+ NETO N ain) ba É | ro ESA | q 0 - RH, GIESS, + el MEMORIAS DO Museu BOCAGE POR BALTHAZAR OSORIO Director do Museu g seu Naluralista. Professôr de stiencias natuiaos da Faculdade de Sciencias de Lisboa Socio efectivo da Academia das Sciencias de Lisboa, do Instituto de Coimbra, da Sociedade Zoologica de França, da Sociedade de Antropologia do Porto. Presidente da Secção de Zoologia da Sociedade de Geographia de Lisboa. Naturalista da Commissão Central de Pescarias, etc., etc., etc. |º FASCICULO (Publicações do Museu Bocage) IMPRENSA LIBANIO DA SILVA Travessa do Fala-Só, 24 LISBOA eo A aa, EA j fago ny Ria « no f RR e RI nes gi g Oy k at r$ b é VN DEVA cm ç RR ari A PAPEL Pe PS SUR A an De y Rs Memorias Do Museu BocagE (SECÇÃO ZOOLOGICA DO MUSEU NACIONAL DE LISBOA) JE + o EA e É nfbesa Á ano, 4! te f ? e j aro Ne dE dA à 20 TA y Y2e à ' E o 1) a g y So n E o | Ade, & a a, os é | | ai FE o; Eu ? a E á lg , r , » k CONTRIBUIÇÃO PARA O CONHECIMENTO DA AUNA [BATHYPELAGICA VISINHA DAS COSTAS DE PORTUGAL POR BaLrHazar Osorio Lente substituto da cadeira de Zoologia da Escola Polytechnica Naturalista adjuncto ao Museu Bocage Socio correspondente da Academia Real das Sciencias de Lisboa, do Instituto de Coimbra e da Sociedade Zoologica de França Vogal naturalista da Commissão Central de Pescarias, etc., etc. 1909 ImprENSA LIBANIO DA SILVA 29, Rua das Gaveas, 81 LISBOA À ACE E 7 aa mit E e RE ppa um MM e Fo E no PARRA ea A! ey A, dt ee Pr iq neto ER a E Rs, ER RA Ra WEI ph de tam. SM ep a dd 4 ELOGIO HISTORICO DO ILLUSTRE NATURALISTA E PROFESSOR RS nossa att Bocase POR Balthazar Osorio Heureux celui qui porte en soi un dieu, un ideal de beauté et qui lui obeit; ideal de l'art, ideal de la scien- ce, ideal de la patrie, ideal ces vertus de 1 Evangile Ce sont la les sources vives des grandes penséeset des grandes actions. Toutes s'eclairent des reflets de l'in- fini. PastTEUR. Foi n'um vale da serra do Gerez, sussurrante d'aguas desneva- das, perfumado pelas essencias que se extravasam das plantas da flo- resta, que comecei a escrever a biographia do zoologo que, conjunc- tamente com Brotero, com o abade Correia da Serra e o P. João de Loureiro, foi o fundador dos estudos das sciencias naturaes em Por- tugal. Sub-legmine das magnolias e dos carvalhos, ao molhar a pena na tinta, cujas gotas, se convertem por vezes, pela inspiração do ge- nio, em perolas irisadas, o homem imitando a natureza que transfor- ma o carbone negro em diamante que fulgura, eu reconheci que me seria preciso para escrever d'uma maneira condigna o elogio histori- co dum varão que julgo excepcional, o estylo d'um d'esses grandes panegyristas da antiguidade, que com a sua palavra, e só com ella, fundiram os mais perduraveis monumentos da eloquencia, como esses que resistiram ao esquecimento e ao ruir constante das idades, que duraram mais do que os marmores e mais do que os bronzes das es- tatuas, pois chegaram muitos d'elles até nós. Reminiscencias das leituras de Plinio o novo, descrevendo a morte de Plinio o naturalista, durante a erupção do Vesuvio de 56, me leva- ram a ambicionar a posse das altas qualidades de orador emerito que aquelle revelou e que tão justificadamente se admiram no elogio de Trajano, pronunciado no capitolio perante o senado de Roma. IH Memorias Do Museu Bocage Antes de começar a sua obra, o escriptor, como qualquer outro artista, tem sem duvida de escolher o estylo, como o pintor as tintas e as dimensões da tela, como o esculptor o metal ou o marmore, a substancia que melhor se adapte á reconstrucção da scena, que mais se case a exprimir o facto, a representar os seres, as creaturas a que se pretende dar vida ou fazer surgir. Mas não só a materia, a côr, a atitude, o gesto, a alma que ani- ma os diversos personagens, importa a quem deve proceder a um acto de evocação ou gestação; precisa tambem vestil-os conforme aos tempos e ornal-os apropriadamente e conforme aos sentimentos que os animam. Dae a Romeo a roupagem de desgraças do rei Lear e mandae-o para o balcão de Julieta; vesti as galas d'Othelo victorioso a Machbet cheio de remorsos e tereis desfeito muito do valor das scenas em que perpassam nos dramas. O estylo de panegyrico deve ser como a clamyde ostentosa em que á nossa imaginação nos apparecem envoltos aquelles que tendo abandonado o mundo, deixaram todavia n'elle, pela sua obra, pela sua vida, fama perduravel, nome fulgurante, inscripto para sempre na historia. Discorrendo assim, sopesando as minhas aptidões, em breve me convenci que nem mesmo que me insuflasse tudo quanto havia de superior em J. V. Barbosa du Bocage, o heroismo com que elle tra- balhou, heroismo, sim, a abnegação com que ergueu a sua obra, con- seguiria elevar-me, subir tão alto, até aonde desejava alcançar para proclamar-lhe a justa fama a que tem direito. Por esse motivo inve- jei, e nesta hora mais lamento não possuir, o estylo de Plinio, grave e altisonante, em que o preito da admiração e o perfume do reconhe- cimento, a homenagem entrelaçada com a estima, se concertaram para fundir-se na mesma corôa votiva. Talvez, para robustecer o animo que me faleceu perante a mag- nitude da empresa que tomei, poderia recordar que os soes empres- tam a luz aos satelites, e que essa luz alheia chega, ainda, ás vezes, passados milhares d'annos, aos olhos d'aquelles que a contemplam maravilhados. Nem mesmo o raio famoso da extincta luz e bri- lhante chamma que foi o espirito do meu biographado, conseguirá, pelo menos assim o creio, tirar-me sequer da obscuridade em que eu gravito. Memorias vo Museu Bocage NI O inicio d'este panegyrico derivou talvez da influencia do logar; as reminiscencias de Plinio, e de Plutarco que escreveu a vida de illus- tres romanos, preveio sem duvida da acção do cahir da tarde no sce- nario do Gerez, aonde me encontrava. Então a luz crepuscular envol- vendo a natureza, movia a seu sabôr o meu espirito fluctuante, levan- do-o, sem que eu o presentisse, para as scenas e memorias do passa- do. Alguma vez á claridade já indecisa do sol que se escondia e da lucilação das primeiras estrellas, me pareceu vêr caminhar pelas de- vezas e alcantis da serra os soldados romanos, o vexilario á frente, a aguia de bronze de azas estendidas, sobranceira, como as da mon- tanha, aos pincaros nevados, orientando-se pelas columnas, os marcos miliarios que ainda ali persistem erguidos e com que os Cezares mandavam ensinar ás legiões o caminho da Lusitania. A perturba- ção d'um sentido junta-se por vezes á de outro, e parecia-me então ouvir o ruido de bronzes entrechocados, os escudos batendo contra as armaduras, sons metallicos de côótos de lanças percutindo as pe- dras dos caminhos; como que uma onda de vida antiga atravessando o mundo actual que estava em volta de mim, e sugeria-me J. V. Bar- bosa du Bocage com o traje que tão bem devia casar-se á sua physio- nomia, uma toga pretexta cingindo-lhe o arcabouço, o vestuario se- vero do cidadão romano do periodo de Augusto. Achareis talvez mais de alucinado que discorre, que de alma tran- quilla, de espirito equilibrado, a visão descripta. Se o visseis voltar, como eu, não dos campos da batalha, mas dos gabinetes da diplomacia, em que por vezes por detraz de um ho- mem se ouve o respirar opresso de milhares de outros que esperam para partir para a guerra, para a occupação d'um territorio, uma pa- lavra, um gesto; se o visseis acalmada a lucta em que estivera en- volvido, voltar, simples, tranquillo, vir fortis, depois de ter pugnado longos mezes com as ambições e com as subtilesas que nem sempre dissimulam a força no nosso tempo, lucta mais violenta, mais trucu- lenta para a estructura d'um homem, que muitos prelios d'outr'ora, se ovisseis voltar como eu ao estudo, quasi incessante, ao exame paciente dos organismos que povoam e vivem nas diversas regiões do mundo, talvez lhe terieis achado no rosto, a expressão de Cincinato ao retomar 1V Memorias po Museu BocacE o arado no sulco incompleto, por ter tido de partir para defender a patria da invasão dos inimigos. Seria então claramente logico para todos vós, como foi para mim, encontrarieis o invisivel filum, a conca- tenação das ideias que me induziram a vêr surgir um homem do nosso tempo, entre a evocação das provas da vida d'um mundo antigo que tinha em volta de mim. Ao voltar ao seu pequeno agro Cincinato sorriria ao sol, ás es- peranças das suas colheitas; o mesmo oiro que lhe dourava a messe lhe douraria talvez a velhice tranquila. Bocage ao quedar-se no silencio da sua estudaria, a que regres- sava com a consciencia de que tudo quanto lhe era possivel fizera para bem do seu paiz, e de que conseguira tudo quanto lhe podia al- cançar, talvez ouvisse o cerebro dizer-lhe aquella phrase amarga que o Conde de Casal Ribeiro, o seu mais intimo amigo desde a Universi- dade, interpretando-lhe o animo, escreveu n'uma sua curta biographia, e onde diz, que Barbosa du Bocage «quanto mais conhecia os homens mais amóôr tinha aos bichos» *. Mas o Gerez a que ha pouco me referi por mais um motivo, como vereis ainda, influiu na elaboração d'este panegyrico; ligam-se por vezes por imprescrutaveis processos psychologicos as acções do meio sobre o homem e a realisação da sua obra. Foi a respeito d'um dos mais interessantes animaes da fauna de Portugal, que no Gerez vivia ainda nos nossos tempos, que J. V. Barbosa du Bocage escreveu quasi a sua primeira memoria zoologica. A elegante e fulva Capra hispanica, a cabra montez gereziana, ainda por fins do seculo xvrr, na epoca em que os distinctissimos bo- tanicos Link e Hoffmanseg (?) vieram estudar a flora do nosso paiz era ali abundante; a miudo se via saltar pelos blocos de granito que pare- cem enormes pelouros enferrujados que ficaram suspensos dos alcantis depois d'uma rija pugna de titans. Extinguiu-se porém, e ha bastantes annos, e foi em presença d'alguns dos seus ultimos representantes que (1) Semana de Lisboa, Suplemento ao Jornal do Commercio, de 19 de Março de 1893. Depois de escriptas e impressas as linhas que estão em cima é que notei que se o pensamento era o mesmo, o modo de exprimir é que era di- verso; o conde de Casal diz: «Chego até a suspeitar que à força de habito e experiencia ele encontra bastas vezes maior proveito e deleite em companhia de bichos empalhados que na de homens vivos. (2) Link. Voyage en Portugal, 1797-1799; t. II, pag. 24 e 25 et. HI pag. 59. Memorias Do Museu BocaGE V -o nosso primeiro naturalista a descreveu, impedindo com o seu tra- balho, que esse documento tão interessante da fauna de Portugal se não perdesse completamente. Mas insistirei, volvendo ao que já disse, qualquer homem não pertence inteiramente ao seu tempo, como egualmente lhe não per- tencem, d'uma maneira completa, quaesquer dos organismos que em volta d'elle nasceram e se desenvolveram. Sem difficuldade se concebe que um cedro ou um carvalho actual não diffirirá grandemente dos seus muito remotos antepassados, o preterito fica assim intimamente ligado ao presente. Como não acreditareis que um homem antigo possa surgir no meio da sociedade moderna? Sem duvida o meio modifica, a civilisação imprime alterações importantes no caracter, mas não impede que appareça no mundo contemporaneo uma alma d'outrora, embebida da austeridade d'uma nação que viveu ha secu- los, que, justamente porque se isolou, no estudo por exemplo, encon- tramos pouco vulnerada pelas influencias e atrictos da sociedade moderna. Homens que não foram do tempo em que viveram, temos conhe- cido muitos, e a alguns que existiram ha seculos nós lhe podemos - chamar contemporaneos. A idéa, a descoberta, o emprehendimento que elles realisaram, ficou esquecido, incomprehendido, até que o presente o valorisou. São os espiritos que n'uma era antiga pertenciam aos nossos dias. Por um phenomeno similhante, alguns da actuali- dade pela indole, pelo modo de julgar, de sentir, de apreciar, perten- cem a um remoto passado. Naturalista, falando d'um naturalista e da sua vida, é facilmente concebivel que me occorram factos que na natureza se passam e que se approximam delle. Ha homens cuja existencia decorre'á mercê do acaso. São como a jangada que o mar impele ora para uma parte ora para outra, sem direcção precisa. Apparecem, seguem na vida sem uma rota, sem destino e desapparecem, perguntando talvez elles proprios, a si mesmos, o que vieram realisar, qual o fim para que vieram ao mundo. Outros temos visto na vida dirigir-se a um fito com a tenacidade, com o denodo, com a resolução, com que atravez das correntes ma- ritimas ou de ventos contrarios, passando por todos os obstaculos, alguns organismos atravessam os espaços, as ondas, se dirigem para VI Memorias Do Museu BocaGcE os continentes, e n'elles fundam alguma coisa de util para si, para a sociedade que lhes aproveita as aptidões e o trabalho. Os primeiros são os fracos, os indecisos, aquelles que nenhum bem trazem para a communa, para a grey; os segundos são os lucta- dores, muitas vezes os vencedores, aquelles com quem a humanidade pode contar, de quem ella pode esperar um acrescentamento, um auxilio ao seu incessante progresso. São os.que affirmam fortemente a sua individualidade, são os- que temperam a alma nos embates da vida, os que por vezes deixam gotejando do proprio sangue os obstaculos que se lhe deparam no caminho, mas que querem vencer, aquelles a quem o futuro garante um maiór e decidido exito. A biographia d'um homem tem portanto de ser não sómente a exposição dos factos da sua vida, mas um estudo das causas que in- fluiram no seu caracter, na formação de seu cerebro, na tempera da sua vontade. No desenvolvimento d'um orgão d'uma planta ou d'um animal o conjuncto de circumstancias que se congregam em volta delle, o meio emfim tem sempre iniludivel influencia e intervenção. Escusado talvez dizer que o mesmo acontece com os homens. Entrai n'uma floresta, correi sobre a superficie d'um lago, pres- crutai qualquer logar da terra onde se encontre uma fórma, um ser vivo ou um cristal, se olhardes em volta, muitas vezes encontrareis, no ambiente que vos rodeia, a rasão da existencia de muitos dos ca- racteres que esses indíviduos ostentam. Um vegetal, uma arvore, por exemplo, interrogai-a bem; se sa- beis escutal-a dir-vos-ha o motivo porque são largas ou estreitas, cur- tas ou longas, brilhantes ou sem brilho as suas folhas; então sabereis porque são perfumadas as suas flores, ou coloridas as suas corolas. Um interrogatorio similhante pode repetír-se ém presença d'um animal e um exame proficiente dos caracteres que exibe nos dará a razão da sua existencia. Não é uma simples phantasia, afirmamos factos que a toda a hora podem ter a sua confirmação nas sciencias da natureza. Não ha coisa alguma no universo a que se não possa apontar ou prever a rasão porque existe; nada do que conhecemos apre- senta uma qualidade que não tenha uma causa de que derive. A obra da natureza ou a obra da arte é explicada pelas leis que regem o universo. Os caracteres psycologicos explicam-se por Memorias po Museu BocacE VII um processo analogo áquelle porque se explicam os caracteres physicos. Sem duvida é por vezes difficil a demonstração cabal e muito “mais se se trata de organismos tão complexos como o homem. A difficuldade provém tanto da complexidade da estructura como “Jo numero de influencias que sobre elle actuam, como por exemplo os phenomenos ancestraês e sociaes. Mas por muito difficil que seja explicar como as circumstancias que o rodeiaram influiram n'um determinado organismo, como occor- reram para o aperfeiçoarem ou para o annularem, nem por isso deve- mos arredar uma tentativa visando a este fim. Não se omite a resolução d'um problema simplesmente porque se nos afigura intrincado. Da vida dos homens ilustres temos de tirár lição para a nossa vida, o seu proceder não deve ser porém apontado só aos da nossa idade, mas egualmente aos vindouros para que delle lhes derive o -exemplo de conducta, e para que seja tambem um espelho a que to- dos concertem o seu viver. Deve ser conforto e estimulo, porque elles em geral não atingiram a gloria, a consideração, o renome, senão atravez das difficuldades e estorvos que por vezes lhe oppozeram os seus emulos. Quantos nos apresenta a historia, e sobretudo a historia das sciencias que tombaram vencidos, até que um dia o combate da vida os tornou victoriosos. O Anteu da fabula, que se erguia mais forte cada vez que cahindo tocava no solo, deve ser um d'esses my- thos que encerram a lição e exemplo d'aquelles que prostergados pelas adversidades acabaram por fim por subjugal-as. Se muitos homens alcançaram o preço pela sua obra foi á custa d'uma persistencia, d'uma lucta que os prostrou á beira do caminho que os conduzia á posteridade; mas outros, quantas vezes, tarde, muito tarde o receberam, e quantos não conheceram a consagração do seu nome! À gloria, a fama, a justa recompensa, já os não encon- trou no mundo. J. V. Barbosa du Bocage, debil, parecendo que a fragilidade da constituição, que a saude ephemera, lhe não concederia larga vida, foi um luetador forte, armado com essa força suprema que se chama a vontade, e com ella, e com um incessante trabalho obteve alfim a vi- ctoria. Quando a vida se apresenta rude, cheia de desconfortos, pe- renne d'infortunios áquelles que travam com ella os seus primeiros VII Memorias po Museu BocacE combates quantos sossobram ás primeiras investidas da desgraça; ou- tros porém temperam-se n'essas situações invias, similhantemente aos . metaes que conquistam qualidades que não possuem, quando encon- tram condições physicas bem acentuadamente diversas d'aquellas que num dado momento os rodeiam. Foi talvez porque a vida no seu inicio se apresentou hostil ao - meu biographado, foi talvez porque os homens o impeceram e con- trariaram que elle nobremente, se determinou a esforçar-se para so- bresahir-lhes. Minhas senhoras e meus senhores, peço venia para ler-lhes a lição - proficua da vida dum homem, que n'esta homenagem que a So- ciedade de Geographia lhe rende encontra a confirmação de que pela sua obra se tornou merecedor do reconhecimento da patria. Parecerá facil talvez a minha situação n'este logar, e julgar-me- ha replecto de dados biographicos quem souber que durante mui- tos annos convivi, dentro dos muros do Museu Nacional, quasi dia a | dia, com o illustre sabio de cuja elevada personalidade e de cujo tra- balho tentarei deixar-lhe na memoria, para que a bemdigam e vene- rem uma indecisa e incompleta feição. Todavia se bastante sei da obra, muito pouco sei do homem, . porque este era prodigo em louvores e em elogios aos meritos alheios, mas raramente falava dos seus; e da sua vida sei tão pouco e tão ve- ladamente que tive de recorrer á sua familia, parentes mais proximos, para que me revelassem um tanto do que a sua gravidade e austeri- dade, o seu mutismo sobre este ponto me não deixou entrevêr. Por vezes succede no começo da vida dos individuos um facto que n'ella se repercute durante toda a sua duração. J. V. Barbosa du Bocage pelos 12 ou 14 annos esteve fortemente combalido, teve a existencia em risco, e se esse acidente determinou talvez para o seu futuro esse instavel equilibrio organico que a muitos se affigurava como indicador de periclitante saude, teve todavia como effeito psichico fortalecer-lhe a vontade de viver, e como elle proprio me affirmou, desfez-lhe a primitiva timidez, quasi nativa, para o lançar em resolu- ções e actos de quem sabe querer, de que de resto deu sempre mani- festas provas pela vida fóra. Memorias po Museu Bocage IX À primeira confirmação d'esta affirmativa encontramo-la, no que eu chamarei o seu primeiro acto de vida publica, que conheço, a sua intervenção inicial, na política da nossa terra. De 1842 a 1851, o Conde de Thomar, Antonio Bernardo da Costa Cabral tinha-se mantido no governo não interruptamente, porque a vaga arrebatadora duma re- volução popular, chamada a da Maria da Fonte, tendo vencido os se- tembristas, o havia levado para longe; mas durante o longo período que se havia conservado no poder, a sua audacia e energia, a proteção da rainha, e outros factos que seria longo expôr, tinham-lhe alcançado bastantes malquerenças, que por fim, em 1851 o arredaram para sem- pre. Succedeu-lhe o partido á frente do qual se encontrava Saldanha que tendo sido quem mais se havia empenhado para que Costa Ca- bral voltasse a governar, se havia volvido no seu mais poderoso adver- sario, chegando a combate-lo com um exercito, armado contra elle e contra o paço. Era por 1851, no tempo em que ainda se degladiavam os partidos que tinham como chefes os homens que haviam abalado, feito oscillar com o seu valor, até o lançarem por terra, o throno em que governava o regimen absoluto. Com os homens feitos, com os soldados velhos, que tinham novamente desprendido do muro o baca- marte lendario ou a espada que fulgurara nas pelejas, mais do que com a luz do sol, com o brilho da conquista de alienaveis direitos, e que então se lançaram novamente na lucta pela posse das liberda- des que antes tinham adquirido, e que novamente julgavam cerceadas, juntou-se como sempre succedeu em Portugal, a mocidade, em cuja bandeira vae sempre envolta, como divisa, a idéa mais sublime. Barbosa du Bocage alistou-se, como os alumnos seus contem- poraneos na Universidade de Coimbra, que frequentava, no celebre batalhão academico, que tempos antes tantos soldados illustres, con- tou; bastará citar o Visconde de Almeida Garrett e José Estevam de Magalhães, e que renasceu então com outros não menos illustres Bo- cage, o Conde do Casal Ribeiro, Teixeira de Vasconcellos, etc. Na vespera da sahida da cidade dos juvenis combatentes, que iam defrontar-se com as tropas do Marechal Saldanha, Barbosa du Bocage na solidão do seu quarto de estudante, sem nenhuma testemunha do facto, teve uma hemoptyse, deitou sangue pela boca. Apesar da fra- queza extrema, e das circumstancias desfavoraveis em que este aci- dente o tinha collocado, não quiz deixar de partir com os seus com- panheiros de estudo, agora seus companheiros d'armas. Este caso, esta 2 * bi ; Memorias Do Museu BocaGE primeira affirmação de caracter não querer por forma alguma fugir a um grave cômpromisso. tomado, não se desmente em toda a sua existencia, revela-o tal qual foi sempre, correcto, firme, tenaz em todos os seus actos e propositos. Fallando d'um naturalista illustre, é concebivel como os dados relativos á sciencia que elle tão profundamente cultivou me ocorram, já o affirmei, e venham intercalar-se entre as notas relativas ao poli- tico que elle foi, mais ou menos agudamente, emquanto viveu. Por vezes, com pequenas porções de um esqueleto, por frag- mentos d'um animal, chegava o grande sabio que se chamou Cuvier a reconstituir com a imaginação, e d'uma maneira completa, a forma do organismo a que tinham pertencido em vida. Tomai uma acção d'um homen, julgae-a, interpretae-a, e só por ella, podereis constituir e conhecer. inteiramente o seu caracter. Os nossos actos repetem-se por vezes, apresentam-se diversos pela mo- dalidade, pelos acidentes, pelas circumstancias que intercorrem, mas fundamentalmente são manifestações do mesmo modo de pensar, do mesmo sentir; e com .elles, como com as peças anatomicas in- completas de Cuvier, poderemos delinear toda a existencia moral do individuo que os praticou. Debalde tentarei, conservando na memoria apenas frases ca- hidas em despretenciosa conversa, simples ocorrencias d'uma troca de idéas sobre assumptos muito diversos, traçar as scenas d'uma longa carreira publica, esboçar um quadro d'um viver proposita- damente velado; mas hade valer-me, pelo menos assim o espero, esse apello ao processo -de estudo que invoquei, essa relação intima que manteem as diversas ações da vida, para poder architectar o que me não foi revelado. Tereis cônhecido, como eu, espiritos que occultam nobremente a dôr, que manteem tranquillidade absoluta perante a sorte adversa, homens a quem se não vê contrahir um musculo no maior acume do soffrimento, que não falam nunca na lucta que travaram para ascen- der ao logar ao sol que pelo seu trabalho e merito lhes pertencia. Ninguem conheci que menos falasse das contrariedades que outros lhe tinham disposto. Barbosa du Bocage parecia ter-se esquecido d'aquel- les que adivinhando-lhe as qualidades e aptidões superiores que o distinguiam, lhe tinham barrado o ingresso aos altos cargos, ao exercicio das profissões, estorvado o caminho que tinha a percorrer. Memorias Do Museu Bocage xI Porém todos os embaraços que os homens lhe prepararam dominou; e até a propria constituição que a todos se affigurava debil venceu, e pôde alcançar, embora já no ocaso, essa satisfação de se sentir venerado, apreciada a sua obra, recompensado pelo respeito unanime, devido á sua longa carreira de raro e paciente investigador. O primeiro acto da sua vida publica foi esse a que alludimos ha pouco. à Outros da sua vida particular, mas intimamente ligados a este, não o honram menos. Saldanha, contra quem elle tinha ido com os academicos e ou- tros patuleias, commandados pelo general Povoas, ficou afinal victo- rioso do partido que lhe era adverso, e o moço escolar voltou, não cabisbaixo mas vencido, para a cidade, onde os soldados do marechal lhe haviam saqueado... os livros. Não admira que se confessasse vencido, imaginamos com que vontade, pelo que conheciamos n'elle de indomito, mas que fazer? Conta Oliveira Martins no seu livro Portugal Contemporaneo !, que ao querer atravessar a ponte sobre o Mondego, o proprio rei, que tinha partido de Lisboa com um exercito para combater o marechal, foi obrigado a dar-lhe vivas, e que na capital chamavam a este D. João VII! N'esse tempo Saidanha era todo poderoso, até a dura vontade do paço tinha vergado; a rainha, de pé na tribuna d'um theatro teve de aclamal-o *: o partido que lhe era hostil estava completamente vencido. Saldanha tomou o govervo, seguindo-se o período politico chamado a regeneração, porque se pretendia regene- rar o paiz. Atravez da politica d'aquelles tempos, não grandemente propi- cia a estudos, e a assumptos scientificos, Barbosa du Bocage estu- dante laureado alcançou a sua carta de bacharel formado em medi- cina e foi procurar na ilha da Madeira o convivio dos seus parentes, de quem o havia affastado a conquista d'um curso e a acquisição duma carreira. Imagine-se, e alguns que me ouvem terão sentido essa alegria de regressar ao lar paterno, de que se esteve ausente por largo tempo, em 4 Loc. cit.; t. Il, pag. 289. à Loc. cit., pag. 242. XII Memorias po” Museu BocaGE que a esperança de voltar suavisa a pungente saudade, considere-se que o adolescente que partio volve perante os seus um homem feito, com o diploma que lhe custou o estudo e o trabalho de muitos annos, e que esse documento é o que lhe permitte o ambicionado ingresso no mundo social; imagine-se a alegria que todos estes factos encerram para a approximar da dôr, do desgosto acerbo, que representaria para Barbosa du Bocage vêr o venerando lar da sua familia, poucas horas depois do seu regresso à terra natal, apedrejado, porque n'elle se tinha sido acolhido o novo medico, o patuleia. Tão grande foi a magua experimentada por vêr o desacato á casa paterna, onde vivia seu pae, um dos mais-respeitaveis cidadãos do Funchal, que deliberou voltar outra vez para o continente no pri- meiro transporte que chegasse á ilha da Madeira. Veio para Lisboa, procurar a consideração que os seus inimi- gos lhe tinham regateado. Em breve a encontrou, mas não sem que novamente a politica adversa lhe manifestasse que o não tinha esquecido. Quando demandava onde empregar os seus meritos e sciencia, apresentando-se como candidato á cadeira de Zoologia, que regeu durante mais de trinta annos, encontrou novamente a hostilisal-o os homens do partido político seu adversario. A Escola Polytechnica tinha-o admittido ao concurso, porém Saldanha, que era então o mt- nistro do reino, não quiz sancionar o procedimento do conselho esco- lar, e por bastante tempo o candidato que mais tarde havia de exhibir tantas provas do seu muito merecimento, ficou esperando que a von- tade poderosa do ministro, que não esquecia quem militara contra elle, deixasse de preponderar. A” hostilidade manifestada ao seu in- gresso na então nova instituição docente, respondeu esta oppondo-se a que se abrisse novo concurso, visto que no candidato aceite e que o governo não queria, concorriam todas as condições exigidas pela lei. O marechal chegou mesmo a responder rudemente a quem lhe ponderava a sem razão do seu proposito, que não era chanceler da escola, e que por este motivo não era obrigado a sancionar tudo quanto ella resolvesse. Emfim, dos homens, a influencia e preponderancia, muitas ve- zes passa mais breve do que elles. Curto é o viver de quem não vê o sol nascente e não assiste ao seu ocaso. Barbosa du Bocage foi afinal eleito professor. Memorias Do Museu Bocage x Começou então essa vida reclusa de persistente trabalho quoti- diano, distribuido pela sua aula, e pelos estudos de Zoologia systema- tica que então quasi não existiam em Portugal. D'esse isolamento a que imperiosamente teem de votar-se todos aquelles que vivem para a sciencia, precisando consagrar-lhe todos os dias muitas horas de estudo attento, raras vezes sahia. Mas como todos os homens devem ser politicos e teem obrigação de interes- sar-se pelos assumptos que importam ao bem da patria, não deixou jámais de olhar, embora por cima dos seus livros, para a execução d'esse dever, que na Grecia antiga importava um castigo a quem o não cumpria. Uma vez era maior a grita, attentava-se contra um d'esses direi- tos que os portuguezes mais persistente e mais delorosamente tinham conquistado, a liberdade de emittir opiniões por meio da imprensa. Barbosa du Bocage abandonou os livros, como já tinha feito em Coim- bra por motivos similhantes, e foi levar ao parlamento um protesto assignado por muitas centenas de cidadãos que com elle o tinham subscripto. | Mas como era um homem prestante e não sómente um poli- tico, cumprindo o que julgou um dever cívico, voltou para o remanso do gabinete de estudo, onde adquiriu o saber, que dá auctoridade, a fama que importa o respeito. Esses predicados lhe viram aquelles que um dia o procuraram para lhe dar o mando, para que governasse com elles, para que fos- se ministro. A estes predicados que devem ser exigidos a quem am- biciona governar, juntava um outro que era por assim dizer o esmalte sobre o oiro do seu valor, a austeridade. Um dia, tarde, muito tarde, na vida da nação, alguem pensou que as nossas numerosas e valiosissimas colonias eram um magnifico patrimonio quasi ao abandono. Portugal n'aquelle tempo, na adminis - tração e interesse pelos seus dominios lembrava um dos fidalgos, des- cendentes dos fronteiros d'Africa e capitães da India, que não sabiam onde eram as herdades e quintas que ihes pertenciam, transformadas pelo abandono em matagaes. A pasta da marinha e ultramar, se excetuarmos Sá da Bandeira, Andrade Corvo, Latino, e outros homens não menos notaveis, era por via de regra entregue a brilhantes talentos, mas falhos d'experien- cia, d'estudos profundos, de conhecimentos especiaes e complexos, XIV Memorias po Museu BocacE como são os que demandam a administração e governo de inexplora- dos territorios. Com duas lições de urso (nome pittoresco porque na Universi- dade eram designados os alumnos distinctos) e com um livro de so- laus se arvorava em Portugal, por aquelles tempos, um homem em ministro dos mais exigentes e magnos interesses. Que nem de leve estas minhas palavras agitem as sombras dos que já não existem e presidiram ao governo das colonias! A fama da nossa incapacidade administrativa com respeito aos dominios ultramarinos, e do nada que tinhamos feito para os valorisar era tal, que por vezes, como aconteceu com o sr. Jayme Batalha Reis, iam os nossos consules rebater em conferencias publicas as phrases escarninhas que os jornaes estran- geiros de maior auctoridade, nos arremessavam. Portugal, no papel, tem feito muito pelas suas colonias, dizia de nós, uma vez, o Times. Foi n'esses tempos em que se pensou que era preciso olhar para tão altos interesses, que se resolveu procurar um homem que tivesse conhecimentos dos nossos dominios africanos, para onde então, como agora, se dirigiam mais directas as attenções geraes. Os estudos zoolo- gicos de Barbosa du Bocage revelaram-lhe muito da geographia afri- cana. A correspondencia, durante largos annos, com Anchieta e com outros exploradores e missionarios, quer portuguezes quer estrangei- ros, haviam-lhe dado particular conhecimento e por vezesnoçõesigno- radas, ineditas, sobre a corographia, os planaltos os cursos d'agua, os sertões, os caminhos, a fauna, o clima, muito emfim do que importa conhecer a um paiz colonisador. Um politico militante, que sabia o va- lor dos homens, offereceu-lhe para entrar n'um ministerio, conferin- do-lhe a pasta das colonias. Julgais que Barbosa du Bocage acceitou pressuroso a honra que se lhe deparava? Notae que tinha mais de ses- senta annos; pois indicou outro, quiz dar homem por si, quiz decli- nar o encargo que era ao mesmo tempo honraria. Lembrou ao pre- ponente, que assim queria distinguil-o, que procurasse um homem, que foi sem duvida um dos talentos mais brilhantes da nossa terra no seculo passado, o ultimo conde de Ficalho, Francisco de Mello Breyner. Brilhante talento disse e não exaggerei; porque se a qua- lidade de brilhar se attribue a muita coisa que brilha, porque re- flecte a luz que recebe, verdadeiro brilhante só é o que junta a esta qualidade outra, a de expargir a luz decomposta. O conde de Ficalho não só reflectia a luz do seu muito saber mas deslumbrava com as Memorias no Museu BocacE XV. irisações da sua grande inteligencia, quantos de perto o conheciam. Este ilustre Professor de Botanica não quiz porem aceitar, e Barbosa du Bocage, sem solicitação, tendo mesmo feito diligencias, como disse, para eximir-se ao encargo com toda a modestia, recebeu já assignado o decreto que o nomeava ministro. Foi depois da sahida desse primeiro ministerio que tive a honra de o conheçer no Museo zoologico, quando ali iniciava os primeiros estudos de systematica, e guardo mais no coração do que na memo- ria, as palavras que me disse depois de ter examinado o trabalho que eu tinha feito no instituto que voltava a dirigir. Essas palavras foram não só de louvor mas de incitamento. Guardo-as com outras que me mandou em certa ocasião, e que não repito, porque não tendo tempo para dizer d'elle todo o bem a que tem direito, não podendo desfolhar perante a sua memoria todas as flores da minha homenagem, ficaria com o remorso de que n'este momento que se me offerece para ren- der-lhe um preito, eu o consumice em proveito e louvor proprio. Vi-o voltar ao seu gabinete d'estudo, retomar os livros, as collec- ções que estudava, com a mesma facilidade, a mesma disposição d'ani- mo, ao cabo de trez annos d'ausencia !, como se de lá tivesse sahido na vespera. Creio que nem uma só vez olharia para traz para ver com sau- dade a situação politica que tinha abandonado havia pouco. Do seu papel como ministro, neste primeiro ministerio em que interveio, poucas palavras me bastam para justificar a superioridade intelectual que em tão diversos assumptos revelou, quer no ministe- rio da marinha e ultramar, quer depois no dos negocios extrangeiros. N'este ultimo surgiu-lhe uma das questões mais graves para os nossos interesses coloniaes, uma limitação de territorios com visinhos, conscios da superioridade da sua situação entre as sociedades huma- nas do nosso tempo, interpretadores liberrimos da frase strugg'le for life. Estivemos sós n'uma conferencia em Berlim; tinhamos apenas pela nossa parte o direito de descoberta, de conquista, da posse secu- lar, atestado por essas balisas e marcos com que Diogo Cão e outros descobridores celebres foram assignalando a sua passagem e a sobe- rania de Portugal. Se não reveindicámos n'esse tribunal de nações 1 Foi Ministro da marinha e ultramar desde Janeiro de 1883 a Outubro do mesmo anno e Ministro dos negocios estrangeiros desde Outubro de 1883 a Fevereiro de 1886. XVI Memorias po Museu Bocage poderosas tudo que nos pertencia, muito alcançámos do que se nos disputava, ficando-nos, desde então, definitivamente, a posse da mar- gem do Congo de que um povo forte pretendia esbulhar-nos. Foi, e por obra de Barbosa du Bocage, e dos seus colaboradores, que obtivemos essa importante victoria diplomatica que vale uma grandebatalha. Os factos encarregam-se de dizer o que eu por ter de caminhar com a ra- pidez do tempo me não é permitido assignalar. Mas que prova maior, mais convincente do que esta que acabo de apresentar e que não pode dizer-se forjada com a estima? Pouco tempo depois, e quando a socie- dade portugueza tumultuava, quando se procuravam homens em que o povo confiasse a defesa dos seus direitos, na ocasião d'um facto his- torico retumbante, que nem a memoria dos que me escutam esque- ceu, nem as delicadesas devidas ás circunstancias actuaes me permit- tem que rememore, senão para contar o que por coisa alguma eu dei- xaria de dizer, porque tenho de exigir mais do que a justiça, a venera- ção que aos benemeritos da patria se deve, Barbosa du Bocage foi cha- mado para dirigir novamente os negocios externos de Portugal. Seria longa a leitura, mesmo do resumo, do livro branco de 1891 que se intitula Documentos apresentados ds cortes — Negocios d' Africa — Negociações de tratado com a Inglaterra, 261 pag. em 4.º. Estão ahi as notas diplomaticas redigidas pelo homem a quem a Sociedade de Geographia rende hoje culto, para glorificar um dos seus mais notaveis presidentes. Do merito desses documentos eu poderia talvez deixar que pelo dizer de outrem se lhes aquilatasse o valor. Poucas palavras, uma frase concisa d'um diplomata illustre, de longo estadio nas princi- paes cortes e chancelarias da Europa, bastaria; mas já disse que esse alguem era um dos seus maiores amigos e não quero que se atribua á amisade o que pertence á justiça. Entretanto deixarei nos que me dão a honra de ouvir-me, a im- pressão de que realmente foi d'alto valor a interferencia de Barbosa du Bocage em tão melindrosas negociações externas. O conde de Casal Ribeiro, cujas elevadas faculdades muitos admiraram, e que a Academia da Historia de Madrid apreciou devidamente, incluindo-o entre os seus socios, escreveu já quasi no fim da sua longa carreira de diplomata, que o tratado feito por Barbosa du Bocage foi um exito. (') . (') Loc. cit. pag. gi. Memorias Do Museu Bocage Se me fortaleço com a opinião alheia não é para eximir-me a referir o que eu mesmo resolvi dizer, mas para me amparar ao con- ceito estranho n'este caso de incontestavel importancia. Lêde como eu li o livro de negociações que citei ha pouco, e n'elle encontrareis a convicção de que em Portugal, na actualidade como nos tempos mais ou menos remotos da nossa historia, sempre se acharam homens que souberam ser portugueses. Exponhamos, embora com brevidade, em que circunstancias se encontrava o nosso paiz perante uma das mais poderosas nações es- trangeiras. Portugal tinha enviado a Londres alguem para negociar um tratado de limites de territorios africanos. Esse diploma teve a assignatura dos negociadores, representantes dos dois paizes alliados, mas tinha de ir ao referendum do parlamento portuguez, que o re- cusou. À este acto a Inglaterra respondeu com outro não menos violento, que teve larga repercussão no povo e na politica, tendo ca- hido o ministerio que mais responsabilidades tinha no que se havia passado, e que provocou tumultos em Lisboa. Foi n'estas circunstancias, de manifesta e acentuada desinteligencia, já traduzida em agravos reveladores de mutuo descontentamento entre duas nações, e no meio d'uma verdadeira tempestade na politica interna em que não aparecia ninguem para a dominar, que Barbosa du Bocage foi cha- mado a intervir. Longos mezes, mais longos pela acuidade d'alguns momentos, que deviam esgotar a energia melhor temperada, este homem que passara mais de trinta annos na calma e no recolhimento que exigem os trabalhos scientificos, e que convertem d'alguma maneira os culto- res das sciencias na actualidade nos austeros e escondidos ascetas d'ou- tr'ora, teve de comparecer n'esse vasto proscenio, as chancelarias da Europa, não para luctar, apenas para não cahir vencido, não sómente para defender um patrimonio que a nação lhe tinha confiado e que decerto se defende com mais energia que o dos filhos, mas para vol- ver ao lar com a tranquilidade e a consciencia que vem do dever cumprido, que não permitte que coremos perante quem mais estima- mos. Que a sua intervenção no pleito foi proficua, e que foi altamente inteligente o modo como elle reatou as quebradas relações e dirígio com habilidade os negocios que se lhe seguiram, sentenciou o povo, a politica, não atacando os actos que tinha praticado; mais ainda, a Sociedade de Geographia composta por quasi todos os homens q 3 * XVIII Memorias Do Museu BocaGE maior illustração e nome que existem no paiz, consagrou-lhe poucos annos depois de concluidas as negocioções delicadas a que alludi a sua medalha d'ouro, que significa o premio maximo, até agora só concedido por meritos excessionaes. Mas ajuizae vós do seu proceder, os que não tiverdes lido os di- plomas e notas sobre o tão celebrado convenio de limites dos terri- torios africanos pertencentes a Portugal, com os limitrophes na posse da Inglaterra. Quando entrou no ministerio, as relações de Portugal com este paiz se não estavam absolutamente quebradas, eram todavia muito pouco cordeaes. O governo inglez negava-se a fazer qualquer modi- ficação no tratado assignado em 20 d'agosto. Nas diversas cortes da Europa, mal conhecedoras do assumpto, o facto do parlamento por- tuguez não ter querido sancionar um diploma depois de negociado e assignado por alguem a que o nosso governo tinha conferido direitos para o fazer, deixara-nos em circunstancias desvantajosas. Em Africa, flotilhas de canhoneiras britanicas, subiam o Zambeze, e o Chire. Um representante d'uma fortissima companhia ingleza celebrava contra- ctos com Mutassa, um regulo poderoso, com o fim de assenhorear-se de vastos territorios da região de Manica, que estavam comprehendi- dos no dominio portuguez, e que eram invadidos pelas expedições ar- madas da companhia South Africa, cujos dirigentes eram homens, por todos os motivos, dos mais importantes e influentes da Inglaterra. Era manifesto o interesse, por tantos modos revelado, dos que compunham as grandes companhias exploradoras dos territorios mais ricos da Africa, em possuir muito do que estava sob o dominio de Portugal. Tal é a sumula da situação que se apresentou diante dum homem que se mantivera por muitos annos nos estudos dos documentos que a naturesa oferece aos seus cultores, para que interpetrem e desven- dem o que ella tem de enigmatico, mas sem duvida diverso assumpto das ambições dos homens, que não envolvem, todavia, por vezes. menos embaraçosos enigmas. Aquella tempera revelada na mocidade nas ações que deixamos contadas, a sua alma de portuguez antigo, de portuguez de lei, não se amedrontou com a machina formidavel de tão graves aconteci- mentos. Ponderado, firme, começou por enviar ás principaes chance- larias da Europa, por intermedio dos nossos ministros acreditados em Memorias Do Museu Bocage XIX Roma, S. Petersburgo, Paris, Vienna, Bruxellas, etc., uma nota em que expunha, com toda a claresa, que o governo portuguez não po- dia recomendar ao parlamento um tractado (o de 20 d'Agosto) a que manifestamente se opunha a opinião do paiz, mas que aceitaria de bom grado quaesquer alterações que resalvando a dignidade e os in- teresses da nação, facilitassem o estabelecimento da mais completa harmonia entre Portugal e a Inglaterra. Na mesma nota solicitava o auxilio dos governos a que se dirigia para receber uma proposta de modificação do tratado, e para que a Inglaterra não désse nenhum passo definitivo, antes de receber as indicações do governo portu- guez. Ainda na mesma nota recommendava aos nossos representan- tes nos diversos estados da Europa que esclarecessem o publico e procurassem destruir quaesquer boatos que podessem comprometer os interesses do nosso paiz. O efeito desta primeira nota, revela-se-nos na communicação feita alguns dias depois pelo nosso representante em Londres; o mi- nistro Lord Salisbury, mostrara-se muito resentido com o procedi- mento de Portugal; segundo o seu modo de pensar, o tratado tinha de ser ratificado tal como estava ou abandonado, mas manifestou-se disposto para entrar em negociações para se fazer outro novo. Estava evidentemente atenuada a agudeza do conflicto; o diplo- ma regeitado pelos portuguezes podia ser posto de parte, sem que surgissem represalias; podia-se sem desdouro e com certa tranquili- dade começar novas combinações e acordos. Tal foi a primeira victo- ria de Barbosa du Bocage. Mas julgaes que em frente do mapa do Sul da Africa, no si- lencio de seu gabinete, poude estudar tranquilo a linha de limites que tinha de propór ou que discutir? Julgaes que lhe bastaria para obter um convenio excelente o conhecimento profundo das regiões em que essa linha' devia traçar-se, a naturesa dos terrenos, as riquezas que conteem, a facilidade de explorações mineiras ou agricolas, as condi- ções favoraveis para a colonisação ? Se todo este saber lhe era necessario e realmente o possuia, não menos necessaria lhe foi a tenacidade e a firmesa para os defender da cupidez imensa, da ambição de quem, como elle, lhe conhecia o valor. Não foi portanto na atmosphera calma, que o espirito demanda para concentrar-se e para resolver, que teve que dicidir e trabalhar. XX Memorias po Museu BocaGE A cada momento chegavam noticias ao seu gabinete de que o tratado que o nesso paiz tinha recusado, e que nas chancelarias se conside- rava nullo, era tido como em plena execução por aquelles a quem, indubitalmente convinha; entrava-se em territorios portuguezes como se fossem inglezes ou sob o protectorado de Inglaterra. Reclamava então, com energia, sem desfalecimento, sem delongas, mas como as invasões e outras prepotencias se passavam longe, como por parte dos interessados havia todo o empenho em ocultar ou deformar o que sucedia, como por outro lado eram defeituosas e demoradas as no- vas sobre o que se passava, era fatigante, cheio das maiores dificul- dades o modo de alcançar a verdade e mostral-a incontestavel a quem não tinha muita vontade de a ver. Ao passo que os interessados manobravam assim no terreno, na diplomacia revolviam tudo, armavam todos os artifícios para que não houvesse qualquer acordo entre Portugal e a Inglaterra. Foi preciso fazer um novo apelo aos governos estrangeiros para que se manti- vesse o stalu quo anterior ao tratado não aceite. A Inglaterra resolveu por fim a abertura de novas negociações em Lisboa para a elaboração d'um novo convenio, mas o proprio Lorá Salisbury dizia que era dificil manter o statu quo porque o South Africa avançava; o que não era para admirar, porque já tinha in- vadido os nossos territorios antes mesmo do tratado que tinha ori- ginado o comflicto ser sujeito à aprovação do nosso parlamento. Pou- cos dias depois o nosso ministro em Londres participou que o go- verno inglez não poderia conseguir que fossem abandonados os districtos portuguezes já ocupados pela South Africa, que se apresen- tava com a ambição de obter Sofala. Pouco mais ou menos n'esta al- tura das negociações, Salisbury era batido pela imprensa de Londres. Em seguida á sua proposta para se manter o stalu quo, Barbosa du Bocage apresentou outra estabelecendo um modus vivendi ; a res- posta demorou-se, e a poderosa companhia africana a que temos alu- dido, combatia-o na sombra com o vigôr dos seus grandes e podero- sos tentaculos, e a imprensa ingleza portava-se como a companhia, muito naturalmente de acordo com ella. Novo apelo ás legações estrangeiras onde a justiça da causa, ti- nha sido apresentada; mas por fim alcançou o que pretendia; um modus vivendi, que foi aceite por seis mezes; manteve-se o statu quo estabelecido pelo tratado de 20 d' Agosto. Memorias po Museu BocaGE XxI Foi a sua segunda victoria, n'esta questão memoravel: e para se avaliar como ella foi importante recortei do livro branco a que me tenho referido, umas frases do nosso ministro em Londres e que di- zem talvez melhor que tudo o que a respeito della eu podia contar. As frases são as seguintes: « Alguns jornaes de hoje mencionam as noticias de Lisboa relativas ao modus vivendi. Dizem que não podem acreditar que sejam verdadeiras, porquanto seria monstruoso conce- der-nos a delimitação territorial do tratado de 20 d Agosto. O descon- tentamento e a opposição serão grandes quando se conhecer aqui a verdade. Marquez de Salisbury será muito atacado. Empregar-se-hão todas as influencias» (textual) (!). Apesar de tudo o convenio que devia durar seis mezes, em- quanto se negociava, foi assignado em Londres em 14 de Novembro de 1890. la emfim entrar-se n'uma fase de estudos serenos, de discussões cortezes, em que a habilidade e o saber deviam juntar-se, d'uma parte e d'outra, competindo e procurando cada uma d'ellas alcançar maiores vantagens; lucta dos nossos tempos, em que a victoria per- tence á subtilesa do argumento, em que a firmeza e nitidez da frase tem o valor d'um aço de boa tempera. Nova desilusão porém; lá estava novamente vigilante a South Africa tentando desfazer aquillo que a diplomacia tinha