A FORMOSA

LUSITÂNIA

CATIIVUINA CARLOTA LADV JACkSON

VERSÃO DO INGLEZ, PREFACIADA E ANNOTAOA

CAMILLO CASTELLOBHAMIU

PORTO

LIVRARIA PO RTU EN S E - ED ITORA

121 RUA DO ALMADA 123

1 .s 7 7

73

rORTO - TrrOGRAPniA OCCIDENTAL- rua da picaria, 54.

IXTKODICCÃO 11

H.'i poucos mezes que, á meza redonda de um hotel de Lisboa, ouviu a auctora um inglez empre- gado nas vias-íei'reas, e ali chegado trez semanas antes, proclamar de um modo irrisoi"io a supci-iori- dade de higlaterra não sobre Portugal, mas so- bre todos os paizes. Conversando com um dos seus patrícios, chegado recentemente da Costa d'Ah*ica, e de todo indiíferente a que os portuguezes cíjmmen- saes o percebessem ou não, dizia:

«Com elfeito, se comparamos isto com a triste parte do mundo em que o sin\ habitou, Lisboa deve parecer-lhe uma Babylonia

«Parece-me animadissima respondeu o outro.

«Animada! exclamou elle desdeidiosamente Para mim que chego agora de Liverpool, Lisboa figura-se-me a cidade da morte. N'estes últimos onze dias não tem havido cartas nem periódicos de Inglaterra para aviventar esta mansão mortalmente animada. Poderá o snr. allegar que isto se deve á

leitores, a hellcza de uma mulher, classifical-a entre as hespanholas, nitre as italianas, entre as allemàs, e entre as inglezas, mu-- nunca entre as nossas compatriotas, que soffrem, ha muitos annos, com sublime resignação de mar- tyres, esta velha e flagrante injustiça.

Parece que o typo nacional é indigno de referencia, e que quando d'elle aberra e, jjor um capricho da natureza, reveste a feição extrangeira, é que uma figura de mídlier merece as formulas, mais ou menos sonoras e hyper- bolicaa, da nossa admiração.

E^ viãgar ouvir-se dizer: Como é bella ! Ha n'aquelle todo vaporoso «certo ar germânico « Que mídlier ! Tem. o calero de uma hespanhola .'» «Que magestade! que morbideza! E uma perfeita m-AdiOnn-A, italiana ! » 'Que poética gravidade! Dir-se-ia iima cândida lady!» O que, porém, se não ouve, jjelo menos o que eu ainda nào ouvi, é: << Que sympathica rapariga! «E uma portugueza perfeita! »

12 A FORMOSA LUSITÂNIA

guerra de Espanha; mas elles tem ahi commuuica- ção pelo mar, e do processo Tichborne, tão fallado em Londres, os seus periódicos nem uma pala- vra nos disseram. (•) Hontem perguntei a dois su- geitos, que deviam saber alguma coisa do que vai pelo mundo, se Kenealy concluirá o seu discurso. Pois, se eu lhe der a minha palavra de honra, o snr. acredita que nenhum d'elles sabia quem fosse Kenealy?! e, ainda mais, nem um dos trez ou quatro que estavam nunca tinha ouvido fallar de sir Roger! Quer-me parecer que ignorância assim nem nos seus pretos se encontra ! E chama-se a isto um paiz civilisado ! É pena que a nossa Ilha, quando este mundo se fez, não assentasse um pouco mais perto da bahia de Biscava ; que então fariamos mais opportunamente entrar na regra este paiz, e quer empurrados, quer civilisados, os portuguezes se amoldariam aos inglezes.»

Ora, () interlocutor que experimentara as influen- cias do calor dos trópicos, respondeu :

« Se a Inglaterra tivesse o clima que tem Portu- gal, duvido que os inglezes fossem mais enérgicos que os portuguezes.

«Não diga tal, meu amigo replicou o outro que me bestealisa ouvir-lh'o ! Assevero-lhe que os climas jamais rebaixaram um inglez ao nivel dos

{•) o processo a que allude o personagem, talvez fantástico, da auctora nào cia de certo desconhecido á imprensa portugueza, onde eu o li por esse tempo. Moncra sem filhos o millionario Eoger Tichborne. Apresentou-se um sugeito a justificar-se filho do morto; mas o tribunal de Dartmoor cou- demnou-o a quatorze annos de presidio, convencendo-o de filho de um car- niceiro de AVapping. Ultimamente, em abril d'este, corrente anno de 1877, os

A FORMOSA LUSITÂNIA

INTRODUCÇAO

«Algum motivo o trouxe a Lisboa?

«Com certeza. Portugal não é paiz onde alguém venha simplesmente para se divertir. Pode compa- i-ar-se o Tejo a um bonito véo de filó que esconde o rosto de uma mulher feia. Lisboa é uma desil- lusão. Aqui, não ha monumentos, nem grandeza, nem civilisaçcio, nem sociedade. Conserva-se como Byron a deixou : terra de bárbaros de cazaca e de chapeo-castor. »

Isto diz em uma obra recente o popular roman- cista Camillo Castello Branco, mediante um dos personagens da sua novella.

Quem assim se exprime em termos tão destoan- tes da formosa terra de Portugal é um author inglez que perlustrou as cidades da Europa, e vae dar ao mundo dous tomos em 8." de suas observações acerca dos modos, costumes e caracter de cada paiz, com abundantes notas criticas sobre a litteratura, legislação, religião e politica de cada terra, etc, etc.

A passagem referida é uma exaggerada e severa exposição do conceito geral que ainda hoje, em In- glaterra, se forma de Portugal. Volvidos alguns mezes, o referido author britannico, não menos de-

8 A FORMOSA LUSITÂNIA

traliiclor e injusto, sustenta a sua opinião contra a do outro quo so julgava mollior informado om tal assumpto. «Quo! visitar Portugal! Um paiz que se faz apenas attendivel pelo seu vinho ! Um paiz que ainda se revê nas velharias e usanras do seu passa- do! Que adiantamento, se adiantamento pode cha- mar-se a este arrastarem-se de caracoes; e, para assim se moverem ainda é preciso que o rápido avanrar das outras nações os empurrem!? Um paiz que apenas tem authenticamente um escriptor de génio o poeta Camões, e cuja litteratura moderna está reduzida a ti'aduções de desprezíveis novellas francezas! Um paiz, de mais a mais, cuja lingua ninguém cura de saber, excepto alguns caixeiros do Poi*to, ou alguns engenheiros empregados nas duas ou três vias férreas que fizemos, cujo manejo os portuguezes não podem ainda pessoalmente des- empenhar». (•)

Propriamente em Portugal, esta falsa e desde- nhosa ojjinião ãcíírcado estado actual do paiz, grassa entre os exti*ang(3Íros residentes, e com especia- lidade em parte dos inglezes. Se, em Lisboa ou Porto, encontraes algum dos leaes súbditos da rai- nlia Victoria desterrados temporariamente, por motivo de interesses, da sua querida terra dos ne- voeiros — é raro decorrerem cinco minut(js na sua convivência sem que vos saiam com observações

(•) o traductor, sem querer desfazer na palavra da illustre extrangeira, declara que não se recorda de haver escripto as phrases que a escriptor a lhe attribue, e até se recorda perfeitamente de não as ter escripto. Bem pode ser que Lady Jackson inadvertidamente privasse o verdadeiro auctor de se ver traduzido em Inglaterra.

IXTKODUCÇÃO 9

assim desairosas para Portugal. E como, segundo o aiiexim, a corda quebra pelo mais fraco, os por- tuguezes, occasionalmente patrocinados e constan- temente defraudados pela «sua grande e poderosa aliada», parecem modestamente aceitar a humilde posição que lhes marcam.

E menos de mediocre a sympathia que liga as duas nações ; e a Índole britannica é por conse- quência tão mal comprehendida e falsamente figu- rada pelos portuguezes quanto a sua própria o é pelos filhos de Inglaterra.

«A cauza d'isto diz um notabilissimo escriptor portuguez (•) meio-ironico, mas algum tanto apolo- geticamente é o sermos nós uma nação pequena e pouco á moda, acanhada e bizonha n'esta grande e luzida sociedade europea, onde por obsequio somos admittidos, dando-nos por muito lisongeados, quando os extrangeiros se deixam benevolamente, admirar por nós. Falta-nos certo uso de sociedade, que ensina cada qual a occupar o seu logar . . . Bem que peze á vaidade nacional, é forçoso o fazer aqui, em família, uma confissão : Nós temos o defeito d'aquelles provincianos que, nos círculos da capital, sufjocam envergonhados como cousa de mau gosto, uns restos de aynor da terra que ainda os punge, c dei- tam-se a exaltar com affectaçào altamente cómica os affazeres e commoções da vida das grandes cidades, que ainda mal gozaram e amda mal saboreiam; (•)

(•) Jnlio Diniz.

(•) A authora passou por alto as linhas que deixei griphadas, e em parte interpretou imperfeitamente as outras.

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faliam dos theatros, dos bailes, da cantora da moda, do escândalo do dia, sem se atreverem a dizer pelo menos uma palavra das arvores, das paizagens, das tradições, dos costumes locaes, do conchego domestico da sua provinda, o que por ventura os outros lhe es- cutariam com melhor vontade . . . Assim também os portuguezes, acanhados nos círculos da Europa, não ousam conferir diplomas de excellencia a coisa que lhes pertença; envergonham-se de fallar nas rique- zas pátrias, em quanto abrem a boca, por conven- ção a tanta insignificância que, em todos os géne- ros, a vaidade extrangeii'a apregoa como primores ; levam o excesso da modéstia, se é modéstia isso, até roceiarem que a vista dos estranhos averiguem do que lhes vai por caza, engradecem com effusões de sensibilidade uma ou outra phrase de louvor que, em momentos raros, elles lhes concedem.»

«Se ousamos fallar de Camões continua Júlio Diniz ao mesmo tempo que de Tasso, de Dante e de Milton ; se ousamos apregoar o vinho do Porto, junto com o do Xerez, Chateau-Laffite e Tokay, é porque lhes deram fora o diploma de fidalguia ; que por nós. . . continuaríamos, calados, a ler um e a beber o outro, sem bem conhecer a preciosidade que liamos e que bebiamos, ou pelo menos corre n- do-nos de uma nos parecer sublime e a outra deli- ciosa. (•)

(•) Este fragmento extractado do formoso romance nUma família ingleza» pag. 105 e 106 da 2.^ edição, pode ser bem entendido com os periodos que o precedem, e dos quaes Lady Jackson não fez cazo deixando assim mal applicadas as irónicas reflexões de Gomes Coelho. Os periodos omittidos dizem assim : É costume entre nós, quando se quer exaltar, no conceito dos

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ADVERTÊNCIA DO TRADUCTOR

Reservam-se para notas ao texto as observapões que sabiiiam menos apropositartas em prefacio.

As notas não pretendem despreciar o quilate intellectual da es- criptora ingleza: apontam singelamente inexactidões de pouco al- cance, e algumas vezes sorriem á conta de umas excentricidades que são realmente risonhas.

No li\TO ha, toda\ia, uma inexactidão que assume as dimen- sões da calumnia, provavelmente involuntária; porém, como o ca- himniado é o traductor, elle, conforme aos seus hábitos de inércia quando as difamações o ferem, não se queixa; pede apenas a La- dy Jackson hcença para lhe asseverar que talvez confundisse o no- me do traductor com ode outro romancista portuguez mais benemérito dos reparos da illustre \iajante. Quando as phrases detrahidoras da pátria, que se figuram hdas em um hwo meu, me exposessem a dissabores e perigos, ainda assim farta indemnisação de júbilos me seria ver a minha terra tão egregiamente defendida das injurias do personagem do meu romance por uma senhora conterrânea de uns \iajantes que deixam de parecer sérios quando bebem o nosso \inho e escrevem da nossa terra. Elles tém esse mão costume que nos desforra das aleivosias que nos assacam.

Não é assim a graciosa dama que nos honrou com a sua \isita e com o seu estimável livro ha quatro annos. Tem rasão e graça quando, ás vezes, nos censura e admoesta. Por exemplo: pára al- gum tanto escandahsada em frente das attitudes demasiadamente amorosas das meninas que passeiam o seu coração nos jardins de Lisboa e o evolam em fortes perfumes. Ora, estes repai-os, a fallar ver- dade, tamljem eu os tenho feito, e todas as mães de familias os fazem

10 A FORMOSA LUSITÂNIA

faliam dos theatros, dos bailes, da cantora da moda, do escândalo do dia, sem se atreverem a dizer pelo menos uma palavra das arvores, das paizagens, das tradições, dos costumes locaes, do conchego domestico da sua provinda, o que por ventura os outros lhe es- cutariam com melhor vontade... Assim também os portuguezes, acanhados nos círculos da Europa, não ousam conferir diplomas de excellencia a coisa que lhes pertença; envergonham-se de fallar nas rique- zas pátrias, em quanto abrem a boca, por conven- ção a tanta insignificância que, em todos os géne- ros, a vaidade extrangeií-a apregoa como primores ; levam o excesso da modéstia, se é modéstia isso, até receiarem que a vista dos estranhos averiguem do que lhes vai por caza, engradecem com effusões de sensibilidade uma ou outra phrase de louvor que, em momentos raros, elles lhes concedem.»

«Se ousamos fallar de Camões continua Júlio Diniz ao mesmo tempo que de Tasso, de Dante e de Milton ; se ousamos apregoar o vinho do Porto, junto com o do Xerez, Chateau-Laffite e Tokay, é porque lhes deram fora o diploma de fidalguia ; que por nós. . . continuaríamos, calados, a ler um e a beber o outro, sem bem conhecer a preciosidade que liamos e que bebíamos, ou pelo menos cori-en- do-nos de uma nos parecer sublime e a outra deli- ciosa. (•)

(•) Este fragmento extractado do formoso romance «Uma família ingleza» pag. 105 e 106 da 2.'' ediçào, pode ser bem entendido com os periodoa que o precedem, e dos quaes Lady Jackson não fez cazo deixando assim mal applicadas as irónicas reflexões de Gomes Coelho. Os periodos otnittidos dizem assim : É costume entre nós, quando se quer exaltar, no conceito dos

ADVERTÊNCIA DO TRADUCTOR

Reservam-se para notas ao texto as observações que sahiriam menos apropositadas em prefacio.

As notas não pretendem despreciar o quilate intellectual da es- criptora ingleza: apontam singelamente inexactidões de pouco al- cance, e algumas vezes sorriem á conta de umas excentricidades que são realmente risonhas.

No livro ha, toda\ia, uma inexactidão que assume as dimen- sões da calumnia, provavelmente involuntária; porém, como o ca- lumniado é o traductor, elle, conforme aos seus hábitos de inércia quando as ditamações o ferem, não se queixa; pede apenas a La- dy Jackson licença para lhe asseverar que talvez confundisse o no- me do traductor com ode outro romancista portuguez mais benemérito dos reparos da illustre \iajante. Quando as phrases detrahidoras da pátria, que se figuram hdas em um liwo meu, me exposessem a dissabores e perigos, ainda assim farta indemnisação de júbilos me seria ver a minha terra tão egregiamente defendida das injurias do personagem do meu romance por uma senhora conterrânea de uns viajantes que deixam de parecer sérios quando bebem o nosso vinho e escrevem da nossa terra. EUes tem esse mão costume que nos desforra das aleivosias que nos assacam.

Não é assim a graciosa dama que nos honrou com a sua \isita e com o seu estimável liwo ha quatro annos. Tem rasão e graça quando, ás vezes, nos censura e admoesta. Por exemplo: pára al- gum tímto escandaUsada em frente das attitudes demasiadamente amorosas das meninas que passeiam o seu coração nos jardins de Lisboa e o evolam em fortes perfumes. Ora, estes repai-os, a fallar ver- dade, também eu os tenho feito, e todas as mães de familias os fazem

6 ADVEPtTENCIA DO TRADLCTOK

reprehendendo as fillias com o cotovéllo vigilante. Bom é que os ex- traiigeiros no.s admoestem, visto que os escriptores nacionaes, nos seus papeis baratos, dão praça e convidam a que se imprimam diá- logos erolhicos a 20 reis a linha com abatimento de 5 ^/q para os assignantes. Em tudo mais, a auctora da Formosa Lusitânia dei- xou-nos do seu espirito e da sua honestidade quatrocentas paginas de provas incontroversas. Se o traductor, uma vez por outra, implicar com as opiniões da esclarecida senhora, não se lhe acoime de des- primorosa descortezia o que não passa de desenfado em horas do aborrecido lavor de traduzir. Nós, os portuguezes, somos sempre tão delicados com os extrangeiros que nos me t tem a riso que até passamos, senão por parvos, por indiilerentes á calumnia.

Começamos por trasladar um livro digno e honrado; se o lei- tor quizer, dar-lhe-hemos a versão dos que nos injuriam, vindos principalmente da amiga Inglaterra que estremece no cordeal anceio de nos abraçxir até á asfixia.

S. Miguel de Seide, 23 de setembro de 1877.

C. Casttíllo Branco.

IXIIíODLCÇÃO 13

portuguezes. Não! nunca! A Inglaterra seria sem- pre a primeira nação do mundo, ainda que a nossa ilha estivesse collocada no centro da Africa, porque o estofo de que foi formado um inglez devia ser, como hoje é, talhado para se adaptar a todos os climas. Nação como a nossa não ha ahi nenhuma. A Ame- rica está logo depois ; mas os yankees são um pe- dacito pantaloens de mais. (") A cabeça do mundo somos nós ninguém duvida clHsto ajunctou elle erguendo o copo de vinho com enthusiasmo, em- borcando o liquido de dois tragos e partindo o copo contra a meza com tal murro que parecia denotar que a questão a final estava assim resolvida.

No entanto, um homemsinho fusco de olhos es- pertos, que abancara perto do nosso inglez patriota, conversando com um prato de figos, em quanto apontava o ouvido attento ao referido palavriado, levantou de súbito a cabeça e a voz, e, respondendo ás ultimas palavras, disse :

(( Os senhores são a cabeça das naçoens, e nós . . . acho eu que somos. . . o rabo. »

O inglez, extremamente sorprendido, deu um salto na cadeira, em quanto os circumstantes todos gargalhavam, sem excepção d'aquelles que não ti-

protfictores do condeinnado Artluir Oiton pediram que se lhe instaurasse novo processo ; e nos jornaes de Londres se annunciou que no dia 17 de abril iriam mais de cem mil pessoas pedir á camará dos deputados a liberdade do supposto filho de Rogério Tichborne, arregimentados sob muitas bandeiras com a legenda : Justiça de Tichborne.

(■) Os inglezes, chacoteando os seus liomogeneos dos Estados-Unidos, chamam-lhes Yankees, porque os negros da Virginia dào á palavra English um sonido semelhante áquella palavra.

14 A FORMOSA LUSITÂNIA

nham bem percebido as palavras que tão electrica- meiíte o sacudiram.

(( Peço-lhe que iião se ofienda . . . Affirmo-lhe que a minha intenção não era offender ... Se eu soubesse que o snr. fallava inglez, eu . . . eu . . . » gaguejou elle.

« O snr. não me offende ; pelo contrario, diver- te-me» respondeu o portuguez em correctíssimo inglez, e proseguiu : «Vivi alguns annos na sua pá- tria, e julguei-a melhor do que o snr. julga a minha. Nós não merecemos tal menospreço das nações da Europa. Por tanto, como o snr. é a cabeça d'ella, appello para a sua generosidade afim de que haja de conceder que nós, os pobres portuguezes, sejamos ao menos. . . o í^abo."» E desfechou um franco e ale- gre riso que derrotou de todo o bretão. Servido de sobre-meza, o portuguez pegou do chapeo, cortejou cerimoniosamente aquelle «cabeça do mundo», e foi-se embora.

Porém, o nosso patrício não era homem que se calasse facilmente. Bamboou gravemente a fronte, e, com um sorriso de zombaria, murmurou: «Este sugeito andou tolamente em nos não avisar que sa- bia inglez; mas eu ministrei-lhe uma óptima lição. Agora fica elle sabendo, se o não sabia, o que o mundo pensa da sua pátria.»

Este homem era, com certeza, um typo exce- pcional do leão britannico em Portugal. Por via de regra, este nobre animal, nas suas excursões, é bastante manso e pacato. Se negócios ou industrias o levam áquellas estranhas regiões, é de suppor que elle saiba alguma coizao idioma de lá; se o sa-

INTRODUCÇÃO 15

be, está mais á vontade, e revela génio bom e folga- são ; porém, se inconsideradamente quer diverlir-se sem poder dispor de cinco palavras portuguezas, então, de ordinário, a sua eloquência é taciturna, e no semblante lhe revê o dissabor e desprezo de um idioma que desconhece ; desabafa, por tanto, em exclamações d'esta laia : «Ah ! puf ! brrr ! » Os phrenesis nervosos manifestam-se-lhe nos gestos; e não pode tolerar a facilidade com que os indígenas desatam a torrente incessante de palavras que lhes soam nos ouvidos como uma algaravia sem signifi- cação.

Um passeio em Portugal, se o viajante ignora a lingua, escasso aproveitamento ou prazer lhe pro- porciona. Imaginar, como bastante gente imagina, que não ha nada a lucrar com o conhecimento do idioma portuguez, é erro fundado em mero precon- ceito, porque as cidades de Portugal encerram in- teressantes memorias do passado , que merecem mais attenção do que até hoje tem attrahido. Ha ali grande numero de escriptores talentosos, quer anti- gos quer modernos, historiadores, escriptores scien- tificos, dramaturgos, vigorosos romancistas e outros auctores, que encantam com a elegância e graça do estylo, fantasia poética, espirito e vivacidade que reluz em suas obras. E hoje em dia, que mais lumi- nosas investigações elucidaram os documentos das eras passadas e corrigiram erros que a historia trans- mittira, os archivos nacionaes de um povo que foi a primeira entre as nações, por navegações, descobrimentos e conquistas na Índia, com monar- chas famosos por illustração, magnificência e in-

16 A FORMOSA LUSITÂNIA

centivo ás artes, ou bellicosas façanhas, devem ne- cessariamente ser interessantíssimos e por nenhuma maneira desdenhados.

Ai ! amesquinhado Portugal ! Como é que um paiz tão bello, cuja capital é a segunda em formo- sura entre as cidades da Europa, cujo povo é tão policiado, bondoso, hospitaleiro, sem o sombrio fa- natismo dos hespanhoes, seja enxovalhado, como acontece, pelo restante mundo, e considerado o me- nos valioso e interessante dos reinos da Europa? Por que não vão ali os nossos artistas em busca de ins- pirações novas para o seu pincel? porque as não procuram na Formosa Lusitânia, nas encantadoras margens do Minho, nas alpestres bellesas das ri- bas do Douro, do Tejo e do Mondego? Os nossos viajantes, aborrecidos das estradas chans, e das paisagens que por toda a parte parecem as mes- mas, porque não se embrenham por aquelles ser- tões alcantilados? Se o fizerem, decerto serão libe- ralmente recompensados. A perspectiva tem encan- tos de originalidade e frescura variadíssimos : ser- ranias escarpadas, profundas barrocas, grandes la- deiras de arvoredo e matagal, bosques de castanhei- ros e extensos sobreiraes, olivedos, laranjaes e li- moeiros de lustrosa folhagem, compridas latadas afestoadas de parras, montes fragosos com as cris- tas verdejantes de arbustos, ramarias de variado colorido desde o opaco das sombras até ao verde mais suave; vastas penedias vestidas de musgo, rui nas pittorescas de castellos moiriscos e mostei- ros gothicos, rápidos córregos por entre curvos sal- gueiraes, orlados de aromáticos relvedos. De quasi

INTRODUCÇAO 17

todas as ominciicias, algumas Icgiias sertão dentro, podem avistar-se aspérrimas ribas do mar com as suas arenosas bahias on enseadas; ao longe, a in- finda amplidão do Atlântico, e as suas ondas, ago- ra scintillantes com um coloi-ido de opala quan- do refrangem os raios solares, log(j toucadas de espuma, rugindo estridorosamente a quebrarem-se em furiosas catadupas de encontro á cinta dos pe- nhascos, a dissolverem-se em milhares de fantás- ticas figurações.

Posto que esta obra não pretenda servir de ro- teiro, pois que é simplesmente uma collecção de extractos de um diário interrompido por cartas es- criptas durante uma recente visita a Portugal, depois de larga auzencia de annos no decur'so dos quaes grandes mudanças e melhoramentos, em cidades e villas, se devem ter dado, e de certo espantosas se deram já, especialmente em Lisboa, pois que Por- tugal pode dizer-se um paiz renovado para quem o conheceu e hoje compara o que é ao que foi ha vinte, ha quinze, ou mesmo ha dez annos ainda assim, vem de molde dizer que quem viaja por Portugal, e quer ver nâo as cidades e os seus monumentos, mas também o paiz com tudo o que ahi ha bello e variado, em paizagem em lanços de vista do littoral, não deve contentar-se somente com os tra- jectos na via-ferrea.

Não se faz, todavia, mister que ao viajante cum- pra jornadear a ou continuamente a cavallo, como alguém inculcou ; pode as mais das vezes seguir es- tradas centraes e desviar-se por caminhos trilha- dos — se a sorte lhe deparar passagem em Dilígeiíciaj

18 A FORMOSA LUSITÂNIA

OU qualquer locomotiva, c so prcdispozcr a soíTrcr, algumas vozes, as iucommodidades do um máo lo- gar. Posto quo rude;, o povo ó bom, o polo commum aceado; talvez um pou(piiiiho perguntador, curioso de sabor so o viajaut(3 tem familia, oude e porque a deixamos, se vamos em busca de parentella ; e boa parte d'essa gente fica pasmada quando se lhe diz que viajamos com o desígnio de nos diver- tirmos ; porque os portuguozes começaram ha pou- cos annos a viajar com intento análogo ao dos in- glezes.

E indispensável a máxima polidez de falias o ma- neiras para quem quizer que o recebam aprasi- velmente. Como hade ser tratado por vossa excellen- cia ou vossa, senhoria^ cumpre-lhe não ser avaro no uso d'esse tractamento, quando se dirigir pouco im- porta a quem ; o os seus desejos ser-lhe-hão satis- feitos com a maior pontualidade, se, na hospedaria ou no hotel, não llio repugnar, quando chama os criados ou as criadas, tractal-os cortozmento, ante- pondo sempre aos seus podidos um: (Lsnr. Manoel,y) ou c(S7ir.^ Joaquina, faz favor.)) etc.

Finalmente, ao leitor d'ostas paginas, se a Lusi- tânia lho ó uma região desconhecida, convidamo'1-o a rolacionar-so com esto interessante canto da Eu- ropa. Ainda ali ha (|Uo ver bastant(\s coisas primo- rosas, maneiras, costumes variados, e um trajar pittoresco para realçar os quadros, e espertar o sen- timento da estranheza e da novidade que não é o somenos goso de viajantes estrangeiros.

A guerra civil de Espanha impediu que eu se- guisse p meu itenerario em toda a extensão da via-

INTRODUCÇAO 19

fcrrea aiô A froiitoira do paiz, tornaiido-se-mc as- .siir mais accessivel Portugal pela extrema de teira; mas o transito do mar, qiK^ talvez dissuada muita gente de visitar a Peninsula, é fácil. E quem o fizer de Southampton ou Londres, raras vezes experimen- tará outro mais agradável.

CAPITULO I

A VIAGEM

Lisboa, Julho, 1873. Deliciosíssimos om todo o sentido nos derivaram os cinco dias de viagem desde Londres. Mar chão, céo azul sem nuvens, e o ar aprazivelmente suavíssimo e balsâmico. Confesso que senti mui intimo pezar quando intrevimos o cabo da Roca: tão rápidos chegamos ao nosso destino.

A tarde era encantadora. Bafejavam-nos doce- mente propicias auras, tão brandas que de leve arru- gavam a superfície do mar, que relampejava doira- das faiscas sob os derradeiros raios do sol no occa- so. Uma neblina cor de gaze-violeta embaciava as longiquas montanhas de Portugal. Ao mesmo tem- po que o purpúreo resplandor do sol-poente se es- vahia, fulguravam uns pallidos relâmpagos cuja luz era mais viva, quando o breve crepúsculo se esmaia- va na escuridade: era o prenuncio do nascer da lua. Eil-a a surgir, pouco e pouco, e a pratear as collinas.

fulge a lua, e 7ião é noite ainda; Com ella o sol-poente a luz reparte. (■)

E escarlate o seu ingente disco, quasi como o

(•) The moon is up, and yet it is not night ; Sunset divides the glory with her.

22 A FORMOSA LUSITÂNIA

do sol ao transmontar-se ; porém quanto mais se altca 110 C('m), assim desmaia d'aqiiella cor de vivo fogo, c então esplende plenamente formosa, illumi- nando o mar, o firmamento e os montes com o seu ai'gentino brilho.

Os portuguezes que povoam as aldeias do litto- ral conservam em tradição parvoamente deliciosa que Noé foi ao seu paiz, alguns annos depois do di- luvio, expressamente para contemplar um lindo pôr- do-sol. É certo que elle não encontraria sitio mais acommodado ao intento. Aquella gente dá-se grande importância pela magnificência do espectáculo com que, dizem elles, galardoaram a longa viagem do patriarclia ao occidente, como se os seus antepas- sados com a sua grande sciencia do scenario celeste, houvessem arranjado tal espectáculo para deleite e espanto de Noé. Ora, diz a lenda que os taes avo- engos tinham sido mensageiros previamente envia- dos pelo patriarclia ; e, como achassem a terra bo- nita, por ali ficaram. Pela vaidade, senão jactância, com que os rústicos contam estas coisas do seu bello clima, imaginar-se-hia que, por effeito de pro- cessos mágicos, com estes crédulos se deu o caso de collaborarem em cima na formação dos céos e do seu esplendido scenario, a ponto de que o sol se despede saudoso e de vontade quando, por tarde, envia o adeus aterra que tanto ama. Sol e 6 o estribilho de uma cantiga nacional e popular ; e declara a cantilena que para elles a luz do sol c como um preservativo contra as calamidades da pobreza mas na cantiga. Sole dó, é muito me- lhor estribilho que o popular Pan y toros da mesma

A VIAGEM 23

clíisso, cm Hcspniilia ; ambos poi-rm, om alto gráo, demonstram o caractiu* nacional. (•)

Serena., mas vagarosamente navegamos ao lon- go da costa. A sublimidade da scena era, a espaços, interrompida jxdo odioso estrondo do implacável pa- raíViso. O ca])itão i'eceára ficar íoi'a da barra até ao ontro dia ; mas, ao caliir da. tarde, avistamos a vela branca do escaler do pratico. Com qnanto passasse da meia noite quando entramos a barra, ainda assim não pude recolher-me ao meu beliclie sem contem- plar a «sultana das cidades» como os portuguezes denominam Lisboa, e como ella se nos figurou en- levada, nos esplendores da lua. Contornavam-se-llie nitidamente os seus castellos e torres, os seus gru- pos de casas brancas apinhadas, egrejas, e palácios, collinas alvejantes de magestosos edifícios. Eu co- nhecia tudo aquillo; mas as miudezas do quadro, meio velado na profunda sombr-a, davam largo alen- to á fantazia, e erdeiavam itiais, como diz Camões da formosura de Dione :

Nem tndo deixa ver, nem tudo esconde.

Vasquejam ainda luzes nas janellas de muitas casas,

(•) Esta illustre senhora levou de Portugal algumas cliôchas fantasias em primeira mão. Decerto, algum portuguez mais inventivo de tolices que zeloso do bom nome dos seus compatriotas, contou a Lady Jackson o cazo da vinda de Noé a estes sitios predileotamente bons e ageitados para exa- minar um pôr-do-sol. Adiante veremos que a elegante ingleza também d'aqui levou episódios dos fastos da politica contemporânea com o mesmo cunho histórico. Uma dama por mais illustrada que seja merece desculpa quando a parecer que o não é. Se o seu condão especial é agradar, quer escreva quer não, a extrema &eriedade dos seus escriptos poderia deteriorar-lhe o referido condão.

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e, ás vezes, ergue-se uma toada do vozes remotas dispersas no ar que logo se extinguem mui'murosa- mente: isto quer dizer que Lisboa não se deita cedo, como era seu costume não ha ainda muitos annos, quando, entre as nove e dez horas, excepto em occasiões especiaes, trevas e silencio reinavam na cidade.

Nas amplas aguas scintillantes do Tejo, mais comparável a uma miniatura do Mediterrâneo que a um rio, ancoram muitos navios de alto porte e uma esquadra de vasos somenos. Todos os mastros, mastareus e cordames distinctamente se distinguem esbatidos no profundo azul do céo. As sombras tre- mulam brincando nas pittorescas escadas de lo ; os montes da margem esquerda do lio estão escureci- dos ; o Lazareto o a angrazinha de Almada parecem assim mais importantes do que examinados de dia; por entre os ângulos arenosos das penedias avis- tam-se pedaços de verdura, e á sombra de protec- toras arvores alvejam cottages e quintas dispersas entre Almada e o villar de Cacilhas. F^ascinava- nos aquelle luar ao qual demos a boa noite eu e a minha companheira única de viagem, uma agradá- vel portugueza de quinze annos que se recolhia constrangida de um collegio inglez e descemos para as nossas camarás.

CAPITULO II

DESEMBARQUE

A maiilifi i-adiou brilhante}. Um bote enviado do hotel que me esperava atracou cedo a bordo. Des- pedi-me então do Cadiz, um formosíssimo barco, cuja administração providenciada pelo capitão me dei- xou lembranças para louvor, excepto em um ponto. A excepção é a penitencia que se faz n'aquelles col- chões de cortiça fornecidos pelos proprietários aos seus passageiros. Estas camas, em caso de neces- sidade, podem também servir de bóias de salvação. São formadas de pedaços de dura cortiça. Um saco de angulosos calháos comparado ãquillo seria um flácido coxim ; e um áspero tabuão com uma pedra ou um cepo por travesseiro julgar-se-hia um alma- draque oriental, confrontado com os leitos do Ca- diz. Se em tal cama vingaria salvar-se uma vida que desgraçadamente se lhe confiasse, parece-me coisa mui duvidosa ; porque além de taes colchões serem pezadissimos pelo menos para a força de uma mu- hier, segundo me informaram, é preciso auxilio para atar aquillo ao corpo, e o difficil é achar quem o ate quando ha naufrágio, e a esperança de salva- ção se apega a soccorros alheios; porque então cada qual o que tracta ô naturalmente de salvar a sua pessoa. Concedido, porém, que elles sejam effi-

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cazes como salva-vidas, ainda assim, taes colchões são invenções diabólicas que não se podem tolerar. Aquillo deve ser banido dos navios, e seja substi- tuido por um colete de salvação em cada beliche. As lacerações e raspadellas que soffrem as costas pelo atrito d'aquelle instrumento de tortura talvez sejam mais cruentas do que seriam as de um con- demnado aos repellões de seis noutes no recife-de- coral descripto pelo Conde ao Doutor nas «Baga- tellas do Mar pacifico do Sul.»

O dispenseiro fez quanto pôde para remediar a minha desgraça, emprestando-me o seu próprio en- xergão que era menos efficaz que os outros para a tortura, por ser um delgado colchão de crina esten- dido sobre os pedaços de cortiça. Os portuguezes usam encher de palha de milho os seus enxergões de verão. Também são ásperos e rijos ; porém, a minha triste provação da cama de cortiça tornou-me deleitosissimo o repouso da noute em um colchão d'aquelles.

Um guarda da alfandega entrou no bote da ba- gagem e foi comigo e com o meu creado. Dizia-se que na alfandega era demorado e vexatório o exa- me ; toda a gente me affirmava que ali se praticava ainda o mesmo que ha cem annos ; antolhou-se-me, pois, que teria de passar recreativamente uma bella manhã em cata das minhas malas enti-egues a guar- das indolentes. Em casos d'estes, se eu podesse res- gatar o meu precioso tempo, compral-o-hia bastante caro. Ainda assim, achei que os portuguezes de agora avaient changé tout cela. Descarregou-se a bagagem rapidamente ; deixaram de espreitar como

o DESEMBARQUE 27

d'aiite.s todos os (jbjcctos. Abriram, fro forma, (3 fochíiram logo as malas, o isso mesmo faziam-no com urbana cortezia, como pedindo desculpa. Nada paguei, não me pediram o passaporte, e respon- dendo á minha pergunta, disseram-me que mais nada era preciso, excepto se eu sahisse do paiz por mar.

também mio existiam as antigas seges de cor- tinas embreadas, arrastadas por machos, com os seus boleeiros de grandes botas de prateleira. Aquel- lesanachronicos vehiculos de balanço para os quaes a gente trepava pela altura de um covado, agarran- do-se difficilmente, foram substituídos por carrua- gens fechadas e descobertas, tiradas por boas pa- relhas. Os trens de praça de Pariz sào-lhes inferio- res, e os de Londres estão muito longe de os egualar. O carro, que me conduziu ao hotel, era decentíssi- mo ; porém, querendo enlevar comigo a minha pe- quena bagagem, encarregou-se a alfandega de m'a remetter pelo velho systema. De mais a mais, dan- do-se a circumstancia de ser eu conhecida como In- gleza, e, qualidade inseparável mui rica, um patrió- tico sentimento me moveu visto que não era cus- toso satisfazel-o a dispender alguns chelins, de ma- neira que não deslustrasse a reputação que os filhos e filhas de Portugal nosso fiel alliado adquiriram de entenderem que o generoso possuidor de supera- bundante dinheiro deve repartil-o. (•) A bagagem

(•) o texto diz : « deve desfazer-se d'elle « to part icith it. Em rigorosa expressíío assim devera verter-se ; todavia, o traductor que se preza de adi- vinhar a iuoíFeasiva intenção da nobre dama, absteve-se de trasladar uma

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de «Sua Excellencia» foi por tanto collocada em um quadrado de tábuas com uma corda em cada esqui- na. Estas cordas, cheias de ilhozes, pendem de uma tranca que pousa em hombros de homens ; e a carga vai no meio. D'esta maneira, dois homens, quasi sempre sem chapéu, expostos a um sol abrazador, suados, descalços, a passo lento e cadencioso, car- regam pezados fardos por caminhos areientos e gal- gam as calçadas ladeirosas de Lisboa. Com certeza, aquillo é que se chama ganhar o pão com o suor do seu rosto ; que, muitas vezes, quando chegam ao seu destino, arquejantes, esbaforidos, com a cara e o pescoço denegridos a escorrer agua, parecem ter sabido do rio n'aquelle momento. Na verdade, que acerbo viver o d'aquellas pobres bestas de carga ! Tentou-se ha annos introduzir melhor svstema de carrear mercadorias pezadas, mais rápido, menos fatigante para homens e também menos dispen- dioso ; mas houve resistência sob pretexto de que assim se tirava aos carrejões o seu modo de vida. Nas crises turbulentas por que Portugal tom pas- sado, soffreram resistência da plebe as medidas tomadas áquelle respeito e a outros de pubhco in- teresse ; as opposições facciosas da politica pre- valeciam-se da estupidez da classe Ínfima, e fa- ziam-na instrumento para alcançar os seus in- tentos.

phrase pouco menos de injuriosa para o bom povo portuguez, pbrase que poderia estimular algum leitor dos Mysterios de Londres ou de Les Englais chez eux a retaliações que o levariam ao cairel do abysmo onde esteve ha poucos mezes o illustrado poeta de D. Jayme.

o DESEMBARQUE 29

Passaram, porém, essas funestas eventualida- des. Apresente geração entrou na vereda do berne da prosperidade.

Esta manliã ouvi eu dizer na alfandega que os immensos armazéns d'aquella casa eram in- sufficientes para o grande e crescente negocio do paiz, e também ouvi que principia a realisar-se o cumprimento da prophecia de um francez que disse : « Lisboa no anno 2000 ha de ser a capital e o centro do commercio do mundo.»

Antes que isto se rcalise, parece-me que os an- tigos carros de bois, que ainda agora ringem e chiam nas ruas da cidade, sobre duas peças circulares de madeira com um páo ao centro a servirem de rodas, serão para todo o sempre exterminados. Devem de ser ante-diluvianas aquellas coisas que ali prodi- giosamente se conservam : aquillo é um dos speci- mens preservados na Arca, e para trazidos por Noé quando visitou Portugal para ver um pôr-do- sol. Porém, como por fortuna estão assentes os rails para carros americanos de Lisboa a Belém, e os apertados e abafadiços (jmnibus vão ser varridos do transito por carros amplos e ventilados, pode ser que, sendo um progresso precursor do outro, os dias do estrondoso carro de bois estejam contados. Ainda assim, quando os seus quatro estadulhos vem afestoados de salgueiros entrelaçados com ramagem de vinha á guiza de canastra com o seu bojo cheio de cachos maduros, é coisa muitíssimo pittoresca. E o caso é que o boi paciente e meditabundo é o animal mais de molde para conduzir o vehiculo pa- triarchal com a sua carrada de fructos sasonados.

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Vi um carro assim, e, ao lado dos bois, uma rapa- riga de olhos ardentes, chapéu desabado e lenço ramalhudo. Isto assim, encontrado fora das ruas da cidade, merecia uma linha de poesia em uma pagina de proza.

CAPITULO III

A SUBIR

Geralmente quem, apoz um decurso de amios, visita segunda vez legares associados a recordações de successos do mais ditoso periodo da vida, expe- rimenta maior ou menor desillusão. Que é da bel- leza que elles tinham? que imaginar foi esse que os aformosentou durante a auzencia? São coisas idas com circumstancias adventícias e demasias de ima- ginação de que derivaram as illusões. Encaramos agora esses objectos e scenas com sensações diver- sas, e achamol-as apoucadas e mediocres, se as comparamos ao que eram, quando ahi passamos dias luminosos. Ora eu, posto que as houvesse pre- sentido, não encontrei desillusões d'essa natureza.

No dia immediato ao da chegada, resolvi sahir ao acaso, mas de manhãsinha. Em Lisboa, uma brisa fresca refrigera sempre o calor, íacilitando-nos, ainda na mais ardente sasão do anno, o passeiar largo espaço da manhã. Ha então sombra em um dos lados de muitas ruas ; e, dado que algumas sejam muito Íngremes, podem vencer-se com ligeira fadi- ga, se em vez de as galgar acceleradamente, á Van-^ cjlaise, se sobem a passo lento, com o vagar de quem passeia. Sendo assim, a divagação da manhã pode aprazivelmente prolongar-se até ás nove horas. A

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A FORMOSA LUSITÂNIA

rua do Alociim, onde eu morava, é uma das prin- cipaes da cidade. A extrema inferior abre no centro do cães do Sodré; porção do qual se avista da barra de Lisboa. Sobe a rua sobre dois arcos, o grande e o pequeno, sobrepostos a duas ruas, e ascende em linha recta a considerável altura, cruzando algu- mas praças em seu trajecto, até chegar ao jardim de S. Pedro de Alcântara. Se, ao chegardes aqui, olhaes ao longo do declivoso jjlano por onde su- bistes, vereis ao fundo reverberarem as ondas do rio, e os tectos das casas mais baixas, e ainda as que ficam a meio caminho abaixo do nivel dos vos- sos pés.

O Passeio ou Alameda é um bello plano, ador- nado de bancos sob a copa de fileiras de ai'vores. D'ahi se abrange uma explendida vista da parte oriental de Lisboa. A poucos passos, desceis ao jar- dim d'onde a perspectiva é mais larga e variada.

Desdobra-se então ã vista embellesada, pelo me- nos, cinco ou seis das collinas sobre as quaes Lis- boa se levanta. Na extrema direita, as ondas do am- plo Tejo rell(3ctindo tremulas os raios solares da maidiã, parecem uma corrente de ouro liquido. está a grande cathedral antiga ; em cima, o velho castello de S. Jorge, com a sua vetusta capella de Santa Cruz do Castello ; e em mais alto ponto ainda o extincto convento e vasto temjjlo da Graça; no remate da ultima eminência avista-se a igreja de Nossa Senhora da Penha de França, a cujo sacrá- rio a gente embarcadiça faz romaria, a pedir pro- tecção em suas viagens ou a cumprir promessas votadas nas tempestades pelos pescadores, quando

A SUBIR

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lhe rogam que os salve. Mais longe, no cabeço de outro monte elevadíssimo, está Nossa Senhora do Monte. D'ali, principia a terra a descahir gradual- mente ; altea-se de novo e desce ; prolonga-se a vista para Bemfica; e, no espaço intermédio, alvejam quintas, grupos de ridentes casaes, e aldeias, en- verdecem vinhedos, jardins e pomares.

Recostam-se, nas ladeiras, vistosas cazas jardi- nadas, e caminhos marginados de arvores. Mais perto, onde a terra se complana, vedes ruas mo- dernas e antigas, amplas e estreitas: o magnifico largo do Rocio, com a elevada columna e estatua de D. Pedro IV; ahi, onde outr'ora esteve o Palá- cio da Inquisição, está o theatro de D. Maria 2.'^ Mais chegado ainda, quasi em baixo, bem que as franças das suas grandes arvores não attinjam esta altura, está o vasto jardim chamado Passeio Pu- blico com seus lagos e fontes, cysnes e estatuas, alegretes de flores e passeios sombrios. O tout en- semble forma um quadro de tão deliciosa magnifi- cência, que não haverá quem deixe de exclamar como eu, no arrebatamento de taes bellesas: «Lis- boa é, sem duvida, uma explendida cidade

O próprio jardim de S. Pedro de Alcântara, d'onde se disfructa este formoso panorama, dado que não seja extenso, é talvez o mais gracioso de Lisboa. Este edensinho está cheio de variadíssimas arvores e arbustos floridos. Ali as flores desabro- cham com tamanha profusão que cada arvore se figura um amontoado de differentes cores. Dão-se prodigiosamente arbustos e plantas de todas as espécies. Os gerânios d'este jardim são, de per si,

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rua do Aloci*im, onde cu morava, é uma das prin- cipaes da cidade. A extrema inferior abre no centro do cães do Sodré; porção do qual se avista da barra de Lisboa. Sobe a rua sobre dois arcos, o grande e o pequeno, sobrepostos a duas ruas, e ascende em linha recta a considerável altura, cruzando algu- mas praças em seu trajecto, até chegar ao jardim de S. Pedro de Alcântara. Se, ao chegardes aqui, olhaes ao longo do declivoso plano por onde su- bistes, vereis ao fundo reverberarem as ondas do rio, e os tectos das casas mais baixas, e ainda as que ficam a meio caminho abaixo do nivel dos vos- sos pés.

O Passeio ou Alameda é um bello plano, ador- nado de bancos sob a copa de fileiras de arvores. D'ahi se abrange uma explendida vista da parte oriental de Lisboa. A poucos passos, desceis ao jar- dim d'onde a perspectiva é mais larga e variada.

Desdobra-se então á vista embellesada, pelo me- nos, cinco ou seis das collinas sobre as quaes Lis- boa se levanta. Na exti'ema direita, as ondas do am- plo Tejo reflectindo tremulas os raios solares da manhã, parecem uma corrente de ouro liquido. está a grande cathedral antiga ; em cima, o velho castello de S. Jorge, com a sua vetusta capella de Santa Cruz do Castello ; e em mais alto ponto ainda o extincto convento e vasto templo da Graça ; no remate da ultima eminência avista-se a igreja de Nossa Seidiora da Penha de França, a cujo sacrá- rio a gente embarcadiça faz romaria, a pedir pro- tecção em suas viagens ou a cumprir promessas votadas nas tempestades pelos pescadores, quando

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lhe rogam que os salve. Mais longe, no cabeço de outro monte elevadíssimo, está Nossa Senhora do Monte. D'ali, principia a terra a dcscahir gradual- mente ; altea-se de novo e desce ; prolonga-se a vista para Bemfica; e, no espaço intermédio, ídvejam quintas, grupos de ridentes casaes, e aldeias, en- verdecem vinhedos, jardins e pomares.

Recostam-se, nas ladeiras, vistosas cazas jardi- nadas, e caminhos marginados de arvores. Mais perto, onde a terra se complana, vedes ruas mo- dernas e antigas, amplas e estreitas : o magnifico largo do Rocio, com a elevada columna e estatua de D. Pedro IV; ahi, onde outr'ora esteve o Palá- cio da Inquisição, está o theatro de D. Maria 2.'^ Mais chegado ainda, quasi em baixo, bem que as franças das suas grandes arvores não attinjam esta altura, está o vasto jardim chamado Passeio Pu- blico com seus lagos e fontes, cysnes e estatuas, alegretes de flores e passeios sombrios. O tout en- semble forma um quadro de tão deliciosa magnifi- cência, que não haverá quem deixe de exclamar como eu, no arrebatamento de taes bellesas: «Lis- boa é, sem duvida, uma explendida cidade

O próprio jardim de S. Pedro de Alcântara, d'onde se disfructa este formoso panorama, dado que não seja extenso, é talvez o mais gracioso de Lisboa. Este edensinho está cheio de variadíssimas arvores e arbustos floridos. Ali as flores desabro- cham com tamanha profusão que cada arvore se figura um amontoado de differentes cores. Dão-se prodigiosamente arbustos e plantas de todas as espécies. Os gerânios d'este jardim são, de per si,

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pouco monos que diguos de que se a Lisboa tào- somente para os ver. Cobrem grande parte da ele- vada mui'allia que o monte forma n'aquelle lado do jardim, ao longo da qual estão plantados ; as arvores do outro lado estão canceladas por uma elegante balaustrada de ferro lustroso. Estes gerânios cres- cem até ã altura de vinte ou trinta pés. Tem nos troncos piincipaes a espessura de arvores pequenas, e os esgalhos são proporcionaes. O maior numero de suas íiores são de um lindo escarlate ou cor de cravo, que, em certo tempo, se vão rajando de ma- tizes brancos ; mas são dobradas todas e em cachos grandes e abundantes como os de um lindo aloen- dro. Estes penachos ou houquets crescem tão es- pessos que quando as plantas, ou mais propriamente as arvores estão em plena florescência, elles pen- dem uns sobre outros nas suas longas hastes e quasi que escondem de todo a folhagem. Aqui e acolá re- salta o verde brilhante ou variegado da folhagem, e assim realça com o encanto da sua frescura a bel- leza d'aquella grande pompa floral.

O lyrio do Nilo dá-se e enflora n'este jardim como um joio indígena, e o heliotropo, em geral planta pequena e enfezada no clima do norte, aqui rivalisa com o gerânio na exuberância da vegeta- ção, vestindo altas paredes, formando copas dos seus compactos feixes de flores de uma purpura lin- díssima.

O jardim é cultivado, regado e mantido em ex- cellente ordem. Rente com uma parede lateral re- sahe uma bacia grande e semicircular de granito, onde por graciosa torneira de conchas joi'ra uma

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coi-i'ent(! de agu.-i límpida, sussui-i-indo sobre fotos e conchas. Em i-cdor do t;iii(|iio verdejam plantas aquáticas, e dentro recrea-sc volteando um car- dume de peixes doirados. Uma extremidade do jar- dim é fechada em parte por alta sebe de espessos arbustos que tecem com a ramaria do arvoredo um toldo de verdura sobr(.' o passeio. Aqui se nos de- param também assentos melhormentc situados sob um doce] do folhaj^-em pai-a se gozar d'ali o formoso panorama.

Pass;ji horas de encanto i Teste retiro deliciosa- mente temperado om um dia ardentíssimo. Brandas auras ciciavam nas frondes, e as aves regorgeavam esvoaçando-se de frança em frança. Se estaes de más ave:iças com o mundo, ide ali, que ficareis izempto de turvacões da alma e da mysantropia. E agora, como nunca esteve, está bello aquillo ! São maiores as arvores, é mais d('nsa a sombra, e o lance de vista é também mais de encantar, por que se não avistam ruínas e esquálidas habitações valhacoitos da miséria, do vicio e da immundicie que muito tempo conspurcaram aquella formosa decoração. E' tão notável a mudança que bem pode dizer-sc que a aridez de outr'oi'a, hoje (.'ui dia «sorri, íioreja, qual ramal de rosas».

A porta do jardim fecha-se ao anoitecer; mas no Passeio de cima se nos offerece uma scena ani- madíssima logo que Lisboa se illumina. O gaz nas ruas, a luz jorrando de todas as janellas, ou ti-e- mulando em bi'tas na folhagem das arvores cir- cumpostas, o lampejar radioso dos candieir(js semi- Ihante á popa de um navio, o murmuiio da confusa

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36 A FORMOSA LUSITÂNIA

toada que se ergue da cidade, áquella hora em que milhares de pessoas divagam a gozar a aragem da noite. A's vezes, a guitarra geme na Alameda, ou a orchestra militar que toca em baixo no Passeio estrondea rijamente até desfallecer n'um adejar de briza. No alto, refulgem myriades de estrellas no diaphano azul do céo, entornando um pallido brilho sobre a terra. O complexo d'esta scena forma um quadro que rivalisa por sua magestade com a sere- na belleza que ali se vos depara de manhã cedo.

Detivera-me eu mais tempo n'aquelle local dos meus antigos affectos, se me não tornasse incon- scientemente objecto importuno e assas suspeito a um cazal de juvenis amantes, únicos que n'aquella manhã por ali se espanejavam. Escassamente repa- rei n'elles; mas em quanto escrevia algumas pala- vras no meu Diaiúo, observara-lhes machinalmente os movimentos, e afinal fora sentar-me n'um banco da extrema opposta á que elles escolheram. Er- guendo a face n'uma espécie de rèverie, relancei acaso os olhos ao sujeito, e notei que os dois me fitavam furiosamente. A sua bonita companheira que, pela mantilha, conheci ser hespanhola, abai- xou a fronte, c deu mostras de estar mais sobre- saltada que vexada. Logo conjecturei ser aquillo uma entrevista á sucapa; não é, porém, usual as donzellas da classe burgueza infeiior ã qual de- certo aquclla gente pertencia irem passear com os namorados por alii além. Ei'a o cavalheiro um gen- til rapazola. Ora, desejando eu despersuadil-os, a elle e ã sua guapa Dulcinéa, do receio de que eu os estivesse espreitando, apontei para um edifício dis-

A SUBIR 37

taiitc (' perguiitci-lhc so sabia o qiio era. Respondeu que não, que era cxtrangeiro, e cuidara que sua ex- cellencia também fosse. Repliquei affirmando que sim, e acrescentei que a bellesa do sitio me convi- dara a entrar no jardim, onde eu sentia ter-me tal- vez demorado demasiadamente, por causa do grande calor que fazia. Respondeu que tinham vindo para ali attrahidos pela mesma causa elle e sua irmã ! Terrivel mentira ! A senhorita provavelmente, ficou socegada; mas, ao despedir-me, o sorriso e relance d'olhos que se trocaram entre mim e elle, fez-me crer que de parte a parte fic(ju decidido que eu não engoli o embuste ; mas que era bastante sympatliica para guardar segredo, se preciso fosse. (•)

Quer-me parecer que não estive longe de ser considerada uma condescendente espécie de antiga dueha, que discretamente fechasse os olhos e acei- tasse a missão de acompanhar a gtuitil donzella, concluído que fosse o meigo tête-à-tête. (")

(•) Não é curial nem senhoril que Lady Jackson a si mesma se qualificasse de «sympathica», sublinhando a palavra, na accepçiio que se lhe em Portu- gal. E' que s. Exc.^ empregou o termo no orij^inal significado grego : sum, com, e PATHos sentimento «consentimento.» Em Inglaterra usa-se tumbem o termo sympathia, synonino de graça: rtsymimthisar, engraçar com alguém». O certo é que a briosa ingleza nào sentia a sympathia das entrevistns á sucapa, hon- ra lhe seja : sentia, quando muito, e é o que era a final, uma sympathia greco- britannica, estéril e desserviçal que o seu patrício Butter, no Hudibras, com- para a uma dadiva de mostarda sem o competente bife.

Sympathy loithout relief Is like musiard vdtliout heef

(••) E' uma cousa que faz bem ao coração da gente e das nossas fainilias estes primores e melindres da virtude ingleza, posto que algum tanto mali- ciosa. Vejam como aquelle simples caso de se estarem dois namorados reque- brando, á competência com os pintasilgos do jardim, deu azo a uma boa pa-

38 A FORMOSA LUSITÂNIA

O ardentíssimo calor que senti ao deixar as som- bras de S. Pedro de Alcântara, advertiu-me que era tempo de me recolher ; mas o desejo de ir ver mais longe como Lisboa se tem embellecido deliberou-me prevenida de grande guarda-sol e indispensável leque a voltar as costas á rua do Alecrim. Se- guindo á rua do Moinlio-de-Vento, fui, subindo ainda, ató á Praça do Príncipe Real, que n'outro tempo era um acervo de ruinas chamadas a Pa- triarchal Qu(úmada.

Poucas são as ruas ou praças de Lisboa que se não gabem de ter dous nomes, um, antigo e ti'ivial, outro que lhe sobrepozeram ha mais ou menos tem- po ; é, porém, certo que em poucos sitios os nomes novos tiveram geral acceitação. Esta dupla nomen- clatura é muito embaraçosa aos extrangeii'os ; por que em muitas ruas succede como na Rua Augusta que também se chama rua dos Mercadores no- mes que apparecem conjunctamente nas esquinas ao passo que na Rua dos Fanqueiros, nome que geralmente se lhe da, cm varias partes se le «Rua Nova da Princeza». Em vão pi'{jcurareis o Rocio, como todos lhe chamam, sendo o seu nome ofíicial ((Praça de D. Pedro )); e a Praça do Commercio conserva ainda popularmente o antigo nome de

gina de moral ! E o pudor fortemente adjectivado com que Lady Jackson in- vectiva a trapaça do sujeito que chama irman á espanhola. . .A te.rrible fib ! E, de2)0Ís, o sobrcsalto da andaluza ! isso então faz lembrar o pejo pudibundo de um porta-macliado. Em IngUiterra não se d'aquillo. Quem quer vêr uma rapariga a conversar com um rapaz vem ao jardim de S. Pedro de Alcântara. No decurso do livro veremos energicamente, shokinguemenfe, repetida a indi- guação d'esta senhora contra namoros nos jardins de Portugal.

A SUI3IR 39

((TGrr(3Íro do Paro», qu(^ IIk; ficou do palácio real arrazado pelo grande terramoto.

Na cuiniada da encosta que eu subia existiu ou- frora um vasto templo denominado a Basilica. De- voraram-no as chammas no século passado; mas ainda ha pouco, aquelle local se chamava (( Patriar- chal Queimada». Durante aimos, se conservaram as ruinas taes quaes o incêndio as deixara. Houve o projecto de edificar ali o Tribunal do Thesouro. Aplanaram o terreno, caboucaram os alicerces ; mas pararam as obras. Decoi-rido longo intervallo, pla- neou-se estabelecer n'a(piell(! ventilado sitio um vas- to mercado ; mas os lisbonenses impugnaram o al- vitre, allegando que o ir tão apino todos os dias em cata de provisões era coisa de costa acima, e os cosinheiros e as dispenseiras abundaram na mesma ideia: caducou, por tanto, o projecto. E o magnifico terrapleno sobranceiro á parte occidental de Lisboa, olhando para a margem fronteira do Tejo, e para o longínquo oceano, permaneceu um grande campo juncado de pedregulho e herva, até que a Compa- nhia das Aguas o adquiriu, construindo um immen- so reservatório de agua e uma espécie de lago com elevado repudio. Ajardinar; un o terreno circum- posto, e a um lado complanaram um passeio corn quatro renques de arvores que extremam duas ave- nidas. Sobejam aqui bancos para que, se subirdes até lá, vos senteis agradecido, e d'ahi gozeis um panora- ma formoso como tudo em que a vista sempre se deleita. Mas, n'esta pittoresca e linda terra, para onde olhareis que se vos não otíereçam novos en- cantos, como estes que se desdobram ante vossos

40 A FORMOSA LUSITÂNIA

olhos, tendo cada ponto de vista uma fascinação pe- culiar sua, sem que saibamos a qual d'ellas se ha de dar a palma da belleza?

Na Praça do Principe Real edificaram-se e es- tão em obra soberbas casarias. E' um lindíssimo local para residir e talvez o mais sadio de Lisboa. Ali perto ha muitos estabelecimentos scientificos, e de educação, e as casas que elles occupam, pelo que apparentam, dão a entender que este bairro da cidade, com o seu novo e florescente jardim da Pa- triarchal, se tornou o mais elegante e distingue.

CAPITULO IV

A DESCER

Eram doz horas quando entrei no hotel. No re- trocesso, sempre a descer, e calorosa bastante, vim muito a passo, notando as coisas antigas e moder- nas que encontrei. (•)

Entre as modernas é notável a formosa praça- sinha dedicada a Luiz de Camões. Foi construida em frente do Largo das Duas Egrejas, no chão de uns casebres povoados antigamente por pobres,— um labyrintho de pardieiros aglomerados, que da- vam de si o mais estreito, torto e sujo beco de Lisboa; e isto que era a máxima das suas inde- cencias estava na parte mais central e melhor do bairro mercantil da cidade. Este escândalo dos olhos

(•) Estas palavras em itálico, e as mais que assim vieram differençadas, são do original. Conservo-as na versão para mostrar que a auctora conhece menos mal a linguagem do paiz que honrou com a sua visita. Não obstante, ousarei uma vez por outra emendar descuidos desta natureza: «dois egrejas— r^ sol- dado — verdadeira portuguez Torre de Marco Tudo está mui limpa Muitos mulheres tam valente que ella etc. E' possível que brevemente se es- creva assim o portuguez-, mas, por em quanto, não temos grammaticas philo- sophicas em que assentemos a authoridade da elegante escriptora, por ma- neira que a possamos constituir nossa fiel aliada em linguagem.

42 A FORMOSA LUSITÂNIA

foi exterminado ha poucos aniios, e o terreno ex- purgado, e j.á então rodeado de excellentes edificiols, está murado por uma gradaria de ferro com uma fileira de graciosas e copadas pimenteiras, origina- rias da America do Sul, que ali prosperam maravi- lhosamente. Em deredor d'este cerrado ha assentos, e no centro se erigiu em 1867, volvidos 218 annos sobre o trespasse de Camões, a primeira estatua do grande poeta nacional, erguida pelos seus conter- râneos. (•)

A estatua mede cerca de quinze pés d.) altura, e assenta sobre um pedestal octogono de vinte e três pés. Em cada um dos oito ângulos ha um plintho em que assenta uma estatua menor de altura de sete ou oito pés. São estas as estatuas de oito principaes escriptores nacionaes, historiadores e poetas. E' este monumento valiosamente reputado. Victor Bastos, esculptor portuguez, delineou-o e executou-o.

O circuito exterior da praça é uma das esta- ções dos trens de aluguer, que são de excellente apparencia. Quizera eu que Londres assim os ti- vesse.

Existe ainda dos nossos antigos conhecimentos, o aguadeiro gallego. Soou-me ao ouvido familiar- mente o seu estirado An-Ait! Mas que é do barril? não existe aquelle barril alegremente pintalgado que era um enlevo dos olhos. Encontrei três ou qua- tro d'estes homens quando me recolhia; todos le-

(•) Pedimos vénia para emendar o lapso que faz Luiz de Camões 69 an- nos mais novo. 0 poeta morreu em 1580 ; decorreram, pois, 287 annos desde O seu fallecimeuto até á inauguração da estatua em 1867.

IjriURU POaTVEXSB-BDlTOttA.

ESTATUA DE LUIZ DE CAMÕES.

A DESCER 43

\n\;iin h.-irris cnv do cliiiiiiljo ou de akíatrno. Havia no t;iiiij)(j (lo um (rdlcs unia lisfi-i vcrincllia dcsbo- tadn, Irisle recordação dos dias (jni cju(í ljiillia\ani pintados com matizes variadissimos de barras e la- çarias. O j)r()j)rio gallego tornou-se melancólico e sujo coniu u seu barril. Algum tempo, liavia o que quer (pie fosse caracteristico no seu trajar : quaudo um grupo de aguadeiros esta\'a sentad(j nos seus barris vari(jgados, ou se reclinava uas escadas do chafariz, era isso uma vista que refrigerava a gente. Pode ser que o gallego se compenetrasse da con- vicção de que vai ser a pouco e pouco delido e dis- solvido pela Companhia das Aguas.

((Ha c;í reservatório d'agua, senhora Maria?» perguntei eu ã creada de quarto logo que entrei. (( Sim., sim, Vossa Excellencia respondeu ella, como espantada da miidia pergunta não tem tanta quanta quer?» ((vSim, sim; mas é que eu cuidei que não vinha do chafariz a agua».

A senhora Maria e uma robusta e trabalhadeira mulher dos arrabaldes do Porto. Ao que parece, nunca está quieta nem consente que estejam occio- sas as outras que ella dirige; ainda assim, uma vez por outra cavaqueia um poucochinho com os hos- jdcxles, acabando sempre por dizer: Agora vossa Ex- cellencia hade escuzar-me ; com licença, que vou para outra parle. Informou-me, pois, uma vez, a seidiora Maria que toda a agua necessária para beber e co- sinliar era ainda trazida do chafariz por gallegos. Ninguém se lhe importa de uzar em tal emprego da agua menos fresca e pura encanada pelos tubos da Companhia ; d'ahi se originam cóleras e outras

44 A FORMOSA LUSITÂNIA

doenças ; e, com receio d'isso, ainda se não adoptou geralmente a canalisação da agua para as cazas.

Disseram-me que a canalisação tubular feita, ha annos, em Lisboa, ainda antes de uzada, fora des- truída: tamanho era o damno que a agua recebia atravez dos tubos. Ouvi dizer que a Companhia actual ensaia, em nova canalisação, aperfeiçoamen- tos de construcção e de matéria ; e, se a conveniên- cia e economia resultarem da experiência, prova- velmente todas as casas terão agua dentro.

Orçam ainda por três mil os gallegos aguadeiros em Lisboa. O preço do barril d'agua ouvi dizer que subira de vintém a quarenta reis, conforme a dis- tancia do carreto. (•) Cada barril parece não levar mais de 14 a 16 canadas. O trafico do aguadeiro, posto que menos prospero, provavelmente não aca- bará n'um paiz cujos habitantes bebem tanta agua como os portuguezes, e em quanto existirem tão bonitos chafarizes a golfarem a bebida predilecta, tão lympidamente clara e d'um frescor voluptuoso. (•) Um dos chafarizes principaes foi removido. Estava no Largo das Duas Egrejas, ao do antigo Hotel Peninsular. Entenderam que tal adorno destoava da época actual ; a praça tornou-se mais elegante com a concurrencia dos sujeitos que por ali se agru- pam.

(■) Não pude ler no Times a impressão que fez em Londres esta noticia. uma dama seria capaz de peneirar nos segredos da cosinha lusitana, pes- quizando o que vae do antigo vintém ao moderno pataco do barril de agua.

(•) Luxuriously. Também uma senhora ingleza, para desdizer dos seus conterrâneos, podia achar voluptuosa a agua dos nossos bonitos chafari- zes— handsomc fountains.

A DESCER 45

A Praça de Camões e outros melhoramentos alterou a espécie de gente que frequenta o sitio. Volveu-se aristocrático o local, e o aguadeiro e mais o seu chafariz l;i foram hanidos dos precinctos do fashiondble Chiado, que absorveu o referido Largo das Duas Egrejas.

Outro grito conhecido me retinia nos ouvidos quando descia para caza: Uma esmola, ou uma es- molinha, isto dito em termos de mui carinhosa li- sonja— ii Minha riqidssima menina, pela sua saúde, pela salvação da sua alma, em memoria das cinco chagas de Jesus Christo, de-me uma esmola ! » Ouvi dizer que os mendigos actualmente em Lisboa eram menos que em outro tempo, por que aos sãos e escorreitos é prohibido vagamundearem calaceira- mente a pedir esmola; e, se transgridem, a policia toma-os á sua conta. Isto bem está; ainda assim, os mendigos são tantos que se deve, em geral, res- ponder ao velho peditório com a velha resposta: Tenha paciência, não pode ser agora, ou: Tenha pa- ciência, e com Deus, homem..

Esta manhã, acercou-se de mim um d'aquelles, cujo requerimento se ouve de bom rosto, principal- mente pelo modo originalissimo e divertido por que o homem me exprimiu a sua necessidade. Trajava assas limpamente, como, na verdade, trajam muitos mendigos e mendigas de Lisboa. Voltava eu do Jar- dim de S. Pedro de Alcântara, e atravessava a Ala- meda, quando o homem ia sahindo; elle, porém, como reparasse em mim, retrocedeu, e n'um tom brusco, precipitado e cavernoso, exclamou : Excel- lentíssima! Voltei-me para elle como quem interroga.

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A FORMOSA LUSILANIA

Fitoií-mc com a máxima gravidade, sacou da algi- beira uma caixa de rapé, abriu-a e i)oz-m'a deante dos olhos, com um gesto (jiic jt.irccia {li/,,"r: «Veja isto! nem uma pitadiuha!» A' primeira vista, íiquei pasuiada coui a raj)i(l<'z do acto; todaxia, o olhar si- guilicativo do hoiucui (picuão proferira senão uma i)alavi'a e a pertinácia com que me mettia á cara a caixa vazia, restituiu-mc logo á conscicncia do mmi dever, (pie era simplesnicute ench('i'-lhc de i-aj);'' a caixa. Immediatameute a fechou, metteu-a no holco, e arqueaudo-se cm solemne cortezia disse que mui (íordealmente desejava (pK* (mi tivesse muita saúde e felicidade n'este mundo e no outi*o, e que eu nunca expei"imentasse o que era a necessidade de uma |)i- tada. E, ao retirar-se, (piando eu menos o espci-ava, riii-se de mim. A' vista (Tisto (hixidei se elle seria na realidade um pobre, ou algum far(;<)l i meio-apai'- \alhado.

Um cav;dheiro, j)<)r<'m, a quem contei a pas- sagem, atlii'mou-me (pie o homem realmente es- molava; que lhe tiidiam lallado (Telle; (pie a sua caixa estava sempre vazia, e (pie siaiiente ás senhoras, par prvférence, se dirigia para llTa en- cherem; e, com este excêntrico systema de pedir, as mais das vezes, apanhava a sua prata miúda em logar de um vintém, que era o mais (jue poderia render-lhe um peditoi*io trivial.

Com quanto sejam muitos os mendigos, pare- ce-me que são menos impertinentes que os d'outros paizes. Bem vestidos, passeando comvosco nos jar- dins hombro a hombro, refestelandíj-se nos bancos, assaltam-vos de improviso com uma invocac^ão á

A DKSCKK

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vossa caridade. Outras voz(»s, examinando as vi- ti*iiies das lojas, e comineutaiido iiatni*;dineiite com os p;ii*c'eii'os a cjualidacle das fazendas expostas, de i\ 'pente vos rodeiam e imploram com urgência (jue os soccoi-i-ani ; depois, attíMididos ou não, atam de no\'o a palestra, c xão-sc chegando para outra vitrine.

A Ínfima esrala (Testa parte da conununidade os (pie doiMncm nas lag>'s, nos i\ji:antos (;scui'os, e assoalliani suas d(ísgi-a(;as c indigcncias p!)d(M'iam afliar jjão e agasallio nas caritativas institui('ò('s do paiz, si' não pri-rcrissciii \ida solta c vagabunda. () clima ('■ propicio á \ida ao arlisrc, cos portuguczcs são de si caridosissinios.

Rudes misi'1-ias, > 'ui duxida, sollVi^m muitos d'esscs mendigos; mas lambem os lia (pie \i\'cni vida lolgada \)nv essas i-nas, o andam mellionnente vestidos (pie muitos opei-arios (pie s(í csfairam a ti'aballia.r. A cxj)osi(;ão de lioi-i-cndas disformida- dcs e esquálidas doeiK-as aiiojaxam iroutro tempo os viandantes. Não vi bastant(! de Lisboa para afíir- mai- (jiie esta ulcera foi cxpimgida da sua bcllcza; mas ouvi dizei- (pie sim.

D'esta \('Z, obsei-sci (pi li;i\ia, I;'i muitos ca'- gos ; mas sempre alii lioiixc niiini-rosos desga(;a- dos (Tessa (.'iilermidadí.' : a poeira, arenosa do (!stio (! o brilho do sol molestam os olhos da gente (pKí trabalha exposta á sua fun(.'sta inllu(.'ncia. Aquelles fpi(3 precisairi de óculos fazem bem usal-os ; mas não será mais ])or moda ou allecta(;ão (jn(! por ne- cessidaíle d(3 auxiliarem a vista, o uso que as se- nhoras geralmente fazian (h; lunetas píaidcntcs de

46 A FORMOSA LUSILANIA

Fitou-mc com a máxima gravidade, sacou da algi- beira uma caixa de rapé, abriu-a e poz-m'a deante dos olhos, cum um gesto que parecia dizer: «Veja isto ! uem uma pitadiuha!» A' primeira vista, fiquei pasmada com a rapidez do acto ; todavia, o olhar si- gnificativo du homem que não proferira senão uma palavra e a pertinácia com que me mettia á cara a caixa vazia, restituiu-me logo ã consciência do meu dever, que era simplesmente encher-lhe de rapé a caixa. Immediatamente a fechou, metteu-a no bolço, e arqueando-se em solemne cortezia disse que mui cordealmente desejava que eu tivesse muita saúde e felicidade n'este mundo e no outro, e que eu nunca experimentasse o que era a necessidade de uma pi- tada. E, ao retirar-se, quando eu monos o esperava, riu-se de mim. A' vista d'isto duvidei se elle seria na realidade um pobre, ou algum farrola meio-apar- valhado.

Um cavalheiro, porém, a quem coutei a pas- sagem, affirmou-me que o homem realmente es- molava; que lhe tinham fallado d'elle ; que a sua caixa estava sempre vazia, e que somente ás senhoras, par 'préférence, se dirigia para lh'a en- cherem; e, com este excêntrico svstema de pedir, as mais das vezes, apanhava a sua prata miúda em logar de um vintém, que era o mais que poderia render-lhe um peditório ti-ivial.

Com quanto sejam muitos os mendigos, pare- ce-me que são menos impertinentes que os d'outros paizes. Bem vestidos, passeando comvosco nos jar- dins hombro a hombro, refestelando-se nos bancos, íissaltam-vos de improviso com uma invocação á

A DliSCER 47

vossa caridade. Outras vezos, examinando as vi- íi'iii('s das lojas, e commentando natarnlnicnte com os parceiros a (jualidade das fazendas cíxpostas, de r(!pente nos rodeiam (3 imploram com urgência (jue (js soccorrain; d(.'pois, attondidos ou não, atam de novo a palestra, e vão-se chegando ])ara outra vitiine.

A Ínfima escala d'esta parte da communidade os que dormem nas lagos, nos recantos escuros, e assoalham suas desgraças e indigencias poderiam achar pão e agasalho nas caritativas instituições do paiz, se não preferissem vida solta e vagabunda. O clima é propicio á vida ao ar livre, e os portuguezes são do si caridosissimos.

Rudes misérias, som duvida, soffrem muitos d'esses mendigos ; mas também os ha que vivem vida folgada por essas ruas, e andam melhormente vestidos que muitos operários que se esfalfam a trabalhar. A exposição de horrendas disformida- des e esquálidas doenças anojavam n'outro tempo os viandantes. Não vi bastante de Lisboa para affir- mar que esta ulcera foi expungida da sua belleza; mas ouvi dizer que sim.

D'esta vez, observei que havia muitos ce- gos ; mas sempre ahi houve numerosos desgaça- dos d'essa enfermidade : a poeira arenosa do estio e o brilho do sol molestam os olhos da gente que trabalha exposta ã sua funesta influencia. Aquelles que precisam de óculos fazem bem usal-os ; mas não serã mais por moda ou affectação que por ne- cessidade de auxiliarem a vista, o uso que as se- nhoras geralmente fazem de lunetas pendentes de

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A rOHMDisV I T' í \vi V

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KitMii-mi' fom a iniixima f:i tiuiia uiiin (yiixa dt* iiipé, abri -a do»» olli< II nm p'sto í|'!

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48 A FORMOSA LUSITÂNIA

elegantes cadeias? Um cavalheiro hespanhol galan- temente me disse : «Faz pena que as senhoras por- tuguezas escondam assim o fulgor dos seus bri- lhantes olhos negros ! » (•)

(•) Todo os vÍHJantes, desde qne ha óculos, reparam nas nossas lunetas. Um que veio a Portugal ha perto de 150 annos, escreveu que nós éramos curtos de vista por trez cauzas: a frequente sangria, brilhantismo da luz, e a incon- tinência extraordinária dos nossos costumes. Destas trez rasões subsiste ape- nas, como causa ophtalmica, a intensidade da luz; os costumes de hoje sào continentes, e ninguém se sangra. Actualmente a rasão das myopias e pres- byopias é o muito estudo.

CAPITULO V

o CHIADO

((Ii'cmos para a direita ou para a esquerda?)) per- guntou o amigo que me acompanhava, quando sahi- mos do hotel, com o propósito de ir ao llcgent Slreets e Bond Slreels de Lisboa ver os estabelecimentos fashionable. Decidi pela esquerda, apezar de ser la- deira. Depois que subimos |)ai'te da nussn, rua, que é recta, direita e polida pelu asphalto, o nosso pas- seio havia de proseguir ladeira acima ou caminho chão : concluimos por ir caminhando até um sitio onde repouzassemos.

Fomos subindo á sombra de um altíssimo nuu'0. No topo, verdejavam algumas arvores, visiveis de muito longe a quem voltasse o rosto para aquella banda. «Como chegaram láf)) dizeis vós. E' emba- raçosa a resposta; mas quem coidiecer a em'edada topographia d'esta cidade, sobe circularmente e vai sahir ao topo da rua mais próxima áquella d'onde sahiu. E' como é Lisboa. Um pedaço acolá em cima, outro pedaço acolá em baixo, fragmentos dispcírsos costa acima, outros no respaldo do outeiro, por toda a parte assim. Quem olha para aquellas colinas, cujo numero entre grandes e pequenas, tanto pode orçar por setenta como por sete, não imagina quan- tos annos de paciente lavor e fatigante esforço fo-

il

50

A FORMOSA LUSITÂNIA

ram precisos para reedificar aquella cidade, e co- brir-llie as eminências e declives de grandes edifí- cios, egrejas e palácios que actualmente se alteam em i^edor de nós. Se o terreno, aqui e além, hou- vesse sido complanado, e os cabeços derribados dos outeiros se convertessem no aterro das cavidades, divagaríamos por ali muito mais commodamente, mas com o desvantajoso sacrifício do accidentado pittoresco á facilidade do tranzito.

Taes ideias naturalmente nos occorreram quando subiamos para a praça ou jardim chamado Largo do Barão de Quintella, em frente do qual se ergue o sumptuoso palácio que foi do referido barão e de seu fílho, o famoso conde de Farrobo, fallecido. Actualmente é occupado o palácio por uma associa- ção lettrada, o Grémio lillcrario, que é uma assem- blea detodos oslitteratos, nacionaes e extrangeiros, residentes na capital. (•) O actual conde, que herdou pouco mais que o titulo, posto que seu pai haja sido um dos mais opulentos fidalgos de Portugal, não pôde manter tão dispendiosa e luxuosa residência nem a outra dos arrabaldes a bella quinta das La- rangeiras. Em seguida, e do mesmo lado do palácio, está a egreja da Encarnação, cuja portaria faz um angulo do Largo das Duas Egrejas. Talvez gos- tásseis, en passant, de entrar ali um momento. Mui- tas egrejas somenos de Lisboa dão ares de umas

(•) A instituição do Grémio litterario parecia cuidar de lettras. Fize- rani-se ali alguns ensaios felizes de eloquência. Depois, como a nossa gente 6 pouco caroavel de palavriado, e as linguas inspiradas ganhassem saburro nas lides parlamentares, as lettras fugiram de lá, rethoricamente fallando, porque todos os sócios abrigam fundos conhecimentos do alphabeto.

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enoi'mos salas adorossadas festivamiMitc. São fres- cos o agradáveis iHítii-os, guarnecidos a pi-imor, e portanto convidativos; mas não impressionam i'e- ligiosamente. Em geral, tem duas, trez, e mais pin- turas boas ; mas faz horror o processo de restaura- ração que empregam em algumas. A miúdo se encontram óptimas esculpturas, em pedra e ma- deira, obras de artistas portuguezes, que sempre realçaram n'esta arte. Defronte da Encarnarão, esta a cgreja do Loreto, a mais «da moda» em Lisboa. N'outro tempo, foi explendorosa, mas duas vezes o fogo a devorou. Está ainda opulentamente orna- mentada, e é por egual attractiva como a Encarna- ção.

Pouco abaixo está a egreja dos Martyres, o mais antigo templo de Lisboa. (•) É fundação de D. AíTonso Henriques, celebrado conquistador, e pri- meiro rei de Portugal, para commemorar a conquista de Lisboa. Os martyres a quem foi dedicado como logar de sua sepultura eram os cruzados, cavalleiros extrangeiros, que aportaram a Lisboa de viagem para a Terra Sancta, e se alistaram sob o estan- darte de Affonso contra a moirama, auxiliando-o na entrepreza da cidade.

As egrejas fecham-se ao meio dia. Até esta hora, está á porta um homem, entrajado n'uma longa e ampla vestimenta, o que quer que seja entre a capa

(•) A egreja que a auctora viu não é a antiga, nem era aqucllo o seu pri- mitivo assento. 0 templo fundado por D. Affonso Henriques existiu até 1755, trez vezes restaurado, em sitio que hojy faz parte da rua do Ferregial de Cima. A fundaçilo da existente egreja dos Martyres é posterior ao grande terramoto.

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ram precisos para reedificar aquella cidade, e co- brir-lhe as eminências e declives de grandes edifí- cios, egrejas e palácios que actualmente se alteam em redor de nós. Se o teri'eno, aqui e além, hou- vesse sido complanado, e os cabeços derribados dos outeiros se convertessem no aterro das cavidades, divagariamos por ali muito mais commodamente, mas com o desvantajoso sacrifício do accidentado pittoresco á facilidade do tranzito.

Taes ideias naturalmente nos occorreram quando subiamos para a praça ou jardim chamado Largo do Barão de Quintella, em frente do qual se ergue o sumptuoso palácio que foi do referido barão e de seu filho, o famoso conde de Farrobo, fallecido. Actualmente é occupado o palácio por uma associa- ção lettrada, o Grémio lillerario, que é uma assem- blea detodos oslitteratos, nacionaes e extrangeiros, residentes na capital. (•) O actual conde, que herdou pouco mais que o titulo, posto que seu pai haja sido um dos mais opulentos fidalgos de Portugal, não pôde manter tão dispendiosa e luxuosa residência nem a outra dos arrabaldes abella quinta das La- rangeiras. Em seguida, e do mesmo lado do palácio, está a egreja da Encarnação, cuja portaria faz um angulo do Largo das Duas Egrejas. Talvez gos- tásseis, en passant, de entrar ali um momento. Mui- tas egrejas somenos de Lisboa dão ares de umas

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(■) A instituição do Grémio litterario parecia cuidar de lettras. Fize- ram-se ali alguns ensaios felizes de eloquência. Depois, como a nossa gente é pouco caroavel de palavriado, e as línguas inspiradas ganhassem saburro nas lides parlamentares, as lettras fugiram de lá, rethoricamente failando, porque todos os sócios abrigam fundos conhecimentos do alphabeto.

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enormes salas aderessadas festivamente. São fres- cos e agradáveis retiros, guarnecidos a primor, e portanto convidativos; mas não impressionam re- ligiosamente. Em geral, tem duas, trez, e mais pin- turas boas ; mas faz horror o processo de i'estaura- ração que empregam em algumas. A miúdo se encontram óptimas esculpturas, em pedra e ma- deira, obras de artistas portuguezes, que sempre realçaram n'esta arte. Defi'onte da Encarnação, está a egreja do Loreto, a mais «da moda» em Lisboa. N'outro tempo, foi explendorosa, mas duas vezes o fogo a devorou. Está ainda opulentamente orna- mentada, e é por egual attractiva como a Encarna- ção.

Pouco abaixo está a egreja dos Martyres, o mais antigo templo de Lisboa. (•) É fundação de D. Affonso Henriques, celebrado conquistador, e pri- meiro rei de Portugal, para commemorar a conquista de Lisboa. Os martyres a quem foi dedicado como logar de sua sepultura eram os cruzados, cavalleiros extrangeiros, que aportaram a Lisboa de viagem para a Terra Sancta, e se alistaram sob o estan- darte de Affonso contra a moirama, auxiliando-o na entrepreza da cidade.

As egrejas fecham-se ao meio dia. Até esta hora, está á porta um homem, entrajado n'uma longa e ampla vestimenta, o que quer que seja entre a capa

(•) A egreja que a auetora viu nào é a antiga, nem era aquclle o seu pri- mitivo assento. 0 templo fundado por D. Affonso Henriques existiu até 1755, trez vezes restaurado, em sitio que hoje faz parte da rua do Ferregial de Cima. A fundaçiio da e.KÍ3teute egreja dos Martyres é posterior ao grande terramoto.

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ram precisos para reedificar aquella cidade, e co- brir-lhe as eminências e declives de grandes edifí- cios, cgrejas e palácios que actualmente se alteam em redor de nós. Se o terreno, aqui e além, hou- vesse sido complanado, e os cabeços derribados dos outeiros se convertessem no aterro das cavidades, divagariamos por ali muito mais commodamente, mas com o desvantajoso sacrifício do accidentado pittoresco á facilidade do tranzito.

Taes ideias naturalmente nos occorreram quando subiamos para a praça ou jardim chamado Largo do Barão de Quintella, em frente do qual se ergue o sumptuoso palácio que foi do referido barão e de seu fílho, o famoso conde de Farrobo, fallecido. Actualmente é occupado o palácio por uma associa- ção lettrada, o Grémio lilterario, que e uma assem- blea de todos os litteratos, nacionaes e extrangeiros, residentes na capital. (*) O actual conde, que herdou pouco mais que o titulo, posto que seu pai haja sido um dos mais opulentos fidalgos de Portugal, não pôde manter tão dispendiosa e luxuosa residência nem a outra dos arrabaldes a bella quinta das La- rangeiras. Em seguida, e do mesmo lado do palácio, está a egreja da Encarnação, cuja portaria faz um angulo do Largo das Duas Egrejas. Talvez gos- tásseis, en passanl, de entrar ali um momento. Mui- tas egrejas somenos de Lisboa dão ares de umas

(•) A instituição do Grémio Utterario parecia cuidar de lettras. Fize- ram-se ali alguns ensaios felizes de eloquência. Depois, como a nossa gente 6 pouco caroavel de pulavriado, e as línguas inspiradas ganhassem saburro nas lides parlamentares, as lettras fugiram de lá, retlioricamente fallando, porque todos os sócios abrigam fundos conbocimentos do alphabeto.

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enormes salas aderessadas festivamente. São fres- cos e agradáveis retiros, guarnecidos a primor, e por tanto convidativos ; mas não impressionam re- ligiosamente. Em gei*al, tem duas, trez, e mais pin- tui'as boas ; mas faz horror o processo de restaura- ração que empregam em algumas. A miúdo se encontram óptimas esculpturas, em pedra e ma- deira, obi'as de artistas portuguezes, que sempre realçaram n'esta arte. Defronte da Encarnação, está a egreja do Loreto, a mais «da moda» em Lisboa. N'outro tempo, foi explendorosa, mas duas vezes o fogo a devorou. Está ainda opulentamente orna- mentada, e é por egual attractiva como a Encarna- ção.

Pouco abaixo está a egreja dos Martyres, o mais antigo templo de Lisboa. (•) É fundação de D. Affonso Henriques, celebrado conquistador, e pri- meiro rei de Portugal, para commemorar a conquista de Lisboa. Os martyres a quem foi dedicado como logar de sua sepultura eram os cruzados, cavalleiros extrangeiros, que aportaram a Lisboa de viagem para a Terra Sancta, e se alistaram sob o estan- darte de Affonso contra a moirama, auxiliando-o na entrepreza da cidade.

As egrejas fecham-se ao meio dia. Até esta hora, está á porta um homem, entrajado n'uma longa e ampla vestimenta, o que quer que seja entre a capa

(•) A egreja que a auetora viu não é a antiga, nem era aquolle o seu pri- mitivo assento. 0 templo fundado por D. Affonso Henriques existiu até 1755, trez vezes restaurado, em sitio que hoje faz parte da rua do Ferregial de Cima. A fundação da existente egreja dos Martyres é posterior ao grande terramoto.

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e O cazacão. A droga é sarja vermelha com cabeção de paniiiiiho verde. Traz na mão uma bandeja em que recebe esmolas dos tranzeuntes e dos que en- tram na egreja. Quando o templo se fecha, eil-o ahi vai com o mesmo habito de porta em porta, á cata d'aquelles que ficaram em caza, a fim de contribuí- rem para o sancto padroeiro da Irmandade, cujos in- teresses elle agenceia. Ordinariamente, no pórtico de cada egreja está uma, ou estão duas velhas tão en- carquilhadas, tão resecas e carcomidas que a gente quasi que recusa acreditar que aquellas decrépi- tas caras hajam sido novas ! Depois de lhe esmo- lardes alguma coisa « pela salvação da vossa alma», espreitai a egreja dos Martyres também. Aquella antiguidade venerável pareceu-me a mesma que eu vira annos antes exceptuando os renovados e agra- dáveis ornatos. Muitíssimo aceio em tudo.

Parece-me, porém, que lhe ouço dizer: «Prin-" cipiou a sua carta por me annunciar que o propósito da sua sabida era observar as lojas e visitar a lusi- tana Refjení, cni liond Street; e, em vez de me rela- tar isso, dá-me um esboço da sua ascenção da Rua do Alecrim, com um volver de olhos as casas e egre- jaspor onde passou». Assim 6; mas, paciência, como os portuguezes gostam de exclamar. Não ha loja nenhuma em quanto se não passa a egreja do Lo- reto onde se pode dizer que o Chiado principia. Não S(3Í a que se deve este excjuisito nome. Chiado pode- i'á vir da chiada estridula das rodas dos carros nos seus eixos; e estrondo acho eu que em parte ne- nhuma de Lisboa é tamanho. Anteriormente ao uso das carruagens, os ouvidos haviam de ser menos

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atormontados ii'c3sto local; quaiidi) os velhos car- ros dc3 bois poi* aqui passavam com a siia Iiorrivcl cliiadiira, não S(U'ia isto ainda uma passagc^m aris- toci*atica, polo monos nos primeiros tempos em quo o Chiado rocobou tão extravagante nomo. (•) Mas, seja o que for, o fashionabk Chiado, (pie se lhe figura direito o [)laiio, em vez de uma rua ladeii'enta, se o visse, que surpreza a sua, e quo dosillusão pro- vavelmente lhe mando ! E', comtudo, um lindo sitio; e, como não ha, creio eu, photographia, e difficil seria conseguil-a em tal posição, tentarei descro- vor-lli'o.

Quem nunca viu o nosso Regent Street, ou sequer lhe imaginou a extensão, chamava d'antes íio Chiado o Regent Street de Lisboa; e, ainda então, eram as lojas muito inferiores ao quo são hoje, o muito me- nor a actividade e algazarra, por que as senhoras, sahindo para outros pontos, raro vinham aqui. Ima- gine-se em Bond Street, mesmo no centro da rua, justamente no Conduít Street, e figure-se, se pode, que o PicadiUy de, se decliva, foi'mando o Cliiado d'aqui. Bond Street tem. vantagem no comprimento;

(■j o Chiado ti conhecido desde o século XIV, como culçada insignifi- cante, e egual aos becos e travessas circuinjacentes que o terramoto arrasou. Quer alguém que o ex-frade poeta António Ribeiro Chiado desse o nome á localidade em que residira; mas a denominação precede em centenares de annos a existência do poeta que recebeu, provavelmente, o apellido da locali- dade. Antes de 1755 a rua aristocrática e de mais concorrência era a Rua Nova d'El-rei, ou dos Marcadores que está sotterradanos alicerces da rua dos Capellistas. Media IS"" 60 de largura (60 palmos). Em riquezas da China e Japào ultrapassaria os valores da brilhante farrapagem do actual Chiado. Quanto a este nome, a hypothese da escriptora não é nova nem sua Cons- tâncio no seu Diccionario da lingua portugueza escreveu: Chiado: nome de uma calçada de Lisboa assim chamada da chiadura dos carros que a sobem.

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e o Chiado é um pouco mais largo ; mas não ha diffe- rença na largura e estylo dos ladrilhos. Ha boas lojas no Chiado como lá, e em muitas ostentam-se mais manufacturas de França e Inglaterra que de Portu- gal. Ha sedas de Lyão, rendas de Bruxellas e va- lencianas, musselinas suissas e inglezas, e langeries de Paris; instrumentos muzicos e maquinas de cos- tura americanas, leques hespanhoes, luvas do Porto que rivalisam com as de Jouvin; quinquilharias e m an u factu ras p arisie n s es .

D'onde procedem as cc opulentas» como os ele- gantes escriptores dizem, e ondeadas tranças negras que estào á venda nos estabelecimentos dos cabel- leireiros da corte? Não pretendo sabel-o ; mas ha aqui abundância de bandós, tranças e spiraes de ca- racoes, negros como azeviche. Tranças louras são quasi nenhumas. Madame Marie e Mad.^"^ Virgínia de Lisboa possuem o seu estabelecimento n'este predilecto sitio, e tem mais lunetas que o melhor oculista. E bem assim, botinhas de Paris, e lindas chineUas para os pés pequeiios de Portugal e Hespa- nha. As senhoras, n'esta questão de calçado pequeno, reclamam a primasia sobre qualquer franceza ou ame- ricana; ao passo que magnanimamente concedem ás inglezas bastante juiso e conhecimento de si pró- prias para se não incluírem entre as suas rivaes. Po- rém, contra esta sua pretenção offerece-se-me en- sejo de vir com embargos, pois que fui agora favo- recida com a amostra de umas botinhas de certa bella condessa e de uma donosa senhorita. Pois, so- lemnemente protesto que muitas inglesas da mesma estatura podiam motter ambos os pés cm cada uma

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das botas, sem contar o que ha illiísorio nos saltos. É basofia de mais ! Concordo, enrevanche, que as men- cionadas botas tem tacões duas vezes mais altos que os maiores que eu tenho visto. Esta moda ô boa para as damas se fazerem grandes ; mas assevero a suas Excellencias que isto lhes redunda em prejuiso, em vez de lhes augmentar a elegância do seu pizar, por que as obriga a estorcegões de pés quando sobem ou descem o Íngreme Chiado. A altura que lucram com o tacão perdem-na com a curvatura, que ás vezes lhes uma irrisória e insólita proeminência ao puf do vestido, e muita exageração nas sobrcsaias, á grega, provocando o riso, como muitas vezes pre- senciei, dos profanos espectadores do outro sexo. (•) Recruzam-se no Chiado trens fechados e desco- bertos, particulares e de praça. Levando em conta que o mundo fashionable de Londres ou Paris não é bem aquelle, acliarieis esquisita graça, se succede intrecorrer uma arreata de seis ou oito machos. Os costaes são sacos de riscado de algodão pendentes de cada lado ; o macho dianteiro leva na cabeça um ou dois chocalhos que dão brio aos outros ; o almo- creve trajajaqueta com grandes broches, corrente de prata, e chapéu de abas largas com borlas de re- troz. Muitas vezes, vè-se um pesado carro-a-bois á ilharga de uma carroagem armoreada com lacaios agaloados trepando com um enorme calháode már- more ou granito ; o pobre boi a descahir sobre o la-

(•) Tradusi froixamente «insólita proeminência». Parece-me que a aucto. ra, carregando mais no adjectivo, com pudor saxonio, quizesse dizer: «proe- minência illicita» undue prominense.

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do direito do cíimiidio apega a custo, c andança violen- tamente (*osta aeima, excitado pel(js gritos do carrei- ro, que o repuxa por uma corda amarrada aos gallios.

Ranchos do damas portuguezas, quasi sempre em numero de três ou quatro, se acotovellam no es- treito ladrilho; que meninas solteiras nunca andam sosiidias. Vai nisto grande inh'ac(;.rio das velhas usanças e tão somente as senhoi^as de ideias mais avançadas, e iniciadoras da emancipação, ousam mostrar-se íora de casa. Trajam de cores vivíssi- mas, e conformes á ultima moda do mais recente Jounial de Modes. Os chapéus, segundo o moder- nissimo modelo parisiense, brilham de flores, de fi- tas e plumas, no topo dos altos edifícios de tranças e r(Mos, laços e pufs que estão agora na moda.

As hespanholas (metade da população portugue- za, n'esta occasião, parecia castelhana) também ri- valisam com as portuguezas em exhibições de ele- gância. Que deslumbramento não faz o vibrar dos seus pequenos leques ! O Chiado deve ser um logar fresco ! Mas o veu, o gracioso e tão nativo veu hes- panhol, raro o vereis, salvo nas que chegam de via- gem pelo sul, ou usado por algumas que trajam á antiga ou de classe inferior; mas as recem-chegadas dão-se pressa em depor o veu, e adoptam, emquan- to estão, o chapéu que as afeia e desfigura.

A porta de muitas lojas e dentro dos Cafés, per- manece a tribu dos vadios, janotas (•), os dandies de

( ) A auctora escreve genottos. Níío é feia a corrupção da coisa. Seria boin talvez adoptal-a, e cliamar-Ihes genottos aos vadios, se é que esnapou algum á mathamorphose do aba e do /aio, emanações pútridas do marialva.

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Lisboa; e, do (Mivolta no confiizo tropel, siípcrabun- dam os inoudigos do ambos os sexos. O uso do ca- pote e lenço de cambraia parece qu(3 está a desapa- recer de todo do Lisboa. Este foi ii'oiitro tempo o mais viável ti*ajar commiim de todas as classes: a qualidade da fazenda do capoto o a finura e bordados dos lenços marcavam as distincções.

Ha aqui dous hotéis bons, a melhor casa de pasto, o o principal café. Nas ruas latoraes, ha theatros, li- vrarias publicas, o muzeu, outras instituições, e quar- téis de tropa. Tudo isto, excepto os theatros, está es- tabelecido em exti netos mosteiros. O Chiado ó sem duvida, o coração da cidade, o centro de um tecido de ruas e praças, a mais animida o frequentada passagem de Lisboa.

CAPITULO VI

NA PLANEZA

Vamos descendo até ao fim do Chiado; agora, queira imaginar que desceu a sua supposta ladeira Bond Street até parar em PicadiUy com menos de metade da largura do que está affeito a ver lá. Por mais que apure a fantasia, por mais estreita que se lhe pinte, não achará provavelmente a analogia que se entre essa parte de Londres com esta parte de Lisboa. A rua é aqui mais escarpada que o res- tante Chiado, e pareceu-me ser o topo de outra col- lina de menor elevação. Não se lhe avista a sahida, que se bifurca em ruas encadeadas por um grande palácio, em cujo peristilo estão dous ou três crea- dos de libré. Esta casa é um dos extinctos conven- tos, convertido em morada particular, e propriedade actualmente de um fidalgo portuguez.

Quantas casas grandiosas, quantos palácios, bel- los jardins, quartéis enormes, azylos de caridade, magnificas assemblêas de variadas instituições scien- tificas, livrarias publicas, muzeus, e outras corpo- rações vieram a poder do estado quando D. Pedro secularisou os mosteiros e conventos! A julgar pelo grande numero d'aquellas religiões extinctas, dir- se-hia que metade de Lisboa vivera d'essas pare- des a dentro. Como quer que seja, aquelles reclusos

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levavam vida socegada e calacoira, consoaiito o que ouvi e li a tal respeito. E, se a clerosia e a Inquisição foram austeras com os pobres e obscuros no tocan- te a preceitos de religião e moral, por outro lado concediam ao rico e ao fidalgo a máxima indulgência em análogas matérias. Que paiz tlieocratico foi aquel- le ! E, mormente, depois da morte de el-rei D. José quando, para deslustre da memoria da sua successo- ra, o grande ministro, marquez de Pombal, oRiche- lieu portuguez foi demittido de seus altos cargos, os planos de reediíicação e aformoseamento da cidade planos que proseguidos gradualmente são hoje o orgulho dos portuguezes foram pospostos, e as boas coisas que elle realisára desfizeram-nas, tanto quan- to era possivel : isto sob influencia de cortezãos cor- ruptos que temiam e odiavam o incorruptivel minis- tro, e também da insidiosa clerezia que dominava o doentio espirito da filha de D. José, D. Maria !.''(•). Deixemos, porém, o Chiado. A torrente dos pe- destres divide-se n'este ponto. A rua do lado direito é a rua Nova do Almada: a meia descida, á direita, está a mais Íngreme rua de Lisboa. Um dos lados é calçado ou cortado em degrãos que amenisam a su- bida. Ladeiam-na excellentes edifícios até ao cimo, d'onde se gosa tão ampla vista que vale a pena fa- zer a fadigosa peregrinação até ao alto. Do lado es-

(•) Primeiramente, a cortezia que se deve a damas, depois a inoíFensiva jnnocencia dos seus testemunhos no tribunal da historia, e, por ultimo, a na- tureza frágil d'esta obra feminil, são trez impedimentos que me estorvam de vir com embargos a este periodo, como a gentil ingleza fez aos pés pequenos das senhoras portuguezas. Verdade é que a historia ensinada nos nossos com- pêndios não é mais critica e esclarecida que a de Lady Jackson.

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querdo, lia uma travessa por oiid(3 podeis baixar á Rua do Ouro, o entrar liiialmeuto em chão terreno, perto da Praça do Conmiercio.

