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O MARQUEZ DE POMBAL

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o MARPZ DE POMBAL

OBRA COMMEMORATIVA

CENTENÁRIO DA SUA MORTE

MANDADA PUBÍJCAR

CLUB DE REGATAS GUANABARENSE

RIO DE JANEIRO

LISBOA

IMPRENSA NACIONAL l885

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FEB / 1973

7ív

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PRIMEIRA PARTE

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COLLABORAM N'ESTA OBRA OS EXCELLENTISSIMOS SENHORES

JOSÉ MARIA LATINO COELHO— HENRIQUE CORRÊA MOREIRA

MACHADO DE ASSIS SYLVIO ROMERO

Dr. THOMÁS ALVES JÚNIOR CONTE ANGELO DE GUBERNATIS

Dr. GEORGE WEBER Dr. MANUEL EMYGDIO GARCIA

OLIVEIRA MARTINS JÚLIO MATTOS— THEOPHILO BRAGA

GRANDE COMMISSÃO EXECUTIVA

DA COMMEMORAÇÃO

DO

PRIMEIRO CENTENÁRIO DO MARQUEZ DE POMBAL

NO

RIO DE JANEIRO

Barão do Rio Bonito, prcjidcnte.

Vifconde de Siflello, vice-prejidente.

Commendador Frederico Guftavo de Oliveira Roxo, idem.

António Pollo, fecretario.

Capitão de fragata Luiz Filippe de Saldanha da Gama, idem.

Commendador António Thomás Quartim, thefotireiro.

Vifconde de Arcozello, idem.

Commendador António Jofé Ricões.

Dr. António Zeferino Cândido, encarregado da edição.

António Joaquim Xavier de Faria.

António Pinto da Silva.

António Jofé Marques de Abreu Júnior.

Alfredo Ignacio de Abreu Soares.

Bernardo Jofé de Andrade.

Dr. Carlos Auguílo de Miranda Jordão.

Eduardo Jofé de Almeida e Silva.

Ernefto Werneck Teixeira de Caftro.

Eugénio Jofé de Almeida e Silva.

Francifco Jofé Correia Quintella.

Dr. Hermogenes Pereira da Silva.

Commendador João Francifco Pirões da Cruz.

João Luiz Tavares Guerra.

Joaquim Henrique da Coll:a Reis.

Jofé de Miranda Monteiro de Barros.

Dr. Thomás Alves Júnior.

Dr. Ruy Barbofa, orador.

Leopoldo Américo Migucz, direâor da parte mtifical.

Distribuição de 50 exemplares numerados

ÚNICOS

PAPEL WHATMAN

1 Sua Mageftade Dom Pedro II, Imperador do Brazil.

2 Sua Magellade Fideliflima Dom Luiz I, Rei de Portugal.

3 Sua Alteza Conde d'Eu.

4 Sua Mageftade El-Rei Dom Fernando.

5 Marquez de Pombal.

6 Bibliotheca Publica do Rio de Janeiro.

7 Bibliotheca Publica de Lifboa.

8 Bibliotheca Publica do Porto.

Q Bibliotheca da Univerlidade de Coimbra.

10 Gabinete Portuguez de Leitura do Rio de Janeiro.

1 1 Initituto Hiftorico e Geographico da Rio de Janeiro.

12 Academia Real das Sciencias de Lifboa. i3 Camará Municipal do Rio de Janeiro. 14 Bibliotheca Publica de Madrid.

i5 Bibliotheca Publica de Paris. i() Bibliotheca Publica de Londres.

17 Bibliotheca Publica de Florença.

18 Bibliotheca Publica de lena.

19 Dr. Francifco Augufto Correia Barata, encarregado da collabu-

ração e edição cm I^ortiigal c no cflrangciro.

20 Dr. Ruy Barbofa.

21 Leopoldo Américo Miguez.

22 Confelheiro Pedro Luiz Pereira de Soula.

23 Commcndador João Henrique Ulrich.

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24 Confelheiro Jofé Maria Latino Coelho.

25 Barão do Rio Bonito.

26 Vifconde de Siftello.

27 Commendador Frederico Guftavo de Oliveira Roxo.

28 António Poilo.

29 Bernardo Jofé de Andrade.

30 Commendador António Thomás Quartim. 3i Vifconde de Arcozello.

32 Dr. António Zeferino Cândido.

33 Capitão de fragata Luiz Ulippe de Saldanha da Gama.

34 Dr. Thomás Ahes Júnior.

35 Alfredo Ignacio de Abreu Soares.

36 António Joaquim Xavier de Faria.

37 Commendador António Jofé Ricóes.

38 António Jofé Marques de Abreu Júnior. 3c) António Pinto da Silva.

40 Dr. Carlos Auguíto de Miranda Jordão.

41 Eduardo Jofé de Almeida e Silva.

42 Ernefto Werneck Teixeira de Callro.

43 Eugénio Jofé de Almeida e Silva.

44 Francifco Jofé Correia Quintella.

45 Dr. Hermogenes Pereira da Silva. 4(3 Joaquim Henrique da Cofta Reis.

47 João Luiz Tavares Guerra.

48 João Francifco Fróes da Cruz.

49 Jofé de Miranda Monteiro de Barros.

50 Club de Regatas Guanabarenfe.

o MARQUEZ DE POMBAL

CAPITULO I

INTRODUCÇAO

liando um povo pelos erros dos feus mo- narchas, pelos vicios da fua indole, e pela influencia das circumftancias, degenerado inteiramente da fua actividade primitiva, da fua priflina grandeza, e da fua profpe- ridadc nacional, chegado á ultima degra- dação da intelligencia e dos coftumes, eftá preftes a apagar o feu nome na lifta das nações, dois caminhos fe lhe ofFerecem para frullrar o deftino, que o eftá ameaçando. ha dois meios para evocar de novo á exis- tência um povo, que raiou as extremas da fua decadência: a revolução, que é a energia violenta da própria fociedade, acordando do feu lethargo diuturno pela refurreição da confciencia, ou o defpotifmo illuminado, que é a força de um homem, fubftituida á dormente razão da fociedade. Mas d'eftes dois expedientes, ambos agros e tormento- fos, não é fácil, nem indifferente o difcernir qual poífa utilifar-fe cm qualquer tempo ou conjuncção. A revolução

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preluppõe necelTariamente uns clarões de lume intelledual nas claíTes fuperiores, uns reftos de hombridade varonil nas turbas populares. E precifo que os efpiritos de quilate mais fubido tenham feito previamente a critica da fociedade, e que chamando perante o feu pretório as inftituições e os abufos, os poderes e as tradições, o paíTado e o prefente, os interroguem e os condemnem em face da razão, do direito, da julfiça, em nome da humanidade. Toda a revo- lução tem de fer precedida forçofamente por uma larga elaboração intelledual. Antes de fer acção, ha de fer efcola, feita, philofophia. Antes de efpada, que combate, e de camartello, que derroca, ha de fer penna, que difcute, e livro, que evangeliza. Para que a revolução profpere e vingue, não é forçofo, como o pregam os fophiltas da reacção, que haja um povo inteiro de fabios educados nos fegredos mais recônditos da fciencia focial, mas é precifo que preexifta uma nação capaz de comprehender ao menos pela paixão ou pelo inftindo a luz da revolução. E neces- fario que haja um povo, que não tenha a razão entene- brecida inteiramente pela mais indómita bruteza e a con- fciencia avaíTallada pela mais torva fuperftição.

Quando eftas condições fe não realifam n'um eftado, refta apenas que o defpotifmo, cançado de embrutecer e opprimir, efpontaneamente fe refoh^a a opprimir e a illus- trar. Refta apenas que o abfolutifmo em vez de eíterilifar a gleba, que fenhorêa, fe determine a feitorizal-a com fecundas bemfeitorias e que, julgando melhorar o feu pró- prio fideicommiíTo, funde fem o penfar para tempos não remotos o património popular, e cuidando encravar na terra fundamente as raizes da fua duradoura autocracia, lance inconfciente em volta do throno hereditário as fementes da revolução. Trifte mas fatal expediente. Quafi ignominiofo paradoxo, que a ventura popular haja de manar da terrível

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cornucopia, meneada pela mão agrefte e rude de um dés- pota intratável e fomhrio ou de um torvo e inexorável didador.

Mas é aíTim feita a humanidade. Ao povo, quando é infantil pela efcuridade da razão ou decrépito pela degra- dação da confciencia, não lhe é permittido dar um paíTo fem que o leve pela mão efta ama defahrida, que fe chama defpotifmo, ou o conduza, tirando-o por um baraço, efte guia defalmado, que tem nome tyrannia.

E affim que a liberdade pôde por uma flagrante, mas apparente contradicção, nafcer do deípotifmo, como a antiga Thebas mythologica, a cidade florente da Beócia, tem no velho mytho hellenico a lua origem nos dentes temerofos de um dragão. O delpotilmo é então o gaftador, que prece- dendo as hoftes da revolução, vae derrocando no caminho as caducas inftituiçôes. Não pôde erigir folidamente o novo edifício focial, mas cm providencial expiação de feus deli- dos é condemnado a confumir o extremo esforço em abrir os alicerces da revolução. a liberdade é creadora. Mas para deftruir e aíTolar bafta muitas vezes a cólera de um defpota ou o capricho de um lenhor. Para arremeçar aos ares a fublime eftrudura do Parthenon de Athenas ou a cúpula formofa do diiomo de Florença é precifo que nafça um Phidias, ou um Brunellefchi, que fão o génio, ifto é, a revo- lução da intelligencia. Mas para aíTolar a velha Roma, a fim de que fobre os efcombros do caduco império fe levante uma nova civilifação, bafta a fanha brutal de um Alarico, que é a força, ifto é, o deípotifmo da matéria.

AíTim, quando um povo eftá embrutecido fatalmente pela duplicada fervidão a um fenhor, que lhe encadêa a liberdade, e a um inquifidor, que lhe entorpece a con- fciencia, fô pôde viflumbrar-fe alguma luz, fe no meio d'aquelles dois dominadores fe levanta de improvifo um

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arbitro llipremo e diz a um: «Acurva-te ante mim como o ultimo da plebe, porque diante do meu poder lao eguaes o magnate e o mefteiral»; e ao outro: «Apaga as tuas fogueiras, porque eu não quero competidores á minha poteftade temporal».

A revolução é como uma crefcente impetuofa, que fazen- do trafbordar do alveo eítreito o rio outr'ora remanfado, leva aos campos adjacentes ao mefmo paíTo as aguas torren- tofas, que os aíTolam, e o propicio nateiro, que os fecunda. O defpotifmo é como um terremoto, que vem defquiciar e convellir a inteira conítrudtura da fociedade, e deixar difper- fos no folo os troços e as ruinas da velha e carcomida edifi- cação, para que dos feus deítroços fe poffa mais tarde erigir e fabricar a nova e mais folida eftrudura. O defpotifmo tem o pulfo forte e mufculofo para menear em duros golpes o alvião, mas a revolução, fe n'uma das mãos não menos vigorofas empunha o camartello deflruidor, traz na outra, regidos pela razão e pelo direito, a efquadria e o compaífo, fymbolos da proporção e da harmonia.

Quando porém não é ainda chegado para um povo o dia claro da fua emancipação e liberdade, é precifo acolher e applaudir os viflumbres de reformação e melhoria, que tranfluzem nas trevas populares pela enérgica vontade de um defpotifmo intelligente. É então o primeiro alvorecer da revolução, que defce das alturas governativas e prepara em certa maneira a revolução, que ha de fubir das profundezas fociaes. E ainda a luz dúbia e fraca da antemanhan, que não alcança pela fua débil intenfidade afaftar as fombras, que fe adenfam nas quebradas e nos valles.

E a paffageira tranfacção entre o paíTado, que fe en- vergonha de exiftir, e o futuro, que ainda não oufa moflrar- fe claramente. É o defpotifmo, que fe corre e fe arrepende das fuás próprias malfeitorias, e profcrevendo a confciencia

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e a liberdade, como um tremendo facrilegio, mas procla- mando a Iciencia e o trabalho como as condições imprete- riveis da nova civilifação, ellá lem o cuidar forjando as ar- mas á nafcente democracia.

Eis ahi o que íliccedcu em Portugal depois do reinado magnifico, mas defaftrolb d'eí1:e Afurbanipal do Occidente, ci'eíl:e pallido reflexo de Luiz XIV, d'efte monarcha voluptua- rio e negligente, que le chamou D. João V. A nação pros- trada no extremo abatimento, a intclligencia degenerada quall até ao completo idiotifmo, o trabalho efquecido e des- honrado, as claíTes fuperiores ociofas e imitadoras das lumptuofas lafcivias do leu rei, o clero e os magnates lugando quafi toda a fubítancia da nação, o povo oppreíTo, milerrimo, envilecido; uma nação, que vive, como o leu monarcha, entre o auto de do Santo Officio, o locutório de Odivellas, o cantochão de Mafra, os touros do Terreiro do Paço, e os equívocos e trocadilhos da litteratura leifcentifta. Um povo, em cujo regaço as minas do Brazil eítão lançando perennemente, como fe fora a mais tremenda maldicção, o oiro e as pedrarias, a douradora e a ironia da ric[ueza, o ornato enganador e apparente da miferia derradeira.

Tal é a herança, que fe depara no efpolio politico do monarcha diíTipador. Tão baixo le afundira Portugal que ao lubir ao throno D. Jole, era improvável que podeíTe levan- tar-fe nunca mais. Era quafi uma nação extranha á civilifa- ção e ás idéas do leu tempo. Era uma organifação focial incompatível com o minimo progreífo. O próprio abfolu- tifmo, que julgava concentrar na fua férrea dominação todos os poderes e todas as energias do paiz, vivia avalfallado a uma potencia fuperior, contra a qual parecia impraíli- cavel rcfiflir. O defpotifmo temporal podia governar na efcaífa nefga, que depois de crefcentes invafóes lhe deixara a theocratica fupremacia c poteftade efpiritual. Apelar de

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Ibmbrio e dilcricionario, como era o governo de um monar- cha portuguez n'aquelle tempo, todos os terrores fe concen- travam na tremenda jurifdicção do Santo Officio, cuja vifta efcrutadora poderia eftender-le até o folio, reger e dominar a confciencia do imperante e forçal-o a fubordinar o próprio fceptro á efpada flammeante dos árbitros da fé.

O rei D. Jofé era um homem que nafcêra para conti- nuar fem a magnificência e a galanteria do leu predeceflbr o defmando e a negligencia, em que fob o leu reinado tinham corrido os negócios e os intereffes da nação. E laftima que os foberanos, que têem de fubftituir-fe á von- tade e á intelligencia de todo um povo, não tenham as mais das vezes nem intelligencia, nem vontade. E ainda é mais laftimolb, que a fraqueza do carader e as trevas do entendimento appareçam aggravadas pela efiulta convicção da fua majeftade hereditária, e da lua miíTão providencial, e pelo fanatilmo da confciencia timorata, rendida fuhmiífa- mente ás miras profanas e terrenaes de um clero egoifta e adverfo a toda a falutar innovação. Tal era infelizmente D. Jofé. As fuás faculdades eram porventura ainda inferiores ás do leu predeceífor, e a idéa da lua quali divina fuperio- ridade fobreexcedia á monarchica Ibberba de leu pae. Parecia pois condemnado a cifrar em poucos itens a lua norma de go- verno. Aíliftir, fem mefmo a perceber, á ultima decadência e ruina da nação; defpender em feftas e defportos de uma corte indolente e ociofa os milhões de oiro, que lhe traziam annual- mente as fuás frotas, aninhar em torno de fi, gratifican- do-a de novas largições e munificencias, a turba dos fidalgos prediledos; obedecer aos confeífores, que a ciofa companhia de Jefus pozera nos feus paços como os poftos avançados da theocracia univerfal; magnificar com a fua prefença no meio de luzidos cortezãos a finistra folemnidade dos autos da fé; manter o paiz inerme e vaífallo dos extranhos; perpetuar

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ou accrefcer a dilapidação e a ruina da fazenda publica, fem que o povo melhoraire na lua trifte condição de tribu- tário; continuar a ignorância univerfal, deixando repallar-le a frouxa intelligencia da nação na falia e decrépita Iciencia e litteratura, que tocara o leu ápice funefto durante o reinado calamitolb do leu anteceíTor; tal feria porventura o que a hiftoria teria a regiftar do novo rei e da grei defditola dos Icus povos, le a própria fraqueza do leu animo não tivera facilitado que um homem de eminentes faculdades, por incfperado lance da fortuna, vieíTe occupar no folio régio o logar deftinado á acção governativa, deixando á fombra do monarcha o fútil apparato da efteril Ibberania.

EíTe homem foi Sebaftião Jofé de Carvalho e Mello. EíTe homem era a revolução inconfciente, que vinha tomar das mãos ao débil potentado o Iceptro, que elle mal podia lufter e menear. Era o efpirito do xviii leculo, que irrom- pia finalmente no Portugal da inquifição, principiando as luas oufadas incurfóes nos paços dos monarchas. Era, fem o fufpeitar e fem o querer, o precurfor das reformas demo- cráticas. Era o terrível adverfario da arrogância ariftocratica, era principalmente o incançavel antagonifta da poteftade clerical ; e, por um confedario natural, o previdente fundador da clafle média. Ora n'um paiz, onde como em Portugal, o clero e a nobreza reprefentavam as duas grandes forças Ibciaes, e repartiam entre fi a maior e mais fecunda parte do fólo nacional, e oneravam o trabalho com as gabellas e tributos mais pefados, e ablbrviam alentado quinhão do fifco régio pelos officios mais pingues e eminentes, que o favor e o privilegio lhes davam em monopólio, quanto fe abatia e efcatimava no poder e na opulência d'eítas duas poderofas hierarchias, tanto revertia forçofamente em bene- ficio popular. O governo da nação refidia nas mãos do clero, principalmente dos jefuitas, que indiredamente o

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exerciam. No feio de um eftado em profunda delbrgani- fação, eram elles o único organiímo regular, rohufto, dotado de força e de harmonia. Eram como uma republica folida- mente conftituida entre um governo de inexcedivel laxidão fem os brios do feu dever, e um povo inerte e ociofo fem a confciencia do feu direito. Ora nos eftados, como nos fyílemas da mechanica, a força de maior intenfidade em concorrência com outras quafi nuUas, determina proximamente o movi- mento na fua própria direcção. As fociedades fão fatalmente conítituidas por tal modo, que, onde os poderes ofl&ciaes exercem frouxamente a fua acção, forçofamente alguma grande influencia extranha e anormal tomarií a feu cargo o dirigir a vida focial. Os jefuitas tinham a feu favor a harmónica união dos feus poderofos elementos, a difciplina fevera e imprefcriptivel, a cega obediência aos fuperiores da fua ordem. Eram dentro da nação como que uma potencia forafteira, occupando militarmente com as luas hoftes inven- cíveis o que ainda tinha nome de território portuguez. No paço ora dominavam a timida confciencia dos monarchas pelo influxo irrellítivel da fuprema direcção religiofa, ora conquiftavam a valia do foberano pelas artes do cortezão c do politico. Nos palácios da nobreza grangeavam adeptos fervorofos e preftadios, e ligavam aos interelfes da fua cor- poração as calas mais illuftres, recrutando no leu grémio os feus filhos mais piedofos. Para exercitar o feu poder moral, mas decifivo, nas claífes populares tinham como fuás cida- dellas principaes e inexpugnáveis o confeíTionario e a evan- gélica tribuna. No tribunal da penitencia influíam indivi- dualmente nos turs'0s entendimentos e nas timidas vontades populares. No púlpito, com a eloquência artificiofa, em que eram confummados, governavam em mafla as turbas fana- tifadas. Aífim tinham nos feus confefllonarios e nos feus exercícios efpírituaes como que outros tantos ínfignes atira-

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dores, que preparaíTem a acção pelo combate fingular das confciencias. No púlpito eram as cargas decifivas e como que a peleja na ordem unida contra as hoítes cerradas dos aíTomhrados auditórios. Os moraliftas da companhia não reclamavam dos léus devotados penitentes uma natureza fobrehumana e exempta de carnaes imperfeições. Mais feitos eram á vida adiva e practica do que á alcése myftica e á vida contemplativa. O caminho, que abriam para o céu era pois mais lhano e fácil de trilhar do que a via efpinhofa traçada defde a terra á bemaventurança pelos afcetas mace- rados e libertos de toda a carnalidade, pelos Thaulers e Fr. Luiz de la Puente, e pela efquadra numerofa de myfticos ferventes, que fioreciam nas demais religiões. O que reftava ainda que influir e conquiftar fora do púlpito e confeíTionario, tinha o feu campo de batalha de certiíTimo triumpho nas efcolas. AíTim, a poderoía companhia, a verdadeira força viva da nação, governava lem refiftencia e lem partilha a acção, a confciencia e a razão defde o monarcha e os feus próceres até os mais humildes e obfcuros pegureiros.

A companhia de Jefus era, por aíTim dizer, o exercito adivo, a primeira linha d'efta cruzada temerofa, que defde a reforma intentava contradidar e fuspender a torrente do progreífo c da innovação. Nas demais ordens e congregações religiofas tinha como que as fuás milícias e ordenanças, que ainda mefmo quando emulas ou hoftis á companhia, em grande parte confpiravam no mefmo intento de perpetuar a indolência, o fanatifmo, a fervidão e a ignorância popular. Defde os tempos ominofos de D. João III e D. Sebaftião a decadência de Portugal havia caminhado com uma efpan- tola acceleração. Pouco reftava d'efta raça heróica e quafi fobrehumana, que fizera das navegações e conquiftas portu- guezas na Africa, no Oriente e Novo Mundo uma epopea quafi mythica pelo incrível e alfombrofo das fuás maravilho-

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fas galhardias. A conquifta caftelhana viera laltear a nação quafi defamparada de feus brios. Fora porém como um enérgico eftimulante e um poderofo revulfivo na enfermiça compleição do povo portuguez, degenerado pela nefafta influição de um fenil ahlblutifmo e de uma fufpicaz inqui- fição. Quando Portugal defpertou para a lua independência parecia que era a nação, que refurgia e egualava ou excedia nos feus feitos bellicofos e na indómita hombridade as faça- nhas e as glorias dos feus antepaífados. As próprias claífes privilegiadas e poderofas, que em i58o tinham vendido Portugal ao filho de Carlos V, expiando agora o delido dos feus maiores, por civifmo, ou por defpeito, eram as primeiras a haftear a bandeira nacional como emblema de infurreição contra o dominio de Caftella. A pátria recu- perou a fua tão laftimada independência, e com ella parecia renafcerem os mais formofos dias da fua gloria e poderio. As guerras fuftentadas em prol da liberdade portugueza retemperaram por alguns annos as flaccidas e anemicas fibras da nação. A dynaftia levantada nos efcudos popu- lares a preço de tantas vidas e tão laftimofa devaftação, bem depreífa confumiu em fcenas efcandalofas e em ludas egoiftas entre irmãos o efcaffo vigor, que logo defde o co- meço diftinguíra a cafa de Bragança. Ao abfolutifmo empre- hendedor e varonil de D. João II e D. Manuel, ás virtudes guerreiras e civis de D. João I e Aífonfo V, fuccederam os vicios fem grandeza e o abfolutifmo abforvente, mas efteril depois da reítauração. A medida que os monarchas vão concentrando na fua /ciência certa e poder real e abfoluto toda a fuprema direcção da fociedade, ao paflb que vão fupprimindo a uma e uma todas as antigas liberdades e fran- quias populares, quando as cortes fão apenas uma impor- tuna tradição para a ciofa realeza, quando o povo geme oppreífo em mais dura e eftreita fervidão, é juftamente

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n'eíres tempos que o ahlblutilmo patenteia os fignaes mais evidentes da fua infecundidade.

Os multiplices phenomenos, de que fe entretece e le compõe a vida normal de todo um povo, fáo o produdo neceflario das energias individuaes e colledivas liarmonica- mente confpirando para o mefmo fim commum, a mora- lidade, a riqueza, a illuftração, a grandeza nacional. A liber- dade no penfamento e nas acções, a efpontanea iniciativa nos indivíduos, o trabalho defapreíTado de todas as pêas officiaes, a livre cooperação de todas as forças phyficas e mentaes da fociedade, a luz amplamente diíFundida pela inftrucção até as mais recônditas funduras fociaes, a religião da lei fubftituida ao fanatifmo do terror, o governo como funcção commum e habitual dos cidadãos e não como arbi- traria e imperativa prelcripção impofta por um homem a milhões dos feus envilecidos naturaes, os encargos e os facrificios repartidos irmanmente por todos os membros da cidade, a inércia e a ociofidade, que nas monarchias é pri- mor e ponto de honra das clalTes ariftocraticas, profcripta e defhonrada como opprohriofo facrilegio, a terra, que é património commum da humanidade, liberta, allodial e emancipada dos vínculos feudaes, eis ahi os elementos e as condições, d'onde refulta a crefcente melhoria e a civilifação real e progreíTiva n'um povo, que é fomente fubdito da lei. Eis ahi o que faz dos Eftados Unidos a primeira nação do mundo entre as modernas e as antigas povoações. Entre aquelle typo ideal, em máxima parte realilado na florente União Americana, e a extrema degradação dos povos mife- raveis e fervís, taes como a Turquia noíTa contemporânea, ha graus intermédios de cultura, exemplificados nas moder- nas monarchias europôas.

O Portugal de D. João V occupa n'efta elcala um infimo logar. O ablblutifmo d'efte monarcha tem chegado aos extre-

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mos limites do poder. É porém um ablblutifmo inerte, indif- ferente de todo o ponto á evolução da vida Ibcial. Durante a maior porção do feu reinado nem ao menos tem a guerra, que para as nações enervadas e ociofas fimula muitas vezes a adividade e levanta por algum tempo os efpiritos e a con- fciencia nacional. O feu manfo defpotilmo fruftra ou ani- quila totalmente os reftos de vigor e hombridade no povo portuguez. Uma nação, que não tem miffão alguma que exercer na ordem focial, é como um eftancado mechanilmo, que jaz defamparado e corroido de ferrugem no rincão de uma ofíicina. Torna-fe bota e rude a intelligencia, deperece e atrophia-le a vontade. O trabalho desfallece e a pobreza contrafta nas multidões com o faufto de uma corte magnifi- cente. O defpota intolerante não confente que uma lo das energias fociaes participe na obra commum de fe reger e ci- vilifar. O abfolutifmo é ao mefmo paffo o cérebro, o efto- mago e o braço da nação; cérebro, que não penfa, eftoma- go, que devora, braço, que não fabe nem pôde trabalhar.

É como um artífice, que no meio de uma vafla manufa- (ítura, onde os obreiros numerofos e as machinas em movi- mento a povoavam de harmónico trabalho, tiveíTe expulfado os companheiros e quebrado os mechanifmos e engrenagens, e fe deífe a lidar com a mais fomenos das ferramentas, com a eftolida jadancia de que elle fó, fem alheia cooperação, podeíTe trabalhar e produzir.

O poder abfoluto da cafa de Bragança tinha o fceptro de ferro para opprimir, de canna para governar. A /ciência certa, de que bravateava no preambulo das fuás leis e feus decretos, era apenas a fciencia do mal e o talifman da efte- rilidade. No reinado freiratico e diífoluto de João V, quando o rei devoto e galanteador mefçlava em profana conlbnan- cia o piedolb cantochão na bafilica de Mafra e os conceitos amatorios na cella ou no locutório de Odivellas, o ablblu-

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tifmo na fua forma mais nefaíta, o abfolutifmo de cogula e pluvial, de harém e devaíTidão, tomara conta do paiz devaftado e abatido pela guerra. Tudo na primeira metade do leculo xvm refledia fielmente em Portugal a Índole e o temperamento do feu lafcivo dominador. Era a frivolidade ufurpando os foros da fciencia, a falfa magnificência limu- lando a civilifação: a cftrudura fria e coloíTal do novo ce- nóbio dos arrabidos e a foturna e eíteril academia da his- toria portugueza. Não era na verdade pefada e oppreffiva a tyrannia. Era antes o infulfo pedantifmo, que trajando o manto régio amoldava a nação ás fi^ias praáficas. Era o rei- nado dos conceitos feifcentiftas, dos equívocos e trocadi- lhos, herdeiros degenerados da Phenix renafcida. Embora campealTe pela Europa culta d'aquelles tempos a fciencia moderna, racional, fecunda, creadora, experimental, não havia entreaberta uma lo frincha, por onde podeíTe coar apenas um feixe de efcaíTa luz em Portugal. Newton era havido quando muito como um utopilfa da natureza ou como um facrilego e revolucionário innovador. Defcartes era quafi um heterodoxo vifionario. Bacon, cujas obras um judeu eminente portuguez, expatriado e foragido, aconfe- Ihára a D. João V fizelTe traduzir e divulgar, como fecunda preparação á nova cultura intelledual, era um herético an- glicano, ao mefmo paíTo inimigo de Ariftoteles e adverfario da tradição. Nos eftados regidos pelo majeítofo monarcha portuguez, os fyftemas aftronomicos de Copérnico e de Ke- pler eram apenas conhecidos como uma engenhofa curio- fidade fcientifica. A terra não podia mover-fe nos efpaços nem defcrever rodando a fiaa ellipfe, porque a fanta e infal- livel inquifição lhe negava em nome da o paíTaporte. Succediam-fe na Europa as invenções e os defcobrimentos fcientificos. Eram os tempos de Clairaut e d'Alembert, de Buífon e Montefquieu, de Boerhaave e de Morgagni, mas

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as fciencias mathematicas eram quafi ignoradas cm Portu- gal, ou os íeus imperfeitos rudimentos eram apenas profeíia- dos nos collegios da companhia. Os livros, que fe diziam confagrados á fciencia, vinham cheios de abufões e ignorân- cias, tão groffeiras e ridículas, como no âmago da mais efcura edade media. Nas cadeiras da univerfidade não podia penetrar um luzeiro da fciencia, que illuminava em pleno dia a Europa culta. Cifrava-le todo o faber e illus- tração em entender ou enredar ainda mais com cerebrinas commentações os textos de Ariítoteles, de Galeno e de Avicenna, ineftres prediledos e oráculos infalliveis, fora de cujos âmbitos não havia falvação para a vida intelledual. A própria theologia, o direito canónico e civil, que parece alcançariam melhor culto e luzimento, jaziam n'aquelle es- tado de trifte abatimento, em que os defcreve o Compendio hijlorico da imipeijidade de Coimbra, e antes o manifeftára a critica fevera, mas juftiffima de Verney nas famofas Cartas de um barbadinho. A litteratura era mefcla fingular do mais extravagante conceptifmo e da frivolidade mais fupina. O talento pompeava e comprazia-íe nas metaphoras abftrulas e gongoricas, nos jogos artificiofos de palavras, nas allego- rias e nos fimiles do golfo mais depravado. O mefmo eftylo, a mefma falfa ornamentação de conceitos e de equívocos reluzia com egual defpejo nas orações dos púlpitos mais graves e nas trovas e romances dos profanos efcriptores. As puerilidades litterarias engroílam e avolumam efpantoía- mente os efcriptos d'aquelle tempo. Os próprios titulos das obras contemporâneas logo defde a portada denunciam em retumbantes allegorias a maneira dominante de penfar e de efcrever'. Se exceptuarmos alguns raros e fiílidos eícripto-

' Um elogio fúnebre de D. João V tem o titulo de Exéquias do E:;equias Portugue^, um fermão do jefuita Lourenço Criiveiro, intitula-fe Merenda eiicha-

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res, occupados principalmente em aíTumptos de erudição, a intelligencia nacional durante o reinado de D. João V enfei- xa na lua copiola, mas efteril bibliographia um acervo de fermões, onde a profanidade e a extravagância eftão confo- ciadas aos mais altos aíTumptos religiofos ; as hiftorias ej as lendas hagiographicas; as chronicas de varias corporações monafticas; as poefias férias ou jocofas, heróicas ou amoro- fas, moldadas pelas normas da Arte de conceitos e do Pojti- Ihão de Apollo. Os panegyricos dedicados em prola ou verlb a perlbnagens eminentes avultam na hiíloria litteraria d'aquelle tempo. E é digno de reparo que as epochas e as nações, onde a litteratura fe delicia principalmente na adu- lação, ou nos encómios hyperbolicos, fão tempos e gerações de profunda baixeza e decadência da razão e do esforço varonil. Quando a litteratura multiplica nas fuás obras os grandes homens e os heroes, é então que o paiz entre o mato rafteiro e fáfaro da commum intelligencia não deixa perceber como arvore ifolada ninguém, que fe alevante acima da craveira univerfal. E de feito, na epocha de D. João V não é dado contemplar um vulto de valor. Pare- ce que o manfo defpotifmo fe compraz em paífar fatalmente a lua ralbura, como fe fora a vara de Tarquinio, pelas mais altas cumieiras, para que tudo fe humilhe e fe rebaixe e fo- mente na geral defolação appareça eminente e exalçada a figura fmirtra do imperante. No meio d'aquella immenfa es-

riftica e é dividido em féis pratos. Um dos médicos mais notáveis do leculo xviii, Curvo Semmedo, a uma das luas obras com rlietorico apparato o titulo de Atalaya da vida contra as hojlilidades da morte, e João Lopes Corrêa, para- phraleando a mcfma allcgoria, chama a um feu grave livro medico, Cajlello forte contra todas as enfermidades. Um fermão panegyrico do jeíuita Collares, intitu- la-fe O nieflre de folfa da capella do céu; um fermão do mandato tem por titulo Geometria do amor; uma obra devota do celebrado medico Braz Luiz de Abreu intitula-fe 5o/ nafcido no occidente epojlo ao nafcer do foi Santo António portuí^uc^.

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curidão intellectual refaltam como intenfos, mas fuspeitos luminares, Verney, o revolucionário do pcnlamento, com o íeu Verdadeiro methodo de ejludar, Jacob de Caftro Sarmento, nas fciencias medicas e naturaes. Mas eftes dois efpiritos illuminados e nutridos nas modernas infpirações, vivem fora da pátria, exilados, quafi profcriptos, porque ahi têem logar os que enfeudam o entendimento á ignorância e á tradição.

Toda a vida de uma nação é um effeito neceíTario da cultura intelleftual, aíTim como toda a vida no individuo tem o cérebro por centro e diredor. No eftado laílimofo a que baixara a civilifação, como fciencia, não era para aíTombrar que lhe refpondeflem cabalmente na mefma pro- porção todas as formas pradicas da energia focial. E con- dição infallivel da humanidade que o efpirito de um ou de outro modo ha de manter e alimentar forçofamente a fua adiva elaboração. No campo, onde a charrua repoufa inerte e defmantelada, e as fementes preftadias não podem ger- minar, hão de brotar as hervaíinhas bravas e ruins. Onde a fciencia deixa um vácuo nos efpiritos, vem precipitar-fe e enchêl-o o fanatifmo. Onde a intelligencia fica de poufio, infinua-fe a puUular a fuperítição. Por ilfo o tempo de D. João V é para as influencias clericaes a culminação do feu poder. Ora um povo onde a aufencia da inftrucção é aggravada pela exageração religiofa, é um povo inerte e defcuidofo do futuro. Por iífo na primeira metade do xviii feculo é em Portugal a agricultura pouco diíferente da que fabem exercer os povos primitivos e infcientes. A induftria fabril, de fi débil e improfícua, ainda mais enfraquecida fe moflrou com o golpe derradeiro pelo tratado de Methuen, de lyoS. Não era o commercio muito mais propiciamente aquinhoado que as demais induftrias fuás irmans. Uma legiflação fifcal abfurda e arbitraria, fundada no principio

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irracional da prohibição, como inftrumento protector da riqueza publica, difficultava as relações mercantis interna- cionaes, excepto no que era effipulado nos tratados e con- venções com a Inglaterra. Tudo quanto nos paizes regidos por uma adminiftração centralifada, contribue para a maior profperidade e florefcencia da nação, e fatisfaz ás neceíTi- dades económicas, jazia inteiramente defcurado. Os rios de oiro, que fluiam annualmente das minas do Brazil, não iam defpender-le em eftradas, em pontes, em canaes, no melho- ramento dos rios e dos portos. Coavam-íe quali todos para as obras da magnifica vaidade ou oftentofa devoção. Erigia- le n'um ermo a bafilica de Mafra e efcondia-fe no deívão de uma capella, a preço de quantias inefi:imaveis, uma pre- ciofa maravilha de mofaico. E que a jactanciofa devoção e a vaidade lumptuofa conftituiam a Índole e o caracter do monarcha. Apparecia a cada paíTo o leu reflexo nas obras, com que foi aíTignalando o leu reinado. Quiz ter na lua corte um fimulacro da Roma pontificia, e fundou a culfo de cançadas negociações e difpendios quantiofos a opulenta patriarchai. A religião de D. João V, mais externa e efpe- ctaculoía do que meritória pela humildade e pela uncção, precifava de um efplendido fcenario. A pueril e ephemera divifão da capital em duas Lifboas, uma oriental e outra Occidental, cada uma com o leu prelado privativo, era como que a miniatura das duas celebradas metrópoles do mundo antigo, de Roma e de Byzancio, incluidas na mefina eftreita cerca e território.

Tudo o que não podia lifonjear o pendor de D. João V para as pompofas magnificências, foi por elle defprezado ou efquecido. O exercito depois da paz de Utrecht caíra em tal extremo de miferia e nullidade, ^que apenas alguém lus- peitaria n'aquelle tempo, que fora Portugal em eras ainda próximas uma nação briola de foldados. A adminiftração,

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aggravados os abufos e as vexações pela perpetua negli- gencia do Ibberano, deixava os mais juftos intereíTes nacio- naes á mercê da corrupção e do favor. De toda efta pertinaz efterilidade governativa reftaram para defcontar em certa maneira nos erros do ibberano, a conftrucção do famofo aqueducto das aguas livres, a creação das três fecretarias de eítado, e a paíTageira hombridade e refolução, com que um rei eíTencialmente fubmiíTo e devotado ás influencias theo- craticas, n'um lampejo de arrogante foberania, foube ao menos uma vez romper com o Vaticano. E n'efte rafgo de autocrática oufadia não fe revela a brilhante explofão da oflFendida majeftade nacional. D'aquellas duas feições proe- minentes, que diftinguem o perfil moral do grande rei, a fuperfticiofa adoração da fua própria realeza, e a fanática fujeição ao jugo da clerezia, quando uma vez chegadas a conflicto, a regia vaidade fobrepuja a beata devoção. Para dominar a D. João V é neceíTario que a theocracia, ao lançar-lhe á confciencia as ferropêas, ajoelhe diante d'elle, e emquanto o reduz a um inftrumento das fuás ambiciofas pretenções, obferve efcrupulofamente os ritos e as formulas da liturgia realenga; é precifo que, á femelhança das viéfi- mas antigas nos facrificios da culta gentilidade, lhe cinja de coroas e de flores a fronte abatida e condemnada; é forçofo que o rei atado á carroça triumphal da omnipotência theo- cratica, marche, como os monarchas do Oriente nos trium- phos romanos, moftrando na dignidade e compoíhira, que efle captivo que ahi vae, é a fombra de um foberano.

Recapituladas como ficam fummariamente as enfermi- dades laftimofas, de que padecia Portugal, exulceradas e en- cruecidas pelo governo defaítrofo de D. JoãoV, é fácil adivi- nhar quaes haviam de fer, para um eftadifta illuminado, refoluto, patriótico, oufadamente revolucionário, mas tendo por theatro das fuás emprezas a pura monarchia abfoluta,

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OS mais graves problemas a refolver. A nação e o governo vi- viam acorrentados á theocracia omnipotente. A primeira nc- ceflidade era pois forçar as potencias clericaes, e principal- mente os jefuitas, que eram a fua mais poderofa encarnação, a perder a fua influencia temporal e a contrahir ao íantuario e ás funcções meramente efpirituaes a deflocada e perigo- fa a6f ividade, com que perennemente perturbavam o governo e a nação.

O povo permanecia nas fombras mais profundas, onde a fciencia nem a furto reluzia, e onde a intelligencia rara- mente encontrava algum repaífo, que não foíTe uma efleril e depravada litteratura. Era pois milfer fundar em novos ali- cerces a educação intelleflual, e diífundir não fomente pelo enfino fuperior as fciencias contemporâneas e as lettras pres- tadias, creando as claíTes mais illuífradas do paiz, fenão tam- bém fazer de um povo de fervos ignorantes e fequeflrados á cultura do entendimento uma raça de homens civilifados. A bruteza e infciencia popular, e a indolência creada e fomen- tada no regaço da torva fuperítição pelo clero ambicioíb, ha- viam ao mefmo paílb enervado a razão para o faber e enfra- quecido o braço para o tráfego e lavor da vida focial. Urgia pois dilpertarpara o trabalho as forças adormecidas da nação, aguilhoando o intereíTe próprio, eífimulando a producção, fa- zendo refurgir as induftrias d'antes exercitadas, ou acli- matar as que podeíTem filhar e radicar-fe no fólo nacional.

Perdera Portugal perante as nações cultas a veneração, em que d'antes era tido no concento e equilíbrio das poten- cias europêas, fendo decaído e rebaixado a tal extremo, que andava como em provérbio o não fer mais que um feudo ou colónia da Gran-Bretanha ou uma província re- bellada, que vivia independente pelo favor e tolerância de CaflcUa. Cumpria de novo levantar o brio e fidalguia por- tugueza, e moftrar aos grandes potentados que Portugal

podia ter na dignidade e firmeza inquebrantável dos feus go- vernos e na hombridade e no valor dos léus naturaes os ti- tules mais indifputaveis á lua independência e foberania. Era precifo dizer á Inglaterra, quando quizeíTe di6tar-nos a fua lei, e á Hefpanha, quando pretendeffe impor-nos a lua vontade, que Portugal, apefar de efcaíTo em território na Europa, não era terra, onde a arrogante diplomacia ou as cohortes infolcntes pretendeíTem humilhar-nos, fem levarem em retorno o defengano. Achava-fe finalmente Portugal depois de tantas glorias bellicofas inerme e indefefo, tendo apenas por exercito um inútil fimulacro. Era pois urgente reformar de raiz as inítituições militares de Portugal, fundar em principios concordantes com as pradicas d'aquelle tempo nas guerreiras nações da Europa civililada, uma nova e proficiente força publica. Eis ahi os grandiíTimos problemas, que o Sebaftião de Carvalho a 11 mefmo le propoz e em cuja refolução empenhou os dotes do feu efpirito e a ener- gia do feu aceirado temperamento. Como officina e mecha- niímo efficaz de toda a boa e fruftuofa reformação con- vinha reformar as leis civis, diradicar e eflirpar os velhos abufos adminiftrativos e fifcaes, e fazer da adminiftração não o inftrumento das oppreíTóes e dos vexames tributários, mas o poderofo auxiliar da nova civililação.

Eítes foram os empenhos capitães do famofo miniftro de D. Jofé, ou antes do miniftro de fi melmo, authenticando os mandatos do feu génio com a rubrica real. Se fora dado a um homem eflfeituar pelo talifman da lua vontade uma completa revolução, têl-a-hia certamente realifado. Abriu os caminhos ao penfamento e á inftrucção. Promoveu e glo- rificou o trabalho nacional. Conftituiu e difciplinou a força defenfiva do paiz. Ora um povo, que fabe penfar, trabalhar e combater as três funcções caraíterifticas da humani- dade,— é um povo que, digno e merecedor da fua indepen-

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dencia, pôde viver e progredir, fatisfcito no leu lar e ref- peitado dos extranhos. Um povo em femclhantes condiajes, bem depreíTa conquiftará a liberdade. Empenhe-fe o abfo- lutilmo e a realeza cm defbravar-lhe o campo, mondando- Ihe o torrão de todas as plantas eítereis e damninhas, do poder e influencia deletéria das claíTes ariftocraticas, e da tyrannia das velhas tradições, e bem cedo na gleba rege- nerada brotará frucluola a liberdade.

É n'ell:e figniíicado que o miniftro omnipotente foi o pri- meiro e grande revolucionário em Portugal. Penfando confir- mar e robuftecer o throno do feu rei, amontoando-lhe em redor os efcombros e ruinas da velha fociedade, efteve real- mente enfraquecendo a regia poteftade e apparelhando o triumpho no porvir á pura democracia. É fegundo eíte con- ceito que o Pombal, apelar das apparentes contradicçõcs na lua idéa, entra no catalogo, onde fe infcrevem os grandes fautores da civililação, d'aquelles, que não fouberam ou não poderam traçar á revolução o feu caminho fem o affignalar lugubremente com um rafto de langue e de terror, nem decretar as fuás fecundas innovaçõcs fem ter por finiftro collaborador a hacha do carnifice; na mefma pagina, onde eftá D. João II, Richelieu, Oliver Cromwell, e maior que todos elles o grande legiílador da era nova, a terrível, mas luminofa Convenção.

CAPITULO II

os PRIMEIROS ANNOS DE POMBAL

O marquez de Pombal é, em grande parte, em Portugal e dentro da própria monarchia abfoluta, a idéa da revo- lução, e o gladio do terror.

Para a lignificação moral das grandes reformas intenta- das pelo miniftro de D. Jole, feria quafi indiíFerente que o deílino lhe tiveíTe pofto o berço nas mais altas regiões arifto- craticas ou nas mais humildes profundezas fociaes. Parece porém que a fortuna o fez nafcer a um nivel médio entre o foberbo faítigio da nobreza mais illuftre e a modeíta condição da gente popular, quafi a egual diftancia entre os Aveiros ou os Tavoras e os plebeus e rudes promotores da infurreição contra a nova companhia do Alto Douro. A fua prolapia e geração nem foi tão efclarecida, que affombraíTe, nem tão baixa, que perante os preconceitos nobiliários do feu tempo lhe cerraíTe para fempre as portas do poder. Como quem havia de fer o primeiro inftituidor do terceiro eítado ou do que hoje appellidàmos claíTe média ou burguezia, nafceu de uma d'eflas familias de efquecida nobreza provinciana, que fem hiítorico luftre ou poderio, mais fe acercam á gente do commum, defdenhadas como de linhagem quafi obfcura pelos grandes fidalgos e fenhores.

Foi^o pae do grande reformador Manuel de Carvalho e Ataíde, que depois de ter fervido nas armadas, paífou ao exercito de terra no pofto de capitão de cavallos. Do leu cafamento com D. Thereza Luiza de Mendonça, filha de João de Almada e Mello, alcaide mór de Palmella, nafce- ram alem de outros filhos, Sebaftião de Carvalho, Paulo de Carvalho, c|ue depois foi levantado ás maiores dignidades feculares e ecclefiafticas pelo favor e beneficio do irmão omnipotente, e Francifco Xavier de Mendonça, que Ibb os mefmos aufpicios veiu a fer fecretario de eflado da marinha e dominios uhramarinos.

O primeiro d'entre os feus antepaífados, que apparece exercitando officios importantes, é o terceiro avô, Sebaftião de Carvalho. Depois de ter fervido como defcmbargador na relação do Porto e na cafa da fupplicação, foi deputado da

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mela da confciencia e ordens em 1620, e delembargador do paço em 1634. E o primeiro, a quem a genealogia eftam- pada pelo Padre António de Carvalho da Cofta na fua Chorograpliia menciona como tendo o foro de fidalgo e o habito de Chriífo. Foi elle quem inftituiu com fua mulher - D. Maria de Braga e Figueiredo um morgado, em que entravam bens em S. João da Pefqueira, em Sernancelhe e em Lifboa. Paulo de Carvalho, o íilho primogénito d'aquelle primeiro Sebaftião, exerceu como leu pae elevadas magis- traturas, fendo flicceíTivamente promovido a defembarga- dor da relação do Porto e da cala da íupplicação, defem- bargador do paço, vereador da camará de Lifboa e prove- dor da alfandega. Teve como feu pae o foro de fidalgo e o habito de cavalleiro na ordem de Chrifto. Com fua mu- lher D. Maria Pereira de Sande inftituiu o morgado das Mercês na capital. Teve por irmão fecundogenito a Sebas- tião de Carvalho, que á femelhança de feu pae e do primo- génito, fe dedicou á magilfratura e foi defembargador da cafa ^do Porto, d'onde foi trafladado á de Lifboa. D'efte magiftrado, que teve por mulher D. Luiza de Mello, nafceu um íilho do mefmo nome de leu pae, o qual fuccedeu no morgado de feu avô e no de feu tio Paulo de Carvalho, porque efte não tendo defcendencia, o nomeou por leu pri- meiro adminiftrador. Foi moço fidalgo da cala real, e caval- leiro da ordem de Chrifto. Tendo fido capitão de infanteria paífou depois a capitão de cavallos da companhia dos privi- legiados do Santo Oííicio. D'efte novo Sebaftião e de lua es- pofa D. Leonor Maria de Ataíde, filha de Gonçalo da Cofta Coutinho, governador de Aveiro, procederam alem de outros filhos, Manuel de Carvalho e Ataíde, pae do grande legis- lador, e Paulo de Carvalho, que foi lente na univerfidade de Coimbra e depois cónego da capella real. Pôde, pois, affirmar-fe com verdade que a familia de Pombal come-

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çou a ter illuftração e valimento, principalmente como nobre- za de toga, defde o terceiro avô do eftadiíla. Antes d'eíte, fe a eftirpe não era inteiramente plebeia, ou confundida com o eftado chão e popular, e vivia em Sernancelhe com o elcalTo luzimento de cavalheiros de provincia, era ao menos hiftori- camente obfcura e fem valia na corte e nos grandes officios da republica.

Manuel de Carvalho parece não era defprovido de algum entendimento, como fe manifeíta do livro, que fob o pleudonymo de D. Tivifco de Nazao Zarco y Colona efcre- veu e publicou, íingindo-o eítampado em Nápoles, com o titulo de Theatro genealógico. Vivia em Soure, pequena aldeia ou povoação a pouca diítancia de Coimbra, e fe acre- ditámos um biographo infufpeito, alliado por eftreita afíini- dade ao mais illuftre defcendente de Pombal, não devia fer poíTuidor de grandes cabedaes '. Em Soure viu a primeira luz o grande legillador, a 1 3 de maio de 1 699, quali na tranfição do feculo xvii, a edade florente do velho abfolutis- mo, para o xviii feculo, a era da revolução. Ao appellido paterno de Carvalho juntou o futuro marquez de Pombal o nome gentilicio de Mello, que era o de feu avô materno, João de Almada e Mello, como quem defde os primeiros

I O fr. John Smith, (hoje conde da Carnota), antigo fecretario particular e amigo íntimo e cunhado do marechal duque de Saldanha, e porventura d'entre todos os biographos, o mais enthufialla na glorificação do miniílro de D. Jofé, e que tinha inveítigado certamente os antecedentes da familia, omittindo as particularidades genealógicas, limita-fe a dizer: «His father, Manuel de Carva- lho, was a country gentleman of moderate, but indcpendent fortune, belonging to that class who are diftinguished in Portugal by the title of Fidalgo de Pro- vincia. (Seu pae, Manuel de Carvalho, era um cavalheiro provincial, de media- nos, mas independentes haveres, pertencente a eíla clalTe, que fe diflingue em Portugal pelo titulo às fidalgo de provincia.J Memoirs of the marquis 0/ Pombal by John Smith, Lond. 1843, vol. i, pag. Sg.

«Emanuel di Carvalho, gentiluomo povero di Soure.» Vita di Seb. Ciufeppe di Carvalho e Mello. Sem logar de impreílão, 1781, vol. i, pag. i.

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annos legava mais valor á illuftre afcendencia de fua mãe que á modefta profapia de feu pae.

A femelhança do que fempre fuccedeu aos mais infignes varões da nolTa hiftoria, a Valco da Gama e a Camões, feus companheiros immortaes na trilogia das glorias portu- guezas, os primeiros annos de Pombal cerrados apparecem a toda a luz, e o hiographo citado, que teria ao leu difpor os archivos mais fecretos da familia, quaíi nada pôde ras- trear acerca da puerícia e adolefcencia do eftadifta'. Quaes folTem os feus primeiros eíludos na humilde e fertaneja pátria lua, é totalmente ignorado. Dizia-fe até agora que em fua adolefcencia entrou a curfar a univerfidade, fem que foíTe poíTivel deflindar fe apenas para efludar as humani- dades frequentara o collegio das artes, regido então pelos jefuitas, ou fe andara matriculado n'alguma das faculdades e em qual d'ellas, que os biographos aífentam feria prova- velmente, fegundo o exemplo de feus maiores, a de câno- nes ou a de leis. Eítá porém hoje demonftrado que o futuro innovador do direito pátrio nunca fe infcreveu como difci- pulo nos regiftros da decadente academia. E deífino fin- gular que dos grandes homens portuguezes nenhum pôde condecorar-fe com os académicos lauréis. A mcfma forte coube fem damno ou mingua da fua intelligencia a Sebas- tião Jofé de Carvalho e Mello. Era tão baça e indecifa a efcaífa luz, que a Alma mater portugueza irradiava nos pri- meiros annos do feculo xviii, que nenhum efpirito verda- deiramente fuperior poderia contentar-fe com a fciencia que d'ali fe ditfundia, nem um animo livre e inlbífrido de tutela intelledual refpirar defaffombrado na Ibturna eítreiteza dos feus geraes.

' "Of the particulars of the early life of Pombal it is to be regretteJ little is known.» Smith, Memnirs, vol. i, pag. 40.

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Ainda mefmo que tivefle entrado a ouvir os curfos co- nimbricenfes, é plaufivel que defde logo os houveíTe deíam- parado, defgoftolb de uma efcola, onde nada fe aprendia que podeíTe illuminar os largos horizontes de um nobre entendimento. N'aquelle tempo aos homens, que pelo nas- cimento fe elevavam acima do commum, apenas três pro- fiíTões eram decorofas e conformes aos preconceitos nobi- liários; a magiftratura, onde a valia ou a fortuna faziam muitas vezes afcender os feus diledos ás mais eminentes di- gnidades; a egreja, onde os groífos benefícios e prebendas, as prelazias e os capellos, podiam acrefcentar o efplendor e a riqueza da família; e o eftado militar, cujas vantagens eram certamente inferiores, porque os feus poftos mais fubi- dos eram quafi exclufivo privilegio das grandes famílias ti- tulares, ou da mais qualificada ariftocracia. Não podendo ou não querendo confeguir na univerfidade os diplomas, que lhe deíTem livre entrada aos chamados logares de let- tras, e não o convidando a beata manfidão da vida eccle- fiaftica, reítava-lhe bufcar outro currículo, onde podeífe dar azo á fua irrequieta actividade. Elegeu, pois, as armas por officio, feguindo o exemplo de feu pae. Aífentou praça de foldado n'um regimento, que feria provavelmente de caval- laria. Em breve, dizem, foi promovido a cabo de efquadra, e n'eíta humilde graduação continuou por algum tempo com a efperança de fubir talvez a capitão, porque não era então raro o elevar-fe de falto a maiores poftos, quem ti- nha na corte benignos e poderofos valedores. Alguns refe- rem que Sebaftião de Carvalho, fiando-fe n'eftas interceíTões, efperára fer mui cedo official, e que havendo em lySS, por occafião de recear-fe a guerra com Hefpanha, uma grande promoção, e não fendo n'ella contemplado, fe des- goftára profundamente e refolvêra deixar uma carreira, a qual pela extrema degradação, a que o exercito chegara

n'aquelles tempos, ío lhe podia oíferecer, em vez das glorias e dos louros, a pouco invejável perfpectiva da quieta e en- fadonha obfcuridade. Vohando á vida civil parece que foi viver em Soure, onde lhe não feria de feguro mui aprafivel o demorar-fe longa temporada.

É por aquelles tempos, quando Sebaftião de Carvalho deixa por inconfiftente com as fuás grandiofas vocações a vida militar, que alguns biographos, uns d'elles feus impla- cáveis inimigos, outros feus grandes apologiftas, referem as mocidades e verduras, em que o pretendem figurar como um heroe de aventuras e pendências na turbulenta capital de D. João V. E facto averiguado, que na aufencia quafi completa de policia na corte de Lifboa, eram frequentes e a la moda as rixas, em que de noite bufcavam cruenta diver- fão e culpofo conceito de valentes os fidalgos mais illuftres. Nos paizes, onde é mais diminuta a liberdade, e mais into- lerante o defpotifmo, ahi é também mais defpejada e mais fem freio a licença individual. Quando a lei e a audoridade teem apenas a força por fancção, em vez do confenib volun- tário dos cidadãos, ahi é fempre fi-ouxa ou inefíicaz a acção da lei e do poder na manutenção da paz e ordem publica. Ora fuccedia naturalmente que em tempos do magnifico monarcha a illimitada realeza do foberano era baftante para prender ou exilar as peíToas da mais eminente hierarchia. Mas o poder publico, aquelle que tem as luas raizes na lei e na conftituição normal da fociedade, não alcançava facil- mente o fazer-fe refpeitar e obedecer. Era quafi divina e inccnfada a majeftade do monarcha, mas era quafi nulla e defprezivel a majeftade da lei e da juftiça.

As ruas de Lifboa eram eftreitas, declives, tortuofas, como de cidade, que em moldes mourifcos, e em terra montuofa, fe fora adenfando e comprimindo dentro da limi- tada cerca dos feus antigos muros torreados. A cada paflb

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havia arcos e paíTagens efcuras e azadas para os que fe compraziam em renhir por vingança ou delenfado, ou em fahear os viandantes por cubica e malvadez. Não havia iUuminação. Apenas a efpaços bruxuleavam aqui e acolá as lâmpadas mortiças e as baças candeínhas, accefas pela devoção diante dos nichos confagrados ás imagens da Vir- gem ou dos fantos de maior veneração. As rondas, que andavam correndo os bairros da cidade, levando á fua frente os miniftros criminaes, quando, arraftadas pela turbu- lência endémica e habitual, e invertendo a fua protedora inftituição, não eram as primeiras a romper em brigas e difturbios, viam-fe acommettidas pelos bandos de armados e inlblentes aventureiros, ou de refolutos e impenitentes malfeitores. Os fidalgos zombavam da policia, porque ti- nham por efcudo os privilégios da nobreza e o favor de uma corte, onde os coftumes diíTolutos fe chamavam galanteria. Os bandoleiros não temiam a lettra draconiana do livro da ordenação, emquanto as juftiças do pacifico monar- cha dormiam a fomno folto e deixavam jazer confundidos nos mefmos cárceres durante largos annos fem os condem- nar ou abfolver os perpetradores dos maiores crimes e as viítimas innocentes da prepotência ou da calumnia'.

N'aquella quafi anarchica fituação da capital, fendo ele- gância e fidalguia o andar renhindo em nodurnas correrias, como lias velhas comedias hefpanholas, não feria para extra- nhar que Sebailião de Carvalho, impetuolb de caracter, fe- guiíTe por algum tempo a corrente univerfal. Era mancebo, ociofo, bem apeíToado e gentil homem, de vigorofa complei-

I Era tal, durante o reinado de D. João V a fomnolencia da julliça, que na collecção das leis e decretos d'aquelle tempo le deparam a cada palTo providen- cias para que a cafa da fupplicação julgue fem detença numeroíbs encarcerados, com o fim de tomar menos denfa nas cadeias a miferavel povoação, onde com frequência eftavam lavrando perigofas epidemias.

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ção, e eftatura mais de mediana, de animo inquebrantável e orgulholb, de indómita bravura e galhardia. Era galantea- dor, como preceituava a cartilha do homem de qualidade. Tinha no feu rei o primeiro exemplar e meftre de aventuras elegantes; no infante D. António, que ás anecdotas do tem- po nos defenham como um brapo de coração duro e alma perdida, brigolb, efpadachim e homem perverfo, a juftifica- ção das palTageiras mocidades, a que porventura o impel- liíTe o ócio, a adolelcencia, o temperamento. Se a nobreza de Lifboa vivia no eftado natural, realifando o homo homi- ni liipiis do celebre philolbpho inglez, era licito a cada um aperceber-le para efta guerra quotidiana e inteftina, e pro- ver á própria defensão, emquanto indolente dormitava a magiftratura e a policia. Não é licito aíTeverar feguramente o que haveria de verdade n'eftes primeiros epifodios juvenis do grande e fevero legiflador. O que porém raia em dema- fiado romanefco e inverolimil, é que Sebaftião de Car\'alho, fazendo oíRcio de nodurno batalhador, conlbciaíTe ás íuas aventuras um companheiro e irmão de armas, e que verti- dos ambos de branco, para fe reconhecerem facilmente na efcuridade, fc delTem a acommetter os ranchos de fidalgos e bandidos, que cruzavam as efpadas em rixas iangrentas e ferozes nas viellas mais efcufas da cidade".

> Dumouriez, Etat préfent du Portugal, liv. iv, cap. 10. Na obra que ttm por titulo Uadminijlralion de ScbaJUen Jofeph de Carvalho et Mello, AmítL-r- dam, 1785, tom. i, pag. 2o5, lè-fe: «On croit que ce qui retarda fon avancement, fut quelqu'emportement de jeunelTe, fur le quel il ne faut jamais jugerles hom- mes. . . La jeunelTe eft une maladie de râme, qui doit avoir íon cours. . . Tous les Catons de vingt ans font morts des fcélérats». Efta obra é o mais alto pane- gyrico do marquez de Pombal, e por eíla qualidade parece digna de fé, quando a algum defeito do feu heroe fe refere fugitivamente, como que para o diffmiu- lar e efconder. Vej. Portrait hijlorique du marquis de Pombal, continuação ás Lettres écrites de Portugal, impreíTas cm feguimento ao Tableau de Lifbonne en I7g6, pag. 432-433. O Portrait é na fua brevidade de oito paginas um pompo- fo elogio de Pombal.

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Paulo de Carvalho, tio do grande legiflador, era então prelado na egreja patriarchal e n'eíla eminente dignidade ecclefiaftica tinha na corte valimento e privava em certa maneira com o cardeal da Motta, primeiro miniftro de D. João. Anceiava Sebaftião de Carvalho naturalmente por exercer algum officio, onde podeíTe revelar os feus talentos e os dotes da lua Índole emprehendedora e avôíTa á quieta ociofidade. Ia o tempo decorrendo preíTurolb. Era Sebas- tião entrado em annos maduros. Corria-fe provavelmente de que fendo paíTada a primavera juvenil, o vieffe colher o inverno da velhice na efteril moradia de uma aldeia. Tinha então, ao que parece, quarenta annos, e para quem era de li tão cubiçolb de gloria e luzimento haviam de fer os dias monótonos de Soure bem amargurados de ambições e de efperanças mallogradas. Hoje que aos vinte annos qual- quer obfcuro bacharel começa a menear no parlamento, nos corrilhos ou nos gabinetes dos miniftros, os mais gra- ves negócios da nação, hoje que aos trinta annos qualquer mediano jornalifta ou orador fe julga defairado em não voar para a cadeira curul do minifterio, não é fácil comprehen- der como um homem verdadeiramente grande e fuperior aos efpiritos contemporâneos, ainda eftiveíTe efperando no átrio do poder, com as primeiras cans a alvejarem-lhe, fem que ninguém lhe abriíTe a porta dos officios e digni- dades. Mas onde podia um homem d'aquelle feculo, por mais notáveis que foíTem os feus talentos, denunciar publi- camente o que valia? Não havia então o minimo fignal de vida publica; nem tribuna, nem jornal, nem aífembléas e comícios populares. A ninguém era dado franquear pela força do génio e da palavra a fenda, que conduz á influen- cia e ao poder. Os que afcendiam aos graus mais eminen- tes, não fubiam pelo esforço próprio o declivio efcabrofo dos públicos empregos, antes era neceífario que um patro-

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no e valedor os eftiveíTe alando ás eminências defcfas aos defvalidos do favor e da fortuna. Felizmente para que fe não perdeíTe em gérmen uma das maiores glorias portugue- zas, o tio de Sehaftião acolheu-o benigno á Ília fombra, e aprefentando-o com valiola recommendação ao cardeal, al- cançou que principiafTe a ter entrada na corte portugueza.

Que Sebartião de Carvalho havia cultivado o feu efpi- rito, confeguindo por feus particulares efludos alguma notável inftrucção, fe patentea pelo fado de ter fido eleito membro da Academia de hijloria portitgueia defde o anno de 1733 e de haver lido n'uma das fuás conferencias um difcurfo, que vem impreífo nas coUecções d'ac[uella erudita, mas eftreita corporação. Sem fallar nos magnates, que a illuftravam á maneira d'aquelle tempo, mais pela claridade e efplendor da fua nobreza que pela fua pedante erudição e profa gongorifta, fem contar os marquezes de Abrantes, de Tancos e de Alegrete, tinham aíTento n'aquellc inftituto predileófo do monarcha todos os homens, que primavam em lettras e faber, Diogo Barbofa Machado, o redador da Bibliotheca liifitana, Soares da Silva, o audor das Memorias de D. João I, o padre D. António Caetano de Soufa, que na Historia genealógica atteftou a fua paciência egual á dos benedidinos, Caetano Jofé da Silva Sottomayor, o Camões do Rocio, o bel-ejprit d'aquelle tempo e o companheiro de D. João V nas fuás romanefcas mocidades e aventuras, e outros mais laboriofos inveftigadores de hiftoricos fucceffos, recontados materialmente fem critica, nem philofophia. Não é plaufivel que n'um congreífo de varões tão refpeitaveis, attenta a pouca e ruim fciencia d'aquelle feculo, tivera Se- baítião de Carvalho uma cadeira, fe não andaífem bem aqui- latados os feus méritos e havida em grande conta a fua lit- teratura.

Na conferencia celebrada pela Academia em prefença

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do magnifico Mecenas, no próprio dia do leu anniverfa- rio natalicio a 24 de outubro de lySS, o conde da Ericeira, depois de recitar o panegyrico do monarcha, fegundo era eftylo habitual d'aquella companhia, mais de cortezãos do que de fabios, declarou eftar eleito como novo académico Sehaftião de Carvalho, ao qual o fidalgo eruditiíTimo com a fua hyperbolica maneira de dizer teceu n'eíra occafião honra- . dos elogios. Da oração do conde da Ericeira fica manifefto que o futuro miniftro de D. Jofé até pouco antes do íeu in- greíTo na academia vivera quafi fempre retirado na provín- cia, onde nos ócios de uma vida campeftre e defoccupada coníeguíra pelo eítudo accumular copiofos caudaes de eru- dição. Era por aquelles tempos frequentifíimo o coítume litterario de fundar por aflim dizer a cada canto um d'eí1:es grémios, ou particulares academias, onde fe exercitavam os engenhos nos conceitos e rhetoricas então apreciadas. Sebas- tião de Carvalho tinha áquella fafão pertencido, com as honras de protedor, a uma d'eíl:as microfcopicas e obscuras congregações. Tinha o nome de Illujlrada. Dizia o conde panegyrifta que Sebaftião de Carvalho, florefcendo até ali no campo, tinha roubado á corte os frudos, com que na elo- quência, na hiftoria, na poefia e em muitas linguas e erudi- ções acreditara serem as fciencias na fi.ia familia não he- reditárias, mas adquiridas. Repartia pelos feus membros a academia, onde Carvalho era agora recebido, o trabalho de efcrever as hiftorias efpeciaes dos differentes reis de Portu- gal, as dos bifpados e das ordens de cavallaria, e todas as mais, de que podeffe a final compaginar-fe a hiíforia geral d'efta nação. Commetteu a Sebaftião de Carvalho o efcrever as dos reis D. Pedro I e D. Fernando, nas quaes nunca che- gou a trabalhar.

Na própria conferencia, em que pela primeira vez tomou aíTento em meio dos fabios hiftoriadores, leu o novo aca-

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demico o feu difcurlb inaugural. Ajuftava-fe á cortezania dos feus confrades, e ás pradicas da adulação e lifonjaria, que eram facramcntaes e impreteriveis na liturgia d'aquella corte. «Grande dita (exclamava o orador) confagrar nas aras d'en:a eruditiílima affembléa o primeiro facrificio da minha fujeição, quando n'ellas le Iblemnifam os facros pre- lúdios do mais feliz império!» Encarecendo o pompoío en- cómio do monarcha, fegundo prefcreviam os eftylos aulicos ás mufas d'aquelle tempo, dizia o pancgyrifta que a ventura refultante de tão faufto acontecimento, qual era o nafcimcnto commemorado na Iblemne conferencia, não enchia de júbilo aquelle lahio mufeu (era a academia), mas que d'elle fobejando, inundava de gloria todos eftes reinos, e de as- fombro o mundo inteiro. E no final da oração, comparando- fe a Prometheu, alludindo ás glorias litterarias, prorompia n'eíta exclamação, fundida fielmente nos depravados moldes litterarios tão queridos e mimoíbs n'aquelle tempo: «Am- bos fubimos, vapores obfcuros, ao pólo refplandecente : elle porém a cair, eu a me illuftrar; elle a fervir de efcandalo com infultos; eu de exemplo ás felicidades». Palavras, que profe- ridas porventura fem nenhuma intenção alheia á litteratura, encerravam todavia como que a prophecia das grandezas, a que de mediana condição haveria de afcender o grande legiflador. Somente n\im ponto fe enganava no fauftiílimo prognoítico, porque depois de arrebatar o fogo lacro da omnipotência em Portugal, teria ao cabo de uma exiftencia gloriofa, no exilio cruciante do Pombal, o penedo e os gri- lhões de Prometheu.

Por aquelles tempos cafou Sebafiião de Carvalho com D. Thereza de Noronha, filha de um irmão do conde dos Arcos e viuva de feu primo António de Mendonça. Anda na tradição que efte cafamento fe enlaçou com uma verdadeira aventura de românticos amores.

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Se acalb podemos conjecturar como plaufiveis as fuás andantes cavallarias durante a primeira refidencia na corte de Lifboa, não fera de todo o ponto defconforme o prefup- por que na conquifta de uma dama de tão qualificado nafci- mento, qual era D. Thereza de Noronha, algo intersãeífe de extraordinário e romanefco, e attento o profundiflimo defpeito da alta fidalguia, ultrajada pelo conforcio oppro- hriofo, deífe o oufado galanteador evidentes fignaes da al- teza dos feus brios e de como fabia executar em face das maiores contrariedades as fuás animofas refoluções.

Affrontaram-fe os parentes da noiva, foberbos e infoífri- dos de allianças defeguaes, com a audácia de quem fora, ao que parece, quafi um intrépido raptor. Valer-lhe-hia fegura- mente a influencia de feu tio e a protecção do cardeal.

Alguns annos decorreram fem que os talentos de Sebas- tião achaífem arena própria, onde fe podeíTem expandir. Não era certamente o recinto obfcuro e eíl:reito da pobre academia horizonte accommodado á indefeífa energia do feu efpirito. Ali os olhos volviam-fe continuamente ás memo- rias dos tempos pretéritos, não para contemplar na hifto- ria, profundamente meditada, as leis que regulam a huma- nidade na lua larga diffusão no tempo e no efpaço. Defen- tranhavam-fe lapides e cippos e infcripções. Compunham-fe panegyricos, difcreteavam-fe conceitos e celebrava-fe peren- nemente a apotheofe do emulo de Luiz XIV, do magnifico monarcha portuguez, de cujo reinado o Camões do Rocio fa- zia, n'uma das conferencias celebradas perante a majeftade, a mais abflrufa e fervil amplificação, defenhando-o em tra- ços cortezãos como a epocha mais florente das fciencias e das lettras. Ali eftudava-fe o paífado e adulava-fe o prefente. E Sebaftião de Carvalho tinha a vifta perfpicaz e dominadora cravada no futuro, e com a ironia refledfida nos feus lábios vincados como os de Voltaire na commiíTura, forria natural-

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mente das milerias grandiofas do leu Mecenas régio e da mefquinha terra, onde imperava.

Felizmente deparou-lhe a fortuna occafião para faír da erudita ociofidade. Os bons officios do cardeal da Motta lograram fazel-o acceito a D. João V para que lhe commet- teíTe encargo correlpondente á fua grande capacidade. No- meou-o feu enviado extraordinário na corte da Gran-Bre- tanha. Raiava então nos quarenta annos, boa edade para ter encelleirados os fruílos proveitofos da reflexão e da ex- periência, quafi porém provecta para dar principio á fua carreira, quem eftaria traçando alevantar-fe á fuprema direcção da fua pátria.

Acabava de fer exonerado da enviatura na Inglaterra Marco António de Azevedo Coutinho, que ali refidíra defde abril de lySõ, como reprefentante de Portugal. Fora nomeado fecretario de eftado dos negócios extrangeiros e da guerra e devia partir de Londres a tomar poíTe do feu alto ofiicio minifterial. Succedeu-lhe Sebaftião de Carvalho, que em agoíto de lySS havia defembarcado n'um porto da Gran- Bretanha, e a 29 de novembro d'aquelle anno, foi recebido em folemne e publica audiência pelo rei George II'.

Não podia a nomeação vir mais a talho para quem defejaria ver exemplificadas as doutrinas dos grandes publi- ciftas nas praííicas de uma realeza moderada, que em face do abfolutifmo dominante em todas as monarchias conti- nentaes, era uma verdadeira e curiofa raridade. Ainda que o governo de George II e do feu aftuto miniftro, o fami- gerado Sir Robert Walpole, que então confolidava no meio de tormentofas convulfões a nova dynaftia de Hannover, não era feguramente o mais illuminado e progreíTivo, fem-

I Quadro elementar das relações politicas e diplomáticas de Portugal, tom. XVIII, pag. 33g e 340.

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pre um efpirito inquiridor das fciencias politicas e fociaes experimentalmente aprenderia muito mais n'um paiz de opi- nião, de imprenla e parlamento, do que na terra da inquiíi- ção, dos jefuitas e das beatas orgias de Odivellas. Sebaftião de Carvalho não tinha, na verdade, a Índole propicia ás mo- narchias temperadas por uns longes fequer de legaes in- fluencias democráticas, fegundo a norma, que então preva- lecia em Inglaterra, fob o regimen parlamentar do groíTeiro e imperiofo George II e do feu miniftro Walpole, o modelo dos corruptores. Mas no governo e adminiftração, apcfar do leu grande atrazo em muitos pontos e das luftas fan- grentas, em que viveu pela infurreição dos jacobitas ou partidários dos Stuarts até 1745, fempre era a Gran-Breta- nha melhor efcola de eftadilías do que o monaftico e deca- dente Portugal. Ainda que, fegundo parece dos aftos legis- lativos de Pombal, pouco le infpiraíTe nas tradições e nas praxes politicas da Inglaterra, teria ao menos ali onde adex- trar-fe no meneio dos negócios, como útil preparação e pro- pedêutica para o governo dos eftados.

Se outra coufa, porém, não podeíTe aproveitar o enviado portuguez durante a fua refidencia na Gran-Bretanha, ao menos haveria de concitar-lhe a attenção o eftado floren- te das fuás induftrias, e as qualidades, que a tornavam a primeira entre as nações navaes e mercantis. Se não cogi- tava em trafladar á fua pátria as inftituições, os coftumes, a legiflação, o mechanifmo politico e focial da Inglaterra, poderia eftudar e inquirir por que proceflbs a poderofa na- ção fe levantara ao faftigio do poder marítimo e da profpe- ridade económica e induftrial. A fciencia praílica e o enge- nho fabril dos inglezes eftava n'ac[uella edade preludiando os fecundos defcobrimentos, que na fegunda metade do xvm feculo haveriam de multiplicar a força produdiva, aquel- las preciofas invenções, que fizeram memoráveis os nomes

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de Hargrcaves, de Arkwright, de Watt, de Whitney e de Cartwright. Para quem porventura penlaria em erguer do laítimoío abatimento o trabalho e a induftria nacional, ne- nhum paiz poderia ler mais fecunda e ampla doutrinação ao génio do grande reformador.

Eítava alem d'iflb confagrada pelo ufo a regra de que os miniítros portuguezes nas principaes cortes europêas, quan- do as interceíTões ou os talentos lhes faziam conquiftar as boas graças do Ibberano, da milTão diplomática fubiíTem ao ofiicio minifterial, prelidindo á lecretaria dos negócios ex- trangeiros. Affim no reinado de D. João V o fecretario de eftado Pedro da Motta e Silva, irmão do cardeal do melmo appellido, havia fido anteriormente enviado extraordinário na corte de Roma, António Guedes Pereira, fecretario de efta- do da marinha, exercera a legação na corte de Madrid, Marco António de Azevedo Coutinho, fecretario de eftado dos negócios extrangeiros e da guerra, havia fido reprefen- tante de Portugal em Londres e em Paris. Baftava pois que Scbaftião de Carvalho alcançaíTe honrada reputação na fua enviatura para que mais tarde o capricho do monarcha ou o favor dos protedores o chamaíTe na primeira vacatura ao fufpirado pofto de confelheiro e miniftro do foberano.

Não deixou de deparar-fe ao novo enviado portuguez na corte de Saint-James propicia occafião para moftrar a fua valiofa capacidade. Não havia por aquelles tempos nenhu- ma grave circumftancia internacional, que exigiíTe do gover- no portuguez demoradas e efcabrofas negociações. Portugal vivia então em paz, gratiíTmia ao dynafta, pouco propenfo ás ambições e lances bellicofos de Luiz XIV, feu modelo na grandeza e majeftade.

As razões, que haviam motivado a enviatura de Marco António, longamente experimentado nos negócios, e torna- ram difficil e efpinhofa a miífáo portugueza na corte de Geor-

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ge II não fubfiftiam com tamanha gravidade. A pendência lufcitada entre Portugal e a Hefpanha, vizinhos n'aquelle tempo lempre em vefpera de contenderem e pleitearem pe- las armas as fuás encontradas pretenções e a íua mutua des- confiança, eftava por então aquietada. DiíTipára-le o receio de que o defaggravo das reciprocas oíTenfas fe houveíTe de commetter ao fallivel julgamento dos canhões.

Os negócios, que pendiam entre Portugal e a Inglaterra fe bem de fumma importância para o primeiro, eram d'ell:es, que demandam mais zelo e energia do que talentos aíTigna- lados no difcreto negociador. A miífão de Car\'alho, fcgun- do elle próprio o deixou efcripto', tinha por aílumptos prin- cipaes o inquirir as caufas, pelas quaes era activo e opulento o commercio dos extrangeiros em Portugal, e paífivo e mife- ravel o dos noíTos nacionaes; occorrer á defegualdade, com que eram tratados em Londres os portuguezes, em cambio dos amplos e valiofos privilégios, que fruiam os inglezes em Portugal; pôr um termo ás infolencias commettidas em noíTos portos pelos commandantes dos navios de guerra da Gran-Bretanha. De todas as tranfacções diplomáticas de Sebaftião de Carvalho, a que parece mais difficil e capaz de revelar a fua dextreza diplomática, foi a que entre elle e o gabinete inglez fe travou acerca de alguns vexames fis- caes, a que em Londres eram fujeitos os negociantes portu- guezes pelos exaítores de uma impofição, a cujo pagamento fe julgavam defobrigados pelos tratados em vigor. Succedia efte debate diplomático pelos annos de lySg. Redigiu o enviado portuguez e aprefentou ao gabinete britannico uma extenfa memoria, compendiando as razões e fundamentos, em que se eftribava a reclamação ^

1 Appenfo II da Contrariedade ao libello, g 2.°

2 Quadro elementar das relações politicas e diplomáticas de Portugal, tom. XVIII, pag. 341.

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O minifterio brltannico deferiu ás inftancias do reprefen- tante portuguez. N'um defpacho de 20 de novembro de lySg lhe aíTegurou o duque de Newcaftle que o rei da Gran-Bretanha, para dar a D. João V uma prova do íeu affedo e confideração, havia determinado exemplar os nego- ciantes portuguezes de todas as taxas e contribuições, que eítiveffem eftabelecidas ou houveíTem de ler lançadas por ado do parlamento fobre todos os habitantes do reino unido.

Por aquelles tempos teve Sehallião de Carvalho que dirigir uma nova reclamação ao governo de George II. Fora efcaíTa em Portugal a colheita de cereaes, que ainda mefmo nos annos mais fecundos e apefar de diminuta a povoação, não podia baítar ao feu confumo. O governo inglez, inci- tado por egual deficiência, prohihíra a exportação. Eleva- ram-fe em Portugal os preços nimiamente, como em quadras de grande efterilidade. Padeciam as gentes populares com aquella careflia exagerada e os bandoleiros congregados em quadrilhas e eftimulados pela fome infeftavam oufadamente a própria capital. Ordenou o governo portuguez ao leu enviado em Inglaterra que perante o minifterio britannico reclamaíTe contra a nociva prohibição e a fizelTe revogar por excepção em favor dos portuguezes. E taes foram e tão perfuafivas e efficazes as ponderações e as inftancias de Carvalho, que a 26 de janeiro de 1741 o reprefentante de Inglaterra em Lifboa, Lord Tyrawley, aíTegurava ao minis- tério portuguez, que, apenas as circumftancias o permitiílem, feria decretada em favor de Portugal a pedida revogação".

Neftas pendências diplomáticas e em outra, que fe origi- nou por caufa do medico da legação, foi Sebaftião de Car- valho um dos principaes cooperadores para que melhor fe

I Qtiadro elementar das relações politicas e diplomáticas de Portugal, tom. xviii, pag. 342.

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deíànilTem os privilégios e exempções aos reprefentantes das potencias extrangeiras.

Os exadores de uma taxa local na parochia de Santa Catharina em Londres, para aíTegurar o pagamento, tinham feito uma penhora ao medico da legação de Portugal. Era o fabio e illuftre judeu portuguez, Jacob de Caftro Sarmento. Reclamou o enviado contra o ado judicial, que offendia as fuás immunidades. Foi completa e defufada a reparação. AnnuUou-fe a execução e foi ao medico reítituida a impor- tância da coUeda. Em officio de 20 de março de 1743 efcrevia o duque de Nev^^caftle ao enviado portuguez, pedin- do-lhe fixaíTe o dia, em que os reprefentantes da parochia haviam de ir á legação oíferecer-lhe as fuás efcufas. A 25 d'aquelle mez davam plena fatisfação pela aggravo recebi- do, e deixavam a Sebaítião de Carvalho um auto publico das refoluções tomadas acerca da pendência.

As negociações encaminhadas a pôr termo ás violências e ultrages commettidos pelos officiaes da marinha britannica procederam com tão profpero fucceífo, que a 16 de janeiro de 1743 communicava o duque de Newcaftle a Sebaftião de Carvalho que todos os inglezes, réus de violências e de crimes perpetrados nos territórios portuguezes, poderiam fer prefos, proceífados e punidos pelos magiftrados dos logares, e que efta jurifprudencia fe entenderia applicavel aos offi- ciaes da marinha britannica'.

Se o enviado portuguez na corte de Londres não pôde notavelmente diftinguir-fe pela importância e efplendor das fuás negociações politicas, teve ao menos occafião para dila- tar os feus conhecimentos e applicar-fe á leitura de muitas obras, que eram talvez então defconhecidas em Portugal. Não podia ler os livros inglezes, porque não alcançou nunca

Appenfo II da Contrariedade ao libello, § 4.°

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induílriar-fe no idioma, em que por aquelles tempos le illiil- trava Thomlbn, o poeta das EJtações, Young, o celebrado auctor das Noites, Gray, cujo nome anda aíTociado á mais pathetica elegia, Fielding, o audor de Tom Jones e Richard- Ibn, o noveliifta melancólico da fentimental e interminável Clariffe Haiioip. Apefar de não poíTuir o conhecimento da lingua ingleza, Sebaftião de Carvalho não deixou de fe applicar afliduamente a eftudar tudo quanto le referia á Gran-Bretanha, e principalmente ás luas leis e inílituiçóes. A forma politica da Inglaterra não feria então muito con- forme ás politicas noções, de que fe compunha o leu credo governativo, fegundo o veiu depois a exemplificar nos feus actos e na lua legiílação. A omnipotência do foberano feria então o feu principio fundamental e fuperior ao exame e difcuíTão. Era o rei de higlaterra, apelar das externas apparencias de abfoluta majeftade, um fâmulo do parla- mento. Dominava ali principalmente a mais poderofa arilfo- cracia, e a camará dos communs, comquanto quaíl tida em monopólio pela influencia irrefillivel da nobreza ou defhon- rada pela lua venalidade e corrupção, era ainda aíFim uma fomhra e fimulacro da vontade popular. E Sebaftião de Carvalho, cujos traços capitães na fua norma de governo eftariam então profundamente meditados, odiaria poi-\'en- tura a ordem patrícia, como um pcrigolb contrapefo ao abfolutifmo do monarcha, e a influencia das multidões, como um tremendo facrilegio á origem divina do poder.

Demorou-fe Carvalho em higlaterra até 1745, em que voltou a Lifboa, exonerado da miíTão. O ultimo officio, que da fua legação em Londres exifte no archivo dos negócios extrangeiros, é datado a i3 de abril de 1745. E provável,

' Quadro elementar das relações politicas e diplomáticas de Portugal, tom. xviii, pag. 344.

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porém, que ainda tiveíTe expedido mais algum, porque não ha n'aquelle documento a minima referencia ao feu próximo regreíTo a Portugal.

A legação portugueza em Londres teve novo chefe em 1747, quando el-rei D. João V para aquelle cargo, agora tornado mais importante pelas graves diílldencias fubfis- tentes entre a Hefpanha e Inglaterra, e a planeada mediação de Portugal, nomeou a António Freire de Andrade Encerra- hodes, que mais tarde, quando Sebaftião de Carvalho era miniftro e didador omnipotente, jazeu por fua ordem largos annos nos triftes calabouços da Junqueira.

Não fe fabe fe foi a feu pedido, ou por alguma rafão de conveniência governativa, que Sebaftião de Carv^alho deixou a legação. Não foi de certo, como efcreve um dos feus mais implacáveis inimigos, porque lhe faltaíTe a protecção de feu tio Paulo de Carvalho e o favor do cardeal da Motta, que o parcialiffimo efcriptor como fallecidos antes que Se- baftião deixaífe Inglaterra. Ora o purpurado primeiro minis- tro de D. João V deixou de exiftir a 4 de outubro de 1747, e o feu futuro e grande fucceífor em 1745 terminara em Londres a enviatura.

Não feria certamente, como pretende o biographo libellifta, que citámos, o defamor do rei, nem a pouca aflfeição do novo primeiro miniftro, Pedro da Motta, para com o enviado portuguez, o que determinou a fua demiíTão. Porque, paífado pouco tempo, o achámos nomeado para ir a Vienna de Auftria defempenhar uma difíicil commiífáo, que prefuppunha em quem a exercitaífe a alta confiança do governo. Tratava-fe nada menos que da mediação de Portugal para levar a bom termo de conciliação a diíTi- dencia, que fe havia levantado entre a corte de Roma e a rainha de Hungria e de Bohemia, que mais tarde foi a celebrada imperatriz Maria Thereza. Dava aífumpto a efta

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quebra nas boas relações das duas cortes a extincção do patriarchado de Aquileia. Não era fácil concertar efte con- flido, porque a violenta oppofição entre o fecretario de eftado pontifício, o cardeal Valenti, e o conde de Welfeld, grão-chanceller da rainha de Hungria, tornava impolTivel toda a pacifica Iblução diredamente negociada entre os dois adverfarios ' . O papa, que era então Benedido XIV, defe- java aquietar elta differença, que poderia accender-fe e per- turbar a paz efpiritual no império auftriaco, propenfo a lacudir o jugo temporal da fanta le. Bufcou pois por media- dora a rainha de Portugal, D. Maria Anna, que por fervo- rofa filha da Egreja, como efpofa do fideliílimo foberano portuguez, e por auftriaca, a quem eram fempre caros os intereffes da fua dynall;ia, fe empenharia em accommodar a paíTageira diíTenfão. Governava então o reino como regente durante uma longa doença do monarcha. Elegeu, prova- velmente por indicação do cardeal da Motta, a Sebaftião de Carvalho, para que paíTando a Vienna defde logo, inter- pozeffe na queftão os bons officios de Portugal e envidalle os feus esforços em reítaurar os vincules amigáveis entre a cúria e Maria Thereza.

em meado de 1745 eivava na capital da Auftria o enviado portuguez, ainda lem carader ofíicial, procurando induftriar-fe na pendência e preparar tudo quanto podeíTe facilitar a defejada conciliação. Sebaftião de Carvalho che- gou a Vienna de Auftria em principies de julho d'aquelle anno. A 7 devia fer, conforme o deixou efcripto o próprio enviado^ No officio de 3o de agofto de 1745, no archivo dos negócios extrangeiros, diz Sebaftião de Carvalho haver dois mezes que era chegado á capital do império. Que para a

Appcnfo II da Contrariedade ao libello, § 8. Appenfo II da Contrariedade ao libello, § 9.

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nova commiíTão partiu directamente de Lifboa, e não de Londres, fem volver de novo á pátria, como affirmam erra- damente alguns biographos, íe manifefta do leu officio com data de 3i de maio de 1746, em que diz textualmente: «Empreguei o maior dilVelo em render ferviço ao papa, como fempre foi meu defejo defde que lai de Lifboa». No anno feguinte de 1746 recebia o decreto, em que nos mais honrofos termos era defignado para exercer officialmente a mediação. E tal foi a diligencia e bom confelho, com que fe defempenhou do feu encargo, que logrou ver diíTipada finalmente a borrafca diplomática, e aflignada a convenção ou concordata de 1 2 de março de 1 747, que eftreitou nova- mente as relações entre os dois dilcordantes potentados.

O grão-chanceller, conde de Welfeld, eicreveu em agra- decidos termos a Carvalho, notificando-lhe a plena fatisfação da fua corte. A negociação, em que fe empenhara para reftabelecer a concordância entre o pontífice romano e a rainha de Hungria e de Bohemia, então imperatriz, não podéra vir mais de molde a quem um dia, na fuprema gerência dos negócios, haveria de contender tão rijamente com o poder efpiritual e conflrangel-o a refpeitar os direitos da foberania.