convencio- nado. N'esta altura das negociações, Manica continuava ocupada, a poderosa companhia mandava para lá homens armados e os seus agentes praticavam toda a casta de atropelos e abusos. Comentando as prepotencias cometidas, Barbosa du Bocage dizia n'uma nota diplo- matica de que copiamos as suas palavras: É" impossivel que o governo de Sua Magestade britannica não condemme essa violação do direito, e se não preste a dar d justiça de Portugal a plena e cabal satisfação, que nenhuma nação européa lhe recusaria em circumstancias analogas (2). Apesar da energia do seu protesto, a companhia South Africa tinha levado o regulo Mutassa a sublevar-se, tinha invadido Maceque- ce, principal estabelecimento da companhia portugueza de Moçambi- que, e arriado a bandeira portugueza ; tinha prendido em Manica em- (!) Loc. cit. pag. 16. o (2) Loc. cit. pag. 30. XXII Memorias Do Museu BocaGE pregados do governo portuguez e da companhia portugueza, perse- guido conjunctamente, mineiros portuguezes € estrangeiros em direc- ção á costa. Estes diferentes factos, e outros que seria longo relatar, mostram d'uma maneira evidente que o modus vivendi em que se acordara, não era respeitado, apesar das afirmativas feitas em Londres de que seria escrupulosamente mantido. Redigio então mais uma d'aquellas suas notaveis notas em que a brevidade é largamente compensada pelo incisivo da phrase e pela energia da idea. Em 9 de Novembro dizia Barbosa du Bocage ao nosso ministro em Londres: — Queira instar pela soltura do capitão-mór de Manica; a acusação que lhe faz o Times, de negreiro, é uma calumnia. A prompta evacuação de todo o territorio portuguez, será a unica prova cabal do respeito pelo modus vivendi ("). Tenho ouvido contar, e por ventura terei lido, notas diplomaticas dirigidas pelo mais energico dos ministros que tem havido no nosso paiz, pelo Marquez de Pombal, á Inglaterra, no tempo em que o pode- rio da nação era, sem duvida maior do que é nos tempos actuaes ; não me parece que o ministro de D. José excedesse a firmeza com que Barbosa du Bocage falou em nome dos nossos interesses e direitos. Em certa altura das negociações não teve duvida em dizer ao Marquez de Salisbury que não o satisfazia a sua resposta, que o que o governo portuguez precisava era que o governo inglez mandasse retirar dos nossos territorios a força armada que indevidamente nºel- les permanecia, sem o que se não podiam reatar as negociações. N'este momento o ministro de Inglaterra tinha apelado para a neces- sidade que tinha de se informar, e essa resposta representava pelo menos delongas, senão exitações, em reconhecer os direitos de Por- tugal. N'esta contenda o nosso paiz, diga-se de passagem, só procurava assegurar-se do que era seu, do que rudemente lhe disputavam aquelles que tinham pelo seu lado tudo quanto nos tempos modernos constitue o fundamento do predomínio. Foi com essa força imensa que tantas vezes temos visto revelar- se nas sociedades actuaes, que muitas vezes não respeita o interesse e decoro dos mais fracos, que se medio um homem, embora armado Sp (1) Loc. cit. pag. Memorias Do Museu Bocage XXI com esse poder enorme que se chama o direito, a que todos reconhe- cem o alto valor... ea... fragilidade. Todavia Barbosa du Bocage arcou, e arcou valentemente, com o adversario. Quantas vezes se reconhece atravez das notas em que lhe replicavam, que os argumentos de que se tinha servido, que as suas rasões e afirmações, senão faziam emudecer, transtornavam e fa- ziam cambaliar a argumentação alheia, que precisava de tempo para se recompór. Se houve momentos em que perigaram os nossos direitos, ape- sar do muito que valiam, apraz-me dizer que o governo de Inglaterra procedeu, por vezes, com a maior correção, como por exemplo quando mandou sahir de Macequece as forças armadas da South Africa, e quando respondeu que se se provasse que Mutassa, estava em terri- torio portuguez, procederia imediatamente e da mesma forma como tinha procedido com Macequece. Note-se, este facto da maior importancia, que a afirmação de que Mutassa estava em territorio inglez provinha de Cecil Rhodes, que era o primeiro ministro do governo do Cabo da Boa Esperança, e ao mesmo tempo director da companhia South Africa. Salisbury confessava que não podia contradizel-o sem provas. Vae já muito longa a exposição que se refere aos negocios com a Inglaterra que Barbosa du Bocage dirigio até á celebração do tratado, que terminou com os sobresaltos que constantemente per- turbavam o viver nacional; mas não posso deixar de referir-me á lu- cida e irrespondivel demonstração por elle apresentada ao governo de Inglaterra, refutando as argucias de Cecil Rhodes, e aos inabala- veis argumentos de que se servio para manter o tão disputado do- minio nas terras de Mutassa. : Recorreu ás provas geograficas, aos mapas, mais de uma dezena dos de maior authoridade, aos tratados e convenções estabelecidas entre o governo portuguez e inglez, e por ultimo estimulando o pun- donor do ministro de Inglaterra disse-lhe, sem subterfugios, claramen- te, que a South Africa desmentia as suas declarações cathegoricas e que até se não pejava de infringir claras disposições da carta real que a tinha instituído, comprometendo d'estarte o decoro e a respeitabi- lidade do governo que a amparava e protegia (textual). Não se contentou porem em redigir as suas lucidas e energicas notas diplomaticas enviadas á Inglaterra, houve uma ocasião em que XXIV Memorias Do Museu BocaGE entendeu que a tempera das baionetas valia mais do que os documen- tos mais convincentes, e enviou para a Africa forças militares destina- das a manter desfraldada a bandeira portugueza onde ha muito fluc- tuava, para impedir emfim que fossem invadidos territorios que per- tenciam á soberania de Portugal. Parecia aproximar-se o fim da lucta, quando em 21 de janeiro, mais de trez mezes depois de ella ter começado, Barbosa du Bocage enviava ao representante da Grã-Bretanha em Lisboa o seu projecto de convenio, acompanhado das seguintes palavras: « Não representa o projecto de tratado, que V. Ex." receberá com esta nota, a expressão das nunca desmentidas aspirações da nação por- lugueza, nem mesmo se encontra consignado m'este documento aquilio que o governo de Sua Magestade Fidelissima repula ser a expressão sincera da justiça e do direito. Nºelle deverá ver unicamente o governo de Sua Magestade Britanica, uma transacção decorosa para as duas nações, entre os interesses britannicos e os fundados direitos de Portugal. O pesado sacrificio, que sumilhante transacção representa, só pode ser justificado peta necessidade, que o governo portuguez reco- nhece, de pôr termo definitivo a um longo e doloroso confhcto ; e só terá por compensação a segurança de se não tornarem a reproduzir em terras africanas as dissensões e rivalidades que tanto perturbaram nos ultimos annos a tradicional amisade entre Portugal e a Grã-Bre- tanha» (*). Pois, apesar de tudo, as violencias da South Africa continuavam e a correcção com que se discutiam os interesses dos dois paizes, era manifestamente desmentida pelas prepotencias praticadas nos nossos dominios e pelas intrigas implacaveis enredando as chance- larias. Foi longo ainda, muito longo, por vezes eriçado de dificuldades, marcado por actos violentos, que decerto lhe incendiam justamente o animo, o caminho que teve a percorrer, até levar ao fim a ingrata e dolorosa missão de negociar em circumstancias que importavam sacrifícios e agravo ao seu coração e indole de portuguez. Não são palavras apenas, deve comprehender-se; é o decorrer dos factos que se passaram e de que ficaram documentos que me le- vam a proferir estas frases amargas. Ainda em 30 de Março, já quasi (1) Loc cit pag. 52. Memorias po Museu BocaGE XXV passados seis mezes com entendimentos e negociações, Barboza du Bocage communicava ás diversas chancelarias da Europa que apezar da adopção dum modus vivendi, entre os dois paizes interessados em chegar a um acordo, as forças da Companhia South Africa perma- neciam em Manica e fortificavam Macequece com intenção de se manter ali; que havia projectos de introducção de homens armados pela Beira, e de provocar a rebelião do Gungunhama; que se que- rião introduzir pelo Limpopo armas e munições de guerra nas re- giões disputadas; e que se organisavam em Kimberley expedições que nos eram adversas; creio que é bastante para se julgar da situa- ção do homem que empregava todo o seu saber, inteligencia e dili- gencia para assegurar a posse d'um patrimonio que tudo lhe dizia que zelasse. Só lendo os numerosos e por vezes extensos documentos incluidos na obra a que aludi, e que são trabalho seu, se poderá julgar do valor da acção do ministro dos negocios externos Barboza du Bo- cage. Essa leitura será sobretudo reconfortante para áquelles, que desilludidos ou talvez convictos do abastardamento da nossa raça, forem lá encontrar, não um reflexo, mas a plena afirmaçãode terem existido nos tempos modernos, as apregoadas virtudes portuguezas antigas. Só em 14 de Abril foi recebida em Lisboa a contraproposta do governo de Inglaterra á proposta que lhe tinha sido feita quasi trez mezes antes, para o convenio; pois apenas passados dois dias, Bar- bosa du Bocage communicava ás nossas legações, em diferentes paizes, as mudanças que propunha ao contraprojecto inglez. Não trato aqui, evidentemente, de analysar esse diploma, e as phases que atravessou antes de se firmar, mas simplesmente intento pôr em relevo o merito dum homem que mais se educara na sciencia do que vivera para a politica. Direi apenas que as notas que recebia quasi quotidianamente e a que tinha de responder, continham por vezes uma gravidade que decerto desconheceram aquelles que não seguiram de muito perto a emaranhada intriga que envolvia a deba- tida questão. O convenio de Portugal com a Inglaterra foi celebrado nos fins de maio de 18gr, pois um mez antes, ainda se recebiam na secretaria do ministerio dos negocios estrangeiros telegramas con- tando que os jornaes de Londres publicavam artigos de fundo muito violentos, por causa de factos que se tinham dado no Pungue, e que aconselhavam uma demonstração naval no Tejo. Parecia ter che- 4 * XXVI Memorias Do Museu BocacE gado o momento que Cecil Rhodes impacientemente tinha esperado para ter a liberdade de invadir o nosso territorio, espreitando aten- tamente a visinhança do conflicto entre os dois paizes. Um jornal inglez chegou mesmo a aconselhar, n'esta altura das negociações, um novo ullimatum. Barboza du Bocage porem não sossobrou, e mais uma vez con- seguiu afastar a probabilidade d'uma lucta de que necessariamente sahiriamos vencidos. Entre acidentes gravissimos de toda a ordem, e dos quaes dei uma breve resenha, foi portanto negociado o tratado ; mas não foi só a elle que o nosso ministro teve que atender. A cada momento lhe era precisa a serenidade de quem negoceia e a resolução prompta de quem combate; tinha que occorrer a acidentes que não erão propriamente materia de negocio, mas que a elle andavam li- gados estreitamente. Presumo como receberia quasi ao findarem as discussões do convenio, que procurava que se adoptasse, a noticia de que as bases d'elle haviam sido mal recebidas em Londres, que Rhodes usava da sua grande preponderancia, e que a situação era muito seria. Comprehende-se que em presença de tantos factos adversos perdêsse o aprumo com que durante oito longos mezes havia tratado, que sentisse aproximar-se o esgoto das forças physicas e mentaes, mas não aconteceu assim; terminou sem desfalecimentos a sua in- grata missão. Sobre elle não impenderam as honrarias e benesses que por vezes se distribuíram largamente no nosso paiz por actos de muito menos importancia; na realidade não as precisava nem as que- ria; quem tinha herdado um nome por mais d'um motivo illustre, era primo do celebre poeta M. M. Barbosa du Bocage, quem lhe ha- via acrescentado o brilho pelo seu proprio valor, penso que não de- veria querer dos seus concidadãos mais do que o reconhecimento pelos serviços que havia prestado á patria e que justificavam bem os seus direitos aos arminhos de pardo reino que pouco depois do seu ingresso no parlamento como deputado, lhe tinham sido conce- didos, em 1881, e ao logar de conselheiro do estado que depois lhe conferiram. Tal foi o diplomata illustre, agora ouvireis o que foi o naturalista insigne. Memorias Do Museu Bocage Não o ouvi na cathedra, não tive a honra de ser seu discípulo n'um curso, mas julgo poder afirmar pelo que aprendi nas lições inti- mas, que sobre variados assumptos zoologicos tantas vezes lhe escu- tei, no convivio do Museo, que o seu ensino era claro, exacto, sem theorias que deslumbrassem os seus ouvintes, o que não vale talvez muito, mas contendo ideas, encerrando os factos mais importantes da sciencia que professava, escrupulosamente colhidos e joeirados. Às suas prelecções deviam ficar impressas no espirito dos alum- nos com a mesma nitidez, e o mesmo vigor de traços, que tem a me- dalha ao sahir do molde em que a fundiram, Mas foi principalmente como naturalista que o seu vasto saber se afirmou, pois durante muitos annos, mais de meio seculo, contado quasi dia a dia, foi consagrando muitas horas aos estudos Zoolo- gicos, ao desenvolvimento do Museo que tem o seu nome, e que lhe deve a existencia. N'esse estudo persistente, quasi isolado, tendo em volta de si um pequeno numero de collaboradores, n'um meio em que se desconhe- cia quasi o valor da sua obra, escrevendo mais para os estrangeiros que lhe apreciavam o trabalho do que para o grande numero dos portuguezes que não lhe comprehendiam o alcance, não esperando mesmo talvez a tardia recompensa que tantos obteem por vezes com uma obra litteraria de execução facil, não se desviou do seu ca- minho, não correu em perseguição da riqueza e da gloria pouco es- quiva, como a de tantos que abandonam o campo aspero da sciencia, do laboratorio ou do gabinete de estudo, para lançar-se nas aventuras rendosas da politica e de determinadas carreiras publicas. Tinha bem perto de si, pois era da sua familia, podia dar-lhe o braço o Dr. Antonio Maria Barbosa, para irem os dois á conquista de nome e da fortuna que tanto favoreceu este ultimo. Pois Barboza du Bocage até mesmo o logar modesto de medico da tarde do Hospital de S. José resignou, para entregar-se puramente aos estudos das sciencias naturaes. É de certo bem digna de respeito a abnegação d'um homem que sabe que a perseverança n'um certo trabalho não lhe trará o bem estar que deriva dos meios abundantes, e que todavia prosegue XXVII Memorias po Museu Bocage sem vacillação pelo caminho longo, sem conforto, que o conduzirá á fama justificada, sim, ao nome illustre, mas que em geral, pelo menos no nosso paiz, mais não vale. Não tinha elle o exemplo de tantos do seu tempo? Felizmente essa grande fataiidade que pesa sobre nós, que fere os homens de alto valor para os desviar da senda que os conduziria á conquista d'um nome apregoado, e que seja ao mesmo tempo gloria da patria, não o contaminou. Persistiu, não quiz desertar, não foi levado por ou- tras ideias ou pela sacra fames auri. Herculano retirou-se do mundo em pleno vigor da vida. A. A. d Aguiar, deixou o seu laboratorio quando tinha atingido a sazão de espirito e do saber que devia dirigil-o a memoraveis descobertas ; o mesmo poderia dizer de tantos outros, de M. Bento de Sousa, d' Andrade Corvo, de Marianno de Carvalho; a politica empolgou-os, comsumio-lhes o espirito brilhantissimo, devorou-lhes a alta intelli- gencia que aplicada ao estudo das sciencias, devia tornal-os talvez imortaes. Poucos tempos antes da Sociedade de Geographia ter outhor- gado a Barboza du Bocage a sua maior distincção, a sua medalha d'ouro, e do governo ter perpetuado o seu nome na instituição que hoje se chama o Museo Bocage, tendo elle por esses dois motivos recebido da imprensa e dos homens mais illustres, as mais sinceras congratulações, ainda uma vez lhe ouvi dizer, porem sem desanimo, sem desgosto, afirmo-o, um homem gasta a vida inteira nestes estu- dos (os da Zoologia), e não é nada, escreve um livro de versos e é um benemerito. Por vezes vi que os jornaes lhe chamavam botanico e outros pensavam e diziam que consumia a vida a empalhar bichos. Não me admirei, a ignorancia, até de homens que foram prepon- derantes n'este paiz tem sido grande, muitos não tinham a educa- ção scientifica bastante para aquilatarem o merito e as dificuldades dos estudos a que Barboza du Bocage se consagrou durante meio seculo; a elle bastava-lhe a satisfação muitas vezes experimentada, no decorrer da sua longa vida, de ver o seu nome citado a par do d'aquelles que alcançaram reputação universal pelos seus trabalhos de zoologo, de ver mencionadas as suas obras por quem tinha gran- geado a mais justificada fama nos vastos dominios das sciencias naturaes. N'uma tarde de fins d'outomno, fria e escura, seguia eu por uma Memorias Do Museu BocacE XXIX das aleas do jardim de Berne, cheio da nostalgia que sentem talvez todos os homens de paizes de sol ardente, de ceo liberto do sendal das nevoas, quando a recordação da patria e da luz brilhante, é des- pertada pela chuva de folhas secas que cahe das arvores sobre rega- tos e relvas da mesma côr amarella, reveladora da morte. De repente tive a alegria intima que experimentam aquelles que alguma vez ou- vem falar da patria distante depois de longa ausencia. N'um dos avia- rios do jardim, algumas aves espreitavam tristres o horisonte som- brio e pardacento, sentindo talvez, como eu, a saudade cruciante do seu paiz natal e a dor de não poderem volver, emigrar, impedidas pelas malhas das grades que as mantinham cativas. À par das pobres aves africanas, que espreitavam já a neve que dentro em pouco iria cobrir o seu abrigo, o nome que lhe tinha dado o homem, que havia revelado a existencia d'ellas ao mundo scientifico, Bocage. Mas, para que foram tantas canceiras, tão longa vida consagrada ao estudo d'uma sciencia, gasta no examinar constante dos despojos d'animaes mortos colhidos em todas as paragens do mundo? Responder a esta pergunta que muita gente formula, equivale a dizer para que serve a sciencia, a que os mais antigos philosophos, desde Aristoteles, Plinio, e tantos outros, dedicaram a sua attenção e de que recolheram cuidadosamente as observações que nos domi- nios d'ella alcançaram; valerá o mesmo que explicar a continuidade dos estudos com que tantos sabios e tantos d'elles de nome imorre- doiro, que atravez de todas as idades, atravez das luctas imensas dos homens, e dos naufragios das civilisações, persistiram para a acrescentar. Em todos os paizes do velho e mais talvez no mundo novo, vastos museos, numerosos laboratorios, legiões de investigado- res, de estudiosos incansaveis, consagram a sua vida ao estudo de um pequeno numero d'organismos, por vezes pertencentes a uma só fa- milia, como por exemplo a dos culicideos, ou mosquitos. Em Londres, no Museo Britannico, celebre por tantos titulos, alguem tem vivido uma longa vida, desconhecendo talvez todas as coisas belas que no mundo existem, as grandes epopeias, as mais memoraveis obras d'arte, os Museos da Italia, as paisagens do Tyrol, o azul das bahias do Mediterraneo, por ter consumido os seus dias a olhar atravez d'uma lente, observando as azas, as antenas, os desenhos do dorso, o colo- rido do abdomen, d'esses pouco hospitaleiros e crueis animais. Para quê? Para conhecer os inimigos do homem, para lhe dizer este é o XXX Memorias Do Museu Bocage transmissor do impaludismo, doença que causa todos os annos mui- tos milhares de victimas, nos paizes do sul da Europa e em toda a Africa; este outro é o grande assassino das regiões da America, mais terrivel que o puma ou o coguardo das suas campinas, pois inocula a febre amarella, prejudicando portanto e tão consideravelmente o desenvolvimento das populações dos grandes paizes americanos, por serem em numero consideravel as suas victimas, principalmente os pobres emigrantes, que vão alojar-se nos logares menos hygienicos, mal iluminados, onde os mosquitos habitam de preferencia. Este outro ainda, transmite, piçando o homem e os animaes, como a mosca chamada tsé-tsé, a doença terrivel para que ainda se não encontrou remedio, apesar de tantos esforços feitos para a combater, a doença do somno, que tem despovoado por completo ou quasi por completo, vastissimas regiões d'Africa, como por exemplo a de Uganda, onde inteiramente domina. As vidas dos homens, a riqueza de muitos d'elles, pois por vezes morrem-lhe ás centenas as cabeças dos gados, as manadas dos bois, está dependente da picada d'um insecto que os naturalistas apren- deram a distinguir d'outros, que até agora teem sido julgados como inofensivos. Se não fosse este longo e paciente trabalho de investigação por parte dos cultores das sciencias naturaes, como se poderia conhe- cer entre tantas centenas de mosquitos diferentes, quaes são aquelles que são maleficos e quaes os que são inofensivos? Mas um outro exemplo dirá ainda e d'uma maneira clara, qual é a utilidade dos estudos zoologicos e para que elles servem, a quem por acaso os desconheça. Esse exemplo será tirado da fauna do nosso paiz. Ha nas nossas serras e até em regiões muito visinhas de Lisboa, em Cintra, em Alcochete, por exemplo, uma vibora que muito se parece, pelo desenho e colorido que apresenta a pelle, com uma ino- fensiva cobra, que é táobem excessivamente commum nos nossos campos. Tão parecidos são os dois animaes, que a similhança tem enganado não só a gente ignara, mas até mesmo naturalistas muito distinctos, Bocage, Van Beneden, por elles se esquecerem de atentar num caracter que é simples de reconhecer; se em seguida á cabeça ha, ou não, um adelgaçamento, um estrangulamento, como que um pescoço; se existe, a mordedura causada pelo animal que o apre- senta é grave, poderá mesmo ser mortal, o reptil é uma vibora; as Memorias po Museu Bocage XXXI viboras são todas venenosas, reputando-se sempre perigoso o feri- mento feito por ellas (!); no caso de não apresentar o caracter que men- cionei, o ferimento, a laceração dos tecidos que o animal pode causar não fica envenenada, e a vida do individuo mordido não periga. Por estes dois exemplos, ficareis antevendo qual será a impor- tancia dos estudos zoologicos, dadas as relações que o homem man- tem voluntaria ou involuntariamente com os animaes em todas e muito diversas regiões do mundo, sabendo-se de mais a mais que um tão grande numero das doenças que nos acometem, ou que as alte- rações que se produzem nos nossos haveres, são devidas a esses ine- vitaveis e ainda mal estudados seres organicos que vivem no ar, nas aguas, nos mares e no solo, de todo o globo terrestre. Foi a essa sciencia, que comprehende o estudo dos organismos, de que o homem aproveita os serviços, os despojos, os productos, para se alimentar, para vestir-se, para se adornar, de que ora copia a forma para a reproduzir nos seus monumentos, na sua architectura, ou para afeiçoar os seus adornos e alfaias, e joias, e com que consti- tuio a Zoologia medica, agricola, artistica, industrial, interessando á biologia, á hygiene, á economia, etc., que Barbosa du Bocage dedi- cou toda a sua vida; a sua obra foi utilissima e ainda por mais d'um facto e d'uma maneira geral vos farei ver que não exagero. Um dos livros mais notaveis que redigio e publicou, foi a Ornithologia d' An- gola, o estudo das aves que habitam essa vasta região ainda hoje pouco conhecida, apesar de tantos esforços e tantos homens que teem contribuido para a revelar. Pois com o estudo desse livro, que de resto ensina ao colono e ao sabio quaes são as aves que lá vivem, podendo, portanto, d'an- temão saber o primeiro quaes são aquellas com que pode contar para alimentar-se, para as despojar das plumas destinadas aos mer- cados da Europa, as que serão uteis ás suas culturas, libertando-as dos parasitas, ou as que o livrarão dos reptis, as que lhe darão ensina- mentos proveitosos para ir colher o mel das abelhas selvagens, etc., por fim lhe dirá ainda essa obra, como de resto dizem as faunas aos (1) Apesar de investigações minhas e d'outras pessoas a que me tenho di- rigido perguntando-lhe se conhecem casos de morte produzidos por mordeduras de viboras, nunca encontrei quem me afirmasse indubitavelmente este facto que todavia alguns referem por terem ouvido contar. XXXII Memorias DO Museu Bocage que as conhecem, com a mesma precisão com que a indicaria uma bussola, qual a parte d'Angola em que se encontrava, quando por acaso se perdesse, porque os animaes acham-se distribuidos só em determinadas areas que não são invadidas pelos que habitam outras regiões. À geographia zoologica, vale a geographia physica, tão inti- mamente relacionada está com ella; e assim com a leitura do livro de Barboza du Bocage, poderiamos reconhecer, observando as aves, com inteira exactidão, em que logar d'Africa nos encontravamos, se no planalto, se na proximidade da costa, etc. E” este um dos valores da Zoogeographia, dizer com rigor, indicar com segurança a parte do mundo, o paiz, e ás vezes até a provincia, pois os animaes encontram-se distribuidos no Globo por areas mais ou menos amplas, havendo até alguns que lhes são pecu- liares, pois teem por vezes uma distribuição geographica muito res- tricta. À Chioglossa lusitanica, especie estudada e descripta por Bar- boza du Bocage, só se encontra em Portugal e apenas até agora tem sido colhida no nosso paiz n'algumas provincias. Essas 673 aves que elle, na obra de que falei, descreveu com um rigor e precisão que tornou as suas diagnoses rivaes das que foram firmadas pelos mais celebres naturalistas, não teve apenas o valor utilitario a que ha pouco referi, a descripção d'ellas teve uma deci- dida influencia no conhecimento da fauna do sui da Africa até então muito limitado, apesar dos muitos recursos, e de diversa indole, de que teem disposto para as investigações scientificas das desconheci- das regiões, algumas das nações mais ricas da Europa. Desde a publicação da Memoria sobre a cabra do Gerez, ou para melhor dizer desde a Noticia sobre uma collecção de conchas das ilhas da Madeira e Porto Santo, o seu primeiro trabalho dado ao mundo da sciencia em 1857 até ao artigo que se intitula As aves do archipe- lago de Cabo Verde, datado de 1901, o derradeiro, publicou 177 obras, mais ou menos volumosas, mas demandando todas para a sua elaboração e execução profundos conhecimentos zoologicos, demo- radas e cuidadosas investigações, para evitar o perigo de tratar d'as- sumptos de que outros naturalistas, zelosos do seu nome e investiga- dores pertinazes como elle, se tivessem já ocupado. Em zoologia descriptiva trabalha-se em todo o mundo, em todos os paizes cul- tos, desde a America á Europa, do Japão á Australia. Como prova das dificuldades que apresentam os estudos de ta- XXXII Memorias Do Museu BocaGE xinomia, bastar-me-ha um facto que me revelou o meu biographado ; quasi ao terminar a sua carreira de naturalista, tendo por consequen- cia mais de cincoenta annos de aplicação quotidiana, disse-me que andava ha mais d'um mez para classificar uma determinada ave sem saber qual a especie a que pertencia. E entretanto foi raro o anno, como pode ver-se do catalogo das suas publicações scientificas, que elle não publicou umas poucas obras de valor. Rivalisava no trabalho e na producção com Ginther, Sclater, Grey, Reichenow, Boulenger, os Milne-Edwards, Steindachner, Peters, Salvatori, Vaillant e tantos outros grandes cultores das sciencias naturaes. Da influencia dos seus estudos nos progressos da zoologia, eu desejaria falar muito largamente, em harmonia com o que vale e com o elogio que merece, mas não m'o permitte a sua vastidão nem o limite do minguado tempo de que disponho. Condensando quanto possivel a impressão que tenho d'esse enorme trabalho pacientemente e conscienciosamente acumulado du- rante tantas dezenas d'annos, direi primeiro uma desoladora verdade, que todavia manifesta qual era a tempera de Barboza du Bocage ; não tinha talvez em Portugal uma duzia de leitores para a sua obra, mas tinha a consciencia da sua utilidade e isso lhe bastava; com a convic- ção de ser um sabio illustre e um cidadão prestante e exemplar, pro- seguia pela vida fóra, sem ouvir talvez a consciencia, porque a mo- destia lh'o impedia, segredar-lhe aquella frase da filha do grande na- turalista Lamark, e hoje escrita no seu monumento no jardim das plantas de Paris: a posteridade vos fará justiça. Desses poucos leitores que tinha no nosso paiz, talvez alguns notassem na sua obra a falta duma concepção philosophica a diri- rigil-a, a afirmação de principios biologicos, de leis, emfim a creação de theorias que orientam as sciencias em determinados sentidos, afir- mações brilhantes que por vezes deslumbram, tão faceis ás vezes de inventar, como dificeis de sustentar. Se alguem lhe apontou essa falta, que sinceramente digo nunca ouvi atribuir-lhe, esse alguem não comprehendeu inteiramente a obra de Barboza du Bocage. Nunca encontrei na minha vida uma tão inteira conformidade entre o homem e a sua obra. Barboza du Bocage, que na vida social era incapaz d'afirmar um facto menos verdadeiro,e cujo proceder era impecavelmente correcto, > * XXXIV Memorias DO Museu BocacE conservava na sciencia o mesmo amor da verdade, o mesmo escru- pulo e rigor que mantinha em todos os seus actos. Não presava certas theorias, desadorava as afirmações inde- cisas, a que faltasse uma base segura e firme, a que se podia objectar com rasões sobejas e que não teem a seu favor incontestaveis argu- mentos. Algumas provas entre muitas que podia colher. Num dia encontrou-se nas proximidades de Lisboa, na quinta do Alfeite, uma ave que é indubitavelmente africana e não euro- peia. Tinha perdido alguns dos caracteres que apresenta na sua região natal e havia adquirido outros provenientes da influencia do seu novo domicilio, do seu novo habitat, como costuma dizer-se entre os natu- ristas. Barboza du Bocage, estudou-a, deu-lhe o nome que entendeu pertencer-lhe, Certilauda Duponti, var. Lusitanica, porque apresenta- va caracteres differentes dos que existem nos individuos colhidos no norte d'Africa, mas por aqui se ficou. Facilmente chamaria a attenção para o seu trabalho se dissesse, mais uma prova de transiormismo a que diversas especies estão sujeitas, e teria com esse argumento exi- bido por elle o louvor de todos os sectarios desta doutrina. Eu mesmo lhe mostrei um dia um coelho da ilha de Porto Santo, com os caracteres que levou Darwin a chamar-lhe Lepus Huxley ; pois elle classificou esse descendente dos coelhos que João Gonçal- xes Zarco levou para a ilha de que era donatario, modificados pelos factores mesologicos, como uma variedade do tão vulgar coelho europeu. Qualquer outro que julgasse o transformismo uma doutrina in- controversa, qualquer que pertencesse a algumas das numerosas sei- tas em que na actualidade os transformistas estão divididos, rejubila- ria e diria, aqui está n'este mamifero um argumento do mesmo valor d'aquelle que apresenta a ave encontrada em Portugal, que adqui- rio bem longe da região africana de que é originaria, caracteres diversos, como são os do coelho de Porto Santo, que sabios de pri- meira ordem consideram como uma especie distincta d aquella que lhe deu origem ; eis uma prova que deve correr nos livros doutrinarios a par dos argumentos de maior valor acerca da variabilidade das espe- cies e das suas causas. Uma outra vez, em Paris, sabendo-se que era erpetologista dis- Memorias Do Museu Bocage XXXV tincto, mostraram-lhe no Museu um reptil, de grandes dimensões, da ordem dos saureos, mas de que os naturalistas francezes desconheciam a proveniencia. Bocage conheceu-o logo, havia individuos eguaes no Museu que tinha começado a fundar em Lisboa; era um represen- tante da especie denominada Euprepes Coctei. Como os naturalistas francezes, ignorava tambem onde vivia, mas na volta para Portu- gal investigou, e veio a saber que se encontrava apenas, n'um ilheo agora deshabitado dos homens, mas onde em tempo viveram crimi- nosos portuguezes deportados, ilheo que faz parte do archipelago de Cabo Verde. Este archipelago, assim como o dos Açores o das Canarias, as ilhas d'Ascenção, de Tristão da Cunha, de Santa Helena, etc., são d'origem vulcanica. A fauna das ilhas vulcanicas é caracte- risada por esta circumstancia interessante, mas facilmente explicavel, não comprehende reptis. Barboza du Bocage poderia ter dado varias explicações acerca da existencia dos lagartos no Ilheo Raso, e entre ellas podia afirmar que existindo sómente reptis nos continentes e nas ilhas chamadas pelos zoologos continentaes (por terem feito parte de continentes, como por exemplo a ilha de S. Thomé), a existencia do Euprepes num pequeno ilheo, no meio dos oceanos só poderia explicar-se, admitindo a hypothese antiga, mas que muito modernamente voltou a discutir-se, da existencia dum grande territorio desaparecido, outr'ora lançado entre a Europa e a America, de que as ilhas a que aludimos são as partes mais elevadas e que ficaram insubmersas após o cataclismo que o fez desaparecer. A mais velha noticia sobre a famosa Atlantida, provinha d'uma inscripção que certo philosopho antigo encontrou n'um templo mais antigo do que elle; a descoberta de Barboza du Bocage vale mais que esse velho e talvez desaparecido documento; pois nunca aventou essa hypothese, contentou-se em conservar-se dentro dos limites- especiaes da sciencia que cultivava, creando todavia o genero Macro- cincus, e com toda a rasão, por saber que estava erradamente col- locado no genero Euprepes, esse lagarto que se mantem n'uma area tão limitada como outros animaes, por exemplo o bisão da Europa, o Bonassus Europeus tão vulgar outr'ora, hoje confinado apenas n'um dominio imperial duma floresta da Lithuania. Deixou a outros colher a parte mais brilhante, mas táobem a me- nos segura da sua descoberta. Ficou-se com a gloria de ter redusido XXXVI Memorias Do Museu Bocage a uma só duas especies que Cuvier, e Dumeril e Bilbron, sabios da mais comprovada autoridade, principalmente o primeiro tinham, creado, por ter a sua observação recahido em exemplares incomple- tos, cabendo ainda mais ao nosso naturalista a descoberta do habitat d'uma especie por muitos motivos interessante para a sciencia. Se na realidade era pouco propenso a generalisações e á creação de theorias, entretanto não as desdenhava : defendi-as mesmo, com- batia por ellas, quando encontrava numerosos factos em seu favor, quando dedusindo dos proprios conhecimentos, se lhes afiguravam inatacaveis. Antes de se terem explorado os fundos dos mares, antes das memoraveis investigações maritimas emprehendidas pelo Challenger, Talisman, Albatroz, Travailleur, Porcurpine, Princesse Alice e tantos outros navios de que os sabios de diferentes nacionalidades se servi- ram para crear essa sciencia tão nova, mas já tão vasta, a Oceano- graphia, já Barboza du Bocage tinha manifestado uma opinião con- traria á de Forbes, que sustentava que os mares para alem da pro- fundidade de trezentos metros, contados da superficie, erão despo- voados, não continham nenhuma forma animal viva. Os numerosos e diversissimos exemplares colhidos n'essas ex- plorações celebres a que me referi, e alguns em enormes abysmos ma- ritimos, vieram confirmar inteiramente a opinião de Barboza du Bo- cage, que de resto se fundava na colheita de muitas especies de esqualos que estudou e revelou á sciencia, e d'outros animaes que habitam nos grandes fundos do oceano, como por exemplo essa admi- ravel esponja que elle denominou de Hyalonema lusitanica, colhida n'um vale do Atlantico, que fica não muito longe da Bahia de Setubal. Com toda a justiça o devemos contar portanto, entre os precur- sores dos estudos oceanographicos, agora tão em voga e em todo o mundo, desde que se reconheceu a sua utilidade, por estarem intima- mente relacionados com os mais importantes problemas da pesca, e pelos numerosos factos que d'elles derivaram para o progresso das sciencias biologicas. Com a publicação das duas monographias sobre os chamados peixes antigos, por serem na actualidade os representantes d'aquelles que formavam a porção mais consideravel da fauna dos velhos ma- res do globo, com a descoberta e descripção de esponjas entre as quaes uma, aquella que nomeei ha pouco, que foi julgada pelos natu- Memorias vo Museu BocacE XXXVII ralistas inglezes, como um producto de industria japoneza, tão ex- traordinaria e surprehendente é a sua forma; Barboza du Bocage afir- mou-se um naturalista distinctissimo, como tal reconhecido desde então e citado como quem tinha particular authoridade em assumptos zoologicos. O seu nome ficou sendo conhecido entre os mais notaveis cultores de sciencias naturaes, como pode ver-se em numerosos es- criptos scientificos extrangeiros, onde se faz menção das suas obras. Bem justificada fama, nome justamente lembrado, pois que não se limitou a seguir pelos caminhos abertos por outros; muitas vezes mostrou originalidade, apontando caracteres de classificação que tinham escapado a observadores notaveis que o tinham precedido. Assim nas memorias sobre os esqualos, em que são apontados tantos generos e especies novas, desconhecidas até ao seu tempo dos mais celebres ichthyologistas, não se cingio a escrever simples- mente as diagnoses concisas, exactas, elegantes, perfeitas, emulas por estes predicados das dos mais proficientes cultores das sciencias naturaes; mostrou qual o valor da forma e modificações da estruc- tura das escamas como elemento de distincção entre as especies que descreveu. Quasi ao mesmo tempo, como acontece muitas vezes nas scien- cias, em que diversos investigadores, ocupando-se do mesmo as- sumpto, alcançam o mesmo resultado, Dumeril e Bibron chegaram ás mesmas conclusões que o nosso naturalista, mas pertencendo a este, segundo cremos, a prioridade. Mas foi principalmente á zoologia descriptiva, á systematica, como agora se diz mais commumente, que elle dedicou a melhor e a maior parte da sua vida. O que valem essas duas centenas quasi, de memorias, de mono- graphias, de faunas, de estudos sobre todas as classes dos vertebrados e ainda sobre algumas dos invertebrados? Alguma coisa que dificil- mente se alcança, que Barboza du Bocage obteve, — o nome universal. Passava por elle, deixando-o indiferente, sorrindo sem aparente desdem, a ignorancia d'aquelles que desconheciam o seu trabalho im- probo e ingrato; e como os actos da vida se não contradizem e são sempre manifestações da mesma tempera, a força que lhe vimos nos actos a que o levou a politica, manifestava-se na persistencia e insis- (1) José Julio Rodrigues. XXXVI Memorias DO Museu BocacE tencia com que estudava. Tive um dia a satisfação de ouvir dizer a um collega meu (!) já fallecido, que nos paizes extrangeiros, por quem lhe perguntavam, o portuguez que era conhecido no mundo scientifico, era Barboza du Bocage. Eu mesmo tive a ventura de ouvir repetir com respeito a consideração o seu nome em alguns institutos de sciencias naturaes estrangeiros que visitei em tempo. O Dr. Ginther, um dos maiores naturalistas dos tempos modernos, honrando-se, cha- mava-lhe n'uma carta que me escreveu, seu amigo. Os naturalistas de Berlim mandaram-lhe um telegramma, a felicital-o pelo seu octa- gessimo anniversario. O Dr. Gruning, director do Museo do Transvaal, dizia que lhe tinham sido de grande auxilio as obras do tão notavel naturalista portuguez; são estas apenas algumas das muitas provas d'apreço que podia citar; e todavia uma senhora que atravessou a his- toria dos nossos dias com o seu sequito de desgraças, como um per- sonagem d'uma tragedia grega condemnado ao infortunio perpetuo, disse-lhe uma vez na minha presença, familiar e amigamente, olhando para os reptis que elle tinha estudado : — Oh Bocage, porque é que tu gostas tanto d'uns bichos tão feios? Elle sorriu-se, creio mesmo que achou graça á pergunta, e talvez d'ali a momentos foi recolher-se no seu gabinete, para continuar o estudo interrompido pela visita d'alta estirpe que tinha reclamado todas as suas atenções. Nos estudos zoologicos perseverou toda a vida, quasi até aos ul- timos mezes, com uma coragem que deixava comovidos até mesmo aquelles que tinham um coração menos sensivel, quando sabiam que a cegueira lhe tinha levado a luz dos olhos, o instrumento mais indis- pensavel para as suas investigações, pois nem mesmo essa circums- tancia cruel conseguio arredal-o do trabalho. Aos oitenta annos foi-se-lhe apagando pouco a pouco a vista, á força d'usar d'ella; ainda alguma que alcançou em seguida a uma ope- ração melindrosa, consumio em accrescentar a sua obra para gloria do nosso paiz. Depois de cego, ditou alguns dos seus ultimos opusculos, ouvin- do ler a esposa desvelada, auxiliado pela memoria, tateando os exem- plares que não lhe era possivel ver e observar. Pois nem um unico lamento, nem mesmo um tom mais ma- goado, quando, lembrando-se da insubstituível falta dos olhos, dizia que estava cego; mas pode imaginar-se o sacrifício enorme que re- XXXIX Memorias no Museu BocaGE presentava o trabalho n'estas circumstancias, com a recordação constante, da falta do orgão principal ás investigações e de que absolutamente carecia. Perseverou quasi até ao ultimo instante na sua lida, que só teve fím quando, lentamente, se lhe foi acabando o viver. A par dos numerosos trabalhos zoologicos que já citei e em que se encontram as descripções de quasi duzentas especies novas para a sciencia, trabalhos que lhe valeram muitas distincções e premios que mui poucos teem alcançado, e pertencer a numerosas e consideradas academias e corporações scientificas extrangeiras, e portuguezas, tendo recebido o premio D. Luiz — dedicou-se á fundação do Museo Zoologico, que é o mais importante dos museus portugueses, e supe- rior a muitos museos extrangeiros da mesma indole. Foi á sua dedicação constante por elle, que se deve a existencia e progresso d'essa instituição em que reuniu numerosissimos docu- mentos das faunas de quasi todo o mundo, mas principalmente de Portugal, das suas colonias, e onde se encontram numerosos e valio- sissimos exemplares. Pedia aos colonos das nossas possessões, aos governadores do ultramar, aos seus amigos pessoaes, servia-se da sua preponderancia politica, para que fossem exploradas sob o ponto de vista scientifico, as paragens desconhecidas, e para que de lá lhe enviassem exempla- res nas condições de conservação que elle proprio determinou. Tendo alcançado a dadiva das preciosas collecções d'aves, conchas e livros que pertenceram ao estudioso e mallogrado monarca que se chamou D. Pedro V, tendo conseguido que em Paris lhe dessem bastantes exemplares, como compensação dos que Geoffroy-Saint Hillaire, tinha levado de Portugal, quando da invasão francesa, consagrando-lhe todas as suas dedicações de tal modo assignaladas, que dizia aos po- liticos, que lhes pedia com o seu amor d'avô, como elle me referio, mais sublimado que o de pae, que protegessem o seu segundo filho, assim chamava ao Museo, ninguem decerto poude mostrar nunca mais dedicação por um instituto, que, embora devendo-lhe a existen- cia, é do estado e é uma prova da civilisação do estado. Ainda na ultima vez que o vi, na sua linda vila, nos Pisões, em Cintra, aonde todos os annos costumava repousar um pouco, e onde architectava novos estudos que emprehendia ao voltar para Lisboa, emquanto uma fonte á entrada lhe ia cantando as melodias da serra, me falou interessado nos progressos do Museu zoologico. XXXX Memorias po Museu BucaGgE Extinguia-se lentamente, alguns tecidos organicos quasi que ti- nham desaparecido por autophagia; restava-lhe a pelle, que enrugan- do-se cada vez mais, lhe cobria apenas o esqueleto. No seu cerebro muitas cellulas tinham morrido, mas estavam intactas aquellas em que residia o amór pela instituição de que tinha sido o fundador, que com o seu esforço e vontade havia tirado do nada. Depois de ter falado do diplomata e do sabio, parece que muito teria a dizer do que foi o homem, mas na obra scientifica, a que con- sagrou quasi toda a sua vida, estão encerradas as suas qualidades moraes e pessoaes. Persistencia e tenacidade no trabalho, persistencia no cumpri- mento do dever, abnegação até ao sacrificio, desdem pelas faceis victorias, respeito pelo proprio nome, veneração pelo engrandeci- mento da patria, eis o que se encontra, eis o que deriva do exame attento de tudo que nos deixou e que nos revela d'uma maneira quasi completa o seu caracter, a afirmação da sua vida austera. Mas era preciso ouvil-o na conversa intima para conhecel-o bem ; não se pode reconstituir inteiramente o homem pela sua obra quan- do esta pela sua indole não permita vêr-lhe todos os seus caracteres; só então se apreciavam qualidades que cremos hereditarias, e que a feição de trabalho scientifico não deixava reconhecer. A ironia incisiva, por vezes duramente caustica, silvava atravez das frazes com que por vezes ia vergastando os homens do seu tem- po que, pelo seu proceder, se lhe afiguravam em contraste absoluto com as suas idéas e com o que praticava. Se a sciencia não o tivesse prendido, se sacrificando por outros ideaes tivesse tombado em poli- tico militante e em jornalista combatente, para que de resto tinha apti- dões, adivinha-se atravez das suas palavras ou dos seus artigos de cri- tica, que os adversarios teriam de que arrepender-se se o irritassem. Ouviam-se os sarcasmos do grande poeta Manoel Maria, quando a pleiade dos arcades somenos se juntava para o atacar, nas frases com que o nosso biographado contundia muitos dos politicos que todos conhecemos. A ironia era talvez a feição mais preponderante do seu espirito, quando se desprendia dos livros, quando liberto das medita- ções da sciencia. Sem o dizer, sem talvez mesmo o pensar, essa fei- ção do grande poeta seu antepassado que pela grandeza de genio só tem rival em Camões, agradava-lhe, pois algumas vezes, embora muito raras, lhe ouvi referencias á ironia insubmissa e indiclinavel, a Memorias po Museu BocaGE XLI simples acidentes caseiros reveladores da muita irascibilidade do grande poeta. Mas, se os homens são muito pela sua vontade, alguma coisa são tambem pela influencia alheia, sobre tudo pela da familia. Os que preparam e dispõem o bem e a tranquilidade no lar, os que tomam para si o papel de distribuir e espalhar o conforto em volta de quem regressa da sua lida, desviando todos os encargos e preocupações de modo a deixar quanto possivel liberto o espirito dos que fazem delle o seu utensílio mais prestante e mais activo, colaboram sem duvida com quem rodearam de todas as dedicações embora, não tomem parte directa na sua obra. Barboza du Bocage casou novo com uma inteligente e distincta senhora, que na sua ascendencia tinha tambem homens de alto valor intelectual, como o notavel medico de D. Afonso VI, Francisco Morato Roma, auctor do livro Luz da Medicina. D'ella se pode dizer, com verdade, que não desempenhou apenas na casa o papel tão grato e digno de rodear Barboza du Bocage de todas as dedicações, como outras tantas senhoras que permitem admirar a felicidade dos seus, atravez do papel obscuro, mas muitas vezes sublime, que ellas guardam ciosamente para si. D. Thereza Roma, foi na verdadeira acepção da palavra, colaboradora na obra de seu marido; ha dese- nhos seus nos livros d'elle; mas o papel mais doloroso e mais nobre reservou-lh'o a cegueira do illustre naturalista. Era quem lhe lia e quem lhe indicava o que elle não podia observar, quem lhe fazia a descrição dos caracteres que só lhe era permitido vêr com a inte- ligencia; similhante á esposa I. E. Grey, que com o marido traba- lhou nos estudos zoologicos, o que lhe mereceu ser retratada na me- da na medalha commemorativa dos seus meritos, a Senhora D. The- reza Bocage representou uma acção mais importante, e que só pode- mos comparar pelo valor e desvelo, áquella, que junto de Lamarck, exerceu a filha, M.º!'