.° sargento da 3.* companhia ; Pedro Bernar- dino Machado, furriel da i.a companhia de granadeiros ; Luiz António Xavier da Serra, i.° sargento da 6.a companhia; Caetano Jo- sé Coelho, 2.0 sargento da $.a companhia; José Godinho de Almeida , i.° sargento da 4«a companhia ; Joaquim Rodrigues da Sil- va , i." sargento da 2.a companhia ; José António Fernandes, 2." sargento da 3/ com- panhia; Miguel José Coelho, 2." sargento da i.a companhia de granadeiros; José Ber- nardo Pereira, alferes da 6." companhia ; João Maria Correia de Lacerda , cadete ; João António, cabo de tambores ; José Ribeiro,

(O Este dia 10 de setembro deve ser olhado como dia nefasto, porque n'elle antes os tyrannos do Rocio execu* iárâo a sctembrlsada do anno 1S10.

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soldado da 3/ companhia ; José Teixeira , soldado da i.a companhia de fusileiros ; Joa- quim Rodrigues, soldado da 4.* companhia ; José da costa, cabo da 8.a companhia ; José Maria de Carvalho, soldado da 8.a compa- nhia; José Gomes, soldado da 1/ compa- nhia de fusileiros.

A sentença , em virtude da qual fôrao assassinados, foi lavrada no dia 7 de setem- bro ; e os juizes que a assignárão , como membros de um conselho de guerra nomea- do em 24 de agosto , dia certamente esco- lhido para mais insultar a liberdade , fôrão os que se seguem , e cujos nomes vou aqui lançar nas gymonias da historia. António Joaquim de Gouvea Pinto , auditor , e des- embargador da casa da supplicação ; José An- tónio de Azevedo Lemos, brigadeiro gra- duado, e commandante do i.° regimento de infantaria, presidente) Francisco Elisiario de Carvalho , brigadeiro graduado , e comman- dante do 2.* regimento de cavallaria 7 deno- minado de Lisboa; José da Rosa e Sousa, coronel de caçadores , denominados da Bei- ra- Alta ;-* João José Doutel, tenente-coro- nel , commandante do regimento, denomi- nado de Abrantes ; João António Rebocho, ajudante de D. Miguel , e commandante do legimento 4.0 denominado de Lisboa. Estes são os nomes dos quer sentenceárão estas vi- ctimas da liberdade e lealdade no nefasto dia de 10 de setembro do anuo 1831.

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No dia 7 deste mesmo mez aconteceo a tomada de Versovia pelos Russos. Aquel- le povo heróico, o povo Polaco, desampa- rado de toda a terra, e, o que he mais, dos povos livres, entre os quaes eminentemen- te fíguravão a França e a Inglaterra , cedeo á força numérica dos Russos, porém não á sua constância, á sua intrepidez , e ao seu nunca visto amor da liberdade. Parecia, por isso, que não perderia ainda com este de- sastre a nobre causa que defendia , porque Varsóvia não era toda a Polónia ; e em quan- to n'um palmo de terra de seu território se podesse arvorar o pendão da sua independên- cia e liberdade , não esmoreceria em seu peito o santo fogo do amor da pátria, e do implacável ódio a seus tyrannos. Não esmo- receo , he verdade ; porém a força bruta foi superior ; forão-lhe contrários os destinos ; desamparou-^ a fortuna ; e apesar de tantos sacrifícios nem a terra nem o céo permittírão que vencesse os seus oppressores.

No dia 19 chegou a Londres o mar- quez de Palmella , vindo da ilha Terceira , convidado por D. Pedro. Demorou-se ali todo o resto do mez, e no dia 2 do seguin- te mez de outubro partio para Paris a avis- tar-se com quem o tinha mandado chamar. Foi cousa singular, que embarcou rio mes- mo ominoso Belfast , em que tinha hido ao Porto no anno 1828, e do qual, bem á ma- neira do eavallv de Trota, sahírão os instru»

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mentos fataes, que n'essa épocha suffocárão a liberdade, e desatarão as mãos ao tyranno para commetter todas as suas atrocidades futu- ras. Desta viagem para Paris data a nova vi- da politica do marquez de Palmella, que, o- ra feliz ora adversa, tem ainda de fazer é- pocha em nosso paiz , e talvez com mais fortuna sua do que nossa. Porém não ante- cipemos os successos : ainda muitas vezes tenho de annunciar seu nome n'estes An- naes\ e á vista dos factos, que tenho de narrar , o publico ajuizará das suas acções , e as classificará no logar em que bem lhe parecer.

Finalmente no dia 23 d*este mez de setembro se concluio um empréstimo de dons milhões sterlinos ao preço de 48 com mr. Ardoin ; e foi elle assignado pelo dito contratador e os srs. J. e S. Ricardo , e D. Thomaz de Mascaranhas , como procurador da regência da Terceira. Perto de três me- zes correo esta negociação , que devia cer- tamente ser concluída em um ou em me- nos, se aquelles que estavão incumbidos de tão importante negocio , ou fosse por des- leixo ou por outro qualquer motivo , não o tivessem demorado com tamanha responsabi- lidade ; não fazendo cabedal nem da perda de um tempo tão precioso, nem das favorá- veis circumstancias que tiverão á vista , e deixarão escapar. As primeiras aberturas pa- ia este empréstimo se fizerão por um agen-

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te de mr. Ardoin , ainda estando em Parts,, no dia 26 de junho d'este anno, quando D. Pedro chegava a Londres. Era então a occasião mui favorável , porque uma esqua- dra Franceza estava bloqueando o Tejo, e havia todas as esperanças de que forçasse a entrada da barra, como depois forçou; e por esta occasião annullasse todo o poder marítimo de D. Miguel , como assim tam- bém aconteceo. Além disto, alguns navios da mesma esquadra Franceza andavão pelos mares dos Açores, e ali tinhão feito duas prezas de navios de guerra pertencentes ao usurpador. Tudo pois era então favorável pa- ra tentar uma expedição; e qualquer sacrifí- cio que se fizesse, com tanto que por elle fossemos a Portugal , seria menor do que a desgraça em que estava a nação tanto den- tro como fora do reino. Nem este mesmo sacrifício , por maior que fosse , seria equi- valente ás perdas que diariamente estava cau- sando a usurpação, e aos outros subsequen- tes sacrifícios que fizemos. Porém não o pen- sarão assim as pessoas que n'esta épocha ad- ministra vão os nossos negócios na emigra* ção; porque suscitarão grandes dificuldades^ e estas , pela demora que causarão na exe- cução do negocio, fizerão nascer innumeraveis obstáculos, que depois apparecêrão, quando se quiz realisar a grande obra para a qual o empréstimo era destinado. Assim he de ne- cessidade que eu resumidamente aqui expo«

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nha a marcha que elle teve, e as difficulda- des que encontrou para a sua ultima conclu- são no dia acima indicado.

Em 26 de junho d'este anno, logo que chegou a Londres o duque de Bragança D. Pedro, foi proposto o primeiro projecto d- cste empréstimo pelos agentes de mr. Ar- doin ; e era elle então muito favorável, por- que só se limitava a dar o dinheiro necessá- rio para fretar os navios de transporte que fossem precisos para levar a Portugal os e- migrados da ilha Terceira, e os mais espa- lhados por França , e Inglaterra. E nem en- tão mais se precisava, porque, como dis- se, a esquadra Franceza bloqueava o porto de Lisboa, e tinha todas as apparencias de o forçar, como forçou. Não se prestou porém nenhuma attenção a esta abertura, e isto em um tempo que homens, taes como os nossos, podião deixar de a aproveitar. Em 28 de julho seguinte se entregarão oificiai- mente as bases do mesmo offerecido emprés- timo a Abreo e Lima, que mostrou recebê- las bem, e querer tratar sobre ellas. Depois de haver porém declarado que não queria que este negocio se tratasse por concurso , mas em particular, não cumprio a sua pala- vra ; e fez com que pela praça de Londres se andassem mostrando estas bases ; o que vindo ao conhecimento de mr. Ardoin , es- te muito se escandalisou por tão indigno procedimento ; e em consequência disto se

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excitarão difficuldades que pozerão depois o negocio em muito condição. A impro- priedade d'este passo expôz Henrique José da Silva a Abreo e Lima em uma carta com data de 29 do mesmo mez, á qual Lima nem sequer dêo resposta.

Em consequência d'este procedimento retirou mr. Ardoin no mesmo dia 29 o pro- jecto do seu empréstimo, que vinha a ser pou- co mais ou menos o que se havia apresenta- do em 26 de junho , e do qual antes fal- ]ei. E isto mesmo participou oficialmente a Abreo e Lima, em carta de 30 de julho, Henrique José da Silva, perguntando-lhe ao mesmo tempo , se devia suspender a sua correspondência com mr. Ardoin a este res- peito. Lima respondeo a esta carta no 1." de agosto, dizendo-lhe, que fizesse o que quizesse sobre este negocio; despedindo-se por este modo de intervir n'elle, e mostran- do claramente que tencionava tratar com ou- tra pessoa. Negava porém na mesma carta o haver sido chamado a Londres mr. Ardoin por seu consentimento. E a este mesmo res- peito já elle no dia antecedente, 31 de ju- lho, tinha escripto ao mesmo mr. Ardoin uma carta, na qual não negava haver con- corrido para que elle viesse a Londres, mas que o projecto do empréstimo se tivesse mos- trado na praça do commercio, pois quenun* ca tinha sabido da sua gaveta. Comtudo, am- bas estas suas negações fôrão desmentidas 3

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como em pouco mostrarei ; e foi elle mesmo quem se dêo por mentiroso.

No dia 2 de agosto Henrique José da Silva procurou renovar a negociação do em- préstimo, offerecendo-se aAbreo e Lima pa- ra cooperar que um dos dous milhões ster- Hnos se effeiruasse. Perguntou ao mesmo tem- po se queria , que se tentasse o mesmo em- préstimo por concurso , ou por negociação particular. No dia 3 acceitou Lima a offerra, e declarou que se não daria á negociação a pu- blicidade do concurso. Assim, por effeitod- esta resposta , lhe escreveo ainda no dia 4 , pedindo4he que desejava ser avisado para comparecer quando em particular se discutis- se qualquer projecto de empréstimo. Em con- sequência disto escreveo o mesmo H. J. da Silva amr. Ardoin no dia 8 dizendo-lhe, que havendo probabilidade de serem convidados a discutir o negocio do empréstimo , per- guntava , se, em razão do que antes se tinha passado, julgava ainda conveniente entrarem nova negociação. No mesmo dia lhe respon- deo Ardoin , que era tal o interesse que ti- nha pela regeneração da Península, que esta- va prompto a tratar de novo (í). Estando pois o negocio nestes bons termos escreveo H.

(t) O interesse que mr. Ardoin tinha pela regeneração Península nascia de antigas contas em que estava com o governo Hespanhol; e por isso se interessava pela causa de Portugal , persuadido que esta , mais dia menos dia . Sambem havia de influir na de Hespanha,

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J. da Silva no dia 12 a Abreo e Lima, di- zendo-lhe, que era preciso aproveitar o mo- mento favorável, porque se houvesse mais demora receava que os emprestadores mudas- sem de opinião. E no mesmo dia lhe repe- tio, que se no seguinte se não tratasse se- riamente do negocio, o via elle muito mal fi- gurado ; mostrando- lhe ao mesmo passo quan- to era para lamentar, que se tivessem pas- sado já mais de quarenta dias depois das pri- meiras aberturas, e que assim se houvesse perdido um tempo tão precioso. Foi também ainda neste dia que o mesmo H. J. da Sil- va lhe escreveo uma muito notável carta cm resposta a aquella que Abreo e Lima tinha escripto a Ardoin, e de que fiz menção, pois que o negocio era commum a ambos. N'ella lhe mostrou como não tinha sido ex- acto quando asseverara que o projecto do tra- tado sobre o empréstimo nunca tinha sahido da sua mão, nem por consentimento seu mr. Ardoin tinha sido chamado de Paris. Abreo e Lima , vendo-se atacado em face com pro- vas inegáveis, foi obrigado a confessar a sua falta , e pedio então como favor, que se lhe concedeo, que se retirasse a sua carta escri- pta a Ardoin ; e que não fosse obrigado a receber oficialmente aquella que Silva lhe es- crevera. O projecto do tratado em questão tinha sido encontrado na mão do brazileiro Rocha Pinto.

Para melhor explicar este facto direi re-

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sumidamente as circumstancias que o acom- panharão, e que são essenciaes para o dar bem a conhecer. Abreo e Lima que, como agente conhecido da Rainha , devia tra- tar directamente com D. Pedro os negócios Portuguezes, teve a indiscrição de tomar por intermediário e padrinho a Rocha Pintoy e d- elle quiz fazer valioso instrumento para tra- tar de um negocio , que era puramente na- cional e Poi tuguez , em que nenhum estran- geiro se devia intrometter , e que entre eile e D. Pedro se devia discutir. Não pa- rou aqui a sua indiscrição ; porque aconselhou, e até encarecidamente pedio a H. J. da Sil- va, que fosse ter certas confidencias com Ro- cha Pinto , no que elle com muita reluctan- cia , e debaixo da responsabilidade do in- discreto diplomático consentio. Essas confi- dencias effectivamente se fizerão , e fôrão bem acceitas ; mas como as cousas mudassem, se procurarão depois em vão negar, ou fal- samente interpretar. Iniciado por tanto Ro- cha Pinto nos mysterios do empréstimo, e talvez pensando então que, se o negocio fos- se absolutamente dirigido por elle^ poderia tirar para si bons resultados, fez com que directa ou indirectamente o projecto do em» préstimo andasse pelas mãos de alguns ca- pitalistas da praça de Londres. Isto foi o que muito orTendeo , e com razão, a mr. Ardoin, e a Henrique José da Silva ; e dêo motivo a que o primeiro desistisse do empréstimo.

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como antes mencionei ; e que Abreo e Li- ma recebesse de ambos as duas cartas de que também antes fiz menção.

No dia 13 de agosto se assignárão en> fim as bases do empréstimo, e fôrão assigna- das geralmente por todos os que estavão in- cumbidos d'esta negociação , sendo um d'- elles Mousinho da Silveira, No dia 18 escre- veo Lima aArdoin, pedindo-lhe uma respos- ta prompta sobre a decisão final do negocio; e no dia 19 lhe rcspondeo , que elle e os seus amigos estavão de acordo em tudo o que se havia assignado no dia 13 ; e que de* pois se trataria de algumas condições regula- rnentareS) que nada játinhão com o que esta^ va ajustado. A mais essencial destas condi- ções era porém o fixar o modo da adminis* tração do dinheiro emprestado, que os con* tratadores não querião deixar á inteira e úni- ca disposição dos nossos agentes, pois que do bom uso d'este dinheiro^ e particularmen- te do que estava destinado para a expedição, única base da sua real hypotheca, dependia toda a fortuna da negociação. Mas a admi- nistração . exclusiva do dinheiro, que era o objecto principal dos nossos negociadores, foi ainda o grande obstáculo que se oppôz á rea- lisação do empréstimo até o dia 23 de se- tembro, em que finalmente se concluio como acima disse. Então, forçados pela neces- sidade, os nossos agentes não tiverão outra alternativa senão accederem, como accedé^

rao, ou de ficar sem dinheiro; e em conse- quência d'isto os emprestadores exigirão que para olhar pela expedição se formasse uma commissão, composta do Hespanhol Mendi- zabal , do commandante de marinha Sarto- rius , e , por contemplação aos nossos , de Manuel Gonçalves de Miranda* Assim , por um falso amor próprio , ou por alguma cou- sa peor, durou esta notável negociação des- de 26 de junho até 23 de setembro, isto he, perto de três mezes ; negociação, que se n'ella houvesse entrado boa vontade , ou não houvessem vistas interessadas , nem um mez devia durar. Por esta demora perdeo-se o verão todo, isto he, o tempo mais apto para fazer a expedição; expôz-se esta a to- dos os inconvenientes que depois teve ; e, o que mais digno he de ponderar-se , olhou« se Portugal com indifferença quando elle es- tava debaixo do cutelo feroz do usurpador, e a este se prolongavão as occasióes de se embriagar de muito mais sangue leal e inno- cente.

Houve alguém que a si quiz attri- buir o merecimento da conclusão cfeste ne- gocio; mas não foi assim, porque o facto verdadeiro he o seguinte. Mousinho da Sil- veira, que era com Silva Carvalho conselhei- ro e agente d'este negocio, teimou sempre em exigir, que os contratadores não tives- sem ingerência alguma na administração do dinheiro , e que o entregassem logo sem

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condições : não podendo porém conseguir isto , fallou tão descomedidamente na ulti- ma conferencia a que assisno, que mr. Ar- doin se escandalisou , e dêo por acabada a negociação. Mousinho tanto julgou isto serio que partio logo para Paris , dizendo a todos que o empréstimo se não concluía. Mas a- quelle procedimento de mr. Ardoin tinha sido uma verdadeira rase de guerra , porque elle bem sabia a necessidade que tinháo de dinheiro; que de ninguém mais o podião obter ; e que a elle havião de necessariamen- te voltar. Além d'isto , o mesmo mr. Ar* doin tinha grande interesse em concluir o negocio ; e por isso assim que José da Sil- va Carvalho foi ter com elle e com Henri- que José da Silva para se renovar a negocia- ção, foi muito bem recebido, e não houve duvida em tornar a atar o fio do negocio. No que se enganou José da Silva Carvalho foi em attribuir á sua mediação, ou á sua ha- bilidade aquillo que havia muito tempo estava decidido que se fizesse , não tanto pelos interesses simplesmente pecuniários , porém por outros connexos com elles, que e- rão mui poderossos interesses políticos. Quem escreve estes Annaes conversava então fre- quentemente com mr. Ardoin , e H. J. da Silva, e sabia com exactidão quaes erão as suas opiniões, e qual o modo por que tinhão assentado de as manifestar.

N'este intervallo de 26 de junho até

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23 de setembro, entre os vários projectos que os emprestadores apresentarão , houve um, com data de 7 de julho , apresentado por Ardoin e Mendizabal, de que o capital era de três milhões sterlinos. Porém um milhão se devia apromptar logo ao preço de 40 por 100 libras, ficando para se regular o preço dos outros dous milhões depois que em Lisboa estivesse restabelecido um gover- no em nome da Rainha D. Maria II. Para dar credito e força á causa de sua filha, exi- gia-se ainda que D. Pedro tomasse uma parte no empréstimo pela somma nominal de 2^0 mil libras , porque devia concorrer para o primeiro pagamento com 37,5*00 li- bras , das quaes seria embolçado, se quizes- se , pelo mesmo empréstimo, não ficando responsável pelo resto. Isto mesmo era no caso em que os emprestadores quizessem continuar com o empréstimo depois de o governo legitimo estar estabelecido em Lis- boa ; porque havendo então quem o fizesse com melhores condições, que a elles não agradassem, cedião de todo do contrato dos restantes dous milhões. Não agradou porém esta proposta , porque o primeiro objecto dos nossos agentes foi sempre haver logo para a mão avultadas sommas de dinheiro; e o negocio mais importante , que era a ex- pedição , foi sempre para elles objecto se- cundário

No dia 24 deste mesmo mez de se-

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tembro houve ainda em Lisboa uma nova carniceria juridica de mais 21 victimas per- tencentes ao mesmo brioso regimento 4.0 de infantaria, do qual 18 haviao sido immo- ladas á liberdade no bárbaro altar da usurpa- ção; e todas em consequência das senten- ças dos mesmos juizes cujos nomes antes publiquei. Os martyres d'esta continuada carniceria fôráo os seguintes : José Maria de Souza, tambor da 4.* companhia; José de Moura, soldado da i.n dita ; António Do- mingues, soldado da 8.a dita; Manuel da Costa , cabo de porta-machados , da 2.a di- ta ; António Augusto , tambor da 2.a dita de granadeiros; António Pereira, pifano da i.a dita de fusileiros ; António Teixeira, sol- dado da i.a dita de fusileiros; José Maria de Carvalho, soldado da 2a dita de grana- deiros; Manuel Ricardo de Oliveira, sol- dado da 1/ dita de fusileiros; António Jo- sé Teixeira, soldado da 7/ companhia ; An- tónio José Fernandes, soldado da 8/ dita; António Ribeiro Braga, soldado da i.a di- ta de fusileiros; Francisco José Fernandes, anspeçada da i." dita; Pedro de Alcântara, soldado da 7* companhia ; Joaquim José Rodrigues, cabo da $.' dita; Manuel José Tavares, soldado da 4." dita; Francisco Xa- vier da Costa Rissi , soldado da 4.a dita ; José António Gomes , soldado da 2.* de granadeiros ; João Teixeira , soldado da 2.a dita ; Joaquim José da Cruz, soldado da 8.*

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companhia ; José Joaquim de S. Paio , mu- sico do regimento. Todos elles morrerão com a mesma intrepidez, como victimas que se havião sacrificado pela liberdade e pela pátria ; e seu sangue deve cahir sobre as cabeças não dos que directamente os man- darão assassinar , porém dos que indirecta- mente concorrerão para firmar a monstruosa usurpação de D. Miguel.

No principio do seguinte mez de ou- tubro d este anno morreo em Lisboa o pa- dre José Agostinho de Macedo, de quem f a liei no meu Ensaio sobre a usurpação de D, Miguel, e que foi uma das grandes mons- truosidades do nosso tempo ; porque toda a sua vida publica foi em summo gráo escan- dalosa por sua immoralidade , hypocrisia , e baixa servidão. Comtudo , como literato pôde di/er-se, que nem lhe faltarão talen- tos, nem mesmo uma erudição mais do que ordinária , a qual porém muitas vezes sacri- ficou á sua innata vaidade , falsificando fa- ctos, só por não ter o trabalho de os verifi- car, persuadindo-se vaidosamente que bas- tava enunciá-los para que se acreditassem. O seu estilo em prosa , mui longe de ser cas- tigado e clássico , era , pelas mais das ve- zes, tortuoso, e difuso; e no que mais pec- cou foi na falta de decência, porque em ge- ral era venal , baixo e grosseiro , e muitas vezes foi torpe e obsceno, Qjíz ainda pas- sar por um dos nossos grandes poetas; e a

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vaidade, seu elemento essencial , até o le- vou a querer competir com Camões ; mas n'- esta empreza teve a sorte que lhe convinha, porque , sem talentos poéticos para ser in- ventor , teve a presumpçao de o querer e- mendar ; e assim , seguindo-o de rastos na sua mar.cha verdadeiramente nova e sublime, mostrou ao mundo que se apenas podia passar por um bom versejador, era como poeta, na presença do nosso Homero , um verdadeiro pygmeo , cheio de altivez e arrogância.

No dia 29 d'este mez se pagou aos e- migrados um mez de subsidios, que não ti- nhão recebido desde janeiro do mesmo an- no ; e este pagamento mensal foi o corres- pondente ao que se lhes devia desde 1$ de dezembro de 1829 afé 1? de janeiro de 1830, achando-se então elles em um atra- zamento de mais de vinte e um mezes. N'« este intervallo morreo de fome em Plymouth, segundo então constou , José da Silva Tube- rão , natural do Porto, e que antes havia pertencido ao commissariado , sem que os nossos governantes , a quem nunca faltou dinheiro , porque sempre viverão em boas casas, e tiverão bons jantares, tirassem um dia uma fatia de pão da boca para valer a este desgraçado !

Ao passo que as nossas cousas assim caminhavão houve também n'este mesmo mez um grande acontecimento em Inglaterra. Foi regeitado na camará dos lords o bill da re-

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forma, proposto pelos ministros, e teve con- tra si a maioria de 41 votos. Votarão a fa- vor 158 membros, e contra 199. Dos bis- pos, que tinhão assento na camará, e que er;1o 30, votarão 21 contra o biH ; 7 se au- sentarão para não votarem , e dous vota- rão a favor. Assim he uma verdade de facto inegável , que em todos os paizes a aristo- cracia civil, e religiosa tem os mesmos prin- cípios de retardamento da perfeição moral e politica das* sociedades humanas ; e que a mesma classe , que em Portugal tinha furio- samente defendido o absolutismo, trabalha- va debaixo das mesmas bandeiras em Ingla- terra.

O mez de novembro deste anno come- çou com muitos máos agouros para a causa da nossa liberdade; porque no dia ? fôrão embargados alguns navios dos que se havião comptado com destino de fazer a expedição contra D. Miguel. O pretexto d'este em- bargo foi , que n'elles havia tropa Ingleza e petrechos de guerra para a dita expedi- ção; o que o governo Inglez, pelas leis do paiz, não podia consentir , finghido-se neu- tral em a nossa questão Portugueza. Houve comtudo n'este arranjo muito máo manejo dos que estavão incumbidos do alistamento de gente para a maruja ; e delle se apro- veitarão alguns agentes Miguelistas , entre os quaes figurarão o cônsul Sampaio , e um certo desertor politico Manuel Maria Comi'.

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nho j também agente de D. Miguel. Este embargo porém se levantou no dia 2$ do mesmo mez; e as embarcações ficarão livres, e começarão a partir para as costas de Fran- ça, onde a expedição se devia completar, e dali sahir para a ilha Terceira,

Neste mesmo mez voltou a Londres o marquez de Palmella , e foi viver no ho* tel em que antes havia residido em Park Street-Hyde Park. Havendo neste tempo uma casa de legação em Londres, paga e susten- tada á custa do dinheiro Portuguez , e vi- vendo em tanta miséria e atrazamento a maior parte dos emigrados, parecia de jus- tiça que o marquez fosse viver na mesma residência da nação, e assim poupasse a e- norme despeza que estava fazendo , e que muito melhor seria applicada para matar a fome ou cubrir a nudez de alguns desgraça- dos que vivião na miséria , particularmente os que èstavão em Plymouth ; porém nem estas fôrão as idéas do marquez, nem tam- bém o permittio o bom commodo de Abreo e Lima , que queria viver mais desafogado , e não perturbar seus prazeres e arranjos do- mésticos.

Enterrou se em Lisboa no dia 11 des- te mez Thimoteo Lecussan Veràier , um ho- mem a quem Portugal muito deveo pelo em- prego que fez da sua vida e fortuna em pro- mover a sua prosperidade. Filho de pais Francezes , creio que nasceo em Lisboa ; e

+4 lo a te

bem que , em tempos de grande oppressão e tyrannia , quaes fôrão os d'essa regência , chamada do Rocio, fosse expulso do reino como Francez no anno de 1808 ou 1809, elle foi sempre mais Portuguez no coração e nas obras do que os seus perseguidores. Entre estes particularmente figurarão três clérigos, membros da dita regência, os quaes fôrão o notório bispo do Porto , ex- frade Cartucho, Ricardo Raymundo Nogueira, e o principal Souza, que, mais que todos, lhe foi ingrato pela protecção que d'elle recebe- ra na occupação do reino pelo exercito Fran- cez na invasão de Junot. Foi elle que con- juntamente com outro muito benemérito es- trangeiro, Jacome Ratton , de quem fiz ampla menção no meu Ensaio Historico-Po- lítico, estabeleceo em Thomar aquella ma- gnifica fabrica de fiação de algodão, a pri- meira obra d'este género mais bem acabada e perfeita que se tinha visto em Portugal , e em que tinha enterrado toda a sua grande fortuna. Apesar d'isto , foi, como disse, mandado sahir do reino como Francez, acto tanto mais injusto e atroz, porque durante a dominação Franceza havia estado preso por ordem de Junot, como inimigo da oc- cupação estrangeira , e mais fiel a Portugal do que á França. Depois de estar também preso algum tempo por ordem da regência, e de ser expulso do reino , passou-se a Tanger na costa d'Africa , em cujo governo,

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dizia elle, com a graqa que lhe era natural > encontrara mais justiça, mais humanidade, e mais abundância de razão do que no de Portugal n'aquella épocha. Dali sahio de- pois para França, onde esteve por muitos an- nos , amargurado por ver toda a sua fortuna quasi perdida pela sua ausência ; e a sua magnifica fabrica de Thomar quasi arruinada. depois de muitos rogos de seus amigos e família he que ultimamente se resolveo tornar a Portugal para presencear o desbara- to que tinha soffrido toda a sua fazenda. Foi homem de muitos talentos, e de muita erudição , particularmente no que dizia res- peito ás nossas cousas, que elle contava com muito sal e jovialidade, e que elle por mui- tos annos tinha presenciado , tendo vivido em cinco successivos reinados que fôrão os d'elrei D. José , D. Maria I., D. João VI. , D. Pedro IV. , e D. Maria II. , e conver- sado com as pessoas mais influentes e ins- truídas em todos estes reinados. Morreo , por tanto, em uma avançada idade, que de- via ser mais de 8o annos , porque algumas vezes lhe ouvi dizer, que no anno do ter- remoto de 1755* elle era rapaz de alguns annos , e n'esse dia fatal tinha sahido cedo de casa com seu pai \ o que o livrou talvez de perecer naquella grande calamidade. Te- ve porém ainda no fim d*esta longa vida o desgosto de morrer na horrorosa épocha da usurpação de D. Miguel , sem chegar ao

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tempo feliz da restauração da liberdade Por* tugueza, que elle tanto amava, e sempre defendeo. Como curiosidade histórica, e co- mo documento que mostre qual foi o seu ca- racter alegre, jovial, e ao mesmo tempo finamente epigrammatico , copiarei aqui o epitaphio, que elle havia composto para a sua sepultura , achando-se em Londres no anno de 1825 , e que he o seguinte :

,, Aqui jaz Verdier negociante ,

,, Que de Tliomar a fabrica fundou ,

Que uma regência atroz , por infamante

,, Decreto injusto , a longe desterrou ;

Que do haver seu, trabalho seu prestante,

A junta do commercio despojou :

Tâo certo he que seu mel nem come a abelha ,

,, Nem sua por cubrir-se traz a ovelha.

,, Assi pois aconteceo

,, Ao pobre Luso-Francez ,

Que trabalho e bens perdeo,

,, Porque tolo os despendeo

Em dominio Portuguez. (u)

Ainda n'este mez, e no dia 1$ delle aconteceo em França um caso notável, e foi elle, que achando-se a Rainha D. Maria II. em Paris, e no seu quarto da cama, lhe en- trou uma bala pela janella que atravessou as » '

00 Este epitáfio remetteo elle por galantaria a António Machado Braga, quando, em 182$ , morava junto d'este honrado Portuguez em Londres, Judd-Placc , Ncv-F.oad , pot occasiâo de uma leve doença que teve.

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cortinas do leito, e foi dar na parede. Mil conjecturas a este respeito n'esse tempo se fizerão ; mas este acontecimento acabou como de ordinário acabão todos os de simi» lhante natureza , isto he , pondo-lhes, como geralmente se diz, uma pedra em cima, e dizendo-se ao mundo que foi um mero aca- so.

Tenho de concluir os successos deste mez com o facto de um novo assassínio ju- rídico, que os juizes de D. Miguel com- mettêrão na pessoa de uma nova victima po- litica, que foi o bacharel Manuel Caetano de Macedo, natural de Rezende. Perseguido como constitucional pelos esbirros do tyran- no, vio-se forçado a bater-se com elles para ver se lhes podia escapar, mas cahindo-lhes infelizmente nas mãos, e não tendo a mes- ma fortuna que tiverão alguns dos seus com- panheiros que fôrão para Londres, teve que acabar a sua honrada vida com o martyrio politico na cidade do Porto, em consequên- cia de uma sentença lavrada por essa mesma alçada que outro muito sangue, igualmente illustre , tinha feito derramar.

No i.° de dezembro deste anno teve D. Pedro, estando ainda em Paris, uma fi- lha da sua nova esposa, e quiz que fosse considerada como princeza Brazileira. Para authenticar este nascimento convidou alguns ministros estrangeiros, e entre elles o do Brazil , não fazendo nenhum caso de D.

«' 109 té*

Francisco de Almeida que rVaquella épocha ali figurava como ministro Portuguez, em nome da Rainha. Assim , por este acto, ao qual não quiz servisse de testimunha empre- gado algum Portuguez , confirmou explici- tamente D. Pedro que não queria ser con- siderado como Portuguez, e era Brazilei- ro.

No dia $ foi emfim apresentado e re- cebido no Síock-Exchange, ou praça dos fun- dos de Londres , o empréstimo contrahido por mr. Ardoin ; e no dia 12 se ratificou na mesma praça aquella entrada, apesar de todas as contradicçóes e intrigas que contra este empréstimo tinhão suscitado os inimi- gos da nossa liberdade , tanto estrangeiros como domésticos. Entre os primeiros figura- rão sempre distinctamente lord Wellinghton, lord Beresford , e lord Aberdeen com uma cohorte secundaria , composta dos oíficiaes que servirão em o nosso exercito na guerra peninsular , e depois ainda nos governarão até o anno 1820; assim como de muitos ne- gociantes Inglezes que , dentro e fora de Portugal , estaváo acostumados a .negociar comnosco , e a tirar grandes lucros , e taes, que muito reccavão perder em um governo constitucional e popular. Entre os segundos se fizerão sempre mui conspicuos o cônsul Sampaio, e Manuel Maria Coutinho, dos quaes ambos fallei. Não elles procu- rarão, quanto poderão, impedir o empres-

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timo e a sua circulação, porém rôrão denun- ciadores perente o governo Inglez dos pre- parativos que em navios e munições se fa- zião para preparar a expedição contra D. Miguel a quem eficazmente procuravão ser- vir. O atrevimento do ultimo foi tal que chegou a ir a Portsmouth , e ahi tentar se- duzir o commandante e tripulação da corve- ta nacional , chamada Ilha Terceira. Mas n'- esta empreza se sahio tão mal como em to- das as mais que sobre este mesmo objecto tinha tentado; porque em todas ellas não adquirio senão o desgosto de ser agente mal sue cedido de seu amo.

Como no empréstimo, de que tenho fal- lado, houve immensas dificuldades não para se realisar, mas para se introduzir no mercado Inglez; e para remover estas difi- culdades teve sempre uma cooperação mui activa o nogociante Portuguez , Henrique José da Silva , e a sua casa commercial ; he uma divida de justiça , que eu mencione aqui parte dos grandes serviços que elle , a- lém dos que acabo de mencionar, fez a fa- vor da legitimidade do throno, e da honro- sa causa da emigração em outras épochas an- teriores. Datão as ligações particulares, que este Portuguez e a sua casa tiverão com a causa da nossa liberdade, d'aquella mesma épocha em que começarão a faltar os meios pecuniários para a sustentar, e adiantar. Quan- do se quiz mandar para a ilha Terceira o

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conde de Villa-FIôr com a tropa que estava em França , essa mesma tropa , que havia sido expulsa das praias da ilha pelos tiros da artilharia Ingleza, e era commandada pe- jo general Saldanha , não havia dinheiro al- gum para realisar esta tão importante tenta- tiva ; e n'essa critica circumstancia he que H. J. da Silva nos abrio um credito em di- versas partes da Europa pelo valor de 3 8,^00 libras sterlinas. Resultou daqui o poder rea- lisar-se a hida do conde de Villa-FIôr, e dos seus briosos e valentes companheiros d- armas ; operação , que pôz a ilha Terceira no estado de poder resistir a esse formidá- vel ataque que depois mandou fazer contra ella o usurpador , e em que ficou vencido. Se a ilha por estes meios não estivesse fortificada e defendida , teria sido um im- possível resistir ao ataque que soffreo ; e n V este caso a nossa causa haveria ficado perdi- da , e talvez para sempre.

Seguírão-se varias outras operações, e todas ellas arriscadas, nas quaes continuou a ter parte o mesmo H. J. da Silva. Hou- ve porém uma circumstancia verdeiramente critica, que foi no momento em que a Rai- nha estava a partir de Inglaterra para o Rio de Janeiro por ordem de seu pai, e no qual faltavão todos os meios pecuniários j e o cre- dito do imperador do Brazil estava a ponto de ficar completamente perdido. Achando-se porém nesta occasião H. J. da Silva com

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grandes fundos á sua disposição , e pondo de parte todas as vantagens particulares que d'elles individualmente podia tirar, dirigio- se a Plymouth, onde a Rainha estava pa- ra embarcar, e ali offereceo á regência, n'esse tempo nomeada por D. Pedro, uma somma de 30,000 libras sterlinas, pouco mais ou menos. O marquez de Barbacena , que acompanhava a Rainha , resolveo-se então a acceitar como empréstimo, debaixo da ga- rantia do imperador, unicamente a quantia de 2^,000 libras; o qual empréstimo o mes- mo H. J. da Silva negociou cavalheiramente ao simples juro da lei. Seguio-se depois 1 sua missão ao Rio de Janeiro para tratar da negociação do empréstimo de mr. Maberly ; e se esta negociação não teve os resultados que se esperavão, foi isto devido tanto á in- sinceridade do governo do Brazií como ao máo procedimento do dito emprestador. Com- tudo , em todas estas negociações mostrou H. J. da Silva muita habilidade, muito ze- lo, e muito patriotismo, segundo em seu logar competente antes escrevi nestes An- naes. Appareceo finalmente um credito de 12,000 libras sterlinas que o imperador abrio a favor da regência, e que mr. Rothschild, sobre quem elle era aberto, não quiz hon- rar. Então, n'este apuro , para acudir ás ur- gentíssimas precisões da regência , tomou elle sobre si a responsabilidade de 7,^00 libras de letras sacadas sobre o Rio de Ja-

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neiro debaixo da d'aquelle credito , as quaes garantio. Porém que paga teve deste ultimo generoso sacrifício? Havendo-se-lhe promettido que em breve se lhe pagaria par- te desta somma com dinheiros que D. Pe- dro tinha na mão de Samuel Philippes, e sendo-lhe positivamente affiançado este paga- mento por Abreo e Lima , e D. Thomaz de Mascarenhas, ambos elles não lhe cumprirão a palavra ; demorárão-lhe a somma promet- tida 'y e tiverão a sinceridade de lhe confes- sar , que , por insinuações d'alguem , e que vinhão de gente que cercava a pessoa de D. Pedro, he que não lhe podião pagar. O in- dividuo preferido foi Francisco Vanzeller, que mereceo por certas affeiçoes ter a prefe- rencia, e que dous homens públicos se des- honrassem com a quebra da sua palavra ; e que por ellas obtivesse aquillo que a outro estava promettido. E pois que nestes meus Annaes tenho por principio tanto louvar as boas acções como expor a fealdade das que me não parecem boas, sejão ellas por quem quer que for executadas, não me de- ve ser estranhado , que um pouco me alar- gasse acerca de um dos homens , que in- dubitavelmente maiores serviços fez a favor da causa da nossa tão longa , arriscada , e laboriosa emigração (x).

(x) Os factos que deixo mencionados fòrâo extraliidosda copias authenticas de cartas que eu vi , escriptat por Hen- rique José da Silva em diversas épochas a Adiço e Lima,

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No dia ii d*este mesmo mez o ingra- to e tyranno Fernando de Hespanha mandou ainda im molar mais cincoenta e três victi- mas da liberdade, á frente das quaes soíFreo patriótico martyrio o incançavel e brioso Torrijos. Este e seus malfadados companhei- ros, depois das primeiras infructuosas tenta- tivas que tinhao feito para libertar a sua pá- tria, e de que fiz menção n1 estes Annaesy tinhao hido buscar um asylo em Gibraltar, suppondo que esta terra de liberdade lhes podesse servir de seguro. Forçados porém a sahir d'aquelle asylo pelas repetidas e impe- riosas ordens das authoridades daquella pra- ça , e entregando-se aos destinos do mar , como estivessem bem espiados pelos esbir- ros do tyranno Hespanhol , fôrão obrigados pela guarda-costa , que da parte de Hespa- nha os vigiava, a ir tomar terra no terreno pátrio , onde suppozerão que poderião ao menos encontrar um temporário abrigo. Mas, cercados logo por forças superiores , náo ti- verão outro remédio senão render-se ; e en- tre a sua entrega e a morte não mediou mais tempo do que o necessário para se partici- par este acontecimento a Madrid, e para a volta do correio, que trouxe a ordem fatal, que immediatamente se executou. O que a- qui porém mais se deve admirar não he a se- de de sangue do tyranno, mas he o egois-

e O. Thomaz de Mascarenhas. As datas delias sâo de 26 d? julho, 18 30, e de 4 de outubro dito.

mo Britânico que , vendo o perigo que cor- rião aquellas desgraçadas victimaSj não lhes recusou asylo, obrigando-as a sahir de Gibraltar, mas nem ao menos as fez sahir debaixo da sua bandeira, para que não ca- hissem debaixo do cutelo da tyrannia. A philantropia Ingleza he puramente mercantil, assim como o são todas as suas virtudes, que deixao de o ser logo que se não conformão com os seus interesses.

No dia 12 se propòz no parlamento Inglez, que se havia aberto no dia 6, o bilJ da reforma , pela segunda vez ; por- que antes havia sido regeitado na casa dos lords, como antes mencionei. Na sessão do dia 16 n'esta mesma casa disse lord Aber- deen , fallando da expedição que se prepa- rava contra o tyranno de Portugal , e á tes- ta da qual constava que hiaD. Pedro: Que 5, o ex-imperador, pelo ultimo acto do seu j, reinado no Brazil , quizera entrar em um tratado para casar sua filha (a Rainha D. Maria II.) com D. Miguel.,, E accres- centou ainda mais o mesmo lord : Que es- ,y se projecto , ou tratado não tivera effeito em consequência de o governo Inglez não ,, ter querido ser parte em similhante nego- cio. Além d'isto, que podia affirmar, que ,, as ultimas participações , que elle havia recebido, ainda estando no ministério, do mesmo ex-imperador, erão as mais a- 5, migáveis para com seu irmão D. Miguel. r

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Com isto tivemos mais uma prova authentlca e official do que podíamos esperar se os des- tinos lhe não tivessem feito perder a coroa do Brazil. Foi preciso que também fosse e- migrado como nós, para que a sua honra, n'este ponto , ficasse salva ; e para que nós, e o nosso Portugal não fossemos vendidos , como escravos, á tyrannia de D. Miguel ! Tal foi o perigo em que estivemos !

O marquez de Palmella partio no dia 2,2 d'este mez para Paris. Os motivos da sua vinda e da sua estada em Londres fôrão di- versamente interpretados ; e eu direi com verdade tanto o que a seu respeito n'esse tempo se lhe attribuio de louvor como de desabôno , porque quando n'este meu camp nho de historiador encontro algum homem publico, desejo sempre retratá-lo ao natural, apresentando-lhe a figura como naquella oc- casião tinha, sem de propósito o querer des- figurar. Foi voz publica nesse tempo que vie- ra arranjar as suas contas , o que era muito louvável; porque, tendo administrado tão avultadas sommas de dinheiros públicos, ne- cessário era que fizesse uma exposição clara de como e em que os tinha despendido , particularmente quando estava a partir para a Terceira na expedição preparada para fin- dar a usurpação. Constou mais , que viera apressar a expedição que para o mesmo fim se preparava em Inglaterra ; e sobre isto he justo dizer , que fizera bons serviços, por-

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que os emprestadores, a cargo de quem el~ la estava, apenas se podião então entender com os nossos agentes públicos , á frente dos quaes estava Abreo e Lima. Além d'isr to, havia ainda um embrulho de contas, re- lativas a esse malfadado empréstimo de Ma- berly, obra de D. Thomaz de Mascarenhas e seus conselheiros; o qual embrulho elle desenredara , e lhe dera um arranjo definiti- vo. A'cêrca d'estes dous objectos não ha nada que não seja de louvar ; porém também se accrescentou , que os seus trabalhos di- plomáticos, nos quaes gastou em Londres muitos dias , não erão favoráveis á causa da nossa liberdade constitucional ; ao mesmo passo que alguém affirmava, que alguma cou- sa boa tinha feito, particularmente para obs- tar ás pertençôes de D. Pedro, e seus ami- gos. Seja porém o que for; como nunca me foi possível aclarar exactamente este e outros mysterios da mesma épocha , e como não queira accusar aqui nem defender este ho- mem publico, deixo ao tempo a revelação deste e outros factos , que he provável se venhão ainda um dia a revelar.

Com data do dia 19 d'este mesmo mez appareceo um curioso documento, impresso em Plymouth com o titulo seguinte. ~ Amas- trás do ill.mo e ex.mo sr. Luiz António de A* breo e Lima, ministro da Rainha de Portugal na corte de Londres , tiradas á luz por Joa-? çgiim Carlos Fernandes do Couto* N'este doeu-

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mento se mencionava o caso seguinte. =: An- tónio Pedro de Alcântara Pereira e Costa , commissario que fora do exercito, havia fal- lecido em Rennes em novembro do anno passado , ficando a dever ao capitão da ma- rinha Ingleza W. H. Haswell a quantia de três libras sterlinas , treze shillings, e dez, dinheiros, pela passagem de sua mulher des- de Lisboa até Plymouth, Náo lhe tendo po- dido pagar, havia-lhe dado o recibo da quan- tia que devia receber como emigrado pelos subsídios pertencentes ao mez de agosto do mesmo anno; e para mais legalisar o recibo lhe juntou ainda uma procuração. Como po- rém morresse antes de se ter realisado aquel- le pagamento do mez de agosto, dêo o so- bredito capitão Inglez nova procuração ao capitão Couto , para que este , quando se fi- zesse o pagamento referido , o recebesse em seu nome, apresentando para isto o re- cibo e a procuração a elle annexa. Fez-se o pagamento do dito mez; e como visse o capitão Couto que n'elle se não fazia men- ção d'aquelle recibo , escreveo a 13. Tho- maz de Mascarenhas , então administrador do dinheiro destinado para a emigração, ex- pondo-lhe o facto, e pedindo-lhe ordenasse que lhe fosse paga aquella quantia. D. Tho- maz não respondeo; e então o capitão Cou- to se dirigio directamente a Abreo e Lima por uma carta datada em 8 de novembro d- este anno, 1831. Respondeo este, palavras

formaes , o seguinte: Que, além de ser ,, um absurdo considerar em vigor a procu* ração de um individuo que não existia, nunca os subsídios, applicados aos emi- grados para seus alimentos, podião julgar- se hypothecados a dividas por elles con- trahidas, sendo, como erão , inteiramen- te dependentes da vontade de S. M. que os mandava distribuir por um acto de mera be- neficencia , o qual em tempo nenhum fô- ra reputado obrigatório, ou constituir um ,, titulo para pagamento legalmente exigi- vel. Parece incrível que um homem, como Abreo e Lima , desse similhante res- posta ; mas tal era a gente que de propósi- to se escolhia para governar os negócios da emigração. Sem entrar nos sentimentos do seu coração, não se pode aqui, pelo menos, desculpar a sua ignorância em denominar co- mo absurdo a apresentação de uma procura- ção de um homem morto para se lhe cobrar uma divida a que tinha direito em quanto vivo, e procuração, que tinha dado em vi- da. De certo , Abreo e Lima ignorava que o papel apresentado não era uma simples procuração de mandado , que acaba com a morte do mandatário , mas uma procuração de cessão , ou, para melhor dizer, de trans- ferencia , com um endosso , de uma divida que elle tinha direito de receber quando vi' vo ; e á qual procuração estava junta uma espécie de letra , pagável a quem a apresen-

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tasse. Mas a esta ignorância estava ainda ti- nida uma contradicção escandalosa. Para que se davão pelas authoridades , que então se julgavão legitimas, os recibos aos emigra- dos? Era para enganar desavergonhadamen^ te o publico, ou para que, attendendo-se ao atrazamento dos subsídios , podessem os emigrados achar alimentos sobre aquelles re- cibos? Se assim era, e se sempre assim se praticou, como podia haver uma dessas au- thoridades , que não reconhecesse legítimos e validos esses mesmos recibos ou letras que ella mesma emittia , e promettia pa- gar? Isto podia achar duvida na fraque- za de entendimento, ou na dureza de cora- ção de um homem , como Abreo e Lima.

Esta fatal resposta, absurda na theoria, porém desastrosa na pratica, foi tirar, ou pelo menos dificultar, a ultima fatia de pão em que os emigrados ainda podiao confiar ; porque desacreditando os recibos, quão dif- ficil seiía achar sobre elles a mais pequena quantia o infeliz, que necessitasse moderar sua fome, ou cubrir sua nudez? Comtudo, em toda esta espécie de traficancia diploma- tico-mer cantil parece ter havido tanta demên- cia como zombaria , porque na mesma lega- ção de Londres , onde Abreo e Lima era chefe, se continuarão a dar novos recibos a certos emigrados ; e por este facto contra- dictorio ou se quiz mostrar que antes se ha- via errado, ou que se desejava que os emi-

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grados continuassem a viver á custa de per- fídias e enganos.

Não he possivel também deixar de no- tar os princípios políticos de Abreo e Lima, quando não duvidou avançar, que o dinhei- ro dado aos emigrados era uma mera benefi- cência de S. M. , emanada da sua própria vontade. Com effeito, que homem de cora- ção livre, e que mostra que o deseja ser, porque adopta, e serve um governo consti- tucional, pode affoutamente affirmar, que da beneficência dos monarchas vivem as nações? Não são os reis que pagão as nações , são as nações, que pagão os reis, como seus primeiros magistrados. Demais , os homens, que tanto tinhão soffrido para sustentar o throno da Rainha, não terião direito a ser soccorridos na hora da sua desgraça ou na sua longa emigração senão por uma mera beneficência ou favor? Uma tal doutrina estaria bem na boca de um vassallo de D. Miguel, porém nunca na boca de um súbdi- to de D. Maria II.

No dia 27 d'este mesmo mez teve sen- tença de morte a alta aristocracia Franceza ; e , o que mais he , que lhe foi dada pela mesma aristocracia, que commetteo este a- cto de suicídio na camará dos pares. Ali a questão do pareato hereditário, que antes havia sido decidida na camará dos deputa- dos, foi confirmada por 103 votos contra 70, sendo a maioria de 33 votos; e logo

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depois teve a sancção real , e passou como artigo constitucional. Em um paiz , como a França , em que depois da dispersão , e anniquilamento da antiga aristocracia, ha- via já uma sombra delia , creada por Napo- leão , e esta sombra ainda se mantinha com certa apparencia de realidade pelo pareato hereditário ; uma resolução destas foi , na verdade, um golpe mortal, para que diffi- cilmente poderá haver remédio. Foi , a- lém d'isto , esta decisão um exemplo de grandes consequências para todas as mais a- ristocracias da Europa , porque da perpetui- dade das heranças he que ellas tiravão todo o seu vigor, e até um culto externo, que chegou a idolatria. Acabada porém esta pre- rogativa, d'onde lhe vinha todo o prestigio, e acabada em um paiz como a França , he provável que este exemplo venha a ter, mais cedo ou mais tarde , imitadores ; porque não sendo possivel impedir a marcha da li- berdade politica , também a seu lado ha de necessariamente caminhar a igualdade legal, circumscripta no mais illimitado circulo pos- sivel.

No fim d'este anno chegarão a Lon- dres noticias da ilha Terceira ; entre as quaes fôrão alguns actos da regência , que lhe adquirirão a estimação publica , que el- la nem sempre tinha merecido. Um d'aquel- les actos foi o decreto de 7 de setembro deste anno pelo qual se abolirão as milicias

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e as ordenanças ; e em seu logar se manda- rão crear em todos os Açores corpos de 'vo- luntários nacionaes. Esta providencia foi de muito acerto assim como de muita utilida- de; porque havia muito tempo que aquel- las duas forças , com apparencia militar , sem preencherem o fim para que havião si- do instituídas , erão de grande perda tanto para a agricultura como para as artes mecâ- nicas, pois tiravão os homens d'estes im- portantes serviços não sem proveito algum publico, porém com muito incommodo e vexação dos povos. Foi também este acto um muito bom exemplo para o que convi- nha fazer em Portugal, acabada a usurpação, pois que os males queaquelles dous corpos causavão nos Açores produzião 9 mesmo máo efFeito dentro do reino, e ainda em muito maior proporção. O outro acto da regência, com data de 28 de novembro deste mesmo anno , não foi de menor importância por ser um decreto pelo qual annullou todos os actos, tanto civis como criminaes, pratica- dos pelo usurpador contra todos os Portugue- ses fiéis ao throno legitimo e á carta cons- titucional; e isto a contar desde o dia 25 de abril de 1828. Foi justo, e até necessá- rio este decreto , porque sem uma tal pro- videncia todos os que tivessem soífrido por sua lealdade roubos e perseguições por par- te da usurpação, uma vez que tanto estas como aquelles recebessem a sancção do go-

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verno restaurador, por fim virião a rece- ber castigo, e rigorosíssimo castigo, em vez da honra e recompensa que merecião por sua constância , e virtudes. .

Concluirei os successos d'este mez e d'este anno 183 1 com um caso bem digno de se referir para mostrar com que brio, com que honra, e com que dignidade alguns dos negócios da emigração fôrão tratados. No anno de 1829 se imprimio em Londres, por conta dos que então ali governavão na qua- lidade de regentes, um escripto intitulado Manifesto dos Direitos de S. M. F. a Se- nhora D. Maria II. , e Exposição da questão Portugiteza. Foi este escripto , com verda- de, de muito merecimento não pela ma- téria de que tratava , porém pelo modo e riqueza de documentos com que foi organi- sado, obra do marquez de Palmella e Guer- reiro, segundo então constou ; e por sua or- dem se imprimio com muito custo e cuida- do. Para o interessante trabalho da revisão da obra foi nomeado um honrado Portu- guez , que, depois de muitos annos , vivia em Londres , o sr. António Machado Braga , particular amigo do author d'estes Annaes» Mostrou-se ao principio o maior empenho na sua publicação, e até, para o fazer mais conhecido na Europa , se mandou traduzir em Francez. Apenas porém estava impresso, e publico , mudarão logo de opinião so- bre sua utilidade os próprios authores da-

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quelle trabalho, que formavão a governan- ça da emigração, e começarão a dificultar a sua publicação, chegando mesmo a omit- tir na traducção Franceza alguns dos seus mais importantes documentos. Mas a politi- ca dos nossos governantes tinha mudado , pois que vendo que então se tratava de con- servar D. Miguel no throno debaixo da bar- bara e vil condição de lançar em seus bra- ços ensanguentados a innocente e joven Rai- nha D. Maria II. , não quizerão desagradar a esses governos estrangeiros , e a mais ai* guem , com quem começarão a ir de acordo para a execução d'esta hórrida politica. Des- de esse momento começou a haver a maior dificuldade de se poder ter um exemplar; e alguns que se espalharão ou foi por favo- res e empenhos , ou por uma espécie de contrabando; por maneira que o livro, que devia ser para todos , veio a ser mui raro, e para alguns escolhidos. Neste estado de cousas como era visível que por parte das au- thoridades que então nos governavão se que- ria supprimir a circulação do Manifesto , por uma consequência desta pertenção também as mesmas authoridades tiverão bem pouco interesse em pagar a despeza que se tinha feito com elle. Não se podia porem compro- metter completamente nem a honra nem a palavra do honrado Portuguez a quem se ti- nha incumbido a impressão, e que era quem directamente estava responsável para com o

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impressor : assim foi-se-lhe pagando em pe- quenas parcellas; e a maior parte dos exem- plares foi ficando na imprensa como hypo- theca da divida ! Isto apenas parecerá crivei, mas he uma verdade , e verdade de tal na- tureza, que em 31 de dezembro d'este an- no ainda se estavão devendo ao impressor cou- sa de 20 libas sterlinas; e ainda em seu po- der se conservavão , como em reféns desta divida, uma boa porção de exemplares ! Por este modo, passados mais de dous annos , em que houve dinheiro para pagar Paquetes, Precursores, diversos outros folhetos, e até Auroras , para fins quasi sempre tortuosos , se não erão diametralmente oppostos á ver- deira e pura causa da liberdade constitucio- nal, nunca se achou uma opportunidade para pagar uma divida em que estava involvida a honra Portugueza com o próprio throno da Rainha ! E para mais escândalo, contrahio-se por fim um empréstimo em nome da mesma Rainha D. Maria II. , e apesar disso não houve quem lembrasse, ou mandasse tirar d'- elle alguns óbolos para pagar o livro que de- fendia os seus direitos ! E podia-se dizer que tal gente queria deveras e do coração D. Maria II. para sua Rainha? Eu não sei se esta circumstancia foi sabida por seu pai, ou se lhe foi oceulta : o que sei he, que nem elle , nem todos esses que dominavao em seu nome ou de sua filha souberão ou quize- rão tirar de si esta nódoa de summa vergo-

+$ 127 l-O

nha ; (y) e que o Manifesto dos Direitos da Rainha não estava ainda de todo por pa- gar no fim d'este anno, porém que parte dos exemplares ainda também estava hypotheca- da para total satisfação da divida !

FIM DO aUARTO LIVRO D ESTES ANNAES.

^0íiO

(;') Não houve esta falta porque se ignorasse a divida; porque muitas vezes o sr. Machado Braga a exigio sem ne- nhum resultado ; e por muitas vezes me declarou, que an- dava envergonhado com o impressor; e que a não ser eU le tão homem de bem , talvez o tivesse metido na ca« dêa.

+5 J2 8 l>

PEÇAS JUSTIFICATIVAS DO LIVRO IV. DOS ANNAES.

Copia da nota oficial que o ministro Brazilei*

ro Calmon enviou ao conde de Sabugal em

J3 de agosto de 1830.

abaixo assignado do conselho de S. M. o imperador , ministro e secretario des- tado dos negócios estrangeiros, recebeo e levou ao alto conhecimento de S. M. a no- ta que em data de 6 do corrente lhe dirigio o sr. conde de Sabugal 5 enviado extraordi- nário, e ministro plenipotenciário de S. M. F. a Senhora D. Maria II. por nomeação da regência de Portugal , Algarves , e seus domínios, requerendo que o governo impe- rial expedisse as ordens necessárias para que fossem pagos em Londres á pessoa para is- so authorisada pela mesma regência os di- videndos e amortisação que o Brazil deve ao governo de S. M. F. em virtude da con- venção de 29 de agosto de 1825. Em res- posta o abaixo assignado teve ordem para assegurar ao sr. conde , que o governo de S. M. imperial cumprirá escrupulosamente a citada convenção de 29 de agosto de 1825,

^ 129

não deixando de continuar pela repartição dos negócios da fazenda, a quem n esta da- ta communica a presente nota, com o paga- mento das sommas , destinadas aos juros e amortisação annuaes do empréstimo Portu- guez a cargo do Brazil , ao representante do governo legitimo de S. M. F. O abaixo assignado renova ao sr. conde de Sabugal as expressões da sua perfeita estima, e alta consideração. Palácio do Rio de Janeiro em 13 de agosto de 1830. Assign ido 53 Miguel Calmon du Pin e Almeida. Está confor- me,—. José Manuel Monteiro.

COPIA da carta que o conde de Saldanha es» creveo para Plymouth ao coronel Pereira ; Francisco Rebello Leitão Castello-Branco : e Joaquim Carlos Fernandes do Couto, man- dando 30 libras s ter Unas para a passagem de alguns emigrados para França,

Ill.mos srirs. : Constando- me por infor- mação de um de v. s.as e por outros cami- nhos o estado de infelicidade a que, de- pois que cessarão os soccorros dos Quakers de Plymouth , se achão reduzidos alguns dos nossos concidadãos residentes na mes- ma cidade, convoquei alguns dos que resi- dem n'esta capital para com elles examinar se haveria meio de acudir a tão beneméri- tos como pouco aífortunados camaradas.

1

+% 130 $>

Sendo unanimemente reconhecida a im- possibilidade de alcançar de uma ou de pou- cas mãos o auxilio necessário em tão apura- das circumstancias, resolvemos promover u- ma subscripção entre os emigrados nossos compatriotas que aqui se achão , para com o producto delia se darem os meios aos in- felizes de Plymouth de embarcarem para Saint-Malô , e d'ali se dirigirem para Ren- nes, na esperança de que obterei do gover- no Francez a admissão de mais estes emi- grados além dos que ali se achão estabele- cidos.

Os termos em que estão quasi todos os Portuguezes , que aqui vivem, não per- mittírão que a subscripção em dinheiro , re- cebido até agora , excedesse a somma de 30 libras sterlinas : v. s.as acharão junta uma le- tra da dita somma , e servir-se-hão cobrá-la para fazerem d'ella a respectiva applicação. Todos os nossos concidadãos, quesollicitárão este negocio, pedem com o maior empenho a v, s.as que se dignem fazer este serviço tão necessário á humanidade como á honra e bom êxito final da nossa causa. A estas sollicitaçóes junto eu as minhas , e espero que umas e outras serão bem acolhidas por v. s.as He da intenção tanto dos colabora- dores como dos subscriptores que esta som- ma seja applicada para a viagem dos que vierem para França , visto que mal chegará para esta única applicação. Não he possível

131 fe<*

prever tudo o que pode acontecer na execu- ção d'este projecto, e por isso v. s.as resol- verão como entenderem quaesquer diíficul- dades que sobrevenhão , tendo porém em vista que não se faça diíFerença alguma de classes.

Se um de v. s.as se achar ausente, ou impedido, os outros dous terão a bondade de encarregar-se do negocio , não obstante essa ausência ou impedimento.

Não posso pedir ao governo Frajicez a admissão de novos emigrados sem que el- les estejão em França , mas tenho bem fun- dados motivos para esperar que os que vie- rem para este paiz terão certa uma subsis- tência, parca sim, visto o grande numero, mas regular.

Não he possível remetter d'esta vez u- ma lisra da subscripção, porque se esperão mais algumas sommas, que serão remettidas para Saint-Maló , e distribuídas no momen- to do desembarque. Deus guarde a v. s.as, Paris, Rue des Vignes, n." 5 , Champs Eli- sés, 22 de agosto de 183 1. Ill.mos srírs. coronel Pereira ; Francisco Rebello Leitão Castello-Branco; e Joaquim Carlos Fernan- des do Couto. -T* Assignado = conde de Sal- danha.

P. S, Apesar de todas as diligencias não foi possivel achar letra em direitura pa- ra' Plymouth ; vai uma a Londres ao sr. Jo- sé Liberato Freire de Carvalho, o qual te-

1 l

<*5 132 èfl*

a bondade de enviar outra a vossas senho- rias.

COPIA da carta do sr, Joaquim Carlos "Fer- nandes do Couto, accusando a recepção das trinta libras s ter 'Unas , acima mencionadas,

Ill.mo sr. José Liberato Freire de Car- valho: Aqui recebemos a carta de v. s.a de 7 do corrente avisando-nos da remessa das 30 libras para esta, por via dos srs. Fox, Irmãos , e Companhia, cuja quantia se acha recebida, e será distribuída como o conde de Saldanha em seu nome e dos outros srs. , que compozerão a commissão , ordenão de Paris. Este novo serviço feito aos nossos compatriotas pelo conde de Saldanha lhe augmentará por esses vis assalariados novas calumnias ; porém os verdadeiros Portugue- ses lhe fazem justiça ; e eu espero que um dia a pátria, quando seus dignos represen- tantes se reunirem , lhe tributará aquelles agradecimentos de que elle he digno. V. s.a sabe que isto em mim não he lisonja , por- que nunca pedi nada ao general Saldanha quando elle tudo podia : fui , sou , e serei sempre seu amigo; sempre lhe fallei verda- de, e o avisei em tempo, sempre quando sabia se tramava contra elle; por tanto, re- pito o que acima digo.

Agradeço muito a v. s.a a recommen-

«>$ 133 N>

dação particular que me envia , cuja com muito prazer retribuo.

O coronel Pereira se recommenda mui- to a v. s.a; no entretanto v. s.a disponha d'este seu &c. 84, Union Street, Stone House, Plymouth, 8 de setembro, 1831. =: Joaquim Carlos Fernandes do Couto.

«5 135 $+

LIVRO V.

DOS ANNAES.

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Successos mais importantes do anno 1832, quinto da usurpação de D. Miguel.

V ou dar principio á narração dos succes- sos d'este anno por um caso memorável , e caso acontecido em uma grande cidade, em Paris , e no meio de muitos Portuguezes. Foi elle o procedimento que contra o coro- nel Rodrigo Pinto Pizarro teve o duque de Bragança D. Pedro , ex-imperador do Bra- zil, e ex-rei de Portugal, e procedimento consignado em um documento publico, as- signado por Cândido José Xavier , que lhe servia de secretario particular. E pois que os escriptos e as acções são o retrato dos individuos a quem pertencem , aqui fiel- mente copiarei esse mesmo documento , tal e qual o coronel Pizarro o publicou na sua nova edição da Norma das Regências de Por- tugal a pag. 22 de um artigo, denominado Additamento.

^5 136 fa»

,, Levei á presença de S. M. I. o sr.

duque de Bragança em seu devido tempo

a carta que v. s.a me escreveo em data de

26 de dezembro próximo passado {a) ; e

,, bem assim outra que de v. s.a recebi em

data do 1. do coi rente; em resposta a

ambas ellas S. M. I. me ordena que eu

communique a v. s.° que o mesmo augus-

,, to sr. não tem ordens algumas que lhe

,, dar ; por quanto não tem resolvido não

,, empregar a v. s.a na expedição que se

j, prepara, mas na data desta mandou re-

5, metter á regência um exemplar do escri-

, pto que v. s.a acaba de publicar com o

3, titulo de Norma das Regências de Portu-

55 ##/, afim de que, no caso de que v. s.*

., se apresente em qualquer parte do terri-

, tório em que se acha estabelecida a au-

?, thoridade de S. M. F. a Senhora D. Ma-

, ria II. , seja preso , processado, e julgado ;

, servindo de corpo de delicto o mencio-

, nado escripto , não porque trata de opi-

, nióes politicas, cuja discussão deve ser

, a cada um inteiramente livre , mas por-

, que provoca á rebellião as tropas leaes

, da mesma augusta Senhora. O que por

, ordem expressa de S M. I. participo a

? v. s.a para sua intelligencia. Deus guar-

9 de a v. s." , Paris em 6 de janeiro de

. 1832. » Cândido José Xavier. —, Sr. Ro-

, drigo Pinto Pizarro.

(/O k>u carta foi do dia 20 , e não 26.

^137 1>

Para bem se comprehender todo o me- recimento deste acro, direi as causas e os motivos que o produzirão. rVestes mes- mos Annaes eu disse como uma parcialida- de , meia estrangeira e meia Portugueza , quiz lançar mão de D. Pedro para o fazer novamente rei de Portugal , apesar das suas reiteradas abdicações. Achando porém gran- des contradicçòes entre muitos Portuguezes, e alguns gabinetes estrangeiros, mudou de propósito , e começou a trabalhar para lhe dar a regência na minoridade da Rainha sua filha. N'este novo projecto ainda se estava meditando em segredo, quando uma casua- lidade o fez apparecer ; e foi ella a seguin- te. Estava-se imprimindo em Paris um fo- lheto, intitulado— Parecer sobre os meios d& restaurar o governo representativo em Portu- gal por dous conselheiros da coroa constitucio- nal , Filippe Ferreira de Araújo e Castro , e Silvestre Pinheiro Ferreira , o qual, tendo a data de 15 de novembro de 183 1 , se publicou no principio d'este anno. Casual- mente o coronel R. P. Pizarro pôde haver uma prova de imprensa desse mesmo folhe- to; e como lhe parecesse, que a tendência d'elle era para dar a regência a D. Pedro , assim como para inculcar as máximas do go- verno que elle devia seguir n'esta qualida- de, então, sem hesitar, e em um momen- to, escreveo e publicou a sua Norma das Regências de Portugal , obra , que dêo mo-

tivo ao oflicio de Cândido José Xavier, que acima fica transcripto (b). Pela circumstancia, que acabo de mencionar, bem se pode ver com que vontade deveria ser recebido um folheto, que hia destruir planos que se es- tavão combinando, e expor á deliberação e debates do publico uma resolução que se tinha tomado como invariável e certa. As razoes da Norma das Regências erão inques- tionáveis , e trazião comsigo o sêllo que de ordinário trazem as grandes verdades ; e por isso o ódio , que se levantou contra ellas , devia ser proporcionado ; porque nada offen- de tanto como a verdade, quando a ella se não pôde responder

A incompetência , e até o modo irre- flectido com que se tratou esta questão , questão, que devia ser lealmente discutida, causarão não desgostos , porém sérios receios para o futuro. Porque , sejamos jus- tos, que figura fazia n'aquella épocha D. Pedro em Paris? Era exactamente a de um homem particular ; e de mais a mais a de um cidadão Brazileiro ; porque não erão ain- da passados muitos dias que tinha feito au- thenticar o nascimento de sua filha como Brazileira. E que se pode dizer de Candi-

(£) Ao folheto dos Conselheiros da coroa responderão lo- go, além do coronel Pizarro, José Ferreira Borges, nas suas Observações ; Leonel Tavares Cabral, no seu Opúsculo sobre a carta de C. J. Xavier ao coronel Pizarro , e Additamento á Norma das Regências ; e os dous irmãos Passos , no seu Parecer sobre a mesma questão.

4* 139 '&

do José Xavier? Que não era mais que um simples secretario de um individuo particu- lar, que nenhuma authoridade legal possuía, ou havia assumido sobre os Portuguezes. Por tudo o que fica dito se vê, que neste pro- cedimento mais alguma cousa houve do que leviandade, e que nelle , sem disfarce, se desmascarava um despotismo. Sim , co- mo, sem faltar a toda a imparcialidade da historia , se pôde desculpar que na presen- ça da carta constitucional se dessem ordens para que o coronel Pizarro fosse preso em paiz Portuguez antes de ser processado e julgado ; e isto pelo supposto delicto com- mettido em um paiz estrangeiro?

Depois deste acto tão desagradável seguio-se outro , que , apesar de não reves- tido de tão assustadoras circumstancias , to- davia augmentou os receios futuros. No dia 13 d*este mez D. Pedro, depois de haver por vezes assegurado ao conde de Saldanha que faria com elle parte da expedição con- tra o usurpador, mandou-o chamar a sua ca- sa, e ali lhe declarou que o não podia le- var comsigo, dando-lhe por pretexto, que alguns governos estrangeiros se oppunhão á sua hida ; e que até a Hespanha entraria em Portugal com cincoeiíta mil homens , se ella se realisasse ! Este acto de intriga, e intri- ga de Camarilba, sendo para insultar o con- de de Saldanha, dêo-lhe uma celebridade, li <Jue eli<e nunca podia pertender ; porque

"•*) 140 è»

attribuir a um homem a necessidade de porem movimento cincoenta mil homens, foi dar-lhe com effeito um peso enormissi- no na ordem social Portugueza. Mas os pe- quenos espiritos , ou as pequenas capacida- des , raras vezes percebem as inconsequen- cias que infallivelmente resultão de suas mes- quinhas concepções ; porque a verdadeira causa , que todo o mundo conhecia , para affastar Saldanha era mui antiga , e toda ella se fundava no baixo ciúme que causa- va a popularidade que elle tinha no povo e no exercito , e popularidade , que certos in- trigantes, á força de a quererem destruir, todos os dias augmentavão. Temeo-se, por tanto , a sua influencia nos futuros destinos da patna j e por isso o quizerão sempre ar- redar de todos os negócios até que se virão com a corda na garganta , e então gritarão por elle que os viesse salvar, e elle os sal- vou. Todo o empenho estava em dar ao con- de de Viila-Flor o commando da expedição para lhe grangear uma certa celebridade, porque era instrumento dócil , o que até á- quelle tempo não tinhão achado em Salda- nha ; mas que , desgraçadamente para elle e para nós, vierão finalmente encontrar ! Mas não antecipemos suecessos, e suecessos bem tristes ; nem por ora eclipsemos dias de glo- ria.

O conde de Saldanha, depois de um interessante dialogo que teve com D. Pe-

«•<; Hi

dro, respondeo: que nas circumstancias tão desagradáveis em que o collocavão não tinha elle outro remédio senão obedecer, porque antes se queria sacrificar do que sacrificar a nobre causa da pátria. Accrescentou porém que a sua reputação exigia que fizessem pú- blicos os motivos por que não lhe era per- mittido tomar parte na expedição, no que D. Pedro consentio; e em consequência d- isto Saldanha fez uma espécie de circular aos seus amigos com data de 13, e que mandou imprimir, na qual expôz as razões por que se via excluído da nobre empreza de concorrer para a restauração do throno legitimo, e da liberdade constitucional da sua pátria. Vendo porém o desgosto e des- contentamento geral que esta publica com- municação havia operado em todos os leaes e bons Portuguezes, e temendo que muitos d'elles , por desalento, deixassem de coo- perar para a grande obra em que a elle se lhe não consentia tomar parte , fez , man- dou imprimir e publicar outra nova circular dirigida aos seus amigos com data de 18 deste mesmo mez, na qual encarecidamen- te recommendou a todos, que tivessem meios para se transportarem para os Açores , não perdessem a importante occasião de ir sus- tentar a liberdade da sua pátria. Este nobre procedimento do conde de Saldanha produ- zio um grande effeito, porque logo todos, os que poderão achar meios para partir, as-

6$ 142 to»

sim o fizerão ; e com isto se não se enver- gonharão , ao menos se desgostarão os ini- migos da verdadeira liberdade que, estultos, talvez se tinhão persuadido que, excluído o conde, nenhum de seus amigos, ou por desalento ou por vingança, correria a alis- tar-se debaixo das bandeiras da pátria que se hia resgatar.

Em quanto isto se passava em Paris procurava-se representar em Londres uma esperteza politica entre os emigrados. No dia 14 appareceo na legação Portugueza u- ma espécie de requerimento em nome dos mesmos emigrados para se pedir a D. Pedro que, ao partir para a expedição, se decla- rasse logo regente do reino. Mas como pa- ra lhe dar uma apparencia de unanimidade de vontades era necessário que elle fosse au- thorisado com muitas assignaturas , tomou para si o trabalho de as sollicitar José da Silva Carvalho , persuadido que bastava a sua influencia para que não houvesse emigra- do que recusasse ir escrever o seu nome. Não aconieceo porém assim ; porque apesar de todas as seducçóes , de todas as promes- sas, e até de alguns terrores e ameaços, segundo então constou, entre 180 ou 200 emigrados que então havia em Londres a- penas se acharão 28 até 30 que cederão a taes insinuações, entrando no numero des- tes fracos ou illudidos alguns criados de servir, e até não sei se um ou dous Brazi-

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leiros , tudo para fazer numero. O que , se não he em tudo verdade, ao menos, he o que eu geralmente então ouvi dizer, por- que eu não fui dos que assignárão a tal pe- tição ou requerimento. Tentou-se ao mesmo tempo em Plymouth, onde havia 50 ou 60 emigrados , a mesma farça , ou a mesma es- perteza ; porém ali acharão os authores d'es« ta adulação a mesma resistência , pois ape- nas poderão obter dezoito assignaturas , en- tre as quaes , para fazer numero , constou que figurarão os nomes de algumas creanças pertencentes a uma das notabilidades da e- migração. Na persuasão que este projecto seria bem succedido em Londres e Plymou- th , tentou-se realisá-lo também em Pai is; e para a sua execucção estava marcado o dia ; porém ou porque ali soubessem o que se passava em Inglaterra , ou porque fossem de antemão avisados de que em vez de uma lista de assignaturas hião achar-se com um extenso numero de protestos contra tal medida, desistirão ainda a tempo da sua pertenção ; e por este modo a legação de Paris não passou pelo desgosto que passara a de Londres.

Este projecto de assignaturas hia com- binado com todas as manobras anterior- mente ou calculadas ou postas em pratica para fazer de D. Pedro o chefe de um par- tido que queria governar, e gosar á sombra delle. Esperava-se dar por este modo uma

+% 144 b0»

espécie de legalidade a um acto verdadeira- mente inconstitucional , cubrindo-lhe a tor- peza com uma espécie de vontade geral que assim o exigia ; mas como vissem suas es- peranças baldadas, não desistirão da me- dida , mas até se disse que fora desapprova* da , e que á legação de Londres particular- mente se estranhara o passo que dera , e que assim ella tivera a recompensa que sem- pre tem todas as emprezas mal succedjdas. Para isto também creio que mais circums- tancias concorrerão, e fôrão ellas : a primei- ra, ter-se quasi immediatamente começado a escrever tanto em Paris como em Londres acerca da legalidade da regência de D. Pe- dro, a que dêo logar o escripto de Filippe Ferreira e Silvestre Pinheiro, intitulado Pa- recer dos dous conselheiros , no qual se insi- nuava que elle podia e devia tomar a regên- cia na minoridade da Rainha. A segunda foi talvez o reflectir-se que , para dar a re- gência a D. Pedro, se começavão a seguir os mesmos passos e a mesma marcha que antes se havia seguido em Lisboa para esta- belecer a usurpação de D. Miguel. E tal era a similhança que em ambos estes actos via toda a gente , que não entrava nos myste- rios deste projecto, que em Londres o ins- trumento principal deste manejo era vulgar- mente denominado o Manuel Cypriano da e- migração, tudo por allusão ao que este ul- timo , sendo escrivão ou procurador do se-

44 145 ^o

nado de Lisboa , ali tinha praticado em 1828 a favor de D. Miguel. O célebre In- glez Sberidan disse uma vez fallando dos wighs, ou os chamados liberaes de Inglater- ra , que elles não fazião outra cousa senão levantar paredes para contra cilas quebrarem as cabeças : assim aconteceo agora aos que combinarão, e quizerão executar o plano de ganhar assignaturas a favor da regência de D. Pedro , porque levantarão uma parede contra a qual quebrarão suas cabeças , pois que completamente falharão em seus planos. No dia 17 deste mesmo mez morreo em Lisboa uma insigne monstruosidade mo- ral e politica, que foi o prior mor de Chris- to D. Luiz de Mendonça Furtado. Foi este homem, desde a sua mocidade, um aggre- gado de vícios, e depois tomou sempre u* ma parte mui activa em todas as conspira- ções, que se tramarão, e effeituárão contra a liberdade. Filho bastardo do ramo segun- do da casa de Barbacena teve logo um no- tável logar na jerarchia eccíesiastica , que foi o de deão de Braga ; e ali a sua vida publica foi uma constante serie de intrigas contra um dos mais veneráveis prelados que tem tido a igreja Portugueza, que foi o res- peitável arcebispo D. Fr. Caetano Brandão. Dali passou a ser nomeado prior mor de Chrtsto; e ultimamente havia sido nomea- do pelo usurpador D. Miguel arcebispo de Braga ; isto he, daquella mesma igreja que

-^ 146 Ò»

elle antes tinha escandalosamente maculado com seus máos costumes e intrigas. Morreo, comtudo, sem ter tido tempo para ir nova- mente macular o arcebispado com sua escan- dalosa presenqa.

No dia i3 D. Francisco d'Almeida fez uma circular convidando, em nome de D. Pedro , quasi todos os fidalgos que se acha- vão em Paris para o acompanharem na expe- dição. Além destes tiverão também convite particular os officiaes-generaes Azeredo, Vas- concellos , Saraiva , e mais alguns escolhi- dos , offerecendo-se a cada um por ajuda de custo para a viagem de £00 até n^oo fran- cos, com a clausula distincta de que todos os convidados erão chamados para coopera- rem com os seus serviços para a expedição. Neste chama-mento bem se que houve toda a parcialidade, porque havendo tantos emigrados em França, e entre elles officiaes tão distinctos , e cubertos de feridas , ne- nhum caso se fez d'elles, ao passo que no numero dos escolhidos erao convidados Ren- dufe, Cândido José Xavier, Mousinho da Sil- veira, e algumas creanças, pertencentes áalta aristocracia. Mas nada tanto escandalisou ge- ralmente a todos do que vêr-se que, convidan- do-se Azeredo , Vasconcellos , e Saraiva, se não fizesse caso de Stubbs , de Diocleciano Cabreira, José Maria de Moura, José Corrêa de Mello , e outros officiaes de reconheci- dos e relevantes serviços. A camarilha, que

«*5 147 í-e*

tinha mais medo da integridade politica d'- estes e outros homens de bem, do que a- borrecimento á usurpação , e ao absolutismo que a tinha promovido , creado , e susten- tado, antes quiz privar-se de braços, capa- cidades, e vontades tão notáveis e úteis do que levar comsigo individuos que receava podessem transtornar seus projectos.

Todavia este proceder tão inaudito, e de grande escândalo, produzio entre todos os ho- mens de bem tamanha indignação e censu- ra, que os authores desta indecente mano- bra fôrão forçados a recuar em seus proje- ctos, porém sempre de maneira que bem derão a conhecer seu caracter e suas vistas. Dous dias antes da partida de D. Pedro pa- ra Belle-isle , que foi no dia 25 d'este mez, forçados pelo clamor publico , fízeráo uma convocação geral a todos os que quizessem tomar parte na expedição, declarando po- rém logo, que, não havendo meios pecu- niários para lhes dar, recorressem elles aos que podessem haver para a viagem. De ma- neira que para os seus escolhidos houve ? 00, e 15:00 francos disponíveis para cada um , mas para os outros se tinha de repen- te estancado o thesouro. Com as sommas que se derão a homens que não tinhao ou- tro merecimento senão o de saberem entoar hymnos ao poder que se queria levantar, se podia certamente pagar a viagem de muitos bons e úteis officiaes e voluntários ; porém

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nto era isso o que se queria ; o plano todo estava em impedir que certa gente, com quem não podião contar para certas tramas politicas , fizesse parte da expedição , para o complemento da qual pensava a sua poli- tica que elles sós bastavão. Miseráveis ! que seria d'elles se no Porto não tivessem a seu lado esses bravos , que tanto desprezarão ! Terião hido á forca ou terião fugido como algumas vezes pertendêrão ! Julgavão emfim que inhabilitando o conde de Saldanha de acompanhar D. Pedro, os seus amigos se recusarião por vingança a tomar parte na briosa empreza da restauração da liberdade , e da pátria ; como porém pela circular do conde e do clamor geral se vissem enga- nados , recorrerão então ao novo estratage- ma de fazer o convite geral, e na véspe- ra da partida de D. Pedro, declarando que não havia para elles dinheiro, quando para os amigos o havia de sobejo. Nesta esper- teza , bem pouco decente, ficarão ainda en- ganados , porque tamanho insulto , feito a toda a officialidade e mais emigrados, bem longe de os desanimar e fazer desistir do seu brio e do seu patriotismo , antes os a- nimou ainda muito mais a procurarem todos os meios para se porem a caminho. Vende- rão o que poderão, recorrerão á generosida* de dos amigos , e até acharão nos estranhos, e nas mesmas damas Francezas, por meio de subscripções voluntárias , os auxílios suf-

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íícientes para não ficarem excluidos de ter parte nos destinos da pátria. D. Pedro sa- hio com effeito no dia 25 para Nantes, ca- minho de Belle-isle, com a sua comitiva escolhida, e apoz elle para o mesmo des- tino se fôrão dirigindo todos os que pode- rão por seus próprios meios fazer a mesma jornada.

No dia 27 d'este mesmo mez os gene- raes Stubbs, Diocleciano Cabreira, e José Maria de Moura , que estavão residindo em Dunkerque, vendo que erão excluidos de tomar parte na restauração da pátria , e que esta exclusão poderia dar motivo a falsas conjecturas acerca do seu comportamento po- litico , fizerão uma publica declaração pela imprensa de como estavão promptos a ser- vir , de como esperavão ser para isso convi- dados, e de como para este convite estavão caracterisados por todos os seus longos ser- viços passados. Fez este escripto uma gran- de sensação publica tanto entre os Portugue- zes como entre os estrangeiros, porque quan- do se vião excluidos taes homens , e convi- dados outros que não valião tanto como el- les, não podia isto ser senão em consequên- cia de baixas intrigas. Até a camarilha , que rodeava D. Pedro, sentio o golpe que lhe dava esta enérgica declaração; mas, para mostrar sempre que a violência he que a podia fazer obrar alguma cousa boa , que- rendo em parte remediar este acto , por ta)

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maneira se houve que não ganhou para si melhor conceito do que o que antes tinha. Convidou-se afinal o general Cabreira por aviso ou carta assignada por Cândido José Xavier com data de 4 do mez seguinte pa- ra que fosse tomar o commando de alguma gente que ainda restava para embarcar de- pois da sahida de D. Pedro ; porém não se fez caso nem do honrado general Stubbs , o intrépido defensor do Porto no anno de 1826, nem de José Maria de Moura, que ficarão de parte , em quanto outra gente , que não valia metade do que elles valião , foi convidada , e se lhe derão todos os au- xílios precisos. Porém a sua reputação ficou vingada pela opinião geral dos seus compa- triotas, e até pela dos Franceses, entre quem vivião, porque em escriptos públicos mos» trarão a veneração e respeito em que os ti- nhão. No capitulo 76 , e ultimo do livro 3.0 dos Annaes de Tacho diz este, que na morte de Junta , sobrinha de Catão, irmã de M. Bruto, e viuva de Cassio , fôrão dian- te do seu funeral , como era costume , as imagens de vinte antiquíssimas famílias; po- rém que Bruto e Cassio muito mais brilha- rão n'este magnifico cortejo , por isso mes- mo que as suas imagens ali não apparecêrão. O mesmo eu agora digo ao conde de Salda- nha , ao general Stubbs , e a muitos outros distinctos militares, que não fôrão convida- dos por D. Pedro para ter parte na expe-

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dição , que seus nomes muito mais brilha- rão no conceito dos verdadeiros Portugue- zes, livres e honrados, por isso mesmo que não apparecêrão nessa mesquinha , e pouco cavalheira lista dos escolhidos.

No dia 2 de fevereiro o duque de Bra- gança foi para bordo da fragata , Rainha de Portugal , que estava em Belle-isle ; e de publicou o seu manifesto com a data da- quelle mesmo dia. Agradou elle geralmen- te , á excepção do paragrapho em que mos- trava pertençôesá regência do reino namino- ridade de sua filha, e parecia inculcar que a podia exercer em consequência do artigo 92 da carta constitucional. O author destes An- naes publicou então em Londres um pequeno escripto de que lhe não veio pouco ódio, com o titulo de Reflexões sohre um paragrapho do Manifesto do Senhor D. Pedro , Duque de Bragança , datado a bordo da fragata Rai- nha de Portugal, aos 2 de fevereiro de 1832, N'ellas dêo livremente a sua opinião sobre o impedimento legal que D. Pedro tinha para ser regente na minoridade de sua filha, a não ser que se alterasse a carta constitu- cional para esse effeito ; e d'aqui he que vie- rão os ódios , porque todo aquelle que não queimava incensos sobre o altar do poder que se pertendia levantar, era logo levado á lista dos reprovados. No dia $ do mesmo mez toda a guarnição dos navios que esta- vão em Belle-isle, e pertencião á expedi-

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ção, prestou juramento de fidelidade á Rai- nha D. Maria II. , e á carta constitucional. No dia 9 deste mesmo mez o minis- tro Abreo e Lima dêo a saber que tinha re- cebido uma espécie de circular , assignada por Cândido José Xavier, pela qual se con- vidavão os emigrados, que vivião em Ingla- terra , e na Bélgica , a embarcar para a ilha Terceira. Foi porém notável esta circular por três circumstancias mui dignas de repa- ro; a i.a porque sendo datada de Paris em 24 de janeiro, na véspera em que D. Pe- dro d'ali sahio para Belle-isle , no dia q do mez seguinte se fez menção d cila ; 2.a porque se não derão providencias algumas para a viagem dos convidados, ao passo que bem sabido era que elles não tinhão meios alguns pecuniários; que estavão individados nos paizes onde residião-, e que sem algum auxilio pecuniário a maior parte se não po- dia mover do sitio em que estava; 3." por- que costumando-se para qualquer cousa pôr uma espécie de edital na casa da legação Portugueza em Londres , se omittio para este caso o quasi geral antigo costume , e em vez d'elle se encarregou o vice-consul Rebello de fazer os avisos , os quaes assim mesmo se não fizerão individualmente como a importância do negocio exigia. Tudo is- to fez crer agente sensata, que sabia avaliar as cousas , que o tal aviso fora uma simples farça, que com o titulo de convite era an-

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tes um verdadeiro desconvite. Mas em tudo isto havia muita coherencia, porque por um lado temiao as censuras da publica opinião, e por isso fazião esta apparencia de convi- tes ; e por outro os fazião de maneira que não podessem produzir effeito, ou pelo me- nos mui pequeno, quando de todo se não podesse estorvar. E não se empregavão estes meios para impedir que certa gente da emigração, isto he, a que era decidida e verdadeiramente liberal, não tomasse parte na expedição pelo receio que tinhão lhes transtornasse seus futuros projectos , porém recorrião ainda a mentiras para se desculpa- rem de não terem chamado certos homens insignes por seu patriotismo, e bons servi- ços. Já antes disse como os generaes Stubbs, Cabreira, e José Maria de Moura não fôrão particularmente convidados como tantos ou- tros , que não valião tanto como elles , o tinhão sido ; e como afinal o general Ca- breira o fora extraordinariamente ; agora ac- crescentarei a anecdota seguinte , que pro- vará o que acabo de estabelecer. Hindo es- te ultimo para Belle-isle , ou Brest , em consequência do seu chamamento , passou por Paris, e ali teve uma conferencia com o conde de Funchal , em que se fallou na declaração que os três generaes tinhão fei- to em razão de não haverem sido convida- dos. Então disse o conde ao general , que pelo que respeitava a Stubbs, não tinha el-

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le motivo para se queixar, pois constava que não podia servir pelo seu máo estado de saú- de , que inteiramente o impossibilitava de marchar. A isto respondeo o general Cabrei- ra , que era uma insigne falsidade , porque o general Stubbs conservava toda a sua ro- bustez e saúde; e, alem d*isto, tinha os mais ardentes desejos de servir. Por esta circumstancia se vê, a que meios de intriga se recorria para desviar da expedição ho- mens de tamanho merecimento como o ge- neral Stubbs , ao mesmo tempo que se es- tavão recrutando tropas estrangeiras, e offi- ciaes que as commandassem.

No dia 10 sahio emfim D. Pedro de Belle-isle na fragata Rainha de Portugal, le- vando na mesma conserva os que o tinhão acompanhado de Paris, entre os quaes, se- gundo creio referi , figuravão os nomes de Cândido José Xavier, conde de Villa-» Real, Rendufe, e outras notabilidades de que D. Pedro andava rodeado. Mas como commensaes na mesma embarcação cons- ta de poucos que tivessem esta distincção \ os nomes dos quaes mais adiante menciona- rei quando relatar a sua chegada aos Açores. Por agora basta saber que não foi sem os soccorros espirituaes, porque, para lhe alliviar a consciência, se fosse preciso, levou com- sigo o reverendo padre Marcos , ecclesiasti- co de nome, e digno de tão importante e alta escolha.

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No dia 29 sahio de Belle-isle a segun- da divisão, pertencente á expedição, com direcção aos Açores, composta de novecen- tos a mil emigrados , entre officiaes , e vo- luntários, e todos commandados pelo gene- ral Diocleciano Cabreira. No emtanto as pessoas que tinháo a direcção d'este nego- cio, bem longe de facilitarem e suavisarem os incom modos d' esta viagem a todos estes e outros indivíduos que esta vão espalhados pelas diversas províncias de França , antes lhos augmentavão e aggravavão para vêr se podião realisar certos planos que tinhão em vista , e que julgavão não poderião efFeituar com a presença de muita gente que desap- provava a sua politica. A anecdota, que pas- so a referir, vai verificar o que acabo de dizer. Havia em Belle-isle um barco de va- por, chamado o Soberbo, destinado, segun- do se tinha annunciado , para transportar os primeiros emigrados que á pressa, e cha- mados quando D. Pedro tinha partido , hião correndo para o logar do embarque. estes tinhão a bordo as suas pequenas e po- bres bagagens, e estavão a ponto, confor- me cuidavão, de se embarcar, quando de repente, e como ás escondidas, lhes des- embarcarão o seu pequeno fato , e na noi- te de 14 d'este mez desappareceo do porto o dito barco de vapor, levando ainda com- sigo alguma rôpa pertencente aos que n'el- le devião embarcar. Na madrugada do dia

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i?, quando se soube a retirada do navio foi geral , como era de esperar , a indignação dos que estavão para embarcar nelie, e com mais especialidade a d'aquelles que se acha- rão de repente sem as suas pobres e peque- nas bagagens. Espalhou-se então , muito de propósito, que o vapor tinha fugido, e nin- guém no emtanto se atreveo a suspeitar que essa fuga apparente fosse um acto combina- do dos que ali estavão cuidando do embar- que , um dos quaes era Manuel Gonçalves de Miranda , como membro da commissão cha- mada de fazenda (c). Mas vendo-se depois que o tal barco de vapor tinha hido para um dos portos de Inglaterra , e este visinho de Londres, e que nem as authoridades Portu- guezas , nem os papeis públicos , e nem mesmo a companhia , a quem se tinha fre- tado, levavão a mal este caso, ou diziao uma palavra a tal respeito, começou-se

(O Para se ajuizar da fiscalisaçâo que ali havia em to- das as despezas que se faziâo para os embarques , transcre- verei o pangrapho de uma carta que um habitante de Bel- le-is!e escreveo , com data de 27 de março seguinte, pa- ra Paris a mr. Vaire, pessoa mui conhecida dos Portugue- zes. He elle o seguinte no originai.,, J'ai cru de mon de- ,, voir de lui ecrire á Nantes (rcfere-se ao coronel João Frei» ,, re Salazar) pour íe premunir contre les turpitudes en ti tout genre qu'il est destine , sans s'en douter , a cou- 1, vrir de son manteau, s'il suit les errements de Mr. Mim ,, randa% qui pour avoir negligé la surveiMance requise dans ,, un pays ou l'on ne connoit persone a grandement nui ,, 2ux interets flnanciers de D. P.