Foi aquella a fua efcola primaria na arte diííicil, mas neceífaria, de dar talho vigorofo nas extranhas pretenfõcs do pontificado, e feparar, por limites bem traçados, o facerdocio e o império. Então era apenas medianeiro para congraçar os dois poderes. Mais tarde, na pátria, em mais graves diíTi- dencias entre as duas mal avindas poteítades, haveria de intimar com voz imperativa e forçar o Vaticano a con- firmar, após uma lufla porfiada, a politica religiofa da fua adminiflração.

Tão bom nome conquiítou para Cai-valho a fua difcreta e hábil mediação, que bem depreíTa alcançou novo triumpho

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como engenhofo e prudente negociador. Levantára-fe uma ditferença entre o papa Benediíto XIV e o eleitor arcebifpo de Moguncia Ibbre a confirmação de certos benefícios ec- clefiarticos. A corte de Vienna, tal era a lua illimitada coníiança no reprefentante portuguez, declarou ao núncio pontifício, não daria ou^■idos a nenhuma propofíção, que não foíTe aprefentada por intermédio de Carvalho'. Tão boas traças fe deu o enviado portuguez, que logrou defvanecer a paflageira tcmpcfíade entre o pontifíce romano e o príncipe mithrado, que n'uma carta de lo de junho de 1748 agrade- ceu o empenho e os bons officios do portuguez mediador. O tefíemunho de um diplomata francez, que por efta occafíão era minifíro junto da corte de Maria Thereza, não deixa a menor duvida Ibbre quaes foffem os dotes diplomá- ticos, revelados por Sebafl:ião de Carvalho, durante a lua refidencia na corte de Vienna. Efcrevendo ao leu governo aíleverava o plenipotenciário Blondel que nas duas negocia- ções, na que era concernente ao patriarchado de Aquileia, e na do eleitor arcebifpo de Moguncia, o enviado portuguez havia dado provas da Ília habilidade e bom juizo, da fíja rectidão e amenidade, e Ibbretudo da lua extrema paciência, qualidades, com que tinha grangeado não fomente as boas graças dos Ibberanos intereífados nas queftões, fenão tam- bém a confíderação de todos os reprefentantes extrangeiros e das peíToas de maior autoridade. Encarecendo ainda mais os dotes, que o faziam recommendavel e diftiníto entre os feus coUegas de Vienna, acrefcenta o enviado de Luiz XV que Seballião de Carvalho «era em tudo nobre fem ofíen- tação, de concertado juizo e prudência fíngular, rico de honrados fentimentos e principios, tendo por alvo fempre o bem geral». E fínalmente referia que ao deixar Sebalfião

' Appenfo II da Contrariedade ao libello, S 14.

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dc Cai-valho a legação, e ao partir para Lifhoa, tinha fido laftimada a fua aufencia pela corte e pela cidade".

As negociações de Carvalho em Londres e em Vienna tão longe eítavam de fer, como os íeus inimigos apregoavam, fobre aíTumptos fáceis de concluir, antes tinham aos olhos do próprio negociacior tal valia e importância, que ainda mefmo depois de levantado ás mais altas dignidades fe com- prazia em commemoral-as com largueza e referil-as como ferviços meritórios da fua primeira vida publicai

Não é provável que um homem de tão certeiro difcer- nimento tiveífe em grande preço o que fizera nas fuás lega- ções, fe em confciencia não fentiffe que d'ellas fe podia envanecer.

Foi durante a fua refidencia na corte de Maria Thereza, que Sebaflião de Carvalho recebeu a nova da lua viuvez. D. Thereza de Noronha baixando ao fepulchro, ainda que laftimada naturalmente de quem no meio de tamanhas contradicções havia conquiftado o feu amor, deixava-lhe vacante o coração e miniftrava-lhe occafião a novo e mais brilhante defpoforio.

A condeífa Leonor Erneftina Daun, fobrinha do mare- chal Daun, tão famolb durante a guerra da fucceífão de Auftria, attrahira as attenções do enviado portuguez. Ella era joven e formofa, elle, fe bem não mancebp, comtudo pelas fuás qualidades merecedor das aíTeições de uma mu- lher. Era ainda gentil e bem difpoífo, a eítatura elevada,

1 Documento extrahido dos archivos do miniílerio dos negócios extrangei- ros de França, de lo de janeiro de lySo. Citado em Smith, Memoirs of the mar- quis of Pombal, vol. ii, pag. 53 e 54.

2 Em officio do conde de Bachi ao feu governo, de 4 de março de 1755, dizia eíle embaixador francez na corte de Lisboa: que quando elle (Car- valho) acertava de entrar em converfação fobre o que havia feito nas cortes de Vienna e de Londres, era para nunca acabar. Quadro elementar, tom. vi, pag. 53.

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nobre, varonil; o rofto mais graciofo, que fevero; o efpirito exornado dos talentos, que fervem para os altos negócios do governo, e não menos para as donairofas converlações no trato polido e focial; a palavra infinuante e attradiva. O melmo génio, que n'elle tornava irrellftivel a fua dominação nos ho- mens mais agreftes, amoldava-le com egual fuperioridade á conquifta da mulher. Recrefceram, porém, dificuldades ao principio para que podeíTe eífeituar-fe o conforcio defejado. Era a noiva de eftirpe efclarecida e de terra, onde a aha nobreza hereditária mais afincadamente fe governa pelos preconceitos da fua feudal hierarchia. A condeífa daria de barato os muitos quilates mais, que a fua nobreza levava de vantagem á obfcura fidalguia do feu galanteador. Mas eram, ao parecer, mais efcrupulofos os parentes. Fizeram-fe inquirições fobre o nafcimento e afcendencia de Carvalho. Confultou-fe a rainha de Portugal, que informou favoravel- mente e atteftou que o enviado portuguez era de familia qualificada. Era deflino de Carvalho que houveíTe de afpirar em feus amores ás eminentes fummidades, e que entre elle e as fuás confortes fe levantaíTe, como importuna contra- dicção, a altiveza ariftocratica das familias, com quem pre- tendia aparentar-fe. Fez-fe a final o cafamento. Efte enlace não foi talvez extranho á fua próxima fortuna. A condeífa Daun, como fobrinha do afamado vencedor de Frederico II, e como compatriota da rainha de Portugal, lhe ganharia facilmente as boas graças e contribuiria talvez efficazmente a que o marido, afpirando aos altos cargos do governo, podeíTe triumphar dos feus inimigos e rivaes. O talento nos homens, que nas monarchias abfolutas não valem pelo alto nafcimento, é como uma alavanca, que não pôde empregar- fe fem um fulcro. Ainda nos próprios governos populares o mérito para afcender e refulgir nas eminentes regiões pre- cifa muitas vezes dos impulfos externos do favor. O próprio

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Bonaparte, fem os bons officios de Barras, teria porventura vegetado largos annos, e talvez não lograria as fafces do confulado e o fceptro de imperador.

Eftava conduzida a feliz termo a negociação, que o levara á corte de Vienna. Havia Sebaftião de Carvalho padecido grave detrimento na laude. O celebrado medico Van Sw^ieten aconfelhava-o a que faííTe de Vienna, onde mais um inverno rigorolb o poderia pôr em grande perigo. Urgiam-n'o circumlíancias particulares a volver de novo á pátria. Via imminente um novo reinado. Era aquella a fazão mais opportuna para vir a Lifboa e aíTiftir ao trifte defmoronar do reinado longo e efteril do monarcha lum- ptuofo. Teria talvez rebates de que poderia fer chamado pelo novo foberano ao minifterio. Deixou Vienna a 3 de feptembro de 1 749 e eftava defde o i de dezembro em Lifboa', quando o piedoíb D. João V legava a D. Jofé uma extenfa monarchia, decadente e debilitada por todos os vicios e corruptelas de um governo, que teve por arbi- tro um abfoluto e voluptuofo dominador, e nos degraus do throno a fervidão dos confelheiros e o fanatilmo dos con- feíTores.

CAPITULO III

POMBAL NO MINISTÉRIO

Defde que Sebaftião de Carvalho chegou a Portugal até que D. João V a 3 1 de julho deixou o throno vago ao fuc- celTor, efteve o antigo e benemérito enviado portuguez, fem que deíTem novo emprego ás luas eminentes faculdades. Não havia por então vacante nenhuma das mais importantes

Appenfo II da Contrariedade an libello, §S '7 e 18.

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legações. Dos miniftros que compunham o ultimo gabinete de D. João V, o cardeal D. João da Motta e Silva havia terminado a lua mortal carreira a 4 de outubro de 1747. O francifcano recolleto, Fr. Gafpar da Encarnação, tio do duque de Aveiro, nos annos derradeiros de D. João V domi- nava, como primeiro miniftro, o animo do monarcha enfra- quecido por dilatada enfermidade. O lecretario de eftado da marinha e domínios ultramarinos, António Guedes Pereira, tinha fallecido em 1 747, e Marco António de Azevedo Couti- nho, que dirigira a repartição dos negócios extrangeiros e da guerra, precedia de poucos mezes no íepulchro, em i75o, ao leu régio protedor. De todos quantos haviam exercido o minifterio defde 1736, em que D. João V inftituira as três íecretarias de eftado, fomente Pedro da Motta era ainda o limulacro de um miniftro, quebrantadas as antigas faculda- des pela doença e invalidez. Era elle quem preíidia, delde a lua recamara ou do leu leito, a todos os negócios da nação. Um reinado novo foi lempre em todos os tempos c em todos os logares, fob todas as formas de monarchia, a qua- dra mais fecunda em ambições e em efperanças, em intrigas, em bandos e facções. Em redor da nova realeza, que appa- rece, agham-le, revolutèam e contendem prellurofos os cor- tezãos e os pretendentes, como os peixinhos n'uma lagoa furgem improvifamente dos feus efconderijos, e acodem em cardume á flor da agua a debater-fe, quando inefperada mão lhes atira um mendrugo minimo de pão. Os que haviam no reinado antecedente desfrudado com largueza os proven- tos da privança no animo do foberano, bufcavam no reinado, que nalcia, confirmar a lua antiga preponderância. Os que não tinham alcançado influencia, esforçavam-fe por grangear as graças e a valia do príncipe inexperiente e apoucado, que ia inaugurar a lua duradoura foberania. Os aulicos difputa- vam o favor, os políticos o poder, os jeluitas a confciencia

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do novo dominador. E fácil adivinhar como do paço, onde efteve durante largos mezes moribundo o rei D. João V, faziam feu theatro os intereffes encontrados e as ardentes ambições.

Os ferviços de Carvalho nas fuás enviaturas e a reputa- ção dos feus talentos o eífavam aprefentando candidato a uma das fecretarias de eftado.

Mas n'aquelle tempo os homens mais illuftres pela lua dexteridade, fciencia e bom confelho nos negócios de gover- no, não entravam facilmente no poder, fe os não chamaíTe a efficaz recommendação de algum alto valedor.

Eram muitos os méritos de Carvalho e zelofos os que apregoavam fua fama. Eram porém mais numerolbs os feus émulos, que procuravam deíTervil-o no animo do principe e aííaftal-o para fempre do governo.

Os efcriptores ainda contemporâneos de Pombal, que antes infpirando-fe na calumnia dos odientos libelliftas do que no efpirito imparcial dos graves hiftoriadores, fe propo- zeram a vingar no efladifta decaído os aggravos da Compa- nhia e da nobreza, aíTeveram que Sebaífião de Carvalho á fua volta de Vienna andara alhanando o feu caminho ao minifterio, cortejando fervilmente os homens de maior auto- ridade e os que tinham melhor entrada com el-rei D. João V. Os que nos annos derradeiros do monarcha dominavam o feu animo débil e enfermiço eram principalmente e em pri- meiro grau o jefuita napolitano João Baptiíta Carboni, o fran- cifcano Fr. Gafpar da Encarnação e o padre Jofé Moreira, jefuita, confeífor de D. Jofé, então príncipe do Brazil. Afiir- mam efles inexoráveis inimigos que Sebaftião de Carvalho fe proftrava humilde, antes rafteiro pretendente, aos pés d'eftes amigos e confelheiros do monarcha, procurando com indignos artifícios alcançar o feu favor e recommendação, e moftran- do-fe fervorofo adepto e defenfor da omnipotente Compa-

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nhia. Acrefcentam que os jefuitas, e os da fua parcialidade, enganados pelo profpedo lifonjeiro de ter nos confelhos do foberano, na peíToa de Carvalho, um inílrumento obediente, o recommendavam com inftancias fervorolas a D. João V, indi- cando-o como o fujeito mais capaz de reger a vafta monar- chia, e que el-rci, adverfo ao pretendente, fe recufava tenaz- mente a admittil-o ao feu governo, allegando que tinha, como fe diz em phrale familiar, cabellos no coração". O que parece verolimil e provável é que Sebaftião de Carvalho, depois de ter defempenhado honrofamente as duas impor- tantes legações, não ficaria ociofo e indolente na capital fem que a lua energia fe mefclaífe ás agitações politicas do tempo, quando eftava próximo a inaugurar-fe um novo reinado. A elevada fituação, em que fe achava no mundo official, lhe facilitaria naturalmente o acceífo aos homens do governo ou do confelho. Sabendo que nas monarchias abfolutas, e ainda em grande parte nas reprefentativas, a eleição dos miniftros pende fempre da aífeição e alvedrio do imperante, e que nas fuás rcfoluções figura como fador o influxo dos validos, não deixaria de grangear os bons officios dos que mais preponderavam no efpirito de el-rei. Não é pois contra a boa razão que Sebaítião de Carvalho fe acercaíTe do francifcano e do jefuita, cujo ódio ou bem- querença lhe poderia cerrar ou delbbflruir o ingreflb no poder. Não é porém crivei que, fegundo refere o feu maior e mais cruel adverfario, fe fingifle jefuita e fe gloriaífe d'cfte nome na prefença dos feus imaginados protectores.

Se havemos de acreditar no teftemunho de um agente diplomático francez na corte de D. Jofé, o recolleto Fr. Gas-

' Vita di Sebafl. J. de Carvalho, tom. i, pag. 1 1 e i6. D'ertas defhonrofas im- putações de baixeza e fervilifmo o defende e o vinga com fervor a obra, que fe intitula Uadniiniflration du Marquis de Pombal, vol. i, pag. 227 e 228.

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par da Encarnação, longe de ter favorecido a elevação de Carvalho ao minifterio, ao contrario fentiria defprazer com femelhante nomeação '. O francifcano ambiciofo, apefar da humildade e rudeza do feu habito, havendo por algum tempo libado á cabeceira do moribundo D. João V a taça do poder, mal poderia agora interceder por quem o fubfti- tuiíTe na privança e audloridade. O alcetico mentor do frei- ratico foberano cuidara porventura ter firmado com tamanha folidez os feus créditos de eftadifta, que a paíTagem do fce- ptro portuguez de umas a outras mãos não viria abalar ou deítruir a fua preponderância no governo-.

Não é improvável, ainda que não atteflado por docu- mentos, que os jefuitas favoreceíTem as ambições do leu futuro e terrível antagonifta. Até áquelle tempo nenhuma demonftração denunciara o ódio de Pombal contra a pode- rofa e abforvente Companhia. Não era ainda chegada a fazão própria, e talvez n'aquelle tempo o grande legiflador não tiveíTe contra o inftituto de Santo Ignacio as mefmas pre- venções, que lhe armaram depois em damno irreparável o braço [vigorofo. Os jefuitas, diga-fe em verdade, efpiavam diligentes cada novo talento que apparecia, anciofos por ahflal-o em fuás hofles, ou contal-o fequer por alliado. Sobradamente conheciam os méritos de Sebaftião, defejariam porventura annuncial-o entre os feus devotados parciaes.

A diíTimulação e a prudência, a difcrição e a tenacidade em faber efperar eram dotes preeminentes no carader de Pombal. E próprio dos mundanos efladiftas o eleger os alliados, fegundo o demanda a conjuncção, e aproveitar os

1 Oíficio do encarregado de negócios de França, Duvernay, ao feu governo, de 4 de agoflo de lySo. Vifconde de Santarém, Quadro elementar das relações politicas e diplomáticas, tom. vi, pag. i.

2 Ofricio do encarregado de negócios de França, Duvernay, de 1 1 de agoUo de 17 5o, Quadro elementar, tom. vi, pag. 2.

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auxílios dos próprios, que mais tarde haverão de perleguir e profcrever. Ora SebaíHão de Carvalho era um d'eft:es polí- ticos aa vida aftiva e praáhca. Acceitemol-o apenas Ibb cite afpeílo, e não efperemos da fua indole, do feu tempo e da atmofphera governativa, em que viveu, um afecta defpren- dido de todas as terrenas ambições, rendido aos eftriftos preceitos da ethica mais pura, e extranho por altiva indigna- ção ás traças e artifícios da corte e da politica. Se foíTe poli- tico ideal, governando com o Evangelho n'uma das mãos, e a Imitação de Chrijlo na outra, o feu caminho não era para os paços da realeza, nem para os gabinetes do governo. A fua efí:rada era ou para os myfticos c filenciofos ermos do BuíTaco ou para a vida agrefte c campefína da fua natal e fertaneja povoação. Até os máximos talentos na moderna arena parlamentar para fubirem e crefcerem e coroarem as alturas do poder, precifam de cortejar. Os mais nobres cor- tejam a popularidade, os medianos os chefes dos partidos, os menos efcrupulofos a coroa, fonte e difpenfadora das graças e mercês. Sebaftião de Carvalho não tinha tribuna, onde patentear os feus talentos, nem povo, a quem apre- fentar candidatura. Tinha fomente o rei, os confeííores e os validos.

A rainha D. Maria Anna parece que era, porém, a fua mais efficaz patrocinadora. A rainha era auftriaca e defde Portugal efl;endia olhos faudofos á pátria e á dynaftia. hite- reíravam-n'a em fummo grau os negócios do império. Car- valho preíMra um bom ferviço a Maria Thereza. A mulher de D. João V havia facilitado o conforcio de Sebaftião. Tinha agora junto de fi a condeíTa Daun, c[ue por fer com- patriota lhe era mui acceita. As mulheres foram em todos os tempos excellentes mediadoras em negócios de politica e de ambição. Excluídas dos públicos oflfícios, fempre foi n'ellas inclinação o vingarem a fua inferioridade legal exer-

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cendo o governo das recamaras e dos íalões, e ganhando na direcção da fociedade pelas graças e attradivos da debilida- de feminil o que muitas vezes os homens não confeguem pelas traças e empenhos do feu máfculo vigor.

El-rei D. Jole fuccedeu no throno dos Braganças no i de agofto de lySo. No dia feguinte conftituiu o feu miniíte- rio, confervando como fecretario de eftado dos negócios do reino ao invalido Pedro da Motta e Silva, e nomeando para os negócios extrangeiros e da guerra a Sebaftião Jofé de Carvalho e Mello. O abbade Diogo de Mendonça Corte- Real, fobrinho do notável miniftro do mefmo nome em tempos de D. João V, teve a repartição dos negócios da ma- rinha e domínios ultramarinos, e foi quem exerceu o officio de efcrivão da puridade no auto folemne da acclamação e juramento do monarcha portuguez.

O novo gabinete, em que Pedro da Motta deveria repre- fentar, como tradição do antigo reinado, o elemento confer- vador, achava-fe formado, fegundo a norma dos miniflerios portuguezes na antiga monarchia. Não era propriamente um miniíferio na moderna accepção d'eíl:e vocábulo, fenão antes propriamente o confelho do imperante. Os eftadiftas, que n'elle figuravam, não eram obrigados a profeíTar eguaes opi- niões fobre os mais altos aíTumptos da politica. Era quafi habitual que entre elles fe paífaílem ao revez as mais fla- grantes diíTidencias de doutrina e de aífeições. O rei elegia um fecretario de eftado como nomeava um eftribeiro mór, fem inquirir fe o novo eleito podia harmonicamente conviver com os feus collegas do governo ou com os outros oflficiaes da fua cafa. As invejas, as intrigas, as malquerenças, as ten- fões interiores d'aquelle mal combinado fyftema de heterogé- neos elementos, faziam neceíTariamente malbaratar grande parte da força útil e produífiva e os negócios padeciam as confequencias da aufencia de unidade no governo. Um efpi-

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rito vidente, enérgico, reformador, fentia-fe encerrado eftrei- tamente n'aquelle âmbito, onde a largueza das concepções mal acharia efpaço, em que expandir-fe. Ou o eftadifta emi- nente haveria de refignar-fe a defpachar na fua dourada oblcuridade o rafteiro e quotidiano expediente, ou teria de levantar-fe tão llihido no animo e na confiança do íbberano, que na altura a que fe ergueffe, deixaíTe abaixo do feu vulto a figura quafi invifivel do imperante, e confi-indiíTe os collegas obedientes e fijbmiíTos na turba dos feus efcribas e clientes. No leio do gabinete não era, porém, difficil a Sebaílião de Carvalho o tornar-le de fado o primeiro miniítro de D. Jofé e avaíTallar ao feu talento os que com elle eram par- tícipes no poder. Pedro da Motta era homem de edade proveóta, canfado de trabalhos, enfraquecido pela doença pertinaz, que durante os últimos dez annos lhe não confen- tia laír de cafa.. A fua cooperação no gabinete era por iífo quafi nulla, e o embaixador francez d'aquelle tempo na corte de Lifboa não lhe fazia com certeza uma oftenfa bem pun- gente, quando efcrevia ao feu governo que Pedro da Motta nada mais era que um autómato'. Todavia a fua longa permanência no gabinete, aonde entrara em lySõ, e os res- peitos, que a fua velhice e lealdade mereciam ao novo rei, obrigavam Sebaftião de Carvalho a ter com o feu collega obfequiofas deferências e a confultal-o com frequência nos negócios do govenio-. O abbade Diogo de Mendonça era antes um primorofo cortezão que um eftadifta mediano, mais zelofo e diligente em amimar a innata propenfão de D. Jofé para as diverfões e monterias, que esforçado em

" Memoria do conde de Bachi, embaixador de França, ao leu miniftro dos negócios extrangeiros, de 5 de fcptemhro de 1754. Qiiadro elementar, tom. vi, pag. 47.

2 Officio do conful francez Duvcrnay ao leu governo, de 3o de novembro de 1751. Quadro elementar, tom. vi, pag. 18.

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alTignalar por enérgicas reformas a fua breve paíTagem no poder ' .

Sebaftião de Carvalho fobreexcedia os feus collegas de toda a immenfa altura do leu talento, da fua longa e illumi- nada experiência, e d'eíte dote ingenito, d'efta perfpicaz in- tuição, com que fe nafce general ou eftadifta, com que defde o principio da carreira fe alcança no campo de batalha uma viftoria, como Conde ou Buonaparte, ou nos gabinetes do governo um civico triumpho, como Sully e Richelieu.

Sebaftião de Carvalho não era homem, que depois de tomar nas cumiadas a fua primeira pofição, fe contentaífe em a defender paíTivamente. Doia-lhe no coração o eftado laftimofo de Portugal. Ardia-lhe no animo o zelo fervorofo de o reformar. Sentia-fe com pullb para obras tão gigantes, que feriam quafi nova edificação fobre ruinas, como defbra- var de charneca pedregofa apoz milhares de annos de mani- nha. Os miniftros, que tinha de companheiros, eram homens de entendimento mediano, incapazes de voos aherofos; um por velho, enfermo, acoftumado a um regimen, onde a arte de governar fe refolve em impedir os progreífos nacionaes, o outro com ambições fem proporção com a fua capacidade e, como fuccede fempre com os vaidofos e medíocres, fof- frendo de maus olhos o talento fuperior.

Antes que o novo legiílador podeífe pôr em obra os vas- tiíTimos planos, que porventura trazia traçados na mente penfadora, tinha de porfiar com grandes contradicções. Não era o mais favorável e feguro o theatro, onde tinha de exercitar-fe a fua indómita energia. Para que um incanfavel reformador podeífe pôr o peito com vantagem á empreza de infufflar novos efpiritos n'uma velha monarchia decadente,

' Officio do conful de França ao feu governo, de 3o de novembro de \-jbi. Quadro elementar, tom. vi, pag. ig.

abatida, quafi a pique de cair na ultima ruina, era neceífario que em meio do ambiente corrompido, onde havia de refpi- rar, tiveíTe algumas propicias condições, que lhe ferviíTem de valiofo adjutorio: um rei illuftrado, zelofo, empenhado fer^'orofamente em expiar com generofos facrificios os erros e abulbs do reinado antecedente e em intereíTar-fe com pro- funda finceridade n'elta quafi rellirreiçáo da fua pátria. Era alem d'ilTo neceíTario que as peflbas dominantes no animo e na valia de D. João V, deixaíTem vacante o feu logar a novos elementos congruentes com as idéas de larga reformação. Cumpria ademais que fe as claíTes mais poderofas contradic- taíTem o novo teor e norma do governo, as turbas popula- res, pelo inítindo do feu próprio intereíTe, circumdallem o audaz legillador com uma atmofphera de lenlata opinião. Todas eflas circumftancias eftavam, porém, mui longe de exiftirem n'aquella conjundura.

O rei não tinha um dos eminentes predicados, que podem Juftificar o capricho da fortuna, ao confiar pelo acafo do nafcimento a um homem predeftinado a fuprema e irres- ponfavel direcção dos léus compatriotas. O feu piri to não rafgava largos voos e a fua illuftração, defcurada fegundo o ufo da cafa de Bragança, não podia contrapefar a mingua dos talentos.

No rei a timidez completava a irrelblução.

As diverfões e palTatempos, entre elles, principalmente as operas, as caçadas e monterias, conítituiam a fua mais dileda occupação'. A rainha participava com el-rei nas mes- mas venatorias predilecções e na mefma frivolidade corte- zan^ N'efte ponto parecia continuar, fem a magnificência do

> OfRcio do conful francez Duvernay para o feu governo, de 7 de novembro de 1752. Quadro elementar, tom. vi, pag. 24.

2 Memoria do embaixador francez, conde de Bachi, para o feu governo, de 5 de feptembro de 1754. Quadro elementar, tom. vi, pag. 47.

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reinado precedente, a leviana complacência com as munda- nas deleitações. O embaixador francez dizia ao feu governo que era lem egual a diíTipação, em que vi\ia a curte por- tugueza'. O thefouro empobrecido, apefar da aftluencia inexhaurivel do oiro do Brazil, mal podia fatisfazer aos pro- digiofos difpendios, com que o rei e a rainha tornavam apra- ziveis e fauftofas as fuás diverfões^ Ainda mefmo defcon- tando largamente nas exageradas proporções, a que os teítemunhos contemporâneos elevam os gaftos do rei e da rainha nas fuás continuas recreações, podemos acreditar que os régios appetites deíTangravam com frequência as quafi defertas arcas do thefouro-'. O embaixador francez não fe alongava por extremo da verdade, quando aífeverava ao feu governo que á indolente corte portugueza mais a preoccu- pava a opera italiana e o feu cantor Cafarelli do que os gra- viíTimos fucceífos que no mundo fe paífavam"'.

As influencias, que haviam predominado em tempos de D. João V, não eftavam ainda inteiramente debelladas. A rai- nha D. Maria Anna de Auftria, que pela fua extremada pie- dade não deveria fer harto propicia a reformas e innovações no poder ecclefiaftico, tinha acceífo aos confelhos de feu filho, que com ella conferia em grande parte os negócios do gover-

' Officio do embaixador francez, conde de Bachi, ao feu governo de i3 de fevereiro de 1 753, Quadro elementar, tom. vi, pag. 28. Officio do mefmo embai- xador, de 27 de fevereiro de 1753, ibid., pag. 3o.

2 Officio do embaixador francez, conde de Bachi, de 17 de janeiro de 1754: «Que a familia real partira para Salvaterra e deixara o erário fem vintém». Quadro elementar, tom. vi, pag. 42.

3 Officio do embaixador francez, conde de Bachi, de 21 de janeiro de 1/55: «Que el-rei partira para Salvaterra e. . . aquellas jornadas eramfobremaneiradis- pendiofas ; que el-rei, eftando em Palma fem guardas, fem cafa, nem pagens e fo- mente com a rainha, gaitara em quinze dias quinhentos mil cruzados". Quadro elementar, tom. vi, pag. 5i.

4 Officio do embaixador francez, conde de Bachi, de 29 de abril de 1755. Qua- dro elementar, tom. vi, pag. 45.

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no. Fr. Gafpar da Encarnação, faudofo d'aquelles áureos tempos, em que o leu francifcano burel fe fazia obedecer da regia purpura, não via com bons olhos o novo confelheiro do Ibberano'. Alexandre de Gufmão, o antigo fecretario particular de D. João V, não continha o feu animo irrequieto nos limites de uma grave moderação, nem deixava ociofos os feus grandes talentos de politico, empregando-os n'uma es- pécie de furda oppofição". A alta nobreza. defde os prin- cípios fufpeitára que em Sebaftião de Carvalho não teria um ertrenuo dcfenfor. Eftava acoftumada a ingerir-fe indire- ctamente no governo, não manifeftava uma notável affeição, a quem não confentiria facilmente na partilha do poder \ As machinações e os meneios encobertos ou hoflis não fahavam em redor do monarcha inexperiente e irrefoluto ''.

O povo nos começos de um reinado novo faudava apenas a novidade, porque fempre nos povos de fervente imaginação é bemvindo e feítejado o que é defconhecido. Os longos e monótonos reinados, como fora o de el-rei D. João V, fatigam e aborrecem finalmente como um drama de eflirada contex- tura. Mas os applaufos populares á fituação inaugurada não fignificavam defejos vehementes de radical e ampla refor- mação. Seria um erro o prefuppor que a geral opinião era adverfa ao predomínio clerical, e que o tribunal da inquifição e a companhia de Jefus na corte encontrariam favor e pa- trocínio. A fuperftição, o fanatifmo, a ignorância alaflravam-fe no paiz como um véu efpeíTo e impenetrável á luz da razão

1 Officio do conful francez, de 7 de novembro de 1752. Quadro elementar, tom. VI, pag. 2 5.

2 Officio do embaixador francez, conde de Bachi, de 8 de janeiro de 1754. Quadro elementar, tom. vi, pag. 40.

? Officio do conful francez, de 3o de novembro de 1751. Quadro elemen- tar, tom. VI, pag. 18.

4 Officio do embaixador francez, conde de Bachi, de 27 de dezembro de 1 752. Quadro elementar, tom. vi, pag. 25.

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e da fciencia. Sob os governos inquifitoriaes e obfcurantes pôde ás vezes o povo murmurar; mas não fabe refleftir. Taes eram os elementos, de que difpunha Sebaftiáo de Carvalho ao tentar os primeiros paíTos na fua carreira minis- terial. Era tão defanimadora e irremediável ao parecer a fi- tuação de Portugal, que não feriam demafiados os máximos esforços e talentos para o refurgir e animar. Todos quantos órgãos fe neceílitam no complexo mechanifmo do governo, eftavam em tão laftimofo eflado, que não era fácil difcernir a qual d'elles primeiro acudira com providencias efficazes. A adminiftração deforganifada; os rendimentos públicos es- caíTos e lifados nas mãos dos exadores; o thefouro quafi exhauflo ' ; o exercito reduzido á mais deplorável condição ; a marinha quafi nulla; a defeza nacional inteiramente des- prezada.

Se durante os primeiros annos do reinado precedente nas relações de Portugal com os governos extrangeiros, principal- mente com as grandes potencias europêas, mais de uma vez um rafgo de altiva dignidade havia rememorado os velhos brios portuguezes, nos tempos derradeiros de D. João V, a nação caíra novamente na fubferviencia a extranhos orgu- Ihofos. Da inhabilidade e fraqueza governativa de D. João V havia faido como o frutílo mais damnofo o tratado de 1 3 de janeiro de lySo, em que Portugal cedera á Hefpanha a coló- nia do Sacramento, e que durante o reinado inteiro de D. Jofé foi a femente ou o pretexto de acrimoniofas difllden- cias entre as duas coroas peninfulares.

Em taes e tão adverfas condições principiava Sebaftião de Carvalho o longo e memorável minifterio. As fuás facul-

> Os rendimentos públicos não chegavam n'aquelle tempo a dez milhões de cruzados, fegundo uma memoria enviada pelo embaixador francez, conde de Bachi, ao feu governo em 1754. Qiiadro elementar, xora. vi, pag. 49.

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dades eminentes, fafonadas pela experiência, não eram, po- rém, inferiores á empreza, que tentava. Logo defde os pri- meiros dias de miniftro a energia do feu animo fe defen- tranhava em úteis providencias. Era activo, indefeíTo o leu trabalho. Os próprios, a quem era mal acceito ou fufpeitofo, rendiam efpontaneo teítemunho dos feus altos dotes de eftadis- ta c da fua incanfavel applicação aos negócios do governo".

Um efpirito luperiormente illuminado, quando fe acom- panha de uma enérgica vontade e de uma audácia inque- brantável, fempre alcança levantar-fe acima do vulgar. A pouco trecho depois de nomeado para o officio miniílerial o vulto de Carvalho começava a enlbmbrar as figuras dos coUegas, affim como uma eítatua coloflal deixa quali imper- ceptíveis os pequenos medalhões que lhe jazem aos pés ex- ornando o pedeftal.

Ainda não era decorrido largo tempo após a fua entrada no minifterio e era voz commum que Sebaftião de Carvalho conquiftaria em maior grau que os feus coUegas a confiança do foberano. Era no feio do gabinete o vulto principal, e dirigindo os negócios políticos da nação, não reconhecia egual nem fuperior-. Deixando apenas aos feus collegas os negócios de puro expediente, era elle quem realmente prefidia á adminiítração e á politica em todos os aífumptos importan-

' "O povo fazia juftiça aos feus talentos, e até a própria nobreza, que o fus- peitava de querel-a arredar o mais poffivel do governo.» Officio do conful fran- cez para o feu governo, de 3o de novembro de 1751. Qiiadro elementar, tom. vi, pag. 18.

- «Sebaftião Jofé de Carvalho, fecretario de eltado dos negócios extran- geiros e da guerra. . . podia fer confiderado como o principal miniftro; infati- gável no trabalho, adivo e expedito, tinha conquiftado a confiança de el-rei,. . . e no que refpeitava á direcção dos negócios políticos, ninguém mais a tinha.» Officio do conful de França para o feu governo, de 3o de novembro de ijSi. Qua- dro elementar, tom. vi, pag. 18. Cf officio do mefmo conful, de 26 de janeiro de 1751. Ibid., pag. 1 1 1.

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tes internacionaes ou interiores. Para acudir ao defpacho de mil queftões e dependências em reino carecente de remédio em tantas e tão graves enfermidades fociaes, a fortiíTima tempera do feu animo e a fua robufta conftituição não fica- vam inferiores á multiplicidade e afpereza do trabalho. Logo defde os feus primeiros paíTos no governo fe põe de mani- feíto que á frente do poder eftá realmente um eftadiíta, infpirado em idéas e praxes mui diíferentes das que haviam affignalado os frouxos miniíterios do monarcha devoto e ga- lanteador.

Não é n'eítes primeiros annos de governo que Sebaflião de Carvalho revela as fuás mais eminentes faculdades e fe levanta defde logo ao nivel dos mais illuftres eftadiftas. Será mais tarde, quando extraordinárias circumftancias exigirem todo o esforço de talento e de energia, que o infigne refor- mador apparecerá com toda a majeftade e refplendor do rniniftro, que domina ao mefmo paífo os acontecimentos e os homens, o rei e a nação, a adverfidade e a fortuna. No tempo, que vamos agora contemplando, o previdente legiíla- dor prova e enfaia a fua aéfividade em reformas e negócios, que não têem ainda o vuho e a importância dos que mais tarde o terão de aíTignalar ao aífombro e ao terror. O campo, onde trabalha, ainda não confente ampliíTima cultura. Ainda Sebaftião de Carvalho não impera omnipotente no animo do rei. Ainda não fe defapreífado de todas as influencias rivaes e de todas as contradicções palacianas. Ainda não pôde tomar nas mãos a argilla informe de um paiz inculto e arrui- nado, e modelal-a a leu talante, fegundo o archetypo ideal, que o feu efpirito concebeu e madurou. Nos feus primeiros aftos de governo é como um grande artifta, que na officina ainda eítreita e mal illuminada experimenta o efcopro e o cinzel, e exercita em efboços imperfeitos o eftro na conce- pção e a deftreza no trabalho. É a epocha do eftudo e in-

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quirição. É o architecto contrafeito, que procede ás mais urgentes reparações no vetufto edifício focial, para que não venha a terra derribado, emquanto apparelha a nova traça com que íblidamente o ha de reííaurar.

Os léus cuidados mais inílantes fão defde logo dedicados ao que elle reputava juílamente a primeira neceffidade e con- dição de um povo independente e policiado. Trabalhar, pro- duzir, commutar, refgatar-íe quanto poffivel da tutela econó- mica e politica de extranhos, crear pelo effeito da própria adividade a maior Ibmma de produclos, aproveitar da ma- neira mais dilcreta os recurfos naturaes, eis ahi o problema capital, que uma nação ha de forçolamente relblver, fe pre- tende infcrever-fe honrolamente na liíta dos povos civilifados e engrandecer-fe pelas conquiftas incruentas, mas as únicas reaes e verdadeiras, da intelligencia e do trabalho.

A induftria, que nunca em Portugal fora florente, chegara a decair de tal feição, que até dos mais humildes artefados fe provia nos mercados exteriores.

A agricultura, avexada ao mefmo paíTo pelas ablurdas e iníquas leis agrarias, pela irracional conftituição da proprie- dade territorial, e pelo defleixo e ignorância das claíTes agri- cultoras, obrigava Portugal a pedir aos extranhos perenne- mente que lhe enviaíTem em grande parte os cereaes de que fe nutria. O commercio, que em tempos não remotos fizera de Portugal o grande empório, eftava quafi de todo concen- trado nas mãos dos extrangeiros. O immenfo território, que portuguezes tinham avaífallado em todo o globo, quando portuguez e conquiftador eram fynonymos, deixavam-n'o governos indolentes defaproveitado para os lucros mercantis. O oiro e os diamantes do Brazil faldavam as prodigalidades realengas e a quieta ociofidade nacional. Portugal recortado languidamente nos coxins, onde em efpirito e corpo dormi- tava, alongava os olhos cubiçofos para as terras auríferas,

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que julgava inexhauriveis, e á lemelhança dos feus morgados foberbos e preguiçofos, defdenhando o trabalho por fervil, e a induftria por plebêa, efperava a nau dos quintos com a anciofa expeítação, com que a plebe romana faminta, mas altiva, aguardava as naves onerarias carregadas de trigos extrangeiros.

O primeiro e mais urgente dos problemas governativos era pois reanimar a induftria e o trabalho, produzir e fixar a riqueza em Portugal. As foluçóes, com que o miniftro bufca fatisfazer efta queftão, nem fempre, confideradas á luz da moderna fciencia focial, merecem elogio.

E porém fempre louvável a intenção. Não era n'aquelle tempo ainda formada como corpo doutrinal e pofitivo, a eco- nomia politica. Vogavam como axiomas muitas doutrinas, que hoje fe condemnam por erróneas e funeftas á profperidade nacional. O fyftema mercantil, fundado na falfa interpretação das grandezas económicas de Veneza, de Génova, de Hol- landa, de Portugal, quando fenhor do commercio no Oriente, dominava feguro nos efpiritos. A nação, que abforvia e con- centrava a maior fomma de metaes preciofos, era julgada a mais opulenta e a mais feliz. Trafladando para o governo dos eftados a máxima fundamental da avareza inerte e cubi- çofa, cifrava-fe no oiro toda a riqueza das nações. Era Por- tugal um dos eftados, que a natureza mais favorecera com efta benção apparente e enganadora. Mas confumindo o paiz as mercadorias extrangeiras, principalmente as inglezas, e não tendo como retorno produdos fuíficientes da fua indus- tria ou do feu folo, o oiro filtrava-fe naturalmente para fora de Portugal atravez do crivo das feveras prohibições. A cor- rente duplicada dos extranhos artefaéfos e das efpecies pre- ciofas, em virtude das leis económicas, tão foberanas e impe- riofas como a lei da gravidade, refiftia ás mais feveras comminações. O contrabando por uma fatal neceíTidade

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reftitue o equilíbrio, quando a cega legillação vem pertur- bal-o com as luas inconfideradas reftricções.

Carvalho com a penetrante intuição do grande talento, que prefente e adivinha, alcançava romper os efpeíTos nevoeiros das velhas monarchias, e antecipar-fe ás modernas e verdadeiras concepções da economia Ibcial. As luas máxi- mas juftas e concordantes com a pura theoria apparecem mefcladas com os erros económicos. Por mais vidente que um elpirito fe alteie, nunca pôde inteiramente libertar-fe dos preconceitos do tempo, em que viveu. Carvalho admittia que uma nação, que das outras depende para a lua própria fubfiítencia, bem depreíTa cairá na fervidão, e fera a fácil preza de um vulgar conquiflador. ProfeíTando claramente que a agricultura e o trabalho fabril conflituem a felicida- de focial e lao o firme fundamento da lua permanência, Carvalho, diíTentindo dos erróneos princípios confagrados no reinado antecedente, aflevera que fe uma nação concentra unicamente nas minas do oiro e prata a fua predilecção e o feu esforço, terá necelfariamente de perecer. Exaggerando fobremaneira as próprias verdades económicas, acredita que os metaes preciofos lao apenas riquezas fidlicias e apparen- tes, os feus jazigos thefouros funeíllífimos, e os eftados, que os poífuem, apenas os feus meros diftribuidores.

Se Carvalho, porém, não confiderava o oiro do Brazil como o efplendido cimento da profperidade e riqueza nacio- nal, antes á fua Irrefiftivel feducção attribuia a decadência e o lethargo do trabalho no folo e na ofíicina, via com maus olhos que a Inglaterra cubiçofa, a troco da fua alllança nem fempre cordial e dos feus auxílios mais de uma vez ineffica- zes nos tranfes mais dlfficeis, dominaífe Portugal pelo feu ampllíTuTio commercio e pela fua politica ambiclofa para com as menos poderofas e enérgicas nações. Portugal era na phrafe do eftadlfta como um vafto amphltheatro, em que os portu-

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guezes eram apenas efpcdadores, lem que lhes folTe permit- tido participar na reprefentação. Os inglezes, dizia o miniftro de D. Jofé, monopolifavam de todo o ponto o commercio do Brazil. Nada havia n'elle de portuguez, fenão o nome. Em meio do feu immenfo trafico, que parecia opulentar e engrandecer a Portugal, a fua força decaía a cada paíTo, e os inglezes embolfavam os proventos das extenfas grangearias. As allianças, continuava o eftadifta, fão apenas vinculos inte- reíTeiros e egoiítas, porque o eítado que para ellas contribue com o máximo poder, efpera também o máximo proveito. A dependência de Portugal a refpeito da Inglaterra era, no fentir do reformador, quafi tão vexatória e oppreíTiva, qual fora a lujeição aos reis de Hefpanha. Emancipar o feu paiz da tutela politica e mercantil das grandes potencias euro- pêas, e principalmente da higlaterra, é o penfamento, que tranfparece defde os feus primeiros tempos de minirtro nos ados legiflativos de Carvalho.

D'ahi procedem os rigores inefiíicazes, com que pretende cohibir a illegal exportação do oiro, e as acertadas provi- dencias, com que logo de principio fe confagra a crear de novo a induftria nacional, a favorecer a agricultura, a infuf- flar novos efpiritos no commercio quafi preítes a extinguir- fe. Tornar Portugal independente dos extranhos, na vida económica e politica, tanto quanto o pôde permittir a har- monia internacional, eis ahi a fua confiante e larga afpira- ção. E por iffo que as fuás primeiras providencias fifcaes fe encaminham a facilitar e proteger o trafico das principaes produções agrarias do Brazil". E por ilTo que bufca prote- ger a induftria das fedas, outr'ora florefcente, promovendo com eftimulos e prémios valioíbs a plantação das amoreiras

' Regimento dos direitos do tabaco e do aíTucar, de i6 de janeiro de !~5i. Decreto de 27 de janeiro do mefmo anno. Decreto de i5 de dezembro de 1752.

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e prohibindo leveramente a exportação da matéria prima'; é n'eíre intento que fe empenha em fomentar a refinação do aíTucar^, concedendo notáveis privilégios a Henrique Schmitz e prohibindo a importação extrangcira; é por iíTo que con- cede a todos a plena liberdade de defcobrirem novas minas de prata e outros metaes na America portugueza^.

As vaftiffimas colónias de Portugal no antigo e novo mundo, tão fecundas e opulentas pela próvida mão da na- tureza, tão defaproveitadas e ociofas pela incúria dos gover- nos, attrahem defde logo a attenção do folicito legiflador.

Portugal havia perdido para fempre a fupremacia mer- cantil no Oriente. O trafico da Afia, reduzido a diminutas proporções, atteítava a indolência de uma nação, que abrira aos demais povos europeus o caminho da índia oriental. Não era poffivel evocar um paíTado riquiffimo de glorias e não menos de grangeios commcrciaes. Porém o patriotifmo de Carvalho, illufo, mas não menos fincero e fervorofo, ima- ginou que o monopólio alcançaria o que a liberdade mer- cantil não poderá conquiftar. E em verdade não era indes- culpável o erro do minifiro. Se o campo aberto largamente á concorrência e ao livre tráfego, o deixava a inércia na- cional cada vez mais decadente e infecundo, porventura lo- graria o monopólio a miraculofa refiarreição do commercio oriental. Eis ahi a explicação do exclufivo decretado por dez annos com privilégios quafi majeftaticos em favor do opulen- to contratador do tabaco, Feliciano Velho Oldemberg, e as efperanças deluforias de que efte mercador faria reflorir o trato portuguez na índia e na China*.

' Lei de 20 de fevereiro de 1752.

2 Decreto de 14 de julho de 175 i. Decreto de i3 de janeiro de 1755. Pro- vifão regia de 24 de maio de 1753.

3 Alvará de 4 de maio de lyóS.

4 Decreto de 16 de março de 1753.

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As inexhauriveis riquezas da America, haftantes a crear e nutrir um grande império, ferviam unicamente a enriquecer os inglezes, em cujas mãos ambiciofas, mas enérgicas, fe en- feixavam as emprezas commerciaes.

Não bailava declamar contra a britannica avareza, que era a confequencia juftiflima e natural da adtividade e do talento mercantil da Gran-Bretanha, e da conhecida negação de Portugal para os intentos económicos e para o trabalho produótor. Se a America, entregue apenas á liberdade e á es- téril iniciativa dos indivíduos, é como um immenfo e bravio latifúndio, invoque-fe como eftimulo e remédio o privilegio commercial. Contraponha-fe ao monopólio natural de uma nação adiva e induftriofa o monopólio artificial de uma po- derofa companhia. Tal foi em parte a infpiração que produ- ziu a companhia do Grão-Pará e Maranhão inftaurada pelo impulfo governativo e bafejada com a mais larga protecção e os máximos favores e privilégios". Era convidativo e tenta- dor o exemplo da celebrada companhia das índias, fob cujos aufpicios fe confolidára e engrandecera o império britannico no Oriente. Outras menos famofas em diverfas nações com- merciaes eftavam egualmente incitando o legiflador a confiar ás poderofas aíTociações o trato mercantil nas fecundas re- giões americanas. Era o penfamento que no feculo antece- dente tinha forrido como eííicaciífimo recurfo para cultivar fruftuofamente em proveito da metrópole as colónias portu- guezas. Era ao mefmo paíTo a primeira tentativa de natu- ralifar em Portugal eftes poderofos inftrumentos económi- cos, fem os quaes feriam impoíTiveis as emprezas coloíTaes, que pela cooperação dos capitães e dos esforços colledivos operaram os milagres portentofos da prefente civilifação. Se nos tempos de agora fe deixaíTe ao alvedrio de cada um o

Alvará de 7 de junho do 1755.

conftruir e grangear os caminhos de ferro, que exigem capi- tães mui fuperiores aos do mais opulento particular, as na- ções do mundo policiado ainda hoje eftariam condcmnadas aos lentos e difpendiofos meios de communicação e de trans- porte. Sem a poderofa alavanca das grandes companhias to- das as emprezas induftriaes de largo tomo feriam impoíTiveis ou illuforias. Ao principiar a adminiítração de Sebaftião de Carvalho, o commercio e o grangeio dos vaftiífimos territó- rios portuguezes na America não achava nos indivíduos particulares a refolução e o cabedal, com que podeíTem tor- nar-fe proveitofas e fecundas as riquezas do Novo Mundo. A liberdade é o principio falutar, de que dimanam todas as profperidades e progreíTos de uma nação, que a fabe ou a pôde aproveitar. A liberdade por fi é apenas um ambiente, mas para fer fruftuofa e produftiva é neceíTario que com ella fe aíTocie a educação e a energia peíToal. E enorme, é vivifi- cante a maíTa da atmofphera, mas é precifo ter órgãos accom- modados para ahi viver e refpirar. Ora o povo, que D. João V legava ao feu herdeiro, era um povo incapaz de acção indi- vidual. Era precifo que o poder, ou fe fubftituiffe fatalmente á vontade popular, ou commetteíTe á defidia e inacção pro- verbial o encargo de levar o paiz á ultima ruina. O ideal do bom governo de uma nação chegada, como a União ameri- cana, á mais larga expanfão do penfamento e da adividade, é que as fuás funcções habituaes fe contraiam e limitem ao que intereífa á inteira fociedade e não pôde caber no arbítrio de cada cidadão. A milfão capital do poder publico é então o manter a liberdade, e para a defender e recatar o prover á juífiça e á fcgurança da nação. É apenas como o volante n'um perfeito mechanifmo. Modera e equilibra, mas não pô- de diredamente produzir, nem trabalhar.

É fob eíte afpedo que, para fermos juftos e verdadeiros, havemos de contemplar as providencias económicas de Se-

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baftião de Carvalho. Confrontal-as com os rigorofos theore- mas económicos, e condemnal-as por abfurdas, feria como fe aquilatando o edifício tofco e paíTageiro, levantado, fegun- do a occafião, para abrigo neceíTario contra as bravas intem- péries, rijamente o cenfuraíTemos por difcorde das regras architectonicas de Vitruvio ou de Vignola. A economia politi- ca é em verdade uma fciencia experimental e pofitiva nas fuás doutrinas fundamentaes, aífim como a mechanica racional é nos feus fundamentos inabalável. Nas applicações, porém, de uma e de outra aos problemas particulares, o dogma ideal, o archetypo theorico ha de forçofamente modificar-fe, n'uma ás condições indeílrudiveis da matéria, na outra ás temporárias condições de cada fociedade.

Também o principio eífencial de toda a induftria real- mente nacional e produtiva, é a liberdade e a iniciativa An- gular ou livremente cooperativa. Porém, quando eftas quali- dades inteiramente faltam n'um paiz, o governo abfoluto e omnipotente, arrogando-fe a fuprema direcção n'uma efpecie de meio-focialifmo, fe transforma, fe é adtivo e diligente, em mercador e fabricante univerfal. As induftrias, que elle infti- tuiu e bafejou, podem talvez um dia fer o gérmen do traba- lho efpontaneo e inteUigente, defpeiado de todas as tutelas e coacções governativas. O empenho do enérgico reformador é pois como os defvelos e carinhos, com que o perfeverante e próvido cultor eíleve animando a planta exótica e ainda rebelde, que mais tarde aclimatada largamente poderá avul- tar em bofque extenfo.

A fituação moral do paiz não era mais rifonha que o feu eftado adminiftrativo e económico. Era lafíimofa a diífolução dos coítumes, precária a fegurança das peífoas e proprieda- des ainda mefmo no feio da própria caphal. A nação abun- dava principalmente em ociofos. O ócio conduz naturalmente á íbltura dos coftumes, e d'ahi facilmente fe defcae nos atten-

tados e nos crimes, que perturbam a paz publica e degra- dam a nação.

Os falteadores e bandoleiros infeftavam infolentes e im- punes a capital e as provincias, em maior grau a do Alem- tejo, que por mais defpovoada, com os léus immenfos lati- fúndios e charnecas, fe accommodava com mais facilidade ás correrias e latrocínios dos audazes malfeitores. Era frouxa a autoridade, não a temiam os culpados. Era urgente acudir com promptas providencias e reflaurar o império da lei e da juftiça. A efle fim focial fe dirigiram vários diplomas legiflati- vos logo defde os primeiros tempos, em que pelo vigor e acerto das reformas fe eílava denunciando a prefença de Carvalho, o indefeíTo infpirador do minifterio. Reprime-fe a impunidade e a frequência dos ladrões formigueiros e damninhos'. Legiflam-fe penas feveriíTimas contra os que fe opponham á juftiça e arrebatem das fuás mãos os delin- c[uentes fem exceptuar as peífoas da mais eminente qualida- de*. Promulgam-fe providencias efpeciaes para eftirpar de vez os aífaltos e as violências das cjuadrilhas no Alemtejo^, e para tornar prompta e eííicaz a acção da juftiça criminaH. Procura o miniftro debellar o abufo funeftiffimo com que a força militar, em vez de contribuir á fegurança interna e ao refpeito da lei e do poder, fe eximia a auxiliar os magiftra- dos na perfeguição dos criminolbs e muitas vezes contradizia as diligencias judiciaes\

Defde os feus primeiros paífos no governo a pcrfpicacia do novo miniftro de D. Jofé comprehende que é o Brazil a

1 Alvará de lei de 12 de septembro de 1750.

2 Alvará de lei de 8 de julho de ijSi.

3 Decreto de 7 de agofto de 1751.

4 Alvará de 14 de agoílo de ij5i. Lei de ig de outubro de 1754, para fe prenderem os delinquentes fem culpa formada em cafos de pena capital.

5 Decreto de 22 de outubro de lybi.

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fonte principal da riqueza para a metrópole e o fundamento eíTencial da ília grandeza e profperidade. A companhia do Grão-Pará e Maranhão era o inítrumento, que fe lhe afigu- rava mais poderofo para reanimar o commercio n'aquellas vaftas e opulentas regiões. Mas como condição impreterível para a fua florefcencia era neceíTario que no Brazil fe exci- taíTe a cultura e aproveitamento dos produdos naturaes. Era pois conveniente e politico o convidar por meio de providen- cias humaniíTimas os indios incultos e fylveftres á commu- nhão civilifada, admittindo-os como irmãos na e na liber- dade ao grémio da nação. Um dos adlos mais infignes de Carvalho foi pois a lei ', em que fe favoreceram com privilé- gios Angulares as peíToas de procedência portugueza, que na America fe cafaífem com indios do Brazil, e fe declarou não incorrerem em infâmia por eífe fa6to, antes fe haveriam por merecedoras do favor e da graça do foberano.

Não fatisfeho o Icgiflador com efta primeira providencia, que eítimulava o augmento da povoação, falu pouco de- pois com outra lei- ainda mais humana e memorável, em que fe declarou ferem livres os indios do Brazil, e fe reno- vou e fufcitou a obfervancia de outros aflos legiflativos, que fobre o mefmo aífumpto fe tinham promulgado defde iSyo até 1680. No mefmo tempo fez Carvalho publicar a bulia Immenfa pajtorum, em que o papa Benedido XIV de- clarava livres aquellas povoações até alli oppreífas e avexa- das pela cubica e immanidade dos colonos. Feitos agora em tudo eguaes aos europeus, fuj eitos á coroa de Portugal, fal- tava completar a emancipação dos indios do Pará e Mara- nhão, reduzindo-os á lei commum, quanto ao governo tempo- ral. Os miíTionarios, principalmente os jefuitas, confundindo

Lei de 4 de abril de 1755. 2 Lei de 6 de junho de ijSi.

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como fuccede com frequência, as raias, que íeparam da in- fluencia efpiritual o poder politico inamiíTivel e inherente á Ibberania, haviam convertido a lua direcção religiola em tu- tela profana e temporal. Toda a legiflação da egreja defen- dia aos religiofos o ingerirem-fe na adminiftração civil dos territórios, onde eftavam exercitando as fuás miíTôes. Mas os jefuitas, que aíTrontavam os defcommodos e os perigos das fuás perfeverantes emprezas no Ultramar, ambiciofamente pretendiam governar politicamente as felvaticas gentes, que o preftigio do feu verbo e o esforço da fua acção attrahiam ao redil. Como operários incanfaveis lidando com mil fadigas no amanho da vinha efpiritual, não fe efqueciam de ajuntar ao fa- lario divino e evangélico as gages profanas e mundanaes, não para fi, porque o individuo defapparecia no intereíTe com- mum da fua ordem, fenão para acrefcentar a força e o po- der do inftituto deftinado a dirigir e governar com as appa- rencias da abnegação e da humildade, os monarchas e as na- ções. Carvalho, completando a legiflação acerca dos indios no Brazil, como preludio da fua longa e tenaz oppofição ás invafóes temporaes do poder eccleíiaftico, e em confirmação de mais antigas leis, legifla as difcretas providencias, que prohibem aos miíTionarios o mefclarem-fe no governo poli- tico e civil dos indios americanos'. É a primeira vez que a poderofa Companhia apparece mencionada na legiflação do grande e oufado reformador. E a primeira vez que elle re- memora aos ambiciofos invafores a manifelfa profanação com que, tranfgredindo a fantidade dos feus votos e a lettra ex- preífa dos cânones e conftituições apoítolicas, fe arrogam o minifterio e governo temporal.

Todos eftes actos legiflativos, que excediam o modeílo

I Alvará com força de lei de 7 de junho de 1755, renovando e fufcitando a lei de 12 de septembro de i653.

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nivel do ordinário expediente e denunciavam o propofito de mais ampla reformação, não podiam menos de excitar a malquerença, e a fanha implacável dos que defejavam perpe- tuar a indolência do reinado antecedente. A companhia do Grão-Pará levantou defde logo em muitos homens de nego- cio uma violenta oppofição. A confraria do Efpirito Santo da Pedreira, com o titulo de Mefa dos homens de negocio que conferem o bem commiim do Commercio, reprefentou energicamente contra a nova inftituição, que traíladava á companhia do Grão-Pará a melhor parte do trafico portu- guez na America do Sul. Aqui fe manifcífou a primeira vez a tempera e a feição governativa do miniftro inexorável, que não foíTria contradicções. A Mefa do bem commum foi imme- diatamente dilTolvida. Inftituiu Carvalho em feu logar a Junta do Commercio, corno pura repartição official, forman- do-a de homens de negocio, que mereciam a confiança do governo. E para que fe viíTe defde logo qual era a forte des- tinada aos que oufaíTem tolher ou ohflruir o caminho das reformas, os membros da extindfa confraria efpiaram com o deíterro o abufo de fe opporem ás idéas económicas cio au- daz reformador. O advogado João Thomaz de Negreiros, que minutara a reprefentação da Mefa do bem commum, foi fentir n'um degredo de vinte annos em Mazagão quanto é perigofo profeíTar opiniões n'uma irrefponfavel e abfoluta monarchia. Os mefarios padeceram egualmente a pena de defterro, defde féis até dois annos; alguns n'aquella mefma praça de Africa, outros em terras de Portugal'.

áquelle tempo eram decorridos cinco annos defde que o novo confelheiro do monarcha tomara nas mãos robuftas o leme do governo. Os intereíTes oífendidos tinham dado rebate, bufcando dar um talho vigorofo ao crefcente poderio

Decreto de 3o de septembro de 1755.

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de Carvalho. A rainha viuva, que porventura junto do fobe- rano teria abroquelado o eftadiíía contra as inlidias e meneios dos feus adverlarios feitos em corpo de oppofição, ceíTára de viver cm 1754. Os jefuitas, antevendo o rumo que ia le- guir a governança, andavam de íbbreavifo e pelo menos em mal coberta hoftilidade. As providencias, que aboliam o fcu império temporal no Grão-Pará e Maranhão, vibradas como o primeiro golpe ás ambições da Companhia, denun- ciavam que o inimigo, fem tentar ainda os rijiffimos recon- tros e as batalhas decifivas, que a haviam de render e ani- quilar, invocava contra ella a humildade e o deíapego dos interelTes mundanos e carnaes. Firmando-fe, como em po- fição inexpugnável, na evangélica doutrina de que não é d'es- te mundo o reino de Deus, fe eftava armando e aperce- bendo para as ultimas vidorias contra o poder abXorvente da invafora fociedade.

Os jefuitas não eram pois talvez extranhos á oppofição, que ia engroíTando e elcondendo as fuás miras egoiftas na defenfão dos públicos intereíTes, e dando aos feus clamores e aos feus ódios a fancção das vozes populares. O jefuita Manuel Balleil:er, pregando na de Lifboa na occafião de promulgar-fe a inftituição mercantil do Grão-Pará, cifra- va a fua prédica n'uma allegoria, em que a fociedade efpiri- tual de Deus com os homens fe figurava femelhante a uma companhia de commercio, onde os homens tinham a me- lhor parte no grangeio. Alguns quizeram ver no fimile do orador uma allufão direita e aggreíTiva á nova inftituição tão predilefta de Carvalho. O padre Ballefter, apefar de valiofas interceífões, expiou com o exilio a fogofa indifcrição das fuás parenéfes.

O mais inexorável inimigo de Carvalho e o mais ardente apologifta da fociedade de Jefus efcreve que o jefuita Bento da Fonfeca experimentara egual rigor, porque, fendo conful-

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tado por alguns negociantes fobre as vantagens da compa- nhia do Grão-Pará, manifeftára opiniões hoílis áquella empre- za commercial'.

Attentando nos intereíTes que ligavam os jefuitas ao Pam e ao Maranhão, e cotejando-os com eftes fados cnarrados por teftemunha tão livre de fufpeições, é licito o aventurar que os jefuitas moveriam contra Carvalho todas as armas, que lhes miniftrava no púlpito a influencia da fua palavra, no confeíTionario a fua dominação nas confciencias, na corte a fua intimidade com a nobreza, no paço a fua entrada com el-rei. por aquelles tempos o embaixador francez, conde de Bachi, inimigo declarado de Carvalho, contradiftor das fuás reformas, e parcial dos fidalgos portuguezes, efcrevia ao leu governo que o miniífro era aborrecido de todos os grandes e dos que tinham algum valimento com o foberano". Egual- mente annunciava por eíta occafião que o eíladifta padecia frequentes diífabores, e que apefar dos meneios dos Icus antagoniítas mais e mais fe confirmava na confiança do mo- narcha. E de feito n'aquelle tempo era vifivel que o minis- tro dos negócios extrangeiros e da guerra predominava nos confelhos e concentrava em fuás mãos a fuprema direcção dos negócios públicos-*. Pedro da Motta, encarcerado em fua recamara pela enfermidade e a velhice, não podia certa- mente difputar ao feu collega o primeiro logar na admi- niftração. Mas o fecretario de eftado da marinha, Diogo de Mendoça, não fe defcuidava de fomentar no feio do gabinete a diíTidencia. Parece que nos primeiros tempos do

> Vila di Seb. Giiifeppe di Carvalho e Mello, tom. i, pag. 5o e 5i.

2 Ofllcio do embaixador francez, conde de Bachi, de 5 de feptembro de 1754. Quadro elementar, tom. vi, pag. 17.

3 «Sebaftião Jofé de Carvalho, miniítro dos negócios extrangeiros, era o único e verdadeiro depofitario do poder e autoridade real.» Officio citado. Qiia- dro elementar, tom. vi, pag. 48.

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minirterio, ainda a Ibmbra de íeu tio, o principal fecretario de eítado de D. João V, o protegia e amparava para que fos- fe preferido no favor do novo rei. Affim o vemos fer defi- gnado para exercer as altas e honorificas funcções de efcri- vão da puridade no auto da acclamação e juramento de D. Jofé. Affim o vemos egualmente fubfcrever os principaes e mais importantes diplomas governativos nos impedimentos do fecretario de eftado de maior graduação e antiguidade. Não é temerário o fufpeitar que Diogo de Mendoça, como hábil e fino cortezão, empregava as fuás mais efficazes dili- gencias para conquiílar no animo do rei a graça e a valia. Nas frequentes diverfões, a que feguia a corte, nas caçadas de Palma e Salvaterra, não fe efquecia de aproveitar a au- fencia de Carvalho para o deíTervir e malquiftar, fegundo é eftylo de aulicos medíocres, mal foífridos e invejofos dos mé- ritos alheios".

Além da inftituição da Companhia do Grão-Pará muitas outras providencias affignalaram os primeiros cinco annos do minirterio de Carvalho. O commercio de Moçambique foi declarado aberto e livre a todos os moradores da Afia por- tugueza com a única excepção de uma fazenda, conítituida em régio monopólio ^ Na pragmática ou lei fumptuaria de 24 de maio de 1749, em vão intentara D. João V, o mais luxuofo e magnifico monarcha, fob penas feveriffimas en- frear o luxo em feus eftados, e reduzir os feus fieis vaífallos a efpartana fimpleza no trajar e no viver. Procurara ao mes-

"O miniftro Carvalho partira também logo para Salvaterra, por iffo que eftava efcarmentado do mau effeito que produzira a fua aufencia de Palma, aonde não tendo podido acompanhar a el-rei, o feu contrario, o abbade de Mendoça, foubera tirar d'ino todo o proveito." Officio do embaixador francez, conde de Bachi, para o feu governo, de 2i de janeiro de 1755. Quadro elemen- tar, tom. VI, pag. 5i.

2 Lei de 10 de junho de ijSí, declarando livre o commercio de Moçam- bique, exceptuado o vellorio.

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mo tempo, por um meio indiredo, mas illulbrio, deílerrar do mercado portuguez as mercadorias extrangeiras e oppor um dique frágil á corrente natural do oiro do Brazil para fora de Portugal. Era eíte um abfurdo económico tão flagrante, que parecia urgente corrigir com algum aviíado tempera- mento as fuás extravagantes prefcripções. Um diploma le- giflativo' occorreu a emendar as mais oppreíTivas difpoíi- ções, mantendo porém o penfamento de proteger e animar, a foro de prohibir as fazendas extrangeiras, os produdos da induftria nacional. O officio dos cortadores era havido no preconceito nobiliário, tão vulgar em terra de fenhores e de fidalgos, como viliflimo e quali infame. A pragmática de D. João V defendia aos ofíiciaes mechanicos o trazerem es- pada ou efpadim. Pois agora, fob o novo regimen fumptua- rio, efta inlignia de fidalguia fera concedida aos cortadores, e um d'eíl:es humildes officiaes depois de exercer no talho o feu mifter, poderá pompear na rua a fua efpada, roçando com a ponteira no efpadim cinzelado e preciofo dos Avei- ros e dos Tavoras. O mefmo privilegio comprehendia a to- dos os mefteiraes embandeirados e a outros honrados tra- balhadores, porc[ue (dizia o legiflador) «aos referidos é minha intenção honrar como peíToas úteis ao meu ferviço e ao bem commum de meus reinos-». Aílim preludiava o miniflro de D. Jofé ás futuras providencias, com que havia de precipitar das fuás arrogantes eminências a nobreza hereditária e ocio- sa e levantar defde o feu abjedto vilipendio a plebe trabalha- dora e defprezada.

Entre as mais difcretas providencias decretadas pelo mi- nifterio de Carvalho figuram os numerofos regulamentos, em que fe fixaram os vencimentos de todos os tribunaes e

Alvará de 21 de abril de ly.Si. 2 Alvará de 21 de abril de lySi.

de muitos officios públicos". Não devemos omittir a provi- fão, com que fe bufcou favorecer a inftrucção publica, au- gmentando de mais a terça parte os melquinhos ordenados aos lentes e officiaes da univerfidade^.

Taes foram os enérgicos eftimulos, com que o pulfo vi- gorofo de Carvalho intentou reanimar a decadente vida na- cional, que ainda os feus mais odientos inimigos não pode- ram determinar-fe a conteftar-lhc o mérito e o elogio pelos ados que illuftraram o feu governo durante os primeiros annos, e emquanto não fe empenhou em guerra aberta com os jefuitas e a nobreza de Portugal ^

Nos annos derradeiros do reinado de D. João V a frou- xidão ou lethargia do governo tinha feito defcer as relações de Portugal com as potencias extrangeiras a grande aba- timento e humilhação. O magnifico foberano, que durante os áureos tempos da fi.ia dominação tinha ás vezes demons- trado a altivez da fua Índole e quafi pretendido hombrear com as nações de primeira ordem na decifão das máximas queftÕes internacionaes, deixara finalmente o feu papel de mediador, e como quem deteíta a guerra e as contenções, le- gava ao fucceffor o tratado de limites de 17 5o, em que Por- tugal cedia á Hefpanha a colónia do Sacramento a troco de pouco valiofas compenfações. A alliança ingleza degenerara pela fraqueza do governo em quafi proteílorado. Á contem- plação do eftadifta, que tinha agora a principal direcção dos negócios públicos, offerecia-fe como problema capital o le- vantar o feu paiz no conceito da Europa e attefiar que fe bem era pequeno pela fua nefga na Peninfula, egualava no brio e dignidade ás nações mais arrogantes e poderofas. Aos

' Regimentos, com força de lei, pelos quaes ha por bem lua majeftade ac- crefcentar os ordenados e emolumentos dos defembargadores, etc. Lifboa, 1754. 2 Provirão de 29 de junho de 1754. -' Vita di Seb. Ghifeppe di Carvalho e Mello, tom. i, pag. 25 e 26.

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citados inferiores pelo território e povoação impende mais do que aos grandes potentados não diffimular as quebras de refpeito, nem a prepotência internacional. As nações pe- quenas, como os homens de mefquinha força e eftatura, hão de ter em energia nervofa o que lhes falta em rija mufcula- tura.

Carvalho tinha a repartição dos negócios extrangeiros, onde lhe era dado, fem invadir a jurifdicção privativa dos coUegas, imprimir á politica exterior o cunho da fua tempera e dos feus inftinítos peíToaes. Por iíTo o vemos logo de prin- cipio manter em lua pureza a majeítade e foberania da na- ção, e forçar os governos forafteiros a reprimir e enfrear as fuás pretenfões.

Uma queflão de ceremonial e formulário lhe deu occa- fião a moftrar-fe inflexível nas fuás relações com o rei de França Luiz XV. O papa Benedido XIV, por um motu pró- prio de 21 de abril de 1 749, defejando galardoar com uma graça pontifícia os ferviços que D. João V preftára a chris- tandade, havia-lhe conferido e aos feus fúcceífores o hono- rifico predicado de fidelijfimo, que o rei, tão vaidofo e tão devoto como era, comprara á cufta de efpantofa prodiga- lidade e que haveria de prezar como titulo de valia inefti- mavel. Ficava por efle modo equiparado ás coroas de Fran- ça e de Hefpanha, porque a nova qualificação era de certo equivalente ao diífado de chrijliauijjimo ou de catholico, de que tanto fe envaneciam e honravam, como piedofos filhos da Egreja, os dois maiores monarchas da familia de Bour- bon.

O governo francez, ciofo de que um didado femelhante ao da fua coroa diftinguiíTe o rei de Portugal, parecia não reco- nhecer o novo tratamento, e nas cartas de chancellaria conti- nuava a omittir o titulo de fidelijjimo. Carvalho recufa ou manda recambiar as cartas de Luiz XV e de outras perfona-

gens eminentes. Levanta-fe n'eíie ponto uma prolixa dilcuflao entre os dois governos e demora-fe por efta caula largo tempo a vinda do embaixador francez, nomeado para a corte por- tugueza. Tal era a hombridade com que o fecretario de es- tado dos negócios extrangeiros fe havia com os reprefentan- tes das nações de primeira ordem, que o embaixador conde de Bachi efcrevia ao feu governo que o de Portugal punha a mira em elevar eíte paiz á categoria das grandes potencias europêas". Mais tarde o orgulhofo diplomata amargamente fe queixava á fua corte de que o miniílerio portuguez tra- tava com diminuta contemplação os reprefentantes das na- ções extranhas'. Ponderando ao feu governo que não era com civilidades e attençõcs que fe podia conquiftar a amifade dos portuguezes, aconfelhava contra elles a maior feveridade'. Tal era a fobranceria e altivez com que o miniftro Carva- lho zelava honrofamente a dignidade nacional e efboçava n'eftas queítões de etiqueta diplomática o que haveria de fer depois em aífumptos de maior ponderação a norma e o teor da fua politica. As conteftações levantadas por Sebas- tião de Carvalho a propofito do privilegio íingular cha- mado Aubaine, pelo qual os monarchas francezes fe arroga- vam o direito de fucceder na herança dos forafteiros, que em feus eftados falleciam fem herdeiros neceífarios, e a for- mal comminação de que Portugal em jufta reprefalia ob- fervaria o mefmo eftylo com os fubditos da França, exa- cerbaram a acrimonia habitual do feu embaixador. Por efta occafião dizia elle ao feu governo o fer para extranhar que um reino tão pequeno quizeífe em tudo emparelhar-fe com

' Officio do embaixador francez, de 21 de maio de 1754. Quadro elemen- tar; tom. VI, pag. 43.

5 Officio do embaixador francez, de 6 de agoílo de 1754. Quadro elemen- tar, tom. VI, pag. 44 c 45.

^ Officio de 27 de agoílo de 1754. Quadro elementar, tom. vi, pag. 48.

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a poderola monarchia, exigindo nas fuás ordinárias relações a completa reciprocidade '.

N'outra grave pendência diplomática fe tiveram de exer- cer os talentos de Carvalho. D'efta vez era, porém, o mais íntimo alliado que expandia os feus queixumes. A pro- videncia" com que, lufcitando-fe a obfervancia de leis ante- cedentes, fe havia ordenado a máxima vigilância no exame de todas as mercadorias que entraífem nas alfandegas, com o fim de obviar á fraudulenta exportação do oiro, excitara unifono clamor entre os inglezes, que em numero crefcido e preponderante negociavam em Lifboa. Os officiaes da alfan- dega haviam redobrado os rigores aduaneiros. Os fubdi- tos britannicos, apefar da fevera prohibição, continuavam a extrahir a preciofa mercadoria. O decreto do governo orde- nava que não houveífe n'eíle ponto os minimos refpeitos á qualidade das peíToas. As perquifições multiplicavam-fe para obviar á falda do que era então julgado o mais folido the- fouro. Os mercadores britannicos de Lifboa queixavam-fe amargamente ao feu governo. A feveridade fifcal não hefita- va em perfeguir os próprios officiaes dos navios de guerra inglezes, quando tentavam fubtrahir-fe á lei prohibitiva e conduziam para bordo o oiro difputado^ Multiplicavam-fe com o rigor os confiiflos entre o fifco e os bretões. Não fo- mente os inglezes fe affrontavam com eíles, que julgavam ty- rannicos vexames, fenão que eftremeciam ao profpedfode que Portugal, bufcando facudir o jugo mercantil da Inglaterra,

1 Officio do embaixador conde de Bachi, de 21 de outubro de 1755. Quadro elementar, tom. vi, pag. 64. O direito de Aiibaine foi nos principies do reinado de D. Maria I abolido em relação aos portuguezes, pela convenção de 21 de abril de 1778 entre Portugal e a França.

2 Decreto de 10 de março de 1755.

3 Documento no archivo do miniílerio dos negócios extrangeiros de Fran- ça, vol. Lxxxiv da correfpondencia de Portugal. Qiiadro elementar, tom. xviii, pag. 35 1.

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reítauraíTe felizmente o commercio portuguez '. O gabinete de Saint-James julgou prudente e neceílario negociar com o de Lifboa febre efte aílumpto, de que pendiam os intereflcs da colónia britannica em Portugal. Defpachou pois em miffão es- pecial a lord Tyrawley, que em tempos de D. João V tinha refidido em Portugal como enviado extraordinário de Ingla- terra, conhecia a fundo a corte portugucza e fora fempre bem acceito ao rei e ao governo. Trazia o inglez por encargo parti- cular o dirigir inftantes reclamações para que não foíTem ave- xados em Lifboa os feus compatriotas e, aflfrouxados os rigo- res, fe deífe fatisfafloria conclufão ás diífidencias acerca dos negócios mercantis. O novo reprefentante, chegando a Lis- boa a 1 1 de abril de 1752, defde logo entrara a conferir com o miniítro dos negócios extrangeiros. Duraram até julho as negociações, e n'eíte mez fe retirava lord Tyrawley, dando por terminada a enviatura. O penfamento, que didára as provi- dencias, contra as quaes fe levantavam em unifono as re- clamações da higlaterra, era, quanto ao fito a que mirava, cer- tamente defculpavel. A intenção de Carvalho era feguramente patriótica, porque toda fe cifrava em proteger e emancipar da britannica tutela o trafico e a riqueza nacional. A errónea doutrina, em que eífribava, era corrente, vulgar, audori- fada pelos governos e nações contemporâneas, que todas zelavam egualmente, como poderofo talifman da bemaven- turança focial, a poífe do oiro. Mas as leis económicas não trepidam, nem receiam perante as audazes intimações do mais fevero legiílador, aíTim como a agua do Hellefponto, fegundo a anecdota da antiguidade, não fe encolheu, ficando immovel, quando Xerxes n'um aífomo de jadanciofa ma- jefiade, enlaçando-o nas fuás cadeias illuforias, lhe prohibiu a invafão. Eram por aquelles tempos efcaffiífimas as colhei-

' Smolelt, Hijloria de Inglaterra, pag. i.

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tas em Portugal, onde em aiinos de boa latra mal chegavam para o commum fuftento popular. A ameaça da fome favore- ceu o triumpho ás reclamações britannicas. Moderaram-fe as rigorofas providencias, e entrou-fe em compofição com os que, nos lances de urgência e apertura, eítavam os portugue- zes coftumados a invocar por valedores. Mandou o governo reítituir aos negociantes inglezes os metaes que lhes haviam fido fequeftrados'. O êxito da extraordinária enviatura não havia fido, porém, tão lifonjeiro que os negociantes inglezes fe não defataíTem em queixas e em reproches contra o feu repre- fentante, o qual não dera plena fatisfação a todas as fuás am- biciofas pretenfões^

CAPITULO IV

o TERREMOTO

A natureza phyfica domina e fenhoreia a humanidade. Os deílinos fociaes enlaçam-fe intimamente com os phenome- nos da terra. A hiftoria tem por feu commentario em cada pagina as alterações que foi fucceffivamente padecendo o noífo globo. N'eíl:a grande reprefentação, que fe chama a vida humana, o theatro modifica o drama. Os adtores têem de accommodar á fcena a acção que reprefentam. A natureza, como que ciofa de que o homem a fubjugue e violente a feu ferviço, parece defquitar-fe das aífombrofas oufadias do no- vo Prometheu, enleiando-o perpetuamente em fuás cadeias e forçando-o a mudar a cada paífo o rumo e o deítino.

' Documento no archivo do minifterio dos negócios extrangeiros de Fran- ça, vol. Lxxxv da correfpondencia de Portugal, foi. 5i. Quadro elementar, tom. xvni, pag. 354.

2 Documento no archivo do minifterio dos negócios extrangeiros de Fran- ça, vol. Lxxxv da correfpondencia de Portugal, foi. 5i. Quadro elementar, tom. xviii, pag. 354.

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Um tremendo fuccelTo natural decidiu em grande parte da forte de um paiz e da gloria de um legiflador. O terre- moto de Lifboa no i.° de novembro de lySõ, é como um ponto de inflexão na curva defcripta pelo povo portuguez. Com elle le tranfmudam as condições da vida Ibcial. Com elle íe delcortinam ampliíTimos e novos horizontes ao efta- difta, que teria acafo, no meio da quieta natureza e de pa- cificos humanos, efcondido na fombra de um governo domes- tico e vulgar os dotes fingulares do feu efpirito.

Quando os homens, como os vencedores tempeftuofos da Baftilha, não fazem revoluções para defconjundar em feus cimentos uma velha fociedade corroída, é bem que a natu- reza, com as fuás temerofas convulfões, rebate a uma na- ção, que adormece na corrupção e na indolência, e lhe faça extrahir dos efcombros fumegantes uma nova civilifação; para que da defolação e da miferia furja por um milagre de energia e de talento uma nova e mais culta fociedade.

O terremoto foi o terrível infpirador do miniftro, que fera defde agora omnipotente. Até ali o feu vulto não excede á craveira vulgar dos eftadiftas, apparece meio efcondido nas pregas da chlamyde real. Agora é o ludador, que tem em frente, n'um amplo amphitheatro, o inimigo, a quem ven- cer. Agora é o grande artifta de governo, que perante uma calamidade fem exemplo não tem modelos, nem didados, que fcguir e copiar, nem Richelieus, nem Sullys, nem Col- berts, em cujas memorias fugitivas poífa aprender a acção e o penfamento. Agora o legiflador, alteando-fe fobre as ruí- nas de uma cidade, outr'ora a grande metrópole do com- mercio do Oriente, fará das fuás pedras defconjundas o im- menfo e gloriofo pedeftal.

O terremoto foi, com a tremenda e anguftiofa deflruição, quafi uma benção para o fenil e defventurado Portugal. Na hifloria nacional ha três grandes epochas, nas quaes fe revo-

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lucionou profundamente o crer e o viver de Portugal. O des- cobrimento do caminho maritimo da índia em 1497; o ter- remoto de 1755; a revolução politica de 1820. Portugal, que fe expande para fora dos feus eflreitos âmbitos, e funda impérios e dominações em todo o globo; Portugal, que depois da orgia das fuás grandezas e conquiflas, fe concentra na fua própria individualidade e penitenciando-fe dos feus erros go- vernativos, procura na educação e no trabalho o que lhe não é dado confeguir pela conquifta e pela efpada; Portu- gal, emfim, que a fi próprio fe proclama adulto e eman- cipado para o governo de fi mefmo no exercício das fran- quias populares.

Todas três fão egualmente epochas de iniciação e tirocí- nio. Na primeira o Gama enlina Portugal a conquiftar pela quilha e pela bombarda um mundo de fonhadas opulências. Na fegunda o Pombal indica-lhe os caminhos, por onde o es- pirito fe defenleia ao mefmo paíTo do jugo clerical e ariftocra- tico e pela moderna educação ha de emergir do feu longo ecli- pfe intelleílual. Na terceira os homens immortaes, que fe chamam Fernandes Thomás, Borges Carneiro e mais tarde Moufinho da Silveira, acordam os humillimos vaífallos da rea- leza abfoluta e os chamam ao convívio triumphal da liber- dade. A primeira é a efcola da gloria nacional. Mas a gloria é um fonho, que entorpece, e uma ebriedade, que debilita os que libaram largamente em fua copa. Por iífo a fegunda quadra convoca os portuguezes ao viver intimo na efcola, na granja, na ofTicina, mas ainda fob a tutela protedora de um poder quafi divino. Ora a vida nacional, que fe defenvolve e fortalece aos pés de um throno, é como a herva, que fe enrofca e ennovela ao tronco alheio, é viçofa, mas efcrava. Por iífo no terceiro momento hiítorico a nação fe defenro- la das mantilhas infantis, em que a trouxera envolta a mo- narchia abfoluta e começa a renafccr para a forte adolefcen-

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cia da liberdade. A primeira epocha faz heroes, a fegunda ho- mens, a terceira finalmente cidadãos. Na primeira Portugal attinge a culminação das fuás glorias, porém logo declina rapidamente até cair com D. João III, o rei fanático, nas cadeias artificiolas da companhia e nos piedofos brazeiros do Santo Officio, e com D. Henrique, o rei inquilidor, nas hachas cruéis do duque de Alba e nos cruentos grilhões de Filippe II. Na fegunda phafe nacional a nação levanta-fe d'aquelle dourado muladar de D. João V, e procura refgatar com esforços fobrehumanos o que vae de atrazada na civilifa- ção, arraítando-fe decrépita na reçaga das nações policiadas, mas vae de novo tropeçar no beato genuflexório, onde a her- deira de D. Jofé, a rainha devota e reaccionária, converte em leis os didames dos feus padres efpirituaes e confunde o con- feífionario com a cadeira curul da fuprema magiítratura. Na terceira quadra finalmente a nação, empolgando ao mefmo paífo o ferro dos íbldados e a audácia dos eftadiftas revolu- cionários, começa a conquifiar os feus foros imprefcriptiveis e confegue levantar-fe ao mefmo nivel e egualar-fe em cer- ta maneira com o folio dos feus reis.

O terremoto, que foi uma laftimofa calamidade phyfica, foi ao mefmo paífo o começo de uma epocha de regenera- ção e melhoria focial.

Aífolando Lifboa, como que fepultou nas ruinas ao mes- mo tempo a velha povoação e a antiga fociedade; a cidade material, com as fuás rvias tortuofas, ladeirentas, obfcuras, e a cidade moral, com as fuás profundas defegualdades, com os feus iniquos privilégios, com as fuás trevas intelleduaes. Deífruiu Lifboa para que fe levantaífe rejuvenecida, mas aplainou também o Iblo, onde havia de principiar a erigir-fe o edificio da moderna revolução.

A tremenda calamidade tornou mais evidente o vuUo do grande reformador. tinha cm boa parte conquiítado as

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graças do Ibberano. Mas a improvila e fuiíeftiliima cataltro- phe accrefcentou-o largamente na valia.

Ao afpedo d'aquella temerofa ofcillação e das ruínas fu- megantes, de que alaflréira os mais populofos bairros de Lis- boa, interrompendo quali inteiramente a vida focial, pertur- bando e confundindo todas as relações, difperfando o povo, a juítiça, os tribunaes, fazendo defapparecer momentanea- mente a publica au6toridade, o rei desfallecia no auge do ter- ror. Paralyfado o animo pelo máximo infortúnio, temendo a cada inftante que a terra, zombando da fua regia e divina poteftade, convelliíTe com concuffljes novas a cidade devora- da pelo incêndio, e apagaíTe os últimos veftigios da antiga e aíTolada povoação, deixava cair das mãos nativamente irre- folutas as rédeas frouxas do governo, olhava em torno de fi, e anceiava por que um animo exornado da mais inque- brantável fortaleza, do arrojo mais indómito e da providen- cia mais enérgica lhe vieíTe acudir no lance defefperado.

O fecretario de eftado Pedro da Motta, exacerbada com o efpantofo acontecimento a enfermidade, aggravada pela quaíi decrepidez, não eflava ali para ordenar as mais urgen- tes providencias. O abbade de Mendoça não era homem para altear-fe impávido e diligente acima dos tranfes mais difficeis. Era no i.° de novembro de lySS, dia confagra- do pela Egreja á commemoração de todos os fantos. De- fabavam com medonho eítridor os mais folidos e mais cuftofos edifícios. As ruas eftreitas e angulofas, atulhadas dos efcombros de altos prédios, nem deixavam perceber por onde havia pouco levavam o feu curfo. Os templos, onde o povo fe juntara para aíTiftir aos ofiicios divinos, citavam derrocados, efmagando íbb acervos de pedras, de tijolos, de madeiras, os que pouco antes faudavam des- cuidofos o efplendido foi d'aquelle dia. O fogo, confo- ciando-fe ás terríveis ondulações repetidas com frequência,

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completava, fem que ninguém o podcíTe reprimir, a obra ne- fartiffima das energias fubterraneas. Os que logravam es- capar ao extemporâneo ruir dos edifícios e á fúria das cham- mas voraciíTimas, fugiam defacordados a uma e outra parte com dolorofos e altiffimos clamores, invocando a celefte mi- íericordia. Os malfeitores e vagabundos, que habitualmente pullulavam na grande capital, faziam agora das ruinas a fua preia mais valioía, e convertiam a geral calamidade em pro- veitofa e rica mercancia. No meio da horrível confufão, o egoifmo fubftituia os vínculos moraes da fociedade. Cada um bufcava defamparar as habitações, tranfmudadas em lepul- chros, deixando quanto de preciofo poffuia para pôr em falvamento a exiítencia attribulada. Correndo efpavoridos, os que deixavam apreíTadamente o lar domeftico, eram na fugida falteados pelas denfas cafarias, que defabando os fe- pultavam no caminho. A anarchia do terror correfpondia cabalmente ao defpotifmo da natureza. Todas as clalTes e condições fociaes andavam mefcladas e confufas, efqueci- das as antigas e odiofas diftincções. As freiras, que em nu- mero efpantofo povoavam n'aquelle tempo os conventos e morteiros de Lifboa, divagavam pela cidade, preferindo á claufura cenobitica nos arruinados edifícios a mundana liber- dade. Os que podiam com o trabalho acudir a refrear os eftragos recrecentes, fugiam aíTombrados pela inopinada e tremenda convulíão. Deiertavam os foldados, antepondo o terror á obediência. Os bandoleiros, que laíam das cadeias ar- razadas, furgiam de feus antros, pretendendo que a povoação, inteiramente defamparada, lhes deixaíTe livre o campo ás fuás depredações, e andavam efpalhando entre o defanimado po- vo, que reftava, as vozes accommodadas a exacerbar a geral confternação. Novas e mais violentas vibrações, diziam elles, iam em breve derrocar o que de rotos ou alquebrados edifí- cios ainda podia offerecer abrigo e habitação. Os reftos da ci-

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dade voariam no ultimo dcftroço, quando á pólvora exiítente no Caítello chegaíTe o incêndio, que lavrava impetuofo. Indis- cretos e fanáticos pregadores, indoutos clérigos ou frades im- prudentes, cruzavam pelas ruinas, funeftos Savonarolas, ater- rando com fuás declamações e prophecias os efpiritos do vulgo propenio á credulidade e ao defanimo. Exhortavam o povo a procurar nos campos, com a penitencia e a expiação, o feguro contra o braço vingador do Omnipotente, indigna- do pelas iniquidades e torpezas da nova Sodoma do Occi- dente. Nem o incêndio de Roma, em tempos de Nero, com a fua vafta defolação encarecida na eloquente hypotypofe de Cornelio Tácito, poderia porventura raftrear em fugitiva femelhança o terror e a devaftação da cidade portugueza. Com inteira propriedade quadravam ás fcenas tremendiíTi- mas do terremoto as palavras, em que o facundo hiftoriador debuxou n'aquelle paflb a pavorofa condição da gente ro- mana".