º Cornelia de Lamarck. Pelos seus extremos d'afecto para o velho naturalista, e por ter escrito, ditado por elle, já depois de cego, o ultimo volume da Histoi- re naturelle des animaux sans vertébres, mereceu um logar ao lado do pae no monumento, que a posteridade, para que ella apelava, lhe er- gueu, em Paris, á entrada do Jardim das Plantas. A posteridade te fará justiça, meu pae; era com estas palavras que repito, que a es- tima sublime embalava a dôr do abandono e da desventura do ve- Memoras Do Museu Bocage jho philosopho; sahiram-lhe do coração para ficar no bronze da imor- talidade. Sem Cornelia de Lamarck a obra que citei ficaria incompleta. Sem a colaboração da esposa de Barboza du Bocage, cuja vida tantas similhanças tem com a do celebre naturalista francez, pois que Lamarck combateu pela liberdade na sua juventude(!), como o nosso naturalista, e acabou cego, algumas das suas obras teriam ficado in- completas ou não poderiam mesmo ter sido levadas tão longe. A de- dicação, por vezes heroismo obscuro, não merece somenos homena- gem do que aquelle que todos louvam, porque o vê e o ilumina o sol. Quando se escondeu na sua derradeira morada quanto do egre- gio naturalista ainda existia, foi a sciencia que tanto cultivou, que me sugeriu n'uma só palavra, expressão singela, mas exacta, da synthese de toda a sua vida, o nome que lhe assentava com rigor; foi o termo de classificação que cabe a um determinado organismo, que um liberto em Roma e um filosopho em Athenas, procuraram uma vez, com luz, ao meio dia; foi essa expressão taxinomica com que Napoleão honrou Goethe, dizendo-lhe sois um homem, que eu entendo que absoluta e incontestavelmente pertenceu — a José Vicente Barboza du Bocage. (1) Charles Martins — Introduction Biographique à la Philosophie Zoolo- gique, par Lamarck, pag. X. 4 +, gia 4 ses Pan q “o ro plailagdy Each Lucio “ “é f bs e Ada of | Fo ah le . E AR dura SUA mu nua à tralá q SE bo ç 15 Ieuiga Té To pede sir: tu dt RR USD RT df A d ; rem 5 aii E ad o = À - k . ai e. d ; ti ! : rs E o to 7 “ PREFACIO Apesar dos numerosos estudos de Oceanographia emprehen- didos por diversos sabios (naturalistas, chimicos, biologistas, enge- nheiros, etc.) dedicados a esta sciencia tão complexa, só muito tarde ainda, poderá conhecer-se inteiramente a fauna dos diversos oceanos do planeta que habitamos, e em especial a que vive nas suas grandes profundidades, a mais interessante talvez, pelas condições mesologi- cas excepcionaes em que se encontra, e por consequencia pela sua biologia particular. Sem luz, a não ser a escassa phosphorescencia, que ás vezes, alguns dos animaes marinhos produzem, sob a influencia de pressões enormes, de temperaturas constantes, mas muito inferiores e differen- tes das que em geral experimentam os seres que vivem proximos da superficie dos mares, encontrando-se n'um estado de relativa tran- quillidade, pois nos valles muito profundos ou nas planuras que ficam a alguns mil metros abaixo do nivel das aguas, não teem influencia nem as correntes dos ventos, nem as maritimas superficiaes, nem o phenomeno das marés, nem qualquer dos outros que repetidamente perturbam os seres que vivem nas camadas mais superiores das aguas, as especies que se encontram em similhantes cireumstancias, devem na realidade ser muito differentes, por todos os phenomenos da sua vida, pela sua physiologia, e até pela sua anatomia, das que mais geralmente conhecemos. Deriva dos factos que apontamos o interesse manifestado e assignalado por todos quantos estudam sciencias biologicas, pelas fórmas do universo que se encontram em condições de vida tão 2 Memorras po Museu Bocagr excepcionaes, e que em geral, apesar da perfeição que attingiram os aparelhos inventados para as colher, redes e nassas especiaes, não são faceis de alcançar. Mas se o apparecimento dos habitantes raros do mar desperta natural curiosidade, pois se trata de descoberta similhante ou equi- valente à da fauna dum mundo desconhecido para quasi todos os homens, como a America ou a Africa foi para os nossos antepas- sados, todavia não se limita a ella; a manifestação de phenomenos anormaes verificados nos seres que provem dos abysmos do mar accrescenta as doutrinas de factos imprevistos, e os capitulos tão incompletos ainda da sciencia da vida. Além d'isto, cada uma d'essas formas que surge, que são como que recemcreadas para nós, disperta novos problemas, que vem inci- tar-nos a observações e estudos tambem novos. Não nos abala simplesmente uma impressão similhante áquella que receberam os que foram em demanda de novas terras, de desco- nhecidas e remotas paragens, quando a natureza lhes patenteou o seu thesouro de plantas ignotas, de aves estranhas, de fructos des- conhecidos, de animaes de todas as classes que viam os descobri- dores sem arreceios, deixando-os maravilhados; do estudo dos novos seres descobertos na actualidade, principalmente no mar, graças ao incremento que teem tido as sciencias, derivam conclusões, nascem principios, accrescenta-se o ambiente da que mais nos importa desen- volver, a biologia. Lembremos ainda, para augmentar o valor das novas acquisi- ções, a equivalencia e muitas vezes a identidade entre as especies que teem sido colhidas nos fundos maritimos, mas a grandes distan- cias umas das outras, o que nos mostra como é sensivelmente uni- forme a fauna das regiões mais profundas dos oceanos. Algumas das especies que vamos mencionar n'este trabalho estão precisamente nas circumstancias que deixamos apontadas, comprovam que especies colhidas nos abysmos pelagicus das regiões frias se encontram, por exemplo, no fundo dos mares das regiões temperadas; outras que são representantes de generos intei- ramente novos para a sciencia, o seu estudo permittiu-nos accres- centar alguns factos novos à biologia; o mesmo podemos dizer a respeito d'aquellas que pertencem a generos que não são mencio- nados pela primeira vez na ichthyologia. Memorias Do Museu Bocage 3 Com este escripto continuamos portanto o trabalho d'aquelles que vendo terminada ou quasi terminada a conquista e descoberta da terra, no seu afan de encontrar novos dominios, na ancia louvavel de devassar o que se desconhece, vão augmentando assim o espaço em que a nossa intelligencia e actividade se empregue, ora mergulhando nos oceanos os instrumentos de physica, ora analysando a composi- ção das aguas e dos fundos d'esses mares que constituem um mundo mais vasto, mais impressionante, mais imprevisto e pando de fecun- didade que os continentes em que vivemos. Com este modesto escripto juntamos uma molecula ao traba- lho d'aquelles que prescutam e inquerem a vida dos habitantes das aguas, enviando os instrumentos, os apparelhos, onde não attingem os minguados sentidos de que o homem dispõe, para saberem o que se passa n'essas regiões de mysterio que não alcançamos e em que talvez nunca cheguemos a penetrar. O homem, que tem creado tantos inventos para amplificar o poder dos seus orgãos dos sentidos, para multiplicar as suas forças e aptidões, alcança com elles cada dia novas conquistas, algumas das quaes nos revelam maravilhas não imaginadas. Não podendo descer a grande profundidade nos oceanos, para colher ali as especies que pela sua organisação e pela sua physiologia não podem viver nas camadas pouco profundas das aguas, ou attin- gir as da superficie, a não ser excepcionalmente, envia para lá as nassas engenhosas que tem inventado, illumina-as com as lampadas electricas que ellas encerram, e que apaga e acende à sua vontade, deslumbrando os habitantes d'esse mundo da treva perpetua. Atrae- os, e impede-lhes a fuga, para que venham contar nos laboratorios como é feito o seu organismo, e d'algum modo como decorre a sua vida. Portanto cada fórma desconhecida, protozoario ou vertebrado, simples substancia informe tirada do mar e que pela sua composição se approxima do protoplasma, ou individuo organisado complexa- mente, tem sempre alguma coisa de novo que dizer ao homem, se este sabe bastante para entendel-o, ou por outras palavras lêr, interpretar a sua fórma, e os phenomenos que manifesta. Todos a quem são familiares as sciencias historico-naturaes, e não só os auctores da Oceanographia, teem que aprender com o seu exame; todos a quem interessa o progresso da humanidade tira- rão vantagens, saber novo, ao estudarem esses animaes raros ou 4 Memorias DO Museu BOCAGE desconhecidos, que embora tendo nascido ha muitos milhares d'an- nos, são para os que os observam ao sahirem da agua, como se tives- sem sido creados n'aquelle momento, ou como se fossem transportados dum outro planeta para o nosso, tal é por vezes a extranheza da sua fórma, do fim e disposição dos seus orgãos, em relação com os das formas geralmente conhecidas. Accrescenta-se pois, sem duvida, com as descobertas de novas especies, de regiões novas, esse thesouro por vezes tão duramente conquistado pelo homem —a sciencia. Com que satisfação a vê acrescentada, pois tem sido ella a sua unica defeza contra as desventuras que o illaqueiam no mundo, o seu palladio na lucta travada contra tedos os perigos do desconhecido que o ferem, contra os seres que o assediam e perseguem a cada instante, em todas as circumstancias da vida. Em geral, esse thesouro a que alludimos, e que todos os homens devem procurar acrescer, representa a mais alta mas tão bem a mais dolorosa conquista da humanidade. Não o esqueçamos nunca, principalmente no remanso, na paz em que vivemos, no con- forto carinhoso do nosso laboratorio ou gabinete de estudo, onde sem grandes preoccupações, a não ser as que derivam da sciencia, nos é permittido trabalhar. Não olvidemos como foi duramente e por vezes tragicamente accumulado, e isso nos desculpará por trazermos para elle só uma parcella minima, mas que entendemos representar apenas um tributo, o cumprimento d'um dever, a que nos soldou o reconhecimento por aquelles que como Vanini, Vesalio, Savonarola, Miguel Servet, Damião de Goes e tantos outros santos que a Hu- manidade agradecida tem canonisado, e que obriga e manda a todos os homens que cumpram. Pela sciencia, o mesmo é dizer que pela verdade, se combateu e pelejou em todos os tempos mais ou menos bravamente. Tem sido vencida a ignorancia que combate sob a fórma de dogma, de theorias falsas, de viciosas escolas, mais cheias de peri- gos, de vida mais arreigada e tenaz do que a de muitas das feras com que o homem se mediu e domcu, quando andava conquistando a terra armado sómente com esse poder formidavel mas superior às for- cas da natureza que elle tem aprendido a dominar e a avassalar, obri- gando-as a servil-o, essa luz superior à que vem dos astros, porque vem de Deus, e que se chama — a Intelligencia. | k es: fo! Memorias DO Museu BocaçgE D'ella e só della lhe provém toda a sua superioridade no uni- verso. Na sua obra e só nella se firma a crença que será afinal o dominador do mundo, aquelle que no fim da lucta tão formidavel ainda agora, se proclamará, victorioso e a mais valida de todas as fórmas da creação. Se os infinitamente pequenos — os microbios —- pódem até certo ponto considerar-se ainda hoje os dominadores na lucta travada entre as especies, por serem os mais numerosos, os possuidores de mais vantagens, todavia o homem, que os vae conhecendo, arma-se para combater os que são seus inimigos, com a mesma cora- gem, com o mesmo denodo com que se medio outr'ora com os ani- maes prehistoricos, com os seus terriveis adversarios do fim da epoca terciaria. Não o intibiam, vae onde elles pollulam, onde victimam as populações humanas e as diversas raças d'animaes, e procura hostilisal-os creando-lhe condições de vida precaria ou combate-os directamente com intrepidez. Bastariam os novos campos de descobertas nos dominios da biologia e da microbiologia em especial, suas relações com o estudo da fauna e flora da atmosphera, das aguas, do solo, e dos animaes superiores, os dominios em que elles se criam e vivem para entreter a sua infatigavel curiosidade. E” realmente assombroso que sem pensar nos estreitos limites de tempo em que a vida humana decorre o homem prepare vastos trabalhos para as gerações vindouras, accrescentando por sua vez a herança de sciencia que encontrou no mundo. Insaciavel sempre, investigador sem tregua, como se a terra e os mares fossem demasiado estreitos para as suas emprezas, inves- tiga qual a constituição das myriades d'astros que se movem no espaço, procura interpretar o que se passa não só nos mundos que pertencem ao mesmo systema planetario que a terra, inquere se a vida se manifesta n'elles sob qualquer fórma, como no planeta a que o prendeu o destino, isto depois de ter conseguido saber, analysando a luz que atravessa a escuridão immensa do infinito, que os mesmos corpos, os mesmos elementos chimicos, que elle conhece, de que dispõe nos laboratorios, os constituem e os formam, tendo conseguido até avaliar com bastante rigor a temperatura d'alguns astros. Que admira pois que tendo mais perto campos vastissimos, tão ferteis e tão proprios para as suas investigações e pesquizas inces- 6 Memorias DO Museu Bocage santes, para a elucidação do mais elevado e interessante problema que póde offerecer-se-lhe, a vida, procure conhecer o plankton, so numerosos e incontaveis seres que vivem à superficie dos mares, tão abundantes sem duvida, como os individuos organisados, plantas e animaes, vivos e fosseis, e tambem as substancias inorganicas, que a atmosphera contém, que as correntes dos ventos trazem e levam de toda a parte para toda a parte? São incontaveis os embryões e as fórmas de animaes simples que se encontram nas camadas superiores das aguas dos rios ou dos lagos daguas doces ou salgadas; do seu estudo derivam novos elementos para a edificação de doutrinas e theorias novas e a expli- cação para muitos factos biologicos incomprehendidos até agora. Não só nas ondas irrequietas, por vezes alterosas montanhas liquidas, coroadas pela neve das espumas, a vida freme e pullula como nas camadas do solo em que muitas vezes nos parece, sem auxilio de instrumentos amplificadores, que nada vive; os seres vivos existem, a vida está em toda a parte, no ar, na terra, na agua; n'um milli- metro cubico de qualquer d'estes tres dos elementos com que os antigos imaginavam fabricado o mundo, quantas myriades de formas vivas! A vida está em toda a parte, é transportada para toda a parte, pelas correntes das aguas como pelas correntes dos ventos, transpondo os grandes oceanos como os grandes continentes, indo da America à Africa, das regiões polares para o Equador e vice- versa, a circulação incessante do globo entretem a vida e espalha os seres vivos pelo mundo inteiro. Sob fórmas sempre mutaveis, dotadas de movimento eterno e constante, a vida manifesta-se às vezes sob aspectos verdadeiramente inesperados, assombrosos e surprehendentes. À natureza como que se compraz em mostrar-nos que são inex- gotaveis as fórmas dos seres creados, quando eventualmente nos patenteia especies ou generos novos ou algum d'esses seres julgados pelo homem como absolutamente extinctos, mas de que prevê a exis- tencia, que muitas vezes caracterisam os terrenos de passadas e remotas eras geologicas, mas que na realidade sómente teem desap- parecido de determinadas regiões do globo onde outr'ora foram abundantes, os Ceratodos, por exemplo e os peixes da familia Bery- cidae, o Okapi, entre os Mammiferos, os Crinoideos entre os Echi- nodermes, os Limulos entre os Arachnideos, etc. =] Memorias DO Museu Bocage — T — som = = E EE Os Berycidae actuaes são os representantes relativamente raros, duma familia composta de numerosos generos e especies extinctas e fosseis. Os que existem na actualidade podem dizer-se que estão em via de desapparecerem, pois se encontram hoje em habitats relativa- mente limitados; e o mesmo acontece com os Esqualos, com o Bisão da Europa, o Bonassus europeus, confinado nas florestas da Lithua- nia, os Strigops, papagaios nocturnos da Australia e muitas outras especies de animaes e egualmente de plantas. No mesmo caso está tambem o Berycideo que descrevemos no ultimo numero do Jornal das Se. Math. Phs. e Naturaes publicado pela Academia das Sciencias de Lisboa! conhecido apenas até agora, por um individuo, colhido nas costas de Portugal e que é o representante d'um genero novo que tem bastantes analogias com os Melamphaés e os Plectromus, pescados nas grandes profundidades do Oceano Atlantico, mas prin- cipalmente nas regiões do norte. * Se o apparecimento dalgumas fórmas realmente nos surpre- hendem porque sendo antigas e tendo sido julgadas extinctas, como acabamos de dizer, surgem um dia quando se julgava o seu desap- parecimento datando de milhares de seculos, outras nos impressio- nam pela estranheza do seu aspecto, pela disposição particular e es- pecial d'alguns dos seus orgãos, diversos ou anomalos em relação aos das especies conhecidas da mesma classe ou da mesma ordem. São em geral as especies que vivem nas grandes profundidades dos oceanos, e que só um acaso traz à superficie, como aconteceu com algumas que mencionamos n'este trabalho, ou que são colhidas com grandes dificuldades nos abysmos maritimos, que em geral confirmam os factos a que alludimos. São algumas d'essas especies as que passamos a descrever. * Loc. cit. 2.º ser. t. vII pag. 172 Est. 1. 2 Já depois de escripto este prefacio resolvemos incluir o genero a que alludimos n'esta publicação visto tratarmos n'ella dos peixes bathypelagicos das costas de Portugal. S Memorias DO Museu Bocage Fam. Beryúdae Lophocephalus,n.g. Est. I, fig. 1 Na cabeça cristas numerosas, tendo a borda mais ou menos dentada; as principaes são as seguintes: quatro na região frontal; teem a disposição representada na fig. 1. As duas mais ex- ternas terminam tanto adiante como atraz por um espinho. O espaço comprehendido entre ellas é occupado por pequenas concavidades similhantes ás que existem n'um dedal. Fig. 1 Do bordo da narima superior parte tambem uma crista que passando um pouco por cima da orbita excede o seu bordo posterior; da narina inferior parte uma outra crista, divergindo da precedente, e que termina à mesma altura. E O espaço comprehendido entre o bordo do préo- O perculo e o da orbita é assignalado por uma crista verti- Na cal e dividido por ella em duas partes aproximadamente a eguaes. A crista termina por dois espinhos divergentes. é Fig. 2 Ás cristas que acabamos de mencionar, o nosso exemplar sendo visto lateralmente, apresentam a disposição seguinte, (fig. 2). Entre as duas cristas superiores existem algumas aberturas do apparelho mucifero; a orbita encontra-se alojada entre as outras duas que partem das narinas divergindo para a parte mais larga. À região nasal é triangular. À cabeça continua-se em linha recta com o tronco. O bordo do préoperculo é dentado e termina por um espinho muito comprido e deprimido. O operculo tem tambem o terço do seu bordo superior dentado: tem dois espinhos, um inferior, mais pequeno que o do préoperculo, e o outro, o mais pequeno dos dois, marca o termo da denticulação opercular já mencionada. O operculo é quasi intei- ramente coberto por uma unica escama, que é tres vezes maior do que as outras das differentes regiões do corpo. Tem oito raios branchiaes. Este genero deve ser collocado proximo do genero Melamphaes Lowe, todavia differe d'elle porque tem o operculo e o préoperculo armados d'espinhos. Memorias Do Museu Bocage 9 Lophocephalus anthrax, n. sp. ID SAS e Visre A altura do corpo está comprehendida um pouco mais de quatro vezes e meia, e o comprimento da cabeça tres vezes, no comprimento total. A cabeça é nua; existe porém uma fiada de escamas no préo- perculo do lado da orbita, seguindo a crista que nelle existe; o espaço comprehendido entre esta crista e o bordo do préoperculo é inteiramente nu. O diametro do olho pode contar-se cinco vezes e meia no com- primento da cabeça. Existem, semeadas por ella, diversas papilas e espinhos; são principalmente notaveis dois que ficam pouco distantes das cristas frontaes já descriptas, quando nos occupamos dos cara- cteres genericos. A boca é larga, bem rasgada, e é guarnecida de dentes muito finos, mas dispostos n'uma fiada unica em cada masila. A barbatana dorsal occupa um espaço inteiramente egual ao que vae do seu termo até à raiz do da cauda. A anal começa à mesma altura a que termina a barbatana do dorso. Os raios superiores das peitoraes curvam-se na extremidade e passam além da ventraes que começam aproximadamente à mesma altura que ellas. A caudal é curta, chanfrada e precedida d'alguns espi- nhos. As escamas são cycloides. Oespaço comprehendido entreas salien- cias que ellas apresentam é bastante largo. A côr geralénegro carregado. O comprimento total do nosso exemplar é 0",195. O individuo que descrevemos foi encontrado dentro da boca duma Lixa, Centrophorus granulosus, Mull. et Henle, pescada a mil metros de profundidade, perto do Cabo d'Espichel e offerecido ao Museu Bocage pelo sr. Luiz G. do Nascimento de Setubal. E” eviden- temente um representante d'um genero e d'uma das especies que vivem no fundo dos oceanos. E” um Deep-See-Fish conforme a classi- ficação dos ichthyologistas inglezes, o que de resto é bem evidente em presença d'alguns caracteres perfeitamente acentuados; a côr geral negra, a existencia d'aberturas numerosas revelando um systema mucifero muito desenvolvido, a estructura e a elasticidade dos ossos propria dos peixes que vivem nas grandes profundidades, ete. A familia Berycidae a que elle pertence comprehende um numero consideravel de generos, muito dos quaes são fosseis e quasi todos que existem são bathypelagicos. 12 10 Memorias DO Museu BocaçgE Pomatomus telescopium, Risso. Em 1810 Risso descreveu na sua obra Ichthyologie de Nice, um genero de peixes a que deu o nome de Pomatomus, e uma espe- cie a que chamou Pomatomus telescopium. A? sua descripção juntava a noticia de que esta especie era a menos vulgar de todas as especies que se encontravam na chamada Cote-d'azur, e que durante trinta annos se tinham colhido apenas dois individuos. Cuvier, mais tarde, em 1828, na sua Histoire Naturelle des Pois- sons”? descreveu esta mesma especie dizendo que era une rareté ea- cessive, e que tinha visto apenas um individuo, que algumas razões o levavam a pensar que era o mesmo que servira para se fazer a estampa a que alludimos ao citar a obra de Risso. Depois de Cuvier, Lowe descreveu tambem esta especie que tinha colhido na Madeira e que considerava rarissima. Esta affirmativa de Lowe não a colhemos directamente na sua memoria publicada nas Trans. Zool. Soc. II pag. 173 porque o Museu Bocage não a possue, mas na Hist. Nat. des Ilcs. Canaries, por Webb et Berthelot, Ichthyol. pag. 6. N'esta obra diz Cuvier e Valenciennes que o P. telescopium parece que se encontra frequentemente no Oceano Atlantico, todavia Webb et Berthelot dizem que é um peixe que nas Canarias se colhe com dificuldade, e assignalam-lhe um nome vulgar, Boca negra, Ribalto preto ou Ribalto do alto, diz Lowe, que lhe chamam na Madeira. Da citação d'estas obras se conclue que esta especie não se en- contra exclusivamente no Mediterraneo, como acreditavam aquelles que primeiro se occuparam della, mas que se encontra tambem no Oceano Atlantico. ; Em 1859 Griinther, no seu Cat. Fish. Brit. Museum * cita, como habitat d'esta especie, apenas o Mediterraneo e as Canarias, apesar de mencionar a obra de Lowe, em que se diz que se encontra na 1 Loc. cit. pag. 301 — Est, IX fig. 31. 2 Loc. eit t. II, pag. 171 — PI. 924, 3 Loc. cit. t. 1, pag. 250. Memorias Do MusEU BocaGE 10 Madeira, e a obra de Webb onde se affirma ter sido colhida na ilha de Santa Helena. flm 1867 F. Capello occupou-se do Pomatomus telescopium e diz ter visto tres exemplares, colhidos nos mares e costas de Portugal, sem todavia precisar onde tinham sido colhidos, devendo talvez pensar-se que os havia adquirido no Mercado de Lisboa, o que de resto foi confirmado no Cat. dos Peixes de Portugal do mesmo naturalista (publi- cação posthuma 1880). N'este catalogo, assim como no jornal portuguez que cita mos! attribue-se a esta especie um nome popular, Olhudo, o que nos levou a crêr que comquanto não seja muito frequente, não é extrema- mente rara nos mares de Portugal, visto que um nome commum dado a qualquer animal! significa para nós, que é bastante conhecido. Falando com diversas pessoas de Setubal que se empregam no commercio do peixe tive a confirmação do que eu supunha, isto é que o P. telescopium não é raro no mar d'aquella região. Alguem mesmo me affirmou que era relativamente vulgar e que lhe chamavam os pescadores salmonete preto, nome com que tambem designam uma outra especie. Em 1881 publicou o dr. Moreau a sua Hist. Nat. des Pois. de France e em 1892 o seu Manuel d'Ichthyologie Française. Em ambas estas obras se attribue à especie de que nos estamos occupando exclusivamente o habitat que lhe tinha fixado Risso, isto é Nice. Este facto é realmente notavel, visto que Moreau cita na bibliographia?, as obras em que se diz que esta especie se encontra no Oceano Atlantico. Não menos singular é a affirmação feita por Good and Bean na sua Oceanic Ichthology* publicada em 1895 quando dizem que o habitat desta especie é Nice, Genova, Napoles e Messina, apenas diversos pontos do Mediterraneo. Nenhuma duvida ha porém, que se encontra no Oceano Atlan- tico pois não só Lowe, Cuvier et Valenciennes, Webb et Berthelot se oceuparam de exemplares de P. telescopium, colhidos n'este mar, mas tambem Vaillant na sua obra Eapeditions scientifiques du Tra- 1-Loc. cit. t. I pag. 160. 2 Loc. cit. t. II pag. 386. 3 Loc. cit. pag. 238. 12 Memorias DO Museu Bocage vailleur e Talisman se refere a esta especie, e menciona diversas locali- dades do Oceano Atlantico, taes como as Canarias, as costas do Soudan, as ilhas de Cabo Verde! onde foi colhida, embora fosse pequeno o numero de exemplares obtidos. O numero maximo de exemplares alcançados n'uma das dragagens d'esta expedição scien- tifica foi cinco, nas costas de Soudan e à profundidade de 830”. O exemplar que temos presente e de que nos vamos occupar foi pescado nas proximidades de Setubal, ficando portanto fixado por este nosso trabalho que o limite da dispersão d'esta especie no Oceano Atlantico é, para o norte, Setubal, pelo menos, até agora. Vejamos porém quaes os factos que dimanam propriamente da nossa observação. Risso, Cuvier, Moreau, attribuem a esta especie 0,50 de com- primento maximo. Ora, o exemplar de que nos estamos occupando é bem maior, pois mede 0",64, desde o focinho à extremidade da cauda. Os exemplares estudados por Capello e conservados no nosso Museu medem mais de 07,50; são portanto maiores que os exem- plares estudados por Moreau. Esta especie tem dentes nos palatinos, e o vomer apresenta uma placa arredondada coberta de dentes. Estes dois factos tinham sido apontados por Capello antes de qualquer outro naturalista?. Devemos todavia referir o que a respeito do paladar diz Risso: Le palais est garni au milieu d'une plaque rhomboidale herissé de pointes. Cuvier (loc. cit.) diz que: Le bout des vomer est rhomboidal, large, convexe et garni d'apretês semblables. Mo- reau refere que une plaque arrondie de petites dents se trouve sur le vomer, qui est développé et forme dans la bouche une saillie remarquable. Conclue-se d'estas transcripções que todos os naturalistas que se referem à placa vomeriana a descrevem por fórma diversa. E' notavel que o dr. Gunther”, que conhecia sem duvida a placa a que nos referimos, pelo menos pela diagnose dos naturalis- tas que vem citados na sua obra, não só se não refere a ella, mas affirma que os palatinos não teem dentes. Confiou talvez na opinião de Cuvier que ao referir-se aos dentes d'esta especie diz: Je men vois 1 Loc. cit. pag. 376 e BTT. Jorn. Se. Math, Ph. e Nat. t. I pag. 160. 3 Cat. Fish. Brit. Mus. t. I pag. 250. +9 mp E a Memorias DO Museu BocaGE 13 pas aux palatins!. Veja-se por ser importante a nota ao tomo publicada no volume vir da obra de Cuvier, relativa a esta especie (citada por Capello). Risso quer referir-se aos palatinos quando diz que a placa do paladar, est acompagné de chaque coté dun long osselet épineus? Em todo o caso quem, a meu vêr, descreveu com toda a clareza a dentição dos palatinos e desenhou a fórma que realmente tem a placa vomeriana, a quem pertence emfim a prioridade da menção d'estes dois importantes caracteres que se verificam no P. telescopium, Risso, foi o naturalista portuguez Felix Capello. O diametro do olho é menos de um terço do comprimento da cabeça, no nosso exemplar. O quarto aguilhão é o mais comprido, é bastante menor que o comprimento das peitoraes. O primeiro agui- lhão é approximadamente um quarto do segundo. O espinho da segunda dorsal é muito menos de metade mais curto que o primeiro raio molle. O segundo espinho da anal é menos de um terço do pri- meiro raio molle. As peitoraes são bastante mais compridas do que as ventraes, as primeiras medem um pouco mais do que a sexta parte. O espinho das ventraes é um poucomais de metade do primeiro raio da anal. O diametro de olho mede 0,055. Moreau diz que tem 0”,48. Apesar das differenças que encontrámos no individuo que estu- dámos, e que deixamos apontadas, não julgamos porém que sejam suficientes para crear com ellas uma especie nova. Oceupando-nos d'esta especie quizemos principalmente fixar o seu habitat em Portugal, a sua relativa frequencia na costa do nosso paiz, dado o numero dos exemplares colhidos e o seu nome vulgar. Entendemos tambem que deviamos fazer notar que os exem- plares colhidos nas nossas aguas são maiores do que aquelles que são citados nas obras de diversos naturalistas, que se occuparam do P. telescopium e colhidos n'outras regiões, devendo talvez inferir-se deste facto que é propício ao seu desenvolvimento o meio em que vive na visinhança das nossas costas. À profundidade a que foi apanhado o nosso exemplar, 100 braças, corrobora a affirmação de todos os observadores, de que esta espe- cie vive nas grandes profundidades dos oceanos, o que de resto nos é confirmado pelos caracteres que ella apresenta; dimensões dos olhos, côr escura, etc. ! Cuv. et. Val. Hist. Nat. des Poiss. t. II pag. 173. 14 Memorias Do Museu Bocage Fam. Nettastomidae Genus Muraenosaurus g.n. (Jordan and David, rep. U. S. F. D.) Não tem escamas. O focinho muito alongado e deprimido. Ma- xilares com diversas fiadas de dentes successivamente maiores a partir do exterior para o interior da boeca. O vomer egualmente armado de diversas fiadas de dentes sendo todavia maiores os da linha média. As barbatanas verticaes são bem desenvolvidas indo crescendo successivamente em altura desde o ponto em que come- çam até attingirem a caudal, que é bastante grande, e unindo-se in- timamente com esta. Este caracter distingue immediatamente o nosso genero dos outros que constituem a familia Nettastomidae. A dorsal começa approximadamente 0",005 antes da abertura branchial. O corpo é cylindrico até ao começo da barbatana anal e depois vae-se successivamente deprimindo e achatando até à caudal. Não existem barbatanas peitoraes. Os orifícios nasaes poste- riores teem uma valvula e estão collocados entre os bordos ante- riores das orbitas, excedendo-os apenas em menos de um terço; os interiores são tubulares, e collocados dum e d'outro lado dos tecidos que se podem considerar como formando um labio superior bastante desenvolvido. Os tubos nasaes são mais curtos do que elle. Ao longo do maxilar superior, d'um e d'outro lado, existe de espaço a espaço um grande numero de pequenas aberturas similhantes, mas as mais evidentes são as que existem em torno do bordo posterior da orbita unindo-se, na parte superior da cabeça, ás do lado opposto. Muraenosaurus Ciintheri n. sp. Est. I, fg. 2,3 e 4 A bocca prolonga-se para além do bordo posterior da orbita. As barbatanas teem uma côr parda amarellada, mas são quasi negras nos bordos, proximo da caudal. Uma faixa esbranquiçada de 0”",002 de largura approximadamente correndo ao longo da linha lateral divide o corpo em duas partes eguaes. Esta faixa estreita-se para a cauda e divisam-se n'ella e em topo o seu comprimento numerosas Memorias po Museu BocaGgE 15 aberturas, cem a forma sibilante a casas de botão na parte ante- rior do corpo, ligeiramente tubuliformes na parte posterior. O maxilar supérior é mais comprido do que o inferior. A côr geral do exemplar, conservado em alcool, é amarellada escura na parte superior à faixa esbranquiçada a que nos referimos, e em que está comprehendida a linha lateral; mais clara abaixo d'ella, parecendo que o amarello se sobrepoz uma ligeira camada de tinta branca com reflexos prateados. Numerosas pontuações escuras estão espalhadas por todo o corpo. À nossa especie mede 0",595 de comprimento. Foi colhida à profundidade de 800” approximada- mente e a bastante distancia de Cabo de Espichel, e offerecida ao Museu pelo sr. L, G. do Nascimento, de Setubal. Dedicamos esta especie ao notavel ichthyologista Dr. A. Giin- ther. Genus Cubiceps, Lowe Cubiceps Lowei D'este genero conhecem-se apenas duas especies, segundo Giinther. (Cat. Fish. Brit. Mus. t. II pag. 389) e outros ichthyolo- gistas distinctos, o Cubiceps capensis, Smith, (Tllust. Zool. S Africa Fishes) e o Seriola (Cubiceps) gracilis, Lowe. Estas duas especies são representadas nos museus apenas por tres exemplares; um colhido na Madeira por Lowe e outro colhido no Cabo da Boa Esperança por Smith e o terceiro por Fillipi e Verany no Mediterraneo. Segundo Griinther (loc. cit.) não ha duvida que os tres exemplares pertencem ao mesmo genero. Com respeito à existencia das duas especies ha divergencias que considero perfeitamente legitimas e que o estudo do exemplar que possuimos poderá esclarecer talvez. Giinther apresentando as diagnoses das duas especies diz todavia «In following descriptwns it will be seen in what points the speci- mens seem to differ |. A descripção do Cubiceps capensis foi feita em presença d'um exemplar bastante alterado (half decayed, diz Giinther). A descripção do C. gracilis foi feita à vista de dois individuos novos, colhidos, um na ilha da Madeira, e outro no Mediterraneo, 16 Memorias Do Museu Bocage tendo este ultimo sido desenhado com alguma negligencia (Griinther). Comparando as diagnoses das duas especies incluidas por Giinther na sua obra encontramos que differem muito pouco como passamos a demonstrar. C. capensis. C. gracilis, O maxiliar não attinge a vertical O maxilar vae além do bordo ante- que passa pelo bordo da orbita. rior da orbita. Nos lados do corpo não existe ne- Existe nos lados do corpo um sulco nhum sulco. por cima e outro por baixo da linha lateral. Devemos porém acerescentar, discutindo o valor dos caracte- res que pômos em confronto, que os sulcos a que o Prof. Giinther se refere, visiveis nos exemplares em bom estado, póde acontecer que o não sejam n'um individuo em decomposição, ficando por ultimo a differença entre as duas especies, subsistindo apenas por um unico caracter que na realidade é de valor somenos. Comparando porém as formulas das barbatanas, attendendo ao numero de raios que as compõem encontrámos o seguinte: BIT ad ; as ES 5 Ra Ve E Cubiceps capensis D. 10%, A & Cubiceps gracilis D. 11 —90, As 19? Portanto no numero dos raios das barbatanas dorsaes das duas especies encontra-se uma pequenissima differença, que, com justo motivo, se póde admittir que representa apenas variedade individual. No numero dos espinhos da barbatana anal é que se nota uma differença maior. Com respeito ao numero das escamas da linha lateral póde dizer-se que é identico, pois Gunther escreve: (O. capensis L. lat. 66. C. gracilis L. lat. 60-66) Eis, em resumo, tudo em que se baseia a differença entre as duas especies. Vejamos agora os caracteres que apresenta o nosso exemplar. O maxilar vae além do bordo anterior da orbita, portanto por este caracter deve pertencer à especie C. gracilis, mas não apresenta nenhum sulco nem acima nem abaixo da linha lateral e por esta falta deve inscrever-se como um individuo pertencendo á especie O. capensis. Memorias Do Museu BocagE L/ A formula das suas barbatanas é a seguinte: 1 3 Da Portanto a formula da dorsal condiz com a da dorsal do (. capensis, e a da anal é approximadamente a da anal do €. gracilis. Mas, mais ainda, o exemplar descripto por Smith! tinha 36 pollegadas de comprimento. O que foi descripto por Lowe media apenas 6 pollegadas. O nosso exemplar tem de comprimento o pollegadas; é portanto muito menor do que aquelle que foi colhido nas praias do cabo da Boa Esperança mas muito maior do que o que foi encontrado na ilha da Madeira. E' portanto, pelas suas dimensô:s, intermediario entre elles, como o é tambem pelos caracteres distinctivos das duas especies, que juntando-se no nosso exemplar nos conduzem à conclusão de que C. capensis e C. gracilis representam apenas uma só especie. Como consequencia d'estes factos devemos dizer portanto, que não achando apropriado o nome capensis dado a uma das especies, porque não se encontra apenas, como vimos, no Cabo da Boa Espe- rança, não devendo tambem chamar-se-lhe gracilis attendendo às dimensões que a especis attinge, o termo gracilis tendo sido applicado a individuos novos, deve chamar-se a meu vêr à nossa especie e assim comoaquellas que teem os nomes que citamos, Cubiceps Lowei, visto a prioridade da descoberta do genero e da especie pertencer a Lowe. O exemplar colhido no Cabo da Boa Esperança e descripto por Smith foi encontrado n'uma praia e depois d'uma grande venta- nia. O que é da Madeira e descripto por Lowe foi encontrado em si- milhantes ou identicas circumstancias, isto é fora d'agua e depois de um temporal. O nosso individuo fluctuava morto, no Portinho da Arrabida, proximo de Setubal, quando foi colhido pelo sr. Luiz José do Nascimento que o offereceu ao M. Bocage. Good and Bean a sua notavel obra Ocean. Ichth, identificam o genero Cubiceps de Lowe, Atimostoma de Smith com o genero Psenes de Cuvier”, e citam uma especie, Psenes pellucidus, Liútken, que foi colhida no estreito de Surabaja. Essa especie mede apenas 0”,054, 1 TI. Zool. South. Africa. 2 Loc. cit. pag. 220. 18 Memorias DO Museu BocaGE aproximadamente. Não dizem porém os auctores citados em que condições foi colhida, A expedição do Albatros obteve uma especie em 32º, 24º N. lat. e 96º 55' 80” W. long. a uma profundidade de 528 pés. Uma outra especie egualmente muito similhante áquella que foi descripta por Liitken com o nome de Psenes maculatus, foi egual- mente colhida pela expedição do Albatros no Atlantico occidental, N. lat. 27º, 49"; W. long. 26, 12”, à superficie, sendo a profundidade do mar n'esta região 633 pés. Em conclusão: as especies d'este genero ou teem sido colhidas, mortas á superficie do oceano, ou fóra d'agua, ou a uma profundi- dade consideravel. O nosso exemplar tem uma côr negra acastanhada, quasi geral, como se vê em muitos peixes que vivem em regiões profundas do mar. Os olhos são grandes, emfim verificam-se no nosso exem-. plar muitos dos caracteres dos peixes que vivem nas regiões bathy- pelagicas. Genero Himantolophus Himantolophus reinhardti, Lútken Est. I, fg. be 6 O notavel ichthyologista inglez dr. A. Ginther mencionou no t. xx pag. 51 do Challenger Report duas especies do genero Himan- tolophus, o H. groenlandicus, Reinh. e o H. reinhardti, Liitken. A primeira tinha sido descripta pelo naturalista dinamarquez Reinhardt e a segunda por Liitken, egualmente um naturalista da Dinamarca, que encontrou n'um peixe que elle incluiu no genero Himantolophus, creado por Reinhardt, caracteres sufficientes para distinguir uma nova es- pecie. Ambos os individuos representantes das duas especies tinham sido colhidos nas costas da Groenlandia. O naturalista americano Gill encontrou apontados nas diagnoses mencionadas, de Reinhardt e de Liútken caracteres que não julgou sómente sufficientes para extremar as duas especies, mas até mesmo para formar com elles um genero novo a que chamou Corynolophus !. 1 Gall, Proc. Un. St. Nat. Mus. I. 1878 — 227 — V., 1883 — 551. Memorias po Museu Bocage 19 Os naturalistas americanos que se occuparam das especies a que alludimos, acceitaram as ideias de Gill e admittem a existencia dos generos Himantolophus, Reinardt; e Corynolophus Gill. No primeiro incluem o Himantolophus groelandicus, Reinh. e no segundo o Corynolophus Reinhardti, Liútken. Quer se admitta ou não, que as especies descriptas por Liitken e Reinhardt pertencem ao mesmo genero, o que se conclue, com segurança, de tudo quanto acabo de expôr, é que alguns ichthyologistas, e dos mais distinctos, concordam que são differentes as duas especies descriptas pelos naturalistas dinamarquezes; e outros naturalistas, e egualmente distin- ctos, haverá ainda que concordem com este modo de vêr, mas refe- rimos-nos apenas aos auctores das obras que podémos consultar, cujas opiniões julgamos sufficientes, e que segundo nos parece, não pódem ser contestadas. No Museu Bocage existe desde 1892 um peixe que toi classi- ficado como Himantolophus groelandicus, Reinh. mas que pela sua fórma geral, pela relação da altura com o comprimento, pelo numero de raios das barbatanas, 5 na dorsal, 17 na peitoral, etc., entendemos gue é um individuo da especie a que Liitken chamou Himantolophus Reinhardti, pois se encontram n'elle os caracteres que os naturalistas que citamos apresentam como typicos d'esta especie. O exemplar a que acabamos de alludir está incompleto, pois falta-lhe a primeira barbatana dorsal, barbatana transformada n'um orgão que tem o feitio d'uma borla e que como adeante demonstra- remos é phosphorescente, devendo servir para o peixe attrahir as especies de que se nutre ou para illuminar o seu caminho nas trevas profundas em que vive. Ha poucos mezes foi colhido nas costas de Portugal, ao norte dos Farilhões, por um apparelho de pesca de arrasto, um exemplar de Himantolophus, que foi comprado pela direcção do Museu Bocage e que estudámos com particular cuidado e curiosidade. À diagnose d'esta especie, que é pouco conhecida, foi-nos permittido juntar al- uns caracteres, que julgamos não foram até agora indicados. Eis o resultado das nossas observações e estudos. ! Good and Bean. Oceanic Ichthyology. pag. 493. — Jordan and Ever- mann. Bull Un. St. N. Museum Part. III pag. 2:732 e 2:733. 20 Memorias DO Museu BocaGE Em primeiro logar é realmente notavel que o outro exemplar da mesma especie que existe no nosso Museu, e a que já nos referi- mos, fosse colhido, embora á tona da agua, approximadamente a 14 milhas da costa da Nazareth, portanto n'nma região bastante visi- nha d'aquella em que foi apanhado o exemplar adquirido ultima- mente, que é sem duvida um representante da especie colhida no mar glacial. Não temos nenhuma duvida em affirmar que o novo exemplar é um individuo da especie Himantolophus Reinhardt, Liitken. A primeira dorsal é constituida não só por um filamento como diz Griinther, mas por uma aste longa, deprimida, que tem 0",16 de comprimento e cuja largura é approximadamente um centimetro em toda a sua extensão, excepto na extremidade superior em que se dilata, adquirindo a largura maxima de 0”,025. A sua maior espessura é perto da raiz, ou para dizer melhor na região onde se implanta, em que adquire 0”,008, sendo ahi quasi cylindrica, e 0”,003 no resto do seu comprimento, incluindo a extre- midade, que é não só bastante larga, como já dissemos, mas muito deprimida. Será esta aste toda cylindrica e apresentar-se-ha acha- tada por se ter retrahido, em consequencia de ter o exemplar estado exposto ao ar durante muito tempo ? Antes da extremidade, mas perto d'ella, a aste a que nos refe- rimos emitte diversas jfitas, sendo algumas terminaes, de diversas larguras e comprimentos diversos, sendo oito ao todo, a maior d'ellas medindo 0,14 de comprimento e a menor apenas 0”,05. Na extremidade livre da aste veem-se dois orgãos digitiformes, cada um d'elles parecendo o polegar e o indicador duma mão minus- cula, unidos um ao outro. As partes que correspondem a cada um dos dedos indicadores são divididas, uma em trez, outra em quatro, lobulos, os maiores são eguaes e juxtapostos. Cada um d'estes orgãos é totalmente negro e apresenta uma placa cinzenta estreita e transparente que deve tornar-se luminosa durante a vida do animal. Toda a face anterior da aste alludida, e que equivale, como dissémos, à primeira barbatana dcrsal, assim como as fitas ou faixas de que é ornada seis, trez simples, duas dividindo-se em duas par- tes, e uma divindo-se a certa distancia do seu comprimento em duas porções cada uma das quaes se divide por sua vez em outras duas, Memorias DO Museu Bocage 21 é coberta de escamas no centro das quaes se veem pequeninos cor- pos convexos similhantes a vidros de lanterna minusculos, ou às corneas dos orgãos de visão de alguns invertebrados, e que se apre- sentam como que embutidos no tecido ambiente, que é negro. Das seis fitas ou faixas quatro são lateraes, partindo duas a duas de al- tura differente, e duas são terminaes parundo da parte mais larga e extrema da aste. A aste está deitada ao longo do dorso n'uma especie de conca- vidade bastante larga que percorre o peixe em todo o seu compri- mento, indo as fitas attingir a segunda dorsal, a qual é formada por cinco raios. É natural que o orgão luminoso que mencionamos seja mantido erecto ou seja dirigido para differentes pontos do espaço quando o peixe está vivo e que com elle deslumbre atrahindo os animaes de que se nutre. À descripção que acabamos de dar do orgão que equi- vale à primeira barbatana é differente da que foi dada por Liitken e que se encontra nas Memorias da Academia Real de Copenhague — 5.º serie, Classe das Sciencias, n.º 5. Liithen fala de manchas prateadas existentes no appendice que descreve e que julga luminoso, mas não observou com uma lente, se não teria concluido que se não trata de simples manchas, mas de escamas cuja parte central é arredondada, convexa e transparente como deixámos atraz descripta. A estes caracteres temos a acrescentar os seguintes: No pavi- mento da bocca ou para melhor dizer no lado concavo dos arcos branchiaes existem tuberculos movediços, mas são armadas de duas fiadas de dentes pequenos, curvos e divergindo da parte mais estreita para a mais larga. E' mais um ponto em que a descripção do nosso exemplar se afasta da que foi dada por Liitken. Os dentes que existem nas maxilas apresentam aproximada- mente a mesma disposição que o naturalista dinamarquez lhes assi- gnala, mas por traz d'elles existe tanto na maxila inferior como na superior uma bandeleta membranosa escama que os cobre posterior- mente até à ponta na maxila inferior, e vae muito alem na superior. O nosso exemplar muito contrahido por ter estado algum tem- po conservado em formol mede 0" ,44 é portanto o maior que se tem colhido. 29 Memorias DO Museu BocagE A peitoral tem dezesete raios, a anal quatro, a segunda dorsal cinco, temos portanto a fórmula seguinte : D. Po dis=ADA Chiasmodon Bolangerin. sp. Est. II, fg. 1 e 2 O caracter que permitte distinguir immediatamente a nossa especie do Chiasmodon niger, Johnson, a unica conhecida até agora do genero Chiasmodon é a pouca dilatação de que parece susceptivel a pelle do abdomen da nossa especie comparada com a dilatação enorme que apresenta a de Johnson. A este caracter, perfeitamente distincto, que póde reconhecer-se facilmente examinando o nosso exemplar, ou comparando a nossa photogravura com a gravura dos Proc. Soc. Zool.*, a mais perfeita que conhecemos das que representam o Ch. miger, juntamos os seguintes que pertencem à nossa especie. A anal, que na especie de Johnson começa approximadamente no meio do comprimento total do peixe, na nossa começa a uma distancia muito menor da extremidade da cabeça do que da extre- midade da cauda. Na maxila inferior do Chiasmodon niger existem tres pares de dentes muito longos, emquanto que na nossa especie existem cinco pares de dentes egualmente muito compridos. No Ch. niger, Johnson, o terceiro par de dentes é que é o maior, emquanto que na nossa especie é o quarto. O diametro do olho é comprehendido As vezes no compri- mento da cabeça da especie de Johnson emquanto que é compre- ; hendido 5 5 vezes na nossa. Segundo Johnson a barbatana peitoral é tão comprida como a cabeça, sem o focinho; na nossa especie a peitoral eguala a distancia que vae da extremidade do operculo ao bordo posterior da orbita; é portanto mais pequena. Segundo Johnson a cabeça é a do comprimento total, no nosso exemplar é mais de dois setimos. O comprimento da base da primeira dorsal é segundo Gunther 1 1866 — PJ. II. Memorias Do MUsE u BocaGE 23 contido duas vezes e um terço na segunda dorsal, na nossa especie o comprimento da base da primeira dorsal é contido duas vezes e mais de metade no comprimento da outra. No Chiasmodon niger a caudal é mais do que metade do compri- mento da cabeça; na nossa especie é bastante mais do que metade d'esse comprimento. À nossa especie apresenta dois dentes palatinos, um de cada lado, esses dentes são bifurcados. Estudemos a historia do (. niger, especie por tantos titulos notavel e veremos o que d'ella podemos aproveitar para estabele- cermos a distineção da nossa especie. O €. miger, Jonhson foi descripto pela primeira vez nos Proc. da S. Zool. em 1863, pag. 408 e seg. Tinha sido colhido na Madeira, e o exemplar! media 3 - pollegadas. No estomago encontrou-se-lhe um peixe que tinha o dobro deste comprimento, e parece que era o Gonostoma denudata. Bp. Em 1866 appareceu nos Proc. Z. S.º uma nota de Alexander Carte sobre a mesma especie, acompanhada de uma estampa. N'essa nota diz-se que na ilha Dominica (America) tinha sido colhido um exemplar de Chiasmodon niger que media 6 E pollegadas e que este peixe tinha dentro do estomago um peixe muito maior. Julgou-se que o peixe engulido era um individuo da especie Scope- lus macrolepidotus. Nº'essa mesma nota allude-se a um exemplar de Chiasmodon niger medindo apenas 2 - de pollegada. Este ultimo exemplar pertencia à colleeção de Loxe, tinha sido colhido na ilha da Madeira a 312 pés de profundidade em 1850 e foi o primeiro exemplar obtido. A expedição de Challenger colheu no O. Atlantico à profundi- dade de 1:500 metros um exemplar d'esta especie. Media apenas 2 - pollegadas *. * Descriptions of three new genera of marines fishes obtained at Madeira. Loc. cit. pag. 403 e seg. 2 Notes on the Genus Chiasmodon. Loc. cit. pag. 35. 3 Voyage of Challenger — Zool. —t. XXII. pag. 99 — 1887. 24 Memorias DO Museu Bocage Jordan and Gilbert deram noticia de se ter colhido na costa de Massachussetts, um exemplar d'esta especie !. Em 1868 F. Brito Capello publicou no t. II do Jorn. Se. Math. Ph. Natur., 1.º série pag. 60, a continuação do seu Catalogo dos Peixes de Portugal que existem no Museu de Lisboa e ahi indica, n.º 127, um exemplar de Chiasmodon niger, que diz ser rarissimo e ter sido pescado a grande profundidade. Mais tarde, em 1880, publicou a Academia das Sciencias o Catalogo dos Peixes de Portugal e ahi apparece novamente indicado com o n.