N. B. Eu conservo em meu poder a carta original d*«j onde copiei este paragrapho.

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então , e com justo motivo , a suspeitar que cm tudo isto havia mysterio, e mysterio não de engano, mas de um descaramento in- sólito. Com eíFeito , como se poderia acre- ditar que um navio fretado em Londres debai- xo de certas e determinadas condições houves- se de ter fugido para junto do mesmo logar, onde o capitão e a tripulação havião de a- char um prompto castigo da sua infidelida- de e seu roubo? Foi esta, por tanto, uma dessas espertezas em verdade muito estulta e ridícula, que, com outras muitas d'esta ou similhante natureza , pinta bem ao natural o caracter de muitos que tiverão alguma direc- ção dos nossos negócios durante a emigração. O motivo que se dêo para este acto de tão absurda politica foi que, receando-se que o barco de vapor pela sua ligeireza le- vasse á ilha Terceira , antes que chegas- se D. Pedro , muitos dos emigrados , que podessem contar o que se passava em Ingla- terra, quizerão por este modo prevenir a- quelle possível acontecimento , praticando um acto não desleal porém bárbaro, por- que em virtude delle se fez que muita gen- te ficasse esperando em Belle-isle por mui- tos dias uma nova opportunidade para embar- car ; que outra ficasse sem a sua pouca, mas essencial e necessária bagagem ; e que emfim todos tivessem mais tempo de privações e tormento (d). O destino , que afinal teve

(í/) O motivo verdadeiro que geralmente se dêo a este

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este barco de vapor, depois de se haver por muitos dias gritado simuladamente contra o capitão e guarnição dVlle, foi o mandar- se para Falmouth , e n'elle fazcr-se embar- car com despachos Luiz de Mello, filho de Pedro de Mello, que havendo tomado passagem em um navio da praça que levava alguns Portuguezes para a ilha , se mandou immediatamente passar para o dito barco de vapor, e n'elle se embarcou a custa da fazen- da publica. Consta que nelle fôrao mais três emigrados que estavão em Falmouth , mas que para isso pagarão a sua passagem ; vindo por fim este transporte , que estava destinado para levar, por conta da adminis- tração Portugueza , muitos indivíduos, a le- var um só, que mereceo esta graciosa dis- tincção.

Ainda referirei outra anecdota que mos- tra bem qual era o caracter d'aquelles que pertendião annullar a abdicação de D. Pe- dro ; e quaes erão os meios de que para es- ta indignidade elles se servião. No dia 4 deste mesmo mez de fevereiro foi vista e lida em Londres uma proclamação sem no- me ou assignatura, dirigida aos ministros da religião em Portugal , datada de Angra na ilha Terceira aos 29 de janeiro próximo pas-

acto insólito foi , que na esperança de haver na ilha al- guma acclamaçâo a favor dos projectos de D. Pedro , não queriâo que certa gente chegasse antes dellç; o que por dia sueceder hindo no vapor*

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sado. Foi este um dos vários estratagemas estúpidos que certos indivíduos empregavao para illudir e seduzir o povo Portuguez a favor da abdicação em que querião involver, para proveito d'elles , a pessoa de D. Pe- dro; mas elle foi ainda por esta vez des- mascarado pela comparação das datas entre a supposta da ilha Terceira , e a da sua ap- parição em Londres. Nesta notável procla- mação, em que se induzia o clero Portuguez a que convidasse o povo a esperar tudo de D. Pedro, e a inculcá-lo como o único pa- ra quem devia olhar, nem uma palavra se fallava na Rainha, nem na carta consti- tucional ; o que bem indicava quaes crão as tenções dos fabricadores deste e outros pa- peis clandestinos. Eu , que muitos dias de* pois vi e li este papel , n'elle igualmente li a declaração manuscripta da pessoa que o ti- nha visto em Londres 4 ou y dias depois da falsa data que tinha ; e ao mesmo tempo com a pessoa que m'o mostrou comparei o papel em que a tal proclamação estava im- pressa com o de um numero da Aurora, ou* tro impresso clandestino da mesma fabrica, e canal dos mesmos princípios, e vi que era exactamente o mesmo tanto na côr como no tamanho.

Os papeis, que para este fim se impri- mirão ou fossem com o nome de Auroras (e) , ou de certas proclamações , não tinhão

(O No primeiro n,° deste periódico , que se attribuu

*;* 160 te»

nome de impressor, nem se distribuião em Londres ; e nisto se mostrava que erão destinados para clandestinamente enganar e seduzir o povo de Portugal, que^ gemen- do debaixo de uma atroz tyrannia, tudo jul- gava bom e legitimo uma vez que servisse para o livrar do flagello que tão brutalmente o atormentava: porque a não ser assim, como era preciso que se fizessem estas publicações clandestinas ? Logo os seus authores , assim com os seus instigadores e auxiliadores e- rao os primeiros que se denunciavao a si próprios como authores da pouca lealdade com que escrevião e publicavão suas dou- trinas. Comtudo, ainda isto não era nada em comparação da deslealdade que em todo este negocio se empregava. Todas estas pu- blicações não tinhão outro fim senão o de clara ou disfarçadamente formar uma opinião

aos redactores do Paquete de Portugal, e numero impresso com a data de 6 de dezembro de i8{l , o qual eu li as- sim como outros muitos números, escreveo.se o seguinte em pag. 1 1 , e em uma apostrophe dirigida aos soldados Por- tuguezes em favor de D. Pedro. N'elle (D. Pedro) terá ,, fim o reinado da impostura e da crueldade, nelle come- 3, cará o regimen da lei , e os actos de beneficência e per- ,, dão , que liâo de para sempre marcar a differença entre ,, o dador e defensor da carta constitucional , e o usur- j, pador da coroa que pertencia i Rainha que havia de ser ,, sua esposa. He de notar que em toda esta arenga , e em todo aquelle folheto d'esta vez se falia na Rainha; e parece que muito de propósito em tempo pretérito em vez do presente. Não era melhor grammatica , e não fica- va melhor o dizer-se da coroa que pertence à Rainha ? O leitor leia, e medite.

<) 1<U te»

a favor de D. Pedro em prejuízo de sua fi- lha, a Rainha D. Maria II.: queria-se que todas as attenções se dirigissem para elle, e que a Rainha representasse sempre uma figura secundaria. E que significava isto? He que fallando-se sempre em D. Pedro , ma- gnificando suas virtudes , e até indicando muitas vezes, sem disfarce, seus direitos ao throno , ao mesmo passo que pouco ou nada se fallava na Rainha, sem duvida al- guma se pertendia dispor o povo a consen- tir ou em uma nova usurpação, ou na vio- lação da carta , para Jhe dar um poder que por ella lhe não competia. E com que meios se dirigia e propagava tudo isto ? Com o próprio dinheiro emprestado em nome da Rainha D. Maria II. ! Assim, em nome d- esta joven e innocente Menina, se pedia dinheiro para ser politicamente assassinada. E por quem? Não direi por seu pai; po- rém por aquelles , que , em seu nome , tra- balhavão ; e com o pretexto de o servirem? serviáo suas próprias ambições, manchan- do o credito do pai da sua Rainha (/). No dia 22 d este mez de fevereiro che-

(/) Nno queremos rei mulher ! era a frase dos chamados amigos de D. Pedro. Quanto á despeza que se fazia , por exemplo, com a Aurora, semanalmente, alguém me d»s» se, que andava por 12 libras sterlinas ; das quaes 8 se gasta- rão com a impressão em Londres, e 4 hião para Falmouth para pagar o seu expediente para Lisboa. E a par d'isto mui» tos emigrados morriâo de fume ; e o Manifesto dos Direi- tos da Rainha estava por pagat

L

45 162 to*

gou D. Pedro à ilha de S. Miguel, dia no- tável para os Portuguezes; porque em um tal dia , quatro annos antes , também D. Miguel , seu irmão , desembarcou em Lis- boa. E no dia 24 chegou á ilha Terceira , como sua vanguarda , a fragata D. Maria II. , levando a seu bordo os condes de Pa- raty, de Lumiares , de Villa-Real , e da Taipa; marquez de Fronteira; barão de Ren- dufe ; D. Thomaz de Mascarenhas ; gene- raes Saraiva , Vasconcellos , Azeredo ; e José da Silva Carvalho ; os quaes, como seus precursores, lhe hião dispor o caminho pa- ra uma entrada feliz. Por esta circumstancia parece que na embarcação em que sahio de Belle-isle, que foi a fragata Rainha de Por- tugal , fôrão admittidos para o acompa- nhar os marquezes de Loulé e Palmella ; Cândido José Xavier ; Mousinho da Silvei- ra ; e Agostinho José Freire , para a parte politica; e para a religiosa e de consciên- cia o reverendo padre Marcos Pinto Soares Vaz Preto.

Neste mez chegou também a Londres a noticia, vinda de Lisboa, que D. Miguel tinha permittido aos Jesuitas hirem tomar posse de uma parte das suas antigas casas de Coimbra , hoje chamada o Collegio das Artes, Em consequência disto para tinhão partido alguns indivíduos d'aquella resuscita- da ordem , acompanhados pelo mui conhe- cido fr. Fortunato 7 monge de S. Bernardo^

M 1G3 b*

o qual, como novo director da ignorância do reino, foi destinado para lhes dar a posse d'aquelle estabelecimento. A facção usurpa- dora, vendo-se na hora da agonia, quiz ver se ainda se podia fortificar com este velho, e decrépito apoio do absolutismo , em- pregando taes instrumentos na educação da mocidade ; porém o tempo em breve lhe mostrou que o remédio vinha tarde, e que a morte era irremediável.

No dia 3 de março chegou emfim D. Pedro á ilha Terceira , havendo-se demora- do em S. Miguel até o dia 2 á tarde. No- tou-se que na entrada d'esta ultima ilha não dera vivas alguns á carta constitucional ; e á Rainha , sua filha ; annunciárao porém os papeis públicos que ao sahir , tempo em que tinha bem conhecido o espirito da i- Iha , amplamente correspondera ás acclama- ções do povo e da tropa com vivas á carta e á Rainha ; tanto valem os bons exem- plos !

Antes de desembarcar na Terceira lhe entregou a regência a authoridade que até ali exercera; e elle a assumio por um acto publico, em conformidade do que ante- riormente havia annunciado no seu manifes- to, datado de Belle-isle, e confirmou isto mesmo por uma proclamação que dirigio aos Portuguezes. Nomeou logo um ministério, de que fôrão membros o marquez de Pal- mella para os negócios estrangeiros , com

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a pasta interina do reino ; José Xavier Mou- sinho da Silveira para os da fazenda, com a pasta interina da justiça ; e Agostinho Jo- sé Freire para os da guerra, com a pasta in- terina da marinha. Feito isto, desembarcou, e foi mui bem recebido pelo povo e pela tropa, ainda que sem grandes demonstrações de enthusiasmo, segundo todas as cartas en- tão referirão; e isto se attribuio á im- pressão que tinha feito não a gente que o acompanhava, porém a que antes o ti- nha precedido , conforme antes declarei ; accrescendo a tudo isto o ter-se dito , que no acto do seu desembarque em S. Miguel de todo se esquecera de dar vivas á carta constitucional. Parece que este recebimento, não tão ferveroso como se esperava, lhe fez conhecer a sua posição ; porque depois d'is- to começou a querer ganhar muita populari- dade, apparecendo em toda a parte, fallan- do familiarmente com todos, dando jantares e companhia em sua casa , e finalmente fa- zendo grandes promessas para o futuro (g). Declarou-se generalíssimo das forças de ter-

(g) D. Pedro, a quem ingratos tinhão feito perder uma coroa e um império, que a bem d'elles tinha creado á cus- ta da sua herança , e até da integridade da pátria em que nascera, vinha buscar n'essa mesma pátria, que despreza- ra, o abrigo, segurança, e fortuna que na adoptiva não encontrara. Sim , vinha tefugiar-se á sombra dos lares pa- ternos. E então que lhe cumpria ? Fazer esquecer por a- çtos presentes, e promessas de futuro tudo quanto no pas- tado lhe podia ser desfavorável. Não tinha outro honroso caminho; foi o da necessidade.

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ra e de mar, destinadas para a expedição; e nomeou para commandante em chefe das primeiras, debaixo das suas ordens, o con- de de Villa-Flôr, e para commandante das segundas, também debaixo das suas ordens, o vice-almirante George Rose Sartoritis , offi- cial Inglez , que havia tomado o nosso ser- viço; accrescentando, que quando este es- tivesse em terra e na corte teria as honras de major-general , e, segundo ellas, seria tratado e recebido. Nomeou depois para seus ajudantes de campo Cândido José Xavier ; Bernardo de Nogueira ; João Ferreira Sarmento; José de Pina Freire da Fonseca; marquez de Loulé ; e conde de Ficalho.

Promulgou quasi immediatamente mui- tos decretos, dos quaes os mais importantes fôrao um para levantar os sequestros dos Portuguezes fiéis, assim como os que esta- vão postos nos bens dos rebeldes , mostran- do por este modo que a sua marcha de go- verno hia a ser outra que não havia sido a do usurpador. Por outro de amnistia mandou soltar todos os indivíduos presos por opi- niões politicas ; e neste numero fôrão in- cluídos os prisioneiros feitos na acção da Villa da Praia no memorável dia n de a- gosto. Estes , assim como outros mais de- cretos , fôrão todos passados em nome da Rainha, sua filha, e por um theor em tudo conforme com os princípios do seu governo que tinha annunciado no manifesto j e por

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isso muita admiração causou a formula de outro, pelo qual, com data de 13 de mar- ço, dissolveo a junta chamada consultiva, que havia sido creada pela regência. O enun- ciado do dito decreto foi o seguinte : « A- chando-me eu revestido da regência que de direito me pertence pelo artigo 92 da carta constitucional , &c. e appareceo re- ferendado pelo marquez de Palmella. Reve- lou logo este facto as intenções do futuro; e pareceo bem extraordinário , que D. Pe- dro, o mesmo homem, que não no seu manifesto, porém no acto de assumir a re- gência , ena proclamação que a esse acto se seguio, tinha positivamente declarado, que a legalidade e continuação da sua regência dependião da resolução das cortes que pro- mettia convocar logo que estivesse em Por- tugal; passasse de repente, e como de um salto, a affirmar que a regência lhe perten- cia de direito pelo artigo 92 da carta cons- titucional ! Porém este foi um rasgo da pers- picácia politica do marquez de Palmella !

Farei por agora ainda menção de outro decreto, com data de 16 do mesmo mez, que se pode considerar de summa importân- cia por tocar em um assumpto, que sempre se havia considerado como sagrado , e, por assim dizer, intocável. Fallo a respeito dos dizimos, a que elle se refere, e nos quaes fez as seguintes modificações, que abrião caminho para outras de maior importância 3

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porque ha assumptos, e um cTelIes era o dos dízimos, em que, por uma espécie de su- perstição, todos reccião tocar, mas que, u- ma vez quebrado o encanto , fícão expostos a ser tratados como outros quaesquer, ainda os mais ordinários, e vulgares. As modifi- cações a que me refiro fôrão : que nas ilhas dos Açores somente os cereaes , laranjas , e qualquer outra fructa de espinho, vinho, fei- jão, e favas, pagassem dizimo desde aquel- la épocha por adiante; e no que respeitava a Portugal e seus domínios, em quanto se não fizessem as modificações, que as locali- dades exigião , desde logo e para sempre , se não pagasse dizimo dos géneros chamados de mialheiro, nem de aves, nem de outros animaes , nem de seus despojos , nem de quaesquer avenças.

No dia 22 deste mesmo mez o bill de reforma , que havia sido apresentado pe- la segunda vez na casa dos communs, foi ali approvado pela maioria de 116 votos, tendo a favor 35-5 , e contra 239. Foi este acontecimento de grande importância não para o povo Inglez mas para a liberdade Eu- ropea , porque se considerou como uma vi- ctoria importante do partido liberal sobre a aristocracia. A de Inglaterra vio pela segun- da vez qual era o espirito publico da nação ; e os governos Europeos sentirão que aquelle golpe, dado tão decididamente sobre uma classe de privilégios tão poderosa como a de

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Inglaterra, não podia deixar de servir um dia ou outro de um forte exemplo para ser imi- tado. A perda que a aristocracia fizer em qualquer parte do mundo ha de ser sempre a precursora de novas perdas em outros pai- zes , porque a sua demasiada influencia, e o seu demasiado poder produzem , propor- ções guardadas , os mesmos intoleráveis ef- feitos em todos os paizes. Se a Europa in- teira e a America mostrão tamanha tendên- cia para as formas democráticas he pela te- nacidade com que a aristocracia e os reis procurão manter direitos incompatíveis com a liberdade e prosperidade das nações. As- sim estas, como diariamente se illuminão, apesar do muito que se trabalha para as con- servar ás escuras , também diária , e insen- sivelmente se preparão para quebrar o jugo que por séculos, e por effeito da igno- rância as tem opprimido. A épocha da eman- cipação dos povos se avisinha ; estes pos- suem o futuro; e a grande verdade de que a razão acabará emfim por ter razão não ve- rei eu realisada , porque estou no ultimo período da vida (#) ; porém hão de vê-la muitos que me lerem , nascidos em melho- res dias do que aquelles em que nasci , vi- vi, e soffri muitos e muitos absolutismos do poder.

Um grande escândalo se publicou n'es-

(/») Em 20 de julho d'este anno 1832. fiz 60 annos.

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te tempo em Londres, que eu refiro não co- mo completamente verdadeiro, porém como um rumor com grandes probabilidades de verdade ; porque não me tendo sido possí- vel verificar o facto, referirei o que ou- vi , e que por diversas vias me foi commu- nicado. Havia em Plymouth muitos emigra- dos, e de todos os que ainda estavão espalha- dos pela Europa certamente os mais infeli- zes, e os mais pobres; porque muitos d'el- les estavão litteralmente morrendo de fome, e apenas sustentavão a vida pela beneficência e charidade estrangeira. Todos elles que- rião, e devião ir para a ilha Terceira juntar- se a seus irmãos que estavão formando a ex- pedição contra o tyranno de Portugal ; mas não foi isso permittido a todos, e a al- guns escolhidos ; e n'esta escolha he que esteve o grande escândalo, porque fôrão escolhidos e nomeados , segundo então se disse, quatorze indivíduos, e os únicos que tinhão assignado o famoso requerimento pa- ra pedir a D. Pedro que se declarasse re- gente. O cônsul FoXy compadecido das des- graças de tantos miseráveis , tinha feito ar- ranjos muito económicos para que todos fos- sem para a ilha, e disto dêo parte para Lon- dres ao ministro Abreo e Lima, o qual por muito tempo não respondeo. Instado afi- nal pelo mesmo cônsul , dêo por única res- posta : que nao havia meios alguns, ainda que módicos se exigissem, para os transportar,

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tendo-os antes havido de sobejo para enviar os seus quatorze escolhidos, ou os que na realidade fôrão !

Por esta mesma épocha se perpetrou pela terceira vez um grande crime contra a Polónia. Por um ukase , ou decreto de 25: de março incorporou o imperador Nicoláo a- quella briosa e valente nação ao seu bárbaro império. Os governos Europeos , que ti- nhão visto este mesmo crime social perpe- trado por duas vezes sem mostrarem sympa- thia alguma por aquelle grande povo, ainda desta vez mostrarão maior insensibilidade ; porque as desmembraçóes antigas tinhão si- do feitas em tempo em que os princípios li- beraes ainda estavao suffocados, e não fazião parte do direito publico de muitos estados ; e debaixo deste ponto de vista o comporta- mento actual , particularmente dos governos Inglez e Francez , foi na realidade anti-Eu» ropeo , e notavelmente impolitico. Depois da ultima revolução Franceza do anno 1830, á qual se seguio a que se operou em Ingla- terra , ainda que não tão extensa como a pri- meira, quem poderia persuadir-se que os mi- nistros de Luiz Filippe , e de Guilherme IV., e dirigido este ultimo por lord Grey , como chefe do partido liberal Britânico, ha- vião de consentir , achando-se unidos pe- los mesmos princípios políticos, neste tão monstruoso delicto ? Mas emfim consenti- rão, e virão, sem se moverem, uma bar-

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bara mão riscar da lista das nações a mais nobre, a mais valente, e a mais heróica de todas ellas. tão conhecida pelos illustres combates que havia dado a favor da liber- dade da Europa , muito mais illustre vinha ella de se mostrar por esses últimos com- bates de gigante que acabara de dar pela sua própria liberdade e independência; e apesar d'isto de nada lhe valerão nem os antigos nem os modernos merecimentos ; e desappa- receo com imperceptível do catalogo das na- ções, bem como no deserto desapparecem imperceptíveis alguns grãos de arêa impelli- dos pelo vento. Um grande axioma moral podem deste acontecimento tirar todas as outras nações , e he : que não confiem em ninguém ; que olhem para os seus pró- prios recursos ; e que d'elles se sirvão a pro- pósito ou para se gloriar com elles, ou para çom sigo lamentarem os seus máos resul- tados. O egoísmo he a feição essencial de todos os governos , e tanto mais systemati- co e insensível elle he, quanto mais illu- minados elles são. Assim , nos resta por agora lamentar a sorte da desgraçada Poló- nia, e deixemos ao tempo, que he o grão juiz das cousas e dos homens, que tome a seu cargo punir tamanha violência do direito dos povos.

No principio do mez de abril deste an- no appareceo uma divisão das forças maríti- mas da Terceira diante da ilha da Madeira,

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a qual divisão era commandada pelo vice-al- mirante Sartorius. Foi de grande proveito es- ta medida; porém, na opinião de muitos, e que parecião ter razão, teria ella sido de me- lhores consequências para a causa da liberda- de se a houvessem tomado mais cedo. Che- gou D. Pedro, como relatei, á ilha deS. Miguel no dia 22 de fevereiro, e entrou na ilha Terceira no dia 3 de março ; porque se não cuidou logo em ir á Madeira , quando para esta operação estavão promptos todos os elementos ? Esta falta pareceo gravíssima , e produzio consequências mui desfavoráveis ; porque não tendo sahido da ilha Terceira as forças marítimas de que acima fallei senão no dia 14 de março, não conseguirão senão a menos importante parte do grande serviço que podião ter feito. não poderão encontrar os reforços que de Lisboa mandou o usurpador para a Madeira, e que ali entrarão; e nem mesmo poderão impedir que os navios , que os havião conduzido, voltassem para Lisboa intactos, e carregados com os despojos e rou- bos da ilha. Esta falta de actividade causou grande consternação aos opprimidos em Por- tugal , e diminuio a força moral do novo go- verno da ilha Terceira, á frente do qual es- tava D. Pedro. Uma força marítima mandada em tempo á Madeira , e que levasse nos to- pes a bandeira bicolor , teria infallivelmente produzido aposse da mesma ilha sem dar um tiro; porque ali ainda não serião chega-

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dos os reforços mencionados ; e então além da posse, era mui provável, que também se agarrassem, senão todos, alguns dos vasos inimigos que se encontrassem , ou anco- rados , ou que fossem chegando. Mas o vi- ce-almirante Sartorius não pôde fazer mais do que declarar, e estabelecer um rigoroso bloqueio da ilha, que foi reconhecido pelas authoridades Inglezas.

No dia 28 d'este mez houve um acon- tecimento de que poderião ter resultado con- sequências bem funestas para a causa da nos- sa liberdade. Foi o dia do vencimento deu- ma letra de 10 mil libras sterlinas, que es- teve a ponro de não ser paga : e tudo pelo máo manejo , e falta de exactidão não moral, porém mercantil, que se praticou em todo este negocio. O caso foi o seguinte : levou D. Pedro , duque de Bragança, ao sa- hir de Paris, um credito de 10 mil libras da- do pelo contratador do empréstimo mr. Ar- doin para sobre elle se negociarem letras so- bre Londres em qualquer das ilhas dos Açores. Desembarcou D. Pedro, como referi, em S. Miguel no dia 22 de fevereiro; e apenas ali chegado negociou logo o dito credito com a casa Portugueza de Silveira. Toda a pessoa que tem o menor conhecimento das operações mercantis sabe como estas se fa- zem nos casos ordinários ; e não o soube fazer o homem designado para as finanças Mousinho da Silveira, a quem se attribuio,

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não sei se com verdade, esta operação ; por- que também constou que ella se fizera sem o conhecimento do marquez de Plamella. O ministro designado, se he certo haver sido o author , estabeleceo um novo methodo, e bem extraordinário, o qual foi fazer com que D. Pedro, por seu próprio punho, en- dossasse o credito original a pagar á ordem do dito Silveira , e o convertesse assim em uma letra de cambio; lançando por conse- quência sobre o duque de Bragança indivt- âualmente todos os riscos e responsabilidades inherentes a todo o indossante de letras. D'- aqui resultou vêr-se pela primeira vez um fenómeno que nunca se tinha visto na praça de Londres , que foi apparecer a firma de um Príncipe , que figurava de soberano , em operações verdadeiramente mercantis. O risco a que elle se expôz ou expozerao por esta estúpida ou maliciosa operação, podia ser mui grave , porque supponhâmos que os acceitantes do credito quebraváo, e que o mesmo acontecia ás firmas que elle tinha , quaes erão as consequências? Voltar o credi- to protestado sobre D. Pedro, e ter elle de pagar á vista ou de quebrar também. Suppo- nhâmos mais, por um momento, que o mes- mo duque de Bragança, D. Pedro, não pa- gava por qualquer motivo que occorresse , e que o credito voltava casualmente para In- glaterra , ficava elle n'este caso exposto á mercê do possuidor do mesmo credito que

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o podia mandar prender quando quizesse !

Talvez esta lembrança occorresse ao sa- gaz-conselheiro da operação, quem quer que elle foi , para se livrar elle mesmo de toda a responsabilidade , e a fazer recahir sobre D. Pedro ; porque a não ser isto assim a tal operação mostrou uma demasiada ignorância. Nem se pense que as supposiçóes, que dei- xo mencionadas , fossem aerias , ou difíceis de acontecer; porque nunca houve aconte- cimento que mais próximo estivesse a reali- sar~se do que este que fica referido na pri- meira hypothese. Se não tivesse apparecido um Portuguez , e esse único entre quantos se procurarão , o qual foi Henrique José da Silva , que , pelo acto de um novo impor- tantissimo serviço , nos salvou ainda d'esta vez , expondo-se a ficar sacrificado , Deus sabe quaes serião as consequências que resul- tarião d'este caso.

Eu disse que n'este negocio tinha ha- vido falta não de exactidão mercantil, porém moral ; e como declarei em que consistio a primeira , referirei agora em que consistio a segunda , e como ella dêo causa a que os emprestadores não se prestassem a cumprir o seu credito. Este não se devia negociar senão depois que D. Pedro es- tivesse na ilha Terceira, e revestido da au- thoridade da regência ; por isso que aquel- le dinheiro era dado ao governo estabeleci- do e não a um particular, clausula, em que o

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mesmo D. Pedro tinha concordado, pois que quando se exigio aquella somma foi com o pretexto de ser empregada no acto do embarque das tropas para Portugal. Em se- gundo logar tinha igualmente promettido D. Pedro , ao sahir de Belle-isle, dirigir-se directamente á Madeira antes de chegar á Terceira ; porque havia toda a probabilida- de, pelas noticias coníidenciaes recebidas, de que aquella ilha se entregaria ; o que de certo teria acontecido , porque ainda a esse tempo não lhe podia ter chegado o reforço mandado de Lisboa, e que ali entrou no dia 8 de março. Se D. Pedro tivesse cum- prido o que estava ajustado, haveria entra- do de certo na Madeira ; esta noticia , che- gada a Londres , teria augmentado o credi- to do empréstimo; e os emprestadores, por consequência, poderião ter lançado no mer- cado uma quantidade de fundos não suffi- cientes para cubrir este credito , mas para outras despezas, que ainda se tornassem ne- cessárias. Deixando porém D. Pedro de cum- prir quanto antes tinha promettido não pôz os emprestadores em difficuldade, mas ficarão entendendo , que o que somente se queria era lançar mão do dinheiro por qual- quer maneira que fosse ; e que do mais pou- co ou nenhum caso se fazia. Tudo isto fez com que os mesmos emprestadores não se vissem em difficuldade para satisfazer o credito que tinhão dado, mas que não tives-

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sem vontade de o cumprir, fazendo recahir toda a responsabilidade na pessoa de D. Pe- dro e seus conselheiros. Em razão de todos estes acontecimentos se escreveo para Paris; e a ex-imperatriz, com mais juizo e prudên- cia do que seu marido, mandou para Lon- dres Francisco Gomes da Silva (i) , que ar- ranjou cousa de cinco ou seis mil libras ster- Jinas ; e o resto, como referi, foi aprom- ptado por intervenção de Henrique José da Silva, o unho, que acabou com todas as difficuldades , e salvou o credito de D. Pe- dro, e talvez com elle a causa Portugueza, ameaçada de um naufrágio, quando esta- va próxima do porto. E não o mesmo generoso Portuguez , apromptou a somma que faltava , mas contentou-se de receber a quantia que adiantou em scrips ao -par do novo empréstimo , quando elles naquella mesma occasião perdião meio por cento, e ainda quando por esse mesmo preço, e mui- to menor ainda os poderia ter comprado no mercado se a firma de D. Pedro não tives- se sido honrada. E muito mais digno de lou- vor foi este procedimento, porque tendo-se antes contentado com o pequeno premio de i por cento pela agencia activa e decisiva que havia empregado na execução do emprés- timo, e premio que se lhe tinha aífiançado ; ainda naquella épocha nada por esta conta

(i) Antigo criado do imperador D, Pedro.

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tinha recebido : circumstancia, que elle lem- brou ao marquez de Palmella na sua corres- pondência de 27 do mez antecedente para que a participasse a D. Pedro, de quem en- tão já era ministro na ilha Terceira.

No dia 30 de abril se pagou emfim , depois de perto de três annos de divida, o resto que ainda estava por pagar ao impres- sor do manifesto acerca dos direitos da Rai- nha D. Maria II. 1 Este procedimento es- candaloso por parte dos administradores da fazenda publica, durante a emigração, foi um d'aquelles que menos desculpa podia ter, e por isso o mais censurável de todos ; por- que não foi indecente, mas visivelmente dêo a entender, que nenhum caso se fa- zia da Rainha, que se tinha jurado, e que se pertendia abandonar o culto recebido pa- ra abraçar a idolatria (k). Este escândalo, em verdade , não se podia desculpar ; porque nunca ao mesmo tempo tinha faltado dinhei- ro para todas as publicações clandestinas, taes como essa famosa Aurora, que desmen- tia seu nome por ser publicada entre as tre- vas do mysterio e do segredo. Por ellas se os direitos da Rainha não erão abertamente combatidos , pelo menos se annunciavão el- les como duvidosos , ou como capazes de poderem ser substituídos por outros, que

(£) se sabe, politica; porque o principal artigo do ere* é» dos idolatras era : não queremos rei mulher.

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voluntariamente , e pelo modo mais authenti- co tinlião caducado (/).

No artigo da administração e distribui- ção de dinheiro publico houve sempre, des- de o principio da emigração, uma grande parcialidade, ou antes abuso; porque em quanto a muitos , debaixo do titulo de sub- sídios, se davão sommas enormes, a outros, como os voluntários, e académicos, apenas se davão alguns pences diários que mal che- gavão para matar a fome. Em quanto se pas- savão mezes sem se darem os pequenos sub- sídios á totalidade dos emigrados, era voz constante, que se pagavão dividas de jogo e de outras mais dissoluções ; e em quanto, emfim , os que tinhao o nome de governo consumião salários, absudarmente exorbitan- tes, grande parte da emigração não tinha um pedaço de pão para comer. Como prova de que o dinheiro publico quasi sempre se distribuio por caprichos, e por afíeições a certos princípios, ou a certas pessoas, direi ainda o que se segue. Em quanto todos os emigrados, exceptuando os que na realida- de estavão impossibilitados ou pela idade ou pelas doenças , se offerecião com toda a boa vontade para pegarem em armas , e fa- zerem parte da expedição contra o usurpa- dor, desprezavão-se os nacionaesj deixavão-os

(Y) Os de seu pai , que voluntária e solemnemente ti- nha abdicado a coroa na pessoa de sua filha, a Rainha.

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na miséria , e pobreza , e se recrutavão es~ trangeiros , e pelo motivo de contarem mais com estes do que com aquelles para a execução de certos planos políticos , que , por muito tempo, se tiverão em vista, e se procurarão realisar. Afinal , para que não houvesse indignidade que se deixasse de commetter n'este conluio de preferencias de homens e princípios , referirei um caso im- portante , que dará bem a conhecer em que espirito se tratarão os nossos negócios, tan- to políticos como financeiros.

Determinou-se organisar em Paris dous batalhões estrangeiros, e se incumbio esta operação ao coronel João Freire Salazar. Para servir de oficial n'estes mesmos batalhões pedio elle o Portuguez emigrado major Lo- pes Andrade, e isto lhe foi concedido sem dificuldade. Mas lembrando depois aos in- divíduos , authorisados para este e outros arranjos, que o dito major era um particular amigo de Saldanha , e que por esta cir- cumstancia devia ser excluído, recorrerão a um estratagema, digno da sua- invenção, para o excluirem , o qual foi : dizerem-lhe , que convindo que o primeiro batalhão par- tisse immediatamente para a ilha Terceira, elle, como oflicial de intelligencia e con- fiança , devia ficar ainda em França para or- ganisar o segundo. Com toda a boa acre- ditou o major nesta declaração ; e passando a executar a sua commissão com todo o zelo

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e actividade, e tendo o batalhão comple- to ou quasi completo, de improviso lhe vie- rao intimar, que o tal batalhão não podia ir para a ilha, porque faltavão os meios pe- cuniários ! Esta resolução imprevista lhe foi communicada por Manuel Gonçalves de Mi- randa que, conjunctamente com D. Francis- co de Almeida , que representava ministro da Rainha, o tinha convidado para a forma- ção d'aquelle batalhão. Assim por este estra- tagema se enganou muita gente que esta- va alistada; e se illudio a commissão dada ao major Andrade, que, por ser amigo par- ticular de Saldanha, toda a gente acreditou se não quiz empregar.

No principio de maio d'este anno che- garão a Londres as primeiras noticias, mais circumstanciadas, da marcha que hia toman- do o novo governo, presidido por D. Pe- dro. As cousas mais importantes d'esta nova administração fôrao as seguintes. < Um de- creto , com data de 29 de março próximo passado , pelo qual se permittio a liberdade do ensino publico. Outro , com data de 3 de abril, para abolir, e reformar certas col- legiadas e conventos. Um terceiro, com da- ta de 4 do mesmo mez, para abolir certos morgados. E alguns outros , com datas de 18, 19, 20 e 21 do mesmo mez , sobre o estanco do tabaco, diminuição de sizas, e outros diversos objectos.

No dia 3 d'este mez de maio se publi-

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cou no café de LloycTs , na praça de Lon- dres, o bloqueio da ilha da Madeira por uma divisão da esquadra de operações em nome da Rainha D. Maria II. Esta participação ofEcial foi ali mandada pela secretaria dos negócios estrangeiros por ordem de lord Pla- mestron , o ministro d'aquella repartição , c tinha a data anterior de 30 de abril próximo passado. Assim quiz o governo Britânico no anniversario de um dos grandes crimes de D. Miguel dar-lhe o annuncio da sua ine- vitável próxima queda. Foi, com efFeito, este o primeiro signal publico, bem que in? directo, que o ministério Inglez dêo de re- conhecimento da legitimidade da Rainha ; pois que approvou a primeira medida hostil, que, em seu nome, se tomava contra o rou? bador do seu throno, Outro novo signal d'- este reconhecimento se esperava que logo succedesse ao primeiro, qual era a admissão de um embaixador extraordinário em nome da mesma Rainha. Para este fim chegou a Londres no principio deste mez o célebre velho diplomata conde de Funchal , homem, que tão conspicuamente antes tinha figu- rado na corte de S. James durante a guerra peninsular ; e assaz conhecido pelos seus principios anti-liberaes , que manifestou pe- la imprensa não contra a revolução de 24 de agosto do anno 1820, mas contra os seus principaes cooperadores (tri). Um grande a-

(jn) £m uma publicação anoiíytni impre»sa em Londres

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contecimento politico que houve em Ingla- terra, e que foi a dimissão que o ministério Grey dêo de seus empregos no dia 9 d'este mez, retardou comtudo a sua apresentação diplomática, e até a tornou, senão sem ef- feito , ao menos duvidosa. Aquelle ministé- rio se dimittio em consequência de ver que na camará dos pares se fazia uma invencivel opposiçao ao bili da reforma, proposto pelo dito ministério. Mas este acontecimento pro- duzio ainda outros de maior momento , que rapidamente passo a referir.

Foi , como disse, no dia 9 d'este mez de maio, que o ministério voluntariamente se dimittio em consequência da opposiçao que achou na casa dos pares a respeito do bill da reforma , que mui claramente se ma- nifestou em uma discussão accidental , em que os ministros ficarão vencidos. O rei Gui- lherme IV., por fraco, ou por inclinação,

no anno 1 8 2. j com o titulo de Introducção ás notas suppri» inicias em lSai , ou Raciocínio sobre o estado presente e fu- turo da monarchia Portuguesa. O titulo das notas he : IW»- tas ao pertendido Manifesto da nação Portugueza aos Sobera~ nos da Europa , publicada em Lisboa a 1 5 de dezembro 1820. Foi reimpressa em Londres em \Z\o. Do mesmo di- plomata , que em verdade era homem de muito saber, ha uma obra também anonyma , e talvez rara, porém muito interessante, e que tem por titulo: La guerre de la pe- ninsule sous son veritable point de vue , ou Lettre a Mr. L' Abbé F * * *. Esta obra foi escripta em italiano , e publi» cou-se em Itália em 1816. Foi depois traduzida em Fran- cez pelo conde de Subserta , Pamplona , e se publicou em 1819. He mui curiosa a Taboa chronologica , que le acha na mesma obra.

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lhe acceitou a dimissao, e se foi lançar nos braços da aristocracia , ou dos tories , que era o fim principal que estes tinhão havia muito tempo em vista ; e para o que tinhão recorrido a toda a qualidade de intrigas, em que tinhão feito entrar a rainha. Depois de três dias de manejos e conferencias occultas appareceo lord Wellinghton nomeado pri- meiro ministro no dia 12 com plenos pode- res para formar um ministério inteiramente da sua laia ; mas depois de ter batido a muitas portas, não achou ninguém que com elle se quizesse associar. Até os mais ardentes anti- reformistas tiverão pejo de se associarem com elle, vendo que estava prompto, para saciar sua pouco briosa ambição, a pro- por uma nova medida de reforma , contra a qual até ali sempre se havia furiosamente de- clarado, e até solemnemente protestado (;;). Concorreo também para isto a íirme e enér- gica proposta que na camará dos communs fez n'este meio tempo lord Ebringhton pa- ra que se fizesse conhecer ao rei que a no- meação do duque de Wellighton não podia ter a confiança nem o apoio daquella cama- rá , pois que nunca se poderia supportar um homem, que tivesse o descaramento de se apresentar diante dos representantes da na- ção com um bill de reforma em uma mão,

(«) Elle e outros membros da camará dos lords tinhão feito um protesto contra a segunda leitura do bill da r«- foi ma*

e com o seu protesto contra elle na outra : pois que isto, em uma palavra, seria um signal da maior immoralidade politica que se podia imaginar. Accrescentava ainda que os communs tinhão tido , e ainda conservavão , toda a confiança no ministério de lord Grey; e assim poderião auxiliar um ministério que estivesse fundado nos mesmos princi- pios. No em tanto toda a nação estava em um geral e unanime movimento : os ajunta- mentos erão universaes nos três reinos : as petições e resoluções para a conservação do ministério de lord Grey erão assignadas por milhares de pessoas de todas as classes eje- rarchias: as uniões politicas se formavão, se augmentavão , e se fraternisavão por toda a parte : e em toda esta massa immensa de pu- blica opinião não havia senão uma única voz, e um único sentimento, que era : . um o- dio geral ao ministério do duque de Wellin- ghton;~o bill da reforma, tal e qual se a- chava para ser approvado na camará dos pa- res , e que tinha sido acceito pela nação em nome dos seus representantes ; « e por fim a declaração formal , de que o povo não tornaria a pagar tributos para o estado em quanto o bill da reforma não passasse intei- ro e inviolável como estava. Esta mesma de- claração se pedia á camará dos communs; e n'ella estes mesmos sentimentos se co- meça vão a manifestar.

O duque de Wellinghton , apesar de

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toda a sua affectada intrepidez, não pôde re- sistir a esta torrente da opinião ; e depois de se ver desamparado completamente do publico, e até dos amigos, em quem mais se fiava, passou emfim pela vergonha de se dar por vencido , e , passados três dias, foi entregar nas mãos do rei a commissão de que elle vaidosamente se tinha incumbido* Guilherme IV. como visse a derrota de seu campeão, a força irresistível da publica e geral opinião, e até quanto tinha perdido na estimação do povo pelo máo tratamento que pessoalmente recebera mais a rainha na sua vinda de Windsor para Londres, recor- reo então de novo a lord Grey , e o convi- dou para que quizesse continuar no ministé- rio juntamente com os seus antigos collegas. Antes que este negocio se concluísse houve por espaço de três dias grandes negocia- ções , porque o antigo ministério não se queria tornar a incumbir da administração publica sem garantias suficientes para levar a efíeito o bill da reforma. As mais essen- ciaes erao a creaçao dos novos pares, se is- to fosse necessário , cuja creaçao havia sido o notável ponto de discórdia; porque se di- zia, que isso antes tinha promettido o rei, mas que, ao chegar ao momento de realisar a sua promessa , havia faltado á sua palavra , induzido pela camarilha dos tories , presidida e auxiliada pela rainha. As nego- ciações tiverão emfim. um feliz resultado , e

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no dia 18 annunciou o ministério Grey ás duas camarás do parlamento que tinha reas- sumido as suas funcções com authorisação completa para empregar todos os meios que fossem necessários para fazer passar o bill inteiro e inviolável conforme se achava na ca- mará dos pares para a sua final approvação.

Grande, maravilhosa, e de importan- tíssimas consequências foi com eífeito esta victoria. Foi ella o cumplemento da revolu- ção da prodigiosa semana de julho em Paris ; e veio cortar pela raiz esse tronco meio podre e carcomido da santa alliança, que na aristocracia Ingleza punha ainda todas as suas esperanças, e como invencivei capitão d'el- la considerava o duque de Wellinghton. Três dias durou o combate de gigantes que deráo os Francezes ; e em nove dias se completou em Inglaterra a dispersão dos inimigos que, depois da derrota Franceza, se tinhão vin- do acolher debaixo das bandeiras da aristo- cracia Ingleza. A quem não conhece os cos- tumes Inglezes deve parecer cousa espanto- sa, que uma tamanha e tão diflicil obra se concluisse sem se derramar uma gota de sangue, quando em Paris tantas victimas foi preciso sacrificar para a victoria do povo ; mas esta diíferença esteve no estado pra- tico de liberdade em que se achavão ambos os povos, diíferença, que em poucas pala- vras eu agora exporei.

Em França havia principios theoricos

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da liberdade consagrados na carta, e em con- sequência delles havia alguma liberdade po- litica exercida pela representação nacional ; porém faltava-lhe a liberdade pratica, a liber- dade civil, que pertence não a uns poucos mas á massa inteira dos cidadãos* Em uma palavra, os Francezes, á sombra da carta, erão governados quasi a maneira dos gover- nos despóticos; porque com uma liberdade de imprensa mui precária, com a liberdade pessoal arbitrariamente sempre violada , e com o poder militar sempre preparado con- tra as suas menores acções e seus mais pe- quenos movimentos, tinhão constantemente suspenso sobre suas cabeças o poder violen- to da força , que por outro violento po- der da mesma força podia ser destruído. As- sim a revolução que Carlos X. intentou fa- zer contra a liberdade , por meio das suas ordenanças , sendo toda fysica e dirigida pe- la força , também fysicamente , e por meio de outra força podia ser anniquilada ; como com effeito assim aconteceo, e de que resultou o grande derramamento de sangue que houve para se ganhar a victoria. Não estavão os Inglezes nas mesmas circums- tancias : com menos liberdade politica do que os Francezes tinhão comtudo uma som- ma immensa de liberdade civil, e esta habitual e antiga ; e por isso podendo exer- cê-la legalmente sem ser contrariada pela força, e por consequência sem violência, o-

perárão a sua revolução sem sangue , e ga- nharão sobre a sua aristocracia uma das maio- res e mais memoráveis victorias que a liber- dade tem alcançado sobre os abusos e a per- tinácia dos séculos. Tanto vai a posse e o gôso pacifico da liberdade para prevenir as revoluções politicas dos povos, e ao menos que não sejão sanguinolentas !

Por este modo se que todo este im- portantíssimo combate, que houve entre a aristocracia e o povo, foi absolutamente mo- ral, porque aquella, sendo aggressora, com- bateo legalmente por meio da camará dos pares , e este também se defendeo pelos meios legaes tanto com a arma da imprensa, como com as suas reuniões , com as suas petições , e emfim com as suas numerosas associações ; tudo , em verdade , um bem calculado preparativo de guerra , porém no emtanto sem ser necessário rompê-la, nem recorrer ás armas ; o que de necessidade te- ria acontecido se o ataque, como o de Fran- ça, fosse feito por meios illegaes e pela for- ça , porque nesse caso por outra força he que teria sido repellido. De tudo isto resulta, que estas duas grandes revoluções da liberdade victoriosa devem servir para to- dos os povos de grande e instructiva lição, fazendo-lhes lembrar que até as nações livres tem a vantagem de fazer as suas revoluções sem perda de vidas e fazenda, o que he im- possível que aconteça com as que se achão

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governadas pelo poder absoluto , que não conhece outro modo de as dirigir senão pe- la violência e pela força. Esta memorável revolução de maio do anno 1832 teve ainda a vantagem de tornar mais prudente a aris- tocracia Ingleza ; e de annunciar á aristocra- cia Europea, que não podia contar com a infallibilidade da sua poderosa alliada.

No fim d'este mez de maio um novo acto do ministro das finanças de D. Pedro, Mousinho da Silveira , mostrou ainda a sua pouca capacidade acerca dos negócios da sua repartição. Sacou uma letra de cambio sobre uma casa de Londres pelo valor de 1 8^000 e tantos francos ; e nesta transacção mercan- til commetteo um grande numero de erros , ou faltas de bom juizo commercial. Foi a primeira o assignar a letra, o que nenhum homem que diz ser secretario d'estado deve assignar : 2.a não fez o aviso competente , o que he de absoluta necessidade em taes casos: 3.a sacou em francos para um paiz onde não corria tal moeda : 4.* declarou na letra o emprego do dinheiro , e isso com descrédito e deshonra do governo que repre- sentava , porque n'ella fez saber, sem ne- cessidade, e contra todos os estilos do com- mercio , que aquella somma era dinheiro a* diantado do fretamento de um navio; decla- rando assim á face do mundo que o gover- no , a quem servia , tão pouco credito tinha que não podéra fretar aquelle navio sem lhe

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pagar o frete adiantado , o que nunca acon- tece senão quando se está em um completo descrédito : 5%a emfim, assignou a letra com os seus sobre-nomes todos em breve , que por tal forma nenhum estrangeiro os podia comprehender, O resultado de toda esta lon- ga serie de ignorâncias e desacertos foi, que a letra não se pagou^ e por consequência foi protestada !

Com os mais prósperos auspícios para a liberdade começou o mez de junho deste anno. No dia 4 foi approvado na camará dos lords de Inglaterra o bill da reforma parla- mentar, tendo a favor 84 votos, e contra 22 em uma assemblea composta de 106 membros. Depois da ferida mortal que antes a aristocracia Ingleza tinha levado pe- la impossibilidade que teve lord Wellingh- ton de formar um ministério, e pelo novo chamamento do ministério de lord Grey , completou esta decisão a decadência, e pro- gressiva nullidade politica daquelle velho colosso. Depois d'esta épocha não he pos- sível que elle torne exclusivamente a domi- nar aquelle paiz, que por séculos governou ; porque organisada a camará pelo novo regu- lamento do bill , e vindo a ter aquella ca« mara uma melhor representação nacional , o que antes não tinha, porque representava quasi exclusivamente a aristocracia , as sua» deliberações devem ser mais nacionaes e populares. Esta medida , depois de tanto

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tempo exigida , não alterou o estado po- litico e civil de Inglaterra, porém ha de ter necessariamente uma poderosa influencia na politica dos governos estrangeiros. Antes desta épocha grande parte das guerras em que entrou Inglaterra foi para conservar o poder não da sua própria aristocracia mas da aristocracia Europea ; porém agora he de presumir que as guerras, quando as haja, hão de ter mais sólidos fundamentos, e que estes serão unicamente os* verdadeiros inte- resses da nação. A opposição que os minis- térios aristocráticos Inglezes fizerão á revo* lução Franceza, e essa ultima atroz e perti- naz, que lord Wellinghton nos fez para nos impedir o estabelecimento de um systema constitucional , fôrão particularmente medi- tadas e executadas para manter o. domínio da aristocracia. Daqui tem resultado que pa- ra el la conservar esse dominio se acha hoje a nação Ingleza sobrecarregada de uma divida enormíssima , e talvez impagável ; e por is- so he de crer, que não tornará, a haver ca- mará dos communs que possa authorisar ta- manho abuso de poder, como esse que até esta épocha se tinha tão arbitrariamente tor- nado dissipador das riquezas da nação, im- pondo um jugo sobre o povo que quasi lhe tem chegado a ser insupportavel.

No dia 7 deste mesmo mez se com- pletou a obra do bill da reforma pela appro- vação que lhe dêo el-rei ; ecom esta ultima

formalidade ficou sendo uma lei constitucio* nal. Guilherme IV., mal aconselhado, per- deo n'esta occasião a opportunidade de reco- brar a popularidade que havia perdido quando chamou lord Wellinghton para lhe formar um novo ministério, acceitando a dimissão de lord Grey ; porque se recusou a ir pes- soalmente dar o seu assenso ao bill na cama- rá dos pares, como o povo desejava. Fez este acto por commissão, o que se costuma fazer nos casos ordinários ; mas o caso era extraordinário, e pedia mais alguma demons- tração publica, afim de fazer ver á nação a boa vontade com que exercia aquella prero- gativa real. Não o fez , e o povo , que lhe tinha dado o titulo de rei reformador , des- de logo assentou em lh'o não confirmar; porque se persuadio, e com razão, que como violentado , e pela força das circums- tancias he que tinha approvado o bill : per- suasão , que parecia bem fundada , reflectin- do-se nos acontecimentos anteriores. Assim os reis parecem destinados a perder todo o bom senso tanto que se sentao sobre o thro- no ; porque de ordinário se constituem em perpetua hostilidade com os povos. E então porque se queixão se o nome de republica chega algumas vezes a resoar em seus ouvi- dos 1

Em uma gazeta Portugueza, publicada em Londres com o titulo de Portugwz Cons- titucional, apparecêrão em o n.° 12 com da-

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ta de 12 de junho deste anno os três docu- mentos seguintes, que são mais uma prova do quanto devemos ser agradecidos á politi- ca ou generosidade Ingleza , quer ella se componha de tories ou ivigbs , sendo os úl- timos os que tinhão então a direcção dos negócios públicos, e por chefe da adminis- tração o ministro lord Grey. Achavão-se qua- si todos os emigrados Portuguezes, residen- tes em Plymouth , litteralmente morrendo de fome, e no maior desamparo, porque nem erão soccorridos pelos agentes dos nos- sos negócios, nem ao menos se lhes tinhão dado meios para se transportarem para os A- çores , quando os havia para transportar es- trangeiros , tendo-os requerido, e offerecen- do-se a servir como voluntários na expedição que se formava contra o usurpador. N'este apuro vinte e três dos mais necessitados, esperando achar mais humanidade nos estra- nhos do que nos seus, resolverão-se a recor- rer á generosidade do rei Guilherme IV. por via do seu ministro dos negócios do in- terior, visconde Melbourne. No governo Bri- tânico encontrarão porém exactamente a mes- ma sympathia que até a aquella épocha ti- nhão encontrado nos seus próprios naturaes ; e os documentos de que acima fallei vão servir de prova. D'elles o primeiro he o se- guinte.

Senhor. Os emigrados Portuguezes, » súbditos do mais antigo alliado de V*

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3, M., estão luctando contra a maior miséria 5? por falta de subsídios, que a embaixada 3, Portugueza na tabeliã de 30 de abril de 3, 1829 lhes havia arbitrado, mas que ha 3, vinte e cinco mezes que não são pagos, 33 não obstante as reiteradas supplicas para 39 esse effeito. V. M. não ignora que ne- 39 nhuns outros súbditos de qualquer nação 33 emigrarão por causa mais justa ; porque 39 procede de haverem tomado uma parte a- 3, ctiva em defeza da liberdade da sua pa- 3, tria , e dos direitos da sua joven e ado- 3, rada Rainha, a Senhora D. Maria II. j 33 do que claramente se deprehende que 33 nunca emigrados alguns tôrão tão dignos da generosidade das nações civilisadas, 33 onde , como elles , acharão asylo. Os e- migrados esperão que estas considerações e as reflexões a que ellas dão logar, se- rão sobejas para mover o philantropico coração de V. M. a outorgar-lhes o bal- samo consolador .da beneficência afim de os abrigar da nudez e da fome. Isto com o maior respeito se animão os emigrados a sollicitar; e cheios de confiança o es- perao da conhecida munificência de V. M. Seguem-se 23 assignaturas. < PJy- mouth , 14 de abril de 1832.

Ex.m0 snr. ~ , Os emigrados Portugue- ?, zes, residentes em Plymouth, encareci- damente rogão a v. exc.a o obsequio de ,, levar á presença de S. AL o incluso me-

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,, morial ; e com profundo respeito sollici- tão uma prompta resposta logo que v. exc.a possa convenientemente obtê-la. -* Sou &c. Ao visconde de Melbourne , ministro e secretario destado dos negócios do rei- no. Assignado ss Francisco Rebello Lei- tão Castello-Branco. Plymouth , 14 de abril de 1832.

Ill.mo snr. O visconde de Mel- ,, bourne me ordena participe a v. s.a que a petição dos emigrados Portuguezes, re- sidentes em Plymouth, na qual implorão a real munificência, foi apresentada a el- ,, rei; e s. exc.a sente que não hajão fun- 3, dos alguns dos quaes S. M. podesse ter 3, sido aconselhado a conceder o auxilio re- querido. Sou &c. Snr. F. R. L. Cas- tello-Braneo. . Assignado ss John Philli- ps. ~i White hall, 26 de maio de 1833.,,

O author d'estes Annaes espera que os Portuguezes, que chegarem a ler os documen- tos que acaba de transcrever, fiquem por uma vez persuadidos do desprezo com que os e- migrados fôrão tratados pelo governo Inglez, e de como se lhe devem mostrar agradeci- dos quando para isso tiverem occasião. De certo esta não ha de faltar , porque não he de presumir, que o mesmo governo nunca mais precise de nos chamar os seus mais an- tigos alliaàos \ o que entre mil acasos de- pende , por exemplo , de uma guerra con- tinental : então será próprio responder-lhe ,

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além de outras muitas, com estas decisivas provas da sua amisade.

Com o longo intervallo de oito mezes se fez emfkn, no, dia u do presente mez um pagamento mensal a alguns emigrados em Londres, e tão atrazado, que foi o que correspondia ao de 15 de janeiro até 15 de fevereiro do anno 1830. Assim mesmo para que nada sahisse com o cunho da justiça e do bom senso da casa da legação Portugue- za se praticou ainda n'esta distribuição a maior irregularidade que se podia imaginar. Pôz-se por base do pagamento , que sd se pagaria aos necessitados presentes, e que se não admittirião procurações dos ausentes, co- mo se entre elles não houvesse também ver- dadeiros necessitados (0). Mas como esta base proposta não fosse senão uma combina- ção desgraçada fôrão logo tantas as queixas e tantas as reclamações, que os excluidos da lista fôrão também pouco a pouco resti- tuídos ao livro que se podia denominar livro da vida, Tuda isto se teria podido evitar se tivesse havido n'esta operação discernimento e espirito de charidade ; porque se todos os emigrados houvessem sido convocados com lealdade e boa fé, delles se teria sabido quaes estavao em circumstancias de poderem ceder do que lhes pertencia para ser distri-

(0) procurações de muitos erâo para pagar suas divi- das com os subsidios devidos.

buído com maior abundância pelos que esta- vão em extrema necessidade. Não se fez porém nada disto ; e o resultado foi que quasi ninguém ficou satisfeito, e mais ainda pelo modo grosseiro com que começarão a ser tratados nas ordens que se lhes derão para receberem seus pagamentos. Não he costume em Inglaterra passar uma ordem para dinheiro a qualquer que seja, ou nobre ou pieheo, sem q tratar pelo titulo ou pre- nome equivalente ao nosso de senhor ; po» rém Abreo e Lima assentou que Portugue- zes , seus compatriotas , não erao dignos d'- esta distincção de civilidade, e lhes negou o que elle mesmo não ousaria negar ao seu carniceiro se lhe desse um bill ou huma or- dem para ir receber algum dinheiro. Com- tudo , havendo afinal quem altamente estra- nhasse esta grossaria , particularmente em uma ordem escripta em Inglez, constou-me que, depois d'esta severa admoestação, hou- vera reparação e emenda. As ordens , ou bills , escriptas em Inglez , em vez de di- zerem — pagará ao senhor fulano a quantia de tal, diziao simplesmente pagará a fu- lano ; o que era o maior insulto , e despre- zo com que se podia tratar um homem em Inglaterra.

No meado d'este mez chegou a Lon- dres a noticia de se ter levantado o bloqueio da Madeira no dia 25 de maio passado, o qual, como disse, as nossas embarcações

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ali tinháo estado fazendo, depois que sahí- rão da ilha Terceira. Foi este bloqueio fei- to tarde e a's más horas, e em tempo de não poder prevenir o reforço que , como também mencionei, entrara na ilha, man- dado de Lisboa; mas que, apesar de tar- dio , foi sempre dar esperanças e animo aos constitucionaes da mesma ilha, e da peque- na povoação de Porto-Santo. Assim ficou des- amparada toda aquella boa gente , e entre- gue a todas as violências do governo usur- pador, agora mais pesadas com o reforço que as veio animar. Achando-se , durante três mezes, as nossas forças marítimas nos Açores , nada fizerão , nem cousa alguma prevenirão. Podendo no emtanto ter formado o bloqueio do porto de Lisboa , e assim ter impedido que d'ali sahissem reforços para a Madeira, ou emíím o d'esta ilha, nada fize- rão, e se conservarão por mais de três me- zes ociosas; e por este modo deixarão de augmentar tanto a força fysica como a moral da nossa causa.

No dia 19 d'este mesmo mez estando el-rei de Inglaterra assistindo a um publico divertimento de corridas de cavallos , deno- minado Ascot-Races , e que he de costume annual , foi insultado por um homem , cha- mado Dennis Collins de idade de 57 annos , o qual lhe atirou uma pedrada que, dando- lhe no chapéo, felizmente o não ferio. Ti- nha aquelle homem servido na marinha real,

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em cujo serviço tinha perdido uma perna , e em consequência disto gosou primeira- mente de uma pensão annual , e depois ti- nha sido admittido no hospital dos inválidos em Greenwich. Havendo sido expulso deste estabelecimento, segundo então se affirmou, pelo seu máo proceder, e achando-se redu? zido ao estado de mendigo, parece que ti- nha feito diversos requerimentos a el-rei pa- ra recobrar a sua pensão, e que em nenhum delles tinha sido attendido. Escandalisado por isto recorreo a aquelle acto de desespe- ração ; ou pelo menos , a esta causa foi elle então politicamente attribuido. O caso he, que Guilherme IV. tinha a esse tempo perdido muita popularidade em consequência do que antes referi , quando chamou lord Wellinghton para lhe formar o novo minis- tério pela forçada dimissão do de lord Grey ; e não foi então para admirar que esta cir- cumstancia desse ousadia bastante a aquelle homem para se aventurar a um acto verda- deiramente desesperado. Com effeito, se os exemplos fossem capazes de doutrinar os reis , e fazer-lhes ver quão depressa podem passar do amor dos povos para a indignação e desprezo d'elles , este caso acontecido com Guilherme IV. , seria mais que suffi- ciente para lhes mostrar o cuidado que de- vem ter em todas as suas acções, Acclamado por toda a parte , como rei reformador , re- cebido em todos os logares com um enthu-

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siasmo quasi levado ao delir?o do amor e gratidão, perdeo em um dia toda esta u- ni versai aíFeição, e chegou a tempo de não poder vir do seu palácio de Windsor para Londres pelo mesmo caminho que antes cos- tumava , em consequência dos insultos que n'este seu transito se lhe fazião ; pois que em vez dos antigos applausos vitupérios ou desprezos começou a receber. Daqui po- dem aprender os reis, se d'isto são capazes, que devem fazer todo o caso da opinião pu- blica , a qual sempre se funda , quando he geral, no interesse do povo. Nem a devem ter ou avaliar em pouco, pois que o dia do amor ou do respeito pode ser a véspera do dia do ódio ou do desprezo.

Houve em França n'este mez um caso mui importante não pelas consequências próximas que d'elle resultarão , porém pelas que para o futuro ainda podião manifestar- se. Por occasião da morte do patriota e il- lustre general Lamarque , e da pompa fúne- bre do seu funeral , em que o povo de Pa- ris quiz tomar parte em agradecimento a seus insignes trabalhos pela causa da liberdade, começou um barulho muito serio , que aca- bou em um combate ainda mais serio entre as tropas e uma grande porção do povo. A- conteceo isto nos dias $ e 6 deste mez , e não se pôde bem averiguar quem tinhao sido os aggressores, se as tropas se o povo: o que porém foi certo he que o partido Car-

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lista, que n'aquelle mesmo tempo estava o- perando com mão armada em La Venàée , tendo á sua frente a duqueza de Berry, quiz ver se por esta occasião podia também fazer alguma cousa em seu favor ; e que simulta- neamente o partido republicano, debaixo de outras vistas, quiz igualmente tentar fortu- na para a sua causa. Parece , comtudo , in- dubitável que este ultimo partido cahíra mais no laço pelas enganadoras insinuações dos Carlistas , cubertos com o falso manto do republicanismo, do que pela perfeita persua- são em que estivessem de poderem alterar tão cedo o systema politico existente. O caso porém foi que o combate se começou , que a resistência o tornou mais tenaz e atre- vido, e que emfim n'aquelles dous desgra- çados dias houve muito sangue, muita mor- tandade, e uma resolução e valentia, di- gnas de projectos mais bem reflectidos e combinados. Valeo a Luiz Filippe n'esta occasião o persuadir-se a numerosa guarda nacional de Paris que todo aquelle movimen- to era excitado pelos Carlistas, e nesta per- suasão, longe de tomar a parte do povo, ter combatido contra elle; porque a não ter assim succedido , aquelles dias haverião si- do tão fataes para o rei cidadão, como para Carlos X. tinhão sido os de julho de 1830. Ganhou , por tanto , o governo uma completa victoria sobre o partido Carlista como sobre a republicano, que, sem o sa-

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ber, tinha estado servindo aquelle ; mas não contente com esta importante vantagem a- busou logo dessa victoria. Em vez de entre- gar os delinquentes aos tribunaes ordinários de justiça , arvorou-se em conquistador ; de- pôz as insígnias de um governo regular; e em vez de recorrer ao poderoso direito da lei recorreo ao bárbaro direito da espada. Para isto collocou Paris em estado de cerco, como se elle estivesse nas mãos do inimi- go ; e não obstante ter conseguido uma vi- ctoria sobre os perturbadores, entregou de- pois os delinquentes a commissóes milita- res em Jogar de os fazer julgar pelos tribu- naes competentes. Esta medida temerária e ousada produzio um geral descontentamen- to; e os accusados , desde logo, unanime- mente protestarão contra a incompetência dos tribunaes militares. Apesar d'isto, Paris se continuou a conservar no mesmo estado de cerco ; e as commissóes continuarão com os seus illegaes procedimentos. Houve porém n'ellas uma notável contradicção, porque de seus julgamentos se concedeo recurso para os tribunaes civis , e em ultima instancia para o de cassação', o que não devia ter logar se aquellas commissóes fossem o que costumão ser nos casos em que ellas se permittem : mas tal he o resultado das máximas, ou dos actos tortuosos dos governos que sahem dos limites da lei para o absurdo do absolutis- mo ! Chegando as primeiras sentenças mili-

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tares pelo recurso dos aggravados ao tribo nal de cassação , este as annullou , declarara do a incompetência e illegalidade do tribur nal ; e o governo , que vio esta decisão , parou então em sua marcha , advertio no a- bismo em que se podia precipitar, e por u- ma ordenança de 29 deste mez levantou o estado de cerco em que por vinte e tantos dias conservava Paris.

Deste procedimento inaudito em um governo constitucional, e no reinado de um homem , chamado o rei cidadão , que apenas occupava o throno havia dous annos em con- sequência de actos absurdamente despóticos de seu antecessor Carlos X., grandes e pro- veitosas lições se podem tirar, e de que os povos nunca se devem esquecer. A primei- ra he , que nem os reis nem os governos a- prendem ou se melhorão com a experiên- cia ; e que a única cousa que os pode con- ter nas raias da liberdade lie a resistência legal. Felizmente os Francezes empregarão esta resistência legal por meio da mais ele- vada jerarchia da sua magistratura , isto he , do tribunal de cassação ; depois de terem vis- to nesta mesma classe outro tribunal de es- cravos, que foi a cour royale, o qual não se pejou de sanccionar o poder despótico que Luiz Filippe tinha assumido. Do que acabo de referir devem por tanto os Portuguezes tirar a proveitosa lição de que um dos meios mais seguros para conservar a liberdade he

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ter uma magistratura illustrada e indepen» dente, porque por meio delia se pôde sem- pre fazer uma útil e effectiva resistência a qualquer abuso do poder, quer elle seja pra- ticado contra indivíduos ou contra a causa publica.

No dia 27 d'este mez sahio finalmente da ilha de S. Miguel a expedição restaura- dora , debaixo das ordens do duque de Bra- gança D. Pedro , que fora rei de Portugal , com o nome de Pedro IV. Era ella compos- ta de três divisões , que tinhão por com- mandante em chefe o conde de Villa-Flor , e levava por commandantes de divisão os três seguintes officiaes. Da divisão ligeira, o te- nenre-coronel de caçadores João Schwalback ; da primeira de linha , o coronel de infanta- ria 10, António Pedro de Brito; e da se- gunda, o coronel de infantaria 18, Henri- que da Silva da Fonseca. Commandante ge- ral da artilharia , Sebastião Drago Valente Cabreira ; commandante geral da cavallaria, o conde d'Alva ; commandante do corpo de engenheiros, José Dionysio da Serra ; e di- to do corpo de guias, o capitão de cavalla- ria Joaquim Paulo Arrobas. Auditor geral da expedição, José da Silva Carvalho; um dos regeneradores de 1820, e que nessa é- pocha havia sido ministro da justiça.

Antes da sahida dos Açores fez ali a regência de D. Pedro alguns regulamentos, entre os quaes os que nesse tempo chega-

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rão ao meu conhecimento fôrão : um de de abril, assignado pelo marquez de Pal- mei la, creando os voluntários nacionaes com a extincçao das milícias, e ordenanças em todos os Açores. Outro de 10 de maio, as- signado por Mousinho da Silveira, extin- guindo o estabelecimento , chamado erário, régio, e creando em seu logar outro com o nome de thesouro publico nacional, com uma nova organisaçao das alfandegas. Outro, em- fim , com data de 17 do mesmo mez de maio d'este anno, referendado pelo mesmo Mousinho da Silveira, e publicado em Pon- te-Delgada, ilha de S. Miguel, extinguindo muitos conventos de frades e freiras nos A- çores, com os regulamentos competentes pa- ra os extinctos, e conservados, assim como para os membros das ditas corporações, cha- madas religiosas. Por aquelle decreto ficarão os bens dos conventos extinctos sendo pro- priedade . nacional. Deixarão os conventos conservados de formar corporações com che- fes geraes , ficando cada um com os seus prelados locaes , e sem dependência de ou- tro qualquer. Permittio-se ás freiras o pode- rem estar ou não nos conventos conservados, assim como o regressar a elles quando lhes conviesse, uma vez que por tempos tivessem estado ausentes. Prohibirãô-se as entradas e profissões futuras nos conventos conservados, e n'elles se abolirão os cárceres e prisões. Finalmente prohibio-se , com pena de su-

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pressão immediata do convento , o sahir al- gum membro delle a pedir, ou a continuar nas suas antigas correições chamadas peditó- rios.

Havia nos Açores 15* conventos de frei- ras , e d'estes se supprimírão 11, e se con- servarão 4. Havia 23 conventos de frades, e d'elles se supprimírão 10, e se conserva- rão 4. Assim , havendo em todas as ilhas 38 estabelecimentos d'esta natureza, se ex- tinguirão 30, e se conservarão ainda 8. A todos os individuos de ambos os sexos, que ficassem vivendo nos conventos conservados, ou d'elles sahissem se arbitrou uma renda annual e vitalícia para ser paga pelo thesou- ro publico ; e em consequência disto he que aos mendicantes se prohibio a mendicidade le- gal, que elles até ali professavão para me- lhor serem ricos, á custa do trabalho alheio, com a apparencia de pobres.

Entre as providencias que se derão nos Açores antes da sahida da expedição para o Porto, foi uma a creação de um tribunal de justiça, ou relação nas mesmas ilhas. Mas sobre este objecto vi eu em Londres uma carta , enviada de Angra com a data de 28 de maio deste anno, na qual Mousinho da Silveira era asperamente censurado pela no- meação de alguns membros que tinha feito para organisar e compor aquelle tribunal. Os nomes dos individuos nomeados, que davão motivo á censura, erão os seguintes : ~ o de

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José Leandro da Silva , antigo desembarga- dor do Porto , para presidente da dita rela- ção. Dizia o author da carta , que este ho- mem não tinha boa reputação pelos logares que tinha feito em Cabo-Verde, e depois no Maranhão , donde havia fugido para não ser assassinado pelo povo, em companhia' do notório bispo de Coimbra , fr. Joaquim , frade arrabido, e um dos servos de D. Mi- guel. Que, além d'isto, havia sido um dos membros da alçada de Coimbra no anno de 1824, e ali votara de morte contra José Henriques , natural de Aveiro ; e de degre- do para os sertões de Africa contra mais de vinte liberaes. Emfim 5 que expressamente tinha sido nomeado para aquella alçada por Ayres Pinto, para dar, segundo dizia a por- taria , um grande exemplo da restauração con- tra a revolução. Os outros mencionados erão um tal Magalhães , juiz de fora de Ponte- Delgada , que havia acclamado D. Miguel ; e um Valente Farinha , que, sendo também juiz de fora , havia acclamado o usurpador, e assignado o auto da acclamação. O ultimo era outro juiz chamado Serrão Veloso^ o qual, segundo dizia, havia feito tão máo logar em Miranda do Douro, que nunca mais tinha si- do empregado , nem mesmo pelo governo absoluto.

Eu tenho tido sempre em vista nestes meus Annaes relatar não as cousas mais importantes que chegarão ao meu conheci-

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mento sobre a longa historia da usurpação, mas ainda dar a conhecer os homens que ri * esta épocha mais conspicuamente figurarão tanto em bem como em mal ; e por isso he agora de justiça, por honra do caracter Por- tuguez, que. resumidamente relate os servi- ços de um individuo que, mais que outro qualquer, concorreo para o bom resultado da restauração da nossa liberdade constitucio- nal. Já por vezes nesta mesma obra tenho mencionado o nome de Henrique José' da Sit- ua , enumerando muitos factos que provão o quanto lhe deveo a causa Portugueza ; a- gora referirei outros de novo que mostrao que sem elle , e sem os seus continuados esforços e auxílios pecuniários talvez a ex- pedição restauradora, que nos salvou, ou se não podesse realisar, ou "quando o podes- se fosse com dificuldades quasi invencíveis. Estando esta quasi a ponto de se malograr, elle com dinheiros avultados e com o credi- to da sua casa e parentes foi o único homem que ajudou e manteve o agente Mendizabal em todas as operações que era obrigado a fazer. Nem será possível que este mesmo agente possa em tempo algum negar, que por muitas vezes o tirara de difficuldades perigosíssimas em muitas das suas transac- ções ; porque quando isto acontecesse , os seus mesmos escriptos , e a conta corrente de Henrique José da Silva demonstrarião até á evidencia quanto acabo de dizer.

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Eu sube , vi , e li, e por tanto o pos- so affirmar, que até o dia 18 do seguinte mez de julho as transacções entre elle e Mendizabal montavão a 50 mil e tantas li- bras sterlinas ; e que os dias de verdadeira crise em que se vio Mendizabal fôrão mui- tos , com especialidade desde o principio do mez de abril antecedente, e mais parti- cularmente no dia 28 daquelle mez. N'este dia se venceo o credito negociado na ilha de S. Miguel por D. Pedro, e de que fallei ; e para o pagar dêo Henrique José da Silva 4 mil libras sterlinas em letras, dando ainda no decurso da mesma semana perto de duas mil libras sterlinas. Depois os dias 17 de maio, e os de 8 de junho, de 14, 15*, 16, 18, 22, 29 e 30 fôrão realmente fataes para Mendizabal , e quem rfelles lhe acudio foi sempre Henrique José da Silva. Todos estes embaraços durarão até o dia em que chegou a Londres a noticia da sahida da expedição dos Açores; e afi- nal , obrigado pelas sollicitações do conde de Funchal , fez e concluio ainda uma mui interessante e absolutamente necessária ne- gociação de bonàs do novo empréstimo, da qual resultou poderem-se obter cousa de 8 mil libras sterlinas, com as quaes se evita- rão para a nossa causa, e pessoa de Men- dizabal os desastres com que tanto ella co- mo elle estavão na realidade ameaçados. Tan- tos e importantes serviços não podia eu pois

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©ccultar quando rTestes Annaes me propuz, sem ódio nem affeição, fazer justiça ás cou- sas e aos homens, que entrarão na vastíssi- ma scena da usurpação.

Com melhores e mais favoráveis auspí- cios começou o mez de julho d'este anno, que logo mostrou estar destinado para nos restituir a pátria e a liberdade. A expedição libertadora , que sahio dos Açores no dia 27 do mez passado, tocou nas costas de Portugal no dia 7 d'este mez; e no dia 8 todas as embarcações de guerra tomarão po- sição pelas duas horas e meia da tarde na praia, chamada de Mindello, entre Villa de Conde e o Porto. A's três horas começou o desembarque, e ás nove da noite todas as tropas se achavão em terra , sem se per- der um homem. Havia em Villa de Con- de uma brigada rebelde ás ordens do com» mandante José Cardoso , ao qual pelas três horas da madrugada do dia seguinte se man- dou um ajudante de campo de D. Pedro , Bernardo de Sd Nogueira, com o manifesto e proclamações do mesmo D. Pedro , para saber d'elle o partido que tencionava tomar. Recusou-se a intimação que se lhe fez ; e , em consequência d isto , as tropas fôrão to- mar as posições convenientes afim de impe- direm que outra brigada, que estava em Le- ça , podesse fazer a sua juneção com a de Villa de Conde. Esta, vagando toda a noi- te sem poder fazer a sua juneção com as tro-

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pas que estavão em Leça, dirigio a sua mar- cha pela estrada de Amarante 5 e depois se soube que uma parte d'ella se tinha deban- dado na marcha , e que o resto fora passar o Douro em Carvoeiro. A outra , que esta- va em Leça , foi obrigada a retroceder para o Porto ; e ali pelas duas horas da madruga- da passou o rio, cortou a ponte, e se foi alojar nas alturas de Villa-Nova.

Os batalhões de caçadores , n.os 2 e 3, fôrão os primeiros que marcharão sobre o Porto, e ali entrarão na madrugada do dia 9 no meio dos vivas e felicitações do povo. D. Pedro, á frente do exercito libertador, entrou na cidade ao meio dia, entre as mais fervorosas demonstrações de jubilo, que de- rão á sua marcha o caracter de triunfo ; por- que a alegria e as acclamações com que fô- rão recebidos excederão a tudo o que a ima- ginação pôde conceber. Logo, á entrada do Porto, muitos officiaes inferiores e soldados do exercito rebelde se fôrão apresentar aos nossos , dando por certo , que logo que as nossas tropas atacassem a deserção seria con- siderável.

D. Pedro foi apear-se aos paços do conselho na Praça-Nova, d'onde os habitan- tes, já n'aquella manhã, apenas entrara na cidade a vanguarda do exercito libertador, havião feito desapparecer os horrorosos pati- bulos , em que por quatro annos successivos se estiverão sacrificando as victimas da pro-

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bidade, honra, e liberdade aos ódios e ca- prichos da tyrannia por julgadores fracos ou bárbaros , e amedrentando os cidadãos pací- ficos. Os presos políticos fôrao igualmente soltos n esta occasião ; e a ira do povo ape- nas- se contentou em satisfazer suas vingan- ças no sangue dos carrascos , que na execu- ção das victimas sempre tinhão mostrado u- ma ferocidade brutal, ora aggravando seus padecimentos, ora insultando seus cadáve- res. Dos paços do conselho se foi recolher D. Pedro á casa que lhe estava preparada , seguido por um numeroso concurso do po- vo, que hia dando vivas á Rainha Ds Maria II., acarta constitucional,, e ao pai da pátria, restaurador das liberdades Portuguezas.

Assim-., depois de 10 dias de viagem, no espaço de seis horas , se achou o exerci- to libertador desembarcado ; e por esta ope- ração e disposições que a acompanharão se a- chou também cortada pelo centro a linha das tropas postadas ao norte do Douro. A sua direita foi obrigada em grande parte a de- bandar-se ; e a sua esquerda , forçada a pas- sar o rio , abandonou o Porto. Em summa , em menos de quarenta e oito horas depois de haver saltado em- terra, o. exercito liber- tador limpou toda a provincia do Minho das tropas rebeldes que a occupavão ; pôz em segurança a sua capital , o Porto ; preparou uma longa base de operações nas duas pro- vindas ao norte do Douro ; e tomou a cf-.

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fensiva ao sul do mesmo rio ; havendo con- seguido tudo isto sem perda de um ho- mem , nem por effeito do fogo nem de de- sastre.

Em quanto estas cousas se passavão em Portugal appareceo em Londres um pequeno folheto de 10 paginas, com a falsa declara- ção de ser impresso em Lisboa na imprensa regia, e com licença. Tinha o titulo seguin- te : . O snr. D, Pedro IV. legitimo rei de Portugal ; com a epigraphe . pela lei e pela grey. Era este folheto anonymo, mas pela pessoa , que o distribuio a certos amigos , a qual , segundo creio , nunca negou ser o author delle, foi geral e uniformemente at- tribuido a António do Amaral Paes , abbade de S. João da Pesqueira. Dava-se este pa- dre por emigrado , e tinha jurado em Lon- dres a Rainha D. Maria II.; mas, apesar disto, para agradar a outros aduladores co- mo elle, teve a audaz impavidez de lhe ne- gar, por um documento publico, os seus actuaes direitos ao throno para os dar a seu pai, o ex-imperador , e rei D. Pedro, que mui solemnemente os tinha renunciado. Esta baixa adulação era um verdadeiro insul- to a D. Pedro, pois o julgava capaz de ser um novo usurpador da coroa de sua filha ; mas o padre , apesar d isto , sabia muito bem o que escrevia; e he provável que n'- isto fosse estimulado pelas esperanças futu- ras de algum dos bispados do reino; por-

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que então as promessas valião como moe- da corrente.

Para confusão das grandezas humanas , e para exemplo da variedade das fortunas dos homens mencionarei aqui a morte do joven Napoleão, filho do grande homem do século , Napoleão Ruonaparte , imperador dos Francezes , o qual morreo na manhã de 22 de julho deste anno no palácio de Scho- enbrun , junto a Vienna d'Austria , com o nome de duque de Reichstadt. Se a sua morte foi de ante-mão preparada e ajudada pelas artes tenebrosas da politica não o ou- sarei affirmar ; e deixo á historia futura o esclarecer este facto , porque o que pos- so asseverar he que a sua existência politica muito antes havia sido sacrificada a essa mesma politica. Nascido entre os mais bri- lhantes resplandores da purpura , e no meio da maior magnificência , sumptuosidade , e grandeza de um dos mais. famosos , ainda que curto, império da terra, foi logo an- nunciado ao mundo , apenas vio a luz do dia, como rei de Roma. Pela abdicação for- çada de seu pai em Fontainebleau no anno 1814 foi proclamado imperador dos France- zes com o titulo de Napoleão II. ; mas o seu império apenas durou instantes, porque se elevou e cahio quasi no mesmo momen- to. Seu avô , o imperador d'Austria , insen- sivel a todas as affeiçòes da natureza e do sangue, como em geral são todos, os reis?

esses illustres ingratos como alguém mui exactamente os chamou, de acordo com a Rússia , Prússia , e Inglaterra, sacrificou to- dos os interesses do neto aos futuros proje? ctos liberticidas da politica; e lhe roubou, sem compaixão nem remorsos , esse império que lhe estava destinado , para o dar , com o modesto titulo de reinado, ao êxul, e por tantos annos vagamundo Luiz XVIII. , ir- mão do infeliz Luiz XVI. rei dos France- zes, guilhotinado em Paris nos princípios do anno 1793. O despojado príncipe foi então levado, como prisioneiro, para Vienna d'- Austria , onde , tendo por carcereiro seu próprio avô , o imperador Francisco, passou uma vida mesquinha, oppressiva, e por cer- to infeliz, desde 1814 até 1832 em que mor- reo.

Agora ainda mencionarei , para formar mais uma pagina para a historia da politica dos reis, um novo acontecimento pouco co- nhecido do publico , que n'essa mesma épo- cha notável se passou conjunctamente com o do joven Napoleão, de quem acabo de faltar. Como a par dos suecessos que mar- cao a grande épocha da usurpação suecedião outros de não menor importância para a his«r toria geral d'este tempo, não me tem pare- cido que incorrerei na censura de amontoa- dor indiscreto, se com o meu objecto prin? cipal ligar mais alguns contemporâneos , i- gualmente dignos de serem recolhidos pela

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historia. Assim , seguindo o systema a- doptado, vou narrar este facto que, pela sua novidade , me parece merecer a publica curiosidade. O imperador d'Austria com os seus collegas o imperador da Rússia, reis de Prússia e Inglaterra, não contente de fa- zer subir ao throno de França Luiz XVIII., pondo os pés sobre o pescoço de seu neto, consentio ainda que esse mesmo novo rei de França tivesse também por degráo para subir ao throno o próprio corpo de seu so- brinho Luiz XVII. , que , tendo passado por morto até aquelle tempo, se achava com eífeito ainda vivo n'este mesmo anno 1814. Eu vou referir este facto novo , e atroz , se he verdadeiro como me affirmárão , porque me foi certificado em Londres no dia 26 de julho de 1830, residindo eu em n.° 13 AU' sop Terrace, New Road, por pessoa que o ou- vio a outra, e esta testimunha presencial do que passo a narrar.

Hindo o imperador Alexandre, quando estava em Paris no anno 18 14, visitar a im- peratriz Josephina , e procurando esta advo- gar a causa de seu antigo marido , o impe- rador Napoleão, como não podesse esperar bom resultado, disse-lhe emfim : pois que absolutamente se queria excluir do throno Francez Napoleão e a sua descendência, n'- esse caso se devia elle dar e restituir ao her- deiro legitimo , que não era Luiz XVIII. , mas seu sobrinho Luiz XVII. Ficoa pasma-

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do Alexandre com esta proposta , não acre- ditando que ainda fosse vivo um individuo que , depois de tantos annos, se tinha dado por morto na prisão do Templo em Paris, josephina , vendo-o duvidar , levantou-se , e na mesma sala onde estava com Alexandre abrio uma carteira e d'ella tirou uma carta de Napoleão, na qual elle, ao partir para a sua ultima campanha dentro em França , antes da primeira abdicação, lhe dizia pou- co mais ou menos o seguinte : Minha boa amiga , agora acabo de dar ordem para que se pague a pensão ao teu real prote- gido , que se acha na America, Para bem se entenderem as palavras desta carta deve saber-se que Luiz XVII. tinha sido ti- rado do Templo por influencia de Josephi- na, ajudada por Fouché e Barras. No tempo de Napoleão tinha elle entrado em França, e havia sido agarrado na Champagne ; mas pela intervenção de Josephina , que uma vez o tinha salvado , o foi ainda d'esta vez, e conseguio por ella a pensão que Napo- leão lhe dava. Todas estas particularidades fôrao declaradas a Alexandre n*esta occasião, e em presença de um seu confidente o ge- neral , e conselheiro Prussiano Justus Gru- uer , que na primeira occupaçáo de Paris teve a seu cargo a policia do exercito allia- do, dentro daquella capital (p). Tinha este

(/») Na biographia do» homens vivos , impressa em Paris femi8i7j tom. j,°, pag. 3 jj vem a noticia àtjustus Graner.

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general Prussiano um particular amigo em Paris, que era o senador conde de Saure , a quem revelou tudo isto que se tinha pas- sado entre Josephina e Alexandre; e este mesmo conde também tinha outro particular amigo, que era mr. Sauquaire Soultgné , a quem contou o mesmo facto. D este ultimo sube eu toda esta historia, que elle me re- ferio em Londres na épocha acima mencio- nada ; accrescentando , que achandose um dia em casa do conde de Saure, onde casual- mente encontrara o general Justus Gruner y este mesmo lhe referira exactamente o fa- cto , como o tinha ouvido ao conde seu amigo, e tal como eu o acabo de narrar. Debaixo pois da palavra de mr. Sauquaire Souligné , de quem fui particular amigo tan- to em Lisboa como em Londres, e a quem sempre reputei como incapaz de inventar es- ta historia, tenho referido um facto que ha de parecer fabuloso a muita gente, mas que eu firmemente creio ser exacto e verdadei- ro.

Esta revelação de Josephina foi prova- velmente a causa da sua morte mui rápida e não esperada , porque aconteceo quasi logo depois da scena que se passou entre ella c o imperador Alexandre ; e tanto mais he isto de presumir, que o mesmo Sauquaire Soultgné me referio ainda que, fallando com o general Justus Gruner a este respeito , e dizendo-lhe que a morte da imperatriz se

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suppunha ser eíFeito de um ataque de peitOj elle lhe respondera : et peut être du remede qtielle d pris ! Mas esta mesma revelação , que provavelmente matou Josephina , foi a que dêo vida politica a Luiz XVIII. ; por^ que estando ainda elle indeciso em ceder a Bélgica, e em assignar certas condições do tratado , se lhe declarou , que tinha vivo o sobrinho e um rival , e que em tal caso ou devia subscrever a tudo ou perder a coroa* O generoso tio não hesitou mais um momen- to \ assignou quanto d'elle se exigio ; e com uma coragem , verdadeiramente real , com- prou o throno com o sangue, por assim dw zer, de seu sobrinho. Para completar emfim este quadro direi, que a razão por que Luiz XVIII. logo escolheo para um dos seus mi- nistros o chamado regicida Fouche r, foi por- que este era um dos depositários do segredo da vida de Luiz XVII. ; e por isso naquel- le primeiro momento o quiz attrahir a si e ter contente, bem que, depois estando seguro, o incluio na lista dos regicidas des- terrados e banidos. Para conservar o fatal se- gredo da existência do legitimo herdeiro do throno Francez, se violarão ainda as leis da propriedade individual , mandando-se pôr os sêllos nos papeis de Barras logo que constou a sua morte. Taes são as precauções , bem que infructuosas, que uma acção sempre toma para se esconder, sem lembrar-se que o tempo, mais poderoso e leal do que ella ,

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â cada hora e a cada instante vai rasgando o véo com que se cobre, e que afinal, sem remédio, a expõe a toda a luz do dia!

Tanto que o conde de Saldanha soube com certeza em Paris o desembarque das tropas libertadoras no Porto , sempre incan- çavel pelo bem dos seus companheiros de desterro, e aos quaes por sua influencia o governo Francez sempre tinha dado uma ge- nerosa subsistência em França, dirigio-se lo- go ao mesmo governo, e lhe requereo qui- zesse completar a sua obra , ministrando aos emigrados os meios necessários para regres- sarem á sua pátria uma vez que a tinhao. Em 22 d'este mez de julho lhe respondeo o ministro da marinha, o barão de Rigny, e interinamente ministro da guerra, dizendo- Ihe : ,, Que havendo até ali o governo Fran- » cez procurado evitar toda a qualidade de intervenção na lucta existente entre a Rainha D. Maria e D. Miguel , não po- ,, dia ainda n'aquelle momento dicidir-se a favor da sua pertenção ; mas que elle a po- deria renovar em tempo opportuno, quan- do o novo governo, constituído em Por- tugal , offerecesse circumstancias favora- veis para a volta dos emigrados residen- tes em França. No emtanto, que ficasse bem persuadido que logo que essas favora- ;, veis circumstancias apparecessem o gover- no Francez daria aos emigrados todos os meios pecuniários para regressarem á sua

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pátria. Assim com esta nova prova do constante interesse que o conde de Saldanha tomava pelos seus compatriotas dêo elle tam- bém uma nova e bem expressiva resposta a todos os seus calumiadores.

N'este mesmo mez de julho succedeo ainda em Paris um caso notável , que foi o desafio entre o mesmo conde de Saldanha e D. Francisco de Almeida, que ali figurava de ministro plenipotenciário por parte da Rainha. O motivo d'este desafio foi o se- guinte. Escreveo o conde Alexandre de La- borde um pequeno folheto sobre a nossa questão Portugueza e destinos da expede ção ; e antes de o publicar foi pedir a D. Francisco algumas informações sobre as cou- sas e os homens que tinhão relação com o assumpto. Tiverão-se estas informações por menos exactas e não imparciaes ; e em con- sequência d'isto, assim que se publicou o tal folheto, o conde de Saldanha escreveo a mr. de Laborde dizendo-lher que muitas das suas informações tinhão sido mentirosas ; e esta carta se publicou nosjornaes. D. Fran- cisco, que a lêo , escreveo no dia 15 uma carta ao conde de Saldanha, pedindo-lhe ex- plicações sobre aquella frase. O conde lhe respondeo no mesmo dia , que as informa- ções que designara como mentirosas a mr. de Laborde erão as seguintes : ser represen- tado o marquez de Palmella como o homem que maiores serviços tinha feito d causa constitucio-

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nal ; e além d' isso , dizer-se ainda ter sido o primeiro que se declarara contra a usurpação de Z>. Miguel. Que sendo ambas estas asserções mentirosas , a quem as fez he que elle dirigia este epitheto; e por isso ninguém melhor do que elle D. Francisco podia sa- ber se ellas lhe dizião respeito. No mesmo dia lhe replicou D. Francisco, e lhe pedio uma satisfação com as armas na mão.