No meio de tão nefaífa calamidade, qual nunca experi- mentara nenhuma populofa capital, não era para extranhar que fe abatelTem os ânimos da mais aceirada fortaleza. No meio das tormentas da matéria, não era de certo defnatural que as ofcillações do efpirito efcureceíTem e entibiafem a von- tade mais enérgica. Um homem fó, porém, refiftia inexpu- gnável ao tremendo contagio do terror. Era Sebaífião Jofé de Carvalho e Mello. Figuremos a um general, que no mo- mento deciíivo de uma grandiffima batalha as luas co- lumnas repellidas e efmagadas pela artilheria e pelas cargas dos feus adverfarios, as tropas ainda ha pouco mais dcflemi- das e briofas, a ennovelarem-fe n'um impetuofo turbilhão diante da procella irrefiftivel de milhares de ginetes inimigos, e que no meio do geral deftroço e confufão, ante a orchellra

i acito, .Innal., lib. xv, J) 38.

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infernal de cem canhões, rellrugindo a unilbna trovoada dos combates, n'um campo alaítrado de acer\'os de cadáveres, fob uma abobada cerrada de projedeis, que em mil direcções eftão cortando os ares, vendo cair junto de fi os mais prcítan- tes officiaes do feu eftado maior, conferva o efpirito defan- nuveado, tranquillo, inabalável, penlador e difpõe com a fua rápida e previdente comprehenlao, como por methodica e legura retirada pôde ainda falvar as relíquias do exercito e fazer menos funefto o terrivel defbarato. Tal fe moftra o animolb miniftro de D. Joíe. Tudo ofcilla em volta d'elle, a terra, o mar, as caías mais humildes e os palácios mais Ib- berbos; íó o leu animo não treme, nem vacilla a lua vonta- de. E como um d'eítes rochedos altiffimos, aprumados, que nas margens do Oceano fe levantam, e contra cujas efcarpas embatem em vão ha milhares de annos as vagas efcumofas, fem confeguirem aluir e defthronar o gigante inquebrantável. O rei tremia, como a terra, como o Oceano. Em pé, dian- te d'elle, com a figura grave, dominadora, majeflofa, eífava o impávido miniftro. Nunca a obfcura majeftade do acalb foi mais pequena e mais humilde perante a majeftade radio- la do talento. O rei, eftupefado e irrelbluto, pergunta ao feu miniftro, o que havia de fazer n'aquelle trance dolorolb. A tradição refere que a refpofta foi lacónica e peremptória : «Sepultar os mortos e cuidar dos vivos». Verdadeira ou fabu- lada, refumiu efta expreíTão toda a incrível energia do grande reftaurador n'aquella tremenda conjuncção. Logo no mefmo dia do terremoto as ordens e as providencias partem das fuás mãos, como raios de luz de um foca intenfo e inextinguivel. Nada efcapa á actividade e penetração do feu efpirito. E elle como o centro de toda a vida nacional; o coração ainda palpitante de todo aquelle organifmo em convulfão. As nu- merofas vidimas da cataftrophe jaziam foterradas nos es- combros. Temia-fe que a infecção accrefcentaífe á ruina e ao

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fogo a epidemia. Mas a cidade era então quafi delerta. Ás tropas, que iVella eftavam de guarnição, fe expediram as or- dens mais urgentes para que procedeíTem ao defentulho e fe empregaíTem egualmente em extinguir os incêndios e impe- dir que de novo fe ateaíTem nos edifícios ainda illefos. Ex- hortam-fe os ecclefiafticos regulares e feculares a que dêem fepultura aos que pereceram.

A fome eítava ameaçando confummar a obra do terremo- to. Acode Sebaftião de Carvalho com difcretas providencias a fazer conduzir para Lifboa a maior copia de provifões. Acautela com feveras determinações o monopólio e traveíTia dos mantimentos. Provê á fua juíta e equitativa repartição pela gente popular. Sufpende todas as taxas, que pefavam nos comeftiveis á fua entrada na cidade, e confegue que a abundância defterrando as ameaças da extrema penúria e efcaíTez.

N'aquelles tempos de ominofo defpotifmo não havia ci- dadãos. Não podia tampouco exiftir aquella fundamental inftituição, que faz da cafa de uma familia ainda a mais defherdada e defvalida, o feu alcaçar impenetrável aos ex- tranhos. Pelo odiofo privilegio da apofentadoria aífiva, po- diam as claíTes, que o disfruítavam, expellir do próprio lar a quem n'elle vivia anteriormente. Pelo encargo fervil da apofentadoria paíTiva, era obrigado o homem do povo a dei- xar a fua habitação para que a vieíTe occupar o arrogante privilegiado. Sebaftião de Carvalho fufpende por iniqua efta oppreíTora prerogativa e mantém o ufo do próprio domi- cilio aos que a fortuna exceptuara da commum deftruição.

ordem o miniftro vigilante a que fe reftabeleçam no vigor, que demanda a conjuntura, as varias citações, de que pende a adminiftração. Provê á proviforia accommodação das repartições e tribunaes, cujos edifícios os eftragos do ter- remoto fizeram incapazes de habitação. Emprega os meios

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fuaforios ou coadivos para que voltem á cidade os que n'ella tem de trabalhar nas obras mais urgentes.

A defordem e confufão, determinada pelo fucceffo tre- mendiíTimo, eftava provocando a anarchia na capital. Era antes de tudo neceíTario o acudir á paz e fegurança de Lis- boa. Ordena o eftadifta que fe concentrem na cidade as tropas indifpenfaveis á policia e ao trabalho. Manda vir aprcíTada- mente o regimento de dragões de Évora, e os regimentos de infanteria de Setúbal, de Peniche e de Cafcaes, e o que ti- nha por coronel o conde de Soure.

A repreíTão e o caftigo dos ladrões e malfeitores era a mais inílante neceflldade. Urgia que a cidade, onde a lei e o poder haviam padecido momentânea interrupção, fe pur- gaíTe d'aquella nova calamidade, que ia acrefcentando ás ruinas caufadas pelo mal inevitável os damnos produzidos pelo crime. Delega-fe para cada bairro um magiítrado fu- perior, que, auxiliado pelas tropas, ponha em eftreito cerco e á mefma hora em todas aquellas circumfcripções colha ás mãos da juftiça os bandoleiros. N'aquella occafião, ceifando as leis ordinárias e fendo inexequíveis as formas de proceífo, é precifo que o terror aífombre os defnaturados falteadores e homicidas. A lei marcial, de que os governos abufam tan- tas vezes cruelmente para fegurar contra o voto popular a tyrannia, é d'eíla vez poíta a ferviço da miferavel e aíílida humanidade. E terrível o julgamento dos culpados. Nos dif- ferentes bairros de Lifboa levantam-fe patíbulos de grande altura, e os corpos dos padecentes ficam ali por largos dias, como exemplo e terror a novos attentados.

Mas os ladrões podem, fugindo a tempo da cidade, ir es- conder feus latrocínios longe d'ella, internando-fe no paiz ou faindo pelo Tejo. Acode o miniífro, que diríamos quafi omni- vidente, ordenando, que a ninguém fe permitta o fair da capi- tal ou tranfitar pelas provindas fem as mais rigorofas caute-

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las policiaes. Multiplicam-fc as rondas pelo rio para que ninguém fe traflade á margem meridional. Redobra-fe a vigi- lância nas torres, que defendem a foz do Tejo, para que não faia nenhuma embarcação. Dão-fe bufcas feveras, minuciofas em todos os navios furtos no porto de Lifboa. Chegara nova de que chavecos argelinos, que n'aquelle tempo infefta- vam com feu corfo as coitas de Portugal, fe apparelhavam a prear nas ruinas da cidade. Manda o miniftro aperceber con- tra os corfarios a neceífaria defenfão.

Erravam pela trifte povoação os vagabundos, na maior parte ciganos e defertores, gentes fem lar e fem ofíicio, que não fendo ainda abertamente incurfos em delido, podiam n'um momento avuhar ainda mais os execrandos facrilegios dos que eram profeífos na rapina. Ordena o miniftro pelo decreto de 4 de novembro, que fejam prelos e conde- mnados a trabalhar com braga nas obras mais urgentes, fem que efta didatoria penalidade lhes irrogue de futuro a infâ- mia do caftigo.

Prefcreve Sebaftião de Carvalho as regras mais prom- ptas e falutares para que fe reftituam a feus donos as peças e valores, de que os bandidos tinham defvalifado as cafas ar- ruinadas ou defertas nos primeiros momentos da cataftrophe.

Recolhem-fe próvidamente quantos viveres fe podem en- contrar nas ruinas de Lifboa, e fão poftos a bom recado para fe repartirem ao povo neceíTitado. Manda o miniftro vir para a capital a maior copia de mantimentos, provendo ao mefmo paífo á lua prompta conducção pela terra e pelo rio, embargando, fem excepção das mais qualificadas perfo- nagens, quantos barcos e tranfportes fe fazem neceífarios.

Aífegurada em poucos dias a cidade contra os progreíTos do incêndio voracilTimo, contra as depredações dos bando- leiros, contra a fome e o contagio, reftaurada a publica au- doridade, reftituido ao feu movimento, agora mais enérgico,

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o mechanifmo do governo, vencido o terror da povoação pelas providencias do miniftro, o primeiro cuidado, que defvela o incanfavcl legiflador, é a mais prompta reedifica- ção da aíTolada capital. Agora fão as providencias para fa- zer tranfitaveis as ruas e as praças de mais urgente ferventia, que o terremoto convertera em acervos de ruinas e de entu- lhos. Emprega n'eíl:as obras, além de numerofos trabalhado- res, grande copia de artilheiros e íbldados de infanteria. Ago- ra fe prohibc o edificar no íblo das habitações demolidas emquanto fe não decreta o plano regular das novas conftruc- ções. Agora fe eftatuem as regras, fegundo as quaes, depois das exaftas medições executadas por hábeis engenheiros, fe dgve defcriminar no meio do efpantolb labyrinto de rui- nas e deftroços o terreno, que pertence a cada proprietário. Agora fe faculta o acudir com os reparos mais urgentes aos prédios, que deixara o terremoto ainda habitáveis. Agora fe procura abaratar o falario dos obreiros, e o preço dos mate- riaes, prevenindo os monopólios, exemptando de tributos as madeiras deftinadas ás novas edificações, e defendendo o elevar os preços das fubfiftencias além da taxa, por que fe vendiam no mez antecedente á efpantofa calamidade. Egual- mente fe prohibe o alterar os alugueres das calas, que ao terremoto refiftiram ainda immunes, e a renda dos terrenos deftinados a erigir as barracas de madeira para abrigo provi- forio da mifera população. Para que o terror de que a antiga cidade feja de novo convellida e arrafada nas luas ultimas re- líquias, não induza o povo a edificar em fitios mui remotos, demarca o legillador a fuperficie, em que é licito levantar os novos prédios. Eftimula pela perfuafão e com o preceito a dormente energia dos moradores a que proceda cada um a erigir fegundo as poífes os edificios particulares.

Como fe fora para manter foUicito e vigilante o efpi- rito do grande rcftaurador, a terra continuava fempre a es-

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pertar-lhe os brios e o valor, tremendo com frequência, fe bem com menos temerofas fecuíTões. Eram como os recon- tros e efcaramuças de poftos avançados após uma batalha renhida e fanguinofa, ficando ainda em prefença os dois in- conciliáveis contendores. Era vulgar a opinião de que a nova cidade não podia levantar-fe nas ruinas da primeira'. Quan- to mais fe ia acercando o trifte anniverfario da tremenda ca- lamidade, mais ia também tomando corpo o terror de que uma nova e mais violenta commoção acabaíTe de tranfmu- dar n'uma vaftiíTima necropole a antiga e florente capital. Os malfeitores divulgavam a funeíta prophecia para que o povo, em grande parte então reconduzido, fugiíTc nova- mente defanimado e largaíTe a povoação á rapacidade infame dos bandidos. A turba dos fanáticos, não menos nefafta que os ladrões e vagabundos, enfombrava a timorata imaginação dos populares com o profpedo das novas fcenas de horrorofa deítruição, em pena e expiação de fuás mundanas iniquida- des. Ficaria Lif boa em breves dias novamente deferta e pos- ta a facco pelos impenitentes bandoleiros a quem, fegundo fuccede fempre infelizmente, o exemplo dos fupplicios mais atrozes é efteril e perdida pregação. A efte novo lance acode logo a providencia do incanfavel didador. Cerrem-fe e vi- giem-fe as portas da cidade nas vefperas do fatal anniverfario. Appellidem-fe as tropas, que eítão acampadas nos fuburbios. Declare-fe, como diríamos agora, o eítado de fitio. Períigam- fe, prendam-fe, cafliguem-fe os qvte por malvadez ou fanatis- mo andam temerariamente divulgando em povo crédulo as prophecias de uma nova e mais cruel ofcillação. Era em ver-

I «El-rei eílava determinado a reedificar a cidade no mefmo logar em que eílava; projeélo que lhe parecia inexequível, comquanto tiveffe fido refo- luto e decidido.» Officio do embaixador fi-ancez, conde de Bachi, para o feu go- verno, de i5 de novembro de 1755. Quadro elementar, tom. vi, pag. G7.

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dade fingular a doutrina d'eftes geólogos do crime, ou d'eí1:es naturaliftas da fimpleza, que n'aquella edade férrea para a Iciencia em Portugal ajuftavam os terremotos ao movimento elliptico da terra, e attribuiam a um phenomeno, ainda hoje obfcuro em fuás cauías, uma empírica lei de rigorofa perio- dicidade.

PaíTou finalmente o dia i de novembro de lySõ, e a terra negando-le d'efl:a vez a ofcillar, deixou por mentirofos os vaticínios das lúgubres lybillas, e reftabelecida a quieta- ção nos efpiritos débeis e crendeiros.

Para emprehender a prompta edificação da capital tor- navam-le precifos recurfos extraordinários. A fazenda publi- ca era ainda infufficiente. Seriam groíTos os difpendios nas obras, que fe intentavam. Mas o foUícito reformador tinha entre os mais acaudalados homens de negocio grande credi- to. Propoz-lhes o concorrerem com algum fi_ibfidio valiofo para a breve reftauração, que de perto lhes tocava, porque renafcida Lifboa mais florente e voltando a fer grande ci- dade, a favor das providencias promulgadas em beneficio do commercio e de outras, que na mente trazia o provi- dente legiflador, engroíTaria o trafto mercantil e a riqueza brotaria d'entre a própria defolação. Refponderam os mais opulentos mercadores aos defejos do miniftro. Oífereceram efpontaneo o donativo de quatro por cento Ibbre todas as fazendas entradas nas alfandegas.

O terremoto fizera os feus eftragos mais damnolbs nos bairros da cidade, que decorriam defde o Terreiro do Paço até o Rocio pelo valle mui dilatado entre o monte do Cas- tello e o de Santa Catharina. Ali fora o centro da adivida- de e do commercio. Ali cumpria também reítabelecel-o em fua morada.

Era porém agora o enfejo de fazer redundar em me- lhoria e beneficio a própria calamidade. O terremoto fize-

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ra fummariamente como que a improvila expropriação dos edifícios, agora convertidos em entulhos. Era bem que o fo- lo fe aproveitaíTe para n'elle erigir decorofas habitações em ruas alinhadas, efpaçofas, congruentes a uma grande e civili- fada povoação. A parte da cidade quafi inteiramente arruina- da compunha-fe de um inextricável labyrinto de ruas angu- lofas e apertadas, de becos eftreitiffimos, de viellas torpes e efcuriíTimas, de arcos numerofos, como o dos Pregos, o da Confolação, o dos Barretes, onde o ar não tinha circulação, onde a luz andava em mefquinho monopólio dos andares mais elevados, onde os delpojos inlalubres e hediondos fe accumulavam livremente nos alfuges, infedando a povoação com feus miafmas. não feria dado a cada um levantar o prédio a feu talante, como outr'ora ao acafo fe tinham fabri- cado as demolidas habitações. Nivelaram e abalifaram os en- genheiros o terreno. Aplainou-fe regularmente a fuperficie. Traçaram-fe entre a nova praça do Commercio e o Rocio as ruas parallelas, e, para aquelle tempo, de grande formofura e majeftade. Cortaram-fe em angulo reíto por traveífas. Efta- tuiu-fe o profpeíto e architedura, que deveriam ter as fron- tarias. Decretou-fe a maneira de expropriar ou como então fe dizia, devaífar e fazer publico o íblo, que nas ruas des- truidas pertencia a cada proprietário.

Era agora chegada a occafião de reparar os damnos do terremoto. Começava com diligencia inufitada o trabalho da grande reftauração. Era LilTDoa então como um vaftiíTimo arfenal, uma officina commum e aítiviffima, onde os mcílres e os obreiros incanfaveis, fob as viítas vigilantes do miniftro, iam defentranhando das ruinas uma grande e regrada povoa- ção. Emquanto, porém, as novas e mais decorofas habitações não furgem á poderofa evocação do grande reftaurador, tcm- fe levantado, como proviforios domicilios nos logares accom- modados, numerofas barracas de madeira, que fubfhlucm

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as egrejas, os palácios, as moradas. Mais de nove mil fe con- tavam já poucos tempos depois do terremoto.

Não foram certamente mui conformes aos princípios da liberdade, nem ajurtadas pelas normas da economia politi- ca, as providencias, com que Sebaftião de Carvalho acudiu a remediar a terrível calamidade. A coacção é o feu inífru- mento predilefto. O eífado, fegundo o conceito do miniftro, fobrepõe-fe a todos os direitos individuaes. O governo é não fomente a cabeça politica da fociedade, mas é nas multifor- mes relações da vida económica e focial o feu abfoluto guia e diredor. Ninguém pôde vender, nem alugar, fenão pelas taxas que elle impõe. Ninguém pode edificar, fenão quando elle o permittir ou ordenar. A lei da concorrência defappare- ce revogada pelas feveras prefcripções do autocrata legifla- dor. A expropriação do folo particular é feita fem compenfa- ção pecuniária. O governo patriarchal reapparece em toda a fua illimitada e primeva aufloridade. E uma femelhança de focialifmo, em que o eftado ordena a cada um o c|ue deve ceder em commum proveito. A liberdade civil foge efpavori- da, d'onde os foros políticos deixaram o feu logar ao poder abfoluto de um legiflador. E Carthago, edificada pelos co- lonos fugitivos da Phenicia, fob o mando imperativo da rai- nha, na formofa epopêa de Virgílio. Tudo é regulado pelo nuto de quem manda ; o preço dos mantimentos, o valor dos mate- riaes, a taxa dos falarios. Attentemos, porém, em que o poder real tinha em fi habitualmente concentradas todas as faculda- des legiflativas, ainda mefmo quando a fociedade vivia quieta e focegada. Lembremo-nos de que a liberdade politica, lon- ge de exiftir, era quafi reputada um facrilegio contra o mo- narcha, vigário e logar tenente de Deus no governo tempo- ral. Confidcrcmos que a economia publica em grande parte, ainda em tempos de paz e de abundância, pendia do fupre- mo arbítrio do imperante, e que o commercio livre e a li\'re

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induftria não podiam exercer-fe n'um paiz, onde os officios eram corporações ciofas e cerradas. No defanimo geral, em que o terremoto deixara a povoação, de íi inclinada á in- dolência, com o egoifmo infrene, que fempre nafce das gran- des calamidades, aos males do terremoto vieram acrefcer as mais graves perturbações da fociedade. Lifboa, nos dias que feguiram o i.° de novembro, era como uma cidade fitiada. Todos os poderes e jurifdicções deviam enfeixar-fe nas mãos de quem podeíTe alevantar-fe acima das ruinas, e impor á fa- talidade o feu talento, e ao terror a lua vontade. A diótadura era inevitável n'aquelle trance. As leis normaes da econo- mia fão como a hygiene regular dos corpos fociaes, emquan- to fãos. Quando chegam, porém, as terríveis enfermidades, é precifo combater por algum tempo a defordem da natureza com recurfos efficazes, mas difcordantes da ordem habitual. Sebaftião de Carvalho é pois benemérito da pátria, da hiflo- ria, da humanidade, porque, fem exemplo que feguir, nem modelo que imitar, faz furgir da potente energia do feu efpi- rito a força que levantou de feus efcombros, para a entregar de novo á paz, ao trabalho e á opulência, a lacrymofa capital. As promptas e efficazes providencias, com que fem re- poufo o miniftro de D. Jofé acudira com remédios faluta- res aos damnos do terremoto, dcfpertaram em nacionaes e extrangeiros a mais imparcial admiração. Os agentes acre- ditados na corte de Lifboa não amcfquinhavam, relatando-os aos feus governos, os ferviços relevantes, que a elles próprios redundaram em faudaveis benefícios'. Os mais fanhudos ini-

I «Que as providencias, que fe liaviam tomado para abaftecer de viveres a cidade, para enterrar os mortos, atalhar os roubos e refrear o zelo indiícre- to dos pregadores fanáticos, que eram também outro género de flagello, tinham fido prudentes e efficazes.» Officio do embaixador francez, conde de Bachi, para o feu governo, de 8 de novembro de 1735. Quadro elementar; tom. vi, pag. G6. «Que fe devia fazer juftiça ao miniflerio ou antes ao miniftro Carvalho

migos do miniftro, nos efcriptos de mais cruel objurgação, dellembram por momentos o feu ódio para não elcatima- rem n'efte ponto o leu louvor ás providencias decretadas; attribuem-n'as porém principalmente por uma ficção adula- dora á diligencia do monarcha.

antes do terremoto as faculdades fuperiores de Carva- lho o tinham levantado acima dos feus collegas na opinião e na confiança do feu rei. Mas defde aquelle dia fempre me- morável, em que o impávido minil1:ro fora para o povo e pa- ra o rei a providencia e a falvação, eil-o de faflo conftituido na mais alta eminência do governo. Não é ainda o primeiro miniftro por diploma, mas c na auirtoridade o fupremo de- pofitario do poder. E como um audaz mordomo de palácio junto de um novo carlovingio, contrapeíando pela fua inde- feíTa actividade a indolência, e pelo feu talento admirável a curteza do efpirito real. Poucos tempos depois do terremoto o fecretario de eftado, Pedro da Motta, efconde-fe no tumulo e deixa vago a Sebaftião de Carvalho o feu logar. Era ape- nas uma fombra, que defapparecia, e não um eftadifta, que legara o officio a um fucceíTor. Da fua antiga repartição paífava Carvalho para a dos negócios interiores do reino, e aífumia fegundo o eftylo obfervado a dignidade e as funcções de primeiro miniftro. D. Luiz da Cunha, que era então en- viado portuguez em Inglaterra, afcendia a 5 de maio de 1756 a miniftro dos negócios extrangeiros e da guerra, e, devotado como era ao feu novo c poderofo companheiro, e mediano de talento e de energia, entrava a fer o agaloa- do amanuenfe, o fiel executor das ordens e arbítrios de Car- valho.

que ordenara promptas e bem entendidas providencias no meio d'aquclla cala- midade geral; que a abundância reinava na cidade fem careítia.» Officio do mefmo embaixador, de ii de novembro de ijb5. Qitadrn elementar, tom. vi, pag. 66.

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A nova da cataftrophe, ainda exaggerada pela fama, voa- ra pela Europa, confternando os extranhos, que fuppunham deftruida inteiramente a famofa e opulenta capital. A geral commiferação não ficou inferior á graveza do infortúnio. Apreffou-fe a Gran-Bretanha por um ado do parlamento a enviar a Lifboa fubliftencias e dinheiro, com que folTe mais fácil occorrer ás urgências de tão efpantofa calamidade. Defpachou a lord Townfend em extraordinária legação para que fignificaffe á corte portugueza a laftima fincera do leu alliado mais antigo. Segundo as mais auftorifadas relações a liberalidade compaffiva da Inglaterra mandou de prefente ao povo de Liftoa duzentos mil alqueires de trigo e outros tan- tos de farinha, féis mil barricas de carne falgada, quatro mil de manteiga, arroz e bolacha em grande copia e um crefcido material de utenfilios e ferramentas neceíTarias para as obras coloffaes, que em Lifboa começavam com grande celeridade. Aos navios de guerra, que traziam efte generofo donativo, mandara o governo de Inglaterra que ficaífem ás ordens de el-rei de Portugal". Era o prefente direitamente remettido ao miniftro de D. Jofé. O gabinete de Londres, receiando que o príncipe orgulhofo o recufaífe, fe lhe foífe peífoalmente diri- gido, accordára em que foífe feita a dadiva ao miferrimo povo de Lifboa. Não foi menos foUícita a Hefpanha nos feus caritativos otferecimentos. Os vínculos, que prendiam aos Bourbons a familia reinante em Portugal, eítimulavam a cor- te de Madrid a foccorrer a devaftada povoação.

O rei de França, Luiz XV, egualmente fe deu preífa em efcrever ao feu bom irmão de Portugal, oíferecendo-lhe como prova da lua inquebrantável amifade quanto era em feu poder para minorar as neceífidades e angullias do paiz em tão inopinada e laítimofa provação. Ordenou egual-

QuaJro elementar, tom. xviii, png. 363.

mente ao feu embaixador que renovaíTe de viva voz o régio oíferecimento de um copiofo donativo de dinheiro". Não eram, porém, livres de toda a Ibmbra de egoilmo os bons officios do governo francez n'aquella defgraçada conjundura Inflava defde muito com o gabinete de Lifboa para que entre as duas nações fe concluiíTe um tratado de commercio, cujas negocia- ções fe liaviam iniciado defde lySg.

Parece que ao minifterio francez fe antolhava então mais fácil o caminho de alcançar o que, apefar dos feus esforços diplomáticos, não havia podido confeguir. Suppunha-fe que tendo ficado exhauridas inteiramente as arcas do régio íifco e impoíTibilitado o apercebimento de frotas portuguezas para o Brazil, feria aquelle o mais opportuno enfejo para que a França por uma hábil negociação, e a favor de alguns Ibccor- ros de dinheiro em lance de tanto aperto, achaífe compla- cente aos feus defejos o governo portuguez-.

Percebeu Sebaítião de Carvalho, que o acceitar os oífe- recimentos feitos a D. Jofé pelo próprio Luiz XV, poderiam conífituir Portugal em perigofa dependência para com uma corte, com quem não eram eftreitas e cordiaes em fummo grau as noífas relações. Bufcou maneira de protelar a ac- ceitação com palavras de grande cortezia e delicado reco- nhecimento á lembrança affeduofa do chefe dos Bourbons. Primeiro lhe declarou com politica fimulação, que fe ao rei de Portugal, nas laftimofas condições do feu paiz, o eítreitas- fe a neceífidade, não teria duvida em recorrer ao foberano cbrirtianiffimo para que o ajudaíTe com dinheiro, architedos, ou outros indifpenfaveis fubfidios para acudir á prompta

Quadro elementar, tom. vi, pag. 72.

2 Memoria junta ao dcfpacho do miniftro dos negócios extrangeiros em França, Rouillé, ao embaixador francez em Lifboa, de 7 de dezembro de 1557. Quadro elementar, tom. vi, pag. 73.

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reedificação'. Repetiram-fe as inftancias, ao parecer amora- veis e finceras, do embaixador francez para que Portugal acolheíTe favoravelmente o generofo oíferecimento, até que fendo entrado o mez de março de lySõ, fe refolveu Se- baílião de Carvalho em declinar expreffamcnte os auxílios officiofos do Bourbon. A relpofta do miniftro foi de quem fabia manter, no auge da publica miferia, entre efcombros ainda quafi fumegantes, no meio da fituação mais dolorofa, a dignidade e fidalguia da nação, a qual, ainda mefmo reduzi- da á jaftura e miferia derradeira, não havia de eftender a mão humilde e mendicante á efmola de quem parecia mcfclar á ca- ridade a efperança do retorno. Refpondeu Carvalho digna- mente que os offerecimentos delicados os agradecia Portugal, como fe realmente fe viífe forçado a ufar d'elles ; que, porém, os feus alliados fe tinham enganado, exaggerando a fituação depois do terremoto ; que fora em verdade immenfo o damno, que tão grande calamidade produzira; mas que era princi- palmente o luxo, que teria de padecer as forçofas confequen- cias da cataftrophe. Haveria menos faufto, feriam menos nu- merofos e mais modeítos os palácios, menos fumptuofas as alfaias, os coches, os painéis, as tapeçarias. Volveria Portugal á antiga fimpleza no viver. As egrejas leriam menos grandiofas e opulentas, com o que Deus mais fe pagaria de culto menos pompofo. Os fidalgos, cujas magnificas habitações o terremo- to ou o incêndio tinham aíTolado, iriam cultivar as fuás terras, deixada a ociofidade cortezan pela ciiligencia produétiva do trabalho. O commercio haveria de renafcer, e o Brazil, que era um thefouro inexhaurivel, compenfaria largamente no futuro a adual efcaífefa e neceífidade-. O difcurfo de Sebaftião de

1 Officio do embaixador francez, conde de Bacht, para o feu governo, de 3i de dezembro de 1755. Quadro elementar, tom. vi, pag. 76.

2 Officio do embaixador francez, conde de Bachi, para o feu governo, de 9 de março de 1756. Quadro elementar, tom. vi, pag. 81.

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Carvalho, ao embaixador francez, fe bem defconcertaria de algum modo os intentos diplomáticos da França, provocou da parte do governo de Luiz XV o louvor aos dotes emi- nentes do fecretario de eítado portuguez. As fuás reflexões fobre os eífeitos económicos do terremoto eítavam, dizia o miniftro Rouillé, denunciando que Sebaftião de Carvalho era ao mefmo paíTo um eftadifta e um philofopho chriflão'. O miniftro não diíTimulava todavia as luas duvidas de que fe realifalfem as rifonhas perfpeftivas do grande reformador. A cidade, levantada em breves annos d'entre as ruinas, a induftria e o commercio florente, a riqueza publica favore- cida pelas enérgicas e illuminadas providencias de Carva- lho, deixariam em poucos annos por infubfiftentes e fallazes os receios do gabinete francez.

CAPITULO V

PRIMEIRAS INCURSÕES CONTRA OS JESUÍTAS

Não é fácil difcernir fe o miniftro de D. Jofé teria defde longos annos ou logo em princípios do feu governo as pre- venções e as malquerenças, que depois o infpiraram a travar com os jefuitas uma porfia tormentofa, na qual um dos dois poderofos contendores haveria forçofamente de cair. Se não fão dignas de todo o credito as narrações, em que os feus ad- verfarios mais cruéis o figuram cortejando a Companhia para infinuar-fe na confiança e patrocínio dos jefuitas, confeífores ou confidentes dos foberanos, e alcançar por feu favor a en- trada no minifterio, não fe pôde, cm face de irrecufaveis do-

' Defpacho do miniflro dos negócios cxtrangeiros, em França, para o em- baixador francez em Lifboa, de 6 de abril de lySô. Quadro elementar, tom. vi, pag. 82.

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cumentos, conteftar que no animo de Carvalho até pouco depois do terremoto não eftaria ainda encruecida a profunda defaífeição ou ódio implacável contra a poderola Compa- nhia, ou que ao menos o miniftro íàberia aftutamente diíTi- mular as fuás intenções até fer chegado o momento opportu- no de proftrar o feu tremendo antagonifta.

Logo após o terremoto vemol-o ordenar ao miniftro por- tuguez em Roma, António Freire de Andrade Encerrabodes, que follicite do fanto padre a mercê efpiritual de conceder a Portugal, como patrono e advogado contra os terremotos, a S. Francifco de Borgia, um dos geraes mais celebrados na ordem de Jefus, condecorado com todas as honras litúrgicas, que no ritual romano fe confagram aos maiores e mais illus- tres fantos. O papa Benedido XIV pelo breve Omnipotens rerwn, dado em Roma fob o annel do pefcador, a 24 de maio de 1756, publicado por decreto de 5 de feptembro fe- guinte, promovia o bemaventurado Jeluita á eminente cate- goria de patrono e protedor de Portugal, devendo celebrar-le a fua feftividade com rito de primeira clafle, com oitava e miffa folemne. Para que n'efta piedofa invocação a tão notá- vel fanto da Companhia appareceífe egualmente glorificada a fociedade, que o tivera por feu chefe, e o numerava entre as fuás glorias mais luzidas, ordenavam as lettras pontifícias, a inftancias de D. Jofé, que a folemnidade religiofa em honra do fanto Borgia, fe houveífe de celebrar nas egrejas dos je- fuitas, e, onde não as houveífe, nas cathedraes ou nas matri- zes, aíTiftindo a efta annual commemoração as camarás de todas as cidades e villas de Portugal.

Seria talvez a piedade religiofa do monarcha, e não a própria deliberação do feu miniftro, quem feria parte principal n'aquella nova graça pontifícia concedida ao reino fidcliífimo pelo fupremo paftor univerfal. depois de começada a lufta gloriofa de Cars^alho contra as ufurpações e prepotências dos

jefuitas em Portugal e seus domínios, ainda o miniftro enca- recia n'um documento official as heróicas virtudes dos gran- des e gloriofos eponymos da Companhia, Santo Ignacio, S. Francilco Xavier e S. Francilco de Borgia, os quaes (es- crevia o eftadifta) reluzindo como relplandecentes luminares, não fomente na fua ordem, fe não também em toda a egreja, deixaram os exemplos mais illuftres'. Ou ainda n'eíres primei- ros tempos o miniftro não tinha revolvido no feu profundo en- tendimento a inteira luppreíTão da Companhia em Portugal e a fua abolição em toda a egreja, ou com diífimulada venera- ção ao feu fundador e aos feus luzeiros mais infignes, enco- bria a traça, que tinha meditada, á femelhança de um as- tuto conquiftador, que marchando contra o inimigo, ainda colorêa com vifos de reparar um aggravo paífageiro a futura deftruição do feu contrario.

Nos monumentos legiflativos anteriores a eífa epocha alguns da mais alta importância fe nos deparam, os quaes fe podem bem confiderar como as pequenas efcaramuças, que precedem os grandes recontros e batalhas contra a impeniten- te Companhia. As leis que em ij55 declararam a completa liberdade dos indios no Pará e Maranhão, inhibindo fevera- mente os religiofos, nomeadamente os jefuitas, de fe mefcla- rem no governo temporal d'aquellas chriftandades, eftatuindo as regras fundamentaes da fua adminiftração económica e politica, tornando-os exclufivamente fubditos do império tem- poral, favorecendo com prémios e mercês os cafamentos en- tre os brancos e os indígenas, eram todas encaminhadas a conftítuír n'aquellas rudes e filveftres povoações uma focíe- dade puramente civil, emancipada inteiramente do jugo de Companhia, e a diffundir n'aquelles americanos uma civi-

Infírucçáo de 8 de outubro de 1757 ;io miniflro de Portugal em Roma, Francifco de Almada e Mendonça.

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lifação laical. Ora os jefuitas dominavam ablblutos n'aquellas extenfas e fecundas regiões. Erigir em frente da civilifação promovida por ambiciofos miíTionarios, uma cultura focial que lhe foffe contrapofta, era ferir, como por tiro indireílo, os intereíTes capitães da Companhia, era defalojal-a das obras avançadas antes de a commetter no recinto principal da fua extenfa e bem delineada fortificação, que fe dilatava des- de a Afia, paffando por Lifboa, até as ribas do Amazonas. Eram os jefuitas, que na máxima parte em feu proveito grangeavam a lavoura e o commercio do Pará e Maranhão. Ao trafico da ordem não era fufiiciente oppor os cânones, as lettras e breves pontificios de Urbano VIII, em i633, de Clemente IX, em 1669, de Benedido XIV, em 1741, que ful- minavam a excommunhão maior latae jententiae, e a priva- ção de todos os officios e dignidades aos religiofos empenha- dos em ufuras e tratos mercantis. Como na decadência do império as guardas pretorianas, inftituidas para defenfáo dos cefares, fe levantavam acima d'elles e os fuj citavam á fua do- minação, a poderofa Companhia, a cohorte efpiritual do fum- mo pontificado, confeguíra altear o feu poder por detraz do folio pontificio. Sabendo que o fupremo paftor a amimava como a filha fua dileda, recebia pelo feu valor convencio- nal as moftras de fevero fobrecenho que o papa era algumas vezes obrigado a contrafazer por não defcontentar de todo o ponto os príncipes da chriftandade. Ás cenfuras ecclefiafticas, illudidas ou defprezadas por aquelles religiofos mercantis, era precifo accrefcentar algum efíicaz expediente de feição puramente temporal. Tal foi o alvo a que mirou principal- mente na fua fignificação politica a inftituição da companhia do Grão-Pará e Maranhão.

Por eftes primórdios bem podiam os jefuitas prefuppor que não ia fer quieta e remanfada a fua vida cm Portugal, e que nos ares até ali ferenos e rofados, onde tinham exercita-

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do nos paços e nas turbas a fua dominação univerfal, prin- cipiavam a encaftellar-íe as nmens precurlbras de próxima tormenta e cerração.

Acoftumados, durante o frouxo e devotiffimo reinado an- tecedente, ao obfcuro governo de miniftros em grande parte ecclefiafticos, imbuídos nas máximas e preconceitos de con- fervadores impenitentes, extranhavam agora que um minillro de acção e de energia fe refolveíTe a implantar no decaído Portugal as normas de governo civilifador e progreíTivo, e a abrir á luz do feculo a cerrada inteliigencia do paiz. Logo deram rebate clamorofo contra o eftadifta preponderante nos confelhos do foberano. AíTombravam-fe de que um homem, levantado defde as camadas da nobreza mais próximas da plebe ás altas eminências do poder, fe atreveíTe a immolar ao bem commum o egoilmo das claíTes privilegiadas na or- dem ecclefiaftica e civil. De todos os defcontentes, que fe contavam numerofos defde os primeiros tempos da nova adminiftração, eram os jefuitas os que pela força, unidade e cohefão do feu bem travado e harmónico inftituto, podiam fer o centro d'efta furda confpiração, que agitava os ânimos e os intereífes contra as feveras providencias do eftadifta. Os meneios e machinações dos jefuitas apparecem logo na infti- tuição da companhia do Grão-Pará e Maranhão. Os mais acerbos accufadores do miniftro e os mais facciofos de- fenfores da ordem de Santo Ignacio, não conteftam, antes afíirmam, que um jefuita, o padre Bento da Fonfeca, procu- rador da província do Maranhão, confultado por alguns ho- mens de negocio, reprovara o novo eftabelecimento mer- cantil '. E não é provável que um rcligíofo, o qual devia fer aufteramente confagrado á fua milfão puramente efpíritual, e defapegado de toda a participação em negócios munda-

Vita di Seb. Giu/eppe di Carvalho e Mello, tom. i, pag. 5i.

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naes, n'eftas queftões fe intrometteíTe, fe o não aguilhoaffe alguma conveniência temporal.

porém de mais longe procedia a agitação dos jefuitas contra o novo miniíterio. Entre os legados mais funeftos dei- xados pelo frouxo D. João V ao feu ainda mais débil fucces- for, foi talvez o mais fatal o tratado concluído com a Hefpa- nha em i6 de janeiro de lySo para a commum demarcação dos limites entre as poíTeíTões americanas de uma e outra mo- narchia. Após uma longa ferie de acrimoniofas controverfias e de convenções celebradas e desfeitas, que mais iam accen- dendo em reciprocas defconfianças e quafi hoftilidades a am- bas as nações, parecia finalmente chegado o termo ás diutur- nas diíTidencias. Cedia Portugal a colónia do Sacramento na margem oriental do Rio da Prata. Em retorno transferia-lhe a Hefpanha o feu dominio nas miífões do Paraguay. Queixa- vam-fe os portuguezes, com rafão, de que perdeífem com a colónia do Sacramento o porto, que occupavam ás ribas d'aquelle rio, fronteira natural do Brazil para a parte meri- dional. Laítimavam-fe egualmente os hefpanhoes, havendo- fe por mal quinhoados no efcambo. Aproveitaram habilmente os jefuitas as mutuas reconvenções, machinando em uma e outra corte para que não chegaífe a ter adimplemento a pa- duada tranfacção. Era o feu incentivo capital o terem inífi- tuido no Paraguay entre as felvagens multidões uma forma de governo feu patriarchal.

A principio haviam fido apenas miíTionarios occupados em reduzir á chriftan e a uma fombra de civilifação aquel- las incultas gentilidades. Pouco a pouco, porém, fe foram infi- nuando nos ânimos d'aquelle povo, e grangeando por tal for- ma a fua confiança e devoção, que vieram brevemente a degenerar de evangélicos paftores e catcchifias em fenhores abfolutos. E não contentes com a larga influencia efpiritual, arrogaram a fi próprios exclufiva a temporal dominação. Em-

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quanto os jefuitas encadeavam pela os efpiritos débeis d'aquellas rudes povoações, não le deícuidavam de ir fenho- reando ao mefmo paíTo a terra e o trabalho, convertendo os felvaticos americanos em fervos adfcripticios devotados á auítoridade e poder da Companhia. Tinham os miffionarios jefuitas fundadas no Paraguay numerofas aldeias ou povoa- ções, cuja económica e civil adminiítração elles fós exercita- vam, mantendo os indios paraguayos em real e eítreita fer- vidão. Á fombra da religião que lhes pregavam, foram-lhes fazendo crer, como dogma eílencial da fua fé, a mais efcrupu- lofa obediência aos feus diítames temporaes, imbuindo-lhes os ânimos na firme perfuafão de que além dos miffionarios não havia na terra outro poder, a quem deveíTem guardar acatamento e fujeição. Trataram de aíTegurar o feu dominio, acoftumando os indios a ter em ódio ou fi.ifpeição aos eu- ropeus, que não trajaíTem a roupeta da Companhia. Enfi- naram-lhes o ter por mui perigofo á fua temporal commo- didade e ao bem efpiritual de fuás almas todo o trato e communicação com gentes originarias do velho continente. Mantiveram como idioma o guarany, defendendo que nin- guém fallaffe a linguagem caftelhana. E porque a demais da abfoluta dedicação d'aquelles indios, era neceíTario aos jefuitas, para aíTegurar efta fua ufurpada foberania, o fub- fidio das armas materiaes, os foram providamente induftrian- do na arte militar, dando-lhes algum modo conveniente de organifação e difciplina, exercitando-os na tadica e no ma- nejo, quanto o podia permittir a rudeza de gente bifonha, e acoflumada á foltura e liberdade dos fertões. Adextraram- n'os em aproveitar a fortificação de campanha para tornar difficeis ou impradicaveis os desfiladeiros e os palTos, por onde tropas europêas os poderiam acommetter.

Se os jefuitas nas cortes europêas, no meio de uma flo- rente civilifação, affrontando-fe com as poderofas influencias

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de uma forte cultura intelledual, tendo por cenfores e adver- farios os efpiritos mais livres e mais rebeldes a toda a fupre- macia theocratica, alcançavam aíTim mefmo egualar o con- feílionario ao folio dos potentados, e confundir na mefma eíTencia o confeíTor e o valido, os aíTumptos da confciencia com os negócios do governo, fe affim acontecia entre as na- ções, onde havia um Pafcal, um Arnault, um Nicole, para os accufar, um theologo piedofo, como era Melchior Cano, para os defmafcarar, janfeniftas para os combater, lutheranos, cal- viniftas, anglicanos para os contrapefar, o que feria n'quellas agreftes e remotas regiões, onde a completa aufencia de in- fluencias feculares e a efcuridão total dos entendimentos no gentio deixavam aos jefuitas livre o paíTo para a conqviiíta material, disfarçada na afcefe e na homilia?

Ninguém fabia melhor que os jefuitas infinuar-fe nos ânimos das mais intradaveis e rebeldes gentilidades. Reuniam ao cultivo da intelligencia, á tempera do feu caraíter, á difci- plina rigorofa, em que eram adextrados, á palavra fimples, fácil, perfuafiva, a amenidade no feu trato, a brandura no feu geíto, a accommodaticia tolerância para com as humanas venialidades, a perfeverança inquebrantável, o animo audaz e esforçado, o defprezo dos perigos, e a indifferença, com que, foldados animofos e fuhmiífos á regra e ao dever, contempla- vam de frente e fem temor o profpedo do martyrio. Era por extremo attradiva, feduftora, a apparente fimpleza, que aífe- dtavam os que a fi próprios fe diziam focios de Jefus, a gravidade auílera, de que fe revertiam, a abnegação e o des- apego, com que a fi mefmos fe baniam moralmente dentro da fociedade catholica, acceitando para fi as viagens extenfas e perigofas, as excurfões pelos mattos mais bravios e as fer- ranias mais inhofpitas, as pregações e catechefes ás mais duras e cruéis tribus felvagens, deixando ás outras ordens re- iigiofas as tiaras, as mitras os rochetes, e as murças, as pin-

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gues e rendofas abbadias. Nunca houvera no mundo ne- nhuma outra Ibcicdade, onde, pela voluntária abdicação do próprio alvedrio e utilidade, o individuo defappareceíTe, como que intimamente diluído, na maíTa condenlada e ho- mogénea da apertada e poderofa corporação. Ali fe reali- fava a confubftanciação de cada membro d'aquella harmóni- ca cidade no todo individual. No efpirito de cada jefuita vivia o efpirito de toda a Companhia. Era uma efpecie de novo pantheiímo, em que o fingulare o diílerentc fe confundiam na indilfoluvel unidade. O egoifmo peífoal, defterrado como um crime da confciencia, reapparecia tranfmudado no egoifmo coUedivo, com que a omnipotente aífociação aífoberbava e fubmettia á fua illimitada fujeição as nações e os potentados. Era uma femelhança dos inftitutos fpartanos no completo defapego, com que o obfcuro cidadão d'aquella myítica repu- blica fe offerecia aos trances mais cuftofos e aos mais duros facrificios em honra e beneficio da inteira communidade. O fpartano nafcia e educava-fe para morrer gloriofamente pela pátria. O jefuita profeífava e inítruia-fe para oíferecer a vida humildemente nas aras facrofantas da Companhia.

Imagine-fe uma nação, cujos membros, repartidos em províncias e em colónias, eftiveíTem diífundidos por todos os povos do univerfo, influindo nas cortes, dominando nas mul- tidões, expungindo pradicamente as fronteiras dos eftados, abjurando a pátria nativa para fe fazerem cidadãos de uma nova pátria efpiritual, eítrcitando os vínculos, que entre fi os enlaçavam e os prendiam firmemente ao fupremo caudilho irrefponfavel, c ter-fe-ha delineado a imagem ainda imper- feita do que era a Companhia. Nenhuma ordem religiofa alcançara jamais a cohefão, a unidade, a fortaleza, a fubor- dinação incondicional, a difciplina inviolável, que fazia da fociedade jefuitica um império diífeminado por todo o orbe. Como a hera frondofa e luxuriante fe enrofca nos caules mais

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robustos, e os vefte e os encobre com a folhagem, aílim a or- dem dos jefuitas le eftivera por tal feição durante dois fecu- los ennovelando no tronco dos eftados, que não era mui fácil difcriminar por debaixo das fuás crefcentes invafões o que ainda fubfiftia de império temporal, que não fe efcon- deíTe e humilhaíTe inteiramente fob as frondes da nova theo- cracia.

O credito, que a principio conquiftaram, fora devido em grande parte ao zelo com que, defdenhando na apparencia todos os cuidados terrenaes e todas as mundanas ambições, fe confagravam, como operários evangélicos, a diífundir as doutrinas religiofas e a ampliar entre as remçtas gentilidades os âmbitos da fé. Não contribuiram talvez menos a augmentar a reputação da Companhia os numerofos mifllonarios, que exilando-fe para as mais diftantes e intragáveis regiões da Afia e da America haviam alTrontado com impávida fortaleza os lances mais perigofos, oíferecendo-fe ás cruciantes provas do martyrio, comtanto que lograífem efparzir nas trevas das barbaras ou fylveítres povoações algum raio de luz efpi- ritual. O nome do padre Jofé de Anchieta, o evangelifador dos Índios no Brazil, a fama de S. Francifco Xavier, o apos- tolo da índia, eram faudados como heróicos teftemunhos em favor do novo inl^ituto religiofo. Os illuftres luminares, que do grémio da Companhia eftavam efclarecendo o horizonte da fciencia, os Kirchers, os Grimaldis, os Scheiners, os Cla- vios, os Guldins, os Ricciolis, os Gregorios de Saint-Vincent, honrofamente commemorados na hiftoria das mathematicas puras, da phyfica e da aftronomia, circumdavam de uma auréola brilhante o inftituto religiofo, que não fomente vol- via os olhos ao céo myftico dos bemaventurados, fenão tam- bém ao cofmico firmamento dos aftronomos, para inquirir os feus phenomenos e perfcrutar as fuás leis.

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da Companhia confagra\am a toda a audoridade ou mando fecular. Eram frequentes os queixumes, em que os jefuitas portuguezes do Maranhão fe aggravavam dos officiaes e das justiças temporaes, que ali reprefentavam a soberana potes- tade. O jefuita com jaclanciofa convicção acreditava que nas floreftas virgens do Novo Mundo, no meio das tribus mais indomefticas e rebeldes á poHciada e culta íbciedade, elle podia operar aíTombrofos milagres de converfão, não fo- mente defbravando para a os inhofpitos fertões, mas con- duzindo e guiando as luas gentes pelo redil de Chriíto ás formas temporaes da civilifação. Do padre Nóbrega, primei- ro miíTionario do Brazil, refere o grande António Vieira, que com mullca e harmonia de vozes fe atrevia a trazer a fi todos os gentios da America'. Tal era a illimitada confiança que a induftriofa Companhia fe acoftumára a pôr na brandu- ra e artificio dos feus meios para converter a fi e confervar na fua abfoluta dependência as ferozes nações do Novo Mundo. Com eíta ambiciofa convicção da fua moral fuperio- ridade fobre os poderes feculares, que dominavam na Ame- rica, não é para aífombrar que os jefuitas fempre viílem com maus olhos levantarem-fe ao lado da fua theocracia os reprefentantes e delegados da metrópole, e com elles vives- fem em eífado de maior ou menor hoftilidade. Ajudava a efta fupremacia dos miífionarios o favor, que nos indios lhe grangeava o confiderarem que eram imbelles e incruentas as conquiflas efpirituaes, e fempre executadas ao eftrepito das armas as invaíoes da audoridade fecular nos mattos e fer- tões onde viviam. E diga-fe em verdade que o procelfo ado- ptado geralmente pelos capitães e pelos foldados não era o mais conforme a avaífallar pacificamente o gentio, habitua- do á fua indómita e fera independência. As violências e ex-

Vieira, Vo^es /aitdofas, T'oj- hijlorica, pag. 37 e 38.

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torfões, com que fatisfaziam a cubica e a torpeza", manti- nham e afervoravam a hoftilidade entre os indios e os por- tuguezes, que os avexavam e opprimiam. N'uma confulta dirigida ao confelho ultramarino dizia o máximo orador de Portugal: «Os poucos (indios do Maranhão) que fe poderão ainda defcobrir, eftão tão efcandalifados de fe lhes não guardar, o que fe lhes promette e das tyrannias, que com elles fe tem ufado, que fera muito difficultofo arrancal-os de fuás terras e mais tendo tantas experiências de que, defcen- do para as noíTas, todos morrem e fe têem confumido*.» E vindo a laftimar a deftruição, em que fe achava o eftado do Maranhão, trinta e fete annos depois de haverem ali en- trado os portuguezes, capitula o eminente jefuita fer a caufa única e original de toda aquella triíte devaítação «a infaciavel cubica e impiedade d'aquelles moradores e dos que os vão governar, e ainda de muitos ecclefiafticos, que fem fcien- cia, nem confciencia ou julgavam por licitas eftas tyrannias ou as executavam, como fe o foífem». E mais dizia o aus- tero miíTionario: «Não era poíTivel, nem parece o fera que a juítiça divina não acuda por fua providencia, e que o caftigo de um eílado fecundado em tanto fangue innocente pare na prefente miferia'».

O ciúme, com que os jefuitas no Brazil olhavam para o governo temporal exercido pelos delegados da coroa, reífum- bra a cada paíTo das queixas do eloquentiíTimo Vieira, nos feus papeis políticos, e ainda em alguns dos feus fermões''. n'aquelle tempo fe attribuia geralmente aos miíTionarios

' "Onde (na fortaleza do Ceará) em certo modo fe pôde dizer que eftava e eftá o demónio mais forte pela cubica dos capitães e torpeza dos foldados.» Vo^es faudófas, Vo^ hiftorica, pag. 47.

2 Vo^es faiidofas, Fof politica, pag. gS.

3 Vo^es faudófas, Vo:; politica, pag. 97.

4 Vo:jes faudófas, Voj politica, pag. 106 e feguintes. T 07 defenganada, pag. i33.

da Companhia o terem mais a peito as mundanas utilidades, que lhes refultavam de fujeitar os Índios a leu lerviço, do que o mérito efpiritual da fua converfão". Era eíl:a então no conceito do grande orador a pedra de efcaiidalo, que entur- vava na opinião dos portuguezes a boa fama, que entre elles alcançara nos primeiros annos apoz a inftituição a ambiciofa fociedade. As luftas e porfias entre os magiftra- dos feculares e os jefuitas, continuamente difputando acerca da fua dominação fobre os indios avaíTallados, acompanha- vam fem intermilTão os progreíTos da Companhia no Mara- nhão. Em 1661 a camará e a gente principal da cidade de Bethlem do Grão-Pará expulfára d'aquelle território os jefui- tas, tirando-lhes a adminillração, que nas aldeias exerciam como parochos e miíTionarios. Contra aquella oufada provi- dencia, exclamava António Vieira no protefto dirigido ao fe- nado municipal: «Quão grande macula e aíTronta fera do nome portuguez dizer-fe no mundo, que os que têem dilata- do a por todo elle, fão agora os que prendem e deíferram os pregadores da mefma e os que os tem ido bufcar e tirar por força de fuás miílíjes e de entre os gentios e novos chriftãos, que eftão convertendo; e que exemplo é eíte para as gentilidades, e que refpeito terão os indios aos facerdotes, quando aíTim os vêem tratar pelos portuguezes^?»

Arrogavam-fe os jefuitas os méritos de quanto bem tem- poral adviera ao Maranhão e ao Pará, com o que tacitamen- te averbavam de adverfa ao bom governo e civilifação dos

' "Acabarão de entender (os do confelho ultramarino) a verdiide do zelo que nos leva (ao Maranhão) e defenganar-fe quão errado é o conceito, que tem de nós, em cuidarem que queremos mais os indios, que fuás almas: muito refolutos imos a procurar arrancar efla pedra de efcanJalo dos ânimos dos por- tuguezes, e a não fallar em indios mais que no confefTionario.» Vojesfaudofas, Vo^ de/enganada, pag. i35.

- Vo^es Jaudofas, Vo^ exhortatoria, pag. 195 e 196.

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Índios a natural intervenção da audoridade Iccular'. O maior e porventura o mais rigido, fincero e patriótico je- fuita portuguez, confeíTava a averfão, em que era tida no Maranhão e no Pará a fua religiofa corporação-. Efcreven- do a D. AíTonfo VI, logo em princípios do feu reinado, de- clarava António Vieira as perfeguições e os ultrages, com que em feu entender eram galardoados os ferviços da Com- panhia em reduzir á chriftan e á vida civilifada os gentios do Maranhão, e admirava-fe de que fendo tão benemérita tiveífe contra fi a geral opinião. Depois de relatar as iniqui- dades commettidas contra os Índios e o que os jefuitas faziam em fua defeza, exclamava: «E sendo ifto aíTmi, fenhor, os que defendem efta juftiça, fão perfeguidos ; os que falvam eítas almas fão affrontados; os que tomam á fua conta efte tão grande ferviço de Deus, têem contra fi os homens'» . Tão antiga e pertinaz era no Maranhão a luda entre os re- prefentantes do poder temporal e os obreiros evangélicos da Companhia. Tão aíincadamente bufcavam os jefuitas defen- der o dominio temporal, que fobre os Índios largamente exercitavam.

Não é jufto, porém, efcurecer que fe os chamados focios de Jefus, dellembrando o defapego, a humildade e a man- fidão do Redemptor, lidavam por accrefcentar o feu munda-

"Todo o bem temporal, que ha no eftado, foi procurado c confeguido e confervado por minha diligencia e. . . houvera outros muitos bens temporaes, que eu quiz accrefcentar n'elle, fe houvera quem quizelTe concorrer para iffo, e. . . os não ha, porque não quizeram.» Vo:;es faudofas, Vo:^ exhortatoria, pag. 200.

2 «Papeis feitos por inimigos e por miniflros incompetentes e com tantas outras nullidades não fazem prova alguma e muito menos em terra, onde to- dos voíTas mercês (a camará e nobreza da cidade do Pará) fe queixam de fal- fos teflemunhos e em tempo, onde os padres da Companhia e eu particular- mente eflamos tanto no ódio de todos, como vofías mercês e os effeitos o dizem.» Vo^es faudofas, Vo:^ exhortatoria, pag. 202.

i Vo^es faiido/as, Vo^ íelofa, pag. 23o.

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no império, não era chrillan, nem paternal a acção da aucto- ridade, reprefentada nos governadores, capitães, magiftrados e juftiças, nem benévolo e caritativo o procedimento dos por- tuguezes moradores para com os pobres e oppreíTos naturaes das terras conquiftadas. A lede infaciavel do oiro inficciona- va os que punham em terras americanas defde os que meneavam o lupremo baftão e a vara da judicatura até os aventureiros e colonos, que iam eftabelecer-fe no Brazil. Não andava mui diftante da verdade o immortal jefuita portuguez quando n'um Ímpeto de generofa indignação prorompia n'es- tas vozes laftimadas: «As injuftiças e tyrannias, que fe têem executado nos naturaes d'eíl:as terras excedem muito as que íe fizeram na Africa; em efpaço de quarenta annos fe mata- ram e fe deflruiram por efta cofta e fertões mais de dois mi- lhões de Índios e mais de quinhentas povoações, como gran- des cidades e d'ifio nunca fe viu caftigo ... e não fe requer diante de voífa majeftade a impunidade d'eftes deli- dos, fenão licença para os continuar'». N'efta porfia laftimo- fa entre os feculares, que defhumanamente profeguiam em opprimir e efpoliar os indios americanos, e as miífões da Companhia, que tenazmente defendiam o feu ambiciofo mo- nopólio de os dirigir e aproveitar, confundindo a catechefe com o governo, e o crucifixo do miíFionario com a infignia do magiftrado, refolvêra a coroa o pleito, confiando por uma lei de i655 aos jefuitas a adminiftração temporal dos indios nas aldeias, confolidando na mefma poteftade a direcção civil e o officio paftoral. Por eíta providencia revogara D. João IV, no penúltimo anno do feu reinado, outra difpofição, c|ue cm 1654 decretara, inclinando em favor dos intereífes feculares e contra as ambições da Companhia, a ofcillante balança do poder. Agora ficavam os jefuitas invertidos na pilena au-

' Vo^es faudofas, Fof ^elo/a, pag. 228.

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ftoridade. Agora, contrabalançando as diligencias dos por- tuguezes moradores, propunham a el-rei pela boca facun- diíTima de Vieira, então provincial no Maranhão, as mais feveras demonítrações contra os que oufalTem contradizer e tranfgredir as regias providencias". Não bastou a fraqueza de Aífonfo VI a ferenar as tempeftades, que da ambição da Companhia e da cubica na gente fecular, fe defencadeavam a cada paíTo nas terras do Brazil. A lei de 12 de feptembro de 16 63 tirou finalmente aos jefuitas a jurifdicção civil dos Índios no Maranhão, mantendo-lhes apenas no efpiritual a concorrência com os miffionarios das ordens religiofas. Era, porém, a fociedade tão poderofa, e tão débil e infeudado á theocracia o fceptro de D. João V, que não tiveram os jefui- tas grande cufto em defobedecer ás feveras prefcripções e dei- xar efquecer como obfoleta a previdente legiflação canónica e civil, que lhes defendia o intrometterem-fe na adminiítração civil das indianas povoações. Com a regia tolerância e pro- tecção, com a perícia crefcente dos jefuitas na arte de cate- chifar e dirigir a rude fimpleza dos naturaes, com o trato por- ventura mais humano que o dos officiaes e dos magiftrados e dos outros portuguezes no Brazil, vieram a aífentar em fir- miífimos cimentos a fua conquifta e dominação. Envelheci- dos na ambição e enraizados no animo dos indios, poderiam agora intimar feguramente á poteftade temporal as fuás leis no que tocava aos naturaes por elles aldeados e convertidos. As providencias adoptadas pelo governo portuguez, para a prompta execução do tratado de limites, vieram pôr de ma- nifefio a irregular fituação, em que viviam na America os jefuitas, não fomente ingerindo-fe abufivamente no governo temporal das fuás miífões, íenão eftabelecendo n'ellas for- malmente uma verdadeira theocracia. A que parecera d'an-

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Vo^es faudofas, Vo^ ^elo/a, pag. 2j2.

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tes vontade e paíTiva contradicção ao império temporal, veiu agora a demudar-fe em aberta rebellião.

Um dos primeiros cuidados de Pombal, logo em princí- pios do leu longo miniílerio, fora accudir aos grandes males promovidos no Brazil pelos miíTionarios da Companhia. Des- pachou em lySi para o Rio de Janeiro, como capitão ge- neral e commiíTario fuperior para a intentada demarcação, a Gomes Freire de Andrade, em a nau NoJJa Senhora da Lampadofa, levando ás fuás ordens os aftronomos, enge- nheiros e geographos indifpenfaveis para aíTignar as fron- teiras americanas entre os domínios portuguezes e hefpa- nhoes. Ao mefmo tempo nomeava o minilfro a feu irmão Franciíco Xavier de Mendoça Furtado, para que, no cargo de governador e capitão general do Maranhão, proveíTe com mão fegura e firme ás defordens, que então dilaceravam aquelle ampliíTimo eftado americano, onde os jefuitas portu- guezes tinham aíTentado a fua ambiciofa foberania. Refor- çava o miniítro previdente as tropas d'aquella capitania com três regimentos na mefma occafião partidos de Lifboa.

Quando, porém, o commiíTario de Portugal, Freire de Andrade, com o commiíTario de Hefpanha, marquez de Vai de Lirios, determinaram dar principio á delimitação entre as poíTeíT(3es dos dois eflados, acharam-fe impedidos pela belli- coTa refiftencia, que lhes oppozeram os indios do Paraguay e Uruguay, dirigidos e acaudilhados pelos jeTuitas, Teus padres eTpirituaes e Teus mundanos governadores. Conheceu-Te en- tão que os Tocios da Companhia faziam impraticável a pa- cifica execução do tratado de limites, e que Teria forçoTo aos commiíTarios o empenharem-Te n'uma guerra com os indios pertinazes e rebeldes. Repugnavam eftes incultos naturaes á mão armada a mudarem de Tenhor, paíTando da foberania caftelhana para o dominio portuguez. Não era certamente reprehenfivel que os indios paraguayos, inftigados pelo Tenti-

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mento generolb da lua própria liberdade e humana condição, reíifliffem a um convénio, que os tornava em matéria de es- cambo e negociação entre duas coroas conquiftadoras. Se porém os indios rudes licitamente defendiam os feus lares contra os portuguezes, que julgavam inimigos e oppreíTores, eram os jefuitas pelo contrario merecedores de alpera cenfura e de prompta repreffão; porque fendo europeus, civilifados, chrillãos, religiofos de uma ordem confagrada, em leu dizer, á obediência, abnegação e defapego de todos os bens e com- modos terrenos, e de toda a participação em negócios profa- nos e temporaes, e eftando incurfos nas penas fulminadas pelo breve Immenfa pajlorwn de Benediíto XIV e pelos de alguns dos feus predeceíTores, perfeveravam em fua rebeldia ás dis- pofições dos cânones, ás conftituições pontifícias e ás leis ex- preíTas dos foberanos. Eram dobradamente culpofos, primei- ramente por terem inftituido e confervado contra os preceitos evangélicos e prohibições canónicas e civis um eftado em certa forma independente em território de um foberano, e em fegundo logar, porque em vez de perfuadirem os indios á mo- deração, á paz e á conformidade com as determinações do legitimo poder, os incitavam á completa rebellião, aliftan- do-os em exercito, armando-os e adextrando-os para a guerra, e tomando á fua frente o logar de chefes e officiaes. Na Relação abreviada da Republica, que os reli giojos jefuitas das proj'iiicias de Portugal e de Hefpanha ejlabeleceram nos domínios ultramarinos das duas monarchias, mandada colligir e publicar por Sebaftião de Carvalho, apparecem vigorofa- mente fubítanciados os proceíTos, a que os jefuitas fe foccor- reram para eífabelecer e confolidar o leu império nas crédu- las e quafi infantis povoações. Diííicultavam com ciúme todo o trato e communicação dos naturaes com os hefpanhoes e principalmente com as auftoridades ecclefiafticas e fecula- res, que fempre fora leu propofito íigurar-lhes como hoftis á

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fua felicidade terrena e efpiritual. Fortaleciam e roboravam continuamente os vínculos, que ligavam os jefuitas aos indí- genas, pela relação de fervos a fenhores, abdicado nas mãos da Companhia o próprio alvedrio e liberdade.

Se defcontamos na Relação abbreinada os encarecimen- tos e hyperboles, com que o elpirito de partido coftuma lem- pre mefclar á verdade inconteftavel o fombrio colorido das paixões, das luas narrações em todo o calo fe deprehende que os jefuitas collocaram os dois exércitos ás ordens de Gomes Freire e Vai de Lirios na dura condição de converterem uma troca pacifica de territórios n'uma campanha difficilima em paiz fanatisado e inimigo. Attrihue-le aos jeluitas a atrocida- de crueliíTima de encommendar aos paraguayos que não des- fem quartel aos portuguezes, e para que, matando-os, não os viíTem refiifcitar, decapitaílem a quantos lhes caiffem em poder, porque aíTim ficariam certos de tornar-fe impoíTi- vel a reíurreição. Cufta em verdade a acreditar que tal e tão infame prefcripção faíffe da bocca, não de homens conla- grados a Deus e ao fervente amor do próximo, fenão de gen- te, na qual ainda viílumbraíTcm uns lampejos de cultura e humanidade. E provável que na fragua das facções foíTe for- jada aquella tremenda imputação.

Não é porém invenção calumniofa que defde 1752 até 1756 as tropas de Portugal e da Helpanha não poderam avançar fem que fe lhes deparaífem na fua marcha as maio- res contradicções, caviladas e dirigidas pelos miíTionarios jefuitas, alma e infpiração dos indios, cegamente devotados aos feus diredores efpirituaes. Foram numerofos os recontros e combates, innumcraveis as cruezas commettidas pelos Ín- dios contra os foldados portuguezes e hefpanhoes.

Emquanto nos fertões, que demoram nas margens do Umguay, fe paífavam as fcenas tormentofas, em que era protagonifta a Companhia, nas fronteiras feptentrionaes do

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Maranhão achava-fe o governador e capitão general Fran- cilco Xavier de Mendoça, nomeado commiíTario portuguez para a demarcação ao norte do Brazil, a braços com uma fefnelhante rebellião. Ali eram jefuitas portuguezes os que bufcavam perpetuar o feu antigo império theocratico. Ali predominava o principio fundamental, que o padre An- tónio Vieira confagrára n'uma carta a Affonfo VI, quando, queixando-fe amargamente dos magiftrados feculares, pe- dia ao rei que houveíTe de tomar no tocante ás miíTóes dos jefuitas uma ultima refolução, com a qual os livraíTe por uma vez de requerimentos e demandas com os officiaes e delega- dos da coroa n'aquellas regiões. «Porque, dizia o eloquen- te pregador, fe não eítivermos totalmente exemptos d'elles, nunca poderemos confeguir o fim para que viemos ' » .

O procedimento dos jefuitas na America tinha vindo pôr o fêllo á profunda fufpeição, em que era tida a Companhia, como perigofa e incompatível com o poder e aitiftoridade fe- cular. Não eram unicamente os inimigos e invejofos os que denunciavam a ordem poderofiíTn-na. No próprio feio d'aquel- la religião cofmopolita fe haviam levantado clamores contra a immoderada intervenção dos jefuitas em tratos feculares políticos ou mercantis. Quando em princípios do feculo deci- mo feptimo a Companhia foi juftamente contraftada por gran- des tempeftades e accudiu ao pontífice Paulo V, para que de novo a confirmaffe e levalfe á toa atraz da barca de S. Pe- dro, ella mefma lhe aprefentou os decretos de reforma, que na fua quinta congregação geral fe haviam accordado para que, além da correcção de outros abufos, os jefuitas fe não mefclaíTem em negócios políticos e temporaes". então a chamada fociedade de Jefus confeíTava que a fua religião fe

Vieira, Cartas, tom. i, cart. x

2 Lettras pontifícias de Paulo V, de 4 de Icptcmbro de 1606.

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via mal reputada em diverfas regiões e efpecialmente decaída no conceito de muitos potentados. Apefar d'eítes paliiativos e da benevolência, com que o Vaticano amimava a fua mais di- leda legião efpiritual, não pôde nos tempos ulteriores o fum- mo facerdocio forrar-fe aos maiores empenhos, ainda que fem frudo de religiofa reformação, para reftituir (fão palavras de Benedido XIV) a paz á Egreja por muitas e falutares confti- tuições, para que os jefuitas não exercitaíTem negócios fecu- lares, foíTe nas miffões, ou por lua occafião, a reípeito dos graviffimos diíTidios e contenções, que contra os prelados ordinários dos logares, contra as demais ordens religiofas, os inftitutos de piedade, e toda a forte de communidades fe haviam excitado na Europa, na Afia e na America, não fem grande ruina das almas e aífombro das povoações'.» Nos esforços para a inteira extirpação dos abufos e vicios inveterados na invafora fociedade tinham fido participantes os pontífices romanos Urbano VIII, Clementes IX, X, XI c XII, Alexandres VII e VIII, Innocencios X, XI, XII e XIII, e finalmente o papa Benedido XIV, que ao tempo de rompe- rem contra ella em Portugal as hoftilidades, prefidia, com applauíb, no folio pontificio. Aífim no decurfo de cem annos a Egreja patenteava, pela bocca do fupremo pontificado, os enormes defvios, com que os humildes e ferventes operá- rios evangélicos da primeira fundação fe tinham ido afas- tando da vinha efpiritual, não fomente para marcharem na eftrada real dos negócios e manejos temporaes, fenão para fe entranharem e perderem nas fendas e nos atalhos tortuofos de enredos profaniíTimos.

Podia, porém, o bullario romano avolumar-fe com os no- vos edidos pontifícios, podia o papa Lambertini, Benedido

' Bulia de Benediclo XIV, Dominus ac Redemplnr nojler, de 21 de julho de 17-3, abolindo a Companhia de Jefus, § 21.

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XIV, renovar com afperrimas cenfuras a ingerência dos ob- durados jefuitas nos aíTumptos feculares e concernentes ao governo dos eftados, com o fim de accrefcentar a fua valia e enthefourar os bens terrenos. Os jefuitas, como poderofa e privilegiada milicia efpiritual, deixavam dormir as lettras apoftolicas nas fuás volumofas collecções e perfiítiam cega- mente na fua encanecida impenitencia.

Paífando em Portugal de um reinado menos piedofo que fanático a uma adminiftração mais zelofa da verdadeira fo- berania, comprehenderam que o miniftro de D. Jofé não era antagoniíta, com quem valeífem demafiado o coítume e a tradição. O feu enérgico e vigorofo minifterio a cada provi- dencia, que lançava defde o paço com a fancção nominal do monarcha indolente e mundano em fummo grau, levan- tava contra fi os intereífes egoiftas, que iam fer immolados ao bem commum. Não ha quafi uma lei ou um alvará, que não deixe uma íerida infanavel e dolorofa n'alguma das clas- fes, em que eftavam repartidas as ordens privilegiadas. Alem d'iíro um governo exercido por um quafi plebeu, um homo 110- piis, fem imagens venerandas de maiores e avoengos, um go- verno fem a influencia prepotente da alta nobreza e a artifi- ciofa dominação da Companhia, era um phenomeno politico extranho, fingular, uma abominação, um facrilegio, pofto em contrafte laftimofo com a fubferviencia do eítado ás duas ambiciofas hierarchias defde os tempos de D. João III, o fundador da inquifição e o introduiílor dos jefuitas, até D. João V, o amigo da famofa fociedade e o favorecedor do Santo Ofiicio.

A guerra fem quartel ao miniftro audaz e innovador era pois infallivel, confederadas contra elle a nobreza e a Compa- nhia. Os fidalgos, habituados a contrapefar o poder official dos miniftros com a fua entrada e valia nas recamaras dos reis, difparavam contra Sebaftião de Carvalho as hervadas fré-

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chás da fatyra e do epigramma, emquanto não podiam Ibc- correr-fe ás mais potemes armas da aberta infurreição. Os jefuitas, encaftellados no íntimo do paço, como régios con- feíTores, como que eftavam occupando a cidadella, d'onde a falvo podiam aíTeftar os tiros efficazes e dirigir os ramaes das fuás minas contra o miniftro, encerrado no recinto prin- cipal da fortaleza. Quando o governo refide n^um homem que herdou o fceptro e a majeftade, e quando eífe homem confere com os feus direílores efpirituaes os mais graves ne- gócios da republica, então acima da realeza temporal vem erguer-fe arrogante e irrefponfavel uma temerofa theocracia. Ao poder legiflativo do fobcrano oppõe-fe com o feu veto o poder moderador do confeíTionario. O governo cifra-fe então fomente no facerdocio, e os miniftros fão apenas os acoly- tos, que aíTiftem obedientes e refignados ao laftimavel facri- íicio da nação, immolada ao egoifmo clerical.

Sebaftião de Carvalho refufava-fe tenazmente ao papel inglório e humiliante dos fecrctarios de eítado em tempos de D. João V. Ou lhe havia de bailar para reger a monarchia a vara de Saul, ou deixaria a outrem fem partilha a uncção de Samuel. Seftario fervorofo da independência do poder fobe- rano e temporal, correr-fe-ía de governar, pedindo a vénia aos duques e aos marquezes, e beijando a fímbria da roupeta aos filhos efpirituaes de Santo Ignacio. Governar é combater, e não contemporifar. N'efl:a dura peleja ou fe impõe oufada- mente a lei ao adverfario ou fe lhe cáe reverente aos pés, fupplicando-lhe a fombra do poder, como uma ignominio- fa conceífão. Quando um homem fe levanta com a omnipo- tente diétadura ou em nome da revolução, como Danton e Robefpierrc, ou por mercê do defpotismo, como Pombal e Richelieu, é forçofo que o defpotifmo ou a revolução perfonificada no fupremo diftador, paífem com a fua car- roça triumphal por cima dos dcflroços do paífado, como o

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carro de Jaggernath efmaga, no feu tranfito, os fanáticos hindus.

A luda de Carvalho com os nobres e os jefuitas era pa- tente defde os primórdios do governo. Nas machinações con- tra a companhia do Grão-Pará haviam procurado enredar a gente mercantil de mais groíTos cabedaes na furda confpira- ção. As pregações e prophecias divulgadas por occafiáo do terremoto e depois d'elle, os manejos dos jefuitas e barbadi- nhos junto de D. Jofé para o eítimularem á penitencia e ex- piação, não eram fenão tremendas allufões áquelle miniftro defnaturado, que pelas fuás impias refoluções havia provoca- do a divina indignação e attrahíra fobre a noviíTima Gomor- rha o flagello vingador.

Os ares enfombravam-fe em redor do impávido miniftro. A borrafca annunciava-fe temivel nas orlas do horizonte. Co- meçavam a defatar-fe contra elle as linguas, tanto mais peri- gofas e mais difíiceis de calar ou defmentir, quanto é menos extenfa n'um paiz a liberdade popular. Quando não ha im- prenfa livre, os homens públicos e os negócios do governo difcutem-le na fombra e no fecreto, confundindo na commum murmuração o capitulo jufto e verdadeiro e a calumnia, que fe vae propagando e diffundindo, e não pôde confutar-fe, porque anda refugida á luz do dia.

De um notável ^decreto datado a 17 de agofto de lySõ deprehende-fe que chegara n'aquelle tempo a grandes oufa- dias a hoftilidade e averfão contra o famofo miniftro de D. Jo- fé. Uma tão fevera providencia repreffiva não podia certa- mente decretar-fe para conter gente mordaz e deflinguada, que apenas defentranhaíTe em fatyras verbaes o feu ódio con- tra Carvalho. Devia feguramente fer mui grave a circumftan- cia, que didou uma tão dura e cautelofa prevenção. Hou- vera, dizia o rei no feu decreto, peífoas taes e tão barbaras, que fe atreveram a proferir que haveria talvez quem atten-

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taffe contra a vida de algum dos feus miniftros. Ordenava que defde logo íe procedeffe a exacta averiguação e devaíTa, que ficaria fempre aberta. Promettia vinte mil cruzados de premio a quem defcobriíTe os auítores das tremendiíTimas palavras ou outras de lemelhante imputação. Prefcrevia-le nas delações um íegredo inviolável. Tornavam-fe cumulati- vas todas as juftiças reaes e dos donatários, e audorilavam- fe os particulares a prender os que prefumiíTem incurfos no delido. Era o tribunal revolucionário, que furgia antecipado em pleno ablblutifiiio.

Chegcíra á fi^ia culminação n'aquelles dias a animadverfão contra o miniftro, que ameaçava as claíTes privilegiadas com uma inaudita revolução. Não eram fomente as fatyras e os donaires allufivos e maliciofos os canaes, por onde agora íe efcoava o aggreíTivo bom humor dos praguentos e dicazes'. Dos fecretos conciliábulos paíTavam os inimigos a tramar os feus enredos nas recamaras do paço, bufcando enleiar e at- trahir o animo do rei. Apefar de que Sebaftião de Carvalho, principalmente depois do terremoto, havia lançado raizes mui profundas na regia confiança, era comtudo cada vez mais dif- ficil ao hábil timoneiro marear a fua barca, levando firme o rumo por entre os recifes e as reítingas, de que lhe aparcella- vam as oufadas fingraduras. Bailaria um momento de irrefo- lução no animo apoucado do foberano, um capricho de po- tentado, uma noite mal dormida após as noílurnas correrias amorofas, para que D. Jofé com a credulidade fácil de um efpirito pouco allumiado, deífe credito aos inimigos de Car- valho, para que o grande reformador, iniciada apenas a fua obra memorável, e difpoftos fomente os primeiros e débeis fios no tear da immenfa renovação, caiífe precipitado da al-

' Em officio de 29 de janeiro de rySli dizia o embaixador francez, que fe haviam clpalhado pafquins contra o governo. Quadro elementar, tom. vi, pag. go.

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tura vertiginofa, em que haveria de hombrear com a majes- tade.

Trama^'am contra elle no paço os confeíTores, enredavam os fidalgos. Traçavam-lhe a queda prompta e eítrepitola para que volveíTem a dominar, como nos annos derradeiros do rei devoto e galanteador. Logo depois do terremoto, quan- do o animo de D. Jofé, aíTom brado pela terrivel calamidade, teria talvez ainda mais torvada a lua pouca lucidez e fortale- za, redobraram os affaltos, com que a turba dos conjurados fe afadigava por deílruir na fraqueza ingenita do rei a con- fiança no miniftro e no fyftema, que elle fe propunha appli- car. E então que introduzem no paço os dois barbadinhos italianos, o padre Clemente e o padre Illuminato, para que eífabelecendo uma miflao religiofa nas próprias eminências do poder, perfuadam o monarcha á penitencia e deteítação dos feus peccados.

A principal de todas as culpas do foberano era fem du- vida o ter ao lado feu o intrépido eftadifta, que nas horas de terror univerfal e de geral defmaio e defconforto, foubera contrapor á defordem apparente da natureza, a boa ordem e concerto das providencias falutares. E era tão perfiftente a obfcíTão, com que os facciofos inimigos de Carvalho o efia- vam aíTediando junto ao rei, que o embaixador francez, um dos feus mais acerbos contradidores, dizia para o feu gover- no a efte refpeito, a tal ponto ler chegado o fanatifmo dos fra- des, que tinham oufado ir a Belém exhortar el-rei a fazer uma confiíTão publica dos feus peccados'. Mas não era fomente fob a cllamcnha e o burel dos capuchinhos, que fe efcondiam as armas para expugnar o miniftro odiado pela clerezia e pe- los grandes. Martinho Velho Oldcmberg, filho do opulento

' Officio do embaixador francez, conde de Bachi, de 25 de novembro de 1755. Quadro elementar, tom. vi, pag. 6g.

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mercador, a quem Sebaftião de Carvalho concedera em mo- nopólio a navegação e commercio do Oriente, era um dos principaes inftrumentos da oulada reacção contra o minis- tro. Teftemunhas infufpeitas, porque todas lhe profeíTavam um ódio implacável e ferino, fáo conteftes em affirmar a tra- ma delineada'.

Era Martinho Velho grande amigo e familiar dos harha- dinhos, e na cerca do feu convento depois do terremoto eri- gira uma barraca, onde fizera lua morada. Privava particu- larmente com os padres Clemente e lUuminato. Eram eftes cabalmente os que logo após a ruina de Lif boa, pelas entradas que tinham com o rei, fe apreflaram em ir ao paço a esfor- çal-o no infortúnio com os foccorros e confortos efpirituaes. Deram os barbadinhos começo á fua miíTão, em que, fegun- do plaufiveis apparencias, infiítiam fortemente no caftigo tre- mendo, que no terremoto era cifrado contra os peccados e abominações d'aquelle tempo, e na urgência de aplacar por feveras expiações a cólera divina. N'aquella mefma occafião indo Oldemberg ao paço de Belém e pradicando com el-rei acerca da commum e terrivel calamidade, propoz-lhe vários arbitrios, com que fe remediaíTem os eífragos e fe accudiífe á miferia da nação. E dizendo-lhe o foberano, que foífe con- ferir com o feu miniftro os planos, que lhe tinha bofquejado, o alvitrifta denunciando defde logo o feu ódio irreconciliável a Carvalho, defatou a lingua e a malquerença n'uma corren- te de impropérios, proteftando que com tal homem não queria nenhum trato, e fobre ifto ejaculou as mais acerbas accufa- ções contra o eftadifia benemérito-. N'aquelles dias lacrymo-

' Vita di Seb. Giujeppe di Carvalho e Mello, tom. i, pag. 67 e fegg. Rela- ção individual dos cárceres no forte da Junqueira, pelo marquez de Alorna, ti- tulo Dos barbadinhos italianos, manufcripto da Academia das Sciencias.

2 Relação individual dos cárceres no forte da Junqueira, pelo marquez de Alorna, titulo Dos barbadinlms italianos.

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fos os abalos e fecufloes não ceifavam de convellir a cidade de Lifboa, e conturbar e abater os ânimos de maior impavi- dez e ferenidade. O elpirito do rei, fraco e vacillante como era, ofcillava entre a efperança e o terror ao compaífo das terreftres vibrações. N'eft:as occafiões e trances dolorofos, quando o defanimo e o temor tomam o paífo ao bom confe- Iho, cruzam-fe nos ares os alvitres e os queixumes, e lança-fe á conta de quem governa o que pertence á fatalidade ou á fortuna.

Segundo a narrativa do máximo detrador de Sebaftião de Carvalho, o rei, no feu afogo e tribulação, defabafou com Martinho Velho as fuás laftimas, perguntando-lhe quan- do acafo teriam fim tantos defaftres e de novo furgiria a paz e quietação na terra e nos efpiritos. Aqui foi no fogofo in- terlocutor o defatar-fe em violentas imprecações contra o miniítro, increpando-o odiofamente de fer o que por feus ma- lefícios provocava a cólera divina, defrefpeitando a religião, conculcando a juftiça, exercitando as prepotências e os efcan- dalos em progreíTivo crefcimento. E por aqui foi enfartando reparos e calumnias, com as quaes, ao que parece, alcançou deixar perplexo o animo do rei. Ordenou-lhe D. Jofé que po- zeífe por efcripto as queixas e os arbítrios. Valeu-fe Marti- nho Velho de um advogado feu amigo, jurifconfulto de bom nome, que logo redigiu um vehemente arrafoado. Mandou el-rei que o deífe o arbitrifta ao barbadinho Fr. Clemente, que aíFim veiu a fer o interventor para que chegaífe ás regias mãos. Deu o capuchinho o feu parecer acerca do papel, opi- nando que, a fer verdade o feu conteúdo, era o foberano certamente enganado pelo miniftro.

Continuava entretanto Fr. Clemente a frequentar o paço de Belém, onde profeguia fazendo as fuás miífões. Referem os inimigos de Carvalho que lhe não eram aprazíveis eftas idas e venidas, em que ao zelo efpiritual andava confociado

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O enredo politico e profano. Todos os que têem exercido o poder junto de reis, fabem quanto é perigofa fobre importuna eíta frequência de maliciofos cortezãos, que fob color de bem fervir a confciencia ou o intereíTe do monarcha, andam mi- nando em feu conceito o poder e a influencia dos feus legiti- mos conlelheiros. E evidente que, effando a conjuração alojada na própria refidencia do imperante, ou o miniilro re- formador haveria de renunciar o feu oíiicio, ou proftrar ven- cidos e imbelles os feus antagoniítas. Mas vencel-os com brandura, nem condizia com o leu altivo e impetuofo tem- peramento, nem com a urgência das circumftancias, nem com os coftumes políticos d'aquelle tempo de agrefte e omni- potente abíblutifmo. Se damos credito a um infuipeitiflimo efcriptor, o marquez de Alorna, um dos encarcerados no for- te da Junqueira, os conjurados pretendiam levantar ao pri- meiro logar no miniíterio, em vez de Sebaftião de Carvalho, a António Freire de Andrade Encerrabodes, que era então enviado portuguez junto do papa. Um Fr. Manuel de Gui- marães, confidente e amigo de Martinho Velho, efcrevêra para Roma ao fuppofto fucceffor, encarecendo-lhe os defejos e as efperanças, com que elle e os barbadinhos e ainda ou- tros confpiradores lidavam por conduzir o Encerrabodes ás mais altas eminências do poder.

E quafi certo, e o Alorna afllm o affirma, que o fecre- tario de eftado, Diogo de Mendoça, com o ódio, que inlpira fempre a mediocridade avaíTallada pelo talento, cooperava efficazmente na fervorofa reacção. Vieram as indifcretas cor- refpondencias ter ás mãos do miniftro, que fabia parar em fafão própria os golpes imprudentes dos contrários. A 29 de junho de lySõ foram prefos e interrogados os dois bar- badinhos Clemente e Illuminato, Martinho Velho, Fr. Ma- nuel de Guimarães e Francifco Xavier Teixeira, o letrado, que traçara o politico libello. Alguns jazeram por largos an-

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nos no forte da Junqueira, outros foram degredados para Angola.

Que os jefuitas não eram extranhos a cites enredos le de- prehende das queixas e aggravos, que tinham do miniftro e fe confirma com a fingela narração de um inimigo de Carvalho. O Alorna refere que Fr. Clemente, eítando en- carcerado, pedia para confeíTar-fe com o padre Jofé Moreira, que ainda era áquelle tempo o confelTor de D. Jofé, bufcan- do por efle meio fazer chegar uma fua inftancia aos ouvidos do monarcha".

Não eítaria defarmada a rebellião, emquanto nos pró- prios confelhos do governo eftiveffe um fecretario de eftado, não fomente defavindo em fummo grau com o homem emi- nente, que lhe imprimia a direcção e o efpirito, mas participe e connivente com os principaes caudilhos na defabrida oppo- fição. Diogo de Mendoça Corte Real vivia, fegundo a própria coníàíTão dos feus apologiftas, em perpetua hoífilidade ao feu coUega mais poderofo. Quem fabe o que fuccede com frequência nos gabinetes da monarchia parlamentar, onde os miniftros, na apparencia concordes e unidos no mefmo pen- famento, difpendem o melhor dos feus esforços em luffas domeíticas e interiores e em contínuas emulações de in- fluencia e de valia, adivinha facilmente o cjue feria n'aquelles tempos de realeza abfoluta, quando não havia para os mem- bros do governo outro fundamento do poder, fenão as boas graças do imperante. O fecretario de eflado da marinha e domínios ultramarinos via-fe, pela fuperioridade irrefiítivel do collega, reduzido á funcção fubordinada de um mero execu- tor do alheio arbítrio. «Não fabia accommodar-fe, efcreve o mais duro inimigo de Carvalho, a algumas idéas de Sebas- tião, por mais que fe empenhaífe em diíTmiular os próprios

Relação dos cárceres no forte da Junqueira, titulo Dos barbadiultos-

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refentimentos, receiando incorrer na lua indignação". E pois certo que não fe forraria aos meneios, ardis e enredos, com que o podeíTe precipitar do minifterio, e que não veria com maus olhos o esforço inceffante dos conjurados, que impugnavam rijamente a figura principal do gabinete. A 3o de agoífo de lySõ entrava o fecretario de eftado dos negó- cios extrangeiros, D. Luiz da Cunha, nos apofentos do feu defpercebido collega da marinha, e acompanhado do defem- bargador João Ignacio Dantas, corregedor do crime da corte e cafa, lhe intimava o decreto, em que n'aquelle mefmo dia o rei vibrava os raios vingadores da majeftade contra o fâmulo infiel. Os miniítros eram, de feito, n'aquella edade férrea os domeíficos do arbitro llipremo. Como nos velhos defpotis- mos orientaes, a demiíTão dos régios confelheiros confun- dia-fe na mefma tcrrivel penalidade com o exilio ou a pri- fão.