Foi o meu amigo F. de parecer que voltássemos ao lado esquei'do, pela Rua Nova do Carmo. O tran- zito por ali pareccu-nos mais atravancado que no Chiado pela estreiteza do ladrilho, menor lai'gura da rua, e grande altura das casas. Abrem-se ali diversas lojas boas de moderna apparencia; as restantes são pelo gosto antigo, meras tendas, corredores escuros, conforme o seu fundo, e da largura somente da porta que lhes da entrada. Não tem janella, excepto uns quadrados de vidraça na porta que se fecha ã noite, ou quando faz máo tempo. Parte d'estas bocetas ou tegurios permanecem justamente como as construi- ram ha um século; em algumas porém, nas lojas de luvas, por exemplo (as luvas são uma spé- cíalité nacional) emprehenderam melhoramentos e ornatos no pequeno recinto vasando uma entrada, com aspecto de almario, para o interior, collocaram ahi sobre um rebordo semi-circular um espelho que parece ampliar a loja, ornaram as paredes de com- partimentos com cartões de luvas, e pozeram a íiscalisar o negocio uma galante dame de comploir. A loja também é ornada de uma ou duas cadeiras, destinadas ás damas que vão comprar de manhã, e aos cavalheiros á tarde , quando vadiam por aquel- las alcovasinhas graciosas não tanto para compra- rem luvas como paradamejarem com a caixeira em- quanto fumam um charuto. Quando chegamos ao fim da rua, entramos logo no immenso largo do Rocio, ou praça de D. Pedro IV, cujo pavimento é

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Icv.iv.iiii vida soccgada o calacc-a, líoiisoanto o que (>ii\i .' li a tal rosp(Mto. E, so a clrosia r a Iiuiuisií^ão loiaiii aiistt;ras coin os pobres (obscuros no tocan- tr a prcjcoitos do religião e mi-al, por outro lado coiu-cdiani ao ricoe ao fiílalgo anaxiiua iudulgoucia cm análogas matérias, (^uc paiz i''oci*ati('o Ibiaquel- lt'I K, m(')rmciií<', depois da morMJccl-rci D. José quando, |)aia deslustre da mcmcia da sua suceesso- ra, o grande ministi*o, mai-(piczle Pombal, oRicho- lien porluguez foi dcmiltido de -ns altos cargos, os planos de i-eedilicação O atorui(si'amoiito da cidade planos (pie proseguidos graíialmente são hoje o orgulho dos porlugue/es roi-ai!]iospostos,easboas coisas (jue elle realisúra (h'síizeiim-iias, tanto quan- to ei'a possível : isto sob inlhieiiia do cortezãos cor- ruptos (pie temiam e odiavam (ineorrujitivel minis- ti'o, e tand)eni da insidiosa ciência (jUe dominava o doentio es|)ii-ito da lilha de D. ost'*, D. Maria !/(•). Deixemos, p(íivm, u Chiad( A torrente dos pe- destres divide-se n'esíe ponto, w rua do lado direito é a rua Nova do Almada: a nua descida, á direita, está a mais Íngreme rua de Liaoa. Um dos lados é calçado ou cortado em degráosqne amenisam a su- bida. Ladeiam-na excellentes diíicios até ao cimo, d'onde se gosa tão ampla vist^que vale a pena fa- zer a fadigosa peregrinação Mun alto. Do lado es-

(•) PriíncirainPntc, a cortezia que - i' pois

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com aspíícto de ahnario, paro inteii(»r, «•oilooarani ahi sohn- um rohôrdo seini-O' nl n mii espelhi» ipit» pareci* ampliar a loja, oi-nai*ni a>- pai*edes de coí» pariim»'ntos com cartões (!• luvas, c po/erai- li>cali>ai- o ne^ncio uma ^'amte damo de coft A l<»i.i t.imf.. 111 .' >.i-na(la (kiiiia ou duas *• desi, - (jUt,' v;m <<.inj)i'ar d

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62 A FORMOSA LUSITÂNIA

plano. A ponto me occorre que não vi, durante este passeio e o anterior, as vazilhas de agua que anti- gamente os logistas eram obrigados a ter aporta, na estação calmosa, para refrigério dos muitos cães que vagavam pelas ruas. Aqui ha annos, os cães corriam a cidade amatilhados, á cata de alimento ; cada ma- tilha infestava um bairro ; travavam ás vezes sangui- nolentas luctas se as vitualhas eram poucas, e uma horda de cães repellia a outra invasora. N'aquelle tempo despejava-se á rua toda a espécie de refugo, e os cães limpavam o pavimento da parte comestível d'aquelles despejos. E, pois que exerciam o mister da limpeza da cidade, recompensavam-os com agua que elles encontravam a todas as portas para se dessedentarem.

Recordo-me d'esta péssima circumstancia, por- que, ha poucos annos ainda, a coisa mais molesta de Lisboa era a profusão dos cães vadios (•). Então pensei que a cêlha de agua em cada porta era uma prevenção para que os animaes se não damnassem, abrasados de sede n'aquellas ruas calcinadas pelo calor. Disse-me pois F. que desde que matavam os cães, a hydrophobia acabara. As ruas são agora var- ridas todas as noutes, regadas de manhã pelo ve-

(•) em 1842, trinta annos antes que esta dama mencionasse no seu livro, escripto em 1873, a cainçalha de Lisboa, escrevia oprincipe Licknows- ky que, antes da sua chegada a Lisboa, haviam sido mortos, em uma sema- na, 900 cães. Chamava elle a isto— profícuo banho de sangue. O duque de Palmella, n'aquelle tempo, prophetisou que os cães seriam exterminados, diz o principe. E foram. foi penetração e pulso valente de ministro que desinçou Lisboa de cães, sem empregar o exercito, como modernamente fize- ram outros estadistas com os gafanhotos do Alemtejo.

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lho systema da pipa, e do tarde com mangueiras á semelhança de Pariz ; os carros da limpeza circulam diariamente, os cães vagabundos são mortos a pe- çonha, e a hydrophobia é quasi desconhecida.

Este melhoramento deu azo a que a plebe, que ali é estupidissima, murmurasse algum tempo da pos- tura que prohibe a nojenta usança de limparem as ruas as preciosas matilhas de cães famintos. Em harmonia com este pensar, ha nos paizes quentes raças de cães, que são uma espécie de varredores providenciaes ; exterminal-os considera-se um pec- cado, como acto attentatorio dos desígnios da Pro- videncia. Lã lhe vem por isso o castigo na fre- quente calamidade de uma mordedura de um cão hydrophobo. Quem pode ahi dizer se aquelle pobre cão não é o derradeiro sobrevivente da florescente matilha que vivia, senão em luxo, ao menos, ditosa no seu monturo na rua, actualmente erma de cães que a mão do homem impiedosamente destruiu?

Aconteceu ultimamente, na Ameixoeira, subur- bana de Lisboa, um caso de hydrophobia. Um rapaz havia sido mordido por um cão de fora oito ou quinze dias antes, quando, em vez de lhe cauterizarem a ferida logo que houve suspeitas de estar damnado o cão prometteu elle uma ou duas velas a Sancta Quitéria de Meca, rogando-lhe que o livrasse dos efteitos da dentada, e assim se deu por contente como se houvesse feito quanto era necessário ou praticá- vel a fim de se livrar dos sustos. Volvidos dez dias, pouco mais ou menos, appareceram os signaes da hydrophobia. Nem assim recorreu ao hospital ou ao cirurgião. Offereceu mais velas ã sancta como se as

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oíferecidas não bastassem a captar-lhe o patro- cínio.—A fim de movel-a com rogos, o misero infer- mo foi levado pelos seus amigos ao relicário d'aquel- la boneca de páo. (•)

Peorou como era de esperar, rapidamente, a pon- to de lhe não valer algum soccorro humano, quan- do algumas pessoas menos crendeiras chamaram o doutor que chegou a tempo de lhe ouvir os gritos e de o ver agonisar.

Quer-me parecer que esta rústica superstição corre parelhas com os sabidos ritos das tribus sel- vagens. Os nossos negros na Africa, se algum in- commodo os molesta, costumam enfarinhar a cara, e rojar-se por terra, e pedir aos seus hediondos ma- nipanços, desde o amanhecer até á noite, o remédio que nunca chega. Convencidos emfim da crueza ou incapacidade dos seus cepos e calháos, põem-se de e descompõem-os, ameaçam-os expressões d'el- les que d'hora avante hão-de apegar-se a outros deuses mais capazes. Se alguma differença existe nos dois casos, é com certeza a favor dos selvagens, que não voltam a adorar deuses que deram prova de não prestarem para nada.

O governo portuguez pode ser mais cuidadoso

(•) A auctora é protestante pomo se doprelicnde cl'esta irreverência á imagem de uma sancta que, se nào cura a Iiyilropliobia, deve ser respeitada como symbolo de uma vida sem mucul.i, corno concordeineute asseveram os agiologios. A pancta nào tem cul^ja se ha infelizes que, em suas afflicçòes^ dào mais pela que pela cauterização depois que viram morrer os cauteri- zados. Clianiar-Uie boneca de páo, tcoodcn doll, é uma ingleziabyronianaf[ue não accerta bem coin o espirito delicado de uma senhora lutherana que viaja entre catholicos que nem se quer a queimaram.

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í!() (|ne ha sido em alargar a área da educação, pio- porcionando a todos, pelo menos, o saberem ler e escrever a sua liugua. Sem embargo, lia muitos ly- ceiís de primeira e segunda classe a expensas do estado, e bem assim associações pias e particulares. Abundam estabelecimentos públicos de primeira or- dem em todos os ramos de ensino, com proíessoi-es eminentissimos.

Esta digressão, se digressão pode chamar-se, veio a propósito das vasilhas de agua; cpie o meu propósito é meramente notar tudo o que me impres- sionar n'estas minhas divagações por estes sitios (jueridos desde muito, quer seja bom quer mau, an- tigo ou modeinio, modificado para melhor ou para peior.

Estamos, emfim, no Rocio. Que linda praça esta não é ! Dizem ser a maior da Europa: mede 270 jar- das de comprimento, e 165 de largura. Em todo o caso, é maior e embora as suas casas sejam menos sumptuosas e d'ahi se não aviste o Tejo mais plana que a Praça do Commercio. Quando D. Pedro im- perador do Brazil aqui esteve, na sua visita ã Europa, ha um ou dois annos, costumava todas as manhãs dar duas voltas ã Praça, com o chapéu na mão, os olhos fitos na estatua de seu pae, e comprimenta- va-o. (•) A estatua de D. Pedro IV^, o rei soldado.

(•) Isto nâo é verdade, nem chistoso, se a auctora pretendeu com o seu sorriso irónico desemborrascar as frontes brixscas de seus bretues. O impe- rador do Brazil descobriu-se deante da estatua de seu augusto pae, quando ali foi a primeira vez. As enormes ridiculezas a respeito de estatuas e cor- tezias a pedras pertencem aos inglezes que destapavam os seus craneos al- gidos deante da irrisória estatua de Wellington em HydePark, nua, á feição 5

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A FOIIMOSA LUSITÂNIA

como OS portuguezes o denominam, foi erigida cm 1870. É de bronze sobre uma grande columna de mármore branco, collocada em pedestal de granito. Tem na base quatro figuras allegoricas ás virtudes que mais realçaram no heroe : Prudência, Justiça, Valor e Temperança. Resaltam em cima as armas de deseseis cidades principaes de Portugal. Está ves- tido de general o imperador com a carta constitu- cional na mão. Os mármores e granitos são de pe- dreiras nacionaes ; a estatua e columna são obra de artistas francezes.

Em trez lados da praça ha lojas geralmente boas e amplas ; luveiros e estabelecimentos de musica, marceneiros, retrozeiros, confeiteiros, etc; e, aparte Occidental, ha um deposito de excellente vidraria fa- bricada na Real Fabrica da Marinha Grande.

Pouca gente, talvez, ainda viu as formosas amos- tras que tem produzido esta fabrica de vidros. Propen- do a crer que íora de Portugal escassamente sejam conhecidas, dado que esta manufactura fosse estabe- lecida originalmente, ha longos annos, desde o mea- do do século passado, por um inglez chamado Ste- phens, sob o patrocínio do marquez de Pombal. (•) O que sei a tal respeito, tanto quanto pude colher

de Achilles, oíFerecida ao heroe ainda vivo pelas senhoras de Londres. Uma estatua nua, á custa das niyhidis ! 0 schoking e aquellas nádegas collossaea do vencedor de VVaterloo !

(•) Originalmente^ não é exacto. ali havia fabrica de vidraça e copa- ria ordinária, quando Guilherme Stephens abriu os alicerces da fabrica actualmente existente. 0 marquez de Pombal mandou dar áquelle inglez 32:U00|!000 reis, sem juro, e concedeu-lhe isenções e privilégios iniportan- tissimos. João Diogo Stephens fez doação da fabrica e todos seus pertences à nação portugueza, em 182(3.

XA PLAXKZA

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íiiwca,

dos catálogos dos seus productos do artigos do gi-ando boUesa artística, adfjuiri-o i-ocoutissiiiianiouto quan- do visitei uma portuguoza, niiulia amiga, affei(;oada a coUecções do loiça da Cliina c; vidraria rara o for- mosa. Aconteceu que um iugioz, um connoisseur do tudo quanto ha, estava na mesma occasião. Na- turalmente relançou a vista nuiitas vezes para os armários (pie encerravam os valiosos tliesoui'os da minha amiga, entro os quaes sobresahia uma urna de vidro de exquisito molde, com delicados relevos do giinaldas e arabescos. D'aln a pouco, sendo a urna trazida ao exame o admiração, disse a minha amiga quando o connoisseur a observava : «Comprei isso em Portugal ; mas esporo que mo esclareça ([ual seja a sua verdadeira nacionalidade».

Seguiu-se longa pausa. «Lindissima, lindíssima! murmurou olle compassadamente. E, feita outra pausa, proseguiu :

«Duvido C[ue isto seja francez ou portuguííz. Vi uma em Vienna, que se parecia alguma coisa com esta ; mas era das próprias manufacturas de la. Isto, a meu vèr, provavelmente, é inglez».

Em ar de provocação, disse a minha amiga sor- rindo : «Eu acreditei sempre que isto fosse portu- guez».

«Então, sinto muito haver levado a duvida ao es- pirito de vossa excellencia ; porém, lembro-mo... não affirmarei que é, ... persoado-me porém que deva ser inglez... muito provavelmente é inglez.

«Pois ou aftirmo a vossa excellencia que isto é verdadeiro j)orluguez redarguiu a dona do cristalino

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66 A FORMOSA LUSITÂNIA

como os portuguezes o denominam, foi erigida em 1870. E de bronze sobre uma grande columna de mármore branco, collocada em pedestal de granito. Tem na base quatro figuras allegoricas ás virtudes que mais realçaram no heroe : Prudência, Justiça, Valor e Temperança. Resaltam em cima as armas de deseseis cidades principaes de Portugal. Está ves- tido de general o imperador com a carta constitu- cional na mão. Os mármores e granitos são de pe- dreiras nacionaes ; a estatua e columna são obra de artistas francezes.

Em trez lados da praça ha lojas geralmente boas e amplas ; luveiros e estabelecimentos de musica, marceneiros, retrozeiros, confeiteiros, etc; e, aparto Occidental, ha um deposito de excellente vidraria fa- bricada na Real Fabrica da Marinha Grande.

Pouca gente, talvez, ainda viu as formosas amos- tras que tem produzido esta fabricado vidros. Propen- do a crer que fora de Portugal escassamente sejam conhecidas, dado que esta manufactura fosse estabe- lecida originalmente, ha longos annos, desde o mea- do do século passado, por um inglez chamado Ste- phens, sob o patrocínio do marquez de Pombal. (•) O que sei a tal respeito, tanto quanto pude colher

de Achilles, ofFerecida ao heroe ainda vivo pelas senhoras de Londres. Uma estatua nua, á custa das niyhidis ! 0 scholdng e aquelhis nádegas coUossaes do vencedor de Waterloo !

(•) Originalmente^ não é exacto. ali havia fabrica de vidraça e copa- ria ordinária, quando Guilherme Stephens abriu os alicerces da fabrica actualmente existente. 0 marquez de Pombal mandou dar áquelle inglez 32:000,^000 reis, sem juro, e concedeu-lhe isenções e privilégios importan- tíssimos. João Diogo títephens fez doação da fabrica e todos seus pertences à nação portugueza, em 182G.

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(los catálogos dos seus pi-odnctos í1(3 ai'íii:;os de graiidí! hcllcsa artistica, ad((irn-i-o rccciítissiiiiainoutu quan- do visitei uma portu^iic/a, iniulia auuga, afíbi(;oada a collccçõcs do loira da, China c; vidraria rara cj for- mosa. Aconteceu (|ue um inglez, um connoisseur de tudo (juanto lia, estava na mesma occasião. Na- tm'almente i-ehuieou a vista muitas V(;zes [)<'U'a os armários (jue encerravam os valiosos thesouros da minha amiga, enti-e os (piaes sobresahia uma ui*na de vidro de exquisito molde, com delicados i'elè\'os de gi^inaldas e arabescos. D'aln a pouco, sendo a urna trazida ao exame e admiração, disscí a minha amiga quando o connoisseur a observava : «Comprei issoemPortugíd; mas espero que me esclareça qual seja a sua verdadeií^a nacionalidade».

Seguiu-se longa pausa. «Lindissima, lindíssima! murmurou elle compassadamente. E, feita outra pausa, proseguiu :

«Duvido C[ue isto seja francez ou portugiuíz. Vi uma em Viemia, que se parecia alguma coisa com esta ; mas era das próprias manufacturas de lá. Isto, a meu ver, provavelmente, é inglez».

Em ar de provocação, disse a minha ;uiiiga sor- rindo : «Eu acreditei sempre que isto fosse portu- guez».

«Então, sinto muito haver levado a duvida ao es- pirito de vossa excellencia; porém, lembro-me... não affirmarei que é, ... persoado-me porém que deva ser inglez... muito provavelmente é inglez.

«Pois eu attirmo a vossa excellencia que isto é verdackíro^^orluguez redarguiu a dona do cristalino

68 A FOllMOSA LUSITÂNIA

thesouro, repondo-o no seu logar. Isto foi feito iia Marinha Grande.

((E possivel? exclamou o connoisseur. Eu cui- dava que essa fabrica produzia tão somente artigos do uso vulgar, de boa qualidade, decerto . . .

«E verdade, e muitas vezes preciosas bagatellas como tantas que o snr. tem admirado.

«Onde é a Marinha Grande? Quero ir amanhã disse elle.

«E no districto de Leiria. A via-ferrea passa dis- tante, e de mais a mais não encontra d'estas coisas. Fizeram um par dejarros para a exposição de Pariz; um d'elles desgraçadamente quebrou-se; era tarde para fazer outro: e esse que foi, e o snr. viu, ven- deu-se por 5001^000 reis.

«Cerca de 100 libras, creio eu ; menos do que vale respondeu o connoisseur. Não sahirei de Por- tugal sem visitar a Real fabrica da Marinha Grande.

Não sei se elle foi ou irá; o certo é que o con- versarmos do deposito de vidros trouxe-me este caso á lembrança.

F. e cu adoptamos em nossas excursões uma maneira que será também a sua em espirito, se acceder ao nosso convite. (•) Se reparou n'um par de velhotes que vão passeando e tagarellando, decerto notou que um d'elles pára a miúdo, fila o outro por uma caza do botão, e não o larga sem \\{v ti'ansmittir integralmente umaidéa repentina que lhe occorreu; depois, vão indo, tornam a parar, e

(•) A auctora nos disse que escreve o seu livro em forma de cartas.

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íi vinte varas de distancia fazem a mesma cousa: de egual modo, nós, deixando o Deposito da Real fa- brica da 3IarÍ7iha Grande, á imitação dos taes ve- lhotes, palestreamos a respeito de vidros, parando de quando em vez.

O tlieatro de D. Maria 2/' occupa o lado seten- trional do Rocio ou Praça de D. Pedro. O tlieatro é um vasto edifício, apesar do seu desgracioso te- cto, que houve intenção de reformar, ou dis- farçar com uma balaustrada. Este é o principal dos nove theatros de Lisboa ; não é tamanlio como o de S. Carlos, ou caza-da-opera, em um largo contíguo ao Chiado, mas esta ornamentado com superior aceio. Está agora fechado, como todos os outros ; porque a estação theatral começa no outomno. O italiano abre-se em 29 de outubro, anniversario na- talicio de D. Fernando, muito protector de musica e artes, e também musico e compositor de relevan- tíssimo mérito.

A principal hT)ntaria do theatro de D. Maria 2.'' é elegantissima; tem ao sopé uma larga escadaria^ sobranceadaporum alto pórtico assentado sobre seis columnas, coroadas por uma empena, com altos re- levos, imagens allegoricas, e estatuas dos cinzéis de mui insignes esculptores.

Em redor do trilho dos trens circula um passeio sombreado por dupla fileira de arvores, e adornado de bancos pouco intervalados. O centro é empedra- do, conforme o uso vulgar de Lisboa, de mozaico, com pedrinhas brancas e pretas, formando uma es- pécie de raias ondulantes que produzem exquisito cffeito pela regularidade dos seus contornos (^m uma

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sup(3rficic dilatada; o certo ó que, ao atravossal-a, seiíte-so a gouto obrigada a oi'gii(ír o iiicummo- dainoiíto a cada passo que como quem quer es- quivar-se a topar nas appareiítes elevações que faz o pavimento. Ouvi dizer que os marinheiros ingle- zes, tendo experimentado as mesmas sensações, de- ram ao Rocio o terceiro nome de Rolly-pooly Square. (•) Porém, o pobre Jack (") eiii terra, está sempi'e em pleno Rolly-pooly ; e, quanto a elle, pode dar-se esse nome a todo o terreno que piza.

Quem olhar por sobre os edifícios da parte Occi- dental d'esta praça, verá, sobranceiros aos tectos, e topetando com o azul do íirmamcnte, os bellos arcos ponteagudos do antig(3 templo gothico da Senhora do Carmo ou do Vencimento. Isto que não passado umas ruinas pittorescas está assim tal qual o deixou o grande terramoto, ameaçando esboroar-se; mas aquella compacta massa de granito revela ainda a enorme solidez da sua primitiva edificação. Occupa o muzeu ai'clieologico a parte que se figura mais se- gura, posto que algum tanto mais perpendicular; porém, d'este muzeu a principal curiosidade, como com razão se tem dito bastantemente, é o /oca/ onde está. Esta interressante relíquia de passadas eras foi fundada pelo grande condestavel de Portugal, o

(•) BoUy-pooly é ura jogo em que, para se ganhar, ha-de uma bola ir cahir a certa cavidade por um conducto tortuoso. Da tortuosidade do con- ducto tirou a analogia da praça o inglez embriagado : pelos modos, elle é a bola que, a fallar a -verdade, não escolhe cavidade onde caia. Para o marujo inglez toda Lisboa é de mozaico.

(••) Jack é o diminuitivo de John, que significa menospreço, e é também, na passagem do texto, nome genérico de marinheiro, como n'estas phrases : Jack tar, marinheiro velho, jack fresh water, marinheiro de agua doce.

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valcMito D. Nuno Alvares Pereira em memoria da victoria de Aljiibarruta e em cumprimento do voto que fizera ao romper o prélio com os castelhanos. N'aquelle templo esteve antigamente a sua sepul- tura; mas, ao presente, as cinzas de D. Nuno jazem em S. Vicente de Fora no jazigo da caza de Bra- gança. Converteram parte do espa(;o do antigo con- vento em quartel -da guarda municipal, que está si- tuado em alegre e copada praça a meio caminho das nuvens. Jorram ali no centro as bicas de um elegante chafariz, rodeado de arvores e bancos. A musica do famoso batalhão caçadores 5 vem aqui tocar uma tarde em cada semana. N'este largo está o Club-lis- bonense que abre os seus bellos salões a bailes ex- plendidos e outros recreios frequentemente.

As senhoras hespanholas que principiam íidar-se a iniciativa n'esta especialidade de coisas, constituí- ram moda o club ; pelo que actualmente, o pequeno 1}ateo ou Largo do Carmo que não pertence ao nu- mero das Praças, tornou-se tumultuoso; grande fallarío, risadas, namoros não somente namoros de leques desde as sete até ás dez da noite, como em grande reunião particular. Um moderno galope, do compositor portuguez Almeida, abriu a sua es- treia no Carmo, e produziu completo fiirore. (Veja o Appendice). As musicas regimentaes o vulgari- saram á noute nos jardins públicos. Chama-se (ja/o- pe burlesco; mas o seu nome popular é galope can- tante, porque tem um coro ; e, quando todos os pa- res se recruzam galopando, a animação e a vertigem são taes que é difficil conter-se a gente de pular tam- bém. As palavras são de si adequadas ao effeito :

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Vou dançar este galope, com furor, com furor, até ao dia.

Eu disse que na Prara do Rocio ha mais vida e movimento que no Terreiro do Paço : aqui são ne- gociantes e empregados públicos os principaes fre- quentadores ; acolá são os vadios ou flàneurs de Lis- boa. Entre estas duas praças estão quatro principaes ruas parallelas : a rua Augusta, a do Ouro, da Prata, e dos Fanqueiros, as quaes são interceptadas e atra- vessadas por outras somenos que quasi todas tiram os seus nomes do negocio que exclusivamente as occupava d'antes, e que ainda agora mais ou menos tem : douradores, correeiros, capellistas, etc.

Se sahir do Rocio pelo lado occidental, defron- ta-sc com a formosa entrada do Passeio Publico, o Passeio par excellence, onde grande parte dos lisbo- nenses se ventilam e passeiam por noites estivas até ás onze horas, ouvindo, ás vezes, as harmonias das musicas regimentaes e particulares, que tocam em um coreto central; ou, o que é melhor, «segredando meigas babozeiras» aos condescendentes ouvidos das damas ; ou ainda o que é mais provável fa- voneados por aquelle tremulo vacillar com que a luz das estrellas se mescla aos lampejos do gaz, filtran- do-se pela folhagem das curvas ramarias, dardejam olhares apaixonados que são apaixonadamente cor- respondidos, de traz de um leque fluctuante, em quanto as mamãs estão entretidas com a maledicên- cia de alguma amiga. Peço que me não tome isto como aleivosia, ou mera demasia de censor severo, n'aquelle alto tom moralista repassado da sociedade ingleza. Eu propriamente vi bastantes scenas inde-

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corosas, estando sentada no Passeio, hontcm á noi- te ; e com razão me senti chocada (/ ivas shocked). (•)

F. estava comigo, e foi testemunha presenciaL «Coisas taes se podem dar» comecei eu ; mas a ci- tação foi logo fei'ida na aza pelo vcHkj esti-ibilho: a Paciência, paciência, senhora!)) «coisas taes» se po- dem dar, e as nossas filhas serem tão virtuosas e boas como as da sua tei'i'a, onde naturalmente «coisas taes» acontecem também. E diíTerença entre ellas não ha nenhuma proseguiu elle senão a que resulta do clima. Que se desse o facto de um galanteio dis- simulado e moderadamente escandaloso no seu park por uma fresca manhã de estio, ou que o facto se de por noite balsâmica nos nossos jardins debaixo das estrellas, tudo isso não passa de uma e5/)ú'^/ene».

Também algumas vezes aquelles insensatos ga- lans para ultrapassarem o supplicio que inflige o Times aos que se sentem morrer sobre as suas gra- vidas columnas destillam nos jornaes matutinos de Lisboa em prosa campanuda ou perfurante rima os seus ardentes votos de immortal paixão, pedindo e esperando um encontro no Passeio Publico. Ali, ao empardecer do crepúsculo, na convidativa obs- curidade dos passeios lateraes, transporta-os um rápido instante de bem-aventuranca fugaz preliba- ção do céo na terra, e juram que os fados, incen-

(•) Bem sei que o chocada tresanda a gallicismo ; mas o anglieismo deve adoptar-se em obsequio ás senhoras inglezas. Os mestres da lingua verteriam offcnãida, ou affrontada ; todavia, no meu uso particular, applicaiei aquel- les adjectivos portuguezes ás damas de qualquer naçào, tirante a Gran-Bre- tanha. Lady shocked traduzirei sempre senhora chocada^ e, quando ella fôr muito rabugenta, não duvidarei chamar-lhe choca.

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siveis a rogos e lagrimas, jamais vingarão apar- tar os palpitant(3s corações d'a(jiu3llo apaixonado ca- zal. Facilmente se conhece a qual classe pertencem aquellas almas afflictas para quem «correntes do casto amor» não derivam mansamente, a julgar pelo sobresalto em que ficam se escutam um inespe- ]'ado rumor de pés. Se entraes de súbito por uma das avenidas do passeio, e caminhaes para elles, denunciam-se-vos logo pelo suspii'o, pela fixidez dos olhos o precipitado das falias. Demoram-se pouco na intervista: um aperto de mãos, ás vezes um beijo clandestino ( furtíve kíss); {') e a senhora ou senhorita se escoa a toda a pressa por veredas escuras para o coupé que a conduziu, e o trem lar- ga rapidamente, em quanto o seu galan se vai com azas sentimentacs por entre o arvoredo, seguindo o esvoaçar das pregas da mafililha de seda que afi- nal se lhe escondem. Em lances d'esta natureza é que a mantilha e o leque devem de ser trastes de grande utilidade. Quando as senhoras se rebuçam na mantilha com uns geitos socegadamente miste- riosos, e destramente se arranjam um biombo com o leque, o disfarce é tão completo como seria o de um dominó.

Isto 6 apenas uma amostra das coisas de Lisboa que podeis ver e ouvir em redor de vós, n'este e n'outro Passeio, se ahi vos demorardes bastante

(•) Eis aqui uma palavra que eu imaginava um luxo quasi illicito, nos diccionarios britannicos, apenas usada em Inglaterra, quando muito nas cari- cias maternaes. Fiquei sabendo agora que as senlioras inglezas conhecem os beijos clandestinos, masnào os dào, penso eu í os imprimem, . . em lettra redonda,

x\A PLAXEZA 75

t(3mpo o <'ipi)lic;ii*d(3.s olhos o ouvidos attoiítameute. O f[ii(í não podcrris (loscurtiuai', ao liisc )-fiisco d(3 luar ou daclaridado das estivUas, ó a mania depom- pcar adornos quoporali se estadeiam como sg sahis- ses a passeio de cavallo ou carro, nasasão dacasqui- lliice, cm pleno dia, por entre a espantosamultidão de Hyde Parir, aquclle é o ponto em que o arbitro da moda mais realça o luxo das damas aristocráticas e a convergência dos maridos, irmãos e filhos embel- lesados no esplendor d'aquellas constellacões. Aqui, decLMHo, como em toda a ]:)art3 não falta joio funesto que se insinue entre as íiores; mas ainda ha uma entre ellas estranha ao contagio; e, se como é de suppôr, estas ostentações continuarem, o remédio é esperar que as senhoras portuguezas se descartem dos anti- gos preconceitos das extorioridades o que ha de acontecer opportunamente, creio eu e vivam e flo- resçam resguardadas.

CAPITULO VII

DULCAMARA

Emquaiito nos detivemos no Passeio, subiu o sol, e o ar aqueceu, pouco menos de insupportavel. As mulheres e raparigas, que vendem agua na Praça, faziam bom negocio. Collocam-se á sombra do arvo- redo, tem ao de si as porosas bilhas de barro, e nas mãos um objecto gradeado, algum tanto semi- Ihante a um galheteiro, que contém dois copos pin- tados, a Agua fresca, agua fresca, senhores!)) Se vos appetece um copo, o preço ésimplemente cinco reis.

Porém, se tiverdes mais sede, e poderdes beber trez quartilhos como fazem muitos dos seus fre- guezes podeis havel-os por dez reis ; e tende em conta que a tal agua que vos offerecem, sorrindo, é pura, lympidamente clara, e chegada fresquinha do chafariz.

Mas a multidão agglomera-se. Converge gente de todas as direcções para um trem que estanceia no trilho mais estreito da praça, debaixo da copa mais frondosa do arvoredo. Não é um som da trom- beta que assim os attrahe pressurosamente, é um mugido excruciante que obriga a gente a tapar os ouvidos e fugir. É a toada de um instrumento, cujo inventor, persuado-me eu, não foi pessoa menos dis- tincta que sua magestade o próprio diabo. Chamar-

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Ihe-hei um instrumento da tortura, posto que ouvi chamar-lhe com bastante propriedade umaamachina infernal». Estas machinas viajam por toda a parte, e em grande numero na nossa gi'ande Babylonia, ás costas de uma legião de Ímpios, diabolicamente com- missionados paiva irritarem com rancores profundos as almas amantes da paz, e arrancarem insidiosa- mente dos lábios da gente palavras de abominação de todo ponto impróprias para soarem em ouvidos melindrosos. Tal é o execravel som do realejo ! Pela primeira vez na minha vida, eu o vi a moer pela mão de um joven de elegante apparencia, (*) que o levava a par de si dentro de uma carruagem. GrarasaDeus! aquelle mugido cessou, e quero crer que não o ou- viremos mais, por que a tampa foi reposta, e o joven dardejou um satisfeito lance de olhos sobre a multi- dão embasbacada, que ã volta d'elle se agrupara em numero de duzentas ou trezentas pessoas. E bem parecido e traja limpamente. Recosta-se algum tem- po em uma, ao que parece, almofada confortável forrada de carmezi, com borlas amarellas, e com um alvissimo lenço enxuga o suor das faces. Tira uma luva. vistes um moleiro de musica enluvado com irreprehensivel esmero? Aqui o tendes; e não

(•) Joven de, elegante apixirencia : fiz esta económica versão d'esta esti- rada coisa : ge.ntlemanlikeloolcing (tudo isto é uma palavra) goung mau. Os inglezes deram em germauisar palavras d'aquelle tamaiilio desde que Henry Heine escreveu [Reisebilder) que elles mastigavam um punhado de monossí- labos c os atiravam á cara da gente quando fallavam. Tratam pois de nos convencer que possuem palavras que medem vinte letras, quasi o alphabeto todo. A's vezes fazem-nas de quatro pedaços, quatre morceaux, como diz Plii- larete Cliasles ; por exemplo: ][)oet-musician-director-ship ; isto quer dizer director musico e poeta.

DULCAMARA 79

j)ái';i ifisto: l(!va, a mão nua ás giicílcllias ii(3gras o amidadas, ([iie NÒdcs no nioniíuitu o\u ([ua ollo ergno lig(iii*ainoiit(í o amplo diaixui, o então vos offasca com o lampejo d(í um rutilante annel, um diaman- te. . . de primeira agua decerto. Não tinliaainda pro- ferido palavi-a; mas alteava uns olhares ao céu con:io se a inspirarão lhe liouvesse de baixar das alturas. As turbas estão silenciosas, e as attenções penden- tes. Bom é que o género gamin não vigore, ostensi- vamente, nas ruas de Lisboa, aliás poderíamos, ã conta de; uma palavra ou brado mal-á-propos, ser ridiculisados rudemente, pelo suljlime extasis, em que por espago de minutos nos mantivemos guin- dados por aquelle espirito superior do século actual.

<.iQaem éí perguntei, á puridade, a F. que esta- va ao meu lado ; mas eu não sabia bem se deveria perguntar: «Quem é sua excellencia'^ » (•)

((E um charlatão hespanhol» respondeu elle im- mediatamente «É um dos Bidcaviaras, raça inex- tinguível como a geração de Duncan.

N'este em meio, ergueu-se o nosso homem do seu almadraque, e com o braço direito estendido, sacudiu graciosamente o lenço, chamando o audi- tório para lhe escutar umas prelecções á cerca da verdadeira natureza da magia. Explicava-se elle com grande prestreza em portuguez, lardeado de

(•) Lady Jackson, como fosse a miado tratad.i de excdleiícia cm Portu- gal, gripliou a «excelleiícia" ao cliarlatào. Tainbem nós, os portuguezes, res- peitável dama. costumamos gripliar as excellencias que prodigalisamos aos extraiigeiros, . . .excepto ás extnuigeiías. A's seiílioras damos sinceras excel- lencias sem nos importarmus com pragmáticas. E o que temos mais á mào de- pois que se acabaram as senhorias.

80 A FORMOSA LUSITÂNIA

hespanhol. Era, a um tempo, altamente dizerto e la- cónico. Fiz quanto em mim coube por entendel-o ; porém, á simelhança do restante auditório, logo percebi que a matéria poderiam percebel-a os iniciados. Não obstante, pude concluir que o seu intento era mostrar-nos o como e o por que elle percorria o universo philantropicamente proporcio- nando á algibeira do pobre as pompas do rico ; ou, mais claro, que elle forneceria a cada um dos ou- vintes que o rodeavam uma bonita cadeia de ouro da ultima moda parisiense pela diminuta quantia de dois tostões.

E magicamente porque ninguém percebeu d'onde aíjuillo surdiu apresentou uma scintillan- te massa aos olhos da turba espantada. Todos met- teram instincti vãmente as mãos aos bolcos. Eu dis- se a F. que desejava uma, e fosse adiante comprar- m'a; elle, porém, sacudindo a cabeça, murmurou: «Nada, nada, aquilloé lixo, é lixo». E, como estáva- mos de fora da bruta assembleia, onde apenas se viam duas mulheres de capote e lenço, não me atre- vi a ir adiante fazer a compra; mas, um sujeito, que estava ao de nós, logo que pôde haver á mão uma d'aquellas mercadorias para eu a examinar, offereceu-m'a dizendo, consoante o uso nacional: É para sua excellencia. Na verdade, em relação ao preço, a corrente não era mã. Quando lh'a restitui, o homem repetiu urgentemente que ella era para mim; eu, porém, que não podia acceital-a, e enten- dera que seria offensivo, em troca, metter-lhe na mão dois tostões, recuzei agradecendo muito, o of- ferecido mimo. O genuino ouro das cadeias era garan-

DIJLCAMAUA 81

lido |)or (l(jzo mc/iís; ÍATiniiiado o íuiiio, o pliilnii- trnpico |)i'oiii!'íti;i V()lt;ir (3 comprar todas as cadeias que llii) (|Liizoss(3in voiidui' a 150 reis cada uma. Al- gumas dúzias eram distribuídas, (juaudo cllc, co- uio quem agradece o hom acollnmento dos í'r(3gue- zes, pi-opnz mosti-ai' aos ciccuuistantes uma torcida a ardíM' com agua. Exliihiu então um caudi(3Íi'o e uma gari'adulia, que contiulia um liquido clai*o, (pie elle aítirmava ser agua. Pingou algumas gôttas em um p(3daço de papel qu(5 accendeu, e pegou o lume ao caudieii'0, com graude assombro dos espectado- i*es. «Isto, diss(3 elle, não é obra de magia: é o ul- timo segredo que a sciencia arrancou ã natureza. Com isto, grangeei entlmsiastica recepção em todas as cortes do universo, e não o vosso applauso, meus illustrados amigos, mas também os louvores do mundo scientifico.»

E, cerrando a parlenda com esta grandiloca pe- roração, deixou-se calui* languidamente no seu al- madraque, acenou ao cocheiro que largasse , e cor- tejou graciosamente a turba que impedia o ti-an- sito da carruagem destinada a ir* representar a mes- ma farça n'outro ponto. Quando elle partiu, esta- lou uma grossa gargalhada; mas não era a espan- tosa revelação do segredo da natureza que fazia i-ir o publico intelligentemente : era o irrisoi'io espa- vento do sugeito. Esta espécie de espectáculo o chai'latão estadeando-se a miúdo sob diversos dis- farces—parece cahir muito no goto das turbas ocio- sas.

CAPITULO VIII

RUAS E PRAÇAS

A porção de Lisboa quo mais lembra ao inglez e a outros estrangeiros que alli estauceiam poucos dias, e ás vezes um ou dois tão somente, chegados em navios entrados com destino para lã, ou es- cala para outros paizes, reduz-se a GoldStreel (Rua do Ouro), Siluer Street (Rua da Prata), e Blackho7'se Square (Praça do Cavallo Preto). Como que se persuadem que os portuguezes também assim de- nominam aquelles sitios, os quaes juntamente com a Belém Toiver (Torre de Belém) formam, com pou- co mais, a totalidade de Lisboa. Tractam de saber onde isso esta, e figui\a-se-lhes que vão ver o que quer que seja com ares inglezes.

Aquellas duas ruas e a chamada Augusta, que lhes corre pelo meio, são de certo a porção mais magnificente e negociosa da cidade. São largas, bem ladrilhadas, prédios altos, edificados regularmente, e todos tem lojas. Prolongam-se aquellas ruas em linha recta por todo o espaço interposto ás duas praças principaes. Infelizmente, a rua Augusta, em cuja extremidade está o sumptuoso arco que forma a ampla entrada para a Praça do Commercio, defren- tando com a bella estatua de D. José, com o rio e as montanhas fronteiras d'Alem-Tejo desemboca em

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A FORMOSA LUSITÂNIA

uma ilharga do Rocio. Se esta rua abrisse em frente da estatua de D. Pedro e da principal fachada do theatro de D. Maria 2.^ nem Londres nem Pariz teriam tão formosa rua, rematando por duas tão grandiosas extremidades.

As lojas da Rua do Ouro são ainda na maior parte ourivesarias. Não ha muito que ellas eram acanhadas e asótadas como outras que apontei. Agora mesmo não são muito espaçosas, posto que, em algumas casas, se reduziram três a uma; toda- via, houve renovação de portadas e vitrines ao la- do das portas. Os afornioseamentos exteriores real- çam grandemente, porque, entre as janellas e por- tas, e no intervallo das casas, poliram as paredes da cor de mármore pardacento ou amarello, como no Chiado o que na verdade é de bonito etíeito.

O grande Café, chamado «Áurea Peninsular)) está na Rua do Ouro'; porém, como os Cafés lisbonen- ses não tem o pavimento coberto de mezas e cadei- ras, são por isso menos notáveis que os de Paris. O que ha dentro mais attractivo n'elles é o bilhar, o baralho, e, on dit, os jogos de azar.

para esta rua uma das frontarias do Banco de Portugal, que é principalmente construido de granito o ferro, como precaução contra os incên- dios, cujas assolações são frequentíssimas e enor- mes n'esta cidade. A variedade do negocio ó maior na Rua Augusta que na do Ouro : grandes livrarias, oculistas, estabelecimentos de instrumentos mathe- maticos, relojoarias, etc, em lojas extensas e sum- ptuosas. Havia numerosas casas de antigalhas em Lisboa, e restam ainda duas ou três n'esta rua.

RUAS E PRAÇAS

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N'uuti'u tempo, riicoiitrav;iin-s(; l;'i coisas curiosis- simas, raras o apreciáveis: gravuras e livi'os anti- gos, esculpturas em marfim, pinturas, líjuca do Ja- pão, baixella, jóias, collares, que se obtinham por insignificantes quantias. Agora, ha menos coisas á venda e de p(juco valor; t;)davia pedem por isso dinheiro exorbitante;: ainda hontem o experimentei em um dos maiores estabelecimentos onde não con- segui comprar uma gravura antiga.

Pareceu-me ver na Rua da Prata, chamada tam- bém Rua Bella da Rainha, menos argentaria que d'antes; é natural que, á hxiitação dos outros nego- ciantes, os ourives de prata, depois que Lisboa se ampliou, seguissem a direcção occidental, onde ago- ra ha bellissimas lojas.

Não ha n'estas ruas a laboriosa apparencia que era de esperar no principal centro de uma grande ca- pital. Faz pena que a moda nãoescolhapara os seus passeios da manhã as amplas e planas Ruas do Ou- ro e Augusta, em vez do estreito pavimento do de- clivoso Chiado. Os beaux e as belles bem podiam assoalhar-se por alli mais suavemente, e pompear as suas loilettes com maior vantagem. Todavia, se a multidão é pequena, a gente que as h'equenta sup- pre em berraria o que lhe falta em distinccão; que ás vezes, os gritos e o alarido dos peixeiros, dos rega- tões de fructa e outros comestiveis é atroador. Que alentados pulmões deve ter aquelle gentio ! O vozear das mulheres ultrapassa o dos homens em profun- deza e valentia de volume. Ouve-se o gargantear monótono do amola-navalhas «plangente, mui- tissimo canoro» e resalta de continuo, á laia de

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uma ilharga do Rocio. Se esta rua abrisse em frente da estatua de D. Pedro e da principal fachada do theatro de D. Maria 2.^ nem Londres nem Pariz teriam tão formosa rua, rematando por duas tão grandiosas extremidades.

As lojas da Rua do Ouro são ainda na maior parte ourivesarias. Não ha muito que ellas eram acanhadas e asótadas como outras que apontei. Agora mesmo não são muito espaçosas, posto que, em algumas casas, se reduziram três a uma; toda- via, houve renovação de portadas e vitrines ao la- do das portas. Os aformoseamentos exteriores real- çam grandemente, porque, entre as janellas e por- tas, e no intervallo das casas, poliram as paredes da cor de mármore pardacento oq amarello, como no Chiado o que na verdade é de bonito effeito.

O grande Café, chamado «Áurea Peninsular» está na Rua do Ouro'; porém, como os Cafés lisbonen- ses não tem o pavimento coberto de mezas e cadei- ras, são por isso menos notáveis que os de Paris. O que ha dentro mais attractivo n'elles é o bilhar, o baralho, e, on dit, os jogos de azar.

para esta rua uma das frontarias do Banco de Portugal, que é principalmente construido de granito e ferro, como precaução contra os incên- dios, cujas assolações são frequentíssimas e enor- mes n'esta cidade. A variedade do negocio é maior na Rua Augusta que na do Ouro : grandes livrarias, oculistas, estabelecimentos de instrumentos mathe- maticos, relojoarias, etc, em lojas extensas e sum- ptuosas. Havia numerosas casas de antigalhas em Lisboa, e restam ainda duas ou três n'esta rua.

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N'outro tempo, oiicoiiti-avíim-so coisas curiosis- simas, raras o aprijciavois: gravuras o livi'os anti- gos, esculpturas om marfim, pinturas, louça do Ja- pão, baixclla, jóias, collares, que se obtinham por insignificantes quantias. Agora, ha menos coisas á venda e de pouco valor; todavia pedem por isso dinheiro exorbitante: ainda hontem o experimentei em um dos maiores estabelecimentos onde não con- segui comprar uma gravura antiga.

Pareceu-me ver na Rua da Prata, chamada tam- bém Rua Bella da Rainha, menos argentaria que d'antes; é natural que, ã imitação dos outros nego- ciantes, os ourives de prata, depois que Lisboa se ampliou, seguissem a direcção occidental, onde ago- ra ha bellissimas lojas.

Não ha n'estas ruas a laboriosa apparencia que era de esperar no principal centro de uma grande ca- pital. Faz pena que a moda não escolhapara os seus passeios da manhã as amplas e planas Ruas do Ou- ro e Augusta, em vez do estreito pavimento do de- clivoso Chiado. Os beaux e as belles bem podiam assoalhar-se por alli mais suavemente, e pompear as suas loiletles com maior vantagem. Todavia, se a multidão é pequena, a gente que as frequenta sup- pre em berraria o que lhe falta em distincção; que ás vezes, os gritos e o alarido dos peixeiros, dos rega- tões de fructa e outros comestíveis é atroador. Que alentados pulmões deve ter aquelle gentio ! O vozear das mulheres ultrapassa o dos homens em proíYm- deza e valentia de volume. Ouve-se o gargantear monótono do amola-navalhas «plangente, mui- tíssimo canoro» e resalta de continuo, á laia de

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estribilho, que vos estruge os ouvidos, aquelle es- tridente apregoar matutino : O lllustrado, Noticias^ Popular, etc. Assim se chamam os jornaes mais em voga, cuja distribuição me pareceu ser exclusivo principalmente de uma classe de mulheres e rapa- rigas indigentes.

Estes o outros jornaes vendem-se a milhares nas ruas. Custam 10 reis. São editados por alguns dos principaes litteratos. Publicam espirituosos folhetins collaborados pelos escriptores de mais renome e po- pularidade. O principal periódico litterario chama-se Lettras e Artes; este, porém, não anda na berra nem faz fortuna posto que seja um bello periódico men- sal, excellentemente impresso, illustrado, e escripto por distinctos escriptores. (•)

Que outro pregão é este que se ouve e desde o alvorecer do dia me quebra os ouvidos, requintando o estridulo fallarío das ruas que se engrossa pelo dia adiante, e muitas vezes nem depois da meia nou- te se cala? Dois gaiatos correm, sem descanço, aci- ma e abaixo por ambos os lados da rua ; e por toda a cidade vereis, ao mesmo tempo, homens e rapa- zes, na mesma azáfama. Trazem nas mãos uns mas- sos de papelinhos. Um dos dois que nos estão mais perto, berra de um lado: mil seis centos e setenta e nove; do outro lado responde o outro: oito centos e

(•) Este periódico, que não parecia portuguez pelo primor raro do aceio typographico, pelo arrojo das dispendiosas reproduções em gravura, pela magnificência dos adornos e selecção da escripta por isso tudo cooperou para a fallencia do seu benemérito proprietário, e acabou ha poucos mezes. 0 úni- co periódico de lettras que está medrando em Portugal, e vai sendo co- nhecido na America, é a Borboleta, de Braga.

ki;as ]•: puacas 87

noventa e dons ; c ambos a um tempo levam ao phre- nesi a gritaria : Hoje anda a roda h-o-j-e a-n-d-a a r-o-d-a !

Mas (jiie roda é esta que, rodando li(jje, faz toda esta algazarra? É a roda da fortuna, que gira ao meio dia e decide do destino dos possuidores de bi- lhetes. Até ás dez horas é permittido vender bilhe- tes e cautellas, e provavelmente durante a ultima meia hora vendem-se mais aos jogadores impacientes do que em todo o curso do dia antecedente. A roda da fortuna meche-se alli de dez em dez dias. Se vos api*az arriscar cinco mil reis, comprais o direito a que um acaso vos favorera com o premio grande cinco contos de reis.

Exterminar estas loterias seria um acto benemé- rito. Ha muito quem eissim pense, e no espirito dos que governam ha vontade de abolil-as; mas receiam dar o golpe; por que a medida seria impopular, e vigorosamente impugnada por quem lucra com a conservação do pernicioso systema.

«As loterias dizem os seus protectores são sanctificadas pelo seu fim, pois que, estando affectas á Santa Casa da Mizericordia, são destinadas a ob- ter fundos para a beneficência publica, ao mesmo tempo que da venda dos bilhetes pelas ruas vivem muitos homens e rapazes pobres, que aliás ficariam reduzidos á mendicidade.» E certo isto; mas tam- bém não passe despercebido que acubertam muitas especulações deshonestas, e o peior é que avivam o gosto do jogo nas classes pobres. Na verdade, os expedientes da caridade devem ser menos sujeitos a contestações.

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Todavia, o .s(3rmão é inútil, e nem sequer conver- te o pregador, que, fascinado j)eIo apregoar de taes numei*()s, não pode i'esistir á attracção de tentar for- tuna e empregai' alguns centos de re/s na compra de cautellas. «^o rapaz ! venha ho rapaz Não fui eu comtudo, mas o meu amigo, quem cha- mou assim por aquelles gaiatos nas i'uas de Lisboa, serviu do-se da palavra (dio de que usam sempre hespanhoes e portuguezes quando se dii'igem a um inferior Ho, Senhor José Ho Mariarma, e que faz lembrar aquella outra da nossa velha phrase «What, ho !))

Acudiram logo á chamada os dois gamenhos, e emquanto eu lhes estou a mercar a ambos, cliega outro homem e diz «Loteria Hespanhola, Excellen- cias Cautelas de Madrid.» A venda d'estes bilhe- tes é rigorosamente prohibida em Lisboa, mas não a compra, o que fez cahii' em desuso a prohibição da venda, de tal modo que toda a gente compra. Dom F., desencaminhado pelo meu mau exemplo, vae também comprando cautííllas e prefere as lies- panholas.

Outro numei'o ainda o n." 1102 é apregoa- do pelo apobre cego)), que vem caminhando guiado por um rapaz. Pensa-se que os números vendidos por elle obtém prémios mais fi*equentemente que os compi*ados a outro qualquer: e, quando acontece sahir-lhe algum premiado, nunca deixam os jornaes de dar rebate do caso. Provavelmente suppõem, cuido eu, que a fortuna, que é cega, simpathisa com elle de modo a fazel-o medianeiro dos seus favores. Seja como for, é certo que o pobre homem é o ven-

IIUAS E PIIAÇAS 89

dedor mais populai' d(^ bilhetes de loteria e portanto pode mais facilmente vender de vez em quando al- gum que não saia em branco. Compartilliando a ve- nei*agão supersticiosa da multidão pelo cego agente da cega fortuna, não deixamos escapar o ensejo de lhe comprai' também. E assim jjossuu agora seis cautellas que me custaram seis centos reis. O tem- po dirá o que tenho a ganhai*.

Esta pequena especulação deteve-nos na Rua da Prata mais do que tencionávamos. Não obstante, daremos ainda uma volta e uma vista de olhos pela Prara da Figueira, que nos fica defronte, posto que devam ter sabido ou estejam a sahir as senhoras, boas donas de casa, que de manhã cedo lhe dão uns certos ares de elegância. Ha em Lisboa seis ou sete mercados onde se vendem por grosso e a re- talho grãos, vinho, azeite, peixe, carne e outras provisões: este porém é o principal e mais central, o occupa tanto terreno, ao que parece, como o de Cooent Garden, Comtudo a sua disposição é diversa. Alli se vendem legumes, fructas e flores, também caça, gallinhas, ovos, queijo, leite, carne etc, e de tudo está bem abastecida. Ha no meio algum arvoredo, mas as vendedeiras e os seus géneros abrigam-se em fileira de barracas que bordam os lados do quadrangulo, e as que não teem um lo- gar á sombra formam tendas com os seus immen- sos guarda-soes. As portas de ferro fecham-se sem- pre á mesma hora que as do Passeio, excepto na noite de S. João e Santo António, quando, brilhan- temente illnminado, se faz alli uma feira animadis- sima.

90 A FORMOSA LUSITÂNIA

Mal entramos, uma chusma de gallegos arma- dos de graudes gigos pedem logo lhes concedamos a honra de nos levar as vitualhas a casa. Persua- dem-se que a fina força havemos de comprar, ape- zar de lhes significarmos que aguardem com pa- ciência a clientela das nossas excellencias, para quando voltarmos com o intuito de fazer provi- sões.

Não passemos todavia adiante sem notar desde um curioso costume, cuja origem desconheço, e que desde tempos antigos se conserva n'este mer- cado. E o caso que todos os annos na manhã de Natal costumam distribuir um abundante almoço de grãos ás pombas domesticas que apparecem aqui. Centos doestas aves, dizem-me, acodem então e é altamente divertido ver-lhes dar de comer. Consoante a crença popular, as pombas não conhecem a usança, mas o seu instincto ou antes a sua intelli- gencia é tamanha que lhes permitte distinguir o dia de Natal de qualquer outro, de modo a reunirem-se em bandos para a pitança annual. Como se não po- de suppôr que as pombas vivam muitos annos, esta informação é provavelmente transmittida de pães a filhos. Quanto a mim, confesso-me sceptica no as- sumpto, e, apezar de me afifirmarem o contrario, es- tou convencida que as pombas são trazidas de pro- pósito pelos seus donos. (•)

Na minha volta observo que as arvores que nos

(•) Este conto das pombas a ninguém o ouvimos antes de o lêr n'este livro; mas Lady Jackson com certeza o não inventou.

RUAS E PRAÇAS 91

outros sitios cie Lisboa vicejameflorescem tão vigo- rosamente, parecem pelo coiitrai-io languecer e de- fmhar-se aqui. Os ramos mal vestidos de rara íb- lliag(?m e como outoniça apenas fazem uma pobre sombra aus raios ardentes do sol. «Porque será isto?» pergunto dirigindo-me a um velho que está a vender soberbos camarões. Lembro-me de o ter visto, ha annos, e cuido que a elle ou a algum ir- mão chamavam o «rei dos pescadores.» Não me engano. E sua magestade em pessoa, que me res- pondeu assim : ccComo quer sua excelkncia que as arvores venham bem, se lhes falta chão para esten- derem e desenvolverem as raizes? debaixo de nós e não muito dentro da terra jazem muitas casas e egrejas da antiga Lisboa.»

«Este é um dos sitios continuou elle, oríde em 1755 a terra abriu uma grande guéla, e outra maior ainda perto do Correio Geral justamente onde ha agora uma costeira a pique. Muitas vezes ouvi con- tar esta grande calamidade, e a miséria que se lhe seguiu, a minha avó, que era então mocinha dos seus dez annos e que escapou, como por milagre, á sorte que tiveram muitas mil pessoas n'aquelle terrível dia de Todos os Santos. E comtudo a ma- nhã nascera clara e cor de rosa como de costume, e a gente tinha sabido a ouvir missa pela alma ca- da um dos seus parentes defunctos, mal cuidando, coitados ! que o seu momento estava também che- gado.»

Realmente, foi então que cerca das nove horas se ouviu um estranho rumor, simelhando o trovão que resaltasse das entranhas do globo. Retumbou

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inVS E PRAÇAS

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itios de Lisba vicejam e florescem tão vigo- ite, pareciinjclo contrario languecer e de- 3 aqui. Os limos mal vestidos de rara fo- I e como oiitoiça apenas fazem uma pobre

aos raios aiientes do sol. «Porque será -pergunto diicjindo-me a um velho que está r soberbM> amarões. Lembro-me de o ter i annos, r aido que a ellc uu a algum ii- amávam d c^ei dos pescadores.» Não me . E sua iiMii^tade em pessoa, que me res- assim : «Cio quer sua excellencia que as venham i , se lhes falta chão para esten- ' desenvohe jm as raizes? debaixo de n(3s uuito dentrola terra jazem muitas casas, c da antiga Liboa.»

e é um dos ítios continuou elle, onde em

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«Este é undos sítios continuou ulle,—ini, 1755 a tei*i'a ;irin inna grande gu»''la, o outra i ainda pei*to o Correio (ieral justani- ' agora uma coteira a pi(pie. Muitas v... tar esta grane ealanudadc;, e a uiisoriu . >egnin, a ndiía a\('», (pie era entfuj nio, sens dez anus e .pie (3S(;apou, eomo jmjp ,„íj^^, á sorte (pie Kcram nnntas mil pessoas irautirlL terrivel dia d Todos os Santos. K conitiido idiã nascera bai*a e c<*)i' d»; i-osa cíjuií) rj,. e a ciente tinh sabido a ouvir missa hi>l'. da um dos sus parentes dídunctos, niuj r, a coitados! qu o sou ^i e.stava Uunbrn.^;

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3

I

92 A FORMOSA LUSITÂNIA

de novo mais estrepitosamente e o solo foi sacudido com espantosa violência. A população espavorida fugiu das casas e egrejas, cahindo sobre o chão que tremia. O sol obscureceu-se, o firmamento tornou- se livido, um vento de borrasca soprava nuvens de poeira negra, e o Tejo encapcllado revolvia-se com a fúria do mar tempestuoso. Torna-se a ouvir terri- velmente outi'0 longo mugido; chammas occultas serpeam d'entre fendas enormes, e tudo se preci- pita no abjsmo, ricos e pobres, novos e velhos, as mães e os filhos, nomeio das mais angustiosas sup- plicas á misericórdia divina, e dos gritos de agonia que sobrelevam o terrível estridor da terra a arque- jar. Palácios, egrejas, mosteiros, edificios públicos, habitações de nobres e plebeus, tudo desappareceu debaixo do solo que se lhes fechou em cima. O gran- de rio, erguendo-se desmesuradamente, atirou-se so- bre a margem qual muralha d'agua, despedaçando e engulindo nas ondas ferventes as embarcações pe- quenas e grandes que meia hora antes se lhe recli- navam serenamente no seio tranquillo.

Medonha calamidade apenas comparável á des- truição de Pompeia e Herculanum !

Mais de quinze mil pessoas pereceram n'este funesto dia, assim como foram destruídas innu- meras casas e vinte e quatro edificios públicos, ao passo que muitos outros, abalados pela base, reduziram-se a ruinas desmoronadas. Onde d'an- tes se estendiam risonhas planícies levantaram-se depois desgraciosos montículos, e altos aterros afundiram-se deixando em seu logar profundos val- les.

RUAS E PRAÇAS

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Mezes ainda depois d'estaterrivcl convulsrio, o so- lo tremia e abalava-se por vezes, aterroi-isaiido cons- tantemente os miseráveis habitantes sem casa nem

recursos.

Sobrevieram os horrores da fome, e dos incêndios frequentes que iam destruindo o que tinha escapado ao terramoto. É consolador relembrar que por esta occasião o Parlamento inglez votou 100,000 Ib. para soccorro d'esta população afflicta o maior dona- tivo que jamais fez, segundo creio.

Nenhuma d'estas particularidades me narrou o velho pescador, mas vieram-me á lembrança pela sua observação «Deus nos livre de uma calami- dade simelhante.» Bastantes pessoas pensam que a repetição é muito provável ; e de facto o aspecto do paiz atormentado por convulsões vulcânicas, e os repetidos abalos que se sentem perfeitamente, posto que até hoje tenham sido inoffensivos, auctorisam- nos a crer que o fogo ha tanto tempo sopitado, não está comtudo totalmente extincto.

Mas vai sendo tempo de nos irmos embora. Os Gallegos, a cujo olho penetrante não escaparam os nossos manejos, apenas notaram de longe que tínhamos comprado uma ou duas dúzias de cama- rões (e são famosos em Lisboa) precipitam-se em massa soUicitando a honra de os levar. aObrigado; obrigado, gallegos. Os portadores seremos nós mes- .mos: pesa-nos o vosso desapontamento»; mas ;)a- ciencia, homens, paciência, que é um supremo remé- dio para desillusões. «Pobres gallegos ! Que seria o lisbonense sem elles, não deixando com tudo nunca de lhes fazer a máxima injustiça, como em Madrid, de

94 A FORMOSA LUSITÂNIA

OS assimilharem com ar desdenhoso ao que ha de mais estúpido e despresivel.» Ah ! verdadeiro galle- go! ou ((SÓ um gallego lhes leva as lampas.»

E comtudo ha pouquissimas casas de alguma importância, onde o gallego não seja o major domo e o senhor das chaves, sendo raros os casos de in- fidelidade. Os melhores criados, mais trabalhado- res, honestos, briosos e fieis são gallegos, assim como os carregadores, aguadeiros e a maior parte dos padeiros de Lisboa. Se a gente precisa d'um portador fiel, chama um gallego. Nenhum serviço domestico lhe repugna contentando-se com salários moderados ; e em virtude do seu génio trabalhador e poupado, não raras vezes fazem economias e se es- tabelecem com negocio seu próprio.

Porque será então que a palavra ((gallego» é usa- da como termo de mofa e de opprobrio, e o possuidor de tão boas e úteis qualidades anda sempre mettido á bulha ou apparece em scena como figura grottesca e despresivel?

Não sei: mas a verdade é esta. O próprio galle- go parece não tomar isto muito a peito. Algumas vezes dir-se-hia sensibilisado, quando exclaixm apa- ciencia! pacie7icia!)) mas geralmente fecha os olhos e os ouvidos ao que não quer ver nem ouvir, labuta com affinco no seu ram-ram de todos os dias e me- dra. Assim seja sempre.» Adeus, gallego; e pros- pef^o I {')

(•) A benévola Lady escreve assim em linguagem portugueza a sua ul- tima saudação ao sympathico filho da Hespanha : « Adeus, Gallego, e prospero ! » D'e£ta amostra se deprehende que a ingleza se exprimia n'um

RUAS E PRAÇAS 95

Voltando ao hotel seguimos pela Rua dos Fan- queiros, onde se topam ainda muitas lojas de mer- cadores no estylo antigo. No fim, tomando á direita, e deixando á esquerda a e a Alfama ou Mouraria

o antigo e interessante bairro mourisco que esca- pou ao terramoto entramos na Praça do Commer- cio, passando pelas escadas do Ministério da Guer- ra. As columnatas, o arco de triumpho, os palácios dos ministérios, as frontarias finamente esculptura- das, a grande estatua equestre, as fileiras d'acacias e o Cães chamado das Columnas, d'onde se avista o esplendido panorama das margens oppostas do largo Tejo, imprimem a esta grande praça o realce da ma- gnificência.

Toda esta parte central de Lisboa foi reedificada sobre as ruinas do terramoto pelo infatigável Mar- quez de Pombal segundo os planos que elle mesmo suggeriu ou approvou.

O meinto da estatua equestre do grande D. José

grande somente pela grandesa do seu ministro tem sido muito contestado. Conta-se a este respeito uma anecdota assas curiosa. Dizem que um dia se reuniram no atelier do esculptor Machado de Cas- tro, alguns amigos com o fim de examinarem a obra. As opiniões emittidas, se não eram absoluta- mente desfavoráveis, não o lisongeavam todavia. O cavallo carecia de vivesa, a acção de fogo, e de ener- gia a forma e a pose da cabeça. Se as orelhas fossem

portuguez bastante levantado, ainda quando fallava com gallegos. <i pros- pero!') Judiciosamente nos disse Lady Jaclíson na Infroducção que em Por- tugal é muito mais interessante viajar para quem lhe conhece o idioma.

96 A FORMOSA LUSITÂNIA

collocadas d'uma maneira differeiíte, a cabeça mais altaneira, as pernas em outra posição e assim por diante, o animal pareceria mais natural e mais vivo.

Estas observações contrariavam mais do que convenciam o artista dos seus erros. N'este come- nos, ouve-se arranhar e ganir a porta ; aberta, en- trou o cão de um dos visitantes, que, vendo o ca- vallo, recua e começa a ladrar furiosamente; e, la- drando, ora avança ora retrocede, não se querendo aproximar muito da pata levantada com receio sem duvida de ficar esmagado. «Senhores » diz então o artista eis um critico competente : a sua opinião inteiramente opposta á vossa consola-me do pouco apreço que destes á minha obra. Elle ve e sente que ha n'ella naturalidade e vida e não hesita manifes- tar o seu juizo em alto e bom som.» (•)

No museu da academia das Belías- Artes ve-se um prato ou travessa que pertencia ao serviço man- dado fazer expressamente para o sumptuoso ban- quete offerecido aos fidalgos pelo Marquez de Pom- bal por occasião da coUocação da estatua sobre o seu esplendido pedestal. Cada peça tinha uma representação do monumento, que foi levantado a expensas da população de Lisboa, e cada conviva era presenteado com um prato ou outra peça dabai- xella, como souvenir do auspicioso acontecimento. Um busto em bronze do grande marquez foi collo- cado no lado do pedestal que olha o Tejo : quando

(•) A anedocta é bonita; ressabe ás coisas que se contam análogas dos Zeuxis e Apelles; mas nuo a encontramos referida em alguma das monogra- pliias respeitantes á estatua de D. José 1.°

RUAS E PRAÇAS

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porém, a pobre idiota D. Maria I subiu ao tlirono, o busto foi arrancado d'alli por suggestão dos cor- tezãos intrigantes que então subiram ao poder, para ser reposto em 1833 somente por D. Pedro IV de- pois da expulsão de D. Miguel.

Passando pelo Arsenal, que se estende desde a extremidade da Praça do Commercio até ao íim da Rua do Arsenal, o nosso caminho atravessa o Lai*- go do Peloui-inho, em cujo centro se divisa uma co- lumna torcida de bello mármore, com delicados la- vores, rematada por uma esphera oca, feita de es- treitas fitas de metal. N'este sitio eram antigamente executados os fidalgos portuguezes quando condem- nados á morte por qualquer crime; mas o appa- relho de ferro para esta horrível ceremonia foi re- movido, fia muitos annos já. (•) No lado oriental está agora em consti-ucgão um foi'moso edifício para a Camará Municipal. As esculpturas de pedra que adornam a fachada principal são um bello espéci- men do intelligente trabalho nacional. As outras ca- sas que bordam o largo elevam-se a grande altura; mas se a gente lhes olha para os cumes, outras que se levantam muito mais, de modo que as portas de entrada d'estas ultimas habitações aerias estão muito mais altas que os telhados das que ficam em baixo.

Continuamos pela Rua do Arsenal, atulhada como sempre d'uma multidão nada agradável. Duas

( ) Isto não é verdade. Foi executado no Pelouriíilio de Lisboa unica- mente, em 1790, um cadete fratricida. Os ganchos de ferro que encimavam o monolitho desappareceram em 1833. 7

98 A FOIIMOSA LUSITÂNIA

correntes de peões caminhando em linhas oppostas abah\)am-se perto das portas do Arsenal, ou são obrigadas a parar em virtude d'outra corrente, que irrompe d'ani, de enfarruscados operários ou de mais sujos ainda carreteiros de carvão com cestos enor- mes. O passeio estreita-se justamente n'este ponto e a projecção do pórtico, que entrada para o Ar- senal, faz um angulo que embaraça notavelmente o transito; mais adiante continua a ser obstruidopelas paragens de pessoas conhecidas que, passando, ou se comprimentam de chapéu, apertam a mão ou trocam ã pressa uma ou duas palavras. Ora são dous ou três officiaos de marinha que se encontram; ou- tras vezes um maritimo aborda um companheiro, ou dous soldados reconhecem um camarada; e a sentinella ã porta, esquecendo a sua obrigação, pára afital-os, forçando-nos a deixar-lhe o passeio. Um capitão de marinlia mercante de hombros largos, vermelho e perfeitamente britannico marcha a pas- sos largos; empregados de agencias marítimas atra- vessam a rua precipitadamente com as mãos cheias de papeis; provincianos que acabam de descer d'um omnibus ou de desembarcar d'um vapor pai'am e fi- cam a olhar para o pórtico; uma vellia comjornaes debaixo d'um braço, uma cesta de fructa no outro, e as mãos empregadas a fazer meia vae vagarosa- mente achando expedientes de se safar sem prejuízo da sua triple occupação. Um cauteleiro cori'e em todas as direcções por entre esta turba confusa, apregoando números (i mettendo-nos os bilhetes á cara. Mendigos de ambos os sexos também não fal- tam.

RUAS E PRAÇAS 99

É possível que uma grave senhora de meia idade ou outi'a, moça ainda, passem acompaiiliadas, de volta para casa; mas geralmente a multidão veste de prelo ou de escuro; apenas se descobre aqui e alli um cliale vermelho ou cor de laranja e um lenço estampado de seda ou algodão, que no mundo fe- minino popular supplantaram o aceado capote de panno (; o lenço branco de cambraia.

Vem agora a propósito observar que lenta- mente desapparecem os prejuízos nacionaes ; e con- isoante um d'estes que ainda subsiste em Portugal, posto que consideravelmente modificado, não é do estylo que as damas saíam desacompanhadas. Por este motivo quasi todas as ruas, apesar de bastante concorridas, apresentam um aspecto lúgubre, diffi- cíl de explicar ao principio: mas não tarda muito a gente a notar que a causa provem de serem as fi- guras proeminentes indivíduos do sexo masculino, cujo costume é nada pittoresco; e, na verdade, ha ahí nada mais tiniste que ver constantemente homens vestidos de preto, passeando, andando, ou agru- pando-se emfim de qualquer forma, mas sós entre si?

De facto as toílettes brilhantes, as flores, as fi- tas, e todos os chiffons femininos emfim, não abun- dam ainda tanto, que se estendam muito além do Chiado. E, comtudo, ha poucos annos, se me não engano, encontravam-se tão poucas damas nas ruas, que se poderiam considerar desertas as de então, se as compararmos com as de hoje. Com certeza o pri- meiro passo está dado ; e talvez a afluência de fa- mílias hespanholas, que os últimos acontecimentos

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100 A FORMOSA LUSITÂNIA

de Hespailha trouxeram a Lisboa, tem dado causa a que muitas senhoras deixassem as suas sacadas ou a penumbra das suas gelosias. Apezar da situa- ção perturbada e irrequieta do seu paiz, os hespa- nhoes regalam-se espantosamente aqui. Nem em Lisboa se deleitam, mas por toda a parte, segundo se diz, invadem a «formosa Lusitânia.»

Antes de lhes servir de refugio, Portugal era para quasi todos uma terra incógnita. Agora ficam sorprendidos por achar que a capital é mais bella que a sua que as estradas são melhores que as de Hespanha, que o paiz está livre de salteadores, e que podem viajar por onde quizei^em com um per- feito conforto e segurança. A paz, a liberdade dos habitantes, e a liberdade que disfructam, são feições tam agradáveis, se comparadas com a discórdia, a oppressão e derramamento de sangue da sua pá- tria, que a um emigrado d'alguma distincção ouvi dizer que ao passar a fronteira lhe parecia «ter sa- bido do inferno para entrar no paradiso.))

A principal preoccupação das senhoras hespanho- las é evidentemente ostentar vistosas toiletles e apro- veitar todos os divertimentos que o seu novo paraí- so lhes pode proporcionar ; todavia n'esta epocha não abundam muito excepto as que de noute se ex- hibem al-fresco. São ellas as que frequentam princi- palmente os jardins e os passeios públicos, que ap- parecem mais regularmente nas corridas de tou- ros, e assistem em maior numero ás recepções ou reuniões de varias sociedades philarmonicas, litte- rarias, clubs, etc, onde todos os extrangeiros rece- bem o mais cortez acolhimento, quando são devi-

RUAS E PRAÇAS 101

mente apresentados. Posto o exemplo, as damas portuguezas, e as jovens sobretudo, começam a mostrar-se bem dispostas a seguil-o.

Chegamos por fim ao Cães do Sodré, ou mais propriamente á Praça dos Romulares. Um grande espaço circular, no meio cercado de arvoredo, ebem illuminado a gaz, é calçado a musaico, como o Rocio, mas com desenho menos complicado. Em todos os lados da Praça ha cafés, bilhares e hotéis. E o Rial- to dos commerciantes e principalmente dos que fa- zem o commercio marítimo : juntam-se aqui em grande numero ao entardecer para discutir os seus negócios, quer passeando quer agrupando-se de- baixo das arvores.

Sahindo d'alli, subimos pela Rua do Alecrim. () passeio foi sem duvida excessivamente longo para uma ardente manhã de estio. Se não tivéssemos to- mado pelo terreno plano da Cidade Baixa, antes de ter percorrido amctade do caminho, confessar-me- hia completamente «estafada», releve-se-me o ter- mo, por que exprime exactamente as minhas sen- sações n'este momento.

Apenas chegamos á porta do hotel, entregaram- nos um telegramma em resposta ao que tínhamos expedido para Cintra na occasião da nossa passa- gem pela Praça do Commercio. Lembrei-me de ir a Cintra esta tarde, pois que Lisboa se está tornan- do terrivelmente quente ; mas o telegramma diz «Tudo cheio ; nenhuns quíu*tos para os dias próxi- mos». Bem : esperando, tractaremos de nos divertir : Lisboa está-se preparando para celebrar condigna- mente o anniversario da expulsão de Dom Miguel

102 A FORMOSA LUSITÂNIA

e a entrada triumphaiite na capital do Conde de TIw- mar, depois Duque da Terceira, com o exercito vi- ctorioso em 24 de Julho de 1833. (•)

Queria dizer conde de Villa-Flòr. Não admira que esta senhora, indo de Portugal, levasse os títulos embaralhados na sua memoria. Seria bom numeral-os para uso dos extrangeiros. Sua Excellencia também confundiu o snr. conde de Ávila T (parece que os distinguia alphabeticamente como se faz ás portas do mesmo algarismo) com um imaginário conde de S.^a Quitéria. Logo veremos isso.

CAPÍTULÍJ IX

EM CASA

Encerrando-se a gente em um (jiiarto escuro, a coisa mais natural do mundo, nas horas calmosas do dia, seria dormir a siesla. Muita gente faz isso, e diz que assim mais á fresca melhonnente se dis- põe para se divertir á tardinha. Como quer que seja, aqui o dormir a sesta é pouquíssimo necessário, nem vos pode ser suave repouso esse estado de som- nolencia perturbado pelo sussurro longinquo da ci- dade. Nos climas tropicaes, isso sim; porque ahi faz-se um silencio solemne e mysterioso que vos in- cute a supposição de que toda a natureza dorme, e por isso devíiis também doi'mir. Não volita uma ave, não se esvoaça uma borboleta, não bole folha, insectos e reptis numerosíssimos quedam-se immo- veis ou acolhem-se ás suas lapas e esconderijos. Até as palreiras linguas da negraria se entorpecem. O único rumor que se ouve, e tem o que quer que seja de soporifero, é o monótono zumbir do mos- quito que nunca dorme.

De portas a dentro de casa softre-se bem o ca- lor mesmo em julho e agosto: o tempo da calma será uma occasião agradavelmente opportuna para a gente se assentar com socego a um canto e lèr.

104 A FORMOSA LUSITÂNIA

Então podemos avaliar bem se o nosso auctor tem a habilidade de nos prender a attenção de maneira que o livro nos não caia das mãos e as pálpebras se nos não cerrem em doce somnolencia.

Durante estas detençosas horas de insulamento, relacionei-me com algumas obras modernas portu- guezas a litteratura ligeira do dia. Entre outras, li as novellas c romances do muito popular e fecun- dissimo author Camillo Castello Branco. Cada uma d'estas novellas encerra mais enredo e peripécias que as que eu tenho achado em meia dúzia de al- gumas que li em 3 volumes. Quasi todas correm em 4.''' e 5."^ edição. Os assumptos são sentimen- taes, e nem sempre aprasiveis, ao meu palladar. O auctor ordinariamente demora-se nos delictos e des- graças resultantes 'de um systema, não ha muito extincto, de violentar as meninas de nascimento illustre a fazerem-se freií^as, afim de augmentai' a herança dos outros membros da familia. Os vícios e viver estragados da clerezia são-nos relevante- mente exhibidos. E as suas mulheres, em geral ima- ginadas umas tiústes peccadoras primeiro, e depois umas sanctas, nem sempre nos captivam sjmpa- thia. No que elle 6 emincntissimo é na habilidade com que enreda os entrechos e destreza com que os numerosos personagens introduzidos estão des- criptos desde a entrada até ao gradual desenvulvi- mento. —O author não concede que um lio da teia que urdiu seja quebrado antes do tempo, ou deixe perceber qual venha a ser o desfecho; e todos estes enredos, mais ou menos intiúcados, nunca elle os descura. N'isto é elle admirável.

EM CASA

105

Muito mais agradáveis são as novellas do falle- cido Júlio Diuiz, cujos incidentes, menos, invero- símeis, se recortam na experiência da vida com- mum. Ouvi dizer ultimamente que um dos seus contos «As pupillas do senhor reitor» ia ser tradu- zido em inglez. Duvido que tenha bom acolhimen- to na Inglaterra, em quanto durar aqui a ridicula opinião, de que não tem importância e pouca atten- ção merece tudo quanto diz respeito a Portugal, aliás a verdadeira pátria do romance. (*)

Ha por ventura nada mais encantador, que a proza e a poesia do V. d'Almeida Garrett? Que ex- quisita graça e fluente estylo ! e que formoso cara- cter o da Joanniidia nas «Viajens na minha terra» uma obra que tem 5 ou 6 edições e que é ape-

(•) Um doa inelliores cryticos da Europa, Pliilarète Cliasles, fallecido lia trez auiios, esoreveii um livro o ultimo, posthumainonte publicado com o titulo: La Psychologie sociale des nouveaux peuples. Aqui se nos de- para uma apreciação de Gomes Coelho [Júlio Diniz) muitíssimo honrosa para a memoria do amoravel romancista, e para nós todos os que o admiramos por que escrevia formosos livros portuguezes sem os gafai- de costume iras estra- nhas. Eis-aqui a pagina de Philarète Chasles que não expurgamos de umas preoccupaçòes insensatamente politicas e humilhantes para a nossa indepen- dência. . . «Portugal, ha coisa de meio século, a fallar verdade, não passa de colónia ingleza. D'esta situação análoga, sem ser idêntica, á vassalagem «hindustanica sob a pressão ingleza, resulta que muitos dos pontos da vida 1'intellectual se modificam entre os homens mais esclarecidos de Portugal.

"A historia, como depois mostrarei, anda ein averiguações de documen- «tos authenticos, recolhe cartas e dyplomas ; e esse pequeno paiz, que ja foi «tão opulento de heroes e poetas, gloria-se de ter visto nascer ura dos pri- «meiros romancistas do nosso tempo, muitíssimo da escola de Dickens, de «Foe e Fielding, alma terna, eroticamente sentimental algum tanto, espi- «rito brando e delicado, de melindres um pouco subtis, mas muito dado a «extremar e nuancer o colorido e as maneiras dos caracteres. Júlio Diniz «[Dinir) faz lembrar, posto que mais ameno e gracioso, o auctor genebrez do "Preabytere e dos Menua Propôs. 0 cálido raio do sol africano e as suaves

106 A FORMOSA LUSITÂNIA

nas um fragmento do que o autor tencionava fa- zer. (•)

Infelizmente os limites do meu jorna] não me per- mittem avançar mais com as minhas criticas de ho- je sem atravancar a pagina destinada para amanhã. Todavia o estjlo pittorescamente descriptivo de An- tónio A. T. deVasconcellos, os espirituosos folhetins e agradáveis «Contos e descripgões» de Pinheiro Chagas, os esboços cheios de vida de César Macha- do e Eduardo Coelho, pedem-me en passanl uma pa- lavra de saudosa recordação, ainda que tam somen- te pelas horas aprasiveis que me proporcionaram.

Notarei ainda comtudo quanto ás damas es- criptoras que são tão raras em Portugal como vul- gares na Inglaterra. Não obstante uma senhora

«auras que, desde o mar, vem a doudejar nas florestas que envolvem o mos- «teiro da Batalha, collaboram no encanto d'essas creações mixtas, septen- «trionaes pela paciência do estudo, orieiítaes pelo movimento : os Saroens de «Provinda, Uma familia inglcza, As ptipillas f?o scnAor re^7o^ (Seigneur Re- "Cteur!) Marco este phenomeno, symptoma e presagio de uma litteratura «europea e universal, gerada por todas as influencias, bafejada por todas as c-brisas, filha de todos os raios, echo de todas as modalidades do pensamen- «to : aquillo, em fim, que o grande philosopho Goethe esperava e predisia».

Depois d'esta apreciação tào larga, tão farta de horisontes e prevista de destinos, faz pena que lun mestre da critica portngueza, o snr. Ramallio Orti. gào, escreva assim de wm romancista que F. Chasles reputou um dos primeiros da Europa: «A obra de Júlio Diniz pertence á litteratura de írico/ cultivada «com ardor na Inglaterra pelas velhas miss. Apezar das suas qualidades pai" «sagistas, do seu mimo descriptivo, da sua feminilidade ingénua e pittorescaj «as novellas de Júlio Diniz não tem alcance social, são meras narrativas de «salão». [Farpas. T. Ill da Nova serie, pag. 85).

Sem leve offensa á opinião do elegante escriptor, não vacillo em affir- mar que o romance de mais alcance social que se tem escripto em portnguez é o intitulado Os fidalgos da casa mourisca.

(•) A escriptora confundiu este romance com a Helena, talvez. As Via- gens são obra perfeita em todo sentido.

EM CASA 107

com o psoudoiiymo clt3 «D. Foruciíiiia de A vilar» acíiba do publicar uma novella no Porto, da qual so diz muito bom. (*)

Mas os raios do sol, começando a projectar- so obliquamente, permittom-me levantar uma das gelosias, o olhar para o terraço que me fica defronto no mesmo flanco da minha janella. D'oste lado na Rua das Flores ha menos barulho, que do ou- tro a que chamam a h'ente da casa na Rua do Ale- crim, por onde constantemente seguem, da cidade baixa para a alta, carros de bois ou de miseráveis cavallos e mulas verdadeiras ossadas a cambalear. Vel-os debaterom-se em esforços para vencerem a encosta, tii-ando um cari'o antiquado, algumas vezes a vergar com a pedraria para as novas construcções, é um doloroso espectáculo, mas que não deixa em certas conjunturas de provocar o riso.

O carreteiro ou carroceiro caminha sempre a pé, conduzindo os animaes por uma corda que lhes amarra á cabeça. Vae se não quando, ou porque não podem ou porque não querem, ou porque embirram as rodas da velha carroça eil-os que estacam. Em todo o caso, quer avancem quer recuem, o peso da carga impelle-os ao fundo, o o bom do homem re- puxa-os para cima.

Quando assim acontece, o carroceiro torce os braços de afflicto, atira o açoite ao chão e arranca pe-

(■) Allude a um romance desconhecido da senhora D. Amélia Dulce de Serpa Pinto, que o escreveu com o peseudonyino de Fornarina de Avdlar. Si- multaneamente escreviam D. Maria Amália Vaz de Carvalho e D. Guiomar Torrezão, das quaes a escriptora ingleza nào levou noticia nem informação-

108 A FORMOSA LUSITÂNIA

lo cabresto com toda a força; mas quasi sempre sem resultado nenhum. N'este transe corre frenetica- mente d'um lado para o outro, inspeccionando a po- sição do carro e pedindo o auxilio d'algum tran- seunte cazual. Raramente deixará de ser soccorri- do. Então dous ou três homens por cada banda, outros tantos á trazeira, e a diante a puxar pela cor- da o carreteiro, rouco á força de berrar ameaças contra as pobres bestas, pegando todos ao mesmo tempo, empurrarão talvez carro e mulas uma jar- da ou duas, pela costeira acima.

Mas as mulas proverbialmente teimosas de- sistem á ultima; e apezar de escanceladas quando querem, agarram-se a terra com firmeza por bas- tante tempo. Se as não moverem, debalde os ho- mens moverão o caiTo, que tornará a voltar para traz ; e, se o carroceiro se põe de frente a fital-as de face, vociferando-lhes á cara horríveis imprecações, ellas, se não são cegas as desgraçadas, respondem com certo olhar diabólico, que parece dizer « te avêm! etc.»

Porfim perdem a paciência ajudantes e expe- ctadores ; e o mesmo carreteiro estafado assenta-se melancholico no degrau de uma escada. As mulas então quer por um capricho de momento, quer por estarem satisfeitas de ter vencido, atiram-se em zig-zag pela rampa acima, e fazendo um esforço su- premo talvez chegam ao topo antes do conductor. Correm logo segui ndo-as homens e rapazes, agar- rando cada um o que durante a rixa tinha posto de lado, ou o açoite ou o chapéo, ou jaqueta, ou o len-

EM CASA 109

ço do pescoço, ou qualquer outra semilhante coisa. E assim acaba a dolorosa sceiía.

Felizmente as fúrias e imprecações do carretei- ro são apenas palavras vãs que quasi nuncam ter- minam por azorragar ou mal tractar o animal. A crueldade consiste unicamente em empregar n'um trabalho tam pesado animaes esfalfados, a morrerem de fome e com os ossos a contarem-se-lhes á íiôr da pelle. Na volta o dilemma é terrível : ou correm ou ficam esmagados fobres diabos l

Na Rua das Flores ha menos d'estas imperti- nências. A subida não é tão Íngreme e o solo fica mais baixo de modo que o segundo andar do hotel para a Rua do Alecrim é o terceiro para a outra.

O teri'aço, que tanto me deleita, forma o telhado d'uma grande casa da esquina fronteira. Quasi tam comprido e largo, como New Burlington Street e ladrilhado em xadrez a lousas brancas, é fechado na ponta estreita, que vejo da minha sacada, por uma grade delgada de ferro, e do lado por uma ba- laustrada de pedra faceando a outra parte da casa, que se alteia com cinco janellas a dominal-o. Ador- nam-o renques de laranjeiras em caixões, enter- meadas de jardineiras de fiôres brilhantemente co- loridas e artisticamente agrupadas, assim como va- zos de plantas com folhas variegadas. No fim, mais ao longe, veem-se passeios guarnecidos de arvores, que pertencem a um jardim adjuncto, cujo terreno mais alto foi trazido ao mesmo nivel. Uma abertu- ra entre as casas deixa-me avistar uma nesga da parte occidental de Lisboa; e da minha sacada po- dem-se descobrir as collinas da outra banda do Tejo.

110 A FORMOSA LUSITÂNIA

Os quartos superiores dominam uma extensa e bel- la vista, mas o meu agrada-me mais pela commo- didade.

Todas as tardes, a esta hora, quando o sol se afunde no occidente, uma senhora idosa e um filho passeam sempre pelo terraço com um cãosinho branco, que invariavelmente mette a cabeça por en- tre as grades e sauda-me com um ladrido, cordeal sem duvida, pois que abanando a cauda parece di- zer-me «Boa tarde, visinha, porque não vem pas- sar aqui um instante comnosco e de facto não he- sitaria acceitar o convite, se a dona o tivesse confir- mado. Ainda assim é uma formosa coisa áquella pe- quena distancia. Se me assento no fundo do quarto, parece uma continuação da minha varanda; quan- do, porém, ao pôr do sol o envolve um dihivio de luz dourada, com as cazas e os montes ao fundo, ou quando nuvens cor de rosa lhe espargem uma doce aureola durante o rápido crepúsculo, então, se não por muito tempo, pelo menos emquanto o contem- plo, sinto deante dos olhos «umabelleza e uma deli- cia».

Também por vezes os alegres e famosos carri- lhões se deixam ouvir durante estas horas crepus- culares, tocados com tal vivacidade que as creanças dançam-lhes ao som na loja do hotel. Valsas, pol- kas, galopes e passagens de operas são tam primo- rosamente executadas pelos intelligeiítes corillonhci- ros, que não poucas vezes enchem de assombro e de- leitam os viajantes extrangeiros. Mas ultimamente os toques a fogo são mais frequentes que os repi- ques de festa. Sobresaltam-nos três ou quatro vezes

EM CASA 111

por dia, (j d(! iiouto atterram-iios ainda mais, quando, accordados de súbito, nos pomos a contar com an- cioda(l(í o num(3i'() das badaladas a vci' se a catastro- phc 6 perto ou longe de nós.

Como a causa de tam rept^tidos incêndios era na maior parte desconhecida, muita gente veio a crer que eram postos de propósito por agentes secretos dos Internacionalistas hespanhoes que resolveram lezar Portugal a ferro e fogo, para o obrigar a le- vantar-se contra o systema de governo actual e fa- zer causa commum com os revolucionários de lá. É ditficil de conceber como se podem executar taes planos, pegando fogo a casas particulares; que muito mais mal lhes fazia este expediente, visto o grande resentimento da população contra os petrolistas suppostos destruidores dos seus bens. É certo toda- via haver alguns exemplos de se ter encontrado, an- tes do incêndio se atear, palha e farrapos embebi- dos em petróleo, dispostos nas escadas da entrada ou em quejandos sitios d'onde facilmente poderia o fogo lavrar para o resto. Seja como for, é fora de duvida que recentemente muitas casas tem sido des- truidas por incêndios, e muitas familias tem ficado pelo menos temporariamente sem recursos, senão reduzidas á miséria.

Ha na verdade em Lisboa um verdadeiro pâni- co, que força toda. a gente a segurar os seus have- res ; e tendo-se dado a circumstancia de pegarem os incêndios em prédios por segurar, muitas pessoas tiveram a loucura de crer que as companhias de se- guros não lhes eram extranhas, para assim au- gmentarem os seus interesses. Portas de rua que

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d'antes ficavam abertas, são agora cuidadosamente fechadas, e os porteiros, onde os ha, não perdem d'olho quem entra e sae, e imaginam que todos os desconhecidos lhes cheiram a petróleo. Mas por mim vejo a cada instante Portuguezes, cavalheiros e não as se7ihoras, (menos dadas a fumar que as suas ir- mãs de Espanha) que podem dar causa a incên- dios, pelo costume de deitar indifferente e negligen- temente ao chão charutos e cigarrettos a arder : e comtudo nunca lhes occorre que estando tudo sêcco como isca, este descuido pode occasionar uma ca- tastrophe.

Outro dia ainda aconteceu começar a arder um carro carregado de palha não sei se embebida ou não em petróleo. Quem poderá contar a enorme vo- zearia e a frenética confusão, antes de soltarem os bois e abafarem a fumaça com uma torrente d'agua? Não tentarei fazel-o e prefiro deixal-o ã imaginação do leitor, pois ouço uma certa campainha que me não é desconhecida. Tocando com o som agudo d'um despertador, annuncia que cinco minutos depois de se ouvir outra vez, todas as coisas estarão promptas para o festim de todos os dias na mesa redonda^ co- mo aqui se diz.

Este jantar é um negocio de costa acima ; dura duas boas horas desde a sopa até ao café e cigarrettos. O calor também opprime-nos excessivamente, pois jantamos ás cinco horas. Tudo isto seria insuppor- tavel, apezar da fresca brisa que tentamos fazer com os leques, se não fosse o divertimento que me pro- porcionam as maneiras e palestras que se dão em alguns d'estes repastos. Os hospedes permanentes,

EM CASA 113

se assim pode chamar-se a certo numero de extran- geiros sem período definido de residência, são prin- cipalmente liespanhoes . Mas também ha alguns ilhéus, da Madeii*a e Açores, que costumam vir aqui no verão, um francez ou dons, uns poucos habitues da casa e portuguezes fluctuantes que n'esta estação oscillam entre Cintra e Lisboa.

Temos aqui estrellas de primeira grandeza marquezes, pares do reino, condes, condessas, barões e baronezas, etc, mas, avaliando pelos nossos hábitos á meza em Inglaterra, difficilmente os supporiamos taes. Temos também muitas senhoras de diffei^entes nações, sendo as hespanholas as menos engraçadas a comer ; mas passemos adiante : ha tanto tempo que jantamos juntos que deixamos de nos admirar e chegamos a tolerar-nos mutuamente os vesos de cada um. Quando nos encontramos «á meza redon- da», aliás estreita e comprida, saudamo-nos com uma inclinação cortez ou cheia de cortezias, mur- murando ((Excellencia». Depois cada um á sua von- tade conversa, fuma, ri, debruçando-se sobre os cotovellos com o palito ao canto da bocca, ou em- punhando o garfo, como o tridente de Neptuno, espeta aqui ou ali uma azeitona, um rabanete, um figo, ou qualquer coisa emfim ao seu alcance que deseja. Também por vezes aquella gente aprovei- ta os intervallos durante o jantar para embrulhar os cigarretlos, ou deitar bocadinhos de gelo (gelo ar- tificial da fabrica de Lisboa) no vinho de pasto, em- quanto que outros saem fora por um instante ao terraço a refrescar o appetite.

Occasionalmente variam mais os convivas: ora

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114 A FORMOSA LUSITÂNIA

são Anglo-Portuenses, que vieram ao sul passar aqui alguns dias por negócios ou recreio; ora um par de noivos, que faz uma digressão durante a lua de mel; e, assentando-se, apertam-se as mãos ima- ginando que ninguém ve, porque tudo se passa de- baixo da meza; ora viajantes que desembarcando com demora de uma ou duas horas apenas chega- ram para jantar, e entre estes algum que vem com- pletar as suas notas para a obra projectada: «Esbo- ços da vida e costumes na Península» —; todos es- tes frequentadores de accaso são recebidos por nós, hospedes permanentes, com ar severo e altivo.

Fazemos-lhes sentir que não são ninguém, olhan- do-os de modo a desconcertal-os. Vigiamol-os de perto para os impedir, se não teem vergonha, de se apropriarem dos melhores bocados, que de direito nos pertencem; e fazemos-lhes emfim taes pirraças, que se não são cabeças fortes, indifferentes aos nos- sos manejos, geralmente levantam-se antes de ter- minado o banquete. Então as suas gaucheries e a sua mauvaise honte, ou as excentricidades dos toilettes de viagem, dão logar a piedosas observações, que são tomadas por complacência como bons dictos de fino espirito.

Porfim, e, como se um mesmo pensamento nos colhesse simultaneamente, depostas as facas e gar- fos, pontas de charuto, ou qualquer coisa assim semilhante, eis-nos a todos d'um jacto. Irão uns ao terraço aspirar um sorvo de ar fresco ou toma- rão o café alli, emquanto outros subindo ás carrua- gens, que estacionam a porta, darão um passeio pe- la tarde.

EM CASA 115

Mas ouço o segundo toque de campainha, e também a voz do meu visinho de cadeira. Não ha duvida ; k'i tem a sua garrafa debaixo do braço. E um grande provador de vinhos, e productor dos me- lhores de Xerez, segundo creio. Forçaram-no a au- sentar-se do seu paiz, como ao maior numero de hespanhoes que estão em Lisboa. Todavia, arran- jou-se de tal modo, que os trouxe comsigo, ou de qualquer maneira se forneceu com os melhores vi- nhos de Hespanha.

Algumas vezes ao jantar enche-me de vinho o meu copo, como o seu. aVino puro dizendo, aVi- no de Xerexyy. Fez-me notar que d'esta qualidade não vae para Inglaterra, que custa na Hespanha á razão de duas libras a garrafa, pois é apuro, puro, p-íM^-o.h:> Emquanto o provo, observa-me aphjsionomia, que trato de compor de modo que não revele o que me passa pela mente. «Ah! «diz elle», 7?iui bueno! Eh!)) Respondo trivialmente «Ó muy bueno! delicioso!)) Sorri-se de satisfação, e eu tomo outro golo. O meu verdadeiro pensamento era: «Que charopada ! é chá de macella!» É de mais para um paladar estragado. Masemfim é força ir, pois que Senhor Romão ainda sacode aquella irritante campainha até que todo o rebanho se ajunte.

CAPITULO X

UM PASSEIO DE CARRUAGEM, Á TARDE

Realisamos, á tarde, um longo e aprasivel pas- seio. Safamo-n'os cedo da meza redonda e descemos ao Cães do Sodré, onde se alugou trem descober- to, tirado por uma bella parelha de cavallos, como nunca os eu vira parados na estação ou á porta dos hotéis esperando freguezes. Tomamos para a direi- ta do Cães, e seguimos ao longo do Atterro da Boa Vista, amplo, chão e bonito passeio, com a sua ala- meda plantada de quatro renques de arvores de ca- da lado, uma fileira de magestosos edifícios e dous graciosos jardins públicos de fronte. É o Atterro uma das mais admiráveis obras que se prefízeram em Lisboa n'estes últimos annos. Aquelle gracioso cômoro que vai marginando o rio por espaço de mil metros, e promette avançar até Belém, era, ha poucos annos, um terreiro desprezível, lameiro sór- dido e tremedal infecto. Quando se concluir, o At- terro realisará um dos planos do grande Pombal na reedificação aperfeiçoada da cidade.

Por tardes de verão, duas ou três vezes sema- nalmente, ha muzica nos jardins, convidativa de concorrentes; mas, de inverno, se o sol inunda a alameda, avultam mais os passeantes, depois do meio dia, desde que a rainha, que ali vae quasi quotidia-

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.m Alcântara tiablha-se toda a sumana; mas o

118 A FORMOSA LUSITÂNIA

namente com seus filhos, camaristas e damas, deu o exemplo ás senhoras portuguezas. Com tal exem- plo, necessariamente suas Excellencias deviam de ser attrahidas em grande escala e em grande toilet- te, transfigurando assim aquelle que foi uma me- phytica orla de rio em paradeiro de elegâncias e pre- dilecto confluente dos aristocratas beaux e belles de Lisboa.

Da extrema do Atterro, subimos em direitura para um ponto elevado, seguindo a rua das Janellas Verdes. Passamos pela antiga egreja de Santos, o Velho, e pelo magnifico palácio do marquez de Pombal, que se defronta com um dos chafarizes mais formosamente esculpturados de Lisboa. N'es- te palácio residiu algum tempo a imperatriz duque- za de Bragança, viuva de D. Pedro IV. Desde que ella morreu, fechou-se o palácio, excepto a sala on- de vai leiloar-se em breve a sua vasta livraria que me dizem abundar especialmente em livros mysti- cos e obras theologicas. E costume, quando se falia d'esta princeza, denominal-a «excellente e piedosa»; ainda assim, a austera reclusão em que vivia e em que também educou sua filha a princeza que se finou de consumpção na Madeira a ponto de se esquivarem a todos os divertimentos, sem exceptuar os da corte, foi motivo para perder muito da popu- laridade que algum tempo gosou entre os portugue- zes como viuva do «rei soldado, restaurador da li- berdade.»

Proseguindo em nossa route por largas ruas e por muitas mais estreitas, subindo descendo, chegamos a final ao Quartel dos Livalidos da Ma-

UM PASSEIO DE CARRUAGExM, Á TARDE 119

rinha em Alcântara. O rocio d'este magestoso edi- fício é um largo, com uma fonte a um lado coroa- da pela estatua de Neptuno. No outro lado está um jardimzinho elegantemente cultivado, de um verdejar Ião gracioso e tão esmaltado de flores, que aquelle pedacinho de verdura, com o seu ma- gote de marinheiros em sob a copa do arvoredo, ou reclinados nos bancos, tam lestos e limpos na apparencia, é um refrigério de olhos, quando ines- peradamente vos sae de rosto, como oásis em de- serto, no momento em que sahis de alfurjas estrei- tas e escuras.

Alcântara é local de grande labutação, miniatu- ra de Manchester, com muitas fabricas de lanifí- cios, de que se fornecem alguns lugares de Hespa- nha. Também tem fabricas de refínação de assucar e salitre para a pólvora, e de vidraria, e outras in- dustrias importantes onde se empregam milhares de braços.

O fallecido rei D. Pedro V fundou em Alcânta- ra o Asilo de mfancia, onde as creancinhas das mu- lheres empregadas nas fabricas são alimentadas du- rante o dia em quanto os pães trabalham. Ha em Alcântara ainda outras instituições de caridade. É aquillo um mundozinho á parte. tem as suas festas, e raro é buscar divertimentos fora das suas fronteiras. E um local altamente philarmonico: tem cinco bandas musicaes ; uma é de rapazes flautistas e bandurristas, as outras são instrumentaes a valer: os músicos são obreiros e rapazolas das fabricas. Em Alcântara trabalha-se toda a semana: mas o

120 A FORMOSA LUSITÂNIA

domingo é dia cheio de folia; ali é que se usa mais popular a cantilena do Sol e dó.

Algum tempo, Alcântara gosou péssima reputa- ção. Lisboa não se tinha ainda prolongado a oeste povoando o vasto espaço que então medeava entre a cidade e os arrabaldes. N'esse tempo, a ladroeira era coisa vulgar, e os assassinos ás vezes embus- cavam-se ao anoitecer por aquellas viellas e con- gostas. Não havia lampeão que raiasse umclarãosi- nho, salvo, a longos intervallos, a frouxa lanterna de algum nicho da Virgem Santa ou de qualquer san- to. Este bruxulear incerto em vez de tirar de per- plexidades o caminheiro nocturno, levando-o pela es- trada direita, desencaminhava-o. As estradas eram abjsmos ; quem se erguia de um, cahia logo em ou- tro, escorregava no cascalho, ou dava com a cara sobre lixo e lama. As mais frequentadas ruas da própria cidade parece que não eram muito melhor- mente illuminadas ; um desgarrado que por alta noite se recolhesse sósinho expunha-se ao azar de ser filado pelo gasnete, ao passar por algum recan- to escuro.

Diz-se que a policia se esmerava então em man- ter, de dia, a decência e a boa ordem nas ruas; po- rém, não podia obstar aos crimes perpetrados nas trevas da noute, nem se atrevia a perseguir os sce- lerados nas suas cavernas, e entregal-os á justiça. «Quando alguém era roubado refere um escriptor portuguez em vez de ir queixar-se á policia para se pesquizar o ladrão, ia antes de mais nada rela- tar os pormenores do roubo e a espécie do objecto roubado a um velho coixo que mendigava ã entrada

UM PASSEIO DE CARRUAGEM Á, TARDE 121

de uma das secretarias na Praça do Commercio. Esto homem, que estava como aposentado no exercício da ladroagem, era ainda o chefe e direc- tor de uma malta de larápios, cujos roubos recebia. Com elle se negociava a restituição dos roubos. Por via de regra, estes negócios eram tractados com tal segredo, que tanto o ladrão como o receptador fica- vam impunes.)) (•)

Bonita coisa, não ha duvida ! mas provavelmen- te corria parelhas com o que se praticava, não ha muito tempo, nos arredores de Londres. Todavia, acontecia isto no Portugal desmantelado por facções politicas quando, ás temporadas, uma facção des- bancava a outra, e o Liínoeiro antigo paço real convertido hoje em cárcere escancarava as suas portas e despejava com os prezos políticos aquellas maltas de criminosos que vagavam ás soltas na ci- dade, commettendo violências.

