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UNIVERSITY OF TORONTO

by

Professor

Ralph G. Stanton

Blbliotlieca da ACTUALIDADE

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OBEAS POÉTICAS

BOCAGE

VOLUME IV

áticos, Drama Fragineiitoi9

^ KlogrioK dramáticos, Dramas allegorlcos^

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PORTO

IMPRENS A POBTUGUEZ A EDITOB A

1875

ELOGIOS

Aos faxistissimos annos da Fidelíssima Rainlia de Portugal, D. Maria I

(Recitado no Theatro da Rua dos Condes, em 17 de Dezenibro

de 1799)

A ríspida estação tumultuosa, Que de vapor medonho assombra os ares, Que das Eólias grutas desferrolha Estrondosos tufões, e além das nuvens O pélago arrogante em serras manda; Esse triste oppressor da Natureza, Monarca das horrísonijs proeellas, Cuja grenha erriçada os gelos cVoam; Que arremessa o trovão, que accende o raio Na voz terrível, nos terríveis olhos, E, saudoso do cáhos, como que intenta Fingil-o, arremedal-o em seus horrores: O carrancudo, tenebroso Inverno,

6 OBRAS DE BOCAGE

Á face de alto horóscopo brilhante Foi por lei divinal, por lei dos Fados Constrangido a despir tartáreo luto.

Eis dobrando a cerviz, eis bonançoso, O tyranno da luz sacode as trevas: Respira a Natureza, o céo respira, Vitreos^ os mares sobre as praias dormem, Onde Aquilo rugiu Favonio brinca,

* A nascer entre a neve aprendem rosas;

* Amor sentindo, o rouxinol se inflamma,

* Contente, illuso, não conhece o tempo,

* Vêl-a imagina, e canta a primavera.

Surgindo em tanto na purpúrea nuvem, Telas trajando fulgurantes de ouro. De jasmins immortaes a fronte orlada^ Com risos, que estudou de um Deuà na face, A scintillante Aurora o pólo esmalta. Seus lumes como nunca então raiaram, E gota, e gota de macio orvalho Que esparziu no teu seio, oh Lysia, oh pátria, Foi ledo agouro, foi suave emblema De mil bens, que dos céos a ti dimanam.

Maria, a mãe de heróes, de heróes a filha A Jove mereceu tão novo indulto. Trouxe tão novo indulto á Natureza. Seu natal sobre-sáe aos mais fulgentes Quanto no ethereo cume, alardeando Torrentes de fulgor, que o pólo innundam,

ELOGIOS

Vence o planeta majestoso, intenso

Ténue luz, que esmorece em negra estancia.

Sim, Rainha immortal, se a bem do mundo Prenda tâo cara, não lhe houvesses dado; Se, doce fructo de amorosa planta. Teu mimo, teu penhor, delicias tuas, João, sangue de heróes, que o Tejo adora, A nossos corações negado fosse, Ninguém te eguaiaria áquem dos numes,

EUes teu grande horóscopo envolveram íío immenso resplendor da eternidade, Tua alma se embebeu na essência d'elies; E ao ponto em que dos céos se derivava, Abrindo a azul campina em sulcos de ouro, Presumiu assombrada a Niitureza Que radiosa porção vivificante Do facho universal se desprendia.

A Jove teu natal deveu sorrisos; E, attento na mimosa infância tua, Com rosto a&gador to olhou, te disse: Qual é teu dia, tal será teu fado. >

OBRAB ^E BOOAGB

Aos annos da mesma Augustissima Senhora

Musas, Musas do Tejo, alçae ao pólo Versos dignos de reis, da pátria dignos. Desenrugue-se o Fado; os tempos voltam Quaes a vate Cumêa os viu na mente; Em manto côi de neve Ástréa envolta As eras de Saturno acorde, e guie Ao seio escuro da ferrenha cdade. Apenas tenham que invejar aos numes Os ditosos mortaes: luzeiro errante Surja, rutile da sinistra parte, E com faustos satellites discorro, D'este áquelle horisonte os céos de Lysia, Ingente, portentoso, e qual outr'hora Dourou. a alma de Júlio o céo de Roma: As vestes abrilhante ao carrancudo Monarcha das horrisonas procellas. Cuja grenha erriçada os gelos c'roam; Cuja mão tenebrosa alem das nuvens

ELOGIOS t9

O pélago arrogante em serras manda; Na voz terrível, nos terríveis olhos, Qiie arremessam trovões, que accendeni raios, SoíFra o duro oppressor do aéreo campo, SofFra o silencio, e a paz; desdobre, alíze Ondas o pego, e sobre as praias durma; Brinque Favonio onde Aquilo esbraveja, Kespíre a natureza, o céo respire; A nascer entre a neve aprendam rosas; Puro, espoo Laneo mel destiilem troncos; Na rubra nuvem fulgurante de ouro De jasmins immortaes co'a fronte orlada Sempre n'este áureo dia assome a deusa. Que sobre as flores a existência entorna: No semblante de ura Deus a Aurora estude Risos, que a Natureza extranhe, e adore: Derram,e pelos céos mais luz, mais pompa, Sol, reflexo de Jove, imagem sua. Maria, mãe de heróes, de heróes a filha, Indulto singular merece ao Fado; Seu natal sobre-sáe aos mais fulorentes, <^uanto no ethereo cume alardeando Torrentes de fulgor, que o pólo ínnundam. Vence o planeta fulgurante, immenso. Ténue luz, que esmorece em negra estancia.

Sim, Rainha immortal, modelo augusto De quantas perfeições, quantas virtudes De Astréa ao lado para o céo fugiram:

77^^

10 OBRAS DE BOCAGE

Sim, Rainha immortal; se a bem do mundo Prenda tão cara não lhe houvesses dado; Se, doce fructo de amorosa planta, João, prole de heróes, que o Tejo adora, A nossos corações negado fosse, Ninguém te egualaria áquem dos numes.

EUes teu grande horóscopo envolveram No vasto resplendor da eternidade; Tua alma se embebeu na essência d'elles, E ao ponto em que dos céos se desprendia Abrindo a azul campina em sulcos de ouro, Presumiu assombrada a Natureza Que radiosa porção vivificante Do facho universal se desprendera.

Oh rei da immensidade, oh rei dos Fados f Os Ídolos da pátria, a mãe, e o filho No throno avito, heróico, á sombra tua De séculos em séculos triumphem: D'elle, d'ella se esquivem Tempo, e Morte, Dure-lhe a vida o que durar seu nome. O Tejo despejando as urnas de ouro As plantas lhe deponha o gran tributo, Até que a eternidade absorva as eras.

São mimosos do Fado, a Jove acceitos O filho, a mãe de reis, de heróes, de numes; Cobrem azas de um Deus os dignos d'elle, Lysia, flor das nações, prospera, exulta !

ELOGIOS 11

Aos faustissimos annos

do Sereníssimo Senlior D. Joáo, Príncipe

Regente de Portugal

(Recitado no Theatro do Salitre, em 13 de Maio de 1799)

D'entre a primeira das edades mortas Um dia resurtriu, soltou-s3 um dia A bem da humanidade, á voz do Fado. Mil Graças, mil Virrudes, mil Prazeres, Foragidos do mundo, ao Qeo tornados, Ao inundo volvem co'a sisuda Astrca. Súbito, remoçada a Natureza, Leda, vaidosa de se olhar qual fora, Nas meigas faces amiúda o riso. Turba subtil de olym picos Favonios Voa com flores, que não temem Phebo, E á mãe universal perfuma o seio; Insoífridos Tufões nas cavas grutas Cerra, agrilhoa, abafa, opprime Eólo; Mel espontâneo pelos troncos desce, Lambem rios de néctar margens de ouro. Saturno inclina a fronte ao ver na terra

12 OBRAS BOCAGE

De seus dias luzir a amena imagem; Da sobranceira esphera ao filho exclama, E d 'alta novidade inquire a causa.

c(Ente, digno de mim (responde Jove) Do heróes emanação, de heróes principio, Hoje ao mundo levou, por lei dos Fados, Ijr eoliiida porção de meus thesouros; Hoje o fructo imniortal de planta excelsa. Que nas margens dispuz do insigne Tejo, Surgiu, por meus influxos bafejado; Da grande lusitana a digna prole, O eximio coração, com quem reparto A dignidade, a força, os pensamentos, No século fatal, de horrores fertii, Sobre o terreno herdado attráe teus dias, Época da innocí ncia, e da ventura! Viste ha seis lustros rnelhorar-se o tempo Com seu fausto natal, viste ha seis lustros Do incógnito matiz nos lusos campos Ornar-se a Natureza em honra sua. Então sorrisos d.'eUa anúncios foram Dos luzentes futuros milagrosos, Que para o tenro heróe zelava a Sorte.

<(Se tanto não brilhou, como hoje brilha, O doce clima productor de assombros, Foi porque inda na edade inerte, e molle Desatar não podia o régio moço Altas idéas em acções mais alíaa.

ELOGIOS 13

Agora, que da illustro monarchia Modera as longas rédeas, escudado Das apttàs forças, e do avito exemplo, Agora se embellezam céos, e torra Na gloria, no prazer, nos bens sem conto. Que do grande João recebe a píitria, A pátria de que é pae, senhor, e ornato.

((Unido em áureo vinculo á virtude, Aos mil encantos de heroina augusta, Tempera o coração nos ollios crella. Nos ollios d'e]la o sentimento npura, B um numen bemfeitor se anfolha aos povo-. Negreja, sem toldar-lhe os mansos dias. Tempestuoso horror, bramindo ao longe; Em vão boceja o pestilento inferno. Na lava abrazadora em vão sacode Hórridos crimes, que outra j)laga infernam. Senhor de alta nação, que vale o mundo, João, mimo do céo, João triumpha; Seu throno em corações está sentado, E tem na eternidade os alicerces. DVila emanou seu dia, é parte d'ella, E depois que o sol milhões de vezes Houver com elle enriquecido a terra, O puro, amado, memorável dia No resplendor sem termo irá sumir-se. »

Assim Jove fíillou: Saturno annue, E fica mais brilhante a Natureza.

14 OBRAS DK B00AGT5

Aos annos do mesmo Senhor

^Recitado no Theatro da nia dos Condes, em 13 de Maio de 1801),

Honra, Pátria, Virtude! Oh Leis! Oh Throno! Objectos venerandos, majestosos, Lustrao na escuridão, que abrange o mundo, Do vate a phantasia erguei de abysmos.

Em tanto que no céo renasce o dia, Dia eterno, sem par nos lusos fastos, Mordendo-se, escumando, Eiynnis voa Ante o carro fatal do deus das armas. Onde nuvens de horror gotejam sangue. Na truculenta mão rodêa o facho, Cresta os Favonios, as delicias varre. De sanhudos leões ondêa a coma. Longo rugido horrisono rebrama, Pelos troncos se amolam, dentes, garras, O bronze aloja em si rivaes do raio; No espectáculo atroz, na scena infesta. Sedentas de um futuro ensanguentado. As Fúrias se embellezam, ri-se a Morte . . .

ELOGIOS 15

Debalde rebentaes, vulcões do inferno,

Longe, agouros cruéis ! Lysia não treme,

Lysia será qual foi, qual é no globo,

Mãe de heróes, das nações a flor, o esmalto,

Da virtude esplendor, da gloria templo,

Pomposo torreão de férrea base;

Lysia embraça o pavez de eternos Fados;

Se Lysia baquear, baquêa o mundo:

Um Deus não é perjuro, um Deus não mente.

Range os dentes Ismar, anhéla a preza, Urrara de Lybia os monstros, amotinam O mar, a terra, o céo com grita horrenda: Eis que de rósea cor se veste o pólo, O ar, porque espera um Deus, o ornato apura. Assoma o recto, o sábio, o grande, o Tudo I Vacilla a Natureza ao pezo enorme: Elle olha, e d'este olhar campo, e campo.

Reluz o amor, o esforço, a nos lusos. Na bruta multidão negreja o crime; Da traição, da avareza os génios torvos, As serpes da blasphemia, em roda aos Ímpios, Por aqui, por ali sibilam, troam.

A voz, freio aos tufões, ameiga o Nume; Ao guerreiro christão, que os seus inflamma, O triumpho assegura, e fada os lusos. Ao sólio portuguez submette os tempos, Co'a sacro-santa mão lhe descortina Fervendo o Ganges por ceder-lhe as palmas;

16 OBRAS DE BOCAGE

D'elle liomenagem recebendo o Tejo, Ufano recostado á urna de ouro; Montanhas de trophéo??, ao longe, ao perto, E sempre .illustre a paz, illustre a guerra.

Desapparece o Deus, mas íica Affonso, E de Afíbnso no ferro espantos brilham: Sáe d'elle estrondo, morte, horror, victoría^ Não soífre arnez, escudo, é raio o ferro^ E cada portuguez leão se ant'olha, Que, rebanhados touros assaltando, Atassalha, desfiiz, estróe, devora.

nos ares de Ourique inda vaguêam Sagrados éccos da palavra augusta, E das turbas fieis, do heróe terrivel Inda o mareio rebombo estruge os valles.

Eia, onleva-te, oh Lysia, era teus destinos! Um Deus te perfilhou, te dá, te escuda Os dias de João, saudáveis dias, Claros, celestes, como a luz que, eterna, Que, immpnsa, resplandece além dos astros. Quaes foram teus avós serão teus filhos. Leaes, ardentes, invencíveis, grandes. Nos olhos de João se nutre a gloria; Basta volvel-os: heroísmo é tudo.

Virá, virá de novo a paz mimosa Com soiriso gentil dourar teu clima; As Fúrias oatra vez aferrolhadas Na masmorra infernal darão bramidos.

ELOGIOS 17

Em quanto do áureo Tejo á lisa margem (lio formoso terreno, onde se encantam Flora, as Graças, Amor, Favonios, Musas,) Hymnos mandando ao céo teus povos ledos, Sentirão palpitar, ferver no peito Branda ternura, que humedece os olhos, Pranto mais doce, mais íiel que o riso; E, sem que a gloria nas delicias turve, Transportado verá banhar teu seio Correntes do prazer, de que é a origem, O magnânimo heróe, da pátria nume, Esse, em cujo natal florece o mundo, JoãOj mimo d'um Deus, d'um Deus imagem.

18 OBRAS l^È BOCAGE

Aos annos do mesmo Senhor

(13 de Maio de 1801)

Serus in ccdum rédeas, diuque Lobfhus intersis populo.

Horat. Llb. i. Od. ii.

Que alegre, desdobrando o véo de rosas, Que amena resurgiu, que abrilhantada De estreme, de amorosa claridade A aurora de João no céo de Lysia !

Oh plaga supVior ás plagas todas, Que deste ao mundo antigo um novo mundo, Que, immensa no valor, no espaço curta, Transcendeste os confins da humanidade, Levaste execução onde apenas Ousara abalanç-ar-se o pensamento ! Ií'esta luz singular, n'este áureo dia, Da eterna protecção penhor formoso, Trouxe de novo a ti mil dons celestes O Génio tutelar, que escuda, e vela.

ELOGIOS 19

»

Gran ministro de Jove, os teus destinos:

Que vassallagem firme ás leis, ao throno

Em teu seio arreigou, nutriu, reforça,

Qual planta ingente, que, abarbando as eras,

Opulenta de aromas, flores, fructos,

Na viçosa altivez penetra, invade

A terra co'a raiz, os céos co'a rama.

Recrea-te, oh nação ! divino indulto Além da meta humana alçou teu lustre. Colossos gigantêos no mar se abjsmam, Marmóreos torreões dão baque horrendo, Da Fortuna as montanhas se desabam, D'este, d'aq«elle império morre a fama; O Medo, o Assyrio cáe, cáe Roma, e Grécia, Maravilhas do globo, e ferros d'elle; Mas Fado universal não é teu Fado: Gravame acerbo, aspérrimo tributo, Males, que a tudo impõe, não ousa impôr-te O tyranno commum, rei de ruinas. Elle acata a nação no heróe que a manda. Nos heróes que a mandaram, que a subiram A grandeza, ao nivel do iacio nome.

JDeuses na mente, se mortaes na essência, Co'a rectidão por norma, os páes de Lysia, Os monarchas do Tejo á pátria deram Leis amigas do céo, do mundo amigas. Leis, que um Deus confirmou, porque eram suas.

Magnânimos leões leões produzem,

20 OBRAS DE BOCAGE

Frouxo arbusto não é do cedro a ijróle. Aífonsos, Mauueis, Dinizes, Sanchos^ De vós, egual a vós, João proveiul Decreto, pelos numes promulgado, Transpôz de dextra em dextra o sceptro luso, Até parar na mão, que ha de empunhal-o Com tanta duração, que espante os evos.

Astréa, a paz, o amor, virtude e graças, No mais que doce jugo embellezados, Volvem dos astros, sem saber que volvem, O Olympo esquecem, de João no império, E suppõem convertida em tempos de ouro Negra edade de horror, que os pôz em fuga.

A turba etherea, ladeando o sólio. Bafeja o coração do régio moço: Ali derrama da Clemência o néctar. Ali, deidade austera, ali Justiça, Teu ríspido amargor com elle adoça; N'alma idéas prestantes lho aposenta, Árduas combinações lhe induz, lhe aplana; Politica sublime entre ellas surge. Onde a saoracidade abran^re a honra; N'am quadro luminoso o bem da pátria Ante a face real prospera, avulta: O presente, o porvir fulguram n'elle.

Oh tu, de um Deus contemporânea augusta, Voragem onde os séculos sossobram. Ignota, veneranda Eternidade !

ELOGIOS 21

Debalde te abarreiram teus arcanos Contra audaz invasão da idéa em chammas. Metal de mais vigor que o bronze, e o ferro, Recôndito aos mortaes, compõe teus muros; A névoa dos mysterios te rodêa: Mas despedindo o vate ardentes voos. Aquém deixando o globo, o vento, as nuvens, Qual a que arrosta o sol, e empolga o raio, A eternos penetraes os hombros mette. Obstáculos derruba, e nos Fados.

onde altos Futuros magestosos Em sagrado silencio envoltos dormem, A todos sobre-sáe Destino excelso Do generoso heróe, que rege os lusos, Que impera co'a virtude, e não co'a força, Que inda mais que no sangue, em si tem base A inviolável direito, ao jus supremo De ser na terra o que no Olympo ò Jove.

Sim, Príncipe immortal; se a longa serie De teus grandes avós te não guiasse A brilhante eminência, onde te adora Nos hemispherios dous um povo immenso, Sempre nos corações houveras throno. A tua gloria és tu, comtigo brilhas; Por ti fogem de nós communs desastres, Venturas entre nós por ti ílorecem. O cóo te inspira, o céo te galardoa, E ethereo resplendor teus annos c'r6a.

22 OBRAS DE BOCAGE

Aos annos do mesmo Senhor

(Recitado no Tlieatro do Salitre, em 13 de Maio de 1801) Interlocutores: Aurora, Século

Oh tu, prole recente, ultima prole

Do numen, que aniquila o bronze, o ferro,

Que absorve gerações, que exerce os Fados,

Que vae minando o seio á Natureza,

E como que assuberba eternidades!

Filho do Tempo, sueeessor não duro

De século feroz, de irmão terrivel,

Que -Europa mergulhou n'um mar de sangue,

Que a virtude, a razão, que as leis, e a gloria

Eclipsou, perseguiu, desfez sem pejo;

ao bojo infernal cavando abysmos.

As Fúrias arrancou da noute immensa,

As Fúrias, que, esparzidas no universo,

Todo em reino da morte o converteram:

Graças aos numes, o tyranno é cinza,

EliOGIOS 23

o Século do horror volveu ao nada; Morta esperança de viçosos dias Resurge devagar, se move a medo; Imagem festival de bens vindouros Na térrea superfície em fim vislumbra: Por sombrio horisonte apenas ficam Rastos sanguineos dos forçados voos, Com que a fera Discórdia, a negra Erynnia Da peste, que em seu hálito dardejam, Extensas regiões purificaram.

Mas os tartáreos monstros não repousara, Nas extremas da terra inda retumba O medonho clamor, que sáe do raio. Talvez nova impiedade enlute o globo, Talvez . . . tão feia idéa os raios furta Da face com que alegro a Natureza.

Ah ! Tu que aos penetraes do immobil Fado, onde o pensamento a custo adeja, Foste a serie colher, serie sem cont^ De altos successos, em teu giro inclusos; Tu, que na estancia onde os Futuros dormem, Com lume audaz a escuridão venceste, E, o grémio do possível revolvendo, Soubeste se a Ventura, ou se a Desgraça Deve sobre esta machina indecisa Reger sceptro de ferro, ou sceptro de ouro: Recrêa, oh numen, cujas leis supremas Observo pontual na rósea plaga,

24 OBRAS DE BOCAGE

Eecrêa indagador, tenaz desejo, Abrindo nos olhos meus clarão futuro.

Século

Deusa brilhante, que ataviam, cobrem

Grinalda de jasmins, docel de rosas.

Mãe dos luzeiros com que douro as vestes;

Amores de Titão, delicias, mimo,

Que aljôfares entornas sobre as flores,

Que dás puros cristaes ao leve arroio,

Susurro ás virações, gorgeio ás aves,

E o oposto de existir á Natureza!

Bem que os mysterios do immutavel Fado

Envolva escuridão, e acatamento.

Que do mundo profano abate os olhos,

Comtigo, que és deidade, e sócia minha,

Comtigo, que do Tempo exerces parte,

As leis universaes vogar não devem.

Enxuga o doce pranto cristalino,

Que entre as flores de Amor, e a neve, e as graças

!Na face te reluz: socega, escuta.

Aos montes sempiternos, onde o Fado Em palácios de bronze as leis promulga, Resfolgando subi, subi tremendo Dos males, que este globo inficionavam. Onde meu fero irmão cevara os olhos.

Do gríin templo fatal rangendo as portas

ELOGIOS 25

Se abrem de par em par, me descortinam Aqiielle, ante quem Jove é nnme apenas.

Avulta, recostado em nef^ro throno, Curvos, absortos cortezâos o incenvsam, D'um lado a vida tem, tem de outro a morte, Um rasgo que co'a férrea pluma No livro pavoroso, altera o mundo, Ergue, prostra nações: a Gloria é sonho, A Fortuna é chimera, e Grécia, e Roma Relâmpagos, que sorve immenso abysmo.

A torva omnipotência adoro a medo, E trémulas preces vou formando A bem do triste globo, em que presido: Eis o deus co'um sorriso a voz desprende, Desfarte o coração me desafronta:

« Fiel executor das leis do Fado, Herdeiro do poder, não do caracter De ministro cruel, que puz no mundo Para mais enrijar meu duro império: Depois que em scenas mil de sangue, e luto Minhas fúrias cevei, cevei meus ódios. Os males que esparzi me horrorisaram. Quanto pode a Virtude até no Fado ! Em honra de um mortal, me abrando a todos, Em honra de um mortal, que um Deus parece»

Ferrolhadas no Averno as Fúrias gemam, A cruenta Discórdia apague o raio. Virtude, Paz, Amor, volvei ao mundo:

26 OBRAS DB BOCAGE

Tu, Século ditoso, ao mundo os guia; Este mimo dos céos na terra espraia, Enriquece com elle os climas todos, E mais que todos a benigna plaga, O império occidental, augusta herança Do heróe, do semideus, que contemplo.

(( O sólio de João ladêe a Gloria, A Justiça o ladêe: admire-o tudo; Base de corações lhe escore o throno: deixe de invejal-o apenas Jove. O dia em que emanou do seio eterno Seja um sorriso do melhor dos numes; Galas para adornal-o invente a Aurora, Saturno o purifique, e seu lhe chame. ))

Disse, e nublou-se o deus, e de repente D'entre os astros um vórtice me arranca. Eis venho respirar eo'a Natureza, Ufano do caracter, que me é dado. Dos bens, que desparzir na terra posso.

Exulta, pois, oh deusa, e cumpre o mando, Que ledo recebi na voz do Fado: « O império de João, seus áureos dias Gosem no m-undo o resplendor do Olympo. »

Aurora

Oh transporta! Oh ventura I Oh céos! Oh Fado! Sendo teu jugo assim, teu jugo adoro.

ELOGIOS 27

Aos annos do mesmo Senlior

(IB de Maio de 1803)

, . . Ipse tibi jam bracMa contrahit arãens Scorpius é cceli justa plus parte relmquU, ViRG. Georg. Lib. i.

Oh lustres do salão radioso, immenso, Fonte invisível dos visíveis astros! Em torrentes de luz, perennes, vossas, Sem que naufrague a mente, é jus do vate Sondar a eternidade, abrir os Fados,

Sorria-se na terra o mez das flores, Espelho eram dos céos as vítreas ondas; Do azul Favonio, da punícea rosa Ténues suspiros, cândidos perfumes A leda Natureza embellezavara.

Eis ante o rei de tudo heróe, que oiitr'hora Grosara entre os mortaes o gráo de nume, O claro fundador do luso império,

28 OBKAS BB BOCAGE

Dos altos promontórios a saudade, Aquelle, cujo nome os pátrios eccos Com lúgubre memoria inda proferem, Curvo o joelho, supplice a palavra. Pios desejos exprimiu desfarte:

c( Gran Ser, que da medonha, antiga massa D'uma vez extraíste o térreo globo, Que n'um sorriso os céos e o sol creaste! complacente ouvido ás preces minhas.

((O império occidental, por ti doado A mim, e ao sangue meu, que as leis te adora, O império occidental, theatro annoso De innumeros portentos, de alta gloria, A plaga venturosa, o doce clima, (Que sagraste co'a presença tua) Lustre de novos dons, de timbres novos, Em virtude, em grandeza, em majestade. A planta, de que fui raiz fecunda, Sempre mimosa de teu almo influxo, Brote por ordem tua um fructo ameno. Que adorne, encante, aformosêe a terra. "

c( De Lysia velador, propicio génio Tu m.e elegeste, oh Deusl Eu guardo, eu zela Fiel, grata nação: mil, e mil vezes Se apuram no esplendor da eternidade Incensos, que te meu povo amado. Requintada ventura, um lustre, ignoto Ao resto dos mortaes, o galardoe:

ELOGIOS 29

Primeiro templo teu no mnndo é Lysia, Quasi como é nos céos, é teu culto. » Taes, e tantas de Aífbnso as preces foram, E ás preces annuiu o auctor dos astros.

Revolve a mão suprema o cofre eterno, E entre milhões de espirites fulgentes Um, que mais brilha, bemfazejo, estrema.

Oh vós, de inextinguivel claridade Serenos filhos ! Impalpáveis entes ! Núncios da terra aos céos, dos céos á terra Quando implora o mortal, e outorga o numel Vós, leves meneando as nlvas plumas, Ao sólio, que leis do Tejo ao Ganges, Trazeis um dia, que atavie os tempos, Um dom trazeis, que divinize o mundo.

E teu natal, grande João, tua alma Este dia, este espirito, fadados De caracter sem par, de bens sem conto Pela voz, que do sol regula o giro.

Donativo do céo, prazer da terra, Que bonras o nmndo todo, e reges parte. Príncipe excelso, Principe adorado. Enlaças corações em flóreo jugo; Ternura filial nos diz que reinas. Não convulso terror, não leis de ferro. Quaes folgam, limpas das terrenas fezes, Almas formosas nos eljsios prados. Vagam risonhos, festivaes teus povos,

âO OBRAS BOCAGE

Amplo domínio, que dos céos herdaste.

Tarde, mui tarde a teu principio voltes; Depois que o tempo fatigar seus voos sumir-se comtigo a Natureza No seio da lustrosa eternidade: Eis os votos de Lysia, e do universo.

ELOGIOS 31

8

(Dramático^

A ESTANCIA DO FADO

Para celebrar o dia uatalicio da Sereníssima Princeza D. Maria Theresa

(Representado no Theatro de S. Carlos, em 29 de Abril de 1797)

Actores : O Fado O Génio Lusitano Lysia A scena se figura na estancia do Fado.

SCENA I

O Fado e o Génio Lusitano

Gbnio

Oh tu, que severo, e benigno

Ou prostras, ou manténs, ou dás, ou tiras,

Despótico senhor da Natureza,

Ente, de cujas leis é tudo escravo,

32 OBRAS DE BOCAGE

Hoje desenrugada a fronte augusta Affavel te promette ás preces minhas. Ministro pontual dos teus decretos. Eu, que ha tantas edades velo, oh Fado, Na gloria, no esplendor da egrégia Lysia, De brilhantes heróes origem pura, Eu por ella te invoco: ako interesse A dirige, a conduz ante o supremo Throno, onde reinas, adorável throno, Escorado na inimensa eternidade.

que a teu gran poder curvando a frente, Honrada ha muito de apoUinea rama, Lysia teus dons benéficos implore. De tudo quanto abrange a louga terra Nada tão digno de encarar seu sólio.

Fado

Magnânima, fiel, constante, invicta, Lysia, qual a formei, lustre ao mundo; Ante o seu gosto minlias leis se torcem: Tens influxo, oh Virtude, até no Fado. Venha, merece olhar-me, ouvir merece A voz, que ao próprio Jove o throno abala; Toque a vedada, sempiterna Estancia Por onde em turbilhões mysterios fervem: Gloria, aos mortaes defesa, a Lysia cabe.

(O Génio vae conduzir Lysia,)

ELOGIOS 83

SCENA II

Lysia e os mesmos

Lysia

Fado, prole immortal da eternidade ! Numen, de cujas mãos está pendente Cadêa em c[ue os fuzis são bens, e males, A desgraça, a rentura, a morte, a vida; Dos Tempos mo vedor infatigável. Que de ledas, pasmosas, tristes scenas, De espectáculos mil sempre matizas A^ curva superfície ao térreo globo ! Se desde que assomei luzi no mundo, Se a tua protecção, commigo estável, Das mais claras nações me fez modelo; Se, escudada por ti, dei ser, dei pasto A bella emulação, e á fêa inveja; Se de illustres acções dourei a historia; Se a firme tradição c'roei de assombros; Se meu brado esparzi de clima em clima Nas férreas tubas da volátil Fama, Atando em áureo Virtude, e Gloria;

34 OBRAS DE BOCAGE

Se em fim, qual sempre foste, és inda, oh nume, Para os desejos meus benigno, fácil, Summa razão, que os move, os felicite.

Fado

O passado, o presente, o que inda ignoto E aos cegos mortaes, perante o Fado Tão claros, n'um ponto, resplandecem Como rutila o sol no aéreo cume. Deves, Lysia, porém, gosar o indulto De livremente expor teus sãos desejos. Ao que Lysia appetece o Fado annúe.

Lysia

A promessa immutavel, que te escuto, Aífectos mil no coração me agita. De altas idéas me povoa a mente.

Destinada por ii ao grande objecto De honrar o mundo, e propagar portentos. Mãe fecunda de heróes, teus fins cumprindo. Sementes espalhei, de que brotaram Cândidas flores, generosos fructos.

Desvelada, incansável, conduzindo Por entre abrolhos, precipícios, transes A minha prole audaz, a lusa gente. Com ella commetti, pizei com ella

ELOGIOS 35

O qnasi inacessível monte ameno,

Onde reside a perennal Memoria.

Com arrojado fomos subindo

Os marmóreos degrans do ethereo templo,

E, os estreitos vestibulos entrando.

Vida sem fim, morai eternidade

Corremos a colher nas aras de ouro.

A turba dos heroes que ali brilhavam, Luzeiros imraortaes de Grécia, e Roma, Extranheza não fez a nossa entrada: Curvas as crespas, laureadas frontes, Com sorriso amigável nos saudaram.

Do bafo empestador, que sáe dos vicios, Jamais os fructos meus crestados foram: Salvos da corrupção, a edade os traga; Puros, formosos, como vivem morrem.

Mas dos ramos d'esta arvore, que alcança Os hemispherios dous co'a vasta sombra, Tão viçoso nenhum, nenhum ííio digno Do amor da terra, da attenção do Fado Como o que eu distingui de mil, que nutro. E de Bragança o ramo, o ramo annoso. De raras producções sempre adornado, Este, cuja grandeza anhélo, adoro. Em uma, em outra edade o viste, oh nume, Ao bravo repelhio de horríveis Euros, De procellas fataes illéso, immovel; Viste-o dar leis a si, dar leis a tantos,

36 OBEAS DE BOCAGE

Unir ao mando augusto augusto exemplo, Assombrosos heróes crear co'a vista.

Por esta de raortaes quasi divinos Abalisada estirpe, a ti recorro N'este dia entre os meus de um sol mais puro, Maria, o tenro, o cândido renovo Da planta que idolatro, exiniio fructo. Doces primícias, e penhor sagrado De caro, insigne par, João, Carlota, Dos lusos corações idolo, e gloria: Maria hoje raiou no alegre mundo. Hoje na rubra nuvem sei ntill ante. De rosas, e jasmins bordando os ares. Aurora appareceu co'um riso novo; Hoje o suave, cristalino orvalho Mais alvo, e mais subtil caiu nas flores; O ledo rouxinol, prazer dos bosques, Novos sons estudou para este dia; Tornou-se mais formosa a Natureza; Nas montanhas vestiu, vestiu nos prados Mais lustroso matiz a primavera; E agora que renasce este almo instante As nuvens despe o c.éo, e o pego as ondas: Qual outr'hora exultái-a o mundo exulta.

A seus, e a meus transportes propicio, Satisfaze os mortaes; ordena, oh Fado, Que Phebo vezes mil no plaustro de curo Com dia tão feliz prospere a terra;

ELOGIOS 37

Ordena que mil vezes se renovem Annos brilhantes na vergontea bella, Na regia producção de tronco excelso. Franquêa aos olhos meus, íVanqiiêa, oh nume, O tropel de recônditos mysterios^ Sumido em negros véos, eternas sombras; Aclara, desenvolve a meus desejos Altos futuros da gentil princeza.

Génio

As preces que te envia eu uno as minhas: Amor, Virtude, Gratidão te imploram.

Fado

Eis o mais amplo dom, que pode o Fado Para vós extrair de seu thesouros. Silencio, que eu desligo, eu desentranho Da noute do vindouro os bens supremos Que á princeza immortal propicio guardo.

Fulgentes como a luz que resphindece Na pura habitação da eternidade. Seus destinos vereis, vereis seus dias, Da generosa avó, do pae sublime. Da idolatrada mãe retrato egrégio, Virtudes, perfeições em si juntando, Por mil raros espirites dispersas,

38 OBRAS DE BOCAGE

A mimosaj gentil, real Maria Dará novo esplendor, á digna pátria. Como o formoso irmão no avito império Dará sagradas leis em clima extranho. Leis, amigas do céo, do mundo amigas. Ligada em áureo nó, com fausto agouro, A régio, claro heròe, credor de obtêl-a. Fará que a seu louvor não baste a fama, E cance de espalhar-lhe as maravilhas. Seus thesouros serão, será seu throno Asylo maternal dos malfadados, Almo refugio da Virtude oppressa. Da Justiça, da innocencia amável: Tristes que a virem ficarão contentes. Mérito, e galardão, delicto, e pena Debaixo do seu jugo bão de enlaçar-se; Por muito, e muito que a Fortuna a brinde, Mais ha de conferir-jhe a Natureza.

Tantas vezes o sol trará seu dia, Seu dia, pelas Graças enfeitado. Que, antes que cesse de guial-o ao mundo Com tanto resplendor, qual hoje o doura, Hão de esjDarzir-se nos cerúleos ares Kotas as rédeas dos Ethonhes fulvos.

Vai, Lysia, volve aos teus; co'a face augusta Ilegosija os mortaes, de ti saudosos. O Fado o proferiu: mil bens te esperam.

ELOGIOS 39

Lysia

O raças, numen clemente! Eu corro, eu corro Á derramar na terra o grande annuncio.

Génio

Lysia, Lysia feliz! Commigo exulta: Tudo se cumprirá; não mente o Fado,

40 OBRAS DE BOCAGE

Aos annos da mesma Senhora

(29 de Abril de 18...)

Além do firmamento^ além do espaço Que por lei summa franqueara o seio A mundos sem medida, a soes sem conto; Aquelle, cujo throno immensOj immovel Vence ao diamante a consistência^ o lume, Tem por base e docel a eternidade; O Principio dos principies todos, Co'um sorriso avivando o etliereo dia, Lançara a seu thesouro a mão suprema: Mil virtudes, mil bens, mil dons, mil graças^ A que o tacto divino alteia o preço. Surgem do eterno cofre; e alado génio, Que as barreiras do céo transpõe n'um voo, Por entre o resplendor, que em torno espraia, Traz o gran donativo á Natureza; E vem com elle reluzindo os Fados, Que ao celeste penhor cingira o nume.

ELOGIOS 41

c( Ministro universal da omnipotenciíi ! (Clama o núncio radioso) a ella é grato Que d'estes sacros dotes se atavie Prole de reis, de heróos, um digno ramo Da planta, que immortal florece am Lysia, De olympicos orvalhos animada; Uma alma singular, idónea ao sangue Do mortalj que vencendo o gráo de humano, Foi pela voz de um Deus chamado, eleito A virtude, á grandeza, ao throno, á gloria; Que possante, magnânimo, assombroso, O'o arnez da razão, da munido, Lybicos monstros de terríveis garras Feriu, rompeu, prostrou, desfez qual raio; A cinzas reduziu, a pó, e a nada Oh templos da impostura, as aras do erro; Depois que a divindade o véo rasgando, Esse véo sacrosancto, impenetrável, Que a recata do mundo, ante seus olhos -- No lenho remidor se foz patente; E com elle travando alia alliança, As insignias lhe deu, lhe deu o império.»

Disse o fulgente espirito; e soltando Das azas de áurea cor fragrância e néctar, Em pélagos de luz desapparece. Tremeu de acatamento a Natureza Em tanto que o decreto absorta ouvia; Eis que volvendo a si risonha, ufana,

42 OBKAS I)E BOCAGE

No brilhante composto exhauro a industria; Une ás graças moraes externas graças, Divinaes perfeições á essência humana; E exulta, e se revê nos dons que enlaça.

Adorável princeza, estes encantos S<ão teus, são teus: no espirito, na face. Na voz, no coração te resplandecem; Com elles teu natal se afformosêa; Por elles de mil júbilos c'roado. Em perfumes envolto, envolto em flores No grémio puro de benigna Aurora Aos votos dos mortaes os céos o enviam.

ELOGIOS 43

10

Aos prósperos annos da Sereníssima Princeza do Brazil, a Senliora D. Carlota

(Recitado no Theatro da Rua dos Condes, em 25 de Abril de 1801)

Tu^ patente á razão, velado aos olhos, Monarcha do universo, alma de tudo; Immenso, que em ti mesmo apenas cabes, Que tens no ser, na mão, na voz, no aceno Fados, eternidade, omnipotência, De que o raio é pregão, e o mundo é prova: Ah ! Manda que teus júbilos sem conto. Que elysias flores, Zepbyros do Olympo Crôein, bafejem de Carlota o dia; Que o sol, que o teu reflexo a imagem tua, . Com elle avive a purpura d'Aurora, Com elle regosije, adorne, alteie, Gradue em divindade a Natureza, E com elle, ovante, além das eras.

Prole de um semideus, esposa de outro, (De outro, infrior, oh Jove, a ti somente)

44 OBBAS DE BOCAGE

Carlota é de teus dons, de tens thesouros Nas graçaSj no attractivo, a ílôr, o extremo. Qual no céo reluziu quando, inda exempta Da corpórea prisão, sua alma beila Serena de astro em astro vagueava, Qual no céo reluziu, reluz na terra. Em seu cândido rosto encantos brilhamj, Razão lustrosa lhe atavia a mente, Sorrisos a grandeza lhe temperam: Tem mais subhme a Índole que a Sorte, Maior o coração que a dignidade. Aos ais do aíHicto, do infeliz aos prantos Desde o cimo da Gloria, e da Ventura materno favor, materno ouvido, Emulando, a par d'elle, os mil portentos Do consorte immortal, do heróe piedoso, Por quem, de áureas delicias esmaltado, O céo de Lusitânia as trevas despe, E é qual foi quando assidua primavera Cubriu de virações, ornou de rosas Ao tenro globo a superfície amena. Quando em correntes susurrava o néctar, B, o mesmo no zenith, ou no horisonte, O sol benignos lumes espraiava; Benignos lumes, como espraia a lua. Se com pleno fulgor prateia os mares. Os Ídolos da pátria, o par brilhante. Dos mortaes o esplendor, João, Carlota,

ELOGIOS 45

Oh rei da Eternidade, oli rei dos Fados, No throno avito, heróico, á sombra tua. De séculos, e séculos triumphem: D'elle, d'ella se esquivem Tempo, e Morte, Dure-lhe a vida o que durar seu nome.

O Tejo, despejando as urnas de ouro, As plantas lhes deponha o gran tributo, que a terrestre ma china abjsmando, Sorva tempos mortaes o tempo eterno. Tua respiração, dos céos perfume. Purifique o natal formoso, e caro, Em que ufana, em que altiva a Natureza Se enleva, se revê, se ri, se encanta.

de Saturno as épocas voaram, Férrea, medonha edade aggrava os entes. Ah! D'entre os mortos séculos surgindo Envolto em rosas, o melhor dos dias, Dos dias que perdeu console o mundo.

Taes, e tantas de Lysia as preces foram Ante o sólio de Jove, e d'elle ouvidas Colheram n'um sorriso omnipotente Da implorada mercê penhor e annuncio.

São mimosos do Fado, a Jove acceitos, Cobre a sombra d'um Deus João, Carlota: Modelo das nações! Oh pátria! Exulta.

46 OBRAS DE BOCAGE

11

Aos faustisslmos annos da Sereníssima

Senhora D. Maria Benediota, Princeza

Do Brasil, viuva.

(Recitado no Theatro do Salitre, em 25 de Julho de 1798.)

Sacro delírio, creadora insânia, Que, não paga de um Deus, de um céo não paga^ Ousaste pregoar mais céos, mais deuses; Opulenta indomável phantasia Dos homens quasi numes, que, invadindo Os brônzeos penetraes da Eternidade, Presumiste erigir no centro d'ella O paço a Jove, o tribunal aos Fados, Os astros povoar de vãs deidades, E, esforçando o terror da Natureza, Depois arremetter do Averno ás portas, Sumir teus voos pelo immenso abysmo, Erguer Plutão sanhudo em férreo throno, Fiugil-o ao Medo, figural-o ao Crime Eegendo as Fúrias, legislando á Morte: Oh Génios sem limite, oh vós, que outr'hora

ELOGIOS 47

Dáveis aromas, templo, altar, ministros

A virtude immortal das almas bellas.

Mais puras, mais brilhantes, mais formosas

Que o filtrado clarão das eras de ouro!

Manes, sagrados manes ! Se, arrombando

Da existência, e do nada o muro eterno,

Volvêsseis a vagar no globo infausto,

No globo corrupto, e não lustroso

Do primevo explendor! Se ao alto olhando

Por entre a névoa de apinhados vicios,

(Semente nunca estéril no universo)

Visseis em summo gráo, remoto d'elles,

Luzir dos hjmnos meus o grande objecto,

Luzir Maria, a singular Maria,

Prole de reis, de heróes, de semideuses,

Do império universal por si credora,

Maior que os Fados seus, maior que a Fama!

Irieis com transporte, e jus mais sancto

Sagrar-lhe aromas, templo, altar, ministros.

Seu dia, que deveu aos céos cuidado, E no sol, como os mais, não teve origem, Seu risonho natal, quasi tão puro Como o seu coração, deu hoje á terra Prazeres, cuja ideia encantadora Foi ao estro dircêo talvez negada.

Hcje Aurora surgiu não somnolenta; Hoje Aurora, anhelando anticipar-se, íía orvalhosa madeixa desparzira

48 OBRAS BE BOCAGE

Almos perfumes^ a que cede o néctar : Flores, que dispnzera. e que zelava Nos eljsios jardins cultor divino, Para toucarem a manhã mais bella, A mais bella manliãj que sobre o Tejo Em chuveiros as Graças derramando, A superfície azul subtis cardumes Attrahiu dos Favonios brincadores^ Por mais doce fragrância enfeitiçados, Uns após outros desdenhando as rosas.

Sorriu-se, como nunca, o rei dos entes No ponto em que raiou táo fausto dia, D'entre os ethereos orbes deslisado; Sorriu-se, e reflectiu no céo, na terra, Na face festival da Natureza O adorável sorriso omnipotente, Capaz de produzir mil soes, mil mundos, Torcer os Fados, e alegrar o inferno.

Então, a eternas leis curvado o Tempo Na corrente fatal dos bens, dos males. Em que ó vida este anel, e aquelle e morte, O Tempo então, depondo a fouce, as azas, Puliu áureo fuzil, tão reforçado. Que o desabrido assalto, o pezo, o encontro Dos séculos em chusma, o não rompessem: Deve tanto a Virtude ás divindades!

Es, brilhante fuzil, és a existência Da regia, da magnânima heroína,

ELOGIOS 49

<3ue n'a]ina florecente o céo resume; Augusto coração, cuja grandeza Quando aos míseros desce aos astros sobe, E colhe em galardão a eternidade.

Encanto universal, matrona excelsa, Como que ao templo ingente, onde a Memoria Construe estatuas, que não róe a edade, Erguido, arrebatado o pensamento, Por entre as altas copias venerandas D'aquellas, que transpõem o horror do Lethes, sobresair a imagem tua, E na, que a sustém, perpétua base: «A gloria de Maria é mais que a vossa: Ao bronze sup'rior curvae-vos, bronzes ! d

50 OBRAS DE BOCAGE

12

Congratulação ao Príncipe, e á Pátria na Paz Universal

(Anno de 1801)

Férrea primum

Desinet, ac totó surget gens áurea mundo. Virgrl. Eclog. iv.

Pezavam sobre a terra os férreos Tempos: Do facho das Euménides saltava Em scentelhaj e scentelha um novo crime, Extranho aos homens, e usual no Averno. Ardia o coração da triste Europa Em chamraas, que a Discórdia reforçava Co ardor, que zune, estala, oixdêa, eterno Nas fragoas immortaes do horrível Pluto. Pelo amplo continente, e além dos mares Entravam, bravejando, as leis, e as Fúrias; Ceres espavorida os ermos campos Ao numèn da matança abandonava; De iníquas mãos espolio, o dócil bruto, Sócio fiel do válido colono,

ELOGIOS 51

A robusta cerviz curva^/a ao ferro,

A robusta cc-rviz, que dera ao jugo.

Era sonho a razão, systema o crime,

Era fado a crueza, instincto a guerra

No attonito, infeliz, sanguineo globo.

O cálios resurgia, inerte, opaco,

Do abysmo, onde o sumiste, oh Ente immensol

Em hórridos baixeis trovões de bronze No alto Oceano alardeavam mortes: O duro inglez, o déspota dos mares, Torrente universal de cem victorias Sustinha, represava ao gallo ovante. ' Albion, portentosa, invulnerável, De espumas, e trophéos cingida, ufana, Ço'as barreiras equóreas blasonando, As miseras nações atropelladas Mostrava o brio illeso, immune o seio. Da pátria o sancto amor perenne, intacto.

Delirante ambição de falsa gloria Na Gallia turbulenta, e j:i não culta, O peito revolvia aos io-neos Martes. Nas azas da mvasão transpunham serras; Aos rápidos guerreiros se ant'olhavam Valles os Pyrenéos, planície os Alpes (Colossos, que dos céos o pezo aturam !) Ibéria vacillou, tremeu Germânia, As Águias, os Leões se acobardaram: Ibéria, que fez face aos reis do mundo,

52 OBRAB DE BOCAGE

Do muudo á capital, e a grau Germânia, Que oufcr'hora as legiões sorveu de Roma, Forçando o seu tyruimo a pezado.

Tu, flor das regiões, formosa Itália! Dos Fabricios, dos Uégulos, dos Fabios, Dos Brutoí^, dos Catões tu mãe, tu numel Oh foco d^ grandeza, e do heroísmo ! Rival da Grécia, vencedora, herdeira ! Viste milagres seus desarrei^ados De teu seio gentil, digno d'elles ! Insana usurpação, brutal rapina Extorquiu, profanou, desfez portentos, Sacros á fúria de hyperbóreos monstros, Da tragadora edade á faria sacros. As mestas Artes, co'a melhor na frente, (Aquella que os heróes ergue da morte, È em metro venerando os perpetua) Carpindo-se, abraçando-se, fugiam. Teus povos, infeliz, teus cultos povos. Dados ao ferro, á chamma, o céo rasgavam Em lamentos, em ais; saudades tinham Do sceptro, que os Caligalas mancharam. Do tempo em que os tyrannos foram deuses !

Ai ! Que faria a miseranda Ausonia, Sem ter Camillos, que oppozesse aos Brennos! Afeito a dardejar tartáreas flammas, O Vesúvio pasmou do extranho incêndio, E de enorme vulcão por entre as fauces

ELOGIOS 53

Alçando o torvo Dite a fronte adusta^ Quanto vira no inferno olhou no mundo. O mundo agonisava. . . oh céos! ííem Lysia, A que á sombra de Jove altêa o colo, Nem Ljsia se eximiu do mal nefando, Lysia, de um semideus herança, e pátria ! Nos seus, imagem vossa, eljsios cam.pos', bramia o furor, manava o sangue; Já. . . mas súbito, á voz do Omnipotente, Que os Aquilões nos Zephyros converte, Encolhe as azas a procella immensa, 'Librada sebre o lúgubre universo.

Ante o sólio de innumeros lilzelros, Que alumia os salões da Eternidade, Teu nome, alto João, e as preces tuas Contra o commum flagello empenhos foram.

((Eia, ministros meus: em risco é Ljsia! (D'entre milhões de soes o Eterno exclama) Se a quiz exp'rimentar, salval-a quero. A promessa de um Deus não retrocede, E d'ella inda lembrado Ourique exulta. O que AíFonso escutou João merece. As virtudes do avô melhora o neto: Vós sabeis ante mim quanto difíbre O pacifico heróe do heróe guerreiro. Momento, em que hei fadado a paz do globo, Annexo ao p'rigo está, que Lysia corre. Ide, Espirites meus, Concórdia, vôa:

54 OBRAS DB BOCAGE

Azedos corações adoce o néctar,

Quo entorna em meus jardins manhã sem noute.

Concurrentes nações Britannia, Gallia

Deponham timbres vãos, tenaz orgulho;

Em laço fraternal suífoquem ódios,

De que deixei pender do mundo a sorte.

Arcanos, que nem mesmo a vós se aclaram,

Em penetraes de bronze a mim francos,

Do universal contagio o fim permittem.

Etherea viração comvosco adeje,

Que varra aos ares do orbe a estygia peste.

Co'um aceno abysmae no Averno as Fúrias:

Por ora sobre a terra apenas fiquem

Os er-ros dos mortaes, in natos erros,

que os lave o Remorso á Natureza.

O commercio prospere, as artes brilhem,

Floreça a paz, a industria, a gloria, tudo.

Os homens o pareçam.» Disse, e fez-se.

Em fim, Príncipe augusto, em fim, poderam Teu ro^o, incensos teus dobrar um Nume! O que ao mundo negou por ti lhe outorga: Lysia vale o universo ante seus olhos. Imagem do teu Deus, pae de teu povo, Inunda o coração dos bens, que esparges; Exulta, vive, reina, e brando acolhe Ofírenda, que a teus pés depõe submisso Quem, dado ás Musas, e anhelando a fama, Se honra em teu jugo, tuas leis adora.

ELOGIOS 55

13

Consagrado ao nascimento da Sereníssima Senhora Infanta D. Izabel Maria

(Recitado no Theatro da Rua dos Condes, no anno de 1801)

Interlocutores: Actor, Actriz

Actor

Musas, Musas do Tejo, alçae ao pólo Versos dignos de reis, da pátria dignos. Desenruga-se o Fado, os tempos volvem Quaes a vate Cuméa os viu na mente O mundo se renova, o cáhos triste, Com que oppressa gemia a Natureza^ Em dias se desfaz de riso, e de ouro. lio manto cor de neve Astréa envolta As eras de Saturno á terra guia: Desliza-se dos céos estirpe nova; Sorriso virginal, penhor divino,

56 OBRAS DE BOCAGE

Apura, formoseia os ares nossos; Em Zephyros mimosos se convertem Os duros Aquilões; luzeiro errante Surge, rutila da sinistra parte, E com faustos satélites discorre D'este a aquelle horisonte os céos de Lysia, Ingente, magestoso, e qual ou tr 'hora Dourou a alma de Júlio o céo de Roma, Phantasmas desvanece, agouros varre.

Salve, casta, benéfica Lucina, Fautora do gentil, do amável fructo Que brota de sagrada, eterna planta! Salve, prole de heróes, prole adorável ! Tu vens embrandecer com teus encantos A férrea edade, o século das Fúrias; Amor, paz, innocencia ao mundo cif 'reces Dos olhos infantis no doce lume. Luzindo, vicejando em mil virtudes. Irá no coração, maior que os annos; De glorias cingirás tua existência; Por ti conciliado o céo co'a terra Veremos, e por ti verificar-se Quanto as mentes phebéas têm sonhado. Nos tempos de João, nos tempos nossos Ha de o passo de Jove a pátria honrar-nos : Hão de 03 netos de Luso, ao deus tão gratos,. Qual se vive no céo, viver no mundo: Mixtos os numes, e os heróes veremos;

ELOGIOS 57

E^ se rastos houver do crime antigo^ Apagados seráo por teus influxos.

De flores se matiza em honra tua Á leda Natureza: o térreo seio Levanta o myrtho ameno, a paphia rosa, O loureiro honrador, e o molle acantho. Nas várzeas para ti se está sorrindo, De áurea espiga toucado, o mez de Ceres; Vae teus louvores murmurando o Tejo, E ao potente Oceano, ao rei dos mares Leva teu nome, o teu natal, teus fados Na voz, que adoça ao proferir o annuncio.

Ateam-se entre as alvas, brandas nymphas Doces debates: entre si contendem Qual primeiro abrirá nas vitreas lapas Teu nome idolatrado; e qual primeiro Teu áureo berço, teu virgineo corpo Na tela imitará com sabia agulha. Tumultuando os céos trovão de bronze, Não murcha corações, não tolhe os hymuos Que o transporte, que o jubilo desata. O numen da braveza, o deus do sangue. Ouvindo que teu ser luz no mundo. Do carro assolador saltando alegre, O elmo, a lança, o pavez arremessando. Ficará tão sereno, e tão macio, Como quando entregava, acceso em gostos, De Vénus ao regaço a crespa fronte.

58 OtíKAS T.K BOCAGE

E co'as armas folgando os Amorinhos^ Do caracter deposto escarneciam, Caracter surdo aos ais, aos prantos surdo, Que uns olhos, que um sorriso amolleceram.

Melindrosa, gentil, real menina, Cópia das Graças, dos Amores cópia, Filha digna dos pães, delicia d'elles. Cresce, brilha, prospera, exulta, vive: Quaes são teus olhos os teus dias sejam, Claros, formosos, innocentes, puros! Querida prole, a conhecer começa A carinhosa mãe, que magoaste Com agro pezadume em longos dias; Melhora os risos teus nos risos d'ella: És semidéa, ficarás deidade.

Actriz

Para o penhor mimoso Centre os syderios lumes, Olhae, benignos entes, Olhae, propicies numes.

A providencia vossa, Vosso favor merece Quem tanto, oh divindades, Comvosco se parece.

Génio de luz composto Corte os cerúleos ares,

ELOGIOS 59

E dos monarclias lusos Orne o& pomposos lares.

Ao marchetado berço B/isonho se approxime, E ali requinte as graças De espirito sublime.

Seus luminosos fados Zelando em cofre de ouro, Lustre, enriqueça o mundo Co singular thesouro;

Affague a doce prole Dos que são mais que humanos: D'ella um dia occupe O que não cabe em annos;

E quando em tardas eras Voar d'entre os mortaes, O eéo na posse d'ella Gose de um astro mais.

60 OBBAS DE BOCAGE

14

O Actor agradecido á Beneficência Publica

(Recitado no Theatro do Salitre, no anno de 1798)

Interlocutores: Thalia, e o Actor

Actor

Filha de Jove, tutelar deidade Dos vates immortaes, dos génios grandes, Que sobre a scena golpeando o vicio, Sementes da virtude arreigam n'alma5 E as fezes das paixões lhe extraem com arte; Oh Musa festival ! Não menos grata, Náo menos útil á moral, e á vida, Meneando o pincel, com que semeias A critica verdade, o sal, e o riso, Não menos útil, sim, não menos grata

ELOGIOS 61

Que a magestosa irmã, desentranhando

Da funda escuridão dos tempos mortos

Exemplos, que do mal nos acautelem,

Ou modelos, que ao bem nos encaminhem:

Os terríveis affectos da grandeza,

Os crimes da ambição, de amor os crimes,

As artes da politica impostora,

O baque dos impérios derrubados;

Os Régulos, Catões, Horacios, Codros,

Rivaes dos numes, victimas da pátria:

A innocencia acolá gemendo em ferros,

Ali torcendo as leis protervo abuso;

Ora o justo por terra, ora exaltado.

Ora orante a maldade, ora abatida;

com brutas paixões a humana espécie

Submersa no labéo, no horror, na infâmia.

virtude alteando a Natureza,

Em amplos corações ardendo a gloria,

E, fértil de portentos, conseguindo

Que, envolta no heroismo, agrade a morte.

Assombros de Melpómene sagrada, Voltaires, Crebillons, ministros d'ella, Que a attenção subjugaes, o gosto, a mente, Vós culto mereceis, vós sois eternos, 0'os outros, que immortaes vos precederam D'alta memoria na fragosa estrada!

Mas tu, Planto do Sena, eximio vate, Tu, que dos corações sondando o abysmo,

62 OBRAS DE BOCAGE

Com vista imperturbável em si mesmos

Estudaste os mortaes: pintor insigne,

Que o prazer, e o proveito entrelaçando

No engenhoso matiz das ledas cores,

Quaes são, quaes foram debuxaste os homens,

Das meãs condições fizeste o quadro,

E ao quadro breve reduziste o mundo !

Tu, que, não pago de instruir co'a penna;

Co'as vozes sazonaste os fructos d'ella,

Tu és credor também da eternidade,

Alumno de Thalia ! E por teu nome

Hoje espero impetrar da casta deusa

Favor, benevolência, abrigo, influxo;

Hoje que, deferindo ás preces minhas.

Do sacro monte as veigas desampara,

Sáe d'entre o vario circulo brilhante

Das divinas irmãs, do irmão divino,

De Phebo, que revolve, entende os Fados,

E no peito mortal se embebe ás vezes.

Oh Musa, que me attendes, que trocaste Pelas margens do Tejo as do Permesso, E no clima gentil, que aromatisas, Vês luzir florecente amenidade. Vês tão risonho o céo, tão verde a terra. Sentes de mil Favonios os suspiros, A ciciosa turba, que vagueia, Pulindo os are^, namorando as flores, Quaes no cume exelso, estancia tua:

ELOGIOS 63

Digna-te de infliiir-me activas forças. Capazes de liombrear com meus desejos. De ti pende o regrar-me a voz, e o gesto, Para que nem transponha a Natureza Nas azas de fervor desattentado. Nem cobarde rasteje áquem da meta, Roto o véo da illusão. Meus olhos pintem, Mostrem meus lábios a influencia tua, Agora que de esplendido congresso Magnânimo favor me especialisa, Geral beneficência a mim dimana.

