F2515 .B25 Barbosa, Júlio Caetano Horta Exploração do rio Ike Commissão de Linhas Telegraphicas Estratégicas de Matto-Grosso ao Amazonas (Publicação n. 29; A/M/NEXO n. 2 Exploração do rio Ikê (1912 -1913) RELATÓRIO APRESENTADO AO SR. CORONEL DE ENGENHARIA Cnniliiio 3Unriuno ita lilua Honiioii Chefe da Commissão PELO |.° TENENTE DE ENGENHARIA |uli8 Êfietans |J«ta JUrbsa 2131 RIO DE JANEIRO 1916 Coniuiissão de Linhas Telegraphicas Estratégicas de Matto-Grosso ao Amazonas I Publicação n. 29 AM/NEXO /N. 2 Exploração do rio Ikê (1912 - 1913) RELATÓRIO APRESENTADO AO SR. CORONEL DE ENGENHARIA Conitiito JUanaiiD h lilmt lloiiàon Chefe da Commissão PELO l.° TENENTE DE ENGENHARIA |*tit íitUtt farta JSarbesít 2131 RIO DE JANEIRO 1916 /Ba - RELATÓRIO APRESENTADO PELO 1.° TENENTE DE ENGENHARIA JÚLIO CAETANO HORTA BARBOSA AO SR. CORONEL CÂNDIDO MARIANO DA SILVA RONDON, CHEFE DA COMMISSAO DE LINHAS TELE- GRAPH1CAS ESTRATÉGICAS DE MATTO-GROSSO AO AMAZONAS, SOBRE A EXPLORAÇÃO QUE FEZ NO RIO IKÊ Em cumprimento ás vossas ordens, parti a n de Julho ultimo da estação telegraphica de Vilhena para iniciar a exploração do rio Ikê, levando com- migo um inspector de 4.* classe e um guarda fio, como auxiliares, e cinco trabalhadores. Eu devia procurar esse rio no fim do fique feito em continuação á tangente que termina no « Des- carrega e Carrega » e a 3690 metros dahi, onde se suppunha que elle passasse ; descer, depois, mar- geando-o, e ir fazendo o seu levantamento até onde o encontrasse com volume d'agua sufficiente para permittir a navegação de canoas que nesse ponto faria, então, construir. A' tarde daquelle dia e pela manhã do seguinte tomei observações de aneróide na cabeceira do (( Ikê », e, depois de descer pelo campo cerca de 9 kilometros, entrei na matta até encontrar o rio, com o fim de ver a agua que elle já tinha e poder melhor reconhecel-o no ponto em que o devia procurar. Chegando, porém, ao lugar onde tinha de ser começado o serviço, verifiquei o engano em que estávamos, pois o Ikê não passa por alli, e era já bastante tarde quando encontrámos uma pequena cabeceira a que denominámos do « Logro ». Na persuasão de que o Ikê não passasse longe dalli resolvi fazer fique procurando-o, mas, no fim de 6098 metros não avistando ainda o seu valle e temendo dificuldades em reconhecel-o depois, vol- tei ao « Descarrega e Carrega » a 16. Do poste da curva desse lugar parti de novo fazendo levanta- mento em direcção á matta para entrar nella até encontrar o rio. Depois da cabeceira do « Logro », no fique que fazia para procurar o Ikê, encontrei 2 córregos, ambos com 3 metros de largura ; a um chamei «Man- daguary», pela abundância de mel dessa abelha ahi encontrado. Esses córregos têm suas nascentes na matta que se avista na curva do « Descarrega e Carrega », á direita de quem vae de Vilhena para José Bonifácio, e correm procurando o « Ananaz ». A 17 comecei a fazer o levantamento seguindo pela margem do Ikê, depois de tomar sua secção e volume ; dois dias depois, porém, comquanto o rio ainda não permittisse navegação, sinão com grandes dificuldades, pelas curvas fortes que apresentava, pequeno volume d'agua e grande atravancamento do leito, resolvi apressar o embarque da expedição por diversos motivos : Em primeiro lugar porque os meus trabalhado- res que haviam sido escolhidos entre tropeiros e vaqueiros que voluntariamente se offereceram para essa exploração não tinham pratica do serviço de machado, foice ou facão para abertura do fique em matta, de modo que o serviço não podia render tanto como eu esperava e estava acostumado a conseguir em outros semelhantes. No fim de 2 dias de levanta- mento rio abaixo tínhamos feito apenas 3 kilometros e os trabalhadores estavam sentindo muito, tendo os de facão os pulsos inchados. Esse rendimento tão pequeno preoccupava-me, duplamente, não só pelo desejo de terminar breve o serviço de que me encarregastes, como pelo consumo dos géneros que, com tal demora, não poderiam bastar para todo o tempo calculado para a explo- ração. Por outro lado eu já não podia mais contar com o transporte da nossa bagagem por