Conta-se uma engraçada anecdota de um encon-

(•) A auctora não nomeia o escriptor portuguez de quem extrahiu a len- da do coixo; mas, sem duvida, traduziu como pôde alguns fragmentos de um folhetim de Júlio Cezar Machado, que nos contava assim o caso com aquella jovial facilidade das suas primorosas narrativas : . . . «Já d'antes tí- nhamos bastantes ladrões; mas eram verdadeiramente o que se chama em linguagem jornalística «ladroeira frequente» porém pouco importante. La- droes timidos, neophitos inexperientes, discípulos de um professor que não podia mexer-se, o famoso coixo que estacionava no Terreiro do Paço, á porta da Aula do commercio. Toda a gente conhecia esse coixo; todos os homens que tem hoje quarenta e tantos annos se lembram d'elle, ladravaz reformado, caixa dos furtos . . . Pessoa a quem nas ruas houvessem roubado a bolsa ou relógio, ia procurar o coixo ; um ou outro, por conhecer menos os costumes, dirigia-se á policia, o que não tinha conveniente senão o de uma pequena demora ; porque iam em seguida consultar o coixo, a policia e el- les.» Este folhetim faz parte do recreativo livro, publicado com o titulo Lisboa de honfem.

122 A FORMOSA LUSITÂNIA

tro de um gatuno com o Senhor Domingos A. (•) muito conhecido pela sua pilhéria, e que ainda vive. Quando elle era novo, o guarda-portão das cazas suburbanas de Lisboa, ao que parece, era quasi sempre um sapateiro-remendão, que habitava e exercia o seu officio em uma cazinhola do pateo ao fundo da escada. As cazas não dotadas de tal sen- tinella, assim que entardecesse, eram cuidadosamen- te trancadas e aferrolhadas, em portas e j ancilas de primeiro andar. Em uma caza d'estas vivia o Se- nhor Domingos. (••) Recolhendo-se, tarde, em uma noite de verão, muito encalmado de calor, abriu as j ancilas, que eram ao rez da rua, deitou-se, e, á cautela, collocou ali á mão um par de pistolas. Cer- ca de uma para as duas horas, um leve rumor ex- terno, deu-lhe rebate de alguma visita nocturna, que, d'ahi a pouco, assumou com a cabeça na janella es- cutando e espreitando subtilmente para o interior do quarto; e, como satisfatoriamente ouvisse resso- nar Domingos que fingia dormir, e se cuidasse se- guro, entrou muito de mansinho. Estava elle abrin- do uma gaveta com a maior subtileza, quando Do- mingos se assentou no leito, agarrou o gamenho pelo pescoço, e abocando-lhe uma pistola á cabeça, bradou-lhe com a maior serenidade :

(•) A inicial pertence ao appellido do snr. Domingos Ardisson.

(••) Faz pena que o gentil Ardisson de 1840, o creador de umas pitto- í"escas bandarrices que ainda fazem soluçar de saudade as relíquias da juven- tude que fez parte das sociedades que raptavam actrizes, á sabida dos thea- tros, e beijavam senhoras cazadas, por aposta, no Passeio Publico faz pe- na, repito, que o celebrado Ardisson seja hoje citado em Inglaterra por esta espalmada nomenclatura : o Senhor Domingos!

UM PASSEIO DE CARRUAGEM, A TARDE 123

Que dinheiro trazes comtigo? quanto trazes ahi?

O ladrão, tremulo de pavor, quiz ajoelhar-se, mas Domingos, que o tinha filado nas valentes gar- ras, bradou-lhe :

De pé, nada de attitudes! dize-me quanto tra- zes!

tenho dezeseis teslões, senhor!

isso? então põe-m'os sobre essa meza.

Mas o dinheiro é meu, senhor !

Se não queres que eu te metta uma bala na cabeça, põe immediatamente os dezeseis lestões so- bre essa mesa.

O larapio afflictissimo despejou as algibeiras, e fez um geito de safar-se de salto pelajanella; mas Domingos, com elle ainda agarrado, deu-se uns ares de cortezia, e disse-lhe :

Não consinto que vossa excellencia saia pela janella; serei eu mesmo quem tem a honra de o conduzir com segurança a porta; mas, como tenho as mãos occupadas, incommodarei vossa excellen- cia pedindo-lhe que leve um d'estes phosphoros.

O ladrão parecia não querer prestar-se.

Custa-me tornou Domingos o ter de lhe cravar uma bala no caco, desejando eu tão somen- te que vossa excellencia saia sem receio de minha casa; e eu lhe asseguro que se me trouxer dezeseis testões por cada visita pode vir todas as noites que me hade achar sempre prompto a recebêl-o, e acom- panhal-o com a mesma ceremonia.» O ladrão co- nheceu que a melhor sabida era obedecer. Desceu as escadas; e, ao pôr o no ultimo degráo, Do-

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mingos ajudou-o a sahir com um vigoroso pon- tapé. (•)

Differença-se o bairro Alcântara dos outros de Lisboa em ser mais laborioso, e talvez mais ruidosamente alegre na occasião das suas festas. Deparam-se por não muitos d'uns sujeitos de vi- da airada chamados fadistas, uma espécie de impro- visatori, grandes tangedores de guitarra, cujos can- tares, privativos de Portugal, se chamam fados. Supponhámos qualquer toada popularmente nacio- nal ; se lhe pertence lettra própria os cantadores co- meçam com ella; mas, logo depois, os trovistas começam a cantar, e pegam de fazer variações tanto na lettra como na musica, a bel-prazer da fantasia

(■) o pontapé é de invenção ingleza. Ardisson foi mais delicado que a fantasia da mimosa auctora. Esta anecdota, liberrimamente traduzida, for- neceu-lh'a também um folhetim de Júlio Cezar Machado, que nos conta o ca- zo com mais verosimilhança e concisão sem excellencias nem iestões. (■•) De- pois de nos esboçar risonhamente a valia dos sapateiros de escada, ty- po essencialmente^ completamente portuguez para a segurança dos pré- dios e garantia dos moradores^ accrescenta Júlio Machado : « Em casa que não tivesse este guarda amigo, estava-se sempre em cuidados de não deixar aberta a porta da rua. Os ladrões, ainda pittorescos, entra- vam então pela janella. Um dos homens mais engraçados d'es3a épo- ca, vivo ainda hoje, o snr. Domingos Ardisson, sabendo que era esse o costume d'elles, não se deu ao encommodo de fechar a janella do seu quarto n'uma noite de verão. Unicamente por precaução de scenario, pôz um par de pistolas á cabeceira. Pelas trez horas da noite, o ladrão appareceu, esprei-

(••) Os inglezes ainda oa mais lettrados não se ageitam a escrever tostão. O snr. John La- totícfte (pseudonymo do actual e esclarecido cônsul da Gran-Bretanha no Porto^ publicou, ha pou- co, a 2.* edição do seu livro Traveis in Portugal. Este douto cavalheiro, que parece conhecer bastante da lingua portugueza, ainda não conhece orthographicamente o nosso tostão. Diz, tão pouco chistosamente quanto o seu amigo americano era verdadeiro, o seguinte : «Um cavalheiro americano meu conhecido disse-me que nunca passara por dois portuguezes a conversarem que lhes não ouvisse estas duas palavras 'teslâo' ou «rapariga> «finanças ou amor.> Estes financei- ros de cem reis e mais os amorosos que divinisavam os seus amores chamando-lhes rapariga, eram todos dignos da espionagem do americano. O livro de Latouche é que não era digno da parvoiçada.

UM PASSEIO DE CARROAGEM, A TARDE 125

OU habilidade ; e por fim retrocedem do seu longo e caprichoso devanear até atoada e á lettra por onde começaram. Usam os fadistas um particular feitio de chapeo preto ; largas pantalonas escuras, jaque- ta justa ao corpo, e cabellos até ás espáduas. Go- sam péssima reputação, porque são uns vauriens de costumes dissolutos. Aconchavam-se com os taberneiros convisinhos das fabricas para engoda- rem os operários, no dia da feria, a fim de lhes apa- nharem os salários nas beberagens e no jogo.

Por vezes, alta noite, ouvi um fadista tangendo guitarra, e com dous ou trez sucios, cantando mais solto você que em Alcântara o seu fado, su- bindo a rua das Flores a passo rápido, mas caden-

tou, e entrou. Logo que o viu, agradavelmente entretido, abriu uma gaveta o snr. Ardisson, sentou-se na cama, apontou-lhe uma pistola, e com sereni- dade :

Ponha para ahi o que traz comsigo! lhe disse. 0 ladrão queria ajoelhar.

Nada de altitudes. Quanto traz comsigo? conserve-se de pé. . .

Senhor. . .

Conserve-se de pé, e responda!

Desoito tostões, senhor!

Deixe-os ver.

Que 03 deixe vêr ? ! para quê ?

Para os pôr ahi quietinhos. Quer antes um tiro ? Gesto negativo.

Venham os desoito tostões.

0 ladrào, com ar mortificado, despejou o bolso e ia de novo saltar pela janella, quando, por attender aos preceitos da hospitalidade, o snr. Ardis- son lhe ofFereceu um phosphoro.

Um phosphoro ?

Para descer a escada !

E convidou-o gentilmente a sahir pela porta, assegurando-lhe sob pa- lavra de honra que por egual preço poderia voltar quando lhe approuvesse. » {Lisboa de kontem, pag. 17-19.)

126 A FORMOSA LUSITÂNIA

ciado. Iam recolher-se provavelmente ao seu quar- tier. Aquella estranha melopea, e o cantar reque- brado e doce dos trovistas, são coisas agradáveis de se ouvirem então, quando a toada gradualmente se aproxima e gradualmente se esvaece no silencio de uma suave noite de estio.

Chegados ás portas antigas da cidade pois Al- cântara é a extrema occidental de Lisboa, inlra-mu- ros carregamos ao norte e fomos indo algum es- paço de par com os velhos muros. Ao da peque- na porta que abre sobre larga e plana estrada cons- truída á ilharga do cemitério dos Prazeres, para- mos a carruagem, antes de entrar em Lisboa, para retroceder a vista ao grandioso panorama que se nos havia desenrolado a espaços, quando subiamos a collina.

Oh ! se eu podesse fielmente pintar aquella for- mosa paisagem! Que vasta campina ajardinada com férteis valles e declivosos vinhedos, de cujas ramadas resaltavam os assucarados fructos a rece- berem o beijo do sol ! Os alvejantes cotlages agrupa- dos em redor de hervecidos terraplenos a verdeja- rem, doirados por laranjaes, limoeiros e limeiras, d'onde até nós chegava o perfume trazido pelas olo- rosas brizas ! Aspérrimos alcantis nas serras lon- gínquas — a pittoresca mescla de rochas, arvore- dos, agua, e o esplendor do sol-poente no momen- to em que transpunha a amplidão do mar! O Tejo, a barra, e o oceano além relampejando umas scin- tillações cor de roza ; e, ao passo que o sol se atu- fava nas ondas, o ceu a listrar-se de barras cham- mejantes d'ouro e azul, suavemente tingidas, no

UM PASSEIO DE CARRUAGEM, A TARDE 127

horisoiite, de um verde esmaiado e cor de laranja! Mais no alto, grandes massas de scintillante, purpu- ra de nuvens, com as orlas cor de oiro, embalan- do-se com magestosa belleza, ou parecendo repou- sai'em-se em amplos cingulos de carmezi a des- maiar-se em cor de rosa. Era um espectáculo su- blime ! Extasiamo-'nos largo tempo e silenciosos n'aquelle explendor, até que o crepúsculo o escu- rentou e as estrellas começaram a tremeluzir no limpido azul do ceu.

Scismei nos idolatras da luz e n'aquellas tribus de negros que eu vi ajoelharem reverentes ao brilhar de um arraiar e trasmontar de sol tropical ; e a mim me quiz parecer que o ajoelhar e adorar espectáculos assim coloridos pela mão celestial do creador seria não acção benemérita de indulgên- cia, mas até um acto natural em si.

Transpozemos as portas, e os guarda-barreiras sahiram logo a espreitar, mas attenciosamente, o in- terior da carruagem. Seguimos pelo cemitério dos Prazeres, denominação que impressionava mui- tissimo a gente quando lh'a pozeram. Porém, ain- da que tal nome lhe quadra mais do que parece porque a vida é na verdade um pezo grande para quem ante-ve com prazer a morte que lhe será alli- vio não se attribua a qualificação dos Prazeres a intuitos sentimentaes de viver e morrer. Foi por que no centro do terreno hoje encerrado em cemi- tério houve uma ermida dedicada a nossa Senhora dos Prazeres. Ha aqui bellos moimentos de már- more; e o mais pretencioso é talvez o do duque de

128 A FORMOSA LUSITÂNIA

Palmella. As ruas são orladas de cyprestes, e a ca- pella reedificada é ampla e magnificente.

Diversíssimo do dos Prazeres é o nome de Val- escuro que tem o cemitério do outro lado da cida- de. Encerra duas significações este nome : além de ser o « val-escuro » da morte, é também o local des- tinado para aquelles cuja rasão se escureceu pois que ali se sepultam os que morreram alienados. (•)

Á sabida dos Prazeres, o snr. Dom F., meu guia, pbilosopbo e amigo, e eu, contra o parecer do cocbeiro, resolvemos seguir a estrada nova até onde se podesse. Resultou d'abi enterrarem-se as rodas de repente em um entulbo de terra fofa da estrada ainda em construcção. A terra por fortuna estava sêcca e solta; as rodas apenas se enterra- ram de modo que um pequeno esforço as fez retro- ceder até onde se poderam desandar. Tornamos para dentro, porque o desastre nos fizera apear, e obrigara F. a metter litteralmente os hombros á roda e seguimos a pressa pela estrada inferior que é larga, plana, e esmeradamente plantada de arvo- redo, semilhando um bello boulevard. Passamos pelo pateo (terreiro) e calçada do palácio das Ne- cessidades, assim denominado, como provavelmen-

(') Lady Jackson guiou-se, ás vezes, pelo Novo guia do Viajante em Lisboa (1863J e leu talvez, a pagina 150: «Fct/ Escuro». Cemitério dos «ir- racionaes». Entendeu alienados por irracionaes ; e, sentimentalisando o me- lhor que pôde entre Val-Escuro e rasão-escurecida, creou em Lisboa um ce- mitério especial de mentecaptos, graveyard of lunatics. Boa rasão teve a il- lustrada auctora para aconselhar os seus conterrâneos a estudarem, como ella, a nossa lingua.

UM PASSEIO DE CARRUAGEM, Á TARDE 129

te sabe, porque foi edificado em terreno contiguo a uma ermida dedicada a Nossa Senhora das Necessi- dades— miraculosa imagem á (jual D. João V, edifi- cador da capelJa e do palácio, attribuiu o restabe- lecer-se de grave doença.

Depois do mysterioso fallecimento do joven mo- narcha D. Pedro V, e de seus irmãos os infantes D. Fernando e D. João, o palácio está deshabita- do. A fachada principal é moderna e bem assim o elegante chafariz e o obelisco de granito escarlate que se ergue no terreiro. (•) Encerram-se preciosi- dades no muzeu, e livros raríssimos e manuscriptos na livraria. A quinta das Necessidades recordo-me que era linda; e os jardins, que é de crer sejam agora menos cuidados, continham magníficos exemplares das mais raras plantas exóticas, viveiros de pássa- ros e lagos com seus bandos de aves aquáticas.

Na visinhança d'estes sitios também demora o vasto e extincto mosteiro de benedictinos, em cujos aposentos espaçosos as cortes se reúnem. São vas- tas, apropriadas e elegantes as camarás dos pares e deputados. A dos primeiros reputa-se superior á dos senadores em Luxembourg pela pi^imasia de sua opulenta decoração, em primores de esculptura, e com especialidade pela magnificência artística do throno. A caza da livraria também é magestosa, com as formosas pinturas do seu tecto.

(•) Leves emendas : A fachada nào é moderna : o terreiro, e não jJnf^o, como diz a auctora, é que tinlia sido modernamente aformoseado. O infante D, João não morreu no paço das Necessidades: foi no de Belém. Nada houve mysterioso no fallecimento do rei e dos infantes : succumbiram ao typho pal- ludoso como succede aos pobres, que morrem sempre sem mysterío.

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128

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130 A FOllMU.SA LUSITÂNIA

O Archivo real da Torre do Tombo, collecção pre- ciosa clc velhos documentos, está em outra secção do mesmo extincto convento. Vieram para ali de- pois que o grande terramoto assolou a torre do Cas- tello. São papeis coevos da origem da monarchia portugueza, comprehendendo não as chancela- rias regias, mercês e tractados, mas também todos os processos da infame Inquisição. N'estas recorda- ções históricas quantos romances pungentes se não enceri'am ! A historia de Portugal é com certeza a mais romântica das historias.

N'este archivo está a celebrada Biblia dos Jero- nymos enviada pelo Papa Leão X a D. Manoel, que, em testamento, a deixou ao mosteiro de Belém. Consta de sete tomos em pergaminlio bellamente escriptos, com esplendidas illuminuras, e rica en- cadernação de velludo carmezi, com chapas e guar- nições de prata lavrada e dourada. Estes inestimá- veis livros roubara-os Junot quando os francezes occuparam Lisboa ; e o governo portuguez, restabe- lecida a paz, reclamou-os. Luiz XVIII admittiu a reclamação, e restituiu a Biblia a Portugal, corn- prando-a á viuva de Junot por 80:000 francos. (*)

(•) A escriptora, qun não viu a Biblia, repoita-sc a alguma inexacta des- cripção que leu. A encadernação não é velludo-carmczi ; é marroquim en- carnado. Primitivamente, porém, a Biblia viera de Florença com as luxuo- sas capas que lhe lady Jackson. Participa esta senhora do erro bastante commum de que a Biblia foi um presente do Papa Leão X a D. Manoel. Eis o resumido extracto da historia da procedência d'esta obra prima, como a referem antiquários de credito : Em 1405 veio a Portugal Adamanto Flo- rentino com os 1." e 2." tomos da Biblia a fim de os negociar. D. João 2." comprou-lh'os por 6668 e dous terços da moeda y?<sío em ouro. (Proxima- mente 4.000:000 reis.) Condicionou, no entanto, ao vendedor que a Biblia cons- taria de sete tomos. O negociante, fechado o contracto, foi para Florença,

UM PASSEIO Dl'] CAIlUlíACIOM, A 'lAlíDl': 131

O nosso cocheiro reteve as rédeas á porta do Jardim da Estrella; porém, como estivesse a anoi- tecer, e eu aqui tivesse vindo mais de uma vez de manhã, apenas n(js d(3tivemos momentos a admirai- os heHos loureii'os-rozas, que eu nunca vejo sem lhes prestar homenagem. Chegam ah á aUura de desoito e vinte pés ; h'ondejam grande ramaria, sob a qual se estava como em fechado caramanchel de lúcidas íiòres escarlates. Ede uma delicada belle- za aquella florescência que se arredonda abafando a folhagem até ao topo da arvore, e, vestindo os ân- gulos, se afigura um enorme ramilhete. Ha duas ou três lindíssimas logo á entrada do Jardim da Es- trella.

Este jardim é o maior dos passeios públicos de Lisboa. Está alinhado com menos pr-umo que o Pas- seio Publico ; tem cascatas, estufas, canteiros, pas- seios tortuosos abobadados de arvoredo, uma gruta artificial e um serro d'onde podem tirar-se vistas encantadoras de Lisboa e do Tejo.

Afora esses attractivos, está alh um bello leão, sósinho e triste na sua leoneira. Uma manhã, me encarou elle de catadura e rugiu terrivelmente

d'onde voltou em 1501, com os restantes cinco tomos, que entregou a D. Ma- noel, já rei desde 1485. Quando este monarcha legou a Biblia aos monges de S. Jeronymo, na verba relativa, diz: Item mando que se ao Mosteiro de N. Senhora de Bellem a Coslodia que fez Gil Vicente para a dita casa, e a Cruz grande qrie está em meu thesouro, que fez o dito Gil Vicente, e asy as Biblias escriptas de penna que andam em minha guarda roupa as quaes são guarne- cidas de prata e cobertas de veludo cramesim. Quanto ao resgate do manus- cripto, a illnstre viajante dobrou a quantia. Os herdeiros do marechal Junot receberam 40:000 francos, posto que o snr. conselheiro Soriano o historia- dor contractado e mui copioso, diga 80:000.

132 A FORMOSA LUSITÂNIA

como se estivesse muito aborrecido d'aquelle ermo. Disse-lhe eu então: «Queres saliir d'ahi?» A crea- tura cresceu para mim logo como se me entendesse, e parecia dizer-me que estava prompto a escapulir- se de um pulo, se eu lhe abrisse aporta. Voltei-me então para o guarda, que, imaginando ser este meu movimento susto do leão, me disse : He tnuilo manso, minha senhora, não tem duvida. «E uma cruel- dade — repliquei eu tel-o aqui prezo. Porque o não deixa sahir?» O homem quasi ficou tão pas- mado com estes meus dizeres como o próprio leão. Fitou-me desconfiado, posto que a sorrir-se, e eu comecei a scismar se o sujeito me imaginaria de- mente— e, na verdade, é de crer que sim. Mas, como eu não estava sósinha, talvez se lhe appla- casse o medo de que eu tentasse algum arrojado esforço para soltar o leão. Miserando bruto ! Se é dotado de phantasia, pode ser que se imagine nas suas selvas n'um Ímpeto de saudade, porque o cer- cam ramalhosas arvores, que ali cresceram em pouco tempo prodigiosamente. (•)

De feito, o todo d'este prosperado jardim é com-

(•) o leão da Estrella morreu de nostálgica semsaboria em 1876. Ha poucos dias que um periódico de Lisboa commemorava o trespasse do leão. Não posso louvar-lhe a excêntrica methapViysica pelo que respeita ao destino das almas das bestas-feras. Diz assim: «... D'antes (o Passeio da Estrella) tinha um grande attractivo para as creanças, para os soldados da municipal, e para as creadas de servir o leão. Elle, porém, coitado, deu a alma a Deus, e a pelle ao cmbalsamador da rua do Moinho de Vento, o deixou a jaula que enchia com os seus urros coUossaes, pela eternidade da palha e estopa com- que vai encher a sala do snr. Paiva Raposo».

Gilberto {Diário da Manhã).

UM PASSEIO DE CARRUAGEM, Á TARDE 133

parativamente do inofl(3i'na formação. Foi plantado em um vasto terreno sáfaro, que, no \'ol ver de pou- cos amios, se tornou um dos mais adoiTiados pas- seios públicos d'esta bella cidade.

A entrada principal deí'i'onta com a Basilica do Co- ração de Jesus, ou Igreja da Estrella, a mais formo- sa de todas no exterior, tirante a dos Jei^onymos. (•) De quasi todos os pontos de Lisboa se lhe avista o zimbório. No interior ó por egual formosa: ca- pellas, altares e pavimento são formados dos mais excellentes e variegados mármores portuguezes. Os jazigos da fundadora, D. Maria I, e do arcebispo seu confessor, são também ostentosos. O templo foi edi- ficado pelo eslylo de S. Pedro de Roma, e, ã ma- neira de outros templos erigidos n'este paiz, é o cumprimento de promessa feita pelo nascimento do herdeiro do throno.

Deixamos a egreja e os jardins, e voltamos á es- querda pela Estrellinha ou hospital militar que tem uma lindíssima cerca de recreio para os convalescen- tes que podem passear. D'aqui, passando por gran- des casas e bollos palácios de fidalgos, chegamos ao cemitério inglez. Pei^to da porta gosa-se uma das encantadoras perspectivas de Lisboa que tantas ve-

(•) Custa a iudulgenciar esta incuos de feminil critica na aproximação -que esta senhora faz do convento de Jesus com a egreja dos Jeronymos Se é possível graduar comparações entre a architectura mal denominada Manuelina do templo de Belém e a fachada da egreja de D. Maria 1.*! «caricatura da caricatura» como lhe chamou A. Herculano, confron- tando a caricatura de Mafra com a caricatura da Basilica do Coração de Jesus.

134 A FORMOSA LUSITÂNIA

zes nos enlovam, quer subamos ou desçamos no tra- jecto de um curto passeio !

A capella é como um vasto e alto salão, corre- ctamente plano, limpo e claro, com suas bancadas de assentos de palha. As janellas abrem-se a grande altura em um dos lados, e são em parte sombreadas pelas frondes das grandes arvores que bracejam ao do templo. Na presente estação, porém, é fati- gante ir á egreja por causa do calor, ainda mesmo para quem mora ao pé. Fui assistir ali ao ofíicio divino no domingo passado. Estava um sol arden- tissimo; e não tive a cautela de ajustar com o co- cheiro antes de entrar, pensando ser desnecessário alugar-lhe o trem para me esperar, ou ir depois bus- car-me. Disse-me que estava justo para ir a cidade baixa, não querendo, supponho eu, esperar-me duas horas ao sol, ou subir outra vez a encosta. A con- sciência absolveu-o de pregar-me a mentira de que perto d'ali se alugavam seges. Ainda assim, não me foi pequena consolação, quando eu voltava a pé, en- contrar outras pessoas da mesma congregação que sxjffreram igual incommodidade.

A capella, ao que parece, é bem arejada, mas o afogueado da temperatura prevalecia. Havia no ar uma certa modorra cálida que pesava sobre as pal- pebi^as. Ora, se as cadeiras tivessem confortáveis es- paldas, não seria desagradável, se isso fosse licito, deixar-sc a gente adormecer e sonhar em coisas di- versas d'aquelles objectos circumstantes que de vez em quando nos prendem a attenção. Porém, não sendo isto exequivel, entalam-se uns nos outros em suas cadeiras, hombros com hombros, sustentam

LM PAbbEÍO UE CAUUUAOEM, Á TAUDE 13Õ

assim as cabeças ao alto, e parece conchavarem-se ii'um espirito de intrepidez para reagirem aos ata- qiKís do somno; entretanto, attentas as cii'cumstan- cias, se a carne é fraca e com pouco succumbe, o ador- mecer alli não me parece cazo pai*a espantos, antes o acho digno de desculpa. Quanto a mim, pai-a, evi- tar que as pálpebras se me fechassem, appliquei os ouvidos e escutei as chilreadas notas dos passari- nhos, que se gosavam na fresca sombra das rama- rias que as leves auras baloiçavam defronte das ja- nellas, e era alii que as aves cantavam o seu officio divino em dulcíssimos gorgeios e jubilosos trilos.

O cemitério circumposto á capella é geralmente muito conhecido pelos «Cy prestes», por causa dos muitos e magnificos que tem. Tristonha seria esta mansão se o lúgubre aspecto d'aquellas esguias e torvas arvores não fosse dulcificado pelos feixes de flores e arbustos que as cercam, e pelos risonhos bosquetes de gerânios cujas brilhantes florescen- cias, pelo contraste, parece convidarem os anoja- dos que visitam aquellas sepulturas (cá tristeza que esp'ranças suavisam.» (•)

Alguns annos antes tinha eu visitado aquella ca- pella com uma menina de dez annos. Era em diversa estação no mez de fevereiro ; o caminho, que é todo em declive até á rua do Alecrim, era então aprazível. Foi n'um domingo de carnaval, o primei- ro dos trez dias ali chamados dias da inlruda, quan-

(•) Costuma Lady Jacksoii cerrar entre aspas umas phrazes que soam poe- ticamente ; mas níW as auctorisa nem nós as conhecemos ; ainda assim, quando as encontramos, bem ou mal, deu-se-llies uns geitos de rythmo.

136 A FORMOSA LUSITÂNIA

do as loucuras carnavalescas refinam. (•) Como nâo reparássemos no dia que era, iamos tranquillamente recolhendo a casa, quando do primeiro prédio que to- pamos nos deitaram de uma janella, como nuvem de borboletas, uma mão cheia de pétalas de flores. Logo adiante, atiraram -nos uma saraivada de con- feitos que nos zuniram nas orelhas ; e a final os projectis eram menos limpos, porque nos despe- javam por cima abadas de favas e ervilhas. Apres- samos o passo, mas em todas as janellas havia gente que espreitava e atacava os transeuntes com arroz, sal e pós ; e, ás vezes, dos andares mais al- tos desciam esguichos de agua como despejados por um regador. (••)

A minha companheirinha começou a chorar, e eu mesma ia assustadíssima porque havia por ali muitas caraças, posto que não se dirigissem a nós. Espreitamos para dentro de vários cazebres; mas em toda a parte havia dominós ou mascarados gru- tescamente vestidos, mais azados para zombarem do nosso medo que para nos protegerem. Sege não se via uma, a não ser carrejando variegados fre- guezes para os pontos mais frequentados da cida- de; e nós, miseras perseguidas e espavoridas crea- turas tínhamos ainda muito que andar. A nossa única esperança de salvação em tão affiicto aperto estava no acaso de ter sido enviado um moço da

(•) Dias da intrada diz a escriptora insulana como se quizesse pôr tam- bém mascara na lingua de Camões.

(■•) Lady Jackson escreve loatering-pot; parece que deveria, se viesse o objecto com que a esguicharam, escrever syringe^ se em livros inglezes é li- cito estanqjar-se aquella palavra representativa do um instrumento funesto.

UM PASSEIO DE CARRUAGEM, Á TARDE 137

casa á nossa procura. Entretanto, ninguém ap- parecia, e as coisas peoravam, quando um não-dis- farçadu cavalheiro, que reparara no nosso infortú- nio, sahiu de uma porta, offereceu-se acompanhar- nos até encontrarmos um trem, e mandou logo o seu creado procural-o, em quanto nos deu o co- nhecimento de duas amabilissimas senhoras, sua mãe e sua esposa.

Duas vezes voltou o creado com a desagradável noticia de que não havia seges, porque os donos as não alugavam senão a mascarados e por alto pre- ço. Terceira vez partiu o creado, dizendo que acha- ra um que nos levaria a casa por uma certa quan- tia— trez vezes mais que o aluguer uzual. Acceitou- se satisfatoriamente a proposta. D'ahi a pouco rola- va a solavancos a carruagem : era ainda a antiga sege tirada por machos hirsutos com o bolieiro na sela. O nosso bemfazejo protector ajudou-me a su- bir, e poz-me dentro a menina, cerraram-se cauta- mente as cortinas de coiro ; mas, com a tropeada que fazia o carro á desfilada, desafiávamos os pro- jectis que nos atiravam de todos os lados, ao mes- mo tempo que o boleeiro estallejava e brandia o chi- cote para dispersar os mascaras que por vezes ten- taram parar o trem, ou trepavam ao estribo para nos espreitar pelos óculos das cortinas.

Quando entramos em casa havia grande ancie- dade na familia por nossa causa. tinha man- dado em nossa procura o creado que tão preciso nos fora, e por andava a ver se voltaríamos sem pe- rigo. O meu conhecimento com F. data d'este

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LM PASSEIO DE CAUIAGEM, Á TAUDE

139

luzes numerosas de gaz sintillando por entre a bu- liçosa i-amagem do arvordo. Quando entravamos na rua do Ouro, Irnibrou-ne perguntar pelo resul- tado da minha entrada na Iteria. Caso maravilhoso! F. ganhou cinco mil-reis, om o sru cncado ; ([uaiúo aos meus numei'os. aBracns, todus brancos!» foi a resposta. Bem, bem! Nãi tentarei mais ;i Fortuna. Não foi esta a primeir.i •'/ (ju<* eu lhe paguei o meu ti'ibuto por egual ft ii», •' nunca lhe inci-iM-i nni sorriso. Adeus, pois, iu ii>tante deidade, adeus!

Voltamos pido aiegi- 'hiado e lomos aj)ear ao Grémio, cujos j.u-dins >'i< nltimiunente uiuiío con- corridos d«í senhoi*as h<'-| nholas, que estão dando (j tom. Na noute passal estiveram l.'i bastantes. Muitas são abelhudas e iioi'a(h<;as; poucas se po- dem considt.war boiuta> ; laiiío a espiri(U(jsas, ha- vei-á uma ou duas, ;i fali i xcrdadc'. Fstas senhoras desde que trocaram os >(is trajes naciona(3s j)(»his extravagantes niod;is chaiadas parisienses (<pie as francezas destino gost > i'\n usam, e (puisão nnias exportações dos caprich'. americanos) |)i'i-(l<'i;nii aquelle indeíinivel encanfMpie lhes da\ani o amplo V(,'stido (U; síida e a gi*aci<a mantilha, end)oi'a não íossfjin bonitas; e, s«') a>-^ll trajadas, lhes ia heni a gari'i(hce e destreza (;oni <ic \ibram o lr(|ii(;.

Poucas seidioras p^iiguezas estavam no (rre- mio ; mas, por via de r ia, a >ua auzencia laz-sj; sentir menos ípn» as da- nas ii-rnãs dr íí<'spaiilia. P\altadh(ís o presiif/e fie '. «-/.a que tam pi'<,'sunip(;o- sas torna as hespaidiol •• como que não armam ãs homenagens ípn? as iias, ao ipir parece, cui- dam (|ue se lhes deve. I.i ahi (pie farte meninas

138 A FORMOSA LUSITÂNIA

episodio carnavalesco, pois foi elle quem nos sal- vou da perseguição dos mascarados.

Acabava de se illuminar Lisboa, quando passá- vamos no Moinho de Vento, pelo passeio de Alcân- tara e Jardim de S. Roque. (•) Propuz que descês- semos em trem pelo Chiado, cujas lojas abrilhanta- das pelo gaz resplandeciam notavelmente. Passea- va-se muito : parecia estar por ali toda a gente, a não ser uma ou outra dama, aqui e além, de leque na mão, á janella, provavelmente á espera do namorado. A briza da noite descalmara-nos do quebranto do cálido dia; havia animação; as lanternas das car- ruagens coruscando de todos os lados realçavam a geral actividade e ruidoso mouvement da scena. Umas carruagens iam cheias de senhoras bizarramente trajadas; outras, levavam homens somente dispo- sição que muitas vezes notei; mas não a entendo nem appi^ovo. Recordo-me da velha usança portu- gueza de ficarem as senhoras a um lado da sala, e os cavalheiros ao outro ; porém, o máximo numero dos occupantes das carruagens iam para algum dos passeios públicos ouvir as orchestras militares ; e ahi, com certeza, é que deveria dar-se a desconfu- são mais natural e sensata dos dois sexos. (")

Do Chiado passamos a dar um giro no Rocio, que de noite é bello de ver-se com as suas lojas e

(•) Este jardim de S. Roque é lapso de memoria.

(••) Isto é assim. Se as senhoras sahem sósinhas nos seus trens para o Passeio Publico, e se ajuntam aos sujeitos seus conhecidos, porque não hão de sahir logo de suas cazas com os referidos sujeitos nas suas seges? O conselho é bom, e vem de boa terra em tudo que toca a sãos costumes.

UM PASSEIO DE Cy^RRUAGEM, A TARDE 139

luzos numerosas d(3 gaz scintillando \)or entre a bu- liçosa ramagem do arvoredo. Quando entravamos na rua do Ouro, Icmhrou-mc perguntar pelo resul- tado da minha entrada na loteria. Caso maravilhoso ! F. ganhou cinco mil-j*eis, com o seu cruzado; quanto aos meus números. nBrancos, todos brancos!)) foi a resposta. Bem, bem! Não tentarei mais a Fortuna. Não foi esta a primeira vez que eu lhe paguei o meu tributo por egual feitio, e nunca lhe mereci um sorriso. Adeus, pois, inconstante deidade, adeus!

Voltamos pelo alegre Chiado e fomos apear ao Grémio, cujos jai'dins são ultimamente muito con- corridos de senhoras hespanholas, que estão dando o tom. Na noute passada estiveram bastantes. Muitas são abelhudas e namoradiças ; poucas se po- dem considerar bonitas ; quanto á espirituosas, ha- verá uma ou duas, a fallar verdade. Estas senhoras desde que trocaram os seus trajes nacionaes pelas extravagantes modas chamadas parisienses (que as francezas de fino gosto não usam, e que são meras exporttições dos caprichos americanos) perderam aquelle indefinivel encanto que lhes davam o amplo vestido de seda e a graciosa mantilha, embora não fossem bonitas ; e, assim trajadas, lhes ia bem a garridice e destreza com que vibram o leque.

Poucas senhoras portuguezas estavam no Gré- mio ; mas, por via de regra, a sua auzencia faz-se sentir menos que as das suas irmãs de Hespanha. Falta-lhes o prestige de belleza que tam presumpço- sas torna as hespanholas, e como que não armam ás homenagens que as outras, ao que parece, cui- dam que se lhes deve. Ha ahi que farte meninas

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portuguezas formosas, e no geral, esbeltas e ele- gantes ; posto que, ao descahir da juventude, pe- gam de nutrir enormemente. Talvez se deva isto ao muito que vivem por caza, ao uso dos largos trajos cazeiros, e á inércia da janella que preferem ao exercicio na rua. (•)

Mas, n'esta parte, os seus costumes tem mu- dado muito nos últimos annos; e as meninas da ge- ração nova, quanto a donaire, educação e maneiras em nada desmerecem das hespanholas ; antes pelo contrario, distinguem-se por uma meiguice e deli- cadeza que é o contraste da brusquerie, muito pare- cida com a rusticidade, que se observa, ás vezes, nas senhoras hespanholas, especialmente nas que se enfeitam para captivarem as attenções de todos os circumstantes. Muito me divertia ao vel-as, na noite passada, tão mal succedidas, apezar dos seus requebros galanteadores, e dos pennachos e grinal- das, e flammulas dos seus chapeus-7?a/íf/v/a.s' des- graçados, desgraçadissimos substitutos da elegân- cia, da faceirice, da mystica belleza do veu hespanhol.

(•) N'outio lanço deste livro a auctora recommeada ás damas portugue- zas que vivam resguardadas em suas casas e se deixem de andar «ao faino» (boa palavra lusitana para quem não gostar do flaner). Agora, para que as formosas não se avolumem com tecidos adyposos resultantes da inércia e do desatavio dos trages cazeiros, diz-llies que se espiutilhein, que saiam da ja- nella, e que vão para a rua. Este conselho é moUior que o outro, porque o exercicio é bom, e ao exercicio grande, bazcado na fortaleza dos pés, devem as senhoras inglezas a compleição fina que as torna incisivas sobre agudas.

CAPITULO XI

UMA CAPELLA E UMA CORRIDA DE TOUROS

Esta manhã, lembrei ao meu companheiro de passeio intelhgente moço de quinze annos que fôssemos á egreja de S. Roque e visitássemos a fa- migerada capella erigida por D. João V, e dedicada ao seu santo tutelar. A lembrança agradou ao meu joven amigo, que, vivendo em Lisboa, apenas co- nhecia de oitiva as maravilhosas bellezas da cele- bradissima capella. E raro o ensejo de a poder vi- sitar, a menos que nos recebam como visita espe- cial, porque somente em certos dias se faculta ao publico.

Eu a tinha visitado, aqui ha annos; e vol- tei ainda outra vez, arranchada com umas damas que, a meu pezar, conseguiram levar-me comsigo. Andavam ellas por ali tão distrahidas a paira- rem, consoante a costumeira de mulheres, que as desbotadas memorias que eu ainda conservava d'aquella portentosa capella mais se deliram do que reverdeceram com tal visita. No enthusiasmo da sua admiração, chamavam-me para ver isto, para ver aquillo; e, sem me deixarem examinar o que eu ti- nha deante dos olhos, apontavam para cima, para baixo, para aqui, para alem, tudo ao mesmo tempo; de sorte que eu imaginei-me n'um redemoinho de

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columnas, de esculpturas, dourados, pinturas, lam- padários sem poder distinguir onde uma coisa prin- cipiava e acabava a outra. O próprio sachristão que- dara-se mudo e estupefacto, submerso n'uma tor- rente de perguntas que lhe disparavam n'um francez detestável que aquellas senhoras, ignorando a lin- gua portugueza, imaginavam que o triste do homem devia entender.

Tinha elle comsigo um masso de impressos em diversas linguas com informações respectivas á ca- pella.

E costume entregar a cada visitante um dos impressos; porém, como elle não podesse descor- tinar qual fosse a linguagem d'aquellas trefegas creaturas, voltou-se para mim, perguntando: «se- nhoras allemans?» Sacudi a cabeça; e elle, entre- gando-lhes todo o masso dos impressos, disse-lhes em portuguez: «Procurem as senhoras. A sua lín- gua está ahi?»

Um rancho de mulheres que viajam desprotegi- das (•) é sempre um espectáculo triste e humilhante. Quer esse grupo se componha de meninas soltei- ras, animosas, projectando instruirem-se, corajosas para se arrostarem com obstáculos que assustam as menos resolutas, desapressadas de bagagens, tra- jando chapéus amolgados e waterproofs lamacentos, e desprovidas da protecção de um homem; quer seja esse grupo foi'mado de companheiras sem pro- pósito designado, com o simples intuito de se di-

(•) Desprotegidas, entenda-se «desacompanhadas de homem.»

UMA CAPELLA E UMA COllRIDA DE TOUROS 143

vcrtiroin, pi*otogendo-so rociprocamente, á maneira do caiiaviid cujas hastes frágeis mutuamente se am- param,— a situarão, em quakjuep das hypotheses, é sompi^e a mesma.

Quem precisa viajar, e não pode ter a compa- nhia de esposo, filho, irmão ou sobrinho, nem pode assoldadar os serviços de mordomos ou aias, o mais acertado é que viaje sósinha. Observei sempre, aqui mesmo n'este paiz onde raro se o caso de uma dama jornadear sósinha, que se presta mais corte- sia e respeito ã viajante que vae do que ás mu- lheres que viajam ás duas, três e quatro. Presumem ellas que mutuamente se dão o auxilio e amparo que a outra, que anda sósinha, naturalmente parece pedir á benevolência das pessoas com quem de pas- sagem se relaciona.

Como quer que seja, as senhoras de que venho fallando não eram um rancho feminil de viajantes em Portugal ; mas iam de passagem para os seus parentes da America do sul, e haviam saltado em terra por poucas horas «para ver tudo que houvesse que ver em Lisboa» como alguma gente cuida que em breve espaço de tempo se pôde fazer.

Imagine que, durante esta digressão, subimos a costeira rua, e chegamos a S. Roque. Está aqui situada a santa Casa da Misericórdia, onde nos disseram que encontraríamos um velho de cabellos brancos, a cargo de quem está obter licença de abrir a capella. Os expostos são recebidos n'esta Santa Caza, e a pobresa invalida de ambos os se- xos subsiste dos meios proporcionados pelas lote- rias. Havia na rua grande turba á espera, creio eu,

144 A FORMOSA LUSITÂNIA

dos bilhetes. Presume-se que os comprados á San- ta Caza são mais afortunados do que os vendidos pelo cego. Numerosas velhinhas de capote e lenço sobem e descem a vasta escadaria.

Em cima estão outros velhos que parece espe- rarem a esmola, e ao cabo de um longo e largo corredor não está somente um velho de cabellos brancos, mas trcz, ou quatro sentados, de penna em punho, á volta de uma ampla escrivaninha. O bulicio do jogo, dos bilhetes que se mercadejam em baixo, e o trafego da caridade em cima, á San- ta Caza as exterioridades de uma grande labutação mercantil.

Respondendo satisfatoriamente á pergunta que nos fizeram se sabíamos quanto devíamos pagar por ver a capella expressamente aberta para nós sahimos e endireitamos para a egreja, onde dous graves personagens, um com as chaves e outro com os impressos, nos surgiram detraz de um reposteiro que dava communicação para a Santa Caza. O mais que pode encarecer-se das bellezas da capella de S. João Baptista conhece-o muita gente pelas des- cripções.

É, na verdade, uma jóia inapreciável sumptuo- so capricho de D. João V, o fundador da soberba Mafra o mais extravagante dos monarchas portu- guezes. Chamam-lhe o Magnifico, o Magnânimo, o Rei Edificador para o estremarem dos seus homo- nymos.

Procurei uma photographia da capella ; mas não ha nenhuma. Rocchini, o primeiro photographo de Lisboa, ou, mais correctamente, de todo o Portu-

UMA CAPKl.LA K IMA ('OKIilDA 1)1-: TOUIiOS 145

gal, esforçou-se por tiral-a; mas não lhe deram li- cença. Recearam que os visitantes, em vez de paga- rem para ver a capella, c(jmprassem a photographia, e que assim a egreja ficasse lesada no seu privilegio de se mostrar. Mas, (^om certeza, estão enganados, porque nenhuma photographia pode dar uma ideia do azul-escuro das estrias lapis-lazuli das oito ele- gantes columnas que formam a capella; da exqui- sita cor do verde-anligo do altar; dos artísticos em- butidos de amethysta, cornelina e alabastro egypcia- co; dos degraus de porphydo, e do pavimento de jaspe, jolde-antigo, granito e mármore romanos. As esculpturas de mármore de Carrai'a da abobada são a mais delicada e perfeita obra de arte ; todavia, o preciosíssimo entre os portentosos primores conti- dos n'esta capella bijon são os ti*cs formosos quadros de mozaico, representando o «baptismo de Christo», segundo Miguel Angelo, a ((Annunciação», segundo Guido, e a «Descida do Espirito Sancto», segundo Raphael Urbino. (*) Quinze annos trabalharam n'isto os mais egrégios artistas de Itália. Cada quadro é uma reconhecida obra de primeira execução, suave como a pintura mais mimosa, com harmoniosa com- binação de cores e perfeição de claro-escuro. Se, onde tudo é óptimo, pode haver escolha, talvez caiba a preferencia ao quadro do Baptismo ; ainda assim, a angelical expressão da Virgem, na «Ainiunciação»

(•) o abbade de Castro, antiquário de fama, escreve que os originaes dos trez quadros referidos foram inventados e pintados em Koma pelo insi- gne artista Agostinho Massucei. Este pintor veio a Portugal em 1747 e fez alguns quadros a óleo para a egreja de Mafra. {Carta dirigida a Sallustio7 pag. 31). 10

146 A FORMOSA LUSITÂNIA

é para muita gente a mais encantadora. O centro do pavimento de mozaico representa uma (isphera ar- millai'. Os homens, que mostram a capella, dizem que a esphera quer significar que «o mundo não con- tém mais famosos objectos que os referidos quadros». Os lampadários e castiçaes são massiços de prata dourada, esculpturados a primor. São seis os casti- çaes com sete ou oito pés de altura. A capella foi toda construida em Roma; e, afim de ser sagrada pelo Papa Benedicto XIV, esteve algum tempo em S. Pedro. Sua Santidade disse nella a primeira mis- sa, pela, qual se affirma que D. João V dera 200:000 cruzados. A totalidade do custo da capella diz-se que ultrapassara um milhão de libras esterlinas. (•) Em 1746, nove annos antes do grande terramoto, foi a capella erigida na egreja de S. Roque. Parece quasi prodígio que S. Roque e a sua celebrada capella es- capassíMii integralmente ao abalo, que destruiu em 1755 tudo em redor, e, no local contíguo mais emi- nente, a explendida egreja do Carmo! E mais singu- lar ainda é que a devastadora garra dos francezes invasores de Lisboa não roubasse nem destruís- se os thesouros da capella. Conta-se, e pode ser verdade, que Junot tanto se agradara da, belleza do toul-ense/mble, que resolvera, quando se lhe propor- cionasse ensejo, transferir para França a capella com as suas preciosidades. Felizmente não se lhe ageitou occasiãi) de executar tal projecto.

(•) Cem mil cruzados em ouro foi quanto o monarcha enviou a Benedi- cto XIV, a titulo de esmola pela missa. Em trez milliues de cruzados calcu- laram os escriptores coevos a importância da capella de S. Roque.

UMA capi:lla !•: uma cokiíida di: Toriíos 147

Visitar a capella de S. João não era o exclusivo intento do nosso passeio matinal. Antes de entrar em S. Roque, conseguíramos coisa não menos ur- gente que segurar bons logares para a coi'rida de touros, á tarde. A toirada, tanto pi'oressional como de curiosos, é actualmente o mais populai' diverti- mento de todas as classes. Estamos agora no pon- to culminante da estação toureira; que o tempo de maior calma é o melhor que desejar-se pode, por- que então recresce a braveza e sanha dos touros.

Alguns curiosos fidalgos ultimamente foram con- vidados a ostentarem no Porto suas proezas, e pa- rece que conquistaram «brilhante renome», na leal e invicta cidade, como aos seus habitantes apraz chamar-lhe. Por esta especial occasião, as senho- ras, que acompanharam os denodados heróes do momento, mandaram buscar os seus vestidos ao grande homem das modas, M. Worth. As que não lograram a dita de serem observadas por elle, re- ceberam em Lisboa os periódicos com uma perfei- ta descripção d'aquellas «maravilhas do gosto e ele- gância parisiense», largura e qualidade de avolant'^ el rouleaux, comprimento de caudas), etc. , etc.

O rancho jornadeou em duas «explendidasj) car- ruagens-salões . Muitos trens a quatro, com os cavallos enfeitados de fitas, os esperavam ã che- gada, onde tiveram espaventosa recepção. As ruas e praças por onde transitaram os distinctos curiosos foram adornadas de bandeiras e grinaldas. A de- coração da praça ou circo dos touros era, segundo ouvi, digna dos aristocráticos toureiros e dos espe- ctadores. Annunciara-se que os touros eram so-

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I.LA E UMAOlíRIDA DE TOUROS 147

Ha de SJoão não era o exclusivo ' passeio latinai. Antes de entrar 'iisegLiii-atos coisa não menos ui- !■ H- bons Iqaivs para a corrida de V toii'ada, anto pi'otessionaI como ^ -a. tualment- o mais popular diverti- Wm as classes Ivstamos agora no pon- f lia estarão tnreii'a; que o tempo de I lo melhor (jc desrjar-se pode, por- I fcsce a bravca c sanha dos tonros. J yVn-o.v //Wa/^oailtimamcnte foram con- ritarem no Lrto suas proezas, e pa- listaram íd) HiMiitc renome», na leal f, «'(Mnij iiu scLis hahitanttís apraz or esta (3spcial oc(^asião, as scnho- Fjjanhai'am i (h-iiodados h(M'tM's do fndai-am hii- n- us siuis vcsíidos ;io fids Hindus, \l. Worfh. As (|ii." nfio lia d(j surr-m ^)s 'ivadas jjoi- cljn, n;- .ishoa os pi'i )ihr »s com nma pcrlci- d'aípi('llas «onravilhas do gosto t; ele- iMisr», largiir.c (|iiahdadt' de avoliinh \()inf)rimenl() dfíuimht», (!t(*. , ntc.

j')i-nad<'()u rriihi.is ocxpli-níhd.isy cwv- !<'>. Mnitos j 'ns H quati-u, coin os pitados íl«> íit;;, os (;sp(M'avani ã cIk!- iivfiam espavotosa i*e(;('p(;ão. ^

onde transita im os disli^^ ladas de banH«r;is c «r prvira ou cin I dos aristocraii < Vinuinciapii--'

148 A FORMOSA LUSITÂNIA

berbos bichos; e eu creio' que elles procedessem como convinha, combatendo com cavalheiros de alia jeí^quia. (•)

Escreveu-me testemunha ocular : «que os tou- ros se comportaram com a mais cavalheiresca man- sidão; que os cavalleiros hábil e dextramente se desviavam do menor perigo ; que não houvera ar- ranhadura de parte a parte; que os bois sahiram coroados de louro ; que os cavalheiros sahiram car- regados de canastras de ramos, lenços de algibeira e outros projectis com que as meninas enthusias- madas lhes atirar-am; e, emfim, que o divertimento acabara tumultuosamente applaudido.

«Depois da corrida, houve lauto banquete (envio- Ihe o menu). Depois do banquete, baile, em que Lisboa e Porto dançaram de mãos dadas até ao romper da manhã. No dia seguinte, veio uma pro- cissão de carruagens a quatro á despedida. A noite, entravam nas carruagens-salões. As senhoras, quan- do entramos em Lisboa ao apontar do sol, traziam os carões espantosamente desfigurados. Ajuntara-se gente na estação para nos saudar. Penso que esta gente cuida que a ovação adquirida pelos seus con- cidadãos relumbra uns pallidos lampejos sobre as suas pessoas. Quando as carruagens dos jidalgos- toureiros largaram, retumbaram vivas estrondosos e prolongados.»

D'esta descripção pode inferir que o correr tou-

(•) Deve acceitar-se o neologismo jerequia para não confundir toureiroa com representantes de gcr\\x\n-A jerarchia Devemos, pois, a esta escriptora duas novidades na língua: àjerequia e os ginottos.

UMA CAPELLA E UMA CORRIDA DE TOUROS 149

i*os ó aqui um divci-timento aristocrático, c em toda a parto do reino é commum predilecção dos man- cebos. E isto um acto menos covarde, e, consoante o costume de Portugal que diverge muito de Hes- panha, bem menos cruel que atii'ar aos meigos pom- bos. Mas, na maior parte dos casos, uma tourada de amadores é tão estúpida e fatigante como uma representação de curiosos.

Durante a estação, ha touradas em Lisboa todos os domingos, e ás vezes ás quintas feiras. Se os toureiros são hespanhoes, ha maior enthusiasmo ; porém, se algum d'elles tem fama, camarotes, ca- deiras, todos os logares se enchem, e a família real provavelmente concorre. Urge, todavia, que os hes- panhoes se submetiam ao estylo portuguez. Com- parado com Hespanha, o tourear em Portugal está na mesma proporção d'um esgrimir de floretes com- parado a um combate de morte á espada. Nunca se matam os touros; sobrevivem para nova corrida; alguns d'elles se conhecem ha muito, e, segundo me disseram, não desgostam do spo7H; cm todo caso, parece que vão da melhor vontade quando os anta- gonistas são curiosos; porque então entram n'aquillo como brincadeira, posto que, uma vez por outra, brinquem um pouco brutalmente.

O que hoje vi é um famoso hespanhol mata- dor de Espada o que no touro o coup de gràce. Estes astros toureiros são em geral conhecidos em Lisboa, em Madrid e outros sitios de Hespanha por um sobriqiiet predilecto; e, se os homens são gentis ou seductores, causam terríveis commoções nos co- rações das meninas sensiveis. E então, que chuveiro

150 A FORMOSA LUSITÂNIA

ahi vai sobre elles de flores e suspiros, fitas e mei- gos olhares, poesias e cintas de seda! E, melhor ainda, os camarotes a trasbordar, e o estrépito das palmas enthusiastas ! Desde que entram na arena até que sahem, é uma scena de triumpho; e seria até uma apotheóse, se lhes succedesse algum desas- tre: tal é o delirio dos seus admiradores!

Ao norte da cidade, e não longe, no campo de SanfAnna, está a Praça dos touros. Para chegar, antes de principiar o combate, é- preciso sahir cedo de casa. As carrugens tem grande extracção, e os cocheiros condicionam altos preços, como sempre fazem em occasiões análogas. Galgamos pois a trote a subida que leva ao Campo, de par com ou- tros trens, na maior parte cheios de damas. Muita gente a seguiu o mesmo caminho, e viam-se en- tre a turba muitas senhoras com os seus véus hes- panhoes.

O campo, vasto terreno aberto, com arvoredo em roda e no topo de uma ladeirosa coUina, estava juncado de vehiculos de variado feitio que haviam trazido os espectadores mais prevenidos. Estavam sentinellas ás portas do circo, e as turbas apinha- vam-se nas cazinhas onde se vendiam bilhetes de logares á sombra ou ao sol no amphitheatro. Com quanto espaçoso, o circo não é elegante, nem solido apparentemente. Ha na sua estructura um esfarra- pado, um não sei quê de molleza de papelão pela forma em que o construíram, que a gente receia ver arrazar-se tudo aquillo antes de findar o es- pectáculo. Não obstante, a casa está mais segura do que parece, e é bem bom sabei*-se que ella se

UMA CAPELLA E UMA CORRIDA DE TOUROS 151

aguenta com milliaros de pessoas todos os domin- gos.

Não }3odiam ser melhormente escolhidas as nos- sas cadeiras. Ficamos na fileira da frente, para onde subimos por uma rampa escadeada. Estávamos a salvo da visita dos touros, e mais perto do circo do que os camarotes, que tem a desvantagem de gosar o espectáculo de demasiada altura. Tendo vindo de Queluz o rei e a rainha, e de Cintra D. Fernando, decerto não faltariam a realçar a alegre scena com a sua presença. Todavia, de per si a fama do lie- roe enchera de roldão todos os logares do amphi- teatro. Não admira, pois, que as meninas, que nunca lhe tinham captivado um relance de vista, almejas- sem o seu apparecimento. Pai'a excitar curiosidade e espectativa bastava alcunhar-se o toureiro El Pollo, que em Hespanha soa como «o guapo moço». (•) Afora isso, estava, annunciado que, na lucta do guapo moço com o boi, iit^\(^.r'\am7naravillias de ha- bilidade e atrevimento.

A porção bruta dos espectadores, apenas se apos- sou dos seus logares, rompeu logo em assobios e algazarra, chamando nEl Pollo)) e recusou callar-se, quando tocou a medíocre orchestra de músicos cegos. De vez em quando agitavam-se uns ligeiros tumul- tos : dois ou trez homens transpunham as trincheiras e corriam uns atraz dos outros no circo. Estes casos davam-se nos logares da sombra; no outro lado, onde

(•) E sobremodo imaginosa a versào de Pollo para pretty fdlow « gua- po » ou «esbelto moço ». Pollo em hespanhol é frango-^ e, se assim alcu- nharam o toureiro, iiào se segue que fosse esbelto moyo por lhe chamarem frango, nem o alcunhassem de frango por ser bonito.

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Ni ( iiiitiva creste galhardo cavallciro, vinham ),i(ihi /' 'ff espada e seis bandarilhciros uii cupi- lids, i|U investem contra hoi a pé. 'IVmIos se des- z»'in!n II fortezias au piihheo.

A[ - ^, seguiam-se os )noros de (orçado,

ue I»' r^n <lo boi j)elos paus, (•) e se lhe depeii-

iui"am i\ eaheM;a entre elles. Athial enti'ai'am os

,ndanlk<, i-apa/olas, ao (pie parecem, aprendizes

>, cujo encargo é (hst!*if)uir as garrochas,

» chão as capas, c as farpas (pie se (pie-

Ap •->!'• mafjestoso cortejo, conrormcn jirogram- na, d«Mi un ou dois passos á frente o Espada el ^*olln : .•.'•oin ctTeito, demonstrou (pic rra nm nota- /el í)oni) inoíM). Foi recef)id') cinn ímvoada (h; '•'Uina de ahu'id»js, nm ari-emessar i[)Uí;as, um esÍ!-ondeai- de chap(;us ias e ca|canhai*es no pavimento, e >s . > a tluctuarein, e ohello sexo a con-

:lani.: ios VIVOS ! Foi uma reciíj)(;âo (pn- fa/ia

Assondu* •• tt;rror! K as damas nossas visinha> cx- clainasai cxpriíDindo o seu i-spanto: Oh! 'jui' raia

trns ícorno»). Knt» c)c«T»»c«n'*i» A tAo iimorfiitft fíin

i Iu4 « tHii». C'»nnnntfh%n ímo Hpnna^ ii'»i astro»,

•4: nrnn prfMAiloni illimtrf*, Min Harbníilii, nn(l)>Hcri-

' hfrhrií/ht hnrnâ. . . «• t»Mib<!in

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ri»rr< . tl.ivit», íjuc, ciitr»? iiif(|r3o«, coriu» iiio n-u) ojicluiiivos da s t«in pifA o «••II luo hocíhI I* vprho To hum, v. u plirti- V <•••' ( I...IU-II iiiAÍa o\x iiiuiioa, acho cu.

152 A FORMOSA LUSITÂNIA

O sol darclc3Jciva ardentemente ainda, formara-sc uma espécie de arraial de chapéus de sol. Dous touros, estreitamente encurralados debaixo de nós, quando farejaram a sua vez de irromperem ao curro, escou- cearam, mugiam e escabujavam para sahir. Tinham as pontas emboladas para não poderem ferir homem ou cavallos.

Afinal, desappareceu do circo o sol, que era a causa da demora; mas ainda os seus vividos raios aqueciam a variegada multidão dos togares expostos.

Em dia de tanta calma devia de ser penosíssima a situação d'aquella gente, que, pela paciência com que a supportou tanto tempo, de sobra mostrava extraordinária paixão pela tourada. Quando o prelu- diar das trombetas annunciou que o director da cor- rida entrara na tribuna, foi também signal para se gritar: Abaixo os chapeos de soll o que prompta- mente se cumpriu.

De uma avenida fronteira ã tribuna, que ressalta inferiormente ao camarote real, entrou um caval- leiro armado de lança, trajando casaca verde-es- cura, com canhões altos, amplas lapellas, camisa de bofes, gravata de grande laco, chapéu tricorne empennachado, calções brancos e botas de mon- tar até ao joelho. Era novo, bem apessoado ; e, de chapéu na mão, gentihnente rodeou a arena com o cavallo a furta-passo, complementando a assembléa em globo, e especialmente as senhoras que occupa- vam numerosas cadeiras. O conjuncto do seu aspe- cto podia sei'vir ás fantasias românticas para des- creverem um Paulo Cliffoi'd, ou outro fascinante salteador de antigas eras.

UMA CAPELLA E UMA CORRIDA DE TOUROS 153

Na comitiva (Festo galliardo cavall(3Íi*o, vinham o matador de espada o .seis bandarilheiros ou capi- 7ilias, qiie investem contra o boi a pé. Todos se des- fizeram em coi'tezias ao publico.

Após estes, seguiam-se os mocos de forcado, que pegam do boi pelos paus, (•) e se lhe depen- duram da cabeça entre elles. Afinal entraram os andarilhos, rapazolas, ao que parecem, aprendizes de toureiros, cujo encargo é distribuirás garrochas, e erguer do clião as capas, e as farpas que se que- bram.

Após este viagesloso cortejo, conforme o program- ma, deu um ou dois passos á frente o Espada el Pollo; e, com effeito, demonstrou que era um notá- vel bonito moço. Foi i'ecebido com trovoada de palmas, uma celeuma de alaridos, um arremessar de chapéus e carapuças, um estrondear de chapéus de sol e de cadeiras e calcanhares no pavimento, e os lenços brancos a fluctuarem, e obello sexo a con- clamar repetidos viva?, ! Foi uma recepção que fazia assombro e terror ! E as damas nossas visinhas ex- clamavam exprimindo o seu espanto: Oh! que cara

(•) A escriptora diz horns (cornos). Esta excreceneia é tào innocente em Inglaterra que até a casta lua a tem. Consente-se isso apenas nos astros, quer-me pai-ecer. Exemplos: uma prosadora illustre, Mis Barbauld, nadescri- pçào da Noute: «There is the moon bending her bright horns ... » e também o dramaturgo Home no acto 2." de Douglas:»

« This moon

Had not yet filled her horns».

Parece, todavia, que, entre os inglezes, os cornos nào sào exclusivos da lua. Elles, os inglezes, tem para o seu uzo social o verbo To horn, e a phra- ze To ivear the horns. E como cá, pouco mais ou menos, acho eu.

154 A FORMOSA LUSITÂNIA

sipnpathka que bom gosto! E os Icquos arfavam febris, e os olhos coruscavam mais sciíitillantes do excitações. (*)

Á sabida estava cbeio de gente o Campo de SanfAnna, muitu mais do que na Feltra da ladra que ali se faz semanalmente, e onde um dia estive. « Feira de farrapos » é o merecido nome que Ibe o inglez. Costumou-se n'outro tempo ir ao Campo de Sant'Anna na primeira terça-feira de cada mez : era uma espécie de vadiagem, que tinha ali o seu ponto de reunião. Quasi com certeza se encontr'a- vam por ali alguns amigos divagando por entre as collecções de expostas velharias. Mas a gloria da feira da ladra evaporou-se como a de outras muitas instituições. Afora farrapos e refugos, nada se en- contra. Antigamente entre ferros velhos, e sapatos velhos, e casacos velhos e velhas trapalhices de todo o feitio, achavam-se livros antigos curiosos, qua-

(•) Lady Jackson descreve difFusamente as miudezas de uma corrida de touros, calculando ser agradável aos seus leitores de Inglaterra para quem a selvageria de tal espectáculo tem um mordente interesse. A nós, porém, en- fastiam-nos os pormenores des?riptivo3 que tantas vezes temos lido ou dei- xado de lêr nos periódicos. Refugamos, pois, grande parte d'este enfadonho ca- pitulo, e de boa vontade correríamos discreta esponja sobre phrazes pouco menos de indelicadas com que a senhora ingleza encarece o deiirio das da- mas portuguezas pelo toureiro hespanhol. Que a perspicaz escviptora lhes pe- netrasse o entliusiasmo na prodigalidade das palmas e na íluctuaçào dos lenços, é admissível á solercia de uma ingleza fina; mas dizer que ellas sus- piravam, é entrar-lhes muito peito dentro no machinismo secreto da respi- ração. As exclamações que ella ouviu ás suas visinhas indicam apenas que Lady Jackson tinha uma visinhança muito desgraçada. As senhoras portu- guezas, pelo que respeita a suspiros, não distinguem entre o toureiro hespa- nhol e o seu aguadeiro tudo gallegada a quem, quando muito, as senhoras dizem como a authora, a pag. 94 : « prospero, gallego ! »

UMA CAI'KLLA K UMA COIUUDA DM TOUROS 155

dros do valor, antigas gargantilhas de preço, es- culpturas de marfim, pratos velhos e raros, louça do Japão estimadissima, e outras preciosidades se- melhantes.

Com giwnde satisfação do boleeiro, ajustamos para na volta a mesma carruagem que nos levou. Pela rapidez com que nos trouxe, bem podia, voltar fazer outro frete. Descemos as Íngremes ladeiras a todo o trote com a descautela que se uza; mas por fortuna chegamos ao fim da Rua do Alecrim ainda vivos e sem membro fracturado.

Não se espante das minhas predisposições tou- reiras, por quanto (.d'appélil vienl en mangecuit.)) Parece-me que, se amanhã se repetir a toirada, eu e o meu juvenil companheiro estaremos no cam- po de SanfAnna, na primeira fila de cadeiras. Com toda a certeza iremos, se el Pollo tornar; corre, po- rém, o boato de que «a alma d'elle é triste» porque um contracto para outra parte presentemente o priva da ventura de obtemperar a certos olhares tão gra- ciosamente convidativos das lisboetas.

CAPITULO XII

FESTEJOS DE 23 E 24 DE JULHO

Nos dois passados dias, 23 e 24 de julho, feste- jamos o baque da tyraiiiiia, pela expulsão de D. Mi- guel em 1833, e restauração da liberdade com a ac- clamação da rainha D. Maria 2/ e proclamação da Carta Constitucional. Por cauza dos actuaes succes- sos de Hespanha, e d'uns rumores que vogam de secretos esforços que se empregam para induzir os portuguezes a deporem o seu rei e confederarem- se com os internacionalistas, maior realce que o do costume se deu a celebração d'aquelle anniversario.

No dia 23 o cardeal patriarchade Lisboa celebrou missa na egreja dos Martyres, sutfragando as almas dos heroes da liberdade que pereceram na expedi- ção de 1833. Commandado pelo marechal conde de Villa Flor, depois duque da Terceira, (•) o exercito bateu as forças miguelistas em Cacilhas e Almada; no dia seguinte passou o Tejo e assenhoreou-se de Lisboa clamorosamente saudado pelo povo a quem ia redemir da oppressão e crueldade que o esma- garam durante a usurpação do despótico Miguel. A egreja dos Martyres carecia espaço para conter a multidão. Os que vieram cedo empilharam-se junto do altar-mor, soffrendo taes entalações e an-

(•) era desde 8 de novembro de 1832 duque da Terceira.

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gastias que pareciam sacrificar-se mui espontanea- mente ao martvrio. A missa levou duas arrasta- das horas ; mas apezar dos bastantes desconf(jrtos e penas corporaes que as solemnidades religiosas infligem, aquillo impressionava gi-andiosamente.

Alem d'isso, o gentio que debalde tentai^a entrar na egreja, esperava fura para contemplar os ho- mens distinctos, na milicia, na politica e nas lettras, que tinham assistido á missa, e d'ali se destinavam á egreja de S. Vicente de Fora templo magnifico cimentado por D. Affonso Henriques, conquistador da moirisma, e consagrado á memoria dos que mor- reram a seu lado propugnando o resgate do seu paiz.

Na egreja de S. Vicente está sepultado o duque da Terceira. O duque de Loulé, o marquez de da Bandeira, c diversos fidalgos e homens eminen- tes visitaram-lhe a sepultura, oraram e deposeram sobre ella uma grinalda de perpetuas. O orador, panegjrista dos patrióticos sentimentos que impul- sionaram os feitos do finado duque, declarou so- lemne e energicamente que «idêntico era o pensar da nação portugueza. Os seus conterrâneos disse elle se levantariam como um homem para se desafrontarem do minimo aggravo feito á sua liber- dade, e rebateriam até á ultima qualquer tentativa contra os gloriosos feitos que prefizeram em san- guinosas luctas.»

Vivas d liberdade retroaram então nas abobadas e reboaram por entre os sepulcros dos reis. Extra- nhei tal gritaria na mansão da morte ! Disseram-me que assim se proclamava a alliança travada entre

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FESTEJOS DE 23 E 24 DE JULHO

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os princípios da antiga monarcliia portugueza e a domotM*acia do actual regimen estabelecido pela Caro- la Conslilucional. Como quer que seja, o possivel desfecho do movimento carlista, e a intiuencia que o seu bom êxito pode vir a ter, alentando as espe- ranças do ainda existente posto que diminuto par- tido miguelista ; e, de mais a mais, o saber-se que em Lisboa e em outras cidades existem emissá- rios internacionalistas hespanhoes tudo isto é cau- sa a que se ligue importância, que em outro tempo não se daria, a actos e palavras dos homens públi- cos. Affirma-se que o governo pretende assim mani- festar que está de sobreaviso e disposto a repellir qualquer tentativa, quer externa quer interna, ten- dente a perturbar o socego do paiz.

Em geral, os portuguezes repugnam totalmente á ideia de união, que por vezes tem sido inculcada como enlace propicio as duas nações. «Nuncal nunca!)) é o grito geral onde quer que tal ideia se suscita. Allegam que tem pátria independente, e ja- mais consentirão ligar-se provi ncialmente a Castel- la, ainda mesmo que lhes propuzessem acceitarem o seu próprio rei; e, na hvpothese d'alguma tentativa hostil de Hespanha em absorver Portugal, excla- mam : a Perseguidos podemos ser, vencidos nunca ! Na grande batalha de Aljubarrota o jugo de Castella ca- hiu para sempre».

Setúbal, Almada, Cacilhas e outras povoações alem-Tejanas, por onde o duque com a sua expedi- ção passara victoriosamente, depois que aportara no Algarve, tiveram os seus festejos preliminares no dia 23. Os vapores que de meia em meia hora nave-

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gustias que pareciam sacrificar-se mui espontanea- mente ao martvrio. A missa levou duas arrasta- das horas ; mas apezar dos bastantes desconfortos e penas corporaes que as solemnidades religiosas infligem, aquillo impressionava gi*andiosamente.

Alem d'isso, o gentio que debalde tentara entrar na egreja, esperava fora para contemplar os ho- mens distinctos, na milicia, na politica e nas lettras, que tinham assistido á missa, e d'ali se destinavam á egreja de S. Vicente de Fora templo magnifico cimentado por D. Affonso Henriques, conquistador da moirisma, e consagrado á memoria dos que mor- reram a seu lado propugnando o resgate do seu paiz.

Na egreja de S. Vicente está sepultado o duque da Terceira. O duque de Loulé, o marquez de da Bandeira, e diversos fidalgos e homens eminen- tes visitaram-lhe a sepultura, oraram e deposeram sobre ella uma grinalda de perpetuas. O orador, panegyrista dos patrióticos sentimentos que impul- sionaram os feitos do finado duque, declarou so- lemne e energicamente que «idêntico era o pensar da nação portugueza. Os seus conterrâneos disse elle se levantariam como um homem para se desafrontarem do minimo aggravo feito á sua liber- dade, e rebateriam até á ultima qualquer tentativa contra os gloriosos feitos que prefizeram em san- guinosas luctas.»

Vivas d liberdade retroaram então nas abobadas e reboaram por entre os sepulcros dos reis. Extra- nhei tal gritaria na mansão da morte ! Disseram-me que assim se proclamava a alliança travada entre

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os principies da antiga monarchia portugueza e a democracia do actual regimen (estabelecido pela Caro- la Conslilucional. Como quer que seja, o possível desfecho do movimento cai-lista, e a intiuencia que o seu bom êxito pode vir a tei*, alentando as espe- ranças do ainda existente posto que diminuto par- tido miguelista; e, de mais a mais, o saber-se que em Lisboa e em outras cidades existem emissá- rios internacionalistas hespanhoes tudo isto é cau- sa a que se ligue importância, que em outro tempo não se daria, a actos e palavras dos homens públi- cos. Atíirma-se que o governo pretende assim mani- festar que está de sobreaviso e disposto a repellir qualquer tentativa, quer externa quer interna, ten- dente a perturbar o socego do paiz.

Em geral, os portuguezes repugnam totalmente á ideia de união, que por vezes tem sido inculcada como enlace propicio ás duas nações. ((Niincal nunca !)y é o grito geral onde quer que tal ideia se suscita. Allegam que tem pátria independente, e ja- mais consentirão ligar-se provi ncialmente a Castel- la, ainda mesmo que lhes propuzessem acceitarem o seu próprio rei; e, na hvpothese d'alguma tentativa hostil de Hespanha em absorver Portugal, excla- mam: a Perseguidos podemos ser, vencidos nunca \ Na grande batalha de Aljubarrota o jugo de Castella ca- hiu para sempre».

Setúbal, Almada, Cacilhas e outras povoações alem-Tejanas, por onde o duque com a sua expedi- ção passara victoriosamente, depois que aportara no Algarve, tiveram os seus festejos pi^eliminares no dia 23. Os vapores que de meia em meia hora nave-

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gam entre Lisboa e Cacilhas, transportavam im- menso concurso de gente. Os botes embandeira- dos de popa á proa, iam fretados por gente que fazia grande algazarra e assim alegrava os dez minutos da viagem. Tíuito á ida como á vinda, deitavam fo- guetes que são sempre elemento obrigado nas festas portuguezas. Todo o dia se ouviam; posto que, á grande luz do sol, se lhes não vissem os vesti- gios. Em Lisboa ouvíamos os de Cacilhas, que de noute subiam ás centenas de cada vez, formando com a illuminação da villa uma linda vista para quem estivesse á orla do rio.

O dia 23, em Lisboa, correu em laboriosos pre- parativos para celebrar devidamente o remate feliz da expedição do duque da Terceira; por quanto a tornada (•) de Lisboa não terminou o cerco do Porto

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(•) Taking of Lishon, escreve a escriptora. Não foi tomada ; mas sim entrada, porque o duque da Terceira nào encontrou resistência. A este pro- pósito, lê-se no «Portugal Eecordaçues do anuo de 1842» pelo príncipe Li- chnowski, uma' nota confirmativa do reparo que faço ao texto. 0 duque escreveu de Cacilhas ao imperador, no dia 23, annunciando-lhe a derrota de Telles Jordào, e confiado na esperança de datar o seu ulterior boletim no (Jastello de Lisboa. 0 principe possuía o authographo. Escreve elle: «sobre esteofiicio que tem o cunho damodeatia e simplicidade dos antigos, escreveu a rogos meus a formosa duqucza da Terceira o seguinte sobrescripto: Carta do Duque da Terceira ao Imperador na véspera da entrada em Liaboa. Tomei a liberdade de lhe propor que substituísse por tomada a pãluvi-n entrada, ao que retorquiu immcdiatamente o duque : « Tomada não, porque o inimigo não sustentou a sua posição: foi unicamente uma entrada.» Quantos afama- dos redactores de boletins (accrescenta o viajante) seriam capazes de dar uma resposta semilhante?»

O principe Lichnowsky foi assassinado em Francfort em 18 de outubro de 1848, em sedição popular, sendo deputado. quando sahiu de Portu- gal por Hespanha, o tentaram matar em Barcelona, onde foi reconhecido como caudilho de D. Carlos. 0 seu livro é um dos mais benevolamente es- criptos por extrangeiros acerca de Portugal.

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que durara um anno; mas generali.sou de piTjmjjto o resgate de todo Portugal do férreo despotismo do seu oppressor. D. Pedro IV é o heroe por excelleu- cia do dia 24; no 23, é o m.areehal (Iikjuc da Tei- ceira, o amigo-íicl do rei soldado e de sua filha, a pobre D. Maria 2.*^ Pôde dizer-se que elle llie foi íid até á morte, em quanto muitos lhe desmentiram a jurada lealdade.

Couta-se que elle, alquebrado de idade e acha- ques, ao avisinliar-se a extrema hora, mandou cha- mar o confessor. Alguém com o miserável intento de servir ignobilmente intuitos políticos substituiu o padre que se esperava por outro da parcialidade mi- guelista. O sacerdote, ao abeirar-se-lhe do leito, principiou a exhortar o moribundo veterano, em nome de Deus, perante quem ia apparecer, á con- tricção, e a pedir perdão do crime que commettera arrancando tantas vezes da espada em defeza da causa espúria contra seu soberano natural e legiti- mo rei de Portugal, o excelso Dom Miguel de Bra- gança. Ouvindo taes palavras, parece que se reac- cendeu no velho general um relâmpago de vida. Descerraram-se-lhe as pálpebras cabidas, e fixou no padre um olhar de supremo desdém. Por mo- mentos lhe relumbrou no aspecto aquella antiga inergia que o caracterisava. Estendeu o braço a uma campainha e tangeu-a. Abriu-se logo a porta. O du- que imperativamente lhe apontou com o dedo, e o padre sahiu. Depois, recahindo como exhausto no travesseiro, passados poucos minutos, o duque ex- pirou.

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gam entre Lisboa e Cacilhas, transportavam im- menso concurso de gente. Os botes embandeira- dos de popa á proa, iam fretados por gente que fazia grande algazari'a e assim alegrava os dez minutos da viagem. Tanto á ida como á vinda, deitavam fo- guetes que são sempre elemento obrigado nas festas portuguezas. Todo o dia se ouviam; posto que, á grande luz do sol, se lhes não vissem os vestí- gios. Em Lisboa ouvíamos os de Cacilhas, que de noute subiam ãs centenas de cada vez, formando com a illuminação da villa uma linda vista para quem estivesse á orla do rio.

O dia 23, em Lisboa, correu em laboriosos pre- parativos para celebrar devidamente o remate feliz da expedição do duque da Terceira; por quanto a tomada (•) de Lisboa não terminou o cerco do Porto

(•) Taking of Lisbon, escreve a escriptora. Níio foi tomada ; mas sim entrada, porque o duque da Terceira nào encontrou resistência. A este pro- pósito, lê-se no «Portugal Eecordaçòes do anuo de 1842'j pelo principe Li- chnowski, uma jiota confirmativa do reparo que faço ao texto. 0 duque escreveu de Cacilhas ao imperador, no dia 23, annunciando-llie a derrota de Telles Jordão, e confiado na esperança de datar o seu ulterior boletim no Castello de Lisboa. 0 principe possuía o authographo. Escreve elle: «sobre esteofficio que tem o cunho da modéstia e simplicidade dos antigos, escreveu a rogos meus a formosa duqueza da Terceira o seguinte sobrescripto: Carta do Duque da Terceira ao Imperador na vesjiera da entrada em Liahoa. Tomei a liberdade de lhe propor que substituísse por tomada a palavra e/í</-a(/a, ao que retorquiu immediatamente o duque: « Tomada não, porque o inimigo não sustentou a sua posição: foi unicamente uma entrada.» Quantos afama- dos redactores de boletins (accresceiíta o viajante) seriam capazes de dar uma resposta semilhante?»

O principe Lichnowsky foi assassinado em Francfort em 18 de outubro de 1848, em sedição popular, sendo deputado. quando sahiu de Portu- gal por Hespanlia, o tentaram matar em Barcelona, onde foi reconliecido como caudilho de D. Carlos. O seu livro é um dos mais benevolamente es- criptos por extrangeiros acerca de Portugal.

FESTEJOS Dl-: 2'^ E 24 Di: .ICIJIO IGl

que durara um aiino ; mas generalisou de prompto o resgate de todo Portugal do ferroo despotismo do seu oppressor. D. Pedro IV é o heroe por excelleu- eia do dia 24 ; no 23, é o marechal duque da Ter- ceira, o aniig()-íi(d do i-ci sold.-ido c de sua íillia, a pobre D. Maria 2/'. Pode dizer-se que cllc lhe foi lid até á morte, em quanto muitos llie desmentir;uii a jurada lealdade.

Conta-se que elle, alquebrado de idade e acha- ques, ao avisinhar-se a extrema hora, mandou cha- mar o confessor. Alguém com o miserável intento de servir ignobilmente intuitos politicos substituiu o padre que se esperava por outro da parcialidade mi- guelista. O sacerdote, ao abeirar-se-lhe do leito, principiou a exhortar o moribundo veterano, em nome de Deus, perante quem ia apparecer, á con- tricção, e a pedir perdão do crime que commettera arrancando tantas vezes da espada em defeza da causa espúria contra seu soberano natural e legiti- mo rei de Portugal, o excelso Dom Miguel de Bra- gança. Ouvindo taes palavras, parece que se reac- cendeu no velho general um relâmpago de vida. Descerraram-se-lhe as pálpebras cabidas, e fixou no padre um olhar de supremo desdém. Por mo- mentos lhe relumbrou no aspecto aquella antiga inergia que o caracterisava. Estendeu o braço a uma campainha e tangeu-a. Abriu-se logo a porta. O du- que imperativamente lhe apontou com o dedo, e o padre sahiu. Depois, recahindo como exhausto no travesseiro, passados poucos minutos, o duque ex- pirou.

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162 A FORMOSA LUSITÂNIA

Os folgazões voltaram da festa de Cacilhas entre meia noite e uma hora, justamente no momento em que principiavam os festejos em Lisboa. Mal era passada a «seductora hora nocturna» em que a gente dulcissimamente se restaura no primeiro somno, quando acordei abalada por um estampido capaz de despertar o mais entorpecido dormente de cabeça sopitada em fofa travesseira. «E terramoto? Ha fogo em caza? Os hespanhoes bombardeiam Lisboa?» Exclamei eu aterrada. Saltei da cama im- petuosamente, fui á sacada, e vi, a subirem e a des- cerem, estalando aqui e acolá, correndo uns pelos outros em ângulos rectos, e voltando em todas as direcções, centenas e milhares de fogueies, que in- flammavam plenamente o espaço aerio. Parecia que as estrellas se precipitavam todas. E como se esta enorme explosão de jubilo não fosse assaz retum- bante para prefaciar tão auspicioso dia, em todas as torres das egrejas de Lisboa badalavam repiques de sinos, a cuja troada se misturavam uns grita- dos vivas d liberdade, e mais outras estridurosas de- monstrações de alegria da gentalha, que estanceava pelas ruas em grupos de vinte ou mais sujeitos.

Que pensariam os alliciadores castelhanos, que por aqui intrigam, ouvindo aquellas expansões de lealdade e liberdade? Provavelmente, dando uma volta nos seus leitos, ringiram os dentes, e vocifera- ram um anathema á liberdade, á Ca)Ha e á Cons- tituição a que os portuguezes tanto querem.

Prolongaram-se por mais de hora estes festejos preliminares. Depois interpozeram-se alguns minu- tos de socego, que eu bem queria ir aproveitando

FESTEJOS DE 23 E 24 DE JLLIIO 163

em fugitivo dormitar; mas não era possível. Ape- nas rompeu a manhã, trovejou o Castello de S. Jor- ge uma salva de vinte e um tiros, aos quaes i^cspon- deu retroando rio acima a corveta Barlholomcu Dias. Foi este o signal para que ao mesmo tempo reben- tassem em vários ])ontos da cidade girandolas de mil foguetes cada uma.

Dir-se-liia a ('xplosão de um armazém de pólvo- ra. O hymno constitucional tocado por bandas mi- litares e de curiosos, j-etinia em todus os pontos d'onde irrompiam as girandolas. Tijdos osportugue- zes leaes, por via de regr-a, cantavam o tal liymno, ou se esforçavam o melhor e mais louvavelmente que podiam para o cantar ao mesmo tempo que os carrilhões de Lisboa também tintilavam os canta- res dos livres.

O effeito d'este súbito inbombo de ti*ons combi- nados era tão encommodo como uma symphonia de Wagner. Deu-se o cazo justamente á hora em que as ruas eram varridas. A descompassada gritaria tamanho abalo fez nos varredores da minha rua, que eil-os desatam a berrar : Yiva a caria ! Viva a liber- dadel Viva o Reil e floreavam as suas vassouras com tal bravura que levantaram ondas de poeira em honra do dia. Pouca gente provavelmente, ficaria na cama, porque as ruas, antes do nascer do sol, estavam cheias, e das janellas abertas pendiam cobertores. A vista d'isto, era um quasi dever resis- tir-se á tentação do somno, e corajosamente pre- dispòr-se a gente a saborear as delicias program- matisadas no decurso de um dia tão auspiciosa- mente principiado.

164 A FOILMUSA LUSITÂNIA

Todos OS navios pompeavam galhardetes de va- riegadas cores. Mastos venezianos, arcos trium- phaes, festões de ílôres, cordas embandeiradas or- namentavam as ruas principaes. A bandeira azul e branca íiuctuava em quasi todos os edifícios. Gran- des explosões de foguetes estallaram successiva- mente durante todo o dia com breves intermitten- cias.

(( Para mais de dez mil pessoas » de Cacilhas, Almada e Barreiros madrugaram hontem para ve- rem os magnates da capital. A máxima parte das senhoras e meninas vestiam de azul e branco. Tam- bém os camponios e pescadores d'aquelles sitios, e das aldeias bastante affastadas de Lisboa, vieram arrebanhados. Vapores, faluas, omnibus, transpor- tes aldeãos inclassificáveis trouxeram o seu subsi- dio a representar inconsciamente a parte de que não podia prescindir-se na scena festival o pittoresco e mescla das turbas nas ruas a trasbordar. E a par d'isto, as extravagantes perguntas e reflexões que de vez em quando nos chegavam aos ouvidos, eram mais divertidas que os espectáculos e cerimonias que attrahiam aquella gente; porque a sua inquieta curiosidade lhes dava uma verdadeira naiveté ao sincero e ardente jubilo, n'aquelle dia festivo, na- cional e grandioso, por toda a parte celebrado, e por todas as classes, desde o rei até ao saloio, e ainda até ao mendigo. Nem sequer esqueceram digamol-o em abono dos portuguezes os prezos no cárcere, os enfermos no hospital, os pobres nos azylos, o verdadeiro indigente na sua miserável man- sarda, nem ainda os que mendigam nas ruas. Pro-

FKSTKJOS 1)K 23 E 24 DE JLLIK) 165

videncioií-so para que de certo modo fulgurasse um relâmpago se não mais rápido ainda de alegria nas mais lúgubres vivendas e entre os mais des- herdados da fortuna; e com isto a festa nacional com certeza mais se nobilitou do que pelas visuali- dades espectaculosas do dia.

Logo de manhã, queimava tão intensamente o sol que os grandes enthusiastas da liberdade que na verdade pareciam ser ás legiões se arros- tariam pelo dia adiante com aquella athmosphera. O vento noroeste, que nos inculcaram um refrige- rante, veio peiorar a situação, levantando grossas nu- vens de poeira, como sabem os que experimen- taram o que é um redemoinho do n'estes sitios e n'esta estação do anuo. Não obstante, cerca das quatro horas e meia, fomos a S. Domingos, pelas ruas do Arsenal e da Prata, passando sob uma quasi ininterrupta abobada de bandeiras e estan- dartes, arcos triumphaes de iiòres e verduras. O hymno constitucional, quer vocal querinstrumental- mente, ressoava por toda a parte.

Perpassamos por uns grupos festeiros que bem quizeramos bosquejar ou possuir photographados. Ranchos de saloios, principalmente de homens que usam ainda, mais do que as mulheres, os antigos costumes portuguezes, trajavam os seus chapéus guarnecidos de fitas e borlas, vistosas faixas escar- lates, alvíssimas camizas, lenços azues laçados fol- gadamente no pescoço, jalecas e calças de belbutina escura ou cinzenta, alamares de prata, alguns de antigo feitio, com bonitos engastes e invasaduras, espécie de vínculos de familia. As mulheres que

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A l-Olt.MOSA LI SI WI.V

Todos os navios pompe\am galhardetes de va- ri(3gadas còi'es. M;ist<>s vííc/í.iuos, arcos ti'ium- pliaes, festões de llòn^s, c<xlas embandeiradas or- namentavam as ruas princiaes. A bandeira azul e branca Huctuava em (piasi l-dos os edifícios. Gran- des (,'xpl< )sn('s de foguetes i-i aliaram successiva- mente dui-antc todo o dia •> ln-eves intermitten- cias.

((Para mais de dez mi j ^>oas » de Cacilhas, Almada e Barreiros madru h am huntcm pai*a vib- rem os magnates da caj)itl. A máxima parte das senhoras e meninas vestiam f azul c branco. Tam- bém os camponios e pescaoits d'acjuelles sitios, e das aldeias bastante atíasli - de Lisboa, vieram arrebaidiados. Vapores, faia-, omnibus, transpor- tes aldeãos inclassiíicaveis i <aixeram o seu subsi- dio a representar inconsciaieiíte a parte de que não podia prescindiíxse na sceii lostival o pittoresco e mescla das turbas nas rii- a trasbordar. E a par d'isto, as exti"i vagantes p( finitas e rettexões que de vez em quando nos che^i\ am aos ouvidos, eram mais divei*tidas (pie os esctaculos e cerimonias que attraluam aquella gent; porque a sua inquieta curiosidade lhes dava um v(M-dadeii"a naiveté ao sincero e ardente jubilo, raquelle dia festivo, na- cional e grandioso, por ttja a parte celebrado, e por todas as classes, desc » rei até ao saloio, e ainda até ao mendigo. Nen sequer esqueceram digamol-o cm abono dos )ortuguezes os prezos no cárcere, os enfermos n(hosj)ital, os pobres nos azylos, o verdadeiro indigete na sua miserável man- sarda, nem ainda os que iXMidigam nas ruas. Pro-

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PííFpassamos poi* im riq)os fivsfcií-os (pn* Ixím quiz»*ramos bosquejar '--iiir pbofogi-apljados. Kantdios de saloios, pi i usam ainda, mais do «| costumes portngutv giiarneridos de tita> laí»?s, alvíssimas cann/ i gaíiam»*nto no pescoro, (ísrura ou rinzenta, al.i

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calcas d(! belbutina

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i<t,- c uivasaduras,

; niiillieres que

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quanto mais afastadas vivem da capital mais pitto- rescamento vestem em geral, enfeitam-se menos com oui'0 do que as mulheres das outras partes do noi'te e sul de Portugal. Ainda assim, d'esta vez, davam a pensar que traziam todos os seus haveres convertidos em arrecadas, grilhões, contas e cru- zes. Tafulavam também de saias e chailes pantafacu- dos, e na cabeça lenços de seda de ramagens e co- res garridas ; e não lhes vai mal o lenço, como ata- vio de cabeça, quando o ageitam com arte e o atam por baixo da barba de um rosto rozado, fresco e es- belto.

S. Domingos, a maior egreja de Lisboa, fica a direita da Praça de D. Pedro, a quem vai da cidade baixa. Estava magnificamente ornamentada para as ceremonias do Te-Deum e Acção de graças; por fora, muita bandeira azul e branca; por dentro, muitos cyrios e lâmpadas. O altar mór, apillarado de fino mármore com bellas esculpturas em alabastro, res- plandecia brilhantíssimo de lumes. O espaço central ou pavimento da egreja tinha alcatifa, sobre a qual mil e duzentas cadeiras aguardavam os espectado- res; além d'isto, havia bancadas lateralmente ao correr dos altares. As cadeiras do rei e da rainha, armadas sob um docel, eram de damasco azul e amarello, com molduras douradas de extremada es- culptura. O patriarcha também tinha ahi a sua ca- deira, mas em docel apartado. Com quanto resplan- decesse tanto como as reaes, eu não podia desço r- tinal-o atabafado pelos magnificentes ornamentos de gala que de per si embellesavam os olhos. Pompeava antigas e riquíssimas rendas que deviam

FESTEJOS DE 23 E 24 DE JULHO 167

do íazor iavoja ás damas. A mais do uma occoiTeu talvez a irreverente idéa do guarnecer um vestido do volludo com as rondas do patriarcha.

A rainha, com quanto não st?ja bonita, figurou- se-me interessante, amável a mui sympathica, no di- zer dos portuguezos. Trajava um bello vestido de seda clara guarnecido de barras de setim azul, e chapou branco enflorado. O rei vestia unifoi*me de general, com que depois passou revista á tropa. Parece-so muito com sua mão, a fallecida rainha. Branco de rosto, louro do cabellos, mais branco e louro parecia ainda o quasi singular por isso entre os personagens de tez trigueira o bronzeada que formavam o seu cortejo. Tom disposições para o emboiípobit, o que lho torna mais sonsivel a semi- Ihança com D. Maria 2."".

D. Fernando o D. Augusto que ó alto, e mais á feição do pai que o rei entraram juntos antes da chegada de D. Luiz e da rainha: parece que é isto etiqueta uzual, observada nas solemnidades em que o rei e o rei viuvo concorrem. D. Fernando vai en- canecendo ; mas notei-lhe os mesmos ares corte- zes e donairoso garbo d'outro tempo. E, quanto merece sôl-o, popular como sempre ; pois que, além da benéfica influencia que tem exercido nas artes, Portugal devo-lho muito. Tom-so mostra- do sempre sincero amigo da sua pátria adoptiva Deram-se crizes em que o reino, alterado pela anar- chia das facções politicas, durante o periodo tumul- tuoso do reinado de D. Maria 2.'', foi salvo pela pru- dência e moderação dos seus conselhos. E também, pelo modo como elle e a rainha dirigiram a educação

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A FORMOSA l slTAXIA

quanto mais afastadas vivm fia capital mais pitto- rescameiíto vestem em íji.iI, enleitam-sc menos com om-(j do (pie as mulln r^ das outras partes do noi'te e sul de Portugal, /iiida assim, d'esta vez, davam a pensai' íjue traziai t<»dos os seus haveres convertidos em .urccadasyiji illiões, contas e cru- zes. Tafulavam t;iml)<'iii de .li.is e chailespantafaru- dos, e na caberá leneos d(í>' da de ramagens e co- res gai*ridas ; e não lhes vt mal o leneo, como ata- vio de c;dje(;a, quando o apiíim com ai'te e o atam por baixo da barba de um j-io rozado, h-esco e es- belto.

S. Domingos, a maior lví^jíi do Lisboa, fica á direita da Pivira de D. Ped i (piiMii vai da cidade baixa. Estava magniíicamei ornamentada para as ceremonias do Tc-/)i'uni e /• ào de graeas; por fora, muita bandeii'a azul e bra<i; por dentro, muitos cyi'ios e lâmpadas. O alta iiku', apillarado de fino mármore com bdlas esculturas em alabastro, res- plandecia brilliantissimo d( lumes. O espaço central ou pavimento da ogreja ti ha alcatifa, sobre a qual mil e duzentas cadeiras apardavam os espectado- res; além d'isto, havia bncadas lateralmente ao correr dos altai*es. As cadií-as do rei e da rainha, armadas sob um docel, oam de damasco azul e amarello, com molduras duradas de extremada es- culptura. O patriarcha taibem tinha ahi a sua ca- deira, mas em docel apartdo. Com quanto resplan- decesse tanto como as reas, eu não podia descor- tinal-o atabafado pelos mgnificentes ornamentos de gala que de per sicmbellesavam os olhos. Pompcava antigas e riquisimas rendas que dcviai

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A rainha, com quaiiNiiào seja bonita, ílgurou- se-me interessante, am;i\l ^' tnui s(/mfK(t/iica, no di- zer dos portugnezes. Tv.ix.i um hcllo Nostjd^) de seda clara guarnecitl . i la^ dr sctiin azul, e

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de seus numerosos filhos, deram exemplo aos fi- dalgos e abastados do reino, que felizmente lh'o se- guiram. Resultou d'ahi o ampliar-se mais a instru- cção, cujos benéficos effeitos vão abrangendo gra- dualmente ambos os sexos e todas as classes.

Entre as damas que assistiram ao Te-Deu7n, re- conheci muitas senhoras hespanholas, trajando ves- tidos ou laços azues e brancos: folguei de as ver assim proceder delicadamente com os festejos do dia, na ci- dade que lhes deu abrigo. Ainda assim, é de crer que as esturradas do partido carlista não levassem tão longe a sua obseqiiiosidade.

Os cavalheiros que assistn^am ao Te-Deum eram, até certo ponto, mais brilhantemente espectaculosos que as damas. Deslumbravam com os seus unifor- mes militares, navaes, diplomáticos, e profusas com- mendas que estadeavam ; e os que não podiam ex- hibir ornatos d'esta espécie, contentavam-se com a improvisada decoração de um raminho de immorlelles com fita azul.

O Te-Deum, obra de compositor portuguez, era grande, solemne, e sahia bem no vasto templo de S. Domingos. Noventa vozes amestradas cantavam no coro, e os solos executaram-os cantores de fama. O final (.iin le, Domine, speravh foi cantado com mu- sica do hymno constitucional. Terminou a religiosa cerimonia antes das cinco e meia; e, consoante o programma dos actos do dia, passou-se á parada immediatamente. Eu bem quizera vel-a, como apai- xonada ((das pompas e aprestes de guerra» ; mas ta- manhos obstáculos me estorvaram sahir da egreja, que a parada concluiu-se em quanto eu atravessava

FESTEJOS DE 23 E 24 DE JULHO 169

O espaço que vae d'ali até á Praça de D. Pedro. Esta Praça extravasava de povo, e todas as janellas estavam clioias de senhoras e creanças. Parte da tropa atravessou-a e saudou a estatua do aReí sol- dadoy); emquanto eu, acceitaudo o favor de um amigo que tinha carruagem, fui para a rua do Alecrim. Por esta Íngreme rua marchou parte da infanteria, se- guida de artilheria e cavallaria.

Consta que os portuguezes são óptimos soldados, posto que entrem com repugnância no serviço mili- tar: tão adversos lhe são que não é raro mutilarem- se os mancebos para se esquivarem ao recrutamen- to. Nos Açores vigora uma lei nova que obriga to- da a pessoa elegível a servir no exercito por certo numero de annos: é provável, se a não abolirem, que aquellas férteis e formosas ilhas occidentaes se transformem em absoluto dezerto. Noticia-se que o povo emigra em grande escala para o Brazil e Es- tados-Unidos, preferindo expatriar-se e buscar sua vida n'outros paizes a servir militarmente em Por- tugal. Entendem quo, durante os mais viçosos annos da existência, a desgraça no desterro lhes é menos infallivel que em sua terra.

Não obstante, o exercito portuguez actualmente attinge um grau de melhoria a que não chegara ha muitos amios, pelo que respeita a armamento e dis- ciplina. Ha pouco recebeu de Inglaterra 30,000 ca- rabinas-Remington, e espera outra remessa. Tam- bém se negociaram ou estão em ajuste em Ingla- terra ou Allemanlia peças de artilheria ; e tanto os regimentos de infanteria como de cavallaria es- tão numericamente preenchidos. Em breve estarão

170 A FORMOSA LUSITÂNIA

preparados os portuguezes para aífrontarem os in- cidentes bellicosos que lhes possam advir do lado de Hespanha.

A meu ver, a cavallaria 6 que mais elegante se ostenta. Os soldados montam bons cavallos e são excellentes cavalleiros os portuguezes. Os lanceiros da rairUia constituem um corps (Teliíe. Uzam bonito uniforme, e parece que a preceito lhes quadra a hon- ra de serem commandados pelo infante D. Augusto.

A infanteria, quando trepava a rua do Alecrim, levava ares de esfalfada e esbaforida, e razão tinham para isso, pobres rapazes ! porque estiveram formados na Praça do Commercio durante quatro ho- ras ; que o rei e seu estado maior quando ali chega- ram eram seis menos um quarto. Mas a parada foi cousa de momentos. Da guarnição de Lisboa esta- vam somente seis mil homens, e em menos de meia hora tudo tinha desíillado para quartéis. Muitos d'el- les eram basané, bronze, quasi negros.

Assistiram á parada os poucos Veteranos da Liberdade, heroes de 1833, que ainda vivem por- ção do em si pequeno exercito com que o duque entrou em Lisboa. Alguns vestiam os seus anti- gos uniformes, que cuidadosamente pouparam, e faziam espantar de velhos que eram. Um pobre ve- terano trazia a condecoração da TorTe e Espada no uniforme do Azilo de Mendicidade. Figurou-se aquil- lo uma hedionda nódoa no espectáculo militar, e íizeram-se alguns exforços paradehl-a. Pro tem., (*)

(•) Abreviatura de Pro tcmpore^ provisoriamente, temporariamente.

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O bravo ancião recebe a sua quota parte de 100 li- bras destribuidas por setenta ou oitenta veteranos que ainda vivem. (•)

Salvaram, a(j terminar a parada, o castello e os navios de guerra ancorados. O rei e a rainha com seus filhos (o mais velho tem dez annos e trajava o uniforme de lanceiros) voltaram para a Ajuda pela rua do Alecrim, em trem descoberto, sem escolta, e com dous batedores.

Faltava-nos ainda visitar as mais explendidas decorações da cidade.

Emquanto jantamos, illuminou-se Lisboa, e as villas da outra margem do rio imitaram-na logo. Com certeza todo mundo andava nas ruas, excepto a gente que enchia os theatros, gratuitos e franquea- dos ao publico n'esta occasião. Soprava então uma d'aquellas brizas pérfidas e frias de vento norte que, depois de um dia de calma, são tão frequentes em Lisboa, funestando aquelle clima na presente es- tação. Porém, não obstante, depois que vimos a es-

(•) Se á mão de Lady Jackson chegar esta pallida versão do seu livro, e s. exc." desejar saber o degrau de prosperidade a que subiram em Portu- gal os veteranos da plialange de Pedro IV, aqui lhe trasladamos as seguin- tes linhas cheias de opprobrio, extrahidas da Revista Politica do « Commer- cio do Porto ') de 11 de dezembro de 1877 :

« Parece que no ministério da guerra téem tido grandes demoras os processos para a concessão dos tantos reis por dia, que uina lei recente au- thorisou para os poucos bravos do Mindello que ainda sobrevivem ás doen- ças, aos annos e á ingratidão dos políticos, arrastando uma existência mise- rável.

« A alguns, que logo fizeram os seus requerimentos, o despacho agora somente seria aproveitável, applicando o competente subsidio vencido a suf- fragio por alma d"elles.

«Emquanto esperavam que a mãe-patria lhes acudisse com a esmola, morreram á fome ! Infelizes, que nem tinham voto.»