O conde de Saldanha mandou imme- diatamente communicar por seu irmão, Do- mingos de Saldanha , a D. Francisco que acceitava o desafio, mas que desejava fossem presentes de parte a parte duas testimunhas, e que desistia do direito da escolha das ar- mas. Depois disto convidou Barreto Feio pa- ra ser um dos padrinhos, e lhe pedio fosse tratar com os de D. Francisco sobre a hora, local, e as armas ; accrescentando, que sen- do elle bastante forte no florete e no sabre te- ria vergonha de usar de qualquer d'estas armas contra um tal adversário ; e por isso esco- lhessem antes a pistola. O desafio teve ef- feito no dia seguinte no Bois de Vincennes , aonde, a vinte passos de distancia, e signal dado por Barreto Feio, atirarão ambos ao mesmo tempo. José Alaria de Mello, um dos padrinhos de D. Francisco, disse im- mediatamente que não consentia que repe- tissem os tiros, não tendo nenhum ficado ferido dos primeiros ; e assim não foi mais avante o duello. D, Francisco apenas se jun-

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tou com o seu adversário disse, que estava satisfeito com tanto que o general Saldanha consentisse que nos jornaes se publicasse o terem-se batido. O conde de Saldanha res- pondeo : O general nunca se oppoe a que se diga a verdade : he um facto que nos batemos , e assim não posso ter dificuldade em que osjor' naes o annunciem. Por este modo acabou um negocio em que D. Francisco se expòz a per- der a vida se não tivesse por adversário um homem tão generoso , que ao primeiro bo- te de florete o poderia privar para sempre de tornar a ser o campeão das virtudes consti- tucionaes do marquez de Palmella.

Nos dias 22 623 do corrente mez hou- ve no Porto, ou nas suas rmmediaçóes dous fortes combates entre as nossas tropas e as do usurpador. As forças inimigas, que na oc- casião do desembarque tinhão fugido diante das nossas, passando umas o Douro em Vil- la-Nova , e as outras em Carvoeiro , haven- do-se reunido ao sul do rio , e sendo ali re- forçadas por outras que se unirão com ellas, tornarão a passar para o norte do Douro, e procurarão surprehender os nossos, atacando- os pela sua retaguarda, afim de verem se tor- navao a ganhar a posição do Porto. Em con- sequência d'isto tomarão a estrada de Ama- rante, e fôrão collocar-se entre Baltar e Pon- te-Ferreira , tendo antes feito avançar uma vanguarda até Pennafiel. No dia 22 como esta manobra fosse conhecida , fôrão os nos-

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sos fazer um reconhecimento, e encontrarão as avançadas do inimigo á entrada de Vallon- go. Travou-se n'esse dia um mui forte com- bate, porque as nossas tropas não se poderão contentar com um simples reconhecimento , e em todos os pontos levarão diante de si os rebeldes. Marchou por tanto todo o nosso exercito a soccorrer esta valente vanguarda , pois que uma batalha geral era inevitável ; e assim no dia 23 esta começou pouco mais ou menos ao meio dia, e durou até á noite. Fôrão os rebeldes successivamente desaloja- dos das suas fortes posições com uma gran- de perda desde Ponte-Ferreira , onde estava a sua força principal , até Baltar ; e dali , em completa derrota , se retirarão para A- marante , deixando em Pennaíiel , para onde levarão grande numero de feridos , uma pe- quena guarda avançada. Disserão as relações do tempo, que a ter havido da nossa parte alguma cavallaria, de que tínhamos comple- ta falta , a perda dos rebeldes teria sido to- tal ; porque os nossos caçadores e tropa de linha, demasiadamente cançados pelas mar- chas e combates de dous dias , e além d'isso tendo a batalha acabado de noite, não po- derão persegui-los como conviria em outras circumstancias. Todos os corpos do exerci- to libertador, tanto nacionaes como estran- geiros, isto he, Francezes e Inglezes, bri- lhantemente se comportarão nestes dous dias gloriosos '7 e entre elles a companhia dos of-

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ficíaes , que , como soldados, se havião alis- tado a favor da liberdade, contra a usurpa- ção, os quaes todos mostrarão a maior reso- lução e valor.

Em quanto , ou logo depois, estes glo- riosos combates acontecerão, dous mui no- táveis factos se passarão no Porto, os quaes passo a referir ; sendo um mui distincto pe- la atrocidade de que foi revestido, e o ou- tro pelo ridiculo que o acompanhou. Foi o primeiro que recolhendo-se depois da bata- lha do dia 23 o batalhão $.° de caçadores para o seu quartel no Porto, que era o con- vento dos Franciscanos daquella cidade, os frades lançarão de noite o fogo ao edifício que ardeo todo; e por uma extraordinária circumstancia ou casualidade não morrerão ali todos os soldados cTaquelle valente e fi- delíssimo batalhão. Assim mesmo perderão as vidas três indivíduos, muitos ficarão mui- to mal tratados, e perderão-se muitas armas e petrechos de guerra pertencentes a aquel- les soldados. A extraordinária casualidade que os salvou foi o ter-se recolhido tarde para o convento , que lhe servia de quartel, o filho do general Sebastião Drago Cabrei- ra , o qual encontrando dous frades que vi- nhão sahindo para fora, e sabendo por elles que o convento estava ardendo, ao passo que toda a tropa dormia, os fez recolher para dentro, e foi dar immediatamente as providencias para que ali tudo não pereces-

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se, como pelos frades estava calculado que assim aconteceria. Cesta brutal atrocidade se fizerão pois criminosos homens que os- tentavão professar religião e charidade ; ho- mens, emfim , que, vivendo na ociosidade á custa do trabalho e suor da gente industrio- sa , quizerSo acabar merecidamente declara- dos assassinos !

O segundo facto , notabilissimo pelo seu ridículo, acompanhado de summa fra- queza , foi o seguinte. Tinha chegado ao Porto a noticia da brilhante victoria do dia 23 , que havia sido festejada com as maio- res demonstrações de alegria; e a cidade, depois dos nacionaes regosijos , apenas co- meçava a repousar-se, quando o governador militar d'ella , D. Thomaz de Mascarenhas, a foi lançar na maior confusão e terror. Fal- samente assustado por alguém que , talvez de propósito, quiz experimentar seu valor ou sua capacidade, sem mais deliberação se persuadio , que uma força inimiga estava passando o Douro em Avintes , e que em quanto o exercito vencedor dormia sobre o campo de batalha a cidade era invadida na sua retaguarda. N'estas circumstancias todo o militar prudente devia primeiro que tudo examinar a pessoa de quem recebera a noti-» cia, e, sem fazer alarido, mandar immedia- tamente verificar o facto por um ou mais of* ficiaes de confiança, e prudência. Não o fez porém assim o governador, porque dando

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sem mais reflexão , e possuido de susto , o caso por verdadeiro, pôz toda a cidade em confusão ; mandou bater a todas as por- tas dos habitantes que estavão dormindo tran- quilamente em suas casas; procurou logo sahir da cidade ; e mandou queimar depósi- tos de pólvora, e encravar a artilharia, di- zendo, que se hia fortificar na torre da Mar- ca, ou no velho castetlo de S. João da Foz ! Constou que um ofKcial mais prudente , o capitão Simão Infante de Lacerda , que de- pois teve o titulo de barão de Sabroso , fora espontaneamente examinar o que havia , e que tomando o caminho de Avintes sem na- da encontrar , voltara para a cidade com a certeza de que tudo tinha sido uma insigne patranha, e um falsíssimo boato.

Entre tanto porém que este boato ridí- culo se espalhava , a confusão foi tal , que grandes personagens , taes como o ministro da fazenda , o auditor geral do exercito , e o coronel Gama Lobo com outros mais offi- ciaes corriao espavoridos a salvar-se no vapor Berodino e outro navio Inglez. Casualmente dous soldados académicos que se achavão no cães de S.João daFozfôrão participar ao seu commandante, o major Luna, que no dia 24 encontrarão muitas cargas de bagagens e muitos militares e paizanos promptos a em- barcar; e isto fez com que os mesmos aca- démicos, debaixo de sua responsabilidade, impedissem o embarque de muita gente,

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que hia seguindo o exemplo dos que es- tavão no Berodino , e pertendião renovar a memorável scena do Belfast na infausta ma- nha do dia 3 de julho de 1823. Alludindo a esta miserável fugida , escreveo-se n'esse tempo em o n.° 2." de um pequeno folheto, intitulado o Perguntador : que parecia que aos olhos dos dignastas do governo era maior crime politicar que fugir. Esta allusao se re- feria ao comportamento que tinha havido com o coronel Rodrigo Pinto Pizarro por ter escrípto em Paris a Norma das Regências em Portugal, e em virtude do qual se lhe im- pôz immediatamente a pena de prisão, co- mo suave preliminar de justiça, e depois o de um processo e uma sentença, de que foi absolvido em Portugal.

Este facto, apesar de notável pelo ri- dículo que o acompanhou , teve comtudo gravíssimas consequências, pelas quaes me- recia ter sido avaliado com maior severidade do que aquella com que o foi. As consequên- cias fôrão o tornar-se impossível perseguir o i- nimigo em derrota depois da batalha do dia 23 ; porque sabendo-se o que se passava na cidade foi absolutamente necessário voltar logo a cila com as tropas que deviáo perse- guir os fugitivos. Isto não obstante , houve absolvição geral para todos os comprometti- dos n'este caso tão grave ; e apenas se insi- nuou ao governador militar D. Thomaz de Mascarenhas , que pedisse a sua dimissão ,

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o que elle immediatamente fez, e lh'a derão.

n'estes Annaes referi como em Lon- dres se creou uma commissão para adminis- trar os fundos do empréstimo de mr. Ar- doin , a qual tinha por presidente Manuel Gonçalves de Miranda. Os trabalhos , e in- telligencia d'essa commissão e de seu presi- dente podem avaliar-se pelo facto seguinte. No dia 2 de agosto, segundo o referio a gazeta Ingleza Times do dia 3 , se juntarão os membros da companhia dos barcos de va- por na sua assemblea annual , e expondo nella as despezas e lucros do anno, fallárão nomeadamente nas quantias por que tinhão sido fretados os vapores , que andavao no serviço da nossa expedição. Alludindo a es- ta conta ou exposição, disse então o Times, citado, vendo a exorbitância dos fretes com que três vapores havião sido fretados para o nosso serviço : . que se D. Pedro ba- tesse tão bem os seus inimigos como pagava a causa que defendia, não podia esta ser duvido* sa. Por este facto bem claramente se mos- trava , qual era a intelligencia com que se tratavão estes negócios , e qual era o zelo que n'elles mostrava a commissão, e o seu presidente.

Ainda não ha muito que fui obrigado a fallar em D. Francisco d'Almeida por cau- sa do duello que teve com o conde de Sal- danha , e ainda agora sou forçado a fallar novamente delle por outro caso relativo ao

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mesmo conde. Estarão lembrados os meus leitores de como os emigrados do deposito de Rennes se dirigirão a Saldanha para que requeresse para elles do governo Francez a passagem para Portugal ; e bem assim se lembrarão da reposta que teve aquelle re- querimento. Foi pois este acontecimento o que excitou de novo a sensibilidade de D. Francisco, e que o fez sahir a campo com o documento seguinte que , por sua origi- nalidade, merece conservar-se por inteiro. Eis-aqui a copia exacta como então se im- primio.

,, Ill.mo snr. Tenho tido conhecimen- to por um artigo publicado no Auxiliaire ,, Breton , e transmittido em alguns jor- naes d'esta capital , que os Portuguezes residentes na cidade de Rennes se havião dirigido ao srír. marechal de campo J. G. de Saldanha , pedindo-lhe fizesse as diligencias para obter do governo Fran- cez os meios de elles poderem reunir-se á expedição; e sendo eu a única pessoa devidamente authorisada em França por quem os Portuguezes fiéis a S. M. F. a Senhora D. Maria II. se devem dirigir ao governo Francez , cumpre-me exigir sem perda de tempo de v. s.a e dos mais Portuguezes residentes nessa cidade uma declaração se reconhecem ou não a Se- , nhora D. Maria II. , como Rainha de Portugal, bem como o governo proviso-

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rio, que, em nome da mesma Augusta Senhora, se acha estabelecido na porção 5, de território Portuguez, livre do ty- rannico jugo do usurpador. í Deus guar- de a v. s.a Paris, i.° de agosto de 1832. ,, s3 Ill.m0 snr. António Barreto Pinto Feio, commandante do deposito dos Portugue- zes em Rennes. s D. Francisco dAlmei- da.

Resposta. Ill.m0 e ex.m0 sfír., com- municando á grande maioria dos Portugue- zes emigrados aqui residentes o officio de v. exc.a do i.° do corrente em que sem perda de tempo se exige de mim e del- ,, Jes uma declaração que mostre se reconhe- cemos ou não a Senhora D. Maria II. co- mo Rainha de Portugal , bem como o governo provisório < estabelecido em no- me da mesma Senhora ; todos indignados considerarão como um insulto gravíssimo da parte de v. exc.a a pertenção de um tal acto , que sem mui justificados moti- vos se faria por tantos titulos odioso ; e não podem acreditar que , quando todo o mundo o sabe, e os reconhece victimas da mais briosa fidelidade a aquella Senho- ra, v. exc.a pareça esquecer-se de qua- tro annos de definhado exilio, prova im- mortal, e a mais valiosa de seus votos pela liberdade, e por aquella Senhora, com que todos se tem illustrado aos olhos da Europa. Pelo que me he relativo no

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mesmo citado officio direi a v. exc.a que ^, em objectos não de justiça, mas de puro ,, favor como esse que se pertendeo do go- ,, verno d'este paiz , tanto eu , como todos elles, nos julgamos em claro e evidente ,, direito de escolher os meios e vias que nos parecerão mais conducentes , e de melhor confiança para tocarmos o fim que levávamos em vista. E acerescentarei, que se v. exc.a tiver por bem insistir na exi- gencia de uma declaração por outra tal maneira enunciada, e em consequência de taes motivos , não serei eu , por certo , o que de novo a tenha de propor a ho- mens de tanto pundonor ébrio; pois que ,, não ousarei uma segunda vez expôr-me á sua tempestuosa indignação por um tal a- cto, que todos julgão da mais escândalo- sa ociosidade, -i Deus guarde a v. exc* w Rennes, 4 de agosto de 1832-. Ill.m0 e ex.mo sr. D. Francisco de Almeida, m An- tonio Barreto Pinto Feio, tenente-coro- nel commandante do deposito. Julgan- do interessante para a historia d'este tempo não mencionar as cousas, mas dar a co- nhecer o caracter politico dos homens que n'elle figurarão, parece-me que terei descul- pa pelo que acabo de escrever.

No dia 3 do presente mez de agosto participou se officialmente no café de Loyd's, da praça de Londres, o bloqueio do Tejo, e Setúbal pelo almirante S mor tus ^ dizen-

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dose expressamente que elle era feito por parte das forças navaes de S. M. F. a Rai- nha D. Maria. Tanto o governo Inglez co- mo o Francez sempre mui de propósito se abstiverao de fallar no governo de D. Pe- dro, que até esta épocha nunca reconhece- rão. No dia 6, quando menos se esperava, chegou do Porto a Londres o marquez de Palmella; e a sua vinda causou, particular- mente na praça , um grande terror pânico. Lembrou logo a sua fugida no Belfast do mesmo logar no anno 1828; e esta omino- sa recordação fez com que os nossos fundos públicos consideravelmente baixassem , por mais que se quizesse fazer acreditar ao pu- blico, que a sua vinda tinha motivos polí- ticos , e até arranjos financeiros , e que era temporária. Custou, por tanto, muito a desvanescer esta primeira idéa ; porque suppunhao que a nossa causa estava em mui- to máo estado, e que, em razão d'isto, o marquez se retirava. Depois da sua chegada appareceo também logo em Londres no dia 14 o conde de Villa-Real, que se disse ter sido convidado por seu cunhado Palmella >ou para se aconselhar com elle , ou para o le- var na sua conserva para o Porto, se os ne- gócios o permittissem.

Na sessão do dia 1$ d'este mez na ca- mará dos pares de Inglaterra teve ainda oc- casião o duque de Wellinghton de manifes- tar as suas affeiçóes por D. Miguel , exi-

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gindo do governo que terminasse quanto an- tes as questões de Portugal ; e dando bem declaradas demonstrações do quanto se inte- ressava pelo seu protegido. Disse , que as tropas constitucionaes apenas tinháo por si a cidade do Porto , e que ninguém a ellas se tinha juntado, prova evidente de que to- do o reino estava contente com o usurpador, e de que elle inquestionavelmente tinha o affecto e amor dos povos. Assim, com es- te e outros argumentos, he que defendeo a causa da usurpação ; e ao mesmo tempo fez uma das suas revelações que foi assaz impor- tante para a historia do tempo, e da nossa pá- tria, e que nos dêo uma nova prova de quanto devemos estar agradecidos a esse ho- mem , a quem nossas valorosas tropas derão um nome militar, e temos estado gratifican- do com o dinheiro que annualmente a nação lhe continua a pagar. A revelação foi a se- guinte. — ,, Que a sua tenção fora sempre a de reconhecer D. Miguel ; e que o te- ria feito com a condição de elle publicar um acto de amnistia ou de graça em fa- vor dos que se achavão implicados nos precedentes governos que tinha havido em Portugal. D'isto porém felizmente escapámos pela mudança do ministério Bri- tânico em consequência da revolução politi- ca de Paris. A conclusão do seu discurso foi, emfim, que se devia reconhecer D. Miguel, pois que a expedição commandada por D.

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Pedro era composta de aventureiros, es- trangeiros, e elle apenas era senhor do terreno que pisava , não tendo achado nin- guém que se lhe viesse juntar ao seu parti- do. No dia seguinte 16 se prorogou o par- lamento, um dos mais notáveis na historia Ingleza, pois que elle he que sanccionou a sua própria reforma, e publicamente decla- rou ao mundo que a sua actual organisação era monstruosa, illegal , e por conseguinte incapaz de representar a nação.

No dia 23 a gazeta Ingleza Times nos fez outra mui notável revelação , e por ella emfim confessou por desconto , como se diz, de seus peccados, que todos os nossos males e desgraças tinhao vindo da politica Ingle- za ; a qual constantemente tinha dirigido os nossos negócios, e havia sido o arbitro de nossos destinos. Mostrou , em uma palavra , que toda a usurpação tinha sido tramada, au- xiliada, e perpetrada á sombra , por assim di- zer , da bandeira Britânica ; pois que , para não citar outros exemplos , bastava ver a fi- gura que em toda esta scena tinha represen- tado em Lisboa sir William A Court , o qual, em todo o tempo da sua missão, ha- via sido o verdadeiro, e o único governo Portuguez , bem que externamente houvesse outro que tivesse aquelle nome. E a conclu- são que de todo este arrazoado tirou foi , que o governo Inglez devia immediatamen- te reconhecer o governo da Rainha D. Ma*

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ria II. , e tomar um partido decisivo contra o usurpador D. Miguel.

Ainda dentro deste mez houve um a- contecimento, que, por mui importante na sua origem e no seu máo resultado, não pos- so deixar de mencionar. No dia 15 foi o ge- neral conde de Saldanha procurar a impera- triz, esposa de D. Pedro, e lhe participou que , sendo notória e por todos conhecida no Porto a falta de um general , e de algu- ma tropa de cavallaria , muitos dos seus a- migos estavão promptos a pôr um corpo de exercito á disposição de seu marido ; e que um delles, mr. Herertmtld , e o principal de todos, desejava ser apresentado a sua magestade. Accrescentou-lhe , que este in- dividuo era um homem intimamente ligado com o duque de Orleans, e com o marechal Soult ; e que a seu respeito se podia infor- mar com o duque, para conhecer qual era o seu caracter. A imperatriz respondeo que não tinha instrucções , nem authoridade al- guma; mas, agradecendo-lhe o interesse que tomava pela- causa da Rainha, o aconselhou que fosse fallar com D. Francisco d'Almei- da. Assim o fez o conde , apesar das mui serias difíerenças que entre elles havia pou- co tempo tinha havido, e das quaes fal- lei nestes Annaes ; e no dia 16 foi ter com elle, que lhe pedio aquella proposta por es- cripto, afim de a remetter ao marquez de Palmella que então se achava em Londres.

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A proposta lhe foi entregue no dia i3 , e se reduzia ella aos termos seguintes : . Pro- mettia-se fazer sahir para o Porto dentro de trinta dias depois da assignatura do contrato dez mil homens , dos quaes mil e seiscentos erão de cavallaria , e todos soldados velhos, com dous parques de artilharia. Para este fim os mesmos emprendedores faziao um em- préstimo de cincoenta milhões de francos ao preço de 50, e muito mais barato do que o de Ardouin que havia sido a 48 ; pro- mettendo dar logo delle 20 por cento, quan- do do outro se pagarão 8 , e mais 5* de- pois da entrada no Porto , o que fazia 1 3 por cento. A garantia , que para este em- préstimo se pedia, era a exploração das mi- nas em Portugal , obrigando-se a pagar do producto liquido d'ellas 10 por cento ao go- verno. Exigia-se afinal , que o conde de Saldanha fosse o commandante daquellas tro- pas. Mas no que dizia respeito a esta con- dição disse o conde a D. Francisco que, não obstante estar persuadido de que uma tal força estrangeira devia de ter a garantia de ser commandada por um Portuguez , lem- brando-se ao mesmo tempo que a sua nomea- ção podia pôr obstáculos a um tão importan- te negocio de que talvez dependesse a sal- vação da liberdade e da pátria , elle o au- thorisava a declarar em seu nome a quem conviesse, que ainda desta vez estava prom- pto a fazer um novo sacrifício ; e que por

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tanto não desistia do commando, mas que ate faria com os seus amigos que desistissem daquella condição. D. Francisco prometteo de enviar logo a proposta aomarquez, assim como a determinação em que estava o con- de de desistir do commando. Ella foi envia- da no dia 18, e no dia 30 avisou D. Fran- cisco que o marquez o tinha authorisado a entrar em negociação , hindo primeiramente receber as ordens da imperatriz, e sujeitar depois tudo á approvação dos dous plenipo- tenciários em Londres, o conde de Funchal, e Abreo e Lima. Apesar de todo este appa- rato de negociação , não teve ella nenhum resultado ; e as causas principaes parecem ter sido primeiramente: o haver a proposta sido apresentada por Saldanha, a quem des- preziveis ciúmes querião tirar toda a consi- deração ; e em segundo logar, essa obediên- cia sempre cega e fatal , que se quiz conti- nuar a render aos Inglezes, que não podião ver com bons olhos que devêssemos á França a nossa liberdade, assim como lhes devíamos a hospitalidade que elles nos tinhão negado. Bem o quiz a Fiança , e bem o dêo a co- nhecer a D. Pedro , e a seus conselheiros ; mas elle e elles antes quizerão, podendo-nos libertar do vergonhoso jugo Britânico, que ficássemos ainda na mesma sujeição, suffoca- dos por Inglaterra como Laoconte suffocado pelas serpentes.

No dia 13 de setembro sahio finalmen-

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te de Londres para o Porto o marquez de Palmella , fazendo mentirosas as profecias dos que asseveravão que nunca para mais voltaria. A sua chegada a Londres tinha em verdade produzido muito máo eíFeito nos fundos do empréstimo e na opinião publica que os sustentava , porque esta , e elles im- mediatamente soffrêrao uma grande depres- são ; todavia , para fallar a verdade , e para ser justo , como sempre desejo , devo con- fessar que a sua estada em Londres foi pro- veitosa, se compararmos o que elle n'aquel- les poucos dias ali fez com o que até então tinhão feito os agentes incumbidos de man- dar para o Porto o que era necessário tanto para a defeza como para o ataque. O que n'esse tempo se disse ácêrca da sua missão foi, que elle vinha ver ou se o governo In- glez tomava alguma parte mais decisiva em nossos negócios , ou se podia haver mais a- bundantes soccorros para o bom êxito da expedição. Quanto ao primeiro objecto pou- co ou nada conseguio; mas quanto ao se- gundo , entre outras cousas que não chega- rão ao meu conhecimento, pôde terminar a seguinte negociação, que para aquelle mo- mento foi um grande recurso. Teve ao prin- cipio por impossivel conseguir alguma cou- sa, e a razão era o descrédito em que se a- chava o governo do Porto; comtudo, sem- pre afinal alguma cousa conseguio. Era o seu projecto alevantar 250 cavallos ; a maior som-

ma de tropa estrangeira possivel ; e um va- so de guerra que podesse luctar com a náo de 74 que a D. Miguel restava. Orçou-se que sem 24 mil libras efFectivas nada com fructo se podia aventurar. A. commissao, en- tão existente em Londres, encarregada do apercebimento necessário á expedição , ha- via já consumido toda a entrada dos primei- ros pagamentos do empréstimo , contrahido para esse fim, e sendo os emprestadores ho- mens de poucas forças , estavão esgotados todos os recursos (q). Entre tanto vio-se que a credito se poderia fazer alguma cousa, u- ma vez que se alcançasse um terço d aquella quantia em efFectivo , e logo ; isto he , oito mil libras. José Ferreira Borges prestou-se a procurar cinco mil libras ; e Henrique José

(1/) Nada houve mais curioso do que a creaçâo e existên- cia d'esta commissao. Ardoin e Ricardo fizerâo um emprés- timo ao governo da Rainha, e foi estipulado que parte d'- elle seria para empregar logo na expedição, porém por mãos de agentes d°elles emprestadores; e n'eita conformidade se nomeou logo Mendizabal. Para as cousas do mar foi esco- lhido Sortonus ; e por decência, como o tomador do em- préstimo era o governo Portuguez, chamou»se também Ma- nuel Gonçalves de Miranda para a tal commissao , o qual tomou o titulo de presidente d'ella. Então Sartorius foi ps« ra o seu destino , e ninguém mais o substituio ; e desde então ficou um presidente e um presidido : eis»aqui a com* missão inteira. E que succedeo ? foi que Mcndizabal fazia tudo : comprava elle só, e Miranda assignava as contas. As- sim este nem sabia , nem podia saber onde as cousís se vendião ; náo conhecia um corretor; não sabia quaes e- lão 01 preços correntes ; e não entendia , nem conheci* , nem via os vendedores , e emprezarios. Assim existia esta commissao nominal, e assim se dispunha dos fundos do em- piestimo.

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da Silva prometteo três mil (r). Ferreira Borges entregou effectivamente aquella quan- tia no dia 10 deste mez de setembro á com- missão , lembrando , e effeituando-se a se- guinte transacção. Sacar o marquez de Pal- mella por esta somma sobre a commissão da companhia dos vinhos do Porto ; esta remet- ter ao negociador das letras 5*00 pipas de vinho em caução e pagamento da somma des- embolçada ; a commissão , para pagar os saques , resacar sobre o credor hypotheca- rio ; este vender por conta da companhia ; e acceitando e pagando o resaque habilitar assim o governo a ter por este plano dez mil libras. Assim se fez, e assim se aprom- ptárao cem mil cruzados para o governo do Porto, e se habilitou a commissão expedi- cionária para comprar um navio, e cavallos, e apromptar os homens necessários para el- les. O nome do dador da somma de cinco mil libras foi João de Oliveira (j), que então, por circumstancias , não podia ostensivamen- te apparecer.

No fim deste mez chegou a Londres, vindo do Porto o brigadeiro João Freire Sa- lazar com a missão de fazer apressar todos os reforços que em Inglaterra se estavão pre-

(r) Com a fugida dos deputados da companhia para fo- ra do Porto creou-se ali uma commissão para fazer as suas veies; e os seus novos agentes em Londres fôrâo José Fer- reira Borges , e Henrique José da Silva.

ÇO Hoje Barão do Tojal.

0$ 243 §+

parando para adiantar as operações do nosso exercito libertador. Havia muitas annos que este oiKcial estava fóra do serviço Portuguez, e gosava em França das honras militares co- rno coronel reformado; mas, apesar disso, nunca tinha deixado de ser bom Portuguez, de defender os principios liberaes, e de ter em todo o tempo concorrido para os manter e segurar. Havia sido escolhido para alistar e organisar alguns batalhões de soldados Francezes, o que com efFeito fez e os levou para a ilha de S. Miguel. Seguio dali a ex- pedição até o Porto, onde nunca deixou de servir como oíficial general addido ao esta- do maior do exercito. De Londres partio para França a dar cumprimento a todas as commissões de que vinha encarregado. (/). Todas as operações militares do exerci- to libertador desde o seu desembarque no Porto até o fim do corrente mez se limita- rão a uma vigorosa defensiva, porque a obs- tinada resistência dos rebeldes mostrou que sem maiores forças não se podia tomar a of- fensiva contra elles. Depois de diversos e repetidos ataques, em que sempre fôrão vi- gorosamente repellidos (y) , o mais geral

Cj) Sérvio nos exércitos de Napoleão até á sua ultima campanha que acabou com a desgraçada batalha de Water- loo , em que foi ferido, commandando uma brigada de ca* vallaria.

(u) Em um d'esses primeiros ataques, no dia IO d<? se- tembro , que os rebeldes fizerão contra a Swrra do Pilar, ficou ferido um distineto voluntário Francez, mr. Cdcstine

Q. 2

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e formidável que fizerão foi no dia 29 d'es- te mez, por ser o dia do santo do nome do usurpador ; porém nelle com o mesmo vigor e valentia fôrão repellidos; e entáo mostra- rão os nossos invencíveis quanto mais valia o enthusiasmo da liberdade do que os furo- res insensatos de um despotismo bárbaro. Para nunca me desviar do caminho da verda- de e da justiça direi agora com toda a im- parcialidade, que todas as noticias recebidas em Inglaterra, vindas do Porto, fôrão sem- pre concordes em declarar que D. Pedro em toda esta grande crise havia desenvolvido um caracter digno de todos os elogios. Sempre incançavel, havia sido sempre o primeiro em animar com a sua presença os valorosos que tão heroicamente se batião pela liberdade e pela Rainha sua filha. Examinando diariamen- te todas as fortificações , e assistindo a to- dos os combates , a sua presença e pessoal valor havião sido um grande e poderoso es- timulo de constância e de bravura para todos os que o rodeavão, ou erão testimunhas de sua actividade e até da rara intrepidez com que affrontava os maiores perigos. Constou finalmente, que foi preciso requerer-lhe com repetidas instancias que se não expozesse tanto ás casualidades da guerra , pois que a

l/lalo^ um dos dous generosos irmãos, que de Dunquerque linháo vindo com duas embarcações suas , e á sua cuita , servir a causa da liberdade. Neste serviço andavío des- de janeiro deste anno.

«0$ 245 £#••

sua pessoa começava a ser um dos instrumen- tos da victoria. Isto, por tanto, mui gosto- samente aqui menciono para que meus lei- tores saibão que se até aqui tenho sido ver- dadeiro em referir muitos dos seus erros e defeitos , não menos o quero ser em referir as suas boas acções.

Pelos fins d'este mez me chegou ás mãos um papel importantíssimo , publicado no Rio de Janeiro , com o titulo seguinte. Segunda parte do exame das contas da caixa de Londres até o dia ic de maio de 1831 em que foi extincta. E diversas outras contas e trabalhos relativos d mesma caixa , apresenta- dos pela commissão encarregada do referido exa- me. Rio de Janeiro , 1832. Fôrão membros d'esta commissão Marianno Pinto Lobato , Joaquim Teixeira de Macedo , e António José da Silva. Por estas contas constava que o visconde de Itabayana entregara , sem or- dem do governo imperial, ao marquez de Palmella no espaço de seis mezes, as quan- tias seguintes , a saber :

Em jo de junho de 1828 . . libras sterlinas 4$oi$ Em jo de setembro dito . . Ditas 45^197,1,11

Em 2) de outubro dito, em

Apólices Portuguezes , a

quantia de 25 $000 libras ,

que produzirão Ditas ij$j8o

Em 31 de dezembro dito . . Ditas 65^557,14,10

total. ......... Ditas 1 $0^149, 16, 9

^ 24G te»

Recebeo mais D. Thomaz de Mascarenhas , quando vol- tou do Rio libras sterlinas So$ooo

Que juntas ás 1 jo<^ 1 49, 1 <S,9 ,

fazem a jomnia de ... . Ditas 210^149,16,9

Todo este dinheiro foi despendido em nome da emigração pelos dous principaes a- gentes , Palmella, e Mascarenhas; porém se despenderão ainda outras mui avultadas sommas com as viagens da Rainha ; com os homens a quem D. Pedro incumbio os seus negócios e os d'elia ; com os navios que pa- ra este caso e outros empregou o governo do Brazil ; e emfíiri com os enormes ordena- dos que se derão a Brasileiros empregados nas diversas missões de que fôrão incumbi- dos ; das quaes , senão todas, a maior parte foi em nosso prejuizo. A conta corrente da nossa divida com o Brazil por tudo o que deixo mencionado acha-se lançada no mesmo relatório, de que tenho feito estes extractos, e vinha ella a ser n'aquella épocha a se- guinte. A despeza total que o governo do Brazil declarou ter feito comnosco , era li- bras 804^5- 65:, 17,9. Deduzindo porém d'esta quantia libras 600^)000 , importância da in- demnisaçao estipulada no artigo 2 da con- venção addicional ao tratado de 29 de agos- to de 1825* pelo valor das propriedades par- ticulares de D. João 6.°, que elle deixou no Rio de Janeiro , declarou o Brazil ser en- tão o nosso debito para com elle libras

247 &••

2°4á)5'^5')I7>9' Da total indemnisação , es- tipulada a el-rei, que foi de óoo^ooo libras, elle em sua vida tinha recebido á conta ifo^ooo libras , e por isso restavão para pagar 35'o(J)00o ditas , que o Brazil lançou em nosso credito. O governo Brazi- leiro, além d*esta somma particular que se obrigou a pagar a el-rei, obrigou-se também a outra divida com a nação Portugueza, que foi tomar a seu cargo o pagamento do em- préstimo que o governo absoluto , dissipa- dor , tinha contrahido no anno de 1823 ou 24, e empréstimo que logo se dissipou e des- appareceo , e foi de 1:400,000 libras ster- linas. Por conta delle pagou em Londres o mesmo governo do Brazil até o fim do anno de 1827 a quantia de < 209,874,4,6 libras, e ficarão então em circulação na mes- ma data— 1 i:3oO(j)ooo libras em apólices do dito empréstimo. N'esse mesmo tempo po- rém cessou o Brazil de fazer os seus paga- mentos para este fim em razão das questões politicas , que se excitarão com a usurpação de D. Miguel ; c por isso ficou ainda res- ponsável a Portugal d'aquella ultima quantia que circulava em apólices do dito emprésti- mo. Porque não quizesse misturar esta divi- da publica com a outra particular, que de- via a D. João 6." , foi a razão por que nos constituio devedores das < 204^6?, 17,9, li- bras que acima deixei especificadas.

Mas não foi esta a quantia que o

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governo do Brazil nos pagou no tempo usurpação : foi ella ainda , deduzindo da conta geral 804^5 6$, 17,9 libras a somma das 25-0,000 , que recebeo D. João 6.° , a quantia total de libras 5 £4<8$6^J 7,9 (#). Além destas enormíssimas despezas, a que nos obrigou a usurpação, foi preciso ainda, como tenho em outras partes mencionado, recorrer não a muitos empréstimos parti*» culares , porém aos de Maberly, e Ardoin, dos quaes dei noticia em seus logares com- petentes. Em relação a este assumpto direi ainda agora o que por outras vezes tenho dito, para que fique eternamente gravado no coração e cabeças dos Portuguezes ; e vem a ser: que no meio de todas as difficuldades em que se vio a emigração; difficuldades, em que se achou não a administração que dirigia os nossos negócios, porém se acha- rão os mesmos indivíduos, por tanto tempo expostos" a todos os horrores da miséria e mendicidade; e difficuldades, emfim , que todos os governos virão onde os emigrados fôrão buscar hospitalidade e asylo ; entre to- dos estes somente o Inglez foi quem presen- ciou com imperturbável egoismo as nossas desgraças. Nem esse governo, que sempre nos chamou seus mais amigos e constantes alliados, nem a mesma nação se lembrarão

(oc) Para os que não estão familiarisados cotn ai contas Inglezas digo, que as duas ultimas casas da direita são pa- ra os shillings e pences , além das libras, como-* 17,9.

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uma vez de levantar a voz em nosso soe- corro, fazendo uma publica e geral subscri- pçao para alliviar nossa fome, e cubrir nossa nudez. Hespanhoes, Italianos, Gregos, Po- lacos, e os antigos emigrados Francezes, apesar de pertencerem a uma nação rival , todos, todos acharão sympathia em Inglater- ra ; e nós , como alliados e amigos , não lhe merecemos um acto de publica com- paixão ! Que grande e instruetiva lição para o futuro sepsPortuguezes a quizerem tomar! Não podemos, comtudo, dizer o mesmo nem dos Francezes nem dos Belgas, em cujo ter- ritório encontrarão todos os emigrados que residirão não uma cordial hospitalida- de, porém uma beneficência, verdadeiramen- te extraordinária , tanto nos respectivos go- vernos como em seus generosos e honrados habitantes. Haja , por tanto, da nossa parte gratidão eterna para os Francezes e os Bel- gas, e consideração nenhuma para os Bre- tóes egoístas , que, por querermos ser li' vres , nos tratarão não digo com a maior indifferença , porém com a maior ingrati- dão.

Principiou o mez de outubro d'este an- no sem occorrencia alguma de grande noto- riedade quer militar quer politica ; e o que mais particularmente tenho para notar he o mencionar novamente um nome , por outras vezes repetido, e a quem os nos- sos negócios deverão sempre o auxilio mais

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decisivo e efficaz. He este o nome de mr. Pratt , sogro de Henrique José da Silva , a quem igualmente por muitas vezes te- nho nomeado em razão de seus relevantes serviços. No estado estacionário em que se achavão as nossas operações militares no Por- to, forçados a nos conservarmos na defensi- va sem ser possivel tomar a oíFensiva , a menos que não se podessem obter considerá- veis reforços tanto de infantaria como de cavallaria ; era de absoluta necessidade dar immediatas providencias para se poderem ha- ver estes reforços. antes disse como para estas urgências se tinhão podido obter H^ooo libras, das quaes José Ferreira Borges agen- ciou 5(J)Ooo , e Henrique José da Silva 3(J>ooo ; mas isto não era sufficiente, e n- este apuro foi ainda mr. Pratt que nos veio soccorrer com io^ooo libras sem mais con- dições do que o juro da lei. Creio que es- te empréstimo se realisou no dia 4 d'este mez ; e assim ficámos habilitados para dar maior extensão ás remessas de que tanto se precisava no Porto. Estas se flzerão constan- temente durante este mez , consistindo em homens , cavallos , munições , e em uma grande fragata para augmentar as forças ma- rítimas commandadas por Sartorius. No meio porém de tudo isto acontecia um facto alta- mente reprehensivel que foi , que em quan- to se alistavão estrangeiros tanto em Ingla- terra como em França não se derão providen-

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cias algumas para transportar para o Porto muitos emigrados que se achavão em ambos os paizes, e anhelavão para se hirem juntar com seus compatriotas , e morrerem ao delles, para restaurarem a sua pátria e a li- berdade. Este facto foi escandalosíssimo, c immoral, porque se fazia ver ao mundo que um Portuguez não valia tanto na presença dos inimigos como um Inglez ou um Fran- cez assalariados, quando a experiência dia- riamente mostrava o valor heróico com que todos pelejavão, e intrepidamente morriao. Havia ainda mais outra circumstancia muito attendivel que era , o terem-se perdido muitos officiaes , uns por morte , outros por graves feridas, e haver ainda entre os emi- grados ausentes uma porção mui considerá- vel delles. Este facto a muita gente parecia inexplicável ; porém os que olhavão para a politica, e egoísmo dos que então dirigião os nossos negócios, com facilidade conhe- cião , quaes erão os motivos que os deter- minavão. Nãoquerião empregar homens que, por deverem a sua subsistência em França ao credito e influencia do general Saldanha, lhe erão particularmente affeiçoados ; e como se pertendia a todo o custo suíFocar a vida mi- litar e politica do protector, era por conse- quência necessário suffocar também os servi- ços dos protegidos. Accrescia a isto , que os chamados Salàanhistas erão os únicos que do coração, por palavras, e obras defendião

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a liberdade, e a Rainha ; e esta circumstan- cia era crime imperdoável para os que não querião rei mulher , e pertendião fazer de D. Pedro um instrumento a seu geito, para melhor se utilisarem de suas graças , como depois se utilisárão. Náo lhes fazia, por tan- to, conta o chamar tal gente, porque co- nhecião o caracter e sentimentos de muitos que, bem contra vontade d'elles governan- tes, já se achavão no Porto, e nas fileiras da liberdade ; e n'este caso lhes preferião os mercenários estrangeiros.

Havia ainda outra mui poderosa razão para este proceder, segundo se dizia, e e- ra : que occultamente se procurava concluir a nossa causa por convenções diplomáticas, e tenebrosos protocolos , taes como os que ha- vião trazido D. Miguel a Portugal ; e como os que então entravão neste segredo fazião parte dos conselheiros de D. Pedro, não era para admirar que tanto se trabalhasse pa- ra que em torno delle estivesse o menor numero de homens que passavão por verda- deiros , e incorruptos liberaes. Sim , a opi- nião geral do tempo era, que antes querião perder ou expôr-se a perder a causa da li- berdade , e a legitimidade do throno na pessoa da Rainha D. Maria II. do que ser- virem-se de homens , que erao conhecida- mente oppostos á sua politica. Os indiví- duos, que nesta épocha ostensivamente a- conselhavão D. Pedro, com o titulo de se-

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cretarios d'estado , erão o marquez de Pal- mella, Agostinho José Freire, Mousinho da Silveira, e Mousinho d'Albuquerque ; como inspirador ou conselheiro occulto, Cândido José Xavier.

Ou fosse ou não verdade que esta era a politica dos actuaes conselheiros de D. Pedro , o que os factos mostrarão foi , que elles não tinhão a capacidade sufficiente pa- ra dirigirem as operações militares , e bem assim o general conde de Villa-Flôr, que commandava debaixo das ordens de D. Pe- dro. Ao conde chamavão então o general Sonto-Redondo , em allusão á desgraçada sur- preza que lhe fez o inimigo naquelle logar, onde toda a nossa divisão esteve para ali fi- car completamente anniquilada, a não ser a presença de espirito, e valor de alguns officiaes subalternos , e entre elles com es- pecialidade do tenente-coronel Pacheco. A opinião dos homens instruidos d'esse tempo era , que se no Porto tivesse estado um ge- neral, ainda medianamente hábil, os rebel- des com toda a probabilidade terião sido completamente esmagados nos diversos ata- ques que até ali tinhão feito, e nos quaes sempre havião sido com grande perda repel- lidos. Mas a politica de D. Pedro, e de seus conselheiros era toda exclusiva ; querião tudo para elles; e tudo por elles esteve a ponto de perder-se.

Os feitos militares d'este mez, prati-

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cados pelas nossas tropas contra os rebeldes, fôrão os grandes combates que contra a Ser- ra ellas repellírão com extraordinária intre- pidez e constância. Também houve um com- bate naval entre Sartorius e a esquadra de D. Miguel , em que esta , pela segunda vez, foi obrigada a entrar no Tejo muito desbaratada. No emtanto se tratava constan- temente em Londres de novos recrutamen- tos, para um dos quaes muito concorreo Jo- sé Ferreira Borges , fazendo com que para elle, que foi dirigido por Carlos Cochrane , adiantasse Manuel Joaquim Soares a somma de duas mil libras sterlinas , destinadas pa- ra fretar um vapor que conduzio esta gente. Apesar d'isto foi este notável serviço muito mal recebido pelos governantes do Porto, que, associados com a commissão de Lon- dres, isto he , com Mendizabal , tudo fize- rão para que este esforço a bem da nossa causa quasi de todo se inutilisasse. Esta com- missão de Londres desacreditava e paralisa- va tudo o que não era directamente feito por ella ; e a razão era obvia , porque não se queria privar dos interesses pecuniários , que as suas negociações lhe daváo ; e por isto quanto se não fazia por sua direcção era mal visto, desacreditado, e quasi sempre perdido em seus resultados.

N'este mesmo mez sahio de Lisboa D. Miguel com as infantas suas irmãs, o- brigado a dar este passo pelos seus conse-

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lheiros para verem se com a sua presença influía maior valor nas suas tropas , que até ali havião sido infelizes em todas as tentati- vas que fizerão. Mas de nada valeo para com ellas esta appariçao, verdadeiramente thea- tral , porque elle foi meter-se na cidade le- vilica de Braga , donde raras vezes sahio ; e nunca fez operação alguma extraordinária, que se julgasse filha da sua presença : em uma palavra , as sus tropas , com a vista d- elle , não adquirirão nem mais brio, nem mais resolução. Tendo feito sahir para as immediaçóes do Porto, tanto do lado do norte como do sul , as tropas disponiveis que tinha, particularmente na capital, dei- xou n'esta uma nova milícia com que se per- suadio podia mui bem segurá-la não du- rante a sua ausência , mas no futuro. Foi esta nova milícia uma aggregação de Jesuí- tas, aos quaes instalou no collegio dos nobres j e nelle dêo aos alumnos , que ali se educa- vão , ou de fora hião ouvir as lições , estes mestres , a quem seus avós tinhão banido do paiz como inimigos , e assassinos de um rei Portuguez. Havendo-os porém nomea- do para educadores da mocidade no collegio das artes de Coimbra, era consequência ne- cessária que também lhes desse o mesmo emprego em Lisboa, e perto da sua pessoa ; pois que a elles , e com razão, considerava como um dos mais efficazes instrumentos da sua usurpação. E pois que o seu governo e-

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ra eminentemente bárbaro e atroz, além de illegal, somente se podia elle conservar pe- la superstição e pela mentira , fundadas na ignorância , única base em que o despotis- mo se pode temporariamente manter.

Neste mesmo mez morreo na prisão uma das monstruosidades politicas do meu tempo, que foi Manuel Martins Pamplona, a quem D. João VI. dêo o titulo de conde de Subserra. Morreo em ferros , e lançados por esse mesmo usurpador D. Miguel , a quem elle tinha ora bem ora mal servido, e ultimamente ainda queria servir. Teve um fim digno da sua vida; porque morreo pu- nido pelo homem que o quizera assassi- nar no anno de 1824, e a quem depois se veio ofFerecer para o auxiliar em sua usurpa- ção. Grande lição para os homens sem cara- cter , para os ambiciosos sem virtude, e pa- ra os hypocritas políticos ! O sejano de D. João VI. teve quasi a sorte do sejano de Ti- bério (j).

Chegou o mez de novembro d este an- no ; e emfim a necessidade e a opinião pu- blica, sempre superiores a todos os cálculos das facções, obrigarão D. Pedro a fazer um acto de summa importância , com que des- truio uma grande parte das suas anteriores combinações. Consistio este acto memorável

(«/) De acordo com o seu collega, marquei de Palmei la, constou que insinuara em certo tempo a D. João VI. que abdicasse !

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na sua portaria de 3 deste mez, pela qual mandou chamar para o Porto todos os offi- ciaes emigrados que ainda se achavão espa- lhados pela Europa, e que uma desgraça- da politica podia ter impedido de regressar a essa parte da sua pátria , que então estava heroicamente Iuctando contra todos os furo- res da usurpação. Mas esta notável resolução foi forçada, porque foi a consequência do grito geral do exercito libertador, unido ás vozes unanimes do povo. n'estes Annaes tenho por vezes exposto qual era o ódio que D. Pedro e a sua camarilha tinhão sempre manifestado contra o general Saldanha, e todos os seus amigos a quem queriáo dene- grir com o epitheto de Saldanhistas. Para o substituir na opinião publica tinhão-se pro- curado exaltar os talentos militares e a for- tuna do conde de Villa-Fiôr, mas este pres- tigio já de todos se tinha desvanecido de- pois da desgraça de Souto-Redondo. Assim, depois daquella jornada fatal , o conde ti- nha cahido em um descrédito geral , e alta- mente se gritava contra elle , e a este grito se juntavão depois os applausos e os vivas ao general Saldanha, Stubbs, e outros, que de propósito se tinhão deixado em França como desterrados, para não virem fazer som- bra com sua presença e serviços ás muitas ambições , que não querião competência. Todas estas cousas forçarão, emfim, o con- de de Villa-Flòr a pedir a sua dimissão que

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lhe foi concedida ; e para lha tornarem me- nos desagradável a enfeitou D. Pedro, dan- do-lhe a patente de tenente-general, com o titulo de duque da Terceira , e com uma da- diva" de cem contos de réis em bens nacio- naes, que todavia ficava dependente da sanc- ção das cortes futuras.

A portaria de 3 d'este mez , que aci- ma referi , tendo produzido uma universal alegria , foi quasi logo manchada com um novo acto de mesquinho despotismo , mas que assim mesmo consternou os homens de todos os partidos, á excepção daquelles que para elle tinhão concorrido ou como compli- ces , ou como assalariados panegyristas. Ti- nha sido a tal portaria ampla , geral, e sem excepções ; mas como se queria a todo o cus- to desconceituar um homem , ou antes dar- lhe , sem n'isto advertirem , uma notável celebridade, fizerão alguns dias depois la- vrar outra portaria com a data da primeira , pela qual excluirão do convite geral o coro- nel Rodrigo Pinto Pizarro. Era este o mes- mo individuo contra quem no principio d'este anno se havia fulminado outra porta- ria para o impedir de se passar á ilha Ter- ceira 'y de sorte que o principio e fim do an- no fôiao marcados por dous actos iguaes de absolutismo contra aquelle official. Como publicasse o primeiro documento, necessá- rio he que também publique este segundo; porque ta es documentos formão épocha na

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historia dos governos, e caracterisao os ins- trumentos de taes atrocidades politicas. Foi a portaria de que fallo do theor seguinte:

Ministério da guerra , 2.a reparti- ção. r— Manda o duque de Bragança , re- gente em nome da Rainha, declarar ao ,, coronel de cavallaria Rodrigo Pinto Pi- zarro, que, não obstante por portaria d'- esta data terem sido mandados regressar a Portugal todos os militares Portugue- zes , existentes em paizes estrangeiros , fica elle inhibido de voltar a este reino , em quanto em todo elle se não achar res- tabelecida a authoridade legitima de S. M. F. a Senhora D. Maria II. Paço no Porto, em 3 de novembro de 1832. -j -4 Agostinho José Freire.

Assim , para estes dous actos idênti- cos de um escandaloso despotismo , prati- cados contra o mesmo individuo, um d'el- les em 6 de janeiro , e outro em 3 de no- vembro, ambos no mesmo anno, se associa- rão Cândido José Xavier , e Agostinho Jo- sé Freire, nomes, que devem ser históricos ; porque, calcando aos pés todas as leis consti- tucionaes , commettêrão um d'esses delictos contra a liberdade pessoal de um cidadão, delicio, que jamais se pode esquecer, e menos perdoar em um governo legal. Lan- ço , por tanto , com gosto estes nomes nos meus Annaes para que cheguem a noticia de todos, e todos os avaliem como merecem»

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assim como aquelle, cujas ordens servilmen- te executarão. E tanto mais julgo isto ne- cessário porque ao primeiro tirou da forca a regeneração de 24 d'agosto de 1820; e ao segundo tirou da nullidade, e até de uma reputação equivoca, esse mesmo 24 de agos- to , tempo em que alardeou grandes virtu- des constitucionaes, que depois trocou por esperanças e realidades de miseráveis ambi- ções (z). Ao coronel Pizarro nenhum mal produzio esta injustiça, e antes lhegrangeou mais nomeada ; e até fez com que a seu la- do visse por amigos a muitos que antes erão senão inimigos declarados, ao menos seus emulos , e de nenhuma forma seus aífeiçoa- dos. E era isto natural , pois que quando a um cidadão se faz uma grande injustiça to- dos os homens honrados, quaesquer que se- jão as suas opiniões politicas , tomão o seu partido na lembrança de que aquelle absolu- tismo ou aquella tyrannia , que um dia se commette contra um individuo, pode igual* mente no dia seguinte repetir-se contra ou- tro: assim quando o perigo he commum to- dos se interessão em repelli-lo.

No fim d'este mez chegátão a Londres o marquez de Palmella, e Mousinho de Al- buquerque , ambos secretários d'estado de

(s) Acabou este homem a sua vida ambiciosa , assassina- do no anno de 1857, hindo para Belero a uoir-se á corte, que ali estava quando se quiz suffocar a revolução politica de setembro de 1836".

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D. Pedro no Porto , com dous secretários , que fôrão para o primeiro José Balbino de Barbosa e Araújo; e para o segundo, Gar-« ret. Teve por pretexto esta sua sahida o se- rem incumbidos de uma missão diplomática perante as três cortes de Madrid, Paris, e Londres, afim de verem se ellas tomavão al- gum interesse directo em a nossa tão lon- ga questão Portugueza. A' aquelles dous di- plomáticos se juntou ainda outro extraordi- nariamente, o qual foi Filippe Ferreira de Araújo e Castro , que n'esse tempo residia em Paris , e nas mãos do qual eu ali vi a sua nomeação. Mas todas estas nomeações não fôrão mais do que um resultado de in- triga de serralho, porque havia muito tem- po que o partido , que apoiava os desejos de D. Pedro, ou para que tomasse a ser rei de Portugal , ou fosse regente em nome de sua filha, procurava desviar do ministério os dous indivíduos acima mencionados , co- mo homens em quem não confiava assaz pa- ra chegar a seus fins. Por isto he que inven- tou esta extraordinária missão diplomática para dolosamente lhes tirar o ministério. E para que a intriga fosse completamente bem succedida antes se havia dado outra mis- são de uma nova natureza ao secretario dis- tado Mousinho da Silveira, a qual elle inno- centemente acceitou, e com ella realisou os projectos de quem o queria substituir assim como aos seus collegas. O marquez de Pai-

mella havia tempo que previa o golpe e, para o impedir ou demorar, he que havia chamado em seu apoio para o ministério de D. Pedro Mousinho de Albuquerque, e Ber- nardo de Nogueira ; porém nada com is- to conseguio, porque o primeiro, como me- nos tratavel , foi envolvido na desgraça do marquez; e o segundo, como mais dócil, sujeitou-se á politica dos inimigos do seu protector , ficou no logar que occupava , e assignou depois os decretos da dimissao de seus collegas. Agora, como lição de morali- dade, e para conhecimento do caracter de certos homens que tem figurado na épocha em que vivi, direi :=; que , em quanto D. Pedro não appareceo na Europa, aquelles, que ao depois tomarão exclusivamente o no- me de seus amigos, erão a mais servil cria" dagem de Palmella , que o fatigavão com a- dulaçóes e visitas, e que nunca largavao as suas salas , ou as suas ante-camaras : porém assim que chegou o novo idolo deitárão-se de rojo a seus pés, fomentarão-lhe ambições deshonestas ; e depois cuspirão , sem vergo- nha, nas faces do homem que primeiro ti- nhao adorado. Eis-aqui a fysionomia pinta- da ao natural dos que depois enfaticamente se chamarão os amigos de D. Pedro.

A facção Pedrista tanto que se vio des- assombrada dos que tinha por inimigos , procurou tomar immediatamente as posições que elles havião largado , e que , por assim

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dizer, ainda estavão quentes. Formou, por tanto , sem demora D. Pedro o seu novo ministério , que se compôz de Cândido Jo- sé Xavier para os negócios do reino ; de Jo- sé da Silva Carvalho para a fazenda ; e de Joaquim António de Magalhães para a justi- ça ; conservando os dous antigos , que erão Agostinho José Freire, e Bernardo de Nogueira. Nas circumstancias em que se a- chava o Porto , e no descrédito em que es- tava o governo de D. Pedro tanto na parte financeira como na opinião publica, este se augmentou com as novas nomeações.

No mez de dezembro d'este anno, e de que vou relatar os successos mais impor- tantes , estava eu , o author d'estes Annaes , em Paris, para onde tinha hido de Londres nos principies do mez antecedente com o conde de Saldanha, que a essa ultima cida- de por negócios particulares tinha vindo. A- chando-me em casa do mesmo conde, casual- mente ali appareceo o major lnglez White , que por sua boca me repetio o que de muito antes eu sabia pela boca do conde ; e que por ser extraordinário, e dar muita luz á historia da nossa emigração, bem como á dos homens que n'ella figurarão como nossos governantes, não posso deixar de transcre- ver , e gravar nestes meus Annaes. Havia um anno que este major, por via de Cândi- do José Xavier, e marquez de Palmella, se havia offerecido para apromptar três mil ho-

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mens de boa tropa , fardados, e conduzidos á sua custa para a Terceira ou Portugal, pa- ra com elles reforçar a expedição que n'a- quelle tempo se preparava contra o usurpa- dor. As suas condições erão as mais favorá- veis e liberaes que em nossas circumstancias se nos podião exigir; porque promettia, sem despeza alguma nossa antecipada, ajudar-nos por espaço de três mezes, e findos elles requeria , que se lhe pagasse a prazos o do- bro do que tivesse despendido n'aquella em- preza , o que elle legalisaria pelo modo o mais próprio a não pôr em duvida a exacti- dão e verdade das suas contas. Assim esta espécie de empréstimo vinha a ficar a 50 por cento, e como tal muito mais favorável do que o ultimo que se havia contratado com Ardoin , que havia sido a 48 por cen- to. Parece que na situação em que nos achá- vamos, nas vésperas de uma expedição arris- cada , e na falta de meios que apresentava o mencionado empréstimo de Ardoin, não podia haver razão alguma poderosa que jus- tificasse a recusação d'esta offerta : comtudo, ella foi regeitada, e talvez, se não he cer- to, d'aqui procedesse o ter falhado a expe- dição logo no seu desembarque no Porto. Os motivos porque se desprezou este refor- ço , assim como se desprezarão outros de que fallei, não procederão tanto de igno- rância como de uma estúpida confiança, e de uma ambição criminosa. Particularmente

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depois da chegada de D. Pedro á Europa , como variassem os projectos políticos, to- mou-se por invariável regra de politica não regeitar todos os offereci mentos estra- nhos, que não fossem apresentados por cer- ta gente , mas até a cooperação de muitos emigrados , que erão tidos e havidos como contrários , ou pouco affeiçoados ao desen- volvimento d'aquelles projectos. Cohonesta- va-se esta recusação com dizer-se, que todo o Portugal estava disposto a receber D. Pe- dro; e que uma bota sua, como a de Car- los XII., apparecendo em nossas praias, se- ria sufficiente para que todos corressem a a- dorá-la. Comtudo , os motivos verdadeiros, além d'esta pueril crença da nenhuma resis- tência , erão de formar a expedição somen- te de certo numero de adeptos , que ti- nhão distribuído entre si , e seus amigos todos os empregos ; e que por isso não que- riao levar comsigo quem lhos podesse dis- putar , e maiormente da classe d'aquelles que, sem rebuço, por palavra e penna de- clara vão,— i que quer ião carta , e rei mu- lher. Esta ultima cireumstancia corrobora, por tanto, a razão por que se regeitou a of- ferta do major White ; porque quando elle a fez clara e explicitamente declarou , que a força que oíFerecia era tão somente para a- poiar a liberdade constitucional em Portu- gal , e que não contassem com ella para outra cousa. Esta condição era bastante

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para a regeitar como com eíFeito seregeitou. Permanecendo ainda em Paris, tive n- este tempo particular conhecimento com mr. Hertault, aquelle mesmo agente do emprés- timo que se havia offerecido no mez de ju- lho ou agosto antecedente , e de que fiz menção nestes Annaes. Sabendo elle agora que o conde de Saldanha estava a partir pa- ra o Porto foi-lhe renovar as suas offertas ; c reduzindo-as a um projecto regular quiz que este ali fosse assignado por alguns Por- tuguezes, para que elles, como testimunhas da offerta , e procuradores do bom êxito d'- ella , a apresentassem a D. Pedro, c ao seu governo no Porto. As pessoas escolhidas pa- ra isto , e que de facto assignárão o proje- cto que depois se apresentou, fôrão : o con- de de Saldanha ; o tenente-coronel Francis- co Simões Margiochi ; o doutor Solano Cons- tâncio ; o doutor Leonel Tavares , ex-depu- tado das cortes de 1826; e José Liberato Freire de Carvalho , author d'estes Annaes, Era mui vantajoso este empréstimo, porque, entre outras condições favoráveis, não havia um preço certo para o valor dos bonds , ou obrigações; o qual devia ser segundo o cre- dito que tivessem no mercado, e por tanto a nosso favor, tendo por clausula que nun- ca valerião menos de 30 por cento. Além disto, uma das hypothecas era a exploração das nossas minas do reino por certos annos, com a condição que os contratadores paga-

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rião um estipulado direito ao governo do producto d'ellas. Isto era de summa vanta- gem para nós, porque se hia dar valor a muitos capitães mortos que tínhamos; hiáo- se empregar muitos braços nestes novos tra- balhos ; e punhão-se em circulação grandes riquezas que estavão mortas para nós , e de que não podíamos , nem sabíamos tirar pro- veito. Em recompensa desta e outras hypo- thecas offerecião-nos vinte milhões de cruza- dos', cujo emprego seria o pôr logo em acti- vidade uma força militar até dez mil homens de todas as armas, esquipados, e transpor- tados para Portugal pelos emprestadores. As- sim , no estado em que nos achávamos, en- cerrados e cercados no Porto com muito pou- ca tropa para avançar, tomando a ofFensiva, e limitados aos mesquinhos, e sempre tar- dios soccorros que nos dava o empréstimo de Ardoin , nada parecia mais vantajoso; e debaixo d'este ponto de vista foi que os in- divíduos, acima nomeados, se resolverão a assignar o projecto, e a serem os portado- res d elle , na firme persuasão que em tem- po de naufrágio ou da proximidade d'elle se deve lançar mão dos recursos mais promptos, ainda mesmo d'aquelles que em tempo de bonança parecem os mais arriscados. Inde- pendentemente de eu ter sido um dos indi- víduos que assignárão aquelle projecto , não tenho pejo de dizer, que ainda hoje, que escrevo estas linhas , sou de opinião , que

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com elle se teria feito um grande serviço á pátria nas arriscadas circumstancias em que então nos achávamos. Mas, como tenho notado, era preciso para certa gente que tu- do se fizesse por intervenção de Mendizabal, esse Muloch , a quem se sacrificou deshones- tamente [ao) uma enorme porção da riqueza nacional para com ella , elle , e seus prote- ctores fazerem fortunas colossaes , passando de uma mediocridade de fortuna a uma rá- pida e escandalosa riqueza. Foi , conseguin- temente, regeitado este projecto como ain- da ao diante direi ; mas antes da sua formal regeiçao, procurou-se torná-lo impossivel pe- las mentiras e violências que para esse fim se praticarão. Como se soubesse que se começavao a fazer algumas disposições para realisar a empreza, tundando-as na apparen- te approvação que D. Francisco de Almeida havia dado a este projecto antes proposto, recorreo^e então , para o malograr , ao bai- xo estratagema das denuncias \ e denuncias, feitas por Portuguezes ao governo Francez; pelo menos um dos nossos agentes , o côn- sul Daupias , se desculpou depois a isso ao conde de Saldanha , declarando que havia sido enganado. Denunciou-se o alistamento que se começava a fazer, ou provisoriamen-

(rtfl) A deshenestidade foi tal, que pelo tempo adiante se dêo carta branca a este estrangeiro para fazer e administrar por nossa conta , e em nosso nome outros importantissi- mos empréstimos.

^ 269 Se- te se preparava , assim como um muito res- peitável oíficial Francez, o general Lacroix, que estava incumbido d'esta operação. E co- mo tudo isto era contra a lei , e o governo Francez o não podia ostensivamente appro- var , o marechal Soult , ministro da guerra , vio-se obrigado a mandar prender o dito ge- neral Lacroix , apesar de occultamente auxi- liar a empreza , como eu vi, e o verifiquei pela sua correspondência com os agentes d'- ella. O general Lacroix conservou-se preso até o meado ou fim deste mez bem contra a vontade do ministro, e para salvar no publico o caracter do governo. Assim, por estas intrigas desleaes, filhas da ambição, os chamados amigos de D. Pedro pozerão em risco a causa da liberdade e da pátria.

Concluirei os successos deste mez e anno com um caso bem singular, que me foi communicado em Paris , estando eu em casa do conde de Saldanha , e na sua pró- pria presença. No anno de 1829 houve uma reunião em Paris composta , entre outros , do marquez de Palmella , D. Francisco de Almeida, Cândido José Xavier, e o viscon- de de Pedra-Branca , cidadão Brazileíro, e na qual se assentou: que no caso do conde de Saldanha tomar a resolução de ir para a ilha Terceira, se devia buscar meio ou pre- texto de lhe fazer um conselho de guerra , e n'elle se decidir que fosse asperamente punido. Não se podendo porém isto conse-

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guir, se lhe devia obstar por qualquer mo- do que fosse. Esta communicação me foi mui clara e explicitamente feita pelo doutor Francisco Solano Constâncio em 24 de no- vembro de 1832; o qual me disse ter ouvi- do isto , tal e qual) da própria boca do vis- conde de Pedra-Branca. Eu não affirmo nem nego a veracidade d'este facto; o que digo e affirmo debaixo da minha palavra de hon- ra he que o ouvi ao doutor Constâncio. E direi ainda mais , para que meus leitores possao fazer o juizo que quizerem sobre el- íe, que o mesmo conde de Saldanha, es- crevendo-me n'este mesmo anno para Lon- dres em resposta ao que eu lhe perguntava sobre a sua hida para o Porto , disse-me em uma carta, que conservo, o seguinte: ,,V. , s.a sabe o canal por onde me chegão as , noticias da rua de Corcelles (bb). A única , pessoa que ali tem alguma commiseração , de mim he a imperatriz. Todos os outros , me concedem que tenho sido causa de , não terem morrido de fome os emigra- , dos; mas ainda agora continuão a dizer, , que se eu me fosse apresentar no Porto , era indispensável dar cabo de mim por to- , dos os modos. Não repito isto porque , me importem taes ameaços , mas para , que calculem a boa vontade com que D. , Pedro me veria ali apparecer.

(bb~) Rua de Paris , em que morou D. Pedro , sua mu- lher , e a Rainha.

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Para que meus leitores ainda possão mais prudentemente pesar as probabilidades da mentira ou verdade do facto que me re- ferio o doutor Constâncio, vou fechar este meu livro dos Annaes com a copia literal de uma carta que o marquez de Palmella escre- veo para a ilha Terceira ao general Diocle- ciano Leão Cabreira em 19 de março de 1829, e que eu li transcripta em o n.° 224 do Angrense , publicado em Angra do He- roísmo em 21 de janeiro de 1841.

Ill.mo e exc.mo sr. Tenho a satisfação de certificar ,, a v. exc* que a Rainha minha Senhora continua felizmente ,, a gosar da mais prospera saúde. S. NI. toma um interesse ancioso em tudo o que diz respeito em geral aos seus sub- ,, ditos fiéis, cujos sacrifícios avalia quanto importa a sua tenra idade ; mas sobre tudo a sorte dos constantes e denodados ,, defensores dVssa ilha , a quem se propõe enviar pela pri- ,, meira occasião opportuna a bandeira , que elles mesmos sol- licitarão , e de que se tomâo dignos em giáo eminente.

,, Ordena S. IV]. que o governo d'essa ilha faça publico ,, por editaes , que tendo de levar ao conhecimento de S. M. ,, a resenha e balanço de todos os ramos de administração da ,, ilha, também tem ordem para levar ao soberano conheci- ,, mento qualquer representação que as authoridades, corpora- ,, çóes, ou pessoas da ilha lhe quizerem dirigir, na certeza de ,, que serão immediatamente ptovidas segundo cumprir ao bem ,, publico.

,, Não se havendo verificado o desembarque com que sa ,, contava n'es;a ilha do corpo debaixo do cominando do ma- ,, rechal de campo João Cailos de Saldanha , a quem S. 1Y1. ,, havia nomeado commandante da força armada, porém sem- ,, pre debaixo da authoiidade não d'essa junta provisória, ,, mas também do seu digno presidente na qualidade de go- ,, vernador militar ; cumpre-me agora prevenir a v. exc.% de ,, ordem de S. Al. , e para intelligencia da junta provisória, j, que fica sem effeito a nomeação de João Carlos de SaU ,, danha% a qual S. M, ha por conveniente annullar , ainda ,, mesmo no caso de que o sobredito marechal de campo tor» ,, ue a dirigir-se para essa ilha. E confia a Rainha , minha

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,, Senhora , na fidelidade, perícia militar , e inabalável firmeza j, de v. exc.a que saberá defender o baluarte da legitimidade, em que se acha collocado , contra todos os esforços dos se- ,, etários da usurpação , no caso que se atrevâo a atacá-lo. ,, Consta por noticias de Lisboa de 7 do corrente que ti- ,, nhâo desembarcado a artilharia e petrechos militares com que ameaçaváo essa ilha , não se tratando de a mandar ata» car com um corpo de tropas , mas de a ter bloqueada, ,, e de enviar 400 homens para guarnecerem a ilha de S. Mi- guel. He de esperar que este bloqueio , sobre tudo , vindo agora o equinócio, não poderá ser exacto nem de muita du- ,, ração.

Queira v. exc.a remetter-me, para ser presente á Rai- nha minha Senhora , um relatório da organisaçâo que essa junta houver de dar aos voluntários que Tòrão de Plymouth, pois muito convém , melhorando quanto possível fòr a sua sorte , sujeitá-los comtudo a uma disciplina exacta de- baixo de officiaes de sufficiente caracter e authoridade , a- fim de que o soccorro enviado a essa ilha seja útil , e não puramente nominal. Deus guarde a v. exc.* Londres em 19 de março de 1829. Marquez de Palmella. Ao illus- trissimo e excellentissimo sr. Diocleciano Leão Cabreira.

FIM DO LIVRO V. d'eSTES ANNAES.

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COM O TITULO

D E

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PARA A HSTORIA DO TEMPO

QUE DUROU A USURPAÇÃO

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D. MIGUEL,

POR

JOSÉ' LIBERATO FREIRE DE CARVALHO.

VOLUME IV.

QUE COMPREHEKDE OS ANNOS 1833 E 1834.

Opus aggredior opimum casiòus. tácito, livro 1.° das Hist. inprincip.

LISBOA,

NA IMPRENSA NEVESIANA. 1843.

RUA DO LOUREIRO N.° 15.

L'avantnge , que donneut les revoluiicns , est de montrer d decouvert 1'âme de ccr tatues gens

RECUEIL DES MAX1MES.

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DESPEDIDA

AOS LEITORES D'ESTAS MEMORIAS.

JCjntrego ao publico o quarto e ultimo vo- lume das minhas Memorias , com o titulo de Annaes , para a historia do tempo que durou a usurpação de D. Miguel. Nada n'ellas escre- vi que não visse, ouvisse, lesse, ou em que não fosse parte ; ç em tudo procurei ser ver- dadeiro, contando as cousas, ou como boatos do tempo, ou como factos acontecidos. Eu ou me havia de calar e náo escrever , ou es- crevendo devia dizer a verdade , tocasse el- la em quem tocasse; porque se assim o não fizesse seria ou um miserável adulador , ou um escriptor infiel, caracter com que não nas- ci, nem julgo digno de um homem de bem. Creio que não insultei nem calumniei nin- guém , ao menos, como homem honesto o digo, e que não foi essa a minha intenção. Não devassei a casa de ninguém , não pes- quisei a sua vida privada ; e os homens , de quem fallei , encontrei-os , por assim dizer, no meio da rua ; e então fielmente, e o mais decente que pude, escrevi o que elles ali fa-

IV

zião; porque quem quer figurar no theatro do mundo faz logo com que suas acções se- jão propriedade do publico, que fica com o direito de as avaliar e pesar. Isto he o que eu fiz, e o fiz com lealdade, segundo me parece. Dedico particularmente este volume aos honrados e valentes habitantes do Porto, a quem vi fazer actos , os mais heróicos, de valor, de patriotismo, e de amor da liber- dade. Oxalá que elles sempre conservem es- tes briosos sentimentos: taes são os desejos de quem escreveo estas Memorias, e que se assigna em Lisboa aos 17 de janeiro de 1843.

José Liberaio Freire de Carvalho»

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L IVRO VI.

DOS ANNAES.

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Successos mais importantes do anuo 1833 , e sexto usurpação.

J\. portaria de 3 de novembro do anno passado, que mencionei , e que a opinião publica e a necessidade tinhao extorquido a D. Pedro, pela qual se facultava a entrada da pátria a todos os generaes e officiaes que uma invejosa politica tinha como desterra- dos em França e Inglaterra, fez immediata- mente determinar o general Saldanha , que se achava em Paris , a partir para o Porto. Achava-se porém elle então gravemente do- ente , e apesar dos ardentes desejos que ti- nha, e que logo manifestou de se pôr a ca- minho, só nos primeiros dias de janeiro d'- este anno he que pôde sahir de França. As pessoas que o acompanharão tanto por afFei- ção que lhe tinhao, e á causa da restauração da nossa liberdade, como pelo desejo que

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elle mostrou de as levar comsigo , fôrao : seu irmão Domingos de Saldanha ; o te- nenre-coronel Margiochi ; o joven D. Fran- cisco de Menezes de Brito do Rio; eo au- thord'estes Annaes, José Liberato Freire de Carvalho. Chegámos a Londres no dia 4 d'- este mez, e esperando achar algum auxilio para o nosso embarque nenhum se nos dêo, nem facilitou ; ao mesmo passo que assim que de sahimos se publicou que havia um vapor para levar gente para o Porto, o qual tinha vindo solicitar um tal José Romão, que para esse fim viera de Ostende, e era uma creatura da nossa governança , que para os seus tudo facilitava com mão larga. Em Londres encontrámos mais três companhei- ros de viagem , que fôrão o general Stub- bs, com o seu ajudante Villete, e o gene- ral Diocleciano Cabreira. Partimos emfím pa- ra Falmouth no dia 9 para ver se podíamos achar passagem em algum dos paquetes ; e ali chega'mos na madrugada do dia 11, dia, em que um paquete sahia. Hindo porém lo- go tratar com o capitão d'elle, tão von- tade, e tantas diírkuldades mostrou para nos receber a bordo, que combinando isto com os seus modos assaz grosseiros, e com o que nos disserão de não ser elle homem fiel, e nos poder armar alguma traição, pois era a- migo declarado de D. Miguel e seu go- verno; nos determinámos então a não embar- car naquelle paquete, e a esperarmos ali a-

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a semana seguinte. He preciso porém ad- vertir , que nós todos estávamos determina- dos a ir d nossa custa ; e que ao conde de Saldanha e ao general Stubbs mandou o encarregado de negócios Lima pagar as suas módicas csimplices passagens por via do côn- sul Fox.

No dia 13, principio da seguinte se- mana, me convidou o conde de Saldanha pa- ra hirmos a casa do commandante do porto, o capitão King, para d'elle sabermos qual se- ria o paquete que devia sahir, e hirmos de- pois tratar com o seu commandante sobre a nossa passagem. Soubemos que era um gran- de barco de vapor do governo o que estava destinado para levar a mala daquella semana; porém ao mesmo tempo se nos declarou, com grande espanto nosso , que o almirantado ti- nha mandado uma ordem positiva para não receber passageiros. O capitão King foi assaz polido e condescendente para nos mostrar a dita ordem; e n'ella, com os nossos próprios olhos, vimos que a prohibição era positiva, e tão terminante, que ate vinha sublineada , para que não podesse haver engano, nem desculpa. Bem extraordinária nos pareceo, as- sim como a todos que osouberão, esta ordem não esperada, porque não tendo por obriga- ção os commandantes dos navios do gover- no tomarem passageiros, não lhes era com- tudo prohibido recebê-los, por ser um dos seus lucros permittidos. Esta circumstancia

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não esperada nos fez logo conhecer que ha- via uma conspiração contra nós, e particular- mente contra o conde de Saldanha, a quem a força da opinião publica podia ter aber- to as portas do Porto. Mas se esta conspira- ção , que outro nome não pode ter , foi obra do governo Inglez, que bem sabia que nos achávamos em Falmouth , e a razão d- isso, ou de algum dos nossos que lha ins- pirarão , e de quem se fez instrumento , he esta uma cousa que não podemos saber. Qualquer porém que fosse o agente d'este transtorno que nos fizerão , bem pouco no- bre tinha elle o caracter, e mui fracos e bai- xos meios tomou para nos impedir a viagem ; porque fazendo-a nós á nossa custa , ainda mil recursos tinhamos, como com efFeito tive- mos, e ainda com maiores vantagens e maior segurança do que as que podíamos ter nos paquetes.

Durante os poucos dias que estivemos em Falmouth soubemos da sahida do gene- ral Solignac para o Porto, com algumas tro- pas estrangeiras, em um barco de vapor que os nossos agentes, ou a commissão expres- samente prepararão para elle. Assim cumpre agora aqui notar, que em quanto para um ge- neral estrangeiro e para algumas tropas merce- nárias se destinava um navio, nenhum caso se fez de três illustres generaes Portuguezes, Saldanha, Stubbs , e Cabreira, assim como de muitos outros Portuguezes, entre os quaes

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havia muitos officiaes beneméritos, que, pe- la maior parte, se quizerão ir para o Porto foi á sua custa, ou de alguns amigos genero- sos (tf), que contribuirão para a viagem d'- elles. Mas que veio á propósito fallar do general Solignac, direi agora como foi a sua escolha, e qual era em Paris a sua reputação militar, e bem assim a do seu caracter mo- ral. Tanto que no Porto foi geralmente co- nhecida a necessidade de substituir no com- inando do exercito o conde de Villa-Flôr, e chegou também a ser geral a opinião a fa- vor do conde de Saldanha, como vissem os nossos governantes que nem era possível sustentar o primeiro nem deixar de chamar o segundo, recorrêião então a um novo pro- jecto que foi o de convidar um general es- trangeiro para por este modo evitarem o dar o commando a Saldanha. O primeiro que lembrou, mas que recusou , foi o general Polaco Romarino; convidou-se depois o ge- neral Francez Excelmans ; porém este que, a-» lém de uma grande reputação militar, era par de França , e gosava ali de outras gran- des vantagens , não quiz também acceitar a proposta como um simples aventureiro ; e exigio do seu governo a conservação de to- das as honras e proveitos de que gosava na

(a) Entre estes seria faltará gratidão e á justiça se não mencionasse o nome do meu honrado amigo o sr. Castodl» Pereira de Carvalho a quem o author d'estes Annaet , e o conde de Saldanha, assim como alguns maij , deverão- gv oerosos auxílios para este , e outros fins.

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seu paiz, ficando sempre addido a elle, sen nunca perder nem as suas dignidades nem os interesses que lhes andavão annexos. O go- verno Francez , que não teve dificuldade na escolha, mas antes desejava que elle aceitas^ se a proposta que se lhe fazia , não pode comtudo consentir, em razão da apparente politica que então queria manifestar, nas condições que Excelmans d'elle exigia ; e por conseguinte não teve eíFeito este convi- te. Recorreo-se portanto a outro, e foi ne- cessário olhar para todas as partes , e ver se em alguma delias apparecia um general se- cundário, que conviesse, pois que nos da primeira ordem não parecia fácil achar algum que tivesse menos melindre do que Excel- mans. Uma çircumstancia extraordinária fez lembrar o general Solignac. Tinha este aca- bado de ser governador de La Vendée no tempo dos barulhos que ali houve em razão das intrigas e presença temporária da duqueza de Ôerry, e se achava em Paris chamado pelo governo. Para o seu chamamento davão^ se diversos motivos ; porém os dous princi- paes de que ouvi fallar, achando-me n'essa épocha em Paris, fôrão, dizerem uns, que elle excedera as ordens do governo, fazen* do todas as diligencias para prender a du- queza, o que com eíFeito se não queria nem desejava dizerem outros , que elle a não prendera por ter para isso recebido grandes som mas de dinheiro- He preciso advertir,

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que eu refiro rumores , e o que ouvi em Paris, sem afíiançar nem a verdade nem a falsidade d'elles ; e o que posso sífirmar he, que nem Solignac estava contente com o governo, nem este com elle. Nestas cir- cumstancias he pois que o general Solignac foi convidado pelos agentes de D. Pedro pa- ra ir tomar o commando das tropas no Por- to. Sobre quem fosse porém o primeiro que se lembrasse do seu nome houve diversas o- piniões, porque uns dizião fora lembrança, suggerida ou própria, de alguém da casa da imperatriz na rua de Corcelles ; outros as- seguravão fora suggestão do governo Fran- cez para se livrar de hum homem desconten- te, e que o ameaçava com certas revelações sobre os negócios de La Vendée. A verda- de he, que elle não estava contente com o governo ; que este approvou a sua hida ; e que, menos escrupuloso do que Excelmans, largou tudo no seu paiz para entrar em nos- so serviço. Nem isso foi para admirar , por- que tendo pouco ou nada que perder entre os seus, e hindo ganhar entre os estranhos uma graduação militar, emolumentos, e con- sideração que não tinha em França, que mui- to era que preferisse o Porto a Paris? Quan- to ásua reputação militar era igual a de um sem numero de oíficiaes Francezes subalter- nos que íizerão a guerra sem deshonra , po- rém sem notável distincção ; e pelo que mais era conhecido em Portugal era pelo desas*

troso ataque cTEvora na invasão de Junot , e pela sua ferida na batalha do Vimeiro. Quanto ao seu caracter moral e politico ouvi dizer a diversas pessoas, que amava extraor- dinariamente o dinheiro, e que o partido que mais largamente lho desse seria aquel- le que elle sempre preferiria : em uma pala- vra , que sendo o marechal Soult pergunta- do a este respeito, laconicamente responde- ra, que era um verdadeiro discípulo de Masse- m.

Apesar da nomeação do general Soli- gnac não foi comtudo possível fazer com que o publico se esquecesse do conde de Salda- nha ; e em consequência d'isto foi chamado como referi. Agora continuarei com a sua viagem para o Porto, assim como com a de seus companheiros. Não podendo achar pas- sagem nos paquetes de Falmouth , (b) como fica dito , fizemos todos o nosso pequeno conselho, e tratámos logo de fretar um na- vio para nos conduzir. Não o podendo a- char no porto de Falmouth , lembrou-se o conde de Saldanha de ir a Plymouth para ver se ali acharíamos um que nos conviesse.

(&) As dificuldades que nos oppozeráo para a nossa hida para o Porto fôrão de certo calculadas para que o conde de Saldanha ali não apparecesse antes que Solignac estivesse instai lado no seu cominando. Era preciso que Saldanha, a quem se não podia impedir a sua appariçâo no Porto, achasse na sua chegada occupado o posto que o exercito e o povo lhe designavão. Foi esta uma d'essas miseráveis as« ttpciat dos governos fracos, que seus aduladores chamão po» lítica.

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Para esteeffeito partio para na manhã do dia i?, e com tanta fortuna que no dia 16 tinha fretado o navio Americano Hype- rion, capitão Gareue, o qual prometteo sahir immediatamente, e vir receber-nos em Fal- mouth no dia seguinte. Com eífeito na tar- de do dia 17 embarcámos n'elle as pessoas seguintes : General conde de Saldanha ; ge- neral Stubbs ; general Diocleciano Cabreira ; Domingos de Saldanha ; Margiochi ; Mene- zes; Villete; ejosé Literato Freire de Car- valho; dando ainda, por philantropia e gene- rosidade, passagem ao capitão de atiradores de Lisboa João Miguel Smith, e a sua mu- lher com três filhos creanças. Juntou-se ain- da a nós mr. de Varene , que, por casuali- dade, nos veio encontrar em Falmouth, e era portador de cartas particulares para D. Pedro, enviadas por mr. Heurtmtlt , e re- lativas ao empréstimo de que tratei. As- sim nós , a quem nossos governantes , e até o governo Inglez tinhão negado passagem prompta, náo podemos ter um navio , e todo a nossa disposição, porém até ainda dar n'elle logar a uma boa e desvalida familia e- migrada que achou em nossa boa vontade (V) o auxilio que até ali lhe tinháo negado os que dispunhão do dinheiro publico em no- me de D. Pedro, e o guardavão para des-

(0 Esta familia, pelo unanime consentimento de todos, teve não 40 passagem gratuita, potém foi sustentada á nos» m custa.

pender com amigos, afilhados, e certa milí- cia que os servia.

Depois de uma prospera viagem chegá- mos á vista da Foz na tarde do dia 26, on- de encontrámos alguns dos nossos navios de guerra, e entre elles aquelle em que estava o vice-almirante Sartorius. O nosso capitão lhe fez immediatamente saber quaes erão os passageiros , e que entre elles vinháo três generaes, Saldanha, Stubbs, e Cabreira. Apenas se mandou certificar d'isto Sartorius por um guarda-marinha com um piloto que nos deixou a bordo, sem nos fazer offereci- mento algum quer para o nosso desembar- que , quer para nos receber no seu navio, caso que o tempo não nos permittisse o des- embarcar logo. Apesar d'isto , os generaes Saldanha e Stubbs fôrão a seu bordo n'aquel- ]a mesma noite, e delle fôrão recebidos com uma sêcca civilidade (d) , sem nenhum, ain- da o mais pequeno , offerecimento, brindan- do-os unicamente com algumas pouco agra- dáveis noticias de terra. Uma d'ellas foi que Palmella e os seus dous eollegas, ambos os Mousinhos , havião sido dimittidos, e que em seus logares havia definitivamente entra- do o ministério que mencionei. A outra foi que no Porto tinha apparecido a cóle- ra morbus, e talvez isto dissesse para nos a-

(<0 Vê-se que a conspiração , auanjada em Franga e In» glaterra , chegava até o Podo*

terrar afim de não desembarcarmos. Comtu- do a nossa resolução estava tomada, e a to- do o risco estávamos resolvidos a desembar- car, qualquer que fosse o perigo que nesta operação podessemos correr. Recolhêrão-se a bordo os dous generaes nossos companhei- ros mui pouco satisfeitos da recepção deSar- torius ; e começámos a preparar-nos para o nosso desembarque no dia seguinte que foi 27. Comtudo o tempo appareceo muito máo em todo aquelle dia, e começámos a ter re- ceios de elle assim continuar. Nestas cir- cumstancias vendo que Sartorius nem sequer tinha mandado pagar a visita que no dia an- tecedente se lhe tinha feito, e que esta in- clvilidade era suficiente indicio do tratamen- to que podíamos esperar d'elle no caso que o máo tempo continuasse , e fossemos obri- gados a pedir-lhe que nos recebesse a seu bordo ; fizemos o nosso pequeno conselho , e n'elle resolvemos de em nenhuma circums- tancia nos hirmos lançar nas suas mãos. Co- mo precaução para tudo o que podia aconte- cer, cuidámos logo em nos arranjar com o nosso próprio capitão , a quem promettemos pagar certa quantia por dous ou três dias que ali ainda nos podessemos demorar; e ao mes- mo passo procurámos indagar se entre os na- vios, que ali se achavao fundeados com ví- veres, podíamos ter um para onde passásse- mos uma vez que o tempo não nos permit- tisse o ir para terra. Immediatamente se nos

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veio offerecer o capitão de outro navio Ame- ricano que ali estava, e que por felicidade se achou conhecido do conde de Saldanha por ser um d'aquelles que fôrão com elle pa- ra a ilha Terceira , e sobre os quaes a bru- talidade Ingleza descarregou a sua artilharia. estávamos determinados a passar para el- le no dia seguinte, mas o mar se tornou se- reno, e capaz de desembarque; e assim to- das as dificuldades , em que até ali nos tinhamos visto, desapparecêrão com esta rá- pida mudança.

Raiou emfim o dia 28 , uma segunda feira de janeiro , e tão ser.eno e tão manso quanto o podíamos desejar. Logo de manha appareceo o piloto mor Joaquim Luiz com duas grandes catraias, e nos facilitou tudo pa- ra o nosso desembarque, dizendo, que no dia antecedente pela noite se tinha sabido na Foz a nossa chegada ; o que mostra, que Sar- torius não tivera nem grande cuidado nem pressa em annunciar a nossa vinda á guarni- ção do castello da Foz, o que provavelmen- te só fizera em segredo ao governo de D. Pe- dro. A verdade he , que o piloto mor, por seu próprio desejo , e por affeição par- ticular a Saldanha, nos facilitou o desembar- que sem recommendação alguma do governo, que não era possível ignorasse a nossa chega- da. Desembarcámos emfim na manhã d'aquel- le dia com toda a commodidade e socego na pequena praia, chamada dos Inglezes, não

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sem recebermos alguma bala ou bomba das baterias inimigas, mas com um tempo e mar excellentes. Dirigimo-nos immediatamente ao castello onde estava de governador o briga- deiro Fonseca , o qual, com toda a sua guar- nição, nos recebeo com muita alegria e sa- tisfação, sentimentos, que também logo se começarão a manifestar em toda a gente da Foz, tanto que soube quaes erão as pessoas que tinhão chegado. Tanto homens como mu- lheres, tanto soldados como officiaes , todos particularmente querião ver e conhecer o con- de de Saldanha, o objecto de todas as affei- ções , assim como de todas as esperanças.

Demoramo-nos algum tempo dentro do castello em quanto desembarcava a nossa pe- quena bagagem ; e então os rebeldes nos festejarão com duas balas, uma das quaes ca- hio dentro do castello, e nos foi mostrada. O governador queria que ali nos demorásse- mos até que mandasse buscar cavalgaduras pa- ra d'ali passarmos deidade; porém nós tive- mos por melhor pôr-nos logo a caminho, e a pé, bem persuadidos que depressa seriamos encontrados por amigos que nos virião bus- car, porque a esse tempo no Porto se co- meçava a espalhar a noticia da nossa chega- da. Assim aconteceo, porque ainda bem não tínhamos sabido da villa da Foz quando co- meçámos a encontrar muitos officiaes e outras pessoas que nos vinhão esperar , e offerecer cavalgaduras. O acompanhamento começou a

crescer ao passo que marchávamos, e em pou- cos instantes nos vimos todos a cavallo, e no meio de uma numerosa procissão, que a cada momento crescia com as pessoas que sem interrupção vinhão chegando. Entrámos em- fim na cidade, sem que por todo o caminho recebêssemos um tiro dos rebeldes, ape- sar de que o concurso á nossa chegada era numerosíssimo. Então ali he que fomos recebidos como em um verdadeiro triunfo: as ruas estavão apinhadas de homens e mu- lheres ; e em todas as janellas se vião espe- ctadores de ambos os sexos, os quaes todos, como á porfia, fazião resoar os ares com ac- clamaçóes e com vivas, especialmente ao con- de de Saldanha. Até houve homens e mulhe- res do povo que d'entre a chusma corrião pa- ra junto d elle para o verem mais de perto , e o saudavão com expressões da maior affei- çao e carinho. E tudo isto acontecia no mes- mo dia em que pelas esquinas das ruas se ti- nhão affixado editaes para se não darem vivas de qualidade alguma, por certo, tendo em vista a recepção do conde ; porém a voz publica, e a opinião geral fôrão mais pode- rosas que as ordens do governo, o que sem- pre acontece quando ha governos estúpidos, que se persuadem poder mais do que a opi- nião, quando esta he geral, ou pelo menos quasi unanime.

Entre todos estes applausos e alegria publica nos dirigimos á residência de D. Pe-

dro, que então se achava fora de casa, e por isso passámos ao quartel do novo general So- lignac. Este nos recebeo mui polida ecortez- mente, e com muita especialidade o conde de Saldanha, e os dous generaes , Stubbs, e Cabreira. N'essa mesma occasião nos con- vidou para hirmos todos jantar com elle no dia seguinte. Passadas algumas horas torná- mos a procurar D. Pedro, que encontrá- mos em casa; e elle nos recebeo affavelmen- te, e com um certo ar que não indicava nem prazer, nem desgosto, mostrando ao mesmo tempo no seu modo rasgado que era bem ca- paz de disfarçar seus sentimentos, porque a nossa presenqa pelo passado e futuro não lhe podia ser agradável. Foi curta a nossa visita, e nos despedimos d'elle sem recebermos da sua parte outra demonstração que não fosse a de uma estudada civilidade. Cada um foi immediatamente para o seu alojamento; e o general Saldanha encontrou por toda a parte no seu caminho o mesmo enthusiasmo, e os mesmos vivas e sinceras demonstrações de aíFeição publica.