O decreto de 3o de agofto de ij56 exprobrava em afper- rimas palavras o procedimento de Diogo de Mendoça, como réu de lefa majeftade. Por um exceíTo de clemência com- mutava-lhe a pena correfpondente ao feu delido, ordenan- do-lhe que no termo de três horas faiíTe de Lifboa e fe afas- taíTe para logar diífante quarenta léguas, d'onde lhe era defefo perpetuamente o apparecer de novo na capital. Dio- go de Mendoça, referem os feus panegyriflas, recebeu com eítoica ferenidade a improvifa condemnação. Sobraçando o feu breviário, e aíiirmando que das três horas concedidas o primeiro minuto lhe baftava a aperceber-fe para a jornada, diífe ao feu collega, transformado em aguazil: «Vamos exe-

I \'ita di Seb. Ciufeppe di Carvalho e Mello, tom. i, pag. 72. A Vida de Sebajliáo Jofé de Carvalho e Mello, por A., pag. 66, manufcripto da Academia das Sciencias, diz a efle rcfpeito: «Como tinha génio pouco foffredor, em al- guma occafião fe opporia ás máximas do companheiro, caufa íufficiente para o leparar do lado do principe».

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cutar o preceito do noffo rei'.» Singelos e felizes tempos eram aquelles, nos quaes fobravam cortezãos, que até reve- renciavam a realeza, quando á femelhança do grão turco antes de fer culto e parlamentar, enviava o cordão de feda aos feus effendis e pachás. Logo o antigo e complacente companheiro das monterias e defportos pouco efpirituaes do piedofo D. Jofé, fe poz a feu caminho, feguindo efcoltado por foldados na direcção de Aveiro. Tempos depois foi de- gredado a Mazagão, e d'ali o trafladaram á Berlenga, onde vieram a dar fim todas as fuás grandezas e ambições.

António Freire de Andrade Encerrabodes era o eftadifta preconifado pelos caudilhos e fautores da conjuração para fucceder no ofíicio de fecretario de eftado ao miniftro que temiam e odiavam. Os próprios inimigos de Carvalho o ava- liam em feus efcriptos como aquelle, a quem pelas fuás qua- lidades e ferviços competia o aho cargo-. A lua íntima communicação com os barbadinhos, um dos quaes era feu diredor efpiritual, é atteítada por tão irrefragavel teftemu- nho, qual é o de um grande parcial e panegyriífa-. EUe pró- prio confeífava que nas cartas de ofíicio, que de Roma diri- gia ao feu governo, fe exprimira muitas vezes com fobrada rifpidez, denunciando por eíta forma o feu defamor ao mi- niftro preeminente e o quanto fe empenhava em o deífervir e contraítar^ Ainda em governo livre e democrático feria irre- gular o manter na mais importante enviatura de Portugal n'aquella conjundura, a um homem não fomente devotado á facção clerical e uhramontana, fenão também lingua e me- dianeiro em feus conluios para abater e diíTamar o vulto

1 Vida de Sebaftião Jofé de Carvalho e Mello, por A., commentada e ana- lyfada pelo defembargador do paço, dr. Jofé Joaquim Vieira Godinho, manus- cripto da Academia das Sciencias, pag. 64.

2 Relação dos cárceres no forte da Junqueira, pelo marquez de Alorna, titulo Do Encerrabodes.

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principal do gabinete. Encerrabodes foi logo deporto da le- gação, que junto ao Vaticano exercitava. Na renhida peleja, que o miniftro de D. Jole tinha empenhada com a poderofa theocracia, principalmente reprefentada pelos jefuitas e léus propugnadores, era forçolb ter em Roma, quem em vez de contradizer ao eftadifta os léus propofitos, os ferviíTe com lealdade e com fervor, quem foíTe participante na lua for- tuna, como fedario e profeíTor da mefma politica. Era Francifco de Almada e Mendoça, primo de Sebaftião de Carvalho, quem melhor poderia comprehender e executar os feus preceitos na difficil enviatura. Se lhe era conjundo pelo fangue, não menos lhe era affim pela femelhança nos prin- cípios que feguia. D'cfte poderia o miniftro certificar-fe de que fempre le manteria confidente. Seria apenas o zelofo mandatário, como que um diligente procurador para cum- prir em Roma pela acção o que prefcreveíTe de Lif boa o in- fatigável penlamento do grande reformador. Em logar de Diogo de Mendoça foi nomeado fecretario da marinha Thomé Joaquim da Cofta Corte Real, que era então conlelheiro do ultramar. Um contemporâneo, inveterado inimigo de Carva- lho, faz do novo miniftro das colónias portuguezas um retrato, que o não abona certamente como cftadifta e labedor. Se- gundo efte perfil breve e pouco favorecido, o novo mem- bro do gabinete mal fallava a lingua pátria e era incapaz de qualquer grave occupação. O leu mérito era apenas o da obediência incondicional a quem mandava. N'elle ficava o logar provido, e vacante o exercicio como d'antes'. A fijb- millao porém, tão decantada pelo odiento hiftoriador, não obviou a que Thomé Joaquim da Cofta Corte Real pade- celTe d'ahi a poucos annos fortuna egual á do leu anteceíTor.

I Vida de SebajUdo Jofé de Carvalho e Mello, por A., pag. 67, manufcripto da Academia das Scicncias.

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CAPITULO VI

A COMPANHIA DOS VINHOS DO ALTO DOURO

Era trabalhofa e cortada de obftaculos a empreza, em que lidava o miniftro principal de D. Jofé. Mas os feus al- tos efpiritos e a indómita fortaleza do feu animo crefciam e roboravam-fe ao compaíTo da continua e violenta oppofição. Coftumam os eftadiftas medianos laftimar-le de que os feus inimigos, empeçonhando pela calumnia as mais reftas inten- ções, embargando-lhes o caminho a cada inftante, enredan- do-os no labyrinto das fuás cavillofas machinações, lhes não confentem pôr em obra as miríficas reformas, que trazem planeadas. Mas os repúblicos verdadeiros, como os grandes navegadores, quafi folgam na cerração e fúria das tormen- tas, porque fe correriam de fingrar em mares de leite, onde os ventos bonançofos e fagueiros teriam todo o mérito da feliz navegação. Redobra com a vehemente contradicção o vigor do homem de eftado. O governo é então a guerra; e é pela guerra ou pelejada nos campos de batalha, com as ar- mas materiacs, ou ferida entre as facções pela civica energia, que as fociedades fe avigoram, fe adiantam, fe transformam e refurgem para os triumphos mais brilhantes da liberdade e da rafão. Governar é combater. Um eftadifta fem contrários é um athleta n'um ermo amphitheatro. Na paz e na folidão o poder, que é então uma vaidade pueril, inebria com os feus fumos deletérios o pacifico homem de eftado. Á paz fuccede o torpor, ao torpor o fomno, ao fomno a obfcurida- de. Dos miniftros, que regeram fem encarniçados inimigos, é muda a hiítoria. A auréola, que circumda a fronte dos Ri- chelieus e dos Pombaes, fêl-a principalmente a luz, que os ódios lhes jorraram na terrível explofão dos feus rancores.

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Na tragedia antiga o heroe é grande e épico fomente por que luíta fem quebra do leu animo com a tremenda fatalidade. A gloria dos politicos immortaes ha de ter em extremo grau a feição dramática, entretecida de aventuras fingulares. Pa- rece que, como nas antigas folemnidades religioías, o langue vem fempre completar a glorificação e a apotheofe.

Não ha heroes coroados de rofas e de myrthos, tangendo citharas e cantando dithyrambos em folgados contubernios, com túnicas immaculadas e incruentas.

Era formidável e tremenda a oppofição, que de toda a parte fe levantava contra o audaz reformador. Era a princi- pal a liga da nobreza e dos jefuitas. Mas digâmol-o em ver- dade, também nas gentes populares não efcaífeavam os inimi- gos de Carvalho. Porque eíte é condão impreterível de todos os grandes innovadores, que tenham a principio contra fi os mefmos, a quem intentam defopprimir de pefadas e duras vexações. Não fe pôde conteftar que não era branda, nem amoravel a maneira de governar, que as publicas urgências haviam infpirado ao animo fevero do miniftro. Com elle ap- parecia mais torvo e intraítavel do que nunca o abfolutifmo puro, eftreme, fem miftura de nenhum extranho influxo ou legalidade'. Mas também com elle era a primeira vez que o defpotifmo, para juftificar os feus golpes terríveis e certeiros, poderia invocar em feu favor o fer inexorável e duriíTimo para geral utilidade e commum beneficio da nação. Os que porém nas acções humanas, e principalmente nas politicas, vêem fomente a cortiça bronca e afperrima, que eftá enco-

' Em ofRcio de 29 de junho de 17Í6, efcrevia o embaixador francez con- de de Bachi ao feu governo que era mal olhado o miniílro Carvalho pelo po- der abfoluto, com que governava. Quadro elementar, tom. vi, pag. go. Em offi- cio de 9 de feptembro de 1756, dizia o mefmo embaixador, «que l'e não podia fazer idéa da indignação e do ódio, que todos os dias fe engroíTava contra aquel- le miniílro." Quadro elementar, tom. vi, pag. 95.

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brindo o cerne prefladio, os que attentam no que as fe- veras providencias têem de acerbo no prefente fem poderem prefcrutar o que d'ellas no porvir le ha de colher, não acer- tavam a ajuizar que de tamanhas leveridades fe haveria de compor a primeira emancipação do povo portuguez e a pros- cripção dos abufos e preconceitos Ibciaes. Eram como o vulgo infciente, que ao ver cruentadas as mãos do impla- cável operador, não repara que no gume dos feus ferros eítá para o enfermo defefperado a derradeira falvação.

Ao fogo do intereíTe chamou o conceituofo e elegante D. Francifco Manuel, cúmplice dos maiores incêndios das republicas. Os intereíTes e as ambições dos poucos oífendi- dos pelas reformas, confeguem muitas vezes abafar nos feus queixumes e aggravos o que ellas tèem de falutar e previ- dente para a commum profperidade. Um privilegiado, a quem privaram do feu hereditário monopólio, fente, enca- rece, vinga, quanto pôde, a oífenfa recebida. Um povo, a quem fe fazem benefícios, que não fão individualmente re- partidos, raras vezes fabe agradecer á mão, que no futuro lhe apercebe mais profpero deítino.

Nas monarchias abfolutas, quafi defpoticas, a populari- dade não é precifa como elemento de governo. Suppre-a lar- gamente o favor real. Com uma das mãos o valido omnipo- tente efcreve os feus decretos reformadores, e com a outra empunha a vara, prompta fempre a abater e humilhar os que murmuram ou confpiram. No meio das fupplantadas conju- rações e dos enredos fubterraneos dos feus numerofos adver- farios, Sebaftião de Carvalho profegue impaffivelmente nas fuás cogitações de melhoria e de reforma nas condições po- liticas e económicas de Portugal.

A nota fundamental no fyfíema governativo, profeíTado e feguido pelo miniftro de D. Jofé, é a emancipação do rei e da nação. Do rei, exalçando o throno á plenitude do poder,

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libertando-o largamente de toda a influencia do clero e da nobreza, egualando-os, quanto á lua nullidade politica, aos Ínfimos eftratos do vulgo obediente. Da nação, tornando-a independente de toda a vaflallagem direda ou indireda ás potencias extrangeiras. Para relblver o primeiro problema, é neceíTario que o fceptro do monarcha, abatendo as cabe- ças, que fe alteam na turba dos vaíTallos, paíTe fobre ellas nivelando as mais erguidas eminências com as mais humil- des profundezas fociaes. Do tronco da monarchia ablbluta é precifo amputar as plantas epiphytas, que ainda a enlbm- bram e afogam na pujança da folhagem. E urgente deftruir os veftigios derradeiros das inftituições feudaes, em que os barões e os fenhores confideram o foberano como o pri- meiro dos feus pares. A poteftade regia, como emanando ef- fenciaimente de uma origem Ibbrenatural, não pôde confen- tir competidores em nenhum grau. O rei é na terra como o Jehovah biblico no céu. O rei é quem é. elle tem exiften- cia real, omnipotente, creadora, perpetua, indeftrudivel pela ferie indefinida dos feus herdeiros e fucceíTores.Tudo o mais fão feituras da fua graça, que vivem para o fervir e acatar. Mas como o rei é na terra a corporificada providencia, vela paternal e amorofamente pelo bem temporal da fua grei. Eis ahi a ultima expreíTão do poder real e abfoluto, da fciencia certa, com que o rei, allegando-a na cabeceira dos feus de- cretos, juftifica a fua inerravel infallibilidade e exclue como torpiíTima blafphemia toda a extranha participação no exer- cício do poder. Efla é a doutrina politico-theologica do Ba- filikon Doron, do livro celebrado, onde o rei James I de higlaterra e VI de Efcocia, deu o ultimo retoque á theoria do defpotifmo dynaítico e traçou o caminho que levou os Stuarts ao cadafalfo ou ao exilio.

Efta é, delineada em traços rigorofos nos preâmbulos das leis e alvarás, e confirmada cm fevcras execuções nas incon-

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fidencias e nas alçadas, a philofophia politica de Sebaftião de Carvalho.

Eis aqui de que maneira o miniftro no auge do poder eífeítivo e inconteftavel, celebrava a apotheofe da realeza abfoluta, perfonificada em D. Jofé: «Em todo o Portugal e feus dominios não foam outras vozes, que não lejam as que baixam do real throno de fua majeftade, que d'clles (lubditos) fão ouvidas com fumma reverencia por fe acharem todos os vaflallos do mefmo fenhor conftituidos na firmiffima de que elle refolve e determina o que é mais útil aos feus vaíTallos'».

Seria efta porventura a fua crença intima, fincera, inaba- lável? E poíTivel que em pleno feculo xviii, na edade, em que fe abalam e eftremecem todos os velhos preconceitos fo- ciaes e em que eftão fendo minados os cimentos de todas as abfurdas tradições, no tempo de Montefquieu, de Rouflfeau de Alembert e de Voltaire, no meio de tanta luz, que irradia- va pela Europa, prognofticando a não remota condemnação do mundo antigo pela voz e pelo braço da revolução, um efpirito de tão clara lucidez em fua confciencia profeífaífe, como verdade geométrica, o puro abfolutifmo? Não é dado irrogar ao fuperior talento de Carvalho efta laftimofa aberra- ção do entendimento. Bafta ver de perto um rei, ter com elle íntimo trato e converfação, conhecer as fuás fraquezas e pai- xões, a curteza do feu efpirito, e a rafteira eftatura do leu vul- to moral, para ver que não é mais que um homem, e um homem, quafi fempre bem vulgar, bem achegado ao barro biblico, bem informado de mefquinha humanidade. E efte é que fera o deus terreno do puro abfolutifmo? E efte é que ha de fer o vigário e logar tenente da divina omnipotência?

' Ohfervaçóes jecretijfimas do marque'^ de Pombal fobre a collocação da es- tatua equejlre.

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Efte o eleito? Efte o predeítinado:' Efte o paftor, de quem os demais homens lejam as rezes fem alvedrio, lem voz, lem liberdade? Eíte não é pois deus, fenão idolo, não é divindade de gente culta e racional, fenão feitiço de irracional e bruta cafraria.

Ora o rei D. Jole refpondia juftamente a efta imagem. Como poderia pois um agudo e penetrante entendimento, qual era o de Carvalho, cair em fer^'orofa e confciente ado- ração diante do idolo groíTeiro, em cujos contornos mal talha- dos, em cujas feições de rude compoftura eftava reflumbran- do em cada ponto fob artificiofa douradura, o madeiro tolco, onde a ignorância popular, indouto e infeliz imaginário, fora efculpindo pouco a pouco o vulto do fobrehumano abfolu- tifmo?

Sebaftião de Carvalho não acreditava feguramente no régio defpotilmo como divina inltituição. Mas cumpria-lhe profeffal-o na apparencia e roboral-o Iblidamente, porque era elle o fecundo inítrumento da fua adminiftração. Governava em nome do rei e á fombra d'elle. Se lhe faltaffe aquelle es- teio, le a luprema poteífade abíbluta fe minguaffe ou divi- diíTe, entrando algum outro elemento politico na partilha do poder, a queda eftrepitofa do miniftro feria infallivel e fegu- ra, ou confervando-fe Carvalho ainda no governo, teria de renunciar ás fuás largas e inauditas reformações. Era mais fácil cortejar um potentado abfoluto, omnipotente, irrefpon- favel, do que feria a um demagogo, como Péricles ou De- moífhenes, o firmar no favor e no applaufo popular a fua do- minação. O único elemento politico poderofo, forte e cíficaz era a regia audoridade. Cumpria pois ao miniftro aprovei- tal-a ou abdicar o propofito de grandes e falutarcs innova- ções. A fegurança e a força de fcu braço feria tanto mais enérgica e certeira, quanto foífe mais íirme e incontrovcrfo o régio defpotifmo, que lhe fervia de ampliíTimo broquel.

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Sem o inconteítavel abfolutifmo de um monarcha fupe- rior a todos os intereíTes particulares e a todas as forças fo- ciaes, o audaz reformador teria caído irremillivelmente ás primeiras inveftidas dos feus contradi6lores. Era elle a força e o motor, mas o machiniírno, pelo qual o podia utilifar e converter em trabalho util, era a regia poteftade, onde lhe era dado reduzir ao minimo poíTivel todas as refiítencias pas- fivas e todas as perdas de força viva para refolver comple- tamente o feu grande problema de mechanica focial.

Fortalecido e roborado o poder régio de feição que n'elle, á maneira de Luiz XIV, fe confubtanciaíTe a própria eíTen- cia do eftado, que feria apenas d'elle uma pura emanação, era forçofo defopprimir Portugal de toda a externa e oppro- briofa fujeição. Um paiz, que para accudir ás mais inftantes precifões da fua exiítencia politica ou económica, eftá fem- pre e em tudo dependente dos extranhos, não merece, nem pôde ser nação. E bem que os povos, como n'uma tacita con- federação e fincera fraternidade, uns a outros fe encadeiem pe- los vínculos da mutua ligação internacional, reciprocando os bons officios e ajudando-fe uns a outros em amigáveis e fru- ftuofas relações. Mas é neceífario que feja troca efpontanea, egualmente proveitofo para todos o reciproco trato mercantil. E um erro tão grave como infantil o pretender que uma nação viva enclauftrada ciofamente em feu recinto, cerrando as fuás fronteiras a todo o commercio económico ou civil com os demais povos, fabricando tudo quanto poífa baftar aos feus confumos. A natureza, mais próvida e mais difcreta que as falfas legiflações, ao repartir diverfamente os climas e as aptidões da terra e do trabalho, eíleve como que tacitamente impondo aos homens efta falutar communidade, que fe es- treita e perpetua no efcambo dos produftos, fuperíluos n'um paiz, por outros, que a fua induftria ou não pôde produzir, ou fomente a muito cufto confegue remedar e contrafazer. O

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principio racional cifra-le n'elle ponto em que uma nação produza por li mefma o que, lem esforços fobrehumanos e fem artificiaes aclimatações, mais eíteja em confonancia com as fuás faculdades induftriaes. Mas é forçofo que o trabalho, difcretamente dirigido, poíTa crear a riqueza, que fe ha de dar em retorno ao extrangeiro pelos artefaftos e produólos im- portados. E indifpenfavel pois a todo o povo culto e merece- dor da fua independência e liberdade uma induítria nacional. E forçofo que os extranhos exerçam em um paiz uma in- ííuencia mercantil equivalente á que elle mefmo alcança em terra alheia. Fora d'efl:as condições de equilíbrio económico o povo, que viver a expenfas de outro, é um fer\^o ou um mendigo, fervo coroado e mendigo com bandeira. A eíte propofito commemorava Sebaítião de Carvalho n'um feu efcripto o defdem e menofpreço, em que tinham a Portu- gal os extrangeiros, «havendo a nação portugueza por bifo- nha, rude, inerte e deftituida de todos os elementos e prin- cípios das artes fabris e libcraes'».

Tal era a fituação de Portugal no meado do feculo xviii. A alliança e convivência com a Inglaterra, fe bem nos fora útil politicamente, havia não raro defcaido em odiofa fuze- rania commercial. Era Portugal indiredamente feudatario da grande potencia infulana e mercantil. Eíta era a porta, fempre aberta, para que a feu talante podeífe entrar no continente. A adividade britannica foubera converter cm proveito próprio a inércia e laflidão proverbial dos portu- guezes, mais propenfos á guerra que ao trabalho. Em- quanto das minas do Brazil jorraífe o oiro em torrentosa inundação, bem ia certamente á defidia e ignavia popular. O metal faldava facilmente a nolfa mefquinhez induftrial.

' Objervaçòes fecrctijfnnas do marquei; da Pombal Jobrc a collocação da eftalua equeftre.

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Havia com que comprar o pão quotidiano, as telas, os efto- fos, os tecidos, as alfaias domeílicas e habituaes. Um povo, que embevecido em viciofas fidalguias, pôde arremeíTar oiro ás mãos cheias aos menos quinhoados extrangeiros, lidados e endurecidos no trabalho, é como um herdeiro opulentiíTi- mo, que defbarata na ociofidade os feus thefouros, havendo que das arcas inexhauítas nunca ha de chegar a ver o fun- do. Mas o oiro efgota-le finalmente, a miferia bate á porta, e a penúria inexorável força o indolente perdulário á depen- dência e fervidão.

O oiro portuguez quafi todo fe filtrava para os cofres da Gran-Bretanha. As providencias coadivas de Carvalho para obftar á corrente forçofa e natural feriam improfícuas. O oiro é bom, mas o trabalho é melhor. Em vez de trocar o valor metallico pelas riquezas, de que nos abaftecia a Inglaterra, era mais feguro e proveitofo que lhe deíTemos em cambio algumas valiofas producções, de que a natureza nos prove- ra. A melhor, que poíTuiamos, além dos géneros coloniaes, o afTucar e o tabaco, era certamente o vinho, principal- mente o do Alto Douro. Mas o leu trafico lucrativo concen- trava-fe em grande parte nas mãos dos commerciantes in- glezes, na feitoria britannica do Porto.

Decaía rapidamente eíta principal entre as minguadas in- duftrias agrícolas de Portugal, então ainda atrazadiífimo na cultura. Na qualidade peioravam os noíTos vinhos, depre- ciava-fe o valor. Com a quebra da antiga e univerlal repu- tação reftringiam-fe os mercados, que fe abriam com fubida predilecção aos vinhos francezes e hefpanhoes. Urgia, pois, accudir aos males, que ameaçavam a ultima ruina á primeira e mais copiofa fonte da riqueza nacional, prefles a exhaurir- fe. N'efta defventurada fituação queixavam-fe os cultores de que toda a fua indurtria vivia agorcntada e fubdita aos nego- ciantes inglezes, desfallecia a olhos viftos o commercio por-

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tuguez, que em concorrência com poderofos e foraíleiros mercadores, não tinha cabedaes com que luctar.

Nenhum dos contendores n'efta porfia acceitava para fi a culpa do eftado laftimoíb, a que chegara a cultivação e o fabrico. Cada um attribuia ás artes maHciofas do contrario, e á cubica immoderada de lucros avultados, a degeneração da induftria vinhateira. Queixava-fe a feitoria ingleza, impu- tando aos lavradores e aos commifTarios portuguezes os no- civos ingredientes, com que eftavam aduherando os vinhos generoíbs. Refpondiam os accufados, achacando á feitoria britannica a raiz de todo o mal.

Era n'aquelle tempo grande arbitrifta de remédios econó- micos um Fr. João de Manfilha, dominicano, que depois veiu a fer provincial da ordem dos pregadores. Entendeu-fe com alguns dos proprietários e lavradores, e com homens de ne- gocio, que no Porto faziam o feu trafico em vinhos do Alto Douro. O fupremo recurfo das grandes e poderofas compa- nhias, como remédio extremo e íalutar contra as enfermida- des mercantis, era então preconifado como axioma na econo- mia publica d'aquelle tempo. A fciencia, que no feu eftado prefente de perfeição e evidencia, quanto aos feus theoremas fundamentaes, ainda hoje padece tantas quebras e infracções na fua applicação á pratica do governo, era então ainda im- perfeitiíTima. Não é pois para aíTombrar que um efpirito de tamanha claridade, como era o de Carvalho, perfiftiíTe em acreditar nos grandes monopólios e nas privilegiadas compa- nhias, como panacea efiicaciffima. E de feito, fe a extrema liberdade mercantil tem méritos inconteftaveis, não é me- nos verdadeiro que a defordenada concorrência n'um paiz ainda mal convalefcido de profundos achaques económicos, é ás vezes harto perturbadora da producção e da riqueza nacional. Quando vemos que a fciencia juflamente fe eítá infurgindo hoje em dia a cada paífo contra o fyfiema prohi-

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bitivo ou ciofamente protector, quando vemos as alfande- gas denunciadas pela boa economia como um trifte expe- diente fifcal e oppreíTor do livre-cambio, vemol-as também multiplicando a fua vigilância, e a fua acção, ora cerrando as fronteiras de um paiz á livre circulação das mercadorias, ora eífabelecendo ás portas das povoações e no interior do feu mefmo território um exercito numerofo de agentes adua- neiros, para que as próprias lubfiftencias mais urgentes le não poffam efquivar ás garras impiedolas do fifco implacável. E todas eítas continuadas tranfgreffões dos principies da fcien- cia, Ou para encher as arcas do thefouro ou para amimar em fuás faxas e andadeiras uma induftria, que nunca chega a tornar-fe adolefcente, fe eífão paíTando á noíTa viíta, e fão pelos governos abfolvidas facilmente á conta da conveniência e neceíTidade.

Sebaftião de Carvalho reconhecia, como os mais illumi- nados eftadiftas do noíTo tempo, o axioma capital de que a liberdade é o principio creador de todo o trato mercantil. No preambulo do decreto de 17 de agoíto de lySS, que ap- provou o diredorio, pelo qual fe devia regular a adminiftra- ção civil e económica dos Índios novamente libertados no Pará e Maranhão, dizia com luminofa verdade o legiílador: «É certo indifputavelmente que na liberdade confiífe a alma do commercio». Nem Baítiat, nem Cobden ou Stuart Mill podiam affirmar em mais categóricas palavras o lemma fun- damental da economia. Mas aíTim como na linguagem do legiílador os indios, apefar de emancipados, não eítavam ainda pela fua felvatica rudeza habilitados a gerir, longe da publica tutela, os feus intereíTes, affim também elle entendia que na fituação de Portugal, enfeudado aos inglezes em to- das as relações commerciaes, as temporárias excepções da liberdade poderiam fer porventura mais benéficas do que a rigorofa applicação das abílradas theorias.

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Para obviar á rápida ruina da induftria vinicola no Dou- ro, e oppor ao effedivo monopólio dos inglezes um valiofo contrapefo, deliberou o miniftro providente que o meio mais feguro feria a inftituição de uma poderofa e opulenta compa- nhia. Conferiu fobre eíte ponto com Fr. João de Manfilha, que em verdade não era pontualmente obfervante dos câno- nes e conftituições pontifícias, pelo muito que activamente se mefclava ás profanas negociações, que o minifíro juftamente condemnára nos jefuitas mercadores.

Procedeu Sebaílião de Carvalho a tomar exaítas e mi- nuciofas informações fobre o que relatava o fagaz domini- cano. Confultaram-fe os que eram intereífados na lavoura e no commercio dos vinhos do Alto Douro. Refultaram ver- dadeiras ou mui próximas á verdade as palavras, com que Fr. João de Manfilha retratava a miferia, a que chegara a extenfa e fecunda região, onde mais que nas minas do Bra- zil havia profperado a melhor e menos contingente riqueza nacional.

Entrou a participar nas conferencias fobre o aíTumpto o meítre de campo general Manuel da Maia, o grande enge- nheiro portuguez. Fizeram-fe com fua cooperação os eftatu- tos de 3 I de agoífo de lySõ', exarou-fe o alvará de 10 de feptembro do mefmo anno, em que era confirmada a nova aífociação. Eítava conftituida legalmente a Compmihia geral da agricultura das vinhas do Alto Douro.

Eram em verdade extenfos e extraordinários os privilé- gios concedidos á nova inftituição, fimilhantes aos que fe ti- nham decretado em favor da companhia do Grão-Pará. Era como que uma republica mercante inferida e encravada no eftado, mas quafi d'elle independente, excepto para o auxilio

' Apologia 3." do marque:^ de Pombal, manufcripto da Academia das Scien-

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e protecção. A nova fociedade ficava, quanto ao feu corpo e ás peíToas intereíTadas, exempta de toda a jurifdicção civil e criminal exercida pelas juftiças ordinárias ainda as mais eminentes e graduadas. Com o feu juiz conlervador tinha um foro privativo e fingular. Competia-lhe a faculdade de embargar a feu labor os carros e embarcações para os feus tranfportes, de coagir ao feu ferviço os trabalhadores, os ta- noeiros e os vendedores de retalho. Gofava plenitude abfo- luta do direito de apofentadoria, tomando a feus proprietá- rios as cafas e armazéns, que lhe foífem neceífarios. O ca- pital da poderofa aífociação era de um milhão e duzentos mil cruzados, repartidos em acções de quatrocentos mil réis. Tinha entre as fuás obrigações a companhia a de preftar aos viticultores os benefícios do credito rural, mutuando-lhes dinheiro a três por cento, ficando hypothecado o vinho que produziífem. Taxavam-fe-lhe os preços perpetuamente, arbi- trando-fe vinte e cinco mil réis a cada pipa de primeira qua- lidade, e vinte mil réis por egual medida dos que foífem me- nos apreciados. Regulavam-fe os fretes, que na conducção dos vinhos para o Brazil nenhum navio poderia nunca exce- der, entre dez mil réis, que era a taxa de cada pipa trans- portada para o Rio de Janeiro e fete mil e duzentos réis para Pernambuco. A venda chamada do ramo dentro do Porto e em três léguas de diftancia nas terras circumvizinhas, era conftituida em monopólio da companhia. Mandavam os es- tatutos proceder á exada demarcação dos territórios vinico- las, cuja producção poderia ter falda pela foz do Douro. Li- mitava-fe a noventa e cinco o numero das lojas, em que o vinho de ramo haveria de fer vendido na cidade. Deveria a nova inftituição durar vinte annos, e seria a fua exiftencia prorogada por mais dez, fe foífe conveniente.

A breve duração aíTignada á companhia defde logo a de- nunciava como uma experiência commercial, e era ao mes-

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mo tempo o corredivo do que os feus privilégios defcom- munaes poderam ter de impopular e odiolb.

Percorrendo a legiflação d'aquelle tempo é fácil inferir como a nova inftituição era a filha mimofa e predileda da politica mercantil e económica do oufado reformador. Os di- plomas legiílativos íliccedem-fe a efpaços breves uns aos outros para auxiliar e proteger a companhia e remover-lhe do caminho os embaraços recreícentes ou as disfarçadas oppo- íições.

Não eram abundantes no Porto os cabedaes, que podes- fem afíluir á nova inftituição. Mas os cofres da opulenta mi- fericordia portuenfe e de outros pios inítitutos da cidade en- cerravam fommas groffas, que era precifo indireétamente encaminhar ás arcas da companhia. Os feus inimigos apres- tavam-íe a abforver os dinheiros em emprcftimos particula- res para defviar-lhes a corrente e levantar difficuldades á formação do capital. O avifo de lo de feptembro de lySõ prohibe aos eilabelecimentos de religião e caridade mutuar quantia alguma fem licença do Ibberano. A carta regia de 27 do mcfmo mcz preicreve que dos cofres da mifericor- dia e das outras piedofas corporações fe empreite dinheiro a todos os que defejem entrar com elle na fundação da com- panhia.

Era urgente reanimar a navegação mercante portugueza, fem a qual feriam deluforias todas as efperanças firmadas na companhia do Grão-Pará e as que tornavam aufpiciofa a das vinhas do Alto Douro. Os marinheiros portuguczes, attrahidos pelo natural defejo de foldadas mais crefcidas, na- vegavam numerofos em navios inglezes do commercio'.

Quadro elementar das relações politicas e diplomáticas de Portugal, tom. xviH, pag. 366, citando um documento do archivo dos negócios extrangei- ros, em Paris.

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Para obviar feveramente a efte mal acudiu o alvará de 27 de feptembro de 1756, defnaturalifando de portuguezes os que da pátria fe aufentaíTem para fervir em navios cx- trangeiros, confifcando-lhes os bens e as fazendas, e commi- nando-lhes além dTíTo a pena de dez annos de galés, quan- do foliem encontrados em terras de Portugal.

A ufura, que depois do terremoto fe tornara grande e ha- bitual, era um dos impedimentos, que fe oppunham a alcança- rem cabedaes a juro módico os que defejaífem entrar como accioniítas em a nova companhia. Uma providencia de Car- valho prohibe fob graves penas, que a taxa de juro fe levan- te acima de cinco por cento".

Um dos mais beneméritos ferviços, preftados a Portugal pelo incanfavel reformador, foi fem duvida o esforço e tena- cidade, com que para favorecer e accrefcentar as forças pro- dutivas da nação, fe empenhou em expvtngir a nota de vi- leza ou ao menos de ariftocratico defdem, em quen'uma terra de fidalgos foberbos e ociofos eram tidas as honeflas profis- fões, que pelo trabalho e diligencia criam a riqueza e fundam em feguros alicerces a profperidade focial. A legiílação do eftadifta, fuperior aos preconceitos do feu tempo, faz ouvir a cada paífo eíta nota fundamental. Nos eílatutos da nova companhia, como nos da que fora inftituida para o Grão- Pará e Maranhão, declara o legiflador em termos formaes, que o entrar n'eífas úteis aífociações de mercadores, « não de- roga a nobreza herdada, antes é meio para alcançar a adqui- rida». Os diredores e os outros officiaes d'eftas fociedades mercantis ficavam habilitados a receber as ordens militares, e os feus filhos poderiam ler no defembargo do paço fem o que então fe appellidava «a difpenfa da mechanica», quer dizer, a generofa abfolvição de tal peccado, qual era o ha-

' Alvará de 7 de janeiro de 1757.

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ver tido humilde nafcimento e exercer como plebeo o traba- lho honefto e produítor, em vez de ter vifto a luz em áureos berços e de infamar na ociofidade e na torpeza o nome her- dado. E para ainda confirmar que o trato mercantil não era incompativel com as funcções publicas, havidas por mais qualificadas e infignes, decretava o honrador illuftre das úteis occupações, que todos os magiftrados judiciaes, os oííiciaes de guerra e os de fazenda, poderiam fem defaire, antes com publico louvor, entrar na companhia do Alto Douro'.

Não baftava porém confignar n'efta legiflação, precurfo- ra de rafgados principios democráticos, a doutrina de que a honrada mercancia não deíluílrava os mais efplendidos brazões. Era conveniente o eftimular a própria fidalguia a con- fociar-fe nas emprezas produótoras. Por iffo na carta official, em que Sebaftião de Carvalho enviava ao defembargador Bernardo Duarte de Figueiredo a minuta dos eftatutos^ para que no Porto os aíTignaíTem os accioniítas, que ha^■iam de fer- vir de provedor e deputados nos primeiros três annos a da- tar da inftituição, ordenava, que nos oflficios da companhia além dos commerciantes entraíTem peíToas nobres. «Porque, diz o miniftro . . . d'efia forte, vendo-fe a nobreza a lervir com os homens de negocio, promifcua e indifhndamente fe deíferra a irracional e prejudicialiffima prevenção de que é mechanico o commercio, que fe faz em groífo por meio da navegação mercantil». N'aquella mefma carta o efta- difia denunciava ao defembargador, fervindo então de chan- celler da Relação e Cafa do Porto, que na cidade havia homens de negocio, que eftavam confpirando contra a no- va inítituição, limitando-fe por emquanto fem manifeífa

' Alvará de 5 de janeiro de 1757.

2 Carta de 9 de agoíto de 17.^6, na coUecção impreíTa e manufcripta de legis- lação de Trigofo, nabibliotheca da Academia das Sciencias.. annos de 1754 a 1758.

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rebeldia, a minar e difficultar a fua fundação, e prefcrevia ao magiítrado que a refpeito d'aquellas hoftilidades adoptas- fe as providencias opportunas.

É que a oppofição veliemente, indefeíTa, inconciliável furgia impenitente a cada nova creação do famofo innovador. Apenas fupplantada qualquer machinação infidiofa, logo ou- tra fe levantava mais audaz a tomar o paíTo á reformação. Agora que no Porto fe deparava enfejo próprio, a perpetua conjuração deixaria com vantagem a corte de Lifboa para bufcar na terra mercantil por excellencia o theatro das fuás operações.

Ia tomando vigor e corpulência o poder e valimento do miniítro no animo do rei. Era tronco de roble ainda novo, mas de tamanho viço e tão bem filhado na terra, que, fe não logravam derribal-o antes que alaftraífe as raizes profun- damente, não haveria depois fazel-o baquear. Bufcavam pois os inimigos todo o pretexto e occafião para lhe dar fortiíTimos combates. Principiaram aífediando-o nas próprias recamaras do rei, influindo-lhe pela voz dos jefuitas efcrupulos de timo- rata confciencia. Aífeítaram contra o miniftro os mercadores da fua facção, para que levantando feus clamores contra a companhia do Grão-Pará, obrigaífem o rei, que ainda tinham por fraco e irrefoluto, a defpedil-o do cargo e da valia. Mas tudo lhes faíra tanto ao revez, que em logar de abalarem o animo real, mais o tinham roborado na confiança e intimi- dade com o vaífallo. A companhia do Alto Douro deparava- Ihes porém monção propicia com que podeífem marear a novo rumo. Azava-fe-lhes o enfejo de fazerem apparecer na fcena publica uma nova e mais terrível perfonagem do que os fidalgos e jefuitas, que até ali haviam tido os primeiros papeis n'aquelle drama. Agora faíria á praça rugindo bravamente o povo de uma cidade, que a todas as povoações de Portugal fempre coftumou antecipar-fe na defeza e vindicação dos fó-

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ros populares. O que Lifboa, aíToberbada pela prelença do rei e do governo, não oularia emprehender, havia de cum- pril-o a plebe portuenfe, dando vidoriofamente o fignal da infurreição em todo o norte de Portugal.

Mal havia começado a companhia a exercer o feu lucro- fo privilegio, efcudada com a protecção do miniftro pode- rofo, eis que a 23 de fevereiro de lySy rompe no Porto uma formidável fublevação, que os inimigos de Carvalho, depois que a viram frullrada e punida com rigor, bufcaram amefqui- nhar ás quall imbelles proporções de um pequeno tumulto e arruido. Referem que immenfa de gente popular, em que as mulheres eram parte não pequena, irrompera infrene e im- petuofa contra as cafas da companhia, e ali revogando llirn- mariamente a lei, que havia por tyrannica e odiofa, entregou ás chammas os papeis da fociedade e proclamou de novo a liberdade no trafico dos vinhos. Elmaram alguns em féis mil peíToas as que participaram n'aquella turbulência e fedição. O que feria e aggravava em grau extremo a plebe enfureci- da era o monopólio concedido á companhia para que ella vendeíTe na cidade os vinhos a retalho. Era dura na verda- de a providencia, como é fempre o eífancar qualquer merca- doria, concentrando o feu commercio n'uma companhia ou no eftado. Defculpa-fe e em certa maneira juftiíica-fe a fúria popular, fe da fua infpiração, fcm influxo alheio, nas- cera efpontanea e inftindiva a eflrondofa e fevera protefla- ção. Mas as paixões politicas, os ódios infanaveis, as invejas retrahidas, os intereíTes oíFendidos da nobreza e da clerezia, não fe deícuidavam certamente de alToprar o incêndio, que lavrava, antes da final e tremenda explofão. Conta-fe que os jefuitas principalmente, apoífados a envidar os golpes derra- deiros contra o feu mal diíTimulado antagonifta, andaram efti- mulando os efpiritos propenfos á revolta, utilifando na cruzada quantas armas lhes fornecia largamente o feu copio-

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fiíTimo arfenal. Diz-fe que nas prédicas troou clamorofamen- te a fua facúndia contra a injuriofa inftituição. Refere-fe que do púlpito abaixo proclamaram que os vinhos da nova com- panhia eram impróprios para a celebração do incruento fa- crificio do altar. Pôde fer que os jefuitas portuenfes foffem tão férteis em claras allufões reprehenforas dos ados gover- nativos, como em tempos anteriores havia fido a oratória vi- brante e popular do feu grande parenetico, António Vieira. Não é fora de razão que os mais adivos e aftuciofos jefuitas, de operários evangélicos tranfmudados em políticos tribunos, andaíTem entre o povo e a gente mercantil, creando efcrupu- los e reprovando a companhia do Alto Douro, aíTim como em Lifboa o padre Bento da Fonfeca pouco antes dera vo- to contra a companhia do Grão-Pará. Accufou-os Sebaftião de Carvalho de terem fido os fautores e caudilhos da infur- reição. hicrepou-os de haverem defentranhado dos archi- vos a hiíloria da fedição do Porto em 1661, e de traçarem fegundo eíte modelo a nova rebellião. Não é fácil deítrinçar a parte, que no motim direófamente pertencera á companhia de Jefus. As aííirmações officiaes podem fer porventura exageradas, porque o ódio reciproco entre os partidos tem coítume de alterar a fubflancia dos fucceíTos e quafi fem- pre em vez do feu defenho correíto e fideliíTimo uma desfigu- rada anamorphofe. No conceito de Carvalho, onde apparece uma grande malfeitoria, eftão fempre efcondidos dctraz d'ella os focios da ordem infamada. Efpelhadas na torva ani- madverfão dos jefuitas contra o feu inflexível competidor, todas as acções mais proveitofas ou mais juftas de Carvalho apparecem refledidas como oppreífões e tyrannias. Se o mo- vimento, confiderado como explofão da vontade popular, tem hoje certamente jufiificação pelo direito de refiftencia, era comtudo n'aquelle tempo aos olhos da mais temperada e Iene monarchia um dos mais atrozes attentados entre os que defi-

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nia a lei penal como crimes de lela-majeftade. A ordenação do livro V declarava pertencer a efta categoria qualquer rebel- lião contra o rei e feu eftado'. O legiílador mandava punir o nefando facrilegio com a pena, que na linguagem criminal d'aquelle tempo fe chamava de uiorte cruel. Uma íedição em plena monarchia abfoluta, quafi defcaindo em aberto, ainda que illuftrado defpotifmo, não era, como nas moder- nas monarchias mais ou menos liberaes, um crime politico, fobre o qual, após a primeira ejfervefcencia, caííTe o manto régio, adoçando a afpereza judicial em clemência e amniftia Apezar do que o profundo Montefquieu no E/pirito das leis - efcrevêra a relpeito dos crimes de lela-majeftade e da jus- tiça politica, nas praxes judiciarias e no direito efcripto das nações, ainda as mais illuminadas em aíTumptos crimi- naes, vivia a tradição da barbárie penal, que maculava de fangue os códigos da edade media. O grande e humaniíTimo jurifconfulto marquez Beccaria ainda no feu livro immortal Dos delidos e das penas, não levantara n'aquelle tempo a fua voz, condemnando em nome da humanidade a praífica atro- ciíTima, em que a juftiça punia com um crime legal e medi- tado o crime inconfciente, commettido no momentâneo as- fomo das paixões.

A infurreição do povo portuenfe aos olhos do rigorofo legiílador, que feguia imperterrito a fua traça de governo^ aífumia mais extranhas proporções do que a tomada da Bas- tilha, preambulo cruento da máxima e mais gloriofa revolu- ção, tomaria trinta e dois annos depois, no conceito da ve- lha monarchia de S. Luiz. Em relação á foberania do mo- narcha era a rebellião, como tinham dito os jurifconfultos

1 «O quinto (cafo de lefa-majeflade), fc alguém fizelTe confelho e confede- ração contra o rei e feu eílado ou tratalTe de fe levantar contra elle, ou para ido defle ajuda, confelho e favor." Ordeii., liv. v, titulo 6, § 5."

2 Montefquieu, De Vefprit dcs loix, liv. xii, cap. vii, viii, ix e x.

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redadores do código filippino, infpirando-fe nas doutrinas e nas tradições imperialiftas da lei Júlia de majejtate, crime tão grave e abominável, e que os antigos fahedores tanto extranharam, que o compararam á lepra'.

Em relação ao miniftro o crime tinha porém praticamen- te mais grave fignificação. Era a confpiração latente e diíTimu- lada, que defde largo tempo o acoíTava, trazida agora á praça publica na forma de eftrondofa fedição, e na cidade mais no- tável e podcrofa depois da capital. Era imminente o perigo de que o exemplo da fublevada povoação contagiaíTe o nor- te de Portugal, onde por ler mais avultada a viticultura, po- deria com maior intenfidade e rapidez lavrar o incêndio co- meçado. O intereíTe da própria confervação, ainda mais que o zelo da olTendida realeza, impellia o miniftro a enfrear e a punir a fanha popular.

Delpachou defde logo para o Porto ao defembargador do paço João Pacheco Pereira de Vafconcellos, como prefiden- te da alçada, que devia conhecer do crime perpetrado. Le- vava o juiz por efcrivão um filho feu, Joíe Mafcarenhas Pa- checo Coelho e Mello, defembargador da fupplicação: o pae, fegundo contam, magiftrado fevero e zelador da majeftade, o filho, juiz de duriífimas entranhas, mais para algoz que julgador; um, tendo a afpereza da lei por trifte neceífidade, o outro havendo por delicia a crueza do caftigo. Mandou Carva- lho guarnecer com forças militares a povoação capitulada de rebelde. Eftava ali então um regimento privativo da cidade. Era feu coronel e governava ao melmo tempo as armas do partido do Porto, João de Almada e Mello, primo de Carva- lho, irmão do outro Almada, que exercia em Roma a envia- tura. Marcharam para o Porto dois regimentos de infanteria, um do Minho, outro de Traz os Montes, o regimento de

' Ordeu., liv. V, tit. 6.

dragões da Beira, e um efquadrão de dragões ligeiros de Chaves. Occuparam a povoação militarmente. Durava ain- da a agitação. Alguns dos populares ainda fe aflfoutaram a apparecer diante das cafas, onde fe apofentava o defembar- gador Pacheco Pereira, dando vozes denunciadoras de povi- co hofpedeiro gafalhado. Um piquete de dragões, de efpadas nuas, diíTipou n'um momento o povo inerme.

Impoz-íe defde logo ao Porto a obrigação de manter e alojar pelas cafas dos moradores as tropas da guarnição, car- regando principalmente o encargo penofiíTimo nos bairros, onde houvera principio a fedição. Tirou-fe á gente popular o antigo privilegio de ferem reprefentados os officios me- chanicos pelo juiz do povo e cafa dos vinte e quatro, e pelos mefteres e procuradores, que affiftiam na vereação. Logo o prefidente da alçada abriu a devaífa, em que foram compre- hendidos quatrocentos vinte e quatro homens e cincoenta e quatro mulheres. Continuou o proceífo durante muitos mezes até que a i 2 de outubro de lySy foi pronunciada a fenten- ça pelo defembargador João Pacheco, tendo por adjundos a onze defembargadores da Relação e Cafa do Porto. Con- demnaram os feveros julgadores á pena capital a vinte e um homens e cinco mulheres. Dos homens treze padece- ram a execução no fitio da Porta do Olival, onde o tumulto começara, os outros, porque a tempo fe haviam pofto em falvo, tiveram apenas em eftatua o fimulacro do fupplicio. Das mulheres, que a fentença qualificava entre as mais ter- ríveis promotoras do motim, em quatro fomente defde logo fe exerceu a fereza cruel da lei penal. Das mais peífoas de- claradas cúmplices no crime, umas foram condemnadas em açoutes e galés, outras em degredo para terras africanas. Al- gumas, culpadas em menor grau, expiaram a fua participação no levantamento com defterro para Caflro Marim, ou para fora da comarca. A muitas deram os juizes em caftigo féis

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mezes de prifão em S. João da Foz, e multas, que variaram defde fetecentos e vinte até doze mil réis. Com os impú- beres foi a juftiça menos fevera, fentenceando-os a prefencear as execuções, fendo logo açoutados em feguida em forma de correcção. Abfoltos e immunes de toda a culpa fairam trinta e dois homens e quatro mulheres. Antes do final julgamento haviam fido poítos em liberdade cento e oitenta e três ho- mens e doze mulheres, porque não refultaram comprehendi- dos na devaífa.

Era tal n'aquelle tempo a abfurda e perigofa pretenção, com que o monarcha abfoluto, irrefponfavel, com a fua alta omnipotência em íi confubftanciava todos os poderes do eíta- do, que vemos o rei a cada paíTo intervir nos julgamentos e fobrepor-fe ás decifões judiciaes. Alguns dos juizes que fir- maram a fentença, tinham oufado proferir que o tumulto por- tuenfe não era crime de lefa-majeftade. Opinavam de certo erroneamente ^em face da legiflação penal, que então regia. Defejariam, porém, com branda e epicheia humanidade exi- mir á crueza do verdugo os pobres populares. Mas logo o po- der real mandou ao "prefidente da alçada, que em feíTão do tribunal extranhaífe feveramente tão perniciofa opinião. Efles fão os fruftos 'deletérios, que pendem fempre e em toda a par- te do tronco funeftiífm-io do poder abfoluto. a liberdade, fi- lha e dileéla companheira da civilifação, fabe fazer que feja refpeitavel a juftiça fem invocar em feu favor o arbítrio e a oppreífão.

Attentemos, porém, em que não era de maior doçura e lenidade a juftiça politica em paizes de mais temperada monarchia. Poucos annos eram apenas decorridos após as cruas e inexoráveis condemnações, com que tinham fido cas- tigados na que chamavam livre Gran-Bretanha os fedarios do pretendente, Carlos Stuart, depois da infurreição de 1745, e da perda da batalha de Culloden pelo romanefco aventu-

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reiro. As fummarias e cruéis execuções, em que toram im- molados os infurgentes, paíTavam-le n'uma nação parlamen- tarmente governada. Mas aquellas terríveis reprefalias foram taes, que o próprio filho do rei George II, o duque de Cum- berland, ficou perpetuamente cognominado the bittcher, o car- niceiro. E eftes ados de ferocidade politica eram exercidos quafi fem figura de juizo, emquanto que nos julgamentos mais feveros durante o miniíterio de Carv^alho, fe refpeitaram quanto á forma as legaes Iblemnidades.

CAPITULO VII

os jesuítas

Se os juizos hiftoricos tiveíTem de firmar-fe exclufiva- mente na certeza e na evidencia, feria temerário o afifirmar que na oppofição á nova fociedade mercantil intervieíTe aber- tamente a companhia de Jefus.

Na fentença proferida contra os réus da revolta portuen- fe não fe depara a minima allufão aos perigofos regulares, que tinham a parte principal nas machinações contra os no- vos princípios de governo, infiaurados e feguidos por Sebas- tião de Carvalho. Não vae porém fora de razão o prefuppor que não ficariam indifi'erentes á furda agitação, que prece- deu e bofquejou o movimento realifado a 23 de fevereiro. Parece incontroverlb que religiofos de outras ordens haviam cooperado em eftimular a fanha da plebe portuenfe contra a odiada companhia do Alto Douro. Os próprios efcriptores, que defendem os jefuitas por extranhos á fedição, aífeveram que muitos francifcanos foram diligentes em fuggerir ou con- citar a fublevação. Sebaftião de Carvalho em feus efcriptos apologéticos afíirma expreífamente a participação dos jcfui-

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tas. Attribue-lhes o haverem fido elles os que defentranha- ram dos archivos a relação do movimento popular do Porto em 1661, e o preconifaram como norma e exemplar da nova infurreição'.

A meíma accufação apparece formalmente confignada n'um documento officiaP. N'elle aíTevera Sebaftião de Car- valho pelo órgão do fecretario de eftado D. Luiz da Cunha, que os jefuitas, defconcertados em Lifboa nos feus políticos enredos, trabalharam no Porto por mak|uil1:ar o rei e o feu governo, repetindo as imputações e impofturas, que haviam divulgado em Portugal e fora d'elle, e animando com as fuás obfeífões a outros regulares, que feriam provavelmente, fe bem o documento o não declare, os religiofos de S. Fran- cifco.

Os jefuitas, havidos pelo miniftro zelador da audoridade fecular na conta dos mais adivos e efficazes inítigadores de toda a violenta oppofição ao feu governo, eftavam ainda no paço encaftellados e ainda podiam ter de fua mão a débil confciencia do foberano. Eram elles os confeífores do rei e de feus parentes. Não pode padecer a menor duvida que, de parceria com os fidalgos e fâmulos reaes, todos elles inimigos de Carvalho, formariam o que hoje appellidâmos camarilha, latente e perpetua conjuração contra os minilfros, que de- fejam debellar em beneficio da nação os abufos clericaes e ariftocraticos. Os tumultos do Porto miniftravam a Carvalho enfejo accommodado a expulfar do paço os confeífores da ordem mais do que fufpeita, condemnada. A ig de fe- ptembro de 1757, de noite, fão intimados a fair fem dila- ção do palácio de Belém. D'eíl:a maneira foram defpedidos

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' Apologia S." Appenfos da contrariedade ao libello de Aíendaiiha. 2 In/lrucção dirigida na data de lO de fevereiro de j-5S a Francifco de Almada de Mendoça, miniílro de Portugal na cúria de Roma.

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e enviados á caía profeíTa de S. Roque e ás outras cafas e collegios da Companhia. Em feu logar entraram a dirigir a confciencia do rei e da lua familia religiofos quafi todos per- tencentes ás ordens mendicantes.

Eftava dado o primeiro golpe na podcrofa Companliia, em Portugal. Eram eftas as primeiras hoftilidades. Eram os jefuitas defalojados da mais forte e dominante pofição, onde tinham o leu principal pofto avançado; combate vigorofo de atiradores, precedendo e preparando uma batalha bem fe- rida e uma vidoria bravamente difputada.

Eftava rota e declarada a rija conteftação, da qual ou lairiam mais confirmados e poíTantes os jefuitas, ou vinga- riam em Portugal os primeiros e ainda timidos rebentos da moderna liberdade.

E provável que o miniftro de D. Jofé, cada vez mais irri- tado com os dilcipulos de Santo Ignacio de Loyola, e tendo radicada e funda a convicção de que Ibb a fua influencia fe tornaria impoíTivel todo o bom governo temporal e toda a progreíliva civilifação, n'aquelle tempo traria delineada em feu efpirito não fomente a futura expulfão dos jefuitas do folo portuguez, fenão também a extincção da Companhia em todo o orbe catholico. O problema era porém difiicil e complexo, e não podia relblver-fe com um rafgo, embo- ra violento do poder. Efta milicia efpiritual foubera por tal maneira conquiftar para a lua dominação a maior porção da Europa e fuás dependências na Alia e na America, de tal feição fe havia infinuado no animo dos povos e na benevolên- cia dos governos, que feria neceíTario antes de tudo fuperar as refiftencias, que na commum opinião ainda acalb podes- fem levantar-fe contra a condemnação final da pofTante focie- dade. Na expugnação de tão notável inimigo, convinha antes de tudo deftruir no conceito da gente imparcial a Ibmbra de uma duvida Ibbrc a degeneração, a que chegara o inílituto.

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que ainda teria para o abonar os venerandos nomes dos Xa- vieres e dos Anchietas, a virtude dos Cardins e a gloria dos Vieiras. AíTim como contra as maíTas confiftentes, fortes, dis- ciplinadas de uma bem ordenada e valente infanteria, ainda intadla de fogos inimigos, feria perigofo e imprevidente lan- çar os mais ardentes e velozes efquadrões, fem que uma bem fervida e tremenda artilheria, chovendo o feu granifo de pro- jeíleis levaífe a confufão ao feio das columnas e as íizeífe tremer, defordenar-fe, vacillar; aíTim também houvera fido imprudente e aleatório vibrar contra a firme e bem enraizada Companhia o golpe decifivo, fem haver, por acertadas ope- rações preparatórias, abalado rijamente as fuás fileiras.

O génio de Carvalho comprehendeu lucidamente, não o que feria mais audaz, fenão o que feria mais feguro. O im- pério exiftia n'aquelle tempo, e ainda hoje em grande par- te,— em tão intima travação com o facerdocio, que os mais refolutos reformadores hcfitavam e tremiam ante a folução do problema referente ás relações da Egreja e do Eítado. O abfolutifmo é n'eft:a parte menos favorecido que a revo- lução. Um povo, que no auge do triumpho a fi próprio fe invefhu na fua inalienável foberania, pôde mais n'eftes as- fumptos do que o mais poderofo rei. Carlos V prendia bru- talmente o papa Clemente VII no caftello de Santo Angelo, e deixava fubfiítir as ufurpações da poteítade efpiritual. A França republicana didava a lei, na peífoa de Pio VI, ao fu- premo pontificado, e levantava realmente acima das preten- fóes temporaes do facerdocio a majeftade inauferivel do po- der civil. Henrique VIII, de Inglaterra, podia impunemente legalifar o movimento religiofo da reforma, abolir e feculari- far os mofteiros e abbadias, e ajuntar ao diadema temporal a infignia de fupremo chefe da egreja anglicana, ainda não remodelada emquanto ao dogma e á difciplina. Depois da guerra da liberdade podia um miniftro oufado e grandemen-

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tc reformador, Joaquim António de Aguiar, annuUar por um rasgo da Ília penna francamente revolucionaria, no decreto da extincção das ordens religiolas, o C[ue muitos feculos de mal entendida piedade e religião tinham fundado e accrefci- do ate o abufo intolerável. Mas o poder monarchico do li- bidinofo rei-theologo tinha por efteio a agitação produzida largamente nos elpiritos britannicos pela reforma e pela aver- lao, desde João Wicliífe proclamada, á fuzerania c lujei- ção pontifical. O miniftro liberal decretava a abolição das ordens religiofas, ao eftrondo das vidorias alcançadas contra o duplicado defpotifmo do rei e da clerezia n'uma verdadei- ra e tremenda revolução, no meio da triumphal excitação contra as caducas inftituições da velha fociedade. Sebaítião de Carvalho vivia n'outra epocha, e refpirava mal defafoga- do n'uma atmolphera ainda inficionada pelos preconceitos e abufões de barbaras cdadcs.

O feu empenho género fo c o das mais fecundas confe- quencias para a humanidade e civililação, era firmar a fo- ciedade em fundamentos puramente civis e feculares, deixan- do como deve fer, á religião, expurgada de toda a fijperftição e fanatifmo, o feu império nas confciencias e o feu brando jugo efpiritual acceito e recebido livremente. Repugnava-lhe que o Evangelho, onde reílumbra a cada pagina o defapego dos intereífes mundanaes e das profanas carnalidadcs, nas mãos de um clero ambiciofo e terrenal, facrilegamentc fe ti- veífe convertido no código de uma larga theocracia. Accen- dia-fe em vehemente indignação ao attentar em que haven- do Jefu Chrifto gravado como epigraphe na frontaria do feu grande edificio religiofo, a cxprcífa aíTirmação de que o/e» reino não era d'ejle mundo, os que fe diziam feus operários e miniftros, tomaífem ao revez por feu lemma capital, que era fua a terra inteira com tudo o que em fi contem de material, e que todas as nações cuhivadas ou gentílicas, e todos os poten-

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tados e governos caíam por divina inftituição fob a lua alçada e poderio. A linha, que devera feparar como fronteira e linde natural o facerdocio e o império, eftava por tal guiza oblitte- rada e confundida pelas antigas e modernas ufurpações da poteftade efpiritual, que era feguramente empreza difiicilli- ma o erguer de novo os marcos demolidos. Era precifo for- çar o facerdocio a que, fob color de dirigir e fubjugar almas chriftans pelos vínculos fuaves da amoravel catechefe e da branda e fraterna correcção, não encadeaíTe os corpos dos fieis com os grilhões de um mundano captiveiro, nem as- fombraíTe a razão e a conlciencia, como le o caminho do ccu, a eífancia myftica da luz, houveíTe de ler traçado em meio de tenebrofa efcuridão.

Eftes eram os propofitos do benemérito miniífro, mas o feu génio emprehendedor e arrojado naturalmente le eílreita- va nos âmbitos anguftos, onde tinha de exercer a fua acção. Eftava collocado entre um rei débil e timorato, e uma nação defalumiada e fuperfticiofa. De um lado o delpotifmo de um homem, do outro lado o fanatilmo da multidão.

Cumpria avançar pautadamente e como quem navega entre baixios. Eram fáceis os golpes desfechados Ibbre a gente fecular. Eram difificeis contra homens, a quem a rou- peta ou a famarra aíTegurava a immunidade, e que na cré- dula phantafia popular podiam apparecer, em vez de faccio- fos agitadores, hoílias innocentes, coroadas com a laura do martyrio.

Começou pois Sebaftião de Carvalho por Ibllicitar do Vaticano as providencias occorrentes á faudavel reformação da Companhia em Portugal e léus domínios. Bem lábia elle que era inexequível o que pedia. O que elle prelumia ferem enfermidades, que eflavam corrompendo e afeando o antigo inftituto de Santo Ignacio, eram as próprias leis e condições orgânicas da fua exiflencia collediva. A famofa fociedade ou

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havia de acabar inteiramente ou manteria intemeratas as fuás tradições e os léus proceíTos. Os que Ic afiguravam por abu- fos, eram antes os coftumes convenientes á ília inílituição. Os que le julgavam erros paíTageiros, eram os axiomas, em que eftribava a lua influencia e o feu poder. Tirar-lhe a direcção das conlciencias nas clafles mais poderofas, a começar do próprio rei, arrebatar das fuás mãos o enfmo e a educação da juventude, limitar-lhe á evangélica parenefe, fem mefcla de profana direcção, nem commercios lucrativos, o exercicio das miíTões no Oriente e Novo Mundo, era abater a Companhia ao nivel das vulgares congregações, e condemnal-a, em vez dos léus efplendidos triumphos nas cortes e nas praças, ao obfcuro pfalmear no coro das fuás egrejas, quali defertas de fieis. A Companhia não a creára aquelle myftico, mas fogo- fo e enérgico eftadifta, leu primeiro inflituidor, para a vida contemplativa, e para a afcefe folitaria, fenão para o comba- te fem remanfo, para a conquifta moral de todo o orbe pela ambição e pela fé, para o governo fem refponfabilidade, para a foberba dominação nas apparencias da evangélica hu- mildade. Era o exercito adivo da foberania clerical. O bre- viário, na fefta de Santo Ignacio, cantava exalçando o ferviço relevante do famolb fundador: Nopo per bcatiim Ignathim fiill/iíiio militautem eclejiam roborajti, quafi dizendo em lin- guagem: »Por induftria e obra de Santo Ignacio fortalecefte com um novo auxiliar e novo prefidio a egreja militante».

Apelar de tudo prefuppoz ou fingiu Carvalho que a So- ciedade poderia ter em feus defeitos correcção, em fcus des- mandos emenda e melhoria. Lembravam-lhe as palavras, em que theologos tão doutos e piedofos como os dois emi- nentes hefpanhoes. Árias Montano e o bifpo de Canárias, Melchior Cano, haviam debuxado a imagem da Companhia em termos, que excluem da parte d'elles toda a crença na fua proveitofa reformação. Lembravam-lhe c citava-os. Mas

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era ainda neceíTario admittir porventura como um milagre o que, fegundo a ordem natural, não era poíTivel realifar. Era como transformar um corfel impetuoíb, altivo, quafi in- dómito, coftumado a correr velociílimo no circo, em ovelha humilde, quieta, e remanfada na paz innocente e ociofa do redil.

Ordenou Sebaftião de Carvalho ao miniftro de Portugal na corte de Roma, Francilco de Almada e Mendoça, que impetraíTe do pontífice Benedido XIV as providencias ne- ceíTarias para que em Portugal fe procedeíTe á vifita e re- formação da Companhia. Expediu-lhe para efle fim as duas inftrucções de 8 de outubro de lySy e de 10 de fevereiro do feguinte anno.

A primeira, a que fervia de explanação e commentario o opufculo publicado por ordem do governo fob o titulo de Relação abreviada da republica que os religiqfos jefuitas de Portugal e Hejpaiiha ejiabeleceram nos doiniiúos ultramarinos das duas monarchias, devia fer prefente ao pontífice romano, e n'ella deduzia o eftadifta os delidos, pelos quaes os jefui- tas fe haviam tornado infeítos a Portugal, concitando princi- palmente os Índios da America a opporem-fe pelas armas á execução do tratado de limites entre as duas coroas peninfu- lares. Dava Sebaftião de Carvalho ao mefmo tempo conta ao papa de como os confeíTores da familia reinante haviam fido lubffituidos por facerdotcs de outras ordens religiofas. Na fegunda inftrucção recapitulava o miniftro de D. Joie os procedimentos dos jefuitas para obftar ao cumprimento do tratado, combater a inftituição da companhia do Grão- Pará, influir no animo do rei pelas miífões exercidas nos próprios paços, e fublevar contra a companhia das vinhas do Alto Douro a plebe portuenfe. Criminava o miniflro os jefui- tas pela tenacidade impenitente, com que divulgaram no pu- blico portuguez as mais calumniofas imputações ao governo

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de D. Jofé, acculando-o de querer abolir o Tanto ofíicio, infti- tuir a liberdade de confciencia e cafar a princeza do Brazil com o duque de Cumberland, filho legundo-genito do rei George II. AíTeverava Sebaftião de Carvalho que na fen- tença da alçada por occafião do tumulto popular no Porto, «faria uma grande e enorme figura o proceíTo d'aquelles religiofos fe a piedade fi.imma do monarcha não houvelTe defde o principio mandado feparar o que foíTe pertencente aos ecclefiafi:icos » .

As diligencias de Carvalho fijrtiram o effeito defejado. O pontífice Benedifto XIV, Profpero Lambertini, era um dos mais illuminados, juftos e venerandos, entre os que haviam meneado o leme á nave de S. Pedro. Era adverfario e cor- redor dos abulbs, que via introduzidos na egreja, theologo e canonifta de vafia erudição, piedofo como papa, clemente como príncipe, modelto como particular. Era aquelle, de quem o filho de Walpole, do miniftro omnipotente de Geor- ge II, traçara n'uma infcripção em fiia honra, que fora ama- do dos papirtas c pelos proteítantes elfimado. Era um ho- mem que, pelas luas qualidades eminentes, purificava o tri- regno pontifício de todas as impurezas, com que lhe haviam embaciado o efplendor; que pela manfidão quafi eicurecia a arrogância irrequieta de Gregório VII, e pela virtude como que expiava a mundana diífipação de Alexandre VI; pontí- fice paftor, e não guerreiro; amigo da paz e da juftiça, ini- migo de quanto podelTe defluftrar a virtude e a chriftanda- de. Não era adverlb aos jefijitas, antes venerava no inftituto a memoria dos feus grandes luminares. AfFligiam-n'o porém as turbulências, que os focios da Companhia efiavam exci- tando em Portugal, a cujos reis havia poucos annos conce- dera, como infignc teftemunho da fiia piedade e religião, o honorifico diftado de //deli//ii)i(>s. A inílancias de Carvalho, propoftas pelo miniftro portuguez Franciíco de Almada, ex-

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pediu Benedido XIV o breve In fpecula fupremae dignitatis, datado de Roma no i." de abril de lySS. N'efte memorável diploma pontifício citava o lummo paftor as inconveniências e abufos, que o rei de Portugal lhe havia reprefentado com- mettidos pelos jefuitas, pedindo-lhe que houvcffe de acudir com providencias paftoraes a atalhar os efcandalos, que po- deriam recreícer. Para a vifita e reformação da Companhia ern Portugal conferia o papa ampliffimos poderes ao cardeal Francifco de Saldanha, o qual deveria tomar por adjundo uma peíToa conftituida em dignidade ecclefiaftica, e verfada nas conítituições e coftumes das ordens regulares. O pontífi- ce, que n'eftas lettras apoftolicas aífirmava o feu amor á fufpeita fociedade, «e os atfeiftos paternaes, com que a fi mefmo a eftreitava'» não eftava por iíTo menos convencido de quanto era urgente a fua reforma. Ordenava a todos os jefuitas de Portugal e feus domínios que obedecelTem ao cardeal e fe fujeitaíTem ás fuás determinações. Declarava contra os remiíTos e contumazes as máximas penas eccle- fiaflicas, a excommunhão latae fententiae, a fufpenfão à di- innis, a privação de feus ofiicios, além das mais, em que ipfo fado incorreriam, e lhes feriam impoftas a arbítrio do pontífice romano.

Era efte o primeiro golpe dirigido á Companhia por uma audoridade, c]ue ella fem faír do próprio catholicifmo e rene- gar o feu inflituto, não poderia declarar incompetente ou il- ludida nas fuás decifões. Os jefuitas em efcriptos numerofos haviam profeífado a infallibilidade pontificia, durante largos tempos antes da fua temerária definição no concilio do Vati- cano. Os feus canoniftas e theologos haviam levado a adora- ção do pontificado ate ao extremo de afiirmar acerca da fua omnipotência os abfurdos mais rifiveis. Se a ordem, pois.

I «Nos, qui focietatem praedÍL^am paternis compleélimur afícdibus.»

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não era ainda formalmente condemnada, ao menos um papa de virtude tão auílera e de tão immaculada religião, robo- rava em luas novas lettras pontifícias as tremendas imputa- ções, que lhe fizera no antigo breve Lwnenfa pa/íoriiin, ac- cuíando-os de fe mefclarem na America em commercios e ufuras incompatíveis com o eftado clerical. E era tal a boa vontade no pontífice, que fendo expedidas em fevereiro as inftrucções ao plenipotenciário portuguez, no i ." de abril, com brevidade pouco ufada na expedição dos negócios cu- riaes em aíTumptos de menor gravidade e ponderação, era exarado o breve da reforma.

Apenas inveftido no cargo de vifitador c reformador, o cardeal Saldanha, nomeando por feu adjunífo a Eítevão Luiz de Magalhães, monfenhor da patriarchal, fe deu preífa em começar a inquirição acerca dos abufos introduzidos nas províncias religiofas da Companhia em todos os territórios de Portugal. A i 5 de maio de lySS ordenava o cardeal vifi- tador em feu decreto a todos os provinciaes, vice-provin- ciaes, prepofitos, reitores e mais prelados, e aos fubditos da fociedade de Jefus, que ao fer-lhes aprefentado eífe diplo- ma, logo pozeífem cobro, fem o minimo effugio ou pretexto de delonga, aos negócios, em que andavam envolvidos. O extenfo preambulo, que precedia a parte decretoria do man- damento, era uma formal requifitoria fundada em copiolos textos evangélicos contra os abufos e tratos mercantis, em que, apezar das expreífas prohibições de Urbano VIII, de Clemente IX e de Benedióío XIV, os jefuitas fe obftina- vam tenaciífimos em fazer, como os mercadores expulfos do templo por Jefu Chrifto, o officio de nummularios, e de fuás cafas de oração e de pobreza, efpeluncas de la- drões. Accufava o cardeal publicamente os jefuitas de ac- ceitar e expedir lettras de cambio, como fe as cafas religio- fas foífem bancos e efcriptorios de mercadores, c de traficar

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em mercadorias transfretadas da Africa, da Afia c do Novo Mundo.

A defejada reformação teve o êxito, que defde o princi- pio fe podéra adivinhar. A Companhia, que fe julgava aíTm- te vilipendiada pelo feu implacável perleguidor, fez o que pradicam fempre os que eítáo contendendo rijamente n'uma luóta politica apaixonada. Não podia abertamente refiftir. II- ludiu. Chegou em breve a termos o negocio, que o patriar- cha de Lifboa, D. Jofé Manuel, pelo edital de 7 de junho de 1758, fufpendeu do exercicio de confeíTar e de pregar aos padres da Companhia.

A poderofa fociedade, offendida em um dos léus mem- bros mais preciofos e vitaes, qual era a corporação de Por- tugal, agitava-fe, forcejando por anteparar os novos golpes e defender a fua integridade. A 3 i de julho o prepofito geral, o padre Lourenço Ricci, o foberano irreíponíavel de toda a fociedade, reprelentava a Benedifto XIV, ponderando-lhe, em termos de aíTedada manlidão e humildade, as iniquas decifões, pelas quaes os jefuitas em Portugal haviam fido pelo cardeal viíltador declarados réus de profanas grangea- rias, e pelo cardeal patriarcha inhibidos de empregar as fuás melhores armas, as mais acicaladas e certeiras, o púlpito e o confeífionario. Acrefcentava o prepofito geral que a vifita commettida ao cardeal Saldanha, em vez de fer útil para a reforma, fe temia podelfe occafionar difturbios inúteis, efpe- cialmente nas poífeífões ultramarinas. Mandou o papa ouvir em Roma fobre a reprefentação do padre Ricci a congrega- ção dos cardeaes. Opinaram contrariamente á pretenfão dos jefuitas, e aconfelharam que mantida e refpeitada a autori- dade e jurifdicção do cardeal viíitador, para elle recorreífem os jefuitas, que o prepofito geral affigurava tão ottendidos e aggravados.

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CAPITULO VIU

A CONJURAÇÃO

Tudo parecia correr á maravilha e ageitar-fe ás efperan- ças e defejos do miniftro. Tinha no throno um rei, em cuja confiança vivia radicado, no folio pontifício um papa, que pa- recia inclinado a robuftecer com o poder das chaves o braço lecular no feu empenho de abater e humilhar os jefuitas.

A violenta oppofição não fe dava porem ainda por ven- cida, nem remittia facilmente, antes mais incendia a lanha perdurável. Os jefuitas haveriam de trafmudar-fe realmente de homens com paixões e refentimentos em creaturas fobre- humanas e angélicas, fe não padeceílem cruelmente com o opprobrio e o defcredito, em que do auge do feu grande es- plendor os tinham precipitado as providencias decretadas, fob a infpiração do miniih'0 inexorável, pelos dois purpura- dos portuguezes. Eram ainda havia pouco os religiofos de maior fama e auíforidade. Tinham de fua mão a confciencia do monarcha. Confundindo na regia confciencia os negócios profanos do governo com a falvação do feu coroado peniten- te, podiam fubordinar á fua influencia ecclefiaftica as mais graves razões de eftado. Eram confultados pelo Ibberano na folução das queftões mais efpinhofas'. Um dos mais terriveis

I «11 Ibvrano ne avea troppa ftima. AUevato da eíli penfava alia loro ma- niera e voleva in tutti gli affari íentirc il configlio dcl P. Moreira fuo confes- fore." Vita di Seb. Ghifeppe di Carvalho e Mello (efcripta por jefuitas, ou fob a fua infpiração), tom. 1, pag. 100.

"O ódio, que aquelle miniílro (Carvalho) lhes tinha (aos jefuitas) nafcia do grande credito e influencia, que elles tinham no animo d'el-rei: que ... ti- nha por coftume . . . encommendar a feu confeflbr negócios de fumma ponde- ração, coufa que não convinha ao minilíro, que entendia governar f ó . . . a fu- ga dos religiofos do Maranhão, o grande commercio, que faziam no Brazil,

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inimigos de Carvalho, o au6tor de uma larga e diffufa refu- tação da fentença proferida contra os Tavoras, affirma com fegurança que o jefuita Jofé Moreira, confeíTor do rei e da rainha, gofára da mais ampla amizade e confiança do monar- cha, fendo pouco menos que leu primeiro miniftro'.

O povo ignorante ainda havia pouco reputava os jefuitas fervorofos evangelifadores, indemnes de toda a fombra de peccado, ignorando que na fua apparente fimpleza e humil- dade a roupeta encobria e recatava as ambições immodera- das, e muitas vezes egualava ou excedia a purpura dos gran- des potentados. A elles fe podia accommodar o que o feu mais eloquente confocio portuguez havia dito dos que fem ofíicio de corte e de governo imperam nos monarchas «vali- do, que fem nome é a maior dignidade, e fem jurifdicção o maior poderá».

Ainda hontem no paço eram archontes e didadores, na praça demagogos e tribunos. Ainda hontem eram no púlpito publiciítas, efcutados com reverencia pelas turbas, no con- feíTionario curadores das confciencias populares. E agora eftavam reclufos nas fuás cafas, nos feus collegios, nos feus noviciados, inhibidos de toda a acção publica, defpojados das luas armas principaes, repúblicos fem foriiin, eíladiftas fem fenado. Accufados, offendidos, vilipendiados; engeitados pela cúria, renegados pela corte, fufpeitos á cidade. Era im-

todas eftas circumftancias levadas ao conhecimento do foberano fizeram com que elle fe determinaíTe a deixar operar o miniflro conforme entendeíVe.» Offi- cio do encarregado de negócios de França, em Lifboa, ao feu governo, i.° de maio de lySg. Quadro elementar, tom. vi, pag. 142 e 143.

' A mentira manifefla por fi me/ma, ou analyfe da fentença proferida em 12 de janeiro de ijSg. É um enorme volume manufcripto de folio, da bibliothe- ca da Academia das Sciencias, e contém a dcfeza e apologia dos Tavoras e do Aveiro, que tem por innocentes e beneméritos. E efcripto nos primeiros annos do reinado de D. Maria I.

2 Vieira, Sermões, part. iii, pag. igi, ferindo da quarta dominga da qua- resma.

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poílivel a conformidade e reíignação em trance tão cuftolb. O exigir dos jefuitas que affrontados n'uma face oífcreceíTcm humilhados a outra face ao aggreíTor, era fuppor apagado fob a roupeta o uhimo brazido das paixões. Os morahftas da Companhia, os feus famigerados probabihífas, não raiavam tão alto na obfervancia do Evangelho, antes permittiam a repreíalia e o desforço neceíTario á própria confervação. Os feus mais famofos jurifconfultos e profeíTores de theologia moral, João de Mariana, Leffio, Efcobar, Molina, Laymann, Bufembaum, e muitos outros dos feus mais celebrados es- criptores, com as fuás doutrinas acerca do regicidio e da le- gitima refiftencia á tyrannica poteftade temporal, não eram os mais feguros confelheiros para influir e confirmar nos op- primidos a paciência c humildade nas quebras do poder, nos damnos da fazenda e nos aggravos da honra maculada.

Pode pois aíTcverar-fe, quando mefmo não houveíTe in- contelfaveis documentos, que nos jefuitas eftaria exacerbado contra o miniflro, que feveramente, pofto que em legitima defeza, os oífendêra, um ódio entranhavel e infpirador das ultimas vindiífas. Tinham os jefuitas entre os fidalgos prin- cipaes os feus mais fervorofos alliados. A nobreza participa- va com os focios da Companhia na averfão ao miniftro, que empolgara fem partilha a audoridade e os excluíra da pri- vança e da valia, em que cfantes haviam eítado longa- mente empadroados.

A alta fidalguia de Portugal, como fuccede fempre ás defapoífadas hierarchias, não podia refignar-fe a erguer-fe apenas fobre o povo pelos privilégios honoríficos, ou pelas graças e mercês do foberano. Lembravam-lhe com faudade aquelles tempos, em que eram quafi eguaes com o imperante e em que pelo organifmo feudal da fociedade, mais ou menos diffundido em toda a I-Àiropa chriftan nos feculos da edade media, lhes cabia uma parcclla conlideravel na publica júris-

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dicção e aufloridade. De ricos homens e fenhores infolentes e quafi abfolutos, com os feus coutos, as luas honras e behc- trias, com o feu quafi pleno lenhorio nas terras, de que eram donatários, tinham, pela crefcente confolidação do poder régio, defcaido mais e mais em fâmulos da coroa, e dis- putavam no paço pela valia com o monarcha, o que tinham perdido em direito próprio nas fuás ambições de arrogante dominação. Podia ter fido em tempos mais antigos a nobreza uma inftituição hiftoricamente neceíTaria, como organifmo intermédio entre a anarchia, fubfequente ás invaíoes dos bár- baros e a fundação de um poder central e unitário. Mas, ao paíTo que as nações modernas haviam conquiftado cohefão e unidade, enfeixando nas mãos de um dynafta o poder re- partido entre os fenhores de feudos ou os poderofos donatá- rios, a nobreza, como corporação politica, em vez de fer útil aos públicos progrelfos, era um órgão, que na eftructura fo- cial fe tornara, como dizem os biólogos, dyjleleologico, ou difconforme ao feu íim primordial. Um novo elemento moral e económico, uma nova influencia irrefiftivel, fe havia levan- tado e batia á porta do poder e requeítava o feu logar no complexo mechanifmo da nação. Os villões e os inalados, ou- tr'ora defdenhados e opprimidos pelos fenhores, e por elles avexados com as multíplices impofições territoriaes em pro- veito das ariítocracias feculares ou clericaes, começavam a fer agora eíta formidolofa claífe media, que fez a revolução de 89 e fundou a prefente phafe da humana evolução, á efpera que de inferiores eftratos fociaes brotem, impetuofos invalores, os novos defherdados, que a venham fublfituir e defapoffar.

A nobreza no tempo de Car\'alho, apefar de trazer a li- bré do rei e de honrar-fe com ella como inlignia de valiofo privilegio, era ainda arrogante, ambiciofa, indifciplinada. Era inútil para o bem, mas ainda poderola para o mal. Não era

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como na conftituição feudal da Gran-Bretanha, um mediador entre as prepotências da coroa e os arrojos dos communs. Toda a fua intervenção politica fe refumia n'uma fombra de confenfo nacional na pompofa acclamação e juramento de cada novo rei, que fubia ao throno. Se não tinha porém fignificado official, ainda lhe reftavam as memorias das in- trigas, dos enredos, das ambiciofas confederações, em que tinha largamente participado durante as efcandalofas com- petências dos filhos defnaturados de D. João IV. Não pos- fuia o direito de fazer leis, mas ainda tinha força para as defobedecer e defprezar. Não lhe era agora dado influir, mas ainda podia confpirar.

Carvalho era hoftil á alta nobreza, por um motivo pes- foal e principalmente pelo feu fundamental axioma de gover- no. Como a cavalheiro de fidalguia mediana, moderna, de toga e não de efpada, aírombravam-n'o as arrogâncias, com que o ingenito orgulho ariftocratico mira com ironia defde- nhofa os grandes homens, que não tiveram entre os godos mais illuftres o feu berço immemorial.

O eques romanus não contemplava com bons olhos os fenadores pertencentes ás famílias nobiliárias, aos filhos da gens Cornélia ou da Vetiiria. Carvalho diante da nobreza orgulhofa e infolente era como Cicero, no confulado, o fim- ples cavalleiro romano, o homem novo, em frente de Catili- na, o patrício arrogante e perturbador da paz e majeífade da republica.

Mas eram-lhe particularmente odiofos os magnates, por- que perante a regia majefiade legundo o feu diófame, o único poder n'uma nação, nenhum elemento focial fe po- deria alevantar politicamente fobre o nivel rafieiro dos vas- fallos, cuja funcção era acatar e obedecer. A influencia que os próceres antigos ainda pretendiam exercer, procurava o re- formador trafladal-a á clafl"e media; da cortefan ociolidade

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para o trabalho produítor; dos que tinham por honra o con- fumir para os que tinham por officio o acrefcentar a rique- za da nação; do caftello e da efpada para a officina c o tear.

E efte foi um dos grandes méritos de Sebaftião de Car- valho, como oufado innovador. Egualando a alta nobreza com os últimos da plebe, perante a fuprema jurifdicção de um revolucionário deípotifmo, preparava os caminhos, por onde a velha e heráldica ariftocracia viria a confundir-fe em breves annos, fem fignificação, fem valor e fem poder, na turba dos titulares e dos fidalgos, faídos aos cardumes das fileiras obfcuras e plebeias.

A nobreza e os jefi^iitas refpondiam com ulura á animad- verfão, que lhes votava o grande reformador. Contra elle fi.ibfiítia permanente a confpiração. Empregavam todos os meios, que podiam empecer ou infamar. Tramavam no paiz quanto lh'o permittiam os recurfos, de que difpunham. N'elle divulgavam com mão larga as maliciofas imputações, e tra- balhavam nos eftados extrangeiros por desfigurar os fiacces- fos e as intenções do governo portuguez. Aproveitavam aftu- tamente o defpeito, que nos extranhos produziam as provi- dencias decretadas para conter e cercear a fua influencia politica e mercantil em Portugal. Eram principalmente as duas grandes companhias commerciaes as que lhes ferviam de bafe e fundamento para eftimular contra o miniftro a defaffeição dos governos, principalmente do britannico, e dos negociantes inglezes, que viam diminuto e coar6fado o antigo trafico, e perturbavam com infolentes reclamações e meneios turbulentos o curfo regular dos negócios públicos'.

I i.O encarregado de negócios de França em Lifboa, St. Julien, em officio de 2 de janeiro de 1769, dizia ao feu governo que os inglezes, refidentes em Portugal, eítavam defcontentes e murmuravam muito contra a perfeguição fei- ta aos jefuitas, com os quaes tinham grandes e proveitofos negócios commer- ciaes.» Quadro elementar, tom. xviii, pag. Sbg.

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Aos que, lem dar valor a moralidade e juítiça das acções, eítão impacientes por algum meio de vigorofa refiftencia contra um governo por elles odiado, nem fempre é fácil affrontal-o face a face á luz do dia n'efl:e duello terrível, que fe chama a revolução. É mais fácil e expedito o nodurno regicidio que a inlurreição na praça publica. A revolução é a arma privativa das nações vexadas e opprimidas. A con- juração é o recurfo dos magnates defapoffados. Na revolução pleiteia-fe a liberdade e os foros de todo um povo. Na conju- ração litiga-fe o logar na fuprema audoridade em favor de poucos homens roidos de ambição e ledentos de vingança e de poder.

Tinham vifto os defcontentes faír fruítrado o tentame de começar no Porto a geral conflagração. Era bem que appel- laíTem d'aquelle cruento e laítimavel defengano para o expe- diente mais feguro de fazer vacante o folio; do tumulto po- pular, oufado, patente, exporto aos perigos, para o trabuco dos ficcarios na cilada noífurna, covarde, cautelofa.

No dia 4 de feptembro de lySS divulgou-fe pela cidade de Lifboa que D. Jofé fe havia encerrado na fua camará e a ninguém apparecia por motivo de enfermidade. Corriam furdamente os rumores de que alguma coufa de mais grave fignificação fe havia paíTado. As peíToas, que tinham entra- da no paço, dirigiam-fe ali a informar-fe fobre qual era o eítado do foberano. Os que podiam ter acceíTo aos gabi- netes dos miniftros, bufcavam faber o motivo por que o rei não apparecia, e a rainha e as peíToas da fua familia fe confervavam retrahidas nos feus apofentos particulares. As novas, que emanavam do palácio ou do governo, cifravam- fe em que o rei dera uma queda, e que a rainha adoecera'.

I Officio do encarregado de negócios de França, St. Julien, para o feu go- verno, de 5 de feptembro de lySS. Quadro elementar, tom. vi, pag. 114.

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Entre o vulgo principiaram a ter curfo vozes, que refe- riam a caufas de outra ordem o encerro do rei e da fua fa- milia. Ao ouvido fe murmurava entre os do povo, que o monarcha havia fido em a noite antecedente falteado por homicidas. Apontavam-fe como andores do crime perpetra- do os Tavoras com os léus próximos conjundos e aUiados'. Apefar da cautela e diffimulação, com que Sebaftião de Car- valho fe empenhava em encobrir o que realmente fi.iccedêra a D. Jofé, ninguém acceitava como de boa lei as palavras em que elle attribuia a um defaftre paíTageiro a claufura do foberano, e a nuvem myíteriofa que toldava os ares do paço. Os reprefentantes extrangeiros em defpachos fecretos an- nunciavam ás fuás cortes, que o rei fora ferido gravemente ao recolher-fe de uma das nodurnas e frequentes aventuras ^ Segundo a noticia official o foberano padecia apenas os effei- tos de um perigofo defequilibrio. Mas todos fegredavam uns aos outros que um attentado tremendiíTimo tinha pofto a poucos paíTos do fepulchro o mantenedor e o patrono do mi-

1 No mais implacável e tremendo libello efcripto contra o miniftro de D. Jofé, fob o titulo de Vida de Seha/liao Jnjé de Carvalho e Mello, por A., manufcripto da Academia das Sciencias, lêem-fe no § 104 eítas palavras, que fão infufpeitiílimas, porque as traçou a penna vingativa de um contemporâneo, inimigo odiento de Carvalho: «Logo na manhan feguinte fe divulgou a noti- cia d'efle fuccelTo, e o povo conftituiu auítora d'efle deliíto a familia dos Ta- voras. O fundamento era grande, a caufa notória, o juizo verdadeiro».

Ainda fáo mais figniíicativas e terminantes as feguintes palavras do meímo implacável inimigo de Sebaílião de Carvalho: "Permanecia (o rumor publico) contra aquella familia (dos Tavoras). E paíTava como indubitável (o crime) pelo fobrefalto e inquietação d'eíla familia e feus domeflicos, fendo a perturba- ção dos feus femblantes a maior prova do delido». Citado manufcripto, S io5. Outro ainda mais furiofo inimigo de Carvalho^ e defenfor enthufiaíla da in- nocencia dos Tavoras e do Aveiro, efcreve textualmente eftas palavras: "F. cer- to que a poucas horas do referido infulto, começaram em Lif boa a publicar que eram os fenhores Tavoras os aggreffores do execrando infulto». Mentira manifejla, manufcripto da Academia das Sciencias.

2 Officio do encarregado de negócios de França em Lif boa, de 12 de fe- ptembro de 1758. Quadro elementar, tom. vi, pag. 11 5.

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niílro omnipotente. O decreto, em que D. Jole commettia a fua efpofa a regência do reino durante a fua doença, attes- tava, fem admittir a menor dubitação, que o rei ficara inhi- bido inteiramente da minima applicação aos negócios do governo. Apefar da ardilofa diffimulação, com que o minis- tro, alfedando a mais imperturbável ferenidade e confiança, bufcava encobrir e recatar o que realmente fi.iccedêra, fe- gredava-íe que o rei ao paíTar ás onze e meia da noite junto de Belém, em fitio ermo, de homicidas poftos em cilada recebera dois tiros de bacamarte, que o feriram na efpadua e braço direito. Dizia-fe que eram leis os criminolbs, e que efperavam a cavallo o Ibberano em feu regreíTo ao paço de Belém'.