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tatua de D. Pedro illuminada por luz eléctrica, re- solvemos ver o completo eífeito de toda a illumina- ção do lado do rio, que era o local mais azado ao intento. D'ali, pois, contemplamos uma perspectiva cuja belleza excede a imaginação a «cidade sul- tana» scintillantemente illuminada no seu throno de montanhas.

Raras cazas havia que não tivessem duas fileiras de luminárias. Aqui e além, viam-se legendas taes como ii Liberdade)) e a data do successo commemo- rado ; ou, como no quartel de caçadores 5, onde a disposição das luminárias simulava a fachada de um castello. Ao nivel da Ribeira, e entre o arvoredo e jardins do Aterro havia mastos venezianos, e pro- fuzos balões chinezes. Desde a margem do rio até ás cumieiras das collinas toda a cidade era um res- plandecer de luzes. As embarcações, grandes e pequenas, estavam mais ou menos illuminadas, e o reflexo que faziam na agua era de um eííeito magi- co. Mas o mais formoso espectáculo da noute era um encadeamento de dez grandes barcos, illumina- dos com arcos de lanternas e lâmpadas coloridas. Cada bote encerrava uma porção de músicos e can- tores que tocavam e entoavam o hymno da carta e outras árias nacionaes, em quanto vogavam Tejo abaixo até ao cães de Belém e retrocediam ã Praça do Commercio. Grande numero de pessoas os acom- panhava pela ourela do rio e os esperava na vol- ta dando-lhes estrondosos vivas!

Ao de cima de tudo isto, o azul profundo entorna- va os scintillantes lampejos dos seus astros, que, na immensa claridade da athmosphera, pareciam glo-

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bulos do fogo pendentes; ao mesmo tempo, estiran- do-se atravez do firmamento, i-utilavam duas in- findas listras da via-lactea, lucilando em paroxis- mos, como se nos estivessem espargindo uma chu- va de diamantes.

O cães do Sodré palco do ultimo acto da ty- rannia e crueldade miguelista parecia uma lava- reda, toda a noite ; e ahi festejava-se a Liberdade com maiores explosões de girandolas, e mais estrondo- sos vivas prolongados e triumphantes que nos outros sitios. O acto a que acima alludi foi a execução de oito ou nove mancebos, estudantes de Coimbra, e ofíiciaes que ali estavam aquartelados. Accusados como suspeitos de conspirarem para a queda do exe- crado Miguel, foram agarrados, prezos e, como trai- dores, sentenciados á morte, e suas cabeças expos- tas em espeques no cães do Sodré.

D. Miguel affizera a plebe de Lisboa a tão hor- rorosas scenas ; ainda assim, a desventura d'aquel- les mancebos excitou muita compaixão. Os amigos de um d'elles, D. José Augusto Leal, conde de Santa Quitéria, par do reino, subornaram parte das guar- das e quadrilheiros que escoltavam os presos para o deixarem escapulir-se, ao que estes prometteram acceder, se possível fosse, na occasião em que a che- gada dos réus promovesse confuso tumulto. Devia fazer-se a execução ao pôr-do-sol ; porém, quando os padecentes eram levados, um d'elles desappare- ceu. Favorecidos pelo lusco-fusco do rápido crepús- culo d'aquella latitude, os amigos do conde con- tavam facilitar-lhe ensejo de fugir despercebido. Tinham-lhe na passagem um cavallo prestes ; mas,

174 A FORMOSA LUSITÂNIA

apenas elle metteu no estribo, avisaram-no logo as vigias que uma patrulha de cavallaria lhe ia na pista. Elle cravou as esporas no cavallo ; e, como quem foge á morte, despediu a galope pela rua do Ouro, conseguiu distanciar-se logo dos persegui- dores, entrou no Rocio n'aquelle tempo escuro e solitário como as ruas circumvisinhas, temivel de- pois que anoitecia, e mui diversa praça do que é hoje e, em vez de proseguir para diante, desandou por uma das ruas lateraes, e, entrando na dos Fan- queiros, foi dar á Praça do Commercio. O conde, vendo que, ao menos por instantes, desorientara os perseguidores, desmontou de um salto, prendeu o cavallo ás grades da estatua de D. José, desem- baraçou-se do boldrié e da espada, que levava com- sigo, trocou a jaqueta por um capote e um lenço de cabeça que um amigo lhe havia mettido debaixo do braço, desatou a fugir a pé, e vingou metter-se em refugio seguro.

N'este comenos, um mancebo francez, segundo dizem, atravessando a Praça, deu tento do cavallo que saltava e escouceava para se desprender; e, di- rigindo-se para elle, reparou no cinturão e na roupa que o outro deixara. Apanhou o boldrié; e, quando o joven francez estava a examinal-o (i froixa luz do lampeão, eis que chegam os soldados que perseguiam o fugitivo, e o filam. Debalde protestava elle que não era a pessoa que buscavam, que não era portu- guez, e não estava disfarçado como elles afir- mavam. Cingiram-no com o boldrié que elle tinha nas mãos ; e, como aconteceu estar-lhe á medida da cintura, concluíram evidentemente que era elle. Le-

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varam-110 ao local do patíbulo. Ahi, rogos e suppli- cas valeram-líic tanto com os homens da justiça, cujo encargo era completai' o numero dos sentencia- dos, como tinham valido com os soldados que o pren- deram. Eiles eram responsáveis por um certo nu- mero de padecentes; se um dos réus se tinha sa- fado, estava ali outro que o substituísse, e em cir- tancias que o conde mnavam. Foi por tanto degola- do, protestando até morrer sua innocencia, e que não tivera parte no crime, que lhe imputavam, e do qual não tinha sequer noticia.

Os successos agora celebrados seguiram-se qua- si depois d'aquelle infame acontecimento. O san- guisedento tyranno foi expulso, e o esconder-se o fugitivo não era necessário. EUe falleceu ha um ou doisannos somente. O amigo que me referiu esta historia da fuga, ouviu-a da própria boca do fugi- tivo. (•)

(•) Quem seria o amigo que abusou da credulidade infantil d'esta histo- riadora? Ou quem seria aquelle conde de Santa Quitéria, par do reino, que contou ao amigo de Lady Jackson uma historia tam verdadeira como o seu condado !? Convém saber que o conde fugitivo, primeiramente, no livro d'esta dama, chamava-se conde de Ávila de T.,par do reino, e assim figura no texto; mas a authora, melhor informada, escreve uma errata que diz :

«Conde de Ávila de T. leia D. José Augusto Leal, conde de Santa Qui- téria » .

Isto peorou a verosimilhança do conto; mas salvou o snr. conde de Ávi- la, hoje marquez, e presidente de ministros, de figurar tão deploravelmente no cannibalismo dos estudantes que por justas causas foram enforcados, no cães do Tojo, e uào do Sodré, como diz a authora, em 20 de junho de 1828.

Assevero que a historia não foi alinhavada pela crédula dama. Houve ahi invencioneiro que deu azo a essa lenda pueril, e não receio calumniar ninguém imputando a patarata ao fantástico conde D. José Augusto, que fazia parte do verdadeiro visconde de Santa Quitéria, José António Soares Leal, sujeito de boas trêtaa.

Esmiucemos isto. José António Soares Leal pertencia ao regimento de

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176 A FORMOSA LUSITÂNIA

A ultima toada que me feriu os ouvidos ii'este longo dia de jubilo, que principiou antes da manhã de 24 e ainda não tinha acabado pei-to da mesma hora do dia 25, foi ad'uns frenéticos vivas d Uberda- de e independência nacional, conclamados com acom- panhamento da estridente guitarra, com certeza devi- dos não ás frequentes libações de vinho e cerveja da Baviera, mas também ao enthusiastico e ululante patriotismo d'aquelles berradores; mas, n'esta con- junctura de vehementissimas demonstrações de tal espécie pela noute fora, nada occorreu digno da in- terferência da policia. A moderação e ordem que rei- naram entre a plebe deve considerar-se, n'este paiz, um depoimento da sinceridade dos leaes e patrióti- cos sentimentos que tão acrisoladamente exprimi- ram durante os festejos.

O único incidente conhecido deu-se em uma se- nhora que contava noventa e nove annos. Morava

infanteria 4 que se revoltou em 21 de agosto de 1831. Pôde evadir-se, quando 08 seus cúmplices eram agarrados, e alcançou aportar á Illia Terceira. Em julho de 1832 veio com D. Pedro para Portugal, fez a campanha, e, resta- belecido o novo governo, entrou na diplomacia com bastante mérito e não, vulgar instrucção. Foi feito barão de Santa Quitéria (no concelho de Alem- quer) em 8 de agosto de 1855, e visconde em de agosto de 1859. Morreu em Baden-Baden sendo nosso embaixador cm Vienna de Áustria, ha poucos annos, de um tétano, em consequência de nào consentir que lhe amputassem uma perna que quebrara, na volta de um baile, em resultado da queda da carruagem.

Agora, cntende-sc a confusão. José António desfigura-se em Dom Joí,é Augusto, e promove-se a conde. Como fugiu em 1831 de capote elenco, des- pindo a farda e o boldrié, deu margem a que Lady Jackson imaginasse o estudante sentenciado á pena ultima, no caminho da forca, trajando fnrdeta e talabarte, safando-se da escolta, montando a cavallo, galopando pela Baixa por aquelle deserto da rua do Ouro, praça do Rocio, e rua dos Fanqueiros até que se apeia, e ata as rédeas da cavalgadura ás grades da Memoria. Como este académico, conde e par do reino, mal poderia pertencer a uma

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ella cm uma das ruas confluentes para outra por onde a tropa e o real cortejo passaram e repassa- ram durante o dia. Na anciedade de ver pois que era contemporânea dos successos commemorados debruçou-se tanto na sacada que perdeu o equilí- brio e malhou comsigo na rua. Felizmente que foi de um primeiro andar, e á maior foi*ça do tombo accudiu-liie a gente que a levantou. Levaram-na sem sentidos, mas, a não ser alguma contusão e o susto, esperava-se que a decrépita senhora não sof- fresse grande injuria, e podesse sobreviver áquelle desastre para completar os seus cem annos.

conjuração de homicidas, com seu tanto de salteadores de balius, a ingleza conta-nos que os estudantes foram condemnados meramente como suspeitos de attentarem contra o usurpador, e arranja o fusco e rápido crepúsculo da nos- sa latitude para desculpar a cegueira da escolta, tendo sido aliás os réus jus- tiçados entre as 3 e 4 horas de um clarissimo dia de junho.

E o francez que foi enforcado em logar do estudante [degolado diz o texto : beheaded) simplesmente porque o boldrié lhe servia, e porque era pre- ciso enforcar um determinado numero de sujeitos ?

Contam-se fora coisas de Portugal que elevam a um grau cristalino de tolice as pessoas que as escrevem. Eu dou bastante pelo siso da nossa hos- peda, e desculpo-lhe as crendices próprias do seu sexo e da sua luz crepus- cular em historia e chronologia ; mas dá-ine vontade de degolar os meus pa- trícios que armam á pascacice maravilhada dos estrangeiros contando-lhes ca- sos que desparam em affronta própria. Que dirá a França quando souber ainda agora, que nós llie degolamos um filho, porque era necessário preen- cher o numero de nove justiçados! E a Inglaterra que pensaria do nosso actual e honrado presidente de ministros, se Lady Jackson uâo faz a errata que exime o joven conde de Ávila de assassinar dois velhos no Cartaxinho? 12

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CAPITULO XIII

PARA CIXTR,\, NO LARMAXJAT

Á excepção das pessoas captivas do seu emprego ou negocio, pouca gente fica em Lisboa n'esta época ; ainda assim, no passado mez de julho, quando a calma era ardente estava a cidade cheia. E ainda agora estão occupados todos os hotéis, apezar do penetrante sol de agosto impedir que se abra uma janella á claridade do dia e ao bafejo do ar, que entra abrazeado e abafadiço. São, porém, as nou- tes que farte arejadas para que os nervos, alque- brados da languidez do dia, se restaurem. O pas- sear nos jardins públicos é sempre convidativo pelo recreio das orchestras militares.

O que mais afflige e impacienta a gente em Lis- boa é a difficuldade que ha em residir fora; que, a respeito de calor, tirante as ruas estreitas no mais baixo da cidade, Lisboa não é mais quente que al- gumas localidades frequentadas pela moda. Ha ba- nhos doces, caldas, barcaças no Tejo, banhos em Cacilhas e Pedroiços, de mar em Paço d'Arcos, Caxias, e Cascaes, posto que comece em setem- bro a quadra dos banhos. Mas aquellas povoações, balnearias estão cheias de banhistas como nunca estiveram. Certo é que onde quer que vades ou ten- cioneis ir dir-vos-hão que tudo está oceupado por

CAPITULO XIII

PARA CINTRA, NO LARMANJAT

A excepção das pessoas captivas do seu emprego ou negocio, pouca gente fica em Lisboa n'esta época ; ainda assim, no passado mez de julho, quando a calma era ardente estava a cidade cheia. E ainda agora estão occupados todos os hotéis, apezar do penetrante sol de agosto impedir que se abra uma janella á claridade do dia e ao bafejo do ar, que entra abrazeado e abafadiço. São, porém, as nou- tes que farte arejadas para que os nervos, alque- brados da languidez do dia, se restaurem. O pas- sear nos jardins públicos é sempre convidativo pelo recreio das orchestras militares.

O que mais afflige e impacienta a gente em Lis- boa é a difficuldade que ha em residir fora; que, a respeito de calor, tirante as ruas estreitas no mais baixo da cidade, Lisboa não é mais quente que al- gumas localidades frequentadas pela moda. Ha ba- nhos doces, caldas, barcaças no Tejo, banhos em Cacilhas e Pedroiços, de mar em Paço d'Arcos, Caxias, e Cascaes, posto que comece em setem- bro a quadra dos banhos. Mas aquellas povoações, balnearias estão cheias de banhistas como nunca estiveram. Certo é que onde quer que vades ou ten- cioneis ir dir-vos-hão que tudo está occupado por

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180 A FORMOSA LUSITÂNIA

famílias hespanholas ; e, se quizerdes tomar quar- tos cm hotel ou casa particular com alguma demora, sabereis que desde tal dia em diante estão tomados por uma familia hespanhola.

Um cavalheiro portuguez que foi ás Caldas da Rainha para alugar caza por trez mezes, contou-me que, notando ao dono d'ella um ferreiro aposen- tado— a exorbitância do aluguer, elle lhe replicara: « Decerto que o preço é puxadinho para gente portu- gueza; mas eu estou á espera de alugal-a aos hespa- nhoes, que trazem as algibeiras recheadas para Por- tugal, e podem e querem pagar bem. V.Exc.^ que- ria que eu atirasse fora o grãosinho maduro que o ceu nos deita no regaço, e que me fosse por ,ahi fora apanhar o palhiço?))

«E que resposta lhe deu o senhor quando o seu patrício tão cortezmente o comparou com um pa- lhiço?» perguntei.

«Que havia de responder eu a tal sujeito ? Encolhi os hombros, voltei-lhe as costas, e fui-me embora; que não fosse elle com outra que tal faisca da sua bigorna pegar o fogo ao palhiço.

Litteralmente, estes hespanhoes põem a gente no olho da rua. Cintra superabunda também n'isso. Quem não pertencer ao escasso numero dos afortu- nados que ali tem quintas, grandes ou pequenas, é obrigado a conformar-se com o quartel que poder obter afim de respirar um ambiente mais fresco e puro. E, ainda assim, é á tardinha que se sente o beneficio de melhor temperatura; que, de dia, é qua- si igual á de Lisboa; mas em Cintra, por noute, em .vez d'aquella aragem que traspassa o corpo ge-

PARA CINTRA, NO LARMANJAT 181

lando-nos o sangue que estuou febril durante o dia, goza-so viração suave, balsâmica, sem particula de humidade. Todavia, 6 de mais a gente por aqui uma populaça folgazã toda afreimada em corri- das, theatros e bailes, divertimentos, uns que se dão e outros que se esperam, de todo avessos áindole do prazer que naturalmente ides procurar em thea- tro de per si tão magestoso e sublime.

Espera-se que a via Larmanjat, inaugurada ha poucas semanas, transforme Cintra em um d'aquelles confluentes de patuscadas onde passem um dia re- galado os lisboetas que não tem tempo nem cabedal para se andarem á cata de felicidades um pouco mais longe de casa. A experiência, porém, que tenho do Larmanjat auctorisa-me a dizer que tãosomente uns para quem economisar uma hora e um ou dois mil reis é negocio importantissimo, poderão jornadear segunda vez por tal transporte. Contruiram-no se- gundo um systema que em França foi experimen- tado, ouvi dizer, com insignificante êxito e diminuta protecção. Disseram-me uns engenheiros que a in- venção se malograria a final, porque, sendo o rail de madeira, assim que chove, o pau pega de inchar e descarrila o vehiculo. Está quasi concluída outra via para Torres Vedras pelo mesmo systema. As carruagens são de duas classes, primeira e terceira; a segunda virá depois. Compõem-se a primeira de dois bancos centraes, costas com costas, separados por uma divisão que sobe quasi até ao tejadilho da carruagem. Tem duas portinholas de entrada de cada lado, e um postigo com vidraça e cortina de- fronte de cada passageiro. Quanto á terceii'a classe

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182 A FORMOSA LUSITÂNIA

essa não é dividida nem envidraçada : tem uma gros- seira cortina em vez de janella. Empregam uma es- cova na remoção do lixo e cascalho ou outros impecilhos ao tranzito. A velocidade é moderada; andam dezeseis milhas cm duas horas e um quarto.

Entendemos logo que levar as janellas fechadas ei'a murrermos abafados; porém, como n'este tem- po, se alastra uma camada de de altura pelo menos de um nas margens da estrada, assim que abri- mos a janella invadiu-nos a poeira que litteralmente nos cobriu desde a cabeça até aos pés. Descemos a cortina que era de uma franzina gaze, e não melho- ramos de situação. Encheram-se-nos as bocas e os olhos d'aquelle saibro irritante, que nos atUcava ás ondas com a picante impressão de vidro moído. Toda a gente parecia levar cabelleira polvilhada, ou ter en- canecido á ultima hora. Tapávamos a cara com os lenços para evitar a cegueira ou a asfixia o que provavelmente aconteceria sem taes resguardos.

E então os solavancos !

Nunca os esquecerei... tão desapiedadamente fui manteada ! Ás vezes iamos sacudidos de en- contro ao tecto ; e então não aconchegávamos reciprocamente os joelhos por causa da estreiteza do vehiculo, mas até os fincávamos uns contra os outros, preferindo isto a sahirmos cheios de con- tuzões negras e azuladas da pancadaria que levás- semos de encontro ás ilhargas do carro. E, no en- tanto, a machina ia trapeando, arfando, silvando e rugindo como eu nunca tinha ouvido machina ne- nhuma. Demais a mais, uma grande sineta ia n'um perpetuo repicar avisando os viandantes e os boliei-

PARA CINTRA, NO LARMANJAT

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ros dos trens que se desviassem do caminho do «grande Larmanjat» (•) Certo ó que não podíamos ver senão um dos lados da estrada; mas isso era o menos; porquanto, ainda que perpassássemos poios mais deleitosos quadros da natureza, n'aquella des- graçada conjunctura, que bellezas teriam elles para nós? O que principalmente vimos foi poeira desde o começo até ao cabo da jornada. As paragens eram muitas; e como o Larmanjat ainda tinha sabor de novidade, os aldeãos despegavam do trabalho ou sabiam dos cazebres para nos contemplarem e ri- rem-se de nós. Um rancho de mendigos de ambos os sexos e de todas as idades, esperavam o carro nas estações. Este lastimava-se, aquelle arreganha- va os dentes, aquelFoutro beri-ava, e todos juntos estridulamente pediam uma « esmolinha para sua saiide.))

Acho que en passant deitei um lance de vista aos arcos maiores dos aqueductos, e outro a Queluz, emquanto paramos n'estas melancholicas estações. Os nossos companheiros de viagem eram brazilei- ros que fallavam como os brazileiros sabem fal- lar, e fumavam pelo mesmo theor. Levavam um

(•) Trasladou-se a descripçào piingonte do objecto extincto, porque o Larmanjat parece facto esvahido na profunda noite dos tempos prehisto- ricos. A gente, ao lêr os periodos commoventes da senhora ingleza, cuida que está entrevendo nas brumas do passado uma cousa lendária como a car- roça dos Atilas e Alaricos. A viação Larmanjat parece mytlio como a passa- rela do jesuita Bartholomeu Lourenço de Gusmào. Ainda vivem, porém, pessoas que viram os carros em 1874 ; mas recordam-se d'isso como dizem que ha um vago recordar de factos occorridos em uma vida anterior. 0 Lar- manjat e os vehiculos de Amphytrite e Apoilo correm o pairo nas phantasias lidas nas metamorphoses ovidianas. 0 Champolion d'esta antigalha é Júlio Cezar Machado em um livro delicioso intitulado Lisboa na rua.

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ros dos trens que se desviassem do caminho do «grande Larmanjat» (*) Coi'to ó que não podíamos ver senão um dos lados da estrada ; mas isso era o menos; porquanto, ainda que perpassássemos pelos mais deleitosos quadros da natureza, n'aquella des- gi'açada conjunctura, que bellezas teriam elles para nós? O que principalmente vimos foi poeira desde o começo até ao cabo da jornada. As paragens eram muitas ; e como o Larmanjat ainda tinha sabor de novidade, os aldeãos despegavam do trabalho ou sabiam dos cazebres para nos contemplarem e ri- rem-se de nós. Um rancho de mendigos de ambos os sexos e de todas as idades, esperavam o carro nas estações. Este lastimava-se, aquelle arreganha- va os dentes, aquelFoutro berrava, e todos juntos estridulamente pediam uma « esmolinha para sua saúde.)}

Acho que en passant deitei um lance de vista aos arcos maiores dos aqueductos, e outro a Queluz, emquanto paramos n'estas melancholicas estações. Os nossos companheiros de viagem eram brazilei- ros que fallavam como os brazileiros sabem fal- lar, e fumavam pelo mesmo theor. Levavam um

(■) Trasladou-se a descrípçSo pungente do objecto extincto, porque o Larmanjat parece facto esvahido na profunda noite dos tempos pvebisto- i-icos. A gente, ao lêr os períodos commoventes da senhora ingleza, cuida que está entrevendo nas brumas do passado uma cousa lendária como a car- roça dos Atilas 6 Alaricos. A viaçíio Larmanjat parece mytlio como a passa- rola do jesuita Bartholomeu Lourenço de Gusmiio. Ainda vivem, porém, pessoas que viram os carros cm 1874 ; mas recordam -se d'isso como dizem que ha um vago recordar de factos occorridos em uma vida anterior. 0 Lar- manjat e os vehiculos de Amphytrite e Apollo correm o pairo nas pliantasias lidas nas mctamorphoses ovidianas. O Champolion d'esta antigalha é Júlio Cezar Machado em um livro delicioso iutitulado Lisboa na rua.

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184 A FORMOSA LUSITÂNIA

crianço derraiicado pelo mimo que, como era de es- perar, ia enraivecido contra a poeira; a sua negra ama de leite, que tagarellava sempre, tractavade em- buçar o traquinas em um capotilho; mas isso nada valia que o rapaz iaquasi, sutíbcado. Não houve, até final, modo de vencer o tiagello da poeira.

Se quizer ir a Cintra, em maio; e, se partir de Lisboa, seja qual for a estação, nada de Larman- jat. Alugue uma carruagem com um tiro de bons cavallos, e um cocheiro attencioso e que saiba. O passeio assim ser-lhe-ha delicioso, se o Larmanjat lhe não destroncar a parelha, e espedaçar a carrua- gem, e o não pozer ás portas da morte, ou matar ^ de todo, e mais ao boleeiro que, ainda na semana passada, succedeu um caso semelhante com um ran- cho de gente que ia para Cintra ; mas é provável que semelhantes encontros se não repitam muitas vezes.

A estrada é magnifica, e, de vez em quando, offe- rece lindas paisagens. E até mesmo ha ahi bellezas pittorescas, d'um certo agreste que lhe relevo e realce, até chegar ás collinas vei^dejantes que se vos antepõem como guardas avançadas da romanesca região onde ides entrando e não descobristes ainda- E agradabilíssimo o contraste das encostas herve- cidas com os píncaros penhascosos, cujos fantásti- cos recortes desde muito longe vos ap])areceram.

A par e passo que avançaes, estas collinas ma- tizam-se de pomares e vinhedos, cheios de pomos sasonados, jardins deleitosamente floridos, e moi- tas de arvoredo da mais formosa vegetação que en- contrei no trajecto, mais espessa de ramagem de

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um verde mais vivo e variado. Passa-sc logo de- pois pelo famigerado palácio de Ramalhão com seus pomares de cidras e larangeiras, e, seguindo as sinuosidades de um fértil e magnifico torrão, ao desdobrar de um respaldo da serra, apparece Cintra.

Está como fechada ao sopé d'aquella enorme fi- leira de rochedos, outr'ora chamados Mo7ite da Lua, d'onde irrompem a topetar com os astros no mais alto viso o Castello de Pena, e pouco distante o Cas- tello dos Mouros, que surge d'outro cabeço do espi- nhaço da mesma serra.

A villa, ou mais exactamente ao burgo de Cin- tra é vulgar chamar-se «Portal do Paraizo». (•)

Se viésseis de carruagem, assim o imaginaríeis também, porque podieis espairecer a vista por ma- gnificências que de toda a parte avultam ; mas, se vindes no Larmanjat, nada vereis do tal portal, e entendereis que um mais prosaico epitheto diria melhor com aquelle gi'upo de medíocres cazas ve- lhas e cazinholas, com fatigantes ruas mal-grada- das, tortas e estreitas.

O Larmanjat apeia os passageiros no árido da estrada, meia milha distante, onde não ha carro de hotel que os espere e transporte da estação á villa. Uma chusma de gaiatos maiores e menores, porcos

(■) Não é vulgar chamar-se a Cintra Portal do Paraizo. A auctora leu isto com insufficiente percepção no Novo Guia do Viajante em, Lisboa. Fran- cisco alaria Bordalo, encarecendo a quinta dos marquezes de Vianna si- tuada á entrada de Cintra, escreveu : « é como a sala de espera de um pa- lácio de fadas ; diz logo ao visitante : Estás ás portas de um paraizo. » Lady Jackson foi muitas vezes enganada pelo Gaia impresso. É pena que esse li- vro tào abaixo esteja do nome que o auctorisava.

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O esfarrapados, agarram-se á gente para nos guiar ou levar-nos as malas ou alugar-nos os burros se queremos ir aos castellos e conventos. Se se lhes dispensam os serviços, pedem-vos uma esmolinha pela salvação da vossa alma.

Quando, a chegada, me desencaixotei do Lar- manjat, estava tão moída, esfalfada o empoada da viagem, que o tranzito até á villa, apezar de curto, figurou-se-me laboriosa peregrinação. Obsequiosa- mente se houve um empregado da estação ajudando o amigo que me acompanhava, a sacudir-me e esco- var-me o saco de e areia, que eu levava no chapéu e na capa, afim de que a minha presença não espavorisse os indígenas ou magoasse as sensi- bilidades do beau 7nonde, se topássemos d'isso no caminho. Descer á estação á chegada do Larmanjat para ver descarregar os fardos de poeira é uma das regalias de Cintra ; o mesmo acontece em Folkes- tone e Bolonha, onde os ociosos se divertem agru- pando-se no desembarque para escarnecerem dos viajantes que chegam descadeirados das tormentas.

Todavia, como chegáramos de manhã, escapa- mos ao espectáculo, que é divertimento para de tarde ; e assim despercebidos, seguimos ladeira aci- ma uma vereda tortuosa sombreada por copado arvoredo. Passamos por diversas quintas cujos al- tos muros se vestiam, a intervallos, de musgo e flo- res agrestes. Como era dia de feira, a risonlia villa- sinha dava-se uns ares de agitação negociosa. Pouco posso dizer do local da feira, que parecia uma fileira de cubiculos com tecto acaçapado ; mas eram tenta- dores a h'ucta, os legumes^ o queijo e a manteiga

PAKA CINTRA, XO LARMAXJAT 187

fresca do Cintra que é em Portugal uma preciosi- dade; mas em Lisboa e n'outras partes pouca se gasta; que a irlandeza tem maior consumo. Os mais bellos morangos, j)ecegos e damascos procedem de Cintra, onde se cultivam com muítissimo esmero ; fora d'ali cuida-se tão somente nas vinhas ; por isso, o que é íructa, á excepção de uva, figo e la- ranja, posto que abundante, raro é ser boa. Havia na feira muitas canastras de frangos brancos, que parece serem mais apreciados que os de pluma- gem colorida, e por isso os apartam. As gallinheiras tanto em Cintra, como em Lisboa, quando acontecia eu entrar na Praça da Figueira, cuidavam que eu ia sempre em procura de franguinhas brancas. « Veja, senhora diziam ellas são todas brancas e mui boas.n

O curto trajecto até a villa era tão gracioso, que, antes de chegarmos, se nos haviam olvidado os horrores da jornada no Larmanjat. A sua mão direita esta o Palácio real, a Alhambra dos reis mouros de Portugal, em parte reconstruído e occu- pado temporariamente no estio pelos seus reis chris- tãos. (*)

Prendem ãquelle palácio recordações de grande interesse histórico e romântico.

Quando eu estive em outra época n'este formoso

(•) Devera dizer: reis mouros de Lisboa, uma das cidades da província mussuliiiana de Belatha, a iiito querer dizer mais correctamente lí^aZZíí ou al- kaids. Portugal (Porto-Cdle) quando Lisboa era alternadamente mourisca ou sueva, e, ainda no século XI, não passava para além do Vouga, aooccidente. A denominação «Portugal" ampliou-se á proijorçiío das conquistas; egenera- lisou-se quando a nova monarchia se desmembrou do reino de Leão. Portu- gal constituiu-se reino em 1140.

188 A FORMOSA LUSITÂNIA

local parece que não havia tantas cazas aninhadas entre arvoredo e fragas. Santa Estephania (•) que ha annos começou a edificar-se e foi depois abando- nada, renasce agora com direito á nossa considera- ção. Está-se creand o uma povoação, e brevemente se abrirá ali um magnifico hotel. A cumprir-se parte do programma d'este estabelecimento em beneficio e conforto dos visitantes, Victor, que tem o melhor hotel de Cintra, deve extremar-se em zelo da sua casa, se quizer continuar no gozo da primazia. Está situada na estrada nova de Mafra, e dista de Cintra um kilometro. E formosíssima a sua situação; ro- deam-na graciosas cazas engastadas entre bosques e jardins, por onde serpeam regatos de cristalina agua que rega nas suas orlas uns hervaçaes oloro- sos que, se os pizam, exhalam suavíssimos per- fumes. Gentil Estephania! Dizem que o rali Lar- manjat hade ir dar. Se assim acontecer, ainda que o purgatório da jornada possa devotamente tragar- se com a mira posta n'aquelle paraizo, por tal meio não heide eu alcançal-o.

Aqui ha dezeseis annos houve o projecto de uma via-ferrea de Lisboa a Pedrouços, deh'onte de Be- lém, a terminar na Estephania, onde algumas boni- tas cazas se edificaram na esperança de formar um subúrbio de Cintra. Estava traçada a linha do rail e organisada uma empreza que a executasse. Gran- de parte do traçado até á barreira de Lisboa es-

(•) Santa é canouisaçào da auctora, que desfaz no prestigio da nossa santa Quitéria e nos enriquece com uina santa Estephania. Simplesmente «Estcphaniau é o projecto de uma viUa^ que tinha dez cazas quando Lady Jackson esteve eui 1^74.

PARA CINTRA, NO LARMANJAT 189

tava principiado quando Cintra ganhou ciúmes antevendo provavelmente que os forasteiros n'aquella estancia encantadora prefeririam aquartelar-se na Estephania, cuja situação tem mais attractivos que a da antiga villasinha. Ao novo ?yu7 e ao formoso su- búrbio atravessaram-se fortes opposições promovidas por poderosas influencias que vingaram inutilisar os dous projectos.

Parece-me que melhor êxito se offerece agora á rival de Cintra com o patrocínio dos frequentadores. São por ella muitas vantagens : a estrada chã para Cintra plantada de arvores e arbustos que ali fron- dejam depressa, é um passeio de predilecção ; depois, a nova Praça de touros distracção cuja necessidade ninguém pensaria que se fizesse sentir em Cintra está perto de Estephania. O estabelecimento de ba- nhos de chuche, aos quaes muita gente expressa- mente concorre, está no caminho de Mafra. A es- chola do conde de Ferreira que interessa a muitos, está a dous passos ; e a jornada a Mafra, com a in- terposição de Estephania, é menos fadigosa.

Tem Cintra vários hotéis ; mas o de mrs. La- wrence, depois do de Victor, é o mais favorecido dos inglezes. Mrs. L. é mulher de annos adiantados, que tem vivido em Portugal, senão em Cintra, quasi toda a sua vida. Um dos rapazes conductores en- trou por engano no seu hotel pelas trazeiras da casa, por uma espécie de desvão assotado da cosi- nha, onde uma mulher idosa, que eu suppuz ser a cosinheira, descascava ervilhas. Ergueu a cabeça, e fitando-nos atra vez dos óculos, disse : «Boa! que é o que desejam? »

190 A FORMOSA^LUSITANIA

Queremos almoçar disse o meu faminto com- panheiro algum tanto impacientado, emquanto eu lhe perguntava: «É mrs. Lawrence?»

Sou eu, sem duvida nenhuma; e a snr.** é in- gleza? Este cavalheiro fallou-me em portuguez. (•)

Queremos almoçar immediatamente repli- cou elle em genuina lingua ingleza.

Bem, snr., faz favor de subir as escadas e di- zer o que quer almoçar que eu tracto d'isso. Vie- ram no Larmanjat? Se vieram, hão de querer refres- car-se n'um banho, acho eu? Acho que também querem quartos, pois não querem? Mas eu n'esta occasião não tenho nenhum ; ha ahi um de uma gente que não está cá, mas pagou-o para o ter seguro quando viesse.

Depois de uma pequena conversação, a velha senhora que ao principio se mostrava áspera, sua- visou-se prodigiosamente em palavras prazenteiras, e tornou-se mui de grado curiosa a nosso respeito. A filha e a neta, cuja historia ella me contou, appa- receram, quando eu examinava o hotel. Mais despida e desconfortável cousa difficilmente haverá.Parte dos quartos está ao rez da rua. A mobilia de uma das saletas contiguas sem vista para parte nenhuma, era trez ou quatro mezinhas oblongas com seus guar- da-pés de musselina branca, e cobertas de fustão á maneira do que se usa nas bancas de toucador; um

(•) Nào temos vocábulo equivalente que, sem redundância, exprima o young gentle.man (o cavallieiro-moço ) que acompanhava a illustre hospeda de mrs. Lawrence. O que temos é a certeza de que a talentosa viajante era acompanhada de um joven patricio nosso, cujo nome está mysteriosamente resguardado nas 400 paginas do livro.

PARA CINTRA, NO LARMANJAT 191

sophá comprido, de encovado assento, estreito, de espaldar alto, com almofadas redondas, embuçado todo em festão, e trez ou quatro poltronas fundas e altas, de costas estreitas, e também ensacadas, al- gumas estampas velhas, e um copo n'um pires de barro completavam a. decoração.

Penso eu que a mobilia d'esta saleta desperta uma pallida reminiscência da moda predominante em Por- tugal em passadas eras, e ainda hoje se encontram nas cazas antigas, onde mezas, cadeiras, armários e tremós se cobrem de pannos escarlates ou damasco de qualquer cor. Vi muitas vezes esta espécie de esmerado adorno em S. Paulo de Loanda, onde, como em muitas colónias, as velhas usanças e mo- das subsistem longo tempo, muito depois que se toi'nai"am obsoletas na metrópole. Eu mesma tive uma sala assim mobilada commodamente. Cadeiras e mezas carunchosas, assim atabafadas, fingiam explendidos trastes; os bofetes pareciam altares, de mais a mais, com a semelhança de candelabros, etc.

Ora as mussellinas e fustões de Mrs. Lawrence eram alvos e limpos ; e, havendo limpeza, seria de esperar que uma sincera enthusiasta do bucolismo se contentasse com isso, e d'isso mesmo prescin- disse se o seu destino era viver entre as paisagens da pittoresca Cintra. Porém, eu pela minha phy- losophia, folgo, depois de contemplar em extasis as magnificências da natureza, achar-me em casa con- fortavelmente recheada de cousas bonitas e bem dis- postas, para ahi repassar na mente, e contemplar de novo as formosas visões que me fluctuam ante

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192 A FORMOSA LUSITÂNIA

OS olhos d'alma, e podel-as assim gravar na tela da memoria. Os aposentos ignóbeis são de ordinário nocivos á retentiva duradoura das vivas impressões de cousas grandes sublimes quer em belleza de poe- sia, quer em agreste romanesco. Posto que de en- volta com as idéas grandiosas apenas resvalem in- consciamente pela alma os desconfortos do corpo, é certo que o sentil-os macula os quadros ; e, se, passado tempo, a gente os avoca á lembrança, acha-os nublosos, sem relevo, e incapazes de es- pertarem um doce recordar. Mas, se aquella medi- tação se passou nos commodos regalos de uma boa caza, as recordações, qual renascido encanto de olhos, renovam-se deleitosamente.

Ha gente que professa o gosto d'aquillo que el- les chamam «o selvático». Algumas viragos do sexo brando protestam que se deliciam quando topam a natureza bruta; mas essa gente acho eu que não nem sente o bello, ainda que diga comvosco em chamar belleza áquillo que lhe mostraes. Tem o que quer que seja de athlêles; contam proezas que fize- ram de jornadas a pé, perigos que affrontaram, ser- ras que treparam, choças que habitaram, os pães e os queijos que devoraram ; mas o que viram é raro dizerem-no. Provavelmente o que elles viram mais interessante foi as suas próprias pessoas, ou não ti- veram tempo de reparar em mais nada. São d'uns viajantes da natureza de uma «forte» dama e de um cavalheiro, que, ha pouco, me disseram que o selvá- tico lhes era recreativo, e que o esfalfarem-se lhes era agradável para variarem. Quizeram elles que eu os acompanhasse n'uma excursão de trez ou quatro

PARA CINTRA, NO LARMANJAT 193

dias; mas não me quadrou a proposta. A tal dama, descobrindo nas minhas palavras que eu, n'isto de prazeres de viagem, destoava muito d'ella, disse ao marido : « Não entendes, querido, que ella vai muito a passo pelo sublime acima?»

Voltemos a Mrs. Lawrence. É de justiça dizer que a sua caza, se não está tão graciosamente si- tuada como as outras, é limpa. almoços e jan- tares excellentes, posto que as nuvens de moscas disputem a posse de cada bocado que se come. Quanto a preços, paga-se moderadamente.

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CAPITULO XIV

CASTELLO DA PENA, ETC.

Acabamos de almoçar café, pão hespanhol, man- teiga fresca de Cintra, morangos, pecegos e figos, sem que os burrinhos chegassem. os tinhamos alu- gado no caminho, antes de entrarmos na Hospedaria Lawrence; mas o burriqueiro occultou-nos que elles estavam então na feira, e andavam desde a madru- gada a carrejar géneros de um lado para outro. Elle, ainda assim, desculpando-se da demora, con- tou-nos isso; mas esqueceu-se de que augmentára ao preço usual, inculcando que a excursão que pro- pozemos era mais extensa do que é costume. Os buri'os, porém, saíram mais honrados que o dono. Com certeza previam futuros funestos, quando se recusaram a levar-nos cima á Pena, impugnando que os montássemos. Despedimos, pois, os pobres brutos expostos á flagellação da chibata; e, montan- do outros que vieram, partimos a trote.

Não sei que rasão obriga a gente a subir o mon- te, n'aquelle chouto de burros. O caminho está melhor do que era a ultima vez que o subi ; e, com- quanto de ronda, é de suave pizo, de modo que bem se podia ir em carros tirados por garranos ou jumentos. Tratei logo de me apear, e subi a mais de metade do caminho aproveitando somente o ju-

CAPITULO XIV

CASTELLO DA PENA, ETC.

Acabamos do almoçar café, ])ão hespanhol, man- teiga fresca de Cintra, morangos, pecegos e figos, sem que os buri-inlios cliegassem. os tinhamos alu- gado no caminho, antes de entvarmos na Hospedaria Lawrence\ mas o burriqueiro occultou-nos que elles estavam então na feira, e andavam desde a madru- gada a carrejar géneros de um lado para outro. Elle, ainda assim, desculpando-se da demora, con- tou-nos isso; mas esqueceu-se de que augmentára ao preço usual, inculcando que a excursão que pro- pozemos era mais extensíi do que é costume. Os bui'ros, porém, saíram mais honrados que o dono. Com certeza previam futuros funestos, quando se recusaram a levar-nos cima á Pena, impugnando que os montássemos. Despedimos, pois, os pobres brutos expostos á flagellação da chibata; e, montan- do outros que vieram, partimos a trote.

Não sei que rasão obriga a gente a subir o mon- te, n'aquelle chouto de burros. O caminho está melhor do que era a ultima vez que o subi ; e, com- quanto de ronda, é de suave pizo, de modo que bem se podia ir em carros tirados por garranos ou jumentos. Tratei logo de me apear, e subi a mais de metade do caminho aproveitando somente o ju-

CAPITULO XIV

CASTELLO DA PENA, ETC.

Acabamos do almoçar café, pão hespanhol, man- teiga fresca de Cintra, morangos, pecegos e figos, sem que os burrinhos chegassem. os tinhamos alu- gado no caminho, antes de entrarmos na Hospedaria Lawre7ice\ mas o burriqueiro occultou-nos que elles estavam então na feira, e andavam desde a madru- gada a carrejar géneros de um lado para outro. Elle, ainda assim, desculpando-se da demora, con- tou-nos isso; mas esqueceu-se de que augmentái^a ao preço usual, inculcando que a excursão que pro- pozemos era mais extensa do que é costume. Os bui'ros, porém, saíram mais honrados que o dono. Com certeza previam futuros funestos, quando se recusaram a levar-nos cima á Pena, impugnando que os montássemos. Despedimos, pois, os pobres brutos expostos á flagellação da chibata; e, montan- do outros que vieram, partimos a trote.

Não sei que rasão obriga a gente a subir o mon- te, n'aquelle chouto de burros. O caminho está melhor do que era a ultima vez que o subi ; e, com- quanto de ronda, é de suave pizo, de modo que bem se podia ir em carros tirados por garranos ou jumentos. Tratei logo de me apear, e subi a mais de metade do caminho aproveitando somente o ju-

196 A FORMOSA LUSITÂNIA

mento nos lanços mais escarpados, porque a al- barda miserável, velhissima e improvisada em se- lim, escorregava-lhe do lombo, e eu via-me em trabalhos de equilíbrio para me salvar d'um desai- roso trambolhão.

Seguiam-nos de perto um rancho de dez ou doze damas hespanholas e cavalheiros, com quem trocamos «vivas» !

Duas ou trez adoptaram o meu exemplo apean- do-se, e acharam-se bem, confessaram ellas. Ver- dade é que, ás vezes, encontrávamos na estrada barrancos de cascalho ; mas era-nos menos custoso passal-os a do que transpôl-os no chotar dos ju- mentos. Além d'isso, ia a gente mais livre para poder ver o que nos rodeava, e sem a fadiga de repuchar os burros quando saíam do trilho ou tangel-os quando lhes dava na veneta de estacarem. Porção da ladeira é sombria de espessa folhagem ; e de vez em quando encontram-se grutas e fontes com gros- sas bicas, e assentos em que os peregrinos cança- dos podem desfadigar-se sob a tremula ramaria das agradáveis pimenteiras, e sentirem-se, além de descançados, venturosos ; por quanto, Cintra,

«Quem deseançado á fresca sombra tua «Sonhou senão venturas?»

Almeida. Gaerett.

A direita, erguem-sc as empinadas e denticuladas cristas da serra. No respaldo da montanha, que, as- sombrosa mescla de rochas denegridas, de pinhaes, moitas de arbustos pendidos, scintillantes casca- tas e luxuriante vegetação, por entre a qual se re-

CASTELLO DA PENA, ETC. 197

cortam as ameias da muralha que se prolonga até ao Castello dos Mouros ! A esquerda, ao fundo, ex- tensíssimo tracto de terra ondulosa fertilisada por uma torrente que se despenha espumejante da serra, e se espraia por jardins e pomares, formando um pa- norama não tão alpestremente romântico como o pri- meiro, mas que lhe não cede em encantos de poesia.

Uns inglezes, vindos ha pouco a Cintra, dispen- saram-se de admirar-lhe as suas bellezas, allegando que conheciam as paisagens da Ilha de Wight. Com certeza, a paisagem do ilhéo, em alguns sitios, é magnifica ; mas não comporta o confronto com a de Cintra, cujas levantadas penedias têm maior grandeza e altura ; e, quanto a vegetação, é aqui mui- to mais opulenta e variada. Podeis, com muita pro- priedade, comparar a vista de Londres, de Green- wich Park, á de Lisboa, tirada de Almada, comojã um consumado inglez John Buli comparou, dando a preferencia está claro á vista de Greenwich. Provavelmente as duas «vistas» são agora mais bel- las do que eram quando se fez a ciumosa compa- ração, porque eu li isto em um velho livro de viagem de 1816 ou 1817.

Dizem também outros que Cintra deve ao en- thusiasmo de Byron e de outros poetas modernos a sua prestigiosa belleza; mas é mais provável que ella o deva á sua própria formosura. Antes de By- ron escrever, Lisboa e Cintra eram mais conhe- cidas e frequentadas por inglezes do que o são ago- ra, exceptuando a concorrência dos negociantes ; porque então era costume os enfermos de thysica procurarem allivio no inverno de Lisboa, e é de crer

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198

A FORMOSA LUSITÂNIA

que quem aqui se detivesse até primavera não deixasse de passar alguma temporada em Cintra. Possuo cartas escriptas por uma senhora que aqui esteve com suas filhas em 1791. Escreve ella: «Emquanto estanciei n'este magico logar li o Pa- raizo perdido de Milton, e muito me impressio- nou a descripção do Éden pelo que tem de semi- Ihante com este local. De facto, acho aqui uma des- cripção de Cintra, e ainda não li outra que tão ao jusco lhe quadre.» A muitos respeitos é verdade aquillo, porque de Cintra com certeza pode dizer- se :

«Espessas, rudes, espinhosas e altas «Brenhas em torno d'ella o accesso vedam. «Em cima o cedro, o pinho co'a palmeira «Que eguaes estende os ramos seus, o abeto «Formavam n'uma altura alcantilada «Grratas sombras de scenas campezinas, «E amphitheatro de arvores copadas, «De vista arrebatante. . •> ()

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Este trecho e muitos outros podem quadrar a Cintra; mas na descripção do Éden não entram aquelles resvaladiços íVagoedos das ribas do mar, e a perspectiva tão grande, tão magestosa do in- findo oceano.

Entre as varias pennas que tentaram descrever Cintra, conheço uma que vingasse fazer-lhe sentir a belleza: foi Beckford. Aspira elle menos a descrever as scenas do que exprimir o efi'eito d'aquella

(•) Versào de Targini.

CASTKLLO DA PKXA, KTC.

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ella:

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magia que lhe fascina a iiidole sentimentalmente poética. Escreveu entre 1788 e 1794. E a mim me quer parecer que Cintra era então mais agradável que actualmente; pelo menos concorriam ali mais viajantes por prazer. Não liavia então corridas de touros nem de cavallos; mas é de crer que hou- vesse fadas e nymphas, ou o que lhe aprouver ima- ginar; mas, se em alguma parte da terra houve seres d'essa espécie, devia de ser n'aquella encantada e encantadora região. Dii-se-hia que os pyi-ilampos e as moscas phosphoricas ainda relampejam nas or- gias das bruxas que por ali se vão mirrando. Em noites estivas, podeis vel-as no «Passeio dos amo- res» ou em qualquer bosque fechado. Todavia, não divague por sósinho ; porque as graças da natu- reza realçam, se a um companheiro de consentâneo gosto cabe um quinhão dos nossos gosos e extasis. Quando se ouve o solfejar dos rouxinoes e o luai' se escoa d'entre as ramarias, e a suavíssima vira- ção bafeja perfumada do aroma dos laranjaes, dos jasmins, da murta em flor, das rozas, da alfaze- ma e do heliotropio, pode imaginar então, i*espi- rando aquelle ar balsâmico, que está, pelo me- nos, no lumiar do paraizo.

Emfim, trepamos a montanha, e sem grande fa- diga, se attendermos a que subimos mil metros aci- ma do nivel do mar. Entramos por uma formosa avenida, longa abobada tecida pelas grimpas incla- vinhadas do arvoredo, e logo adiante entrevimos o Casíello da Pena, o palácio alpestre de D. Fer- nando, — rei aíHista.

Entabolei conversação por momentos com duas

198

A FORMOSA LUSITÂNIA

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que quem aqui se detivesse até primavera não deixasse de passar alguma temporada em Cintra. Possuo cai*tas escriptas por uma senhora que aqui esteve com suas filhas em 1791. Escreve ella: «Emquanto estanciei n'este magico logar li o Pa- raizo perdido de Milton, e muito me impressio- nou a descripção do Éden pelo que tem de semi- Ihante com este local. De facto, acho aqui uma des- cripção de Cintra, e ainda não li outra que tão ao justo lhe quadre.» A muitos respeitos é verdade aquillo, porque de Cintra com certeza pode dizer- se :

«Espessas, rudes, espinhosas e altas «Brenhas em torno d'ella o accesso vedam. «Em cima o cedro, o pinho co'a palmeira "Que eguaes estende os ramos seus, o abeto «Formavam n'uma altura alcantilada «Gratas sombras de scenas campezinas, «E timphitheatro de arvores copadas, «De vista arrebatante. . •> (•)

Este trecho e muitos outros podem quadrar a Cintra; mas na descripção do Éden não entram aquelles resvaladiços fragoedos das ribas do mar, e a perspectiva tão grande, tão magestosa do in- findo oceano.

Entre as varias pennas que tentaram descrever Cintra, conheço uma que vingasse fazer-lhe sentir a belleza: foi Beckford. Aspira elle menos a descrever as scenas do que exprimir o effeito d'aquella

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(•) Versão de Targini.

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magia que llio fascina a indolo sentimental monte puetica. Escreveu entre 1788 e 1794. E a mim mi; quer parecer que Cintra era então mais agradável que actualmente; pelo menos concorriam ali mais viajantes por prazer. Não havia então corridas de touros nem de cavallos; mas é de crer que hou- vesse fadas e nymphas, ou o que lhe aprouver ima- ginar; mas, se em alguma parte da terra houve seres d'essa espécie, devia de ser ii'aquella encantada e encantadora região. Dir-se-lha que os pyrilampos e as moscas phosphoricas ainda relampejam nas or- gias das bruxas que por ali se vão mirrando. Em noites estivas, podeis vel-as no «Passeio dos amo- res» ou em qualquer bosque fechado. Todavia, não divague por sósinho; porque as graças da natu- reza realçam, se a um companheiro de consentâneo gosto cabe um quinhão dos nossos gosos e extasis. Quando se ouve o solfejar dos rouxinoes e o luar se escoa d'entre as ramarias, e a suavíssima vira- ção bafeja perfumada do aroma dos laranjaes, dos jasmins, da murta em flor, das rozas, da alfaze- ma e do heliotropio, j)ode imaginar então, i^espi- rando aquelle ar balsâmico, que está, pelo me- nos, no lumiar do paraizo.

Emfim, trepamos a montanha, e sem grande fa- diga, se attendermos a que subimos mil metros aci- ma do nivel do mar. Entramos por uma formosa avenida, longa abobada tecida pelas grimpas incla- vinhadas do arvoredo, e logo adiante entrevimos o Castello da Pena, o palácio alpestre de D. Fer- nando, — rei artista.

Entabolei conversação por momentos com duas

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A FORMOSA LUSITÂNIA

que quem aqui se detivesse até primavera não deixasse de passar alguma temporada em Cintra. Possuo cartas escriptas por uma senhora que aqui esteve com suas filhas em 1791. Escreve ella: ((Emquanto estanciei n'este magico logar li o Pa- raizo perdido de Milton, e muito me impressio- nou a descripção do Éden pelo que tem de semi- Ihante com este local. De facto, acho aqui uma des- cripção de Cintra, e ainda não li outra que tão ao jusLO lhe quadre.» A muitos respeitos é verdade aquillu, porque de Cintra com certeza pode dizer- se :

«Espessas, rudes, espinliosas e altas «Brenhas em torno d'ella o accesso vedam. «Em cima o cedro, o pinho co'a palmeira «Que eguaes estende os ramos seus, o abeto «Formavam n'uma altura alcantilada "Grratas sombras de scenas campezinas, (lE amphitheatro de arvores copadas, «De vista arrebatante. . •> (•)

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Este trecho e muitos outros podem quadrar a Cintra; mas na descripção do Éden não entram aquelles resvaladiços fragoedos das ribas do mar, e a perspectiva tão grande, tão magestosa do in- findo oceano.

Entre as varias pennas que tentaram descrever Cintra, conheço uma que vingasse fazer-lhe sentir a belleza: foi Beckford. Aspira elle menos a descrever as scenas do que exprimir o effeito d'aquella

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(•) Verscào de Targini.

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CASTELLO DA IMIXA, IITC.

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magia que llie fascina a iiidole sentimeiitalmoiitc3 poética. Escreveu entre 1788 e 1794. E a mim me quer parecer c|ue Cintra era então mais agradável que actualmente; pelo menos concorriam ali mais viajantes por prazer. Não havia então coriidas de touros nem de cavallos; mas é de crer que hou- vesse fadas e nymphas, ou o que lhe aprouver ima- ginar; mas, se em alguma parte da terra houve seres d'essa espécie, devia de ser n'aquella encantada e encantadora região. Dir-se-hia que os pyrilampos e as moscas phosphoricas ainda relampejam nas or- gias das bruxas que por ali se vão mirrando. Em noites estivas, podeis vel-as no «Passeio dos amo- res» ou em qualquer bosque fechado. Todavia, não divague por sósinho ; porque as graças da natu- reza realçam, se a um companheiro de consentâneo gosto cabe um quinhão dos nossos gosos e extasis. Quando se ouve o solfejar dos rouxinoes e o luar se escoa d'entre as ramarias, e a suavissima vira- ção bafeja perfumada do aroma dos laranjaes, dos jasmins, da murta em flor, das rozas, da alfaze- ma e do heliotropio, pode imaginar então, respi- rando aquelle ai* balsâmico, que está, pelo me- nos, no lumiar do paraizo.

Emfim, trepamos a montanha, e sem grande fa- diga, se attendermos a que subimos mil metros aci- ma do nivel do mar. Enti'amos por uma formosa avenida, longa abobada tecida pelas grimpas incla- vinhadas do arvoredo, e logo adiante entrevimos o Castello da Pena, o palácio alpestre de D. Fer- nando, — rei arliiita.

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que quem aqui se detivesse até á primavera não deixasse de passar alguma temporada em Cintra. Possuo cartas escriptas por uma senhora que aqui esteve com suas fillias em 1791. Escreve ella: «Emquanto estanciei n'este magico logar li o Pa- raizo perdido de Milton, e muito me impressio- nou a descripção do Éden pelo que tem de semi- Ihante com este local. De facto, acho aqui uma des- cripção de Cintra, e ainda não li outra que tão ao justo lhe quadre.» A muitos respeitos é verdade aquillo, porque de Cintra com certeza pode dizer- se :

«Espessas, rudes, espinhosas e altas ('Brenhas em torno d'ella o accesso vedam. «Em cima o cedro, o pinho co'a palmeira (cQue eguaes estende os ramos seus, o abeto «Formavam n'uma altura alcantilada «Grratas sombras de scenas campezinas, «E ampliitbeatro de arvores copadas, «De vista arrebatante. . •> (•)

Este trecho e muitos outros podem quadrar a Cintra; mas na descripção do Éden não entram aquelles resvaladiços fragoedos das ribas do mar, e a perspectiva tão grande, tão magestosa do in- findo oceano.

Entre as varias pennas que tentaram descrever Cintra, conheço uma que vingasse íazer-lhe sentir a belleza: foi Beckford. Aspira elle menos a descrever as scenas do que exprimir o effeito d'aquella

(•) Versão de Targiui.

CASTELLO DA l'j;XA, KTC. 199

magia que lhe fascina a índole sentimentalmente poética. Escreveu entre 1788 e 1794. E a mim me quer parecer que Cintra era então mais agradável que actualmente; pelo menos concorriam ali mais viajantes por prazer. Não havia então corridas de touros nem de cavallos; mas é de crer que hou- vesse fadas e nymphas, ou o que lhe aprouver ima- ginar; mas, se em alguma parte da terra houve seres d'essa espécie, devia de ser n'aquella encantada e encantadora região. Dir-se-hia que os pvrilampos e as moscas phosphoricas ainda relampejam nas or- gias das bruxas que por ali se vão mirrando. Em noites estivas, podeis vel-as no «Passeio dos amo- res» ou em qualquer bosque fechado. Todavia, não divague por sósinho; porque as graças da natu- reza realçam, se a um companheiro de consentâneo gosto cabe um quinhão dos nossos gosos e extasis. Quando se ouve o solfejar dos rouxinoes e o luar se escoa d'entre as ramarias, e a suavissima vira- ção bafeja perfumada do aroma dos laranjaes, dos jasmins, da murta em flor, das rozas, da alfaze- ma e do heliotropio, pode imaginar então, ]'espi- rando aquelle ar balsâmico, que está, pelo me- nos, no lumiar do paraizo.

Emfim, trepamos a montanha, e sem grande fa- diga, se attendermos a que subimos mil metros aci- ma do nivel do mar. Entramos por uma formosa avenida, longa abobada tecida pelas grimpas incla- vinhadas do arvoredo, e logo adiante entre vimos o Caslello da Pena, o palácio alpestre de D. Fer- nando, — rei artista.

Entabolei conversação por momentos com duas

200 A FORMOSA LUSITÂNIA

OU trez pessoas do rancho hespanhol. Portuguezes e hespanhoes eiitendem-se facilimamerite entre si, cada qual no seu idioma, posto que, orgulhosos da sua distincta nacionalidade, uns e outros professam mutua ignorância da linguagem alheia. Estas familias ei'am, a um tempo, delicadas e divertidas. Propuze- ram que constituíssemos todos um grupo de romei- ros ; não acceitei ; mas agradeci-lhes no convencio- nal estylo empolado e ceremoniatico que se usa.

Fomos indo muito de passo, porque esperáva- mos um empregado da caza real que nos havia de dar entrada em parte do castello vedada aos visitan- tes, quando D. Fernando está em Cintra. Justamente por aquelle tempo, andavam muito espreitados os hespanhoes que visitavam palácios, templos e edi- fícios públicos, porque o numero dos incêndios no- cturnos augmentava cada vez mais em Lisboa; e, como raramente se lhes acertava com a causa, im- putavam-na a emissários clandestinos dos revolu- cionários de Castella; por tanto, os empregados dos estabelecimentos públicos tinham restrictas ordens, como um d'elles me informou, de nunca largarem de vista por um instante os grupos d'aquelles amalditos hespanhoesy) .

Uma ponte-levadiça conduz á portada principal do castello, que tem esculpidas as armas de Portu- gal e Saxonia. Está ali, em estatua, um cavalleiro ar- mado de lança e escudo, no qual avulta o brasão de armas do barão d'Echwege, sob cuja direcção corre- ram as obras de engenharia delineadas por el-rei D. Fernando.

E costumo tomar guia logo que ali se chega,

CASTELLO DA PENA, ETC. 201

para vos conduzir por aquellas circumvoluções do delicioso labyrintho de boscagens e jardins. Os ju- mentos levados pelos burriqueiros passaram para o outro lado do castello, por um caminho de caracol, que flanqueia a serra, de modo que, ao sahirdespelo outro lado, achaes a monlure que vos espera fora das portas. Apresentaram-se-nos dois ou trez homens para guias, propondo uma avultada paga dos seus serviços, e protestando que era baratíssimo, antes que lh'a regateassem ; mas estava com elles um rapaz franzino, esguio, de quatorze annos pouco mais ou menos, vestido de azul ferrete com faxa escarlate, e descalço. Silencioso e recolhido com- sigo, com a sua grande carapuça de vermelha nas mãos, esperava, ali posto a um lado, o des- fecho d'aquillo que devia de parecer aos espe- ctadores uma altercação entre os seus companhei- ros mais idosos e mais brutos. Elles, porém, o que faziam era sustentar cada um as suas pretenções; e logo que um se ajustasse accommodavam-se os outros; porque eu creio que elles dividem entre si tudo que podem arrancar aos visitantes no que se consideram privilegiados. Gostei da attitude do ra- paz. Os seus olhos negros e suaves de gazella, cara intelligente e ar pacifico contrastavam agradavel- mente com os desvariados, turbulentos homens, e com a sua «muita bulha para nada.» (•) Escolhi-o, pois, para nosso conductor. Os homens encolheram

(■) Much ado ahout nothing corresponde ao provérbio portuguez: São mais as vozes do que as nozes ; parece-nos, porém, que a auctora quiz applicar á al- tercação dos guias o titulo d'uma peça de Shakespeare.

202 A FORMOSA LUSITÂNIA

OS hombros dando a perceber que o rapaz era um ignoramus. {•)

Eu de mim achei-o pittoresco e sympathico. Per- guntei-lhe se sabia bem os rodeios da quinta. aO, sim, senhora, sim-», respondeu elle. E quanto bas- tava. As historias e lendas do castello eu as co- nhecia.

(( Quanto hei de dar-te?» perguntei. «O que a senhora quizer», respondeu baixinho olhando re- ceoso para os homens; elles, porém, que o ouvi- ram, gesticularam outra vez com os hombros. N'esta occasião, faziam-no com pena do pobre rapaz, cui- dando que eu abusaria do parvoinho dando-lhe um vintém ou dous pelo seu trabalho.

Diffícilmente se pode, eu não pelo menos, bosque- jar uma condigna idéa da variada belleza d'aquelle torrão do Castello da Pena. As cumiadas e flancos da serra são vulgares e de diversos pontos se co- nhecem as vistas mais grandiosas : a planicie e fér- teis valles que se desdobram no decurso de léguas, as serras de Alemtejo e Extremadura, a Estrella e outros edifícios que coroam Lisboa, e, com superior sublimidade, os arrojados píncaros e desfiladeiros

(•)Este ignoramus, qne a escriptora quiz orthoRrapliarem portuguez, quer dizer ignorante. A Inglaterra está apanhando bastante do nosso idioma. Agora mesmo acabei de ler o preconisado livro Traceis in PoHugal hy John Latouche (o snr. Oswal Crawflord, cônsul inglez no Porto e cullaborador do «The New Quartely Magasine»). Apag. 192 da 2." edição tracta elle dos cães em Portugal, e escreve o seguinte : «Os portuguezes, bem que movidos por «caprichos de delicadeza, repugna-Uies proferir a palavra cão.. »

Depois faz uma ciiamada e accresccnta ao cão esta incrível nota : «Mesmo nos impressos illidem a reprehensivel palavra, pondo soinente a ini- «cial com duas estrellas, do mesmo modo que nós, em nosso tracto cor tez?

CASTia.LO \)\ PENA, ETC. 203

de Cintra; e, em baixo, o vasto atlântico sem li- mites. Que magestoso deve ser, visto d'ali, o sol no occaso ! A vista não é interceptada pelas tor- res e minaretes d'aquolle aerio palácio que se firma no pináculo da montanha; e quando as sombras da noute empaixlecL^m o vídle e Cintra, ainda em cima explendem languidos os raios do sol-poente.

Ha ali pedaços de verdura d'um verde como o das montanhas de Kent, sebes de gerânios, moitas de cravos brancos e violetas, delicias dos olhos. Os jardins são primorosamente cuidados. Norte e sul, as zonas tori'ida, frigida e temperada, conti'ibuiram a adornal-os com os seus mais raros arbustos, flo- res e arvores, que, transplantadas para aquelle solo benigno, realçaram em grandeza e formosura que não tinham no seu torrão natal.

Atravez da rocha menos rija abrem-se largos caminhos ; e á ourela i^efrigerante das veredas co- padas pela ramagem entretecida do arvoredo impe- netrável ao sol, derivam ribeirinhos que murmuram debaixo de graciosos pontilhões, ou então borbulham em cristalinas fontes. Tendes kiosques, caraman- cheis, viveiros, cazas de fresco, e assentos sobran-

notamos um «vocábulo depravado» O nome de um sitio conliecidissimo em Lisboa, Fonte do olho do cão, vi-o eu assim impresso : Fonte do olho dv c *. Pode ir mais longe a delicada susceptibilidads ? «

Não poderia de certo ir mais longe, mr. John ! Mas aqui ha um pequeno desconto a fazer. Este c**^ mio é cão em portuguez, assim como, em inglez, Ireech nào è dog. Em Portugal diz-se francamente e eynicamente cão ; mas, se precisamos escrever a outra cousa, á qual uma anathomia assas phantas- tica olho, costumamos estrellar o dito objecto. E os inglezes nem ainda á luz das duas estrellas o enxergam, nem o conhecem pelos modos, nem pelo fí^itio. É cegueira maior que a do objecto estrellado !

204 A FORMOSA LUSITÂNIA

ceiros a bellas vistas de mar; e, se o sol aperta, vos convidam a descançar sob um docel de folhas e flores.

Quando eu passava pela vereda tortuosa que desce para a estufa e vergel chamado o Jardim de Madama a condessa d'Edla, esposa de D. Fer- nando — estava uma cobra enroscada á beira d'um lagosinho. O meu guia pegou d'uma pedida para lhe atirar; mas a creatura, logo que nos lobrigou, su- miu-se de mergulho. Teria trez pés de comprimen- to, e ei'a lindamente matizada ; mas não sei se era peçonhenta. O rapaz não se deleitava muito em vêl-a, porque todo o seu empenho era esperal-a para dar cabo d'ella; todavia, como tal caçada não me deliciava, fui-me d'ali divagando e admirando as moitas de flores tão artisticamente dispersas entre penedias e ressaltos de rochas como que atiradas para ali a esmo pela mão da natureza.

Florescem n'aquelles jardins boscagens de camé- lias brancas e variegadas, e outras plantas tão raras n'estas latitudes que somente se vos deparam os únicos exemplares conhecidos em Portugal e Hespa- nha. Excede toda a belleza a collecção das exóticas de estufa. O jardineiro que m'as mostrou, e que parecia muito vaidoso d'ellas, desvanecia-se grandemente com as minhas repetidas exclamações : uBellissima ! bellissimaly) emquanto elle me historiava algumas flo- res do seu thesouro. Prometteu-me vastos esclareci- mentos do seu methodo de cultivo quando tivesse, disse elle, o mui grande prazer, de tornar a vêr, a senhora. Receio, porém, que toda sua erudição flo- rista se desperdiçasse commigo, porque eu ao deixar

CASTELLO DA PKXA, ETC. 205

aquelle palacio-ramilhête, apenas me lembrarei da esquisita formosura das suas flores.

Basta dizer-lhe que o soberbo castello nor- mando-gothico, suspenso como por encanto nos ca- beços das rochas, foi construído em parte sobre as ruinas d'um antigo convento fundado em 1503 por D. Manoel para frades Jeronymos, e dedicado a Nossa Senhora da Pena.

Emquanto o meu companheiro com o guia foi em busca do cicerone que tinha de mostrar-nos parte do castello, sentei-me em uma pedra debaixo das janel- las de um dos aposentos defesos, ao lado de uns degraus que conduziam a uma porta aberta, sobre a qual se via um entablamento esculpturado de lavores os mais caprichosamente phantasticos. Eis que ouço fallar, e logo umas phrases soltas de canto acompa- nhadas de piano. Apoz este breve preludio, a voz femenina, não de grande força, mas suavemente trinada e sem duvida bastantemente cultivada, can- tou uma ária um tanto meiga e melancholica. Em tal logar, quando tudo em redor era de molde a ex- citar a imaginação, a voz da cantora invisivel figu- rou-se-me um cantar de fada cazeira d'aquelle ma- gico alcaçar. Abriam-se á minha beira as urnas das flores ; em frente verdecia um muro de folhagem vestido por trepadeiras entrançadas com vimes e conformada em parreiral. As torres e minaretes fronteiras, uma arcaria de grande aspecto monás- tico, e tudo mais que me rodeava era para enlevos a alma, por breves instantes ao menos, em suavís- simo arrobo. De repente, cessou o cantar. Não tor- nei a ouvil-o, nem vi ninguém, até á volta dos meus

206 A FORMOSA LUSITÂNIA

companheiros, do quem soube que eu tinha ou- vido cantar e tocar a condessa d'Edla e Dom Fer- nando, e que elles provavelmente haviam saído do castello por outra porta para irem pescar aos lagos. O mosteiro estava a desabar quando D. Fer- nando o comprou, depois da secularisação das ca- sas religiosas. Parte do mosteiro subsiste em bom estado, ou foi restaurado ; no exterior, quanto á fachada e torreões, foi alterado em harmonia com o traçado de refazimento e remodulação do edi- fício. A torre grande d'onde contam que D. Manuel costumava subir a ver se vinha a frota do Vasco da Gama na volta da expedição á índia, foi derruída e reedifícada. Houve accrescentamentos de torres, cúpulas, muralhas com ameias, ponte levadiça, tor- reões e avenidas em arcada.

Os relevos que ressaltam das ombreiras e cor- nijas do portas o janellas, tanto no exterior como por doutro, são primorosos, elegantes, o ricos de engenhosas phantasias. Ao estylo architectonico ajusta-se o da mobilia. A casa de jantar é vasta, com pilares ao centro, e uma grande meza em ferradura.

Domina o terraço do Castello extensíssima perspectiva; mas o espectáculo não agrada tanto d'ali como de outros pontos, porque a campina que se avista é menos fértil o pouquíssimo accidontada. Fez- me lembrar o ponto do vista do terraço do S. Ger- main, que, a meu ver, deve mais a sua celebi^idade ã magnitude do que á bolleza variada da paisagem.

Do terraço ha uns suaves degraus que conduzem ao templo e claustro, que são os antigos do con-

CASlKLLf) DA l'K.\A, ETC. 207

vento sem Mltoracriu. Posto que pequenos, são inte- ressantíssimos. Instai'am-nos para que víssemos se- cretamente o explendído sacrário do altar mor, que foi tirado, ou antes arrancado d'entre o altar e retá- bulo. Fígurou-se-me aquelle acto uma irreverência, senão um sacrilégio. Esta reflexão, porém, devera suggeríl-a um catholico romano e não um protes- tante.

O sacrário é de transparente alabastro, com lin- das esculpturas em baixo relevo, figui-ando a paixão do nosso Salvador. É obra tão prima o desenho, e tão esmerado o lavor que esta peça não tem i-ival no paíz.

Assenta sobre grinaldas de íiôres esculpidas também no precioso alabastro e lindamente afes- toadas em columnas de porphydo preto. Disseram- me que faz bello effeito quando lhe encerram uma lâmpada, da qual transluz bastante claridade para que o celebrante possa ler no missal. Veio de Itá- lia este sacrário, comprado por D. João 3.°, filho de D. Manoel, e enviado como dadiva ao convento da Pena em 1529. É para espantar que os francezes, que espoliaram os mosteiros e levaram tudo que era bom, não cuidassem em remover este primor d'arte.

Ha na egreja uma janellinha pintada, que di- zem ser coeva do sacrário ; representa Vasco da Gama ajoelhado deante de D. Manoel, que parece tel-o ali para o admirar, como cousa o quer que seja semelhante a um pássaro em gaiola; mas as- sim o copiaram de um modelo da Tor7'e de Be- lém. Ha no claustro outra janella pintada, e dous ou três curiosos painéis antigos. Egreja e claustro

208 A FORMOSA LUSITÂNIA

constituem actualmente a capella particular do cas- tello. (•)

Voltando ao terraço, reparei na granjasinha suis- sa do plano inferior: chama-se o Chalet de Mada- ma, e uns vislumbres do estylo do chalet do Pe- til Trianon. Do terraço descemos aos lagos, que são pittorescamente bellos. Marginam-os, a espaços, ramalhosos salgueiros e vastos bosquetes de fu- chsias plantadas rentes com as abras dos lagos e debruçadas com os seus festões de flores que ros- sam á flor da agua. Aqui nos encontramos outra vez com a ranchada hespanhola, da qual não accei- tei a camaradagem em nossas excursões. Esta- vam esperando ali por D. Fernando e pela condessa, que ainda não tinham chegado; mas o barquinho e mais o barqueiro com os utensílios da pesca e to- dos os accessorios necessários, estavam aperce- bidos.

(•) Nâo sei porque transformações passou o cárcere d'este santo azylo de monges, que, ao parecer do Byron, iam para ali penar os seus delictos Como entendido em lingua portugueza, dizia elle que o convento da Pena chamava-se assim do penar dos monges 5 depois, em ulteriores edições, emen- dou a mão, fazendo pena synonimo de penha, rocha, etc. Mas que ali pena- ram frades acorrentados no cárcere ou tronco do convento não ha duvidai -o em presença das queixas que o finado abbade de Castro ainda viu escri- ptas em 1841. Refere o indigesto antiquário na Memoria histórica sobre a origem da fundação do real mosteiro de JV. S. da Pena, o seguinte : «0 cárcere do Mosteiro ficava no corredor do claustro baixo. Tinha 10 palmos de largo e 15 de comprido, com uma estreita fresta na parede que lhe dava alguma claridade ; a um dos lados havia um banco de pedra, e no meio do vão estava, no pavimento, um annel de ferro ; as paredes eram caiadas, e nel- las ainda se observam muitas inscripções românticas, sentenças, máximas e queixas, feitas com algum instrumento agudo; porém, de todas a mais notável é a seguinte :

Adeus convento ingrato, adeus tirano, Cruel executor do meu triste fado.

o

H O

CAsiELLo DA im:.\a, 1;'I('. 209

Não esj3erei pelo embarque dos pescadores; e, depois de andar ao acaso deliciosamente pelos jai- dins sobranceiros aos lagos, despedi-me do guia que foi, creio eu, tão contente de mim quanto eu fi- quei d'elle. Transpondo um vasto portal de fer- ro, fui ao castello dos Moui*()S, que assenta em uma eminência menos alta, pouco afastada da Pena. Aqui ha que vèr a cisterna ou banlio mourisco abobadado que tem sessenta e trez palmos de com- primento e vinte e seis de largura (•). A agua que deriva é limpida e permanece sempre no mesmo nivel. A outra muralha do castello foi restaurada pv)r D. Fernando, e adjuncta aos seus principescos domínios mais invejáveis que o vacillante throno de Hespanha que lhe offereceram. Retouçam-se por ali em plena liberdade vários animaes, o veado, a gazella de saltos elegantes, a coi'(;a, o boi, pa- vões, abestruzes, cysnes e ganços, ostentando as suas alegres plumagens. Ainda existe a antiga mes-

De ti fujo hoje, hindo expulsado ;

Goza -te do teu rigor sempre ufano.

Não sejas traidor infiel, desumano ;

Trata a teus monges com outro agrado ;

A nenhum dès o pago que a mim me tens dado.

Fica-te muito embora com teu engano.

Deus' que tenho valor de suhejo

Para esquecer esperanças de algum dia;

Ja de ti nada quero nem também desejo.

Mas oh ! enganadora leve phanlasia,

Que de Jerónimo prezo me vejo

Quando cuidava nesta expulsão lhe fugia».

A isto chamava o abbade de Castro uma inscripcão romântica. Aquelle bruto frade, a nâo o enforcarem, devia de estiir prezo perpe- tuamente em castigo dos impenitentes versos que fazia.

(•) A auctora, suppondo, á imitação de Murpliy e outros, que a cisterna

li

10 A FOIIMOSA LUSITÂNIA

quita. Aqui ha annos, quando so faziam escavações respeitantes ás obras, eiicoutraram-se alguns es- queletos. Reuniu-se a ossada e sepultou-se de mis- tura sob uma lapide, que tem gravados os emblemas da cruz e do crescente com a inscripção : O que ficou junlo, Deus separará porque não se sabia se os os- sos eram de christãos se de sarracenos. A lapide está rabiscada de garatujas de uma gente que tem a mania de desfigurar os objectos que lhe é conce- dido ver, escrevendo os seus nomes (ju iniciaes, com umas sentenças piedosas ou sublimes para edificação de pouco atiladas creaturas. E de esperar que as orthodoxas e eloquentes máximas dos visi- tantes de toda e qualquer fiação possam aproveitar quando muito em sermonarios; porém, melhoi' fora que em vez de as escreverem com o propósito de dou- trinar, não commettessem o peccado de empregar ca- nivete ou navalha na estragação da lapide.

D'aqui, por um estreito carreiro de posto.

haja sido um grande banho mourisco abobadado,- escreveu : waulted Moo- rish bath. Peço vénia para nào acceitar a applicaçíXo que estrangeiros e na- ciouaes liic deram. As cisternas em castellos nào eram casas de banhos : eram depósitos de agua potável. Sinto descrer d'essa reputação de limpeza concedida aos mouros por equivoco. Os agarenos eram um:-i raça tão suja que derrubaram as luxuosas thermas romanas que encontraram na Penín- sula. Já Camucs os invectivou de torpe gado. Ajuize-se dos mouros subur- banos de Lisboa pela limpeza dos saloios, seus representantes actuaes. A lenda popular de que as íiliias do crescente se lavam e penteain, por noutes de S. Joào, no respaldo das montanhas, mirando-se no crystal das correntes, quer significar qwe cilas, posto que tivessem nomes lyricos, Haydés, Fatimas e Zuleikas, apenas se lavav.un uma vez cada anno. Isto pelo que respeita á mourisina pura ; quanto ao que é d'outra raça mais acea- da, a mosarabe, veja-se o que decide o snr. doutor Theophilo Braga, que é capataz no assumpto, e leva de poz si a admiração de toda a gente, segundo a phrase do Apocalypse:

Et (idmirata ed universa terra post bestiani.

casti:j.ij) da J'i;\a, i;tc. 211

pode-se ir muito a c]ir(3Íto e d(3|)ro.ss;\ desde o cas- tcllo dos Mouros até á Villa. Lembrei que descês- semos o atallio cm vez de irmos á Penlia V(;i'd(!. É que eu jn tinha sido uma vez baldeada ao chão jjclo detestável burro cDadjuvado peladetestavel albarda, e resolvera não o montar mais, pelo menos n'a(|uelle dia. O bui'ri(jueii'o (piiz vêr na minha proposta uma in- juria a si e a(js burros. Declamou, pediu e allegou que eu não soíiVèra av;u'ía nenhuma na queda ; e não estava longe da verdade, poi'que eu decei'to não me sentia avariada em parte nenlumia ; mas, ainda assim, a eloquência do homem não logrou convencei^-me a ir de volta pai*a lhe lisonjear a do- rida sensibilidade. E assim nos apai-tamos, elle muito zangado, e eu contentíssima.

CAPITULO XV

(jriXTAS, SANTA CIXVZ, KTC,

E bello ver, por alvoradas de estio, o lampejar do sol nascente na ténue gase das brumas que, ás vezes, permanecem innevoando o castello e o con- vento lá nos pináculos da montanha. A névoa, se é espessa, não se rarefaz ; a montanha está toldada ; mas, A medida que se vai rozando e transluzindo, engrandece os objectos que encobre. Então, a pouco e pouco, a névoa se adelgaça; e, como em tela de formosa pintura depois que se lustra, repintam-se de todo as bellezas que se confundiam indistinctas.

Deveis madrugar e sair ao arraiar do sol para os bosques, se quereis ver folhas e iiòres em scin- tillações de oi'valho espectáculo para maiores de- licias nos climas do sul.

O sol as saúda e beija com o ardor dos seus pri- meií^os raios. (•) A suave vira(;ão que move as i*a- marias em breve se esvahece e volta ao entarde- cer, e o suavíssimo perfume que embalsama o am-

(•) Lady Jackson é bastante enfadonha e rhetorica nas suas figurações bucólicas liào de ter notado. Delcita-se esta scnliora em matcrialisar com termos assas sensitivos as scenas vegetaes. Se se trata de beijos no sou li- vro — tirante os clandestinos de pag. 74 esses beijos é quasi sempre o sol que os ardentemente nas folhas e flores. N'esta scena, por exemplo, o sol nào beija, mas até, com a mais fina educação, saúda, ao nascer, as Hori-

214 A FORMOSA LUSITÂNIA

bieuto dura apenas om qaaiitu as ílôros estão hume- decidas das pérolas olorosas do orvalho da noite. As aves esvoaçam-se ou chilream, emquanto es- panejam a sua plumagem nas sebes do loureiro- thymo e dos jasmineiros. Ouve-se oesti-idulo zumbi- do da multidão dos insectos ; a abelha liba os sucos do fragrante thymo, das campainhas e jacinthos; azas translúcidas de brilhantes matizes lampejam, vis- lumbram ao sul matinal, e pequenas borboletas ade- jam amorosas por sobre as boninas que esmal- tam os prados.

Estas íiures, cujos cálices e corollas semelhan- tes a pedras preciosas, então se abrem de todo, a pouco e pouco se vão contrahindo e escondendo sob algum foliculo ou haste de herva, muito antes que o sol meridional as fira. Aqui, o alvorecer da aurora aclara-se como de repente em pleno dia. E uma bel- leza ephemera; mas não tem rival.

Em Cintra e na estrada de Collares ha quintas h'anqueadas aos visitantes. Obtém-se licença de as fi'equentar cedinho, e ali se podem gosar deliciosos passeios de manhã, em vez de penosamente se fa- zerem por longe. E famosa a quinta do marquez de Vianna; e, com referencia á sua situação e ao com- plexo das excellencias de Cintra, foi comparada á sala de espera de. um palácio de fadas. E bella em

Ilhas ; "they are lássed away by the first ardent sunboam tliat greets tlioiri". Beijos propriamente ditos por liypotliese e desconfiança da auctora. A' honestidade ingleza é licito conliecer os beijos realistas para os etfeitos vir- ginaes das comparações, em que somente ao rei dos astros, de sua natureza cálido, são toleradas taes escandecencias com as boninas.

QUINTAS, SANTA CRUZ, ETC. 215

jcU-diíis, grutas, cascatas, i-uas ai'l)()risadas e cara- maucheis. Poi-cni, a hkíli gíjsto, c mais do encantai' a quinta do marrjuoz de Vallada.

Silvano e Pan

N'aqiielles densos bosques não dormitam, nem tão pouco os faunos E as nymphas se visitam. (•)

Os rouxinoes têm aqui a sua mansão predilecta em uma floresta disposta em labyrintho de bosque- tes. As avenidas sfio extensas e copadas, com as orlas de hortênsias azues e rosadas que viçam e in- floram luxuriantemente sob um vasto e fresco docel de folhagem. Aqui ha umas como clareiras de tran- sito musgosas e verdecidas, adornadas de estatuas e fontes, por onde a intervallos se encontram ameias derruidas. Algumas d'estas românticas avenidas conduzem a formosos jardins ; outras desembocam n'um lago um tanto amplo, com barquinho e ponte, onde cvsnes candidíssimos desafiam o claro crvstal das suas aguas. Circunda o lago uma vereda que, excepto no remate onde algumas arvores a fecham, é marginada de rosas, lyrios, gerânios, cravos, fu- chsias e outivas tiòres de brilhante colorido e suave aroma. Fecha a quinta um muro acastellado pelo lado do lago, e d'ahi se gosa um ponto de vista ar-

(•) íiln sliadier bower Pan 01- Sylvanus never slept, nor nympli Nor Faunus haunted.»

Para nào privar o leitor, que sabe inglez, de o interpretar melhor, tras- lado sempre o texto dos versos que traduzo mal.

216 A FORMOSA LUSITÂNIA

robatíidor. Na verdade, em local de tanta magia, doce deve de ser a vida e a morte!

Ha muitas outras quintas que se rivalisam, mais ou menos linda-^. A da baroneza da Regaleira e do marquez de Pombal são passeios de predilecção; mas o maior concurso das elegantes é ao Campo do marquez dcí Marialva, a que também chamam Se- teais. Su])pòz-se sempre que; a convenção de Cintra íbi assignada n'aquelle local ; ultimamente, porém, descobriu-se que não, sem todavia se designar on- de foi (•).

E costume mosti'arem-se nódoas de tinta no pavi- mento, dizem que espirradas da penna de Junot, no momento em que enraivecido assignava o seu no- me. Porque não seria antes a penna de Welling- ton^í* (••)

A denominação Seteais! Disseram-me que este nome tem referencia ã assignatura da Convenção; porquanto, quando os officiaes e soldados que en- chiam a casa tal souberam, expediram sete clamo- rosos Aisl ou hurrahs, repollindo o seu quinhão do aviltamento de Junot; em memoria do que se

(■) A coiivciiçào foi tratada cm Lisboa cin 30 de afíosto entre o general Kellerniann e o coronel Murray; e foi rectificada cm Cintra no dia 31 pelo general Dalryinple.

(••; Nào sei se no palácio dos Sjtoais alguém disse tal parvoíce á se- nhora JacksoM. Junot não esteve ali. Quando pergunta se o signatário in- glez nào tinlia motivos de raiva mais justificados que o francez, faz justiça á ignominia ingleza. Covardia ou infâmia, a escolher, ou ambas cabem ao general seu conterrâneo. A politica ingleza, n'este lance, está sentenciada pelo mais ilhistre dos seus poetas. (Byron, Cliild-IIarold, cant. L"). Diga- se de passagem que, em 1808, Arthur Wellesley ainda nào era lord Wellin- gton.

QUINTAS, SAXCTA CIUIZ KTC. 217

denominou n caza do marquoz de Marialva Palácio dos Sele ais. Dizem outros que a cauza é havei' no ediíicio um ecoo que repete sete syllabas. (•)

E de rigueur uma peregi-inarão ao conventinlio de Santa Cruz, e não menos uma visita, en passant, á Penha Verde, quinta do seu fundador. Requisita- ram-se, por tanto, novamente, os burrinlios para subirmos a montanha. Como o meu companheiro voltasse para Lisboa, associei -me a trez romeiros mais estranhos do que eu áquelles sitios, e assim completamos uma partida quadrada. E' de mais, a não se dar entre vós e o vosso compaidieiro lête- à-tetè grande incongruência de génios ; porque en- tão é raro o reterem-se idéas precisas de cousas in- teressantes ; emfim, colhi isto de experiência pro-

(•) tinhainos que farte necedades referidas e impressas a respeito de Seteais, umas de gente boçal, outras de psoudo-antiquarios; nào obstante, a escriptora dou nos a novidade dos sete clamorosos ais ou li.oiirrahs em 1808. Ninguém pôde prever até onde se estende a elasticidade de uma inépcia. Leio, no Archico Pittoresco, em um artigo do snr. Vilhena Barbosa, que so- lertemente pesquiza ha longos annos todas as veliiarias portuguezas, o se- guinte a respeito de Setiaes: «Desde tempos muito antigos, um dos diverti- mentos predilectos da gente moça era ir áquelle rocio, á tardinha, despertar os cchos que ali ha. Pela disposição dos píncaros da serra, formando um re- côncavo no fundo do terreiro, as palavras proferidas em voz alta na extre- midade do norte do mesmo terreiro, sào repetidas pelo echo com muita cla- reza e por varias vezes. Dizem que n'aquelles tempos a palavra mais usada em taes exeroicios era um ai e que d'aqui viera o nome ao rocio denomi- nando-o Seu/eais na opinião de uns, por parecer que a serra os sente e ex- pressa ; ou Seteais, segundo outros, crendo que o echo repete sete vezes a mesma palavra. Fosse, porém, qual fosse a etymologia do nome, o que é certo é que foi este ultimo o que prevaleceu.»

E devia prevalecer n'este paiz onde se estudam etymologias nas crendi- ces populares.

Recorramos á palavra radical, e refuguemos de vez, se possível é, in- terpretações apenas ageitadas para completarem o cabaz de ridiculezas que

218 A FORMOSA LUSITÂNIA

pria quando observo intiucnciada pela distracção de um numeroso rancho de pessoas que andam pa- ra vei\ N'esta conjunctura, todavia, a minha visita a lugares meus conhecidos era apenas uma re- petição ; e, além d'isso, o quartetle era pacato : duas pessoas hespanholas, uma franceza e outra ingleza perfeita miscellanea, insufficientemente relacionada para se permittir demasias de galhofa, o que prova- velmente não era de esperar, indo todos apostados, ao que parecia, a fazerem-se reciprocamente agradá- veis. Os sellins, ou cousas que os representavam, vão agora arranjados mais a gcito, e o meu burro é pelo menos um pé, ou um palmo mais baixo que o outro differença que o burriqueiro me fez notar com um gesto risonho muito significativo. Escolhe-

08 estrangeiros levam de Portugal para escancararem as mandíbulas dos seus patrícios.

Seto, em antigo portuguez, sebe, tapada, redil, estacada, etc. (de Septum, que tem análogas sígníficições).

Setcaes plural de seio. Quer haja sido uma tapada o terreno em que se fundou o palácio, ou, em remot i época, uma estacada de torneios, ou simples- mente um terreiro vedado por sebes, tudo nos dillucida a etymología da pala- vra, sem nos acostarmos á conjectura dos sete ais, nem ás repetições do ai que o ecco repercute, nem ainda á sensibilidade dos píncaros da serra, conforme as tradições que o operoso snr. Vilhena Barbosa nào refuta na sua escrípta.

Declaro que nào fundamento em auctorídades a minha opinião, porque a nào trasladei. E de crer que nào encontrem a palavra seto nos vocabulá- rios do uso vulgar, nem ainda no Elucidaria ; porém Fr. Sancta Rosa de Viterbo publicou um livro de somenos porte, intitulado Diccionario portátil das palavras termos e frases que antigamente se usaram e que hoje regular- mente se ignoram. A palavra está ahi. Se a formação do plural de seto em sefeaes fizer implicância aos grammaticos, transijam com as irregularidades do povo no seu modo de formar pluraes, e convenham em que se dizia tam- bém seteai. Na província de Traz-os-montes ha campos, leiras, e devezas com aquella denominação; e d'ahí deriva o verbo setear ícercar).

Esta nota demorou- se, porque o assumpto é transcendente.

QUINTAS, SAXCTA CllUZ KTC. 219

ra elle mesmo este animal a flor dos seus burros, porque tivera como ponto de hom-a que eu caval- gasse n'esta occasião soberbamente. «Um burro grande disse elle não presta, não vale nada)) facto de que eu anterioi*mente me não acaute- lara.

Os huirinhos, como não tinham hoje labutado na feira, iam folgados e espertos; trotaram pelas campinas íora ; foi um momento para Seteais e ou- tro para a Penha Verde quinta de D. João de Castro, famoso viso-rei da índia. Deixou-a aos seus herdeiros que ainda hoje a possuem (•) com a clau- sula de a consei'var(3m ajardinada para recreio, e que nunca plantariam n'ella arvores fructiferas d'onde resultassem proveitos pecuniosos. Dizem que as primeiras larangeiras conhecidas na Europa se plantaram n'estes jardins. Conservam-se ainda na casa algumas antiguidades indianas, e um retrato original de D. João de Castro, quefalleceu em 1548. Conduz ao eremitério ou capellinha no penedo das Al viçaras uma avenida de mageslosas arvores. D'a- qui disfructa-se um amplíssimo e formoso horisonte de campinas accidentadas.

Da Penha Verde seguimos pela estrada de Colla- res, ao longo das abras da serra, um dos mais lin- dos passeios d'esta deliciosa região. São indescripti- veis tantas bellezas. Todos os epithetos admirativos, todos os vocábulos que pintam o bello, exhauriram-

(•) nào. Ha dons annos que o conde de Penamacor, representante de D. Joào de Castro, vendeu a quinta ao visconde de Monserrate, Fran- cisco Cook.

220 A FORMOSA LUSITÂNIA

se até ao ultimo na descriprão de Cintra, antes de contemplar esta sobre todas lindissima estancia onde os mais frios, os mais apathicos filhos da teiTa, os mais intangíveis A magestade da natu- reza, hão de sentir-se abalados. Eu por mim, que mais hei de dizer de Cintra e Collares? Se eu na minha carta houvesse a pretenção de comminiicar uma idéa do que senti na contemplação de taes quadros, ou do que presenciei sentirem os outros, todo o meu phraseado seria extasis e ari-oubos, que talvez fizessem sorrir, sem mostrarem o rapto do enthusiasmo que se sente em um simples relan- ce de vista por estas scenas portentosas. A impres- são d'estas bellezas não se vos desluz pelo habito de as ver ; intensa-se, profunda-se cada vez mais, pelo mesmo modo que a admiração subindo de pon- to se converte em amor. Portanto, convido-o a vii* ao nosso éden lusitano. É necessário ver estas de- licias para lhes sentir a magia.

E agora cavalgaremos os burrinhos, e iremos por ahi fora; mas elles não obedecem ao' EciJio, eciho, que em portuguez coiTCsponde ao «Gee up !»: saco- dem as cabeças e estacam (•). O certo é que, elles quedaram-se extáticos também. Participariam do

(•) Nào percebeu nitidainente Lady Jackson a intorjei(;ào com que se animam os burros na formosa Lusitânia. 0 chó, clió, que esta soniiora or- tliographou eciho, eciho, é voz de parar •, e, por consequência, os burros de Cintra, parando, fizeram o seu dever com pontualidade ingleza. Este nosso chó veio da Gran-Bretanlia: é o rjeho que se pronuncia djihó ; com a dif- ferença muito sensível para o idioma e para os burros que a interjciçào na- cionalisada, aqui, é signal de parar-, e lá, na pérfida Albiào, é signal de an-

QUINTAS, SANTA CUUZ KTC. 221

soutimciitalismo dos cMvalloiros i:* Posto que o s(3u intimo sentir não so houvesse manifestado ruido- s.-imentc;, havia iiHhíiações de ([ua um ou mais d'a- quehes bai'i'inhos se expandia em destemperado zurrar. Céos ! que dissonante toada alvorotou os eccos e rompeu o ambiente d'aqueUe scenario onde se ouviam até então os costumados gorgeios dos rouxinoes ! O burriqueiro raivoso exclamava: Mal- ditos bnitosl e arreganhava-lhes a sua branca dentu- ça. A final calaram-se, e nós partimos a ti^ote.

Antes de subirmos a montanha, insinuamo'-nos por entre massas enormes de rochas soltas, como que vomitadas para ali em arremessos vulcânicos ; tre- pamos a escarpada ladeira, descemos com muita cautela o escabroso pedregal, subimos de novo, apegados á espessura dos arbustos, como se com isso nos salvássemos de cahir, ao voltar imprevisto de uma revolta da intrincada vereda. Mas, nada de susto ; os burrinhos são seguros, e hão de levar- nos por este trilho tão seu conhecido ao vértice da montanha ; ainda assim lembrei que o melhor se- ria soltar as redias aos nossos ginetes, e irmos admirar a linda quinta de MonseiTate, outr'ora viven- da-campezina «do mais opulento filho de Inglater-

dar. Por isso a Inglaterra anda seinpie : até n'isto lhe revê a indole andeja. N(5s para fazer que andem os burros de Cintra, de Cacilhas e d'outros sitios e assembleias, temos o arre !; mas esta expressão nunca se deve escre- ver sem despir a luva de 6 botões. Até a sociedade protectora dos irracio- naes (ella diz-se dos animaes, sem o intuito materialista de se excluir) pensa em desaggravar os burros, substituindo aquella aspérrima interjeição por al- guma admoestação em termos comedidos.

222 A FORMOSA LUSITÂNIA

ra», (.) e hoje em dia propriedade de outro in- glez, Mr. Cook, ii'estas partes Visconde de Monser- rate.

Não sei se a moderna caza ou palácio, como dizem, está reedificada no estjlo em que fora a de Mr. Beckford ; mas, a julgar por uma descripção que li da antiga, quer-me parecer que Mr. Cook, havendo-a comprado muito arruinada, a refez se- milhantemente ao que tinha sido. Presume-se que do seu extremo desbarate foi causa a i'apidez da construção, para satisfazer a impaciência de Beck- foi'd, e concorreu também o desenfreado destroço que fez a soldadesca emquanto os francezes oc- cuparam Lisboa e Cintra. pude ver photogra- phias do interior ; dizem-me, porém, que os ador- nos são preciosissimos, de suprahno gosto, e as collecções de objectos de arte valiosas.

A situação da quinta é, quanto pode ser, ma- gnifica. Assenta em planura que domina um ponto de vista horisontado largamente pelo valle de Col- lares, mar e serras. Ao da caza enverdecem vastas pradarias, planas, declivosas, para as quaes vos conduz um caminho arborisado. Bra- cejam carvalheiras e cedi'os seculares, ao lado dos pomares de laranjas e tangerinas. Ha tanques, fon- tes e uma cascata que engrossada pela chuva se

(•) Assim denomina Byron {Child-Harold c. I, est. 22 j lieckfoid, au- ctor do romance oriental intitulado Vathek :

Tliere íhan too, Vathek, Enyland s wealthieat son, Once formed thy Paradise.

(JIIIXTAS, SAN TA (KUZ, ETC. 223

despenha estrondosamente do topo da serra ás pro- fundezas do valle. Fetos de rarissimas espécies, jardins graciosamente recortados, bosques, campi- nas á semilhança de parques, constituem os attra- ctivos da quinta de Monserrate. Consta-me, porém, que é difficil cousa entrar.

Um d'estes dias me disse um cavalheiro : ccSe deseja ver o palácio e as suas riquezas, creio que poderei obter licença».

Ainda assim, não me aproveitei da quasí pro- messa de que as portas do palácio de Mr. Cook se destrancassem para mim ; pois é sabido que elle não gosta que a gente curiosa lhe veja as lindas cousas. N'isto somente se parece com o seu anteces- sor Beckford; mas sobeja-lhe rasão para proce- der como lhe apraz n'aquillo que é seu. Disseram- me que a repugnância é agora mais apertada que d'antes ; porque, tendo uma dama escorregado no pavimento, foi cahir de encontro a um jarrão da China, que se quebrou. Caso sobremaneira conster- nador, por certo ! Mas, apezar d'isso, Mr. Cook não devia ser descortez a ponto de imaginar que todas as damas que entram no seu palácio lião de dar um faux pas.

Mostraram-me alguns versos chistosos, ou an- tes umas malignas trovas, à propôs das portas fe- chadas do Palácio de Monserrate. Quatro inglezes que desembarcaram de um paquete com escala por Lisboa, e tinham um dia de demora, inten- deram que o melhor emprego do tempo era visi- tarem o Castello da Pena e a quinta de Monserrate. Informaram-os de que não seria difficil a entrada j

224 A FORMOSA LUSITÂNIA

porém, como o rei e Mr. Cook estivessem em Cin- tra, entendeu-se que seria acertado, para maior se- gurança, sollicitar a licença telegraphicamente. Res- posta: que podiam vèr o palácio do rei; mas o de Mr. Cook, não. Partiram, pois, satisfatoriamente resolvidos a verem tão somente o castello. A corte- zia dos creados e as maneiras attenciosas com que aos extrangeiros, que pouco podiam demoi'ar-se, lhes facilitaram entrar em partes do castello defesas quando D. Fernando reside em Cintra, tanto os pe- nhorou que, emquanto lhes preparavam o jantar no hotel, sentindo-se de collaboração inspirados pela gratidão, pelo despeito, composeram uma satyra mordente, em que a urbanidade do rei se defronta com a grosseria do cozinheiro. (•)

Não é fácil conjecturar que razão se deu para não desentranhai^em as suas cóleras em prosa chan. Pode ser que elles, por lhe não conhecerem a for- ça, entrassem de mais pelo excellente Collares ve- lho ; ou, pelo facto de serem inglezes, afogueassem os miolos com o velho-Porto até á escandecen- cia do fervor poético; ou talvez adoptassem a rima como coisa de seu natural apimentada, e, quando é mister, se aguça em farpa como esta que desfe- charam nesciamente contra o pobre Mr. Cook. A tal ejaculação satyrica li-a immortalisada nas pa- ginas de um álbum. Recordo-me de duas linhas. A primeira terminava: «um grão de senso conimum»

(•) A mordacidade do equivoco não pode trasladiirse para portuguez. Em inglez reduz-se a minúscula a inicial do snr. Cook : esta reducçào, vertida em portuguez. cozinheiro.

(JLIXIAS, SANTA CKIZ, I-ITC. 225

devia de sor, com C(3i'teza, chj poeta este grão. Se- guiu-se depois a coiisoantai' o verso, e ao mesmo tempo a caracterisar, confrontaiido-os, o rei e o co- zinheirOy o titulo de um dos mais conhecidos qua- di'Os de Landseer. Eu iião (|uizeríi s(3r mais explici- ta; mas, se entende que \al(.' ,i [j(}na, decerto encon- trará de prompto o titulo, c entendcrn como os (*pi- tlietos se applicam na satyi-a. (•)

Contei esta anedocta aos meus com])anlieii'os para os dissuadir de baterem aos portões da quinta, como tencionavam. Mas embora haja motivo para se ter Mr. Cook en mauvais odeur, entendo que é obrigatório confessar que elle tem gasto muito di- nheiro em Portugal, e occupou nos ornatos da sua quinta os primeiros artistas e melhores obreiros do paiz, a quem estipendiou liberalmente. Á conta d'isto, ouvi dizer que lhe dei-am o titulo como ga- lardão do muito favor que as artes e industrias lhe devem, por onde grangeou niiiitissima e gei'al estima.

Os bui'rinlios conhecem admiravelmente o ca- minho de Santa Cruz. Trepam sem escorregai* n'aquelle pedregullio. Umas cruzes que por se er- guem a indicai' o ti-ilho podiam ser removidas, que os jumentos são os mais seguros guias dos dons caminhos. Logo que se chega ao cume da seri*a, os

(•) No original as duas palavras re/e coz/nÃCíro sào apenas indicadas com reservadas ellipses d"este feitio : K-g (rei) c-k (cozinliciroj. Quanto ao quadro de Landseer, parece-me que Lady Jackson se reporta a um que se intitula "A alta sociedade e a gentalha» Lav) and high life. Nào traduzo cbaixa so- ciedade» porque o nosso fidalgo idioma não permitte que a ralé constitua so- ciedade.

226 A F01{M()SA LUSITÂNIA

burros mcttom pui* um caiToiro abaixo, porque sa- bem que o termo da jornada é ali, e vão dar ao conventinho como incluso n'uma concavidade, a cuja entrada param. Diíficilmente se extrema a por- taria do penliascal que acerca: é mais um buraco do que porta.