Honre os suores meus, oh divindade, A gloria de attraír mais digno premio, A gloria de aprazer aos illustrados Nest'arte de sentir paixões alhêas, Quasi transmigração a essência nova.

As supplicas mortaes propicia aunues! Feliz meu coração I Feliz meu rogo!

Thalia

Honrosa gratidão te inflamma o peito. Da pátria o doce amor te ferve n'alma. Sagrados, candidíssimos objectos. Que da terra, e dos céps merecem tanto I Prometto de inspirar- te em honra sua; Não temas fraquear, terás comtigo Nos lances, nas acções de mais momento

64 OBRAS DE BOCAGE

Não visíveis os manes instructores

D'íiqiielle3 que no Tamisis^ no Sena

Ao claro nome seu padrões alçaram,

Ou revocando as generosas cinzas

De finados heroes, ou exprimindo

Em caracter menor paixões mais brandas;

Cingidos de tal arte á natureza,

Que a mente, pelos séculos errante,

Oh Q-recia ! Oh Grécia ! Teus milagres via,

E o mais em que se apraz a humanidade.

Exerce, actor ditoso, exerce as forças.

Que á pátria, de que és filho, estás devendo;

Confia »a assembléa espectadora.

Na sublime nação, que afaga as artes.

Que, á virtude, ao saber, e ás Musas dada,

Também com mestra mão colheu meus louros.

onde entrar não ousam tempo, e morte Os Ferreiras, os Sás perennes brilham; Elles no meu thesouro estão velando, E o génio creador, que os fez eternos. Mil vezes das estrelias deslisado. Em lustrosos effluvios se reparte Por vós, oh lusos vates, que inda á Fama Dareis com que afadigue as linguas conto, E a plaga occidental por vós espante As outras, do renome alheio escassas.

ELOGIOS 65

ACTOE

Oh mais que fausto agouro! Oh pátria! Oh numes! Oh deusa protectora! A teus influxos

Sagrarei por altisonos cantores De ethereo resplendor c'roados hy

mnos.

66 OBRAS DE BOCAGE

15

Ao Publico

em nome de Leocadia Maria da Serra

no dia do seu beneficio

(Recitado no Theatro do Salitre, no anno de 1799) Interlocutores: Actor e Actriz

Actor

Por uma estrada não se encaminha O génio lidador, votado á Fama: As diversas paixões tem fins diversos, São diversos os gráos, onde a virtude, Onde a gloria aos mortaes coUoca os nomes.

Por entre o fogo, o pó, e o sangue, e a morte Raios de ferro, ou bronze arrosta aquelle: Arde, freme, esbravêa, arqueja, espuma. Em quanto, do espectáculo atterrada, Parece que recua a Natureza. Este em douta vigilia, e reclinado Da planta de Minerva á sombra amiga,

ELOGIOS 67

Estuda os corações, estuda os tempos. Sonda costumes, caracteres sonda, E, corrigindo os mais, a si corrige. Esfoutro, desdenhando a baixa terra, Nos extasis phebêos discorre os astros; Travam seus olhos do futuro esquivo. Da immensa eternidade arranca os Fados: Mortal na condição, na voz é nume. Kenascem Raphaeis, Phidias renascem; O magico pincel prodígios verte, E em milagrosas mãos a pedra vive.

Tu também, raro dom, tu, dom lustroso De exprimir as paixões, de erguer á vida Claros heróes, que no sepulchro dormem; Tu, ante quem o avaro ímpetos sente De ir desaferrolhar thesouro inútil. Malfeitor coração detesta o crime, O que em sangue esparziu compensa em pranto, E, ou receie o ludibrio, ou ame a gloria, O mau se torna bom, e o bom perfeito: Portentosa illusão, que senhoreas, Que encantas corações co'a voz, e o gesto, Tu na posteridade aos que te exercem, Se és d'elles dignamente exercitada, Classe (e classe não infima) grangêas.

Quanto ao sexo mimoso apura as graças Esfarte, a mais irmã da natureza ! Congresso espectador ! Vós o sentistes

68 OBRAS DE BOCAGE

Quanto aquella, que é hoje objecto amável Do publico favor, piutou nos olhos, Nos lábios, nas acções, nos ais, nos prantos O terror, e a piedade, alma da scena, O aíFecto conjugal, e a dor materna. Envolta em longos véos da cor da morte ! Benignos corações, hallucinados De eloquente, pathética apparencia. Julgastes ver surgir da morta edade A esposa de Raul, e em mil suspiros Mandar o pensamento á sombra amada. Soaram vivas, lagrimas correram, Do transporte geral não dúbia prova; E a terna gratidão, sagrado afFecto, Vem tributar-vos sentimentos puros Na doce voz da revi vente Elisa.

Chega, e que espectáculo pomposo, De illustres cidadãos que assembléa Concorre a proteger-te; ouve que applauso Greneroso te exalta, e vae fundando Em robusto alicerce a gloria tua. Os dons formosos dons temor, e pejo, Realces de teu sexo, não supprimam Da bella gratidão sensiveis mostras. Solta a cândida voz da singeleza. Que em silencio te escuta um povo egrégio, Um povo, o mais feliz, e o mais amável De quantos sobre a machina terrena

ELOGIOS 6 a

Prodígios immortaes tem dado á Fama: Um povo submefctido a leis maciaSj]32):^ Que a mão de um semideus dos céos traslada^ O povo de João, do lieróe, do amigo, Do pae commum, do bemfeitoi da pátria, D'aquelle em que a vii^tude é grandeza; Caquelle, que de si por nós se esquece; D'aquelle em cujos dias luminosos D'entre os fuzis dos séculos dormentes Rebentam de Saturno os áureos dias. Enche um sacro dever, e a voz desprende.

Actriz

Excelsa pátria minha, espectadores, Que tanto, e tanto honraes co'a voz, e os olhos Meus tímidos ensaios sobre a scena; Propicio tribunal, em que c julgada Débil mulher, que pávida caminha Por espinhosa, incógnita vereda, Onde o génio talvez, onde o costume Também se desacordam, se extraviam; Ou tudo vem do ensino, ou vem do exemplo: Recentes para mim o exemplo, o ensino, Fertihzar minha alma inda não podem, Nem conferír-lhe o tom, nem dar-lhe o gesto Com que um animo em outro se converte.

70 OBRAS DE BOCAGE

Mas vejo reluzir brilhante agouro, Que, afagado por vós, me aponta ao longe Digna da pátria n'um futuro honroso. Da gloria no horisonte os olhos fito, E á publica, efficaz beneficência Meus dias consagrando, anhélo o tempo Em que os esforços meus, os meus desvelos Crôe mais a razão do que indulgência, E eu clame, decantando alta victoria: «Porque é gloria da pátria, estimo a gloria.

ELOGIOS 71

16

Despedida de António José de Paula aos Portuenses,

(Recitado no seu Theatro no anno de 1802)

Alta virtude, sentimento augusto,

Que, absorto no esplendor, na dignidade,

Na grandeza, no ser, distancia, forma

Das estrellas, do sol, do mar, da terra.

De quanto constitue a Natureza,

Ergues de céos em céos ao rei dos entes

Nuvem de aromas, que perfuma os hymnos.

Quando além do universo, além do espaço

Se embebe a voz mortal no seio eterno!

Divina Gratidão, que até rompeste

Por entre immenso horror, de Lybia os ermos,

Que deste nos leões exemplo aos homens,

Que do novo espectáculo assombraste

O vasto circo da orgulhosa Roma,

Tomando carniceira^ horrível fera

Ante o seu bemfeitor macia, e branda !

Divina Gratidão, tu és, tu foste,

72 OBRAS DE BOCAGE

O órgão de meu dever serás co'a pátria. Meus lábios com teus sons aromatisa, Dá-me a tua energia, impulso, alteza Converte-me em ti mesma, ou meu nume.

Egrégios, venturosos habitantes Do opulento, aíFamado, antigo empório, D 'a, que aos pátrios annaes, ampla cidade Nos fastos deu matéria, e nome a Ljsia, Filhos de excelsa mãe, da torreada, Magestosa rival d'alta Ulysséa, Sensiveis attendei-me, ouvi benignos, Verdade, e gratidão, que soam d'alma.

Nos campos desiguaes onde Thalia, E a carrancuda irmã, com riso, e pranto Melhoram corações, o vicio punem. Ousei com rosto imberbe, e planta incerta Dos Barons, dos Le Kains seguir a estrada, De fragoso terreno, c fim remoto. No estudo, no suor, no ardor, no gosto Meus dias envolvi, sonhei doural-os De um brilhante futuro: honrar, e honrar-me. Tentou ave rasteira os voos de águia, no clima natal, n'outros climas; Cem vezes adejei, tremi cem vezes Ante os cumes da Gloria, a mim vedados: Queria o coração, não pôde o génio.

Co'a mente recuando ao gran principio Do mérito, que luz na scena heróica,

ELOGIOS 75

Do meritoj que luz na média scena,

Vi que, emulos^ eguaes, o actor, e o vate

Deviam florecer «as artes suas;

Que ao génio imitador, na voz, no gesto,

íTos ais, no pranto, no terror cumpria

Reforçar a illusão, que em igneo metro

De assombrosas paixões presente o quadro,

Ou mostra em tom meão communs afíectos.

Eis aos olhos mentaes me oíf 'rece Athenas A terrivel tragedia, alçando o broco. No semblante o furor, n'alma o remorso, Entre luctos, punhaes, traições, venenos. Além vejo Menandro, ali Terêncio, Plauto ali, motejando humanos vicios. Correndo a grandes fins por ténues meios; Olho os mestres da Scena, os órgãos d'ella, Que fazem da illusão brotar proveitos, Quaes nunca, oii mui d'espaço os verdade.

Venerando espectáculo da idéa, Graves objectos, que atterraes audácias, Sereno, todavia, ouso arrostar-vos. A pátria me protege, influe, excita, A meu tremente adejo alenta os voos, Acolhe-me o fervor, me avulta o nada.

Illustres cidadãos, congresso amável, A sombra de Ulysséa, á sombra vossa, Meus fados iibriguei, meu ser, meu nome. Caracter grande, espirito sublime

74 OBRAS DE BOCAGE

Honra as margens ao Tejo, ao Douro as margens; Aqui confere o génio, e confere Beneficência, amor, esteio ás arti3s.

líadando o coração n'um mar de aífectos, Ao mais sentimental que sáe d 'entre elles, A magoada saudade as vozes pede. Que de violenta ausência o custo exprimam. . . Mas porque exerço a voz, se da amargura A suprema eloquência está nos olhos? Vai zelada em meu peito a vossa idéa, Gelada contra os Tempos, contra os Fados: Da minha gratidão perenne, intensa Serão mais um triumpho a Morte, e o Lethes.

E tu, que, attento ás leis, á pátria, á gloria, De Astréa imparcial cultor, e alumno, O publico repouso estás velando; Tu, alto pelos teus, por ti mais alto. Que afagas, que manténs, que fertilizas Magnânimo, illustrado, as artes bellas: Prospera, em honra tua, em honra d'ellas. Dure, brilhe teu nome em quanto o Douro Levar nas fartas ondas turbulentas Mais guerra que tributo ao rei dos mares.

ELOGIOS 75

17

Ao publico, em nome de um actor no dia do seu beneficio

(Recitado no Theatro da Rua dos Condes, no anno de 1803)

Requintado artificio além da meta Tentava da illusão levar o império. Graças mimosas, feminis encantos, Espinhosos desdéns, macio afago, Prisão tão doce aos corações, o riso, E o pranto, aos corações prisão mais doce: AíFectos, que dulcísonos se exhalam Na voz, órgão de amor, feminea, branda, Ha pouco, em som viril falsificados, Um agro não sei que deixavam n'alma; De ternas sensações (já dor, gosto) Vazio o peito, suspirava encher-se; O pensamento, o coração pediam Mixto aprazível de verdade, e engano.

A sabia Natureza, a mãe das artes Eis volve á scena lusa, e com ella Florece a formosura, attráe, sacia

76 OBRAS DE BOCAGE

Olhos sedenteSj sofFregos ouvidos. Zenobia, Elysa, Cleofíde acordam De eterna escuridão, de férreo somno. Dos séculos o pezo ellas sacodem, E em niveas faces, em purpúreos lábios, No talhe magestoso, em alma, em tudo, Vem reinar sobie a scena, e são quaes foram : O attento espectador palmêa, exulta, E a fonte das paixões borbulha, e corre Por flóreo, natunil, gentil caminho.

Eu, oh d'alta Uijsséa illustre povo. Eu de ténues paixões frouxo arremedo. Em habito falíaz exercitando. Os quadros distingi moraes, e amenos, Onde alegre illusâo com risos mente. Meu passo, minha voz, vontade, affecLos A natureza em fim se restituem : Qual me quiz, qual me quer, qual sou, pratico O que arte escassa, o que mesquinhas luzes A mente escura, indócil me doaram.

Espectadores meus, que honraes meu dia, Risonha complacência os erros doure Do inerte, humilde actor, que a pátria implora. Sede o que fostes, e talvez, surgindo D'entre os nomes communs, será meu nome, Oh claros cidadãos, prodigio vosso.

ELOGIOS 77

18

Ao publico, em nome de um actor no dia do seu beneficio

(Recitado no TLeatro de.

Musa de altas paixões não vem na scena Aos olhos franquear sanguíneo quadro; Hoje as fúrias d'Amor punhaes não vibram^ Nem verte surda morte em peito incauto Co'a dextra da traição lethaes venenos: Não tendes que temer, almas sensíveis, Agra impressão de lúgubres aíFectos: Não, não vereis o parricidio negro, Com serpes na melena, e serpes n'alma, Todo o inferno embeber no insano Orestes; Não, não vereis pbrenetico ciúme No silencio, nas trevas ululando, Nívea belleza em flor murchar sem mágoa, Encantos divinaes sumir ao mundo, Gesto mimoso, de innocencia ornado, Olhos, e lábios, que chorando, e rindo Dpce tumulto nos sentidos movem;

78 OBRAS DE BOCAGE

Trança de anneis subtis, brincando em ondas^ Colo de amores, hálito de rosas Zaira não soltará nas mãos do amante Entre os ais de ternura os ais da morte: Não ha de enternecer-se, arripiar-se A mente, e o coração na dor de Elaire, Na sanha de Orosman, de Átrêo na taça.

Surge á scena espectáculo attractivo, Em que Amor com Virtude, em suave, Os costumes abrande, ameigue a vida. Notarás outra vez, congresso illustre. Congresso bemfeitor, por quem mil vezes Agros destinos meus se tornam doces, Outra vez notarás o puro exemplo Dos muitos, que exercitas, dons sublimes; Verás, desaggravando a Natureza, Factícia condição não dar virtudes, O caracter moral não vir da sorte, E o génio dos heróes luzir nos servos: Em quanto pavonêa inflado orgulho, Cevando de illusões a idéa estéril, Todo ufano de si, talvez de nada, E os olhos de travez lançando apenas Aos que em. somenos gráo quiz pôr Ventura; Porque néscio confunde os gráos, e as almas.

Generosa nação, que não confundes O que deu Natureza, e deram Fados: Oh pátria, que hoje em mim teus dons semêas,

ELOGIOS 79

Acolhe, escuta com silencio honroso Os exforços de actor snbmisso, e grato, A quem renovam descaído alento Louvor, e amparo, de prodígios fonte. O préstimo é dever sagrar-se á pátria, O que valho, o que sou jurei sagrar-lhe: (Se pouco valho, e sou, dar mais não posso). Do publico favor medrando á sombra, O pio sentimento em mim se arreiga: No mérito não logro o jus da gloria, Porém meu coração de vós é digno: Immutavel comvosco, eterna, immensa, A minha gratidão será meu fado.

80 OBRAS DK BDOAGE

19

Ao publico, em nome de uma actriz que

representava o papel d.'Ericia

na tragedia «A Vestab

Das victimas d' Amor carpiste os fados, Sensível assembléa, egrégio povo: A Musa do terror, do pranto a Musa, Mesclando aíFectos dous, que a scena regem, A fonte ás sensações abriu nas almas. Por artes de illusão revivem tempos. Dos abysmos da morte heróes assomam, E inda a ser existência aspira o nada. Aos vates, a mortaes, mas quasi numes, Dos numes o maior de si deu parte; Deu-lhes, que sobrepondo o génio aos fados j, Nos séculos j)or ser, e nos que foram, Fizessem resurgir, nascer fizessem Entes de alto caracter, de alto nome, Ou Índoles fataes á Natureza, Ou ternas condições, escravas d'ella: Taes vistes, foram taes Ericia Afranio;-

ELOGIOS 81

O fero Amor, ou déspota do mundo, Que os homens agrilhoa, impõe aos deuses, 'O cruel^ que entre víboras, e flores Néctar, néctar promette, e veneno Aos tristes corações, que mais o adoram: Elle, o commum tvranno, aos dous amantes Lamentados por vós, em vez de glorias, Deu anciãs, deu cypreste em vez de myrtho: Tenra belleza em flor, virgínea rosa, D' elle por ímpia lei cahiu sem vida, E o mísero amador, que a luctando Co'as angustias mortaes, no peito embebe O ferro, com que Amor fadou seu termo; Ferro, que índa goteja o sangue amado. E em purpura trocou do seio a neve. Assas haveis honrado, assas carpido Os sem ventura, e cândidos amores. Os suspiros sem mancha, o caso acerbo, A heróica intrepidez, verdugo d'ambos.

Descei vossa attenção, descei risonhos Para objecto menor: sou eu, não ella. Não Erícia, que falia: o choro, as mágoas Convertem-se em prazer na face, e n'alma: Nem tormentos de Amor, nem fraudes suas Meus lábios, olhos' meus agora exprimem; Mas gloria, gratidão, que fervem, soam Da protegida actriz na voz, no peito: Ao mérito vulgar, que roja, e treme,

82 OBRAS DE BOCAOB

Azas daes, com qne imite adejos de aguia,

E além da própria esphera afoute os voos:

Eu nada sou por mim, por vós sou tudo:

Mais que humano poder^ poder sagrado

Por vós meu ser, meu gráo, meu fado altêa.

Lysia, mimo do céo, da terra esmalte,

No seio amigo me acolheu piedosa:

Serenos dias meus são dons de Lysia,

E até que os deixe o sol, que os turve a morte,.

Até que os desampare a luz da vida,

Os vossos mesmos dons vos sagro, oh lusos!

ELOGIOS 83

20

Ao publico em nome da actriz Claudina Rosa Botellio

(Recitado no dia do seu beneficio, no anno de 1805)

Actriz Claudina JRosa Botelho. Actor Victor Propliyrio de Borja,

Actor

Os campos da Virtude estão desertos; Não vê, não descortina o pensamento De Lybia os areaes tão sós, tão tristes ! Ao menos os leões ali campeara, Honram co'a magestade a Natureza, E na coma lhe ondêa o remo brio: Ao menos ante os soes, que flammejam, De raio assolador, de raio infesto Ostenta escamas de ouro a serpe enorme, Multiplica os anéis, é mil, e é uma: Isto mesmo, este horror, esta fereza No quadro do universo é formosura.

84 OBRAS DE BOCAGE

Oh campos da Viríiidcj estéreis campos, Dos serenos mortaes delicia oiitr'hora! Mudou-se o gosto sou, de vós se temem; Tal do Cáucaso bruto, ou bruto Atlante (Invasores do céo, crespos de rochas) Recua o passageiro, e pasma, e foge!

((Volveste ao lar de Jove em rósea nuvem, Tu, mestra das acções, dos bens origem, Calma, do coração lei viva, e sancta: Este globo, oh Moral, desamparaste! Com azas de relâmpago, seguindo Teu fulgurante adejo, a prole tua Dos astros muito além pousou comtigo:» O azedo misanthropo assim vozêa, E ceva o negro humor, o humor bravio Nas scenas immoraes, que a terra oíTrece.

Enrugado censor, não mais carregues O pezado sobr'olho! Em honra á pátria Dos sábios, dos heróes, perdoa ao mundo: Dos sábios, dos heróes a pátria é Lysia; Não fugiu para Jove o coro amável, Acolheu-se de Lysia ao seio^ intacto : Flores ali desparze, ali perfumes, Que o hálito de um deus de si vaporam.

Alveja o divinal, o ethereo enxame; Filtrado néctar seu, qual doce orvalho, Cáe sobro as almas, e a Moral florece.

Não olhe a mente ao lono^e alto heroismo

ELOGIOS 85

No luso, mareio peito, a quem regala Férreo costume de lidar co'a morte; líão veja torrear no pego immenso O immenso Adamastor, procelias todo, Que zela carrancudo as virgens ondas; Mas depõe, mas submette aos fados nossos A fúria gigantêa, acceza em raios: De assombros immortaes, de acções que vivem Na idea, o coração não se honra agora.

Guerreiras, e pacificas virtudes (Mixto com que os mortaes se tornam deuses) São de Lysia o caracter portentoso: Deu leis co'a mansidão, co'a força espantos, E a mansidão gentil como exerce Comtigo, hoje entre tantas distinguida Do publico favor, do pátrio aíFecto; Olha a Beneficência, o dom formoso Dos céos tão filho, e nos mortaes tão raro, Como te anima, te prospera, e c'rôa: Ah! Cumpre que ao dever ternura unindo. Mimosa gratidão te adorne os lábios; Falia : soe o dever, soe a ternura.

Actriz

Tropel de sensações, moral tumulto, Oh pátria, oh doce pátria, me assaltêa!

86 OBKAS DE BOCAGE

De aífectos na torrente alma soçobra, E phrase nua á boca inerte.

Dizer que és mãe de heróes, que és mãe de justos, Que o génio enlouras, que o saber laurêas; Que ao mérito commum, tremente e frouxo, O susto despes, a energia infundes; Que outra por teu favor me creio^ ou sinto, E que aspiro com elle a dar-me á gloria; Que á vasta, magestosa, olympia estancia Onde entre os Fados a Memoria é nume, E onde os sellos impõe da eternidade A titules humanos, divinos, Do gran livro immortal nas folhas de ouro; Que lá, co'a intrepidez do enthusiasmo Por milagre da pátria eu sonho erguer-me: Isto se escutou de gratas vozes, Isto a meu coração talvez não basta. Exhaure a phantasia os seus thesouros, E áquem do teu louvor desejos ficam.

Dotes brilhantes, sociaes virtudes. Aos ternos filhos seus de Lysia emanam, Com practica sublime, áureo costume: Sou terna filha sua, e da piedosa, Da benéfica m.ãe, que a prole amima. Dotes, virtudes em silencio adoro.

ELOGIOS 87

ACTOE

Cumpriu-se alto dever, e a pátria annúe Ao nobre aíFecto com sorriso ameno.

Actriz

Se aos sentimentos meus annúe a pátria, Outra gloria, outro fado aos céos não rogo.

Actor Fervam-nos sempre n'alma eguaes extremos.

Ambos O que a Lysia se deve a Lysia dêmos.

88 OBRAS DE BOCAGB

21

Ao publico

em nome de uma actriz do theatra

da rua dos Condes

(Anno de 1805)

A Musa, que nas scenas de Uljsséa,

Não sem gloria, ajustava o metro á Ijra,

De Elmano o thesouro (a sócia mesta

Da, quasi muda cinza, aérea sombra)

Inda um salve tremente á luz envia,

E versos á pátria, ou suspiros.

Da nobre Gratidão pelo órgão puro.

Oh Ljsia! Escuta os sons, talvez extremos.

Que do seio aíFanoso, a custo, exhala:

(O cysne divinisa os sons na morte)

Ouve, em metro não baixo, ouve alto aíFecto,.

Que me honra o coração, na voz me ferve,

E no pátrio favor a ardência nutre.

Recente arvoresinha em chão bravio, De humor celeste definhando á mingoa, (E mimosa jamais de um sol fogueiro) Eu para a terra, para a mãe pendia. Que os suecos mesquinhava ao tenro arbusto^

ELOGIOS 89

Talvez de produzil-o arrependida.

Eis braço, a que apiedou meu ser murcho,

Me extráe, propicie, do terreno avaro,

E em liberal torrão me põe, me arreiga.

Súbito espérfca, súbito enverdece

A planta moribunda, e qual se, oh Lethes,

Afterrasse a raiz nas margens tuas,

Que das Fúrias o bafo éster ilisa.

Influxo animador me altêa, e fóllia;

Hálito ameno de vivaz Favonio

Com macios vaivéns me embala os ramos,

Flores me adornam, fructos me ataviam:

Os sorrisos da pátria, os mimos d'ella

Estas boninas são, são estes fructos.

Das trevas, e da morte as aves feias,

(De atra voz, em que o Fado ás vezes soa)

Fogem d'entorno a mim, carpindo agouros,

Nas agras, negras furnas vão sumir-se;

E na coma louçã gorgêa encantos

Teu cantor, Primavera, o vosso, Amores.

Quanto sou, quanto valho, a Lysia devo, E a Ljsia o coração na voz consagro. Acolhe com ternura, acolhe, oh pátria, As oíFrendas por mim do triste vate, Que para te cantar surgiu da morto, E em anciãs balbucia o tom dos numes; Honra deste ao cantor, honra ao canto.

90 OBRAS DE BOCAGE

22

Para servir de cc prologo x> á comedia O Extremoso »

(Representada no theatro da rua dos Condes, no anno de 1800)

Extremos, phrenesis, queixumes, prantos

Da funesta paixão, desejo insano,

Que envolto no prazer saltêa o peito;

Veneno abrazador, que os olhos bebem,

Que, disfarçado em néctar, se insinua

Ko illuso coração, na mente absorta;

Sentimento oppressor da natureza,

Da philosophia em vão repulso;

Innata commoção contradictoria,

Fonte de crimes, de virtudes fonte,

O poder milagroso, inevitável

De um sorriso, de um ai: divino encanto,

Ounho celeste, na belleza imprenso;

Delicias, aflflicção, fraqueza, e força,

D'entre um mesmo principio derivadas;

Raivosas sensações, não menos fúrias

Do que essas, que no Áverno estão rugindo;

Chammas de tanto ardor como as que zunem

ELOGIOS 91

No tartáreo vulcão, de lav^ eterna;

O rei dos Males, o rival da Morte,

O Ciúme, o teu raio, Amor tyranno,

Teu raio, que a Razão derruba, estraga,

Q'inda (oh pasmo ! Oh terror !) depois de extincto

Deixa longo trovão soando n'aluia :

Eis o quadro meral, de tristes cores,

Mas quadro proveitoso, interessante.

Que ao luso espectador se expõe na scena.

Benignos cidadãos, sensiveis entes, Que das ternas paixões sabeis o custo, A doce tyrannia encantadora Com que uns olhos gentis dominam tudo; Extremosa nação, tu, que idolatras Ténue cópia do céo na formosura; Que elevas quasi além da Natureza Os dous affectos em que os mais se absorvem : Que tens no coração, que tens na idéa Presos em laço de ouro Amor, e a Gloria; Que, seutindo o que o mundo apenas sente, Choras no damno alheio o próprio damno. Nas fraquezas de um vês as de todos, Reconheces que amor é quasi um fado, Um fado universal, que arrasta, e força À loucura, á desgraça, ao precipício; Que é despótico Amor, e o mundo escravo; Que este império fatal não tem rebeldes, Que a suberba Razão succumbe ao jugo,

92 OBRAS DE BOCAGE

E ás vezes (oh cegueira!) o jugo adora: Extremosa naçfio ! No grande objev^io Emprega mudamente os olhos d'ahna; E tão digno de ti, quam variado De radioso matiz: verás que esmalte^ ^ue preço, que attracção, que luz conff-re A belleza exterior moral belleza; Por entre desatinos da vontade. Tumultos da paixão, sem lei, sem freio, Por entre confusões, por entre sombras. Que do cego amador o acordo enlutam, Verás como florece, illesa, intacta, A suave innocencia, inda mais beila Se em lide poríiosa obteve a palma.

Virtude os meios ama, odêa extremos, Extremos são no mundo ou erro, ou culpa: Do mesmo que abrilhanta a humanidade Longe, longe, oh mortaes, o injusto excesso I

Dramáticas acções tem por alvo O proveito commum: sarar costumes Quando enfermos estão; com riso, ou choro. Com brandura, ou terror, fazer que brilhe, Que triumphe a moral: d'aqui se colhe Lição profícua, prestadío exemplo. A escola da verdade está na scena, E tão pasmoso effeito ás vezes brota, Que a virtude se aprende até no vicio.

ELOGIOS 93

23

Para servir de «prologo)) ao drama «Nuno Alvares Pereira))

(Representado no theatro da rua dos Condes, no auno de 1801)

Varão digno de Lysia, ou Roma, ou Grécia, (Quando Grécia existiu, quando houve Roma); Alta planta de reis, até dos mesmos Que, mortaes na essência, o Tejo adora; Pereira, aos seus, e a si pavez tremendo, A dragos, a leões Alcides novo, Vivo na tradição, na historia vivo; Aquelle, a cujo ferro, a cujo raio Da intriga, da traição caíram monstros, E rotas no alicerce, e derrocadas. As torres da ambição, do orgulho as torres; Aquelle, que, insoffrido a jugo extranho, Foi base onde João manteve o sólio. Que aposta durações co'a eternidade: Nuno, o maior talvez dos lusos Martes, Que á publica razão, que ao bem da pátria Deu sangue, deu suor, deu i)ensamentos; Qae, surdo á natureza, em gloria absorto,

94 OBRAS DE BOCAGE

No peito aniquilou privado affecto, E, de louros sombria a fronte excelsa, Fatigadas por elle as tubas cento. Em sagrado retiro ergueu da terra (Cá d'entre os reis de pouco ao rei de tudo) A mente, digna da immensa Idéa; lUusões expulsou, despiu phantasmas, Achou verdade o homem, sonho o grande: Eis o que hoje na scena, honrando-a, surge^ Aos lusos explendor, saudade, exemplo; Semente, que expelliu milhões de assombros Na edade em que medrou, nas que a seguiram.

Mas não somente, oh pátria, o claro objecto Te domine a attenção, te chame os olhos: Se abala os corações caracter grande, Infausta condição quem não commove?

A Musa em que apparece o gran Pereira, Negramente fadada, urdiu nas sombras Difficil têa, que palpava incerta; Do miserando auctor nos olhos tristes Eterna escuridão pousou mais cedo. Nos abysmos da morte, á luz sumido. Fervendo em sancto amor, que as leis arreigam. Colhe entre espinhos de árida existência Fructos de gloria com que brinde a pátria, Propicio nome, que lhe ameigue os fados.

Que direito ao louvor! Que jus ao pranto I Chora seu fado, oh Lysia, honra seu nome.

ELOGIOS 95

24

Fragmento

Para se recitar no theatro, por occasião de regosijo publico (Anno de 1805)

Na vasta perspectiva encantadora Se embebe o coração, se embebe a mente: Oh pae da Natureza, eterno, immenso, Este império proteje, onde a virtude Erguida sobre o throno á sombra tua O templo social reforça, estêa, Manda que a paz celeste, e seus encantoa Em luminoso grupo abrindo as auras, Baixem de Lysia novamente ao seio. Ferva nos corações, nos olhos ferva A ternura, esse bera por ti creado, Para se consolar, e ornar-se o mundo: Maravilhas de um Deus um Deus amime: E do teu doce amor João thesouro, Não ouse negro véo nublar-lhe os dias; Qual é seu coração seus dias sejam Lustrosos, firmes, transparentes, puros: Eterniza das leis o ardor saorrado

96 OBRAS DE BOCAGE

D'ellas escudo, consistência d'ellas,

E o sol, reflexo teu, jamais aviste

Da tumba occidental ao berço Eôo

Virtude, que a João no throno eguale,

Grandeza, que deslumbre a pátria minha !

Ah! Que em chusma, em tropel me estão surgindo

Sentimentos fieis, delicias d 'alma;

Eia, soccorre a voz tremente, incerta,

E em hymnos soe o cordeal transporte.

(Cantam,)

ELOGIOS 97

25

Fragmento de um prologo, para se recitar 110 theatro

(Anno de 1805)

Hoje surge ante vós, congresso illustre, A Musa, que fatal, que desgrenhada, Rege scenas de horror, scenas de sangue: Que nas cruentas m<ãos, nos olhos feros Traz desesperação, punhaes, venenos; Que as eras tenebrosas invadindo, Entrando por montões d'edades mortas, Co'a vigorosa mão revolve as cinzas, Tyrannos arrebata, heróes arranca Ao silencio do nada, ao somno eterno. Colhe d'entre os annaes do antigo mundo Feias paixões, catastrophes medonhas. Virtudes, vicios, a innocencia, o crime; Colhe os males d'então, e os males de hoje, Esses, que a Natureza envenenaram, Esses, que a Natureza inda envenenam.

7

98 OBRAS DE BOCAGE

Devorante Ambição tragando impérios^

A Discórdia brutal desfeita em raios,

Eubras ondas fervendo em tomo d*ella;

Politica feroz as leis calcando,

Negra Perfídia vaporando infernos;

Da razão, da vontade Amor dispondo,

N'uns olhos, n'nm desdém, n'iim ai, n'iim riso !

ELOGIOS 99

26

Offerecido ao juiz e mais festeiros de Nossa Senhora da Graça da Oarnota

Doce filha do céo, doce harmonia ! Ao seio dos mortaes ás vezes desces, E qual rutilas na mansão dos numes. Sobre a terrena estancia resplandeces: . Principio da união, que liga os entes, E que n'um paiz o mundo troca, Honra meus lábios de teus sons divinos, Anima o vate, cuja voz te invoca.

Celeste commoção, virtude augusta. Sagrado zelo, singular piedade, Conduz almas fieis a que celebrem Solemne culto á summa divindade.

Dos gratos corações escandecidos Nos extasis subindo os hymnos soam, E os incensos, que o céo paga em sorrisos. Purificando a terra, aos astros voam.

100' OBRAS DE BOCAGE

Prole da immensa luz, porções do Eterno, As harpas de ouro modulando afinam, E os olhos, onde o nume reverbera, Sobre a terrestre pia turba inclinam.

Es da etherea attenção primário objecto, Tu, que presides ao fervor sagrado, Tu, magnânimo Silva, em cujo peito O caracter da gloria está gravado:

B tu, de malfadados meigo asylo, Tu, moral copia d'elle, amável Serva, A quem na eternidade um gráo sublime Entre os amigos do homem se reserva;

E vós, eguaes na fé, no ardor, no extremo Aos dous egrégios peitos, que decanto, Viannas, e os demais, em quem se apura De homens, e numes o commercio sancto;

Não menos vós, metades carinhosas Dos ânimos gentis, que entrego á lyra, Não menos mereceis, esposas bellas, As honrosas canções, que Phebo inspira.

Exercitae, cumpri, christãos ferventes, A fé, que os corações vos afoguêa; Tereis o galardão sobre as estrellas; O que a terra edifica, o céo premêa.

A CONCÓRDIA

DRAMA PARA MCSICA, EM UM ACTO

Dedicado aos annos da illustrissima senhora D. Anna Joaquina Cardoso Accioli, natural da Bahia

S' asconcla Amor n^ella mia cetras e dia Sol concenti d' Amor la Musa mia. Metast. Epithal.

ACTOREiS

Amor. Vénus. A fortuna.

Coro dos Amores e das Graças. Génios alados,

que acompanham a Fortuna

A scena se figura em um bosque aprazível.

SCENA I Amor e os Amores

CORO

Oh séculos formosoSj De cândidos costumes Em vós mortaes, e nume.s O jubilo egualou.

102 OBRAS DE BOCAGE

AMOR

Que encanto, que alegria, Graça, esplendor, pureza Na infante Natureza, Em todo o ser, brilhou !

Então do tenro mundo A superfície amena Descendo a Paz serena, A terra em céo tornou.

CORO

Oh séculos formosos, &c.

AMOR

o sol, então recente na recente esphera, De assidua primavera brenhas esmaltou.

As ondas preguiçosas A espaços desmanchando, O mar fagueiro, e brando N'arêa então brincou.

CORO

Oh séculos, &c.

DRAMAS ALLEGORICOS 103

AMOR

A um tempo ali se viram O fructo, e flor pendentes; Em límpidas correntes O néctar murmurou.

Em vós, oh almos dias, Amor era um thesouro; Em vós, oh dias de ouro, Tudo sentiu, e amou.

CORO

Oh séculos, &c.

AMOR

Ah que saudade eterna Turvara ao mundo a face, Se o Fado a Amor negasse O bem, que lhe outorgou I

Dos dous ao rogo, ao mando, Do somno em que jazia Surgiu celeste dia, -E a Natureza ornou.

CORO

Oh séculos, &c.

104 OBRAS DE BOCAGE

AMOR

Um dia em que mais leda A rara nuvem cora, E vem trajando a Aurora Galas, que nunca usou:

Um dia em que tão bella, Ou mais do que Acidalia, Nascendo a meiga Analia O império meu firmou.

CORO

Oh séculos, &c.

AMOR

Alados sócios meus, fervente origem

Do jubilo supremo,

Que as delicias do Olympo a Jove apura; .

Numes do coração, reis do universo,

Amores, elle em nós hoje prospera;

Hoje da fonte de immortaes luzeiros

De novo emana um dia,

Que exalte, que remoce a natureza.

Salve, natal de Analia,

Salve, luz, com que Aurora

Mais que de tantas mil se ensuberbece !

DRAMAS ALLEGORICOS 105

Quando apontou vaidosa a vez primeira

Na de purpura, e de ouro

Ténue, bordada nuvem,

Que aljôfares entorna.

Não tinha o brilho, a cor de que se adorna.

Eis os campos de Amor, eis os meus campos,^^

Áureo terreno amigo,

Por quem Paphos enjeito, enjeito Idalia:

Áureo terreno amigo.

Onde mais que mortal parece o gosto,

Onde embalsama os ares,

Onde serena os rios.

viço, matiz, mimo ás flores

A salutar, fragrante

Respiração de Analia.

Analia, meu thesouro, e vosso encanto,

Merece a Amor, aos céos, aos Fados tanto.

ARIA

Verdes bosques, viçosas campinas, Dos Amores suave morada. Onde Analia mimosa, engraçada. Qual a rosa louçã germinou :

Recamae-vos de tenras boninas, Com que brinque Favonio ligeiro, Que este dia, dos seus o primeiro, Dos prazeres nas azas voltou.

106 OBRAS DE BOCAGE

SCENA II

Os Amores e a Fortuna^ que desce rapidamente em um gloho, ladeada de Génios

AMOR

Porém aos olhos meus que objecto assoma 1 Es tu, deusa fallaz, és tu, Fortuna, De phantasticos bens depositaria, Tantas vezes, ou sempre a Amor contraria?

FORTUNA

Sou eu, menino audaz, sou eu, que ufana lio dia mais credor ás graças minhas, Entre os mil Génios que meu globo enfeitam. Venho sobre estes campos deleitosos Ratificar-lhe as ditas,

Ditas, que, em honra á minha Sôce alumna, Em honra á bella Analia, Soltas das leis do tempo aqui florecem.

DKAMAS ALLEGORICOS 107

Pasmas, insano Amor, do que a Fortuna,

Cujas glorias motejas,

Mais brilhantes, mais sólidas que as tuas.

Baixe ao feliz terreno,

Onde raro penhor da Natureza,

Mortal quasi divina

Em dobro com meus dons, com meus afagos

Triumpha, resplandece?

Mais que a ti me pertence honrar seu dia,

Desdiz muito da minha a essência tua,

E de outro gráo meu nume.

O respeito, o prazer, bastões, e os sceptros

São dadivas, são mimos

D'esta mão bemfazeja,

D 'esta mão, que á de Jove apenas cede.

Com ella o mundo antigo, o novo mundo,

(Que, productor de Analia,

Sobresáe ao primeiro)

Com ella quanto existe abranjo, illustro.

E tu de vãos deleites.

Ou mortaes dissabores

Frivolo auctor, e venenosa origem.

De que os mesmos favores

Ao que os possue affligem,

Tu, que duros farpões atraiçoados

Ás molles almas, de que és deus, apontas,

Assim com voz proterva, assim me affrontas?

108 OBRAS DE BOCAGE

ÁRIA

Queres, menino insano, Oppôr-te ás leis do Fado ! De meu poder sagrado Teu nume é vão rival. Senhoreava os entes Tua influencia outr'hora. Mas o meu sceptro agora E sceptro universal.

AMOR

Debalde, varia deusa, to glorias Co'as dadivas, que choves sobre o mundo, Frágeis, caducos bens, que o vulgo anhela, Do vicio vezes mil, e raras vezes^ Da virtude instrumentos. Analia encantadora. Alma brilhante no favor não cega D'essa mão, que nomêas bemfeitora. Thesouros de candura, e de belleza, Seus lúcidos costumes Tem doce origem na moral dos numes: Pensas acaso que teus dons seriam Capazes de atear não puro aífectQ No consorte preclaro,

DRAMAS ALLEGORICOS 109

A quem protege Amor, Minerva escuda ?

Esse, que em laços de ouro unido á bella,

O néctar gosta nos encantos d'ella?

Muito se deve a mim, tudo a seus olhos,

Da gloria que remata os meus triumphos

Agentes milagrosos.

Attréve-se a Fortuna a ter-me em pouco?

Entre as classes divinas

Presumes q\ie teu gráo me sobr'eleva?

Eu sou pura nascente,

Manancial perenne

D'alta harmonia, universal, e eterna;

Sem mim ao mar, á terra, até aos deuses

Pezo insoffrivel a existência fora;

Por mim na immensidade, errantes, fixos.

Milhões scintillam de assombrosos mundos;

Por mim no seio das equóreas lapas

Ardem, cubicam, reproduzem, crescem

Os mudos nadadores.

Eu sou, que ás varias, enramadas plantas

Dou alma, dou fragrância, flores, fructos;

Sou eu, que aos bravos tigres,

Aos jubados leões converto as iras

Em rugido amoroso.

Por mim, tu, rola, arrulas,

Geme a tenra, innocente, ingénua pomba;

Por mim subsiste, annexo á formosura,

Principio inexhaurivel de ternura.

110 OBRAS DE BOCAGE

ÁRIA

Por Amor conseguem vida Homens, peixes, aves, flores; Do céo cabe aos moradores Rir da morte, Mas por sorte Também meus escravos são.

Analia branda, e bella, Que os encanta, que os desvela, pendeu da minha mão.

FORTUNA

Tu, que ostentas de rei da natureza^ Que sacrilego arrogas no arbitrio de Jove império summo, E crês que a teus virotes Cede o raio, o pregão da omnipotência^ Rende graças ao dia Em que Analia mimosa Dispoz o orgulho meu para a brandura. Se não fora este indulto, Se o momento dourado este não fôra Em que serena abrindo Os olhos divinaes á luz primeira, Em vez de brando choro.

DRAMAS ALLEGORICOS 111

Soltou sorriso brando, B ser dos astros vinda Mostrou na face linda, Fizera. . .

AMOR

Que fizeras, que attentaras. Caprichosa deidade, Contra mais que celeste immunidade?

FORTUNA

Toda a tua altivez por mim repulsa, Opprobrio teu seria: Em quadro viras de aíFrontosas cores Tens males, teus perjúrios; Pranto, e sangue por ti fervendo em rios; A Suspeita rugosa

Perdida entre illusões, entre phantasmas, Sombras palpando, e crendo; Viras queixosas, pallidas Saudades, fitos sobre a terra os turvos lumes, vãmente alongados Para climas ditosos, onde os gostos. Os bens do coração Ibe some a Ausência; Viras sobre vulcão de flamma eterna, Respirando traições, venenos, fúrias, De viboras mordidos,

112 OBRAS DE BOCAGE

E, víboras mordendo,

Os Ciúmes, a peste, a morte d'alma;

Viras . . . mas este dia é sacro a todos,

N'elle até entre nós concórdia reine.

N'outro, aos céos menos grato,

Menos grato á Ventura, á Natureza,

Confessarás, dobrando

Ao pezo da verdade insânia altiva.

Que o reforço, a columna,

A base do universo é a Fortuna.

ARIA

Os bens, se alguns crias Com tua influencia, Eguaes são na essência, Eguaes no prazer.

Os dons, que derramo Com plácido rosto, Differem no gosto, DiíFerem no ser.

AMOR

Da lívida suspeita, e vil perjúrio. Da traição, da inconstância, e da saudade. Do pranto, e do queixume, Do rábido ciúme.

DRAMAS ALLEGORICOS 113

Inferno de apurados amadores,

Falias, oh deusa injusta,

Como se fossem meus cruéis ministros,

Cruéis sequazes meus! Não consideras

Que o bando horrível de tão negros males.

Que de Júpiter mesmo azeda instantes,

Prole não é de Amor, sim dos amantes?

Damnos sem conto, que aos mortaes fulminas.

Onde estão, fraudulosa? Onde se occultam

De raio vingador, que Analia vibra

Dos olhos fulgurantes.

Os companheiros teus, iniqua turba ?

Onde enfunado Orgulho?

Veladora Ambição ? Mirrada Inveja ?

Onde inerte Preguiça,

Que as almas adormenta

D'esses que amimas, d'esses que te adoram?

Ah I Se não fora d'este dia ameno

A gloria, o fasto, o resplendor, e a gala,

Que ethereo lustre eguala,

Talvez, volúvel deusa.

Talvez tuas pizadas não seguissem

Beneficência, Gloria,

O Jubilo, a Brandura,

Mais, mais sócios de Amor que da Ventura.

114 OBRAS TE r.OÒÁGJH

ÁRIA

Quando á Virtude Ventura é presa, Torna a belleza Maia singular:

Que por si mesiíKi Não é Ventura Arte segura Para enlevar.

Mas ah! Benigna mãe, tu, que em teu gí^étnio^

De flores, e delicias enfeitado,

Oommigo a linda infância acalentaste

De Analia melindrosa,

Descuidas-te em seu dia,

Dia das Grraças, dia dos Amores,

Descuidas-te de ornar com teus sorrisos,

Com tua voz divina

O solemne fervor, que tudo iriflamma !

Eia, apressa-te, oh mãe ! . . . Com vivo ad^*o

Dirige aqui, dirige

Das pombas amorosas

O niveo par gentil, que enfrêam rosas.

DRAMAS ALLEGORICOS 115

SCENA ULTIMA

Desce Vemis em um carro tirado por pombas^ entre as Graças j os Risos j os Encantos j etc,

VÉNUS

Socega, filho meu; não foi descuido

Minha longa tardança,

Antes cuidado, que de Analia bella

Me deve o genial, brilhante dia:

Era digno de mim, de Jove, e d'eHa

Findar tenaz porfia,

Antiga opposição, fatal discórdia

Entre Amor, e a Fortuna.

Attraídos vontade, e pensamento

A tão prestante objecto,

Na concha matizada os céos demando.

Entro de Jove os paços,

E ante a face immortal, com brandas preces

Extraio á mão suprema

Alto decreto, que a Fortuna obriga

A sef-te sócia, oh filho, a ser-te amiga.

Em sacrifício terno

Aquella por quem és maior, mais nume

Que por tantas, e tantas

Com que o Tamise, o Tejo, o Tibre, o Sena

Sussurram de ufania:

116 OBRAS DE BOCAGE

Oh que séculos vale a Amor seu dia I

Aprouve, apraz aos fados

Que de Analia se esquivem Tempo, e Morte.

Em seus dotes absorta

Razão me inspira que espontânea Vénus

O cinto vencedor a Analia ceda,

E altar, e incenso, e culto.

Vamos, Fortuna, Amor, Encantos, Graças,

Da nova deusa aos lares,

De áureas Virtudes templo.

Cantar seus dons, seu nome : eu dou o exemplo.

CORO

Acorde melodia Voe, enfeitice os ares, ' E os magestosos lares Soem prazer, e amor.

VENTJS

Tu sempre a elle unida. Junto de Analia bella, Gosa nos olhos d'ella O olympico fulgor.

DRAMAS ALLEGOKICOS 117

AMOR

Analia, que, sorrindo, De corações se apossa, ~ E mais que imagem nossa Na graça, no esplendor.

FORTUNA

Nada possue a terra. Que a tanto bem se eguale: Os meus thesouros vale Seu minimo favor.

CORO

Acorde melodia Voe, enfeitice os ares, E os magestosos lares, Soem prazer, e amor.

A VIRTUDE LAUREADA

DSAMA PARA MUSICA, EM UM ACTO

Hepresentado no theatro do Salitre, no anno de 1805

Nuda... occurritj per se pulcTierrima, Virtus. Cardos. Cant. de Tripol.

ACTORES

A SciENCiA. A Hospitalidade. A Indigência. A Policia., A Libebtinagem. O Génio Lusitano.

Logar da acena; Praça magnifica sobre aa margens do Tejo.

SCENA I

A ^ciência por um lado e a Indigência por outro com a Hospitalidade

SCIENCIA

Eu, que elevo os mortaes, e os esclareço; Que meço a lua, o sol, que o mundo abranjo; Que da vetusta edade aclafo as sombras; Que entro por seus arcanos, e revóco

120 OBKAS DE BOOAGE

D'entre o pó, d'entre a cinza, d'entre o Nada

Ao século vivente as eras mortas;

Que dócil fiz o indómito Oceano,

Abysmo de pavor, de bojo immenso,

Que por alta lei não sorve a Terra;

Eu, do gran Jove, confidente e imagem.

Que do Fado os mysterios desarraigo

E co'a moral dos céos cultivo o globo;

Eu, a Sciencia, eu fonte, eu mãe das Artes,

Que sei desirmanar na intelligencia

Entes, na forma eguaes, na espécie os mesmos,

Tornando-os entre si tão desconformes.

Qual dista do selvagem bruto e fero.

Macio cidadão, que as leis puliram :

Ah ! não posso impetrar, colher dos numes

Para os alamnos meus pavez sagrado

A teus golpes, Fortuna, inteiro, illeso !

Sem que benigna mão lhe adoce os fados.

Sem que escassa piedade o chame á vida,

De vigílias mirrado o sábio morre.

Almas corrompe do egoismo a peste;

Camões, Homeros na penúria cantam:

Eil-os co'a gloria temperando a sorte;

Soam prodígios de um, prodígios de outro;

Férrea caterva os ouve: admira, e foge.

quando o vate é cinza, o muito é nada,

Por elles se interessa o mundo ingrato;

Na gloria estéril de epitaphio triste

DRAMAS ALLEGORICOS 121

Sólidos bens o bárbaro compensa:

Contradictoria humanidade insana!

No insensivel sepulchro os sábios honra,

E os sábios não remiu na desventura!

Quaes elles foram diz, não diz qual fora:

Nas almas frias o remorso é mudo.

Ai dos alumnos meus ! Soccorre-os, Fado,

Risca do livro eterno o duro artigo,

Que ao mérito, ao saber seus prémios veda;

Aquece os corações no ardor da gloria,

Fraternisa os mortaes, onde suspiram.

Os poucos filhos meus co'a mãe prosperem;,

E onde com seus innumeros sequazes

Colhe triumphos, a Ignorância gema.

INDIGÊNCIA

Mãe venerável, teu queixume ouvindo,

Amarga-me da vida o fel em dobro.

A filha tua, a misera Indigência,

Que muda te escutou piedosas magoas,

Comtigo vem gemer, carpir comtigo

A moral corrupção, que empesta o globo.

Plagas e plagas entro as sócias minhas,

Entre as mansas Virtudes hei vagado.

Pela voz da Pureza (a que é de todas

A mais formosa) deprequei o auxilio

De inchado cortezão, que um deus se cria.

122 OBRAS DB BOCAGE

Melindre, candidez, virginea graça (Qual flor, em que era orvalho o doce pranto) Aos olhos do suberbo expoz seus males. De gesto accezo, ovante elle a contempla, Nem um momento á dor constrange o vicio; Em vil proposição, que as fúrias dictam, Profana da Innocencia o casto ouvido, E em cambio da virtude exigo o crime.

SCIENCIA

Céos ! Que infâmia ! Que horror ! Prosegue, oh filha, Succumbiu a Innocencia á vil proposta?

INDIGÊNCIA

Não, que nos olhos meus velavam deuses,

Fautores da virtude ; escuta, e folga,

O celeste rubor, que tinge a Aurora,

Sobe á face gentil, e as rosas brilham ;

Mas súbito tremor branquêa-o logo,

Eil-a, de olhos no céo, e geme;

Eu porém, que no eíFeito observo a causa,

Ao seductor pestífero arrebato

O objecto divinal, que o torna um monstro.

DRAMAS ALLÉGORICOS 123

SCmNCIA

Olha o céo na Innocencia a imagem sua.

INDIGÊNCIA

Murchas no horror do abominável caso, Inda comtudo as esperanças minhas Levei de lar em lar, devendo a poucos Piedade accidental ; bati cem vezes Ás surdas portas de sumido avaro, (Sumido em subterrâneo abysmo d'ouro). Fallára o monstro, se fallasse a morte: O silencio dos túmulos o abrange, Ante o metal (seu deus) que em férreos cofres Co'a vista famulenta o vil devora ; Servos d'ello (o poder é tal do exemplo !) Depois de longo espaço, e vans instancias, Co'um desabrido «Não» me aífugentaram.

' SCIENCIA

De tudo ha monstros mil na espécie humana ; Mas todos vence da Avareza o monstro.

124 OBRAS DE BOCAGE

INDIGÊNCIA

Attende ao mais, e adoçarás teu pranto. Do centro da Impiedade em fim retiro Os fatigados pés, e os dirijo aos campos, Absorta nas imagens carinhosas, Com que afagaes a idéa, oh áureos tempos I

SCIENCIA

Se ali não ha virtude, onde é que existe?

INDIGÊNCIA

Pobre choupana, que forravam colmos, Humildes lares, que zelava um nume, Attráem meus olhos, e meu passo animam. Chego, e curvo ancião, que ali repousa, Grande em seu nada, na indigência rico, Sorrindo-se me acolhe, amima, e nutre. Santa Hospitalidade ! Eras a deusa, Que o rugoso varão, madura esposa E imberbe prole sua abençoava ! Com milagrosas mãos os parcos fructos Nas arvores fadadas avultando. Para os errantes, pallidos, mesquinhos.

DRAMAS ALLEGORICOS 125

Qne eterna Providencia dirige,

Leda colhias saboroso alento;

E qual outr'liora a iim Deus, incluso no homem,

Muito do pouco a teu querer surgia.

HOSPITALIDADE

Oonferiu-me esse dom quem no insecto Provê, do que lhe cumpre, á ténue vida. Deixando influxos meus no casto alvergue Onde Beneficência, e Paz convivem, Acompanhar-te quiz ao vasto empório De Lysia, do universo, á gran cidade, Que espelha os torreões no vitreo Tejo, D'onde sagradas leis despede ao Ganges. O globo é puro aqui, e aqui parece Estar inda na infância a Natureza, Bella, serena, cândida, innocente; Príncipe amado, imitador dos numes. Ao publico baixel menêa o leme; Numera os dias seus por dons, por graças, E o mérito sem susto encara o throno: Se o gravame do sceptro acaso inclina, E sobre os hombros de ministros puros. Dignos do alto explendor, que sáe da escolha. Um d'elles, cujo nome é caro aos justos, Que tem, que exerce o ministério sancto De velar sobre o publico repouso;

126 OBRAS DE BOCAOE

Que encarcera; agrilhoa, opprime o vicio,

O contagio dos maus aos bons evita,

E em piedoso recinto abriga, instrue

A puericia, que em flor dispõe ao fructo:

Luceno, o zelador dos sãos costumes,

Páe do infortúnio, da sciencia amigo,

Guarida vos promette: exponde, exponde

Ao ministro exemplar, meu claro alumno,

A vossa condição: vereis descer-lhe

Dos olhos paternaes amável pranto.

Proveitoso, efficaz, não pranto estéril,

Que momentâneas sensações produzem,

E o mérito infeliz, qual viram, deixam.

Em Luceno o favor segue a piedade;

Mortal, que os immortaes sem custo imita,

E o bem, porque é bem, desenha, opera.

Eia, vinde ; eu vos guio aos bemfazejos

Lares seus, lares meus : sereis ditosos,

Oh Sciencia! Oh Penúria I Os céos o,^ordenam»

SCENA II

O Génio da Nação e as mesmas

GÉNIO

Os céos o ordenam^ sim; vae, guia, oh deusa^

Essa illustre infeliz, e a mesta prole

Ao magistrado eximio, ao grande, ao justo ;

DRAMAS ALLEGORICOS 127

Cessem queixumes, esperanças folguem. Ide; o Génio de Lysia, eu que dos deuses Tive alta cora missão de olhar por ella, De engrandecer-lhe, de aíRnar-lhe a gloria^ B honral-a de opulência incorruptível; Eu, que espontâneo dera o gráo de nume Por este, que exercito, augusto emprego De escudar Lysia c'o pavez dos Fados, Oh Penúria I oh Sciencia ! Eu vos abono Do ministro sem par, favor, e asylo.

SCIENCIA

O céo por ti se exprime: o céo não mente; Oráculo de Jove, eu te obedeço: Vejo sorrir-se ao longe amigos Fados; Guia-me, oh deusa.

HOSPITALIDADE

Guio-te á ventura.

SCENA III

O Génio

Tereis o galardão, tereis o louro, Que á virtude compete, immota, illesa Entre os duros vaivéns de iniqua sortir

128 OBRAS DE BOCAGE

Desgraçado o mortal, se o chão não trilha

Por onde a mão de Jove arreiga espinhos,

Que súbito depois converte em flores!. .

Mas que ufano baixel retalha o Tejo ! (1)

Brincam no tope flammulas cambiantes,

E cambiante bandeira as ondas varre! '

Eis voa, eis se approxima!. . . Um quasi monstro.

De aspecto feminil, tigrinas garras,

De traje multicor, lhe volve o leme !

Que turba enorme á sua voz marêa,

E o ferro curvo, e negro ao fundo arroja!

Desce a vaso menor a horrivel Fúria,

Reconheço-lhe o rosto, os fins lhe alcanço . . .

vem, toca sobre a arêa e salta.

Inimiga dos céos! (2) Es tu, profana!

Sacrílega, fallaz, blasphemadora.

Peste dos corações, órgão do A verno !

Vens também macular com teus venenos.

Com hálito infernal, e atroz systema

Campos, que meu bafejo elysios torna !

LIBERTINAGEM

Órgão não sou do Averno, o Averno é sonho (3)

(1) Apparece um baixel, d'ondé pouco depois desem- barca a Libertinagem com séquito numeroso.

(2) Corre para ella.

(3) Sentimentos abominosos da Libertinagem, refu- tados vigorosamente pelo Génio da Nação.

k

DRAMAS ALLEGORICOS 12^

Para mim, para os meus; não soíFro o jugo,

Que sobre corações tão férreo péza.

Phantasticos deveres não me illudem;

O sensÍTel me attráe, do ideal não curo,

de palpáveis bens fecundo a mente ;

O bandoj que allicío, e que prospero,

Vive em prazeres, em prazeres morre.

Compleição dos Catões, moral de ferro.