Era a primeira vez que em Portugal acontecia um regi- cidio. Não eram n'aquelle tempo tão frequentes os attenta- dos contra a vida dos chefes fupremos das nações, como os temos prefenceado no feculo prelente. A fua extrema rari- dade e as idéas politicas dominantes não faziam apenas d'es- tes crimes um aífijmpto de laflima e reprovação, infundiam ao contrario um lentimcnto indeícriptivel de horror e abomi- nação. Agora fão apenas um homicidio, uma culpável trans- greíTão do principio generofo de que deve fer inviolável e fagrada a vida humana, a dos humildes ou dos foberbos, dos grandes ou dos pequenos, dos reis mal endeufados nas purpuras ephemeras, ou dos pobres mal enroupados nas veftiduras da miferia. Então era um parricidio, mas dos parricidios o mais atroz, que eftava bradando ao céu pela vingança mais cruel e pela mais excruciante expiação. O rei é hoje um homem, era então um femi-deus. A adaga bran- dida hoje contra um fimples mortal é tão criminofa e imper-

1 Citado otlicio de St. Julicn, encarregado de negócios de França em Lis- boa.

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doavel no fentimento univerfal, como a cufpide vibrada a um peito, que refpira fob arminhos. O trabuco desfechado então contra um foberano era como íe o homicida o apon- tara ao coração da pátria e da nação. Hoje a Ibciedade lafti- ma e deplora o crime ou o fanatifmo dos ficcarios, e paíTa, e move-le e caminha, como um exercito, que deixa á re- taguarda os que foram perecendo nos combates. Então a focicdade eftremecia nos mais foHdos cimentos, como fe a própria natureza entraíTe novamente em tremendos paro- xifmos. Hoje um rei é um fupremo funccionario entre cida- dãos já hvres e maiores, como nas monarchias europêas h- beraes, ou entre lervos, c[ue facodem as ferropeas, como na Ruffia eftremecida peias convulfões do nihiHfmo. Então o rei era uma creatura quafi preternatural, participante pela uncção na divindade. Matar um homem era um crime, ferir um rei, um facrilegio. Matar um homem um peccado, ferir um rei quali um deicidio. Diante de um rei o povo proftra- va-fe em adoração, os grandes curvavam-fe na idolatria, os miniífros ajoelhavam no defpacho, os lacerdotes incenla- vam-n'o com os thuribulos, e todos celebravam perenne- mente a ília immortal apotheolb.

Somente Carvalho e os léus collegas no governo eram depofitarios do legredo, que o rei lhes confiara e d'elle não deixavam traníluzir o minimo villumbre'.

Defde os princípios de feptembro até g de dezembro houve campo largo para que o vulgo canlaíTe a phantafia em anciofas conjeduras. Porém n'aquelle dia o rei por um decreto communicou aos feus vaíTallos que a lua reclulao de cerca de três mezes tinha fido o effeito de um atrociíTimo attentado, em que havia perigado a fua vida. N'eíl:e docu- mento hiftoriava como recolhendo-lc a 3 de feptembro pelas

I Appenfn 4.° da contrariedade ao libello, '^ 49.

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onze horas da noite para o paço de Belém, ao paffar pelo campo, que feparava da regia habitação a quinta do meio, três ficcarios a cavallo, poftados cm cilada junto d'ella, ha- viam difparado os bacamartes contra a fege, que o levava, fazendo os tiros não fomente grandiíflmos eftragos na viatura, fenão também produzindo no foberano feridas graves. De- clarava D. Jofé que por aquelle infulto horrorofiílimo fica- ram «barbara e facrilegamente oífendidos todos os principios fagrados do direito divino, natural, civil e pátrio, com um ge- ral horror da religião e da humanidade». Encarecia o rei o amor, a gratidão e fidelidade portugueza ao leu monarcha, e a urgência de aquietar tão louváveis fentimentos pela prom- pta expiação de tamanho crime. Incitava com prémios avul- tadiíTimos a fecreta delação contra os culpados. Promettia conferir a nobreza aos denunciantes plebeus, e acrefcentar nos foros immediatos, ou galardoar com titulos nobiliários os que foíTem fidalgos, á proporção e medida dos feus graus. Egualmente declarava, alem d'efi:es alicientes, que haveria de galardoar os delatores com mercês pecuniárias, coUação de ofificios públicos e doações de bens da coroa e das ordens militares. Elias promeíTas comprehendiam os próprios conjurados, que não foíTem os cabeças principaes da confpiração. Eítimulava-fe com attradivos femelhantes o zelo das juítiças que prendeffcm os criminofos. Eftatuia-fe que a delação, em calo tão execrando, ficava immune de toda a infâmia e villania. E taes fão as blafphemias contra a moral nos governos de fombrio defpotifmo proclamava o terrível legiflador que nem os vínculos mais íagrados e os mais conjunétos parentefcos, difpenfavam a ninguém de ac- cuíãr leu próprio pae ou de entregar á fanha dos algozes os filhos mais dilcílos. E dava o rei como fundamento d'efl:a excepção aos deveres da natureza, que acima dos pães eftava o rei, pac commum e univerfal de todo o povo. Creava-fe

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juiz da inconfidência ao doutor Pedro Gonçalves Cordeiro Pereira, defembargador do paço, chanceller mór, fervindo então interinamente o fupremo officio judicial de regedor das juítiças. Apparecia pela primeira vez o juizo da inconfi- dência, tremendo tribunal inítituido para julgar com forma extraordinária de proceffo os crimes de lefa-majeftade; trifl:e e laftimofa renovação d'aquellas nefaftas judicaturas, que em Inglaterra fe haviam denominado Court of High Com- nii[fion, e Star Chamber ou camará eftrellada, e fe tinham antecipado, com maior reprovação e egual crueza, ao tribu- nal revolucionário durante a Convenção.

Antes, porém, que fe houveíTe publicado o decreto, em que o rei annunciava o regicídio, haviam-fe tomado as pro- videncias para colher ás mãos os que appareciam indiciados como réus. Apenas D. Jofé pôde erguer-fe do leito, onde, fe- gundo as confiíTões do feu miniftro, jazera por efpaço de três mezes, «fempre com o perigo de morte diante dos olhos'», mandou lavrar e aíTignar os decretos, pelos quaes fe com- mettia a nove defembargadores o encargo de prender os cri- minofos, e fez expedir a vários officiaes a ordem de preítar o auxilio da força militar para que fe executalTem as prifões. antes o miniftro havia concentrado na capital algumas tropas, alem da guarnição habitual.

No mefmo dia, em que faia á luz por editaes fixados nos logares públicos o decreto de 9 de dezembro, uma ordem fuperior prohibia que ninguém fe aufentaífe de Lifboa, fem que primeiro fe qualificaífe perante um defembargador. Adoptavam -fe as providencias mais eftreitas para que peíToa alguma faíífe da cidade á excepção dos que tiveíTem permis- fão d'aquelle magiftrado.

Poucos dias depois, a 1 6 de dezembro, o juiz do povo e

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Appenfo 4.° da contrariedade ao libello, ^ 48.

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cafa dos vinte e quatro, como delegados da gente popular, dirigiam a el-rei uma reprefentação, em que, encarecendo como vaíTallos fideliflimos a enormidade e facrilegio »de uma offenla feita, diziam elles, ao ungido do Senhor, lhe agrade- ciam a honra, com que tratara os mandatários da cidade e acolhera os feus finceros votos, fignificativos da fua devoção e fidelidade. Pediam ao foberano que, fufpendendo os effei- tos da fua clemência, mandaíTe pôr a tormento os indicia- dos, e depois de convencidos e julgados como réus, foíTem declarados peregrinos, extrangeiros, para que nunca mais fe dilTeíTe portuguez, quem não fofle leal ao feu natural le- nhor e rei » .

A taes extremos de infana c abjeda fervidão inclinam fatalmente as trevas adenfadas n'um povo inconfciente da liberdade, pelas funeftas influencias de um ciofo e diuturno defpotifmo.

A 1 3 de dezembro os defembargadores e magiífrados procediam ao arrefto dos culpados. Logo Sebaftião de Carva- lho fez expedir aos prelados diocefanos e aos generaes gover- nadores das armas na corte e nas províncias as cartas regias em que le noticiava o attentado. Era grande nos cfpiritos a agitação. A cidade de Lifboa, depois do terremoto, não fentira ainda tão vehemente commoção. Durante os mezes que decorreram defde os primeiros dias de feptembro até princípios de janeiro, o miniftro de D. Jofé bufcára defenre- dar em fegredo impenetrável os fios da trama fanguinofa que fe eftivera urdindo contra a exiftencia do foberano. De- pois de publicado o regicídio, o proceffo correu breve, rapi- diffimo. A 4 de janeiro de lyScj publicava-fe o decreto, que definitivamente inftituia o tribunal, que haveria de julgar os regicidas. A lei criminal d'aquelle tempo cifrava-fe na orde- nação filippina do livro quinto, código fevero, crudeliífimo, porém não melhor equilibrado entre a mifericordia e a jus-

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tiça, a humanidade e o rigor do que a legiflação penal con- temporânea das nações mais cultas e illuminadas, fem ex- ceptuar a própria livre Gran-Bretanha, onde ainda no pre- fente tranfparece no direito penal a cada paíTo a barbárie e a crueza da edade media. A lei confignava o principio de que o rei era o único juiz para julgar os que de palavra o offendeíTem, e podia exercitar a fua judicatura criminal ou por li melmo ou delegando-a nas peffoas, a quem efpecial- mente commetteíTe o exame e condemnação'. Era omiíTa acerca de qual era o tribunal, que devia fentenciar os réus de um delifto mil vezes mais atroz do que a maledicência ou a calumnia. Do filencio da lei parecia deduzir-fe que o rei era egualmente o juiz excluíivo no crime, que então fe julgava nefandifllmo, no que fe capitulava de mais execran- do parricidio. O foberano, fem tranfccnder os limites da or- denação, ainda que não fe houvera conftituido fupremo e irrefponfavel diftador, podia pois nomear a feu talante os magiftrados, que haviam de conhecer do attentado. Ponde- rava-fe que em todos os crimes de lefa-majeftade, ainda quando os réus, como no cafo do duque de Vizeu e do con- dcftavel feu irmão, eram peffoas mui conjundas ao fangue régio, os juizes não excediam nunca a três ou quatro-.

Contra eftes precedentes advogavam porém as correcções feitas á lei ou á tradição pelos novos coftumes fociaes. De- cretou-fe que o tribunal foffe comporto de togados numero- fos e que ao julgamento preíidiffem, mas fem voto, os fecre- tarios de eftado, que então eram Sebaftião de Carvalho, D. Luiz da Cunha eThomé Joaquim da Cofia Corte Real. Eram juizes os defembargadores do paço Pedro Gonçalves Cor- deiro Pereira, nomeado juiz da inconfidência, o qual fervi-

Ordenação, liv. v, tit. 7, Dos que di^em mal de el-rei. 2 Appenjo 4.° da contrariedade ao libello, % í\-

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ria de relator do proceíTo, e João Pacheco Pereira de Vafcon- cellos que havia fido prefidente da alçada para julgar os réus do tumulto portuenfe; o doutor João Marques Bacalhau, do confelho da fazenda; Manuel Ferreira de Lima, deputado da mefa da confciencia e ordens; o doutor Ignacio Ferreira Souto, defembargador dos aggravos da cafa da fupplicação; o doutor João Ignacio Pereira Dantas, corregedor do crime da corte e cafa; o doutor António Alvares da Cunha e Araú- jo, corregedor do crime da corte ; o doutor Jofé da Coita Ri- beiro, procurador da coroa, o qual haveria de exercer as funcções de fifcal ou promotor; e o doutor Jofé António de Oliveira Machado, defembargador da cafa da fupplicação, nomeado efcrivão do proceífo.

O decreto, que inftituiu o tribunal, foi feguido por outro da mefma data (4 de janeiro) pelo c;[ual foi nomeado pela coroa defenfor único de todos os réus o defembargador Eu- febio Tavares de Siqueira, tendo por commiífão allegar de fado e de direito quanto foífe conducente á defeza dos cri- minofos, para que, dizia o decreto: «a juítiça e a mifericordia fe confervem fempre no jufto equilíbrio, que faz fempre o impreterível objedo das minhas reaes difpoíições » .

Contemplado á luz dos modernos princípios do direito criminal, depois que a liberdade e a civilifação adoçaram os coítumes e as leis, feria altamente reprehenfivel a conflituição do tribunal, e a parcimonia da defeza. Hoje os tribunaes preexiftem ao crime ou ao delido. Mas n'aquclle feculo, em cafos extraordinários, o juiz era defignado pelo rei depois de perpetrado o malefício. Era dura, cruel, inconfiftente com a verdadeira jufliça e liberdade uma femelhante ordem judi- ciaria. Mas a liberdade não exiftia, antes cm logar d'ella predominava fem rival o mais defaflfogado abfolutifmo. Hoje, ainda quando a lei é fevera com os ados criminaes, e deixa perceber que tem de humana o que a juftiça pôde conceder

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e a clemência advogar, vê-fe que é feita por homens contra homens, não por inclementes domadores contra feras racio- naes. Então era o contrario cabalmente. O legillador mais confiava no terror e na crueza do que na pena accommoda- da á graveza do delifto. Hoje a lei penal tem por fim a ex- piação e a emenda. Então era o terrível inftrumento do ódio e da vindiíta focial. Hoje a lei condemna e chora. Então es- pedaçava o criminofo, e rugia como um tigre, encravadas as garras fundamente nas entranhas da proa defgraçada.

Quando um monarcha abfoluto ou parlamentar eftreme- ce no feu throno, julgando que lh'o querem com a exifl:encia derribar, não ha expediente que lhe pareça cru ou defho- nefto. Tanto em noffos tempos fão raros os foberanos, que refpondam com a generofidade e a clemência ao punhal ou ao trabuco do homicida. Não queiramos pois retrotrahir ás epochas do paliado abfolutifmo o que ainda hoje é quafi defufado nas mais illuminadas e benevolentes monarchias.

Defde que o tribunal fe conftituiu, foram contínuas as feíTões. Trabalhavam os juizes noite e dia para apurar as cir- cumftancias do attentado, coUigir as provas criminaes, difcer- nir quaes foram os cabeças e os cúmplices da tremenda con- juração, quaes os fautores e os agentes do crime premeditado.

A I 2 de janeiro proferia o tribunal fua fentença, em que foram unanimes os julgadores. Firmavam-n'a os três fecre- tarios de eftado, que haviam prefidido ao tribunal, e os des- embargadores Cordeiro, Pacheco, Bacalhau, Lima, Souto e Oliveira Machado, fendo preiente o procurador da coroa, Jofé da Cofia Ribeiro. No dia immediato o mefmo tribu- nal, deferindo á fupplica do juiz do povo e cafa dos vinte e quatro da cidade de Lifboa, havia por defnaturalifados os réus, que na vefpera tinham fido condemnados, e os declara- va peregrinos, vagabundos, não pertencentes a nenhuma fo- ciedade civil, c privados da naturalidade e denominação de

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portuguezes. As peíToas, em quem recaíam as duas tremen- das condemnaçóes, eram Joíe Mafcarenhas, que havia lido duque de Aveiro; Francifco de Aflis, outr'ora marquez de Távora; Leonor Thomazia, outr'ora marqueza do mefmo ti- tulo; Luiz Bernardo, primogénito dos Tavoras, que também fora marquez ; feu irmão Jole Maria, que havia fido ajudante de ordens de leu pae; Jeronymo de Athaide, outr'ora conde de Atouguia; António Alvares Ferreira, guarda roupa de Jofé Malcarenhas ; Jole Polycarpo de Azevedo, cunhado e focio do antecedente; Manuel Alvares Ferreira, familiar do antigo duque; João Miguel, leu fâmulo; Braz Jole Romeiro, cabo de efquadra da companhia de Luiz Bernardo.

O que fora julgado cabeça principal da conjuração, Jofé Mafcarenhas, foi fentenciado a que, fendo levado a um alto cadafalfo erigido na praça de Belem, foífe rompido e rodado vivo, quebrando-lhe o algoz os oífos dos braços. Após efla cruel execução, feria queimado vivo juntamente com o patí- bulo, fendo as cinzas lançadas ao mar. Condemnava-o a fen- tença ao confifco de todos os feus bens, a que foífem derri- bados e picados os efcudos das luas armas, e arrazados os edifícios de fua habitação, falgando-fe o terreno em que fe erguiam.

Eguaes penas applicavam os juizes ao que fora marquez de Távora, profcrevendo para fempre como infame efte ap- pellido para que ninguém podeífe jamais afllm cognominar- fe. António Alvares Ferreira, que fegundo a fentença, havia fido um dos executores do regicídio, foi condemnado a fer queimado vivo. Jole Polycarpo de Azevedo, o único d'entre todos os criminofos que podéra efcapar ás perquifições da juftiça real, era fentenciado a egual pena. E porque andava então foragido ou homifiado, o haviam os juizes por banido, e promettiam á peífoa, que o levaífe ao juiz da inconfidên- cia o premio de dez ou vinte mil cruzados, fegundo foífe

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apprehendido em terras portuguezas ou extrangeiras. Os dois irmãos Luiz Bernardo e Jofé Maria de Távora, Jeronymo de Athaide, Braz Jofé Romeiro, João Miguel e Manuel Al- vares Ferreira, tiveram por caftigo o ferem eftrangulados, romperem-fe-lhes os oífos dos braços e das pernas, e ferem depois rodados os feus corpos e lançadas ao mar as cinzas, a que o fogo os reduziífe. A marqueza de Távora, fegundo fe na fentença, por algumas juftas confiderações, que fe- riam provavelmente as do leu fexo, contentou-fe a terrível juíliça monarchica em que foífe publicamente decapitada, e depois de queimado o leu corpo, fe arrojaífem ao mar as cinzas execradas.

Alem d'eí1:as cruéis expiações eram a todos os réus con- fifcados os feus bens, derribados e picados os braloes dos que eram nobres, arrafadas a todos as próprias habitações, e decretada a infâmia perpetua e indelével para a fua des- cendência e geração.

A cruentiíTima fentença foi cumprida no dia 1 3 de ja- neiro, na praça de Belém. As providencias militares mais ri- gorofas fe haviam adoptado para a fegurança do fupplicio. Dois regimentos de infanteria, um da guarnição de Lifboa, o outro de Campo Maior, logo ao amanhecer eítavam porta- dos no logar da execução. Dois regimentos de cavallaria, que eram o do cães, e os dragões de Aveiro, formados em ba- talha aos lados d'aquelle recinto, deítacavam piquetes, que nas boccas das ruas impediam o tranfito á multidão. Fora o marquez de Marialva, parente e familiar dos padecentes, quem ordenara todas eífas militares difpofições, como go- vernador das armas da corte e província da Extremadura. Todos os corpos da guarnição eftavam de prevenção nos feus quartéis. As rondas dos bairros em Lifboa vagavam pela cidade, vigiando e inquirindo as gentes, que paíTavam, e obftando a que ninguém fe encaminhaífe para Belém.

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Principiou a execução dos criminolbs pela marqueza de Távora antes das fete horas da manhã, e terminou o laíti- mofo e atrociíTimo efpccftaculo pelo íupplicio de António Al- vares Ferreira, pouco antes das quatro da tarde. Nove horas longas, pefadas, dolorolilTimas para os próprios, que affiftiam por officio áquella fcena de fangue e de tormento, durou a tremenda expiação. Parece que os homens, que em tempos felizmente paíTados, inventaram cm códigos nefaftos as mais atrozes leis penaes, fe eftiveram deliciando a reprodu- zir na terra em funeftas miniaturas as pavorolas punições refervadas aos mais impenitentes peccadores pelas poten- cias de Aftaroth e Belzebut. Somente a phantafia dos myfti- cos e dos afceticos podia de longe e confufamente nas luas mais claras illuminações raftrear as horrendas penalidades, que o inferno apparelhava aos feus precitos. Pois figure a barbárie dos legilladores e a feveridade dos juizes nas fuás atrozes execuções uma imagem pallida ainda, mas vifivel dos tormentos infernaes.

Dividiram-fe n'aquelle tempo as opiniões e os juizos acerca da grande conjuração. Uns acreditaram cegamente, como fe fora texto do Evangelho, as palavras da fentença. Outros perfiífiram em negar com a maior tenacidade a exis- tência do attentado. Uns eram os amigos e fequazes do go- verno e também em grande parte a voz publica e popu- lar, e alguns dos mais cruéis inimigos de Carvalho. Outros eram os adverfarios façanholbs do miniftro, os afíins e par- tidários da nobreza e dos jefuitas nas fuás crebras e calum- niofas imputações, ainda mais ferozes e mais cegos de ira e de vingança do que o próprio valido, a quem reprehen- diam a fevicia e immanidade. Ha, porém, um ponto funda- mental, em que todos fem difcrepancia eítão concordes. É que o rei D. Jofé foi realmente ferido gravemente, e por três mezes fe confcrvou reclufo e incommunica^•el. Dos mais

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acerbos accufadores do miniftro por elles odiado ferozmen- te, uns dando por innegavel e provada a tentativa de homi- cidio, attribuem-n'a claramente aos Tavoras e ao Aveiro". Outros, aíTeverando que realmente fe commettêra o crime contra o rei, phantafiaram explicações mais ou menos efpe- ciofas e de todo o ponto inverofimeis, bufcando comprovar a innocencia das perfonagens, que foram executadas como réus ^

A theoria inventada pelos mais devotados apologiftas dos fidalgos e mais furiofos inimigos de Carvalho cifra-fe em que os tiros não eram dirigidos ao monarcha, íenão a Pedro Teixeira, feu intimo confidente e companheiro nas aventuras amorofas do régio galanteador. Uns querem n'efl:e cafo attribuir a aggreíTão á vingança do Aveiro, a quem o fâmulo predileéto e arrogante de D. Jofé havia no paço diri- gido palavras infolentes, intoleráveis á foberba proverbial do duque mordomo mór^ Outros dão a entender que á ira dos Tavoras e do Aveiro contra o rei e feu domeftico valido, não era extranho o defgofto, que lhes caufavam os amores do foberano com a efpofa formofa e juvenil do marquez Luiz Bernardol Mas o tremendo libellifta, que n'um manufcripto com centenares de paginas exhauriu contra Carvalho quanto ha de mais injuriofo e infamante, não poude forrar-fe a con-

' Vida de Sebaftião Jofé de Carvalho e Mello, por A., volume manufcripto da Academia das Sciencias de Lifboa, ZZ 104 a 106.

2 «O amor da verdade nos obriga a confeffar que no accidente de el-rei fi- cou gravemente ferido. Se não houveffe outras provas inconteftaveis de que fua majeítade foi ferido n'aquella noite, lendo-fe a fentença . . . não haveria homem de juizo folido e reflexivo, que fe não fentifíe obrigado a crer que tudo foi uma fabula.» Mentira manifefta ou analyje da fentença proferida em 12 de janeiro de 17 5 g. Vita di Seb. Giufeppe di Carvalho e Mello, 1781, tom. u, pag. 3 e fegg.

-' Vita di Seb. Giufeppe di Carvalho e Mello, tom. u, pag. 6 e 7 «Tei- mam (alguns) que o tiro deu em el-rci por erro». Mentira manifejla.

4 Vita di Seb. Giufeppe di Carvalho e Mello, tom. 11, pag. 9.

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feflar que era duvidofo fe os tiros foram deliberadamente dirigidos a D. Jofé, ou ao feu companheiro na viatura". Ahi temos, pois, o mais ardente defenfor dos Tavoras e do Aveiro dando por fuperior á menor conteftação o attentado, e pondo efcaíTa em que os tiros foíTem dirigidos contra o fâmulo Teixeira. Chega a tocar as raias do abfurdo que para ma- tar a Pedro Teixeira os que ardeíTem em furor de vingar n'elle uma affronta recebida, elegeíTem juílamente a occafião, em que paffava n'uma fege ao lado do feu rei. Não eram n'aquelle tempo muito raros os homicídios perpetrados fem nenhuma efcrupulofa precaução, á própria luz do meio dia, em lítio povoado. Quem podia impedir pois que tão altas e poderofas perfonagens, quaes eram os Tavoras e o Aveiro, confummaíTem a vindida fem que, por um engano inevitá- vel, á conta de lavar no fangue do plebeu a macula da hon- ra, fe pozeífem a rifco de oífender a D. Jofé!'

Houve pois uma premeditada tentativa de tirar a vida ao rei. Partindo d'efte fado fundamental, os apologiftas dos réus fentenciados idearam nova traça para moítrar inculpá- vel, benemérita a memoria dos feus miferos clientes. O mi- niftro, fegundo elles, ardendo em cruel defejo de proítrar de um golpe decifivo aquelles, contra quem era feroz e entranhavel o feu ódio, aproveitara a conjuncção, que lhe deparava a fua fortuna, e tecera e urdira uma phantafiada conjuração, em que levaífe as vidimas imbelles até ao ca- dafalfo de Belém ^

1 ir A verdade é que el-rei foi ferido n'aquella infaufta noite; fe quem o fe- riu difparou determinadamente contra elle ou contra outro, c mui durido/o." Mentira manifefta.

2 Vita di Seb. Giufeppe di Carvalho e Mello, tom. ii, pag. i8. Mentira manifejla, pafTim. Elle enorme volume é efpecialmente deftinado a demon- ílrar que toda a conjuração dos fidalgos fomente exiftiu na pjjantafia de Car- valho, e lhe foi infpirada pelo feu ódio á nobreza e aos jefuitas.

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Não padece a menor duvida que a alta nobreza era na fua maior parte inconciliável antagonifta do miniftro, n'aquella fazão omnipotente, e que na guerra íurda, mas contínua dos privilegiados eminentes contra o homem, que não era alliado ás fuás eftirpes, tinham o primeiro logar os Tavoras e o duque de Aveiro. Todos os teítemunhos con- temporâneos, ou fejam de parciaes ou inimigos de Carva- lho, lao conformes em atteftar as queixas e os aggravos, que as duas poderofas famílias, as primeiras na hierarchia e na diftincção nobiliária, não podiam efconder, nem recatar contra o governo. Mas o governo era, como em todas as monarchias abfolutas, não fomente o miniftro dominante, fenão também e principalmente o dynafta, que efpontanea- mente defveftia a regia purpura e a lançava aos hombros do privado, conferindo-lhe e roborando-lhe em cada dia a plenitude do poder. Aggravavam-fe pois os defcontentes não do miniftro, que os afFrontava e impedia de alcançar os feus defpachos, fe não do rei, que mais fe confiava no valido, de quafi obfcuro nafcimento, do que nos mais illus- tres próceres, que tinham com o monarcha o mefmo fan- gue e geração.

O duque de Aveiro, chefe da mais antiga e opulenta cafa ducal, das três que havia em Portugal n'aquelle tempo, fo- licitára com empenhos e inftancias perante o rei que lhe foífem conferidas as rendofas commendas, que feus maio- res tinham desfrudado.

Empenhava-fe egualmente, em que o rei lhe concedeífe a permiífão para contradar o matrimonio de feu filho, o marquez de Gouvêa, com a irmã do duque de Cadaval. Es- perava por efte meio, que as duas cafas vieífem a confun- dir-fe n'uma única familia, mais poderofa e opulenta que outra alguma em Portugal. Não lograra bom defpacho ne- nhuma d'eftas ambiciofas pretenções.

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Os Tavoras, orgulhofos com a Ília antiga e nohrc origem, com as honras e diftincções accumuladas por muitos feculos na fua eílirpe defde tempos quafi immemoriaes, com os fenhorios encorporados na fua cafa, com as famofas embai- xadas e os officios eminentes, que os feus avoengos tinham exercitado, não podiam tolerar com bons olhos, como arbi- tro fupremo, um homem, que a refpeito do padrão, por onde aquilatavam a nobreza, era pouco mais c]ue de origem plebeia e berço obfcuro'.

Attribuia o Aveiro o mau defpacho das fuás pretenções á malevolencia do miniftro, e não menos á fraqueza do fo- berano. D'ahi o ódio ao fecretario de citado, que lhe ata- lhava as azas para voos tão fubidos. D'ahi o mefclar na cólera contra o valido a ira contra o rei. Em noífos tempos eftamos vendo a cada paífo nas monarchias parlamentares os que fe dizem mais acrifolados monarchiftas paífarem facilmente da oppofição contra os miniftros á guerra decla- rada contra o rei, que os mantém e favorece, como fe com elles o vinculara o intereífe commum ou o affefto peífoal. Que feria pois n'aquelle feculo, em que não havia, longe do paço, nenhum meio, que ferviífe á oppugnação de um governo odiado feramente? Em que as leis cerravam o cami- nho á conquifta do poder, deixando aberto unicamente o ata- lho eftreito, agro e efcabrofiíTimo da formal conjuração; fen- da perigofa, que levava n'aquelle tempo ou ao paço ou ao patíbulo, á privança ou ao algoz? E mais ainda fe o minis- tro em vez de terçar em favor dos defpachos, que os des- contentes lhe pediam, os encontrava e diífuadia no animo do rei?

«Sacrificar a fua ambição (pela de Carvalho) aquelles que lembrados da fua pouco mais que mechanica extracção, não queriam dobrar o joelho á fua for- tuna.» Mentira mani/ejla.

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Os Tavoras, de feito, afpiravam com empenho a que a familia afcendeíTe ao faftigio da nobreza titulada, alcan- çando a fufpirada coroa de cinco florões, a infignia quafi majeftatica dos duques". O marquez de Távora, Francifco de AíTis, havia governado a índia como vicc-rei, e tinha aU preftado alguns ferviços, que não equivaliam certamente aos do Gama, do Pacheco, do Albuquerque. Chegara a Lifboa de voha do Oriente, pouco tempo antes do terremoto. Defde então principiaram as fuás inftancias e os feus defgoílos pelo ducado, que o rei e o miniftro lhe fruftravam. N'uma car- ta efcripta por aquelles tempos fentidamente fe queixava de que o monarcha lhe não deíTe moftras evidentes de reconhe- cer e galardoar os feus merecimentos e façanhas. A ambição é nos homens exalçados ás mais fubidas dignidades uma fon- te inexhaurivel, uma febre, que fe accende mais e mais ao compaffo das novas acquifições. Mais vezes faz um não, ain- da que edulcorado com graciofa cortezia, um irreconciliável inimigo, do que um Jbn benévolo e dadivofo um amigo fiel e agradecido. E o não, com que o rei refpondia ás inftancias do feu mordomo mór e do antigo vice-rei, negava-lhes o defpacho ás petições, e cerrava-lhes o adyto da valia e po- der, que ambicionavam. O duque de Aveiro era a primeira e mais alta perfonagem da nobreza. Depois do monarcha e da lua familia ninguém havia com quem podeíle entrar em parallclo. No reinado antecedente tivera o fummo poder na fua familia, quando feu tio Fr. Gafpar da Encarnação gover- nara como privado e minirtro omnipotente o rei e a nação. Via-fe agora defapoffado da minima parcella de influencia, em vez de governar homens, apenas reduzido á honra ines-

' Eítas ambições do Aveiro e dos Tavoras fão atteíladas concordemente nos efcriptos dos inimigos de Carvalho e panegyriílas dos réus fentenciados. Veja o manufcripto intitulado Mentira manifejhi. Vitci di Seb. Giitfeppe di Carvalho e Mello, tom. 11, pag. i5.

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timavel, mas efteril, de reger nominalmente a mordomia. Não era fácil defabraçar-fc das fuás enraizadas ambições. Os feus próprios apologilfas deixaram memorado em efcriptos contemporâneos que elle muitas vezes fe queixava de que lhe fraudaffem as efperanças e os defpachos. «Não era im- provável (diz um dos feus mais fogofos defenfores) que elle tiveíTe concebido uma ira implacável contra o miniftro», que lhe trocava em amargos defenganos os fonhos de nova gran- deza e efplendor á lua familia'. Da fanha contra o rniniftro predilecto, com quem D. Jofé havia quafi repartido o pró- prio folio, era fácil, era mefmo confequente e neceíTario, pas- far por uma pautada tranfição para o ódio contra el-rei. O miniftro era, dizia a inveja, o dcfpeito, a ambição fruítrada e inconíblavel, um tyranno, um monftro, um federado. Mas o rei, não fomente o mantinha e agafalhava na privança, fenão que o tinha como fe fora um maftim junto do throno para o incitar, favorecendo-o, contra os que a elle fe acerca- vam fupplicantes ou cortezãos. O rei era pois quem appro- vava as oppreífóes de leu valido e confelheiro, quem tingia com elle as mãos cruéis nas entranhas das hoftias iniiocentes, quem vinha confirmar as execuções, e fepultar nos cárceres e nos ergaftulos as victimas, que lhe apontava o feu miniftro, quem podendo n'um improvifo volver de olhos afundir no d'onde faira o bandido agaloado, lhe Ibrria complacente, abdicando n'elle a fua vontade e confundindo com a d'elle a fua fortuna. Carvalho apparecia como o Sejano da nova Roma defcaida na extrema e hedionda abominação. Não ha Sejanos fem Tibcrios. D. Jofé era pois agora refurgido o cruel e tremendo folitario da ilha de Caprea. O fangue que caía na cabeça do miniftro refurtia e efpadanava nas faces do foberano. Era o cafo, em que os doutores da Companhia

' Mcníira niauifcjla.

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e os moraliftas do probabilifmo haviam pronunciado, le- guindo a S. Thomás, que era licito, neceíTario, meritório, expurgar a terra de um monftro disfarçado na purpura e no diadema.

Houvera um crime fangrento contra o chefe da nação. As feridas atteftavam que havia certamente um parricida, como n'aquelle tempo fe appellidava com horror o que punha mãos facrilegas no feu natural lenhor e rei. Quem eram os motores e os homicidas? Aqui difcordavam os pareceres, fe- gundo os infpirava o ódio ou o favor ao miniítro de D. Jofé. A opinião apontava os Tavoras e o Aveiro. A facção dos ini- migos e defcontentes do governo lançava á conta de Carva- lho a odiofa imputação. Diziam que, le a alguém devera apontar-le o bacamarte, eíTe era o miniftro, e não o rei. Que le tivera havido conjuração, a vidima deveria de ter fido o funefto didador, que dominava fem limites, não o monarcha frouxo e indolente, que lubfcrevia como um fervo aos capri- chos do fevero potentado. E não penfavam que teria fido infruduofo o homicidio de Carvalho, porque o rei, que fe tinha com elle aífociado intimamente em um novo fyftema de governo, agora mais irritado contra a nobreza e os jefui- tas, em vez de lhes confiar o poder, que requeftavam, os havia de punir, como a quem lhe derribara a mais firme columna do feu throno e o feu mais fiel athleta e defenfor. Diziam fer impoíTivel moralmente que o Aveiro, a primeira peífoa da nobreza, o primeiro dignitário palatino pelo feu oíiicio de mordomo mór, amimado pelo rei com benevolên- cia e difiincção, fe levantalTe contra aquclle, a quem dera menagem. Que os Tavoras, ainda que laftimados pela fua recufa do ducado, não podiam egualmente manchar as mãos no fangue régio. Mas efqueciam que o duque de Bragança, D. Fernando, o maior fenhor de Portugal, e porventura de tocias as Heipanhas, confpirára contra D. João II, porque o

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foberano ciolb da fua autoridade lhe cerceara os léus pode- res feudaes. Deflembravam que o duque de Vizeu, irmão do que foi depois rei D. Manuel, le conjurara contra D. João II, a quem era conjundo pelo langue no grau de primo com-ir- mão. Não traziam á memoria que n'aquella conjuração ha- viam incorrido na tacha de traidores alguns nobres cortczãos da mais clara fidalguia. Sepultavam no filencio que também o eílado clerical participara na felonia, porque um dos conju- rados era o bifpo de Évora, D. Garcia de Menezes. Olvida- vam que o marquez de Villa Real, e feu filho, o duque de Caminha, parentes de D. João IV, fe haviam contra elle conjurado. Mettiam no efcuro a confpiração urdida contra o primeiro monarcha brigantino pelos fidalgos vendidos a Cas- tella, entrando no leu numero como reprefentando a clere- zia, o arcebiípo de Braga, n'aquelle tempo a mais eminente dignidade na egreja lufitana. Simulavam defconhecer que outros nobres, não menos illuftres pelo berço, fe haviam conjurado contra D. Pedro II, no intento de repor no folio a AíTonfo VI, o monarcha de infeliz e efcandalofa recordação. E não attentavam em que todas eftas conjurações fe tinham dirigido contra o imperante, deixando elquecidos por impró- prios da fidalga indignação os feus miniftros e confelheiros.

A p»aixão irracional e facciola, tranfcendendo as raias do plaufivcl, chegava a imputar a Sebaftião de Carvalho o ter porventura promovido os tiros ao foberano. Como fe o ho- mem, cuja fortuna fe fundava na valia e favor de D. Jofé, podeíTe, por um exceíTo de eftupida loucura, romper o es- teio e arrimo a que amparar-fe contra a fanha e furor dos feus contrários.

Se havia, pois, um crime, fegundo o confeífavam os pró- prios inimigos de Carvalho, quem eram os feus agentes mys- teriofos? O miniftro? ImpoíTivel. Os vingadores do Aveiro na pcífoa do terceiro e confidente do monarcha? Os mefmos

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intereíTados n'efta fútil explicação, a negavam ou a faziam mais que duvidofa. Os zeladores da honra e primor dos Ta- voras offendidos e infamados pelo galanteio de D. Jofé á marqueza, mulher de Luiz Bernardo? Os annaliftas contem- porâneos, panegyriftas da familia condemnada, o defcrevem devorando e foffrcndo no filencio a injuria feita pelo rei e a quebra da lealdade conjugal'.

Não havia então alem da nobreza, dos jefuitas, dos feus adherentes e feófarios, ninguém mais em quem recaiffem vehementes as fufpeitas. O ódio, que nutriam contra o mi- niflro, é um ponto que a hiftoria, firmando-fe em teftemunhos infufpeitos, pôde affirmar lem nenhuma hefitação. O que elles principalmente oppugnavam no miniftro era primeira- mente a fortuna, que o erguera em fuás azas, e íbbre ifto, o novo fyífema, que havia inaugurado no governo. Contra elle praguejavam, dizendo de viva voz nas luas converfações e em fuás querellas, o que os feus parciaes repetiram depois em feus efcriptos, debuxando a Carvalho como a ignominia do governo e o opprobrio da humanidade-.

O duque de Aveiro era, fegundo o deixaram retratado os mais fanhudos inimigos de Carvalho, um homem, que pelos feus dotes peífoaes, excluia em vez de conciliar a minima fombra de affeição d'aquelles que o tratavam. Em- bevecido no feu illuftre berço e dignidade, era foberbo, des- agradável, mais que defdenhofo, defprezador de quantos fe

1 Vita di Seb. Guifeppe di Carvalho e Mellu, tom. ii, pag. 9.

2 «Com queíli motivi di difguíto erano poço guardmghi ne' loro difcorfi tanto il duca quanto il marchefe di Távora biafimando la condolta dei miniílro. ... In tutte le corti i grandi foffrono di mal' animo vederfi dominare da' mi- niftri di ftirpe affai diverfa, e fe affetano per loro dei rifpetto davanti ai fo- vrano, trovano poi la maniera di sfogare il loro rifcntimento n'elle private converfazioni: fegnatamente Talterigia, e lagnanze incaute dei duca erano ben note a Carvalho." Vita di Seb. Giii/eppe di Carvalho e Mello, tom. n, pag. 17 ei8.

lhe acercavam, embora foíTem peíToas qualificadas por officio ou nafcimento'.

Sobre quaes foíTem as verdadeiras intenções dos conju- rados, na vacante do throno portuguez, é impoíTivel ou te- merária a conjeftura. Não parece plaufivel que o Aveiro, ainda que inluíílado pelo feu régio parentefco, fubiíTe tão altos os feus voos, que fe enlevaíTe na efperança de lubfti- tuir a D. Jofé. É mais provável que na traça da conjuração entraíTe o intento de acclamar a princeza do Brazil, dando- Ihe por efpofo e por mentor o infante D. Pedro, patrono dos jefuitas e da nobreza.

Apefar, porém, das fombras, em que fe efcondem os pro- menores da conjuração, não obítante as ditfufas declama- ções e narrativas da fentença de 12 de janeiro, é enorme a probabilidade, que auctorifa a dar por exiftente a fruftrada confpiração.

O caííigo foi tremendo, a juítiça crueliffima, implacável a vingança, funeftiíTima a tragedia. Mas n'aquelle tempo e conforme a fua cruenta legiílação, a lucla entre os que re- giam e os que afpiravam ao poder, era um combate feroz de gladiadores. A juítiça perdera defde íeculos o gladio e a balança, e á femelhança das Menades antigas, corria, fol- tos e defgrenhados os cabellos, pendcndo-lhe da efpalda a pelle tigrina, agitando as têas e as antorchas, aturdindo o ar com os feus rugidos na infrene bacchanal do fangue e do patíbulo.

Ainda hoje não pôde ler-fe a terrível defcripção dos fup- plicios de Belém, fem que a mais bota fenfibilidade não fol- te involuntária um clamor de lailimada compaixão. Aquel- les verdugos impaíTiveis, que em nome da lei e da juítiça,

Vida de Sebajliáo Jofé de Carvalho e Mello, por A., '^ 146. Mentira manifejla.

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na prefença de dois graves delembargadores, quebram com as marretas, em golpes compaílados, os oíTos dos miferaveis padecentes, alTombram de horror e indignação os ânimos de mais rija contextura. Aquelles homens, que porfiam em horrorolas contorfões por fugir em vão ás chammas, que os eftão queimando vivos, reprefentam-fe á phantafia Ibhando gritos defefperados, que abalam e conturbam as peíToas de mais duro e aceirado coração. Aquella mulher varonil e ani- mofa, que fora graciofa, bella, mimofa da fortuna, aquella mulher, que mantendo no cadafalfo a altiva dignidade, como fe fora ainda a marqueza de Távora, fabe entre homens, que defanimam ou desfallecem, entregar ao algoz a fua ca- beça, como le a confiara á fua dama para lh'a compor e adornar em noite de efplendido feftim, aquella mulher, que impera pela altivez, e pelo valor faz emmudecer a natureza, aquella mulher, na muda eloquência do feu fexo e no appa- rato laftimofo do ultimo fupplicio, apparece-nos, como fe do alto do patíbulo proteftaífe contra a barbárie da jufliça e contra a infame inftituição da pena capital.

Sagremos em nome da humanidade a dolorofa comme- moração ás vidimas da lei; mas em nome da lei faibamos lambem defcontar na fevera dureza do miniftro o que per- tence ás idéas e aos coftumes do feu tempo e ao preceito imperativo da publica falvação.

Ao minifi:ro de D. Jofé fuccedia o que é commum aos grandes homens em todos os tempos e nações. Todos fão feitos de paixão e de talento, de herança e de novidade, de efpirito revolucionário e de refpeito á tradição. AíTim eram na religião, Luthero pregando contra Roma e afpirando á infallibilidade; Calvino divinifando o livre exame e quei- mando os diífidentes da fua ; na philofophia, Voltaire der- rocando pela ironia a velha focicdade e comprazendo-fe no convívio da corte e dos magnates; no governo dos ellados,

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Cromwel odiando a realeza, decapitando o Stuart em Whi- tehall, e cobrindo o leu protedorado com a fombra da rea- leza; Buonaparte prezando-fe de ter no folo cruento da re- volução as raizes do leu poder e atando, após dez feculos, ao feu novo cefarifmo as formulas e os eftylos do império carlovingio.

Sebaftião de Carvalho vivia e exercitava a fua acção na fegunda metade d'aquelle leculo portentofo, aílignalado pela mais fecunda e efpantofa revolução, n'aquella edade, que fazia a tranfição entre a antiga e a nova Ibciedade, entre o férreo defpotilmo e a livre democracia. Batiam-lhe na fronte os primeiros, ainda frouxos arreboes da nova alvorada focial, mas ainda em torno d'elle fe não tinham diíTipado inteira- mente os nevoeiros da noite calliginofa, que havia precedido nos coítumes, nas leis, nas inftituições. Antecipava-fe ao fu- turo pelas fuás largas e generofas reformações, mas enlaçava- le ao pretérito pela veneração tradicional a muitas das velhas idéas Ibciaes. A monarchia abfoluta com a lua diuturna exis- tência de alguns feculos pelava fobre elle como um grilhão, de que não fabia defapreífar-fe. Ainda mais, a realeza illi- mitada em feus poderes, era o único inflrumento das fuás próprias e audazes innovações. A velha machina, que ti- nha produzido a decadência e a ruina do paiz, era nas luas mãos, aproveitada fagazmente, a alavanca preífadia, com que podia fuperar as refiftencias mais tenazes. A legiílação pe- nal ainda vigente era dura e cruelifllma, fervia-lhc porem a encerrar na eftriíla legalidade os fcveros expedientes, que as circumftancias lhe impunham o dever de decretar para manter em toda a fua pujança a regia audoridade contra as latentes ou abertas confpirações dos feus inimigos capitães. A lei punia cruelmente os que punham mãos facrilegas na peífoa do monarcha. Era pois culpada a lei. Os juizes, tão fe- veros como o código funefto, faziam d'elle fem viflumbres de

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equidade a exada applicação. Se alguma coufa poderiam os antagoniftas de Carvalho reprehender e condemnar, era fo- mente que o miniftro não tiveíTe conftrangido os julgadores a facrificarem á piedade o fentido litteral da ordenação. Mas o rei, fem cuja confirmação a fentença não podéra executar- fe, o rei, o juiz lupremo e infallivel, que podéra minorar as fuás punições, cerrara a fete fellos as fontes da clemência, e elle, o abfoluto, o omnipotente, que a um puro aceno podéra defarmar os braços dos verdugos, deixara lentamente con- fumrnar-fe a tremenda tragedia de Belém. Se em vez de uma pena merecida juftamente houvera apenas uma carniçaria jurídica, o rei D. Jofé I era o único ficcario e o miniftro obe- diente apenas um fâmulo do rei.

A fentença foi cruel, mas a hiftoria portugueza memorava outras femelhantes execuções contra os mais altivos homens da nobreza, em antigas e frequentes conjurações. O duque de Bragança, decapitado publicamente na praça de Évora em tempos de D. João II; o duque deVizeu, morto ás punhala- das pelo rei, que deante dos feus próprios cortezãos, exerceu o olftcio infame de carrafco; o bifpo de Évora, D. Garcia de Menezes, mettido na cifterna de Palmella, para acabar ali a vida n'um fupplicio mais atroz que o do arcebifpo de Floren- ça; o marquez de Villa Real, o duque de Caminha e D. Agos- tinho Manuel, entregues ao algoz pelo primeiro rei da cafa de Bragança; os réus da conjuração contra D. Pedro II condem- nados aos fupplicios mais cruéis, ás chammas, á roda, á fra- 6Iura dos oífos ; eis ahi os exemplos e os didados, que a velha monarchia em feus fartos de fangue deixara confignados, fe não para auctorifar, ao menos para efcufar as cruentas repre- falias da otfendida majeftade contra as conjurações da nobre- za ambiciofa. Era ainda recente a atrociffima execução de Damiens, que a 5 de janeiro de 1757 ferira ligeiramente o rei de França; execução a mais horrorofa, a mais infame, a mais

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cruel de quantas a hiftoria regiftrou para eterno opprobrio da humanidade; execução feita em Paris, em Paris, na metrópo- le da civilifação e da liberdade, na França de Voltaire e dos philofophos; execução ordenada por Luiz XV, que pedira ao parlamento uma vingança memorável. Em parallelo com o martyrio atroz de Damiens o lupplicio do Aveiro e feus cúmplices era, apefar de todo o feu horror, apenas uma frouxa imitação, era quafi clemência e humanidade. Eftavam ainda vivas as memorias dos frequentes autos de fé, em que cen- tenas de innocentes ou de loucos tinham expiado na fogueira a nota de hebraizantes ou feiticeiros. E a hiftoria cortezan infpirada na corrupção e na lifonja, dera ao coroado algoz do duque de Vizeu o titulo de príncipe perfeito; ao diíToluto Luiz XV, ao defpota da crápula e da Baftilha, o fuave co- gnome de Bem-amado; ao fangrento tribunal da inquilição pela mais fatanica ironia o nome de Santo Officio. Ainda ho- je, efquecidas as cruezas dos reis e dos inquiíldores, fomen- te o miniftro de D. José aos olhos dos que deteftam a fua memoria apparece hediondamente maculado pelo fangue dos fupplicios, porque foi o flagcllo da nobreza e o açoite dos jefuitas.

CAPITULO IX

A EXPULSÃO DOS JESUÍTAS

Na fentença proferida contra os réus da conjuração pelo tribunal fupremo da inconfidência, a companhia de Jcfus em Portugal era clamorofamente denunciada como tendo fido fautora do attentado. Firmando-fe nas provas teftemunhaes e nas prefumpções de direito, a que os julgadores attribuiam a máxima importância, dava-fe como exuberantemente de- monftrado que os chefes principaes da conjuração haviam

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tido largas e frequentes conferencias com jeiliitas na cala profeíTa de S. Roque, no collegio de Santo Antão, e nas refi- dencias dos outros conjurados.

Affirmava-fe que os jefuitas, depois de terem vivido em implacável averfão com o duque de Aveiro, quando em tempos de D. João V tivera illimitada valia e parte no go- verno o recolledo Fr. Gafpar da Encarnação, pelo ódio commum contra D. Jole e o feu miniítro, e na efperança de repartirem entre ú a influencia no eftado, fe haviam final- mente congraçado com o principal confpirador e urdido com elle a trama contra el-rei. Attribuia-fe aos jefuitas, por fado indubitável, o terem elles, como fáceis cafuiífas, diíTipado no animo do Aveiro a fombra de um efcrupulo, perfuadin- do-lhe que nem chegava a fer peccado venial o tirar a vida ao feu régio e odiofo adverfario. Dizia-fe que os jefuitas, cooperando com o Aveiro, haviam determinado a marqueza de Távora a entrar na confederação, eftimulando-lhe a nati- va foberba e ambição com a exaltação religiofa produzida pelos feus colloquios Íntimos com o padre Gabriel de Mala- grida. Narrava-fe que eíte famofo jefuita, cujos exercícios efpirituaes andavam em grande voga entre a nobreza, che- gara a dominar com império abfoluto no animo da Távo- ra, que o havia por fanto, penitente e infpirado por divinas revelações. Citavam-fe como principaes aceeíTores e confe- Iheiros na fruftrada conjuração, além do Malagrida, os feus confocios da Companhia, João de Mattos e João Alexan- dre. Compendiavam-fe todas as ufurpações, que os jefuitas haviam realifado nos domínios portuguezes do ultramar, es- pecialmente no Paraguay e Maranhão, e as contínuas ma- chinações, com que em Portugal inftigando á fedição e nas cortes extrangeiras á hoftilidade contra a coroa, tinham bus- cado recuperar a fua influencia no governo, e reconquiftar a dominação nas terras americanas. Imputava-fe aos jefuitas

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que depois que el-rei os defpedíra de confeíTores e os pro- hibíra de volverem mais ao paço, lhes crefcêra com o des- peito a arrogância e o defdem, com que miravam o Ibbera- no, confolando-fe com dizer que fe o rei de fi os afaftava, a nobreza os acolhia e acclamava com fervor. Exprobrava-fe aos jeíuitas o haverem divulgado em Portugal e fóra d'elle, como fe fora prophecia e jufta punição de atrozes defacatos, que feria de breve duração a exiítencia do monarcha, che- gando a prefixar para feptembro o termo peremptório dos feus dias. Ainda que a fentença fe alargava diífulamente na accufação dos jefuitas, e citava fem as individuar as provas, que nos autos demonítravam a fua autoria ou cumplicidade, abftinha-fe de pronunciar contra cUes qualquer pena, ainda mefmo contra os que nominativamente mencionava. Cifra- va-fe a razão em que, fendo peíToas ecclefiaíticas e, fegundo o principio venerado n'aquelle tempo, immunes de toda a jurifdicção e foro fecular, não podiam fer julgados, fem que fobre tão grave aíTumpto foíTe ouvido o pontífice romano.

Ainda hoje os partidários mais ou menos fervorofos da reacção religiofa negam terminantes a participação dos je- fuitas na celebrada confpiração. Entre os próprios adverfarios alguns ha, que não acham plaufivelmente fundadas as fus- peitas de que a ambiciofa e irrequieta Companhia incitaífe com a acção e o confelho o crime contra o rei. É porém defnatural e improvável que no extremo da indignação, a que levara os jefuitas o acharem-fe defapoíTados de toda a influencia no paço e no governo, e ainda fobre iíTo aponta- dos como réus de tantas execráveis perturbações, ao verem encaílcllar-fe no horizonte a cerração, que lhes annunciava imminente e inevitável o ultimo naufrágio, impaíTiveis, refi- gnados, evangelicamente offerecidos ao martyrio, como hós- tias immaculadas, aíriítifTem á agitação, que revolvia contra D. Jofé e o fcu minillro a nobreza vingativa e defpeitada.

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Quando vemos os jefuitas, no ambiente largo da liberdade, na França republicana, tendo contra íi as influencias fociaes, a razão efclarecida, e o efpirito profundamente democrático do paiz gerador da luz e da revolução, quando os vemos refiftirem tenazmente contra o governo da republica, envida- rem todas as armas de acção e propaganda para manterem o feu pofto e, quaes mineiros oufados e pertinazes, perfifti- rem na raiz das muralhas fociaes, para minarem o governo temporal e forçarem a revolução e a democracia a render-fe e capitular, o que feria n'uma edade e n'uma nação, em que a burguezia era ainda efcaífamente illuminada, o povo rude, fuperfticiofo, extranho aos inítindos liberaes, a nobreza ar- rogante, fanática, agitadora?

Se acreditámos a própria confiífão de um defenfor en- thufiaíta dos jefuitas, eram n'aquelle tempo antigas e ve- hementes as queixas, que a refpeito de Carvalho os das pro- víncias portuguezas dirigiam ao feu prepofito geral'. Os va- ticínios do padre Malagrida acerca do próximo fim do rei fão relatados por um dos mais violentos inimigos do minis- tro e acérrimo patrono da Companhia. Segundo eíte con- temporâneo teftemunho, o vifionario jefuita, que fe dava por divinamente illuminado, pouco antes do regicídio efcrevêra á camareira-mór D. Anna de Lorena, rogando-lhe preve- niífe o rei do perigo que talvez em breve tempo feria im- minente á fua vida^ O próprio Malagrida, interrogado por Sebaílião de Carvalho, confeíTa haver annunciado a el-rei o perigofo lance, que teria, e attribue a prophecia a uma fua devota confeífada, que era, em fua opinião, favorecida

Mentira juani/efta oii analyfe da fentença proferida em 12 de janeiro de ijSg.

2 Vila di Scb. Gitifeppe di Carvalho e Mello, tom. 11, pag. i35. Mentira uiani/ejla ou analyfe da fentença, etc.

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com myfticas e celeftes illuminações '. Não le pôde contcftar que os jefuitas, ao tempo do regicídio, eram jurados inimi- gos do governo, e então irreconciliáveis com o foberano, que os expulíara do palácio e confentira na fua perfegui- ção. No eftado, a que chegara a mutua hollilidade, os jefui- tas, acrefcentando ás antigas machinações no ultramar e aos meneios para incitar o povo e a nobreza em Portugal os últimos aggravos recebidos na vifita e reforma traçada, eram fatalmente arrebatados na corrente da infurreição, a que, por jefuitas e por homens, feria impoíTivel, fobrehuma- no, refiftir. Eram pois agora mais do que nunca incompa- tíveis com todo o governo profano e temporal. Não podia haver equilíbrio entre os dois poderes antagoniftas. D'aquel- les dois animofos ludadores era força que um d'elles na are- na baqueaífe exânime e proftrado. Haveria em Portugal um regime defaífombrado de influencias clericaes, tendo por em- penho fecularifar o governo e a nação, ou continuaria por longos annos conftituida uma poderofa theocracia, cerrando o paiz perpetuamente á luz e á liberdade? O miniftro não podia de um lo jado fundir em moldes novos a fociedade portugueza, feita á imagem e femelhança dos feus dois ab- folutos creadores, o régio defpotifmo e a tyrannia clerical. O feu problema era tornar fecundo, popular, illuminado, paternal, civilifador, o defpotifmo, relegar a clerefia para os domínios puramente cfpirituaes, e erigir os marcos divifo- rios entre o império e o facerdocio, de maneira que o po- der fecular tiveífe o direito de fuprema infpecção nas cou- fas religiofas, e o poder facerdotal, fubmiíTo e obediente á fuprema poteftade, nem oufalTe mefclar-fe levemente nos negócios temporaes. Os jefuitas eram a guarda pretoriana do império theocratico. Diffolver eftas cohortes, que a feu

' Vita di Scb. Giufeppe di Carvalho c McHo, tom. ii, pag. i3G.

talante difpunham do poder, era o primeiro paíTo para de futuro emancipar do jugo íacerdotal o povo portuguez. Vi- riam depois tempos mais azados e propicios á total abolição das ordens religiofas, e eftaria eífeituada legalmente a pri- meira parte da nova metamorphofe focial. Depois, não o pôde talvez o minifíro adivinhar,- o poder fecular, exem- pto de partilha, perderia as formas agreftes da monarchia abfoluta para fe disfarçar nas enganolas apparencias popu- lares da monarchia parlamentar. Depois o poder, a princi- pio confubftanciado n'um homem, viria a ler, pela na- tural evolução, a própria acção collediva, foberana, demo- crática de toda a moderna e livre fociedade. Ora o grande mérito politico de Carvalho é juftamente o haver iniciado efte longo proceíTo, em que a nação portugueza fe foi len- tamente defentranhando da rude cortiça, c]ue a apertava e conftrangia. Elle deitou na pedra informe e tofca as primei- ras linhas da efculptura. Defbaftou n'algumas partes com feguro e próvido cinzel. Outros vieram mais felizes, que profeguiram na obra começada. Outros virão depois cjue aprimorem e concertem o defenho. Na fua memorável oíR- cina tivera por fâmulo e ajudante o delpotifmo. Mas o c[ue o defpotilmo principiou a efculpir, depois d'elle o foube confummar o eícopro da revolução. Os defpotas, como os obreiros mufculofos e fortiíTimos, podem cavar profundos alicerces. Mas o povo, o infpirado Miguel Angelo ou o Bramante revolucionário, lãbe altear nos ares a cúpula fo- cial.

No mefmo dia, em que os Tavoras, o Aveiro e os feus confocios feculares haviam lido prelos como rcus, todas as cafas dos jefuitas á mefma hora, em todo o continente de Portugal, foram occupadas pelas juftiças com o auxilio das forças militares.

Os jefuitas exiftentes nas províncias foram claufurados

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nas luas cafas. collegios c noviciados. Impoz-fe-lhes a obri- gação de não fairem dos encerros, e defendeu-fe-lhes a mí- nima communicação com as pcíToas feculares. As tropas, que guardavam os jefuitas apertadamente cuftodiados, não deixavam a menor duvida de que os focios da Companhia, fegregados de toda a extranha gente, eftavam realmente en- carcerados. Os três jefuitas, Malagrida, Mattos e João Ale- xandre, foram reclufos em eftreitiíTimas prifões como verda- deiros réus de eftado.Tão promptas e acertadas tinham fido as providencias adoptadas, que a dihgencia fe pôde effe- ftuar fem nenhuma perturbação da ordem pubUca, fendo c[ue os jefuitas ainda tinham numerofos e ardentes partidá- rios não fomente da nobreza, fenão também do eftado chão e popular.

A carta regia de ig de janeiro de lySg, dirigida a Pe- dro Gonçalves Cordeiro, que então fervia de regedor das juftiças, e outra egual da mefma data ao defembargador Craafbeck de Carvalho, governador da relação e cafa do Porto, fummariando novamente os crimes dos jefuitas, or- denava áquelles magiftrados que emquanto o monarcha não recorria á fede apoftolica, mandaífem immediatamente pôr em geral fequeftro os bens da Companhia, fazendo arren- dar os de raiz, e dando a cada um dos jefuitas um tos- tão diário para fua alimentação. Uma carta regia circular, expedida a todos os prelados diocefanos, acompanhava a copia da fentença proferida contra os conjurados, e um exemplar do opufculo, em que fe punham de manifeflo as Ímpias e fediciofas propofições, que os jefuitas haviam di- vulgado pela penna dos feus probabililfas e doutores. En- commendava o rei aos bifpos, que pelo feu ofiicio paítoral trabalhaífem por diradicar o pafto venenofo, que os jefui- tas tinham miniftrado ás incautas ovelhas do evangélico re- banho.

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o opufculo intitulado Erros Ímpios e fediciofos ' era um tremendiíTimo libelio contra a moral profeffada em livros nu- merolbs pelos ethicos e theologos da Companhia. Se, como fe affirmava na fentença e fe repetia no livrinho, os jefuitas haviam enfinado expreíTamente aos cabeças da confpiração os perniciofos theoremas, que vinham na obra compendia- dos, pôde fer porventura ponto conteftavel. Que porém aquellas opiniões deletérias e corrofivas não fomente de toda a moral chrilM, fenão da ethica feguida pela antiga e mais auftera gentilidade, exiftiam cftampadas nos livros mais no- tórios e vulgares da Companhia, não pôde padecer dubita- ção. As doutrinas de LeíTio, Bufembaum e outros jeluitas celebrados, fobre ler permittida a diffamação e a calumnia; as de Amico e de Navarro, acerca de fer licito o homicídio perpetrado em defeza da honra própria; a apologia da limu- lação, da mentira, do falfo juramento e do perjúrio, canonifa- da nos efcriptos de Sanches e de Toledo, eram denunciadas e profcriptas com vigor. A defeza dos jefuitas contra aquel- las terminantes accufações era difficil e efpinhofa, principal- niente em face das decifões de muitos papas, que ex cathe- dra haviam condemnado aquellas efcandalofas propofições. É verdade que nem todos os theologos e moraliftas da eru- dita fociedade tinham em feus livros enfinado aquellas má- ximas moraes. Mas era tão extenfo e volumofo o catalogo dos probabiliftas, e n'elle fe infcreviam nomes tão famofos e venerados pelos feus confocios na mefma religião, que a imputação de latitudinarios e relaxiftas, nos pontos mais de- licados da moral, caía fobre a inteira Companhia, ao menos

1 Erros ímpios e fediciofos, que os religiofos da Companhia de Jefiis enfi- naram aos réus, que foram jufliçados, e pretendiam e/palhar nos pnvos d'e/les reinos. Lifboa, na officina de Miguel Rodrigues, fem data, provavelmente dos fins de 1758.

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tacitamente compromettida nas extranhas propoíições dos feus doutores.

Por aquelles tempos havia fuccedido no fupremo ponti- ficado o cardeal Rezzonico, com o nome de Clemente XIII. Fora aíTumpto á fuprema cadeira a 6 de julho de ij58. Tomava o leme da naveta de S. Pedro, quando as aguas revoltas e encapelladas lhe citavam prenunciando fingradu- ras difficeis, borrafcofas. Com elle novamente renalciam as luclas, que durante a edade media haviam aíTignalado a incompatibilidade entre o eípirito laical, crefcente mais e mais nas modernas fociedades, e a autocracia efpiritual, cada vez mais renitente e emhuida na oufada pretenfão de fubmettel-as á fua tutela e direcção. Principiavam as por- fiadas contenções, que levaram Pio VI acorrentado ao carro triumphal da Revolução, que fizeram de Pio VII um lubdito de Buonaparte, que diclaram a Pio IX o fyllabus, como fuprema condemnação do moderno penlamento e da nova liberdade, e na occupação de Roma pela Itália juvenil, una, liberta e emancipada, defprenderam finalmente do triregno pontificio a coroa ambiciofa do foberano temporal.

O papa Clemente Xlll não tinha, nem a diicreta piedade, nem o illuminado entendimento do leu predeceíTor. Defejava porventura a paz da egreja, mas o leu animo débil e indecilb não lábia coníervar-fe inacceíTivel ao influxo das facções. Antes mefmo do leu advento ao folio pontificio, quando as intrigas politicas do conclave deixavam ainda incerta a elei- ção, os jefuitas forcejavam por que faííTe defignado para fijbir á cadeira de S. Pedro um relbluto parcial da Compa- nhia. Efteve a ponto de ler eleito papa o cardeal Cavalchini, de cujo patrocínio os jefuitas efperavam o triumpho na lufta que traziam empenhada. Vindo porém a eícolha finalmente a recair em Carlos Rezzonico, os jefuitas viram n'elle defde logo antes um parcial, que adverfario. Rra chegada a fafão

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accommodada para que junto do novo pontífice agitaíTem vivamente as fuás ambições, pleiteaíTem com fervor os feus intereíles, e infamaffem em toda a chrillandade o rei de Portugal e o feu minlftro.

Sebaftião de Carvalho, em prefença das circumftancias desfavoráveis, que lhe augurava o novo pontificado e a im- penitencia da Companhia, não aífrouxava na peleja, nem remittia o leu vigor. A punição dos jeíliitas, que a fentença declarava implicados no crime de 3 de leptembro, era no feu conceito uma neceffidade politica, e um paíTo de grande fignificação para atteftar ao mundo inteiro, por um acto de fevera jufi^iça, quão grandes criminofos abrigara no feu grémio a ordem condemnada. O procurador da coroa dirigiu a Clemente XIII, a i 5 de abril de lySg, uma fupplica vehe- mente, na qual depois de compendiar os crimes da Compa- nhia em Portugal e de allegar exemplos de fe haverem con- demnado pela mefa da confciencia e ordens os cavalleiros, capellães e facerdotes das ordens militares, accufados de confpirar contra o foberano, exorava o fanto padre a que, feguindo o exemplo de Gregório XIII, concedeíTe beneplá- cito para que o mefmo tribunal, eífencialmente religiofo, podeífe julgar a todos os ecclefiafticos, em quem fe provaífe cumplicidade ou autoria no attentado contra el-rei, e que efta mefma jurifdicção foífe declarada competente para todos os cafos femelhantes no porvir.

Por efta occafião o monarcha elcrevia a Clemente XIII a carta regia de 20 de abril, em que teftemunhava as piedo- fas contemplações, com que havia procedido em referencia aos jefuitas, e exhaurido todos os meios para dar talho ás fuás hoftilidades e efcandalos, e evitar a total ruina de uma ordem, que fempre nos reis de Portugal havia achado abrigo e protecção. Defefperava agora o rei de que a Ibciedade, envelhecida e obdurada nos feus erros, podeífe ter emenda

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e reformação, porque a lua corrupção era geral e infita ao efpirito do feu governo. Via-fe pois coagido a expuUar dos feus domínios a incorrigivcl Companhia. Pedia finalmente ao papa fe dignaíTe de lançar a benção apoftolica febre quanto o governo portuguez acerca da Companhia até aquelle tempo decretara, e deferiíTe ás inftancias do procurador da coroa. A carta regia, e a petição do fifcal da coroa foram logo remettidas ao enviado portuguez junto do papa, e iam acom- panhadas de uma extenfa pro-memoria, em que defde feu principio fe deduziam por ordem chronologica todas as mal- feitorias e enredos jefuiticos durante o governo de Carvalho. Ao mefmo paífo o minifiro efcrevia particularmente ao re- prefentante de Portugal, inflruindo-o fecretamente fobre o modo mais profícuo de encaminhar a efpinhofa negociação. A egreja era ciofa da fua immunidade, que por uma fraque- za dos governos tornava as peíToas ecclefiaílicas independen- tes de toda a jurifdicção commum e fecular. Os jefuitas re- dobravam de vehemencia na defeza da fua ordem, e na guerra fem quartel, que tinham empenhada com o eftadifta portuguez, caufa principal da fua ruina. O papa, concedendo o que o rei lhe fupplicava, ia entregar á mercê do feu gover- no os que julgavam fer imprefcriptivel o direito de immuni- dade. Accrefcia fobre tudo que no cardeal Torriggiani, fecre- tario de eftado, tinham os jefuitas um follicito patrono, no padre Lourenço Ricci, prepofito geral, um incanfavel e ar- guto procurador. Alguns dos próprios defenfores dos jefuitas parecia defapprovarem no cardeal a fua nimia e indifcreta parcialidade'. Se o pontifice, porém, defde logo fe declarava

I "11 Cardinal Torriggiani, bcnchc univcríalmentc ílimato per i kioi ta- lenti e per la fua integrità, era però tacciato da molti di una troppa parzialitâ per i gefuiti, e rinfamia de' quali non credeva egli difgiunta dalFonorc delia fanta fede apoílolica» Vita di Seb. Ghi/eppe di Carvalho e Mello, tom. ii, pag. i6o.

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hoftil ao governo de Portugal, correria o graviíTimo lance de ver bem depreffa conturbada a paz entre a corte de Lifboa e o Vaticano, fem que foffe poíTivel adivinhar que turbações adviriam á egreja, fegundo era inquebrantável e relbluto o animo de Carvalho, e iubmiíTa ao nuto do miniftro a débil condição do monarcha portuguez. Do qual bem fe podéra dizer, como Suetonio efcreve de Cláudio, fujeito aos feus libertos e miniftros: Noii principem fe, Jed minijínim egit\

A queftão era pois mui agra e efcabrofa. Cumpria que á firmeza do governo portuguez refpondeíTe a moderação e a aftucia, a prudência e a perfeverança do feu plenipotenciário junto da Santa Sé.

Perdia-fe em delongas no entretanto a negociação de Francifco de Almada com o lecretario de citado pontifício. Agora cerravam os jefuitas em redor do cardeal Torriggia- ni, feu encarecido valedor, os empenhos para que faiílem fruftrados ou illudidos os deíejos do governo portuguez. Di- vulgavam pela Europa as fuás diffamações contra o rei de Portugal e o feu miniftro. Invocavam em feu favor todos os meios, que podiam conduzir a exacerbar terrivelmente o irritado efpirito do feu incanfavel antagonifta. Faziam pro- hibir que em Roma circulaífem ou fe reimprimiííem os pa- peis, que em Portugal fe haviam eftampado para tornar ma- nifeftas as ufurpações temporaes da Companhia e os deli- étos e abominações dos feus confrades.

N'efta conjuncção, defefperando o miniftro de que foíTe poffivel inclinar Clemente XIII a condefcender com o go- verno portuguez no julgamento criminal dos jefuitas, repu- tados participantes no regicídio, entendeu que devia aífom- brar o Vaticano, desferindo o golpe, que defde o mez de abril tinha fufpenfo, mas certeiro á Companhia de Jefus em

' Sueton., Vitae xii Caefarwu, v. n." 29.

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Portugal. Decretou finalmente que os jefuitas foíTem expul- Ibs de todo o território portuguez. A lei de 3 de feptembro de lySg, datada no primeiro anniverfario da fangrenta cons- piração, declarava os jeluitas «corrompidos e deploravel- mente alienados do feu fanto inftituto», e pelos feus vicios inveterados, pela fua endurecida impenitencia, incapazes de volver á antiga obfervancia da fua primitiva religião. Publi- cava-os por notórios aggreíTores, rebeldes, adverfarios e trai- dores contra a peíToa do foberano e léus eftados, contra a paz publica de Portugal e feus domínios, e contra o bem commum de feus vaífallos. Ordenava egualmente que foífem defde logo havidos por delhaturalizados, profcriptos e exter- minados, e que foífem para fempre expulfos, para nunca mais voltarem a Portugal. Prohibia com pena capital, que nenhuma peífoa facilitaífe novamente a fua entrada em terras portuguezas ou tiveífe com elles communicação oral ou por efcripto, ainda quando os jefuitas houveífem faído da Com- panhia para entrarem n'outras ordens ou congregações reli- giofas. E porque não era equitativo, nem clemente, que as feveras penalidades infligidas aos jefuitas comprehendeífem os que fendo nafcidos em Portugal, não houveífem feito ainda folemne profiífão, nem tiveífem provada alguma cul- pa, permittia a lei que, fendo-lhes relaxados pelo cardeal reformador os votos fimples, podeífem confervar-fe em Por- tugal como fubditos feus e naturaes. Mandava ao mefmo paífo o legillador, que acerca das tranfgreífóes ao régio edifto ficaífem abertas e permanentes as devaífas perante os ma- giftrados civis e'criminaes em fuás jurifdicções, os quaes do que tiveífem inquirido haveriam de dar conta ao juiz da inconfidência.

Em cartas regias de 3 de feptembro de 1759 communi- cou o rei aos prelados diocefanos a lei, que expulfava os je- fuitas de Portugal. A 6 d'aquelle mez ordenava ao patriarcha

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e aos paftores das diocefes, onde havia cafas, noviciados e coUegios da Companhia, que as egrejas com as fuás alfaias foííem entregues a peíToas idóneas efcolhidas pelos prelados, para que ali não defcontinuaílc o culto divino, e os edifícios e o que n'elles exiftiífe, eftiveífe a bom recado, emquanto el-rei não houveífe de recorrer á fanta fede para que deter- minaífe as pias applicações das egrejas, dos prédios e alfaias outr'ora pertencentes á profcripta fociedade.

D'ahi a poucos dias o cardeal Saldanha, então patriar- cha de Lifboa e reformador da Companhia, n'uma paítoral recendendo fervilmente ao mais puro e devoto monarchifmo, publicava aos fieis da fua archidiocefe a carta regia com que el-rei o tinha honrado para lhe participar a expulfão dos jefuitas. Accumulava o fubmiflb cardeal os textos do antigo teftamento, do apoftolo das gentes e dos fantos padres e doutores para demonflrar ás fuás ovelhas que a regia potes- tade era por Deus inftituida e abençoada, e que aos man- datos dos foberanos ninguém podia contravir fem incorrer em eterna condemnação. Exhortava o cardeal os feus dioce- fanos feculares, e admoeftava ao clero da fua obediência para que não tiveífe nenhum trato com os religiofos agora defnaturalizados e banidos. Terminava refumindo em phra- fes encarecidas e piedofas os méritos de Santo Ignacio de Loyola c a fantidade e perfeição de feu infí:ituto primitivo.

Era efta fempre, com eífeito, uma nota obrigada e infalli- vel em todas as tremendas execrações lançadas contra a fo- ciedade de Jefus. O fundador e patriarcha da profcripta in- ftituição era, em todos os documentos publicados n'aquelle tempo, um benemérito da egreja univerfal. Mas os jefuitas, facudindo o fanto jugo, e convertidos ás mais impuras mun- danidades, haviam defluftrado e polluido a obra do piedofo inftituidor. O tronco era viçofo, robufto, falutar. Eram porém degeneradas as vergonteas, os frudos venenofos. Ao contrario

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das arvores communs, a arvore myftica da famola Ibciedade tinha no céu e na humildade as fuás raizes, na terra e na fo- berha a fronde, cuja fombra era fatal e deletéria. N'efta glori- ficação da Companhia cm feus primeiros incunahulos efque- cia porém ao legiílador e ao prelado, que na requifitoria intitulada Erros Ímpios e fediciofos fe tinham allegado as pro- phcticas palavras, em que o bifpo e theologo Melchior Cano, confeíTor de Carlos V, e o piedofo Árias Montano em tem- pos de Filippe II, haviam logo no berço da ordem egoifta finceramente proclamado o feu funefto horófcopo.

Pouco depois que fora publicada a lei expulfando de Portugal a companhia de Jelus, Carvalho perfeverando in- flexível e audaz no feu propollto, relblveu expatriar os jefui- tas. A i6 de feptembro de lySg um navio ragufano conduzia com deítino a Civita Vecchia cento c trinta e três d'aquelles religiofos. Em fins de outubro do mefmo anno embarcavam em Lifboa cento e vinte e dois jefuitas, encaminhados aos eftados pontifícios, onde o papa os acolheu e hofpedou. A malicia e a calumnia increparam o miniftro de haver feito partir defamparados, quafi famélicos, os religiofos da Com- panhia', mas os próprios capitães, que os levaram em feus navios, atteftaram por falfaria a injuriofa imputação.

Eífava agora confummado o ado mais vigorofo, com que Sebaftião de Carvalho até áquelle tempo demonftrára a fua energia em defenfão da foberania temporal contra as in- vafôes do poder ecclefiaítico. A Companhia ceifara de exiftir em Portugal. Reftava confeguir em novas campanhas diplo- máticas a fua total abolição.

O que Bifmarck na Allemanha, no meio dos trophéus ainda recentes da máxima viéloria, no cumulo do poder entre as nações, não pôde confeguir, apefar de uma luda vigoro-

Vita di Seb. Ghifepfc di Carvalho e Mello, tom. ii, pag. 208.

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fa, lidada em muitos annos; o que a França republicana, ins- pirada nas idéas da moderna liberdade, não alcançou ainda realifar inteiramente; pôde effeitual-o em breves dias a von- tade invencível de Carvalho n\ima abfoluta monarchia, em paiz longamente acalentado pela educação monaftica e in- quifitorial, perante uma nobreza reaccionária e revoltofa, no meio de um povo acoftumado a venerar nos jefuitas os fo- beranos direftores das fuás rudes e timoratas confciencias. Não queiramos porém perfuadir-nos de que a pugna do miniftro iníiexivel era apenas contra a famofa Companhia. Era mais comprehenfivo e largo o feu problema. O feu pro- pofito era forçar o facerdocio a obedecer no temporal aos mandatos do império fecular. Era enfrear de vez as mun- danas pretenfões dos que faziam da egreja, não a efpiritual e myftica união, a fociedade religiofa dos fieis, fenão o feu- do ambiciofo das potencias clericaes, não a divina inítitui- ção encaminhada á celeíte beatitude, fenão um profaniíTi- mo inlfrumento de auíforidade e influencia nos intereífes terrenaes. O fim do grande reformador era feparar inteira- mente do fiel o cidadão, do homem interior o homem focial, da communhão dos crentes, ligados pelo vinculo da fé, a fociedade civil, unificada pelo vinculo da lei. O feu intento era fem duvida levar a reforma religiofa até o ponto, onde a difciplina ecclefiaftica, mudável ao labor das circum- ílancias c das epochas, principia a enlaçar-fe com o dogma e torna inexequível uma ulterior modificação fem alterar profundamente os princípios capitães da chrilfan. Seria porventura mais do que as eftreitas liberdades da egreja gal- licana e as fuás quatro celebradas propofições, menos que a mutação da egreja de Inglaterra pelo ciofo poder de Hen- rique VIII, quando o antigo adverfario de Luthero, o defen- for da fé, o audor da Defeca dos fete facrameutos, fem tocar na dogmática do catholicifmo, fe infurgiu contra o papado

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e fe emancipou da lua juriUiicção, proclamando a real lu- premacia nas coufas efpirituaes.

Defopprimido de tão obftinados inimigos, quaes eram os focios da Companhia, abatida a nobreza nos patíbulos, ou encerrada nos ergaftulos, podia o minirtro innovador conti- nuar fem ludas inteitinas e íem frequentes conjurações a lua grande empreza de reformas na condição intelleclual, econó- mica, civil e Ibcial da íua pátria. Não eftavam porem aquieta- das, nem dirigidas a bom termo as luas conteftaçóes com o Vaticano. A neceíTaria, mas violenta expulfão dos jefuitas, não era o expediente mais propicio a emmudecer os ódios cle- ricaes ao oufado minilfro portuguez. O papa Clemente XIII, ainda quando não tora favorável á Companhia, nem efti- vera circumdado pelos lelantes e partidários da mais larga reacção, não poderia ver com olhos ferenos e benévolos uma tal revolução eccleliaílica e um lemelhante golpe de eftado, qual era a formal diíTolução de uma ordem religiofa em Portugal e o fequeftro dos feus bens, fem que o pontifício beneplácito confentilfe, ou approvaffe previamente uma tão inufitada e extranha refolução.

Emquanto Sebaftião de Carvalho, exacerbado pelos hos- tis procedimentos dos romanos jefuitas, que bufcavam con- citar a chriftandade contra o feu antagonifta, precipitava em Portugal os acontecimentos, em Roma eftava paífando uma renhida campanha diplomática, na qual o enviado portu- guez Francifco de Almada feguia pontualmente as inflruc- ções do miniflro, determinado a impor a lei ao folio pontifí- cio, ou a romper com elle abertamente ainda a rifco de um fcifma declarado.

Aprefentára Francifco de Almada a Clemente XIII a fupplica do rei para que a mela da confciencia e ordens foífe inveílida na jurildicção criminal contra os jefuitas im- plicados no regicídio, e as peflbas do clero regular ou fecu-

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lar, que de futuro houveíTem de cair em crime de lefa-ma- jeftade.

Os jeluitas e os {elaiites, que então influíam poderofa- mente no animo do papa, empregavam todos os artifícios e recurfos para mallograr no Vaticano as elperanças e os defejos da corte de Liíhoa. Em Roma eram publicamente favorecidos pelo próprio governo pontifício em tudo quanto podia demonftrar a innocencia dos jeluitas e redundar em defabono da coroa de Portugal. O regicídio, que tinha levan- tado em toda a Europa um clamor de geral aflbmbro e in- dignação, não achái"a na capital do orbe catholico uma voz que reprovafle os réus ou os fautores d'aquella conjuração.

Prohibia-ieem Roma a reimpreíTão dos papeis e docu- mentos officiaes, publicados em Lifboa acerca dos jeluitas. Egualmente le defendia o imprimir-fe e divulgar-fe a fen- tença da junta da inconfidência, e o diffundir c[uaelquer noti- cias a refpeito dos lucceíTos em Portugal. Faziam-fe rigoro- fas perquifíções para defcobrir os audores dos elcriptos, que em Roma fe eftampavam contra a ordem condemnada. Da própria chancellaria pontifícal faiam e circulavam p»ela Eu- ropa documentos, em que hyperbolicamente fe traçava o panegyrico da Companhia, e fe declarava apenas como um fruílo da inveja e da impiedade a guerra crueliíllma a uma tão venerável e benemérita corporação, cujo inlfituto fe ci- frava em accrefcentar a gloria de Deus e prover por toda a forte de piedofos exercícios á falvação dos fíeis.

Ainda mefmo quando Clemente XIII não tivera por fecretario de eftado um cardeal tão fogofo e indilcreto de- fenfor dos jeluitas, houvera fido ingrata e dolorofa a íituação do pontifíce romano. Conhecendo a incontraftavel relblução do miniftro de D. Jofé, e avaliando pelo que tinha commet- tido o que era ainda capaz de executar, via immincnte uma quebra da boa paz entre o governo portuguez e o fummo

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pontificado. Repreíentava-l"e-lhe a outra parte o prolpedo laftimolb de Icenas lemelhantes á que tivera por milerrimos adores os leculares participantes na punida conjuração. Conhecia que o acceder ás inliancias de Carvalho era talvez armar novos patibulos e confiituir a regia audoridade no Jiís vitae et necis fobre as peíToas ecclefiaíticas, de que fe podelTe no futuro lulpeitar crime de alta traição. Temia como pontifice, e talvez deplorava como homem de piedofo coração, que a didadura judiciaria commettida ao miniftro vingador cruentaíTe com o langue de no^■as execuções as vertes facerdotaes. Contemplava os jefuitas, a quem amava, perleguidos, infamados, ofterecidos ao delprezo e á irriíao de todo o mundo. Tremia-lhe a confciencia de que, pela fua lubmiflão aos defejos de CarNalho, vielle porventura a im- molar os que em fua opinião podiam fer immaculados e in- nocentes. Ponderava todavia que no Íngreme declivio, em que o miniftro defcaia para aífrontar abertamente o poder eccle-- fiaftico, e aíTignalar o leu poder com as mais inopinadas e enérgicas demonftrações, viria finalmente a difpenfar a intervenção da Santa no julgamento dos criminofos, a quem a fraqueza dos governos temporaes havia concedido a immunidade. Seria efta uma nova quebra e delaudoridade para o fi.tpremo cabeça da egreja. Bem lábia Clemente XIII que fomente por deferência ao fummo pontifice e em obe- diência á tradição, careciam os imperantes do beneplácito apoftolico para fubmetter aos communs juizos criminaes os ecclefiafticos réus de qualquer crime. Eram numerolbs os exemplos não fomente de fimples clérigos, mas de prelados, fobre quem tinha recaído inclemente a vindida das fentenças leculares. Se o miniftro, oufado e inflexível como era, pedia ao papa a jurifdicção para um régio tribunal, era confclho de boa politica na extraordinária fituação, cm que fe achava collocado. Era precifo disfarçar os golpes mais violentos do

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poder foberano e temporal com as moftras da mais aífeduofa complacência e filial veneração á Santa Sede, para que os elpiritos fanáticos não achaíTem pretexto a exprobrar nos ados de Carvalho a intenção de eximir-le a toda a auctoridade pontifícia, e converteíTcm em defejo de fciliiia e infurreição contra a catholica unidade o que era apenas jufta e neceíTa- ria defenfão dos foros e prerogativas do império.

Clemente XIII com grande lallima, e forçado pelo receio de um rompimento com a corte de Lifboa, recorreu a um expediente, que na fua imprevidência lhe pareceu poderia conciliar por então as diíTidencias, e que era mui ao revez o novo combuftivel para alimentar o incêndio, que lavrava no animo agreíte do miniftro. Fez exarar o breve Exponi nobis, de 1 1 de agofto de lySg, em que fe conferia á mefa da con- fciencia a jurilciicção para julgar unicamente os eccleíiafticos envolvidos no attentado contra el-rei, exceptuados os bifpos e os prelados fuperiores. Na mefma data efcrevia a D. Jofé duas cartas, em lingua italiana, acompanhando as lettras apoftolicas. Na primeira interpretava a cúria a feu fabor o que o governo portuguez lhe communicára na carta regia de 20 de abril de 1739, dirigida a Clemente XIII. N'aquella epiftola dizia terminantemente o rei: «Não pude deixar de apartar do corpo dos meus fieis e louváveis vaíTallos uma congregação, que tantas, tão cuftofas e repetidas experiên- cias tem moftrado incompativel com a paz e tranquillidade publica . . . mandando lair fem a menor dilação os fobreditos religiolbs d'eftes reinos, onde os lenhores reis meus prede- ceíTores lhes permittiram a entrada para edificarem, não para deftruirem » . O rei de Portugal, em vez de fiibmetter á fancção pontifical a expullao dos jefuitas, como fe fora apenas um propofito ainda não maduramente deliberado, denunciava pelo contrario a firme determinação de os exter- minar, como incorrigível e perigola corporação, qualquer que

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foíle n'efl;e ponto o parecer do Vaticano. Mas o cardeal Torriggiani, fingindo ignorar as intenções expreíTas clara- mente pelo rei, tomava ardilofamente a fuppreffão da Com- panhia em Portugal como uma queftão propofta á Santa Sede, para que lhe concedeíTe o beneplácito papal. Agradecia Clemente XIII a D. Jofé a complacência e veneração, que lhe moflrava, «pela fabia e religiofa ponderação, com que, antes de cumprir uma tão grave refolução, julgara de ouvir primeiro a quem por difpofição da Divina Providencia fe achava actualmente conítituido no grau de fi.immo facerdote na egreja de Deus» . Confeffava o pontifice c]ue poderia haver na ordem dos jefuitas alguns, que houveffem provocado a regia indignação, mas declarava ao mefmo tempo fer neces- fario dirtinguir entre as peíToas dos jefuitas e o inftituto que profeílam. Proteftava com fentidas moítras de finceridade o feu defejo de que foíTem punidos os culpados. Mas force- java em perfuadir que muitos deveriam fer os innocentes n'uma tão numerofa fociedade, que militava em uma regra de tanta perfeição. Seguia-fe o elogio eloquente da Compa- nhia de Jefus, a larga enumeração dos feus méritos e fervi- ços, a memoria da approvação, que merecera a muitos papas, ao concilio ecuménico de Trento, e aos príncipes temporaes; a commemoração dos heroes chriflãos, que faídos d'efte grémio gloriofo eram venerados nos altares, e a muitos dos quaes o rei de Portugal fagrava uma terna devoção. Reco- nhecia o papa que o inftituto venerando poderia ter por- ventura padecido alguma corrupção pela fraqueza ingenita da natureza humana. Aconfelhava, porém, ao governo por- tuguez que profeguiíTe na viílta e reforma commettida por Benedicto XIV ao cardeal Saldanha, e chegada que foífe ao feu complemento, fe poderiam caftigar os delinquentes e extirpar da Companhia «tudo quanto lhe podeífe efcurecer a fantidade e o bom nome». A peroração era encaminhada

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a perfuadir ao rei de Portugal que acceitaíTe os confelhos paternaes do lummo facerdote.

Na fegunda carta, efcripta ainda em termos de maior louvor e cortezia para o Ibberano portuguez, affirmava Cle- mente XIII que de bom grado concederia á mela da con- fciencia a Ibllicitada jurifdicção, porque no efpirito da egreja não eftivera, nem eftaria nunca o lubtrahir os delinquentes de qualquer eítado ou ordem ás penas merecidas pelas fuás abominaç(5es. Accrefcentava o pontífice logo em feguida que a manfidão e o horror aos cruentos fupplicios era egual- mente um diftinítivo da egreja. Exhortava pois o rei a que fe fizeíTe mediador entre a mifericordia e a juftiça, fufpendendo o braço dos verdugos, para que fe não déífe á chriftandade, e principalmente ao piedofo coração do pae commum dos fieis, o efpedaculo aífrontofo de ver punido no cadafalfo algum miniftro dos altares, tanto mais miferavel, quanto mais réu. E por efta clemência do monarcha lhe antecipava o pontífice os mais fervorofos teftemunhos da fua gratidão.