O convento era o mais pequeno e pobre do paiz. Custou cem (Cruzados a I). Álvaro de Castro que o fundou em 1560 por determinação testamentária de seu pai. Tinliam ali ã mão as poucas achegas pre- cisas para tal edifício montanhas de granito, muito rochedo pardacento, a.rgilla, colmo, e cortiça que descascaram dos sobrei]'aes da serra. Entre dez a vinte frades franciscanos ali viveram suas vidas em penúria e desagasalho. Um d'esses, o «beato Honó- rio» chegou aos noventa e cinco annos, passando os últimos ti'inta cm martyrio a que se devotou, entaliscado n'uma cova, onde lhe era forçoso es- tar de gatinhas, porque não cabia todo ao com- prido.

Como quer que, um dia, descesse ao vai, acon- teceu encontrar o santo varão uma galante mo- çoila que se abeirou d'elle rogando-lhe que a con- fessasse. Recusou-se ; disse-lhe, porém, que, se em verdade queria confessar-se, fosse ao conven- to. Mas a rapai'iga insistiu nos rogos para que a ouvisse de confissão ali mesmo, e mostrou ser tão esbelta quanto teimosa, resolvida a não desistir de modo nenhum. Sanio Honório (') reparando no

'•) Esta senhora não perde lanço de opulentar o nosso Fios sandorum. Os herejcs nos dào o que niío querem para elles. Dàonos santos.

(^CINTAS, SAN TA (IK/, l'ViC. 227

doairo da formosa .supplicantc, entendeu qu<3, de al- gum modo, não se abstivera inteiramente de no- tar-lhe a belleza, e desconíiou que sua magestade satânica se desfigurara na rapariga para o tentar. Logo que isto llie deu na veneta, fez o signa! da cruz, ajoelhou e disse um pate7^ nosier. Feito ist(^, a moça desatou a fugir. «Prova infallivcl disse o meu informador de (jue cila era o diabo em pes- soa.»

De volta para o convento, Honório andou á cata de um retiro mais angustioso que o do seu cubículo que não era maior que um esquife. Uma cova que nunca vira, e então se lhe deparou, parecia-lhe de propósito azada ao seu intento. Ahi se metteu e passou o restante da vida, esperando, após tão lon- ga expiação, descontar o delicto de ter olhado um instante com bons olhos para uma mulher guapa. O h^ancez do nosso rancho, quando o sujeito que mostrava as ruinas concluiu a liistoria, exclamou : a Ora essa! O pobre homem ganhou tamanho medo á rapariga e á sua belleza diabólica? Deus lhe 'per- doe! que era inais parvo que santo! A dama hes- panhola, que, a meu ver, era U7n tanto devota, pois que escutara mui seriamente a historieta do velho , ouvindo a exclamação do francez, arregalou os olhos, e pondo-os em mim de esguelha, parecia dizer: «estou pasmada!» Obtemperei com um gesto de condescendência; mas, se me perguntassem o meu parecer, eu de mim abundaria na opinião do francez.

Ha na serra outras ruinas de conventos, a Penha longa, e Peninha que n'outi'o tempo gosou mais ce-

228 A FORMOSA LUSITÂNIA

lebridade que Santa Cruz, onde existe uma mila- grosa imagem de «Nossa Senhora» encontrada mi- i'aculosamente em uma peninha ou pequena rocha da qual a tradição conserva jjrodigiosos contos. os mais audazes exploradores atrepam aquellas minarias. Disse-se aqui ha annos que se ia restau- i'ar o convento ; mas está como era. Não foi a mão do tempo que desbaratou o altar e outras pecas que denotam progressiva delapidação : aquelle destroço deve-se ao sestro de gente bruta que tem o veso rapi- nante de quebrar e lascar fragmentos de pedra ou de madeira. Diz-S(3 que Mr. Co(^k ultimamente comprara o convénio da Cortiça e as terras circumjacentes com o pi'ojecto de refazer o mosteiro no seu primitivo risco. Não seria mais sensato conservar tal qual está aquelle acervo de pedras, que subsistirá em- quanto existir a serra a que pertencem, como um padi^ão do que foi a sociedade, que jamais poderá, embora o esperem, retroceder?

Como desejássemos ver a celebrada Pedra d'Al- vidrar, descemos a montanha em direcção a Colla- ros, passando das empinadas rochas, dos píncaros e agulhas da serra ás veredas pittorescas, aos pinliei- raes e devezas de loureiros, murthas e laui^estinas. As encostas, escalvadas e cinzentas agora, brilham na primavera e ao começar do estio, ou, se a chuva as reh-igera, reverdecem na urjze em tiôr, nos lilazes ('scai'la,tes e brancos, no açafrão purpu- rino e jacintho matizado; mas, se o sol meridional aperta, acolhei-vos aos castanhaes, arvores mages- tosas qu(.i mais esp(issos dóceis bracejam em Col- lares.

giJÍNTAs, sAM A (iMZ, i:ic. 229

Porto do valle encantador da Várzea, longa- mente se dilatam olivaes c \inlicdos, de cujo rico IVucto se produz o 13(jrgonlia de Portugal; casas emboscadas nos laranjaes, e pomares de Colla- res tão famosos em pecego, ameixoa, pêra, amên- doa, damasco e cereja; e, além, o claro Rio das Maçans, formando o Tanque da Várzea, e serpean- do por entre margens de aromática verdura e po- mares de maceiras, vai mansamente derivando ao mar.

Ao da villa de Collares está a famosa quinta chamada do Dias. Raro ha quem deixe de visitar-lhe os deliciosos jardins, que ainda rodeados de tan- tas bellezas se distinguem ou não suba ao seu ma- gnifico mirante, d'onde se avista um tão extenso, lindo e accidentado panorama que, visto uma vez, nunca mais se olvida. O i^omantico, a magia d'aquel- las quasi descultivadas bellezas gravam-se na me- moria como «um goso indelével».

Alguém da companhia teve o desatino de aug- mentar o numero de letreiros parvos que se topam tão espessos no mirante que a custo se lhes poderia intrometter palavra ou lettra. Deparo u-se ao h'an- cez, que examinava aquellasexpansibilidades, o se- guinte :

Do espirito da poesia E a morada encantadora.

Alguém menos palavroso escrevera por baixo : ((c verdade)). O nosso amigo aspou cruelmente a ul- tima effusão para escrever a sua, d'esta guiza : aEr-

230 A FORMOSA LUSITÂNIA

reurl erreiír \ I/esprit iV cxisle pas ici; les prosateurs Vont chassé.))

Havia ii'estes dizores pretoução a chiste espirí- tiiosamenle cáustico, c cu fui tão lerda que reputei isso mais uma parvoiçada que um gracejo.; mas, como lh'o uão podia commuuicar, dei-me uns ares de quem diz : «como é esperto ! » O francez passou o lápis ao hespaiihol, que escreveu em francez: Par- tout, ou se troiive iin Francais, resprit existe.)) O francez agradeceu ; e, como quizesse outra vez ser lisongeado, pediu á dama, irmã do hespanhol, que escrevesse também uma linha; ella recusou-se, di- zendo que tinha medo de se expor depois de tama- nho alardo de espirílo. Chegou finalmente a vez á ingleza. (•)

(cEscreveria ella o pensamento que lhe ia no coração n'aquelle momento?» Objectou ella forte- mente contra aquelle syst(3ina de estragar pare- des e janellas ; mas, estando tudo rabiscado de modo que uma ou duas palavras de mais ou de menos não peoravam a destruição, disse : «se monsieur quer ser o amanuense, dicto-lhe duas palavras . » Não podia recusar-se ; antes « muito me honra com o encargo disse elle. Que escre- vo ? ))

«Logo em seguida ã linha de sua ExceUencia, escreva: c'est possible.)) Elle sorriu-se, e escreveu as palavras em grandes lettras; depois, fazendo uma

i') Lady Jackson, uqwi, falia de si na terceira pessoa, como Ceaar nos «Commentarioa».

QUINTAS, SANTA CRUZ, KTC. 231

proíiindíi cortozÍM, (Iíssí;: {(Maínlcíuml, je cain sirjner pour madame. ^y «Per /ide A Ihion

Depois crestas eNliihi(;ões d(^ espií-ito aiiHO e to- lice agigantada, (|ue nos serviu de galhofa a todos, relançamos outivi vez nm demorado enlevo de olhos ao panorama lindissinio (jih' por t:lo longe nos ro- deava. Depois, saindo da Quinta do Dias, aperta- mos o passo para o Fojo, porqne o tempo nos tugia rapidamente, e queríamos ainda vêi' de passagem ao menos a Pedra d'Alvidrar.

Tirante a grandeza magestosa das ribas do mar, o Fojo e a Pedra não merecem grande CName. O es- pedaçado e recortado da penedia d<á-lhes aspectos fantásticos a milhares. Imagine uma cinta de ro- chas, e o vagalhão a espadanar formando grutescas figurações de columnas e arcarias a rolarem de en- volta com a onda, que se desdobra espumejando. O cabo da Roca, extrema da serrania, affronta-se com o bravo Atlântico que lhe troveja e ribomba ao so- pé, escabuja no cingulo de rochas denegridas, es- pedaça-se nos ângulos das ribas, e remessa-se en- funado pelas boccas das cavernas, d'onde ressalta em golfos de espuma. E, se o mar assim se estorce na sua cadeia de fi-agas em um bello dia de estio, que será quando o raio corisca, os relâmpagos fiam- mejam e a trovoada retrôa na montanha !

« O Fojo ! excellencias. O Fojo ! » exclamou o guia; e, voltando-nos as costas, persignou-se á su- capa. Apanhei-o em flagrante. «Não tem duvida, minha senhora, y) disse elle, para que eu me não assustasse. O benzerem-se é mero habito d'aquella gente quando chegam ao Fojo. Não havia que re-

g32 A FOUMOSA I.rsiTAXIA

ceai', a.ssíígurou-ine rllc a meia voz para quo o não ouvisse a liespanhola, que pr(jvavel mente se lhe fi- gurou mais sensivel do que eu áquelles pavores. Os inglezes na sua qualidade de «herejes protestantes» são em geral acoimados de infiéis, completamente desci'idos, e sem temor de cousas que se respei- tam religiosamente. Ainda assim, os portuguezes de boníssima Índole poi'mittem que Deus seja ado- rado nos seus próprios «templos» d'elles, e con- soíuite os seus degenei'ados i'itos ; ora em Hespa- nlia não o consentiriam.

Entretanto, estávamos no Fojo, e o burriqueiro acautelou-se, a distancia, com os jumentos.

O Fojo ou caverna é um profundo abysmo ca- vado naturalmente em rocha immensa. Amplo e redondo á entrada, vai-se estreitando ao compasso que resvala perpendicularmente ao mar, que em baixo retumba de maneií-a a ensurdecer a gente. Aqui se acoutam de preferencia as aves aquáticas que, junt<ando os seus estridulos guinchos ao ma- rulhar das ondas, compõem uma hórrida toada que mortifica as compleições débeis ; e, em vez de at- trahir, aíiasta o visitante. Não admira, pois, que o povo d'estes sítios engendrasse superstições formi- dáveis a respeito do penhasco, e nos conte lendas esti-anhas com a mais entranhada fé. Uma d'essas fabulosas historias diz que o fundo do Fojo pro- funda-sc muito pelo mar ; e que não ha sondar aquelle antro. Ora, as aves aquáticas que se abandam a pairar sobre a caverna, a carpirem-se, de dia e por noite horrenda, com gemidos agudos, são almas precitas que, em forma de aves, tem li-

QUINTAS, SANTA CUUZ, ETC. 233

coii(;;i de se andarem assim penando, e de voltarem por breve espaeo de tempo ao mundo ; e então das piM^fiuidezas irrompe o vozear zonibet(3Íro dos diabos, (juando ellas, no solitari(j i*ofbiido, s(j las- timam dos ci'inu.'s f|ii(3 i)erpetraram cpiando ei'ani gente.

Eu não gosto do Fojo; bem (|ue o seu estampi- do, o crocitar das suas aves, o as suas pavorosas lendas revistam aíjuelle í'er(j cari*anquear das vagas de um certo interesse de romanesca magia.

Nem tão pouco me apraz ver as proezas á Blon- din que na Pedra íCAlvídrar executam homens e ra- pazes da povoação visinha. A pedra é um grande promontori(j de rocha avançado sobre um abvsmo de penedias, d'onde sobe precipitosa ladt^ira de cento e setenta pés de altura. Pela superfície do declive posto que algum tanto escabroso, sulcado e arruga- do pelo escarvar das tempestades, durante]seculos, não ha bastantes i'essaltos em que se possa firmar um ; e ainda assim, ha homens e rapazes que so- bem e descem o precipício, encarreirados uns após outros, ã laia de quadrúpedes, fincando-se nos dedos givandes das mãos e dos pés, e não firmando jamais o calcanhar. Com a esperança de ganharem alguns vinténs, todos o fazem, se os espectadores desejam. E um espectáculo que nos repugna e horrorisa; por quanto, se um lhes resvala, a morte é certa de encontro aos penedos que cerram em baixo o des- penhadeiro. Todavia não acontecem desastres, por- (jue elles desde rapazinhos se adestram n'aquelle exercício, ensaiando-se talvez previamente em ro-

234 A FORMOSA LUSITÂNIA

chedos cjii(3 ali ha pcíi-to menos poi*lgosos. Não soi a razão de chamai^em a esta rocha pedra de jidganjii de alvidrar. E nome antigo. Os homens da povoa- ção de Almoçageme r(3colhei'am jactaiioiosamcíiite de antiga tradição que seus antepassados su- biam e desciam sem risco o llauco da perigosa es- carpa. Talvez que a tentativa fosse por si como um desafio a provas de coragem, e por isso ao ro- chedo se desse o nome de Pedra d'Alvidrar. Mas é de mais. Digamos depressa adeus ã pedra.

Retrocedemos de Collares para Cintra. Que de- liciosa estrada aquella ! Era ao cair da tarde. despontava a lua; mas os seus raios luziam palli- damente ainda nas altas grimpas dos velhos carva- lhos e castanheiros. se sentia na viração a suave ft^agrancia das flores, e o doce zephyro ciciava entre as ramagens. Não era noute fechada, mas ia-se cer- rando. A derradeira hora do dia, onde é rápido o crepúsculo, é a mais formosa de todas. «O colorido que do ceu jjromana» matizava o fii-mamento. E ao adejarem as primeiras auras, h'cscas e olorosas, d'aquella noite perfumada, dir-se-ia que um trago de elixir da vida se nos instillava no sangue, dando frescor, elasticidade á alma, e alentando-a, sequer por momentos, como desafogo a mr)rtificações e ma- gnas congénitas da humanidade.

O í)eau monde que actualmente povoa Cintra i'eu- nira-sc na alameda do Palácio Marialva, por onde passamos, a gosar a bella noite. A hora usual de jantar tiidia passado quando cliegamos. O nosso único repasto foi as famigeradas queijadinhas de

QUINTAS, SANTA CKUZ, KIC. 235

Cintra, e o velho Collares semelhante ao rico e ma- duro Rousillon. Jantamos en parlie carrée; e, em (juanto saboreamos o caie e fumamos os nossos cigaretlos, planeou-se nova excursão para o dia sc;- guinte. (•)

(•) Se c pennittido o corar a um traductor mais antigo que o desa- foro do charuto em Portugal, o seu pejo é quasi uma apoplexia, ao trasla- dar as expreasòes de uma senhora iiigleza que diz: « E fumamos os nossos cifjarretos» and smoked our cigarettos. Estive quasi a esponjar do livro es- ta certidão de maus costumes ; porém, antepondo á indignação o respeito do texto, peço ás damas portuguezas, ainda nào crdottées, que desculpem esta senhora, attendendo a que ella, emparceirada com um francez e dous hes- panhoes bi-sexuaes, comeu queijadas da Sapa e bebeu Collares velho, en partie carrée.

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CAPITULO XVI

HAL-\CIO RE-\L HIPPODROMn \ÍAFltA

Cii-culava quasi todos os dias e seaipre se des- mentia como pi-ematum a chegada a Cintiti do rei D. Luiz e da n^iiiha D. Maria Pia; poKm, oorreií- ilõ agoi-a o \jiiaUj da vinda immediata, i»s meus i*e- cviites amigos pi-opozei-am visitai^e o Palácio Rtai, que, no caso de chegai*em sua-^ magesiades, seria vedado em grande parte, se não de todo, aos hespa- nhoes. Por agom, porém, a familia real demon^ se no palácio de Queluz. Parece que tem predilec- t;ão por aquella i-esidencia, cujos jardins, modela- dos pelos de Marlv, se i-eputam os mais bellos do reino n'esse estylo, pi-ovavel mente como desconto á melancólica siiua*;ão do palácio.

Dirigimo-nos pois esta manhã ao palácio real, tencionando ir em seguida a Mafra. O vei-dadeiro interesse do palácio, selon iiioí, pi-ocede da triste e i-omantica historia a que se lig-a. Pai*a narral-a não bastariam as paginas de um livix», e muito menos as da carta mais estirada. Não espere, todavia, que me dispenda em miudezas descriptivas daquella confusão de estylos aivhitectonicos, onde se assi- gnala ainda ivlèvantemente a origem árabe, ou os acci-esceniamenios e i-econstrucções dos seus i-eis christãos. Pequena p;me deste edilicio é de crer que

CAPITULO XVI

l'AI.A('l() lílvM- I1II'1M>|)U()M() MA1<1{.\

Circulava quasi todos os dias o sempre se des- mentia (•(.)rn() ])i*(3matiira a (chegada a Cintra do rei D. TiUiz e da i-ainlia D. Maria Pia; por(''ni, corren- do agora o boíito da vinda immediata, os meus r(3- cciites amigos propozeram visitar-se o Palácio fíeal, que, no caso de chegarem suas magestades, seria vedado em grande parte, se não de todo, aos hespa- nhoes. Por agora, porém, a familia real demora- se no palácio de Queluz. Parece que tem predilec- ção por aquella residência, cujos jardins, modela- dos pelos de Marly, se reputam os mais bellos do reino n'esse estylo, provavelmente como desconto á melancólica situação do palácio.

Dirigimo'-nos pois esta manhã ao palácio real, tencionando ir em seguida a Mafra. O verdadeiro interesse do palácio, selo7i moi, procede da triste e romântica historia a que se liga. Para narral-a não bastariam as paginas de um livro, e muito menos as da carta mais estirada. Não espere, todavia, que me dispenda em miudezas descriptivas d'aquella confusão de estylos architectonicos, onde se assi- gnala ainda relevantemente a origem árabe, ou os accrescentamentos e reconstrucções dos seus reis christãos. Pequena parte d'este edifício é de crer que

238 A FORMOSA LUSITAMA

a fizessem os mouros. D. João I i'ceclificou-o quasi todo, e alguns seus successores o ampliaram e res- tauraram. Por entre estas mudanças e alterações o original risco árabe foi mais ou menos respeitado, como o confirmam os terraços, chafarizes ornamen- tados, banhos, janellas orientaes, etc. Tem salas chamadas dos «cysnesw, das ((pegas», das ((armas», íjue tii'am a sua denominação dos assumptos primo- rosamente pintados nos tectos, e todos referentes a successos românticos.

Deve a sala das pegas o seu curioso ornato de pintura a um lanço de galanteio praticado por D. João I, caçador extremado e vencedor dos hespanhoes em Aljubarrota. Como partisse de manhã para uma caçada, ao passar no terraço, colheu uma tlôr de um rosal; e, encontrando uma dama de honor, ao atra- vessar a sala, lhe offereceu a tlôr. Ella acceitou-a cortezmente, e o rei beijou-a no rosto, no momento em que a rainha Philippa, princeza de Lencastre, entrava a sala por outra porta. E provável que ella se não conformasse grandemente com aquelle espectáculo ; mas el-rei D. João, inclinando -se dean- te da esposa, disse-lhe sorrindo, ao sair da sala: ((é por bem, minha senhora, é por bem» dando a entender que a intenção era pura e não havia razão de ciúme.

É de suppòr que a rainha não ficasse muito sa- tisfeita com aquelle feitio de exhibir intenções puras ás suas açafatas. De mais a mais segredava-se na corte que a joven dama de honor estava muito nas graças do rei, e as linguas praguentas repetiam com irónico sorriso : ((e por bem ! por bem ! » O rei infor-

l'Al.\r|() i;i;\|., 1 1 1 I'|m >| )i;( ).M( », .M\l-|í.\ 239

míido (i'ist(j, resolveu inipòi* .silencio á mui'mui'açrio escandalosa. Por sua ordem se fechou a sala tem- porari;uneute; e, quando se abriu, a rainha e a corte entraram a vèr as lindas pintin-as do tecto, que es- tava cheio (h; pegas (pie ainda agora se divisam. Do hico de cada ave pende uma íior e um letreii'o que diz: ((.por bem \ » Galantissimamente o rei o adoptou como divis;i, alludindo á scena da rosa e do bííijo, com análoga intenção ao nosso ((Ho7ii soil qui mal y pense.»

É a sala das armas um ex])lendido sal fio accres- centado no palácio por D. iManuel em 1515. O tecto de figui'a octogona foi pintado pelo pintor heráldico Duarte d'Armas, por ordem do rei. (•) Os sete escu- dos (••) dos infantes agrupam-se no centro; e em duas fileiras circumpostas interiormente vèem-se os bra- zões dos setenta e quatro fidalgos primaciaes do rei- no, cadabrazão pendente da galhadura de um veado couchanl. A disposição das armas é circular e alpha- betica, para desfazer precedências de nobreza. (•••) Nas quatro paredes, rente com a cimalha, esta es- cripto em lettras palmares de ouro:

n Pois com esforços e leaes Serviços foram ganhados. Com estes e outros faes, Devem de ser conservados.

(•) Colhiborarain, com Duarte d'Armas, Francisco Dansilhas, e Jorge Af- foiíso; mas Beuto Coelho retocou depois todas as pinturas primitivas.

{•■) São 8, que tantos eram os filhos, entào vivos, d'el-rei D. Manuel.

(••■) Os appellidos não estão alphabetados. 0 que desfaz as precedências é a disposição dos nomes em circulo dobrado, porque não se pôde assim de- terminar começo !is duas series dos 74 escudos.

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^a> fíimilia^s porque t«* «'xarrão se lhes iii«I resolvera aca- Nmii na descui-atla Mandou inspec-

Fahani os hríizões i|. não s(» averimioii eoin > |M'i't<'iHÍaiii : ^»'ii(|<) (jiie I > har com a drsordeni ípj' heráldica da tid.díxuia pm

cioiiar inoniinicntos, se|)iiiii ,- •• an-hivos afim de restaurar c corrigir os e>cii.^ -mm "nicutes ás ai- masdos lidaljíosqnesegi. ,,;. ; c additaudu-

lhes os aecrescííiitos sol. .^ «lo decorrer do

í''H'|'"' iiiaiidíMi illumiii.i 1 \i\ro (pie se

depositou uo an-hiv«) da Torr dn fnmbo. Km 1759 foram as|)adas jts armas .! ' i Aveiro e mar-

cpiL'/ de Távora, accusad-.^ |. . .Mijiirai-«Mn ua ten- tativa de assassiuio do r-i "> 1.»^,'.. Estes, c mais outros pers(»uagens Ibran, i< unente justi.ad,».

uo Cães de Hejem, n'a(piel|. mesmo aimn.

Ill neste pahuio uma elimine de soberbo már- more esculpturado p.,r M _ |.,. F,,i um hrinde d.» papa Leão X a D.Al.umel, ijue em lõl 1 enviou a Roma o seu eudjai.Kdor Tristão da Cunha, com numerosa comitiva e jMii|,a (piaes nunca >e ti- nham visto na Km'<>j)a.

l)ennnniia-s,' idmlr de oito este período na his- toi-ia portu-ueza, e elrei D. Jamiel é cognominado o ((Venturoso ». Vasco da (kna havia descoberto a índia e os thesouros do Orietr. Ouro, diamantes e pérolas chovcM-am sohiv Pocugal, por tanta ma-

neu-a, que o menor dos r(M"n.» .-.n- ns toj-nou-se o

mais opulento.

Os pi'inuMi-,,s fructos d^acjelles gi-andes desço- brmientos toram enviados aopapa Leão X: jóias, ncos paramentos, valiosas .speeiai'ias ; e, entre

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PAL.VCIO i\t:\

íDROMO, MAFUA

241

outros objectos, m^neinam-se uma on(;a domesti- cada o um enurm-' lohaiite, o piimeií-o ijuo se viu na Europa. Em 'ímpensa d'estes presentes, veio a chaminé escidpirada jxm" Miguel Angelo. Com o seu quinhão J sji-imieias da índia conquis- tada, principiou D. Mnocl a (^diticar o magnitico templo de Santa M.n i.n !.> Helem e mosteiro conti- guo para h-ades J<m ^, como tributo á Divin-

dade.

Uma escada em iicol no interior do palácio conduz a um amplo \-<til)nlo, orn.imfnlado coni foi-moso chafariz á> n .luioi^e. Por sohrií este ves- tíbulo ha ílivrrsos .iji .-.lios j)arti('nlai'cs, (pie ("azem consonância em siiii|. < ladc c elegância na decoi-a- ção. Outros al)i*eni ' inn t(M'ra(;o ajardinado de iinixcodivel belleza, -•• gosa :i p('r>|iec|i\ a ai-

cantaflora fia senvi, d; \illa <• do mar. Mm todu o j)alacio encontran: i<'>, re>rr\ a(orio> e l)anlio>.

Uma caza balneai , ^igidarmeiílc construid.i, <; que dizem snv roliqm . mui-isca, repn\a a agua por crivos invisíveis em Im chuva (pie horrifa das pai'e- des e do tecto, paiM < nlro do i-ccinto. Aqui s(; V('; também a sala em i|ii lamox» 1). Schasíiào reu- niu (j seu ultimo r o (Ir catado, acto, dm-.iii- t(* o qual a coroa iii' íii da fronte, como um pre- sagio, segundo se p um; e fatalmente sncceden que não volíasst? um - «aípiella e.\p(idi(;ão alric.*ma, por amor da qual i iiia os ministros aíim de os

«■ o recinto l.idrilliado cm •e/o ;dgnns aiinos. ('onln;- V(?stigi(js do s('\i coiistantí? ti"o; e ír.-Kpii foi redimido

«•onsultai*. Tambeii, que Atfonso VI e>i' \ cem-se nos ladrilh passear d»; um lad

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240 A FORMOSA LUSITÂNIA

Faltam os brazões de diversas famílias porque não se averiguou com sufficieute exacção se lhes pertenciam; sendo que D. Manuel resolvera aca- bar com a desordem que encontrou na descurada heráldica da fidalguia portugueza. Mandou inspec- cionar monumentos, sepulturas e ai*chivos afim de restaurar e corrigir os escudos concernentes ás ai'- mas dos fidalgos que seguiam a corte; e additando- Ihes os accrescentos sobrepostos pelo decorrer do tempo, mandou illuminal-as em um livro que se depositou no archivo da Torre do Tombo. Em 1759 foram aspadas as armas do duque de Aveiro e mar- quez de Távora, accusados de conjurarem na ten- tativa de assassinio do i^ei D. José. Estes, e mais outros personagens foram barbaramente justiçados, no Cães de Belém, n^aquelle mesmo anuo.

Ha n'este palácio uma chaminé de soberbo mai*- more esculpturado por Miguel Angelo. Foi um brinde do papa Leão X a D. Manuel, que em 1514 enviou a Roma o seu embaixador Tristão da Cuidia, com numerosa comitiva e pompa quaes nunca se ti- nham visto na Europa.

Denomina-se idade de oiwo este pei*iodo na his- toria portugueza, e el-rei D. Manuel é cognominado o (( venturoso ». Vasco da Gama havia descoberto a índia e os thesouros do Oriente. Ouro, diamantes e pérolas chovcn^am sobre Portugal, por tanta ma- neira, que o menor dos reinos europeus tornou-se o mais opulento.

Os primeiros h'uctos (raquelles grandes desco- brinuíutos foram enviados ao papa Leão X: jóias, ricos paramentos, valiosas especiarias ; e, entre

l»ALACr<J líKAL, im'l'Ul)l!UM(), MAl-UA 241

outros objectos, mencionam-se uma onça domesti- cada e um enorme elephante, o primeiro que se viu na Europa. Em recompensa d'estes presentes, veio a chaminé esculpturada por Miguel Angelo. Com o seu quinhão das primicias da índia conquis- tada, principiou D. Manoel a edificar o magnifico templo de Santa Maria de Belém e mosteiro contí- guo pai\a frades Jeronvmos, como tributo A Divin- dade.

Uma escada em caracol no interioi* do palácio conduz a um amplo vestíbulo, ornamentado com formoso chafariz de mármore. Por sobre este ves- tíbulo ha diversos aposentos particulares, que fazem consonância em simplicidade e elegância na decora- ção. Outros abrem para um terraço ajardinado de inexcedivel belleza, d'()ndese gosa a perspectiva en- cantadora da serra, da villa e do mai'. Em todo o palácio encontram-se fontes, reservatórios e banhos. Uma caza balnearia, singularmente construída, e que dizem ser relíquia mourisca, repuxa a agua por crivos invisíveis em fina chuva que borrifa das pare- des e do tecto, para o centro do recinto. Aqui se ve também a sala em que o famoso D. Sebastião reu- niu o seu ultimo conselho de estado, acto, duran- te o qual a coroa lhe caiu da fronte, como um pre- sagio, segundo se pensou ; e fatalmente succedeu que não voltasse mais d'aquella expedição africana, por amor da qual reunira os ministros afim de os consultar. Também se ve o recinto ladrilhado em que Afifonso VI esteve prezo alguns annos. Conhe= cem-se nos ladrilhos os vestígios do seu constante passear de um lado a outro; e d'aqui foi redimido

242 A FORMOSA LUSITÂNIA

pela morto quando ouvia missa. Por instigação dos jesuitas, quo elle detestava ou talvez opprimira, ali foi encerrado pela esposa e pelo irmão que se tinham cazado sem esperarem dispensa de Roma. Emquanto D. Aífonso viveu, seu irmão intitulou-se governador do reino. (*)

As cozinhas são vastíssimas. Duas agigantadas torres ponteagudas, semelhando algum tanto mina- retes, e que impressionam quem as ve pela primeira vez, sendo diíticil adivinhar a serventia d'aquellas excrescências ornamentaes são chaminés. Des- cem até ao pavimento e repartem em dois o es- paço da cozinha. São adornadas de janellas por onde entra a claridade e sáe o fumo. Não se sabe como ellas outr'ora funccionavam ; actualmente o fumo é conduzido por tubo de ferro ligado a uma fileira de fogões.

Se em vez de se andar a gente de sala para sala, atraz do rameraneiro guia que nos aldrava aos ouvidos as historietas que contou trez mil vezes, me deixassem divagar sósinha pelo palácio, quer- me parecei' que eu, com a pouca noticia que tinha.

(•) A historiadora, podendo explicar a desgraça de D. Affonso VI por sua incapacidade para rei e marido, escusava de recorrer á influencia dos jesui- tas. A Politica está justificada descendo do throno o segundo genito de D. Joào IV ; e, se os jesuitas cooperaram n'esse lanço, obteniperaram ás impla- cáveis razoes de Estado. Hoje em dia, um rei, nas condições de AfFonso VI, se não se limitasse a atirar aos pombos, a negociar amores ás actrizes, e an- dasse como o outro batendo nos seus vassallos, seria demittido do ofticio ; com a notável difierença de que a demissão de D. Miguel de Bragança custou milhares de vidas, e a de D. AíFonso VI não accendeu sequer uma faúla de guerra civil. Se aos jesuitas se deve essa economia de sangue, procederam como companheiros incruentos, que eram, do mansissimo Jesus.

PALÁCIO IIKAI., II11'1M)|)U()M(), MAlMtA 243

veria e ficaria sabendo mais dos mysteriosos altos e baixos, labyrinthos e corredores, tradições e len- das da Alhambra portugueza, cuja opulência de va- riegados mármores é mais admirável que as esplen- dorosas grandezas dos edifícios de Granada. Mas que i'emedio ! O francez percebia mal a língua poi-tu- gueza ; era necessário traduzir-lh'a pai'a lhe expli- car as cousas ; ora isto era um appíuidice mais ao aborrecimento. Em geral, o palavriado dos cicero- nes faz-me somno ; ouço-os com os olhos meio cerrados ; e espero que haja objecto digno de obser- vação para os abrir de todo. O que então faço é fi- car-me á rectaguarda, ver as cousas que me api^azem livre e longe da monótona garrulice do guia ; mas ali não podia fazer isto, porque o homem não desfita- va os olhos da gente. Receando ter de repetir a par- lenda, queria elle que estivéssemos juntos; e, como eu me destacasse do grupo e ficasse atraz, assim que deu fé, dirigiu-se-me cortezmente: i(Siia excel- lencia ha de ferdoar-me. Suas excelleiícias estão espe- rando sua excellencia. » E assim arrebanhou a ove- lha tresmalhada.

Era tarde para passarmos a Mafra, que dista de Cintra pelo menos trez léguas; e a estrada, logo que terminam os subúrbios de Cintra e Collares, é erma e tristíssima. Divagamos, pois, aprazivelmen- te por um caminho arelvado, e, seguindo uma vei'e- da sombria de ramagem, emboscamo'-nos n'uma en- costa de matagal. Por entre castanheiros antigos, nogueiras e velhíssimos carvalhos havia vários e bel- los fetos, penedos musgosos e salgueiros debruça- dos sobre o alveo agora enxuto dos arroios que na

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244 A FORMOSA LUSITÂNIA

piMmavera se despenham espumando do topo da serra.

Lembrou-se o francez repentinamente do Hippo- dromOj que o club equestre está construindo, e pro- pòz que i'eti'ocedessemos para o ver. Cuidava eu qu(! elle estivesse farto do enthusiasmo dos seus companheiros, e nos imaginasse como de facto imaginou descabelladamente românticos. Condes- cendendo ao seu alvitre, retrogradamos pela bella vereda da matta e para sabermos como le sport, ou o spori, como os portuguezes dizem, prosperava em Cintra. Por fortuna encontramos o nosso bur- riqueiro na volta de um passeio com meia dúzia dos seus burros de melhor nota, se merece credito, e, ((todos bem folgados, se os quizessemos caval- gai', d'ali a uma hora, ou antes»; e ajuntou, com um galante d parle, que o melhor dos burros era para a illuslrissbna senhora Ingleza. Não deixa de ser agradável, e por egual proveitoso, sentir-se a gente favorecida pela predilecção, embora nol-a um burriqueiro de Cintra. Asseguro-lhe que em Cintra não é prerogativa despecienda poder a gente contar com o burrinho mais andejo e seguro, e com a vigilância do burriqueiro. Os meus companheiros felicitaram-me pela dedicação de António que eu soubera conquistar ; pois que não me era preciso estar sempre a chamal-o: ((//(), António, venha cá, homem..)) António ia sempre á minha beira, como escudeii'o fiel ; e, se vinha a geito, contava-me his- torias ou lendas de cei'tas fontes ou penhascos de configuração exquisita, que encontrávamos na estrada; e, receando que as suas informações se

I'ALA('K) l{i;.\L, I1II'|M)|)|;OMO, MA1'I!A 245

dcspordiçasscm, perguntava-me ás vezos : aSiia Ex- cellencia entende o que eu quer dizer ? » Era cousa quo grandcmonte o maravilhava perceber eu a lingua portugueza. Este buri'iqueii*o é um bom, honi-ado, delicado sujeito, e humilde sei'vo das senhoras : é um preux chevalier, a seu modo, o pobre António.

Em Cintra ditticilmente se encontrará terreno ageitado para corridas ; mas vai havel-as, no fim do mez que vem, em um local chamado o Campo raso. Diz o programma que «os jockeys serão todos ge7i- tlemen riders.)) Estas palavras, com o sland e o lurf naturalisaram-se portuguezas ; mas, pronunciadas d poriugueza, ninguém dirá que derivam de origem ingleza. (•)

Mede 1:300 metros de comprimento sob 16 de largura o Ilippodromo. Em uma das extremas está um amphitheatro com 800 logares. A tribuna e cama- rotes reaes dividem-no a meio, e superi(jrmente está um largo coreto para a banda militar ; que em Por- tugal, festa sem banda militar e milhares de fogue- tes, não é festa. O «stand», que será dedicado aos membros do club equestre, cujo presidente é o infante D. Augusto, vai ser adornado elegantemen- te. As cavallariças e .mais pertejiças são magni- ficas.

O calor obriga a addiai* para melhor estação as corridas em Cintra. Isto magôa-me, porque não estarei ; que eu muito queria assistii* a ellas, porque os portuguezes são excellentes cavallti^iros ;

(•) Esta senhora, quando finge escrever a nossa linguagem, vinga-se usurariamente das afirontas que fazemos á pronunciaçào da sua.

216 A FORMOSA LUSITÂNIA

posto que talvez alguma couza lhes falte no estylo que íorma os bons jockeys. Faz pena que depois de todos os melhoramentos feitos e por fazer em Lis- boa, não Jiaja moda de complanar, por causa dos seus altos e baixos, terreno que se pareça com o Bois de Boulogne ou Rotten Row. Se o Aterro se prolongasse até perto de Belém, poderiam dar-lhe o aspecto de um ((Lady's Mile». Aquella linda ci- dade ganharia muito em attractivos se vos fosse permittido somente ir e voltar a meio galope pelo centro do actual Passeio publico. A raiidia e algumas senhoras inglezas dariam o exemplo, e bastantes sei eu que lh'o seguiriam de boa vontade. (•)

Esperavam-se em Cintra para o mez que vem nu- merosos bailes, ai fresco festas, e outros recreios. (••) Ainda tem ares de novidade para as senhoras por- tuguezas o ajuntarem-se fora do circulo de suas fa- mílias ou re-imiotis ; mas isto mais se deve á in- fluencia das velhas usanças do que á reserva e dis- posição incompativel de maneiras. São ellas, certa- mente, dotadas de talento social, e de um gracioso

(•) Lembra S. Ex.^ muito bem. Mettam-so cavallos authenticos no Passeio Publico, e acabem os disfarces. Paute-se agente por Inglaterra em tudo. O lyrismo não terá flores por ali, nem os cysnes erguerão os colos flexuosos de prata para requestarem as Ledas continentes que os namoram com migalhas de pão de ló; mas em compensação, os taboleiros adubados com o estravo de cavallo, podem desentranhar se em aromas e feijão carrapato. Afora isso, sor- ri-nos a esperança ds vêr a meio-galope as senhoras inglezas das relações de Lady Jackson. Meditem este ponto os edis daprinceza do occidente. Mal por mal, antes, no Passeio, as ferraduras contundentes dos cavallos que os sabres perfurantes dos policias.

(••) Este dizer ai fresco festas, cotn quanto não seja portuguez, tem certa frescura que o faz acceitavel em julho como uma carapinhada; mas quem o lêr em janeiro seote frieiras nas suas orelhas lusitanas.

PALÁCIO REAL, H í l'l'n|)|;()M(), M \|-|; A ^47

desembaraço, movido honestamente por sentimentos bons, affectivos e complacentes.

Deixamos os burrinlios, e percorremos u inte- rior da villa. Emquanto saldávamos contas com António, assai tou-nos um bando de mendigos, al- guns dos quaes me quiz parecer que eram pedintes amaleurs, que a vista do dinheiro provocara á men- dicidade. Mulheres e creanças lamuriavam sem des- pegar pedindo «pelo amor da Mãe de Deus» ou «jje- las chagas de Jesus Christo» e garantindo a salvaçilo das nossas almas com a distribuição de esmolinhas por um ceguito idiota e dois ou trez velhinhos ti-e- mulos. Com alguns vinténs a uns, e (.^paciência, pa- ciência, vá com Deus, que não pode ser agora» a outros, difficilmente conseguimos dispersal-os.

De dentro da cadeia, que nos ficava perto, pedia uma mulher; e bastantes prezos, com as cabeças en- fiadas pelas grades, palestreavam muito animados com a gente de fora. Desciam uma cestinha por uma corda, e erguiam-na com tabaco e outras cousas de luxo, compradas na tenda fronteira por uma mu- lher a quem um prezo atirara dinheiro. Nas enxo- vias ia grande algazarra como se os prezos andas- sem aos empurrões em brinquedo brutal. Trez ou quatro d'aquelles scelerados enfiaram as cabeças pelas grades, e, chamando-nos, acenavam para que lhes déssemos também uma esmolinha. Duas sentinellas passeavam defronte da cadeia, mas não se importavam com aquillo. É uma mascarra na formosa villa aquella cadeia que faz lembrar a de Loanda.

Desistimos da nossa expedição a Mafra : eu pelo

248

A FORMOSA LUSITÂNIA

menos renunciei, porque tinha visto n'outra oc- casião o celebrado Escurial portuguez, situado de- sastradamente no mais estéril e desconvidativo lo- cal que podia escolher-se de um cabo a outro d'aquelle paiz. Também \i a real granja-modelo esta- belecida ha annos, e, segundo ouvi, tem prosperado muito, distendendo-se obra de onze milhas á volta do palácio e basílica de Mah"\.

O erguer-se tão enorme edifício em tão indigno local deve-se sem duvida á natureza do voto de D. João V seu fundador. Por quanto, não promet- teu a Santo António, se, por sua intercessão, alcan- çasse um herdeiro ao throno, lhe ergueria o mais explendido templo de Portugal ; mas também esse templo seria erecto no logar do reino em que exis- tissem os mais pobres frades. A olhos vistos se ma- nifestou o patrocínio do santo, porque em tempo competente nasceu uma creanca ; D. João, porém, não começou logo o edifício porque precisava de um fílho, e o adventiciosinho era uma menina. Vol- tou de novo a pedir ao santo, que lhe respondeu no anno seguinte com um robusto rapaz; e D. João, á vista d'isto, mandou os seus agentes por ahi fora em cata do mais pobre mosteiro.

Eram decorridos dous annos sem que as investi- gações se concluíssem por serem numerosos os er- mos monásticos que abundavam em tristes locali- dades da «formosa Lusitânia». N'essa occasião mor- reu de sarampo D. Pedro. Por fortuna D. José tinha nascido trez mezes antes de morrer o irmão ; ainda assim achou prudente D. João addiara dedicação do mosteiro a Santo António para quando o príncipe

I'ALA(IO líKAL, im'I'ODlloMO, MAFRA

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completasse trez annos. Enti-etanto, os enviados do rei descobriram doze capuchinhos da Arrábida habi- tando pobre caza em uma eminência triste e árida de Mafra, cerca de 224 metros sobre o nivel do mar. Era impossivel encontrar-se caza mais pobre e vi- da mais austera. D. José no entanto completou os trez annos. Em novembro de 1817, com a maior pompa e cerimonia, assentou o rei a primeira pedra do magesfoso templo.

Os principes e fidalgos iam depoz o rei car- reando pedras ; e o patriarcha de Lisboa, que tam- bém assistiu, abençoou o logar que se presumiu ser muito a contento de Santo António.

Xo percurso de treze annos, dia por dia, 25:000 operários trabalharam na obra; e, durante trez mezes de preparos no interior do templo para o cerimonial da consagração, accrescentaram-lhes mais 20:000. Mas havia ainda muito que fazer em Mafra. Por mais de um anno, aquelle exercito de obreiros, em que avultavam distinctos esculptores, proseguiram na lida até que se annunciou que o ingente monu- mento, — mosteiro, basilica e palácio era emfim acabado. O remate foi estrondosamente solemni- sado pela corte. Houve caza e meza franca por oito dias para todos os bem-vindos que a quizes- sem.

Que mudança para os pobres frades da Arrábi- da I De um triste cabanal em charneca passaram para este mosteiro real construído das ricas pedrei- ras de Pêro Pinheiro, que lhe deram o linissimo porphydo variegado, e do admirável mármore preto de Collares, e do selecto jaspe colorido da serra da

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menos ronuncioi, porque tinha visto n'outra oc- casião o celebrado Escurial portuguez, situado de- sastradamente no mais estéril e desconvidativo lo- cal que podia escolher-se de um cabo a outro d'aquelle paiz. Também vi a real granja-modelo esta- belecida ha annos, e, segundo ouvi, tem prosperado muito, distendendo-se obra de onze milhas á volta do palácio e basilica de Mafra.

O erguer-se tão enorme edifício em tão indigno local deve-se sem duvida á natureza do voto de D. João V seu fundador. Por quanto, não promet- teu a Santo António, se, por sua intercessão, alcan- çasse um herdeiro ao throno, lhe ergueria o mais explendido templo de Portugal ; mas também esse templo seria erecto no logar do reino em que exis- tissem os mais pobres frades. A olhos vistos se ma- nifestou o pati*ocinio do santo, porque em tempo competente nasceu uma creança ; D. João, porém, não começou logo o edifício porque precisava de um filho, e o adventiciosinho era uma menina. Vol- tou de novo a pedir ao santo, que lhe respondeu no anno seguinte com um robusto rapaz ; e D. João, á vista d'isto, mandou os seus agentes por ahi fora em cata do mais pobre mosteiro.

Eram decorridos dous annos sem que as investi- gações se concluissem por serem numerosos os er- mos monásticos que abundavam em tristes locali- dades da «formosa Lusitânia». N'essa occasião mor- reu de sarampo D. Pedro. Por fortuna D. José tinha nascido trez mezes antes de morrer o irmão ; ainda assim achou prudente D. João addiara dedicação do mosteiro a Santo António para quando o príncipe

i'.\i,.\(iõ i;i;\i., iiri'i'()i)i;oM(), maimlv 249

completasse ti'cz uiiuus. Entretanto, os enviados do rei descobriram doze capuchinhos da Arrábida habi- tando pobre caza (M11 mna (iminência triste e árida de Mafra, cerca de 224 metros sobre o nivel do mai*. Era impossivel encontrar-se caza mais pobre e vi- da mais austera. D. José no entanto completou os trez annos. Em novembro de 1817, com a maior pompa e cerimonia, assentou o rei a primeira pedra do magesfoso templo.

Os príncipes e fidalgos iam depoz o rei car- reando pedras ; e o patriarcha de Lisboa, que tam- bém assistiu, abençoou o logar que se presumiu ser muito a contento de Santo António.

No percurso de treze annos, dia por dia, 25:000 operários trabalharam na obra; e, durante trez mezes de preparos no intei-ior do templo para o cerimonial da consagração, accrescentaram-lhes mais 20:000. Mas havia ainda muito que fazer em Mafra. Por mais de um anno, aquelle exercito de obreiros, em que avultavam distinctos esculptores, proseguiram na lida até que se annunciou que o ingente monu- mento,— mosteiro, basílica e palácio era emfim acabado. O remate foi estrondosamente solemni- sado pela corte. Houve caza e meza franca por oito dias para todos os bem-vindos que a quizes- sem.

Que mudança para os pobres frades da Arrábi- da ! De um triste cabanal em charneca passaram para este mosteiro real construído das ricas pedrei- ras de Pêro Pinheiro, que lhe deram o finíssimo porphydo variegado, e do admirável mármore preto de Cofiares, e do selecto jaspe colorido da serra da

250 A FOKMOSA LUSITÂNIA

Arrábida. Aos frades d'esta ordem era defezo, em virtude do austero voto de pobreza, officiar eom vestimentas bordadas a ouro, pirata e pedras pre- ciosas. Ora, D. João, como extremado catholico, não podia querer que a austeridade se relaxasse, em obsequio aos frades. Portanto, a rouparia conven- tual, em vez de scintillar com os dourados, como aliás de certo succederia, compunha-se da mais fina seda que se pôde manufacturar para tal fim, e cada vestuário era ornado de bordados de grande la- vor e perfeitissima execução. Era tamanho o luxo que se conta mas eu duvido que a vestiaría mo- nacal e paramentos de altar e outros adornos se- melhantes custaram tanto como custou o edificio to- do, e que o tempo consummido em fabrical-o foi me- nos que o dispendido nos bordados. Ainda subsiste porção d'estas ricas vestimentas ; as outras leva- ram-as os francezes que as admiraram e roubaram quando por ahi estiveram. Nunca se soube ao cer- to o total do custo de Mafra. Conjecturaram-se cer- ca de cinco milhões ; sendo que os mármores esta- vam ali perto e o jaspe e mais pedras eram nacio- naes. (•)

Obras prodigiosas como o grande aqueducto, maravilhas de arte como a capella de S. Roque, pa- lácios e quintas como Belém, Necessidades e Ma- fra, a magestatica, comecou-as e concluiu-as D. João V; e, simultaneamente, soccorreu com esquadras e desopprimiu Veneza da affronta dos turcos e corsa-

(•) A Basílica de Mafra custou quarenta e oito milhões de cruzados. So- mente os 114 sinos custaram trez milhões

PALÁCIO REAL, IIIPPODROMO, MAFRA 251

i-ios barbarescos ; além d'isto, patrociaou largamente .sábios e artistas; viveu com sumptuosidade; d'oiide afinal resultou tal estr-ago para o reino que no erá- rio, quando aquelle grande mcmarcha mori*eu, havia um escasso conto de reis. Chamaram a D. João V «o mais luxuoso dos Salomões modernos» : ora a sua semelhança com o hebreu prototypo não está so- mente em terem ambos edificado templos magesto- sos. . . Não obstante, em 1748, dous annos antes de morrer, em paga dos serviços prestados á Igreja, re- cebeu D. João do Papa Benedicto XIV o titulo de Fidelíssimo que os reis portuguezes actualmente usam. D. José, seu successor, gostaria muito mais de encontrar os cofres repletos.

houve em Mafra quartel de tropa; actual- mente, está ali o coUegio militar para filhos orphana- dos de officiaes do exercito. Se os meios lhes escas- seam, se educam militarmente á custa do Es- tado.

poi' sua extensão, que mede oitocentos pés, a principal fi*ontaria de Mafra que olha ao poente, bas- taria a impressionar. Sobe-se para o pórtico cheio de imagens de santos de perfeita esculptura por uma vasta escadaria de mármore. O zimbório de elegantes proporções rodeado por uma larga va- randa, é a perspectiva mais para admirar d'aquelle edifício. De cada lado altea-se um torreão rodeado de pilares, e em cada extremidade do edifício surge um pavilhão. Em outras duas torres, estão os celebrados carrilhões, com cincoenta e um sinos cada um, fabricados em Liège. São complicadamente construidos, e custaram enorme quantia. É arreba-

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252 A FORMOSA LUSITÂNIA

tadora, ao entrar no templo, a magnificência dos mármores variegados, dos porphydos, dos mozai- cos, dos pavimentos, dos estuques, das columnas e paredes, não obstante as nódoas, o desbotar dos an- nos e o descuido que se manifestam em muitos ob- jectos. Havia e creio que ha ainda seis órgãos. O retábulo do altar mor, tido em conta de obra-prima, representa Santo António adorando o Menino-Jesus. A livraria orça por 300 pés de comprimento ; é la- geada de mármore branco e rosa, contém cerca de 25:000 volumes e alguns raros manuscriptos. A sala dothrono conserva ainda os seus pesados reposteiros de velludo e seda, que dizem sei* os genuínos que se usavam em dias solemnes no tempo de D. João V. O estylo do mosteiro é o clássico italiano. Frederico Ludovici, allemão que italianisara o nome, foi o ar- chitecto.

Mafra, em seu complexo, assombra-vos porque c coiza para espantar quanto a tamanho e urdi- dura; mas por belleza, não. Talvez que a phantasia não possa idear mais grandiosos espectáculos do que deviam ser aquelles esplendores monásticos e realengos em dias festivos, quando nas vasta.s e con- fortáveis cellas se abrigavam trezentos monges pit- torescamente vestidos; quando o pio e magnifico e espaventoso Lothario, D. João, com a rainha e suas açafatas e seus próceres, enchiam os dois palácios ou pavilhões; quando diariamente se cantava missa no soberbo altar, com a máxima pompa; quando as damas da corte e prazenteiros hdalgos divaga- vam por aquelles jardins ; quando a religião e o prazer andavam de braço dado, e as imponentes ce-

I'ALA(;[() IIMAÍ,, IIII^IM)|)lí()Mr), MAFIíA 253

rimonias do templo se revezavam com festas de gi-aiideza real. Todas as pompas e vaidades realen- gas e monásticas passaram, e o magnifico Escurial de Mafra i*ecorda, n'aqu('lla planicie erma, um s(>- cido coi'rupto, |)rodigo e devasso.

CAPITULO XVIÍ

o OMXIBLÍS SETCIíAI, ALFAMA

Lisboa, Agosto, 187.3. «Punge-me a idéa de partir» como disso alguém Beckford, penso eu ao arraucar-se das bellezas de Cintra. Todavia, fiz um esforço violento ; e deliberei-me de súbito ; e, para não dar lanço á minha coragem de tergiver- sar com as delongas, resolvi e parti. Eu jurara nunca mais viajar no Larmanjat-; e, como não podéra tomar carruagem de retorno para Lisboa n'aquelle mesmo dia, e visse na Praça uma pequena caranguejola chamada omnibus, perguntei quando partia, e sou- be que ia saíi* antes d'uma hora. Despedi-me dos meus amigos hespanhoes, com a esperança de os encontrar brevemente. O francez acompanhou-me ã villa ; e pouco antes de largar o carro, metti-me no acaçapado vehiculo, e assentei-me no logar do meio ao fundo, com grande espanto do cocheiro e de dous outrez passageiros que estavam. Segundo o costume nacional, tiraram os chapéus quando en- trei, observaram -me curiosamente, olharam para fora, e tornaram a olhar para mim, como quem diz : «Quem é que vem com ella?Não é de crer que ella viaje sósinha por esse mundo fora ! » Esta gente está longe de acceitar que seja honesta a mulher, em- bora velha e feia, que possa dispensar-se de anda-

2Õ6 A FORMOSA LUSITÂNIA

deiras. E, como não apparecesse protector graúdo, nem aia, olharam-se entre si de um modo ambiguo^ depois ainda me relançaram a vista de esconço, de- ram aos hombros, amesendraram-se o mais á sua vontade que podiam, fecharam as pálpebras, e de- sistiram de sondai* o impenetrável mysterio.

Entrou um sujeito com ademanes afidalgados. Também me cortejou, mas de modo que parecia perguntar: ccQue faz você aqui?» Elle era com cer- teza pessoa de importância, porque o cocheiro, que o esperava, subiu logo para a almofada, o condu- ctor foi para o seu posto, e, depois de alguns preli- minares floreios e estalos de chicote, os quadrúpe- des largaram. Depois, parámos ao portão de uma quinta. Entrou outro cavalheiro, e apertou affectuo- samente a mão do que entrara ultimamente, e te- ve a bondade de ajuntar ao comprimento que me fez: aviva, minha senhora». N'um lance de olhos ao amigo parecia dizer pelo claro: «Isto pertence-te?» Um sorriso dissimulado, e um ligeiríssimo gesto de cabeça bastou para o dispensar de interessar-se e informar-se a meu respeito.

Na pequena caixa quadrada do omnibus havia trez bancos estreitos em que nove passageiros ma- gros deviam ir apertados. Éramos seis : dois de- cididamente assaz gordos, e os outros de modo al- gum faziam lembrar as vaccas magras. Eu gostaria que o carro fosse cheio na jornada; mas apertada não. Um bem parecido sujeito de commodo forma- to, trajando um albornoz pardacento, saltou para dentro. No mesmo instante, o primeiro cavalheiro veio sentar-se ao meu lado. Mas nova invasão de

o OMXIIII s, s|;ri IlAL, \I,1'\M\ "^i)!

nm espesso gallego que escon-egoii e se estiiteloii (leante de mim atiraiido-me eom o cliapeu enfeitado de fitaria e boi'las para sobi'e os joellios. Ergneu-se e aninhoii-se cMitre os dois, ai-riiinaiido debaixo do baneo uma poncha de bsti-ada <' um abominável cão que entrara com elle.

Quando dobrávamos o sopé de uni monte, lan- cei o derradeiro olhar, através de uma vidi-aca In- t(íi'al á formosa Cintra, banhada (Mn ondas de hi/ c toucada de uma diaphana nebrina cni- de ros.i (pie em cima se andava como brincando cm redor das agulhas da serra. A estrada i-eal para Lisbf)a é das melhores de Poi'tugal. Alegra va-nie \èi' coiiín os cavallos a cadencioso trote galgavam e desciam as ladeiras. Cinco dos sete homens iam hnnando; e o cão, agachado debaixíj do banco, gania e mordia-se afflictivamente, porque o infeliz bruto, como todos os cães e gatos de Portugal, ia atormentado e meio comido de pulgas. (')

Andadas algumas milhas, saiu um passageiro e o homem do guarda também saiu a rcfres-

(•) Eis aqui uma especialidade portngueza : a pulga no gato e no cào; mas ellas, as pulgas, ás vezes flagellam também os inglezes, como succedeu á auctora, cin uma estalagem de Espinlio. Parece que nào distinguem. Não tenho aqui á mão expositor naturalista que me deslinde a duvida em que estou se as pulgas inglezas também se aninham no pêllo do5 gatos e cães conterrâneos. O certo é que raro o viajante inglez vai de Portugal que não faça gemer o prelo á conta de pulgas. Ha cento e quatro annos que o via^ jante Richard Twiss achou uma enxerga cheia d'ellas em Barilhe:... «a truss of straw full of fleas». O leitor não sabe onde é Barilhe. a minha paciência podia descobrir esta aldeia, que se chama Birril. Nem Carvalho na CorograpJiia, nem o Flaviense, nem o padre João Baptista de Castro {Roteiro), nem o snr. Pinho Leal {Portugal antiyo e moderno) dão noticia do Barril. Depois de uma noite de inverno bem empregada, ao raiar da ma-

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258 A FORMOSA LUSITÂNIA

car-se n'uma taberna, quando parámos. Aqui nos abordou uma chusma de mendigos a saudar-nos e a lembrar-nos a Mãe de Deus e as nossas almi- nhas. Logo que o homem saiu, o cavalheiro que estava ao meu lado, circumvagando a vista pelos outros, disse ao seu amigo n'um inglez bordalengo, decerto para que os outros o não comprehendes- sem : (( Este homem foi meu cozinheiro».^ «Ah ! cozinheii*o ! )) disse o outro que mal o percebeu, acho eu. «Sim, meu cozinheiro, e não era mau, mas o homem não parava. Saiu de minha caza, e nunca mais o vi senão agora». «Ah! Ah!» respondeu unicamente o outro. (*)

O cozinheiro voltou então com provimento de tabaco e mortalhas, em que enrolava os cigarrcltos; porém, embaraçado pela presença do seu antigo amo, não ousou fumar. D'ahi a pouco revestiu-se de animo e accendeu um. Eu senti-me logo tão in- disposta ifaqneHa estreiteza do omnibus, que me vi forçada a pei'guntar ao meu visinho que fallava in- glíiz se eu poderia passar pai'a um dos logares de

nhà, encontrei, guiado por fr. Anastácio de Santa Clara {Guia de via- jantes, 1791, pag. íí3) o Barril, na Beira-Alta, entre Freirigo e a Ponte do Cria. O citado viajante chama a Condeixa Pondes, e á Mealhada A mo- lhada, etc. Estes bretões estendem o seu orgulho até á perversão da geo- graphia alheia.

f •) Lady Jaekson (Vialogou esta cousa salobra paru alegrar os seus patri- cios com a desgraçada pronuncia ingleza do seu companheiro. Para isso, or- thographou de maneira a palavra, que tornou inverosímil e absurda a pronun- cia do conde de J. Para os que entendem, mas pouco que seja, da língua in- gleza, traslado o te.xto, e da estranha orthographia infiram qual fosse a pro- nuncia: 'Dat marn my CO -o-l-e.'K— X\\\ co-o-ke! "Yees, my co-o-Jce : Co-o-lce not bad •, but mai-n dat like too ve.ll change. He go from me and I see him no more to now". " Ah ! Ah

o OMXIIJUS, SKTinAI., ALFAMA 259

fora. Estremeceu de modo que cuidaríeis que eu lhe desfechara um tiro. «Ah! uma senhora ingleza!» exclamou elle, como se estas palavras decifrassem um enygma. Repeti a mesma pergunta com mais energia. «Ao fim da tarde disse elle a senhora vai sentir frio». Depois, como se uma idéa repenti- na lhe occorresse: ccO seu marido está lá. fora?» «Oh! não respondi é porque o ar aqui vai tão cíieio de fumo que preciso sair». Desceu iinme- diatamente duas vidraças; mas tão aguda consente de ar me arrefecia que eu estava morta que as janellas se fechassem ; no entanto, o cozinheiro e mais outro homem como percebessem a questão, cortezmente se privaram dos cigarros; de modo qu(^ bastou a bafagem da viração que penetrava para pu- rificar a atmosphera do omnibus.

O gallego com o seu cão, e o cozinlieiro e os mais, tirante os dois cavalheiros, saíram antes de chegarmos a Lisboa. Na Praça de D. Pedro, termo da jornada do omnibus, o anglo-poi'tuguez (o conde J., como eu depois soube) ficou como espantado poi* ver que ninguém me esperava. Poi*ém como en perguntasse se havia um trem, elle delicadamente tomou um que ia passando. «Para onde quer V. Exc.'' ir?» perguntou elle. «Praça do Commer- cio ; estação do caminho de ferro de leste». ((Pois en- tão ! exclamou admirado a viagem de V. Exc' não termina aqui?» «Não; vou a Évora». «A Évora! seu marido está então lá?» «Oh! não; eu vou sósinha para ver igrejas antigas». «Não ha no mundo disse elle senhora que tenha a coragem de uma ingleza! Boas noutes e tenha V. Exc." feliz

viagem».

Í60 A FORMOSA LUSITÂNIA

E assim lios so])aranios.

Chegiuú atempo de embai'car no vapor que trans- poj-ía par-i o Banníiro os passageiros que saem no comboyo da noute, mas senti-me descoroçoada ao passo que foi anoitecendo. Portanto, compilei bi- lhete somente para Setúbal, com o propósito de par- tir para P'vora no comboyo da manhã. Tomei car- ruagem para iriim só. Chegando a Setnbal ou St. Ube como os inglezes dizem, perguntei ao empi^e- gado dn \'ia lerrea que me pareceu mais gi^aduado e serio qual era o nKilhoi' liotel. Este digno sujeito, (Mit(^ndendo qu(i (ui era, uma ingleza viajante, e mu- lher desj)rot(^gi(l?i (jne ('arecia de favor, portou-se cíjin extrema cortezia. Encarregou-se de tirar a mi- nha bagagem, para evitar que se desencaminhasse, (3 deu-me uma cadeii*a ao seu lado até que podesse dispensar uma pessoa que me procurasse hospeda- gem limpa e decente ali perto. A dona do hotel dis- seram que eu ovci numa cxlrangeira mgleza)).

Viajar eu S(')sinha, sem destino .a alguma casa ou quinta de parentes ou amigos, circumstancia (|iie é costume averiguar com urgência isto fez- llie mossa, como a todos os portuguezes e hespa- jihoes, que tomam o cazo por extravagância, mas divertida, e mais nada. Assim pois aquella gente me ti'aton agraciadamente, risonha e com benevo- lência, dando-me diversos fructos, doces, delicadas iguarias ao jantar, e geralmente houveram-se com- migo como se eu fosse uma travessa moça a quem deu na veneta gazear.

A cama, bem que limpa, era terrivelmente du- ra; por isso me ergui cedo, tomei carruagem, cice-

o OMXIIJLS, SKTIJBAl., AIJWM \ 2()i

roni, o, fui ver tudo digno do \òi'-so na cncíuitMdoi-a villazinha do Sotubal. Pois (|iio ultiuiauionto foi no- bilitada com o titulo do cidade, assim mo cumpr(^ chamai'-! lio.

Tom uma bolla ))ra(;a (^ pittoroscos j)assoios (ju(í .SC ostondom considoravcílmonto ao longo das mai- gens do Sado. A parto conti'al (3 Sotubal propria- mente dito; á direita e á osfpiorda, são bairros do agricultores o poscadoi'os, O ;nicoi'adoni*o r bcjtis- simo, vasto o fundo, dolondiflo por uma forlnlcza, pequena e torre em ruinas, que, a meu ver, oní cazo de necessidade, seriam de nenhum préstimo.

Estão por ali disseminadas bonitas cazas do cam- po, o pelos arrabaldes ha muitas o grandes quintas com píjmares, vinhas o laranjaes, d'ondo saem o mais delicioso moscatel e as mais finas laranjas da Península. D'esta fructa, exportada em grande es- cala, e do commer(?io do sal, tira Setúbal a sua actual importância e prosperidade. Concorre tambom ;i <mi- grandecel-a a estação da via-ferrea.

Vi duas ou troz egrejas antigas em ostylo Ma- nuelino. Em uma d'ellas ha div(írsos (piadros, que dizem ser do Grão Vasco, a quem se attribuem todas as pinturas (jue em Portugal tom algum valor. N'esto paiz, quadros de mérito são raríssimos. Os portu- guezes revelam mais capacidade para esculptores que para pintores; na esculptura houve-os ali emi- nentemente hábeis. Uma «cabeça de Christo» poi*- feita em desenho e execução se pode actualmente ver em um atelier de Lisboa. Disseram-me que a comprara D. Fernando. Não me recordo agora do nome do artista.

2&^

A FORMOSA LUSITÂNIA

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Ha em Setúbal um bonito theatro que tem o nome de Bocage, celebre repentista, orgulho dos setu- balenses, que lhe ergueram elegante estatua em uma das praças. São agradabilissimas as praças em Setúbal, e particularmente a do Senhor do Bomfim é encantadora, com o seu jardim ao centro, frondo- so arvoredo e ciystalinas fontes.

Bem é de ver que também aqui ha praça de tou- ros ; mas, penso eu, recentemente construida. Os portuguezes são agora mais caroaveis d'este passa- tempo que antigamente.

Fui a uns trez logares onde se gozam magnifi- cas vistas de terra e mar. Aqui se encontra a fa- mosa caverna de stalacteles chamada Portinho da Arrábida, e um convento antigo na serrania do mes- mo nome ; mas eu não vi estas couzas : pode ser que as visite n'outra occasião. Por cauza do excessivo calor e da informação que me deu um cavalheiro chegado de Évora de que eu me ia metter, n'um ei'mo ardente como um forno, deliberei deferir para melhoi' sazão e mais fácil passagem para Hespanha a minha ida áquella vetusta cidade com o seu tem- plo de Diana, com a sua cathedral do século doze, e outras muitas relíquias de remotas eras.

Os setubalenses são de génio alegre. Se eu me demorasse mais tempo iria visitar-Ihes todas as suas quintas. Mas, comquanto a pequena cidade me pa- i'ecesse activa e agitada, quem primeiro viu Cinti'a, acha Setúbal desanimada. As relações que grangeei nas poucas horas que estive, todos me aperta- vam a mão, um cento de vezes, pelo menos, dese- jando-me 7nuito boa viagem. A moda de apertar a

o oMNiniJS, Sl-riIlíAI,, AIJA.MA

263

muo a quem quer que seja com certeza iiza-se ali muito mais ra.sgadameiite (lue em Iiij^latoi'i*a. Um «aperto de mão» é, para assim dizei*, |»lii'aze saci'a- meiítal ii'este paiz. Ku fazia o mesmo como coiiza trivial, [)osto que esse costume, seja um eai-acteris- tico de iuglezes e iuglezas. Deuiais a mais ubsei-xci que se uma pessoa não tem bastante intimidade com os seus amigos portuguezes para ser abraçado com veliemencia, pelo menos aijertam-Hie a mão c(jm tal tei'vor que a mim me qu(3r pai'ecei- que a socie- dade franceza o não julgaria comme il faul, e na In- glaterra seria considerada uma indelicadeza. Como quer que seja, a ser mister ali apertar a mão a toda a gente, um forte e cordeal agai-rai* de mão é melhor que um frio toque de dedos glaciaes, o (pie é quazi tão olíensivo como uma bofetada.

A perspectiva entre Setúbal e Barreiro pai'(íceu- me mais pittoresca ã luz do sol do ([ue me pai-ecèra ao clarão da lua em declinação. Uma suave viração modificava o calor quando atravessei o Tejo, e ao entardecer, eu estava em Lisboa, caminho de Al- fama o Mouraria com F. É n'aquella antiga porção oriental de Lisboa, que o terramoto poupou, onde se encontram remanescentes vestígios dos mouros.

Resolvi ir para o norte, e fui de camiidio á esta- ção central perguntar quando pai'tiam os comboyos para Coimbra. Passada a Alfandega, entramos na estreita rua dos Bacalhoeii'Os, porque eu desejava tornar a ver n'esta rua uma caza cujo curioso fron- tespicio é formado de [jcdras pardacentas quadrilá- teras, que medem um pouco mais ou menos, e terminam em bicos que sobresáem todos equidis-

262 A FORMOSA LUSITÂNIA

Ha em Setúbal um bonito theatro que tem o nome de Bocage, celebre rejjentista, orgulho dos setu- balenses, que lhe ergueram elegante estatua cm uma daspi'aças. São agi'adabilissimas as praças em Setúbal, e particularmente a do Senhor do Bomfim é encantadora, com o seu jardim ao centro, frondo- so arvoredo e crystalinas fontes.

Bem é de ver que também aqui ha praça de tou- ros ; mas, penso eu, recentemente construída. Os poi'tuguezes são agora mais caroaveis d'este passa- tempo que antigamente.

Fui a uns trez logares onde se gozam magnifi- cas vistas de terra e mar. Aqui se encontra a fa- mosa caverna de stalacteles chamada Portinho da Arrábida, e um convento antigo na serrania do mes- mo nome; mas eu não vi estas couzas : pode ser que as visite n'outra occasião. Por cauza do excessivo calor e da informação que me deu um cavalheiro chegado de Évora de que eu me ia metter, n'um ermo ardente como um forno, dehberei deferir para melhor sazão e mais fácil passagem para Hespanha a minha ida áquella vetusta cidade com o seu tem- plo de Diana, com a sua cathedral do século doze, e outras muitas relíquias de remotas eras.

Os setubalenses são de génio alegre. Se eu me demorasse mais tempo ii*ia visitar-lhes todas as suas quintas. Mas, comquanto a pequena cidade me pa- recesse activa e agitada, quem primeiro viu Cintra, acha Setúbal desanimada. As relações que grangeei nas poucas hoi-as que estive, todos me aperta- vam a mão, um cento de vezes, pelo menos, dese- jando-me muilo boa viagem. A moda de apertar a

() OMXIIJls, slill |;\|,, AIJA.MA 263

mão a quem quer que sejft com (-ui-tcza iiza-so ali muito mais rasgadamente que em Inglaterra. Um «aperto de mão» é, para assim dizei-, plir;izt; saei-a- meiítal ii'este paiz. lui lazia o iiiesino como conz.-i. trivial, posto que esse costume, seja um cni-acteris- tico de iuglezes e iuglezas. Demais a mais obsL'i'vei que se uma pessoa não tem bastante intimidade com os seus amigos portuguezes para scv aljraçado com vehemencia, pelo menos apertam-llie a nino roni tal fervor que a mim ma (puM* pareccM* rpie a socie- dade franceza o não julgaria comine il faul, e na In- glaterra seria considerada uma indelicadeza. Como quer que seja, a ser . mister ali apei-tar a mão a toda a gente, um forte e cordeal agarrar de mão é melhor que um frio toque de dedos glaciaes, o (pie é quazi tão olfensivo como uma bofetada.

A perspectiva entre Setúbal e Barreii*o |)ai'(Mjeii- me mais pittoresca á luz do sol do que me parecera ao clarão da lua em declinação. Uma suave viração modificava o calor quando atravessei o Tejo, e ao entardecer, eu estava em Lisboa, caminho de Al- fama e Mouraria com F. ¥^ ii'aquella antiga porção oriental de Lisboa, que o terramoto poupou, onde se encontram remanescentes vestígios dos mouros.

Resolvi ir para o norte, e fui de caminho á esta- ção central perguntar quando pai'tiam os comboyos para Coimbra. Passada a Alfandega, entramos na estreita rua dos Bacalhoeiros, porque eu desejava tornar a ver n'esta rua uma caza cujo curioso fron- tespicio é formado de pedras pardacentas quadrilá- teras, que medem \un pouco mais ou menos, e terminam em bicos que sobresáem todos equidis-

^H4 A FORMOSA LUSITÂNIA

iaiitos. Pi'(xliizem iiotíivol otibito, c são iinicas no sou feitio. Por ali, unicamente mo rcsponderatn quan- do pedi informações a tal respeito que : ioiào sei na- da, minha senhorayy. A gente que por ali está nas ten- das não sabe nada d'isso, e espantava-se que eu o desejasse saber. «A caza é differente das outras diziam elles mas é porque o pedreiro lh(3 deu na veneta fa/el-íi assim», mas se era christão ou mouro, ninguém o sabe nem pr(!cisa sabei'. A final não pude avei-iguar se tinha visos de verdade uma estranlia historia que alguém para responder á mi- idia cuiiosidade, me contou, inculcando-m'a tão vcrdadíurn (planto extraordinária. Disseram-me cjue (m\ antigos tempos, quando o negocio da escrava- ria prosperava em Africa, e o mais fácil meio de enriquecer ei^a labutar poucos annos no deshumano trafico do Angola ou Ri-azil, appareceu em Lisboa um certo negreiro, cujn lúqueza tocava as h^onteiras da fal)nla.

A semellianra dos siuis collogas no oíticio, saí- i-a do sou paiz com um escasso cruzado na algi- beira — (*azo também modernamente acontecido com uns que voem millionarios de Angola, para onde ti- nham ido degradados. (•) Este homem era também de baixa extracção; e, em i'a])az, tinha sido creado de uma barraca de peixe no sitio onde agora está a caza. O esforço que fizera poi' nivelar o espirito á altura da riqueza não lhe sortiu bom êxito; o, dado

(■) Estes miUionarioK vindos da Angola sào puras r extremas fautasnia- j:;oiias d'(:sta senhora, ipiti também esteve, e d(!Via conhecer a miséria dos mais laboriosos.

o OMXIIÍI.S, Siyill; Al,, AI,K.\MA 265

((lie amhioionassí^ (1(3 (jiialqiior modo figurar na ter- ra, não adquiriu gi'aud(3 iinpoi'tancia, apezar da sua ()puIeu(3Ía, com a qual olle cuidara extremar-sc na congregação dos argentarios. Um dia, entrou-lhe no bostunto, edificar uma caza architectada por elle mesmo, ou pelo menos dirigida por elle na magni- ficência da frontaria. O logar escolhido para aquelle artistico primor era o somenos aceitável de quanto Lisboa lhe podia ofierecei*; mas nenhum outro qua- draxa melhor ao intuito do architecto; porque aquel- 1(3 sitio o vii'a um pobre diabo de cacheirola boçal, um desprezado ninguém; e agora o via rico, cheio de commodidades na roda dos mais abastados por- tuguezes, e i*espeitado no mundo como alguém. E n'isto, acho eu que o homem mostrou de certa maneira um espirito de gratidão, pouquíssimo vul- gar nos noifreaiíx ri c/i es que em gei'al fogem e olvi- dam logares e pessoas que lhe recordam situações miseráveis.

Comprou o teri-eno, cimentou os alicerces, ci'- gueu a caza com a fachada de pedras quadradas e bicudas, como eu as descrevi, e quando o edifí- cio ia em certa altura, ah I o sujeito morr(3U. Ten- cionava elle, completada a h'ontaria, encravar um diamante de alto quilate no vértice de cada um dos bicos. Brilhante idéa, com effeito ! Porém, os her- deiros da sua riqueza não curaram de realisar a brilhante jjlanta, ou sequer acabar o edifício. Po- zeram-lhe o tecto na altura em que a caza ia, e con- verteram-na em armazém onde actualmente se ven- dem cabos e outras provizòes para navios. A beira desta ha outra caza alta com dous lanços de esca-

266 A FORMOSA LUSITÂNIA

das, formosos varandins, muitas jariellas, o alpcií- dradas de j3edi'a lavrada. E provável que esta caza também tenha lii^stuiia sua, pui-cjue .scmelliaute lu- gar só pôde ser, como é habitado pui* gente da classe Ínfima. (•)

Um estreito bècu passagem pui' entre as lu- jas fronteii'as para o Ribeiro Velho, unde se infilei- j'am umas cazinholas abertas á imitacãu de barra- cas de feira. (••) dentro ha umas pinturas estapa- fúrdias. As portas abrem sobre o i'io, porque n'ou- tro tempo os ladrões as atacavam de noute. Estão cheias de comestiveis. Na presente estação tem ri-

(•) A historia do negreiro da caza dos bicos que coutaram a esta senhora é como a do patriarcha Noé que veio a Portugal, e a do conde de Santa Quitéria que fugiu á escolta quando iam enforcal-o. Nunca se zombou tanto em Portugal da credulidade de uma senhora, ou ainda nào houve extrangeira que se relacionasse em Portugal com tamanhos túlos !

A "Caza dos Bicos» ou «dos diamantes» foi edificada pelos annos de 1523 por Braz de Albuquerque, o auctor dos Commentarios, filho natural do celebrado governador da Índia AíFonso de Albuquerque. A caza foi acabada^ mas o terramoto de 1755 reduziu-a á altura em que hoje se vê. Antes da ca- tastrophe, a frontaria do edifício olhava para a rua do Albuquerque que hoje se chama do Almargem. A fachada que actualmente abre para a rua dos Bacalhoeiros era então as costas da caza. A razão porque se chamou dos diamantes ignora-se. Em 1860 esta caza pertencia a um dos descendentes do famoso governador da índia Pedro Maria Telles de Mello Brito Freire Albuquerque. Tem estado sempre cheia de bacalháo, e antes do terra- moto um negociante patrício de Lady Jackson ali vendia aquelle peixe, c pagava 700^000 de renda. Eis a summa dos óptimos artigos intitulados "A Casa dos Bicos» insertos no Archivo Pittoresco de 1860, redigidos pelo snr. A. da Silva TuUio, escriptor de grande probidade nas suas averiguações e de singular vernaculidade na sua escripta.

(■•) Quer dizer Ribeira velha. Ead}' Jackson faz masculinos e femeninos como lhe apraz. Brincos, como adiante se verá, são brincas de saloias, pataco è pataca; o poeta Bernardes escreveu as Flores da Lima; ha dois igrejas; ha um pjortuguez verdadeira, o ha dois mulheres. Semilhantes esquisitices, todavia, nào denotam ignorância da lingua portugueza; antes accusam tal-

o OMNÍBUS, SETÚBAL, ALTAMA 267

mas de molões até ao tecto. No meio cl'elles, estão sentadas umas moçoilas ti'igLieii'as com seus cliai- les e lenços de cores esquipaticas. Ha n'isto um gra- cioso [jittoresco; porque os coruscantes olhos ne- gros e a cor viva das referidas moçoilas como que realça entre as cascas verdes dos melões. Dir-se- ia que toda a gente de Lisboa se nutre de melões (' na verdade assim é com a gente pobre n'esta estação, porque ha dezenas de milhares d'elles, a esta hora, em faluas atracadas perto da alfandega municipal que hão de descarregar amanhã.

Adeante é o Terreiro do Trigo, magnifica obra

vez iiimia leitura de Joào de Barros. Este fundador da elegância dos lusita- nisinos uzava os seguintes archaisnios de género:

Gente jjortuguez,

Mulher portuguez,

Nação portuguez,

Cidade competidor,

Nossa defensor,

Mulher inventor,

Uma cometa,

Clima húmida.

Sirva, pois, o auctor do Clarimundo de anteparo e desculpa ás incorre- cções da esclarecida viajante.

Houve viajantes inglezes que até mudaram o sexo dos nossos santos. Kichard Twiss a Santa Comba Dào, chamou-lhe Santo Combo. (Traveis through Portugal and Spain in 1772 and 1773 pag. 53).

O snr. John Latouche [Traveis in Portugal, pag. 7õj escreve que os portuguezes, para não exprimirem a palavra parco, chamam ao porco «ce- vada».

O poeta Diogo Bernardes, acima citado, parece roupa. . . de inglezes. A senhora Jackson arvora-o cantor das flores da lima, e Richard Twiss, em 1774, noticiava que Dom Diogo Bernardes, juntamente com Dom Cláudio Manuel da Costa, e com outro sujeito haviam publicado, "cada qual, n'a- quelle anno, o seu poema. Ora, o pobro servidor da toalha [de Philippe II Diogo Bernardes, em 1774, andava, havia 169 annos,bascolejado nas evo- luções da matéria eterna.

268 A FORMOSA LUSITÂNIA

do tempo do marqiioz do Pombal, o mercado das sevas, e o de fVuctas seccas do /Vlga.rve. Ha por ali fontes mineraes, banhos mouiiseos e bellos chafa- rizes. A esquerda, enc(jnti'am-se tortuosos e myste- riosos becos ; aqui e além pittorescas varandas, e portaes de vetustos cazaes que ameaçam ruina, em vielas táo estreitas que se pude litteralmente e mui- to n vontade a[)ei'tar a mão do visinho da caza h-on- teira; acham-s(í tavernas que tèm á porta as armas de lidalgos que em remotas (3ras pur ali tiveram os seus palácios n'este bairro da cidade. Perpassa-se por baixo da mui'alha do castello de S. Jorge, e poi* cazas altas, em cujos balcões outr'ora os lidalgos tomavam o sol, o agora se vêem umas mulheres la- vando a sua roupa e pendurando-a em cordas ou nos balaustres. As saloias ou as lavadeiras (•) moram no ponto mais alto d'este bairro oriental, e agru- pam-se em classií á pai*te, com maneiras e modos singulares, e com feitas propriamente suas e distin- ctas das que se fnzem n'outros pontos. Também uzam uma espécie de ai'recadas mouriscas chamadas brincas das saloias.

Está situado o templo de S. Vicente de Fora no topo de uma das sete colinas que são mais empina- das n'esta parte que na occidental de Lisboa. D'este logar ha vistas pi^eciosas e extensas. Este bairro ao nascente da cidade, com as suas i*eliquias do pas- sado, é por ventura mais interessante que os novos o elegantes quartéis ao poente. Pelo que respeita a.

(■) Perauadiu-oC que saioian eiu ;i vciuao puitugucza das lavadeiras iii- glezAS-laundresses

o oMMlil s, sMll i;\|., \|,|\M\ 269

iMíj3iitação gozíiram-ira, comf) ii^outro t,(Miipo Al- cântara. Era tido om conta de canalha inculta onti'(} a, qnal seria inipi-udcncia mcttor-se a gente incauta ; mas dfísde (jue o vapor, o gaz e a (dectricidade são conhecidos em Alfama, a face das couzas mudou. A principal via-ferrea está-lho perto. Ha maior la- butação n'esta via que nas outras, c a populaça vi- siidia divei-sifica da i^estante de Lisboa, simples- mente em ser nuiito ].'d)oriosa, e ás vezes mais pit- loresca nas exl,(3rioridad(3s.

Chegamos at('' á estação d.Mitral. Os portugue- zes orgulham-sc d'(!s(,'i ohra, e desvanecem-scí de que poucas cidades a têm (igual. K Ijastantemente ampla, c mais ao gosto francez de que as estações em Inglaterra. Como o rio Uie corre á beira, os gé- neros podem ali des(!ain\;gar-se ou embarcarem im- mediatamente no seu cães.

Desandamos pelo mesmo caminho, e paramos somente um instante no Ribeiro para admirar os ma- gniíicos h^vores da antiga igreja Conceição Velha. Começa a animação nas ruas, porque todo o mundo bebe aguas miner-aes, ou vae baidiar-se ao mar. «Va- mos dar um giro no Rocio», disse eu ao meu com- panheiro. ((Agora subamos ao Carmo e Chiado». Não ha desfalque ainda na sociedade dos hespa- nhoes. Com certeza, a estação suporifera de Lisboa passaram-n'a elles jubilosamente este anno. . .

Vamos a final até á rua do Alecrim, d'onde lhe envio Boa noute, porque tenlio de jornadear cedo para Coimbra.

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ii'tter-se a gente incauta ; j::\7. e a electricidadi^ sfu^

face das couzas niiidoii.

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but;i<:ão nVvsta via (pi''ia> outras, e a pupiihu.-a vi- sinlia divtM-sitica da rtíaiite de I/ishna, siinplcs-

mriitt' oní ser innii tnresea nas »í\trrioi i.

Chegamos at»'* á zcs oi*gidhani-si' d (pKí poUea> cidade- ampla, «' mais a«) g «'m lnglat«'iia. ( oii neros podem ali d< mediatam»;nte' no >

Desandamos p sóm(3nte mu instai i gniticos lavores d.i Comeea a anin)a«;ã' 1)0 be aguas minera mos dai- niii giro n paidieiro. « Agora Não ha desfalípi»' nhoes. Com <:t'itez.. passaram-n'a eljos jiiliDsauuínte (ísI-

Vamos a thial ai i rua do envio lind noute, poríp; te para Coindjra.

»sa, e as ve/.cs mais |

)il-

( ■iii ral. < )s portiigiie- i-,i, r (li'>\ antM'i'iii->i' dl' >'Uiial. M haslanltMiiiMilc :i<-,'/ dl' (jiic as t'st;i(;ões Iht' eorr»' ;'i In 'ira, os ge- ir-se ou cinharcircm iiii-

111. . r,iiiiiiili( ), «' p;ir;iiiios

jihfiro para admirar <•> ma-

I iij:r*')a Con<'<a(;ri() \ i-lli.i.

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CAPITULO XVIIl

l'Kl..\ \\\ Kl-.nmvV AO POííTO

.S\ João da Foz, Porto. Eu tencionava estar hoje divagando por Coimbra, em vez de estar aqui sen- tada, e um tanto moída, a escrever-lhe de S. João da Foz. Instava F. que viajasse de noute, porque de dia o calor e os fumistas são intoleráveis ; e posto que n'esta época do anno muita gente parta de Lis- boa ã noute, e não haja carruagens exclusivas para senhoras, ainda assim, mettendo dez tostões na mão do guarda, elle me affiançava que na minha carruagem se poria o letreiro «reservado». Não me conformo com o alvitre, porque me desgosta viajar ás escuras. É agradável relançar a vista aos sitios por onde se passa. Quanto aos fumistas se o tahaco é bom e a fumaça moderada pôde tolerar-se, prin- cipalmente se suas Excellencias têm o incommodo de fumegar para fora pelos postigos. «Quanta mais gente melhor» applicado aos portuguezes é provér- bio acertadíssimo; mas sempre o que me parece me- lhor é viajar com pessoas o mais álargaquese pos- sa, livre de apertões. Chegamos, pois, ã estação as seis e meia. A manhã estava mais fresca do que quen- te, porque o nevoeiro toldava o sol, como eu nunca vi- ra desde que saí da nevoeirenta Inglaterra. A minha bagagem não excedia o pezo do que se permitte sem

272

A F()1{M()SA 1>I SITA.MA

i

pagar ; mas foi registrada, e deu-se-me um recibo pelo qual paguei um víniem. Parece-me que ha aqui me- lhor ordem que ua atrapalhada confusão das vias- ferreas inglezas.

Mas se ouviu o ultimo toque: são seis menos um quarto. «Boa noute me disse o meu velho ami- go F. tenha cuidado comsigo (•), e, se precisar de mim, faça-me um clespaclw telegrapliico.

Mais um assobio, e ahi vamos com pouca pressa. O comboyo viaja de vagar, mas sem perigo, j)elit menos. As cari'uagens tem que farti^ es])aço o altu- i'a; dez logares cada uma, uma poUrona no cenlro, e dons assentos de cada lado; mas as d(í 1.' classe sobre serem desconfortáveis e pouco adaptadas ao clima, são as mais escuras e lúgubres carruagens em que ainda viajei. Coxim e costas são estofadas de um grosseiro rep de ãs hsti-as surrado como o das antigas diligencias, as cortinas são da mesma droga tosca; não tem guarda pó, posto que n'esta estação a poeira acama* nos caminhos áaltui^ade um e o calor não consente que as janellas se fechem ; não tem suspensórios em que a gente encoste os cotovellos; e n'um clima que elanguesce e alque- bra, de mais a mais com o sol que rasgou o invólu- cro da neblina, a dar-nos na cara, ó penoso estar ali sentada sem conforto algum. O chão c todo alca- tifado, ensaibrado com a areia que os adventícios

(•) Este pronome em rigorosa graminatica mio pude assim uzar-sc; mas é indispensável que a lingua se dcscarando para que nos possamos enten- der todos. Um sujeito, cevado nas obras de Filintlio Elysio, pode nutiir cm lusitanismos, mas vê-se obrigado a conversar todo o dia com Jorge Ferreira e padre fr. Luiz de Souza.

'%»*'*»T?y. r.«

P1:LA \l\ FKlíRlvV AO POIITO

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trazem comsigo, c que ringo desagradável mente quando os pés se movem. São producto de lugla- teri'a estas tristes carruagens, e também as de 2.' classe, que são menos luxuosas, porque não têm estofos, nem assentos divididos nem alcatifas. A 3.'' é coberta, mas ao ar li\re dos lados, c (picr-mc pai-c- cav que tem j^oucos ou ncidums assentos, porque, tii*ante os (pK! iam encostados as ilhai'gas, homens e multieres pareceram-me d(!nlro amontoados pi"omiscuamente. Eram pela maior parte campone- zes e lavradores que se mudavam a cui'ías distan- cias, de uma aldeia para outra ; e para ãquem de Lisboa alguns vi pittorescamente trajados.

Eram seis os meus companheiros, e parece que mutuamente se coidieciam. Os portuguezes faliam c têm o costume de exhibir publicamente as suas idéas, como se todo o n:undo estivesse em famiha, c eu fosse tão sua conhecida como a outra gente, c tivesse que ver com as couzas que elles iam pala- vreando. Trez d'elles eram beaux mililaires que iam a Torres Novas comprar cavallos. Este assumpto foi tratado com todos os promenoi*es entre elles e um sujeito mais idoso, conde de não sei quê, e outi*o cavalheiro que ia com a sua esposa. O conde dei- xou-nos perto. Esperavam-n'o na estação um ca- vallo bizarramente ajaezado e um lacaio de jaleca de alamares, faxa escarlate e chapéu de borlas. O ca- vallo estava indócil. Foi-lhe precizo acai*icial-o e di- zer=lhe muitas meiguices para se deixar montar. Era evidentemente um potro estragado de mimo ; no en- tanto, firmado na sella, e estribado nos esti'ibos de pão, ^uaexcellcncia cortejou-nos e saiu a meio galope

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272 A 1'<JKM()SA l.l SJTAXIA

pagar ; mas foi registrada, e deu-se-me um recibo pelo qual paguei um vintém. Parece-me que ha aqui me- lhor ordem que na ati^apalhada eonfusãu das vias- ferreas inglezas.

Mas se ouviu o ultimo toque: são seis menos um quarto. «Boa noute -— me disse o meu velho ami- go F. tenha cuidado comsigo (•), e, se precisai* de mim, faça-me um cle.ymclw telegrapMco.

Mais um assobio, e ahi vamos com pouca pressa. O comboyo viaja áo v;igai*, mas sem pei*igo, ])el(> menos. As carruagens tem que fai^te espaço e alíu- i'a ; dez logares cada uma, uma poltrona no ('(!n1i'o, e dons assentos de cada lado; mas as de 1.' classe sobi'e serem desconfortáveis e pouco adaptadas ao clima, são as mais escuras e lúgubres cai'ruagens em que ainda viajei. Coxim e costas são estofadas de um grosseiro rep de ãs listivas suri^ado como o das antigas diligencias, as coi'tinas são da mesma droga tosca; não tem guarda pó, posto que n'esta estação a poeira acama* nos caminhos áaltui^ade um e o calor não consente que as janellas se fechem ; não tem suspensórios em que a gente encoste os cotovellos; e n^uii clima que elanguesce e alque- bra, de mais a mais com o sol que rasgou o invólu- cro da neblina, a dar-nos na cara, é penoso estar ali sentada sem conforto algum. O chão é todo alca- tifado, ensaibrado com a areia, que os adventicios

(•) Este pronome em rigorosa grammiitica nào pôde assim uzar-sc; mas é indispensável que a língua se descarando para que nos possamos enten- der todos. Um sujeito, cevado nas obras de Filintho Elysio, pôde nutrir cm lusitanismos, mas vê-se obrigado a conversar todo o dia com Jorge Ferreira e padre fr. Luiz de Souza.

PEF.A Vi A FÉRREA AO rM)IíT() 273

trazem comsigo, o que riiig(3 tlo.sagi-icUivchneiitíí quando os pés se movem. São jDrodLicto de Ingla- tei'1'a estas tristes cari'Liagens, e também as de 2.'' classe, que são menos luxuosas, porque não tem estofos, nem assentos divididos nem aleatifas. A 3.'' é eob(n'ta, mas ao ar li\ rc dos lados, c (jU(M'-me pariv cei' que tem jjoueos ou nenhuns assentos, porque, tirante os que iam encostados ás ilhargas, homens e mulheres pareceram-me dentro amontoados promiscuamente. Eram pela maioi* pai*te campone- zes e lavradores que se mudav;mi a curtas distan- cias, de uma aldeia para outi'a ; e para áquem de Lisboa alguns vi pittorescamente trajados.

Eram seis os meus companheiros, e parece que mutuamente se conlieciam. Os poi'tuguezes faliam e tem o costume de exhibir publicamente as suas idéas, como se todo o mundo estivesse em familia, e eu fosse tão sua conhecida como a outra gente, e tivesse que ver com as couzas que elles iam pala- vreando. Trez d'elles eram beaux inililaires que iam a Torres Novas comprar cavallos. Este assumpto foi tratado com todos os promenoi*es entre elles e um sujeito mais idoso, conde de não sei quê, e outro cavalheiro que ia com a sua esposa. O conde dei- xou-nos perto. Esperavam-n'o na estação um ca- vallo bizarramente ajaezado e um lacaio de jaleca de alamares, faxa escarlate e chapéu de borlas. O ca- vallo estava indócil. Foi-lhe precizo acaricial-o e di- zer=lhe muitas meiguices para se deixar montar. Era evidentemente um potro estragado de mimo ; no en- tanto, firmado na sella, e estribado nos estribos de páo, 'r^imexcellencia cortejou-nos e saiu a meio galope

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\ |-()1;M()s\ I

pagar ; mas Ibi rcígistrada, c ( (jiial paguei um vintém. Pai Ihoi- ordem que na atrapal

leiTeas uigle/as.

Mas se ouviu o ultimd' um quarto. «Boa noute ■- go F. tenha cuidado eon^i de mim, ra(;a-mií um des/nico

Mais um assoltio, c alii \ ;. ( ) ciinilx i\ o \ iaja de vagar, I menos. As carruagens leni \ ia ; de/ logaros cada uma, u. dons assentos (]*' ca<la lad sohrc, s('i'em dcscoulortaN c; clima, são as mais escura> em tjue ainda \iaj(M. Coxin de um grosseiro r<'j) d(,' .'i das antigas diligencias, as droga tosca; não têm guar< estação a poeii*a acíama no> e o calor não consente qn não tem suspensórios em cotovellos; e n'um clima ( bra, de mais a mais com o > cro da neblina, a dar-nos ali sentada sem conforto algi tilado, ensaibrad(j com a a

(•) Este pronome em rigorosa gniimi é indispensável que a língua se dej der todos. Um sujeito, cevado nas lusitanismos, mas vê-se obrigado e padre fr. Luiz de Souza.

' PORTO

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-rozamente, sem ain- 'za. Na urla de é iiagnitieos ehorões ; •.iiiavines altos e so-

l»it)as pintadas a co- das velas latinas vo- de eiina sobran- ^ itai-em, como tantas :. ' i''>jjo de nma mon- Santa Irene, a vir^Mn antas lendas c historias

1 1^1' 'II >».iiil;iri'iii ;'i mou-

N' I). 1*(mIi'o toniaram-a

) Tmlio |)«Mia dl' a não

iilo ijni' r antij:;o, a (ra-

-centcs rnina> d"' |t;il.i-

ii()steii'os (' m<!S(|iii-

's tt(i minha trrni, di' Al-

!idin*t'r<'ní»' Saniarrm,

' I •'iH';uita<loi'a liisloi'ia

ii-rno ('• mrnos ái'ido, (• ntai'-sí» aj)ra/i\''Iiin'nl<'. .ii\ ir nma. r|oi|iii'M(<' //- lilitarrs dfclaniava sem lia ccrfa haroncza. Ku

.•;,llí|;d -'■• V .'.Ih .^;<|.idi',

j.lii.i dl! Iiistf>ria, aj)j)lifu<l;i u San-

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274 A FORMOSA LUSITÂNIA

promptamente com o seu gallego groom, de borlas, de alamares e de pluma, correndo a á beira do cavallo. Que bellos quadros se apanhariam no de- curso de uma viagem, se podessem pliotographar- se na occasião em que se apresentam, como illus- tração aos uzos e costumes de provincia nas diffe- rentes escalas da sociedade! Logoadeante, outra vez parados. As estações eram muitas. Em quanto os empregados davam folgadamente aos taramêlos, po- dia a gente, se quizesse, jantar em cada estação. O empregado tem calor, senta-se á sombra, tira da algibeii'a o seu leque e abana-se, e quando não, em- prega o tempo em derriçar por uma ou mais d'aquel- las esbeltas raparigas que offerecem copos de agua fresca, uvas, melões, e peras aos passageiros em todas as paragens. Algumas das 9 estações são lin- dissimas, não tão adornadas e aceiadas como as in- glezas, mas rodeadas de arvoredo, de vistozos e lu- xuriantes rozaes, cravos e outras flores odoríferas que por seu tamanho e belleza de cores seriam apre- ciadíssimas n'uma exposição em Londres.

Depois, o guarda abeberado em trez copos de agua fresca e um melão, arrecada o leque, menea- se, ageita o cinturão, carrega a um lado o boné, e dardeja em roda uns olhares de arreganho. Parece dizer: «Por quem se espera?» Tlim, tlím faz a campainha. Os que foram beber agua, comer uvas, ou estender as pernas, voltam ã desfilada para os seus logares. E a mesma scena logo adeante, e as- sim por ahi fora.

Estamos nos famosos olivacs Valle de Santarém. Segue a via ferroa ao longo da margem direita do

PELA VIA FÉRREA AO PORTO 275

Tejo, que alarga c deiiva magestozamente, som ain- da ter ares de corrente impctuoza. Na orla de é marginado por uma fieira de rnagnificos chorões; o de por uma sebe densa de canaviaes altos e so- norozos.

E preamar. Duas faluas de proas pintadas a co- res alegres e com o bojo cheio das velas latinas vo- gam rio acima graciozamente. de cima sobran- ceia-nos a antiga c formosa Santarém, como tantas cidades de Portugal, situada no topo de uma mon- tanha. Tira o seu nome de Santa Irene, a virgem martyr de quem se contam tantas lendas e historias milagrozas.

Affonso Henriques conquistou Santarém á mou- risma em 1147, e as ti^opas de D. Pedro tomaram-a aos miguelistas em 1833. (•) Tenho pena de a não visitar; que eu estremeço tudo que é antigo, a tra- dição e a lenda, as remanescentes ruinas de palá- cios, castellos árabes, igrejas, mosteiros e mesqui- tas ; e quem leu as Viagens lui ininha terra, de Al- meida Garrett, poderá vèr indifferente Santarém, e não desejar ver o scenario da encantadora historia de ((Joanninha»?

Perto de Santarém, o terreno é menos árido, e a paizagem começa a accidentar-se aprazivelmente. Eu, porém, ia distrahida a ouvir uma eloquente ti- rada que o mais novo dos militares declamava sem rebuço em apologia de uma certa baroneza. Eu nunca ouvira torrente tão caudal de verbosidade.

(•) A aproximação cVestas duas datas, miguelista e moura revela o fino instincto de uma nào vulgar philosophia de historia, applicada a San- tarém.

276 A FORMOSA LUSITÂNIA

tão rapicla e incessante catadupa de phrazeado fino! Motivavam talvez aquella insólita expansão o esprít, espièglerie, coquederie, viveza, etc, da referida bella dona que, ao que parecia, conquistara, em uma noute que se encontraram, completamente aquelle panegy- rista. Era tal o Ímpeto da sua loquacidade, que os sujeitos que o escutavam contemplavam-no cala- dos, sorridentes, com o cigarrello entre o pollex c o indicador, mas nos beiços não, que esses estavam como entreabertos e suspensos de assombro. A. lo- quela do orador cessou de martelar por momentos, quebrou-se-lhe o fio da parlenda e os ouvintes destamparam n'uma rizada; e, quando a hilaridade esmoreceu, elle, com a máxima seriedade, recapi- tulou: «e tudo verdade)). Maior gargalhada que a pri- meira. A senhora também se riu, e eu não pude dei- xar de sorrir também, porque nunca vira as perfei- ções d'uma mulher eloquentemente encarecidas com tanta fluência, com tamanho enthusiasmo como o d'aquelle estirado e enérgico discurso com que fo- mos obsequiados.

Eu não tinha proferido palavra. F., ao despe- dir-se de mim, pozera em evidencia que eu era in- gleza, e muda portanto no que respeita á lingua lu- sitana. Entre mim e os meus companheiros tinha havido apenas aquellas pantomimas cortezes que se fazem, se se pergunta se o fumo, ou o ou o sol encommoda ao que eu respondia (pie não. Mas, notando que eu me rira, o orador que ia em frente de mim, perguntou-me com ar de aggravado: « Vossa. excellencia percebe portuguez?» nA Ig umas palavras)), respondi. aVossa excellencia conhece a senhora ba-

PELA VIA FÉRREA AO I^ORTO 277

roneza?»pergantoLi. «Nno toiílio es.se prazer», i-epli- (jiiei. Isto pareceu aquietal-o. O siibito solavanco e paragem do comboyo impediti novas perguntas. «Torres Novas! To]Tt\s Novas!» gritaram os ho- mens da estação. Era aqui o destino dos nossos ele- gantes companheiros, que depois de muita rizota c apertar de mãos dos seus amigos que iam para mais longe desappareceram n'um prompto.

Antes de chegarmos á immediata estação En- lro7ica7iiento, ou juncção das linhas do Porto a Ba- dajoz — entabolei conversação com os dous passa- geiros restantes. Eram delicadíssimas, cxcellentes pessoas um cavalheiro portuguez, e sua esposa, que iam para a sua quinta de Vizella. Ha na jun- cção um hiiflel, o melhor possivel, espaçoso, arejado, elegante, aceadissimo, com excellente aparadoí', e preços módicos, muito superior aos buf/et^ inglezes, e aos írancczes também, a certos respeitos. Rru*as vezes ha delongas na juncção : parece que o íim da demora é dar largas ao longo fallatorio dos diversos empi^egados; mas não ha que recear atrazo, porque ha uma linha, viajam dous comboyos diariamente, de manhã e de tarde entre Lisboa e Porto, e em certo ponto um espera que perpasse o do lado opposto.