º 150 o exemplar a que acabamos de nos referir. Talvez porque Brito Capello reservava para obra de maior ambito as suas notas, não disse, e ficâmos infelizmente sem saber, com certeza em que ponto da costa de Portugal foi colhido; prova- velmente nas visinhanças de Setubal, pois foram os peixes d'esta região que elle mais particularmente estudou. O exemplar de Chiasmodon que existe no Museu de Lisboa, que representamos na est. II fig. 2 e que foi estudado por Capello, tem tambem um peixe no estomago como teem alguns outros individuos da mesma especie, mas tambem nos não ficou noticia de qual era a especie que Capello encontrou inclusa e hoje seria muito dificil senão impossivel sabel-o devido ao estado em que o exemplar se en- contra. E' notavel, que d'estas duas noticias do exemplar existente no Museu de Lisboa, não se encontra referencia alguma em qualquer das obras estrangeiras. Em 1895 publicaram Good and Bean a sua Oceanic Ichthyology e n'esse livro se allude aos exemplares conhecidos de Chiasmodon miger, e tambem com exclusão do que existe no Museu de Lisboa- No livro a que me refiro descreve-se a especie e diz-se que oexem- plar encontrado na America, e que na actualidade pertence ao Museu dos Estados Unidos, foi encontrado em Have Bank fluctuando à super- ficie das aguas, mas que é evidentemente um habitante das grandes profundidades. No Bulletin of the United States National Museum n.º 47 The Fis- hes of North and Midle America, pag. 2:291 publicaram Jordan and Everman em 1898 uma descripção de Chiasmodon niger, e n'ella allu- ! Synops. Fish. North. Americpa g. 810. Memorias Do Museu Bocage 25 diram a cinco individuos conhecidos d'esta especie, não citando egualmente o que foi apontado por Capello. Percorrendo os volumes do Zool. Record concluimos que são estes os unicos exemplares de Chiasmodon niger de que ha noticia. Temos admittido que o exemplar a que nos referimos, estudado por Capelo, é um representante da especie Chiasmodon niger mas a pequena dilatação de que é susceptivel o estomago do individio que representámos na Est. II fig. 2, como se vê d'uma maneira bem clara o peixe captado não poude ser ingerido completamente, a barbatana. caudal apparece entre as maxilas, e outros caracteres levam-nos a pre- sumir que se trata d'um representante de pequenas dimensões da es- pecie que denominamos Chiasmodon bolangeri e não um individuo da especie Chiasmodon niger. Na nota de Everman and Jordan dá-se como comprimento maximo do Chiasmodon niger 12 pollegadas, o que não é verdadeiro, como passamos a demonstrar. Trata-se de um erro de imprensa e nada mais. Em primeiro logar devemos dizer que o maior exemplar conhecido de Chiasmodon niger não é o que existe no Museu dos Esta- dos Unidos, pois mede segundo Griinther 6 = pollegadas, mas o que foi obtido por Caster e que mede 6 * pollegadas de compri- E mento ', e que o illustre ichthyologista do Museu Britannico se esqueceu de citar quando enumerou os differentes exemplares conhe- cidos desta especie, dizendo até: The third specimen 6 E long the largest kmwos at present was picked up from the surface, near the island of Dominica ?. Jordan and Evermann no já citado Bulletin of the Un. St. Nat. Museum tambem se enganaram, segundo parece, attribuindo maiores dimensões ao exemplar do Museu dos Estados Unidos, mas citando Grinther*, e a meu vêr havendo erro na citação, pois dizem Length 12 inches (Giinther) e Giinther diz Length 6 = Não havendo portanto a menor duvida de que ha erro nas citações, ou coneluimos que a nossa especie de Chiasmodon que mede t Proc. Zool. Societ. 1866 — pag. 37. 2 Report of the Exploring Voyag of Challenger. Zool. t. XX pag. 99. 3 Loc. cit. n.º 47 part. III pag. 2:291. 26 Memorias DO Museu BocagE 0",205 ou seja mais do que oito pollegadas, é maior que o maior exem- plar de Chiusmodon niger conhecido até agora. Ainda um facto interessante a respeito do nosso exemplar ; foi colhido a grande profundidade, approximadamente a 800” e não parece conter no estomago outro peixe, pelo menos de grandes dimensões. Foi apanhado com um anzol de pesca, nas proximidades do Cabo d'Espichel. — Resumimos no seguinte quadro o que temos dito a respeito do Chiasmodon niger, ácerea das suas dimensões, e das circumstancias em que teem sido encontrados os diversos individuos. Colhido por Habitat. Compr. Profundidade INTRA! Lowe Madeira 2 + polleg. 312 pés Nºv:2 Jonhson » 3 + polleg. 300 pés * N.º 3 Carter S. Dominica, America 6 * poleg. A" superficie x N.º 4 Exp. Challenger O. Atlantico 2 + polleg. 1.500 pés N.º 5 Jordan and Gilbert Costade Massuchussetts 6 4 polleg. A" superficie INAREO Capello Costa de Portugal 5 + polleg. ? O Os exemplares marcados com o signal x continham no estomago um peixe de maio- res dimensões que as do individuo em que se alojavam. é O exemplar marcado com este signal tinha dentro outro peixe mas de menores di- mensões. Vide Est. IL. Fig. 3. Examinando a tabella da pag. vê-se que os individuos do genero Chiasmodon teem sido colhidos, uns á superficie e outros a grande profundidade; conclue-se tambem que os exemplares colhidos à superficie encerram quasi sempre um peixe no estomago. O dr. Griinther attribue o apparecimento dos individuos desta especie fluctuando no mar, quando encerram outro peixe, ao resultado da lucta entre o que foi ingerido e o que o enguliu. Não se compre- hende realmente muito bem o que o illustre professor diz a este respeito, e o facto mencionado póde a meu vêr interpretar-se d'outra maneira mais simples e mais convincente; a explicação é, parece-nos, a seguinte: Os exemplares do genero Chiasmodon! encontrados fluctuando (!) Deve talvez notar-se que Johnson chama ao genero, Chiasmodon, assim como Jordan and Gilbert; todos os outros Ichthyologistas, porém, chamam-lhe Chiasmodus. Memorias po Museu Bocage 27 à superficie da agua teem sido colhidos vivos, emquanto que os peixes que elles conteem no estomago não só estão mortos, mas meio dige- ridos. Parece-me que são os gazes proveniente d'uma digestão imper- feita e incompleta talvez mesmo da putrefacção, que dilatando o estomago, lhes augmentam o volume, trazem os peixes fatalmente à superficie em virtude da diminuição do peso especifico; subindo tanto mais rapidamente quanto menor vae sendo a descompressão dos gazes e maior portanto o augmento do volume, determinado pela diminuição da pressão. Esta especie, que foi dada ao nosso Museu pelo sr. Luiz Gonzaga do Nascimento, de Setubal, dedicalmol-a ao notavel ichthyologista do Museu de Londres, Boulanger como homenagem aos seus valiosos e numerosos trabalhos sobre ichthyologia e a uma vida inteiramente dedicada aos progressos da Zoologia. Argyropelecus, Cocco. Argyropelecus bocagei n. sp. (Est. Il. Fig. 3) D. 6-—P.11—V.8 Esta especie distingue-se de todas as outras do mesmo genero, pela existencia, adeante das narinas, duma chanfradura que não é mencionada em nenhuma das diagnoses das especies conhecidas, nem indicada em nenhuma das figuras que as representam. A este caracter que pertence à nossa especie temos a accres- centar o seguinte: a altura do corpo é menor que a distancia com- prehendida entre o bordo do operculo e a raiz da cauda; esta na sua base debaixo da terminação da barbatana dorsal é mais alta do que comprida; o angulo do préoperculo tem um espinho dirigido para baixo; a peitoral não attinge a margem posterior do corpo. À nossa especie que se approxima do À. Olfersii, Cuv. distin- gue-se todavia della por ter a crista interparietal bastante baixa (compare-se a do Atlas da Oceanic Ichthyology fig. 148 a, de Good and Bean com a nossa Est. 1), e por ter 6 raios na barbatana dorsal emquanto são 9 no À. Olfersii, Cuv. O Prof. Vaillant diz na pag. 104 do volume Poissons (Expedi- 28 Memorias DO Museu BOCAGE tions scientifiques du Travailleur et Talisman) que o A. Olfersii se distingue do A. hemiginus, Cocco, pela existencia na região pelvica da primeira d'estas especies, de dois espinhos lisos, um curvado para deante outro recto dirigido para traz. Estudando a nossa especie encontramos na região alludida uma peça ossea, com a forma aqui representada e em que existe um só espinho. Deve portanto a especie que descrevemos, ser considerada como especie nova em virtude dos caracteres que acabamos de men- cionar. Notam-se no nosso exemplar as manchas photodoticas proprias d'algumas das especies luminosas que vivem nas grandes profundi- dades dos oceanos e que são bem visiveis tambem, pelo menos n'al- gumas especies do mesmo genero. Essas manchas são bem evidentes na nossa photogravura. O individuo que descrevemos mede 0",98 de comprimento e foi colhido approximadamente a dezoito braças de protundidade ou seja a mais de 600 metros da superficie, proximo de Setubal e foi offere- cido ao Museu pelo sr. Anthero de Seabra, conservador do Museu Bocage. O exemplar está incompleto mas sem que as difficiencias impeçam a sua determinação. A' memoria do sabio naturalista B. du Bocage dedicamos esta especie, como homenagem da nossa saudade. A's especies que acabamos de apontar temos ainda a accres- centar as seguintes, em que concorrem particularidades ainda não mencionadas até agora, relativas principalmente ao seu habitat Xenodermichtys socialis, Vaillant Vaillant Expedit. scient. du Travailleur et Talisman. Poissons, pag: 162º PIXEL (1, AL sai Com o auxilio d'uma lente vimos que a pelle do exemplar que estudámos apresenta d'uma maneira clara as rugosidades longitudi- naes que o Dr. Grinther considera como um dos caracters do genero Xenodermichthys, e que o Prof. Vaillant diz que não viu nos numerosos exemplares que observou. À existencia de 27 raios na barbatana dor- sal e de outros tantos na anal, as relações da altura com o compri- mento levam-nos a considerar, sem duvida, o individuo que estudáâmos, Memorias DO Museu Bocage 29 comparamos com os exemplares da mesma especie offerecidos pelo Prof. Vaillant ao Museu Bocage, como um representante da especie X. socialis. O exemplar a que nos referimos foi encontrado no estomago d'um esqualo, o Centrophorus squamosus, Mull. et Henle., colhido a 15 milhas S. SO. do Cabo de Espichel e a 1:150 inetros de profundidade. Todos os exemplares colhidos pela expedição de Talisman e do Travailleur foram colhidos na costa de Marrocos, do Soudan e Banco de Arguim. Dado o excellente estado em que se encontra o exemplar que temos presente, que não está sensivelmente alterado pela digestão, é licito concluir que tinha sido ingerido pelo Centrophorus squamosus não muito longe do ponto onde este foi pescado. E” portanto uma es- pecie a acerescentar ás que se encontram nos logares profundos do Oceano Atlantico visinhos de Portugal. (Pertence à collecção de peixes da Commissão Central de Pes- carias). Plagyodus ferox, Lowe Lowe. Alepisaurus ferox. Proc. Zo0l. Soc. 1833. pag. 104. — Ca- pello. Cat. Peixes de Portugal, pag. 17. — Plagyodus feror Griinth. Voyage of Challenger Zool. t. XXII, pag. 203. — Alepisaurus feroz, Good and Bean Oceanic Ichth, pag. 117. A expedição do Challenger não colheu nenhum exemplar d'esta especie e o Dr. Gunther refere-se na sua obra, que citamos, unica- mente aos exemplares colhidos no Ilha da Madeira, affirmando toda- via que esta especie vive na profundidade do Oceano sem todavia fixar a quantos metros tem sido colhida. Capello apenas dá noticia d'um exemplar, pescado sem duvida nas costas de Portugal, cita o nome vulgar que lhe dão os nossos pescadores, Lirio-ferro, o que nos leva a crer que é relativamente commum mas não diz em que ponto da nossa costa foi colhido. Na colleeção de peixes pertencentes à Commissão Central de Pescarias existe um exemplar d'esta especie que foi colhido à pro- fundidade de 180”, ficando portanto fixado o seu habitat na região costeira do Oceano Atlantico, chamada mar de Bouval, a vinte mi- lhas da Barra de Lisboa. 30 Memorias DO Museu BocaGgE Hoplostethus mediterraneus, Cuv. et Val. Cuv. et Val Hist. nat. des Poiss. t. 1v. Pl. 97 bis. — Trachichthys pretiosus, Lowe Fishes of Madeira, pag. 55, tab. 9. — Hoplotethus me- diterraneus, Grúnth. Cat. Fish. Brit. Mus. t. 1, pag 9. Hoplostethus me- diterraneus, Goode and Bean. Ocean Ichth. pag. 189, fig. 208. Especie nova para a fauna de Portugal, pescada a 200 metrus de profundidade a oeste do Cabo Raso. Dois exemplares pertencentes à colleeção da Commissão Cen- tral de Pescarias. Centrolophus pompilus, (Gm) Cuv. et Val. (Gm.) Cuv. et Val. Risso. Ichth. Nice 180. — Cuv. et Val. t. 1x, 884. Pl. ccrxix. — Griúnth. Cat. Fish. 1, pag, 403. — Goode and Bean. Ocean. Ichth. pag. 214, fig. 222. Capello menciona esta especie no seu catalogo, mas não diz onde foi pescada. O exemplar a que nos referimos n'esta noticia foi colhido n'uma rêde valenciana destinada á pesca da sardinha nas vi- sinhanças de Setubal, Costa da Galé. Foi offerecido ao Museu Bocage pelo Snr. Luiz Gonzaga do Nascimento. Coelorhynchus atlanticus, Lowe (Lowe). Goode and Bean Lepidoleprus coelorhynchus, Risso, Ichth. Nice, 1810, 200. Pl. vm, fig. 22. Poiss. Eurp. Mer. mm, pag. 244. — Ma- er ourus coelorhynchus, Bonap. Faun. Ital. Pesci. Gunth. Cat. Fish. 1v, 392. — Vaillant. Exp. Sc. Travailleur et Tális... Poiss. 247, Pl. xx, fig. 3. — Macrurus (Coelorhynchus) coelorhgnchus, Gunth. Challenger. Report xxr, pag. 128. Coelorhynchus atlanticus Goode and Bean, Ocean, Ichth. pag. 397. O exemplar que temos presente foi encontrado dentro do esto- mago d'um Merlucius vulgaris, Flem. adquirido no mercado. Foi offe- recido ao Museu de Braga pelo Snr. Dr. Carlos França. Não é a primeira vez que n'este trabalho se citam exemplares de especies que vivem a grande profundidade e encontradas intactas ou quasi inctatas no apparelho digestivo d'outras especies. À' no- ticia d'este exemplar podemos juntar ainda a d' um outro, represen- Memorias Do Museu Bocage 31 tante d'outra especie, mas que tem uma proveniencia egual e que é tambem muito rara nas costas de Portugal; referimo-nos a um exemplar de Capros aper, L. e'que foi offerecido ao Museu pelo Snr. à Mendes, empregado do Museu Bocage. Do Coelorhaynchus attilanticus não ha noticia alguma de ser colhido nas costas de Portugal a não ser a que hoje publicamos. , Trachyrhynchus trachyrynchus, Risso. Risso. Lepidopterus trachyrhyncus, Risso Tehth. Nice, pag. 197, PI, 7, fig. 21 e Eurp. Mered. 111, p. 243. — Macrurus trachyryncus, Capello, Cat. Peixes de Portugal, pag. 32.— Trachyrhincus trachyrhincus, Giúnth, Challenger Report. Zool. t. xxrr, pag. 152. PJ. xtr, fig. €. Apesar de Capello ter mencionado esta especie que foi colhida em Setubal, todavia todos os naturalistas a consideram como um ha- bitante exclusivo do Mediterraneo. Sem duvida é rara, mas encontaa-se no Oceano Attlatico e é conhecida dos nossos pescadores, que lhe chamam ERRO fio user 0UTO. O Museu Bocage possue quatro exemplares colhidos nas aguas “de Portugal, sendo tres adquiridos no mercado de Lisboa. A Commissão Central de Pescarias possue um exemplar de Prachyrhyncus trachyrhyncus, Risso, que foi colhido na costa de Cas- caes, na região conhecida com o nome de Mar da Risca. Este exemplar mede 22 pollegadas de comprimento ; é portanto muito maior do que os que foram estudados pelo Dr. Griinther e que tinham sido pescados em Nice. Podemos tãobem fixar n'este escripto a profundidade a que se encontra esta especie — 225 metios (125 braças) — dado que se não faz menção em nenhuma das obras em que se descrevem os peixes que vivemno Oceano Attlantico e a grande distancia da sua superficie. Chimaera dubia, n. sp. (Est. III. fig. 1) À especié a que damos este nome distingue-se de todas as ou- tras do mesmo genero, conhecidas até agora, por ter a cauda extre- mamente reduzida, por ter a linha lateral voltada para cima na re- glão em que nas outras especies a mesma linha se inflecte para da | Memorias DO Museu Bocage baixo; as barbatanas peitoraes não attingem metade do comprimento do sulco da anal, emquanto que na Ch. monstrosa, Linn, as abdomi- naes attingem o primeiro terço d'este sulco. Na Ch. monstrosa a ex- tremidade das peitoraes excede a extremidade da primeira dorsal, emquanto que na nossa especie apenas attinge a extremidade d'esta barbatana. A segunda barbatana dorsal é mais alta proximo da cauda do que quasi em todo o resto da sua extensão. Esta barbatana não apresenta nenhum entalhe como ó que se observa na Ch. mons- trosa e n'outras especies do mesmo genero, continua-se, assim como a anal, com a caudal que é rudimentar. A cauda esiá muito reduzida e termina por uma membrana si- milhante ao tecido que forma parte da anal. À extremidade poste- rior da nossa especie termina arredondadamente descendo a linha dorsal, subindo a linha ventral, até se encontrarem. O diametro maior do olho mede 0,"04 na nossa especie em- quanto que na Ch. monstrosa mede 0,”03 segundo Moreau. O systemã canaliculado se é na verdade muito similhante ao que apresenta a Ch. monstrosa mostra todavia algumas differenças ; por exemplo a linba lateral sobe attingindo o maximo da altura pro- ximo da origem da primeira dorsal, isto na Ch. monstrosa, na nossa especie desce e forma um angulo agudo cujo vertice está voltado para a face ventral. À altura é contida um pouco mais de seis vezes no comprimento total, e a cabeça medida desde a extremidade do appendice cinco vezes. Comprimento total 0,261. A côr geral é castanha mais ou menos carregada, marmoreada. de branco, excepto na face abdominal que é branca mais ou menos pontuada de castanho. | O nosso exemplar foi colhido pelos pescadores da Nazareth e e adquirido durante a exploração que fizemos na costa de Portugal, no anno de 1907, em setembro. Apesar dos caracteres que encontramos na especie que acaba- mos de apontar serem tantos e tão differentes dos que apresenta a Ch. monstrosa, Linn. exitâmos bastante tempo antes de a conside- rarmos como uma especie nova do genero Chimaera, pensando que estavamos em presença d'um individuo anomalo da especie Ch. mons- trosa, dum individuo d'esta especie que tivesse nascido sem a cauda que o caracterisa, ou que a tivesse perdido na lucta com os seus ini- Memorias Do Museu Bocage Do migos. O que nos levava a pensar assim era a identidade quasi albso- luta, do systema canaliculado da nossa especie e o mesmo systema da Ch. monstrosa; mas todos os outros caracteres que deixamos apon- tados são tão differentes, não só dos d'esta especie como dos de quasi todas as outras que são conhecidas, que entendemos que de- viamos consideral-a como nma especie nova e não como um indi- viduo mutilado da especie monstrosa de Linneu. Uma consideracão theorica influe tambem no nosso espirito | para concluirmos assim; a tendencia à reducção de segmentos ou an- neis da região caudal manifesta e evidente em muitas classes dos vertebrados e dos invertebrados. A Chimaera monstrosa possue uma cauda e um filamento caudal muito longo, e é este um dos caracteres d'esta especie, emquanto que a Ch. afinis, Capello e a Ch. Jardani, Ta- naka e Ch. Owstoni, Tanaka, possuem caudas e filamentos mais ou menos reduzidos. Não poderá admittir-se pela razão apontada, a tendencia à reduceção da parte posterior do corpo evidente em tantos generos de peixes e bem manifesta nas Chimaeras, que a nossa especie apresenta n'um grau mais avançado essa reducção, de resto tão cla- ramente reconhecida em outras especies do mesmo genero ? Pensa- mos que sim. Portanto, tem tambem a nossa especie um manifesto valor theorico como documento comprovativo da tendencia à reduc- ção do numero dos segmentos constituintes do organismo claramente visivel nos arachnideos, vermes, peixes, batrachios, etc. Selache maxima, Cuvier Em nenhuma das obras que consultámos ácerca d'esta. especie, em que lemos a sua diagnose! ou em que observámos as figuras * Basking Shark. Yarrell. Brit. Fish. t. II pag. 508 — Fig. = Couch. Hist. of the Fish. t. I pag. 60 — Est. XIV. Selache maxima — Bocage e Capello Peixes plagiost. pag. 14. Selachus maximus. Dekay, New-York. Faun. Fish. pag. 237. — PI. 68. fig. 208. Selache maxima, Gunther. Cat. Fish. Brit. Mus. t. VII pag. 394. o Blainvilii, Capello. Jorn. Se. Math. Phys. e Nat. t. II pag. 233 — fig. SR maximus, Moreau, Hist. N. Poiss France t. 1 pag. 305 fig. Cetorhinus maximus, Goode and Bean. Oceanic Ichth. pag. 21 — Fig. 17 Jordan and Everman. Bull Unit States. Nat. Museum. t. I pag. 51 — Pl. VII fig. 28. 34 Memorias Do Museu BocaGE que a representam, encontrámos descriptas ou desenhadas as fórmas da cabeça d'este peixe, tal como a apresentamos na estampa II (fig. 1, 2 e 3), phototypias de dois exemplares de Selache maxima um dos quaes nos foi enviado de Setubal pelo sr. L. G. do Nascimento e o ou- tro pelo capitão do porto de Tavira, sr. Carlos Pereira. Em todas as obras que citamos na nota, descreve-se a cabeça d'este peixe dizendo- se que é pequena, e que tem o focinho arredondado. Apenas a dia- gnose de F. Capello, na obra que mencionamos, diverge das linhas geraes de todas as descripções, dizendo que o focinho do peixe es- tudado por elle é proeminente e prismatico, quadrangular, com um mamillo na extremidade. Moreau cita um exemplar de esqualo do museu de Gênes que tem o focinho muito comprido, arredondado e terminado em ponta e que por este motivo foi classificado com o nome de Selache rostrata. Não ha duvida que differentes exemplares de Selache maxima apresentam uma disposição do focinho bastante diversa da que se encontra geralmente descripta, e é certo tambem que uma das ca- beças de Selache que possuimos (Est. III. Fig. 2) se approxima do exemplar que foi descripto com o nome de Selache rostrata, consi- derado por Moreau que teve occasião de o estudar, como perten- cente a um individuo novo de Selache maxima. Inclinamo-nos para esta opinião de Moreau, em presença do exemplar adquirido ha pouco pela Museu Bocage. Não possuimos senão a cabeça que representa- mos na Est. II (fig. 1 e 2); 0 resto do peixe tinha sido destruido quando a obtivemos; mas pela disposição, fórma, numero dos dentes e tambem pelos caracteres derivados do estudo do apparelho respiratorio, con- cluimos que se trata d'um Selache maxima ainda pouco desenvolvido, emquanto se não poder demonstrar com rigor que se trata dama nova especie de genero Selache. A nossa photographia foi tirada quando o exemplar estava ainda fresco, conservando inteiramente a fórma que tinha em vida quando foi colhido por uma rêde de pesca em Setubal ou proximo de Setubal. O outro exemplar (fig. 3 da mesma estampa) que tambem nos foi enviado incompleto, os pescadores tinham-lhe cortado as barba- tanas peitoraes, havia entrado conjunctamente com os atuns numa rêde destinada à pesca d'este peixe na costa do Algarve, em Tavira. Era uma femea, e embora Capello falle na sua diagnose, já citada, ammilar existente no focinho do exemplar que elle se conserva no Museu Bocage, todavia esse orgão não lesenvolvimento nem a fórma que apresenta o da cabeça que | memoria. representamos. O exemplar a que alludimos aqui Memorias Do Museu Bocage EsrT. 1 Fig. 2— Muraenosaurus giintheri n. g.n. sp. Fig. 5 e 6 — Himantolophus reinhardti, Liitken. ae 7 [paid à Memorias po Museu Bocage BIS. TI Fig. 1— Chiasmodon bolangeri, n. sp. Fig. 2— Chiasmodon niger, Johnson. Fig. 3 — Argyropelecus bocagei, n. sp. 5 BITO] 5 Memorias DO MusEU Bocage Esr. III Fig. 2— Selache maxima, Cuvier (cabeça vista pela parte superior). Fig. 4 — Outra cabeça de Selache maxima, Cuvier (vista de perfil). APPENDICE Á MEMORLA INTITULADA Contribuição para o conhecimento da fauna Bathypelagica visinha das costas de Portugal POR BALTHAZAR OSORIO Depois de publicada a Memoria precedente, o Museu Bocage e a Commissão Central de Pescarias adquiriram mais alguns exempla- res de peixes das grandes profundidades do Oceano. Vamos dar noticia d'elles n'este appendice, accrescentando com esta noticia os conhecimentos ácerca da fauna maritima de Portu- gal, tão interessante por diversas circumstancias, e entre ellas pela sua tão rica fauna Bathypelagica. Eis a enumeração das especies obtidas ultimamente : Notas ácerca do fragmento d'um peixe pertencente ao genero «Lophius», Artedi 1— O fragmento de peixe a que nos vamos referir, não per- tence, segundo crêmos, a nenhuma das especies conhecidas do gene- ro Lophius, mencionadas ou descriptas até agora; mas a falta da quasi totalidade do exemplar não nos permitte afirmações absolutamente seguras, deixando para outros investigadores, a quem porventura se depare a especie de que nos limitamos a apresentar alguns caracte- res que podémos reconhecer, a sua descripção completa. Vae reproduzido na estampa 1.º o fragmento a que alludimos, dum peixe, sem duvida da profundidade, colhido pelos pescadores de Peniche e que foi enviado ao Museu Bocage pelo Ex.”º Sr. Carlos França. À cabeça não é achatada, deprimida como a das outras especies do genero Lophius é pelo contrario bastante elevada. Não nos parece que a contracção motivada pelo formol aonde a peça está immersa, 1 38 Memorias Do Museu BocacE nem a separação dos tecidos a que esteve ligada, podesse determinar a configuração actual e que a photogravura representa. Existem dois tentaculos grandes, molles, medindo 0",015, e collocados d'um e d'ou- tro lado e à distancia de 0",02 d'uma eminencia aonde está implan- tado o ultimo dos raios destacado da primeira dorsal, mas é certo que esses tentaculos, quando existem, mesmo nos exemplares de di- mensões enormes, dois metros de comprimento, não adquirem as di- mensões dos que vemos no fragmento a que nos reportamos. Os olhos muito grandes estão situados n'um plano quasi vertical e não horizontal, como acontece nas outras especies conhecidas do genero. Além dos espinhos do supercilio que se notam no Lophius piscatorius, Linn., existe um no bordo superior da orbita. A côr da pelle é negra, ligeiramente acastanhada, como se nota em alguns peixes da grande profundidade de mar. 2. Chaunax pictus, Lowe. Trans. Zool. Soc. Lond., III, 1846, 339. PI. LI. — Giinth., Cat. Fish., II, 1861, pg. 200. — Giinth., Challenger Report., XXI, 1887, Pl. X, Fig. A.— Vaillant, Exp. Se. Travailleur et Talisman, 1888, pag. 343, Pl. XXVIII — Alcock, Ann. and. Mag. Nat. Hist., 1889, 381. — Jordan and Evermann, Bull. Unit. St. Nut. Mus. Fishes, Part. III, 2726. O exemplar que temos presente, e que é, segundo crêmos, re- presentante d'uma especie que até agora não tinha sido apontada como havendo sido colhida nas costas de Portugal, differe um pouco das diagnoses e caracteres apresentados pelos diversos naturalistas que a teem descripto. No exemplar a que alludimos encontramos DiI- AY O tentaculo não é pedicelado, é cylindrico em todo o seu com- primento, e os filamentos em que termina são negros. Existem den- tes no pavimento da bocca e nos ossos pharyngeos. No nosso exem- plar ambas as barbatanas ventraes estavam voltadas para dentro, in- vaginadas. Não notámos a existencia de nenhum dos canaes fimbriados do systema mucifero a que se refere Giinther na sua diagnose (Challen- ger, loc. cit., pag. 58); não existem tambem os filamentos nos labios (labial fringes) mencionados por Good and Bean. Ha vestigios de côr rosada n'algumas regiões, nomeadamente nas barbatanas abdominaes. 2 Memorias po Museu BocacE 39 O individuo que temos presente mede 0",24 de comprimento ; é portanto maior que os exemplares colhidos pela expedição do Ta- lisman, o mais comprido dos quaes media apenas 0", 144, Não podemos marcar precisamente o ponto em que foi colhida a especie a que nos referimos. Podemos dizer apenas que foi en- contrada nas costas de Portugal, ou de Marrocos, pelos vapores de pesca. Todavia concluiremos dizendo, que entre as regiões em que até agora tem sido colhida esta especie, a que mencionamos, é a mais visinha das costas da Europa. Até agora sabia-se apenas que se tinha alcançado a grande profundidade na Madeira, Cabo Verde, Estados Unidos (New-Engiand), Ilhas Fiji, Mar do Japão e Bahia de Bengala. Pertence à Commissão Central de Pescarias. 3. Schauliodus Sloani, Schneider. Chuuliodus setinotus, Bonap., Fam Kal. Pese., e. fig. — Gimth., Cat. Fish., t. V, pag. 392. — Exp. Se. du Travailleur et Talisman, pag. 102. — Good and Bean, Ocean. Ichth., pag. 76. Esta especie, que tem sido sempre colhida a uma grande pro- fundidade, 1123 metros na costa de Marrocos (Expedição de Talis- man); 1570 pés na Bahia de Bengala, etc., foi encontrada proximo da praia da Nazareth. O estado do exemplar obtido perto da costa de Portugal, mos- trou-nos que havia já um principio de decomposição dos tecidos quando foi colhido, mas, de resto, a forma geral, e muitos dos seus caraeteres especificos estavam quasi completamente intactos, sendo possivel a sua determinação. E” natural pensar, dado o seu estado de conservação, que o pei- xe a que nos referimos provenha d'um logar profundo, não muito longe da Costa da Nazareth, aonde teem sido egualmente obtidos ou- tros exemplares, que vivem nas grandes profundidades do Oceano Atlantico, e que teem sido citádos por nós, Julgou-se durante muito tempo que o Schauliodus Sloani, Sch- neider, se encontrava apenas no Mediterraneo. (Vid. Gunther, Mo- reau, etc.). O ponto do Oceano Atlantico, mais proximo das costas da Eu- ropa, em que tinha sido colhido até agora, antes d'esta noticia, é a ilha da Madeira. 40 Memorias Do Museu BocagE Na costa de Portugal nunca foi adquirido nenhum individuo, a não ser o que mencionamos. O nosso exemplar mede approximadamente 0",19 e foi-me offe- recido pelo sr, Antonio Brilhante, da Nazareth. 4. Mitsukurina Owstoni, Jordan. «Description of a species of Fish. from Japan», Proc. Cat. Acad. Se., 3 de ser., Zool., I, pag. 199-204, Pls. XI-XXI, San Francisco, California, 1898. — «A review of the Elasmobranchista fishes of Japan», by David Starr. — Jordan and Henry W. Fowler, Proceed of the U. S, National Meseum, vol. 26, 1903, pag. 620-622, Pl. XXVI and XXVII. — Idem, vol. 28, 1905, pag. 815. — «Notes on an adult goblin shark», (Mitsukurina Owstoni), by Bar- ton A. Bean. — «Odontaspis nasutus», Bragança. — Resultados das Investi- gações scientificas de D. Carlos de Bragança, Ichthyologia, II, pag. 48, Est. I. Esta interessantissima especie que ainda ha muito poucos an- nos não era conhecida dos naturalistas e de que só havia noticia de se encontrar nos mares do Japão, foi colhida não ha muito nas costas de Portugal, na Figueira da Foz, e o exemplar que a representa e a que nos referimos, encontra-se no Museu de Zoologia da Univer- sidade de Coimbra. Em agosto d'este anno, 1910, foram colhidos a 130 braças de profundidade, na Povoa de Varzim, dois exemplares, um dos quaes foi adquirido por nós para o Museu Bocage. Juigamos que do exemplar pertencente ao Museu de Coimbra não foi dada noticia em nenhuma obra scientifica, pois apesar das nossas diligencias não encontrámos menção d'elle, sabendo apenas que a especie foi determinada pelo Professor Ginther, e que foi co- lhida na localidade que indicamos. O exemplar vae representado na estampa II, fig. 1,2 e 3,é evidentemente d'um individuo novo, pois mede 1”,48 (desde a extre- midade da cauda à ponta do focinho). Conseguimos apenas obter a pelle, que mandáâmos encher. Nenhum caracter importante podemos accrescentar ás diagnoses que consideramos completas e que estão incluidas nas obras que ci- tamos na bibliegraphia. Ao dar noticia d'esta especie temos em vista sómente assignalar o facto interessante do encontro, nos mares da Europa, e especial- mente na costa de Portugal, de peixes de que temos noticia de se en- contrarem apenas nas aguas japonezas. 4 Memorias Do Museu Bocage 41 Não é todavia a primeira especie de peixes do mar do Japão que tem sido encontrada nas costas de Portugal. Já no Jorn. de Se. Math. Ph. e Naturaes, publicado pela Academia das Sciencias, vol. 8, 2.º ser., pag. 186, tinhamos mencionado o Echneis albescens que havia sido colhido adherente a um exemplar de Jaimanta (Cephaloptera; pescada nas proximidades de Cascaes. Adiante, e n'este mesmo escripto, alludimos a outros peixes da profundidade, e colhidos egualmente nas proximidades de Portugal, e que até ha pouco eram apenas incluidos na fauna dos mares do Japão. Havendo razões tão incontestadas para admittir senão a abso- luta identidade das faunas das regiões profundas dos mares, por se darem n'ellas condicções mesologicas similhantes, mas pelo menos grande analogia, a existencia de peixes communs nos mares de Por- tugal, e de esponjas, como por exemplo as do genero Hyalonema, (Hyalonema Sieboldi, Gray, Japão e Hyalonema lusitanica, Bocage, Se- tubal) corroboram esta opinião. Accrescentamos a esta nota um facto interessante relativo à especie determidada por D. Carlos de Bragança e que vem descripta no seu livro intitulado Resultado das Investigações scientificas feitas a bordo do Yacht Amelia, pag. 48 e seg. Descreve-se ahi como especie nova o Odontaspis nasutus, que segundo a nossa opinião, é identica ao Mitsukurina Owstoni, Jordan. Não ha duvida, que a familia Odontaspididae fica muito proxima da familia Mitsuburinidae mas distinguem-se, sem dificuldade; a segunda é constituida pelos generos dos peixes, Mitsukurina, J ordan, e Scapanorkynchus, do Eocene, que apresentam como caracter mais importante, o focinho muito comprido e achatado. (5) Nenhum dos livros que se occupam de ichthylogia, que existem no Museu Bocage, ao mencionarem os caracteres de genero Odon- (!) The family (Mitsukurinidae) is closely alled to the Odoritaspididae, differing in the produced snout. Mitsukurinidae. Skeleton flexible, snout produced in a flat, flexible blade varying in length... In the latter genus, (Scapanorhynchus) however, the rostral blade is much longer than im Mitsukurina... Proc. of the Nat. Mus., XXVI, pag. 620. 5 492 Memorias Do Moseu Bocage taspis, designa o focinho achatado e comprido, que é característico, como dizemos, do genero Mitsukurina, que comprehende peixes viven- do na actualidade. Assim Moreau, por exemplo, diz por si e pelos ichthyologistas que menciona na synonymia: Dents semblables de forme, mais variables de longuer aux deux má- choires, amant une pointe médiane allongée et un ou deux petits cônes de chaque côté; pas de dent médiane ni en haut mi en bas. A la machoire superieure deuxiéme et troisiéme dents trés grandes, suívies d'une ow plu- sicurs dents trés-petites faisant lacune; aprés cette lacune une longue dent, puis autres, à la file, diminuant par degrés ("). Ao occupar-se dos caracteres da familia Odontaspidae, referindo-se ao focinho, Moreau diz apenas museau pointu e nada mais. Mas vejamos a descripção do genero Odontaspis eseripta por um dos ichthyologistas mais eminentes, o dr. A. Giinther, baseada na observação dos exemplares existentes no British Museum e na leitura das obras de Agassiz e de Miiller e Henle: The first dorsal fin opposite to the space betwen the pectoral and ventral, without spine ; the second and the anal not much smaller than the first dorsal. No pit at the root of the caudal. Side of the tail without keel. No membrana nictitans, spriacles minúte, pore-like, above the angle of the mouth. Mouth crescent shaped, wide. Teeth large, awl-shaped, with one or two small cusps at the base (2). Giinther inclue o genero Odontaspis, conjunctamente com ou- tros, na familia Lamnidae, e nos caracteres d'essa familia não se encontram, como acaba de vêr-se, entre os caracteres genericos, re- ferencia alguma à forma especial do focinho. Os notaveis ichthyologistas americanos Jordan e Everman iden- tificam o genero Odontaspis ao genero Carcharias, Rafinesque; ao estabelecerem os caracteres de familia, referindo-se ao focinho dos peixes que n'ella incluem, dizem sómente, the snout sharp (*) e nada mais. Não vale a pena continuar a transcrever diagnoses do genero Odontaspis feitas por distinctos naturalistas, para mostrar que não (1) Poiss. de la France, t. 1, pag. 291. (2) Cat. Fish., ete., VII, pag. 392. (3) Jordan and Everman, The Pishes of Nort America, Part. I, pag. 46. 6 Memorias DO Museu BocaGE 43 existe n'ellas nem a allusão nem a menção de focinho extraordinaria- mente desenvolvido e achatado que é caraterisco dos peixes perten- centes à familia Mitsukurinidae e do genero Mitsukurina, Jordan. O proprio D. Carlos de Bragança achou tão anomalo o caracter que apresenta o peixe que incluiu no genero Odontaspis, e que cita entre os que pertencem ao Odontaspis nasutus, para o distinguir das outras especies já conhecidas do mesmo genero que diz «Quiz no principio attribuir a uma questão de idade (") o prolongamento ex- cessivo do focinho, na minha nova especie, e pensei que o O. taurus poderia apresentar uma variação analoga á do Cetorhinus maxi- mus, Gunner, etc. (2) Evidentemente não se trata d'um caracter que se modifica pro- (1) O ilustre ichthyologista americano A. Bean diz na obra que acima citamos, ao oecupar-se d'um novo exemplar de Mitsukurina Owstoni, Jordan, adquirido pelo Museu dos Estados Unidos, que o focinho e a cauda se redusem com a idade porque no exemplar a que se refere, o segundo sobre que incidio um estudo, uma femea, medindo 11 pés, portanto o maior exemplar de Mitsu- kurima conhecido até agora, adistancia que vae do focinho ao olho é contida uma vez e um terço na distancia que vae do olho á ultima abertura branchial, emquanto no exemplar typo de especie, o que foi descripto por Jordan e outros, a distancia da ponta do focinho ao olho excede um pouco (slightly exceeds) a distancia que vae do orgão da visão à ultima abertura do apparelho respi- ratorio. Diz mais, que o comprimento da cauda é contido duas vezes e trez quartos no comprimento total do exemplar typo da especie, emquanto que no individuo que estudou, a cauda é comprehendida trez vezes e um terço. Destes factos conclae que o focinho e cauda encurtam com a idade. A meu ver os factos apresentados por M." A. Bean seriam provativos se se tratasse de indi- viduos do mesmo sexo, ambos q ou ambos ?, mas tratando se d'um macho e duma femea, parece-me que deve antes atribuir-se ao sexo as differenças nota- das, do que á idade. Infelizmente não podemos confirmar ou infirmar a idea de Bean com as medidas colhidas no nosso exemplar. Falta uma porção da pelle justamente na região em que estão appensos os orgão sexuaes. Em todo o caso, as medidas que tomámos são as seguintes: da extremidade do focinho ao diametro vertical do olho 0" 22: de diametro virtical do olho ao bordo posterior da ultima abertura branchial 0”,19. Comprimento da cauda 0”,45; fica portanto o seu comprimento comprehendido tres vezes e quasi um terço no comprimento total. Altura do corpo ao nivel da origem das peitoraes 0",12. A cabeça é con- tida tres vezes e um pouco mais de metade de comprimento. (2) 3.º A” primeira vista, pelo seu focinho chato triangular e muito com- prido (Joc. cit.). =] “4 44 Memorias DO Museu BocaGE fundamente com a idade visto que os seis exemplares de que ha. noticia, e conheço todos de visu, ou pelas estampas, o apresentam, sendo todavia de differentes dimensões, o que pode attribuir-se sem duvida à idade e talvez tambem a diversidade de sexo. O exemplar de Mitsukurina Owstoni, Jordan, typo da especie, exis- tente na Universidade de Tokyo mede 42 pollegadas ou seja 07,924. O exemplar existente no Museu dos Estados Unidos, 11 pés ou 2" 42. O exemplar do Museu da Liga Naval, 17,110. O exemplar em poder do Museu da Universidade (?) O exemplar do Museu Bocage, 1” ,48. O exemplar existente no Museu da Universidade do Porto (?) O focinho do Cetorhinus maximus, Gunner, apresenta na verdade differentes formas, mas não está demonstrado que as variações, e tão diversas são, sejam devidas às differentes idades dos individuos. Demonstrado fica, a meu vêr, que o peixe descripto por D. Car- los de Bragança não pertence ao genero Odontaspis, porque não apre- senta os caracteres d'este genero, mas pertence ao Mitsukurina visto que apresenta o caracter que a este genero atribuem os naturalis- tas, que se teem oceupado delle. Demonstrarei agora que é um individuo pertencente à especie Mitsukurina Owstoni, Jordan. Creio que o meio mais simples, e mais correcto, de dar a demons- tracção, é pôr em confronto as duas diagnoses e as figuras que repre- sentam os dois individuos descriptos, o que foi encontrado nos mares do Japão e o que foi alcançado pelos pescadores de Cezimbra e clas- sificado por D. Carlos de Bragança, a quem o offereceram. Vejamos : Body elongate comprened behind... Depht about 10 (in lenght) — Head to first gill opening 4 5 Caudal, measured from above 2 + im length of body. Head moderate ; snout produced in a long, flat flexible, leaf-like blade, somewhat like that of Polyodon spatu- la but narrower, more limp and more Corps allongé, comprimé à partir de la tête jusqu'au tronçon de la que- ue qui est plate, sans caréne latérale. Hanteur contenue 10 fois, queue 3,0 e tête 4, 4 dans la longueur totale. Tête large; museau plat, trés allon- gé, formant, avec une ligne tirée au devant des yeux, un triangle isoscéle dont la hauteur égale 2 !/; de la base. Memorias DO Musbu BocagE 45 pointed; median line of snout with thick, rounded mediam keel; (!) .. eye small... --- mouth inferior, with elongate cleft; (2)... thout teeth in front, teeth few rowed about “4 ou cach side, all meedle-sha- middle of each jaw wi- ped, very slender, pointed, more ou less curved backward and inward; each tooth with a two-rooted base, large teeth in front simple, smaller ones on sides of jaws each with two small basal cusps; second and third tooth of lower jaw longest; .. first and second tooth of supper jaw similar to these but somewhat shorter; late- ral teeth of both jaws progressively smaller, but all slender and sharp; nostrils large, about as large as eye, their distance from eye twice the eye. Spiracle large (º). ««-first dorsal short, moderately high. ..the insertion above axil of pe- ctoral, (*) second dorsal lower... the insertion nearly midway betwen ven- trals and anal; ...pectorals short, --.ventrals with very long base... anal much longer than second dorsal, Máchoire supérieure dépassant Vinfé- rieure. Portion prés-orale d'un tiers plus longue que la fente buccale. Narines à mi-distance entre I'ceil et le bord amn- terieur de lamachoire supérieur. Events petits, mais bien définis, un peu en dessus et en arriére de Vangle de la bouche. Oeil petit; !/; de Vespace in- terorbitaire. Dents- 2º semblables de forme aux etc deux machoires, mais variables de lon- guer à chacune d'elles. Base large se rétrécissant subitement en une pointe crochue, acérée, munie à sa base sur les latérales d'un petit denticule de chaque côté. Pas de dent médiane. A la máchoire supérieure 1º et 2º les plus longues, sub-égales; 8”* un peu plus courte; 4º trés petite; 5” à 15º" continuant la 3º et diminuant insensiblement jusqu'a un amas de dents trés courtes. A la máchoire in- ferieur, 1º* de moitié plus courte que la 2º" qui est la plus longue, les sui- vantes vont en décroissant de façon régulitre jusqu'á un amas de dents trés courtes. Dorsales à peu pres égales, la 2”* un peu plus petite, étroites, sub-pa- raliéles, couchées en arriére, un peu arrondies au bord. Origine de la pre- miére situé un peu ou arriére du mi- lieu de la longueur du corps (museau à la base de la queue); son extrémité (1) Este caracter é bem nitido no exemplar descripto por D. Carlos de Bragança e que actualmente existe no Museu da Liga Naval. (2) Este caracter, tambem não mencionado é bem visivel no exemplar a que alludimos na nota anterior. (*) Este caracter não concorda com o que se lê a respeito delle na descripção de D. Car- los de Bragança, como adiante poremos em evidencia. (1) Encontramos differença a que adiante nos referimos. 46 Memorias Do Museu Bocage rather lower... lower lobe of caudal | atteint presque Vorigine des ventrales. long and rather high; with a sharp | Origine de la 2”* au niveau de Vex- notch near its tip. trémité des ventrales; son extrémité atteint le milieu de "anale. Pectorales courtes, sub-paralléles, arrondies at- teignant presque le milieu de la base de la premiére dorsale Ventrales lar- ges à leur base qui fait presque le double de la base de la premiére dor- sal, courtes arrondies, dirigés en ar- riére. Anale identique à une des ven- trales, son extrémité atteint la base de la caudale. Caudale droite et large à sa base, sans lobes definis; une pe- tite échancrure à Vextrémité. claspers very short (perhaps immatu- Appendices 9 nn peu plus courts re), nearly 12 in head; que les veutrales. Skin everywhere rough, the scutes Peau un peu rude; scutelles trés very small granulated (!). petites armées d'une épine médiane courbe dirigée ou arriére. Color light reddish gray brownish Coloration blanc légérement jauna- above, fins darker brown... belly | tre rosé; bord des nageoires et des paller (Jordan). fentes branchiales noirátre. Transcrevemos integralmente a descripção feita por D. Carlos de Bragança e posemos em presença d'ella os caracteres menciona- dos por Jordan e Fowler na sua diagnose de Mitsukurina Owstoni pu- blicada nos Proceedings of the United States National Museum, vol. XXVI, 1908, pag. 621 e seg. (2) A descripção dos naturalistas americanos menciona alem dos caracteres que transcrevemos, outros que suprimimos, propositada- mente, por não se encontrar na descripção de D. Carlos mais ne- nhum que possamos approximar d'elles; são caracteres que D. Car- los não cita, medidas que não tomou, ou que referiu a outra uni- dade. Todavia esses caracteres que Jordan e Fowler inscreveram na (!) Tambem ha differença, como diremos adiante. (*) A review of the Elasmobranchiata Fishes of Japan. 10 Memorias Do Museu BocaçE 47 sua obra, mas a que não alludimos, servem-nos para nos confirma- rem a nossa opinião de que Mitsukurina Owstoni, Jordan e Odontaspis nasutus, Bragança, constituem uma só especie, é justificada. De resto a comparação das figuras pertencentes ás duas estam- pas que reproduzimos é absolutamente a favôr da identidade que defendemos. Em tres dos caracteres mencionados na diagnose de D. Carlos não ha concordancia, como fizemos notar anteriormente, com os que são referidos da diagnose inserta nos Proceedings dos Estados Unidos (*). As differenças notadas n'esses caracteres teem importancia so- menos; a côr dos peixes é bastante variavel e mudavel nos indivi- duos da mesma especie para que os naturalistas attribuam à côr um caracter valioso a que deva attender-se para extremar especies; por este motivo não assignalamos que haja differença, nas duas espe- cies que comparamos; maior importancia tem sem duvida o facto de o spiraculo do Odontaspis nasutus, ser como diz a descripção, pequeno, emquante que o spiraculo de Mitsukurina Owstoni, é, como diz a descripçção de Jordan, large e m'um outro ponto, spiracle a little smaller than eye. No nosso exemplar, como no que existe no Museu da Liga Naval o spiraculo é pequeno e bastante menor do que o olho. O terceiro caracter, em que encontramos differença, diz respeito à situação da primeira dorsal. Na obra de D. Carlos de Bragança encontra-se a informação de que a origem della fica situada um pouco para traz da metade do comprimento do corpo (focinho á base da cau- dal); a sua extremidade attinge quasi a origem dos ventraes ; este caracter apresenta tambem o exemplar que existe no Museu Bocage, o que estudámos, e vae representado na Est. II, fig. 1, 2 e 3. À situação da 1.º dorsal é, segundo Jordan e Fowler, que se referem ao exemplar de Mitsukurina Owstoni, descoberto nos mares do Japão a seguinte: the insertion above axil of pectoral. Nota-se portanto nos exemplares (!) Na deseripção do Mitsukurina Owstoni, Jordan, feita por Jordan and Fowler (loce. cit.), diz-se que os escudetes da pelle são granulosos. .. the scutes very small, granulated... emquanto que na obra de D. Carlos de Bragança se diz scutelles tres petites armées d'une épine mediane courbe dirigée au armiére. Pare- cerá que ha differença, mas não ha, pois que as figuras que representam a pelle dos dois peixes, tidos como differentes, são eguaes no pormenor, como pode ver-se, comparando-as. 11 48 Memorias po Museu BocaGgE encontrados em Portugal que a primeira dorsal está situada um pouco mais para traz do que no exemplar japonez. Sendo as differenças de côr e as dimensões do espiraculo acima notadas de somenos valôr, deveremos crear já uma variedade de Mitsukurina Owstoni do Oceano Atlantico, ou devemos esperar que o estudo dos exemplares colhidos nos mares orientaes permittam confirmar ou fazer desapparecer esta divergencia ? Não queremos deixar de acentuar o facto interessante de que tendo sido o Mitsukurina Owstoni encontrado apenas nos mares do Japão e não havendo até ao presente uma unica noticia de que se tenham encontrado individuos da mesma especie, n'outros mares, (!) é interessante que se tenham colhido nas costas de Portugal quatro individuos d'esta especie que existem actualmente na Universidade de Coimbra, no Museu da Liga Naval, no Museu Bocage e no Museu da Universidade do Porto ("). 5. Chlamydoselachus anguineus, Garman. Bull. Essex. Inst., XVI, 1884, 3 (Wood cut) — Bull. Mus. Comp. Zool., vol. VIII, n.