A primeira carta era fem duvida um impolitico docu- mento, mais próprio a exulcerar o animo do rei e a ira de Carvalho, do que a mitigar as abertas diíTidencias entre Portugal e a Santa Sede. Proferir o encómio dos jefuitas na própria conjuncção, cm que o governo portuguez com elles fe empenhara n'uma luda fem quartel, era levar Clemente XIII não a ver defattendidos e reprovados os feus confe- lhos, mas a fcr tido por amigo apaixonado e imprudente da ordem abominada, e quali por feu cúmplice e fautor. Na fegunda epiftola, porém, o p»ontifice romano mantinha digna- mente o feu logar. Como obrigado a auxifiar a juftiça tempo- ral contra os crimes das peífoas ecclefiafticas, via-fe forçado a armar contra facerdotes o braço tremendo dos juizes fecu- lares. Mas como vigário de Chrifto, que fempre aborrecera a effufão de fangue humano, como homem de piedofos fen-

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timentos e de Iene condição, impendia-lhe o dever de fe interpor, quaíi de joelhos, entre o algoz e as fuás viítimas, que pouco antes ainda otfereciam nos altares o incruento facrificio.

O que ao elpirito de Carvalho fe afigurou, ainda mais que o breve e as duas cartas, extranho e offenfi-so á majes- tade e foberania temporal, foi a memoria aprefentada pelo núncio Acciajuoli, arcebifpo de Petra, a D. Luiz da Cunha, fecretario de eítado dos negócios extrangeiros. N'efte papel, que viera de Roma efcripto, fe commentava a doutrina do breve e das miíTivas do pontífice a el-rei. Profeílava o nún- cio ou o cardeal Torriggiani, como um dogma, que as peíloas ecclefiafticas deviam fer julgadas por outras da mefma hie- rarchia; que o papa teria defejado que um ecclefiaftico de eminente dignidade, o próprio núncio, ou um cardeal legado prefidiífe á mefa da confciencia no proceflb dos jefuitas; que para não dilatar porém a expedição de negocio tão urgente, difpenfára e preterira todas as difpofições canónicas e con- fentira finalmente em commetter a um juizo fecular o conhe- cer dos crimes imputados.

O breve Exponi nobis e as duas epiftolas pontificaes ha- viam fido de Roma direitamente defpachadas ao núncio de Lifboa, fem que do feu teor fe houveífe dado conhecimento ao enviado portuguez junto do papa. Sabia o cardeal Torrig- giani que Francifco de Almada não acceitaria, para as enviar ao feu governo, as Icttras apoítolicas na fórma, em que vinham exaradas.

Carvalho, porém, tivera d'ellas antecipado conhecimento por um fucccífo extraordinário. O correio pontificio, que trazia a Portugal a correfpondencia para o núncio de Lifboa, fora feguido de um correio, defpachado pelo enviado de Portugal. Enfermando o menfageiro da cúria em Aix de Provença, deu traças o poítilhão portuguez para que o leu companheiro, inhi-

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bido de feguir a Ília jornada, lhe confiaíTe os papeis cerrados e lacrados, de que era portador. Chegado a Lif boa, cntrega-os defde logo a Sebaftião de Carvalho. Abre-os o miniftro na officina, em que defde os tempos de D. JoãoV, por indus- tria do fagaz Alexandre de Gufmão, fe devaffava toda a correfpondencia dos miniftros extrangeiros em Lifboa, tor- nando a fechal-a fem nenhum indicio da commettida viola- ção. Lê os defpachos. Affombra-fe, indigna-fe, enfurece-fe. Refolve em continente que o rei não acceite o breve injuriofo á fua independente foberania. Entrega ao núncio a correfpon- dencia, que de Roma lhe vinha dirigida. Pede o reprefentan- te pontifício uma audiência para entregar as lettras apoítoli- cas, remette as copias ao fecretario de eftado. Apraza-fe o dia em que D. Jofé receberá o núncio, com a expreíTa prohibi- ção de lhe aprefentar o breve, que não tendo fido communi- cado a Francifco de Almada, nem com elle concertado, não pôde fer recebido em Portugal. Infifte o arcebifpo de Petra em cumprir as ordens do pontifice, entregando a el-rei as let- tras apoftolicas. Medeia entre o núncio e o governo uma cor- refpondencia, em que porfiam egualmente, o fecretario de eftado em manter o decoro da coroa portugueza, o núncio em depor nas mãos do rei o breve do fanto padre.

Emquanto fe paliavam eftes debates, Sebaftião de Car- valho meditava contra Roma as fuás terríveis reprefalias. Procurava o núncio em vão tratar com elle direitamente. Efcufava-fe o miniftro, não lhe querendo acceitar fequer uma memoria. De tal maneira fe difpozeram os negócios, que ape- far de fer recebido em audiência, não logrou o arcebifpo de Petra que o rei lhe recebeffe o maífo, em que vinham incluí- dos juntamente o breve pontifício e as cartas particulares.

Ás matérias inflammaveis, que ateavam cada vez mais o incêndio na queftão dos jefuitas, accrefcia como epifodio uma nova conteftação entre o governo portuguez e oVatica-

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no. O arcebifpo da Bahia, D. Jofé Botelho de Mattos, havia dado provas inequivocas da fua parciahdade em fa^'or dos jefuitas no Brazil. Carvalho não era eííadifta, que podeíTe to- lerar, ainda no prelado mais infigne, a defobediencia ás luas intimações. Incorreu defde logo o arcebifpo no régio defa- grado. Forçado pela vontade enérgica do miniftro, refignou o arcebifpado. Aprelentou a coroa de Portugal na vacante o bifpo de Angola, D. Fr. Manuel de Santa Ignez. Era defde logo manifefto que na corte pontifícia fe não expediriam as bulias ao novo metropolita. Allegava a cúria não confiar a renuncia do legitimo prelado.

Taes eram as relações acerbas, quafi raiando em agra e indómita hoftilidade, em que fe achava a eíla fafão o gover- no portuguez com o chefe do catholicifmo. De um lado o ódio entranhavel não fomente contra os jefuitas de Portugal, fenão contra a indivifa fociedade, do outro o máximo favor á ordem exterminada. De uma parte a mefma perfeverante refolução de manter fem quebra, nem limite a guerra come- çada, da outra o mefmo impolitico propofito de enredar em delongas diplomáticas, e nas phrafes artificiofas e mellifluas da chancellaria papal uma difcordia, em que fe não via meio de poíTivel conciliação.

Vendo Sebaítião de Carvalho que o breve não refpon- dia precifamente á petição do procurador da coroa, e que por meio d'elle não ficava audorifado pela corte pontifícia a proceder contra novos réus conftituidos em dignidade eccle- fiaítica, mandou novas inftrucções a Francifco de Almada, para que expozeíTe a Clemente XIII as razões, que auclorifa- vam o governo portuguez a negar a lua acceitação ás lettras pontifícias. Todos eftcs fundamentos foram \igorofamente fubftanciados na pro-memoria dirigida ao reprefentante de Portugal junto do papa, em i 5 de feptembro de ij5g. K'efí.e documento fe referia como o núncio, apefar de reiteradas in-

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timações para que fomente aprefentalTe a D. Jofé as cartas do pontífice, porém não o breve Exponi nobis, perfiftíra te- nazmente no feu propofito de o fazer acceitar á corte de Lis- boa contra a fua expreíTa e terminante negação de o receber. Proclamava-fe que o breve fendo, como era, contraditório com o indulto que fe pedia, era forçofamente obrepticio e fubrepticio, exarado em nome do paftor fupremo fem o feu conhecimento. Pedia-fe a mais completa fatisfação aos aggravos n'efl:e aífumpto recebidos pela coroa de Portugal. Queixava-fe o governo amargamente do núncio e dos proce- dimentos do cardeal Torriggiani, fecretario de efiado pontifi- cio. Concluia-fe pedindo ao papa que expediíle um novo breve com as claufulas amplilTimas, que invéftiífem a mefa da confciencia na perpetua jurifdicção fobre os clérigos réus de lefa-majeftade.

A cúria, com a fubtileza habitual da fua chancellaria, pa- receu a principio deferir á nova fupplica, ou antes peremptó- ria intimação. Nomeia o papa Clemente XIII ao cardeal Ca- valchini para tratar direitamente com o enviado portuguez, afaftando afllm da negociação o cardeal Torriggiani, o defen- for enthuíiafta da Companhia e o fogofo inimigo de Portugal. A pouco trecho, porém, depois de encetadas as negociações, apparece improvifamente o cardeal fecretario de eftado a ingerir-fe novamente na pendência. Os jefuitas, fufpeitando no juizo conciliador e difcreto do Cavalchini um damno irre- parável á fua caufa, haviam dado traças para que o papa fe demoveífe do feu primeiro intento. No officio de 28 de no- vembro de 1759, expedido a Francifco de Almada, advoga o cardeal Torriggiani com ardente e impetuofa indifcrição as doutrinas, que na fituação embaraçofa dos negócios eram as mais accommodadas a elevar ao grau extremo a irritação do minirtro de D. Jofé. Suftentava o romano eftadifia que nunca em tempo algum fe haviam concedido á mefa da confciencia

as amplas faculdades, que pedia o governo portuguez. De- fendia o íecretario de eftado do pontífice o procedimento do feu núncio em Portugal, e ás queixas contra elle formuladas retorquia com outras mais acerbas contra o enviado portu- guez. Infiltia o cardeal Torriggiani não fomente na defeza, mas no mais amplificado panegyrico dos méritos e dos fervi- ços, pelos quaes o inftituto jefuitico fe tornara merecedor da protecção de muitos papas, e fingularmente acredor á bene- volência de Clemente XIII. E declarando n'efi:e aíTumpto in- variáveis os fentimentos do pontífice, capitulava de remédio eflficaciífimo aos abufos da Companhia a reforma commet- tida por Benedido XIV ao cardeal Saldanha. As palavras do cardeal fecretario de eftado queriam dizer litteralmente que o pontífice perfeverava tenaciffimo em negar ao governo portuguez as requeridas faculdades; contradizia e abomina- va as providencias adoptadas contra os jefuitas, que na opi- nião da cúria continuavam a fer coUedivamente uma ordem benemérita, fe bem um ou outro dos léus membros podeíTe carecer de emenda e correcção. Era pois uma clara demons- tração de hoftilidade, embora vieíTe condimentada com pa- lavras de execração contra o intentado regicídio, e com phra- les benevolentes ao rei de Portugal. Sebaftião de Carvalho tomou como um defcoberto rompimento o papel da chan- cellaria pontifical, e preparou-fe defde logo para affrontar as confequencias infalliveis de uma fcifão com o Vaticano.

O reprefentante portuguez em Roma, provavelmente por infinuação do feu governo, declarando porém que ia exce- der os feus poderes, alvitrou a 4 de dezembro um expe- diente, que lhe parecia encaminhar a feliz termo a dilatada negociação. Propoz que foíTe concedida á mefa da confcien- cia a faculdade de proceder até pena capital inclufivamcnte contra os facerdotes implicados no regicídio; e que para os futuros crimes de Icfa-majcftade foíTe invertido o mefmo tri-

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bunal em egual jurifdicção, comtanto que n'elle houveíTe de prefidir alguma pelToa conftituida em dignidade ecclefiaftica, recaindo a nomeação em peíToa acceita ao rei. Em termos peremptórios exigia o plenipotenciário portuguez uma prom- pta refolução.

Aqui principiaram novamente as delongas do Vaticano. Após alguns preliminares entre o Almada e o Torriggiani, deputou novamente o papa ao cardeal Cavalchini para entrar em conferencias com o reprefentante de Portugal. Entrega- Ihe a minuta de um novo bre\e, em que até certo ponto a cúria condefcendia com os defejos do governo portuguez. Mas eíte diploma fazia referencia ao breve Exponi nobis, como fe de feito houvera fido acceito e reconhecido pelo go- verno de Portugal, e vinha exarado por tal forma, que não podia fer approvado pelo Almada fem algumas correcções. Da fua lettra, ainda não conforme inteiramente á foberania e majeftade portugueza, parecia ao menos inferir-fe que dei- xara finalmente de mefclar-fe na queftão o cardeal Torrig- giani, o ardilofo antagonifta de Sehaftião de Carvalho. Man- da Francifco de Almada as emendas, que fe lhe afiguram neceíTarias. Continuam por alguns dias as negociações. Mas não parece ainda propinqua a favorável conclufão. A 27 de dezembro apparece de novo o fecretario de eítado pontificio como ador n'efta pendência, feparado da negociação o cardeal pro-datario Cavalchini. Remette a Francifco de Al- mada a minuta de um breve, aíTeverando que o rei de Por- tugal ficaria plenamente fatisfeito com a fua forma e redac- ção. As novas lettras apoftolicas eram, comtudo, com algu- mas variantes mui ligeiras, a copia da minuta aprefentada pelo cardeal Cavalchini. N'ellas fe perfiítia em dar por fub- fiftente, como fe houvera fido acceito, o breve Exponi nobis. Exceptuada eífa claufula fundamental, oífenfiva para o de- coro de Portugal, e julgada indifpenfavel á dignidade ponti-

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ficia, o breve concedia o que Sebaítião de Carvalho havia follicitado. A cúria dobrava a cerviz ao infatigável accufa- dor dos jefuitas, ao miniftro pertinaz e indomável, com a condição de que lhe deíTem como realmente recebido o bre- ve Exponi nobis, que elle houvera por ignominiofo admit- tir como verdadeira e legitima expreíTão do arbitrio do pon- tífice. Era de fi manifefto que a nova minuta fabricada fob os aufpicios do cardeal Torriggiani vinha engravecer, em vez de melhorar, a fituação.

Era fácil o prever n'aquella conjundura que não haveria humano expediente, que podeíTe atalhar o rompimento. No lundo e fubftancia da negociação, que parecia apenas uma contenda fobre formulas de chancellaria, apparecia realmen- te uma queftão mais grave e mais diíficil, em que os dois antagoniítas nem um ápice eftavam difpoftos a ceder. Nem, fi.ippoftos os precedentes das perfonagens litigantes, e a eíTen- cia do aíTumpto debatido, era poílivel nenhum accordo ou conciliação. O que fe controvertia realmente entre Sebaftião de Carvalho e o fecretario de eftado Torriggiani, ou mais exadamente entre o miniftro de D. Jofé e o papa Clemente XIII, eram os erros e os crimes da chamada Companhia de Jeíus; entre Sebaftião de Carvalho, que a feguia e perfeguia nos abrigos e nos redudos, aonde bufcava refugio para mais a leu feguro combater, e o pontífice romano, que procurava eximil-a ao ultimo naufrágio, acolhendo-a na barquinha de S. Pedro, confagrando-a folemnemente como inftituição es- fencial ao moderno catholicifmo. Um accufava-a tenaz- mente, exaggerando ás vezes porventura os feus grandes maleficios. O outro não hefitava em facrificar a paz da egreja á confervação e luzimento do inftituto reprovado. Entre a affirmação e a negação fubfiftia perennemente uma infoluvel antinomia. Entre a cxiftencia da Companhia, com os vicios inlanaveis e orgânicos da ília própria conftituição, e a fua

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total abolição, e extermínio não havia eftadifta, nem theolo- go, a quem fe deparaíTe o meio termo. Demais, a ordem egoifta e invalora eftava irremiflivelmente profcripta de Por- tugal. O corpo ainda exillia na chriftandade, mas vivia decepado de um dos léus membros mais valiofos, quaes eram as províncias religiolas na metrópole e nos vaftos domí- nios de Portugal. O miniftro inflexível nas fuás refoluções não podia lequer ouvir fallar em jefuitas, fem que no peito lhe ferveíTe a indignação. N'elle a razão de eftado viera a converter-fe em paixão intratável, perliítente, inacceffivel a uma Ibmbra fequer de compofição. Como poderia pois acceder a que as portas de S. Roque e Santo Antão fe abriíTem novamente para que ali fe tramaífem, fenão as ar- madas conjurações, ao menos os meneios inquietos e os enredos fubterraneos, que impediam a cada paífo em fuás reformas o império temporal, e turbavam no púlpito, no conflífionario e na cadeira magíítral as confciencias timora- tas e os obfcuros entendimentos? E todavia o papa Cle- mente XIII reiterava os defejos e as inftancias, não para que fobre os erros dos jefuitas em Portugal lançaífe o rei em nome da clemência o manto generofo do perdão, mas em nome da juftiça e da verdade coroaíTe com a laura facro- fanta dos mais piedofos confeífores da chriftan as virtudes heróicas da calumniada Companhia. Sebaftião de Carvalho pedia contra os jefuitas a execração e os fogos da Gehenna como a dignos companheiros de Datan e Abiron. O papa Clemente XIII refpondia reverberando-lhes na fronte a luz etherea do celefte paraizo, como a focios benemerentes de Jefus. Carvalho não podia remittir a fua animadverfão aos jefuitas, como quem reprefentava na fua mais fevera perfo- níficação o poder temporal exempto de fervidões ecclefias- ticas. O papa não fabia defcer do feu aífedo aos jefuitas, como quem reprefentava em anachronica figura as preten-

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ções temporaes do luprcmo lacerdocio nos leculos mais efcu- ros da velha autocracia pontifical. Sehaftião de Can^alho prefigurava em pleno abfolutifmo a Ibciedade civil emanci- pando-le da tutela clerical. No leu animo altivo, indomável e imperiofo não cabia a vocação de exercitar no feculo xviii, no feculo da reA'olução e da philofophia, na edade áurea da duvida e da negação, o papel inglório do imperador Henri- que IV, recebendo em CanoíTa, coberto de cinza e de cilicio, os golpes do flagello pontifício.

O papa Clemente XIII principiava a ferie d'eftes moder- nos pontífices paradoxaes, que fazendo-fe os cavalleiros an- dantes da foberania da tiara fobre os governos temporaes, fe empenharam em revocar, no meio da luz e da fciencia, os dias tenebrofos de Gregório VII. Sebaftião de Carvalho tem o mérito fingular de fer o primeiro eftadifta, que fe levantou para conter nos limites da pura efpiritualidade o poder eccle- fiaftico, para difputar abertamente ao pontificado o direito que fe arrogara de intervir nas queftões meramente feculares como fupremo e univerfal moderador na repubhca da chris- tandade, para conceder ao pontífice romano o feu primado de ordem e de jurifdicção, negando-lhe porém a fobrehumana prerogativa de ecuménico e irrefponfavel didador. Foi o primeiro, que teve por fyftema o coagir o clero a cumprir o preceito de S. Paulo, e]uando na epiftola aos romanos ex- hortava os chrifi:ãos a obedecer aos poderes conftituidos, n'aquellas palavras terminantes : « Omnis anima fubdita Jit potcjlatibus fiiblimioribus^ . E verdade que antes de Carvalho, muitos príncipes c republicas haviam contendido com o Vaticano; nenhum d'ellcs, porém, havia perfeverado na porfia defegual. A edade media do fummo pontificado, com as pre- tenções de Gregório VII, de Innocencio III, de Bonifácio VIII, continuara a perfifiir vidoriofa até pleno feculo xviii. Os jefuitas haviam tido por empenho glorificar e engrandecer

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a monarchia univerfal do pontífice romano. A fraqueza e o fanatifmo dos governos temporaes contribuíra a perpetuar as crelcentes invafões do facerdocio febre o império, embora regaliftas eminentes pleiteaíTem fervorofos, em nome do direito e da razão, em favor da foberania fecular. Carvalho é o primeiro que oufa affrontar-fe com o Vaticano, e dizer ao facerdote-rei : »0 reino de Jefu Chriífo não é d'efte mundo, e o feu vigário não pôde conquiftar, nem poíTuir nas mundanas regiões o que o mefmo inftituidor da egreja defen- deu e condemnou como odiofa profanação das coufas efpiri- tuaes». E na verdade atravez da queftão dos jefuitas furgia vifivelmente outro problema de mais fecundos corollarios. Era o da profunda feparação entre a fociedade civil, como grémio puramente humano e terrenal, e a fociedade religiofa, como grei exclulivamente confagrada aos fins efpirituaes e tranfmundanos.jTodos os feitos de Carvalho fe encaminham a efte alvo durante a fua larga adminiftração, todos fe con- globam e unificam n'efte principio eífencial ao progreífo, á paz, á civilifação da humanidade.

Por iífo o athleta inquebrantável, a cada nova arremet- tida do feu antagonifta, refponde vibrando um novo golpe.

As negociações em Roma profeguidas pelo enviado portuguez Francifco de Almada, não davam a minima efpe- rança de chegar ao termo defejado.

Mas emquanto o ^'^aticano fe empenhava em contradizer as inftancias de Portugal, um fucceífo inopinado vinha com- plicar as relações quafi hoftis entre Carvalho e a Santa Sede. O núncio Filippe Acciajuoli, arcebifpo de Petra, era em Lifboa o mais perigofo e perfeverante adverfario do miniftro portuguez. Era notória a protecção, que dera fempre aos jefuitas, e a eftreita ligação, em que vivia com todos os defcontentes e inimigos de Carvalho. O feu procedimento havia concitado mais do que o defprazer, a animadverfão

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do grande propugnador das immunidades temporaes. Aífe- ctando grande moderação e luavidade nas maneiras, como é condão efpecial de romanos diplomatas, e feduzindo, como dizia o embaixador francez, pelo encanto da fua converfa- ção, não era parco em aproveitar as circumftancias para con- trariar quanto podeífe as intenções do minifterio e aflbprar clandeftinamente o incêndio, que lavrava contra elle. A fua pofição na corte de Lifboa viera a ler em tal maneira humi- liante, que o miniíiro principal evitava cautelolamente o conferir com elle algum negocio '.

O rei não parecia fer mais benévolo com o núncio do que o feu primeiro fecretario de eftado, nem fe preftava a recebel-o fenão em audiência official-. O miniftro via com maus olhos que os reprefentantes extrangeiros, e principal- mente o embaixador francez, infigne defenfor dos jefuitas em Lifboa, cultivaífem com o núncio íntimas e frequentes rela- ções'. Apefar da nenhuma confiança, que infpirava o ardilofo curial ao governo portuguez, e das queixas, que d'elle tinha feito á corte de Roma, o arcebifpo de Petra havia fido con- decorado com a purpura cardinalícia em feptembro de lySg, na própria occafiáo, em que eram mais inftantes contra elle os aggravos de Carvalho. O pontífice Clemente XIII quizera galardoar d'efta maneira a foro de beneméritos os ferviços do prelado. Era pois uma aggreífão á coroa de Portugal e uma no-sa difíiculdade ao reftabelecimento de amigáveis relações.

' Officio do embaixador francez, conde de Merle, para o feu governo, de 14 de agofto de i/Sg. Quadro elementar, tom. vi, pag. iSy.

2 Officio do embaixador francez, conde de Merle, para o feu governo, de M de feptembro de \~ig- Quadro elementar, tom. vi, pag. i63.

3 Officio do embaixador francez, conde de Merle, para o feu governo, de 8 de janeiro 1760. Quadro elementar, tom. vi, pag. 184. Officio do mes- mo embaixador, de í de fevereiro de 1760, ihid., pag. 199.

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O calamento da princeza do Brazil com o infante D. Pe- dro, irmão do rei, depois de muitas delongas, que o tinham eítorvado, veiu finalmente a realifar-fe a 6 de junho de 1 760. Carvalho conhecendo defde muito na princeza o animo pro- penfo á exaggerada piedade, ou antes ao mórbido fanatifmo, deíejára ter-lhe dado por efpofo um homem de efpirito illu- minado, que podeíTe contrapelar o pendor innato para as indilcretas devoções e para a cega obediência aos influxos clericaes. O infante D. Pedro era, como quafi fempre fuccedeu em Portugal com os fecundo-genitos da cafa de Bragança, o chefe mais ou menos oftenfivo da opipoíição, um manifefto fautor dos jefuitas, um patrono e parcial da nobreza ambi- ciofa e deípeitada. Bem fe podia adivinhar que ao chegarem ao throno os dois efpofos, então feria uma alleluia para toda a reacção politica e religioía. Se Carvalho podéra evitar um enlace tão funefto á illuftração de Portugal, teria empenhado os feus esforços em o diíTuadir e reprovar. Mas n'efte ponto o animo do rei deixou-le aíToberbar pelos refpeitos da famí- lia, e o conforcio veiu reflorir a elperança e a oufadia nos inimigos de Carvalho. N'aquelle tempo as feftas dos reinan- tes eram dias de obrigado jubilo offlcial para todo o povo. Os efcravos deviam tripudiar, quando os príncipes lhes aíTe- guravam em fuás núpcias aufpiciofas a fuprema ventura de ter no futuro um novo defpota. Decretaram-fe pois três dias de luminárias para celebrar o feliz acontecimento.

O núncio, então cardeal da fanta egreja romana, fora tratado pela corte, como fe não fofle príncipe eccleíiallico, nem reprefentante do papa, rei de Roma. Não fe lhe havia participado o cafamento da princeza, nem o miniftro dos negócios cxtrangeiros, D. Luiz da Cunha, o tinha convidado para o banquete dado ao corpo diplomático. Doera-fe o pur- purado d'efle que reputava mais que defprimor, oftenfa e aggravo á lua dignidade cardinalícia, ao leu carader de nun-

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cio pontifício e ainda ás luas funcções de reprefentante de quem era, alem de papa, foberano temporal'. A defattenção que com ellc ufára a corte, entendeu que devia refponder com uma arrogante reprefalia. Quando a cidade appareceu de noite illuminada, quando os finos repicavam fcfíivamente em todos os campanários, quando as pompas cortezans ce- lebravam os defpoforios dos dois príncipes acceitos ao par- tido clerical, a cala da nunciatura appareceu como fe d'ali fugira improvifamente o feu amargurado morador. Cerradas as janellas e as portas, nem a minima luz na frontaria ou a menor claridade nos apofentos; o filencio e as trevas em toda a parte. O eícandalo foi geral. Raiou em fúria a indignação de Sebaítião de Carvalho. Agitou-fe a corte, irritaram-fe os mi- niftros, convocou-fe o confelho de eftado. No dia i 5 de junho occupavam-fe militarmente as ruas próximas ao edifício da nunciatura. Uma elcolta numerofa formava-fe em bata- lha em frente do palácio. E que no dia antecedente o fecre- tario de eftado, D. Luiz da Cunha, havia expedido ao cardeal núncio uma carta, na qual altivamente lhe intimava que apenas a recebeffe, logo fem demora fe partiíTe de Lifboa e atraveíTando o Tejo fe pozeííe a caminho da fronteira. Orde- nava-lhe outrofim que no precifo termo de quatro dias faíífe do território portuguez. Obedeceu o núncio proteftando, e declarando terminada a nunciatura em Portugal.

Sebaftião de Carvalho por uma informação, em que lum- mariamente fe referiam os efcandalofos procedimentos do no- vo cardeal, ordenou ao enviado portuguez em Roma rela- taífe ao pontifíce os motivos, que haviam determinado a expulfão do feu reprefentante. Mandou-lhe que proteftaífe novamente a perenne e indefedivél veneração a fua fantidade

' Officio de embaixador francez, conde de Merle, para o feu governo, de 8 de junho de 17G0. Quadro elementar, tom. vi, pag. 249 e 25o.

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e á Santa apoítolica, com que o rei de Portugal perfiftia e haveria fempre de perfiftir em proteger e fuftentar nos feus reinos e domínios o decoro do minifterio pontifício e a im- munidade dos miniftros da egreja, em tudo o que o direito divino, o natural e o das gentes podeíTem permittir.

Apefar d'eílas reverentes proteftações, a noticia não era accommodada a accrefcentar o affedo paternal de Clemente XIII para com leu dilecto filho, o rei de Portugal.

O enviado portuguez Francilco de Almada havia foUici- tado uma audiência do pontífice para lhe aprefentar a me- moria ou deducçáo, em que fe compendiavam todos os aggravos e aíTrontas dirigidas ao governo portuguez pela cúria e pelo feu reprefentante. Negou Clemente XIII a au- diência. Era declarar abertamente o rompimento com a corte de Lifboa. Francilco de Almada, fegundo as prefcripçôes de Sebaftião de Carvalho, efcreve então ao cardeal Corfini, protedor da coroa de Portugal, e enviando-lhe os papeis, que lhe não confentiam entregar direitamente ao padre lanto, pede-lhe que ponha na prefença do pontífice as razões, que o obrigam a laír de Roma. Logo a 2 de julho de 1 760 manda affixar na egreja de Santo António dos portuguezes um edital, cm que annunciando a fua partida immediata ordena a todos os vaffallos de Portugal que fe retirem egualmente dos es- tados pontificios. Por uma carta circular a todos os reprefen- tantes acreditados junto do papa, declara-lhes os motivos que o forçavam a fair, e remette-lhes copia das memorias, onde eftavam deduzidos os aggravos de Portugal. Clemen- te XIII, aíTombrado porventura de que o negocio houveíTe chegado a termos de rompimento, pelou as perígolas confe- quencias de uma interrupção de relações entre o Vaticano e um eftado, a cujos reis, como a filhos diledtos da egreja, não havia muitos annos a própria Santa condecorara com o titulo de fidelilTimos. Quiz fi.iíl:ar com uma nova traça a par-

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tida do plenipotenciário portuguez. Deputou o cardeal Cor- fini para que em boa paz com elle conferiíTe. Efcreveu-lhe o cardeal efperando que uma tal condefcendencia pontifícia motivaíTe a fufpenfão das ordens publicadas aos fubditos de Portugal para deixarem fem detença os eftados da egreja. Em outra carta expreíTava novamente o cardeal protedor a Francifco de Almada os delejos, que o pontífice nutria de coníervar a harmonia com D. Jofé apelar do Ibbrefalto, que em leu animo havia concitado a inopinada expulíao do núncio de Lifboa. Atteflava ao mefmo paíTo o cardeal Corfi- ni, que a deducção e as memorias do governo portuguez haviam fido prefentes ao pontífice, o qual pedia tempo, em que detidamente examinaíTe tão volumofos documentos.

A 4 de julho publicava o enviado portuguez um novo edital, em que fi.ifpendia os efíeitos do primeiro.

Era na verdade laftimola a fituação do papa Clemente XIII. Havia padecido a maior atfronta, que lhe podiam ir- rogar como a pontífice e a Ibberano temporal, expuUando- Ihe um feu reprefentante condecorado com a purpura car- dinalícia. Pelo direito das gentes, e em nome da lua própria dignidade era-lhe não fomente licito, mas urgente o defpedir da fua corte a legação de Portugal. Em vez d'ifto, porém, pedia quafi humildemente ao enviado portuguez que em re- torno de lua complacência e manfidão fe deixaíTe ficar na cidade eterna, offerecendo-lhe levar a feliz termo as exa- cerbadas contenções. Pouco duraram as efperanças de ami- gável conciliação. O violento cardeal fecretario de ellado in- terpoz-fe audaz e refoluto ao papa e ao governo portuguez, agitando novamente o facho da difcordia. Preponderou no animo de Clemente XIII. Revogou o pontífice a commiflao, que havia dado ao cardeal Corfini, e confiou de novo aTor- riggiani o encargo de tratar os negócios de Portugal.

Para efla re\ogação, é força confeílar. contribuíram em

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grande parte os termos aggreíTivos, em que eftava efcripto o edital. Francifco de Almada, em vez de limitar-fe a pre- venir os íeus compatriotas de que ficavam por juftiíllmos refpeitos fufpenfas por emquanto as ordens anteriores, defa- tou-fe em inopportunas imprecações contra os jefuitas, e em desfavoráveis allufões ao cardeal fecretario de eftado.

Perdida toda a efperança de evitar o rompimento, publi- cou Francifco de Almada um edital definitivo ordenando aos vaffallos portuguezes que deixaíTem os eítados pontificios até feptembro d'aquelle anno. A 7 de julho faia de Roma Francifco de Almada, vibrando contra o facciofoTorriggiani, n'um officio ao cardeal Corfini, as frechas derradeiras da fua indignação, accufando-o de animofidade e de perfidia contra o governo de Portugal.

Ao procedimento de Francifco de Almada não tardaram a feguir-fe em Lifhoa as reprefalias contra Roma. O auditor da nunciatura, Jacintho Acciajuoli, foi intimado a fair de Lis- boa em vinte e quatro horas, e a paífar a fronteira portu- gueza no prafo de féis dias. Publicaram-fe os decretos de 4 de agofio de 1760, nos quaes, renovadas textualmente as prefcripções, que promulgara D. João V em 1728, fe orde- nava que nenhum vaílallo portuguez ficaífe nos eftados pon- tificios, nem fubdito romano permaneceífe nos territórios de Portugal, e fe prohibia fob penas feveriíTimas toda a com- municação com a corte de Roma.

Eftava pois confummado o rompimento entre a cúria e Portugal. O minií^ro audaz e perfiftente, no leu propofito im- mutavel de engrandecer e confirmar a poteítade fecular con- tra as invafões do poder efpiritual, havia alcançado a cufto de fagacidade e perfeverança a primeira e a mais diíficil das vidorias.

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CAPITULO X

VIGOR E DIGNIDADE

Agora dava Sehaftião de Can-alho umas tréguas á lua lufta com o eftado clerical para volver as attenções aos ne- gócios interiores, que eítavam reclamando inftantemente a lua incanfavel intelligencia e energia.

Os defcontentes do governo, em vez de aíTrouxarem com os terríveis exemplos de vindifta minifterial, cada vez fe moftravam mais impenitentes no feu ódio peflbal ao mi- niftro reformador, e ás profundas transformações, que rea- lifára no paiz. Os léus inimigos continuavam a agitar-fe e entre elles principalmente a nobreza ecclefiaftica ou fecular. Não podendo infurgir-fe abertamente, não poupavam malé- volos expedientes com que podeílem contraminar o feu po- der. A fegurança do eftado contra os perigos de novas conju- rações, e não menos a repreíTão dos crimes, que infamavam n'aquelle tempo os coftumes portuguezes, determinaram a creação de uma nova e tremenda magiftratura, que foíTe por aíTim dizer a perpetua fentinella da tranquillidade e ordem publica. O alvará de 25 de junho de 1760 inftituiu fob o ti- tulo de intendente geral da policia um magiftrado llípcrior com o cargo eminente de prover á completa feguridade con- tra os que bufcaíTem romper a paz com fuás malfeitorias e delidos. Fundada principalmente para exercer a policia con- tra os crimes communs, a nova magiftratura era ao meímo tempo uma inftituição politica. Nos tempos ulteriores mos- trou a intendência, fob as intolerantes infpirações de Pina Manique no reinado de D. Maria I, que o feu ofRcio prin- cipal era impedir em Portugal o contagio irrefiftivel das idéas profeífadas pela grande Revolução. O primeiro magiftrado

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invertido por Sebaftião de Carvalho em o novo emprego foi o defembargador Ignacio Ferreira Souto, um dos que na junta de inconfidência tinham firmado a fentença cruentiffima con- tra os réus da conjuração.

Bufcava Sebafiião de Carvalho com enérgicas providen- cias acautelar a repetição de novas fedições. Os feus inimi- gos pullulavam ainda na corte, e em alguns dos altos car- gos, onde podiam aíTeftar commodamente as fijas baterias. A violenta oppofição audorifava, fe não defculpava inteira- mente as reprefalias. É precifo não efquecer que o governo de Carvalho era em plena monarchia abfoluta um regime claramente revolucionário. Não era um homem immodera- do, violento, perfeguidor, que chegado ao fafl:igio da íua for- tuna pretendia unicamente aílegurar, pela vaidade efteril do poder, a continuação da fua valia no animo real. Era antes o reprefentante e o executor de um novo fyftema governa- tivo, que á ardente nas fiaas largas e proveitofas innova- ções em commum beneficio da nação, era forçado a immolar os fentimentos da tolerância e da clemência, a moftrar-fe defhumano no fentido de impiedofo para fer humano na accepção de amigo e fervidor da humanidade. A tolerância prefuppõe a liberdade nos eftados democraticamente confti- tuidos, a clemência lo pôde refidir nas monarchias não con- turbadas perennemente pela intemperança das facções.

Eis ahi as razões por que Sebaftião de Carvalho fi.ibor- dina a moderação para com os fufpeitos á lei fi.iprema da falvação do eftado; o bem dos inquietos perturbadores á paz e ao progreffo da inteira fociedade. Não ha duvida que fo- ram feveros os léus procedimentos contra os léus implacá- veis adverfarios. Mas, luppoftas as circumftancias d'aquel- la epocha, os hábitos da monarchia abfoluta e a influencia reaccionária das claíTes privilegiadas, não podemos aquila- tar pelas inftituições, pelas idéas, pelos coftumes do noíTo

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tempo, os cárceres e os deíterros decretados com mão larga pelo miniítro vigilante e odiado.

Muitas das mais notáveis perfonagens mantinham rela- ções harto aífeduolas com o núncio cardeal Acciajuoli, e fe com elle não confpiravam abertamente, eram feus fervorofos parciaes e fecretos ajudadores. Tal era o conde de S. Lou- renço, camarifta de D. Pedro; tal era o vifconde de Villa Nova da Cerveira, antigo embaixador na corte de Madrid e também gentil-homem da camará do infante; taes eram os baítardos de D. João V, chamados vulgarmente os meninos de Palliam. Um d'eftes, D. Jole, era inquifidor geral. Ambos, fegundo o próprio teftemunho dos inimigos de Carvalho", fe tinham injuriofamente defcomedido com o miniftro.

O inquilidor geral era um d'en:es fanáticos, que eleva- dos pelo acafo a uma eminente categoria, e chamados pelo régio favor a exercer a terrivel magiftratura das confciencias e da fé, punham a fua aucforidade peflbal e a influencia do feu cargo a Ibldo da politica oppofição ao miniftro de D. Jofé e ao ferviço da reacção religiofa contra as luas enérgi- cas providencias encaminhadas a defender e tutelar a inde- pendência do poder foberano e temporal. O miniftro não ve- ria defde muito com bons olhos a mais perigofa e abuftva de todas as jurifdicções nas mãos de um feu adverfario peífoal, e ainda mais jurado antagonifta de quanto podeíTe diífipar as trevas efpirituaes, em que o baftardo de D. JoãoY amo- ravelmente fe comprazia. O feu deftcrro para a laura carme- litana do BuíTaco, pelo voto do confelho de eftado, não era pena demafiada para os ultrages commcttidos contra a fobe- rana poteftadc. Os irmãos do rei imaginaram porventura, que a fua qualidade principefca lhes permittiria o defobedecer e confpirar. O miniftro porém enérgico e previdente deu um

Vita di Scb. Giufeppe di Carvalho e Mello, tom. iii, pag. 98 c yj.

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exemplo fevero, mas neceflario, de que ainda nas monar- chias abfolutas o fangue mais ou menos régio dos oíTenlb- res os não pode eximir ás melmas penas, que fe irrogam ao mais humilde e rafteiro dos plebeus. Um dos grandes méri- tos de Sebaftião de Carvalho efteve juftamentc em humilhar os grandes e poderofos, e em levantar os pequenos e humil- des. Os baftardos de D. João V valiam aos olhos do minis- tro nivelador menos quilates do que o induftriofo mercador ou o artifice laboriofo. A ociolidade fidalga achava menos graça no feu animo do que o trabalho plebeu, mas creador. As claíTes privilegiadas e a irrequieta clerefia houveram por iniquidade e facrilegio que o miniftro defterraíTe os dois ir- mãos de D. Joíe. Mas a feveridade exercida contra elles contrapefa as violências, que a fegurança e a conjundura neceflitaram o miniftro a empregar contra peíToas de fome- nos condição. A egualdade perante o ablblutifmo é o pri- meiro eftadio da egualdade perante a lei.

A inquifição era não fomente uma tremenda jurifdicção efpiritual, fenão também um poderofo tribunal politico e fo- cial. Sob as puras apparencias de zelar a e combater a herética pravidade, o Santo Officio era um inftrumento ef- ficaciíTimo de influencia irrefiftivel nos negócios profanos e feculares. Sebaftião de Carvalho precifava de tomar poíTe d'efta forte cidadella, cujos tiros perigofiíTimos podiam a cada paíTo contrariar o poder civil. tinha de fua mão a junta da inconfidência, que era a inquifição da ordem pu- blica. Era bem que tiveíTc egualmente da fua mão o Santo Officio, que era a junta da inconfidência nos dominios efpi- rituaes. O miniftro audaz e cmprehendedor, fe bem nas fuás leis e alvarás entoava antiphonas pompofas á feparação, in- dependência e equilíbrio das duas poteftades, fecular e eccle- fiaftica, tendia a fubordinar ao império o facerdocio. Se al- gum d'elles devia preponderar e fubmettcr ao fcu nuto o

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antagoniza, eíTe havia de ler o governo temporal. E de feito nos eftados, onde por dilatados feculos a debilidade ou o fanatifmo dos foberanos alteou muito acima da majeftade civil a autocracia ecclefiaftica, a reacção contra eíte funefto defequilibrio é lempre a llibmiílao da egreja aos arbítrios do imperante. Somente nos eftados livres, genuinamente demo- cráticos, onde não ha na lei confagração ou privilegio para nenhum culto official, a egreja pôde fer livre. A tutela do eftado fobre as coufas elpirituaes é apenas reftrida a defen- der e amparar para todos egualmente a liberdade da con- fciencia, e a precaver quanto pelo exercício rcligiofo poffa pôr em rifco a paz e a ordem Ibcial.

Ora Sebaftião de Carvalho não podia no feu tempo, den- tro de uma piedofa monarchia, no meio de um povo dcfal- lumiado, inculto, barbarifado por trevas diuturnas de torva fuperftição, proclamar a noviíTima doutrina de que a focie- dade civil, como tal, é puramente profana, comquanto ao feu lado, mas fem a perturbar ou tolher em fuás funcções, fubfis- ta a crença religiofa abraçada livremente pelos membros da cidade. Não lhe era dado profeífar a egreja livre no eftado livre. Mas fora d'eft:e fyíl:ema de equilíbrio verdadeiro entre a acção focial e a religiofa, um dos dois elementos ha forçofamente de fohrcpujar. Pois feja então o eífado quem dirija, governe e encaminhe o facerdocio pela parte, em que confronta com os intereífes mundanos e terrenaes. O rei é, fe- gundo a tradição, o defenfor da e o protedor dos cânones. Pois quem defende e protege tenha a força, a auítoridade, a coacção. Efle é o fyftema largamente exemplificado na im- menfa legiflação, e nos documentos da chancellaria portu- gueza durante a longa didadura de Carvalho.

A inquifição era um poderofo auxiliar ao ferviço do des- potifmo reformador. Era pois neceífario que o miniílro de D. Jofé a tiveífe como uma dependência immediata de fua

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fecretaria. O inquifidor geral devia pois fer um feu familiar obediente. Ninguém era talhado mais de molde para efta fujeição do Santo Officio á autoridade governativa do que um homem conjunclo pelo fangue e pelo aífedo ao grande reformador. Paulo de Carvalho e Mendoça, feu irmão, foi pois nomeado inquifidor geral. Deixaram os contemporâneos memorado que era varão de poucas lettras e de efcaíTo en- tendimento. Sobrava-lhe, porém, uma qualidade preciofa. Era a admiração, que profeffava ao homem eminente, que era a honra da familia. Sob a fua jurifdicção não haveria nun- ca perigo de que a fé, por meticulofa ou intranfigente, em- peceffe os voos do miniftro no feu propoíito fundamental de romper as ultimas cadeias, que arraftavam o throno de Por- tugal á fella geítatoria do fummo pontificado.

Para que a didadura de Carvalho podeíTe refpirar des- apreíTada era força confiar os cargos públicos aos que fe ins- piravam no fyítema politico do didador, diradicar por a6tos puramente revolucionários as influencias pernicioias, que ameaçavam em cada dia uma nova conjuração. Eis ahi por que depois da expulfão dos jefuitas e do núncio, redobra a feveridade contra os feítarios da condemnada Companhia. Eis ahi por que foi prefo nos cárceres da Junqueira o con- feíTor do antigo inquifidor, um cónego regrante de Santo Agoftinho. Eis ahi por que foram defterrados monfenhor Aguilar, os padres João de Macedo e João Chevalier da con- gregação do Oratório, e por que nas prifões de eftado recres- ceram aos antigos réus políticos outros novos encarcerados.

E laítima que na hilforia ás grandes revoluções e pro- greíTos fociaes andem fempre aíTociadas as vindictas e re- pre falias. Mas é trifte condão da humanidade que os feus grandes triumphos fe conquiftem á cufia de cruentiffimos combates e de fcenas lacrymofas. A humanidade não nunca os feus paífos de gigante, fem que a terra eflremeça

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debaixo dos feus pcs. A revolução ou a guerra lao os an- daimes funeftos, mas neceíTarios d'efte grande e magnifico edificio, que fe chama a civilifação. A luz do cofmos focial, como a luz do mundo phyfico, é fempre a força transforma- da n'uma brilhante apparição.

Aonde não chega porém a feveridade, pôde a dignidade e a energia operar os feus milagres. Foi o que Sebartião de Carvalho deixou honrolamente exemplificado n'uma pendên- cia delicada, em que eífava de uma parte a honra nacional offendida gravemente, e da outra a grandeza e arrogância de uma nação, onde o poder nem fempre fe comediu com a gcnerolidade e a julfiça.

A Gran-Bretanha eftava em guerra com a França. Eram poífantes as armadas inglezas, que fe tinham arrogado o fenhorio abfoluto do Oceano. Em agoíto de lySg a efqua- dra do almirante britannico Bofcawen, travando batalha com a frota franceza ao mando do almirante de La Clue, cerca das cofias do Algarve, tinha vindo concluir a fua em- preza victoriofa íbb as muralhas da praça de Lagos, vio- lando a neutralidade e ultrajando a majeftade nacional. Ali, nas próprias aguas de Portugal, queimaram os inglezes dois navios inimigos, apefar dos tiros difparados pelas baterias portuguezas. Muitos francezes foragidos fe haviam acolhido em terra, e tinham recebido humana hofpitalidade. Era grande o ultrage á bandeira de Portugal. Pediu Sebaftião de Carvalho defde logo plena fatisfação ao gabinete britan- nico. Prefidia então aos negócios em Inglaterra o celebrado lord Chatam. E taes foram as reclamações e as inftancias do governo portuguez, tão altiva a dignidade, tão refoluto o propofito de não tolerar as prepotências, ainda mefmo da na- ção podcrofa, temida, viiíloriofa, que o rei George II defpa- chou Lord Kinnoul em embaixada extraordinária para cjue vieíTe dar inteira e folemne fatisfação ao rei de Portugal.

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Antes de relblver-fe em Inglaterra a milTáo extraordinária de Lord Kinnoul, mediara entre a corte de Lifboa e o gabi- nete de Saint-James uma vehemente contcftação. Exigia Sebaftião de Carvalho, como zeloíb defenlbr da majeftade nacional, que o defaggravo foíTe tão cabal e tão completo que podeíTe expiar cumpridamente a violência commettida contra a honra do paiz e a quebra efcandalofa dos princí- pios fundamentaes do direito das gentes. Corre na tradição que em um dos Icus delpachos o vigorolo miniftro portuguez fe exprimira em phrafes tão acerbas, cjue leriam capazes de excitar o refentimento e a vindida de uma nação menos poderofa e arrogante do que era então a higlaterra, que de fafto exercitava o dominio e Ibberania Ibbre os mares. Em alguns efcriptos contemporâneos ' appareceu eftampado como authentico o diploma, em que Sebaftião de Carvalho, com- pendiando as arrogâncias da Inglaterra, lhe arremeíTava ao rofto ameaças" tão jadanciofas e tremendas, como Ic Por- tugal, para refponder ao incêndio das naus francezas n\im feu porto, tiveíTe poderofiffimas armadas, com que ir a Ports- mouth queimar nos próprios eílaleiros os navios da Gran- Bretanha.

«Eu fei, dizia o minillro n\im defpacho, que o voíTo gabi- nete fe arrogou o império Ibbre o governo de Portugal, mas fei também que é tempo de lhe dar lim. Se os meus prede- ceíTores tiveram a fraqueza de vos conceder até agora tudo quanto defejaftes, pela minha parte fomente vos concederei o que vos devo. E ifto o que em conclufão tenho a dizer- vos». N'outro defpacho efcrevia SebaíUão de Carvalho ao fecretario de ellado dos negócios extrangeiros em Inglater- ra: «Rogo-vos que me não obrigueis a recordar as condes-

VAdminiJlration du Marquis de Pombal, Amílertlam, 1788, tom. 111, pag. 3 e legg.

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cendencias, que o go\'crno portuguez tem tido para com o volTo. São taes que não fei de nenhuma outra potencia, que as haja nunca tido íemelhantes. E jufto que de uma vez ponhamos fim a efte império, e que façamos ver á Euro- pa, que lacudimos o jugo de uma extrangeira dominação. . . A França nos haveria de confiderar uma nação fraca em extremo grau, fe não podeílemos alcançar íatisfação pela offenfa, que nos fizefles, vindo queimar em paragens portu- guezas navios, que ali deviam reputar-fe em completa fegu- rança » .

A expreíTão enérgica, mas decorofa d'efl:es defpachos não repugna certamente a que foíTem verdadeiros, íenão em feus termos litteraes, lequer na dignidade e vehemencia da juíf:iffima reclamação. A indole briofa de Carvalho, pouco feito a devorar injurias em filencio, parece relpirar na altiva independência, com que elle, o reprefentante de uma nação decadente e abatida, fe altêa e engrandece até olhar de nivel e com torvo fobrecenho o moderno gigante do Oceano. É Ibbre um terceiro defpacho publicado e encarecido como a fuprema demonítração do arrojado animo do miniftro, c|ue recaem principalmente as duvidas, que parece invalidarem a lua authenticidade. E. por affim dizer a folemne intimação á Inglaterra para que fatisfaça á razão e á juftiça de Portu- gal, ou efpere as duras c infalliveis reprefalias. «Pouco valicis na Europa, dizia Carvalho á Inglaterra, quando era mui grande a noíTa reputação. A voíTa ilha era apenas um ponto na carta geographica, e Portugal a enchia com o leu nome. Dominávamos na Afia, na Africa e na America, e vós domi- náveis apenas em uma pequena ilha do velho mundo. Vós éreis uma potencia, que poderia afpirar a fer de íegunda ordem; mas pelos meios, que vos miniftrárnos, ílibiftes á de primeira » .

O minifiro continuava exprobrando á Gran-Bretanha,

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como ella havia fempre efpoliado a Portugal. « Por uma es- tupidez, que não tem exemplo na hiftoria univeríal do mun- do económico (dizia elle), confentimos que nos fabriqueis nolTos vertidos, e nos miniftreis os artigos de luxo, o que não é de efcaíTa confideração. Damos com que viver a quinhen- tos mil artífices, fubditos de rei George II . . . São os vos- íbs campos que nos fuftentam. Aos noíTos ceareiros vieftes fubftituir os voíTos lavradores . . . Mas fe fomos nós os que vos levantámos ao cúmulo da grandeza, eftá comtudo em noíTas mãos o precipitar-vos em o nada, de que generofa- mente vos tirámos . . . Bafta uma lei para derribar voíTo po- der, ou ao menos debilitar o voíTo império. Não é mais do que prohibir fob pena capital que faia o oiro portuguez dos noíTos portos, e o oiro não fairá. . . Fiz romper o duque de Aveiro, porque attentou contra a vida de el-rei. Também po- derei mandar enforcar um dos capitães das voffas naus, pelo crime de levar de Portugal a regia effigie, contra as determi- nações expreíTas de uma lei. . . Fazei pois o que deveis, e eu não farei então o que eftá no meu poder». Depois o mi- niftro bufcava demonftrar que a Inglaterra vivia unicamente da tolerância e fraqueza de Portugal; que era com o oiro da America portugueza que o feu governo pagava ao feu exer- cito e ás fuás armadas, e fubfidiava as potencias extrangeiras para as ter por fuás auxiliares. A França poderia miniftrar a Portugal os lanifícios, que defde tantos annos e com tão vivas inftancias nos offerecia. Poderíamos difpenfar os ce- reaes inglezes, porque teríamos na Barbaria um próvido cel- leiro. Exigia Carvalho finalmente em termos peremptórios que pelo governo britannico foífe dada a Portugal a mais completa fatisfação.

Efte ultimo defpacho c efcripto em phrafes de tão afpe- ra contextura e tão diftantes das formas diplomáticas, ainda obfervadas entre as nações, quando eftão preftes a romper,

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que não pode fer admittido como authentico. A fubítancia das razões e a vehemencia da intimação á Gran-Bretanha, fe guardaíTcm as formas coftumadas nas communicações in- ternacionaes, feriam perfeitamente accommodadas á magni- tude da oífenfa recebida, ao enérgico temperamento de Car- valho, e á inflexivel hombridade com que fempre Ibube zelar e defender a honra nacional para com os defmandos e info- lencias dos governos extrangeiros.

A efpecie de humilhação, com que a Inglaterra, no auge da fua potencia e majeftade, fe ageitou e fubmetteu ás exi- gências de Portugal, affombrou a Europa n'aquelles dias. Nunca fe vira uma nação poderofa e arrogante, que domi- nava foberana em todos os mares do globo, e avaífallava a feu império as mais diftantes regiões, abater-fe até o ponto de enviar uma legação extraordinária á nação queixofa e aíFron- tada. Bem podéra a Gran-Bretanha reprovar a violência commettida junto ás aguas portuguezas por um feu impru- dente e intrépido almirante. Mas defpachar um embaixador com a miífáo efpecial de offerecer as fuás defculpas a uma nação defegual em poder e audoridade, era um aéto, que apparecia agora a vez primeira nos faítos politicos da Eu- ropa.

Chegou a Lifboa Lord Kinnoul a 8 de março de 1760 e a 21 teve publica audiência de el-rei D. Jofé. N'efta folem- nidade aprefentou o embaixador da parte de George II os cumprimentos, com que laftimava a violação da neutrali- dade portugueza pelo almirante Bofcawen, e lhe oíTerecia ao mefmo tempo as mais expreíTivas fatisfações pelo ultraje á bandeira e foberania de Portugal.

Os mais ardentes adverfarios do miniftro não poderam eximir-fe a confeífar que por efta conquifta diplomática o eftadifta portuguez, cuja audácia refpondia ao feu talento, havia alcançado para a pátria a confideração das nações

extranhas, e para fi a honra de fer elle o órgão e inflrumento d'efl:e feito fingular'.

Cumpre todavia não efquecer que ao mandar a Lifboa por feu embaixador extraordinário o conde de Kinnoul, par de Efcocia, a Inglaterra não demonítrava unicamente a fua honrada reftidão e a fua generofa condefcendencia. Razões de egoifmo nacional influiam egualmente no feu procedimen- to. A Inglaterra logo dcfde que principiara o minifterio de Carvalho, havia começado a perceber que um novo teor e norma de politica eftava prefidindo aos deítinos de Portu- gal. Era um governo verdadeiramente portuguez, o que ti- nha de fuás mãos vigorofas, refolutas, o timão do eftado, até então fempre indecifo e ofcillante fob o império de foberano voluptuofo e indolente, e de miniftros incapazes de nenhuma determinada refolução. Carvalho fizera defde logo fentir que o feu principio fundamental no regimien interior e nas rela- ções com as potencias extrangeiras eítava cifrado na abfo- luta e fuprema auíloridade e foberania do monarcha, e na inteira liberdade e independência, com que Portugal devia fer uma nação exempta e imniune de toda a indireda fujei- ção e valTallagem encoberta a nenhum poder extranho, qual- quer que foífe, defde Roma, que o dominava com o annel do pefcador, aproveitado em authenticar intereíTes munda- nos e terrenaes, até Londres, que governava a Portugal com o fceptro mercantil dos feus dynaftas. As providencias de- cretadas contra a exportação do oiro americano, a fundação da companhia do Grão-Pará, e principalmente a inftituição da companhia do Alto Douro, e o fomento influido no tra- balho portuguez pela creação ou melhoria das induftrias,

«Quefto fu veramente um paíTo che fece onore ai noílro gran conte di Oeyras, ma non fappiamo di certo che a lui debba attribuirfi queffatto di umi- liazione deiringhilterra.» Vita di Seh. Giiifeppe di Carvalho e Mello, tom. iii, pag. io3.

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haviam provocado acerbas reclamações dos negociantes in- glezes eftabelecidos em Portugal e dos que em Londres fe empenhavam por terem n'elle e no Brazil a fua mais larga e frufluofa grangearia. Os mercadores britannicos do Porto e de Lifboa favoreciam como redundante em feu próprio beneficio a agitação, que os jefuitas fomentavam contra as novas companhias. Se accreditàmos n'um defpacho efcripto pelo encarregado de negócios de França ao íeu governo, os commerciantes inglezes laftimavam que fe fizeíTe em Portu- gal dura perfeguição aos jeíliitas, com quem andavam enla- çados por grandes e lucrativas negociações'. Defenganados de que nada poderiam confeguir pelos feus esforços em Por- tugal confociando-fe aos defcontentes e agitadores, bufca- ram novo theatro, e em Londres empenharam mil esforços por induzir o gabinete de Saint-James a exigir por meios extraordinários a revogação das leis e providencias adverfas ao feu egoifmo e proveito mercantil. Embrenharam-fe em enredos na bolfa da poderofa metrópole britannica, e por meio de acerbiíTimos pamphletos e de libellos calumniofos infamavam a honra e a intenção do governo portuguez. Ac- cufavam acremente de inércia e de fraqueza o minifterio da Gran-Bretanha, porque não fulminava Portugal com os raios das fuás frotas coloífaes, e não decretava defde Londres a total abolição das companhias de commercio, e a final de- molição da uhima ofiicina portugueza".

Lamentavam a grandes vozes que o novo fyftcma econó- mico adoptado pelo duro legiflador arruinaífe nos feus mais antigos e robuftos alicerces o trafico e a navegação da Gran- Bretanha nos dominios de Portugal.

' OlTicio do encarregado de negócios de França, de 2 de janeiro de 1759. Quadro elementar, tom. xvm, pag. 36g.

2 Contrariedade ao libello, parte iv, § 5y.

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Não podia o governo de Inglaterra fer infenfivel aos cla- mores dos feus naturaes, que pediam remédio á laftimada quebra do feu commercio É pois certo que ao deputar um embaixador para dar plena fatisfação pelo infulto perpetra- do, a Gran-Bretanha vinculava a efta moftra de jufta bene- volência a efperança de alcançar novos favores para o feu trato mercantil em Portugal. Não era também provavelmen- te alheio á embaixada o empenho de eftreitar os laços de antiga alliança e amizade, que nas fituaçÕes mais criticas da Europa haviam liado fempre as duas coroas e feito de Portugal o fatellite confiante da Inglaterra em todas as guer- ras continentaes. O afpedo dos negócios europeus n'aquelle tempo, a porfia que andava então renhida entre a França e a Gran-Bretanha, as diligencias empenhadas pelos france- zes para defatar do feu alliado o governo portuguez, eram motivos efiicazes para que vieíTe a Portugal a extraordiná- ria legação de Lord Kinnoul. Demorou-fe o embaixador na corte de Lif boa até novembro de 1 760. Durante a fua reli- dencia não deixou de empregar os feus esforços para dobrar a vontade inflexível do miniftro e obrigal-o com fuás traças diplomáticas a contentar a Inglaterra, queixofa dos damnos irrogados aos feus intereíTes mercantis.

Eíla luífa pertinaz e diuturna entre o eftadifta portuguez e a Gran-Bretanha, reprefentada por hábeis e ardilofos en- viados, em meio de inteítinas turbações e de aggreífões ex- tranhas perigofiffimas, é um dos rafgos preexcellentes no governo de Carvalho. EUe próprio nos reconta em breves termos como teve de invocar todo o feu ardente patriotifmo, todo o vigor do feu talento, todos os feus dotes diplomáti- cos de perfuafiva difcuífão para contender em peleja equili- brada com tão confummados antagoniftas, quaes eram Lord Kinnoul, e depois d'elle Edward Hay, William Henry L}1- tleton e Robert Walpole, fucceffivamente enviados extraor-

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dinarios de Inglaterra em Portugal. Proleguia a pendência animada e indecifa ao mefmo tempo em Londres e em Lis- boa. Aqui era Carvalho em peíToa o negociador, na metró- pole ingleza o enviado portuguez Martinho de Mello. Mas o efpirito do grande eftadifta dominava egualmente pela fua palavra infinuante nas conferencias de Lifboa e nas contes- tações de Londres pelas luas prudentes e luminofas inftruc- ções ao plenipotenciário de Portugal. N'ell:es debates fempre difficeis, e ainda mais elcabrofos quando empenhados com uma nação altiva, poíTante, convencida da lua força e pre- eminência, firmou o miniftro portuguez os princípios mais inconteftaveis e feveros, que definem as relações das poten- cias entre fi, e aíTentou o dogma fundamental de que, obfer- vados os deveres e os officios do direito das gentes, a cada povo, no ufo da própria independência e majeftade, é licito governar-fe a feu arbítrio, lem que feja permittida a outra po- tencia a minima intervenção nos feus negócios domefticos e interiores. Propugnavam-fe as máximas jurídicas, de fi incon- troverfas, de que não faz offenla a algum terceiro o que ufa do feu direito; de que á foberania independente e livre de toda a externa fujeição compete o jus fupremo de regular pela fua poteífadc legiflativa a vida focial e económica em feus eftados, como a um Hmples particular é licito adminiftrar a feu talante a cafa própria, fem que os amigos ou vizinhos te- nham direito de lhe pedirem explicações ou de julgarem-fe offendidos e affrontados. Demonftrava-fe que efte era o fun- damento de toda a foberania, e o ufo confiante de todos os governos europeus, os quaes tinham fundado companhias commerciaes, e inítituido as fuás manufacturas, para que o feu commercio profperaffe e a induftria nacional abaíteceífe de produdos a nação, fem a forçofa dependência dos fabri- cos extrangeiros. «E eftas, dizia o miniftro portuguez aífe- melhando, fegundo a fua predilecta allegoria, uma abfoluta

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monarchia a uma familia e o regimen dos eítados ao poder patriarchal, eftas fão difpofições domefticas de um bom pae de familias, que nem deve deixar precipitar os feus fa- miliares nos vicios e abfurdos da ociofidade, nem tirar o pão da bocca aos feus próprios filhos para o dar a comer aos extrangeiros ' » .

A Inglaterra tão ciofa de fua independência e majeftade, a Inglaterra, que da fua antiga mefquinhez fe tinha levantado a fer n'aquelle tempo a primeira entre as nações pela fua induftria e navegação, a Inglaterra, que n'aquella mefma edade via accrefcido e fecundado o feu tráfego fabril pelas admiráveis invenções de Arkwright, de Hargreaves, de Cart- wright, que levaram á vigorofa adolefcencia a induftria do algodão, não podia conteftar aos demais povos com fombra de juftiça o que ella própria executava para augmentar a fua riqueza e multiplicar a fua producção. Algumas conceífões internacionaes em favor dos negociantes inglezes acalmaram o fermento das perigofas defintelligencias. D'efta luda os dois adverfarios faíram abraçando-fe, apertados os vínculos centenários de fua convivência e amizade. Mas as compa- nhias continuaram a cxiftir, e Carvalho perfeverou cada vez mais zelofo no feu empenho de fomentar e engrandecer a induftria de Portugal. Pouco depois de haver partido o em- baixador inglez conde de Kinnoul, pelo alvará de i6 de de- zembro de 1 760 augmentava o zelofo miniftro portuguez em mais feifcentos mil cruzados o capital da companhia das vinhas do Alto Douro. A infthuição, apefar de impugnada pelos jefuitas, combatida pela nobreza, e condemnada pelos mercadores bretões, refiftia inexpugnável aos golpes dos feus antagoniítas.

Se a Inglaterra deu plena fatisfação do infulto commet-

Appenjo 2." da contrariedade ao libello, § 62.

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tido contra a bandeira portugueza, não foi todavia condes- cendente em acceder ás inftancias de Portugal para que fos- fem á França reftituidos os navios do almirante de la Clue, aprefados por Bolcawen na acção naval junto de Lagos.

As relações entre Portugal e o gabinete deVerfailles não eram defde muito por extremo cordiaes e aufpiciolas. Via a França com laftima e ciúme que o governo portuguez gene- rofamente confentiíTe aos inglezes o apoíTarem-fe do feu com- mercio, lograrem o melhor quinhão no oiro da America, e inundarem de fuás fazendas, principalmente de lanifícios, os mercados de Portugal, fem que a França podeíTe participar em nenhuma d'el1:as vantagens mercantis. Os defpachos dos agentes diplomáticos francezes para a corte de Luiz XV fão copiofos em frequentes lamentações a efte refpeito. N'elles predomina como tom fundamental a queixa amarga de que Portugal fe deixe avaflallar inteiramente ao jugo de Ingla- terra, e da alliança e patronato d'eíta potencia tenha feito a fua ancora de falvação. A vontade do governo fran- cez reíTumbra a cada paíTo nos documentos internacionaes d'aquelle tempo. Um dos reprefentantes de Luiz XV na cor- te de Lifboa diítinguia-fe entre todos pela fua malevolencia contra Portugal e pela fua implacável animadverfão ao pri- meiro miniftro de D. Jofé. Era o conde de Merlc, que nos annos de lySg e 1760 refidia em Lifboa acreditado. Era efte embaixador amigo c fautor apaixonado dos jefuitas, e cultivava as mais eftreitas intimidades com o núncio Accia- juoli, e de um e de outros fe declarava ardente apologifta em feus defpachos. E provável que não teria pequena parte nas fecretas cabalas e conluios, que por aquelles tempos bufcavam empecer a cada paífo o progreíTo da adminiftra- ção.

A infracção da neutralidade portugueza durante a guerra entre a França e a Inglaterra viera miniftrar novos eftimulos

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á fanha do embaixador. E precifo todavia confeíTar que os inglezes não eram nimiamente efcrupulofos em guardar as regras e principios do direito internacional. Ao fado realmen- te efcandalolb e offenfivo de queimarem em aguas portu- guezas dois vafos e aprefarem alguns outros do almirante de la Clue, tinham vindo accrefcentar-fe novas aggreíTões dos inglezes contra os navios inimigos á vifta da bandeira de Portugal. Achando-fe em Faro fundeada uma polaca fran- ceza preftes a defcarregar, o coníul de Inglaterra avifára por meio de fignaes as fragatas inglezas, que andavam cruzando n'aquelles mares, para que entrando no porto e ancorando impediíTem o feu tráfego ao navio mercante do inimigo. Em Vianna do Minho apparecêra pouco depois um corfario fran- cez conduzindo uma prefa britannica. Os negociantes ingle- zes, que ali tinham luas cafas de commercio, armando em guerra quatro chalupas e faindo logo a barra, acommette- rani rijamente o corfario e, tirando-lhe a preza, voltaram a Vianna oftentando o feu triumpho á vifta das autoridades e do povo, que fora teftemunha do confliifto.

Apefar das inftantes reclamações do embaixador pedindo a reftituição dos navios aprefados por Bofcawen, e a defaf- fronta pelas violências de Faro e de Vianna, a pendência diplomática, cada vez mais exacerbada, não dava moftras de chegar a conclulao. O gabinete deVerlailles accufava aber- tamente o minifterio portuguez de parcial e condefcendente com eftas quebras da neutralidade em favor do feu alliado prediledo. Em um feu defpacho de 3 de fevereiro de 1760 dizia o duque de Choifeul, então miniftro dos negocies ex- trangeiros em Paris, ao embaixador conde de Merle: «Devo prevenir-vos de que não temos razão para eftar contentes com a corte de Lifboa, e que ella não é do numero das potencias, com as quaes o bem do ferviço de el-rei pôde exigir que tenhamos condefcendencias, attenções e facilida-

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des'». E n'um defpacho de i i de março de 1760, referindo- fe á N-iolencia perpetrada contra o corfario francez no porto de Vianna, dizia ainda em mais categóricas palavras que uma tão manifefta violação da neutralidade fe aíTemelharia extremamente a uma direda hoítilidade, fe a corte de Por- tugal negaíTe á França n'aquella occafião a juíliça, que lhe devia-». O defpacho de Choifeul, a 12 de março de 1760, ameaçava a guerra a Portugal, dizendo que fe a corte de Lifboa «não delTe ao rei de França cabal e publica fatisfação acerca dos dois navios tomados pelos inglezes, adoptaria as mais cfficazes providencias para que juftiça lhe foffe feita^». Chegada quafi ao cumulo a indignação do gabinete de Ver- failles, rompia em duras exprefloes o duque de Choifeul, exprobrando a Seballião de Carvalho a fua notória e injurta parcialidade para com os inimigos da França, os vexames que os feus navios padeciam nas aguas portuguezas, as vio- lências contra o livre commercio e navegação em portos neu- tros, a defattenção, com que o embaixador francez era tra- tado pelos fecretarios de eftado de D. Jofé. Expreífava com vigor que todos aquelles procedimentos fe não podiam es- conder nem tolerar, e que o rei de França devia á fua pró- pria dignidade o fazer experimentar á corte de Lifboa algum fignal do feu refentimento'')'.

Todas eftas defabridas manifeftações eram prenúncios do formal rompimento, que fe andava preparando, e que veiu finalmente a declarar-fe cm 1762. Parece que não eram deítituidas de fundamento as increpações do duque de Choi- feul e do embaixador francez na corte de Lifboa. É plaufi- vel que Sebaílião de Carvalho, vendo accumuladas nas

' Qiiadro elementar, tom. vi, pag. 197 e 198.

2 Quadro elementar, tom. vi, pag. 209.

3 Quadro elementar, tom. vi, pag. 2i3 e 214.

4 Quadro elementar, tom. vi, pag. 214 e 21 5.

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extremas do horizonte as nuvens precurforas da próxima borrafca, fc inclinaíTe a favorecer com aíhita diffimulação as infracções da neutralidade commettidas pelos inglezes, prevendo que viria não remoto o lance, em que vendo-íe a braços com os dois monarchas mais poderofos da cafa de Bourbon, teria na Gran-Bretanha o arrimo e falvação. O que é certo é que preftando-fe a Inglaterra a dar pleno defaggravo a Portugal pela oífenla feita em Lagos á fua bandeira, não lograram as inftancias de Carvalho alcançar a reftituição dos navios aprefados. Da correfpondencia media- da entre o duque de Choifeul e o feu embaixador fe depre- hende com evidencia que Portugal não quiz nunca attribuir á oífenfa própria e ao aprefamento dos navios em aguas portu- guezas a mefma importância e íignificação.

CAPITULO XI

A EDUCAÇÃO E O TRABALHO NACIONAL

No meio das domefticas turbulências, das complicações internacionaes, em pleno rompimento efpiritual e temporal com o Vaticano, a viíta aquilina do grande reformador achava tempo e occafião para eftudar os problemas fociaes, admi- niftrativos e económicos da nação, a que foberanamente pre- fidia.

Expulfos os jefuitas de Portugal eftavam cerradas as efcolas, d'onde até ali m.anára principalmente ao povo por- tuguez a fua inefficaz e viciofa educação. Secularifado o go- verno pela fua emancipação de todo o jugo theocratico, era precifo fecularifar egualmente o enfino, convertendo-o n\ima funcção eíTencial da adminiftração. A inftrucção, fegundo as judiciofas doutrinas de Carvalho, não devia fer o luxo oifen-

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tofo do efteril pedantifmo, mas o preciofo cabedal do frudi- fero trabalho. O eftado tinha menos por miíiao o fabricar lá- bios e eruditos do que allumiar os entendimentos para que melhor defempenhaffem os officios da vida económica e Ib- cial. O commercio era um dos aíTumptos fingulares da lua extrema predilecção. Queria levantal-o da lua decadência e abatimento. Um dos meios mais profícuos era a cultura dos homens deftinados ao trato commercial. D'ahi nafceu a fun- dação do primeiro inftituto mercantil, principio e fonte de toda a noíTa inftrucção profeíTional. O alvará de 19 de maio de 1759, confirmando os eftatutos da Aula do commercio, abriu aos negociantes portuguezes as furgentes da nova luz. N'efta proveitofa inll:ituição devia profeíTar-fe a arithmetica mercantil, as doutrinas fcientificas do commercio, os pefos, medidas e moedas, os câmbios e feguros, e a efcripturação commercial em partidas dobradas, proceíTo ainda então quafi defconhecido em Portugal. D'efte primeiro eftabelecimento faíram durante o miniíterio de Carvalho muitos homens ha- bilitados e profeíTos nas praxes racionaes da mercancia. O famofo inítituidor podia com razão aíTeverar em lyyS, quefe d'antes fe mandavam bufcar a Génova e a Veneza com pin- gues honorários os guarda-livros para as cafas commerciaes, havia então em Portugal numerofas peíToas inftruidas na fciencia do commercio e na contabilidade mercantil'.

Apregoavam os fcftarios dos jeluitas que pela fua ex- pulfão fe havia apagado toda a luz da intelligencia. Era pre- cifo dcmonftrar que em vez de fer um damno o eftarem agora profcriptas e defertas as efcolas da Companhia, renafceriam pelo contrario, fob os aufpicios do império temporal, as boas lettras, como tinham florelcido, antes que no reinado omi-

Ob/ervaçóes fecretijfimas do Marque^ de Pombal /obre a collocaçáo da ejlatua equefire.

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nofo de D. João III os jefuitas fe apoíTaíTem de toda a fobe- rania intelledual, expulfando de Coimbra os Teives e os Gou- veias, os Buchanans e os Grouchys.

Pelo alvará de 28 de junho de lySg eram extindas as es- colas jefuiticas, e abolida a fua memoria, como fe em tempo algum houveram exiftido. Era creado o officio-de direftor ge- ral dos eíludos. Decretava-fe que houveffe em cada bairro de Lifboa um profeíTor de latim. Prohibia-fe com graves penas o enfinar pela grammatica do jefuita Manuel Alvares, e pelos commentarios dos feus confocios António Franco, João Nu- nes Freire e Jofé Soares. Eftabeleciam-fe um ou dois pro- feffores de latim em cada uma das villas principaes. Fun- davam-fe na capital quatro aulas de grego, e duas em cada . uma das cidades de Coimbra, Porto e Évora. Attribuia-fe a cada cabeça de comarca um profeíTor do idioma helle- nico. A rhetorica tinha quatro cadeiras em Lifboa, duas em cada uma das três outras cidades principaes, e uma em cada terra, capital de correição. E notável que o eftadifta deixaífe no filencio a philofophia. Procedeu, porém, com boa razão. Tinham fido taes e eftavam por tal feição enraizados no paiz os velhos preconceitos da informe fciencia injuftamente ap- pellidada ariftotelica, que mais valia profcrevel-a do enfino totalmente, do que pôr-fe a lanço de continuar cerrando as trevas, que eíta enredada e efcura difciplina eítivera adenfan- do nas efcolas jefuiticas e nos clauítros monachaes. Alguns annos mais tarde a philofophia entrou nos quadros da inftruc- ção publica, e foram nomeados profeífores, que a enfmaífem nas principaes povoações.

Os meftres públicos foram declarados nobres, o que não era como hoje uma diftincção inane e pueril, porque, fubfis- tindo na legiflação differenças fundamentaes entre os nobres e os peões, o attribuir a uma peíToa as honras e privilégios da nobreza era como conceder-lhe os foros de homem livre

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e de perfeito cidadão, quaes podiam exiftir no feio da mo- narchia abíbluta.

Para evitar que as doutrinas jefuiticas podeíTem ainda filtrar-fe diíTimuladas na educação da juventude, prohihiu Sebaítião de Carvalho o enfino particular, a quem não con- feguiíTe permiíTão official. Nas inftrucções de 28 de junho de lySg para os profeíTores novamente inftituidos, o miniftro previdente, que a tudo fubordinava o feu penfamento funda- mental de abolir e deíf errar os últimos veftigios da condemna- da Companhia, decretava prohibida e reprovada a Pwfodia do jefuita Bento Pereira, e mandava adoptar para o enfino a grammatica grega de Port-Royal, da famofa abbadia cujo nome ficou para fempre vinculado ao antagonifmo inconci- liável entre jefuitas e janfeniftas. A congregação do Oratório, que paífava por inimiga da profcripta fociedade, foi audori- fada a continuar o feu enfino nas efcolas da fua religião.

Para que dos livros defefos na inítrucção não podefTem os numerofos exemplares continuar a diffundir-fe em Portu- gal, ordenou Sebaítião de Carvalho que fe remetteífem á di- rectoria geral dos eftudos os compêndios, que exiftiffem nas cafas e coUegios fequeftrados ú Companhia.

Parallelamente á lufta bravamente empenhada contra os jefuitas, Sebaftião de Carvalho, imitando e encarecendo o vigorofo procedimento de D. João II, havia bufcado ani- quilar inteiramente a influencia politica da nobreza e fidal- guia. Não lhe era poííivel, fubfifiindo o throno abfoluto, alvo prediledo da fua idolatria, fupprimir a ordem privile- giada, que na mefquinha c velha crença dos monarchicos é o adorno e refplendor, de que apparece conftellada c mais pompofa a majeftade. Mas fe não lhe era dado extirpar in- teiramente uma claífe preeminente e rebaixal-a ao nivel com- mum da peonagem, cumpria que foífe ao menos illuminada e pela fua crefcente illufiração podeífe confociar-fe aos pro-

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greíTos nacionaes. A carta de 7 de maio de 1761 fundou para a nobreza um inllituto, onde fe induftriaíTem nas lettras e nas. fciencias os feus filhos. Era o Collegio real de Nobres uma femelhança e refurreição do que haviam fido cm Coimbra os de S. Miguel e de Todos os Santos, aonde os fidalgos con- corriam a educar- fe antes que os jefuitas fe apoderaífem de toda a inftrucção na univerfidade. Devia profeífar-fe em o^ novo eítabelecimento o latim, o grego, o fi"ancez, o italiano, o inglez, a rhetorica, a poética, a geographia, a hiftoria. A philofophia continuava a fer profcripta, e apenas a lógica devia fer enfinada como um puro adminiculo da oratória, ao tratar-fe da invenção e difpofição. O collegio era pois um regular lyceu de humanidades. O legillador, porém, compre- hcndia que as linguas claíTicas e o que então fe appellidava a philologia, não podiam ler completo repafto da intelligen- cia e da razão n'um feculo, em que a fciencia rafgava largos voos, prenunciando a prefente civilifação. Sebaftião de Car- valho temia, que pretendendo inftituir homens illuftrados e preftadios, lhe faiífem pedantes ociofos, e eítereis para todo o progreífo intellcdual. Era precifo incluir no quadro peda- gógico as fciencias da razão e da experiência, as fciencias mathematicas e naturaes. Três profeíTores haviam pois de enfinar as mathematicas em três annos, defde a arithmetica^ a álgebra e a geometria elementar até á geometria analytica,. ao calculo infinitefimal, á mechanica e aos princípios eífen- ciaes da aftronomia. A phyfica reprefentava n'efl:e quadro as difciplinas experimentaes. Vários curfos efpeciaes completa- vam o enlino, applicando ás profiífões technicas as fciencias puras ou abftraftas. Devia pois enfinar-fe a navegação, a architedtura civil e militar, e o defenho. A efgrima, a danfa, a equitação contrapefavam, como proveitofos ou elegantes exercícios corporaes, a fevera difciplina das lettras e fcien- cias.

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Era o audaz legillador criminado pelos feus duros ini- migos de ter em menos preço as coufas rcligiofas. O rom- pimento com o pontifice eftava apenas em principio fem profpecto de breve terminação. Ao paílb que Sebaílião de Car\'alho eítá vibrando e fegundando e repetindo fem tré- gua nem quartel os feus golpes implacáveis contra os jefui- tas e contra as ufurpações do afiado ecclefiaftico ao governo temporal, os preâmbulos e as fentenças das fuás leis e alva- rás refpiram a mais fervorofa piedade e refcendem a uncção mais orthodoxa. Os eftatutos do Collegio dos Nobres princi- piam com uma d'eflas religiofas expanfões. Ordenam antes de tudo, que os eftudantes ouçam miíTa quotodiana como efpiritual preparação aos trabalhos de cada dia; que ao fabbado rezem devotamente a ladainha de Noífa Senhora e que frequentem menfalmente o tribunal da penitencia e a mefa da communhão. E para que os jefuitas não accufaífem a Carvalho de que profcrevia a afcefe e a myftica divagação pelas contemplações celeíliaes, obrigava os efcolares a terem em cada anno três dias de exercícios efpirituaes.

Com eflas incompletas, mas para aquelle tempo oufadas providencias litterarias entrou pela primeira vez em Portu- gal o enfino publico, inteiramente defligado de todo o vin- culo clerical.

Não era, porém, unicamente a educação nacional, que preoccupava o efpirito claro e quafi omnividente de Carva- lho. Defvelavam-n'o com fingular predilecção as providen- cias encaminhadas a eftatuir a liberdade peífoal, abolindo as leis, as tradições e os coíkimes abufivos, que eífabeleciam odiofas e infamantes diftincções entre homens fubordinados a uma e única monarchia. Não entrava nos feus planos aduaes o favorecer as liberdades e franquias populares na accepção politica e democrática, mas repugnava-lhe a fervi- dão como alfronta á humanidade. Havia libertado os indios

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de Grão-Pará e Maranhão. Agora, pelo alvará de 8 de maio de 1758, ampliava a todos os Índios do Brazil a mefma juftis- íima alforria, declarando livres, fem nenhuma reftricção, as fuás peíToas, os feus bens, os feus convénios. Outra benéfica providencia, o alvará de 2 de abril de 1761, decretava que todas as peíToas nafcidas na índia portugueza, fendo chriftans foíTem em tudo egualadas aos naturaes de Portugal, e ficaíTem defde logo habilitadas para todas as honras, dignidades, em- pregos e jurifdicções. Determinava em feu favor confideraveis privilégios, qual o de ferem preferidos em concurfo para os cargos d'aquella poífeífão. E para defterrar ignominiofas dis- tincções prohibia, fob penas mui feveras, aos que foífem origi- nários da Europa, o alcunharem de negros ou de meftiços os que pertenceífem ás raças indigenas ou d'ellas derivaífem a fua genealogia. Efta comprehenfão da egualdade humana e da liberdade individual n'uma quadra, em que os mais illuminados publiciftas ainda eram hefitantes acerca das dif- ferenças de raça e condição, denunciava que no miniftro, cujo enérgico inftrumerito era na apparencia o intolerante abfolutifmo, alvoreciam as idéas fomente profeífadas após alguns decennios pela grande e innovadora Revolução.

No próprio território de Portugal ainda a fervidão era mantida como memoria opprobriofa d'aquelles tempos, em que os portuguezes faziam da Africa o fecundo feminario da fua efcravaria. Eram numerofos os efcravos, que dos domínios portuguezes fe traziam a Portugal. Antes que nin- guém na Europa fe lembraífe de expungir efta vergonha da civilifação chriftan, o miniftro de D. Jofé, fempre infpirado pela fua alta concepção da humanidade, prohibia pelo alvará de 19 de fetembro de 1761 que da Africa, da Afia, ou da America a Portugal fe trafladaífem como efcravos peflbas de raça negra. Promulgava-fe a falutar, a humana providen- cia de que todos os pretos, que AÚelfem á metrópole, feriam

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defde logo reputados livres, fem nenhuma indemnilação pa- ra os fenhores. Não podemos diíTimular que efta manumiíTão não era unicamente dirigida a extirpar fequer no território portuguez da Europa a infame inftituição. Mas fe por efte meio fe intentava prevenir a falta de africanos trabalhadores nos dominios do Uhramar, e principalmente no Brazil, nem por iíTo íica menos veneranda a memoria do grande legifla- dor. Não podendo pelas conveniências do feu tempo deftruir de um golpe o viciofo lyítema colonial, commum ás mais es- clarecidas potencias europêas, antecipava-fe comtudo n'efl:e empenho a Wilberforce, ao illuftre da Bandeira, c aos eftadiítas generofos e audazes, que apagaram finalmente da fronte do Brazil o ferrete, que infamava o vallo império. Se- baftião de Carvalho foi o primeiro homem, que no governo fe atreveu a decretar e defender que o trabalho humano não pôde ler fenão a acção do homem livre e independente fo- bre a natureza fubdita e efcrava.

A induflria e o commercio continuaram a ter por aquelles tempos em Sebaftião de Carvalho um infatigável e diligente promotor. E então que fe eftabelece (6 de agofto de lySy) a fabrica das fedas no fitio do Rato, fob o immediato patro- cínio do eítado. E então que efta valiofa induftria fe eftimula decretando em feu favor a exempção de direitos para todos os feus produdos fabricados em Portugal'. E então que fingu- larmente fe protegem com privilégios pelToaes os indivíduos empregados n'eí]:e ramo de trabalho nacional. E então que fe ordena junto á fabrica do Rato, no fitio das Amoreiras, a edificação de cafas accommodadas á habitação e lavor dos fabricantes-, umas conftruidas a publicas expenfas, as outras erigidas por peífoas particulares.

1 Decretos de 2 de abril e 24 de outubro de i/Sj.

2 Decreto de 14 de março de 1759.

É também por aquelle tempo que Sebaítião de Carva- lho decreta providencias em favor das fabricas de lanifícios nas comarcas da Guarda, Pinhel e Caftello Branco, e feguin- do os princípios económicos, de que n'aquelle leculo os es- tados europeus não fabiam defatar-fe, fixa o máximo preço ás lans e aos artefaílos, de que eram matérias primas".

Não é menos copiofa e importante a legiflação promul- gada n'aquelle período para fomentar e engrandecer o tra- do mercantil, e honrar e ennobrecer os que a elle fe dedica- vam. O commercio e a induftria confUtuiam na ordem focial a grata predilecção para o animo do miniftro legiílador. Os preâmbulos das fuás leis e alvarás contêem a glorificação d'efte ramo de trabalho, que é a medida e o fignal da civi- lifação económica de um povo. Fixam-fe então os preceitos fegundo os quaes, em proveito da mais útil e regular commu- nicação commercial entre o Brazil e a metrópole, fe deviam regular as frotas, em que então era permittido o trafico para as fecundas regiões da America meridional ^ Amplia-fe a todos os navios portuguezes, que tranfportaífem madeiras nacionaes, a reducção de direitos concedidos á companhia do Grão-Pará^ Depois do terremoto, com o pretexto das graves perturbações caufadas ao commercio por aquella es- pantofa calamidade, haviam fido frequentes e numerofas as quebras fraudulentas. Decreta o eítadifta remédios falutares para que efta praga mercantil não venha empecer e defani- mar o tráfego dos honrados mercadores''.

Obedecendo ao principio, quafi geral em toda a Europa, de que a induftria e o commercio eram profiífões eífencial-

1 Alvará de 1 1 de agoílo de 17 5g.

2 Alvará de 25 de janeiro de 1/55.

3 Alvará de 29 de maio 1756.

4 Alvarás de i3 de novembro de 1756, e 17 e 3o de maio de 1739.

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mente fubordinadas aos regulamentos do governo, e de que os officiaes de cada mefter e os membros de uma claíTe de mercadores deviam conftituir uma cerrada corporação, regi- da por difpofições e regras oíficiaes, Sebaftião de Carvalho publica os eftatutos, pelos quaes fe haveria de governar a Mela do bem commiim dos mercadores', e aíTigna a cada uma das cinco claffes, em que fe repartia o commercio das fazen- das a retalho, as ruas onde, na cidade baixa depois de re- conítruida, teriam exclufivamente as fuás lojas.

Ao mefmo paíTo, que pela fevera applicação de doutri- nas económicas erróneas, mas geraes em todos os eítados europeus de maior cultura, fe mantém a fujeição do com- mercio interno á ciofa tutela da audoridade, reftitue em parte o miniflro a liberdade ao commercio em grandes pro- porções. Declara inteiramente livre a navegação para Angola e Moçambique-. Decreta a abolição do monopólio, que o es- tado havia feito do vellorio ou da miífanga para o trato de permutação com as gentes africanas^ A fedudora theoria, então amimada e feguida cm toda a Europa de que n'um paiz de commercio decadente e frouxa energia individual, a fruduofa exploração das regiões ultramarinas poderia efFei- tuar-fe pela collediva diligencia das poderofas companhias, continuava a dominar o efpirito de Carvalho. A femelhança da que eftava inftituida para o trafico da metrópole com o Grão-Pará e Maranhão fundou o eítadiífa uma nova focie- dade mercantil, a companhia de Pernambuco e Parahiba, com o capital de três milhões e quatrocentos mil cruzados, e com privilégios e exempções tão largas e valiofas, como as que foram concedidas á que lhe fervia agora de exemplar

' Alvará de i6 de dezembro de lySy.

2 Alvará de 7 de maio de 1761.

3 Alvará de 7 de maio de i/di.

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e de modelo'. Decretou egualmente por aquclles tempos no- vas conceíTóes á companhia do Grão-Pará, e publicou va- rias e feveras providencias para fortalecer e profperar a fua mais dileda inftituição commercial, a companhia do Alto Douro.

Não fão menos dignas de commemoração as duras pe- nalidades, com que bufcou reprimir o immenfo contraban- do, que lefava ao mefmo paíTo os redditos do thefouro, e opprimia por uma concorrência defegual o licito commer- cio. É notável a próvida legiflação, em que procura inhibir e caftigar o abufo, com que os morteiros e conventos, os fi- dalgos, os militares e os próprios officiaes das alfandegas, confpiravam todos no contrabando, amparando e favore- cendo os infra (flores das leis fifcaes-.

A inftituição dos pharoes nas coftas de Portugal é um ado, que teftifica o empenho de Carvalho em aíTegurar a navegação. Ordenou o miniftro que fe erigiíTem féis pha- roes, que deviam fer collocados no Bugio, em S. Julião, na Guia, nas Berlengas, no Porto e emVianna-.

Applicou-le a lagaz diligencia de Sebaftião de Carvalho a reduzir a melhor ordem a anarchia e a confufão, que ti- nham feito da fazenda publica um labyrinto, em que fol- gavam os exaflores para fraudar os rendimentos nacionaes. Cumpria centralifar a adminiftração das rendas publicas, re- partida entre numerofas e improfícuas eftações, e pro^'er á contabilidade methodica e racional das receitas e dos gas- tos da nação. A fundação do Thefouro geral ou Erário pu- blico é uma das mais aíTignaladas innovações do grande re- formador "•.

