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Felicidade
pela Agricultura
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OBRAS COMPLETAS
DE
ANTONIO FELICIANO DE CASTILHO
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VOL TN 5.º
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VOLUMES PUBLICADOS:
[ — Amor E MELANCOLIA,
IH — A cHAVE DO ENIGMA.
HI — Cartas DE Ecco E Narciso.
IV — FELICIDADE PELA AGRICULTURA (1.º vol.)
V — FELICIDADE PELA AGRICULTURA (2.º vol.)
NO PRÉLO: -
VI— A PrimavERA.
“OBRAS COMPLETAS DE A, F. DE CASTILHO
Revistas, annotadas, e prefaciadas por um de seus filhos
o
D'
FELICIDADE
PELA AGRICULTURA
SEGUNDA EDIÇÃO
VOLUME H
LISBOA
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
Sociedade editora
L'VRARIA MODERNA | TYPOGRAPHITA
R. Augusta, 95 | 46, R. Ivens, 47
Ê
XI
Quinto serão do casal
Tres novidades aos amigos lavradores
- SUMMARIO
O autor já tinha saudades do Casal. — Onde passou
o mez de Maio. — Desencantamento que trouxe da
Capital. — Insiste-se na necessidade de representa-
ção agricola. — Testemunho que lhe levantam attri-
buindo-lhe desejos de ser Deputado. — Rasões por
que o não deve nem quer ser. — Que fazem e como
são Os nossos inimigos. — Não se lhes deve oppôr a
violencia bruta, mas juizo, e salvarmo-nos por uma
eleição de consciencia. — Duas novidades traz o au-
tor da Cóôrte — Primeira: que a Sociedade de
Agricultura Michaelense vai sendo imitada em Por-
tugal. — Segunda : a publicação do Guia e manual
do cultivador. — Louvor d'esta obra, e de quem a
fez. — A Sociedade promotora da Agricultura a co -
roou. — O que os premios produzem de bem. — Tor-
na-se ao projecto da Ordem do arado. — Noticia do
banquete da Sociedade da Agricultura. — Hymno
dos Lavradores.
Já tinha saudades de vós, meus bons ami-
gos. Lá passou, e bem a meu pesar, o mez
de Maio, sem eu visitar este casal.
;Maio sem vós! je sem campo! ; Maio n'uma
cidade, e Capital! je das maiores! ;onde o
que só dá flores, mas não para frutos, é a
rhetorica dos politicos, e onde, para nada ver-
dejar, nem sequer esperanças já verdejam!!
6 Empreza da Historia de Portugal
;Oh meus excellentes lavradores! Quizera
eu, não que vos arrancasseis do vosso torrão,
para irdes ver o que é uma Côrte, e apren-
derdes a amar-vos; mas que ao menos a so-
nhasseis uma vez, tal como ella é, e como
são todas: magnifica de marmores e archite-
cturas, rumorejante de festas e musica, tro-
vejada de carroagens, refulgente de gaz, que
supprime a noite, alardeando senhores e
principes, remirando-se nos enxames de suas
damas; mas, no meio de tudo aquillo, esteril,
desencantada, e não tirando de si os olhos
com medo de os lançar para o futuro....
Pois se fosseis lá com algum pensamento
sincero de amor dos homens, com alguma
santa loucura de alma desinteressada, d estas
que alguma vez devaneámos na calada das
vossas solidões, e que tão faceis foram de
realisar; se vos désse: em ir mendigar para
a civilisação, e para os-filhos e netos de nós
todos, algum favor muito pequeno, e muito
justo, como vos não recolherieis ás vossas
poisadas, descrentes e esmorecidos, para
nunca mais arredardes d'ellas nem os pés,
nem os olhos, nem o pensamento !
Meus amigos, meus amigos, deixae falar os
nescios, que tão mal vos querem a vós como
a mim; e crêde no que vos repito com a
mão na consciencia e nos Evangelhos: para
que, do meio das leivas rusticas, nos saiam
emfim Deputados representantes da terra,
semeemos o juizo, se desejamos colher a fe-
licidade; se não fôr já hoje a hora do-des-
engano, medo tenho de que seja amanhan
a de acabarmos.
iSabeis o que dizem lá nos seus pagodes
7 é
ue digo o A DE
- Obras completas de Castilho 7
estes mexeriqueiros ruins, vossos inimigos e
meus? estes ingratos, que, devendo-vos
tudo, invejam até o pé'do inhâme que seme-
“ais para os filhos, e, de vaidosos que são, até
a figura humana vos tirariam, se podessem ?
; Sabeis? ; adivinhais, não o que elles pen-
sam, mas o que elles dizem? Dizem, que no
dar-vos este conselho, o unico bom conselho
que hoje se vos pode dar, só armo á popu-
laridade, para algum dia me ir d'aqui, Depu-
tado feito por vós, sentar-me triumphalmen-
“te n'uma cadeira do Parlamento.
; Então que lhe quereis? Dão o que teem,
e fazem o que podem e costumam.
; E dizer que ha ainda ferrenhos, que não
crêem na jumenta de Balaão!
Não, boa gente, nem vós, quando esco-
lherdes os vossos pares na lavoira, me ha-
veis de nomear a mim, que desgraçadamen-
te o não sou, nem, que o fizesseis, eu vos
acceitaria -a nomeação, Essas honrarias, já
por mais de uma vez as rejeitei; e não foi
para me andar agora á caça d'ellas.
;Eu Deputado!... ;Para quê?
Aqui, no vosso serão, ou entre outros
amigos, n'um colloquio poetico, ou na minha
“ cellasinha phantasiando para um papel al-
guns amores do coração, tenho o meu prés-
timo como outro qualquer. Passeio na-her-
dade em que me creei; não tenho medo de
me perder.; Mas a bordo d'aquella grande
náu! Quem me ensinou a mim a sua mare-
ação? E depois.... o enjõo!... ; Eu na tri-
buna? jeu orador?! Melhor sorte me dê Deus.
Sou muito humilde, ou muito soberbo,
para lá subir. Assentae bem isto em lettras
8 Empreza da Historia de Portugal
grandes na vossa folhinha detraz da porta.
Votae em amigos vossos, sinceros e desen-
ganados como eu, porém mais sabedores e
praticos, do que eu, de vossas coisas, e
mais affeitos ao mundo positivo, que o es-
crevedor de livrinhos, que metade de sua
vida a passa por essas nuvens, e a outra
metade entre creanças. Affronta vos faria
ao bom-juizo, se vos allegasse mais rasões.
Quando se trata de lavras, não é a ando-
rinha, nem a cotovia, que vós jungis á can-
ga do arado. Assim, não é do poeta, que
vós, gente grave e sizuda, farieis o vosso
representante; como tambem o não farieis
d'esses descendentes da jumentinha de Ba-
laão, que, sendo muito pobres de cérebro, .
muito mais o são ainda de coração.
A mim já vós me conheceis; mas ; quereis
acabar de os conhecer tambem a elles? Pois
ouvi.
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Fundou-se ahi uma Sociedade de Amigos
das Lettras e Artes, para fazerem, a bem da
instrucção primaria e dos officios mechani-
cos, o mesmo que em vosso proveito faz a
Sociedade da Agricultura. Era santo insti-
tuto; não era? Pois declararam-lhe guerra,
pozeram-lhe nomes, levantaram-lhe teste-
munhos pela bocca pequena, enredaram.
com cartas anonymas, que mandaram impri-.
mir n'outras terras, imprimiram outros a-
leives aqui mesmo, mas com datas fingidas
e de longe, porque tamanhas vergonhas
eram, que, sem mascara, nem elles as ou-
sariam; peitaram, por baixo de mão, crean-
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Obras completas de Castilho 9
cinhas desvalidas a desertarem das nossas
“escolas, para continuarem a apodrecer na
oa cos que eram seus servos, pro-
* hikicam-lhes frequental-as.
Quando me eu ja d: proposito, viagem
* de mais de duzentas leguas por esses mares
de Christo, para requerer se nos désse aqui
“um chãosinho em que edificarmos, á nossa
custa, uma albergaria para as pobres Lettras
| e Artes, mandavam elles, atravez de egual
- Oceano, quem lá fosse pedir que nos inde-
RR rstem, quem nos denegrisse bem dene-
pricos; quem patrocinasse e advogasse, por
| todos os modos (sobre tudo pelos secretos),
Ea causa da ignorancia; quem iidasse por
vos perpetuar na condição ignominiosa de
- servos da gleba, um pouco mais que tron:
“Cos, um pouco menos que bestas de carga.
— «q É vingaram esses tramas diabolicost »
—perguntareis vós.
| Quem sabe! talvez sim; o tempo o des-
“cobrirá.
Ahi tendes o que elles são; guapos cora-
ções, e guapissimas cabeças para legislado-
Tres; admiraveis amigos da terra em que
nasceram, ou que os abortou, e do Povo,
que sua de trabalho para que elles suem de
praseres, que anda nu para que elles se
enroupem com arminhos, e cospe sangue
nas mãos por elles, que lhe cospem despre-
“zo sobre ambas as faces.
Meus amigos, se queremos ser salvos," é
olharmos por nós, e forcejarmos por des-
tecer todas estas cerradas teias de barba-
“rias. Trabalhemos tão activamente, de dia,
“e ao sol, como elles o fazem de noite, nos
&
To) Empreza da Historia de Portugal
esconderijos, com vigilantes expertos e ter-
riveis a guardal.os. Opponhâmos ás menti- |
ras traidoras, e ás cobardes calumnias, a
verdade e a franqueza; ao anachronico feu- .
dalismo, o seculo x1x, que é o nosso, que é
vivo, e que é forte. Nada de violencia; a
força bruta nada cria, e ameaça tudo; o in-
cendio, o exterminio, as sublevações, o con-
verter as enxadas em machados, e as arvo-:
res, que alimentam, em clavas que derribem, |
fôra curar a doença com a morte, enredar-se
mais nas cadeias, pretendendo sacudil-as,
querer subir ao cume, e afogar-se no abys- |
mo.
A redempção, toda a redempção, só Leis
sabias, e zelosamente mantidas, nol-a hão
de trazer; e é para as termos, que eu vos.
exhorto e vos supplico vos associeis, para
Jurmos a um Povo, que é e deve ser agri-
cola, umas Côrtes agrárias e um Ministerio |
lavrador; isto é: a um Paiz, que pode e
quer produzir, uma providencia e cultura |
apropriadas. Pelo menos, facâmos o que.
de nós depende para o bem, como os ini- .
migos fazem quanto podem para-o mal, lt.
depois... sahirá o que Deus quizer.
x
Por novidades da Côrte me requereis..
Das politicas, nenhuma vos trago, que não |
curei d'ellas, nem já entendo essa linguagem.
Das operas e passeios, das modas, -»e do
aformoseamento das praças, não curais vós.
O que só vos importa, é a terra.
Pois bem: duas novidades vos trago
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Obras completas de Castilho r
uanto á terra, que vos devem ambas apra-
Er.
| À primeira, é que a vossa tão bem augu-
ada Sociedade promotora da Agricultara
Aichaelense, ao mesmo passo que vos fe-
unda por cá o solo por via da instrucção,
az nascer lá pelo Reino, por via da emula-
ão, outras semelhantes Sociedades, que, se
rem avante, é imitarem sempre a sua pre-
ecessora, transformarão a final a Patria, de
jendiga despresada e decrepita, em abas-
da, juvenil, e formosa, mediante aquelle
songresso e aquelle Ministerio que já sabe-
hos, e para que ellas hão-de, quando cres-
serem e se propagarem, contribuir infallivel
irresistivelmente.
E: *
Ed
* A outra novidade, tambem para alviçaras,
“um Livro.
Um Livro nem sempre é uma obra; as
mais das vezes é palavras, das quaes as
obras distam muito.
| Este, porém, que vos eu annuncio, deve-
as é obra; custou bom estudo; fez-se com
amor e consciencia; allumiará os vossos es-
piritos;/e contém em germes grande copia
de frutos, que, em vós querendo, entrarão
logo a rebentar pela superficie do vosso solo.
Tem por titulo Guia e Manual do Cultiva-
dor, ou Elementos de Agricultura.
* Antes que d'elle vos fale, ou para supprir
| que d'elle vos poderia encarecer, deixae-
he falar-vos do seu autor, que, melhor do
ue eu, sabeis vós como pela arvore se adi-
inha o fruto.
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12 Empreza da Historia de Portugal |
José Maria Granpe, Doutor abalisado em
Medicina e Philosophia, e Lente ha anno
de Botanica e Agricultura na Escola Poly
technica de Lisboa, é um d'aquelles espiri
tos eleitos, que a Providencia predestina a
bem commum, e que, para melhor se habi
litarem ao desempenho do seu sacerdocio
lhe saem das mãos ad mesmo-tempo graves
e amenos; sizudos, e poéticos; para a ra
são, convincentes; para a vontade, persua
sivos. | |
Desde a flor da mocidade o amo eu, qu
desde então nos conhecemos. N'aquella:
famosas festas da Primavera, celebradas nã)
margens ridentissimas do Mondego, e dk
que já póde ser ouvirieis falar ou ler algum
coisa, foi elle um dos que mais por enga
nho se extremaram. |
D'ahi para cá (e não são tão poucos
annos), sem renegar o culto das Musas, qué
tão dadivosas o prendaram, entrou, comtudo.
a combinar com aquelle affecto outro mais
alto; com a poesia espontanea da imaginas
ção, que é só rosas e fragrancias, a poesii
cultivada e frutifera da Natureza. As scieni:
“cias d'ella, foi-as enxertando no talento,
foi-as nutrindo e robustecendo com a seiba
assim melhor aproveitada, do seu engenho,
Imaginae jo que não estarão hoje produ;
zindo ! |
Então, era a primavera, a florescencia, q
poeta. Hoje, é o sabio, a meditação. o ou|
tono, a abundancia. Então, o rouxinol que
enfeitiçava as ociosas noites de luar. Hoje,
a aguia que se remonta ás alturas, d'ond
abrange largo mundo, e que fita os olhos
Obras completas de Castilho 13
scrutadores no proprio sol. Coração e in-
ole não lhe mudaram; mas os amores que
inha, ideaes e volateis, concentrou-os no
mor grande, no que é bemvindo em todas
s edades, e a todas as ennobrece: no
or dos homens. Como Virgilio, passou
as cadeias de rosas de Amaryllis, ao ma-
isterio das Georgicas, á grave doutrinação
os camponezes. |
“Lavrador elle mesmo, e imbuido copiosa-
nente nas theorias por sua experiencia ve-
ificadas, comprehendendo (até onde é dado)
s mysterios da Natureza, affeito a expli-
al-os, e sabendo realçal-os ainda com a lu-
idez e côres do estylo, commetteu com a
nelhor estreia, e com as fadas mais propi-
las conseguiu, crear para vós o que de toda
| parte, ha muito tempo, se pedia em vão:
+ codigo succinto, mas completo, dos vossos
rabalhos.
É *
.
,
f
' Em dois volumes, e não grandes, é a sua
bra repartida. O 1.º anda já no Publico,
rocurado e festejado; o 2.º não tardará,
odendo-se-lhe desde já prophetisar egual
ortuna.
' Presente bem rico vos será já per si o
jue vos trago. N'elle aprendereis, como in-
roducção ao que vos cabe fazer, para que
| fazenda, como dizia Virgilio, satisfaça ás
ossas cubiças, parte do muito, e do infinito,
jue a Divina Sabedoria fez para vós e para
odos, ao crear a terra, as aguas, os ares, €
s plantas.
' N'este sentido, o livrinho, sem o dizer, é
ps REA CRS 1º]
É
* apa A e : Bal
14 Empreza da Historia de Portugal
tambem dos mais religiosos. Descobrir o
segredos da (reação é adorar o Creaddl
Newton, que mais os sondou, nunca d
Deus falava sem inclinar aquella grande É
beça, que abrangia mundos.
Quando houverdes lido, no vosso Guia
Manual, os maravilhosos segredos do na
cimento e crescimento, da florescencia, fr
“tificação e reproducção das plantas, da su
alimentação, da sua vida, do seu respira
do seu dormir, dos seus amores, das sua
relações de beneficios mutuos com o ar, co
a terra, com os animaes, e comnosco; fica
vos eu que a minima hervinha vos inspir
rá mais devoção, e vos dará mudament
mais conselhos, que a mais devota Image
da vossa aldeia. O que no campo vos par
cia solidão e ermo, deixará de o ser ao
vossos olhos, porque direis :
«Tudo isto, que vegeta em derredor di
mim, me está amando, e amando a sel
modo ao nosso Deus ; tudo isto é vivo, tudk
isto é sabedoria e bondade em acção.» |
E depois, com este conhecimento especu
lativo, que vos ala para as alturas, | quan
tas ideias para applicação e pratica ! Eis
verdade, cada phenomeno, que se So
dos entes a dentro, é um raio de luz qu
nos encaminha no mais acertado modo d
os servirmos e os aproveitarmos. A herdadk
daquelle que aprendeu o capitulo da gra
de Theologia Universal chamado Botanica
entre os predios dos ignorantes se distingui
rá, como a porção de terreno em que Fra
klin mandou á Natureza escrever com gran
des lettras: viçosas um. invento prestadia
“Obras completas de Castilho 15
Isto foi adubado com gesso-— bradavam aos
olhos, no meio de um prado mal fértil,
pomposas lettras de verdura. Isto pertence
a quem entende o viver das plantas — dirá
a duplicada fertilidade da vossa lavoira.