terra, por- que os bois cargueiros, tanto os 3 que eu havia tra- zido de Álvaro de Vilhena, como os 5 restantes — que eu deixara lá para conduzirem o restante da baga- gem - tinham afrouxado, já havendo até morrido um, e, é claro, essa difficuldade de transporte tendia a augmentar cada vez mais, não só pela distancia que crescia, como pela falta de pasto na matta. Além disso, o rio tinha crescido om3,5oo em meia légua o que era para animar. O embarque, pois, impunha-se, eu teria o transporte garantido, e acre- ditava que poderia a principio avançar, no minimo, 4 kilometros por dia. Ordenei, portanto, a construcção de 2 canoas que foram feitas, em 14 dias, sob as vistas do guarda Joaquim Sol o qual ficou sendo, desde então, o encarregado da navegação. Ambas eram de cedro ; uma de 9m,90 de cum- primento, de popa a proa, sendo 6m,90 do banco de proa ao de popa, e de om,5o de bocca ; a outra tinha 6 9m,3° de cumprimento (6m,5o de banco a banco) e largura de om,40. A' i.a dei o nome do rio « Ikê », á 2a o da data do nosso embarque, « 4 de Agosto ». Na hora da partida verifiquei que as nossas impro- visadas embarcações, feitas toscamente por trabalha- dores, como já disse, inexperientes, entre os quaes não havia um carpinteiro, não tinham estabilidade, eram loucas, e com toda a carga ficaram com as bor- das á flor d'agua. Tive então de mandar cortar talos das folhas de Burity para construir feixes que, amarrados aos costados delias, servissem de flu- ctuantes, augmentando assim não somente o seu deslocamento, como também a estabilidade. Cada canoa ficou com 2 destes fluctuantes de cada lado. Emquanto o serviço foi feito por terra as dis- tancias foram medidas a corrente de 20 metros e os rumos tomados com bússola de algibeira, mas, desde que embarcámos, passei a tomar os rumos com a bússola de transito Gurley e as distancias com uma corda, também de 20 metros, até que o rio permittio navegação franca quando, então, empreguei o reló- gio nessa medição. Um das pontas da corda ia amarrada ao lado do patrão da canoa da frente e a outra na segunda canoa ao meu lado, de modo que eu fiscalizava bem a medição, dando o signal para que o patrão da i.a canoa collocasse nas margens do rio uma vara que servia de fixa. No ponto em que entrámos na matta, no porto do nosso embarque e em diversos acampamentos deixei marcas de madeira com inscripções da data, natureza do serviço e distancia contada, para os dois primeiros, da estacão de Vilhena e, para os outros, do porto do embarque. No i.° ponto em que encon- trámos o rio e em diversos outros tomei a sua secção e o seu volume d'agua, tendo também calculado a força em H.P. dos primeiros saltos. Fiz diariamente observações de aneróide. Logo nos primeiros dias verifiquei que das van- tagens com que eu contava, descendo o rio embar- cado, apenas me restava uma que, aliás, justificava por si só a resolução tomada : a facilidade de transporte. O rendimento do serviço continuou a ser muito pequeno, acontecendo mesmo descer a 350 metros apenas de avançamento em um dia inteiro de intensos esforços ! O trabalho de machado não diminuio, e tor- nou-se, pelo contrario, mais penoso por ter de ser feito em sua maior parte dentro d'agua. O rio extra- ordinariamente atravancado, com curvas muito for- tes, difficilmente dava passagem ás canoas, e as numerosas cachoeiras, obrigando, quasi diariamente, á descarga da bagagem e ao seu transporte ás costas para o extremo inferior, retardavam e tornavam penosa nossa marcha. Nas cachoeiras tinhamos de passar as canoas a pulso ora sobre pedras, ora sobre rolêtes e muitas vezes sustentando-as mesmo fora d'agua. Só esses obstáculos, naturaes no serviço que eu iniciava, mas que eu não havia previsto por in- experiência, justificam que trabalhando o dia todo com o máximo esforço não conseguisse uma média nem de 1 kilometro por dia no i.° mez de serviço. Por outro lado os trabalhadores começaram a desanimar — tendo eu necessidade, já no 6.