Tinha-se destinado que n'essa noite hou- vesse theatro, e n'elle se queria dar ao con- de outra nova prova de quanto era desejada a sua vinda, e em que preço ella era avalia- da ; porém motivos de prudência fizerão com que nem elle nem pessoa alguma dos que o tinhão acompanhado fossem assistir a aquel- la representação, afim de se pouparem maio-

res ciúmes ao governo, e não se dar occa- siáo a que, no meio da exaltação publica, houvesse algum accidente desagradável que podesse servir de pretexto a sinistras inter- petraçóes. Comtudo , na persuasão em que todo o povo estava de que o conde appare- ceria no theatro, a enchente foi numerosís- sima, e tal como nunca ali tinha havido, ain- da mesmo no dia em que D. Pedro tinha des- embarcado j o que não foi pequena mortifi- cação tanto para elle como para a sua cama- rilha, e governo. Eu nessa noite fui ver o conde que estava alojado no sitio chamado da Batalha na casa de pasto do honrado pa- triota Estanisldo , que havendo sido emigra- do, eum dos maiores admiradores do conde, agora o havia expressamente convidado para sua casa. Por fim me recolhi á minha habita- tação, que foi a de um amigo antigo, tan- to em Portugal como na emigração , Manuel António do Soveral que com sua mulher , a snr.a D. Carlota , me tinha hido esperar ao caminho da Foz, e desde ali me tinha con- vidado para ir viver em sua companhia, (e)

No dia 29 fomos jantar com o general Solignac, que nos recebeo a todos, segun- do vulgarmente se diz, como um verdadei- ro homem do mundo; porque, de ante-mão bem instruido da qualidade e caracter de

(e) Muitos favores, e amisade devi a esta família, e por isso aqui menciono seus nomes.

seus convidados, a cada um individualmente lisongeou com cumprimentos mui agradáveis e estudados, mostrando n'isto que se não e- ra o primeiro na arte militar em França, era pelo menos um mui distincto cortezão.

O estado em que achámos a cidade não foi agradável, porque o governo de D. Pe- dro, ou o seu ministério, estava geralmente desacreditado, e tinha por si essa classe de gente, que em todos os governos adula o poder sem lhe importar suas qualidades mo- raes , com tanto que tenha que dar , e com effeito o a seus aduladores ou seus com- plices. O ministério antecedente tinha ganha- do uma numerosa porção de servos e agen- tes com a espectativa de novos empregos que o ministro Mousinho da Silveira tinha impro- visado com a leitura do systema Francez ; mas o novo ministério tinha deitado a barra muito adiante do seu antecessor , porque creou muitos mais logares, especialmente na magistratura ; prometteo muitos mais dos que dava ou podia dar ; e rodeou-se de uma in- finidade de aspirantes a esses empregos, que lhe servião ou de guarda Pretoriana, ou de a- duladores. No que porém devia ser a admi- nistração publica, análoga ás circumstancias, e posição que occupavamos , nenhum d'elles cuidou , e foi em verdade cada vez a peior. Conhecendo-se a impossibilidade de marchar sobre Lisboa com as poucas forças que ha- via, e passando-se em consequência cfista a Tom. IV. b

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fortificar a cidade, nada era mais natural 5 e até nada era mais obvio ainda ás mais peque- nas comprehensões, do que cuidar-se logo em a abastecer de víveres , e de munições de guerra, particularmente quando se cami- nhava para o inverno , em que a entrada da barra se torna tão diffícil, e agora muito mais se tornava pela visinhança dos rebeldes, que cada dia mais se aproximavão. Em nada po- rém d'isto se cuidou: deixou-se ao acaso a causa da liberdade , e as vidas de um exer- cito e de uma povoação valente , que tão dis- posta se mostrava não a defendê-la , mas a morrer por ella ; e se gastou um tem- po tão precioso em legislar loucamente, e a crear instituições inúteis, quando ainda a- penas estávamos senhores de tão poucos pal- mos de terreno, sem que, por estupidez ou indifferença , se advertisse, que primeiro ne- cessário era estendê-lo do que dar-lhe novas leis, ainda quando melhores, e as mais bem acertadas. Tomou-se , he verdade, a impor- tante posição do convento da Serra, mas se he verdade o que me disserão, isso se deveo á casual inspiração de um estrangeiro ; porque para este ponto de tamanha impor- tância militar nem D. Pedro, nem o seu mi- nistério tinhão attendido. Desamparou-se , comtudo , Villa-Nova, que muita gente jul- gava que se podia defender ; e desamparan- do-a , deixarão essa immensa riqueza de vinhos, que devião servir tanto para o geral

consumo da cidade como para uma das mais valiosas hypothecas que podiamos offerecer a quem nos ministrasse os meios para levar ao fim a nossa empreza. Ainda quando militar- mente não conviesse, ou não fosse possivel defender Villa-Nova, nunca com razoes al- gumas se pôde desculpar o erro de ali se ter deixado ao inimigo aquelle rico thesouro de riquezas. Desculpou-se o novo ministério, e alguém do ministério Palmella , que toda aquella falta devia recahir no ministro Mou- sinho da Silveira, que dizião ser author d'- aquella fatal resolução; porém todas estas desculpas não podem ser attendiveis, porque o voto de um individuo não podia nem devia prevalecer contra o dos seus collegas. Além disto, naquclle mesmo ministério era ministro da guerra Agostinho José Freire, a quem, mais do que a nenhum outro, cum- pria olhar pela subsistência do exercito , e dos habitantes de uma cidade, que se havia reduzido ao estado de uma praça de guerra ; e nos conselhos de D. Pedro, senão osten- sivamente, ao menos em particular, erão ouvidos os votos e as opiniões de José da Silva Carvalho , de Magalhães , e Cândido José Xavier, que, de oceultos conselheiros que erão, passarão depois a constituir o seu acreditado ministério. Tanto um como outro ministério se tornarão portanto culpados d- esta enormíssima falta, ou ignorância, como lhe quizerem chamar. O estado pois em que

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achámos a cidade á nossa chegada de Lon- dres nos fins de janeiro foi o da véspera de uma grande fome, e de uma absoluta falta de munições de guerra, o que em breves dias se veio a cumprir.

Na parte militar o quadro nem era mais agradável, nem mais consolador. estava nomeado commandante o general Francez So- Jignac, que tinha entrado no Porto nos prin- cípios de janeiro, mas não havia sido feliz, na sua primeira façanha militar. Querendo dar mostras de si aos rebeldes no dia 24 d- este mez de janeiro, quer fosse por más com- binações suas , quer por falta de cooperação, ficou mal n'esta sua primeira operação. Como sempre acontece em todos os casos de pou- ca fortuna , cada um deitou a culpa do máo successo do dia aos outros. Solignac disse, que Sartorius não tinha cooperado como de- vera contra o Forte do Qtieljo , e que o bri- gadeiro Brito não executara o movimento que se lhe havia indicado: estes por sua parte também se desculparão , o primeiro com a vontade das suas tripulações, por não an- darem bem pagas ; e o segundo com as or- dens de D. Pedro, que o mandara retirar da posição que lhe estava indicada. O caso foi que nada se conseguio de proveito naquelle dia, e que Solignac não ganhou fama nem reputação militar, e antes a perdeo tanto pa- ra com os inimigos como para com os nos- sos, a quem os primeiros, desde aquelle

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dia, em allusáo a certa passagem da sua bio- graphia (f), o começarão a denominar o ge- neral batata ; e os nossos o general Solinhas, O facto he , que tendo^se apoderado Soli- gnac n'aquelle dia da interessante posição cha- mada o monte do Crasto, elle a abandonou, e não lhe conheceo a importância. Com el- la teríamos segurado o desembarque de tudo que se carecia , ficando senhores da pequena praia , chamada dos Carreiros1 ; teríamos inu- tilisado, ou tomado o forte do Queijo; e, emíim, teriamos impedido que os rebeldes ali estabelecessem um formidável reductocom que depois muito nos estreitarão o caminho da Foz, e até talvez de todo o tivessem im- pedido, a não ser o general Saldanha , que, como adiante ainda direi , chegou a tempo para remediar uma boa parte d'aquelle mal. Nem ao menos Solignac tinha ganhado a re- putação de um bom organisador militar, por- que as nossas tropas se achavão em uma com- pleta desordem disciplinar, e vencião pe- jo valor pessoal, e não pela disciplina que se houvesse introduzido nos corpos. Este mal durou sempre, e mostrou que o aventurei- ro Francez cuidava mais em accumular soldos, do que em tornar-se insigne por algum talen- to militar, que em verdade não parecia pos- suir. Com a chegada dos três generaes , fe-

(/) Em que era elogiado como grande cultivador de ba- tatas.

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lizmente, dividio elle o exercito em três di- visões, e dêo a primeira ao conde de Villa- Flôr; a segunda, ao conde de Saldanha; e a terceira, a dos estrangeiros, ao general Stubbs. Diocleciano Cabreira ficou inspector de artilharia.

No mez de fevereiro se começou logo a sentir o mal que tanto se temia, isto he, a fome ; porque o tempo foi cada vez a peior ; os desembarques se tornarão impraticáveis; e a escacez dos géneros da primeira neces- sidade, com o exorhitante preço dos poucos que havia na cidade, cada dia entrou a cres- cer por um modo grandemente assustador. N'este apuro em que se hia pondo a cidade e o exercito, que o governo, de D. Pedro, não podia occultar, chamou elle a conselho no dia 14 pelas três horas da tarde os generaes das três divisões do exercito, e o general Solignac ; e a este conselho presidio D. Pe- dro, acompanhado do seu ministro, Agos- tinhojosé Freire. Nelle apresentou este map- pas e documentos que provavão: i.° que na cidade havia mantimentos para dez dias : 2.0 que a força inimiga era pelo menos de 24 mil homens, dous terços dos quaes oc- cupavão a linha do norte do Douro, e o res- to ao sul: 3.0 que a força com que podíamos contar para rompermos por entre os inimi- gos , quando chegasse , não excedia á sete mil e setecentos homens. A' vista desta ex- posição fprão requeridos os generaes para da-

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rcm a sua opinião ; c o conde de Saldanha dêo a sua por escripto, e em Francez (g) , para que melhor fosse entendida pelo gene- ral Solignac. Ella se reduzio a dizer: ,,Que ,, sendo mui perigoso e difícil atacar o ini- migo na margem direita ao norte do Dou- ro, se devia fazer o ataque pela margem esquerda ao sul , e da maneira seguinte. Não sendo a força inimiga n*este ponto mais de sete mil homens, a sua direita podia facilmente ser torneada. Para isto se farião passar em Quebrantões os corpos do ataque, dirigindo-os por Oliveira so-

bre o monte grande por detraz de Santo Ovidio; e se faria ao mesmo tempo refor- çar a guarnição da Serra por trezentos ho- mens, deixando setecentos a cavallo sobre a estrada de Avintes, afim de se impedir, quanto fosse possivel, a passagem do ini- migo para soccorrer o sul. Havendo segre- do, a manobra devia ser infallivel em seu bom resultado, que seria conservar Villa- Nova, occupando Val-de-Piedade, e a al- tura chamada dos Saccos, onde o inimigo tinha uma bateria; e limpando a margem esquerda até o mar. O maior perigo que n'isto podia haver era que o inimigo for- çasse as linhas do Porto durante esta ope- ração ; mas neste caso o nosso exercito ,, com uma marcha, ao menos, sobre o ini-

(g) Eu a tive em minhas mãos, e ali, mostrada por SaU danba.

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migo, podia manobrar na Beira, ou lançar- ,, se na Estremadura, e ir morrer ás cortas ,, de Lisboa. A todos pareceo bem , e o único adoptavel, este projecto : porém quan- do menos se esperava, e com grande espan- to dos três generaes , então disse Solignac, que n'aquelle momento não havia munições suficientes para esta operação , porque para cada soldado apenas poderião haver oitenta cartuchos (h). Assim, a cousa nenhuma ficou reduzido este ousado projecto, que manites^ tava tanto a capacidade militar do conde co- mo a sua indisputável valentia.

No dia 18 deste mesmo mez de feve- reiro foi encarregado o general conde de Sal- danha do commando e direcção das tropas e fortificações da esquerda da nossa linha des- de Lordelo até o mar, incluido o castello da Foz. E na mesma data se lhe expedio um oíficioa declarar-lhe, que, além do comman- do da esquerda da linha até o mar, compre- hendendo-se nella o castello da Foz, se man- dava pôr igualmente debaixo das suas ordens o terceiro districto da mesma linha, comman- dado pelo brigadeiro Brito, para que, em caso de ataque, podesse immediatamente dis- por de todas as tropas que guarnecião aquel-

(A) E<>ta mesma pólvora , que havia , linha sido manda- da por Mendizabal , sem que ninguém lhe tivesse partici- pado que havia falta delia. Isto disse elle em Londres , e eu o vi cscripto em uma carta vinda d 'ai i com data de J ddbril deite anno. Que governo I ! I

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les pontos. Sem perder um momento cui- dou elle logo em segurar a estrada da Foz, que estava quasi impedida por uma negligen- cia , ou ignorância inacreditável. Escolheo duas novas e importantíssimas posições, que fôrão as chamadas do Pasteleiro (/), e do Pinhal, em que fez construir dous fortes re- ductos , cuja necessidade até ali ninguém ti- nha visto, nem o mesmo general Solignac. Com elles se emendou, quanto foi possível, o erro imperdoável do mesmo general Fran- cez de não ter segurado no dia 24 de janei- ro a importantíssima posição visinha do mon- te do Crasto , com a posse da qual , sem as obras do conde de Saldanha, os rebeldes nos terião em poucos dias cortado as nossas com- municações com a Foz. Esta sábia operação do conde o acreditou logo não para com os nossos, mas para com os estrangeiros que estavão no Porto , por uma tal maneira, que desde aquelle dia mais e mais se fortificou a idéa geral de que elle era o único que po- dia salvar a pátria e a liberdade; o que os seus mesmos inimigos não se atreverão a ne- gar.

No emtanto que isto assim acontecia hia crescendo a falta de todos os mantimen-

(1) Este logar tomou o nome de um celebre pasteleiro , pai de outro célebre individuo José Luiz Pinto de Queireit nomeado official de secretaria pelos homens de 1SS20; e que depois se conspirou contra elles , e se tornou insigne na épocha da usurpação , servindo«a em tudo, e especiaimeil» te na redacção da gazeta de Lisboa.

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tos no Porto , e caminhavão rapidamente a cidade e o exercito para o estado de uma ver- dadeira fome, não pela negligencia ou presumpção dos que ate ali tinhão adminis- trado os negócios , porém ainda pelos actos posteriores da nova administração. Na épo- cha anterior da primeira administração, com- posta de Palmella, os dous Mousinhos, e o constante ministro da guerra Agostinho José Freire, tinhão-se desprezado todos os recur- sos para abastecer a cidade e o exercito, ora deixando em poder do inimigo em Villa-No- va uma quantidade immensa de vinhos e a- guas-ardentes ; ora permittindo a franca sahi- da pela barra de géneros da primeira neces- sidade, só pelo mesquinho engodo de alguns direitos que taes sahidas produzião. Entre el- las mencionarei as seguintes , que fôrão sete navios de bacalháo, três de trigo, e mui- tos outros com géneros diversos ; e por es- tas se pode avaliar qual era a intelligencia de taes governantes, e quaes erão as suas theo- rias de economia politica. No presente mi- nistério a administração n'este ponto ainda foi mais imprevidente. Ao mesmo tempo que no dia 14, como mencionei, este minis- tério declarava no conselho de generaes, pre- sidido por D. Pedro, que havia mantimen- tos para dez dias, e depois no dia 26 decla- rou ainda que os havia para três , regei- tava elle, ou se não queria aproveitar das of- fertas que se lhe fazião. No dia 18 d*este

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mez de fevereiro, depois de muitas diligen- cias do negociante Inglez , mr. Noble , ajus- tou com elle o ministro da fazenda a com- pra de três mil quintaes de bacalháo, que se achavão a bordo de um bergantim Inglez, fun- deado defronte do Porto, dizendo-lhe, que em meia hora lhe mandava o contracto para ser assignado. No dia 22 ás dez horas da noite, em que o general Saldanha fazia des- embarcar duzentos Belgas que tinhão chega- do em um barco de vapor , vendo que igual- mente se não desembarcava o bacalháo, foi elle immediatamente indagar do patrão mor a razão porque se não fazia o desembarque. Respondeo este que o capitão dizia não o poder desembarcar sem uma ordem do con- signatário. No mesmo instante o conde es- creveo ao general Solignac a pedir-lhe ou a ordem do consignatário, ou a authorisação para tomar posse do navio. Erão duas horas da madrugada, e então apparecêrão no cas- tello da Foz, onde estava Saldanha, mr. No- ble, Thomaz Pinto, e o commissario em chefe; e por estes soube elle que a sua car- ta tinha produzido grande sensação e espan- to , porque D. Pedro mandou logo chamar os ministros, tratou-os mal, dizendo-lhes, que o tinhão enganado , affirmando-lhe que o contracto com mr. Noble estava conclui- do , quando tal não havia , e o navio es- tava prompto para se fazer de vela no dia seguinte. Ainda nesta mesma madrugada foi

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mr, Noble a bordo , e ajustou o bacalháo ; mas o tempo pciorou , e não se pôde fazer d'elle o desembarque. D'este facto se co- mo governavão os ministros de D. Pedro, os mesmos, que no dia 14 tinhão officialmen- te participado em conselho, que a tropa tinha rações para dez dias, e que depois no dia 26 accrescentáraoque as havia para três dias. Os leitores escolherão o nome que lhes compete por este acto, porque eu, como historiador , narro o facto acontecido , e que me foi contado por Saldanha.

Ainda outro facto. Quando o general Saldanha estava mandando fortificar as duas bellas posições que tão habilmente havia es- colhido para segurar livre o caminho da Foz, exigio do ministério que se lhe mandassem algumas mantas ou cubertores com que os seus soldados se pudessem cubrir de noite, estan- do expostos a todo o rigor das chuvas e do frio; nunca porém as suas requisições tiverão resposta. Afinal, sendo informado de que, por acinte ou desleixo, o governo recusava attender á sua requisição, porque na realida- de existião no arsenal os objectos requeridos, foi elle mesmo descubrir ali 600 mantas es- condidas, que de propósito se oceultavão, e de certo para indispor os soldados contra o seu general, a quem se queria fazer perder a sua bem merecida popularidade, qne muito ator- mentava a seus invejosos inimigos. Este facto me contou igualmente o conde general.

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No dia 2$ ou 26 cTeste mez se dêo em- fim uma resposta negativa a mr. Varene a respeito do empréstimo de mr. Heurtault , de que antes fallei. Assim este ministério no mesmo tempo em que declarava que não tinha víveres nem munições para o exercito , recusava ainda absolutamente um empréstimo em que se lhe offerecião dinheiro e solda- dos , sem nem sequer querer entrar em ne- gociações com os emprestadores para a mo- dificação ou alteração das suas condições. Os motivos que para isso houve alguém attribuio a ter esta negociação sido apresentada pelo conde de Saldanha, e os companheiros, que com elle assignárão o projecto.

Em todo este mez de fevereiro o tem- po foi rigorosíssimo, e a barra, ou os des- embarques estiverão quasi impedidos, tendo entrado apenas cousa de 200 soldados estran- geiros com algumas poucas munições. Co- meçou-se a sentir na cidade uma falta quasi absoluta dos géneros da primeira necessida- de , como pão, azeite, unto, manteiga, e carnes ; e apenas ella se sustentou em todo este tempo com algum bacalháo , e arroz. A gente pobre, e a menos abastada teria em grande parte morrido á fome a não ser a chari- tativa lembrança de alguns philantropos, tan- to nacionaes como estrangeiros , que conce- berão aidéa de estabelecer, por meio de sub- scripçóes, uma sopa económica diária, da qual se chegarão a dar em alguns dias cinco

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mil rações a indivíduos de todas as classes , reduzidos á ultima miséria. Para este acto de summa charidade concorrerão também muitas pessoas de Lisboa, d'onde para este fim vic- rao sommas avultadas. Á todas estas priva- ções se ajuntou ainda oflagello da cólera mor- bits, devido especialmente á fome e á misé- ria ; e simultaneamente a violência dos se- questros, e das contribuições forçadas, que, na execução, era a's vezes mais feroz e mais barbara do que a ordem que as authorisava. Mas tudo isto parecia melhor do que accei- tar um empréstimo, que remediaria muitas d'estas violências, e que não era tão onero- so como os que depois o mesmo governo ap- provou. O ministério mostrava-se porém su- perior a todas estas calamidades reunidas, porque no meio delias se julgava tão desas- sombrado e seguro que se occupava em fazer ]eis para um paiz que ainda estava todo no poder do inimigo, e para cuja conquista se recusavão todos os meios efficazes. Creava- se um exercito de empregados para um tão limitado império como a cidade do Porto: nomeavão-se de ante-mão juizes e magistra- dos para logares e relações , que não exis- tião, nem podião existir em quanto D. Mi- guel estivesse senhor do reino : organisavão- se espreitadores das palavras e acções dos que não adoravão o bezerro de ouro do po- der : formavão-se clubs regulares , ou lojas maçónicas, ás quaes , se dizia , que cada um

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dos membros do ministério presidia: chama- vão-se emfim para os empregos, ou ganha- vao-se com certas mercês, em promessa ou realidade, os indivíduos mais insignes ou pe- los seus serviços rendidos á usurpação, ou pela sua servil condescendência em adorar a actual administração. Com estas diversas co- hortes, espécie de criadagem politica, se sus- tentava , e se foi sustentando o ministério, apoiando-se com um braço sobre as extorsões diárias, e com outro sobre a indifferença de D. Pedro, que nem ao menos sentia o peso de descrédito com que se abatia na opinião de nacionaes e estrangeiros, sofTrendo uma tal administração. Ao mesmo tempo a nobre, e sempre leal cidade do Porto, e o valente exercito que a defendia soffrião , com uma paciência heróica, tanto os desatinos ou er- ros de seus governantes , como os estragos, as mortes, e as misérias d'esta guerra bar- bara e brutal, que os servos do usurpador lhes fazião , com a idéa de reconquistarem a liberdade que havião perdido. Sim, por el- la , e não por taes homens que os governa- vão , he que elles tantos sacrifícios fízerão; e o maior d'clles, o de sofTrerem calados, para não darem maior força ou gloria a seus inimigos.

O mez de março d'este anno começou com um feito heróico do general Saldanha. disse como Solignac tinha perdido todas as vantagens do seu ensaio militar no dia 24

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de janeiro ; porque ficando senhor da impor- tantíssima posição do monte de Crasto com a qual cubriamos , e segurávamos os nossos desembarques, e alongávamos , e aperfeiçoá- vamos a nossa linha , a entregou aos inimi- gos, depois de lhes ter feito ver a impor- tância d'ella, que fôrão immediatamente for- tificar. Havendo sido, depois d'isso , como também mencionei , encarregado o gene- ral Saldanha da defeza da esquerda da nossa linha, vio elle logo as consequências da per- da daquella posição essencial, e procurou remediá-la quanto era possível, formando dous reduetos nos logares chamados do Pasteleiro, e do Pinhal (k). Começou-se a obra, e com uma actividade incrivel ficou em poucos dias em estado de dar cuidados aos rebeldes. Es- tes, que bem virão, e sem difíiculdade per- ceberão a importância daquelles trabalhos , não perderão tempo em ver se os podião inu- tilisar ; porque em verdade elles hião consi- deravelmente diminuir-lhes o valor que tinha a sua posição do Crasto, Para este fim en- tráião a chamar para ali grandes forças, e di- zia-se que montarião a io^ooo homens. O conde general , advertido d'isto , cuidou em adiantar o mais depressa possível as suas obras ; e presentindo a proximidade de um ataque, dêo as suas ordens, e fez as suas disposições com uma pericia , e habilidade consumadas.

(/.-) A este deião soldados o nome do redueto Sal- ia» ha.

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Ordenou que as suas baterias, que ainda es- tavão encubertas , se conservassem no mes- mo estado para fazer crer ao inimigo que ain- da lá não tinha artilharia ; e mandou aos sol- dados que se escondessem com os reduetos, e não lhe fizessem fogo até que não estives- se a tiro de fusilaria , que devia ser acom- panhada de uma descarga de metralha. Na madrugada do glorioso dia 4 os rebeldes, pen- sando que as obras apenas estavão começa- das , e não vendo nem artilharia , nem for- ças que as guarnecessem , avançarão altivos em grandes columnas , confiados na sua su- perioridade numérica , e como assim certos da victoria. Mas tanto que chegarão a tiro para poderem ser competentemente recebi- dos, então se executarão as ordens do gene- ral , e os rebeldes , quando menos o espera- rão, se acharão envolvidos no meio de um terrível fogo de mosquetaria e metralha, A confusão e espanto íôrão geraes e instantâ- neos; e por mais que seus commandantes os quizessem levar ás trincheiras não o poderão conseguir. Ainda tentarão com novas colum- nas experimentar seus destinos, mas uma car- ga de baioneta, feita pelo bravo 10 de in- fantaria e outra tropa, os arrojou em um ins- tante até dentro de suas trincheiras , d'onde nunca mais se atreverão a sahir. Dentro de poucas horas, depois de um fogo violento, estava o negocio concluído; e a nossa tropa, para quem de ante-mão o general tinha pre-

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parado um bom refresco de comida e bebi- da, já cantava a victoria dentro do invencí- vel reducto (/) , que tão valentemente tinha defendido. O que mais caracterisou este bri- lhante feito darmas foi que elle se concluio com apenas mil e duzentos homens , se tan- tos fôrão, contra dez mil rebeldes : tanto pa- ra o seu bom resultado concorreo a habilida- de do general. Na sua extremidade da linha, para o lado da Foz , houve a mesma fortu- na ; porque no centro o bravo Shaw , com- rnandante dos Escocezes, e na Luz o valen- te e habilissimo Pacheco, digno d este nome histórico, completamente desempenharão as ordens do seu general, e íizerão ver ao ini- migo que erão dignos de ser commandados por um tal chefe.

Este dia poderia ter sido ainda mais van- tajoso, ou ter resultados ainda mais decisi- vos e brilhantes se o general Solignac o ti- vesse melhor aproveitado. Disse-me o gene- ral Saldanha , que ao mesmo tempo que es- tava arrojando para longe o inimigo, lhe man- dara , por duas vezes , rogar que fizesse um movimento forte pela sua direita, porque de vencer estava elle seguro, e assim involves- se os rebeldes, porque talvez por esta ma- nobra elles soífreriao uma completa derrota , e perdessem a sua importante posição do Cras- to. Porém Solignac, por uma incomprehen-

(0 O Pa jt cieiro.

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sivel prudência, ou pelo quer que fosse, dei- xou-se estar, em quanto durou o combate, pa- cificamente socegado ao lado de D. Pedro no sitio do Bum-Siicccuo , tendo ali a's suas ordens alguns mil homens. Nem ao menos foi ver de perto o que se passava no Paste- leiro, talvez por não ter grandeza d alma bas- tante para presenciar a bella acção com que Saldanha se estava eminentemente distinguin- do.

Este glorioso feito darmas dêo bem a conhecer o que se podia esperar do conde como militar; influio medo e respeito entre os inimigos j creou um novo enthusiasmo pa- ra com elle não entre os soldados e o po- vo, mas entre os mesmos estrangeiros resi- dentes no Porto, que á boca cheia declara- rão, e o escreverão para os paizes do seu nascimento, que era a mais brilhante acção que até ali se havia dado, e na qual se ti- vesse desenvolvido uma verdadeira pericia mi- litar. Em uma palavra, com ella e por ella se conservou a Foz , sem a qual todos fôrão de opinião que se não poderia conservar por muito tempo. E em verdade, os inimigos hião constante e methodicamente estreitan- do tanto aquelle passo, que, sem as obras do conde general, e bizarria com que as defen- deo, todos unanimemente confessarão, que elle em poucos dias se perderia sem remédio. Os destinos de Saldanha cada vez se torna- rão mais favoráveis, porque depois da sua

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brilhante victoria melhorou o tempo, e com elle se renovarão os desembarques, que, por perto de um mez, tinhão estado impedidos pelo rigor do inverno e contrariedade dos ventos. Desembarcarão alguns Irlandezes pa- ra o exercito , assim como muitas munições de guerra e de boca, de que a falta se tinha tornado excessiva, e chegado ao ponto de dar receios mui sérios. Mas todos esses des- embarques de víveres que se começarão lo- go a fazer, e quasi sem notável interrupção, iôráo paralisados no seu mais importante ef* feito por um systematico monopólio. Dizia- se que os desembarques especialmente se fa- cilitavão para certa gente, que era da fac- ção ministerial; e os nomes que neste trafi- co bárbaro mais se ouvião nomear erão os de alguns amigos ou afilhados dos ministros ; os quaes, accumulando em si e seus sócios quan- tos víveres podião desembarcar, lhes punhão um preço excessivo, e os difficultavão ao po- vo que continuava sempre a sentir os effeitos da fome. Tal era a voz publica; e he pura- mente o que eu menciono, porque tinha ou- vidos para ouvir, e mãos para escrever.

Por este mesmo tempo o capitão Inglez Warner) que, por muitas vezes, se tinha ofFerecido ao ministério de D. Pedro para ser empregado contra os rebeldes, e nunca d'el- le havia tido resposta , renovou pela ultima vez o offerecimento de seus serviços. Con- sistião elles na promessa de queimar a esqua-

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dra de D. Miguel, e empregar outros diver- sos meios de destruição contra as mesmas for- ças de terra, meios, que erão de sua pró- pria invenção e segredo. Para este fim tinha elle vindo de Londres ao Porto, e a sua pro- posta na ) se podia prudentemente desprezar no estado critico em que estávamos ; porque em summa dizia , que não exigia dinheiro al- gum adiantado, e que se não cumprisse por cul- pa sua o que promettia executar , declarava , que nada se lhe pagaria (;;;). Afinal constou- me que, depois de muitas solicitações, al- gum arranjo se fizera com elle ; e em conse- quência d'isto partio para Inglaterra afim de ali arranjar as cousas de que precisava para pôr em execução as suas promessas. Do re- sultado d'este negocio ainda adiante fallarei n'estes Annaes , caso que elle chegue a ter alguma realidade.

Também, pouco mais ou menos, pelos mesmos dias chegou de Paris a Londres Leo- nel Tavaras Cabral com o complemento fi- nal do empréstimo offerecido por mr. Heur- tault, e de que antes fallei. Este comple- mento consistia no arranjo que o empresta- dor tinha concluído com alguns banqueiros de Paris , e com um dos agentes d*aquella praça para pôr á venda e administrar os fun- dos do dito empréstimo. Os banqueiros erão

(m) Eu vi a sua proposta com as condições indicadas, e atsisti a algumas das suas experiências.

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messrs. Musset ainé , e Sollier e companhia: o agente mr. Amet. Apesar d'isto o ministé- rio de D. Pedro persistio firme em o recu- sar ; e preferio constituir-se avexador cruel dos habitantes do Porto ao plano leal e re- gular dos empréstimos. Em verdade, pode- ria ser desculpável se, quando recusava, por um falso calculo, ou qualquer outro motivo, os empréstimos estrangeiros , contrahisse al- gum regular dentro do Porto ; mas não o fez assim , porque quiz antes apouquentar com ameaças, violências, e até com prisões ar- bitrarias os tão vexados e espoliados habi- tantes do Porto. Por este mesmo calculo eíle tinha regeitado outro que em Londres se havia arranjado debaixo da influencia do marquez de Palmella (;/) ; e por todos estes factos fazia nascer desconfianças , ou más in- terpretações sobre seus actos.

Houve também ainda por este tempo a chegada ao Porto de um homem notável , que foi José Balbino de Barbosa e Araújo (o), o qual por muitos annos tinha servido em Londres de secretario de embaixada , e al- gumas vezes de encarregado de negócios.

(«) Tão avara de empréstimo» se mostrava n'este tem» po a gente de D. Pedro, quando elles erâo necessários, quanto depois se mostrou pródiga d'elles em Lisboa. A razão era, porque nada era bom que nâo fosse feito pelo seu amigo Menditabal ! O tempo mostrou o que foi este homem.

00 Hoje Baião de Tiliíeiras.

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tinha estado no Porto com o marquez dePal- mella, ed'dli tinha sahido com elle para Lon- dres quando fora encarregado de certas ne- gociações. Como porém toda esta missão hou- vesse sido uma verdadeira decepção para se poder instalar á vontade o novo ministério, e este a desse logo por acabada , achou-se portanto José Balbino em Londres comple- tamente desoecupado dos trabalhos para que havia sido nomeado. N'esta situação o minis- tério Britânico, que sempre o havia tratado com summa distineção, e que muito a mal havia levado a dimissão diplomática que se havia dado a Palmella , particularmente por- que esta lhe fora dada por uma administra- ção sem credito , e que não tinha o respei- to nem a consideração de pessoa alguma tan- to dentro como fora de Portugal , fez com que o mesmo José Balbino, regressando do Porto , se incumbisse de mui importantes e confidenciaes despachos para D. Pedro. O contheudo d*elles, segundo então correo, era o expôr-lhe o máo efeito que havia produzi- do nos gabinetes da Europa a desacreditada escolha de seus novos ministros ; escolha, que podia mui fatalmente influir nas boas dispo- sições que a nossa causa até ali tinha exci- tado em algumas cortes. Comtudo, os acon- tecimentos futuros mostrarão que estas ami- gáveis advertências em nada chegarão a al- terar as sympathias que tinha D. Pedro para com os seus novos ministros^ quer fosse por

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conformidade de caracteres , quer por con- formidade de interesses, (p)

No dia 6 , por incúria e improvidencia deste mesmo ministério, perdemos dentro do rio Douro um excellente navio, o brigue 23 de julho , metido a pique pelas baterias ini- migas. Muitos dias antes tinha elle sido avi- sado das intenções do inimigo, e, sem lhe importarem taes avisos, nem fez mudar de posição o navio, nem lhe tirou antes a arti- lharia, e tudo o mais que n'elle havia de va- lor; e nem ao menos se lembrou de o fazer mergulhar como depois fez a outros para os salvar: parece que de propósito quiz perder aquelle vaso. Pouco depois, como se expres- samente quizesse anniquilar toda a nossa ma- rinha, dimittio no dia 13 d'este mez por um modo indigno, e assaz injusto, o vice-almi- rante Sartorius^ que estava fundeado com to- da a nossa esquadra nas aguas de Vigo. Dêo motivo a este acto uma carta que no dia 10 o mesmo vice-almirante tinha escripto a D. Pedro , queixando-se da ingratidão com que o tratavão, da falta de cumprimento de to- dos os artigos do seu contracto não para

(/>) Com particularidade Inglaterra , França, e Hespanha nâo podiâo tolerar o novo ministério, e assim o tinhão dado a saber. Da cooperação da ultima necessariamente se precisava para se entrar em alguma negociação, como lord Grey o tinha declarado em parlamento ; mas com tal mi- nistério era difficil esta cooperação ; e D. Pedro, que sabia tudo isto , pôz inadmissíveis condições quando se 1he fal» lou em mudança de ministério.

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com elle mas para com as suas tripulações ; e declarando-lhe , que se não se lhe davão as providencias que por muitas vezes tinha reclamado, e então renovava, se veria na du- ra necessidade de partir com os navios do seu commando para Inglaterra afim de ali exi- gir dos agentes da Rainha, com quem tinha feito o contracto, o cumprimento d'elle, pa- ra que as suas embarcações não tivessem o mesmo destino que tivera o navio Eugenia (q). A resposta a esta carta foi a dimissao de que acabo de fallar, debaixo do pretexto da des- obediência do vice-almirante , e do pouco respeito com que tratava D. Pedro e o seu governo. Para maior loucura se publicou lo- go na gazeta o decreto da sua dimissao an- tes de lhe ser intimado; e como remate de tudo se mandou á esquadra sir João Doyle para lho intimar, e o prender, e trazer pre- so no caso que não quizesse obedecer. Eu tive na minha mão uma copia fiel das instruc- ções dadas para este fim, datadas do dia 13, e assignadas por Bernardo de Nogueira , que, n*aquella administração do Porto, fígu-

(17) O navio Eugenia tinha fugido da esquadra para In- glaterra pelo motivo de se não haver cumprido para com a sua tripulação o contracto feito com elle, e andar mui- tos mez<?s atrazado em pagamento. O vice-almirante Sarto- rius disse, e repetio muitas vezes n'esta épocha , que ha- via já mezes que elle não era o commandante, mas sim a tripulação, á qual não podia dar ordens, porque se havia faltado a tudo o que se lhe tinha promettido. Assim mes- mo não querião empréstimos.

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rava como ministro da marinha. Delias o ar- tigo 4/ e o ultimo, era litteralmente o se- guinte:—,, Se, contra a expectativa do go- verno de S. M. F. , acontecer que o vice- ,, almirante Sartorius se recuse a entregar o commando da esquadra, depois de esgo- ,, tados todos os meios de persuasão, e boa intelligencia , fica authorisado sir J. M. 5, Doyle para prender, e fazer conduzir ao Porto o vice-almirante Sartorius por causa da sua insubordinação. ,, Com effeito na cabeça de homens taes como os que en- tão compunhão o ministério de D. Pedro, podia caber a insana idéa de mandar pren- der o vice-almirante Sartorius, um official In- glez , dentro de uma embarcação tripulada com Inglezes, e em meio de outras guarne- cidas de gente da mesma nação, e a quem, ainda mais, se devião seis mezes de soldo, e se havia faltado quasi em tudo do que se lhes havia promettido ! A estulticia , em meio de seus delirios, nunca concebeo uma qui- xoíada tão absurda , e tão ridicula. O mes- mo homem a quem se incumbio esta louca diligencia, além de ser um inimigo decla- rado do vice-almirante, não tinha opinião alguma entre os Portuguezes, e muito me- nos entre os Inglezes. Esta operação de ar- rojo ministerial teve, portanto, o resultado que devia ter; porque Sartorius mandou im- mediatamente prender o pobre mensageiro que lhe levava o cordão Turco, e zombou

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completamente das ordens impotentes dos homens que o tinhão encarregado d'aquella louca missa). Depois d'isto, para mostrar que era superior a todas as ingratidões e a todas as injustiças , escreveo ao general Sal- danha, e ao conde de Villa-Fiôr a partici- par-lhes o seu procedimento, e ao mesmo tempo a protestar-lhes, que nunca desampa- raria a causa da liberdade, e da Rainha; e que se a esquadra inimiga apparecesse , não hesitaria um momento em a ir encontrar. A este nobre procedimento acerescentou ainda, pouco tempo depois, outro que foi o de no- mear, entre os aibitros e juizes das suas re- clamações, o conde de Saldanha, o qual , acceitando, lhe rogou que nomeasse também o conde de Villa-Flôr, o que elle assim fez. Este brioso proceder de Sartorius, for- tificado com alguns novos recursos, mudou em pouco tempo a face dos negócios, e fez com que todos os receios a respeito da esquadra cessassem ; porque Sartorius veio com ella to- da fundear no dia 18 do mez seguinte em fren- te da barra da Foz. A causa principal de to- das estas desavenças, que podião haver tido mui funestas consequências, tinha sido a fal- ta de pagamento em que depois de muitos mezes andava a esquadra ; e esta falta tam- bém era acompanhada de outra não menos importante, que era a de munições de guer- ra e de boca , e de alguns essenciaes appa- relhos para poder navegar. Parte disto foi

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logo supprido de Londres, onde este nego- cio foi considerado como o devia ser por al- guns homens bons patriotas (r), dantes acostumados a valer-nos em outras crises tão perigosas como esta. O que porém será diffí- cil de acreditar he que então muita gente jul- gava e dizia, (eu conto o que ouvi) que o ministério era quem fomentava, e creava es- tas dificuldades no tocante á esquadra ; ao menos o facto seguinte, que me foi affiança- do por mais de uma pessoa , dava motivos a similhantes juizos. No tempo em que es- te importantíssimo negocio se tratava , e to- dos estavão com os olhos fitos no mar , e á espera do que Sartorius faria, António Cé- sar de Vasconcellos, official militar distincto, fji-se ter com Bernardo de Sá, então no mi- nistério da marinha , e se lhe oíFereceo para ir ás ilhas dos Açores, onde era muito co- nhecido e tinha credito , e ali contrahir um empréstimo com que promptamente se pagas- sem as dividas da esquadra. Parece que es- ta offerta devia ser bem acceita , e conside- rada como uma grande fortuna em similhan- te occasiao , porém não- aconteceo assim , porque se lhe respondeo : que o governo não precisava de dinheiro. E era isto quando a es- quadra se revoltava por falta de pagamento ! Mas o caso he que os acontecimentos futu- ros desmentirão esta fanfarronada ou antes

Cr) Creio que um d'elles foi Henrique José da Silva. A remessa fez-se no navio Edyvard,

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esta inconsequência ministerial ; porque nem á esquadra se pagou logo o que se lhe de- via , nem o governo cessou de empregar os meios violentos para haver algum dinheiro.4 Fundavão-se todas as suas esperanças nas ne- gociações mercantis de que , segundo então se disse, tinha hido encarregado para Lon- dres Rodrigo da Fonseca Magalhães. Não constou porém que fosse feliz n'esta nego- ciação, porque não se soube que a causa pu- blica ganhasse com ella, bem que alguém aííirmasse, que a certos respeitos não deixa- ra de ser proveitosa. Eu conto não os ca- sos de que tive certeza, ou probabilidades, mas até os boatos ; porque estes mostrão o que se pensava n'esse tempo dos homens de quem estou escrevendo.

A par de tantos desacertos não deixa- rão com tudo de brilhar n'este mesmo mez grandes virtudes militares. No dia 24 resplan- deceo mui conspicuamente o nosso valor no combate, chamado das Antas. Tinhamos to- mado esta posição importante, e n'ella se prin- cipiava já a formar um redueto ; mas por ne- gligencia de quem defendia aquelle ponto da linha um pequeno piquete se tinha deixa- do para adefeza das obras apenas começadas. Na madrugada do dia 24 os rebeldes ataca- rão em grande força o nosso pequeno pique- te , e este foi forçado a retirar-se, e a lar- gar-lhes o redueto, cujas obras, apenas prin- cipiadas j elles logo entrarão a destruir. A

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honra da nossa causa , e o valor dos nossos soldados não permittiao que esta ousadia, fi- lha da surpreza, ficasse impune; e por con- sequência se derão logo as ordens para se retomar aquella posição importante. Debalde o inimigo se quiz ali manter não com as forças que occupavão o reducto, mas com outras novas, e assaz numerosas, que logo juntou para apoiarem as primeiras; porque tudo cedeo ao valor e intrepidez dos nossos soldados, que á ponta da baioneta o fizerão retirar e fugir. Ainda elle tentou com novos ataques recobrar o que por surpreza tinha ga- nhado, e fracamente largara; mas todos os seus esforços fôrão inúteis, e a posição das Antas ficou em nosso poder. Para esta victo- ria também muito concorreo o bem dirigido fogo das nossas baterias ; de maneira que os rebeldes, flanqueados pela nossa artilharia, e tendo em frente as nossas baionetas, per- derão de todo as esperanças de occupar a po- sição. Este glorioso combate consideravel- mente os desanimou; e o terror, dantes n'elles infundido depois da severa lição que no memorável dia 4 lhes havia dado o gene- ral Saldanha, geralmente se espalhou por to- das as suas linhas, eos tornou cada dia mais medrosos, contentando-se com se intrinchei- rarem , sem mais se lembrarem de nos ata- car.

Assim acabou o mez de março, que a- brio caminho para uma nova, e ainda mais

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brilhante victoria no seguinte mez de abril. Seguirei porém a ordem dos tempos, e re- ferirei antes delia outros factos importantes, que, sem serem gloriosos, merecem com- tudo ter um logar distincto n'estes Annaes , para conhecimento dos homens que então fi- gurarão. No anniversario da Rainha D. Ma- ria II., que por neste anno cahir na sema- na sancta, se celebrou no dia 8 d*este mez de abril, publicárão-se muitos despachos e mercês, que, na opinião de muita gente, traziao o sêllo da parcialidade, e das affei- çòes de partido. Despacharão-se militares, preterindo uns, e esquecendo outros, que tinha o igual ou mais jaz a esta recompensa. Entre outros muitos mencionarei os seguin- tes. Nomeou-se barão do Pico do Ceifeiro ao governador da Serra do Pillar, Torres, quan- do senão fez menção do general Dioclecia- no Leão Cabreira, o homem, que ousou , o primeiro, desembarcar na ilha Terceira, que a defendeo com coragem , e debaixo de cu- jas ordens o mesmo Torres havia ganhado u- ma assignalada victoria sobre os insurgentes. Isto se teve por mais do que esquecimento ; porque se julgou um premeditado insulto ao general Cabreira, porque não tributava in- censos ao poder, nem auxiliava seus proje- ctos. Entre tantos beneméritos esqueceo tam- bém o honradíssimo brigadeiro Joaquim Pi- zarro, aquelle mesmo que, quando a junta, e tedos os generaes fugiao do Porto no an-

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no de 1828, em companhia de seu digno ir- mão Gaspar Pizarro , conduzio valorosamen- te a nossa tropa fiel, entre mil perigos e tra- balhos, por meio da Galliza, com uma cons- tância rara em taes lances , e a levou até a Inglaterra. Sem elle, e sem ella nem tería- mos conservado a ilha Terceira , nem con- quistado as mais ilhas, e nem teriamos vin- do ao Porto para vermos commetter taes in- justiças : apesar d'isso foi esquecido um tal homem! e pelos seus raros serviços, feitos á Rainha e á carta , foi creado duque do Faial (j-)omarquez dePalmella, aquelle mes- mo homem que, ainda não havia muito, ti- nha sido maculado na gazeta do governo com o titulo de traidor ! e isto por esses mesmos homens, que agora o adoravão , e lhe quei- mavão pastilhas de serralho ! Tanto pode o interesse sem caracter ! E não assim se prostrarão diante do idolo que antes tentarão cuspir, e quebrar, mas ainda levarão a mais seus incensos , porque despacharão seus pa- rentes com titulos mais elevados (t). Por fim, para não engrossar a lista destas preferencias, direi que, remunerando-se muitos indivíduos, e alguns com muita justiça, pelos briosos fei- tos do glorioso dia 4 de março d'este anno,

(j) A requerimento seu se lhe mudou o nome d'este ti- tulo em o de duque de Palmella.

(0 Ao conde d'Alva, seu cunhado, e ao conde do Fun- chal , seu tio , se derão os titulos de marquezes. Ao pri- meiro, o de Sanu-Ifu ; e ao segundo, o do mesmo nome.

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absolutamente esqueceo o nome do hábil e valente capitão , que com mandou n'aquelle dia, o general conde de Saldanha : mas es- te affectado e baixo esquecimento muito mais concorreo para a sua gloria , porque na lista dos despachos mais brilhou seu nome, por is- so mesmo que a inveja não quiz que eíleali figurasse.

A mesma escolha , que se tinha obser- vado nas mercês feitas aos militares , se ob- servou ainda nas outras que se fizerão ás clas- ses civis ; porque com iguaes graças se pre- miarão os que abertamente tinhão reconhe- cido e servido a usurpação como aquelles que briosamente tiverão a coragem de lhe resis- tir. Em prova do que venho de referir cita- rei só um exemplo , e este bastará para se ver a indiíferença com que se tratavão as vir- tudes publicas , e se premiavão os públicos delictos. Entre o numero dos togados , que noanno de 1828 compunhão a relação do Por- to, dous honrados magistrados houve que só, entre tantos , ousarão resistir ás ordens do usurpador, quando, por seus agentes, exi- gio que o pedissem pararei: estes dous hon- rados magistrados fôrão os desembargadores Sampaio , e Sarmento. Dêo-se-lhes a carta de conselho como recompensa da nobreza de ca- racter quen'aquella épocha mostrarão, e bem merecida foi esta recompensa; mas o que ao mesmo tempo pasmou e escandalisou foi da- rem-se prémios idênticos , ou similhantes, a Tom. IV. d

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dons dos seus collegas que, na mesma épo- cha , tinhão pedido o usurpador, e seivido com elle em quanto não desprezados e di- mittidos.

Depois dos escândalos públicos , que tenho relatado, vou passar a objectos mais consoladores, e referirei o glorioso e brilhan- te combate do dia 9 deste mez. No logar chamado do Covello^ á direita da nossa linha, tinhão os rebeldes uma forte posição em que havião formado um reducto , d'onde se pie* paravao para mais nos incommodarem com uma nova bateria. Era de absoluta necessida- de obstar logo no começo a estes trabalhos; e isto se fez na madrugada do dia 9. Fôrão os rebeldes atacados com tal impeto e reso- lução que, espavoridos, e quasi sem resis- tência, largarão immediatamente aquelle for- midável posto, deixando apoz elle todos os roateriaes, que erão muitos, e até as ferra- mentas com que estavão trabalhando no re- ducto. Acordados do susto que tiverao, e como envergonhados da sua covardia , pre- pararão-se com grandes forças, e com ellas nos vierão atacar por diversas vezes; poiém em todas fôrão valentemente repeli idos. Os seus ataques se repetirão por dous djas sem nenhum d*elles lhes ser favorável , até que emflm, convencidos de que tinhão perdido para sempre a posição e o reducto , cessarão de nos tornarem a incommodar de perto, a- penas ladrando de longe com a sua artilha-

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ria , debaixo de cujo fogo nós concluímos o reducto, e n'elle estabelecemos uma forte bateria. O susto que tiverao na primeita sur- preza que se lhes fez foi tal, que, pensan- do já que hiamos a elles de veras , muita da sua gente debandou, e foi levar o terror até Braga e Guimarães, onde somente pa- rou. Se o general Solignac fosse um homem de atrevidas concepções, e não tivesse até ali sempre mostrado uma incomprehensivel prudência, teria nesse dia talvez dado cabo de quasi toda a força inimiga, e talvez ain- da concluído a lucta , attendendo ao terror que o nosso ataque produzira nos rebeldes ; porém Solignac, o prudente por excellencia, deixou escapar esta occasião, assim como o tinha feito em outra bem similhante, o combate de 4 de março, esse grande dia de gloria do Saldanha. Se este agora tivesse re- cebido ordem para fazer um ataque vigoroso pela nossa esquerda em quanto o inimigo es- tava seriamente occupado em a nossa direita no Covello , de certo teria eíle levado dian- te de si os rebeldes, e sem grande dificul- dade lhes haveria tomado o monte do Cras- to, a posição , que maiores trabalhos nos dêo sempre pelos embaraços que punha aos desembarques. Mas tanto na guerra como na paz, e particularmente na épocha da emigra- ção, a nossa lnstoria tem sido constantemen- te a historia das- occasioes perdidas.

No meio dos grandes exemplos que da-

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va a nossa tropa e a povoação do Porto, des- envolvendo uma paciência, um patriotismo, e um valor, raros em taes. circumstancias, e em taes tempos de calamidades e de fome , os exemplos que dava o governo erão infeli- zes , erão desanimadores. Continuavão as extorsões forçadas , marcadas com o sêllo da violência , e com o caracter de todo o abandono das conveniências publicas. O mi- nistro da fazenda mostrou dar-se mal na ca- sa em que vivia na rua de Cedofeita , e em consequência d'isto procurou mudar-se, e des- tinou para sua habitação e da companhia com quem vivia outra casa na rua de Santo Oví- dio, chamada do cónego Guimarães , da qual fez sahir os emigrados que nella vivião, e erão os irmãos Vieiras de Castro. Apenas en- trou nesta nova casa, immediatamente se espalhou a noticia de que n'ella havia um grande thesouro escondido; e com eífdto este ali se achou , o qual disserão constava de uma avultada somma de dinheiro , e al- gumas jóias. Tudo isto foi logo conduzido, segundo também se divulgou , para casa do juiz do crime do bairro desancta Catharina, José Bernardo da Silva Cabral , homem de toda a confiança do ministro. O publico, na- turalmente desconfiado, e a quem nada se pôde occultar, espalhou logo que o dinhei- ro, dado ao manifesto, não era tanto como se dizia ter-se encontrado (») ; comrudo, n'-

(u) Mão me coimou que então se manifestarem as jóias

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isto podia muito bem não ter razão, tinha-a porém no mais que então geralmente se disse. Porque motivo, dizia o publico, não mandou o ministro descubrir o thesouro antes de entrar na casa, pois era de presumir, ou antes certo, quejád'elle soubesse? Porque o não mandou contar e manifestar diante de testimunhas, e não o fez passar logo para o deposito pu- blico, em vez de consentir que seu confi- dente Cabral o levasse para casa ? Estas ra- zões tinhão muito peso, porque nellas se en- volvia uma grande responsabilidade; mas is- to não se fez , e cada um ficou fazendo o juizo que quiz sobre este acontecimento.

Confesso, que me enfastia a narração quasi constante de cousas desagradáveis e tris- tes , mas a culpa não he minha, he dos ho- mens que figurarão n'esta épocha, e de quem, como historiador verdadeiro, sou obrigado a fallar (#). Assim passo ainda a contar um ex- traordinário successo que, bem que preveni- do a tempo, podia ter comtuda bem fataes resultados. Na tarde do dia 20 do mez de que estou escrevendo umcommissario de po- licia, homem de bem, e por nome Amaral^ veio ter com um seu amigo, o desembarga- dor José de Vasconcellos Azevedo dAthai- de e Menezes, e lhe declarou, que tanto

que dizião se achavâo com o dinheiro.

(x) Eu não devasso na minha historia o interior da ca» sa de.n.ingueui ,. conto o que »e pa>sou , por as.im dizer» no meio da rua.

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elle como outros commissarios de policia a- cabavão de receber ordens verbaes do juiz do crime do bairro de sancta Catharina , José Bernardo da Gosta Cabral , encarregado da policia, para que reunindo toda a sua gen- te, e espalhando-a pela cidade, lhe fizessem gritar de noite Fora com Solignac , que be ir w dor , e viva Saldanha ! Gomo taes ordens lhe parecessem, além de extraordinárias, sum- idamente perigosas, vinha tomar conselho com o seu amigo sobre o que deveria fazer. Este pesando comsigo tal noticia, e commu- nicando-a a alguns dos amigos que estavno coro elle, que erão o coronel de milícias de Casrello-Branco , Albuquerque (y\ e o ma- gistrado Bazilio Cabral, que estava servindo de voluntário no corpo dos académicos, de- pois de bem ponderada toda a gravidade do caso, fòão todos de parecer, que immedia- tamente se de v ião tomar todas as medidas pa- ra impedir um tão desastroso acontecimento, que, na frente do inimigo, podia ser fatal, e trazer çomsigo consequências funestas não para a tranquillidade publica, porém para a segurança da cidade. Em taes termos o Vas- concellos se dirigio sem perder tempo a ca- sa do ministro da fazenda, José da Silva Car- valho, e o Albuquerque a casa do ministro da guerra, Agostinho José Freire. Especial- mente o primeiro exprobou fortemente ao

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0/) Foi alguns amios depois agraciado com o titulo de liarão de Oleiros.

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Carvalho a criminosa ordem que um dos a- gentes do governo acabava de communicar , certamente por instrucções que tinha recebido de algum dos ministros ; expôz-lhe o peri- go que elles mesmos ministros corrião se el- la se executasse; e emfim os resultados, quaes- quer que elles fossem, de um tal attentado, se chegasse a ter o seu effeitOt O ministro Carvalho, aterrado com tal revelação, pela qual seguramente não esperava, ííngio-se, ou na realidade o estava, ignorante de similhan- te noticia; e, ostentando grande violência contra o agente subalterno Cabral, declarou, que no mesmo momento hia sahir de casa, para saber que ordens se derão, e prevenir que ellas se cumprissem. O mesmo declarou o ministro Freire, ainda que menos violen- to em suas expressões ; e o caso foi, quedes- cuberta a conspiração todos , ou de vontade ou sem ella , procuravão abafar a mina que estava prompta para a premeditada explosão. Com cíFeito ella se abafou, e por uma gran- de felicidade nada disto transpirou naquella noite ; de sorte que esta se passou tranquil- la , e na manhã seguinte foi que o povo entrou a saber a crise de que escapara, a en- cher-se de horror contra os que tal plano ti- nhão concebido, e a pesar os males e os pe- rigos de que havia escapado, quando alguns commandantes de corpos erão designados pe- la voz publica como não indifTerentes á exe- cução deste projecto. Mas como todos os

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effeitos tem uma causa, eu exporei aqui o que dêo motivo a este acontecimento, afim de que se saiba de que perigo escapámos, e quaes fôrão as molas que lhe derão o primei- ro movimento, que parou por uma resis- tência que os conspiradores não tinhão cal- culado.

Havia tempo queSolignac não vivia em boa haimonia com o ministério, e particular- mente com o ministro da justiça (js). Este, que o detestava porque suppunha que a cor- respondência delle general para França não era nem em abono delle ministro nem dos seus collegas , tentou interceptar-lhe a cor- respondência, corrompendo o seu secretario, mr. Dupant. Para isto se dirigio a um Fran- cez, chamado Sombré, e por elle he que ten- tou a corrupção. O secretario, achando-se comprado, e trahindo seu amo, afim de que este o não suspeitasse, fez-lhe uma falsa re- velação, dizendo-lhe, que em verdade ti- nhão tentado a sua fidelidade ; porém que elle havia rcpellido a proposta com a indi- gnação e desprezo que merecia. Esta falsa confí lencia , em vez de socegar Solignac, o foi pôr á lerta e em desconfiança ; e d'ali por diante começou a olhar com toda a at«

(*.) E»ia desarmonia tçve talvez a primeira origem em uma representação , que, por parte dos commandantes das divuões , e mai« officiaes do exercito , apresentou o gene- ral Solignac a D. Pc.iro , e este aos seus ministros no fim de fevereiro de i8jj. Será ella transcripla, como peça jut" lificativa, no fim d'e&te volume»

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tenção para o comportamento do seu secre- tario. Vio que elle tinha recentes, e conti- nuadas visitas do tal mr. Sombré, e que a es* te também frequentemente as hia fazer o seu secretario Ditpant ; e suspeitando, portanto, que entre elles se tramasse alguma intriga pa- ra realisar o que o seu secretario lhe tinha annunciado, chamou ásua presenqa o primei- ro, e quiz d'elle saber que negócios o reti- nhão no Porto, e que pessoa podia ali dar que affiançasse o seu caracter. Sombré nomeou immediatamente o ministro da justiça Maga- lhães para seu abonador , o que augmentou as suspeitas deSolignac; e em consequência d'isto disse que dali mesmo lhe escrevesse, e delle exigisse por escripto uma abonação do seu caracter, sem o que o não deixaria sahir da sua presença. Sombré escreveo ao mi- nistro, mas a resposta deste, em vez de ser destinada a acreditá-lo , foi antes uma accu- sação aSolignac por reter como preso em sua casa um homem sobre quem não tinha nem podia ter authoridade , segundo as leis do paiz. Esta foi a única resposta que o minis- tro lhe mandou verbalmente por um dos seus emissários, que apenas a dêo logo se retirou sem accrescentar uma palavra sobre o ca- racter de Sombré, que era o ponto principal que d'elle se exigia. Este, como visse que o ministro o entregava á sua sorte sem dizer cousa alguma que o tornasse recommendavel para com Solignac, assentou que o único meio

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que lhe restava de salvação era confessar tu- do; o que com effeito plenamente executou. Disse, que o ministro o havia encarregado de comprar o secretario Dupant por certa somma de dinheiro, o que tinha consegui- do, e que parte da correspondência do general tinha passado pelas mãos do mesmo ministro ; e tudo isto se passou perante tes- timunhas que para esse fim estavão presentes. Alunido Solignac com esta revelação, e com a authoridade das pessoas que a tinhlo ou- vido, foi com ellas ou parte ter com D.. Pe- dro, e expôr-lhe o delicto que contra elle um dos seus ministros tinha commettido. Ao niesmo passo lhe fez saber, sem reserva, a opinião de que gosava o seu ministério, O descrédito em que estava nao no Porto porém nos paizes estrangeiros , as gravissi* mas faltas que manchavão a sua administra- ção, e a necessidade que tinha de a mudar; concluindo por fim , que ou o ministro, que tão gravemente o tinha oíFendido > havia de ser immediatamente dimittido, ou elle lar- gava o commando do exercito, e se retirava para França com toda a officialidade France- za de maior consideração. D. Pedro , que cordialmente sympjithisava com o seu minis- tério, em vez de ouvir com serenidade as accusaçòes do general , sahio de toda a gra- vidade que Lhe competia, desabafou em quei- xas e ameaços contra o conde de Saldanha , attribuindo a suas intrigas e ambições todo

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o mal que se dizia do seu ministério ; e con* cluio por fim, que com elle trataria o nego» cio que lhe acabava de propor, e em pou« co tempo lhe daria a resposta.

A descuberta da infidelidade, que se fazia a Solignac, pôz em consternação o ministé- rio e o seu chefe; e tratando-se do que con- vinha fazer naquelle caso, porque a alterna- tiva era a dimissáo de um ou de outro, cons- tou , que a balança desde logo se inclina'ra contra o general. Mas para isto era necessá- rio buscar logo quem o substituísse, e o con- de de Villa-Flôr não tinha a opinião da tro- pa nem do povo : recorreo-se , portanto , a um estratagema , que se julgou de um efFci- to infallivel , e que foi fingir pazes com o conde de Saldanha , e tentar a sua ambição. Paia este effeito se mandou á Foz na tarde do dia 19 uma pessoa agradável ao conde, e se lhe pedio , que, da parte do governo, lhe communicasse, que sendo uma cousa des- airosa que o exercito fosse commandado por um estrangeiro, se lhe offerecia a elle o com- mando , pondo para isso todas e quaesquer con* diçoes que quizesse , porque , sem mesmo se lerem, seriao acceitas e approvadas. O conde, que ainda se lembrava do seu Virgílio, on- de diz que se devem temer os Gregos ainda quando fazem presentes, respondeo com mui- ta dignidade: que era elle o primeiro em con- fessar, ser um grande desaire o sermos com' mandados por um estrangeiro j porem que maior

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desaire ainda seria dimitti-lo sem cama, depois de se haver convidado \ e que portanto dessa nódoa não queria elle participar. Par tio o men- sageiro com esta resposta, e succedendo no dia seguinte de manhã 20 passar o conde pe- ja porta de D. Pedro, este ou porque ainda não soubesse o que se tinha passado, ou por- que, se o sabia, procurasse ameigá-lo com apparencias de amisade (a), fallou-lhe da ja- nella , e o obrigou a apear-se , e a ir cum- primentá-lo. Nunca D. Pedro se lhe tinha mostrado tão affectuoso e amável ; e depois de muitas palavras de cordialidade, o des- pedio.

Mas como esta seducção , com que se queria illudir Saldanha para mais facilmente sacrificar Solignac, não sortisse o effeito de- sejado , recorreo-se então n'este mesmo dia a conspiração nocturna , cujas causas acabo de mencionar, bem como as que felizmen- te a fizerao abortar. Foi , portanto , neces- sário sacrificar aos ódios de Solignac o mi- nistro Magalhães, e com elle o agente Ca- bral, do primeiro dos quaes appareceo logo

(0) N'es*e mesmo dia 20 encontrei eu o conde na cata onde morava o major David, fallando com uma pessoa pa- ra mim desconhecida. Como eu isto vme , simplesmente o cumprimentei , e me despedi logo d'clle , peque sup« puz que es'ava tratando negócios particulares. Mas ao re- tirarme veio apoz mim o conde , e apertando-me a mão, di?*e-me , formaes palavras , que como homem verdadeiro refiro , Se eu Jôr assastinado , os meus assassinos sfío ! . . . O homem, que lhe fallava , o tinha vindo avisar que se acautelasse ! . ..

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no dia seguinte a dimissao na Cbronica, ga- zeta official do governo. Náo parou ainda a- qui este caso, porque no dia 23 appareceo na Chromca um artigo infame contra Solignac, Stubbs , e Saldanha. Era , na verdade , este artigo extrahido de uma folha Miguelista ; mas agora transplantado sem nenhum commen- to na gazeta ministerial, e logo três dias de- pois dos successos anteriores mostrou bem que os vencidos ainda se não davão por sa- tisfeitos. Tornou-se ainda mais conspícua a ousadia deste artigo por ser o redactor da Chronica um official da secretaria da justiça, António Pereira dos Reisy o qual, parece, que náo poderia ter resolução bastante para pu- blicar um tal artigo, e em tal occasião sem o consentimento de seus amos. Este novo attentado irritou profundamente o publico, porque n'elle se vio uma pertinácia summa- mente atrevida. O clamor foi, portanto, a- meaçador e geral; e para o socegar, sacri- ficou-se pela forma o agente subalterno Reis, que foi immediatamente preso, e remettido aos tribunaes de justiça para nelles ser jul- gado. Mas em poucos dias sahio da prisão com fiança , e nunca foi sentenciado. Tam- bém pela forma foi apenas dimittido do em- prego que occupava na secretaria da justiça, onde depois tornou a entrar triunfante para occupar n'ella um logar mais distincto : seus serviços não fôrão esquecidos.

A complicidade do ministério em toda

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esta serie de acontecimentos se dêo ainda a Conhecer no dia 28 pelo novo facto que vou referir. Debaixo de um frivolo pretexto, co- frio erro de ofício, foi preso o commisario de policia, Amaral, esse mesmo que havia re- velado a conspiração nocturna, e isto por uma ordem expressa do ministro do reino, Cân- dido José Xavier, communicada ao novo in- tendente da policia, José Caetano de Paiva Pereira. Este novo acto de arbitrariedade vin- gativa, e cada vez mais indicativo da parte que o ministério havia tido na conspiração , e em todas as suas consequências, renovou a indignação publica , e a ella foi forçado ceder esse espirito de vingança, tão pouco disfarçado pelos complices dos antecedentes attentados. O novo intendente da policia lo- go no dia seguinte mandou soltar osupposto réo Amaral; e dando-lhe mil desculpas, te- ve a sinceridade de lhe dizer, que nenhuma parte havia tido na sua prisão, pois que es- ta lhe fora ordenada por ordem superior, is- to he, por Cândido José Xavier.

A administração mutilada, e agora re- presentada pelo ministro Cândido, dêo logo, no dia 29 , uma nova prova dos princípios que a continuavão a dirigir. Era aquelle dia o anniversario da carta constitucional , e n'- elle exactamente appareceo um documento dos mais extraordinários , que caracterisão a épocha da emigração. Para que isto melhor se entenda, exporei os preliminares do fa-

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cto. Depois da dimissão do ministro Maga* lhães creou logo o ministério uma intenden* cia de policia, á qual, para lhe amaciar ohor* ror do nome, dêo o appellido de policiapr** ventiva; e para chefe delia nomeou o ci* tado Paiva Pereira. Cada um interpretava a seu modo o mysterioso nome da nova crea- tura ministerial, até que no dia 29, anniver» sario da carta constitucional, explicou Can* d ido José Xavier, pelo órgão official da Chro* nica, o que elle na realidade significava. Man- dou que se regulasse pelo decreto ou lei da sua creação no ministério Pombal, dando-lhe assim todas as attribuições do monstruoso an- tigo tribunal, c resuscitando, debaixo de uni titulo modesto, a policia dos Maniques, e dos Rendafes ! Foi , com eíFeito , esta ordenança um verdadeiro epigramma feito acarta; por- que tal publicação, e em tal dia, não podia tomar-se senão como um insultante epigram- ma, feito á liberdade constitucional. Por es- te modo o rhetorico Cândido José Xavier ce- lebrou um dia tão solemne, e esbofeteou ain- da uma vez a imagem da liberdade, que em outro tempo o tinha salvado das garras de um algoz ! Esta ordenança Turca appare- ceo na primeira folha da Cbronica que come- çou a ser dirigida por João António de Mou- ra, irmão de José Joaquim Ferreira de Mou- ra , homem , que mui conspicuamente figu- rou na regeneração de 1820, tanto pelos seus raros talentos como por sua fraqueza politi-

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ca. O irmão, redactor da Chromca, tendo a mesma fraqueza, nem de longe rastejou seus talentos.

Antes de mencionar os successos mais notáveis do seguinte mez de maio direi, qual era o estado da cidade do Porto, quaes fô- rao os sacrifícios que continuou a fazer, e qual foi sua constância , e seu heroísmo em todo este tempo da sua mui perigosa situa- ção. O ministério, constante no mesmo pla- no, continuou sempre com as mesmas extor- sões e violências. Desprezando todos os em- préstimos regulares , seguio a máxima das contribuições forçadas, e por meio d'ellashe que hia sustentando o thesouro. N'este mes- mo violento proceder não seguia porém, ao menos, uma marcha que tivesse toda a ap- parencia de justiça, isto he, não seguia a igualdade, nem se conformava com a propor- ção das fortunas , porque , salvando os afi- lhados , ou os homens da sua politica, car- regava sem peso nem medida os que lhe não erão aífeiçoados. Juntava-se a injustiça á vio- lência do despotismo , porque collocava os cofres dos particulares , senão entre a força, e o arrombamento, ao menos entre a prisão e os insultos. Pozerão-se á disposição da jun- ta, chamada da companhia do Douro, os vi- nhos de todos os particulares; e assim quan- do elles vião suas algibeiras despejadas por uma despótica mão, vião por outra seus ar- mazéns forçados e vasios. Nada era sagrado,

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e nem sequer se cubrião as violências com boas palavras e bons modos. Em quanto po- lém se recorria a estas medidas desesperadas desprezavão-se recursos da mais valiosa im- portância. Por uma lei de prezas estava de- terminado que todas as que se fizessem de navios, vindos com bandeira do usurpador, com tanto que no acto do apresamento não fizessem resistência, immediatamente se ven- dessem em hasta publica, navios e cargas; e que doestes produetos dispozesse o gover- no, ficando comtudo obrigado a satisfazer um dia a cada um dos proprietários as quantias que tivesse recebido. Assim ficavão estas pre- zas , ou seus valores, como em deposito, mas deposito, de que era permitrido ao go- verno servir-se; e de cuja totalidade era obrigado apagar logo 10 por cento aos apre- zadores , único desfalque que devia ser lan- çado em conta aos donos das prezas, quando delias recebessem a sua importância. Cons- tou-me n'este tempo, por pessoa authorisada, e que pertencia ao tribunal das prezas, que no Porto havia então navios e cargas apreza- das que muito bem valião 400 contos de réis, ou ainda mais ; e neste caso nada parecia mais natural, mais obvio, e mais fácil do que ser- vir-se o governo d'este recurso, antes do que recorrer ás bolsas dos particulares, e os for- çar a que violentamente lhas abrissem. Po- rém não aconteceo assim , porque o minis- tro da fazenda não mandou entregar a seus Tom. IV. v

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donos alguns daquelles mesmos navios aprc- zados, mas até chegou a comprar a carga de um, chamado o navio Constante {b). Este pro- cedimento, ao qual se davão diversas inter- petraçóes, teria hido sempre avante se o mi- nistro, ou o ministério, não sei se de re- ceoso ou de mais bem aconselhado , o não tivesse suspendido em consequência das sen- tenças que o tribunal continuou sempre a dar sobre taes navios , sem lhe importar que o governo d'elles tivesse disposto contra a lei. Mas por este facto se pode bem dar a conhe- cer, qual era o caracter do governo que des- prezava recursos de tal ordem para figurar de violento espoliador.

Em quanto por uma parte assim se ad- rninistravão as finanças, por outra se com- mettião os mesmos abusos, e as mesmas vio- lências em um ramo que se intitulou aâmi* nistraçao dos conventos abandonados. E a este respeito se cita vão factos de tal natureza, que por elles quem parecia ganhar menos era o thesouro publico. Aquillo, em que todos concordavao, era emfim , que um governo honesto e probo nunca devia empregar agen- tes para tão serias e melindrosas commissões que não estivessem acima de todas as sus- peitas. Em uma palavra , devião ser como César queria que fosse sua mulher.

(1} Eu, assistindo a uma das sessões do tribunal , ouvi contar a um dos juizes o caso d'este navio.

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No emtanto o patriotismo a favor da causa publica não se desalentava com esta ad- ministração desacreditada, porque, sem se affrouxar com a inhabiiidade ou abuso d»»s que estavão encarregados dos negócios públicos, nunca faltarão indivíduos que concorressem do coração para salvar a liberdade ca pátria. Mesmo de Lisboa vierão muitas vezes som- mas consideráveis, com que se sustentou a causa quasi a ponto de perder-se ; e no meio da tyrannia nunca pôde o usurpador conse- guir que se extinguisse o fogo sagrado e sal- vador da liberdade. He, portanto, uma ver- dade, e bem digna de servir de exemplo pa- ra o futuro, que no meio dos grandes crimes com que esta épocha desgraçada se tornou assaz insigne, também n'ella resplandecerão virtudes que a fazem a mais brilhante de quan* tas a nossa historia faz menção. Mas estas as pôde bem avaliar, quem, como eu, esteve no logar dos perigos, e da honra, is- to he, dentro das trincheiras do Porto. Aqui nunca se percebeo medo, nunca faltou reso- lução para soffrer todas as privações, e nun- ca se perderão as esperanças da victoria ; es- peranças, que um puro patriotismo, e um firme e decidido amor pela liberdade po- dião conservar. Entre um fogo bárbaro e bru- tal , diariamente sustentado contra a cidade por centenares de bombas e de balas, pare- ceo sempre que o Porto estava em uma pro- funda paz. Nunca se suspendeo o trato or-

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áinario da vida; as ruas estiverão sempre cheias de gente de todos os sexos, e de to- das as idades, e condições; vião-se aos pa- res as bombas sobre as cabeças dos habitan- tes já com tal serenidade como se fosse um fogo de alegria ; e até nunca se suspende- rão as companhias ordinárias , onde se joga- va , cantava , e dançava , como se a morte não estivesse sempre suspensa nos ares , o- lhando ferozmente, á maneira d'essas aves de rapina, para se lançar sobre uma ou mui- tas victimas. Sim, o Porto, o heróico Por- to, pode, com a historia do seu cerco na mão, disputar valor a quantas cidades, anti- gas e modernas, tem passado por iguaes ca- lamidades.

Que fazia, porém, o ministério? Tra- tava os habitantes , tão heroicamente valen- tes e constantes, como se fossem um povo inimigo. Além das violentas extorsões em géneros e dinheiro, de que acima fallei, consentia ainda que meia dúzia de atravessa- dores, no meio da abundância, fizessem uma horrorosa carestia, fingindo escacez para aug- mentarem enormemente o preço dos géne- ros; e, o què mais he , a voz publica de- nunciava como complices d'este trafico infa- me, os amigos d'esse mesmo ministério, ou, pelo menos , de algum dos membros d'el- Jes Çc). Mas se o governo , mais Cuidado- ra) Para diminuir este mal a camará ou commissâo mu- nicipal começou a comprar os víveres que entraváo para os

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so dos seus interesses , e dos dos seus ami- gos do que dos do publico , em nada con- corria para suavisar as geraes calamidades, havia, comtudo, ainda quem sympathisasse com a desgraça ; e esta honra se não deve negar a essa associação phylanthropica, insti- tuída em favor dos pobres, e da qual fazia parte mui conspícua o amigo em casa de quem eu vivia , Manuel António Pinto do Soveral Chegou ella a repartir diariamente de seis a sete mil rações a outros tantos des- graçados, em que entravão indivíduos de to- das as classes e de todas as jerarchias sociaes, porque n'este tempo , de uma geral calami- dade, a desgraça e a pobreza igualavão to- das as condições. Entretanto, o governo se mantinha não porque a opinião publica lhe fosse favorável , mas por isso mesmo que a tinha contra si ; e porque todos estavão per- suadidos que com o caracter que seus mem- bros tinhão não era possivel achar outros que os podessem substituir na mesma marcha de violências que até ali tinhão seguido, e de que não era fácil desviar. Assim os ódios e a indignação publica, que de ordinário cos*. tumão derribar os governos, fôrão os instru- mentos que mais servirão para o sustentar (d).

dar mais baratos ao publico , estorvando assim de algum modo a avareza barbara dos atravessadores.

(<0 Corutou-me n'essa épocha que fallando alguém a D. Pedro no desprezo e ódio em que estava o seu ministério, ena necessidade de o dimittir, respondera elle: ,, Eu bem ,, sei tudo isso , e todos os males que elle tem causado i

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Elles porém , infamados com a prolongarão da sua existência , não percebião a causa d'- isto, ou pelo menos fingião que a ignoravão ; e attribuião a sua conservação ao grande ex- ercito auxiliar dos chamados empregados pú- blicos, que em torno de si tinhão creado, e que, servindo-lhes como de guarda Pretoria- na, os servião, adulavão , e aviltavão. Era voz constante que o numero delles chegara a novecentos , não que todos na realidade o fossem, mas dava-se-lhes esse titulo para os isentarem do serviço militar. Assim cada mi- nistro tinha a sua legião, á qual dava o no- me de empregados na repartição que servia. De um antigo instrumento de que alguns dos actives ministros se tinhão servido nos an- nos de 1822 e 23, também agora se procu- rarão servir ; e este foi a creaqão de lojas ma- çónicas, receptáculo da criadagem ministerial mais servil que havia no Porto. N'estes an- tros obscuros he que se traçavão os planos quer para difamar os bons, quer para os ater- rar com ameaços ridículos e pueris , porque tnhão força para os executarem ; e d'elles emilm sahia essa espionagem organisada para espreitar o que contra seus amos a voz pu- blica geralmente repetia. Este systema de es- pionagem, aperfeiçoado no Pinto, era po- rém já invenção velha , porque existia na e- migração, praticado pelos mesmos que ago-

,, mas que homens haverá agora que o queirão substituir ,. no iy»tema de violências, que eJJe eni praticando?

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ra a continuavão (e) , sem que lhes desse mais credito ou mais força.

Principiou o mez de maio, dando o mi- nistério mais uma prova da sua insignificân- cia, e falta de juizo, e que o fazia passar, sem que d*isso se envorgonhasse, das arro- gâncias para as baixezas. antes mencionei como o vice-almirante Sartorius havia sida afrontosamente dimittido, e como apesar d- isso, esquecido de todas as injurias que se lhe havião feito, se apresentara novamente nas aguas do Porto, determinado a auxilias a causa da liberdade; agora direi, que, ven-> do o ministério tamanha generosidade, e aa mesmo tempo conhecendo toda a sua fraque- za , o reintegrou por uma. nova carta régia, datada do i." deste mez de maio, no seu antigo cominando, prodigalisando-lhe desta vez tantos elogios , quantas havião sido as affrontas com que antes o tinha maltratado. Assim a força, a necessidade, e o mesmo desprezo , com que todas as suas loucas re- soluções erão recebidas, remediarão um mal que nunca tivera acontecido se o juizo e a prudência tivessem dirigido as suas acções*

Neste mesmo mez se renovou um bom- bardeamento horrível contra o Porto , que

(O Entando eu de volta no Porto recebi uma cara de Londres em que se me dizia , que oa morte de uns» Por- tuguez, chamado Ricardo Lí/jo, se aclura um regiito de es« pionagem feito por outro Portuguer, Pedro António de Cor» valho , que pôz cedas estas ridicularias a descubtrto.

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particularmente aconteceo nos dias 14 e 16. Os rebeldes, não tendo resolução nem valor para atacarem em frente a cidade, satisfazião suas vinganças , vinganças de fracos , sobre as paredes das casas, assim como sobre as cabeças dos velhos , mulheres e creanças de quem nenhuma oíFensa recebião , e até de quem muitos serião parentes, e mesmo mui similhantes em opiniões e sentimentos. Mas isto mostrava qual era o caracter da facção que tão copiosamente derramava seu sangue e de seus competidores para sustentar a ser- vidão, e obedecer a um tyranno fraco, que nem sequer tinha a coragem dos grandes cri- minosos, porque na realidade era um covar- de. No meio porém de toda esta brutalida- de feroz melhorou o tempo, e os desembar- ques de todos os géneros necessários para a vida começarão a ser copiosos e frequentes , apesar de que todos se fazião debaixo de um fogo vivíssimo, bem que sempre mais estron- doso do que mortífero. Esta circumstancia alliviou e animou muito a cidade , porque a falta de víveres havia sido sempre a pri- meira de todas as suas calamidades. Não te- ve ella porém tão bons resultados como hou- vera de ter se no governo houvesse aquella providencia, que em taes tempos era neces- sária, e ao mesmo tempo fosse acompanha- da de moralidade , que he a primeira base em que se funda o credito e o respeito de uma boa administração. Apparecêrao logo ai-

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guns notáveis atravessadores , que , por al- gum tempo , quizerão conservar a escassez , levantando e conservando os preços enormes dos víveres (/*) pelo batbaro systema ou de os esconder, ou de fingir também enormes despezas para o seu desembarque.

Mas um grande beneficio, que indi- quei, e que muito sérvio para minorar este mal, tez a commissao municipal da cidade, comprando por sua conta alguns géneros, como bacalháo e farinhas , para os vender por preços racionáveis ao povo ; e então se vio quão criminosa era a avareza desses atra- vessadores brutaes, e a indifferença do go- verno, que se os não protegia, ao menos os tolerava; porque o bacalháo, por exem- plo, que se vendia quasi por favor a 200, e 240 rs. o arrátel, passou logo a vender-se por ordem da mesma commissao municipal a. 100 rs. , e depois a menos , ainda com lu- cro. Por este "modo começarão todos os pre- ços a descer, e renasceo a abundância; o que, por não faltar á justiça, á qual a commissao municipal tem direito, com muita satisfação menciono, porque em referir o bem e o mal desejo sempre ser imparcial e verdadeiro. Mas como tenho fallado d'esta commissao, direi agora o que ella era, e a razão porque, em vez d'ella , nunca houve, como a devia ha-

(/) Entre outros objectos fôrâo farinha» , que por baixos preços comprarão a um cedo Dourada para depois as venderem horrorosamente caras.

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ver, uma camará constitucional, eleita pelo povo. Foi esta uma das invenções legislati- vas do rhetorico Cândido José Xavier de com- mum acordo com os seus collegas. Mas pa- ra intelligencia d*este facto necessário he re- correr á origem d'elle para melhor se conhe- cerem os motivos que produzirão este abuso do systema constitucional. N isto he que con- sistem todo o proveito e interesse da histo- ria, para que se torne útil e ins,tructiva para os presentes e futuros.

O systema constitucional puro teve sem- pre duas qualidades de inimigos, que fôrao, e ainda são, os absolutistas- declarados , e os lonstitucionaes appar entes , que , á som br j de uma constituição politica, aspiravao , e ain- da aspirão, a outra espécie de despotismo com que se tornassem privilegiados novos so- bre as minas dos antigos. Os primeiros fa- zião a guerra á cara descuberta ; os segundos trabalhavao sempre ás escondidas, ou á som- bra das formulas constitucionaes. Por estes fôrao também sempre auxiliados indirectamen- te aquelles, ora disfarçando-lhes a rebellião, ora minando surdamente as idéas liberaes pa- ra estabelecerem em vez d'ellas um despo- tismo que disfarçavao com o nome de syste- ma moderado* Assim he que se procurarão des- acreditar os verdadeiros constitucionaes, de- nominando-os ora exaltados, ora republicanos'. assim finalmente se aplanarão os caminhos pa- ra a usurpação de D. Miguel , em que ti-

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verão n'aquella épocha maior ou menor par- te quasi todos os que servirão altos empre- gos públicos, entrando na excepção João Car- los de Saldanha , que depois foi conde , e marque/. Mas D. Miguel e a sua facção não lhes levarão em conta os grandes serviços que lhes havião feito, e não os repulsarão com desprezo, porém passarão a puni-los com des- terros c prisões ; e isto com razão , porque no combate das opiniões politicas quem não he franco e decidido em um partido he ne- cessária e justamente olhado como inimigo. D'aqui nasceo a emigração de muitos indi~ viduos, que nunca havião sido constitucio- naes verdadeiros , e emigrarão não por fide- lidade á carta constitucional, e convicção da bondade de seus princípios, porem porque D. Miguel não os não quiz, mas se preparava para os punir.

Na emigração os homens delia conser- varão sempre os seus principios ; uns, não querendo D. Miguel , porque elle os não quiz , nem queria ; outros porém não o que- rendo, porque elle era um tyranno, e o as- sassino das liberdades publicas. Isto, portan- to, formou uma linha mui distincta e posi- tiva entre os emigrados. Os primeiros traba- lhavão sim por expulsar D. Miguel, mas não fazião caso da carta constitucional, e até al- guns descaradamente dizião que era preciso sacrificá-la para se tornar á pátria (g) : em u-

is) Ouvi dizer que o minhieiio lnglez propozera, que

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ma palavra, querião entrar com o seu ab- solutismo moderado, e cubrir-se também corn as vestes privilegiadas d aquelles a quem delias pertendião despojar, por isso que com elles as não tinhão querido repartir. Os se- gundos fôrao, por conseguinte, sempre olha- dos por aquelles como verdadeiros inimigo?, porque a sua divisa, em todas as alternativas, era sempre carta, pátria, e Rainha Durou esta guerra constantemente, com maior ou me- nor violência, entre os dous partidos da emi- gração, até que chegou D. Pedro á Europa. Então um novo campo de operações se abrio ao partido absolutista moderado, porque se vi- rão com um chefe a quem quizerão adular, e a quem de corpo e alma procurarão unir logo os seus destinos futuros. Emigrados de todas as cores, de todas as capacidades, e de todas as jerarchias se virão logo levan- tar uma nova bandeira ; e em torno delia se divisarão, como em verdadeira comedia, ou antes farça politica, tanto homens, que emi- nentemente tinhão figurado na regeneração politica do anno de 1820, como outros, que se havião tornado insignes nos actos com que a servidão a destruíra no anno de 1823. A inscripçao da sua bandeira foi Pedro , rei ;

nos levaria , a nós emigrados , a Portugal, se desistíssemos da caria constitucional ; e que alguém houve entre os mes- mos emigrados, que também propozera ao marquez de Pai* mella que acceitasse a proposta. Este alguém era um doe

homens da regeneração du anno 20 ! !

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r.ao queremos rei mulher ; e desde logo todos, e foi a grande maioria da emigração, os que desprezarão com horror uma tal idéa , fôrão considerados como inimigos , e se lhes de- clarou guerra aberta. Mas o projecto encon- trou grandes obstáculos , e estes invencíveis da parte dos gabinetes de Londres e Paris ; e por isso foi preciso mudar de tatica , sem comtudo se abandonar o projecto. Procurou- se imitar, com notável escândalo, a farça ri- dícula com que em Lisboa eno reino se ac- clamou a ususpação ; e, para melhor disfarçar a nova, que se premeditava, procurou-se ga- nhar assignaturas entre os emigrados para se conferir desde logo a regência da carta a D. Pedro ; medida illegal, e filha de um egoís- mo servil, e dos manejos de certa facção Bra- sileira, que, expulsa da pátria que tinha a- doptado, procurava agora unir-se de novo com o sangue da mesma mãi , que ella ti- nha ajudado a dilacerar. Mas isto mesmo tam- bém falhou, porque em Inglaterra apenas se encontrarão mui poucos indivíduos que se pres- tassem a este astucioso convite ; e em Paris, e em França teve elle uma completa repul- sa. O que então se não pôde conseguir a des- cuberto tentou-se ainda á sombra do myste- rio, ede oceulras cabalas. Enviárão-se emis- sários para as ilhas para ali estabelecerem lo- jas maçónicas, e dentro e fora delias insi- nuar e pregar a nova usurpação disfarçada; ao passo que para Lisboa e para outras partes

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do reino se mandavão por todos os paquetes instrucções para o mesmo fim. Por este mo- do muitas pessoas, para isto escolhidas, tanto pela ignorância em que estavão do que por fora se passava, como por inclinação aos mesmos princípios, se constituirão agen- tes desta conspiração contra a carta e a Rai- nha (h). Como medida subsidiaria estabele- cerão-se em Londres periódicos mensaes, e clandestinos , que ali não circulavão, e erão destinados para formar a opinião em Por- tugal e nas ilhas; e papeis ainda, que erão pagos com o dinheiro publico, debjixo da saneção de um dos nossos empregados, Abreu eLima, que figurava de ministro plenipoten- ciário da Rainha !

Com todos estes preparativos organisa- dos resolveo-se a expedição contra o usurpa- dor, e á sua frente se collocou D. Pedro, e se dirigio para as ilhas, onde quasi toda a nossa torça estava reunida. Mas como por esse tempo, em consequência do que venho de referir, se tivesse tornado mui visivel e distincta a linha entre os verdadeiros cons- titucionaes, amigos da Rainha, eos que não querião rei mulher , estes rasgarão completa- mente a mascara ; e julgando-se suficiente- mente fortes, chamarão comente a si os que tinhão por colaboradores e amigos; e, com

(A) Para se corromper a opinião , e a lealdade á Rainha nSo houve defeito que não te lhe pozeue.

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o maior desembaraço, deráo de mão, e des* prezarão as mais insignes notabilidades da emigração, e as deixarão como em desterro, nos pai/.es estrangeiros. Comtudo, n'isto er- rarão seus cálculos, porque, persuadidos que suas missões havião tido completo effeito, e que bastava que elles apparecessem com D. Pedro á frente para que todos se lhes reu» nissem tanto nas ilhas como em Portugal, a- charão-se afinal perfeitamente enganados. A. primeira experiência que se fez foi nas ilhas; mas as acclamações geraes e constantes á car* ta e á Rainha, fizerão emmudecer as que se esperavão destinadas para D. Pedro. As- sim mesmo ainda se contava muito com Por- tugal; e por uma estúpida credulidade dizia- se á boca cheia, que bastava uma bota de D. Pedro que apparecesse para que todos se prostrassem por terra e a adorassem. Com es* tas fantasmagorias na cabeça ainda nas mes- mas ilhas se fizerão muitas exclusões; e por esta arte infatuados desembarcarão no Porto, onde seus aéreos castellos se desvanecerão em fumo; e onde, ainda que tarde, fôrão foiçados a ajoelhar diante dos que tinhão des- prezado. Nem a bola, nem a mesma presen- ça de D. Pedro operarão os milagres promet- tidos ; mas nem por isso desanimarão , por- que se formarão novos planos, abrio-se no- va campanha , e se formou um governo ad- hoc. O antigo ministério, formado nas ilhas, era um ministério de circumstancias; e a sua

<^ 80 de- formação, em que entrava Palmella , deveo- se mais ás contemplações, qae ainda se qui- zerão ter com os gabinetes de Londres e Pa- ris, do que á confiança que n'el!e se tinha. E a razão era porque Palmella, e Mousinho de Albuquerque , e Bernardo de , ambos creaturas do primeiro, não favorecião taes projectos, não sei se por convicção politica, ou porque sabião que aquelles gabinetes de- cididamente se oppunhão a elles. Todavia , no tal ministério ainda havia, como base, dous individuos com quem se contava , os quaes erão Cândido José Xavier, que sem- pre lhes foi iirme e constante , e Mousinho da Silveira , que afinal trahio as esperanças dos que o tinhão nomeado ; e por isso foi lo- go depois um dos primeiros que foi expulso do ministério. Portanto, como se não encon- trasse no Porto a recepção que se esperava, e se vissem incommodados com um ministé- rio, que não auxiliava as suas vistas, procu- rou-se, como ultimo recurso, formar um no- vo, o que se tez anniquilando o actual, e formando um muito condescendente.