Acabada a palestra dos guardas e dos carrega- dores, partimos. Chegamos a Píalvo (Paialvo) es- tação da interessantissima cidadesinha de Thomar. Os arrabaldes são bonitos, com graciosas estradas enverdecidas, e toda a campina em redor ás ondu- lações graciosas. O arvoí-edo é magnifico. Como os olhos se refrigeram n'aquellas copas de folhagens! A terra faz muita differença do que é para Santa-

27f;

A F<)IIM<

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tão rnjíida <; incfssaiitt; .. nnii , d' plirazeadu íiiiol Motivavam talvr/ aqiicU iii>nl i t*\\nu\sin) o esprit, espii-fflerie, coíjueliene, víeza, - •., da rereiida bella dona (jiie, ao (|iie|mroHmNii»í|iii^tái-a, em uma noutc (jiio .se encontraram. :it«? aíjuelle panegy-

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277

roneza?» perguntou. «N.i quei. Isto pareceu a(juit paragem do combov' ((Torres Novas I '!'< >ir- meus (la osta<;ão. Kra atp gaiites coinj)aiiheir<)s, (|i aportar do mã«)> dos s.-u- longo desapparecoram n

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PELA VI

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278 A FORMOSA LUSITÂNIA

rem. Aqui não ha aquelle faiscar cauzado pelas scin- tillações do saibro branco tão eiicommodas para a vista. Feracissima vegetação, íiores e fructos por toda a parte em abundância. Desejava que visse os esplendidos cachos de uvas que comprei n'esta estação, a uma rapariga rozada, de ollios ardentes e chapéu desabado e empennachado de murtha e cra- vos. O cacho estava mais perto de pesar dous arrá- teis que um. Os bagos todos perfeitos e grandes, verdes e levemente tintos de azul. nQuanlo ófD per- guntei eu quando ella m'o chegou ã portinhola da carruagem, a Uma pataca, minha senhora)). Uma pa- taca é quarenta reis. Eu poderia obtel-o por trinta, se regateasse, mas apenas encolhi os hombros, d la portugaise, e respondi: (.(Caro, muito caro)). Ao que ella redarguiu com razão: a Porém, ê tão boa)). Estufa nenhuma ainda produziu mais perfeita pintura, nem mais delicioso sabor.

Tencionara eu, n'esta direcção, estender a mi- nha viagem a Thomar, que contém diversos edifí- cios antigos, e outras relíquias do passado. Em uma das suas eminências está o convento de Christo, ou- ti''ora habitado pelos cavalleiros d'aquella ordem mi- litar. É uma caza immensa com um templo notável por copiosas esculpturas no imaginoso estylo ma- nuelino. Porção d'este grande senhorio monacal foi comprado pelo conde de Thomar, que actualmente rezide no castello de Gualdim Paes, primeiro mes- tre do Templo, que o a]'rancou aos mouros.

Ha aqui fabricas de fíação, e uma de papel.

O tortuuzo rio Nabão deriva por meio da cidade, dividindo-a quazi a meio e dando-lhe um aspecto

PELA VIA L'ElilíK\ AO PORTO 279

cio Veneza em miniatura, com o seu largo canal. Os moradores passam em botes, de um lado para o outro, e abordam ás ilhotas que estanceam na cor- rente. O canal forma onde quer que seja uma cata- rata, que se despenha sobre uma açude resvaladia. Estas estradas aquosas são uma delicia no verão, quer a gente se de passeio por aquellas margens floi'idas, quer deslize em barco na limpida corrente. O Nabão no inverno sobrepuja as margens e inun- da ruas e cazas, mas, nos mezes estivos, é sitio lindo onde se pode viver, quazi de graça, do néctar e ambrozia dos seus fructos e flores. No frescor da manhã, póde-se subir em peregrinação até á Pie- dade, linda ermida no topo de uma montanha, para onde se sobe por duzentos e cincoenta degráos. De dez em dez, ha um patamal e um banco de pedra onde a gente pôde descançar e dar graças a « Nossa Senhora» que nos permitte ir chegando mais perto do seu relicário. Chegar acima não é medíocre proeza com tal clima; porém, quem o consegue é liberalmente recompensado com a belleza da capei- la e o magnifico ponto de vista.

Que aprazível me seria deter-me ali !

Não devo queixar-me dos hábitos calaceiros dos nossos guardas e chefes de estação; que o sol, com effeito, é tão de queimar, que o que espanta é elles ou nós termos energia para nada.

Descemos as cortinas do lado em que dava o sol, e entrevíamos, a relanços, bellos pedaços de serra e paizagens montanhozas, do outro lado da carruagem.

Estamos em Chão de Maçans, onde quem vae

280 A FORMOSA LUSITÂNIA

para Alcobaça e Batalha entra na diligencia, se por ventura a encontra á espera. Desde aqui até Pom- bal a paizagem clá ares de semelhança com as ser- ranias de Cintra. Não se lhe parece no arvoredo; mas avultam as mesmas enormes massas de rocha, como sacudidas de crateras vulcânicas. As monta- nhas tèm variedade e formas pittorescas. Vastos pedaços de penhascal azul-escuro estão por ali como encravados em terra denegrida, intervallados de ur- zes, tufos baix(js de herva e arbustos dispersos que se entrelaçam.

As ruinas d(j castell<j de Pombal assentam no t('>pi) de um outeiro que nos fica bastante sobran- ceiro. D'esta villa tirou o grande marquez o seu ti- tulo; e aquclle que tão zelosamente se afadigou em felicitar o seu paiz, ali morreu desterrado, aos oi- tenta e trez annos de idade.

Reparei, passando, n'uma grande ladeira cober- ta de vinhas, não suspensas em latadas como é co.s- tume, mas que pareceinam plantações de groselhas, se não estivessem cheias de cachos maduros. Dis- seram-me os meus companliííiros que esta maneira d(! plantar vinhas era vulgarissima em Portugal, p(M'que as uvas d'aquellas pequenas vides eram mais graúdas, e sazonavam mais promptamente do que pelo velho e gracioso processo das rama- das.

Pelo que respeita ao prazer da vista, semelhante systema não é de appetecer. Ainda assim, nViquella sua inculta dispersão, como não parecem ampai'a- das a tanchòes, não tèm o dcisagradavel aprumo das vides nos montados vinhateiros da Allemanha, dos

1'j:la \ ia riuiuDA ao torto 281

qiiaes a fantasia inventa aspectos graciosos, mas na i-ealidado são muito semelhantes a uns meros favaes. Em meio da nossa palestra acerca do vinhas, II sen /tora exclamou: a Estamos perlo à Coimbra)). É verdade. está a formosa e velha cidade, outr'ora capital do reino. N'esta época os rios vão quazi sec- cos, ainda assim estão cobertas as areias do Mon- dego, e a Lusa Athenas se ergue magestosa ar- queando-se em ambos os Hancos á imitação de am- phitlieatro. Eu pr(jjectára estar ali ao menos um ou dons dias, e terminar a minha jornada. E, na ver- dade;, n(jve lioras de viagem em dias de tão arden- te agosto é mais (pie muito; porém os meus com- panheiros e eu não nos podemos apartar, poi-que nos achamos reciprocamente inui sijmpalhica. Pru- pozeram-me que os seguisse até ao Porto; aniuii, ])ortanto, resolvida a visitar, no regresso, Coimbra e Bussaco. Ha grande demora em Coimbra, por- ípie muita gente ali janta n\nn elegante buffcl, vis- to que se chega pouco antes das quatro horas. To- mei novo bilhete, recebi e registei de novo a mi- nha bagagem, jantei com os meus novos conheci- dos, senhor e senhora T...a, e recomeçamos a nossa viagem de suciata. Infelizmente introduzi- ram-se dous : um sujeito immensamente alto e obe- zo, e um rapaz de gi'ande corpolencia. O primeiro deu-nos logo a importante noticia de que o rapaz ainda não tinha sete ainios ; que era de uma delica- deza superfina; que se fazia mister deixar-lhe co- mer o que appetecesse, e quando lhe approuvesse. As angustias da fjnie parece que o atormentavam então, poi*que o homem, concluida a informação,

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entre jardins, vi- 'TT)S por ílouscom- iubra. ^.jvade Gaya. (•)

a esta est;i4o que é a final da li- é^ Porto, era perlo das cz horas. Estivemos )0 na ciirruagein á speni (pie o homem .- larda discuti- » ^uai-da pedira-lhe

^>^^ ,^ rapax; o * pondeu que nunca

w pjriit' o mpiu: . ' íi»^í^^ ^^^^' annos.

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A via fí^rr.^a c . o!i\

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283

de, replicou «> ^'ii nos de doze». «.S. cou o outro. Eu tiníia sete aim<»> caí;âo tjuainl» - se dirigi.ssr i da. A final sagem, com i rapaplo qu»- nunca m.ii- ^ gante mai- \ clamandíi: I' sete anno> ! »

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Toriiê nn' ■<':-■ '-• »* »— (, tirnl, *

282 A FORMOSA LUSITÂNIA

olhou para ello, que lhe acenou com a cabeça; em vista do que tomou sobre o regaço, em que esten- dera um lenço, uma caixa de lata. Um dos mais amplos reservatórios continha carne, pudim, h*u- ctas, doce e outras golosinas ; accresceu a isto uma garrafa de agua. E aquelle delicado menino, ban- queteado como um gigante, comeu por espaço de duas horas, sem proferir um monosyllabo. No en- tanto, o pai contemplava-o com carinhoso interesse, baforava por um enorme charuto, e ás vezes, olhan- do para nós, repetia: a Ainda não tem sete annos:».

Entre Coimbra e Estarreja para além da qual apenas podiamos ver o ceu estrellado a paizagem é lindíssima. A via férrea corre por longo espaço, entre pinhaes, olivedos e sobreiraes. não se ve o solo saibrento e esbranquiçado: é um terreno pedre- gozo e rubro. Ao longe, avista-se uma serra Ín- greme. As montanhas convisinhas da estrada são arborizadas desde as abras até ao cume, e nos fér- teis vales branquejam aldeias por entre jardins, vi- nhedos, limoeiros e olivaes. Passamos por dous com- pridos túneis entre Coimbra e Villa Nova de Gaya. (•) Quando chegamos a esta estação que é a final da li- nha do Porto, era perto das dez horas. Estivemos- longo tempo na carruagem á espera que o homem gordo e o guarda discutissem. O guarda pedira-lhe o bilhete do rapaz; o homem respondeu que nunca pagou, porque o rapaz ainda não tinha sete annos. «Os meninos menores de sete annos pagam meta-

(•) Claro c que se enganou na topographia dos túneis.

PELA VÍA FÉRREA AO PORTO 283

do, 1'oplicou O guarda, e este pequeno não tem me- nos de doze». «^. Excellencias que o digam retru- cou o outro. Eu não lhes disse que elle ainda não tinha sete annos?» Principiava a irritar-se a alter- cação quando o snr. T. aconselhou o homem a que se dirigisse a mais elevada auctoridade que o guar- da. A final conseguiu pagar a quarta parte da pas- sagem, com a condição de que o pernilongo e obezo rapagão que á sua parte enchia uma cadeira, nunca mais viajaria sem pagar por inteiro. O gi- gante mais velho ergueu as mãos deplorativas, ex- clamando: «Pagar por inteiro não tendo elle ainda sete annos!»

Por parte da alfandega faz-se ali mais rigorosa busca do que me fizeram quando desembarquei em Lisboa. A razão porque, não n'a sei: o que sei é que me levaram um cruzado pelo serviço. Dezenas de gaiatos sujos e maltrapilhos esperavam para se agar- rarem ás malas logo que ellas saíam das mãos dos guardas. Se o snr. T. não se encarregasse de pro- curar as minhas bagagens, com toda a certeza se extraviariam, porque tanto a senhora como eu éra- mos completamente frappées en haut, como se diz que uma ingleza se exprimira, quando quiz traduzir para elegante francezia o plebeismo inglez «estafa- das (knocked up))). (•)

A final vimo'-nos safos; mas ainda tínhamos que

(•) Parece-me ser este o plebeismo portuguez correspondente ao kno- cked up. Segundo o Thesaurus of english loords and phrases, de Eoget, kno- cked up tem a seguinte synouimia fatigned^ tii-ed, sinkinff, prostrate, etc. Tal- vez, mais ao sabor plebeu, se podesse dizer «derreadas»; porém, é quazi iu-

284

A FORMOSA LUSITÂNIA

W

^

andar, o atravessar o Douro, antes de chegar ao Porto, ou Oporto, como os inglezes querem que seja. Uma estreita caixa de madeira de um omnibus era o único transporte, e nós os trez e mais dous com innumeras malas, caixotes o saccos, com diffi - culdade cabiamos. Subimos e depois descemos va- garosamente uma Íngreme encosta e passamos a ponte-pensil, alumiada pelos lampejos dos raros lam- peões. Começava a tremular no rio o radiar da lua, dando feitios fantásticos ás sombras dos objectos, quando iamos em solavancos a entrar na cidade, que se eleva na montanha fronteira a nós. Passa- va de onze horas quando entramos no Porto. As estreitas ruas que percorremos eram negras, silen- ciosas, desertas. Aqui e além tremeluzia uma soli- tária vela que fazia ((\iziveis as ti*evas)) no tegurio de tendeiro em rua triste e torta. Dir-se-ía que to- da a cidade estava atascada em profundo dormir. Aquelle aspecto mysterioso, de edade média, trou- xe-me reminiscências á embotada memoria de umas quazi olvidadas novellas de Londres, que eu tinha lido, em que havia aquelies lúgubres pavios de cei- til com que se alumiavam aqui ha duzentos annos as tenebrozas lojas e ruas. Por fim o nosso bamba- leado vehiculo fez alto defronte de um negro arma- zém que nos disseram chamar-se biireau centrai^ termo final da corrida do omnibus. Tínhamos pedi-

I

1

verosímil uma ingleza derreada ellas, que se iuferlçam na hirta inflexibi- lidade do osso sem articulação, sem costura, inconsutil. « Estafadas " pois é o melhor, acho eu.

1

I

l.KLA VIA KKllUKA AO PORTO

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do ao cocheiro que nos apeasse no Hoti^l de Franc- íbrt; mas elle seguira para deante. Queixou-se a sente ao dono do omnibus, com quem estivei.imos na estacão. Respondeu-nos que ao passar pelo iio- tel, o achara fechado, e não consentmdo que suas cxcellencias se encommodassem, resolvera leval-os para o seu próprio hotel, que era ah perto e com oxcellentes commodos. EUo tinha mandado aviso provavelmente de que Íamos para lá. Como era tar- de e o prohmdo silencio mais tarde fazia parecer - pois que não se ouvia som de voz nem rumor de passo - tudo favorecia a velhacada do homem que nos fiueria levar para sua caza. O senhor T. ainda vaciUou; mas a senhora, que tomava rape, contor- tou-se com uma pitada; e eu, de mim, suhmetti-me á sorte d'elles. Mas ah! perspectiva horrenda para pés cançados e caberás doídas ! - tínhamos de pal- milhar a grande distancia. O nosso hospedeiro, ri- zonho, patusco e jovial, folgando com o exito da sua tratantice, chasqueava comnosco dizendo que o ho- tel estava ali a dous passos; mas os dois passos abran- giam duas ruas compridas, estreitíssimas e escuras, com altíssimos prédios, que pareciam duas hleiras

ri p cai'ceres.

Chegamos por hm a um pateo escuramente alu- miado pela fumegante torcida de um lampeao de azeite, a Hotel de suas Excellencías ! ^^ disse jovial- mente o locandeiro. iiAqui?^> exclamamos todos a um tempo. a5ím, Excellencias^ aqun^, respondeu cUe inclinado cortezmente, e tomou adeanteira. be- guiram-o as victimas subindo não sei quantas es- cadas ; mas tantas eram que aos cançados viajantes

284 A FORMOSv\ LUSITÂNIA

andar, e atravessar o Douro, antes de chegar ao Porto, ou Oporto, como os inglezes querem que seja. Uma estreita caixa de madeira de um omnibus era o único transporte, e nc3s os trez e mais dous com innumeras malas, caixotes c saccos, com diffi- culdade cabiamos. Subimos e depois descemos va- garosamente uma Íngreme encosta e passamos a ponte-pensil, alumiada pelos lampejos dos raros lam- peões. Começava a tremular no lio o radiar da lua, dando feitios fantásticos ás sombras dos objectos, quando iamos em solavancos a entrar na cidade, que se eleva na montanha fronteira a nós. Passa- va de onze horas quando entramos no Porto. As estreitas ruas que percorremos eram negras, silen- ciosas, desertas. Aqui e além tremeluzia uma soli- tária vela que fazia «viziveis as trevas» no tegurio de tendeiro em rua triste e torta. Dir-se-ía que to- da a cidade estava atascada em profundo dormir. Aquelle aspecto mysterioso, de edade média, trou- xe-me reminiscências á embotada memoria de umas quazi olvidadas novellas de Londres, que eu tinha lido, em que havia aquelles lúgubres pavios de cei- til com que se alumiavam aqui ha duzentos annos as tenebrozas lojas e ruas. Por fim o nosso bamba- leado vehiculo f(3z alto defronte de um negro arma- zém que nos disseram chamar-scí biireau cenlral, termo final da corrida do omnibus. Tínhamos podi-

verosiinil uma ingleza derreada ellas, que se interiçam na liirta inflexibi- lidade do osso sem articulação, sein costura, incorisutil. « Estafadas ■; pois é o melhor, acho eu.

PELA VIA l'KRRKA AO PORTO 285

do ao cocheiro que nos apeasse no Hotel de Franc- íbi't; mas elle seguira pm-a deante. Qneixou-se a o-cnie ao dono do onínibus, com quem estivéramos na estacão. Respondeu-nos que ao passar pelo ho- tel, o achara fechado, e não consentindo que suas excellencias se encommodassem, resolvera Icval-os para o seu próprio hotel, que era ali perto, e com excehentes commodos. EUo tinha mandado aviso provavelmente de que iamos para lá. Como era tar- de, e o profundo silencio mais tarde fazia parecer pois que não se ouvia som de voz nem rumor de passo tudo favorecia a velhacada do homem (jue nos queria levar para sua caza. O senhor T. ainda vacillou; mas ii senhora, que tomava rapé, confor- tou-se com uma pitada; e eu, de mim, submetti-me á sorte d'elles. Mas ah! perspectiva horrenda para pós cangados e cabeças doídas ! tinhamos de pal- milhar a grande distancia. O nosso hospedeiro, ri- zonho, patusco e jovial, folgando com o exlto da sua tratantice, chasqueava comnosco dizendo que o ho- tel estava ali a dous passos; mas os dois passos abran- giam duas ruas compridas, estreitíssimas e escuras, com altíssimos prédios, que pareciam duas filen^as

de cárceres.

Chegamos por fim a um pateo escuramente alu- miado pela fumegante torcida de um lampeão^ de azeite, a Hotel de suas Excellencias!^) disse jovial- mente o locandeiro. aAquify) exclamamos todos a um tempo. aSim, Excellencias, aqui ^h respondeu clle inclinado cortezmente, e tomou adeanteira. Se- guiram-o as victimas subindo não sei quantas es- cadas ; mas tantas eram que aos cançados viajantes

286 A FORMOSA LUSITÂNIA

se figurou que iam peregrinando á capella da Pie- dade; mas sem patamal onde repouzassem. No to- po da escada, dous immundos criados nos saí- ram ao encontro muito rizonhos e mezureiros. O dono do hotel levou-nos a um cazarão cuja mobília se cifrava n'um biombo e n'uma cadeira com um pequeno jarro e bacia. Mas nâo viramos tudo. O hospedeiro avançou um pouco, e puxou ao lado o biombo, atraz do qual estava uma cama. Que mais queria a gente? O snr. T. queixava-se e rabujava de maneira que poderia passar efíicazmente por in- glez. A senhora, mais conformada em razão do seu cançasso, gesticulou com a cabeça, suspirou, pôz o jarro e bacia no chão, tirou do bolso a tabaqueira, e amezendrou-se socegadamente.

O alojamento destinado para mim era um cubí- culo estreito (\ ilharga d'aquelle cazarão. Quando m'o mostrou, um i^apazola vestido muito a ligeira, estava endireitando os lençoes que com certeza mu- dara n'aquelle momento, e sobre isso pozera um travesseiro achatado, e uma coberta vermelha de algodão. «A cama de sua Excellencia está-se pre- parando», disse o estalajadeiro. ((N'esta cama não hei-de eu dormir)), respondi. «A janella tem uma vista muito bonita», voltou elle com um radiozo sor- rizo. «Mas eu quero cama limpa tornei eu e se você tem esta, ficarei n'uma cadeira, e de manhã retiro-me». «Tenho uma sala grande, com uma vista que vossa Excellencia vae ficar encantada». «E a cama .^» nExcellenlissima «Vejamos» disse o senhor T.

Immediatamente o homem pegou na única luz

PELA VIA FÉRREA AO PORTO 287

uma veliiiha de c(3bo n'um castiçal sujo e er- guendo-o acima da cabeça para alumiar quem o seguia, que éramos todos, até ao ultimo andar, para ver a grande sala. Custou-me a sustentar o meu ar sério e circumspecto ; pois que a scena era por tanta maneira ridícula, que eu a muito custo, não desfechei inna gargalhada. Abriram-se as portadas de uma vasta e acaçapada sala ; e com grandes ares o maviozo estalajadeiro exclamou : «Á sala de sua Excellencia».

A um lado, havia um immenso canapé, dous velhos leitos de páo com armação e escadinhas que mediam mais de uma jarda de altura, e do ou- tro lado um movei comprido a modo de balcão. «E limpa a cama?» perguntei. ccPois duvida, sabendo eu que sua Excelleiícia é tão fastidiosa?)') (•)

Pei'suadida d'isto, declarei-me satisfeita e dei a boa nouíe aos meus companheiros, em quanto o ho- mem e mais a quadrilha dos moços, depois de muito chamar e berrar e correr d'aqui para ali, me deram outro castiçal; e, desejando-me que dormisse bem, fizeram-me reverencia e foram-se.

Dispunha-me eu a deitar-me sobre o duro e enca- roçado colchão de palha, em que havia apenas uma surrada almofada vermelha, chata como uma filho, quando entrou um homem com duas garrafas de vi- nho branco e tinto, um grande pão e uma empada.

(•) o homem, se lhe ehaxnow fastidiosa, parece que tinha razão caso que, raras vezes, suecede aos estalajadeiros do Porto. Parece, porém, que Lady Jackson recebeu aquelle adjectivo como synonimo de melindrosa em limpeza de cama. É bom ignorarem os extrangeiros o portuguez dos estalajadeiros portuenses, mormente os semelhantes ao scelerado que ella descreve.

5ta clai'a trave.^ algodão pai'aii(' lici-do Cl, vista mui i'izo. ((M você tem retiro-mc vista que ((E a cam disse o seij Immcd

PELA \ IA i:.llREA AO PORTO

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de cinza, porquinhos, gatos, rozeiras, cães, galli- nhas e franguitos, macii'as, crianças sujas e outras mixordias. Só, de lonp. distancia, poderia tornar-se encantadora uma tal vsta. Voltei as costas áquillo para examinar o meu |uart(j. G soalho ei-a ne- gi'o, de velho e porco as portas eram cinco, com trancas c feri-olhos coio as dos cárceres, mas ain- da assim com tamanhs fendas cpie ei-a iiun itavol através (rdlas ver e si* visto. Pela fuma(;a e ringir das botas coidieci quojs meus visinhos eram (|iia- ti-() homens,

Espantei-me .ju.ui.. iTesta suja hodega nu* ser- vii"mi um (>j)tim<> ahi')(;<), e depois soube (pití este chamado hotel do ( ounercio 6 de segimda clas- se, e tem fama de dai'l)oas comidas e bebidas com muita coi*ttízia e poi'arin. Tanto (|iian(() a minha cui'ta e\pei*i(Mici.i iiupermitte, o hotel acho ((ue correspouíb.' j)leii 1 1 1 : i e á fama que dislVncta. (^)n.in- do avizei qu(; ia -i i nnedialameide, o iocaiideiro e mais a nudher W' .n lastitnar-se de (jne en não |uizesse estai' regalad em tão hnda hahita<;ão. Pio- )Urdiam-me que ma <ariam todos os dias nni raso ' pores para o (|ii i '• poriam uma bonilii cslcira 'ante do sophã ; ' I 's aliás boa gente e delica- i, a meu ver- ' -|»;ítai'am-s(í d(} (pie (íu, apezar tão luxu(jzas ii i^ias, não quizesse llcar. O snr. T., e sw.i snhora, que tinham igualuKMite o invadidos poi- uia legião dos taes sócios da ia, proseguii'am c madrugada a sna jornada, ois d(^ agrad'1' 1- fpudla boa gcínte as suas at- oes e delicadezas.saí do lí)bi"ego hotel do Com-

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I ^

288 - . A FORMOSA LUSITÂNIA

AnnuiicioLi-ine que vinha alii a criada. Umamulho- rona espadaúda, descalça, entrou mui rizonha com duas estreitas e compridas tiras de algodão nas mãos. Estendeu-as na cama ; e, por certos gestos e rizos, parecia dizer-me : «Veja em que luxo vai passar esta noute Depois estendeu por sobre tudo aquillo um pezado e sujo cobertor de lã, rapado o. com todas as cores do arco da velha. Pedi-lhe que o retirasse; e, conseguindo livrar-me da achavascada moça, tratava outra vez de me deitar, quando, oh céus !... Está escripto : «Viajantes topam muitas ve- zes na cama estranh(js parceiros». Doze pelo menos d'esses parceiros de leito me estavam esperando, e provavelmente sei'iam ãs dúzias os que eu não vi. No auge da minha dezesperação, atirei-me ã garrafa e bebi metade de uma (•). Depois, estendendo o meu capote no anachronico sophã, e arranjando um ti'a-. vesseiro com o sacco de viagem, deitei-me e adormeci até ao dia, porque a natureza esfalfada não podia reagir.

Logo que acordei, ergui-me para ver a encanta- dora perspectiva que se me antolhai^a. Era um es- paço interposto n'um quadrado de cazarias. Nas va- randas trazeiras d'estas cazas andavam matinal- mente os criados mourejando. Nos desalinhados quintalejos e pateos havia ramadas e loureiros; acjui e acolá uma laranjeira ou limoeiro ; via-se uma of- ficina de carpinteiro, sobre a qual tlorejava um ]mv~ purino heliotropo ; e de involta com isto havia rimas

(•) Costumes inglezes. Receita nova contra pcisovcjos.

PELA VIA FERRKA AO POllTO 289

do cinza, porquinhos, gatos, rozeiras, cães, galli- nhas G franguitos, maceiras, crianças sujas e outras niixordias. Só, de longa distancia, poderia tornar-se encantadora uma tal vista. Voltei as costas áquillo para examinai' o meu quarto. O soalho era n(í- gro, de velho e porco; as portas eram cinco, com trancas o ferrolhos como as dos cai'('-eres, mas ain- da assim com tamanhas fendas que era inevitável através d'ellas ver e ser visto. Pela fumaça e ringir das botas conheci que os meus visinhos eram qua- tro homens.

Espantei-me quando n'esta suja bodega me sei'- vii*am um óptimo almoço, e depois soube que este chamado hotel do Commercio é de segunda clas- se, e tem fama de dar boas comidas e bebidas com muita cortezia e porcaria. Tanto quanto a minha curta experiência me permitte, o hotel acho que corresponde plenamente á fama que disfructa. Quan- do avizei que ia sair immediatamente, o locandeiro e mais a mulher vieram lastimar-se de que eu não quizesse estar regalada em tão linda habitação. Pro- punham-me que me trariam todos os dias um vaso de flores para o quarto, e poriam uma bonita esteira deante do sophã; e elles aliás boa gente e delica- da, a meu ver espantaram-se de que eu, apezar de tão luxuozas reformas, não quizesse ficar.

O snr. T., e ^u^ senhora, que tinham igualmente sido invadidos por uma legião dos taes sócios da cama, proseguiram de madrugada a sua jornada. Depois de agradecer áquella boa gente as suas at- tenções e delicadezas, saí do lobrego hotel do Com-

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290 A FORMOSA LUSITÂNIA

mercio, acompanhada do dono, da dona da caza, o da criadagem muito attcnciozos, muito compi'imen- toiros, o cheios de phrazes deUcadas; e d'ah fui pa- ra S. João da Foz, que me foi muito recommen- dada.

CAPITULO XIX

DO POUTO A FOZ

Antes de eu sair de Lisboa, disse-mo um inglez que acabava de chegar do Porto, onde se demorara trez dias, que não havia ah couza nenhuma digna de memoria. «De volta— observou elle s(3nti-me completamente logrado, depois de tcv de jornadear desagradável mente no meio de nuvens de poeira». É certo que o meu informador pai^ecia incapaz de fundamentar o seu descontentamento a nào ser « a falta ao almoço d'um bom bife de boi ou costelleta de carneiro, e de mais affirmava azeite e alho ás mãos lai'gas em todas as comidas». Pela expe- riência da minha primeira noute e pelo pouco que vi, excepto as ruas estreitas e sombrias na hora ob- scura da nossa chegada, comecei a recear que o meu patricio renhidor se tinha preoccupado tanto dos maus pratos que lhe serviram pela carência de qual- quer outro assumpto que lhe podesse attraíi* a at- tenção.

E comtudo tinha-me aventurado a observar-lhe : ((Deve ser uma bonita cidade : tirante a sua, é esta a opinião de quem tem estado ali». ((Ah, sim! os portuguezes dizem isso ; mas deve notar que são exímios em se gabar a si mesmos e ao seu paiz. Tem, perguntou-me o guia de Bradshaw no Continente?». ((Tenho». ((Bem; também me *

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(1(^ OU saíi- Lisboa, (lissc-nic iini iiigloz Lva (K* cluvi^.irlo LdiIo, oiidc so diMiiorára (jiuí não lia\i ali cou/a iiciilinina digna 'ia. «De \""í; ubsopvoíi cllc sciiti-me initc 1(»l;i 1 I depois de ter de joiMiadcnr AtjlintMitc I. );ii''lo de iiu\(Mis de j)o('ii'a)). II.' o meu inl-nnadoí' j)ai'iMMa incapaz de [ntai' o siMi d'' •( tiibaitannaito a não s(M' ((a hlnio<;o (Tiiii Imii \)'\\'r de hoi oti costcllcta 5Íi-(), (' de 111 - alliniiava azeite e alho lai*ga< (íin i mi> a.> comidas)). Leia expe- da minha pii-era lUiuU^ e pelo pouco (pie ipto as ruas -i 'itas (; soinl)i'ias na hora oh- a nossa cheu' l- cornoíícíi a r(M'ear (pie o ineii i-cnhidor - ih.i preoccnpado lauto dos pratos (pK! lli< ' \ n-.iiii pela carência de (pial- (iiti-o assinnp! n^' lhe podesse attraír a at-

;om tildo íinli;i M .-iMail arado a ohsers ar-llie : scM- uma buiiii -idade : tirante a sna, é Cbta liãí) de quem tci estado ali». «Ah, sim! <rlLifjuezes dizem \^o; mas chíve notar que são

- em se gabar i si mesmos e í»^ i, perguntou-m o guia .tincnt(í'6). ((T<?no)). -

292 A FORMOSA LUSITÂNIA

não sirvo de outro; e, como não sou dado a explo- rações, pensei que Bradshaw me ajudaria a achar o que precizo ver. Ora leia a descripção que faz o au- ctor da boa cidade do Porto».

Assim fiz ; e todas as informações a respeito da segunda cidade de Portugal rezumem-se no seu no- me inglez «Oporto». Depois segue-se a adresse d'um hotel de quarta classe, a avaliar pelo meu, in- dicado como (( razoável e confortável para os vizi- tantes inglezes». O Porto também, segundo a dis- posição de Bradshaw, parece ficar na ilha da Ma- deira.

Quanto ã parte portugueza do mappa, algumas cidades, como Santarém, estão notadas sobre a li- nha inexacta do caminho de ferro. Mas quem via- jar n'estes sitios consultará sem duvida auctoridade maior que a de Bradshaw. E provável que se pre- vinam com a ultima edição d'uni a Guia)) ^ e assim lhes acontecerá dirigir-se a cônsules e agentes que ha annos repouzam nas suas campas, e ficarão sa- bendo que do Carregado ao Porto por diligencia se gastam trinta e seis horas. Sem duvida, aprende- i'ão então á sua custa, depois de chegarem a Por- tugal, o progresso que este depois tem feito geral- mente no intervallo de dez ou doze annos desde a publicação d'esses Guias. Pelo que pertence a Bra- dshaw, provavelmente não encontrará ninguém que lhe de tanto credito como o inglez a quem me refe- ri, que não achava nada digno de noticia n'uma ci- dade, por isso que Bradshaw escassamente a co- nhece de nome.

Todavia, depois de ter sabido do sujo e lúgubre

DO PORTO Á FOZ 293

liotcl, poucos minutos bastaram para que ou visse (jue a «leal e invicta cidade» ei'a jjelo menos tam activa e animada, quanto oi'iginalm(3nte pittoresca. Ainda mesmo na rua estreita, d'oiide voltamos para a Pi'aça Nova, as altas cazas eram guarnecidas de elegantes varandas com as grades pintadas de ver- melho, escuro, verde, azul ou cor cinzenta e algu- mas douradas. Na Praça est.á a caza da Camará municipal, rematada por uma figura allegorica, que representa a brava cidade na forma d'um guerreiro armado. O rei Victor Manuel prezenteou a Camará com o retrato de seu pae, Carlos Alberto, que fal- leceu no Porto em Enti'e-Quintas. O centro é ador- nado com a estatua equestre do «Rei Soldado» Dom Pedro IV, cuja memoria é quazi adorada pelo «portuense». Chamaram-lhe por isso Praça de D. Pedro, mas, como o Rocio de Lisboa, é mais co- nhecida pelo seu antigo nome. E um sitio fresco e agradável, |)lantado nos dous lados de arvores, d'.í- bnixo das quaes ha cadeiras e bancos de jardim quazi sempre occu pados. As lojas, cafés, a caza da Camará, os passeantes, a estação de carruagens, dão a esta Praça uma apparencia muito animada, como verdadeiro coração da cidade que é.

Defronte da Camará municipal parte para cada lado uma longa e Íngreme rua, larga e bem ladri- lhada: a da esquerda é a rua de Santo António, em cujo topo se levanta a esplendida igreja de Santa Ildefonsa (•); a da direita é a rua dos Clérigos, em

(■) Estes herejes hào de sempre mostrar a sua crassa ignorância do sexo dos santos.

294 A FORMOSA LUSITÂNIA

cujo cimo so v(j a igreja com a famoza torre, cha- mada a Torre dos Clérigos, que mede 250 pés de alto e serve de marco de muitas léguas a distan- cia. As cazas n'estas ruas são altas e bem construí- das, as lojas espaçozas e abastecidas com objectos da moda. As da rua dos Clérigos são especialmente brilhantes e alegres, ficando, por via de regra, d'um lado as lojas abertas, sem vidraças, mostrando ás portas abundância de lenços de seda, fichus, saias, chalés, de cores garridas de que mais gosta a gente dos arredores. A larga rua dos Clérigos é plantada de arvores, como os houlevards de Paris, o que con- corre muito para a tornar aprazível. Esta parte do Porto p(3de chamar-se realmente bella, muito mais bella que o Chiado: na verdade, não conheço nada em Lisboa n'este estylo que a possa igualar. Se to- marmos a Praça por um valle como foi antigamente, e as duas ruas que se levantam em frente uma da outra, cada uma com a sua eminência coroada por uma bonita e antiga igi^eja, teremos assim um qua- dro muito attractivo que nos encanta pela surpreza. Era ainda de manhã cedo ; fazia um calor doce- mente agradável, e as ruas, como as de Lisboa, muito limpas, acabavam de ser regadas : demais, ei'a também dia de feira, e grande quantidade de bellas mulheres e raparigas do campo com os seus formosos olhos vendiam differentes artigos, conver- savam em grupos ou faziam compras nas lojas. Lem- brou-me o inglez, e puz-me a considerar com espan- to se algum dos trez dias que esteve no Porto acon- teceu ser de mercado. Supposto n: esmo que o homem pertencesse ao typo dos mal-humorados, e tivesse

r.IVRARfA PnnTrR.VXK—KniTORA

TOKRE DOS CLElílUOS, NO PORTO.

1)0 PORTO Á FOZ 295

passado som duvida a idade das illuzõ(3s, ainda quo não achasse outra couza digna da sua attenção, aquellas formosas mulheres (e as d'esta provincia Scio afamadas pehi sua belleza) difficilmentc deixa- riam de lhe attraír a vista e excitar-lhe a admira- ção, qualquer que fosse a sua sofreguidão por «um bom bife ou uma boa costelleta».

O meu caminho era pela rua dos Clérigos. Ha- via multidão em todas as lojas. Fiz parar a carrua- gem defronte de uma, para perguntar o preço d'um lenço de seda de cor alegre; mas o meu fim espe- cial era ver mais de perto uma linda rapariga, que tinha observado a comprar ao mostrador em com- panhia d'um rapaz, vestido com o seu melhor fato domingueiro, ambos rindo e ao que me parecia comprando muito. Trajava a moça o seu collete branco azul, mas d'um linho finíssimo, enfeita- do de bordados abertos e d'umas rendas, que na maior parte se fazem em Peniche. O lenço de seda, pregado em dobi^as apertadas sobre o peito, era vermelho, com cercadura branca; a saia, que lhe caía em amplas pregas, era d'um estofo em xadrez branco e vermelho. De cima do seu largo chapéu, cercado d'uma guarnição de seda esfiada fingindo pennas, cheio de tufos e maçanetas de seda vei'- melha e vidrilhos, descia um lenço de fina cam- braia, bordado e guarnecido de rendas, que lhe cu- bria o pescoço e os hombros. Felizmente trazia meias e os tamancos do costume. Mas o mais notá- vel de tudo eram as jóias. Trazia dous ou trez com- pridos e grossos cordões e por cima um fio de pe- quenas pérolas, d'onde pendia uma grande medalha

296 A FORMOSA LUSITÂNIA

vazada em forma de coração : grandes brincos na mesma forma, aos quaes estava suspenso um se- gundo par com trez ou quatro pérolas. Muitos an- neis de ouro maciço ou prata ou com pedras en- gastadas, completavam a sua toilelle domingueira. A possuidora de tudo isto podia chamar-se n'estes sitios unvi formosura loura. Tinha cabello castanho, amáveis olhos azues escuros, carnação branca e fi- nas feições. Provavelmente não contava mais que dezoito estios.

O seu companheiro era moço dos seus vinte e cinco annos, vestido de preto jaqueta muito cur- ta, muito ornada com botões de filagrana de prata: camiza branca sem manchas, cinta de seda de cor, e chapéu muito parecido com o da sua senhora, á excepção dos vidrilhos. Era um par cazado de fres- co, pertencendo provavelmente á abastada classe agrícola, e estavam comprando o que me pare- ceu dever fazer parte do enxoval da esposa toa- lhas e guardanapos. Talvez fossem estes tecidos superiores aos que os seus pães julgariam demasia- damente bons, mas ambos pai^eciam muito dese- jozos que fossem de mais fina qualidade. Comprei o lenço de seda, demorando-me na escolha para mais reparar na esposa. Evidentemente o lenço não lhe desagradava, pois que me comprimentou, quan- do saí, com um doce sorriso e um tregeito amigável, e o seu caro esposo com uma cortezia.

O vestido d'esta moça é o costume uzual nas proximidades do Porto, variando todavia em cor e qualidade, segundo os gostos ou meios de cada uma, e a occasião. Comtudo não c raro ver mesmo as carre-

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leiras, quo levam á cabeça pczados volumes este O modo uzual de fazer os transportes aqui) com um fio de coutas de ouro ao pescoço e compridos brin- cos pendentes das orelhas.

Passamos perto da igreja dos Clérigos, e do mercado de hortaliças, fructos e gallinhas ; e tam- bém junto de outro onde se vendem panellas, cas- sarolas e outros objectos de barro, pannos de e algodão, fatos, meias e carapuças, fiado, nastros, botões, quadros e imagens de santos, crucifixos, vazos para agua benta, brinquedos de crianças, que- kes, pão branco e broa, e milhares de outras couzas mais.

Eis-nos agora no bonito jaixlim da Cordoaria. Do outro lado do nosso caminho, á sombra de gran- des arvores, veem-se centenares de bois e uma chusma de carros rústicos, pertencentes a lavra- dores que vieram trazer ao principal mercado a producção das hortas e campos das visinhanças. Os bois são jungidos por uma comprida e forte peça de madeira que lhes passa sobre os cachaços, me- dindo cerca de um de alto, vazado ou esculpido em figurações fantásticas, com tufos de cabello ou cerdas ao correr do cimo, parecendo-se o seu tanto com uma escova. Bois de serviço são mais uzados no Porto que em Lisboa. Ordinariamente guiam-nos mulheres, que parecem aqui fazer quazi todo o ser- viço. Homens e rapazes estão deitados no chão junto dos animaes que guardam, ou assentados em ces- tos ou tripeças comem o seu almoço. Aqui e ali vê-se uma mulher ou rapariga, mas a maior parte d'estas de aspecto campezino estão mais longe, dili-

298 A FORMOSA LUSITÂNIA

gentomento empregadas nos mercados, ou andam conduzindo tam grandes e pezados volumes á ca- beça, que a gente pensa que serão inevitavelmente esmagadas por elles ou succumbirão debaixo do seu pezo. Estremeço realmente quando vejo estas industriozas, fortes e pequenas mulheres dobrarem- se para receberem o seu carreto, mas logo que lh'os collocam e assentam bem, caminham vigoro- zamente com um passo livre e firme, trapejando com os tamancos um compasso regular.

Passando além da entrada da Cordoaria fica-nos quazi defronte o magnifico Hospital Real de Santo António.

Uma nuvem de poeira avisa que o i(ame?Hcanoy) está a chegar. A jornada desde Mathozinhos até A parte superior da cidade termina á entrada d'este jardim. Espera-o muita gente. Vem completamente cheio, mas tam depressa descarrega a sua carrega- ção de banhistas da Foz, que se enche immediata- mente e parte.

O Porto é edificado sobre dous altos montes de granito, e n'este ponto, onde estamos agora, o ter- reno inclina-se rapidamente tanto para o rio como para a cidade baixa. Descendo, e a uma pequena distancia do hospital, ou como lhe chamam geral- mente, da Mizericordia, passa-se junto do muro do jardim d'um bonito palacete, e ali se nos depara uma das mais bellas vistas do rio que imaginar- se podem. O formoso Douro corre defronte placida- mente, azul como o ceu azulado que as suas aguas i'eflectem. Possue uma belleza sua própria, mm- to differente da do Tejo, mais esti^eito mas mais

DO 1'OUTO Á FUZ 299

pruíuudo; v, \)C]io do Porto, recurva-se o oii- Cciracoki-so. Os moiitus da margem usquoi-da cm face da cidado, por caiiza da sua proximidade pa- recem mais altos (puí os ([ue deíVontam Lisboa. Mais escai'pados, mais pittorescos no horizonte, vei'des como os verdes montes do Tyrol, rescen- dendo alfazema e á fiôr da murta, vestem-se nas cumieiras de espessos mattos, emquanto que ar- bustos e plantas os guai'necem ao razo da agua.

Depois, a animação do Douro gi*andes e pe- quenos navios á carga e descarga, um pequeno e elegante vapor de guerra, botes de formas variadas, o antigo barco, com as suas extremidades recur- vas, o bote espaçoso construído á liollandeza com toldo, o pequeno e aceado cahique, e a gracioza vela latina passando e repassando. Todas estas embar- cações navegam para baixo e para cima, a desem- barcar passageiros ou a descarregar mercadorias. As mulheres também manejam o remo dextramen- te, e cantam emquanto vão remando. Tudo isto e muito mais se pode observar á medida que se ca- minha, mas o aspecto geral do primeiro lance de olhos é encantador.

Quando se chega ao fundo, a esticada da Foz se- gue junto ao rio e na maior pai'te á sombra de altas e h'ondozas arvores. A cada volta da cor- rente que serpentea, descobrem-se novas bellezas no graciozo panorama, que se vae desenrolando em novos quadros. A direita oi'lam a estrada cazas, villas e quintas, pequenas e grandes, novas e ve- lhas. Entre todas destacam-se algumas mais mo- dernas, solidamente construídas e elegantemente

300 A FORMOSA LUSITÂNIA

adoi*nadas ; outras mais antigas formam grupos ir- regulares, e algumas poucas parecem desabar, stjn- do sustentadas, ao que se nos figura, pelo fi-agil es- teio que se dão entre si ; mas todas são liabitadas, e todas tem a sua vai-anda, balcão ou bc.loédcre; umas pintadas e douradas, outras env(jlvidas em cortinados de folhagem. Seguem-se os jardins, os terraços, as caza.s de fresco, os })a.s.seios debaixo das ramadas de videiras, os muros de pedra parda- centa, meios cobertos de musgo ou de trepadeiras o por cima d'elles as bellas flores das hortênsias, os geraniums e outi-as plantas floridas. Grupos de arvores divizam-se no plano posterior que é so- branceiro, e por cima d'ellas sempre uma igreja, uma capella ou um ci^uzeiro cai^comido pelo tem- po; e n'um ponto da estação entreve-se o Palácio de Crystal, coroando a alta esplanada da Torre de Marco.

No caminho encontram-so grupos de mulheres e raparigas carregadas com fructas, hortaliças e peixe. Apressavam-se em direcção ã cidade com o seu passo leve o rápido, muito diffej'ente do passo descuidado da Lisbonense, que atravessa a vida mais folgadamente. Pescadores remendam ou assoalham as redes. Crianças alegres, rozadas e quazi nuas, brincam á borda da agua, perto de mais talvez, pois que alguns d'estes rapazelhos despem o seu pobre vestido, e desafiam-se com muita bravura dentro e fora da agua. O Porto foi sempre orgulhozo dos seus maritimos, que procederam talvez de ati-evidos filhos do rio, como estes. Não c onde o Douro cor- re mais pacificamente que gostam de brincar estas

jmmrn-^

1)0 POinO A FOZ

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crianças; mas patinham e atiram-so sem medo quazi no meio da arrebentação das vagas, da espuma e das pedras perto do mai- e da visinhaiiça traiçoeira da bai*ra. Passamos tamhem os estaleiros e os na- vios em via de construceão. As embarcações con- struidas no Porto tinham fama de veleiras, e talvez ainda a tenham. Quando a escravatura florescia, poucos cruzeiros seiiam capazes de as capturar, ex- cepto por surpreza. Mas o Porluense pode invocar mais lionrozos motivos de orgulho; foi do Por- to, dizem elles, que saíi^am estes primeiros navios equipados de homens enérgicos e indomáveis que abriram o caminho á descoberta e conquista da Azia, Africa e America.

Chegamos agora ao sopé d'um monte Íngreme e pedregozo, onde homens e mulheres, quazi ne- gros á força de bronzeados, estão trabalhando á viva ressa do sol. Alguns estenderam sobre duas ou trez varas uma saca ou um panno para se abri- garem dos seus poderozos raios; outros uzam para o mesmo fim de cazacos, saias e jaquetas fraca defeza na verdade para um sol abrazador de agos- to, quando os pobres tem de aguentar ali o tra- balho e o calor de um dia! Empregam-se quer no alargamento da via, quer em preparar pedras para construcções na baze d'esta rocha maciça. Os pe- daços que destacam são transportados em cai'ros de bois, e muitos d'estes estão agora á espera do seu carregamento. A pedra é de cor de roza des- maiada, com veias escuras talvez mármore, pois parece que ametade do solo de Portugal é constituí- do por mármores de diíferentes cores.

DO PORTO Á FOZ 301

crianças ; mas patinham o atiram-se sem medo quazi 110 meio da ari'ebentação das vagas, da espuma e das pedras perto do mar e da visinhança traiçoeira da barra. Passamos também os estaleiros e os na- vios em viíi de construcção. As embarcações con- struídas no Porto tinham fama de veleiras, e talvez ainda a tenham. Quand(^ a escravatura tlorescia, poucos cruzeiros seriam capazes de as capturar, ex- cepto por surpreza. Mas o Porluense pode invocar mais honrozos motivos de orgulho; foi do Por- to, dizem elles, que saíram estes primeiros navios equipados de homens enérgicos e indomáveis que abriram o caminho á descoberta e conquistada Azia, Africa e America.

Chegamos agora ao sopé d'um monte Íngreme e pedregozo, onde homens e mulheres, quazi ne- gros á força de bronzeados, estão trabalhando á viva ressa do sol. Alguns estenderam sobre duas ou trez varas uma saca ou um panno para se abri- garem dos seus poderozos raios; outros uzam para o mesmo fim de cazacos, saias e jaquetas fraca defeza na verdade para um sol abrazador de agos- to, quando os pobres têm de aguentar ali o tra- balho e o calor de um dia! Empregam-se quer no alargamento da via, quer em preparar pedras para construccões na baze d'esta rocha maciça. Os oe- daços que destacam são transportados em carros de bois, e muitos d'estes estão agora á espera do seu carregamento. A pedra é de cor de roza des- maiada, com veias escuras talvez mármore, pois parece que ametade do solo de Portugal é constituí- do por mármores de diíferentes cores.

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A pequena distancia, rFonde trabalhavam os po- bres cavouqueiros, ha uma grande fonte de granito íi sombra, em volta da qual se grupavam pelo me- nos uma dúzia de mulheres e raparigas. Algumas acabavam de encher os seus cântaros, e estão a p(M- os á cabeça, ajudadas pelo braço caridozo de qual- quer visinha. Depois caminham com vivacidade, fa- zendo meia emquanto marcham, o que indica muita habilidade, penso eu. As outras mulheres que fi- cam são lavandeiras: lavam a roupa em pias de pe- dra na baze da fonte melhoi' systema para os seus donos que o uzado mais acima, onde as lavandeiras batem a roupa sem dôi' nem compaixão nas pedras marginaes do rio.

E uma estrada cheia de vida; assim tivesse me- nos pó, que forma sobre ella uma nuvem continua, em consequência do tranzito constante dos carros de bois, passando e repassando, de cavalgaduras, de pequenos carros de cortinas com gente da pro- víncia, ou banhistas que não chegaram a tempo ou não acharam logar nos Americanos. De dez em dez minutos ou de quarto em quarto de hora, passa um d'estes Americanos com grande rapidez, correndo docemente pelos rails. Puxam-os troz mulas ou ca- vallos a par, e ao sopé da rampa accrescem mais duas guias para os carros que vão acima ou para a parte superior da cidade. Cazual mente passa um cavalleiro ou uma carruagem descoberta; mas car- ros e cavallos, particulares ou d'aluguer escasseam no Porto, que n'este ponto differe muito de Lis- boa, onde superabundam excellentes.

Mas eis que a estrada faz uma volta súbita. Ha

DO I'ORTO Á FOZ 303

agora mnior espaço entre cila e o rio, que se alarga grandemente n'este sitio, de modo que quazi pode ser chamado mai*. no fundo fica a formosa Bar- ra do Porto, além da qual se vêem espumar e revo- lutear as ondas do Atlântico. Esta extensa planície areóza é a Praia. E vestida de arvoredo, cuja folha- gem n'esta estação cobeiia de e areia lhes o aspecto de arvores definhadas. Muitas viellas estrei- tas e mal ladrilhadas partem perto d'aqui, umas quazi em linha recta, outras cruzadas, ou em zig-zag, mas todas depois de muitas curvas e voltas, rein- trancias e saliências vão dar sobre o teri^eno alto acima. São bordadas com cazas de todos os feitios e tamanhos, entermeadas de arvores, jardins e par- reiras. Pela linha da estrada muitas cazas são me- ras cabanas, outras pequenas, mas com boaapparen- cia, e não poucas grandes e bellas. A distancia fi- cam o castello, a igreja e o pharol de Nossa Se- nhora da Luz. Sente-se a briza, o cheiro do mar e o som remoto do rolar das vagas e do seu furio- zo embate sobre a costa. Chegamos a S. João da Foz.

CAPITULO XX

americanos skuua do pilar valle d'amores, ETC.

Estive uma semana em S. João da Foz, e pas- seei sempre por toda a parte e a todas as horas, ape- zar do calor, que posto que grande é supportavel ainda ao meio dia, em consequência da briza que sopra do atlântico. No Porto é muito mais quente é o calor d'um forno. Mas tam cheia de vida, tam divertida e encantadora é esta bella e antiga cidade, que passava ali todas as manhãs vindo e voltando nos Amerncanos, que são extremamente commodos; percorrem as duas milhas que medeam entre o Porto e este arrabalde quazi no terço do tempo que leva ordinariamente uma carruagem d'aluguer. O preço da passagem é seis vinténs. Os carros são espaço- sos e arejados, sem sol nem poeira: toda a gente os frequenta. Começaram a circular no anno pas- sado, segundo me dizem, e tem tido grande êxito. Alguns d'estes Americanos param na rua dos Ingle- zes, na parte mais baixa da cidade, emquanto que outros levam os passageiros acima, ao topo do mon- te perto da Mizericordia. Vale bastante a pena de seguir para este ultimo ponto; a rampa é tão forte que duas ou trez vezes vi senhoras apearem e pre- so

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ferirem caminhar ao sol o ao com medo de que os carros se despenhassem. Mas tal accidente nun- ca se deu. Em Lisboa, onde os Americanos come- çaram a circular ha poucas semanas, não se admit- te que se possa dar um caso análogo em certos sí- tios Íngremes. Os velhos e desai'ranjados trens, co- mo chamam ás carruagens de praça, exigem que se declare previamente se a gente quer ii' á Foz, e não abalam senão por 2^500 reis. Na Praça Nova estacionam aproximadamente uma dúzia de velhas e estropiadas cairuagens. Os cocheiros perguntam sempre para onde se vae e quanto se dá: e, se se lhe ofíerece o preço ordinário, e a direcção lhes não agrada recuzam a proposta. Duas vezes deixaram de me levar por 2|)500 reis, calculando que o pas- seio proposto levaria duas horas e meia a trez. E quando lhes contestava isto, respondiam-me levan- tando os hombros: aEsld assim. Que quer, minha senhora ? »

O extremo escarpamento das ruas impede de passear muito, especialmente n'esta estação. Diífi- cilmente se poderia tentar uma excursão a pelos arrabaldes, excepto de carruagem ou pelo caminho de ferro até algum sitio agradável. Quando os co- cheiros da fraca recuzam ir na direcção desejada, toma-se uma carruagem n'uma cocheira pj^oxima, onde se alugam particularmente, como nas rémises, em Paris. O seu preço regula por 3^000 reis, por trez horas, o que é realmente caro, se attendermos ã velha equipagem que nos dão ordinariamente. Não deixarei também de notar que em alguns pon- tos as ladeiras são tão extensas e tão ingi'emes, que

.\Mi:iíi('.\N'()s si';i;iiA do imlak, i;tc. .'i()7

os pobres cavallos so vôom muitas vezos em gi-aii- desdifficuldades.

Os arrabaldes do Porto são muito graciosos e a paizagem lica o v;u'iada. Se tivesse quem me acom- paidiasse a cavallo, preferiria fazei' excursões assim. Esperava poder couseguil-o; mas das trez familias portuguezas para quem trouxe cartas, duas estão auzentes e na terceira não lia cavalleiros. N'esta si- tuação tinha de me resignar a contemplar de lon- ge os bonitos valles estreitados por montes, assim como os caminhos encaracolados, e córregos cheios de sombras e vei-dura. Consolava-me apenas a idéa, verdadeira na verdade, que a melhor estação para estas excursões equestres não é esta, como succede nas proximidades de Lisboa, na ultima parte do in- verno (inverno de nome) e nos dias frescos e ale- gres da amável primavei'a.

Então correm em abundância as numerosas cor- rentes que banham Portugal e fazem o paiz tam fér- til, assim como também as cascatas das montanlias e os pequeninos regatos que deslizam pelas encos- tas verdejantes dos montes. Onde agora se em muitos sitios a terra queimada e eimegrecida, n'es- sa época veste-se de verdura e esmalta-se de flores brilhantes, e os laranjaes a vergar de fructos dou- i'ados mostram-se na sua maior belleza. Mas ain- da assim dei alguns passeios aprazíveis nas duas margens do Douro. Ambas sã(j tam bellas, que não sei a qual deva dar a preferencia ; mas do lado de Villa Nova, segundo me parece, c tam graciosa a paizagem do rio que difíicilmente será excedida.

No Porto, assim como em Lisboa e em quazi

308 A FORMOSA LUSITÂNIA

todas as villas e cidades de Portugal, havia immen- sa quantidade de mosteiros antes da suppressão que íez D. Pedro: e aqui, á feição do restante paiz, a banta gente tinha escolhido os sitios mais férteis e mais pittorescos para os seus piedosos retiros. Talvez sje não possa encontrar outro mais bello que este em que íoi edificada a igreja e convento de ÍSanto Ago.stinho da Serra ou «Serra do Pilar», como e mais geralmente conhecido que é um dos mais altos doestes altos montes que se levantam a caval- leiro sobre as margens do Douro, e justamente na curvatura do rio, de tal modo que tem uma extensa vista para cima e para baixo, dominando o Porto e Villa Nova. Na outra vertente do monte ou monta- nha, como quizerem, desenrola-se em caracoes um caminho largo, antigamente plantado de espessos arbustos e as.sombrado por grandes arvores, desde a portaria do convento em volta d'um outeiro e so- bre o terreno que vae subindo, d'oiide se ve em bai- xo o valle lateral, regado por uma corrente de aguas límpidas e saltitantes. Graciosa paizagem, na verda- de ! Estendidos pelo fundo adeante, ou trepando pe- los montes arborisados que cingem este valle feliz, do lado oppo.sto, vèem-se jardins ao redor de pe- quenas cazas com telhados vermelhos, prados, po- mares de laranjeiras e limoeiros, campos de centeio e milho, vinhedos e olivaes. No cimo, para comple- tar o quadro, descobre-se a aldeã d'Avintes, cujas cazas se apinham em volta da sua igreja entre o ar- voredo. Faz-se ali a broa ou pão de milho, a maior parte do qual é consumido no Porto. Trazem-o para a cidade em barcos, equipados por mulheres d'Avin-

AMERICANOS SERRA DO 1'IÍ.AR, ETC. 309

tos, que são consideradas as belles pat excellence, en- tre as formosíssimas d'esta parte de Portugal.

A igreja e convento da Serra pertenceram anti- gamente aos frades cruzios, que eram todos de fa- milias nobres. A igreja tinha um grande rendimen- to ; os sitios de recreio, jcu^dins e parques do conven- to eram extensos e bellos, e continliam soutos de magniíicos carvalhos e castanheiros, que foram cor- tados e destruidos durante a guerra da successão de 1832-1833, porque o logar, em consequência da sua posição dominante, tornou-se de uma grande importância. Possuiram-no cada um pela sua vez (•) Migue li tes e Pedroites, ficando por fim estes se- nhores d'elle. Mas durante a lucta, os tiros e as bombas dos exércitos combatentes arruinaram as edificações e desvastaram o teri^eno. O marechal Soult occupou o convento da Serra em 1809 ; mas esquecendo-se de o fortificar, não pode impedir a passagem do Douro a Lord Wellington, e portanto viu-se obrigado a bater em retirada do Porto rapi- damente. D. Pedro, felizmente não commetteu o mesmo erro : e assim habilitou-se a resistir satisfa- ctoriamente as tentativas dos miguehstas para tor- narem a occupar a Serra ou retomar a cidade. Quando finalisou a guerra civil de 1846, foram destruídas as fortificações, que tinham sido muito augmentadas e reforçadas desde o cerco do Porto. Apezar d'isto, o convento da Serra é considerado como uma das pi'iii- clpaes fortalezas : tem um governador e guarnição d'um destacamento de artilheria.

('•) Inexactidão.

310 A FOlíMOSA LUSITÂNIA

Apezar de todas as vicissitudes, a igreja conser- vou a famosa imagem milagreira de Nossa Seuhora da Serra do Pilar. Faz-s(í a romaria ao seu santuá- rio em agosto, e a gente da província e do campo, de longe e de perto concorre ali para satisfazer as suas promessas, assim como para vender differen- tes objectos n'esta grande feira e festa annual. Ven- dem-se então aos centos pequenas imagens e es- tampas de Nossa Senhoi^a. Vi por esta occasião bo- nitos cestinhos ou caixas de palha pintadas e curio- sos banquinhos que se podiam levantar ou abaixar segundo a altura do assento. Cada objecto é ador- nado com um desgracioso retrato de Nossa Seilhora e com uma inscripção adquada. Se exceptuarmos a romaria, que dura ti'ez dias, d'outi^a imagem milagrosa, a do «Senhor bom Jesus dos bouças» em Mathozinhos, onde a concorrência dos romeiros é muito maior, poucas occasiões haverá melhores que a festa da Senhora do Pilar, para se verem os diiferentes costumes da gente d'este sitio e visinhos. Trajam todos em grande toilelte\ e a pose coquette dos chapéus, muitas vezes guai^necidos de Hores, variando muito na f(')i'ma e tamanho, e sobretudo a gi'ande pi^ofusão de ornamentos de ouro e outras jóias, assim como os botões e cadeias de prata e fa- chas de cores, nos homens, etc, contribuem para dar o tom geral de cada grupo e fazer de tudo uma scena tam animada e interessante como se p(jfle fa- cilmente imaginar.

Cestos de melões, pecegos, hgos, uvas, h'uctas scccas, broa e queijos destacam-se aqui e ali entre a alegi'e multidão, estando os vendedores assenta-

AMi:i!í< AXOS SKKIíA Do 1'ILAR, ETC. 311

dos debaixo do grandes guai'da-sóes, ou pequenas tendas, tam pittorescamente vestidos como os seus íVeguezes. Ha também agua em abundância para as creaturas sequiosas. Além d'isto, temos a conside- rai' o local, onde se levantam as paredes do antigo convento, macissas, pardacentas e cobertas de mus- go, coroando um pincaro escarpado coberto d'arvo- i^edo Villa Nova de Gaya erguendo-se mais ainda á esquerda com os seus palacetes de campo e quin- tas, e ao longe estendendo-se do outro lado as ver- des collinas que bordam o Douro. Muitos barcos cheios de bellas devotas perpassam sobre as aguas limpidas a remos ou á vela, e longas filas de alegres romeiros atravessam a ponte pênsil. Que barulho fazem com os sóccos! Mas observadas bem, conhe- cer-se-ha que possuem realmente uma grande parte da belleza de que são afamadas, e que um pintor pode encontrar aqui perfeição de feições e graça de vestido inexcediveis por qualquer modelo que a Itá- lia possa produzir.

Orgulha-se o portuense de que tudo quanto resta presentemente d'aquella energia, ousadia, espirito emprehendedor, actividade e outras qualidades do bom ouro de lei, attribuidas aos portuguezes de ve- lha cunha, e que antigamente tornaram tão grande esta pequena nação, deve ser procurado aqui so- mente entre os naturaes do Porto e terras visinhas. «É aqui, dizem elles, que se encontram os portu- guezes de puro sangue, a formosa raça, cuja belleza não foi ainda deteriorada pelo cruzamento com as raças pretas e bronzeadas, que nossos antepassa- dos conquistaram». Isto pareceria apenas mera

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vaidade; é certo comtudo que um typo de feições decididamente negro e uma tendência a encarapi- nhar o cabello se podem observar frequentemente em alguns portuguezes mais do sul. Estes defeitos recaem principalmente na parte feminina da famí- lia. No tempo da escravatura acontecia ser vulgar um ofificial subalterno ou employé pobre do gover- no nas colónias africanas cazasse por amor de uma grande fortuna com a escura filha de algum rico traficante de escravos. Isto, segundo li, é conside- rado uma abominação ; mas a reminiscência do typo mouro, que se encontra geralmente nos olhos negros brilhantes e outras feições de belleza, argúe an- tiga linhagem.

É certo todavia que o portuense tem mais vitali- dade que os seus irmãos do sul, e que o Porto c uma cidade muito mais animada, mais activa e mais commercial que Lisboa. O «velho cunho» que di- zem distinguir a população está da mesma maneira impresso no sitio mesmo, nas cazas, ruas e lojas originaes, irregulares, pittorescas e encantadoras. Lisboa é mais magestosa e elegante. A gente tem mais vagar de fallar e fazer os seus negócios ; n'um dia gasta em meros comprimentos mais palavras que a d'aqui n'um anno. Lisboa 6 graciosa, cortez e com os ares senhoris d'uma rainha ; o Porto alegre e agradável uma piquante clame de province.

Por pouco que não deixava de ver esta animada festa da Senhora do Pilar: no mesmo dia e tarde ouvi fallar n'ella, mas disseram-me que era apenas uma simples reunião de povo ordinário como n'um dia de mercado. Felizmente os meus amigos

AMERICANOS SERRA DO 1'ir.An, ETC. 313

portuguezes pensaram d'oatra maneira e vieram buscar-me á Foz. Depois propuzcram-me uma visita a algum dos immensos armazéns de Vil] a Nova de Gaya, onde se guardam os mais finos vinhos do Dou- ro ; mas como me deixaram a escolha entre esta ou um passeio ao Valle d'Amores, preferi este ultimo. Este amável valle fica entro os cimos de dous altos montes que se aprumam sobre a margem esquerda do Douro e tem uma pequena historia sua própria. Sobre as ruinas do antigo convento de Santo António está hoje estabelecida uma grande fabrica de sabão. Conta-se que, quando o convento estava edificado e prestes a concluir-se a ceremonia da dedicatória a Santo António, os monges foram de súbito impressionados com a impiedade do nome «Santo António do Valle d'Amores ! » Os santos homens receavam que estas divindades, aladas como as brizas, os importunassem nas suas meditações religiosas que os seus olhos, que deviam estar sem- pre voltados para o ceu, viessem algumas vezes a ser dirigidos para a terra por estes levianos tenta- dores. Que fazer? Banir os amores do valle, tão pró- prio pelas suas graças para a habitação do amor : as- sim fizeram, pensando, diz-se, que com esta excom- munhão dos amores e a substituição do nome pro- fano por esfoutro de Valle da Piedade, teriam ex- peHido assim do seu paraizo terrestre «o mundo, a carne e o demónio». D'est'arte descançados, viveram os piedosos frades no meio dos seus pomares, jardins e campos férteis, litteralmente na abundância, até ao cerco do Porto, quando o convento foi destruido pelo fogo. Depois torno u-se propriedade do visconde de

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Castro Silva, que edificou no seu sitio a presente Fabrica de Sabão a Vaj)or.

Chegou então ã Piedade a sua vez de ser expulsa do valle que tomou o seu antigo nome de Valle d'Amores.

Voltei para a Foz de noute no mesmo dia da feMa. O calor tinha sido excessivo, e depois do pôr do sol começou a soprai* um vento muito semelhante ao sirocco, irritante, cálido, que de nenhum modo se parecia com uma fresca viração. Em vez do ceu uzualmente claro, calmo e azulado com myria- das de estrellas resplendentes, havia grandes man- chas de nuvens cor .de fumo correndo por toda a parte, e um sopro mais forte de vez em quando le- vantava a areia movediça da Praia, da maneira a mais incommoda. Apezar d'estas indicações d'uma mudança provável de tempo, havia com tudo ali pas- seantes em grande quantidade.

Os Aínericanos, que desde as cinco até ás dez ho- ras da manhã vêem do Porto cheios de banhistas, á noute enchem-se a trasbordar com as pessoas que vivem na cidade ou perto, ou entre ella e S. João da Foz, as quaes regularmente dão o seu passeio, depois de jantar, pela Praia, onde tem a certeza de encontrar os seus amigos e relações, e assentam-se a palestrear e fumar debaixo das arvores por largo espaço. Não são somente os cavalheiros que se ajun- tam n'esta esplanada movediça e cheia de pó, mas é também o logar de reunião predilecto de suas ex- cellencias. Todas as classes, elegância, belleza e commercio do Porto e Foz deparam-se-nos ali tra- jando as ultimas modas de Paris. E um soberbo lo-

AMi;i!l(AX()S SKlilíA DO PILAI!, IVVC

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gar para namoros c entrevistas a furto. (Js seus úni- cos attractivos ppes-ntemente são acompanliia, uma suave briza, e uma vez por semana as harmonias da banda municipal: comtudo, por noutes de hiar, a Praia apresenta-se mais Ijuliçosa e animada, e nas outras também, antes da escuridão cair com- pletamente, porque os candieiros sobre a estrada são «poucos e de longe a longe». Na próxima esta- ção, dizem, estará feito um casino. As hespanho- l(U aqui vestem pela maior parte de preto, não es- quecendo os seus longos véus. Passeiam para bai- xo e para cima pelas allées, cheias de com uns gi-andes aros de magestade, agitando sempre os seus leques ; algumas trazem comsigo duas ou trez gentis crianças, sempre o mais elegant(3mente vesti- das, acompanhadas por quase outras tantas criadas, vestidas pittorescamente, com rozas vermelhas, ra- malhetes de jasmins e outras tiores naturaes, entre= laçadas nas tranças macissas do seu cabello negro de azeviche. Acompanha-as um escudeiro, trajando geralmente fato escuro, aprezilhado, faxa carme- zim e chapéu desabado. EUe parece servir para levar as crianças, correr atraz dos seus balões e soffrer submissamente as pequenas tyrannias do seu grupo de ?i/Aos travessos: outras vezes compartilha o ser- viço da criada grave da senhora: viio todos juntos atraz da sua ama, vagarosamente, a uma pequena distancia, e o escudeiro, tira de vez em quando algumas fumaças n'um cigarro, quando o pode fazer a occultas. Ás onze horas, os últimos carros lar- gam para o Porto: ha então um atropellamento ge- ral por cauza de logares, e a Praia fica cm parte

316 A FORMOSA LUSITÂNIA

vazia: mas quem está na Foz não se apressa a re- tirar-se, de modo que muitas vezes á meia noute ha ainda ali alguns retardatários.

A tarde da festa não convidava a andar á tuna ; mas eu, com os meus amigos portuguezes, fomos de passeio até perto do castello. Não havia luar. Tol- dava o ceu um largo cinto negro de nuvens arquea- das que se engrossavam. As vagas rugiam furiozas; na barra espadanavam alvejantes espumas, emquan- to no mar escuro rutilavam longos sulcos de luz phos- phorica. Cuidei que chovia; mas eram borrifos de espuma ã mistura com areias que as lufadas do ven- to quente nos atiravam. Não trovejava, posto que os relâmpagos vívidos e brilhantes coruscassem no espaço, agora, relampadeando por largo e envol- vendo, por instantes castello, montes e mar, em roixa luz intensa; logo, em linhas ondulosas que pareciam esbrazear o dorso das vagas, como se fos- sem uma acceza massa que se abria e fechava com deslumbrantes lampejos por entre nuvens lúgu- bres e negras. Não éramos os únicos espectadores da torva magestade d'aquella*noute. Muitas pessoas para ali tinham ido attraídas e contemplavam em grupos no alto da encosta. Ao de nós estava uma senhora hespanhola e um cavalheiro. A senhora tra- java a sua mantilha de seda nacional. De repente, quando eu estava conversando com o meu amigo, ouvi-lhe a cila dizer: a Si, si, es Ia scnora iiigle- za». Voltei-me para ella, e tive o prazer de aper- tar outra vez as mãos de pessoas que eu tan- to desejava encontrar, os meus amigos hespa- nhoes de Cintra. Eram onze horas tarde de mais

AMERICANOS SERRA DO PILAR, ETC. 317

para longas coiivei-.sarõos. Os últimos Afnmcanos iam cheios, do modo que o senhor de S. pôde apenas encontrai' um logar íura. Os hespanhoes, porém, não se apressaram porque tinham vindo do Hotel do Louvre em carruagem, onde combinamos encon- trar-se a gente na manhã seguinte; e, depois, como a noute começasse a estar medonha, dei-lhe as biie- nas noches á porta do meu hotel.

CAPITULO XXI

MATIIOZINIIOS HOTEL DA FOZ, ETC.

Ao alvejar da manhã, as ameaças borrascosas da noute desappareceram do espaço. Caíi*a o vento, mas havia vii'açri(j fresca; e a chnva, que tanto se receava, não virá perturbar, pelo menos já, a rotina quotidiana do meu viver na Foz. A grande pancada d'agua da noute passada melhoi'Ou muitíssimo o poei- rento caminho da Praia. Pousa sobre o mar uma leve nebrina. São cinco horas, e os companheiros de ho- tel,— quazi todos hespanhoes vão saindo, em tra- jes antípodas da elegância, tomar o seu banho ma- tutino. E uma ranchada de cahalleros, senoras, niíios, niiias, servidors e .s-ery /(iora.9 carregadas de troixas de toalhas e flanellas. Estão no pateo trez robustas mu- lheres, de pernas nuas, saias de grosseira baeta azul e enormes chapéus. Cada rancho leva uma banheira, e tem na pi^aia um banheiro A espera. As mulheres, de ordinário, hnam os pequenos á força, ou as ri- mas dos chalés, capas ou toalhas. Também eu vou sair ; mas não para a praia, que é escabrosa, poei- renta e aborrecidamente atravancada não de ba- nhistas, mas de vadios, e espectadores e espectadoras de galhofa. Quazi toda aquella gente se banha uma vez pelo menos, as vezes duas, e ainda trez por dia, conforme o numero de banhos que tèm de prefazer.

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Deve ser de vinte e um para cima, até cento e um, e não faltar á conta; mas baniios certos; que, se não, se vae o espantoso beneficio que as compleições hes- panholas e portuguezas attribuem aos banhos toma- dos por conta. A quantidade dos banhos é impar, talvez, porque se diz que está nos números impares o serem saudáveis os banhos ; acontece, porém, a miúdo que as constituições débeis mais se debilitam com o uzo excessivo de banhos, cuidando que se revigoram. Isto se dá, creio eu, frequentemente na Foz. O Ímpeto com que as vagas do grande atlân- tico se arremessam por aquellas estreitas angras e caneiros, ve-se nos milhares de fantásticas figuras que formam as ondas ao despedaçarem-se nos so- cavados rochedos.

O banhista, ao primeiro choque, está a ponto de sufibcar. Eu puz o peito á onda uma vez, e fui ati- rada aos braços vigorosos de um banheiro velho. Agarrei-me n'elle quanto pude, até que me levou para dentro de uma barraquinha branca, que é on- de se vestem os banhistas.

Desde então contentei-me com ir todas as ma- nhãs a Leça ou Mathozinhos. Parece-me isto mais tónico, e com cei^teza mais divertido, do que espo- jar-se uma pessoa esbaforida na espuma, ou esca- bujar nos braços d'um banheiro velho. O America- no, que conduz a primeira carrada de banhistas, se- gue depois para aquella formosa villa, ou povoa- ções gémeas, que distam da Foz milha e meia. Quando a maré vaza póde-se ir pela beira-mar; mas, como é de ver, o tramway corre affastado das ribas, em lindíssima estrada, que se curva ao avisinhar-sc

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de Mathoziíilios. Um rio que também se chama Le- ça intercorre de permeio a esta villa e Mathozi- nhos. Desde a ponte que as separa, a estreita cor- rente alarga-se até ao mar, formandí.» uma angrazi- nha, miniatura da Foz. Raras vezes succedeu acom- panharem-me mais de duas ou trez pessoas n'este passeio tam matutino.

O Americano limita-se a reconduzir banhistas a diversos cazebres aninhados entre fragas, ou até á Foz. Todavia, é d'uma belleza contínua quanto se avista em todo o comprimento da estrada. De- fronte da Foz avulta um alto monte de escuro pi- nhal, a cuja abra se alastram massas sobrepostas de granito fragmentadas. Depois, estirando-se atra- vés do ancoradouro, ha um longo banco d'areia chamado Cabedello, que, juntamente com uns pe- nedos submersos e outros cujos cabeços irrompem á tona d'agua, e com as traiçoeiras areias movediças, formam a terrível Barra do Porto. A bocca da Barra é tam estreita e perigosa que as saídas e entradas dos navios olham-se com ancioso interesse por seu salvamento. Ha quinze annos que o portuense traba- lha n'esta Barra; mas pouco ou nada lhe tem me- lhorado o ingresso. Os engenheiros dizem que ja- mais se fará ali um ancoradouro seguro. No entan- to, o vasto areal, o chuviscar da scintillante espu- ma, a asperidão das ribas e a brava fúria do vaga- lhão quando ruge e espadana entre as penedias, são muito para se verem, e muito realçam os encantos de S. João da Foz, linda villa balnearia, ex- quisitamente construída, com seus passeios por en- tre penhas de cazarias. li

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Prolonga-se a Foz, para poder accommodar o crescente numero dos seus frequentadores, estrada além de Mathozinhos, em longos quarteirões de ca- zas de um andar, pela maior parte, separadas entre si, no estylo chalet, com os telhados sobresa- lientes. Depois que se passam estas cazas, princi- pia a costa penliascosa e o vasto azul do mar á es- querda; á direita verdejam vastas campinas suave- mente declivosas, rematadas ao longe por pinliei- raes escuros. Uma ermidazinha, com o seu cruzeiro debaixo de um alpendre, ergue-se romanticamente situada n'um recosto, em uma chan musgosa, que se aplana sobre penedia. E dedicada a Nossa Se- nhora da Boa Nova, e grandemente venerada e visitada por pescadores e povoações marítimas d'aquelles sitios.

A corrida do Americano termina em uma herbosa Alameda, assombrada de renques de bonitas arvo- res. Está no centro uma estatua de mármore sobre pedestal de granito, erigida pelos habitantes á me- moria do estadista e eloquente orador Manuel da Silva Passos. Pode aqui apear e descançar dez mi- nutos apenas, se deseja regressar á Foz no mesmo vehiculo ; mas, se quer esperar pelo seguinte, pôde ir a Mathozinhos e visitar o templo que se orgulha gloriosamente de possuir a mais famigerada e mi- raculosa imagem de Portugal. Quando mais não seja, vale a pena passar duas horas sentado so- bre o copado docel das densas arvores da Alameda, a deliciar-se nos encantados quadros que a defron- tam.

Mathozinhos e Leça alvejam nas duas encostas

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que corvcteam graciosamente a encontrarem-se na angraziíilia. Por entre laranjaes e limoeiros, rozaes, murtas e cai-amancheis de pampinosas parras, re- saltam cottages, quinlas, e cazas campestres a ca- valleiro umas das outras. Reluzem os telhados es- carlates sobre as fachadas brancas e verdes, ou la- drilhadas de azulejos; ha d'ellas lindíssimas a sobre- saírem em teri-a amarellada e estrellada de flores alvíssimas. Enfolham parreiraes por cima das por- tas, ou trepadeiras que sobem até cobrirem porção grande de alguns telhados. Diversificam muito estas encantadoras habitações no feitio e extensão dos jar- dins e quintaes; todas, porém, são aceadas, e mui- tas elegantes. Estão na praia poucos barcos; dous içaram as brancas velas e vão fazer-se ao mar. Duas rezadas camponezas debruçam-se no peitoril da ponte; ou se estão narcizando na lympida corrente; ou, mais provável, estão namoriscando o barqueiro que está no seu bote debaixo da ponte.

No cabeço do outeiro ergue-se o templo do «Bom Jesus» ou nosso Senhor de Mathozinhos. Conta a lenda que a imagem d'aquelle nome, arrojada pelo mar tempestuoso, foi miraculosamente encontrada ha séculos, na praia ; mas sem um braço. Tempos de- pois, uma vellia pobre, quando andava á lenha entre os penedos da costa, encontrou um pedaço de pau, que muito lhe servia ao intento ; mas sempre que ella punha o madeiro no lume, na esperança de ama- nhar boa fogueira, elle recuava das chammas, o bor- ralho esmorecia, e o lume apagava-se de todo em todo. Pôz ella o pedaço de pau a seccar ao sol; mas se o punha na lareira, o resultado era sempre o

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mesmo. Isto alvoroçou-a como era do esperar. Foi em cata do padre e contou-lhe o estupendo cazo. Examinado por elle o pedaço do lenho, esclareceu-se o mysterio immediatamente. Não admira que o lume lhe não pegasse, sendo a supposta lenha nem mais nem menos que o braço perdido de Nosso Senhor de Mathozinhos.

Foi grande o pavor da pobre mulher que se jul- gou criminosa do sacrílego acto. Todavia, como pec- cára innoccntemente, obteve absolvição, logo que o braço adhcriu ao corpo mutilado. Uma imagem que por tal guiza triumphou das tempestades do pro- fundo, com certeza se demonstrou protectora dos que vão mar em fora. Occorreram vários mila- gres; propalou-se a fama, e para logo de perto e de longe confluiram peregrinos com votivos ofterto- rios.

Faz-se a romaria na festa do Espirito Santo, á qual concorrem para mais de 35.000 pessoas. A sa- christia da igreja abunda em hediondos painéis, figu- rando pavorosos naufrágios e tempestades. A ima- gem occupa logar proeminente aos painéis. Quando a perdição parece irremediável, o Senhor de Ma- thozinhos apparcce a serenar borrascas, ou a esten- der a mão aos submersos marinheiros, que o cha- maram na sua angustia. Estão convictos d'isto os pobres homens ; e os votos que fizeram n'aquella hora afíiicta para se salvarem dos colmilhos das on- das fielmente os depositam no relicário, chegado o dia da grande collecta. Aquellas pittorescas offertas, com aparvalhados dísticos, com quanto sejam ab- surdas e deploráveis producções, ainda assim fazem

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menos rii* quo coiidoer-se a gciito d'aquolles escra- vos de tam lastimável crendice.

Ha lindas vistas do ponto onde a igreja está. De manhã cedo, c que mais se lhes gozam as bellezas quando os primeiros i-aios do sol douram os ca- beços dos outeiros, e o reluzente colorido do ceu oriental resplende no espelho da funda corrente do Douro, que, em baixo na Barra, mescla as suas aguas iriadas com a vívida saphira do mar. Tanto ao nascer como ao por do sol, a Foz 6 explendidis- sima.

Cerca de duas milhas para de Mathozinhos está a aldeia de Mindello, onde se pôde ir por um delicioso carreiro á beira-mar. Na praia do Mindello desembarcou D. Pedro com o seu pequeno exer- cito de 750 homens, em 8 de julho de 1832. (•) Se- guindo uma vereda ondulosa, trepa-se a Íngreme ladeira de S. Gens, em cujo topo está uma capella. D'aqui, em toda a circumferencia, ha admiráveis perspectivas de terra e mar. Esta capella, por egual com a praia do Mondego, é local prezadíssimo do portuense. D'aqui de estas paredes estava D. Miguel vendo e esperando o êxito da batalha em baixo entre as suas tropas e o diminuto patriótico bando dos Pedroites. D'ali os viu derrotados, dispersos ; e, assim decidida a sua sorte, montou a cavallo, fu-

(•) Eram 7.500 os bravos. Roga-se á auctora que faça a addiçào da ci- fra nas ulteriores edições do seu livro, para que na Gran-Bretanha se não cuide que unaa invasão de 750 inglezes poderá ser funesta a Portugal. Nos séculos xv e xvi de vieram ás costas lusitanas uns piratas em quantidades maiores, e não apegaram muito dentro do sertão. Depois, pela pirataria di- plomática, vingaram melhores entreprezas.

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giu, e Portugal emfim sacudiu de si a tyraiiiiia do execravel déspota. (•)

O estridulo tinii' da campainha avisa os habitan- tes de Leça e Mathozinhos que o Americano vae lar- gar. Regresso no mesmo á Foz, sigo ate á Cordoa- ria e retrocedo; d'este modo, passeio todas as ma- nhãs oito ou nove milhas, que se andam em hora e meia por dous shillings- d'um cabo a outro, percor- rendo o scenario «sempre novo e sempre encanta- dor» do magestoso Douro e das alpestres ribas para além da Foz. Encontra-se também frequentemente no Americano um feitio de pessoas muito para di- vertir-se a gente. Topam-se ali todos os sexos, ida- des, e condições. Por fora da linha ainda funccio- nam as caixas sujas e abafadiças chamadas omni- bus. Encontram-se hespanholas com as suas man- tilhas, portuguezas de chapéus parizienses, damas provincianas sarapantonamente vestidas, criadas francezas e hespanliolas muito azevieiras, cinanças feias e bonitas, lindamente trajadas; ás vezes uma donzella «Engleesh mees», ou uma velha hirta e to- da engomada, empregando os rápidos momentos de ócio da jornada concertando as suas luvas, fazen- do vestidinhos de retalhinhos de musselina, ou, como quer que seja, exercitando suas propensões, e censurando assim a ociosidade dos outros. Os ho- mens são hespanhoes, portuguezes, e um ou dous

(•) Na concisão com que historia os casos épicos da refstauração da dy- nastia e Carta, parece Cornelio Tácito; mas, na exactidão, tem a singulari- dade de se parecer comsigo mesma, e com fr. Bernardo de Brito, esta se- nhora. Naturalmente, algum dos 750 Pedroites a enganou.

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inglozos. Algumas vezes cheguei ao eai-ro no mo- mento em que partia todo occupado. O conductor abria a porta e dizia: allnia senhora quer eíifrar.-» Immediatamente, erguiam-se trez ou quatro cava- lheiros, e eu assentava-me no logar do sujeito mais pi'oximo, o qual, cortejando-me, saía para íora. Um inglez decerto náo se levantaria para que uma mu- lher se sentasse no seu logar; e provavelmente, quando as portuguezas, no futuro, se emancipa- rem, como eu lhes desejo, á semelhança das suas ii*más do norte, egualando-se hombro a hombro com os homens, será tam rara em Portugal como está sendo em Inglaterra aquella espécie de deferên- cia cortezã e galantaria para com o «sexo mais frágil» constituido forte pela concorrência á vida commum.

Um portuguez velho, que habitualmente vae o vem commigo á mesma hora, e que parece ser pes- soa muito conhecida, sempre que entra, saúda as senhoras com um geral: a Viva, minhas senhoras.-» (•)

Refestelado aconchegadamente, saca dos profun- dos arcanos das algibeiras uma corpulenta caixa de prata, que sacode uma ou duas vezes para refrescar o contheudo. Depois, exhibe-a, e pergunta: aSua Ex- cellencia não quer rapéhy Pela parte que me diz res- peito, agradeço, mas náo me sii^vo. Alguns sujeitos tomam alguns grânulos entre o polex e o indicador; as senhoras, porém, a quem a caixa é primeira- mente offerecida, absteem-se da pitada, posto que

(■) Attendendo á grammatica da saudação, o sujeito devia ser com cer- teza pessoa muito conhecida no Porto.

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algumas condescenderiam, se fosse mais em se- gredo, ao indecente vicio de cheirar rapé. Logo que a caixa fez o giro, e volta ás mãos do velho, eil-o que atasca os dedos profundamente na pungente moxinifada; antes, porém, de levar ás ventas a in- gente pitada, curva-se para as senhoras, e diz: iiCom licença, aninhas senhoras.)) Obtida a licença, que lhe é dada com um sorriso e um ligeiro tregeito de cabeça, o velho sorve a pitada com deUcias, sacode o peito da camiza e collete cuidadosamente com um alvíssimo lenço de bretanha, remctte a caixa á algi- beira, e está acabada a cerimonia. Nos Americanos fuma-se pouco. Talvez que os senhores se não sintam bem sentados para aprazivelmente fumarem o seu cíg arrelio; ou será então que as bellezas da estrada em que vão absortos os fazem olvidar-se de tudo, como succede ás pessoas mais familiarizadas com aquella paizagem.

Muito antes das oito horas, banhistas e passean- tes estão no hotel. Principiam os almoços áquella hora, e os primeiros que se abancam são quatro in- glezes ainda moços e um velhote de soberba cata- dura. Conversam de navios, fretes e pipas. Estão na Foz a banhos e ares de mar; mas, durante o dia, mettem-se nos seus escriptorios na rua dos.Ingle- zcs. Rosnam e murmuram do chá, dos ovos escal- fados, do bife na grelha, e permittem-se umas cho- carrices semsaboronas contra os portuguezes «que não fazem idéa do que deva ser um almoço.» Outro conceito formaríeis se de um relance de olhos ámeza hespanhola e portugueza, reparásseis na disposição das garrafas de vinho e canecas d'agua, bandejas

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do fructa, pão hespaiiliol alvo o fino, i-imas do pra- tos. Isto inculca o substancial almogo que espora os hospedes, que volvidas duas horas chegarão, porque, ao voltar da praia, tomaram café o biscou- tos.

Eu não lho disso ainda que o meu hotel ó bom, commodo, e em tudo tão limpo quanto era sujo o outro onde poiuioutoi a primeira nouto. Se o meu amigo ingloz do Lisboa aqui viesse, acharia muito de servir o boi o o carneiro, penso ou. A alimenta- ção do Porto ó melhor que a de Lisboa, e a h^ucta o vinhos principalmente. Tudo, tirante os trens de aluguer, ó menos caro ; e isso mesmo em certas condições, ó compensado pela facilidade com que da Foz se vae a diversos pontos da cidade trez ou qua- tro vezes por hora no tramway.

O almoço e jantar á meza redonda são excellon- tes e esmeradamente servidos. Todos os dias appa- rocem na meza ramilhetes novos de lindas flores. Os criados, provavelmente gallogos, são destros, cuidadosos, e trajam limpas jalecas de linho branco. As criadas são mais pittorescas, com os seus col- letes espartilhados o aventaes brancos, lenços de pescoço azues ou amarellos, flores no cabello, gran- des bi'incos e collares. Uzam tamancos, excepto quando arranjam os quartos, porque então deixam- os fora da porta, o andam descalças.

Tem o hotel um pateo. A um dos lados está uma cazinha ou cottage, inteiramente separada do hotel. Está aqui uma familia hospanhola um joven cazal, com a mãe da senhora, trez meninos, algumas cria- das o um escudeiro. A espoza é talvez a mais bella

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mullier que cu ainda vi, cheia de graça e suavidade sem a gan^dice tam con genial das meninas h espa- nholas. Outra família também hcspanhola de oito pessoas, entrando trez crianças, chegou hontem. A senhora 6 magestosa, involta com propriedade e ele- gância nas largas dobras da gentil mantilha de seda preta. De que partes vieram não sei; mas viajam em ampla carruagem da antiga moda com um co- cheiro de botas e esporas, de farda com passama- nes, tudo no ve!ho typo. O escudeiro chama a at- tenção ainda mesmo dos seus patrícios, pelo enfai- xado, intrançado, impennachado e mais fantazias do seu trajar. Além d'estas está aqui outra familia hcspanhola com dous ou trez meninos, e respectiva criadagem, de modo que temos um grande viveiro de crianças. A tardinha, o pateo parece um terreiro de folga de collegio, e nos jogos da bola, dos es- conderelos, etc, entram de sucia os pães e os tios. As criadas também assistem, e as senJioras ti'azem para ali cadeiras, e ahi se ficam a olhar para aquil- lo ou a tagarellai'. Parece-me gente mui cazeira os hespanhoes. Davam todos uns ares muito regalados n'aquelles recreios infantis. Novos e velhos agru- pam-se com ares de grande satisfação, e, ao que de- monstram, são famílias ditozissímas.

Os que não se entretinham u'estas puerilidades, passeavam nos jardins que ficam nas costas do ho- tel. Não se acham extremamente cuidados, mas, ainda assim, têm graça. ao fundo ha um passeio coberto de parreiras, d'onde agora pendem grandes cachos. Ergue-se uma alta sebe afestoada de rozaes e outras fiores no ponto por onde entesta com um

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outoiriiih(j. Poi' tíjdo o j;ii'dim vocojam cIums ou ti'ez arvores ; uma íFollas tanta s(jmbi'a o lV(3.scura que uma dama allomã o o.sci'iptora, rozidouto no liotol, vao para ali estudar, e escreve emquanto o calor aperta. Do passeio da ramada descobre-se uma bel- la vista do Douro, quem olhar por sobre o tapu- me verá uma extravagante miscellanea de couzas bonitas e feias lindos arbustos e flores, latadas de uvas, e por ali passeiam o se retouçam ca- bras, cães e porcos. Dous ou trez sujos rapazitos dão cabriolas na areia, e uns gatos desorelhados e derrabados estão a olhar para elles pachorrenta- mente. Cauzam-me compaixão os pobres bichanos, que parecem envergonhados da figura que fazem. É estúpida a costumeira de lhes cortarem a cauda e as orelhas na crendice de que ficam mais rateiros. Deve-se também reparar n'umas cazinholas em mi- nas que, não obstante a sua ruim sorte, são na verda- de admiravelmente pittorescas, com a sua folhagem de videiras a cobril-as, e aquellas arvores das trazei- ras que bracejam por sobre ellas e lhes disfarçam as ruinas. E assim mesmo vivem famílias n'aquelles mizerrimos cazebres. O pavimento é térreo, com um degrau de pedra, a espaços. Em uma vê-se o marido, a mulher e dous filhos que estão comendo. Sentam-se no chão, á volta de uma travessa de bar- ro, e comem com colheres. Pois, sem embargo de tal pobreza, a mulher tem ao pescoço um fio de bri- lhantes contas, que provavelmente são de ouro.

A velha Foz tem taes caprichos de edificação, que, se ergueis a vista para cima couza de vinte va- ras, onde surge uma luxuosa caza, com espaçosa

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varanda, vôdes, reclinada cm sophá de uma sala bem adornada, uma elegante senhoi^a abanando-se, cmquanto outra toca piano.

Curvemo'-nos sobre o valle. Mesmo adeante do jardim, está um bello loupeim-roza, e á beira outro arbusto liorecido com grandes flores escarlates. Ao d'isto lia uma espécie de chiqueiro, com um te- gurio onde moram duas ou trez ci'eaturas, que cos- tumam debrucar-se da janella a pedir esmola a quem vae passando.

É original esta maneira de mendigar ; mas com certeza é menos incoinmoda e talvez mais provei- tosa que pedir pelas ruas. O certo é que os mendi- gos nas ruas do Porto são menos que os de Lisboa. Nos arrabaldes da cidade é que ha muitos. Ahi con- tinuamente se nos deparam deploráveis exhibigões, uns pobres prostrados no macadam, outros aos gru- pos, meios niis, roídos de chagas, trémulos de velhi- ce, ou cegos ás apalpadellas. Assim que presentem caminhantes, ou se deitam por terra aos gritos, ou se levantam pedindo clamorosamente uma esmolinha em toada lamuriante.

No lindíssimo trajecto da estradade S. Mamede, são tantos os mendigos á beira do caminho que me affligia vel-os. Não duvido que alguns sejam sin- ceramente e extremamente desgraçados e dignos de muita piedade; mas alguns exageram o papel que reprezentam. Vi uma mulher deitada debaixo de um enorme guarda-sol como uzam as regateiras da praça. A volta d'clla estavam trez crianças. Quando alguém, a ou de carro, se aproximava, punha-se ella de joelhos, levava as mãos á cabeça, e pegava

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a berrar por Deus, pela Virgem e pelos santos. De- pois, como desesperada, deixava pender os braços ao longo das ilhargas. De repente, ei^guia a cabeça, fingindo que me via pela primeira vez n'aquelle in- stante. Dava-se ao rosto uns ares de arrebatador alento, como se estivesse salva; estendia os braços impetuosamente, e, com mais plangente toada, pe- dia soccorro. Seria isto um bom lance theatral : pena é que ella, em beneficio seu, o não exhibisse no palco. Couza de cincoenta varas adeante, um ho- mem, marido d'ella talvez, estava agachado ao de uma pilha de calhaus, e parecia cobrir-se unica- mente com um saco velho, ou uma peça de fazenda assim grosseira. Quando a carruagem se avisinhou, ergueu-se e saltou para meio da estrada, e, com os braços erguidos, conjurou-me por tudo que para mim havia sagrado no ceu e na terra não passasse sem lhe deixar uma esmola. Era um homem alto, trigueiro, com espessa barba negra, e o cabello des- grenhado tam pavorosamente que daria excellente modelo para o typo de uma «cabeça de serraceno». Flammejavam-lhe os olhos, e tinha uns gestos tam sacudidos que eu pensei que o homem fazia parar os cavallos para nos pedir a bolsa ou a vida, porque elle surgira do ponto mais escarpado e ermo da estrada, e o cocheiro, que era pi^eto, parvoamente susteve a andadura da parelha. O lanço, na verdade, foi as- sustadoramente melodramático ; e assim vingou elle mais uma vez o seu programma que era apanhar aos passageiros de súbito, com um vago terror, maior esmola do que lhe dariam simplesmente mo- vidos pela compaixão. Quando voltei, o selvagem

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quiz recomeçar o acto ; mas eu, pela minha parte, não repeti o meu. Scenas taes enojam o animo, e eu me espanto que se não prohibam restrictamente, porque no Porto lia grandes mananciaes de cari- dade que costeam os hospitaes e outros institutos. Ouvi, todavia dizer que não existe uma sensata orga- nisação para remediar o pobre, e que a liberalidade dos portuguezcs no dar da esmola é um incentivo ã mendicidade.

Voltemos, porém, ao jardim do hotel. Ao lado do cazebre de cuja janella os mendigos imploravam soccorro, está o pomposo palacete de um magnate portuguez. Saiba pois que na Foz os extremos se tocam: é uma miscellanea de incongruências. A natureza, porém, suaviza tudo isto, não com ver- dura, com flores, límpidas correntes e ridentes col- linas, alcantis de rocha e fúrias de vagas ; mas ain- da tão peregrinamente mistura o bello e o variado de suas obras com as extravagâncias desalinhadas do homem, que a Foz vos impressiona profunda- mente, a despeito dos seus cazebres, dos seus por- cos, dos seus mendigos, como um complexo har- mónico e bello.

CAPITULO XXII

HESPAXIIOKS, PALÁCIO DE CRYSTAL, TIIKATIÍO

Opurlo. Tencionava eu positivamente, como lhe disse, sair do Porto, ha dias, e ir á Mealhada, entrar aqui na diligencia, ou n'outro qualquer ve- hiculo, e visitar o Bussaco. Effectivamente e com grande magua deixei S. João da Foz; mas, anda- vam sempre a insinuar-me no hotel que todos os quartos, tirante os occupados por hespanhoes, es- tavam alugados por todo o restante tempo de ba- nhos, até fim de outubro, por familia hespanhola, que estava a chegar, e que então haveria completo despejo de inglezes, portuguezes e allemães. Disse- ra-me o filho da dona do hotel que era forçoso isso, por ser muito grande a familia; mas não impugna- vam dormir aos trez e aos quatro, e mais ainda, no mesmo quarto, como parece que fazem os outros hespanhoes. Este contracto, disse elle, que lhe dava mais interesses do que alugar um quarto a cada pes- soa, e afora isso o maior numero iria á 7neza re- donda. Resolvi sem mais delongas desalojar; e ás seis da seguinte manhã, o mesmo rapaz, que é meio inglez, meio portuguez, e em extremo delicado, trouxe-me pessoalmente o almoço ao quarto. Ven- do que eu estava zangada, disse : «A senhora por- que se vae embora contrariada? Peço-lhe que fique.»

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O snr. dissG-me que eu sairia ; agora, estou prompta e sairei.

Não, não, madama; eu dezejo muito que fique.

E eu não dezejo ser expulsa pelos hespanhoes.

Expulsa, madama! A senhora é injusta! Não vá; rogo-lh'o toi^nou elle enternecidíssimo.

Mas como eu tivesse entroixado, e como tivesse á porta o archeologico vehiculo que me fo- ra buscar a Villa Nova, permaneci intlexivel. A partida, o meu joven hospedeiro fez-me a não soli- citada promessa da imperturbável posse do mais lindo quarto por todo o tempo da estação próxima futura.

Gasta-se uma hora nas subidas e descidas que conduzem ao terminus em Villa Nova de Gaya ; mas, como sobejasse tempo, parei en route para dar o ul- timo adeus aos meus amigos de Hespanha. O snr. Rivas e Dona Rita (cumpre-me dizer-lhe que estes nomes são suppostos) estavam a ponto de sair a passeio; mas, por minha cauza, prefeiúram fazel-o agradavelmente até Villa Nova, Chegamos tão cedo que faltava ainda uma hora para a venda de bilhe- tes e recepção de bagagens; e, no decurso d'esta hora, persuadi os meus companheiros a retroceder- mos, e gastarmos dous ou trez dias em novas ex- plorações no Porto. Tinham mudado de hotel ; mas rezidiam ainda na cidade; e, como havia quarto, hospedei-me na mesma caza.

O snr. de E. . ., portuense meu conhecido, con- siderava-os «gente mysteriosa», porque elles pare- ciam evitar outros hespanhoes, e também os ima- ginou carlistas. Eu, porém, notei que elles, tanto

HESPANHOES, PALÁCIO DE CRYSTAL, ETC. 337

aqui como em Lisboa, friamente se affastavam dos seus patricios, que entre si se repulsam á maneira dos inglezes encontradiços no Continente, os quaes, por cauzas de muitissimo menor alcance, desconfiam de toda a gente, e nomeadamente dos seus conter- râneos. A razclo é que, viajando hoje em dia todas as classes, se a gente é «communicativa», como se diz, quando mal se precata, está-se desfazendo em cortezias ao seu especieiro ou padeiro ; e logo que tal descoberta se faz, ahi estão os amores-proprios mu- tuamente beliscados.

Mas, revenons à nos moutu7is. Os hespanhoes são assim glaciaes na região politica, e sobeja razão têm para que actualmente o sejam. Na con- versação esqui vam-se de todo a assumptos políti- cos ; e raro se como averiguado a qual par- tido pertencem. Muitos d'esses que estanceam em Portugal com suas famílias denotam que sobretudo almejam a segurança de suas teri-xs e haveres, e abstêm-se cuidadosamente em manifestar opinião; por quanto, quando acabar a infeliz lucta que os obrigou a emigrar, ser-lhes-ha conveniente declara- rem-se sectários do partido que vencer. Seja porém, como for, eu nada tenho que ver com as opiniões do snr. Rivas. Elle e sua irmã mostraram-se-me affectos á nação ingleza; e eu, com quanto não possa assegurar se sou tam affecta aos portuguezes como aos castelhanos, por mim, embora elles se- jam conspiradores carlistas, como F. suspeita, asse- vero que prezo estes meus recentes amigos hes- panhoes, porque são muito lhanos e agradáveis.

Recuzamos os legares ã meza redonda e almo-

338 A FORMOSA LUSITÂNIA

çamos em um quarto ú parte, muito alegres os trez, desmentindo o provérbio que diz : «Dous são compa- nhia; trez não são nada.»

De tarde fomos de carruagem ao Muzeu, onde o melhor que pudemos nos extaziamos deante do chapéu armado e do óculo de campaidia de D. Pe- dro IV, e do grosseiro montante que pertenceu ao formidável exterminador dos mouros, D. Affonso Henriques peça que parece avantajar-se em apre- ço aos mais thezouros do estabelecimento. Attri- buem-se todas as pinturas a famosos mestres antigos. Quanto a numero, a collecção é mui notável ; mas o snr. Rivas, que parece ser apreciador, desfaz em todas, salvo uma ou duas, como copias ; sendo tudo o mais, moderno e desvalioso. E excellente, no en- tanto, a livraria, assim em collocação como em boa ordem. Contém cerca de 90.000 volumes, dos quaes pertencem ao século XV 102. Afora isto, estão de- positados mais de 100.000 volumes n'este vasto edifício, antigamente mosteiro de S. Lazaro, proce- dentes das livrarias dos extinctos conventos. (*) En- riquecem o Muzeu curiosos manuscriptos, sendo al- guns do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, ante- riores ã invenção da imprensa. (*•)

(•) S. Lazaro nunca teve mosteiro de frades em parte alguma do orbe catholico. A invenção portugueza em matéria de frades nào foi tam longe. Houve desde o século XI cavalleiros de S. Lazaro; mas monges não. Os do- nos d'aquella caza eram frades Antoninos.