° dia de viagem, de reunil-os para animal-os, mostrando-lhes a importância do serviço que nos estava confiado, a necessidade imperiosa que todos tinhamos de con- 8 cluil-o, pelo compromisso que havíamos tomado de o fazer, e minha resolução firme e absoluta de leval-o a termo ; preveni-lhes também o espirito para os novos obstáculos que encontrássemos e que seriam inevitáveis, mostrando-lhes mais os perigos e os trabalhadores inutilizado por haver ferido o pollegar muito ao contrario de nos desanimar deveriam ser antes motivos para satisfação, porquanto os iamos vencendo a todos sem que nenhum podesse resistir á nossa acção conjuncta; disse-lhes que tudo isso era natural em serviço de exploração e citei-lhes exemplos das explorações anteriores, feitas na Com- missão de Linhas Telegraphicas, onde todas têm sido levadas a effeito atravez dos maiores esforços e dos mais abnegados sacrifícios. Nem assim, entretanto, consegui levantar o animo de todos, pois, passados quatro dias apenas já dois delles me pediam guias para regressar ao acampamento geral ; esses nunca mais trabalharam sem se lamentar constantemente, abatendo com isso o animo dos outros. Além disso, começaram a apparecer enfermi- dades e accidentes. No dia 18 de Acosto tive um dos trabalhadores inutilizado por haver ferido o pollegar do pé direito com um golpe de machado que o cortou quasi até o meio, tendo sido preciso acabar de amputal-o, o que mandei fazer com uma lamina de navalha Gillette, á falta de melhor instrumento. Antes que esse ficasse bom outro soffreu desastre semelhante. O mais grave, porém, deu se a 22 de Setembro sendo victima delle um dos dois mais des- animados, que, cortando um palmito para a nossa refi ição da noite, o fez com tanta infelicidade que 9 foi derrubado pela palmeira e esta eahio-lhe por cima causando-lhe lesões internas de que veio a íallecer seis dias depois, a 28 de Setembro. Carre- gando esse infortunado companheiro de jornada com todos os cuidados que nos foram possiveis pres- tar-lhe na situação em que nos encontrávamos, demos-lhe sepultura no ponto em que veio a fallecer, e sobre ella collocámos uma cruz com inscripção. Ficou, assim a nossa pequena turma reduzida a 7 homens, commigo, e dos trabalhadores apenas um, o reeional Manoel Pedro Gonçalves, estava bom e sempre disposto ao trabalho ! O rio Ikê corre em matta até a distancia de 20 kilometros onde começam a apparecer os campos indígenas, á direita primeiramente. A 27 kilometros notam-se também á esquerda. Esses campos ora afastam-se, ora approximam-se das margens, che- cando raramente a encostar no rio. Seu leito é sempre de pedra canga e as margens ora firmes, ora pantanosas, têm abundância de palmeiras, princi- palmente de Anajá, Burity, Acuri, Tucum, Pias- saba, Assahi, Bacaba, Paxiuba, etc, conforme sua natureza. Elle é pobre em seringueiras, notando-se apenas algumas dessas arvores espaçadas — mas tem bastante Cedro, Guanandi, Faveira, Jatobá, Páo Brasil, Soveira, etc. Encontra-se também em suas margens Salsa Parrilha e muita congonha. Os campos indigenas prolongam-se pelo rio 10 abaixo, e atravessando-os, a cerca de 24 kilometros nota-se cerrado que se estende a se perder de vista. A 31 kilometros e 700 metros encontrámos o primeiro salto, pequeno com im,20 de altura, encra- vado em um trecho de mais de 300 metros de cachoeira. Nesse ponto já as margens do rio são apenas cobertas por uma nesga de matta, o campo chega mesmo num ponto ou outro a encontral-o. O rio tem ahi um volume d'agua de 4m3,797, e a ener- gia do salto foi calculada em 76,7 H.P. A bagagem foi transportada ás costas desde o inicio das cachoei- ras até encontrar-se novamente o rio manso e as canoas foram arrastadas por terra num percurso de 160 metros, serviço esse que concluimos em 2 dias. A 34,500 kilometros encontrámos grandes bre- jos que chegam até ás margens do rio. (As distancias são todas referidas ao porto do nosso embarque). A 39,600 kilometros recebe o Ikê o seu primeiro affluente : um ribeirão que cahe pela margem direita e que supponho ser o Toloiry, com 5 metros de lar- gura e um volume d'agua de 3m3,355- A 45,600 kilometros recebe elle outro affluente, ainda pela direita, outro ribeirão de 5 metros de largura. Depois de receber este, o Ikê tem uma