Fúria, Libertinagem me nomêa;

Mas o caracter meu destróe meu nome.

Delicias ao teu seio, oh Lysia, trago,

Não cruas oppressões, nem agros males,

Que o phantasma Razão produz, machína;

Eu sou a Natureza: ella não manda.

Que o gosto opprimas, que os desejos torças; .

As paixões contentar, não é loucura:

Prestar-lhes attenção, vontade, assenso,

E lei, necessidade, e jus dos entes.

Olha: com sceptro de ouro impero, oh Lysia;

Franquêa o pensamento a meu sjstema,

Despe imagens chimericas, e approva

Que a posse do universo em ti remate.

GÉNIO

Enganas-te, perversa, os céos a escudam; De Lysia puro incenso aos numes sobe, Arde em virtude, ioflamma-se na gloria;

130 OBRAS DE BOCAGE

Moral^ religião, saudável jugo, Que péza aos ímpios, que aos iníquos péza, Nunca foi grave a Ljsia; heróe supremo, Que é na terra o que é Júpiter no Oljmpo, Aqui, não com violência, e não com arte, Mas pelo exemplo morigéra os lusos, menos que as deidades venturosos. Não manches estes céos, tartáreo monstro, Não corrompam teus pés o são terreno, Onde jaz da Virtude o trilho impresso. Ecco da magestade, a voz te aterre Do zeloso ministro infatigável, Luceno, ao throno, ás leis, aos deuses curvo, Que, em vinculo fraterno atando os povos, Os curvos ao throno, ás leis, aos deuses. Negreja, a teu pezar, o horror, que douras, O inferno, que não crês, de ti fumega, E o remorso tenaz te róe por dentro. Este povo de heróes, de irmãos, de justos. Teu caracter maldiz, teu nome odêa. Aparta-te d'aqui . . . mas tu repugnas ! Guerreiros da Virtude, e flor da pátria, (1) Que limpaes a Moral de intrusa escória. Eia, apurae o ardor contra esse monstro; A vosso invicto exforço a Fúria ceda, Do grémio da Innocencia o Vicio fuja.

(1) Sáe tropa armada, que trava peleja com os se- quazes da Libertinagem, e os vae destroçando.

DRAMAS ALLEGOJ^ICOS 131

LIBERTINAGEM

Não se alcança de mim victoría fácil.

GÉNIO

Satélites da Gloria! Avante, avante! A pérfida fraquêa, a palma é vossa.

LIBERTINAGEM

Colheste contra mim triumpho inútil: Lysia perdi^ mas senhoreio o mundo. (1)

SCENA IV ^ O Génio e Trompa

GÉNIO

Graças, oh numes, succumbiu a infame ! Heróes, eu vos bemdi^o o mareio fogo, O rápido valor, que n'um momento

(1) Embarcam-se tumultuosamente, sempre accossa- dos pela tropa.

132 OBRAS DE BOCAGE

A melhor das nações salvou do estrago. . . (1)

Mas, deuses, soífrereis que n'outro clima,

Talvez á infâmia sua ignoto ainda,

Sobre o lenho orgulhoso aporte a iPéra,

E toxico respire, e peste oxhale!

O socrilegio pune: um raio, oh Jove,

Um raio a torne cinza, um raio abysme

O ligneo torreão no equoreo centro! . . . (2)

Annuiste-me, oh deus! E chammas todo!

cáe, se desfaz, e o Tejo o sorve!

Vae, monstro, vae saber, desesperado,

Se é phantasma a razão, se é sonho o inferno.

Vae no horrendo tropel dos teus sequazes

De momentânea flamma á flamma eterna;

E eu, ministro dos céos, submisso aos Fados,

Vou por mão de um mortal encher seus planos.

(1) Vae-se a Tropa.

(2) Cáe o raio sobre o baixel da Libertinagem, e o abraza.

DKAMAS ALLEGORICOS 133

SCENA V

(Cárcere subterrâneo, onde estarão os Yicios e os Crimes agrilhoados, exprimindo variamente nos gestos a sua desesperação.)

A Policia com Guardas

POLICIA

Contra os vicios communs, que pouco empecem.

Exercer correcções não me é dado.

Velae, guardas fieis, sobre os perversos,

Que a Policia commette ao zelo vosso,

Até que o raio Némesis dispare

Co'a férrea voz de tribunal supremo.

Eu dos crimes terror, dos crimes freio,

A supplicio exemplar, que sare a pátria

D'impia contagião, reservo aquelle

De todos o mais duro, o mais funesto,

Que, instrumento servil de atroz vingança.

Tingiu vendida mão no sangue alheio.

Ao cutelo de Astréa em vão furtaste

Colo rebelde ás leis, oh tu, cruento

Lobo nocturno, que, vibrando as garras,

A mansos cidadãos ouro, existência

De mixtura usurpavas, sem que ao menos

Tremesse o coração, e as mãos tremessem.

134 OBRAS DE BOCAGE

Estes, mais que nenhuns, velar se devem, Estes nas feias, subterrâneas sombras Para o pavor da morte a mente ensaiem. Eu, luz do bom Luceno, eu alma, eu tudo, Corro entretanto, a suggerir-lhe idéas, Com que os públicos bens floreçam, medrem. A Sciencia, e Penúria, antigas sócias, Em seus lares por elle ha pouco ouvidas, O fértil patrocinio lhe imploraram. Em lagrimas lhes deu penhor singelo De firme protecção : vós, indigentes, Seus efíeitos vereis, vereis, oh sábios. Que a mente, è o coração por vós divido.

SOENA VI

(Salão magestoso da Policia, adornado das estatuas de varias virtudes.)

O Génio e a Hospitalidade

aENIO

Eis-me na estancia da Policia augusta. Cultora da razão, das leis, do sólio. A titubante, a pávida Indigência, Que dos niales seus allivio gosa.

DRAMAS ALLEGORICOS 135

Por mão do bemfeitor, que os céos inspiram, Yem co'a Sabedoria honrar seu nome, De interna gratidão sagrar-lhe os cultos; Mas profundo respeito os pés lhe tolhe, E o salão venerando entrar não ousam.

SCENA ULTIMA

Os ditos e a Policia^ que, ouvindo as ultimas palavras j sáe de repente

POLICIA

Foi sempre este logar franco á virtude, Entrae. (1)

HOSPITALIDADE

Longe de vós um vão receio.

POLICIA

Cumpri vosso dever, tecei contentes De Lucéuo o louvor. Matéria summa As virtudes vos dão, que resplandecem Em brilhantes estatuas magestosas .!N'este brilhante, magestoso alcaçar.

(1) Entram as duas.

136 OBRAS DE BOCAGE

Aquella, que risonlia os ollios firma,

Como que rosto supplice attentando,

E a Benevolência, e diz no afago,

Que alguns, havendo a honra em mais que os lucros,.

Ante duro ministro enfrêam preces,

E do compassivo, e do afFavel

A presença demandam, que os conforte.

Que ao rogo n'um sorriso o effeito augure,

E não de altiva injuria avilte o rogo.

Esta é o Exemplo, esfcutra é a Inteireza;

Ali Fidelidade o jaspe anima;

Desinteresse alóm reluz, e avulta;

Mais perto voluntária Obediência

Curva o dócil joelho: eis as Virtudes,

Que formam, bom Luceno, o teu caracter,

Todas egrégias, necessárias todas.

SCIENCIA

Verdade, e Gratidão nos lábios nossos, Approvam quanto soa em honra d'elle.

INDIGÊNCIA

Oh reinante feliz com taes vassallos !

DRAMAS ALLEGORICOS 137

POLICIA

Folga, Sciencia, e tu, Penúria, folga, Dado me é recrear-vos^ ser- vos guia Ao Príncipe immortal, de quem reflectem Raios de luz para o ministro excelso, Que o seu mor premio tem na régia gloria. Curvae-vos, e admirae o heróe sublime, Que Lysia adora, e que adorara o mundo, Re o mundo todo merecesse olhal-o. (1) Vede a seus pés o magistrado insigne. Que n'elle se revê, que a bem da pátria A grandeza real submisso implora!

HOSPITALIDADE

Quanto a Virtude altêa a dignidade !

SCIENCIA

Oh jubilo ! Oh ventura !

INDIGÊNCIA

Eu pasmo, eu tremo !

(1) Abre-se o fundo do theatro, apparece o retrata do Príncipe Regente com o Magistrado a seus pés, offe- recendo-lhe os votos mais uros da nação.

138 OBRAS DE BOCAGE

GÉNIO (1)

Heróe, sacro aos mortaes, acceito aos numes,

Oljmpico fulgor compõe teus dias;

Os céos na minha voz mil dons te abonam,

Com meus olhos teu povo os céos vigiam;

O commercio por ti de se nutre;

As artes, a' virtude, as leis triumpham;

No sólio, no poder tens base eterna ;

Tua alma sobresáe aos teus destinos;

E de teu puro arbitrio esse órgão puro,

E digna escolha tua, aos astros voa

No rasto de ouro, com que o pólo esmaltas.

Súbditos de João, rendei mil cultos

Ao gran regente, ao inclyto caracter.

Que n'elle divinisa a espécie humana:

A voz da gratidão se alongue em vivas,

E cordeal ternura os lábios honre.

CORO

Oh luso heróe ! Baixaste Da estancia divinal ! Tu és um deus visivel, Oh Principe immortal !

(1) Dirigindo-se para o retrato do Principe Regente.

lEAGMENTOS DEAMATICOS

OKIGrI]VA.E,«

VASCO DA GAMA

OU

O DESCOBRIMENTO DA INDM PELOS P0RTU6UEZES

(TRAGEDIA)

A€TORE!$

O Çamorim. Vasco da Gama. Ataíde, official portu- guez, seu confidente. Haril, Príncipe de Cochim. O Catual, Regedor de Calecut. Alm4nsor, Mouro opu- lento em Calecut. Alaida, Filha do Çamorim. Cre- ziNTA, Confidente da Princeza. Monçaide, Africano. Um Brachmane.

A scena é em Calecut no palácio do Çamorim

140 OBEAS DE BOCAGE

ACTO I

SCENA I

ALMANÇOK E MONÇAIDE

Este estrangeiro audaz, que, desferindo Por mar ignoto as temerárias velas. Talhou de pego immenso as virgens ondas, De serra em serra no Oceano horrendo; Que, lidando co'a morte, abriu caminho desde a foz do Tejo áquem do Granges, Trouxe de alta ousadia extranho exemplo, E do gran Çamorim surgiu nos mares; Gama, que embaixador de um rei potente Com vozes tão seguras se nomeia; Accezo contra nós em ódio herdado, Que de males dispõe aos musulmanos, Que de males promette á índia toda ! A constância, o valor té-li não vistos Com que o mundo assombrou na grande empreza, E as mil promessas vãs, que tece astuto De interesses communs, apparelhados Ao povo portuguez, ao indio povo, N'alma do Çamorim se insinuaram;

FEAGMENTOS DRAMÁTICOS 141

O illuso imperador dos Malabares

N'elle preza um heroe, e o bem do estado;

Em profícua alliança espera os fructos

Que do arteiro christão lhe finge a astúcia.

Tem três luas circulado o Polo

Depois que em Calecut os frágeis lenhos.

Vencedores das ondas^ aportaram:

Aqui de voz em voz correndo a fama

No espanto desde então se nutre e esforça;

Abjectos poleás, altivos naires

Com cego enthusiasmo aqui proclamam

O forte conductor dos nautas duros.

Deslumbrada nação, não vês, não sentes

Forjar-se ao longe, e retinir teus ferros ?

Entranha no vindouro a conjectura:

Esses, cujas acções com pasmo acclamas.

São heroes do valor, não da justiça;

Hoje alliados, amanhã tyrannos.

Acaso d'entre as artes, d'entre as honras,

D'entre o puro clarão de um céo risonho,

D'entre os mimos da pátria, a nós é vindo

Esse chefe arrogante, e seus sequazes

Não mais que a merecer durável nome,

Gráo entre aquelles, que enternisa a gloria?

Ah! Na gloria a politica se envolve;

Politica feroz, que em paz machína

O nosso captiveiro, o nosso estrago;

Que espreita o modo com que lance o jugo.

142 OBRAS DE BOCAGE

Que ao triste Malabar transtorne os fados, E que ás outras nações d'aqui se alongue.

MONÇAIDE

Na audácia, na politica presumo O génio portuguez capaz de tanto; Mas soíFre mil obstáculos a empreza. . .

ALMANSOR

' Não duvides, Monçaide; atroz mudança

Nosso estado terá, e o d'estes povos,

Se tal gente, a prodígios costumada,

De Africa incêndio, horror da pátria nossa,.

Aqui poder também vibrar seu raio;

A seita musulmana então succumbe,

Cáe o influxo, o favor, cáe a opulência

Que attendiveis nos faz perante o sólio/' .

Cumpre não desmaiar na cauta empreza;

Por esforços extremos se remova*

A procella imminente ás nossas frontes.

MONÇAIDE

Practicados ardis, tégora inúteis, Auguram pouco effeito a novas artes: As torres, que a ambição vai surda erguendo,.

FRAGMENTOS DRAMÁTICOS 143

Por braço experto, e para nós terrível, A sombra avultam do poder supremo; O incauto Gamorim não futuros; Ufano do esplendor, que lhe reflecte Da embaixada de um rei temido, e grande; De brilhantes chimeras encantado, E mais do firme tom, que as fortalece Nas vozes, no exterior de um homem raro^ Faustas idéas da apparencia colhe. Debalde o Catual, cuja avareza Thesouros nos absorve insaciável. Esperanças vendendo a preço de ouro. Debalde tem mil vezes machinado Dos atrevidos nautas a ruina: Se o poder, que do throno lhe dimana. Se a publica, orgulhosa auctoridade Que exerce em Calecut esse, que priva Tanto c'o Çamorim, e o representa, Efficazes não torna os teus projectos, Porque da empreza não descorçôas? De infallivel tractando o contingente Ao próximo regresso obstar desejas Dos guerreiros varões, que odeias n'alma, E queres o seu fim, não sua ausência: promptos no% baixeis a pátria anhelam, Completa a commissão que a nós os trouxe; Soltas em breve as temerárias velas Tornarão a arrostar o horror profundo

144 OBRAS DE BOCAGE

Das negras ondas em que ferve a morte; Cedo entregues ao vento^ ao mar entregues EsseSj que temes, livrarão teus olhos De seus feros semblantes importunos: E quem sabe se o túrbido Oceano, Que uma vez lhe soífreu a enorme audácia. Agora mais indócil, mais soberbo No horrivel bojo sorverá com elles Ingentes, arriscadas esperanças? Nem sempre o destemido é venturoso: Da fortuna á desgraça o passo é curto. . . Sim, Almansor: ao vento, ao mar, ao fado Demos a empreza fácil de extinguil-os.

ALMANSOR

Monçaide, o vento, e mar lhe obedeceram, E que fiar não ha no fodo incerto. Importa-nos seu fim, não sua ausência; Não que, outra vez o pélago affrontando, Esses lenhos fataes no Tejo ancorem; Não que o fructo de prospera ousadia Emulo ardor provoque a renoval-a, E as artes multiplique, e apure as forças Ao plano de politica, e de gloria, - Com que activa nação, que em si não cabe, De seus curtos limites indignada.

FEAGMENTOS DKAMATICOS 145

<5uer do ultimo occidente arremessar-se Aos climas, onde o sol luz primeiro; E aquij ou na extensão de toda a terra Projecta impor seu jugo, honrar seu nome. Tolher-se a execução do plano infesto E justiça também, não proveito; Apaguem-se as faiscas pouco accezas, Que um vasto incêndio não remoto agouram: Sempre exemplo feliz terá sequazes, Nenhum, ou raros desgraçado exemplo. N'alma do Çamorim terror se infunda, Que perigoso apreço em ódio troque: IJm não fique illeso, um não torne Dos bravos, dos terríveis navegantes, Que leve á pátria o miserando annuncio Do aspérrimo castigo aos seus imposto: Ou seja o captiveiro, ou seja a morte Condigno premio da ambição, que injusta Sobre a nossa ruina empreende alçar-se. Em trair um traidor não ha vileza. Mauritano, como eu, te cumpre, amigo, Manear da vingança os instrumentos Contra a feroz nação, que nos detesta. Contra a feroz nação, que detestamos: Reciproco interesse, a lei, e a pátria Tal zelo, tal fervor de nós exigem.

10

146 OBRAS DE BOCAGE

MONÇAIDE

O paterno destino acompanhando, Bem sabes que de Tunes, pátria minha, Aqui vim exercer, qual tu, qual outros, Esta correspondência industriosa De nação a nação, que 8S enriquece, As pule, as encadêa, as fraternisa, No cambio do que ao luxo, á vida serve: Sabes que um pae, de que venero as cinzas^ Proveitosa união me urdiu comtigo N'est'arte, que as fortuna^ amplifica (Arte, que ás vezes se desluz, se avilta No illegitimo ardil, no torpe engano, Arte porém, que em mil culto á honra) São interesses meus teus interesses, Teus damnos são meus damnos, em virtude: Da alliança fiel por nós mantida: Atalhar-se o progresso aos portuguezes Da gloria, da ventura, que ambicionam, A ti, e a mim convém, convém aos nossos^ Ao grande Çamorim, e á índia toda; Embora estratagemas se requintem, Se ainda t'os depara a phantasia. Para que de fadiga infructuosa Amargo desengano á pátria levem, E obste a novas tenções tenção baldada; Sanguinários porém, cruéis não sejam

FRAGMENTOS DRAMÁTICOS 117

Os meios que empregarmos; não se julgue, Não digam que é vingança o que é justiça: -Que frouxos, incapazes cie atterral-os Tentámos impiamente o desaggravo De tanto, e tanto mal, que tem sofFrido, E que inda nossos climas sofFrem d'elles. Amo a pátria, amo a lei, sou musulmano, Mas odeio a traição, a astúcia infame, Vicios que aos africanos se attribuem; A lei universal, a humanidade Deve a todas as leis ser anteposta: Este o meu sentimento agora, e sempre.

ALMANSOR

Se a amisade, se a que em ti respeito. Por longas experiências apurada. Suspeitas naturaes não rebatesse, Namorado também te julgaria Da acção, que teve as ondas por theatro; Crera que a superfície deslumbra, E te não resta luz que indague o centro. Se brilhantes acções têem fins odiosos. Que vale o resplendor de acções brilhantes? O heroismo é razão; não ha sem ella Proeza que eternise, acção que aílime: E é da razão talvez, é do heroismo

148 OBRAS DE BOCAGfi

Ver mil horrores, abarbar mil mortes

Para tornar com arte, e com violência

Primeiro amigas, e depois escravas

Innocentes nações, a quem pozera

Procellosas barreiras o Oceano

Contra insana ambição, contra esse monstro,

Que as fauces lhe abre ao longe, e quer tragal-as ?

A lei universal, a humanidade

Reconheço também, também pondero;

E, em pospor um povo a muitos povos

Por elle iniquamente ameaçados,

Cumpro o sacro dever, que ufano allegas,

Além de sustentar a própria, a justa,

A grande causa onde omissões são crimes;

Onde...

MONÇAIDE

O tom da suspeita, que em teus lábios Soa injusto, Almansor, também é crime. Antes delírio, que profana, insulta A amisade, e a razão: que ardor, que zelo Transcende o que atéqui mostrei na empreza Por tão altos estorvos contrastada ? Se ao portentoso Gama, em cujos feitos Admiro o heroe, e o portuguez detesto, Tenho captado a confiança amiga Com publico louvor, sagaz obsequio,

FRAGMENTOS DRAMÁTICOS 149

Teus conselhos segui; por teus conselhos^ E interesses da pátria, d'estes povos A desvelo impostor forcei miníia alma, De meu livre caracter fui tyranno : O assombro involuntário, que me exprobras (Apalpa o coração) tu mesmo o sentes, O confessas tu mesmo: e quem podéra Não sen til- o, Almansor, não confessal-o? Os novos Argonautas do oceidente Na façanha immortal têm transposto As metas do que e dado á Natureza : Esse, que os dirigiu da gloria ao cume, Universal pregão merece á Fama; Seu nome pelos séculos se estende, Nem tu podes, nem eu, nem quanto existe Negar-lhe a admiração, seu jus, seu premio, A admiração porém não tyrannisa Minha mente, capaz de refreal-a, E ver pelo clarão do illustre feito Hórridas nuvens, que promettem raios: Nossos intentos pois ao fim se levem. Se possivel nos for ao fim leval-os; Mas arte seja tudo, e longe a força. Além do Çamorim não consideras Que braço contraria os teus furores? do rei de Cochim o augusto herdeiro. o príncipe Haril como protege (Também n'alta façanha embellezado)

150 OBRAS DE BOCaCí

A causa d^esses homens destemidos; E que para seu rei grata resposta Gama do Imperador por elle obteve. Na pompa, na grandeza d'este dia Attentado egualiíiente, as iras doma: Hoje que o Çamorim desposa a fillia, Que Alaida em prisão doce a Haril se enlaça, Que o paço imperial oíFVece aos olhos Requintado esplendor em honra ás núpcias, Respeitemos, amigo, respeitemos O publico prazer, e o do monarcha : Ousar-se n'este dia acção, que o turbe, Aos céos, e á terra sacrilégio fora; Bonançosa alegria hoje serene Tumultos de paixão, que o peito abalam. Depois ...

ALMANSOR

Absorto em lúgubres imagens, Descuidei-me atéqui do grande objecto, Que exige o mais profundo acatamento. A amisade, e o dever me gritam n'alma Que peze teus conselhos, que os abrace: Estas agitações, o ardor que attento Temperas co'a razão, também tempero; Um dia, um dia só, não mais que um dia Forcem-se as iras a dormir no peito, E colham do repouso alentos novos.

FRAGMENTOS DRAMÁTICOS 151

-Ao Catual propor mais árdua empreza Era o vasto projecto, era o destino Que á morada real guiou meus passos; Mas a proposição pede outro tempo, E incentivo menor d'aqui me affasta. Tu, Monçaide fiel, prosegue emtanto Na cauta indagação dos pensamentos, Que o suberbo europeu talvez te esconde: E para nossos fins um bom principio Sondarmos o inimigo, e ler-lhe n'alma; O pezo d'este exame indispensável Deponho todo em ti. Dissinmlemos. (1)

SCENÁ II

MONÇAIDE

Africano implacável, não me illudes Com essa de repente alegre face :

(1) E«tou certo que, se Bocage houvesse de dar esta peça ao theatro, evitaria, o fastio de quasi trezentos versos na scena de abertura; muito mais nâo -envolvendo ella uma sufficiente próthase: porém aqui dá-se uma copia do que primeiro lhe produziu a phantasia, e não do que elle approvou, depois de reflectir no que imaginara; como l)em claramente denota a imperfeição do seu autographo. (Nota de Pato Moniz.)

152 OBRAS DE BOCAGE

No silencio forçado a raiva opprimes:

De aíFecto para afFecto, e tão contrario

Não passa o coração n'um momento.

parte do que eu sou presume o fero:

No extremoso louvor, que transportado

Consagrei ao varão de heróes modelo,

Quasi descortinou toda a minli'alma.

A pezar d^interesses tão sagrados,

Oue meu caracter dobrara, que o reduzem

A precisão do engano; a ser no rosto,

A ser nas vozes parcial, e amigo

Do mesmo, que ódio eterno em mim provoca;

Do pérfido Almansor, o mais injusto,

O mais duro, e feroz dos musulmanos ;

Teu fervoroso amor, oh pátria minha,

Tégora na violência represado,

Ia rasgando o véo, que encobre aos olhos

Meu ser, e o meu destino. Horríveis monstros^

Oppressores cruéis, que arrebatastes

Aos braços maternaes a minha infância;

Que no jugo do exemplo, o do costume.

Com sacras illusões me hallucinastes,

E, a minha alma cingindo a lei nefanda.

Fizestes (ai de mim !) que preferisse

As luzes da verdade as sombras do erro:

Oppressores cruéis, baldadas foram

A vossa tjrannia, as artes vossas:

Seus direitos um Deus em mim recobra;

FRAGIMENTOS DRAMÁTICOS 153'

Por veredas^ que a mente hiimana ignora^ Aos meus, e a si me reconduz o Eterno. Mas em que agitações, em que terrores Meu animo fluctua ? Ah ! Que terrivel Sombrio agouro o coração me enluta ! Que scenas de traição, de horror, de morte No triste pensamento me negrejam! (1)

(1) Eis-aqui tudo o que me chegou d'esta tragedia, que Bocage levara ao fim do primeiro acto, que eu vi, e que elle me leu. (Nota de Pato Moniz.)

ÂFFONS0 HENRIQUES

ou A CONQUISTA BE LISBOA

(DRAMA HERÓICO)

a€tosíe:ís

Affonso Henriques, Rei de Portugal. Guilherme, Prín- cipe inglez. LiGEL, Senhor flamengo. Egas Moniz, fidalgo portuguez, e confidente d'Ajffonso. Arnaldo, seu filho. Zaida, Princeza moura captiva. Zelina, sua escrava. Almansor, Mouro. Officiaes portu- guezes, e estrangeiros. Soldados.

N. B. Bocage esqueceu-lhe designar o logar da scena, assim como no andamento do drama lhe esqueceram mui- tas rubricas, que na leitura facilmente se dispensam, mas que lhe eram essenciaes quando houvesse de o fazer re- presentíir; porém os leitores, n'estas poucas acenas que existem, claramente acharão indicado que o logar de to- das ellas era o acampamento portuguez.

(Nota de Pato Moniz,)

156 OBRAS DE BOCAGE

ACTO I

SCENA I Afonso^ Guilherme, Ligel, Moniz, e ojfficiaes

AFFONSO

Famosos, destemidos companheiros, Heroes, comigo aíFeitos á victoriaj Que o jugo sarraceno, o jugo infame Ides com férreas mãos anniquilando; Tu, digno irmão do inglez monarcha, Magnânimo Guilherme, e tu, brioso Intrépido Ligel, de Flandres gloria; Varões, que nos baixeis apparelhados ' Contra o fero oppressor dos santos lares. Da captiva Sião contra os tyrannos, Por alta providencia aqui surgistes; E, de um Deus abraçando a causa excelsa, As palmas do Jordão colheis no Tejo: Amigo do teu rei, da pátria tua, Insigne portuguez, Moniz preclaro, A quem o antigo esforço as cãs não murcham; A quem da trabalhosa, e crespa edade Vivo ardor marcial derrete o gelo;

FRAGMENTOS DEAMATICOS 1'57

Heroe, que de outro heroe te vês herdado; Que ao filho transmittiste o raro alento, E no mancebo Arnaldo a fama estendes Do gran tronco, de que és egrégio ramo: Chefes invictos, fervidos soldados. Em vão do mouro adusto a resistência A nossa grande empreza o fim retarda: Debalde tem sustido ha cinco luas O rápido furor das nossas armas; Tenaz opposição dobra o triumpho; Na lida, no suor se nutre a gloria; Lisboa cederá, verão seus muros De um assalto geral o effeito illustre: Esses templos sacrílegos, aonde Adorando-se um Deus, um Deus se insulta. Hoje, por dignas mãos puríficados Do culto, dos incensos da impostura. Serão dos nossos votos sacro asylo. Do Deus de nossos pães estancia augusta. Não, para vos dispor ao feito heróico, A façanha christã não necessito De excitar, sócios meus, na ideia a imagem Do que vistes heroes, do que fizestes Nos márcios campos do espantoso Ourique: Duros netos de Agar além bramindo, Immensa multidão enchia os valles, Cubria as serras, esgotava as fontes; O truculento Ismar dos seus na frente,

158 OBRAS DE BOCAGE

De quatro escravos reis obedecido,

Amotinando os céos com grita horrenda,

De olhos fitos em nós, como os emprega

Esfaimado leão na fácil preza:

Nós d'aquem, turba escassa, mas terrível,

Confiados no céo, na seguros,

De um Deus na protecção, na gloria accesos^

Com fero encontro os Ímpios arrostando,

Abrindo, e desfazendo escudos, malhas,

Dando tostadas victimas á morte,

D'espiritos brutaes o inferno enchendo,

Sentindo rebentar aos nossos golpes,

E ir pela rubra terra o sangue em ondas;

Os bárbaros pendões do chão dispersos;

O estrondo, a confusão, o horror, o estrago

Por aqui, por ali; montões de mortos;

Anjo exterminador, núncio do Eterno,

Sobre as frentes dos prófugos troando,

Sobpezado na mão raio invisível,

Com formidável Ímpeto espargindo

Por entre os infiéis total derrota !

Este quadro, esta ideia, altos guerreiros

Necessária não é para incitar- vos:

Temos o me^mo esforço, as mesmas armas;

O Deus, que nos valeu, nos vale ainda;

O que fostes sereis: Lisboa é nossa.

FRAGMENTOS DRAMÁTICOS 15&

GUILHERME

AíFonso nos commanda, e do triumplio E decisivo annuncio a voz de AíFonso: Calcaremos aos pés o orgulho insano Do agareno infiel; n'aquelles muros Nossos pendões, senhor^ verás alçados. Inda a luz da manhã não doura os ares: Antes que raie a aurora, e se eíFeitue O vigoroso assalto, que apparelhas, Nós veremos talvez o afouto Arnaldo, O meu prezado amigo apparecer-nos, Volver aos arraiaes com palma insigne: O bárbaro tropel, que em seu auxilio Chama o duro oppressor da gran Lisboa^ Talvez, egrégio rei, tenha sido Do braço portuguez servil despojo. De Arnaldo a condição fogosa, e prompta se contenta em rápidas victorias; Demoras no vencer lhe são desdouros: Sabido o seu valor, e o seu caracter Voluntário cedi ao caro amigo O que a ninguém cedera, o mando honrosa Da generosa empreza, a que é tão próprio: Meus votos, meus desejos o acceleram, E como que sinto o som guerreiro Núncio do meu pezar, da gloria sua. Apenas entre nós o moço illustre

160 OBRAS BE BOCAGE

Do sublime esplendor brilhar c'roado, Fadigas a fadigas aggregando, Então, grande monarcha, aos inimigos Levemos o terror, a chamnia^ o ferro.

MONIZ

Na demora, senhor, se apura, e cresce O fogo marcial de teus soldados; Seus olhos devorando aquelles muros, Ha muito de- assaltal-os, de invadil-os O momento, o signal com anciã pedem : Mas eu, súbdito, e pae, bem que anteponho A gloria do meu rei á de meu filho, Conciliar dous titulos quizera Para o meu coração de tanta estima: Quizera merecer ao meu benigno Generoso monarcha a complacência De retardar o assalto alguns momentos, Para que o filho amado, em quem reflecte Meu zelo, meu fervor, minha lealdade, Associar-èe possa em nova empreza A seu rei, e a seu pae; não sinta Arnaldo O pejo, o dissabor de ver- se inútil Na mais brilhante acção, que os céos nos guardam. As vezes, prolongando-se-lhe o termo. Projectos dos heroes se desconcertam; Bem sei, mas são d 'heroes, que se estribam No rápido valor, na mente astuta;

FRAGMENTOS DRAMÁTICOS 161

Não d'heroes, como tu, do céo validos,

Em que é fado o triumpho, herança a gloria.

Verificado está quanto profiro

Na celeste visão, que honrou teus olhos,

quando a divindade o véo despindo,

Esse véo sacro- sancto, impenetrável

Que a recata de nós, á face tua

No lenho redemptor se fez patente;

E, travando comtigo alta alliança.

Ás insignias te deu, te deu o império.

O teu jus a vencer quem ha que o vede,

Depois de o conferir o Omnipotente?

Alguns momentos mais, que a fúria prendam,

A fúria dobrarão depois de solta.

AFFONSO

De solidas razões ceder ao pezo

E justiça, é dever; é recompensa

Do generoso ardor de um pae, de um filho

Tão úteis ao seu rei, tão dignos d'elle:

No que sou moralmente, o fructo vejo

Da tua educação, dos teus desvelos :

Meus passos dirigiste á gloria, ao throno;

Vive esta ideia em mim ; sou rei, sou grato . .

A gratidão n'um rei também se encontra.

Suspenso fique embora alguns espaços

O assalto estragador do mouro infando;

162 OBRAS DE BOCAGE

Esperemos Arnaldoj Arnaldo augmen-te

Nos duros torreões o duro embate,

E no sangue infiel de novo en-sope

A cortadora espada irresistível ;

Góse . . . mas que rumor não bem distincto

Resôa em meus ouvidos ! . . . Não me engano.

Sinto que se approxima a cada instante . . .

Talvez . . . Parte, Ligel, inquire a causa

Do súbito ruido ; este alvoroço

Que me revolve o peito, e que me inflamma,

E presagio feliz.

LIGEL

Corro a servir-te. (1)

MONIZ

Paterno coração, como palpitas!

Não mentes, não me illudes: eis meu filho.

Ah! Permitte, senhor, que eu...

GUILHERME

Não; detem-tOy (1) Vae-se.

FRAGMENTOS DlíAMATíCOS 163

Cede á minha amisade o grato exame;

Eu vou... porém que vejo? Arnaldo? Oh gloria!

MONIZ

Filho... (1)

SCENA II Ligely Arnaldo, e os precedentes

ARNALDO

Meu rei, vencemos!... Foi teu nome Principio do triumpho portentoso, E a nossa intrepidez foi seu remate: O mouro usurpador, cedendo o campo. Fiou dos leves pés um débil resto Do exercito feroz, que jaz por terra. Com que prazer, senhor, com que transporte Teus guerreiros magnânimos travaram O conflicto mortal, que os fez eternos! Fervor de anticipar-te o ledo aviso Fez com que eu precedesse a marcha sua; Mas em breve os verás: em breve ás plantas

(1) Nada mais achei pertencente a esta primeira scena. (Nota de Pato Moniz.)

164 OBRAS DE BOCAGE

Do nosso digno rei virão depôr-se As bandeiras ao bárbaro arrancadas. As armas, os tropheos, os prisioneiros. (Tu murmuras, amor! Ah! SoíFre, e cala.)

AFFONSO

Tuas claras acções, mancebo illustre,

te vão franqueando a eternidade;

Na classe dos heroes loo^ar te assiojnam.

A modéstia gentil de que te adornas

Supprime a narração da gloria tua;

Mas o teu rei, que te ama, e que te admira,

Da tua voz exige as circumstancias

Do feito denodado em que luziste:

Falia pois, o triumpho se renove

Pela bocca do heróe, que o fez completo.

Dignamente de ti fallar tu podes :

Tem^ireito a louvar-se o que é louvável.

ARNALDO

Mais por obedecer ao teu preceito Que para me exaltar, para exprimir-te A justa execução de meus deveres, Te figuro, senhor, o atroz combate. A dar prompto soccorro áquelles muros Torrados esquadrões se arremessavam

FRAGMENTOS DRAMÁTICOS 165

Com bruto ardor, com hórrido alarido: Eis em longa planicie os avistamos Por entre o denso pó, que vae subindo Do chão revolto; e súbito inflammados Os teuSj em cuja frente me abalanço. Ao signal, que lhes dou, vozeam, correm; Com fervoroso espirito proferem Em terrível clamor : c( Aífonso ! Aífonso ! )) E aos bárbaros se arrojam n'um momento : Levanta a chusma vil mais altos gritos; E, com desprezo o numero notando Tantas vezes menor, que se lhe arrosta, divide entre si nossos despojos; Mas a imaginação decáe no effeito : Ao principio, senhor, d'um lado, e d'outro A victoria pendeu como indecisa; Mas, crescendo o furor na resistência. Depressa o portuguez arrebatado A causa decidiu, desfez o enleio; Espadanas de sangue a terra ensopam; Yoam braços, cabeças, fervem mortes; N'um theatro de horror se torna o campo; Parece transferir-se ali o inferno! Em fim terror geral, geral destroço Na fuga aqui, e ali semêa, espalha As reliquias do exercito nefando : Algum tempo implacáveis o acoçamos, Unindo em muitos peitos morte, e medo;

166 OBRAS I)E BOCAGE

Mas, fartos de matar sem resistência, Vendo que no risco existe a gloria, A fúria suspendemos; e voltando Aos nossos arraiaes com mil despojos, Buscámos, conseguimas, gran monarcha, No teu contentamento o premio nosso.

AFFONSO

o meu prazer não só, também meus braços Devem ser galardão do que te escuto. A teus nobres extremos costumado Meu coração previu teu lustre novo: Venturoso de um pae, que em ti prolonga A moral duração melhor que a vida ! E jubilo sem par vermos que brilham Mais que nossos avós os filhos nossos. A Moniz este jubilo compete, O heroismo, ^ue herdou, por ti se apura.

MONÍZ

Dos braços do teu rei foste honrado, Está satisfeita a gloria tua; Satisfaze também o amor paterno : Vem, abraça teu pae, banha este rosto, Banha estas cãs de lagrimas suaves, Lagrimas da alegria, e da ternura.

FKAGMENTOS DRAMÁTICOS 167

Seus fructos produziu minha esperança. Qual vêr-te desejei te vêm meus olhos; Férreo somno da morte embora os cerre, Em ti deixo um heroe, comtigo ficam Meu sangue, meu fervor, meus sentimentos, E um braço mais funesto aos inimigos, Mais prestadio á pátria. Amado filho, Fallece a voz, o coração não pode Com tão novo prazer; e, a n correndo, Nas lagrimas, que verto, se derrete.

ARNALDO

DoctrinaJo por ti, de ti nascido, Que menos pela pátria ousar poderá? Graças envio aos céos por vêr-me digno Da tua educação, dos teus extremos, Do heroe, do pae, que ao longe imito apenas. Mas permitte, senhor, que se dividam Também pela amisade os meus afícctos; Que do excelso varão, que me honra tanto, O bem da gratidão nos braços goste.

GUILHERME

Heroe, fructo d'heroes, eu te esperava Como sempre te vi, qual és, qual foste. Une a mão vencedora á mão do amigo. Que não menos que tu teus louros gosa.

168 OBRAS DE BOCAGE

AFFONSO

As bellicas trombetas perto soam: Logremos o espectáculo pomposo Dos guerreiros christãos, em quem revive Da antiga Lusitânia o bravo esforço. No adequado louvor comece o premio Das illustrps fadigas, que os aíFamam: Multijplica os beroes loiívor, e exemplo.

MONIZ

Eis, senhor, teus intrépidos soldados, Que, afFeitos a vencer, trazem no rosto Para os triumphos seus desdém sublime: como nas guerreiras, crespas frontes Da gloria do seu rei brilha o reflexo (1).

AFFONSO (2)

Redemptores da pátria, ah! Vinde, vinde Em nossos corações dobrar o alento, O alento executor d'altas façanhas.

(1) Vâo passando os soldados.

(2) Saindo com os officiaes ao campo a encontral-os.

FEAGMENTOS DKAMATICOS 16&

Vossos terríveis braços, despedindo

Inevitáveis golpes, vos grangeam

Memoria perdurável, fama eterna:

Aos estragos do tempo, ás leis da morte

Império não consentem vossos nomes:

Quaes vos vejo brilhar, quaes sois agora

Ireis luzir nos séculos vindouros:

O clarão das acções, que a terra espantam,

Rompendo a névoa da remota edade,

Aos tardos,^nimosos descendentes

De heróica emulação será fomento;

Unido ao vosso exemplo o sangue vosso

Heroes produzirá, que heroes produzam;

Serie pasmosa de varões sublimes

Dareis ao mundo; morrerão com elle:

Acceza a phantasia o diz, o augura:

Nada menos que vós de vós se espera.

Ide em curto repouso apparelhar-vos

Para novo esplendor, fadigas novas.

Tu, Moniz, me acompanha: os meus projecto»

Pela exp'riencia tua aperfeiçoo.

Tu, principe, depois que saciado

Houveres da amisade os sentimentos.

Livremente abraçando o caro amigo,

Teus guerreiros fieis dispõe, e ordena

Para o férvido assalto.

170 OBRAS DE BOCAGE

SCENA III Guilherme e Arnaldo

GUILHERME

Em teu semblante Transluz a viva dor, que tens no peito: Arde a paixão fatal, que em vão disfarças. Misera condição da humanidade! Duro mortal, que arrosta o ferro, a morte, Ante uns olhos gentis desmaia, e treme! Vencer não pode a si quem vence a tantos: Mais que o furor de exércitos cruentos Ousa fraca mulher com pranto, e riso! Por culpa de attractivos seductores Entre tanta ventura és desditoso: De uma insana paixão tjrannisado, Cego escravo de amor, somes, apagas Nas sombras da tristeza a luz da gloria. Desgraçado mancebo! Ah! Nunca vissem Teus olhos o damnoso, infausto objecto Que a voutade te encanta, e senhoreai Nunca das mãos dos seus arrebatasses Essa dos males teus formosa origem, Veneno por mil graças adoçado!

FRAGMENTOS DRAMÁTICOS 171

ARNALDO

Veneno ao coração^ veneno aos olhos, Veneno que me encanta, e me repassa, Que mil vidas me dá, me mil mortes.

GUILHERME

Oh céos! Tu portuguez, tu responsável De assombrosa virtude a Deus, e á pátria, Da lei, que segues, a inimiga adoras ! Zaida, prole de Osmin, prole de um monstro, De um tyranno infiel, reina em Arnaldo! Reina em ti, n'um christão! E o despotismo Do bárbaro oppressor, que em férreo jugo Entre aquellas muralhas tem ligados Os teus irmãos, os teus compatriotas. Da filha pela mão também te abrange ! . . . Ah! Torna, torna em ti; combate, e vence O criminoso ardor que te hallucina: Teme que inúteis ais, téqui somente Da causa do teu mal, de mim sabidos. Levem teu desacordo, e teu deslustre Aos ouvidos de um pae, de um rei, que te amam. Diversos interesses, leis diversas. Ódios herdados, a justiça, a pátria, O teu dever, e um Deus teu gosto impugnam :

172 OBRAS DE BOCAGE

Que esperaS; infeliz, de taes excessos? Que esperas d'esse amor?

ARNALDO

Que espero? A morte^ Do lúgubre sepulchro a paz, o asylo. Sancta religião, se tu não foras, Se os decretos de um Deus m'o não vedassem j Se outro estorvo não visse ás fúrias minhas Mais que o geral horror da natureza, Na presença de um termo inevitável; Se da cega paixão no labyrintho Um resto de razão me não luzisse ; Se*de Zaida ao poder não se oppuzera A voz da carrancuda Eternidade, do sangue, que ferve em minhas veias, Mortifero punhal tingido houvera. Não me esquece o dever, a lei que adoro; Sou christão, portuguez, e heroe seria Se mais forte que Arnaldo amor não fosse. Eu me envergonho (oh céos!) eu me horroriso Do estado a que a paixão reduz minh'alma ! -Sei que é labéo, fraqueza, injuria, crime Este aífecto, este ardor; que sou por elle Rebelde ao culto meu, e á pátria minha; Pejo, remorso, amor comigo luctam. Mas sempre no combate amor triumpha.

FRAGMENTOS DRAMÁTICOS 173

Senhor dos corações^ Ente supremo, Ah ! Porque tão sensível me formaste ? Em vez de um coração tenho um verdugo! Forças contra as paixões nos foram dadas, Pode mais a razão que a sympathia, E aquella me abandona, e cedo a esta!

GUILHERME

Defeza não lhe oppões, domar não queres O fatal sentimento; elle é vencível, Mas cumpre que a virtude esmere as forças Na empreza não vulgar: se resistisses, D'esse inimigo interno a palma houveras,

ARNALDO

Que bruto, férreo peito. resistira Ao suave attractívo, ao doce pranto Que nos olhos da Zaida me encantaram? Parece-me (ai de mim !) que ainda a vejo. Quando armados os seus a conduziam A distante logar, seguro asjlo Longe dos muros, que rodeia a morte: Parece-me que a vejo, ao repentino Encontro com que a fuga lhe estorvamos. Estremecer, gritar, cair por terra, E em breve de cadáveres cercada,

174 OBRAS DE BOCAGE

Tinta do sangue alheio^ e sempre bella Com seus olhos dourar o horror da morte! Ah! Quando absorto, extático, sem faUa Em meus braços a ergui do chão sanguento. Furor, consternação, gentil mistura De contrários affectos, em seu rosto Honrava, ou transcendia a Natureza! ((Christão (Zaida clamou) sou tua escrava; Meu negro fado o quiz, mas não profanes Uma infeliz princeza, uma donzella, Uma filha de Osmin; entre inimigos Exista ao menos da virtude o laço; Tua religião te impõe deveres Quaes a minha me impõe, quaes se derivam Das generosas leis da humanidade.» Ouvi-a, e transportado ás plantas suas. . .

GUILHERME

Para que estás cevando o pensamento N'essa imagem fatal, que mais te affunda No abysmo da paixão? Bem sei; mil vezes Repetido me tens o lance infausto. Que decidiu tão mal do teu destino: Teu valor, teus respeitos excitaram Na bella prisioneira amor fervente, Mais forte que o dever, que as leis, que o sangue: Tudo sei, triste amigo, e tudo temo

FKAGMENTOS DRAMÁTICOS 175

Do funesto poder de que és escravo. Oondemno-te christão. homem te choro. Agras exprobrações nascidas forani Não do meu coração, mas do meu zelo; Relevar teus excessos é perder-te: Lucta, lucta comtigo; òu tarde, ou cedo Paixões fenecem como tudo acaba: Cuida em accelerar triumpho insigne; Do objecto, que te inflamma, evita os olhos; Árdua, cruel, penosa é esta empreza, Mas digna de um heroe por ser tão dura: Teu coração se aveze á triste ausência; Não gostes do teu mal, não vás nutril-o Perante as perfeições que o produziram: O costume de amar captiva, e cega Os frágeis corações a amor propensos; Roto o jugo ao costume', o peito enrija, E a custo se recác n'um louco affecto.

ARNALDO

Príncipe generoso, em teus conselhos A singela amisade está brilhando; Vejo o preço em^que tens a gloria minha; A voz d'alta virtude incontrastavel Ouço na tua voz, porém que importa Conhecer a razão sem abraçal-a Inda é mais triste que existir sem ella*

176 OBRAS DE BOCAGE

Ali! nem gozo o prazer de hallucinar-me! Reconheço-me réo, confesso o crime, Náo me sinto porém capaz da emenda. Mil pensamentos entre si contrários Na minh'alma em tropel combatem, fervem; Qual negro turbilhão, que agita os ares, Todos, todos de chofre me salteam: Mas, despojo infeliz de atroz conílicto, Detesto o meu arrior, e adoro Zaida. Cessa pois, claro heroe, piedoso amigo, Cessa de presentar-me o quadro feio Dos desatinos meus, da minha injuria; Ha de em breve apagal-o a mão da morte; Em breve arremettendo áquelles muros D'onde brotou meu mal, farei que brote Meu socego, meu fim : por ferro, e fogo A desesperação nadando em sangue Minh'alma arrancará de meus tormentos; Suberbos torreões cahindo em terra Suffoquem meu furor, meu corpo esmaguem; Nos horrendos montões d'altas ruinas Se escondam para sempre a dor, e o crime De um misero mortal, de um cego escravo D'esse encanto, a que chamam formosura. Outros pereçam victimas da gloria. Eu victima de amor: tal é meu fado; Não posso resistir-lhe : em vão me acodem Heróicos, arrojados pensamentos

FRAGMENTOS DBAMATICOS 177

liudibrios da paixão que os desbarata. Minha acerba catastropbe resôe, Gire de voz em voz minha desgraça, A causa lastimosa, o triste efFeito: Se applaudido não for, serei chorado. Morrer é pouco, é fácil; mas ter vida Delirando de amor, sem fructo ardendo, E padecer mil mortes, mil infernos. Existir sem ver Zaida ! Ah ! Não, não posso Concordar tanto mal co'a existência: Somente o mudo horror da sepultura Entre nós erguerá barreira eterna.

GUILHERME

Que proferes, oh céos ! Que desvario Te occupa o coração, te abrange a mente! Infeliz, em que trevas, em que horrores Tão longe da razão te vás sumindo! Voluntário dispões sacrificar-te Ao phrenetico amor, que te arrebata? Teu pae, teu rei, teu Deus bradar não sentes Dentro do coração, e a Natureza Sacros direitos seus perdeu comtigo? Que! Disseste, affirmaste que o sublime Titulo de christáo te era estorvo Ao suicídio feroz, te arredava Do amargurado peito agudo ferro,

12

178 OBRAS DE BOCAGE

E assim te contradizes! E ronipé^ndo

As leis universaes as leis mais sanctas, ,

TentaSj projectas espontânea morte !

Lançar mão de nm punhal, ou de um veneno^

Ou machinar teu fim por outro modo

Egual crime não é? Não desacata

A Natureza, os céos da mesma sorte?

Teu nome, que atéqui guardaste illeso,

Queres manclial-o de indelével nódoa?

Ah! Jura pelo Deus a quem sagraste

Teu braço, teu valor, ti3u ser, teu zelo,

Jura de abrires mão do atroz projecto;

De respeitares a existência tua.

Em quanto aos céos, ao heroismo, á pátria

Necessário não for teu sacrifício.

Lembre-te o gran dever com que nasceste;

Attenta no immortal, paterno exemplo;

Ou inda mais ao longe estende os olhos:

Venerandos avós, de que procedes.

Nos túmulos erguendo honradas frontes.

Te contemplam de lá, de te exclamam:

c(Não fujas dos vestigios que trilhamos,

Do sangue dos heroes não deí^eneres;

Prosegue, aperfeiçoa a vasta empreza

A que os céos te encaminham; doma, expulsa

Do peito um criminoso amor, que o mancha.

Da pátria os infiéis usurpadores.

Que em barbara invasão a agrilhoaram:

FEAGMENTOS DKAMATICOS 173

Tua^. relio;ião, teu Deus t'o ordenam : Restaura o culto seu, e os seus altares; Da vil superstição derriba os templos: Como os teus ascendentes vive, e morre. )) Eis o que elles te dizem : dá-lhe ouvidos, Seus dictames adora.

ARNALDO

Oh ! pejo, oh fúria ! Em dous o coração se me reparte, E nas tristes porções, que a dor lhe arranca. Terríveis sentimentos me atassalham. Ah! Mil vezes morrer não é mais doce Que este mal, que este horror, que este refluxo De encontradas paixões com que deliro? Ah...

GUILHERME

Cessa; para nós dirige os passos Não sei quem: prende os ais, compõe o aspecto. Recata o phrenesi, que te deslumbra. (1)

(1) Esta terceira scena, não obstante ser longa, não fastio ; e julgo que pouco se lhe deveria omittir : Gui- lherme tem verdadeiramente o caracter de um sisudo ami- go ; e Arnaldo o de um heroe mancebo, allucinado pelo amor. (Nota de Pato Moniz.)

180 OBRAS DE BOCAGE

SCENA IV

Um Official poi^tuguezy e os rnesmos

O OFFICIAL

Enviado de Osmin chegou ao campo Almansor^ entre nós bem conhecido Pelo audaz coração, e o fero orgulho; A audiência, que pede, o rei lhe outorga, E ao régio pavilhão convoca os chefes: Por ti, senhor, e por Arnaldo espera.

GUILHERME

Ambos te seguimos: vae. Reflecte (1) Que a tua agitação trahir-te pode Diante de olhos mil em ti pregados: AfFectado socego ao menos leva A presença do rei, que te honra, e chama. Vamos.

ARNALDO

Ah! d'esta sorte, acceza a face Do pejo, e da paixão, terei o esforço De ir comtigo, senhor, de apresentar-me

(1) Vae-se o official.

FRAGMENTOS DRAMÁTICOS 181

N'um congresso d'heroes, quando o deslustro, Quando a minha fraqueza é d'elle indigna? O remorso talvez^ supprindo as vozes. Pela perturbação dirá meu crime. Ah ! Salva d'este lance o triste amigo, Urde ao menos, oh principe, um pretexto Que a demora me honeste, e deixe espaço Para ver se grangeio algum repouso, Abafando a tormenta em que fluctuo. Vae senhor, que eu te sigo! Um momento De solidão te roo^a a minha ano-ustia.

GUILHERME

Na solidão requinta-se a tristeza; Se a dor se communica, a dor se abranda; Mas, pois o queres, fica: estes momentos Em serenar-te, amigo, eia, approveita. Fujam teus olhos, teus sentidos fujam Do perigoso objecto que os enleia; Emtanto c'o teu rei vou desculpar-te : Não tardes em seguir-me; heróico esforço Dos laços da paixão desate a gloria.

182 OBRAS DE BOCAGE

SCENA V

ARNALDO

Que farás, coração? Que lei, que jugo Te dispões a sofFrer? O amor, e a honra Prohibe o fado meu que em ti se ajustem: Se á honra me submetto, amor suspira; Se para amor propendo, a honra clama. Que trance tão cruel! Que alternativa! Qae horror!... Zaida perder! Perder a gloria ! . Sem esta, e sem aquella odeio a vida... Mas hei de a ceoro amor sacrificar-me Quando de mim carece a pátria minha? Hei de murchar viçosas esperanças ISTo coração de um pae tão bem plantadas? Hei de retroceder, hei de apartar-me Da estrada que seguiu, qu6 segue ainda, Croando honradas cãs de honrados louros, Da curva edade repellindo o pezo? Tégora fervoroso apoz seus passos Terei corrido em vão? Farei que aborte O gran projecto de hombrear com elle, Gloria que longe no futuro olhava? Será seu filho, oh céos ! o seu deslustre? . . . Não, vós me accudireis, em vós espero. Honra, pátria, virtude. Ah! Eu vos sinto, ' Vós me inílammaes a ideia: amor não pode,

FRAGMENTOS DRAMÁTICOS 183

Não pode o fero amor desarraigar-vos Do coração de Arnaldo: é inda o mesmo, E capaz de vencer-se: e.. . Deus eterno, Que objecto me apresentas ! . . . Zaida, Zaida". . . Honra, pátria, virtude, ah ! eu vos perco.

SCENA VI Arnaldo, Zaida e Zelima

ZAIDA

Salve, grão vencedor dos musulmanos, Gloria, e flor dos cliristãos, d'lieroes modelo, Impávido guerreiro . . . e frouxo amante, no sangue dos meus fartaste a sede ? Ou teu negro furor mais sangue exige? (1)

(1) Este drama tinha findos três actos, e era talhado para cinco ; mas nem ao menos vemos acabado o primeiro, que fechava com esta sexta scena, jogada entre Arnaldo, e Zaida-, e qae me peza de não apparecer, porque era bel- lissima, e n'ella combatiam todos os affectos contra todos os deveres; pois que elles reciprocamente se amavam com extremo, conhecendo que este amor era condemnado pelos interesses da sua lei, e da sua nação. Esta scena de per si era bastante extensa, mas devia-o ser; e junta com as demais, fazia o acto desmesuradamente grande; porém ao menos era (como poucos) uma perfeita exposição de todo o enredo; e, se Bocage lhe deitasse a lima, elle ficaria em tudo perfeitamente regular. (Nota de Pato Moniz,)

o HEROE LUSITANO

ou

(TRAGEDIA)

Viriato, Chefe dos lusitanos. Elania, Filha de Viriato. Cresinta, Confidente de Elania. Servilio, Tribuna romano. Flávio, Centurião. Aulaces, Um dos ca- bos do exercito lusitano. Minuro, ChefB dos Calaicos. AsTTR, Official no exercito lusitano.

A scena se figura nos arraiaes de Viriato.

AGITO I

SCENA I

Servilio e Flávio

SEEVILIO

Eis, FlaviOj os arraiaes dos lusitanos: Paremos um momento a contemplal-os. Ali de Viriato, ali de um chefe Destemido, illustrado, infatigável

186 OBRAS DE BOCAGE

Contra os fados do Tibre impera o Génio. (1)

Este da Natureza horrivel fructOj ^

Guerreiro, que respira, anhela estragos, A quem no duro ouvido alegres soam Os baques de amplos muros, de árduas torres; A quem da Humanidade é gloria o pranto, E são musica os ais, e o sangue é néctar; Execrando mortal, cruento, infrene, Que, na voz o trovão, na dextra o raio. Brama sumido em. pó, sumido em fumo, E rios o suor, e os olhos brazas, E braza o coração, que as Fúrias sopram. Por entre esquadras cem vae solto em mortes. (2)

(1) É quanto acho d'esta primeira scena, que abria cxcellentemente, declarando logo o logar d'ella, e dando idéa da acção.

(1) Esta falia não sei a que acto, nem a que scena pertence, ^nem quem a declama; presumo que seria um dos dous traidores Aulaces, ou Minuro; porque o terceiro traidor, e assassino de Viriato nâo foi Astyr, que entra em scena, foi Dictaleão, que não entra; porque taes phra- ses podem aqui entender-se contra Viriato, e as poderá proferir um seu acérrimo inimigo; e finalmente por que julgo que não convém na bocca de Servilio, nem de Flávio, romanos, que usavam fallar com dignidade dos seus grandes inimigos, e mais estes, que logo na abertura da scena, prorompem em elogios ao heroe lusi- tano. (Nota de Pato Moniz.)

FRAGMENTOS DRAMÁTICOS 187

Oommando heroes, sou Viriato , e posso Da pátria j da razão levar o esforço Além dos Pjreneos, além dos Alpes: Em nova Trebia, em novo Trasimeno Do Tibre inda talvez baqueie a gloria; Com outro Viriato á testa os lusos de sangue, e terror mancharam Roma: Na Itália, como aqui, sabe o mundo Que vós, filhos de um deus, também sois homens, Ou que os homens então venceram deuses (1).

(1) Estes versos claro está que os recita Viriato, mas também não sei em que acto, nem em que scena, nem é possivel que me lembre depois de tantos annos; mas es- tou bem certo que d'esta tragedia, ordenada para cinco actos, havia dous finalisados, e que estes tenuíssimos fragmentos dâo bem que sentir-lhe a perda. (Nota de Pato Moniz.)

EULÁLIA

ou A VINGANÇA DE AMOR

(TKAGEDIA)

Hamibo, Rico-liomem. Mathilde, Contractada esposa de Ramiro. Arnaldo, Amante de Eulália. Jaime, Velho, pae de Eulália. Eulália. Anthero, Confi- dente de Ramiro. Elviba, Aia de Mathilde. Ser- vos DE Ramiro. Povo.

A Scena se finge no solar de Ramiro, em uma das províncias do Korte.

ACTO I

SCENA I

Ramiro e Anthero

ANTHERO

Teu lúgubre silencio respeitando, Atégora, senhor, não tenho ousado Sondar a interna orio^em da tristeza

190 ' OBRAS DE BOCAGE

Expressa nos teus olhos . . . Que ! Ramiro,

O sangue dos heroes, o descendente

De Moniz, em virtude, em gloria, em armas

Bisigne mestre do primeiro Affonso;

Tu, que és acceito ao rei, e á pátria acceito.

Que ás hostes do Agareno has sido um raio;

Tu grande, tu feliz, que em ti reúnes

Os dons da Natureza, os dons da Sorte;

Que, mimoso de amor, esposa tua

Verás em breve a singular Mathilde,

Da corte porfcugueza esmalte, ornato.