(••) No Muzeu não ha manuscriptos. Esta advertência é feita aos milha- res de amadores que em Portugal costumam atropellar-se á porta dos esta- belecimentos onde ha manuscriptos.

HESPANHOES, PALÁCIO DE CRYSTAL, ETC. 339

P(ji'corroiido a ma do Ti-iumpho, e perpassando por mais dons (3xtiiictos coiivoíitos, S. Bento e Carmo

convertidos hoje em magestosos quartéis, com teri'aços arborizados chegamos aos áditos do Pa- lácio de Crystal, na elevada planicie da Torre eh Marco, extrema occidental da cidade alta. Eu tinha vizitado aquelle explendido local, uma vez que subi pela Íngreme montanlia que desce á orla do rio ;

e árdua empreza commetti em uma cálida manhã de estio, posto que o Americano me conduzisse desde a Foz até Massarellos ; mas fui subindo menos mal, porque, a relanços, deparava-se-me uma pedra ou ribanceira do monte em que eu ia descançando; e a cada revolta do caminho, e de sobi-e cada eminência que ia ganhando, se horizontavam perspectivas cada vez mais amplas, variadas e formosas.

Não ha bazar permanente no Palácio, e n'esta occasião, que nada havia que ver, pagamos um vintém de entrada. E um bom edifício; mas pequeno, se o comparamos ao nosso Palácio de Crvstal de Sv- denham. As paredes são de granito do Porto, a cúpula e os tectos das avenidas lateraes são de ferro e crystal. A planta é de Mr. Shields, architecto in- glez. E quadrangular. Mede cada flanco 110 rrietros, e tem em cada uma das extremidades um pavilhão torreado, t] magnifica a sala de concei^tos, com o seu órgão explendido. São por egual attractivos o Muzeu, galeria de pinturas, o bilhar, gabinete de leitura, salas de restaurante excellentes, vastas, al- tas, elegantes, e toucadores para as damas quando ha concertos ou outros divertimentos. Revô primo- roso gosto nos parques e jardins, adornados de es-

340 A FORMOSA LUSITÂNIA

tatuas. Eiitra-so por uma larga avenida orlada do arvoroílo. Sorriom om i*odor alogrotos de Hores de variadíssimos matizes. Ha uma estufa de plantas d(js trópicos ([ue, a bem dizer, pouco precizam de tal resguardo. O hábil architecto-paizagista, sob cuja direcção se plantaram e dispozeram aquelles delicio- sos jardins, aproveitou as ondulações do terreno em que as extremas da esplanada curveteam. Nos fun- dos recôncavos da montanha ha grutas e cavernas; ha chalets e pavilhões alcandorados nos cabeços das collinas; chafarizes, cascatas, lagos em que se espa- nejam soberbos cysnes brancos e jji-etos, passeios j)oi' alptístres selvas, al(3as de castanheiros, chorões, gi'aciosas pimenteiras, e boscagens sombrias res- cendendo suavemente murtas e jasmins verdadei- ramente um jardim paradisico.

Não me 6 possivel, todavia, dar-lhe, muito pela rama, a conhecer a magnificência e belleza do vasto panorama que embelleza os olhos em todas as di- recções d'a.quelle ponto elevado. Ali está a viventis- sima cidade do Porto com as suas flechas de torres e formosos edifícios públicos ; em baixo, grupam- se as cazas alvejantes de Massarellos, como a es- preitarem por entre o alto arvoredo, cuja ramaria as copa de verdura; aqui mais pei'to, no seguimento da graciosa curva da esti'ada, estão os palacetes de Entre-Quintas, emboscados em vinhedos, jardins e vergéis. Em uma d'estas quintas morreu Carlos Al- berto, da Sardenha; e mesmo em h'ente, está a ele- gante capella de granito, consagrada á memoria d'el- le por sua irmã a princeza Augusta de Montlear. Em frente deriva o Douro mansamente mormuroso.

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HESPANHOES, PAL.VCÍO \)K CllYSTAL, ETC. 341

e, na margem fronteira, está o gracioso subui'bi(j do Caudal um como jardim tioi'id(j, onde pui* cn- tve balseií^as e arvores branqu(;jam pittorescos cot- tages. Mais ao nascente, está Villa Nova, que se levanta como imprevista da ourela do rio; e, acima da ponte pênsil, veem-se as grossas paredes da an- tiga Serra do Pilar, carranqueando dos seus es- carpados alcantis. Com a sua escabrosidade e aspe- reza contrastam as altas e verdejantes collinas, a fragi'ancia dos arbustos, as moutas de silvestre flo- recencia, as bouças de carvalhos e castanhaes, e os pinhaes na espinha da serra fechando ao longe o horizonte. Ladeiras de matta e risonhos valles dis- tendem-se ao poente quanto a vista pode abranger; e ao longe, por este lado. Foz e Mathozinhos se ligam mediante o rio, e em frente d'ellcis se revolve o turbulento Atlântico. (•) E como docel d'este sce- nario encantador, que azul o d'aquelle ceu ! Azul ao nascente, onde lucilla uma brilhante estrella; azul por toda a amplidã(j, até que no occidente se pur- pureia; e o sol se atufa agora, sem névoa que o desluza, nas ondas do mai* opalizado.

Em noutes de luar estivo, são mui concorridos os jardins. A claridade intensa dos raios argentinos imjjrinie-lhes uma mystica belleza e solemne explen- dor indescriptiveis. Nos domingos e dias festivos, uma multidão ti'ajada pittorescamente se ve por ali saracoteando-se nos jardins e á sombra dos convi-

(•) Confundiu piovavelmente Leça com a Foz.

342 - A FORMOSA LUSITÂNIA

dativos bosques, ou por se dispersam em grupos pelos recantos floridos.

A noute, fomos ao thoatm principal, que é o de S. João, ver a famosa actriz portugueza, snr/ Emi- lia das Neves. Está ella a retirar-se do palco, e veio ao Porto dar algumas representações por despedi- da, antes da sua derradeira estação em Lisboa. Com quanto haja grande calor, e esta não seja a sazão theatral, a caza estava a extravazar da gente, e ha- via lá senhoras galantissimas : significativa conside- ração prestada á talentosa actriz, por quanto as- sim se explica o voluntário e grandioso martyrio de quem ali foi respirar tão abafadiço ar. No entanto, cumpre conceder-lhe notável engenho para poder captivar espectadores em circumstancias tão desfa- voráveis; e, com certeza, é de crer que profunda- mente os commovia. Tem um accionado elegante e enérgico. Representava a parte de Joanna, na Joan- na a douda, traducção do drama h\anccz Jeanne le folie.

A saía é em forma de ferradura, bellamente or- namentada, com o tecto pintado de medalhões com os retratos de dramaturgos e poetas portuguezes. Por muito que eu desejasse conservar-me até ao fim da récita, não pude. Nem leque nem agua de colónia me aproveitaram. Parecia-me estar inha- lando o hálito ardente de um forno. Vi-me obriga- da a fugir. Ha ali um decentissimo salão de espera, onde se servem sorvetes e outros refrescos. Deti- ve-me algum tempo, e fui para caza. Era uma noute amonissima ; mas o Porto, dado que seja mais ani- mado de dia, tem menos vida que Lisboa, de nou-

1IES1'AXII0E8, PALÁCIO I)K CRY.STAL, ETC. 343

te. Os estrangeiros qac rezidem aqui, n'csta esta- ção, folgam de ir até á Praia da Foz, ou a qualquer dos encantadores terraços e alamedas das Fontai- nhas, Virtudes, S. Lazaro, etc., localidades que, ou sobranceiam o Douro pelas formosas vistas, ou con- vidam a passear por sitios altos e ventilados.

CAPITULO XXIII

EGREJAS, MERCADOS, RUAS

Talvez suppoiíhci que eu dei por concluído o que tinha a dizer sobre a terra clássica da liberdade e da industria, uma das predilectas qualificações com que os «portuguezes de velha tempera» nobilitam a sua querida e antiga cidade do Porto. Mas, por muito tempo que tivesse aqui rezidido, poi' mais que per- corresse, subindo e descendo estas ladeirosas ruas algumas espaçosas e as mais d'ellas estreitas, e poucas modernas por mais que lhe praticasse as caprichosas tortuosidades, os altos e baixos, os lin- dos jardins, os bellos palácios, egrejas e praças, e o Douro que serpeia, e o povo que tumultua, e os bonitos e pittorescos trajos dos aldeãos, e a ruidosa antigualha dos carros de bois e outros mil attracti- vos; quanto mais bellezas se lhe deparassem mais se sentiria captivo d'esta terra, e somente constran- gido a deixaria. Forçoso é, porém, que eu me ar- ranque d'aqui : é irremediável a violência; mas, antes de dar o adeus final á leal e invicta cidade vou mandar-lhe um rápido bosquejo do que fiz recente- mente.

346 A FORMOSA LUSITÂNIA

Vizitei bastantes egrejas, principiando pela ou cathedral, fundada, segundo dizem, no sétimo ou oitavo século ; mas, sem duvida, edificada e reedifi- cada por vezes depois da primitiva data. E mages- tosa internamente. As esculpturas do altar-mór são soberbas. Um dos altares lateraes tem um retábulo de prata estreme ; e na sacristia ha de mais valor, um quadro da Virgem e o Menino Jesus. Repu- tam-no de Raphael. São bellos e em puro estjlo go- thico os claustros. As paredes lateraes, como em S. Vicente de Fora, de Lisboa, são ladrilhadas de azu- lejos pintados, mas os assumptos ressabem mais á biblia que os da outra egreja. Na commemo- ram-se os cantares de Salomão; em S. Vicente il- lustram-se as fabulas de Ezopo, e vários assumptos profanamente cómicos, com certeza irrizorios, mas deslocados na claustra de um templo.

Contíguo ã cathedral está o paço do bispo. O que ahi ha digno de menção é a escada de fina cantaria, com o tecto pintado, e a vista que se goza olhando da balaustrada para cima. A e o palácio assen- tam na parte mais sobranceira da cidade, rosto a rosto da Serra do Pilar.

Durante o cerco ambos soffi^eram muito com os projectís arremessados d'aquellas trincheiras mo- násticas. (•)

(•) Presume que os frades da Serra bombardeai'am o Porto. Tivemos occasiào de vêr que Lady Juckaon estudou nas localidades a historia do cer- co, subindo á capella de S. Gens, onde D. Miguel «assistiu á derrota final do seu exercito.»

EGREJAS, MERCADOS, RUAS 347

Desejei ardentemente subir á toi-re dos Clérigos ; mas não se encontrou quem abrisse a poi'ta. Pare- ce que, em geral, as egrejas do Porto fecham-se muito cedo. S. Bento, que tem um excellente ór- gão com admiráveis adornos de talha, invariavel- mente se fecha antes das nove da manhã. N'um pa- teo contiguo, estão sempre lavadeiras a lavar em um tanque central que lhes fornece agua em abun- dância; e varias mulheres rodeadas de jigos de fru- cta e hortaliça, converteram o rocio exterior n'uma espécie de Covent Garden em miniatura.

Por fortuna, consegui entrar na Capella Real de Nossa Senhora da Lapa, onde jaz o coração de D. Pedro em urna de granito á mão esquerda do altar- mór. Legou elle ã cidade do Porto o seu coração, como testemunho de gratidão á lealdade dos habi- tantes devotados ã sua cauza. E formozissima egre- ja a Lapa. Está-lhe á beira um vasto cemitério, em que avultam curiosos moimentos e sepulturas.

A egreja que talvez o impressione como mais explendida, se aqui vier ao Porto, é a de S. Fran- cisco, fundada em 1233, á qual frequentemente cha- mam «a egreja de ouro». As esculpturas das colum- nas das naves d'este magestoso templo são primo- rosas, e todas sobredouradas. Isto, se não revela um supremo bom gosto, é espectaculosamente scin- tillante. A Bolsa actual occupa o espaço do antigo convento que pertencia áquella egreja, que foi quei- mado em julho de 1832. Estava então aqui aquar- telado o batalhão de caçadores 5 ; e os frades, co- mo dizem que depois se provou, pegaram de noute fogo ã caza, na esperança de que a maior parte da

348 A FORMOSA LUSITÂNIA

tropa perecesse no incêndio. Tinham combinado que, á mesma hora, duas da manhã, outros conven- tos occupados pelo exercito Pedroite seriam também incendiados, de modo que os aquartelados não se podessem mutuamente soccorrer quando tocasse a fogo; e, na confuzão em que tamanha catastrophe devia pôr a consternada cidade, havia o plano de assassinar impunemente D. Pedro.

Os monges, expeditos em demazia, e sedentos de encetarem a obra infernal, não esperaram que o batalhão adormecesse. Pozeram fogo ás duas extre- midades do convento, antes da hora aprazada para o execrando feito. Mas para logo irromperam as la- varedas ; soou o giúto d'alarma, e as tropas aquar- teladas nos outros conventos acudiram aos seus ca- maradas de S. Francisco. Morreram trez homens e queimaram-se as bandeiras do batalhão. Tirante o claustro, o convento foi completamente destruido. O terreno que occupava deu-o depois D. Pedro ao Corpo commercial do PoiHo, como prova de apreço e gratidão aos serviços que os negociantes d'esta ci- dade liberalizaram á cauza da liberdade.

Sobre as ruinas do convento edificou-se pois um magnifico edifício, que é a Bolsa, e vinte annos levou a construir. Contém uma serie de vastas sa- las decoradas com riqueza e elegância. aqui se fizeram festejos reaes, e nos seus enormes salões se deu a Exposição de 1861. O claustro do convento foi conservado e induzo no plano do novo edifício. Erigiram-lhe no centro um magnifíco chafariz ; e onde outr'ora afradaria se espanejava folgadamente, juntam-se agora os negociantes a mercadejar prós-

EGREJAS, MERCADOS, RUAS 349

poro prozagio pai'{i o futuiT) de Portugal ! (*) Apagado

0 fogo, Ibram prozos ti'(3z íVanciscauos. A (;ninina-

1 idade de um era tam evidente que o espingardearam logo. Aos outros eucarceraram-os. Eucorrou-se o templo, e poi* largo tempo não houve missa nem acto religioso qualquer. Esta tentativa extermina- dora do exercito Pedfoile, com outras indicações de opposição monástica aos intuitos de D. Pedro em li- bertar e prosj)erar a nação, motivaram a abolição das ordens religioí-as em Portugal.

Obsei'vei que os meus amigos hespanhoes eram mais methodicos do que; eu cim suas investigações. Enfadonha couza é pei'curi'er regularmente egrejas e palácios. E melhor entrar n'uma egreja quando as portas cazualmente se íVanqueiarn e apanhar as exquizitas lendas que lhes dizem respeito, contadas por algum pobre diabo carola que se encontra em adoração. Antes isto que escutar as historias sódi- cas de um cicerone em forma. D. Rita, de mais a mais, sendo catholica, como que se escandaliza de ver profanados, diz ella, tantos mosteiros de fra- des e freiras, e censura acremente D. Pedro pelo bom serviço que fez ao níino, livi'ando-o das legiões de h'ades, e h'anqueando as portas ã e vazão das freiras. A julgar pelos conventos secularizados e

(■) Eiicommendoi a nota correspondente a esta cxclarnaçíio aos accio- nistas dos bancos fuUidos. Nào veio a tempo : irá na 2.» ediçào do livro. Ou- ço dizer que os espectros dos frades divagam alta noute na claustra, onde agora se agrupa o corpo commercial. Ao cantarem um De profundis sobre a morta honra das industrias commerciaes, lavam como sucia de Pilatos os os- sos das mãos no chafariz, e somem- se nas catacumbas.

350 A FORMOSA LUSITÂNIA

empregados utilmente, pôde deprehender-se a gran- de sujeição da terra n'outras eras. Sentem-se-lhe ainda os effeitos na ignorância e superstição do po- vo rural e da classe ínfima; mas, como o tempo faz milagres, é provável que a razão venha a prevale- cer de todo, apeando os cepos e os calhaus, de mo- do que essas couzas, á semelhança das luras claus- traes, se volvam em Portugal meras reminiscências do passado. Confiamos em que nunca se restaurem em Inglaterra. (•)

É sabbado. Vae grande animação na laboriosa cidade. É agora occasião de ver as secias cachopas dos arrabaldes do Porto. Que patear e estralar de tamancos ahi vae ! É uma toada estranha, mistura- da com o susurro de um vozear alegre, rizadas es- tridulas, e o variado estrondo do tropel das ruas. Quando, pela primeira vez, se ouve aquillo assim confuzo, não se percebe a procedência d'aquelle rá- pido e incessante tic-tac. Pois com tamanha agita- ção e com o apregoar dos regatões que offerecem pelas ruas as suas mercadorias, é isso nada com- parativamente ao berreiro com que os vendedo- res de insignificantíssimas couzas nos atordoam os ouvidos em Lisboa. No Porto ha mais obras e me- nos gritaria; e os jumentos, segundo me pareceu, lidam aqui menos e não nos regalam a miúdo com aquelle «longo zurrar aspérrimo do burro», que tan-

(•) Deixa esta senhora claramente transluzir do seu peito a herética pravidade que a inflamma contra os nossos santos que ella trata de cepos e calhaus ! Dignem-se os céus alumial-a.

EGREJA.S, MEllCADUS, llUAS 3Õl

tas vezos parece em Lisboa corresponder dignamen- te aos pregões dos donos.

Devia de ser a de mais faina provavelmente a occasião em que eu vi a ruidosa vida do Porto. Uma chusma de labregos com carros tirados a bois ti- nham já chegado e descarregado o cari-eto ; outros estavam descarregando, ao mesmo tempo que uma longa enfiada de carros estrondeavam e chiavam horrendamente (•) quando os bois extenuados su- biam a Íngreme calçada que vae dos Clérigos. Sendo este o ultimo dia que tencionávamos demorar-nos no Porto, desejou o snr. Rivas que vizitassemos a egreja de S. Martinho de Cedofeita. Este nome sin- gular prende com historias longas e maravilhosas : poupal-o-hei [a ouvil-as. É a mais antiga egreja do Porto, fundada em õ59, única em que os mouros, dominadores de Hespanha e Portugal, permittiam, mediante certo ti'ibuto, que houvesse missa. E de tradição que a pia baptismal ainda existente na egreja é a mesma em que se baptizaram o funda- dor, rei Theodomiro e seu filho. Promettera elle a S. Martinho de Fi'ança fazer-se christão se seu filho, que estava em perigo de morte, se restabele- cesse pela intercessão do santo ; e, a fim de o mo- ver a pedir, mandou-lhe um relicário de ouro e pra- ta que pezava tanto como o filho. Contam-se prodi- giosas lendas referentes a estes successos. (••)

(•) Fantazia.

[ ) íantazia.

(••) Tudo isto é fabula auctorizada por algumas dúzias de archeologos portuguezes, bem intencionados e boas pessoas aliás. A egreja de Cedofeita pertence ao século XI. A data 559 é uma fraude relativamente moderna

a^)2

A KOHMO'

O sur. Itivíis lui de < ver as mi morosas catacn as d<í Koma, c são um» ou fomos á rra(;a do Anj'^ 'í»n cados portiionsos, «• aínii | iiosco o snr. Hiva-

DVvsta |)ra<;a cliaiiiail lioiivo caza rolif^iosa, on (Nulo. (•) Ka<'oaii(l<j com ros (lo oscadas dv |n'dr.' patamal, por oiido >o «mi alínnrdas. As avoiiida> .t o coiítro, oiido estj\ imi toira ali dispiMisa o mmi lua r tanta o tam agnul. as horas do moroado, n- nii s(» ostii*am a dormii* lo. Puróm, a grando l> os cestos trasbordam d< o (|Uo uvjis agora ali ha rãs o pòras de sahi»r d molõos, lindos ramilh«*t' a osporio, tam \ ' om (^nrcnt (ítinhn -• |'

«ra S. 1 raiici.sco

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mais a inscripçjVi. (^-.i i i !.■. leia a ' ' Ab-ian^irc

Ilerculiino ouvimi a<> t-i '.a no lÍTr «"'« I''-'^^'

gul, pap. 379 e seguinte». E iuU> d< ilUr o doati««Ímo ««cripto do

snr. Augusto Filippc StmOes hr itrAitettmra rommuo-tytaatina em Portttyal, pag. 20.

(•) Xào fui conveuto, tna« sim a recolhimeotn para de» orphio», fun- dado eui 1G72.

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r«ih» i w

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EGREJA, MERCADOS, RUAS

353

mais que o pivro p<.' que ali se eompram. Ha mui- tíssimo frango Ijraiio que se e^stima de preferencia como em Lisboa; tiião é menos digna de reparo a exposirão das reguiiras e raparigas rozadas, les- tas, desnalgadas, om as suas arrecadas e cor- dões.

Do mercado do .njo descemos á rua de D. Fer- nando em que d<'nKa o Banco e a frontaria da Bol- sa. Vimos a Frilori iinjleza, ampla e boa caza- ria ou club onde niinveiMio se dão bailes e outros divertimentos; depis subimos a ini;reme rua de S. Joilo, onde moram 'specieií-os, em lojas de vários formatos e as maisugubres do Poi-to. A rua r edi- ficada em arcaria, oi* debaixo da (piai passa o rio Villa, que desíMid)oa no l)oui-o. (•)

Da rua de S .1. ,. atravessam»» para a rua das Floi'es pelo /.' DomifKjns. (•) Dillicilmente

podíamos livin no rsearpado da snijida. Sc a

gente, quando ati-avssa, encontra uma jnnla ou duas do bois a (ir- i ai'(pu'jar('in pai'a lincarem as

patas, e acond i' u.-oi-regai*em com aípiclla caran- gui'jola que I.'i <!i uniu cai-ro, rjarc à ónus! v dai'-lli(;s cam()o pai*a c i- lajr que, se não, a couza jxnle sei* muito fatal pai-a vs e provavelmente nada para os buis.

(•) Se ludy Jack.son :iil:i viu «h pxtiiictoa AlnqucK da IUi^uíh/ki, (|U0 idéa formaria ilo ri" u.i toriontc por ilrbaixo tia» iirciíriuH »l.i rua

de S. Joào? E.-*te ri > coiiriíie ao Douro, soria navcpivfl, i«e a In-

glaterra totnasae conta da ç«tc.

(••) D'eâta vez tirano o santo. no3 dmi trrz. Ainda cstaniod de ganho.

352 A FORMOSA LUSITÂNIA

O snr. Rivas foi de Cedofeita para S. P'rancisco ver as numerosas catacumbas, que se parecem com as de Roma, e são únicas em Portugal. D. Rita e eu fomos á Praça do Anjo, um dos principaes mer- cados portuenses, e aqui pouco depois se juntou com- nosco o snr. Rivas.

D'esta praça chamada do «Anjo» se infere que houve caza rehgiosa, onde hoje está um hndo mer- cado. (•) Faceando com os Clérigos, tem dous lan- ços de escadas de pedra com varanda gradeada no patamal, por onde se entra para a mais copada das alamedas. As avenidas arborizadas convergem para o centro, onde está um elegante chafariz. A rega- teira ali dispensa o seu enorme guarda-sol. A som- bra é tanta e tam agradável que, no estio, passadas as horas do mercado, os vadios vão para ali passear ou se estiram a dormir a sesta mui repimpadamen- te. Porém, a grande belleza do mercado é quando os cestos trasbordam de ameixas, pècegos e uvas e que uvas agora ali ha! jigos de purpúreas ma- çãs e peras de sabor delicioso, rimas de tomates o melões, lindos i^amilhetes, plantas, hortaliças de toda a espécie, tam viçosas e repolhudas como as que em Covenl Garden se pagam pelo menos dez vezes

e mais a inscripçào. Quem tiver curiosidade, leia a carta que Alexandre Herculano enviou ao conde Radíinski inserta no livro Le.s arts en Portu- gal, pag. 379 e seguintes. E não deixe de consultar o doutíssimo escripto do snr. Augusto Filippe Simões Eeliquias da architectura romano-hysantina em Portugal, pag. 20.

(•) Nào fui convento, mas sim um recoUiimentn para dez orpluios, fun- dado em 1672.

EGREJAS, MERCADOS, RUAS 353

mais qao o prero por quo ali se compram. Ha mui- tíssimo frango branco que se estima de preferencia como em Lisboa; e não é menos digna de reparo a exposição das regateiras e raparigas rozadas, les- tas, desnalgadas, com as suas arrecadas e cor- dões.

Do mercado do Anjo descemos ã rua de D. Fer- nando em que demoi^a o Banco e a frontaria da Bol- sa. Vimos a Feitoria ingleza, ampla e boa caza- ria ou club onde no inverno se dão bailes e outros divertimentos; depois subimos a Íngreme rua de S. João, onde moram especieii'Os, em lojas de vários formatos e as mais lúgubres do Poi'to. A rua é edi- ficada em arcaria, por debaixo da qual passa o rio Villa, que desemboca no Douro. (•)

Da rua de S.João atravessamos para a rua das Flores pelo Largo de Domingos. (") Difficilmente podíamos firmar o no escarpado da subida. Se a gente, quando atravessa, encontra uma junta ou duas de bois a descerem, a arquejarem para fincarem as patas, e acontece escorregarem com aquella caran- guejola que chamam carro, gare à vousf é dar-lhes campo pai'a cebolas, que, se não, a couza pôde ser muito fatal para vós e provavelmente nada para os bois.

(•) Se lady Jackson ainda viu os cxtinetos Aloqnes da Diquinha, que idéa formaria do rio que rola a sua torrente por debaixo das arcarias da rua de S. João? Este rio Villa, que confluo ao Douro, seria navegável, se a In- glaterra tomasse conta da gente.

(••) Desta vez tira-nos o santo. nos deu trez. Ainda estamos de ganho.

354 A FORMOSA LUSITÂNIA

Logo em frente está a pequena egreja da Mize- ricordia. Convida a entrar a frontaria, em estylo ma- nuelino, (•) e a porta meio-cerrada. Na saciústia ha um painel que os apreciadores reputam o mais pre- cioso quadro do Porto. Figura Christo morto na cruz, que se levanta do centro de um tanque mar- móreo. A Virgem, que exprime no semblante as an- gustias da alma, está á esquerda; S. João, também amargurado, mas a transluzir esperança do aspeito triste, fica á direita. Os espectadores circumpostos são retratos d'el-rei D. Manuel, o venturoso, da sua familia, de vários prelados e magnates da corte. In- titula-se o quadro «a Fundação da Mizericordia». (••) É obra do pintor portuguez Vasco Fernandes, mais conhecido por Gran Vasco ('*•).

A rua das Flores é a mais frequentada do Por- to. É comprida e estreita de mais para o trafico que tem; mas o pavimento é bom. Aos sabbados vae cheia de gente, como qualquer rua de Londres. Pelo meio, vão a par, e chiando, dous abomináveis carros. De vez em quando, um cavalleiro arrisca-se a es- coar-se por entre elles, serpeando por aqui e por acolá; e, ás vezes, depara-se-nos uma carruagem encravada entre os carros, com a parelha a esbra-

(•) Quando emprehcnde em estylos architectonicos esta senhoi"a tem idéas desastrosas. A frontaria da egreja da Mizericordia é uma couza farfa- Ihuda e desgraciozissima do século passado. Disseram provavelmente a lady Jackson que D. Manuel fundara a egreja, e a senhora vizionaria identificou a frontaria da Mizericordia do Porto com a de Santa Maria de Belém.

(••) Ouviu dizer Fonte da Mizericordia; e a lady, sempre atilada e perspicua na percepção da linguagem lusitana, de Fonte fez Fundação.

(•••) Esta bypothese nào vigora entre pessoas intelligentes da arte.

EGREJAS, MERCADOS, RUAS 355

vejar á beira dos pacientes bois. Mas não ha que lhe fazer; por que ah não é permittido picar o gado. Que serve conduzir carruagens para baixo da rua das Flores? Os cocheiros não ouzam transpor o precipicio que a separa da rua de S. João, porque não tem a pericia dos Jehus de Lisboa que não se atrigam de galgar a todo trote as ruas perpendi- culares d'aquella cidade. E não ha que recear. O bolieiro diz: 7ião tem duvida, minha senhora; e, mal a gente se precata, eis-nos em baixo, sãos e sal- vos; de maneira que a sensação do precipicio é mais aprazivel do que incómmoda.

Agora, vejamos as lojas. Uma ou duas horas de cada manhã passo-as em flánerie entre a rua das Flores e Clérigos. A esquerda são ourives: corres- ponde á rua do Ouro de Lisboa; mas, no Porto, ha maior abundância de ouro filagranado para uzo das aldeãs. Ha arrecadas desmarcadamente grandes, broches e cruzes enormes á proporção, cadeias e anneis massiços, variados no feitio, mas tudo á fei- ção mourisca. Se a mão de obra nem sempre prima em delicadezas, posto que d'ali procedam excel- lentes amostras de ourivezaria o ouro é de quilate superior ao que se uza em Inglaterra mesmo nos joalheiros de maior cunho e depois de con- trastado se pode vender.

Do outro lado da rua ha lojas cheias de chapéus desabados. Ha d'elles sem enfeites; outros com bor- las, fivelas, fitas e lacaria. Homens, mulheres, ra- pazes e raparigas estão escolhendo; que hoje é dia de todos comprarem, e enchem-se as chapelarias. Um rosto galante olha para o logista, e pergunta-lhe *

356 A FORMOSA LUSITÂNIA

se o chapéu lhe vae bem. Elle ri-se. Que hade res- ponder senão a verdade'^ « O chapéu diz-lhe a ma- tar n'essa hnda carinha. » Também n'este kido mer- cadejam fortemente os commerciantes de lanifícios. Vendem sarjas listradas para saiotes, e outros ves- tuários alegres, mas de aquecer, para ambos os se- xos. Todas as lojas estão abertas, e sem vitrines. Os ourives, posto que tenham á poj^ta grandes tabolei- ros, defendem com vidraças as suas preciozidades. Não lhes faltam também freguezes. Repare para dentro e verá duas ou trez mulheres, com as cabe- ças, todas a um tempo, curvadas sobi'e brincos, etc, discutindo gostos sobre o balcão. Ao lado, ou atraz d'ellas, consoante se interessa mais ou menos na mercancia, está o pae, o marido, ou o noivo de uma das do grupo. Elle traja a sua melhor jaqueta de alamares de prata, etc, como lhe cumpre uzar quando vae ao ourives, e tem na algibeira a mão agarrada ás libras que hade esportulai", quando as moças houverem escolhido os feitios que mais lhes calharem.

Proseguindo ao longo da mesma rua, mas to- mando a um lado, acham-se sapateiros e alfaiates. Trabalham ás portas das lojas abei'tas, sentados em cadeiras. Também por aqui ha pequenas lojas de ourives de prata, com officinas no interior, on- de se podem vei* fabricar correntes, bolsas, fi- velas, brincos, cruzes e outros enfeites do mesmo metal.

A rua, que se torce ladeira acima, dezisti de a palmilhar por ser muito ingi'eme. O passeio, com quanto -não fosse grande, tinha sido todo a subir

EGREJAS, MERCADOS, RUAS 357

excepto na rua dos Inglezes. me sentia fati- gada.

O sol, entre as nove e dez horas, era tam intensa- mente forte que j.á o guarda-sol não bastava a defen- der-me. Antes, porém, de desandar qnizera eu que o meu amigo relançasse a vista áquella caza que se acantoa justamente no ponto em que a rua infia para o labyrintho de prédios que se agrupam no caminho das nuvens. Não é tam hnda? Duas varandas, de segundo e terceiro andar, perfeitamente embosca- das em luxuriantes parreiras. Aqui e acolá transpa- recem cachos de purpurinas uvas, e na varanda in- ferior dependuram-se perfeitamente em festões. Que formosa habitação ! Quiz-me parecer mansão de bem- aventurados. (*)

(•) Este inlevo de lady Jackson rcfere-se, sem duvida e com fino gosto, á «Estalagem do CantinliO" no recanto da rua do Loureiro. Ova., e^t.i mamão de bem -aventurados (a bower of bliss) é, em cliata proza lusitana, uuia bo- dega onde os abnocreves saboream e prcHbani bem-aventuranças, ou iscas de fígado de vitella e vinho verde d'Amarante.

Que saudades ! Eu fui ali lia vinte annos vêr o meu amigo Ramos Rom- boide que morreu em Moçambique, onde era delegado. Morava elle disfar- çada e clandestinamente na Estalagem do Cantinho por que ajanellado seu quarto olhava para a eêrca das freiras benedictinas, e Ramos olhava jjara uma formosa secular com quem depois cazou, e de quem, noivados poucos mezes, se apartou para sempre em Africa. Notara-lhe eu a suja pobreza do quarto, quando ali fui. «Estou no ceu dizia-me elle, o gracioso Romboide que vós conhecestes, ó velhos! Estou no ceu! A minha existência seria um extasis permanente eu seria um anjo, se os percevejos, quando me mor- dem, me não dissessem : «Lembra-te que és o Ramos

Se n'aquella mansão ha bem-aventurados, são os que hybernam na esta- ção fria, e comem a gente nos dias tépidos.

358 A FORMOSA LUSITÂNIA

N'aquelles torcicollos pittorescos e estreitos, onde a custo um cavalleiro acharia espaço para passa- gem de um potro manso, apinham-se as cazas na mais romântica desordem, umas barrigudas, outras escanifradas, umas mesquinhas, outras como encra- vadas no costado de outras maiores, com a mais graciosa confusão. Em muitas d'ellas enverdecem parreiras com docel das varandas, ondeosinquihnos sobem a respirar á noute a fresca briza. Têm todas uns beiraes saHentes de telhados, pela maior parto encarnados, com uma barra branca na fileira de te- lhas mais á beira. Os tectos descaem para os can- tos d'onde pendem uns grandes tubos em forma de trombetas. Que cascatas se formarão d'aquillo quando chove ! Eu nunca vi chover no Porto; e não foi pequena ventura; porque me dizem que é um espectáculo pavoroso a descida annual do diluvio. Todas as varandas do Porto possuem tubos seme- lhantes. Vi funccionar um, quando se estava lavando uma caza, e imaginei o que seria quando funccionas- sem a milhares. O Porto deve de ser então em cata- dupas pouco menos que o Niagara. N'estas occa- ziões, o Douro, as vezes, enfurece-se ; e a sua cólera é, como a dos temperamentos habitualmente paci- ficos, formidável. Empola-se em túmidas vagas, que rolam ao mar com mais furiosa sanha que o próprio oceano embravecido ; arrasta arvores que desarrai- gou, pedaços de barcos que despedaçou contra o pe- nhascal das margens ; ás vezes desamarra os navios dos ancoradouros, e envolve cadáveres de marinhei- ros. Trasborda então o rio por tanta maneira que in-

EGREJAS, MERCADOS, RUAS 359

vadc os prédios da cidade baixa, ti'ansformando-a cm enorme lago, e lorça os moradores a subirem aos últimos andares para se escaparem em barcos. E isto o que se chama «uma cheia». Felizmente, semelhantes catastrophes não são vulgares.

CAPITULO XXIV

UMA EXCURSÃO PELO MINHO

Espinho. Depois que deixei de lhe escrever, fiz uma deliciozissima excursão pelo Minho. Propôz- m'a D. Rita muito a prazer do snr. Rivas. Eu, que tanto gosto d'estes passeios, condescendi promptis- sima. Talvez (perpassou-me agora esta idéa pelo espirito) que o irmão tivesse empreza que o cha- masse, afora o gozo de vizitar a mais bella porção de Portugal— «o jardim da Lusitânia», entre Douro e Minho. Por vezes scismei que n'esta ida havia o que quer que fosse a respeito de uns militares hes- panhoes que ultimamente passaram a raia da Gal- liza, e consta que tratam agora de emigrai^ para o Brazil protegidos pelo governo portuguez. Entre- tanto, isto em mim é mera suspeita ; e pode ser que eu seja assim desagradecida ao prazer que estes meus companheiros me deram com o seu conheci- mento adquirido por acazo em um momento feliz. Pouco tempo ha que elles estiveram em Inglaterra; e a mim me quer parecer que sympathizavam gran- demente com a cauza de D. Carlos.

Saímos do Porto cerca das cinco da tarde, por óptima estrada. Em toda a parte, um terreno fera- cissimo : fileiras de vinhas enroscadas em arvores.

362 A FORMOSA LUSITÂNIA

soutos de castanheiros e carvalhaos, as eminências coroadas de pinheiros, montas de alfazema, e flores silvestres sem numero a mai^ginar a estrada. Via- jamos devagar. Chegamos á Povoa, logarejo balneá- rio, (') com uma desgraçada estalagem, onde para- mos, pouco tempo antes de se pôr o sol, emquanto os cavallos se refrescavam com pão e vinho, que sa- boreavam deliciosamente. O transmontar do sol era explendoroso; e, ao passo que no ceu se esvaíam as suas cores de ouro, carmezi e roixo, a lua, no quarto crescente, dava-nos bastante luz para seguir- mos o nosso caminho para Villa do Conde. Aqui pernoutamos. O conforto da estalagem não nos des- convenceu do propozito de sair logo que fosse dia; não obstante, a ceia foi soffrivel e o vinho era óptimo. Resolvêramos viajar a cavallo de Villa do Conde para deante. A nossa pequena bagagem mandamo'1-a para Barcellos pela Diligencia; e d'esta cidade, onde o snr. Rivas tinha um amigo, nos foram mandados trez cavallos. Chegaram uma ou duas horas antes: eram potros muito decentes. Ás cinco da manhã se- guinte estávamos prestes a marchar. Saíramos do Porto vestidas para cavalgar. D. Rita, cuja des- treza equestre eu punha em duvida simplesmente por ser hespanhola, saíu-me excellente cavalleira. Ainda assim, fez-nos tristeza a todos o anachronico dos sellins que nos mandaram. Poderíamos talvez obtel-os melhores no Porto; porém o snr. Rivas af-

(•) A Povoa, aqui denominada «logarejo balneário» {asmall hatMng-pla ce) no prindpio do anno de 1867 continha 2:381 fogos o 10:577 almas.

UMA EXCURSÃO PELO MINHO 363

íiançara-me que o .seu amigo, cm cuja família havia damas cavalleiras, nos enviaria bons sellins; e justo é confessar que eram menos intoleráveis do que pa- reciam.

Disseram-nos que Villa do Conde era bello pon- to de vista ; mas cerrara-se tam densa a nebrina á hora matinal da saída que apenas vimos o aqueducto por onde corre agua para o grande mosteiro de Santa Clara ; e sobre as grimpas d'um arvoredo avistamos a torre de uma curiosa egreja antiga. O terreno en- tre Villa do Conde e Barcellos é montanhoso, e par- te do tranzito é pragal, escabrozidade e pedregulho. De vez em quando, escurejam pinhaes no pen- dor das serras, como sentinellas d'aquelles arroja- dos avanços de rocha; e, ao mesmo tempo, a densa massa do grupo dos pinheiros, com as ramas escu- ras, a toucarem os cabeços da serra, figuram-se mais altas, e como que topétam o firmamento em ondulações negras. Todavia, de permeio ás serra- nias de severo aspecto ha valles a sorrir fertilida- de ; e, ao longo da estrada, quazi sempre, se en- contram graciosas vides enroscadas em carvalhos chapotados ou debruçadas pelos muros sobre es- teios de granito. Vimos também bouças pittorescas de carvalhos antigos e outras arvores, cuja rama- gem já colorida dos bellos matizes escarlates do outomno, misturada com o verde claro e brilhante do enfolhar no começo da primavera, formavam har- moniosa mescla de cores variadas que seriam de- leite aos olhos de um pintor.

Porém, o passeio de quatorze ou quinze milhas, penso eu posto que se me figurassem nada me-

364 A FORMOSA LUSITÂNIA

nos de trinta era extenso de mais para primeiro pas- seio por estação tam desconvidativa em tal paiz. As vira-voltas do caminho eram bellas á vista, mas fati- gantes para viajar. Os cavallos não eram de molde pa- ra conduzir senhoras ; e os sellins para não dizer mal d'elles eram exquizitos. Pouquíssima gente en- contramos, e essa pouca espantava-se de nos ver, du- vidando que fossemos mulheres, e esquecendo-se, no seu atarantamento, de nos saudar com os costu- mados: avivas):). Reina por ali um solemne silencio, e tanto que, passado algum tempo, opprime a gen- te. As nossas vozes ganhavam um soturno e abafado, como se involuntariamente conversássemos baixi- nho, dentro de uma egreja; nem sequer as aves por ali se pouzam a gorgear os seus cantares matuti- nos; mas cruzam o espaço n'um rápido esvoaçar-se, atemorizadas talvez das opacas sombras dos pi- nhaes e cjprestes. Não obstante, a campina é bella. Se mais fatigados estivéssemos ainda, as magni- ficas vistas do rio Cavado e a interessante villa de Barcellos ter-nos-iam de sobra recompensado os incommodos da jornada. Que lindo sitio este é! Eu quiz apear-me á porta de uma estalagem na Praça, onde um rancho de camponios olhava para nós com i*izos e ademanes, exclamando: «higlezas! ínglezasf)) mas todos respeitosamente nos cortejavam quando passávamos. Porém, o nosso conductor, ao que pa- recia boçal gallego, portador dos cavallos, que ale- gremente nos seguia aguentando-se a pé, levou-nos para Barcellinhos, onde um cavalheiro hespanhol de meia idade esperava os seus amigos, ou parentes como eu descobri que eram. Estava preparado um

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IMA HXCUllSAO PELO MINHO

365

excellente aIiuo<:u : pcixu írusco do Cavado, fructa de- liciosa e bullo vinho todos os mimos da tci-ra exhii- beraiito de boas coiizas. Feita justiça á lauta meza, e depois de repouzar algum tempo, couvidou-uos o nosso idoso amij^o pai-a ii-nios para sua caza. Ku declarei logo a minha iuteurão de lieiu- iia hospeda- ria, (pie me pareceu boa, até ao dia imuiediato em ijue eu projectara coutiiuiar o passeio. Este projecto magoou os MUMis ctjuipanheiros, (pie (leclarai'am consideras am .-dlVonta o scpai-ar-me d\'lles (hn*ante a nossa excursão. () vi'lh(j cavalheiío toi do mesmo parecer. liandiei-me C(jm os cai-listas, e li/ paitt; do gi'Up(j (pif, pouc<j depois, se abalas a iriiina (v>>pecie de ai*ca de rodas, (pie em (has lestivaes eia piova- velmente tirada jxjr nedeos bois, e assim fomos dar a uma linda (piinta/inha, j)ert<) de Hai*cellos.

((As senh«jras da lamilia» (pie eu esperava (.*n- contrar, não estavam j)aia nos recebei", e logol). Rita me disse cpitj «jstavam em llespanha; (pu; o seu amigo também ali estava como pássaro dearri- ba(;-ão (pie na semana |)i*o\ima voaiia a onti'o ponto ; cpianto ao dono da (piinta, esse estava a banhos na Foz ou na Figueira. L'm ci-iado gallego conduziu- nos a dous (piartos acidados, onde a nossa peíjuena gnarda-iMjupa de viajant«;sjá estava dejx^/itada. De- pois de uma l(»nga ,víV'.s7í^ tornamos a jantai', e Idici- tei-me por vt''r (pie todos por cgiial st; sentiam iii- dispost(js para vi/itar egrejas ou .iiidar á cata (Ui points de uui' lúrin dos (pieo jaiíhm da (piinta nos ollerecia. F tinha-os arrebatadores, dominando o Cavado, poi* todos os lados, (; as tc'rte is ladeiras a(j sul c|ue viçavam ctjino jardins.

UMA EXCURSÃO PELO MINHO 365

excellente almoço : peixe íVe.sco do Cavado, fructa de- liciosa e bollo vinho todos os mimos da terra exhu- beraiite de boas couzas. Feita justiça á lauta meza, e depois de repouzar algum tempo, convidou-nos o nosso idoso amigo para irmos para sua caza. Eu declarei logo a minha intenção de ficar na hospeda- ria, que me pareceu boa, até ao dia immediato em que eu projectara continuar o passeio. Este projecto magoou os meus companheiros, que declararam consideravam affronta o separar-me d'elles durante a nossa excursão. O velho cavalheiro foi do mesmo parecei'. Bandiei-me com os carlistas, e fiz parte do gi'upo que, pouco depois, se abalava n'uma espécie de arca de rodas, que em dias festivaes era prova- velmente tirada por nedeos bois, e assim fomos dar a uma linda quintazinha, perto de Barcellos.

«As senhoras da familia» que eu esperava en- contrar, não estavam para nos receber, e logo D. Rita me disse que estavam em Hespanha; que o seu amigo também ali estava como pássaro de arri- bação que na semana próxima voaria a outro ponto ; quanto ao dono da quinta, esse estava a banhos na Foz ou na Figueira. Um criado gallego conduziu- nos a duus quartos aceados, onde a nossa pequena guarda-roupa de viajantes estava depozitada. De- pois de uma longa siesía, tojniamos a jantar, e felici- tei-me por vèr que todos por egual se sentiam in- dispostos para vizitar egrejas ou andar á cata de points de vue além dos que o jardim da quinta nos oíferecia. E tinha-os ari^ebatadores, dominando o Cavado, por todos os lados, e as férteis ladeiras ao sul que viçavam como jardins.

366 A FORMOSA LUSITÂNIA

Ás cinco horas da manhã seguinte, levou-nos café aos nossos quartos um escudeiro (parece que na caza não havia mulher); e, antes das seis, está- vamos a cavallo e en roule, guiados pelo gallego, para o monte em que está a egreja de «Nossa Se- nhora da Franqueira». E uma empinada serra; mas o caminho é circular e fácil. Por mais custoso que fosse, largamente nos indemnisára da fadiga o gran- dioso prospecto. Era propicia a hora em que che- gamos: formosa e brilhante manhã, suave viração, ao longe o horizonte sem névoa, os espigões do Ge- rez e das serras vizinhas de Braga dourados pelos raios do sol nascente; em redor de nós extensas curvas de verdura, eminências pittorescas, e o sere- no rio deslizando mansamente para o oceano agita- do e irrequieto.

O maravilhar-se a gente em incessantes extazis será saudável couza? N'este portentoso paiz, quem não for de pau ou de pedra, é forçoso que esteja sempre em plena admiração. Em todo o cazo, deve de ser bom para a alma de quem se defronta com tam bellos quadros. Eos d'aqui são os mais deleito- sos que a natureza pode ostentar. A alma sente-se erguida desde a contemplação de obras tão pi^odi- giosas até ao gi'ande e prodigioso Ser, auctor da na- tureza.

Recolhemos com appetite voraz. O nosso amigo de idade madura (chame-se assim o snr. Castella, que é o bastante ao propozito ; que cu não ouzaria a indiscrição de lhe denunciar o genuino nome ainda que lh'o soubera) andava passeando na va- randa com as mãos nas costas; e, se a cortezia me

UMA EXCURSÃO PELO MINHO 367

permitte dizer tudo, talvez um tanto zangado por- que o obrigavam a retardar o almoço. Gostava que víssemos todas as couzas da teira; elle, porém, n'essa occazião «não pensava em nada d'isso.))

Se eu fosse sósinha, vizitaria os bellos ediíicios antigos de Barcellos, tam somente por cauza das suas referencias históricas. Os camponezes, no es- casso tempo em que os apreciei, pareceram-me activos, industriosos e alegres. Presenciei uma es- tranha pantomima ou baile composto poi' homens e mulheres, que se ajuntaram n'um campo á beira dos jardins da quinta. Estava no centro da roda dos seus parceiros uma rapariga. Dançou algum tempo com grandes gaifonas, batendo as palmas, gritando e dizendo umas couzas de que não percebi palavra. Eis que de repente faz uns gestos de atíiicção e cáe por terra. Pareceu-me que o tal tregeito signiíicava desesperos de amor, visto que um rapazola saiu da roda, e, achegando-se d'ella, deu-lhe a mão. Er- gueu-se a moça mui contente e pegou de bailar com elle de roda, acenando e sorrindo aos espectadores quando passava. Parece que elle ganhou ciúmes com isto, porque retirou a mão, segredou-lhe ao ouvido, e d'ahi destamparam ambos a vozear uns gritos tam selvagens e desentoados que não era nada agradável ouvir-lh'os. Intervieram, porém, os seus amigos a reconcilial-os, e se conchavaram, acabando esta ridicula scena com um bailado geral. Vi uma couza semelhante, no hotel da Foz, entre os criados hespanhoes. As senoras tinham saído, e o barulho era tamanho que me queixei, suppondo que a criadagem andava ás pancadas. Explicaram-

368 A FORMOSA LUSITÂNIA

me que se andavam divertindo em danças da sua pátria.

Ficamos mais uma noute na quinta porque o snr. Rivas saíra, depois que viemos da Tran- queira, a tratar negócios de Castella, que o detive- ram até a noute. Durante a sua auzencia, o vetus- to carj'0, arca de Noé, funccionou de novo. O snr. Castella levuu-nos a passear duas horas, por dentro e á volta da Villa. E sobei'ba a vista da ponte. Bar- cellos também teve seu farto quinhão de mosteiros. Afora outros edifícios antigos, tem ruinas de um paço real e uma curiosa e antiga egreja com o adro apillarado. A respeito d'esta egreja ha mui- tas fabulas. Contaram-me que uma das supersti- ções é que em certos dias do anno apparecem cru- zes no ar a pairarem sobre a villa, e que o ceu pro- tege particularmente as ciianças nascidas n'esses dias. (•)

(•) Percebeu mal o que lhe contaram. As cruzes não apparecem no ar, é na terra 5 e o facto das cruzes no Campo da Feira, pode pertencer á geo- logia, mas não á lenda. D'estas cruzes faliam dez auctores graves que tenho á mão; e um d'elles, o mais recente, é o snr. Domingos Joaquim Pereira, actual abbade de Santa Lucrécia do Louro, pessoa séria e de letras que assim se exprime ua Memoria liidorica da Villa de Barcellos : «... Eu mes- mo e 03 meus contemporâneos somos testemunhas oculares das trez cruzes que em fileira appareceram e se conservaram muitos annos até que desap- pareceram. . .; a do meio maior e as duas dos Uidos menores, mas tudas bem formadas, como demonstrando as trez do calvário ; e as quaes foram ali ve- neradas, com ílòres e luzes em volta, pelo seu zeloso devoto o Maricòto velho de cima da villa ...»

Como se não bastasse o testemunho authentico d'este «Maricòto velho"> o snr. abbade de Louro robustece a demonstração com outros argumentos, e concluo : « Cala-te, soberbo pensador ! e, se razoes não descobres para

UMA EXCURSÃO PELO MINHO 369

Depois de jantar, estando nós sentados na va- randa emparreirada que olha para o jardim, disse- me o snr. Castella: «Quando a seiíora esteve em Lis- boa, é natural que ouvisse muitas vezes discutir li- vremente acerca da actual guerra de Hespanha. )> «Os hespanhoes com quem estive não fallavam d'isso)), respondi. «Mas os portuguezes que di- ziam?»— «Que eu ouvisse, nada, salvo o propósito de se absterem de intervir, e a resolução de defen- derem as fronteiras. » «A senhora, como todos os inglezes em geral tornou elle sympathiza com a cauzadeD. Carlos?» «Não» respondi sorrindo. E elle, rindo também: «Porque não?» «Porque entendo que D. Carlos, se vencer, restabelecerá a Inquizição.» (*)

«É falso, é falso! » exclamou elle com tal ve- hemencia que eu me arrependi de responder tam francamente. Mas, caindo em si, pediu desculpa da

explicar n'este ponto as vistas e os decretos da divindade, descobre-as ao menos, para as adorar, etc.»

Ha um livro, a respeito d'estas cruzes, não menos devoto, e muito mais noticioso E o Tractado panegyríco em louvor da VUla de Barcellos i^or re- zam do apparecimento de cruzes que nella apparecem. Deu-o á luz fr. l'edro de Poyares, em 1672.

0 titulo do capitulo 53 é : "Conipara-se França com Barcellos.» França não fica de melhor partido, porque fr. Pedro remata a confrontação d'este modo : « Se França está authorizada com eorôa de espinhos, lança, redoma de óleo, flores de lis eauriflamma, Barcellos não menos está authorizada com apparecimento de tantas cruzes : se estas cruzes que se acham em França ennobrecem ao reino de França, o apparecimento de cruzes enuobrece Barcellos.»

Está dito.

(•) Eram curtos, mas ardentes, os horizontes políticos d'esta esclarecida

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370 A FORMOSA LUSITÂNIA

sua chamada exaltação, e accrescentou : «quo pos- to as senhoras fossem privilegiadas em suas boas ou más opiniões, ainda assim corria aos cavalheií^os o dever de as chamar á razão quando ellas eviden- temente fossem injustas.»

E declarou-me então que D. Carlos, com certeza, dezejava restaurar a ordem e a boa administração; e que a Inglaterra, vendo quanto urgia á Hespanha possuir um administrador cujaauctoridade apontas- se a tam almejado scopo, se declarara em pró dos seus direitos. «D. Carlos proseguiu elle enfrea- rá a libertinagem que hoje predomina; mas dará ao povo hespanhol a verdadeira liberdade. Quanto ao intento de restabelecer a Inquizição, ou de estar dis- posto a submetter-se aos preceitos do papa, como absurdamente se diz, é idéa de todo o ponto avessa a D. Carlos, que foi educado em Genebra, e é parti- dário de Voltaire. Elle admira e quer manter o sys- tema da moral christá; mas não acredita que Chris- to fosse Deus. Os generaes da sua facção compar- tem estes sentimentos. ve portanto que os inimi- gos d'elle ardilosamente o figuram beato, intolerante e influenciado pelo clero. Porque não foi a Madrid?

dama. É assim que se pei'mittem idéas a senhoras, fora do governo da caza. Medo da inquizição, medo da guilhotina, medo do petróleo sejam os trez constantes pavores das suas preoccupações, entre o crochet e a aprendizagem dos caldos inculcados pelo snr. R. Ortigão. Ter sempre de ôllio a pauella em caza, e fora S. Domingos, Robespierre e Félix Pyat. Entrar um pouco mais na medula da humanidade, alumiar-se em philosopln^a de historia para vêr ao longe, por entre profundezas nubelosas, as paixões necessárias e fataes que impellqm o eixo d'esta bola achatada nos poios, isso é perigoso.

UMA EXCURSÃO PELO MINHO 371

perguntou clle Theatros, touros, todus os re- creios públicos, tudo está como era. Não será rápido o vapor em Hespanha; as hospedarias serão más, e altos os preços de commodidades inferiores; não serão aceadas nem confortáveis nem baratas as di- ligencias ; mas estes tropeços dão certo sainete á viagem. Muitos inglezes actualmente concorrem ás touradas em Hespanha e mais se divertem do que nos paizes onde teriam menos dissabores, mas on- de não achariam os esti mulos que procuram.»

«Estimulos d'essa espécie agradam mais a ho- mens que a senhoras respondi eu. E de mais a mais as guerrilhas carlistas detêm os comboyos.»

«O exercito carlista replicou elle é disci- plinado e incapaz de exercitar officio de salteado- res. Pode ser que alguma guerrilha dispersa haja detido um comboyo por aqui ou por acolá, e revis- tasse as malas dos papeis, ou exigisse passaportes ; mas não creia que se apossassem de dinheiro, ba- hus ou couzas de valia. Voto á cauza carlista a mi- nha mais sincera sympathia, posto que não des- embainhe a espada em defeza d'ella. Se eu militas- se, e soubesse que um soldado praticai^a roubo ou insultava, mandal-o-ia arcabuzar immediatamente, e não ha no exercito um official que deixasse de as- sim proceder. »

Não redargui, porque em Lisboa se contava que encontrar um troço de carlistas ou uma malta de ladrões orçava tudo pelo mesmo.

(( Como avalia a senhora o caracter hespanhol?»

perguntou. «Gosto dos hespanhoes que tenho conhecido ; mas da Índole da nação ainda não tive

372 A FORMOSA LUSITÂNIA

opportunidado de formar conceito.» ((N'esse cazo, eu sou idóneo para lh'o definir. Quanto ás mulheres, dir-Ihe-ei apenas que se parecem com as dos ou- tros paizes, cada qual no seu género ; como perfei- tíssimas não as inculco ; mas é incontestável que são seductoras. Pelo que respeita aos homens, o caracter da nação hespanhola compõe-se de D. Quichote e D. Juan. Achar um homem todo inteiro n'um dosdous é raro; masosdous amalgamados cavallaria e amor é o predominante no hespanhol. As differeiíças ou cambiantes de Índole procedem do diverso predomínio d'um ou d'outro. Os hespa- nhoes, devotos do bello sexo, são como uns idola- tras das suas dominadoras que divinizam : e d'ahi deriva a influencia que ellas exercem. Assim é que aos seus sentimentos cavalheirosos se deve o delica- do ponto d'honra, a elevação dos princípios, aquella geral hombridade de espirito que extrema os ca- valheiros hespanhoes de todos os mais homens. Concorda, minha senhora?» accrescentou elle.

D. Rita, que lhe escutara a parlenda com o semblante expressivo do máximo applauso, excla- mou: Es muy verdad, meo tio. Não tive remédio senão confessar-me convencida. Arrisquei ainda uma per- gunta : nE os inglezes, senor ? » « Os inglezes. . . Ah ! sim. . . As damas são uma delicia; os caballe- ros honradíssimos ; sim, honradíssimos sujeitos, af- fectos á cauza de D. Carlos.»

Summaríadas desfarte as qualidades de Ingla- terra, deu-me um aperto de mão, levantou-se, e disso : ((Já não ha sol no jardim ; vamos dar uma volta.»

UMA EXCURSÃO PELO MINHO 373

Saímos ás sois horas da manhã immcdiata. Ro- mano, o gallogo que nos guiou desde Barcellos, acompanhou-nos a Ponte da Lima. Dehcioso passeio a cavallo, de manhã entre campinas fertihssimas, grandiosamente pittorescas, vaUes cultivados, ba- cias viridentes cobreadas por arroios, matagaes, vi- nhedos, laranjaes, hmoeiros de brilhante folhagem, oliveiras pardacentas, e ao longe, cristas de ser- ras contornadas fantasticamente, onde o cedro e o cypreste confundem as suas sombras torvas com as do pinheiro, ainda mais triste. A primeira luz, car- valhos enormes, castanheiros, sovereiros, disper- sos ou agrupados, cottages meio emboscadas entre arbustos floridos e ramarias de copadas arvores, milharaes e almargens onde o gado se pascia : era d'um perfeitíssimo bucolismo. Está o ar impregna- do de um frescor de orvalho ; cantam as aves ale- gres em todas as arvores, e a viração da manhã ba- feja-nos aromas de alfazema, de jasmim e de re- zéda montezina. Os camponezes de olhos negros, n'aquella «mansão de gozo e belleza» tem um olhar luminoso e feliz : saudam-nos com (wivas)) e pra- zenteiros «bons dias.» Quanto mais íamos, crescia de ponto a opulência da vegetação. Pendem ricos e sazonados fructos nos pomares e nas ramadas ; flo- res nos alcatifam o caminho ; e, quando o formoso vai do Lima, dos altos da serra que lhe formam a bacia, nos saiu de rosto, avistamos egrejas, ermi- das, cruzeiros antigos, nos cabeços das monta- nhas, já resaíndo d'entre o arvoredo.

A nossa excursão d'este dia terminou em uma antiga caza de campo, uma milha, pouco mais ou

374

A FORMOSA LUSITA^

corren-

menos, áquem da villa; e como aida não era nou- to, vimos Ponte da Lima e a sa longa ponte de vinte arcos. Continuei a ser hospda de um hespa- nhol, de menos idade que o Castda, mais que mui- to delicado ; mas, acho eu, considt'ava-me perfeita- mente de trop. Depois, ainda assin afrouxou bastan- te, e dezistiu da emprezade me faar inglez com um medíocre phrazeado de linguagemiuctoritaria, e co- meçou a fallar em excellente francz, até que emfim nos tornamos uma jovial par lie arrée. Depois de jantar, andamos uma hora embarados no Lima ou Lethes, como dizem as varias 3ndas quanto ao primitivo nome do rio por quaix) a formosura da paizagem fascinava quem a transozesse, dclindo- Ihe da memoria a minima lembin('a de amigos, pátria e lares. Quando te clara e serena, es se, e dardejava res purpurina no topo d claro. A lua, quazi no oriente. Formo, gião ! As orlas do valhos, oliveiras e s] um pouquinho aba, e voltamos com 1 através d'um bos Tenho pena d itinerário dos me ir a Valença, com víssemos de Pon Bernardes, que ca' rio nas ccFlores á

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UMACXCURSÂO PELO MIXIIO

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mais abalizado peta de Miranda. (•) Víramos do relance a esbelta/illa, que me consta encerrar anti- guidades interesantes, e vestigios mouriscos. (••) Mal poderíamos mdar em grandes exploraròes de manhã porque a ornada de Barcellos a Pi)nte da Lima nos fatigar- em exti'emo, e a excursão d('p(.is de jantar extenura-nos. Dormimos agi'adavelnien- te a maior parte a manhã, rezolvidos a ir de tarde rio acima em um^arco toldado á Ponte de Barca, e d'ahi seguir pai'aHi'aga, abreviando assim a nossa jornada para aqulla cidade, e precori-endo, se não monos montanhr», pelo menos uma i-cgião tam en- cantadora como da estrada de Ponte da Lima. O rio Vez une-so atLima, que no ponto do conllucnte se passa em umígi'aciosa ponti;. Tudo em áavcdov jm luz e rizos: ias verdejantes, uiontaidiasarbori- [as, carvalh«)Sarestoados de videiras. (v)uanl() a de Barcasci (pie (' uma pcipiiMia vilhi (pie (teressa. Parece (pie a sua principal jactan- popultmi de uma mulhei* antiga, Maria da 5, u(j raaado de D. MaiiU(d, chegou aos 1 10 ' \de,o deixou entre lilhos n netos 1^0 cit)S repi'(v.entantes ainda llorescem

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•Masceu na Ponte da Barca, e de Miranda viveu ;.>ctual concelho de Amares, algumas léguas distan-

-tancearem mouros cm Ponte do Lima. Talvez nu IS liiUar em relíquias romanas do Fórum Limicorum uioH sarracenos. Isso pouco importa.

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menos, áquem da villa; c como ainda não era nou- te, vimos Ponte da Lima e a sua longa ponte de vinte arcos. Continuei a ser hospeda de um hespa- nhol, de menos idade que o Castella, mais que mui- to delicado ; mas, acho eu, considerava-me perfeita- mente de trop. Depois, ainda assim, afrouxou bastan- te, e dezistiu da emprezade me fallar inglez com um medíocre phrazeado de linguagem auctoritaria, e co- meçou a fallar em excellente francez, até que emfim nos tornamos uma jovial parlie carrée. Depois de jantar, andamos uma hora embarcados no Lima ou Lethes, como dizem as varias lendas quanto ao primitivo nome do rio por quanto a formosura da paizagem fascinava quem a transpozesse, delindo- Ihe da memoria a minima lembrança de amigos, pátria e lares. Quando embarcamos n'aquella corren- te clara e serena, estava quazi o sol a transmontar- se, e dardejava resplendores dourados a uma nuvern purpurina no topo da serra, tingindo-a de um rozado claro. A lua, quazi cheia e argentina, resplandecia no oriente. Formoso entardecer em formosa re- gião ! As orlas do rio eram lindas, bordadas de car- valhos, oliveiras e sebes odoríferas. Desembarcamos um pouquinho abaixo do sitio onde embarcáramos, e voltamos com luar á quinta por outro caminho, através d'um bosque.

Tenho pena de que um inesperado transtorno no itinerário dos meus companheiros nos impedisse de ir a Valença, como tencionávamos, e que tam pouco víssemos de Ponte da Lima, pátria do poeta Diogo Bernardes, que cantou as bellezas do seu crystallino rio nas ccFlores da Lima>y e retiro dilecto d'outro e

UMA EXCURSÃO PELO MINHO 375

mais abalizado poeta de Miranda. (•) Víi-ainos de relance a esbelta villa, que me consta encen-ar .anti- guidades interessantes, e vestigios mouriscos. (••) Mal poderíamos andar em grandes ex[)lora(;ões de manhã poi'que a jornada de Barcellos a Ponte da I.ima nos fatigara em (íxti-emo, e a excursão depois de jantar exteimara-nos. Dormimos agradavelmen- te a maior parte da manhã, rezolvidos a ir de tarde rio acima em um barco ttjldado á Ponte de Barca, e d'ahi seguir para Braga, abreviando assim a nossa jornada para aquella cidade, e precorrendo, se não menos montanhas, pelo menos uma região tam en- cantadora como a da estrada de Ponte da Lima. O rio Vez une-se ao Lima, que no ponto do continente se passa em uma graciosa ponte. Tudo em deredor tem luz e rizos : alas verdejantes, montanhas arbori- zadas, carvalhos afestoados de videiras. Quanto a Ponte de Barca, sei que é uma pequena villa que pouco interessa. Parece que a sua principal jactân- cia é a sepultura de uma mulher antiga, Maria da Costa, que, no reinado de D. Manuel, chegou aos 110 annos de idade, e deixou entre filhos e netos 120 descendentes, cujos reprezentantes ainda florescem

(•) Diogo Bernardes nasceu na Ponte da Barca, e de Miranda viveu na quinta da Tapada, no actual concelho de Amares, algumas léguas distan- te de Ponte do Lima.

(••) Nào ha noticia de estancearem mouros em Ponte do Lima. Talvez que lady Jackson ouvisse fallar em relíquias romanas do Fórum limicorum e confundisse romanos com sarracenos. Isso pouco importa.

376 A FORMOSA LUSITÂNIA

na Barca. Creio que a Barca contende com Ponte da Lima na honraria de ser pátria de Diogo Ber- nardes.

Saímos antes das cinco. Acompanhava-nos o nosso hespanhol de Ponte da Lima, e um guia que tomamos na Barca. Os nossos sacos de viagem le- vou-os de manhã o gallego que nos foi arranjar hos- pedaria a Braga. Apezar de tortuosa, a estrada que seguimos era boa, com primorosa paizagem d'um lado e d'outro. Por perto de Pico de Regulados, mon- tanhas tudo, serra escarpada; mas, ao chegarmos ao cimo, um imprevisto panorama se desdobrou em toda a circumferencia. Ao poente, o explendido bri- lho do sol a descer sobre os píncaros da serra, que projectava estiradas sombras pelas collinas interpos- tas. Grandioso espectáculo ! E mais sublime ainda quando o colorido do ceu occidental se esmaecia, e o puro e limpido ambiente se rozava ao clarão in- tenso da lua, entremostrando mais claro que de dia o torvo espinhaço do carrancudo Gerez. Guiava-nos a lua através de tenebrosos pinheiraes, e inundava de prateada claridade as torres da bella cidade para onde caminhávamos vagarosamente. -

Tam inspirado se sentiu o nosso companheiro adventício pela formosura dos quadros que, em certo sitio, prerompeu n'uns cantares improvizados em louvor das creações da Natureza. Poetizou fervoro- samente amorosas canções ás nymphas dos bos- ques, e cantou-as bem j)orque tinha excellente gar- ganta. Rivas contagiou-se afinal d'aquelle enthuzias- mo, e desatou a cantar uma espécie de ária militar

UMA EXCURSÃO PELO MINHO 377

que tinha um arriscado osti-ibilho : Por (Tonde va- mos? vamos for bella Espana. Como ouvissemos ru- mor de passos, D. Rita assustou-se e pediu aos can- tores que se dispensassem de acordar os eccos dos bosques portuguezes com os cantos revolucionários de Hespanha, a menos que não quizessem, em vez de ir para a hospedaria, entrar na cadeia de Braga. Quando o ruido se avizinhou conheceu-se que ei'a tropel de cavallos, e logo dous cavalleiros nos sauda- ram : Viva, caballeros. E, como vissem que nem to- dos éramos caballeros, descobriram-se e passaram, exclamando: aViva las damas! viva bella Espana!-» ao que se correspondeu convenientemente. Acho que nos foi útil ser gallego o nosso guia, porque as innocentes cantigas e saudações, do modo como ao prezente está o animo do governo portuguez, pode- riam dar azo a interpretações de conluio revolucio- nário. No entanto, fomos muito calados, depois que passamos o Cavado, onde encontramos o nosso gallego. Entramos sãos e salvos em Braga ás dez e meia.

Decentemente nos alojamos em uma hospedaria no campo de Santa Anna, magnifica praça, ro- deada de grandes prédios, em um dos quaes é o de- pozito de livros raros e MSS que constituem a bi- bliotheca publica. Mas o nosso principal empenho era ver a ou cathedral. E um antiquissimo tem- plo edificado, segundo consta, sobre as ruinas de um templo pagão, pelo conde D. Henrique, no pri- meiro quartel do século XII. Os sepulchros graniti- cos de D. Henrique e D. Thereza sua esposa estão na capella-mór. Tendo sido reedificada em diversas épo-

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A FORMOSA iJSITANI.V

na Haic.i. Creio que a Bina contendo com Ponte da Lima na lionraria de ei- pátria de Diogo Ber- nardes.

ÍSaímo.s antes das cino. Aconípanhava-nos o nosso hespanhol de Pontula Lima, o um guia que tomamos na F3arca. Os no^os sacos de viagem le- von-os de manha o galleg «jue nos foi arranjar hos- |)edaria a Hraga. A()ezar tortuosa, a estrada que sef^nimos era boa, com [ paizagem d'um

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Tani insj)ira(lo se setiu o nosso c<jnij)anheiro advonticio prla íormosurvi "- "iidros (|ue, em corto sitio, prerompeu n'uns - improvizados em

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UMA EXURSAO PELO MINHO

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que tinha um arriscdo estribilho: Por cVonde va- mos? vamos por bellaíspana. Como ouvíssemos ru- mor de passos, D. Ra assustou-se e pediu aos cau- tores que se dispensssem de acordar os eccos dos bosques portuguezes3om os cantos revolucionários de Hespanha, a mer>s que não quizessem, em vez de ir para a hospedaia, entrar na cadeia de Braga. Quando o ruido se vizinhou conheceu-se que era tropel de cavallos, e Iqo dous cavalleiros nos sauda- ram: Viva, caballero. E, como vissem que nem to- dos éramos caballerc, descobriram-se e passaram, exclamando : « Viva is damas ! viva bella Espana ao que se correspodeu convenientemente. Acho que nos foi útil ser gllego o nosso guia, porque as innocentes cantigas (saudações, do modo como ao prezente está o anim do governo portuguez, pode- riam dar azo a interpetagOes de conluio revolucio- nário. No entanto, taios muito calados, depois que passamos o Cavado onde encontramos o nosso gallego. Entram(j> > js e salvos em Bi'aga ás dez e meia.

Decentemente nu alojamos em uma hospedaria no campíj de Santa .nna, magniíica praga, ro- deada de grandes prdios, em um dos quaes é o de- pozito de livros raro e MSS que constituem a bi- bliotheca publica. Ms o nosso principal empenho era ver a ou cathdral. É um antiquíssimo tem- plo edificado, scgunn consta, sobre as ruinas rh^ um templo pagão, p( j conde D. Henrique, p ^

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capella-mór. Tendo s o reedificad epo-

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cas, a cathedral, com os seus variados estylos ar- chitectonicos, offerece construcção singular. O coro é antigo, e magnificente modelo de obra de talha, em bello jacarandá com relevos dourados. O órgão tem magestosa apparencia e magnifica toada. O al- tar do Sacramento é também primorosa peça de en- talhamento: é todo feito de um tronco de pinho, com diversas figuras esculpturadas. Na sacristia acham- se alguns quadros, mas nenhum de grande mérito. Raro se encontram boas pinturas em Portugal ; abundam, porém, as esculpturas primorosas em pe- dra e madeira. No tempo em que a Primaz das Hes- panhas não era, como hoje é, mera distincção titu- lar— posto que Braga ainda contenda em jurisdicções com Toledo, e sobreponha em todos os seus tem- plos a cruz archiepiscopal era opulentissimo o the- zouro da cathedral, o mais opulento das Hespanhas. Agora mesmo ainda possue vazos de prata e ouro, jóias e ricos paramentos. Conserva-se ainda o cáli- ce uzado pelo primaz arcebispo de Braga, S. Ge- raldo, no baptismo de Affonso Henriques, em Gui- marães, por 1109, e outro de ouro, do século XV, em forma de egreja torreada com sinos. (*)

A mais notável curiozidade da cathedral é talvez o corpo de D. Lourenço, seu octagesimo sexto ar-

(•) Diz a tradição que S. Geraldo baptizara o primeiro rei portuguez; mas não diz que se servira do cálix no baptismo. 0 segundo cálix não é de ouro : é de prata dourada, e 400 annos menos antigo. Presume- se dadiva do arcebispo I). Diogo de Souza.

UMA EXCURSÃO PELO MINHO 379

cebispo. (•) Pelejou o saiu ferido da grande bata- lha de Aljubarrota; e revelou mais pujante animo de soldado que piedade de sacerdote. Constituído arce- bispo de Braga, restaurou a Sé, e accrescentou-lhe a capella do S. Sacramento, que depois escolheu para seu jazigo. Em 1663 300 annos depois do seu pas- samento — abriu-sc-lhe a sepultura, e encontrou-se o corpo incorrupto, estado em que ainda permanece sem ter sido embalsamado. E attribuido este mila- gre ao cheiro de santidade em que morreu. Admi- rável couza é que não esteja canonizado, nem lhe ponham na sepultura milagres. (") Encerra a cathe- dral mais corpos de santos, e preciosas reliquias, taes como um espinho da coroa do Salvador e um frasquinlio do leite de sua mãe. (•••)

(•) Trigésimo oitavo. Lady Jackson guiou-se pelo príncipe Lichnowsky ; mas desviou -se, ainda assim, de affirmar, como o viajante prussiano, que D. Lourenço, cuja pátria e familia ninguém conhecera, caíra morto em Alju- barrota com a espada em punho. 0 valente caudilho de D. João I era da Lourinhã, e neto da plebea Maria Vicente, que alcunharam a Longa da Fonte.

(••) D. Lourenço Vicente da Lourinhã mandou que o sepultassem na ca- pella dos Reis. Volvidos séculos, houve reforma na capella, e então se abriu o nicho em que está o beato Lourenço. 0 arcebispo finou-se em 1397. Se o acharam incorrupto em 1663, havia 266, e não 300 aunos que elle rezistia á destruição. Não foi canonizado, ao que parece, porque se gabou em carta ao abbade de Alcobaça de ter matado em Aljubarrota o castelhano que lhe deu o gilvaz no rosto. 0 beato Lourenço parece que está envernizado de preto, e d'isto se persuadiu o snr. doutor Augusto Filippe Simões, protestando con- tra a sandice no periódico Lettras e Artes. Não foi verniz que lhe deram. 0 caso foi assim : Deu a traça no «santo», e o cabido mandou que o lavassem com espirito de vinho, único espirito de que podiam dispor os cónegos, A operação fez-se; mas o álcool carbonizou a múmia. E o que foi.

(•••) Esta tolice do leite é a primeira vez que a vejo escripta.

380 A FORMOSA LUSITÂNIA

Urgia que, vizitada a cathedral, passássemos a ver as columnas romanas e aas carvalhas)), arvores grandes, muito altas, de vasta i^amaria, mas cadu- cas. Em demolição de prédios antigos e nas excava- ções, encontraram-se interessantíssimas relíquias romanas, esculpturas, e moedas de Tito, Nero e outros impei^adores.

Uma contenda absurda que se travou em Braga não abona grandemente a intelligencia de parte dos moradores da cidade archiepiscopal. Foi por cauza da egreja de S. Domingos, que é ornamentada com diversas estatuas de santos. São de pedra estas imagens, mas as caiadelas e pinturas estragaram-as, de modo que a clerezia deliberou apeal-as da frontaria do seu templo. Quando, porém, a pessoa encarregada da remoção com os seus operários pôz mãos ã obra, a gente do districto caíu-lhe ã perna injuriando-a com palavradas e ameacando-a com pancadaria, se continuasse a ímpia obra. Estes pios sujeitos entenderam que os santos cuja effigie estava em cima, veriam naturalmente indignados dos seus thronos celestiaes mãos sacrílegas la- varem-lhes, na terra, as caras e os corpos, e d'ahi adviriam a Braga funestos rezultados. A re- zistencia foi de tal porte que se levou a cauza ao ar- cebispo, único personagem habilitado para senten- ciar o feito. Decidiu elle, emfim, não ser profana- ção nem irreverência descascar estatuas de pedra dos seus hábitos immundos de e tintas, e que tam somente recommendava aos artistas que se hou- vessem cuidadosamente em não ofíender a pedra emquanto desfizessem os invólucros que desfigu-

UMA EXCURSÃ.0 PELO MINHO 381

ravam os santos. Como remoque portiiguez jo- gado aos pios supplicaiites dizia-sc que o arcebis- po os pintara também ; ou como elegantemente ou- vi traduzir para inglez o dito: asetH ihem o/f ivilh a /lea in lhe ear.)) (•)

A duas milhas de Braga, ergue-se uma Íngreme montanha em que está o templo do Bom Jesus do Monte, cuja romaria rivaliza em fama com a do Bom Jesus de Mathozinhos. fomos, posto que a melhor occazião d'esta vizita seja no Espirito San- to. Concorrem então milhares de peregrinos, e tam pios quanto foliões, por ali passam trez dias de fes- ta. Certamente que a primavera é a única estação em que pode ver-se commodamente alguma couza em Portugal. O paiz reveste-se então de verdura, desentranha-se em flores e por toda a parte revê o crystal das ribeiras e arroios. Na primavera, os dias são comparativamente frescos, e bastante grandes para jornadear de dia. Por estes sitios, a vegetação é ainda opulenta como no sul, e a paizagem maior. As bellezas do paiz no outomno sobreexcedem as da primavera. Realçam-nas o brilhantismo da fo- lhagem variegada, a formosura das parreiras, e

(•) Impontou-os com pulga no ouvido é como, á letra, pode traduzir- se a translação do «remoque portuguez»; mas onde está o remoque? 0 ar- cebispo, tratando-se de pintar santos, diria que os santos, que foram queixai -se, nem pintados os queria? Então, sim, haveria tal qual cha- laça, e os queixosos, saindo de catrambias, levavam com certeza pulga no ouvido. A historia, porém, que lady Jackson conta, seria verosímil, se em Braga houvesse uma egreja de S. Domingos.

382 A FORMOSA LUSITÂNIA

das arvores carregadas de pomos sazonados, as espessas moutas de flores outomiiiças/e a lúcida fo- lhagem das perpetuas. Mas os dias fiuaes do estio e o começo do outomno são intensamente abraza- dores, e quem viajar, embora o faça de manhã, sentirá maior fadiga que prazer.

Romano, o gallego, ao romper do dia, saiu com os cavallos para Barcellos. Saímos nós para o Monte ás quatro horas, e subimol-o a pé. O caminho é la- deiroso, mas bem gradado, com duas filas de so- vei'eiros, uma de cada lado. Com o fim provavel- mente de amenizar a difficuldade da subida, o cami- nho é de rodeio, no estylo de zig-zag. Vae um muro acompanhando as revoltas, bordado de altos car- valhos a bracejarem ramos que se entretecem em deliciosa abobada de folhagem. De vez em quando, um lanço de escadas offerece repouzo ao romeiro. De ambos os lados da subida, a distancias regulares, ha oratórios ou capellas, doze ao todo, e cada qual tem sua pia que recebe agua de uma bica. Estes oratórios contem porção de figuras toscas de pau do tamanho natural, em grupos, reprezentando sce- nas da Paixão do Senhor, desde a traição da ultima ceia até á Crucifixão e Ascenção. São curiozissimos, e talvez como convém que sejam, para que os au- gustos successos que reprezentam impressionem os brutos espíritos da classe que frequenta a roma- ria; ainda assim, pareceram-me tristíssima carica- tura de couzas sagradas e divinas.

No alto do Monte ha mais capellas do mesmo feitio. Pouco abaixo, está a egi^eja do Bom Jesus, mais singela em ornamentação e de melhor gosto

UMA KXCURSÀO PELO MINHO 383

que as cupellas, posto que o altar-m(')r, reprezen- tando a Crucifixão, está cheio de figuras de vulto esculpidas em madeira. Na sacristia ha bastantes retratos, e um bello crucifixo de marfim. Mas as vis- tas lá do alto valem mais que tudo. Que grandeza, extensão e variedade ! Além, prorompem os severos morros do Gerez, serranias densas de arvoredos e escurentados pinheiraes ; em baixo, férteis descam- pados, a linda cidade vetusta, com as suas fiechas e torres refrangindo os raios solares; jardins e ver- géis, valles e outeiros, riachos serpeando, formozis- simo tudo em que os olhos param.

Encontramos no fundo do Monte os cavallos em que deviam os ir para Guimarães, tendo sido nosso intento irás caldas do Gerez. Dissemos adeus a Bra- ga. Eu, por mim, enviei-lhe «um lance de olhos anhe- lante, languido.» Caminhamos por sitios encantado- res, vistos, como no dia antes, sob o effeito do sol- poente e o brilhar da lua, que a emprestava ma- gia ao espectáculo.» tínhamos quartos aluga- dos na hospedaria da Praça, e esperava-nos a ceia. Na seguinte manhã, primeiramente, como em toda a parte manda a etiqueta, vizitei a Sé, ou, como dizem, a egreja coUegiada, porque Guimarães não é bispado. Esta veneranda e velha cidade é conhecida em Inglaterra especialmente pelas boce- tas lindamente enfeitadas, que levam o seu nome, e vão cheias das famosas ameixas de Guimarães. Dá- Ihe fama em Portugal ter sido o berço do fundador da monarchia. Reza a tradição que na antiga capella de Santa Margai-ida ainda existe a pia em que foi ba- ptizado Affbnso Henriques,— o Alfredo Grande, por-

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A KoIlMo

(ia.s arvt)n's cari i»s|>o.ssas moiit;ts <i' .... l)iaf;iMn ílas pcrpoluas. NI eo r^>iiio<;o do outomii' (loires, o qiuím viajar, soiitini maior faiii^a ijii-

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tem sua pia que r oratórios contém pon;.' do tamanho natunil, en mis da l^iixâo do Senli ceia até á Cru<!Ífixâo c A e tJilvez r-'" ' -Mnvém gustos sii -s qUf

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I Mite abraza-

i o fa. i de manhã,

ília, saiu com h.ira o Monto ' .iuiiiilio é la- is filas de so- lim prova vel- <\o. da subida, o cami- Vae um muro do altos car- ' ntrctecem em •z em quando, i/o íU) mmeinj. .<-ia.sregulai*es, lo, e cada qual i (lf uma bicíi. Estes - toscas de pau j.ifzeutaudosce- iii;âo da ultima 1-1 curiozissiuios, . para que os au- 111 impressionem

os brutos espiritos da clsseque frequentai a roma- ria; ainda assim, parocAim-me tristíssima carica- tura de couzas sagrada-

No alto do Monte h|inai- . apellas do inc>mo feitio. Pouc4j abaixo, ' jíi do Bom Jesus,

mais singela cm ornaniiui. - •' de melhor gosto

UMA EXCRSAO PELO MINHO

383

que as capellas, pos) que o altar-mór, reprezen- tando a Crucifixão, etá cheio do figuras de vulto esculpidas em madeií. Na sacristia lia bastantes retratos, e um bello cucifixo de marfim. Mas as vis- tas lá do alto valem lais que tudo. Que grandeza, extensão e variedade I\lém, prorompem os severos morros do Gerez, seranias densas de arvoredos e escurentados pinheiras; em baixo, férteis descam- pados, a linda cidade etusta, com as suas fiechas o torres reh'angindo osraios solares; jardins e ver- géis, valles e outeii'osriachos sei'peando, íormozis- simo tudo em que os Jhos param.

Enconti'amos no fndo do Monte os cavallos em que deviamos ir para iuimarães, tendo sido nosso intento ii*ãs caldas do írerez. Diss(3mos adeus a Bra- ga. Eu, poi' mim, en\ it-lhe «um lance de olhos anhe- lante, languido.» Camihamos por sitios encantado- res, vistos, com<» n<j (a antes, sob o elleito do sol- poente e o bi'ilhai' lua, que « emprestava ma- gia ao espectáculo.» á tínhamos quartos aluga- dos na h<jspedai'ia da *raça, e espci'ava-nos a ceia. Na seguinte manhã, pimeiramente, como em toda a parte manda a etiaeta, vizitei a Sc, ou, como dizem, a egreja cclegiada, porque Guimarães não é bispado. Ksta eneranda e velha cidade 6 conhecida em Inglatera especialmente peina^oo- tas lindamente eiifiiiaas, que levam o se- *^, e vão cheias das famosa ameixas de (h' ^^)á-

Ihe fama em Portugal '3r sido o hr imlador

da monarchia. Reza a adição a' ga capei'

de Santa Margai'ida ai da exi' i que r

ptizadíj Aílonso Ilenrií es < h '

y

384 A FORMOSA LUSITÂNIA

tuguez. (•) D. João I fundou a egreja da Senhora de Oliveira, e muitas outras em diversos pontos do reino depois da batalha de Aljubarrota, em cumpri- mento de votos. Guimarães, tanto como Braga, me- rece o desvelo dos antiquários. Que fértil colheita de investigações archeologicas não offerecem as anti- gas villas e cidades da «Formosa Lusitânia!»

Permanecem ainda restos do castello que habi- taram os pães de Affonso Henriques, D. Henrique e D. Thereza, filha do rei de Leão, que trouxe em do- te Guimarães e outras villas e cidades ao norte. E magnificente a vista do terraço do castello. As pris- tinas muralhas da villa, com suas torres e torriões, são d'um alto interesse, e n'isto cifra o antigo paço dos reis, convertido hoje em quartel. Cercam Gui- marães altos serros. Deliciam-lhe os arrabaldes ver- géis, vinhedos e lindíssimos jardins. As ladeiras são alcatifas de verdura. Frondejam carvalhos e casta- nheiros por sobre os passeios. Em muitas quintas de redor ha vastos sobreiraes. Dous rios, Ave e Vi- zella, golpeam aquelles ubérrimos valles e lhes em- bellecem as encantadoras e variadas paizagens. For- moso sitio!

Ali passamos segunda noute, e na manhã seguin- te partimos para o Porto, onde somente me apossei da bagagem que deixara, e almocei com os meus

(•) Nào ha «capella de Santa Margarida» : 6 na egreja de Nossa Senho- ra de Oliveira que está a pia baptismal, que para ali veio em 1664 da egre- ja de S. Miguel do Castello, onde o filho do conde D. Henrique de Borgonha foi baptizado.

UMA EXCURSÃO I'I-;í,0 MÍXIIí) 385

amigos portugLiezes. No coiiiboyo du tai-do i\ú pai-a Espinho aldoia de pescadores e de banhos —onde se fez unia gi"uid(3 cazaria para cazino oii hotel, e também um quarteirão ou dous de cazas com o in- tuito de desviar a concorrência á Foz. Mas o logar é triste, e figurou-se-me um dezei'to depois do scena- rio que precorri. Ainda assim não é tam mau como a Granja, outi'a aldeola de areia, entre Porto e Es- pinho, onde igual esforço se emprega pai-a apanhai* alguns vizitantes desgarrados, agora que os portu- guezes principiam a passear na sua terra. Mas es- tas melancólicas e pretenciosas akU;ias não podem aspirar a rivalizar com a Foz, ainda mesmo que es- ta linda villa balnearia não tivesse o atti-activo de es- tar ali tam ás portas da ridente cidade do Purto. Espinho está a meia hora de distancia da estação de Villa Nova. Paramos ali unicamente pai'a passar a noute, e achamos, como em t(jdos os dezer- tos de ai-eia, grande animação de pulgas. Graças a Deus! que nos safámos ao amanhecer do dia se- guinte.

25

CAPITULO XXV

COIMBRA, BUSSACO

Coimbra, setembro. Abalei dos saibrosos plainos e outeiros de Espinho, no comboyo da manhã, pro- jectando sair na estação da Mealhada, onde ha di- ligencia para a povoação de Luzo, muito concorrida, ha annos, em razão da sua temperada primavera e dos seus banhos mineraes. Luzo está nas faldas da mais alta serra da cordilheira da Estrella. Ergue-se no seu vértice o extincto convento de Santa Cruz do Bussaco. É famosa, por fertilidade e belleza, em todo Portugal, aquella matta; mas as eminências do Bussaco são principalmente celebradas pela por- fiosa batalha em que os francezes, commandados por Ney e Massena, foram desbaratados pelo exer- cito anglo-luzo, sob o commando de Wellington, em 27 de setembro de 1810.

Soubemos na Mealhada que a diligencia so- mente saía á tarde; e, podendo acontecer que todos ou quazi todos os logares estivessem tomados, 'por favor seriamos recebidos como podésse ser, se por acazo houvesse aonde. O carro ordinário saiu ás cinco da manhã, e ahi provavelmente poderiamos *

388 A FORMOSA LUSITÂNIA

ter quatro Jogares. E, no entanto, como a estalagem da terra não tinha cómmodos, poderíamos dormir n'um quarto de certa caza ali perto. Aquella gente espantou-se de que nós, sendo todos do mesmo ran- cho, não quizessemos ficar juntos no mesmo quarto. Dezistindo, pois, d'esta restricta hospedagem, e in- formados de que não havia carruagem de aluguer para Luzo, regressamos ao comboyo que por fortuna ainda estava na estação, e chegamos a Coimbra cerca do meio-dia.

Havia muitíssima calma, e pensamos em ficar descançando um pouco no huffet d'esta espaçosa es- tação ; mas immediatamente fomos assediados por uma caterva de farrapões que se atiraram ás ba- gagens e as guindaram ao tejadilho de um carro. Não havia ali carregadores próprios da via-fei^rea, nem as bagagens eram expostas n\imaplata-fórmacomo em Inglaterra, mas sobre um balcão, com uma corja de garotos atraz da gente para se agarrarem a ellas. Em Coimbra não ha revista aduaneira como em Lis- boa e Porto, onde estão soldados em vigilância para impedirem que os gatunos, semelhantes aos da sel- vática Irlanda, se não finjam carregadoi^es. Fora da estação havia uns carros pequenos de cortinas, per- tencentes aos diversos hotéis ; e, como os passagei- ros eram poucos, os cocheiros disputavam desabri- damente para se apossarem de nós. Justamos o carro do Hotel do Mondego; logo, porém, que os nossos perseguidores viram que não nos podiam attraír nem bigodear, a bagagem passou de um carro de outro hotel para o nosso; mas fizeram-no de vontade, muriTiurando, e invectivando contra aextrajigeiros.

COIMBRA, BUSSACO 389

francezes, hespanhoes, inglezesy), tudo com epithetos de escarnco quo nos dirigiam. Escapos uma vez da estação, não tivemos mais dissabores naLuza Athe- nas.

Coimbra dista obra de milha e meia da estação, que está ao sopé de um monte a pique. A ida para a cidade por larga estrada, vestida de tilias, (3 agra- dável couza. Fizemos estrepitoso barulho poraquel- las ruas esguelhadas e verdoengas, até que o co- cheiro, parando de repente defronte de uma caza de triste aspecto, declarou que estávamos no Hotel do Mondego. O que viamos, porém, eram as trazeiras da caza ; e, posto que a espectativa não promettesse muito, logo conhecemos que não havia razão de nos arrependermos da escolha. O Hotel Central do Mon- dego é um antigo estabelecimento, caza muito co- nhecida, e bom molde do velho jaez de hotéis por- tuguezes de primeira classe. A caza é decrépita; tem pavimento carunchoso e de esconso como se ti- vesse descaído para um lado. São pequenissimos os quartos. Os nossos eram quatro, dous de cada lado, com uma sala no centro e uma grande varanda ai- pendrada, d'onde se goza um extenso e bello panora- ma de campinas e serras. Os andares superiores tem análoga dispozição.

Viamos a corrente argentina do clássico Mon- dego a derivar pelo seu louro areal. A mar- gem d'além é escarpada, e tem no alto o vasto mosteiro de Santa Clara. As ruinas do antigo con- vento, ao fundo, estão meio soterradas em areia. Destruiram-no as inundações do rio impetuoso e assolador, tam plácido agora. A direita do mosteiro

390 A FORMOSA LUSITÂNIA

está a Quinta das Lagrimas, que suggere reminiscên- cias da historia romântica e melancólica dos amo- res de D. Pedro I «O Justiceiro)^ e da formosa Ignez de Castro, que foi exhumada pelo mais con- stante è ardente dos reaes amantes para ser coroada e preitejada como rainha. (•)

Ali perto, sob a lúgubre sombra d'um cypres- tal, murmura a Fonte dos Amores, cujo fio de agua conduzia n'um barquinho de cortiça as cartas amo- rosas do príncipe para a sua inclaustrada noiva. Em lapide tosca estão gravados versos com que Camões immortalisou a trágica historia da amante, amada e desditosa Ignez. Ha por aqui bonitas cazas ru- raes com varandas cheias de flores, e renques de fi- lias e acácias. Perto da orla do rio rescendem gies- taes e hervagens odoriferas. Os chorões roçam a limpida corrente com as suas vastas e graciosas madeixas. As margens declivosas, que se prolongam para o lado esquerdo, quanto a vista pôde abran- ger, e curveteam para norte, vão cobertas de vi- nhas e laranjaes. Os vizos dos montes são coroados de castanhaes e carvalheiras. Gentil Mondego! Que instincto do bello tiveram os fundadores das cidades portuguezas! Onde se encontraria mais delicioso lo- cal de que este da velha cidade das lettras? Aqui

(•) A coroação de Ignez de Castro defuncta é uma lenda. 0 verídico e austero Fernão Lopes não a refere 5 e Manoel de Faria Souza o inven- cioneiro que a inculca, no commentario a Camões, allega um instrumento publico que elle viu.

COIMBRA, BUSSACO 391

foi a capital do reino até que o vencedor dos caste- lhanos, D. João I, a transferiu para Lisboa. (•)

Serviram-nos o almoço em uma sala esteirada e limpa com vista sobre o Mondego. O serviço foi o mais delicado e aceado que eu ainda encontrara: lus- trosa prata, louça da índia, alvissimos guardanapos, óptima comida, criados attenciosos todos homens ; por que na caza, acho eu, que, excepto a dona, que é viuva, mulheres não havia nenhuma. Fez-nos ella uma espécie de vizita de comprimento, para nos dar as boas vindas, e pôr á nossa disposição a sua caza, como se fosse nossa. O criado que tratava dos quartos fazia-nos rir quando erguia os cobertores, e nos chamava, expondo os colchões a perfeito exa- me, dizendo: aEslas são camas de boa qualidade e a roupa também é muito boa, branca e fina.» E com certeza não as camas e roupas, que elle tam ener- gicamente asseverava serem as melhores de Portu- gal, mas tudo mais n'aquella caza é escrupulosa- mente aceado, e por preços baratíssimos.

O meu quarto é forrado de papel com pinturas que reprezentam pilares de mármore dispostos so- bre um pedestal. Os pilares começam onde acaba o azulejo que veste porção da parede. Cada pilar, que sobe até ao tecto, está cheio de elegantes expan- sões poéticas, umas latinas outras gregas; todas.

(•) Coimbra foi corte exclusiva, somente desde Afíbnso Henriques até Affonso III, que constituiu corte Lisboa juntamente com Coimbra. D. João II, a requerimento dos povos, mudou defiuitivamente a corte para Lisboa.

392 A FORMOSA LUSITÂNIA

ao que parece, insinuadas pela inspiradora pers- pectiva da janella. (•) Este ponto de vista é dif- fei^ente do da sala. Abrange algum tanto mais a noi^d(!ste ;. pelo que, além dos bosques, vei^geis, e viridentes collinas, alcança a universidade com a sua bella torre e o observatório que forma o topo da resvaladia montanha em que se recosta Coimbra. Alguns d'aquelles versos são óptimos, e, com certe- za, producções de estudantes de Coimbra que occu- param este quarto, e em geral não são simples ra- pazicos como os versinhos dos estudantes das uni- versidades de Inglateri'a. Apostrópham o Monde- go em linguagem inflammatoria, como a divindade que disputa bellezas com Hebe e Vénus. Gemem saudosos ao deixar Coimbra ci Minha bella Coim- bra^'>; ou: «O.s' olhos esciiivs)) de uma a graciosa se- nhoriUi)^ parece tornarem mais amargurado o adeus á Alma Mater. Abundam aqui fragmentos poéticos e imaginosos improvizos que formariam um volume. E, na verdade, o claro Mondego presta-se litteral- m(3nte ao nome que a miúdo lhe dão «rio das mu- zas. )) Afói'a isto, exerce elle um especial encanto

(•) Versos gregos no Hotel do Mondego cscript03 por estudantes ! Bom é que na Europa se acredite isso ; mas infelizmente lady Jackson enganou- se. Ell;>, não podendo perceber os alexandrinos de alguns rapsodos nossos contemporâneos, cuidou que a poesia era grega. A respeito de linguas, a mocidade académica de 1874 sabia :

. . .que Deus em turco Ali.X se chama, que, no grego aljihabeto, G é gama, que Taurus em latim quer dizer touro.

COIMDIJA, P.USSACO 393

sobre os portuguczes : c que nuo passa por terra alheia. Desde que nasce na serra da Estrella até que morre no oceano, na FigU(!Íi'a, o formoso Monde- go é sempre um rio portuguez.

Talvez que se devesse vizitar a universidade primeiro que a como objecto de maior interesse para viajantes; porém, como se festejava não sei que santo, era duvidoso se m'a deixariam ver. As lojas também estavam fechadas : parece que a gente d'ali em geral vae divertir-se fora de barreiras. Da minha varanda vi em baixo grupos muito festivos á ourela do i'io ou embarcados em botes pela mar- gem d'além. Andavam outros á beira da velha ponte de pedra, que se está derribando, por que estorva a corrente do rio : tam enterrados estão os seus ar- cos na areia. E a segunda ponte que se some : dis- seram-me que a primeira está debaixo d'esta, so- terrada no leito arenoso do Mondego.

O trajar domingueiro do povo é diverso do que uzam as aldeãs suburbanas do Porto, principalmen- te no feitio do chapéu, que também tem aba larga, mas descaída para a nuca. Excedem-nas no alar- do de ponderosas correntes de ouro, que pelo tama- nho e grossura, parecem insignias de dignatarios ci- vicos. Afora estes enfeites, uzam cruzes, broches, arrecadas, anneis e pulseiras, chitas ramalhudas, lenços bordados e aventaes, ramilhetes e grinaldas nos chapéus, soccas elegantes e, ás vezes, meias.

Emquanto esperávamos cicerone que nos guias- se no labyrintho das estreitas e tortuosas ruas que conduzem á velha, entramos na sala de jantar do hotel. É comprida e alta: sobre a escarpa da cha-

394 A FORMOSA LUSITÂNIA

mine tem um avizo escripto em uma grande taboleta, que diz : «Não é permittido fumar, durante o jantar, estando senhoras.)) Penso eu que é grande e desne- cessária a privação imposta aos hospedes ; e, se são estudantes os commensaes, com certeza dezeja- rão encommendar as damas ao diabo peço que me desculpem o nervoso da expressão por quan- to, que hespanhol ou portaguez jantará confortavel- mente não fumando? E quantas das taes senhoras dezejariam também fumar? E certo que em um jan- tar particular vi uma senhora, depois de jantar, fu- mar o seu cigaretto, como qualquer cavalheiro. Ora, posto que eu não fume, tam affeita estou a ser fume- gada que receio, quando sair d'este bello paiz, levar ainda nos vestidos o aroma do tabaco. (•)

As ruas de Coimbra são negras ; muitas são me- ras viellas, de costa acima quazi todas, escadeadas, litteralmente, calçadas de pedrinhas redondas, de nenhum modo gratas aos pedestres. Algumas são asquerosas; mas, hoje em dia, creio que se não faz mister aos estudantes, primorosos como fo- ram no calçado, estabelecer estações em diversos pontos da cidade para, durante o dia, mudarem de sapatos. Ultimamente esta pachorrenta mansão da sabedoria saiu do seu serio n'algumas scenas de arruaça motivadas pelo descontentamento dos es- tudantes por certas reformas universitárias e com

(■) Lady Jackson nos disse graciosamente que fumou. Logo vere- mos que tornou a fumar graciosamente. Está em lettra redonda e portanto immortalizado o escândalo que por ser de fumo não ficará menos duradouro que o bronze na memoria das inglezas graves.

COIMBRA, BUSSACO 395

certos professores que as fomentavam. Saíram es- toques e pistolas n'esses coutiictos ; creio, porém, que não cori*eu sangue, e todo o prejuizo se cifrou em algumas ari-anhadellas de cara. Actualmente es- tão fora muitos académicos; mas alguns vi envoltos nas suas grandes capas, descobertos, posto que ti- nham uma espécie de carapuças que trazem nas mãos ou nos bolços, e com ellas cobrem as cabeças á semelhança dos nossos (copas-azues». (Blue-coat hoijs).

É a velha um singularissimo edifício gothico, anterior, segundo se diz, á fundação da monarchia portugueza; mas os portuguezes gostam de dizer que as suas cathedraes e outros edifícios, quanto á data da edificação, se perde na noiUe dos séculos. (•) A Sé, porém, é antiquíssima, sem duvida, e as suas decrépitas paredes afortalezadas mais assemelham antigo castello que edifício religioso. E quadrangu- lar, (••) com um zimbório encimado de cruz de fer- ro; mas não tem torreões nem ti^apeiras, salvo um gradeado de pedra sobre o arco da porta principal. Tem ao lado esquerdo uma porta com um arco de mármore primorosamente lavrado. (•••) Ha na di- versos túmulos egregiamente esculpturados, mui- to para se verem, e o coro grande é reputado um primor. N'esta cathedral foi coroado D. João I.

(•) A Velha foi edificada, no reinado de D. Affonso Henriques, pelo bispo D. Miguel, entre 1160 e 1180.

(••) A planta do templo é um parallelogrammo. (•••) Pedra de Ausão, e não mármore.

396 A FORMOSA LUSITÂNIA

Tanto os templos como outros edifícios, que em Coimbra são numerosos, tem sido detençosamente descriptos; pelo que, me abstenho de amiudar mais pormenores ; além de que, me fallecem conhecimen- tos architectonicos para tornar interessantes taes particularidades.