º 1, 1885 plates. — «Chlamydoselache anguinea», Gunth., Chal- lenger Report, XXII, 2, pls. LXIV e LXV. — «Chlamydoselachus anguineus», Good amd Bean, Icht., pag. 22, fig. 22. — Jordan and Everman, The Fishes of North and Mid. America, t. I, pag. 16. — Carlos de Bragança, Resul- tado das investigações scientificas, pag. 26. A especie que citámos já tinha sido contada entre as especies de peixes colhidos na costa de Portugal. Foi obtida pelos pescadores (1) Captain Ovston has had engravings of this species made, and scattered them far and wide among the japanese fishermen, but until 1902 he found no second specimen and no one who knew the fish. In a recent lether. (November, 1902) he announces the acquisition of another specimen. Loc. cit., pag. 622. Percorremos os differentes volumes do Zoological Riccord, a partir de 1902, mas até 1909, data do ultimo volume publicado, não encontrámos no- ticia de alguem se ter occupado d'esta especie, a não ser nas publicações que citâmos, mas encontrámos no volume de 1905 dos Proc. of the Un. States a nota interessante de que, devido ás investigações de M.” Custeni, tinham sido colhidas algumas femeas e machos em Kosu proximo de Odawara (Japão) à profundidade de 300 a 400 pés. As femeas tinham sido pescadas na primavera. Da nova noticia deprehende-se que o peixe é bastante conhecido dos pescado- res japonezes que lhe chamam Tengu-zame e que extrahem oleo do figado. 12 q E o [) Estampa 1 acht Amelia INVESTIG, SCIENT Esqualos de Portt YZ E Tá CAN | 54 PEIN DN EX ] “ETA À 1 " a | Ea = UMÍSTRADORA Reproducção reduzida da estampa do livro de D. Carlos de Bragança, intitulado Resultados das investigações ventificas. Cabeça e tronco do exemplar de Mitsukurina Owstoni, que existe no Museu Bocage visto pela face superior. MITSUKURINA OWSTONI JORDAN. FOR EXPLANATION OF PLATE SEE PAGE 621. = HLUSTRANORA Reproducção da estampa publicada nos Proceedings of National Museum de Washington, t. XXVI, 1908. "AMPA | n q A £ A v A = = ES == % == 1 Estampa II Chlamydoselache anguineus, Garman. Fragmento da cabeça d'um peixe pertencente ao genero Lophius, Artedi. Memorias DO MusEU BocaGE 49 de Cezimbra. O exemplar que mencionamos n'este escripto foi pescado na costa de Marrocos. Apesar das diligencias que fizemos não conseguimos apurar se foi colhido no Mediterraneo ou no Oceano Atlantico, o que seria inte- ressante fixar. Fica todavia augmentada por esta nota a area geographica em que esta especie se julgava comprehendida até agora. Pertence à collecção de peixes da commissão central de pesca- rias o exemplar que mencionamos aqui. Mede 1",60 de comprimento. Nota relativa á alimentação do «Selache maxima», Cuvier No anno passado foram colhidos, em Lagos, diversos exemplares de Selache maxima, de dimensões maiores ou menores, apresentando a cabeça d'estes peixes conformações diversas, mas nenhuma distineta das que já são conhecidas, e que teem sido mencionadas em diferen- tes obras portuguezas ou estrangeiras sobre ichthyologia. A respeito da alimentação d'este peixe existem algumas duvidas, dizendo-se por exemplo na obra de Yarrell, 4 History of British Fi- sher que Linneu affirma que se alimenta de medusas, e que Pennaut pensa que come plantas maritimas; a Lowe pareceu-lhe feita de crus- taceos esmagados uma massa vermelha polposa que encontrou no es- tomago d'um d'elles. Achei interessante juntar a estas observações a que foi colhida pelo Ex."º Sr. Augusto Henrique Metzner, capitão do Porto de Lagos e distincto official da marinha portugueza. Abrindo o estomago dum individuo pertencente à especie a que nos referimos, de grandes dimensões, e que accidentalmente ficou presa nos cabos d'uma armação de sardinha collocada perto da bahia de Lagos, reconheceu que estava completamente cheio d'um liquido avermelhado, côr de vinho, tendo em suspensão detritos, que todavia não eram de peixes; pequenos farrapos, talvez fragmentos d'algas vermelhas. O peixe era extremamente timido, pois apenas se sentiu preso não se tornou a mexer, de contrario, attendendo à sua enormi- dade, teria causado graves prejuizos à arte de pesca em que se em- baraçou. 13 * o ot a a! A Pes A ELA ICI ge vt has 7 Pd vup: aco pipas to ri bia edil tolas pão É pn, in o nata e bit » M q: + ed o tvs assi io au dad PS id FO Add ra nm Mig abit fo qto mi nu do id ae opor tds He Aran ri tio culo ho es E MA, ta j = a É pool Mt a air Tal: ' ] X 44 e e”. y ' x ) mma ta vp rLes» ET AN ER DER dl ' Ro n E ' 1 VE . ” ) á ia Le É k i i | ; «SISTER e) sots? Gl | rurogonth à myitalam PRIUA b q k | Ê , k R Wei ! , DR | pármicA ts , RR VP ' LP) EN ADA UPS q OA ) ts . ' a ne j , bl [ray de top fist is 14 a fit ti eos I IRATI bh RR al EIA 70 E y it Int: ] ] ts eta BH, Eh pesei b J es + À z li TRE j à to tóde Lu Cult: " EE o ab ' * ne PR ui “a A dali had. ; Ê ? E + , 3 d Eq ) A : 4 NE pt 1 poda eat cd ate PA E 1 a | ; toibesia ad. 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Ea (A Td Rr RR AND O PRETO O vor EI Peixes colhidos nas visinhanças do archipelago de Cabo Verde POR BALTHAZAR OSORIO Accentuando-se, no actual momento, o interesse pela pesca nas visinhanças da costa occidental d'Africa, e no mar das ilhas que lhe ficam proximas, pareceu-me que a publicação de uma obra, sobre a fauna ichthyologica do archipelago de Cabo Verde, e da Guiné, seria opportuna, visto que os portuguezes começam a intentar a explora- ção duma industria, que a França procura desenvolver em paragens muito proximas dos dominios de Portugal (). No Museu Bocage existem numerosas especies de peixes africa- nos provenientes do Oceano Atlantico que banha as regiões que men- ciono. D'algumas d'essas especies deram noticia os fallecidos natura- listas portuguezes F'. Capello e R. Guimarães e eu proprio. Confinando-me nos limites prescriptos a esta memoria, mencio- nando apenas os trabalhos de nacionaes, direi, apenas, que ás 39 es- pecies indicadas por elles nas listas a que alludo e que foram publica- das no jorn. Sc. Math. Ph. e Nat., juntei em tempo mais nove, elevan- (') M. Gruvel, professeur à la faculté des Sciences de Bordeaux, vient d'être chargé, par le gouvernement de I'Afrique occidentale française d'orga- niser et de diriger par une période de dix ans, les pêcheries du banc d'Arguin prês desquelles il séjournera chaque année pendant trois mois. En outre, il fondera à Paris un office de recherches, et d'organisation des pêcheries de V'Afrique occidentale française comprenant un Musée, une colle- ction de documents et un laboratoire de recherches appliquées, et on s'oceu- pera de tous les questions concernant les pêches, des demandes de renseigne- ments et de la mise en exploitation. — Rev. Seient., n.º 2, Juin 1906, pag. 702. 1 o bo Memorias Do Museu BocagE do-se portanto a 48 o numero de especies de peixes determinadas e conhecidas do Cabo Verde existentes no Museu Nacional de Lisboa. As que tinham sido colhidas na Guiné portugueza estavam re- presentadas nas nossas collecções apenas por 11 a que juntei 5 mais n'uma noticia tambem publicada já ha muitos annos. Depois da publicação das notas ichthyologicas a que alludo es- teve nas ilhas de Cabo Verde e na Guiné o explorador naturalista portuguez F. Newton que ali colheu numerosos exemplares zoologi- cos e entre elles os peixes de que n'este escripto dou noticia. Não é sob o ponto de vista méramente scientifico que entendi que esta publicação terá alcance; viso tambem a que tenha alguma influencia no commercio e industria piscicola das nossas possessões africanas, e especialmente na de Cabo Verde, e que alguma coisa della possa aproveitar aos que pretenderem explorar uma industria que poderá muito provavelmente vir a ser rendosa. As pescarias da costa occidental d'Africa já interessaram sem duvida os portuguezes d'outras eras, conheceram incontestavelmente a grande importancia que tinham os bancos de peixes africanos, visto que existem vestigios de que se estabeleceram em logares em que o peixe era proveitosamente secco e salgado, quando a nossa industria piscicola se exercia num ambito muito mais vasto que o actual. Porque motivo abandonaram os nossos antepassados um commer- cio que devia talvez ter sido lucrativo, dada a abundancia, variedade, excellente qualidade das especies colhidas, a existencia de minas de sal no ilheo que tem este nome, e no da Boa Vista, e as boas condic- ções climatericas de regiões nossas, favoraveis ás diversas operações a que os peixes são sujeitos antes de entrarem no mercado ? Sem investigações muito especiaes, que teriam agora um alcance meramente historico, é licita apenas a conjectura que foi a decaden- cia geral em que se encontrou o paiz por diversas causas, e entre ellas o despovoamento, a emigração para outras paragens em que se per- petravam negocios mais lucrativos, a exploração e a conquista da Ásia e da America, a perda da independencia e as causas que della derivaram, mesmo talvez a descoberta de outros logares de pesca que então pareceram ostentar maiores vantagens, que influiu no abandono das pescarias africanas. E” possivel que a descoberta do banco de bacalhau da Terra Nova, de que foi donatario João Alvares 2 Memorias DO Museu BocaGE 53 Fagundes, um fidalgo que habitou em Vianna do Castello, se porven- tura não era natural da linda cidade minhota, influisse no desvio dos pescadores portuguezes da costa africana. Encontrei no livro de Ber- thelot, que cito adiante, que Corte Real, no começo do seculo xvi, tendo notado a affluencia extraordinaria de bacalhaus no grande banco da Terra Nova. indicara esta mina fecunda aos pescadores eu- ropeus. Só Aveiro, pela sua parte, mandava para lá mais de sessenta navios. Pinho Leal attribue a descoberta do banco de pesca americano a maritimos d Aveiro (”). Paul Bert e Blanchard affirmam que outr'ora iam pescar à Ame- rica centenas de barcos portuguezes (*); mas outros documentos nos ficaram que não deixam duvida de que os portuguezes foram em tem- pos remotos pescar à costa d'Africa, e que souberam aproveitar-se das circumstancias que em determinadas regiões eram particular- mente favoraveis à industria da pesca. Um livro que se intitula De la pêche sur la côte occidental dº Afrique, publicado em 1840 pelo illustre naturalista Sabin Berthelot, em que elle procura demonstrar que são mais vantajosas as pescas africanas do que as que se realisam na costa da America, menciona alguns dos factos comprovativos da existencia da industria piscicola exercida pelos portuguezes, na Africa occidental, ha muitos seculos. Segundo uma nota que segundo diz lhe foi fornecida pelo Vis- conde de Santarem, os marinheiros de Lagos, e d'outras terras do Al- garve, já em 1444 iam pescar ao Cabo Bojador, e ao de Geer, ao Rio do Ouro, e a uma angra que ficou nas cartas com o nome dos ruivos, proveniente da abundancia dos peixes assim chamados, que n'ella havia. Sob os auspícios do Infante D. Henrique, os portuguezes estabe- leceram na costa d' Africa pescarias tão importantes, que deixaram maravilhados os mouros do Sahara. D'essa industria pagavam tributo ao infante. À Azamor, antes de a conquistarem, lam os portuguezes carre- (1) Dic. antigo e moderno, palavra Aveiro. (2) Dejá, dés 1578, la France envoyait par an 150 navires au banc de Terre-Neuve, "Espagne 125, le Portugal 50, VAngleterre 40. Paul Bert et Blanchard, Elements de Zoologie, pag. 411. 3 54 Memorias Do Museu BocaGgE gar navios com o peixe magnifico que era pescado nas embocaduras do Omm-er-R'bie'h. Lopes de Sequeira, segundo o testemunho do Visconde de Santa- rem, invocado por Berthelot, tendo nctado a enorme quantidade de peixe na costa de Geer, communicou a sua descoberta a El-Rei D. Manuel, e notou-lhe como seria vantajoso para Portugal, concorrer áquellas paragens, com barcos que explorassem a pesca. Parece que esta informação de Sequeira, ligada a outros interesses politicos, de- terminaram D. Manuel a mandar construir o castello chamado de Santa Cruz, na embocadura do Sus, para proteger estas pescarias que se tinham tornado numa das escolas praticas da marinha d'então. Estas notas tiradas das obras a que me refiro confirmam d'uma maneira completa a minha referencia ácerca do interesse consagrado pelos portuguezes do seculo xv e xvr às pescas africanas; accrescen- tarei ainda, e apenas com o intuito a que alludo, algumas noticias que ficam bem longe de constituir um estudo completo sobre um as- sumpto, embora descurado, todavia tão curioso e interessante, para a historia da nossa influencia e dominio. Não affirmei apenas que os portuguezes tinham pescado e com- merciado com o peixe colhido na costa d'Africa. Disse tambem que o peixe colhido ali era excellente. Algumas das especies que adiante menciono são bastante co- nhecidas nas regiões europcas do Atlantico para que me demore a louvar-lhes as qualidades; todavia affirmando um naturalista tão dis- tincto, como é Berthelot, alguns factos em que se revela o apreço com que são tidos certos peixes, entendo que se devem apontar, di- zer quaes são. Berthelot refere que na costa se encontram algumas especies de peixes do genero (Gadus, o mesmo genero em que está incluso o Ga- dus merlangus, Linn, o bacalhau que frequenta as paragens do norte d' America, e diz d'esses peixes o seguinte: La morue de ces parages est meilleur que celle du banc de Terre Neuve... () «.. le poisson salé des Isleiios (os habitantes das ilhas Canarias) qui peut égaler en quantité et surpasser même la meilleure morue de Terre Neuve, n'a plus compté parmi les produits d'exportation depuis que les Bis- (*) Loc. cit., pag. 142. Memorias Do Museu Bocage bo cayens et les Portugais ont cessé d'exploiter les mers d' Afrique, et quils ont lwissé le champ libre à des pecheurs insouciants. (!) Mas não é só a qualidade que deve interessar quando se trata d'uma exploração industrial; é tambem a quantidade. O cardume de peixes que frequenta as paragens do Oceano Atlantico, visinhas da costa africana, é de tal maneira abundante que o illustre naturalista a cuja opinião nos reportamos, diz que emquanto vm só pescador das ilhas Canarias, pode colher no decorrer de um anno 10:714 kg. de bacalhau, um pescador da Terra Nova não consegue alcançar mais do que 400 kg. (?) O mesmo resultado pode exprimir-se por outras palavras: para conseguir pescar no banco americano, a mesma quantidade de peixe que um só homem colhe nos mares d'Africa, que indico, são precisos 26 homens. Uma especie de peixes africanos que attinge segundo Berthelot as dimensões d'um salmão, o Cybiwm tritor, de Cuvier, é de tal maneira abundante que Berthelot (*) afirma que emquanto na Terra Nova quatro homens pescando n'uma canôa à linha, colhem mais de seis- centos bacalhaus em doze horas, egual numero de homens podem em algumas horas obter um carregamento completo d'uma chalupa, por- que basta meia hora para colher quinhentos dos peixes que menciona. Ainda o mesmo auctor encontra outras vantagens nas pescas africanas comparadas com as americanas; melhor clima, melhores productos e um banco de peixe de 150 leguas. Alguns dos peixes africanos são muito apreciados, e numa outra obra que Berthelot escreveu em collaboração com Webb, um sabio distincto, Histoire natwrelle des iles Canaries, encontram-se esclarecimen- tos e indicações proveitosas a respeito d'elles. E” natural que dos pei- xes citados no hivro a que acabo de me referir, e que foram colhidos - nas ilhas Canarias, alguns sejam designados com nomes portuguezes. Por exemplo, ao Pomatomus telescopius, Risso, chamam-lhe Bocane- gra e Ribalto do alto; Curvina, Roncador, à Umbrina ronchus, Webb et Berth.; Freira à Brama Rai, Bl.; e Peixe pegador ao Echeneis nau- crates, Webb e Berth. (!) Loc. cit., pag. 144. (2) Loe. cit., pag. 145. (*%) Loc. cit., pag. 149. 56 Memorias DO Museu BocagE Mas é preciso justificar que os peixes, obtidos na costa d' Africa, são um alimento excellente. R O peixe chamado vulgarmente Sama, nas Canarias, o Serranus acutirostris, Cuv., é tão abundante e tão gabado que os pescadores Islenos, que se entregam à chamada grande pêéche, carregam barcos com elle. O Salmonete, Mullus barbatus, Linn., é tão abundante para o oriente das Canarias, que Webb e Berthelot dizem «qu'on pourrait tirer parti de cet excellent poisson en le salant ou en le marinant, á cause de Pabondance de sa pêche». Nas costas de Portugal apparece um peixe a que os nossos pes- cadores dão o nome de Sargo veado; tambem lhe chamam Olho de Boi. E' o Sargus cervinus, Lowe. Este peixe é abundante nos ma- res d'Africa, apparece aos cardumes em toda a costa, e é dotado de um sabor excellente. A Sama, nome vulgar que tambem nas ilhas Canarias dão ao Chrysophrys coeruleosticta, Webb et Berth., apparece em tão grande quantidade nas suas visinhanças, que se podem ás vezes pescar cin- coenta tonelladas. Dizem Webb e Berthelot que é um peixe muito bom, e que os habitantes do archipelago canariense o salgam con- servam para comer no inverno. Um outro peixe a que nas Canarias chamam Sama poquero, per- tencente ao mesmo genero dos peixes que apparecem nas costas de Portugal, e a que o povo chama pargo, o Pagrus Bertheloti, attinge pelo menos meio metro de comprimento e é julgado um peixe de muito boa qualidade. Um outro peixe africano, que anda distribuido n'uma vasta extensão dos mares, pois attinge no hemispherio aus- tral a ilha de Bourbon, é pelas suas qualidades comparavel ao sal- mão, e a um salmão exquis. Chamam-lhe 5s habitantes das Canarias Salmon de alto. E” o peixe conhecido na sciencia pelo nome de Nemo- . brama Webbii. Juntarei tãobem que as especies colhidas no archipelago de Cabo Verde e designadas com os nomes Serranus cabrilla, Linn.; Serranus gigas, Cuv. et Val.; Cantharus lineatus, Giúnth.; Box vulgaris, Quv. et Val.; Boa salpa, Cuv. et Val.; Sargus vulgaris, Ginth.; Sargus Rondeletii, Cwv. et Val.; Sargus annularis, L.; Sargus cervinus, Lowe; Pagellus marmyrus, Cuv. et Val.; Julis pavo, Cuv. et Val.; são especies bem conhecidas, que muitas vezes se encontram nos mercados de Portugal onde são 6 Memorias Do Museu Bocage 5T designadas pelos nomes vulgares seguintes: Garoupa, Méro, Choupa, Boga, Sargo, Alcarraz, Sargo veado ou Olho de Boi, Ferreiro e Judia. Nas costas de Portugal apparece um peixe que é conhecido pelo nome de Escolar, e pelo mesmo nome é conhecido nas Canarias. Attinge nos mares d'este archipelago pelo menos, muito mais de um metro de comprimento, e anda em grandes cardumes. E” tido em muito apreço pelo sabor delicado que possue. Mas são os peixes de genero Gadus, genero a que pertence o peixe pescado na Terra Nova e vulgarmente conhecido pelo nome de Bacalhau, que são tal- vez os mais interessantes, debaixo de diversos pontos de vista, e prin- cipalmente do da pesca. . Suppôz-se durante muito tempo que os peixes incluidos n'este genero, se encontravam nas regiões polares e julgou-se mesmo que só appareciam, exclusivamente, nas visinhanças do polo norte; reco- nheceu-se, porém, depois, que tanto em Chiloé como nas proximida- des do cabo Horn existiam peixes da Familia Gadidae, em grande abundancia. Webb e Berthelot, na obra que já citei, e d'onde tenho extractado alguns dos factos que aponto, afirmam peremptoriamente, que mais tarde se executarão pescas tão importantes no hemisphe- rio austral, e tão proveitosas. como as que actualmente se praticam no hemispheric do norte, apresentando egualmente a opinião. de que quando as leis da distribuição geographica dos peixes forem conhe- cidas melhor, se irão demandar nas grandes bacias, como na do Atlna- tico, outros peixes do genero Gadus que n'ellus existem. Entre as especies do genero Gadus, habitando a costa d'Africa, citam-se principalmente as seguintes: Asellus Canariensis, Webb e Berthelot. Conhecida nas Canarias pelo nome vulgar de Pescada. Attinge pelo menos 0",66 de compri- mento. Pesca-se durante todo o anno a uma profundidade de cem a duzentas braças. Bom alimento. Phycis limbatus, Val. E' conhecida na ilha de Lancerotte, e na Grande Canaria, pelo nome de Abriote; os pescadores de Teneriffe chamam-lhe Abadejo. Berthelot affirma que as duas especies de Gadus a que acabo de me referir, teem carne branca, resistente, substancial e dotada de excellente sabôr; affirma tambem que supporta todas as preparações a que é sujeito o bacalhau da Terra Nova. Apparecem estes peixes em numerosos cardumes serrados na costa d' Africa occidental adqui- q 58 Memorias Do Museu Bocage rem grandes dimensões; pescam-se individuos que pesam doze kilo- grammas. A pesca dos dois peixes que acabo de mencionar podia tornar-se muito importante, tanto ou mais talvez do que a que se executa no grande banco do norte, perto da ilha americana tão co- nhecida pela pesca do bacalhau. Mas não é sómente por causa dos peixes que as pescas de Cabo Verde devem interessar-nos; em Cabo | Verde pesca-se coral, e coral apreciado, e tanto, que estrangeiros lá vão procural-o. E” uma riqueza que está egualmente ao abandono, e que era preciso estudar, para que fosse devidamente valorisada, pela iniciativa intelligente e sapiente de quem por sua situação e encar- gos devia occupar-se d'ellas, como de tantas outras que possuimos, e que esperam ha muito pelos capitaes e attenções que merecem. A noticia que se segue, ácerca dos peixes de Cabo Verde, com- prehende todas as especies de peixes determinadas pelos naturalistas portuguezes, e especialmente aquellas que ultimamente foram deter- minadas por nós. Algumas das especies indicadas são inteiramente novas para a sciencia, ou pelo menos muito pouco conhecidas. 1. Myripristis Jacobus, Cuv. et Val. Hist. natur. des Powss., t. IX, pag. 162. — Grinth., Cat. Fish., Brit. Mus., t. I, pag. 19. Ão tractar d'esta especie, diz Cuvier, na obra que citamos, que antes d'elle ninguem tinha falado do Myripristis da America. Seja- nos licito referir, que antes de nós, nenhum naturalista mencionou esta especie como pertencendo à fauna africana. a) Um exemplar colhido no ilheo do Sal, pelo sr. F. Newton. b) Um exemplar colhido em Santhiago de Cabo Verde, pelo sr. Fontoura da Costa. Pertence à Commissão Central de Pescarias. 2. Myripristis viridensis, Trosch. Nha de S. Thiago. 3. Holocentrum hastatum, Cuv. et Val. Giinth., Cat. Fish., t. I, pag. 39. a; Um exemplar colhido na ilha de S. Vicente. b) Um exemplar colhido na ilha de S. Thiago. 8 Memorias po Museu BocagE 59 c) Um exemplar colhido na ilha de Santo Antão. d) Um exemplar colhido no ilheo Raso. 4. Apsilus fuscus, Cuv. et Val. Ginth., Cat. Fish., t. I, pag. 82. Habitat: Colhido na ilha de Santo Antão. Sr. F. Newton. 5. Serranus cabrilla, Linn. Gunth., Cat. Pish., t. I, pag. 106. Colhido na Ponta do Sol, ilha de Santo Antão. Especie nova para a fauna das ilhas de Cabo Verde. Sr. F. Newton. 6. Serranus taeniops, Cuv. et Val. Gunth., Cat. Fish., t. I, pag. 121. a) Ilha de S. Thiago. b) Ilha de Santo Antão. Ponta do Sol. Sr. F. Newton. c) Ilheo Raso? 7. Serranus gigas, Briinich. Gunth., Cat. Fish, t. I, pag. 1382. a) Ilha de Santo Antão. Ponta do Sol. b) Garça. 8. Serranus fuscus, Lowe. Gunth., Cat. Fish., t. 1, pag. 134. Santo Antão. Ponta do Sol. Esta especie tinha sido pescada na Madeira, nas Canarias e no Senegal. Os caracteres do nosso exemplar colhido em Cabo Verde concordam com os que teem sido mencionados nas differentes dia- gnoses com excepção do seguinte: a caudal é arredondada e não troncada; isto provém talvez de ser um individuo novo, pois mede 03/07: Tem 17 raios na dorsal, o que concorda com o que diz Valen- ciennes e não 15-16, como diz Giinther. 9 60 Mumorias DO Museu BocaGgE 9. Rhypticus saponaceus, Bl. Grinth., Cat. Fish., t. 1, pag. 173. Ilha de Santo Antão. Ponta do Sol. Sr. F. Newton. 10. Rhypticus arenatus, Cuv. et Val. Griinth., Cat. Fish., t. 1, pag. 173. Cabo Verde. Ilha de Santo Antão. Esta especie, que já tinhamos mencionado como fazendo parte da fauna africana, e dissemos ter sido colhida em Angola e na ilha d'Anno Bom, foi encontrada no archipelago de Cabo Verde. Julga- va-se antes dos nossos estudos que pertencia exclusivamente à fauna ichthyologica americana. 11. Lutjanus Maltzani, Steind. Beit. zur Kent. Fische Africa's, pag. 7, Est. HI, fig. 1. Ilheo do Sal. 12. Mesoprion chrysurus, Bl. Grimth., Cat. Fish., t. 1, pag. 186. “abo Verde. Ilha de Santo Antão ? Esta especie, que julgamos que é mencionada pela primeira vez entre as especies africanas, tem sido colhida até agora apenas no mar Caribbeo e nas costas do Brazil. Os caracteres do nosso exem- plar são concordes com os que menciona Griinther, com excepção das relações de comprimento ou altura da cabeça, que se contam 3 */ no comprimento total e não quatro vezes. Não julgamos, que por este ca- racter sómente, devamos crear uma especie, tanto mais que pode pro- vir de uma differença de idade ou de desenvolvimento de exempla- res, a differença que observámos. 13. Pristipoma bennettii, Lowe. Griinth., Cat. Fish., t. I, pag. 298. Ilheo do Sal Sr. F. Newton. O nosso exemplar mede apenas 0",85. 10 Memorias DO Museu BocacE 61 14. Pristipoma suillum, Cuv. et Val. Ginth., Cat. Fish., t. 1, pag. 302. a) Ilha de Santo Antão. b) Ilheo do Sal. 15. Gerres melanopterus, Blkr. Poiss. de Guiné, pag. 44, Pl. VIII, fig. 1. Tha da Boa Vista. Colhido n'um logar em que a agua dôce se mistura com a agua salgada. 16. Dentex acromegalus, n. sp. Est. I, fig. 1. PIPAS Do e Especie visinha do Denter vulgaris mas differindo d'ella pelos se- guintes caracteres: a altura do corpo está conprehendida 3 vezes e 92 p=) um pouco mais de — no comprimento total, e o comprimento da ca- beça quatro vezes : 0 diametro do olho tem a quarta parte do com- primento da cabeça; a largura do préorbital é menor que o diametro do olho; existem sete series de escamas entre o préorbital e o angulo do préoperculo; ha seis caninos com cada maxila, mas muito peque- nos se os compararmos com os mesmos dentes das outras especies do genero, todavia os da maxila inferior são um pouco maiores de que os da superior, mas todos de eguaes dimensões; o quinto espi- nho da barbatana dorsal é maior do que todos os outros e o seu com- primento fica comprehendido um pouco mais de duas vezes e meia no comprimento da cabeça; o terceiro espinho da anal é mais curto e não um pouco maior que o segundo, como acontece no Dentea vul- garis; os raios posteriores, tanto da dorsal como da anal, são mais compridos do que os precedentes. O maxilar inferior é muito desenvolvido em relação com os ma- xilares dos individuos representantes das outras especies, com que o podémos comparar, ou que são ficuradas nas obras descriptivas; O maxilar inferior é um pouco mais comprido que o superior. A côr dos trez exemplares que possuimos, e que estão em alcool ha muito tempo, é dourada e avermelhada, notando-se n'um d'elles, acima da linha lateral, manchas azuladas. 1 62 Memorias Do Museu Bocage O comprimento do maior dos nossos exemplares é 0",36, medido da extremidade da cauda à ponta do focinho. Colhido proximo da Ilha de Santo Antão por F. Newton. 17. Genyatremus angustifrons, Troschel. Bin Beitrag zur ichthyol. Fauna d. Inseln d. Griinen Vorgeb, pag. 208. Ilhas de Cabo Verde. 18. Smaris melanurus, Cuv. et Val. Giinth., Cut. Fish., t. 1, pag. 388. Tanto Griinther, como nós, tinhamos citado já esta especie como tendo sido colhida nas ilhas de Cabo Verde, sem todavia se precisar a região ou ponto proximo d'algumas d'ellas. O exemplar a que hoje nos referimos foi colhido na ilha de Santo Antão, n'um logar chamado Garça. Outro exemplar, do ilheo Raso ? 19. Upeneus prayensis, Cuv. et Val. Griinth., Cat. Pish., t. I, pag. 409. Esta especie já tinha sido mencionada numa lista de peixes per- tencentes ao Museu de Lisboa, como tendo sido colhida em Cabo Verde. Se a mencionamos novamente é porque podemos precisar o logar onde foram colhidos os novos exemplares encontrados. a) Ilha de Santo Antão. Sr. F. Newton. b) Ilha de Santhiago. Um exemplar pertencente à commissão central de pescarias e offerecido pelo sr. Fontoura da Costa. 20. Cantharus lineatus, Montagu. Grimth., Cat. Pish., t. 1, pag. 413. Ilha de Santo Antão. Sr. F. Newton. Esta especie já tinha sido citada n'uma das nossas publicações, mas sem designação precisa do logar em que tinha sido colhida. As listas que se vêem ao longo do corpo e que são mencionadas pelos naturalistas como um caracter d'esta especie, se na verdade se apresentam escuras, como se diz nas diagnoses, são primitivamente douradas. 12 Memorias Do Musku Bocage 63 21. Box vulgaris. Cuv. et Val. Giinth., Cat. Pish., t. I, pag. 418. Tiheo Raso. Sr. Newton. 22. Box salpa, Linn. Giinth., Cat. Fish., t. I, pag. 420. Theo do Sal. 23. Girella puntacta, Gray. Giúnth., Cat. Fish., t. I, pag. 427. O estudo de novos exemplares deu-nos a convicção de que esta especie se encontra realmente no Oceano Atlantico. Theo do Sal. Sr. Newton. 24, Girella zonata. Giinth. Giinth., Cat. Fish., t. 1, pag. 429. 'a) Ilheo Raso. Sr. Newton. b) Ilha de Santo Antão Garça. Num trabalho publicado por nós no Jorn. de Se. Ph. e Natur., t. VII, da segunda série, pag 98, affirmámos que o genero Girella se encontrava representado no O. Atlantico por uma especie que era conhecida, segundo Giinther, apenas dos mares do Japão e da China, a Girella punctata. Acabamos de confirmar o que então dissémos ao referirmo-nos à especie antecedente. Como acabamos de vêr, no Ilheo Raso do Archipelago de Cabo Verde foi colhida mais uma especie de genero Gírella, que até agora se julgava confinada nos mares da Australia e do Japão, a Girella conata. Foi Giinther quem primeiro descreveu esta especie, inscre- vendo-a no seu catalogo dos peixes, sem saber com certeza de onde ella provinha, pensando que seria da Australia. Fica provado que esta especie se colhe em Cabo Verde. Os exem- plares obtidos em Santo Antão, dezeseis ao todo, provam que ella é commum ali; são todos pequenos. o maior mede 0",8. 25. Sargus vulgaris, Geoffr. Griinth., Cat. Fish., t. I, pag. 487. a) Ilheo do Sal. 13 64 Memorias DO Museu BocaGE b) Ilheo Raso. c) Santo Antão. Sr. Newton. Esta especie, que se encontra no O. Atlantico tinha sido colhida na ilha da Madeira; não nos consta porém que se mencionasse em qualquer publicação noticia de ser colhida em região tão distante da costa occidental da Europa. 26. Sargus Rondeletii, Cuv. et Val. Griinth., Cat. Fish., t. I, pag. 440, a) Ilha de Santo Antão. Garça. b) Ilheo do Sal. c) Hheo Raso. d) Ilha de S. Thiago. Um dos exemplares provenientes de Cabo Verde a que nos refe- rimos apresenta n um dos lados quatro riscas e no outro seis. 27. Sargus annularis, L. Gm. Giinth., Cat. Fish., t. 1, pag. 445. a) Ilha de Santo Antão. b) Ilheo do Sal. Sr. F. Newton. 28. Sargus fasciatus, Cuv. et Val. Giinth., Cat. Fish., t. I, pag. 448. Hheo Raso. 29. Sargus cervinus, Lowe. Griinth., Cat. Pish., t. 1, pag. 448. Tha de Santo Antão ? Sr. F. Newton. 30. Lethrinus atlanticus, Cuv. et Val. Grinth., Cat. Fish., t. I, pag. 460. a) Ilheo do Sal. b) Ilha de Santo Antão. c) Ilha de S. Thiago. 14 Memorias Do Museu BocaçE 65 31. Pagellus mormyrus, Linn. Giinth., Cut. Fish., t. I, pag. 481. Ilheo Raso. Sr. Newton. Esta especie já tinha sido citada por F. Capello como tendo sido colhida na ilha de S. Thiago. 82. Scorpaena laevis, Troschel. Ein Beitrag zur ichthyol. Fauna d. Inseln d. Griinen Vorgeb, pag. 206. Ilhas de Cabo Verde. 38. Scorpaena scrofa, Linn. Giinth., Cut. Wish., t. II, pag. 107. Cabo Verde. Especie nova para a fauna d'este archipelago. 34. Scorpaena senegalensis, Steind. Beit. Kennt Fische Afril'as, pag. 15, taf. IV. Ilhas de Cabo Verde. 35. Dactylopterus volitans, L. Gm. Ginth., Cat. Fish., t. II, pag. 221. Esta especie já tinha sido mencionada por diversos ichthyolo- gistas como tendo sido colhida no Archipelago de Cabo Verde sem comtudo se mencionar mais precisamente a região. O nosso exemplar foi apanhado na Bahia da Cidade da Praia pelo Sr. Dr. José Pereira do Nascimento. Outro exemplar, proveniente do Ilheo Raso ? 36. Galeoides polydactylus, Vahl. Ginth., Cat. Fish., t. II, pag. 832. Ilheo do Sal. Sr. Newton. Especie nova para a fauna das ilhas de Cabo Verde. 37. Sphyrena dubia, Blkr. Poiss. de Guinée, pag. 70, Pl. XV, fig. 2. Ilha de S. Thiago. 15 66 Memorias DO Museu Bocage 38. Echneis remora, Linn. Giinth., Cat. Fish., t. II, pag. 378. Ilha de Santo Antão. Sr. Newton. O exemplar mencionado por nós n'uma lista publicada ante- riormente tinha sido colhido na ilha de S. Thiago. 39. Echneis brachyptera, Lowe. Giinth., Cut. Fish., t. II, pag. 378. Ilha de Santo Antão. Sr. Newton. Especie nova para a fauna das ilhas de Cabo Verde. 40. Blepharis sutor, Cuv. et Val. Giinth., Cat. Fish., t. II, pag. 454. Ilha de S. Thiago. 41. Caranx carangus, Bloch. Grinth., Cat. Fish., t. II, pag. 448. Ilheo do Sal. 42. Caranx crumenophtalmus, Bl. Giinth., Cat. Fish., t. II, pag. 429. Ilha de S. Thiago. 43. Caranx jacobaeus, Cuv. et Val. Gunth., Cut. Fish., t. II, pag. 427. Tha de S. Thiago. 44. Argyreiosus setipinnis, Gunth. Gumnth., Cat. Fish., t. II, pag. 459. a) Ilha de S. Thiago. b) Ilheo Raso. 45. Lichia glauca, Linn. Ginth., Cat. Pish., t. II, pag. 477. a) Ilheo do Sal. b) Ilha de S. Antão. 16 di Memorias Do Museu BocacE 67 c) Ilha de S. Thiago. d) Ilheo Raso. 46. Trachynotus myrias, Cuv. et Val. Giinth., Cat. Fish., t. II, pag. 483. Iheo do Sal. Sr. Newton. 47. Antigonia capros, Lowe. Griinth., Cat. Fish., t. II, pag. 487. Tha de Santo Antão. 48. Antennarius pardalis, Cuv. et Val. Giinth., Cat. Fish, t. II, pag. 198. Theo do Sal. Sr. Newton. 49. Gobius macrophtalmus. n. sp. Est. 1, fg. 2 e 3. Errei ACO o Pago Especie visinha do Gobius nigri, Giinth., (Cat. Fish., t. III, pag. 27), mas differindo della, por não estarem os olhos na nossa especie juntos (close together) como na especie descripta por Criinther e por existir uma abertura, um poro no ponto em que as duas orbitas ficam mais proximas uma da outra, e pelos caracteres seguintes. A altura do corpo é comprehendida 5 !/, vezes aproximadamente no comprimento total. O comprimento da cabeça é contido quatro ve- zes e um pouco mais dum terço no comprimento total. A cabeça é muito deprimida desde a extremidade do focinho até uma linha que passa tangencialmente pelo bordo posterior das orbitas; para alem d'essa linha a cabeça começa a elevar-se; a cabeça é larga. As nari- nas anteriores ornadas por tentaculo franjado, as posteriores muito perto do bordo anterior da orbita, mas simples aberturas pariformes. O focinho é mais curto do que o diametro do olho. As barbatanas dorsaes e a anal teem manchas negras sobre os raios. Os raios supe- riores da barbata peitoral filamentes simples curtos. Côr geral, amarella clara (exemplar conservado ha muito tempo em alcool). 17 68 Memorias DO Museu Bocage Raios superiores e inferiores da caudal, amarella clara, os inter- medios brancos. Comprimento 0”,087. Ilheo Raso — Expl. de Fr. Newton. 50. Blennius sanguinolentus, Pallas. Giinth., Cat. Fish., t. III, pag. 218. Esta especie que já foi mencionada por nós n'uma outra lista de peixes colhidos nas ilhas de Cabo Verde foi colhida na ilha de Santo Antão. Garça. 51. Blennius cristatus, Linn. Griinth., Cat. Fish., t. III, pag. 228. Nha de Santo Antão. Sr. Newton. Encontramos algumas differenças entre os caracteres apresen- tados pelo nosso exemplar e os que são mencionados por Griinther. O exemplar do Museu de Lisboa de maiores dimensões, tem uma côr escura, não apresenta faxas, mas numerosas pontuações um pouco abaixo da linha lateral e tanto mais claramente espalhadas quanto mais proximas da região thoracica e abdominal. As faxas a que se refere a descripção de Griinther são principalmente visiveis nos exemplares pequenos. O tentaculo da orbita é realmente curto mas franjado. Os outros caracteres conformes com a diagnose de Giinther. Esta especie tinha sido encontrada apenas na ilha da Ascenção; é portanto nova para a fauna das ilhas de Cabo Verde. 52. Salarias atlanticus, Cuv. et Val. Gimth., Cat. Pish., t. III, pag. 242. Ilha de Santo Antão. Especie nova para a fauna das ilhas de Cabo Verde. 53. Clinnus nuchipinnis, Quoy et Gaim. Giinth., Cat. Fish., t. III, pag. 262. a) Ilha de Santo Antão. Garça. Sr. Newton. b) Ilheo do Sal. 18 Memorias po Museu BOCAGE 69 Esta especie tinha sido incluida n'uma lista de peixes de Cabo Verde sem se dizer todavia na proximidade de qual das ilhas tinha sido colhido. d4. Acanthurus chirurgus, BI. Griinth., Cat. Fish., t. III, pag. 329. Esta especie já tinha sido apontada como pertencente à fauna de Cabo Verde; julgamos, sem poder afirmar com certeza, que foi co- lhida proximo da ilha de Santo Antão. 55. Mugil nigro-strigatus, Gtinth. Ginth., Cat. Fish., t. III, pag. 457. a) Hheo do Sal. Sr. Newton. b) Ilha de Santo Antão. Garça. Esta especie é nova para a fauna d'Africa. Grinther diz que se encontra nas Indias Oceidentaes na costa de S. Vicente. São nume- tosos os exemplares d'esta especie existentes no Museo de Lisboa e provenientes de Cabo Verde, o que nos leva a pensar que é abun- dante neste archipelago. 56. Pomacentrus leucostictus, Mull. et Trosch. Ginth., Cat. Fish., t. IV, pag. 31. Ilheo do Sal — Sr. Newton. 57. Glyphidodon saxatalis, Linn. Giimth., Cut. Fish., t. IV, pag. 35. a) Ilha de Santo Antão. Ponta do Sol. b) Ilheo Raso. Esta especie já tinha sido colhida na ilha de Santhiago. 58. Glyphidodon luridus, Cuv. et Val. Giinth., Cat. Fish. t. IV, pag. 56. 11 2 RR A 15 a) Ilha de Santo Antão. b) Ilheo do Sal — Sr, Newton. 19 rio) Memorias Do Museu Bocage 59. Glyphidodon Hoefleri, Steind. Beit. Kent. Fisch. Afrika's, pag. 27, taf. V, fig. 2. Ilheo Raso — Sr. Newton. 60. Glyphidodon chrysurus, Cuv. et Val. Griinth., Cat. Pish., t. IV, pag. 57. a) Ilha de Santo Antão. Ponta do Sol. b) Ilha de Santhiago. Sr. Foutoura da Costa. (Exemplar perten- cente à commissão central de pescarias). Esta especie já tinha sido mencionada por nós n'um trabalho so- bre os peixes da ilha de S. Thomé. () Tinhamol-a citado novamente como tendo sido colhida no Ilheo Raso. (?) Encontrámos no exemplar a que alludimos agora assim como n'aquelles a que nos referimos n'outros escriptos, uma formula das barbatanas differente d'aquella que apresenta o Prof. Giinther. 13 2 = 12 2) D m º A nO D 15-16 A 13-14 Convirá em virtude d'esta divergencia e das differenças que apontámos quando nos referimos aos caracteres da especie colhida na ilha de S. Thomé crear uma especie nova? Em todo o caso é uma especie nova a juntar à fauna d'África. 61. Heliastes cyaneus, Poey. Giinth., Cat. Pish., t. IV, pag. 64. Iheo do Sal. Sr. Newton. Especie nova para a fauna de Cabo Verde. 62. Cossyphus tredecim-spinosus, Giinth. Griinth., Cat. Pish., t. IV, pag. 107. a) Ilheo do Sal. b) Ilha de Santo Antão. Exemplar medindo 0",28. Sr. Newton. (1) Jon. Se. Math. Phys. e Nat., 2.º série, n.º VI, pag. 125. (2) Idem, 2.º série, n.º XXVI, pag. 101. 20 Memorias Do Museu BocaçE q“ 63. Novacula cultrata, Cuv. et Val. Giinth., Cat. Fish., t. IV, pag. 170. Ilha de Santo Antão. Esta especie já tinha sido mencionada por F. Capello como tendo sido encontrada em Cabo Verde. 64. Julis pavo, Hasselq. Giinth., Cat. Fish., t. IV, pag. 179. a) Ilha de Santo Antão. Ponta do Sol. b) Garça. c) Hheo Raso. Especie nova para a fauna de Cabo Verde. 65. Julis nitida, Giinth. Giinth., Cat. Fish., t. IV, pag. 190. Ilha de Santo Antão. Sr. Newton. A barbatana anal não era completamente branca mas tornou-se branca depois do exemplar estar algum tempo em alcool. Existe uma mancha escura no dorso ao nivel do terceiro quarto e quinto raio molle da barbatana dorsal e não dos espinhos como diz Griin- ther. A base das escamas abaixo da linha dorsal são escuras. Um pouco menos de metade da região inferior do corpo é clara. Todos os outros caracteres são similhantes aos apontados pelo Dr. Giinther. 66. Julis newtoni, Osorio. Jorn. Se. Math. Phys. e Nat., 2.º série, n.º VI, pag. 127. Ilha de Santo Antão. Sr. Newton. 67. Scarus cretensis, Aldrov. Giinth., Cat. Fish., t. IV, pag. 209. lheo Raso. Sr. Newton. 68. Scarus radians, Cuv. et Val. Griinth., Cat. Fish., t. IV, pag. 211. Ilheo Raso. Sr. Newton. 2 Memorias DO Museu BocagE 69. Chromis coeruleo-maculatus, Rochebrune. Poiss. du Senegal, pag. 109. Os exemplares desta especie que recebemos de Cabo Verde, e que são provavelmente provenientes das correntes d'agua dôce da ilha de Santo Antão, differem um pouco pelos seus caracteres, dos que são mencionados na descripção dada pelo naturalista Rochebrune. Teem quinze raios na barbatana dorsal e não quatorze. A altura do corpo é maior que tres vezes o comprimento total. A dorsal at- tinge apenas a raiz da caudal e termina quasi ao mesmo nivel que a anal, mas sendo todavia um pouco mais comprida do que ella. O dia- metro do olho tambem é pouco menor do que diz Mr. de Rochebrune. A posição das cinco manchas tambem é differente, havendo uma na raiz da caudal. 70. Chromis latus, Giinth. Griinth., Cat. Fish., t. IV, pag. 271. Ilhas de Cabo Verde. 71. Chromis microcephalus, Bleck. Gimth., Cat. Fish., t. IV, pag. 272. Nhas de Cabo Verde. Sr. Newton. Nos individuos novos a dorsal não attinge o meio da caudal como diz Giinther na diagnose d'esta especie. 72. Chromis tristrami, Giinth. (Haligenes tristrami); Gunth., Proc. Zool. Soctet., 1859, pag. 471, PL. 9, fig. B. — (Chromis tristrami), Griúnth., Cut. Wish., t. IV, pag. 269. 14-15 — A —. E 12 9 Esta especie que é, segundo cremos, incluida pela primeira vez n'uma lista de peixes de Cabo Verde, foi pescada n'uma das ilhas do archipelago sem que todavia saibamos em qual. Foi encontrada pela primeira vez nos lagos salgados e valas de Tugart, Sahara occiden- tal, e os exemplares colhidos descriptos por Giinther 73. Hemichromis fasciatus, Peters. Giinth., Cat. Fish., t. IV, pag. 274. Ilhas de Cabo Verde. | 9) [9] Memorias Do Museu BocagE 3 As faxas ou listas a que se refere o Prof. Giinther parece que são mais accentuadas nos individuos novos. Dos nossos exemplares, um medindo 0”,105 de comprimento, tem as faixas perfeitamente accen- tuadas, emquanto que se nota que são apagadas n'um que mede 0",14 de comprido. 74. Ophidium barbatum, Linn. Giinth., Cat. Fish., t. IV, pag. 377. Ilha de Santo Antão. Sr. Newton. 75. Chrysichthys maurus, Cuv. Giinth., Cat. Fish., t. V, pag. 72. Ilhas de Cabo Verde. Comparando a diagnose de Giinther com a de Cuvier, encontra-se uma differença importante pelo que diz respeito aos caracteres diffe- renciaes d'esta especie. Cuvier diz que os raios molles excedem mais de metade o espinho da dorsal, e é isto o que observamos no exem- plar que temos à vista. Giinther, que parece que não tinha visto ne- nhum individuo d'esta especie, diz que elle é half as hig as the soft rays, o que é differente. Pelo que respeita ás côres, encontramos di- vergencias nas diagnoses dos diversos naturalistas que descreveram esta especie. O nosso exemplar, conservado ha muito tempo em al- cool, é castanho escuro até à linha lateral, que é prateada; abaixo * d'essa linha é branco na região peitoral e abdominal. Os barbilhões na- saes são muito pequenos. O nosso exemplar mede apenas 0",125. Dos raios da caudal os inferiores são mais compridos de que os superiores. 76. Belone Lowii. Giinth., Cat. Fish., t. IV, pag. 236. Theo do Sal. 77. Belone caribbaea, Lesueur. Giinth., Cat. Fish., t. IV, pag. 241. Tha de Santo Antão. Ponta do Sol. Esta especie, que tem sido encontrada na America, na Jamaica, é uma das muitas especies que emprehendem grandes viagens ou de 28 T4 Memorias Do Moseu Bocage que são transportados os ovos que as reproduzem, pela corrente do golfo. E" mais uma especie a juntar à fauna ichthyologica africana e que julgamos portanto nova para a fauna das ilhas de Cabo Verde. 78. Clupea maderensis, Lowe. Giinth., Cat. Pish., t. VII, pag. 440. a) Ilheo do Sal. Sr. Newton. b) Ilha de S. Thiago (pertence à Commissão Central de Pes- carias). 79. Conger macrops. Ginth., Cat. Fish., t. VIII, pag. 40. Cabo Verde. Ilha de Santo Antão. Esta especie, que já tinhamos apontado como pertencente à fauna icthyologica da ilha de Anno Bom e das ilhas de Cabo Verde, parece que foi colhida proximo da ilha de Santo Antão pelo Sr. Newton. 80. Muraena melanotis, Kaup. Giinth., Cat, Fish., t. VIII, pag. 98. a) Ilheo Raso. b) Ilha de Santo Antão, Ponta do Sol. Sr. Newton. A noticia d'esta especie dada pelo catalogo do Museu britannico attribue-lhe como habitat apenas as ilhas de Cabo Verde. Tinha sido colhido n'este archipelago o exemplar que mencionámos na nota pu- blicada por nós ácerca dos peixes de Cabo Verde e anteriormente ci- tada. Podemos hoje circumscrever mais o seu habitat. Nos nossos exemplares prevalece a côr escura, com manchas cla- ras, mas os de maiores dimensões teem a parte superior clara aver- melhada e sem manchas, ou com muito poucas manchas. 81. Muraena miliaris, Kaup. Giimth., Cat. Fish., t. VIII, pag. 100. a) Jlheo Rombo. Sr. Newton b) Ilha de Santo Antão. Ponta do Sol. Esta especie era apontada como pertencendo apenas à fauna de Cuba e da Martinica. E' portanto nova para a fauna das ilhas de Cabo Verde. 24 Memorras DO Museu BOCAGE rês) 82. Muraena robusta, n. sp. Est. II, fig. 1. Tanto os tubos anteriores como os tubos posteriores das nari- nas são extremamente curtos, os primeiros não medem mais d'um milimetro de comprimento e os posteriores dois milimetros. O tubo posterior é tambem mais largo que o anterior; o seu comprimento está contido trez vezes no diametro do olho. O comprimento da cabeça comprehendido 7 vezes no compri- mento total. Dentes maxilares e mandibulares n'uma unica serie, for- tes, muito agudos, achatados com a ponta voltada para wraz; 22 de cada lado da mandibula; diminuição sensivel dos ultimos. Dentes intermaxillares e vomerianos mais pequenos que os lateraes; o segundo dos vomerianos o maior da região. Abertura respiratoria pequena, uma tenda cujo comprimento excede um pouco o diametro do olho; em volta della uma larga mancha negra, (n'um dos nossos exemplares maior que as maiores manchas que se notam no tronco e na cauda, e mais retinta do que ellas); a fenda respiratoria não está todavia no meio della mas proxima do seu bordo. A fenda mede 0",008. O diametro do olho é contido quatro vezes no comprimento do focinho. Abertura da boca larga, o seu comprimento mede um pouco mais de dois terços da distancia que vae do canto da boca à extremidade anterior da fenda branchial, A maxila inferior é mais comprida do que a superior. A cauda mais comprida do que a cabeça e o tronco reunidos, pois mede 07,39, emquanto que a cabeça é tronco medem 0”,36 conjunctamente. Grandes manchas acastanhadas, elyplicas e circulares desta- cando-se sobre o fundo geral acizentado cobrem todo o tronco, cauda e a barbatana dorsal; no espaço deixado por estas, outras manchas circulares mais pequenas, pois o diametro d'estas não excede em ge- ral 02,003 a 0,004; tanto umas como outras são mais comfluentes na cauda e acima da linha lateral, mas faltam completamente na cabeça. A pelle que cobre a cabeça e região anterior do tronco apre- senta um aspecto vermiculado n'umas partes, e n'outras vo que resul- taria de golpes repetidos dados verticalmente com um instrumento cortante e agudo. Comprimento total 02,75. 9 Ilha de Santo Antão — Ponta do Sol. to [Sl 76 Memorias DO Museu BocagE 83. Muraena bettencourti, n. sp. Est. II, fig. 2. Especie visinha da Muraena augusti, Kaup. (Giinth., Cat. Fish., t. VIII, pag. 97). Os tubos posteriores das narinas mais pequenos do que os an- teriores como na M. augusti, mas o comprimento d'estes é menor que o diametro do olho. Os dentes tanto da maxila superior como da inferior em duas series, os da serie interna muito maiores que os da serie externa. Dos dentes vomerianos só um é que é maior do que qualquer dos outros dentes. Diametro do olho, metade do comprimento do focinho. O olho fica collocado a egual distancia delle e do canto da boca. Abertura da boca, larga, contida aproxi- madamente duas vezes no comprimento da cabeça. Cauda um pouco mais de duas vezes e meia maior do que o tronco. Comprimento da cabeça contido duas vezes e meia no comprimento do tronco. Côr negra acastanhada. Todo o corpo salpicado de numerosas manchas brancas e outras negras (estas em menor numero e maiores) sendo todavia as manchas brancas mais pequenas no tronco e na cabeça do que na cauda, Comprimento do nosso exemplar 0",25. Habitat, Tha de Santo Antão. Dedicamos esta especie ao nosso collega e amigo, distincto na- turalista do Museu Bocage Dr. Bettencourt Ferreira. 84. Muraena sanctae helenae. Griinth., Cat. Pish., t. VIII, pag. 115. Tha de Santo Antão. Sr. F. Newton. O exemplar d'esta especie que estudâmos apresenta as numerosas manchas brancas a que se refere Ginther na sua diagnose. Essas manchas pequenas porém, agrupam-se de modo a formar pelo seu conjuncto grandes manchas arredondadas na região posterior e cau- dal, emquanto as que se vêem na cabeça são extremamente confluen- tes e dispersas sem ordem alguma, substituindo quasi por completo a côr geral escura. 85. Muraena maculipinnis, Kaup. Gimnth., Cat. Fish., t. VIII, pag. 124. a) Ilha de Santo Antão. Ponta do Sol. b) Ilheo Rombo. 26 =] = Memorias DO Museu BocagE O nosso exemplar apresenta apenas dois caracteres que não são apresentados na diagnose de Giinther. Na parte inferior da cabeça existem algumas linhas escuras, umas vezes parallelas, outras convergentes, que se prolongam ao nivel do respiradoiro; os cantos da bocca são escuros. 86. Enchelycore nigricans, Bonnaterre. Griúnth., Cat. Fish., t. VIII, pag. 135. Especie nova para a fauna das ilhas de Cabo Verde, Era conhe- cida do mar Caribbeo. Já tinha sido citada por nós como pertencente à fauna da ilha de S. Thomé. 