Inveja de altas damas, que atavia

Á triste viuvez co'a flor das graças,

Go'a flor dos annos, e um caracter puro;

Tu por ella entre mil preposto, eleito,

E que a ti sup'rior vês o throno;

Envolves estes bens, estas ideias

Nas sombras de tenaz melancolia,

Pezada, mjsteriosa, incomprehensivel !

Depois de longa ausência, ao berço, aos lares

De teus grandes avós tornado apenas.

Como que vives n'um desterro amargo,

Em vez de te sorrir, de recrear-te

No aprazível theatro, onde exerceste

Os doces brincos da mimosa infância!

Ah ! Se um servo fiel, se um servo antigo.

Que, egual na edade a ti, seguiu tégora

Teus passos, teu destino em toda a parte,

FRAGMENTOS DRAMÁTICOS 191

Se Anthero, honrado somprej e sempre digno Da confidencia tua, inda a merece, *

Rompe um duro silencio, e deposita Dentro em meu coração teus dissabores. (1)

JAIME

Rogério foi perjuro ao rei, e á pátria; Não merece piedade, horror merece Quem ao dever, e ás leis faz alta injuria. E Eulália, prole minha, horror não sente De nefanda traição, de atroz delicto Que, á falta de cutelo, exige o raio I E Eulália chora o pae, lamenta o filho! . . , Que digo!... Ama-o talvez, e irreverente Ao dominio paterno, á voz do throno, Um criminoso ardor, defezo, indigno, Nos olhos, e nos lábios denuncia ! . . . (2)

(1) Nada mais achei pertencente a esta primeira scena.

(2) Acho declarado que esta falia pertence ao pri- meiro acto, porém nào a que scena. (Notas de Pato %Io- niz.)

192 OBliAii LK liJCAGE,

MATIilLDE

Ramiro me abandona, é certo, Elvira, Mathilde tem rival; por outros olhos Enlouquece o traidor, arde o perjuro: •Os votos, que llie ouvi, que os céos lhe ouviram, Votos de um casto amor, lhe voam d 'alma. (1)

ARNALDO

Vencido estás, a tua espada é minha: Aprende a respeitar os desgrac^ados, A acatar a virtude, e... vive.

ItAMIIiO

Oh raivai Eu vencido por ti ! . . . Mata-me, infame; Como dadiva tua odeio a vida.

ARNALDO

Essas injurias vás são meu triumpho. (2)

f 1) Egualmente esta, que pertence ao terceiro acto. (2) Estas falias também acho que pertencem ao quarto -acto, mus uâo designada a scena. (Notas de Faíu Mojiiz.J

FRAGMENTOS DRAMATICOíS 193

RAMIRO

O filho de Rogério

Des«rmou-me... oh labéo! Venceu-me. . . oh pejo!

O braço me trahiu, trahiu-me o ferro;

Pela primeira vez cedeu Eamiro

A contrario poder: não mais contemples

Meus titulos, meu gráo; perdi tudo^

Indigno sou de ti; suppõe-me extincto,

Suppõe-me aniquilado: a injuria é morte. (1)

EULÁLIA

Oppressor da ternura, e da innocencia. Verdugo do infeliz, que extincto adoro. Torpe do sangue, da perfídia negro, De mim queres amor?. .. Eu te posso Amar como no inferno as Fúrias amam. Eis o amor de que és digno : um ferro, a morte !... (2)

RAMIRO

Oh céos ! . . . Traidora. . . eu morro I (3)

(1) Também pertence ao quarto acto, e julgo que é logo na scena immediata ao desafio.

(2) Crava-lhe de repente um punhal.

(3) Cáe. (Notas de Pato Moniz.)

13

194 OCRAS DE BOCAGE

EULÁLIA

Acaba, infame^ Pérfido, acaba: tendes mais um monstro, Abysmos da medonha eternidade. Agora que me resta?... O que? Remir-me D'este cárcere mundo, horrores todo. (1)

SCENA ULTIMA

EULÁLIA

Quer ante os olhos teus morrer Eulaha, Ao pae quer abraçar-se a terna filha No momento final: contente expiro, Ao vêr-te é para mim suave a morte; Teu ódio, teu furor se applacaram, A justiça- real salvou do opprobrio A misera innocencia, e tu deploras Do meu querido amante o fjido acerbo: Honra a memoria sua, e co'a saudade Minhas cinzas consola. Arnaldo ! . . . Arnaldo ! .

(1) Pertencem ao quinto acto, creio que na penúltima scena. (Nota de Fato Moniz.)

C'-c

.^r^-/-^^-^^

FRAGMENTOS DRAMÁTICOS 195

Eulália vai no céo^ na gloria amar-tcj Vai longe d'este horror viver comtigo: Acolhe a tua. . . oh Deus. . . perdão, piedade. (1)

JAIME

Filha, filha infeliz!... Que dor! Que trance! Ah ! Triste, eu não fui pae, eu fui verdugo. . . Junto ao cadáver teu me puna o raio. (2)

MATHILDE

Dos phrenesis de amor que amargo exemplo ! Quantos males comsigo arrasta o crime! (3)

(1) Morre.

(2) Desfallecendo abraçado á filha.

(3) Isto são pertenças, ou acerescentos da ultima scena.

N. B. A excepção da primeira falia, tudo mais achei lançado em oitavos de papel, prova bastante de que eram accrescentamentos, ou emendas aos logares a que perten- ciam: d'estes mais podéra apresentar; mas como de per si valem pouco, pois que se ignora a sua ligação, conten- tei-me de coUigir o que basta para demonstrar a verdade da minha asserção, relativa ao acabamento d'esta trage- dia, que sem duvida era um grande abono para os cré- ditos de Bocage.

Bibliotlieca da ACTUALIDADE

N.os IO e dO OBRAS POÉTICAS

BOCAGE

VERSÕES

Bacine Ode á existência de Deus.

J, B, JRousseau As Forjas de Lemnos.

Virgílio Écloga v.

Bion de Smyrna Sepultura de Adónis.

Moscho Amor fugido.

* *-^Euphrasia a Ramiro.

* * Euphrasia a Melcour. Ovidio Morte de Lucrécia. Lucano Bosque de Marselha. Tasso Latino e seus filhos.

» Gildipe e Eduardo. Gessner Descripçâo do Diluvio. Voltaire Sacrifícios aos Espirites infernaes.

j> Combate de Ailly.

» Templo de Amor.

» A fome assolando Paris. M,"^^ Du Bucage Colombiada, cant. i. Legouvé-^M.Qvito das Mulheres, cant. i. Ossian Fragmento de Fingal. J. F, Cardoso Expedição de Tripoli. Ovidio Metamorphoses.

NAS REDONDILHAS

Argenson Ode.

Lafontaine Fabulas vi, vii, viii a xii.

Dufresny Epigrama xi.

M,^^ Bernard Epigr. xv.

M,^ Scudery Epigr. xxi.

Bois Róbert Epigr. xxm.

Perrault Epigr. xxxiv.

Alciato Epigr. xciv.

Bahutia Epigr. cn.

OBEAS POÉTICAS

BOCAGE

VOLUME V Terisoe» lyrleaís, Episódios traduzidos, Fastos

-^:^^:^^-

POKTO

IMPRENSA PORTUGUEZA EDITORA

187Õ

VEESÕES LYEICAS

Á Existência de Deus

(Extrahida do poema < A Religião > de Racine)

O Deus, a quem se deve a nossa crença,

Mortaes, é Deus occulto: Mas ohl Que irrefragaveis testemunhas

Ante nós congregadas, Pelas quaes se revele a gloria sua,

A sua omnipotência 1 Eespondei, mar, e céo, responde, oh terra,

Astros, mundos brilhantes, Que mão vos esparziu, vos tem suspensos

Na ethérea immensidade ? D'onde te veiu, oh noute, o véo lustroso?*

Céosl oh céosi Que grandeza! Que assombro 1 Que esplendor ! Que magestade !

Em vós, em vós conheço Quem milagres sem conto obrou sem custo;

Quem nos vossos desertos As luzes semeou, como semêa

Na terra o volátil.

6 OBKAS DE BOCAGE

Oh tocha do universo, auctor dos dias,

Da aurora annunciadol Oh astro sempre o mesmo, e sempre novo !

A que mando obedeces, Porque preceito, oh 'sol, dos mares surges,

Restituindo ao mundo O raio amigo, a fértil claridade?

De teus lumes saudoso Cada dia te espero, e tu não faltas.

Ah! Sou eu quem te chama? Sou eu talvez quem te regula o passo?

E a ti, pélago horrendo. Que em teu bojo voraz como que intentas

Absorver toda a terra, Que alto poder no cárcere arenoso

Retém, constrange, enfreia? Em vão forcejas, assanhado e torvo

Para arrombar teus muros ; Morrem na praia as espumosas fúrias.

Esses, cuja avareza No teu ^io traidor corre a punir-se,

Quando em serras e abysmos Ora os levas aos céos, ora aos infernos,

Imploram-te clemência? De olhos fitos na abobeda celeste,

Na fonte d'onde emana Sobre os tristes mortaes macio orvalho

De amor^ e de piedade.

tERSÕE^ LYRICAS

Invocam, suspirando, o braço eterno

Domador das procellas. Bradas n'aquelle extremo, oh Natureza,

" E as ristas lhe diriges, Guias-lhe as preces ao supremo asylo,

As preces, o tributo Que aterrados espirites não negam

Ao numen esquecido, Ou trocado até li por mil chimeras.

As vozes do Universo, Do assombrado Universo a Deus me chamam;

Sim; a Terra o pregoa. c( Fui eu quem produziu, fui eu (diz ella)

Quem compoz os matizes Que a minha superfície aformoseam ?

Não fui eu, foi aquelle, Aquelle, que assentou meus alicerces.

As mil necessidades Que te vexam, mortal, se logo acudo,

Deus, é Deus quem o ordena; Os dons, que me confere, a ti destina.

Flores, com que me adorno, Vós da mão lhe caís sobre meu seio 1

O creador, o eterno onde árida sou, e avara, e dura,

no escaldado Egypto (Para que folgue a timida esperança

Do cultor desejoso)

9 OBRAS DE mcÃm

Em prescripto momento ao Mio acôna.

Que trasborde, que innunde Meus campos, alongando-se das matg&DS^

E os orne, os enriqueça De douradas espigas susurrantes. d

Assim se exprime a Terra; E encantado de ouvil-a, e contemplando

Travados uns com outros Por invisiveis, portentosos laços

Milhões de entes diversos, Que á regra universal concorrem todos^

Encontro, encontro em tudo A lei que os encadêa, a mão que os liga;

E do plano sublime lS['um jubilo sem termo admiro, adoro

A pasmosa Unidade.

VERSÕES LYRICAB

As forjas de Lemnos

(Traduzida livremente de J. B. Rousseau)

Na famosa caverna, onde Vulcano Forja, e tempera do Tonante as armas, Vénus pedia aos hórridos artistas Recheassem de lúcidos virotes O dourado carcaz do filho astuto:

As Graças, os Prazeres Lhe prestavam seus dons, e seus encantos.

O carrancudo esposo Junto á fragoa immortal crestado, e^ cheio

Das saltantes faiscas,

* As mãos do ferro e fumo enxovalhadas,

* Nas faces crespas o suor em fio,

Cesfarte aífervorava Co'a voz, e exemplo os Cjclopes membrudos:

Eia, sócios, trabalhemos, Obedeça-se ao que manda Vénus bella, doce, e branda, Mãe das Graças, e de Amor.

10 OBRAS DE BOCAGE

C( Folies túmidos soprando Mais e mais o fogo atêem. Labaredas nos rodêem Com terrífico fragor:

<( Rubro o ferro escume, e ferva, Lide a mão com força enorme, Settas, farpas, dardos forme; E, brandido a cada instante, Na bigorna resonante Oáia o malho atroador.

«Eia, sócios, trabalhemos, Obedeça-so ao que manda Vénus bella, doce, e branda, Mãe das Graças, e de Amor.»

Instigado por elle, assim Vulcano

A volúvel consorte Obrava contra si terríveis armas; Quando o nuraen da guerra, inda horroroso Das mostras de recente mortandade, Entra, os olhos em braza, as mãos sanguentas,

E «Que fazeis (exclama) Filho de Juno, artifices do raio? Para entreter meninos ociosos Ante a forja voraz estaes suando ? Por isso, por tão pouco, e tanto á pressa Esta caverna horrisona rebomba?

VERSÕES LYRICAS 11

c( Que trabalho vergonhoso ! Eia, em cinzas transtornae-o : Ou deixae tão fútil brinco. Ou não mais forjeis o raio. »

Mas em quanto vozêa, em quanto affronta

O afadigado irmão, e as duras Brontes,

Eis farpa vingadora o pune e fere.

Que repentino ardor lhe inflamma o sangue !

Que pejo, que rubor lhe accende as faces !

Quer fallar, mas a voz nos lábios morre,

Dirige a vista ao céo, turba-se e geme:

Cede emfim; perde a côr, e o orgulho, as forças,

E seus olhos confusos, vagos, froixos

presos por Amor, namorados

Param no seio da benigna Vénus:

Revendo-se depois no rosto amado.

Terno sorriso o coração lhe acolhe.

Vós, que domaes a terra, Despi audaz furor; Sabei que o Deus da guerra é o deus do Amor.

Não lhe agraveis a gloria, Tremei de o irritar; E dares-lhe a victoria Querer-lh'a disputar.

12 OBRAS DE BOCAGE

Daplinis

(TraducçSo da Écloga v de Virgílio)

Interlocutores: Menalca, Mopso

MENALCA

que n'este logar nos encontramos Eu versado no canto, e tu na flauta, Mopso, porque rasão nos não sentamos Entre estas avelleiras, cujas folhas Quasi com as dos álamos se enredam ?

MOPS»

Tu és mais velho que eu, e a ti, Menalca, Me cumpre obedecer. Ou descancemoB A sombra d'estas arvores, que tremem Co' as frouxas virações, ou antes vamos Para a gruta, que alli se nos oíferece. Olha como verdejam dentro n^ella D'uvas agrestes pequeninos cachos !

VERSÕES LYBIOiS 13

MENALCA

Nos nossos montes disputar-te a gloria Pretende Amyntas só.

MOPSO

Não se presume Capaz de até vencer no canto a Phebo?

MBNALCA

Eia, Mopso, começa. Ou saibas versos Aos amores de Philis, alva, e loura, Ou em louvor de Alcão, ou á contenda De Oôdro, do bom rei, começa. Entanto Tityro cuidará dos nossos gados, Que na varia planicie andam pascendo.

MOPSO

Antes exp'rimentar uns versos quero, Uns versos, que sao meus, que inda outro dia D'uma faia entalhei no verde tronco: Ora os ia escrevendo, ora entoando. Ouve, e dize depois ao fofo Amjntas Que ouse, que venha disputar-me o premio.

14 OBKAS DE BOCAGE

MENALCA

Quanto o molle salgueiro ás oliveiras, Quanto o rasteiro arbusto d'alfazema Cede á belleza do rosal corado, Tanto, a meu parecer, te cede Amyntas.

MOPSO

Basta, mancebo. na gruta estamos. c( Desgrenhadas as nympbas pranteavam De morte lastimosa extincto Daphnis : Vós fostes de seus ais, de seus lamentos Testemunhas, oh arvores, oh rios. Quando a paílida mãe tendo nos braços O misero cadáver de seu filho, Cruéis aos céos chamou, cruéis aos fados. N'aquelles dias ninguém houve, oh Daphnis, Ninguém, que fartos bois levasse ao rio, E quadrúpede algum n'aquelles dias Não gostou agua, nem boliu na relva. n' Africa os leões te deploraram, Dizem-n'o os montes, dizem-n'o as flores. Daphnis instituiu, mandou que o jugo Ao carro submettesse arménios tigres ; Em honra a Baccho introduziu corêas, E a revestir de pâmpanos os thyrsos Ensinou aos pastores. Como as vides

VERSÕES LYRICAS . 15

Trepando são das arvores adornos,

E adornos são da vide os prenhes caclios;

Como servem de pompa, e de ufania

As manadas o touro, ao campo as messes,

Daphnis, eras dos teus o amor, a gloria:

Depois que os fados negros te levaram, '

Palies,. <6 Apollo d'entre nós fugiram.

Estas nossas campinas, que abundavam

De barbadas espigas proveitosas.

brotam joio infesto, inúteis hervas.

Surge o cardo mordaz, a çarça aguda

Onde a molle violeta roxeava,

E o purpúreo narciso. Oh vós pastores.

Mil folhas pela terra ide esparsindo.

As frontes assombrae co'a rama agreste,

Daphnis quer que a memoria assim lhe honrem.

Um tumulo erigi, gravae-lhe em cima

Estes saudosos versos: «Eu fui Daphnis,

d Das selvas conhecido ató os astros,

c( D'um bello gado guardador mais bello. X)

MENALOA

E divino poeta, é o teu canto Suave para mim, como é suave O dormir sobre a relva aos fatigados. Ou qual ao encalmado, ao sequioso Matar a sede em limpido regato.

16 OBRAS DE BOCAGE

Que vae por entre seixos murmurando: A teu mestre és egual, não na flauta Mas no verso, e na voz. Feliz mancebo ! Tu lhe has de succeder no dom, na fama. Nós com tudo, pastor, como podermos Algum verso também soar faremos: N'elle ás estrellas ergueremos Daphnis, O teu Daphnis aos céos irá com elle, Que Dapbnis se dignou também de amar-nos.

MOPSO

Que prazer me darás maior que ouvir-te! Daphnis é digno assumpto d'esses versos, E ouvi a Stimicon louval-os muito.

MENALOA

«Do Olympo as áureas portas estranhando Pasma em almo prazer o ingénuo Daphnis: debaixo dos pés nuvens, e estrellas. Eis a doce alegria occupa os bosques, Os valles, as montanhas, os pastores, O arcádio Pan, as driades donzellas. Nem o lobo ao rebanho insidias tece. Nem a rede traidora engana os cervos. Daphnis ama o socego. Intonsos montes, Mil vozes de prazer soltaes vós mesmos !

VERSÕES LYRICAS 17

Proferem brando verso até rochedos,

£ o trémulo arvoredo está soando:

Oh Menalcal Elleédens!... É deus!... OhJDaphnis,

benéfico aos teus. Eis quatro altares

Eil-os, dous para ti, dous para Phebo.

Aqui te sagrarei todos os annos

Dous vasos, em que espume o leite novo,

Com outros dous também, nos quaes loureje

Da plácida oliveira o grato sumo,

Baccho, fervendo em* pródigos banquetes,

Com fogoso pi'azer ha de espertar-nos,

E á sombra no verão, no inverno ao lume

As taças encherei de Arvisio néctar.

A Damêtas, e Egou direi que entoem

Ledas cauções, e os satjros saltantes

Ao leve Aiphesibeo direi que imite.

Sempre serás por nós d'est'arte honrado,

Ou quando, amável Daphnis, consagremos

Votos solemnes ás formosas nymphas,

Ou quando á roda dos hervosos campos

Co'as victimas andemos, como é uso.

Em quanto o javali na serra, em quanto

O peixe nadador folgar no rio,

Em quanto de tomilho a loura abelha,

E de orvalho as cigarras se abastarem,

Hão de permanecer por estes montes

Teu nome, o teu louvor, tua saudade.

Como a Ceres, e Baccho os lavradores

2

18 OBRAS DE BOCAGE

Todos OS annos te farão mil votos^

E obriga-os tu, se acaso os não cumprirem.»

MOPSO

Que premio te darei, que valha os versos, Os versos immortaes, que me encantaram? Tanto austral viração me não recrêa, Nem d'um mar brando arêas açoutadas, Nem o sussurro d'um arroio "^ameno, Que serpêa entre valles pedregosos.

MENALCA

Eu te hei de preceder nos donativos. Aqui tens esta flauta. E ella, oh Mopso, Quem fez com que eu cantasse aquelles versos; <r O pastor Oorydon, louco de amores, « Pelo formoso Alexis suspirava » E os outros: crEsse gado a quem pertence? «Talvez a Melibêo?»

MOPSO

Pois tu recebe Este cajado; tem de bronze o conto, E eguaes os nós. Antigenes mil vezes M'o pediu (e era então credor d'amar-se) Mas, por mais que lidou, não pôde obtel-o.

VERSÕES LYRICAS 19

A sepultura, ou a morte de Adónis por Bion de Smyrna

(Vertido fielmente da traducçâo litteral em latim)

Choro Adónis, é morío o bello Adónis, E morto Adónis, choram-no os Amores. Não míiis envolta nus purpúreas vestes, Não mais durmas, oh Yenus ! Eia, acorda, E kituosos véos trajando aíHicta, Fere co'a mão de neve o lindo peito, Dize a todos: E morto o bello Adónis, Eu choro Adónis, choram-n'o os Amores. Jaz na montanha Adónis, o formoso. Mordidas de alvo dente as alvas carnes: A triste Vénus esmorece ao vel-o Ir exhalando os últimos suspiros; Sáe do golpe fervendo o rubro sangue, líevoa morte lhe entorpece os olhos. Foge dos lábios a punicea ro.sa, Vão-se com ella os deleitosos beijos, Em que de gosto desmaiava a deusa. Inda no moço amável, não vivo, Dar osculo amoroso é doce a Vénus;

20 OBRAS DE BOCAGE

Mas Adónis (oh céos !) não vê, não sente

Que Vénus infeliz o abraça, o beija;

Eu choro Adónis, choram-no os Amores.

Adónis junto á cândida cintura

Tem mortifero golpe, e tu, oh Vénus,

Tu tens no coração maior ferida.

Os fieis animaes á caça usados

Em roda ao gentil domno uivaram tristes;

Nos montes as Oreades o choram.

A anciosa Vénus, soltos os cabellos,

Sem cor, sem atavio, e nua a planta

Pelos bosques vaguêa, e corre, e geme.

Na rápida carreira agudo espinho

Lhe extráe dos tenros pés o sangue puro.

Ella com alta voz atroa os valles.

Chama o terno amador, o assyrio moço.

Ai ! Entretanto o misero destilla

Rubicundo liquor das rotas vêas,

E purpúrea apparece a nivea carne.

c( Ah Vénus ! Vénus !...)) (os Amores gritam)

Dos olhos, e da face os mil encantos

Perdeu Vénus, perdendo o bello amante.

Quando Adónis vivia era das Graças

Vénus a deusa, Vénus o modelo;

Toda a belleza d'ella, o riso todo

Quando Adoms morreu, morreu com elle.

Arvores, montes por Adónis clamam,

De Vénus a tristeza os rios choram,

VERSÕES LYRICAS 21

Vão por Adónis siisj)irando as fontes,

Eoxas as flores pela dor se tornam.

Delira a consternada Cytherda

A girar, e a carpir de valle em valle.

Ah Vénus! Jaz sem vida o meigo Adónis.

Quem não lamentará da afflicta deusa

O duro estado, os miseros amores?

Oh dor ! Quando ella viu ser insanável

Do seu mimoso Adónis a ferida,

E o sangue em borbotões correr do golpe,

Abrindo os braços, e arquejando «Espera,

Espera, triste Adónis» (exclamava)

d Dá-me que eu gose este prazer extremo.

Deixa que mo console um terno abraço,

Que inda meus lábios nos teus lábios toquem.

Abre os olhos, Adónis, abre um pouco,

Bá-me um beijo, um beijo, em quanto a morte

Não te extingue o calor nos molles beiços.

Tua alma acolherei na minha boca,

E d'ella descerá para meu peito;

Doce amor beberei no beijo doce,

E o doce beijo guardarei saudosa

Como se fosse Adónis, que ingrato

A Vénus desamparas, foges d'ella

Para as medonhas margens de Acheronte,

Para o feio, implacável rei do inferno.

Eu, infeliz, sou immortal, sou deusa,

Eu seguir-te não posso, eu vivo, e morres I

22 OBRAS Dfí BOCAGE

Kecebe, oh tu^ Prosérpina, recebe O meu formoso encanto, a gloria minha ! Ah ! Quanto é sup'rior ao meu teu fado ! Tudo o que ha mais gentil, melhor no mundo Tudo possuirás, e eu desditosa Curtirei dor sem fim, saudade eterna! Temo a deusa tartarea, choro Adónis. Morreste, oh suspirado, e teus carinhos Como um sonho fugaz de mim voaram: Em triste viuvez eis Vénus fica, E os Amorinhos seus em ócio triste. Do meu cinto a virtude encantadora Comtigo pereceu ! . . . Ah temerário, Como sendo tão lindo, e tão mimoso Ousaste acommetter sanhudas feras?. . Assim carpia a mãe, e os Cupidinhos. Ai Vénus ! Ai que é morto o bello Adónis ! De Vénus tantas lagrimas correram, Quanto sangue correu do louro amante; Ê em flores se mudaram sangue, e pranto: Nasceu d'aquelle a purpurina rosa, D'este nasceu a anemone brilhante. Choro Adónis, é morto o bello Adónis. Não mais no iDosque, oh Vénus, o prantêes; Em sublime logar mão piedosa Digno thoro aprestou ao teu querido. Sobre teu leito jaz o morto Adónis, E morto, e descorado é bello ainda:

VERSÕES LYRICAS 23

Parece n'elle a morte um brando somno.

Depõe seu liso corpo em lisas vestes,

Vestes nas quaes envolto elle gosava

De noute ou mimos teus^ ou gratos sonhos.

Ama, posto que extincto, Adónis ama,

Tece-lhe as c'rôas, e os festões de flores,

Que depois que morreu ficaram murchas.

Rega do sumo de amorosos myrthos,

Perfuma de gratissimos aromas,

Perfuma os frios, delicados membros:

Pereçam, Vénus, os perfumes todos.

Se Adónis pereceu, que era o perfume,

O suave perfume da tua alma.

Na purpura descança o tenro Adónis:

Em torno d'elle suspiraes, Amores,

As lustrosas madeixas decotadas

Em honra funeral do extincto amante.

Aquelle calca aos pés bicudas settas,

Este o arco desmancha, esfoutro parte

Áureo carcaz de farpas abundante:

Um lhe descalça o nitido cothurno,

Outro agua cristalina em ricos vasos

Traz, carpindo, outro lava-lhe a ferida,

Co'as pennas outro em fim lhe agita os ares.

Os Amores lamentam Cytheréa,

E na porta Hjmenêo seu facho apaga,

E a cVoa nupcial desfaz saudoso. . .

Ah! Não mais Hymenêo, não mais seus hymnos,

24 OBRAS DE BOCAGE

lagrimas, ais borbulham, soam. Oh misero Hymenêo, misero Adónis! O, filho de Cinyra as Graças choram, E morto Adónis » (entre si clamando Em mais aguda voz, que a tua, oh Vénus) As três negras irmãs, as mesmas Parcas Choram em flor cortado o moço lindo, E até com mago verso á vida o chamam: Elle escuta, elle attende, e fica immovel; Não por estar contente onde se occulta. Mas Prosérpina o quer, e não permiíte Que elle gose outra vez a luz do mundo.

* Cessem pois, Cypria deusa, os teus suspiros :

* Um terno suspirar não move os Fados.

VERSÕES LYRIOAS 25

Amor fugido

(Traduzido de Moscho)

Yenus chamava o jfilho em altas vozes. Se alguém viu pelo campo (a mãe dizia) Andar vagando Amor, esse é meu filho, Meu filho, que fugiu. Quem souber d^elle. Quem noticias me der do meu Cupido Premiado será; tem certo um beijo Nos próprios lábios da amorosa Vénus: Porém se m'o trouxer, terá mais gloria, Cousas mais doces do que um simples beijo. Entre meninos mil este menino Por diífrentes signaes se reconhece. Não tem cândida a tez, mas cor de fogo; São seus olhos espertos, scintillantes, Meigo o fallar, o coração maligno, Nunca sente o que diz; tem mel nas vozes, Mas torna-se feroz, traidor, insano Apenas se enfurece. E mentiroso, E sagaz, é cruel até brincando; Trança espessa e formosa ao ar lhe ondêa,

26 OBBAS DB BOCAGE

Em dourados anneis lhe desce ao colo: Nas faces lhe transluz o ardor, a audácia; Tem pequenina mâo, porém tão forte Que arroja inuitó longe as fataes armas: A margem do Acheronte ás vezes voam, E colhem descuidado o rei do inferno; Seu corpo é nu, sua alma impenetrável; Com azas como um pássaro voltêa Do sexo vigoroso ao débil sexo; Pousa nos corações, e alli se aninha; N'um arco delgadinho aprompta as frechas. As frechas, que assim mesmo, ténues, curtas, Se entranham pelos céos, alcançam Jove; Pejam farpas subtis a aljava d'ouro, Que ao lado traz suspensa, e de seus tiros Até eu, sua mãe, sou alvo ás vezes; Tudo o que lhe pertence inclue estragos. Mas nada do que é seu produz mais damno Que um curto, antigo, inextinguível facho : O sol, o próprio sol com elle abraza. Mortaes, se o encontrares, eia, atae-o, Atae-o, e muito bem, porque não fuja. Se elle chorar, seu pranto vos não mova, Antes desconfiae, seu pranto engana. Se elle rir, apertae-lhe os nós do laço; Se quizer abraçar-vos, longe, longe; Fugi, não vos fieis; abraços, beijos Nada, nada: seus lábios tem peçonha,

VERSÕES LYRICAS 27

Seus beijos enfeitiçam. Se elle acaso Vos disser: ccAqui tendes estas armas, Tomae, eu vol-as dou » não pegueis n'ellas : Mimos de Amor são pérfidos^ e ardentes.

28 OBRAS DE B0CA6ÍE

Euphrasia a Ramiro

(Traducção)

Adorado Ramiro, em fim triumphas ! Meu remorso expirou, de Amor sou toda; De seu facho o fulgor meus passos guia; O pharol da Razão luz mais frouxa. Repousa a doce paz dentro em meu peito: Quem pode, sendo réo, ser tão ditoso? Criminosa não sou: do amante o crime Está no pouco amor, ou na inconstância. Para sempre te adoro, a ti me entrego. Outro bem para mim não ha no mundo, Nem socfgo enfadonho; errada eu cria Que era immortal brazão ser insensivel: Tu me desenganaste; um brando raio Solto dos olhos teus, brilha em minh'alma. Perdoa (caro amante) ao susto, ao pranto, Aos tímidos abraços, que afrouxava De um dever inventado a turva idéa: Perdoa a aquelles ais, que me voavam Do seio do prazer; na flor dos annos

VEKSÕES LYRICAS 29

Não é licito o medoj em quem succumbe Aos transportes d'amor, ás leis d'amante? Este suave instincto irresistível Se converte em temor^ antes da posse: Estes promptos, e incógnitos desejos, Se as paixões se vigoram, alvoroçam As molestas lições, com que na infância Se vae torcendo o passo á natureza: O mesmo, o mesmo excesso dos prazeres Nos enche de pavor: quanto mais vivos Então mais criminosos nos parecem: Mas apenas o espirito começa A conhecer o amor, e a julgar d'elle; Apenas principia a comprazer-se Na terna propensão, que os céos crearam; Apenas este amável sentimento Rebenta, cresce, lavra, e se apodera Das almas, que illudira a voz do Engano. Eis cessa dos remorsos o rebate, Eis nos apraz a languida saudade; da ternura as lagrimas vertemos, Temendo que não seja muito ardente A paixão, que atéli nos assustava. Sancta Religião, que trovejando Es})alhas o terror sobre os delictos! Transportes naturacs, ingénuos, doces, Oppõem-se ás tuas leis?. . . Por mais que imploro Teu favor, tudo é vão, tudo é baldado;

30 OBRAS DE BOCAGE

Tu, sem a converter, minha alma assombras;

Suspiro, e a pezar teu, Ramiro adoro.

Deu-se a Ramiro o coração, que exiges,

Até junto do altar o escuto, o vejo :

Fal!a-me, insta commigo, arde, e me inflamma;

Podem seus olhos, podem suas graças

O que ameaços teus em mim não podem.

Se inútil resistência ás vezes tenho,

E por dar ao meu bem mais um triumpho;

Porque, se em disputar-lhe os meus aíFectos

Lidas sempre, a victoria é sempre sua.

pois ao coração, que elle domina.

Força para vencer, ou jus ao crime.

O Ente, que a amar induz, o amor perdoa.

Era no arbitrio meu não ser sensível?

Por ventura eu sou livre? Ah! que ao supremo

Nume adorável obedeço amando:

Sua eterna justiça eu acredito.

Elle, que move esta alma, elle abriria

Debaixo de meus pés medonho abysmo,

Por ter o atroz direito de punir-me?

Dir-me-hia ao coração, que amasse o mesmo

Que devo aborrecer?. . . Não, não, que apenas

Meus olhos se encontraram com teus olhos,

Desusada alegria^ antes celeste.

De fibra em fibra salteou meu. peito:

Um poder, sup'rior ás forças minhas,

Senti, que o coração me arrebatava

VERSÕES LYRICAS 31

Para o ligar ao teu, ao teu que adoro !

Este prazer sagrado, os meus transportes. .

Nunca tanto prazer se uniu ao crime 1

At(5, para lograr maior triumplio,

Meu disputado amor tem contraindo

As feições, o caracter da virtude.

Quão feliz sou, e com que gloria o digo ! . . .

Amante, o mais amante, o m^is amável De quantos em ternura o peito inflamlnam, Tudo veiu do céo, tudo foi justo: Alardêa, que podes, alardêa Do encanto dos tóus olhos usa embora De todo o jus, que Amor te deu commigo. Agora, agora sei que antes de olhar-te Era a minha existência egnal á tua; Em languidez opposta á natureza Sem pena, sem prazer té'li jazia. O emprego, a rapidez da mocidade Eu ignorava, e consumia a vida Em cuidados inúteis; os mais sacros Devores sem fervor desempenhava; Como um duro senhor, como um tyranno, O Eterno se off'recia á minha idéa, Sacudindo o trovão, brandindo o raio. . . Minha religião era o medo.

Eu amo: que mudança, que deleite Doura meus puros, meus serenos dias !

32 OBRAS DE BOCAGE

Quanto vejo Ramiro afformosêa: Quando luz no oriente a fresca aurora, Acordam meus desejos amorosos; Quando a noute ennegrece os céos, e a terra, Nos traz um véo, que é útil aos amores. Nos dias da aprasivel primavera Recônditos abrigos nos oífreco Benéfica, e risonha a natureza. Sinto-me renascer, e habito um mundo Brilhante, encantador, de que és adorno, Amor, que é obra tua. . . Oh! doce amante! Que digo?. . . Menos ásperos e austeros Acho os deveres meus, acho o meu jugo Mais brando e não me pezam tanto os ferros : Deus um feroz déspota enraivado Me não parece já, depois que te amo.

Quanto devo prezar a ilíustre amiga, A benigna matrona, em quem reside D'estes vedados muros o dominio? EUa em obsequio meu o horror lhe adoça. Propicia ao nosso amor, sem que o suspeite, Ella recompensando os meus desvelos, O ardor, com que me esmero em agradar-Ihe, Caricias raaternaes commigo exerce: Ella me deu a conhecer um mundo Em que vi o que adoro; ella não arma Das pezadas lições do rigorismo A sisuda prudência. Ah! N'outro tempo

VERSÕES LYBICÁS 33

Sem duvida seu peito ardeu de amores ! Se não tivesse amado, assim não fora ! Tudo pune por mim, tudo nos vale, A sombra do mjsterio nos rodêa; Um deus ha, que preside ao bem do amante. Teu coração, e o meu sabem d'isto: Vivemos para nós, sem recearmos Olhos, a amor fataes, que nos espreitem. Nossas desejos o segredo aviva, E a íjubjeição do claustro é mais um gosto. Quando depois de rápidos instantes Aos fervidos coUoquios da ternura Com reciproco adeus convém pôr termo, Se avalia melhor um bem tão breve. Ah ! que não sabes, não, quanto te devo ! Quanto a minha eleição commigo approvo ! Não fallo das horas fugitivas, Que no meu pensamento estão paradas ; Momentos, em que amor é delicia, Que se pôde sentir, não definir-se. Uma alma, que á paixão não descanço. Depois d' estes momentos deleitosos, Inda de ser feliz acha o segredo: QiiMudo os sentidos meus em ócio jazem, Viva imaginação, tu vês, tu gosas; Seu jubilo se extingue, e o teu não morre; Comtigo meus prazeres se eternizam: Thesouros tem amor, que duram sempre.

34 OBRAS DE BOCAGE

Na ausência do meu bem me afferro a grata,

A suave illusão, que m'o affigura;

Mil vezes o nomeio; as cantilenas

De que se agrada mais, são as que entoo,

E, absorto no meu bem meu pensamento,

As vezes a illusão suppre a verdade.

Mas que digo? Apparece, attende, acode A quem por ti suspira, a quem te implora; Sim ; vem realisar meus ledos sonhos ! Sem temor, sem reserva, Euphrasia é tua: Oh gloria dos mortaes, oh gloria minha ! Nunca mais me ouvirás nem ais, nem queixas. Não tens que recear senão o excesso Da paixão, que me abraza; aos céos o juro: Foge dos braços meus, e n'outros braços Vae suspirar, meu bem, se eu for perjura.

VERSÕES LYRICAS 35

Euplirasia a Melcour

(Traducção)

Nunca mais vos verei, olbos que adoro!

OII10S5 onde colhi doce ternura!

OlhoSj qne para mim valieis tndo!

Suave nutrição de meus desejos !

Nunca mais vos verei ! . . . Que horror ! . . . Que idéa !

Ah! Gastigaes-me por amar-vos tanto?

Objecto encantador, fatal objecto.

Guiados da paixão te demandam

Meus ais, e ca me ficam dentro n'alma

Solitário pavor, funesto agouro

De que para mim não ha ventura.

Faltava-te, infeliz, seres deixada, Faltava- te este mal depois de tantos!. . . Receando que languida esperança AíFague, lisonjêe o meu tormento. Me diz o coração (voz dura, e triste: <( Cessa de amai-, oh crédula, que esperas !) Que fructo hão de render- te os vãos lamentos?

36 OBKÁS DE BOOAGE

Debalde com mil votos, mil suspiros

Pelo teu surdo ingrato estás chamando;

Em rápido baixel talhando as ondas.

Na pátria surgiu; descança, e folga

As ledas marx^ens do aofradavel Sena.

De ti não quer amor, náo quer extremos

O fero vencedor, misera escrava;

No regaço da paz, em teu desdouro,

Dorme sobre tropiíéos, que desdenha;

Nem se choras, ou não, sequer lhe importa. . .

Que!... Traidor, e esquecido!... Ah! não, teu genío

É volúvel, meu bem, não é tyranno.

Na memoria contemplo os teus desvelos;

Que encantadores, incansáveis eram !

Amei-os, gloria minha, amei-os muito.

Para desvanecer tão grata idéa!

Estas fieis, ternissimas lembranças

Deviam converte r-se em der, e em pranto?

Que noticia, meu Deus ! que horrível carta !

Lia-a, fiquei sem voz, sem cor, sem alma.

Como que o coração, desfeito em anciãs,

De mim se despegava, a ti corria!

Eis soccorros fataes, eis prompto auxilio

A vida a meu pezar me restituem:

Ufana em me sentir morrer d'amores,

triumphava da cruel, da triste

Precisão de carpir na tua ausência...

E de tão fino amor é este o premio ?

VERSÕES LYEICAS 37

Não importa: en jurei ser sempre tua,

Sempre hei de sêl-o : imita-me a constância,

com rosto indiffrente as mais bellezas.

Ah ! poderás soífrer em outros braços

Paixão, que no ferv^or não chegue á minha?

Mil vezes me louvaste de formosa:

Outras ha mais gentis, mas não tão firmes;

O amor, que reina em mim, não reina em outras;

E se amor se exceptua, o mais é nada.

Recorda o juramento, que fizeste De vires consolar a amante afflicta; Não, não sejas perjuro . . . Ah ! Se eu podesse Eotos os ferros d 'este claustro odioso Arremessar-me á foz do pátrio Tejo, Ninguém me detivera: em outras praias Iria apaziguar minha amargura, Idolatrar Melcour em toda a parte. Renascer nos seus braços : que é, que importa Esse bem casual, que chamam pátria? Pátria é onde o prazer nos acompanha. . . Sei o que digo, oh céos?. . . Sei o que penso? Ah ! não quero nutrir esta esperança, Inda que adoça o fel de meus desgostos; Tudo quanto os distráe detesto, expulso.

Mas dize, arrebataste-me os sentidos, Venc^ste-me, cruel, para entregar-me A desesperação, á dor, e á morte? Porque com mil excessos me encantaste,

38 OBRAS DE BOCAGE

Sabendo que esta ausência era forçosa?

Porquo no meu retiro escuro e feio

Me não deixaste em fim? Que atroz delicto

Commetti? De que oífensa estás queixoso?

Que te fiz eu?. . . Perdoa-me, querido,

Perdoa; do meu mal tu não tens culpa:

É teu fado agradar, prender vontades^

Carpir, morrer do amor é o meu fado;

D'elle formar não ouso a menor queixri,

E eis (oh céos!) o maior dos meus tormentos.

Não tenho que temer agora a Sorte:

Que mais me ha de tramar, que novos damnos,

Se o ultimo, o peôr foi separar-nos?

Escrcve-me por dó: sejam-te embora Molestas minhas supplicas; eu quero Miúda relação de quantas ditas O céo te conceder : quero gosal-as : Mais que tudo te imploro o vêr-te um dia. Se não tentas, meu bem, ser meu verdugo, Deixa-me conceber esta esperança: Assim mesmo enganosa, ella me é doce.

Adeus ! A carta, que a gemer te envio, Vae de saudosas lagrimas banhada . . Não a posso acabar ! . . . Quanto é ditosa ! As tuas mãos irá; teus olhos brandos N'ella se hão de. empregar; e eu, miserável. . . Ah ! Que insanias profiro ! O peito abafa De pranto, e de soluços carregado!. . .

VEKSÕES LYKICAS 39

Á morte pelas veias me circula ! . . . Porém se és meu, se a lagrimas te obrigo, Das almas fortes opporei o escudo A quantos golpes vibre a mão dos Fados. Sobre este coração fervei, tormentos; Mas vinde, mas voae á triste Euphrasia Suspiros do seu bem, thesouros d'ella.

EPISÓDIOS TEADUZIDOS

A morte de Lucrécia

(Extrahida do Livro ii dos * Tastos » de Oviaio)

Cercada pelo exercito romano, Um sitio pertinaz soffria Ardéa.

Em quanto a dura guerra está pendente, Em quanto aventurar feroz combate Teme a prudência, os chefes, e os soldados Folgam nos arraiaes em ócio ledo.

N'isto o filho do rei, Tarquinio o moço, A esplendido festim convida os sócios, E, reinando a alegria, assim lhes falia:

«Agora, que de Ardéa o vagaroso Assédio que nos detêm, nos não permitte As armas conduzir aos pátrios lares. Dos toros conjugaes a mantendo, As esposas gentis, que suspiramos, Suspirarão por nós, serão quaes somos?» cada qual sem termo a sua exalta; Accezo pelo amor, cresce o debate, Nos brindes do liquor fogoso, e puro A mente, o coração, e a íingua fervem.

42 OBKAS DE BOCAGE

Mas eis que d^entre os mais surgindo aqí;ielle A quem de alto appellido honrou Colácia, c(As palavras são vãs, crêa-se em cousas; A noute nos sobeja, esporeemos Os robustos cavallos, eia, a Roma. »

O dicto agrada, enfream-se os ginetes Os sôfregos mancebos partem, voam. Vão da estancia real primeiro ás portas, Onde guarda nenhum velando encontram. Entram, colhem de súbito engolphada Em festivo prazer, e em rubro néctar. Nas tranças com mil flores desparzidas A que ao filho em consorcio o rei ligara: Promptos caminham logo a ver Lucrécia.

Alvejavam da cândida matrona No fuso luzidio as mãos de neve: Dispostos ante o thálamo se olhavam De industriosa têa os brandos fios; Em torno á luz solicitas escravas A nocturna tarefa promoviam. Lucrécia em tom macio, em voz mimosa D'est'arte lhes dizia, as incitava: «E para Colatino, eia, apressae-vos; Cumpre mandar em breve ao meu consorte Isto, em que a nossa industria exercitamos. Vós, que tanto indagaes, e ouvis, soubestes Quanto ainda se crê que dure a guerra ? Vencida cairás, Ardéa iniqua^

EPISOBIOS TRADUZIDOS 43

Que de nossos esposos nós separas.

Tornem^ tornem , oh céos!. . . Mas ai! Que idéa!

O meu é destemido, é temerário,

Tem génio de arrojar-se ao fogo, ao ferro.

Foge-me a luz, o alento, esfrio e morro

Quando entre os inimigos o afiguro ! . . . »

ISfisto o pranto amoroso a voz lhe corta, Cáe-lhe o fio da mão, e o lindo gesto Sobre o molle regaço inclina a triste: Dobram-lhe a graça as lagrimas pudicas, E mostra um coração egual ao rosto. Eis o esposo apparece, e «Não receies. Aqui me tens.» (lhe diz). Ella revive, Ella os braços lhe lança, e longo espaço Peíide do collo amado o doce pezo.

Em tanto de amor cego o régio moço Arde, morre, e lhe attráe, lhe enleva os olhos A forma, a nivea cor, e a loura trança, E o grave adorno, limpido, e sem arte; A falia o prende, as expressões o encantam, E o que á vil seducção não é subjeito: Quanto menos esperas mais desejas. Mais te afíbgêas, sequioso amante.

Cantara o núncio da risonha aurora, E aos fortes arraiaes os sócios volvem. Atónito, em paixão Tarquinio ferve, Gosando na revolta phantasia A bella imagem de Lucrécia ausente,

44 OBRAS DE BOCAGE

E ali tudo o que viu mais lindo observa. «Assim (diz entre si) a achei sentada, Era o seu traje assim, e a mão suave O longo, ténue fio assim torcia; Doesta arte lhe caíam no alvo collo Áureas madeixas, ao desdém lançadas; Tinha este modo, estas palavras disse, Este o semblante, a graça, a cor, e a boca. . . )

Como se no mar, depois que os ventos, As azas saccudindo, o fla£ellaram, Que, ja puros os ceos, inda esbraveja Co'a ríspida impressão do horrendo assalto: Tal, postoque tão longe a bella estava, O incêndio, que ateou, no amante ardia.

Penando, e de paixão desesperado. Projecta macular com força, e dolo O thalamo sagrado, o casto objecto. c( O eíFeito é duvidoso (eis diz o insano) Porém não se fraqueje, ousemos tudo; Audazes corações proteje a Sorte: Os Gábios subjeitei c'o atrevimento. »

Cala-se, e pendura ao lado a espada, d'um rápido bruto opprime as costas. Corre, e chega a Colacia o moço ardente Quando o sol mergulhava o carro de ouro. O inimigo como hospede nos lares Do ausente Colatino é logo acceito, (Que o vinculo do sangue os dous prendia)

episodiokS traduzidos 45

A dama com primor o acolhe, o tracta;

Ai que enganada está ! Manda que apromptem.

Sem suspeita do crime, a lauta meza.

Contente do alimento, o somno exiges,

Oli lassa Natureza. Era alta noute,

Na estancia lume algum não scintiilava:

Levanta-se o traidor, um ferro empunha,

Vae, manso, e manso, ao thalamo pudico.

Mal que o toca: ((Um punhal commigo trago,

Lucrécia (elle lhe diz) )) eu «ou Tarquinio,

Sou o filho do rei.)) Nada responde,

Nem pode responder Lucrécia absorta:

De assombro, de terror jaz fria, e muda;

Mas, como a lamentável cordeirinha,

Que no tosco redil desamparado

Entre as garras se do lobo infesto,

Ante o fero amador Lucrécia treme.

Que fará? Contender, luctar com elle?. . .

Ella é débil mulher, será vencida.

Gritará ? . . . Tem na dextra um ferro o monstro.

Fugirá?. . . Dura mão lhe aperta o peito,

Não manchado até ali de toque infame.

Insta com roo-os o inimio^o amante,

Com prémios, e ameaços; mas seus rogos,

Seus prémios, e amea(;os nada alcançam.

((Não cedes, inhumana, a meus transportes? Pois (o bárbaro diz) hei de arrancar-te Com este ferro a vida, apregoando

46 OBEAS BH BOCAGE

Que em adultério vil co'um torpe escnivo Te colhi : a teu lado o porei morto, E horrenda ficará tua memoria.)) A matrona infeliz, temendo a fama, A fúria succumbiu do fementido.

Indigno vencedor, para que exultas? Será tua ruina essa victoria: Ai ! Quanto ao sólio teu custa uma noute !

Dissipando-se as trevas, apparece Lucrécia desgrenhada, e qual costuma Ir lacrimosa mãe do filho á pyra. O consorte fiel, e o páe longevo Ohama do campo: os dous acodem logo, Vêm- lhe o luto, e do luto a causa inquirem, Perguntam-lhe que mal, que dor a ancêa, E as honras funéreas a quem consagra?

Ella fica em silencio um longo espaço, E no véo lutuoso esconde a face, Soltas em fio as lac^rimas formosas. Consolando-a co'a voz, e com o afago, P'aqui lhe roga o páe, d'ali o esposo Que falle emfim, que exprima o que padece, E choram, temem com pavor incerto.

Três vezes começou, parou três vezes, E á quarta se atreveu a declarar-se, Mas sem a vista erguer: «Tarquinio a isto Me obrigará também! (profere a triste) Eu mesma hei de narrar a injuria minha!

EPISÓDIOS TRADUZIDOS 47

Eu mesmaj desditosa, hei de aíFrontar-me ! » Conta o que pôde. . . resta o mais. . . e chora, E o pejo lhe aífoguêa a face honesta. O páe, e esposo o crime involuntário Perdoam. Perdoaes ! Eu não. 3> (diz ella) E aguçado punhal^ que traz occulto, Co'a melindrosa mão no seio embebe.

Cae aos paternos pés ensanguentada, E olhando para si, moribunda, Para ver se o pudor na queda offende: Este o cuidado da infeliz, morrendo.

Eis junto ao corpo amado o páe, e esposo, Deslembrados da gloria, e do decoro. Jazera carpindo o seu commum desastre. Bruto, que a scena infausta presencêa, O nome com o espirito desmente: Do peito semivivo arranca o ferro, É ali na mão com elle, que distilla Da victima formosa o puro sangue, N'um ar ameaçador taes vozes solta Do affouto coração: c(Por este honrado. Por este varonil, egrégio sangue, E por teus manes, que serão meus numes, Juro ao feroz Tarquinio um ódio eterno. Juro de o proscrever, e á prole infame ; Seus crimes infernaes serão punidos: Tens oh virtude, assaz dissimulado ! »

Âo som d'estes impávidos protestos

4:8 OBBAS DE BOCAGE

Os olhos, sem luz^ ergue Lucrécia: Meneando a cabeça approva, e morre.

Sobre funéreo leito se coUoca O gentil corpo da heroina excelsa. O espectáculo triste expõe-se a todos, E deve a todos lagrimas, e inveja; Vae patente a ferida; o denodado Bruto, vociferando, incita o povo, E do mancebo audaz lhe narra o crime.

Com a estirpe cruel Tarquinio foge: Foi aquelle o famoso, ultimo dia Em que o duro oppressor deu leis a Roma. Cessa o reinado, os cônsules se criam, E as rédeas tomam de annual cjoverno.

EPISÓDIOS TllADUZIDOS 4^

O bosque de Marselha

(DescripçSo tirada da < Pharsalia » , de Lucano, Livro ni)

junto de Marselha havia um bosque, Nunca dos longos séculos violado. Co'a rama implexa os ares denegria^ Amedrontava o sol co'as altas sombras. Nymphas, Sylvanos, Pan, que rege as selvas, Ali não tem poder, ali reinam Numes, que exigem barbaras oíFrendas; Aras cruéis as Fúrias erigiram Roxêa em tronco, e tronco o sangue humano.

Ali, se merece a antiguidade. Sobre os ramos íirmar-se as aves temem. Temem as feras acolhôr-se ás covas. Não soa o vento ali, nem bate o raio, Nem folha alguma os Zephyros consente: Um mudo horror as arvores abrange. De origens torpes negras aguas fervem; Dos deuses maus simulacros feios Carecem de arte, são informes troncos.

50 OBRAS DE BOCAGE

A mesta palHdez, que os vultos cobre, A surda corrupção, que os vai roendo, Nos absortos mortaes terror infunde; Receiam numes de apparencia extranha: Tanto augmenta o pavor, tanto o requinta Ignorar que poder, que deuses teme!

Era geral rumor que ali se ouviam Mugir as grutas, vacillando a terra, Que o derrubado teixo ali soía Aos ares outra vez alçar a coma, Até sem consumir- se arder o bosque, E enroscados dragões silvar nas pLintas.

Não próximo culto ás aras ti-istes, Nem o infesto logar frequenta a gente: Espavorida o cede nos deuses torvos. Quando no ethereo cume o sol chammeja, Ou quando a opaca noute afêa o polo, Dos ritos feros o ministro mesmo Teme entranhar-se nas funestas sombras, E o senhor encontrar do bosque horrendo.

César ordena que derribe o ferro As arvores, que, intactas d'outras guerras, E entre altos montes nus encadeadas. Do romano arraial surgiam perto.

Eis os braços guerreiros estremecem. Os fortes corações eis enregela Do ermo escuro a terrivel magestade: Crêm que, se as sacjas arvores ferirem,

EPISÓDIOS TRADUZIDOS 51

Hão de os férreos, vibrados instrumentos Voltar-se contra os Ímpios, que os menêem.

Júlio, que do terror os tomados, Rápido a um d'elles a bipenne arranca; Ergue-a, n'um tronco ingente. a descarrega, Ás cohortes se volve, assim lhes falia: C( Porque nenhum de vós talhar duvide A selva, onde pensaes que habitam deuses, Crede-me, embora, o réo do sacrilégio.»

Diz, e a pávida turma obediente. Sem repellir o horror, succumbe ao mando: Teme a ira dos numes, e a de César, Porém mais a de César, que a dos numes.

nodosos carvalhos caem por terra. Caem por terra os suberbos, duros olmos, No chão baquêa o fúnebre cypreste, Que a lutos não plebeos é consagrado. Pela primeira vez, Dodóneo bosque. Depões a idosa rama, e sem ella, Sem sombra, qué te ampare, o dia admittes.

Mas inda se mantêm, caindo, a selva Com seus restos espessos; Gallia geme, Olhando o feito audaz; porém, reclusa A crente mocidade entre as muralhas, Exulta: quem julgara que seriam Impunemente os deuses affrontados!

52 OBBAS DE BOCAGE

Latino e seus filhos

(Episodio da « Jerusalém > de Tasso, Canto ix)

Entre os heróes cliristãos, que pelo esforço Ante Jerusalém mais se afamaram Na do feroz Soldão nocturna guerra, ^Latino reluziu, nascido em Roma. Das lidas marciaes, da longa edade Inda gastas as forças não sentia; Com cinco filhos, quasi eguaes, ao lado Nas hórridas pelejas sempre andava. EUes, anticipando ao tempo a fama, De férreo pezo as frontes opprimiam, E os membros juvenis, inda crescentes; Pelo paterno exemplo estimulados, Amolavam no sangue o ferro, as iras.

c( Vamos (o pae lhes diz) onde um impio Oo'a fuga dos christaos se ensuberbece; O horror, o estrago, as mortes, que fulmina^ Em vós o innato ardor não diminuam: E gloria trivial, se a gloria, oh filhos, De algum passado trance não se adorna. »

Assim brava leoa os filhos bravos, A quem do collo a juba inda não desce,

EPISÓDIOS TRADUZIDOS 53

A quem das mãos cruéis, da horrenda boca Inda as terríveis armas não cresceram. Leva comsigo ás presas, aos combates, E os vae com torvo exemplo encarniçando No caçador, que os bosques lhe perturba, E as feras menos fortes aíFugenta.

Seguem o pae sublime os cinco incautos, O enorme Solimão saltêam, cingem, E n'um ponto um arbitrio, e quasi Um espirito só, seis lanças vibra. Mas, cegamente aífouto, o de mais annos Sacode a sua ao chão, c'o turco cerra, E tenta em vão co'a penetrante espada Derribar-lhe sem vida o gran ginete.

Porém qual monte exposto ás tempestades, Qual monte sobranceiro ao mar que o fere, Supporta, firme em si, trovões, e raios. Os indignados ceos, ondas, e ventos; Assim o audaz Soldão a altiva fronte Tem fixa contra os ferros, contra as hastes, E áquelle que o ginete lhe golpêa, Entre as faces, e os olhos fende o rosto.

Aramante ao irmão, que vae caindo. Piedoso estende o braço em que o sustenta: Piedade louca, e vã, que ao damno alheio Une tragicamente o próprio damno. O pagão contra o braço o ferro inchna, E o que a elle se atêm com elle aterra :

54 OBRAS DE BOCAGE

Caem amboSj um sobre outro desfallecem, E misturam, morrendo, os ais, e o sangue.

Eis, de Sabino a lança espedaçando, Com que o moço gentil de longe o infesta. Lhe arremessa o cavallo, e de arte o colhe. Que por terra, tremendo, o deita, o piza. Do delicado corpo adolescente Sáe a alma a grande custo, e deixa triste Da vida as auras plácidas, os dias Ledos, e ornados de mimosa idade.

Vivos Pico, e Laurente inda restavam, Com que um parto os pães enriquecera, Par florescente, egual, qi,ie tantas vezes Origem fora de suave en^rano ! Mas se os fez natureza indistinguíveis, diíF' rentes os faz a hostil braveza: Oh dura distincção ! Em um divide Do busto o collo, ao outro o peito rasga.

O pae (ah não pae ! . . . Ah sorte injusta. Que n'um ponto o privou de tantos filhos!) A sua morte nas cinco mortes, Na progénie infeliz, de todo extincta; Nem sei como a velhice é tão constante, Tão forte, e tão vivaz na extrema angustia, Que inda respire, que peleje ainda ! Mas as tristes acções, as faces tristes Não viu talvez dos moribundos filhos,

EPISÓDIOS TRADUZIDOS 55

E do acerbo espectáculo a seus olhos Parte as amigas trevas enoubriram.

Com tudo, não perdendo a infausta vida, Nada lhe era o vencer. Do próprio sangue Pródigo freme, e soíFrego do alheio: Nem se conhece bem qual mais deseja Se morrer, se matar. «Tão desprezível, Tão fraca é esta mão (grita ao contrario) Que de tantos esforços nenhum pode Contra mim provocar-te a negra sanha ! )) Cala, e golpe mortal despede ao fero. Que, roto o rijo arnez lhe rompe o lado, E por larga abertura o sangue ferve.

Ao grito, ao golpe contra o velho ancioso O bárbaro volveu a espada, as fúrias. A loriga lhe abriu depois do escudo. Que vezes septe duro couro envolve, E o ferro lhe embebeu pelas entranhas. Eis Latino infeliz soluça, expira, E com vomito alterno ora lhe salta O sangue da ferida, ora da boca.

Qual no Apenino vigorosa planta, Que as iras desdenhou de Aquilo, e de Euro, Se tufão desusado em fim a arranca, Co'a queda emtorno as arvores derruba : Tal cáe o heróe, e o seu furor é tanto. Que leva apoz de si mais d' um que afferra, E de homem tão feroz é fim bem digno Fazer, até morrendo, altas ruínas.