Admiro distinctamente o templo de Santa Cruz, com as curiosas esculpturas da sua frontaria, e sin- gular torre de molde mourisco. Egreja e mosteiro fundou-os D. Affonso Henriques, que está sepul- tado com seu filho D. Sancho. Quando D. Manuel restaurou a egreja, abriram-lhes as sepultaras, e acharam, segundo se diz, os corpos incorruptos co- mo o de D. Lourenço em Braga. Vestiram-os de manto real, sentaram-os em thronos, e o i-ei com a corte ajoelharam e beijaram-lhes mãos e pés. Repo- zeram-os depois em novos sepulchros, erigidos por D. Manuel. Referem tradições prodigiosos cazos da sua apparição na batalha de Aljubarrota. (•)

É de alabastro perfeitamente cinzelado o púlpito d'esta egreja. Reprezenta em oito quadros os mi- lagres do Senhor. A forma é octógona, e a pedra esculpturada é inteiriça.

Rezervamos a universidade e outros logares para quando regressarmos do Bussaco. A tardinha,

(•) Esta maliciosa senhora nào perde lanço de contar aos soas inglezes que nós temos tradições parvoas. Parece que conversou com tolos em Por- tugal. Informou-se com os estalajadeiros, ao que parece.

Quanto ao beijamào dado pelos dous cadáveres, isso é uma fabula das muitas que -inventou D. fr. Nicolau de Santa Maria, chronista dos cruzios.

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COIMBRA, BUSSACO 397

subimos aos jardim botânico e aqucductos, e pas- seamos entre os elegantes na bonita alameda, á margem do i'io. Estudantes e lentes com as suas vestes académicas, e senhoras esmeradamente tra- jadas iam e vinham, ou sentavam-se debaixo das tilias e acácias d'este passeio graciosamente arbori- zado. Estava o ceu de um azul suave, purpurino, no occidente. Rodeavam-nos laranjaes e jardins; o hálito das flores rescendia fragrâncias ; ao longe, bos- ques fechados, veredas sombrias serpejando por en- tre outeiros, para além dos quaes se boleavam de azul as serranias.

Vinha um murmurinho de vozes longínquas do lado do JMO : é que ainda não acabara a festividade. As vezes, lucilava um foguete, e na longa fileira de janellas de Santa Clara scintillavam luzes. Volta- mos ao nosso hot<3l ; e, sentados na varanda, a tomar café e a fumar cigarettos, estivemos até que o luar banhou o delicioso panorama. Que deslumbrante al- vejar de cazas ! Que brilhante rutilar o do Mondego, quando reluzia como corrente de prata por entre as suas orlas florecentes !

Ao arraiar do dia, devíamos partir para o Bus- saco. O nosso amigo hespanhol, D. António não lhe ouvi dar outro nome encarregara-se de nos ba- ter á porta dos quartos ás quatro horas; mas tam fa- tigados estávamos com os passeios da véspera e elle tanto como nós que, vindo o porteiro chamar- nos ás seis, sobresaltou-nos o sereno dormir com estrondosas palmadas na porta de António. Disse elle que batera outra vez, e que o carro esperava, havia mais de uma hora. A nossa consternação su-

398 A FORMOSA LUSITÂNIA

biu de ponto ; por que o profundo lethargo nos com- pelliu a dezistir do passeio. Mandamos pois o trem embora, e que viesse ás oito. Então saímos a apro- veitar a licença obtida para vér a universidade.

Está situada em tal eminência, que vale a pena subir para gozar a vista que d'ali se abrange. Receberam-nos com aquella affavel urbanidade de maneiras tam características dos portuguezes, e mos- traram-nos as diversas peças que constituem a uni- versidade. Parte é antiga, parte moderna: em diver- sos períodos houve ampliações e accrescimos. Subi- mos a torre, d'onde se avista a cidade inteira, e o rio semelhante a serpente de aço que vem faiscando por entre os valles, bosques e serras dos seus bel- los arredores por espaço de milhas. Parece-me ser aquillo superior a tudo : era com certeza o mais ex- plendido espectáculo que ainda víramos. Precorre- mos as aulas e o museu : tudo aceado, espaçoso, elevado. Os instrumentos astronómicos do observa- tório dizem-me que emparelham com os melhores da Europa.

Mas, a meu ver, a mais notável peça da univer- sidade é a bibliotheca. Consiste em vistosa fileira de salas, com galerias repartidas em secções de li- vros das diíferentes linguas. A solemnidade de tom dos ornatos diz ao propozito a que são destinadas as salas um certo silencio em que se compraz o espirito, e favoneia o estudo. Ha gabinetes distin- ctos para os académicos premiados que queiram estudar em separado. É grande a livraria, rica de edições raras e MSS dos extinctos conventos, li- vros gothicos, illuminuras em pergaminho, e col-

COIMBRA, BUSSACO 399

lecção de gravuras, algumas antigas o exemplares únicos.

Este agora não é tempo próprio para vizitar Coimbra. Principiaram as ferias, e poucos estudan- tes ficaram ; de modo que as ruas estão ermas. Cur- sam, termo médio, 1:000 a 1:200 estudantes, e os lentes, que são muitos, também se auzentaram. Vi- vem os académicos na cidade em cazas particular- mente dezignadas para os receberem, e com a sua prezença dão vida áquelle provecto, lúgubre e hor- rendo arruamento. Governam a universidade um reitor, chanceller, decanos e outros. As leis, ou es- tatutos por que se regulam, creio que divergem ago- ra muito dos que se observavam antes da extincção dos institutos monásticos. (*)

As informações obtidas, esta manhã, a respeito da estrada que dezejavamos seguir para o Bussaco, decidiram-nos a sair de Coimbra entre as trez e qua- tro horas da tarde. (") São dezoito ou vinte milhas de distancia. Até aos Fornos, seguimos a estrada velha

(•) Não ha rezidencias privativamente dezignadas pai-a alojamento de académicos. Quanto a estatutos, os reformados no reinado de D. José eman- eipai"am a academia da influencia monacal. Desde 1773 que ali se professam as sciencias com pouco deslize das mais adiantadas universidades da Europa. Pelo que respeita a estatutos, o estudante, fora das obrigações escolares, é um cidadão indistincto dos outros. Do passado conserva apenas a capa e a loba, que despe fora dos Geraes para envergar um paletó surrado, uma calça á faia esgarçada, e um chapéu á bombeiro com inclinações afadistadas. Se não todos, alguns d'elles saem d'ali muito ignorantes, muito devassos, e excel- lentes ministros da coroa.

(••) Esta senhora houve-se generosamente com a princeza do Mondego. Não é esse o costume dos hospedes inglezes. Richard Twiss, que esteve em

400 A FORMOSA LUSITÂNIA

do Porto, por entre aldeias o alegres sitios de vi- nhas, fructas e sombras. D. António ia cantando as suas canções dilectas para snpprir, dizia elle, a escas- sez de aves canoras nas florestas de Portugal. Ora é certo que por ahi rouxinoes não faltam, e nem são avaros das suas prendas nem se receiam de can- tar. (•) Aos FoiMios tomamos á direita, e avistamos, demarcando o horizonte, a cordilheira daEstrella; e mais perto, diante de nós, o seu mais alto cume o Bussaco. Desde aqui, o campo era mais árido, ou menos pittoresco, por que a terra produz cereaes, vinho e azeite. Perpassamos por duas aldeias e al- guns coUages dispersos, com seus milharaes e poma- res; e, saindo da estrada real por cangostas impra- ticáveis, chegamos providencialmente a Luzo. Não era aqui o nosso destino ; mas o cocheiro não sabia o caminho, posto que pretendesse conhecel-o palmo a palmo, dizia elle. A ultima parte da jornada foi ter- rivel : caminho ei'mo, escabroso, e o presentimen- to de passarmos a noute à la belle éloile, a menos de

Coimbra em 1773, homem de letti-as, escreveu um enorme livro acerca de Por- tugal e Hespanha, dedicando a Coimbra as cinco seguintes linhas: «Coimbra «éuma universidade situada n'um monte, perto do rio Mondego, sobre o qual «corre uma ponte muito comprida e baixa, com muitos arcos grandes e peque- «nos. Rezidem aqui cinco familias inglezas, uma das quaes pertence a um me- «dico. Esta cidade é celebrada pelos seus curiosos copos e caixas de corno «polido.') This city is celebrated for its curious cups and boxes of turned horn.

E nada mais diz o admirador do polido corno.

(•) Malicioso e quazi fino epigramma aos nossos bardos. Esta senhora provavelmente viu-se abarbada com os satanismos polyglottas de algum rou- xinol do Chiado.

COIMBIU, BUSSACO 401

procurarmos agazalho em alguma cazinha. Afinal encontramos dous aldeãos. Um d'elles propòz guiar- nos a Luzo, arredado d'ali couza de seis kilometros, ou quatro milhas. Acceitamos-lhe alegres o oífereci- mento.

Tam prospera nos bafejou a fortuna, que encon- tramos dous quartos devolutos na hospedaria ; que, n'esta estação, é necessário telegraphar com antecipação de dias para ter cóm modos nos peque- nos hotéis. A segurança das estradas portuguezas, limpas de ladroagem, e o zelo com que o aldeão nos ensinou o trilho, deu certa alegria aos meus com- panheiros. Quiz-me parecer que, se o cazo se desse em Hespanha, principalmente agora, o êxito seria outro.

Pretende-se antepor o Bussaco a Cintra como local para concurso da sociedade elegante. Avultam- Ihe bellezas não superiores a tudo que ahi ha mais celebrado, senão ainda «incentivos a tam altos pen- samentos de extática admiração e profundo respeito mystico no espectador, que não ha ahi phrazes que os exprimam cabalmente.»

O prestigio que Cintra benemeritamente goza de paraizo terreal deve-o por ventura á vizinhança da capital, e ser o único, entre os vários sitios do paiz análogos em belleza, que, a um tempo, permitte fá- cil accesso a Lisboa, e tem de per si mesmo formo- suras indisputáveis. As bellezas nativas da matta do Bussaco ainda não bastam para attraír considerá- vel porção de vizitantes, posto que a via férrea haja attenuado bastantemente as fadigas da jornada; mas o Bussaco dista algumas milhas da linha principal,

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rezultaram a victoria aiilo-luza. Um altisonanto pe- ríodo convida o exor^ it britaiinico a vir integral- mente assistir ao grand simulacro de batalha em todos os lances do seu pssado triumpho. Os res- tantes soldados da guerii peninsular pequenissi- mo grupo de veteranos, -reio eu deviam especial- mente comparecer. Hminu o Porto «o desordeiro» não gostou da projectaa festa militar, e, nos seus jornaes, francamente a pprovou. Soube o governo que o Porto impugn i\ ,i jue os dinheiros públicos se desbaratassem na .,] oração da victoria do Rus- saco, decorridos lams annos. O ministério da guerra respondeu qii. no auctorisái-a o pi'()j(M't(^ que não tencionava consntii- paividas militares no local da inauguraerm o monumento, einpre/.a de alguns particulares, pie não tinham (pie vèi- com o governo. Em re iltado, a única ceremonia que se fez foi descobni o obeliscij, e muita gen- te é de parecer que serif nKjlhor (jue até o monu- mento se omittisse. Ms os portuguezes dizííin que o reviver memoi i i- 1.- íriínnphos nacionaes é reaccender o espirito belcoso dos patriotas.

Principiamos a snM a serra ás oito horas, por uma clara e bi'ilhante iii;ihã. Á mão direita, vimos um gi-ande cruzeiro toso, formado dos troncos de duas arvores. O caíinn,) é marginado de bellos freixos de um lad(j; o)utro é desassombrado, c deixa ver uma amplissim paizagem, intermeada de aldeias e villares, no piolngamento de algumas mi- lhas, até ao mar. Um í)ííedão de dez pés de altura e seis ou sete kilomrtrs de extensão circuita a matta, que tem dous p^ ,ies de enti-ada. í/i se

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G quem quer ir ou tem de se rezignar com o des- gosto de ser palliado por algumas horas nos repel- lões de uma diligencia, ou alugar trem. Ora, muita gente acha que vae n'isto um grande desconto ás delicias da excursão.

Dous ou trez especuladores dinheirosos com- praram um grande pedaço da matta em frente da egreja, e projectam ali edificar uma vasta hospe- daria, em estylo moderno ; e, como não é provável que se faça ramal para lá, cuida-se agora em cons- truir á pressa uma estrada, por onde melhores car- ros, e a melhores horas, andarão frequentemente.

Espera-se que este anno de 1873 muita gente ao Bussaco para assistir á inauguração de um mo- numento— obelisco de pedra rematado por uma es- trella de crystal que os esforços do coronel Costa Cascaes realisou para commemorar e apadroar o local da famosa batalha de 1810, na qual dizem os jornaes de Lisboa «11:000 portuguezes auxilia- dos por 23:000 inglezes ganharam completa victoria sobre Massena, e d'est'ai'te deram o primeiro abalo ao colosso de Bonaparte, que, d'ahi avante, decaiu até final. » (•)

Divulgou-se que o exercito portuguez confluiria ao Bussaco, a fim de exercitar as manobras de que

(•) Quanto á cifra do exercito anglo-luzo, ignorância, ou intencional e menos honesta falsificação de algarismos. Os portuguezes eram 29:065, e os inglezes 24:000. A citada auctoridade dos jornaes de Lisboa, se não 6 impe- rícia de interpretação, é aleive. 0 jornalista, por via de regra, pode não sa- ber a historia •, mas nunca deixa de ser patriota.

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rezultaram a victoria anglo-luza. Um altisonante pe- ríodo convida o exercito britaimico a vir integral- mente assistir ao grande simulacro de batalha em todos os lances do seu passado triumpho. Os res- tantes soldados da guerra peninsular pequeníssi- mo grupo de veteranos, creio eu deviam especial- mente comparecer. Porém o Porto «o desordeiro» não gostou da projectada festa militar, e, nos seus jornaes, francamente a reprovou. Soube o governo que o Porto impugnava que os dinheiros públicos se desbaratassem na celebração da victoria do Bus- saco, decorridos tantos annos. O ministério da guerra respondeu que não auctorisára o projecto, que não tencionava consentir paradas militares no local da inauguração do monumento, empreza de alguns particulares, que não tinham que ver com o governo. Em rezultado, a única ceremonia que se fez foi descobrir o obelisco, e muita gen- te é de parecer que seria melhor que até o monu- mento se omittisse. Mas os portuguezes dizem que o reviver memorias de triumphos nacionaes é reaccender o espirito bellicoso dos patriotas.

Principiamos a subir a serra as oito horas, por uma clara e brilhante manhã. A mão direita, vimos um grande cruzeiro tosco, formado dos troncos de duas arvores. O caminho é marginado de bellos freixos de um lado; o outro é desassombrado, e deixa ver uma amplíssima paizagem, intermeada de aldeias e villares, no pi^olongamento de algumas mi- lhas, até ao mar. Um paredão de dez pés de altura e seis ou sete kilometros de extensão circuita a matta, que tem dous portaes de entrada. se ve

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outra cruz «a cruz alta» assente sobre immenso p(3clrogulho. Conduz ao mosteiro uma avenida de ce- dros. D'um e d'outro lado adensa-se a floresta de arvores de varias espécies, carvalhos, castanheiros, alamos, sobreiros, loureiros e outras, tam espessa- mente emmaranhadas, e bracejando tam vigorosas que foram comparadas ás florestas virgens da America. É tam larga a estrada que duas carruagens sobem e descem a par. Cedros do Libano sombreiam o caminho ató á portaria do convento. Desde aqui, vae a gente sob um docel de folhas, por vasta selva religiosa, cujas ramarias entretecidas for- mam arcos de verdura, por onde o sol apenas filtra uns lampejos que rebrilham na sombra, quando a folhagem, bolida pela viração, mosqueia a terra de cores cambiantes. A tapeçaria variegada dos mus- gos é matizada de boninas que parecem pedras pre- ciosas. Pompeiam aqui arvores de todos os climas, e todo o colorido de lindas flores se ostenta. E, por esta grande e solemne matta, passaram outr'ora os mon- ges, carmelitas descalços, solitários e silenciosos, sequestrados do género humano, praticando com Deus e com os seus corações.

Encontram-se capellas nos bosques. Para ali se iam ermar os frades quando se devotavam a mais severa soledade que a do claustro, esquivando-se a interverem-se uns aos outros. Cada ermida tem a sua hortazinha, cujo cultivo, aprazado em breve tempo, lhes era aos monges o único recreio permit- tido, afora o passearem, de quinze em quinze dias, pela sua magestosa matta. Oração, meditação, absti- nência e penitencia, enchiam-Ihes o restante da vi-

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da vida inútil, docorto; mas, ainda assim, tam austera piedade e completo vagar ao mundo, dou- i'a-os de uma sublime auréola. Mandou, porém, D. Pedro que os frades saíssem do seu esconderijo, e, por algum tempo, concorreram numerosos vizitan- tes a famigerada matta, por que nenhum mundano, a não serem alguns raros padres, tinha penetrado, e esses haviam referido maravilhas das bellezas d'a- quelles bosques aéreos, de modo que desafiavam ar- dente curiozidade de os vêr. Depois, a guerra civil, por largo espaço, deixou a matta em completo aban- dono.

Tem a egreja duas estatuas, S. Pedro e a Ma- gdalena, que são muito para reparo pela excellencia da esculptura. Tirante isto, o templo pouco encerra digno de nota. Brotam seis fontes em diversos pon- tos do bosque. Chama-se Fonte fria a mais celebra- da. De verão tem a frialdade da neve, e no inverno é temperada. Deriva a agua por um cano coberto por diversos lanços de escada, fechada lateralmente por cortinas de granito. De seis em seis, ou de oito em oito degraus, ha um patamar, onde golpha a cor- rente em uns tanques de mármore. Enormes arvores cruzam por cima as suas ramagens. Trabalha-se actualmente na matta, e quando se houver construí- do o hotel, provavelmente, as ermidas e fontes, que hoje estão desprezadas ou muito mal cuidadas, de- vem de vir a restaurar-se.

Certamente, é isto um imperfeitíssimo bosquejo da grandiozidade d'aquelles mattagaes e eminências cujos agigantados cyprestes, cedros e florestas es- pantam pelo tamanho e afogado das suas ramagens ;

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A FORMOSA LUSITÂNIA

cujos bosques tem bellezas d'um amoravel idyllio, cujas moutas de densos arbustos em tiòr deliciam os olhos e aromatizam o ar, emquanto o murmúrio das fontes se mistura ao trinar dos pássaros, real- çando o silencio da scena. Que magnifica perspe- ctiva! Trinta, ou quarenta léguas, tanto quanto a vista pode alcançar na profundeza de uma limpida e brilhante athmosphera I A natureza aqui ostenta-se tam grande que não ha palavras que vinguem bos- quejal-a. Os meus companheiros e eu quedamos como estupefactos e mudos nas bellezas de em re- dor, e concordamos em que edificar ali uma estala- gem n"aquella montanha sagrada era nada menos que profanal-a. Estes bosques fechados não são as românticas aleas de Cintra: está impressa n'elles profundamente a tristeza monacal. O hotel devera sor em Luzo. Pelo que respeita ao templo do Bus- saco, ha ali grandeza solemne que move tanto ao respeito como a admiração. Vel-o, apraz; mas ha- bital-o, não. Ora, as ridentes paizagens de Cintra, rejubilam, a um tempo, olhos e alma. Também aqui ha magestade; mas mais encantadora que solemne: não está puxando sempre o espirito para contem- plações celestiaes. Em Cintra, respirareis mais a peito cheio que no Bussaco ; andareis mais de amo- res com a vida ; esquecereis que as rozas têm espi- nhos ; gozareis um sereno repouzo intimo ; e, ao sair d'ali, após violento esforço, sentireis o pungimcnto da saudade até ás lagrimas.

Formosa Cintra! Magestoso Bussaco!

CAPITULO XXVI

BATALHA ALCOBAÇA LEIRL\

Leiria. Retrocedemos em direitura do Bussaco para a Mealhada, onde entramos no comboyo para Coimbra, e d'ahi mandamos a Chão de Maçans to- mar para o dia seguinte seis logares na diligencia, desde aquella aldeia até Leiria. Evitamos assim ir apertados, por quanto, ordinariamente os passagei- ros de diligencia são gente mui grossa de feitio, ao passo que o logar dezignado para cada pessoa ape- nas chega para indivíduos assas esgrouvinhados e arganazes. Quando, porém, descobriram que éra- mos quatro, quizeram introduzir um quinto passa- geiro ; mas, como pagáramos os seis logares, man- tivemos rezolutamente o direito que nos assistia de preencher o carro. A couza seria mais questionada, se os meus companheiros não fossem hespanhoes, actualmente tam suspeitos aos portuguezes, e mais suspeitos quanto mais perto de Lisboa que o ho- mem, que se queria por força metter dentro, mudou totalmente de tom, e com certeza nada queria com- nosco logo que nos conheceu a nacionalidade. O

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cujos bosques tem bellezas d'um amoravel idyllio, cujas moutas de densos arbustos em flor deliciam os olhos e aromatizam o ar, emquanto o murmúrio das fontes se mistura ao trinar dos pássaros, real- çando o silencio da scena. Que magnifica perspe- ctiva! Trinta, ou quarenta léguas, tanto quanto a vista podo alcançar na profundeza de uma limpida e brilhante athmosphera ! A natureza aqui ostenta-se tam grande que não ha palavras que vinguem bos- quejal-a. Os meus companheiros e eu quedamos como estupefactos e mudos nas bellezas de em re- dor, e concordamos em que edificar ali uma estala- gem n'aquella montanha sagrada era nada menos que profanal-a. Estes bosques fechados não são as românticas aleas de Cintra: está impressa n'elles profundamente a tristeza monacal. O hotel devera ser em Luzo. Pelo que respeita ao templo do Bus- saco, ha ali grandeza solemne que move tanto ao respeito como á admiração. Vel-o, apraz; mas ha- bital-o, não. Ora, as ridentes paizagens de Cintra, rejubilam, a um tempo, olhos e alma. Também aqui ha magestade; mas mais encantadora que solemne: não está puxando sempre o espirito para contem- plações celestiaes. Em Cintra, respirareis mais a peito cheio que no Bussaco ; andareis mais de amo- res com a vida; esquecereis que as rozas tem espi- nhos; gozareis um sereno repouzo intimo; e, ao sair d'ali, após violento esforço, sentireis o pungimento da saudade até ás lagrimas.

Formosa Cintra! Magestoso Bussaco!

CAPITULO XXVI

BATALHA ALCOBAÇA LEIRIA

leiría. —Retrocedemos em direitura do Bussaco para a Mealhada, onde entramos no comboyo para Coimbra, e d'ahi mandamos a Chão de Maçans to- mar para o dia seguinte seis logares na dUigencia, desde aquella aldeia até Leiria. Evitamos assim ir apertados, por quanto, ordinariamente os passagei- ros de diligencia são gente mui grossa de feitio, ao passo que o logar dezignado para cada pessoa ape- nas chega para individuos assas esgrouvinhados e arganazes. Quando, porém, descobriram que éra- mos quatro, quizeram introduzir um quinto passa- geiro ; mas, como pagáramos os seis logares, man- tivemos rezolutamente o direito que nos assistia de preencher o carro. A couza seria mais questionada, se os meus companheiros não fossem hespanhoes, actualmente tam suspeitos aos portuguezes,— e mais suspeitos quanto mais perto de Lisboa que o ho- mem, que se queria por força metter dentro, mudou totalmente de tom, e com certeza nada queria com- nosco logo que nos conheceu a nacionalidade. O

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certo é que se desfez em desculpas, dizendo que não sabia que SS. Excellencias levavam senhoras com- sigo. Embrulhando-se em chailes e capotes, su- biu para a almofada, e nunca mais o vimos senão á saída da diligencia em Leiria, fixando-nos uns olhares escudrinhadores, acompanhados de uma al- catruzada cortezia.

É pena que não haja um ramal para Leiria. Decerto seria árduo e dispendioso construir para ali via férrea através de paiz tam ondulado ; mas algumas milhas de rail a Leiria e Luzo seriam lucrativas. Comparativamente, poucos portuguezes têm visto o Bussaco ou a Batalha, e o mesmo se com os forasteiros; pois é de crer que vi- zitassem a miúdo aquellas obras primas do paiz, se podessem transportar-se com mais presteza e commodidade, de que lhe permittem os solavancos de uma diligencia, que os obriga a jornadear antes do raiar da aurora. Eu que me desvaneço, talvez com presumpção, de ser exemplar de infatigável viajante, senti-me extenuada depois de algumas ho- ras de jornada, por montes e valles, premida, en- gaiolada, espalmada n'uma diligencia. Se dous ho- mens atoucinhados se mettessem entre nós, creio que suffbcariamos antes de chegar ao nosso desti- no. E tanto assim que, de cançados que estávamos, sentia-se disposta a gente a protelar para o dia se- guinte a vizita á Batalha; mas, na pequena estala- gem de Leiria, tam restaurador almoço nos deram, que remoçamos de coragem ; de modo que, findo o repasto, procuramos guia e carruagem. Não houve demui^a. Passadas duas horas e meia, e depois de

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uma cavalgata cm jumentos por sítios mui aprazí- veis, valles fertilissimos banhados pelo rio Liz, e alguns pedaços do serra difficeis, mas pittorescos, chegamos ao magniíicente Real Mosteiro de Santa Maria da Victoiia, chamado Batalha.

A situação da Batalha, á primeira vista, parece mal escolhida para tamanho edifício; e, na verdade, por cauza da baixa do terreno, acontece não raras ve- zes, segundo ouvi, quando ha chuvas grossas de tro- voada, as torrentes despenhadas da serra alagarem as naves. Porém, este templo sumptuoso, que proce- deu de um voto de D. João I, foi edifícado no terreno onde o monarcha desbaratou o rei de Castella. (*) Figuravam-se-nos ao principio umia multidão de edi- fícios aquellas grimpas, torres, parapeitos e capei- las ; mas, a par e passo que nos avizinhávamos, destacavam-se como de per si, até que a immensa cazaria se desdobrou ante nós com toda a sua ma- gestade, vastidão e formosura. São assombrosa- mente bellos os elegantes coruchéus e setteiras en- vazadas. A porta principal é tam primorosa e es- merada nos arabescos que um demorado exame, como eu ainda espero fazer algum dia, demanda mais tempo do que eu posso applicar ao complexo d'a- quella pomposa bazilica. Pilastras, estatuária, flo- rões, subtis rendilhados, fantaziosas laçarias e ara- bescos opulentam esta vasta frontaria, desde as pe-

(•) A batalha travou-se meia légua distante do local em que está o tem- plo votivo. N'este sitio havia eutão uma quinta chamada do Pinhal, que D. Joào I comprou a Egas Coelho, e a sua mãe Miiri* Ferna,ades de Meira,

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dras que pouzam no solo até ás mais guindadas por sobre o tecto. Não se espere de mim, pois, senão uma idéa geral d'este magnifico edifício, sem par, como se diz ; mas com certeza não ha outro na Eu- ropa que o vença em explendores de architectura. Apenas abrangi tudo de um lance d'olhos ; mas isso me foi que farte remuneração á jornada. Quando entramos, as vividas cores do arco-iris e resteas de luz dourada effeito dos raios solares coando-se nos vidros coloridos das janellas en- chiam as alterosas naves, tremeluziam nas paredes, e mosqueavam de mozaico o pavimento de mármo- re, embrechando-o de safiras, rubis e esmeraldas. Oh! que magestade a dos claustros! Cercam uma quadra de duzentos pés, e têm janellas em ogiva, cheias de subtilissimos debuxos, pouco menos de variados até ao infinito, com esculpturas de execu- ção prima, algumas restauradas perfeitissimamente. Reputa-se uma maravilha a caza capitular. Mede se- tenta pés, é altíssima, ricamente ornamentada no tecto que descança sobre columnas. Conta-se que a abobada d'esta sala duas vezes fora refeita, e duas vezes o formoso arqueado desabara ao retirar dos simples. A terceira -vez, rezistiu, e o architecto dcvotou-se a morrer sob as ruinas, se a abobada outra vez desabasse. Removidos os andaimes, o al- venel permaneceu no centro do salão contemplan- do a sua mirifica obra. Afinal, retirados os sim- ples, nem o minimo signal de estremecimento deu a abobada. A perseverança e coragem do archite- cto tiveram recompensa: a sua obra subsiste so- lida — prodígio de belleza e de engenho : está

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qual era, não obstante o abalo que lhe deu o ter- ramoto. (•)

Aqui está a maravilhosa capella imperfeita, por que não houve architecto capaz de executar a planta de Matheus Fernandes, que a principiara, e está se- pultado com sua mulher em a nave. (*•) Conside- ra-se requinte de belleza o arco Occidental pelas gra- ças da esculptura: outros reputam-no mais fanta- zioso do que elegante. Não me cegam vaidades para dar voto. Eu, de mim, apenas sei que esta gloriosa Batalha, olhada a vulto, com os seus moimentos reaes, capellas, relicários de santos, fachadas impo- nentes, delicados rendilhados e laçarias, que tam prodigamente a aformozeam, 6 uma prodigiosa obra de arte, um padrão magnificente das eras de gloria portugueza.

Em alguns pontos ha vandalismos praticados pe- los francezes; mas, n'estes últimos tempos, por es- forços de D. Fei'nando, muitos e judiciosos reparos se fizeram. Se faz idéa do que foi a Batalha nos dias festivos da egreja, quando o dom abbade e

(•) lUide-se uma nota em que a auctora refere uma fabula quazi idên- tica, passada no mosteiro de Santa Maria de Belém com certo arcliitecto ita- liano. Estes inglezes desadoram historinhas ineptas quando escrevem de Portugal. Lady Jackson, porém, nào é dos escriptores mais tributários a esse sestro sandeu dos tourists britannicos. Um tal Harrison, que aqui es.- teve em 1837, na Batalha, encontrou pulgas, ratos e uma novella. Em todas as terras achava romances, miseravelmente urdidos, com a collaboraçào do nosso «portO'), digno de esquentar miolo menos dessorado. 0 chatim inglez, quando se embriaga, deita-se : o tourist escreve. Veja The Tourist in Por- tugal, By. W. H. Harrison, etc. London, 1839.

(••) Matheus Fernandes, e sua mulher Antónia de Vivar e suas filhas estão sepultados á entrada da porta principal.

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gran-priores (•) viviam priíicipescameiíto nos seus dominios, quando a missa cantada se celebrava quo- tidianamente com o máximo explendor, quando nu- merosa chusma de frades palmilhavam aquellasclaus- tras agora dezei^tas, e jardins, e fresco refeitório, e «a luz mystica e ténue» da grande nave coloria pit- torescamente as procissões dos coristas e clerezia de habito branco, e a mystica toada das retumban- tes antiphonas reboava nas naves então, sim; mas a Batalha de hoje, com tantas excellencias ar- chitectonicas e gloriosas tradições, impressiona fria- mente como um enorme cazarão devoluto. As pom- pas da egreja catholica romana n'aquelles tempos deviam de realçar os explendores d'aquelle outr'ora mosteiro realengo.

Ha trez maneiras de subir ao topo do edifício : duas escadas de caracol, abertas nas grossas pare- des da nave, e outra escada interior. Preferimos es- ta, por ser a mais suave de subir, e que proporcio- na a mais ampla vista do immenso mosteiro. Quem não subir uma das escadas, mal pode formar con- ceito do grande espaço que o edifício occupa. Que floresta de grimpas ponteagudas e que delicias de cinzel ! Que extensas fíleiras de basteões recortados de ameias franjados de riquíssimas laçarias! A que altura sobem aquellas portentosas agulhas ! e o zim-

(•) Os frades da Batalha eram dominicanos. Esta ordem religiosa não tinha «Dons abbades nem Gran-Priores.v 0 religioso superior da ordem do- miaiça, chamava-se simplesmente o padre ^rior.

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borio, e a torro do relógio ! Quo numerosos altos e baixos na miscellanea de abobadas, capellas, mau- soléus, valias, refeitórios e vários repartimentos da assombrosa urdidura da explendida Batalha!

D'aqui passamos a Alcobaça, e atravessamos a povoação de Aljubarrota. Com quanto o nosso guia fosse meramente um arrieiro que nos acompanhava com os seus machos, conhecia elle a lenda da mu- lher do padeiro, a famigerada /Jftt/e/ra de Aljubarro- ta que, durante a grande batalha, a historia conta que matara treze hespanhoes com o pau do forno. (•) Os meus companheiros riram a bandeiras despre- gadas. ((Hoje em dia não ha d'essas padeiras», disse D. António ao arrieiro. ((Sim, sim replicou elle temos aqui muitos mulheres Iam valentes que el- la. » Depois, feita uma breve pauza, continuou : ((Se os hespanhoes voltarem a Aljubarrota, hão de to- pal-as. )) Pareceu-lhe que D. António, duvidando da coragem das actuaes padeiras, o affrontava pessoal- mente ; mas eu não sei bem se elle sabia que estava fallando com hespanhoes.

Chegamos ao anoutecer á estalagem. Ao princi- pio, temi que nos perguntassem se dormíamos to-

(•) A auctora diz baker^s dozen «dúzia do fornoiro ou do frade» que são treze. A tradição, menos sanguinária, conta que a façanhosa padeira matara sete. Os seis a maior são calumnia da escriptora. Não se sabe se Brites de Almeida tinha marido. Lady Jackson diz que sim ; e é de crer que acertasse, por que ainda por ali ha quem se gabe de ter nas veias sangue da heroina, que honra lhe seja ! acabou de matar com a pá, ou com o pau do forno, alguns castelhanos feridos e prostrados.

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dos no mesmo quarto ; por que havia duas camas n'um em que o patrão da estalagem nos introduziu, annunciando com grande encarecimento : « Tudo es- tá mui limpa, meus senhores; e as camas são boas. » Mas elle demonstrou que era mais decente, como os portuguezes dizem; por que este quarto destinou-o a D. Rita e a mim; e outro melhor aos caballeros. Alcobaça ! O nome d'este real mosteiro pinta-nos á mente uma vizão de joviaes monges bernardos to- dos de fidalga estirpe, medrando na exuberância dos seus domínios, cercados de jardins, de vinhedos, e de vergéis. Rendimentos principescos eram princi- pescamente desbaratados. «São grandes as libera- lidades do Senhor: faz-se mister gozal-as», dizia o dom abbade. Como saboreavam as bellas couzas da vida, cordialmente queriam repartil-as, e portanto eram generosos hospedeiros e aífectivos amigos dos seus servos e dos camponezes dos seus vastos se- nhorios. Sob o brando império dos bons monges de S. Bernardo tudo prosperava e todos aquinhoavam da prosperidade d'elles. A cozinha do mosteiro des- creveu-a Mr. Beckford, que vizitou os faustuosos frades, como « o mais extremado templo de glutões em toda a face da Europa. » Parece-me estar vendo o bonacheirão dom abbade, que também era es- moler-mór do reino, aprazivelmente contemplando os preparativos do seu banquete. Eil-o no templo cu- linário. «Pelo meio da immensa caza de tecto arte- zoado, que mede nada menos de sessenta pés de al- tura e cem de extensão, deriva um ribeiro do lím- pida corrente um braço do Alcoa discorrendo por rezervatorios de madeira que contem cardumes

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de toda a espécie de peixes íiuviaes. A um lado, está pendurada a caca; iio outro, hortaliças c fructos va- riadissimos. » N'csta enorme cozinha ha trez tanques de lavar as hortaliças, carnes, etc, o as paredes são vestidas de azulejos. Ao lado da longa cadeia de fo- gões está a fileira dos fornos, c ali pei'to ve-se ri- mas de farinha triga mais alva do que a neve, pães de assucar, talhas do mais puro azeite, e profuza pastelai'ia, que uma numerosa tui-ba de leigos e criados está enrolando sobre pranchas de mármore branco, e assoprando em centenares de formas, e cantarolando tam alegres como calhandras em seara. O gran-pVior de Aviz e o prior de S. Vicente i-ejubi- lam-se prezenciando os prelogomenos d'aquella hos- pitalidade. Também, Mr. Beckford ahi está, e mais o seu impagável mordomo Monsieur Simon, tam elo- giado e gabado pelo dom abbade pela sua pericia culinária. E elle quem diz, á guiza de comprimen- to, áquelle beato gourmand e gourmel: «Monseig7ieur rend la religion si aimable.h)

Não eram as boas vitualhas ; mas a pinga dos mais especiaes vinhedos do reino a de Aljubar- rota, da lavra do mosteiro, e rival do Cios Vougeot. E que direi da sala de jantar? as toalhas bordadas e franjadas, o serviço e as serpentinas de prata ! E a camará do abbade? leito cortinado de gaza, tra- vesseiros franjados de seda ! Nos quartos de vestir, jarros e bacias de prata, toalhas com cercaduras de renda, tapetes da Pérsia, reposteiros de velludo, e o mais á proporção. Viviam vida folgada aquelles glo- riosos monges d'outr'ora. Divertiam-se em repre- zentações, concertos, bailes, santificando tudo com

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dos no mesmo quarto ; por que havia duas camas ii'um em que o patrão da estalagem nos introduziu, annunciando com grande encarecimento : « Tudo es- tá mui limpa, meus senhores; e as camas são boas. » Mas elle demonstrou que era mais decente, como os portuguezes dizem; por que este quarto destinou-o a D. Rita e a mim; e outro melhor aos caballeros. Alcobaça ! O nome d'este real mosteiro pinta-nos á mente uma vizão de joviaes monges bernardos to- dos de fidalga estirpe, medrando na exuberância dos seus domínios, cercados de jardins, de vinhedos, e de vergéis. Rendimentos principescos eram princi- pescamente desbaratados. «São grandes as libera- lidades do Senhor: faz-se mister gozal-as», dizia o dom abbade. Como saboreavam as bellas couzas da vida, cordialmente queriam repartil-as, e portanto eram generosos hospedeiros e affectivos amigos dos seus servos e dos camponezes dos seus vastos se- nhorios. Sob o brando império dos bons monges de S. Bernardo tudo prosperava e todos aquinhoavam da prosperidade d'elles. A cozinha do mosteiro des- crê veu-a Mr. Beckford, que vizitou os faustuosos frades, como « o mais extremado templo de glutões em toda a face da Europa. » Parece-me estar vendo o bonacheirão dom abbade, que também era es- moler-mór do reino, aprazivelmente contemplando os preparativos do seu banquete. Eil-o no templo cu- linário. «Pelo meio da immensa caza de tecto arte- zoado, que mede nada menos de sessenta pés de al- tura e cem de extensão, deriva um ribeiro do lím- pida corrente um braço do Alcoa discorrendo por rezervatorios de madeira que contem cardumes

BATALHA, ALCOBAÇA, LEIRIA 415

de toda a espécie de peixes lluviaes. A um lado, está pendurada a caça; iio outro, hortaliças e fructos va- riadissimos. » N'esta enorme cozinha ha trez tanques de lavar as hortaliças, caiuies, etc, e as paredes são vestidas de azulejos. Ao lado da longa cadeia de fo- gões está a fileira dos fornos, e ali perto vê-se ri- mas de farinha triga mais alva do que a neve, pães de assucar, talhas do mais puro azeite, e profuza pastelaria, que uma numerosa turba de leigos e criados está enrolando sobre pranchas de mármore branco, e assoprando em centenares de formas, e cantarolando tam alegres como calhandras em seara. O gran-pHor de Aviz e o prior de S. Vicente rejubi- lam-se prezenciando os prelogomenos d'aquella hos- pitalidade. Também, Mr. Beckford ahi está, e mais o seu impagável mordomo MonsieurSimon, tam elo- giado e gabado pelo dom abbade pela sua pericia culinária. É elle quem diz, á guiza de comprimen- to, áquelle beato gourmand e gourmel: nMonseigneur rend la religion si aim-able!»

Não eram as boas vitualhas ; mas a pinga dos mais especiaes vinhedos do reino a de Aljubar- rota, da lavra do mosteiro, e rival do Cios Vougeot. E que direi da sala de jantar? as toalhas bordadas e franjadas, o serviço e as serpentinas de prata! E acamara do abbade? leito cortinado de gaza, tra- vesseiros franjados de seda ! Nos quartos de vestir, jarros e bacias de prata, toalhas com cercaduras de renda, tapetes da Pérsia, reposteiros de velludo, e o mais á proporção. Viviam vida folgada aquelles glo- riosos monges d'outr'ora. Divertiam-se em repre- zentações, concertos, bailes, santificando tudo com

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incensos odoríferos, missas cantadas e orações. Eu quazi que esperava ver a turba d'estes jocundos phi- losophos de cogula a saírem das grandes portas esculpturaes de encontro a nós quando subíamos ao terraço. Orçavam entre quatrocentos e quinhentos quando, em 1794 ali esteve Mr. Beckford; mas o mosteiro podia alojar mil. (•) No tempo da guerra peninsular, seriam uns cento e sessenta frades; e, quando se extinguii^am os mosteiros, apenas vinte e sete se mandaram embora; estes, porém, avizada- mente tiraram da espada e batalharam nas fileiras de D. Pedro e D. Maria. (••)

Está o mosteiro agradavelmente situado entre suaves declives, bosques cerrados, valles fructiferos, que dous rios, Alcoa e Baça, fertilizam. O edifício tem magestade. Em todo o comprimento da sua tes- tada corre um lanço de escadas rentes com o mos- teiro. É mais antigo que a Batalha. Fundou-o o grande Affonso Henriques, depois do ultimo desba- rate da mourisma em Santarém. Os antigos conquis-

(•) Nunca houve alem de 400 frades, nem havia espaço para mais. No principio do século XVIII os frades de Alcobaça pediam ao monarcha maior caza e permissão para admittirem mais noviços. Não o conseguiram.

(••) Estava melhormente informado o conde A. Raczynski, quando, ao mesmo respeito, escreveu : « 0 certo é que os frades (de Alcobaça) eram ar- dentes partidários de D. Miguel ; e, se me não engano, armaram á sua custa um regimento de voluntários para a defeza da sua cauza. E elle, por sua parte, mostrou-lhes que os prezava, por que foi vêl-os, e passou muitos dias no mosteiro. Deve confessar-se que os frades não mostraram grande fi- nura e discernimento sustentando-lhe a cauza; porque, apenas D. Miguel foi deposto, mandaram-os sair da sua antiga caza. » Les Arts en Portugíil^ pag. 454.

]{A'IALIIA, ALCOBAÇA, I.KHUA 417

tadores celebravam sempre as suas victorias com alguma fundação religiosa de modo que os seus triumphos eram sempre obra de Deus ou dos san- tos. D. Affbnso, a ponto de investir com os mou- ros, que dominavam Santarém em numero de 4:000 homens, não tendo elle mais que duzentos e cin- coenta, antes de dar o assalto fez voto a Deus de, se alcançasse victoria, doar á fabrica e sustentação de um convento quanto terreno o olho pudesse abranger. (•) Pediu a S. Bernardo (") que interce- desse por elle; e lhe dedicaria o mosteiro. Santarém foi tomada por astúcia, e a mourisma desbaratada. E, portanto, Affonso fundou o mosteiro no local on- de agora está o augusto edifício que data do começo do século XIII. (•••) A noticia da fundação está es- cripta nos azulejos que ladrilham as paredes da sa- la dos reis.

Que mudada está aquella prodigiosa fabrica ! Que é feito do explendor dos seus altares e coros? Que é dos thezouros de prata e ouro e paramentos que

(•) D. AfFonso decerto em 1147 nào podia comprometter-se a dar ao mosteiro senào o que pudesse avistar do alto da serra de Albardos, mas sem óculo, por que os óculos foram inventados em 1607. 0 naked aye da auctora é um anachronismo que parece forjado em Alcobaça no século de Bernardo de Brito. N'aquelle tempo, não se sabia o que era olho armado.

(••) o monge Bernardo ainda era vivo: níio seria implorado na quali- dade de santo; mas de bom intercessor para com o Deus dos exércitos. Es- te caso, porém, da promessa feita na serra de Albardos pertence á parte my- thica da historia.

(•••) Aliás XII, por que a primeira pedra foi assentada em 2 de feve- reiro de 1148, 6 ao cabo de 74 annos foi concluído. 27

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A FORMOSA LUSITÂNIA

lhe deram a primazia nos mais opulentos mostei- ros do reino? Caíu-lhe em cima duas vezes a garra devastadora. Barbaramente os francezes des- truíram o sagrado edifício ; violaram os sepulchros em cata de thezouros, e esbrucinaram a formosa Ignez de Castro em seu jazigo, ao do seu i'eal ma- rido e amante. Laceraram-lhes os túmulos ; mas não tiveram vagar para os derruir, por que o exercito an- glo-luzo se aproximava ; e, pegando fogo ao mostei- ro, que felizmente lhe rezistiu com sua solidez, os sacrilegos assoladores fugiram. São menos interes- santes outros jazigos que ali ha esculpturados mais ou menos primorosamente. D. Ignez jaz em um sar- cophago de pedra com os pés voltados para os de D. Pedro, o justiceiro, que assim mandara collocar os túmulos para que elle e a sua amada rainha se er- guessem rosto a rosto, e se saudassem na resurrei- ção.

O effeito que produz a nave central da egreja até á capella-mór é deslumbrante, e o das naves lateraes não o é menos, devido á grande altura c á belleza da forma dos seus arcos. A esculptura é magnifíca, e tanto aqui como em Alcobaça, tem-se cuidado mui- to de reparar os estragos do tempo e também os cauzados pelos vizitantes. Os portuguezes distin- guem-se como esculptores. Vi n'este convento c em differentes capellas e egrejas que estão sendo retocadas, magnifícas amostras de esculptura mo- derna, tanto em madeira como em pedra; e, ape- zar da acção do tempo lhes ter assignalado os seus perniciosos effeitos, ainda podem ser vantajosamente comparadas com os lavoí^es que subsistem.

,^mNui'*v^ai-

BATALHA, ALCOBAÇA, LEIPJA

419

A livraria foi outr'ora uma sala ospleudida, ladri- lhada de marmoro branco o preto, com dezenhos caprichosos nos intorvall(js das suas oito grandes janellas. Todos os livi'os raros e manuscriptos pas- saram para Lisboa quando os conventos se extin- guiram. A livraria ficava do lado de um jardim, cul- tivado com esmero, e onde se encontravam as flo- res mais raras. Duas fontes serviam de adoi'no a este jardim. N'um dos do claustro creio que ha- via cinco existiam ainda ha poucos annos as la- ranjeiras mais antigas de Portugal. Diz-se que ha- viam sido plantadas antes das de Penha Verde, que eram consideradas como as primeiras introdu- zidas na Europa e vindas da China. ICstes immen- sos conventos são hoje excellentes quartéis, e tal- vez seja melhor que estejam habitados pelos sol- dados da egreja militante do que por um regi- mento de h*ades. Com quanto se veja pequeno nu- mero de padres em Portugal, é classe que super- abunda. E certo, porém, que o seu vestuário é mais simples do que o dos antigos frades, o qual tinha o que quer que fosse romântico. Esta falta, cofno accessorio pittoresco aos grandes edifícios monásti- cos, é sensível quando se vizita Mafra, Batalha e Alcobaça.

Levantamo'-nos muito cedo, vimos Alcobaça e ás 3 horas estávamos de volta em Leiria. E uma cidade bonita rodeada de montanhas e com o rio Liz serpenteando pelos seus férteis valles. No topo d'uma montanha estão as ruinas d'um castello mou- risco. Tem cathedral, varias egrejas, uma encanta- dora alameda, e o rocio, onde os elegantes de Lei-

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lhe deram a primazia nos mais opulentos mostei- ros do reino? Caíu-lhe em cima duas vezes a garra devastadora. Barbaramente os francezes des- truiram o sagrado edifício; violaram os sepulchros em cata de thezouros, e esbrucinaram a formosa Ignez de Castro em seu jazigo, ao do seu i'eal ma- rido e amante. Laceraram-lhes os túmulos ; mas não tiveram vagar para os derruir, por que o exercito an- glo-luzo se aproximava ; e, pegando fogo ao mostei- ro, que felizmente lhe rezistiu com sua solidez, os sacrílegos assoladores fugiram. São menos interes- santes outros jazigos que ali ha esculpturados mais ou menos primorosamente. D. Ignez jaz em um sar- cophago de pedra com os pés voltados para os de D. Pedro, o justiceiro, que assim mandara collocar os túmulos para que elle e a sua amada rainha se er- guessem rosto a rosto, e se saudassem na resurrei- ção.

O effeito que produz a nave central da egreja até á capella-mór é deslumbrante, e o das naves lateraes não o é menos, devido á grande altura e á belleza da forma dos seus arcos. A esculptura é magnifica, e tanto aqui como em Alcobaça, tem-se cuidado mui- to de reparar os estragos do tempo e também os cauzados pelos vizitantes. Os portuguezes distin- guem-se como escuiptores. Vi n'este convento e em diíferentes capellas e egrejas que estão sendo retocadas, magnificas amostras de esculptura mo- derna, tanto em madeira como em pedra; e, ape- zar da acção do tempo lhes ter assignalado os seus perniciosos effeitos, ainda podem ser vantajosamente comparadas com os lavores que subsistem.

ríATAIJIA, AÍJOlJArA, IJ-JIIÍA 419

A livraria foi outr'ora uma sala esplendida, ladri- lhada de mármore branco c preto, com dezenhos caprichosos nos intervallos das suas oito grandes janellas. Todos os livros raros e manuscriptos pas- saram para Lisboa quando os conventos se extin- guiram. A livraria ficava do lado de um jardim, cul- tivado com esmero, e onde se encontravam as flo- res mais raras. Duas fontes serviam de adorno a este jardim. N'um dos do claustro creio que ha- via cinco existiam ainda ha poucos annos as la- ranjeiras mais antigas de Portugal. Diz-se que ha- viam sido plantadas antes das de Penha Verde, que eram consideradas como as primeiras introdu- zidas na Europa e vindas da China. Estes immen- sos conventos são hoje excellentes quartéis, e tal- vez seja melhor que estejam habitados pelos sol- dados da egreja militante do que por um regi- mento de frades. Com quanto se veja pequeno nu- mero de padres em Portugal, é classe que super- abunda. E certo, porém, que o seu vestuário é mais simples do que o dos antigos frades, o qual tinha o que quer que fosse romântico. Esta falta, como accessorio pittoresco aos grandes edifícios monásti- cos, é sensível quando se vizita Mafra, Batalha e Alcobaça.

Levantamo'-nos muito cedo, vimos Alcobaça e ás 3 horas estávamos de volta em Leiria, E uma cidade bonita rodeada de montanhas e com o rio Liz serpenteando pelos seus férteis valles. No topo d'uma montanha estão as ruinas d'um castello mou- risco. Tem cathedral, varias egrejas, uma encanta- dora alameda, e o rocio, onde os elegantes de Lei-

420 A FORMOSA LUSITÂNIA

ria se reúnem, nas margens do límpido rio. Atra- vessamos os extensos pinheiraes plantados poi' el- rei D. Diniz e chegamos a Leiria, sua rezidencia predilecta.

É logar muito mais commercial do que a maioria das cidades pequenas de Poi'tugal : tem muitas fabricas notáveis, e na Marinha Grande ha uma importante fabrica de vidro. Ha aqui um anti- go portão de ferro que entrada para uma das se- cções da fabrica e nos disseram que tinha sido trazido de Lisboa, do logar palavras textuaes do nosso guia d'aquella infernal insiítuição da In- quisição. Na capella do paço episcopal existe uma magnifica pintura Jesus flagellado devida ao pincel de Vasques.

Leiria é uma das cidades em que os francezes exerceram sua vingança quando foram compeli idos a retirar-se do paiz. E local bonito, alegre, e tem aguas recommendadas pela medicina : tanto aqui como nos subúrbios ha varias nascentes frias e quentes que são muito apreciadas pelas suas virtu- des therapeuticas. No XV século era Leiria uma terra afamada e foi esta cidade a que primeiro pos- suiu imprensa em Portugal: era a terceira que exis- tia na Europa. Aqui se estamparam muitas obras importantes. Leiria foi também o l)ei-(*o do distincto poeta Francisco Lobo.

Adeus, donosa Leiria !

CAPITULO XXVII

INCÊNDIOS EXÉQUIAS COCHES DE ESTADO

Lisbod. Os meus companheiros dirigiam-se a Badajoz; mas não deliberados ainda na direcção a seguij% depois de chegarem. Ora, como eu deze- jasse ver aquella cidade, rezolvi ir com elles, aven- turando-me á sorte de ser internada em Hespanha ou repulsa de lá. Combinamos pernoutar em Abran- tes, onde elles esperavam cartas. As cartas não vie- ram ; mas appareceu-nos o nosso velho amigo de Barcellos aquelle a quem chamei Castella.

Este inesperado encontro, como era de espei^ar, revirou de todo os nossos projectos. Em vez de se- guirmos para Badajoz, retrocedeu-se para o Entron- camento, d'aqui para Santarém, e assim fui vindo até Lisboa. Eu de mim não gostei da reconsidera- ção; por que, tendo ido tam longe, quizera ver de Abrantes alguma couza mais que o castello e as íbi'- talezas ao longe, assim mesmo interceptados por uma montanha. Ainda assim, vi de relance a ele- gante ponte da via-íeri*ea sobre o Tejo a principal obra d'esta natureza que os portuguezes até agora empreheiíderam.

O comboyo de Badajoz passava para engatar no do Porto que chega de noute ; e nós, apezar de

422 A FORMOSA LUSITÂNIA

fatigadíssimos, preferimos vir n'elle a passar a noute em Abrantes. Antes de recomeçar viagem, D. Rita abriu-se um pouco mais commigo, e con- fidenciou-me (não é precizo encarecer-lhe o grande segredo) que nós, ou mais exactamente, elles re- trocederiam. Separamo'-nos em Santarém, eu de mim com pena, e me quer parecer que elles alguma sentiram. Compromettemo'-nos que, se as couzas de Hespanha se aquietassem no anno que vem, fa- riamos juntos uma excursão n'aquelle paiz. Castella ficou em Santarém; mas D. António veio commigo para Lisboa, d'onde se passou a Liverpool e á Irlan- da. Chegamos entre as seis e sete da manhã ; e com as delongas na miúda e incomprehensivel busca das bagagens, terminaram aquelle dia e noute de fati- gante jornada.

Vae agora grande alarido em Lisboa contra «os patifes da facção internacionalista de Hespanha». Tem havido muitos incêndios, attribuidos aos mter- nacionalistaSj que derramam petróleo nos portaes e escadas quando o podem fazer a occultas. Os lisbo- nenses estão loucos de medo, e eu começo a tremer por outra laia de incêndios que podem faiscar do terror pânico. Durante a noute passada houve trez vezes por toda a cidade um horrendo badalar a fogo. De uma vez, foi rebate falso. E que os sujeitos en- carregados de vigiarem os fogos tornaram-se tam nervosos como o resto da gente ; e assim que lobri- gam nas janellas um charuto accezo com mais lume que o trivial, ou alguma luz ao través de uma vi- draça lampejando mais que outras, imaginam logo que está ardendo a caza, e propalam a falsa noticia

l\(i;.M)lU8, EXÉQUIAS, COCHES DE ESTADO 423

j)(jr css.i Lisboa í'(')i'a. Ainda assim, quazi todas as iioiites lia incêndios a valor.

22. Esta niadi'ugada, entro meia nouto e uma hora, acordaram-me sobresaltada os rebates dos si- nos, e um barulho extraordinário na rua. Sontei- me no leito a escutar. Ouvi passadas na escada e nos corredores, e as exclamações: a Incêndio ! incên- dio! Senhor!)} Pensei que estava a arder o hotel. Immediatamente saltei da cama, e saí fora do quarto. No largo patamar estavam senhoi^as, homens, crian- ças e ci*iados, todos descalços, e trajados com a maior simplicidade. Uma senhora tinha as longas tranças soltas pelas espáduas; outras estavam de touca de dormir. Esta trazia um saiote de baeta vermelha, eum curto corpete branco; aquella vestia uma enfronhada fatiota de doi'mir. Os meus atavios não eram melhores. Os cavalheiros também compa- receram en déshabillê. Tudo desordem. aQue é isto? » perguntei eu. a Incêndio! incêndio!)} exclamou al- guém ; e, pegando-me da mão, levou-me de corrida á janella que dava para a rua do Alecrim, onde estava uma dama, esposa do sujeito que me levara, trajada como saíra da cama, a ver o fogo que la- vrava furiosamente n'uma caza baixa ao fundo da rua.

Que algazarra! que confuzão I A i'ua ia cheia, e cada qual berrava quanto podia. As lavaredas ru- bras davam aspectos sinistros áquellas caras que vociferavam cheias de tregeitos iracundos. Os sol- dados de cavallo corriam para baixo e para cima com o Ímpeto de ajudantes de ordens nas paradas.

424 A FORMOSA LUSITÂNIA

Cruzavam-se os archotes, deixando caudas de faís- cas, que me pareceram mais nocivas que proveito- sas ao intento. Do topo da ladeirosa rua do Alecrim desciam a correr centenares de gallegos com os bar- ris ao liombro. O fogo era, ao fundo, no Arco pe- queno. A agua corria rua abaixo ; por entre cordas, mangas dispersas, e mobilia de todos os feitios arrojada das janellas, viam-se as bombas entre as lavaredas, mas não as dominavam, por que não ha- via bastante agua.

Os bombeiros entreviam-se a caminhar entre chammas para acudirem esforçadamente a uma mu- lher que n'umajanella alta gritava desesperada que lhe acudissem. Ella tinha entre os braços que es- tendia uma criança. Hori^endo espectáculo ! Era im- possível desviar a vista fascinada n'aquelle lance ! E não puderam salvar a desgraçada mulher. Cerca- vam-na as lavaredas ; viram-se-lhe nos braços duas criancinhas; e, no momento em que os bombeiros chegavam ao alcance de a salvarem, eis que ella se abysma. -Os espectadores conclamaram um grito de liorror. Mãe e filhos eram devorados pelo fogo.

O incêndio lavrou perto de quatro horas ; creio que acabou de pei* si, por serem grossas as paredes que defenderam o prédio vizinho. Esta manhã está ati'avancada a entrada da rua por montes de tras- tes quebrados e meios queimados. Ainda perma- necem as bombas, e muitos soldados e operários. Imputam este dezastre ao petróleo dos internacio- nalistas, e se diz que os suspeitos incendiários se encontram vadiando nas vizinhanças do palácio da Ajuda; pelo que, o paleo é defezo actualmente a

INCÊNDIOS, EXÉQUIAS, COCHES DE ESTADO 425

todos OS estrangeiros, e as sentinellas encaram des- confiadas todo o viandante que relance a vista ao paço.

24. Houve esta manhã solemnes exéquias na Sé, suffragando a alma de D. Pedro IV. Quando a viuva vivia, este anniversario era um dia de tristeza e luto para Lisboa. Desde o nascer até ao pôr do sol havia salva de cinco em cinco minutos, e os si- nos todos da cidade tangiam funebremente o dia inteiro. Fechavam-se as lojas, toda a gente vestia de luto, e andava, como F. observa, levada do diabo, e disposta a amaldiçoar a memoria do rei soldado. Morreu, porém, este anno, a imperatriz-duqueza ; e, como este seja o trigésimo nono anniversario, mui judiciosamente aboliram as demazias do luto e da tristeza, e as ceremonias reduziram-se á missa, vizita ao jazigo de S. Vicente, e parada. Ao meio dia estava tudo concluído. Parecia aquillo mais uma manhã de festival revista de tropas que outra couza.

O altar-mór e os flancos da cathedral estavam forrados de setim preto, agaloado de ouro. Os ca- maristas do cortejo real iam de luto. O coiyo diplo- mático tinha bancada distincta. D. Luiz, D. Fer- nando e D. Augusto foram recebidos á porta da egreja pelo patriarcha e clerezia, todos em grande ténue, que os conduziram ás cadeiras, destinadas ás pessoas reaes, com seu docel escuro franjado de ou- ro, deante do altar-mór. O batalhão de caçadores 5 entrou no templo, e alinhou ao longo das naves; o esquadrão de lanceiros ficou fora, no largo, á en- trada. Grande quantidade de officiaes de marinha e

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426 A FORMOSA LUSITÂNIA

de terra, quazi todos condecorados com profuzas medalhas rutilantes, sentaram-se debaixo da nave osqLiei'da; na direita estavam damas quantas ca- biam; as que vieram tarde, sentaram-se no chão, quando não estavam de joelhos, ou se empilhavam n'um recanto d'onde se viam o altar e os ma- gnates. A missa foi peormente cantada do que outras a que assisti, mas ninguém deu por essa ni- nharia.

Notei alguns generaes velhos e diplomatas con- versarem animadamente com grandes gestos, e, ao que pareciam, de todo em todo despreoccupados da solemne ceremonia a que assistiam. No fim de tudo, o rei, ao sair, parou a fallar-lhes, e elles agarraram- Ihe na mão e beijaram-lh'a com tal vehemencia, que era impossível conter o rizo á vista de tamanha ex- plosão de lealdade. E D. Luiz com a sua cabega loura, tam menineiro no meio d'aquelles veteranos bronzeados, submettia-se com ares de gracioso re- conhecimento áquelle supplicio, que a mim me quer parecer que seja tam pezado para elle como para os outros. D. Fernando retirou-se menos ceremoniati- camente ; mas primeiro que as couzas entrassem na ordem decorreu muito tempo, durante o qual a ca- thedral e o largo ofiereciam um espectáculo brilhan- tissimo, e o mais para ver-se que se me deparou em Lisboa. O clero pompeava os seus hábitos de mais luxo, a oíficialidade de mar e terra em grande uni- forme com as suas condecorações ; profuzão de far- das diplomáticas; a plumagem branca dos ajudantes de ordens; as bandeirinhas brancas e escarlates dos lanceiros, espectáculo imponente, tanto pelos sober-

INCÊNDIOS, EXÉQUIAS, COCHES DE ESTADO 427

bos cavallos, como pelos cavalleiros. Saiu depois o famoso corpo de caçadores. Seguiu a turba das s(;- iihoras trajadas de preto com realços de laços de cor e flores. Depois, os espectadores de todas as classes por ali dispersos, e as janellas cheias de gente. Os sinos, em vez de dobrar, repicavam; atroada da ar- tilheria eccoava rio acima, e trovejava do castello de S. Jorge. Os cavallos curveteavam. Carruagens ar- moriadas e librés vistosas estão embaralhadas com tipóias de praças, e em vão se esforçam por sair á frente ; que o espirito democrático dos cocheiros desabridamente lh'o prohibe. A populaça gosta d'is- to, por que tudo lhe é patuscada, e muito lhe apraz dar vulto ao brilhante espectáculo em honra do rei soldado, que, se do ceu estas folias, deve rego- zijar-se mais do que d'antes quando se procurava despertar no animo do povo a memoria do excelso libertador com incentivos fúnebres.

Com quanto um pouquinho quente, o dia estava lindo. A temperatura de dia principia a ser agora agradável em Lisboa. O mais grosso das turbas dis- persou-se por passeios e ruas sombrias. E eu, que me sentia disposta ás minhas recreações dilectas, suggeri a F. que as pi'ocurassemos na feira de Be- lém, que eu não tinha visto ainda.

Fretamos, pois, um bote no Cães das Columnas, e fizemos um agradável passeio rio abaixo até Pe- droiços, deslizando, á vista da formosa cidade, em quazi todo o seu comprimento de nascente a poente. Variado e encantador panorama que a vista nunca se cança de admirar ! Saltamos em terra em Pedroí- ços entre um abarracamento de banhos, perto d'a-

428 A FORMOSA LUSITÂNIA

quelle imbrincado specimen de architectura manue- lina, a gentil e antiga Torre de Belém, e íbrtaleza do Bom Successo vanguarda defensiva do Tejo, mais ornamental que temivei. Conta-se, a este res- peito, que, durante a guerra civil dos Estados Norte e Sul americanos, um navio pertencente a uma das facções entrou no Tejo. Um que estava ancorado quaziimmediatamente aproou á barra. Seguiu-o, sem intermissão de tempo, o outro, dando-lhe caça, em contravenção das leis estabelecidas nos portos neu- traes. O governador de Belém mandou, pois, dispa- rar a bateria contra a fragata Sacramento que pas- sava; mas, apezar de carregarem com bala, não lhe tocaram. A fragata responderia ao fogo da Torre com uma banda da artilheria, se ao capitão lhe não repugnasse, como declarou depois, que as suas ba- las delapidassem uma aresta d'aquelle lindo mimo da Torre de S. Vicente. A Torre está perto da praia, onde se arma a feira annual que dura um mez. Es- perava eu encontrar o que (|uer que fosse piquant e original em uma feira portugueza; mas desgraçada- mente foi uma logração. Transposto o arco que di- vide Pedroicos de Belém, o que se via eram maçãs e mais nada: centos de jigos de maçãs vermelha- ças, bonitas para ver mas insípidas ao paladar. A maçã é a fructa mais reles de Portugal; ao passo que as peras são uma delicia. Vistas as maçãs, se- gue-se uma fileira de barracas, cheias de bugiarias ordinárias, por via de regra tam feias que diríeis gos- tarem pouco os portuguezes de brindarem os seus me- ninos com brinquedos; pois a fealdade da bonecada moveu-me a perguntar d'onde viera semelhante ma-

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Como nas teii havia gigantas gordas, paz com (luas cal) zidados, bule<|iiin- ílioatro de aiTÍl)a< buqutza: tMvi " ' dusaltmctis "- corre a pnjuil i com os meinii"^ 1 > I por uma- lliem olijíMf I)(n'aute a | minar, »> vt ; d«> da feira, -, prassem h" mau tempo i>^ se mais (piin/ i ce, porém, iju ma opposta .1 diníitos, e jx mara. A s.i SantVVnim, ♦'• i tivo. Aqui, couzas apparti rtíliíjuias de vii

Pois que a t- temos em ínv de Santa Mi prazer por mnif.»

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INCÊNDIOS, EXÉQUIAS, COCHES DE ESTADO 429

nufactura. Também ha ourives, c grande amostra de porcellana, bonita e curiosa único objecto digno de at tenção.

Como nas feiras ruraes de Inglaterra e França, havia gigantas gordas, raparigas disformes, um ra- paz com duas cabeças, e outras que taes monstruo- zidades, botequins, um ou dous cosmoramas, e um theatro de arribação, em que se annunciava a Gran Duqueza: era o recreio da noute, e o complemento dos attractivos n'esta feira annual. Ao anoutecer con- corre a populaça; e de manliã aftiuem as senhoras com os meninos. D. Fernando e a sua condessa dão por umas voltas, e com benévolo propozito esco- lhem objectos na collecção d'aquellas farandulagens. Dui'ante a primeira época da feira, que está a ter- minar, o vento batia tam rijo n'aquelle sitio ventila- do da feira, que era para recear que os furacões so- prassem botequins e barracas pelo mar dentro. O mau tempo obstou ã concorrência; e agora pedem- se mais quinze dias para aquella semsaboria; pare- ce, porém, que a outra feira de outubro, na extre- ma opposta da cidade, se por lezada nos seus direitos, e por isso impugna o consentimento da ca- mará. A semanal Feira da Ladra, no Campo de SanfAnna, é de um soporifero muito mais recrea- tivo. Aqui, entre muita frangalhice e mixordía de couzas apparecem objectos de curiozidade e valor reliquias de velhos tempos.

Pois que a feira nada tem que nos prenda, aqui temos em frente a explendida egreja dos Jeronymos de Santa Maria de Belém que se ve sempre com prazer por muito que se vizite. Houve n'este sitio

430 A FORMOSA LUSITÂNIA

outrora uma ermida em que Vasco da Gama e seus companheiros velaram orando a noute antecedente ao embarque que os levou ao descobrimento da ín- dia. O ponto de embarque era mais perto ; que o Tejo n'aquelle tempo chegava ás paredes da ermi- da. N'este mesmo local, D. Manuel, reconhecido a Deus pelo prospero êxito da expedição indiana, principiou a edificar o magestoso templo monacal, que os seus successores concluiram. Por cauza da proximidade do rio, os alicerces do mosteiro estão cimentados em estacarias, que dão grande solidez ás fundações, e d'ahi rezultou a rezistencia do edi- fício ao abalo do grande terremoto. É hoje Casa Pia o celebrado mosteiro que foi dos monges de S. Je- ronymo. amparo e educação a crianças pobres de ambos os sexos. São bem tratados; e na edade própria entram em officios que os habilitem a ga- nhar sua vida.

A porta principal, ao sul do templo, é soberba em numero de estatuas, columnas em rosca e pro- fuzão de ornatos, pouco menos valiosos que os do portal da Batalha. Mas é melhor entrar n'este for- moso templo pela porta occidental, cuja esculptura- ção é mais abundante e primorosa, e recentemente restaurada. Quando se entra por esta porta, faz im- pressão a baixeza da abobada ornamentada ; e o re- licário, quazi em trevas a um dos lados, solemniza aquclle aspecto mysterioso. Adiantados, porém, poucos passos, entra-sc á nave arrojada e mages- tosa. Vista d'aqui, esta parte interior, tem aspectos singulares. Descança a abobada sobre delicadas colu- mnas de iinissima esculptura, engrinaldadas, cheias

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FUONTAUIA DA EGlíAJA DOS JERONYiíOS OU SANTA MARIA DE BELÉM.

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INCÊNDIOS, EXÉQUIAS, COCHES DE ESTADO 431

do rendas e arabescos da mais íantaziosa arte. Ha poucas pinturas no templo. Os jazigos reaes são de primoroso cinzel. Por detraz do altar-mór está o cai- xão que encerra o cadáver do desgraçado Aííbn- so VI. Jaz aqui a rainha CathaiMna, esposa de Car- los II. Na capella-mór, e defrontando-se, estão osja- zigos do fundador D. Manuel, seu filho e succes- sor D. João III, e das respectivas esposas. São formosíssimos os lavores das columnas que sus- tentam dous órgãos soberbos. Philippe II ergueu um cenotaphio á memoria de D. Sebastião. Vieram de Africa os ossos inculcados como do joven e que- rido monarcha, e foram ali encerrados couza de cem annos depois da sua morte. Mas esta ossada pre- sume-se que não seja a do rei, cuja morte é ainda mysteriosa, e cujo regresso ao reino ainda se espe- rava muito áquem do prazo que elle poderia durar. Ouvi dizer que ainda ha sebastianistas. Eu não en- contrei nenhum que esperasse da reintegração mi- raculosa do rei o guindar-se Portugal aos pináculos da gloria ! (*)

Rivaliza com o de Alcobaça o magnifico claustro de Belém ; não ha nenhum que se lhe avantaje na Europa, excepto o da Batalha. E pena que a restaura- ção da egreja se haja protelado tanto. Porções d'este

(•) Nós, os portuguezes agradecidos, beijamos as mãos de s. exc.» pelo favor que nos faz em não contar aos seus patricios que ainda esperamos D. Sebastião, o Encoberto. Sirva esta probidade de lady Jackson de desconto aos aleives que outros malandrins seus patricios nos assacam.

432 A FORMOSA LUSITÂNIA

templo rcconstruiram-se completamente ; a torre é toda nova. A esculptura parece boa e o todo é de crer que seja umasoffrivel imitação do estylo manue- lino. A pedra empregada n'estas renovações tem uma cor amarallecida ; é branda e boa de lavrar, no que se parece com a da primitiva edificação ; mas estes modernismos desdizem sensivelmente do ve- tusto aspecto do restante edifício. A excepção das duas grandes portas, o interior do templo tem bel- lezas não inculcadas pelo exterior. Por aqui passa- ria eu horas ; mas esta minha vizita, pela ultima tal- vez, não podia demorar-se, por que o meu compa- nheiro lembrou-me que eu ainda não vira a velha col- lecção de coches reaes, e o edifício que os contém.

A saída fomos assediados pelos mendigos que se juntaram á porta. Nunca eu tinha visto tam es- pessa turba de coxos, cegos, decrépitos e estro- piados. Iam gemendo, mugindo e manquejando atraz de nós: pungia ouvil-os e vel-os. Foi a feira que at- traíu ali aquella chusma, e alguns dos que também in- festam as ruas de Lisboa. Ao passo que nos iamos retirando ao longo das barracas acotovelava-nos a fortuna com duas espécies de tentação o ouro d'este mundo, e a salvação do outro; a primeira tentação era reprezentada por gaiatos que vendiam cautelas daloteria, aconselhando-nos a que não perdêssemos o lanço de apanhar a sorte grande ; a outra tentação fígurava-se nos mendigos que nos pediam encareci- damente que salvássemos as nossas almas depozi- tando alguns vinténs n'elles.

Em um edifício grande e solido, ou vasta co- cheira, na calçada da Ajuda, por traz do Paço de

ir \ r FhlTORA

POETA OCCIDENTAL DA EGREJA DOS JERONYMOS, EM BELÉM.

IXCKXDIUS, EXÉQUIAS, COCHES DE ESTADO V,VA

Bclem, existem trinta o nove cari'uagens de estado antigas. E um dos objectos mais cuimosos e interes- santes que Lisboa offerece. São o remanecente da gi*ande collecção, que a magnificência e prodigali- dade dos successivosmonarchasportuguezes reuni- ram no precui'so de trezentos ou quatrocentos annos. Perderam-se algumas pelo terramoto que destruiu o paço; mas, á vista das vicissitudes que a realeza tem experimentado n'aquelle paiz, admira que ainda exis- tam tantas relíquias das suas antigas pompas.

O mais antigo dos coclies data do dominio dos reis castelhanos em Portugal. (•) Os chamados car- ros de jornada são como saletas, com cadeiras, par- sevão, meza no centro e pavimento axadrezado de ébano e marfim. Ha alguns curiozissimos vehiculos de uma e duas pessoas : parecem uns pequenos gigs; são forrados de velludo cai^mezim, e têm varias pinturas allegoricas. Alguns mais ricos pertenceram ao mais extravagante dos reis portuguezes, D. João V o Magniftco cuja ambição era rivalizar Luiz XIV

(•) Andou lady Jackson avizadamente, desviando-se das indicações do príncipe Lichnowsky, acerca dos coches da caza real. Escreve elle nas Re- cordações de Portugal que viu o coche de gala de D. Afibnso Henriques, viu também o de D. Diniz, e outro de D.Manuel. Viu couzas que ainda não exis- tiam no mundo dos vehiculos, porque a França conheceu os carros no rei- nado de Henrique IV, a Inglaterra no século XVI, e Portugal no mesmo século. o cardeal-rei D. Henrique, nas solemnidades, era levado em andas, e fora d'isso cavalgava machos ou mulas. ,0 traductor do livro do principe prus- siano deixou passar incorrecta uma aluvião de necedades que lhe cumpria corrigir para declinar o seu quinhão de ignorância das couzas portuguezas.

Os snrs. Vilhena Barbosa e Innocencio Francisco da Silva asseveram que 28

434 A FORMOSA LUSITÂNIA

na prodigalidade dos gastos e sumptuoso estylo de viver.

Em cazamentos, baptizados, mortuorios reaes, ou grandes solem nidades saíam os coches de ri- quíssima talha, apainelados definas pinturas emble- máticas, forrados, estofados e afofados de sedas e velludos cozidos em ouro. O forte e largo correame que suspende os coches é dourado e esmaltado a co- res; as rodas têm adornos semelhantes. São enor- mes, comparados aos nossos carros modernos ; e, puxadas a trez ou quatro parelhas bizarramente ajaezadas, as (ícarrocas de triumpho^y de D. João V devem de ser couza muito para se ver.

Tanto em explendor como em interesse histórico, as carruagens de Versailles não lhe podem ser com- paradas ; os dous coches offerecidos por Luiz XIV são magnificentes. (•) Ha um primorosamente escul- pido de grinaldas de rozas e Ijrios que cercam as ar- mas e a inicial da archiduqueza Maria de Áustria: (••) foi dadiva do rei de França quando D. João V es-

os primeiros coches vieram a Portugal com Fiiippe II. Não é isto perfeita- mente exacto. D. Sebastião foi brindado por seu tio Fiiippe de Castella com o primeiro coche que entrou em Portugal ; mas o neto de D. João III nunca saiu a publico de coche, receando que o seu exemplo desse azo á importação de taes locomotivas e afrouxasse o exercício da equitação. É o que se depre- hende de uma lei sumptuária do principio do século XVII, e de uma repre- sentação feita a Fiiippe III de Portugal contra o uso das carruagens em menospreço do exercício de cavalgar.

(•) Não ha coches alguns em Portugal que viessem como dadiva de Luiz XIV. Apenas têm de França o haverem sido fabricados.

(••) AliAs Maria Anna de Áustria.

INCÊNDIOS, EXÉQUIAS, COCHES DE ESTADO 435

posou aquella princeza. É toda dourada; e ain- da agora parece que foi ha pouco cinzelada n'uma grande barra de ouro estreme. O outro coche pre- zenteado pelo mesmo monarcha a D. João tem pin- turas relevantissimas, obra dos superiores artistas francezes d'^aquella época. Nas costas de espaldar, está um retrato de Luiz XIV que passa por excel- lente. O papa Clemente XI também o galardoou com outro specimen de escopro e pincel distincto, em re- compensa da especial delegação enviada pompo- samente a Roma por D. João V a cumprimentar S. Santidade na sua eleição.

Todavia, as mais antigas das quaes me infor- maram escassamente apezar da belleza e opulên- cia das modernas, excedem-nas na magestade da forma, e perfeição dos adornos: os grupos allegori- cos das figuras, todas em estatura natural, ã volta da caixa, na almofada do cocheiro, no tejadilho, e nos quatro ângulos de cada vehiculo são realmente maravilhas, tanto no dezenho como na execução. As cortinas de velludo bordadas que ainda existem, os coxins, os persevãos franjados e passamanes at- testam qual foi a sumptuozidade d'estes coches. São prodigiosamente grandes. Uma dúzia de cavallos ou de bois é provável que se uzassem bois (•) se- ria preciza para as moverem na Íngreme Lisboa e

(•) Os cocbes da caza real puxados a bois ! D. João IV ou D. Pedro II atravessando o Terreiro do Paço n'aquellas gentilissimas salas de ouro ti- radas por 12 bois ! Que esquizitice de senhora !

436 A FORMOSA LUSITAXIA

nos arrabaldes como elles eram quando os hms se transportavam n'aquellas locomotivas.

Esta singular collecção de coches de estado não é tratada com o desvelo que merecem tam preciosas relíquias do antigo brilho dos reis portuguezes. A caza onde estão é um alpendre vasto, alto e escuro. Estão descobertos. Põem-lhe os dedos sobre as pin- turas, e mechem-as e palpam-as de maneira muito nociva á sua conservação. Contou-me o empregado da caza que uns vizitantes inglezes, ha pouco tempo, cortaram duas borlazinhas de oui'0 da carruagem fabricada para o baptizado de D. José. Teve elle de as substituir, para evitar consequências desagradá- veis, com outras de ouropel que estavam alinha- vadas estupidamente com retroz amarello.

Agora vi eu dous ou trez hediondos nomes in- glczes nas rodas de um coche. Os meus amigos por- tuguezes pareciam desgostosos. Senti-me aviltada, e não pude deixar de exclamar: «Oli! os viajantes meus patricios ! sempre vândalos ! » (•) O referido em- pregado instou para que eu entrasse nos coches, cuidando talvez que eu me orgulharia de sentar-me no coxim em que D. João V se i*efestelára. Ora eu, como este coche balanceava bastante, cuidei que tives- se as correias partidas, e indiscretamente talvez en- trei n'um cari*o-viajeiro de Filippe II, um dos ainlru- sos)y como os portuguezes, sempre ciosos da sua

(•) A auctora cuidou que eram de viajantes os nomes dos artifices in- glezos q'ue construiram os peores coclies da caza real.

IXCKXDIOS, IvXKíJI IAS, ("OCIIKS Dl', EST.M)0 437

independência, denominam os Filippes castelhanos, não os acceitando como reis de Portugal, posto que admittam que a nação gemeu sessenta annos de- baixo do jugo d'elles.

Antes de concluido o nosso exame d'aque]les curiosos e interessantes carros, chegou um rancho de hespanhoes para os ver. O encarregado, incan- sável tagarella, segredou-nos que o desculpássemos de nos deixar, porque ia attender excluzivamente aos hespanhoes. Elle tinha recebido apertadas or- dens de os vigiar de perto, desde que tentaram pe- gar fogo ao paço. Suppunha-se que elles tinham querido incendiara Ajuda! Um cego accendera o lume com cavacos, que arderam e alimentaram a lavareda. Houve grande motim e alardo. Dous ou trez soldados, na excitação do momento, foram in- juriados, não á conta do fogo, mas porque não che- garam a tempo de estorvar que elle se espalhasse. Depois d'isto, circulam umas vagas atoardas que dão o fogo como rezultado de substancias inflam- maveis derramadas no paço pelos internacionalistas hespanhoes.

Os hespanhoes pouco se detiveram a ver os co- ches. Eil-o comnosco o nosso homem, dando á ca- beça e sorrindo-nos com uns ti-egeitos e olhares de espertalhão. Pensou que os impontáracom ainsisten- cia dos seus olhos perspicazes. Contou-nos que não deram importância ao que se lhes mostrou senão ecos Filippes )) os coches-Filíp, e que isto era si- gnal de que elles não vinham com boas tenções. Ao sairmos, disse-lhe F. que vigiasse cuidadosamente as pessoas que vinham armadas de lápis e canive-

438 A FORMOSA LUSITÂNIA

tes. Sim, sim, excellencia respondeu elle Estes são os inglezes.

Seguindo para Alcântara, d'onde parte um barco a vapor de meia em meia hora, encontramos gran- de chusma de mendigos. «Estava escripto que hoje se desfizessem as minhas illuzões todas ! disse eu. Principiara a crer que os mendigos eram agora menos em Lisboa do que n'outro tempo em que estive aqui». «E são menos, muito menos», ex- clamou o meu amigo. «Então aquelles que são?» e podia accrescentar sem mentir «tam escalavrados e hediondamente vestidos».

Collecçâo assim de encarquilhadas bruxas, de velhorras aleijadas, de capotes em frangalhos, de calças esfarrapadas, de cabeças encanecidas, sujas e esguedelhadas, nunca meus olhos ainda tinham visto. E não cifrava n'isto o espectáculo. Estavam duas ou trez seges anachronicas, obsoletas ; mas douradas e pintalgadas tam garridamente, e até não sei se artisticamente, que pareciam coches de esta- do do lord maior. Quem diria que aquelle apparato era um transporte de clérigos e defuntos ? Á volta d'isto apinhava-se a canalha sedenta de ver ; os si- nos tangiam clangorosamente n'aquelle ulular que chamam dobrados: tudo, pois, annunciava que se finara um homem rico, a quem iam enterrar. Logo que o cadáver se mette no franjado carro funerário, distribuem-sc esmolas pelos pobres, por alma do de- funto. E que uns sujeitos, a quem pertencia o rei- no do ceu, compram passaporte para aquelles que foram defraudados do seu quinhão de prazer na vi- da. Disse-me E. que isto, na verdade, é artigo de

INCÊNDIOS, EXÉQUIAS, COCHES DE ESTADO 439

para muita gente. Dizem «que não os pedintes, mas os que trabalham, e que difficilmente, á custa de grande lida, podem cuidar ao mesmo tempo do corpo e da alma, na outra vida trocam a sua po- zição com os ociosos d'esta)). Bem. Esta doutrina ó consoladora ; andam á vez ; e isto convém pura e razoavelmente aos que acceitam em baixo a capri- chosa repartição do bem e do mal da existência.

Imagine que, desfarte philosophando, naveguei rio acima, desembarquei no Cães do Sodré, e sof- frivelmente cançada das devoções e prazeres do dia, lhe disse um adeus desde a rua do Alecrim.

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CONCLUSÃO

Soulhamplon Outubro. O despedip-mo da for- mosa terra de Portugal, não o fiz sem lagrimas, sem suspiros, c hezitações do coração.

Cinco dias ha que saí de Lisboa iio South Ame- rican Royal Mail boat Lifjey. Tivemos de o deman- dar perto do Lazareto, porque estava de quaren- tena, por cauza da febre amarella do Brazil. Ps. ma- nhã estava lindissima. Distinguiam-se perfeitamente Cascaes, a serra de Cintra, e no seu pináculo a Penha. Depois, [a nebrina ás vezes muito cerra- da— continuou até passarmos para além das Need- les. Depois, como se uma cortina se levantasse, sú- bito se aclarou tudo, avistando-se a ilha de Wight e a costa Hampshire, ridente, luminosa e verde- jante.

Entre os passageiros ia um hespanhol idoso que se declarara official carlista, mas en relraite. Fez- me recordar muitissimo Castella. Não fallavainglez; mas em francez e hespanhol era fecundo em boni- tos palavreados gallans, e entretinha-se a ensinar dous passaritos d'uma dama. Doeste cazo inferi eu, lembrando-me do discurso de Castella a respeito da

442 CONCLUSÃO

Índole hespanhola, que elle tinha um bom pedaço de D. João, e que a porção de Quichote não era pe- quena também. Ia com ares de mysterio a Irlanda, e depois iria ã Rússia, dizia elle.

Preoccupava-o a chimera, para alguns bcspa- nhoes tam afflictiva, de que D. Carlos goza na Ingla- terra extrema popularidade e que elle provavelmente sairá em breve victorioso da sua actual empreza em se apossar de Hespanha.

Mal desembarcamos em Southampton que um espesso nevoeiro envolveu terra e mar. Começou a chuviscar, e as ruas da sórdida cidade encheram-se de fumaça e lama.

Que clima ! que mudança ! Senti-me gelar a um tempo, em corpo e alma. Accenda-se uma boa fo- gueira, desçam-se os transparentes, e que não entre aqui esse ambiente de chumbo. Ah! saudades! sau- dades 'profundas d'aquelle sereno azul do ceu da formosa Lusitânia !

FIM

índice

PAO.

Advertência do traductor ^

IntroducçÃo '

CAPITULO I

A VIAGEM

O cabo da Roca— Uma tradição Passagem da Barra— Lisboa vista ao luar O Tejo 21

(CAPITULO II

o DESEMBARQUE

Camas de cortiça Alfandega As stges antigas Conducção de bagagens Uma prophecia franceza Carros a bois .... 25

CAPITULO III

A SUBIR

Rua do Alecrim Lisboa, vista do Passeio de S. Pedro de Alcântara

O jardim Os gerânios Uma entrevista clandestina Antigos

e modernos nomes das ruas Praça do Príncipe Real .... 31

CAPITULO IV

A DESCER

Praça de Camões A estatua O aguadeiro Companhia das aguas

Chafarizes Mendigos Cegueira A moda das lunetas . . 41

CAPITULO V

o CHIADO

Altos e baixos de Lisboa Grémio litterario Egrejas da Encarna- ção, Loreto e Martyres A Eejent Slreet de Lisboa Rivalida- des— As senhoras e as suas loikttes A mantilha hespanhola. , 49

444

IX Dl CE

,1

CAPITULO VI

NA PLANEZA

Conventos extinctos Rua nova do Almada As lojas da rua nova do Carmo Cães Piovidenciaes vairedoies das ruas Caza da hydropbobia Preconceito líocio O imperador do Brazil A vidraria da Marinha Grande Um entendido Theatro de D.Ma- ria II A praça RoUy Pooly Ruinas da egreja gothica da Se- nhora do Carmo Largo do Carmo Galope cantante O Pas- seio publico Diversões amorosas Couzas de Lisboa .... 59

CAPITULO VII

DULCAMAEA

Agua fresca Instrumento de tortura Realejo Espécie genuina de magica Uma corrente de ouro por cento e cincoenta reis O ultimo segredo arrancado á natureza pela sciencia 77

CAPITULO VIII

RUAS E PRAÇAS

Praça do Commercio Rua do Ouro Rua Augusta Rua da Pra- ta — Pregues nas ruas A roda da Fortuna Cautelas da lote- ri!i Praça da Figueira Velha nzança O grande terramoto Os Gallegos —Estatua de D. José Largo do Pelourinho Atra- vancamcntos á porta do Arsenal Prcjuizos nacionaes Os hes- panhoes em Lisboa Cães do Sodré Um telogramma. ... 83

CAPITULO IX

EM CAZA

A sesta A litteratura ligeira da actualidade Uma scena na rua do Alecrim Rua das Flores O terraço Os carrilhões de Lis- boa— Incêndios Petrolistas Meza redonda Vinho puro . . 103

CAPITULO X

UM PASSEIO DE CAKRUAGEM Á TARDE

O Aterro da Boa-Vista Quartéis de Alcântara Miniatura de Man- chester — Fadistas Alcântara nos dias fuscos de Lisboa En- contro com um ladrão Formosa perspectiva Cemitério dos Pra- zeres — As Necessidades S. Bento Archivos nacionaes A Biblia dos Jeronymos Jardim da Estrella A capella ingleza Aven- tura carnavalesca-— O Grémio 117

CAPITULO XI

UMA CA1'ELLA E UMA CORKIDA DIO TOUROS

S. Roque Desprotecção ás nuilheres A Santa-Caza Capella de S. João Bap'tista Um amador de corridas de touros Toureiros

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I 1. i' ■itirT^'^

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INDlCi".

44Õ

liospiínliocs Campo de SanfAima O ciino A coinpanliia dos tonroiros El Pòllo Pega de cara Entluisiasuio dos ospectado- i-eg SaUo do touro A feira da Ladra líegresso .... 141

CAPITULO XII

lESTKJOS DE 23 E 24 DE JUl.IIO

Coinmeriiora-sc a qi;eda do tyraiino Snffragios pelos martyres Discurso no jazigo de D. Pedro IV Desliannonia com Hespanlui Duque da Terceira Entrada no dia 24 Turba-multa pittoresca Te-Deum em S. Domingos Tropa portugueza Os heroes de 1833 Lisboa illuminada Os derradeiros murmúrios de um lon- go dia de jubilo l''i^

CAPITULO XIII

PARA CINTRA, NO LARMANJAT

Enchente de hespanhoes A via-Larmanjat

Estrada de Cintra

Um dia agradável Santa Estephania Os hotéis O selvático.

CAPITULO XIV

171)

o CASTELLO DA TEXA, ETC.

Burrinhos Passeio á serra Bellezas de Cintra— Partida de hespa- i^lioes Guias Jardins e pradarias do Castello O terrapleno do Castello A antiga egreja e o claustro Cluílct de Madama O Castello dos Mouros 195

CAPITULO XV

QUINTAS, SANTA CRUZ, ETC-

Quintas dos marquezes de Vianna e Vallada Palácio Marialva A convenção de Cintra A Penha Verde Estrada de Collares Mou- serrate Santa Cruz Tentação de Santo Honório Quinta do Dias O Fojo Uma lenda A Pedra de Alvidrar De Colla- res a Cintra 213

CAPITULO XVI

PALÁCIO REAL niPPODROMO MAFRA

Origem sarracena do palácio Sala das pegas D. Joào I Sala dos brazòes Chaminé de Miguel Angelo Banho mourisco Atitbnso VI As cozinhas O guia O burriqueiro O hippodro- mo Villa de Cintra Mendigos Amadores A cadeia e os pre- zos Mafra O voto de D. João V Assento da iDrimeira pedra de Mafra Um exercito de obreiros Os frades avrabidos— Pre- ciosos ornamentos de egreja Um grande monarcha Afrontaria, o interior, etc, da basílica e palácio de Mafra— Os seus dias de festa

237

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444 índice

CAPITULO VI

NA PLANEZA

Conventos extinctos Rua nova do Almada As lojas da rua nova do Carmo Cães Providenciaes varredores das ruas Caza da hydropliobia Preconceito Kocio O imperador do Brazil A vidraria da Marinha Grande Um entendido Theatro de D.Ma- ria II A praça Rolly Pooly Ruinas da egreja gothica da Se- nhora do Carmo Largo do Carmo Galope cantante O Pas- seio publico Diversões amorosas Couzas de Lisboa .... 59

CAPITULO VII

DULCAMARA

Agua fresca Instrumento de tortura Realejo Espécie genuina de magica Uma corrente de ouro por cento e cincoenta reis O ultimo segredo arrancado á natureza pela sciencia 77

CAPITULO VIII

UUAS E PRAÇAS

l'raça do Cuinmercio Rua do Ouio Rua Augusta Rua da Pra- ta— Pregues nas ruas A roda da Fortuna Cautíilas da lote- ria Praça da Figueira Velha uzança O grande terramoto Os Gallegos —Estatua de D. José Largo do Pelourinho Atra- vancamentos á porta do Arsenal Prejuizos nacionaes Os hes- panhoes em Lisboa Cães do Sodré Um telegramma. ... 83

CAPITULO IX

EM CAZA

A sesta A litteratura ligeira da actualidade Uma scena na rua do Alecrim Rua das Flores O terraço Os carrilhões de Lis- boa— Incêndios Petrolistas Meza redonda Vinho puro . . 103

CAPITULO X

UM PASSEIO DE CAKRUAGEM Á TARDE

O Aterro da Boa-Vista Quartéis de Alcântara Miniatura de Man- chester — Fadistas Alcântara nos dias fuscos de Lisboa En- contro com um ladrão Formosa perspectiva Cemitério dos Pra- zeres — As Necessidades S. Bento Archivos nacionaes A Biblia dos Jeronymos Jardim da Estrclla A capella ingleza Aven- tura carnavalesca O Grémio 117

CAPITULO XI

UJNIA CAl-ELLA E UMA CORRIDA DIO TOUROS

S. Roque Desprotecção ás mulheres A Santa-Caza Capella de S. Joào BapUsta Um amador de corridas de touros Toureiros

ivhici'. 445

PAO.

liospanhocs Campo de SantWima O curro A companhia dos toureiros El Pôllo Pega de cara Enthusiastno dos espectado- res— Salto do touro A feira da Ladra líogresso .... 141

CAPITULO XII

FESTEJOS DE 23 E 24 DE JUl.IIO

Commemora-se a queda do tyranno Suffragios pelos martyres Discurso no j;-izigo de D. Pedro IV Desharmonia com Hespanlia Duque da Terceira Entrada no dia 24 Turba-multa pittoresca Te-Deum ein S. Domingos Tropa portuguoza Os lieroes de 1833 Lisboa illuminada Os derradeiíos murmúrios de um lon- go dia de jul)ilo 157

CAPITULO XIII

PARA CINTRA, NO LARMANJAT

Enchente de liespanhoes A via-Larmanjat Um dia agradável

Estrada de Cintra Santa Estophania Os lioteis O selvático. 17'J

CAPITULO XIV

o CASTELLO DA PENA, ETC.

Burrinhos Passeio á serra Bellezas de Cintra Partida de liespa- nhoes — Guias Jardins e pradarias do Castello O terrapleno do Castello A antiga egreja e o claustro Clialet de Madama O Castello dos Mouros 195

CAPITULO XV

QCINTAS, SANTA CRUZ, ETC-

Quintas dos marquezes de Vianna e Vallada Palácio Marialva A convenção de Cintra A Penha Verde Estrada de CoUares Mou- serrate Santa Cruz Tentação de Santo Honório Quinta do Dias O Fojo Uma lenda A Pedra de Alvidrar De CoUa- res a Cintra 213

CAPITULO XVI

PALÁCIO REAL niPPODROMO MAFRA

Origem sarracena do palácio Sala das pegas D. João I Sala dos brazues Chaminé de Miguel Angelo Banho mourisco Atibnso VI As cozinhas O guia O burriqueiro O hippodro- mo Villa de Cintra Mendigos Amadores A cadeia e os pre- zos Mafra O voto de D. João V Assento da primeira pedra de Mafra Um exercito de obreiros Os frades arrabidos Pre- ciosos ornamentos de egreja Um grande monarcha A frontaria, o interior, etc, da basílica e palácio de Mafra— Os seus dias de festa 237

446 índice

CAPITULO XVII

o OMNIBUS SETÚBAL ALFAMA

Saída de Cintra O omnibus e os seus passageiros Setúbal A estalagem Egrejas e praças O setubalense Os apertos de mão Alfama Um negreiro opulento Idéa brilhante Melòes Lis- boa antiga As saloias A estação central da via- férrea . , . 255

CAPITULO XVIII

PELA VIA-FEEREA AO PORTO

Carruagens Companheiros de viagem Margens pittorescas O valle de Santarém Uma tirade eloquente O Entroncamento Thomar Uvas Miniatura de Veneza Subsistência barata Caracter geral do scenario Coimbra Novo itinerário Dous gigantes Alfandega Oporto O hotel de suas excellencias O meu estalajadeiro Estranhos sócios da cama Uma vista en- cantada 271

CAPITULO XIX

DO PORTO Á FOZ

Um inglez impertinente Praça Nova Rua dos Clérigos Dia de feira Uns pittoreseos noivo e noiva Carros a bois Primeira vista do Douro Navios e barcos Cazas e jardins Mulheres e crianças Estaleiros portuenses Os cabouqueiros O chafariz e as lavandeiras Os Americanos Praia S. João da Foz . . 291

CAPITULO XX

AMERICANOS SERRA DO PILAR VALLE d'aMORES, ETC

Americanos e trens Arrabaldes do Porto Mosteiro e fortaleza da Serra do Pilar Avintes Marechal Soult D. Pedro IV Festi- vidade de Nossa Senhora da Serra do Pilar Portuguezes da ve- lha cunha O Valle de Amores A praia Soturna magestade da noute 305

CAPITULO XXI

MATHOZINHOS HOTEL DA FOZ, ETC.

O banho Barra do Porto Mathozinhos e Leça Lenda de Nosso Senhor de Mathozinhos A roviaria Mindello Os carros Uma pitada de rapé Hotel na Foz Famílias hespanholas O jardim do hotel Mendigos melodramáticos Miscellanea de incon- gruências 319

ixDiCE 447

PAa. CAPITULO XXII

HESPANHOES, PALÁCIO DE CRYSTAL, THEATRO

Encontro com os hespauhoes O snr. Rivas e Doila Rita O museu Palácio de Ciystal Vista da Tone de Marco Theatro de S. João Vistas do Douro dos pontos culminantes do Porto . 335

CAPITULO XXIII

EGKEJAS, MERCADOS, RUAS

A <' terra clássica da liberdade e industria» A oathodral Claus- tros de S. Vicente de fora S. Bento Coração de D. Pedro S. Francisco Fogo posto ao convento O Banco As manhas do sabbado no Porto Os tamancos Cedofeita Feira do Anjo Factoria ingleza Fundação da Mizericordia Rua das Flores Ourives, chapeleiros, alfaiates, sapateiros e ourives da prata La- byrintlio de ruas na parte mais alta da cidade Caleiros As iras do Douro Uma cheia 345

CAPITULO XXIV

UMA EXCURSÃO PELO MINHO

Os meus amigos hespanhoes Villa do Conde Uma cavalgata a Barcellos Aventuro-me á sorte dos carlistas Magestosa vista do Cavado Nossa Senhora da Franqueira Arrebatamentos Snr. Castella Um bailado Barcellos D. Carlos O exercito carlista A Índole bespanhola Los Inglezes Passeio a Pon- te de Lima Conhecimento novo Lethes Ponte da Barca Uma centenária Jornada a Braga A O guerreiro-arce- bispo de Braga Lavagem do rosto dos santos Bom Jesus do Monte Guimarães Espinho e Granja 3G1

CAPITULO XXV

COIUBRA, BUSSACO

Mealhada Estação de Coimbra Hotel central do Mondego Os amores de D. Pedro I e D. Ignez de Castro Explosões poéticas

A festa Nào fumar Os estudantes Velha Santa Cruz

Allbuso Henriques A alameda Ataque de somno A uni- versidade — A bibliotheca Jornada ao Bussaco Luzo Rival de Cintra Batalha de 1810 Subida á serra A matta Os frades

A fonte fria Perspectivas grandiosas Hotel projectado Grandeza soleinne do Bussaco 387

CAPITULO XX VI

BATALHA ALCOBAÇA LEIRIA

Regresso a Coimbra Diligencia para Leiria Local da Batalha Bellezas exteriores Naves e claustros Tecto da caza capitular

448 ixDicK

Capolla imperfeita A Batalha n'outros tempos Subida aos pináculos Da Batalha a Alcobaça A mulher do padeiro de Al- jubarrota — A estalagem Os monges bernardos de Alcobaça Descrijjçào da sua cozinha por Bcckford Aposentos do dom ab- bade Fundação do mosteiro Jazigos de D. Pedro I e D. Ignez de Castro A livraria Leiria Os seus pinheiraes Aguas mi- iieraes, etc 407

CAPITULO XXVII

INCÊNDIOS EXÉQUIAS COCHES DE ESTADO, ETC.

Saída para Badajoz Mudança de plano Despedida aos meus amigos hespanhoes Regresso a Lisboa— Incêndios Scena na rua do Alecrim Triste eatastrophe Infernacionalitifas Exéquias na -«Demónios azues-) Decorações da egreja Explosões de lealdade Scena galante Embarque Tejo abaixo Torre de Belém A feira Santa Maria de Belém Portas ao meio dia e ao poente Sepulchros e claustros Cegos, coixos e mutilados

Antigos coches hespanhoes e portuguezes Fogo na Ajuda Lápis e canivetes O funeral de um ricasso Passaporte para o

ceu 421

CONCLUSÃO Adeus a Portugal Nevoeiro fora da barra Um vellio official car- lista Desembarque em Southampton Seraiva, nevoeiro e lama

Saudades da Formosa Lusitânia 441

ERRATAS ESSENGIAKS

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LINHAS

48

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49

5

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20

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131

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136

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9

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202

27

242

28

248

16

269

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273

22

273

25

ONDE SE

fashionahh Todo os estragados jyeseudonyino E de uma Soriano o Se viesse Glóbulos encontram grandes sublimes Osíoal Crawjlord negociar a olhos vistos gozaram-ri' a promenores esperavam-7i'0

fashionables Todos os estragado pseudonymo É de íima Soriano, o Se visse Globos encontra

grandes e sublimes Oswald Crawfurd negacear a olhos visto gozaram-na pormenores esperavam-no

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COLLOCAÇÂO DAS ESTAMPAS

PA«I.

Estatua de Luiz de Camões 42

Theatro de D. Maria II, no Rocio ou Praça de D. Pedro . . , , 69

Barra de Lisboa, vista do Cães do Sodré 101

Aqueducto das Aguas livres 183

Castello da Pena, Cintra 195

Castello de Mouros 209

Estrada de Collares 219

Palácio e basílica de Mafra 237

Torre dos Clérigos 294

O Douro visto do passeio das Fontainhas 298

O Douro visto do antigo Seminário 299

Ponte pênsil entre o Porto e Villa Nova de Gaya 309

O Douro e suas margens vistas do ponto mais elevado do Porto . . 340

Vista do Cavado, em Barcellos 364

Frontaria da egreja de Santa Cruz, em Coimbra . 396

Fonte fria, no Bussaco 405

Claustro de Santa Maria da Victoria, Batalha 409

Torre de S. Vicente de Belém 428

Frontaria da egreja dos Jeronymos em Belém 430

Porta Occidental da egreja dos Jeronymos em Belém, . . . ^ . 430

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