%
Para que não suspeiteis que é a amisade
quem me fascina, quando assim vos exalto
“o valor e prestimo do livro; ou para que,
por ser de extranho á vossa bella firte, me
não desdenheis a recommendação, haveis
de saber que o mesmo que vos eu digo, foi
já sentença de tribunal mui competente,
“qual é a vossa Sociedade promotora.
“Tanto a obra lhe cahiu em graça por sua
singelez e verdade, por sua sciencia e clare-
za, pelo mui serviçal que se vem accommo-
" dando a esta e áquella necessidade do la-
A DEDO E E ED Se)
Ro Era WD mea Ea
AGA E
|
PEER
gr
vrador, e pela segura sonda com que o
autor vai tenteando as novidades antes de
as adoptar (o que nem sempre se acha nos
agrónomos que só teem por geira a folha de
papel, por charrua a penna, por bois os de-
dos, e por experiencia as suas phantasias), .
emfim por sua sciencia e consciencia, tanto
namorou o livrinho a estes sinceros juizes,
que, a par com os louvores é agradecimen-
tos, que já não seriam pequena corôa, lhe
decretaram unanimes uma medalha de oiro.
Fizeram o que o Governo havia de fazer,
se já existira melle o que em nossos votos
existe ha muito: um paternal Ministro da
Agricultura. €
Em quanto o não ha, nem Côrtes que le-
6 Empreza da Historia de Portugal
gislem premios condignos a taes serviços,
necessario é que a virtude dos particulares
vá pagando, como pode, dividas sacratissi-
mas, que não são só do Estado, se não
tambem da Humanidade. ;A Deus praza
que as outras Sociedades agronomicas do
nosso Portugal, edificadas com o santo
exemplo o imitem, e o subam ainda por sua
“parte a maior ponto !
Os talentos dos que podem escrever para
utilidade dos seus semelhantes, são como as
flores fêmininas: conteem no seu ovario, lá
bem no fundo do calix, germes optimos;
mas o pólen, que os fecunda para frutos,
só lhes vem na aura do favor publico. Esse.
pólen fragrante, que os activa deliciando-os,
e encantando a quantos no transito o aspi-
ram, é o louvor e o premio.
Flores d'alma hermaphroditas, que a si
mesmas se bastem para frutificarem, tam-
bem as ha, tambem; mas são muito raras.
Sem premio, nem. esperança delle, nas-
ceu em verdade, e amadureceu, e está já
colhido, o Manual do lavrador; mas agora,
depois do exemplo, ; quem póde calcular o
que no engenho e saber de outros procreará
a louvavel ambição?
| Lembrais-vos d'aquellas condecorações
em que vos eu falava aqui ha tempos, que se
deviam instituir com titulo de Ordem do Ara-
do, e de que tanto escarneceram os parvos,
que, a propôr-se a votos uma Ordem da
maledicencia, calumnia, e mexericos, talvez
a approvariam? ; Lembrais-vos, meus ami-
gos?
Pois, se tivesse já havido um Parlamento
Mo
Hi
[1
tejo
Obras completas de Castilho 17
que a decretasse, e tivessemos um Ministe-
“terio dos Negocios da Agricultura.... um
* Commendador da Ordem do Arado para
' venerações teriamos nós já; e vós m'o di-
À reis quando houverdes devorado o livro.
e %
Antes de nos apartarmos, falemos de ou-
| tra coisa, que tambem vos toca. ;
Sabereis, que, no dia folgasão do nosso
| patricio Santo Antonio, teve a Sociedade
* promotora da Agricultura Michaelense um
| banquete campestre, muito lauto, muito ale-
* gre, mas (o que mais vale, que tudo isso,
* quanto a mim) muito. excitativo para mu-
: tuas harmonias de vontades, e muito des-
' afiador de forças para os trabalhos que mais
E
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importam. Com vinho patrio se bebeu á
* vossa saude, à prosperidade da lavoira, e á,
| perseverança e bons fados da Sociedade,
há | que tanto lhe quer a ella, e mais a vós.
|
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Em nossos precedentes serões, aqui no
casal, vos ponderava eu, e vos provava com
| exemplos, como os poetas foram sempre os
“mais certos amigos e devotos dos campos e
É vida rustica. No livro que vos hoje trouxe
lá vereis mais uma prova; e agora conclui-
| rei com uma recentissima, de minha lavra;
"é o Fymno dos lavradores, que eu apresen-
“tei como postre entre os vinhos e fruta da
“vossa terra, n'aquelle patriotico jantar de
* nossos amigos é irmãos.
VOL. v Z
81 Empreza da Historia de Portugal
Tambem eu, ensinado pelos annos, pássei
das festas da primavera para as do trabalho.
Outros tempos, outros gostos; os mais se-
“guros e abençoados sernpre são esses.
Ouvi pois o vosso Hymno ; se vos aprou-
vér decorae-o, e'no meio de vossos traba-
lhos entose-o muitas vezes. Poesia e Musi-
ca são uns bons adubos, que se haviam de
empregar muito mais a miudo, para esti-
mulo de entendimentos perguiçosos e von-
tades indolentes. De Poesia & Musica muito
se ajuda a civilisação onde ha philosophia,
como em terras de Aliemanha. Os Antigos
por instincto o adivinharam, quando mette-
“ram entre as lições de suas fabulas a de
Orpheu e de Amphião domando rudezas,
amançando feras, e erigindo cidades de cem
portas e immenso trato, ao som de suas lyras.
O que a minha entoou para inspirar o
santo amor dos campos, ainda que não seja
de nenhum Amphião nem Orpheu, ceil-o
aqui. Com mãos limpas vol-o entrego; re-
cebei-o com boa sombra. .'
HYMNO DOS LAVRADORES
Voz
Cantae, passarinhos; cantae, arvoredos;
cantae, frescas fontes; cantae, virações;
cantae, ceos e terra, cantae os segredos
da vida inefavel que anima as soidões.
Côro
De espigas e palmas coroemos a enxada,
morgado, e não pena, dos filhos de Adão.
Mais velha que os sceptros, mais util que a espada,
thesoiro é só ella, só ella brasão.
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“Obras completas de Castilho 19
Voz
Romper tenta o Sabio do mundo a cortina ;
ao Bello dá cultos o Artista, o Cantor ;
o Obreiro transforma; o astuto domina ;
mas o homem dos campos só é creador.
Côro
De espigas e palmas etc.
Voz
Da terra sahimos, á terra volvemos;;
a terra nos veste, nos traz, nos mantem.
é Quem, mais do que a terra, merece os extremos
que obtém dos bons filhos a próvida mãe ?
Côro
De espigas e palmas etc.
Voz
E cárcere, e livre se acclama a cidade ;
infernos de penas, disfarça-os em si.
À léda, abundosa, gentil liberdade,
sem fausto, sem nome, nos campos se ri.
Côro
De espigas e palmas etc.
Voz
As ruas sombrias, as turbidas praças,
só brotam miserias, vaidades, motim.
No campo a abundancia pululla entre as graças,
e adoçam-lhe as lidas delicias sem fim.
Côro
De espigas e palmas etc.
20 - Empreza da Historia de Portugal
Voz.
Gentil liberdade nos campos impera ;
nas médas das eiras seu throno reluz ;
diadema de flores lhe dá Primavera ;
em choça de colmo tem régia Queluz.
Côro
De espigas e palmas etc.
Voz
é Quem nutre as cidades, as frotas, e armadas?
é Quem serve ás mil Artes banquete Real?
A mãe do Commercio, rainha “pp Fadas,
a Fada incançavel, a Industria rural.
Côro
De espigas e palmas etc.
Voz
Esgotam-se as minas; dissipa-se o oiro;
perguiça e pobreza lhes crescem de apoz.
No solo aos activos poz Deus um thesoiro,
tão rico entre netos qual fôra entre avós.
Côro
De espigas e palmas etc.
Voz
é
A aurora dos campos floreja saude,
nas faces a rir-nos qual ri na maçan;
a terra dá frutos, o Ceo dá virtude,
e a lida folguedos á turba aldean.
Côro
De espigas e palmas etc.
tac: a aa
det IA E ST A a a o Am Sa
Obras completas de Castilho
Voz
Os mezes das flores, os soes do ceifeiro,
“a quadra das frutas, o ocio invernal,
são gostos variados, que em vôo ligeiro
matizam nos campos o giro annual.
1
E
y
Re
12,
ES
==
=
Côoro
De espigas e palmas etc.
Voz
o Viver de colono devolve-se em festa;
o dia lidado' lhe escapa a folgar.
4 “Com a alva renasce; repoisa na sésta; .
E triumpha ao sol posto; descanta ao luar.
pc
A | Côro
R De espigas e palmas, etc.
Voz
* De dia, o trabalho n'um chão florescente.
| À noite, em bons sonhos, amor e prazer.
| ij Ditosa mil vezes a rustica gente,
| se os bens que disfruta soubera entender |
Côro ;
| De espigas e palmas etc.
E Voz
— Ver Nymphas nas selvas, nas aguas, nos montes,
| foi de animos gratos delirio em pagãos.
* Nas serras, nos troncos, nos ventos, nas fo ntes,
| Deus sentem, Deus amam, colonos christãos..
Côro
22 Empreza da Historia de Portugal
Voz
: Dos Céos quem, no mundo, quem vive mais perto?
Lavrando ou colhendo, medita-se em Deus.
Com preces e hosannas palpita o deserto.
; Oh! Fé, os seus filhos inda hoje o são teus.
Côro |
De espigas e palmas etc.
Voz
: Oh! Tu, que os expulsos do teu Paraiso
ás quedas e á enxada fadaste, joh! ; Senhor!
nas lidas põe bençam, nas mentes põe sizo.
nos corpos saude, nos peitos amor.
Côro
-
De espigas e palmas etc.
Voz
Mantém nas esposas fiel castidade ;
na prole innocencia; fartura no lar;
concede aos visinhos fraterna amisade,
e á Patria virtudes que a possam salvar.
Côro
De espigas e palmas etc. .
Voz
| Virtudes á Patria! ; virtudes ao Povo!
! virtudes aos Chefes que dictam as Leis!
Já foi sceptro a enxada; que o seja de novo.
Diniz lá da campa que a mostre inda aos kKeis.
Côro
De espigas e palmas etc.
n X ! ve
fr ai ,
Obras completas de Castilho 23
Voz.
Aos roucos triumphos das eras antigas,
succêda o da Arcadia cantar festival,
ba ceifa das palmas á ceifa de espigas
“volvei, Cincinattos do bom Portugal.
Côro
De espigas e palmas coroemos a enxada,
morgado, e não pena, dos filhos de Adão.
Mais velha que os sceptros, mais util que a espada,
thesoiro é só ella, só ella brasão.
Junho de 1840
Ê XII
Sexto serão do casal
E Tristes eleitos da ignorancia
SUMMARIO
Singular processo de feitiçaria e homicídio. — Como
se sentenciou. — Encontradas opiniões acerca da
sentença. — Tem para si o autor que n'este cri-
“me, como em outros muitos, não cabe imputação.
— Brotou-o a ignorancia”; e a ignorancia é culpa
das Leis e Autoridades. — Todos os cidadãos
“teem direito a instruir-se, e o Governo, por con-
seguinte, obrigação de lhes facultar os meios de
se instruirem. |
i Processo bem raro para em nossos tem-
pos! |
No banco dos accusados occupa o primei-
“ro logar uma mulher já de dias, com a se-.
' renidade da innocencia no rosto, nos modos,
"e nas falas. A fama publica e as testemu-
* nhas a dizem digna do seu nome: chama-se
* Angelica. A sua casa foi sempre asylo fran-
| co a feridos e enfermos, mórmente pobres,
* que dizem acharam sempre n'ella-muita sa-
bedoria, mãos mui: primas para curar, e.
| palavras de consolo tão efficazes como os
| seus remedios; tudo pelo amor de Deus, e
* esmolas ainda por cima.
* «Que a metteria entre ferros d'el-Rei,
* onde jaz, faz hoje um anno dia por dia? .
SE EEE DAPESEOS CE PES TCE: CRER E ss Po
> E A e ES gd EPA , .
26 Empreza da Historia de Portugal
Matou outra mulher.
No banco dos accusados lá estão, não
menos, os complices que a ajudaram: o
marido e viuvo da victima, que lh'a levou a
| casa, e lá permaneceu em quanto durou a
tragedia; os que a estiveram sopeando de
pés e mãos, até que cessou de bulir; o que,
por espaço de horas, com uma vella na mão
allumiou; os que, depois de consumado o
acto, carregaram o cadaver, como um far-
do, para cima de uma cavalgadura, para o
irem lançar de uns penedos no mar, que a
elle lhe servisse de sepultura, e a elles to-
dos de encobridor. O que o mar havia de
sonegar á Justiça, o Céo, que vê tudo, o
descobriu. Os culpados, a fóra um, que .
medo ou remordimentos da consciencia tra-
zem a monte, os culpados ahi estão todos
no meio do tribunal.
; Mas quem era a morta ? Que fizera para
haver tão miseravel fim?
Chamavam-lhe feiticeira os visinhos....
sem embargo de ter nome de Maria, que
dizem preservar de coisas ruins. A artes
“suas diabolicas se attribuiam muitos acha-
ques, desconcertos de fortuna, e mortes. To-
dos (até seu marido) aborreciam n'ella o
« Espirito immundo», que, para não ser cons-
trangido a desamparai-a, a trazia pertinaz-
mente erradia dos confessionarios.
Para a desendemoninhar, a fez a serva
de Deus conduzir a sua casa; combateu com
as resas e ceremonias que por mais acerta-
das tinha; exorcismou, á sua moda; amca-
cou, espancou O inimigo; em vão. Com a
teima d'elle, houve de crescer n'ella o fer-
“Obras completas de Castilho 27
ao
- vor da caridade, e a santa cólera. Lançou-se
| sobre a infeliz derrubada; recommendou aos
circumstantes lhe tolhessem os movimentos,
“a fim de se não espalharem os feitiços (com
“o que, todos ficariam perdidos, e voaria a
| casa pelos ares); e tanto fez, e fizeram, so-
' bre aquelle triste corpo, tanto e por tanto
| tempo lhe cerrou a garganta ao som de es-
" conjuros, que a pobre expediu de si, não o
* espirito infernal, mas a propria alma.
-* JLêse o processo; ouvem-se as testemu-
" nhas, os rêos, a accusação, a defensa. Ao
| cabo de dezasseis horas, pelas 2 da manhan
" do dia 11 d'este mez, publica-se a sentença:
' Angelica, desterrada por dois annos para
, fóra da comarca; seus complices, restituidos
| à liberdade.
lia %
| Sem quebra do acatamento que todos de-
| vem á Justiça, arvoremo nos aqui, no casal,
' em juizes de tal sentença. |
| De injusta, por benigna, a accusam muitos
“da cidade, e a accusa o proprio Ministerio pu-
“blico; em quanto cá nos campos, segundo
* oiço, não falta quem ainda a taxe de cruel.
| Aquelles, horrorisados com o homicidio, que
| as circumstancias aggravaram até martyrio,
“para o expiar invocam o homicídio legal.
Estes dão benções, do coração, a quem pur-
' gou a terra de uma procuradora e agente dos
infernos.
| Em rasões de humanidade se fundam uns
"e outros; e a uns e outros, todavia, tem a
' mesma humanidade rasões que oppôr para
* defender esta sentença, em que tanto reluz
“ ella como a justiça.
(
28 Empreza da Historia de Portugal
E quando não, discursemos chanmente, e
com os animos despreoccupados.
*
Maria, em verdade, não era feiticeira; não
o podia ser; não as ha; não pode havel-as.
Foi crença de pagãos a que admittia pac- .
tos secretos com espiritos malfasejos, para
se obrarem no mundo maravilhas. O Chris-
tianismo não a acceitou, que sería negar pe-
remptoriamente a Providencia, e renunciar
Deus, renunciando a rasão.
Nem a tradição respeitavel da Egreja,
nem os escritos dos Santos Padres e Dou-
tores, nem as Decisões dos Concilios, nem
os Theólogos, nem, sobre tudo, as Escritu-
ras santas, deram jámais o seu-assenso a
essas fabulas despresiveis, filhas da velhaca- |
ria interesseira, ou da ignorancia crédula, ou,
mais ao certo, de uma e de outra. |
De balde nos argumentarão com as penas |
estabelecidas contra os que professem a fei-
tiçaria. Nós mesmos, que na feitiçaria não
acreditamos, defendemos por sensatas e jus-
tas essas penas; porque todo o individuo |
que se inculca alliado, e braço direito de po-
tencias invisiveis e maléficas, para alterar, em |
muito ou em pouco, a natural corrente das
coisas, calumnia a Deus, mente a si e a seus
semelhantes em materia grave e de conse-
quencia; arroga-se, de feito, e pelo terror, :
um predominio que lhe não cabia; perturba, |
por querer, a sociedade; lança n'ella novas
sementes de fanatismo e crimes.
Uma de duas: dando-se por alliado dos |
- Obras completas de Castilho 29
| E emônios: ou não o crê, ou crê-o. No primeiro
“caso, abusa tirannicamente da rudeza e pusil-
| lanimidade alheia, No segundo, teve necessa-
"riamente a criminosa intenção de pactuar
“com os genios das trevas; quiz dar-lhes a
fina, a troco do privilegio de malfazer; sup-
| pôz ter consumado este pacto nefando, e
N obrou em conformidade com a sua persua-
“são.
k Uma e outra coisa; não podiam as Leis
“ecclesiasticas, e as civis, deixar de punir ri-
: ERRO somente.
fg
(o
| Maria não era feiticeira. ; Mas dava-se ella
«por feiticeira? Não era esse o processo; não
“Se provou; não o sabemos.