56 OBRAS im BOCAGE

Gildipe e Eduardo

(Episodio da «Jerusalém» de Tasso, Canto xx)

O ferido combate ardendo estava Entre o campo christão^ e o campo egjpcio. N'isto o bravo Soldão co'a morte, e as fúrias Corre, escumando, aos bárbaros se aggrega, Gran reforço lhes é, mas breve, inútil: Parece horrendo, momentâneo raio, Que repentino vem, que bate, e passa, Porém que da veloz carreira infesta Deixa vestígio eterno em rotas penhas. Cem guerreiros, ou mais derriba o turco: Sequer entre milhões de extinctos nomes A memoria de dous se roube ao tempo.

Tristes esposos, férvidos amantes, Eduardo, e Grildipe, os fados vossos Duros, acerbos, e os illustres feitos (Se a meus toscanos versos tanto é dado) Sagrarei entre espirites famosos, Porque a serie dos evos, quaes portentos De virtude, e de amor, vos olhe, e aponte,

EPISÓDIOS TRADUZIDOS 57

E algum terno mortal com doce pranto Honre os lamentos meus, e a vossa morte.

A generosa dama, esporeando O dócil bruto audaz, se arremessa Com o esposo fiel por entre as turbas. Onde o feroz pagão derrota os Francos: Com golpe sobre golpe o colhe em cheio, O escudo lhe desfaz, lhe rasga o lado.

O cruel, que no traje a reconhece. Diz com agro, cholerico sorriso: c( Oh ! Eis o rufião, e a apaixonada I Muito melhor te fora agulha, e fuso Que por defeza haver armas, e amante.))

Cala-se, e de furor todo abrazado, Vibra estocada temerária, e fera, Que ousou, rompendo o arnez, entrar no peito, Que dos golpes de Amor era digno. Súbito a triste, abandonando o freio, Indicios de quem desmaia, e morre: Ai I Bem o observas, misero Eduardo, Não lento defensor, mas desditoso.

Que fará n'este lance? Ira, piedade A varias partes n'um tempo o chamam : Uma a suster seu bem, que vae caindo, Outra a vingal-o do hórrido homicida. Amor imparcial o persuade , A que a piedade escute, escute a ira: Eis co'a sinistra mão sustem a esposa, E co'a raivosa dextra exerce o ferro.

58 OBKAS DE BOCAGE

Mas ah ! Vontade^ e força, divididas Contra o duro pagão bastar não podem; Não mantêm a infeliz, nem o verdugo Do seu doce prazer conduz á morte; Antes o impio Soldão lhe corta o braço, Piedoso arrimo da consorte amada: Cair a deixa o misero, e comprime Os membros d'ella c'os seus próprios membros.

Qual olmo, a que a vinosa, a fértil planta Com abraço tenaz se enreda, e casa. Se ferro o parte, ou raio o desarreiga, Leva comsigo a terra a sócia vide: Elle o verde atavio lhe desfolha, Elle mesmo lhe piza as gratas uvas, E como que lhe dóe mais que seu fado O fim da amiga, que lhe moríe ao lado.

Tal cáe o amante, e se dóe d'aquella Que em companheira eterna o cóo lhe outorga. Querem, não podem proferir palavras, Formam suspiros em logar de vozes; Um olha ao outro, e por costume antigo Um com outro se abraça em quanto existe. O dia n'um ponto aos dous se apaga, E as almas juntas aos eljsios voam.

EPISÓDIOS TKADUZIDOS 59

Descripção do Diluvio

(Traduzida de Gessner)

As torres de extranhissima grandeza Estavam pela aguas cubertas, E a triste, malfadada humanidade não tinha outro asylo, outra guarida Mais que o cimo de um monte alcantilado, Que ainda além das ondas assomava. Soar em torno d'elle os ais se ouviam Dos míseros mortaes, que em vão lidavam Por trepar aos cabeços, e abrigar-se Da insaciável morte, que, enrolada Na escumosa torrente, os perseguia. Eis que desaba em parte a gran montanha. Eis que a rota porção no mar se abysma, E na queda fatal comsigo abate Quantos ao vão refugio se acolheram. O filho cáe d'ali precipitado. Lançando pias mãos ao páe caduco; Das maviosas mães no seio amigo Tenros meninos suffocados morrem;

60 OBBAS DE BOCJAOB

Pavoroso motim retumba ao longe Dos homens, e dos brutos, que perecem Juntos no horrível barathro dos mares.

não restava então mais do que um pico Altíssimo da serra ainda illeso Do estrago universal. Fanor, mancebo, * Heróe no coração, pastor no officio. Para ali conduzira a doce amante, Semira d'entre as ondas arrancara, E, apesar do furor das vagas todas, O triumphante Amor, Amor piedoso A donzella infeliz salvou da morte.

Tinham nascido os dous nos férteis campos Que banha o longo, celebrado Euph rates. Fanor entre os que ali se distinguiam Era o mais abastado, o mais amável; Semira a mais gentil, mais virtuosa Das suas companheiras: os desejos Tu ias, Hymenêo, satisfazer-lhes, E o dia de vingança, o dia horrendo Em que Deus castigar determinara Do mundo os negros, os nefandos crimes, Era o mesmo em que haviam de ligar-se N'um laço deleitoso os douá amantes. Jazia tudo o mais no bojo immenso, Nos abysmos do mar: Fanor, Semira Sós ao geral naufrágio sobrevivem. Em montes a seus pés as vagas mugem.

EPISÓDIOS TRADUZIDOS ixL

Por cima das atónitas cabeças

Lhe rebomba o trovão, reina-lhe em roda

Pezada escuridão, cujos horrores

O clarão dos relâmpagos não rasga

Senão para oíFrecer-lhe aos olhos tristes

O medonho espectáculo dos mortos,

O miserável tumulo da terra.

Estreitara Semira o terno amante Ao peito' esmorecido, e melindroso ; Junto a seu coração, trémula, e fraca, Ella o quer, ella o tem, e assim modera O terror em que a põe seus duros Fados.. «Mas querido Fanor (lhe diz Semira), não ha para nós nenhum refugio, É forçoso morrer!... Já, nos cerca A vingança dos céos por toda a parte. Não houves o fraijor, não vês as serras Do tormentoso mar! Não vês, não ouves Dos raios, dos trovões a luz, o estrondo ! não ha para nós nenhum refugio, E forçoso morrer... oh morte! Oh morte! Eras tu quem devia unir-nos hoje?. . . Oh meu Deus ! Meu juiz ! Eil-a bramindo . . . Eil-a que »e arremessa a devorar-nos. . . Ai ! Como se revolve em cada vaga ! . . Sustenta-me, Fanor. . . entre os teus braços. . . As ondas . . . me arrebatam . . . me arrebatam . . . Sustenta-me, querido ... eu caio - . . eu morro . . .

62 OBRAS DE BOCAGE

Ditas estas palavras, cerra os olhos, Congela-se-lhe a voz, e cáe sem forças Entre os braços do amante. Elle sem tino. não serpear o ethereo fogo. As ondas não fervendo em serras, Não mais que Semira entregue á morte. A lassa robustez no mesmo instante A desesperação, e Amor lhe innovam : Em seus braços aperta a doce amada. Centre as ondas a arranca, e de mil beijos Cobre as macias, delicadas faces, Co'a triste pallidez inda formosas, E frias, e alagadas dos chuveiros. (( Semira (elle lhe diz), meu beira, desperta, Esta scena de horror contempla ainda, Volve ainda uma vez a mim teus olhos, Dize ainda uma vez que lias de, oh querida, Amar-me até morrer, dize-o, repete- o Antes que as bravas ondas nos engulam.» Diz: ella torna em si, lança-lhe os olhos Cubertos de agonia, e de ternura; Sobre a destruição depois os firma: c(Oh meu Deus! Meu juiz! (exclama a triste) não ha para nós, não ha piedade? Ai ! Com que fúria as ondas vem rolando ! . . . Que horrorosos trovões ! . . . Oh Deus eterno ! Meu páe! Meu creador! Não te commoves! Não deixas abrandar vinganças tuas !

EPISÓDIOS TRADUZIDOS 63

Ah! Tn, que tudo vês, tu bem o sabes.

Os annos de Fanor, e os de Semira

Iam correndo envoltos na innocencia.

Oh tu, claro exemplar de mil virtudes,

Tu, dos filhos dos homens o mais justo,

Oorao em fim mereceste ... ai desgraçada !

Eu vi, vi perecer todos aquelles

Que faziam tão doces os meus dias;

Eu te vi perecer, meu páe (que angustia !)

(Que amargosa lembrança!) Eu te apertava

Em meus convulsos braços, tu erguias

Para a filha os pezados, ternos oUios,

E para abençoal-a as mãos piedosas

Quando as terríveis ondas te sorveram.

O que era para mim de mais estima

Me foi roubado, oh céos ! Porém, com tudo,

Nos abysmos, Fanor, sumida a terra,

Presentára a meus olhos as delicias,

A^ graças do terrestre paraiso,

Se o céo me concedera o possuir-te. . .

Oh Ueus! Oh summo Deus! Não ha clemência!

Nossa vida innocente nos não vale!

Não poderá vencer. . . mas, cega! Aonde

Me leva, me arrebata a minha ano-ustia!

Perdoa, oh meu juiz, meu Deus, perdoa;

Estas murmurações expie a morte.

Quanto a mesma innocencia ante os teus olhos,

Quanto a mesma innocencia é criminosa!))

64 OBRAS DE BOCAGE

Fanor aqui susteve a gentil moçaj Que ao repellão do vento ia caindo^ E sustendo-a, lhe diz: «Sim, oli Semira, Nosso final momento está chegando; As ledas, as suaves esperanças De um reciproco amor se esvaeceram: Eis o termo fatal dos nossos dias; Porém não acabemos como os Ímpios. E forçoso morrer: mas, doce amada, Além d'esta mortal vida penosa Vive a gloria, o prazer, a eternidade. Remóntém-se, querida, as almas nossas Ao Dons seu creador; longe os terrores: Nós vamos exultar, e agasalhar-nos No seio paternal do Omnipotente; Abraça-me, e esperemos nossos fados. Do centro d'este horror, Semira, em breve Nossos livres espirites, voando Engolphados n'um jubilo sem termo, Se irão sumindo pelo céo brilhante. Oh Deus! Oh grande Deus! Esta esperança Em nossgs corações nutrir ousamos. Elevemos, Semira, eia, elevemos Enfraquecidas mãos ao nume eterno. Cabe em, frágeis, erradas creaturas Dos juizos de um Deus tentar o abjsmo? Aquelle, que nos deu co'um sopro a vida. Que pode quanto quer, prepara, e manda

EPISÓDIOS TRADUZIDOS 65

A morte ao criminoso, a morte ao justo. Venturoso o mortal, feliz quem sempre Da virtude trilhou, seguiu a estrada! A vida já, meu Deus, te não pedimos, Execute-se em nós tua justiça; Mas accende, affervóra esta esperança De um bem, de um alto bem, summo, ineflfavel, Vedado á turbação, e horror da morte. Brama então sobre nós, trovão medonho 1 Devorae-nos então, sanhudos mares! O sancto, o justo Deus seja exaltado, E ultimo sentimento, ultima idéa De nossos corações, de nossas almas Seja seu nome, sua gloria seja.» O jubilo, e valor asserenaram O rosto de Semira, e no seu rosto Os lumes immortaes da divindade Como que luziam. <íSim (diz ella, Alçando para os céos as mãos mimosas) <íEu te sinto, dulcíssima esperança. Louvemos o Senhor. Vertei, meus olhos, Lagrimas de alegria, até que a morte Com a géhda mão venha cerrar-vos. Uma gloria sem fim por nós espera. Vós, parentes, vós, pães, delicias nossas, Arrancados nos fostes, mas em breve Nos vamos novamente unir comvosco. Dos justos, oh meu Deus, está cercado

66 OBRAS DE BOCAGE

no cume dos céos teu throno augusto: Tu de todas as partes do universo Os congregas, Senhor. Fervei, oli raios, Inchae-vos, escárcéos, brami, oh ventos ! Vós sois, vós todos sois da inevitável Justiça eterna os cânticos, e os órgãos. Abraça-me, querido . . . olha . . . esta vaga Escumosa, é feroz. . . nos traz a morte. . . Abraça-me, Fanor . . . não me abandones . . . Ai!... meerguem... as ondas. ..já me absorvem.

ccSemira (diz Fanor) eu não te deixo. Eu te abraço, meu bem. Tu vens, oh morte, Tu vens em fim cumprir nossos desejos . . . Graças . . . mil graças á justiça eterna ...»

Assim fallaram, e em abraço estreito, Tragados pelas ondas, pereceram.

EPISÓDIOS TRADUZIDOS 67

Sacriflcio aos espíritos infernaes

(Episodio extrabido da «Henriada» de Voltaire, Cauto v)

^ Em quanto fera cliusma de rebeldes As portas de Pariz vai conduzindo O desleal, fanático mancebo, Sobre o successo d'arrojada empreza Os Dezeseis sacrílegos intentam Dos fados aclarar a escuridade. Curiosa de Médicis a audácia, Mysterios de tão lôbrega sciencia outr'hora indagou, quiz outr'liora Entranliar-se nas trevas, nos horrores D 'esta arte superior á Natureza, Quasi sempre chimera, e sempre crime. Por todos foi seguido o feio exemplo, E o povo insano, que imitar costuma Com animo servil dos reis os vicios. Amador do que é novo, e do que assombra Em multidão c.orria aos sacrilemos.

68 OBRAS DE BOCAGE

Para o centro de abobada horrorosa Pelas nocturnas sombras o silencio Guiara a detestável assembléa. Ao pallido clarão de maga tocha Ara vil sobre um tumulo se erige, Onde as imagens dos dous reis coUocam, Objectos de seus ódios, seus terrores,- De suas maldicções, de seus insultos. Ali por voz sacrílega se annexa A nomes infernaes d'um Deus o nome; Cruas fileiras de aguçadas lanças Luzem debaixo dos medonhos tectos: Tingem-se as pontas em sanguineas taças, Hórrida pompa de hori-ido mysterio !

O ministro do templo é um d'aquelles Que, odiosos, dispersos, e proscriptos, Giram, vagueam, cidadãos do mundo, Levam de mar em mar, de terra em terra O seu abatimento, a sua affronta, E de superstições montão damnoso Têm por todos os climas desparzido.

Uivando os Dezeseis em torno d'elle, As Ímpias ceremoniasdão principio. As parricidas mãos no sangue ensopam, De Valois vão no altar ferir o peito, E inda com mais terror, com mais insânia A effigie de Bourbon derribam, calcam, Crendo que a morte, a seu furor ligada,

EPISÓDIOS TRADUZIDOS 69

Vai co'a dextra fatal^ e inevitável

Taes golpes transmittir aos dous monarchas.

O hebreu profanador com turvo aspecto Une entretanto as preces ás blaspheraias: Os abysmos, os céos, o Eterno invoca^ Invoca esses espiritos impuros, Do universo invisiveis turbadores, E o fogo dos infernos, e o do raio. Tal foi o infando, occulto sacrifício Que fez em Gelboé n'outra edade Aos numes infernaes a pythonissa, Quando perante um rei feroz, e injusto Chamou de Samuel a horrível sombra: Assim contra Judá de vãos prophetas Troava em Samaria a impia boca; Ou tal se ouviu Ateio entre os romanos, Invocados os deuses, em seu nome Agourar, maldizer de Crasso as armas.

Aos escuros, aos mágicos accentos Que profere o maligno sacerdote, Resposta os Dezeseis do Fado esperam; Cuidam que hão de forçal-o a descubrir-se: O céo para os punir quiz attendel-os. Eis interrompe as leis da Natureza, E do fundo da tacita caverna Eis sáe lúgubre som, murmúrio triste. Cem vezes o relâmpago espantoso Na densa escuridão se accende, e apaga.

70 OBRAS BE BOCAGE

Entre a fulminea luz, de gloria accezo, Em triumphal carroça Henrique assoma Ante os olhos do attonito congresso. Cinge-lhe mareio louro a fronte augusta, O sceptro venerando a mão lhe adorna.

N'isto o fogo do raio inflamma os ares, O altar cáe abrazado, a terra o sorve, E os rebeldes, o hebreu vão assombrados Seu crime, e seu pavor sumir nas trevas.

EPISÓDIOS TBADUZIDOS 71

O combate de Ailly com o fillio na batalha de Ivri

(Episodio extraliido da «Henriada», Canto viii)

O indómito valor do gran Turena de Nemours as tropas atterraya. CAilly^ veloz qual raio, ia esparzindo Por eiltre os batalhões espanto, e morte : O valente d' Ailly, todo orgulhoso Com seis lustros de gloria, e de combates, Que da guerra no ardor sanguinolento Sento, a despeito da rugosa edade, Tornar-lbe a robustez, ferver-lhe o brio.

Com elle um guerreiro ousa affrontar-se, Um destemido heróe na flor dos annos, Que n'este matador, e illustre dia Os horrores mavórcios encetara. De uixi suave hymeneo gosando apenas, E mimoso de Arpor, a Amor se esquiva ; Com pejo de que na gentileza Soasse, consistisse a fama sua, Yôa aos conflictos, sôfrego da gloria.

72 OBRAS DB BOCAGE

Lamentando-se aos céos a linda esposa, Os rebeldes maldiz, maldiz a guerra; Resolvendo aggregar-se aos combatentes O seu terno amador, convulsa, e triste Lhe une ao corpo gentil o arnez pezado, E húmida a face de amorosos prantos, Em capacete precioso esconde Semblante, que devia ás graças tanto, Olhos em que seus olhos se reviam.

Eis ufano, raivoso, arrebatado Parte contra d'Aill7 o audaz mancebo Por entre o fogo, o pó, e o sangue, e a morte. Ambos, de egual braveza estimulados. Os ardidos ginetes espoream, Das feras legiões ambos se arredam, E correm ambos á planicie hervosa. Toda corada de purpúreos lagos. Carregados de ferro, em sangue envoltos. Com pavoroso assalto os dous se encontram : Resôa a terra, as lanças arrebentam. Assim como n'um céo tempestuoso Duas pejadas nuvens carrancudas. Que, no bojo encerrando ignea matéria, E de enorme encontrão, de horrendo embate Rotas nos ares, pelos ares voam : Gera o choque relâmpagos, e raios, Estrondêa o trovão, e assusta o mundo. Mas por súbito impulso, e nova sanha

EPISÓDIOS TRADUZIDOS 73

Ei-los dos brutos férvidos se arrojam, Escolhendo outro género de morte.

lhe reluz nas mãos o liso alfange A cevar-Ihe o furor corre a Discórdia, E o Génio torvo^ que preside á guerra; Segue-os a morte pallida, e sanguenta. Míseros, esperae, detende os golpes. . . Mas negro fado os ânimos lhe inflamma. Este áquelle, raivando, aquelle a este Tenta no coração cravar o alfange, No exposto coração, que não cofthece. Do retalhado arnez faiscas saltam, Golphando o sangue, as mãos lhes purpúrea ; O escudo, o capacete, á força oppostos, De cem golpes cruéis alguns mallogram, Alguns aparam, rechaçando a morte. Os rivaes entre si, como assombrados De tão alto valor, se respeitavam; Mas o annoso d'Aillj co'um golpe infausto Lança em terra o magnânimo guerreiro. Seus olhos para sempre á luz se fecham, Cáe-lhe o elmo, descobre-se-lhe^o rosto, D'Ailly o vê, o abraça. . . ah ! E seu filho. . . Oh desesperação! Oh desventurai O deplorável pae, banhado em pranto, As armas contra si voltar intenta. Mas compassivas mãos no duro lance Lhe acodem, se lhe oppõe, do ferro o privam.

74 OBRAS DE BOCAGE

Tremendo, soluçando, o triste velho Foge d'aquel!e horror, amaldiçoa Seu criminoso, e bárbaro triumpho ; Os homens5 a grandeza, a gloria esquece, Desejando esquecer-se de si mesmo, E em solitárias brenhas vae sumir- se.

Ali, quer surja o sol, dourando os montes, Quer se mergulhe nos cerúleos m^res, De seu filho infeliz o triste nome Com lamentosa voz ensina aos eccos, Aos eccos, de esôutal-o enternecidos.

Do bello moço extincto a doce amante, Levada do terror, fria, saudosa, Em passo vacillante ao sitio corre Por onde borbulhara o sangue em rio?. Aqui, e ali caminha, indaga, observa, E da guerra entre as victimas cruentíis Distingue emfim o esposo. Ao vêl-o a. triste Cáe sem accordo na sanguínea terra. Nos olhos se lhe estende o véo da morte. <íÉs tu, meu caro amante?...)) Estas palavras Cortadas pela dor, estes suspiros Que solta, desmaiando, ah! não se escutam. De novo os olhos abre, une de novo Os lábios seus aos l9,bios que idolatra. Os ternos beijos últimos |lh.e imprimç, Aperta o corpo mísero entre os braço3,

EPISÓDIOS TRADUZIDOS 7'5

Entre os mimosos braços cor de neve, Os olhos n'elle põe, suspira, e morre.

Pae infeliz, misérrimos esposos, Lastimosa familia, exemplo triste Dos crimes, do furor d'aquella edade, Ah! Praza aos céos que a hórrida lembrança D'este medonho, e trágico successo A comiseração, a humanidade Excite em nossos derradeiros netos, E aos olhos úteis lagrimas lhe arranque Para que o rasto dos avós não sigam!

76 OBRAS DE BOCAGE

O Templo de Amor

(Traduzido do Canto ix da « Henriada »)

Sobre o campo feliz da antiga Idalia, no principio d'Asia, e fim de Europa, Alto edifício magestoso assoma. Do tempo assolador vedado aos damnos. Lançou-lhe a Natureza os alicerces, E tu. Arte subtil, depois brincando A simples, moderada architectura, Lidaste, e transcendeste a Natureza. Ali de verdes myrtos povoadas As circumstantes selvas, inda ignoram Os insultos do inverno enregelado; Ali por toda a parte amadurecem, Por toda a parte ali formosos nascem Os fructos de Pomona, os dons de Flora; Ali para outorgar ampla colheita Nunca esperas, oh terra, oh mãe fecunda. Nem pelas estações, nem pelos votos Do tostado cultor; ali parece

EPISÓDIOS TRADUZIDOS 77

Que os mortaes n'um egual, sereno estado Gosam tudo o que dava a Natureza na ditosa infância do universo: Aturado socego, alegres dias, A doçura, os prazeres da abundância, Os bens, os gostos da primeira edade, Menos a mansa, e limpida innocencia.

Nenhum, nenhum rumor alli se escuta Senão doce harmonia encantadora, MoUe harmonia, que amollece o peito; Vozes do amante, cânticos da amada, Que a deshonra, os delirios, as fraquezas Em verso adulador lhe vai dourando. Vê-se turba amorosa a cada instante, Toucada de odoriferas boninas, As graças implorar do deus, que adora, Concorrer sequiosa a seus altares, E n^elles á porfia ir-se ensaiando No methodo suave, e perigoso De attrahir corações, ligar vontades. A risonha Esperança a mão lhe oflTrece, E os guia dous, e dous ás aras de ouro; As três lindas irmãs, as brandas Graças, Fagueira, quasi nuas, e defronte Das francas portas do suberbo alcaçar, Unem veloz coriza a som divino. A preguiçosa, a plácida MoUeza, *A sócia dos amantes, encostada

78 OBRAB DE BOCAGE

Sobre a relva subtil, e as tenras flores, Ali de vêr, e ouvir se apraz, e enleva.

* Dorme a par d'elia o tácito Mysterio, Jazem-lhe em roda os mágicos Sorrisos, O pontual Desvelo, a Complacência, Jaz o Prazer, e os sôfregos Desejos, Inda mais que o Prazer encantadores.

Tal é na entrada o templo sumptuoso; Mas quando além das portas, e debaixo Da rutilante abobada sagrada Passo audaz se encaminha ao sanctuario. Que espectáculo horrendo atterra os olhos!

* Ali não resplandece, ali nâo voa

* Nitido enxame de louçãos Prazeres;

* A celeste Harmonia ali não ousa,

* As azas transparentes meneando,

* Nos tristes corações insinuar-se.

* Queixas, Tormentos, Desvarios, Sustos

* Em densa multidão, tropel confuso

* Choram, blasphemam, desatinam, tremem,

* Geram n'este logar o horror do inferno. O carrancudo, o li vido Ciúme

Segue n'um passo trémulo a Suspeita; Ódio, Raiva, entornando o seu veneno, Armados de punhaes, lhe vão na frente. Mali cia, tu os vês, e satisfeita Co'um sorriso traidor a insânia approvas: Eis o Arrependimento os vai seguindo,

EPISÓDIOS TEADUZIDOS ' 79

E em seus ais condemnando-lhe a fereza, De lagrimas iuunda os olhos baixos. Em meio d'esta chusma pavorosa, Companheira fatal dos vãos Prazeres, Tem conservado Amor seu domicilio

* Desde que no azul, no eíhereo vácuo *Cahiu^das mãos de Jove o sol recente. Da terra os Fados tem na tenra dextra O cruel, tentador, gentil menino:

co'um sorriso a paz, com outro a guerra, Seu néctar derramando em toda a parte, Seu néctar, que depois torna em peçonha, E alma do universo, e vive em tudo.

* Do throno, em que leis á Natureza, Contemplando a seus pés milhões de escravos. Orgulhosas cabeças piza, esmaga;

Mais pago do rigor que da piedade. Dos males que produz se desvanece,

* Mortaes, tristes mortaes, que horrivel quadro!

* Mas os males de Amor têm recompensa,

* Têm doce galardão: Mortaes, amemos.

80 OBRAS DE BOCAGE

A fome assollando Pariz

(Traduzido do Canto x da «Henriada>)

Vagueava em Pariz feroz caterva De estrangeiros cruéis, de horrendos tigres, Tigres pela Discórdia apascentados, Mais terriveis que^ fome, a guerra, a morte. Uns das campinas belgicas vieram, Outros das helvéticas montanhas, Bárbaros corações, á guerra usados, Que vivem de matar, que fazem prompto Sacrifício venal do próprio sangue.

D 'estes novos tjrannos a cohorte Em sôfrego tropel derriba as portas Dos tristes cidadãos, e lhes presenta Mil mortes, mil tormentos, mil horrores; Não para os privar de vãos thesouros, Não para arrancar aos ternos braços De espavorida mãe filha chorosa: Faminta precisão consumidora As demais sensações lhe impede, e abafa.

EPISÓDIOS TRADUZIDOS 81

Pesquizarj descubrir qualquer sustento, Por escasso, por mau, por vil que seja, É a sua intenção, seu fim, seu gosto: Attentado não ha, não ha martyrio Que para o conseguir não excogitem.

Indigí^nte mulher . . . (oh céos ! E eu devo Urdir a narração da feia historia, Do horrível caso escurecer meus versos I) Indigente mulher perdido havia Por violência dos monstros esfaimados Único, parco, e mísero alimento. Invadindo seus bens a negra Sorte, Apenas lhe deixara um tenro filho, Próximo a perecer do mal, que a mata. Raivosa, desgrenhada, um ferro empunha, Oórre, bramindo, ao cândido innocente. Que estende as débeis mãos para afagal-a. Do triste a infância, a graça, a voz, o estado A phrenetica mãe de dor traspassam.

Põe n'elle os espantados, turvos olhos, Tintos de amor, de raiva, e de piedade. O cutéle da mão lhe cáe três vezes, Mas a raiva triumpha, e, detestando O fecundo hymenêo, com voz tremente: Oh d'esta alma infeliz porção mimosa 1 Caro filho ! (ella exclama) em vão teus dias Produzi, conservei com tanto afago. Em breve ou da penúria, ou dos tyrannos

82 OBRAS DE BOCAGE

Foras talvez a viçtima^ o despojo

Se a mãe piedosa te poupasse a vida. . .

A vida! E para que? Para vagares

Do deserto Pariz entre as ruinas,

Desfazendo-te em ais, em dor, e em pranto?

Morre, antes que o meu mal^ e o teu conheças,

Restitue-me^ oh filho, o sangue^ a vida,

Que te deu tua mãe; vem sepuítar-te

Nas entranhas cruéis, que te geraram,

E veja-se em Pariz um crime novo. ))

Isto dizendo, attonita, e convulsa íío peito do filhinho embebe o fi?rro, Leva o corpo sanguento ao lar fumante, E, sôfregas as mãos co'a fome horrenda, A funesta iguaria ali preparam. A força de voraz impaciência Volvem, raivando, os bárbaros soldados Ao theatro do crime atroz, e infando, Similhantes na hórrida alegria Aos ursos, e aos leões que a prêa aíferram ! Apostados correndo, a porta arrombam; Entram... Céos ! Que terror! Que assombro! A vista Carrancuda mulher eis se lhe off 'rece, Molle corpo infantil despedaçando, Abrazada em furor, e em sangue envolta: c(Sim, feras, sim, cruéis, meu filho é este! Vós no seu sangue as mãos me enxovalhastes, Sejam vosso alimento a mãe, e o filho. -

EPISÓDIOS TRADUZIDOS 83

Vinde, as sagradas leis da Natureza Ultrajar mais do que eu temeis acaso? Que susto vos detêm, vos desalenta? Oli tigres ! Este pasto a vós pertence.»

Phrenetica, e sem tino, assim fallando, Aguçado punhal no seio enterra. 8ubito, da tragedia horrorisados, Confusos, e ululando^ os monstros correm; Não ousam para traz volver os olhos, * Cuidam que os ameaça, os segue o raio; E o povo, por findar tão triste sorte, Alçando as mãos aos céos, implora a morte.

84 OBRAS DE BOCAGE

A Colombiada, ou a levada ao novo mundo

Poema de Madame Du Bocage (Traducção do Canto i)

Eu canto o Genovez, de Urania alumno, Da inveja, e dos infernos perseguido, O nauta^ que do Tejo foi tão longe Desencantar os indicos thesouros; Que da aurora ao poente o mar domando, Para a conquistou mundo ignorado.

Oh mãe de Orphêo (que pela voz de um filho Typhis. Jasou no pego enfeitiçaste!) Consente, para mais, á minha audácia Que do Ismario cantor imite os versos. Se bosques attraíu, monstros, e Fúrias, Homeos enternecer meus sons não podem? Musa, do sexo teu o império estende. Une á feminea voz a lyra eterna, Mostra aos humanos que também no Pindo, Assim como em Cjthéra, os cantos nossos, Caros aos deuses, os heróes afamam.

EPISÓDIOS TRADUZIDOS 85

Do solsticio do inverno á flórea quadra Phebo precipitava os turvos dias, Desde que sobre os mares, vencedora Das procellas horrísonas, vagava Longe do pátrio seio a frota ibera. De ilha em ilha evitava estéreis climas O próvido Colombo: a seus desejos Ditoso, grato asylo em fim se off'rece, Mostrando a seu favor sorrir-se os Fados. Este heróe, nunca trémulo ante o p'rigo, Na bonança acautela as tempestades. Desce a noute; elle teme infesto escolho, E, até que a luz diurna o polo aclare. Congregando os baixeis áquem do porto, Assim de seus guerreiros falia aos chefes:

c( Eivaes d'esses, que o Bosphoro venceram Compete a vosso ardor mais alto premio: Os males nossos tem nos céos a palma. Quem das avitas glorias dorme á sombra Perde na escuridade a luz da origem. Nós, que havemos tégora em perigos cento Calejado a constância, eia, surjamos N'essa fronteira, incógnita enseada: De Fernando os pendões ali se arvorem, pado que feros povos nos insultem, E nosso escudo o céo: proezas nossas Para estender seu culto a vida egualem.D

Diz, e d'est'arte lhe responde a turba :

86 OBRAS DE BOCAGE

<( Claro almirante! Affronta o mar, o inferno,

Que todos sem terror te seguiremos

Aos dous pólos do mundo. Os annos voam;

Mas da injuria dos séculos vorazes

Nada tem que temer lustrosos feitos. )>

Ferve a taes vozes o soldado, espera

Novos mundos ganhar, ver outra Colclios.

O nome dos heróes, que honraram Grécia Distinguia os baixeis. Um pinho annoso, Filho robusto da hyperbórea terra, Yelas do Árgus sustenta era áurea popa. Q prudente Matheus, rival de Typhis, Guia um novo Jason, conduz Colombo. O cauto chefe, que a seus olhos sempre Tem de Helena os irmãos, sobre estes lenhos Atear-se a discórdia viu cem vezes. Ali Júlio encaminha illustre cabo, Mendes segue Pínzão ; traidor Ximenes, Tu reges Telamon. Busca-se Alcides, Ah! Vãmente: escarcéos o devoraram; Torres, seu director, não existe.

Pátria do meu heróe, Génova illustre, Fieschi, em ti nascido, a seus trabalhos, A seus feitos magnânimos se aggrega; Alba no Orphêo conduz, e Boile, o docto. Este sábio as estrellas não medita; O iman, subjeito aos erros, não consulta: Olha somente o céo para imploral-o, E o céo por elle annue á sancta empreza.

EPISÓDIOS TRADUZIDOS 87

A gloria esquecerei, que haveis ganhado, Invencivel Cortez, Pizarro affouto? Ambos, um no Calais, outro no Zetes, Dos alados heróes tomando o voo? Vós de Gastella, e de Africa os o^inetes

expedição levaes^ Morgan valente Dogues no Hilas acama, exercitados Em jogo marcial. Por chefe o tractam Hastins, Arcj, Murrai, Stanhope, o activos, Para alongar seu nome, a pátria deixam. O Neustroo Marcoussy, caro a' Colombo, O segue no Thesêo, que lhe é subjeito: Boulainvilliers, Amboise, e Aidie, e Argennes, Ás suas leis submissos, florecem. Triumphantes no Sena estes guerreiros, Tentam novas emprezas: sobre os mares Quer o valor francez dar pasmo ao globo. Peleo, e Ajax, na Andaluzia armados. Pendem de Margarit, e de Garcia.

Vasos mais leves, de que escondo os nomes, Em torno do almirante as ondas talham. Dos chefes, que perdera, o fim deplora; Mas, applacando a magoa nos que restam. Sem temor voga ao porto, e junto d'ello - '^ Dos pilotos á voz se ferra o panno.

Em tanto que a esperança industriosa Promette aos hespanhoes mil bens, mil palmas; Que Diana, esparzindo o raio incerto,

88 OBBAS DE BOCAGE

íTas aguas a folgar delphins conTÍda;

Por ellas, onde brilha a sua imagem,

Manso, e manso os baixeis co'a terra eniproam>

Mas entes infernaes, da Grécia deuses,

Que tem na índia altares, e outros nomes,

Oppõem-se ao Genovez, de quem se temem.

Para traçar taes monstros, Musa minha, Restituir Cjthéra a Vénus podes. Podes restituir o Olympo a Juno: Satân em meus pincéis Platão simelha, E os manes do Cocyto as ondas passam.

Boiá, Teules, Zemês, estygios numes, Que adora cego povo, a Europa ignoto. Ajuntam de seu rei os estandartes. No ruido de aspérrimas correntes As tartáreas phalanges se annunciam; Serpentes, que das ígneas testas brotam. Os silvos formam lá, que em Lemnos se ouvem Quando n'agua se extingue o ferro ardente.

Tçules, que tem na Estjge Eólio mando, Leva aos pés de Satân o horror, que inspira. Nos seus olhos em braza é sangue o pranto, Tem de um lado o terror, tem de outro a morte ; Das tormentas a chave á mão lhe é sceptro. D'atra nuvem de enxofre, onde fluctuam Mil cabeças medonhas, surge a d'elle, E o turbulento inferno, á voz do monstro, Como as aguas do Lethes, se abonança:

EPISÓDIOS TEADUZÍDOS 89

no perjuro, no traidor, no ingrato

O remorso emmudece alguns instantes.

(C Rei d'esta região sombria, horrenda,

(Vozêa a Fúria insana) onde aras tuas

Se perfumam de incensos, no indio clima

Do Tejo os filhos soffrerás que reinem?

De um Deus no outro hemispherio as leis se adoram,

Nosso inimigo eterno em parte o globo

ÁUrahiu com seus dons: ah! Se elle outr'hora

Cavou o immenso abysmo onde penamos,

Grolpe fatal, que nos prepara, ao menos

Guide-se em rebater. Por novo mundo

Bile quer alongar suas conquistas,

Elle quer transmittir-lhe as leis, c altares.

Que ! Debaixo dos seus os templos nossos

A gloria sua servirão de base,

Gloria, que se eternize em nosso estrago !

Sem defender teu jus victorias cedes?

Pondera que um mortal, do Averno injuria.

Contra nós o universo a armar so atreve.

O instructo Genovez, nos males firme.

Conhece o equóreo fundo, e mede os astros.

Conquista os corações, subjuga as almas.

«De tão forte guerreiro emprezas temo. . . Trance me é duro elogiar contrários. Mas o assustado or^julho ingénuo falia: Vencido do pavor, se os riscos peza, No interesse, e no p'rigo é que attenta.

90 OBRAS 1>E BOCAGE

A esquadra, que receio, o termo attinge De alta intenção: meu único regresso E no centro das ondas sepultal-a. »

a Entrega aos furacões (Satân responde) Esse povo atrevido: os elementos Todos em damno seu se d.esenfrêem: Derrama no universo a raiva tua. y>

O mar treme de ouvil-o, e todo o inferno; Do embate de mil mãos faiscas saltam, Como das rochas sahem, que rompe o ferro; Ou quaes costumam rebentar de corpos Que inflamma o choque eléctrico. Eis o abjsmo Ao magico motim responde em eccos, Como em crebros trov^ões o céo rebrama.

A passos gigantêos caminha Teules As horriveis abobadas profundas, Onde as cohortes procellosas fremem. Abre co'a férrea chave as brônzeas portas, Que, rápidas volvendo-se nos gonzos, Por pouco o monstro audaz não derrubaram.

Os subterrâneos Sues, que assaltam nuvens, De cem respiradouros arrebentam, E o mar, em monte e monte, aos céos aliêam. Que os heroes lhe exp'rimente um Deus permitto Ao negro inferno. Súbito a bonança Se converte em tormenta escura, enorme. Gemem de susto as Alcvoneas aves; Nas ondas os baixeis arrebatados

EPISÓDIOS TRADUZIDOS 91

Como que vem dos céos no mar siimir-se. Entre as torrentes, que derretem nuvens. Mãos congela o terror, e as prende aos cabos: Tudo estala, e, deixado o panno aos ventos, Debalde implora os nautas amarellos.

Três vezes viu Matheus luzir a aurora Desde que a frota errante em mãos de Eólo Foge da praia, a que aproou Colombo. Arte fallece era tanto mal; e os gritos Co estrépito das ondas misturados. Vão rebombar no pólo. O grande chefe, Colombo, cuja voz não se escuta. Nas preces do pontiíice encurvado, D'est'arte, a bem commum, seu Deus invoca:

ccOreador, que, presente em toda a parte, Ares, terras, estrellas equilibras. Tu, que, remindo um povo, abriste as vagas! Podes pôr freio ao mar co'um volver d'olhos. Queres nossos baixeis sumir no abysmo? Se o fim da grande empreza é mallogrado, Ai! Quem trará teu nome a terra ignota? Por ti, por ordem tua o p'rigo arrosto, E quantos me ladeara. Sorte avessa A teu sabor, gran Deus, mudar-se pode: Somente o favor teu nos punge, e alenta. Terra nos dá, senhor, que prometteste A nossos males, ás fadigas nossas. »

Todos applicam dolorosos prantos

92 OBKAS DE BOCAGE

Do sacerdote á voz; do p'rigo o susto^

Princípio de mil votos, enternece

O numen bemfazejo. Em breve as ondas

A superfície alizam. Duros ventos,

De espirito celeste agrilhoados,

Outra vez, a tremer, entram nas grutas.

Mal que os No tos aos Zépbvros consentem Reconduzir bonança aos amplos mares, O Norte em nuvem franca oíF'rece iim astro, Dos navegantes esperança, e guia. Este lume os consola, e qual descende Sobre os mimos de Abril vapor suave, E lhe ergue o tronco, e lhe reforça os fructoB, Dos ares o socego ás almas voa, E o que o medo abateu, o esforço eleva.

Colombo, que jamais provou receios. Ao seu Tjphis commette as rédeas do Argns; Quer que a maior das Ursas deixe á dextra, E, esperando a manhã, vogue ao poente. O horisonte branquêa; o fulvo Apollo, O oculto inda aos mortaes em átrios de ouro. No carro matinal roxea os mares, E manso dia azul promette aos nautas. O ar se esparze de aromas, quaes a Arábia De Africa, e de Ásia nos confins vapora. Porque farte o desejo aos navegantes, Este imprevisto bem de outro é seguido:

EPISÓDIOS TRADUZIDOS 93

O astro diurno aclara extensa costa, Que, vária, os olhos assaltêa, encanta.

Rochas de um lado sobre o mar pendentes^ A industria imitam, sem favor da industria. P^r mão da Nature^xa afeiçoadas Em monstros, em gigantes, o murmúrio Geram de vozes cento: ali parece Os povos d'este clima estarem juntos. Equóreo movimento, abrindo as penhas Em um, em outro assalto, entre ellas formam O rigpido fragor, que ás praias Ecco Traz sobre as plumas dos loquazes ventos.

O outro lado do porto, aos nautas franco^ É flóreo, fructuoso amphitheatro; De áreas de ouro se orla, onde aguas puras De lindas conchas o atavio ostentam. Mil pescadores para encher canoas Nas ondas a colheita em vão não buscam.

De férteis margens habitantes ledos. Que terror vos infunde a esquadra nossa I Pejadas redes d'entre as mãos vos fogem. Em quanto, por ganhar vossa alm^a incerta, Vos mostram dons, que vos destina o Chefe, Elle as velas dirige ás praias vossas. O prumo consultado abona o porto, E, vogando sem custo a proa ás margens. Abro fácil ingresso em fundo rio. '

Verdes arbustos este asylo asso^nbram:

94 OBRAS DE BOCAGE

Arroios mil nas próximas colinas Escorregando vêm de pedra em pedra. Arte em nossos jardins pintar costuma Estes brincos gentis da Natureza: por cascatas humedece as hervas Deslizada corrente. As amplas cheias Valles diversos na carreira abrindo, Fecundos campos, e acceleram fructos, Bem que no mesmo gráo do hisperio clima, D'estes o estio inférteis os não torna: Dos logares, que em fabulas se enfeitam, Sois, oh ilhas, que eu canto, imagem viva.

O outono, que a miúdo as annuvia. Inundadas jamais as viu de chuvas; Sem que aos olhos o dia apouque os lumes, De nuvens brando véo tempera as calmas. Quando o ethereo cume o sol fervia, Tutelares Favonios, adejando. As fadigas do Ibero amaciavam. Lança ferro, e cubica de repouso Faz com que as aguas deixe, e salte em terra.

N'um visinho rochedo olhada turba Lhes determina o passo, e 23asma ao vêl-os. O chefe, que a conduz, por cava senda Vue dirigindo o pé. Da ílice as i-ugas, As cãs disnersas, e avultados membros, Sem arte, ou vestidura, o gráo lhe indicam Melhor que inútil séquito pomposo:

EPISÓDIOS TKADUZIDOS 95

A sua candidez encanta, e brilha

Mais que o ouro dos reis, que a Pérsia acata.

Se os trajes, as feições, e ibérios lenhos

Attraém co'a novidade o velho agreste,

A voz da gente sua, e d'ella os gestos

Aos nossos europeus a vista assombram;

E egualmente admirado o vario povo

Se contempla entre si. Com alma ingénua,

Sem medo os^indios a Colombo exprimem,

Apontando-lhe os céos, que o julgam vindo

da estancia immortal das divindades.

O almirante caminha ao chefe inculto: Moço europeu (que em ilha solitária N'aquelle mundo novo achado havia, E na esquadra acolheu) de lingua serve. Que dita inopinada ! crivei fosse Divina permissão) Penetra o velho A linguagem do interprete, que explica Os desejos do heróe n'esta substancia:

c( Oh tu, que d'este povo o rei pareces, (Se é a hospitalidade aqui virtude. Qual teu rosto benéfico denota, Em quantos estes amenos, faustos campos Com vista esperançosa observo, admiro) Sabe que injusto, que invasor projecto Aqui me não conduz por vastas ondas. O infortúnio me traz : meu refugio, E além dos mares teus prometto em breve

96 OBRAS DE BOCAGE

Ir de teus benefícios, de^teu nome Informar o universo.)) A voz do chefe Os hespanhoes a reverencia uniam, No campestre ancião fitando os olhos.

O Índio puro credito ao que escuta: Seu coração hivado io^nora o medo, Assim como as astúcias desconhece. A seus amigos diz (somente amigos Comitiva lhe são) C( Porque se agrade Dos alimentos nossos o^estrangeiro, Exqui sitos, gravissimos aromas Dêm aos ngssos liquores nova graça. ))

No chão curva o joelho, assim fallando, Quanto a caduca edade lh'o tolera; Píisso a passo depois Colombo arrosta.

ccEnte divino (diz) que o mar talhaste Sobre monstros alígeros, a terra, Onde has baixado, te dará sem termo Os bens de que a fornece a Natureza. Reino aqui: meu desejo é contentar-te. Segue-me aos valles nossos, vô, comtempla Tão ditosa morada; os teus sequazes Terão lá, como tu, seguro asylo.3)

Segue o chefe europeu do velho os passos; Com elle vae o interprete, e apoz elles Caminham Marcoussy, Morgan, Fieschi, E os mais abalizados filhos do Ebro. Toma tudo um ser novo ante seus olhos:

EPISÓDIOS TRADUZIDOS 97

Os fructos, e animaes n'aquelles bosques,

Carregadas as arvores de incenso,

Nada tem que arremede os campos nossos;

O sol espraia ali fulgor mais vivo.

Se da planicie aérea o leve bando

Do alambre, e do rubi veste as cores,

Seus desabridos sons a orelha offendem,

Não sabem, pliilomela, o teu gorgeio.

vive o colobri, tem seus ninhos Ave, cuja plumagem em nossos climas De E^éaumur por arte inda é formosa. Selvático animal n'aquellas plagas Do homem gosa o valor, feições, destreza; O alóes em cada século florece Com grande estrondo ali, e o povo indiano, Que um leite nutritivo cxtrae do coco, De uma folha em vapores a perguiça Costuma embriagar. Serve á moUeza Do algodoeiro o fructo; entre os manjares Saboroso cacáo lhe suppre o néctar. O ananaz, o caju, e o mangue, o o cedra As brandas virações aromatizam: Com mil nomes ali,, não com estes, Deu:^a das ílôres^ Zéphyro embellezas.

Ledos os hespanhoes, de bosque em bosque A voz consultam do Nestor que os guia. Em meio do seus fructos, aves, somWas,

98 OBRAS DE BOCAGE

De tão novos objectos^ e tão vários

Elle a virtude^ os préstimos ensina

Ao pasmado europeu, que o ouve, e o segue:

Se o velho devagar dirige os passos,

O que exprimindo vae resume o tempo.'

De altos pinhos á sombra emfim se avista A porta da selvática vivenda. De enfadosos insectos ignorada Esta aprazivel gruta, aos olhos deixa Gro«tar sem turbação calados somnos. De Apollo os raios pelo cimo aberto Dos muros no alabastro a luz desparzem. Este amplo abrigo os séculos cavaram; A equidade, a candura, a paz o escudam, E único esmalte é seu gentil donzella, Que ao velho amável a existência deve. Nua, qual Eva está: sua innocencia, Egual á de Eva, sem pudor aos olhos Off'rece encantos seus, lhe é véo mimoso : As Graças não conhece, e estão com ella. Outro atavio algum lhe não consentem Do que a plumage azul com que lhe abrangem A cândida cintura: é mais formoso Este adorno, porém, que o de Acidalia: O objecto, em que reluz, seu preço ignora. Livres madeixas moUemente ondeam No seio virginal, por onde apenas

EPISÓDIOS TRADUZIDOS 99

Os thesouros de amor vem apontando, Que ainda não crestara o pátrio clima.

Dos hespanlioes o numero, a presença No tenro coração lhe infunde assombro, Nos olhos divinaes lhe pinta o medo, E as dehcadas mãos, que elegem fructos, Um momento, a tremer, suspensas ficam.

cNão temas (diz o pae) Zamá, não temas. Filhos dos céos, dos mares, ou do acaso, Estes entes, que vês, sem perturbar-nos, Hão de participar d'esses manjares Que para mim dispões com arte, e gosto.

ccEis de palmeiras em tecida casca A seccos peixes acompanham aves ; Torquazes pombos vem, e os dons de Ceres Tu, fecunda banana, ali compensas.

A indiana mocidade, o velho, a filha, E a turba dos iberos, assentados De pavilhão grosseiro á grata sombra, No banquete frugal têm todos parte, E n'abundancia a precisão se alegra.

A reinar começava entre os convivas Amiga confiança, o bem que apura Depois de longo tracto os gostos nossos. Apenas a vital necessidade Seus desejos fartou, sempre admirado, O bom pae de Zamá, o ancião benigno. Que pelo hospede seu de si se esquece,

100 OBRAS DE BOCAGE

Cos olhos em Colombo, assim lhe falia: (O interprete ao heróe diz o que escuta.)

ccCaro estrangeiro, cujo nobre aspecto, Cuja doce eloquência me annuncia Que a tua geração provém dos numes; Vendo que ás precisões da humanidade Te submette o destino, eu me atrevera Dos homens entre o numero a contar-te, Se acaso nossos páes por seus maiores Não soubessem que, sós em todo o mundo, Os únicos senhores somos d'elle.

c( Gerados pelo Sol no térreo seio, Dia, e dia apressamos seu regresso Com votos, e com supplicas; sentimos Que por seu fulgor tudo respira. Acatam-lhe o poder da noute os lumes, A luz dos raios seus absorve os astros. Ethereas flammas, que nos ares vemos Tantas vezes cair, foram, por dita. Principio de teu ser? Vens d'esses mundos, Aonde por incógnitos caminhos A morte nos conduz, e onde sem conto Mulheres divinaes o oposto encantam? Os fructos, as delicias, os liquores D'aquelles formosíssimos legares, Dando-te por ventura essência nova, Entre nós as feições tornou discordes ? Expõe-me os fa(h)S teus, dize que meios.

EPISÓDIOS TRADUZIDOS 101

Que assombros, que mj^sterios te hão guiado Por entre os ares á terrena estancia? Tua sabedoria, e teus desastres Me commoveni, me attráem; recente aífecto Me interessa por ti, por teus destinos. ))

102 OBEAS DE BOCAGE

Fragmento

Do Poema «o Mérito das Mulheres» de Legouvé, Canto i

Juvenal, que em seus versos vale Horácio, Boileau, que restitue os dous ao Pindo, ]íí'um sexo de virtude, e graça ornado Fero carcaz satyrico exhauriram : Vou ainda áquem de vós, oh génios grandes; Mas audaz defensor de um sexo, que honro, Opponho o encanto d'elle á fúria vossa: Canto dos homens a melhor metade.

Depois que da profunda, immensa noute. Em que dormiam soes, dormiam mundos, TJm Deus, aos céos chamando, o mar, e a terra, Alçou montanhas, estendeu campinas. As florestas cVoou de verdes comas, E fez o racional (seu mor portento) Espectador do espectáculo sublime, A belleza creou; depois mais nada: lí'aquelle assombro um Deus parar devia, E a suprema invenção que mais fizera ?

EPISÓDIOS TRADUZIDOS 103

Rosto celeste, onde a innocencia cora, Olhos, e lábios, que chorando, e rindo Doce tumulto nos sentidos movem ; Trança de anneis subtis, brincando em ondas, CoUo de amores, hálito de rosas, Véo transparente, que a existência envolve, E de que um vivo sangue, um sangue puro Matiza em longos, azulados fios. . .

104 OBRAS DE BOCAGE

Fragmento

De um Pooma sobre a Arte Graphica

A poesia será como a pintura, A pintura será como a poesia; Ambas eguaes, irmãs se representam, OfScios, nomes entre si revezam: À pintura se diz «muda poesia J), A poesia se diz «loquaz pintura». O que ouvidos attráe poetas cantam,. Cabe aos pintores o que enleva os olhos: O que versos desluz, pincéis desdoura. As formosas rivaes, em honra aos deuses, Transpondo céos e céos, entram de Jove Nos sempiternos paços: desfructam A presença dos numes, e a linguagem: Attentam n'uma, n'outra, e vêm com ellas, E influem nos mortaes a etherea flamma, Que rutila em seus quadros. vagueam Com emulo fervor pelo universo; N'elle o que é digno d'ellas vão colhendo, Revolvem tempos, tempos investigam.

EPISÓDIOS TRADUZIDOS 105

D'onde objectos extraem, quaes lhe relevam, Que na terra, no mar, no céo mereçam (Seja por accidente, on por nobreza) Ir durando entre os séculos vorazes; Vasto assumpto ao pintor, vasto ao poeta, Ilico aos dous ! Vão d 'ali soar no mundo Com fama vividoura ingentes nomes : Magnânimos heróes d'ali resurgem Com gloria, que dos tempos se não teme, E d'um e d'outro artífice os portentos Apostam duração <io'a eternidade : Tanto honraes, e podeis, artes divinas! O coro das Piérides, e Apollo I^ão tenho que invocar, para que altêe Em verso magestoso as phrases minhas, E agracie expressões, e as abrilhante Em obra, que dogmáticos preceitos Somente envolve, e que requer somente Succinta locução, perspicua, fácil: O lustre do preceito é a clareza; Contente de ensinar, o adorno escusa. Não do artifice as mãos ligar desejo, Que rege o costume, e não me é grato. Que as forças naturaes se embotem n'alma : Co'as muitas normas arrefece o génio. Quero que Arte potente a pouco, e pouco, De idéas, e de cousas fornecida, Se aggregue á Natureza, ao génio passe,

106 OBRAS DE BOCAGE

E por elle a verdade insinuando, se naturalize, á força de uso. Primaria, insigne parte é da pintura O melhor distinguir, que a natureza, Creou para os pincéis conveniente, E isto conforme o gosto, o modo antigo. Barbaridade temerária, cega, Celles sem o favor, desdenha o bello, Arte, que ignora, denodada insulta; Porque estimar não pode o que não sabe. D^aqui nasceu dizer-se entre os antigos: «Ninguém mais atrevido, e mais insano, Do que pintores maus, e maus poetas. D

Para amar, conhecer é necessário; Deseja-se o que se ama, o gosto o busca, Buscando-o com fervor, por fim o alcança. Não presumas porém que o acaso As graças, que te cumprem. Bem que sejam Naturaes, verdadeiras, muitas vemos. . .

EPISÓDIOS TRADUZIDOS 107

Fragmento

Do Poema Épico «Fmgal> attribuido a Ossian

De Tura junto aos muros assentado, E ao fresco abrigo de inquietas folhas, Estava Cuculin. Perto da rocha A lança lhe jazia, ao o escudo; Tinha no gran Cairba o pensamento, Cairba, que vencera: eis lhe apparece, Explorador do túmido Oceano, Moran, prole de Titi. c(Ergue-te (disse), Ergue-te, Cuculin. Branquejam velas De Swaran; o inimigo é numeroso. Mil os heróes do mar. » o: Tu sempre tremes, Prole de Titi (o chefe lhe responde) Azul nos olhos, e esplendor de Erina; Com teu medo os contrários multiplicas; O rei será talvez das ermas serras. Que vem trazer-me auxilio.» «Oh!. Não (replica O núncio do pavor) qual torre avulta Swaran, ou qual de gelo alta montanha; Eu o vi ; quasi egual áquella faia.

108 OBKAS DE BOCAGE

E a lança do heróe : nascente lua

O seu pavez parece. Em duro escolho

Sentado estava, e similhante em face

A columna de névoa. c( Oh tu, primeiro

Entre os mortaes (lhe disse) a que te afoutas ?

São muitas nossas mãos, e em guerra fortes;

Chamam-te com razão possante, invicto;

Porém mais de um varão da excelsa Tura

Ostenta esforço e gloria.» «Oh (me responde

No tom de onda desfeita em árdua rocha) .

« Quem me simelha ? Heróes não me resistem,

Meu braço os prostra. Fingal, somente

O gran rei de Morwen afrontar pode

As forças de Swaran. Luctamos ambos

Nos prados de Malmor. Tremeram bosques

Ao movimento nosso, e vacillaram

Da raiz despegados os rochedos;

Eios fugiram do combate horrível.

As correntes de medo extraviando:

Três dias combatemos, descançamos.

Volvemos á peleja. Ao longe os chefes

De olhos fitos em nós estremeciam.

EPISÓDIOS TRADUZIDOS 109

Frag^mento ultimo

Pezavara sobre a terra os ferreo-s tempos Da virtude primeva um vislumbre, O mini mo fulgor por entre as sombras Da geral corrupção não reluzia: No seio enorme da reinante infâmia O Averno com seus monstros se acolhera, E d'ali, vaporando atrocidades, O mundo transformava em novo inferno; Inda illéso porém jazia o globo Das mais tremendas culpas, inda estava Das maldades o numero imperfeito.

Cinco ministros hórridos de Pluto Creram que seu terrivel ministério, Usado a embrutecer no crime os homens, Cumpria alear-se da impiedade ao cume.

Ante o sólio de ferro, onde negreja O deus das mnldicções, o deus da morte. Seus projectos ^^xpõem, licença rogam, E á neííra execução sie delibef am : Polo estygio tropel bramando rompem, Com duros encontrões a turba espancam,

110 OBRAS DS BOCAGE

Correm á brônzea porta: eil-os no mundo, E o mundo em convulsões, e o polo os sentem. De clima em clima se derramam logo, Ao nunca visto horror dão prompto eífeito, E no abysmo infernal depois baqueam.

(íMonarcha tenebroso (exclama um d'elles Ao fero, que sedento está de ouvil-os) O plano executou-se : a natureza Mais não pode aviltar-se: é quaes somos! Ouve, e decide quem merece a palma No desempenho atroz da iniquidade: Eis o mal, que dispuz, e o que hei cumprido.

Nas amplas margens do orgulhoso Euphrates Prole de ternos pães, mimosa, e linda, Zelina, de três lustros enfeitada, Zelina em flor, tão virgem, como a rosa, Antes que algum dos Zéphyros a engane, Lanosas ovelhinhas cor de neve, Mansas, como a virtude, ou como a dona, Em viçoso retiro apascentava.

O riso no semblante, e n'alma o riso Trazia a bella, conhecendo apenas O crime pelo horror, que tinha ao crime: Ignorava paixões, eram somente Amores seus as cordeirinhas suas. N'um século de infâmias, de torpezas, Tão doce candidez olhei com pasmo, E, quasi em mim domado o torvo instincto,

EPISÓDIOS TRADUZIDOS 111

Ta depondo a raiva, ia esquecendo

Minha essência, meu voto. Eis indignado

Da vil indecisão, requinto as farias,

No remorso, no pejo, e sou mais monstro.

Acaso a flórea estancia, onde Zelina

Na face resumido o céo pintava.