descarga de 6716 litros por segundo e 8m,6o de largura. A 46.300 metros atravessa elle um grande acurizal, depois um pantanal, a 56 kilometros, e cahe novamente no cerrado e nos campos indígenas • com lindas pastagens de capim gordura. Em seguida o terreno começa a se accidentar e vão appa- recendo morros altos á esquerda desde a distancia de 61.800 metros; o rio depois de cachoeiras e 11 rápidos tem as aguas um pouco represadas para em seguida despenhar-se com a velocidade de im,67 por segundo, por um bellissimo salto de 5 metros de altura ao qual denominei « Joaquim », em homena- gem ao camarada Joaquim Rios que a 28 de Setem- bro ahi falleceu, como acima tive occasião de referir. A descarga é ahi de 1 5 metros cúbicos, 743 deci- metros cúbicos por segundo, e a energia do salto é de 104.9 cavallos vapor. O transporte das canoas no salto foi fácil. Tiramol-as d'agua bem próximo ao salto, arrastamol-as uns 15 metros e fizemol-as des- penharem-se pelo desbarrancado do terreno até o rio. Tivemos, porém, o cuidado de prendel-as por cordas para que não fosse muito brusca a sua des- cida pelo despenhadeiro, mas as cordas não resis- tiram, arrebentaram-se e as canoas, uma após outra, foram, assim, precipitadas ao rio. Um dos trabalha- dores, nadando, puxou-as para o remanso, onde foram então exo-ottadas. Esse salto, constituido por uma queda única, é muito bonito ; abaixo delle o rio forma uma grande bacia com cerca de 100 metros de largura por 150 de comprimento na qual as aguas correm em todos os sentidos, depois delia elle canaliza-se de novo tor- nando-se muito fácil a navegação por offerecer um grande trecho limpo e sem cachoeiras. Em seguida elle alarga-se mais e fica mais limpo, mas a ausência de peixes indicava-nos que ainda havíamos de encontrar outras quedas. A 88 kilometros entra pela esquerda com 4 metros de largura o primeiro affluente de alguma importância que apparece por essa margem, vindo desaguar no Ikê com o rumo de 60 NW. 12 Na distancia de 93,500 kilometros entra o Ikê em zona de lagoas e assim corre grande extensão ; depois surge novamente o cerrado, que margea o rio até muito abaixo delias. O rio que tanto melhorara depois do salto muda novamente de feição. Entrando nos pantanaes elle estreita-se aprofunda-se, descreve curvas fortes, como nos primeiros dias, e o serviço de machado augmenta muito. Mas, passado um trecho nessas condições, melhora um pouco para depois continuar a descer cachoeiras que não terminam senão quando encontra um salto ou uma queda forte. Do km. 1 1 1 em deante passei a fazer a medição por meio da hora. A corda que servia para medir estava já muito podre o que nos impedia de enfiar mesmo os rápidos, porque qualquer tensão maior a fazia arrebentar, pelo que tinhamos de parar sempre para medir esses trechos por terra. Emendando os pedaços de corda que prendem as barracas aos tor- nos empregados na sua armação, consegui fazer outra cheia de nos, porém, forte. Infelizmente em uma cachoeirinha encravada entre rápidos, ella prendeu-se nas pedras e perdeu-se, sendo impossi- vel encontral-a pela profundidade do rio e corren- teza de suas aguas. Fui, assim, forçado a lançar mão do relógio comquanto o estado do rio não permit- tisse ainda o emprego desse meio sem muita diffi- culdade e, portanto, com pouca confiança no seu resultado. Nesse ponto o cerrado chega até ás margens do rio e avistam-se bellos chapadões de um e outro lado, formando ondulações, que indicam valles e divisões. 13 A 113,800 km. do porto do nosso embarque encontrei um trecho bellissimo do rio. Elle vem cor- rendo pelo campo, de súbito estreita-se tanto entre as pedras argilosas que viemos encontrando desde o salto <( Joaquim » que facilmente pode ser atra- vessado de um passo. Ahi é mesmo passagem batida dos Nhambi- quaras. Estabeleci, bem sobre essa passagem, nosso acampamento. Sem cordas, com o pessoal doente e enfraque- cido, não pude deixar de arriscar, ainda uma vez, as nossas canoas, largando-as pela corrente abaixo, quando não nos foi mais possivel contel-as segu- ras só com as nossas próprias mãos. Tinhamos de transpor um