87. Carcharias acutus, Riúpp. Griinth., Cat, Fish., t. VII, pag. 358. Tlheo do Sal. Sr. Newton. Esta especie, que tem um habitat bastante vasto, segundo Griin- ther, Oceano Indico, Archipelago do Japão, Mares de Cuba, foi en- contrada no Archipelago de Cabo Verde. a Es TAMPA | Dentex acromegalus, Osorio Gobius macrophthalmus, Osorio Gobius macrophthalmus, Osorio ql Estampa II Murena robusta, Osorio Murcena bettencourti, Osorio ve. Phenomenos de phosphorescencia manifestados n'um liquido extrahido d'um peixe da profundidade do Oceano (NOTA PRELIMINAR) POR BALTHAZAR OSORIO Os pescadores de Cezimbra empregam ha muitos annos, para attrahir os peixes, um processo que é sem duvida original, e que me despertou a idéa de intentar um certo numero de investigações sclen- tificas, cujos resultados, por emquanto muito incompletos, por falta de material necessario para a continuação dos meus estudos, me pa- receu todavia dever tornar desde já conhecidos, por serem muito interessantes. Exporei em primeiro logar a noticia dos factos colhidos directa- mente da narrativa dos pescadores. Descobriram elles, ha seculos? Como? Quem sabe? que um peixe que vive no oceano, a uma profundidade que pelas indicações que me deram, pode calcular-se entre trezentos ou quatrocentos me- tros (!), produzia uma substancia luminosa, que depois de espalhada sobre uma camada pouco espessa de tecido muscular, adherente à pelle de determinadas especies de esqualos, Pata-rova (Seillium cani- cula, Cuv.), Litão ou Leitão, (Pristiurus Artedi, Risso), Cão do monte (?) a tornam por sua vez luminosa. (1) Disse-me um pescador que para colher os peixes luminosos é preciso lançar no mar vinte linhas. Cada linha tem dez braças de comprimento. Cada braça pode calcular-se entre um 1”,60 a 17,70 portanto 20><10 X 17,6 = 320 metros. Outro pescador porem, disse-me que não são precisas tantas linhas. 1 80 Memorias DO Museu BocacE Algumas horas depois de terem executado esta operação (que diga-se de passagem, interpretei como uma phase de cultura de ba- cterias), cortam a pelle do esqualo em fragmentos, e prendem um d'elles a uma linha de pesca, mas de modo que fique superior aos differentes anzoes que à mesma linha teem ligado; e preparam d'esta arte muitas linhas quando deliberam ir pescar aos logares pro- fundos do oceano. Affirmam tambem os pescadores que o phenomeno de phospho- rescencia a que tenho alludido, se activa quando a pelle do esqualo preparada como disse, e a que chamam candil, está mergulhada na agua do mar, e que mesmo a recobra, quando perdida, se a pelle não está seca ha muitos dias. Os pescadores quando lhes falta o isco, e não teem portanto ou- tro meio para attrahir os peixes, servem-se do candil, e não duvidam dar 495500 réis, quantia sem duvida muito elevada para elles, por um exemplar de peixe productor da substancia luminosa, a que de resto, n'outras occasiões, não dão valor absolutamente nenhum, pois nem ao menos se vende para a alimentação. Eis tudo quanto alcancei saber dos pescadores de Cezimbra, acerca do Peixe-rato, (tal é o nome vulgar) que é abundantissimo na região do mar onde elles vão à pesca, mas que me não consta que tenha sido colhido em qualquer outro ponto da costa de Portu- gal. Atfirmações bastante vagas dizem-me que se tem colhido tam- bem perto de Cascaes. Tendo perguntado aos pescadores, antes de eu mesmo poder verificar o facto, d'onde surdia ou provinha a substancia luminosa de que elles me fallavam, deram-me differentes opiniões. Disseram- me que provinha do figado, outros, do fel, um pouco melhor obser- vador, do umbigo. Procurei, para esclarecer-me, assistir à preparação do candil, destinado á pesca do pargo, da pescada e d' outros peixes, Na minha presença, um pescador premio com os dedos a região abdominal do peixe portador da substancia luminosa, que vi surgir n'uma papila cupuliforme, negra, como tinta de Nanquim, e que fica abaixo de duas depressões egualmente negras que se encontram na região comprehendida entre as barbatanas abdominaes e a anal. À' luz do dia, ou á luz artificial essa substancia tinha o aspecto de um liquido denso, amarello, turvo. A's escuras, o liquido alludido assim 2 Memorias po Museu Bocage 81 -como toda a região onde elle se tinha derramado, apresentava uma luz azul intensa, similhando-se pela côr à do oxido de carbone ax- dendo, à côr azul que se manifesta em muitas substancias combu- rentes ao arderem lenta e incompletamente, ou no principio d'algu- mas combustões. Um pescador friccionou um bocado de esqualo, (a pelle a que ha- via ficado adherente uma porção de tecido muscular que previa- mente tinha tirado em parte, raspando-o), com a região d'onde surgia o liquido luminoso. Feito isto dobrou-o de modo a ficarem em con- tacto as partes friccionadas, talvez com o fim de evitar a acção mais directa do ar, ou para distribuir melhor a substancia ; não averiguei. à luminosidade, manifestou-se immediatamente e embora bastante fraca, mantinha-se ainda ao cabo de vinte horas n'um recinto onde decorreu a experiencia e cuja temperatura deveria ser approximada- mente de 20º centigrados, ou um pouco superior. (Mez de Setembro). Interessava-me em primeiro logar determinar a especie zoolo- gica de que provinha a substancia luminosa. Affigurou-se-me que era o Malacocephalus laevis, Lowe, e um estudo demorado a que depois procedi, confirmou-me esta opinião. Determinada a especie, devo porem notar que o M. laevis, Lowe, “é tido como excessivamente raro por Moreau (!) que lhe assignala como habitat apenas o Mediterraneo. Good and Bean ocupando-se d'esta especie (?) citam apenas o exemplar typo colhido por Lowe na ilha da Madeira, e dizem que Lii- tsen a colheu na costa da Dinamarca. Giinther refere que a expedi- ção celebre do Challenger (*) colheu apenas um individuo na costa de Pernambuco a uma profundidade de 250 pés. No Catalogo de Peixes do Museu britanico (*) aponta ainda um terceiro exemplar, colhido na ha da Madeira, por Johnston. Eis todas as noticias que consegui alcançar ácerca dos exem- Plares que são mencionados nas obras de ichthyologia e d'estas cita- -ções pode a meu vêr aferir-se que o Malacocephalus laevis é raro em toda a parte; mas em Cezimbra esta especie é extremamente vulgar. (1) Poiss. de la France, t. III pag. 284. (?) Oceanic Ichthyology. pag. 415. (º) Challenger Report. t. XX pag. 148. (*) Loe. cit. t. IV pag. 397. 82 Memorias DO Museu BocagE Os pescadores o dizem e eu pude convencer-me d'esta verdade. Ainda ha poucos dias comprei aos pescadores seis exemplares. A existencia de nome popular d'uma especie é, a meu vêr, muitas vezes, indicador da sua abundancia ou apparecimento frequente. Donde provem o liquido que contem a substancia luminosa a que por mais d'uma vez tenho alludido n'este escripto ? Na região comprehendida entre as barbatanas abdominaes e a anal existem duas depressões, com o aspecto de manchas negras re- tintas, como já disse. A primeira tem uma fórma triangular, a segunda uma fórma dis- coide. Adiante d'esta existe uma protuberancia cupuliforme (Vid. Fig. 2 e 3) ou saliencia mamillar, não uma depressão oval, como se vê na figura b da estampa XXXIX do t. XXII do Challenger Report. Esta saliencia observada à lupa apresenta varias aberturas, uma na parte mais elevada, e outras em outros pontos, e por ellas sahe, quando primida a região abdominal, o liquido amarellado a que me referi e que se manifesta luminoso na obscuridade. Julgo porem necessario um estudo histologico — talvez o anatomico baste, mas mais acurado, para exclarecimento completo da estructura do orgão mencionado, tratando-se evidentemente da papila em que nos peixes vem abrir-se: o tubo digestivo, o canal conducter das cellulas reproductoras e a uretera. Será a saliencia mamilar um orgão especial, uma glandula, destinada a segregar a substancia luminosa, que se encontra na terminação do intestino ? Embora me pareça que o estudo anato- mico rigoroso é indispensavel para melhor esclarecimento da opi- nião, todavia parece-me podes afirmar com segurança que o anus está collocado no orgão cupulifor-me a que me reporto, e não n'uma depressão como diz Giinther(!). A falta de exemplares para poder centinuar as pesquisas que o meu problema demanda, por terem os pescadores de Cezimbra deixado de ir, n'esta epoca do anno, pescar à região do Oceano a que elles chamam o mar de fora, obrigou-me a adiar para mais tarde esta e ou- tras investigações que todavia são do meu programma. Os exem- (!) The vent (fig. b) is close to theroot of the ventrals, wich reach, beyond it; it lies at the end of an oval scaless depression,... Chal. Report. t. XXII pg. 148. 4 Memorias Do Museu BocacE 83 plares que possuo e que tive de conservar em alcool não me permit- tem servir-me d'elles senão para o fim para que os destinei. Uma pergunta ocorre naturalmente e para ella procurei uma resposta. Que papel, que fim, terá na vida do Mulacocephalus laevis O liquido luminoso que delle provem ? Parece-me admissivel e justificavel a seguinte hypothese. Vi- vendo n'uma grande profundidade onde a treva é absoluta (*) muitos animaes marinhos precisam para andarem ou para descobrirem as presas de que se alimentam illuminar um espaço mais ou menos vasto. Muitos animaes que vivem nos oceanos, quer vertebrados, quer invertebrados, são dotados de apparelhos de illuminação que visam naturalmente a algum d'estes fins. O peixe a que me refiro poderá iluminar, espalhando o liquido luminoso, uma area maior ou menor “do fundo do mar e a que os animaes de que se nutre são provavel- mente atrahidos, aproveitando-se elle, collocado n'uma zona menos esclarecida, d'esta circumstancia para os surprehender e captar. Disseram-me os pescadores que quando alguns peixes ratos, mesmo “depois de mortos (?), estão, por exemplo, dentro d'um balde contendo agua do mar, que a agua se torna luminosa. Para verificar se o liquido luminoso emanado do peixe, commu- nica realmente esta propriedade á agua, colhi-o por diversas vezes, pre- mindo lateralmente o abdomen d'um dos meus exemplares, com uma agulha de dissecção, que fui lavando repetidamente na agua, com que tinha enchido perto da praia, um pequeno tubo de vidro. Collocado o tubo n'um logar escuro vi immediatamente que toda a agua emittia uma claridade azulada bem visivel a alguns metros de distancia. Verificaram este facto diversas pessoas a quem convidei para a observar porem era menos intensa, e principalmente (1) Wyville Thomson diz no seu tão interessante livro The Depths of the sea pag. 45 que a flora maritima é pobremente representada a uma profundi- “dade de 50 pés e que não existe (entirely absent) à profundidade de 200 pés. “O peixe de que me occupo n'esta memoria vive n'uma profundidade ainda “maior, onde portanto a luz não chega. (2) Dizem tambem que este peixe morre com extrema facilidade. 5 84 Memorias Do Museu Bocage menos azulada da que eu tinha notado, observando o liquido não diluido que sahia 'do peixe. A luz durou pelo menos doze horas, ao cabo das quaes fui em-. pedido por diversas circumstancias'de continuar a minha observação ; verifiquei todavia que embora atenuada por fim, existio durante esse. tempo. Sendo, portanto, indubitalvelmente luminoso o liquido, desejei saber a causa d'esta propriedade; seera devida a uma substancia orga- hica similhante áquella a que muitos animaes, quer vertebrados quer invertebrados, devem a phosphorescencia que exhibem, se a um mi- crobio, a uma bacteria phosphorescente em suspensão n'elle. As mi- nhas obervações, incompletas pelos motivos já expostos, permittem - me comtudo abalançar-me a formular uma hypothese; exames mi- eroscopicos que terei de repetir devem tornecer-me argumentos definitivos para sustentar a minha opinião. Tudo me leva a crer, to- davia, que a luz é proveniente d'uma bacteria vivendo na parte ter- minal do apparelho degestivo do peixe, como tantas outras que se encontram no intestino d'outros animaes, realisando mesmo talvez um phenomeno de symbiose, e isto pelas seguintes razões: 1.º porque das preparações microscopicas embora executadas em condições de- somenos rigor, deriva a minha presumpção de que são bacterias os corpos que n'ellas observei; 2.º porque se é exacta uma observação dos pescadores, já mencionada, isto é, que o fragmento dum peixe sobre que se espalha a substancia luminosa obtida do Malacocephalus laevis, Lowe, depois estar exposto ao ar durante alguns dias se torna novamente luminoso quando se mergulha na agua do mar, ou que a luminosidade attenuada recrudesce, quando em identicas circums- tancias, deve pensar-se, a meu ver, que estes phenomenos podem ser explicados pela revivescencia, que é um phenomeno bastante com- mum aos animaes inferiôres. Um outro phenomeno observei, e que é talvez o mais interes- sante entre todas as pesquisas feitas até agora: é a acção produsi-- da no papel photographico pela luz fornecida pelo liquido luminoso. Colloquei dentro d'uma cavidade cylindrica, aberta n'um frag- mento de madeira, um tubo de vidro contendo agua do mar colhida. na costa, e em que dissolvi o liquido phosphorescente, extrahido, pelo processo que deixei exposto, directamente do orgão alludido de- que elle promana. À parêde da cavidade cylindrica, assim como o- fundo, estava completamente coberta de papel photographico. 6 Memorias DO Museu BocagE Sb Mantive o tubo contendo a agua do mar phosphorescente den- tro da cavidade cylindrica, durante vinte horas aproximadamente, porque não me encontrei em condições de verificar mais cedo se o papel tinha sido impressionado, mas julgo que o phenomeno lumino- so não devia ter durado tanto tempo, porque ao cabo de doze horas já se tinha attenuado muito n'um outro tubo encerrando uma porção de liquido egual ao incluido na caixa. Tendo evitado cuidadosamente que qualquer outra luz que não fosse a que partia da agua phosphorescente, actuasse sobre o papel photographico, revelei o que tinha collocado dentro da caixa de madeira de paredes espessas que tinha mandado preparar, estando esta ainda, por cautela, encerrada dentro d'outra de cartão e cujas aredesp erão completamente negras. Verifiquei que o papel tinha sido fortemente impressionado como se estivesse exposto à luz directa do sol, e quasi completamente. Havia apenas um espaço aproximadamente circular, de milimetro e meio de diametro, na parte do papel que revestia o fundo da cavidade, e pequenas areas que ficavam na altura da rolha de cortiça que vedava o tubo, emque a luz não tinha actuado. No proseguimento do meu estudo pretendo principalmente de- terminar : 1.º os caracteres da bacteria a que alludi, acentuando des- de já que nenhuma das bacterias luminosas de que tenho no- ticia produz luz, azul com tão grande intensidade pelo menos; 2.º verificar se a luz que d'ella parte tem propriedades radioactivas, isto é, se torna fluorescente o alvo coberto de platinocyanureto de po- tassio; se o tubo onde estão encerradas, coberto de papel negro ou coberto de laminas delgadas de metal, d'alluminio, por exemplo, impressiona ainda n'estas condições o papel photographico, etc. 3.º Desejo determinar qual é o tempo minimo necessario para o sal de prata ser decomposto. 4.º Desejo sujeitar à analyse spectral a luz emittida. Poderá ella revelar a existencia dum novo elemento chi- mico? Se a terra e se a atmosphera teem fornecido a maior parte dos metaes e metalloides conhecidos, é licito supor que o mar, pela sua vastidão, ou a superficie da crosta solida do globo que elle cobre, por mais extensa, contem alguns elementos de que não temos noticia até agora; se se tivessem analysado os gazes que encerra a bexiga natatoria dos peixes, mesmo d'aquelles que vivem a mais de mil 7 86 Memorias po Museu Bocage metros de profundidade, ter-se-ia descoberto o Argon que primeiro se encontrou na atmosphera. Não será licito supor que nos animaes maritimos, como nas plantas maritimas, em que se encontram o bromo, o iodo e o chloro, etc., se encontrem outros corpos simples ainda desconhecidos ? Completaremos esta nota com o resultado dos estudos que va- mos continuar. O maior dos exemplares de Malucocephalus laevis que obtive, até agora, mede mais de 20 pollegadas e meia; é maior portanto que o exemplar typo da especie descripta por Lowe e existente no Museo britannico pois este mede só 19 pollegadas. À descripção de Giinther é tão exacta que julgo desnecessaria a juncção de qualquer outro ca- racter para a completar. Moreau diz que a cauda do peixe é filiforme. Infelizmente todos os exemplares que possuo teem a cauda quebrada; não posso por- tanto infirmar ou confirmar a existencia d'este caracter que o Dr. Giuúnter de resto não menciona. Une propriété singuliere d'une bactérie phosphorescente. (PREMIERE NOTE). Note de B. Osorro, présentée par H. CouTIERE. Les pêcheurs de Cezimbra (Portugal) emploient depuis long- temps un procédé original pour prendre les poissons. Ils prennent un exemplaire du Malacocephalus levis Lowe, pois- son rare dans toutes les mers, mais três commun dans ce lieu ; ils lui compriment Vabdomen, faisant sortir par le pore anal un liquide, peutêtre excrémentiel, jaune, épais, trouble et phosphorescent à Vobscurité (1) y brille d'une lumitre bleu ciel), ils le répandent sur un morceau de tissu musculaire, adhérent à la peau d'un squale, Scil- lium canicula Cuv., Pristiurus Artedi Risso, par exemple, en le friction- nant avec un organe papillaire du Malacocephalus, ou sort le liquide. La phosphorescence s'y communique et se conserve bien pen- dant des heures; au dire des pêcheurs, elle se ravive s'ils plongent dans la mer le fragment de squale préparé ainsi, et qu'ils appellent candil. (0 9) =] Memorias po MusEU BocaGE Ils coupent le candil en petits morceaux qu'ils attachent aux lignes de pêche, jes poissons s'y prennent aux hameçons attirés par la lumitre, suivant Vopinion des pêcheurs. J'ai puisé à la mer et j'ai rempli d'eau un tube de verre, ou jai versé quelques petites gouttes du liquide phosphorescent. L'eau prit une phosphorescence bleu-claire, visible à la distance de quelques metres. 1H s'agit d'une bactérie lumineuse suspendue dans le liquide, et qui le rend phosphorescent. Ses caracteres ne sont pas entitrement déterminés, et il me faut encore faire des cultures, etc., pour pouvoir fixer quelques caracteres intéressants; mais je crois qu'il sera util de signaler déjà une de ses propriétés les plus curieuses. La lumiêre émise par la bactérie decompose les sels d'argent, impressionne le papier photographique. Pour le démontrer, jai mis mon tube contenant de Veau lumi- neuse dans une concavité ouverte dans un morceau de bois et tapis- sée de papier photographique. Extérieurement le bois fut couvert de papier noir. J'ai fait mon expérience la nuit, et de mon mieux, pour éviter toute action de quelque lumitre que ce fit. Apres quelques heures d'exposition, j'ai développé le papier contenu dans la concavité sus- dite, il était tout à fait noir comme s'il avait été exposé a la lumiére directe du soleil. Je crois done à lexistence d'un fait nouveau concernant les ba- ctéries lumineuses. Une note ultéricure complétera cette étude que je poursuis depuis quelque temps déja. Pour le moment, je limite ma communication. aux faits précédemment exposés et à Vexistence de radiations photochimiques émanant des bactéries suspendues dans le liquide provenant du Malacocephalus levis Lowe. (Extrait des Comptes rendus des séances de la Société de Biologie, Séance du 16 Mars 1912, T. LXXII, p. 432). ; 4 NC AÇÕ Es ia É, , e = as PETS Mis til dh + e st i ] E E g t pr ei DE jo Ro «Of RR ad » DT tb ano Pig o po bd pda y ' » p a i , E n à Di A TEN Rr o! AH r A % ] » b Ea LD po PM 7 sn ca Aa a ND a , Tronco de Malacocephalus levis, Lowe. mostrando a papila o Fig. 3 E Abdomen de Mulacocephalus levis, Lowe. lis À mostrando Malacocephalus levis, Lowe a papila muito augmentada a E A E Nova contribuição para o conhecimento da fauna bathypelagica visinha das costas de Portugal POR BALTHAZAR OSORIO O mar que rodeia o cabo de Espichel continua a fornecer aos naturalistas portuguezes novos elementos d'estudo, novas especies, que vão acrescentando o conhecimento da fauna já tão numerosa e surprehendente, das regiões maritimas visinhas das costas portu- guezas. Desde que os illustres naturalistas Bocage e Capello iniciaram entre nós as suas brilhantes investigações ichthyologicas, pode di- zer-se que ainda o mar não deixou de fornecer às colleeções dos nossos museus, novos exemplares, cheios de interesse, como por exemplo um dos que menciono n'esta memoria. N'elle creio ter en- contrado o representante d'um curioso genero, com afinidade com os generos Himantolophus, Reinhardt, e Corynolophus, Gill; e que vem talvez preencher uma lacuna entre estes generos e outros desconhe- cidos até agora, mas que por sua vez serão afins de outros que co- nhecemos, do genero Liocetus Giinther, por exemplo, que fica distante dos dois generos que citei primeiro. Fam. Ceratiidae Genero Corynophorus, n. g.! Este genero distingue-se dos generos Himantolophus e Corynolo- phus porque o corpo não é oval, mas acentuadamente piriforme. A ! Kopuongopos. Clavigero, portador de clava. 1 90 Memorias DO Museu BocacE altura vae sucessivamente decrescendo a partir de dois espinhos collocados por detraz da primeira barbatana dorsal, reduzida a um raio unico, mas que engrossa na extremidade, o que lhe dá o aspecto duma pequena maça (claviforme). . A linha do contorno abdominal não é recta em todo o compri- mento, curva-se na metade anterior, enquanto que é acentuadamente recta a linha dorsal do perfil. (Vid. fig. 1). A este caracter generico derivado da forma geral, que pode di- zer-se piriforme, e não ovalar como no Himantolophus e Corynolophus, posso acrescentar outros de maior importancia, e são os seguintes : 1.º Faltam as lacinias ou fitas, appendices compridos e estrei- tos, que em maior ou menor quantidade ornam a extremidade do raio dorsal nos generos que acabo de citar, raio que representa a primeira barbatana. 2º A falta duma cavidade longitudinal onde possa alojar-se completamente esse raio grande deitado para traz. No representante do meu novo genero existe uma cavidade cujo perimetro é um pen- tagono irregular, mas em que só cabe quando reclinado metade do raio alludido. O raio é rigido, conserva-se na posição que se vê na fig. 1, e nenhuma tendencia mostra a curvar-se para se alojar na cavidade, em que, de resto, não cabe. Em seguida ao vertice do an- gulo mais posterior da cavidade pentagonal, existem, na linha media dorsal, quatro espinhos, estando o ultimo collocado proximo da raiz da segunda barbatana dorsal. 3.º As narinas não são visiveis. e tanto o labio superiôr como o inferiôr e as regiões proximas são cobertas por numerosas verrugas muitas das quaes teem mais d'um milimetro de diametro (Vid. fig. 2). Corynophorus compressus, n. sp. Fig. 1 e 2 O corpo é muito comprimido lateralmente e vae adelgaçando, a partir das barbatanas peitoraes, até à caudal. Numerosos espinhos existem espalhados, tanto pelo lado direito como pelo esquerdo do tronco; mas assim como a disposição não é egual, tãobem não é egual o numero d'elles ; assim no flanco esquerdo contam-se 30 espinhos e 25 no direito. No esquerdo encontrei seis espinhos dispostos segundo uma linha recta, dirigida obliquamente 2 4 Memorias DO Museu BocaGE 91 de traz para diante, e de cima para baixo, e que vae terminar, em baixo, em frente da peitoral, e em cima no dorso. No lado direito tão bem existem espinhos, mas apenas trez, e muito maiores do que os que existem no lado esquerdo. Todos estes espinhos são muito agu- dos, ligeiramente curvos, e apresentam uma larga base de implanta- ção no tecido que, em parte, os encobre. Em quasi todo o corpo a pelle é nua, molle, negra, de tinta mais ou menos carregada, por vezes acastanhada. O raio dorsal a que por mais d'uma vez me tenho referido, é tiobem coberto d'espinhos simi- lhantes aos que se encontram aos lados, na linha dorsal e lombar, onde tãobem existem; mas a sua base é mais comprida do que larga; a de alguns que existem espalhados pelo côrpo, principalmente a dos maiores pode dizer-se que é circular. A parte terminal grossa, oblonga, achatada, ellipsoidal, do raio, é desprovida d'espinhos. Na base das barbatanas peitoraes, e na da caudal, encontram-se tãobem espinhos, muito agudos, mas o seu numero e disposição varia tãobem d'uma face para a outra. Os dentes da maxila superiôr são dispostos em duas ordens, sendo maiores os mais internos; os da maxila inferiôr estão em trez ordens e são sucessivamente crescentes de fora para dentro. À dispo- sição dos dentes impede que a boca se feche d'uma maneira completa. Os olhos, relativamente grandes, pois teem o mesmo diametro dos dum exemplar de Himantolophus reinhardti que mede mais de quatro decimetros de comprimento, estão collocados muito mais proximos da extremidade do focinho do que dos espinhos da fronte. A altura é menos de metade do seu comprimento total incluindo a caudal. O comprimento da cabeça cabe uma vez e trez quartos no mesmo comprimento total. A espessura do corpo é um pouco mais dum terço da altura. O raio que tem a forma de maça insere-se na fronte; a inserção fica um pouco mais alta do que os olhos e muito mais abaixo que os dois espinhos frontaes, que estão inseridos nos pontos mais elevados da fronte; não pode nunca abaixar-se completa- mente, nem deitar-se inteiramente para traz. A barbatana peitoral está mais proxima do dorso do que do ventre. A inserção da peitoral é mais proxima da raiz da caudal do que da extremidade do focinho. O comprimento total do exemplar unico 0",18. DI-5-—A.4-P.1s. Pescado proximo de Cezimbra. 3 92 Memorras DO Museu BocaGE Fam. Notacanthidae Genus Notacanthus, Bloch. A especie do genero Notacanthus que vamos descrever, está com- prehendida na divisão d'este genero estabelecida pelo Dr. A. Giin- ther no Challenger Report, t. XXII, pag. 243, em que se encontram incluidas todas as que possuem de seis a onze espinhos na barbatana dorsal, dentes comprimidos na maxila superiôr e obliquamente trian- gulares. Notacanthus melanoventris, n. sp. Fig. 3,4,5 Di ii )D=A Omo O 6 P. lg =y Alo A maior altura do corpo encontra-se unindo dois pontos, um tomado na linha dorsal, a uma pequena distancia do primeiro raio da barbatana, o outro na linha do perfil inferiôr, a uma distancia proximamenie egual, antes da raiz das barbatanas abdominaes ; esta altura é comprehendida um pouco mais de quatro vezes entre a papila anal e a extremidade do focinho; a cabeça, que é muito acha- tada, cabe duas vezes e um pouco menos de um terço na distancia que acabamos de mencionar. À extremidade do focinho é muito adelgaçada, reduzida quasi a uma prega da pelle que vae da parte superiôr da cabeça, entre os olhos, prolongando-se até á sua parte terminal. A commissura dos labios, que são negros, assim como toda a boca, attinge a linha media da orbita; a orbita alcança a linha de perfil superiôr. O diametro do olho está comprehendido quasi duas vezes no comprimento do focinho e aproximadamente um sexto no comprimento da cabeça; é dois terços do espaço interorbital. A membrana que forra por dentro o operculo é negra e negro é táobem o bordo d'este. E' larga a abertura branchial. As escamas revestem inteiramente a cabeça e o corpo; são muito pequenas, dis- postas à maneira das telhas d'nm telhado, são cobertas por nume- rosas e pequenas manchas escuras, que se destacam sobre um fundo mais claro, côr de canella. O abdomen apresenta-se acentuadamente negro, assim como o operculo, e isto é sem duvida devido ao tecido que o cobre internamente. Memorias DO Museu Bocace 93 Dos raios dorsaes o mais pequeno é o primeiro, e o maior O ultimo. A papila anal fica por baixo do quarto espinho dorsal. Os espinhos anaes começam immediatamente para traz do orificio anal; os maiores são os ultimos, sendo aproximadameute o seu compri- mento o dobro do dos primeiros; os raios posteriores da anal são accentuadamente negros. As ventraes são unidas e o seu ultimo espinho é bifurcado. Existem, espalhadãs pelo corpo e pela cabeça, mas desegual- mente distribuidas, um certo numero de pretuberancias ou saliencias que pelo seu aspecto lembram os corpos luminosos que se encontram nalgumas especies de peixes das grandes profundidades e julgamos que terão a propriedade de emittir luz, visto que temos a opinião de que estamos em presença d'uma especie vivendo a uma profun- didade consideravel do oceano !*, embora não possamos fixar qual é, porque, as especies do mesmo genero, descriptas por diversos ichthyo- logistas vivem em geral n'uma profundidade relativamente grande. As dimensões do nosso unico exemplar, colhido pelos pescadores de Cezimbra, são as seguintes: Comprimento total, 0",22. —Comprimento da cabeça, 0",032. — Altura de corpo, 07,022. — Comprimento da cauda, 0",135. ! Notacanthus serspinnis, Richards. Not rare m the deep Water off the coasts of South Australia and New Zealand. — Notacanthus nasus, Bloch, Only a few specimens are known from the deep sea off the coasts of Southern Greenland and Iceland. — Notacanthus bonapartii, Risso. South — Western Coasts of South America ; depth 400 futhoms — Notacanthus rissoanus, Filipi and Verany — South of Yedo; depth 1875 fathoms. Dr. A Giinther Chal. Report t. XXII, pag. 244, 248, 250, 251. Good and Bean referem-se a uma outra especie, ao Notacanthus analis, Gill. representada por dois exemplares colhidos um a 478 e outro a 407 pés. (Oceanic Ichth. pag. 166). Mencionando o Notacanthus Bonapartrii, já citado acima, dizem que as expedições do Pravailleur e do Tulisman colheu quatro exemplares desta especie às seguintes profundidades: um a 1232 e outro a 932 metros, na costa do Soudan; dois no banco de Arguin a 1495 metros (loc. cit. pag. 167). Apesar de alguns exemplares das diversas especies do genero Nonacanthus terem sido colhidos, como se infere do que transcrevemos, a grande profundi- dade, todavia não queremos omittir a seguinte opimão de Good e Bean a este respeito: The results of Dr. Giinther's dissections seem to indicate that this species at least of Notacanthus does not live at a very great depth (loc. cit. pag. 163). 5 mn x» 1) od Hi E Po e POA Abi R oa Rd Mg O Hide prquarh Et o se A | ru 1 pe A E nd j 7 Ee a Mtgo h ) M [ed E) indo ae E E m = | 1 pá ” neo a 1. es a hy or cast Ensaio RS DD vio CT AAA a tá Es! au e! Ea f "a pl it oo 4 Cd DEE ad asi DRE PPT LA e. A í tá e Tivdo E NE E + E Ns ! RR a 2 es À ELA : A ' 4 o AP Ar A Fa k E DO Ro Sn mn n H 4400 E ERR o oe DA 40 a o RR , =, , Err ; Io 7 Fig. 4 Fig. 5 Cabeça de Notacantlus melanoventris, Osorio vista pela sua parte inferior Barbatanas abdominaes do Notacanthus mu lanoventris, Osorio Fig. 2 Cabeça de Corynophorus compressius, vista de frente Fig. 3— Notacanthus melanoventris, Osorio A ms SE a ma ndo» Peixes d'agua doce da Guiné Portugueza POR BALTHAZAR OSORIO Quem desconhece os nossos livros antigos, as narrações de via- gens, os roteiros dos velhos navegadores lusitanos, ignora muitas das noticias com que os portuguezes d'outras eras contribuiram para o conhecimento da Historia Natural, da flora e da fauna das diversas regiões que visitaram. N'outros escriptos tenho assignalado e documentado este facto importante; tendo agora de mencionar alguns dos peixes da Africa occidental, que vivem nos rios deste grande continente, pareceu-me que devia dizer o que de mais interessante encontrei em obras que descrevem a terra, os costumes dos homens, o aspecto e forma dos animaes que se depararam aos primeiros visitadores das ignoradas terras, para não deixar que sómente os estranhos venham contar !, ! Uma ou outra vez encontra-se entre estrangeiros quem nos faça justiça e quem se refira ao papel civilisador que outr'ora os portuguezes desempenha- ram, levando plantas uteis d'uma região explorada ou descoberta por elles, para outras, ou transportando animaes para alguns logares da terra aonde até então eram desconhecidos e de que alguns -povos tiram actualmente proveito. Para exemplo e confirmação do que digo citarei a respeito das plantas as referencias que se me depararam durante a leitura do livro de de Candole, Ori- gine des plantes cultivées. Diz este celebre botanico que segundo Thunberg, a batata foi introduzida no Japão pelos portuguezes (loc. cit. pag. 44) e na mesma pagina affirma, citando Rumphius, que os portuguezes levaram este tuberculo ou a planta, Convolvulus batatas, Linneo, das Melucas onde os hespanhoes a tinham introdu- aido, para o seu imperio da India. Algumas paginas antes (pag. 39) apparece a 1 96 Mevorias DO Museu BocaGE quando o dizem, com quanto contribuiram para sciencia os nossos antepassados. A Guiné teve diversos chronistas e entre elles um que ficou ce- lebre, Gomes Eannes d'Azurara. O auctor da Chronica do descobrimento affirmação encontrada m'uma obra posthuma do P.º Majazinni, publicada em 1623, e que diz que a batata foi levada de Portugal ou da Hespanha para a Italia pelos carmelitas descalços. A mandioca, d'origem americana, foi introduzida na Guiné e no Congo pelos portuguezes (trafiquants portugais et des négriers, pag. 49). Referindo-se ao Arum esculentum, Linneo diz de Candolle, «De 7 Ecluse avait vu la plante cultivée en Portugal comme venant d'Afrique, sous le nom Alcoleaz tvidemment d'origime arabe». Pag. 59. O Chorchorus otitorius, planta de que se extrahem as fibras com que se faz o tecido conhecido com o nome de juta, encontra-se em Sena, Tete e Timôr (Joc. cit. pag. 105). Mencionando a Nicotiana tabacum, refere de Candolle que «Nicot avait vu la plante en Portugal en 1560; ainsi les portugais "ont portée en Asie, probablement dans la seconde moitié du xvi siécle. Thunberg affirme que Pusage du Tabac à été introduit au Japon par les portugais au commencement du siécle xvII (loc. cit. pag. 114). O Infante D. Henrique introduzio a canna d'assucar na ilha da Madeira e de lá foi levada para as Canarias e depois transportada para o Brasil no começo do seculo xvt, e do Brasil foi trazida para o Mexico, para Guadalupe, etc. (loc. cit: pag. 126 e 127). O cravo Caryophylles aromaticus diz de Candolle... «ne parait pas qu'on en ait reçu en Europe avant l'epoque de la découvert des Moluques par les Portugais» (loc. cit. pag. 129). O nome dado em Portugal às laranjas, apregoadas laranjas da China, pro- vem talvez do seguinie facto contado na obra citada: «JH me parait donc probable que les oranges réçues plus tard, de Chine, par les Portugais, étaient seulement meilleurs que celles connues auparavant en Europe, et que les noms vulgaires d'oranges du Portugal et de Lisbonne sont dues à cette circonstance» (loc. cit. pag. 148). Sobre o Anacardium oceidentale, Linn, o Acaju, encontra-se no livro de de Candolle, na pag, 159, a seguinte nota interessante : «Dailleurs Rumphius 2 Memorias Do Museu BocaGE 97 e conquista de Guiné não se enlevou apenas com os aspectos das pai- zagens, com a singelesa dos costumes dos seus naturaes ; não se ocu- pou exclusivamente em descrever as primeiras e acidentadas viagens dos navegadores; não raro esmalta a narrativa, por exemplo, com a descripção d'uma ave, como a Avestruz ou Emma, com uma scena toujours exact, parlait d'une introduction ancieune par les Portugais d'Amer- que dans Varchipel asiatique. Le nom malais qu'il cite Cadju est americain; celui usité à Amboine signifiait fruit du Portugal; celui de Macassar était tiré d'une ressemblance avec le frut du Jambosa. L'espéce, dit Rumphius, n'etait pas trés repandue dans les iles; Garcia ab Orto (sic) ne Vavait pas trouvée à Gôa en 1550, mais Acosta Vavait vue ensuite à Conchin et les Portugais Vavaient multipliée dans 'Inde et | Archipel Indien». Segundo Rumphius, a Curica papaya, Li. era considerada pelos habitantes do archipelago indiano como uma especie d'origem exotica, introduzida pelos portuguezes (loe. cit. pag. 2354). Aos portuguezes se atribue egualmente a introducção na India, da bana- neira (loc. cit. pag. 245), assim como do Sesamum indicum, de Candolle, no Brasil, levado da costa da (Guiné (loc. cit. pag. 338), onde os portuguezes intro duziram o Cocos nucifera, Linneo (pag. 346). De Candolle cita bastantes vezes no seu livro a Flora da Cochinchina do Padre portuguez Loureiro e a sua opinião a respeito de diversas plantas. Assim por exemplo quando *se refere à ortiga branca transcreve as palavras d'este sabio portuguez «Habitat et abundanter colitur in Cochinchina et China». (loc. cit. pag. 117). , De Candolle refere-se tambem (loc. cit. pag. 90) a uma planta portu- guesa descripta por Brotero o Oruithopus sativus, vulgarmente conhecida com o nome de Serradella, e que hoje se encontra espalhada por diversos paizes da Europa, principalmente pela Italia. Esta planta é considerada como pasto ex- celente. Em conclusão, é para justificar a affirmativa de que os portugueses não percorreram o mundo simplesmente como conquistadores e commerciantes, mas que tiveram uma influencia decidida na dispersão das riquezas naturaes, trans- creveremos ainda do livro de de Candolle as palavras justificativas d'esta asser- ção e que confirmam d'uma maneira plena o que acabamos de dizer. «Lorsque les voyages de Vasco da Gama et Christophe Colomb son sur- «venus, Veffet produit a été une diffusion rapide des espéces dejá cultivées dans «un ou Pautre hemisphere». (loc. cit. pag. 365). 3 9s Memorias Do Museu Bocage de caça aos lobos marinhos, que então abundavam nas regiões visi- nhas do Cabo Verde e do Cabo Bojador. Mas é dos peixes que tenhoque falar visto que só aos peixes guinéenses se refere esta minha breve noticia. Respigarei portanto nalguns livros que descrevem a Guiné, as indicações dadas sobre os habitantes dos seus rios. Numa nota da pag. 59 da Chronica d' Azurara, encontra-se a no- ticia de que uma angra que demora cincoenta leguas para alem do Cabo Bojador, foi chamada dos ruivos, por Gil Eannes e Affonso Gonçalves Baldaya que o Infante D. Henrique tinha mandado à des- coberta das terras africanas, por causa da grande abundancia dos peixes conhecidos vulgarmente com aquelle nome. Antes porem de transcrever as informações que me deu Azu- rara acerca dos peixes da Guiné, não quero deixar de apresentar aos zoologos a descripção d'uma ave feita por este nosso chronista, descripção que já existia portanto ha trez seculos quando, o Padre Labat viu pela primeira vez o animal a que Linneu chamou Buceros nasutus. Buffon attribue-lhe a descoberta zoologica que Lourenço Dyaz e outros portuguezes, tinham feito na ilha chamada das Garças em 1447. (Vid. Chrn. da Guiné, pag. 242, not.). Eis o motivo da nossa revindicação actual e da sua inscripção n'este trabalho. Eis a descripção : «... no outro dya responderam a Lourenço Diaz, em cuja com- panhia logo partiram caminho da Ilha das Garças, onde trez dyas es- peraram as outras carauellas, refrescando com as aves daquella ilha, de que hi avya grande multidam, e specialmente ha hi huas aves, que nom ha em esta terra, que se chamam crooes, e som todas bran- cas, de moor grandeza que cirnes, e teem os bicos de huu covedo e mais, e danchura de tres dedos, e parecem como bainhas de basas, assy lavradas, e com taes lavores, como se os fezessem arteficial- mente com meestria de fogo. afim de lhes poeer fremosura; e a boca e o papo he tam grande, que hua perna de huu homem, por grande que seja, atee o giolno lhe cabe por elle,» (Loc. cit., pag. 242). Depois de falar da emigração d'algumas aves que em certas epo- cas do anno visitam a Europa, depois de dar uma breve noticia da 4 Memorias DO Museu BOCAGE 99 ave a que chamamos flamengo, diz Azurara referindo-se aos peixes da Guiné: «E tambem dos peixes ha hi huus, que teem os bicos de tres ou quatro palmos, huus pequenos e outros mayores, nos quaes bicos teem dentes de hua parte e da outra, tan juntos que não cabera huu dedo antre huu e outro, e todos porem sam dosso fino, pouco mais grandes que de serra e mais afastados, e os peixes sam tamanhos e mayores que cações, e as queixadas de fundo nam sam mayores que doutro peixe. E ha hi outro pescado, que he pequeno assy como mu- gees, os quaaes teem nas cabeças huas coroas por que desfollegam, que sam assy como guelras, e se os poem virados com as coroas para baixo, em alguu bacio, pegam tam ryjo, que querendo-os tirar levan- tam o bacio consigo, assy como fazem as lampreas com as bocas, quando som bem vivas». (Loc. cit., pag. 275 e 276). A dois peixes allude portanto Azurara n'esta passagem da sua chronica dizendo a meu vêr, a respeito d'elies, bastante, para que possa quasi com certeza dizer-se a que genero pertencem. O primeiro é um peixe vulgarmente conhecido com o nome de peixe serra ou espadarte; pertence ao genero Pristis, mas não podemos afirmar a qual das especies, porque mais d'uma d'este genero vive nas regiões tropicaes. F. Capello tinha apontado entre os peixes dos mares d' Angola o Pristis pectinatus, Latham. e tinha tambem mencionado entre as es- pecies do Oceano Atlantico colhidas nas visinhanças da costa de Portugal o Pristis antiquorum, Latham. A outra especie a que Azurara se refere pertence evidentemente ao genero Hchneis. Já tinhamos apontado n'um dos nossos trabalhos zoologicos a especie Echneis remora, como um dos peixes colhidos na Guiné portugueza (). Mas não ficam por aqui as referencias aos peixes da Guiné, por vezes entremeiadas com noticias d'aves, como por exemplo dos fla- mengos, da emigração de pombos, rouxinoes, andorinhas, cegonhas, torcicollos, etc. Mais adiante, pag. 291, falando das origens de Nilo, diz que * Peixes de Bissau, Jorn. de Sc. Math. Phys. e Nat., 2.º sér., t. III, pag. 183. 5 100 Memorias DO Museu BocagE «... nace de hua fonte, onde logo faz huu grande estanco que se chama Nullidom, no qual se criam huus peixes que ham nome os huus allaltetes, e outros coracinus, e outros sillurus.» Deixando de parte o que Azurara diz, citando Plinio, ácerca da origem do Nilo, embora muito interessante, fixemos apenas que al- guns dos peixes que constituem a actual familia Siluridae vivem nas aguas doces das regiões temperadas e tropicaes, e que alguns siluros vivem effectivamente no Nilo e na Africa occidental, e que por este motivo se pode ter como verdadeira a sua afiirmação. Mas não são apenas noticias ácerca d'alguns peixes que encon- tro no livro de Azurara, mas de assumptos directamente ligados com a pesca. Na pag. 451 depara-se mais uma prova da importancia que tiveram outrora para os portuguezes as pescarias africanas, prova que vem em apoio de quanto dissémos a este respeito na Memoria intitulada Pescas em Cabo Verde, e é como se segue: «Tanta husança avyan, ja os moradores de Lagos em aquella terra dos Mouros, que nom tam soomente se avyam por contentes de irem a ella pera guerrearem os seus moradores, mas, ainda ouve hyv alguus que se nom contentarom de ir pescar aos lugares acostumados por seus padres e avoos, e tentarom de ir pescar aos mares daquella costa, pedindo licença ao Infante (D. Henrique) com certo preço que lhe por ello prometerom, que os leixasse la passar e ordenar sua pescarya; o que creo que nom fosse em vaão requerido, ca bem he de cuidar que alguus daquelles que ante la passarom, viram o mar assy acompa- nhado de pescado porque se moverom fazer tal requerimento. Con- certados porem com o Iffante em certa cantidade de dinheiro que lhe avyam de dar pollo dereito que lhe hi sobreviesse, encaminharom sua ida navegando per sua vyagem. atee que chegarom a huu lugar que se chama o Cabo dos Ruyvos (") onde começarom de ordenar sua pescarya, de que achavam muy grande abastança. E estando assy per alguns dyas e teendo boa parte de pescado seco, e outro sobre seus per- chees pera o secar, sobrechegarom os Mouros muy queixosos de tal atrevimento, e por pouco que nom matarom os pescadôres, o que de- feito fezerom se nom fora a boa deligencia que poserom em seu reco- lhimento, de guisa que a afim tornarom toda sua ira sobre o pescado (4) Cabo dos Rugyvos ou Angra dos Ruyvos das antigas cartas. 6 Memorias Do Museu Bocage 101 que estava stendido pera secar oqual spedaçarom com suas armas, nom com menos sanha doque fezerom aos contrairoos se os poderom percalçar. Dous daquelles pescadores forom feridos em aquelle reco- lhimento, nom porem de periigosas feridas, mas taaes deque em breve guarecerom, e tornaronse pera sua sua villa nom arrependidos da vya- gem, ca assaz trazyam de guaanho no pescado que já ante tiinham seco e empilhado em seu navyo, cautellosos do caso que se lhe ao dyante recreceo.» Um outro livro portuguez, antigo, refere-se muitas vezes aos ani- maes e plantas da Guiné dando*a respeito d'ellas noticias interessan- tissimas, que provam, que os portuguezes do seculo xvi, não se entreti- nham apenas em commerciar e conquistar, e que tomavam nota de quanto de curioso e interessante se lhes deparava pelas remotas pa- ragens a que chegavam, No Tratado breve dos Rios de Guiné de Cabo Verde, escripto em 1594 pelo Capitão André Alvares d'Almada, que era como elle mesmo diz, Natural da Hha de Santiago de Cabo Verde, pratico e ver- sado nas ditas partes(*) encontrei indicações ácerca d'alguns peixes. Assim na pag. 28 ao occupar-se da fauna do rio de Gambia diz: «Ha muito pescado n'elle, e se matão algumas vezes solhos muito formosos». Ao occupar-se do reino de Casamança e do que n'elle ha, diz (pag. 44) «Ha todo a maneira de animaes e aves que ha nas outras par- tes, bons pescados, muitas ostras e outros mariscos bons». Diz mais ao tratar do Rio Grande que passa pela terra dos Bea- fares, «Ha neste Rio huns peixes grandes como marraxos, a que chamão Sardas, muito ruins. Tem na cabeça tres ordens de dentes; acommettem altissimamente as pessoas estando na agoa, e as ma- tão». Pelos costumes do peixe, e pelas ordens de dentes, o autor refe- re-se sem duvida a um esqualo, sem que todavia, pelo pouco que diz, se possa determinar o genero a que pertence. Alguns, diz mais, sobem os rios africanos até uma certa altura em que a composição das aguas lhes permitte manterem-se. (1) Este livro que como o de Azurara se conservou inedito durante secu- los foi publicado no Porto por Diogo Kôpke em 1841. rt Memorias Do Museu BocacEe Falando dos negros Bucames e dos seus costumes diz que «não trazem mais armas que facas e frechas, as quaes não hervadas, e em lugar de ferro trazem nellas mettidas espinhas d'um peixe chamada Bagre». Por aqui ficamos com respeito a citações de obras portuguezas antigas que se referem aos peixes da Guiné. O livro de Alvares d'Al- mada merece ser mais conhecido do que é realmente, principalmente dos naturalistas. Ha n'elle muitas noções ethnographicas, botanicas e zoologicas interessantissimas mas que a indole d'este escripto me não permitte transcrever, embora conheça todo o seu valor. Devendo occuparme especialmente da parte descriptiva dos peixes colhidos na Guiné portugueza, especialmente nas aguas do Bolama, vou cumprir o meu intuito. 1. Gerres melanopterus, Blkr. Poiss. de Guiné, pag. 44, tab. VII, fig. 1. Diz Gunther, Cat. Fish., t. I, pag. 839, que as especies d'este genero apparecem nas correntes d'agua doce. À existencia d'esta es- pecie em Bolama, aonde a agua doce se mistura com a agua salgada, confirma plenamente a informação do Dr. Grinther, que diz que as especies do genero Gerres pertencem às regiões tropicaes dos oceanos, e que entram na agua doce. 2. Otolithus guinéensis, n. sp. Fig. 1. Dto A nad: A altura do corpo é comprehendida 4 !/, vezes e o comprimento da cabeça um pouco mais de quatro vezes no comprimento total. O diametro de olho é um pouco maior do que o comprimento do foci- nho; é comprehendido um pouco menos de quatro e meia vezes no comprimento da cabeça, e é menor que o espaço interorbital. O ma- xilar inferior ultrapassa a vertical tirada pelo bordo posterior da orbita. A maxila superiôr excede ligeiramente a inferiôr. Préoperculo com alguns denticulos raros. A cabeça é inteiramente coberta d'escamas, excepto os labios, dos quaes o inferiôr é mais desenvolvido do que o superiôr. Dentes muito pequenos, salientando-se um pouco mais os caninos. 8 Memorras Do Museu BocaçE 103 À primeira dorsal é subcontinua com a segunda, sendo o pri- meiro espinho muito curto, o segundo e o terceiro aproximadamente eguaes, e são os mais compridos de todos, e medindo aproximada- mente metade do comprimento da cabeça. Os maiores raios molles da dorsal medem um pouco menos de metade do comprimento da cabeça. À peitoral é mais curta do que a cabeça. À anal é composta de dois espinhos, sendo o primeiro curto e fraco, e o segundo forte, largo e comprido, o seu comprimento excedendo metade do com- primento da cabeça. A caudal, um pouco deteriorada no nosso exemplar unico, parece ser lanceolada. Côr dourada principalmente no abdomen, escura, acastanhada, no dorso; a mesma côr acastanhada nas listas que vão dos flancos à linha dorsal. Iris dourada, uma mancha negra comprida na sua parte antero-superiôr. Uma faxa escura percorre em todo o comprimento a parte media da dorsal molle, cuja côr geral é acinzentada. (Exemplar conservado no alcool ha bastantes annos). Comprimento total, medido desde a popta do focinho á extremi- dade da cauda 0",23. Colhido na Guiné portugueza, em Postugo (Bolama). — Segundo Boulenger, encontram-se na agua doce individuos do mesmo ge- nero que de resto pertencem à fauna dos mares tropicaes e sub- tropicaes. 3. Globius lanceolatus, Bl. Bl. II., pag. 8, tab. 38, fig. 1. Cuv. et Val. t. XII pag. 114. 4. Gobius Mendroni, Sauv. Sauvage, Bull. Socit. Philom., Paris (1879-1880). Habitat: Guiné — Bolama. 5. Eléotris gyrinus, Cuv. et Val. Cuv. et Val., t. XII, pag. 220. Pl. 356. — Giinth, Cat. Fish., t. III, pag. 123. Giinth. Cat. Fish., t. III, pag. 50, Habitat: Guiné — Bolama — Postugo. 9 104 Memorias Do Museu BocagE 6. Periophthalmus koelreuteri, Bl. var 3 P. papílio, BI. Cuy et Val., t. XII, pag. 190. Pl. 153. — Griinth. Cat. Fish., t. III, pag. 99. Habitat: Guiné — Bolama — Postugo. 7. Mugil falcipinnis, Cuv. et Val. Cuv. et Val., XI, pag. 105. Giinth. Cat. Fish., t. III, pag. 453. Bou- Jeng., Les Poiss. du bassin du Congo, pag. 357. 8. Chromis tristrami, Giinth. Haligenes tristrami, Grinth., Proc. Zool. Soe., 1859, pag. 471. Pl. 9. Fig. B. — Cut. Fish., t. IV, p. 269. Habitat : Guiné — Bolama — Postugo. 