' Alvará de 10 de fevereiro de 1757.

2 Alvará de 14 de novembro de 1757.

3 Lei de i de fevereiro de 1758.

4 Carta de lei de 22 de dezembro de 1761.

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Com eíla previdente inftituição principiou em Portugal a adminiftração regular da fazenda publica, fem a qual é impoíTivel, ou por extremo viciofa, toda a acção governativa. Uma lei, publicada ao mefmo tempo, completava o novo fyftema de acção fifcal, regulando as attribuições do antigo confelho da fazenda'.

Todas aftas multiplicadas providencias em beneficio da illuftração, da riqueza e da ordem interior não diftrahiam em tanta maneira a attenção incanfavel do miniftro, que o tiveíTem agora inerte e defapercebido para aíTumptos pon- derofos, que intereffavam em fummo grau a própria ma- jeftade e independência de Portugal.

CAPITULO XII

A GUERRA COxM A HESPANHA

Era Sebaftião de Carvalho, na mais ampla accepção d'eftas palavras, um eftadifta civil e adverlb a toda a oftenta- ção de força nas fuás relações com as potencias extrangeiras. Bufcava, antes de tudo, illuftrar e enriquecer a lua pátria, e contentava a lua indefeffa e innovadora actividade com o theatro modefto do paiz, a cuja relurrcição moral fe havia confagrado. Não defejava a guerra, mas tampouco a defde- nhava, quando foíTe defenfiva contra forafteiras oppreíTões e prepotências. Evital-a-hia, quanto podeffe, excepto quando a honra nacional cftiveíTe pendente por um fio da ponta de uma efpada.

As relações de Portugal com a França e com a Hefpanha eram defde longo tempo, fe não rotas e hoftis, ao menos

I Carta de k'i de 22 de dezembro de /761.

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fufpeitofas, defamoraveis. As diuturnas conteftações com a Helpanha, acerca dos limites na America do Sul, tinham accrefcido á velha tradição de malquerença e inimizade en- tre as duas coroas peninfulares. Os Bourbons affentados no throno de Filippe II continuavam, fequer nas intenções, as miras ambiciofas da cafa de Auftria. Portugal era fempre no conceito dos governos hefpanhoes uma província rebcllada. A Peninllila inteira devia, fegundo elles, abrigar uma lo grei, fob um dominador.

A França profeguia com a lua rival de além da Mancha uma guerra defaftrofa. Os íbberanos da cafa de Bourbon tinham celebrado em 1 5 de agoíto de 176 1 o famofo Pado de familia, efpecie de permanente confederação entre todos os monarchas d'efta infaufta e perniciofa dynaftia. A Helpanha havia fido arraftada a empenhar-fe na luda contra a Gran- Bretanha. Mas a grande nação infular tinha em Portugal um alliado fiel e perfeverante na obfervancia dos antigos tratados com a Inglaterra. Esforçavam-fe as duas coroas de Bourbon em fegregar a Portugal da alliança e favor aos in- glezes, e em forçal-o a romper a fua neutralidade.

O rei de Portugal, ainda que ligado eftreitamente por vínculos de fangue á cafa de Bourbon, não era propriamente um ramo d'aquelle tronco, e não fora por iffo incluído no Pado de familia. Mas a convenção firmada em Verfailles entre Luiz XV e Carlos III, a 4 de fevereiro de 1762, pelos dois plenipotenciários, duque de Choifeul e marquez de Gri- maldi, eítabelecia no artigo 7." que os dois monarchas parti- cipariam ao rei de Portugal a fua união, perfuadindo-o a congregar-fe com elles na liga paduada, porque feus vas- fallos padeciam mais do que outra qualquer nação o jugo impofto pela Inglaterra a quantos povos tinham n'aquellc tempo navegação e domínios ultramarinos. Não era, diziam, jullo que a França e a Hefpanha fe houveflem de facrificar

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por um interefle, que lhes era commum com Portugal, e que elta potencia não fomente fe reculaíTe a auxilial-as, fenão que pterfiftifle em enriquecer o inimigo e em dar-lhe nos feus portos guarida e acolhimento. Com uma arrogante infracção do direito das gentes, decretavam os dois Bourbons que o rei de Portugal não podia conlervar-fe indiíferente na guerra travada, e lançavam terminantemente a ameaça de que fe não baftaífe a perfuafão, a força o obrigaria a romper a neutralidade.

Sebaftião de Carvalho prefentia defde muito o golpe, que lhe eftavam apparelhando as duas potencias inimigas da Inglaterra. em 1 5 de novembro de 1 76 1 e nos pri- meiros mezes do anno immediato, a vifta perfcrutadora do miniftro defcortinava os fignaes da próxima tormenta, por- que expedia n'eíre tempo a Martinho de Mello, plenipoten- ciário portuguez em Londres, fecretas inftrucções para que reclamaífe do gabinete britannico os auxilios de tropas e de navios, fegundo fe eftipulára no tratado de 16 de maio de 1703. Encarregara egualmente aquellc diplomático de al- cançar de Inglaterra um general de grande capacidade para que vieffe commandar o exercito portuguez. Commettera- Ihc também o negociar que outros officiaes de excellentc re- putação fe obrigaífem a fervir nas fileiras de Portugal.

Tal era por aquelle tempo o defamparo, em que jaziam as inftituições militares, que era forçofo mendigar em terra extranha os próprios officiaes, que haviam de mandar folda- dos portuguezes, outrora celebrados em todo o mundo como exemplo gloriofo de virtudes e feitos bellicofos. Era laflimo- fo e miferavel o eftado da força defenfiva em Portugal. O exercito, apefar das efcaífas providencias, que Sebaftião de Carvalho adoptara defde logo á fua entrada no governo, como fecretario d'eífado dos negócios extrangeiros e da guerra, exiftia quafi nominalmente. Podia ler a duras penas

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um elemento policial, um agente de repreíTão e de ordem interior, como fuccedêra na fedição popular do Porto, nas diligencias dirigidas a aíTegurar a paz domeftica no tempo da conjuração, ou nos feveros procedimentos empregados contra os jefuitas. Era, porém, de todo o ponto incapaz de refiftir a uma invafão e de enfrear no primeiro Ímpeto as hoftes do aggreíTor. Mais de meio feculo havia decor- rido defde a guerra da fucceffão de Hefpanha, em que Tol- dados portuguezes pela ultima vez fe haviam empenhado em ludas europêas. D. João V, depois da paz de Utrecht, procurara melhorar as inítituições militares de Portugal. Re- organifára em 1 7 1 5 as fuás tropas, fegundo os principios adoptados pelas mais notáveis potencias da Europa. Mas a Índole pacifica do monarcha fumptuofo deixara bem depres- fa recair no antigo eftado as enervadas forças hellicofas da nação. Quando em 1785 uma grave diíTidencia entre Portu- gal e a Hefpanha parecia fazer imminente a ultima ra{âo Jos reis, algumas providencias fe adoptaram para melhorar a de- cadente fituação do exercito portuguez. Mas apenas ciiflipados os temores de próxima borrafca logo o magnifico monarcha fe efqueceu de que as bayonetas e os canhões eram n'aquelle tempo e ainda hoje fão infelizmente em grande parte, os fu- premos julgadores nas pendências internacionaes e os mais feguros fiadores da indepenciencia e liberdade. D. João V, apefar da vaidofa prefumpção, com que facilmente fe offe- recia como pacificador e medianeiro entre as potencias mais poderofas, deflembrava que para arbitro da paz é forçofo ao mefmo tempo o eftar preítes a entrar na guerra, e que para accommodar as difcordias das nações é neceífario que a fentença arbitral feja proferida com a mão robufta e mus- culofa no punho da efpada. Os oito annos derradeiros, em que D. João V padeceu a ultima enfermidade, foram um eclipfe quafi total das frouxas energias da nação. O exercito,

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participe na commum deforganifação, chegou ao extremo da fua ruina. As tropas, mal recrutadas com a barbárie, a violência e a iniquidade, que diftinguiam a confcripção em todas as potencias militares no xviii feculo, os regimentos di- zimados pela crefcente deferção, e enfraquecidos pela mife- ria e pela fome, eram apenas um ridiculo phantafma e uma parodia ignominiofa dos exércitos regulares. Emquanto fe defpendiam com uma prodigalidade babylonica os groíTos milhões das minas do Brazil em fabricar a bafilica de Mafra e em conquiftar para Lifboa um patriarcha, reflexo e imita- ção da grandeza pontifical, decorriam longos mezes fem que fe pagaíTem aos Ibldados os léus ténues vencimentos, e o exercito era apenas uma turba de mendigos disfarçados nas apparencias do uniforme.

Se a organifação, a difciplina, a inítrucção, o valor moral das tropas em Portugal raiavam na ultima degradação, não eram mais propicies á defeza nacional os recurfos materiaes. Segundo efcreveu Carvalho em um dos feus papeis ', não havia nos arfenaes portuguezes coufa alguma de prejlimo. Adiantou-fe o miniftro a fazer comprar em Inglaterra pelo plenipotenciário portuguez, Martinho de Mello, o mais ur- gente material de artilheria, o armamento e equipamento para a infanteria e cavallaria, a pólvora de que o reino es- tava defprovido, e as próprias tendas para o acampamento. Elevou-le o exercito a quarenta e féis mil homens, o que, na ambiciofa phrafe de Carvalho, era coufa nunca d"antes vifta em Portugal.

em novembro de 1 76 1 fe procedia com grande aílivi- dade ao recrutamento. Mas apefar da incanfavel diligencia, com que Sebaftião de Carvalho no meio das mais extraordi- nárias circumftancias attendia com louvável follicitude a to-

Contrariedade ao libclln, Appenfo ii, Z -''3.

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dos os ramos da adminiftração e economia, era certamente para laftimar que o feu efpirito, elTencialmente civil, e mais de eftadifta vigorofo do que diligente adminillrador dos ne- gócios militares, nos largos annos, que levava de governo tiveíTe deixado em quafi inteiro defamparo as forças defen- íivas da nação. Um contemporâneo enthufiafta do miniftro de D. Jofé efcrevia á fua corte que ás tropas fe devia anno e meio dos foldos tenuiffimos, e que os foldados, ainda mes- mo eftando de fentinella, eftendiam a mão á caridade, o que é plenamente confirmado por quantos efcreveram n'aquelle tempo acerca das inftituições militares em Portugal".

Apefar dos esforços empenhados por Sebaftião de Car- valho para melhorar a fazenda publica, as prodigalidades, os erros, os defmandos do reinado antecedente haviam com os feus effeitos refiftido em grande parte aos talentos organi- fadores do miniftro pre^'idente. A fundação do erário régio tinha lido principalmente determinada, como o próprio Car- valho o confeíTou cm um dos feus efcriptos, para accudir com recurfos efficazes á regular manutenção do exercito portuguez na guerra, que antevia próxima e inevitável. Os redditos do fifco não bailavam a folver todos os creícentes encargos de uma lltuação extraordinária. A decima, eftabelecida nos primeiros tempos do rei D. João IV, como um fubfidio efpe- cialmente confagrado ás enormes defpezas da guerra da res- tauração, pareceu ao miniftro fcr chegada a occafião de a renovar, quando a guerra ainda continuava com a Hefpanha.

nos fins de 1761 Sebaftião de Carvalho havia alcan- çado melhorar a íubfiftencia milera\'el das tropas em Por- tugal. Fizera-lhes pagar féis mezes dos foldos atrazados, e decretara providencias falutares, com que foíTe prompto e

' OfTicio do encarregado de negócios de França, St. Julien, para o feu governo, de 17 de novembro de 1761. Qiiadro elementar, tom. vii, pag. 29.

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regular o pagamento. Como fempre lliccedeu em Portugal accudia-le á defeza, quando o perigo era imminente e a guerra inevitável, quando a urgência e apertura apenas con- fentiam á mais enérgica vontade expedientes e recurfos de momento. Não é quando o inimigo avança fobre as fron- teiras, c[ue o mais próvido talento pôde fundar e robuftecer as inftituições guerreiras de um paiz. Sebaítião de Carvalho com a audácia, que tinha habitual, e a fortuna, cjue o bafe- jou nos lances mais difficeis, realifou porém quanto lhe per- mittia a conjundura.

Na quafi completa deforganilação, em que jazia o exercito portuguez, a artilheria, que nas guerras de Frederico tomara finalmente o leu logar proeminente na mechanica tcrrivel das batalhas, era porventura entre as armas a mais laífimo- famente defamparada. Os antigos Pés de cajlello, rellcjuias eftereis e anachronicas do velho organifmo militar, ordenan- ças improvifadas em arma technica, ainda n*aquene tempo guarneciam de imperitos e quafi inúteis artilheiros as forta- lezas principaes, e efpecialmente as que intentavam defen- der a foz do Tejo. Sebaftião de Carvalho extingue elfe rifivel fimulacro de uma boa artilheria, e inílitue em leu logar um novo regimento de mais de mil e cjuatrocentas praças, dá- Ihe por feu quartel a torre de S. Julião, e funda para a in- ftrucção theorica e pradica uma aula regida pelo tenente co- ronel ou fargento mór'. Eleva a cincoenta e cinco praças, incluindo os oíiiciaes, cada uma das companhias de infan- teria e as do regimento de artilheria no Alemtejo, e decreta c[ue fejam de quarenta e dois homens na fua totalidade as companhias de cavallaria e de dragões-. Ao mefmo paíTo a cada um dos regimentos a cavallo accrefcenta mais quatro

Alvará de g de abril de 1762. - Decreto de 16 de abril de 1762.

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companhias'. Para que poíTa effeítuar-fe em breve tempo a mobilifação das tropas em Portugal, e incluir-fe nos feus quadros a grande copia de recrutas, augmenta com mais oito companhias ou quatro por batalhão cada um dos regimentos de infanteria e o de artilheria do Alemtejo'. Logo depois de- creta que das quarenta companhias mandadas accrefcentar aos dez regimentos de cavallaria e de dragões, fe formem quatro regimentos novos de quarenta e duas praças em cada companhia. Os corpos de nova inftituição eram os dragões de Campo Maior e de Penamacor e os regimentos ligeiros de Caftello Branco e deVianna^

Era incerta como fempre a duração da guerra com a Hefpanha. As forças portuguezas, pela aulencia de uma lei tolerável de recrutamento, feriam infufiicientes, ainda quando as mais inexoráveis oppreíTões e violências arraftaíTem de feus lares os filhos do povo, condemnados a figurar como trebelhos no taboleiro, onde os príncipes jogavam o xadrez das fi.ias paixões hereditárias ou das fi.:as criminofas ambi- ções. Cumpria aíToldadar tropas extrangeiras. Levantaram-fe dois batalhões fuilFos, commandados pelos coronéis Thor- mann e SauíTure. Tinha cada batalhão quatro companhias, duzentas praças cada companhia^

Não exiftiam generaes, que podeíTem exercitar o com- mando n'um exercito moderno. Os que havia em grande nu- mero eram homens da mais alta fidalguia portugueza, capa- zes de ferem bons foldados, mas totalmente defprovidos do faber e da experiência das modernas guerras europêas, ge- rieraes, que paífavam os feus annos mais no paço como gen-

Decreto de 16 de ahril de 1762.

2 Decreto de 21 de ahril de 1762.

3 Decreto de 27 de junho de 1761, approvando as capitulações, com que haviam fido contratados os dois batalhões de gente fuifía.

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tis-homens da camará e cortefáos, do que nos campos de manobra ou nas grandes e feveras guarnições. Alcançou Se- baítião de Carvalho, que vieíTe commandar em chefe o exer- cito portuguez um illuftre official, cujo nome fe fizera jufta- mente celebrado nas guerras de Allemanha, e cujo elpirito era largamente illuminado pelo eftudo das Iciencias milita- res, quafi de todo o ponto ignoradas n'aquella fazão em Por- tugal. Era o conde de Lippe Schauenburg, príncipe imme- diato ao facro império e foberano no leu pequeno território. Veiu com elle o duque de Mecklemburg-Strelitz, que paliava por fer profeíTo na technica e no ferviço da artilheria. Muitos outros officiaes, os mais d'elles aventureiros, inglezes, efco- cezes, fuiíTos, allemães, acceitaram o ferviço com vantajofas condições fob as bandeiras de Portugal.

Com taes e tão expeditas providencias Sebaítião de Car- valho, apefar da fua pouco vehemente vocação para negó- cios militares, foube improvifar os meios defenfivos pela in- tuição perfpicua do talento, que para tudo ferve e a tudo chega, quando o aguilhoa o patriotifmo e é urgente a occa- ilão.

Portugal, . porém, apefar da energia do miniítro, e dos milagres da fua providencia, não podia certamente medir-fe e aíTrontar-fe por lo com as forças de duas nações coUi- gadas c poderofas. A querella, em que a defpeito dos feus pacíficos esforços, ia achar-fe envolvido brevemente, empe- nhava-a em grande parte pela fua lealdade á Inglaterra, de cuja alliança o pretendiam feparar. Não era pois jufio, nem decorofo, que ao fer curfado o feu território pelos exércitos invafores, fe vilTe defamparado de todo o auxilio prompto e efíicaz n'um lance, que punha em contingência a própria exiftencia da nação.

Inflava Sebaftião de Carvalho por que a Inglaterra cn- viaífe a Portugal as luas tropas. Negociava, urgia, encarecendo

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o perigo da fua pátria, e a utilidade própria dos inglezes. Mas, fegundo acontece quafi fempre, trepidava a Gran-Bretanha em aventurar as fuás forças nos campos de Portugal. Ohje- dlava como fempre, que todo o auxilio feria inefficaz, elíando Portugal imbelle e indefefo, e que o amparo dos extranhos poderia aproveitar a um alliado, que pelos feus recurfos próprios tiveífe accudido previdente á fua primeira defenfão. Bufcava Sehaftião de Carvalho folver eftas duvidas e hefi- tações. Affirmava não fer exada a increpação de que nada fe havia cuidado por parte do governo na defeza de Portu- gal, antes muito ao revez, dizia o miniftro, em nenhuma ou- tra corte poderia haverem -fe tomado mais promptas provi- dencias, em tempo tão efcaífo e tendo o inimigo quafi nas fronteiras".

E de feito os reprefentantes da França e da Hefpanha intimavam em Lifboa o governo portuguez a entrar na guer- ra contra o fcu antigo alliado e ainda elle, pelo feu egoifmo proverbial e mercantil, dilatava com delongas diplomáticas o acceder ás inftancias de Portugal.

A 16 de março de 1762 o plenipotenciário francez 0'Dun- ne e o embaixador de Hefpanha, D. Jofé Torrero, aprefen- tavam colleítivamente ao miniftro dos negócios extrangeiros e da guerra, D. Luiz da Cunha, uma memoria, na qual em nome dos feus monarchas pediam ao rei portuguez fe de- claraífe unido aos dois Bourbons na guerra contra a Gran- Bretanha, rompeífe todo o trato e communicação com efta potencia, commum inimiga de todos três, e cerraífe os feus portos aos navios inglezes de guerra ou de commercio. In- vocavam para decidir o rei D. Jofé o parentefco eftreito, que o vinculava ao foberano hefpanhol, irmão da rainha de Por-

> Defpacho de Sebaflião de Carvalho para o enviado portuguez em Lon- dres, de 22 de março de 17G2.

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tugal, amigo verdadeiro, vifinho quieto e moderado. Accres- centavam que a Peninfula para a guerra e para a paz devia reputar-fe como fe tora de um lo dono. 0'Dunne e Torrero intimavam o go^'erno porluguez a que deíTe dentro de qua- tro dias ás propofiçcjes contidas na memoria uma refpoíta clara, deciliva, categórica.

Efta inlblente e altiva intimação, diffimulada nas appa- rencias da brandura e amifade, teria quebrantado fem re- médio o animo do eftadilia mais audaz. Eftava Portugal a duras penas guarecido com frouxiíTima defeza, as fronteiras abertas, quafi inermes, as tropas á preíTa levantadas quall Ibb o cutello do inimigo, os foldados bilbnhos, coUedicios, os officiaes inexperientes, enervados na vida ociofa das guar- nições, após cincoenta annos de paz e efc[uecimento das cou- fas militares. Mas Sebaftião de Carvalho não era homem que facilmente desfalleceíTe e caííTe rendido e obfequente aos pés do inimigo. Com eítes lances difficillimos fe queria e fe arroítava. Governo fácil não era para elle aíTumpto digno da fua intelligencia e do feu brio. Não dilatou alem dos quatro dias a refpofta ás arrogantes intimações. Em uma nota dirigida aos dois reprefentantes nominalmente pelo mi- niftro dos negócios extrangciros, repulfava Sebaftião de Car- valho com altivez e hombridade as inauditas propollções da França e da Hefpanha. A majeftade nacional tranfparecia dignamente n'eíre papel efcripto quafi em prefença das bayo- netas inimigas. N'elle dizia o miniftro inflexível c]ue tendo com a Inglaterra nunca interrompidas ligações puramente defenfivas e innocentes, confagradas em muitos e íblcmniíli- mos tratados, e não tendo Portugal recebido da Gran-Breta- nha nenhuma ofFenfa, que podefle juftificar a fua tranfgres- fão, viria a offender a religião, a fidelidade e o decoro, fe porventura accedeíTe ao que lhe propunham em defar da In- glaterra. Accrefcentava que os parentefcos, as amifades e as

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allianças, que tinha com as potencias belligerantes e a neu- tralidade, que fe esforçava por manter, o habilitavam a oífe- recer a fua mediação para aquietar as diíTerenças entre os reis da cafa de Bourbon e o feu adual antagoniíla ' .

Na memoria firmada no i ." de abril e aprefentada n'eíre dia ao governo de Portugal, refpondiam os dois reprefentan- tes Torrero e 0'Dunne que fe a uma nova negociação de paz fe offereceíTe occafião, o rei chriftianiffimo e o catholi- co não repulfariam a mediação do feu confrade portuguez, fe houveífem de attender unicamente á fua alta hierarchia. Acer efe entavam todavia que a parcialidade manifefta do feu governo em favor dos inglezes, fazia augurar que a media- ção não faíria proveitofa aos dois Bourbons. O rei de Hcs- panha tinha ademais contra a propofta uma razão efpecial, e era a de que havendo-fe oíferecido por mediador entre a corte de Portugal e a de Roma, aos feus bons officios fe res- pondera com inaudito defapego, allegando o miniíterio por- tuguez não fer ainda chegado o tempo de concertar as dis- fidencias com o Vaticano. Bufcavam os dois reprefentantes demonftrar que de Inglaterra havia recebido Portugal tão grave offenfa, c]ual era a de que uma efquadra britannica tivelTe n'um porto d'efte reino combatido contra forças marí- timas de França fem que nunca fe preftaífe a dar cumprida fatisfação, reítituindo os navios aprefados á vifta da ban- deira portugucza. Queixavam-fe de que D. Jofé tinha a feu ferviço um general inglez e outros officiaes, o que provava ferem verdadeiros os concertos oífenfivos entre Portugal e a higlaterra. Terminavam a fua nota os dois miniftros com a infolente comminação de que logo fem mais ofiicio nem con- fentimento do governo portuguez entrariam cm Portugal as

' Nota do fecretario de eftado, D. Luiz da Cunha, a D. Jofé Torrero, e Jacob 0'Dunne, de 20 de março de 17Õ2.

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tropas hefpanholas portadas nas fronteiras «com o único íim, diziam 0'Dunne e Torrero, de adiantar-fe e confeguir que os feus portos não eftiveíTem á difpofição do inimigo, e com as ordens mais rigorofas de que fem motivo não fizes- fem a minima extorfão aos vaflallos do rei fideliíTimo, tra- tando-os como fe foffem de uma e única monarcliia » .

A conteftação enviada a 5 de abril aos dois temerários negociadores por Sebaftião de Carvalho, refpira ao mefmo paíTo a moderação e a dignidade. Depois de confutar as ra- zões efpeciofas allegadas pela França e pela Hefpanha, con- clue com eftas palavras, que lhe infpirou o patriotiímo e a honra nacional: «N'eí1:e cafo (o de que as tropas hefpanholas cntraíTem em Portugal) não podendo o . . . monarcha exi- mir-fe fem oíFenfa dos. . . direitos divino, natural e das gen- tes, e fem caufar univerfal efcandalo, de fazer ufo de todos os meios poíTiveis para a fua indifpenfavel defeza, tem dado as fuás ordens para fe empregarem n'ella as fuás próprias forças e para fe unirem ás dos feus alliados. . . fendo certo que feria menos cuftofo á mefma majeftade fideliflima . . . deixar cair a ultima telha do palácio da fua habitação e aos feus leaes vaífalios derramarem a ultima gotta de feu fan- gue, do que facrificar Portugal com o decoro de fua coroa tudo o que ha de mais preciofo».

Replicaram 0'Dunne e D. Jofé Torrero a 23 de abril a eíta firmiíTima refpofta. Aífentando a maliciofa premiíTa de que Portugal vivia oppreífo e tyrannifado pela Inglaterra, e de que o exercito hefpanhol fe propunha libertal-o de jugo tão affrontofo, revertiam a invafão iniqua e violenta com o colorido machiavelico do auxilio e do favor. Efcreviam os dois indifcretos diplomáticos que Portugal fazia confirtir o ponto de honra em não defpeiar-fe da oppreífão, e em refis- tir aos próprios foldados cartelhanos, que viriam com as pon- tas das fuás bayonetas quebrar nos pulfos do povo portuguez

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os pefados grilhões da dominação britannica. Pediam final- mente os paíTaportes para faírem fem detença de uma cor- te, onde era, diziam elles, indecorofa a fua permanência.

Não havia certamente mais inhahil ironia diplomática do que efta fimulação de amifade cordial a uma nação, cujo território eílavam preftes a profanar os exércitos cafte- Ihanos. Os governos de França e da Hefpanha, e ainda mais do que elles os feus agentes diplomáticos em Lifboa, pareciam apoftados pelos indifcretos e defaíTifados procedimentos a tirar á guerra, que intentavam, toda a Ibmbra de juftiça e feriedade.

Refpondeu Sebaftião de Carvalho, em nota firmada a 25 de abril, ás derradeiras infolencias do embaixador hefpanhol e do miniítro plenipotenciário de Luiz XV. Refutava com vehemente gravidade as frívolas razões, com que os dois Bourbons pretendiam nas fuás guerras ambiciofas tomar a feu foldo e acorrentar aos feus deftinos uma nação, que a tudo preferia a fua neutralidade. «Sua majeftade fideliíTima, dizia Sebaftião de Carvalho, entende que para defender o feu reino tem um direito. . . que é licito a qualquer particular. . . de- fender a própria cafa contra quem n'ella quer entrar fem o feu confentimento».

O embaixador hefpanhol D. Jofé Torrero e o plenipo- tenciário francez Jacob 0'Dunne faíram de Lifboa a 27 de abril. Logo de Portugal fe expediram ordens para que o em- baixador portuguez em Madrid e o enviado na corte de Paris deixaíTem immediatamente as fuás legações.

Eram decorridos poucos dias, quando a Hefpanha rom- peu contra Portugal as hoftilidades. A 3o de abril publicava o marquez de Sarria, general em chefe do exercito hefpanhol deftinado á invafão, um manifefto dirigido aos povos de Por- tugal. N'efte documento, datado do acampamento de Zamora, annunciava o general que a entrada das fuás tropas não era

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encaminhada a fazer a guerra aos portuguezes, antes deter- minada aos fins mais gloriofos e mais úteis á coroa e a Por- tugal. Imitando a traça pueril do leu governo, pretendia o marquez de Sarria perluadir que os regimentos hefpanhoes, ao paliarem as fronteiras contra a vontade exprelTa do go- verno portuguez, vinham exercer um ado generolb e meri- tório de caridade e compaixão internacional.

O ardil era mais do que tranfparente, groffeiro e defas- trado. Uma franca declaração de guerra aberta haveria cer- tamente provocado em Portugal menor indignação do que uma iniqua violação do território acompanhada de tão iró- nica e affrontofa hypocrifia. Sebaftião de Carvalho refpon- deu declarando a guerra á Hefpanha a 18 de maio de 1762. Pela ordenança de 20 de junho, Luiz XV, depois de compen- diar a feu favor os aggravos, que recebera de Portugal, re- memorando o ultraje feito diante de uma praça portugueza á elquadra do almirante de La Clue, e a indififerença com que o governo portuguez havia relpondido ás reiteradas e urgentes reclamações da França a efte reípeito, formalmente declarava a guerra a Portugal.

a elTe tempo o exercito hefpanhol havia começado as operações no território portuguez. Felizmente para a nação invadida brutalmente a Hefpanha não era então fob o as- pedo militar mais favorecida e c^uinhoada que o outro povo peninfular. A fama dos feus velhos terços de Flandres e de Itália eftava apenas confagrada na hiíforia. O ciolb defpo- tiímo dos monarchas e a terrivel prelTão do Santo OíRcio, enervaram em ambos os povos da Peninfula os brios mili- tares, com que outr'ora haviam feito inveja ás nações mais guerreiras e poderofas. A Hefpanha tinha em verdade mais foldados que o leu adverfario. Faltavam-lhe porém inteira- mente as bem ordenadas e harmónicas inftituições, que ha- bilitam os exércitos a engrolTarem nos criticos momentos e a

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transformar-fe velozmente em poderofas machinas de guer- ra. Os homens fão componentes eíTenciaes da força militar, mas fomente por fi mefmos íao apenas matéria prima, ainda não aífeiçoada pelo obreiro. É precifo n'efta congerie, onde ha apenas os rudimentos do organifmo, inlufílar a vida, a intelligencia, a arte, o movimento. E neceíTario que os ho- mens, pela acção maravilhofa da difciplina e do commando, fe convertam a principio em bons foldados pela tadica ele- mentar, e que d'eftes foldados peritos e briofos no officio de marchar e combater, defentranhem o adminiftrador e o es- tratégico efte engenhofo mechanifmo, de primorofa travação e harmonia, a que fe chama um grande exercito, de quan- tas combinações fe poífam com humanos elementos cogitar e inftituir, a mais perfeita e congruente ao feu deftino. E um exercito, que mereça com juftiça o honrofo nome, como que um pequeno cofmos, um. mundo refumido, em que a unida- de e fubordinação a um fim commum eflão fempre em ad- mirável confonancia com a variedade immenfa das fracções, em que vive repartido.

Ao tempo da guerra com a Hefpanha andavam portu- guezes e hefpanhoes defde muito divorciados da racional fciencia militar. Se os generaes e os coronéis em Portugal eram fidalgos eminentes e cortezãos, os chefes fuperiores das tropas caftelhanas eram grandes de Hefpanha ou títulos de Caítella, mais affeitos ás pompas ceremoniaes de uma cor- te apparatofa do que á frudfuofa convivência dos regrados acampamentos. O marquez de Sarria, D. Nicolau Carvajal y Alencafter Viveros Norona de Sande Padilla y de Montezu- ma, tenente general e coronel das guardas reaes hefpanho- las, grande de Hefpanha de primeira claíTe, cavalleiro da ordem de Calatrava, tinha mais nobiliárias honrarias e mais retumbantes appellidos que predicados valiofos para o com- mando cm chefe de um exercito n'uma guerra de invafão.

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Erti provecto de annos c de vaidades. Egualava a ignorân- cia com a defidia, e a beata devoção com o torpor da intel- ligencia; mais feito para bom familiar do Santo Otficio que para accrefcentar á cruz vermelha de Calatrava as palmas da victoria nos campos de batalha. Tinha a feu mando um exercito, que pelo numero pareceria bem fadado a proezas gloriofas. Os generaes, que ferviam fob as ordens do velho fidalgo caftelhano, não podiam pela fciencia e capacidade fuperior envergonhar o feu caudilho. As tropas não prima- vam na inftrucção e diíciplina. A adminiftração confiara á Providencia ou ao acafo o aprovifionamento do exercito em lubriftencias, em forragens e munições, em material de Titios, em trem de pontes, em hofpitaes, em todos eítes lerviços eíTenciaes, que iao os nervos e o eftomago da guerra. As operações eram defde Madrid planeadas e contradidas pelos bandos antagoniífas, que na corte pleiteavam a influencia e o dominio. O miniítro da guerra D. Ricardo Wall, um dos muitos irlandezes favorecidos pelo rei, tinha de fua mão os fios complicados e infeguros d'aquella miferavel eítrategia, que lem ao menos fe lembrar de colligir informações acerca de Portugal, arrifcava cegamente as fuás tropas em paiz to- talmente defconhecido'.

Emquanto o embaixador de Hefpanha e o miniftro pleni- potenciário de França eftreitavam e urgiam o governo portu- guez a entrar na liga das duas potencias contra a Gran-Bre- tanha, o gabinete inglez determinara accudir com tropas au- xiliares á defeza de Portugal. A 2 de maio o rei George III em menfagem dirigida á camará dos communs dizia «que o foberano tomara na mais feria confidcração o perigo immi- nente, de que o reino de Portugal, antigo e natural alliado

' General Dumouricz, État préfenl du Portugal. Laufanne, 177.'^, liv. iv, cap. VIII.

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da coroa, eítava ameaçado pelas potencias então em guerra aberta com o rei de Inglaterra, e que era da máxima impor- tância para os intercfles commerciaes do feu paiz a confer- vação de Portugal. Pedia á camará que houveíle de habili- tal-o a occorrer a qualquer defpeza extraordinária de guerra no anno de 1762, e a tomar todas as providencias neceíTa- rias para contrariar e vencer os dellgnios e as emprezas do inimigo contra o rei de Inglaterra ou feus alliados, legundo a fituação dos negócios o houveffe de exigir».

A camará depois de breve diícuflão, em que fe fez notá- vel o veliemente difcurlb de Pitt em favor de Portugal, vo- tou um milhão de libras efterlinas para accudir aos difpen- dios extraordinários.

Determinou o governo inglez que paíTaíTem a Portugal oito mil homens de tropas em grande parte irlandezas. algum tempo antes, a 1 1 de março de 1762, chegara a Lis- boa o navio de guerra Portlaud, trazendo a feu bordo Lord Tyrawley, que vinha como embaixador da Gran-Bretanha ao rei D. Jofé, e era deítinado ao mefmo tempo a comman- dar as forças inglezas. quando vieíTem a defembarcar em Portugal".

O governo britannico antes de enviar os foccorros mili- tares, a que pelos tratados fe havia obrigado folemnemente, julgou fer neceífario o informar-le miudamente de quaes es- forços envidara o gabinete portuguez para não fruftrar intei- ramente a efíicacia das tropas auxiliares. A Inglaterra, como todas as nações poderofas, egoilfa por temperamento e neces- lldade, não accudia ao lance perigofo de feu velho e fideliíTi- mo alliado pelas generofas infpirações da compaixão politica, virtude eíTencialmente defconhecida na ethica internacional.

OlTicio de St. Julien ao governo trance/, de lie março Je 1762. Qim- dro elementar, tom. viii, pag. 55 e 56.

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A Gran-Bretanha tinha graviílimos intereffes a defender, quando parecia empenhada em foccorrer e amparar o povo portuguez contra a iniqua invafão de francezes e hefpanhoes. Receiava porém que achando-fe Portugal de todo o ponto imbelle e indefezo, tivcíTe de pôr os feus Ibldados e o prefti- gio das fuás armas a lance de perder-le n'uma guerra, para a qual a inércia governativa e militar d'cfte paiz nada houves- le apercebido em tão apertada conjuntura. Lord Tyrawley havia fido muitos annos embaixador na corte de D. João V, conhecia Portugal, e n'elle tivera grande entrada no paço e no governo. \'inha pois a examinar a fituação defenfiva do paiz, com mandato expreflb de participar ao gabinete de Inglaterra quanto le lhe houveíTe deparado n'eíte exa- me. Lord Tyrawley era porém por indole e carader o agente menos accommodado a conciliar os ânimos e as vontades em tão diííicil occafião e a fazer operar em confonancia os esfor- ços empenhados em combater as duas coroas coUigadas pelo Pado de fainilia e agora hortis a Portugal. A altivez, o orgu- lho e a violência do leu temperamento imperiofo e arrogante contrapelavam com excelTo no velho embaixador os predica- dos de general e de eftadifta. Defde a ília chegada a Portugal as fuás informações ao miniíferio inglez eram copiofas de mui agras increpações ao governo portuguez, ou antes a Sebas- tião de Carvalho, a alma e o motor de toda a adminiflra- ção, pela indolência, com que executava as prefcripções do iníblente general. A fua animofidade chegava ao ponto de querer perfuadir ao leu governo que efta guerra entre Portugal e a Hefpanha não era mais do que um embeleco, ou fegundo hoje diríamos, uma pura myflificacão para em- bevecer e enganar a Gran-Bretanha'.

Hughes, Conúnuaiion to Hiime and Smollett's Hijlory of England, chapt. III.

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As tremendas accufações de Lord Tyrawley eram tão apaixonadas, quanto injuftas. O altivo general, julgando-fe um proconful da Inglaterra n'uma fua província ameaçada, quizera fobrepôr-fe á própria foberania, e achando na rija tempera do miniftro portuguez um invencível obítaculo, de- fatára em docftos contra Portugal a fua indignação c o feu defpeito. Os teflemunhos contemporâneos lao conformes em affirmar que Sebaftião de Carvalho, vendo-fe improvifamente provocado por duas nações podcrofas e irritadas, não con- tra Portugal, mas principalmente contra a foberba domina- dora do Oceano, fizera milagres de energia para levantar, fe bem coUefticiamente, forças confideraveis para a defeza do paiz. Sebaftião de Carvalho achara as inftituições mili- tares de Portugal no extremo abatimento, o exercito quafi re- duzido a uma efcaíTa horda indifciplinada, miferavel, com a apparencia enganofa da força e difciplina, defdenhada e envilecida a profiíTão, havida em pouco amor pelos offi- ciaes, em grande parte aufentes dos feus regimentos. Logo defdc os primeiros annos, em que fora nomeado fecretario de eftado dos negócios extrangeiros e da guerra, empenhá- ra-fe em accudir com as primeiras e mais urgentes provi- dencias a tamanha miferia e defamparo. Expedira ao confe- Iho de guerra em decretos de 12 de janeiro de 1754 ordens terminantes para que foíTe reftaurada a difciplina e a inftruc- ção quafi inteiramente deflembrada nos regimentos portu- guezes, para que os ofíiciaes dentro de vinte dias recolheílem defde logo aos corpos, de que andavam como que divorcia- dos, para que fe procedeífc ao recrutamento e fe completas- fem os quadros eftabelecidos. Ordenara que nos regimentos de todas as armas fe fizellem frequentes exercícios e fe pra- fhcaífe quanto folfe conducente a reftabelecer a ordem e a perícia «de maneira, dizia o legiflador, que em todas as pro- víncias fe viíTe renafcer o ardor militar, a regularidade da

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difciplina, e o affeio das tropas, pradicando-fe nos corpos e nas praças, que depois do terremoto ficaram em eftado de terem guarnição, todo o regular e exafto ferviço, que fe cos- tuma fazer em tempo de guerra'».

N'aquelles primeiros tempos occorrêra egualmente por uma grande promoção ás numerofas vagaturas de ofíiciaes, e confeguira completar os quadros dos regimentos. Era quanto n'aquella apertada conjuníhira podia fazer um eftadiíta extra- nho totalmente ás fciencias e ás praclicas da guerra, por Índole e vocação pouco propenfo ás coufas militares. A luífa defes- perada, em que logo aos primeiros paflbs da fua adminiftração teve de entrar com os pertinazes inimigos de toda a falutar innovação, os cuidados e os empenhos de accudir ao def ba- rato da fazenda publica, ao lethargo da induftria e do com- niercio, e ás ruinas da cataftrophe tremenda, não lhe deixa- ram lazer e occafião a largas e proveitofas reformações na força publica. Era homem civil e eftadifta, fem predilecção, nem fciencia de foldado. podéra ter adiantado alguns pro- greíTos no fyftema defeíifivo da fua pátria, fe entre os officiaes de maior graduação e audoridade fe lhe houveíTem deparado peritos e fervorofos cooperadores. Mas a ignorância ei"a quafi univerfal nos generaes, cujo predicado principal era com o valor e bifarria peífoal e com o efplendor dos titulos arifto- craticos, a máxima infciencia das coufas militares n'aquelle feculo, no feculo brilhante de Frederico e do marechal de Saxe, na epocha fecunda, em que o rei-philofopho completa na tadica da infanteria e da cavallaria, e no emprego da ar- tilharia em campanha a revolução iniciada por Guftavo Adol- fo, o feu bravo e romanefco precurfor.

Avifo de Sebaftião de Carvalho para o marquez de Marialva, meflre de campo general, de 12 de dezembro de 1/55, nas Providencias do terremoto, pag. 144 e 145.

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A mingua ablbluta de generaes, que foubeíTem mais algu- ma coufa do que frequentar os paços do Ibherano, ou folver as fáceis obrigações da vida quieta de guarnição durante uma paz de meio feculo, obrigava o eftadifta a recrutar improvi- famente os foldados no paiz, e a aíToldadar os generaes em terras extrangeiras. Efta opprobrioía dependência de illus- tres aventureiros para o commando das forças portuguezas ptroduzia fatalmente as fuás neceíTarias confequencias. Os fo- rafteiros invertidos na iuprcma auftoridade militar, tornados mais altivos pela opinião de indifpenfaveis, afpiravam a exer- cer defpoticamente o fcu império e a diótar a lei ao próprio governo da nação. Lord Tyrawley pelas fuás orgulhofas ar- rogâncias não fez mais que exacerbar o animo infoftrido de Sebaítião de Carvalho, cuja efcaífa manfuetude mal poderia tolerar as oufadias imprudentes do bretão.

As diíTidencias do velho general com o miniftro principal de D. Jofé chegaram a tal extremo de acrimonia, que torna- riam impoíTivel todo o bom concerto e proveitofa cooperação dos alliados nas operaç(5es defenfivas de Portugal. Lord Ty- rawley foi chamado a Inglaterra, e o mando das tropas ingle- zas foi conferido a Lord Loudon, ofiicial de provada reputa- ção.

Antes porém que as forças britannicas houveífem apor- tado, já os hefpanhoes tinham dado começo ás operações. A 5 de maio de 1762 paífava o marquez de Sarriá a fron- teira portugueza com grande parte do exercito ás fuás or- dens. Entrando na província de Traz os Montes, e fitiando Miranda apodera va-fe facilmente da praça, cuja reddição fe antecipou pela tcrrivel explofão de um feu paiol. Depois d'eífe fácil feito de armas as tropas caftelhanas tomaram fem refiftencia as praças de Bragança, de Chaves e Torre de Moncorvo, cujos meios dcfenfivos eram defproporcionados á minima oppofição.

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Pouco depois uma columna hefpanhola commandada pelo coronel 0'Reilly intentou paíTar o Douro nas cercanias de Villa Nova de Fofcoa. Apelar, porém, da fuperioridade numérica das fuás tropas os helpanhoes não poderam etíei- tuar efta manobra pela contradicção, que lhes oppozeram al- gumas forças portuguezas. O que difficultava principalmente as operações do exercito inimigo era a infciencia abfoluta dos generaes, o defprezo dos princípios mais elementares da eftrategia, o defconhecimento do paiz, onde queriam profe- guir a invafão, a feição montuofa e agrefte da província, ta- lhada de molde para a refiftencia efficaz pela pequena guerra e o patriótico fervor, com que as povoações haviam impedi- do ou conturbado a marcha do inimigo, como fendo enca- minhada, em feu conceito, a annexar o território portuguez á coroa dos reis catholicos. Ao mefmo tempo os hefpanhoes, que fe tinham dirigido fobre Chaves, tentaram paffar ao Mi- nho para avançarem contra o Porto, cuja tomada lhes pare- cia fácil e fegura. Mas nas alturas de Montalegre algumas partidas de paizanos armados, aproveitando com vantagem as circumftancias do terreno, fizeram retroceder os inimigos até Chaves.

A 2 I de junho uma columna hefpanhola fob o comman- do de Alvarez acommetteu e incendiou a aldeia de Freixal, defendida apenas por trezentos paizanos, que na maior parte caíram vidimas do furor do inimigo.

Tinha o velho marquez de Sarriá começado as fuás ope- rações fazendo do acafo o feu chefe de eítado maior. Não fe- guia nenhum plano de campanha, porque na fua profunda ignorância militar havia julgado inferior á fua dignidade e ás forças, de que difpunha, medital-o e cumpril-o n'um paiz, que reputava de facillima conquifta. Haviam lido até alli eífereis e mefquinhas as miferaveis operações executadas pelo exercito hcfpanhol.

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áquelle tempo era chegado a Lifhoa o conde de Lippe-Schaumburg, que Sebaftião de Carvalho tinha con- vidado a tomar o commando em chefe do exercito portu- guez.

Vinham com o general conde de Lippe-Schaumburg, além do duque reinante de Mecklenburg-Strelitz, irmão da rainha de Inglaterra, o general Lord Loudon, o tenente ge- neral Townf hend, o general Lord George Lennox, e os bri- gadeiros-generaes Crawfurd e Burgoyne, que no exercito britannico eram havidos no conceito de esforçados e expe- rientes homens de guerra. Pouco depois da fua chegada foi o conde de Lippe nomeado marechal general e direófor ge- ral de todas as armas do exercito portuguez". O duque de Mecklenburg-Strelitz foi nomeado tenente general e chefe do regimento de cavallaria, que d'elle tomou o nome.

As forças auxiliares de higlaterra confiftiam em oito mil homens, que, fegundo authenticos teftemunhos contemporâ- neos, não eram, principalmente os dos regimentos irlandezes, por extremo exemplares na difciplina e no refpeito pelos ha- bitantes do paiz, a quem vinham ajudar. «Não houve, efcreve Dumouriez, nenhum género de exceíTo, que não commettes- fem aquellas tropas, que eram peiores que as inimigas ^ » . Trifte, mas inevitável confequencia de que um po's'o deixe á mercê de extranhos a defenfão dos próprios lares.

No meado de julho de 1762 o groffo do exercito hefpa- nhol eftava concentrado junto a Ciudad-Rodrigo. Computa- va-fe em quarenta e dois mil homens a força ali reunida.

As tropas, que o general em chefe conde de Lippe podia n'aquel!a occafião oppor ao inimigo em operações de cam- panha, eram apenas quatorze ou quinze mil homens entre

' Carta patente de lo de julho de 17Õ2.

2 Dumouriez, Etat préfent du Portugal, liv. iv, cap. viu.

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portuguezes e inglezes. O refto das forças confagradas á de- feza eftavam repartidas por difFerentes guarnições, principal- mente nas provincias do norte, onde era neceíTario obfervar as tropas adverfas portadas na Galliza. O marechal-general conde de Lippe era forçofamente determinado a uma guerra puramente defenfiva, hufcando contrabalançar a efcaíTez do feu exercito com as vantagens do terreno, habilmente apro- veitado, e evitando cautelofamente o empenhar-fe em acções geraes com o inimigo. Convinha-lhe unicamente o canfar o adverfario por uma ferie de manobras, obrigando-o a divi- dir as fuás forças, a debilitar-fe pelas marchas e contramar- chas em paiz agrefte, montanhofo, atfeiçoado pela natureza para theatro propicio á pequena guerra e ás hoítilidades pe- rigoíiíTimas das forças irregulares e das armadas povoações.

O inimigo paíTou o Côa a 23 de julho. Apoderava-fe de Caftello-Rodrigo fem dar um único tiro, apelar de que efte ponto fortificado poderia ter oppofto alguma fombra de re- fiítencia". E logo feguidamente principiava o inveftimento de Almeida, que era então uma das primeiras e mais fortes praças fronteiras de Portugal, bem fortificada, bem provida de groíTa e boa artilheria, de copiofas munições e material de guerra, e aíTaz de fubfiftencias para uma defeza dilatada.

Compunham a guarnição dois batalhões do regimento de Almeida, um terço de auxiliares, algumas companhias francas das que fe haviam novamente levantado para a guer- ra, e um numero fufíiciente de artilheiros. Perfaziam ao todo obra de três mil homens. A maior parte d'aquella tropa era, porém, formada de recrutas fem inífrucção adequada, nem verdadeiro efpirito militar. As deferções frequentes durante o fitio defraudaram confideravelmente a força da guarnição.

' Memoria fobre a campanha de ijG-j, pelo conde de Lippe, na Revijla militar, tom. i, pag. iS3.

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Apefar de todas as circumftancias, que difficultavam a defeza, poderia Almeida ter fuftentado um fitio regular, e de- tido os movimentos do inimigo. O governador era, porém, um homem octogenário, que no principio d'aquelle feculo tinha fervido na guerra da fucceíTão de Hefpanha, e prova- velmente havia cincoenta annos que, durante uma paz inerte e duradoura, nunca mais vira nem de longe o fimulacro fe- quer de um cerco ou de uma batalha.

A demorada refiítencia de Almeida ao fitiante era con- dição mais do que favorável, eíTencial ás operações, que o marechal Lippe intentava emprehender. Bem fabia elle que a praça haveria infallivelmente de render-fe, depois que, fegundo os proceífos de um fitio methodico á Vauban, o inimigo tiveífe coroado o caminho coberto, feito uma larga brecha pradticavel ás columnas deftinadas ao aífalto. Ainda n'aquelle tempo era dogma havido por infallivel que o mo- mento de entregar-fe a praça mais formidável pela pofição, pela arte, pelo numero e valor dos defenfores, fe podia ma- thematicamente calcular pelo computo dos períodos, em que iam avançando lentamente os trabalhos do fitiante. Ainda Carnot, o grande revolucionário, o illuftre geometra e enge- nheiro, na fua obra claíTica De la défenfe des places fortes, não tinha demonftrado pela fciencia e por exemplos da his- toria militar que uma praça pôde fempre dilatar por tempo indefinido a fua defeza. Ainda a Convenção, pelo órgão de Carnot, não tinha confignado n\ima lei que feria punido com a pena capital o governador, que tendo viveres e muni- ções, fe rendeífe ao inimigo antes de haver brecha acceífivel e pradicavel no corpo da praça, ou antes de ter fuftentado um aífalto, quando por detraz da brecha exifiiífe um intrin- cheiramento interior'.

' Lei de 26 de julho de 1792, art. 1."

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Almeida, havia, pois certamente de capitular. Mas o ma- rechal Lippe confiava em que a praça prolongaria quanto poíTivel a defeza. O governador tivera ordem expreffa e ter- minante de não dar ouvidos a nenhuma intimação do inimi- go antes que elle tiveíTe aberto no corpo da praça uma bre- cha capaz de dar paflagem a uma columna de trinta homens de frente".

Firmava Lippe as fuás combinações eftrategicas em que Almeida fe defendeíTe até meado de feptembro. Saíram po- rém fruftradas as fuás efperanças. O frouxo e decrépito go- vernador capitulou a 26 de agoíto, quando o inimigo ainda apenas trabalhava na primeira parallela, e a fua artilheria, fituada a grande diftancia, nenhum damno havia produzi- do nas obras exteriores ou no recinto.

Almeida rendia-fe ao inimigo fem ao menos, ao que pa- rece, perturbar com os feus canhões e as fuás fortidas os tra- balhos do fitiante. Se acreditámos o general Dumouriez', os hefpanhoes, aíTombrados com a breviffima duração do cerco a uma praça de tamanha importância e nomeada, contando occupar na fua expugnação todo o tempo, que ainda reftaíTe de campanha, não fabiam agora dar-fe a confelho fobre o progreífo das operações. Não acertavam a decidir o que ha- veriam de emprehender n'efta conjuncção, em que a vidoria, por um inexplicável paradoxo, era um embaraço eílrategico para o irrefoluto general. As parcialidades, que em Madrid eílavam difputando a fuprema direcção da guerra, vieram a determinar a fubflituição do marquez de Sarriá por outro general, o conde de Aranda.

O inimigo poderia logo apoz a reddição de Almeida

Memoria /obre a campanha de 1-62, pelo conde de Lippe, Revijla mi- litar, tom. I, pag. 187.

2 Dumouriez, Etat prcfent du Portui^al, liv. iv, cap. vm.

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marchar fobre o Porto e Coimbra com as forças, que tinha em o norte de Portugal. Era neceílario defender ao inva- for as palTagens principaes, por onde poderia entrar no Mi- nho e ameaçar a fegunda capital. Por ordem do conde de Lippe, o tenente general Townfhend com fete batalhões por- tuguezes, e um inglez, o regimento de cavallaria de Moura, um deítacamento dos dragões de Burgoyne, os voluntários reaes commandados por Hamilton, e dez peças de campa- nha portuguezas, foi deftinado a obfervar e a reprimir o in- vafor, fe intentaíTe um movimento contra o Porto. Towns- hend eítabeleceu-fe nas cercanias de Vizeu, e reforçou-fe com quatro batalhões, com o regimento de cavallaria de Chaves, e com as tropas, que no Minho obedeciam ao bri- gadeiro general Lord Lennox. Hamilton occupou Celorico. O conde de Santiago teve ordem de poftar-fe nas imme- diações da Guarda com dois batalhões, e os regimentos de cavallaria de Bragança e Penamacor. As forças anglo-por- tuguezas na Beira eítendiam-fe pois na linha, que decorre defde Vizeu por Celorico até á Guarda.

Antes de meado de agofto reuniu o marechal-general conde de Lippe em Abrantes um campo de fete mil homens. Os dragões do regimento inglez de Burgoyne occupavam o Sardoal e féis batalhões britannicos eílacionavam na con- fluência do Zêzere e do Tejo.

A parte do exercito deítinada a invadir ao fui o territó- rio portuguez concentrava-fe nas fronteiras da Extremadura hefpanhola para irromper d'ali no Alemtejo. O inimigo tinha três a quatro mil homens acantonados junto da raia entre o Tejo e o Guadiana, principalmente nas vizinhanças de Al- cântara e nas margens do rio Salor. Os armazéns e depofi- tos de viveres e munições em muitos pontos da fua Extre- madura indicavam plenamente que era feu intento penetrar no Alemtejo.

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o conde de Lippe, conhecendo como hábil general que a defeza paíTiva é quafi fempre um novo eftimulo á audácia do inimigo e um feguro fiador às luas viclorias, refolvêra antecipar-fe ao antagoniíta, levando as hoftilidades ao feu melmo território e empenhando-fe em operações de pequena guerra, quaes lh'as ellavam permittindo ou aconfelhando as tropas efcaíTas, de que difpunha, e o deíleixo e infciencia do inimigo. Determina-fe a acommetter uma vanguarda de hes- panhoes em Valência de Alcântara, e confia á pericia e ao valor do hrigadeiro-general Burgoyne a conduda d'efta em- preza temerária. Burgoyne pafla o Tejo a 24 de agofto na ponte eftabelecida em Abrantes. Leva comfigo o feu regi- mento de dragões, doze companhias de granadeiros portu- guezes, e féis de granadeiros da Gran-Bretanha. A 27 de agofto ataca improvifamente as forças caftelhanas defaper- cebidas e negligentes na fegurança do feu acampamento, e aprifiona o general hefpanhol Dumberry, e com elle muitos officiaes e duzentos foldados do regimento de Sevilha. Im- põe á villa de Valência uma contribuição de guerra, que os habitantes logo fatisfazem.

No próprio dia, em que Burgoyne marchava a executar a entrepreza de Valência de Alcântara, paflavam o Tejo deze- fete batalhões de infanteria e quatro regimentos de cavallaria, tendo por encargo o dirigirem-fe á fronteira de Hefpanha por entre Montalvão e Caftello de Vide. O marechal-general, confiando cjue os hefpanhoes teriam occupada grande parte das fuás tropas no cerco de Almeida, fuppofta a refiftencia d'efta praça até o momento do aífalto, determinara levar a guerra ao território do inimigo, dellruir ou difperfar as fuás forças acantonadas com pouca fegurança em Membrio, em Herrera, e em Carboja, povoações fronteiriças e abertas a uma facil incurfão. As tropas do marechal eram porém novas e ainda mal acoftumadas d prefteza das marchas e manobras,

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os caminhos afperos, efcaíTiffimos os mantimentos e as for- ragens, forçofa confequencia de uma improvifada e mal as- fente adminiftração militar, apenas em embryão imperfeitiíTi- mo. A delonga na execução foi caufa de que a empreza não podeffe etfeituar-fe. Porque eram apenas chegadas a Niza as tropas deftinadas á operação, quando no quartel general do conde de Lippe confiou haver-fe rendido Almeida. Des- apreíTadas agora as tropas inimigas, que eftavam fitiando aquella praça, mudava inteiramente a fituação. Os hefpanhoes defciam pela Beira, occupavam Celorico, defamparada pelos portuguezes depois da entrega de Almeida. Tinham delcm- baraçada na fua frente a eítrada de Coimbra e podiam cor- tar as communicações entre as forças portuguezas poftadas em uma e outra Beira. As tropas, que tinham avançado até Niza, retrocedem agora para Abrantes e difpõe-fe em efca- lões defde eíla praça até o rio Alva, tendo como pontos in- termédios Cabaços e Foz de Arouce. O brigadeiro-general Burgoyne, recebendo como reforço á columna do feu com- mando, o regimento de Crawford, e os regimentos de caval- laria de Olivença e de Sampaio, é deftinado a cobrir a fron- teira entre Portalegre eVilla Velha. O conde de Santiago com as tropas foh o feu mando teve ordem de manter-fe quanto poffivel na Beira Baixa. Na ultima extremidade haveria de retirar para os desfiladeiros das montanhas, que demoram entre o Zêzere e o Tejo defde a Covilhan aVilla Velha.

Áquelle tempo o conde de Aranda havia fubftituido no commando do exercito hefpanhol o inexperto marquez de Sarriá. Parecia que as operações da parte dos invafores iam tomar afpedo mais perigofo. Uma divifão das forças caftelha- nas dirigiu-fe para Alcântara. O reflo do exercito marchou em direcção a Penamacor e Sabugal. As praças portuguezas de Salvaterra e de Segura, pouco defenlaveis e preíidiadas por efcaíTas guarnições, renderam-fe promptamente á pri-

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meira intimação. O exercito hefpanhol, continuando a fua marcha, eftava em meacio de feptembro em Caftello Bran- co. Pretendia avançar defde ali a Villa Velha e paffar o Tejo n'eíl:e ponto. O conde de Lippe é obrigado a dar nova dilpo- íição ás fuás forças, fubordinando agora as operações ao fim eífencial de impedir a paífagem ao inimigo.

As tropas efcalonadas a principio entre o Tejo e o Mon- dego vão agora conccntrar-fe fobre Abrantes. O general Townfhend, que eftava com a fua divifão nas vizinhanças de Pinhel, teve ordem de approximar-fe ao Tejo, deixando em obfervação á praça de Almeida, em poder do inimigo, o general Lord Lennox com quatro regimentos portuguezes de infanteria e dois de cavallaria, e os voluntários reaes com- mandados por Hamilton.

Ao brigadeiro Burgoyne foi commettido pelo general em chefe o encargo de obfervar Villa Velha e oppor-fe rijamente a que o inimigo paífaífe ali o Tejo. Foi occupado o caftello de Villa Velha por quinhentas praças do regimento de Aveiras, ao mando do tenente coronel Azevedo Coutinho. O groífo do exercito portuguez avançou defde Abrantes a Mação.

O general hefpanhol conde de Aranda, algum tanto fu- perior em talentos eftrategicos ao feu anteceífor, intentou a paffagem do Tejo, e para efte fim dividiu em três columnas as forças deftinadas a eífeituar ou auxiliar efta operação. A primeira, de cerca de féis mil homens, eftabeleceu-fe junto de Villa Velha a alcance de efpingarda defronte dos poftos occupados na margem meridional pelo brigadeiro Burgoyne. A fegunda columna, de quatro mil homens, entre Sarzedas e Montegordo, devia obfervar as forças do conde de Santia- go, que eftavam poftadas entre a Venda e Ferreira. O ter- ceiro corpo, de três mil homens, acampou em frente do des- filadeiro de S. Simão, que eftava defendido por trezentos homens de tropas portuguezas.

Foram vãos os esforços empenhados pelo inimigo para defalojar das fuás bem fortificadas e defendidas pofições o brigadeiro Burgoyne. Determinou-fe porém a outra empreza mais faftivel, e foi que, atacando com forças confideraveis as alturas de Villa Velha, confeguiu que fe rendeíTe o caftel- lo, que apefar de edificado em fitio favorável á defeza, era de antigo traçado e conftrucção. O tenente coronel João da Silva Cunha de Azevedo Coutinho depois de pequena refis- tencia rendeu-fe ao inimigo, ao que parece, por chegar fora de tempo o reforço, que pedira ao brigadeiro Burgoyne'. O major engenheiro DebaíTenon, official francez ao ferviço de Portugal, foi mais feliz na fua defeza. Occupou com oitenta praças uns cabeços na ferra de Villa Velha. Atacado por for- ças mui fuperiores, refiftiu durante cinco horas á aggreífão, fe acafo é verdadeiro o teftemunho do conde de Lippe, e em vez de fe render, alcançou retirar, paífando o Tejo, até aos poítos occupados por Burgoyne.

O marechal-general conde de Lippe anteviu com certeira previdência militar que os hefpanhoes, depois de tomarem as alturas de Villa Velha e de verem fruftrado o feu empenho de defalojar as forças de Burgoyne, tentariam feguir uma nova linha de operações com o intento de dirigir-fe fobre Abrantes. Para contrariar o intento do inimigo fez o conde de Lippe avançar de Mação para Cardigos quatro regimen- tos inglezes deítinados a occupar as alturas das Talhadas.

Depois que fe apoíTára de Villa Velha e das pofições cir- cumvizinhas, a columna, que effeituára efla operação, veiu a

I o tenente coronel Azevedo Coutinho, fendo julgado em confelho de guerra, foi demittido e declarado inhabil para nunca mais poder fervir. Deze- feis annos depois, em princípios do reinado de D. Maria I, quando era fácil a reparação a todos, que a pediam invocando em feu favor o haverem fido vi- climas do miniftro omnipotente, um novo confelho de guerra, apreciando as circumílancias da defeza, julgou que o tenente coronel tinha fatisfeito ao de- ver e á honra militar, e rchabilitou-o para entrar de novo no ferviço.

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paíTar a ferra a 3 de outubro no fitio chamado Porto Ca- brão. Deixara porém em Villa Velha uma força de duzentos granadeiros e cem cavallos para guardarem féis peças de artilheria, que não podéra logo tranfportar. Não efcapou a Burgoyne a occafião de aíTignalar-fe em nova empreza. Or- dena que o coronel Carlos Lee, official britannico ao ferviço de Portugal, com duzentos e cincoenta dragões do regimento de Burgoyne, paífe o Tejo com prefteza e acommetta de im- provifo os hefpanhoes.

Torneia o coronel inglez o acampamento e cáe-lhe de noi- te na redaguarda. As furprezas eram frequentes n'aquelles tempos, em que ainda fe não comprehendêra inteiramente que o ferviço de fegurança na marcha e na eftação é a hy- giene guerreira dos exércitos, e o penhor ineftimavel da lua efficacia na acção e no combate. Difperfam as tropas do co- ronel Lee as forças hefpanholas com perdas confideraveis, encravam a artilheria e incendeiam e deftroem os feus mais bem providos armazéns, ao paífo que Burgoyne por uma hábil diverfão impede que os invafores acudam com foccor- ros aos feus, defbaratados em \'illa Velha.

Senhoreava o inimigo a efta fazão a Beira Baixa, e efta- belecia nas Sarzedas o feu quartel general.

As forças de Townfhend e de Lord Lennox recebem en- tão ordem de fe reunirem com o intento de cortar as com- municações dos hefpanhoes com Almeida e Ciudad-Rodri- go. A marcha de Torwnfhend é certamente a manobra mais notável de toda efta campanha, em que os recontros foram menos importantes e mais raros do que os movimentos dcfti- nados a obfervar o inimigo. O tenente general Townfhend marcha defde Pinhel até ao Codes, na diftancia de cincoenta léguas por afperrimos caminhos e quafi impervios territórios e depois avança de novo fobre a Beira por uma rápida con- tramarcha. em que no decurfo de quarenta léguas não fão

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mais favoráveis as eftradas. N'efl:a operação, em que com grande celeridade fe venceu tamanho efpaço, as qualidades moraes e militares do foldado portuguez foram largamente exemplificadas. O general cm chefe conde de Lippe confa- grou-lhes na fua Memoria com aftas palavras de fubido, mas verdadeiro panegyrico a fua imparcial glorificação: «Efta marcha, efcreve o marechal-general, foi pontualmente execu- tada pela admirável perfeverança do foldado portuguez, que fupportou as maiores privações, e que não obftante o prom- pto eftrago do calçado marchava alegremente por aquelles caminhos de agudos rochedos, deixando por toda a parte veftigios dos feus pés enfanguentados'».

Tomou o general em chefe as que lhe pareceram mais favoráveis dilpofições para aguardar o inimigo, fe da Beira Baixa reíblveíTe pôr-fe em marcha. O groíTo das fuás forças acampou no Sardoal, e occupou todos os ptaíTos e avenidas que vem dar á praça de Abrantes. Aproveitou o marechal com hábil previfão todos os pontos, que na paílagem para Abrantes, em piaiz eíTencialmente montanholb, fe preftam com vantagem á guerra de pofições. As manobras calcula- das e prudentes do conde de Lippe, d'efte novo e períeve- rante cunítador, tinham forçado o antagonifta a diíTipar em mal combinadas operações as fuás tropas, a perder as vanta- gens da iniciativa, e a debilitar ao mefmo paíTo a lua força moral. O groíTo das tropas hefpanholas retrocedeu Ibbre Cas- tello Branco.

Pouco depois uma grande parte do exercito inimigo ef- feituava a retirada. A cavallaria, a artilheria e grande parte da infantaria dirigiam-fe, paíTando o Tejo, para Alcântara. Ficavam, porém ainda em Caftello Branco vinte e oito bata- lhões, dez efquadrões e dezefeis boccas de fogo. Uma nova

I Memoria Jobre a campanha de ijOs, Revijia militar, tom. i, pog. 542.

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empreza foi intentada contra eftas forças pelo marechal-ge- neral conde de Lippe. O inimigo, porém, teve a bem não fe abalançar a um recontro, e em novembro decidiu-fe a des- amparar de todo a Beira, demolindo algumas das fortifica- ções fronteiras de Portugal. O inverno principiava a tornar cada vez mais penofas e difficeis a ambos os contendores as fuás operações. Se os caftelhanos padeciam grandes quebras nas fuás forças, não era mais profpera a fituação das tropas de Portugal e de Inglaterra. N'aquelle tempo era pradica fe- guida o tomar quartéis de inverno. O conde de Lippe acan- tonou pois as forças do feu commando, confervando toda- via a columna de Burgoyne como corpo de obfervação entre Niza e Portalegre.

Reforçaram-fe as obras defenfivas e as guarnições em muitas das praças fronteiras do Alemtejo, por onde agora parecia mais provável a irrupção. E não era fem fundamen- to efte receio, porque o inimigo, que parecera fufpender as operações, tentou ganhar por entrepreza Campo Maior, e por intimação de fe render a praça de Marvão. Em ambas as tentativas lhe faíu, porém, fruítrado o intento. As novas dis- pofições do exercito hefpanhol determinaram que o mare- chal-general deixalfe os quartéis de inverno e de novo fe apercebeífe para a fequencia da campanha. As fuás tropas apoiavam a direita nas alturas de Três Lagares, adiante de Portalegre. O flanco efquerdo ficava retrahido para facilitar e proteger a juncção das tropas, que ainda eftavam em Amiei- ra, em Niza e Alpalhão. Burgoyne com a fua columna occu- pava as alturas próximas a Caftello de Vide, aífegurando a efquerda do exercito.

O inimigo, agora poftado nas cercanias de Valência em três groífas divifões, dava mofiras de querer entrar no Alem- tejo. Era forçofo difputar-lhe bravamente a palTagem da fron- teira. A efte empenho accommodou o general em chefe as

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fuás novas difpofições A defeza concentrou-fe principalmen- te nas vizinhanças de Portalegre e na ferra de S. Mamede. Contentou-fe o inimigo em tentar uma entrepreza contra Ou- guella, que apefar de pouco defenfavel, fez honrofa refiften- cia, e pelos brios militares do feu governador, Braz de Car- valho, deixou aos invafores a defefperança de tomarem aviva força ou por induftria nenhuma das praças portuguezas na fronteira.

Mais bem fuccedida foi a reprefalia, com que o coronel inglez Wrey, governador de Alegrete, realifou uma incurfão á povoação hefpanhola da Cordojera, onde fez alguns pri- fioneiros. Eíta foi a derradeira hoftilidade, que fe regiftou n'efi:a campanha.

Os hefpanhoes, padecendo em fummo grau as funeftas confequencias do feu commando negligente, efcaífos de pro- vifões e abaílecimentos, principalmente para a cavallaria, di- zimados pelas doenças, e defalentados pelo êxito infeliz das fuás temerárias tentativas, houveram a bom partido dar fim ás fuás defconnexas e mal conduzidas operações.

A 22 de novembro o general hefpanhol, conde de Aran- da, envia o marechal de campo Buccarelli a propor um ar- mifticio ao conde de Lippe, que tinha então em Monforte o feu quartel general. Os preliminares de paz, aífignados em Fontainebleau a 3 de novembro de 1762, tinham porneceífa- rio complemento a propofta fufpenfão de hoftilidades. Acce- deu o governo portuguez, e logo a pouco trecho fe publicou em ambos os exércitos o armifticio.

AíTim terminou uma guerra, em cujo theatro .os invafo- res haviam empenhado no principio mais de quarenta mil homens, e os defenfores tinham congregado mais do que efte numero, fem que uma batalha, ou um combate de im- portância alTignalaífe o decurfo d'efta luóía, apenas entrete- cida de fitios quafi nominaes, e de nada illuftres operações de

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pequena guerra. A vantagem, porém, manifeftou-fe em tavor dos portuguezes e dos pouco numerofos alliados. A gloria principal d'efta campanha recaiu no miniftro, que pela fua indómita energia apercebera, quaes as circumftancias lh'o conlentiram, os meios neceíTarios para a defeza, e no conde de Lippe, que com o peior de todos os elementos defenfivos, um exercito coUigido á ultima hora, auxiliado por tropas ex- trangeiras, fem fraternidade militar e fem robufta cohefão, foube, por milagres de bom lenfo, enfeixar na fua mão as forças divididas por funeftas emulações, enfraquecidas pelo attrito do governo e do commando, e fazer d'ellas o feguro antemural da independência e liberdade portugueza.

Emquanto a campanha fe fora profeguindo, não fe limi- tara Sebaítião de Carvalho a dirigir defde Lifboa como fu- premo adminiftrador dos negócios militares quanto era con- cernente aos movimentos do exercito, ao feu recrutamento e aos cuidados de abaítecer as tropas n'um paiz, onde nada exiftia que podeíTe de longe affimilhar-íe a um ferviço de ad- miniífração militar. Sebaítião de Carvalho apparece no meio dos próprios acampamentos, quando é urgente concertar as diíTidencias, amaciar as frequentes coUifões, fazer cumprir as ordens expedidas, e combinar com o marechal-general con- de de Lippe o que não podia eflar pendente de lentas com- municações entre a corte e o exercito. Apefar da fua pouca proficiência nas coufas da guerra o miniífro previdente, pela energia indefefla do feu efpirito e pela nunca annuviada fe- renidade do feu animo nos lances mais perigofos, fabe com- penfaro que lhe falta em fciencia militar, e aproveitara pericia guerreira do chefe extrangeiro e mercenário fem dobrar intei- ramente ao feu arbítrio a majcftade e o governo da nação.

Haviam-fe realifado as difcretas previfões de Sebaflião de Carvalho n'um feu defpacho, dirigido alguns mezes antes ao plenipotenciário portuguez na corte de Saint-James. O

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Pado de familia, em que os Bourbons tinham firmadas as feguriíTimas efperanças de fe levantarem como irrefifiiveis árbitros da Europa, havia abortado miferavehnente. Os de- faftres padecidos pela Hefpanha e pela França nas fuás poíTeíTóes da America e da Alia, principalmente a perda da Havana, tomada pelos inglezes, haviam feito defmaiar os dois arrogantes alliados, induzindo-os antes a procurar uma paz decorofa e reparadora do que a profeguir uma guerra iniciada com aufpicios tão infauftos. Os preliminares aíTi- gnados em Fontainebleau a 3 de novembro de 1762 poze- ram termo á guerra. Portugal reprefentado por Martinho de Mello, como feu embaixador extraordinário, foi comprehen- dido na convenção, directamente negociada pelos reprefen- tantes de Inglaterra, de França e da Hefpanha. O tratado definitivo afllgnado em Paris a 10 de fevereiro de 1763, aífegurou por emquanto a paz á Europa. Por elle íoi rcfti- tuido a Portugal quanto lhe haviam tomado os inimigos du- rante a breviífima campanha.

A guerra de 1762, fe não reverdeceu com o efplendor de novas glorias os louros nacionaes , foi comtudo de um proveito inconteflavel. Foi uma cuílofa demonftração de que o povo portuguez, quando os governos fabem defpertal-o do fomno lethargico da paz, relembra prefi:amente os dotes militares, que lhe lao infitos. Foi também aos que governam um avifo e uma fruduofa prevenção de que os eftados, para tomarem o leu logar no equilibrio inftavel das nações, hão de confiar a fua independência mais ao próprio esforço do que á generofidade fallivel de alliados egoiftas. Na ba- lança internacional pefam-fe os povos não imbelles, fenão armados.

É laftimolb condão de Portugal que lo os perigos o advertem, quando imminentes, ou os defaftres o aconfelham quando realifados. Do terremoto faíu a lua renovação mo-

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ral e phylica. Da guerra com a Helpanha procedeu a pri- meira conftituição racionarei e harmónica das luas torças defenfivas.

O conde de Lippe era menos um notável eftrategico do que um dilcreto organifador. Mu que a defeza de Portugal fe apercebia a grande preíTa, quando as baionetas inimigas lhe eram apontadas ao coração. Ponderou a Sebaftião de Carvalho os damnos d'eíla negligencia no que ha de mais vital para um povo independente. O talento do miniftro facil- mente aflimilava o que lhe parecia conducente á profperida- de, á honra, á fegurança do paiz. Aflim que depois da guer- ra, das providencias decretadas na brevidade e apertura de uma inA'afão ameaçadora, paíTou á meditada e regular orga- nifação da defeza nacional. D'ahi procedeu uma ferie de leis e de decretos, cujo fim era adaptar ás inftituições guerreiras de Portugal o que de melhor então fe conhecia praclicado pelas mais celebradas potencias militares, principalmente na PrulTia por Frederico II, o grande meítre dos exércitos no feculo xviii antes das campanhas paradoxaes da Revolu- ção.

Os eftados pequenos em território e povoação não podem nem devem manter na paz exércitos numerofos. Apenas con- cluida a guerra provê Sebaftião de Carvalho á diminuição dos encargos populares pela reducção das tropas, que então eram em defproporção com as faculdades da nação. Suppri- me na Extremadura leis regimentos de infanteria, quatro no Alemtejo, dois na Beira, egual numero no Minho e no Al- garve, e um em Traz os Montes. Reconhecendo a neceíTidade e importância de ter durante a paz uma numerofa artilheria, converte em regimento d'efta arma o fegundo batalhão do regimento de infanteria do Porto'. Mas a artilheria, porque

Decreto de lo de maio de 1763.

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é impoíTivel ou perigoíb pela fua Índole technica organifal-a nas vefperas de uma campanha, não bafta que feja apenas numerofa. E precifo que fe adeftre para os ferviços difficeis e complexos por uma larga e folida inftrucção na Iciencia e na praítica do leu officio complicado. Achava-fe a artilheria em Portugal em eftado laftimofo. Era a arma da plebe, quafi um mifter mechanico, de que os fidalgos refugiam como fe fora degradação de fua nobreza. Não havia efcolas theoricas, nem praílicas, onde fe profeífaíTem as fuás doutrinas e fe exemplificaífem os feus proceífos. Acode o legiílador a efla lamentável deficiência, reorganifa os quatro regimentos de artilheiros e decreta a inftituição dos feus eíhidos e exercí- cios'.

Eram ainda certamente, fe não rudimentares, ao menos imperfeitas as providencias promulgadas, mas nem por iífo Sebaftião de Carvalho merece menos que veneremos a fua memoria como a de inftituidor da regrada e moderna artilhe- ria em Portugal. Se eíla arma lhe merece efpecial predilecção, não fão menos importantes as reformas introduzidas na orga- nifação, na ordenança, na difciplina e no ferviço de guarni- ção e de campanha, no que era concernente á infanteria e ás tropas a cavallo. Bem fentia elle que fe os canhões comman- dados e fervidos por dextros e intelligentes artilheiros fão as grandes machinas na fangrenta officina dos combates, os in- fantes e os cavalleiros fão como que os obreiros numerofos no duriíFimo lavor dos campos de batalha. Sebaftião de Car- valho decreta a nova organifação das duas armas, fubftitue á tadica antiquada de lySS a tadica adequada aos progres- fos da guerra no feu tempo; eftatue as regras e preceitos do ferviço, e aífignala um paífo memorável na manutenção da difciplina, refumindo no âmbito breviílimo dos vinte e nove

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Alvará de i5 Jc julho de 1763.

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artigos de guerra, leveros e draconianos como eram, toda a legiflação penal para o exercito.

A força dos exércitos náo le firma unicamente na profi- ciência do commando, que é a fciencia da guerra nos feus differentes graus defde a fimples direcção de uma efquadra ou companhia até á lliprema e complexa governação das armas combinadas no maravilholb organifmo de um exer- cito em campanha. Não refide apenas na inftrucção, na dis- ciplina, no valor, na abnegação, na temperança e na prodi- giofa adaptação do íbldado ás máximas privações e aos mais duros e afperos trabalhos. Tudo ifto é o corpo da profiffão, mas a alma, o efpirito, a inlpiração é a honra e o pundonor. O officio militar é uma religião, religião de facrificio perma- nente á pátria e ao dever. É forçofo que o foldado efteja con- vencido plenamente de que o feu mifter é honrofo, nobre, venerado pela nação. Os loiros não podem aíTentar fenão em frontes livres, immaculadas de toda a tacha infamante ou de- fairofa. Os ofiiciaes, de quem pende no momento fupremo da defeza ou da defaffronta nacional, a gloria ou o def barato da nação, é bem que no conceito univerfal fejam egualados ás mais illuftres categorias do eftado. Ora durante o longo rei- nado de D. João V, e ainda nos tempos que feguiram, appa- recêra deíluftrada muitas vezes a dignidade militar pelo des- dém, com que os officiaes de berço obfcuro eram olhados pela nobreza, ou le rebaixavam a condições aviltadoras da lua honrada hierarchia. Sebaftião de Carvalho eífabeleceu, como dogma fundamental do novo exercito, que «devendo o ponto de honra animar aos officiaes mais de que outro algum motivo, todo o official de patente . . . lerá reputado nobre, e não poderá executar alguma efpecie de emprego, nem fa- zer outro algum ferviço, que não feja o lerviço real . . . fe fucceder que algum official envileça e defacredite o feu poflo por um procedimento contrario a effa difpofição fera expulfo

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e declarado indigno de lervir nos exércitos de lua majefta- de' » . As innovações introduzidas no ferviço das tropas pelos regulamentos de infanteria e de cavallaria eram tanto para aquelle tempo, apelar dos feus defeitos, uma faudavel revolu- ção e um progreíTo ineftimavel, que durante mais de um feculo eftiveram conftituindo a bafe e o principio das inftitui- ções militares em Portugal.

A infatigável diligencia do miniflro reformador não des- fallece, nem esfria depois de reorganilar tadicamente a força publica. A confulao e a anarchia na legiflação e adminis- tração militar eram então incompatíveis com a exiftencia de um exercito regular. Sebaftião de Carvalho, remediando aos abulbs enraizados no abfurdo lyífema de prover á manuten- ção das tropas portuguezas, decreta a abolição das antigas vedorias, e fubftitue em feu logar as thefourarias geraes das tropas nas três regiões, em que divide o território de Por- tugal. Eftabelece a forma de folver aos officiaes e aos Tol- dados, com inteira pontualidade, os feus melhorados venci- mentos \ Os dois batalhões fuiíTos tinham degenerado da lua primitiva inftituição. Os chefes pelas fuás malverfações e os Ibldados pela fua indifciplina haviam-fe tornado não fomente um encargo inútil ao ferviço, mas um perigofo exemplo de ra- pina e infubordinação. Sebaítião de Carvalho, por um d'eftes golpes improvifos e audazes, em que era confummado, defar- ma e diíTolve os dois corpos mercenários, e por uma fentença do conlelho de guerra, faz executar o coronel Graveron, accu- fado de abulbs indefculpaveis e de criminofas dilapidações.

Aproveitando para o ferviço muitas praças dos dois fup- primidos batalhões, e aliftando foldados allemães, infhtue,

' Regulamento da irifanteria, de i8 de fevereiro de 1763, e Regulamento da cavallaria, de 25 de agofto de 1764, ambos no cap. xiii, n.° 7.

2 Lei de 2 de julho de 1763.

3 Decreto de 3i de julho de 1762.

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como novo e trifte exemplo de tropas marcenarias, o regi- mento dos Reaes extrangeiros, o qual foi comporto de oito companhias de granadeiros", e pouco depois padeceu a mes- ma forte dos outros forafteiros, léus infelizes anteceffores.

Succede-fe agora uma larga ferie de providencias, que vão encaminhadas a firmar em mais folidos cimentos as in- ftituições militares de Portugal e a converter as tropas quafi irregulares, imperitas, fedentarias do tempo de D. João V n'um verdadeiro exercito permanente. Defde largos annos dominava em Portugal para fazer foldados um fyífema vi- ciofo, oppreflivo, iniquo, defhumano, que arrebatava á po- voação, ás mais pobres e defvalidas claífes populares, em levas tumultuofas a flor da juventude, convertendo n'uma defhonrofa fervidão o ofíicio de foldado, afaftando das filei- ras, pelo terror de um miferavel e perpetuo captiveiro, todos os que na fraude ou na valia podiam encontrar efcudo e ar- rimo contra as violências do recrutamento. As deferções eram frequentes, numerofas, impenitentes, apefar das penas feve- riíTimas decretadas a cada paífo para as cohibir e caítigar. Sebaftião de Carvalho reconhece que a forma do recruta- mento é na ordem racional o principio e a fonte da conftitui- ção militar n'uma nação, e que a difciplina mais auftera, a mais perfeita organifação, a inftrucção mais primorofa no foldado ferão baldadas, fe não eftiver a ponto a matéria pri- ma dos exércitos. O alvará de 24 de fevereiro de i 764 funda em Portugal pela vez primeira o proceífo jufto e efficaz de recrutamento perante as condições fociaes d'aquelle tempo. Procura o legiflador conciliar as exigências do exercito com o minimo vexame popular, refpeitando, quanto era então poíTivel, o maior commodo das ditferentes povoações e o movimento progreífivo do trabalho nacional. A cada regi-

Alvará de 17 de feptenibro de 1763.

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mento é aíTignado um diftrido efpecial, d'oiide haja de rece- ber as fuás recrutas, repartindo-as com egualdade pelas va- rias freguezias. São ainda numerofas as excepções, umas de- terminadas peia diftincçáo então fubllftente entre nobres e plebeus, outras eftatuídas em obfequio á agricultura, e ao trato fabril e commercial, ou didadas pelas confideraçôes do intereífe publico e pelos refpeitos da compaixão e humani- dade. Decreta Sebaftião de Carvalho a maneira regular de prover ao uniforme e veftuario das tropas, e acode á penúria, em que n'ell:e ponto tinham vivido quafi fempre, defampa- radas e efquecidas por uma negligente adminiftração.

O marechal-general conde de Lippe retirou-fe de Portugal em 1764 para o feu pequeno eílado na AUemanha, remune- rado largamente pela munificiencia do foberano com eminen- tes diflincções e valiofiíTimos prefentes. A fua aufencia deixa- va fem chefe militar o exercito portuguez na própria occafião, em que deviam fazonar-fe as reformas, que apenas começa- vam a germinar. Mas do feu caítello fenhorial de Buckburg o conde de Lippe volve os olhos para as novas inflituições, que deixa implantadas em Portugal, e d'ali dirige confelhos e inftrucções para que as fementes caindo em terra fafara fe não percam pelo defleixo da cultura. Sebaftião de Carvalho impellido, porém, pelo feu génio para as grandes reformas fo- ciaes e para os combates contra o feu máximo inimigo, o je- fuita, ainda mal vencido e fupplantado, deixa desfallecer os brios militares. Paífados poucos annos após a falda do general allemão, as tropas denunciam que não ha em Portugal para as manter na inftrucção e difciplina a mão vigorofa e firme do commando. A deferção, inevitável reacção contra as des- egualdades e vexames do recrutamento, vae crefcendo progres- fivamente, e o legiflador, ora concedendo perdões geraes aos defertores, ora comminando-lhes as penas mais feveras, não confegue extirpar inteiramente efta praga funefta dos exércitos.

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CAPITULO XIII

o SACERDÓCIO E O IMPÉRIO

A empreza, que Sebaftião de Carvalho tomara em feus robuftos hombros, era tão multíplice nas luas formas e as- fumptos, e abrangia de tal maneira todas as relações da vi- da nacional, que não era dado ao miniftro, após uma vido- ria, repoular por algum tempo fobre os louros alcançados. \'encida uma embaraçofa difficuldade, logo outra fuccedia, reclamando a perfeverança e o vigor do incanfavel eftadifta. Divertíra-o da faina predileda a guerra material, pelejada mais com as armas diplomáticas do que com os inllrumen- tos defenfivos, apparelhados na imminencia da invalao. Vol- via agora as attenções e os cuidados ao feu empenho princi- pal, qual era o de fujeitar de todo o ponto á poteítade fecu- lar as antigas e perigofas arrogâncias do poder ecclefiaítico.

Os jefuitas em Portugal e nas fuás poíTeíTóes ultramari- nas tinham lido defarmados, vencidos, exterminados. A po- derofa Companhia, fe ainda em Roma encontrava echo ás fuás laftimas no folio pontifício, e nas cortes europêas não vira ainda chegada a hora da fua reprovação, eftava de lado extinfta no paiz, onde mais ampla e mais frudifera havia fido a fua dominação. Dos jefuitas portuguezes e dos forafteiros domiciliados em Portugal, a máxima parte fora expulfa c trafladada como funefto prefcnte ao papa indócil, que fe obítinava em a proteger e confolar. Alguns dos focios mais notáveis jaziam nos cárceres de eftado, affrontados pela tremenda accufação de regicidas. Outros expiavam nas prifões a fufpeita de ferem participantes na fruflrada conju- ração ou o trifte privilegio de veftirem a roupeta de Santo Ignacio.

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De todos os jefuitas encarcerados era o padre Gabriel Malagrida ao mefmo tempo o mais popular e venerado en- tre a gente fuperfticiofa, e o mais odiofo e intolerável a Carvalho e aos inimigos da Companhia. O feu nome ficara vinculado ao dos Tavoras no proceflb e na fentença, que os havia condemnado. Eram celebres os exercícios efpirituaes, a que bufcára attrahir a nobreza e a gente do eftado chão, como ao único e eíficaciíTmio recurfo contra a ira celefte, que punira com o feu durifllmo flagello as abominações da noviflima Sodoma, qual era Portugal, facrilegamente gover- nado pelo miniftro de D. Jofé. defde o terremoto o in- difcreto fervor e piedade religiofa do fogofo jefuita fe tinham affignalado pela publicação do feu opufculo, em que forjan- do a theoria myftica do phenomeno terrível, o dava como jufta punição de grandes iniquidades. Haviam fido egual- mente notáveis e divulgados os feus vaticínios annunciando pouco antes da conjuração um grande perigo á exiftencia do imperante.