, Mas, quer se desse quer não, quer tivesse,
abusado de sua alma negociando-a
Ecom o inferno, ou dos espiritos de seus vi-
“sinhos, submettendo-os ao influxo do seu
“querer, sempre ficava sendo, no concei-
to da gente rude e desallumiada, um ente
“muito infeliz para si, para os outros mui
perigoso e e mui funesto.
| Era assim que, na sua timorata phantasia,
indispensavelmente a devia representar a
mulher, cuja vida, já de annos largos, era
toda caridade, esmolas, e orações. : E que-
“fez ? uma grande façanha moral; uma sublime
loucura de generosidade.
E Só escudada de suas orações, resolveu
“entrar em duello com inimiga, em seu en-
“tender tão medonha e tão possante, queto-
imar-se com ella era tomar-se com o proprio
inferno. Duas palmas lhe promettia aconsci-
do Empreza da Flistoria de Portugal
encia com aquella victoria, se a ganhasse: re- .
dimir uma possessa do captiveiro diabolico,
restituindo a á Egreja, ao marido, e a si mes-
ma, á amisade dos visiahos, á quietação in- |
terior, e á esperança do Ceo; e desafrontar
de adversidades os que as estavam por via
della padecendo, ou podessem para o futu-
ro padecer.
Eis aqui a magnanima loucura que a se-.
duziu. Aventarmos-lhe outro intuito não é
possivel. Das intenções mais santas brotou o
homicídio.
| Mysterios da Providencia! não os sonde-
mos. A morte appareceu ali como o raio,
sem ter sido chamada, nem prevista.
x
; Quem reuniu jámais setenta testemu-.
nhas, e na propria casa, e com luz, e em
terra populosa, para assassinar ?!....
i Quem, para assassinar, empregou já-
mais, como unicas armas, resas de longas
horas, e mãos inermes? !...
i Que mulher poderia arrancar a existen-
cia, por querer, a outra mulher, quando
n'essa existencia fosse envôlta a de um ter-
ceiro ente inda não nascido? !...
i Desde quando se mudou a natureza hu-
mana, a ponto de entrar o pensamento é
proposito do homicidio mais nefando, mais
covarde, mais inutil, e mais perigoso, n'um
coração que era todo benevolencia e cari-
dade ? o
— «Mas a morte perpetrou-se.»
— Sim.
| Obras completas de Castilho 31
| — «Perpetrou-a ella.»
| — Sim, sim, mas sem o querer, sem o
| pressentir, sem entender ainda agora o como.
| No delirio do seu fanatismo, julgava-se a
| braços, não já com uma mulher, senão com
"o rei dos malfeitores de além-mundo. ; Que
' muito que o terror lhe centuplicasse as for-
"ças? ;que as empregasse ás cegas? que
| destruisse uma vida fragil e atenuada, sem
| saber? Logo que descobriu debaixo de si
'* um cadaver; não cahiu ella quasi cadaver ?
"inão lhe fugiu espavorida a razão? ;não
| permaneceu por muito tempo n'esse estado
"entre vida e morte, de que ainda inteira-
: mente não sahiu?
| Meus amigos, ; onde está o crime?
| Uma desgraça, e muito grande desgraça,
"essa existiu sem duvida. Mas n'aquillo em
| que se não dá crime, ; a intenção maifaseja
" quem a provou? ; quem a allegou? ; quem
“a demonstrará verosimil? «quem ao menos
| possivel?
j
%
- Mas, deixando a justiça á Justiça, fale-
" mos de coisa quanto a mim mais util, mais
* fecunda, e mais pratica para entre nós.
* Os processos são meras formas, sujeitas
"a opiniões e erros. O que tem importancia
| real são os factos sobre que elles versam;
| e mais real importancia ainda as ideias, de
| que esses factos se derivam necessaria e fa-
* talmente, como a planta da semente, e o
* Não ha grande virtude nem grande cri
"e, que antes de ser obra não fosse vonta
32 Empreza da Historia de Portugal
de, e antes de vontade pensamento, e antes
de pensamento embrião de ideia; é o pon-
tinho negro e imperceptivel no horizonte,
nuncio do tufão que revolve mares e afoga
armadas, varre a terra, arranca e arrebata
animaes, arvoredos, e habitações. |
* De duas causas, só, proveem quantos ma-
les commettidos por homens se podem no
mundo deplorar: uma são as ruins vontades,
as paixões, os interesses mal entendidos ;
a outra, à ignorancia, e os erros que d'ella
nascem, sendo esta segunda muitas vezes (e
quasi sempre) a que virtualmente contém |
em si a primeira.
O Adão da maldade é o absurdo ; instruir
é fazer a cura adiantada. |
Não são os terrenos desmoitados e lavra-
dios os que dão plantas venenosas, reptis .
peçonhentos e feras bravas; formosuras e
suavidades com a luz se criam, assim na
alma como na Natureza.
Metter conhecimentos no Povo devêra ser |
o empenho dos empenhos para todo o Go-
verno, que tivesse por-norte a civilisação. |
Não é torcendo, decotando, nem enxertando,
que se melhora a arvore, que por dentro
está enferma, mas ainda não de todo conta- .
minada; é cavando-lhe e medicando-lhe a.
terra, em que as radículas invisiveis estão
de dia e de noite bebendo caladamnete.
7) %
| Quantas desaventuras na vergonhosa his-
toria que vos acabo de contar, nascidas to-
das de ignorancia! E
É - Obras completas de Castilho ' 33
o
Um povo laborando em terrores, por julgar
- existente o que nem sequer era possivel.
' D'aqui, odios atrozes contra uma pobre
mulher, que n'isso de maleficios, de que a
| accusavam, não era mais incursa do que vós
Reeu.
" Logo, ella morta do modo mais afrontoso;
“e com um filho nas entranhas; e com um ma-
rido ao lado, que lhe não pode acudir, que
" ao desamparo de viuvo sentirá accrescer-lhe
“o opprobrio de conjugicida.
- - Outra mulher, tornada a subitas e involun-
" tariamente assassina; arrastada de sua casa,
* onde era procurada e festejada pelos pobres,
' e de sua terra que a citava com ufania, para
“uma prisão, para um tribunal, para a publi-
cidade do odio, para todas as humilhações
' da justiça, para a eterna agonia que precede
| a leitura da sentença.
— Além destas duas casas, abaladas ou des-
| truidas, seis homens,ou chefes ou filhos de
" seis outras casas, passando eguaes amargu-
| ras, eguaes transes, depois de um anno sem
| liberdade na sentina moral da cidade, cha-
- mada cadeia.
- 1 Que de dias e de noites já perdidos sem
remedio para esta gente! je quantos annos,
| talvez, do seu futuro já devorados pelo des-
| gosto! ; Que de despezas inesperadas! jque
| de transtornos nos negocios, nos projectos,
' nas relações! ;que brechas na reputação, e
| taivez na moralidade, pelo trato de annos
— com entes corrompidos e perversos, em ocio
| já de si corruptor, e com os brios quebrados, .
| pelo desprezo de quantos viam tranzitar por
* diante das suas grades!
— vOLY »
FR E PS per
34 Empreza da Historia de Portugal
Todos esses desconcertos, e os milhares
de outros que d'elles se haverão originado,
é donde provieram? de um erro; como o
erro, da ignorancia; a ignorancia, da falta
de educação publica; é esta do vergonhoso
e criminoso, do vergonhosissimo e crimino-
sissimo desleixo de legisladores e governan-
tes.
Para tudo ha Leis; para tudo se andam
ellas de continuo a refazer e emendar ; mas
o codigo cabal, judicioso, sincero, franco,
jnexoravel, que obrigue todos os cidadãos a
aprender, para o serem, e para serem ho-
mens; jesse código onde o temos? ou quem
pensou nunca em o pedir, quanto mais em
o fazer?
Se alguem quizer edificar na cidade o seu
predio fóra do alinhamento e risco municipal,
achará quem lh'o coarcte. Se se espairecer
nu pela praça em dia ou noite de verão, irá
prezo, quándo menos por louco. Como estes,
mil outros actos, natural e essencialmente
indifferentes, são todavia cohibidos por pro-
videncias legislativas.
: E a minha alma ? ; Esta parte optima de
mim mesmo, nascida com a maravilhosa fa-
culdade e com o desejo instinctivo de se
aperfeiçoar, a minha alma, hei-de poder dei-
xal-a, de poísio, sem que me constranjam a
cultival-a, eu, que para ter obstruida ou im-
munda a minha testada não sou livre ”!!
i Hei-de poder condemnar o espirito de
meus filhos a uma infancia eterna, eu, que
não sou livre para lhes mutilar um braço
ou um só dedo?!
Dizer-se que ha-de o fisco extorquir-me
Obas completas de Castilhô 35
do producto do meu suor, o que ás vezes
me não sobeja, para occorrer ás necessida-.
des do Estado, e que o Estado me não ha-
de compellir a ter riquezas moraes para com
ellas ajudar o patrimonio da felicidade com-
mum!...
A soltura do viver silvestre não m'a per-
doariam; je o conservar silvestre o enten-
dimento, e conseguintemente silvestre e in-
- dómito o coração, com tão estupida magna-
nimidade m'o relevam!!!...
4
Meus amigos: se, como já vos ponderei,
é crime contra a Natureza e contra a Socie-
dade deixar devoluto a terra da Patria, de
que o acaso nos fez donos jquanto mais aper-
tada nos não correrá ainda a obrigação de
lhe não deixarmos improductiva a nossa
rasão, fundo muito mais creador e social,
mina de muito mais incalculavel opulencia,
'* morgado de instituição divina, superior em
nobreza a todos os morgados!
Caberia pois ao Parlamento, chão, sizudo,
- e nacional, que vós algum dia (em Deus o
espero firmemente) nos haveis de dar, caber-
lhe-hia proporcienar a todos os cidadãos meios
— faceis de se instruirem, e, proporcionando-
lh'os, constrangelos, sob as mais severas
penas, a aproveital-os.
Desde então haverá cessado, para sempre,
a possibilidade de processos, e desgraças,
| como estas que hoje vos relatei, opprobrio
' do seculo, é escandalo da civilisação.
RD ARO
a re njevnaie
ada a
Mas não só isso: quando todos formos, mais
36 Empreza da Historia de Portugal
ou menos, instruidos, cada um segundo às
suas faculdades, o seu estado, a sua edade
e a sua profissão, a lista dos crimes de toda
a especie haverá diminuído. O que em esco-
las e livros se houver gasto, poder-se-ha for-
rar em prisões e agentes de Justiça.
Não é tudo: ;Com estes bens negativos, da
maior importancia, que de bens positivos
e palpaveis se não verão affluir! Os deveres
domesticos e civicos, mais bem conhecidos,
serão menos incompletamente desempenha-
dos. Os laços da sociabilidade se apertarão
e doirarão. Tornar-sesha a convivencia mais
frequente e mais amena. Medrando o nu-
mero dos lzitores o dos bons escritores cres-
cerá na devida propo-ção; ir-se-hão opulen-
tando as scicncias, as artes uteis e fabris des-
envolvendo-se;a Agricultura allumiando-se e.
florindo; as Artes chamadas bellas por excel-
lencia acharão o que hoje lhes falta: alumnos,
cultores, consumo. Os seis dias da semana
deixarão em cada casa dobrados haveres, e
um domingo muito mais desejado, e muito |
mais desejavel.
m
; Serão isto ainda utopias, como os nes- |
cios chamam a tudo quanto nasce da alma
e vôa por cima do lodaçal em que se elles
afogam? Não são, meus bons camponezes,
não são.
Vêl-o-hieis já hoje, se as horas nos não
appertassem; mas vel-o-heis para a minha
proxima visita. Havemos de conversar mui-
to assentadamente sobre isto; porque em-
fim, ninguem me tira da cabeça, que, pése a
Obras completas de Castilho 37
* quem pesar, ainda algum dia vos hei-de ver
| legisladores. |
- 4Oh! quando isso fôr... então é que é
, pôr luminarias de nove dias, nos campana-
“ rios, nas casas das Camaras, nas granjas,
' nas officinas, nas estradas e nos rios, e nas
“ escolas ;sobretudo nas escolas:
at
| Julho de 1849.
e 63
de rudeza, de engenho, de sciencia, de illu-
'sões, de sophismas, de absurdos, de verdades,
'de probabilidades, de prophecias, de expe-
riencias, conspira para que a natureza mo-
ral, obedecendo, sem o saber, á Providen-
cia, lá se vá, como cometa enigmatico,
| composto de luz e envolto de nevoas, pro-
gredindo pela sua orbita incommensura-
vel.
Deixemo-nos de queixumes excusados.
Tudo obra e ha-de obrar segundo sua na-
tureza.
- A rosa embalsama; a mancinella envene-
na; o rouxinol canta e poetisa; o tufão bra-
ma e devasta; a montanha medita; o valle
ri; a praia entristece-se; o (Oceano ruge e
devora; a rôla ama e dil-o; o reptil desem-
bosca-se, punge, e foge deixando morte ; o
raio fracassa e pulverisa; a alvorada retin-
ge e floreja; o sol nos diz «Vida»; a lua,
« Ternura»; as estrellas «Immortalidade»; o
menino, «Innocencia»; a mulher, «Doçura e
heroicidade para sacrifícios»; as cans, «Re-
poiso e reflexão»; a virilidade, «Energia e
emprezas»; em summa: o ambicioso, o vil,
“O avaro, o pródigo, o caritativo, o persegui-
dor, o tecelão de enredos, o mineiro de ver-
dades, o que se cança a accender luzes, o
que se não cança de apagal-as, os que vo-
zeiam: «Para a frente !», os que gritam: «Al-
to!», os que murmuram : «Para traz», os que.
vêem por cima da terra uma abóbada de
Ceos, os que para alem da terra nada vêem,
"os que acreditam nos destinos da humani-
,
|
“dade, os que não acreditam senão nos seus
“proprios, os que usam e os que abusam dá
64 Empreza da Historia de Portugal
sua alma e da alheia, os que usurpam, os
que assumem, os que acceitam, os que des-
denham, os que menoscabam, os que insul-
tam, os que sullapam, os que perseguem o
poder, todos concorrem, ou todos concorre-
mos, com per.edos, silharia, areia, cal, barro,
cascalho, pórphiro, suor, lagrimas, e sangue,
para o edificio providencial, para o futuro
palacio no segundo paraizo do genero hu-
mano.
Com muita ou pouca esperança, obede-
TA
câmos á nossa natureza, e cumprâmos o |
nosso fadario, nós outros, os que (mercê de
Deus) anhelamos: pela dita da Patria, que
ninguem dirá que não esteja muito enferma,
e muito triste.
Eu já agora, meus amigos, n'isto hei-de |
perseverar, requerendo para Ella luz e mais
luz, campo e mais campo, trabalho e mais
trabalho, até que os obscurantes, obede-
cendo tambem á sua natureza, e cumprido
tambem o seu fadario, me hajam acabado,
não com o bom proposito, que o não po-
dem, mas com a vida.
x
;Se vós bem soubesseis, meus irmãos do |
casal, o que elles teem urdido, e urdem, e
tramam contra o pobre de mim, que nunca |
lhes fiz mal, nem a ninguem, só por terem |
visto que, em vez de acudir ao chamamento |
dos seus muezgins, e ir ás suas mesquitas |
psalmear o seu alcorão, só curo da instruc- |
ção elementar do Povo!...
|; Se bem soubesseis a feridade e impudor |
Obras completas de Castilho 65
' com que me atassalham o nome, e me cos-
- pem na sombra, só porque me desarrisquei
de bandos politicos! ja risivel ociosidade,
com que discutem e decretam em seus con-
venticulos, ora que me envenenem, ora que
me prendam e multem, ora que me deshon-
rem, ora que me dessoceguem e me defrau-
dem do tempo, só porque esse tempo eu o
consumo, com parte do meu escaço haver,
* em fazer que se ensinem as primeiras lettras
“aos vossos filhos, e aos dos artifices desvali-
dos !
| Se adivinhasseis os embustes indignos,
“as suggestões aleivosas, as ameaças e es-
pancamentos brutaes, com que d'estas fon-
tes de doutrina teem procurado arredal-os !
Não sei qual admirarieis mais: se a sua
maldade e demencia, se o meu soffrimento
e perseverança.
Mas, por descargo de consciencia, sempre
vos digo, que os admireis antes a elles do
que a mim, que já acabei de ser para elles tão
* generoso como pareço. Não lhes digo o que
“a lima do ferreiro disse á vibora que a es-
mordaçava... mas condemno-os a viver.
D'aqui avante, zunam e piquem quanto
“quizerem; de tudo faço registo para um ar-
“chivo, que a elles lhes está defezo pela Na-
“tureza: para a Posteridade.
Fundo em bronze todos estes seus feitos
| magnanimos. Esculpo em ferro os seus re-
tratos, semelhantissimos de asquerosidade,
sublimes de hediondez. Por baixo gravo-lhes
os nomes; gravo-os fundo e com todas as
“lettras; e todos estes aleijões de museu,
não tanto por vingança, como para escar-
vo. V 5
, he ST “er r A 1 Mr
E 4 o do
66 Empreza da Historia de Portugal
mento a outros temerarios, hão-de ser em
um livro carreados para o porvir. ; E que
duvida ? ; Não é assim que o mundo conhece,
ainda hoje, dementes e facinorosos de dois
“mil annos?