Errante passageiro ia cruzando

De membros mo-antêos, melena hirsuta :

À. virgem olha, extático a medita,

Duvida se é mulher, se é divindade

E n'um suspiro um sacrilégio teme;

Que idéas de algum nume inda lhe restam.

Eu, que attentava no amoroso effeito, ígneos desejos súbito lhe entranho, InsoíFridos, brutaes, a audácia, e fúria, Que o mimo, a graça virginal profanem, Qual Euro, que em tufões desenfreado, A bonina gentil das folhas despe. Lhe esperdiça o perfume, a tez desbota.

112 OiíBAS DE BOCAGE

Sobre as façanhas dos Portuguezes na expedição de Tripoli

Composto na língua latina, e offerecido ao Sereníssimo Príncipe Il.-gente

D. João, por José Francisco Cardoso, e traduzido pov

M. M. ae B. du Bocage. Anuo de 1800.

Tels ont été les grands, âont Vim.moridle gloire Se grave en leitres d'or au temple de Memoire. Le Roi de PuubSK, lípif. I.

Musa, não temas; vibra aíFouta o plectro. Se tentas sublimar- te a grandes cousas, Se mais que a força .tua é tua empreza: Eis numen bemfazejo inspira o canto, Numen, de quem rival não fora Apollo, Nem de aonia^ irmãs turba engenhosa. Sonham poetas vão.^ Parnaso, e Pindo; Hippocrene é chimeríi: a ti dimana. Do soIio desce a ti feliz audácia, Que a mente acobardada esforça, agif:a. Assim remontarás se<?ara os voos; Assim transpondo os céos, transpondo os mares,

EPISÓDIOS TRADUZIDOS 113

Irás desentranhar,, colher arcanos,

Não corruptos na voz da Fama incerta.

Outros (como que folguem de illudir-se)

Mandem rogo importuno aos deuses do estro;

Cubicem na Castalia mergulhar-se.

JoãOj cujo poder no mundo é tanto,

E a cujo arbitrio cabe alçar o humilde,

O elevado abater, protege, oh Musa,

Teus sons, teu metro; e com benigno aceno

Ordena, que altos feitos apregoes:

Idéa, engenho, ardor de te influem.

A sombra de auspicies tão sagrados, Claros louvores de immortaes guerreiros Anhela celebrar fervendo a mente; Dizer, com que perfídia atroz, e infanda Foi pela maura estirpe despertado Nos lusos corações o fogo antigo; Qual sofFreu nova pena a gente odiosa; que Marte á justiça os constrangesse. Longe, longe as ficções, tua alma ingénua quer. Príncipe Augusto, a ingenuidade»

Onde o mar pelas terras mais se alonga, Em cuja boca é fama erguera Alcides Árduas columnas, das fadigas termo, Jaz annosa cidade, que parece De Carthago ás ruinas esquivar-se. Olhando ao longe de Sicilia as praias: Outr'hora fundação nobre, opulenta,

1 I4i OBIUSr DE BOCAGE,

Em tanto que do intrépido, Navarro Opprimida não foi com duro assedio: Hoje triste enseada, e mal seguro Surgidouro aos baixeis. D'ali costuma, O rápido chaveco atraiçoado As infestas rapinas ar rojar-se; De miseros mortaes ali mil vezes Cos sanguentos despojos volve alegre; Nem se apraz do roubo a raça infame^ Nódoa, horror da razão, da natureza: Aos fracos agrilhoa as mãos inermes; Quaes brutos, os alhéa a preço de ouro, Ou lhe esmaga a cerviz com jugo indigno : Eis seu louvor, seu nome, a gloria sua.

Ali preside aspérrimo tyranno, De torpe multidão senhor mais torpe; Monstro, que desde a infância exercitado Em tudo o que os mortaes nomeam crime, Sacrílego infractor das leis mais sanctaa, Delicto algum não vê, que em si. não queira^ E dóe-se de o perder, se algum lhe escapa : Maldade horrivel, que prodígio fora, Se estes dos homens sórdido refugo, Desparzidos no globo, o não manchassem. Oh quanto mais se deve estrago, e morte Ao bárbaro tropel, que um tracto amigo, E aquella mutua fé, que enlaça os povos ! Mas se robustas mãos, que o sceptro empunham ^

EPISÓDIOS TRADUZIDOS 115^

Não chovem contra os feros inda o raio,

TempOj tempo virá que exterminada

(O coração m'o diz com fausto agouro)

Apraza acantoar a iniqua turba

onde os invernos carregado.

Junto ás extremas Ursas vai Bootes

Regendo a custo o vagaroso carro;

Ou onde rebrama o sul recente,

Haja taes cidadãos deserta plaga,

Até que a eternidade absorva as eras:

E das brenhas no horror, no horror das grutas,

Companheiros das feras, monstros novos,

Vivam de sangue, com as feras vivem,

íía garra, e condição peiores que ellas.

A maldade em caracter convertida

E sempre mãe do crime, e a natureza

despir-vos não sabe, artes perversas.

Como ha de a voz saudável do remorso

Melhorar corações, depois que a peste

De corrupta moral se arreiga n'elles;

Fermenta, lavra em fim de vêa em vêa.

De séculos a séculos medrando?

Quando os dons se amontoam sobre a culpa?

Quando a penúria a probidade ancêa.

De um vulgo detestável acossada?

A tudo a negra turma inverte os nomes;

O bom desapprovando, ao mau se aíferra:

E é tanta nos cruéis do crime a sede.

116 OBRAS DE BOCAGE

O exercício do mal taes forças ganha, Domina tanto ali, que nunca omittem Opportuna estação de perpetral-o, Ou do ardor de empecer, ou da cubica Da illegitima presa esporeados; Como se a rectidão, como se a honra, O que a todos illustra, os deslustrasse. Não com lingua fallaz taes vozes solto: Ninguém no mundo o que descrevo, ignora. Quom de olhos carecer, e quem de ouvidos, não conhecerá, quão vis ahunnos Peia terra esparziu o audaz Mafoma, O refalsado auctor da f^èita infanda.

Que dolos, que traições, que iniquidades Da caterva brutal provaste ha pouco. Tu dize, tu, magnânimo Donaldo; Conta os vários successos, conta os riscos, Os trabalhos, que a ti, e aos teus urdira Atro perjúrio do bilingue chefe; Tudo porém trophéo das forças tuas. Lustroso do esplendor de império summo, Tu foste quem primeiro apresentara A dadiva da paz, que, apadrinhado De um rei potente, o bárbaro implorava. Quando é que as condições mais leves foram ? «Bntreofuem-se os francezes acolhidos Brandamente de Tripoli nos muro.s, Ao throno do sultão pezada ofFensa,

EPISÓDIOS TRADUZIDOS 117

Grave infracção também do jus britanno,

Da assentada concórdia, e laço antigo.

Bachá, cumpre o dever, e a teus desejos

Verás a conclusão, verás o fructo.

Grã penhor te dará na fé, na dextra

Aquelle, cujas leis adora o Tejo,

Ufano revolvendo arêas de ouro;

Cujas leis teme o Niger, teme o Ganges;

São freio, acatamento do Amazonas,

Do Argênteo, que em torrentes resonantes

Immensos cabedaes aos mares levam. »

D'alta alliança o régulo sedento, Folga, exulta, accelera-se, convida O animoso guerreiro ao forte alcaçar. Quer, comtudo, exercer primeiro astúcias, Que o feio coração lhe está brotando. Bem que tanto aproveite, e tanto alcance No que diz co'a razão, no que é justiça.

Dá-se pressa: ameacem muito embora Caso fatal as hórridas muralhas, Encerre o que encerrar ambigua estancia; Todo firmado em si, maior que o susto, Vai demandar o heroe a hostil morada. E d'est'arte que só, que destemido Carlos outr'hora ousou nos próprios lares Encarar o inimigo exacerbado. Volvendo illeso aos seus, depois de muito; Ou tal, fieis annuncios desprezando,

118 OBRAS DE BOCAGE

Foi César envolver-se entre os conscriptos,

Dispostos á catastroplie cruenta;

De indócil ao temor, de habituado

co'a presença a triumpliar mil vezes.

Entre as sombras da noute absorto em tanto, Mettido em pensamentos veladores, Até que ás ondas volte o grande chefe, (Se lhe é dado talvez tornar, qual fora) Impera n'alta popa o delegado; E o luto que lhe cinge a phantasia, Recata com semblante esperançoso. Partindo prescrevera o cabo invicto, Que, a negar-lhe o regresso indigna força, Apenas alvejasse a grata Aurora, Trazendo novo lustre ao cóo, e á terra ; Com todo quanto impulso em lusos cabe. Os pérfidos contrários commettessera. Nada cura de si; nem quer ausente Ser obstáculo aos seus: co'a idéa erguida A bens de mais valor, de mais alteza, A vida se lhe antolha um sonho, um nada, A mente perspicaz não se lhe esconde, Sente no coração, votado á gloria, {^ne da existência a luz é luz de raio; Que, se as tubas da Fama os não precedem, Vastos nomes no Lethes se baralham Entre escuro montão de escassos nomes. O que aíFecta os sentídos deixa ao vulgo;

EPISÓDIOS TRADUZIDOS 119

Enjeita o que é do vulgo, o qtie é da morte, E mais que htimano, e Sobranceiro ao !Pado, Quer duração, que os séculos albratija.

Por que Fabios direi, sós contra um povo Todo o pezo da guerra em si tomando? E o rei, que de^ti, morrendo, aos seus Victorin, Hei derradeiro na Cecropia terra? Ou porque os moços, que exhalando as alínas, Ferem, matam, derrubam densas 'hostes, Estorvo das correntes, que bebiam? Tropel dez vezes cento (oh *marávilha !) Maior que seis terríveis adversários; Não visto n'outro tempo, ou ii'outros dlimás, Nem por outrem guiado 'ao mareio jogo? Vetustos monumentos nada ensinam, Que mais esplendor; ou antes liunca Se affoutou a idear viril deUòdó Empreza mais illu^tre, audaz, violèlita. ^

Mas como transcender- se as métás "podem, Onde se crê parada a natureza, Donaldo o manifesta, o prova ao mundo. Alta fama de um consente apenas A Codro, aos Fabios, aos varões de Espàèrta O secundário gráo. Soltando a viâa, Chama o triumpho aos Seus o teroe de Átliena% Acção rara, exemplar; porém ao povo O cidadão, e ò rei deviam tanto, E a tanto a voz doâ ééoâ õ âfrelbatavà.

120 OBRAS DE BOCAGE

Se OS trezentos impávidos romanos^ Aos arraiaes hostis se arremessaram, Foram-lhe origem da proeza extranha Velha aversão, trophéos imaginados, E agouros de segura eternidade; Além de outro incentivo inda mais caro: Morrer nas armas, escudando a pátria ! Laconios campeões, sim defendestes Com requintado alento, e planta immovel Da apertada Thermópylas o passo; Mas os deuses, os filhos, pães, e esposas Os objectos do culto, e do amor vosso A vossa heroicidade objectos foram; E deram-vos os fados, que a vingança Aligeirasse em vós da morte o pezo.

Porém de circumstancias mais sublimes O egrégio, immortal feito se rodêa, Que me cumpre levar por toda a terra: Graveza aos hombros meus descompassada, E excessiva talvez de Atlante aos hombros. Não, aqui não se offVece abrilhantada De attractivos externos a virtude: Núa apparece aqui, por si formosa. Donaldo, avesso ao crime, o crime odêa, Por amor da virtude, ama a virtude. Nada do que usa erguer ao alto as mentes, Nem pátria, nem desejos de vingança, Nem própria utilidade, ou qualquer outra

EPISÓDIOS TRADUZIDOS 121

Das humanas paixões Donaldo incita: Ante si do dever tem a imagem, Seja qual for o eífeito, ou ledo, ou triste.

Ai ! que tramas dispõe bando horroroso ! Que ciladas no astuto pensamento ! Plí be sem lei, sem prepara a furto Traidores laços ao varão, que assoma. na imaginação devora a presa: De engenho mais sagaz se crê dotado, Mas jus colhe ao louvor quem da perfídia No atroz invento sobresáe aos outros; Quem das negras, pestíferas entranhas Crime inaudito, insólito attentado, Nova abominação vomita, arranca, Rugindo em torno rábida caterva.

Mal que na odiada arêa a planta imprima, Esperar n'um punhal o incauto, e ás ondas Em pedaços (que horror!) lançar-lhe os membros: E d'e8te opinião; voto é d'aquelle. Que súbito assaltêe impia cohorte O immune órgão da paz, e férreas pontas D'aqui, d'ali no coração lhe embebam, Quando a infiel cidade entrar seguro. Quer outro, que de longe á fronte heróica, De inviolável caracter decorada, D'entre o lume sulphureo voe a morte. Outro, que subterrânea estrada infensa Debaixo de seus pés ardendo estx)ure.

Iâ2 OBUkB DE BOCAGE

Nem occorre isto só: revezam todos Horrores, que requintam sobre horrores. Emulo ardor nos ânimos damnados Tanta aos delictos affeição lhe at^ ! Tão preciosa lhe é, tão doce a infâmia !

Mas o Eterno desfez insidia enorme. Nos olhos do varão, na voz, no aspecto Tal reverencia pôz, pôz tal graíndeza, Que vai por entre a luz, e os inimtigos Incólume, e sereno. Eram famosos Por sanguineas, innumeras brutezas, Quantos d'esta (a maior) se encarrega i^m. Mas quando o pensamento abominoso. fito na presa, a mão dirige, Nega-se a mão (que assombro!) ao acífco hóftendo. Três vezes a vontede resoluta Se abalança á traição: descàe tipes veKeíS ^'«m frigido pavor o algoz congresso: Três vezes foge o ferro ás mãos, que tremífm; E, a seu pezar, baldada a vil perfídia. Conduz j>ela cidade insidiosa Inerme o vencedor triumpho insigíme.

pisa do tyranno os pavimentos, (Não indignos de Oaoo) ou para dar-llie Penhor de amiga paz, ou o ameaço Do trovão, que no bronze o pólo atrèa. Eia, em que te deténs, varão prestante? Porque inda não rebomfca © Bom ào raio

EPISÓDIOS TRADUZIDOS 123

Nos insanos ouvidos? Porque em terra Os feros baluartes não baqueam? Porque o régio baixel não solta os panaos, E o bárbaro palácio não fulmina? Crês^ que te é dado achar sobre essa plaga Uma vez a ? Jamais Astrea, Desde que o globo é globo, estancia teve N'esse terreno infesto, onde a verdade, Onde os tractados, a razão se volvem N 'estes dous eixos : ou on/poj ou medo. Rompe, rompe as tardanças, não perdoes A malvada nação: com ella expendam Donativos os mais, tu ferro, -e fogo. A Politica em vão, que tudo aplana, Em vão coróradicçõeg compor quizera^ Com que as palavras entre si repugnam: A progénie de Agar teme a força. Em quanto implora a paz subtis preéextos Tece o arteiro bachá, para que frust^re Clausula, em que somente a paz se estriba. Não é porque o francez cubice amigo ; Mas é porque o francez, e o luso engane; Debalde, que a sisuda sapiência Rege, illustre Donaldo, as vozes tuas; E ao doloso africano o dolo argue.

Tu primeiro lhe expões, quão «lal conforma Co'a honra, de que túmido alardêa. Dar manso gasalhado aos inimigos

124 OBRAS DE BOCAGE

Dos alliados seus, do gran monarcha, A cujo império vassallagem deve. Tu promettes depois, que ao falsa rio Egualmente o sultão de cor servia, Mandar-lhe sobre a popa lusitana A origem do debate, os prisioneiros, De barbudas escoltas ladeados, (Gloria nunca outhorgada a musulmanos.) Desmanchas do Agareno as fraudes todas; Mas, aos mesmos principies afferrado. No objecto, em que insistiu, tenaz insiste, E ás vozes da Equidade é surdo, é morto. Colhido havias de experiência funda, Quanto a sanha mourisca apura extremos Em ódio da justiça, e quanto indóceis Torne indulgência os ânimos ferrenhos. Que da natureza assim vieram. Mas prompto a derrocar suberbas torres, E prompto a confundir no horror da morte Mancebos, e anciãos, credores d'ella, Artes macias sobre a impia turba Todavia exhaurir primeiro intentas: Vêr^ se lúgubre quadro de ruínas, Pela voz da eloquência reforçado, Por dita amedrontava a casta imbelle, Misérrimo espectáculo poupando, Que o coração magnânimo te aggrava: De insólito rubor as ondas tintas,

EPISÓDIOS TRADUZIDOS 125

Era satjgiie humano as terras ensopadas. Mas a doce piedade que aproveita ? Morre a esperança; infructuosos jazem Cuidados, e fadigas: inda geme A humanidade em ti, porém releva Punir da humanidade os inimigos.

Em fim braveza hostil o heróe concebe; Notando quanto é cega a gente infida, Sáe dos hórridos tectos infiimados, Sáe da fera cidade, e deixa o porto, Quem fácil até 'agora ouvia as preces, ferve por calcar insano orgulho: Não de outra sorte pelfi selva umbrosa, Ou quando sobre as lybicas arêas Famulento caminha o rei das feras, Desdenha generoso o passageiro, Que, preso do terror, no chão palfiita ; Mas se a firme alguém lhe está defronte, Co'as garras o derruba, o despedaça; E audaz, e truculento, e com ru cridos Onde ha mais resistência, ali mais arde: Succeda que o provoque, e desafie Duro esquadrão, de lanças erriçado: Arremessa-se a todas; e se morre. Morre, como leão, sem cor de medo.

Dos lusos entre os vivas soa o bronze; E eis sanguínea bandeira açoutíi os ares, Presagio de terrífica matança.

12& OBRAS DE BOCAOÍT

A bellicosa turba em si não cabe; «Armas, armas, (vozeam) guerra, guerra : » Tudo se apresta, e tudo aos postos voa, Em quanto a náo desfere as pandas velas. Luz na dextra o murrão; e em fim patentes As éneas bocas cento agouram mortes.

treme a desleal cidade impura; para os céos estende as mãos profanas; se diz criminosa, e se pragueja. Breve espaço, em que o animo repouse, Em que dispa o temor, e se consulte, Manda ao luso implorar, que annue ao rogo. Eetarda-se horas doze a justa pena, Justa ha muito, e que em fim será vibrada Sobre as infâmias da nação proterva.

Lume sereno, que azulava o pólo. Medonhas nuvens entretanto abafam; Sombras pezadas prognosticam males. E voz, que no centro dos infernos, A bem dos consanguineos musulmanos, E em despeito aos christãos, que Lysia nutre, Que ora os muros mahométicos assombram Com próximos estragos, ante o sólio Do torvo Dite cortesãos immensos Co'as mãos erguidas longamente oraram, Attento ouviu Sumano os Ímpios votos; E um dos ministros seus, que jaz mais perto. Ordem recebe de surgir ao mundo,

EPISÓDIOS TRADUZIDOS 127

De voar n'um momento á vasta EoHa,

E dos tufões ao ríspido tjranno

Taes vozes transmittir: c(Que altiva gente,

«Que indómita nação, capaz de tudo,

«(Por quem malquisto sempre, e defraudado

c(0 reino do pavor carece de almas)

Sobre quilha arrogante aparta as ondas,

c( Os domínios do equóreo irmão lhe insulta,

c( Que também da intenção quer advertido;

c( Para que ambos co'as forças apostadas,

((No mar cavando, erguendo abysmos, serras,

((O lenho injusto, audaz sacudam, rompam,

(( Qae apavora de Tripoli as muralhas,

(( A elle^ stygio rei tão importantes :

(( Perdidos os pilotos, e arrancada

(( Do alto pego, ou nas férvidas arêas,

((Ou nas sumidas rochas arrebente:

((Os frémitos do auxilio em vão rogado,

(( A festiva cidade escute, e veja

(( Nas aguas os christãos bebendo a morte. »

Disse, e o núncio veloz ao mundo surge,

A basta Eólia voa, e cumpre o mando.

rompem da masmorra os Euros bravos; com sigo arrebatam quanto encontram. Foje o molle Favonio, foge o dia: Os campos de Nerêo a inchar começam: Ao longe horrendamente o pego ronca: Eis súbito encanece, e todo é montes.

128 OBRAS DE BOCAGE

Quasi, quasi a cair d'uin, d'outro lado.

Os mastros vergam, as cavernas rangem :

Qaal (se alguém a jogou) saltante péla.

Roça o pinho os infernos, roça os astros;

Vaij e vem vezes cento abaixo, acima.

Carrancudos três soes a luz negaram,

Por três noutes o céo não teve estrellas!

E se Éolo, em seu impeto afracando,

Deu ao dia segundo algum repouso,

O experto general o ardil penetra:

A guerra apercebidos chamma, e ferro,

Em tanto que, Neptuno fraudulento,

Tomas seiena face; ao alto a prôu.

Que se enderece, ordena, assim que o.s ventos

As vagas sobre as vagas encapei] am :

Não succeda, que o pélago fervente,

Os insanos tufões contra as arêas

Com um, com outro embate o lenho atirem.

Então, quanto se vigor em numes, Na lide poifiosa os dous esmeram : Em roda novo horror carrega os mares. Os sanhudos irmãos guerream, berram, De regiões oppostas rebentíindo: Escarcéos, e escarceos se atropeliani: Por longo espaço treme o fundo aquoso; Como que está Plutão do stygio centro Co'o3 duros liombros abalando a terra.

EPISÓDIOS m^èuziDos 129

De taes, e tantas fúrias. assaltado, Que arte guiar podia o lenho indócil? Nem lignea robustez, nem cabo^ valem: Cáe com ruidoso estalo a rija antena, E batem susurran Jo ^siis rptas véks.

D'ostes gravames nada oppresso em tanto, Por tudo se divide, a tudo acode, Todos co^a voz, e exemplo aviva o ehefe, Grassando em todos emula virtude: Não ha frouxos: marcam, saltam, correm. A engenhosa prudencâa em fim triumpha ; Vence a constância audaz; e a largos pannos Vae-se amarando ovante a náo veleira. Aqut.^lle, cujo aceno os astros move. Que rege o mar, o vento, o mundo, o Averno, P}'ogresso não permitte á raiva undosa : E se até 'li soífreu, que encarniçados Marulhos, furacões travassem guerra, Foi para que altamente as memorandas Forças do luso peito reluzissem. Noto, Au^tro, Boreas, Aquilio emmudecem Ma!iso, e manso : e, d-espindo as prenhes nuv^s, O céo veste um azul sereno, extreme. Volve o molle Favonio, volve o dia, E volvem mais que d'ante3 amorosos. Fora imposto a Tritão pegar do buzio^ Com que as ondas revoque: o búzio toma; Surde por entro espumas orvalhoso,

130 OBRAS DB BOCAGE

A encher co'a voz sonora em torno os mares. Eis sopra a concha ingente, e mal que sopra, Resôa pela Aurora, e pelo Occaso. Tornam violentas a seu leito as vagas: Esta recua ás siculas paragens Por não vasto caminho; aquella ás Syrtes Fervendo em rolos vae; remotas margens Mais tarde outra revê, d 'onde corrÊra Ao nome, que a attraíu, que á pátria sua, E a Tripoli é commum : também alguma Foi visinhar co'as aguas do Oceano : Tal que d'antes jamais deixara o fundo, Ao fundo se desliza, e jaz, e dorme.

Na quarta luz emfim desde as alturas Tostada multidão, que vigia. Presume illusa descobrir ao longe Cadáveres boiantes, vergas, taboas: Ha entre elles alguém, que derramados de Lysia os thesouros ve nas ondas; E quem menos de Ijnce arroga os olhos, Se attreve a assoalhar, crédulo, insano: Que se o pego poupara algum dos lusos, c( reliquias a náo desmantelada Ia reconduzindo aos pátrios lares.» Mas em quanto delira o povo adusto, A gávea se desfaz ao sopro amigo: Tentam de novo defrontar co'as praias. Que á merecida pena em vão se furtam.

EPISÓDIOS TRADUZIDOS 131

Bem que findasse a noite, o róseo Phebo Não com tudo esmaltava o mar, e a terra; Não era o tempo então nem luz, nem sombra. Porém como surdiu dos Thétios braços O filbo de Hyperion, e os céos lustrando, Com seu raio expulsou de todo as trevas, Alcança de mais perto, e primeiro Navegante polaca a vela, e remos. Que aos nautas patentear o lenho a segue; Rápida foge: o remo, o vento a ajudam. Como no espaço azul medrosa pomba, Apenas a águia sente, apressa os voos. Contra as unhas cruéis buscando asylo; E em seus tremores incapaz de escolha. De logar em logar sem tino adeja, Por fen'nos covis, palácios, bosques, Assim (quão raramente!) escape ás garras: D'egual modo, apurando ás ténues forças, A curta embarcação, para salva r-se Do inimigo fatal, varia os bordos: Mas vendo que evital-o é vão projecto, Tomada do receio, a proa inclina A conhecida área, e quasi encalha. com menos affronta aqui respira; Porque os baixios arenosos vedam A tremenda invasão da lusa quilha. Então jactanciosa eleva a frente : As flâmulas no tope lhe floream;

182 OBRAS DE BOCAGE

Guerra ameaça então, .e á guerra chama Braços, a que a distancia tolhe o raio. Estíi audácia, porem^ não fica impuíae: Que obsta a niortaes de espirito arrojado, Quando iroso calor lhe accxende o peito ?

Ao mar leves bateis súbito descem, E commandados de um, que os sobrepuja, Vão co'a vin<ianca fulminar o acrorravo.

o 3 ora

Sobre elles, á porfia, a flor dos lusos Enceta heroicamente a grave ^rapreza. Gentilezas á Fama deram todos; Todos em feitos grandes se estremaram. Mas o louvor primeiro a ti compete, Que d 'arvore de Palias te apellidas, E cinges vencedor com ella a fronte. Em saltar ao batel tu te anticipas: Tu dos Ígneos pelouros não detido, Forças os remos, a inimiga aferras, Quando a fusca equipagem temerosa, Ao frágil seu baixel picando a amarra, Nas praias com elle, comsigo, E n'ellas imnHna rescruardar-se : Tu primeiro também sobre os contrários Disparas férreos globos^ que os cyclópes Forjaram, fabricando a Jove as armas. Mais inda remanesce, inda te sobram No ensejo marcial discrimes duros, Assombrosas acções, que te levantem

EPISÓDIOS TEADUZIDOS 18^

Ao cimo de fragoso^ aéreo monte, onde em paçoí? de ouro a Gloria reina Com sceptro diamantino, e circumdada De numerosa, esplendida assembléa; Entre a qual pela mão da Eternidado Teu vulto surgirá, marmóreo todo. Para tanto não basta, que empolgasses O curvo bordo opposto, ou que o subissem Os companheiros teus, depois de expulsa A vil tripulação por vis terrores. Os azares, e os júbilos se enleam. Porque a mesma desgraça, o que no mundo E miai, é damno a todos, te aproveite. Repentina resaca a dous comtigo Constrano^e a recuar no débil casco, E á praia arroja os três, quando reílue. Aqui se vê, qual és, que ardor, que alento Te abrange o coração, te anima o pulso: N'um feito hercúleos feitos escureces, E quanto as musas fabularam d'elles.

Fera gente, de arábica linhagem, De torva catadura, hirsuta, e negra. Pelos serras contio:uos vaorueando A maneira de lobos, se apascenta Nas rezes dos rebanhos desgarradas; Ou, emula do tigre, as selvas rouba. Rouba os redis; e o medo, o sangue, a morte Diífunde aqui, e ali. Muniu-se agora

134 OBRAS DE BOCAGE

De armas de toda a espécie: uns vibram lanças,

Outros forçosa vara, espadas outros,

Ou pedras, ou punhaes, ou fogo, ou settas.

Eil-os das. agras serras vem correndo

Acudir aos irmãos: (quem ha que os conte ?

São quaes manadas, que devastam campos.)

Como hardida phalange escalar tenta

Castello situado em cume alpestre.

Ou romper torreões de alta cidade:

Uma, e outra caterva os três investe,

E quanto esforço tem, no ataque emprega.

Se a cada qual dos três té'li se oppunham

Mouros cincoenta, os árabes, que occorrem,

A cada qual dos três oppoem milhares;

Todos bravios, formidáveis todos I

Em que facúndia taes portentos cabem?

Quem ha que pasme assas de taes portentos?

Quem, se não fora testemunha o mundo,

Por fabula, ou por sonho os não teria?

Troam da Fama no clamor; e vivem

Olhos, que os viram, braços, que os fizeram.

Era para attentar tão nova scena ! O denodado heróe, e os dous, que inflamma, As bravuras sustem de um povo inteiro. Rue a raivosa, rústica torrente; Retumba em valle, e valle a grita horrenda. Cambos os lados o guerreiro apertam: Sibilam tiros, golpes se redobram ;

EPISODIOá TBADUZIDOS 135

Mas elle co'a sinistra, elle co'a dextra

A multidão rechaça, illeso, immoto.

Aos bárbaros ò pejo atiça as fúrias:

De artes mil desusadas se refazem

Na espantosa refrega; mas sem fructo:

O varão permanece invulnerável,

E nas stygias aguas cem mergulha.

Para aqui, para ali a espada é raio,

Nunca em vão. D 'um, que audaz de perto o arrosta,

Enterra-a nas entranhas; outro que era

De membros gigantêos, de lança enorme,

E exhortava na frente á guerra os tardos,

A dous golpes, não mais, do luso Achilles

Jaz inerme; e com um, com outro arranco

O espirito feroz lhe cáe no inferno.

A este, que na terra an cioso arqueja.

Vão as auras vitaes desamparando;

Aquelle é tronco só: por toda a parte

Voam braços, cabeças, fervem mortes.

Oh tu, que dos Almeidas tens o agnome, Tu, que ligar podeste em lustroso Ás honras de Mavorte as de Minerva, . Também te faz eterno este áureo dia. Se os lusos, que pelejam sobre as praias, E aquelles, que a polaca prisioneira (Sossobrado o batel) retêm no bojo, Onde de longe os vexa o mauro insulto; Se todos volvem salvos, obra é tua.

188 GBBAS DE B00k<m

Em quanto poí* auxilio a uns, e a ontpos Envias Alexandre, nunca, esquivo Da nobre estrada, que trilhara o Grande^ Ignivomo canhão, que infatigável 'Respondera a dezoito brônzeas bocas, *'

E silencio lhe impôz, de novo esparge Por entre horrível som, e opaca nuvem No centro dos cerrados africanos Q-ranizo de lethifera metralha. O primeiro terror tu lhe infundiste, Tanto que a de Mafoma agreste chusma Viu corados de sangue arêas, mares: O mandado varão cr'oou a empreza. Rapidamente o remo as ondas varre, E Sousa impetuoso aos sócios chega: Contra os donos assésta^ o bronze adver.so. E assim lhes restitue as férreas balas. cede, fraquêa a tropa escura, De convulso temor enregelada. Eil-os fugindo vão, nem que aves fossem; Por uma, e outra parte se tresmalham. Crendo sentir estrépito, que os segue.

A bordo então Donaldo os seus convocar: Corre a abraçai -os, e na voz, na face O cordeal prazer exprime a todos. ' Memorando as façanhas uma a umas, Do condigno louvor as enche, as orna, Altivo de reger téo brava gente.

EPISÓDIOS TRADUZIDOS 137

MmI qne o df^scanço os ânimos sanêa^ (Ja declinante o sol do ethei-eo cume) A ferra se aTfeinha ò mais que pode A bollicosa náo; e c'os primeiros Coiiscos marciaes vareja o bando, Qiio em mor tumulto as praias enxamêa.

Do grande lenho á sombra os lenhos breves, (Porque estanhado o mar jaz em silencio"^! Artes, e forças empenhando, intentam A maura presa despegar da margem^ Vãmente; que folgando o lindo côi'0 Das filhas de Nereo, sobre ella salta, A querem para si, lhe chamam sua. E quem de um nume á prole, aos seus direitos No pátrio senhorio obstar podéra? Ou pulsos briarêos onde acharia, Paru o trabalho immenso? Ella, com tudo, Nereidas, não foi vossa, inda que dio^nas Sois de mil dons, e como Vénus bellas. O que á victoria escapa, engole a chaminâ; De jus: damno menor maiores veda; Mais facilmente detrimcmtos leves Caracter pertinaz subjugam, domam, Do que meigo favor o torna grato. Arde o pinho, o furor vulcaneo reina: Nutre o pez, e o betume as pingues flammas, Tanto á pressa, que em vão, inda recentes?, Extinguil-as quizera industria htimana.

138 OBRAS DE BOCAGE

Crebros estalos se ouvem; d'entre o fumo Brotam centelhas mil, como que aspiram As estrellas volver, d'onde emanaram. A li^^nea contextura eis toda é fogo; E o fogo em línguas cento as nuvens iambe.

D'entre penedos, e arvores, que a abrigam, Ao longo da ribeira a progénie, Acceza em fúrias vãs, o incêndio nota: Cuidadosa de si, da luz não fia; Artes, porém, que pode, a salvo exerce. D 'ali com mira attenta os márcios tubos Uma vez, e outra vez dão 8om baldado; D'aqui baldados seixos vem zunindo, Ai ! não todos baldados : mão tyranna Em alvo, que lhe apraz, co'a morte acerta: E aquelles, que a bem custo um poderam Tocar com leve golpe em campo aberto, Da perfídia amparados, se gloriam Ao ver que um semi-morto os sócios levam. De Marte a crua irmã quer este sangue. Havendo de lavar aos vencedores Tudo quanto é mortal e dar-lhes vida, Com que assuberbem as idades todas. Silva por isto os séculos invade Em rápida carreira irresistível; França por mãos da Gloria enloura a fronte; Rocha morrer não sabe; o mesmo ignora Esse, a quem de Homem o appellido ajusta;

EPISÓDIOS TKADUZIDOS 139

E O que chamam da Guerra, e que o merece: E tu, claro Avellar, com elles vives, Com elles viverás, em quanto a Honra Tiver cultores, e existência o mundo: Ri-se Virtude assim das leis do Fado.

Era o tempo, em que a lassa Natureza Appetece o repouso; em que os Etliontes De néctar se roboram; quando a noute, Diurnos pezadumes ameigando, Desdobra sobre a terra o véo dos astros. A quebrantada força então renovam Os descançados, os jacentes nautas : Inda estão repisando o que lidaram. Este a aquelle refere, aquelle a este, Que riscos evitara e que feridas; E quantos despenhou na sombra eterna. Faliam uns, outros faliam, que o somno, Nunca tão brando, lhe entorpece as linguas. Mas da fallaz cidade o chefe injusto, De importunos cuidados perseguido, Os mimos de Morphêo gosar não pode. Seu negro coração ralam remorsos; Toma, pela desgraça, o pezo ao crime, Ao crime, Índole sua, e seu costume. O baixel, que perdeu, não doe ao fero; Os mortos cidadãos também não chora; Olha somente a si: ve, ouve As flammas vingadoras; gente o ferro

14fO OBEAS BE BOCAGE

Ir-Íh<3 sobre a cerviz; escuta o baque

Das muralhas, das torres: pendem, pasmam

Alvedrio, Razão-; que escolha ha n''eite?

c( Novamente o varão, que vezes tantas Illudiram traições (diz o tyranno) Emprehenderei mover? Submisso rogo Ha de sempre acalmar-lhe as justas iras? Se os francezes lhe der, tão mal negados, Será bastante? O que exigia, havendo-, Não ousará também quebrar promessas, E no abu§o da regosijar-se ? Vingança é deleitosa ao resentido; Somente se não^ vinga o que não pode. Que, pois?. . . A dúbia sorte dos combates A mim próprio exporei, e os meus prazeres? Dúbia disse?. . . Tental-a é perder tudi^. Se poderam três pôr medo*a tantos, E esses mesmos a vida (oh pasmo! oh pej^!) A tantos arrancar, ficando illesos, Quem ha que lhe resista, unidos todos? Foje, infeliz; e o que poderes, salva; Foge: assim pouparás vergonha, e mortei Mas ah! triste! Em que plaga irei sumir-me?. Que mar, ou que paiz, bem que deserte, Guarida me dará, prófugo, errante?. . . Quem terei, que me siga, amigo, ou servôj nua de esplendor minha grandeza? Antes vulgo infiel apoz meus passos

EPISÓDIOS TRADUZIDOS 141

Bramindo correrá; e ou da existência, Ou dos haveres meus, ou d'ella, e d'elle> Por carniceiras rnãos serei privado. Náo, não; nossos desa-stres custem caio; Usemos toda a fraude, os crimes todas. Cerque-se de traições esse guerreiro, Vaidoso do trophco: co'a falsa ofíerta De tudo o que de mira quizer o avaro, Posso aqui outra vez, posso iittrail-o. E quando imaginaria utilidade, cubica o trouxer, se das ciladas Intacto apparecer ante meus olhos^. Em pedaços- farei co'as mãos, co'a boca A neftiuda cabeça : ao peito aberto O coração maldícto hei de arrancar-lh>s Eoel-o, devora 1-0 inda furannte. »

Tal esbraveja; e nem a si perdoa, A si lábios, e mãos mordo, remorde: Qual hórrida serpente, encarcerada Entre férreos varões, se alguém a assanha, Com rápido furor so desenvolve, C^ím vezes arremeite ao que a provoca; Mas vendo que debalde exerce a fúria, De sangue os olhos tinge, agudos silvos Centre as fauces venefícas despede, Com que a fíirpada lingua está vibiando; Em tudo o que rodfia, em tudo ferra Os espumosos dentes, e em si mesma,

142 OBRAS DE BOCAGE

Enxovalhando o chão, e a varia cauda Co'as sórdidas peçonhas, que vomita: Em tanto o mofador se ri seguro.

Da Aurora o núncio amiudara o canto; O matutino humor tempera as magoas, E os somnos insinua até no aflíicto: Por isso do bachá desatinado Virtude soporifera se apossa, Lhe amansa os phrenesis, lhe cerra os olhos. Como quem fatigado está das iras, Pesadamente o bárbaro resomna: A seus males, porém, não colhe aUivio, Nem demorada paz lhe rega os membros. Phantasmas, que velando o espavoriam, Inda entre a doce languidez o atterram; Vê-se indigente, desamparado. Ermos em outro mundo a trilhando, Ermos sem rasto de homem, nem de fera; Onde ave alguma não discorre os ares. sevo abutre de implacável fome Lhe atassalha as entranhas; querendo Fugir de hasta inimiga, que o persegue. Que lhe toca as espaldas quasi, quasi Treme todo, e mover não pode a planta; pende de árdua rocha sobre as ondas.

Eis entre estas visões, que traça o medo, Imagem verdadeira, agigantada, Clara, como o que a luz nos apresenta,

EPISÓDIOS TRADUZIDOS 143

Surge aos olhos do attonito agareno. Aquelle a quem venera ainda o Ganges, E o rio^ que Imaús na origem banha; Aquelle, que de jus nomeam Grande^ De Marte emulo não, mas luso Marte, Albuquerque immortal, de amor eterno Pelos seus penhorado, esquece o néctar; E, escusando um momento os bens celestes. Não desdenha baixar aos ímpios muros. Nem co'a palavra serenar discórdias. A náo, que do seu nome se engrandece. Arde por madurar devidos louros. Com vozes ponderosas accommette O aterrado tyranno, que machína Na desesperação atrocidades. Resplandece o guerreiro; é tal, é tanto. Como quando o temeu por vezes duas A que do indico estado hoje é cabeça; Como quando Malaca o viu triumphante ; E em ti, pomposa Ormuz, pendões erguia: No magestoso olhar, na longa barba Traz a veneração, e arnez é todo.

c( Que intentas, miserável? Que revolves No espirito dobrado? (a sombra exclama). Crês acaso aíFastar o mal, que te insta, Perfídia com perfídia encadeando? Não sabes, por ventura, a quem te atreves? Que nação contra ti, que throno irritas ?

144 OBRAS BK BOCAGE

Esquece-te, que nunca impunes deix.iru Taes crimes? Quem melhor que mouiXf^iÃ, deve De Luso conliecer a ousada estirpe? Inda que até dos teus a historia, ignores^ Forr;,a é que saibas o que sabem todos: Quií estragos, que deshonras graiigeasLO D'este povo de heróes, em resistir-llic.

(.( Sobre esmagados collos <le reis xmmros O maior dos Affbnsos, o primeiro Impõe da raonarchia a base eterna. Fhígello assolador da maura gente, Em quanto a regia mão fulmina o ferro, E o grau Mendo, nas portas entíJado, Abre caminho aos.>eu.s; eis se apodera íu Da celsa fortaleza, e da cidade, Que é longa tradição fundara Uly:ises; Es.ja, que do áureo Tejo honrando asniargens, Alterosa, escorada. em septe montes, Taes fii los mereceu, que ambas, os poioá Tiveram <ió acatar-Uie as leis sagradas., Siincho, digno do pae, com quantas mortes Injustas possessões ao mouro arranca, E ajunta novo reino ao reino avito! Ondas de negro sangue mauritano Pela terra visinha, e pela h^erdada Derramam, coriscando, outros Aííon>o=:.

c(Nôm maculou somente os nosso.s c;í^ A mortandade vossa. O quinto Aííbnso,

EPISÓDIOS TRADUZIDOS 145

E O primeiro João restavam inda.

Que ao próprio seio d' Africa levaram

Ferro, e flamma, e terror: Manuel restava,

Feliz, (e coiii razão feliz chamado)

Que. maior do que o seu, quiz ter mais mundos,

E a quem prostrados reis seu rei quizeram.

Tangere o sabe; Arzilla, e Ceuta o dizem;

O attestam Índios, númidas o attestam.

Relatar uma e uma acções tamanhas

Para que? Dos heióes somente os nomes,

Sem o immenso louvor, que os acompanha,

Pedem horas: sobeja o que has ouvido,

Pai-a atten tares bem, que lance estreito

E o lance, em que estás, e com que gente.

Pondera ainda, mais, quão desprezíveis

São para o portuguez ciladas tuas:

Ha muito que a experiência nos ensina

Até que altura o mouro enganos sobe:

A prudência, e valor nos meus competem.

(( Porque, pois, te deténs? Supplice, e curvo Uma vez, outra vez, porque não rogas Aos lusos leu perdão, bem que indevido ? Se elles se pagam de calcar suberbas, Se de punir delictos se comprazem, Apiedar-se do réo também lhe é uso, Quando os implora. Ao tempo, em que vingado O sol tenha o zenith, a náo possante, A maior, que teus portos fortalece,

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146 OBRAS DE BOCAGE

Será do vencedor; sel-o-hão com ella Dois menores baixeis recem-captivos, E o chefe, e as equipagens numerosas. Mas não temas; co'a supplica rendida Tudo recobrarás. Cubica de ouro Jamais vicia o peito aos generosos : Não quer servos, nem presas; quer amigos Minha honrada nação. Eia, aproveita O tempo, que te é dado: olha, que foge.»

Disse, e voou sem que resposta espere: Salta do leito o mouro arripiado, Volve em torno, e revolve os turvos olhos. Quasi arrombando as portas, corre tudo, Tudo vê, chama, brada, acodem servos; Mas não sabe o que diga, absorto, insano. N'isto ao mar de repente os olhos volta: Por todo elle os alonga, e fica immovel.

Em quanto as ondas sôfrego examina. Não ser sonho a visão, no effeito observa. como a lusa náo demanda o porto: Como próxima a elle, em roda vira; Como enfunada, e mais veloz que os Euros, Vae dar caça ao baixel, que ao longe aponta Com remeira galé; como as toma; Como as presas conduz, e audaz campeã : Como sobre a maior em fim subido Castro, e nada tardio, á voz do chefe, Outra, que sobrevem, combate, e rende.

EPISÓDIOS TRADUZIDOS 147

Fora melhor á triste o d ar- se loofo. D'aqiiella, bem que inútil resistência, Gloria, afouto Avellar, houveste em dobro. Usado a presumir que a morte é nada. Com poucos, o munido de ti mesmo, Eis o mauro convez ganhas de um salto; Gira o ferro, e triumphas, dous prostrando.

Tudo isto, verdadeiro em demasia, E d'alta apparição vaticinado, Caramáli do alcácar descortina. Primeiro o coração lhe agitam fúrias ; Não pára; vae, è vem; doudeja^ freme; As melenas arranca, arianca as barbas: Pouco a pouco depois temor o abranda. Gravado tem o heróe na phantasia; E porque em tudo o mais o ve sincero. No resto da visão firma esperanças. Hesitando, com tudo, em si murmura: c(Quem do contrario seu fiar-se deve?)) Mas, passado um momento, assim não pensa. c(Em tentar que me vae? Senão, que resta ?l>

Disse, e a um, entre os seus auctorisado, Que lhe provara n'outros extremos, Envia de Albuquerque á náo temida Cos (( francezes )) fataes, que á similhança Da gorgónea carranca damnam vistos. Diz-lhe (sè tanto ousar) uque em troco d'

148 OBEAS DE BOCAGE

Peça os varões, os lenhos apresados; E tudo facilite ao grato assenso.))

Além das esperanças vae o effeito: De nada para si querendo a posse, Donaldo restitue (acordes todos) O almirante infiel, varões, e lenhos: E prende a tantos dons o dom brilhante, Que suspira o bachá, de amigo o nome, Promettendo que o throno ha de approval-o.

O coração do régulo não basta Ao jubilo inesp'rado. Alegres vivas A voz dos cortezãos^ e a voz do povo Manda aos ares : no pélago reflectem, E tocam dos lusiadas o ouvido. Que nectareas correntes innundaram Portuguezes espiritos, olhando Sobre as amêas das profanas torres As bandeiras de um Deus, de Christo as quinas, Do reino occidental eterno abono! Em quanto acclamações da infida plebe, E a espaços o trovão da artilheria, do mar, da terra, os céos atroam I Eis de tanto suor o idóneo preço: Quem seu Deus, e seu rei a um tempo serve, Que mais quer, ou da Gloria, ou da Ventura?

A ti, oh Lima, conductor supremo Da lusitana esquadra, a ti, que és grande

EPISÓDIOS TRADUZIDOS 149

Na ascendência de reis, no gráo, nos fados, Inda maior no engenho, e na virtude; Também no caso illustre se deriva Applauso não vulgar: por ti mandado Fez o pátrio valor tão raras cousas: Foi sua a execução, teu fora o plano.

Nem menores pregões te deve a Fama, Nelson preclaro, da victoria filho, Que usurpas a Neptuno o gran tridente: O que o luso acabou, tu lhe apontaste.-

Mas a origem de tudo a quem respeita, A quem melhor quinhão de gloria cabe, Ou falle a Musa, ou não, ninguém o ignora: Soam praias seu nome, e soam mares.

A náutica perícia, que afamados Outr'hora os portuguezes fez no mundo. Que os levou a reinar a extremas plagas, Sem cultura jazia (oh vilipendio !) Do centro das brasilicas florestas Desarraigadas quilhas inda arfavam Sobre as tágicas ondas, mas em ócio: E se alguma imprudente ousava acaso Ás Hyadas expôr-se, expor- se a Arcturo, Ronceira dividia o lago immenso. Dos mares, e dos ventos esquecida ; Incapaz do conílicto, e da procella. Raro o nauta, e cora alma entorpecida, O ministério seu desaprendera :

150 OBRAS DE BOCAGE

Obedecer, mandar nenhum sabia. Eis Coutinho!. . . Eis o génio antigo acorda; Eis nova geração com elle assoma. Para Marte, e Nerêo sabia academia Cultiva cidadãos : escolhe entre elles O illustrado varão, quem se avantaja; E, bem que repartido em mil cuidados, O pezo de altas cousas sustentando, Co louvor afervora o que é louvável, E em quem merece o premio, os amontoa : D'esta arte a mocidade aos astros sobe ; Assim com sócios taes luziu Donaldo. Oh três, e quatro vezes venturosos Nós, a quem dado foi, que respiremos Súbditos de João, serenas vidas; <, E ser de tanto bem participantes ! João, da pátria pae, renovo insigne De monarchas, de heróes, de semideuses; Amor, gloria, esperança, e luz da gente. Que, os mares invadindo, ousou primeira Ver, e aíFrontar o adamastóreo vulto; Desde a ultima Hesperia ir na Aurora Arvorar contra as tórridas phalanges O estandarte dos céos, penhor do império; João, que em quanto as guerras tudo abrazam, Em quanto Erinnys senhorêa o mundo, Afaga, justo, pio, óptimo, ingente Com amorosa paz os largos povos.

EPISÓDIOS TRADUZIDOS 151

Que O jugo lhe idolatram, perto, e longe; Do exemplo dos avós illuminado, D'elles nutrindo eni si toda a virtude, Na principal, na egrégia se realça De eleger (tudo o mais d' aqui depende) Almas, com quem do sceptro adoce o pezo. Astuto cortezão, que ambiciosos, Sinistros, devorantes pensamentos Com zelo vão fallaz, pallia, e doura, E por elle repulso; e chama aquelles. Que as honras merecendo, ás honras fogem. O veneno dos paços, a lisonja Ante seus olhos em silencio treme: da verdade oráculos attende, da sciencia oráculos escuta: Palias, Themis presidem-lhe aos conselhos; As acções lhe presidem Themis, Palias. Não, para subjugar nações, impérios. Não despe o ferro aqui Gradivo iroso; Mas porque na força a paz se estêe, E porque sem nódoa permaneçam O decoro, os brazões de altos maiores. Não é seu, para si João não reina: O povo, a que leis, prefere a tudo. Orem nobre, plebeu, nautas, colonos. Ou diante do sólio, ou não presentes; Ore o commerciante, ore o soldado; Provam merecimento ? Os prémios levam,

152 OBRAS BE BOCAGE

Volve feliz o que infeliz o busca : A todos satisfaz, egual com todos; E até mesmo ao desejo o dom preceda : com pezado se move a pena.

Oh Lysia! Oh pátria! Surge, altêa a fronte; Que não cumpre esperar com taes auspicios ? Eia, applaude a ti mesma, oh Lysia, applaude» As três, em cuja voz os Fados soam, Prazeres de ouro para ti fiam, Sáe (reinando João) sáe das estrellas Ordem jioygL de séculos ao mundo: Folga: Assombros tens já; virão portentos^ Soltas do coração, mil preces manda Aos climas immortaes; fatiga os numes, Porque da esposa ao lado excelsa, e cara O consorte real no throno exulte; Porque orvajho do céo fecunde, anime Os tempos de João, de nuvens limpos j Porque idolo (Jos seus, terror d'estranhos. Brilhe, viva, e dos netos netos veja; Até que tardas eras o arrebatei^ Aos astros, d'onde veiu honrar a terra : Elle é digno de ti, tu digna d'elle.

FASTOS

DAS METAMORPHOSES

POEMA P. OVÍDIO NASÃO

TRECHOS ESCOLHIDOS, POSTOS EM VEESO POETUGUEZ

TRÂDUCÇAO DO LIVRO I

Desde o principio até á nova formação de todos os animaes depois do diluvio

M^ntre ferros earúti, dtafeUo tnprarúo; Valha a desculpa, st tuíq vale o canto, (O trftduetor.)

ARGUMENTO

O Cahos se reparte em quatro elementos. Zonas, ventos, creação dos brutos, e do homem. Seguem-se as quatro edades do mundo. Nascem homens do sangue dos gi- gantes. Lycaon é transformado em lobo. O diluvio converte tudo em agua. As pedras se mudam em gente. Os brutos renascem da terra.

Antes do mar, da terra, e céo que os cobre Não tinha mais que um rosto a Natureza: Este era o Cálios, massa indigesta, rude, E consistente n'um peso inerte. Das cousas não bem juntas as discordes. Priscas sementes em montão jaziam ; O sol não dava claridade ao mundo. Nem crescendo outra vez se reparavam Ás pontas de marfim da nova lua. Não pendias, oh terra, d 'entre os ares, Na gravidade tua equilibrada. Nem pelas grandes margens Amphitrite Os espumosos braços dilatava. Ar, e pélago, e terra estavam mixtos: As aguas eram pois innavegaveis, Os ares negros, movediça a terra. Forma nenhuma em nenhum corpo havia,

FASTOS 155

E n'elles uma cousa a outra obstava.

*?

Que em cada qual dos embriões enormes Pug}iavam frio, e quente, húmido, e secco, Molle, e duro, o que é leve, e o que é pezado.

Um Deus, outra mais alta Natureza A contínua discórdia em fim põe termo: A terra extráe dos céos, o mar da terra, E ao ar fluido, e raro abstráe o espesso. Depois que a mão divina arranca tudo Do enredado montão, e o desenvolve, Em logares diversos, que lhe assigna, Liga com mutua paz os corpos todos. Súbito ao cume do convexo espaço O fogo se remonta ardente, e leve; A elle no logar, na ligeireza Próximo fica o ar; mais densa que ambos A terra puxa os elementos vastos, Da própria gravidade é compriíiiida. O salitroso humor circum fluente A possue, a rodêa, a lambe, e aperta.

Assim depois que o Deus (qualquer que fosse) O gran corpo dispôz, quiz dividil-o, E membros lhe ordenou. Para que a terra Não fosse desigual em parte alguma, Por todas a compôz na forma de orbe. Ao mar então mandou que se esparzisse. Que ao sopro inchasse dos forçosos ventos, E orgulhoso abrangesse as louras praias;

156 OBRAS DE BOCAGE

A mole orbicular deu fontes, lagos, Rios cingindo com obliquas margens, Os quaes, em parte absortos pelas teiTas Varias, que vão regando, ao mur em parte Chegam, e recebidos no espaço De aguas mais livres, e extensão mais am|>la, Em vez das margens assaltêam praias. O universal Factor também dissera: «Descei, oh valles, estendei-vos, campos, Surgi, montanhas, enramae-vos, selvas!» Como o céo repartido á dextra parte Tem duas zonas, á sinistra duas, E uma no centro mais fogosa que ellas, Assim do Deus o próvido cuidado Pôz eguaes divisões no térreo globo; Elle é composto de outras tantas plagas; Aquella que das mais está no meio Em calores inhospitos se abraza; Alta neve enregela, e cobre duas; Outras duas, porém, que entre ellas ambas O Numen situou, são moderadas, Mixto o frio, e calor. Fica iminente A estas o ar, que assim como é maia leve O pezo d'agua que da terra o pezo, Tanto mais pezo coube ao ar que ao fogo. Deus ordenou que as névoas, e que as nuvens Errassem no inconstante, aéreo seio; Que os ventos o habitassem, productores

FASTOS 157

Dos penetrantes frios, que estremecem, E os raioSj os trovões, que o mundo aterram; Mas o supremo auctor não deu nos ares Arbitrário poder aos duros ventos: Bem que rebentem de encontrados climas, Resistir-se-lhe pode á fúria apenas, Vedar que em turbilhões lacere o mando: Tanta é entre os irmãos a desavença!

Euro foi sibilar ao céo da aurora, Aos reinos Nabathêos, á Pérsia, aos cumes Que o raio da manhã primeiro alcança. O Véspero, essas plagas, que se amornam Com Phebo occidental, estão visinhas Ao Zéphyro amoroso; o fero Bóreas Da Scythia fera, e dos Triões se apossa; As regiões oppostas humedece Austro chuvoso com assíduas nuvens. O Numen sobrepoz aos elementos O liquido, e sem pezo ethcr brilhante, Que das terrenas fezes nada envolve.

Logo que tudo com limites certos Foi pela eterna dextra signalado, As estrellas, que op pressas, que abafadas Houve em si longamente a massa escura, A arder por todo o céo principiaram; E porque não ficasse cio universo Alguma região deshabitada, Astros, e deuses tem o ethereo assento,

158 OBEAS DE BOCAGE

O mar aos peixes nítidos e dado, Aves ao ar, quadrúpedes á terra.

A estes animaes faltava um ente Dotado de mais alta inteliigencia, Ente, que a todos legislar podesse: Eis o homem nasce, e ou tu, suprema Origem De melhor Natureza, e quanto ha n'ella, Ou tu, pasmoso artifice, o. formaste Pura extracção de divinal semente, Ou a terra ainda nova, inda de fresco Separada dos céos, lhe tinha o germe. Com aguas fluviaes embrandecida, D'ella o filho de Jápeto aífeiçôa, Organisa porções, e as assimelha Aos entes immortaes, que regem tudo. As outras creaturas debruçadas Olhando a terra estão; porém ao homem O Factor conferiu sublime rosto. Erguido, para o céo lhe deu que olhasse.

A terra, pois, tão rude, e informe d'antes, Presentou finalmente assim mudada. As humanas, incógnitas figuras.

Foi a primeira edade a edade de ouro : Sem nenhum vingador, sem lei nenhuma Culto á fé, e á justiça então se dava, Iguoravam-se então castigo, e medo; Ameaços terríveis se não liam No bronze abertos; supplice caterva

FASTOS 159

A' face do juiz não palpitava: Todos viviam sem juiz, sem damno. Inda nos pátrios montes decepado A's ondas não baixava o pinho ingente Para depois ir ver um mundo extranho: De mais clima que o seu ninguém sabia. Fossos ainda não cingiam muros, As tubas, os clarins não resoavam, ÍTem armas, nem exércitos havia: Sem elles 08 mortaes de paz segura Em ócios innocentes se gosavam. O ferro sulcador não a rompia, E dava tudo a voluntária terra. Contente do que brota sem cultura Colhia a gente o montanhez morango, Crespos medronhos, e as cerejas bravas, A's duras silvas as amoras presas, E as lisas producções de ténue casca, Que da arvore de Júpiter cabiam. Eram todas as quadras primavera. Mansos Favonios com subtil bafejo. Com tépidos suspiros animavam As flores, que sem germe então nasciam. Viam -se enlourecer, vingar as messes Nos campos nem roçados de adubio, Em rios ir correndo o leite, o néctar;

E da verde azinheira estar cahindo O flavo mel em pegajosas gotas.

160 OBRAS DE BOCAGE

Depois que foi Saturno exterminado Ao Tártaro, e ficou a Jove o mundo, Veiu outra edade, se inferior á de ouro, Superior á de cobre, a edade argêntea, Jove contráe a primavera antiga, Verões, invernos, desiguaes outonos, Curta, e branda estação, que anime as flores. O anno repartem, variando os tempos. O ar então começou a escandecer-se, E ao som dos ventos a enrijar-se a neve: Os humanos então principiaram A demandar guaridas, a ter lares: Grutas, choupanas os seus lares foram. Pela primeira vez o grão de Ceres Se esparziu, se escondeu nos longos sulcos, E opprimidos do jugo os bois gemeram.