Esta administração ministerial, como vis- se que nenhuma de suas tentativas havia tido eíFeito, e que nenhuma d'ellas era bastante- mente poderosa para levar ao cabo os seus planos, procurou então, pela violência, se- gurar-se no poder. Armou-se de rodos os ele- mentos apparentes do terror, e por meio de batalhões organisados de gente sua, que sys-

tematicamente espalhava qual era a força do ministério, e das medidas enérgicas que hia tomar contra quem ousasse contrariá-lo , ou maldizê-lo, persuadio-se, por um momento, que havia suíFocado a opinião publica. Che- gou ainda a empregar rasgos de um vigor il- lusorio , porque ousou aterrar com desterros a certos homens que mais livremente o con- trariavão; e em alguns d'elles, com effeito, pôz mãos violentas, mandando-os, como de- portados, para a fortaleza da Serra, que elle então designava como as Pedras negras do antigo despotismo. Porém nada d'isto lhe dêo nem mais consideração, nem mais respeito, nem mais obediência: pelo contrario, cada vez hia cahindo em maior desprezo; e tan- to elle como seus ameaços tornarão-se afinal em objecto de escarneo. Havia no Porto um embaraço que muito o atormentava, e que por mil vezes, e milhares deformas ellequiz remover, o qual era a formação dos batalhões nacionaes, em cujo espirito, verdadeiramen- te leal e patriótico, sempre encontrou uma formidável resistência ; e por isso muito re- ceava que de novo se creasse outro corpo po~ púar , que lhe augmentasse aquella mui poderosa resistência. Este novo corpo era a camará municipal, que, segundo a carta, de- vendo ser eleita pelo povo, por ella p mes- mo povo podia fazer enérgicas representações, particularmente quando o ministério sabíj , de um modo positivo, quanto era o ódio e Tom. IV, f

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o descrédito em que havia cahido. Isto, por- tanto, foi o que elle quiz impedir, e com effeito o impedio, nomeando por um acto despótico, eassignado por Cândido José Xa- vier, essa commissão municipal , de que aci» ma fallei. Quizerão corar este acto incons- titucional com o estado de cerco em que se achava o Porto, ecom adilficuldade das elei- çóes populares; porém similhante razão era ridícula, e bem mostrava as intenções de quem a dava, ou a fazia espalhar; porque se os ©fficiaes dos batalhões nacionaes erão nomea- dos por uma regular eleição do povo, e n- jsto não tinha havido impossibilidade, como a poderia haver em uma eleição regular dos membros da camará municipal? O inconve- niente desta eleição estava pois na escolha dos homens que o ministério receava fossem escolhidos, porque tendo visto de que ca- thegoria politica erão os que havião sido e- leitos para officiaes dos batalhões, com mui- ta razão suspeitava que outros iguaes fossem eleitos para membros da camará. Eis-aqui , portanto , o motivo por que se commetteo esta violação contra a carta constitucional.

Todos os homens , que erão verdadei- ramente constitucionaes, isto he , que que- rião rei mulher com a caria na mão, erão con- siderados como inimigos declarados ; e por isso não os querião admittir nos empregos , e para elles buscavao os que erão, ou pre- sumião viessem a ser do seu bando. Assim

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da boca ou da penna desta administração nun- ca sahírão expressões que excitassem o en- thusiasmo publico, ou que reanimassem o pa- triotismo, e o fogo sancto da liberdade le- gal ; mas antes, pelo contrario, todas as suas palavras, todos os seus escriptos, e todos os seus actos erão calculados para apagar e ex- tinguir todos aquelles nobres sentimentos. Dava-se por chasco e desprezo o nome de exaltados aos verdadeiros e sinceros amigos da liberdade e da Rainha ; mas que acção nobre e generosa pôde haver sem exaltação, ou profunda convicção de princípios? Quem he que produzio todas essas raras virtudes Gregas e Romanas? Quem foi o que fez ap* parecer em todos os tempos os martyres po- líticos ou religiosos senão essa exaltação de sentimentos heróicos, que tudo despreza, até mesmo o viver? Mas esses homens chama- dos moderados, e que são egoistas, ami- gos de seus interesses, e da renovação dos privilégios, temem sempre, e com razão, es- sa nobre exaltação que lhes destroe seus pro- jectos, e que para os realisar não os deixa governar.

No dia 19 d'este mesmo mez, por um desses acasos felizes, que uma ou outra vez se encontrão na vida , escapou o author d- estes Annaes de morrer pelo choque de uma bomba, que ás cinco horas e meia da tarde cahio na casa em que vivia na rua do Pom- bal, n.° 16, e casa que pertencia ao amigo

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com quem estava, Manuel António Pinto do Soveral. A bomba arrebentou no próprio quar- to em que habitava ; e foi o caso : apenas ha- veria alguns segundos que dali tinha sahido, havendo tido apenas tempo para fechar a por- tâf e dar o primeiro passo para, subir para o andar superior, cahio ella, vindo do lado de Villa-Nova de Gaia, fez uma explosão hor- rível, e estragou completamente todo o apo- sento. Este cerco do Porto, de que ninguém nunca poderá fazer uma verdadeira idéa senão quem esteve, e correo os perigos cons- tantes que a toda a hora o ameaçavao, será um dos cercos mais notáveis da historia mo- derna, não pela brutalidade feroz com que os sitiantes diariamente tratavão a cidade, sem se animarem a atacar as linhas que a defen- diao, porém pela inalterável constância e he- róica resignação , com que a cada momento se encarava a morte, sem que esta idéa per- turbasse o mais insignificante trato da vida. Sim, em verdade o digo, que apesar de to- dos os perigos de que tenho constantemente estado ameaçado até a hora em que isto es- tou escrevendo, três horas e cinco minutos da tarde do dia 3 de julho de 1833, ainda até este momento me não tenho arrependido de ter vindo tomar parte nos perigos por que esta heróica cidade tem passado; mas antes bem pelo contrario me glorio de ter partici- pado dos muitos que tem sido necessário cor- rer para reconquistar a liberdade. A guerra ,

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e guerra feroz, a fome e a peste (a cólera morbus) tem sido os inimigos perigosos e cruéis com que se tem estado de noite e de dia a combater ; porém a liberdade, para quem deveras a avalia, e lhe conhece e sente os encantos, tudo merece, e tudo pôde exigir, porque não ha sacrifícios que lhe recompen- sem o valor.

No dia 30 deste mesmo mez foi ain- da o general conde de Saldanha o alvo de uma nova intriga , por meio da qual o qui- zerão perder, maculando a sua reputação, e não se lembrando, que estava a chegar o mo- mento em que elles mesmos sehavião dever obrigados a entregar-lhe nas mãos o poder que com tanta injuria até ali tinhão querido d'elle desviar. O motivo da intriga foi o se- guinte. Havia muito tempo que alguém se tinha lembrado de procurar abrir algumas com- municações secretas com um ou outro dos eom- mandantes rebeldes, particularmente com os que estavão do lado de Villa-Nova ; e n'es- te plano entravão o cônsul Inglez Sorell , e o coronel Badcok , agente particular do mi- nistério Britânico, e ambos homens de bons principios políticos, e que sempre mostrarão sympathisar com a nossa causa. Não se acha- va porém no Porto, n esta épocha, pessoa que podesse desempenhar esta delicada operação, até que emfim chegou o conde de Saldanha, que roi considerado como individuo próprio para o desempenho do projecto medkado* Fa?

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vorcceo o desenvolvimento d'elle a circums- tancia de ser o conde nomeado para comman- dante da esquerda da nossa linha, que se es- tendia desde Lordello até á Foz ; e de ser commandante de um brigue Inglez, estacio- nado no Douro, um homem capaz de auxi- liar eficazmente a empreza com toda a segu- rança e segredo, o qual era sir George Pau- lett. O governo Inglez, como depois se sou- be, estava instruido d'este plano, e lhe dêo toda a sua approvação, como também depois se veio a saber quando de Londres chegou o duque de Palmella. Em consequência de tu- do isto convidou sir George Paulett um dia a jantar o conde de Saldanha a bordo do bri- gue, e ali á mesa se encontrou então com o commandante Lemos , que igualmente havia sido convidado para o jantar. Fallou-se, como era natural, no objecto da contenda politica em que. estávamos , e Lemos não se mostrou diíficil em tornar a ter o mesmo encontro, e em renovar a conversação sobre o mesmo as- sumpto. Estabeleceo-se porém logo, como preliminar de rigorosa observância, que nem D- Pedro, nem o seu ministério, ambos igual- mente desacreditados para com o partido Mi- guelista, deveriao saber cousa alguma do que se passava até que se não estabelecesse algu- ma base preliminar; no que de parte a par- te se concordou, promettendo-se fielmente executá-lo. Para que as mesmas pessoas, sem- pre convidadas aos mesmos jantares, não ex-

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citassem desconfianças , particularmente no campo inimigo, assentou-se, que em logar do Lemos viria de vez em quando outra pes- soa de confiança ; e a que veio com eíFeito afinal foi o visconde da Bahia , cunhado do conde de Saldanha. Hião as conferencias ca- minhando com apparencias de um provável bom resultado, quando uma indiscrição do com mandante Inglez das forças navaes no Por- to, Glascock, em uma disputa que teve com Solignac transtornou todo o negocio ; porque o tal commandante, que sabia do encontro que nos jantares a bordo tinha o conde com alguns Miguelistas, ignorava que debaixo d'- esse encontro, na apparencia casual, se encu- brião negócios da mais alta importância. O caso foi , que assim que Solignac ouvio que Saldanha jantava com os Miguelistas, e tra- tava familiarmente com elles, rompeo imme- diatamente em injuriosas expressões contra elle ; e clamando que não havia remédio se- não mandá-lo fusilar no dia seguinte, foi sem perda de tempo communicar esta novidade a D. Pedro , que lhe approvou a sentença , e deo logo ao conde o nome de traidor. Não se contentou com isto, passou ainda a ir dar pelas linhas esta mesma noticia á tropa, e mesmo a certas mulheres que encontrou no caminho, com tão pouco eíFeito porém, que ninguém fez caso de tão imprudente como ridículo comportamento. Todas as cem bocas, da inveja, e que andavão a solda do rainis,-

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terio, apregoarão por vinte e quatro horas a mesma sentença, e os mesmos vitupérios, pa- ra ver se aterravão o conde e fazião com que elle se viesse lançar aos pés de seus émulos e inimigos, e pedir-lhes perdão. Houve mes- mo quem, debaixo de amisade, lhe insinuasse que desse este passo de baixeza e se decla- rasse por criminoso; e foi elle o brigadeiro, que então servia de chefe do estado-maior , José Lúcio Valdez, a quem o conde respon- deo com a dignidade própria de um homem de honra que se não sabe aviltar. Como fa- lhasse este laço, que querião lançar ao con- de para assim o porem debaixo da sua depen- dência , recorrerão á authoridade, e foi elle então officialmente chamado pelo general So- lignac para responder a accusação que se lhe fazia. Basta saber-se, que tanto Solignac co- mo D. Pedro, a quem elle se foi apresen- tar, depois de o ouvirem, em vez de o tra- tarem como criminoso, quasi que lhe pedi- rão perdão, e se lhe prostrarão de joelhos. O mesmo Solignac, corrido do que havia di- to e feito , pedio por muito favor ao conde que quizesse ir jantar com elle no dia seguin- te, para que o publico soubesse que se con- servavão na mesma antiga harmonia. O conde generosamente condescendeo com elle, e lhe acceitou o jantar. D. Pedro, depois de ha- ver desabafado, disse ao conde que este era seu inimigo ; ao que elle lhe respondeo : que se lembrasse do que lhe b-avia escripto àttrante

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o seu ministério ; e então confessou D. Pe- dro , que se lhe tivesse seguido os conselhos , seu irmão não teria usurpado o throno de sua filha. Assim se concluio com gloria e honra do conde um negocio, que seus inimigos es- tultamente pensarão que lhes serviria para o perderem na publica opinião. E com cfTcito que cousa mais louca do que pertenderem ac- cusá-lo por ir jantar a uma espécie de cam- po neutro, que era a embarcação Ingleza, e ali fallar com os inimigos, o que sempre não foi permittido mas usado em todas as guer- ras ? Quanto mais, nas guerras civis, em que ha amigos contra amigos, e irmãos contra ir- mãos, he licito fazer cousas que nunca o se- ria nas ordinárias de nação para nação ; por- que n'aquellas he permittido a todos desar- mar os partidos contrários, sem para isso pre- cisarem de licença de alguém ; e isto era o que pertendia fazer o general conde de Sal- danha.

O mez de junho principiou, começan- do a haver no Porto uma grande abundân- cia de tudo o necessário para ávida, em con- sequência dos continuos e copiosos desem- barques que se fizerão. Eu devo aqui notar, que em todos elles, feitos por entre um fo- go sempre vivíssimo da parte do inimigo, e em uma costa de mar mui perigosa, o va- lor e a intrepidez, que todas as noites des- envolvião os homens, empregados ivaquelles perigosissimos trabalhos, não erão menores,

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se não erao ainda superiores, do que tudo o que se fazia nas trincheiras , ou corpo a cor- po com o inimigo, quando a ellas se ousa- va aproximar-se. Muitas vezes a ousadia foi tal y que entravão e sahião pela barra , mes- mo á barba do inimigo, as pequenas embar- cações, destinadas para o transporte dos gé- neros, e vinhão depositar suas cargas em Ma- çarellos, á entrada da cidade: excesso, em verdade, de uma rara valentia, e apenas cri- vei , se tantas vezes não se tivesse visto e repetido. O perigo era imminente, e apenas havia a probabilidade de escapar-lhe ; porque, além de passarem ao lado de uma bateria for- mada no Cabedello, e debaixo de uma fu- silaria sempre constante e á lerta, tinhão ain- da que correr em frente da margem esquer- da do rio cuberta de baterias inimigas.

A expedição, que havia muito tempo se nos tinha annunciado de Londres, e com a qual devia vir o duque de Palmella , che- gou emfim ao Porto no dia 2 deste mez de junho. Exporei portanto os motivos por que cila se tentou ; porque se dêo a sua direcção a Palmella ; e porque se fez e executou sem que D. Pedro, nem o seu ministério fossem para ella consultados, e lhes dessem a sua pri- mitiva approvação, O actual ministério (/) ,

(/) Comtou que n'essa épocha havia dessidencia entre o ministério. Loulé, Silva Carvalho, e Freire fazião um par- tido : Cândido, com dous auxiliares externos, J. A. de Ala* galháes , e Cama Lobo , fazião outro»

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sempre fiel a seus princípios, não tendo cm Londres quem competentemente o repre- sentasse depois que Palmella havia úàopoli- ticamente esbofeteado pelos mesmos homens, que até ali beijavão com summo respeito o que elle pisava , lembrou-se de para mandar um homem da sua inteira confiança; e este homem foi Rodrigo da Fonseca Ma- galhães. A missão d'elle era fretar alguns bar- cos de vapor para virem para as aguas do Por- to , e com elle se realisarem certos planos que elle tinha concebido. Um delles, de que eu não arfíanço a verdade, era que pro- pondo-se D. Pedro com a sua camarilha a a- tacar os rebeldes pelo lado do norte, plano, ao qual dizião que Solignac se inclinava, de- sejavão então os nossos bravos ministeriaes , no caso de serem mal succedidos, ter logo ámão vasos promptos e ligeiros para os trans- portarem eseus Penates para onde Deus fos- se servido. A isto accrescia o boato de que, havia muito tempo , e para o mesmo fim, tinhão no rio uma embarcação destinada para os receber em caso de desastre impre- visto, á qual por mezes se esteve pagando uma avultada somma de dinheiro. Mas , eu torno a repetir, refiro isto como meros boatos , e dou como verdade a hida do plenipotenciário, a qualidade da sua missão, e o ma'o successo que nella teve. E era is- to muito de esperar , porque nem elle pes- soalmente tinha credito em Londres, nem a

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gente que o mandava ; e por isso logo que ali foi conhecido o motivo da sua viagem, immediatamente se vio , que nenhum iructo d'el!a tiraria. Nestas circumstancias alguns bons Portuguezes, verdadeiros amigos da cau- sa constitucional , entre os quaes ainda nes- ta occasiao figurou Henrique José da Silva (fc) , que depois de muito tempo a sustenta- va com o seu credito, e o de seu sogro mr. Praít , aproveitando a idéa dos vapores, se propozerão realisá-la, porém debaixo de ou- tros princípios, e de outras condições. Não quizerão tratar nada com Rodrigo de Maga- lhães; mas persuadidos de que uma pequena expedição, conduzida em vapores, e mano- brando na retaguarda do inimigo, produziria um grande effeito, tentarão logo executá-la, e começarão a tomar medidas para se arran- jar o dinheiro necessário para ella. Restava comtudo. ainda uma dificuldade , e não pe- quena, a qual era, quem seria a pessoa que d ella se podesse com confiança encarregar , pois que o governo de D. Pedro se achava tão desacreditado que nada d'elle se queria fiar. Lembrarão-se de Palmella , que então se achava em meia desgraça, e que tinha o bom conceito não do ministério Britâ- nico, mas ainda das pessoas que para esta em- preza eráo convidadas a concorrer. Estabele-

(*) Ainda roeste livro direi como se realisou esta nego- ciação mipoitame.

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ceo-se , portanto, como condição absoluta , que a clle se entregaria a execução d'es- te projecto, e a elle se entregaria o dinhei- ro necessário para o mesmo, acerescentando- se ainda, que o governo do Purto havia de ignorar toda esta operação até o momento em que se houvesse de executar. Debaixo d'estas condições foi convidado Palmella , que, se- gundo se affirmou, por muito tempo hesitou se acceitaria o convite; mas como as condi- ções erao absolutas, e positivas, e elle vis- se que sem a sua adhesáo se perdia talvez a occasião de terminar a lucta em que estava* vamos envolvidos, accedeo então ás propos- tas que se lhe íizerão , havendo com toda a probabilidade obtido antes approvação do mi- nistério Britânico. Foi debaixo de todas es- tas circumstancias que se dirigio para o Por- to com cinco barcos de vapor , alguma gen- te e dinheiro , onde desembarcou no dia 2 deste mez de junho. O modo por que se hou- ve o dinheiro necessário para isto foi um no- vo arranjo feito com o agente do empresta mo Ardoin , mr. Mendizabal, o qual a- companhou a expedição, com ordem positi- va de não o entregar á disposição do gover- no de D. Pedro, e o empregar elle mesmo no objecto para que era destinado. Em todo este negocio, que, na realidade, foi muito vantajoso , e dêo depois grandes resultados, como se verá na continuação d'estes Annaesy merece Palmella muitos elogios por ter sacri-

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ficado ao bem da sua pátria todas as malque- renças que lhe podião suscitar, e com effei- to suscitarão, os ciúmes de D. Pedro, e de sua camarilha. E se em todo este negocio pôde merecer alguma censura he de se ter esquecido, levando comsigo soldados estran- geiros, de tantos Portuguezes emigrados, re- sidentes em Inglaterra , França , e Bélgica , a quem uma baixa politica muito de propó- sito deixava esgotar o cálix da amargura em paizes estrangeiros, quando elles tanto dese- javão vir participar dos honrosos trabalhos e heróicos perigos em que estavão os seus com- panheiros no Porto. Apesar d isto, como sem- pre desejo ser justo , e repartir com impar- cialidade o louvor e a censura , náo terei a- gora pejo de dizer, que muito louvor mere- ce pela acção principal, que briosamente ex- ecutou, expondo-se por ella a todos os ódios e indignação do poder.

em Londres as pessoas , que tinhão combinado esta expedição , e havião coope- rado efficazmente para ella , tinhão também sentido a necessidade de se operar alguma reconciliaqão entre Saldanha e Palmella , a- íim de melhor se removerem todos os emba- raços que se lhe quizessem oppôr por aquel- les , que não nenhuma parte havião tido na sua concepção , mas até havião por mui- to tempo ignorado a sua existência ; pois que tudo se tinha feito, como disse, sem o seu consentimento. O azar operou então aqui

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mais efficazmente para este fim do que todas as combinações que antes se havião feito pa- ra preparar e concluir aquella reconciliação. Quando Palmella desembarcou na Foz, na madrugada do dia 2 , estava ainda Saldanha commandando toda a esquerda da linha , e tinha o seu quartel-general naquella villa ; e acerescia a isto, que todas as pessoas que des- embarcavão tinhão ordem de se lhe hirem apresentar, como general commandante. Em consequência d'isto dirigio-se Palmella ao quartel de Saldanha , que o recebeo não mui polidamente, mas com uma franca cor- dialidade, como esquecido de todas as desa- venças passadas. Isto o animou a demorar-se algum tempo com elle, eafallar-lhe mui fa- miliarmente em muitos objectos (/) ; depois do que se despedio do conde tão satisfeito, que não pôde deixar de dizer em tom que todos ouvissem : —. agora que na minha en- trada começo tão bem , jd não posso augurar mal da causa da pátria. O conde de Sal- danha não o tratou cavalheiramente de pa- lavras, mas lhe mandou apromptar immediata- mente os seus cavallos , e ordenou que um dos seus ajudantes de ordens o fosse acompa-

(/) Um d'el'eJ foi acerca das entrevistas que o conde ha- via tido com algum do» rebeldes, noticia, que d'ellas lhe havia dado lord Falme&tron ; o que provou que tudo fiia de acordo com o mini>terio Inglez , que de certo nâo de- sejava então qu« o conde fos^s fusilado , como lembrou a D. Pedro.

*& ds L<*

nhar até o Porto. Para esta reconciliação po- litica concorreo também, quanto pôde, o au- thor cTestes Annaes , apesar de haver muitos annos que se havia politicamente separado de Palmella em razão da diversidade de opiniões. E as razoes que para isto dêo a Saldanha fô- rão, que em politica não havia senão interes- ses , que não ligavão sempre nem pelo pas- sado nem pelo futuro ; e que , em uma pa- lavra, quando se tratava de interesses polí- ticos os sentimentos do coração devião sacri- fkar-se aos raciocinios da cabeça ; porque sem- pre era honroso e heróico sacrificar ao bem da pátria os resentimentos pessoaes quaesquer que elles fossem. Isto lhe comprovou elle com o seu exemplo , porque havendo annos que não visitava Palmella, o foi então pro- curar á casa em que residia no Porto, onde lhe deixou um bilhete por não o ter encon- trado.

A reconciliação politica entre dous ho- mens, que parecião irreconciliáveis, assom- brou D. Pedro e o seu ministério, e lhes transtornou todas as suas combinações. As vo- zes, que sahírão da casa de D. Pedro e dos clubs ministeriaes assim que houve a certeza da existência da expedição, da sua vinda, e com ella da chegada de Palmella, fôrão to- das , que este devia ser preso e processado por tratar e concluir negócios sem authorisa- çao do governo. Era isto exactamente o mes- mo que se havia gritado contra Saldanha quan-

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do o quizerão infamar como traidor, com a differença que a sentença contra este era de ser fusilado , e a pronunciada contra Palmei- la creio que nunca passou de uma simples pri- são ou desterro. Porém o caso foi, que a re- conciliação politica d'estes dous homens que representavão os dous mais importantes par- tidos na emigração, e ambos inimigos do mi- nistério, que então dirigia os nossos negó- cios, fez com que elle promptamente mudas- se de linguagem, e que de altivo senhor pas- sasse logo a representar a figura, senão de ser- vo humilde, ao menos de adorador respei- tuoso.

Não sendo possível recusar a expedi- ção, nem desacreditar os homens que aapoia- vão, foi necessário tratar em conselho, para o qual fôrão chamados os generaes das divi- sões , e alguns oífíciaes superiores , do mo- do por que devia ser empregada. A opinião geral, não dos que tinhão preparado a ex- pedição em Inglaterra mas dos generaes, e muitos commandantes de corpos que se acha- vão no Porto, foi que ella devia ir operar na retaguarda do inimigo , e em uma gran- de distancia , tal como o Algarve , porque nesta operação havia duas grandes vantagens j a primeira, o poder-se livremente obrar sem ser inquietada pelo inimigo ; a segunda, dar- se occasião aos povos, e particularmente aos opprimidos, de poderem manisfestar sem sus- to as suas opiniões, e com ellas mostrar á Tom. IV. a

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Europa, que era uma calumnia o asseverar- se, quasi geralmente, que Portugal preferia o selvagem governo de D. Miguel ao gover- no constitucional da Rainha. Não erao po* rém estas as idéas de D. Pedro, nem do ge- neral Francez Solignac , que pertendião que se devia atacar em frente o inimigo, ou ca- hir com uma grande força sobre Lisboa. Es- te plano era, na verdade, perigosíssimo, a- lém de ser unicamente filho do ciúme, por não quererem ambos que se tentasse uma cou- sa sem que elles estivessem presentes para colher todos os fructos da victoria, se a hou- vesse. Além d'isto, não approvavão o plano, porque não era seu , nem tinha sido prepa- rado com o seu consentimento. Mas o perigo estava em que , tendo nós forças bastantes para nos defendermos dentro das linhas, por- que toda a povoação do Porto, ao mais pe- queno receio de ataque , corria a ellas com a mais decidida vontade, não tínhamos com- tudo tropa regular bastante para forçar os for- midáveis intrincheiramentos dos rebeldes, e depois manobrar com ella em campo descu- berto. Além disto, era expor tão importan- te causa, como a nossa, aos azares de um dia de combate ; o que seria uma temeri- dade imperdoável , bem como ainda o seria se desguarnecêssemos consideravelmente o Porto das nossas melhores tropas de linha, e fossemos com ellas sobre Lisboa. Mas D. Pedro, assim como Solignac, seu baixo adu-

+$ 99 *èm

Iador, pouco caso fazião de sacrificar táo ge- neroso povo, como o do Porto, á sua inca- pacidade ou vistas particulares ; e não se condoião de que a cidade heróica tornasse a cahir no poder de seus ferozes oppressores, com tanto que suas ambições se realisassem, e seus ciúmes socegassem. O caso foi , que em conselho se decidio, por uma grande maioria, que a expedição fosse ao Algarve ou a outro qualquer ponto distante em que ella podesse manobrar sem perigo; excitasse o patriotismo dos povos ; e não compromettes- se a sua pequena força, que não hia conquis- tar, mas auxiliar os opprimidos. E vio-se en- tão o que menos se esperava , que foi , vo- tarem contra D. Pedro todos os seus minis- tros (W), e não haver elle tido por si senão cinco ou seis aduladores que apoiassem o seu plano.

Gomeçou-se a fazer o embarque da tro- pa em a noite do dia 9 , mas com tão vontade de D. Pedro e de Solignac, que o negocio esteve para abortar , impedindo-se que elle continuasse em a noite de 10. A cau- sa que mais concorreo para elle se effeituar foi a seguinte, que eu vou expor um pouco mais miudamente para melhor se conhecerem

(w) Foi cousa constante n'esta épocha que o motivo verdadeiío que tiverão os ministros para assim votarem fo- ra o receio que lhes causarão as reflexões de três homens o coronel Pacheco , José Jorge Loureiro , e Mouzinh* de Albuquerque.

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os instrumentos, que tanto a favor como con- tra se empregarão n'esta occasiáo até se con- seguir o resultado que se desejava. Depois das desavenças que tinha havido entre o vi- ce-almirante Sartorius e o governo de D. Pe- dro, e em consequência dos grandes desgos- tos que lhe havião dado alguns dos seus of- ficiaes, e grande parte das tripulações dos navios , achava-se elle não muito doente, porém assaz enfastiado de servir um governo que tão ingrato se lhe havia mostrado. Quan- do, portanto, seorganisou em Inglaterra par- te da expedição procurou-se ao mesmo tem- po convidar com approvação e consentimen- to de Sartorius outro oíEcial de marinha que o viesse substituir ; e a escolha , por unani- me consentimento, recahio sobre o valente capitão Napier, o qual veio com Palmella a bordo dos vapores que o acompanharão. Em razão disto pedio Sartorius a sua dimissão, e esta lhe foi concedida no dia 8 por uma carta régia muito honrosa, por meio da qual ao menos se fez ultimamente justiça ao seu merecimento, e aos bons e relevantes servi- ços que até ali nos tinha feito. Na mesma data, e por outra carta régia, se dêo também o commando da esquadra ao capitão Napier, a quem se conferio o titulo de vice-almiran- te debaixo do nome de Carlos de Ponza (;;) para não offender directamente as leis Ingle-

(«) Ponza he o nome de utn Jogar de Itália , onde Ma» píer tinha executado um brilhante feito d'arma».

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sas, que o expunhao a perder a sua patente^ entrando em um serviço estrangeiro sem per- missão do seu governo, que, pelo seu prin- cipio de não interferência, não lh*a podia dar, conservando-lhe o posto. Bem se agora que nos dias peio d'este mez de junho elle era o commandante das nossas forças ma- rítimas. Em consequência disto vendo que o embarque das tropas, começado em a noi- te de 9, não havia continuado na seguinte, e sabendo a causa d'este acontecimento, que erão as ordens de D. Pedro e Solignac para que a expedição não partisse, constou que es- crevera de bordo ao governo, dizendo-lhe: que se o embarque não continuava em a noi- te seguinte elle hia partir para Inglaterra com os vapores que de tinhão vindo. Esta par- ticipação não esperada , e o vulto que hia tomando a opinião publica ao ver que se que- ria inutilisar uma expedição da qual se espe- ravao os mais felizes resultados, fizerão gran- de impressão em D. Pedro e Solignac ; e o resultado foi, que tomando-se a propor a ques- tão em conselho no dia n, de novo mui po- sitivamente se decidio, que ella se fizesse. Continuou conseguintemente o embarque nas noites seguintes; e no dia 20, estando completo, levantou ferro a esquadra, e des- appareceo das aguas do Porto na manhã do dia 21. Com a esquadra ha ligados dous fa- ctos , que brevemente mencionarei para me- lhor intelligencia da historia d'este tempo»

102 fe<K

Em alguma parte destes meus Annaes dis- se que ao governo do Porto se tinha vindo oíFerecer um official Inglez, o capitão War- ner , propondo-lhe certos meios , e novos , para destruir e queimar a esquadra de D. Mi- guel. Depois de muitas delongas, constou- me, que com elle se havia feito tal ou qual contracto, e em consequência d'elle se es- perava a sua chegada de Inglaterra para fazer parte da expedição. Não se realisou porém a sua proposta, e parece que fora por falta do credito que esperava achar em Londres , e em virtude do qual podia realisar aquil- lo que tinha promettido. Também em ou- tra parte tenho mencionado que o motivo prin- cipal por que se excitarão tantas questões en- tre o governo do Porto e Sartorius fora a fal- ta de pagamento em que andava a esquadra ; o que causou não grandes desgostos a es- te commandante, porém retardou ou impedio operações importantes que podéra ter feito ; portanto he agora necessário que eu diga, que antes de Sartorius haver largado o com- inando já todas as suas contas estavão liqui- dadas e justas a seu bom contento, eque pa- ra isto veio positiva e determinadamente de Lis- boa o dinheiro necessário, mandado por al- guns honrados patriotas Portuguezes. A opi- nião publica logo apontou com especialidade entre elles o barão de Quintella (0) ; e por

(o) Por este serviço D. Pedro o nomeou etnde do For- ?ofo t e grão-cruz da ordem da Conceição,

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isso faltaria eu agora aqui á imparcialidade , que he o mais rigoroso dever da historia, se não mencionasse seu nome, e não lhe tribu- tasse o louvor que merece.

A decisão definitiva do conselho do dia ii , em contradicçao com os planos politico' militares de Solignac, fez com que este pe- disse a dimissão de commandante em chefe do exercito no dia 12, a qual lhe foi imme- diatamente acceita sem dificuldade. Este ge- neral, a quem uma mesquinha politica, e baixos ciúmes contra o conde de Saldanha , tinhão trazido ao Porto, não mostrou duran- te o seu curto commando, que não durou seis mezes , nem talentos militares nem penetra- ção politica. No seu primeiro combate com os rebeldes no dia 24 de janeiro d'este an- no , o único a que pessoalmente assistio , e pessoalmente dirigio , nem bateo o inimigo y e nem ao menos tirou a vantagem que d'el- le lhe podia resultar, que foi o apoderar- se da importante posição militar do monte da Crasto , que por vinte e quatro horas esteve em nosso poder. O inimigo , mais esperto do que elle , conhecendo-lhe então bem o valor, cuidou logo em o fortificar, e por es- ta operação pôz immediatamente em risco a nossa occupação da Foz, única porta por on- de podíamos receber nossas subsistências c recursos militares. Vio pois tranquillamente não fortificar aquelle ponto, sem lhe fa- zer a mais pequena opposição, mas nem se-

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quer se lembrou de fazer algumas obras que neutralisassem o mal que dali hiamos rece- ber. Foi necessário que por uma extraordi- nária felicidade chegasse ao Porto o general conde de Saldanha , e este fosse encarrega- do da defeza d'aquella parte da nossa linha para que se emendasse, o melhor que foi possível , o erro crassissimo de Solignac de haver desamparado a formidável posição do Crasto. Cuidou logo o conde em fortificar os pontos do Pasteleiro e do Pinhal, e com estas duas obras diminuio consideravelmente o mal que nos fazião as do inimigo estabe- lecidas na posição que deixo mencionada, e nos segurou a posse da Foz (p)> antes d- isso tão seriamente ameaçada.

Solignac nem sequer mostrou ainda o talento de um bom org3nisador, porque, pe- la confissão dos intelligentes, o exercito pas- sou a estar em muito maior confusão do que antes estava. O que unicamente fez, depois da chegada dos generaes que vierão de In- glaterra, foi o dividi-lo em três divisões, de que fôrão commandantes Saldanha , Stubbs , e Villa-Flôr; mas esta divisão se conservou sempre no papel , porque os corpos , de que ellas se devião compor, estiverão sem- pre misturados na mesma confusão em que antes estavão, e nunca fizerão corpos sepa-

(/>) Todos oi conselhos que os rebeldes recebiâo de In» glalerra erão que tomassem quanto entes a Serrat e a Fo*.

*S 105 fei- rados. Em todos os combates que depois do- esta épocha se derão, e alguns d'elles de mui- ta importância , taes como o de 4 de mar- ço, commandado por Saldanha, e os das An- tas e Covêllo dados pelos outros generaes, nunca Solignac se vio no campo de batalha, dirigindo-os em pessoa, porque se conservou sempre ao lado de D. Pedro , e em sitios em que he bem de presumir não se corria grande risco. Raras vezes corria as linhas, e quando acompanhava D. Pedro nos seus passeios militares de apparato ; de maneira que nem os soldados o conheciao, nem elle os podia conhecer, e por consequência ani- mar. Nem mesmo mostrou possuir a boa qua- lidade de um simples soldado, que he o va- lor pessoal (q) ; e esta falta mostrou a tal pon- to , que hindo uma vez passar revista ás tropas da esquerda da linha, commandadas por Saldanha , que se lhe apresentou , assim como os seus oíEciaes e soldados em grande uniforme, appareceo elle ali, como incógni- to, sem as insignias e farda de general em chefe, e como receoso de ser conhecido co- mo tal pelo inimigo, e ser por isso saudado

(7) Por mais que procurou encapar ás balas inimigas não o pôde completamente conseguir, porque de uma recebeo uma leve contusão. Mas isto foi quando se embarcava pa- ra retirar-se do Porto. A singularidade , comtudo , esteve em que a bala que o tocou foi , segundo disserâo, despe- dida cfaqudle mesmo monte do Crasto , que elle não sou* be guardar, nem fortificar. Assim o$ inimigos lh'o agrade- cerão na sua retirada.

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por elle com alguns tiros de bala. A nossa tropa lhe estranhou muito isto ; e particular- mente entre os soldados do 15" de infantaria, se ouvirão estas vozes : Olhem como o nos- so Saldanha não tem meão , e como muito bem lhe diz a sua farda rica, e o seu chapéo de plu- mas. Só o Francez parece temer as balas ; epor isso he que deixou o seu fardamento rico em ca- sa. Em uma palavra, tanto para com os nos- sos como para com os inimigos nunca mere- ceo consideração ou respeito ; de parte a par- te se lhe davão nomes que mostravão o mutuo desprezo que se tinha por elle (r).

A sua penetração politica andou sem- pre a par da sua intelligencia militar. Pen- sando que com falsas exterioridades podia ser bem quisto de todos e a todos illudir, a nin- guém agradou, e por consequência a ninguém illudio. com a mira no dinheiro que ga- nhava e no que podia ganhar, fazia a D. Pe- dro e a seus ministros uma corte servil , ao mesmo passo que na ausência delles ou os accusava ou metia a ridículo j e por este mo- do ganhou o aborrecimento e desprezo de todos. Assim se vê, que com esta táctica po- litica nem podia ganhar o coração d aquelles a quem servia, nem merecer a afeição daquel- lesaquem maior amisade procurava mostrar. Entre estes foi sempre o conde de Saldanha a

(r) Taes como o de Solinhas, general batata, D. An-

quem mais aíFectou distinguir; porém em to- tas as occasioes em que o conde se confiou nas suas palavras foi sempre compromettido por elie na presença de D. Pedro. Foi elle emíím o primeiro que o sentenciou, antes de o ouvir, a ser fusilado, quando se tratou das conferencias que havia tido a bordo do bri- gue Inglez com alguns dos chefes dos rebel- des. Epara não deixar em duvida qual fosse o seu caracter tanto militar como politico e moral concluirei , que ao sahir da casa , que o governo lhe havia dado e preparado mui decentemente para seu quartel, a voz publi- ca espalhou que se achara saqueada como se fosse casa de inimigos (s) ! Hypocrita tanto na arte militar como em politica, também o quiz ser em religião; e com esta ultima mascara se persuadio que captivava todos os corações dos Portuguezes. Estabeleceo, as- sim que chegou, uma missa de apparato em todos os domingos e dias sanctos, a qual se hia dizer á igreja da Lapa, qual fez com que D. Pedro fosse assistir com todo o seu estado-maior, officiaes superiores , e outros que não estavão de serviço; e neste acto de hypocrisia, que elle reputou de consuma- da politica , he que se tornou mais insigne no Porto. Imbuído, como quasi todos os es- trangeiros, da falsa idéa do fanatismo dos

(i) Alguém me affirmou n'e$se tempo que, pelo inven- tario que se fez ao dar. lhe a casa , se vío , que delia fai* tavâo trastes e alfaias no valor de dote mil ertaados.

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Portuguezes, assentou que com esta missa tinha ganhado em Portugal o commando per- petuo do exercito, bem como com ella Hen- rique 4." tinha conquistado o throno de Fran- ça ; porém ficou completamente enganado com esta esperteza religiosa , assim como igual- mente o foi com todas as suas espeitezas po- liticas.

Por este mesmo tempo tinha chegado a Lisboa o infante D. Carlos , mandado sahir de Hespanha pelas questões excitadas entre clle e seu irmão Fernando sobre a suecessão do reino, istohe, sobre quem devia ser cha- mado á coroa depois da morte do rei actual , se o filho do primeiro, ou a filha do segun- do, a favor da qual o rei seu pai tinha revo- gado a lei salica em Hespanha. Não queren- do obedecer ao irmão, que lhe tinha manda- do ao Tejo uma embarcação de guerra para o transportar para a Itália , retirou-se furtiva- mente para Coimbra, aonde D. Miguel, que estava vendo atacar o Porto , veio ter com elle. Não se demorou porém ali muito tem- po, porque em poucos dias voltou com o tio para a sua primeira residência da margem di- reita do Douro. As duas infantas, que havião também sido da viagem, ficarão em Coimbra, para onde D. Carlos voltou em poucos dias, e donde ao depois, em consequência dos ines- perados successos seguintes, sahio com ellas ria direcção para Lamego.

No intervallo do tempo em que estas

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cousas se passavao lembrarão-se alguns Por- tuguezes, residentes em Londres, de formar um ajuntamento publico, e de n'elle propo- rem uma subscripção a favor das famílias po- bres que mais tivessem soffrido com o longo e bárbaro cerco do Porto. Mui pouco produ- zio este humano convite feito d tão gabada philanthropia Ingleza, porque á excepção dos donativos mui avultados que logo lizerão al- guns Portuguezes , em que muito se distin- guirão as casas commerciaes de Silva, Soa- res ; e Sampaio (t) ; tudo o mais se reduzio a sommas mui insignificantes. As duas clas- ses que mais podião concorrer para este acto de humana beneficência erão a alta aristocra- cia, e o commercio , particularmente a por- ção delle que, depois de longos tempos, estava costumado a negociar com Portugal; porém essas duas classes são as que mais se oppozerão sempre, e sempre se hão de op- pôr á regeneração politica do nosso paiz. A aristocracia, costumada a governar-nos depois de mais de um século, bem que queira, ou antes não possa deixar de querer, uma es- pécie de liberdade no seu paiz, procura an- niquilá-la em todas as mais partes do mundo, porque da ignorância e escravidão delias he que tem nascido a prosperidade de Inglater-

(0 Nas pessoas d'ekte appellido nunca se deve incluirá do irmão do conde da Povoa , o cônsul Sampaio , que en« tão servia D. Migue! , « foi um dos nossos mais descara- do* inimigos.

*>§ no S*

ra; e com aquelles dous instrumentos he que ella ainda se pode manter. Bem que par- te d'esta aristocracia («) se cubra por momen- tos, e segundo as circumstancias , do man- to da liberdade , debaixo delle sempre es- conde os mesmos princípios, e particularmen- te em tudo o que diz respeito ao dominio que a politica Ingleza quer conservar em Por- tugal } por isso com mais ou menos hypocri- sia, ou com mais ou menos disfarce a aris- tocracia Britânica he inimiga da nossa eman- cipação, quero dizer, da nossa independên- cia ; e por conseguinte nenhum favor delia jamais esperem os Portuguezes, e com espe- cialidade na causa da liberdade , porque n'- este ponto seremos sempre considerados e ha- vidos como escravos rebellados.

O commercio, especialmente o que tem relações directas e constantes com Portugal, considera as nossas praças como outros tan- tos escriptorioS) em que os negociantes Por- tuguezes são seus caixeiros. Estando portan- to com esta longa posse acostumado a reali- sar grandes fortunas, quer por meio do con- trabando, que sempre pôde fazer, quer pe- la insignificância dos direitos que suas fazen- das são obrigadas apagar, e de que elle mes- mo, por cumulo de vergonha, tem algumas vezes sido o juiz (se) \ como pode gostar de

(«) Os denominados wigs.

(x) Uma das clausulas e consequências mais vergonho- sas do tratado de commercio de 1 8 10 foi que a Pauta das

) 1 1 $&

uma mudança politica, que, mais cedo ou mais tarde, ha de perturbá-lo na tão antiga fruição d'cstas vantagens ? De negociantes Inglezes, em quem o dinheiro he a medida por que se medem as capacidades dos homens, não se podia pois esperar que concorressem a soc- correr com suas subscripções aquelle povo que, com as armas na mão, estava tão briosamen- te defendendo a causa da liberdade, que em nenhum paiz , e com especialidade em Por- tugal, os interesses Britânicos podem tolerar. Acceita que foi a dimissão de Soli- gnac, era necessário dar a alguém a direcção das opperações militares; e este alguém não podia ser duvidoso, pois que o exercito e a opinião publica, mais foites do que to- das as intrigas , havia muito tempo que claramente o designavão. Foi elle, o general conde de Saldanha, que, com a denominação de chefe d' estado-maior-imperial , foi nomea- do no dia 14 de junho para commandar effe- ctivamente o exercito, ficando D. Pedro com o titulo nominal de generalíssimo. Nunca al- guém teve mais brilhante triunfo do que o conde nesta occasião, porque, ameaçado dias antes ou de ser estrangulado^ oufusilado, ele- vou-se em um instante da esteira de traidor^ com que o quizerão macular, ao alto empre- go de verdadeiro commandante do exercito.

nossas alfandegas se fizesse por uma commissâo mista de In- glezes e Portuguezes ! A esta baixeza ainda nenhuma naçáe unha chegado 1

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Nem D. Pedro, nem o seu ministério po- derão dispensar-se de lhe conferir esta digni- dade: arrastados pela opinião publica tão vio- lentamente , como a victima que se arrasta para lhe meter acabeqa debaixo do cutelo do sacrificador, não esteve em seu poder o frustrarem os destinos do conde de Saldanha ; e d'esta vez se virão forçados a proclamar o seu merecimento militar, e acceder ãs vozes geraes que muito de ante-mão lhe designa- vão aquelle emprego. Que tudo isto se fez pela força de irresistiveis circumstancias , por nenhum modo se pode duvidar , porque além dos ódios públicos e particulares que se tinhão mostrado contra elle , e além dos a- meaços com que o quizerão por muitas vezes aterrar, desfigurando ou envenenando as suas intenções, ainda mais de uma vez tenebro- sas intrigas se tecerão para o perderem. De uma (Tellas, que por fim chegou ao meu co- nhecimento (y), darei eu ainda agora rela- ção, bem que abreviada, para que se conhe- ça que homens nos governarão, que acções fizerão, e que conceito se deve fazer d'elles. Devem os leitores d'estes Annaes estar lem- brados do que antes n'elles escrevi acerca da conspiração nocturna que estava prepara- da para a noite de 20 de abril d'este anno, e que felizmente se não realisou pelos moti-

(j/ ) Renovo a declaração, que não dou exactamente por verdadeiro tudo o que escrevo. Relato o que ouvi , e as- íim exponho as opiniões do meu tempo.

vos que indiquei. Esta conspiração estava po- rém ligada com antecedentes notáveis que a deviáo fortificar, e dar-lhe todo o desenvol- vimento que seus authores muito antes ti- nhão preparado. No mez de março antece- dente se tinha começado a pôr a base em que todos osmaissuccessos se deviao apoiar; e esta base foi a organisação de uma fictícia conspiração republicana. Havia por este tem- po no Porto um estrangeiro , creio que In- glez ou Alemão , e cujo nome , se bem me recordo , era Spitberg , ou cousa similhante. Dotado de uma viva imaginação, e imbuído nos princípios politicos mais exaltados sem disfarce manisfestava as suas opiniões, e em consequência d'ellas foi este homem tomado como instrumento próprio para realisar pro- jectos que semeditavão. Mandou-se-lhe, pa- ra o seduzir, trahir, e enganar, um agente, o qual disse, que recebera as suas instrucçóes do magistrado Cabral, aquelle mesmo que, como encarregado da policia, figurou depois nos acontecimentos de 20 de abril, e de quem mui particularmente fallei. Começou o a- gente por lhe exaltar os principios republi- canos, como aquelles que então podião salvar o Porto, e salvar-nos ; e com taes idéas soube apoderar-se tanto da confiança do cré- dulo Spitberg, que desde logo não duvidou elle não revelar-lhe todos os seus pensa- mentos mas offerecer-se-lhe para ser seu co- laborador em todos os projectos que se hou- Tom. IV. H

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vessem de formar rTeste sentido. Dissemine então o agente que havia um certo conde, que apoiava aquellas mesmas idéas , e que , em consequência d'isso, era necessário que elle lhe formasse um plano do que se devia ten- tar ou fazer para que o mesmo conde ignoto depois o visse, approvasse, ou lhe fizesse as modificações, que julgasse mais aceitadas. A todas estas perfídias se foi prestando o cré- dulo, e trahido Spitberg, até que, tendo o agente sufficientes provas para lhe servirem de corpo de delicto, dêo conta de tudo a seus amos, e a consequência immediata foi que o pobre Spitberg se vio preso, e lançado em uma das masmorras da relação. Mas este acto fez com que logo se começasse a ver a têa te- nebrosa que se havia tecido para sobre ella se formar não a mais absurda porém amais audaz de todas as conspirações. Achando-se preso Spitberg, e sendo judicialmente inter- rogado, com franqueza e verdade respondeo : que o verdadeiro author de todos aquelles pro- jectos, e de todas as conferencias que para elles se tinhão feito, era um agente, que elle nomeou, o primeiro e único individuo, que o tinha procurado para este fim , e de- pois o havia excitado a dar todos os passos subsequentes, convidando^) a dá-los com pro- messas e approvaçao de personagens que el- le nunca tinha visto. Esta revelação fez com que o juiz encarregado da diligencia, ou por Sião estar no segredo da intriga, ou por lhe

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não ser possível fazer o contrario, desse or- dem para que o tal agente fosse igualmente preso , o que com effeito se executou. Achan- do-se então este em uma situação pela qual, de certo, não esperava, e sendo pergunta- do sobre o que tinha occasionado a sua pri- são, vio-se por conseguinte obrigado a con- fessar a verdade, e declarou, que tudo o que havia feito e praticado, fora por ordem e con- selho do juiz do crime Cabral, que positiva- mente lhe ordenara fosse ter as conferencias com Spitberg, e o induzisse a fazer tudo quan- to havia feito.

Apanhado o fio da intriga fácil era de ver que elle remontava até o ministério, que podia ter .preparado todo este tenebrosís- simo enredo. N*estes termos tudo estava a ser revelado j e para que tal não succedesse se recorreo a um acto arbitrário , que foi : o dar-se promptamente ordem para pôr o agen- te em liberdade , deixando-se comtudo Spi- tberg sempre preso, para poder ainda servir se as circumstancias o permittissem. He de toda a probabilidade que quando se tentou a conspiração de 20 de abril se contava muito com a prisão d'aquelle homem, e com quan- to se lhe podia obrigar a dizer, quer lhe fos- se extorquido pelo terror , quer por seduc- ções e promessas. O resultado d'esta proje- ctada conspiração sendo, portanto, em tudo contrario aos eífeitos que d'ella se esperavão, ficou Spitberg esquecido na prisão , até que

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a marcha ordinária dos acontecimentos o foi dali arrancar Nomeado que foi o tribunal de segunda instancia no Porto, quer fosse pe- los requerimentos da victima que se achava ainda presa, quer pela casualidade de ser o seu processo o primeiro quecahisse nas mãos dos juizes para ser examinado, foi este apre- sentado em relação ; e então, á vista d'elle, se veio no conhecimento de toda a serie de iniquidades de que elle se compunha. Fôrão os juizes assaz justos e humanos para manda- rem pôr logo em liberdade o illudido e tra- hido Spitberg ; porém vendo ao mesmo tem- po que o agente desta intriga estava pronun- ciado, e illegalmente havia sido solto, pas- sarão ao mesmo tempo ordem para que fos- se preso, afim de ser julgado. Dêo se essa ordem a certo individuo {£) ; mas como el- le fosse creatura de alguém do ministério, disserão, que tivera insinuações para não fa-* zer a prisão. Nem era natural que quizessem que ella se fizesse, porque no processo se havião de revelar grandes monstruosidades ; e com prudência nãoquizeião que ellas vies- sem ao conhecimento do mundo por meio de um publico processo. Assim por este modo ainda escapou d'esta trama o conde de Sal- danha, assim como d'ella também escaparão

(*) Este individuo passava por ser agente secreto do mi- nistério ; e era ao mesmo tempo venerável de uma loja maçónica , a que pertencião alguns dos ministros , e seus íntimos amigos,

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os seus melhores amigos, contra os quaes ha- vião ódios antigos e recentes, e a quem de- seja vão perder debaixo de qualquer pretexto que fosse. E assim se pode affirmar, que se entre a usurpação e os usurpadores se com- nv< 'iêrão grandes crimes, não poucos se com- mettêrao também entre esses mesmos homens que sempre sequizerão distinguir com o no- me de verdadeiros lLberaes. Não erraremos, portanto, se aqui lhes applicarmos dous mui notáveis versos da antiguidade, tão análogos ao tempo de que estou escrevendo estes Au* naes.

S»ditione , dolis , «célere , at que libidine et ira ,, iiiacos intia muros peccatur et extra. ,,

Era tal a desconfiança n'esta épocha de que estou escrevendo, que a voz publica a- indicava, como espiões do governo, in- divíduos, que na classe da magistratura ti« nhão uma graduação superior ; o que eu po- rém não afjirmo, porque aqui refiro as o- piniões cTaquelle tempo. Dous nomes erão especialmente apontados *, e de um delles al- guém me affirmou que tinha visto denuncias assignadas por seu punho ; o mesmo, de quem o ex-ministro conselheiro Guerreiro me disse, que hia de noite espiar á sua casa as pessoas que ali o procuravão !

O fim d^ste mez foi notável pela raiva feroz que os sitiadores do Porto manisfestá- úsx contra os edifícios da cidade, e indivi-

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duos desarmados que n'ella habitavão. O bom- bardeamento foi quasi constante \ mas com particularidade o de 30 d'este mez, anniver- sario do dia em que D. Miguel ostensivamen- te acceitou a coroa que lhe offerecêrão os seus três estados , foi na realidade horroroso ao meio dia , e ao pôr do sol. Foi porém ain- da mais notável a constância do povo que , sem nunca se aterrar , conservou uma firme- za inabalável, que nenhum perigo, e nenhu- ma privação mais poderão abalar : tão po- deroso he o amor da liberdade, e tamanha energia elle quando deveras oceupa o co- ração do homem! Na verdade, o heroísmo da povoação do Porto nas crises ainda as mais arriscadas , foi sempre tal , que não ha pala- vras que o possão exprimir ; porque não era cstaouaquella classe de habitantes que o mos- trava por palavras e obras , era a povoação inteira, erão os homens, e as mulheres, erão os velhos e as creanças, e era emfim esse va- lentíssimo exercito, que, sendo um punha- do de gente em comparação dos sitiantes , sempre zombou não de seus ameaços, seus furores , e suas seducções , porém dos mais violentos ataques, que sempre victoriosamen- te repellio. Por este mesmo tempo se publi- cou o bloqueio geral de todos os portos que estavao em poder do usurpador \ o qual blo- queio foi depois offiçialmente annunciado pe- lo governo Inglez na praça de Londres. O mez de julho foi na realidade um mez

histórico, c será sempre memorável nos fas- tos da emigração, porque foi suecessivamen- te quasi uma serie de prodígios e victorias nunca interrompida. Como principio de feliz mudança dos nossos destinos recebeo-se no Porto no dia 4 a noticia de que a expedição, que dali tinha sahido no dia 21 do passado, havia com toda a boa fortuna, desembarcado no dia 24 nas costas do Algarve , na praia chamada d\álagôay entre o forte de Cacella e a bateria de Monte-gordo, encaminhando- se para Tavira. Fez-se o desembarque quasi sem resistência, e apenas houve depois um pequeno tiroteio de alguns minutos entre as tropas rebeldes commandadas pelo general go- vernador visconde de Molellos, que depres- sa se pozerao em completa fugida, largando parte da sua artilharia. Não tivemos n'este encontro mais do que três ou quatro feridos; mas entre elles o foi o honrado e valente ma- jor Mendonça David , official de um mereci- mento distincto, e amigo intimo do conde de Saldanha, e do author d'estes Annaes9 que não pode deixar de mencionar seu nome em sinal de verdadeira affeição e saudade. Em consequência da ferida que recebeo, e mo- léstia que depois lhe sobreveio, ali acabou seus dias, deixando honrada memoria, e mui- ta magoa a todos os seus amigos.

O Algarve recebeo com os braços aber- tos a expedição; e no dia 30 do passado todo elle estava declarado a favor da carta c

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da Rainha, obrigado Molellos a fugir com a pouca gente, que pôde conservar junto da sua pessoa, para além das fronteiras d'aquel- le reino. Mas não ficou aqui este ensaio feliz da presença da nossa tropa , e da boa disposição em que estavão os povos para a receberem , porque foi logo seguido de um triunfo espantoso, que decidio dos destinos futuros da causa pela qual havia tantos annos padecíamos. A esquadra do usurpador, com- posta de nove vasos, entre os quaes havia duas náos de linha, duas fragatas, e outros navios de lote inferior, tendo sahido depois de poucos dias do Tejo, apresentou-se no dia 5* diante da nossa na altura do cabo de S. Vicente, compondo-se esta apenas de cin- co embarcações, entre as quaes não havia náo alguma ; e por consequência lhe era muito inferior tanto no material como no pessoal dos navios. O vice-almirante Ponza (Napier), que nada melhor esperava do que ter este en- contro, dispôz-se logo para o ataque ; e com uma intrepidez, verdadeiramente heróica, e raríssimas vezes acontecida nos mais aífama- dos combates navaes, se dirigio a abordar com a sua fragata a náo inimiga, denomina- da a Rainha, ordenando aos outros seus na- vios que lhe seguissem o exemplo, e atacas- sem as outras embarcações inimigas. O com- bate foi curto , e por nenhuma forma duvi- doso ; porque a náo foi abordada , entrada , e tomada quasi em um instante. Quatro dos

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outros navios, em que entrava a náo D. João VI. , se renderão quasi ao mesmo tempo; e dos outros quatro que se escaparão , porque os nossos poucos navios não podião acudir a tudo , dous d'elles vierão em pouco tempo entregar-se. Assim acabou a esquadra de D. Miguel, o mais poderoso recurso, em que se fundavão suas esperanças ; e com esta per- da lhe cahio logo da cabeça a coroa usurpa- da. Esta maravilhosa victoria nos abrio logo o caminho do Alemtejo e da capital ; e dêo occasião ao povos de poderem livremente ma- nifestar as suas opiniões, e desenvolver a ener- gia que as violências, os cadafalsos, as pri- sões, e o terror por tantos annos lheshavião suíFocado. O almirante Napier no dia o, an- niversario da entrada do exercito libertador no Porto , foi nomeado visconde do cabo de S. Vicente , e almirante da armada nacional j prémios bem merecidos, porém ainda muito inferiores aos extraordinários e heróicos ser- viços que nos acabava de fazer.

Em quanto o dia $ d'este mez se tor- nava memorável por esta brilhantíssima victo- ria naval, e o almirante Napier ganhava uma gloria a que poucos homens da sua profissão tem podido chegar, também em terra, e nas linhas do Porto se immortalisava o general conde de Saldanha , batendo n'esse mesmo dia memorável as tropas rebeldes, agora com- mandadas por um marechal de França, Bour- tnonty que no principio d'este mez acabava de

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tomar delias o commando como general in- vencível de D, Miguel. Mas o Porto não era Argel (a) ; e os louros, que elle ali colheo, perecerão mergulhados no Douro. O inimi- go fez um ataque desesperado na direita e esquerda da nossa linha, mas as boas dispo- sições que tinha feito o general , a valentia dos nossos soldados, e a grande confiança que todos tinhão no seu chefe frustrarão comple- tamente todas as tentativas do inimigo. Ba- tido em toda a parte, se recolheo elle en- vergonhado aos seus formidáveis intrincheira- mentos, mal pensando ainda, que n'aquella mesma hora em que a sua derrota era ali com- pleta, outra igual, ou ainda mais desastrosa acabavão de ter as suas forças navaes no ca- bo de S. Vicente! Tal foi a intelligencia, intrepidez, e energia com que Saldanha di- rigio as acções d'aquelle dia nos diversos pon- tos do ataque, que D. Pedro, que as pre- senciou, ou d'ellas foi informado, não pô- de deixar de lhe dar um testimunho publico do muito que elle tinha merecido n'aquella occasião. Em frente da quinta da China , c

(a) Bourmont era um dos generaes de Napoleão , que lhe pagou os benefícios qued'elle tinha recebido trahindo-o, e desertando para o inimigo na véspera da célebre batalha de Waterloo. Detestado do exercito Francet por este acto infame, os Bourbons, para verem se lhe limpavâo esta nó- doa , e o congrassavâo com o exercito , deráo-lhe o com* mando para a expedição de Argel, que elle felizmente con- cluio; mas nem assim fez esquecer sua traição. Veio pois como aventureiro servir D. Miguel ao Porto.

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das Antas, no mesmo campo de batalha o nomeou tenente-general , premio honroso, por lhe ser conferido no campo da honra. No mes- mo Jogar premiou D. Pedro muitos officiaes, que naquelle dia se tinhão distinguido, e com isto executou actos de justiça a que nem sempre estava acostumado. Os habitantes do Porto derão n'esta occasião as suas costuma- das provas de civismo, e valor, porque es- pontaneamente quantos podião pegar em ar- mas correrão ás trincheiras, e dali fôrão mos- trar novamente aos rebeldes , que um povo que quer ser livre sempre o consegue quan- do resolutamente expõe a fazenda , e as vi- das para o conseguir.

Esta victoria , tão gloriosamente alcan- çada, foi comtudo manchada por um acto de loucura , ou precipitação , bem similhante a outros , que se tinhão visto na incoheren- te e variada vida politica de D. Pedro. Em uma das nossas baterias na esquerda da linha um cabo de artilharia, que estava fazendo fo- go com uma peça , vendo que o inimigo se aproximava em grande força ao reducto , e possuído de um pânico terror, encravou a pe- ça com que estava fazendo fogo , e retirou- se. Vendo porém, que o seu terror havia si- do mal fundado, pegou em uma espingarda, e começou a fazer fogo com ella. Informa- do D. Pedro deste caso , ou talvez mal in- formado, mandou sem mais exame ordem aos soldados Belgas , que guarnecião o mesmo

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reducto, c sem consultar o general, nem oF* ficial algum que tivesse presenciado o facto, que fusi/assem o dito cabo, o que os Belgas promptamente executarão. Na mesma occa- sião ordenou que fosse fusilado o sargento de artilharia que dirigia o fogo da mesma pe- ça ; mas uma circumstancia feliz o livrou de ter a mesma sorte. E foi ella, que passando por ali casualmente o general Saldanha vio o cabo morto, e ao mesmo tempo soube que hião fazer o mesmo ao sargento. Então, horrorisado d'esta demência barbara, tirou das mãos dos Belgas a victima que estavão pa- ra immolar, e entregando-a a um official , o tornou responsável pela sua vida e seguran- ça, e lhe ordenou que a trouxesse para o Por- to afim de ser ali o facto examinado. Assim escapou, quasi milagrosamente, o sargento de ter a mesma sorte do cabo (b).

D. Pedro, quasi sempre pouco refiecti- tido em todos os seus actos , quiz depois do glorioso combate do dia $ fazer uma ac^ ção generosa , mandando ofTerecer a paz aos inimigos. Errou porém nas formas , e o seu ramo de oliveira não foi acceito. Quem en- tão commandava , ao menos em nome , era o próprio D. Miguel , e o conde de S. Lou- renço , a quem se havia mandado o parla-

(£) N'esse mesmo dia o conde de Saldanha , ainda hor. rorisado , me contou este facto; e magoado me disse, pou- co mais ou menos : Qiie homem nós temos para nos gover* n*r !

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meníario, era um simples general de opera- ções. Não quiz, portanto, elle receber as propostas que se lhe enviavão , pela razão que não pertencia a um general commandan- te em segundo acceitar e ouvir as propostas do inimigo , quando perto de si tinha não o seu general em chefe, mas o próprio homem , a quem obedecia como rei. Assim este improviso de D. Pedro não teve ne- nhum efíeito , e fechou a porta para interes- santes negociações occultas, que talvez se podessem realisar, se o negocio tivesse si- do por outra forma conduzido. Mas como convém expor causas encubertas que produ- zem os effeitos conhecidos , e na minha opi- nião he este um dos grandes mercimentos da historia , direi , que o motivo de se em- prender esta mensagem, tão pouco meditada, foi ainda o ciúme do nome do general Sal- danha, aquém se queria tirar toda a prepon- derância em os negócios públicos, e a quem apenas se dava aquella , que as circumstan- cias e a sua reputação militar fazião absolu- tamente necessária. Sei que depois da victo- ria do dia 5* propozera Saldanha a D. Pedro, para não incorrer na nota de traidor como antes lhe acontecera, e antes também men- cionei nestes Annaes , que , se lh'o consen- tisse, hiria elle renovar as intelligencias que antes havia tido com alguns chefes dos re- beldes ; e sei mais , que D. Pedro , appro- vando-lhe muito a lembrança ; respondera:

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que hia communicá-la aos seus ministros. O resultado foi porém, que se não quiz que Saldanha figurasse n'esta negociação ; e que tudo se fez e acabou como acabo de referir. Por este tempo, e durante o mesmo mez chegou ao Porto, vindo de Paris , mr. Heurtault incumbido de renovar as propos- tas do antigo empréstimo , de que por mais de uma vez tenho fallado, e do qual o conde de Saldanha e seus companheiros havião sido os portadores. Vinha agora muni- do, além de todas as mais hypothecas , de uma outra, toda nova, de summa importân- cia , a qual augmentava a garantia da solidez das antigas propostas. Era ella o augmento de credito e de fundos de uma antiga casa de Paris , a dos snrs. Michel e Companhia , antigos banqueiros , e então considerada co- mo uma dos principaes capitalistas da Euro- pa. Apresentou-se mr. Heurtault a D. Pe- dro, porém foi muito mal recebido por elle, que em vez de lhe ouvir as propostas, se contentou em lhe deitar em rosto por duas ou três vezes o ter-se dirigido para este feito em Paris a Saldanha e seus amigos, e não a elle D. Pedro e seu governo. Por es- ta pequenhez de sentimentos se vio, que o defeito essencial que tinha a proposta origi- naria , e em que incorrerão todas as mais que se lhe propozerão nascidas da mesma origem , era o figurar n'ella o conde de Sal- danha com os seus amigos. Assim D. Pedro

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preferio a todas as conveniências cTeste gé- nero o prazer de presencear o denodo com que o seu ministro das finanças atacava to- dos os homens ricos do Porto , e a sereni- dade e intrepidez com que metia , por as- sim dizer, as maõs em suas algibeiras.

Por esta mesma occasiáo também se sou- be quem era um tal mr. Jmtiely que antes tinha vindo fazer a D. Pedro a offerta de outra espécie de empréstimo, e com o qual se mostrou altamente satisfeito, porque ^es- te negocio não entrava Saldanha. A prova que d'isto dêo foi , que logo authorisou o seu mi- nistério a acceitar as suas propostas, as quaes todavia se não realisárão, porque os agentes, que em Paris estavão authorisados para assi- gnarem o contracto, vierão no conhecimen- to do engano e tramas occultas com que el- le se oíFerecia. Era este mr. JumeJ um agen- te da junta apostólica , e de todos os proje- ctos que então se formavao a favor da cau- sa do chamado Henrique V. , neto de Car- los X. , e por conseguinte da causa de D. Miguel ; e com as suas propostas imaginarias pertendião-se paralisar as de mr. Heurtauit, que erão para defender a liberdade. Porém nem D. Pedro, nem o seu ministério, sem- pre levados do ódio contra Saldanha, quize- rão, ou poderão comprehender este manejo politico. O plano era sustentar por todos os modos D. Miguel, destruindo , ou paralisan- do tudo o que podesse sustentar a causa cons-

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íitucional ; e isto não porque houvesse algu* ma particular afFeição pela pessoa de D. Mi- guel , porém porque a havia mui grande pe- lo seu systema politico ; e porque elle e seu tio Fernando erão os únicos que, ao menos, sustentavao na península das Hespanhas o fúnebre pendão do absolutismo com todas as suas consequências.

Em razão deste plano geral foi que se mandou de presente a D. Miguel o mare- chal Bourmont com muitos ofliciaes para lhe organisarem e commandarem o exercito. Che- gou elle ao quartel-general do usurpador no principio d'este mez de julho, e logo tomou o commando do exercito rebelde com o ti- tulo de marechal-general , e se dêo o com- mando em segundo ao general Clouet , dis* tribuindo-se todos os mais officiaes que oha- vião acompanhado por todos os corpos das forças Miguelistas. Foi esta a ultima tenta- tiva do partido apostólico em quanto estive- mos no Porto , tentativa , em que pôz to- das as suas esperanças, porque se persuadia que com ella hia por uma vez acabar o exer- cito libertador, e acabado elle, anniquilar para sempre a liberdade em Portugal. Em Pa- ris , e particularmente em Londres , os fau- tores e agentes do despotismo exaggerárão grandemente a summa influencia que este ul- timo reforço hia ter na causa de D. Miguel; e com tanta certeza se dava por acabada a causa constitucional, que os nossos fundos

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soffrerão n'aquella épocha uma baixa conside- rável. Não se verificarão porém as profecias, e a liberdade triunfou , assim como ha de triunfar sempre que tiver defensores como teve no Porto.

Em quanto isto se passava como acabo de contar a commissão municipal do Porto creada por D. Pedro , dava-lhe um insigne documento de adulação, pedindo-lhe, que lhe permittisse baptisar , ou antes crismar a antiga Praça Nova com o nome de Praça de D. Pedro. A alguém tinha lembrado que se lhe desse o nome da Praça dos Martyres, por- que ali tinhão padecido, entre tantas victi- mas illustres, um Gravito, um Brito, e mui- tas outras, que convinha sempre recordar em abominação de um governo bárbaro e atroz; porém a adulação venceo, e foi acceita co- mo todos os incensos que se queimão ao do poder, que julga ser tudo, e que tudo merece. Náo se pode dizer que fosse a ex- pressão da vontade popular, porque os bra- ços , que se vião tão fortes e robustos para defenderem a sua independência e liberdade, fôrão havidos por fracos e incapazes de lan- çarem na urna eleitoral os nomes dos seus re- presentantes municipaes. Fôrão os servos de D. Pedro que incensarão D. Pedro.

Quanto mais se hia aproximando o fim d'este tão notável mez de julho mais próxi- mos estavão a apparecer os gloriosos succes- sos que o devem fazer para sempre memora- Tom. IV. i

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vel em nossas historias. No dia 24 entrou em Lisboa a nossa divisão expedicionária que havia sahido um mez antes do Porto, e des- embarcara no Algarve como noticiei : fa- zendo-se senhora de todo aquelle reino com os applausos, e approvação geral dos povos, e tendo atravessado todo o Alemtejo, arro- jando para longe todas as forças rebeldes, que ousarão apresentar-sc-ihe diante, achou-se na tarde do dia 23 sobre Almada, onde bateo, e dissipou todas as tropas inimigas que ali se tinhão reunido para resistir- lhe. Um dos re- sultados d'este glorioso combate, porque dos nossos havia um para cem, foi a bem mere- cida morte do brutal e selvagem Telles jor- dãoy talvez o mais facinoroso de todos os fe^ lozes escravos de D. Miguel, e que por tan- to tempo havia sido o carcereiro e o algoz das muitas victimas, que estiverão accumu- ]adas na torre de S. Julião da barra. Com- mandava este monstro de uma ferocidade ex- quisita parte das forças miguelinas que tinhão passado para o. sul do Tejo; e como estae §e tivessem completamente debandado, pro- curava elle escapar-se, embarcando no Tejo. Foi porém reconhecido quasi no acto do em- barque, e logo dous olHciaes nossos (<:), que o reconhecerão, o acutilárão, e prenderão. Os soldados fizerão o resto, tirando-lhe uma

(O Dizem que um d'esses officiaes fora Romão José S""-' tu } que depois foi nomeado barão de Cacilhas

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Vida infame, e tão manchada de atrocidades e de crimes, que a sua morte foi uma espé- cie de triunfo que a humanidade ganhou so- bre aquelie bruto feroz. O seu corpo, en- terrado na areia , junto da praia, esteve por algum tempo meio descuberto ; ed'elle o po- vo cortou muitos pedaços, que espalhou co- mo relíquias, não para serem veneradas, co- mo as dos homens virtuosos, porém para se- rem detestadas como as de um execrando mal- feitor. Tal he o premio, que mais cedo ou mais tarde recebem essas atrozes excepções da natureza humana , que muito insignes se chegão a fazer por actos de uma exquisita e não vulgar ferocidade.

O povo de Lisboa, que estava vendo, bem que de longe , tudo quanto se passava no outro lado do rio, e distinguio mui cla- ramente a nossa victoriosa bandeira bicolor , tremolando sobre todas as alturas, preparou- se immediatamente para quebrar as pesadas e barbaras cadeias, que, depois de cinco an- nos de ignominia e tormento, lhe agrilhoa- vão os pulsos fiéis. Mas ainda mais depressa seus bai baros oppressores sentirão o perigo que de tão perto os ameaçava, porque em a noite de 23 para 24, tão fracos na desgraça como altivos na prosperidade, desampararão a cidade, levando d'ella toda a força militar que os tinha sustentado ; e á sombra da qual se íôrão abrigar muitas fidalgas, muitos no- bres, e homens públicos, todos insignes por

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Seus actos ou de crueldade ou de simples aá- hesão ao usurpador, sendo rodos capitanea- dos pelo duque de Cadaval , um dos gran- des instrumentos da usurpação. A povoação inteira da cidade , tanto que vio a fuga tão apressada de seus algozes, pôz-se logo toda cm movimento, acclamou a carta e a Rainha, foi soltar os milhares de victimas que esta- vão accumuladas depois de tantos annos nas prisões , e arvorou por toda a parte a ban- deira da liberdade ; de sorte que quando en- trou em Lisboa , que foi logo , o duque da Terceira á frente de 15*00 homens, foi recebido com salvas de artilharia de todas as fortalezas, e do castello, e vio tremolar por toda a parte a restauradora bandeira bicolor. Assim o reino do Algarve , a extensa província de Alemtejo, e a populosa cidade de Lisboa, dentro de um mez abrirão as portas e os braços a um punhado de heroes que asvierão libertar; e por seu jubilo e uni- versal contentamento desmentirão a todos es- ses estrangeiros que, além de se mostrarem nossos inimigos, por muitas vezes nos insul- tarão , dizendo, que a nação Portugueza não queria a liberdade constitucional, e lhe pre- feria o absurdo, e feroz governo de D. Mi- guel. Por honra da natureza humana não se devia insultar uma nação inteira, calumnian- do-a de preferir o absolutismo a um gover- no de razão e de lei ; e de ninguém menos do que de lord Wellinghton, e de lord Be-

resford (d) devia esperar a nação Portuguez*- taes insultos, a quem o valor Portuguez dêo. um nome, dêo honras e riquezas : mas não im- porta ; a nação Portugueza mostrou quem era,. e respondeo briosa a quem lhe disputava os. brios !

Para a expedição valente e briosa que: sahio do Porto, e veio libertar o Algarve , o. Alemtejo, e Lisboa , assim como para a. heróica expedição marítima que, commanda- da pelo audaz almirante Napier, destruio a esquadra Miguelina , concorreo eílicazmente Henrique José da Silva, esse Portuguez, de quem muitas vezes tenho fallado, o qual, estabelecido em Londres, empregou para ci- la seu credito , seus fundos e seu zelo. No dia ? de abril d'este anno causando grande receio a esquadra de D. Miguel, que se es- tava preparando com grande pressa , e era provável fosse logo bloquear o Porto, teve o mesmo Henrique José da Silva uma confe- rencia com Mendizabai sobre este objecto, na qual lhe propôz, que se a commissão qui* zesse fazer algum esforço para impedir os ma- les que podião resultar d aquelle bloqueio, el- le , conjunetamente com alguns amigos, po- deria apromptar de 8 a io^ooo libras ster- linas sobre títulos do novo empréstimo sup-

((/) Estes dous generaes Inglezes , que commandáráo as nossas tropas , na guerra Peninsular , e á frente d'ellas fô-v ião sempre victoriosos , fôrâo também os nossos maiores, inimigos, apesar de. terem títulos, e pençôes de Eoituga.!.

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plementar. No dia 6 do dito mez escreveo Mendizabal a Henrique José da Silva, e lhe disse, palavras íormaes em Hespanhol : zz a~ nnqae la commission cuenta con algunes médios , íenemos que confessar , aunqite con dolor , que está redusida casi a zero \ Acer esc entou po- rém que se elle lhe acceitasse letras a 2 e meio porcento para serem pagas como as an- tecedentes, e debaixo da sua pessoal garan- tia, n'esse caso hia effeituar a expedição de- baixo das condições que o mesmo H. J. da Silva lhe tinha proposto. As condições fô- rao as seguintes— i.a que a expedição havia de ir a uma extremidade de Portugal : 2.a que Napier havia de dirigir a parte naval : 3." que o marquez de Palmella, e alguns ou- tros Portuguezes de distineção havião de ser convidados para acompanharem a expedição.

H. J. da Silva respondeo-lhe em 7, di- zendo-lrie, que estava prompto para execu- tar tudo o que antes tinha dito, e que o au- thorisava, ou a commissão, para dispor des- de aquelle momento, sobre a sua casa, pa- ra os primeiros preparativos até á quantia de io$)000 libras, sendo, comtudo, condição e clausula essencial, que o capitão Napier ha- via de ter o commando naval da expedição.

No dia 8 pedio H.J. da Silva ao nosso ministro em Londres, Abreo e Lima, que o au- thorisasse a entrar n'aquella negociação, relati- va á expedição projectada. E no dia 9 o minis- tro o authorisou para tratar todo este negocio.

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No dia 3 de maio offíciou H. J. da Sil- va ao nosso ministro, dizcndo-lhe : que ten- do uma negociação aberta para se habilitar a poder dispor por uma vez das ioo^ooo li- bras de apólices do empréstimo supplemen- tar, era preciso que elle e o marquez de Pal- mella fossem assistir a uma conferencia que havia de haver para este cfTei to no dia seguin- te ás 1 1 horas da manhã em casa de mr. Hum- phreys , n.° 2. Upper Wimpole Street.

Os termos em que se concordou fôrão : que se vendessem as apólices ao preço de 38 por cento, e que o pagamento fosse pe- la forma seguinte : & dar libras 20 por 100, immediatamente, e as libras 18 por 100 em qualquer das três hypotheses seguintes. 1 .a Lo- go que houvesse reconhecimento do gover- no da Rainha por Inglaterra e França : 2/ lo- go que o mesmo governo podesse abrir o mer- cado a's apólices mencionadas : 3." logo que se restabelecesse o governo da Rainha em Lisboa. Julgou-se este empréstimo a 38 por cento muito vantajoso naquella épocha, por- que estando as apólices do empréstimo de 1823 a £0, ou j o e meio por cento, e de- duzindo-se deste valor 27 e meio por cen- to de juros vencidos no junho próximo, ape- nas valião n'aquelle tempo de 22 a 23 por cento; e isto com circulação livre no mer- cado, e com a garantia extraordinária do go- verno do Brazil. E para que a expedição le- vasse algum dinheiro foi ainda authorisado

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H. J. da Silva pelo ministro Abreo e Lima, e o marquez de Funchal a negociá-lo; o que com effeito conseguio. Fez-se-lhe esta peti- ção no dia 15 de maio (e). Além de todos estes importantes serviços para preparar e fa- zer partir a expedição, ainda o mesmo H. J. da Silva dêo 500 libras sterlinas no dia 10 de junho para apromptar, e expedir imme- diatamente a escuna de guerra Eugenia.

Ao mesmo tempo que o usurpador per- dia a, sua capital, e com a gloriosa entrada n- ella se restituião á luz do dia tantas victi- mas , que por annos gemião em tenebrosas masmorras, ouse vingavao as cinzas dos mui- tos martyres patriotas, que nellas, e nos ca- dafalsos tinhão acabado seus dias de dor e tormento , preparava-se no Porto um novo castigo aos rebeldes, que ainda se atreverão a atacar-nos no dia 25! deste mez. eu dis- se como ao exercito da usurpação tinha che- gado o marechal Bourmont com grande nume- ro de officiaes Francezes ; e como este novo reforço tinha exaltado nossos inimigos tanto dentro como fora de Portugal. Querendo ago- ra de novo este chefe mostrar ao mundo quan- to valia, e desempenhar a alta idéa que d'- elle fazia a saneia irmandade, apostolico-ab- solutista, que lhe havia dado esta tão impor- te missão, depois de ter bem examinado to-

(0 Ao marquei de Palmella se entregarão 7$ooo sobe- lanos ; e ao ministro da fazenda se dérão dous créditos por $$000 libras sterlinas.

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das as nossas posições, e dispor tudo, co- mo homem seguro da victoria , nos atacou emfim furiosamente na madrugada do dia 2$. Ameaçando-nos em toda a linha , o seu ata^ que principal se dirigio comtudo para o cen- tro no sitio chamado o redueto do Vanzel- ler, posição importante, e contra a qual fez suecessivamente quatro ataques fortíssimos com infantaria e cavallaria, nos quaes foi sem- pre victoriosamente repellido Immortalisou- se n'aquelle ponto o coronel Moura, que com forças bem pequenas em comparação d'aquel- las que o atacavão, rechassou sempre valen- temente o inimigo. No mesmo sitio mostrou igual valor e resolução o desgraçado João Nepomuceno (/), que dêo sobre os inimigos com alguns esquadrões de cavallaria n.° 10, e osacutilou de maneira que desanimados fu- girão, e não ousarão voltar mais ao comba- te, apesar de fortemente instados por seus chefes. Mal recebidos assim n^quella posição passarão a atacar a nossa direita com o mes- mo furor, porém ali acharão a mesma resis- tência ; e as suas armas tiverão o mesmo des- tino , que foi o de uma completa derrota, e de huma vergonhosa fugida. Em todos estes ataques, que durarão por mais de doze ho- ras , e em que a artilharia e as bombas de

(/) Este valente e infeliz official veio ultimamente a morrer sem gloria no armo 18^7 ás mãos dos seus compa- triotas no combate do Campo da Feira , combatendo con» tra a revolução de setembro de 1 3 ; 6.

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ambos os lados do Douro fazião um estam- pido horrivel , c vomitaváo a morte em to- das as direcções, para os combatentes e não combatentes, grande foi a gloria que adqui- rio o general conde de Saldanha pelo acerto e intelligencia com que tinha disposto a re- sistência , e pela actividade com que depois a dirigio e sustentou. E neste mesmo dia igual foi a vergonha com aue se cubrio Bour- mont , e se cubrírão todos os mais officiaes, que com elle tinhão vindo para sustentarem o despotismo contra a liberdade, e o barba- rismo e o crime contra a civilisação e a vir- tude. Disserão que o general Clouet , chefe do estado-maior de Burmont, fora quem pes- soalmente dirigira as operações do campo, po- rém debaixo do plano que o seu general lhe havia dado : o que porém então passou como certo e indubitável he , que ambos estavão tão seguros da victoria , que baviao positi- vamente promettido aos rebeldes, e seu che- fe, que naquelle dia hirião jantar ao Porto. E em prova d isto correo também então co- mo verdadeiro , que alguém dentro da cida- de já tinha preparado jantares para alguns dos novos hospedes que esperavão ; o que facil- mente se pode acreditar, porque dentro do Porto havia ainda muita gente que concebia taes esperanças , e mantinha taes desejos. A verdade he, que Bourmont, o vencedor dos escravos de Argel , veio depor todos esses triunfos aos pés dos homens livres commaa-

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dados por Saldanha. Os rebeldes ficarão ater- radissimos com esta derrota ; e a sua perda em mortos, feridos, e desertores, tanto pa- ra nós como para o interior do reino, foi e- norme: pela relação, que os do campo ini- migo quasi unanimemente dérão dos succes- sos d'aquelle dia, não foi ella menos de qua- tro para cinco mil homens. A nossa perda, em comparação da que soífreo o inimigo, foi insignificante, bem que a muitos respeitos muito sensivel ; porque perdemos alguns of- ficiaes de muito préstimo, e muito valentes, entre os quaes não posso omittir o valoroso ajudante D. Fernando , que foi mortalmen- te ferido ao lado do seu general e intimo ami- go, o conde de Saldanha, quando, por um excesso de valor, este carregou pessoalmente com o seu estado-maior, e á frente de alguns lanceiros, uma columna inimiga.

N'este dia de perigo e de gloria mos- trarão os habitantes do Porto a mesma intre- pidez, a mesma serenidade, e a mesma con- fiança na victoria que em iguaes dias sempre tinhão mostrado. Os que não correrão ás trin- cheiras passeavão, ou cuidavão nos seus ne- gócios como nos dias ordinários; ao estron- do da artilharia , e ao sibilar das balas e das bombas comprava-se e vendia-se nas ruas e nas lojas como se tudo o que se ouvia fosse um simples fogo de alegria ; estavão as ja- nellas cheias de gente de ambos os sexos ; e o que se perguntava era somente qual era

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o numero dos prisioneiros que tínhamos $, quantas vezes tinha sido repellido o ini- migo; e quem erão os nossos feridos, sem que a um individuo passasse um instante pela idéa , que podessemos deixar de ser vi- ctoriosos. Junto das nossas trincheiras era po- rém o espectáculo ainda mais admirável, mais extraordinário, e mais heróico: ali se virão algumas mulheres fazendo fogo entre as fi- leiras ; outras mordendo os cartuchos, e dan- do-os aos soldados para mais promptamente carregarem ; outras levando pólvora , muni- ções , bebida e comida á tropa fatigada ; e outras emfim carregando sobre seus hombros com os feridos para os hospitaes. Com tal gente , com tal patriotismo , com tal valor , e com tal resolução não era possivel que o Porto fosse entrado e conquistado , particu- larmente por cohortes de escravos, comman- dados por traidores. A' gloria, com que n'- este dia se ennobreceo o general conde de Saldanha, fez um dos seus amigos, o bacha- rel Manuel da Silva Passos, a seguinte oita- va, debaixo do nome de AJmeno Dámeta:

Santiago em Clavijo brande a lança, ,, E com seu nobre arrojo salva a Hespanha ; ,, Bourmont subme*tte Argel á altiva França; Porém um Portuguez , o grão Saldanha, ,, Da pátria amor, enlevos, e esperança, j, Que inveja faz a toda a gente estranha , ,, Arrostando no Porto o fero imigo , Calca os lauréis de Argel e de Clavijo.

,, Aline no Djsmeto. ,,

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A victoiia do dia 25", realçada com a noticia que no dia seguinte chegou ao Por- to de ter Lisboa ficado livre no dia 24, pro- duzio em D. Pedro tão rápidas e profundas sensações, que lhe não foi possível occultá- ias. Qiiiz partir immediatamente para Lisboa, e assim o executou logo em a noite de 26 em que embarcou. As pessoas , que tinhão constantemente examinado o proceder politi- co de D. Pedro desde que chegou á Euro- pa, virão n'esta sua precipitação em sahir do Porto para se apresentar na capital mais al- guma cousa do que um simples desejo de ir dar força á nova administração , e dirigir os negócios com mais efficacia e regularidade. Attribuirão-lhe as intenções de ir experimen- tar quanto antes a opinião publica dos habi- tantes de Lisboa, experiência que elle ti- nha feito nas ilhas e no Porto, e que não correspondera ás profecias que de ante-mão lhe havião feito os que se querião servir do seu nome para empunharem o poder á custa da honra, e dos verdadeiros interesses, que exclusivamente o devião guiar em a nova carreira politica em que os lances da fortu- na o tinhão lançado. Sim , D. Pedro , que 7 assim como César, devia preferir ser o pri- meiro nos Alpes a ser o segundo em Rom3, esquecido de tão nobres sentimentos, sobe- jas provas tinha dado de querer antes ser o segundo em Lisboa do que o primeiro em um honroso retiro , aonde seus destinos tal-

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vez mais provavelmente o hirião buscar para o elevar depois ao gráo supremo das gran- des ambições. Levou comsigo o seu minis- tério, que a ninguém deixou saudades, á ex- cepção d'aquelles, que ainda de longe o ficarão adorando pelo que tinhão recebi- do, e ainda esperavão receber. Por influen- cia e responsabilidade delle conferio D.Pe- dro, antes de partir, sommas avultadas d'- essa moeda falsa de condecorações ; porque fez cavalleiros , commendadores, e conselheiros em tanta abundância , que de todo se desa- creditou aquelle thesouro de graças e mercês. Não satisfeito o ministério com a prodigali- dade dos empregos , ou recahissem ou não no verdadeiro merecimento , com tanto que se dessem á sua criadagem (g) , quiz ainda falsificar a moeda dos grandes serviços e da honra, atirando com ella, por assim dizer, das janellas abaixo para ser apanhada pelos primeiros que passassem. Em verdade, se o nosso grande Castro, que depois de tantos serviços em Africa recebeo por magnifico pre- mio uma commenda , agora resuscitasse , e visse tão honroso distinctivo em homens co- mo aquelles que nesta épocha o recebião, e que por todos os serviços que tinhão feito

(g) Os ministros de D. Pedro quando assim distribuiâo ot empregos, seguiáo as máximas do provérbio Inglez que diz : Whtn god gives a ploce he gives brains to fill it. Isto he : quando Deus um emprego logo com elle bons miolos para o bem desempenhar.

podiáo contar humilhações, servidão, e tal- vez especulações escandalosas á sombra da protecção ministerial, por certo se envergo- nharia de trazer ao peito um.\ tal condecora- ção ; e suspeitaria que o Portugal d'este tem- po já não era aquella nobre terra em que nas- cera. O ministério, vendo que tinha contra si toda a opinião publica tanto dentro como fora do reino, quiz crear uma nova potencia que o podesse proteger, e esta potencia foi a Burocracia (b), organisada a seu modo, po- rém em geral composta de tão insignifican- tes elementos, que em vez de ganhar com ella força ganhou o publico desprezo. Em uma palavra , prostituio o poder ; e tanto se enxovalhou quem dêo como quem recebeo. Concluirei os suecessos deste mez, no^ ticiando a morte de uma das muitas victimas que a usurpação sacrificou no altar impio da ferocidade ao despotismo , e á tyrannia.. Foi cila a de meu irmão mais velho Luiz Antó- nia Freire de Carvalha e Figueiredo , morador na sua casa e quinta da Tapada, junto a Coim- bra , que, sequestrado, e com ordem de pri- são contra elle desde o anno 1828 , andou errante e foragido fora de sua casa e bens até o anno 1832, em que foi desgraçadamen- te preso. Metido na cadêa de Coimbra por al- gum tempo, foi d'ali removido paraadeTho-

(//) Classe numerosa de empregados públicos, creada só, e de propósito para auxiliar o poder.

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mar. Acontecendo depois o desembarque das nossas tropas no Algarve nos fins de junho $ por esse mesmo tempo o valente Hespanhol D. Manuel Mar tini , á frente de uma grossa partida de constitucionaes , passou por Tho- mar, e ali libertou todos os presos. Meu ir- mão, porém, se achava gravemente doen- te, e como não podesse acompanhar o seu libertador como a maior parte de seus com- panheiros fizera, foi buscar um abrigo no hos- pital d'aquella villa, onde emfim morreo no dia 8 do mez de julho ás nove horas da ma- nhã. Parece que elle antevio serenamente a sua morte , e se preparou com a mesma se- renidade para ella ; porque estando em com- municação com um seu amigo e visinho, igual- mente foragido e errante em Lisboa , o srír. Joaquim Victorino da Silva , natural de Mi- randa do Corvo, e por via do qual eu tam- bém, achando-me no Porto, recebi algumas cartas suas, lhe mandou , como por despedi- da, o soneto seguinte: prova verdadeira do estado do seu espirito no momento em que se lhe estava a extinguir. E he o motivo por que aqui o transcrevo.

<S 145 fe*

t, Sôa d'anniquilação trompa medonha,

As Parcas se dispõem contra meus dias Sem piedade; famintas, quaes Harpias, Da morte a hora notâo tão tristonha.

}, Sou mandado infeliz a que deponha Os meus justos prazeres, alegrias; Expiro , qual Zopiro , ás tyrannias Do fanatismo , que mortes sonha»

Vida saudosa, adeus 1 Mulher, amigos

Vos deixo a meu pesar I mas he forçoso Que me encerre nos lúgubres jazigos.

,, A mão do Eterno , todo poderoso , Soltando-me de tantos inimigos, Ao alcaçar seu me eleva venturoso. ,,

Tendo casado noannoi8i3 com a snr.a D. Rosa Coresma da casa do Fiscal , junto á villa da Louzã, e que lhe sobrevive©, não teve d'ella filhos, e acabou seus dias aos 66 para 67 annos de idade. Os laços de sangue, e amisade, nunca perturbada entre nós, de- vem desculpar-me pelas poucas linhas que a minha justa saudade aqui dedica á sua memo- ria. Foi o protector e pai dos povos que vi- vião junto da sua habitação da quinta da Ta» pada j e apesar disto por alguns delles, e os que mais lhe devião, foi perseguido, e os seus princípios constitucionaes íôrão de- nunciados ao feroz e cioso governo do usur- pador D. Miguel, que o perseguio e matou : monstruoso exemplo de ingratidão ! que mos- tra quão pouca confiança se deve ter no po- vo, e ainda mesmo n'aquelle a quem mais benefícios se tem feito. He tal o animal ho- mem, que por um excesso de reflexão ou de virtude quem he homem de bem pôde dei- Tom. IV. k

*s J46 fc»

Xar de ser egoista ! O povo , particularmen» te o proletário , exulta sempre com a misé- ria , com as desgraças , e sangue dos ricos , para quem olha por instincto com inveja e desconfiança, disfarçadas em hypocrito res- peito. He como os animaes carnívoros, que exultão ao ver um largo campo de batalha , cuberto de cadáveres : em ambos os casos tan- to elle como elles vêem ricas presas para devorarem ; e então a sua ferocidade voraz não tem termos nem limites. Soltar o povo do poder da lei he, portanto, um erro ca- pital j porque se hoje se lança contra aquel- les que lhe designão como inimigos, ama- nhã com outros chefes se lançará contra os que o soltarão ; o que de certo ha de acon- tecer aos Miguelistas (/).