Já os tinha avisado. Quizeram-n-o, tel-o-
hão. O ferro e o bronze da minha fundição
não se acabaram, nem se acabam tão de-
pressa.
>
Perdoae-me, boa gente. Descabidas coisas
são estas para a amorosissima serenidade
do vosso casal; e bem alheias são ellas tam-
bem da minha indole, só propendente para
bem-querer e muita paz. |
Venhâmos pois ao que mais nos importa:
ao nosso grande ponto das escclas, que são
as eiras em que primeiro se prepara o pão
da alma.
X
A alma tambem, como 6 corpo, morre á
mingua de alimento. Se aquella ruim gente,
que detesta e persegue as nossas humanas
diligencias, tivesse aprendido, e soubesse, já
pode ser que não empregasse tão desalmada
e torpemente a sua actividade.
Para que os filhos e netos não venham a
ter ás Lettras egual odio, antes por ellas
cada vez se pulam e amaciem mais, e se
facam mais poderosos, mais ricos, e melho-
res, é que devemos forcejar para que se
mulripligquem, por campos e cidades, estes
sacerdotes e curas de almas infantis, a que
“Obras completas de Castilho 67
dão o humilde mas bello nome de Mestres
DE PRIMEIRAS LETTRAS.
Das Côrtes e do Governo, tarde nos virá
o remedio, que dizem e repetem não lhes
sobrar dinheiro para escolas; e é verdade;
só o Exercito devora quasi metade do Era-
rio. Vejamos logo, se, em tamanha mingua
e desamparo, nos não podemos ir, como
- quer que seja, remindo por nós mesmos;
bem, completa, e devidamente, não o cuido;
mas até certo ponto, emquanto a Providen-
“cia não acode, parece-me que sim. Ora
vêde:
%
Em toda a parte ha sempre, por entre o
cardume dos rusticos e ignorantes, alguns
* incividuos mais mimosos da fortuna, que
“aprenderam alguma coisa, que vivem com
certa abastança, e a quem sobram horas
para aborrimento ou desmanchos, se as não
poserem a juro para a consciencia e para o
| Ceo. Ha o Parocho; ha o Cura; ha o Dou-
“tor, ou Licenciado; ha o proprietário, que
| traz arrendados os bens; ha o negociante,
“que chegou á sua conta, e para descançar
| fechou as portas á fortuna; ha o laborioso,
| que andou moirejando barras de oiro por
| terras extranhas, e quiz vir morrer descan-
“ cado nc quarto em que nasceu, e comer as
"* couves creadas deante da sua porta, como
"em menino; ha o militar aposentado, que
' não sabe o que faça do anno; ha o profes- .
| sor emérito, a quem ainda ás vezes o en-
"sino lembra com saudade; ha o estudante
"que veio a ferias, e que está n'aquella edade
68 | Empreza da Historia de Portugal
feliz, em que a alma gravita com tanta força
para a publica estima, como o coração para
o amor; ha o velho, que não pode sahir,
mas conserva os olhos e ouvidos, a memo-
ria e a voz, e folgaria de ter com que en-
curtar os dias, tão solitarios e tão longos;
ha o Magistrado homem de bem, e o Escri-
vão honesto, a quem seus officios deixam
remanescentes de muito boas e aproveita-
veis tardes; ha o Ecclesiastico sem beneficio
mas não sem entranhas; ha o ancião Egres-
so, que perdoou tudo, e, se o não esqueceu
é porque deseja bemfazer ao mundo, que o
desterrou do ermo para o povoado, conti-
nuando e augmentando no mesmo povoado
as obras de sua caridade.
jOra, por que não haveis vós, os mais ve-
lhos e respeitaveis de cada aldeia ou logar em
que não ha escola, por que-não haveis de ir
ter com algum d'estes homens, acompanha-
dos de vossas mulheres e de vossos filhinhos,
e supplicar-lhe, pelo amor do Pae Commum,
e da sua alma, e de vós, e da Parria, e da
Humanidade, abra um ensino de ler, escre-
ver, e contar, nos dias de semana para os
pequeninos que ainda não trabalham na ter-
ra, aos domingos e aos serões para os gran-
des já callejados. e para vós mesmos?
Se o primeiro se vos excusasse, o segundo
vos deferiria. Se o segundo vos repellisse, o
terceiro, com mais lagrimas nos olhos do
que vós mesmos, vos despacharia e agrade-
ceria a supplica.
Depois, era ir de porta em porta, pedindo
ás senhoras habilitadas para tão nobre en-
cargo, egual mercê para vossas filhas e es-
Obras completas de Castilho 69
posas, porque (segundo já ponderámos) na
instrucção das mulheres se contém a dos
homens para o futuro; e logo que as mães
' souberem ler, não haja medo de que os fi-
lhos o ignorem. Para uma Religiosa no seu
convento, ; que gentil e religiosissima occu-
pação, obtida do Prelado a licença para ali
se abrirem as portas a uma escola feminil!
%
| Oh! ; quem me dera poder estar meia
hora, ou um quarto de hora (bastava), ao pé
de cada uma d'aqueltas senhoras, e de cada
' um d'aquelles homens, antes que vós entras-
* seis com o vosso requerimento !
Não lhes diria o que a Religião lhes insi-
' nuára; não lhes invocaria o patriotismo ;
| não lhes encarecêra mesmo a grandeza de
“tão facil benefício, nem a vossa gratidão,
"nem os respeitos que semeavam na gera-
ção nova, nem o thesoiro de consolações
' que atulhavam para o ultimo praso da vi-
da, em que tudo que se ajuntou se deixa,
| e só o que se deu se leva para à grande
- viagem.
- Pedir-lhes-hia só, que experimentassem a
'* delicia do ensinar, sobre tudo de um ensinar
desinteressado, como de pae e mãe a filhos
"e filhas; ;o como, n'aquelle trato. intimo
' com a pueriícia, permitte Deus ás nossas al-
* mas rejuvenescer e florir!
- Na innocencia, na alegria, na lealdade, no
' affecto perenne, que está ressumbrando em
“todos aquelles rostinhos, sempre ávidos de -
saber, sempre distrahidos, sempre buliçosos,
IL
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70 Empreza da Historia de Portugal |
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-— E indo de
END nd, ico SE
veem-nos umas virações de passada bema-
venturança, que já foi nossa, e parece pro- |
phetisar ainda o que quer que seja. Deli- |
ciâmo-nos, como o viandante cuidoso e ca- -
bisbaixo, com o cheiro longinquo de rosas |
vindo de um jardim que se não vê. ; Ho-
ras, horas de éxtase, que por todos os bai:
les, honras, e thesoiros, seriam bem mer-
cadas !
Oh! cultivae, cultivae esses espiritos e co-
rações tão esperançosos. Toda a cultura é
saudavel e rescendente; mas nenhuma como
essa.
“Todos os entes alados, em quanto estão,
com amorosa febre, aquecendo sob o peito |
e entre as asas os pequeninos da sua espe-
cie, mantendo-os a grãosinho e griosinho, a |
verme e verme, e ensinando-lhes a adejar, |
são, de quantos grupos de felicidade a Na- +
tureza encerra, os mais formosos. ; Oh! o |
nosso espirito é tambem uma dosa alada |
como os Anjos.
Uma escola, em que os profanos não vêem
senão tédio, não ouvem senão sussurro, é
aos olhos de todo o bom entendimento um
ninho, cem vezes mais carinhoso e interes-
sante que o dos passaros entre as sombras
verdejantes da primavera.
RD do MED SA O DS DD a SP 1 MS E A |
%
Ha ainda, meus bons amigos, outras pes-
soas, a quem podeis recorrer (: Vêdes vós
a Providencia é liberalissima): são os ri-
cos. |
i Que muito é para esses, com um átomo: |
Obras completas de Castilho 71
supérfluo do seu oiro pagarem um mestre
para os desvalidos ?
— |; Mas podiam-n-o ter feito, e nunca o
fizeram» — direis vós.
E verdade; porém todas as coisas prin-
cipiam uma vez. Não reflectiram ainda na
facilidade e excellencias de tal obra.: Não
teria ainda chegado a sua hora de acordar ;
porque lá dizer que o oiro mirra o coração,
que não ha poderosos bemfazejos, é calum-
niar ao mesmo tempo ao homem, e ao seu
Autor. !
: Que relvado florido, entre sombras ins-
pirativas, não é este assumpto de conversa-
ção, para n'elle a vontade se espairecer! E
forçado deixarmol-o por agora.
Voltae vós a elle com os vossos sonhos
desta noite, com os vossos pensamentos de
amanhan todo o dia. Cuidae-me e pesae-me
bem isto toda a semana; e domingo, depois
da Missa, na sacristia mesmo, quando o
vosso Parocho se houver acabado de des-
vestir, puchae com elle a pratica a este pro-
posito; consultae-o, ouvi-o, e fazei-o no ne-
gocio procurador vosso, que não o podeis
ser mais proprio e natural.
Se vos parecer, apontae-lhe, mas que seja
por longe, aquelles dois apostólicos varões,
Prior e Cura da villa do Nordeste, aqui, na
| vossa mesma Ilha, que, sobre olharem por
* ; Que bom exemplo não é para citar aos ri-
cos o de Plinio o moço, pagão, romano, e dezoito
seculos mais antigo que nós! Pedir-lhes-hia que
lessem a XIII do Livro IV das suas Cartas, escrita
a Cornelio Tacito; talvez se tentasse algum d'elles,
+
72 Empreza da Historia de Portugal
todas as necessidades moraes e corporaes / |
do seu rebanho, até a estas do ensino aco
dem com escolas, diurnas e nocturnas, em
que são professores elles mesmos.
*
A unica difficuldade, em que tudo isto de
escolas podia encalhar, logrei eu, eu obscuro
homemzinho, mas muito vosso amigo, a ven-
tura de a aplanar completamente.
A dificuldade, que até agora se tem op-
posto a haver muitas escolas, e em cada uma
d'ellas a safra do fruto desejavel, era o ron-
ceiro, o moroso, o semsabor, o imperfeito,
do ensino. Com o Methodo de ensino que
eu introduzi, em poucos mezes de recreativo
exercicigase chega muito adiante do que até
aqui em annos largos se conseguia ; com o
que, já vêdes se desvaneceram as maiores
e peores objecções, que ao nosso empenho
se podiam pôr.
| Animo pois, e avante ! Teimemos, como
vos dizia, nós outros, os amigos dos ho-
mens, no nosso bom fadario; e deixar os
outros obstinar-se lá no seu. ipa
à Sabeis uma coisa? Parece-me que esses
homens, com o seu odio ás luzes, concor-
rem a final, tanto como nós com o nosso
amor, para se ellas diffundirem. ; Porquê?
porque as suas perseguições nos servem de
estimulo ; as suas picadas nos amadurecem,
como as de certos insectos, que a Provi-
dencia fez, muito de industria, para o sa-
zoamento de certos frutos,
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“Obras completas de Castilho. 73
4
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Tomaec sentido n'isto :
Se achardes, que espero em Deus haveis
de achar, quem se promptifique a vos crear
uma escola, seja quem fôr, dizei-lhe que eu,
o vosso amigo, me dou por obrigado a in-
dustrialklo em só uma ou duas lições, para
ensinar a ler como por encanto.
Se duvidar, pedi-lhe que venha. Verá pro-
vas, e ficará sendo prova elle mesmo.
Setembro de 1849.
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Ê
XV
Nono serão do casal
Leituras publicas
SUMMARIO
orfia-se na summa precisão que temos de Instruc-
cão primaria-—Bom exemplo que S. Miguel está
dando com as suas escolas. —Ellas progridem, e
hão-de ir a mais. —O que urge agora, é que os
ignorantes conheçam o agrado e préstimo do sa-
ber—Recommendam-se para isto as leituras publi-
cas. —O Carlos Magno nas roças do Brazil tem
feito que muitos negros aprendam a ler. —O mes-
mo nas colonias francezas a novella de Paulo e
Virginia—O leitor publico no proprio trabalho
tem a recompensa. —Leituras publicas dos Gregos
e Romanos, e suas vantagens. — Tem-se grande fé
em que não faltará quem se offereça a fazel-as.—
Entretanto, o Povo que as sollicite Nenhuma es-
tação mais propria para as publicas leituras, que
o inverno.—Aponta-se d'onde os livros podem vir,
e quaes hão-de ser Aconselha-se o traduzirem-
se obras estrangeiras e populares. Robinson Suis-
so-—Colloguios aldeãos, por Timon.— Os Colloquios
vão sahir em vulgar —O Robinson, traduzira-o eu,
se podesse.-- Digressão sobre o socialismo, —Pro-
videncia para haver boas obras populares.
Assumptos ha, que, parecendo mui sim-
* plices, nunca de todo se esgotam. Isso teem
* de seu as coisas intrinzecamente boas: que
a
tantos respeitos e por tantos modos o são,
| que mais se amam e desejam quanto mais
* se investigam, e conhecem.
y
76 Empreza da Historia de Portugal
Tornemo-nos á nossa instrucção primaria,
risonha e amorosa alvorada do dia esplen-
dido e magnifico da civilisação. ; A ella,
com toda a fé e caridade! ; com toda a es-
perança e devoção! ;com todo o ardor e
fanatismo! ; A ella desde hoje! ;e teimar
nella, em quanto os que mais o devem e
podem não vierem, pelo desempenho do seu
officio, desobrigar-nos d'este nosso !
E nem ainda então havemos nós de des-
cançar; havemos de nos aggregar a elles
como auxiliares livres.
Vasta e dificil é a conquista de que se
trata; nem elles sem nós, nem nós sem el-
les a perfariamos. Venha de cima o favor;
venham por baixo as diligencias, que sem
suor de trabalhadores, e influxos de sol e
ares, não ha colheita que se abençõe.
*
Por emquanto o que mais urge é, como
vos dizia, crear no Povo cubiças, ou mesmo
veleidades, de se instruir (quando mais não
seja), e deparar-lhe, quando não fontes cau
daes para essas sêdes, ao menos alguns ca-
ritativos poços, como os dos Arabes nos de-
sertos; quero dizer: á falta de escolas do
Estado, com excellentes mestres e grandes
meios, ensinosinhos particulares e gratuitos.
Esta ideia, que não é minha, nem de nin-
guem em particular, sim do seculo, já por
ahi vai lavrando; e com tão boas mostras,
que, a não vir saraivada que a destrua,
ainda esta Ilha tem de ser apontada e se-
guida como exemplar.
E O PS CEPE 4
e EDEp
Obras completas de Castilho 77
1
* Que de escolas gratuitas já nascidas e
pegadas no seio da Sociedade dos Amigos
das Lettras e Artes! : Que de alumnos já
aproveitados e instruídos por cada uma d'el-
las! ; Que de outras já a rebentarem pelas
vossas villas, e até em aldeias ! Os factos
que d'este genero me teem vindo ao conhe-
cimento são para grandissima consolação, e
para -se registarem com summa ufania. ; Oh!
prometto-vos que ainda o hei-de fazer. Os
nomes a'esses mancebos generosos, e os
desses poucos Parochos, que assim acodem
ao pregão do seculo, aos gemidos da neces-
sidade, e aos clamores da sua consciencia, |
"ou eu hei de de todo esquecer, ou hão de fi-
“car lembrando.
| Assim, que por esta parte não ha senão
"que dar muitas graças, e confiar no contagio
| santo. Às escolas espontaneas brotam, e es-
| tão crescendo; logo, hão-de continuar a
crescer e multiplicar; e não só para leitura,
| escrita, e contas, mas para outros generos
"e graus mais subidos de instrucção. Se o
| duvidasseis, apontar-vos-hia mesmo para
| fóra da Sociedade dos Amigos das Lettras
e Artes: para a dos vossos amigos espe-
| ciaes; para a Promotora da Agricultura Mi-
| chaelense, com os seus cursos de Historia
' natural, de Botanica, de Physica, e de Chy-
| mica. Ha tráfego intellectual, ha; e já su-.
| perior ao que poderia presumir-se; mas,
VW para que elle dure e se augmente, é que
| é preciso que os necessitados de aprender
| conheçam a miseria e vergonha da sua
| mingua, desejem, queiram, e procurem re-
- medial-a.
|
'
78 Empreza da Historia de Portugal
*
Hoje em dia, a nossa maior carencia não
é já tanto de quem tenha vontade de ensinar,
como de quem se afervore por aprender.
Ha proporcionalmente mais quem dê, cu
quem offereça, do que quem peça, ou quem
acceite.
: E como se hão-de ir abrindo as tantas
escolas de que ainda havemos mistér, se do
nada se não forem evocando os rogos e vo-
tos dos que as devem frequentar?
O mestre é um medico; o discipulo, um
doente. Em quanto o doente se não conhece
- como tal, em quanto não deseja saude, em
quanto não implora soccorro, o medico,
ainda que perto more, não apparece para o
salvar. Seja o nosso ponto, primeiro que
outro nenhum, accender em vós mesmos e
em vossos filhos o gosto da leitura; d'elle,.
como o effeito da causa, virá tudo mais.