A's duas succedeste, ahénea prole, Do génio mais feroz, mais prompto á guerra, Mas não impio. Bis a ultima, a de ferro. Todo o horror, todo o mal rebentam d^ella. Súbito fogem fé, pudor, verdade, Occupam-lhe o logar mentira, astúcia, A insultuosa força, a vil perfídia, Da posse, e do poder o amor infando. Velas o navegante aos ventos solta. Aos ventos ainda bem não conhecidos; Longamente nas serras arraigado, O lenho commette ignotas vagas;

FASTOS 161

A terra, que atéli de todos fôra^ Como os ares, e o sol, por cauto dono se abalisa com limite extenso. Não se lhe pedem devidos fructos, Úteis searas, vae-se-Uie ás entranhas, Cavam-lhe o que sumiu na estygia sombra, Cavam riquezas, incentivo a males. se desencantara o ferro infenso, E o ouro inda peior: eis surge a Guerra, Que, de ambos ajudada, espalha horrores, Vibrando as armas na sanguínea dextra. Fervem os roubos: o hospede seguro Do hospede não está, do genro o sogro; A concórdia entre irmãos também é rara. Tentam morte reciproca os esposos, As madrastas cruéis dispõem venenos, Conta os dias paternos fllho avaro, Jaz vencida a piedade, e sáe do mundo. Do mundo ensanguentado a pura Astréa, Depois que os outros deuses o abandonam.

Para não ser mais livre o céo que a terra, E fama que gigantes o assaltaram, A etherea monarchia ambicionando. Pondo até ás estrellas monte em monte. O padre omnipotente, o summo Jove N'isto com raios esbroando o Olympo, Partindo o Pélio sotoposto ao Ossa, Sobre o tropel sacrílego os d«.rruba.

162 OBRAS DE BOCAGE

Esmagados c'o pezo os feros corpos, Diz-se que a terra, a mãe, no muito sangue Dos filhos ensopada o fez vivente; Homens d'elle creou, porque a memoria Da progénie feroz permanecesse.

A nova geração também foi dura, Dos numes foi também desprezadora, Amiga da violência, e da matança, Denotando que o sangue o ser lhe dera.

Saturnio viu dos céos estas maldades^ Gemeu, e recordando um impio caso, Inda não divulgado, inda recente, O atroz festim da Lycaónia meza, Iras concebe o deus dignas de Jove, E o conselho immortai convoca á pressa, Que á pressa congregado acode ao mando.

Ha nos céos um caminho alto, e patente,. (A nímia candidez o faz notável) Lácteo se chama; vão por elle os numes, Os graves cortezãos do gran Tonante A morada real. D'um lado e d'outro Dos deuses principaes os lares brilham, Abertas as fulgentes, grandes portas. Deuses menores outro espaço habitam, E os potentes celícolas supremos A frente os seiís Penates collocaram. Este, a caber na voz audácia tanta, O palácio dos céos appellidára.

i

FASTOS 163

Em marmóreo salão juntos os deuses, Todos depois de Júpiter se assentam, Que em logar sobranceiro, e sobreposta A fulminante mão no ebúrneo sceptro, Por três, e quatro vezes meneando Espantosas melenas, com que abala A terra, o mar, e os céos, taes vozes solta Com fera indignação : « Maior cuidado O mundo me não deu n'aquella edade Em que a turba de anguipedes gigantes Queria o céo romper com bmços cento; Que ainda que era multidão terrível, Hoste feroz, com tudo d'um corpo, E de uma origem pendia a guerra. Eis-me n'um tempo agora em que é forçoso Fazer tremenda, universal justiça, Perder a humana estirpe em tudo, em tudo Quanto abraça Nerêo circumsonante. Subterrâneas, tristíssimas correntes, Correntes que lambeis o estygio bosque, Até juro por vós que ao mal infando Mil remédios em vão tentei primeiro! Mas incurável chaga exige o ferro. Cortada cumpre ser poi*que não lavre, Porque não fique o são também corrupto. Ha, porem, semideuses entre os homens, Campestres numes ha, Faunos, e Njmphas, Satyros, e os monticolas Sylvanos:

164 OBRAS DE BOCAGE

Todos são attendiveiSj todos nossos.

Se ainda lionral-os no céo não nos approuve,

Nas dadas terras é dever que habitem.

Mas podereis pensar qne estão seguros,

Oh deuses, quando a mim, que empunho o raio

A mim, que vos dou leis, tramou ciladas

Lycaon, o afamado em tyrannia?»

]Sr'esta infcerrogação freme o congresso: Querem todos o réo da enorme audácia, Em vinganças fervendo o pedem todos. Assim quando ímpia mão queria extincto De Roma o nome no Cesáreo sangue, Pelo terror da súbita ruina Atónita ficou a espécie humana, Todo o mundo tremeu de horrorisado. Augusto, então dos teus não menos grata A ternura te foi, que a Jove aquella. Depois que ao gran susurro impoz silencio Co'a mão, e a voz, emmudeceram todos. Suffocado o furor no acatamento, O monarcha dos céos assim prosegue:

Cuidado vos não a acção nefanda, O sacrilego auctor foi punido : Direi primeiro o crime, e logo a pena. Do corrompido século as infâmias Subiram-me á noticia: desejoso De achar fíilso o que ouvi, baixei do Olympo, E a terra discorri com face humana.

FASTOS 165

Helevára occiípar moroso espaço

Na feia narração do que hei sabido,

De horrores, que encontrei por tocla a parte:

Era a verdade em fim maior que a fama.

Passado havendo o Ménalo abundoso

De horrorosos covis, que alojam feras,

O Cjlenio de rochas carregado,

E o frigido Lyceo, que os pinhos c'roara.

Do Arcadico tyranno os lares busco.

Entro os paços inhospitos quando

Negrejava o crepúsculo da noute.

Dou mostras de que um deus era chegado,

E votos pios me dirige o povo.

Das preces Lycaon se ri primeiro,

Depois diz: Saberei com prova inteira

Se é deus, ou se é mortal. Dispõe matar-me

Quando os olhos tiver de somno oppressos:

Da verdade lhe agrada esta expViencia;

E inda não pago d'isto, a espada infame

Vibra contra a cerviz de um desgraçado

Que dos Molossos em reféns houvera.

Aos semivivos, palpitantes membros

Parte amollecem as ferventes aguas,

As sotopostas brazas torram parte.

nas mezas se impõe, mas de repente

Co'a dextra vingadora o raio agito,

Sobre o cruel senhor derrubo os tectos,

Os tectos, e os Penates, dignos d'elle.

166 OBRAS DE BOCAGE

Para o silencio agreste, agrestes sombras

Foje rapidamente, espavorido,

E querendo fallar, uiva o perverso:

Colhem do coração braveza os dentes,

Co matador costume os volve aos gados :

Inda sangue lhe apraz, com sangue folga.

A veste em pello, as mãos em pés se mudam,

É lobo, e do que foi signaes conserva:

As mesmas cãs, a mesma catadura,

E os mesmos olhos a luzir de raiva.

uma habitação caiu por terra,

Mas dio^na de cair não é uma.

Erinnjs senhoreia o mundo todo:

Parece que os humanos protestaram

Não ter mais exercido que o do crime !

A pena que merecem todos sintam;

Está dada a sentença. » E fica mudo.

O decreto de Jove alguns approvam, E á ira horrenda estímulos axjofreo^am : Outros lhe prestam simplesmente assenso. Doe a todos, porém, o immenso estrago, Da triste humanidade o fim lhes custa : Perguntam qual será da terra a face, Qual fórma a sua, dos mortaes vazia? Quem ha de ás aras ministrar o incenso? Será talvez o mundo entregue ás feras? O^que dos homens foi será dos brutos ? Desfarte os deuses o vindouro inquirem.

FASTOS 167

« Não temais (lhe responde o rei superno) Esse cuidado é meu, dispuz tudo:)) £ melhor geração do que a y)rimeira Com portentosa origem lhes promette.

Ia desparzir por toda a terra O numen vingador milhões de raios, Eis teme que a voraz, terrivel chamma Com Ímpeto crescida, e levantada Nos céos em fim se atêe, os céos abraze. A memoria lhe vem que leu nos Fados Que inda a terra, inda o mar, inda as estrellas Seriam de alto incêndio accommettidos, E a machina do mundo arruinada. Depondo as armas, que os Cjclopes forjam, D'outra pena se apraz, com outros males Quer punir os mortaes, quer sufFocal-os Oo'as soltas aguas, derretendo as nuvens Por todo o pólo em rápidos chuveiros. Na gruta Eólia súbito aferrolha Aquilão rugidor, e os mais que espancam Atras procellas, grávidos vapores. O Noto desencerra, e voa o Noto, Longas as pennas mádidas, envolta Ern densa escuridão a atroz carranca. Pezam-lhe as barbas com pejadas nuvens, Goteja- lhe a melena encanecida. Pousam -lhe as névoas na cabeça horrenda, Co'as azas, e c'o peito orvalha os ares.

168 OBRAS DB BOCAGE

Tanto que espreme as procelíosas sombra^ Um ríspido fragor no céo retumba, E o céo rebenta em hórrida torrente. íris, a nuncia da Saturnia Juno, Trajando roupas de matiz lustroso, Embebe as aguas, e alimenta as nuvens. Morrem nas louras, trémulas searas Ao cultor lacrimoso as esperanças, Um momento destroe d'um anno a lida. Para o furor de Jove os céos não bastam; O azul irmão co'a8 ondas o auxilia: Este os rios convoca, e mal que os paços Entram do iroso, undivago tyranno: <( Não careço (lhes diz) para comvotsco De longa exhortação, fieis ministros. Ide, inchae^ derramae-vos pelas terras, Vasem-se do repente as urnas vossas, Rompa-se o dique ás prófugas correntes, Solte-se o freio ás aguas. Assim cunrpre. »

Ordena, partem, correm, vão-se ás fontes»^ E as bocas donde saem lhe desapertam: Volvem depois ao mar desenfreados. Neptuno vibra o cérulo tridente, Fere a terra com elle, e treme a terraj E ás aguas c'© tremor franquêa o seio. Em brava rapidez correndo os rios, dos campos se apossam, derrubam. comsigo arrebatam plantas, gados,

FASTOS 169

GenteSj habitações, e os Lares saíKítos* Se ha por dita edifício que não eáia^ Se algum resiste ao pavoroso estrago, A torrente voraz lhe cobre os tectos; Tremendo as torres, ameaçam queda, Rotas, cavadas pelo embate undoso. 80 confunde o pélago co'a terra, tudo é mar, ao mar faltam praias. Qual sobe, resfolgando, alpestre outeiro, Qual vaguêa medroso em curvo barco, E onde lavraram bois trabalham remos. Sobre as perdidas, afogadas messes Vae navegando aquelle, ou sobre o cimo Das submersas aldeãs, este encontra Na copa de alto ulmeiro o peixe miidOr Ferram-se acaso as ancoras ganchosas No^^ murchos prados, que viçosos foram : De Baccho a planta, ás ondas sotoposta^ Jaz mordida também dos férreos dentes: Na relva, que os rebanhos tosquiaram Pousa do equoreo vate o gado informe Assombram-se as Nereidas de avistarem Debaixo d'agua bosques, edifícios: Por entro as selvas os delphina voltêam, Co'as negras trombas pelos troncos batem, E o carvalho a vergar no encontro empurram., O lobo vae nadando entre as ovelhas, Em meio da torrente impetuosa

170 OBRAS DE BOCAGE

Bóiam fulvos leões, manchados tigres. Nào vale aos javalis a força enorme, A summa rapidez não vale aos cervos.

Buscada longamente, e em vão buscada Pelas aéreas aves sendo a terra. Onde repousem do continuo voo, Cançam-se em fim, despenham-se nas aguas. Eis em suberbos torreões de espuma Tenta o pego arrogante as árduas serras: Fervem-lhe em torno dos fragosos picos As ondas, que jamais ali ferveram. Assaltando os misérrimos viventes No vão refugio, quasi tudo absorvem, E aquelles, que da fúria se lhe esquivam, Em comprido jejum ralados morrem.

A Phócida, que os Acticos separa Dos afamados campos da Beócia, E terra pingue foi, quando foi terra, E d'aguas envoltas lago immenso. Ali de cumes dous montanha ingente, Tendo a ramosa fronte além das nuvens, E arremettendo aos céos, se diz Parnaso. N^ella Deucalion (porque dos mares Jazia tudo o mais em fim cuberto) N'ella Deucalion tinha aportado Em pequeno baixel co'a terna esposa, Forçados pelos Ímpetos das aguas. Desembarcando os dous, oflf^recem logo

FASTOS 171

Interno culto aos numes da montanha, As nymphas de Gorjeio, a Thémis sacra, De quem ali o oráculo se ouvia,

Nenhum dos homens excedera aquelle No amor ao justo, no temor aos deuses: Luziam na consorte eguaes virtudes. Jove, que o mundo todo inundado, Vivos de tantos mil um, uma, Ambos tão pios, tão amáveis ambos, Cos soltos Aquilões sacode as nuvens. As pezadas carrancas dos chuveiros, E a terra mostra aos céos, e os céos á terra. Nem do pélago a fúria permanece: Co ferro de três pontas mal que o toca As ondas lhe amacia o deus das ondas, E chamando Tritão, que levantado Sobre a agua está (cobertos de brilhante Purpura natural seus rijos hombros) O búzio roncador lhe diz que assopre. Que no usado signal ordene aos rios, E ao transbordado mar que retrocedam.

Da sonorosa, e concava buzina Lança mão de repente o gran mancebo, Da buzina, que em circules, em roscas Da ponta para cima se dilata. Que tanto que no seio acolhe os ares D'um e d'outro hémispherio atroa as praias; Eis aos lábios a concha o deus applica

172 OBRAS DB BOCAGE

Por entre negi^as barbas orvalhosas,

* Incham-lhe as faces ao robusto assopro.

Toca, e rios, e mar, que o som lhe escutam^

Súbito a seu pezar vem recuaiado.

Este praias tem, tem leito aquelles^

E murmuram pacificos, e tardos:

Os outeiros assomam, surge a terra,

Os campos crescem, decrescendo as ondas.

Depois de longo espaço os arvoredos,

Os arvoredos nus se vão mostrando:

Dos despojados troncos pendem limos.

Em fim renasce o mundo, e vendo o triste, O bom Deucalion vasia a terra, E alto silencio derramado em tudo, A Pjrrha diz chorando: « Oh doce esposa. Oh tu, que és só, que és única de tantiis Habitantes do mundo, e que ligada Pelo amor, pelo sangue estás comigo. Agora ainda mais pelo infortúnio ! Do nascente ao poente, em toda a terra habitamos nós, nós vivemos: Tudo o mais pelas ondas foi tragado, E cuido que nâo tens inda segura Tua existência tu, nem eu a minha: Estas nuvens, que observo, inda me atterram. Ah triste! Que farias se arrancada Ao fado universal sem mim te visses! Onde, fria de susto, onde levaras

FASTOS 173

A planta vacilante e quem seria Tua consolação na dor, no pranto? Crê, minlia amada, que se o mar sanliudo Te escondesse nas sôfregas entranhas, Te houvera de seguir o aíHicto esposo, Sócio te fora em vida, e sócio em morte. Oxalá que eu com a paterna industria Podesse reparar a humanidade, Alma infundindo na formada terra! Todo o género humano em nós se inclue, (Isto aos fados apraz, apraz aos deuses) Ficámos para exemplo de que o mundo Morada de homens foi.» Disse, e choravam.

Depois, tornando em si, resolvem ambos Recorrer aos oráculos sagrados, Da deusa Thémis invocar o auxilio. Não tardam : vão-se do Cephyso ás aguas, Que ainda não bem liquidas caminham, E apenas pelas frontes, pelas vestes Os gostados liquores desparziram, Para o templo da deusa os passos torcem.

Manchava torpe musgo a frente, os tectos Da estancia venerável, e jaziam Sem ministro, sem luz, sem culto as aras. Como os sacros degraus tocado houvessem, Sobre a mádida terra os dous se prostram, E dão nas pedras osculo medroso ; Oram depois assim: «Se justas preces

174 OBRAS DE BOCAGE

Tornam benignos os irados numes, Se^ a cholera dos céos com ais se adoça, Dize-nos, deusa, dize-nos de que arte Podemos instaurar a espécie humana, E soccorre piedosa o triste mimdo.»

Movendo-se a deidade, assim lhes falia: Do meu templo saí ; cub rindo as frontes, Soltae as vestiduras, que vos cingem, E para traz depois lauçae os ossos De vossa grande mãe. )) Tendo ficado Atónitos os dous espaço grande, Pyrrha primeiro em fim rompe o silencio, Da divindade as leis cumprir não ousa, E com trémula voz perdão lhe roga. Porque teme, espalhando os ossos frios, Aos manes maternaes fazer injuria. Depois d'isto repetem, pezam, notam As palavras do oráculo sombrio j que Deucalion, que o venerando Filho de Promethêo com brandas vozes Serena a cara esposa, e diz: c(Se accaso Não revolvo illusões no pensamento, O oráculo da deusa é justo, é pio, Não nos ordena o mal, não quer um crime. A grande mãe, que ouviste, a mãe de todos E a terra; a meu ver são os seus ossos As pedras, e essas diz, que ao chão lancemos.»

Bem que esta intelligencia agrade a Pyrrha,

FASTOS 175

Esperanças com duvidas se envolvem,

E ambos das ordens sanctas desconfiam;

Mas n'isso que lhes vae se as effeituam?

As aras deixam, as cabeças cobrem,

Soltam as roçagantes vestiduras,

E logo para traz as pedras lançam.

Eis (quem te dera credito, oh portento,

Se annosa tradição não te abonasse!)

Eis que subitamente ellas começam

A despir-se do frio, e da rijeza,

E despindo a rijeza, a transformar-se.

Crescendo vão, mais branda natureza

As toca, as amacia, as amollece,

E n'ellas se perfeito o vulto humano

Logo ali se não vê, se comtudo

Sm grosseiros signaes a similhança;

Qual na estatua, no mármore, a que apenas

Deu talhe a mão de artífice elegante.

Partes, que eram terrenas, e succosas

Nas carnes, e no sangue se convertem;

O que tem solidez, o que não dobra

Muda-se em ossos, e o que d'antes n'ellas

Veia se nomeou conserva o nome.

N'um breve espaço em fim (mercê dos deuses)

As que arroja o varão varões se tornam,

E as que solta a mulher mulheres ficam.

Por isto somos fortes, somos duros.

176 OBRAS DE BOCAGE

Aptos a. emprezas, próprios a traballios, E em nosso esforço, na constância nossa Claramente se que origem temos.

Os outros animaes nas formas vários A terra os produziu, sendo escaldado Pelos raios do sol o humor antigo; Os encharcados, os lodosos campos Com o activo calor se entumeceram, E das cousas a próvida semente Qual no materno claustro ali cerrada, Nutriu-se, e de vagar cresceu, formou~se. D'est'arte, havendo em fim retrocedido A seu amplo deposito profundo O gran Nilo, que sáe de bocas sete, Co'a etherea flamma se afoguêa o lodo, E por entre os terrões, quando os revolve. De animaes o cultor acha milhares, Uns a nascer, e em parte formados, Em parte os membros seus inda imperfeitos; E vê-se muitas vezes que de um corpo Metade vive já, metade é terra. Humidade, e calor dão vida a tudo, Se mutuamente se temperam ambos. Bem que d'agua contrario o fogo seja, Sáe do húmido vapor quanto é gerado; A discorde união fermenta, e cria.

Portanto a fértil mãe, a extensa terra

FASTOS 177

Do recente diluvio repassada,

E pelo aéreo lume escandecida,

Innumeras espécies foi brotando:

Deu ser a algumas com a forma antiga,

N'outras em fim creou não vistos monstros.

li

178 OBRAS DE BOCAGE

Io

(Traduzido do Livro i)

Nos fundos lareS' Inaco escondido Altêa com seu pranto as aguas suas; Io, a filha gentil, perdida chora: Não sabe se está viva, ou se entre os manes: Mas porque não a encontra em parte alguma, Em nenhuma do globo a julga o triste, E o peor se lhe ant'olha ao pensamento.

Volver do pátrio rio a vira Jove: Virgem digna de Júpiter, guardada Para felicitar (lhe disse o nume) No thálamo suave um ente humano! Procura as sombras dos fechados bosques, (E aos bosques lhe apontou) a calma aperta, Dos oéos está no cume o sol fervendo. Se temes ir sósinha aonde ha feras. De um deus acompanhada irás segura; Não de um deus inferior, porém d'âquelle

FASTOS 179

Que o sceptro universal na mão susknta,

E o raio irresistível arremessa.

Não, não fujas de mim. (Que ella fugia.)

de Lerna as pastagens, e os frondosos Arvoredos Lircêos Io passara: Eis em névoas o deus sumindo a terra, Lhe prende os passos, e o pudor lhe usurpa.

Juno os olhos em tanto aos campos volve. E extranha em claro dia haver tal névoa, Névoa tão densa como os véos nocturnos, Que das aguas não sáe, nem sáe das terras. Olha em torno de si, não o esposo, E suspeitosa, pelo haver colhido vezes cento em amorosos furtos, Não o achando nos céos «Ou eu me engano. Ou me aggravam y> (diz) e, deslizada Da etherea habitação, parou na terra. Onde o sombrio horror desfez n'um ponto.

Mas o consorte presentiu-lhe a vinda, E em cândida novilha por cautela De Inaco a prole transformado havia, Que depois de novilha inda é formosa.

Saturnia, a seu pezar, lhe louvores, Pergunta de quem é, d 'onde viera. Pergunta a que manada emfim pertence (De estar longe do caso indicios dando) Que a terra a produziu responde Jove,

180 OBRAS DB BOCAGE

Para não ser o auctor mais inquirido: N'isto Saturnia em dadiva Ih' a pede.

O amante que fará? Cruel, se entrega Os seus amores; se os não dá, suspeito; O que o pejo aconselha, amor impugna: Vencido pelo amor seria o pejo; Porém se a sua irmã, se a sua esposa Negar uma novilha, um dom tão leve, Pode talvez não parecer novilha.

na posse da adultera, não despe A deusa todavia o seu receio; Teme a Jove, e do aggravo está mordida. Argos, o filho de Arestor lhe occorre, E quer que lh'a vigie, e d'elle a fia.

De Argos cinge a cabeça um cento de olhos, Olhos, que dous a dous o somno alternam: Desvelados os mais na presa cuidam. Em quaesquer posições attento a guarda, Volta-lhe as costas, e tem Io á vista. Permitte-lhe pascer em quanto é dia; Em transmontando o sol vae ferrolhal-a, E um laço injusto lhe tornêa o collo.

Folhas agrestes, amargosa relva Morde, rumina a triste; em vez de leito Dão-lhe, nem sempre de herva o chão forrado, Matam-lhe as sedes em corrente impura. Supplices braços estender quizera

FASTOS 181

Para o seu guardador; mas que é dos braços? Intenta dar um ai, solta um mugido: Treme do som, da sua voz se espanta.

Um dia ás margens vae, onde brincava, As margens paternaes; n'agua as pontas, E, medrosa de si, foge do rio. Inaco ignora, as Náiades não sabem Quão pertencente lhe és, gentil novilha. ^ Eil-a os segue; ás irmãs, ao pae, que a admiram, Não deixa que a toquem, mas se oíF'rece. O velho hervas lhe colhe, e chega aos beiços; ' EUa lhe lambe as mãos, as mãos lhe beija; Terno pranto lhe corre, e se podéra Soccorro a desditosa invocaria. Seu nome, os fados seus articulara; Mas, com letras em fim supprindo vozes, Servindo-se do pé, na arêa exprime O triste annuncio da mudada forma.

c( Oh pae desventurado ! (Inacò exclama Abraçando a cerviz, pegado ás pontas D'alva bezerra, da chorosa filha) <( Oh pae desventurado ! (EUe repete) Es tu, filha infeliz, tu, procurada Tantas vezes por mim, e em tantas partes? Antes que vêr-te assim, nunca te vira, Menor seria então minha amargura. Ah malfadada ! Responder não sabes. Altos suspiros sós do peito arrancas,

182 OBKAS DE BOCAGE

Mugir á minha vòz é quanto podes. Não prevendo teus fados, eu outr'hora O toro nupcial te apercebia. Duas bem ledas esperanças tive: Primeira o genro foi, segunda os netos; Esposo, e filhos nas manadas brutas, Querido meu penhor, terás agora. Nem posso tanto mal findar co'a vida; Empece-me o ser deus; afferrolhadas, Defesas para mim da morte as portas. Se estende a minha dor á eternidade. »

O oculoso pastor, que lhe ouve as mágoas. Ao lamentável pae remove a filha, E vae apasceutal-a em outros campos: Sentado, de alto monte a vê, e a tudo.

Que ella sinta, porém, tão duros males Não pode o rei dos céos soíFrer mais tempo: Chamando o filho, que de Maia houvera, lihe ordena, lhe commette a morte de Argos. Mercúrio logo aos pés segura as azas; Toma a vara somnífera, o galéro, E, ataviado assim, demanda a terra. Galéro ali depõe, depõe talares, Sómento o caducêo na mão conserva; Leva-o como pastor, que seu rebanho Co toque do cajado aos pastos guia, E de canora fiauta os sons diffunde.

Da nova, doce musica tentado,

FASTOS 185

Argos ao numen diz: «Quem quer que sejas,

Comigo aqui, pastor, sentar-te podes.

Sitio melhor não ha para o rebanho,

Nem para o guardador, assim na sombra.

Como em fertilidade.)) O deus se assenta;

E em razões varias, que profere, e escuta,

Vae-se-lhe o dia. Adormecer intenta

Com a avena os cem lumes veladores.

Porém repugna o monstro aos molles somnos,

E bem que os acolheu parte dos olhos,

Parte d'elles vigia. Em fim, porque era

Da flauta a invenção recente ainda,

A Mercúrio o pastor pergunta como,

Por quem fora inventada. A isto o nume

Diz então : (( Nas arcádicas montanhas

Teve nome entre as nymphas Nonacrinas,

Foi entre as Hamadryadas o assombro

A náiade Syrins, Syrins, a esquiva.

Aos sátyros hirsutos se furtava,

E aos mais deuses campestres, que a seguiam;

Honrava nos costumes, no exercício,

E na flor virginal a Ortygía deusa.

Em traje venatorio era Diana:

A similhança os olhos enganara

Se arcos diversos não tivessem ambas,

Syrins um de marfim, Latónia um de ouro,

E assim mesmo enganava. EUa, deixando

O sombrio Lycêo, de Pan foi vista,

184 OBKAS OS 30CAGE

De Pan, c'roado do pinheiro agudo, E o deus fallou-lhe assim . . . Narrar faltava O que lhe disse o deus; que accezas preces A nympha repulsara, e que fugira. Perseguida por elle até ás margens Do sereno Ladon; que ali parando, Pelo estorvo das ondas, deprecára As cerúleas irmãs que a transformassem; Faltava referir que em vez da amada, Crendo que nas mãos a tinha presa, Pan somente abraçou palustres canas; Que em quanto suspirava, os ares n'ellas Fizeram ténue som, quasi queixume; Que n'arte nova, que na voz suave Enlevando-se todo, o deus dissera: Taes coUoquios se quer terei comtigo. d Que ás canas desiguaes, com cera unidas, Dera seu nome a nympha. Ia Cylenio Proseguir, eis que do somno oppressos Os olhos todos. Súbito emmudece, Roça-os co'a vara, e lhe carrega o somno. Rápido logo alçando o ferro curvo, No vacillante collo o golpe acerta: Cáe a cabeça; espadanando o sangue, O sangue em borbotões macula o monte. Argos, jazes, em fim ; de todo extincta A claridade está de tantos lumes: Sombra eterna te occupa os olhos cento.

FASTOS 185

Saturnia lli'os extráe, na cauda os pi^ende D'ave sua, e com elles a abrilhanta.

Mas freme a deusa, não retarda as iras; Da Argólica rival aos olhos, e alma Expõe a vexadora, horrenda Erinnys. Seus cruéis agrilhoes lhe enterra a Fúria, Por todo o mundo a prófuga persegue.

Nilo, ao trabalho immenso, á espavorida Carreira universal tu restavas. Tanto que imprime o nas margens tuas, Sobre os joelhos cáe, e aos céos erguendo O que erguer lhe é dado, os olhos tristes, Com prantos, e mugidos lutuosos Parece que se está queixando a Jove, E que dos males seus o fim lhe implora. Elle, o collo abraçando á sacra esposa, Roga-lhe que remate a pena acerba. (( Perde o temor (lhe diz) crê que incentivo Io não mais será de teus desgostos: 5) E o protesto formal co'a Estyge abona.

Apenas se embrandece ao rogo a deusa. Torna á mimosa nympha o gesto antigo, Torna a ser de repente o que era d'antes. Fogem do corpo as sedas, vão-se as pontas, O orbe, a forma ocular se lhe restringem, Abbrevia-se a boca, os braços volvem, Volvem-lhe as mãos também, também as unhas; somente em dous pés está sustida,

186 OBRAS DE BOCAGE

Da novilha não tem senão a alvura. Receando mugir, fallar não ousa, E a desusada voz ensaia a medo.

Celebérrima deusa, agora a honram Aras, e incensos dos egypcios povos.

FAST0S 187

O precipício de Phaetonte

(Fragmento, traduzido do Livro n)

Porém leve era o pezo, era diverso Caquelle/ que os Ethontes conheciam: Quaes sem lastro bastante os curvos lenhos ^ão das ferventes onda^ sacudidos; Tal, co'a leveza insólita pulando, Parece que vasio o carro foge.

Eis a quadriga rápida percebe Que os passos lhe não rege a mão de um nume: Eis salta impetuosa, e deixa o trilho, E bate o campo azul por nova estrada: Treme Phaetonte. e como as rédeas torça, E qual seja o caminho elle não sabe, E inda, sabendo, não domara os brutos. Pela primeira vez se escandeceram Os géhdos Triões co'a etherea flama, E banhar-se no pego em vão tentaram.

1'88 OBRAS DE BOCAGE

Do pólo glacial visinha a serpe, D'antes molle de frio, e não terrivel, Gbnliou no extranho ardor braveza extranha.

Diz-se, oh Bootes, que a tremer fugiste, Bem que és tardio, e te retenha o carro: jazer muito ao longe o mar, e as terras, O misero Phaetonte; amarellece, E súbito pavor lhe agita os membros: Seus olhos em luz tanta encontram noute: Triste! quizera não ter tocado O coche de seu pae: se arrepende De conhecer quem é : de haver podido O effeito coníseguii* do rogo incauto.

VASTOS 189

A gruta da Inveja

(Traduzido do Livro ii)

É a estancia da Inveja em gruta enorme, n'uns profundos valles escondida^ Aonde o sol não vae, nem vae Favonio. Reina ali rigoroso, eterno frio, De húmidas, grossas névoas sempre abunda. O monstro vive de vipereas carnes, Dos seus tartáreos vicios alimento. Da morte a pallidez lhe está no aspecto, Magreza, e corrupção nos membros todos; Olha sempre ao revez; ferrugem torpe Nos asquerosos dentes lhe negreja; Vê-se o fel verdejar no peito immundo. Espumoso veneno a língua verte: Longe o riso lhe jaz dos negros lábios, se nos mais ha pranto ha n'ella riso, Em não vend^o chorar lhe acode o choro: Não gosa de repouso um momento,

190 OBRAS DE BOCAGE

Os cuidados que a roem não soffrem somno : Mirra-se de pezar^ ao ver nos homens Qualquer bem; rala, e rala-se a maligna, E verdugo de si, ódio de todos.

FASTOS 191

O roubo de Europa por Júpiter

(Traduzido do Livro ii)

O gran Jove no céo Mercúrio chama, E sem lhe declarar o amor, que o fere, (íVae, ministro fiel dos meus decretos, Vae, filho meu, co'a sólita presteza; Desce á terra (lhe diz) d'onde se avista Tua mãe reluzindo á sestra parte, E que os seus naturaes Sidon nomeam. O armentio real, que ao longe a relva No monte anda a pascer, dirige á praia. y>

Disse, e da montanha o gado expulso Caminha á fresca praia, onde costuma A do sidónio rei mimosa filha Espairecer, folgar co'as tyrias virgens.

A magestade, e amor não bem se ajustam: Jamais o mesmo peito os accommoda. Do sceptro a gravidade em fim depondo O pae, e o rei dos deuses, Jove, aquelle

192 OBRAS DE BOCAGE

Que armada tem do raio a sacra dextra, E que ao minimo aceno abala o mundo. Veste forma taurina entre as manadas Muge, e piza formoso as brandas hervas.

E cor da neve, que nem pés calcaram, Nem co'a8 azas desfez o sol chuvoso; Áltêa airosamente o móbil coUo; Das espadoas lhe pende, e bambalêa A cândida barbella, as breves pontas D^industriosa mão lavor parecem. Ganham no lustre á pérola mais pura. Não tem pezado cenho, olhar terrivel, Antes benigna paz lhe alegra a fronte.

A filha de Agnor admira o touro, Extranha ser tão bello, e ser tão manso. Ao principio, inda assim, teme tocar-lhe; Vae-se depois avisinhando a elle, E as flores, que apanhou, lhe applica aos beiços.

Eil-o pela relva salta, e brinca. põe na fulva arêa o niveo lado. A virgem pouco a pouco o medo extingue, E agora off'rece brandamente o peito para que lh'o afague a mão formosa. Agora as pontas, que a real donzella De recentes boninas lhe engrinalda.

EUa, em fim, que não sabe a que se atreve, Ousa nas alvas costas assentar-se.

De espaço á beira-mar descendo o nume,

FASTOS 193

Põe mentiroso n'agua primeira, ' Vae depois mais avante ... em fim, nadando, Lera a preza gentil por entre as ondas. Ella de olhos na praia, ella medrosa Segura uma das mãos n'uma das pontas, Sobro o dorso agitado a outra encosta; Enfuna o vento as susurrantes vestes. Despida finalmente a falsa imagem. Eis apparece o deus, eis brilha Jove, * E em teus bosques, oh Creta, Amor triumpha!

ia

194 OBRAS DE BOCAGE

A morte de Pyramo e Thisbe

(Traduzido do Livro iv)

Pyramo, singular entre os mancebos^ E Thisbe, superior em formosura A todas as donzellas do oriente, Tinham contíguas as moradas suas onde é fama que de ingentes muros Semiramis cingiu alta cidade.

A amor a visinhança abriu caminho, N'elles foi com a edade amor crescendo, E unir-se em doce votaram ambos, O que injustos os pães não permittiram. Em vivo, egual desejo os dous ardendo, (Que isto os pães evitar-lhes não poderam) Sem confidente algum, por acenos, Por signaes se entendiam, se afagavam. Quando o amor se recata é mais activo. Parede, que os dous lares dividia. Rasgada estava de uma ténue fenda Desde o tempo em que foram fabricados.

FASTOS 195

Ninguém tinha notado este defeito;

Mas que não sente Ámorj que não adverte?

Vós amantes fieis, vós o notastes,

E d'elle se valeu sagaz ternura.

Soíam por ali passar sem medo

Brandas finezas em murmúrio brando.

De uma parte o mancebo, e Thisbe de outra, Prestando unicamente, e recebendo Seu hálito amoroso, assim carpiam: « Invejosa parede, a dous amantes Porque, porque te oppões? Ah! Que importava Que perfeita união nos consentisses? Ou, se isto é muito, ao menos franqueasses Aos ósculos de amcr logar bastante? Mas não somos ingratos, confessamos Que os nossos corações a ti devem Doce conversação, que os desafoga-, )) Separados assim, e em vão diziam. Dando um saudoso adeus quasi á noute, Ao partir cada qual suave beijo JSÍa parede insensível empregava. Nem que o terno penhor chegar podesse Aonde o dirigia o pensamento.

Um dia quando, roto o véo nocturno. Tinha ante os lumes da serena Aurora Desm.aiado nos céos a luz dos astros, E Phebo com seu raio ia seccando Sobre as herva£ subtis o frio orvalho,

196 OBRAS DE BOCAGE

Ao logar do costume os clous volveram. Depois de mutuamente se queixarem Da pezada oppressão, que os constrangia, Com mais cautela ainda, em tom mais baixo Concertam entre si que em vindo a noute Haviam de illudir os pães, e os servos, De Bens lares fugindo, e da cidade; Que, por não se perderem vagueando Pelo campo espaçoso, ao da antiga Sepultura de Niuo ambos parassem, Postos á sombra de arvore frondosa. Esta arvore, que ali ao ar se erguia, Carregada de fructos cor de neve, (Então da cor de neve até maduros) Era a grata amoreira: amena fonte, Eervendo junto d'ella, o chão regava.

Quadrou o ajuste, e nas cerúleas ondas Caindo, tardo o sol para os amantes, E d'onde o sol caiu surgindo a nouto, Achada occasião, por entre as sombras Thisbe astuta das portas volve a chave. Engana os seus, e sáe. Cubrindo o rosto, Caminha para o tumulo de Nino, Chega, e debaixo da arvoro se assenta: Dava Amor ousadia á linda moça. Eis que feroz leoa, ensanguentada De recente matança a boca enorme. Assoma, e vem depor na fonte a sede.

FASTOS 197

Porque o pleno luar cubria o campo A ao louf^e a bíibrlonia Thisbe, E com timidof? pés em gruta umbrosa Vae sumir-se, correndo, e palpitando, E na carreira o véo lhe cáe por terra. Depois que o torvo bruto a sede ardente Nas aguas apagou, tornando aos bosques O solto véo sem Thisbe acaso encontra, E no sanguíneo dente o despedaça.

Pjramo, que do lar saiu mais tarde, Que no erguido signal de fera, E de fera no chão pegadas nota, Descorando estremece, e tinto em sangue Acha o caído véo. «lsr'uma noute (Diz elle) dous amantes se perderam; Perdeu- se a bella, a triste, a desgraçada Que de longa existência era tão digna. Eu tive toda a culpa, eu, miseranda. Eu fui quem te matou, fui quem te disse Que de noute, que te aventurasses A tão ermo logar, tão pavoroso, E para te acudir não vim primeiro. Lácerae-me este corpo abominável, Devorae-me estas barbaras entranhas. Oh Hões, que jazeis por essas grutas! Mas chamar pela morte é dos íVacos.»

da terra levanta o véo de Thisbe, E para a fértil planta se encaminha,

198 OBRAS DE BOCAGE

Vae com elle ao logar do terno ajuste.

Cubrindo-o de lagrimas, e beijos,

<( O meu sangue (lhe diz) também te regue,

Recebe, oh triste véo, também meu sangue.»

E súbito, despindo o ferro agudo

Que ao lado lhe pendia, em si o enterra:

Da ferida mortal o extráe, o arranca,

E de costas no chão depois baquêa.

Em roxos borbotões lhe ferve o sangue,

E lhe salta com Ímpeto, á maneira

De alto, e cheio aqueducto, que rebenta,

Que estrondoso arremessa ao longe as aguas,

Co'a soberba impulsão rompendo os ares.

Da ramosa amoreira os alvos fructos,

Pela rubra corrente rociados.

Em triste, negra côr a antiga mudam,

E do sangue a raiz humedecida,

Logo ás amoras purpúrea o sumo.

De todo não perdido ainda o medo, Volta a gentil donzella ao fatal sitio Porque a não ache em falta o caro amante. Cos olhos, e c'o espirito o procura. Desejosa de expor-lhe o grave risco De que pôde escapar. Notando a planta Mudada no exterior, a desconhece, Duvida se é a mesma. Em quanto hesita tremer, e arquejar na terra um corpo, Na terra, que de sangue está manchada.

fastos" 199

Recua de terror, pallida, absorta, Arripia-se, e freme, á similhança Do rouco mar, se as virações o encrespam. Mas depois que attentando em fim conhece A porção da sua alma, os seus amores, Rompe em choros, em ais, maltracta o peito, O peito encantador, que o não merece, Arranca delirante as louras tranças. Entre os braços aperta o" corpo amado, Verte amargosas lagrimas no golpe, Correndo misturados sangue, e pranto; Piedosos beijos no rosto frio. Clama : « Oh Pyramo ! Oh céos ! Que duro caso Te arrebata de mim ? Pyramo, escuta, Responde-me, querido: a tua amada, A tua fiel Thisbe é quem te chama; O semblante abatido ergue da terra. y>

Ouvindo proferir da amada o nome, O malfadado moço eis abre os olhos, do pezo da morte enfraquecidos; Volve-os a Thisbe, e para sempre os cerra.

N'Í8to aquella infeliz o véo distingue. do extincto amador a nua espada. <íTeu amor, tua mão te hão dado a morte! Eu também tenho mãos (exclama a triste) Eu também tenho amor capaz de extremos, Que esforço me dará para seguir-te. Sim, eu te seguirei, serei chamada

200 OBRAS PB BOCAGE

Da tua desventura a causa, a sócia.

Ai ! podia a morte separar-nos. . .

Mas não, nem ella mesma noB separa.

Oh vós, dae terno ouvido ás preces de ambos,

Miseros pães de miseros amantes,

Que une por lei do Fado Amor, e a Morte;

Deixae que o mesmo tumulo os encerre.

E tu, arvore, tu, que estás cubrindo

Agora um cadáver miserando.

Logo dous cub rirás. Signaes conserva

Da tragedia que vês, e por teus fructoft

Difunde sempre a cor de luto, e mágoa,

Monumento fatal do negro caso. »

Cala-se, encosta o peito á férrea ponta. Do sangue do infeliz tépida ainda, E traspassa-se, e eáe. Das preces tristesí Comtudo os céos, e os pa^e» se entertieceram^ Nos ramos da. frondifera amoreira Quando madur® está iífcegr<?ja o fructo y, E a lacrimosa, paternal piedade Guardou n'uma urna as cinzas d^ ambos.

FASTOS 201

Oadmo e Hermione

(Traduzido do Livro iv)

Da serie de teus males vencido, E de fataeSj makficos portentos, Tuj filho de Agenor, tu, triste Cadmo, Sáes da cidade, que erigido havias, Como se os Fados d'ella, e não teus Fados Te perseguissem lá. Depois de longos* Terrenos vaguear, parou na Illyria Co'a prófuga consorte. Ali, gravados Da desgraça, e da edíide, a estrella adversa Memorando dos- seus, e discorrendo Nos curtidos trabalhos, Cadmo exclama:

<íAh! Sagrada talvez era a serpente Que no bosque matei quando expellido De Sidónia me vi por lei paterna ! Sacro seria o monstro, em cujos dentes Pela terra espalhei semente infensa ! Pois se dos numes o furor se apura Tanto, e tanto em vingal-o, imploro r^os numes Que em comprida serpente me traUisfoTmem. ^

202 OBRAS DE BOCAGE

Disse, e como serpente eis que se alonga, Eis na cútis nascer dura escama, Cerúleas nódoas variar-lhe o corpo: Na terra cáe de peitos: manso, e manso Os membros se confundem, que o sustinham, E em boliçosa cauda se aíFeiçoam.

Restam-lhe braços; braços que lhe restam Estende o malfadado, e diz, banhando De lagrimas a face, ainda humana:

((Vem, doce, vem, misérrima consorte. Em quanto ainda em mim de mim vés parte; A máo, em quanto é mão, recebe, aperta, E em quanto não sou todo enorme serpe.»

Queria proseguir, mas de improviso A lingua se lhe fende, ei-o com duas; Fallecem-lhe as palavras: quantas vezes Se intenta deplorar, tantas sibila: lhe deixa esta voz a Natureza.

Co'a mão ferindo o peito, a esposa clama: ^ (cOadmo, espera; infeliz, despe esse monstro! Que é ista! Que é dos hombros, que é dos braços! As mãos, os pés, e a cor, e o rosto, e tudo! Porque, poder do céo, porque. Destinos, Me não mudaes também na forma horrenda?»

Diz, e elle da consorte as faces lambe, E o (que ainda conhece) amado peito: O collo, que lhe foi, que lhe é tão caro, Cinge com mimo, e como pode abraça.

FASTOS 203

Todos os companheiros, que o rodeam, Atterrados estão, porém eo'as línguas Os lúbricos dragões vão afagal-os, Que súbito são dous, e os juntos corpos Fazendo um volume, e serpeando, Se escondem pela próxima floresta.

Dos homens todavia inda não fogem; Não têm dente mordaz, não têm veneno, Não fazem damno algum : do que foram Os benignos dragões inda se lembram.

204 OBRAS DE BOCAGE

Atlante convertido em monte

(Traduzido do Livro iv)

Trazendo o espolio do vipereo monstro, E equilibrado em azas estridentes. Presas aos leves pés, vagava os ares O Argolico Persêo, prole do nume Que a Danae seduzira em áurea chuva.

Sobre as crestantes, lybicas arêas Pendente o vencedor, cahiram n'ellas Da Gorgonea cerviz sanguineas gotas, E bebendo-as a terra as faz serpentes: Desde então de serpentes Lybia abunda.

Logo, agitado por discordes ventos. Para aqui, para ali, qual gira a nuvem, Descobre o moço errante ao longe as terras, E sobre o vasto globo anda voando.

As Ursas boreaes viu três vezes, E três vezes viu do Cancro os braços; Mil ao occaso foi, mil ao nascente. Pela aérea violência despedido. Em fim, próximo á noute, e receando

FASTOS 205

Persêo fiar-se d'«lla, o vôo abate

Na hespéria região, reinos de Atlante.

O heroe pede ao monarcha nm breve asylo,

Tc que phosphoro esperte a luz d 'Aurora,

E Aurora o carro de ouro ao Sol prepare.

Superior na estatura aos liomens todos Era o filho de Japeto, era Atlante. Deu leis na terra extrema, e leis nos mares Onde os lassos frisões raergullia Pliebo. Ali manadas mil do rei gigante, Mil rebanhos ali pascendo erravam, E ao seu não confrontava extranho império. Tinha um vergel com arvore lustrosa: As folhas eram de ouro, e de ouro os ramos, Áureos os pomos, que pendiam d'elles.

<i Gran rei (Persêo lhe diz) se amas a gloria D'alta estirpe, o meu ser provém de Jove; E se és admirador d 'acções famosas, Hão de maravilhar-te as acções minhas. Rogo-te a graça de nocturno hospício.))

Mas de oráculo antigo o rei se lembra; A Themis no Parnaso ouviu outr'hora: Ha de vir tempo, Atlante, em que dos fructos A arvore tua despojada fique: Filho o seu roubador será de Jove.))

Receoso do furto, havia Atlante Torneado o pomar com rijos muros, E horroroso dragão lhe pôz de vela:

206 OBRAS DE BOCAGE

A forasteiro algum nos seus domínios Guarida não concede, expulsa todos, E a este diz também : « Vae para longe, Se não queres de ti ver longe a gloria Dos mentirosos feitos, se não queres Longe, mais longe ainda o pae, que ostentas. )) E, ajuntando a violência aos ameaços, Intenta repellir além das portas Persêo, que lhe resiste, e substitue Palavras fortes a palavras brandas.

Nas forças inferior se reconhece: Quem podia egualar de Atlante as forças? c( que a minha amisade em pouco estimas, )) (Diz o aíFrontado heroe) recebe o premio. 3) JÍÍ'isto co'a mão sinistra, e desviando Primeiro os olhos para a parte adversa, Lhe mostra de Medusa a face horrenda.

Eis feito o enorme Atlante um monte enorme: Barbas, melêfias se lhe tornam selvas.; São recostos da serra as mãos, e os braços, O que foi cabeça agora é cume. Dos ossos os penedos se formaram.

Para todas as partes se dilata; Crescendo mais, e mais, altura immensa Toma em fim: (vós, oh numes, o ordenastes) Todo o pezo dos céos descança n'elle.

fMtos 207

O roubo de Orithya por Bóreas

(Traduzido do Livro vi)

O affamado Erecthêo regia Atlienas, Heróe na rectidão, e heróe no esforço. Qnatro filhos houvera, e quatro filhas : Em duas florecia egual belleza. Foi Procris, uma d'ellas, esposada Por Gephalo, de Eólo egrégio sangue; A ojitra, inda donzella, era Orithya.

Arde em seus olhos o Estrymonio Bóreas, Arde ha muito, e do pae ha muito a espera, Brando rogo antepondo a dura força; Mas vendo as preces vãs, lesada a gloria. Hórrido co'a braveza a que anda aífeito, Crua, espantosa, natural ao vento, E da razão munido, assim declama:

« Porque, porque depuz, insano, as armas. Fereza, robustez, e voz terrível, Usando o rogo, que a meu ser não quadra?

208 OBRAS BiilBOCÀGE

me convém, me é própria a força, a ira:

Com ellas arrebato as altas nuvens,

Com ellas em montanhas erofo os mares.

Torço 03 carvalhos, endureço as neves,

A redonda saraiva arrojo á terra:

E se os bravos irmãos nos céos encontro,

(Que vós, oh vastos céos, vós sois meus campos)

Com tanta audácia, tanta fúria lucto.

Que nosso embate horrendo atroa o pólo,

E d 'entre a cerração rebenta o raio.

Se o gran seio investigo á curva terra,

Se ás intimas cavernas metto os hombros,

Turbam-se os manes, estremece o mundo.

Desfarte me cumpria haver a esposa,

Devia usar da força em vez das preces.

Não rogar Ereetheo, mas oonstrangel-o,»

Isto, ou mais Bóreas diz, e as azas b.tte, E abana as terras, e revolve as oadai^. Pelos cumes altíssimos dos serroB Manto pulverulento o deus arrasta; Varre o chão, e escondido em oaevoa grossa, A tímida Oríthya envolve, abraça Co'as fulvas pennas, e remonta o voo.

Em quanto adeja rápido com ella, As fiam mas agitadas mais se ateam: E na aérea carreira impetuosa O activo roubador se não reprime, Até que pousa nos Sithonios muros.

FASTOS 209

Ali a Áctéa, singular princeza ^ Esposa foi do aligero tjranno, E mãe dos gémeos Ínclitos, que abriram Não vistos mares no baixel primeiro»

ii

210 OBRAS DE BOCAGE

Progne, Terêo e Philomela

(Traduzido do Livro vi)

Barbares esquadrões^ que o mar trouxera^ As muralhas de Athenas atterravam. Terêo, da Thracia rei, com presto auxilio A cidade acudiu, e os pôz em fuga, Colhendo na victoria egrégio nome.

O grato Pandion ao gran monarcha, Nas forças, na opulência abalisado, E alta progénie do immortal Gradivo, Deu, como em recompensa, xmia das filhas r O uniu com ProOTe em vinculo amoroso.

Ao rito, á festa nupcial não foram Presidente Hymenêo, pronuba Juno; Nenhuma das três Graças veio ao toro: As horrorosas Fúrias o erigiram. Em torno d'elle as horrorosas Fúrias Nas dextras negrejantes empunharam Tochas, roubadas a funérea pompa.

FASTOS 211

Sobre o docel do thalamo sinistro Pousou na infausta noute ave agoureira; Muda assistiu ao conjugal mjsterio: Ante ella esposos foram, pães ante ella. Co' a vergontea dos reis a Thracia folga, Mil incensos aos céos, mil graças manda, E a festejo annual consagra o dia Em que ao feroz Terêo foi Progne dada, Em que o fructo de amor, Itjs mimoso Veio dar gloria aos pães, e ao longo estado: Tanto o mortal ignora o que lhe é útil!

Cinco vezes o sol volteara Os céos, de primavera em primavera, Quando Progne, afagando o duro esposo, C( Se um favor te mereço, ou me conduze A abraçar minha irmã (lhe diz) ou corre. Corre a buscal-a. Ao sogro encanecido Jura restituil-a em curto espaço. Uma impagável dadiva, um thesouro Na irmã te deverei.)) Terêo se aprompta, Arma os curvos baixeis, e a vela, os remos Pelo porto Oecropio se introduzem.

surge, e do Pirêo desce ás praias. Ledo o recebe o sogro, as mãos apertam. Travam conversação com triste agouro. O Thracio a referir em fim começa Os desejos, as supplicas da esposa, E a affirmar o promptissimo regresso.

212 OBiiAS DE BOCAGE

Ante elles Philomela eis apparece, Rica em traje, riquissima em belleza^ Como ouvimos dizer que nas florestas As Dryades, as Nayades passeam, FigLirando-lhe a idéa o mesmo adorno. TereOj á face da estremada virgem, Fica absoilo, encantado, arde em silencio, Qual flamma, que, nos campos ateada, . A relva, as folhas, as searas come. Da bella os olhos este ardor merecem; Mas férvido appetite impetuoso Pula no peito do anelado amante, J^a torpe, viciosa natureza Do seu clima brutal, propenso a Yenus. Cef^o anhelando a cândida donzella. Impulsos tem de corromper-lhe as servas, E a mãe seganda, que a nutria ao seio. Não deseja obter por dons sublimes A origem da paixão, que o desespera, Mas estragar por ella o mesmo império, Ou ante? arrancal-a, e defendei- a Em pertinaz conflicto, em brava guerra: liada vê, que não ouse, ou que não tente Seu criminoso amor desenfreado. No accezo coração não cabe a chamma, A demora fatal soffrer não pode.

Da saudosa consorte eis o perverso * As preces, as instancias exaggera,

FASTOS 213

E nos desejos d'ella os seus disfarça : Energia, e facúndia Amor lhe empresta. Quando além do que é justo eleva o rogo. De Progne com o ardor o cora, o doura; lagrimas co'as supplicas mistura, Como que fossem lagrimas da esposa. Ob deuses! Quanto é rega a mente Lumana! A nialdade em Terêo se crê virtude: No crime, na traição louvor grangêa.

Onde, ah! onde, innocente Philomela, Queres ir c'um tyranno! Bil-a amorosa Aperta o triste pae nos lindos braços ; O bem de ver a irmã com anciã pede, Pela irmã contra si de orar não cessa. Com famulentos olhos a devora O soífrego Terêo, pasmado n'ella, E, locando-lhe, a insta a que affervore, A que duplique as supplicas urgentes. Os braços, com que cinge o pátrio collo, Os beijos, que na mão paterna imprime, Tudo aviva os estimulos, o fogo, O tácito furor, que o vae ralando. Quantas vezes a filha ao pae se abraça, Tantas de o pae não ser ao Thracio peza : Mais torpe fora então, mais ímpio fora. Ambos o velho rei com rogos vencem; EUa folga, ella exulta, e mil graças

214 OBKAS DE BOCAGE

A paternal bondade: a si, e a Progne O que lhes é fatal propicio julga.

Somente um curto giro ao sol resta; Os ferventes cavallos espumosos Batem soberbos no declive Olympo: Aprestam- se as reaes, as lautas mezas, Áureo liquor borbolha em áureas taças : Depois o grato somno aos olhos voa. Mas, longe dos encantos que o transportam, Não dorme, não repousa o fero amante: Arde, e pinta mi ide a a face, os olhos, Pinta os gestos, as mãos, o mais que olhara, E finge, como o quer, o que não vira: Ao prazer afferrado o pensamento. Lhe atiça a flamma, lhe desvia o somno.

Luziu a aurora, e Pandion, chorando, Ao genro, cuja mão saudoso aperta, O querido penhor commette, e roga Que o guarde, que o vigie. «Amadas filhas, <( Vós assim o quereis (diz soluçando) E tu também, Tereo. Pois causa justa Vos obriga, eu me rendo. Eis a minha alma, Eis a filha te dou. Por mim, por ella, Pela fé, por ti mesmo, e pelos numes Te imploro a amimes com amor paterno, E que este doce allivio de meus annos, (Annos cançados já) me restituas.

FASTOS 215

Cedo, ah ! . . . Cedo. Não tardes, não me enganes, Que longa me será qualquer demora. Tu, também, se tens de um pae magoado, Vem logo, oh filha minha, oh meu thesouro: Bem basta tua irmã viver tão longe.»

Assim fallando, o misero a beijava, E as lagrimas na face lhe caíam. Depois que a dextra mão por segurança Um ao outro pediu, deu um ao outro, O ancião consternado á prole, ao genro Para o neto mimoso, e filha ausente mil ternas saudades, mil suspiros: Apenas balbucia entre soluços O lacrimoso adeus, presagio triste. Carrancudo terror lhe sobe á mente.

Em pintado baixel eis Philomela, Eis o remo a compasso as ondas volve O mar ferve na proa, e foge a terra. «Vencemos, (diz o bárbaro) vencemos! Meus desejos, meus gostos vão comigo. 5) E exulta, e pode apenas moderar-se, Reter a execução de atroz intento. Nunca os olhos distráe do objecto amado, Bem como a carniceira ave de Jove, Que tem bico revolto, e curvas, garras, Fraca lebre depõe no aéreo ninho: Conhece que fugir não pode a preza. Seguro o roubador contempla o roubo.

216 OBRAS DE BOCAGE

do equoreo caminho os vasos leves Venceram a extensão; já^ fatigados, No pátrio fundo as ancoras arrojam. O audaz, Threicio rei a antiga selva, A deserto y^alacio tenebroso Guia de Pandion a triste filha. Ali, pallida, trémula, chorosa, Pela irmã perguntando inutilmente, Em remoto aposento o monstro a cerra. Phrenetico lhe expõe o amor nefando, E com força brutal, com fera insânia Mancha, corrompe a virginal pureza Da misera, que em vão mil vezes clama Pelo pae, pela irmã, por vós, oh numes!

Ella ainda depois está tremendo,. Qual cordeira mansissima, que ao lobo Foi por bravo rafeiro arrebatada, E nem com tudo então se cre segura; Ou qual cândida pomba, que escapando D'entre as unhas mortaes do açor cruento,. Tintas no próprio sangue as alvas pennas, Se arripia de horror, e inda se teme Do rápido inimigo. Em fim, tornando A ter alento, e voz a profanada, Lastimosa princeza, estraga, arranca Os formosos cabellos desgrenhados; Fere o peito gentil, desfaz-se em pranto, E, alçadas para o céos as mãos de neve.

FASTOS 217

« Oh bárbaro ! Oh traidor ! Oh tigre ! (exclíima)

ííem supplicas de um pae curvado, e triste,

Nem a fraterna fé, que me devias,

Nem da inerme innocencia o puro estado,

Ne m as leis conjugaes te. commoveram I

Todas tens quebrantado: os teus furores

Mancham duas irmãs com torpe affronta, . *.

(Pena tão dura não mereço, oh numes!)

Para não te escapar nenhum delicto,

Ah ! que fazes, cruel, que não me arrancas

Uma vida infamada, abominosa?

E oxalá, que a tivesse arrancado

Antes do horrivel, execrando incesto!

Ao Lethes minha sombra fora illesa.

Porém se os deuses tem poder, tem olhos,

Se tudo em fim não pereceu comigo,

Castigado serás, serei vingada:

Sacudido o pudor, direi teu crime.

Se entre povos me achar, sabel-o-hão povos,

Se entre bosques por ti ficar sumida,

Os meus males farei saber aos bosques.

Farei saber ás pedras os meus males,

E hei de apiedar com elles bosques, pedras.

Este firme protesto os céos me escuteiv),

E um Deus, se acaso um Deus no céo reside!))

Com estes ameaços o tyranno Sente no coração ferver-lhe a raiva, Mas não menor que a raiva é nVlle o medo;

218 OBRAS DE BOCAGE

E de uma, e de outra cousa estimulado, Da lustrosa bainha o ferro despe, E ás trauças da infeliz a mão lançando, Em duros nós lhe enlêa os tenros braços.

Inclina Philomela o niveo colo, Da espada, que nua, espera a morte; Mas o duro, o feroz, por mais que a triste Lucte, resista, invoque o pátrio nome. Com rígida torquez lhe afferra a lingua, A lingua, que fallar em vão procura, Lh'a extráe da boca, e rápido lh'a corta. A purpúrea raiz lhe nada em sangue, Cae o resto no chãp, murniura, e treme. Qual da escamosa serpe mutilada A cauda palpitante, e moribunda, Que ao corpo em que viveu pretende unir-se.