Os acontecimentos do desembarque no Algarve , destruição e captura da esqua- dra, e emfim da entrada em Lisboa, coroa- dos com avictoria do dia 25", em que Bour- mont, a única esperança do partido Migue- lista, mostrou que não valia mais do que os commandantes que o havião precedido , fi- zerão ver aos rebeldes que a fortuna lhes ha- via visivelmente voltado as costas, e que por conseguinte se não podião manter com se- gurança por muito tempo diante das nossas linhas do Porto. Cuidarão portanto logo em se retirar ; e derão principio a esta sua de-

(0 Assim lhes veio a acontecer.

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terminação , começando successivamente a desmontar a sua artilharia grossa ; e no dia 9 de agosto desampararão completamente os formidáveis reductos do Crasto , da Ervilha, e Serralves. Então se vio, com toda a eviden- cia, quão prudente havia sido a resolução de se não terem atacado em frente as linhas ini- migas, construídas com uma fortaleza quea- penas se podia imaginar ; e ao mesmo tem- po se reflectio com que leveza Solignac e D. Pedro pertendião com alguns batalhões for- çar aquellas obras. Sim , então se conheceo mais a covardia dos rebeldes, e o inexplicá- vel medo que elles havião tomado ao exer- cito constitucional; porque erão elles os que mostravão não serem os sitiantes, mas os si- tiados ! As nossas linhas, em comparação das d'elles, erão, na realidade, linhas, e linhas bem delgadas ; e as d'elles erão verdadeiras praças d'armas, e formidáveis fortalezas. Ao mesmo passo que isto assim se passava ao nor- te , o mesmo, ainda que mais lentamente, se praticava ao sul pelo lado de Villa-Nova ; no que havia uma razão mui ponderosa, que era o terem que desamparar uma riqueza im- mensa, qual era a dos vinhos da companhia, e de muitos particulares que se achavão de- positados nos armazéns d'aquelle lado do Dou- ro. Estando pois na forçosa necessidade de se retirarem, e querendo ver se por um mo- do ou por outro podião aproveitar-se d'aquel- la riqueza, que na verdade era importantis-

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sima , recorrerão a um estratagema , que foi ode nos intimidarem com a destruição de to- dos os vinhos , ali depositados , se os não pozessemos á disposição d'elles.

No dia 8 deste mez de agosto foi o general conde de Saldanha convidado pelo barão dHaber, agente do empréstimo do usur- pador, para ter com elle uma conferencia a bordo do Oreste^ um dos navios Inglezes sur- tos no Douro. Prestou-se a isso o conde , e se foi encontrar com mr. de la Griaudie^ re , que lhe foi apresentado como chefe do cstado-maior de Bourmont. Disse-lhe o ba- rão, que D. Miguel havia passado ordens po- sitivas para que se derramasse todo o vinho que existia nos armazéns de Villa-Nova de Gaia pertencentes á companhia ; mas que ten* do elle podido obter licença para o comprar, lhe propunha, como único meio de se não executarem as ordens dadas, que elle consen- tisse na sua exportação, devendo depositar- se no banco de Inglaterra a importância da compra até que a questão da guerra afinal se decidisse. Perguntou-lhe o conde com quem intentava elle barão realisar a compra ; e a resposta foi, que seria com os agentes de D. Miguel , e absoluta exclusão dos membros da junta, creada em nome da Rainha. A is- to replicou o conde : que não se achando au- ihorisado para tratar d aquelle objecto o hia levar ao conhecimento do governo de Lis- boa , para o que faria im media ta mente par-

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tir uma embarcação, dando-lhe em duplica- do, a sêllo volante, o seu officio para que elle também o podesse dirigir por terra. Mas a isto respondeo o barão, que não podia an- nuir , porque as ordens de D. Miguel sede- vião immediatamente executar , e que para esse fim estava em Villa-Nova o duque do Lafões ; e n'este caso era necessário , que o conde desse uma prompta decisão. Vendo es- te a gravidade do negocio , e que se insis- tia em uma immediata resposta, respondeo- lhe afinal , que em poucas horas lha manda- ria ; e asskn voltou logo para a cidade. Con- vocou, sem perda de tempo, para o seu quar- tel-general os membros da junta da compa- nhia, o procurador da coroa, e outras mais pessoas , entre as quaes entrou o author d'- estes Annaes , e discutindo-se ali este ponto importantíssimo, foi opinião unanime de to- dos: „ que não julgavâo ser da sua dignida- de tratarem tal negocio com quaesquer agen- tes do usurpador; roas que no emtanto pro- testavão por qualquer acto bárbaro e atroz que se commettesse contra a propriedade dos vinhos mencionados. Que por tal acto , se o houvesse , a cada um e a todos , que n'elle tivessem parte , fazião responsáveis nas suas pessoas e bens. E que assim os deixavão com- pletamente livres para se macularem mais com esta infâmia brutal , se ainda lhes não pare- cessem bastantes as que até ali tinhão com- mettido. Nesta conformidade respondeo

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o conde de Saldanha ao barão á'Haberya mr. de la Griaudiere , e ao duque de Lafões , ro- gando ao mesmo tempo aos cônsules Inglez e Francez que igualmente protestassem contra aquella medida atroz; o que elles fizerão(fc).

Renovarão-se ainda no dia seguinte 9 algumas conferencias a este mesmo respeito em consequência de novas propostas , feitas pelos agentes do usurpador ; mas o que d'- ellas sempre se colligio he , que se querião por todo o modo apossar dos vinhos, não nos dando, nem nos podendo dar garantias sobre a sua boa fé, e cumprimento de palavra. As respostas que tiverão fôrão a repetição das primeiras, e sempre acompanhadas dos mes- mos protestos. Quem parecia o mais interes- sado em todo este negocio era o barão d'- Haber, o qual como tivesse adiantado gran- des sommas a D. Miguel , e vendo-se nas circumstancias de as perder, bem natural era que fizesse toda a diligencia para ver se po- dia lançar mão dos vinhos para lhe servirem de pagamento, senão do todo, ao menos de alguma parte.

Como vissem emfim os rebeldes que seus ameaços não tinhão produzido o resul- tado que suppunhão, e era a entrega dos vi- nhos; quer fosse por desesperação quer por vingança, se resolverão emfim a executar seu

(£) O cônsul Inglez , residente no Porto , era mr. So\ reli , « o Francez eia mr. João Mallen.

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atrocíssimo e batbaro projecto, o que fizerão no dia 16 deste mez. Vio-se então a que ponto de brutalidade selvagem podia chegar essa facção impia , que não quer senão ab- solutismo euma tyrannia feroz para governar exclusivamente o mundo. Lançarão com ef- feito o fogo aos armazéns da companhia ; e d'elles, assim como dos de alguns particu- lares, que ficavão contíguos, em poucos mi- nutos começarão a correr entre o estampido das explosões, e os rolos de fogo e fumo que obscurecião os ares, torrentes não de vi- nho mas de fogo; porque sendo aquelles vi- nhos finíssimos, e cubertos de muita e su- perior agua-ardente , corrião inflammados, e parecião torrentes de metaes derretidos. As aguas do Douro chegarão a tingir-se de ver- melho , e até a recuarem das suas margens , impellidas pela força e abundância dos vinhos e aguas-ardentes que n'ellas se precipitavão. O povo do Porto, e os mesmos que seguião as bandeiras dos rebeldes , estiverão vendo este espectáculo atroz, cortados de espanta e horror , porque nunca tinhão pensado que no coração humano podessem caber excessos de tão brutal perversidade. Com isto acaba- rão de perder os rebeldes , ainda mesmo en- tre os seus , algum resto de generosa sym- pathía que podesse haver para com elles ; c então clarissimamente mostrarão , por este frenético furor, que davão a sua causa por perdida. O executor d'esta ordem de eterna

infâmia, e de uma inaudita ferocidade, dis- serão uns que fora o brigadeiro Gouvea Osó- rio ; outros, o brigadeiro Lemos: fosse po- rém qual fosse o monstro que a executou, a marca de Cain ficará para sempre gravada so- bre a sua fronte detestável; e a justa vingan- ça Portugueza deve persegui-lo até á ultima extremidade da terra em que procure, se for capaz de remorsos, ir esconder sua vergonha e seu crime. Mas sempre a par das mons- truosidades que apresenta a natureza humana apparecem rasgos de grandes virtudes com que se consola o homem virtuoso, e aprecia a existência ; e por isso não posso deixar de referir, que entre todos os que fôrão consulta- dos sobre as propostas, que a este respeito sefizerão; e ainda mesmo entre aquelles que d'ellas fôrão sabedores, bem que entre uns e outros houvesse alguns aquém aquella des- truição de propriedade hia ser fatal ; nem um individuo houve que hesitasse em decla- rar , que antes se entregassem ás mãos fero- zes dos rebeldes suas riquíssimas proprieda- des do que se tratasse com elles , ou se lhes ministrassem meios para nos continuarem a fazer a guerra de selvagens como até ali nos tinhão feito. Assim tão heróicas virtudes co- mo tão execrandos crimes julguei dever nar- rar para instrucção dos vindouros, e para que sirvão de exemplo das boas e más acções da extraordinária épocha em que vivi, e escre- vo estes Annaes.

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Depois d'este acto de monstruosa per- versidade atreveo-se ainda no dia seguinte 17 o barão âHaber a renovar as suas propostas por via do cônsul Inglez, mr. Sorell , per- suadido talvez que , aterrados com o espe- ctáculo horroroso do dia antecedente, e re- ceosos de que elle se renovasse, como d'is- so éramos ameaçados, nos acharia desta vez mais propensos a concordarmos com ellas. Encontrou porém o barão a mesma constân- cia, o mesmo desprezo, e por conseguinte a mesma resposta , tanto mais heróica quan- to espantosa e aterradora tinha sido a expe- riência antecedente. Porém ou os novos amea- ços não fossem sinceros, ou lhes faltasse tem- po para os executar , o que he mais prová- vel , em consequência dos successos do dia seguinte, o facto he, que o resto dos vinhos ficou salvo, e que os rebeldes fôrão forçados a retirar-se sem poderem renovar seus bárba- ros projectos. A perda que comtudo causarão foi enorme, porque foi avaliada em 17^374 pipas de vinho, e 523 de agua-ardente , ou devoradas pelos incêndios, ou extraviadas e roubadas em quanto permanecerão em Villa- Nova. Os successos que acima mencionei fô- rão os resultados da brilhante e magnifica vi- ctoria que o general Saldanha ganhou no dia 18, e em virtude da qual tanto o norte co- roo o sul do Douro ficarão limpos dos ani- maes selvagens que os infestavão. Erão n- esta occasião as duas margens do rio uma ver-

dadeira imagem das cavallariças pútridas e hediondas dAugias ; e foi o general Salda- nha o novo Hercules , que em um dia as limpou.

Este general , tendo visto como os re- beldes tinhão abandonado as posições do Cras- to , e Serralves, estabelecendo a sua direita nos reductos de Contumil, e que na sua re- taguarda tinhão o grande reducto denomina- do—ifoz/; sabendo igualmente, que o aban- dono dos seus reductos da direita tinha por fim o attrahi-lo ao campo, onde contavão com avictoria, attendendo á sua superioridade nu- mérica ; pelo conhecimento que tinha do va- lor e disciplina das nossas tropas quiz apro- veitasse da occasiao, que a fortuna lhe offe- recia, e cahir de repente, sem ser esperado, sobre o inimigo. Esperou o tempo neces- sário para fazer nos reductos abandonados , que logo fizera occupar, as mudanças indis- pensáveis para os livrar de um golpe de mão. Tendo- se portanto convencido no dia 17 que aquelles reductos se achavão em estado de defeza, determinou o ataque para o dia 18 ; e n'esse dia o executou brilhantemente, mos- trando, que tão hábil general elle era em pre- parar uma defeza como em conceber um ata- que , e com a mesma consumada habilidade executá-lo. Marchando de noite em três co- lumnas, e mandando avançar uma delias pe- la nossa direita com ordem de se apossar da ponte que o inimigo tinha em Avintes, afim,

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de que do sul não podesse destacar forças em soccorro do norte (/) ; surprendeo completa- mente os piquetes dos rebeldes, e foi arro- jando diante de si, e anniquilando pela baio- neta tudo o que encontrou, e ousou fazer- lhe a mais pequena resistência. Surprendido assim o inimigo, recorreo ao recurso, que o conde tinha previsto, que foi o de se formar em linha no reducto Real , e no de Contumil; porém ali mesmo, ameaçado por todos os lados, não ousou defender-se; e, sem disparar um tiro, largou fracamente a forte posição que occupava, e se pôz em re- tirada, ou, para melhor dizer, em precipi- tada fuga, tomando o caminho de Vallongo, cm cuja marcha foi vigorosamente carregado e acutilado pelo valente João Nepomuceno , coronel do regimente 10 de cavallaria. Pela acertada combinação de todos os anteceden- tes movimentos fôrão emfim os rebeldes ar- rojados até as alturas de Vallongo, onde ain- da poderão reunir uma força de ^(Jj^oo até 6(jf)Ooo homens ; e era esta uma posição, que seria imprudência o tentar levá-la de frente. N'estes termos cuidou logo o conde em os flanquear sem que elles o presentissem ; e isto com effeito executou. Tendo elles po- rém conhecido esta manobra, e vendo que na melhor ordem apparecião as nossas colum-

(/) O general Torre», governador da Serra do Pilar, te- ve ordem de fazer uma sortida para o mesmo fim.

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nas avançando sobre o seu flanco, ao mesmo tempo que o bravo coronel Pacheco avança- va pela frente, abandonarão em um momen- to a sua fortissima posição, não parando se- não nas alturas de Ponte-Ferreira, até onde os nossos lanceiros ti verão ordem para viva- mente os perseguirem. Para se imaginar o que esta hábil manobra produziria no espiri- to dos inimigos , transcreverei parte de um paragrapho do boletim official que o conde transmittio ao governo sobre a acção d'este dia. Diz elle : Este espectáculo (da exa- cta ordem em que as columnas avançarão) foi realmente bello; e mui agradável deve elle ter sido para os heróicos habitantes d*esta , para sempre célebre, cidade, que dos intrin- cheiramentos que occupavão, e que tantas vezes tem defendido anciosos, o estiverão ob- servando. „

A muitos officiaes, que participarão d'- este dia de gloria, ouvi eu dizer no quartel- general^ que a derrota dos rebeldes teria si- do total , e haverião ficado completamente anniquilados se a columna ás ordens do ge- neral Valdez , ajudante-general , tivesse si- do bem dirigida, e houvesse chegado a tem- po ao logar que se lhe havia marcado. Po- rém, caso bem extraordinário ! tanto Valdez, como o seu ajudante de ordens Sdvedray per- dêrão-se da columna que commandavão, e por três horas se esteve á espera d'ella ! Apesar d'isto as consequências d'esta victoria. íorão

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incalculáveis, porque, além dos muitos mor» tos, e ainda mais prisioneiros, perdeo o ini- migo as fortificações que ainda conservava ao norte, e uma quantidade prodigiosa de mu- nições com todo o seu material de campanha que tinha em reserva. Nos depósitos de Al- iena , Moreira , e outras partes encontrarão- se objectos de toda a natureza, e em abun- dância tal , que bem mostravão os sitiantes que pertendiao ter-nos ainda em cerco todo o futuro inverno. A outra consequência, igual- mente importantissima d'esta victoria , foi o verem se obrigados a desamparar Villa-Nova, e todas as suas posições do sul. Pela mano- bra com que o conde fez logo occupar a pon- te que tinhão em Avintes, e pela sortida que ao mesmo tempo fez o general Torres para os entreter, virão-se elles forçados a presen- cear de longe o quasi anniquilamento da sua divisão do norte sem a poderem soccorrer. As intenções do conde erão de passar imme- diatamente ao sul do Douro , e fazer ali á divisão inimiga, que o occupava , o mesmo que fizera á do norte ; porém não se poden- do lançar com a promptidão necessária a pon- te sobre o Douro, deixou este ataque para o dia 21. Quando o realisou os rebeldes estavao em completa fugida ; e assim mesmo os perseguio, e arrojou para além de Olivei- ra de Azeméis. A perda que elles soffrêrão, com particularidade no material de campanha, foi enorme j porque em Avintes, Arnellas,

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S. Christovão, Grijó, &c. , se acharão abun- dantíssimos depósitos de toda a qualidade; e entre elles mil e tantas pipas de agua-arden- te finíssima, que tinhão removido de Vil- la-Nova. Appareceo também, entre as mui- tas peças de artilharia que se lhes tomarão , a monstruosa, e célebre, denominada Paulo Cordeiro, por ter sido um donativo feito por aquelle façanhoso individuo, um dos contra- ctadores do tabaco, ao usurpador D. Miguel. Tinha sido esta peça o terror de todo o Por- to, porque por sua grandeza levava a destrui- ção e a morte ás mais distantes partes da ci- dade; e por seu estampido, mais estrondo- so do que o das peças ordinárias, se fazia Jogo conhecida , e atormentava as imagina- ções, augmentando os receios do perigo. Tan- to esta peça como outras , em que entravão morteiros e obuzes , que por tantos mezes tinhão estado vomitando fogo sobre a cidade, fôrao depositadas na Praça-Nova, que depois tomou ó nome de Praça de D. Pedro ; e ali por muitos dias não cessou o povo de ir ver e admirar os diversos instrumentos com que a raiva feroz dos rebeldes , bem que sempre infructuosa , o tinha pertendido senão anni- cjuilar , ao menos reduzir á servidão.

Todos estes grandes resultados fôráo a consequência immediata da victoria do dia 1 8, em que o general Francez Bourdais, a quem Bourmont tinha dado o commando das for- ças do norte, não teve melhor fortuna do

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que antes havia tido o seu general em che- fe no dia 2? de julho antecedente. Como a justiça pede que se não esconda o merecimen- to d'aquelles que mais se distinguirão neste ataque do dia 18 , apontarei aqui os nomes dos corpos , e oíficiaes , que o conde parti- cularisou no seu oíficio do dia 19. Diz em geral que todas as tropas rivalisárão em co- ragem e disciplina , mas que faltaria ao seu dever se não fizesse mui particular menção da cavallaria. Entre os officiaes nomeia os dous commandantes d'esta arma, o coronel do 10, João Nepomuceno de Macedo, com o seu major , Simão Pessoa ; e o coronel dos lan- ceiros, Bacon. Depois, como mais distinctos, menciona os nomes do quartel-mestre-gene- ral, o tenente-coronel Balthasar de Almeida Pimentel, e o tenente ás suas ordens, D. Miguel Ximenes, Hespanhol Americano do sul, que viera d'aquelle paiz com o conde de Saldanha, e sempre o tinha acompanhado. Não se esqueceo também de tributar no seu oíficio ao general Stubbs os louvores que a amisade e o respeito com toda a razão lhe inspirarão, porque disse:—.,, que o tenen- te-general Stubbs , ainda convalescente , e sem attenção á sua antiguidade, viera desde o principio da acção ofFerecer-lhe a sua coad- juvação ; e se retirara quando tudo estava concluído. ,, Este tributo de consideração ao merecimento, á antiguidade, ao valor, e, mais que tudo , á amisade, tanto honjou

a quem o pagava como a quem o recebia;

Quasi pelo mesmo tempo foi o cônsul Francez , João Mallen , ao campo inimigo do lado do sul entregar os despachos que ha- via recebido de Lisboa, e que ali tinhão si- do conduzidos pelo coronel Guiot , ajudante de campo do marechal Soulr, no brigue la Capricieuse , na presuasão em que ainda se estava em Paris de que D. Miguel possuía , e governava Lisboa. Constavão os officios , segundo então se disse, de uma intimação que o governo Francez fazia ao usurpador pa- ra que immediatamente dimittisse do seu ser- viço tanto o general Bourmont como todos os mais ofíiciaes que o tinhão acompanhado. O certo he, que se esta intimação foi tal como se divulgou , D. Miguel não fez caso delia , porque os ficou conservando sempre no seu serviço ; e marchou com o primeiro, e com muitos dos outros para as províncias do sul, caminho de Lisboa. O governo Fran- cez já devia saber por experiência , que D. Miguel e o seu governo não erão homens que se intimidassem com simplices intimações; porém o facto he, que para com seus actos, apesar dos insultos que se lhe fazião de pa- lavra, havia sempre uma tal consideração, que bem mostrava ser elle um dos instrumentos de certo systema politico, que mais se fin- gia aborrecer em palavras do que em obras.

Apenas ainda nos acabávamos de congra- tular no Porto pelos acontecimentos do dia

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:8 , quando no dia seguinte 19 recebemos de Lisboa a interessante noticia de que no dia 15" lord William Russel , plenipotenciá- rio do governo Britânico, tinha apresentado as suas credenciaes, não como encarrega- do da missão especial de reconhecer a Rai- nha D. Maria II. , mas como ministro ordi- nário, interino, para representar a sua corte perante o governo da mesma Rainha -9 em quanto outro não fosse nomeado. Afinal , as- sim veio a politica Ingleza a fazer um acto tardio, que o nosso valor e constância tor- navão indispensável ; e pelo qual mostrau, que se por este modo obrava não era porque mais se interessasse pela causa da nossa li- berdade do que pela da usurpação, que sem- pre preferio , e auxiliou; porém porque nos vio victoriosos ; e porque então he que nos reconheceo por seus antigos alliados. Li- ção importante para os Portuguezes , hoje existentes , e para todos os que no futuro existirem, pela qual devem ficar para sempre sabendo que alliança , e alliados , na boca de qualquer governo lnglez, quando não são palavras enganadoras , são pelo menos pala- Tras sem sentido. A politica Ingleza não tem por alliados senão os seus interesses ; e para os realisar não sacrifica a liberdade das na- ções, mas até sacrificaria todo o género hu- mano se podesse, e sem elle podesse viver. Quanto mais : para esses seus interesses não lhe convém a liberdade dos povos, mas a ser- Tom. IV. l

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vidão e a ignorância, ou esse estado mise- rável da espécie humana, que ella com pre- ferencia sempre ha de auxiliar quer directa quer indirectamente, para que não hajão luzes, que mais cedo ou mais tarde ou pos- são rivalisar com ella, ou pelo menos dimi- nuir-lhe seus louros. Por isso nunca se illu- dao os Portuguezes pensando que , ou pro- curando ser livres ou sendo-o de facto , hão de ter fiéis e verdadeiros amigos ou alliados na politica Ingleza , quer ella se cubra com a mascara dos ivhigs ou dos tories : a nos- sa primeira e mais forte alliança deve fundar- se na liberdade das nossas instituições ; no patriotismo e coragem de as defendermos ; e na inalterável idéa de que nunca devemos esperar dos outros aquillo que não quizermos ou não ousarmos fazer a nós próprios. Em- £m, esperemos tudo de nós; isto he , do nosso trabalho e industria, e não confiemos nada nos estranhos.

No mesmo dia 19 se desbloqueiou abar- ia do Douro , que o ideal bloqueio de D. Miguel, auxiliado pela politica Britânica, ti' nha conservado fechada por muitos mezes \ euma numerosa quantidade de navios entrou pelo rio acima , e vierão anchorar defronte da cidade. Esta novidade interessante , uni- da com as noticias que os rebeldes tiveião com o reconhecimento da Rainha por Ingla- terra , e com a salva geral , que todas as ba- terias da nossa extensa linha em torno do Por*

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to derão simultaneamente na tarde daquelle mesmo dia, o que foi com eíFeito um espe- ctáculo magestoso e brilhante, veio lançar o ultimo desalento nos corações cortados dos rebeldes. Em consequência de todos estes motivos desampararão elles completamente Villa-Nova no dia seguinte 20 ; e com ta- manha pressa e precipitação que nem pode- rão destruir as suas obras , nem levar com- sigo munições de grande valor. Quando o ge- neral Saldanha na madrugada do dia 21 cahio sobre elles apenas os pôde encontrar, ape- sar de os perseguir até além de Souto-Redon- do, e Arrifana. Soffrêrão porém uma grande deserção, a qual, desde o combate do dia 2$ do mez antecedente era tão numerosa , que, em menos de um mez, setinhão passado para nós mais de oitocentos soldados.

Em quanto tudo isso se passava no Por- to, e perto de um mez depois que a nos- sa expedição tinha entrado em Lisboa , não apresentava a capital cousa alguma memorá- vel a favor das liberdades publicas ; porque o governo e seu chefe na sua marcha cons- tante antes parecião trabalhar no sentido de seus particulares interesses do que na pros- peridade da nação. Festejavão-se, e acolhião- se muitos dos grandes fautores da usurpação; distribuião-se ás mãos cheias graças , títulos e mercês a homens que visivelmente ou se tinhão recrutado ou se pertendião ainda re- crutar para o desempenho de certos proje-

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€íòs ; e bem pouco ou nada se fazia que in- culcasse vistas profundas e sinceras para a ver- dadeira regeneração da pátria. Como não lie, nem pôde ser, o plano d'estes meus Annaes fazer a historia particular dos mais miúdos acontecimentos, e pertcndo dar a conhe- cer os homens e as cousas d*este tempo na sua generalidade; sendo-me possível apenas dar um ou outro exemplo para bem marcar qual era não o espirito da épocha em que escrevo , mas o caracter dos homens que n'- ella figurarão ; direi que um dos maiores des- acertos politicos , que então commetteo o ministério de D. Pedro foi , entre outros i- gualmente perigosos por immoraes , a con- servação do patriarcha no mesmo logar que oceupava. Foi este homem (m) aquelíe mes- mo que em todas as suas antecedentes pasto- yaes tinha, como alto ministro da religião do paiz , proclamado, defendido, e mandado proclamar e defender a legitimidade de D. Miguel, ao mesmo passo que declarava e de- nunciava como ímpios e rebeldes os que não obedecião, ou não querião obedecer ao usur- pador; e era emfim o mesmo sacerdote, e o mesmo homem que, como grande pontífi- ce, e vice-presidente da camará dos pares do reino, tinha jurado e feito jurar fidelida- de a D. Pedro, a sua filha, e á carta, e de- pois se tinha declarado insignemente perju- ra) Fr. Patrício , ex-fiade gracian».

ro , tornando-se não individualmente ré(v d'este crime de impiedade, mas fazendo com que uma grande porção de povo , de quem elle devia ser verdadeiro mestre e pastor, fos- se igualmente complice da mesma abomina- ção. O seu crime até era tão recente, que no dia 23 de julho, véspera daquelle em que os nossos entrarão em Lisboa, havia elle ain- da approvado , por um documento publico, que o seu clero se armasse contra os súbdi- tos da Rainha, e os defensores da carta cons- titucional. Convidar pois este indigno pre- lado para que mandasse cantar um Te Deum em acção de graças ao mesmo Deus contra quem elle tinha perjurado, e ordenar e con- sentir em que elle publicasse uma nova pas- toral em favor da Rainha e da carta, no que elle se mostrou tão prompto como nas outras em sentido contrario, foi na verdade o mes- mo que expor a religião ao ludibrio do po- vo, e fazer com que elle a olhasse como me- ro instrumento mundano para sanccionar tanto a verdade como a mentira ; e tornar despre- zível e ridículo aquelle máo sacerdote, ex- citando-o a commetter um novo perjúrio, crU me que elle impiamente commetteo, sendo com tão pouco escrúpulo perjuro á Rainha como ao usurpador D. Miguel. O povo não se deve instruir na religião com palavras, porém com boas acções ; e uma d'ellas., que pertence ao governo, consiste em não consentir em que os pastores religiosos 4q

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povo, de qualquer jerarchia que sejão, o não desmoralisem com as lições ou péssimos ex- emplos de uma immoralidade escandalosa. A obediência ás authoridades publicas he um dever dos ministros da religião ; mas desta nunca elles se devem servir para excitar as paixões do povo a bem dos interesses ora de um, ora de outro partido politico; porque de necessidade ora num, ora noutro caso hão de mentir á sua consciência, e fazer com que o povo a ella também minta.

Na distribuição dos empregos mostrou o governo de D. Pedro em Lisboa a mesma parcialidade, e a mesma indifferença pela o- pinião publica que tinha mostrado no Porto. Debaixo d'este systema se creou logo uma junta de reforma ecclesiastica , que por ella se dêo bem a conhecer qual era o espirito da marcha do governo. Foi delia presidente o padre Marcos, que mereceo tão distincto em- prego , por ser capcllao de D. Pedro (#), e, por assim dizer, o poeta Laureado, que can- tava as façanhas e virtudes da administração que lhe dava de comer. Para tornar menos vi- síveis as sombras d'esta presidência, derão- lhe por adjunctos um ou dous nomes, que o publico respeitava ; e um delles foi o do res-

fjO Par» nada faltar a este padre , nomearáo-no depois os seus amigos arcebispo com o titulo de Lacedemonia ; mas fôião elles mesmos os que também depois lhe despirão, por assim dizer, na praça publicadas vestes ardúepisco- pães ! !

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peitavel prior dos Anjos, Ferrão de Mendonça^ que acabava de sahir das masmorras da tor- re de S. Julião da barra , onde estivera se- pultado durante o reinado de D. Miguel. Mas nem isto dêo credito á nova junta, porque n - ella não se encontrava tudo quanto o publico desejava.

Como o bem combinado ataque do dia 18 tivesse não dispersado, mas desorga- nisado as forças que os rebeldes ainda con- servavão ao norte e sul do Douro , fazendo* lhes perder o resto dos seus reductos , e os grandes depósitos d'armas e munições com todo o seu material de campanha ; e ao mes- mo tempo soubesse o general Saldanha, que a sua presença em Lisboa era muito deseja- da, por isso que não fazia falta no Porto, o que lhe era participado por communicaçôes confidenciaes ; resolveo-se a partir para ali com todo o seu estado-maior, o que executou no dia 23 para 24 d'este mez de agosto. Achei- me eu á despedida no seu quartel-general do Porto, e então não pude deixar de fazer mil reflexões moraes sobre o que vi, e observei. O mesmo homem , o mesmo conde general, que mezes antes havia sido votado ou á mor- te ou ao desterro, e que era denominado por uma facção furiosa ora traidor, ora revolucio- nário, tinha, nesta occasião, dentro da sua sala anciosos por cumprimentá-lo, e d'elle receberem o mais insignificante sinal de agra- do , muitos d'esses mesmos indivíduos que 5.

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pouco antes, não fugião até da sua som- bra , porém fazião timbre ou de o desprezar, ou de o criminar. Com o maior desprezo, sim, ali os vi , baixos e humildes, como escravos diante de seu senhor ; e então me occorreo á memoria aquelle dictado Francez que diz : « avec bouche ri ante , et front dairain vous passez par tout ; que em bom Portuguez se pode traduzir : —para quem não tem vergonha todo a mundo he seu. Com effeito, ver passar homens tão rapidamente do soberbo descara- mento do desprezo, e dos insultos, para o servil descaramento das adulações e cortezias dos escravos he um espectáculo bem hedion- do e desprezível! E este espetaculo vi eu, e observei !

Passados poucos dias appareceo o di- ploma pelo qual o conde era officialmente chamado para Lisboa; diploma, por assim dizer, obrigado; pois que não havia for- ça para lhe estranhar a sua sahida do Porto sem ordem para isso. E por este chamamen- to se collocou também o governo na mesma situação em que estavão os individues que acima mencionei ; porque passou como ellcs, e com a mesma rapidez, a ser o elogiador e adulador do homem que pouco antes ora affectava desprezar, ora punir. Erao porém os serviços do conde tão importantes , e ao mesmo tempo tão necessários, para a sal- vação da causa publica, que desde os degráos do throno até ás ultimas classes todos a um

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tempo se ajoelharão diante d'elle, e o ado- rarão. O tenente-general Stubbs, homem de bem, bravo, e intelligente militar, e sem- pre amigo fiel do conde, ficou fazendo as suas vezes no Porto ; e para seu chefe destado- maior houve uma nomeação igual, que foi a do brioso e valente coronel Pacheco, ambos tão bem quistos da tropa como dos habitan- tes da cidade, não por suas virtudes po- liticas, como por seu merecimento militar. O motivo do chamamento do conde pa- ra Lisboa , e a resolução que elle tomou de ir para lá, ainda antes de ser chamado, foi o ter-se o resto do exercito rebelde dirigido para a capital; e por isso era necessário que o mesmo general, que o tinha vencido den- tro e fora das linhas do Porto, lhe fosse dar ali uma nova lição, se elle tivesse a ousadia de a provocar. Com elle fôrão quasi todas as forças de linha que debaixo do seu com- inando tinhão ultimamente trilhado sempre a estrada da gloria, e que depois nas margens do Tejo fôrão buscar novos perigos , assim como ganhar novos louros ; o que em breve eu serei obrigado a referir. No emtanto as poucas tropas regulares, e os batalhões de voluntários, que tinhão ficado no Porto, não estiverão por muito tempo na ociosidade ; por- que depois tornarão a mostrar aos rebeldes , que ainda se conservavão ao norte e sul do Douro, que nem por isso que erão menos, ejá não tinhão ásua frente o seu capitão, ou

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erao menos valentes, ou lhes faltavão valo- rosos e intelligentes commandantes que as conduzissem á victoria. No dia 3 de setem- bro sahio do Porto o general Stubbs com duas divisões, uma das quaes , a da direita, se dirigio para o lado de Vallongo e Penna- fiel ; e a outra , a da esquerda , tomou o ca- minho de Villa do Conde. Não ousarão os rebeldes, que a primeira encontrou, fazer- Jhe frente, nem sequer por um momento j porque com a sua vista desapparecêrãoem todas as direcções; melhor fortuna porém te- ve a segunda , ou a columna da esquerda , porque surprendeo completamente as forças que estavao reunidas em Villa do Conde. Tu- do o que escapou ao ferro dos nossos foi fei- to prisioneiro, escapando somente os chefes principaes que, por mais acautelados, e re- ceosos, fugirão ainda a tempo com uma pre- cipitação incrivel, desamparando a gente que commandavão. No Porto entrarão mais de cento e cincoenta prisioneiros ; e n'esta oc- casião se distinguio muito o brigadeiao Za- gallo , que dirigio e executou esta hábil o- peraqão. Esta sortida, principalmente pelo lado direito, haveria tido mais importantes resultados , se o general Stubbs não tivesse sido obrigado a retirar-se mais depressa do que meditava para a cidade tanto em razão de boatos que se espalharão de um ataque pelo sul , como por se lhe requererem nes- ses mesmos dias de Lisboa mais algumas tro-

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pas, quede facto para se lhe enviarão. Pas- sados poucos dias se fez outra expedição pa- ra o sul do Douro, que foi com mandada pe- lo valente coronel Pacheco. Esta foi encon- trar a maior força dos rebeldes em Ovar, on- de foi igualmente surprendida pelos nossos, que passarão quasi tudo pelas armas , fazen- do mui poucos prisioneiros. O batalhão 12 de caçadores , e com especialidade a com- panhia do bravo e honrado capitão Cardoso , foi quem teve uma brilhante parte na gloria d'este dia. Os chefes, segundo o costume sempre promptos e preparados para fugirem, tiverão ainda tempo para se escaparem, po- rém perderão suas bagagens ; e entre eílas se achou uma assaz rica , que foi a do com- mandante do batalhão de voluntários de Pe- nella, da família dos Garridos da quinta da Bouça , que apenas se pôde evadir muito á pressa. Esta bagagem mandou vender o ca- pitão Cardoso , que antes nomeei , e fez distribuir o seu producto pelos soldados da sua companhia: feito honroso, e por isso di- gno de aqui ser mencionado.

Por este tempo o Porto estava com- pletamente livre do estreito e rigoroso cer- co em que por tantos mezes estivera, dan- do o maior dos exemplos ao mundo; qual foi o de um invencível valor, de uma herói- ca constância, e de um firmíssimo amor pe- la liberdade. ali reinava a alegria, e a abundância, e se começa vão a gosar os pri-

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melros fructos da liberdade conquistada por tantos sacrifícios *, e por isso será aqui o Jo- gar em que ainda farei o resumo de quanto aquella illustre cidade fez e padeceo. Eu fallei como , por um desses acasos felizes , ficámos senhores da importante posição da Serra do Pilar, que a imprevidência e a igno- rância estiverão a ponto de deixar nas mãos dos inimigos. Agora relatarei o facto extraor- dinário d esses poucos heroes , capitaneados pelo capitão Bravo , ao fechar-se a commu- nicação d'aquelle posto com a cidade, em consequência do estreito cerco que o inimi- go lhe hia fazer pela parte do sul. Compu- nha-se a guarnição, que ali ficou encerrada, apenas de duas companhias de linha , e dos voluntários de Villa-Nova, a quem o povo, por sua valentia e constância , ficou depois chamando os Polacos da Serra, Parecia que , vendo-se ali desamparados, e sendo tão pou- cos em comparação do exercito sitiador, fi- carião desanimados, e lamentarião a sua sor- te -y não aconteceo porém assim, porque des- de logo derão a mostrar o que erao, e o que serião. Vendo passar para o lado do norte os seus camaradas que hião reforçar as linhas por aquelle lado, e presenceando o levantar-sea ponte sobre o Douro, sinal evidente, que dali em diante em seus braços e constân- cia podião confiar ; bem longe de romperem nas lamentações dos fracos, muito ao contra^ rio, mostrando uma grande e verdadeira ale-

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gria , se despedirão de seus irmãos d'armas, dando-lhes o maior exemplo de patriotismo e valor. Os seus últimos vivas , os vivas de despedida , que para muitos era a despedida da eternidade, fôrão : Viva a liberdade ! W va a carta ! viva a Rainha ! Este rasgo de heroísmo fez tanta impressão nos camaradas, c no povo que acabavão de os deixar, e ti- não passado o rio , que quasi todos involun- tariamente , e como por instincto , tocados de tão magnânimo exemplo, se pozerão a chorar: facto realmente grande, tanto de uns como de outros ; e que eu aqui relato por me ser referido por pessoas que o presenceá* rão. Esta valente guarnição da Serra não te- ve um dia de cerco que não fosse de com- bate e de gloria; porque, tendo constante- mente em ioda de sicinco para seis mil ho- mens , não lhes resistio, porém, repellin- do-os briosamente em todos os ataques, cau- sou-lhes perdas espantosas.

Da parte do norte o valor, o brio, e a constância dos militares e do povo fôrão igualmente heróicos. Em todos os combates que se derão, e em que os habitantes riva- lisárão com a tropa, fôrão os inimigos cons- tantemente repellidos com perdas enormes. Mas não era contra os nossos valentes ba- talhões armados que os rebeldes lançavão to- da a qualidade de instrumentos de destruição e de morte; não se passou certamente um dia em que os pacíficos habitantes da cidade,

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ou as suas moradas deixassem de soffrer gra- víssimos damnos de mortes, incêndios, e ruí- nas por meio das bombas e baias, que quasi sem cessar cortavão os ares. A raiva insensa- ta, e o furor frenético dos escravos rebeldes tanto se manifestavão contra tudo que tinha vida como contra os edifícios e jardins: era o génio da destruição, que parecia ter con- cebido a idéa feroz de tudo destruir, e de tudo anniquilar. Mas a par d'este espectácu- lo selvagem e atroz apparecia outro brilhan- te, magnânimo, e grande; e era elle não a constância heróica com que todos os ha- bitantes de todas as condições, de todos os sexos, e de todas as idades vião e sorTnão diariamente os terríveis instrumentos de des- truição e de morte ; mas a alegria , a prom- ptidão, e o valor com que nos dias dos maio- res e mais perigosos combates se apresenta- va quasi a povoação inteira da heróica cida- de em torno das trincheiras, ora resistindo dentro d^ellas, ora atacando fora os inimigos, E não erão os homens de todas as idades condições, que davão este maravilhoso ex- emplo de patriotismo e valor, erão também as mulheres, que, correndo intrépidas aos logares da peleja, mesmo debaixo de um fo- go destruidor, ajudavão , animavão, e auxi- ]iavão os nossos soldados, mordendo-lhes u- mas os cartuchos para mais promptamente car- regarem ; levando-lhes outras agua ou vinho para se refrescarem ; e ajudando emfim ou-

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iras a conduzir os feridos para os hospitaes. Entre estas heroinas , que recordavão essas antigas de Diu, tão célebres em nossas his- torias , mencionarei eu aqui o nome de uma que , por mui notável , ouvi por muitas ve- zes repetir, estando no Porto, e na épocha d este cerco memorável. No combate mui vi- vo do dia 5" de julho d'este anno a mulher de um soldado do 15" de infantaria , chama- da Maria Tbereza , entre outras muitas foi mui particularmente notada por se ter visto andar levando muitos barris de pólvora, e estar depois mordendo os cartuchos aos sol- dados. Com este, e milhares de similhantes rasgos de valor, intrepidez, e heroismo he que uma cidade , como o Porto , resistio a um reino inteiro, zombando sempre dos exércitos formidáveis que a cercarão, e que cm tempo chegarão , segundo se dizia , a mais de quarenta mil homens ; e de mais de duzentas peças de artilharia, de que soffreo um fogo terrível , e quasi constante. E com elles , emfim, he que se abrio caminho para também se nos abrirem as portas de Lisboa , a residência, ou antes a cidadella, onde se refugiavão a usurpação, e a tyrannia , como fortaleza inexpugnável.

Porém não está ainda aqui tudo : todo», estes prodígios, todas estas maravilhas se fa- zião no meio de um novo flagello, e verda- deiramente novo para Portugal, que foi o da cbolera-morbusy augmentado este com a fome,

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e com a miséria. Virão-se os nossos soldados por muito tempo não terem outro alimento mais do que um pouco de arroz, temperado com assucar ; e no meio d'estas privações se observou também então até que ponto pôde elevar-se o amor da pátria e da liberdade ; por- que a sua firmeza, o seu valor, e a sua leal- dade fôrão sempre iguaes ás penosas priva- ções que todos os dias supportavão. Para as alliviar novos e perigosissimos actos de valor foi necessário fazer ; e estes actos fôrão tão heróicos, e de tamanha importância como as mais decisivas victorias. Fallo dos desembar- ques , que todas as noites, em que o tem^ po o permittia, se fazião com um risco, e difíicuídades quasi insuperáveis. por entre a escuridade, e entre um fogo vivíssimo e constante , que durava desde o anoitecer até á madrugada , he que se fazião estes prodi- giosos desembarques de víveres, e munições de guerra, com o que se sustentou a cidade e o exercito nas épochas do seu maior apu- ro. Epara que não houvesse difficuldade, que não tivéssemos para vencer, depois de todas aquellas que apresentavão as trevas da noite, a braveza do mar, e o fogo inimigo, não havia ainda um porto seguro onde se podes- sem depositar os géneros que se trazião dos navios , porque a entrada da barra estava fe- chada pelas baterias dos rebeldes : era neces- sário fazer os desembarques na costa entre ro- chedos, e sempre no risco de ver tudo en-

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golido pelas ondas. Mas todas estas difficul- dades se vencerão : a cidade heróica triunfou, e os inimigos tôrão forçados a retirar-se cu- bertos de vergonha , e levando comsigo, como único fructo da sua brutalidade impo- tente, a execração e o ódio que por sua fe- rocidade tanto tinhão merecido.

Em todo este glorioso periodo de cons- tância , e prodígios de valor, a administra- ção interna , longe de corresponder ás virtu- des cívicas e militares dos habitantes, mui- to pelo contrario lhes correspondeo com actos de absolutismo, e com uma serie de delictos políticos os mais escandalosos. O mi- nistério d'esta épocha não cuidou em cousa alguma mais do que em sustentar-se pelos meios, ora os mais severos, ora os mais re- prehensiveis. Gircumscripto em um limitadís- simo terreno, legislou desafogadamente para todo o reino, como se d elle estivesse de posse; e no que mais cuidou foi em crear legiões de empregados públicos, a quem da- va e promettia logares como em perspectiva, porque a grande somma d'elles ainda estava no dominio do usurpador. Era uma espécie cie camará óptica, em que aquelle ministério, para ganhar adherentes e complices, lhes mos- trava, em pintura, as delicias que lhes des- tinava : era em uma palavra, a parodia da ten- tação que o diabo fez a Christo, mostrando- Jhe do alto da montanha todas as riquezas do mundo ! Mas n'isto havia um fim, e esse de Tom. IV. m

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longo tempo premeditado, qual era, o de recrutar com antecipação as milícias politi* cas com que nas futuras cortes esperava sus- tentar seus projectos, á sombra dos quaes a- quelle ministério se procurava sustentar, ou pelo menos, pertendia gosar dos mais altos prémios da sua servil condescendência. no Porto constava , que havia nominalmente «Afectivos mais de novecentos empregados ; ao mesmo passo que os destinados, ou com promessas para todo o reino, erão infinitos. Assim com esta popularidade procurou sem- pre o ministério do Porto crear e sustentar um partido, que auxiliasse suas vistas futu- ras. Comtudo, quando por este lado queria fazer amigos, declarou uma espécie de guer- ra, como de vingança, á cidade libertadora, porque esta conservou sempre uma nobre independência, e nunca quiz adorar a mages- tade ministerial. Fôrão os heróicos e honra- dos habitantes tratados quasi com a mesma crueldade com que os havião tratado os agen- tes de D. Miguel, porque fôrão litteralrnew te em parte saqueados, não havendo mode- ração no modo com que se lhes tirava o di- nheiro , ou outras cousas de que erão pro- prietários.

A seus constantes actos despóticos ajun- tou ainda outro o mesmo ministério, que foi de grande escândalo. Fallo dos sequestros , nos quaes não houve muita parcialidade, porém ainda um modo de execução, que lhes

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dco o ar de uma verdadeira rapina. Homens que, por timidez, haviíío sahido da cidade antes ou na véspera da entrada do nosso ex- ercito, apesar de serem conhecidamente cons- titucionaes , fôrão com todo o rigor seques- trados ; em quanto outros, mesmo actualmen- te conhecidos por adherentes ao usurpador e á usurpação , erão protegidos e poupados. Quanto ao modo por que os sequestros e apre- hensões se fazião , parece incrível que tal a- contecesse, e que n'esta operação podesse ha- ver tamanha falta de juizo e delicadeza. Fa- zião-se muitas de noite, e no dia ou dias seguintes se apresentava o que dizião ter acha- do. Para sempre comprovar com algum exem- plo esta pratica, tão pouco escrupulosa, e su- jeita a mil conjecturas, citarei o caso que se praticou em Villar, e de noite, em casa dejoão Monteiro dAlmeida, aquella mesma casa em que por algum tempo esteve o tribunal das prezas (o). Por este modo feitas estas opera- ções de noite, ou quando se não fazião senão de dia passando immediatamente os objectos sequestrados para a casa do executor d'estas diligencias, seguia-se que muitas vezes as cousas as mais preciosas ou mais úteis des- apparecião. Pelo menos a voz publica assim o dizia ; o procedimento authorisava esta voz ; e eu, que por muitas vezes a ouvi, aqui, co-

(<?) N'esta mesma casa morava o advogado Lopes Rocha que me contou este facto.

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1110 simples historiador, tal e qual a repito. Na casa de João Luiz^ chamado da Fabrica, no fundo da rua da Picaria , constou que o extravio , particularmente em vinhos finíssi- mos engarrafados , fora escandalosíssimo , e de um immenso valor. Apesar porém de to- dos estes excessos nunca deixou a nobre ci- dade de conservar o seu brio, o seu valor, e o seu patriotismo ; porque sempre esteve na persuasão de que os erros dos homens, que a governavao, nada tinhão com a bondade da causa que ella defendia ; e assim mostrou com isto, que tanto sabia triunfar dos inimi- gos, como ser amiga fiel da liberdade.

O conde de Saldanha chegou emfim a Lisboa, e logo appareceo o instrumento pu- blico pelo qual elle era oficialmente chama- do do Porto para lhe dar a direcção de to- das as operações militares contra o inimigo que tinha estabelecido o cerco da capital, Ouvi dizer n'este tempo, que avinda do con- de para Lisboa fora tão a propósito, e de tamanho proveito como havia sido a sua che- gada ao Porto. Achou as linhas summamen- te imperfeitas e irregulares; e a tropa, ape- sar de numerosa , estava ainda em tal desar- ranjo , que me constou na minha chegada a Lisboa, no dia 15 do presente mez de Se- tembro, que apenas encontrara três mil e tan- tos homens de tropa que se podesse chamar regular, á excepção das forças que tinháo chegado do Porto. Com a sua costumada a-

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ctividade, e conhecida intelligencia militar cuidou elíe logo em todos os meios de de- feza tanto no que dizia respeito ao material do exercito como ao pessoal ; e fôrão taes e tão acertados estes meios , que no dia $ d'- este mez pôde completamente rebater um fortissimo ataque dos rebeldes, que, com- mandados por Bourmont e mais officíalidade Franceza, tinhão a promessa de entrarem n'- esse dia em Lisboa. N'este ataque morrerão, entre outros, D. Thomaz Mascarenhas, que com uma morte honrosa lavou os grandes des- acertos que havia commettido em Londres e no Porto ; e o valente joven D. Alexan- dre, filho do conde d'Alva, moço de muito brio , valor, e honra, porque , apesar de não estar ainda bem curado das graves feridas que em 29 de setembro do anno antecedente ha- via recebido no Porto, quiz ainda n'cste di& glorioso servir a sua pátria pela qual , com- batendo, morreo. O inimigo, completamen- te batido no dia £, ainda tentou um peque- no ataque no dia 14; mas como visse logo no principio como era recebido, e qual se- ria o resultado das suas tentativas, desis- tio immediatamente de suas tentações, e não prolongou o combate, que vio lhe hia a ser fatal. Em ambos os ataques, tanto do dia $ como do dia 14, os novos batalhões, forma- dos dos habitantes de Lisboa, combaterão valentemente o inimigo ; e desde logo mos- trarão que não querião ser menos em pátrio-

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tismo e valor do que os seus compatriotas , os heroes do Porto, a quem nesses dias brio- samente imitarão.

No emtanto no Porto como em Lisboa o governo não mudava de marcha, e os seus actos erao sempre os mesmos. No Porto re- eebião-se, ou tinhão entrada os grandes ini- migos das nossas instituições, e os susten- tadores do governo do usurpador, bem como os mais fiéis e honrados constitucionaes ; e se estabelecia tanto para uns como para ou- tros indistinctamente ainefficaz legislação das fianças. Sim , esta invenção das fianças , que se exigião dos que se recolhião ao Porto, era para uns desnecessária , e para outros era ri- dícula, porque não produzia effeito algum de proveito publico, e a prova era : que não hou- ve rebelde, nem denunciante, nem inimigo declarado da carta e da Rainha que deixas- se de achar um abonador. Além d'isto , era ainda indiscreta , porque em virtude delia se ordenava, que todos os entrados de novo se fossem alistar nos batalhões nacionaes. Em Lisboa a administração não melhorou , por- que ao menos em quanto o ministério se con- servou no Porto conservou ainda no trato ex- terior para com suas pessoas certa moderação que de todo logo despio na capital. N'eila se vio então a que ponto podia chegar a sua estricta economia, porque com doze mil réis mensaes de ordenado ostentarão um luxo que a todos, senão causou admiração, causou

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comtudo indignação e desprezo. Tomarão lo- go bellas casas, rodarão em bellas carruagens, e se escoltarão de todo o cortejo da magnifi- cência e da grandeza. E como se no publico não houvesse senão estupidez e ignorância, fez o ministério um decreto pelo qual, perten- dendo mostrar moderação, e economia, mostrou hypocrisia, e injustiça. N'elle se or- denou, que de certa épocha em diante se da- rião meios ordenados a todos os que antes recebião doze mil réis mensaes , até ali es- tabelecidos para todos os empregados sem distincção, em consequência do desfalque da fazenda publica : porém ao mesmo tempo se accrescentava, que os que viessem a ter me- nos de doze mil réis mensaes sempre os re- ceberião por inteiro. Assim com esta orde- nança ministerial ganharão os grandes em- pregados, e com especialidade elles minis- tros : porque a plebe dos empregados conti- nuou a nutrir-se das migalhas que cahião das mesas dos grandes senhores.

No emtanto o mesmo ministério hiaau- gmentando diariamente os batalhões da sua milicia , que se compunhão dos seus novos empregados, para os quaes também creou la- gares novos, tornando-os logo apetitosos com as promessas de pingues ordenados. Porém de toda esta organisaçao administrativa fez um verdadeiro vestido de arlequim, porque a par de homens muito capazes, e com grandes ser- viços e trabalhos durante a usurpação se vi-

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rão homens conhecidamente Miguelistas , e até estrangeiros. Dos desta classe apenas a- pontarei um para exemplo , que foi um cer- to Brazileiro, chamado Tavares , medico de D. Pedro. A este individuo se dêo o logar de fysico-mor do reino, logar que não po- dia exercer não como estrangeiro, mas por- que sendo medico, e não tendo licença, pre- viamente alcançada pela authoridade com- petente, para curar dentro do reino, não de- via ser empregado.

A escolha dos empregados foi geralmen- te mal recebida, tanto no que dizia respei- to aos indivíduos como aos corpos collectivos. Nomeou-se para corregedor do crime do bair- ro do Rocio em Lisboa um homem que no Porto havia sido dimittido por seus pró- prios amigos , e que no seu novo emprego se fez ainda notável pelo facto seguinte. Ha- via em Lisboa um velho ecclesiastico , mui curioso de antiguidades, e que possuia um rico museum , tão coi^hecido , que até ex- citava a curiosidade dos estrangeiros que vi- sitavão a capital. Além disto , o mesmo se- ptuagenário e pacifico ecclesiastico gosava da fama de rico, qualidade bastante para desa- fiar a cobiça de alguém. Por esta circumstan- cia sendo aceusado de affecto ao usurpador , foi logo classificado como inimigo da carta e da Rainha, e como tal, sem mais inda- gação , preso á ordem do ministro do seu bairro. Houve porém logo quem advogasse

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a innocencia do accusado , e a muito custo, debaixo de fiança, sahio da prisão. Mas es- ta perseguição, não merecida e não espera- da, fez tal impressão no respeitável eccle- siasrico, que em poucos dias morreo (/>). Parecia, que depois da sua morte todo o pro- cesso criminal devia ter cessado, comtudo não aconteceo assim , porque se lhe fez um sequestro sobre toda a sua propriedade ; e por este procedimento bárbaro se dêo logo a co- nhecer que aquillo que se pertendia era em todo o caso agarrar os despojos da victima. Um seu parente reclamou immediatamente a propriedade sequestrada, mas constou que se achara completamente roubada; e ao mesmo tempo se soube, que todo este processo se havia feito sem haver culpa formada (cj). Por este e outros factos adquirio o ministro a de- signação, que geralmente lhe davão —. do se" gundo Semblano do Rocio, em allusão a um ministro de D. Miguel , que tinha aquelle nome , e que servira no mesmo emprego, e no mesmo bairro.

fj>) O nome d'esta victima era o beneficiado João José de Oliveira da Silva.

(çr) Contra este processo monstro houve um aggravo por se mandar subsistir um sequestro por crime de homem mor» to antes de pronuncia e sentença , a*>irn como por se no- mear depositário o mesmo official de justiça que tinha con- duzido o preso para o Limoeiro , e ao qual se f^eo a al- cunha de proprietário ! A prisão fez-se em 7 de setembro, e 12 ou l) dias depois se inquirirão as testimunhas. O aggravo foi provido em 1 4 de outubro seguinte. O dr. X«- pes Rocha foi quem o escreveo.

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Na formação dos corpos collectivos hou- ve a mesma desattenção tanto á justiça como á opinião publica , de maneira que , ao ve- rem-se certas nomeações , havia muita gen- te que dizia , que a actual administração era a administração Miguelista , vestida de azul e branco. Na composição do conselho dista- do, por exemplo, entrarão certos nomes, que a opinião publica nao julgava favoráveis á li- berdade, como o de Trigoso, que sendo mi- nistro no anno 1826, e na promulgação da carta muito tinha concorrido para a annullar ; e havia sido um d'aquelles, que indirectamen- te também tinhão concorrido para abrir as por- tas a D. Miguel , a quem todos os pruden- tes já olhavão como o exterminador das liber- dades nacionaes. A verdade he, que D. Mi- guel o deixou viver sempre tranquillo em sua casa, e de certo porque estava bem persua- dido dos bons serviços que antes lhe havia feito.

Na organisação do supremo tribunal de justiça , houve igualmente uma parcialidade conhecida , que desgostou a todos os que a- mavão a justiça , e queriao se respeitasse a probidade moral e politica. Nesta organisa- ção se confundirão tanto os talentos com a ignorância , como as mais eminentes virtu- des civicas com os maiores delictos políticos. Vio-se , por exemplo , fazer parte d'aquelle tribunal, um José Leandro , ministro no an- no 1824 de todas as perseguições do minis-

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terio Pawplona, e famosamente insigne por ter pertencido á alçada de Coimbra presidi- da pelo feroz Victorino, de quem fallei no meu Ensaio Politico sobre as causas que pre- pararão a usurpação de D. Miguel ; e virão- se mais outros nomes que julgo "escusado no- mear, por serem bem conhecidos do publi- co. Em quasi todas estas , e outras nomea- ções similhantes não havia senão patronato e arbítrio; e o arbítrio estava na violação ma- nifesta da carta constitucional no artigo 130, titulo 6.°, que dizia: ,, Que o supremo tribunal de justiça seria composto de juizes letrados, tirados das relações por suas anti- guidades, e que na sua primeira organisação serião empregados os ministros dos tribunaes que se houvessem de abolir.

No dia 21 d'este mez de dezembro lord Russel , que se tinha apresentado ao go- verno da Rainha como ministro extraordiná- rio, apresentou novamente as suas credenciaes como ministro ordinário do gabinete Britâ- nico. Mr. de Lourde , encarregado Francez, apresentou igualmente as suas credenciaes ; e nesse mesmo dia, ou em outro muito pró- ximo se apresentou na mesma qualidade di- plomática um encarregado da Suécia. Em quanto n'esse dia se fazia ofíicialmente o re- conhecimento da Rainha pelos governos que deixo mencionados , estava ella próxima a entrar pela foz do Tejo , onde com effeito entrou no dia 22 conservando-se a bordo até

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3 manhã do dia seguinte 23 em razão de se não acharem ainda todas as cousas dispostas para ser recebida como merecia, e o publi- co muito desejava. Desembarcou com effei- to na manha do dia 23 , e o seu desembar- que foi na realidade magnifico e brilhante não tanto pelo apparato real com que foi recebi- da , como pela alegria e enthusiasmo nacio- nal, que então se manifestarão, e nos dias e noites seguintes, em que as illuminações e os vivas fôrão quasi sem interrupção. No acto do seu desembarque, que se eíFeituou no cães das Columnas em frente da estatua equestre de seu terceiro avô D. José I. , pra- ticou D. Pedro uma acção mui nobre para com o conde de Saldanha. Apresentando-o á Rainha, sua filha, disse-lhe: Não o a- presento hoje a V. M. como conde de Sal- danha, nome que lhe he bem conhecido, mas como marechal do exercito de V. M. , e como homem , a quem , por seus distinctos serviços na restauração do throno, V. M. de- ve honrar e respeitar. N'este despacho se houve D. Pedro não com a delicadeza de cavalheiro, mas com a bizarria de príncipe ; e muito folgo de lhe poder aqui pagar este tributo de justiça, tanto mais que por outras vezes, por não faltar á verdade, tenho sido obrigado a censurá-lo.

A Rainha no dia 24 d'este mez foi pas- sar revista ao exercito libertador que estava guarnecendo as linhas que defendião Lisboa^

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e ali foi recebida em toda aparte, e por to* dos os corpos com o mesmo enthusiasmo c a mesma alegria com que havia sido sauda- da no acto do seu desembarque. N'esta oc- casiao aconteceo um facto , que se me con- tou como verdadeiro, e que he de tanta in- dependência e de honra , que de propósito o quero mencionar , bem que me não fosse conhecido o nome do benemérito individuo que o praticou. Alguém tinha previamente dado instrucções aos commandantes não para a qualidade dos vivas, porém para a or- dem em que se deviáo dar. Parece, que o da constituição ou da carta , se não estava classificado em ultimo logar, pelo menos não era o primeiro que se mandava dar; o que vendo um dos commandantes, homem reso- luto e livre, sem que lhe importasse a or- dem recebida, e sem nenhum receio, a trans- tornou , e principiou os vivas pela carta, se- guindo logo os da Rainha. Houve quem lhe quizesse emendar o que iVellesuppunhão en- gano, porém elle com a mesma intrepidez os repetio da mesma tórma , e fez caiar os aduladores.

No dia 25 recebeo a Rainha pela pri- meira vez, como Soberana constitucional, o corpo diplomático, as authoridades publicas, e as diversas deputações que do Porto e ou- tras partes a tinhão vindo cumprimentar. Mas no emtanto que este reconhecimento publi- co se lhe fazia não pelos ministros dosgo-

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vemos estrangeiros, porém pelos indivíduos e corpos mais distinctos do estado, constou- met que havia na capital quem andasse es- palhando vozes de que não convinha ter rei mulher, e que mais acertado era escolher o pai em vez da filha. Estas vozes erão o écho das que se tinhão ouvido na emigração, e agora ainda se repetião em Lisboa para ver o effeito que fazião. A verdade he, que a- quelles que não querião rei mulher, fôrão os mesmos que depois mais de rastos se lança- rão a seus pés, e mais servilmente fôrão seus aduladores.

Findou este mez de setembro com um grande acontecimento politico, que foi a mor- te de Fernando VIL , rei de Hespanha , no dia 29 , dia intitulado de S. Miguel. Este nome, que os absolutistas tinhão adoptado para sua particular veneração depois que o usurpador das nossas liberdades figurava como um dos seus primeiros instrumentos , per- deo, n'este anno, grande parte do seu pres- tigio religioso e politico; porque a experiên- cia mostrou que o archanjo Miguel em cou- sa nenhuma favorecia seus devotos. Havia um anno que no Porto, e no mesmo dia 29, em que se celebrava o nome do protector ce- Jeste, e do usurpador terrestre, tinha este si- do completamente derrotado em um ataque que tentara contra aquella heróica cidade ; e n'este anno , e no mesmo dia , sem que o poderoso archanjo lhe valesse, morreo o ty-

ranno Hespanhol , o inimigo e assassino da liberdade da Peninsula. Foi, com eíFeito, es- te homem uma das maiores monstruosidades reaes do nosso tempo , porque unio á mais abjecta servidão a maior arrogância e tyran- nia ; foi o mais ingrato dos homens e dos reis ; e foi quem , desprezando sem pejo a opinião publica dos seus contemporâneos, c outra ainda mais severa, a dos vindouros, as- sassinou na sua pátria aquella mesma liberda- de que lhe restituio o throno, que elle co- vardemente havia abdicado. Entregando-se nas mãos de Napoleão, contra a vontade do po- vo Hespanhol , houve-se com aqueíle como o mais vil dos escravos ; festejou , sem ver- gonha , nem brio , as victorias que as armas inimigas ganhavao contra a sua pátria, e suas liberdades; e depois, libertado, cubrio de prisões, e patibulos, aquella mesma terra em que tanto sangue se havia derramado por el- le, e pelas pátrias liberdades. Com toda a justiça também a elle se pode applicar aqueí- le sentencioso dito que o orador Romano Pas~ sieno, segundo refere Tácito no livro 6." dos Annaes, applicou a Calígula, isto he : gz/£ nunca se tinha visto nem um melhor escravo , nem umpeor senhor. A sua morte foi de gran- de proveito para a Hespanha, porque se vio livre de um tyranno feroz e ingrato ; assim como o foi também para nós, porque nos li- vrou de um grande apoio, que n'elle tinha o nosso tyranno , tão feroz como elle* Co-

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mo Fernando tivesse abolido a lei Salica pa- ra que sua filha lhe succedesse no reinado em vez de seu irmão Carlos, a rainha regente tomou logo todas as medidas para que isso se realisasse. As mais importantes íòrã > : fa- zer , de concerto com a França , com que o general Bourmont com a maior parte dos of- ficiaes Francezes, que o tinhão acompanha- do, largasse o serviço de D. Miguel ; assim como o sequestro, que mandou lazer em Hes- panha sobre todos os bens pertencentes a D. Carlos , exigindo que o mesmo se lhe fizes- se em Portugal. Este infante, desobedecen- do a seu irmão, conservava se com D. Mi* guel, sem ter querido passar-se á Itália para onde se lhe dera destino ; e não tendo nun- ca cessado de fomentar um partido em Mes* panha , agora, depois da morte do irmão, tomando o titulo de Carlos V., havia ali si- do causa de movimentos parciaes em seu fa- vor, e que pelo tempo adiante se tornarão mui extensos, fortes, e perigosos. E^m uma palavra , D. Miguel , e o tio erão os dous instrumentos que a sancta alliança, ou jun- ta apostólica, fazia mover, e auxiliava para manter o absolutismo na Europa , e impedir o progresso das idéas liberaes. Assim a mor- te de Fernando, transtornando estes projectos Jiberticidas, foi de uma inculculavel utilida- de tanto para a Hespanha como para Portu- gal.

No emtanto que isto se passava perto

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de nós, também ao longe havia acontecimen- tos que muita relação tinhão com a causa que depois de tantos annos defendíamos. No Bra- zil , e particularmente no Rio de Janeiro , aconteceo um facto que não quero deixar em silencio, porque indirectamente nos dizia res- peito. O partido absolutista Brazileiro nun- ca tinha cessado, depois da forçada abdica- ção de D. Pedro , de conspirar surdamente em favor delle, appellando sempre para uma restauração , e para o restaurador que a de- via realisar. Entre as intrigas internas acon- tecia também que estas tinhão ramificações na Europa, sustentadas por aquelles que ti- nhão participado dos ódios contra D. Pedro, e que antes e depois da sua abdicação havião sido forçados a sahir do Brazil. Parecerão es- tas mais perigosas quando se conheceo que um notável emissário, António Carlos de An- drade, o mesmo que antes havia sido uma das victimas dos ciúmes do ex-imperador, a- gora apparecia completamente congraçado com elle, e tinha vindo á Europa, e até mes- mo a Lisboa para conferir com o desejado res- taurador (r). E quem mais peso dêo a todos estes acontecimentos , que marchavão a par de mil boatos , que os conspiradores fazião circular por occasião dos recrutamentos que tanto em Inglaterra como em França simples-

(r) Não ha duvida que António Carlos esteve em Lis- boa n'este tempo ; e que até havia projectos que se esten- diâo além das nossas fronteiras.

Tom. IV. n

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pKWíe se fazião para reforçar o nosso exerci" to libertador, foi o ministro Brazileiro em Londres, que de tudo isto dêo conta para a sua corte. O ministério ou estivesse na rea- lidade possuído da existência d'estes proje- ctos, ou emflm fingisse temê-los mais do que elles merecião, o certo he que dêo uma con- ta muito circumstanciada deste negocio ás camarás, e pedio poderes extraordinários pa- ra cohibir a conspiração que temia, ou fin- gia temer. As camarás, regeitando a propos- ta dos ministros , mostrarão que estavão ca- pacitadas do ultimo caso ; e os indivíduos que nellas mais se distingui» ão sobre esta reso- lução fôrão os membros do partido da oppo- siçao, que por este modo não meterão a ridículo a supposta tentativa da restauração, mas impedirão um acto de flagrante injusti- ça, e de falsa politica , qual foi, o reconhe- cimento de D. Miguel , e que alguém pro- punha como meio seguro de anniquilar todas as esperanças dos que esperavao ou acredita- vão na vinda do restaurador. Tudo isto se passou no mez de junho d este anno.

Outro caso notável aconteceo em Ingla- terra quando a Rainha ali chegou na sua vin- da para Lisboa. Os Portuguezes, residentes em Londres , juntarão-se para deliberar so- bre um cumprimento que lhe querião fazer e á ex-imperatriz do Brazil ; e encommendá- Tao o projecto do cumprimento ao bacharel João Bernardo da Rocha 3 que havia annos

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ali residia, e tinha sido o redactor do Por- tugitez em Londres. Fez elle o projecto , e passando a lê-lo na assemblea em que todos os Portuguezes estavão , um delles , não sei se o ministro Abreo e Lima, se o cônsul Fran- cisco Wanzeller, propôz uma emenda que vi- nha a ser: que á ex-imperatriz no cumpri- mento a ella particularmente dirigido, se des- se o titulo de ãttqueza de Bragança. Levan- tou-se então o redactor da proposta, o sr. Ro- cha, e com tamanha clareza expôz a impro- priedade de se lhe dar aquelle titulo por não ser compatível com as leis que havião incor- porado o ducado de Bragança nos bens na- cionaes , reservando somente aquelle titulo para o herdeiro presumptivo da coroa , que, tomando-se os votos sobre este importante objecto, se regeitou unanimemente a emenda, e o projecto passou como havia sido conce- bido. Esta notável decisão, relativamente ao tempo em que se dêo , isto he, na occasião em que todas as adulações, ainda as mais bai- xas , se dirigião a D. Pedro , fez uma gran- de honra não ao author do projecto, mas a todos os que o approvárão, e com especia- lidade aos dous empregados públicos, o mi- nistro, e o cônsul, que preferirão as vozes da consciência e da razão á hypocrisia dos a- duladores.

Principiou o mez de outubro deste ati- no, e o facto mais interessante que logo n'- elle appareceo foi o decreto para Suspender

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a convocação das cortes para o primeiro dia deste mez como antes se havia annunciado, visto que o território estava ainda na maior parte occupado pelas tropas rebeldes. O que porém sobre este ponto eu agora pertendo notar , como digno d'isso, não he a suspen- são da convocação annunciada, mas he o mo- do por que o foi, e os termos de que então se sérvio o ministério para a annunciar. Dis- se elle, que um dos assumptos mais impor- tantes para que as cortes hião ser convoca- das era para se tratar da regência do reino. Ora a cousa era bem sabida , porque tudo quanto pertencia a este objecto estava claris- simamente providenciado e definido no capi- tulo 5'.0, e artigos da carta constitucional des- de o pi até o ioo. Erão pois desnecessários poderes alguns extraordinários para os depu- tados tratarem d'esta questão, que estava decidida na carta , e em todas as hypothe- ses que uma minoridade podia apresentar. Não se quiz porém senão prevenir por este mo- do a consciência dos deputados, dizendo- Jhes claramente, que D. Pedro queria e de- via-ser regente; ponto inculcado, maqui- nado, e, sem disfarce-, manifestado na emi- gração , tanto em Londres como em Paris. Por esta manobra, chamada politica, trilhou o ministério exactamente os passos do usur- pador D. Miguel , porque quando este quiz sanccionar a sua usurpaqão, anniquilando a carta, também annunciou por um decreto que

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convocava os três estados do reino para de- liberarem sobre importantes pontos de direi- to publico ; quando todos estes pontos, is- to lie, todo o nosso direito publico estavão decididos na carta constitucional, que elle e a nação tinhao adoptado e jurado. Agora, per- tendendo D. Pedro convocar as cortes para tratarem da regência collocou-se exactamen- te na mesma cathegoria de seu irmão , des- truindo a sua própria obra, e exigindo dos deputados do povo que trouxessem poderes para o ajudarem a rasgar uma das folhas da carta de que elle mesmo era o author. Este proceder não sérvio pouco para lhe alienar as affeiçóes , que com menos ambição as teria podido conservar sempre puras, leaes, e ver- dadeiras. Mas seus ministros, que querião á sua sombra governar, e gosar , como lauta- mente gosarão, soprarão-lhe ambições, que nem para elle nem para nós forão de proveito. A opinião publica continuava immuda- vel contra o ministério, e se fundava em uma serie de factos que, a serem todos verdadei- ros, parecia bem justificada. Apontavão-se, entre outras muitas cousas as péssimas nomea- ções que se fazião para os empregos , esco- lhendo-se homens sem capacidade moral e po- litica para os exercerem, em quanto de pro- pósito, e como por acinte, se punhão de par- te indivíduos muito beneméritos , e por- que mostravao tal austeridade de princípios, que não era possiyel que o absolutismo, dis-

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farçado debaixo da bandeira da carta, podes- se contar com elles. Multiplicavão-se também os empregos nas mesmas pessoas, e estas as que menos o merecião na geral opinião. E finalmente a tal ponto tinha chegado o des- crédito do ministério, que até publicamen- te se dizia, que de muitos empregos se fa- zia almoeda. Era isto, e ainda mais o que se dizia , sem pejo nem disfarce ; e quando a opinião chega a este ponto, de necessida- de alguma cousa existe sobre que ella se fun- da, e assim se faz fallar.

O dia 10 deste mez foi ainda mui glo- rioso para as nossas armas: os rebeldes, que se achavão ás portas de Lisboa , e que da- vao a entender que ali pertendião demorar- se, e pelo menos passar o inverno, pelo mui- to que cuidavão em se fortificarem, fôrão for- çados a perder n*este dia todas as suas posi- ções, e a retirar-se até Santarém, onde se poderão manter protegidos pela forte po- sição desta villa. O general , conde de Sal- danha, commandou esta acção, e nella sou- be conservar a reputação militar que tinha adquirido. N'esta épocha não havia quali- dade de lisonja que D. Pedro não empregas- se para agradar ao conde , não porque esti- masse seus talentos militares, ou respeitas- se as virtudes politicas que até ali tinha mos- trado; mas, bem pelo contrario, porque as temia, c então começava a querer seduzi- lo. Assim no dia 12 d'este mez, anniversa-

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rio de D. Pedro, mandou elle que se descu- brisse o busto do marquez de Pombal , que a inveja e o fanatismo tinhão feito arrancar do pedestal da estatua d'el-rei D. J^sé, e que elle também lhe mandara restituir. Porém to- das estas affeiçòes, agora por tantos modos ma- nifestadas a Saldanha, e tão pouco em har- monia com os ódios que tVeste mesmo anno se tinhão mostrado contra elle, não parecião, nem se julgavao sinceras.

Ao passo que se representavao estas di- versas scenas , algumas vezes brilhantes , ou se não o erão , ao menos com essa apparen- cia , havia outras de summo ridículo , com que a opinião publica nunca se pôde confor- mar, e de que sempre escarneceo. Entre el- las foi a nomeação do padre Marcos para pre- sidente da junta da reforma ecclesiastica. Sim, o povo não podia ouvir dizer, sem se rir, que o padre era reformador, e que com au- ctoritate apostólica reformava, c profanava, co- mo elle dizia, os logares sanctos l A este res- peito o conde da Taipa, em uma das cartas que escreveo a D. Pedro, eque publicou pe- la imprensa, dizia com muita propriedade e galantaria : Papam habemus Marcam 1 e o publico ou o denominava por escarneo —. o con- selheiro profanador ; ou tomava como irreligio- sas e impias as expressões com que elle, em ar de pontífice, dizia: profanamos este ou a- qitelle convento. O certo he que de um obje- cto muito serio o ministério fazia uma verda-

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d eira Saturnal ; e fazia do seu pontífice Mar- cos uma espécie de arlequim, com que di- vertia ou assustava as consciências do povo. O ultimo resultado porém de tudo isto, e o mais essencial, era, segundo se dizia, que um convento profanado era um convento sa- queado. O futuro mostrou que isto era ver- dade.

Por este mesmo tempo, e no dia 15* do corrente mez morreo uma das notabilidades d'esta épocha , Cândido José Xavier, secreta- rio destado de D. Pedro na repartição dos negócios do reino, e interinamente com a pasta dos estrangeiros, na falta do marquez de Loulé, que havia pedido e alcançado a dimissão d'este emprego. Ainda que este ho- mem não tivesse nascimento distincto para por elle se apresentar no mundo , soube ad- quirir bastante instrucçao para com ella se dar a conhecer, particularmente a certos fidalgos, a quem , por seu caracter condescendente , procurou agradar. Empregado primeiramente como homem de letras na secretaria de um dos nossos generaes, passou d*ali á classe mi- litar, e nesta qualidade seguio a sorte das tropas Portuguezas que o general Francez Junot, estando em Portugal, enviou para Fran- ça. Acompanhando com outros oiíiciaes o ex- ercito de Massena quando chegou até ás por- tas de Lisboa, em que não pôde entrar, foi com elles por esta razão condemnado á mor- te. Em consequência d'esta sentença perma-

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neceo cm França até o anno de 1820, on- de teve parte na publicação dos Annaes das Sciencias e das Artes, que então se publicarão em Paris, e que muito servirão para lhegran- gear a reputação não de homem literato, porém amante da liberdade. A revolução de 24 de agosto lhe abrio as portas da pátria, annullando as sentenças que contra elle e ou- tros seus camaradas se havião publicado em Lisboa por ordem da regência denominada *-< do Rocio. Veio com Pamplona , que, em pouco tempo, foi nomeado ministro da guer- ra, e por elle foi chamado para director da sua secretaria. Neste emprego não con- servou a boa reputação que trazia de França, mas a elevou a ponto de, na falta de Pam- plona, ser nomeado ministro da guerra, e depois conselheiro d'estado : tão enganados andavão com elle os seus protectores! Ain- da na revolta e fugida do infante D. Miguel para Villa-Franca , no anno 1823, conservou elle a antiga reputação, porque não quiz se- guir as partes do infante ; e depois se con- servou em Lisboa á sombra da protecção do seu amigo Pamplona , que , tornando a en- trar no ministério, como primeiro ministro de D. João VI., lhe dêo a direcção do col- legio militar da Luz, onde se conservou até a épocha da carta constitucional em 1826. N'- este periodo foi que elle começou a desen- volver a hypocrisia do seu caracter politico; porque chamado de novo , bem que interi-

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namente, e na doença do general Saldanha, ao ministério, d'esta vez patenteou n'elle quanto até ali tinha sabido occultar ou por timidez , ou porque lhe parecesse não estar chegado ainda o tempo de manifestar aberta- mente as suas ambições. Era n'aquelle tem- po bem sabido que a carta constitucional ti- nha contra si os ódios não da nossa aris- tocracia ecclesiastica e civil, que mui efíkaz- mente tinha concorrido para a queda da cons- tituição do anno 1822, porém dos principaes gabinetes da Europa, como erão os de Lon- dres, Paris, e Madrid. N'estas circumstan- cias todo o Portuguez, e com especialidade todo o ministro destado, que fosse um sin- cero amigo da liberdade , devia ser um dos seus zelosos e resolutos defensores. Tanto mais isto se precisava n'aquelle tempo quan- to era sabido que , não convindo á politica estrangeira attentar directamente contra a car- ta, porque a reputavão dada por uma legiti- ma author idade , era-lhe por conseguinte ne- cessário recorrer a meios indirectos para a destruir. Estes meios encontravão-se na re- gência de D. Miguel , que então se achava desterrado na Áustria pelo seu attentado de 30 de abril de 1824 contra seu pai, e seu rei ; e isto mesmo muito bem sabia Cândi- do José Xavier. Nestes termos era da sua competência, como homem que devera que- rer ser livre, e como ministro integro, que tinha obrigaçãa de zelar as leis da sua pátria,

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obstar quanto podesse ao chamamento de D. Miguel; e não auxiliar dentro do reino ne- nhuma das facções que trabalhavão para este fim. Foi porém o seu comportamento minis- terial e politico inteiramente diverso do que devia ter (j); e em todo o seu ministério temporário auxiliou e protegeo a vinda do in- fante, e as intrigas e tramas do partido que o queria e desejava. Com a restituição do ge- neral Saldanha ao ministério , logo que me- lhorou da sua enfermidade, e enfermidade, que parece foi ajudada pelo veneno (t) , fi- cou de parte Cândido José Xavier, e se re- colheo á sua Cartucha militar do collegio da Luz; o que comtudo não durou muito tem- po, porque, crescendo as intrigas contra Sal- danha, foi este forçado a dimittir-se, e pa- ra o substituir foi Cândido immediatamente chamado. Este chamamento provou bem o conceito em que o tinha a facção Miguelis- ta ; porque nada fazendo então a infanta re- gente que não fosse n'este sentido pelo ter- ror que lhe tinhao inspirado com a vinda do irmão, não era possivel que fosse aconselha-

(/) No meu Ensaio sobre a usurpação, que seive de pre- liminar a estes meus Annaes , expuz a parte que Cândi- do teve n'esta conspiração I ibert icida.

(0 ® general Saldanha achou-se doente desde que , na volta de Alemtejo , comeu e bebeo em casa do bispo de Beja , que creio não residia então lá. Disse-me o general que i conservando-se por muito tempo doente sem achar melhoras , um medico célebre de Lisboa lhe aconselhara tomasse remédios contra veneno; que assim o fizera, e que Jogo começara a mejhorar.

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da a nomeá-lo para substituir Saldanha se el- le não fosse de opiniões inteiramente con- trarias ás d'este. No ministério se conservou até á chegada de D. Miguel , esperançado certamente em que com elle havia de ter gran- de valimento ; porém enganou-se , porque o usurpador, melhor avaliador do caracter de Cândido do que tinhão sido os constitucio- naes, e não podendo esquecer de que se ti- nha recusado a seguir-lhe as bandeiras no 30 de abril, em poucos dias o dimittio. Como isto visse, e que tinha perdido o seu tempo em pertender amaciar os ódios de um tyran- no offendido, julgou prudente pedir passa- porte, eretirar-se para Inglaterra, o que com cffeito executou.

Conservou-se n'este paiz na obscurida- de até que um novo acontecimento, que foi a revolução do Porto, o tirou d*aquelle es- tado, e o dêo de novo a conhecer pelo que valia, e pela importância que tinha. As in- trigas , que levarão o marquez de Palmella ao Porto, e todos os suecessos d'essa épocha, que relatei, fizerao com que Cândido fos- se especialmente nomeado para tomar parte, e mui activa, n'esta fatalissima viagem do agoureiro Belfast. E com effeito, os seus ser- viços fôrão avaliados cm tamanho preço, que na chegada do brioso exercito, que debalde quizerão sacrificar , e que contra a expecta- ção e combinações da politica appareceo em Pjymouth, foi elle nomeado para comman-

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dar aquelle deposito da flor da emigração. Mas não o foi sem um grande escândalo ; porque neste emprego foi preferido a um dos ho- mens de honra, probidade, e valor, que mais brilhou entre os emigrados do Porto, e foi o brigadeiro Joaquim Quevedo de Souza Pi- zarro ; o único oflicial-general que, com seu honrado irmão, Gaspar Pizarro, teve o no- bre patriotismo, a heróica firmeza, e a va- lente ousadia de conduzir as relíquias, ou os Penates livres, até á terra do exilio ! Assim no completo agrado da administração Palmei- la, que então tudo governava, se conservou elle ora em Inglaterra, ora em França até a chegada de D. Pedro á Europa, épocha, em que plenamente resuscitou toda a sua influen- cia politica. Um dos individuos , que tinha acompanhado o ex-imperador, foi o marquez de Rezende da casa de Penalva ; e este, por antigas relações com Cândido, quando elle vivia debaixo da protecção de alguns fidal- gos , Ih o apresentou , e recommendou em Paris, segundo então ouvi dizer. E foi tão a propósito esta apresentação, que D. Pe- dro desde logo o tomou em aífeição , e nun- ca mais d'elle se pôde separar: sympathia, que bem mostrou qual era o caracter politi- co tanto do protector como do protegido. Sér- vio na casa ex-imperial primeiramente como secretario particular, e n'esta qualidade se fez logo notável pela famosa carta que, em no- me de D. Pedro, e em data de 6 de janei*

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ro de 1832, escreveo ao coronel Rodrigo Pinto Pizarro, e da qual fiz menção n' es- tes Annaes. Por este primeiro ensaio mostrou elle quanto valia e podia ; e com toda a pro- babilidade foi o grande laço, que irresistivel- mente depois o prendeo a todas as ambições e destinos de seu amo. Sim, este assassínio politico do coronel Pizarro abrio as portas a Cândido para officialmente participar de to- dos os arcanos políticos do principe, em cu- jo primeiro serviço entrou , senão como al- goz, ao menos como esbirro. Foi em con- sequência d'isto pelo tempo adiante um dos seus constantes secretários d'estado ; e n'es- te emprego ora sérvio no ministério Palmei- la e Mouzinho, ora nos que lhe succedêrão. Sempre com a mesma influencia no animo e conselhos de D. Pedro, quer fosse pelo seu máo estado de saúde, quer por systema, tor- nou-se quasi invisível ao publico; e vivendo como uma espécie de magico, sempre occul- to e retirado em um dos cantos do palácio, inspirou constantemente o principe em todas as suas resoluções. Morreo , emfim quasi de repente , extenuado de forças tanto em ra- zão dos trabalhos assíduos que lhe dava o em- prego, e que por sua ambição nunca largou, como talvez por effeito das saudades, que mais ou menos nunca deixão de atormentar os ambiciosos, quando os brilhantes pros- pectos da vida se começão a desvanecer , e a luz, que na mocidade allumia e abrilhanta

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o futuro , começa com a idade , ou com as enfermidades, a tornar-se pallida , ou a dar sinaes de extinguir- se. E a sua morte, como acontece á de todos os homens, que nos al- tos empregos não souberão grangear venera- ção e respeito, se teve alguma lagrima de saudade, seria a d'aquelles ou que havião participado do seu valimento, ou ainda luci- le se esperançavão ! Fui um pouco longo em dar a conhecer o caracter d'este homem; por- que não devendo ser a historia o panegy- rico dos mortos , mas um exemplo fiel para os vivos, nella achem elles exemplos impar- ciaes e verdadeiros tanto para os aborrecer como para os imitar.

Ainda estaria quente o cadáver de Cân- dido José Xavier quando seus collegas pro- curarão dar-lhe um suecessor. Mas era elle homem tão importante , que em vez de um teve dous , que fôrão Aguiar , e Margiochi ; o primeiro dos quaes teve a pasta dos negó- cios do reino, e o segundo a da marinha, que interinamente tinha Agostinho José Frei- re, e que agora trocou com a dos negócios estrangeiros , que pertencia a Cândido. Ne- nhuma d'estas nomeações mereceo a opinião publica , e por diversas e contrarias razoes. Aguiar, antigo substituto na universidade de Coimbra, e deputado de cortes em 182o, tinha emigrado ; e tanto nesta situação como nas antecedentes ainda se não tinha feito re- commendaYel como homem distincto, Antes,

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para fallar a verdade, como emigrado, e par- ticularmente no últimos tempos, se havia as- sociado ao partido ministerial, que então não tgosava nem de bons créditos, nem de boa opinião. Defendeo todas as suas medidas, e por esta sua boa índole começou a ser mui- to bem pago com lucrosos e importantes em- pregos. Esta nova recompensa acabou de mos- trar seu intrínseco valor politico, que sendo de bons quilates para a administração que o nomeava, não o era para o publico, que não o pesava na mesma balança. Margiochi , pe- lo contrario, contado sempre entre os que militavao sem mancha debaixo das bandeiras constitucionaes , o amigo, e um dos compa- nheiros do general Saldanha na sua viagem para o Porto, e, por conseguinte, caracter politico, que parecia irreconciliável com o ministério actual, que então era o objecto de um ódio quasi geral ; perdeo para com o pu- blico a mais valiosa parte que tinha da sua antiga reputação politica. Parecia incrível , e quasi que se não podia explicar , como um homem, que affectava seguir os principios po- líticos do conde de Saldanha (y) , e seus a- migos, se resolvesse a fazer parte de um mi- nistério, em que o conde nunca quizera en- trar, bem que para isso muitas vezes convi- dado. Esta e outras muitas circumstancias íi-

(v) Também o conde nâo foi, passado tempo, mais fir- me em seus princípios políticos ; em troca de quinquilharia se despojou de ouro puro.

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zerão com que seus amigos politicos ou la- mentassem este seu desvio da carreira, que até ali com guapo nome tinha trilhado, ou des- confiassem da pureza e sinceridade de seus antigos princípios. A verdade he, que attri- buindo uns este seu procedimento á fraque- za, ou a falsas combinações, e outros a um caracter hypocrita , não faltou, apesar d'isto, quem mui' deveras se magoasse de o ver me- nos bem avaliado do que antes sempre fo- ra.

Em quanto porém tudo isto se passava no exterior do palácio, no interior delle cou- sas se passavão que derão muito em que fal- Jar. D. Leonor da Camará , que de Lisboa havia sido expressamente chamada para aia e mestra da Rainha, e que voluntariamente e com grande risco accedêra a este convite, il- ludindo toda a vigilância do governo usurpa- dor; foi expulsa do paço, e do alto empre- go que occupava , por D. Pedro. Tinha el- Ja desde Londres acompanhado a Rainha pa- ra o Rio de Janeiro ; tinha vindo com ella depois para a Europa ; e sempre , quer em Inglaterra quer em França, e ultimamente na sua chegada a Lisboa, havia sido sua com- panheira inseparável. De repente, e quando menos se imaginava , vio o publico esta ex- traordinária mudança no palácio; o que àêo motivo, como era de razão, a milhares de conjecturas. Attribuírão muitos esta pequena revolução de palácio a motivos que antes, Tom. IV. o

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ou com verdade, ou para este fim de pro- pósito espalhados , alguma gente do partido ex-imperial por algumas vezes tinha querido fazer acreditar, e erão : que D. Leonor ins- pirava princípios perigosos á Rainha tanto sobre religião como sobre politica. Mas es- tes rumores , por isso mesmo que erão pro- pagados pelas mesmas pessoas que antes ti- íihão altamente elogiado a sua nomeação , e acertada escolha, havião sempre adquirido pouco credito. E a razão d'isto era , porque ao mesmo tempo dizião outros , que a ver- dadeira causa por que se procurava desacre- ditar os seus serviços era porque ella mostra- va mais affeição e lealdade á filha do que ao pai, particularmente depois que com toda a certeza constara, que elle queria reassumir a coroa que com boa vontade parecia ter nei- ]a abdicado. Para isto se acreditar havia an- tecedencias de grande peso , e uma delias era: que quando, na abdicação de D. Pe- dro , a Rainha voltou para a Europa em na- vio separado daquelle em que vinha o pai, D. Leonor da Camará e o conde de Sabu- gal , que a acompanhavão , quizerão que el- Ja , em vez de se dirigir para França ou In- glaterra, desembarcasse na ilha Terceira, on- de então estava toda a força da emigração. Quando porém hião a pôr em pratica esta re- solução , sahio-lhes o commandante da em- barcação com uma ordem por escripto de seu pai j em que o prolribia de desembarcar a filha

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em dominios Portuguezes (x). Isto queria di- zer muito; e as inferências, que d'este fa- cto se tirarão, fortificadas com o futuro pro- cedimento de D. Pedro, e dos chamados seus amigos," que não querião rei mulher, fizerao ver que então havia projectos acerca da im- mediata sorte da Rainha. D. Pedro, que d*- isto veio a saber , como era natural , nunca perdoou ao Sabugal , nem a D. Leonor esta tão boa e politica idéa que havião concebi- do ; e muito mais contra ambos se indispôz quando ainda veio a saber , que não tinhao querido que a Rainha desembarcasse em Fran- ça senão debaixo da condição expressa de ser ella recebida como a Soberana de Portugal ; o que com effeito se executou. Constou de- pois que D. Pedro recebera muito mal o con- de e D. Leonor em Belle-isle , aonde tinha hido para se encontrar com sua mulher e sua filha ; e todas estas circumstancias servirão para explicar a não esperada sahida de D. Leo- nor do paço, e a dimissão do importante em- prego que oceupava. D. Leonor, vendo-se assim maltratada, engeitou com muita digni- dade e bizarria a pensão de um conto de réis annuaes com que D. Pedro cuidou poderia disfarçar a affronta que lhe fazia; e desde esse dia , como alguém escreveo n'aquelle tempo, a Rainha de Portugal, no centro da sua capital , no meio de seus súbditos, na pre-

(*) Pessoa de muito credito me asseverou, que D. LeC nor da Camará comervava uma copia d'aquellas instrucções.