As ponderações, que já vos fiz, e vos te-
nho repetido, sobre as conveniencias do ler
para o aperfeiçoamento moral, industrial,
e agricola, para augmento dos haveres, da
saude, dos deleites, e da convivencia, são
muito certas, muito claras, e muito irrefra-
gaveis; mas receio que não tenham, só per
si, efficacia bastante para vos vencer a na-
tural inercia. Quer-se uma persuasão mais
immediata, um argumento, embora menos
forte, porém mais presente, e, como tal,
menos resistivel. N'uma palavra: quer-se
que o ler, já pela sua propria formosura,
vos namore, independentemente do que pro-
mette e pode dar.
cem
Mis
ae
E ao ema
Es
Obras completas de Castilho 79
*
>
;Sabeis vós que aquelle popularissimo li-
- vro de Carlos Magno, apesar das suas re-
matadas ioucuras, e nenhuma substancia,
tem sido o mais poderoso incentivo de Ins-
trucção Primaria? Pois é assim. Até nos
serões das roças e engenhos de assucar, pe-
los sertões mais sáfaros do Brazil, o Almi-
rante Balão, os Doze Pares, e a Prince-
xa Floripes, dando horas de encantamento
a corações simplices e espiritos boçaes,
“crearam n'elles a inveja, a sêde, o estudo, e
“logo a sciencia, o gosto, e o costume do
ler.
O negro que sabe solletrar por aquellas pa-
ginas de maravilhas, é respeitado e festejado
por todo o auditorio; centenares de negros e
- negras, de todas as edades, lhe pendem dos la-
* bios sem respirar, horas inteiras; se elle cahir
doente, cegar, morrer, ou fôr vendido, iquem
lhes fará esquecer as penas e trabalhos do
dia com taes relações estendidas pela noite
— até deshoras?
E” por isso, e para que tamanha calami-
' dade se não possa nunca realisar, que todos
' ambicionam, e muitos logram, aprender, á
| custa do repoiso e do somno, a maravilhosa
» Arte, por quem as memorias do Arcebispo
“de Turpim ainda estão vivas.
O que nas roças do Brazil tem operado
o Carlos Magno, tem-n-o egualmente feito,
entre os negros das colonias francezas,
“ aquella prosa-poema, aquelle poema-flor,
“aquela for sémpre orvalhada de lagrimas,
Paulo e V rginta.
80 Empreza da Historia de Portugal
*
A" vista d'estes dois factos, por que não
aconselhariamos, se procurasse introduzir o
costume das leituras em commum, semi-pu-
blicas, ou publicas, nas aldeias e villas, e
até nas cidades?
| Que agradavel, que util, que nobre exer-
cicio para o leitor ! ; Que magisterio tão fa-
cil de exercer! ; Que derramar de benefi-
cios tão sem custo! ; Que victorias sem
combate! ; e que triumphos sem odios!
Com esta bella usança, se formaria entre
nós essa arte preciosa de ler, recitar, e de-.
clamar; mais conhecida, praticada, e presada
pelos antigos, do que em nossos tempos. Os
melhores livros dos Romanos, ; não sabe-
mos nós que eram lidos por seus autores,
ora em suas salas perante convidados, ora
perante o povo nos theatros? ; De poetas e .
oradores Gregos não alcançamos outro tan-
to? ; e não é verosimil que por ahi se aju-
dariam as Lettras dobradamente a subirem
a tamanha perfeição ? á uma, porque o es-
criptor, para entrar em duello com o juizo
publico, se armava de ponto em branco, e
em cada um d'esses combates aprendia e se
amestrava ; e á outra porque das suas coroas
de loiro forçosamente haviam de cahir ba-
gas, que produzissem novos loiros para fu-
turos émulos.
Ainda que outro bem se não seguira de
taes leituras, já grandemente valêra a pena
de as crear e as generalisar, se o nome de
pena podéra caber ao que é só goso.
Mas o principalissimo proveito de tal pra-
Obas completas de Castilho 81
“xe é o dos ouvintes. Pessoas que nunca le-
ram, nem sabem; outras que não teem li-
vros; cutras para quem o mais pequeno
| volume é um labirynto inextricavel e sem
sahida; outras que na solidão de um apo-
sento silencioso nem com Virgilio caberiam, e
para quem a sociedade é condição impre-
' terivel do agrado; todos acudiriam á leitura
em commum. |
- Todos lhe applicariam mais attenção,
- porque a attenção é tambem contagiosa. To-
" dos comprehenderiam melhor, e gostariam
mais a fundo, porque entendimento e cora-
'* ção, tudo em nós, não sei como, cresce e se
melhora na proporção do numero de cabe-
"ças que em derredor trabalham no mesmo
“objecto, dos rostos, ouvidos, e olhos, que es-
' cutam as mesmas palavras, dos peitos que
| identicas paixões comprimem ou dilatam. |
D'este modo tudo concorrêra para que o
succo, expresso do livro por um leitor habil,
| fosse para cada um dos circumstantes o mais
agradavel, o mais copioso, e o mais nutri-
| tivo, assim como para que a cubiça da leitura
* se pegasse aos que nunca a aprenderam; os
|
+
* que à aprenderam mal, se industriassem; e
* Os que por perguiça lhe fugiam, chegando a
| Teconhecer-lhe os feitiços, se lhe entregassem
| de corpo e alma.
IR *
ERC
Meus amigos, se no outro serão nós con-
fiavamos em que não faltaria quem se ofle-
| recesse a vos reger escolas, ou pelo menos
o acceitasse quando rogado, como não te-
HF jremos grande fé em que haverá de sobra
A VOL. V (9
82 Empreza da Historia de Portugal
quem para estas leituras se vos offereça?
Um pequeno rol dos que poderiam ser, já
vol-o eu apresentei; se vos não acudirem lo.
go, ide-os vós desafiar, e ide affoitos, que
vos não hão-de resistir. Não percais tempo;
temos á porta as descompassadas noites do
inverno.
O inverno é, sobre todas, a estação do és-
pirito, do recolhimento, da casa, da sociabj-
lidade.
No inverno o Sol, esse grande pocta de
Deus, interrcmpe, para descançar, o seu
poema de seis mil annos. A Natureza ador-
mece. Tudo deserta dos campos: as aves,
á busca de primavera; os gados, para a
quentura do aprisco; os bois, para recobra-
rem força para a lavoira; os filhos das cida-
des, para os theatros e assemblêas; vós,
para a abhorrida monotonia da lareira,
/Um leitor! jum leitor! io vosso Cura! jo
vosso Escrivão! jo vosso Facultativo! jum
de vós! jseja quem for: um amigo, que vos
ajunte com um bom livro n'uma cosinha,
n'uma sala, n'uma adega, n'um celleiro
(sque importa onde?): jque vos leia, vos ex-
plique, vos oiça as duvidas, vol-as desate,
ou vos ajude a desatal-as, vos ensine o que
elle mesmo não sabia, vos descubra o mun-
do que nunca vistes, vos engolfe, pelas ca-
tacumbas encantadas dos seculos preteritos,
vos leve a peregrinar pelo Universo fora,
vos descortine- cardumes de maravilhas em
que nunca attentastes por terra e ceos, vos re-
vele que tendes lá dentro um coração, vos
infunda mais alto respeito de vós mesmos,
mais sublime ideia de vossa alma e de vos-
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Obas completas de Castilho 83
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sos destinos, noções mais distinctas de vossos
direitos e de vcssos deveres, mais ternura
para com a familia, mais aferro á Patria, e
fraternidade para com o genero humano !
;/Um leitor! jum leitor; e o vosso inverno
vai ser mais florido e harmonioso que a pri-
mavera; mais verde, luminoso e accezo que
o estio; mais frutifero e scismador que o
proprio outono.
iUm leitor! um leitor! e a quadra que
chamavam morta, será para os vossos
interesses de todo o genero a mais activa;
e, no meio dos folguedos « abastanças das
outras tres, a mais recordada com saudade,
a mais esperada com alvoroço.
:Oh! ;não poder ser eu, eu mesmo, o
vosso leitor!.....:
X%
— «Mas os livros — perguntareis vós —
id'onde hão-de vir? je quaes hão-de ser?»
Hão-de vir, com summo gosto empresta-
dos por quem quer que os tenha, em quan.
to de outro modo se não possa. E de.
pois....; tão poucos bastam! ;A leitura, sa-
boreada como deve ser, funde tanto!
Agora, quanto á escolha (porque emfim,
grão para semente ha-de ser escolhido),
quando por si só o vosso leitor a não sou-
besse ou ousasse fazer, nada mais facil que
tomar conselho com algum erudito sizudo,
o qual provavelmente ia mais que indi-
car-lhe e recommendar-lhe a obra: facul-
tar-lh'a-hia, tendo a; não a tendo, lá lh'a iria
* desencantar. ;
| O catalogo dos livros portuguezes mais
84 | Empreza da Historia de Portugal
a
- proprios para estas leituras é por ora (jain-
“da mal!) muitissimo curto. ;Ah, boa França!
jah, boa Inglaterra! jah, boa Allemanha! jah,
boa Italia, que os teem em cardumes, e cu-
ram da instrucção de meninos e plebeus,
como de coisa séria, e de vez.
Todavia, ainda aqui mesmo, e de repente,
alguns titulos poderiamos citar ao vosso le-
dor, segundo os diversos interesses que elle
tem de servir e prégar: verbi gratia:
a Biblia, de Pereira;
as Meditações, ou discursos religiosos,
de Rodrigues de Bastos;
a Imitação de Christo;
a Moral em acção;
o Bom homem Ricardo;
Simão de Nantua;
a Historia de Portugal;
a Recreação philosophica;
o Guia e manual do cultivador;
- O Diccionario de Agricultura, de Soa-
res Franco;
a Hygiene, de Mello Franco;
a Collecção de receitas, de Lucio; |
a Revista Universal Lisbonense;
o Agricultor Michaelense;
o Industriador;
o Panorama;
o Archivo popular;
o Recreio das familias;
o Universo pitoresco;
o Robinson Crusoe, etc.
D'estas obras, algumas são inteiramente
traducções; outras, traducções em parte;
COP O fo E Pa E RN O E
E Mo o 15 TE
o]
“Obas completas de Castilho Hi AO
mas essa consideração só por si pouco faz
para o nosso caso. Oxalá que muitos ou-
tros originaes estrangeiros, dos que merecem
ser vulgarisados, se fossem para cá trasla-
dando! Eis aqui dois, bem credores de pre-
ferencias, dois, cada um dos quaes pela uti-
lidade vale uma bibliotheca: o Robinson
Suisso, e os Colloguios aldeãos, de Timon. !
O primeiro é um formoso estudo da Na-
tureza, entresachado com um mellifiuo curso.
de Moral; paginas, que todas resplandecem
e palpitam, que todas nos amam, e que to-
das amamos.
O segundo é a alma de um homem hu-
mano, que, apoz muito ver, muito meditar,
muito enganar-se, e muito desenganar-se
sobre a politica e os estadistas, vai procu-
rar a felicidade do Povo onde só a pode
haver: no querer e bom juizo do mesmo |
Povo, na morigeração, na diligencia, na eco-
nomia, na fraternidade, na religiosidade.
Os Colloguios aldeãos (dae-me as alviça-
ras da nova), brevemente os havereis em
linguagem chan, sincera, e vernácula, como
1 Entretiens de village — par Timon. (Vicom-
te de Cormenin). A leitura d'esta obra, de que eu
não conhecia: mais que o titulo, sobre modo me li-
sonjeou o amor proprio. Muitos dos meus pensa-
mentos e desejos nesta serie de artigos; haviam
coincidido,e concordam, com os d'aquelle excellente
philosopho, Não falando no talento, em que elle me
leva notoriamente a palma, no seu livro me vejo como
em um espelho. Elle obteve a amisade dos homens
de bem, e alguma gratidão dos infelizes; por que
não hei-de eu esperar tambem uma e outra coisa?
CASTILHO
r
86, Emprexa da Historia de Portug al
convem, e é essencial condição em todo o
escrito que aspira á honra de ser ouvido,
lido, manuseado, aprendido, assimilado, e
à final vivído, pela Plebe, pelo Povo, pela
Classe média, pela superior, pela Nação,
pela Posteridade, pelo Mundo.
O Robinson Suisso, já daqui me obrigára
eu a que tambem o houvesseis, e tambem
em linguagem vernácula e muito vossa, se a
fortuna de quem escreve com a alma deitasse
a tanto como lhe chegam os bons desejos.
Porque olhae vós: amigos do bem publico
não faltam entre os homens que se consa-
gram ao estudo; mas são aguias, a quem a
fortuna, parece que por escárneo, se diverte “|
a depennar as azas, ao mesmo passo que, por
2? b)
escárneo tambem, as vai atar, mui brilhan- -.
tes e espaçosas, em quem não sabe, nem
quer, senão dormir.
i Grande desconcerto ! ; misero e miserri-
mo desconcerto, o que tão boas e optimas
coisas dessemeia, cu calca no embrião, ou
afoga á nascença, ou ao desabrochar ou ao
“florir as torce , as quebra, as arrebata, as
confunde, as perde, as aniquila !
*
Oh! Quando um pouco n'este descon-
certo do nosso estado presente se repara ;
quando tão claramente se reconhece a perda
que ahi vai para o genero humano na anti-
providencial discordia dos diversos meios de
acção, isto é das riquezas da alma, das ri-
quezas da diligencia, e das riquezas da bolsa,
| que tentações não veem a um coração ge-
é
E E
eat
E o qe O
e E Mio À aca Tea
Obas completas de Castilho 87
neroso de venerar e abraçar (a despeito de
todas suas difficuldades) a sublime theoria
da numerosa e crescente escola de Fourier:
Calumniado nas intenções pelos que nunca
o estudaram, o systema da universal harmo-
nia, o systema mais profundamente respei-
tador das propriedades, a ser exequivel (se-
gredo, que por ora só pertence ao Altissi-
mo), é o mais prenhe de immensos e pros-
perrimos destinos; o unico, efficaz para rege-
nerar a terra, precavendo e impossibilitando
revoluções; o unico, poderoso para realisar
superabundante e illimitadamente as promes-
sas charlatans e sempre fallidas dos politicos;
o unico, por onde a ideia da ProvISENCIA se
ha-de tornar comprehensivel a todos os en-
tendimentos; o unico, emfim, digno do Ho-
mem, digno da Natureza, e digno de Deus,
que a elle o fez para ella, como Elle é
para ambose para tudo... ea sopa
“0... ..... 100... 0... ............ ... a...
%
««.; Oh! ;por onde me ia eu agora! ;quão
longe do casal e do serão! jpor esse Universo
e seculos fóra!
:E a proposito de quê?
De bem pouco: de mim, que tenho alma
e vontade energica, e alguns meios internos
para ser util; que forcejo pelo ser, e, por
falta de concurso de meios externos, me
gasto, abrazo, e consumo, como moinho sem
grão a trabalhar sobre si mesmo.
i Hei-de acabar, hei-de morrer, como ou-
ros muitos, sem haver podido deixar rasto
; f e ] RC o Adro é
Eca Er ú 7 av : ' açs
+ q +
88 Empreza da Historia de Portugal
de bem para os meus semelhantes *! eu com
faculdades, eu com vocação, eu com valor,
eu com empenho, eu com diligencias, eu com
a minha missão bem sentida, bem acceita, e
bem jurada, e, até onde pude, bem cumprida,
de amar aos homens, de coilaborar com os
obreiros desinteressados, de pospôr mais
que o meu individuo, os individuos do meu
sangue, ao proveito abstracto e hypothetico,
mas fascinador e grandioso, do maior nu-
mero, e do porvir?!....
O que havia aqui dentro, e se mallogrou,
só Deus o sabe; eu mesmo não o alcanço.
O meu destino, como o destino de muitos
de vós, como o da maior parte dos homens
no actual cahos (alcunhado por antiphrase
estado social), brevemente será reduzido a
cinzas, sem ninguem o ter lido. A Provi-
dencia m'o escrevêra do seu punho; a for-
tuna terrestre com a sua mão sacrilega m'o
fechou com sete sellos. Todo o meu traba-
lhar apenas dos sete rompeu um; espreitei
para dentro; deletreei algumas palavras sol-
tas: eram nobres. ; f
Amanlian será tudo pó. Depois de ama-
nhan... nem o pó já lembrará.
| O" meus irmãos da Utopia harmonica,
almas generosas e consoladoras, derramae-
me, vós ao menos, sobre as chag:s do co-
ração o suave balsamo da esperança! Fe-
neça eu embora mallogrado e perdido; mas
fazei-me crer, na minha ultima hora, que
para os meus descendentes ha-de já ter nas-
cido redempção; que o labyrinto, onde os
"mais nobres Athenienses eram devorados,
vai desabar; que eu, e vós, e os contempo-
- Obas completas de Castilho 89
- rancos, somos as derradeiras victimas do
- Minotauro.
' Outra vez fóra do serão! ; outra vez
fóra do casal! Desculpae-me; agora volto ;
e ainda que a rasão me chame lá-fora, não
“torno a sahir, que tambem cá dentro a te-
“mos, e muito forte, e muito formosa, no
grandioso assumptosinho que vinhamos tra-
tando.
%*
Queriam-se pois para as nossas leituras
“ ou lições populares, além das obras já indi-
cadas outras, e muitas, de Religião, de Mo-
" ral, de Hygiene, de Medicina caseira, de
' Agricultura, de Veterinaria, de Physica, de
Chymica, de Zoologia, de Botanica, de Mi-
neralogia, de Economia, de Direito publico,
à de Direito civil, de Direito criminal, de His-.
toria, etc. ; opusculos curtos, em linguagem
pura (estragal-a, como por ahi a estragam,
para populares e meninos é um crime), e fi-
| nalmente baratos e quasi dados.
i Parece-vos isto difficultosissimo ? pois
E não é.