Completa a negra acção, se diz qne o monstro Inda mais de uma vez (horror não crivei!) Cubicou, repetiu prazer infame.

Depois de tão cruéis, tão feios crimes, Atreve-se o malvado a ver a esposa. Progne entre sustos pela irmã pergunta: Elle exhala do peito um ai fingido, Diz que é morta, e com lagrimas o abona.

Das régias vestiduras se despoja. Traja a «entida Progne escuras vestes. Erige um vão sepulchro, e sagra n'elle Inúteis oblações a falsos manes,

FASTOS 219

Carpindo a irmã, que assim carpir não deve.

tem corrido Apollo as doze estancias Depois do caso enorme. Ab! Philomela Que fará? Guarda attenta impede a fuga, Rijo_s muros de mármore a rodêam. Seu mal narrar não pode a muda boca. Tens, ob necessidade, agudo engenbo. As grandes afflicções industria acode. Subtil, cândida têa urdindo a furto. Entre alvos fios põe purpúreas letras, Indícios da ferina atrocidade, E do sagaz lavor ao fim cbegando, O confia em segredo a meiga escrava, Lbe roga por acções o lév^e a Progne: Ella o conduz, e o que conduz não sabe.

Eis a rainba desenvolve a tela, E lê, e entende a miseranda bistoria, E cala-se (calar-se é quasi incrível ! ) A dor lbe tolbe a voz; termos, que expressem A sua indignação, não tem, não acba; Nem se occupa em cborar : confusa, absorta, Mil borrendas tenções volve na mente, E embebe-se na imagem da vinoranca.

Era o tempo famoso, ob deus de Tbebas, Em que as Sitbonias moças te festejam. Aos ritos baccbanaes preside a Noute; No Rbódope de noute a voz aguda Dos éreos instrumentos vae soando,

220 OBRAS DE BOCAGE

E de noiíte a rainha os paços deixa. Do deus nas ceremonias se instruo, toma as armas fiiriaes, cinge A cabeça de pâmpanos, e pendem Pelles cervinas do sinistro lado: Ritual hastea leve ao liombro encostai.

Seguida das terriveis companheiras, Progne terrível pelas selvas corre, E nos furores, que a paixão lhe excita, Vae simulando, oh Baccho, os teus furores. Chega á dura prisão de Philomela, Brama, grita: «Evohé!» E arromba as portas; Arranca a triste irmã do horror que a cerca, Nas bacchicas insígnias a disfarça, Recata-lhe as feições co'as folhas de hera^ E a conduz assombrada aos régios muros.

Vendo que toca o pavimento infando, Philomela infeliz treme^ descora. Metiidas em recôndito aposento, Progne lhe despe as sacras vestiduras, Progne d'afl3icta irmã descobre as faces. As faces lacrimosas, e inda bellas; Terno abraço lhe dá, mas pôr-lhe os olhos Não ousa a desgraçada, e se horrorisa De haver sido (apezar de o ser sem culpa) Cúmplice, origem da fraterna offensa, O macerado rosto unido á terra. Jurar tentando, e referir-se aos numes,

FASTOS 22 i

Não podendo co'a voz, co'as mãos exprime Que a violência lhe fez tão vil opprobrio.

Arde Progne, conter não sabe as i]"as; Da malfadada irmã condemna o pi-anto. (( Lagrimas (diz) não servem, serve o ferro, Ou cousas mais cruéis que o ferro: a tudo, Por bárbaro que seja, estou disposta. Ou tragarei co'a chamma os régios lares, Suffocando no ardor das Ígneas ondas O artiíice infernal da injuria nossa; Ou os olbos, a lingua, o mais, que teve Parte na torpe acção, n'acção maldicta, Co ferro hei de arrancar, ou por cem golpes A vida roubarei ao impio monstro. São grandes, são terríveis quantos modos Do vingança ideei, porém vacillo Na escolha do peor.» Em quanto Progne Falia assim, para a mãe vem caminhando Itvs, o terno príncipe formoso.

A rainha, ao sentil-o, ao vêl-o, occorre Nova maneira de vingar a infâmia, E, vibrando-lhe os olhos assanhados, «Ah! Como ao pae na forma é similhante!» Disse, e não disse mais. Projecta, escollie Acto espantoso, e ferve em ira muda.

Com tudo, ao tempo em que o menino amável A saúda com jubilo amoroso, E os bracinhos gentis lhe altêa ao coUo;

222 OBRAS DE BOCAGE

Quando o misturar beijos suaves

Com doces mimos, com pueris branduras,

Um tanto se commove a mãe raivosa,

E os olhos, sem querer, se lhe humedecem.

Porém do coração, que bate, e arqueja,

se desliza o mavioso aíFecto.

De novo á triste irmã volvendo os olhos,

E ora n'ella attentando, ora no filho,

«Porque falia, e me attráe com mil caricias

Um (diz Progne) e jaz muda, e chora a outra!

Este, oh céos ! Livremente a mãe nomêa,

E aquella nomear a irmã não pode !

Olha, com que esposo estás ligada,

Filha de Pandion ! Tu degeneras :

Com Terêo a piedade é crime horrendo. ))

Não continua, e súbito, á maneira D 'um tigre da gangetica espessura. Que por bosques opacos arrastada Da veloz corça leva a tenra cria, Progne as mãos arremessa ao delicado, Ao cândido filhinho, e vae com elle, E com a irmã cerrar-se em erma estíincia.

Ali ao infeliz, que conhece Os negros fados seus, que as mãos levanta, Que treme, que prantêa, e que se abraça Ao seu querido algoz <r Mãe ! mãe ! » clamando, Ali ao infeliz no peito embebe A vingativa Progne agudo ferro:

FASTOS 223

Nem torce o rosto, nem repete o golpe, Que um golpe lhe rompe o débil fio.

Philomela o degola, e dilacera Os membros em que ha inda um resto d'alma. parte d'elles pula em éneos vasos, Parte range em subtil^ duro instrumento: Vae pelo chão correndo o sangue em rios.

Das cruentas porções a fera esposa ' Prepara detestáveis iguarias Ao marido infiel, que tudo ignora. Um sacrifício finge ao pátrio modo, No qual um varão ter deve ingresseis: Servos, e cortezãos assim remove.

Assoma Terêo no throno herdado, E em alta, festival, purpúrea meza Come parte de si, devora o filho: Tanta cegueira lhe ennegrece a mente ! (íltys aqui trazei» (diz elle). Eis Progne Dissimular não pode o gosto infando, E, resolvendo em fim manifestar-se, «Tens dentro (lhe responde) o que desejas.» Elle olha em torno de si, pergunta: «Aonde? D E de novo procura, e chama o filho. Nas n'isto Philomela, em sangue envolta. Olhos accezos, desgrenhada a trança. Entra, e do filho a mádida cabeça As faces paternaes súbito arroja.

Não teve em tempo algum tanto desejo

224 OBRxiS DE BOCAGE

De fallar, cie poder com agras vozes Patentear seu jubilo ao tyranno. Elie solta um clamor, que atroa as salas; Derriba a fatal meza, invoca as Fúrias, E ora tenta expulsar com anciã horrenda As tragadas, funestas iguarias. Ora lagrimas verte, e de seu filho Sepulchro miserável se nomêa.

Em fim de Pandion persegue a prole. Brandindo o ferro nu com mão tremente, O corpo das cecrópidas parece Que em azas se equilibra, e não é sonho, Em azas se equilibra, e muda a forma. Uma rapidamente aos bosques voa. Outra, egual na presteza, aos tectos sobe, E do assassínio as máculas não perde : Inda do rub]'o sangue desparzido Evidentes sign les lhe estão no peito.

Terêo, fora de si, e arrebatado Pela dor, pelas fúrias da vingança. Ave adeja também, que na cabeça Traz erguido penacho, e tem por armas Longo bico mordaz: seu nome é poupa.

O successo fatai, sabido apenas Despenhou Pandion na sepultura.

FASTOS 225

A descida de Orpheu aos infernos a buscar Eurydioe

(Traduzido do Livro x)

De rutilantes vestes adornado Hymenêo rompe o ar, e á Thracia voa, d'onde o chama Orpheu, porém debalde.

O deus sim presidiu do vate ás núpcias, Mas não levara ali solemnes vozes, Nem presagio fehz, nem ledo rosto. Sentiu-se apenas crepitar-lhe o facho, E em vez de viva luz soltar um fumo Lutuoso, e fatal: vãmente o nume Tentou c'o movimento erguer-llie a chamma. O efFeito foi peor que o mesto agouro.

Em quanto a linda noiva os prados gira, Das riayades gentis acompanhada. Áspide occulto fere o mimoso: Morre a moça infeliz, e o triste amante Depois de a lamentar aos céos, e á terra, Emprehende commover do inferno as sombras; Affouto desce a vós, Tenarias portas.

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226 OBRAS DE BOCAGE

Por entre baralhada, aérea turba Cujos restos mortaes sepulchro logram, Aos negros paços yae do rei das trevas, do tjranno eterno o throno horrendo. casa os sons da voz, e os sons da lyra^ As deidades cruéis diz: c(Oh deuses. Deuses do mundo sotoposto á terra. No qual se ha de sumir tudo o que existe ! Se acaso a bem levae&.que ingénuas vozes O artificio removam, crede as minhas. Não venho para ver o opaco Averno, Nem para agrilhoar as três gargantas Do monstro Medusêo, que erriçam cobras. Attráe-me ao reino vosso a morta esposa, A quem pizada vibora o veneno Nas vêas desparziu, a flor murchando Dos annos festivaes, inda crescentes. L'onstancia quiz oppôr ao damno acerbo, xentei vencer meu mal, e Amor venceu-me.. Este deus é nos céos bem conhecido. Aqui não sei se o é, mas se não mente No rapto que pregoa antiga fama, Vós também pelo Amor ligados fostes. Ah! por este logar, que abrange o medo, T*or este ingente cahos, silencio vasto, Que do profundo império o seio occupam, De Eurydice gentil á doce vida O fio renovae, tão cedo roto.

FASTOS 227

EUa, todo o mortal vos é devido,

Vem tudo, agora, ou logo, á mesma estancia,

Para aqui pende tudo, é este o nosso

Derradeiro, infallivel domicilio;

Vós tendes, vós gozaes, a vós compete

Da espécie humana o senhorio immenso;

A que exijo de vós ha de ser vossa

Por inviolável jus, por lei dos Fados,

Tocando o termo da vital carreira:

O uso do meu prazer em dom vos peço.

Se o Destino repugna ao bem, que imploro,

Se a esposa me retêm, sahir não quero

D'este horror: exultae co'a morte de ambos. 3>

O triste, que assim une o verso á lyra. Os exangues espiritos deploram: A fugaz lympha Tântalo não corre: A roda d'Ixion de assombro pára: Os abutres cruéis não mordem Ticio, As Bólides os crivos cahir deixam. Tu, Sisypho, te assentas sobre a pedra. Das vencidas Eumónides é fíuna Que pela vez primeira os negros olhos Algumas ténues lagrimas verteram. Nem a esposa feroz, nem Dite enorme Ousam negar piedade ao vate ora n te. Chamam súbito Eurydice. Envolvida Entre as recentes sombras ella estava: Eis o mordido vem manso, e manso.

228 OBRAS DE BOCAGE

Recebe o thracio Orpheu co'a bella esposa Lei de que para traz não volte os olhos Em quanto for trilhando o feio abysmo, Se nulla não quizer a graça extrema. Por duro, eseongo, desigual caminho, De escuras, bastas névoas carregado, Um apoz outro os dous, vão em silencio: do tartáreo fim distavam pouco.

Temendo o amante aqui perder-se a amada, Cubiçoso de a vêr, lhe volve os olhos: De repente Ih 'a roubam. Corre, estende As mãos, quer abraçar, ser abi'açado, E o misero somente o vento abraça. Ella morre outra vez, mas não se queixa, Não se queixa do esposo; e poderia Senão de ser querida lamentar-se? Diz-lhe o supremo adeus, mal ouvido; E recáe a infeliz na sonÁra eterna.

Fica attonito Orpheu co'a dupla morte Da malfadada esposa, como aquelle Que n'um dos collos viu com rijos ferros Preáo, arrastado á luz o cão trifiiuce, E que o mudo pavor despiu somente Quando despiu a natureza humana, Transformado em rochedo i mm o to, e frio; Ou qual o que a si mesmo impôz um crime, Oleno, que de réo quiz ter o nome Por te salvar, misérrima Letéa,

FASTOS 229

Orgulhosa de mais com teus encantos. Tu, que foste c'o esposo outr'hora uma alma Repartida em dons corpos, que hoje és pedra Com elle, e juntos no Ida estaes sustidos.

O estjgio remador expulsa o vate, Que ora, que em vão tornar ao Orço intenta. Sete dias jazeu na margem triste Sem nutrimento algum: a saudade, As lagrimas, a dor o alimentaram.

Depois de prantear vossa fereza. Numes do inferno, ao Rhódope se acolhe, E ao Hemo, de Aquilões sempre agitado. Dera o giro annual três vezes Phebo, E sempre o terno Orpheu de amor fugia, Ou porque o mal passado o refreava. Ou porque eterna jurado houvesse A miseranda esposa: repulsadas Mil bellas nymphas seus desdéns carpiram.

230 OBRAS DE BOCAGE

Oinyras e Myrrha

(Traduzido do Livro x)

Do crime os quadros a virtude apuram, Esmalta-se a moral no horror ao crime.

O Traí^.uctor.

Cinjras, um dos reis da equorea Chypre, Podéra numerar-se entre os ditosos. Se prole não tivesse. Eu determino Cantar cousas terriveis: longe, oli filhas, Longe, oh pães ! . . . E se acaso as mentes vossas Ficaram de meus versos attrahidas, Não julgueis verdadeiro o que me ouvirdes ; Ou, crendo o caso atroz, crede o castigo: Se permitte, com tudo, a Natureza Que tão negros horrores a enxovalhem.

Feliz a Ismária gente, o mundo nosso, Que jaz distante do brutal, do indigno Paiz onde nasceu paixão nefanda! Embora seja fértil, seja rica De mil perfumes a Panchaica terra,

* FASTOS 231

Tenha alta fama em arvores^ em flores, costo redolente, e grato amomo, N'ella cheiroso incenso os troncos suem, Que a myrrha, que produz, a faz odiosa : Não vale o que ha custado a nova planta.

Nega o filho de Vénus que em teu peito Seus lustrosos farpões cravasse, oh Mjrrha! Vinga seu facho da supposta infâmia. Com o estygio tição, e inchadas cobras Vibrou lethal vapor sobre a tua alma Uma das três irmãs. Ao pae ter ódio Se é gravissimo crime, é crime horrendo Amal-o como tu. Por ti suspiram, Ardem por ti mil príncipes famosos; Mil brilhantes mancebos do oriente Contendem pela gloria de gosar-te: Um de tantos heroes escolhe, oh Myrrha, Mas não seja o que tens no pensamento.

Em criminoso amor ella se inflamma, Em criminoso amor ella repugna, E diz comsigo: c(Onde me leva a mente! Que espero, que imagino! Eternos deuses! Sancta religião ! Sanctos deveres ! Direitos paternaes! Tolhei-me o crime, Refreae meu furor, minha maldade; Se com tudo é maldade o que em mim sinto. Tão doce propensão porque a reprovam? Os livres animaes amam sem culpa.

232 OBRAS DE BOCAGE

Sem culpa gosam, e a união do sangue

Mais suave união lhes não prohibe.

Felices animaes, feliz destino!

Creou penosas leis o orgulho humano,

Negando o que permitte a natureza.

E constante porém -que existem povos.

Que ha gentes entre as quaes a mãe ao ^l^Oy^

A filha se une ao pae, e as leis do sangue

Com duplicado amor se arreigam n'alrua.

Oh ! mísera de mim ! Porque nã^o tive

A dita de nascer n'aquelles climas?

Minha pátria é meu mal. . . que idéas neutro!

Vedadas, importunas esperanças,

Ah! Ide-vos: o pae de amor é digno,

Mas somente do amor que aos pães se dev^.

Se filha de Cinyras eu não fosse,

Podéra de outro modo amar Cinyras;

E meu como o céo quer, não como eu quçrp,

Aparta-nos fiital proximidade:

Se não fora o que sou, feliz seríl.

A remoto paiz correr desejo, Fugindo á pátria por fugir ao crime; Mas o nocivo Amor detém meus passos; Quer que veja Cinyras, que lhe falle, Que o beije, se aspirar a nçiais não possp. . . E mais, oh impia, a cubicar te atreves! Não vês que nomes, qi^ie razões confiande^I Rival da mãe serás ! Irmã do filho !

FASTOS 233

Mãe do irmão ! Não recêas, não te atterram A? negras Fúrias, de vipérea grenha, Que os olhos dos perversos horrorizam, Que ás almas corrompidas se arremessam, Brandindo o facho de salphurea chamma! Pura no corpo, no animo pura; Não profanes, oh cega, não profanes Da natureza o vincuio sagrado !

o

Suppõe que affecto egual no pae fervia,

Suppõe que era comtigo o que ós com elíe :

Alta virtude lhe opprimira o gosto,

Sacrosancto dever a amor obstara . . .

Mas se o que sente a filha o pae sentisse.

Que importara o dever ...» Calou-se, e em tanto

Cinyras, a quem traz irresoluío

A turba dos excelsos pretensores,

Paia em fim decidir consulta a filha,

Um á um lh'os nomêa, e d'ella inquire

Qual d'elles mais lhe apraz, que esposo elege.

Em silencio, no pae fitando os olhos,

Arde a triste, e lhe luz na face o pranto.

De virgineo temor crê isto eíFeito

O illudido Cinyras; que não chore

A filha pede, as lagrimas lhe enxuga,

E vme a ternas palavras ternos beijos.

Myrrha folga com elles; e, obrigada

Do pae que lhe insta, que outra vez pergunta

Qual dos amantes quer : « Um Qhe. diz eíla)

234 OBRAS DE BOCAGE

Um quero egual a ti. )) Louva Cinyras A resposta sagaz, que não penetra. <( Tão pios sentimentos nutre, oh filha, Conserva essa virtude.» (O rei lhe torna) A palavra «virtude» abaixa os olhos A misera, por ver que a desmerece.

Era alta noute; os corpos, e os cuidados Em suave prisão hgára o somno; Mas a Cinyrea virgem desvelada, Da indómita paixão curtia as fúrias. Louca, fora de si. desespera, quer tentar abominosa empreza: Pejo, remorso, amor lhe luctam n'alma; Não sabe o que fará. Qual tronco ingente Em que abriu fenda o rústico instrumento, Agora pende a* um lado, agora ao outro, Por toda a parte ameaçando a queda: Assim, de impulsos vários combatido, Vacilla o coração da acceza virgem; Anda de sentimento em sentimento, E asylo contra Amor na morte. A morte em fim lhe agrada, e quer, e ordena Perder n'um laço urgente a vida acerba. Em alta, longa trave o cinto prende, E diz com surda voz : « Adeus, Cinyras, Do meu trágico fim percebe a causa.» N'isto accommoda o laço ao niveo collo. Mas o murmúrio das sentidas vozes

FASTOS 235

Vae aos ouvidos da fiel matrona,

Que aos peitos a creou, que a serve, e guarda,

Repousando no próximo aposento.

Surge, corre, abre as porias, pendente O instrumento da morte, e solta um grito; Magoa o peito, as faces, e lançando As mãos ao duro laço, o tira, o rompe, Em pranto se desfaz, abraça a triste, Da desesperação lhe inquire a causa.

Muda fica a donzella, e de olhos baixos, Com pena de escapar-lhe o bem da morte. Insta a velha mat>rona amargurada, E ora lhe mostra o peito a que a nutrira, Ora os cabellos, que mudou a edade; E pelo antigo, maternal desvelo. Pelo doce alimento, e doce afago Com que a tractára na mimosa infância, Lhe implora a confissão do mal que sente. Myrrha volta o semblante, e geme, e cala ; Mas a velha importuna as preces dobra, E, além de prometter-lhe alto segredo. Lhe diz: «Consente, que eu te preste auxilio; Frouxa, inútil não é minha velhice. Se um phrenesi te deu, com magos versos. Com hervas virtuosas sei cural-os; Se olhos maus te empeceram, não te assustes. Serás purificada em mago rito. Se é cholera dos céos, abrandaremos

236 OBRAS DE BOCAGE

A cholera dos céos com sacrifícios.

Que mais te hei de suppôr? Tu nfio provaste

Golpe algmn da fortuna ; és adorada.

Es feliz: tua mãe, teu pae são vivos. .

Ao pátrio nome um ai do peito arranca

A inflammada princeza, e bem que a velha

Do suspiro não vc a origem torpe,

Que nascera de amor suppõe comtudo.

Tenaz em seu propósito, não cessa

De explorar-lhe a razão do que padece;

Ao seio a chega, e n'um estreito abraço,

«Amas, bem sei (lhe diz) te?iJ0f não tenhas;

Falia, quem é o amante? A industria minha

Fará com que teu pae nunca o suspeite. »

N'um súbito furor lhe sáe dos braços A ariciosa donzella, e sobre o leito As faces apertando, eis diz: «Ah! Foge, Ah ! deixa-me, cruel, poupa-me o pejo, Deixa-me, ou cessa de indagar meus males: O que intentas saber é crime horrendo. » A rugosa matrona, ouviudo-a, treme; As mãos, co'a edade, e c'o temor convulsas, Levanta, aos pés lhe cáe, e ora com mimos, Ora com ameaços quer vencel-a. Protesta-lhe, se em fim lhe não descobre O terrivel segredo, ir accusal-a, Ir declarar ao pae tudo o qtie vira; Protesta-lhe tanitem que, se a contenta,

FASTOS 237

Ha de ajudar-lLe os tácitos amores.

Ergue a cabeça a misera donzella, De lagrimas lhe inunda o seio aiinoso; Mil vezes quer fallar, fallar não póde^ E o lacrimoso aspecto envergonhado Tapa co'as lindas mãos, até que exclama: (( Oh feliz minha mãe com tal consorte ! )) Mais não disse, e gemeu. Súbito á velha Um frígido tremor penetra os membros, As carnes, os cabellos arripia. Ella entende o terrífico mjsterio, E quer com mil conselhos ver se applaca A detestável chamma incestuosa. Que nenhum lhe aproveita a virgem sabe, Sabe que morrerá, se o fim não logra Dos. activos, phreneticos desejos,

«Vive (lhe torna a frágil conselheira) Em breve gosarás de teu ...» Não ousa Dizer pae, e com sacro juramento Sellou no mesmo instante impia promessa.

As festas annuaes da flava Ceres Então as mães piedosas celebravam; Com roupas cor de neve então cobertas, Davam louras primícias das searas A deusa tutelar, urdiam c'rôas Das proveitosas messes, o se abstinham Do tacto varonil por nove noutes: De amor lhe era o prazer então defeso.

238 OBRAS DE BOCAGE

Do. Paphio rei a esposa ás mais se aggrega, E com ellas exerce o rito augusto. No toro conjugal jaz Cinyras. Eis a velha subtil vae ter com elle. Que perturbado está de cyprio néctar, E de uma illustre virgem lhe declara Verdadeira paixão com falso nome. Louva-lhe as faces, louva-lhe os cabellos, Louva-lhe os olhos, tudo o mais lhe louva,

* D'elle exigindo consentir que expire

* O virginal pudor na escuridade. Os annos da donzella o rei pergunta: (lhe torna a sagaz) egual a Myrrha.» Ordena-lhe que súbito a conduza; Volve ao seu aposento a seductora,

E á virgem diz: c(Alegra-te, princeza, Vencemos. )) Não sentiu a malfadada Gosto completo, o coração presagQ Não sei que lhe aununcia; inda assim folga: Tanto em discórdia traz os pensamentos !

Era o tempo em que reina alto silencio; Na immensa esphera o gélido Bootes Entre os frios Triões volvia o carro. A donzella infeliz caminha ao crime: Envolvem densos véos a ebúrnea lua, Negro, térreo vapor enluta os astros. Dos oiaros lumes seus carece a noute. ícaro, tu primeiro o rosto escondes.

FASTOS 239

E Erígone piedosa, a prole tua, Do filial amor sagrado exemplo. Três vezes a misérrima tropeça: Como que' o céo lhe diz que retroceda; Três vezes solta ao ar agouro infausto No higubre clamor funéreo mocho: Ella, com tudo, não suspende o passo; A muda escuridão minora o pejo. Lova a sinistra mão na mão ruo^osa Da torpe, abominável conductora, E vae co'a dextra tenteando as trevas.

Da estancia paternal chega á porta, Abrem-lh'a já, entra: os pés fraquêam, Foge a cor, foge o sangue, e eáe o alento. Quanto da atrocidade está mais perto, Tanto mais se horrorisa, e se arrepende, E deseja voltar desconhecida. A infame confidente ^ vae puxando; Do rei com ella ao thalainp se encosta, E diz-lhe: (ío que eu conduzo é teu, recebe-o. )>

Eis no thalamo o pae recebe a prole, E, sentindo-a tremer, quer dissipar-lhe Cora mil caricias o virmneo medo.

o

T^ela edade, talvez, lhe chama filha, E ella chama-lhe pae (ao negro crime Nem taes nomes faltaram). l)'entre os braços Do incestuoso amante em fipi se aparta Mj rrha, levando em si da culpa o fructo.

240 OBRAS DE BOCAGE

Coube á noute seguinte o mesmo opprobrio, E outras mais d 'este horror manchadas foram.

Finalmente Oinyras, cubiçoso De ver o objecto, que entro sombras gosa, Com repentina íúz, que tinha occultaj Encara, e reconhece o crime, e a filha. O excesso da paixão lhe embarga as voxes; Cholerico se arroja ao duro ferro. Foge Myrrha, e da morte a noute a salva, Foge Myrrha infeliz, discorre os campos, Sáe da Arábia Palmífera, e Panchéa.

Nove luas vagar sem tino a viram, que no chão Sabêo parou cançada. do fructo recôndito, e molesto Apenas sustentar podia o pezo. Sem saber o que faça, o que deseje, . Temendo a morte, aborrecendo a vida, JDest'arte implora o céo: c( Numes! Oh numes! Se ante vós aproveita ao delinquente Confessar seus delictos, eu confesso ' Que o meu crime é credor d'alto castigo, E á pena que mereço eu aie conformo. Mas porque nem vivendo aífronte os vivos Oh deuses, nem morrendo aíFronte os mortos, Mudando a minha essência, a minha forma, A morte me neg;ie, negae-me a vida.»

Taes preces algum deus lhe ouviu propicio: Eis, abrindo-se a terra, os pés lhe sorve, '

E em súbita raiz ao chão se aíFerram,

Alicerce tenaz do tronco altivo.

Os ossos ganham forças mais que humanas,

Em suecos vegetaes se torna o sangue,

Os braços, que ergue ao céo, mudam-se em ramos,

Os dedos em raminhos se convertem,

isá pelle em desigual cortiça. Crescendo a planta, lhe cinge o peito, vae cubrindo o coUo : está demora Não soíFreu a iníeliz, curvou-se um tanto, E o semblante gentil sumiu no tronco.

Bem que despisse a antiga intelligencia, Chora comtudo, e d'arvore sensível Tépidas gotas inda estão manando. Co'as lagrimas honra, co'a figura Myrrha não perde o nome, e de evo em evo Sua historia fatal será lembrada.

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242 OBRAS DE BOCAGE

Midas convertendo tudo em ouro

^ (Traduzido do Livro xi)

Não contente Lyêo de ter vingado A morte acerba do Apollineo vate, Até dos campos bárbaros se ausenta: Como séquito melhor dirige os passos A ver do seu Tmolo as fartas vides, E do Pactólo as margens, bem que ainda Não tivesse o crjstal mudado em ouro, Nem co'as arêas suscitasse invejas.

Usada turba, satjros, bacchantes, Folgavam junto ao deus, mas não Sileno: Por phrygios montanhezes foi colhido, Dos annos, e liquores titubante, E preso em laços de travadas flores, A Midas, a seu rei o apresentaram. Este do thracio Orpheu, do grego Eumolpo Outr'hora as orgias recebido havia. Dos sacrifícios conhecendo o sócio,

FASTOS 243

Vendo o mestre de Broraio, logo ordena Do hospede á vinda geniaes festejos: Dez dias, noutes dez a solemnisa. Phosphoro dos astros a cohorte Pela undécima vez afugentara: Risonho parte o rei aos Lvdios campos, Sileno restitue ao moço alumno. Do achado preceptor Lenêo gostoso, De qualquer dom a escolha ofFrece a Midas. Grato o premio lhe foi, mas foi-lhe inútil, Porque elle, usando mal do grande arbitrio, c( Numen (lhe respondeu) manda que tudo. Que tudo o que eu tocar se torne em ouro.5)

Ao rogo annue o deus, porém sentindo Que para dom melhor não fosse o rogo. Contente o phrvgio vae do mal que leva. Quer da promessa exp'rimentar o eíFeito, Quer palpar quanto vê. Quasi sem crer-se, O braço estende a uma arvore não alta, Verde ramo lhe extráe, e é ouro o ramo: Do chão ergue uma pedra; a pedra é ouro: Roça um terrão, e ao tacto portentoso Fica o negro terrão lustrosa massa. Louras espigas n'um punhado arranca: Eil-o convertido em áurea messe; Um pomo tem na mão, colhido apenas Parece das Hespéridas um mimo. Se acaso os dedos põe nas altas portas,

244 OBRAS DE BOCAGE

As portas de improviso estão brilhantes : Agua em que lava as mãos, das mãos caindo, E tal que a Dânae seduzir poderá. Tudo mudado em ouro imaginando, No peito a custo as esperanças cabem.

Os servos lhe aprestaram lauta meza, Mas de Ceres aos dons se a dextra move, Enrijam-lhe na dextra os dons de Ceres; Se ávido applica ao dente as iguarias, Lustram-lhe as iguarias entre os dentes; Une o liquor do nume, auctor do assombro Com agua crystalina, á boca os ergue: Da boca se deslizam pingos de ouro.

Attonito do mal terrível, novo, O opulento, o infeliz fugir deseja Das riquezas fataes. detesta o mesmo Que ha pouco appeteceu. Nenhuns manjares Podem matar-lhe a precisão que o mata: Árida sede tórra-lhe a garganta; O ouro mal cubicado é seu tormento, E seu justo castigo. Aos céos alçando As mãos luzentes, os luzentes braços: «Perdoa, gran Lenêo, pequei, perdoa, Commove-te de mim (lhe diz) e afasta D'um misero este damno especioso.»

Os deuses são benignos. Baccho ao triste, Que péza a culpa, que a maldiz, que a chora, A promessa, retráe, e o dom funesto.

FASTOS 245

«Mas para que não fique a ti ligado

Mal, que julgaste um bem (lhe adverte o nume)

Vae ao rio visinho á grande Sardes.

Pelo cume da serra, ao lado opposto

Áquelle d'onde as aguas escorregam

Caminha até chegar onde ellas nascem.

Na parte em que ferver mais ampla a fonte

Mergulha, lava o corpo, e lava o crime.))

Na apontada corrente o rei se banha,

Aurífera virtude as aguas tinge,

Passa do corpo de repente ao rio.

No espraiado liquor participando

Do germe, que dourou a antiga vêa,

E fama que inda agora amarellejam

Com mádidos terrões aquelles campos.

246 OBRAS DE BOCAGE

A gruta do somno

(Traduzido do Livro xi)

Junto aos Oimmérios, n'uin cavado monte Jás uma gruta, de âmbito espaçoso, Interna habitação do somno ignavo.

Nos extremos do céo, do céo nos cutnes Nunca lhe pode o sol mandar seus raios; A terra exhala escurecidas névoas, O crepúsculo incerto ali é dia: Ali não chama pela aurora o galo; Do logar o silencio nunca rompem Os solícitos cães, os roucos patos, Sagazes inda mais, mais presentidos. Não fera, não rebanho ali se escutam, Nem ramo algum, que os Zephjros embalem, Nem alterados sons de voz humana; O calado socego ali reside.

De baixa, e rota pedra sáe, comtudo, De agua do Lethes pequenino arroio,

FASTOS 247

Que, por entre os mexidos, leves seixos Com murmúrio suave escorregando, Convida mollemente ao molle somno. A boca da sombria, ampla caverna Florecem mil fecundas dormideiras; Innumeraveis hervas se criam, De cujo sumo, oh Noute, extráes os somnos, Que húmida entornas pela terra opaca. Porta alguma não ha na estancia toda: Volvendo-se, ranger, bater poderá; Ninguém vigia na fragosa entrada.

De ébano um alto leito está no meio, E em negras plumas, que véo negro envolve, Repousa o deus co'a languida Indolência. Emtorno, varias formas imitando. Jazem os Sonhos vãos : são tantos quantas Na loura messe as trémulas espigas. Quantas na selva umbrosa as moveis folhas, E os grãos de arêa nas equoreas praias.

O Somno em tantos mil não tem ministro Mais destro que Morpheu, que melhor finja O rosto, o modo, a voz, o traje, o passo, A própria locução; porém somente Este afigura os homens; outro em fera, Em ave se converte, ou em serpente: Icélon pelos deuses é chamado. Os humanos Phobétor o nomeam. Ha terceiro também de arte diversa:

248 OBRAS DB BOÒAGS

É Phantasos, que em pedra, em terra, em ófidá Em arvore, e rio mais, que naò tem alidíli,' Súbito, e propriamente se transforma. Uns atteram de npute os reis, e os ^andéâ;^ Outros por entre o povo errantes voaíníJ

FMik 249

Ésaco e Hesperia

(Traduzido do Livro xi)

Ésaco, irmão de Heitor, se não sentira Na flor da bella edadè extranhos fados, Gran nome entre os Heròes talvez tivesse, E á fraterna egualasse a gloria sila; Postoque fosse Heitor de Héciíba filho, E Esaco de Álèxirhoe, a qual é fama Que a susto o produziu no Ida umbroáò.

Aborrecendo a poíiipa das cidades, Remoto do paterno, insigne jpaço, Nos montes se escondia, amava os campos, Blesos de ambição: líiui raraíneiítò No cortezão tuinulto íá etivòltèr-se.

O caracter, põl-éra, bravio, agrèátb. Inimigo de Amor náb tinha ò moço. Um dia ás patríáá niargeiis a forinoô.^ Cebrena Hesperia vib, do sol ábs raibs A livre trança de õtirtí feàtát Bèccando;

250 OBRAS DE BOCAGE

Hesperia, a quem mil vezes entre os bosques seguira inflam mado. Ao vêl-o a nympha Com tanta rapidez foge do amante Qual do lobo voraz medrosa corça, Ou como a fluvial adem ligeira Foge ás unhas cruéis, se é assaltada Longe do lago pelo açor violento.

Corre o.troyano ardente apoz a ingrata, Persegue amor veloz o veloz medo: Eis serpe occulta no caminho hervoso Volve á planta fugaz o curvo dente, Nas vêas lhe introduz mortal peçonha, Supprime a fuga, supprimindo a vida.

O misero amador, de mágoa insano, Abraça o lindo corpo agonisante. «Eu me arrependo (grita) eu me arrependo, Nympha, de te seguir, mas não previa Este caso fatal, nem desejava Victoria tão custosa, e tão funesta. Dous foram, infeliz, os teus verdugos: Deu a serpente o golpe, eu dei a causa, E eu fora inda peor que o seu veneno Se a morte minha não vingasse a tua. ))

Disse, ,e do cume de cavada rocha Ao pélago se dá; porém doída Tethis o acolhe brandamente, e logo Veste de plumas o nadante corpo. Seu cubicado fim negando ao triste.

FABTOS 251

EUe, raivoso de existir por força, De ter com duros laços opprimida Alma, que da prisão sahir deseja, Menêa, assim que as sente, as azas novas, Vôa, mas outra vez baixando ás ondas. Se intenta submergir: védam-lh'o as pennas. Mais o amante se enraiva, e teima, e torna A sumir-se no mar: da morte a estrada Tenta, retenta ali, sem fim, sem fructo. Amor lhe gasta, lhe macera as carnes; O coUo se lhe alonga, o mar lhe agrada, E dos mergulhos seus provém seu nome.

2'52' OBKAS jM 1êK)QAQ^

o sacriflcio de Polyeena, e a meta.mórpliõse de Hécuba, sua ínâe

(TI*ráduzido do Livro xii)

defronte da Phrygia, onde foi Troya, Jaz terra pelos Thracios habitada; D'ella Polymnestor o império tinha, A quem furtivamente, oh Polydoro, Teu pae te confiou, para educar-te Longe da confusão, e horror da guerra: Arbitrio salutar, se ao deshumano Comtigo não mandasse áureos thesouros Premio do crime, estimulo do avaro.

Apenas cáe Dardania envolta em cinzas, O Bistonio tjranno empunha um ferro, O crava na cerviz do tenro alumno; E, como se a traição sumir podéra Co misérrimo corpo assassinado, Do cume de um rochedo ao pego o lança.

Na Thracia fundeara o bravo Atrides,

FASTOS 253

Mar sereno esperando, e vento amigo: Eis da terra, espaçosamente rota, Tão grande Achilles sáe qual era em vida, Oo'um ar ameaçador, c'o mesmo aspecto Que tinha quando horrível quiz vingar-se, E contra Agamemnôn brandiu a espada.

«Esquecidos de mim, partis, oh Grregos ! (A fera sombra diz) morreu comigo, Comigo se enterrou minha memoria I A idéa do que fui! Sede mais gratos, Sem honra não deixeis o meu sepulchro: Polycena, por vós sacrificada, De^ Achilles indignado applaque os manes. »

Gala, e desapparece. Os sócios duros, Ao terrível phantasma obedecendo, Do regaço materno a triste arrancam, Da materna anciedade único allivio. Forte, e mais que mulher, a infeliz virgem Ao tumulo funesto é conduzida. Para victima ser da irada Sombra.

Co'a phantasia em si, depois que a chegam Para as aras cruéis, onde conhece Que ao sacrifício bárbaro a destinam, E depois, vendo em pé, vendo a seu lado Pyrrho c'o ferro nu, e os olhos n'ella : «Um sangue generoso eia derrama. Derrama (ao impio diz) não te demores, No peito, ou na garganta o ferro embebe.

254 OBRAS DE BOCAGE

(N'isto a garganta off rece, oífrece o peito)

«Polycena de escrava odêa o nome;

Deus nenhum com tal victima se abranda.

Mas quizera que a mãe desamparada,

Mãe deplorável me ignorasse os fados;

ella de morrer me encurta o gosto

Bem que não minha morte, a vida sua;

Ella deve carpir. Vós affastae-vos;

Meu rogo é justo: do virgineo corpo

Tirae as mãos viris, não morra escrava:

Aquelle, que intehtaes (qualquer que seja)

No sacrifício meu tornar benigno,

Ha de ser mais acceito um sangue livre.

Se ha, com tudo, entre vós alguém, oh gregos,

Piedoso a extremas supplícas, a prole

De Priamo, d'um rei (não a captiva)

Vos pede que entregueis, mas sem resgate,

O cadáver sanguento á mãe chorosa.

Com lagrimas alcance, e não com ouro

O lutuoso jus de honrar-me as cinzas.

De lhes dar sepultura: em quanto pôde,

Com ouro a triste mãe remia os filhos, d

Disse: e o pranto, que intrépida sustinha, O povo não susteve: até chorando O ministro feroz lhe enterra a custo Consagrado punhal no ebúrneo coUo. Eis o lhe fallece, ao chão baquêa, E um ar de intrepidez mantêm morrendo.

FASTOS 255

Ao cair inda então se não descuida

De encnbrir o que é lei ter- se encuberto,

Resguardando o decoro ao casto pejo.

As Troyanas, carpindo-se, a levantam, De Priamo a progénie ali recordam; Quanto sangue vertera uma familia, Que em outr'liora choram. Choram hoje O teu destino, oh virgem, choram hoje, Régia, misera esposa, o teu destino; Régia, misera mãel Nos tempos faustos De Ásia fecunda symbolo florente! Agora inútil, desdenhado espolio, Que Ulysses vencedor não quereria, Se o memorando Heitor á luz não deras ! O gran nome do filho apenas serve Para obter um senhor á mãe anciosa. Que, nos trementes braços estreitando O corpo, falto de alma tão forte, As lagrimas, que deu á pátria, aos filhos, E ao consorte infeliz, hoje a esta.

A ferida co'as lagrimas lhe inunda, Ternos beijos depõe nos lábios frios, E afaga o virginal, querido seio. Revolvendo, empastando as cãs no sangue, Diz isto, ou mais, e o coração lhe estala:

«Oh filha, ultima dôr (pois que me resta?) Ultima dôr da mãe ! . . . Sem vida jazes ! . . . Golpe, que sinto em mim, vejo em teu peito I

256 OBRAS PE BOCAGE

Todos, todos os meus assim morreram. Também ferida estás ! Seres isempta Do ferro, por mulher, eu presumia, E, mulher, succumbiste ao ferro iníquo I De teus irmãos o al2:ôz foi teu verduoro, o mal, o horror de Troya, o fero Achilles !

«Quando ás frechas mortaes de Apollo, e Paris O bárbaro cahiu, eu disse : Agora que temer não ha do infesto Achilles •— E havia que temer: tornado em cinza, Os restos de meu sangue inda persegue, No tumulo o tyranno é sempre o mesmo. Para fartar-lhe a crua, a negra sanha Fecunda fui. Dardania jaz por terra, Em catastrophe atroz findou seu fado; Mas inda para mim Dardania existe, Lavra da minha dor inda o progresso.

<(D'antes tantas grandezas possuindo, Tantos genros, e filhos, c'rôa, esposo, Hoje em desterro, na indigência agora, Do sepulchro dos meus desarraigada, Sou quinhão de Peuélope, que altiva Ha de ás matronas de Itaca mostrar-me Curvada ás suas leis, dizendo: C(E esta A mãe de Heitor, de Príamo a consorte.»

«Depois de tantas perdas tu, oh filha. Que do luto materno eras allivio, Sobre tumulo hostil verteste o sangue !

FASTOS 257

Dei-te o ser para victíma de Achilles. Porque vivo, ai de mim ! Serei de ferro ? A que, rugosa edade aborrecida, Me reservas no mundo? Injustos deuses, Para que me guardaes, senão somente Para novos horrores, prantos novos!

«Quem venturoso a Príamo julgara Depois da, que deu Troya, horrível queda ! Foi feliz em morrer, não te viu morta Filha minha, e perdeu co'a vida o throno.

c( Serão teus funeraes, oh virgem régia. Dignos do teu natal? Será teu corpo Nos avitos sepulchros encerrado? Não, nos não compete essa fortuna: Choro, e tosca porção de extranha terra (Dadiva maternal) te pertencem. Perdemos tudo. . . ah! Não, resta-me um filho Por quem supportarei mais tempo a vida, Único filho agora, o que algum dia Da estirpe varonil era o mais tenro, E que ao Ismárío rei foi commettido N'este mesmo logar . . , Mas porque tardo, Triste filha, a lavar-te o peito, e rosto. Do mortífero golpe ensanguentados ? ))

Com vagaroso caminha á praia. Desgrenhados os cândidos cabellos. .

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258 OBRAS DE BOCAGE

c(TJrna me dae, troyanas (diz a triste) Para as aguas colher de que preciso. )) Eis o corpo infeliz de Polydoro, Lançado pelo mar, sobre a arêa, E do Threício ferro o golpe fundo.

As troyanas exclamam: fica muda; Ao peito a voz, e o pranto retrocedem, Afflicção lh'os devora: está qual pedra. põe n'adversa terra olhos immoveis, furibundo aspecto aos céos levanta; Olha do filho o rosto, olha a ferida, Porém mais a ferida do que o rosto: Com isto se arma de ira, e de fereza.

Requintada a paixão, dispõe vingar-se, Dispõe como se fosse inda rainha, E enleva-se na imagem da vingança.

Qual braveja a leoa, a quem furtaram Tenra prole feroz, que inda criava, E do seu roubador, com anciã horrível, No rasto vae, tal Hécuba, envolvendo Os phrenesís, e o pranto, a dor, e a raiva^ Lembrada do que fora, e não do que era. Corre a Polymnestor, ao réo do crime, Um colloquio lhe roga, e n'elle affecta Que lhe quer entregar thesouro occulto, Para que chegue illeso ás mãos do filho.

O fraudulento a crê, e estimulado Da fome de ouro, a segue a ermo sitio. Astuto, em brando tom lhe diz : « Não tardes^

FASTOS 259

o thesouro me dá, que ao filho envias. Quanto me tens entregue, e me entregares Que tudo elle possua aos deuses juro. ))

De olhos sanhudos Hécuba o contempla. Ouvindo o vão protesto, arqueja de ira, E súbito, em soccorro as mais chamando, Arremette ao perjuro, ao fementido, Pelos olhos cruéis lhe enterra os dedos, (Dá-lhe forças a raiva) e lh'os arranca. As m^ãos tenta embeber pelas feridas, E, do pérfido sangue enxovalhada, Lacera mais, e mais: não ceva a fúria Nos olhos (que os não ha) mas onde os houve.

As gentes do tjranno, embravecidas Do cruento espectáculo, arremessam A vingadora mãe pedras, e lanças. Rouco, irado murmúrio ella soltando, Contra as pedras investe, e morde as pedras: Os lábios se lhe alongam de repente, E ergue canina voz, fallar querendo.

Ao sabido logar deu nome o caso: Hécuba (ainda assim) por longos tempos Teve dos males seus tenaz memoria. Mesta ululando na Sithonia plaga.

Os gregos commoveu seu duro fado. Dos trojanos fieis dobrou a angustia; Aos deuses fez piedade, e a própria Juno, Juno até confessou que Hécuba triste Seu desastre fatal não merecera.

260 OBRAS DE BOCAGE

Pico e Oanente

(Traduzido do Livro xiv)

Pico,|de Ausonia, rei, Saturnia prole, Nas graças corporaes era estremado, Do espirito nos dons não menos bello. Quarta vez o espectáculo guerreiro, Que em Elide se usou de lustro em lustro, Não podendo o mancebo inda ter visto, - olhos, suspiros attraía Das Dryades gentis nos Lacios cumes.

Vós o amáveis também, vós o seguieis. Cândidas filhas das serenas fontes. Oh Na jades do Tibre, e do Numicio, Deusas do Nar veloz, do Arno pequeno, Do Farfaro sombrio, e do Anio puro, Co'as outras, que da Scythica Diana Moram nos bosques, nos visinhos lagos. gj^Mas todas enjeitava, e quiz uma, uma o captivou, penhor mimoso. Que no monte Palatino a Jano (Segundo é tradição) Venilia dera.

FASTOS 261

ífos annos de hymeneu florece a nympha; Preferido entre mil competidores Eis a Pico em Laurento Amor a entrega. Rara na gentileza era Canente Raríssima porém na voz, no canto: Com elle pedras, arvores movia, Detinha os rios, amansava as feras. Tirando ás aves o temor, e o voo. Ella o seu doce amor cantava um dia. Quando aos Laurentes campos contra os bravos, Cerdosos javalis saiu o esposo.

De alentado ginete o dorso opprime. Tem na dextra, e sinistra agudas lanças. Preso o phenicio manto em laço de ouro. Fora a filha do Sol aos mesmos bosques Para colher no monte as hervas novas. Distante dos Circêos, a quem deu nome. D 'uns ramos escondida o moço vendo, Se assombra, cáem-lhe as hervas que apanhara; lhe lavra a paixão de vêa em vêa. Apenas volve a si do vivo assalto Tenta manifestar o ardor interno. Mas do ginete a fervida presteza, E os circumstantes guardas o estorvaram. Nem que te roube o vento has de escapar-me, Se inda eu sou a que fui, se inda ha virtude N as plantas, e meus versos não me enganam.3>

Diz : e eis um javali de aéreo corpo,

^6^ OBRAS DE BOCAGE

Finge-0, perante o rei correr o manda, E mostrar que se acolhe aos densos matos Em parte onde o cavallo entrar não possa. De imaginaria presa hallucinado, Salta o mancebo das fumantes costas, Segue esperança vã, fallaz objecto. Discorre aqui, e ali pela alta selva.

Circe principia as magas preces, Em verso ignoto adora ignotos deuses, Verso com que ennegrece, esconde a Lua, Com que o Sol, com que o pae de sombras mancha. Assim que os sons do encanto o céo condensam, Que um vapor tenebroso a terra exhala, E pelo bosque os mais vaguêam cegos, No escuro as guardas do rei perdidas, Apto o logar, e o tempo achando a amante: (( Oh tu entre os mortaes o mais formoso, (Suspirando lhe diz) por esse aspecto. Por esses que os meus olhos encantaram, E fazem com que eu deusa te supplique, Prçmêa activo amor, em que me inflammas; O Sol, que tudo vê, por sogro acceita, Duro não fujas da Titânia Circe.»

Disse, porém feroz elle a regeita, Elle rogos, e aíFagos lhe repulsa, Responde: «Não sou teu, quem quer que sejas; c( Outra me tem captivo, e praza aos numes Que dure longamente o captiveiro.

FASTOS 263

Os laços conjugaes, os puros laços Não hei de enxovalhar de amor externo Em quanto amigos fados me guardarem De Jano a filha,, a singular Canente. d

Circe (enfadada de lhe instar sem fructo) Diz: «Não, não has de impunemente amal-a, Nem jamais tornarás a ver a esposa. Mulher depois d'amante, e de offendida Conhecerás jo que é : para teu damno Sou mulher, offendida, amante, e Circe.»

Ao occaso, ao nascente então se volta. Duas vezes áquelle, a este duas; Depois no corpo do gentil mancebo Três toques co'a vara, e diz três versos. Elle foge, e da própria ligeireza, Da nímia rapidez vae admirado: Eis que subitamente em si azas. AfFrontado, raivoso de sentir-se Ave nova adcíjar nos lacios bosques. Despede o fero bico aos duros troncos, Com fúria aqui, e ali golpêa os ramos. Cor de purpúreo manto as pennas ficam, Em pennas o áureo também se torna, Listra dourada lhe rodea o colo, E a Pico do que foi resta o nome. Entretanto por elle os seus clamavam, Sem podel-o encontrar na longa selva.

Circe em fim lhe apparece (as auras tinha

264 OBRAS DE BOCAGE

Adelgaçado já^ permittido

Que o sol, e o vento as névoas dissipassem)

Mil crimes exprobrando á vingativa,

Griíardas, monteiros o seu rei lhe pelem,

E dispõe-se a cravar-lhe as férreas lanças.

Suecos de atro veneno a maga entorna,

A Noute, os numes d'ella, o Cahos, o Averno

Pelo forçoso encanto ali convoca,

E ora á terrível Hecate, ululando.

Eis salta do logar (que espanto !) o bosque, Amarellece a folha, e geme a terra, Tingem-se as hervas de sanguineas manchas, Roucos bramidos saem das rotas penhas, Ouvem-se cães latir, silvar serpentes, -se o chão d'ellas negro, e ténues sombras Nos ares em silencio andar girando. Attonitos de horror descoram todos; Mas co'a vara tremenda, e venenosa Toca-lhes Circe as bocas assombradas.

Pelo tacto fatal se tornam monstros De improviso os mancebos lastimosos. Em nenhum permanece a antiga forma.

no occidente o sol fechara o dia, E com olhos, cora alma em vão Canente Pelo perdido esposo inda esperava. Pizam bosques, e bosques servos, povo E com fachos nas mãos exploram tudo. A nympha de chorar não se contenta,

FASTOS 265

Aos ais, aos gritos, e arrancando as tranças, Quantos extremos ha, todos pratica; Sae, corre, vaga, insana, os lacios campos.

Seis luas (infeliz !) seis soes a viram Em continuo jejum, continua vela Por vali es, por floresta, por montanhas, Por onde o desacordo a foi levando. Do pranto, e do caminho emfim cançada, O Tibre a viu cair na margem sua. Ali ao desamparo, ali sosinha A triste, modulando acerbas magoas. Soltava um ténue som, qual canta o cysne O débil verso precursor da morte. A amante deplorável manso, e manso Em lagrimas saudosas se liquida, Vae-se ali pouco a pouco attenuando, E nas auras subtis se desvanece.

Pelo caso o logar ficou famoso: Vós, do nome da nympha miseranda Canente, oh priscas Musas, lhe puzestes.

266 OBRAS DE BOCAGE

A apotlieosis de Enéas

(Traduzido do Livro xiv)

do piedoso Enéas a virtude Enternecera os deuses, extinguira Da própria Juno a malquerença idosa; E, firme a herança do crescente Ascanio, Repouso ao pae cabia, era tempo De ir lograr-se dos céos o heróe troyano.

Vénus por elle interessara os numes, E de Jove abraçando o oollo augusto: (( Pae, nunca repugnante a meus desejos, De teu amor (lhe diz) o extremo apum, Clementíssimo attende ás preces minhas. Meu caro Enéas, que é por mim teu neto, Gráo de nume inferior alcance ao menos, De algum modo nos céos meu filho admitte. Bem lhe basta uma vez entrar no reino Onde é tudo aversão, tristeza tudo, E haver passado por estjgias ondas.D

FASTOS 267

Soou a approvação dos deuses todos, Nem Saturnia ficou de aspecto im movei. Antes aíFavel annuiu ao ros^o.

Então lhe disse o pae : Sois dignos ambos Tu, e teu filho da celeste graça. Cumpre o desejo em fim.» Calou-se Jove. Com vozes gratas a exultante deusa A mercê retribue, e, conduzida Nas auras leves pelas niveas pombas, Desce á margem Laurente, onde serpêa O Numicio, de canas assombrado, Levando áo mar visinho as vítreas agoas.

A linda Cytheréa ordena ao rio Que tudo o que é da morte a Enéas lave, E em silencio no mar depois esconda. As ordens o deus húmido executa; Tudo quanto é mortal extráe de Enéas^ E co'a pura corrente o volve puro: A parte que é óptima lhe deixa. Eis a amorosa mâe o aromatiza, Unge de óleo divino o corpo amado, Honra-lhe os lábios do ambrósia, e néctar, Deus o faz, que dos povos de Quirino Indigete é chamado, e sobe ás aras.

268 OBRAS DE BOCAGE

A apotlieosis de Rómulo, e Hersilia

(Traduzido do Livro xiv)

Tacio morrera, e Rómulo aos dons povos Equilibrava as leis, quando Mavorte Dos mortaes, e immortaes ao rei supremo (Deposto o morrião) fallou d'est'arte:

c(0 tempo é vindo, oh pae (por quanto Roma Em robusto alicerce está segura, E um braço a modera) é vindo o tempo Em que alto galardão, promessa antiga A mim, teu filho, a Rómulo, teu neto, Credor do grande premio, se eífeitue, E o destinado ao céo se roube á terra. No conselho dos deuses tu outr'hora Me disseste, senhor: (e o pio annuncio Gravei no coração, gravei na mente) Erguido aos céos por ti será teu filho: Ratifica a palavra sacro-sancta. ))

Ao guerreiro annuiu o omnipotente; Os ares condensou de opacas nuvens,

FASTOS 269

No raioj no trovão pôz medo á terra, O impávido Gradivio, á luz, e estrondo, que é dado o signal do rapto augusto. E, firmado na lança, ao carro salta. Brutos, oppressos de temâo sanguento, O sonoro flagello açouta, esperta. Dirigindo-se o deus por entre os ares^ Pára no Palatino, umbroso cume, E ao filho, que ali julga os seus Quirites, Arrebata d'ali co'a mão nervosa. Nas auras se lhe vae quanto é da morte. Qual a plúmbea porção que sáe da funda Seu reçumante humor perde voando. Toma o romano heróe radiosa face. Face mais digna da morada eterna. Tal como a que se na purpurada Imagem de Quirino, imagem sua.

Por morto o claro esposo Hensilia chora: Eis dos céos a rainha ordena a íris Que baixe ao mundo, e que á viuva excelsa Estas benignas vozes pronuncie: «Oh da gente sabina, e lacia gente Honra primaria, singular matrona, digna esposa d'um varão sublime. Do deus Quirino agora esposa digna ! Não chores: se teu Ínclito consorte Morrendo estás por vêr, segue-me os passos, Comigo ao bosque vem, que verdeja

270 OBRAS DE BOCAGE

No cimo Quirinal, e assombra os lares

Do monarcha romano. )) íris submissa

Pelo arco immenso de vistosas cores

Desce rapidamente: eil-a na terra,

E o que ella a Juno ouviu lhe escuta Hersilia.

« Oh deusa ! (proferiu a alta matrona, De pejo os olhos elevando apenas) Qual d'ellas és não sei, mas sei que és deusa: Não cabe esse esplendor a um ente humano. Guia, ah ! Guia-me a ver o ausente esposo: Se olhal-o inda uma vez me daes, oh Fados, A presença dos céos terei na sua.»

N 'isto ao Romuleo monte se encaminha, E leda o sobe co'a Thaumantia virgem.

Súbito, das estrellas despegado, Vem direito á montanha ethereo lume; Os cabellos de Hersilia toca, inflamma, E com ella apoz si revoa aos astros.

De Roma o fundador nos céos a acolhe; Muda-lhe o corpo antigo, o antigo nome, Ora lhe chama, e de Quirino ao lado Gosa com elle dos romanos cultos.

FASTOS 271

A alma de Júlio Oesar mudada em Cometa

(Traduzido do Livro xv)

Da tua morte, oh César, teve o mundo Não duvidosos, tétricos presagios. E fama que era fulmineas, atras nuvens Tubas horrendas, armas estrondosas, Duros clarins os pólos atroaram, l)o negro parricidio annuncios dando; É voz geral também que o Sol tristonho Um pallido clarão mandava á terra. Que nos ares arder se viram fachos, E em chuveiros cair sanguineas gotas; De ferrugineo véo surgir a Aurora, De sangue o carro teu vir tinto, oh Lua. (Jom dolorosos sons o mocho esquerdo Logares mil entristeceu de agouros, N'outros mil o marfim se viu chorando. Foram cantos, e vozes de ameaço Sentidos nas florestas consagradas;

272 OBRAS DE BOCAGE

Acceita aos numes victima não houve: Feros tumultos, imminentes males Vinham na rota fibra apparecendo; Achou-se nas fatídicas entranhas Decepada cabeça gotejante; No foro, em torno aos templos, ante os lares Os cães nocturnos ulular se ouviram, Roma tremeu, por ella andaram sombras.

Tolher o eííeito de vindouros fados, De medonha traição tolher o eíFeito líão puderam do céo com tudo avisos. Entram punhaes sacriiegos no templo: Que theatro da barbara tragedia. Da acção nefanda, o teu Senado, oh Roma !

A alma Vénus, porém, baixando á cúria, Entre os conscriptos invisível pára, Em quanto da perfídia os golpes fervem.

Eis de César o espirito arrebata Sem dar tempo a que em ar se desvaneça. Quer apural-o nos ethereos lumes. Erguendo-o, que luz, que so inflamma: Ella o solta, ello voa além da Lua. De acceza grenha, de espaçosa cauda, No céo girando, resplandece estrella.

FIM.

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