trecho de mais de 100 metros, encachoeirado, com curvas fortes e marginado de pedras ! Era preciso que as canoas fossem largadas na entrada da primeira cachoeira e apanhadas logo abaixo delia para serem encaminhadas pelo canal apertado a que me referi e cuja largura não excedia de om,5o. Tornou-se necessário alargal-o, cortando e quebrando pedras a machado, por ser impossivel a passagem das canoas por lugar tão estreito e com tão forte curva, nem ser possivel também tiral-as d'agua pela grande altura das barrancas. Foi relativamente fácil esse trabalho, pois, com duas horas de trabalho de três machadeiros, conse- guimos abrir o caminho. Vinte metros mais abaixo novo passo apertado e em curva que nos obrigou ao mesmo trabalho, ainda com maiores difficuldades porque não havia 14 espaço para mais de um trabalhador de cada vez e este mesmo em posição sem firmeza e arriscada, pois o menor descuido ser-lhe-ia fatal. Preparado que foi esse segundo canal e trazidas até ahi as nossas canoas, das quaes a maior já estava fendida por choque recebido na i.a destas cachoeiras tivemos de suspender o trabalho por já ser tarde. No dia seguinte proseguimos e tivemos de continuar a faina de cortar pedras a machado. O rio passa desesperadamente por novo corredor aper- tado e loo-o descreve outra curva. Parecia não ser muito difficil a passagem das canoas por agua e assim resolvi que se fizesse, não só por assim consi- derar, como pelo estado de extremo cançaço do meu resumido pessoal. Infelizmente, porém, a nessa melhor e maior canoa, levada vertiginosamente pela corrente, foi encravar-se por baixo de um grande bloco de pedra no fundo do rio. Suppondo que cortado esse bloco ella pudesse safar tentei desprendel-a mandando logo partil-o a machado. No fim de 2 dias de serviço constante conseguimos quebrar o bloco, mas a canoa não sahio ; era preciso recual-a e, ahi nossa maior difficuldade, não dispúnhamos de outras cordas senão as da nossas redes, nem tínhamos pontos para o apoio indispensável ! Arrecadei, portanto, todas as cordas das redes e fui tentar puxal-a para trás. Depois de muitas (liíficuldades e empregando todos nos os maiores desse passo ruim, com o fim de a fazer passal-o, esforços, conseguimos recual-a para o principio arrastada por sobre as pedras; quando porém, já suppunhamos a canoa salva, as cordas partiram-se 15 e ella precipitou-se novamente indo prender-se outra vez no mesmo lugar ! Não me resignava a abandonal-a porque a outra era pequena, não comportava toda nossa carga, e não havia matta perto onde pudesse mandar fazer outra, por isso tentei ainda salval-a. Foi mais um dia perdido em um lugar onde difficilmente conse- guíamos palmitos de guariroba, não tinhamos mel, nossos géneros estavam acabando-se e não parecia que o rio depois disso nos offerecesse navegação franca ! Desprendemos novamente a canoa, mas, tra- balho perdido, ella foi encravar-se mais abaixo e vimos, então, que já estava inutilizada. Não havia mais remédio, passamos a segunda canoa por terra, mandei collocar-lhe mais um par de bóias de talos de buritv, tiradas da primeira, e reduzir as bagagens. Reduzi nossa cozinha ao estrictamente indis- pensável e, quanto ás roupas, abandonámos tudo que não fosse de immediata necessidade. Mesmo assim três dos trabalhadores tinham de seguir a pé por terra até que eu pudesse encontrar nova solução. No dia seguinte reduzi ainda mais a bagagem, abandonei todos os livros, todas as peças do transito desnecessárias ao levantamento á bússola e collo- quei na canoa um dos camaradas cujo estado de saúde não lhe permittia nem andar, acompa- nhando-nos. Nessa cachoeira, a que denominei da « Canoa », encontrei vestígios frescos de indios — tinham deixado ahi duas cabaças presas a uma arvore para sua volta. Deixei-lhes, como brindes, machados, cintas, linha, pratos, chicaras, roupas, etc. Com o 16 trabalho nas pedras haviam-se quebrado cinco machados. Os índios tiveram maloca ahi antigamente ; eu acompanhei até bem longe um trilho batido, que segue pelos chapadões afora o qual supponho ir ate Campos Novos. Mo km. 117,400 encontrámos outro salto