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sençâ âo seu exercito, no seu palácio, e no seu quarto, foi outra vez entregue a mãos estran- geiras (y).

Ao passo que a politica do palácio e do gabinete ou dava muito que fallar, ou mui- to que temer aos verdadeiros amigos da li- berdade constitucional , um grande desastre acontecia ás nossas armas de Alemtejo, jun- to a Alcácer do Sal em consequência ou de péssimos planos de guerra, ou de uma traição premeditada. Um corpo importante , e tan- to mais porque era composto de voluntários, e muitos d'elles homens os mais respeitáveis c ricos da provincia, foi completamente der- rotado pelas forças Miguelistas. Quem com- mandava a nossa gente era um tenente coro- nel, chamado Florêncio, o mesmo homem, que tendo estado antes na ilha de S. Miguel, e sendo ali commandante, havia sido dimit- tido e preso pela camará constitucional da ilha, e n este estado remettido para o Porto, quan- do ali estava o governo e o exercito liberta- dor. Com estas antecedencias se lhe confiou ainda um commando tão importante, e por elle tão justificadas fica'rão as authoridades de S. Miguel como mal avaliado o ministério que para tal posto o nomeara. Acontecia isto no dia 3 d'este mez de novembro ; e no dia $

{ij~) He verdade que junto da Rainha se conservarão ain« da o venerando conde de S. Paio, e a respeitável condes- sa de Ficalho; mas erão como duas arvores solitárias no meio de um deserto: quasi tudo o mais era estrangeiro.

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o mesmo ministério, talvez para diminuir a profunda impressão que este desastroso sue- cesso havia produzido no publico , apresen- tou na gazetta official , ou Chronica , a expo- sição do estado das nossas finanças , com a noticia de um novo empréstimo de dous mi- lhões sterlinos ; dando-llie as cores mais lison- geiras, e pensando assim, ou que mais se acreditava, ou mais diminuía a impopularida- de em que estava. Para que melhor se saiba o que isto era , e o que queria dizer, expo- rei de mais longe este negocio para que me- lhor por elle se conheção os homens que D. Pedro teimou sempre em conservar comoseus ministros de confiança, e bem assim os agen- tes que taes ministros empregavão.

Quando, depois da entrada em Lisboa, se tratou de conduzir a Rainha , que estava em França , para a capital , parecia que para a acompanhar se houvessem de nomear pes- soas de distineção que lhe fizessem o devido cortejo, particularmente quando passasse pe- la corte de Inglaterra, que foi o caminho que tomou. Não aconteceo assim, porque, fal- tando-se a todas as decencias, o homem que se escolheo para esta commissão foi um es- trangeiro sem nome e sem consideração, o Castelhano Mendizabal, facto , que causou não pequeno escândalo tanto entre os nacio- naes como estrangeiros. Este escândalo se augmentou ainda com outra , ainda mais im- portante e delicada commissão, que llie deo

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o ministério d'esta épocha , que foi a de o authortsar exclusivamente , sem serem ouvidos os nossos agentes diplomáticos em Londres, que então erao o conde do Funchal, e Abreo e Lima , para contractar um empréstimo em nome da Rainha , e de o assignar. Foi este o mesmo empréstimo que zChronica de 5 d- este mez annunciou mui pomposamente, e que, segundo me constou naquelle tempo, os contractadores delle , mais delicados do que o ministério de D. Pedro, não quizerão ratificar afinal sem que fosse authorisado por mais alguma assignatura além da do estran- geiro Mendizabal. Este individuo , sem fal- lar na attendivel circumstancia de não ser Por- tuguez , tinha sido o agente do antigo em- préstimo àzArdouin.) com o qual, por via de suas agencias e commissões , era de presu- mir tivesse feito muitas amisades; e por is- so se julgou talvez que era o homem mais próprio para esta nova negociação. Este em- préstimo foi feito em Londres a 60 por cen- to , quando antes os capitalistas de Lisboa tinhao feito ao par um empréstimo de dous milhões de cruzados; confissão, que o pró- prio ministério fez na sua gazetta official do- esse tempo. Isto mostra que se preferião os empréstimos estrangeiros com todas as suas usuras aos nacionaes ; e que para isto havião boas razoes, que o publico avaliará como qui- zer. Também n'esta mesma épocha se espa- lhou, que este empréstimo fora vendido por

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conta do governo ; o que eu hoje não posso afiançar. Se porém o foi , largo campo se a- brio a Mendizabal, e seus amigos, para se- gurar, pelo menos, a sua pingue commissão de 2 e meio por cento : porque fijou assim elle , contractador nominal ', authorisado , ey por assim dizer , com a porta aberta para vender os fundos por qualquer preço do dia, e os fazer baixar e subir á sua vontade. O que porém ainda mais espantou a toda a gen- te foi ver, que na presença de um emprés- timo, tal como o que acabo de referir, os recrutamentos e as compras dos diversos ob- jectos, que então se nos mandavão para Lis- boa, se continuavão a fazer a longos crédi- tos em Inglaterra, como se tal empréstimo não existisse. Sobre a applicação d'este di- nheiro, que não servia para as cousas mais essenciaes, muitos boatos se espalharão; c um d'elles foi, que uma grande somma, que alguém disse que subira até ioo mil libras sterlinas , se remettêra para Lisboa a favor de uma alta personagem. Eu não affianço a verdade d'este facto ; mas declaro que o ou- vi a pessoa que o tinha como certo , e que então tinha interesse em indagar o modo por que todas estas cousas se fazião. Não direi emfim mais sobre este assumpto, e o con- cluirei: que tendo fallado de Mendizabal, de- vo, por imparcialidade e justiça, declarar, que mui importantes e grandes serviços elle nos fez ; porém ao mesmo tempo não receio

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dizer, que estes não erão os modos de lhos recompensar; e que um governo, delicado e zeloso da sua reputação, podia ter achado outros meios para competentemente se lhe mostrar agradecido.

Por este tempo se renovou ainda um grande escândalo, e o mesmo, que se ha- via começado no principio do anno 1832. O coronel Rodrigo Pinto Pizarro , a quem ha- vião começado a assassinar civilmente em 6 de janeiro d' aquelle anno, e contra quem Cân- dido José Xavier dera o primeiro golpe, re- cebeo outra ferida, como militar, pela mão de Agostinho José Freire, como ministro da guerra, que o dimittio da sua patente de co- ronel. E qual era o crime do coronel Pizar- ro ? Era ter francamente declarado que D. Pe- dro, depois de haver abdicado a coroa de Portugal , não podia ser regente na minori- dade de sua filha , segundo a carta constitu- cional que elle mesmo tinha dado e assigna- do. Responder, portanto, a uma discussão politica com actos de despotismo, foi o mes- mo que declarar expressamente ao publico, que o coronel tinha razão , era innocente, e que por uma baixa vingança um tal pro- cedimento se podia explicar.

N'esta mesma épocha morreo um homem notável, o doutor Abrantes , victima das in- justiças , ambições , e até dos desprezos do ministério de D. Pedro. Aquelle homem, que se ergueo das ultimas classes sociaes a gran-

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des honras, e empregos, vendo-se por fim maltratado por aquelles que antes muito o ti n hão honrado por seu distincto merecimen- to, cedeo mais, e com mais antecipação, aos estimulos moraes, que lhe minarão a existên- cia, do que aos effeitos da moléstia que o levou á sepultura. Apesar de ser eminente na sua profissão, como medico, pertendeo figurar sempre em outra esfera ; e para isso cortejou o throno , os grandes e os podero- sos, de quem ora foi bem recebido, ora mal- trado ; e por este seu procedimento perdeo o socego, de que podia constantemente go- sar, se a ambição de ser muito ou de ser tu- do o deixasse conservar um systema seguido, e o não fizesse umas vezes pender para a a- ristocracia, e outras para o partido popular. A este fez elle, com effeito, grandes e ef- ficazes serviços no anno 1826 para a prom- pta acceitaçao e juramento da carta constitu- cional , quando , de com muni acordo com o general Saldanha, levou a effeito esta bella obra. Em grande valimento então com a in- fanta regente, d'esse valimento se sérvio el- le nobremente a favor da liberdade da sua pátria. Ganhou porém com isto grandes ódios tanto da parte da nossa aristocracia como da politica estrangeira, Gallo-Britanica, que n'- essa épocha e nas seguintes muito se oppôz á nossa emancipação politica ; e em conse- quência d'ellesas intrigas domesticas e estran- geiras o procurarão separar do lado da infan-

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ta, dando-lhe uma simulada commissão para a corte do Rio de Janeiro, e do novo rei D. Pedro IV. Este o recebeo magnificamen- te, e muito o honrou, porque o nomeou um dos conselheiros d'estado em a nova ordem politica. Regressado porém a Portugal , en- controu ainda mais fortes as intrigas do que as que o tinhão feito passar ao Brazil ; e por força d'ellas apenas se pôde demorar poucos dias em Lisboa, porque, sem lhe quererem confirmar a sua nomeação de conselheiro, de- íão-lhe uma nova e simulada missão que foi, a de o nomear para fazer parte da legação diplomática de Londres. Ali, e em Paris se conservou durante a épocha desastrosa da usur- pação , seguindo sempre a sorte dos consti- tucionaes, e sem nunca abandonar as ban- deiras da carta, pela qual briosamente havia pugnado quando se tratou, e duvidou da sua acceitação. Voltando a Lisboa pouco antes de morrer, e em estado muito enfermo, e vendo, que D. Pedro não lhe negava o emprego de conselheiro d'estado para que o tinha nomeado, mas que além disto achava dados alguns dos seus antigos empregos ; não pôde resistir ao eíFeito moral que estas in- justiças produzirão em seu espirito, aba- tido pelas enfermidades, e em pouco tempo morreo de doença e desgostos. Pelo menos a estas causas moraes attnbuio a sua familia, com outras muitas pessoas, o aprcssuramen- to da sua morte.

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Quasi pelo mesmo tempo em que o go- verno de D. Pedro abbreviava ávida ao dou- tor Abrantes, offendia elle o valor militar, e o caracter politico de um dos nossos ge- neraes , o valente e sempre fiel general Stubbs. Desprezado em França , quando D. Pedro sahio para as ilhas, e havendo por este motivo publicado um honroso protesto com os generaes Moira, e Cabreira, por muito tempo se conservou na terra estrangeira, ora em França , ora em Inglaterra , até que os acontecimentos, mais poderosos que as pe- quenas paixões dos homens, obrigarão o mi- nistério, já então no Porto, a chamar todos os officiaes emigrados que se achavão , por assim dizer , proscriptos por aquella admi- nistração. Entre elles, como disse, esta- va o conde de Saldanha, que, ao ouvir es- te forçado chamamento, foi logo um dos pri- meiros que se apresentou prompto a partir. O general Stubbs, que n'essa épocha es- tava em Londres, e tinha francamente decla- rado que não hiria para o Porto sem que fos- se em companhia do conde, tanto que sou- be da resolução d'este , declarou logo que o hia acompanhar ; e assim o executou com os mais indivíduos, que mencionei, quando relatei esta viagem. No Porto sérvio Stubbs, ora como commandante de uma divisão, ora como governador do districto da Foz quan- do d'ali sahio o general Saldanha ; e em to- dos estes empregos, e em todas as acções

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do memorável cerco daquella heróica cidade se mostrou elle sempre não como valen- te e experimentado soldado, mas como bom patriota, e um dos mais fiéis amigos do con- de. Tornando-se necessária a presença des- te em Lisboa para se oppôr aos rebeldes, que ameaçavão a cidade, ficou governando o Por- to, tendo por seu chefe d'estado-maior o bra- vo e distincto coronel Pacheco. Não se po- dia ter feito mais acertada escolha , porque ambos tinhão não a inteira confiança do exercito, porém a de todos os habitantes da cidade ; e por este motivo parecia que ella seria permanente. Não aconteceo porém as- sim , porque n'este mesmo mez se lhe tirou o commando e o governo para a dar ao ge- neral Torres, o oíficia-1, que ultimamente ti- nha defendido a Serra do Pilar. Ninguém po- dia negar a este ultimo ofHcial o valor , a constância , e a energia com que sustentou aquelle importantíssimo posto militar, e mui- to menos negar-lhe a gloria com que se ha- via cuberto n'aquella brilhante defcza ; porém era elle próprio para dirigir no campo um ex- ercito, e para governar civil e politicamen- te uma cidade como o Porto? Era o que mui- ta gente duvidava sem lhe querer roubar o mais pequeno quilate do seu merecimento; porque diziao , que o homem , que se mos- tra o mais capaz de defender até á morte uma praça ou um posto perigoso, não era sempre q mais próprio para commandar um exercito^

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ou governar uma cidade ; e n'este caso, sem quererem injuriar o seu caracter e valor mi- litar, lhes parecia que estava o general Tor* res. Para se desculpar esta mudança, que ge- ralmente desagradou a todos, e com muita especialidade ao conde de Saldanha, segun- do então me constou, fez-se espalhar no pu- blico , que Stubbs estava velho e doente, e que por isso era necessário substitui-lo; po- rém no pensar da gente, que conhecia não as intrigas ministeriaes , mas as do palá- cio, outros bem diversos erão os motivos qife tinhão produzido esta mudança. Stubbs era o antigo amigo de Saldanha ; no anno 1827, sendo governador do Porto, havia sido ac- cusado, e dimittido porque ameaçou re- sistir ás violações da carta, e aos desejos que se manifestavão de aplanar o caminho pa- ra o usurpador ; e agora, conservando a mes- ma amisade, e os mesmos princípios políti- cos , tinha toda a confiança e estimação dos liberaes do Porto, que, na ausência de Sal- danha, contavão com elle, e delle tudo es- peravão. Eis-aqui , pois, estavão os motivos que a gente liberal instruída dava para esta mudança politico-militar. O ministério de D. Pedro acabava de nomear e mandar para o Porto um governador civil, com o nome de prefeito da província , e era elle Gonçalves de Miranda, que, em outro tempo, inimi- go declarado dos membros que agora compu- nhão o ministério, se alistou depois debaí-

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Xo de suas bandeiras, e por sua docilidade tinha comprado aquelle emprego. Erão-lhe, portanto, necessárias estas e outras que taes nomeações para o desempenho de certos pro- jectos políticos que tinha , e até para cum- primento de certas promessas que se tinhão feito a D. Pedro ; e por isso , para que se realissassem , era necessário que homens do caracter do general Stubbs não estivessem nos grandes governos. Um dos grandes instru- mentos e mais efficazes que se procuravão or- ganisar era uma camará de deputados toda de molde para se executar a grande obra que o ministério tinha imaginado a favor das per- tençóes de D. Pedro ; e por conseguinte não convinha conservar no Porto um homem co- mo Stubbs, apoio dos liberaes , e que nem se podia manejar nem corromper. Constou- me então que o general Saldanha muito es- tranhara este proceder do ministério , e que lho dera francamente a saber; e tinha razão, porque íom isto não os interesses da pá- tria perdião, porém os do mesmo conde-ge- neral , a quem, por esta combinação minis- terial, se quiz provavelmente tirar um apoio, caso que no futuro se quizesse fazer contra elle algum ataque directo, porque dos indi- rectos era elle o alvo, havia muito tem- po. Quando se pertende tomar uma praça for- te começão-se os ataques pelas obras exte- riores ; e o Porto , governado pelo general Stubbs, era, em verdade, um reducto de

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muita importância para defender a posição politico-militar, que Saldanha naquelle tem- po occupava , e na qual dava profundos ciu- mes e receios tanto ao ministério como a D. Pedro.

A attenção publica se excitou extraor- dinariamente por este mesmo tempo com a publicação de uma segunda carta que o con- de da Taipa dirigio a D. Pedro. pela pri- meira as opiniões se havião dividido relata vãmente aos assumptos que n'ella tratava ; por- que havia accusações justas contra o ministé- rio, em que todos concorda vão, menos os que elle nutria com os sobejos da sua me- sa ; e havia outras que parecião menos jus- tas , e até impoliticas, como as que se refe-» rião ao contracto do tabaco ; motivo por que esta primeira carta, passados os primeiros mo- mentos da sua apparição, perdeo o seu in- teresse politico. Não aconteceo porém assim com a segunda, e por uma razão muito sim- ples , porque não se renovarão , e com mais acrimonia , as accusações contra o mi- nistério , porém tocava pontos que desagra- darão a quasi todos os partidos, e um d'el- les de summa importância n'aquelle momen- to , foi a amnistia geral , que o conde pe- dia para todos os que tinhão servido a usur- pação, menos para o seu chefe D. Misueh vJ ministério, que n este segundo ataque vio um plano systematico para se desacreditar a sua administração, e ao mesmo passo que

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O author da carta, por suas opiniões, era vulnerável perante o publico, tomou então uma resolução atrevida, e mal calculada, que foi mandar prender o impressor , e agarrar grande parte dos exemplares que ainda se es- tavão imprimindo. Digo que foi mal calcu- lada , porque estando a carta assignada por seu author, e declarando elle ao mesmo tem- po na imprensa, que ficava responsável por tudo o que nella se continha, mostrou o mi- nistério a maior fraqueza imaginável, fazen- do recahir todo o seu ódio no desgraçado im- pressor, e deixando impune o author. Este procedimento desacreditou o ministério que^ conhecendo depois o seu erro, o fez cahir ainda em outros mais graves. Principiou por fazer publicar na Chronica , sua gazetta offi- ciai, e em outros papeis, visivelmente de- baixo da sua influencia , artigos indecentes e descomedidos contra o conde, chegando o cynismo íypografico-ministerial até o insul- tar de peculato , alludindo a factos antigos ; e depois de assim ter procurado enxovalhá- lo he que se lembrou de o mandar prender, e por um modo pouco civil e delicado. A esta prisão resistio nobremente o conde de Ficalho , porque o Taipa tinha hido buscar refugio em sua casa; e resistio, porque se persuadio, e com razão, que ella era incons- titucional. Este facto, tão mal combinado como mal executado, augmentou os ódios que havia contra o ministério não por par-

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te da alta aristocracia , porém dos liberaes puros que então a defenderão , porque virão n'aquelle attentado um ataque directo contra a carta, que positivamente ordenava, que um par do reino nunca podesse ser preso senão por ordem da sua respectiva camará , salvo em flagrante delicto, e de pena capital. E com justiça assim o fizeião , porque aquillo, que então o ministério ousava praticar, com tanta ou maior facilidade o faria em outra oc- casião contra um deputado, ou um simples cidadão.

Os pares , que mais que ninguém erão interessados n'este negocio, pedirão explica- ções ao governo sobre elle; e a resposta que tiverão , em vez de os socegar, mais os ir- ritou, porque, em verdade, foi muito mal concebida, até de algum modo insultadora, por ser lançada nagazetta do governo, e com termos, que nem convencião, nem concilia- vão. O resultado foi , que os pares , em nu- mero de nove (z) , e erão quantos por este tempo se achavão em Lisboa , e se reputa- vão puros do crime da usurpação, fizerão en- tão um protesto em forma contra o acto pra- ticado contra o conde da Taipa, e o dirigi- rão particularmente a D. Pedro, como exer- cendo o poder moderador da carta , na quali-

(s) Os nomes dos pares que as&ignárâo o protesto são os seguintes: duque* da Terceira e de Palmella; marque- zes de Fronteira, Ponte do Lima, de Loulé, e Sancta Iria » condes de Lumiates , de Ficallio , e Paraty.

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dade de regente temporário que era. Este protesto abrio um pouco os olhos ao minis- tério, que, por occasião d'elle, começou a ver as diffículdades em que se havia impru- dentemente metido, e os perigos que podia correr, visto que a opinião publica se hia ca- da vez desenvolvendo mais contra elle, e até no exercito, commandado pelo marquez de Saldanha, que abraçou a causa dos pares por ser a da carta. Não teve por consequência ou- tro remédio senão retroceder, manifestando a sua fraqueza ; e na ultima resposta que dêo, muito moderada, e decente, e até servil pelos elogios que fez aos pares, declarou em- fim , e confessou , que o caso era dificulto- so, e que a sua decisão ficasse para as cama- rás. Assim ficou suspenso este negocio, sem que houvesse procedimento ulterior contra o conde da Taipa. Antecipei muitos destes suc- cessos que se passarão no mez seguinte, de dezembro, por estarem ligados com o primei- ro, que. foi a publicação da carta do conde, da qual todos se originarão; parecendo-me , que, por esta forma, dava mais ligação, e por consequência mais clareza aos aconteci- mentos d'esta épocha.

As imprevidentes leis, que o ministé- rio Mousinho tinha concebido e publicado, e que seus suecessores tinhão adoptado , vie- rao com o tempo , que he o grande mestre de tudo, a mostrar-se senão completamente impraticáveis, pelo menos em grande parte,

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e essa bem essencial. Tal foi a da adopção da moeda estrangeira com um valor que lhe não competia , e outras , pelas quaes louca- mente se abolirão certos tributos essenciaes para pagamento de juros, e mais despezas da primeira necessidade, sem que por outros, ou por novas providencias fossem, como de- vião ser, immediatamente substituídos. D. Pedro, e o seu ministério, que então se vião em dificuldades, recorrerão á convocação do conselho d'estado para verem se delle tira- vão remédio para o grande mal que os op- primia. Uma parte dos conselheiros, que vião d'onde particularmente procedião os embara- ços do governo, e que não erão outra cousa senão a incapacidade dos ministros, procu- rou n esta occasião manifestar a D. Pedro a impropriedade de os conservar; mas elle to- mou ardentemente a sua defeza, dizendo, que era em tudo e por tudo da mesma cor poli' ti ca , e que por isso os não dimittia. Pareceo extraordinária a vehemencia com que Margio- chi , conselheiro d'estado e ministro, defen- deo os seus collegas ; porém se n'isto mos- trou coherencia, não a mostrou em se ter as- sociado com elles. Os conselheiros, que mais atacarão o ministério, segundo o que então se espalhou no publico, fôrão o duque de Palmella, Trigoso, e Guerreiro. Este affin- co, com que D. Pedro procurava em todas as occasiões defender os seus ministros, fa- zia ver, cada vez mais palpavelmente, ás

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pessoas que olhavão com seriedade para os negócios públicos, que entre elle e os mi- nistros havia certo pacto de família , que in- dicava grandes, communs, ou mútuos inte- resses.

N'este mez o mesmo ministério com- metteo uma flagrante violação da carta cons- titucional , que foi a publicação de uma or- âenança, pela qual ordenou a censura dos es- criptos publicados pela imprensa. Dizia a car- ta , no § 3." do artigo 145", literalmente o seguinte : Todos podem communicar os seus pensamentos por palavras, escriptos, e pu- blicá-los pela imprensa sem dependência de censura , com tanto que hajão de responder pelos abusos que commetterem no exercício d'este direito nos casos, e pela forma que a lei determinar. ,, Por ella se que neste ponto a carta era positiva ; o direito inques- tionável ; e que , por consequência , a vio- lação foi flagrante, e despótica. Quem por ella , comtudo , se tornou mais directamen- te responsável foi o ministro que assignou a ordenança (a) ; e n'este tempo era elle Joa- quim António de Aguiar , ministro do reino. Se este ministro se julgava authorisado para poder legislar sobre a censura , porque não applicou antes seu presumido direito a fazer um regulamento, ou lei provisória, para co-

(0) Tenlio ousado d'esta palavra ordenança , porque ella se tomou clássica depois que operou a levolução de juJbo em França no anno 1830.

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hibir os abusos da imprensa, segundo a car- ta exigia? Por este modo também seguio o exemplo de um dos seus antecessores, o ex- ministro Trigoso, que, no anno de 1826 , commetteo o mesmo attentado contra a car- ta, trilhando, como elle, a vereda dos al- gozes do entendimento, em vez de tomar a estrada direita dos homens livres, que, por educação ou principios, nada tanto respeitão como a liberdade intellectual dos seus simi- lhantes.

Nem no estado militar nem politico ti- verao os nossos negócios notável alteração n'~ este mez ; porque os dous exércitos , cons- titucional e rebelde, conservarão quasi as mes- mas posições , e nada ostensivamente se a- diantou sobre a esperada interferência de In- glaterra e França nos successos da Península Hispano-Portugueza. A nossa administração domestica , sempre dirigida pelos mesmos homens, e, por consequência, pelos mesmos principios, foi comtudo cada vez a peor, pois que esse he sempre o resultado de systemas mal combinados. Em politica, assim como em moral, e, para ser mais exacto, em to* dos os passos da vida dirigidos por um cer- to plano ou bom , ou máo , o primeiro he que custa , os outros naturalmente tomáo a mesma direcção. O ministério que , vendo a impopularidade que tinha , julgava que a sua permanência no ofTicio não podia durar muito, procurava ao menos conservá-la até a

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convocação das cortes, nas quaes esperava po- *kr formar uma maioria favorável por meio das eleições que presumia seria capaz de di- rigir. Neste plano estavão envolvidos não seus próprios interesses, que erão a effecti- vidade dos empregos que para si tinhão des- tinado, porém os de D. Pedro, que para os conseguir lhe tinha affiançado a sua constan- te protecção. Para chegar a estes fins o meio que teve por mais eificaz, e talvez por mais infallivel, foi ohir-se rodeando de grande nu- mero de dependentes, a quem dava ou pro- mettia empregos, criadagem, que nunca fal* ta em torno do centro do poder. Mas n*es- ta distribuição de graças, que elle reduzio a uma espécie de loteria , ao passo que procu- rava estabelecer o seu mais firme ponto de apoio, estabelecia novos elementos da ruina, ou decadência. Continuou a dar os mais im- portantes logares do estado a homens em quem se não procurava outro merecimento senão a obediência passiva; e sendo esta a condi- ção essencial para ganhar empregos, de ne- cessidade toda a administração começou a ves- tir-se de habito de arlequim ; porque nella se virão individuos de todas as cores , bem que os puros liberaes erão os que mais raros se divisavão n'esta multiforme associação de empregados. Na mesma repartição se encon- travão ás vezes Miguelistas, chamorros (b)%

(b') Nome que «e começou a dar aos que não cão !ib«« raes puros , porém puros servos do poder.

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e até estrangeiros ; o que não se pratica- va nas repartições civis, porém mesmo den- tro do paço. Em uma família se vio o ex- emplo de dous daquelles caracteres, que fô- rão Francisco Gomes da Silva, e seu pai ; o primeiro dos quaes era Braziíeiro, e o segun- do um Miguelista conhecido. O pai foi no- meado thesoureiro da casa real, e o filho te- ve o emprego de secretario da casa de Bra- gança, que D. Pedro considerava como sua em virtude da promessa de seus ministros. D- este ultimo ouvi referir uma anecdota , que mostra bem o caso que se fazia de nós na Rio de Janeiro antes dos successos de 1830. Escrevendo a seu pai, em julho de 1827 y dizia-lhe estas memoráveis palavras: Ahi vai o snr. infante; se avenhão com elle , porque meu amo (D. Pedro) não quer saber mais nada de Portugal í Os dous Almeidas^ ambos Brazileiros , também acharão empre- go no palácio \ um d'elles como escrivão do» filhamentos, e o outro como guarda-joias. Eis-aqui resumidamente qual era o aspecto da administração d*esta épocha ; e como el- la se fortalecia para conservar a sua existên- cia.

No seguinte mez de dezembro tivemos- um desgraçado acontecimento , que se clas- sificou como um dos nossos maiores desastres militares , e foi elle a morte do valente co- ronel José Joaquim Pacheco, commandante do 10 de infantaria 5 resultado do recontro

«•* 232 lo- que houve com o inimigo no primeiro d'es- te mez na baixa chamada da Areosa , junto ao Porto. Tendo ficado gravemente ferido, morreo no dia 2 pelas nove horas da noite; e no dia seguinte 3 foi dado á sepultura na igreja da Lapa pelas seis horas da tarde, en- tre o lucto e a tristeza universal não de toda a tropa, e com especialidade do seu re- gimento , do qual elle era o pai , e o mo- delo, porque se havia tornado um dos cor- pos mais bem disciplinados, e bravos do ex- ercito libertador. Como he do dever do his- toriador pagar imparcialmente justiça ás gran- des virtudes, como imprimir deshonra nos grandes crimes, direi, que poucos cidadãos teve Portugal nesta épocha importante que mais serviços lhe fizessem , e maior honra lhe dessem. Não foi elle uma das primei- ras glorias do exercito constitucional , pois que suas virtudes como cidadão erão iguaes ao seu merecimento militar. Foi muito o que fez o coronel Pacheco, em quanto major do regimento de infantaria 23 , depois do dia funesto da Mizarella (c). Fôrao muitos , ou antes fôráo immensos os serviços que elle pres- tou na restauração do archypelago Açoriano seu nome ficou desde então para sempre gra-

(c) Este desastroso acontecimento se attribuio á pouca resolução , ou incapacidade que n'aquella occasião mostrou o coronel Zagallo (que morreo depois brigadeiro), o qual commandava a força poetada perto da ponte da Mizardla, em 1826. Ao Pacheco, e João Nepomuceno se deveo o tvâo haver perda lotai.

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vado no coração dos Portuguezes, e nas pa- ginas da sua historia. No desastre de Souto- Redondo se mostrou elle tão grande e subli- me como altamente benemérito da pátria. Emfim em Ponte-Ferreira, em 29 de setem- bro de 1832; nos dias 4 de março, 25: de julho, 18 de agosto de 1833; e em todos os combates da liberdade ganhou Pacheco uma gloria immortal, desenvolvendo em de- feza da pátria tal valor e pericia militar, que sua falta se fez profundamente sentir no res- to da gloriosa lucta em que andávamos em- penhados. Quando o conde de Saldanha foi obrigado a correr á capital , entre os muitos e beneméritos officiaes escolheo Pacheco, co- mo chefe d estado-maior do exercito liberta- dor do norte , para ajudar o tantas vezes provado valor, e grande experiência do ge- neral Stubbs. Porém mal sabia, ou podia en- tão presumir o conde-general que fazia um presente funesto ao seu melhor amigo, e ca- marada. Em vez de louros lhe preparou cy- prestes, mas ao menos foi no campo da hon- ra em que, pelejando, como sempre, brio- samente pela liberdade e pela pátria, achou uma morte tão illustre como illustre fora sem- pre a sua vida. Como soldado e capitão foi o moderno Pacheco digno emulo do anti- go; e assim no século presente soube ainda fazer brilhar um nome de que nossa historia tanto se honra nos séculos passados. Isto basta para venerarmos sua memoria.

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D. Pedro , ainda não satisfeito de ter derramado uma copiosa abundância de graças e favores no seu capellão, padre Marcos, fa- zendo-o reformador do clero regular e secu- lar, e commissario geral da bulia da Cruza- da, quiz ainda torná-lo mais visivel no mun- do, apresentando-o no dia 8 d'este mez na de Lisboa como esmoller mor da Rainha de Portugal , D. Maria II. A par d'esta no- meação fez quasi no mesmo tempo outras , que mais agradarão ao publico, que fôrão as do marquez de Sancta Iria , e de Thomaz de Mello para camaristas da Rainha. Ao me- nos com a escolha destes dous nobres Por- tuguezes fez ver que o palácio não era pa- trimónio de estrangeiros.

N'este mez morreo ainda em Inglater- ra uma das nossas notabil idades politicas, o conde, e depois marquez do Funchal, o deão da diplomacia Portugueza, e talvez de todos os diplomáticos da Europa. Irmão do primei- ro conde de Linhares , D. Rodrigo de Sou- za Coutinho , passou quasi toda a sua vida fora de Portugal , e quasi sempre emprega- do em diversas missões diplomáticas. Com muito talento, e mui variados estudos nos diversos ramos da literatura e das sciencias, iainda que em geral conservou sempre asidéas politicas tanto da sua classe como da sua lon- ga profissão, tinha comtudo certa espécie de liberalidade, e muita independência de juí- zo sobre tudo que tinha relações com os a-

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busos das nossas duas antigas ordens do es- tado, a judicial , e ecclesiastica , ás quaes constantemente attribuia todos os males que havião produzido a decadência da monarchia. Predominado porém por duas idéas fixas, que por muitos annos formarão a base de todos os seus raciocinios , perdeo , em consequên- cia d'ellas, toda a independência de racioci- nar; e por isso se achou sempre em contra- dicção com as idéas de seus últimos tempos. Estas duas idéas fôrão um ódio cego a tudo que emanou da revolução Franceza , assim como a tudo o que se operou em virtude da nossa regeneração politica de 24 de agosto do anno 1820. Em todas estas cousas não vio senão o fantasma do jacobinismo; e em consequência d'isto foi, por mais de uma vez, injusto , até imprudente, tanto em seus actos como em seus escriptos. O ódio, que con- cebeo contra todos os suecessos do anno 1820, foi tal , que se me asseverou , por mais de uma vez, que elle fizera parte da associação que outros Portuguezes (d) estabelecerão nos annos 1821 e 1822 em Paris para tirar a co- roa a D. João VI. pelo crime que lhe im- putavao de ter annuido á regeneração de 24 de agosto, e de ter jurado a constituição po- litica feita pelas cortes daquelle tempo. O que se me participou acerca deste facto

(</) As pessoas principaes que , segundo me afifirmáfâo , fizerâo com elle parte d'aquella associação, eião : o mar- -quez de Marialva ; conde de Poito-Sancto ; Brito , &c

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eu mencionei em pag. 14, e 177 do meu Ensaio Politico sobre as causas que prepara- rão a usurpação do infante D. Miguel, e por isso escuso agora daqui o repetir.

Foi este marquez do Funchal, como ho- mem de letras que era, mui apaixonado por escrever e publicar as suas opiniões ; e parte delias se achão transcriptas em diversos arti- gos do Investigador Portuguez em Londres , bem que n'ellas nunca appareça o seu nome. Elles , comtudo, se podem bem conhecer pelos princípios que constantemente o author manifesta, os quaes em geral ou são para de- fender os fataes resultados do tratado de com- mercio de 18 10, assignado por seu irmão; ou são uma apologia quasi sempre constante da politica Ingleza em opposição á France- za. Os mesmos princípios são visíveis em al- gumas das respostas que elle no mesmo jornal aos vehementes ataques que repetidas vezes lhe fez o Correio Braziliense. Além d'- estes, e outros artigos avulsos , publicados no Investigador Portuguez, as obras mais im- portantes, que delle conheço, são : As ins- trucçoes que se derão em Roma ao núncio que no tempo de D. João III. passou a Portu- gal; obra que traduzio, e mandou imprimir, mas que não quiz que durante a sua vida se publicasse : Uma carta, dirigida a um ab- bade Italiano sobre a gloriosa parte que o nosso exercito teve na guerra da Península my escripta em Italiano, e traduzida em Fran-

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cez no anno 1819:— -As Coincidências de da- tas, pequeno folheto, transcripto nos primei- ros números do meu Campeão Portuguez em Londres : e emfim a Introdiicçao ás notas sup' primidas em 1821 ; publicada em Londres no anno 1823, e ali reimpressa em 1832. N- esra ultima obra desafogou elle todo o seu ódio contra a nossa regeneração politica de 1820; e n'isto mostrou não ser improvável que houvesse tido parte na associaqão de Pa- ris que ha pouco mencionei. Sei que escre- veo ainda outro livro, que imprimio, mas que conservou occulto , contra os princípios politicos do conde da Barca, António de Arau- to, de quem se mostrou sempre inimigo pe- lo considerar do partido Francez ; e n'esta qualidade um dos seus antagonistas. Não co- nheço porém esta obra, nem nunca a vi , e não sei mesmo se indico exactamente o seu assumpto, porque apenas d'ella tenho noti- cia por algumas informações que me dérão. A Chronica do dia 23 d'este mez de de- zembro, gazetta ofíicial do governo, noti- ciou que D. Miguel não quizera acceitar as propostas que se lhe havião feito por inter- venção de Hespanha e Inglaterra ; e depois disto não se vio que as potencias medianei- ras dessem mais algum passo conhecido a nos- so favor. A quem examinava a marcha que levava o ministério de D. Pedro não admi- rava esta espécie de abandono em que nos tinháo os governos que se dizião nossos ami-

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gos , porque estes lhe não erao afeiçoados 5 muito particularmente depois que virão a tei* mosa tenacidade com que D. Pedro o sus- tentava, apesar de perder todos os dias a o- piniao publica tanto dentro como fora do rei- no. O governo Inglez, por exemplo, o de- testava, porque n'elle figuravão homens que tinhao representado na sua scena politica de 1820, e se haviao estabelecido sobre as ruí- nas do ministério Palmella, que elle prote- gia , o Francez , porque , determinado a fa- zer retrogradar quanto podia a exaltação dos princípios dos seus grandes dias de julho de 1830, falsamente se persuadia que elle mar- chava no mesmo sentido ; e o Hespanhol , que representava todo o apostolicismo da san- cta alliança, porque, não vendo nelle senão o espirito de um jacobinismo puro , receava que a influencia de seus acros produzisse ou accelerasse em Hespanha as mudanças poli* ticas que depois de tanto tempo não cessa- va de reprimir. Mas as apparencias raras ve- zes designão com exactidão a realidade das. cousas ; e he o que agora acontecia com o ministério de D. Pedro. Este ministério não era nem jacobino, nem revolucionário no ver- dadeiro sentido desta palavra , e muito me- nos era democrático ; era rigorosa e puramen- te ambicioso; e nunca dominado por essa am- bição nobre que produz grandes feitos e gran- des maravilhas, mas por essa ambição de e- goismo, e por todas as paixões de indivi-

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dual interesse : era um solipso politico , que queria fazer a sua fortuna e a de seus ami- gos. Se muitos dos seus actos fôrão em ver- dade revolucionários , não o erão assim por- que fossem consequência de um judicioso es- pirito de reforma, mas porque fôrão filhos ou de inconsideração , por serem feitos fora de tempo, ou porque nascerão de interesses ou ódios particulares.

Os grandes erros, ou os grandes deli- ctos dos funcionários públicos muitas vezes se disfarção pela superioridade das luzes ou talentos , porém , para dizermos a verdade , nada disto havia no ministério de D. Pe- dro ; porque se na politica interna não mos- trou a capacidade governativa que as circums- tancias demandavão, também na politica ex- terna a não mostrou. Com Inglaterra , por exemplo, se mostrou muitas vezes despreza- dor de todas as suas oífertas, e passados dias lhe pedio auxilio e protecção. De Hespanha não tirou também o partido que podia tirar n'aquella occasião, porque dando-se a esse tempo como infallivel a morte próxima do rei Fernando, era de presumir, que naquel- le lado da Peninsula aconteceria o mesmo que estava acontecendo em Portugal , isto he, a guerra civil, fundada nos mesmos princi- pios que a nossa , a usurpação , que um tio pertendia fazer a uma sobrinha. Em casos e perigos idênticos que cousa mais natural ha- via do que fossemos nós os primeiros em nos

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dirigir á corte de Hespanha para formarmos laços politicos com ella ? Havia toda a pro- babilidade de que a nossa alliança seria muito bem recebida, porque no caso do novo gover- no de Hespanha se ver necessitado, como era de esperar, a buscar auxilio estrangeiro^ an- tes o havia de querer achar entre nós do que em Inglaterra ou em França, que era muito natural lh'o offerecessem. E para isto havia uma razão muito forte, que era o estar o pertendente D. Carlos refugiado entre nós j e reconhecido e auxiliado por seu sobri- nho D. Miguel. Porém no ministério de D. Pedro nunca entrarão estas idéas ; guardou* se para depois figurar como pupillo, e ás or- dens da quadrupla alliança, quando por si podia, mais livre e nobremente, figurar; e talvez com isso desse mais uma prova de fra- queza e pouca intelligencia ao governo de D. Miguel, que n'esta mesma épocha regei* tou as oíFertas que se lhe fizerão. D*esta fal* ta de politica resultou também, que o novo governo de Hespanha esteve por muito tem* po sem reconhecer a nossa Rainha, quando ambos os paizes estavão correndo os mesmos perigos.

Quasi por este tempo a heróica cidade do Porto dêo uma grande lição ao governo. Por uma arbitrariedade indesculpável nunca se tinhão mandado eleger as municipalidades nas duas cidades do Porto e Lisboa ; e em vez deílas o governo tinha nomeado umas

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toousas , que elle denominava commtssoes mu- nicipaes , todas compostas de gente da sua escolha. Além da violação flagrante da carta, havia ainda n'isto um gravissimo insulto fei- to aos briosos habitantes de ambas as cida- des ; porque defendendo ellas com tanta bi- zarria e valor a sua independência e liberda- de, não as julgavão capazes de exercerem den- tro de seus muros , que tão valorosamente defendião, um dos seus direitos como cida- dãos. A tudo isto accresceo, que na tal com- missão do Porto havia membros notoriamente Miguelistas, que tinhão jurado e servido D. Miguel ; e como então se tratasse dos seques- tros feitos a alguns individuos desta classe, moradores no districto, pertendeo-se alliviac um, assaz notável, d'esta medida geral. En- tão o povo do Porto, que tudo tinha sacri- ficado para disputar aos Miguelistas sua vida e liberdade, e actualmente as estava ainda sacrificando, recorreo á força, e por ella con- seguio o que por boas razoes não podéra con- seguir. Forçou a casa da camará ; e n'esta vio- lência, de que o ministério era a primeira causa, ficarão alguns membros d'aquelle con- ciliábulo municipal muito mal tratados , e a authoridade publica perdeo o respeito que te- ria se tivesse sido legalmente organisada. Pa- ra emfim se restituir a paz dissolveo-se a a- ctual commissão, e se dêo interinamente ao povo outra, composta de pessoas que mere- cerão toda a sua confiança. Tom. IV, a

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O ministério, que vio a seriedade do negocio, e que receou se representasse em Lisboa a mesma scena que tinha havido no Porto, sanccionou tudo o que ali se tinha re* solvido, « dêo-se pressa a publicar a lei pa- ra a nomeação das camarás municipaes, lei, discutida e approvada pela camará dos de- putados do anno 1826. E não se contentou em promulgar a lei quasi immmediatamen- te ao caso acontecido , porém mandou logo proceder á eleição da camará do Porto. Na de Lisboa houve ainda alguma demora, que se procurou justificar pela difficuldade do re* censeamento em algumas das mais populosas freguezias , como a de sancta Isabel ; e se organisou no mez de abril do anno seguinte.

antes disse como o ministério, que se julgou authorisado para fazer uma orde- nança para a censura da imprensa, não se con- siderou habilitado para fazer outra que regu- lasse a sua liberdade. Estava portanto a im- prensa n'este tempo com grilhões nos pul- sos , e apesar d isso uma sociedade de ami- gos escolhidos, entre os quaes figurava o ma- rechal conde de Saldanha, teve idéas de pu- blicar um periódico, pelo menos semanal, persuadida de que com elle sempre algum bem se podia fazer á nação, cujo maior mal que padecia era a ignorância. Para «sta em* preza foi convidado o author d'estes Annaes; mas grandes inconvenientes achou elle para a pôr em execução, e ornais importante foi

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o da censura. Cedendo comtudo âoâ desejos geraes prometteo que tentaria o projecto u- ma vez que o ministério lhe nomeasse um cen- sor privativo para maior facilidade da publi- cação , segundo em outros áureos tempoá de censura , agora liberalmente imitados, se havia concedido. Declarou porém ao mesmo tempo , que passando a fazer ao governo a petição necessária, não podia deixar de ao mesmo tempo n'ella protestar contra a censu- ra , como inconstitucional. Concordarão to- dos n'isto, e em consequência d'este assenti- mento fez elle a petição na forma acima in- dicada, a qual, sem protecções nem empe- nhos, entregou ao commum destino das se- cretarias do governo. O despacho foi como elle o tinha antecipado, isto he, negativo ; porque o remettêrão para o dédalo do tribu- nal da censura, obra e feitura de notáveis re- generadores doanno20, que mui suavemen- te tinhão passado do republicanismo d'aquel- ía épocha para o absolutismo presente. Fize* rão-lhe a justiça que merecia ; porque abso- lutistas não podião, sem se contradizerem, consentir a penna de um homem livre, e que havia tido a ousadia de protestar contra umá das suas ordenanças. Assim acabou a ques- tão ; porque depois do protesto contra a cen- sura, o que se teve particularmente em vis- ta, seria uma grande contradicçao o passar a apprová-la, escrevendo debaixo dos fios da sua cimitarra.

o. 2

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No fim d'este mez eanno passou o minis- tério por uma grande crise, que o teve qua- si ás portas da morte : pelo menos se chegou elle a persuadir tanto d'isto que, segundo as vozes do tempo, pareceo que estava dis- posto a fazer testamento (d). O que dêo occasião a esta tempestade politica , que por alguns dias ameaçou a sua existência , fôrão as provocações que depois de certa épocha andavão fazendo ao marechal Saldanha. Obri- gados pelos successos a íazer-lhe a corte r porque vião, por experiência, que não po- dião annullar nem a sua influencia nem os seus serviços como por muito tempo tinhão feito, recorrerão poiíim a um novo género de ataque, para verem se por elle lhe podião diminuir a opinião, quando mais não fosse, entre os seus melhores e constantes amigos. Entrarão a espalhar que o Saldanha era a* ctualmente o seu melhor protector, e appro- vava e auxiliava completamente a sua admi- nistração» Era, com eífeito, este um dos ata- ques com que mais podião prejudicar o cara- cter politico do marechal ; e por isso tanto que elle por diversas vias teve toda a certe- za d'esta espécie de conjuração ministerial , escreveologo a alguns dos ministros^), quei- ra (/) Constou-me nesta épocha, que tanto recearão a sua d i missão, que todos ou parte d'etle> correrão ao thesouro para ficarem pagos em dia dos seus ordenados vencidos. Eu refiro o que ouvi.

(e) Sei que o fizera ao ministro do reino Aguiar , e ao da marinha Margiochi. A este ultimo também sei que de-

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xando-se da injuria que lhe fazião , e decla- rando-lhes, pelo modo mais positivo, que, bem longe de apoiar suas medidas, antes lhes protestava, que a ellas sempre se opporia, se elles, conhecendo a sua impopularidade, não tivessem a prudência de se dimittirem. Constou que , hindo D. Pedro ao exercito, tivera o Saldanha com elle explicações mui francas e positivas sobre o mesmo objecto, e que ellas tanto ou quanto o tinhão abalado. Em consequência de tudo o que a este res- peito se hia passando, e que era conhecido do publico, começou logo a correr fama de que havia mudança de ministério; e a par d*- estes rumores começa'rão a apparecer listas, de novos ministros, que cada um inventava segundo seus desejos ou suas inclinações. Foi então que o ministério entrou na agonia ; e com efFeito teria morrido se da parte do Sal- danha houvesse constância em o exigir; po- rém como he necessário ser sempre justo e verdadeiro tanto para amigos como inimigos, devo declarar, que sendo o marechal Salda- nha muito valente em um campo de batalha, e sendo mui nobre e cavalheiro , tem tal do- cilidade de caracter , que sempre no gabi- nete e em politica ha de ser menos temido do que á frente de um exercito em presença

clarára que se elle o tivesse consultado nunca o aconselha» ria que fizesse parte de tal ministério. O ministro da guer- ra, Freire, teve por outra via (hoje notabilidade entre n6g) recados análogos.

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do inimigo. O caso terminou , portanto , por uma espécie de armistício, que em pou- cos dias se concluio. D. Pedro , reforçado com o seu ministro, Agostinho José Freire, foi ao quartel-general de Saldanha , e ali tão boas ou efficazes razoes lhe dêo , que com ellas o pode desarmar , excitando a sua ge- nerosidade. Para mais o contentar ofFerece- yão-lhe dous logares no ministério para dous dos seus amigos, que elle recusava tomar pessoalmente parte na administração (/), o que igualmente regeitou , porque de ante- mão já sabia que alguns d'ellesa quem se in- sinuara a probabilidade de serem nomeados, havião positivameute declarado, que se não hirião associar ao actual ministério.

N'este anno de 1833 senão vimos con- cluídos os nossos negócios tiverão elles ao menos um grande adiantamento ; porque, re^ duzidos no principio d'elle ao invencível ba- luarte do Porto, pouco mais do meado do mesmo, e ainda antes do seu fim , vimos ro- tas , vencidas , e aprisionadas as forçss marí- timas do usurpador ; a entrada e posse dos lo- gares mais importantes do reino do Algarve; e finalmente , por uma serie de prodígios , nos achámos senhores de Lisboa, donde os

Çj") Por muitas vezes foi n'esse tempo Saldanha convi- dado para ser ministro da guerra, mas e»te convite era uma, estudada malícia para vêr se, decentemente, o desligavão do cominando do exercito. Elle conhecco , ou lh'a fneiâo conhecer, a malícia; e por isso sempre a evitou.

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rebeldes espavoridos se retirarão e fugirão sem darem um tiro. Libertado o Porto , o ini- migo, já desesperado de o possuir quer pe- pelas armas , quer por um bárbaro , e exter- minador bombardeamento, tentou sobre Lis- boa o que não podéra conseguir naquelle ina- balável rochedo da liberdade ; e com esta presumpção se lançou sobre a capital. Mas d aqui fugio arrojado pelas pontas das nossas baionetas como antes também o tinha si- do das margens do Douro ; e vigorosamen- te perseguido na sua marcha apenas pôde fazer alto na fortíssima posição de Santa- rém, onde se intrincheirou até os peitos pa- ra escapar temporariamente aos golpes das nossas armas. Ficou então Lisboa sendo o grande centro donde em pouco tempo lan- çou seus raios até Peniche , Torres-Vedras , Caldas , Alcobaça , &c. ; e por parte do A- lemtejo, senhores de Setúbal, e um pou- co mais tarde da importante posição de Mar- vão, as nossas operações militares começa- rão a ter maior extensão e a se poderem me- lhor desenvolver.

Não houve, comtudo, o mesmo progres- so em o nosso adiantamento quer politico, quer administrativo. O ministério, possuído de uma idéa fixa , que era a própria conser- vação , não olhava senão para o dia presente, e debaixo d'este ponto de vista apparecéVão sempre todas as suas obras. Legislou sem ti- no sobre os mais transcendentes objectos, e

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por este modo destruio as primeiras bases das rendas publicas, ecom ellas o resto do nos- so credito, porque taes rendas, como os dí- zimos (g) , eráo as conhecidas e declaradas hypothecas da divida nacional. E para as sub- stituir creou empréstimos, dos quaes uns fô* rão violentos, e forçados; e outros, á exce- pção do que secontrahio em Lisboa, e para o qual contribuirão com o banco muitos patrio- tas , fôrao especulações ruinosas de Menâiza- baly de que o tempo revelou as torpezas, que sobcarregárão a nação sem nenhum proveito para ella , e a bem dos que as fizerão e <Tellas gosárão. Assim o ministério contrahia dividas , destruindo os meios de as pagar !

Na marcha do governo constitucional não déo um passo o ministério; estabeleceo a censura , de que fallei , esse odioso ins- trumento com que todos os governos absolutos procurão encubrir seus despotismos, suas de- lapidações , e suas extravagâncias ; e se pu- blicou a lei para a eleição das camarás muni- cipaes foi porque os acontecimentos do Por- to o assustarão. Na nomeação dos empregos também não mostrou imparcialidade, nem re- ctidão, porque, em geral, nunca buscou nos individuos que despachava, quer para os pe- quenos, como para os grandes logares , outro

(g-) Os dízimos deviáo modificar-se , porém não podiáo nem deviso abolisse de todo senão por um excesio de de- mência, que não pôde vêr o futuro. O ministério, em vez âi podar a aivore, fei de selvagem, coríando-a pela rai*.

mais distincto merecimento do que o de se- rem seus submissos e fiéis servidores, qual- quer que fosse a cor politica que tivessem. Houve mesmo individuo d'esse ministério, que se despachou a si mesmo para um logar imminente, logar, que, pela cathegoria em que estava , por nenhuma lei antiga ou mo- derna lhe podia competir. Sim , davão-se e agarravão-se os empregos como se fossem des- pojos do inimigo, que pertencem á primei- ra mão que os encontra.

Praticou comtudo no fim deste anno um acto de justiça : o sempre respeitado e valen- te general Stubbs foi nomeado barão de Vil- la-Nova-de-Gaia. Foi um tributo pago ao as- cendente, que a probidade e o merecimento sempre alcanção afinal sobre os ódios ainda os mais profundamente gravados no coração de inimigos ! E contra o general certamente os tinha havido não pela independência do seu caracter, mas pela constância dos seus princípios políticos. Assim este despacho foi, por assim dizer, arrancado pelo merecimen- to á vontade com que, depois de muitos tempos , se vião os serviços do novo agracia- do ; e n'esta compensação, pelo menos, ain- da se vio, que a indifferença não era tama- nha que deixasse de pagar respeito a uma ou outra relevante virtude.

M 250 §*

PEÇA JUSTIFICATIVA.

Representação que os commandantes das divi- sões fizer ão a D. Pedro , por via do ge- neral Solignac , no fim de fevereiro deste armo.

k_ enhor. . Os abaixo assignados , com- mandantes das divisões, e mais officiaes do exercito libertador faltarião não á confian- ça com que V. M. I. os honrou , mas tam- bém aos mais sagrados deveres , como cabos do exercito, como súbditos fiéis da Rainha, como cidadãos livres, se não viessem á pre- sença de V. M. ponderar o horror da nossa situação politica e militar; males, que reque- rem prompto remédio, que de V. M. I. se pôde esperar. Os abaixo assignados come- çarão por declarar a V. M. I. que sua ten- ção não he menoscabar nenhuma pessoa na presença de V. M. I. ; porque este he um momento solemne em que o cidadão honra- do esquece tudo para se occupar com a imagem da pátria agonizante. Lance-se um véo sobre os erros passados, mas permitta V, M. I. que os abaixo assignados lhe lembrem, que V. M. I. foi enganado quando se pôz á írente dos leaes em 1832 ; porque não lhea- presentárão com verdadeiras cores o estado

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da nação, e as diificuldades de tão nobre q arriscada empreza. por princípios de agos- to he que se começou a fortificar a cidade do Porto , quando o exercito não pôde abrir caminho para áquem nem além do Douro. Nessa deíeza porém se esquecerão as formi- dáveis posições que offerecia a margem es- querda deste rio; e ao menos, em logar de débeis tranqueiras postas em cima de Vil- la-Nova-de-Gaia, com que se enganou a es- perança dos habitantes d'aquella villa, deve- ria o ministério de V. M. I. ter obrado com mais franqueza e lealdade , fazendo annun- ciar-lhes que tirassem para a direita do rio todos os seus géneros e effeitos, com o que Se salvarião muitos vinhos , aguas-ardentes , azeite, ferro , e outros artigos, cuja mingoa se tem feito sentir vivamente, e que muito tem aproveitado aos rebeldes. Quando esse annuncio nao bastasse, o que não era de crer, porque aqui se combinavão os interesses com- mum e particular, podia o governo tomar ou- trás medidas rigorosas, justificadas pela ne- cessidade da guerra. He verdade que a res- ponsabilidade de todas estas faltas tem sido acinte , e talvez injustamente, encabeçada em um dos ex-ministros de V. M. I. ; mas V. M. I. permittirá dizer-lhe, que constitu- cionalmente não se conhece senão responsa- bilidade solidaria, e que no caso presente o defendimento da praça he da principal obri- gação e responsabilidade do ministro de ou-

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tra repartição diversa da fazenda. E a verda- de he, que os ministros de hoje fôrao sem- pre ou do conselho de V. M. I. , ou mem- bros principaes da administração; e de V. M. I. tiverão sempre a maior confiança, a. que talvez nãosouberão por obras correspon- der dignamente.

Depois de muitos combates, em que os nossos mostrarão o mais extremado valor, os dous exércitos contendores ficarão estacio- nários, e se conservarão em mutuo respeito. Mas o cerco estreitou-se ; os rebeldes forti- ficarão-se em todos os pontos: deixarao-se- Ihes levantar baterias na esquerda do Douro, as quaes bloqueião inteiramente a entrada da barra, sem que para o embargar se tomassem nenhumas medidas adquadas. Estes aconteci- mentos pozerão os leaes em muito apuro, e reduzirão a cidade á ultima miséria. O minis- terio de V. M. I. he aquelle sobre quem deve unicamente pesar a responsabilidade de todos esses males que são extremos ; e a in- commensuravel perda de sangue e de fazen- da , causada por as medidas de defeza, e o furioso bombardeamento da cidade , pe- la carestia e rareza dos víveres ; porque os ministros de V. Al. I. e o commissario em chefe das repartições civis do exercito devião prever e calcular, e não deixar a segunda ci- dade do reino cercada, e como bloqueada > sem suficientes provisões de guerra e de boca, e até sem um deposito de palhas e lenhas.

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Senhor,— .os víveres faltao, a cida- de e o exercito soíFrem , e o povo perece a mingoa. O ministério de V. M. L não sou- be nem sustentar o justo e fecundo principio da liberdade do commercio, ao começo an- nunciado por os dous ministros da fazenda, e logo fraudolosamente quebrado, nem sou- be seguir bem , e em todas as suas conse- quências, o violento systema restrictivo. A versatilidade das contradictorias medidas que o ministério de V. M. I. tomou a similhan- te respeito tem , mais que tudo , contribuí- do para o estado de aperto, fome e miséria a que nos vemos reduzidos. E o que he peor, Senhor , a divisão entre os poucos encerra- dos n'estes muros tem sido acintemente pro- vocada por essas medidas arrojadas e exce- pcionaes, que dão alimento ao natural ciúme do povo que soíFre ; o qual não em ca- da negociante senão um ladrão publico, e um assassino, que especula sobre as lastimas e fome do povo; e estes máos sentimentos, que assim vão germinando no coração dos des- graçados, podem arrastar-nos aos mais crimi- nosos excessos. Os únicos recursos do actual ministério são execuções ííscaes, promovidas no juizo da commissão dos Feitos da fazen- da : . empréstimos forçados á similhança d*- aquelles que impôz o usurpador; e multas que despoticamente se exigem dos cidadãos que não podem ou não querem exercer cer- tos empregos, (cousa inaudita na historia dos

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povos ainda os menos cultos): tudo procede* res extraordinários e violentos, que não po» dem produzir bom resultado duradouro, e que tem exasperado esse infeliz povo, ve- xado por quatro annos de perseguições e se- questros, ha pouco roubado num milhão de cruzados, e agora carregado com todo o pe- so da defensão da liberdade, serviço d*armas, donativos para fardamentos, faxinas , abole- tamentos , e isto n'um momento em que o preço dos géneros tem subido extraordinaria- mente, e o commercio interno e externo es* inteiramente paralisado. De sorte que a causa constitucional não está em risco de se perder, mas, o que he peor, sem espe- rança para o futuro, porque se perde com ver- gonha nossa , e descrédito de nossos princí- pios. He necessário exaltar o patriotismo d - ésta cidade , e de todos os de dentro e fo- ra d'ella , os quaes estão abatidos por tantos trabalhos, perdas, padecimentos e sacrifícios, que não ha esperança de verem galardoados, nem remediados segundo o péssimo systema do actual ministério. Além d'isto, Senhor, em logar de tantos tribunaes inúteis, (quaes alçadas) em logar de tantos juizes , e appa- rato de repartições ê segurança de policia, o que a pátria quer, e com que se julga segu- ra , são munições , valor , e soldados, D'is- tohe que principalmente se devia cuidar. Fal- tão provisões de guerra e de boca ; falta tu- do j mas o patriotismo, que está encuberto

em cinzas, pôde ainda renascer. A nosía po- sição he difficil , e tal como raras vez.es apresenta na historia das nações ; mas V. M. I. pôde salvar-nos. O ministério de V. M. I. não tem a opinião dos habitantes desta cidade, do exercito libertador, nem a do res- to da nação ; he desconhecido da Europa, e pouco respeitado, e temido entre nossos pró- prios inimigos. Finalmente, Senhor, os mi- nistros de V. M. I. não sabem ferir a corda do enthusiasmo popular ; e a esta cidade he- róica não lhe concederão, nem sequer a pro- tecção dos seus magistrados municipaes. O ministério tem medo da urna eleitoral, sem o apoio da qual nenhum governo justo pô- de subsistir, nenhum povo prosperar. Em vis- ta do exposto, e do mais que os supplican- tes deixão á penetração de V. M. 1. , res- peitosamente pedem a V. M. I. que, usan- do do poder moderador, haja por bem di- mittir todo o seu ministério; e, seguindo a pratica das nações mais cultas , nomear um presidente do conselho, o qual tenha junta- mente a confiança de V. M. I. e do exerci- to, e a consideração do resto da Europa, po- dendo aquelle propor a V, M. I. as pessoas que devem compor o ministério, ou comple- tá-lo, se a urgência dos negócios o pedir; porque uma administração uniforme, enér- gica , esclarecida , e popular nos pôde sal- var, ainda que não sem custo, da violenta crise de que estamos ameaçados. ^ E. R.

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N. B. Esta representação foi apresenta- da pelo marechal Solignac , e depois entre- gue por D. Pedro aos seus ministros no fim de fevereiro deste anno.

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LIVRO VIL

DOS ANNAES.

Successos mais importantes do atino de 1834} septimo , ? ultimo da usurpação*

j\brio D. Pedro este anno 1834 com um dos seus erros, tão communs, que menos in* dicavão originalidade de caracter, do que fal- ta de prudência, e bom juizo. Havia annos que o theatro de S. Carlos estava fechado y porque no meio dos horrores da usurpação não podião ser bem cabidas as harmonias e os encantos da musica, civilisadora dos cos* tumes. Abrio-se elle no dia 6 de janeiro do- este anno, e tendo-se de ante-mão annunciado que nelle appareceria a Rainha, todos esta* vão alvoroçados para ali a verem , e festeja- rem. Para nãoapparecer no primeiro diadêo- se por desculpa ser o anniversario da morte da rainha Carlota ; e em um dos seguintes , quando menos se esperava , a conduzio ali seu pai, incógnita, hindo-se esconder com el- la e com a mulher em um camarote particu- Tom. IV. R

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!ar. Por muito tempo ignorou o povo que estivessem tão altas personagens , mas tanto que o soube nenhum caso fez disso: cada um, nos intervallos da peça, esteve ou pas- seou com o chapéo na cabeça ; nenhum viva9 ou demonstração alguma de respeito e satis- fação publica se dêo ; e tudo se passou co- mo se a corte ali não estivesse. Por este mo- do muito mais bom senso e dignidade mos- trarão os espectadores que D. Pedro, que n'es- ta occasião não mostrou nem uma cousa nem outra. O caso foi muito de estranhar, por ser diametralmente contrario aos nossos cos- tumes, pois que havendo no theatro a tribu- na real> em que nossos reis e príncipes sem- pre costumarão assistir ás representações , e sendo esta a primeira vez em que aliappare* cia a Rainha, a quem o povo tinha muita affeição, ninguém teria podido imaginar que tal proceder tivesse cabido na cabeça de Pedro. Este novo costume de ir a Rainha ou afamilia real para um camarote particular po- dia com o tempo vir a introduzir-se não por commodidade de nossos príncipes porém dos espectadores ; querer , comtudo , dá-lo á execução na primeira noite em que a Rai- nha, tão desejada do povo, apparecia, se não foi um acto de indiscrição, mostrou ser con- sequência de pouco airosas intenções. Assim o pensou geralmente o publico ; porque não faltou quem abertamente se atrevesse a de- clarar, que taes erão os ciúmes que o pai ti-

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nha da filha, que não tivera bastante presen- ça de espirito para ser testimunha do enthu- siasmo com que ella havia de ser recebida. E tanto mais plausível pareceo esta idéa quan- do ainda erão frescas na memoria de todos as tentativas que se tinhão feito para lhe re- tardar a coroa , que seu mesmo pai n*ella voluntariamente tinha abdicado. Esta impru- dência, ou qualquer nome que se lhe dê, foi fatal \ e não deixou de influir gravemente na futura vida politica de D. Pedro. Era uma primeira impressão desfavorável ; e as pri- meiras impressões da vida difficilmente se ris- cão , e se esquecem.

O ministério, sempre inconsequente na sua marcha de governar, assim como sempre pouco escrupuloso em faltar ás suas promes- sas, dêo ainda uma nova prova do pouco que se podia contar com a sua palavra. Tanto no Porto como em Lisboa se tinhão formado mui- tos batalhões de voluntários que , oíferecen- do unicamente seus serviços para a defeza da liberdade em quanto entre ella e a usurpação durassem os combates, não erão, nem de- viao ser considerados como tropas de linha , e muito menos estar sujeitos a todo o rigor militar, até mesmo porque não participavão das mesmas vantagens de que ellas gosavão. Apesar d'isto, por um simples rasgo de pen- na , fôrão elles esbulhados da cathegoria de voluntários , e ficarão expostos a todo o ri- gor do código militar. Por esta forma se pre-

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wriavao os brios dos cidadãos , e erão estes tratados pelo governo, que longe de lhes dar agradecimentos, ealliviar seus trabalhos, dis- punha delles como se fossem seus escravos. Foi quasi pelo mesmo tempo , isto he , no dia 9 , que se publicou a lei para a eleição das camarás municipaes, de que no fim do livro antecedente fiz menção quando tra- tei dos negócios do Porto que a motivarão. Parecia que o ministério não podia fa- zer um acto pelo qual não merecesse censu- ra. Para com a mesma pessoa praticou elle dous que lhe attrahírão grande descrédito. Havia um homem notável, chamado Manuel Ignacio de Sampaio e Pina, que estivera sem- pre no serviço de D. Miguel, e que de tão bom coração o servira que fora, como con- selheiro do ultra-mar, um dos seus acclama- dores para rei nos chamados três estados do reino no anno 1828. Sobre este homem foi que não menos de dous ministros de D. Pe- dro, quasi a um tempo, derramarão uma gran- de parte da enchente de suas graças. No dia 10 deste mez de janeiro o nomeou Agosti- nho José Freire brigadeiro effectiw ; e no se- guinte dia 11 , agarrou logo d'elle José da Silva Carvalho para conselheiro do tbesouro. Assim ambos estes ministros, de mãos da- das, e por um acto tão solemne parecião es- carnecer da Rainha a quem servião , empre- gando tão distinctamente, e logo no princi- pio do seu reinado, ainda entregue á sorte

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das armas, e em seu nome , um homem que tão publicamente lhe tinha negado o throno ! E nem ao menos D. Pedro se resentia da in- juria que seus ministros fazião a sua filha ! Com effeito , quaesquer que fossem os mo- tivos que para isto tivesse o ministério, taes graças erão, emverdadej excessivamente ten> porás !

Se o novo anno não começou com bons agouros governativos , grandes e magnificas esperanças nos apresentou a nossa boa fortu- na militar, então companheira inseparável do marechal Saldanha. Havia muito tempo que a sua opinião era que se não devia atacar em frente o inimigo , postado como estava em uma forte posição , e esta fortemente forti- ficada ; mas que se devia manobrar no seu flan- co para o obrigar a retirar-se. Contra esta o- pinião nunca o ministério se tinha atrevido a declarar-se em quanto se persuadio que po- dia enganar o publico, fazendo espalhar, que no marechal tinha um grande apoio e prote- ctor. Quando porém vio que este prestigio se tinha desvanecido, entrou com outras in- sinuações a querer desacreditar o conde por elle não atacar Santarém , exaggerando para este fim as forças que tinha debaixo do seu commando , e as poucas que tinha o inimi- go. Superior a todas estas accusações , que não levavão outro fim senão o desacreditá-lo no conceito do povo , nunca o conde-mare- chal fez caso d'este e outros ataques com que

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por muitas vezes o quizerão deprimir: espe* rava pelo tempo opportuno para pôr em execução os seus projectos ; e esta opportu- nidade esperava elle ter nas primeiras gran- des chuvas com que se inundassem os cam- pos em roda de Santarém, pois que assim he que poderia, sem perigo, destacar uma grande força da que estava em frente do ini- migo. Aconteceo o que elle esperava nos prin- cípios d'este mez de janeiro; e deixando em volta de Santarém o duque da Terceira com uma parte do exercito, sahio d'ali com outra, e essa escolhida, no dia 12 no meio de tor- rentes de chuva, e se dirigio para o norte. No dia if de madrugada se achou elle so- bre Leiria, onde, depois de todas as infor- mações, entrou com tamanho acerto de com- binações e providencias , que ali surprendeo completamente as forças inimigas, que cons- tavão de mais de 1,400 baionetas, e um es- quadrão de cavallaria. De todas ellas pouca gente escapou que não ficasse ou morta ou prisioneira; e n?esta ultima classe entrou o commandante e governador da cidade Pita Osório, com muitos officiaes, e duas bandei- ras. A nossa cavallaria, composta do bravo regimento 10 , e alguns esquadrões de lan- ceiros, houve-se nesse dia com um valor ex? traordinario, porque, perseguindo na distan- cia mais de duas legoas pela estrada de Coim- bra as columnas inimigas , que por ella se quizerão retirar, assim como a sua cavalla*

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ria , acutilou , e matou quasi tudo , fazenda bem poucos prisioneiros. Tal era o rancor que os nossos soldados tinhão adquirido con- tra os inimigos pela covardia e ferocidade que ao mesmo tempo mostravão em todos os en- contros que tinhão comnosco, que não era possível contê-los para que lhes dessem quar- tel : assim a mortandade foi extraordinária.

Depois d'este brilhante feito darmas, que tanto acreditou o valor dos nossos solda- dos como a intelligencia do seu general, es- tava-se em duvida de qual seria a marcha das novas operações do marechal Saldanha. Mui- tos desejavão que elle marchasse sobre Coim- bra , e até se persuadiáo ser a mais útil ma* nobra militar; no que havia quem dissesse , não sei se com verdade, que insistia o mi- nistério, talvez por separar de si o conde pa- ra mais longe , e retardar o êxito da lucta e da campanha, base essencial, em que, segun- do também se dizia, estava fundada a sua conservação ministerial; porém o prudente general, cuja única missão era a de salvar a pátria, e de lhe dar a liberdade, sem se im- portar nem com os ditos dos ociosos , nem com os desejos ou intrigas dos seus inimi- gos, seguio o plano das suas combinações, e tomou outro rumo , e na verdade aquelle que era o verdadeiro. Marchou rapidamente so- bre Thomar , onde o inimigo conservava u- ma grande força, e de tirava importantes subsistências ; e apparecendo ali na manha.

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do dia tf fez ver , que a sua boa fortuna , que tanto o tinha auxiliado em Leiria, ain- da marchava ao seu lado na sua entrada em Thomar. São dignas de se mencionarem al- gumas passagens da parte official que ellen- esse mesmo dia dêo ao ministro da guerra ; e como taes as vou transcrever. Com muita sastisfação tenho a honra de partici- par a v. ex.a para conhecimento de S. M. I. o duque de Bragança, commandante em chefe do exercito libertador, que o presti- gio da cavallaria de Chaves desappareceo, 3, e que a maior parte daquella cavallaria foi j, hoje anniquilada. V. ex.a sabe a impor- tancia que os rebeldes davão a aquelle cor- po , único no seu exercito, que não tinha 5, dado algum contingente para o exercito 3, da Rainha. Os nossos excellentes soldados cousa alguma desejavão tanto como encon- ?, trar-se com elle ; felizmente coube-me a j, ventura de lhes proporcionar a occasião

j, que elles tanto anhelavão O inimigo

5, tinha, além de 220 cavallos, uma força

v de infanteria de 200 homens Asse-

5, guro av. ex.a, pela minha honra, que não 5, tivemos nem um homem ferido, ou um j, cavallo ; e apenas o capitão José de Vasconcellos , ajudante do regimento de 5, cavallaria, 10, que por alguns instantes es- ?, teve em poder do inimigo, foi ligeiramen- ,, te contuso. O valor e decisão da nossa ca- 33 vallaria não se pôde descrever, e apenas

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he comparável com o ardor da infantaria.' O batalhão de caçadores, n.° 12, eore- gimento 3 de infantaria, que marcharão na frente, por muito tempo a seguirão ,a mar- ,, che marche , não obstante o excessivo ca- ,, lor Assim justificou o marechal Sal- danha a judiciosa resolução que tomara de , em vez de seguir o caminho de Coimbra , vir pela sua esquerda flanquear a direita do i- nimigo, hindo limpando o terreno das forças que por aquelle lado ainda elle oceupava. Por este mesmo tempo se nos annunciou ou- tra derrota que os rebeldes havião sofFrido no Algarve , perdendo três peças de artilharia , muitas munições, com muitos homens mor- tos, feridos, e prisioneiros.

Em quanto as nossas armas hião assim accumulando victorias sobre victorias, outros acontecimentos, menos importantes, se hião igualmente suecedendo. Morreo em Santa- rém uma das infantas, queacompanhavão seu irmão , D. Maria da Assumpção ; pela qual a nossa corte tomou lueto por dous mezes, que principiou no dia 20 d'este mez. Amais de huma pessoa ouvi attribuir a morte d*es- ta infanta a um crime de seu irmão; porém eu não acredito nem menciono a qualidade d'este boato; e simplesmente o refiro para que se saiba que a D. Miguel se attribuia quanto era mão. Talvez que os ódios políti- cos que, como os outros ódios, exaggerão tu- do, ou não tem escrúpulo de mentir, tam-

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bem neste caso fossem exaggerados ou mcn- tirosos.

O ministério de D. Pedro dêo por este mesmo* tempo uma prova do seu absolutismo ou leviandade. Havia como subsidiaria do thesouro publico uma caixa , simplesmente destinada para receber os impostos applica- dos ao pagamento da divida publica, afim de que os credores do estado, que pouca ou ne- nhuma fé tinhão na exactidão do antigo erá- rio, podessem ali termais seguros os seus pa- gamentos , e d'elles nunca podessem duvi- dar. Era esta caixa administrada porumacom- missao particular denominada juntados juros y de que era igualmente presidente o do the- souro publico, ou ministro das finanças. En- tre outros rendimentos estavão para ella ap- plicados todos os impostos que se recebião na alfandega das sete-casas", mas o ministro, sem attender a nenhuma das sérias conse- quências que hia ter o seu novo plano , por um simples rasgo de penna mandou que di- rectamente entrassem no thesouro os impos- tos , que por lei pertencião a administração da junta. Esta, querendo dar, como lhe convi- nha , uma satisfação aos credores do estado, que a consideravão como depositaria das hy- pothecas da sua divida , fez uma consulta ao governo, em que lhe mostrava a improprieda- de de tal medida, o péssimo effeito que el- la podia produzir no publico, e a necessida- de em que estava de se lhe oppôr, como de»

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positaria de hypothecas tão sagradas. Estas reflexões em vez de produzirem algum bom effeito no animo do ministro, aggravárão ain- da mais o mal , porque mandou publicar na Cbronica do dia 22 uma resposta, em que, insultando e reprehendendo a junta, susten- tava a sua arbitrariedade que era exactamente a violação dos direitos dos credores do esta- do. Além d'isto, nem sequer vio o ministro que , insultando a junta , se insultava e re- prehendia a si mesmo como presidente d el- ía. Seguio-se então o descontentamento pu- blico; e o povo, que em geral sente ainda mais as feridas que lhes fazem ou intentão fazer nas bolsas do que as que lhe ameação o corpo , entrou a ver em que mãos hia ca- hir o deposito das suas dividas e por conse- guinte começou logo a murmurar altamente. A estas murmurações , que podião passar a factos, attendeo mais o ministro do que á representação da junta ; e passados poucos dias, como em remissão do seu pecado, pu- blicou uma nova portaria, pela qual mandou entregar á junta , que reorganisou com nova gente, o dinheiro do exclusivo do sabão, que para o mesmo fim lhe pertencia. Também i- gualmcnte constou que á mesma junta man- dara entregar o dinheiro que nas sete-casas se tinha recebido até o fim do anno. Por este modo o ministro se vio obrigado a retroce- der, e dar plena satisfação á opinião publi- ca, que antes em pouco avaliava.

Tanto teimava o ministério em commet- ter absolutismos ou desacertos , quanto tei- mava o Saldanha em ganhar novas victorias. Estando elle no dia 28 na ponte à'Alviella , caminho de Santarém , teve participação de que o inimigo havia feito marchar a maior parte das suas forças pela estrada de Pernes, depois de lhes o usurpador ter passado revis- ta. Dêo immcdiatamente ordem para que o tenente-coronel Miranda, commandante do i." regimento ligeiro da Rainha, e do bata- lhão 10 de infantaria, marchasse a reunir-se ao coronel Romão que occupava Pernes; e elle voltou para Torres-Novas. Os rebeldes se aproximarão de Pernes no dia 20, e fize- rão de tarde um reconhecimento em força. Pelas suas disposições vio então o coronel Ro- mão que sem duvida elles se propunhão ata- cá-lo no dia seguinte; ed'isto dêo logo par- te ao marechal Saldanha , dizendo-lhe , que pelas informações que tinha recebido a força inimiga não podia ser menor de 4,500 ho- mens de todas as armas. Em consequência deste aviso o marechal pôz em movimento as tropas que occupavão Torres-Novas, e sa- hindo dali ameia noite chegou a Pernes an- tes de amanhecer. Á's 8 horas da manhã do dia 30, vendo que o inimigo, cujas vedetas estavao á vista , se não resolvia a atacá-lo , fez marchar as suas tropas pela estrada de San- tarém. Erão commandantes das forças rebel- des o general Portuguez Canavarro, e o gc-

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neral Francez Bressaget , que tendo ordena- do o ataque para as 10 horas da manhã, fi« carão de todo surprendidos quando virão que os seus piquetes estavão cortados pe- la nossa cavallaria. Tomou então o inimigo repentinamente as armas; mas também re- pentinamente o tenente-coronel , Simão da Costa Pessoa, correo com o regimento 10 de cavallaria sobre os regimentos i, 17, e 20 da infantaria inimiga, que estavão em mo- vimento, e que, formando-se em dous qua- drados , se virão em um instante cercados pela nossa cavallaria. Acontece© ao mesmo tempo que do fogo da 1/ companhia do 2.* batalhão de caçadores, conduzida pelo capi- tão Guerreiro, começassem a ser incommo- dados, porque esta tinha tomado uma mui vantajosa posição ; e esta nova circumstancia fez com que entrassem a vacillar. Então o tenente-coronel Pessoa com os seus bravos do

10 de cavallaria, e com um destacamento do

1 1 , commandado pelo major Trigueiros , a- proveitou a occasião, carregou, e rompeo ura dos quadrados, em quanto ao mesmo tempo os lanceiros se precipitavão sobre o outro, que teve a mesma sorte que o primeiro. Desde esse momento nada mais houve que fazer: o inimigo pòz-se em completa retirada, e foi perseguido até ser obrigado a encerrar-se de novo em Santarém. A sua perda consistio em 3 bandeiras, uma do regimento n.° i.°, e duas do ij \ em 709 prisioneiros, inclusos

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21 officiaes, todos de tropa de linha; ern grande numero d'armas, e armamentos ; uma boiada ; e 15* cavallos do regimento de Cha- ves, além dos muitos mortos. Á nossa foi de 3 soldados e 8 cavallos mortos ; e4ofHciaes, 13 soldados, e 2 cavallos feridos. O mare- chal Saldanha dizia no seu officio de 31 de janeiro ao ministro da guerra:— . V. ex.a sa- be que a maior difficuldade que temos que vencer para alcançar a victoriay consiste em proporcionar aos nossos bravos a occa-* sião de virem ás mãos com o inimigo; e faz-me a justiqa de acreditar que eu não 3, desprezaria a que então se nos proporcio- ,, nava. Assim , depois do que deixo re- latado, bem se vê, que o general aprovei- tou bem essa occasião, e que vencendo jus» tificou o que dizia.

No meio da satisfação que nos dava es- ta victoria nos chegou a interessantíssima no- ticia de que no dia 15 d'este mez de janei- ro tinha havido uma mui importante mudan- ça no ministério Hespanhol , sahindo delle Zea Bermttães , que era considerado como um dos mais eflicazes apoios Caríistas ; e em consequência d'estes seus princípios políticos embaraçava quanto podia o desenvolvimento do espirito publico a favor do novo systema do governo depois da morte de Fernando VII. Na organisaçáo do novo ministério entrou o célebre Martinez de la Rosa, homem que no anno 1822 havia sido ministro, e que não

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sendo de opiniões exaggeradas queria a li- berdade politico-constitucional da sua pátria, mas sem as convulqões ordinárias que acom- panhão todas as mudanças politicas quando estas sáo violentas , ou mais apressadas do que os antigos hábitos de uma nação o per- mittem. Emlim , queria a regeneração poli- tica de Hespanha , poupando-lhc as perigo- sas resistências , que sempre andão a par de tudo quanto se faz por violência. Gomo o nosso estado politico era idêntico, e por es- se motivo a guerra civil , que havia em am- bos os paizes, nascia dos mesmos princípios, quanto maior identidade hia adquirindo o go- verno Hespanhol com o nosso, muito mais, ainda que indirectamente, hia também ope- rando a favor dos nossos negócios ; e ainda que mais não fosse pelo desalento que cau* sava aos nossos inimigos domésticos , dimi- nuindo-lhes cada dia as esperanças de pode- rem ter apoio no governo visinho , que no principio da rebelliao tanto o tinha alentado. Mas se este e outros incidentes exter- nos auxiliavão poderosamente a nossa causa, nem por isso a nossa administração interna melhorava. disse como inconsequente, e sem attençao á sua palavra, o governo, por um rasgo de penna, havia convertido os batalhões de voluntários em tropa de linha , agora passou ainda a mais, e commetteo pa-> ra com os mesmos batalhões uma nova arbi- trariedade, que foi considerada como um no-

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Vo insulto. Haviao elles sido na sua creação separados para dous diversos serviços ; e nes- ta intelligencia tinhão tomado dous diversos nomes, de moveis, e de fixos , palavras que bem designavão o que a cada um dellcs competia. Esquecido d'isto o ministério or- denou, sem preparação alguma, que dos ba- talhões fixos se tirassem muitos homens para sahirem da capital e hirem para o exercito. O resultado foi, que apenas mui poucos qui- zerão obedecer, e a maioria desprezou as or- dens do governo, que illegalmente queria dispor das suas pessoas , como se fosse um rebanho de escravos , a quem basta um movimento de chicote para lhes dar a direc- ção que o interesse ou o capricho do senhor tem calculado. Comtudo nada d'isto impor- tava ao ministério, que vivia satisfeito, com o deixarem andar correndo as ruas de Lisboa com correios atraz de si, á imitação dos mi- nistros de D. Miguel ; e depois ir receber nas secretarias ou em casa as zumbaias dos aduladores do poder, qualquer que seja a cor ou feição que elle tenha.

Ao mesmo tempo o ministério, que não tinha podido desviar o marechal Saldanha de executar a bella manobra , que havia conce- bido depois da sua entrada evictoria de Lei- ria, confundido agora com as novas victorias de Torres-Novas, e de Pernes, descia da sua altivez ministerial á condescendência a mais submissa. Em data de 4 d'este mez de fe-

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vereiro lhe fez um muito attencioso officio, no qual não lhe dêo os mais rasgados a- gradecimentos pelas três brilhantes acções com que se tinha illustrado e a valente dir visão que commandava , mas até o encheo de louvores pela humanidade com que , no meio das suas victorias, tinha tratado os ven- cidos. Tinha sido sempre a pratica do mi- nistério passar dos insultos para as lisonjas my procedimento ordinário ou da fraqueza , ou da falta de caracter. E contra nenhum ho- mem havia elle dado tantas provas desta versatilidade como contra o Saldanha; por que ora o exaltava até as nuvens, quando se persuadia que o podia corromper, ora o de- primia com palavras ou accusaçòes ridículas, quando o achava opposto a seus interesses (h). Na ausência do marechal tinha ficado defronte de Santarém o duque da Terceira, mas como este fosse marechal do exercito mais antigo, e com a vinda d aquelle o hou- vesse decommandar, foi então necessário ti- rar-lhe o commando, e para o substituir foi nomeado o general Stubbs , novo barão de Villa-Nova-de-Gaia , por ser somente tenen- te-general. Alguém quiz neste tempo attri- buir esta mudança a desavenças entre o con-

(/i) Por exemplo : o ministro da guerra, Agostinho José Freire duia , quando o conde pattio para Leiria , que er« Je era o único , e verdadeiramente general que nós tínha- mos ; e passados dias dizia , que era o genfrta! d«s arche» todos , e o chefe da canalha vvlitiea.

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de e o duque , ou pelo menos o ministério assim pertendeo fazer correr isto no publico ; porém não era verdade : o motivo delia pa- teceo não ser outro mais do que não convir que o Saldanha deixasse de commandar em chefe, e não ser isto praticável, achando-se ali o duque da Terceira. O que n'esta mu* dança houve de mais notável foi a nomeação de Stubbs , esse mesmo general , a quem ti» iihão querido desacreditar depois que lhe ha- vião tirado o commando das armas do Porto. Por toda a parte se dizia que este benemé- rito general estava pateta e incapaz de commandar pela sua idade, e ralta de ener- gia tanto corporal como intellectual ; e ago- ra de repente o derao por capaz, e militar- mente o resuscitárão, empregando-o em um serviço que exigia a maior actividade, e a mais robusta intelligencia.

Os negócios deHespanha tomavão pro* gressivamente um melhor aspecto, ehião pre- parando a próxima regeneração politica, a que tamanho direito tinha aquella briosa e tão maltratada nação. O que tinha dado occasião á mudança do ministério Hcspanhol, de que fiz menção , e em virtude da qual tinha Zea Bermudes perdido o importante logar que n'ella occupava com tanto prejuizo das liberdades nacionaes foi a nobre e vigorosa resolução que muito particularmente tomou o general Llanâer^ que commandava na Cata- lunha. Este, á írente das tropas, da muni-

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cipaíidade, e povo de toda a província, foi pedir á rainha regente que aíFastasse dos seus conselhos Zea e as suas creaturas; e que cha- masse immediatamente cortes ; e esta suppli- ca, dizem, fora repetida pelos generaes Que- zada, S. Lourenço, e outros. De acordo com Llander constou igualmente que estava o mar- quez das Amarilla? : o caso foi , que , em consequência d isto, se chamou Martinez de la Rosa, e se operou a mudança ministerial* Por este mesmo tempo se receberão noticias de Londres , e por ellas soubemos que D. Pedro e o seu ministério tinhão Ili- do lançar-se aos pés do gabinete Britânico, contra o qual até ali muito havião vocifera- do, e humildemente lhe pedirão uma inter- ferência armada, essa mesma que, constava, tinhão antes recusado. Espalhou-se logo que nada tinhão conseguido , apesar de que no mesmo gabinete achassem alguns votos a fa- vor. Deste numero dizião, que fôrão lords Palmestron , e Grey ; porém que acharão grande opposiçao em lord Brougham, e ou- tros. A razão destes últimos foi , segundo também se disse, que tcmião que em 1834 se abusasse em Lisboa da presença das tro- pas Inglezas, como d'ellas se tinha abusado em 1828. D. Pedro, para instrucção pratica de seus ministros, consentio que na Chroni- ca do dia 6 d'este mez de fevereiro se pu- blicasse um resumo das moderadas despezas que havia feito na sua casa durante o espaço

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tle dezesete mezes. Foi uma ostentação de economia, de que o publico não fez caso, e que aos homens prudentes pareceo mais do que escusada , porque dêo thema a commen- tos.

A Chronica do governo, único impres- so que , auxiliado pela Revista do domingo, tinha direito para dizer tudo quanto queria contra as pessoas votadas á indignação minis- terial, e sempre impunemente, e de um mo- do pouco cavalheiro , porque estavão oppri- midas com a mordaça da censura , também algumas vezes servia de clarim ou para divul- gar as virtudes dos adeptos, ou para adorme- cer com soporiferas melodias os indivíduos diante dos quaes não podia deixar de ajoe- lhar. N'este numero entrava o marechal Sal- danha , a quem, em panicular, segundo mencionei , o ministro da guerra, Agostinho José Freire , chamava o general das archota- dasy e o chefe da canalha politica ; e em pu- blico, ena sua Chronica denominava algumas vezes o salvador da pátria. No dia 11 des- te mez publicou a mesma Chronica uma car- ta regia com data de 8 em que, depois de se exaltarem até ás estrellas as virtudes mili- tares do conde-marechal pelos seus brilhan- tes feitos dar mas em Leiria , Torres-Novas, e Pernes , vinha elle nomeado grão-cruz da ordem de Christo. Era esta uma d'essas in- sidiosas cantigas das sereias, com que se que- ria adormecer a vigilância do general, para,

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com maior facilidade, se lhe poder dar o gar- rote politico quando as circumstancias o per- mittissem. Mas emfim , no emtanto erão os infiéis forçados a pôr o joelho em terra dian- te do sancto do dia , e a adorá-lo ; o que não eia pouco para o ódio que lhe tinhão. Parece que nesta occasião fora mais o medo do que outra cousa o motivo que obrigara D. Pedro e o seu ministério a dar-lhe esta demonstração de reconhecimento ; porque soube-se y que pouco antes da victoria , que alcançara em Pernes, havia elíe sido chama- do a Lisboa, e que era para se lhe dar uma verdadeira dimissão, tirando-lhe o cominan- do. O que impedio que isto tivesse eíFeito fôrao os dous acontecimentos mui poderosos que passo a relatar. Foi o primeiro, a bizar- ria com que se houve o duque da Terceira ,. mandando immediatamente a Lisboa um dos seus ajudantes, Mousinho de Albuquerque, a expor a D. Pedro o perigo d'aquella reso- lução : foi o segundo, a victoria que no mes- mo tempo o Saldanha ganhava em Pernes ; victoria que assustou o ministério , e o fez- mudar de parecer. Accresceo a isto a sensa- ção que começava a apparecer na exercito de- pois da noticia que se espalhou entre os cor- pos de que lhes querião tirar o seu general; Todos os commandantes fôrão ter com elle,, dizendo-lhe que em caso nenhum consentiao que elle se retirasse ; e alguns officiaes hou- ve y que, mui claramente , se lhe offerecerlc*

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para ir a Lisboa com duas ou três companhias de granadeiros dar uma lição de prudência ao ministério. Assim por todos estes motivos seimpedio que ao Saldanha se tirasse o com* mando , cousa que tanto se desejava.

Uns apoz outros se hião succedendo no^ vos acontecimentos, porém todos importan- tes. Pelas noticias de Londres se confirmou o que antes se tinha divulgado, isto he , que o governo Britânico não accedia á pro- posta da intervenção armada que se lhe havia pedido. Entre as muitas razões que constou ter dado lord Brougham para a recusar, quan- do foi proposta pelo novo ministro diplomá- tico, Sarmento, foi que elle sabia que dous advogados tinhão dado, ou vendido a D. Pe- dro uma opinião por escripto tendente a mos- trar, que elle podia annullar a sua abdicação da coroa de Portugal ; e que por essa razão não podia consentir em que se mandassem tropas Inglezas para Lisboa , porque não ti- nha duvida alguma em dizer, como conse- lheiro legal da coroa , que D. Pedro reto- maria a coroa de sua filha D. Maria logo que podesse. Por este mesmo tempo chegarão dous barcos de vapor com cousa de oitocen- tos Belgas, que por mais de três mezes {/) tinhão estado demorados em Inglaterra , fa-

(i) Um dos vapores , o Royal William , foi fretado era outubro, e sahio de Falmouth em 29 de janeiro seguin- te. Ouvi dizer que era propriedade de Mendiíabal } as»im necessitava ganhai longos fieus»

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zendo uma enormíssima despeza. Mas se to- dos estes arranjos erão prejudiciaes ao thesou- ro publico, erão elles muito proveitosos pa- ra Mendizabal e seus amigos. Todo o caso era que se conservasse o governo no em que estava : o fazer fortuna era tudo ; embo- ra perigasse a liberdade. Pouco importava, emíím , que a nossa infeliz pátria, livre das garras de D. Miguel , viesse depois a cahir em qualquer novo despotismo; e que d'ella ainda , desgraçadamente, se podesse dizer o que da Itália tinha dito um poeta , isto he : que vencedora ou vencida tinha por desti- no o ser sempre escrava (k) !