9. Chromis microcephalus, Bleek. Giinth. Cat. Fish., t. IV, pag. 272. Bouleng. Tilapia luta, Bouleng., Poiss. du Bassin do Congo, pag. 466. Habitat: Guiné — Bolama — Postugo. 10. Hemichromis fasciatus, Peters. Giinth. Cat. Fish., t. IV, pag. 274. — Bouleng., Loc. cit., pag. 409. Habitat: Guiné — Bolama — Postugo. 11. Cynoglossus guinéensis, sp. n. Fig. 2. D. 183. A. 117. Especie proxima do C. senegalensis, Kaup., mas diferindo d'ella pelos seguintes caracteres: na nossa especie as linhas lateraes estão separadas uma da outra por dezeseis series d escamas; a altura do corpo excede d'um pouco menos d'um terço o comprimento da cabe- ça; o comprimento da cabeça é comprehendido um pouco mais de seis e meia vezes no comprimento total; a caudal adelgaça muito para a extremldade. Todos os outros caracteres similhantes aos que A. Giinther menciona descrevendo a Arelia senegalensis, Kaup e men- cionados no Cat. Fish. Brit. Mus., t. IV, pag. 502. Habitat: Guiné — Bolama — Postugo. 12. Clarias guinéensis. n. sp. Est., Fig. 5. A nossa especie está comprehendida, embora duma maneira incompleta, na divisão de genero Clarias, que Boulenger estabeleceu 10 Memortas DO Museu BocagE 105 no seu Catalogue of the Fresh-Water Fish of Africa, t. II, pag. 224, e a que pertencem todas as especies do genero Clarias, que teem a dor- sal e a anal em contacto com a caudal, ou muito pouco afastada, mas não encostada a ella, e que, além d'este caracter, teem o barbilho maxilar mais comprido do que a cabeça. As especies comprehendidas n'esta subdivisão do genero, apresentam ainda o seguinte caracter commum: o barbilho nasal é tão grande como a cabeça. Todos os caracteres que acabamos de mencionar se encontram na nossa especie, mas não existem outros dois, que são apontados por Boulenger, como existentes em todas as especies da subdivisão designada. Os caracteres em que encontramos divergencia são os seguintes: a distancia entre o prolongamento da ocipital e a dorsal é na nossa especie não a ou = como nas especies descriptas por Boulenger, mas aproxima-se de e pois sendo o comprimento da cabeça 0",03, a distancia indicada é de 0",013; além d'isto o comprimento da cabeça é muito proximo da largura, porque sendo o comprimento aquelle que acabamos de indicar, e a largura 27 milimetros, nas espeies, C. angolensis, Stdr,, C. bythipogon, Sauv., C. alluaudi, Blgr., C. macro- mystar, Giúnth, o comprimento da cabeça é 1 E — 1 a em relação à largura. Caracteres. Na nossa especie a altura do corpo está comprehen- dida 7 vezes no comprimento total e o comprimento da cabeça 6 ve- zes O comprimento da cabeça quasi que eguala à largura; é lisa, e vêem-se distinctamente as suturas dos diversos ossos que compõem o craneo. O prolongamento ocipital é ponteagudo. A fontanela fron- tal apresenta a forma navicular, e tem de comprimento um pouco menos d'um terço do comprimento da cabeça; a fontanela ocipital é muito pequena, tem a forma elipsoidal. O diametro do olho fica com- prehendido tres vezes no comprimento do focinho e seis vezes no es- paço interorbital, que é quasi dois terços do comprimento da cabeça e maior do que a largura da boca. Faixa de dentes prémaxilares, tendo oito milimetros de compri- mento e dois militros de largura. Os dentes são conicos. Os dentes vomerianos são granulosos e formam uma faixa curva mais estreita que a precedente. O barbilho nasal eguala o comprimento da cabeça; o barbilho maxilar, mais comprído do que a cabeça, quasi que atinge a extremi- 1 106 Memorias Do Museu BocagE dade do espinho da peitoral, o barbilho mandibular externo quasí eguala o comprimento da cabeça; o barbilho mandibular interno tem. de comprimento um pouco mais de dois terços do comprimento da cabeça. Claviculas escondidas debaixo da pelle. A dorsal tem 76 raios e a anal 42. À sua distancia do prolongamento do ocipital é metade do comprimento da cabeça. O espinho da peitoral tem o bordo inter- no dentado e eguala o comprimento da barbatana. A ventral é dis- tante da caudal 1 + Ea do que da extremidâde do focinho. Caudal Ea do comprimento da cabeça. Côr geral amarelo torrado, mais acentua- damente escura na região dorsal. Comprimento do maior dos nossos. exemplares, 0”,160, Habitat: Guiné, Bolama, Postugo. 13. Chrysichthys fuscatus, Giinth. Cut. Fish., t. V, pag. 430. — Bouleng., Cat. of the Fish. Fresh-Water of Africa, t. II, pag. 320. — Bouleng., Les Poiss. du Bassin do Congo, pag. 280. Habitat: Guiné — Bolama — Postugo. No nosso exemplar o espinho dorsal não é inteiramente liso, tem proximo da ponta tres saliencias aguçadas; mede o unico individuo. que nos enviou o falecido explorador F. Newton, 0",2. 14. Chrysichthys nigrodigitatus, Lacep. Griinth. Cat. Pish., t. V, pag. 73. — Bouleng., Cat. of Fish. Fresh- Water of Africa, pag. 321. Habitat: Guiné — Bolama — Postugo. Exemplar medindo 0",18 com espinhos na parte terminal do es- pinho dorsal; caracter não mencionado nas diagnoses da especie. 15. Alestes baremose, Bouleng. Ann. and. Mag., N. H. (7) VIII, 1901, pag. 488. — Cat, Fish. Fresh- Water of Africa, t. I, pag. 195. Habitat: Guiné — Bolama — Postugo. 16. Sarcodaces odoé, Bl. Giinth., Cat. Fish., t. V, pag. 352. — Bouleng., Les Poiss. du Bassin du Congo, pap. 138. Habitat: Guiné — Bolama — Postugo. 12 Memorias Do Museu Bocage 107 17. Elops saurus, L. Syst. Nat., 1, pag. 518. — Ginth., Cat. Fish., t. VII, pag. 470, — Elops lacerta, Bouleng., Les Poiss. du Bassin do Congo, pag. 47. — Elops saurus, Bouleng., Cat, Fish. Frssh-Water of Africa, pag. 25. Habitat: Guiné — Bolama — Postugo. 13 MEMORIAS DO Museu BocagE Fig. 1 — Otolithus guinéensis, Osomo Fig. 2 — Cynoglossus guinéensis, Osoxro Fig. 3 — Clarias guinéensis, Osorio As Ostras de Portugal POR BALTHAZAR OSORIO N'este trabalho visamos apenas o interesse scientifico, o estudo de caracteres, a classificação dos diversos exemplares d'ostras que foram submetidos ao nosso exame, e a enumeração das especies en- contradas em varias bahias, costas, rias, rios e esteiros de Portugal. Em primeiro logar entendemos dever dizer que determinámos as seguintes especies, de que sucessivamente nos ocuparemos, jun- tando a respeito de cada uma d'ellas, as considerações que a obser- vação dos exemplares que as representavam nos sugerio. Eis a lista das especies: Ostrea canadensis, Lamk.= Ostrea edulis, Linn.= Ostrea edulis, Linn. Var. Hippopus, Lamk. = Ostrea edulis, Linn. Var. Cyrnusii, Payr. = Ostrea cochlear, Poli. — Ostrea stentina, Paysandeau.= Ostrea Virgini- ca, Gmel. Var. Lusitanica, Osorio. = Ostrea (Gryphea) angulata, Lamk. Tivemos ao nosso dispôr, para a elaboração d'esta memoria, os numerosos exemplares que a comissão de ostreicultura conseguio fa) reunir; depois de ter encarregado um dos seus vogaes, O sr. Annibal d'Oliver, de visitar as diversas regiões de Portugal onde existem os- treiras. Além destes documentos que detidamente examinámos, re- corremos ás antigas colleeções de molluscos, de formação mais ou menos remota, que existem no Museo Bocage, secção zoologica do Museo Nacional, e na comissão central de pescarias ; esta ultima, for- mada em parte pelo naturalista que me precedeo no cargo, e com os exemplares que lhe foram enviados por differentes pessoas, entre ellas os capitães dos portos, que em tempos mais ou menos Jongin- quos para ella concorreram. A's nossas proprias investigações e estudos reunimos ainda os 1 110 Memorias DO Museu BocagE dados colhidos por naturalistas que se dedicaram ao exame e de- terminação dos molluscos de Portugal, e que possuiam conheei- mentos e deram a publico noticias ácerca das ostras. Esta memoria contém portanto a sumula de um numero conside- ravel de informações e dados de diversa proveniencia e indole, e cre- mos que encerra a noticia completa de todas as especies d'ostras, e das suas variedades, que se encontram nas rias e rios portuguezes (". Uma d'ellas é nova para a fauna portugueza, pois não temos noticia de que algum naturalista, nacional ou estrangeiro, a tenha in- cluido nas listas ou monographias de molluscos provenientes do nosso paiz; referimo-nos á Ostrea Canadensis, Lamk. Além d'esta especie, que não tem para nós portuguezes nenhuma importancia economica, por ser muito pouco vulgar, a não ser que se aceite o que adiante dizemos, fundados em opiniões de naturalis- tas da maior autoridade, mas cuja citação tem algum valor para a sciencia, porque por este escripto, o seu habitat fica consideravelmen- te augmentado, temos de mencionar outra que julgamos nova para a malacologia, senão é uma simples variedade d'uma ostra que ainda não foi mencionada tambem, entre as especies d'ostras que vivem nas nossas aguas. Mas parece-nos melhor expor a respeito de cada uma das espe- cies que vamos apontar as considerações que a respeito d'ellas nos foram sugeridas, como dissêmos, pelo seu exame, e por este motivo passamos a enumeral-as : | — Ostrea Canadensis, Lamk. Est. I, fig. 1, 2, 3. Lamk. Hist. nat. des animauz sans vert., t. VII, pag. 226, 2.º edit. 1836. O. Canadensis. — Hanley. Cat. of recent biv. Shells, pag. 299. Habitat : Tejo — Ria de Faro. No Tejo e na ria de Faro, no Algarve, foram modernamente co- lhidos quatro exemplares d'esta especie (dois em cada um dos habi- tats mencionados), e todos pelo sr. Annibal Oliver. Todavia no Museo Bocage, existem, ha muitos annos, exemplares d'Ostrea canadensis que (!) Existe um trabalho em que o autor colaborou, publicado sob os aus- picios do Ministerio da Marinha e intimamenta ligado com este, e que se inti- tula Relatorios da Comissão d"Ostreicultura. 2 Memorias DO Museu BocaGgE WM1 segundo cremos, não foi nunca citada por nenhum naturalista na- cional ou estrangeiro, como pertencente à fauna de Portugal. As figuras 1, 2, 3 representam respectivamente a concha vista de perfil, e as valvas superior e inferior vistas pela sua face interna; são bem elucidativas, principalmente a fig. 1, e bem nitidas, para que se reconheçam os caracteres assignalados a esta especie. 2-—Ostrea edulis, Linn. Est. II. Fig. 1, 2,8, 4. Linn. Systema Natura. —t. VI, pag. 3334. — Lamk, Hist. Nat. des animaua sans vert, t. VII, pag. 217. O. Edulis. — Hanley. Cat. of Biv. Shells, pag. 295. O. Edulis. — Adams. The gen. of recent mollusca. Vol. II. pag. 568. Bl 129, fg: 5. O. Edulis. — Fischer. Man. de Conch., pag. 925. A esta ostra se tem chamado em Portugal, não sabemos com que motivos, mas impropriamente, ostra francesa, pois não só existe nas diversas costas e outras regiões onde estes molluscos teem faci- lidade em se desenvolverem em Portugal, mas tambem não consta que tivesse sido importada para o nosso paiz, onde desde tempos remotos é conhecida. Segundo Linneo, a Ostrea edulis encontra-se in Oceano europeo, et Indico et etiam ad Caput Bonnae Spei ('). Tem portanto uma vasta distribuição geographica; nas nossas costas encontra-se n'uma linha mais ou menos interrupta (dizemos assim por falta d'es- tudos ou por exhaustão de bancos), mas muito extensa, que vae desde Villa Real de Santo Antonio, até Leça da Palmeira. Comprehendem-se facilmente os motivos da interrupção dos bancos naturaes d'ostras; é talvez devida ao esgotamento causado pela exploração intensa, em primeiro logar; ao abandono completo das ostreiras aos seus inimigos, em segundo; aos assoreamentos, e à falta completa de cuidados que estes molluscos solicitam para se propagarem e crearem, em terceiro. Ainda ha poucos annos, em Avei- ro, existiam exemplares desta ostra e em quantidade bastante para ser exportada para o Porto e todavia desapareceu d'ali pela acção d'uma, e talvez de todas as causas que apontamos. Apesar de diversas circumstancias que teem sido desfavora- veis às ostreiras portuguezas e à sua propagação, sabe-se todavia (1) Linné, Loc. cit. Nota Memorias DO Museu BocaGgE qne a Ostrea edulis não desapareceu, d'uma maneira completa, e pode dizer-se que é relativamente abundante desde Villa Real de Santo Antonio até Portimão. Não atinamos com o motivo porque alguem lhe chamou ostra franceza. Os exemplares d'esta ostra colhidos em varios pontos mas es- pecialmente na costa algarvia, apresentam comtudo diversidade de caracteres com que podiam estabelecer-se talvez diferentes varie- dades, novas para a sciencia, mas que não teriam grande interesse, e por esse motivo nos abstemos de pugnar por ellas, embora as men- cionemos mais adiante e as tratemos com alguma demora. Por exemplo, alguns individuos da especie O. edulis, Linn., co- lhidos perto do Cabo de Santa Maria, apresentam as valvas grossas, espessas; são muito provavelmente animaes velhos, de muitos annos. Os caracteres d'essas valvas aproximam-se dos da ostra a que scien- tificamente se tem chamado O. hippopus, e a que como dizemos, tere- mos de referirmo-nos mais circunstanciadamente, ostra que todavia para alguns naturalistas constitue apenas uma variedade da O. edu- lis, considerando-a simplesmente uma ostra d'esta especie de edade muito adiantada. Pelo contrario os exemplares provenientes da Ria d'Alvor, mos- tram uma concha extremamente fragil, pouco espessa, e com uma forma que é bastante diversa da orbicular que se nota nos exempla- res normaes da edulis. Emquanto ao habitat d'esta ultima especie diremos que tem sido encontrada em Portugal, segundo as informações e dados a que aci- ma nos referimos, fornecidos por diversas pessoas e pelas obras que consultâmos, ou segundo as indicações derivadas dos exempla- res estudados por nós, nas seguintes localidades: Leça da Palmeira (Sr. Nobre) — Ria d'Aveiro (Sr. Almeida d'Eça), exemplares existen- tes na comissão de pescarias = Figueira da Foz, dentro do porto, exemplares existentes no Museo Bocage = Buarcos (Sr. Nobre) = Lagoa d'Obidos (exemplar colhido ha pouco mais d'um anno pelo Sr. Felix Alvares Pereira) — Caparica? (Informação dada pelo Sr. Paul Choffat) — Esteiro da Carcanhola, Ria de Faro — Esteiro da Tapada == Cabo de Santa Maria, Banco do cabeço da Canossa, a 22 braças de profundidade — Villa Real de Santo Antonio-=Foz do Guadiana, Monte Gordo == Tavira = Rio Portimão = Ria d'Alvor == Lagos -- Canal de Marim, entre Olhão e a Fuzeta--Canal de 4 Memorias no Museu BocacE 1nts: Olhão, etc. Os exemplares d'estas ultimas proveniencias foram quasi todos colhidos pelo Sr. Annibal d'Oliver. O Sr. A. Nobre diz que encontrou exemplares da O. edulis, em Cascaes, em Setubal, em Lisboa, nas pontes de desembarque em Belem e em Cacilhas. Pela nossa parte entendemos dever declarar que entre alguns centenares de individuos colhidos no Tejo pelo Sr. Annibal Oliver não encontrámos um unico exemplar de O. edulis. Nunca vimos à venda em Lisboa, nem agora nem em tempos mais ou menos remo- tos exemplares d'esta especie, e a não ser o illustre geologo Sr. Paulo Choffat e o Sr. A. Nobre não conhecemos pessoa, gosando de auto- ridade scientifica, que nos afirmasse ou escrevesse, ter visto ou co- mido ostras da especie edulis provenientes das proximidades da capital. Em todo o caso consideramos, até uma demonstração em con- trario, como muito rara ou como completamente extincta no mo- mento actual, no Tejo, a O. edulis, embora admitamos que existio n'outros tempos, pois além das afirmações acima mencionadas, en- contrámos na collecção de ostras do Museo Bocage, valvas perten- centes, incontestavelmente, a esta especie e provenientes das lagoas internas e martas da Trafaria, segundo as respectivas etiquetas. 3 — Ostrea Hippopus, Lamk. Est, II. Fig. 1,2. Lamarck, Hist. nat. des animauz sans vert., t. VII, pag. 219. Hanley. — Cat. of rec. Biv. Shells, pag. 296. Adams. — The gen. of recent moll., t. II, pag. 658. Esta especie, creada por Lamarck, e considerada no momento actual como uma simples variedade da O. edulis, é representada por exemplares d'esta, que devido à edade, teem dimensões considera- veis, superiores aos que mostram os individuos de poucos annos; além deste caracter teem tambem para distinguil-os a espessura consideravel que apresentam ambas as valvas, e o desaparecimen- to, ou o manifesto apagamento na valva superior das pregas longitu- dinaes. Provenientes d'Aveiro e de diversas regiões do sul de Portugal são nossos conhecidos exemplares d'esta variedade. Na ria d'Alvor encontraram-se n'uma ostreira, que ha poucos annos foi explorada e hoje está completamente ao abandono, exem- o 114 Memorias DO MusEU BocaGE plares de O. edulis, que segundo a opinião d'A. Girard constituem uma variedade que elle denominou Alvorense. Est. III. Fig. 1, 2,3,4. O. edulis, Linn. var. Alvorensis Girard (!), cujos caracteres este natu- ralista ficou de apresentar n'um trabalho que não escreveu ou de que não temos noticia. Na ria d'Alvor foram em tempo lançados, com o fim de os pro- pagar, um certo numero de exemplares de O. edulis, provenientes de Cancale e não sei se de mais alguma outra localidade em que existem ostras de grande nomeada. As ostras que são colhidas em Alvor e muito naturalmente des- cendentes de exemplares que na sua ria foram propositadamente de- postos, apresentam alguns caracteres que as distinguem da O. edulis typo da especie. A valva inferior é muito pouco profunda e as duas valvas tanto superior como inferior, além d'uma pequenissima espes- sura, são muito frageis e não teem a forma regularmente arredonda- da que apresenta a O. edulis, além de que a côr, dambas as valvas, é exteriormente clara amarelada, (rosada diz A. Girard). 4-—Ostrea Cyrnusii, Payr. Est. IV. Fig, 1, 2,3, 4. Adams. — The gen. of recent moll., pag. 568: à Lamarck, Hist. nat. des amim. sans vert, t. VII, pag. 236. Esta especie que alguns malacologistas consideram simples- mente como uma variedade da O. edulis, sendo tambem esta a nossa opinião, foi encontrada em Tavira e está representada na colleeção do Museu Bocage e da Comissão central de pescarias por exemplares provenientes de Tavira. A. Girard diz que encontrou esta ostra na costa de Faro (”). 5— Ostrea angulata, Lamk. Est. V. Fig. 1,2,3,4,5,6,7,8. Gryphea angulata. — Lamarck, Hist. nat. des animau sans vert., t. VII, pags. 203, 204. O. angulata. — Hanley. Cat. of recent biv. shells, pag. 301, Gr. angulata. — Adams. The gen. of recent moll., t. II, pag. 569. PI. 129, fig. 6, 6A. (!) Catalogo dos Mummiferos, Peixes, Molluscos e crustaceos do: Algarve, pag. Deo (O cencid: (op) MemoRrIAS DO Museu BOCAGE 115 Gr. angulata. — Chenu. Man. de Conch., t. II, pag. 198, fig. 1009 e 1012. Gr. angulata. — Fischer. Man. de Conch., pag. 927. Devemos ocuparmos-nos agora de duas especies d'ostras, uma das quaes é muitissimo abundante no Tejo, e n'outras rias e rios portugue- ses. Estas duas especies teem, a meu vêr, sido tomadas como uma só por todos os naturalistas que se ocuparam do estudo das ostras de Portugal. As duas especies d'ostras a que aludimos são a O. angu- lata, Lamk e a O. virginica, Linn. A Ostrea angulata, Lamk. é conside- rada, como ostra portugueza, isto é propria de Portugal, pelo menos em Inglaterra e em França, mas confundem-se sob a mesma designa- ção scientifica e comercial, principalmente debaixo d'este ponto de vista, as duas especies muito diferentes pelos seus caracteres. E' realmente singular o que Lamarck diz a respeito da O. angulata ; afirma que é rarissima (") e não aponta em que região do mundo existe! Mas vejamos quaes os caracteres que lhe atribuia o famoso na- turalista: Testa oblongo ovata subtus costis tribus longitudinalibus angu- lato carinatis, unco magno, subobliquo (2). Uma das ostras que se encontra no Algarve, em diversas locali- dades, e nomeadamente na ria de Faro, mas que se encontra tam- bem no Tejo, apresenta quasi todos os caracteres que Lamarck assig- nala à O. angulata. Em primeiro logar é oblonga, oval, diferindo o eixo maior muito pouco do eixo menor, egualando-o por vezes n'al- guns exemplares; em segundo logar a valva inferior apresenta sa- liencias, cristas longitudinaes carenadas no angulo, e tem o umbo grande e subobliquo. Deveriamos portanto concluir, sem mais dis- cussão, em presença dos caracteres mencionados, que pertencem realmente à especie O. angulata os exemplares em que se verificam, e que teem sido colhidos principalmente nas regiões citadas: mas não podemos proceder assim, sem mais reparos, porque nas ostras a que nos referimos encontramos não tres cristas, mas um numero va- riavel d'ellas, tendo chegado a contar sete, mas sempre um numero superior a tres. Veja-se Est. V, fig. 1,2,3,4. Além d'isto notamos que a valva superior se apresenta recorta- da, correspondendo os seus recortes a outras tantas saliencias e (*) Loc. cit. pag. 208. (2) Loc. cit., pag. 203, edit. de 1836. 116 Memorias DO Museu BocacE reentrancias da valva inferior, o que permitte ás duas valvas, adap- tarem-se d'uma maneira perfeita ao fechar-se a concha. Como foi que este caracter, tão manifesto, tão evidente, escapou à vista educa- dissima do naturalista que creou a especie? Não é natural que lhe tivesse passado desapercebido. Resultaria a falta em o mencionar da circumstancia de que tendo cegado o não vio, e não lh'o fez no- tar quem escreveu, ditado por elle, M.”º Cornelie Lamarck, o ultimo volume da Histoire Natwrelle des animaux sans vertébres, em que esta especie vem descripta? Não sabemos dizer. Todavia são estes dois caracteres, o numero de cristas, superior áquelle que Lamarck apon- ta, e a ondulação das valvas, que estabelecem a divergencia entre a diagnose e os caracteres dos nossos exemplares. N'uma outra obra sobre molluscos, embora elementar, Manuel de Conchiologie, pag. 927, devida a um malacologista da maior au- toridade, P. Fischer, encontra-se indicado que um caracter do gene- ro Gryphea, é ter os bordos das valvas onduladas, e a superficie d'ellas às pregas (plissé); mas Lamarck, nem nos caracteres de genero Gry- phea nem nos caracteres de genero Ustrea, inclue estes que menciona- mos e que são, como dizemos, apontados por P. Fischer. No conjuneto das duas citações estão comprehendidos os carac- teres que se encontram reunidos n'alguns exemplares d'ostras do Tejo, e do Algarve. N'esta provincia chamam ás ostras que os apre- sentam carcanholas. Mas no Tejo, assim como no Sado, em Setubal, em Villa Nova de Mil Fontes, no rio de Mira, etc., e em grande quantidade, colhem- se outras ostras que apresentam caracteres diversos d'aquelles que acima mencionámos. Podemos mesmo dizer que a maior parte dos exemplares d'ostras que recebemos de diferentes regiões do paiz, e já indicadas, os que nós mesmos temos colhido no mercado, e os que temos visto em varias colecções, pertencem pelos seus caracteres a uma outra especie, que anda todavia confundida, segundo nos parece, com a O. angulata. A ostra a que nos referimos, e a que se poderia talvez com rasão chamar portugueza, não tanto porque os estrangeiros lhe chamam assim, mas pela sua consideravel abundancia em Portugal, julgamos todavia, que embora se tenha desenvolvido no nosso paiz extraor- dinariamente, não é originaria das nossas aguas. Este facto não im- porta à sciencia mas o que nos importa muito, é não apresentar 08 8 EEE EEE SEA EA EE O E — - A "D— caracteres da O. angulata, Lamk; pertence pelos que se lhe notam, a uma especie diversa, Esses caracteres são os seguintes: é muito mais comprida do que larga; não apresenta cristas na valva inferior, ou se as apresenta, são apenas indicadas, esboçadas, em numero muito restricto, não tendo nunca a evidencia que se nota nas outras conchas representadas na Est. V, fig. 1, 2, 3,4,5, 6, 7,8, com que as con- chas da Est. VI, fig. 1, 2, 3, 4, devem comparar-se, porque então serão bem evidentes as diferenças que as separam. Um outro caracter im- portante permite ainda distinguil-as, das que consideramos como exemplares typicos da O. angulata: os bordos, tanto os da valva supe- rior como os da valva inferior não são ondulados. A estes caracteres podemos juntar ainda outros de menos importancia ou de menos cons- tancia; como, por exemplo, o espessamento da concha, que é por vezes bastante consideravel; as duas valvas, pela sua parte interna, serem quasi sempre muito escuras; a mancha que indica a área de inserção do musculo muito longa; não apresentar esta a forma arredondada, acentuadamente eliptica, que se nota nos exemplares da O. angulata ; a valva inferior ser geralmente pouco profunda, se a compararmos com o comprimento, emquanto que a valva correspondente da O. an- gulata, Lamk, é profundamente escavada, etc. Portodos estes caracteres, maiores e menores, julgamos os exem- plares d'ostras que os apresentam, e que estão bem evidentes nas es- tampas que ácompanham esta obra, como pertencentes a uma outra especie d'ostra, diferente da angulata, e não mencionada até agora entre as conchas que constituem a fauna malacologica de Portugal; referimo-nos á especie americana denominada O. virginica, Gmel. Começámos por indicar n'este trabalho que nas aguas do nosso paiz existem representantes d'uma especie d'ostra que vive especial- mente na America, a (O, canadensis, Lamk. Sabemos que diversas es- pecies pertencentes a outras classes d'animaes, crustaceos, peixes, etc., ou os seus ovos, são transportados pela corrente do golfo, do Me- xico para outros continentes. As ilhas do golfo da Guiné, as suas costas e rios, a costa e rios das regiões ocidentaes da Africa, são habitadas por especies que pertencem tanto à America do norte, como à do sul, mas principalmente á primeira ; não custa portanto admitir que uma outra especie d'ostra americana, transportada por qualquer processo, por exemplo adherente ao casco de um navio, se propagasse nas aguas portuguezas, e se desenvolvesse considera- 9 118 MEMORIAS Do Museu BocagE velmente, se as condições mesologicas em que se encontrou foram propicias à sua propagação. Mas todas estas considera neadi seriam talvez um pouco vãs se não tivessem por si um conjuncto de factos scientificos de valor, co- mo vamos ver nas paginas seguintes. Fischer, (Jorn. de Conch., 5? sér., t. XX, vol. XXVIII, pag. 85 e seg), ao occupar-se da O. angulata, e especialmente dos exemplares d'ostras d'esta especie, que importados de Portugal se propagaram acidentalmente em França, emite a opinião de que, emquanto esta ostra pertence essencialmente à zona litoral, o que quer dizer que fica a descoberto em cada baixamar, a (). edulis pertence à zona das Laminarias, o que siguifica que se encontra comprehendida n'uma profundidade que varia entre O metros e 28 metros, e a dos Nulli- poros, comprehendida entre 28 e 72 metros. Esta circumstancia do habitat, explica, segundo Fischer, o moti- vo porque a ostra que elle denomina de Portugal, resiste nos par- ques, melhor do que as ostras a que chama indigenas, ás variantes de temperatura. Uma outra circumstancia seria, segundo o mesmo malacologista, a favor da resistencia e vitalidade da ostra que classifica de angulata ; ter a valva inferior bastante escavada, particularidade sem duvida favoravel à conservação de muita agua no seu interior, e que julga indispensavel ás ostras para atravessarem incolumes o tempo quente. Mas o pormenor d'este artigo de Fischer mais importante para nós, é a sua affirmação de que na O. angulata (transcrevemos textual- mente: «La valve inféricure port toujours quelques trés grós plis longitu- dinauz que caractérisent cette espéce, et empêcheront toujours de la confon-. dre avec U Huittre americaine (O. Virginica, Canadensis, etc.), qui porte comme elle une tache violette á Vintérieur des valves. Vostrea angulata ne essemble qu'a une espéce fossile, Ostrea undata, Lamarck, qui est vraisem- blablement sa forme ancestrale. Les individus agés de quelques années sont allongés comme U Ostrea crassissima, ou V Ustrea Virginica». Portanto podemos dizer, firmando-nos na auctorisada opinião de Fischer, que a O. angulata é caracterisada pela existencia de gros- sas pregas longitudinaes, e que apenas os individuos que teem alguns annos são alongadas como a 0). Virginica. As valvas inferiores representadas na estampa VIII, fig. 1,2,3 e 4 pertencem a individuos novos, e em que se não observam pregas 10 Memorias DO Museu Bocage 119 longitudinaes, nem mesmo vestigios d'ellas; não apresentam ondula- ções nos bordos, nem nas valvas superiores, nem nas inferiores, como apresentam os exemplares da O. angulata ; mdubitavelmente perten- cem portanto à especie chamada (O). americana. (O. Canadensis ou Vir- ginica. 6 —Ostrea virginica, Gmel. Est. VI, fig. 1,2,3,4. O. Virginica. — Hanley. Cat. of recent biv. Shells, pag. 299. Ústrea Virginica. — Adams. The gen. of recent moll., t. II, pag. 569. Os caracteres que Lamarck atribue á O. virginica são os seguin- tes, que transcrevemos textualmente ('): O. testa elongata, angusta, subrecta, crassa, lamelosa. Valva superiore planulata. Ora no exemplar cujas figuras mostramos (Vid. Est. VI, fig. 1, 2, 3, 4), verificam-se estes caracteres que Lamarck atribuia á O. virginica, logo devemos entender que elle deve ser considerado como pertencente a esta especie; por outra parte não tem os ca- racteres que se atribuem à O. angulata, não deve portanto ser con- fundido com aquelles que a representam. Mais ainda, comparemos as figuras da Est. VII, fig. 1,2,3,4, que representam exemplares typicos da O. virginica, e pertencentes á colecção do Museu Bocage, com as figuras que representam a ostra portugueza e reconheceremos que existe muita similhança entre os exemplares da ostra chamada portugueza e os da ostra denominada americana, mas não com a O. angulata, Lamk. representada na Est. Vi henioaos A bn6; 7,8: Existem portanto nas costas de Portugal duas especies d'ostras, confundidas n'uma só, sob uma unica denominação scientifica, O. angulata, Lamk, quando, segundo a nossa opinião, na verdade exis- tem duas, esta ultima e a O. virginica, Gmel. Mas este facto não tem apenas uma importancia meramente scientifica, tem tambem um valor comercial e industrial considera- vel, visto que o nosso paiz poderá lançar nos mercados, se as culti- var à parte, tres especies d'ostras, o que me parece que não é vulgar em outros paizes ostreicolas. A 0. edulis tem a sua reputação feita e confirmada. (1) Hist. nat. des anim. vert., t. VII, pag. 225-226, edit. de 1836. 11 120 Memorias DO Museu Bocage A reputação da verdadeira O. angulata está por estabelecer, mas poderá vir a ser consideravel, se atendermos a que a sua forma atra- hente, elegante mesmo, e ainda talvez susceptivel de aperfeiçoar-se pela cultura, o brilho e nacarado da parte interna das suas valvas, além de seu excellente sabor, que alguns dizem ser melhor do que o da O. edulis, devem despertar a atenção, determinar a procura d'aquelles que apreciam as ostras. Portugal cultivando e seleccionando a O. angulata, não a cultivan- do conjunctamente, e sobretudo não a vendendo misturada com a O. virginica, poderá auferir enormes lucros, visto que me não pare- ce que se cultive em qualquer parte do mundo uma ostra que por tantas qualidades se recomenda, e nomeadamente a sua boa apa- rencia interna e externa, e excellente sabor. Devemos ainda dizer, embora este assumpto se prenda mais di- rectamente com a ostreicultura, do que com um estudo de indole meramente scientifica, que a ria de Faro deve ser a região mais pro- picia para o desenvolvimento d'esta ostra, assim como para o desen- volvimento e multiplicação da O. edulis. Do Algarve raros, muito ra- ros exemplares d'ostras recebi que não pertencessem a uma estas duas especies, (edulis e angulata), emquanto que as regiões mais ou menos visinhas-de Lisboa quasi que não fornecem senão exemplares da ostra que denominamos O. virginica. Algumas vezes encontrei ao estudar os exemplares d'ostras de Por- tugal recentemente colhidos, individuos quasi inteiramente eguaes aos que se encontram na collecção do Museo Bocage, e que n'elle existem desde tempos remotos, clasificados como O. virginica, e talvez mesmo provenientes da Virginia, mas é certo tambem que por vezes hesitei na sua determirsação por se me depararem alguns que poderiam talvez considerar-se quasi indiferentemente como pertencentes às especies O. angulata, ou à O. virginica pelos caracteres que apreciava. Não me custa admitir a existencia de hybridos d'estas duas es- pecies, tanto mais que diversas circunstancias podem concorrer para a hybridação. Ambas vivem, por vezes conjunctamente, nas mesmas aguas, por exemplo no Tejo. Este facto, o da hybridação, justificaria a existencia de formas de duvidosos caracteres, de exemplares que poderiam tomar-se como representantes d'uma ou d'outra especie, incertamente; d'alguma ma- neira explicaria, talvez, a confusão experimentada por aquelles que 12 Memorias po Museu BOCAGE 121 não examinaram typos das duas especies, ou formas acentuadamente tão diversas como aquelas que encontrámos no decorrer das nos- sas investigações, algumas das quaes estão representadas nas estam- pas Ve VI, e d'ahi o terem classificado como 0. angulata hybridos d'esta ostra e da O. virginica. Claramente, no nosso entender, a ostra denominada portugueza, nos mercados estrangeiros, é a Ustrea angulata, Lamk, a que no Al- garve chamam carcanhola, misturada com exemplares, em muito maior numero da (. virginica ou hybridos d'estas duas especies. Inclinamo-nos porem mais para admitir que se trata d'uma varie- dade d'esta ultima, a que poderiamos chamar lusitanica. O. virginica Gmel., var. lusitanica, Osorio. Em todo o caso não queremos deixar este assumpto, sem frisar que esta idea da aproximação da especie vulgarmente denominada, portugueza, no estrangeiro, pretendida O. angulata, da O. virginica, não é exclusivamente nossa; transcrevemos d'um livro (') sobre ostrei- cultura a seguinte opinião de quem possue conhecimentos vastos é especiaes relativos às ostras: «Il en existe une troisiéme, Vhuitre américaine, Ústrea virginiaca, qui se rencontre et est cultivée sur les côtes Est des Etats-Unis, elle ofre des ana- logies avec Vhuitre portugaise, mais Vune et Vautre sont unaiques en leur genre et on ne leur connait pas de variétés (?)». Parece-nos demasiadamente cathegorica esta afirmação, por- quanto basta examinar as estampas VI e VII e lêr a diagnose da Os- trea virginica, que vae transcripta na pag. 117 d'este trabalho para se vêr como é justificado quanto sobre este assumpto temos dito ; ainda mais, n'uma nota do VII volume da Hist. Nat., de Lamarck, tantas vezes citada n'este trabalho, e que é devida a quem dirigiu e anotou a segunda edição, os notaveis e sabios naturalistas Gr. Deshayes e H. Milne-Edwards, encontra-se o seguinte a respeito da O. virginica Gmel. (Huitre etroite, nome vulgar): Les individus étiquités de la main de La- marck dans la collection du Museum ont Vimpression musculaire petit et blanche tandis que dans Vespéce suivante (à especie seguinte na obra que citamos é a Ostrea Canadensis, Lamk) elle est violette. Malgré cette diffé- rence et celles signalées par Lamarck entre ces deux espéces, nous croyons (1) L'Ostreiculture à Arcachon, par Charles Boubés, pag. 52. 13 122 MEmoRrIAS DO Museu BocaGE qwelles doivent être reunies en une seule, à Vexemple de Dillwyn et de quel- ques autres auteurs. (*) Se conforme a opinião dos naturalistas mencionados a O, Cana- densis, Lamk. e a O. Virginica, Gmel. são uma só especie, se a O. Ca- nadensis existe em Portugal, como os exemplares estudados por nós manifestamente comprovam, existe portanto nas nossas aguas a O. Virginica em harmonia com o que n'esta memoria temos exposto e fi- cam justificadas as nossas afirmações a este respeito. Entre a O. Vir- ginica, Gmel. e a sua variedade lusitanica que propomos, a diferença é apenas a seguinte: a Ostrea Virginica é em geral mais estreita em relação ao cumprimento do que a sua variedade portuguesa e ainda d'esta ultima se pode dizer que os seus bordos são subparalelos. As outras especies d'ostras das costas de Portugal, e que já teem sido citadas em obras de diversos naturalistas são as seguintes, uma das quaes encontrámos entre muitos exemplares d'ostras do Tejo que estudámos : 7 — Ostrea cochlear, Poli. Est. VIII. Fig. 1,2,3,4. (*) Lamarck, Hist. Nat. des Anim. sans vert., t. VJI, pag. 221. O. cochlear. — Adams. The gen. of recent moll., t. II, pag. 568. Gr. cochlear. — Fischer. Man. de Conch., pag. 927. O. cochlear. — Hanley. Cat. of rec. biv. Shells, pag. 297, Entre os numerosos exemplares d'ostras que estudámos, e pro- venientes de diversas regiões ostreicolas exploradas, não encontrámos um unico exemplar d'esta especie, que segundo as afirmações do sr. Nobre (*) se encontra no norte de Portugal. E' certo porem que a comissão d'ostreicultura não recebeu exemplares d'algumas regiões que todavia foram visitadas com o fim de se conhecer qual o seu va- lor sob o ponto de vista da abundancia das ostras. Incluindo esta es- (!) A mesma idea exprime Fischer no Jour. de Conch. 5.º ser. t. V. vol. XJII, pag. 66, pois diz: L'Ostrea Virginica, Lamk. ou plutôt sa variété, Ostrea Canadensis.. ... ; (2) O exemplar que reprodusimos n'esta estampa pertence à antiga colle- ção do Museo Bocage, e representa a variedade Atlantica d'esta especie, cujo habitat se julgava antigamente que estava confinado apenas no Mediterraneo, (*) Fuune maiacologique des bassins du Tage et du Sado, pag. 33. — Distri- buition geographique des huitres sur les côtes du Portugal, pag. 16. 14 Memorias po Museu BocacE 123 pecie n'este trabalho fazemol-o unicamente fundados nas afirmações do bem conhecido e autorisado malacologista acima citado. A Lighining and Porcupine Exped. encontrou tambem esta espe- cie na bahia de Setubal. O sr. À. Nobre diz que a encontrou em Lisboa, Belem e em Cacilhas. 8 -—Ostrea stentina, Payr. Est. VIII. Fig. 1, 2,83, 4. Lamarck, Hist. nat. des anim. sans vert., t. VII, pag. 236. O. stentina. — Adams. The gen. of Recent moll., pag. 569. No Tejo encontraram-se, nos esteiros da Gallega e de Badajoz, alguns exemplares d'esta especie, porém em muito pequeno numero, e de nenhuma outra localidade do paiz, nem de nenhum outro banco d'ostras, recebemos exemplares d'esta ostra que, segundo o Sr. Nobre, vive em toda a costa a partir de Buarcos. Memorias DO Museu BOCAGE Estampa 1 1 Ostrea Canadensis, Lamk. — (Vista de perfil) 2 Valva superior vista pela face interna. — 3 Valva inferior vista pela face interna = ici Ps 2 Ro Ro o a = os Memorias DO MusEU BOCAGE Estampa II Ostrea Edulis, Linn. — 1 Valva inferior vista pela face interna 2 Valva superior vista pela face interna 3 Valva inferior vista pela face externa. — 4 Valva superior vista pela face externa Memorias DO Museu BOCAGE Estampa III il Ostrea Hippopus, Lamk Valva superior vista pela face externa 2 “ Ostrea Hippopus, Lamk Valva inferior vista de perfil Memorias DO Museu BocaGE Estampa IV 1 2 Ostrea Cyrnusii, Payr. — 1 Valva inferior vista pela face externa 2 Valva superior vista pela face externa Ostrea Cyrnusii, Payr — 3 Valva inferior vista pela face interna 4 Valva superior vista pela face interna EA. em, yo N ; Ué, 4? y dia A RE ofam OT 'euIegur oory ejed eystA IoLtodns BAJRA () — euzagur eory ejod vIstA JOLI9jur BATRA (9) BUISgXo 99%] V[9d BISIA TOLIOdNS BAJRA (7) — “eUIO)XO 99%J BJ9d VISTA IOLIOJUI VAJRA (7) — : sejdutoxo o1ynç OI 9p BI “euiogur ooey ejad egstA 1oriadns vATeA F BUIOJUI 90UY B[9d BISIA IOLEJUI BATEA E — "BUIOJXO 9987 ejod vIstA IOTIOdNS BATRA Z — "BUIGJxXO 99% BJad BISIA IONOJUL VAJLA T— “jure; ejejndue cosso A edueysm HNVOOM NASA] 0a SVINONA] Memorias DO Museu BocaGE Estampa VI Ostrea Virginica, Gmel- Var. Lusitanica, Osorio. — 1 Valva inferior, vista pelo lado externo 2 Valva superior vista pelo lado externo E) 1 Ostrea Virginica, Gmel. —- Var. Lusitanica, Osorio — 3 Valva inferior vista pelo lado interno 4 Valva superior vista pelo lado interno 1 é Memorias DO Museu BocagE Estampa VII Ostrea Virginica, Gmel - Typo de especie existente no Muspu Bocace 1 Valva interior vista pelo lado externo. 2 Valva superior vista pelo lado externo 3 Valva inferior vista pelo lado interno. — 4 Valva superior vista pelo lado interno E Memorias DO Museu BocagE Estampa VIII 1 2 3 4 Ostrea stentina, Payr. — 1 Valva inferior vista pela face externa. — 2 Valva superior vista pela face externa 3 Valva inferior vista pela face interna. — 4 Valva superior vista pela face interna 1 2 4 Ostrea cochlear, Poli. — 1 Valva inferior vista pela face externa. — 2 Valva superior vista pela face externa 3 Valva inferior vista pela face interna. — 4 Valva superior vista pela face interna Ostrea Virginica, Gmel. - Var. Lusitanica, Osorio 1,2,3, 4— Valvas inferiores vistas pelo lado externo Memorias DO MuseU BOCAGE Estampa IX 1 2 Ostrea edulis, Linn. — Var. Alvorensis. — 1 Valva inferior vista pela face externa 2 Valva superior vista pela face externa 1 9 1 Valva inferior vista pela face interna. — 2 Valva superior vista pela face interna Contribuição para o estudo dos « Cachalotes » e outros cetáceos POR BALTHAZAR OSORIO On n'a pas encore reunie des materiaux suffisants pour écrire une histoire comparative, de ces ani- maux (les cachalots) qui habitent les differentes mers, et Ion ns sait aussi que trés peu de chose sur Vetendue des voyages qu'ils executent, «Osteographie des Cetacés», par Van Beneden et P. Gervais, pág. 310. No ministério de Marinha foi recebido em setembro de 1917 um ofício do mui distincto capitão do porto d'Aveiro, Ex.”' Sr. Jayme Afreixo, informando que n'um ponto da área maritima da sua juris- dição, tinha encontrado o esqueleto d'um cetáceo acerca do qual man- dou as seguintes informações : O esqueleto estava a kilometro e meio de Mira, na linha de maior alcance das preamares, com mar ruim. O cetáceo a que pertencia tinha sido arrojado ali e foi achado morto. Quem primeiro o viu foi um pescador que o esquartejou e que com o auxílio d'outros lhe derreteu os tecidos moles. O esqueleto depois de descarnado, ficou ao abandono na praia, tendo-lhe o mar pegado várias vezes para o arrebatar, arrojando-o, porêm, para mais longe durante um temporal. Mandado para Lisboa verifiquei, no Aquário do Dafundo, onde foi recolhido por intermedio da Commissão central de pescarias, que era efectivamente d'um cetáceo, que estava muito incompleto, fal- 1 “ 126 Memorias Do Museu Bocage tando-lhe inteiramente todas as partes moles, os membros locomoto- res, a barbatana caudal, bastantes costellas, estando partidas algu- mas das que existiam, mas entretanto entendi que do esqueleto devia, conservar-se tudo quanto d'elle restava, que era quasi exclusiva- mente o crâneo e a columna vertebral, partes que se encontram bastante completas, dada a raridade ou pouca frequencia do apare- cimento de cetáceos de grandes dimensões na costa de Portugal. As informações ministradas pelo Ex.”º Sr. Capitão do Porto d'Aveiro vieram acompanhadas de alguns dados numéricos, relativos às dimensões das peças esqueléticas conservadas, alguns dos quaes aproveitâmos no estudo que emprehendemos, assim como de quatro photographias, uma da totalidade do que resta do esqueleto, e trez do crâneo visto em trez posições diversas. No Museu Bocage existiram, em tempos, muitas peças d'um es- queleto, incompleto tambem, d'um cachalote, de que hoje apenas res- ta o crâneo, de que adiante daremos noticia (!). Proveio do mar dos Açores onde os cachalotes aparecem com frequencia e são perseguidos pelos habitantes do Archipélago, prin- cipalmente pelos que vivem na ilha de S. Miguel, que colhem e apro- veitam o espermaceti, o âmbar cinzento, que se encontra no intes- tino d'este animal, e o excellente marfim dos seus dentes, etc. À perseguição e a caça a estes cetáceos tem sido descripta, e por uma forma bastante completa, por diversas vezes; entre os es- critos de carácter ao mesmo tempo literário e scientífico que lhe teem sido dedicados, entendemos dever citar como um dos mais brilhantes e impressionantes, aqueile que na Revue blanche publicou em tempos o Principe Alberto de Mónaco. (2) Alêm do crâneo proveniente dos Açõres a que acima nos re- ferimos, e que é relativamente pequeno, o Museu Bocage possue um maxilar inferior d'outro cachalote, pertencente à sua antiga collec- (*) Foi doado, já ha bastantes annos, pelo Ex.”º Sr. Francisco Chaves, di- rector do Observatório de Ponta Delgada. Egualmente S. Ex.* presenteou o Mu- seu de Mónaco, com um esqueleto completo do mesmo animal, e que lá vimos ha poucos annos. (*) Um capítulo do livro de S. A. intitulado «La carritie d'un navigateur» é talvez a reprodução da Jtcvistu indicada ou vice-versa. 2 Mexorras Do Museu BocacE 127 ção d'esqueletos, e que muito naturalmente proveio tambem do mes- mo archipélago; e ainda, alêm d'êste, possue um fragmento d'um ou- tro maxilar inferior. (Estampa II, fig.) Com respeito ao cetáceo colhido em Aveiro o primeiro facto in- teressante que entendemos dever assignalar n'este nosso escrito é o aparecimento moderno dum cetáceo de tão grandes dimensões na costa de Portugal. Não ha pelo menos noticia de que nos últimos 60 a 80 annos tenham sido encontradas despojos, ou animaes intei- ros, pertencentes a este grupo da classe dos mamíferos, quer nas águas do mar mais próximas de nós, quer arrojados ás suas praias; mesmo a unica notícia que temos acerca de aparecimento de cachalo- tes nas regiões mais visinhas da costa de Portugal é a que se encon- tra no interessante artigo do illustre Prof. do Museu de Paris Mr. E. L. Bouvier e publicado no n.º 93 do Bulletin de | Institut Oceonographi- que de Mónaco (!). N'esta obra se diz que foi visto um cachalote nas proximidades de Gibraltar. Van Beneden e Paul Gervais na sua obra Osteographie des Ceta- cés (?) mencionam diversas regiões da Europa onde teem sido encon- trados cachalotes; Mediterrâneo, costas da França, da Inglaterra, da Scandinavia, etc. mas não dão notícia de nenhum que tenha sido colhido nas proximidades do nosso paiz. Tambem, segundo os mes- mos autores, teem sido, todavia, encontrados cachalotes nas costas de Hespanha. Parece que a área geographica onde estes animaes apa- recem se prolonga muito para o norte da Europa encontrando-se egual- mente nos mares do hemispherio austral. Era, portanto interessante, ja por esta circunstância, do habitat, o encontro d'uma especie de que os naturalistas portuguezes ou estrangeiros não deram notícia do seu aparecimento nas águas que banham pelo ocidente a península ibé- rica, (*) se porventura realmente se tratasse d'um cachalote. (') «Quelques impressions d'un naturaliste au cour d'une campagne scien- tique de S. A, S. le Prince de Mônaco», pág. 7 — 1905. (*) Loc. cit., pág. 304 e segs. (*) pág. 310. (*) De cachalotes não ha efectivamente notícia de se avisinharem ou visi- tarem a costa. portuguesa, o mesmo não acontece com as baleias, com que de resto, mesmo entre gente culta, são confundidos. No Museu Bocage existe um baleote adquirido ha poucos anos e colhido perto de Lisboa. Existe tambem metade d'um maxilar inferior que um documento archivado diz que foi colhido o o 128 Memorias DO Museu Bocage Van Beneden e Paul Gervais dizem na obra, que já citâmos, que não só se não reuniram ainda materiaes que permitam escrever-se uma história completa dos diversos cachalotes que habitam os diferentes mares do globo, mas que pouco se sabe tambem acerca da extensão das suas viagens. Assignalam ainda os autores mencionados que, pelo menos no tempo em que elles escreveram o seu livro, era muito difi- cil dizer se os animaes vulgarmente denominados cachalotes consti- tuiam muitas especies e surtout quels sont les caractéres respectifs de ces es- péces. Encontrámo-nos portanto em presença d'um problema de difícil resolução, acrescida ainda pela circunstância dos materiaes que possuimos para a tentar serem incompletos, pois não temos para o nosso estudo, senão ossos d'um esqueleto incompletissimo, os ossos de duas cabeças completas, e mais dois maxilares inferiores. Vamos todavia mencionar o que derivou da nossa observação dos despojos do esqueleto encontrado perto d' Aveiro, e das peças ana- tómicas do Museu Bocage. Notaremos em primeiro logar que o es- queleto a que nos referimos poderia pertencer, assim pensámos pri- meiro, a um cachalote novo, juvenil, que naturalmente se tinha afas- tado por qualquer circunstancia, ou se tinha perdido, da mãe pouco antes de ser encontrado pelos pescadores na praia de Mira. O que nos conduziu a esta suposição foi a falta quasi completa de dentes na mandíbula, onde encontrámos apenas um, na sua extre- midade, e un alvéolo vasio d'outro, que, sem dúvida, por qualquer motivo, desapareceu. O dente que existe é relativamente peque- no se o compararmos com os dentes dos cachalotes adultos e adian- te apontaremos os caracteres que lhes pertencem. Os dentes dos ca- chalotes são por via de regra muito numerosos e medem alguns de- cimetros de comprimento. proximo de Setubal; por vezes temos visto ossos de baleia principalmente ver- tebras, servindo de bancos, d'assentos, em algumas terras na beira mar. Não esqueçamos que ha duas povoações do litoral português (uma d'ellas chama-se Baleal, e outra, Athouguia da Baleia), cujos nomes alguma relação de- vem ter com o aparecimento dos cetaceos na nossa costa. Disse-me um erúdito amigo e confrade meu, o Snr. Pedro de Azevedo, que a baia de Setubal, tinha o nome de baia do ambar e que um escrito arabe refere que em determinadas épocas do anno vinha um grande animal esfregar-se nas pedras da costa e que o ambar lhe sahia do corpo. Haveria relação entre esta narrativa e apareci- mento dos cachalotes no nosso litoral embora em remotas eras? 4 Memorias Do Museu BocaGE 129 Em conclusão, se o esqueleto a que nos referimos pertencia a um cachalote, esse animal ainda se amamentava. Mas não foi somente a falta de dentes que nos levou a crer, no principio das nossas observações, que o esqueleto pertenceria a um in- dividuo da espécie Physeter macrocephalus, juv. Van Beneden e Gervais mencionam 31 ou 32 cachalotes, que de- ram à costa em França, em Março de 1784, e que mediam de ll a 15 metros de comprimento ; e facto interessante, d'estes, dois eram femeas, e uma d'ellas pariu dois filhos, e outra um. Os filhos mediam 5",50 de comprimento, exactamente o mesmo, ou aproximadamente o mesmo que mede o esqueleto colhido em Aveiro; com as partes moles deve- ria sem dúvida ser um pouco mais longo, mas não muito mais; esse pormenor não nos impedia de ver, antes nos confirmava, que o animal era muito novo ou mesmo talvez recem-nascido. Um dos primeiros factos que se deve realizar, ou tentar realizar, quando possuimos despojos ou partes incompletas de um exem- plar zoológico, é proceder à sua classificação, procurar a determina- ção da espécie, e nós procurámos; impondo-se-nos logo na nossa pri- meira observação que estávamos em presença d'um representante da família dos cetáceos, mas a que género ou espécie desta familia per- tencia? Não soubemos imediatamente. Van Beneden e Gervais, duas das maiores autoridades, em tudo quanto respeita à osteologia d'estes animais, escreveram o se- guinte: «Tous les piêces osteologiques qu'on a recueillies jusq à ce jour, aussi bien les dents que les squelletes eux mêmes, indiquent des ani- maux êvidemment congénéres les uns des autres; nous ne ferons done, des Cetaçés dont il s'agit, qu'un seul et même genre, sous le nom de Cachalots, en latin Physeter» ('). Outros zoólogos, porêm, entendem que os cachalotes constituem uma família. Familia Catodontidae (Physeteridae) formada por dois gé- neros Catodon, Gray e Physeter, Linn, comprehendendo no primeiro, o Catodon macrocephalus, Lac. Para estes, os principaes caractéres da Familia são os seguintes : cabeça d'uma grossura enorme e atingindo mesmo a terça parte do (MD) Loccit pae ia 130 MEMORIAS DO Museu BOCAGE comprimento do corpo, engrossando até à extremidade por virtude d'uma acumulação de gordura líquida (Spermaceti); maxilar superior desprovido de dentes; ramos do maxilar inferior aplicados um contra o outro, armados d'uma ordem de dentes cónicos; respiradouros ou resfolgadoiros separados; alimentando-se de moluscos cepha- lopodos. Os caractéres do género Physeter, Linn, são os seguintes: cabeça mais larga do que alta; barbatana dorsal elevada; (em quanto que no género Catodon, a dorsal é apenas constituida por uma saliência com forma de tubérculo (*) segundo Paul Gervais e Van Beneden); a su- perficie do crâneo é munida de cada lado duma crista ossea. Por estes caractéres os dois géneros parecem-nos bem distinctos um do outro, notando todavia que uns naturalistas chamam ao ca- chalote, Catodon macrocephalus, em quanto que outros lhe chamam Physeter macrocephalus. O) Physeter macrocephalus, seguindo a nomencla- tura de Van Beneden e Gervais. apresenta os seguintes caractéres : quarenta a sessenta pés de comprido; pelo seu aspecto exterior pa- rece-se com as baleias; e d'ahi talvez o motivo por que gente ignara lhe chama baleia; tem uma cabeça colosal, troncada verticalmente na frente, e que forma a terça parte do volume total do corpo. À ma- xila inferior é estreita e curta e tem quarenta e cinco dentes conicos que são recebidos em depressões correspondentes da maxila superior. Por debaixo da pele da cabeça existem numerosas cavidades que commyunicam umas com as outras, e que encerram um líquido oleoso claro, a que já nos referimos. Em presença dos caractéres citados, embora não tenhamos exa- minado nenhum cachalote inteiro, não duvidámos todavia em afirmar que os diversos e incompletos despojos que estudámos, existentes no Museu Bocage, pertenceram a tres indivíduos da espécie Physeter ma- crocephalus. (1) Entendemos dever fazer notar que na obra de Lacepéde, «Histoire na- turelle des Cetacés, a Est. fig. 10», pág. 165, representa 0 Cachalot macrocephale em que se vê uma barbatana curta, em quanto que a figura 2 da mesma estampa representa o Cachalot trumpe que Paul Gervais e Van Beneden, Loc. cit., pág. 311, incluem entre os cachalotes de cabeça deprimida e dorsal falciforme. Há, por- tanto, discordância entre os autores citados. 