a que dei o nome de « Desvio » por ter encontrado um desvio por sobre as pedras que muito facilitou o transporte da canoa. Elle tem 4 metros de altura ; o rio tem ahi 20 metros de largura, corre com uma velocidade de 2m,22 por segundo e sua profundidade media é de om,7o. No km. 118,500 encontrei outro salto menor a que chamei «Salto da Ilha ». Este tem apenas 1 metro de altura. Dahi em deante o rio é accidentadissimo, as corredeiras e cachoeiras são frequentes. A 126 km. outro salto de 1 metro, 240 metros abaixo outro de 5m,5 e logo depois, 140 metros adiante, novo salto de 6 metros. Somente nesse trecho a carga foi transportada ás costas na distancia de io8om e as canoas foram arrastadas por terra sobre 160 m. Como avistasse outro salto logo abaixo dahi e o rio estivesse todo cheio de cachoeiras, além de que a nossa pequena canoa não comportava todo o pessoal, resolvi fazer o levantamento por terra, aproveitando o campo que ainda acompanha o rio. Ahi o terreno é mais accidentado, existem morrotes de um lado e ao longe avistam-se três grandes valles á direita que são os do Camararé, 12 de Outubro e Juruena e a esquerda um, o do Ananaz. 17 Ao chegar ao salto que avistara e que chamei dos « Peixes », por serem vistos pela primeira vez peixes grandes, ouvi gritos e tiros com que me chamavam. Voltando a attender soube do naufrágio pela segunda vez de nossa canoa. Molhou-se tudo, roupas e géneros, porém, nada ficou perdido. Antes do Salto dos Peixes ainda tivemos de puxar a canoa por terra em uma cachoeira e em uma queda, ao todo 50 metros, e sobre roletes em outra auéda. JL Para transpor esse salto abrimos caminho subindo um morrote porque elle é apertado entre escarpas muito fortes e formado por três quedas uma de 3 metros, outra de 8 metros, e a ultima de 24 metros. Tivemos que arrastar a canoa pelo morrote, numa distancia de 395 metros, dos quaes 120 metros em subida e a carga foi transportada ás costas numa distancia de 900 metros. Em passar o Salto dos Peixes gastámos quatro dias, mas, dahi em deante o Ikê é navegável franca- mente por lancha até sua desembocadura no 12 de Outubro. No km. 180 recomeçaram os alagadiços e também encontrámos depois com mais frequência passagem dos indios. Nesse ponto entra pela margem esquerda um ribeirão grande, de 20 metros de largura e bastante agua — - que supponho ser o Ananaz — elle entra com rumo 42o NE. Apparecem então as seringueiras com abundância. A 227 km. do porto do embarque o Ikê, tendo, então, cerca de 30 metros de largura, desagua no « 12 de Outubro » — que tem de 80 a 100 metros de largura e vem com o rumo de 60 SW. Seguindo « 18 por este, 1800 metros, abaixo encontra-se o rio Camararé, que tem approximadamente 120 metros de largura e o rumo de 90o W Ahi começam grandes capoeiras (?) de indios que seguem o rio todo até o « Juruena » que é encon- trado depois de 26jk,4.oo, contados do ponto de nossa partida. Assim, depois de andarmos tanto tempo em córrego, esperando a cada instante um rio pela direita (o «12 de Outubro») encontrámos primeiro o «Ananaz» (*), a esquerda, e logo depois o a 12 de Outubro », o « Camararé » e o « Turuena » que foi reconhecido pelo marco deixado pelo Capitão Pinheiro. Ao encontrarmos o Juruena tivemos um certo descontentamento por verificarmos que o rio que tanto trabalho nos dera para seu estudo não passava de um affluente pequeno do « 12 de Outubro » — e tivemos então maior pressa em chegar onde hou- vesse telegrapho para evitarmos a sahida da outra turma de exploração que devia descer o «12 de Outubro » na supposição de que elle também não fosse aírluente do « ]uruena ». No dia 31 de Outubro, em que chegámos ao rio Juruena, tivemos o prazer de encontrar os Nhambi- quares. Seriam 9,30 am. quando ouvimos barulho no matto de gente que se despenhava de arvores e corria. Immediatamente mandei atracar a canoa na margem opposta ; gritámos pelos indios mostrando- lhes machados, contas e linhas. Em seguida appare- (') As explorações posteriores (1915 — 1916) do rio Ananás demonstraram Su< este rio não junta suas aguas ás do Ikê, mas ao rio Roosevelt (antigo >uvida). 