Homens de saber e engenho para escre-
| verem taes opusculos, não faltam; o que só
à falta, é a Lei nova, e novos costumes, que
| lhes afiancem o não perderem, nem o tempo
* que houverem gasto no estudar e escrever,
'* nem as despezas que houverem feito no im-
- primir. O costume virá do tempo, da rasão,
e da mesma Lei; a Lei muito facilmente |
| poderá vir do vosso e nosso Parlamento.
' Adopte e sanccione elle o alvitre que ha
90 Empreza da Historia de Portugal.
seis annos publicavamos !: ponha tributo
de sello ao papel em que se imprimem de-
ploraveis e estragadoras traducções de ex-
cusadas e abominaveis novellas francezas, é.
com o tributo d'esse imposto, mais racional
que o do sello nos papeis forenses, faça pre-.
mios aos escritos illustradores e sociaes.:
Será queimar ou enterrar as hervas más
para adubio de plantas uteis, que é fazer
num só lanço dois beneficios.
D'esta sorte os autores, seguros da perda,
perfarão o que hoje nem ousariam commet-
ter. Pagas de antemão as suas despezas, po-
derão dar os seus livrinhos por vil preço. A
barateza, junta á utilidade, os fará copiosa-
mente vender e reimprimir, com proveito
sempre crescente d'elles, com proveito sem-
pre crescente de todo o Publico. |
Em quanto, porém, essa edade aurea das
Lettras, Artes, e Sciencias, nos não chega,
os nossos bons leitores publicos que se re-
medeiem, com o que acharem de melhor para
o intento; e mesmo, se a experiencia lhes
mostrar ser conveniente, que misturem com.
aquellas obras de que fizemos rol, e seme-.
lhantes, outras de menos substancia e maior |
agrado, como os dramas e os romances mo-.
raes. Este arbitrio para os primeiros tem-.
pos, e para fazer pegar o costume, seria por.
ventura o mais plausivel.
, *
!Que serões! ; que serões vos não espe-
1 Revista Universal Lisbonense —Tomo Il, n.º 37.
— 1.º de Junho de 1843 — artigo 1741.
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Obas completas de Castilho 91
”
“ram já este inverno! ; Que deliciosas tardes
de domingos e dias santos: | quantas coisas
- prestadias, e para vós novissimas, não tereis
já na memoria, no espirito, e no coração, em
volvendo a primavera! ; quantos gastos de
“dinheiro, de saude, e de paz interior, não
“haverão forrado muitos d'entre vós, que, a
“não ser o chamariz da leitura, teriam ido da
venda para o arruido, ou para o roubo, de lá
“para o hospital, para a cadeia; ou para o ce-
| miterio!
Pedi, supplicae ao vosso Parocho, ao vosso
* Administrador do Concelho, a quem mais
— VOSso amigo, ec a quem mais homem vos par
“recer, que ajudem e promovam taes insti-.
iotos em favor da Religião e da Caridade,
em favor da Policia e da Ordem publica, em
| “favor das Familias, e da Patria.
| Um leitor em cada aldeia, se é possivel!
É Um leitor, e mais de um em cada villa!
! Muitos leitores, muitissimos, innutmeraveis;
| em cada cidade ! i
x
by
jSerá ainda este mais um grito em deser-
to sem eccos?
- Outubro de 1849.
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PETI PARAR PER EU ÇA, ,
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+
XVI
Decimo serão do casal
Abolição do Exercito
SUMMARIO
Outros procuram a felicidade, onde a não ha; nós
| pedimol-a:á Agricultura. —O que um Ministerio da
* Agricultura fará para beneficiar os lavradores-—O
' Exercito é mal para os individuos, para as familias,
* para a Patria, para a Humanidade. —O Exercito ou
é para conquista, ou para defensa, ou para tran- .
quilidade.—Portugal não pode conquistar; não tem
de quem se defenda; tendo, haveria outros recur-
* sos; e a paz interior mais se lhe tem com as tro- .
- pas perturbado, que mantido.—Uma sentença de
— Felice contrahavermos Exercito. —Quanto o Exer-
| cito nos custa, no orçamento, e fora d'elle.-—Lu-
* cros cessantes que motiva. —ketrato do camponez
- antes de soldado. —O mesmo em soldado. —- OQ mes-.
"mo depois da baixa.-—Celibato militar. —Pede-se a
* suppressão do Exercito. Poucas palavras sobre o
| como se pode a milícia extinguir sem inconvenien-
| cia nem perigo algum. —Nova organisação da força
» publica-—Guarda nacional —Lei agraria, com van-
= tagem para o publico e para muitos particulares,
" e sem lesão para nenhum d'elles. — Acenam-se
à -alguns pontos para uma Lei de organisação de
| propriedade territorial. — Adoptando-se estes con-
selhos, as instituições liberaes e o Throno se fir- .
mariam. aa
* Continuamos na nossa teima de procurar
“felicidade. |
| Se é loucura, é loucura nobre, e todos os
“espiritos mais bem nascidos de cada seculo
1]
94 — Empreza da Historia de Portugal |
a teem padecido. Uns a fizeram consistir na .
renunciação de todos os bens terrestres pelo .
amor do Ceo. Outros, na impassibilidade es- |
toica. Outros, no elixir de longa vida. Ou- |
tros, no Quietismo. Outros, na maxima diffu .
são das luzes. Os economistas, na maxima |
producção material, com absoluta abstrac-.
ção de moralidade. Os politicos, na compo-
sição de formas governativas. Nós, em rela- |
cão ao nosso Portugal, fazemos consistir a |
felicidade na Agricultura, pois debaixo d'esta |
palavra comprehendemos, como efeitos na |
causa, a abundancia, os bons costumes, a |
paz, a satisfação, e a estabilidade. |
Dos economistas não esperamos nada; o.
materialismo foi sempre estéril. Dos finan-
ceiros ainda menos; todos os algarismos do |
mundo não são capazes de crear um átomo; |
por elles ainda não vieram senão tributos.
ao Povo, e meia duzia de alampadas mara- .
vilhosas para os Aladinos do calculo. E, fi- |
nalmente, dos politicos tambem não, porque,
“trabalhando ha tantos annos na procura da |
promettida pedra philosophal, tendo mettido |
para vs seus cadínhos tantas preciosidades, |
e accendido tanto fogo e tantos fogos, quei- |
mado tanto (até do futuro), ainda não fize-
ram sahir do seu estrondoso laboratorio se- |
não fumo. E
«Se elles, ao menos, tivessem conseguido |
inutar o alchimista, que deixou na galeria do |
Gran-Duque da Toscana o prego meio ferro |
e meio oiro, para admiração de crédulos, e de- |
sappareceu!... Mas pelo contrario: a sua sci- |
encia occulta, se alguma coisa tem logrado é |
transformar o oiro em ferro; o que não im- |
Obras completas de Castilho 95
“pede que, semelhantes aos Albertos Magnos
e Cagliostros, appellidem tambem a sua obra
“«A grande obra».
* Não, meus lavradores; os unicos alchimis-.
“tas sociaes, em quem se ha-de pôr a verda-
'deira esperança de pedra philosophal, que
“faça ao menos. prata, e de elixir, que, se.
“não prolongar a vida, pelo menos nol-a torne
"supportavel, sois vós, com o vosso natural
“bom-senso; sois vós, creando-nos um Par-
' lamento da terra; é esse Parlamento, crean-
“do-nos Leis de verdadeira economia, e um
| Governo agricola; é esse Governo, vosso
“neto, e para logo vosso protector, illustran-
do-vos, moralisando-vos, incitando-vos ao
“trabalho, nobilitando-vos na vossa mesma
| estimação, facilitando vos transito por todo o
* vosso territorio, promovendo companhias a.
* quem vendais os generos com segurança, e
“de quem recebais adiantado para os ama-'
“nhos, descobrindo e ensinando-vos, por uma
- continua investigação dos portos e mercados
“de todo o mundo, quaes as culturas velhas
" que deveis largar, quaes diminuir, quaes
“acrescentar, quaes aperfeiçoar, quaes expe-
| rimentar, quaes introduzir com afloiteza;
* que para isso traga embaixadores muito es-
| colhidos, mui zelosos, mui portuguezes, e
— mui vossos, por todas as partes do mundo;
| que em summa comprehenda e creia firme-
| mente, que tudo aquillo que a terra nos não
| der, a poder de sciencia, de arte, e de tra-
| balho, nada seria já capaz de nol-o dar.
| Para esse Governo, para esse Parlamento,
"e para vós, continuemos ípois a discursar
“sobre o que está para fazer,
96 “Empreza da Historia de Portugal
%
Falemos hoje do Exercito, com licença
dos vossos lares e das vossas arvores, que
“sempre em ouvindo tal palavra se estreme-
cem e horrorisam. |
Um serão para tal assumpto carecia de .
ser mui largo; noite de S. João levada de |
vela lhe não bastára. Emfim : apontemos ; o
vosso recto juizo desenvolverá depois.
Cerrae a porta, que ha ahi alguns visi-
nhos de andares altos, que já murmuram
sermos nós ruins gastadores de tempo. As-
sentae-vos com animo despreoccupado ; e,
se vos parecer, ide apontando ahi com car-
vão, por essa parede da vossa conversavel
cosinha, as principaes rasões da pratica, a
fim de se vos não desluzirem da memoria,
para quando fôr tempo.
Lad
i Que é um Exercito? q
E" um mal, complexo de males sem nu- |
mero, e que só por uma necessidade abso--
luta se póde tolerar. 4
O soldado é ora um escravo, ora uma |
victima; a familia do soldado uma orphan, |
esbulhada de parte do seu haver mais sa-
grado. A Patria não tem carga mais onero- |
sa, nem a Flumanidade coisa que tanto a |
vexe e lhe repugne. Todas as considerações |
sociaes, economicas, moraes, religiosas, scien- |
tificas, litterarias, e artisticas, todas sem ex- |
cepção veem jurar contestes no processo |
contra o Exercito. P
| que defendemos; as nossas bandeiras, Os
» campanarios das nossas freguesias ;os Evan-
à gelhos do nosso assentar praça, as lembran-
Obras completas de Castilho 97
; Para que tem logo havido em todos os
tempos exercitos? ; e para que os ha ainda
hoje em tantas partes ?
Umas vezes, para a conquista; outras,
para defensa contra invasores; outras, para
tranquilidade interna.
No primeiro caso, é o Exercito uma arma
em mão de salteador. A Historia chama-lhe
“um brasão. Portugal, como todas as nações
heroicas, o teve, e com elle se engrandeceu.
No segundo caso, é um escudo, que está
afrontando e esmagando ao proprio corpo
que defende. Do mal, o mal: das armadas
invasoras procederam fatalmente as arma-
das defensivas.
No terceiro caso, é um remedio violento
| e dispendiosissimo, para doença que em
parte se devia prevenir pela hygiene, ou,
chegando-se a declarar, acudir-se com me-
nos ruido e mais efficacia. |
; Podemos nós ser conquistadores ?
Não. Logo, se temos Exercito, não é para
conquista.
; Temos que nos defender de extranhos ?.
Não. Rasões de mais alta e geral politica
| são as que per si nos defendem, e hão-de
defender ; e, quando ellas cessassem, ou fos-
sem vencidas, não haviam de ser estas nos-.
sas fileiras que nos salvassem, mas sim o
Povo todo: os fortes, e os fracos, os de-
| crépitos, as creanças, as mulheres. Às nos-
“sas atmas seriam o ferro, os troncos, o fogo,
“as pedras; o nosso soldo, a vista das casas
VOL. V 7
98 Empreya da Historia de Portugal
ças das nossas victorias sobre Romanos,
“sobre Arabes, sobre Castelhanos, sobre
Francezes. Povo que se defende na terra em
que nasceu, é leão e leôa no seu bosque
diante do covil dos filhos. O Ceo, com a
santidade da nossa causa nos protegeria; e,
se nos fosse indispensavel auxilio humano,
elle no-lo depararia no braço de alguma Na-
ção, que defendesse nos nossos os seus in-
teresses. Logo, não é tambem como escudo,
que mantemos um Exercito.
- à Será portanto para obviar a tumultos? |
para cohibir sedições? 4 para conservar
boa ordem e regimento no Estado?
A esta pergunta não precisamos de res. |
ponder ; bem respondida que ella está n'uma
pagina de cincoenta leguas de largo e cem |
de alto, que ha cincoenta annos temos cem |
vezes escripto, respançado, e tornado a es- |
crever com sangue de irmãos. Logo, se com
um Exercito nos consumimos, não é para
bem da paz domestica.
*
«Os pequenos Principes — diz Felice — |
querendo arremedar os grandes potentados, |
teem exercitos, que para brinquedo são de
mais, e para deveras de pouco servem.» q
A segunda parte d'esta sentença bem |
provada e contraprovada nos está por fac- |
tos; e a primeira é verdade não menos
manifesta.
Perguntae aos orçamentos (e ainda esses
não sabem, ou não dizem tudo): ; emquan- |
to nos importa o Exercito? ; os soldos e |
Obas completas de Castilho 99
comedorias da soldadesca e dos estados
maiores ? ; Os uniformes, os armamentos, o .
calçado, a remonta e sustento da cavallaria,
as fabricas de polvora e balas, os arsenaes,
os quarteis, as obras de fortificação, as mar-
chas e conducções de bagagens, os trans-
portes por mar, os roubos e extravios do
material, as secretarias, os commissaria-
dos, as inspecções, os tribunaes militares,
as boticas, os medicos, os cirurgiões, os en-
fermeiros, os.moços, os invalidos, as musi-
cas, etc.?
Os orçamentos do Ministerio da Guerra
d'estes ultimos nove annos dão, termo medio,
uma despeza annual de 2:758:580:%4.10 reis.
Se porém considerarmos que a Marinha
é, por sua natureza, parte e complemento
da Guerra, e nos tem custado, tambem ter-
mo medio no mesmo periodo 944:475%851
reis, teremos annualmente uma despeza de
reis 3:703:056%261.
Pelo exame dos respectivos orçamentos,
todas as restantes despezas do Estado, ter-
mo medio, não teem subido no mesmo pe-
riodo de reis 6:560:419%590.
Coisa espantosa! Mais de um terço dos
haveres publicos devorado pela Guerra, que
ou é um nome vão, ou, quando tem a sua
funesta realidade, é por esse mesmo desper-
dicio que nasce e se alimenta!
Despeza ainda mais desgraçada, quando
se olha para o desamparo da Instrucção
Primaria, para a falta de estimulos e pre-
mios á Agricultura, á Industria, ás Artes,
ás Sciencias.
Despeza inqualificavel, quando se repara
100 Emipreza da Historia de Portugal
em que, á proporção que nós minguamos,
que nos afogamos na divida, vai ella a cres-
cer de mais em mais.
| E, como se este infinito fôra ainda pou-
co, lá baixam de vez em quando das Secre-
tarias novos padrões de uniformes, como de
París veem figurinos para os toucadores das
casquilhas ! no que, ao desperdício açcresce
anda o indecóro, ao indecóro a dureza,
pois que essas vaidosas despezas, dos pro-
prios militares vão sahir ; classe que, empo-
brecendo-nos a nós, está bem longe da opu-
lencia.
x
Além d'estas despezas carregadas na
massa comum, perguntae ás terras, por
onde, ha meio seculo, nos andam, quasi de
continuo, transitando corpos, | quanto lhes
não tem custado a ellas o Exercito em
aboletamentos, em hospedagens, em dilapi-
dações, descaminhos, e estragos, em seáras
taladas e comidas pelos cavallos, em olivei-
ras, séves e alfaias campestres queimadas,
gados comidos, bestas e carros apenados,
trabalhos ruraes retardados ou supprimidos,
etc., não falando já em damnos de outra
natureza, muito maiores e mais irreparaveis !
Esmae tudo isto a monte. ; Arripiam-se
as carnes!...
- E todavia, ainda ha mais: a todos estes
damnos immergentes, ; que de lucros ces-
santes não accrescem, com a existencia de
um Exercito, aos particulares e ao Publico !
1 quantos braços arrancados á lavoira, aos
mistéres, e ás artes! ; que desfalque no to-
mn chide tr ec O RÃ a A rcndinids Rd a ais RE a e dia Std do e
ES abas Cut SADO esc Nina di Sa
a SD a O RO SO À ds DOR a
EA BRR
Ti
Obras completas de Castilho 101
E E VEN pr
- A fas de rs
tal da producção ! ; que augmento no sala-
rio dos jornaleiros ! | em milhares de casaes
que mingua de pão, por ausencia de quem
| o ganhe !
*
Viremos agora a questão por outro lado.
Chega o recrutamento. |
« Lá vai o coração de uma pobre familia
arrancado! Lá entra pela primeira vez, €
prezo como um criminoso, na cidade,a quem |
elle queria servir de longe com a enxada na
mão, um mocinho, innocente, cheirando á
| terra, ao feno, e á flor do matto; simples e
) viçoso como ella, temente a Deus, amante
| de seus' paes, de suas irmans, de seus 1r-
mãos, bemquisto dos visinhos, laborioso
como abelha, sentindo e expirando de si a
poesia da Natureza, como o passarito do
silvado em flor por uma antemanhan de
Maio.