Vou narrar um novo caso , e caso bem desagradável, o qual, acontecido nos fins do rnez passado, depois veio ao meu conhe- cimentOi Havia-se dado incumbência ao ge- neral Polaco Bem de organisar uma legião Po-- laca , que devia ser formada dos briosos de- fensores de Varsóvia, a quem a fatalidade da guerra tinha expatriado com a perda da liber- dade. Sahio este general do Porto em com- panhia do brigadeiro Vasconcellos que havia pouco era regressado das ilhas; e ambos par- tirão para França, para ali desempenharem a sua commissão. Faltou-lhes porém logo, se- gundo constou, o governo de D. Pedro a todas as promessas que lhes havião feito , e particularmente com o auxilio do dinheiro ,

(&) Per servir sempre ó vencUrice, ó vima.!

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que para a execução da empreza era absolu- tamente necessário. Não se pôde , portanto, fazer o recrutamento, e a culpa de tudo is- to se lançou sobre os agentes d'elle, quando toda ella se fazia recahir sobre o ministério que não cumprira o que tinha estipulado. Na opinião do publico o negocio era fácil de ex- plicar, porque entendia, que uma legião Po- laca não podia ser fazenda que agradasse ao ministério: estava arrependido de a ter en- commendado; era preciso fechar-lhe a por- ta, custasse o que custasse ; para que não crescessem os elementos da liberdade, que muito incommodavão aos que dispunhão do poder. Depois de varias reclamações, de que o general não tirou resultado algum satisfa- tório, veio elle a Lisboa requerer, que ao menos se lhe desse individualmente o que se )he havia promettido , pois que nas cousas de Portugal havia gasto quanto podéra alcan- çar, e se -achava nas tristes circumstancias de morrer de fome. De dilação em dilação foi o ministério retardando o negocio do gene- ral, até que elle, enfastiado, foi emfim um dia desenganar-se com o ministro das finan- ças , Silva Carvalho, que em resposta muito mal o tratou em sua casa. Não podendo, por conseguinte, supportar o general Bem o mão tratamento recebido, a par da injustiça que julgava lhe fazia, escreveo ao ministro uma carta de desafio que, traduzida litteralmente do Francez em que foi escripta3 foi a seguia

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te : A mr. José da Silva Carvalho. Vós tivestes hontem a insolência de me insul- tar na vossa própria casa , não como mi- nistro, mas como José da Silva Carvalho. Eu presumo que, devendo conhecer as leis da honra , não ignoraes que todo o insul- to pessoal se deve lavar com sangue. Eu vos peço em consequência uma reparação. Vós fixareis o dia em que possamos quei- mar uma escorva em honra do vosso indi- gno procedimento. Lisboa, 29 de janei- ro, 1834. (Assignado) general Bem. O ministro não acceitou o convite ; e constou- me se desculpara com a prohibição que tive- ra de D. Pedro. O publico porém não o des- culpou ; porque dizia, que em Inglaterra Pitr, Castlereagh , Canning, lord Wellinghton ; e em França Sebastiani, apesar de ministros, não se tinhão recusado a um convite d'esta natureza. Em consequência de similhantes desgostos, havia mezes antes, que o gene- ral Francez Froment se havia morto com um tiro de pistola ; e todos estes acontecimen- tos hão davão popularidade ao ministério,

Veio ainda um novo facto aggravar a opinião que havia do ministério, e foi elle o seguinte, OrTereceo-se o negociante Henrique José da Silva, cujo nome muitas vezes tenho mencionado, para emprestar á Rainha, quando de França veio para Lis- boa, a quantia de 20^000 libras sterlinas no caso de lhe serem precisas para fazer com de-

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Coro a sua viagem, passando por Inglaterra ; a qual oíFerta de empréstimo não lhe foi en- tão acceita , bem que lhe fosse , como con- vinha, agradecida. Então o ministro das fi- nanças, Silva Carvalho, que isto soube, co- mo não podesse preencher logo o emprésti- mo aberto em Lisboa na chegada de D. Pe- dro, escreveo-lhe convidando-o a completar com as mesmas vinte mil libras aquelle em- préstimo nacional , que por decreto de 9 de agosto d'aquelle anno se tinha aberto. Recu- sou-se a este convite Henrique José da Sil- va, recusação, que nunca lhe perdoou o mi- nistro. Succedeo depois , que fazendo-se um novo empréstimo de dous milhões sterlinos, e cujas quantias em certos prazos se de- vião receber, ficou subsistindo o grande in- conveniente de ser preciso comprar a prazos, no intervallo dos pagamentos , todos os ef- feitos que erão necessários tanto para o pes- soal como material do exercito. Desejando obviar a este gravíssimo inconveniente, of- fereceo-se Henrique José da Silva , conjun- ctamente com um rico negociante de Lon- dres , Isaac Goldsmith , a fazer um adianta- mento immediato de duzentas mil libras ster- linas com certas condições propostas , para se poder pôr um termo ao ruinoso systema de comprar a prazos , que , por uma conta media, causava uma perda de $0 por cento; e principiar-se a comprar tudo com dinheiro á vista. Não quiz o ministro acceitar a oífer-

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ta, e não a não acceitou , porém em pa- peis públicos pertendeo desacreditar as firmas dos dous emprestadores, e particularmente a de Henrique José da Silva, dizendo, que não tinhão as qualificações necessárias ; insulto mercantil da maior importância, e tanto me- nos merecido, porque n'esses mesmos dias quem tinha perdido o credito não era o em- prestador Silva , mas o emprestador do mi- nistro , o Francez Ardoin , que por ordem d'aquelle havia sido preso no dia 3 d'este mez de fevereiro por lhe não pagar alguns centos de libras. N'essa publicação indiscre- ta até houve a irregularidade de publicarem uma ultima resposta , que se dizia dirigi- da aos oíFerentes do empréstimo, por via do duque de Palmella , sem que este nem el- les ainda n*aquella épocha a tivessem recebi- do: irregularidade, de que mui particular- mente se queixou mr. Goldsmith ao ministro Sarmento, e ao mesmo passo foi notada por Henrique José da Silva ao editor do Courier (/) em uma carta que lhe escreveo com data de 3 , e elle publicou na folha do mesmo dia.

A todas estas indecencias , em que ha- via tanta ingratidão como falta de decoro, principiou logo Henrique José da Silva a res- ponder no Times do dia 4, mostrando os ser-

(/) Pela parte , que este jornal Ioglez havia tomada de- pois de algum tempo na defeza do ministério de D. Pedro, dizi^se i ^ue recebia mçn>almenie dmentas libras sterlinas.

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viços, que constantemente tinha feito á cau- za liberal Portugueza, e até os agradecimen- tos que por vezes tinha pessoalmente rece- bido do mesmo ministro que agora tão feia- mente o tratava. Consistião esses serviços , muitos dos quaes antes tenho mencionado rfestes meus Annaes^ em ser elle quem havia dado os meios para a hida do conde de Vil- la-Flôr, e muita tropa para a ilha Terceira: em ter feito o mesmo para a viagem da Rai- nha, e imperatriz para o Rio de Janeiro: em haver elle mesmo hido a esta corte em mis- são muito importante: em ter na sua volta do Rio continuado constantemente a auxiliar a regência da Terceira: em haver concorrido efficazmente com o mesmo actual ministro da fazenda para o empréstimo do anno 1831: em haver depois d elle auxiliado quasi todos os dias o agente d esse empréstimo, cuja fra- se ordinária era dizer-lhe, je ríai pas h sou', em ter no anno 1832, quando os con- tractadorés recusavão todo o auxilio, arranja- do gratuitamente um empréstimo de dez mil libras sterlinas : em haver no anno 1833 con- corrido constantemente para enviar ao Porto muitos batalhões de tropas estrangeiras, com a singular circumstancia de não se lhe ter pa- go em devido tempo as letras sacadas por es- sas despezas , quando ao mesmo passo o mi- nistro as pagava a outros pelo mesmo obje- cto: finalmente em ter sido elle quem na rea- lidade salvara Portugal, dando a maior parte

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èo dinheiro com que se preparou a brilhante e victoriosa expedição do almirante Napier (m). Assim a um homem , que podia com verdade ai legar taes serviços , deshonrava o ministro, negando-lhe as qualificações neces- sárias para se lhe acceitarem as suas propos- tas de empréstimo !

Por esta mesma épocha chegarão a Lis- boa os dous novos ministros de Inglaterra e de França , que fôrão lord Howard de Wal- dem , e o barão Mortier. Sobre a missão do primeiro espalhou-se então , que uma parte das suas instrucções era o vir authorisado pa- ra suspender as suas relações diplomáticas lo- go que por qualquer medida ministerial en- tendesse que o governo de D. Pedro inten- tava invadir os direitos da Rainha. Igual- mente se presumio que as instrucções do mi- nistro Francez erão análogas para o mesmo fim.

No dia 18 d' este mez de fevereiro se dêo a batalha de Almoster , em que a gloria do nosso exercito, e do seu capitão, o ma- rechal conde de Saldanha, ganharão um no- vo lustre, e com elle se tonificou a causa da liberdade. Foi esta batalha igualmente uma nova e enérgica resposta com que o general contundio as calumnias e os ciúmes com que os seus inimigos não cessaváo de o atacar;

(jií) Toda esta correspondência appareceo depois junte na gâzetta lngleza Town and Country Advertiser do dia 12 de fevereiro d íite atino.

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C foi emfim ella o que impedio de não tor- narmos a ver em frente da capital o exerci- to rebelde^ que para isso se tinha preparado. Pelo itenerario que se encontrou em poder de alguns officiaes j mortos no campo de ba- talha, soube-se que as tenções do inimigo e- rao dormir aquella noite no Cartaxo ; passar no dia 19 a Villa-Franca ; e entrar no dia 11 em Lisboa, anniversario da chegada de D. Miguel a Lisboa na sua vinda de Inglaterra no anno 1828. Fôrão os rebeldes os que a- tacárão ; e sendo o ataque geral em toda a linha, o mais forte- , e aquelle por meio do €]ual pertendião forçar a sua passagem, foi o da nossa esquerda na visinhança de Almos- ter, onde a batalha foi verdadeiramente ter- rível e sanguinolenta. Dizia o general Sal- danha no seu officioj que, depois do que tinha presenceado na brecha de S. Sebastião na guerra Peninsular, nada tinha visto que se podesse comparar com aquella scena de mor- tandade que soffreo o inimigo ; asMm como mui poucas vezes tinha soffrido um fogo tão violento como aquelle que os rebeldes tinhão feito até o momento de fugirem. Precipita- dos das alturas , e amontoados junto da pon- te de Sancta Maria , que estava occupada pelos nossos, d elles se apoderou uma espécie de torpor \ e então os nossos soldados , que viráo que elles nem se rendião, nem pele- javão , e enraivecidos por esta espécie de tenacidade estúpida, fizerao n'elles uma car-

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niçaria espantosa. A noite os livrou de uma completa anniquilação , porque o combate começou muito tarde ; e assim a favor das trevas da noite se salvarão. Com mais duas horas de dia, disse o general, o exercito re- belde teria ficado anniquilado, porque as dis- posições que havia tomado, os logares em que estaváo collocadas as nossas reservas , c os movimentos que devião effeituar as tro- pas que oceupavao as pontes d'Assêca, e Cel- leiro, o Paul e Almoster, teriao necessaria- mente acabado com todo aquelle exercito re- belde. A sua perda , sem fallar em mortos e feridos , que foi extraordinária , constou até o dia 22, data do officio do general, de 316 prisioneiros e desertores; e entre elles quatro officiaes. Perderão igualmente três ban- deiras o que prova o estado em que ficarão os corpos a que pertencião («).

Aconteceo esta batalha memorável no mesmo tempo que no seu maior auge estava uma nova intriga tecida contra Saldanha. Ti- nha-se antes discutido qual conviria melhor operar vigorosamente no lado do sul ou do norte, para por este modo obrigar o inimi- go a sahir de Santarém , pois que se tinha assentado o não atacar de frente esta forte

(«) Os desertores asseverarão , que tinháo perdido n 'fi- queis dia perto de quatro mil hnmens entre mortos , fe- ridos, prisioneiros, e fugidos para suas casas Entre os mor- tos ires brigadeiros , seis commandantes de corpos , cinco ajudantes de ordens, e muitos outros officiaes..

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posição. Havia sido sempre a opinião de Sal- danha , que se devia começar pelo norte, pois que ali tínhamos uma grande base de operações , que era o Porto , e com a qual ellas se podião muito bem adiantar. Em consequência d'isto se lhe ordenou que for- masse o seu plano , e o executasse. Assim elle o fez e começou a executar cahindo ra- pidamente sobre Leiria, tomando-a ; e vol- tando depois sobre Torres-Novas e Pernes , onde teve as duas brilhantes acções , que mencionei. Aqui porém principiarão as intri- gas , movidas pelos ciúmes que a não inter- rompida gloria do conde causava , e que se julgou necessário interromper quanto fosse possível. Logo na mesma occasião do com- bate de Pernes, e ainda dous ou três dias de- pois d'elle , constou que o marechal Salda- nha tinha insinuado ao duque da Terceira , que commandava a direita , atacasse vigoro- samente Santarém , pois que as principaes forças, que a defendião, estavão fora dos seus intrincheiramentos. Não se assentio a esta in- sinuação, e dêo-se por motivo, que D. Pedro o não consentira ; e por este modo se perdeo talvez a occasião de entrar na villa. Mas is- so era ainda o principio do plano que se projectava pôr em execução contra o conde, porque para a sua melhor execução se inven- tou uma diversão de forças , para o sul do Tejo, de que havia de ser commandante o duque da Terceira. O caso he que elle accei-

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tou este commando, e que immediatamente se cuidou em arranjar a divisão que devia commandar. Para se realisar este projecto re- cebeo Saldanha ordem, quando menos o espe- rava , para largar as posições de Torres-No- vas e de Pernes , e vir tomar as que antes tinha no Cartaxo, e suas immediaçóes. Era, portanto, bem natural, que tal deliberação fortemente o escandalizasse , o que assim a- conteceo; porque esta medida imprudente e perigosa não hia destruir todos os seus planos militares , porém hia meter debaixo do cutelo da usurpação os habitantes das duas povoações que de tão boamente se tinhão liga- do comnosco. E quem haveria depois d'esta espécie de perfídia que do coração quizesse auxiliar a nossa causa, vendo que assim tra- távamos os que abertamente se declaravão por nossos amigos? Além disto, aquella re- solução era toda em favor do inimigo , que estava como sitiado em Santarém ; porque í>e lhe abrião as portas de uma livre communica- ção com o norte ; e nisto mostrava o minis- tério que seus intentos erão prolongar a guer- ra , fosse como fosse , para prolongar o po- der. Apesar d'isto, o marechal obedeceo con- tra a vontade de todo o exercito, que na reti- rada bem mostrou o desgosto com que a fazia. Mas nem por isso deixou então de se vigo- rosamente queixar a D. Pedro , e ao minis- tro da guerra, pedindo a sua dimissão, eo retirar-se do exercito. Então começou o mi- Tom. IV. T

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mistério a ver o máo passo que tinha dada, e maiormente quando aos ouvidos lhe chegou a noticia da gloriosa batalha de Almoster. Sim, então conheceo que contra a felicidade c intelligencia do general não podia 1 u c t n r com vantagem ; e até O duque da Terceira declarou logo , que se não encarregava da projectada expedição.

O ministério, como visse a muita razão com que o general sedava por offendido, re- correo á táctica de o entreter com boas pa- lavras , particularmente porque lhe constou o desgosto do exercito, e o que este pode- jia fazer para se desaggravar, e ao seu tão es- timado e feliz commandante. Servio-lhe tam- bém de muito o achar-se nesse tempo D, Pedro doente, ou fingir que o estava ; por- que com este pretexto o ministro da guerra respondeo a Saldanha, que não convinha ag- gravar mais a moléstia de S. M. I. , annun- ciando-lhe cousas desagradáveis ; e que em pouco tempo tudo se arranjaria conforme os seus desejos. Assim se foi passando o tem- po ; e como sempre acontece nas grandes paixões, as do marechal se fôrão mitigando, que era o que o ministério pertendia. Com- tudo , ainda que Saldanha não desistisse em se dimittir do commando, insistia em vir a Lisboa , pretextando negócios de fomilia. Isto mesmo assustou o ministério, que sabia o máo effeito que tinha produzido no publico á pouca consideração que se havia tido com

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o general victorioso; e em consequência d'- isro temia que a presença d'elle na capital fosse a sua sentença de morte. E com efFei- to se n'esse tempo elle tivesse apparecido, e presenceasse a recepção que lhe estava preparada , talvez que a sua natural irresolu- ção politica cobrasse energia; que o mesmo D. Pedro receasse sustentar por mais tempo o seu ministério; e uma nova administração se formasse. Mas este golpe prevenio elle ainda , procurando fazer vêr ao general que se hia pôr em perigo a causa publica com a sua ausência , bem que temporária, do exer- cito, visto que se começava a espalhar a no- ticia de que das províncias do norte tinhão os rebeldes destacado uma força considerá- vel para se vir juntar á que occupava Santa- rém. Estas considerações, de que a politica ministerial se sérvio para diminuir , ou pelo menos adiar a tempestade que temia, produ- zirão o eíFeito que se desejava, porque o Sal- danha não veio a Lisboa ; e n'este ficarão os negócios políticos e militares d'este mez de fevereiro.

Por um mui sensível desgosto passou nesta mesma épocha a igreja Lusitana, por- que pegou fogo na casa do reverendo padre Marcos , a quem o conde da Taipa chama- va o Papa-Marcos. Exaggerarão-se as perdas litterarias e de fazenda que a igreja e o pre- lado tinhão soffrido neste incêndio ; mas D. Pedro consolou o povo e a igreja, mandàn-

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do-lhe dar do thesouro publico, por seu mch tu próprio, e por um decreto a quantia de seiscentos mil réis. Não constava que nenhum dono de casa queimada tivesse ainda recebi- do tão distincto favor de nossos graciosos so- beranos.

Também por este mesmo tempo se re- formarão as alfandegas no que se chama o seu pessoal. Mas foi voz geral que nunca a to- lerância ministerial se fizera admirar tanto co- mo n'este recrutamento verdadeiramente pa- norâmico. Homens de todas as classes, de to- das as cores , porém de uma feição , isto he, homens votados do coração á politica do tempo, compozerão, segundo então se dis- se , toda esta nova galeria de empregados. Os que todavia n'ella mais brilharão, segun- do também a voz publica , fôrão alguns in- signes Miguelistas ; de um dos quaes , com especialidade, se contava, que tinha sido no reinado do feroz D. Miguel um daquelles que sempre fora constante em pagar uma boa, e escolhida companhia de caceteiros. Era is- to o que se dizia ; e eu escrevo o que ouvi repetir a muita gente, sem affírmar, nem ne- gar o que ouvi.

No principio de março se recebei ão no- ticias muito agradáveis do Algarve. Governa- va ali o brigadeiro Cabreira, havia pouco crea- do barão de Faro ; mas este official , que ta- manha energia tinha desenvolvido na ilha TeF- ceira, quando nella desembarcou quasi só?

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e com tanto brio a defendeo, parecia não ser o mesmo homem, e nada grande nem glo- rioso tinha feito n'este governo. Dizia-se, que tendo casado rico, o casamento lhe abafara os brios antigos ; qualquer que fosse porém o motivo , a verdade he , que a sua estada no Algarve cousa nenhuma de fama tinha pro- duzido, e elle se conservava sempre encer- rado em Faro, sem que tivesse emprendido operação que lhe desse nome , ou pelo me- nos lhe sustentasse o antigo. O barão , de- pois visconde de da Bandeira , pelo con- trario, tanto que desembarcou, e chegou a Faro no dia 22, immediatamente sahio dali, marchou sobre Tavira , onde tomou grande quantidade de munições ; e depois passou a Villa-Real, e Castromarim , limpando tudo o que na sua marcha encontrou, e dando as- sim uma vigorosa lição ao inimigo com mui- to credito do seu novo governo.

Por este mesmo tempo nos chegarão no- ticias do Rio de Janeiro com data de 18 de dezembro do anno passado, pelas quaes sou- bemos a revolução que ali tinha havido em consequência das intrigas que os fautores da restauração ) ou os adherentes ao partido de D. Pedro não cessavão de manejar não em prejuízo do socego publico, porém da mesmo partido que pertendião fortificar. Era tamanha a indisposição que a maior parte dos Brazileiros conservava contra D. Pedro, que a simples desconfiança de que um retrato ex-

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posto em uma illuminação, representava a sua figura, bastou para formar uma commo- çao popular, e excitar grandes desordens. Um dos resultados foi tirar-se a José Bonifácio de Andrade (0) a tutoria do joven imperador; e a expulsão de muitos Portuguezes, que erão fortemente suspeitos de entrarem na conjura- ção para restaurar o império a D. Pedro. El- le com efFeito passou por grandes desgostos tanto no Brazil como em Portugal , porém foi a pena de um grande peccado : era o pec- cado de Nero; tinha rasgado o ventre de sua mai : í a pátria (p).

No Porto houve n'este mez um feliz a- contecimento, que foi o poder esta nobre cidade constituir-se municipalmente. antes disse quacs fôrão os motivos que obrigarão a dissolver a commissão municipal , illegal- mente creada pelo ministério de D. Pedro ; agora direi como se passou á eleição popular da legitima camará, e em que pessoas ella re- cahio. Fôrão todos os eleitos pessoas eminen- temente distinctas por sua probidade politi- ca, e receberão esta honra por um avultadís- simo numero de votos. Apontarei os seus no- mes por serem dos primeiros que apparecê- rão, por assim dizer, n'esta aurora da nos- sa restauração politica ; e fôrão elles os se-

(<0 Foi cousa sabida , que seu irmão António Carlos de .AndraHe aqui estivera por e*se tempo em Lisboa , e tive- ía conferencias occuhas com D. Pedro.

(/O Concorrendo ífficazmcnte paia ?. separação do Brazil.

guintes. José da Silva Passos, presidente: João Manuel Teixeira de Carvalho , fiscal : José Plácido Campean : João José Coelho : Joaquim Veloso da Cruz : José Alvares Pin- to Villar : José Maria Brandão de Mello : Leonel Tavares Cabral : Francisco da Rocha Soares. Foi no dia 4 de março que pelo a- puramento das listas se veio no conhecimen- to dos quehaviao alcançado a maioria devo- tos ; e como era exactamente o dia que fa- zia o anniversario da primeira victoria da conde de Saldanha no anno antecedente, de-» fendendo o redueto que havia formado em frente do inimigo, foi elle também o dia de uma brilhante festa civica, dada em comme- moração dos acontecimentos passados e pre- sentes. Houve um grande jantar patriótico , dado pela officialidade da divisão do exerci- to que defendia o Porto ; e á noite houve theatro , no qual se expòz o retrato do Sal- danha , se cantou o hymno que tinha o seu nome , e se derão vivas ao vencedor do dia 4 demarco do anno antecedente. A nova ca- mará municipal se constituio, e dêo juramen- to no dia 12, publicando n*essa mesma data uma proclamação com que muito se honrou peia exposição franca e leal dos princípios políticos que pertendia seguir em todo o tempo da sua popular administração.

Não parou o caso no que referi á- cêrea do general Polaco Bem : a perseguição foi mais adiante. Tornou elle no dia 4 d'es-

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te mez a exigir resposta do ministro em uma carta , que princiava da forma seguinte : 5, Decididamente não são os homens de ,, bem do vosso paiz, nem os homens des- tado dos paizes constitucionaes que vós tendes tomado por modelo....,,: a res- posta que porém teve, e lhe foi communi- cada pelo prefeito da Estremadura no dia 7 , limitou-se a ordenar-lhe , que sahisse de Lisboa no seguinte e próximo paquete. Co- mo em todos estes procedimentos se invoca- va o nome de D. Pedro, escreveo-lhe o ge- neral no dia 8, dizendo-lhe em summa: •„ que achando-se em Portugal em virtude de uma nomeação, assim como de uma conven- ção, assignada por elle mesmo D. Pedro, exigia que se lhe desse a sua dimissão, se lhe ajustassem as suas contas , e se lhe des- se passaporte , não para Inglaterra , onde nada tinha que fazer , porém para o Egy- pto ; e que então, passada uma hora, não estaria em Lisboa. Parecia que nada havia tão racionavel como esta supplica , porém a resposta que ainda teve foi mandarem-no pren- der em sua própria casa no dia 1 1, e isto com um apparato escandaloso ; porque na rua e á sua porta se postarão tropas como se esta di- ligencia fosse feita para prender um grande malfeitor. O general, ao ver o que se pas- sava, consta que, fazendo rapidamente o seu testamento , e vestindo-se competentemente com o melhor que tinha , se sentara junto

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de uma mesa, onde depositou duns pistolas, tendo ao mesmo tempo a seu lado a sua es- pada ; e depois disse aos que trazião ordem para o prender que cumprissem com ella, se para isso tinhao resolução. Ninguém se a- treveo a pôr-lhe a mão, quer fosse pelo res- peito que lhe inspirou o general , quer pelo receio de perder a vida; en'esta situação se conservou por muito tempo, até que intervin- do indirectamente algumas personagens es- trangeiras, todo aquelle apparato bellico se lhe tirou de casa. Foi depois voz constante, que elle mesmo se offerecêra para se ir meter na prisão da torre de Belém até que , justas as suas contas, podesse embarcar. Este aconte- cimento muito escandalisou a todos , não pelo ridículo, mas pelo ódio que fez cahir sobre o ministério; ódio aggravado.com o descrédito. Este acto praticado contra qual- quer outro individuo seria sempre bárbaro ; porém executado contra um emigrado, e um emigrado Polaco, sem pátria, e até sem go- verno próprio , d'onde podesse esperar pro- tecção , e ao mesmo tempo em virtude de ordens passadas por homens, que igualmen- te tinhão sentido as amarguras de uma emi- gração , pareceo , com effeito , horroroso e atroz.

A commissão municipal de Lisboa, ape- sar de não ser uma verdadeira representação dos habitantes da cidade , e apenas um dos instrumentos do governo, ainda teve entre si

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quem ousasse representar a esse mesmo go- verno um dos abusos da sua authoridade , e e abuso, que trouxe comsigo grandes prejuí- zos, e que era um eíFeito palpável de espe- culações criminosas. Havendo immensa quan- tidade de cereaes nos Açores , dVmde facil- mente podião vir , e assim beneficiar-se a a- gricultura d^quella interessante parte do ter- ritório Portuguez , passou o ministério uma ordem, com data de $ de fevereiro passado, para se poderem receber desde o primeiro do actual mez de março dos paizes estrangei- ros qiiatorze mil moios de trigo, e quatro mil de milho. Não erão porém ainda passados quinze dias, e pela barra dentro do Tejo, isto he, nos dias 19, 21, e 23, estavao entrando oito navios carregados de trigo, vin- dos de Hamburgo, e da Itália, e todos con- signados só a três ou quatro pessoas conhe- cidas ! Não ficou, portanto, duvida alguma de que esta entrada estava depois de mui- to tempo arranjada ; e de que este monopó- lio era obra de combinações anteriores. Com esta medida, realmente escancalosa, se fez um grande mal á nação, impedindo que os cereaes Portuguezes tivessem o consumo que devião ter ; e ao mesmo tempo notável pre- juizo se fez aos negociantes de boa fé, que, suppondo, como devião, que no governo ha- via moralidade, flzerão as suas encommendas passado o dia 5: de fevereiro, sem poderem suspeitar que no dia 19 do mesmo mez havião

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de ver começar a entrar, em tamanha quanti- dade, os mesmos géneros, que no principio de março podião ser admittidos ! Mas o go- verno, protegido pelo seu chefe, era superior a tudo o que delle a nação e o mundo podes- sem ajuizar. Em carta vinda de Londres, com data de y deste mez demarco, //' eu, que ha- via já muito que d'ali se tinhão mandado or- dens e dinheiro para em diversas partes se com- prarem trigos para Lisboa : prova, sem repli- ca, de que o decreto, que authorisava a entrada dos cereaes , era obra de especulações ante- riores.

Se os actos ministeriaes , que tenho re- ferido, causarão desalento e desgosto, o que se segue causou mofa, e rizo. Teve aites o ministério para fazer com que D. Pedro desse uma commenda ao Inglez mr. Noble. He verdade que elle estava fazendo n'aquel- le tempo, segundo diziao , um grande ser- viço em Londres , isto he , dava preciosos artigos para a gazetta o Courier , que ^es- sa épocha , como notei , estava em boa harmonia com a actual administração; porém era elle o mesmo homem que, sendo cônsul Britânico no Porto no anno 1826, quando se jurou a carta, fez ali todas as diligencias, e empregou quantas astúcias sabia , para des- viar da camará dos deputados a todos os ho- mens , chamados do anno 20, alcunhando-os de republicanos. E para melhor conseguir os seus fins ameaçava os eleitores com a influen-

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cia e preponderância de sir William A 'Court, então omnipotente embaixador Inglez em Lisboa , o qual regeitava , por sua omnipo- tência, para deputados todos os indivíduos que tinhão politicamente figurado naquella épocha. Assim mesmo três ministros (#), en- tão reprovados por elle , um como regenera- dor^ e dous como deputados, erao agora tão condescendentes, que concorrerão para se lhe dar aquelle premio ! Em verdade tanta con- descendência, tanto esquecimento do passa- do fazião rir , e ao mesmo passo lamentar a fragilidade das virtudes politicas. Também por este tempo a opinião publica fazia áspe- ras censuras ao governo pelos onerosos con- tractos, com que favorecia certos amigos pa- ra o fornecimento do exercito; porém então o que se pertendia era recrutar gente que for- tificasse o poder nas mãos que o dirigião; e os grandes lucros , que a essa gente se da- vão , erão os laços douro com que ella se prendia.

A nova camará municipal do Porto, fiel aos seus princípios politicos , começou a sua administração pelo acto solemne de acclamar a Rainha ; e passou logo a fazer algumas re- presentações ao governo , todas próprias de homens verdadeiramente liberaes, e dignos da escolha que a nobre cidade d'elles tinha feito. Entre outras fôrão ellas-^i.° pedir a

(y) Erâo elles José da Silva Carvalho \ Agostinho José Freire , e Margiochi.

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liberdade da imprensa, como único meio pa- ra livremente se lhe exporem as necessida- des publicas : 2.0 a isenção de aboletamen- tos para a cidade: 3.0 um novo juizo para decidir das indemnisações, fundada no gran- de principio constitucional , que a um corpo meramente administrativo não competia a authoridade judicial. As respostas que se dé- rão a tão justas representações, fôrão insultos e injurias pessoaes aos indivíduos que com- punhão a camará municipal j e estes ataques ou insultos, ao passo que se negava a liber- dade de imprensa, fôrão assoalhados na Cbro- nica, gazetta do governo, e na Revista, pa- pel auxiliar para o desafogo do mesmo go- verno.

Entre os actos desairosos , com que a administração diariamente perdia credito e bom nome , continuaváo as nossas armas a brilhar, sempre invencíveis, sempre dignas da liberdade que defendião. O almirante Na- -pier , vendo as irresoluções do governo, i- maginou uma expedição toda sua , e o re- sultado d'ella foi o mais feliz. Tomou Ca- minha ; o forte da Insua ; a praça de Va- lença; e dirigindo-se depois a Vianna se apo- derou igualmente desta villa, que immedia- tamente arrastou a si a adhesão de Ponte-do- Lima; Barca; Arcos de Val-de-Vez , e ou- tras mais da província do Minho. No emtan- to, como no Porto se soubessem os felizes princípios d'esta atrevida expedição , bem

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que o commandante Torres se mostrasse in- deciso por não ter ordens de Lisboa , tão forte e decidida foi a manifestação dos de- sejos do exercito e do povo da cidade, que elle lhes não pôde resistir, e sahio com ef- feito a distrahir as forças do inimigo , e a auxiliar os movimentos de Napier (r). Di- rigio-se sobre Sancto-Tirso onde encontrou os rebeldes , e ali e na Lixa os derrotou completamente ; de sorte que parte d'elles se escapou pelo lado de Braga para Carvalho d'Este , e outra tomou o caminho de Ama- rante , passando-se para além do Tâmega. O resultado desta tão opportuna operação foi a posse de Guimarães, Braga, Barcellos, Pennafíel , e de todas as outras povoações importantes da provinda, que ficou de todo limpa de inimigos.

Ao passo que isto assim acontecia pelo lado militar também a politica e a diploma- cia não estavão ociosas. O governo Hespa- nhol, vendo-se forçado a conservar uma gran- força sobre a nossa fronteira para vigiar os movimentos do exercito rebelde composto de Miguelistas e Garlistas , que occupava Santarém, e força que lhe fazia muita falta no interior para surfbcar as diversas insurrei- ções que se manifestavão em muitas provin- das, offereceo-se para fazer entrar duas co- lumnas das suas tropas pela Beira-Baixa e A-

(r) Por estas brilhantes acções foi pouco depois nomea- do conde.

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lemtejo, afim de concorrerem para a expulsão do inimigo commum. Não sendo porém is* to conforme com a politica Ingleza, que em nossos negócios quer ella ter uma influen- cia privativa, lembrou-se, para impedir, ou pelo menos retardar, a interferência Hespa- nhola, de propor como preliminar que se fi- zessem algumas proposições a D. Miguel , e ao seu partido , porque no caso de serem acceitas tornaria desnecessária a cooperação armada de Hespanha, Concordou-se, portan- to, em uma espécie de amnistia geral, e em certa somma vitalícia que se devia oíFerecer a D. Miguel ; e com estas propostas partio para o Cartaxo, onde estava o quarteKgene* ral do nosso exercito, o ministro Inglez lord Howard de Waldem. Houve com eíFeito al- gumas conferencias e communicações entre ambas as partes , porém d'ellas nenhum de- cidido resultado se tirou ; porque D. Miguel e o seu partido não acceitárão nenhuma das oíFertas que lhes fizerão, e se romperão as negociações.

Entretanto a imprensa Ingleza , que a- poiava o ministério de D. Pedro, se mostra- va tão descaradamente indecente e grosseira que até ousou , com atrevimento inaudito , macular a innocencia, e a virtuosa juventude da Rainha 1 No Courier Inglez do dia 15 d'- este mez de março , folha que passava por estar estipendiada pelo governo Portuguez j e em outra da mesma data, intitulada o Sun,

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appareceo um escandalosíssimo artigo , e de tal natureza , que até fez baixar na praça os nossos fundos. Foi esta atrocidade moral (j) tão horrorosa, e infame, que parecia impos- sível haver mão, a não ser Ingleza , que a podesse escrever, e publicar! O que mais he, foi haver em Londres empregados do go- verno em nome da Rainha de Portugal , e não haver um só, que mandasse logo desmen- tir tão horrorosa calumnia ! Foi preciso que um banido e insultado pelo governo de D. Pedro, o honrado coronel Rodrigo Pinto Pi- zarro, tomasse a defeza da sua Rainha, e o- bngasse a calumnia a desdizer-se ! Este Por- tuguez, que estava destinado para ainda fazer muito bons serviços, bem que curtos, á sua pátria (t) tomou a seu cargo obrigar a gazetta o Sun , a desdizer-se; o que eila fez na sua folha do dia 17 seguinte, dizen- do; „ que n'esse dia se havião completamen- te dissipado, como merecião, todos os boa- j, tos espalhados contra a Rainha ; e que bem mostravão tei sido espalhados por pes- soas, que, á custa da honra d^lla, per- J5 tendião advogar interesses particulares. O ministério, querendo ver se se podia

(j) Foi de uma tal estúpida torpeza a calumnia , que não me atrevo a nomeá-la. Quem tiver curiosidade de o saber consulte as gazettas do tempo.

(í) ftlorreo com o titulo de Barão da Ribeira de Sabro- sa repentinamente no anno de 1841, depois deter sido mi- nistro, e secretario d'estado da guerra, e negócios estran- geiros.

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acreditar com o publico, hia de vez em quan- do lançando ao povo uma espécie òemissau° ga, com o titulo de leis, para o distrahir e adormecer. Uma d'eilas foi a lei do porto~ franco, que na realidade seria de grande im- portância, e summo interesse se, para a exe- cutar, se procurassem homens de probidade, e não afilhados ; porque sem esta condição longe de ser um bem , ou um benefício pu- blico, era abrir as portas a toda a fraude, e ao mais ruinoso contrabando. Outra, que ap- pareceo no mez seguinte, foi alei das guardas iiaciouaes , que não passou de um nome sem significação, ou foi uma d'essas t aboletas que cada uma das secretarias d estado punha ásua porta , e com que procurava ganhar popula- ridade. E tanto era isto uma mera formalida- de, que ao mesmo passo que promulgava taes leis feria de morte o credito publico , como aconteceo com o decreto d'este mez pelo qual abolio a junta dos juros, incorporando-a na repartição que elle denominava thesouro. Abstractamente considerada esta providencia parecia muito justa por centralisar toda a ad- ministração de fazenda em um ponto ; mas na pratica era uma verdadeira violação da publica. Sendo um facto notório que o erá- rio estava em um estado de verdadeira falên- cia, porque quando se não pôde pagar a quem se deve , e no tempo aprazado , ha u- ma indisputável quebra de credito ; e para que os credores dp estado podessem ter mais Tom. IV. v

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confiança no governo havia-se creado a junta dos juros, afim de que , separadamente do thesouro, fosse ella administradora de todos os fundos , e rendas applicadas á divida pu- blica. Em uma palavra, a junta dos juros ha- via sido creada para ser a depositaria e admi- nistradora das hypothecas que se havião da- do aos credores do estado; e elles havião ac- ceitado, com muita boa vontade e até satis- fação , esta nova garantia dos seus créditos. Havia a mesma junta fielmente correspondido aos fins da sua creação, e os credores do es- tado estavão completamente satisfeitos com cila , porque os seus pagamentos havião sido regulares , até nos tempos desgraçados da u- surpação , que , não respeitando cousa algu- ma, só aquelle estabelecimento tinha respei- tado. No que se não atrevera pois a tocar a usurpação atreveo-se o ministério da legitimi- dade, porque por um rasgo de penna dissolveo a junta, chamou seus fundos ao thesouro , e parou com os pagamentos, espoliando assim os credores das hypothecas que privativamente lhes estavão destinadas, e constituindo-se as- sim depositário, e devedor contra o que legal* mente estava determinado. Se ao menos , commettendo este acto de infidelidade, o the- souro continuasse a pagar tão regularmente co- mo ajunta, alguma desculpa poderia ter o mi- nistro, ou o ministério; porém arrojando-se a ^&ie para fazer mais notável a sua falência, foi esse um acto de uma consumada demência.

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A camará municipal de Lisboa tomou por este tempo posse do seu emprego , ao mesmo passo que a do Porto estava briosa e legalmente resistindo a todas as prepotências do prefeito Gonçalves de Miranda, e apresen- tava ao ministério uma coragem civica , di- gna da heróica cidade que ella representava. Um dos grandes attentados do prefeito foi a ordem que dêo para arrancar e lacerar os e- ditaes da acclamação da Rainha que a cama- rá mandara affixar nos logares públicos da mesma cidade; e este attentado pôz adescu- berto toda a politica do systema de que elle era órgão. Em verdade quando uma gazetta Ingleza, notada por estar a soldo do thesou- ro Portuguez, procurava tão atrozmente man- char a innocencia juvenil da Rainha, e ap- parecia no Porto um prefeito que mandava arrancar e lacerar o auto da sua acclamação, quem he que podia impedir que se não fizes- sem funestos juizos sobre estes factos?

As vantagens militares que começa'mos a ter no antecedente mez de março , conti- nuarão sem interrupção no mez seguinte de abril. O duque da Terceira , que havia hido tomar o commando do exercito do Porto, pas- sou o Tâmega no dia n deste mez de abril, e nesse mesmo dia foi prenoitar á Regoa, levando diante de si em debandada o resto das forças inimigas, que havião escapado dos ataques do Minho. No dia 13 entrou em Villa Real, e durante a sua marcha, em am-

v g

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bàs as margens do Douro , fôrão as terras principaes espontaneamente fazendo as accla- maçóes da carta e da Rainha. Em Lamego se fez ella estando ainda o duque na Regoa, <|ue mandou logo para aquella cidade o i.° batalhão movei , que fez arredar para longe os rebeldes que até ali a oceupavão. Estes, tor- f emente atacados na província de Traz- dos- montes, fôrão afinal forçados a passar o Dou- ro, e lançar-se na Beira, derrotados e per- seguidos. Entre as personagens , que se vie- ião apresentar ao duque , as mais notáveis fôrão João da Silveira de Lacerda, e o Vis- conde de Sancta Marta que, depois de ter por algum tempo commandado o exercito de D. Miguel, que sitiava o Porto, se achava ago- ra , como em desterro, na província. O du- que entrou em Lamego no dia 22, d'onde of- icialmente participou a restauração da praça de Almeida , que, pelo esforço dos presos, que n ella havia em numero de mil e tantos, e pela impressão que em seus carcereiros ali tinhão feito as nossas victorias no Minho, Traz-dos montes, e Beira, pôde romper suas cadeias, e arvorar a nossa bandeira.

Não foi tão feliz em suas operações o commandante e governador do Algarve, Sd âa Bandeira \ porque tendo-se adiantado tal- vez mais do que era prudente, se vio por fim, depois de ter passado ao Alemtejo, obri- gado a precipitadamente retirar-se com per- das consideráveis , e grandes sacrifícios das

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povoações em que havia entrado , fazendo» com que se declarassem a favor da carta e da Rainha , sem ter meios de as defender. No em tanto- que as operações milita- res marchavão da maneira que fica dito, e sempre com progressiva vantagem em nosso favor , nem por isso o ministério por seus actos adquiria maior fama. Na Chronica do governo do dia 8 deste mez de abril , pa- peei que era tido por absolutamente ministe- rial , appareceo uma violenta accusação con- tra o duque de Palmella, como extrahida das folhas Inglezas, em que era voz publica que o governo de D. Pedro influía. Mas a ver- gonha , se a houve, foi igual ao forte insulta com que se atacou o duque ; porque no mes* mo dia o governo se vio forçado a supprimir a folha da Chronica em que se publicara o Ur bello, e a mandar publicar outra, com a mes- ma data, em que se confessava a calumnia 9 e se dava a dito por não dito. E não ficou ainda aqui a recuperação que exigio o duque, porque ainda também obrigou o governo a mandar desmentir , pela segunda vez , a ca» lumnia quatro dias depois na mesma Chroni- ca do dia 12, dia, em que ordinariamente se costumava fechar a mala para Inglaterra. Assim se desaggravou elle do insulto que se lhe fez, e o ministério passou por baixo das forcas candinas , sem ousar fazer a menor re- sistência. Era o duque n'aquelle artigo com especialidade, accusado de ter aconselhado E>.

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Pedro a annullar a sua abdicação ; e declarar- sc rei absoluto ; porém esta accusação perten- cia muito melhor aaquelles que em Londres tinhão aconselhado o mesmo duque a que não duvidasse prometter o sacrifício da carta para mais facilmente podermos voltar a Por- tugal. Não se limitavão , comtudo , os ata- ques, feitos nas gazettas estrangeiras , á pes- soa dePalmella; também contra oauthor d'- estes Annaes se mandava escrever em Lon- dres^); porque ali foi accusado deter escri- pto o seu Ensaio Histórico Politico, em que des- mascarava a politica Ingleza , e mostrava os grandes prejuízos que a sua influencia em todos os tempos nos tinha causado. Por este modo até um grande serviço publico, feito á nação, era denunciado a nossos próprios oppressores por homens que se chamavão Portuguezes ! Nesta épocha quem resistia a todos os ataques da inveja ou da calumnia, e marcha- va sempre, como vulgarmente se diz, com vento em popa, era o reverendo padre Mar- cos. D. Pedro e seus amigos o nomearão ar- cebispo de Lacedemonia, e fízerão que, cuber» to com toda a purpura archiepiscopal , fosse também nomeado pelo patriarcha vigário ge- ral do arcebispado de Lisboa. Queria-se ele- var o homem bem alto, talvez na idéa de, em tempo, de bem alto o despenharem ! (#)

(v) No Morning Herald, e creio no do primeiro d'abriJ cTe>te anno.

(») Com effeito seus mesmos amigos fòrão os que lba

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Por este mesmo tempo o general Polaco 2?£»/, de quem fallei , e que se achava preso na Torre de Belém , foi mandado sahir para In- glaterra, usando-se com elleoque se faz com os homens a quem se não quer fazer justiça, isto he, punindo-os sem processo nem sen- tença , como se punem os innocentes.

A nova camará municipal do Porto da- va grandes cuidados ao governo, e por isso se procuravao todos os pretextos para a dis- solver. Receava-se comtudo o bom eíFeito d'* esta operação pela grande confiança que o povo tinha nella j e em consequência disto íizerão-se de antemão preparativos para que a medida projectada encontrasse as menores contradicçóes possiveis. Uma das medidas que logo se tomou foi mudar o general das ar- mas Pedro Canavarro, homem de honrados c armes sentimentos políticos. As operações militares, e, em consequência d'ellas , a au- sência de muitos batalhões de voluntários de- rão igualmente uma opportunidade mui favo- rável para estes intentos, porque sendo elles em grande parte votantes, como cidadãos que erão , e achando-se agora ausentes, podia o ministério, com menos risco, mandar proce- der a uma nova eleição. Esta opportunidade aproveitou elle , e por um decreto de 14 d-

despíráo a purpura, por assim dizer, no meio da rua; a o arcebispo ficou comente Marcos como d'aotes ! Assim pisúo as grandezas do inundo !

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este mez de abril, assignado por Joaquim António de Aguiar, dissolveo a nova cama- rá constitucional do Porto , sem dar razões nem motivos para isso, fundando-se simples- mente em uma lei provisória, publicada nas ilhas. A camará , sem disputar a legalidade do decreto que a dissolvia, e entregando to- da a decisão deste negocio ao bom senso e patriotismo dos seus concidadãos, dimittio-se sem difficuldade.

Uma circumstancia particular, excitada perante D. Pedro pelo bacharel José Joaquim dos Reis, fez com que n'este mez houvesse uma modificação ministerial. Assim no dia 23 largou José da Silva Carvalho a secretaria da justiça ; para ella passou o ministro do reino Aguiar; e para a d'este foi nomeado o pre- feito da Estremadura, Bento Pereira do Car- mo. Em nada se alterou com esta mudança o systema politico do governo , porém no conceito do publico muito melhorou o syste- tema administrativo. Pereira do Carmo, bem cjue não fosse homem capaz de alterar a po- litica ministerial de seus collegas, era ho- mem honrado, e havia sido uma das victimas da tyrannia de Telles Jordão nas prisões da torre de S. Julião. A secretaria das justiças também ganhou alguma cousa na mudança j porque Aguiar, bem que não agradasse por sua politica actual, agradava pela reputação que tinha de integridade. Outra lei com que n'este tempo se quiz acreditar o ministério

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foi a que reduzio os direitos de todas as fa- zendas estrangeiras a 15 por cento , direito que até ali pagavão as Inglezas. Mas isto attribuio-se a alguns arrufos que havia com o gabinete Britânico , porque elle era lesa- do, perdendo este exclusivo ; e pouca ou ne- nhuma utilidade tirava a fazenda publica d'- esta medida.

Neste mez se resolveo uma grande ques- tão politica, que nos foi muito favorável, e consolidou os nossos negócios. A rainha re- gente de Hespanha, depois de haver forma- do um novo ministério de individuos , anti- gos martyres da liberdade , promulgou o cé- lebre statuto real , com data de 10 de abril para o chamamento e organisação futura de uma representação nacional. Ao mesmo tem- po , como a situação politica de ambos os reinos era idêntica, porque n'elles havia dous príncipes usurpadores dos direitos das suas sobrinhas, D. Isabel II. de Hespanha, e D.- Maria II. de Portugal, tomou também o go- verno Hespanhol a resolução final de reco- nhecer a nossa Rainha ; o que fez perder to- das as esperanças não a D. Miguel , mas a D. Carlos, o príncipe Hespanhol, que, de união com o nosso , estava fomentando a a guerra civil em ambos os reinos da Penín- sula. Com este acto, approvado pelas duas nações, a Inglaterra, e a França, se dêo por- tanto, o golpe decisivo na usurpação tanto Portuguçza como Hespanhola ? porque d'el-

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le se seguio também logo a convenção poli» tica, ou tratado, para o mutuo auxilio que os dous governos se obrigarão a prestar-se para a commum utilidade, e commum pacificaçãa de ambas as nações. Em o nosso governo interno não havia alteração, mas a força das cousas, mais poderosa do que a dos homens, começava a apressar os grandes acontecimen- tos militares que no seguinte mez de maio coroarão a nossa constância , e o valor sem- pre invencível dos nossos soldados que de- fendião a liberdade.

Finalmente chegou o mez de maio, e n'elle se resolveo o grande problema da u- surpação. O duque da Terceira entrou victo- rioso em Coimbra no dia 8 d'este mez, e o almirante Napier n'esse mesmo dia entrou na villa da Figueira da foz. No dia 16 achou-se o duque com a sua divisão perto de Thomar em um logar , denominado Asseiceira , onde se achavão postadas as tropas rebeldes , que se tinhão escapado das provincias do norte, e algumas sahidas de Santarém. O duque as atacou ; e , depois de lhes fazer perder a forte posição que occupavão as pôz em tão completa debandada , que perderão mais de mil e quatrocentos prisioneiros ; sessenta e quatro officiaes \ oito peças de artilharia ; qua- tro bandeiras; e uma grande quantidade de munições, além da perda em mortos, que foi muito grande. Ao mesmo tempo Napier obrigava a guarnição de Ourem, composta de

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novecentos homens, a entregar-se á divisão com que tinha desembarcado na Figueira, re- forçada depois com mais alguma gente, que ao todo constava de 1400 a i^oo homens. Estas duas perdas , quasi simultâneas, atter- rárão por tal modo os rebeldes, que ainda oc- cupavão Santarém , ultimo ponto que lhes prolongava a existência , que , cortados de medo, e perdidas todas as esperanças, lar- garão esta sua fortissima posição na madru- gada do dia 18. Seguio-se então a este mo- vimento uma desorganisação geral, porque cm consequência delle perderão toda a for- ça moral ; e a fysica cada dia se lhes come- çou a diminuir pelas constantes e numerosas deserções. A noticia da sahida de Santarém lhes fez perder logo Abrantes, ameaçada pe- las forças Hespanholas que descião da Beira- Baixa. Como tomassem o caminho de Alemte- jo , o nosso exercito, composto de duas for- tes divisões, commandada a primeira , a da esquerda , pelo duque da Terceira ; e a se- gunda , a da direita, pelo conde de Salda- nha , atravesssou logo o Tejo , e correo so- bre elles não para lhes cortar a estrada dV Elvas, mas para os separar das costas do mar, e os meter entre as duas forças combinadas, de que os dous marechaes tinhão o cominan- do. Confusos os rebeldes com esta manobra, fôrao meter-se em Évora , onde encontrarão a sua sepultura politica; porque logo no dia 14 se virão obrigados a pedir um armistício

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ao marechal Saldanha, que, pela estrada de Monte-Mor e Arrayolos, estava a ponto de cahir sobre elles, que pela frente tam- bém tinhão o duque da Terceira. Foi-lhes re< cusado o armistício ; e neste apuro se lança- rão emfim nas mãos do mesmo marechal no dia 26 , em que o general Guedes lhe veio participar, que as relíquias do exercito do usurpador se entregavão á generosidade dos vencedores ; e que o mesmo usurpador pe- dia licença para se embarcar em Sines em um navio Inglez.

N'este mesmo dia se assignárão então em Évora entre os dous marechaes Terceira, e Saldanha , que para isso estavão authorisa- dos , os seguintes artigos para a inteira ex- ecução da entrega completa que de si fizerão os rebeldes.

Artigo i.° Expedir-se-hão immediatamen- te ordens a todos os commandantes de pra- ças , e forças em campanha, e a todas as au- thoridades , que ainda reconhecem o go- verno do snr. D. Miguel , para immediata- mente também fazerem a sua submissão ao governo de S. M. F. a senhora D. Maria II. com a fruição das condições declaradas (y).

( ij ) Entre as condições declaradas houve uma amnistia geral por todos os delidos políticos commettidos desde o dia ji de julho de 1826; a conservação dos postos legiti* mamente conferidos aos officiaes militares amnistiados ; a pen« são a D, Aliguel de 60 contos de réis por anno ; e a sua sahida do reino dentro de 15 dias; tudo em virtude do tra»

*$ 317 ^o

Àirigo 2.0 O disposto no artigo anteceden- te será extensivo a todas as authoridades ec- clesiasticas , civis, e militares dos domínios ultramarinos da monarquia.

Artigo 3.0 O snr. D. Miguel sahirá da ci- dade de Évora no dia 30 do corrente mez de maio para a villa de Sines, onde, segun- do a sua escolha, terá logar o seu embarque, acompanhado no seu transito pelas pessoas da sua comitiva pessoal, por 20 cavallos dos que antes servião no seu exercito, e por dous esquadrões de cavallaria dos exércitos da Rai- nha. O commandante das forças reunidas em Évora mandara uma relação nominal das pes- soas da comitiva do snr. D. Miguel aos mare- chaes commandantes dos exércitos da Rainha.

Artigo 4.0 No dia 31 de maio corrente as tropas, reunidas em Évora, largarão as armas no edifício do seminário daquella cidade; e dividir-se-hão, segundo a naturalidade das praças , em tropas que , debaixo da respon- sabilidade de seus antigos oíficiaes , marcha- ráõ para as localidades designadas, receben- do na marcha pão, e etape j e chegadas a seus destinos receberão guias para os seus do- micílios. Os milicianos, ordenanças, e vo- luntários, de qualquer denominação que se- jão, receberão immediatamente guias para os seus domicílios.

Estes artigos fôrão assignados por parte

lado de Londres de 22 de abril deste atino. Estas condi, ções fòráo assignadas no mesmo dia 26.

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de D. Miguel pelo commandante das suas for- ças em Évora , José António de Azevedo e Lemos.

Como o infante de Hespanha, D. Car- los , se achasse também em Évora com D, Aliguel , e os seus negócios nada tivessem com os nossos, tomou a si o governo Inglez ser seu procurador ; e conseguintemente, em seu nome, assignou também com os nossos dous marechaes o secretario da legação Bri- tânica , Grant, os artigos seguintes em Évo- ra no mesmo dia 26 deste mez de maio.

Artigo i.° S. A. R. o infante D. Carlos sahirá de Évora com a sua comitiva no dia 30 de maio corrente para Aldêa-Galega , e ahi embarcará.

2.0 No seu transito os marechaes respon- dem pela segurança de S. A. R. e de sua comitiva; e lhe darão a escolta, que S. A. R. lhes designar»

3.0 Os súbditos Hespanhoes, que se achão em Portugal, compromettidos no serviço de S. A. R. , serão recebidos em um deposito provisional em Santarém, para onde hirão com a escolta necessária para a sua segurança,

4.0 O governo Portuguez lhes dará meios de subsistência no deposito , até que elles possão sahir sem perigo dali para outro qual- quer domicilio.

Todas estas interessantes e extraordiná- rias noticias chegarão a Lisboa no dia 27 , dia histórico , porque era o anniversario d'a-

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quelle em que, onze annos antes, D. Mi* guel tinha fugido para Villa-Franca , e n'el- le havia dado a primeira mostra de todos os seus crimes futuros. Estes acontecimentos , tão successivos, e tão rápidos, depois de seis annos de uma usurpação mantida por tantas crueldades, horrores, e misérias, se por um lado produzirão grande satisfação e alegrias por se vêr acabado um reinado tão monstruoso e selvagem, por outro produzirão um profun- do sentimento de desgosto no povo. Folga- va este, sim, de se vêr livre d'esse go- verno tyrannico , que , com sua mão destrui- dora , tinha espalhado a desolação e a mor- te por toda a superfície de Portugal ; e des- de os palácios até as choupanas havia derrama- do o fel e o veneno das maiores amarguras que a natureza humana pode soíFrer ; porém ao mesmo tempo se indignava que a seus ini- migos, que a seus assassinos, e que a seus algozes se tivesse dado tão amplo perdão, e uma tao extensa amnistia, que os punha qua- si a cuberto da tremenda responsabilidade em que tinhão incorrido. Accrescia ainda a isto que o ministério, garantindo assim vidas e fazenda , com tamanha amplidão , aos bárba- ros que tinhão devorado as vidas e fazendas de tantos mil martyres da liberdade, faltava a todas as promessas que antes tinha feito, e com as quaes imprudentemente tinha en- ganado as esperanças publicas. Sim , o povo se lembrava ainda muito bem da cruel per-

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seguição que se havia feito ao conde da Tai- pa , e ao impressor das suas cartas , por n'- ellas ter inculcado a necessidade de uma ge- ral amnistia ; e se lembrava também que, pa- ra dar uma feição característica a esta demen- te perseguição, até se nos tinha roubado a liberdade da imprensa, impondo-nos a lei da censura ; porém ao menos o conde da Tai- pa, dizia o povo, não tinha hido tão longe como os ministros de D. Pedro , porque nas suas insinuações excluia a pessoa de D. Mi- guel. Por este modo elles ministros fazião ainda muito mais do que aquillo que o con- de da Taipa tinha aconselhado , porque não não excluiao D. Miguel da amnistia , o mesmo homem , a quem poucos dias antes tinhão tratado com todo o desprezo em um decreto, privando-o até de seus títulos como príncipe , mas lhe davão ainda uma pensão annual de sessenta contos de réis 1 Em tal ca- so, como aquelle em que se achavão os mi- nistros, deverião elles, como homens de pon- donor e de brio, preferir a sua dimissão á assignatura de taes condições. E nem para is- to lhes faltarião exemplos. Quando Pitt vio a necessidade de fazer a paz com Napoleão , contra a qual se tinha altamente pronunciado, não se oppôz a ella , mas declarou , que lhe não compettia o assigná-la. Assim elle e os seus collegas se dimittírão, e o ministério Fox os substituio para executar aquelle acto que se julgou necessário.

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Uma irreflexão, tão ordinária nos prín- cipes como nfaquelles que o não são, fez com que D. Pedro em companhia da Rainha fos- se em a noite do dia 27 ao theatro deS. Car- los , e ahi quizesse dar oíficialmente as no- ticias que acabo de referir, pensando que se- rião tão bem recebidas como elle eoseu mi- nistério levemente tinhão imaginado. Não a- conteceo porém assim , porque em poucos momentos conhecerão a sua illusão. Vozes de uma alta desapprovação se começarão Jo- go a ouvir tanto dentro do theatro como fo- ra d'elle no salão da entrada ; e julgando-se que o melhor modo de socegar a irritação publica era o distribuir ali muitas copias do decreto de amnistia, foi isto o mesmo que lançar, na frase vulgar, azeite no fogo. A. irritação e as vozes crescerão, especialmen- te quando do camarote real sahírão algumas expressões imprudentes, que muito mais ex- citarão a cólera e o tumulto do povo, que se expressou então na sua ira com palavras mui pouco decorosas para o throno. Para socegar o tumulto se dirigirão ao salão os ajudantes de D. Pedro , e o general da força armada, Gama Lobo , mas todos fôrão desattendidos por palavras, e acções fortes e enérgicas. Ga- ma Lobo chegou a ordenar á guarda, que se compunha de soldados do commercio , que carregasse e prendesse alguns indivíduos ; mas não foi obedecido , foi escarnecido.

Felizmente aquelle tumulto, irreflecti- Tom. IV, x

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clamente provocado, não teve consequências funestas, bem que podia ter sido fatal, es- pecialmente para os ministros, se não tives- se sido filho do acaso, sem nenhuma combi- nação antecipada; porque se a tivesse havi- do, e alguém estivesse destinado para lhe dar direcção, o caso por certo poderia ter sido mais serio, e haveria tido consequências mais amplas.

Antes que D, Miguel sahisse do terri- tório Portuguez exigirão os nossos dous ple- nipotenciários, os marechaes Terceira, e Sal- danha, no dia 29 de maio, i.° que elle fi- zesse entrega das jóias da coroa , e riquezas da fazenda publica, ou de particulares e cor- porações, que existissem em seu poder ; 2.0 que fizesse a formal e publica declaração de jamais, directa ou indirectamente, se mis- turar nos negócios políticos deste reino e seus domínios ; objectos ambos de uma rigo- rosa execução. Quanto ao primeiro, dêo el- Je bastante e solemne procuração zJoiéLuiz da Rocha para fazer a entrega exigida -y e quan- to ao segundo, fez a declaração seguinte:

,, Para satisfazer a superveniente exi* gencia dos marechaes duque da Terceira, 5> e conde de Saldanha em nome do seu go- 5, verno, declaro, que jamais directa ou in- directamente me misturarei em negócios políticos d'estes reinos e seus domínios. Paço em Évora, 29 de maio de 1834. gg D. Miguel.

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D. Miguel, escoltado por alguns esqua- drões do regimento de Janceiros da Rainha, de que era commandante Simão Infante de Lacerda, embarcou com effeito em Sines no primeiro do mez de junho entre as maldições e insultos do povo que , ao vê-lo correr ra- pidamente para bordo como um fugitivo , nunca cessou de gritar: Viva acarta cons- titucional, viva a Rainha, viva D. Pedro, du- que de Bragança, e viva o exercito libertador. D'este seu embarque passarão attestaçáo em forma todos os officiaes do regimento da Rai- nha.

Uma igual attestação passou o comman- dante Inglez que o recebeo a bordo do na- vio Síag , e que foi do theor seguinte :

Certifico que D. Miguel embarcou a bordo do navio de S. M. B. surto neste porto esta tarde ás seis horas. Dado sob 5, minha escripta e sinal, navio de S. M. B. Síag y na bahia de Sines, i.° de junho de 1834. ca Nicoláo Lockier, capitão. ,,

Ao passo que D. Miguel embarcava em Sines tinha o mesmo destino no Tejo o in- fante de Hespanha, D. Carlos, em outro na- vio Inglez , em que foi recebido. O attes- tado do seu embarque foi dado na forma se- guinte :

A bordo do navio de S. M. B. , o Donnegal, no i.Q de junho de 1834. Cer- tifico, que o capitão A. A. Jervis de A- «, touguia, e o tenente D. Miguel Ximenes,

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>, ao serviço de S. M. F. D. Maria II., e a- judantes de campo do marechal Saldanha, y, pozerão em segurança debaixo da protec- 3, ção de S. M. B. a suas altezas reaes D, 5, Carlos de Bourbon e sua familia ; bem co- )Vmo que os acima mencionados officiaes u- sárão para com os mesmos principes da 3, maior attenção e polidez durante toda a jornada desde Monte-Mor até Aldêa-Gale- 5) ga. a William Bede, tenente-coronel, ad- 3, dido á legação de S. M. B. em Portu-

3) gal- " í?°í».

Com o embarque de D. Miguel perdeo

o seu partido todo o resto de torça e animo que ainda conservava; e no dia 31 d'este mez de maio Elvas, Campo-Maior, e em* fim todo o Portugal obedecião ao governo da Rainha. Mas apesar de todos estes acon» tecimentos felizes o ministério de D. Pedro hia diariamente crescendo na sua impopula- ridade em razão das nomeações que tez nes- te mez para alguns empregos públicos, par- ticularmente para o ultramar. Notavão entre ellas as de alguns caceteiros conhecidos , e de outros Miguelistas furibundos, ao mesmo passo que deixava de parte constitucionaes honrados e probos que na emigração ou de- baixo do cutelo do usurpador havião dado as jnaiores e mais constantes provas de lealda- de, e civismo. Em uma palavra, como não ..quero mencionar nomes , porque não quero perpetuar ódios, acerescentarei. que ge-

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ralmente se dizia : ' ,, que o governo del>. Pedro era o de D. Miguel ? vestido de azul e branco. ,,

Outra accusação que se fazia ao gover- no era que elle pertendia reduzir as camarás municipaes a meros instrumentos seus , mo- vidos pelos agentes que creára e a quem de- ra os nomes de prefeitos , sub-pr efeitos , e provedores ; de maneira que por esta legisla- ção as camarás não vinhao a ser mais do que simples executoras das vontades dos servos do governo , sem authoridade própria , nem respeito popular. Contra uma parte d'estes abusos tinha vigorosamente representado a camará municipal do Porto, que por isso te- ve logo uma dimissão á Turca ; e agora as mesmas ou similhantes questões se tinhão ex- citado entre o governo e a camará municipal de Lisboa. Nos dias 2 e 5" d'este mez tinha ella representado ao governo sobre objectos mui graves, e de grande interesse publico; mas o governo, como offendido da liberdade das representações , respondeorlhe descome- dida e incoherentemente por duas portarias com data de 22 e 23 d'este mesmo mez. Nem a camará nem o publico esperavão que um governo constitucional e sisudo desse si-" milhantes respostas , e por isso com a mes- ma liberdade, e com a consciência do bem com que antes tinha representado, lhe repli^ cou como convinha no dia 27, concluindo a sua replica : que não podendo ella .pelo . int

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diferimento das suas representações conti- nuar a exercer as suas funcções ; e não se podendo dimittir por authoridade própria, es- perava em ultimo recurso receber o decreto da sua dissolução. O governo emmudeceo com esta resposta, talvez por não esperar que houvesse quem ousasse fallar-lhe com tama- nha independência.

Para moderar o máo effeito que tinha produzido no publico a sua amnistia, tão am- pla e tão extensa, promulgou o ministério, por este mesmo tempo, alguns decretos, que na sua generalidade fôráo agradáveis ao povo. Foi o primeiro, o da convocação das cortes para o dia i$ de agosto futuro: foi o segun- do, o da extincção de todos os privilégios da companhia dos vinhos do Douro: e foi emfím o terceiro, o da extincção de todos os conventos , e mais casas de qualquer deno- minação, pertencentes ás corporações regu- lares, ou frades ; decretos, que tiverão as da- tas de 28 e 30 d'este mez de maio. Com is- to socegou um pouco o desgosto popular, mas não o extinguio, porque entre tantos de- cretos teve sempre medo de promulgar o mais essencial, que era o da liberdade da im- prensa ; medida da primeira necessidade, quan- do se hia proceder ás eleições dos deputados. Este facto mostrou qual era o seu espirito, qual era a consciência que elle tinha da sua falsa posição, e o justo receio que lhe davão as vozes do publico. Sim, todo o individuo,

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ou todo o governo , que receia que as suas acções sejão julgadas pela imprensa, ou tem a consciência de ter feito mal , ou o está a- ctualmente fazendo, ou pertende fazer. Em França, ainda nos tempos mais infelizes da restauração , e em que muitas vezes se sus- pendeo a liberdade da imprensa , era esta sempre restituída no mesmo momento em que se hia proceder ás eleições. Assim este facto , quando outros não houvesse, caracte- risa o ministério d'esta épocha. Entre outros mais decretos appareceo também o da aboli- ção do juiz do povo , e da casa chamada dos vinte e quatro ; magistratura antiquíssima em Portugal , e da qual algumas vezes havia re- sultado muito bem, quando a corrupção não tinha ainda apagada a nossa independência politica; mas que, segundo os costumes a- ctuaes, e em conformidade da carta constitu- cional já não podia subsistir sem passar por um solocismo politico.

Morreo em 1 3 deste mez de maio uma das nossas virtuosas victimas politicas, o prior da freguezia dos Anjos de Lisboa, José Fer- rão de Mendonça, e ex-deputado das cortes constituintes do anno 182 1. Quasi sempre perseguido depois de perto de trinta annos,. e sempre debaixo de miseráveis pretextos , como o de pedreiro livre , e ultimamente en- tregue á brutal tyrannia de D. Miguel pelo espaço de cinco annos na torre de S. Julião, acabou seus dias como tinha vivido, isto h.e,

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com a reputação de homem de bem, de cons- tantes principios liberaes , e de uma vida pu- blica sem mancha.

Também em França morreo n'este mez um dos primeiros caracteres políticos do sé- culo passado e presente o general Lafayette, Começou a sua brilhante carreira publica, ser- vindo a favor da liberdade na guerra da in- dependência da America Ingleza , onde ad- quirio não tanto a reputação de um distincto militar como a de hum sincero e denodado defensor das liberdades do género humano. A nova republica Americana sempre o con- siderou como um dos primeiros defensores da sua independência ; e n'esta qualidade cons- tantemente o respeitou e honrou. Na convo- cação dos estados geraes em França no anno de 1789 appareceo elle como um dos depu- tados da nobreza ; porém muito mais zelador da liberdade da sua pátria do que dos anti- gos privilégios da classe em que havia nas- cido, foi também um dos primeiros que so- lemnemente se despojou do titulo de mar- quez no acto de se abolir a alta nobreza em França. E d'este titulo , assim como de ne- nhum outro, igual ou similhante, não tornou a usar na sua vida. Verdadeiro e sincero ami- go da liberdade oppôz-se briosamente a to- dos os crimes que , em nome d'ella , se co« meçavão a perpetrar ; e por isso obrigado a sahir da pátria para nao ser victima nem com- plice dos attentados políticos , que começa-

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vão a manchar a grande obra da regeneração politica da França , cahio por fim nas mãos do governo Austríaco , que o tratou com u- ma barbaridade exquisita, conservando-o pre- so em uma das suas grandes fortalezas, d'on- de ultimamente sahio com alguns companhei* ros do mesmo infortúnio para ser trocado pe- la filha do desgraçado Luiz XVI. Vendo que a magnifica obra da liberdade não marchava como tinha imaginado , affastou-se elle ou o affastárão dos negócios públicos, porque suas viitudes cívicas erão inalteráveis, e incapa- zes de se abaixarem a servir qualquer das fac- ções politicas que por muito tempo affligírão a França. Em consequência d isto nem ao go- verno consular nem ao imperial quiz dar o seu apoio, e se conservou sempre indepen- dente até a restauração dos Bourbons. Na en- trada d estes, e durante o seu governo, mos* trou a mesma independência, não querendo re- ceber d'elles nem mercês nem recompensas, e do povo que constantemente o nomeou seu representante. Ultimamente foi um dos que mais concorrerão para a expulsão de Carlos X. , e nomeação do duque de Orleans para rei dos Francezes , a quem elle , se tivesse querido, teria certamente substituído com ou- tro qualquer titulo, se a sua ambição o levas- se a ser o primeiro homem publico em Fran- ça. Mas este seu grande e raro desinteresse não lhe grangeou senão a mais notória e não esperada ingratidão da parte d'aquelle mes

«•* 330 feo-

mo a quem tinha, bem se pode affirmar, da- do o throno e a coroa real. Por isso mesmo cada vez mais estimado, e até adorado da na- ção e da pátria , a quem em toda a sua vi- da tudo sacrificara para lhe dar uma solida e permanente liberdade, moireo cheio de an- nos e virtudes , lamentado pelos nacionaes e pelos estranhos , que tanto uns como os ou- tros sempre o tinhão considerado como o mais sincero e virtuoso defensor das liberdades humanas. Mas se todos os homens livres lhe devem um tributo de agradecimento, não so- mos nós os que menos lhe devemos pelo mui- to que sempre se interessou pela causa da nossa emigração; e por isso eu, como Por- tuguez , e uma das victimas d'essa mesma honrosa emigração, lhe pago também aqui es- se bem merecido tributo.

Entre estes, e os muitos e vários acon- tecimentos que referi , acabou emfim essa barbara usurpação, que, pelo espaço de seis annos , tinha devastado a nossa pátria com toda a espécie de horrores de que he capaz a maldade humana, levada ao ponto da mais feroz depravação. N'este extraordinário perío- do virão-se porém brilhar as grandes virtudes, assim como se virão praticar os crimes mais execrandos; porque de uma parte estavão o patriotismo e o amor da liberdade, e por ou- tra um despotismo selvagem , escoltado de todas as fúrias da mais exquisita e atroz bar- baridade. Não se pense, comtudo, que esta

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lucta terrivel tivesse simplesmente por obje- cto uma dessas ordinárias contendas sobre a competência de um throno ; foi bem pelo contrario uma verdadeira guerra de princípios políticos; isto he, a guerra entre a liberda- de e o despotismo ; entre a civilisação e o movimento retrogrado para a ignorância e servidão ; e emfim a guerra inspirada e man- tida pelos governos , ou absolutos ou egoís- tas, contra os governos e os povos que se que- rião libertar do longo abuso dos séculos. Es- ta foi sempre a opinião não dos Portugue- zes livres e intelligentes , que combaterão contra a usurpação etyrannia de D. Miguel, mas a dos mesmos estrangeiros que, apesar de distantes espectadores, olhavão com in- quietação e interesse para o resultado de nos- sos furiosos combates. Em prova do que a- cabo de dizer citarei aqui o que n'esta mes- ma occasião escreveo uma das gazettas Ingle- zas, o G/obo, referindo-se aos extraordinários acontecimentos politicos que acabavão de rea- lisar-se. Eis-aqui as suas propiias palavras:

Quem olhar estes suecessos de Por- tugal como uma simples decisão da con- tenda entre D. Miguel e Maria , ou en- tre os partidos da nação Portugueza , por certo os olhará mui superficial e inexacta- ,, mente. A grande batalha dos principios Europeos foi pelejada em Portugal ; ali foi o campo dos combates entre o gover- ?, no arbitrário , e as instituições constitu-

?> cionaes : estas ganharão um assignalado triunfo. Não se pode suppôr que os tories si de Inglaterra mostrassem tamanha sympa- thia por um príncipe denominado por el- les (já como membros do parlamento, 5, como ministros) usurpador, baixo, cruel, e ,, covarde, se este prkicipe fosse recom- ,, mendavel a seus olhos por suas qualida- des pessoaes, e sua usurpação. Porém ellc ,, era otypo do governo despótico no conti- ?, nente ; e n'esta qualidade achou o auxilia e favor daquelle partido. Também se não pode crer que as potencias da Europa, que maior valor dão aos direitos da legitimida- de, amassem um usurpador como D. Miguel porque este iniquamente subio ao thro- ,, no que lhe não pertencia; porém ellas o a- mavão como destruidor da carta Portugue- za ; e estes méritos relevantes tudo fize- rão perdoar ao usurpador da coroa da Rai- nha Alaria. Na grande batalha, que ainda se está pelejando na Europa entre princi- 5, pios oppostos , era Portugal considerado 3, como a chave da posição ; e , em conse- quencia d'isto , o partido absoluto fez as possiveis diligencias para sustentar no thro' no o usurpador Portuguez. Mas este ca- hio, e felizmente para os interesses da civilisação. Mui diverso teria sido o resul- )5 tado se o governo liberal de Inglaterra ti- vesse dado logar a uma administração tory ; e assim bem podemos considerar estegran-

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^ de acontecimento como um dos triunfos da administração de lord Grey.

Os homens que nesta lucta terrível se torna'rão mais insignes por seus relevantes serviços, e por meio dos quaes a mesma lu- cta se decidio por fim a nosso favor , fôrão três : os marechaes, duque da Terceira , o marquez de Saldanha, e o almirante Napier. O primeiro, como governador da ilha Ter- ceira, teve a fortuna de dar o primeiro gran- de golpe na usurpação no memorável dia n de agosto de 1820; tomou depois todas as ilhas dos Açores ; e bem que no Porto a for- tuna lhe não fosse tão favorável tornou ella a seguir-lhe as bandeiras nos annos 1833 e 1834. No primeiro commandou elle a expe- dição do Algarve, e teve a felicidade de en- trar em Lisboa no dia 24 de julho do mes- mo anno ; e no segundo, depois de ter atra- vessado parte de Traz-dos- montes e da Bei- ra, veio derrotar os inimigos na Asseiceira, e assistir ao ultimo momento da vida , que teve a usurpação dentro dos muros d'Evora. Não menores seiviços , ou antes mais relevantes, fez o marechal Saldanha, porque correo maiores e mais variados riscos , e te- ve maiores dificuldades que vencer, não dan- do um combate, ou uma batalha em que a fortuna lhe fosse infiel, o que nem sem- pre tinha acontecido ao seu emulo de gloria, o duque da Terceira. Vivendo como dester- rado em França por um d'esses actos de ciu-

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me, (porque sendo elle em Portugal um Por- tuguez fiel , e um general, tinha sido pouco cavalheiramente privado de se ir unir aos seus irmãos d'armas, e depois partir com elles pa- ra o Porto) foi ultimamente , e na hora do perigo, em geral convidado como qual- quer subalterno, ou antes mandado ir para a- quella cidade quando os negócios militares estavão como perdidos , e a voz publica , e o exercito com altos gritos o chamavão como o salvador dos destinos da pátria. Desembar- cado em 28 de janeiro do anno 1833 achou aquella nobre cidade, e o valente exercito que a defendia como quasi nas mãos do inimigo ; porque apesar de ali estar com- mandando o general estrangeiro Soligmc , a quem intrigas palacianas tinhão chamado de França, este general nada tinha feito, ou an- tes já tinha dado uma grande prova da sua incapacidade militar, perdendo, ou não con- servando a importantíssima posição do Cras- Z0, que era como a chave da barra, e da foz. Por uma rara felicidade se dêo a Saldanha o cominando do districto da Foz, não porque com isto o quizessem distinguir ou honrar, mas para o collocar no logar do maior peri- go, e para verem se compromettião a sua re- putação militar. Foi porém n'este logar o gran- de triunfo da sua gloria, porque nJeJle come- çou a triunfar de todas as invejas , e a res- ponder a seus detractores com uma nunca interrompida serie de victorias. Para defen-

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der a estrada da Foz, e conservar a commu- nicação com o mar, communicação, que, por inépcia , estava quasi cortada , começou logo a fazer o reducto chamado do Pasteleiro , e apoz este o do Pinhal, a que os soldados po- zerão depois o nome de Saldanha. Apesar po- rém de fazer todos estes importantes traba- lhos a tiro de espingarda do inimigo, soube- Ihe impor tal respeito, e até illudi-lo a tal ponto, que quando a primeira obra es- tava em estado de lhe poder resistir foi que elle lhe dêo importância, e se resolveo a a- tacá-la. Aconteceo este memorável ataque no dia 4 de março de 1835, e foi elle o que dêo principio á gloria militar do marechal Sal- danha, porque não repellio vigorosamen- te o inimigo, porém causou-lhe uma perda que foi computada em mais de 1,700 homens. Não ficou aqui a gloria do marechal , porque impôz tal respeito aos rebeldes, que não o deixa'rão concluir socegadamente to- das as obras do reducto do Pasteleiro, pjrém o começar a outra, ainda mais importante, que foi a do reducto do Pinhal , a que os solda- dos pozerão o nome, como disse, do For- te do Saldanha. Em quanto durou o commando do general Solignac defendeo Saldanha valo- rosamente a Foz; e sendo depois chamado para substituir aquelle general, como chefe do estado-maior imperial, dirigio todas as se- guintes operações militares. A mais impor- tante porém , em que grandemente se dis-

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tinguio , foi a do formidável ataque do dia 2? de julho do mesmo anno, no qual o ex- ercito Miguelista fez uma furiosa tentativa contra as linhas do Porto. N'elle teve Salda» nha a gloria de vencer um marechal de Fran- ça , o notável Bourmont , que com muita of- ficialidade Franceza tinha vindo por ordem da junta apostólica, e sancta-alliança dos reis déspotas auxiliar D. Miguel , e a sua usur- pação. No dia 18 de agosto seguinte coroou elle todos os seus grandes trabalhos milita- res no Porto sahindo fora das linhas , levan- do diante da ponta da sua espada a todos os rebeldes que encontrou, e hindo emfim der- rotá-los nas alturas de Vallongo. N'esse dia se levantou para sempre o cerco da cidade ; cahírao em nosso poder todas as fortificações inimigas; e foi immenso o despojo militar que tivemos.

Passando a Lisboa veio dar novo desen- volvimento e actividade aos trabalhos que se havião começado para defender a capital ; e tinha estes tão adiantados no dia $ de Se- tembro que com elles, e o valor sempre in- vencível do exercito que commandava, re- pellio completamente o ataque que íizerão os rebeldes naquelle mesmo dia; assim como o outro, menos violento, que tentarão no dia ii na direita das linhas. No dia 10 de outubro seguinte foi elle buscar fora das li* nhãs o inimigo; e, depois de uma renhida c disputada batalha, em que de parte a par^

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te houve grande perda , o arrojou até a sua forte posição de Santarém. Em frente d'esta villa se foi postar o nosso exercito victorio- so; e ali conteve sempre em respeito os re- beldes ; mas cançado Saldanha da inacção em que estava depois de alguns mezes tentou o seu grande movimento com uma parte do ex- ercito sobre Leiria. Foi esta surprendida , e entrada no dia i$ de janeiro futuro; e no dia 2$ do mesmo mez veio igualmente sur- prender o inimigo em Torres-Novas , on- de a maior parte do regimento de ca- vallaria de Chaves foi anniquilada. Os re- beldes , surprendidos com estes não espe- rados movimentos , quizerão tentar fortu- na contra as nossas armas; e no dia 30 do mesmo mez se dêo a batalha de Pernes em que , segundo o costume , fôrão completa- mente batidos , e perderão , além de uma grande quantidade de mortos , mais de 700 prisioneiros, e três bandeiras. Mas estas bri- lhantes acções do marechal derão grandes ciú- mes ao ministério, que sempre se tinha mos- trado seu constante inimigo; e para lhe po- rem um termo imaginarão um novo plano de operações para o sul, e o obrigarão a desam- parar as duas interessantes posições de Tor- res-Novas, e Pernes, ordenando- lhe, que vies- se tomar as antigas em frente de Santarém. Então o inimigo , abatido por tantos e tão continuados revezes, quiz emfim dar um gol- pe decisivo, e ver se com elle recuperava to- Tom. IV. Y

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da a força moral que havia perdido, e se a- bria outra vez caminho para a capital. Mas como d'esses seus intentos fosse de ante mão sabedor o Saldanha, tomou as suas medidas, estudou o terreno, e fingindo que se retira- va ou fugia diante das forças que o atacavão, veio systematicamente recuando , até que fa- zendo alto na posição que tinha escolhido, cahio rapidamente sobre ellas, e lhes fez um estrago espantoso. Soífreo o inimigo neste brilharítissimo combate, ao qual se dêo o no- me da batalha de Almoster, e que aconte- ceo no dia 18 de fevereiro, uma perda e- normissima , não em prisioneiros , porque fôião poucos, e apenas 162 com algumas bandeiras, mas em mortos; porque a matan- ça foi tal , que tallando d'ella o general no seu officio , disse, que de uma similhan- te se lembrava , que fora a da entrada de S. Sebastião na guerra da Peninsula. Até *que os rebeldes, fugindo, desempatarão Santarcm no dia 18 de maio, não teve o Saldanha mais que fazer com elles , porque , respeitando-o sobejamente, nunca mais se atreverão a in- commodá-lo ; e elle se contentou com cubriv a capital , e com sua presença e respeito dar Jogar a que as forças do norte podessem o- perar á sua vontade, e vir depois unir-se com as suas nas margens do Tejo. Perseguindo ô inimigo na sua fugida de Santarém foi alcan- ça lo junto d*Êvora , onde por outro lado o duque da Terceira também o apertava, cor-

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tando-lhe a retirada para Elvas; e ali ambos os marechaes tiverão a honra de ver depor diante d'elles as armas ás reliquias do exer- cito rebelde, e de ver acabada a usurpação com a entrega e embarque do usurpador D. Miguel. Assim terminou a gloria militar do marechal , marquez de Saldanha.

O terceiro individuo, que mais se dis- tinguio, e cooperou para a queda da usurpa- ção foi o almirante Napier , pois que por sua extraordinária bizarria , e não vulgar re- solução , filha de um valor, verdadeiramente heróico, dêo principio ás suas gloriosas ac- ções por um dos feitos d 'ar mas o mais atre- vido e valente que se podia imaginar, qual foi o do brilhante combate que teve com a esquadra rebelde no memorável dia 5 de ju- lho <\o anno 1833, junto do cabo de S. Vi- cente. Nesse dia glorioso , com forças mui inferiores ás do inimigo , e sem ter uma náo com que se lhe oppozesse, derrotou-lhe, e tomou-lhe por abordagem toda a sua es- quadra, que se compunha de duas náos, duas fragatas , e duas corvetas ; e por este modo dêo logo um golpe de morte na usurpação. Sempre intrépido, e sempre activo concebeo depois, mesmo sem o consentimento do mi- nistério de D. Pedro , que parecia querer prolongar a guerra, a brilhante expedição do norte, que efficazmente concorreo para se li- bertar a província do Minho , e assim abrio caminho ao duque da Terceira para passar a

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raz-dos montes , c Beira , e por £m para vir esmagar grande parte das forças inimigas na batalha da Asseiceira. Principiou esta ou- sada expedição, tomando o forte e Villa de "Caminha, na foz do rio Minho, no dia 23 de março deste faustissimo anno 1834; fez ren- der a praça de Valença no dia 3 de abril j oecupou a Figueira no dia 8 de maio; eveio afinal por terra com alguma da sua gente to- mar Ourem , que se lhe rendeo á discrição , fazendo ali 700 prisioneiros. Desta maneira mostrou este activo e valoroso official , que por mar e por terra não havia inimigo que lhe podesse resistir, (z)

O almirante foi recompensado por D. Pedro com o titulo de conde do cabo de S. Vicente, além da rica parte que teve íio va- lor das prezas que fez, e navios que tomou ; e os dous marechaes , por um decreto com data de 27 de maio, fôiáo igualmente pre- miados: o duque da Terceira com as honras de parente da casa real ; e o conde de Sal- danha com o titulo òcmarquez de Saldanha, e uma dotação de cem contos de réis em bens nacionaes , que lhe devia ser confirmada pc-

(1) Não he das intenções do author doestes Amtaes que- rer roubar o mais pequeno quilate de gloria do almiiant* Sartorius , de quem relatou suas façanhas. Sem as suaj importantes victorias sobre a esquadra rebelde teria bavi- do o bloqueio da barra do Porto, e acontecendo isto as- sim, talvez a nossa causa se tivesse perdido. Por isso senão fez tanto como Napier, fez cointudo muito, e de um in- disputável proveito.

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las cortes futuras da nação. Todos três , co« mo militares, ganharão grande nome, e gran- de honra; e de alguns d*elles nada mais se esperava do que seus serviços nos campos de batalha ; porém não suecedia assim com Sal* danha , de quem os seus amigos, e até mui- tos estrangeiros liberaes esperavão importan- tes serviços políticos. Não correspondeo po- rém elle a's esperanças que todos tinhão con- cebido. Valente, activo, e intelligente co- mo soldado, e general, mostrou-se fraco, e inactivo , e , para dizermos a verdade , sem nenhum caracter em politica. Teve por mui- tas vezes em suas mãos os destinos politicos da sua pátria , e ser o primeiro homem da sua nação ; porém sempre ou por fraqueza , ou por egoísmo, repellio a fortuna que lhe estendia o braço para o conduzir ao templo da immortalidade , e da gloria. Conhecendo todas as intrigas e vontade de seus ému- los e inimigos, nunca soube representar pa^ ra com elles uma figura que lhes impozesse respeito; porque em um dia se lhes mostra- va todo colérico e ousado, e logo noseguin-^ te era para com elles affavel , submissa, e até adulador. Enganou completamente os seus amigos, que, na hora da infelicidade e do desprezo, em que por muito tempo o tive- rao seus émulos ou inimigos, sempre lhe fô* rão fiéis, sempre o defenderão, e sempre se expozerão aos ódios do poder para o sus- tentarem na opinião publica, Assim , quarv

<*§ 342 lo- do acabou a sua brilhante carreira militar , e devia começar outra, tanto ou mais brilhan- te, que era a carreira politica , annullou-se, fugio, ou escondeo-se a seus amigos para cor- tejar e servir seus émulos ; e assim ganhou senão ódio, ao menos a indifferença d'aquel- les, e o desprezo destes, que vierão a co- nhecer cabalmente toda a sua nullidade , ea pouca ou nenhuma razão que tinhão de o te- mer. Pessoas houve que attribuírão este seu procedimento a um falso caracter, e a um e- goismo systematico ; porém eu nunca fui d'- essa opinião , porque sempre divisei nelle mais fraqueza de caracter, mais falta de e- nergia politica do que falsidade de entendi- mento ou coração. Se bravo e valente se mos- trou sempre nos campos de batalha, e fraco e irresoluto no gabinete e na politica , foi porque a natureza assim o formou ; e a este defeito natural me parece devemos antes at- tribuir o seu procedimento do que a um cal- culo de insinceridade , ou de hypocrisia sys- tematica. Seja porém o que for , a verdade he , que elle acabou na grande e difícil lu- cta contra a usurpação como nella tinha come- çado, isto he : -H perdendo a occasião de ser o homem mais insigne entre todos os seus concidadãos. Em uma palavra , no Porto em 1828, e em Évora no anno 1834 desprezou a fortuna , que o convidava para lhe deposi- tar nas mãos os grandes interesses da pátria ; ç por este desprezo ? geralmente incompre-

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hensivel, podendo ser um heroe ficou sendo homem vulgar , e mui áquem do logar pa- ra que magníficos destinos o chamavão.

Assim dou fim a estes vcíqus Annaes^ mui feliz por ter sobrevivido aos perigos de uma épocha , que tão fértil se tornou em crimes e virtudes. E mui contente de deixar á mi- nha pátria, ao menos, o resumo dos grandes acontecimentos políticos e militares , que vi e presenciei n'esta épocha memorável , vou contente a' sepultura, deixando esctiptos aos que apoz mim entrarem na carreira da vida grandes exemplos tanto para seguir como pa- ra evitar. Em toda a minha vida homem li- vre e independente, fui por isso mesmo qua- si constantemente o alvo e a victima dos o- dios e perseguições do poder, ou elle aber- tamente se declarasse absoluto e oppressor,' ou algumas vezes se cubrisse com a mascara da hypocrisia politica das formas da liberda- de. Assim , para mostrar que não fui de to- do homem inútil sobre a terra, e que algu- ma cousa fiz a bem de meus concidadãos, to- mei a meu cargo deixar-lhes como em testa- mento, este publico testimunho do muito que sempre amei a minha pátria, e do quan- to sempre trabalhei, sem receios, sem sus- tos, sem timidez, e sem adulações, para lhes inspirar o amor da liberdade, que sempre a- mei , que sempre proclamei , e que sempre resolutamente defendi não contra os ty- rannos, mas contra outra espécie de inimi-

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gos , ainda mais perigosos , —■ os hypocritas políticos.

Relinqtíam aliqiúà quoà me testetur vixisse.

PLÍNIO j EPIST. II.

Lisboa, em 7 de novembro de 1842.

José Liberato Freire de Carvalho*

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SUPPLEMENTO.

X ara corroborar as noticias que dei em pa- ginas 216, 217, 218, 219, e 220 do vo* lume 3." d'estas Memorias referirei aqui, co- mo supplemento , o que ultimamente acabo de ler nas Memorias históricas e secretas da imperatriz Josephina , publicadas pela céle- bre prophetisa moderna M. A. Le Normand, que foi muito da sua intimidade , assim co- mo depois o foi do imperador da Rússia, A- lexandre. Bem que estas Memorias fossem ha muitos annos publicadas, ha pouco he que casualmente as li, e por isso não me reteri a ellas nos logares acima indicados. No vo- lume i.°, a pag. 29 e 31 , em que se falia do Delphim , filho de Luiz XVI., diz-se: que querendo Buonaparte tratar com M. de Frotté , hum dos chefes de La Vendée , el- le lhe pozera por condição, que havia de dar a coroa de França a aquelle príncipe, que se suppunha morto, porém que ainda vivia. Diz* se mais: que Fouché, ministro da policia, fizera saber a Buonaparte que se achava pre- zo um homem que dizia ser filho de Luiz

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XVI. ; e que elle ficara muito inquieto com esta noticia, e recommendára confidencialmen- te ao ministro, que o guardasse, porém na- da publicasse a este respeito.

Quanto á morte dejosephina, diz a pu- blicadora, no fim do 2.0 e ultimo volume das Memorias, as memoráveis palavras seguintes, que eu dou fielmente conforme estão no o- riginal. Le silence des historiens contem- porains laisserà toujours ignorer d la posterité les vrais motifs qid purent accelerer ainsi la tnort de Josephine : ce secret est pour jamais enferme dans sa tombe ; il nappartient d per- sonne de le reveler aux Fr an cais. ,,

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JP Freire de Carvalho, José

655 Liòerato

F7 Ensaio politico

1842

pt.2

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