19 ceram dois que chamei, acenando-lhes com os presentes. A principio ficaram indecisos, mas depois atravessaram o rio e foram ao nosso encontro. E' indizível o prazer que todos nós sentimos com o encontro dos Nhambiquaras : pareciam-nos amigos esperados por uma longa ausência ! A alegria nelles por nos encontrar não foi menor que a nossa. Elles informaram-me que vinham de longe e que iam para Campos Novos. Para atravessarem o rio, um collocou por baixo dos braços duas bóias finas de talos de buritv, emquanto o outro, firmado nos pés do primeiro, foi por elle rebocado até onde estávamos. Depois atravessámos levando um na canoa e o outro nadando apoiado na popa. Na margem em que elles estavam, appareceram então outros indios, homens e mulheres que nos deram fumo, mel e collares, em troca do que lhes demos. Quando continuamos a navegar, um destes nos acompanhou pela matta, dando aviso a outros de nossa approximação ; um pouco abaixo, onde parámos para almoçar, vieram ao nosso encontro um homem com sua mulher e um rapazinho e mais adiante ainda encontrámos outros, a todos os quaes distribui brindes. Ao chegar ao juruena encontrámos um trecho de cachoeira e, depois de 3 1/2 dias de viagem, entrámos em um outro trecho grande de cachoeiras, onde a navegação além de difficil é perigosíssima — são os últimos contrafortes da serra dos Parecis, pois, logo abaixo encontrámos o rio Arinos. Nesse trecho transportou-se a carga ás costas cerca de 1700 metros. 20 — - No dia 6 de Novembro, antes ainda do Arinos, logo ao partirmos do nosso acampamento, em um trecho encachoeirado e cheio de rebôjos, nossa canoa alagou-se ; a principio suppuz-nos todos perdidos, pois, só um nadador muito bom poderia escapar descendo a correnteza. Mandei remar com força para uma das margens, mas foi-nos impossivel attingil-a, entretanto, percebendo que a canoa não sossobrava devido á qualidade da madeira de que era feita e ás 6 bóias que trazia, ordenei que ninguém a abandonasse, dizendo que não haveria perigo e que rodando pelo rio abaixo atravessaríamos as cachoeiras todos juntos. Infelizmente, o inspector Francisco Mascarenhas não conseguio dominar-se e, abandonando-nos, atirou-se á agua, salvando-se com muito custo. Mandei logo que os outros cama- radas que sabiam nadar pulassem nagua e nadassem agarrados nas bordas da canoa. íamos descendo assim quando ella emborcou e vimos boiarem logo sem que nem os pudéssemos tentar salvar, saccos de roupa e minha barraca, perdendo também o nosso fogo, que transportávamos diariamente, de pouso em pouso, por já termos perdido os phosphoros nos naufrágios anteriores... [ulguei que toda carga se tivesse perdido, mas, felizmente, quando chegámos á margem verifiquei que as canastras e alguns saccos de roupa não se tinham perdido. Foram-se porém, os viveres, todo trem de cozinha, armamento, ferramentas, brindes para os Índios, etc. Das armas de fogo salvou-se apenas uma que, por ter sido do camarada fallecido, estava no fundo da canoa, por baixo das estivas, foi com ella que 21 consegui fazer fogo dahi em deante. Perdemos também nossas linhadas de pescar, pelo que tive de dar para esse emprego os cordões dos punhos das nossas redes. Encostados á margem, descarregámos a canoa quando, emfim, escapos do perigo, deveriamos proseguir em nossa viagem ; não o pudemos fazer : cumpria-nos soccorrer o companheiro que não poderia descer para nos vir encontrar muito abaixo, porque estávamos do lado opposto, perto da margem direita e teriamos ainda de ir muito para a direita para evitar outras cachoeiras que estavam á nossa vista e não podiamos atravessar o rio. Tivemos então de subil-o novamente pelas corredeiras para podermos atravessal-o o que fizemos com grande perigo e muito trabalho. Depois de um trecho bonançoso, tivemos outro da cachoeira, onde encontrámos o Salto « Augusto ». A carga foi transportada ás costas neste segundo trecho cerca de dois kilometros. No Salto Augusto perdemos dois dias arras- tando a canoa por sobre pedras na distancia de 670 metros. Depois do salto o rio continua ora encachoei- rado, ora manso, até o lugar