Approvado pelos medicos n'um exame,
onde o fizeram corar pela primeira vez,
; passa de repente da liberdade para a escra-.
| vidão; da luz e fragrancias do seu campo,
A para a escuridade fétida de un: quartel;
| d'entre rostos benévolos, para entre sem-
blantes carrancudos; do rebanho que pas-
torava, para a escola e chibata do instructor,
para as conversações grosseiras, mortiças e
fumosas da tarimba. Com violenta mão lhe
limam á pressa todo o cunho da sua indi-
vidualidede : rentearam lhe o cabello, como
a todos os seus camaradas; vestiram-n-o e
calçaram-n-o como todos elles; constrange-
ram-n-o a tomar a mesma figura e movi-
—
102 Empreza da Elistoria de Portugal
"mentos, a dar os mesmos passos contados,
a comer á mesma hora, e do mesmo pão, a
dormir e a acordar à voz metallica da mesma
trombeta. ; Individualidade !? ; elle? até o
nome lhe tiraram; é um numero; e esse nu-
mero nem mesmo designa um ente sobre si.
As suas armas, o seu fardamento, e elle,
são tres elementos inseparaveis, cuja somma
é o soldado. Se a bayoneta soubesse ouvir e
obedecer, e a espingarda atirar, não as te-
riam complicado com aquelle appenso vivo,
que é para ellas o que é a carreta para o
canhão, ou os cavallos para a carreta. !
*
O mais rigoroso de todos os codigos das
Nações, e o mais altamente offensivo da di-
gnidade humana, é aquelle que o soldado,
com a mão sobre os Evangelhos, jura cum-
prir. E o peor é que essa antinomia a todas
as ideias de Liberdade, é uma fatal condi-
ção, e inseparavel, da existencia de exerci-
tos.
—a« ; Ao menos, é uma vida gloriosa a
das armas ! » — dizem.
i Mas não será esse dizer uma arteira se-
! N'um volume de romances moraes, que o meu
amigo o snr. Luiz Filippe Leite está para dar á es-
tampa, com o titulo de Supposições que podem ser
realidades, ha uma pintura das miserias da vida mi-
litar. O autor copiou o seu soldado do natural, o
seu desenho é bello, as suas côres verdadeiras. E
um soldado esse, que serve de eficaz auxiliar à nossa
doutrina.
CASTILHO.
en
: ia ai
Pe DER 5
Obras completas de Castilho 103
ducção armada ao espirito, assim como a
purpura das bandas, o accezo dos penna-
chos, as côres vivas das golas e canhões, o
oiro das dragonas e das chapas, o lustroso
das correias e dos ferros, são outra calcu-
lada seducção para os olhos, e outra as es-
trondosas musicas para os ouvidos ?
Nos sacrifícios dos pagãos enfloravam-se
as victimas.; Por que razão Marte não en-
feitaria tambem as suas?
«iGloriosa vida a do soldado?!...» A
consciencia d'elle que o diga.
O seu entendimento entorpeceu-se no meio
da monotonia da sua agitada ociosidade. Tu-
do m'elle é vulgar. Os seus actos, até quan-
do arrosta com as balas ou vôa á brécha,
são sem merito, porque não são livres. A.
reflexão lhe é defeza. O sopro de um cla-
rim o despára para a morte, -ou para a vi-
ctoria, como a Gescarga do obuz arremeça
a bomba, que vai despedaçar, despedaçan-
do-se. Mandado, combate hoje pelo verme-
lho contra o azul; amanhan, mandado, com-
baterá pelo azul contra o vermelho. Manda-
do, expõe-se n'uma sentinella perdida, pela
segurança dos seus camaradas. Mandado,
irá, em se recolhendo d'ali, espingardear o
seu camarada predilecto, sem uma pergunta,
sem uma lagrima. Mandado, poria fogo, sem
hesitar, á egreja onde o baptisaram, á aldeia
em que nasceu, á choupana d'onde sua mãe
entrevada não pode fugir.
Tudo isto lhe murmurará tristemente a
consciencia, quando á sua profissão ouvir
chamar gloriosa.; Que fiel, que horroro-
samente fiel, não é o retrato, que do soldado,
104 Empreza da Flistoria de Portugal
“olhado a esta luz, pintou a negro Alfredo de
Vigny! |
Ao viver monastico teem reprehendido
philosophos os seus tres votos, como anti-na- .
turaes. |
iEo soldado?! ;O soldado é livre para ca- |
samento? ; O soldado não geme em forçada |
pobreza?; O soldado, sobretudo, não é o pro- |
totypo da obediencia servilissima?
No monge, ao menos, a pobreza descal.
ca, a continencia sobrecarregada de cilícios,
a abnegação do querer, tinham por compen- |
sação aesperança de thesoiros, de delicias, e
de um throno para a eternidade.
E o soldado? ;Que lhe promettem, ou que
espera, por tantas renunciações:?
:'Oh! a sua humildade, se fosse livre, seria
inquestionavelmente de todas as heroicida-
des humanas a mais estupenda. Mas não é
livre. Mais, do que no Religioso opera a es-
perança do premio, opéra n'elle o seu unico
movel: o medo do castigo. O cenobita pa- |
dece e canta; o soldado padece, e nem ousa |
suspirar. Aquelle canta porque na phantasia |
lhe riem Céos; a este negrejam-lhe na ideia |
o calaboiço, as varas, a grilheta, a farda ras-
gada, o fusilamento.
*
Depois de annos de uma tal vida de glo- |
ria, : como volverá ao seu torrão o mancebi- |
nho innocente, que d'ali arrancaram, por en- |
tre tantas lagrimas dadas e recebidas, se por |
ROD a
Dita E RU é
EO Cbras completas de Castilho 105
| ventura lá volver? Nem a namorada do seu
coração, se a teve, o reconhecerá.
O aborrimento da miseria n'uma condição
obscura, e na familiaridade com entes sem.
educação nem principios, lhe fez contrahir
muitos vicios ignobeis, que o levaram mais
de uma vez, ora ás prisões, ora aos hospi-
taes 1. Às suas mãos perderam o geito e gos-
to dos trabalhos naturaes e primitivos. Res-
cendia ás flores do matto; hoje cheira á pol-
* vora, tem o perfume das batalhas, como as
aves carniceiras o fortum cadaveroso. Tinha
Fé, desbarataram-lh'a:; indole affectuosa, af-
fizeram-n'o, por dever, á theoria e á pratica
do homicídio. Nos contos do serão, tudo o
fazia estremecer; agora, é elle que infunde
espanto aos ouvintes, pelo impassível com
que a sua voz rouca descreve as carniçarias
que viu, e que ajudou, o lanço da cidade
que voou com a explosão da mina, a popula-
-Ção inerme que passaram á espada..
iPor que assim é desprezador da vida?
Porque d'ella só conhece as durezas e amar-
guras. O seu valor, se o tém, é uma quali-
dade negativa: despréza a morte, porque
" “não sente a alma.
Breve: o Exercito custa aô Thesoiro, que
devora; ás provincias, que fatiga; ás casas,
que desfalca de filhos; ás terras, que priva
“de braços ;ás artes, que despó ja de obreiros;
=”
- 1 Verdade reconhecida pelo snr. Capitão João Ma-
ria Fradesso da Silveira no seu honrado artigo sobre
a lei do recrutamento, na Revista Militar de Feverei-
rode 1849. pa
CASTILHO.
106 Empreza da Historia de Portugal
aos individuos, que esbulha do seu quinhão
de liberdade, a quem quebranta mil fóros e.
immunidades essenciaes do homem, a quem,
finalmente, de homens converte em machi-
nas de destruição. |
E mais, e muito mais, custa ainda o Exer-
cito, se avaliarmos as graves consequencias,
positivas e negativas, directas e reflexas, do
seu celibato; ponto esse, em que já d'outra
vez tocámos, e que por si mesmo se está |
commentando.
dssti dd
*
Ora, se tanto custa o Exercito, e se tão
inutil é, como já vimos, ;por que não insis- |
tiremos para os Legisladores, e para os que
os hão-de eleger, no alvitre (que tambem já
outra vez suscitáramos) de se extinguir este .
grande, este immenso, este inutil, este esté-
ril e esterilisador, convento militar?
; Não se dá baixa ao soldado quando já
não póde com a milicia? ; Não se lh'a da
até em tempo de guerra? ; quanto mais em
paz! Pois então, ;por que se não ha-de a
baixa conceder já já a este triste velho de Por-
tugal? As suas armas visivelmente o asso-
berbam e debilitam de anno para anno.
; Aguardaremos que o acabem de matar,
para então lh'as despirmos? Elle já não tem
que ir fóra a conquistar. De fóra não hão-
de vir accommettel-o. ;Logo, de que lhe
servem, se não fôr para se ferir? Arrancae-
lh'as; ou antes: deixae-lh'as depôr dos bra-
cos pizados, sangrentos, e cadavericos, que
é tudo quanto elle mesmo vos supplíca.
Tem o torrãosinho que mercou, e muito caro;
»
“
Obras completas de Gastilho 107
.
ermitti-lhe remoçar-se n'elle, cultivando-o
om desafogo.
- Quando Herminia, no formoso poema da
lerusalem resgatada envérga armas sem ser
terreira, ja que perigos e terrores a não
xpõe essa loucura! Mas quando emfim, vai
irmada dar assim áquelle campestre retiro,
k
nde o pastor ancião está rodeado da fami-
ja, embebido em seusrusticos exercicios, que
s meninos fogem, assustados de a ver, e só
oltam quando ella, desquitando-se do elmo,
e lhes descobre gentil, pacífica e amorosa,
lonosissima allegoria! Escutae o que a boa
derminia diz, ou o que diz, por sua bocca,
| alma do grande Poeta:
Seguite, — dice — avventurosa gente,
= Al Ciel diletta, il bel vostro lavoro,
| Chenon portano giá guerra quest'armi
dlPopre vostre, ai vostri doici carmi.
8%
A
Assim deve já dizer aos nossos agricul-
tores a nossa milicia, desfazendo se de ar-
mas excusadas e improprias :
|)
* Gente amada do Ceo, ditosa gente,
javante em vossos plácidos lavores !
Já dispo as armas; animo recobrem
a lida vossa, os vossos brandos versos.
R
| Até aqui são axiomas. Qualquer entendi-
ento os percebe.
- D'aqui para diante pertence aos Estadis-
s, mas aos Estadistas sinceros, philosophos,
| humanos, propôr :
> das DE RN Lo qr; À FP
103 Empreza da Historia de Portugal
primeiro, o modo de fazer a suppressí
sem expôr a contingencias funestas ;
depois, o modo de organisar, mais effic
e menos dispendiosamente, a necessaria f
ça publica. q
Nós, que não somos Estadistas, só po
cas palavras nos permittiremos sobre esi
dois assumptos. ,
*
A abolição do Exercito seria recebida pe
grandissima maioria d'elle com alvoroço,
muito nos enganamos. |
A soldadesca, se a consultassem, appr
varia talvez unanime. Ao subir d'ella pa
a officialidade, é que haviam de principi
“as repugnancias, crescendo tanto mais, qua
to mais se fosse pelos postos a subir. E
logo licenciar a soldadesca toda, e da of
cialidade quantos o desejassem. Os restai
tes empregar-se hiam, ou nos serviços, ain
militares, de que logo falaremos, ou em out
quaesquer, em que, segundo suas habilit
ções, o Governo entendesse aproveital-os. À
vacaturas, por morte ou outras causas, q
minuiriam de mez para mez este resto é
onus, ainda grande para o Thesoiro; até q
em poucos annos haveria cessado toté
mente. |
Os soldados sôltos das Bandeiras seriai
preferidos, em egualdade de circumstanciz
para mil peguenoS empregos da republic
policia municipal, guardas de barreira e «
alfandegas, correios, serviço inferior de ti
bunaes e estações publicas, trabalho braç
nas officinas naçionaes e nas dos contra
Nota k io SN
Obras completas de Castilho 109
e a Nação arrenda, tráfego nas quintas
emplares e experimentaes, tripulação e
ais officios nao. Marinha, de que alguma
Am sempre ficaria provavelmente subsis-
O.
%
Quizera-se tambem que uma Lei nova,
gulando mais assizadamente a proprieda-
do solo, em ordem a fazel-o subdividir,
aproveitar até á ultima polegada, propor-
onasse conceder-Se aos que houvessem sido
ons soldados um pequeno chão, com o.
jantamento de instrumentos, sementes, e
lgum dinheiro para os primeiros annos,
endo casados, ou obrigando-se a casar; e
presentando fiador que respondesse pelo
alor que se lhes entregava.
' Os terrenos nacionaes poderiam d'este
nodo ser aproveitados com grande vanta-
em, e mesmo os baldios dos Municipios,
nediante contratos equitativos, e de interes-
e mutuo. |
' 4 Que lucrou o Estado com tão conside-
avel quantidade de solo tomado ás Ordens
eligiosas ? Elle nada. Crearam-se ahi meia |
luzia de principados, contra todos os apho-
ismos. da Ecotiomia. Com a divisão em
equenos lotes, que familias indigentes se
ão houveram aventurado! e o Thesoiro
eria recebido já hoje vinte vezes mais do
jue assim obteve.
' Pela mesma Lei, os grandes proprietarios
jue não cultivam, por não poderem ou não
juererem, seriam certamente obrigados a
rrendar em lotes, e por preços racionaes.
;
b
t
s
IO Empreza da Historia de Portugal
Os morgados. .. Mas este objecto é
bejo largo e importante; não cabe aqui. .
que apontámos sobra para mostrai
que, reformadas as Leis no que ellas teem
de mais flagrantemente anti-social, nenh
receio podia haver de que faltasse trabalh
e pão para quem quer que fosse.
x
Já podemos portanto pressuppôr acceil
e agradecida pelo proprio Exercito a su
suppressão, na qual, segundo se acaba
vêr, nada ha de violento nem odioso, se nã
que é tudo paternal.
A ulterior organisação da força publio
figura-se-nos ainda mais facil. Não é inve
ção nossa; é do seculo; é da philosophia
+
Ed
é da Lei do Estado; é à GUARDA NACIONA ,
Para allivio d'esta nas cidades grandes
podia haver tambem, como em Lisboa e m
Porto, uma Guarda estipendiada pelo Mu
nicipio; ainda que, ao vermos Londres, |
mais populosa cidade do Mundo, mante
sem nenhuma tropa, e só com meia dusii
de paizanos velhos, a sua admiravel Polícia
não podemos dissimular, que muita cois
está ainda por imitar de: Estrangeiros, d
quem, pelo commum, só o indiferente ou:
inapplicavel traduzimos.
«Paiz mais florescente que a Hollanda
nunca eu vi em minhas viagens — diz Ber
nardino de Saint-Pierre. — Na Capital em
cerra pelo menos cento e oitenta mil almas,
Com o immenso tráfego de mercadorias
que em tal cidade negoceiam, ; se faltarãc
E RAR 1-4 ARC AR
Wo” DEAR pr
Obras completas de Castilho III
n'ella com que se tentem as cubiças ! Pois
sem embargo, não se ouve lá falar de um
roubo; nem guardas ha de soldados. Em
1762 que eu lá estive, havia já onze annos
que se não tinha suppliciado ninguem ; e não
é dizer que não sejam severas as Leis; mas
como o Povo acha facilmente em que ga-
nhar a vida, não tem por que as quebrante ;
e advirta-se que este Povo tem ganhado mi-
lhões a imprimir quantas extravagancias ahi |
se escrevem em França sobre Moral, Poli-
tica, e Religião. Assim mesmo, ainda não
desdiz das crenças e costumes que d'antes
tinha. A razão é porque vive contente com
a sua sorte. Os CRIMES SÓ NASCEM DA INDIGEN-
CIA E OPULENCIA EXCESSIVA. !»
1 Da primeira vez que este artigo se imprimiu no
Agricu tor Michaetense, não levava a presente trans-
cripção dos Estudos da Natureza. Foi depois de da-
do á estampa, que eu li esta admiravel obra; digo li,
por ue ao devorar folhas na puericia não se chama
ler.
Os meus encontros em affectos, em pensamen-
tos, até em imagens, com Bernardino de Saint-Pierre
nesta e n'outras suas obras, não obstaute o que vai
de talento a talento, .que (ainda mal para mim) é
quasi infinito, se por uma parte me podiam lisonjear
o amor proprio, por outra me- confirmam n'esta,
- para quem escreve, tristissima verdade de que nada
a de novo debaixo do sol. ;
Censura de plagiato, que é a mais gabadinha dos
" ignorantes, dificultosamente a ousára fazer quem:
tiver composto e estudado.
Veja-se a minha Nota sobre Originalidade no fim
lo lrama Camões.
CASTILHO.
A
112 | Empreza da Historia de Portugal ; É Y
*
Uma Guarda Nacional, urbana e rustica,
de pé e de cavallo, segundo uma Lei pru- |
dente, mas francamente liberal, seria uma
forca respeitavel pelo seu numero, e mais
que sobeja para os tempos ordinarios.
Para a hypothese, mais que inverosimil,
de invasão estrangeira, esta mesma (Guarda
seria Exercito, como se observassem duas
precauções; a saber: ter constantemente uma
bella Escola militar, viveiro de officiaes para
“as armas scientificas, e obrigar os batalhões
civicos a revistas, exercicios, paradas, e pas-
seios militares, com instructores idoneos.