6 Memorias DO MusEU BocaGE 131 Os indivíduos adultos d'esta espécie apresentam em geral gran- des dimensões. O Prof. Bouvier diz que este animal pode atingir 30 metros de comprimento ('). A nossa estampa 1, fig. 1 representa um cachalote arpoado na ilha de S. Miguel, Açores, que tinha 15",4 de comprido. Outros naturalistas referem-se a exemplares de esqueletos de menores dimensões. O esqueleto que está no aquario d'Algés tem as seguintes: Comprimento total ............... 5",50 » da columna vertebral. 4",50 » total da cabeça. ..... 17,00 » do maxilar inferior... O”,85 Altura máxima do crâneo..... soa VOP AS IDpNdb 6) poopoao ps dade poe 02,50 Depois do que temos escrito pareceria talvez inútil investigar se o esqueleto encontrado na costa de Mira é realmente de um cacha- lote novo, do Physeter macrocephalus. Entendemos todavia dever apre- sentar desde já um facto que nos levou a crer que o esqueleto a que nos referimos não pertence a um indivíduo d'esta espécie, mas à uma outra, duma família visinha e muito afim da família Phiseteridae, isto é à espécie Zyphius cavirostris, Cuvier, da família Ziphiidae, O facto que iniciou as nossas dúvidas foi o seguinte: Lacepéde diz que o comprimento da cabeça do Physeter macrocephalus excede quasi sempre o terço do comprimento do corpo, ora no esqueleto a que nos referimos (pertencente como supunhamos, a um individuo novo) o comprimento da cabeça excede o quinto do comprimento to- tal. Ora apesar de nós sabermos que n'alguns animaes as proporções em que está a cabeça com o comprimento total não são as mesmas nos individuos novos e nos adultos, (como acontece por exemplo no homem) exitâmos ainda, por não conhecermos, apesar de termos con- sultado algumas obras de que dispunhamos, nenhuma descrição de “um cachalote novo, mas somente d'adultos. Estudemos entretanto algumas peças anatómicas, de cachalotes ; comparemos as que o Museu possue. Pareceu-nos, por tanto, como iamos dizendo, que a cabeça po- (*) «Boll. Oceanogr.». -1 132 Memorias DO Museu BocagE deria ser mais curta em relação com o comprimento total do cor- po, nos cachalotes novos do que nos individuos adultos. As mensu- rações feitas em indivíduos não completamente desenvolvidos virá confirmar ou não, no futuro, este ponto duvidoso, para nós. Mas um outro facto egualmente nos impressionou e contribuiu bastante para a nossa exitação e primitivas dúvidas. A fig. 3, Estampa I, representa o maxilar inferior do cetáceo de pequenas dimensões encontrado perto d'Aveiro; a fig. 1 da estampa II um maxilar medindo 27,13 de comprimento; a fig. 2 da mesma estampa representa outro maxilar que tem 2",58 de com- prido (*). N'estes tres maxilares que representamos nota-se que a aproximação dos seus dois ramos é cada vez mais manifesta à me- dida que o comprimento augmenta. Um outro facto egualmente interessante: o maxilar inferior en- curva-se para cima, como se deprehende egualmente do exame dos exemplares representados nas figuras, à maneira que o animal cresce e se desenvolve. Na estampa 1, fig. 2, que representa a totalidade do esque- leto colhido na costa de Mira, se vê que o maxilar inferior é re- curvado na extremidade; mais encurvado é o representado na fi- gura 3 da II estampa e mais de que estes o do individuo de maiores dimensões fig. 4 da mesma estampa. Van Beneden e Paul Gervais não aludem no texto da sua obra a este facto curioso do encurvamento; mas representam na estam- pa XIX do Atlas que a acompanha, nomeadamente nas figuras 6, 6º, 8, 9 e 10 maxilares inferiores de Physeter macrocephalus afectando diversas curvaturas, sendo o representado pela fig. 10 extremamente recurvado na extremidade. Porêm em parte alguma de sua obra dizem que esta modificação do maxilar esteja em relação com a idade do animai. Mas admitamos a seguinte afirmativa de Lacepede (?) quando se refere ao espermaceti que se encontra na cabeça e canal medular dos cachalotes: Mais nous avons dit souvent qu'il n'existoit pas dans la Na- ture de phenomene entitrement isolé. Aucune qualité ma élé atribuée a (*) Estes dois maxilares fazem parte da coleção osteológica do Museu Bo- cage. (2) Loc. cit., pág. 183. MEemoRIAS Do Mosku BocaçE | 133 um étre une maniére esclusive. Les causes Senchainent comme les effets elles sont raprochées et lieés de maniére à former des series non inter- rompues de nuances sucessíves. A la vérité la lumiere de la science m'é- claire pas encore toutes ces gradations. Ce que nous ne pouvons pas ap- percevoir est pour nous comme s'il mexistoit pas, et voilá pour quoi nous croyons voir des vides autour des phénomenes : voilá pour quoi nous som- mes portés à supposer des fuits isolés, des falcutés uniques, des propprie- tés exclusives, des forces circonscrites. Mais toutes ces dermacations ne sont que des illusions que le grand jour de la science dissepera ; elles m'exis- tent que dans nos fausses maniéres de voir. Nous ne devons done pas pen- ser qune substance particuliére m'appartienne qu'á quelques étres isolés. Quelque limitée qu'une mativre nous paraisse, nous devons étres srs que ses bornes fantastiques disparaitron á mesme que nos erreurs se dissiperont. On la retrouvera plus ou moins modifite, dans des êtres voisins ou éloignés des premiers qui Vaurait présentée. Admitindo esta hypothese, podemos afirmar que assim como nos salmonideos o seu maxilar inferior se encurva para cima em virtude da idade do animal, podemos egualmente aceitar que o encurvamento do maxilar inferior dos cachalotes se possa atribuir à mesma causa; à idade. O que está aceite pela quasi totalidade dos naturalistas é que os Becards, os salmões que apresentam encur- vamento do maxilar inferior, são individuos velhos (*), podemos talvez concluir por analogia, e pelas razões que deixamos expostas que os maxilares inferiores dos cachalotes que apresentam encur- vamento pertencem a individuos de edade avançada. O númerc de dentes que apresentam os maxilares parece que não é constante. Os indivíduos novos recemnascidos, são desden- tados ou teem um número muito reduzido de dentes? Tudo leva a crer que sim. No individuo novo a que nos reportamos encontrou-se apenas um dente, tendo manifestamente cahido o seu par. Seria esta circunstancia ainda a favor da nossa primeira idea de que o esque- leto de Mira pertencia a um cachalote novo. Segundo Lacepede o número de dentes dos cachaiotes varia de 23 a 30, de cada lado ; nos exemplares do Museu, o maxilar maior, tem 18 do lado direito e 21 (!') E. Blanchard. «Poissons des eaux douces de la France», pág. 451. q 134 Memorias DO Museu BocagtE do esquerdo, contando alguns alveolos que estão vasios, e ainda esta contagem não pode ter-se como absolutamente exacta por causa do mau estado de conservação em que se encontra este osso; e no me- nor, 26 no lado direito e 24 no esquerdo; no fragmento d'outro maxi- lar egualmente existente no Museu Bocage e a que ainda nos não referimos detidamente 21 do lado direito e 23 do lado esquerdo (con- tando os alveolos vasios). Na estampa da obra de Lacepede que representa um maxilar de cachalote, veem-se 26 dentes de cada lado e nos maxilares inferiores do mesmo animal representados no Atlas de Van Beneden e Gervais, n'um maxilar, contam-se 26 dentes por lado, n'outra 25. Nunca en- contramos 30 dentes ou um número próximo de 30, quer nas figuras, | quer nos exemplares. Com respeito à symphise do maxilar inferior dizem os dois os- teologistas que acabamos de citar, que os dois ramos do maxilar infe- rior se symphisam por simcondriose ou por synostose incompleta n'uma extensão que eguala mais de metade do comprimento respectivo. Nos nossos exemplares a synostose nunca excede a metade do comprimento do maxilar, n'um quasi que a eguala, e n'outro é muito menor. D'outro representado na estampa ITI fig. 1 nada podemos dizer porque o osso está incompleto; existe só a parte armada de dentes. N'este ultimo exemplar nota-se a particularidade interessante seguinte: Não se vê até onde atinge a symphise, por estar em parte encoberta pelo periosteo, Dizem tambem Paul Gervais e Van Benedeu que os dentes são : implantados et un peu en arriere delle. Examinando a fig. 1 Est. II não me parece que possa ter-se como rigorosa esta expressão. Dizem ainda os naturalistas que acabamos de citar que as ma- xilas inferiores dos cachalotes que existem em diferentes coleções não teem exactamente a mesma forma, e que os dentes n'ellas implanta- dos apresentam tambem algumas diferenças no seu aspecto. O que acabamos de referir acerca dos maxilares que examinamos não faz mais de que confirmar esta opinião. O estudo de maxilar inferior dos cachalotes pareceu tão impor- tante à alguns naturalistas que Blainville quiz fundar nas diferenças que elles apresentam a distinção das diversas especies. 10 Memorias Do Museu BocaGE 130 Segundo a sua opinião os maxilares inferiores, estudados por elle pertenciam a individuos representantes de trez especies. Uma d'ellas seria caracterisada por a linha inferior da maxila lembrar acentuadamente a linha inferior d'um barco (') a symphise do maxilar atingir o dente decimo nono; os dentes serem vinte e cinco de cada lado, obtusos e verticaes, em geral rombos; pelo que respeita ás dimensões, mediocres, mesmo pequenos, e alem dos late- raes, existe um outro par mais pequeno, adiante, absolutamente ter- minal; Blainville acrescenta que o maxilar que mostra estes caracteres pertence à especie denominada Cachalot (Physeter) macrocephalus. Ora no maxiiar representado na Est. LI fig. 4 verificam-se como dissémos, com pequenas diferenças os caracteres mencionados por Blainville; não temos portanto a menor duvida de que este sabio naturalista lhe dava o mesmo nome que nós lhe démos, visto que as pequenas diferenças que existem entre os caracteres do nosso exem- plar e os que são apontados por Blainville são apenas as seguintes : a symphyse do maxilar atinge no nosso exemplar apenas o decimo setimo dente; e na de Blainville o decimo nono; o numero de dentes do nosso exemplar são 24 d'um lado e 26 do outro; no de Blainviile 25. Os dentes, mediocres, dois terminaes etc. Uma outra forma de maxilar estudada por Blanville, e que o levou a pensar na existencia d'uma especie distincta de Physeter ma- crocephalus ê& extremamente curiosa para nós por diversos motivos, e entre eles por ter sido estudada e mencionada por Cuvier na sua obra intitulada Ussements fossiles. Mas vejamos o que dizem na sua obra já tantas vezes citada os dois zoologos, Gervais e Van Benedem a respeito d'esta maxila ou para melhor dizer fragmento de maxilar trasido do cabo Hoen por Daubrée de Nantes; transcrevemos o texto para que haja a mais completa idea sobre o assumpto. Une recente forme é representée par la partie d'une machoire á bord inferieur beaucoup moins asqué, presque droit. et dont la symphyse atteint (*) Une premiére forme est indiquée par notre cachalot d'Audierne (Pl xix, fig, 6, et 6 a) dont la ligne inférieure, dit V'anteur cité, est assez fortement en bateau. (Paul Gervais et Van Beneden,) 6! H 136 MEMORIAS po Museu BocacE la vingtiéme dent. Toutes les dents sont longs, droites, coniques, subaigues, Jort étalées en avant et presque horizontales, plus courtes, tres mousses, obtu- ses subverticales em arriére. .. Nous en donnons deux: fragmentes sous les n.ºs Tet Ta de notre Planche XIX ('). Notemos em primeiro logar que Blainville observou : penas um fragmento de maxila e que notou que o seu bordo inferior era quasi reto (presque droit). Ora se examinarmos a fig. 4 da estampa em que está representado um dos ramos do maior maxilar de cachalote que existe no Museu Bocage, notamos que a primeira parte do bordo inferior deste maxilar, quer dizer, desde a sua extremidade anterior até à altura de decimo sexto dente é quasi recta. Podemos pcrtanto admitir que o fragmento examinado por Cuvier e Blainville, e repre- sentado no Atlas de Van Beneden e Gervais não é mais de que um fragmento de maxilar do Physeter macrocephalus de grandes dimensões como o que representamos nas fig. das nossas estampas. Diz-se mais no texto acima transcrito, que todos os dentes são longos, direitos, conicos, sub-agudos; ora basta examinar a nossa fi- gura para se reconhecer que todos estes caracteres se verificam nos dentes do maxilar a que nos referimos : mais se diz tãobem que os an- teriores são muito voltados na frente e quasi horisontaes; ora esse por- menor, é que não existe no nosso exemplar. Os dentes voltados, não são perpendiculares, mas não são quasi horisontaes. O fragmento do maxilar que existe no Museu Bocage tambem tem os dentes perpendiculares, mas os mais externos um pouco vol- tados para fóra como se vê na nossa figura e estampa. Este fragmento tambem é recto em toda a sua extensão como o examinado por Blain- ville e Cuvier; podemos portanto a seu respeito fazer as mesmas con- siderações que apresentamos a respeito do fragmento de maxilar estu- dado pelos ilustres naturalistas francezes, e julgal-o como uma parte anterior d'um maxilar do Physeter macrocephalus bastante desenvolvido. A terceira fórma de Blainville é representada por um maxilar intermediario ás duas precedentes. Ora se o feitio da maxila com o decorrer da idade, segundo a nossa opinião, fundada na observação dos exemplares do nosso Museu Bocage, a terceira fórma de Blain- (*) Loc. cit. pag. 318. = [OU Memorias DC Museu BOCAGE 137 ville, é uma forma intermedia, de transição ou de passagem, entre as duas mencionadas, uma variedade se assim se quer julgar, mas não uma especie distincta do Physeter macrocephalus. Esta terceira forma (para conservarmos o modo de dizer do naturalista acima citado apresenta os seguintes caracteres que mencionamos e transcrevemos textualmente «clle a 7 pieds et demi de long, sur O pieds 4 pouces d'écarte aux condyles. Le symphase se termine entre la vigliéme et la vingt-et-untiéme dent; la ligne infericure est assez marquée. Hi a vingt-cing dents latérales sans paire terminale plus petite; elles sont assez serrées et assez grandes; les antéricures un peu étalées et plus longues: les postericures presque verticales, mousses et trés ustes.» Ora aproximando os caracteres da terceira forma de Blainville dos que apresentam os maxilares existentes no Museu Bocage, vemos que se não ha entre elles inteira analogia teem comtudo muita semi- lhança. "Tem vinte e cinco dentes lateraes; o nosso exemplar repre- sentado na estampa II fig. 1 tem 26 de um lado e 24 do outro; tambem n'este nosso exemplar os dentes posteriores são quasi verti- caes, bastante apertados e bastante grandes, e a linha inferior bas- tante acentuada. Os outros caracteres como por exemplo os dentes anteriores serem un peu étalées como diz Blainville, e a symphyse tazer-se entre o vigessimo e o vigessimo primeiro dente, não nos parecem caracteres sufficientes para estabelecer uma especie dis- tincta, antes tudo nos leva a crer que as trez formas de Blainville, constituem uma especie unica o Physeter macrocephalus. Nas formas de maxilares da colecção portuguesa a que temos aludido notamos que alguns d'eles não são rectos na sua extremidade mais adelgaçada, antes podemos dizer com rigor que se curvam; O da fig. 1 da estampa II, da esquerda para a direita e da fig. 1 da estampa II tambem da esquerda para a direita. São estas as considerações que temos a fazer ácerca dos maxi- lares inferiores de Plyseter macrocephalus e que encerram, segundo cremos, alguns dados novos para o conhecimento das variedades d'este animal e para a sua anatomia. Van Beneden e Gervais referem-se tambem a maxilares de ca- chalotes inflectidos, ou recurvados sobre um dos lados, em virtude da torsão simultanea dos seus dois ramos, e citam os poucos exem- 13 138 Memorias DO Museu BocaGE plares conhecidos d'esta especie que apresentam esta particularidade; um no Museu de New-York, um outro no Museu Britanico, de Lon- dres, outro no Museu Hunteriano da mesma cidade e ainda um outro no Museu de Paris. Este ultimo está representado na estampa XIX fig. 10 do Atlas citado n'este estudo. Estas modificações são consi- deradas como pathologicas e não são de modo algum similhantes ás que se veem nas nossas estampas. Nos exemplares citados acima é pelo menos assim no que existe no Museu de Paris, o encurvamento extremamente consideravel, faz-se de baixo para cima emquanto que nos nossos maxilares o desvio é tateral, o encurvamento, pouco acentuado, dirige-se como dissemos da esquerda para a direita, O craneo e o maxilar superior dos cachalotes novos apresenta tambem alguma coisa de interessante para os anatomicos. Um certo numero d'ossos que nos individuos adultos nos aparecem formando um Osso unico, em que não existe nenhum vestigio de sutura, por se ter dado o phenomeno a que se chama de coalescencia, tão frequente no esqueleto do homem e d'outros vertebrados, em que por exemplo, se fundiram, sem vestigio de separação, os dois ramos de maxilar inferior, as epiphises às diaphises, etc. Todavia apesar da serie de factos que deixamos apontados e e que nos conduziram a pensar, observando o esqueleto do cetaceo colhido em Mira, que estavamos em presença dos despojos d'um ca- chalote novo, todavia outros factos observados se nos impunham e nos afastavam d'essa opinião crendo muito que tinhamos perante nós o esqueleto d'um animal diverso, raro, nunca apontado como visitante das costas de Portugal. Refiro-me a um cetáceo da Familia Ziphiidae, Genero Ziphius, Cuvier; a especie Ziphius cavirostrs. Cuvier, que segundo a opinião dos mais notaveis naturalistas frequenta todos os mares temperados e tropicaes, mas que foi desconhecido de todos aquelles que até agora se ocuparam do estudo da nossa fauna mari- tima. Essa especie de que nas estampas juntas a este trabalho apre- sentamos as photogravuras d'algumas das suas peças esqueleticas tem na maxila inferior apenas dois dentes pequenos colocados na extremidade da maxila inferior, tem de comprimento quatro a sete metros. Este dado podia portanto levar-nos motivadamente a con- fundir o incompleto esqueleto de Mira assim, como a forma geral do craneo como já dissemos, com o d'um cachalote novo, egualmente 14 Memorias DO MusEu BOCAGE 139 a forma do maxilar inferior, em virtude da forma e numero de dentes, segundo as considerações que a respeito dos maxilares e dentes de maxila inferior anteriormente exposemos; mas o comprimento do cra- neo, 1,” um quinto de comprimento do nosso exemplar e não mais dum terço como é habitual nos cachalotes, mas sobre tudo o numero de vertebras das diversas regiões da columna vertebral, demoveram completamente a primeira ideia de que o esqueleto a que n'este logar aludimos era d'um cachalote. A forma d'algumas vertebras da região cervical, e a maneira como ellas estão soldadas entre si comparada com a dos cachalotes, levaram todas as duvidas que por ventura podessem subsistir em presença d'um exemplar tão grandemente mutilado. Quadro comparativo do numero de vertebras do cachalote Phyy- seter macrocephalus e do Ziphius cavirostris, Ziphius cavirostris Phiseter macrocephalus 4 a 6 Cervicaes (!) Cervicaes 7 Dorsaes 9 Dorsaes 11 Lombares 10 Lombares 8 Caudaes 20 Caudaes 24 Total 46 (*) Total] 50 Tanto pelo numero total das vertebras, como pelo numero das que pertencem às diversas regiões que compõem a columna verte- bral, vemos que ha diferenças entre esta parte do esqueleto dos Ziphius e dos Physeter, e podemos tomar estes caracteres para esta- belecermos a distincção entre os dois generos. No esqueleto do exemplar colhido na costa de Mira o numero total das vertebras é 55 e distribuidas pela seguinte maneira. Cervicaes 7 Dorsaes 7 Lombares 21 Caudaes 20 Não ha duvida que nos devemos portanto inclinar a que pertence a um Ziphius. (!) Soldadas. (2) Este numero pode variar de 43 a 49. 15 140 MEnmoRIAS DO Museu BOCAGE Mas encontramos outro caracter egualmente importante para a systematica e que parece dever cortar de vez, desfazendo todas as duvidas que podessem ainda existir acerca da determinação do exem- plar de que nos estamos ocupando; referimo-nos às relações que apresentam entre si o craneo e o altas; emquanto este osso está inti- mamente soldado com o craneo no Physeter está separado delle no Liúphius. A fig. 2 da Estampa III representa um maxilar inferior, anormal d'um cachalote arpoado nos mares dos Açôres e cuja fotografia foi enviada ao falecido director do Museu J. V. Barbosa du Bocage pelo Ex.”º Sr. Afonso Chaves. O maxilar parece ter sofrido uma violenta torsão na extremidade e parece que estava completamente despro- vido de dentes. A fig. 3 da mesma estampa, representa um feto de Baleia tirado do ventre materno e oferecido à comissão de Pescarias pelo Ex.” Sr. Salles Henriques. O exemplar apresenta de singular as suas exiguas e até agora nunca notadas dimensões; vê-se o cordão umbi- lical; os membros anteriores são terminados por mãos em que ha vestigios de tendencia á separação dos cinco dedos. Na cabeça os ossos formam a abobada craneana não estão soldados na sua parte madia, e o cerebro parece com tendencia a sahir por uma larga fontanela. À côr geral do exemplar é branco acinzentado, conservado em alcool. 16 Memorias Do Museu Bocage Fig. 1— Physeter macrocephalus, Lacépede (Cachalote, Exemplar medindo 157,50 de comprimento, visto pela face neutral. Costa da ilha de S. Miguel (Açõres) Fig. 2— Zyphius cavirostris, Cuvier, esqueleto medindo 5" 5 colhido na praia de Mira, perto d'Aveiro Nom disto maio si o D Fig. 3 — Masxilar inferior de Zyphius cavirostris Fig. 4 — Esqueleto da cabeça do Zyphius cavirosiris Fig. 1—Maxilar inferior dum cachalote, medindo 2” 13 de comprimento Fig. 2— Maxilar inferior dum cachalote, medindo 2” 13 de comprimento Fig. 3— Maxilar inferior dum cachalote visto de lade Fig. 4— Maxilar inferior dum cachalote visto de lado Fie 5 flar Iinfariar Anm anrhalata inenmnlata viectn nala fara ir Memorias po Museu BocacE 19jeSÁud Ump seyy—I “SU vInjru OQquenr)) “erojua ep 099y mn opuvyuasaIdar am I tojtq J Pp AvIZO OTA —E "Di Maxilar inferior dum Phiseter (anomalo) So Fig. 2— A lenda dos Homens marinhos perante as Sciências naturaes POR BALTHAZAR OSORIO Ha muito se acreditou, e factos mal observados durante sé- culos continuaram a alimentar a creença, que transparece em mais d'uma obra literária do renascimento, de que no mar viviam creaturas, seres, que tinham forma e aspecto humano, e a que os antigos chamaram tritões, homens e mulheres marinhas. Escusado será dizer que é inadmissível a idea de que animaes, pertencentes à especie humana, vivam mergulhados nos mares, embora grande nú- mero de mamíferos d'outras especies tenham preferido para sua ha- bitação o meio líquido à dura superfície terrestre. Se por um momento podéssemos acreditar que homens viviam no seio das águas, sem dúvida teriamos que admitir, que esses ex- traordinários indivíduos, deviam aparecer de vez em quando à super- fície, para tomarem, como fazem, por exemplo, as baleias e os gol- finhos, a provisão d'ar, d'oxigénio, preciso para poderem viver. Por mais longo que fosse o intervallo decorrido entre duas respi- rações, necessariamente, de tempos a tempos, como acontece a cer- tos mergulhadores, surgiriam e seriam vistos por numerosas pessoas; e agora, nos tempos modernos, nem sequer se fala d'elles. Mas então em- que se firmararam tantos escritores doutos, tantas pessoas esclarere- cidas e conspicuas, cheias de siso e de authoridade, para nos seus es- critos deixarem noticias acerca dos tão falados homens marinhos? To- das ellas inventaram, pelo capricho da sua imaginação, que à similhan- ça do que os antigos criam que se passava nos bosques e campos, nas fontes e nas torrentes, que eram todas povoadas de graciosas e encan- 1 112 Memorias Do Museu BocacE tadoras divindades, tambem os mares do globo encerravam nas suas grutas de cristal, tapetadas de rubros coraleiros, creaturas com a forma, humana, a mais perfeita e a mais bella que até agora encontrou a arte? Não é crivel; os factos, mencionados por diversos escritores, de tão grande como indiscutida nomeada, não se formaram sómente na sua imaginação fecunda, tiveram, sem dúvida, uma origem. Vejamos em primeiro logar qual é o valor d'esses escritores a que nos reportamos, e o que elles escreveram sobre este assumpto. O primeiro, pela órdem chronológica, é o célebre naturalista Pli- nio e apontaremos desde já um facto interessante relativo à crença espalhada por todo o mundo de existirem homens que vivem imer- sos nas águas dos oceanos. Essa crença emanou da Lusitania em épocas remotas, e por afirmações dos portuguezes se avigorou e per- sistio atravez dos séculos. Transcreveremos a notícia dada pelo grande naturalista acima citado no liv. IX, cap. IV, pág. 111 v. (*) da sua História Natural : « Tiberio principi nuntiavit, Olissiponensium legatio ob id missa, visum, auditumque in quodam specu concha canentem Tritonem, qua nosci- tur forma, et Nereidum falsa non est squamis modo hispido corpore, etiam qua humanam effigiem habent. Nanque haec in eodem specta- ta littore est, cujus morientis etiam gannitum tristem accolae audive- re longe. Et divo Augusto legatus Galliae complures in littore apparere examines Nereidas scripsit. Auctores habeo in equestri ordine splen- dentes, visum ab his in Gaditano Oceano marinum hominem, toto corpore absoluta similitudine: ascendere navigia nocturnis tempori- bus statimque degravari, quas insederit, partes: et, si diutius perma- neat, etiam mergi.....» Como se vê nas linhas transcritas, os habitantes de Lisboa no tempo do emperador romano Tiberio mandaram-lhe dizer que tinha sido visto no mar um tritão tocando n'uma concha ; e o célebre na- turalista afirma tambem que não é falsa a figura atribuida as nerei- das mas que são cobertas d'escamas. E provavel que a leitura dos clássicos latinos na Renascênça, e o conhecimento e vulgarisação por aquella época, da História Natural de Plinio, entre os eruditos de Portugal divulgasse não só a história do (!) Edit. Nizard. Memorias Do Museu Bocage 113 Tritão Ullissiponense mas ainda a crença no existir das nereidas a que se refere o escritor latino. O que se apresenta ao espírito de pessoas de mediana ou pequena cultura, com caractéres extraordinários, desco- munaes e maravilhosos, impressiona-o fundamente e fixa-se n'elle; e o pouco saber não permitindo descrimjnar o que é falso do real, origi- na a credulidade. O famoso Bispo de Portalegre Dom Fr. Amador Arraiz repete, convicto nos seus Diálogos, a história contada por Plinio, nos seguin- tes termos: «No Oceano defronte de Collares debaixo de úa rocha se mostra a coua ou fojo onde catava o Triton no tempo de Tiberio Ce- sar, a qual eu vi por vezes, he nuy alta e larga ê torno. Da borda della se descobre a rotura que tê cótra o mar. Plinio affirma que os Olysi- ponensis mandarão legados a Roma cô novas d'esta marauilha ao Em- perador». (') Mas o illustre Bispo não se limita apenas a citar o autor latino; convicto da existencia dos homens marinhos acrescenta: «E inda ago- ra se vê por aquelas prayas homês e mulheres que os Antigos chamão Tritones e Mercides». E mais adiante ainda acrescenta: «Bem creo auer homês mari- nhos inteyros, com perfeyta figura humana, e que podem viver na ter- ra, e falar lingoagem como pegas». Mas seriam apenas as leituras do escritor romano que induzi- riam o bispo de Portalegre a crer na existência de creaturas tão ex- traordinárias, habitantes dos mares? Gente do povo, pescadores, con- tavam, não muito antes de viver Arraiz, histórias semelhantes, com tão vigorosa convicção, que homens tão cultos como era, por exemplo, o illustre historiador Damião de Goes as escreveram e as deixaram à posteridade canceladas nas suas obras. O illustre escritor e distinctis- simo chronista d'El-Rei D. Manoel, diz na sua descrição da cidade de Lisboa: «Nostris vero temporibus, ut efficacius testimonium in me- dium afferam piscator quidam, dum interscopulos Barbarii promon- torii, filo hamogre iusta Diuae Virginis sacellum pisces capere con- tendisset, de repente ex undis in scopulum, mas Triton exiluit barba prolixa, crinibus oblongis, pectore hispido, facie non admodum defor- mi absolutaque hominis forma. Qui cum paululum apricatus esset, et (!) Loc. cit., pág. 111 v. da 2.º edic. 5) o) 114 Memorias DO MusEU BOCAGE hominem a tergo, ipsius formam contemplantem, inspexisset. voce non dissimili prolata, territus cenfestim in salum se submersit. Haec pis- cator de Tritone, sive homine marino cupidis audiendi, compte or- dine ac sermone, hodierna die enarrat». Damiani a Goes, Olisiponis Descriptio, pág. 3. Em presença d'esta transcrição nenhuma dúvida pode persistir de que um alto espirito do renascimento crêo na, existencia de ho- mens marinhos, como creram muitos séculos antes alguns habitantes da Lusitânia que levaram a extranha noticia a Roma. Mas o que afirma Damião de Goes parece que se propalou por toda a côrte; tornou-se talvez um conhecimento vulgar, mesmo in- discutível, que todos admitiam sem mais exame, comprehensivel para toda a gente, e para que não se pediam explicações. Se assim não fôsse Gil Vicente escreveria na sua trági-comedia intitulada Cortes de Júpi- ter a seguinte estrophe?: «O precioso Cardial Irá sobre homens marinhos Em hum carro triumphal.» Se acerca dos homens marinhos não houvesse no tempo em que se representavam os autos e comedias do célebre comediante, que reinou pelo talento na côrte d'El-Rei D João III, ideas bem claras, sem dú- vida os seus espectadores perguntariam uns aos outros o que eram homens marinhos; a meu ver empregava uma expressão correntia que todos os seus ouvintes comprechendiam. O proprio Camões embora lhes não dé o nome empregado por Gil Vicente ou Arraiz, refere-se a creaturas com o aspecto e facies humano vivendo no mar; por exemplo, no episódio conhecido com o nome do Gigante Adamastor. Descreve as feições d'esse gigante, des- comunaes é certo, mas humanas, e diz, que vivia no mar: «Fui capitão do mar por onde andava A armada de Neptuno que eu buscava» Quando o grande épico se refere ao Mensageiro de Neptuno, des- creve um Tritão em que sobresahem e sobrelevam egualmente as fórmas e feições humanas; é tambem um habitante do mar, e tal como 4 Memorias DO Museu BocacE 115 a sua imaginação e a crença corrente lh'o pintou, e a Mythologia concebe-o, em perfeita concordância com os caractéres que os escri- tores seus contemporâneos e os dos séculos mais próximos atribui- ram aos homens marinhos: Era, mancebo grande, negro e feio, Trombeta de seu pai e seu correio, Os cabellos da barba, e os que descem Da cabeça aos hombros, todos eram Huns limos prenhes d'água, e bem parecem Que nunca brando pentem conhecerão : Nas pontas penduradas não fallecem Os negros mixilhões, que ali se gerão; Na cabeça por gorra tinha posta Hma mui grande casca de lagosta. O corpo nú e os membros genitais, Por não ter ao andar impedimento , Mas porêm de pequenos animais Do mar todos cobertos, cento e cento : Camarões e cangrejos, e outros mais Que recebem de Phebe crescimento ; Ostras e mixilhões de musgo sujos, As costas com a casca Os caramujos: Na mão a grande concha retorcida Que trazia, com força já tocava, Cant. VI. Est. XVI, XVII, XVIII, XIX. Camões não diz que acredita, nem menciona na sua obra qual- quer facto acerca dos homens marinhos mas, na verdade, no seu livro imortal parece influenciado pelas idéas de seu tempo relativas a estas extraordinárias creaturas. Sabemos e admitimos sem resguardo que a 5 116 Memorias Do Museu BocaGE mythologia grega e romana, em que o grande épico era profundamen- te versado, lhe sugeriram varias vezes a intervenção dos tritões, ne- reidas e outras divindades marinhas em diversas passagens do seu poema, mas é lícito admitir como já n'outro escrito tentámos provar, que alguma relação houve na mente do poeta entre o seu Adamastor e o Tritão descrito por Damião de Goes ('). Se das obras portuguezas passamos ao exame das obras estran- geiras de séculos mais próximos do nosso, encontramos que a lenda dos homens marinhos se não escureceu por uma maneira completa, an- tes se radicou atravez dos tempos na crença d'outros povos. Foram principalmente os estudiosos, os observadores dos ani- maes que povoam os oceânos que mais se encarregaram de avo- lumar a crença de que existem nos mares creaturas que têem a fór- ma humana. A lenda relativa aos habitantes do mar não se limita apenas aos homens marinhos, mas tambêm às mulheres marinhas ; às nix d Allemanha, às sirenes dos francezes, às sereias e merecides dos portuguezes, às mermaid dos inglezes (?); emfim, a creaturas femininas habitantes do mar e dos lagos, segundo diversas afirmações, atravez de todas as idades. Se os ceus, à maneira da terra, foram povoados pela imaginação do homem, por creaturas que lhe são similhantes, quê admira que elle povoasse egualmente os oceânos de sêres que se lhe assimelham pelo menos tanto como se parecem alguns animaes marítimos com outros terrestres, a ponto de lhes dar os mesmos nomes ? Os nomes peixe rato, peixe coelho, peixe aranha, peixe raposa, lobo do mar, leão do mar, elephante do mar, cio do mar, são nomes portuguezes alguns dos quaes têem cor- respondente em linguas extrangeiras. Mas não só alguns animaes ma- rinhos têem estes nomes; outros servem para designar seres existen- tes nos mares ou inventados pela mente do homem, e são designa- dos por peixe bispo, diabo do mar, etc. Na obra de G. Rondelet, Médico e Prof. de Medicina na Escola (1) Vid. Origens do episódio do Gigante Adamastor no «Boll. da 2.º classe d'Acad. das Sc. de Lisboa. (saãos ««.. Her clothes spread wide, And, mermaid-like, a while they bore her up: Shakspeare. Hamlet. Act. IV. Se. V. 6 Memorias DO Museu BocaGgE Blá de Mompellier (*) encontram-se representados e descritos nas páginas 458 e 491, animaes cuja face apresenta traços physionómicos do ho- mem. O desenho da página 458 representa um vitelo marinho (o Vi- tulo maris oceani) e o da pág. 491 representa um quadrupede cober- to de escamas, que elle descreve, tratando este habitante do mar por Monstro Leonino. Mas mais interessantes de que estas descrições e figu- ras apontadas, são sem dúvida as que se encontram nas pág. 492-495 — De pisce monachi habitu e De pisce Episcopi habitu. Vê-se, portanto, que este célebre ichtiologista da segunda metade do século XVI se refere a animaes maritimos que se parecem com o Homem. Mas as notícias que conhecemos acerca dos homens marinhos não se limitam ás que referem os escritores do século XVI. No século XVIII publicou em Paris J. B. Robinet um livro muito curioso que se intitula Considerations Philosophiques de la Gradation natwurélle des formes de Vestre em que trata muitos assumptos interessantes, e entre elles da exis- tência dos Homens e mulheres marinhas. São numerosos os factos que a obra contêm e largas as narrativas colhidas acerca da vida dos pre- tendidos sêres de que nos ocupamos n'este escrito. Desses factos uns foram afirmados na Inglaterra, em Oxford; outros na Hollanda, em Harlem; na Frisa, no Mar Báltico, na India, perto da ilha de Manar ; na Virginia citando o autor a respeito da sua veracidade e exactidão as autoridades que os cobrem para que se acreditem, isto é, Lar- rey, Thomas Bartholin, Redi, as Transactions Philosophiques, o Journal des Savants; etc. No mesmo livro ha um capítulo, o LXXXVIII, que se intitula assim: Metrait d'une Lettre écrite de la Martinique, par Mr. Chretien à un licentié de Sorbonne, centenant la Relation d'un homme marin, qu'a paru aux coles de ceste Isle le 25 de Mai 1671. Este capitulo que é acompanhado por uma gravura representando um homem marinho em harmonia com o que se diz no texto, é seguido d'um procés-verbal, um auto, como nos diriamos, em que depuzeram diversas testemunhas, que dizem ter visto uma d'essas extraordinárias creaturas que têm pelo que se lê, povoado a imaginação de muita gente. Perante varias pessoas, en- (') A obra intitula-se Gulielmi Rondeletii doctoris medici et Medicinae in eschola Mompelliensi Professoris regii Libri de Piscibus marinis, in quibus ve- rae Piscium effigies expressae sunt — Ludguni — M.D.LIIII. q 118 Memorias DO Museu BocaGE tre as quaes aparece o R. P. Julien Simon, trés-digne Religieux da Com- panhia de Jesus, diz o livro, um notário, e um governador da ilha Dia- mante compareceram cinco pessoas que ouvidas separadamente, todas afirmaram, terem visto no mar, um monstro cuja metade anterior do corpo tinha forma humana. O autor da obra aludida não se fatigou em carrear materiaes para constituir e robustecer a crença no existir dos homens marinhos e aduz, ainda alêm d'esta, mais algumas outras provas que diz extrahidas de Wonderfal Magazine de setembro de 1764 e relativa a um homem marinho pescado em 1737 perto de Exeter em Devonshire. Depois d'esta, outra história acerca d'um homem e d'uma mulher marinha que foram vistos no Nilo no anno 502 — e de- pois ainda outras da mesma índole entre as quaes se encontra a que é contada por Plinio, e a que já nos referimos n'este estudo, e uma mais singular em que diz que se lê na História de Portugal e nas Rela- tions des Indes Orientales. «que s'etant fait un jour une péche à la poin- »te de VInde (sic) d'une troupe de Tritons, ou hommes marins, on »ne put en faire parvenir au Roi Dom Emmanuel qui regnait alors. »qu'une femme, e une fille, tous les autres, au nombre de quinze etant »morts, ou aussitôt aprés leur sortie de la mer, ou dans le traget des »Indes à Lisbonne.» A crença de que existiam homens marinhos espalhou-se portanto, como se vê nas transcrições anteriores, por todo o mundo e os portu- guezes não tiveram pequena influência na dispersão da ideia de que na mar viviam sêres com o aspecto dos homens que habitam a terra. Mas d'onde viria, como se terá originado esta crença que não pode- mos admitir, depois de tantos factos, que não tenha fundamento, que seja apenas o resultado de imaginadas ficções, sem nenhuma base real? Pensamos que alguns homens viram, sem dúvida, e por mais duma vez, surgir das águas sêres que tinham, uma physionomia, pelo menos traços physionómicos, com quelembravam a face do homem; e a phan- tasia foi pondo o resto, foi, fácilmente, da parecença ou similhança à identidade de conformação, pela evolução da idea, pelo modo de jul- gar e pelas modificações impressas por diversos. Alguêm encontrou entretanto entre as physionomias dos homens conformações, traços communs a elle e aos animaes. Houve mes- mo quem apresentasse a idea um pouço extravagante, é certo, de que 8 Memorias DO Museu BocacE 119 determinadas qualidades, que se nos revelam no estudo e nós atribui- mos a alguns animaes, se encontram espressas nos rostos humanos, e manifestadas pela forma e protuberâncias ou saliências do crâneo. Não é difícil encontrar em quem tem alma feroz, vulpina, ra- pace, feições que lembrem a expressão que descortinamos na face e caracteres de certos animaes que são dotados de ferocidade, d'astúcia, de hábitos de rapina. O Dr. Gama Machado, súbdito brasileiro, que na segunda me- tade do século XIX se notabilizou em Paris por diversas excentre- cidades, a tal ponto que os literatos de seu tempo, nomeadamente Champileury, e o médico legista Legrand-du-Saul se ocuparam delle, e nas suas obras contam as extravagância de seu viver e proce- der, e ao que elle determinou de extraordinário nos seus numerosos testamentos, e para depois da sua morte se cumprir, escreveu uma obra em que pretendeu justificar a similhança das qualidades de determi- nados homens e a de determinados animaes, mamiferos, aves, insec- tos, reptis, pelas semelhanças que encontrou nas respectivas physio- nomias. Mas não se ficou por aqui o Dr. Gama Machado; tão convie- to estava do valor da doutrina por elle inventada e que se prendia inteiramente com as ideas de Porta, Gall, e Lavater que deixou á Aca- demia das Sciências de Paris, certa quantia com o fim de constituir um premio que será atribuido ao autor da melhor «Memória» que lhe for apresentada sobre a doutrina a que elle chamou Theorie des res- semblances. As semelhanças encontradas por Gama Machado entre homens e animaes, de resto comprovadas largamente na sua obra, poderam uma ou outra vez, ter sido colhidas por outras pessoas, e d'ahi, assim pensamos, a origem de acreditar-se que existem nos oceânos animaes parecidos com homens e d'ahi a origem, a crença de que existiam 4o- mens marinhos. Não deve por tanto ser desprovida de interesse a divul- gação da existência de formas de cetáceos, de peixes ou de quaesquer outros animaes oceânicos, que realmente bastante se assemelham phy- sionomicamente, ao facies humano, ou caricaturalmente humano. Neste caso está o peixe representado nas figuras 1 e 2 desta «Memória». Tráta-se sem dúvida d'um esqualo anormal, vicioso de conformação. Podemos comtudo afirmar que essa forma aleijada, de aspecto quasi grotesco, é o representante de uma especie de família 9 Memorias Do Museu Bocace Carcharidae. Imaginemos que esse indivíduo que tem apenas 0",36 de cumprimento e que foi colhido por uma rêde de vesca nas costas de Portugal, adquiriria as dimensões maximas que atinge a especie Car- charias glaucus, «Cuv.», que chega a ter mais de 2 metros de compri- mento. Então todas as partes do corpo teriam proporcionalmente crescido, a cabeça disforme como é, teria tambem augmentado de di- mensões e por esta circunstância mais se avisinharia das dimensões que apresenta a cabeça de homem e portanto mais se acentuariam talvez as semelhanças com os individuos da especie humana. Ora al- guns esquales lançam por vezes a cabeça fora d'água. Não é menos certo que alguns tubarões deitam a boca e puxam para a água pes- soas que se manteem descuidados à beira mar; isto acontece prin- cipalmente nas regiões tropicaes. O aparecimento á superficie das ondas d'um individuo similhante ao representado na nossa estampa, mas de maiores dimensões, levaria os desprevenidos, e sobre todo os menos conhecedores das Sciências Naturaes a crêr que no mar vivem creaturas humanas, e isto robusteceria a lenda difundida entre povos tão diversos e distantes, de que existem homens marinhos. Mas vejamos se realmente o indivíduo representado na estampa junta pertence ao género Carcharias, e a qual das suas especies. As especies do género Carcharias do Oceâno Atlântico, que fre- quentam as costas de Portugal são duas, as que os naturalistas es- trangeiros e portuguezes denominam Carcharias glaucus, Rondelet e Carcharias lamia, Risso. O nome portuguez tintureiro ou tintureira de- signa o Carcharias glaucus que é vulgar; olho branco aplica-se à segun- da que é vulgar. Mas de qual das duas especies é representante o exemplar a que nos reportamos ? O exemplar representado na fig. 1 e 2 pertence à família Carcha- ridae dos peixes plagióstomos; ao género Carcharias, Cuv. e à espécie Carcharias glawcus, Linn, e a que os pescadores portuguezes, chamam vulgarmente Pintureira. Trata-se, evidentemente, d'um individuo novo pois mede apenas 0" ,36 de comprimento, emquanto que os adultos d'es- ta espécie chegam a atingir mais de 2”.5 segundo Moreau. Foi colhido por uma rêde de pesca na costa sul de Portugal. Mas dissémos que o exemplar a que nos referimos é um indivíduo novo e se o dissémos é porque no aparelho reproductor de individuos femininos de grandes 19 Memorias DC MusEU BocaGgE 112! dimensões d'esta especie se teem encontrado fetos medindo 0º,450, se- guudo uma nota do Catálogo dos Peixes de Portugal, por F. de Brito Ca- pelo (*) e com estes outros de diferentes comprimentos, perfazendo a to- talidade de 80. Trata-se, evidentemente da espécie Carcharias glaucus; inútil é escrever aqui a diagnose da espécie e justificar a nossa clas- sificação; mas o indivíduo que mencionamos é anómalo, deformado. A deformação limita-se simplesmente à cabeça, porque tanto o tron- co como as barbatanas, a situação d'ellas, a côr, etc., enfim os carac- téres propios da espécie nada apresentam de znormal, se o compa- rarmos com as descrições, estampas, ou exemplares existentes nos Museus. As anomalias que a cabeça apresenta são as seguintes: não é achatada, como nos indivíduos comuns, normaes, da espécie, mas ar- redondada e não muito mais longa que a altura do corpo, exceden- do-a um pouco mais d'uma quarta parte. A bôca é pouco arqueada; o facto, porêm, mais interesante e extraordinário é serem os dois olhos cobertos por uma membrana transparente, com uma disposição tal, que faz lembrar uma máscara de chaufeur. As narinas estão muito pró- ximas e ficam perpendicularmente aos olhos. O aspecto, o facies tem um quid de humano, ou mais apropriadamente diremos, talvez, de si- miano, como pode observar-se nas duas figuras apresentadas. (1) Loc. cit, páge 47. ar sh Dá a Ed Apa 4 o ; pI Bdreto AMEI ERR Ir EAR E TITO co á o É; aa ) , po rElEL ROnTERCT RNA pi glmãa Jaleco carsantlr csniba , AA PETS DSR o RL ROMEO t ri k E +” + er Va dna sofa Re atra GE [PP RD da > Am 4 no; "db CM ira tgiat io dB ad à Ni Ud 6 cpa e Area (pr o ee fe ne Md eita Cpradscdy iai sonia Pc dA da Pei 6d Hi 4 r - [44 R a f 1 do Ea 3+ narra aid uk Memorias DO Museu BocagE Fig. 1 — Exemplar de CarcHarras cLaucus. Rondelet.—Deformado, visto de perfil Fig. 2— Exemplar de CarcHarras, aLaucus, Rondelet. — Deformado, visto pela face ventral. ú d “ H] Pe nr SMITHSONIAN INSTITUTION LIBRARIES | CA 3 9088 00583 1581