denominado S. Luiz, onde chegam lanchas. A abundância de seringaes, caucho e castanhas é surprehendente, enthusiasma o mais indifferente. A caça e o peixe são também extraordinariamente abundantes. E' pena que tanta riqueza esteja encra- vada entre tantas cachoeiras, onde a navegação é perigosa e continuamente fatal aos seringueiros. - A 24 de Novembro encontrámos os pri- 22 meiros civilizados, seringueiros que estavam abrindo estradas por conta do Sr. Raymundo Nery. Elles nos deram noticias da expedição do Capitão Pinheiro e serviram-nos de práticos, auxiliando-nos muito até a collectoria do Estado de Matto-Grosso na foz do S. Manoel. Ahi tivemos o melhor acolhimento por parte do respectivo collector Sr. José Sotero Barreto que nos prestou auxilio, conseguindo-nos conducção. A nossa canoa deixámos no « Canal do Inferno » por ser já desnecessária. Pelo Sr. Sotero e por outras pessoas estabele- cidas no Tapajóz tivemos informações sobre o explorador Savage Landor, que não levara comsigo nem uma bússola ! A isso talvez deve-se attribuir clle ter estado perdido alguns dias em um varadouro que partindo do Tapajóz vae ao Sucundury e que é conhecido dos seringueiros, tendo até sido, pouco antes, percorrido pelo agrimensor Ravmundo Nerv em exploração para uma estrada de ferro - — com o fim de ligrar esses dois rios e evitar as cachoeiras que o Tapajóz tem dahi até S. Luiz. O Sr. Landor, não conseguindo orientar-se, teve de voltar á Colle- ctoria, não sem experimentar antes, com sua gente, as privações da falta de alimento. 0 Tapajóz era conhecido pelos seus moradores por [uruena até S. Manoel. Foi o Sr. Capitão Pinheiro quem primeiro lhes informou do verda- deiro nome do rio, o que mais tarde foi confirmado pelas minhas informações. 1 teixo de ('ar mais esclarecimentos sobre o furuena e Tapajóz por já terem sido dados pelo Sr. ( iipnàu Pinheiro. 23 Devo deixar aqui consignado o bom acolhi- mento que encontrei por parte dos seringueiros esta- belecidos no Tapajóz, a começar pelo Sr. Romano Fontoura, o primeiro encontrado, e Srs. António Braga e Cyrillo Bello ambos da firma do Sr. J. P. Brazil, que é o intendente de Itaituba, bem como os Srs. Alcântara e Álvaro de Moraes que nos condu- ziram gratuitamente o primeiro desde a Collectoria de S. Manoel até Quata-Quára e o segundo dahi a S. Luiz, onde tomámos passagem num vapor fluvial para Manáos de cujo porto demandámos o do Rio de Janeiro. E' de justiça destacar entre todos os que me acompanharam nessa expedição, em primeiro lugar o guarda fio Joaquim Sol, homem sempre disposto ao trabalho, dedicado, obediente e que foi sempre o encarregado de nossa navegação, e em segundo lugar, o trabalhador Manoel Pedro, sempre disposto a qualquer serviço - de todos os trabalhadores, o melhor auxiliar, nas occasiões em que tinhamos necessidade de arrastar as canoas. Recebi 12 contos de reis no Rio de Janeiro, para as despezas de viagem e pagamento do pessoal de minha turma ; dessa importância prestei contas no escriptorio da Commissão. Recebi do Tenente Heron, pagador da secção Sul, por intermédio da casa Oilveira Freitas, a quantia de 12 contos de reis que gastei conforme conta corrente que já lhe foi remettida. A féria dos trabalhadores montou em 6:9995500, mas nessa 24 cifra estão incluídas diárias de um anno inteiro para dois delles e diárias para outros contadas desde muito antes de começarem a trabalhar nessa explo- ração, por serem já empregados da Commissão. Como despeza extraordinária do serviço de explo- ração do Ikê póde-se apenas notar 62 5 $500 — gratificação especial a dois dos trabalhadores e mais 2 :2o8$i6o de transporte, hospedagens e alimen- tação. A despeza total extraordinária foi, pois de 2:833$66o. — Já tendo feito entrega das cadernetas ao escriptorio da Commissão, nesta Capital, das quaes constam os dados technicos da exploração e os elementos necessários para a confecção das plantaSj creio com o presente relatório completar a com- missão que me havíeis confiado e que procurei desempenhar conforme o meu dever. Rio de Janeiro. 24 de Março de 191 3. Júlio Caetano Horta Barbosa 1." Tenente.