' Soldados taes, jem que differiriam dos de
linha? Em duas sós coisas: em custarem
menos, e em valerem mais.
O que pode o homem defendendo o solo
conhecido, e a que chama seu, já o ponde-
rámos; mas se provas quereis, perguntae á
Germania, ás Gallias, à Britannia, á Helve-
cia, á Lusitania, e a todas as Hespanhas ve-
lhas, pelas legiões Romanas; á mesma Hes-
panha, pelos Saguntinos, pelos Asturianos,
pelos Gaditanos, por cada uma das suas
provincias; á França, pelos Parisienses, pe-
los Bretões, pelos Vendeanos, por suas co-
marcas; á Grecia, pelas. Thermópylas, por
Missolunghi, por toda a sua historia antiga
e moderna; á Belgica, por Anvers; á Ame-
rica, pelos Estados-Unidos; ao Norte, pela |
Polonia, pela Hungria, pelo Caucaso; a Por.
tugal, pela Terceira, pelo Porto, por cada
palmo do seu territorio. Emfim: interrogae E
affoitamente a todos-os seculos, sobre todos |
Obras completas de Castilho 113
)
os povos do Mundo. Sobre o torrão mater-
no, todos são Antheus; podem ser venci-
dos, mas é por braços de Hercules, e só
depois de mil vezes renovada a lucta.
: Oh! de que loiros se não cingira o Mi-
nistro da Corôa que o ousasse propôr ! :On-
de ha ahi Camões, nem Homero, para lhe
fundir a estatua com as devidas dimensões?
O Throno e as Instituições deixariam de
vacilar. Duas égides celestes os cobririam :
a ellas, o sentimento da Liberdade; a elle,
o amor, amor centuplicado pela gratidão.
Aos roucos triumphos das eras antigas |
succeda o da Arcádia cantar festival!
Da ceifa das palmas, á ceifa de espigas,
volvei, Cincinatos do bom Portugal.
De espigas e palmas coroemos a enxada,
morgado, e não pena, dos filhos de Adão.
Mais velha que os sceptros, mais util que a espada
thesoiro é só ella, só ella brasão.
*
| Meu Deus! ; Será possivel que estejam
a paz, a abundancia, e o amor a bater-nos
ás portas, e lhes não abrâmos ? ; que a felici-
dade nos ria dos ares, dos valles, dos mon-
tes, dos rios, do (Oceano, e lhe fechemos os
olhos? que este solo nos grite deitodos os
pontos «Pedi-me, e recebereis», e lhe ar-
ranquemos os filhos ? ;que aos brados da In-
dustria e da Agricultura respondâmas sem-
pre politica? ;aos gemidos da Moral, que
pede para si trabalho, fartura, casamentos,
instrucção, e festas, politica, sempre politi-
ca, nada senão politica ?
VOL. V 8
Car UMA é
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4 Ny A a ES ”
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da dE PE pod: £
RUSa Empreza da Historia de Portugal
Aos jogadores e empalmadores da boa |
sorte do Povo, a esses, que lhe reprezam
em seus cofres o oiro, que tantas coisas
podia fecundar, não perguntemos que vale
ou significa o oiro; mas aos magnates do
- Estado, ;como deixaremos de perguntar
que vale ou que pode essa politica, esse
demonio incubo, sem olhos, sem ouvidos,
sem entranhas ? E ane tem feito? que faz?
ique ha-de fazer ? que sabe fazer?
- Dispam-lhe a purpura, que é sangue.
- Amarrem-lhe os pulsos, que é harpia. Ta-
pem-lhe a mentirosa bocca de sereia. Des-
terrem-n-a, ou enterrem-n-a, que os dias da
credulidede já passaram.
Para o seu logar subam, ão som de vivas
universaes, o amor da verdade, o amor da
actividade, o amor da justiça, o amor da
fraternidade, o amor das virtudes e dos ta-
lentos, o amor dos homens, das mulheres, |.
dos meninos, e dos ainda não nascidos. |
Só amores pedimos.
/O pedil-os é tão justo !...;e o concedel-
os é tão facil !...
a
RR
Novembro de 1849.
XVI
Festa da Redempção
23 de Dezembro
Nada mais inexplicavel, que a opposição
constante, que de muito fazem ao Chris-
' tianismo tres raças de homens, todos in-
fluentes: os chamados Liberaes, os chama-
' dos Philosophos, ou sabios, e os chamados
' Mundanos, ou partidarios dos deleites.
| Os primeiros deviam ver n'elle o santo
dogma da egualdade e fraternidade; os se-
* gundos, a chave que abre todos os enigmas,
"e o unico principio da Moral; os terceiros,
as unicas verdadeiras alegrias concedidas á
terra, a serenidade do animo, as esperanças
“infinitas, a beneficencia mutua e universal,
"a arte divina de converter os tormentos em
* gosos, as humiliações em glorias, a velhice
| em alvorada, e a morte em triumpho.
| Os que, não podendo chamar outra coisa
| ao Christianismo, para o deshonrarem lhe
' chamaram triste, não tinham jamais com-
| parado os rostos da multidão pobre e hu-
' milde, que pela manhan cedo sai do templo
4 mui serena, aos semblantes do tropel, que,
| pelas horas mortas, vem golfando dos es-
| pectaculos, das assemblêas, das espeluncas
"da crápula e do jogo, cançado, aborrido,
* parte melancolico, parte cuidadoso, parte
“ébrio ; uns vazios do oiro que lhes havia de
116 Empreza da Historia de Portugal
sustentar os filhos; outros, opulentados a
subitas, para se arremessarem mais affoitos
á ruina; estes, com a fama denegrida; aquel-
les, com a alma hydrophóbica ainda a ba-
bar veneno; frutos de cinza e fel dentro
em casca brilhante ; favos escondidos no es-
curo vão de um tronco.
5%
Todas estas excellencias nos traz epiloga-
das a festa grande, que prende ao fim do
anno velho o principio do anno novo, e que
é uma como absolvição do preterito, e san-
tificação do porvir.
N'estes treze dias temos em formoso dra-
ma um symbolo completo da origem, da
indole, e dos fins, da Religião do Nazareno;
é a apotheóse da humanidade; a subversão
das pompas vans; a infusão do Ceo na ter-
ra, e a escada mystica da terra aos Ceos,
que apparece resplandecente no meio das
trevas com as azas prateadas de todos os
Anjos, e ressoando com os córos de ;GLORIA
E PAZ; GLORIA AOS CEOS, E PAZ AOS HOMENS DE
BOA VONTADE !
*
i Que risonha e que magnifica não é, ao
mesmo tempo, a primeira scena d'este dra-
ma, annunciado e preludiado, largos seculos
havia, Pros grandes lyricos da Fé, os Pro-
phetas :
Eis o presepio de Belem. Os mysterios,
em tão pequeno espaço contidos, adoram-se
çom o silencio. Adoremol-os.
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Obras completas de Castilho 117
Mas como o dia é de jubilos e boas-festas,
chamemos pelos nossos camponezes, como
os Anjos chamaram pelos da Judêa, para
que venham, primeiro adorar, como nós, e
depois alegrar-se com ufania.
Não foi nos palacios, não foi em Roma,
não foi no Capitolio, que o Filho do Senhor
de tudo quiz nascer; foi nos campos, foi na
mais rustica poisada; não entre Principes,
se não entre pobres. Os animaes, symbolos
da lavoira e do trabalho, lhe tazem cóôrte.
Os primeiros convocados para o verem, os
primeiros que o.lcuvam, o beijam, e o que-
rem, são os pastores.
Os primogenitos do Ceo fostes vós, e
soil o ainda, homens simplices e laboriosos.
Os das pompas, os da riqueza, os da scien-
cia, virão tambem prostrar-se a este Menino,
que ennobrece a tudo quanto se prostra;
virão, que o destino d'Elle é a dominação
universal; mas só chegarão depois de vós.
Para vós, bastou um convite melodioso ;
para elles será necessaria uma revolução
nos astros.
| Eil-os emfim, os Reis ! |
%
Noite de Natal, quem: te não ama? ! Noi-
te das virgens e das mães, dos merinos e
dos velhos, dos camponezes e dos Sobera-
nos, noite dos Anjos e dos homens, ; qual
será o coração que tu não alvoróces? Até o
incrédulo se alegra, vendo refulgir no meio
das trevas o templo enflorado, e escutando-
lhe os cantares triumphaes. Do alto dos
118 Empreza da Historia de Portugal
campanarios rebentam á porfia os repiques,
luctando com os ventos impetuosos do in-
verno, e vencendo-os;,e indo levar uma sau-
dade, ainda suave, ao leito solitario do pa-
ralytico.
Toda esta musica, toda esta claridade,
todo este calor, toda esta vida no coração
do inverno, e á meia-noite, condizem com
uma Religião, que venceu o inferno, os Ce-
sares, os deuses; que triumphou, triumpha, e
triumphará sempre, dos temporaes da per-
seguição, das trevas da ignorancia, e das
trevas, muito mais trevas, da presumpçosa
Sciencia.
Sim, sim; o presepio, tal como ainda ao
presente o vemos reluzir allumiado, até por
sotãos e cabanas, o presepio com todos os
seus chamados anachronismos, com os seus
castellos artilhados, os seus monges, os seus
Romanos antigos, os seus pastores moder-
nos, os seus camellos carregados de oiro,
as suas gentis damas, e os seus pavilhões
campestres inglezes; embora nescios o com-
mentem por delírios é absurdos artísticos,
é a mais verdadeira de todas as Historias,
e de todas as Prophecias a mais infallivel :
é um espelho longinquo, no qual todos os.
pontos da terra e todas as edades se estam-
pam, convergindo para a adoração do Crza-
DOR UNIVERSAL.
1849.
,
É
|
“MA
É
ch
a
XVII
Undecimo serão do casal
emo
Despedida
SUMMARIO
Adeus para sempre a S. Miguel. — Saudades. —Como
é o coração de um poeta —Continua a ambicionar
a vida rustica-—Panegyrico d'ella, extrato de um
livro inédito. — Memora os bons desejos que teve a
bem da Ilha -—Excusado sermão a estadistas. —O
que o autor tentou, além de alvitramentos,—So-
ciedade dos Amigos das Lettras.—Escolas-— Novo
systema de leitura Tratado de versificação.—
Mnemonica.— Curso de poesia ; outro para damas. ,
—2Curso de Latim. —A Sereia, jornal projectado. |
— Gravura em madeira —Lithographia-— Typogra-
phia—Excitação na mocidade. —Applicação da poe-
sia a assumptos serios.—Hymnos da Industria, das
Escolas,dos Lavradores.—Curso de Hygiene.—Con-
selhoindustrial--.Caixa economica, Banco industrial
e Montepio.—Commissariado. dos estados.— Solar
de Artes e Lettras, e dotação. — Insiste-se forte-
mente n'esta ideia civilisadora.
Hora solemne e triste é esta para mim;
' e; oxalá que para vós tambem o seja um
poucochinho! Após tão amigavel conviven-
cia de dois annos, trago-vos despedidas, e
para sempre.
Seguer, estamos nas espaçosas noites de
Dezembro; e como já me vêem com a cinta
prestes, o escaço fardel ás costas, e o bordão
120 Empreza da Historia de Portugal
de peregrino outra vez em punho, não me
hão-de levar a mal se n'esta derradeira pra- /.
tica por ventura me dilatar. |
; Custa tanto a arrancar os pés d'onde os
tivemos por decurso de oito estações! ;mais
de cem semanas! ; mais de setecentos dias
e outras tantas noites !... Quando um co-
ração chega a fazer cama (mas que fosse
entre espinhos) já não sabe como se erga.
Qualquer lado do horizonte, por mais riso-
nha luz que de lá o chame, lhe faz medo.
| E então o coração de um poeta, que é
a mais amoravel coisa de quantas Deus
cria!... O coitado lançaria radiculas para
se apegar, até a um rochedo! Em não achando
a Juem ame, logo muito de pressa o inventa.
Faz lembrar esse animalzinho bemdito, que
do seu interior fia a seda em que se envolve;
esconde-se na sua doirada ou prateada es-
phera, tão macia e mimosa, livre das dis-
tracções da luz, dos sons, dos cheiros, dos
calores, dos frios, e dos toques lá de fóra;
rico de sua pobreza, vive vida encantada de
mysterio, de que só ha-de sahir morto, ou
com as azas esplendidas para voar aos céos,
depois de ter aboiado em fragrancias e raios
de sol, por cima de labyrintos de. flores...
Boa sina parecerá aquella, mas ninguem
a inveja. Só pelos espaços da phantasia é
que o enjeitado da fortuna, chamado poeta,
pode encontrar alguma vez com que assim
se console. À vida real por todas as juntas
lhe doe; todo o movimento o afflige e dila-
cera; quantas vezes se aparta e muda, tan-
tas se fina.
!:
b
/
Obras completas de Castilho 121
EA
Quando a Sociedade promotora da vossa
Agricultura me commetteu escrever para
vós o seu Jornal, que eu me estreei conver-
sando logo comvosco largamente como amigo
com amigos, foram estas (ainda me lembra)
as minhas ultimas palavras n'essa introduc-
ção: fi
«Se aqui, para onde a fortuna me arro-
“Jou, tão longe do meu ninho, está escrito
que haja de acabar a cançada vida, quero
que em minha pedra raza, se a tiver, se
possa escrever: AMOU A TERRA ONDE JAZ,
COMO SE DELLA FÔRA. (QUANTO POUDE E SOUBE,
TUDO LHE DEU DE BOA-MENTE.»
kra em Janeiro de 1848. Em todo esse.
anno, que andei comvosco, e em todo este,
que só vos visitei, dizei se desmenti, com
as obras a promessa. Não desmenti, não.
Quanto soube e pude tudo de muitissimo
boa-mente dei á vossa terra, e amei-a como
oxalá os seus filhos a amem sempre.
Entretanto, a sepultura, que eu principiava
a entrever aqui, era mais uma illusão, se a
morte em poucos dias me não tomar. Vou
procural-a mais longe, muito longe, pois só
a desejo ter onde os meus trabalhos me hou-
verem grangeado um prediosinho, em que
me enterre eu mesmo antes que me enterrem,
e, morto para o mundo, viva ainda alguns dias
para os meus, para mim, e um pouco para a
posteridade, se podér ser. Res non relicta sed
parta. Quero teimar até ao cabo n'esta mi-
nha humilde ambição já de muitos annos.
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122 — Empreza da Historia de Portugal
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Se vos não enfada ouvir louvores do vosso
“viver, do único viver a que tenho inveja,
- vou dizer-vos o que eu na minha terra, que
bem grande é, bem formosa, e bem cheia de
delicias, escrevia ha tres annos, com toda a
sinceridade do meu coração, como agora e
como sempre. Escutae, escutae: !
«Se jamais virá tempo de eu poisar em
torrão meu, debaixo de sombras minhas, a
cabeça encanecida e regalada! ; Uma barraca
“de poucas braças, mas revestida de rosas €
limas. como o presbyterio! á roda, tanto de
fazenda... quanto o filhinho mais pequeno
atravessasse correndo de um só fôlego; mas
isto em solidão bem solidão, onde só os as-
“tros me enxergassem, só as estações me vi-
sitassem, e da banda do mundo nada me
chegasse, senão o vento, já expurgado, e es-
quecido de humanas vozes.
«Tal casa e tal quinta, ser-me-hiam mais |
“que morgado, mais que palacio e reino: pa- |
raizo terreal, e digno vestíbulo de outro me-
Mor. | -
“«Ahi me reverdecêram o coração e mais
o espirito, que me elles por cá trazem tão .
lastimosamente desfloridos e murchos. Por .
si se retingiriam os cabellos com o franco
sol, remoçador de quanto existe. A lyra in-
1 O seguinte é excerpto do Preambulo do Pres-
byterio da Montanha a pag. 80 e seg. Por ainda se
não achar publicado, nem de todo impresso tal livro,
e por fazer muito ao meu proposito, me permitti a
* transcripção.
CAsTI.HO.
E Obras completas de Castilho 123
terior volveria a cantar espontaneamente,
' como harpa eólia entre jasmineiros, pen-
| dente em hombral de gruta ás virações da
| primavera.
«Ainda á farta me vingára dos tántos
annos, que em tarefas ephemeras e sem
' gloria, posto que não sem consciencia e di-
' ligencia, se me desbarataram na galé da
| Imprensa periodica; ou (com mais proprie-
| dade) nas palhas d'essa doidinha, que a si
| mesma se venéra por soberana do Universo,
| sobzrana com diadema de papel, e sceptro
de lapis. Só não rira d'ella, quando me lem-
brasse que me engoliu, com os annos que
me tomou, outros tantos da minha existencia
para o diante, pois em cada tomo de perio-
dico, sincera e honradamente redigido, se
| podia escrever este epitaphio:— Agui fazem
“um anno de fadiga e dois de vida de...
* Orae por elle.
*- «Vendem-se ainda primogenituras por
* menos que prato de lentilhas.
| «Vingára-me (;joh se me vingára !) de tão
bons dias mallogrados ; e ainda por ventura
* alguns livrinhos, menos maus que todos os
— meus precedentes, appareceriam de novo
| mas sem mim) no povoado. Como Ovidio
" aviava os seus do desterro, aviaria eu os.
* meus do meu eden:
Parve, nec invideo, sine me, ber, ibis m Urbem.
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S Castilho, Antonio Feliciano
521 de
C37 Felicidade pela agricultur
1903 2. ed.
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