A alta reputação de fantidade, em que era tido entre a nobreza e nas claífes populares o padre Malagrida, a fua ir- requieta aítividade, o dom de prophecia, de que elle próprio bravateava, e de que o vulgo o prefumia aquinhoado, a fin- geleza habitual da fua vida e os fonhos infantis da fua mór- bida phantafia, confpiravam para fazer do humilde jefuita uma d'eftas figuras fobrehumanas, cujos traços fe imprimem indeléveis na imaginação e na memoria das rudes e crendei- ras multidões. O padre Malagrida era verdadeiramente um d'eítes heroes, que a lenda popular fe delicia em exornar de todas as virtudes, coroar de todas as perfeições e fegregar, como rariífima excepção, de todas as miferias e fraquezas da humanidade. No feculo xi teria oífufcado a Pedro Eremita. No feculo xin haveria difputado a S. Domingos a glorifica- ção de Deus pela fogueira contra os hereges albigenfes. Dian-

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le de Luthero e de Calvino ter-le-ía moftrado mais ardente do que o próprio fundador, em cuja milicia defde tenros an- nos fe arrolara. O Malagrida era um mixto fingular de cren- ça fervorofa e de extravagante myfticifmo, de abnegação e retiro efpiritual e de ambicioía e turbulenta intervenção nos affumptos mundanaes, de fimpleza pueril e de arrogante pre- fumpção, de ignorâncias infantis e de oufadas theologias, meio illuminado e meio herege, exaggerando a até raiar em blafphemia, e a innovação theologica até degenerar em religiofa monomania. Era um Savonarola fem o enthuliafmo ardente da palavra, e um Santo Ignacio fem a politica llibtil do famofo patriarcha. Ainda affim era clle a mais concreta perfonificação da Companhia em terras de Portugal. Outros feus confocios de mais alto engenho e de maior cultura e fapiencia o excederiam no confeíTionario, nas miíTões e nas elcolas. Mas nenhum alcançaria íbbrele^■ar-lhe na opinião e no aífedo popular. Ferir eítrondolamente o celebrado je- ÍLiita era pois como que fubmetter a própria Companhia ao opprobrio derradeiro. Teria fido altamente vantajofo ás mi- ras de Carvalho o fentenciar capitalmente o Malagrida como réu de lefa-majeftade. O exemplo de um jeluita publica- mente juítiçado por fentença do terrível tribunal da Inconfi- dência, haveria fido o reverfo das honras e diftincções, com que a ordem ambiciofa tinha imperado em Portugal por an- nos dilatados. Rolando fob o cutello do algoz, a cabeça do defventurado Jefuita, accufado de incitar pelos feus confelhos e pelas fuás inftigações a trama fangrenta contra el-rei, teria fido a confagração judicial de todos os delidos imputados á famofa Companhia. Para ifto energicamente fe empenhara o miniftro de D. Jofé, intimando á cúria que lhe defle a neceífaria audorifação para julgar na junta de inconfidência os clérigos infamados pelo crime de alta traição. Era grande a audácia de Carvalho nas fuás incurfões contra a immuni-

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dade clerical, fanccionada pelo abufo da tradição. Não ou- fou, porém, tocar a extrema raia da civil jurifdicção, entre- gando aos tribunaes communs um tonfurado. ProfeíTára lar- gamente em theoria que nos delidos puramente feculares não valia a immunidade ecclefiaftica. AUegára os exemplos em que os juizes temporaes, chamando ao feu pretório os criminofos revertidos de carader facerdotal, os haviam con- demnado á pena ultima, fem que precedeíTe indulto ou be- neplácito do pontífice romano. O animo prudente do efta- difta, em face da fanática povoação da fua pátria, ficou d'efta vez ainda muito áquem do feu efpirito innovador. Não julgou o tempo ainda maduro para entregar um clérigo rebelde ao baraço profano do verdugo temporal. Houve por mais azado e eftrepitofo o confiar a execução ao algoz au- dorifado pelas infalliveis decifões do Santo Officio. Podia, na verdade, fiappliciar o Malagrida como implicado na má- xima offenfa á foberania terrenal. Preferiu, porém, aprefen- tal-o em elpedaculo afFrontofo, como réu do attentado mais tremendo contra a divina majeftade. E de feito, um jefuita havido e juftiçado folemnemente como herefiarcha e dogma- tiíta, era ainda maior vilipendio á Companhia do que le no fupplicio derradeiro expiara o imputado regicídio.

A Companhia de Jefus fora inftituida para fer a guarda de honra do papado e a milicia pretoriana da orthodoxia. Aprefental-a pois agora, na peíToa de um dos feus mem- bros mais notórios, como quem vinha commacular e poUuir a pureza caítiffima da fé, na própria occafião, em que na Europa ainda pendiam os juizos acerca da virtude ou pravi- dade jefuitica, era na verdade accrefcentar um novo e fin- gular depoimento no proceíTo inftaurado moralmente contra os focios pretenfos de Jefus.

As acções, as palavras, os efcriptos do padre Gabriel de Malagrida preftavam-fe á maravilha a que o tribunal do

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Santo Officio avocaíTe da profana afpa dos fupplicios fe- culares para a religiofa fogueira das penas inquifitoriaes o malaventurado jefuita. Efcrevêra o Malagrida duas obras theologicas, em que dera larga rédea aos raptos myfticos da fua ardente e exacerbada phantafia. Uma d'ellas efcripta em lingua -vulgar tinha por titulo Vida heróica c admirarei da glo- riofa Santa Anua, mãe de Maria Santijfima, diélada pela mes- ma [anta com ajjiftencia, approração e concurfo da me/ma Jhberaiiijlfmia Senhora e feu Santijfimo filho. A outra era em latim e intitulava-fe Tradatiis de vita et império Anti-Chrijli (tratado da vida e império do Anti-Chrifto).

Aquelles dois efcriptos, ambos elles de uma febril e de- pravada theologia, não eram certamente muito mais pecca- minofos e oíTenfivos do dogma e da tradição catholica do que outros numerofiíTimos opufculos, onde a piedade exag- gerada e o fanatifmo alambicado fe haviam empenhado em alterar o fentido litteral dos textos evangélicos, adaptando- os ao que poderá bem cognominar-íe o romance ou a no- vella do chriílianifmo. Não pôde todavia conteftar-fe que na Vida de SanfAnua fe continham propofições, que o profano critério apenas haveria na conta de rifiveis e piedofas ima- ginações, mas que na afilada balança do Santo Ofiicio pefa- vam tão gravemente como as mais oufadas innovações de Luthero, de Zwingle ou de Calvino.

Cifrava-fe a doutrina principal do Jefuita em formalmente attribuir á mãe da A^irgem Santa o privilegio da conceição immaculada e a exempção maravilhofa do peccado original. Segundo as viíoes do Malagrida, Sant'Anna tinha fundado em Jerufalem um confervatorio de cincoenta e três donzel- las, e para o concluir os anjos baixando do empyreo fe ha- viam transfigurado em jornaleiros. As piedofas alumnas edu- cadas fob a tutela carinhofa de Sant'Anna, ab aeterno Deus as deífinára para ferem cfpofas de apoffolicos varões, taes

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como Nicodcmos, S. Matheus e Jofé de Arimathea. A eftas e mil outras extravagâncias de um efpirito vifivelmente ex- traviado, accrefcentava o Malagrida as mais terminantes af- firmações e juramentos de que Deus e a Virgem immaculada lhe haviam peíToalmente revelado o que na fua obra confi- gnára. Elle próprio ouvira por fingular e divino privilegio o Padre, o Filho, o Efpirito Santo, que em voz clara e diftinda lhe fallavam.

Ulava a inquifição n'aquelles tempos de mui pouca leni- dade com os réus accufados e convidos de herefias, de blas- phemias, de myfticas vifões e prophecias. Não podia julgar o Malagrida por fuás verdadeiras ou fuppoftas malfeitorias contra a regia poteftade. Entrava, porém, na fua ordinária jurifdicção o inquirir e condemnar o fanático jefuita pelos feus delidos contra a e pela fua vaidofa prefumpção de il- luminado por afflatos e favores celeftiaes. Inflaurou-lhe o pro- ceífo, que feguiu feus tramites odiofos, mas legítimos. Exis- tiam vivas as provas dos crimes imputados, hirtado muitas vezes o allucinado dogmatifta a que retractalfe os erros e im- piedades, perfeverára firme e inabalável. Infiftia cm affirmar as miraculofas revelações, com que em feus extafis o privile- giara a divina infpiração. Recontava como Deus o tivera em feu conceito por egual a S. Francifco Xavier, e o elegera por feu embaixador, apoftolo e propheta. Perfillia em dizer que a Virgem Santa lhe revelara havel-o adoptado por feu filho, com inteira fatisfação de Jefu Chrifto e da Santiffima Trindade. Contava egualmente os feus colloquios com alguns dos fan- tos mais illuftres pela lua piedade e fabedoria. Com eftas en- raizadas phantafias mais e mais fe lhe incendia no animo enfermiço o ardente defejo do martyrio. Com grande e as- fombrofa convicção referia os feus próprios milagres Bra- zil e em Portugal, particularifando as occafiões c as peífoas, a quem tinham redundado em falvação. Com eftas exaltadas

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e myfticas allucinações do leu elpirito le melclavam algumas declarações, por onde relliltava manifefto que o Malagrida nos que pareciam raptos mais remotos de todo o mundano intereffe e cogitação, não efquecia os ódios dos jefuitas con- tra o poder temporal, que os vexava e opprimia.

Em uma noite, contava o Malagrida, tivera uma vifão in- telleítual, em que le lhe haviam claramente reprefentado as penas, que padecia a alma do rei e as exprohrações, com que uns efpiritos devotos lhe eftavam condemnando as fuás perfeguições á Companhia. Caftigos fimilhantes haveriam de padecer as mais peíToas, que tinham cooperado na ruina da ordem exterminada. Dizia o impenitente jefuita, que em tudo quanto recontava não podia padecer nenhum engano, por- que era lliccedido com um fujeito, a quem a própria mãe do Redemptor vinha todos os dias conferir a ablblvição de to- dos os peccados em nome de feu filho. ConfeíTou que alguma vez entrara em duvida Ibbre fe efte, que lhe parecia favor lingulariílimo da Virgem, não feria antes inlidiofa invenção do tentador, porque affim lh'o haviam ponderado alguns pie- dofos facerdotes. Mas para confirmal-o em fua crença de que era abfolto pela voz de Noífa Senhora, viera em peífoa Jefu Chrifto a lançar-lhe em latim a ablblvição pelos termos for- maes que referia. Inflado uma e outra vez a defdizer-fe de fuás jaclanciofas e heterodoxas affirmações, faia do debate com os inquifidores e os theologos de cada vez mais perfis- tente e inabalável em feus erros, como aquelle, a quem a exal- tada imaginação reprefentava mais gloriofa a perfeverança nas doutrinas, do que temerolbs os trances do martyrio. Ur- giam-ri'o os inquifidores, taxavam-lhe de heréticas as fuás propofições, de facrilegio a prefumpção, com que fe dava por tão familiar em feus coUoquios com Deus e a Virgem Santa. Convenciam de phantafticas as fuás vilões, de fallazes as fuás prophecias. Parecia então retrahir-fe da fua impeni-

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tencia. Conduzido ao cárcere, rogava que o levaíTem nova- mente á prefença dos inquifidores e dos theologos. Exhorta- vam-n'o, reprehendiam-n'o. Diante dos graves antagoniftas, de novo hefitava por inftantes nos erros condemnados, mas logo redobrava de ^'igor, tropeçava, reincidia. Com maior in- timativa reiterava as paíTadas affirmações, defbaratando com a fua inflexivel contumácia as armas theologicas dos feus con- tradiftores. Nada pois rcftava aos juizes da para reduzir ao aprifco da boa doutrina a ovelha trefmalliada e fugidia. Attenta, pois, a fua obftinação, cegueira e impenitencia, con- demnou-o o Santo Oflficio, pela lentença de 20 de leptem- bro de 1761, como incurlb no delido de herefia, por haver affirmado, feguido, efcripto e defendido propofições e dou- trinas oppoítas aos verdadeiros dogmas, que propõe e enfina a egreja romana, e fer havido como herético, convido, falfo, confitente, revocante, pertinaz e proíitente nos erros condem- nados. A fentença concluía que por feus crimes foífe degra- dado das ordens facerdotaes, fegundo a forma e difpofições dos cânones fagrados, e depois com mordaça e carocha re- laxado á juftiça fecular. Os inquifidores pela formula habi- tual, com que o Santo Oíiicio bufcava lavar de fuás mãos o fangue das fuás vidimas, rogavam inftantemente ao braço fecular, que fe houveífc para com o réu benignamente, nem o fizeífe expiar as fuás culpas com a effufão do fangue ou o ultimo fupplicio.

No auto de celebrado a 2 1 de feptembro de 1 76 1 faia publicamente o defventurado jefuita milanez, Gabriel Malagrida. O fupplicio aífrontofo d'aquelle homem quebran- tado pelos annos, macerado pela doença, devorado pela ar- dente e irrequieta phantafia, devia fer o epilogo tremendo ás finiftras execuções do Santo Oíiicio. Era exadamente no equinoccio autumnal, quando o foi defvefte as luas galas e fe apparelha para a foturna hibernação da natureza. Aquel-

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la hoítia derradeira, fervida como os poftres do fanatifmo na facrilega mefa do Thyeíles inquifitorial, era um velho mais que feptuagenario, a quem a luperftição e o myfticifmo ha- viam arrojado ás ultimas loucuras da piedade exaggerada. Em volta do tablado, onde o Malagrida agora fe aprefenta- va, eftava congregado quanto havia de mais illuftre na velha fociedade portugueza. As damas e os fidalgos de uma corte ainda luzida efperavam nos palanques oftentofamente orna- mentados a apparição do celebrado padecente, como pode- riam aguardar anciofamente o ingreíTo de um ador nas ta- boas do theatro. Os embaixadores e enviados extrangeiros afiavam ali reprefentando a Europa, que afllftia ás fcenas lastimosas da barbárie nacional no ultimo Occidente. Os fe- cretarios de eftado fignificavam o poder fijpremo e temporal que pela vez extrema emprefiava o algoz ao facerdocio. A Cafa da lupplicação, a mais alta magiftratura de todo o Por- tugal, defattendendo as rogativas da Inquifição, condemnára o Malagrida a fer queimado. Mas logo por um esforço de chrifiã e piedofa benignidade commutára o rigor do feu ac- cordão, ordenando que o réu morrefle de garrote, e o feu corpo foífe depois entregue ás chammas.

N'aquella tremenda execução parecia que era apenas o Malagrida o infeliz fuppliciado. Mas o baraço, que extinguia na garganta ao jefuila os últimos alentos, estrangulara fatal- mente o Santo Officio, e vibrara o extremo golpe ao inftituto de Loyola. N'aquelle dia a Inquifição adoecia de funefta fe- nilidade. As cinzas do Malagrida não deixariam mais arder os garavatos na fogueira confagrada á purificação das almas peccadoras. As flammas, que envolviam o efpolio mortal do jefuita, defde o feu opprobriofo fambenito iam prender e atear-fe na roupeta da Companhia. Bem podéra o Malagri- da, do alto do patíbulo, haver dito em face á hiquifição o que na tragedia de Cafimiro Delavigne, o velho doge de

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Veneza á criminofa e cruenta Senhoria, referindo-fe ao jul- gamento da incorruptível pofteridade:

II dirá: elle auHl mife à mort pour les crimes.

E a turba, condenlada nas cercanias do Rocio, pode- ria ter refpondido ao ultimo reprefentante da Companhia: «Comtigo morre também a tua fociedade». Alluiam-fe de feito n'aquella occafião as duas columnas temporaes do poder ecclefiaftico: a Inquifição e a Companhia de Jefus, a herança de S. Domingos e o legado de Loyola. A magiftratura da trucidava fem piedade a milicia do papado. Dez ou doze an- nos mais tarde as duas famofas inflituições, aclimatadas em Portugal pelo zelo fanático de D. João III, haveriam de re- ceber o golpe defaftrofo da fua exautoração official, a Inqui- fição pelo regimento de 1771, decretado em nome da philo- fophia ainda vacillante pelo grande reformador, a Companhia no breve Domimis ac Redemptor vibrado em nome da fraqueza pontifícia pela hefitante mão de Ganganelli.

O fupplicio do Malagrida tem fido um dos capítulos mais fentimentaes e aggreíTivos contra a memoria do illuftre legis- lador. Os caufidicos da humanidade, em todo o ampliffimo catalogo das hoftias immoladas á pureza da e da doutri- na, efquecem facilmente as vidimas illuftres, para fitarem a vifta fevera e inexorável fobre os julgadores do malaventu- rado jefuita. O vulto de Carvalho, aos olhos dos feus duros antagoniltas em nome da philofophia ou da piedade, appa- rece-lhes por detraz da cadeira inquifitorial, para que fobre a cabeça do eftadifta caiam indivifas as abominações da In- quifição. Mas antes da execução politico-religiofa do falfo propheta defgraçado, regiftam os annaes do Santo Officio centenares de fupplicios mil vezes mais atrozes. No reinado pacifico e beato do monarcha de Mafra e Odivellas, o pobre judeu António Jofé, o mais intenfo luminar na viciofa litte-

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ratura d'aquelle leculo, expia na fogueira o crime da hebrai- ca aícendencia e profiíTão, e os amigos da humanidade la- crymofos não põem ao lalcivo monarcha portuguez a culpa de cumprir fem reludancia as fentenças do braço elpiritual. Julguemos os homens e os fucceíTos pelos padrões e normas do leu tempo. A Inquifição, que hoje havemos por deflionra e opprobrio da civililação, era ainda n'aquella epocha uma inftituição confervadora, julgada indifpenfavel a manter a unidade e pureza do catholicifmo, uma judicatura confagrada pelo voto popular. A philofophia, que profcreve o algoz, ou trucide em prol da egreja ou em nome da fociedade, era, como ainda hoje em muitas das relações mais importantes da vida politica e focial, uma timida afpiração de efpiritos feledos e videntes. O Santo Officio era n'aquella quadra confiderado tão legitimo e neceíTario como a Cafa da fupplicação e a de- fenfão da egreja contra os crimes religiofos, tão elTencial como a protecção da fociedade contra os aggravos temporaes. Ora o Malagrida perante a lei e a jurifprudencia d'aquelle leculo, era um herefiarcha, renitente, formal, obftinado. Segundo os coftumes d'aquella edade, perante a embrutecida opinião, a fogueira inquifitorial era tão venerada pelo rei, pela corte, pelo povo, como o fmiftro cadafalfo, onde a pena capital era prodigamente executada fem que a um lo jurifconfulto ou a um theologo, antecipando-fe a Beccaria e a Vidor Hugo, lhe paflaífe pela mente a poíTibilidade fequer de a abolir. Não vemos ainda em pleno regimen, que fe diz illuminado e li- beral, o artigo da carta portugueza obrigar os diíTidentes da crença official a efconder nas trevas, como os primeiros chriftãos nas catacumbas, os ritos religiofos do feu culto? Não vemos hoje o código penal comminando penas ainda feveras contra os que dcfrefpeitam e oífendem a religião? E os 'poderes, que fe dizem infpirados pela humanidade e alu- miados pela philofophia, hão hoje de encadear impunemente

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as confciencias, e fomente feria execravel a memoria do mi- niftro que, fegundo as leis, os coftumes e os preconceitos do feu tempo, fez caftigar no réu de lefa-majeftade o delin- quente contra a fé? Laftimemos o ancião de vida porventura impeccavel e puriffima, o fanático exaltado, o efpirito, que allucinado pela febre da fuperítição e feito heroe pela cega adoração da fua ordem, bufca intrépido o martyrio, porque das próprias cinzas eítá lenhando a milagrofa refurreição da Companhia. Mas julguemos o eftadifta pelas doutrinas da fua epocha, e negando-lhe com juíliça a lenidade e brandura do coração, não queiramos, á conta das cruezas inevitáveis, efcurecer a fua gloria pelas grandes reformas, que intentou. Não aquilatemos Cromwell pelas thefes de Herbert Spen- cer, a Convenção pelos princípios de Boífuet, o marquez de Pombal pela moral incruenta de Jefus. A revolução é fem- pre um parto laboriofo, e nunca houve fem dor parturição. A revolução é como o fpeífro folar, radiante de cores bri- lhantes, formofiílimas, porém interpoladas pelas raias efcuras de Fraunhofer. Nem a própria luz alcança em a natureza decompor-fe fem que a defdourem e maculem os listrões de cerrada efcuridão.

Com melhor fundamento do que contra a execução do Malagrida nos poderamos porventura levantar contra a ni- mia tolerância de Carvalho para com o tribunal do Santo Officio. Para quem fe propunha emancipar das trevas cle- ricaes a intelligencia popular, e expungir da pátria civilifa- ção quanto lhe era ainda infefto e defhonrofo, parece que nada podia haver mais confentaneo aos feus profpedos de larga reformação do que o fupprimir inteiramente a odiofa magiftratura. É verdade que as fogueiras para fempre fe apagaram, apenas as chammas confumiram o defventurado Malagrida. Mas a inquifição perfeverava ainda, como pe- renne ameaça ás confciencias. Ainda em 1765 contemplava

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Lifboa um pompofo auto de fé, em que faiam penitenciadas pelToas numerofas, e muitas d'ellas pertencentes ao eftado ecclefialfico. Não era Sebaftião de Carvalho, pelas fuás idéas adverfas francamente á poteítade clerical, propenfo a fomen- tar e favorecer a Inquifição. No preambulo e nos artigos do regimento reformado de 1774 tranfparecem a cada paíTo as reluiftancias do feu cfpirito contra o fevero e temerofo tribu- nal. Não era porém politico, nem exequível o empenhar ao mefmo tempo as forças do governo fecular n'uma guerra travada em toda a linha contra a influencia e jurifdicção do facerdocio. Tinha na vulgar opinião em feu favor o Santo Ofíicio o fer o mais leguro e firme antemurai contra as diíTi- dencias religiofas. Convinha ao legiflador, em vez de o abolir, convertel-o n'uma regia inítituição, que nas apparencias de fervir fomente a fé, podeífe eílar a foldo do império temporal. N'elle achava fubfidio valiofo e inftrumento preítadio na campanha pertinaz contra a Companhia. Poderia ainda n'elle apoiar-fe, quando cumpriífe, a auftoridade fecular. Deu-lhe primeiro os foros de régio tribunal, conferindo-lhe o predica- mento de majeftade. Impondo-lhe mais tarde, como norma da fua jurifdicção, um regimento mais accommodado á luz do feculo e aos intereífes do poder civil, tranfmudou-lhe a es- fencia primitiva e tornou fácil á futura revolução o apagar da fronte de Portugal eíte ultimo ferrete da fua degradação reli- giofa. A Inquifição, refreada nas fuás pretenfões á omnipo- tência, poderia defde então fazer apenas o mal, que a regia poteítade permittiíTe.

Outros empenhos mais inftantes concitavam a energia do miniftro fempre attento aos frequentes rebates, que lhe dava o feu inimigo mais poderofo e impenitente. Durava com a cúria o rompimento: o papa Clemente XIII aportado a proteger os jefuitas como os filhos mais diledos da tiara; Carvalho inflexivel em perfeguil-os como os mais intradaveis

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inimigos da coroa fecular. O pontífice, em parle pela fua obítinada predilecção, em parte pela obfeffão da Companhia, refolvêra defaggraval-a contra os golpes do miniftro, confir- mando folemnemente o inftituto períeguido e infamado, e proclamando ao orbe catholico no mais amplificado panegy- rico as virtudes, a benemerência, a fantidade e os ferviços da fatnosa íbciedade. O breve Apojlolicum pajcendi niimiis, datado de Santa Maria Maior aos 7 de janeiro de 1765, era um repto lançado do Vaticano ás opiniões e aos poderes que tinham condemnado a ordem ambiciola. Apefar das feveras precauções contra a introducção de lettras e breves pontifí- cios, os jefiútas haviam efparzido clandeftinamente o novo es- cripto em toda a chriftandade. Chegaram copias a Portugal. Não podia Sebafiião de Carvalho conter a indignação e a re- prefalia em prefença da oufada provocação. O pontificado queria a guerra, acharia pois armado o antagonifta. Aos raios do Vaticano refponderiam as tremendas comminações da re- gia majefiade. O procurador da coroa aprefentou uma peti- ção de recurfo, na qual diffufamente deduzia as antigas ac- cufações contra os jeíliitas, roboradas com os recentes e no^os tefi:emunhos da íua audácia incorrigível, e fiipplicava ao fo- berano que houveíTe de empenhar a audoridade na defeza da fua coroa, na confervação do Ibcego publico, decretando fer nuUo e otTenfivo o novo diploma pontificio. A lei de 5 de maio de 1 765, dando plena fatisfação á fi.ipplica do procurador da coroa, declarou obrepticio e llibrepticio o breve Apojlolicum pafcendi múnus, ordenou que todos os feus exemplares exis- tentes em Portugal foíTem entregues no tribunal da Inconfi- dência e houve por nuUos todos os breves e outros diplomas, que emanados da chancellaria papal não houveíTem recebi- do o régio beneplácito. Comminava a lei as penas mais feveras aos que oufaífem contravir ás luas prefcripções : a indigna- ção real, efpecie de excommunhão maior da realeza abfo-

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luta, a confifcação de todos os bens e as outras formidáveis expiações, com que na legiflação penal d'aquelle tempo fe puniam os criminolbs de lefa-majeftadc. Era além d'iíto ne- ceíTario precaver que pelas artes da Cúria e da Companhia, fe não ditiiindiffem de novo pelo reino as bulias e refcriptos procedentes do Vaticano. A lei mandava abrir devaíTa per- manente contra os que infringiíTem os preceitos, que prohi- biam a minima communicação com o pontifice.

Á obftinada contumácia, com que Roma e os jefuitas contendiam por manter a fua auíloridade e influencia, res- pondia inquebrantável a audácia e o vigor do eíladiíla. A Companhia de Jefus era então como as ultimas reliquias de um exercito vencido, mas ainda não de todo relbluto a entre- gar-íe á difcrição do vencedor. Expulla de Portugal, comba- tida em França tenazmente pelos parlamentos, léus antigos e implacáveis adverfarios, fufpeita a alguns eítados, em ou- tros mal foífrida, em todos infamada, buícára intrincheirar-fe, como em refugio derradeiro, á fombra do papado na forte cidadella vaticana. AíTediada rijamente, d'alli irrompia a cada paflb, como em defefperadas e fubitas furtidas. Saía porém a difputar-lhe o campo e a picar-lhc a rcçaga na fugida o leu inexorável antagonifta.

No mefmo tempo, em que os jefuitas arrancavam das mãos débeis de Clemente XIII o breve Apojfolicwn pafcen- di, como o titulo folemne da fua apotheofe, um fucceífo inopinado conduzia ás mãos do governo portuguez alguns fecretos documentos, que atteftavam a íntima conftituição da ordem reprovada, e punham novamente de manifeíto o perigo d'eíl;a fingular corporação para o império temporal em toda a chriftandade. Navegava do Peru para a Hefpanha um galeão de nome Hcnnione. Rendido nas cofias de Portu- gal pela fragata Aãipe, da marinha de guerra britannica, lançaram os navegantes ao mar um cofre, onde vinham en-

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cerrados papeis e correfpondencias. Arrojaram-n'o as ondas e as correntes ás praias do Algarve. Vem a arca myfteriofa á prefença do monarcha e dos miniftros. E aberta com uma efpecie de theatral folcmnidade, levantando-fe de todo o feu conteúdo um auto publico. Acham-fe cartas e defpachos do provincial dos jeluitas no Peru para o prepofito geral de toda a ordem, o famofo padre Lourenço Ricci. Deparam-fe entre aquelles documentos algumas profiíTões do quarto voto, pelas quaes os confcriptos n'aquella temerofa milicia efpiritual fe obrigavam á mais cega e inteira obediência ao feu geral, e quando aíTumptos a alguma dignidade prelaticia, a executar pontualmente no governo e minifterio paftoral os confelhos ou mandatos do leu fupremo chefe. Promulga então Carva- lho a carta de lei de 4 de maio de 1765 e o alvará de 3o de abril do mefmo anno, denunciando ao mundo os fecretos in- ftrumentos, em que a impenitente Companhia firmava a fua dominação e o feu poder.

Não repoufava o enérgico miniftro na empreza de extir- par do folo portuguez quanto n'elle haviam femeado os je- fuitas para extender e folidar o feu dominio. Com o impulfo vigorofo do feu braço truncara a arvore robufta. Era neces- fario diradical-a do torrão e arrancar-lhe as ultimas raizes, defbravando a gleba para culturas mais profícuas. A ordem invafora não limitava apenas aos feus profeífos o influxo e a força, de que difpunha. Cumpria que além dos feus re- ligiofos, coadjutores e eífudantes, fora do recinto das fuás cafas e collegios, noviciados e miífões, a Companhia tiveíTe diífeminadas nas terras de Portugal e feus domínios as co- hortes fubfidiarias, mais temíveis por incógnitas, menos fus- peitas por defpidas de roupeta e apparencia jefuitica. Eram os feculares e leigos aíTociados ao perigofiíTimo inífituto pes- foas de todos os eítados e condições, vinculando eftreita- mente a fociedade civil á regra de Santo Ignacio. As cartas

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de confraternidade, expedidas pelo prepofito geral da Com- panhia, eram como que os titulos de naturalifação na vaíta monarchia theocratica. A Cúria, proporcionando a lua audá- cia á violência da oppofição contra a ordem reprovada, confirmara pelo breve Aminarum falnti de i o de feptembro de 1 766 os privilégios e indultos efpirituaes, em que ficavam participantes as peíToas d'efte modo filiadas como externos auxiliares da Companhia. Dos jefuitas das províncias portu- guezas o maior numero haviam fido expulfos e banidos, outros Jaziam nos ergafi:ulos, alguns porém tinham permane- cido em Portugal, como quem ofi:enfivamente renunciara aos feus antigos votos e viviam apenas como egreíTos tolerados fegundo a lei de 3 de feptembro de lySg. Mas fe o apparente corpo da Companhia não era para temer, ainda acafo fijbfiftiam vicejando occultamente os rebentos do tronco prin- cipal. A nova provocação dos jefi-iitas, que haviam extor- quido ás mãos trémulas do velho Clemente XIII o breve Aniinaritm faliiti, era força refpondeífem novos raios da ul- trajada potencia temporal.

A lei e edido perpetuo de 28 de agofto de 1767 foi o ul- timo venablo defpedido ao peito da Companhia em Portu- gal pela mão vigorofa de Carvalho. Prohibiu o fevero legis- lador que nenhum portuguez fecular ou ecclefiaífico podeífe foUicitar ou receber do geral dos jefuitas ou dos feus delega- dos, cartas de confraternidade, aífociação ou communicação de privilegio, fob pena de incorrer em crime de lefa-majeftade. A todas as peífoas, que em fuás mãos tivelTem taes diplo- mas, ordenou que no termo peremptório de dez dias, fe vi- vcífem em Lifboa, os foífem depofitar no juizo da Inconfi- dência. Nas províncias e nas terras ultramarinas aíTignalou prafos mais compridos para que eífes papeis reputados fub- verfivos fe entregaífem ás juftiças territoriaes. Prefcreveu que todos os indivíduos áquella data encorporados ou pro-

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feíTos na Companhia ou aíTociados em alguma confraria es- tabelecida fob os aufpicios da ordem illegal e reprovada, o vieflem confelTar aos magiltrados. Declarou todos os mem- bros públicos e fecretos da Companhia por inimigos iiicorri- gipeis e coininiiiis de toda a potencia temporal, da tranqiiillida- de e da }>ida dos príncipes foberanos e do Jocego publico dos reinos e e/fados. Ordenou feveramente que todos os egreíTos jefuitas lailTem defde logo de Portugal e feus domínios, conti- nuando todavia a receber as côngruas, que a lei eíl:atuira, e exceptuou d'eí1:a derradeira profcripção unicamente os que obtiveíTem efpecial e régio beneplácito. Mas ainda a eftes, reputados por mais inoífenfivos, a lei lhes tornou defezo o en- íino, a catechefe, o púlpito, o confeíTionario. Seriam apenas tolerados no feio da Ibciedade portugueza, mas como lepro- fos efpirituaes, contra quem o poder civil excogitava as mais duras precauções, mantendo-os fegregados de todo o conví- vio intelledual. Seriam obrigados a preftar juramento de fide- lidade, a abjurar toda a communicação e frequência com os membros da Companhia e o feu geral, a prometter que nunca mais dariam favor e auxilio á ordem réproba. Seriam " levados egualmente a execrar e deteílar as reífricções men- taes e as fubtilezas ardilolas inventadas pelos theologos e moraliftas da Companhia, com o intento de illudir e profanar a religião do juramento. Haveriam também de abominar a fujeição e obediência cega e material ao chefe da Companhia. Os antigos jefuitas, d'efl:a maneira como que defnatural lia- dos do feu grémio, feriam obrigados a viver nas terras, onde o governo lhes aífignaífe o domicilio. D'eítas meticulofas, mas neceíTarias providencias, apenas a lei exceptuava os je- fuitas que, tendo profeífado n'outras ordens regulares, ha- viam folcmnementc renunciado á primeira profiífão. A Com- panhia, fe bem extinda e exterminada de todos os territórios portuguezes, como hera vivaz e perfiftente, continuava a en-

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lear-fe no folio pontifício, e os olhos do paftor univerlal in- clinavam-fe para ella cada vez mais laftimados e compaffi- vos de fuás provações e calamidades. Clemente XIII parecia vincular á fortuna da Companhia os próprios deftinos da egreja c do papado. O exercito vencido e deítroçado em Portugal, acantonava em fom de guerra inexorável em to- dos os mais paizes da chriftandade. Não faltavam n'efí:e reino os valedores e os amigos, os fanáticos e os confortes na fua vidoria ou adverfidade. A lei prohibia fob penas feveriíli- mas que de futuro os jefuitas, ou juntos ou feparados, fos- fem nunca admittidos em Portugal. Egualmente confidcrava como perturbadores do focego publico e fujeitos ás p»enas correfpondentes os que oufaífem aprefentar interceífões e requerimentos para que jefuita algum foífe de novo recebido e tolerado. Comminava caftigos aos magiftrados, que taes requerimentos acceitaífem. A lei declarava também incur- fos em crime de lefa-majeftade os que introduzilTem jefui- tas em Portugal, e os que fabendo que exiítiam n'eíle reino os não denunciaífem no termo peremptório de vinte e qua- tro horas. E efta difpofição não fomente fe referia aos je- fuitas de roupeta, aos que ainda pertenceflem á Companhia, fenão também aos c]ue intentaífem volver a Portugal, dan- do-fe por egreífos ou faidos do feu grémio. Com penas as- fim mefmo feveriíTmias ameaça o legiflacfor os jefuitas que entrados fraudulofamente, em território portuguez foífem achados. Com egual rigor perfeguia a lei os affociados, que no prafo definido não fizeífem perante os magirtrados as fuás declarações. Ordenava alem d'iíro o edido régio, que a dcvalfa instituída para conhecer das infracções permane- celfe aberta constantemente. Bem fabia o legillador que o breve Animanim faliiti íòva expedido com plena fatisfação e complacência do pontífice romano. Mas o decoro politico ordenava que o rei fideliffimo, um dos filhos mimofos da

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romana, não fizeffe ao pae commum a affronta de o haver publicamente por fautor apaixonado e facciofo inftigador dos jefuitas. A lei, recorrendo a uma ficção de fi mefina tranfparente, declarava o breve por obrepticio, fubrepticio e nullo, e prefcrevia fob penas temerofas, que folTem entre- gues em breve prafo quantos exemplares d'elle exiftiíTem em Portugal, de maneira que ninguém os podeíTe confervar em leu poder.

Por aquelle tempo fe imprimia e divulgava largamente a Dediicção chronologica e critica, a memorável requifitoria, copiofa de erudição lacra e profana, onde appareciam am- plamente hiftoriados os erros e os delidos da Companhia, e a fua influencia funeítiflima em todas as relações fociaes e religiofas, politicas e intelleduaes de Portugal. O livro trazia eftampado á fua frente o nome do celebrado procurador da coroa, Jofé de Seabra da Silva. Mas apefar da paternidade putativa, muitos fuppozeram n'aquelle tempo, e ainda outros o mantêem em noíTos dias, que a autoria verdadeira perten- cera ao miniftro omnipotente. Se o famofo jurifconfulto, ao principio alumno e lifonjeiro de Carvalho, e mais tarde fua viftima, não foi o efcriptor do livro celebrado, não é crivei que o valido e miniftro de D. Jofé, da multidão immenfa de negócios, em que defpendia o tempo e os cuidados, ainda po- deíTe aproveitar tão largos ócios, quaes exigia certamente a empreza de efcrever tão dilatada compofição, e compulfar ás centenas os livros e as memorias que citava.

Pouco depois de promulgada a lei, que refpondia trium- phalmente ao breve Aniinarwn Jaliiti, era expedida a cada um dos prelados portuguezes uma copia d'aquelle documen- to, levando por commentario e explanação um exemplar da Dcdiicção chrojioloffica e da petição de recurfo, em que as- fentára a folemne condemnação das lettras pontificias. Não era, de feito, unicamente para os dependentes feculares da

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realeza, que era forçofa a obediência ao imperante. Quando Sebaftião de Carvalho refpondia ás bulias do Vaticano com os diplomas da fua chancellaria, os primeiros a accurvarcm- le reverentes e fubmiíTos ás decifóes e aos preceitos do im- pério fecular, haviam de fer o clero e principalmente a or- dem epifcopal. Quafi todos os prelados, uns por adulação, os outros por temor, facilmente cooperavam nas reprefalias do miniftro contra as invafões da romana. Um ou outro le moftrava, porém, menos lubmiflb ao jugo do governo tem- poral. Mas ao centro da própria diocefe o iam procurar e corrigir as duras exprobrações do di6tador, fe o bifpo, ainda mal aclimatado á fua nova e extranha fervidão, intentava extender a báculo alem das fuás raias efpirituaes. De to- dos os prelados, o mais rebelde á fupremacia da regia au- ítoridade era o bifpo conimbricenfe, D. Miguel da Annuncia- ção; efpirito eítreito, curtido e educado em todas as velhas abufões ultramontanas, e em todas as antigas exaggerações do fanatifmo; homem de bons coftumes e vida auftera; de fcien- cia efcaífa e ruim; de animo altivo e inflexível ao que fup- punha derogatorio das fuás faculdades prelaticias. Tinham por ufança mais antiga do que piedofa os povos de Abiul, na diocefe de Coimbra, folver no primeiro domingo de agofto com folemne feftividade na egreja parochial um voto a NoíTa Senhora das Neves, aífociando, como fe cofluma em Portu- gal, á celebração religiofa a mundana diverfão dos touros e das cavalhadas. Efcandalifava-fe o bifpo, com razão, de que aos oíficios da piedade chriflan mefclaífem povos rudes fo- bejas e oíTenfivas carnalidades, mais de pagãos que de gentes alifladas nas myfticas bandeira de Jefu-Chrifto Prohibiu as cavalhadas e os touros. O povo, que fegundo o teor dos feus maiores entendia ler imperfeito o culto de Noífa Senhora, fe aos ritos e ao fermão dentro da egreja, fe não feguiam fora no adro e no terreiro as diverfões eftrepitofas, deu-fe

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por mal fenãdo com a auítera prohibição. Redarguiu, mur- murou, refiftiu, quafi entrou em aberta infurreição. Ordena o bifpo então que o parodio não a egreja aos ancioibs fefteiros de Abiul.

Supplicam, inflam, ameaçam, e o bifpo Icmpre inque- brantável. Aggravam-fe c queixam-fe ao governo da força e violência, que o prelado lhes fazia. Efcreve então Carvalho ao bifpo em carta regia afperrimas cenfuras. Dizia efle notá- vel documento que a refolução epifcopal fora tomada «com grande defconfolação do povo e ainda efcandalo da pieda*de chriftan por le lhe difficultar a egreja, em que confiíl^e o prin- cipal objedo d'aquella feita » . Accrefcentava que « as feitas, que fe celebram por voto do povo e fe prefcrevem e regulam pelas camarás do reino, não devem fujeição aos prelados ordinários para as poderem impedir, e muito menos com o pretexto, que o bifpo declarou, pois fe não poderia perfuadir que a fefta celebrada na egreja de manhã fe houveífe de profanar com os touros corridos pela tarde em praça feparada, nem fe podia prohibir aos leigos feculares o que os fummos pontífi- ces permittiam aos próprios ecclefiaíticos» . Concluía a epiflola fevera com efta formal intimação: «Não podendo tolerar-fe um exemplo d'efta qualidade, fou fervido declarar-vos que tão diífonante é o impedir a feita. . . como exceífo e abufo na voífa jurfdicção e minifterio o prohibirdes direita ou indi- rectamente os touros . . . e que de uma e outra coufa vos de- veis abiter . . . fem vos embaraçar no que vos não pertence ' » .

D'eita vez feria o bifpo o defenfor da boa caufa, fe razões de zelo pharifaico e de exaggerado fanatifmo o não aconfe- Iharam a combater as profanidades e folias como neceíTa- rio complemento do culto religiofo. Mas ao prelado não per-

' Carta regia ms. na CoUecção de le^ijlaçáo de Trigofo, anno de 1767, no gabinete de Manufcriptos da Academia das Sciencií^s.

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tencia realmente o reprimir de lua própria auítoridade o que o povo durante feculos aprendera no exemplo e nos coftu- mes das claíTes elevadas. A punição ao prelado, que ufurpá- ra as attrihuições adminilírativas, feguiu de perto a audácia da invafão.

A repreíTáo contra os abulbs do poder ecclefiaftico e contra a fua intervenção nos alTumptos puramente feculares era a ha- bitual preoccupação do oufado reformador. Nas copiolas in- ítracções expedidas a 2 de agoíto de 1766 a D. Antão de Almada, que ia por governador e capitão general ás ilhas dos Açores, entre varias providencias para melhorar a con- dição moral e económica do archipelago, não fe elquece o miniftro de encommendar-lhe com inftancias repetidas que bufque enfrear e repellir as incurfões da jurifdicção facer- dotaj contra a foberania e independência do império, exe- cutando n'aquelles territórios quanto as leis acautelavam e prefcreviam para conter as mundanas ambições do eftado clerical.

O clero, que n'aquelle feculo não podia brandir o gla- dio temporal, para impor pela força a fua vontade e accurvar aos feus intereíTes terrenaes os que oufaíTem contradizêl-os, pedia á egreja as armas efpirituaes, com que aflbberbar ao feu dominio a própria majeftade e os feus reprefentantes e mandatários. As cenfuras e excommunhões tinham fido nas primeiras edades do chriftianifmo as penas decretadas con- tra os delidos meramente ecclefiafticos. Quando porém du- rante a edade media, a egreja fe confubftanciára intimamente com o eftado, e o poder das chaves trefpaífára oufadamente as fuás fronteiras naturaes, os pontífices romanos, confundin- do aftutamente com as mais peccaminofas abominações a jufta defeza dos poderes temporaes contra a mundana fupre- macia do papado, c capitulando de peccado toda a negação de obediência aos preceitos do paftor univeríál, como fuze-

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rano de todas as monarchias, tinham abufado longamente da excommunhão e do interdifto para lubmetter e humilhar os foberanos e os povos infurreítos contra a omnipotência pon- tifical. O clero feguindo o exemplo, que defde o folio de S. Pedro lhe dera por tantos feculos o diftador efpiritual do Vaticano, acoftumára-fe a ver na excommunhão o terrível inílrumento das fuás ambiciofas afpirações.

Um cónego da Guarda, contra quem o corregedor da comarca de Pinhel havia dado fentença n'um litigio, tinha ameaçado com eíta ultima razão do império facerdotal o ma- gistrado. Uma provifão expedida em nome do rei caftiga fe- veramente nas phrafes da mais alta indignação o arrogante prebendado. Para defabufar, dizia eíte diploma, os povos en- ganados com lemelhantes apparencias de cenfuras, o poder temporal declarava todos os documentos publicados n'efte pleito pelo juiz ecclefiaftico por fimulados, capciofos, nullos, irritos e vãos, e ordenava que ninguém lhes deffe credito, fob pena de lhe ferem confifcados os feus bens. No decreto de 10 de março de 1764 o rei eftatuia ferem exclufivamente refervados ao feu conhecimento e decifão os cafos de excom- munhão pronunciada contra os miniftros, juftiças e tribu- naes, ainda mefmo quando as excommunhões e declarató- rias foíTem procedentes do Vaticano.

Todas as extranhas pretenfões da corte de Roma e do poder facerdotal a dirigir e dominar foberanamente o gover- no temporal e a vida civil das fociedades, andavam compen- diadas n'uni bulia celebrada, que era por aífim dizer a Ma- gna Carta das franquezas e liberdades clericaes na lua lufta immemorial com o império. Era a bulia a que tem nome //; coena Domini, ou a bulia da Ceia, a qual, defde os tempos de Pio V, em Roma fe publicava annualmcnte na quinta feira maior com grande e f) mbolica Iblemnidade. Não podia con- ceber-fe um diploma pontifício, onde em fummula e compcn-

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dio fe oftentaíTem com tamanha crueza e arrogância as dou- trinas mais adverfas aos direitos do poder civil. Todos os annos no dia mais folemne da chriftandade Roma, como que fe contraftalTe mundanamente na lua majeftade e grandeza imperatoria com a humildade e manfidão do Redemptor pre- gado n'um madeiro, Roma, não a Roma pagã e triumpha- dora, fenão a Roma chriftan e efpiritual, cingindo o triregno refulgente, infjgnia da fua univerfal dominação, meneando os dois gládios de Gregório VII e veftindo a purpura dos Ce- fares, pela bulia da Ceia annunciava oufadamente ao orbe ca- tholico a fujeição de todos os monarchas e governos ao feu difcricionario poderio. Os potentados mais catholicos e ad- didos nas coufas religiofas á fanta fede, haviam fempre vilfo de mau grado aquella audaz proclamação da monarchia pon- tifical. Era tempo de condemnar egualmente em Portugal a bulia attentatoria do império fecular. Para diífundir e ro- borar no catholicifmo as cxtranhas doutrinas profeífadas n'aquelle memorável diploma pontificio, artificiofamente ha- via a cúria inventado os índices expurgatorios, efpecie de pau- ta e aranzel da alfandega efpiritual, onde vinham declaradas as idéas e os efcriptos, que podiam ter entrada e os que fe reputavam contrabando no reítrido mercado ultramontano. A Roma antiga mandara outr'ora a extender e firmar pelo mundo o feu dominio os feus proconfules e pretores, as fuás legiões e as fuás cohortes. A Roma pontifical repartia pela terra, para fegurar a fua conquifta, a inquifição e os je- fuitas, de ponto em branco armados e apercebidos com a cenfura ineludavel e fuprema fobre as manifeftações da in- telligencia. Não baftava fcguir pontualmente a letra do Evan- gelho, como a egreja a definira quanto ao dogma e á moral. Para fer havido por catholico fem macula era forçofo admittir e confeíTar que Roma era não fomente a arbitra infallivel de toda a fé, fenão também a fonte da potcftade temporal, e a

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guia e o fanal dos foberanos e dos povos no regimen das humanas fociedades. Todo o livro, que não profeíTaffe axio- mática a infallibilidade pontifícia, e não defendeffe as mais abftrulas pretenfões ecclefiafticas ao governo fecular, era nos Índices equiparado ás obras dos herefiarchas, dogmatiftas e apoílatas de maior execração entre os catholicos. A bulia da Ceia era por aíllm dizer o evangelho das mundanas ambições pontificaes. Os Índices, e a cenfura inquifitorial eram os po- derolbs inftrumentos confagrados a reprimir a duvida ou a negação contra a foberania univerfai do Vaticano, e afua abu- fiva intervenção nos intereffes puramente temporaes. A carta de lei de 2 de abril de 1768 é deftinada a condemnar ao mes- mo paíTo a bulia da Ceia e os Índices expurgatorios. O procu- rador da coroa na feptima demonftração da fegunda parte da Dediicção chronologica denunciara n'uma petição de recurío aquelles dois funeftos documentos e do rei Ibllicitára o defag- gravo contra as quebras da lua audoridade. Era urgente deferir ao que em nome das regalias majeftatícas havia fup- plicado o filcal da coroa. Era forçofo, dizia o legillador, fus- tentar as juftas immunidades e a religiofa veneração devida á egreja, mas urgia egualmente precaver que os abulbs da ju- rifdicção ecclefiaftica, caufadores de públicos elcandalos, não pozeffem em rifco os próprios direitos do facerdocio. Era não menos necelTario manter ao rei e fenhor foberano, que na terra não tinha fuperior, a livre independência, fem a qual as fociedades civis, e até mefmo o eflado ecclefiaftico não pode- riam fubfiftir. A bulia, contra a qual haviam com vehemencia reclamado os foberanos mais pios e orthodoxos, bufcára es- tatuir fobre puras temporalidades, de todo o ponto alheias á cenfura e infpecção do facerdocio. Decretava o legiflador que a introducção da bulia reprovada era dolofa e clandeflina. Ordenava que todos os feus exemplares, e os Índices expur- gatorios, ficaífem para fempre fupprimidos como obrepticios

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e fubrepticios, e de nenhum \igor. Prohibia que ninguém podeíTe imprimir, vender, publicar, diftribuir ou confervar em feu poder a bulia da Ceia, os Índices expurgatorios, ou quaefquer breves pontifícios, em que feja defezo e condem- nado qualquer livro. Comminava como penas aos infraítores as dos crimes de lefa-majellade.

Os poderes, quando chegados á ília derradeira decadên- cia, parece que redobram de imprudente e inútil energia para manter e dilatar a fua dominação. Eftava então a Eu- ropa e a chriftandade n'um dos pontos mais notáveis e peri- gofos da fua carreira, como n'um trópico tremendo, onde não era fácil antever a que oufadas innovações fe haveria de arrojar a humanidade. Era a epocha da philolophia de- molidora, o tempo em que era elegante a incredulidade, a qua- dra que de breves annos precedia a Revolução de 1 789, a era em que os efpiritos defcrendo ou duvidando, infeftos ao pas- fado, incertos do porvir, eííavam largamente accumulando os combuftiveis, em que havia de prender e flammear a grande conflagração. A fociedade civil bufcava claramente delatar-fe dos vinculos herdados, tão impaciente da oppreíTão gover- nativa, como da tutela ecclefiaftica nas relações e intereíTes mundanaes. O pontificado, como força politica, decaia mais e mais no conceito univerfal. Principiava eíte encadeamento de fucceíTos, que haveriam fatalmente de levar defde a fu- jeição de Pio VI á republica franceza até á perda irrepa- rável do eflado temporal nas mãos nervofas, mas invalidas de Pio IX. Pois apefar das circumítancias adverfas ás pre- tenções ambiciofas do papado, ou antes por feu eífeito ne- ceífario, empenhava a fanta os feus esforços por moftrar na apparencia a força, que não tinha. Como os antigos par- thos, dando as cofias ás legiões romanas, e defpedindo na fugida os feus dardos mais certeiros, o poder pontifical quafi vencido bufcava no carca/ as mais agudas frechas efpiri-

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tuaes, e as ia defpejando fem repoufo contra os governos rebeldes ás fuás intimações. Havia o duque de Parma, in- fante de Hefpanlia, como foberano em feus eftados, promul- gado alguns edidos, para cohibir os abufos clericaes. Legis- lara em aífumptos do feu foro e competência, como quem reprefentava o poder legiflativo e a majeftade civil e popular. Mas as leis eram pelo clero julgadas oíTenfivas das fuás immunidades e franquezas e da jurifdicção ecclefiaftica, defde largos annos invafora dos foros temporaes O papa Clemente XIII, ainda não canfado na lufla pela exiflencia, faíu logo com as lettras apoftolicas de 1768, a condemnar o que re- putava tyrannia e facrilegio do imperante. O diploma pon- tifício condemnava os edidos, e os abolia, caífava e havia como irritos e nullos. O raio defpedido contra o duque de Parma e Placencia feriu no intimo do feu orgulho majeflatico os foberanos da chriftandade, principalmente os da cafa de Bourbon, em cujas faces eflrugira o golpe defcarregado n'um príncipe d'aquella foberba dynaítia. Os reis de França e de Hefpanha defde logo fe concertaram no desforço, e moítra- ram ao pontifice, que fe como filhos piedofos da egreja o veneravam por herdeiro de S. Pedro, por dominador fem armas, nem exércitos, como reis o não temiam. Emquanto Luiz XV e Carlos 1 1 1 exigem imperiofamente do pontifice a revogação do injuriofo monitorio contra o infante duque de Parma, emquanto Clemente XIII incitado pelo cardeal Tor- riggiani e pela facção violenta dos lelantes, refifte impenitente ás intimações da cafa de Bourbon, emquanto as tropas do rei chriftianiffimo fe apoderam de Avinhão, e as de Nápoles occupam os territórios pontifícios de Benavento e Ponte- Corvo, não eftava Sebaftião de Carvalho aíTiftindo a efta pendência como fimples efpedador. Como zelofo, e quafi intolerante adverfario do poder ecclefiaftico, a fua indigna- ção fubia á nota mais aguda. Fora elle quem principiara

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efta nova e inefperada porfia do império com o facerdocio, eíta violenta contenção, em que, fem fe apartarem do girão da egreja, como fociedade efpiritual, os governos catholicos confeguiram fobrepor a fua audoridade ás ambições mun- danas e carnaes do eftado clerical.

Pela carta de lei de 3 de abril de 1768 Sebaftião de Car- valho declarava « obrepticias, fubrepticias, dolofas, pertur- bativas da paz e focego publico, incompatíveis com o efpirito apoítolico do papa Clemente XIII e diametralmente oppoftas ás fuás paternaes e pias intenções e á fua fantiíTima vontade» as lettras apoftolicas expedidas em leu nome contra o duque de Parma. Não podia conceber-fe ironia mais pungente, dis- farçada na diaphana ficção de que o paftor univerfal era como um rei conítitucional na monarchia religiofa, irrefpon- favel e fobranceiro ás tempefi:ades e paixões, que em redor do feu throno fe agitavam. Sebaftião de Carvalho ao apontar o feguro golpe á cabeça vifivel da egreja, intentava perfuadir que o desfechava contra o cardeal Torriggiani, os -{elautes do facro collegio, e os jefuitas, c[ue na luda redobravam de furor. Clemente XIII nas fuás provocações ao poder civil, bufcando reconftruir o velho mechanifmo do império pontifício univer- fal, era tão confciente do que fazia e decretava, como Gre- gório VII, Innocencio III ou Bonifácio VIII. Faltava-lhe fo- mente o animo d'aquelles feus anteceífores para mandar e coagir, a fubmiflao da edade media para ouvir e obedecer. Mas na theoria apparente de Carvalho, o pontífice reinante era apenas o inconfciente mandatário de uma facção impa- ciente e revoltofa, que lhe arrancava da mão com violência, para authenticar as bulias fubverfivas, o innocente annel do pefcador. Como ao foberano inglez, fegundo a ficção politica dos publiciftas britannicos, ao papa fe adaptava juftamente o aphorifmo de «que o rei nunca pôde fazer mal». (The king cannot do ivrong.)

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Era, como do que expozemos fe deprehende, contínua, formidável, tenaciíTima a peleja entre o grande miniítro por- tuguez e o poder facerdotal. Nenhum dos contendores fe dava por vencido. O terreno do combate propicio ao ag- greíTor, era desfavorável a quem defendia os direitos e fran- quezas da fociedade civil. A egreja tinha por fi a fé, que fabia invocar mui habilmente, ainda quando fe tratava de puras temporalidades, extranhas, contrarias quafi fempre ao dogma e á orthodoxia. O elfado não podia appellidar em feu favor fenão doutrinas, que aos efpiritos meticulofos pareciam infpiradas e bebidas em fonte fufpcita de heterodoxia. A egreja tinha a empenhar-fe por feu lado a fuperftição e a infciencia das multidões com apparencia efpeciofa de zêlo religiofo. O eftado via em redor de fi uma turba de gentes educadas longamente pela inquifição e pela Companhia, ha- bituadas a confundir com a herefia e o facrilegio a juita re- fiftencia e repreíTão contra as ufurpações temporaes do la- cerdocio. Era pois defegua"! em extremo grau a pendência travada entre os dois poderes antagoniftas. um eítadis- ta da procéra eítatura de Carvalho, em nação de fegunda ordem, em povo de tão efcaffo lume intelledual, poderia ter logrado as palmas da vidoria. Cumpria-lhe antes de tudo não tranfcender num ápice fequer os lindes, que leparam da fidelidade catholica o fcifma e a deferção efpiritual. Era forçofo exaggerar a pureza da fé, a lujeição e o refpeito ao pontificado, para que os aíTaltos vigorofos contra o próprio Vaticano não pareceíTem abertas infurreições contra a egre- ja. Era precifo ferir o papa, mas oppugnal-o com reveren- cia e de joelhos. Urgia fer audaz para combater os abufos da egreja no temporal, e prudente para não cair em nota de rebelde á catholica unidade. Era neceíTario principalmen- te oppugnar com valentia as doutrinas, que efpalhadas pro- digamente em livros e em brochuras, por uma parte faziam

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quotidianamente ainda mais craífo o fanatifmo e a ignorân- cia, e por outro lado canonifavam a omnipotência dos pon- tífices, a autocracia do clero, c a fujeição dos governos fecula- res, como fe foíTem condições eíTenciaes da religião inítituida por Jefu Chrifto. Mas a cenfura dos livros e o orthodoxo aquilatar das opiniões pendiam do nuto ecclefiaftico. Nenhu- ma idéa podia correr fem a licença do Santo Officio e do prelado diocefano. A egreja tinha affim em feu poder o di- vulgar a doutrina, que fomentava e defendia as fuás ambi- ções, e prohibir a que em jadura das fuás fuppoftas immu- nidades, tendia a levantar do fervil abatimento o poder civil. E verdade que o eftado cooperava na cenfura dos efcriptos pela intervenção do defembargo do paço na permiífão de os eftampar. Mas fempre a razão ficava d'efta forma fujeita á tarifa ecclefiaítica, a idéa ao facerdocio acorrentada e ferva do altar. Era certamente uma conquifta immenfuravel no proceflb de fecularifar a Ibciedade, o transferir das mãos do clero para as do eftado, reprefentante e curador do povo ainda menor ou interdido, a fuprema adminiífração do pen- famento, alfumindo plena e indivifa a cenfura dos efcriptos. A intelligencia obedecia então a duas potencias, defegual- mente ciofas e oppreíforas da fua livre e efpontanea mani- feftação. Eliminar uma d'eftas duas nefaftas reftricções era aplanar o caminho á futura emancipação do penfamento. Concentrar exclufivamente nas mãos do imperante a fupre- ma infpecção na efphera intelledual, fubftituir uma ás duas tarifas, pelas quaes fe alealdava o que era permittido publicar e imprimir, fubordinar á razão de eftado as conve- niências egoiftas do ambiciolb facerdocio, attender nas idéas e nos efcriptos muito mais á fegurança da fociedade civil do que á meticulofa compreífão do que parecia herético ou mal foante aos preconceitos e abufos ecclefiafticos, era tor- nar mais fácil no porvir a libertação do penfamento, quando

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o povo, tendo facudido o jugo clerical, cobraffe esforço para defatar e deítruir os pefados grilhões do abfolutifmo e po- deíTe finalmente refpirar o ar vivificador da liberdade. A creação da Me/a cenforia, inftituida pela carta de lei de 5 de abril de 1 768, era pois para a monarchia abfoluta, emula antiga do poder facerdotal, um meio efficaciíTimo de eftear e robuftecer a fua autoridade no prefente e para as liber- dades populares uma conquifta valiofa pelas fuás confe- quencias no futuro. O legiflador fempre coherente em im- putar aos jefuitas, algumas vezes, como é inevitável nas ludas politicas apaixonadas e violentas, com vehemencia exaggerada, todas as calamidades fociaes, e todas as tur- bações e defconcertos na ordem civil e religiofa, contra elles í'e defentranhava em duras execrações, attribuindo-lhes a au- toria do Índice expurgatorio, publicado pelo inquifidor geral D. Fernão Martins Mafcarenhas. Por elle haviam alcançado, referia o miniftro inexorável, defterrar de Portugal toda a boa e fan litteratura, prohibindo os livros úteis, divulgando os per- niciofos, precipitando o povo portuguez em inculpável e for- çolb idiotifmo. Se os jefuitas não eram os fós culpados na funefta degradação do entendimento portuguez, fe outros auxiliares haviam cooperado na obra de amefquinhar, ennoi- tecer, efterilifar a razão publica, não é menos verdadeiro que eram elles os réus principaes d'eíl:e delido. A realeza, que tam- bém fora parte em adenfar as trevas intelleduaes, queria então purificar-fe das fuás antigas malfeitorias e lavava efcrupulofa- mente as fuás mãos d'efte grande peccado nacional. A Mefa cenforia ficava conftituida por um prefidente e fete deputa- dos ordinários, um dos quaes feria um inquifidor propoflo ao rei pelo inquifidor geral, e outro o vigário geral da diocefe de Lifboa, ou um defembargador da cúria patriarchal. De- putados extraordinários fem numero fixo completavam efi:a nova magilfratura.

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A Mefa cenforia era condecorada com o alto predicamen- to de régio tribunal, e com o tratamento honorifico de majes- tade, como fe fora eífeítivamente prefidida pelo foberano. As fuás funcçÕes comprehendiam a cenfura de todos os li^•ros e impreíTos, aíTim dos que eftiveíTem no reino introduzidos como dos que fe pretendeífe novamente imprimir e divulgar, fem exceptuar a reimpreífão dos que houveífem anterior- mente alcançado as licenças neceífarias. A eíta nova aduana do penfamento nenhuma mercancia intelledual fe podia fub- trahir. Todos os livros, que de terras extrangeiras vieífem a Portugal, feriam apprehendidos nas redes da cenfura e leva- dos ao fupremo julgamento d'efi:a nova inquifição civil.

No regimento promulgado pelo alvará de 18 de maio de 1768, ainda mais que na lei da creação, tranfparecia clara- mente o intento do legiflador. Na fingular e melindrofa fitua- ção, em que a refpeito do paftor univerfal fe encontrava a egreja lufitana, na prefença de um diuturno rompimento, que bem poderá maliciofamente interpretar-fe como o pream- bulo de um fcifma declarado, em face de uma nação defal- lumiada e fuperíticiofa, era mais do que nunca prudente e neceífario o antepor oftenfivamente a defenfão da reli- giofa e o refpeito pela fupremacia efpiritual de Roma ás profanas conveniências do elfado temporal. Os deputados do novo tribunal «deviam ter dizia o legiflador um zelo ar- dentiíTimo do augmento da religião e do bem publico da pá- tria». A Mefa devia proceder á compofição de um Índice de livros prohibidos, tomando por fundamento o indice roma- no, os Índices expurgatorios das varias nações catholicas, o do celebre dominicano portuguez Fr. Francifco Foreiro, o do antigo inquifidor geral D. Fernão Martins Mafcarenhas. A lei declarava genericamente prohibidas todas as obras de atheiftas e herefiarchas. Deveriam os cenfores moftrar-fe in- exoráveis contra os audores, que oíTendiam a efpiritual júris-

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dicção dos pontífices romanos, « arrancando, dizia com poli- tica emphafe o legiílador, as cliaves da egreja das fagradas mãos do vigário de Chrifto e dos fucceíTores dos apoftolos para entregal-as aos príncipes temporaes » . O regimento man- dava prohibir os livros dos philofophos e encyclopediítas do feculo XVIII, e dos precedentes efcriptores acerca de aíTum- ptos fociaes e religiofos. Abria, porém, uma honrofiíTima ex- cepção em favor de nomes tão illuftres, quaes eram Grocio, Puffendorf, Bynkerfchoek, Barbeyrac, Wolf, e alguns outros, que fendo proteftantes, eram no conceito do legiflador inten- fos e preítadios luminares da razão univerfal. Mas apefar d'eíta apparente determinação de encaminhar a cenfura oííi- cial em defeza da egreja e do feu chefe efpiritual, a Mefa cenforia era principalmente uma nova e terrível bateria, que o poder civil e majeftatico, reprefentante da ordem fecular, conítruia e aíTeftava contra os jefuitas e contra as pretenfões ambiciofas e terrenas da Roma pontifical. A feição temporal da nova inftituição apparecia manifefta na efpecial recom- mendação de perfeguir fem trégua e fem quartel os livros promotores da fiaperftição e fanatifmo e aquelles, em que os vionmxhomachos, ou os oppugnadores da realeza e do direi- to divino das dynaftias, femeavam os germens fecundiíTimos da nova democracia.

Ainda os atheus, os dogmatiítas e herefiarchas fe eximiam aos rigores da Mefa cenforia, quando os feus primeiros ti- ros fe difparavam contra a foragida e condemnada Compa- nhia. A primeira vidima da implacável magiftratura era o grande e facundo jefuita portuguez. Pelo decreto de lo de junho de 1 768, eftando ainda a inftituição nas faxas infantis, condemnava a fer queimada publicamente pelo executor da alta juftiça a Carta apologética do Padre António Vieira, e fen- tenciava á mefma pena a Vida do fapateiro Janto, que faira egualmente das fráguas da Companhia. A Mefa cenforia em

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feus primeiros dias continua infatigável batendo em brecha o fanatifmo, a luperftição e as arrogâncias temporaes ou dele- térias da ordem facerdotal. Condemna a fer queimado pelo algoz o livro Siir la deftnidion desjéjiiites en France, declaran- do-o falfo, temerário, efcandalofo, infame, fediciofo. N'uma larga cenfura reprova com a máxima vehemencia os erros e fuperftições da Jacobea ou feita dos beatos, compendiadas como em fummula perigofa no livro intitulado Thefes, máxi- mas, exercidos e obferpancias efpirituaes da Jacobea, e manda que todos os feus exemplares fejam queimados pela mão ignominiofa do verdugo. Os jacobeus ou os beatos haviam no reinado de D. João V perturbado as confciencias e femeado a zizania no feio da egreja lufitana. Contra elles fe haviam dis- parado os tiros da inquifição. ProfelTavam que era não fomente licito, mas até obrigatório aos confeífores, o quebrar o figillo facramental e defcobrir os peccados, que lhes foífem revela- dos no tribunal da penitencia. O papa Benedifto XIV lançara contra eíla feita perniciofa de fanáticos as cenfuras apoítoli- cas, reprovara e condemnára folemnemente o figillifmo, e fubmettêra os réus d'efte delido ao julgamento do Santo Offi- cio, para que lhes impozeífe penas feveriffimas, fem exce- ptuar nos cafos mais atrozes a pena capital, a infâmia e a coníifcação. O miniftro perfeguidor do fanatifmo, agora que os beatos e jacobeus, eftimulados pelo favor do prelado co- nimbricenfe e efcudados com a fua audoridade, renafciam com profpedo de novas e mais graves turbações, fegunda vez revalidava as lettras pontifícias e lhes concedia expreíTo e am- plo beneplácito, preftando o auxilio do braço fecular á fua rigorofa execução. Ao mefmo paífo o confelho geral do Santo Oíiicio tendo á fua frente como inquifidor geral a Paulo de Carvalho, irmão do audaz reformador, publicava um edital, denunciando os erros do figillifmo e precavendo contra elles os fieis.

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Egualmente padeceram os rigores da nova jurifdicção as Máximas efpiritiiaes de Fr. Affonfo dos Prazeres, as obras em que íe defendia a relaxação do figillo facramental, profeíTada como elemento elTencial nas doutrinas dos jacobeus e figillis- tas, e todos os livros numerofos, em que fe canonifavam e encareciam as thefes formuladas na celebrada bulia In Coena Domini contra os direitos inalienáveis da civil majeftade e foberania. E depois que a Mefa cenforia tem feito as fuás primeiras armas e as mais brilhantes contra os jefuitas, os jacobeus e os defenfores da monarchia univeríal dos papas, que fe lembra de condemnar os heterodoxos efcriptores, ac- cufados de haverem maculado a pureza da catholica e oufado combater, como o feu poderofo antemural, o Santo Ofíicio. É então que a Mefa cenforia condemna e prohibe em 1769 a Hijloire de l'EgliJe de Bafnage, e o famofo Di- dionnaire hijloriqiie et critique de Bayle. Mas então prefide á egreja univerfal Lourenço Ganganelli, fob o nome de Cle- mente XIV, e Portugal eítá em vefperas de enlaçar-fe nova- mente por vínculos filiaes e affeduofos ao folio de S. Pedro. O elogio da inquillção a contar do feculo xiii, o panegyrico do Ibmbrio D. João III, que a foUicitou e obteve do pontífice Paulo III, conflituem um dos lunares no carafter do eíta- difta, antes obrigado pelas circumftancias da occafião do que pelos didames da confciencia a defender e encomiar eíta grande vergonha do puro chriflianifmo. Se as conveniências politicas exigiam, ou antes defculpavam eftas laftimofas aber- rações no efpirito luminofo do miniftro, a fua intraítavel fe- veridade contra as abufões religiofas louvavelmente fe mani- fefta a cada paífo. A Mefa cenforia perfegue fem piedade a fuperítição, prohibindo todos os livros, que perfuadiam e in- culcavam as falfas indulgências, e alimentavam entre a gente rude e popular a opinião de que podia peccar feguramente, porque os mananciaes da divina complacência jorravam por

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tantas fontes caudaes e inexhauftas, quantos eram os pretex- tos da fuperfticiofa c falfa devoção.

E fomente depois de feguras novamente por vínculos eftreitos as relações de Portugal com a Santa Sé, que o ani- mo de Carvalho fe levanta a cohibir a torrente das idéas philofophicas. Até ali a lanha dos cenfores officiaes tivera por leu alvo prediledo os efcriptores da Companhia, os pro- babiliftas e milagreiros, os andores ultramontanos e feda- rios da monarchia univerfal dos pontífices romanos. Mas ao condemnar pela Mefa cenforia os audazes penfadores do xviii feculo, não fe penfe que o miniftro abfolutifta põe a mira unicamente em tutelar as doutrinas chriftans e orthodoxas contra a corrente impetuofa das idéas philofophicas. Os es- píritos fortes, «que, na linguagem dos cenfores, fe attribucm o efpeciofo titulo de philofophos » , ao compaffo dos golpes di- rigidos contra a fé, eftão minando os fundamentos da velha fociedade e fazendo á monarchia abfoluta e oppreífora o feu proceífo, cuja fentença gloriofa terá de proferir em breves an- nos a triumphante Revolução. Voltaire, Rouífeau e La Mettrie, mais os teme o terrível Icgiflador por demolidores do direito divino que por infeflos á pureza caftiíhma da fé. Os philofo- phos, proclamava o edital da Mefa cenforia de 24 de feptem- bro de 1770, «invadiam os mais folidos fundamentos do throno». N'efl:a immenfa profcripção contra o que o feculo XVIII penfára e efcrevcra de mais revolucionário, compre- hendiam-fe para cima de cem obras, as mais d'ellas escriptas em francez, algumas, taes como as de Tolland, de Woolfton, e de outros mais, eftampadas em inglez. As que fe reputavam mais perigofas, commettiam-fe ao braço do algoz, para que lacerando-as e queimando-as com publica folemnidade fa- gralfe ao penfamento, como fe fora pelo martyrio gloriofo das idéas, a mais illuftre apotheofe. O carnifice pôde trucidar o homem, a fogueira confumir o que é apenas ephemero e

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material. Mas os brazeiros de Torquemada e de Cifneros, cm vez de aniquilar a idéa com o livro, em que fe imprime, fão como o crilbl, onde fe depura e vivifica.

A perfegLiição implacável contra os livros, que divulga- vam os princípios philofophicos e políticos do feculo xviii, bem fabia o ministro illuminado, que não haveria de furtir melhor effeito do que recommendar á leitura as novidades, que em fi compendiavam e o proceíTo que faziam á antiga ordem focial. Se como a refoluto monarchiila, em pleno abfo- lutifmo, lhe cumpria defterrar os efcriptos, que minavam a regia autoridade e o dogma do direito divino, a fua vifta perfpicaz não podia defpregar-fe um momento do pro- blema íundamental, a que votara principalmente o feu largo e trabalhofo minifterio. A fua predilecção e o feu encargo de eftadifta cifrava-fe antes de tudo em emancipar da tutela clerical a fociedade portugueza, traçando á egreja os lindes neceíTarios, que não podelfe tranfcender para invadir e aífo- berbar a vida civil e temporal.

A Companhia de Jefus eftava profcripta e infamada, porém a fua influencia e o feu efpirito, radicado por dois feculos de venturofa e audaz oligarchia, ainda refumbrava impenitente. A arvore caíra deftroncada, mas entranhavam- fe no folo as raizes vivazes e invaforas. Uma parte do clero fecular e regular mantinha e oftentava a ambiciofa preten- ção, que havia tornado infefto aos governos temporaes o predomínio da Companhia. Era o abufo de intervir na au- doridade e jurifdicção do poder civil, fujeitando-o ao feu arbítrio e difcrição, e conítituindo-fe em juiz e reprehen- for das fuás acções. O caudilho d'efta nova confederação era o bifpo de Coimbra, D. Miguel da Annunciação. Pela fua dignidade epifcopal, viciada pela torva e irrequieta fuper- ítição, o prelado conimbricense, um dos chefes da Jacobea ou feita dos beatos, vinculava-fe eftreitamente a quanto havia

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de mais intolerante e aventurofo na reacção religiofa, e pela ftirpe illuftre, a que pertencia, reprefentava por outra parte o refentimento da nobreza aggravada e abatida pelo inexorá- vel reformador. Era o bifpo irreprehenfivel nos coftumes, lincero na fé, ardente no fanatifmo, intraítavel no ponto de acceitar por limitada aos aíTumptos meramente efpirituaes a íua jurifdicção. O que era turbulência aíigurava-fc-lhe fortaleza varonil, a manfidão havel-a-hia á conta de perjúrio ás fuás paftoraes obrigações. Ajudava a curteza do entendi- mento as exagerações do zelo religiofo. Parecia-lhe que to- das as providencias decretadas para aíTegurar a majeílade temporal contra as irrupções do clero e do papado, eram outros tantos paíTos de gigante no caminho das mais execrá- veis abominações. A expulfão violenta dos jefuitas, o rom- pimento diuturno com a Santa Sede, a cenfura dos livros excluíivamente concentrada nas mãos do poder civil, e arre- batada á infpecção predominante da egreja, faziam certa- mente no feu efpirito, naturalmente débil e fombrio, a mefma dolorofa impreíTáo, que os primeiros decretos de Henrique VIII, nos princípios da reforma religiofa, teriam produzido no animo dos prelados, addiclos e fieis ao pontífice romano. O bifpo, julgando cumprir o seu dever, não repoufava em faír a campo, acaudilhando as hofles do facerdocio contra o im- pério. Ora chamava a íi os defcontentes, ora enviava miíTio- narios a accender a imaginação de Rides e fanáticas povoa- ções; agora aíToprava e fazia reviver o fogo de Jacobea, e logo deplorava e pretendia reprimir o contagio dos livros, que tinha por infeftos á pureza da e aos bons coítumes. Encheu o prelado a medida da fua mal disfarçada animadverfão ao governo de Carvalho, efcrevendo e divulgando uma famola paíloral, em que depois de fangrentas allufões á impiedade, que fuppunha no governo, prohibia aos feus diocefanos a leitura de muitas obras, das quaes enfartava um como indice

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expurgatorio. Entre ellas tinham logar preeminente além da Encydopedia, o Contraélo Social, e o Disair/o Jobre a defigiial- dade dos homens, de Rouffeau, vários efcriptos de Voltaire fem efquecer a Henriade. Algumas das obras incluídas pelo bifpo na fua formal prohibição, no próprio conceito de es- criptores inimigos de Carvalho, não mereciam o anathema fevero do paftor'.

Era o bifpo manifefto fautor dos jefuitas, exaltado ultra- montano e ardente defenfor da fupremacia de Roma fobre todos os governos temporaes. A paftoral, em que premunia as fuás ovelhas contra a peçonha das Ímpias doutrinações, era n'uma parte principal encaminhada a anathematifar os livros de catholicos ferventes, cujo peccado todo confiflia em defender as immunidades innegaveis do império contra as defmefuradas ambições do Vaticano. Confutavam e rebatiam os feus auiflores o abufo das excommunhões e a audácia, com que os papas fe haviam arrogado a prerogativa de repartir e tirar a feu talante as coroas aos monarchas, convertendo a ca- deira pontifícia em fonte excluíiva de toda a poteftade e go- verno temporal. O bifpo dirigia os feus anathemas ao Diccio- nario philofophico^ e á Pucelle de Oiiéans^ mas os feus farpões mais bem hervados iam pregar-fe em efcriptores, que labiam alliar á eítreme orthodoxia um efpirito emancipado e fobran- ceiro a todas as influencias ultramontanas. AíTim o bifpo con- demnava Dupin e a fua obra Da antiga difciplina da Egi-eja, Juítino Febronio e o feu livro Do ejtado da egreja e da potes- tade legitima do pontijice romano. Efta era a zizania que, na phrafe do paftor illufo e apaixonado, o homem inimigo não ceifava de femear entre o bom grão dos dogmas da fé. No

' Egli ò vero che forfe qualcheduno dei libri cenfurati dal vefcovo non meritava il giudizio fevero commune a tutti gli altri.» Vita di Seb. Giu/eppe di Carvalho e Mello, tom. iv, pag. 99.

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conceito do fanático prelado os apojlolos da mentira, como elle appellidava com egual animadverfão os philofophos e os au- étores pios, que oufavam contraftar a monarchia univerfal dos pontifices romanos, haviam occafionado maiores damnos e ruinas na egreja do que os pagãos nos primeiros feculos e os hereges nos feguintes. Para a egreja, laftimava com beata e dolorida compuncção o férvido prelado, era mais amarga a paz, que na apparencia disfruflava, do que fora n'aquelles tempos a guerra, com que feus perfeguidores a opprimiam. Então, dizia o bifpo revoltofo, a guerra coroava os martyres e enchia de glorias e de júbilos as turbas cres- centes dos fieis, emquanto que a paz infidiofa reprefentava no feio da egreja inconfolavel fcenas lacrymofas. Eram cla- ras, tranfparentes, certeiras as ferinas allufões ao governo de Carvalho. Era elle, fem duvida, na phrafe da paftoral, um d'e{[esJjlhos iniqiios da egreja, yècZízr/oí da impiedade, um d'eí1:es, que á maneira de caçadores infernaes, armam laços á innocencia e redes á piedade. Era elle um d'eftes «falfos prophetas, que não profiram e derribam os altares, mas im- pedem com as fuás doutrinas falfas que fe adore o verda- deiro Deus» .

A paftoral datada de Coimbra a 8 de novembro de 1768, poucos mezes depois que pela creação da Mefa cenforia fe tirara das mãos do clero o exame e cenfura dos efcriptos, era claramente uma patente reprefalia e como que a reivin- dação de um direito inalienável do ofíicio epifcopal. Defde que a lei reftituia ao poder civil a funcção de exercitar a ins- pecção e a cenfura fobre a imprenfa, a paftoral do bifpo conimbricenfe, divulgada fem o régio beneplácito, era um ado de formal dcfobedicncia, fe não de manifefta rebellião.

Era grave a occafião. Andava o poder civil empenhado rijamente em oppugnar o governo clerical. Pendia violenta a luda pertinaz com os jefuitas, e com os renitentes curiaes,

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leus parceiros e fautores. De fora de Portugal, de Roma principalmente, partiam os incitamentos, com que os jcfuitas procuravam manter accefo e vivo o fogo facro entre os feus mal encobertos parciaes. A bulia Aniinanmi faluti, e o mo- nitorio contra o duque de Parma tinham dado rebate havia pouco e annunciado á chriftandade que Roma e os defenfo- res do illimitado poderio eccleliaítico fe apercebiam com ar- mas bem temperadas para entrar novamente na requeíta. A agitação dos jacobeus, capitaneada agora pelo bifpo de Coim- bra, era como que a repercuíTão do que fora fe machi- nava para turbar e impedir a acção do poder civil. O pre- lado fediciofo, meneando a teia do fanatifmo para accender a guerra religiofa, era dentro da fua pátria o focio e auxi- liar dos que, profcriptos longe d'ella, intentavam reftaurar n'eíte paiz o predomínio clerical e o império da Companhia. Era perigofo o repto, a vindida inevitável. Um ado de rigor moftrou n'eíta grave occafião a quanto fabia aventurar-fe a omnipotência do miniftro em defeza da poteftade temporal. O bifpo é logo privado da fua fé, declarado morto civilmen- te, claufurado no forte de Pedrouços. São-lhe companheiros na defgraça e no encerro muitos ecclefiafticos feus officiaes e familiares, ou conjundos na parceria. Pela carta regia de 9 de dezembro de 1768 ordena Sebaftião de Carvalho ao cabido da de Coimbra que, declarada vacante a cadeira epifcopal, proceda á eleição do vigário capitular, infinuando-lhe que a faça recair em Francifco de Lemos de Faria Pereira, depu- tado do Santo Ofiicio, defembargador da Supplicação, e um dos mais ardentes parciaes do eítadifta. Poucos dias depois a carta regia de 14 de dezembro manda á univerfidade de Coimbra que faça rifcar d'eft:a corporação os lentes e douto- res, que ali profeíTavam e feguiam os erros fuperfticiofos dos jacobeus, beatos ou reformados, e pertenciam á congregação dos cónegos regrantes, á dos eremitas calçados de Santo Agos-

tinho, e á ordem bencdidina, devendo, dizia o diploma ré- gio, ficar reputados por mortos, como fe nunca houveíTem exiftido.

Ao mefmo paíTo expedia Sebaftião de Carvalho ao dom abbade geral e ao definitorio de Alcobaça uma carta regia ordenando-lhes que reprimiíTem na congregação bencdidina os coftumes abullvos, que na ordem haviam introduzido os jacobeiis. Eítes fanáticos menos piedofos que fubverfivos, e mais ciofos de influencia que de reformação, timbravam em fegregar-fe do commum, não fomente pela efpeciofa oílenta- ção de prafticas afceticas, fenão também pela afFeftada fim- pleza do trage e compoífura. Refugiam á fociedade e convi- vência dos que não profeíTavam efta feita, havendo-os por infedos e mundanos, e compraziam-fe no trato e converfa- ção dos que com elles fe egualavam na mefma exaltação e fanatifmo. Prefcreveu o legiflador que todos os jacobeus fi- caíTem perpetuamente inhabilitados para os cargos e ofíicios da ordem benediftina.

N'um governo regularmente conftituido, poder-fe-ía ter efperado que o bifpo declarado réu de lefa-majeítade, fe- gundo affirmava a carta regia ao cabido de Coimbra, foíTe julgado pelo fupremo tribunal da Inconfidência. Era, porém, agora fyílema profeguido pelo miniftro omnipotente, o con- demnar em forma camarária e pelo mero arbítrio do foberano. Na fituação particular, em que fe achava, havia por mais fegu- ro e mais clemente o decretar contra muitos delinquentes a re- clufão ou o exilio do que fujeital-os á jurifdicção de um tri- bunal, que os fentenciaria como réus de alta traição a penas feveriíTimas e infamantes para os culpados e para as fuás cafas e famílias'.

Seria n'aquclle tempo um lance diíiicultofo offerecer a

' Contrariedade ao libello, appcndice iv S 82.

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um paiz aíTombrado por tão graves turbações religiofas o es- pectáculo de um príncipe da egreja trazido perante o foro fecular, fem nenhuma intervenção das juftiças ecclefiafticas. Encarcerado o bifpo no forte de Pedrouços, provia o minis- tro á fegurança do eftado, fegundo a norma e teor com- mum d'aquelles tempos, e d'aquella forma abuliva de go- verno, onde foi habitual e hereditário o defrelpeito pela hu- mana liberdade. Era, porém, politico e neceíTario não deixar fem publica expiação a rebeldia temerária do prelado. Sub- mette Carvalho a paftoral ao exame e julgamento d'aquelle tribunal, que inftituira para aquilatar o penfamento e a es- cripta. Delega a Mefa cenforia em três vogaes, Fr. Manuel do Cenáculo, depois bifpo de Beja, Fr. Ignacio de S. Caeta- no, depois bifpo de Penafiel e o defembargador João Pereira Ramos, a cenfura do efcripto. Exaram os cenfores um largo e eruditiíTimo diclame contra aquelle extranho documento. A 23 de dezembro de i 768 pronunciava a Mela cenforia a fua fen- tença, declarando falfa, infame e fediciofa a paítoral, e mandan- do que foífe lacerada e queimada publicamente na praça do Commercio pelo executor de alta juítiça. Não era certamente regular o procedimento do governo com o fanático paftor. Mas eram aquellas unicamente as armas que o poder temporal podia então brandir para defender a fociedade e o império contra as pertinazes arrogâncias do facerdocio. No estado de guerra crueliílima, em que lidavam fem repoufo as duas ini- migas poteítades, á paixão do clero respondia a violência do governo, ao ódio a fevcridade, á ufurpação a reprefalia. Mas ainda aíOm o bifpo de Coimbra, fimplefmente claufurado, fem nenhum trato de fevicia, o bifpo levantado á eífatura heróica dos grandes martyres pelos inimigos de Carvalho, appellidado o defhumano, o cruel, o homicida, não faz es- quecer o bifpo da Guarda, fepultado vivo na cifterna de Pal- mella por D. João II, por efte rei fem coração, a quem os

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posthumos lilbnjeiros e os feus próprios lucceflbres ainda agora cognominam o príncipe perfeito.

Os rigorofos procedimentos empregados contra o hifpo e feus affeclas eram duros, mas forçofos, pendente a guerra que profeguia* ardendo implacável entre o poder civil e a clerezia rebelde e ambiciola. Os jeíliitas perfiftiam fempre impenitentes e confiados no próximo triumpho. Emquanto a Santa Sé, agora audaz com o papa Clemente XIII, e logo timida com o leu malaventurado fuccelTor, decretava a apo- theofe da Companhia ou trepidava perante a fua deftruição, o incanfavel eftadifla ia fempre amiudando os afperos com- bates aos que tinha por indomáveis inimigos de todo o poder e ordem focial. Alfumpto ao folio pontifício o fraco e irre- foluto Ganganelli, condemnava a Mefa cenforia' os livros principaes e mais correntes, onde os probabiliifas jefuiticos haviam compendiado as fuás doutrinas efcandalofas acerca da moral. Os canoniíias e theologos da Companhia tinham feito fubdita á monarchia univerfal dos pontífices romanos a majeftade e foberania temporal. Entre aquelles doutores, mui- tos d'elles eminentes por engenho e erudição, numeravam-fe nomes tão notórios como os de Efcobar, de Molina, de Ami- co, de Palao, de Layman, Bufembaum e Salmeron.

Os cenfores régios, interpretando fielmente a animadver- fão do eíladifia contra a ordem chamada de Jefus, reprehen- diam e condemnavam com termos feveriíTimos os efcriptos d'aquelles celebres doutores, denunciando-os ao ódio univer- fal como pervertidos propugnadores de quantos erros moraes podiam disfarçar-fe nas enganofas apparencias da razão. En- finavam aquellas obras, no dizer do tribunal cenforio, o pro- bahilifmo, a fimonia, a blafphemia, o facrilegio, a irreligião* a idolatria, a impudicicia, a obfcenidade, o perjúrio, o furto,

' Edital da Mcfa cenforia, de 12 de dezembro de 1771.

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o homicídio, a violação do figillo facramental, o parricidio, o fuicidio, e, o que mais offendia os zeloíbs defenfores da realeza, profeíTavam os condemnados efcriptores que era licito, moral e neceíTario attentar contra a vida de um tyranno em defeza e vindicação da opprimida fociedade. Como fem- pre acontece e é natural nas luclas apaixonadas, violentas, fem trégua nem quartel, os cenfores exageravam muitas vezes a protervia moral dos efcriptores da Companhia, attri- buindo-lhes como propofições abfolutas as que perdiam um pouco da fua afperidade e extranheza pelo que tinham de condicionaes e relativas. Não fe pôde todavia pôr em du^i- da que nos livros condemnados pela Mefa cenforia fe expla- navam e defendiam praxes moraes, que dourando com o probabilifmo cafuiítico os delidos mais atrozes, arraftariam a fociedade civil e efpiritual á fua completa perverfão. Na Dediicção chronologica e analytica, e principalmente no Com- pendio hiftorico da iiniverjidade de Coimbra, apparecem tras- ladados os textos litteraes, onde os mais famofos doutores da Companhia prefcrevem e canonifam, como immunes da mais ligeira venialidade, os mais abomináveis delidos c pecca- dos. Mas alem das máximas nefaftas, que tranfparcciam nos efcriptos moraes e theologicos dos Efcobares e dos Molinas, dos Laymans e Bufembaums, os jefuitas eram não menos infes- tos á monarchia abfoluta pelas thefes de direito publico, ex- planadas largamente nos feus livros doutrinaes. Se por uma parte os publiciftas da Companhia fuftentavam com S. Tho- mas o principio irrecufavel de que a foberania fecular refide e fe origina eífencialmente nos povos e nações, e d'ellas fe trans- fere como fimples e condicional delegação aos dynaftas e aos reis, por outro lado proclamavam abertamente a fuferania do papado fobre todos os principados e governos temporaes. Se pois defendendo a majeítade popular, como fonte e ma- nancial de toda a civil aucloridade, lifonjeavam e defendiam

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os povos contra os léus dominadores, contrapefa^"am larga- mente eíTas tendências liberaes e democráticas, pondo acima de todos os poderes mundanos, como tutela fuprema e abfo- luta, a foberania dos pontifices, a fua omnipotente infallibili- dade, e a fua decifiva intervenção cm todos os negócios fo- ciaes. Condemnar pois os cafuiíUis, ainda melmo a rifco de profcrever os publicill^as liberaes da ordem de Santo Ignacio, era um ferviço relevante preftado á civililação e uma valiofa preparação para a futura liberdade. A monarchia abfoluta e o direito divino, pelo órgão do leu mais vigorofo reprefen- tante, o miniftro de D. Jofé, combatiam ao mefmo paíTo rijamente os elementos Ibciaes, com que até ali havia a rea- leza repartido por hiftorica neceíTidade o feu poder. Difpa- rava o derradeiro golpe em a nobreza, reprimia os minimos aíTomos de liberdade popular, e expugnava acerbamente a cidadella, onde fe encaftellava e defendia, na peffoa de Cle- mente XIII, o papa e a egrcja da edade media, procurando fujeitar ao feu dominio a Ibciedade civil e fecular. Na evo- lução hiftorica dos modernos povos europeus, a concentração do poder nas mãos vigorofas dos dynaftas foi, fem que elles o fentiífem ou defejalfem, o preambulo da futura democra- cia. Principiam os monarchas abatendo as feudaes domina- ções e inftituindo a unidade nacional. Pro leguem oppugnando fortemente no clero e no papado um rival inquieto e invafor, e por vezes um implacável inimigo. Virá tempo, em que, tendo pendentes do leu arbítrio todos os poderes e todas as forças fociaes, entrará com elles em temerofo repto o gi- gante popular e então, ao revcz do famolb duello biblico, fera o David régio o proftrado e o vencido na requefta. Os reis confubftanciam e ablbrvem na fua exclufiva dominação todas as poteftades civis ou thcocraticas. Mas chegará tam- bém a vez, em que a tyrannia realenga cederá o paífo final- mente á triumphante Revolução. As monarchias abfolutas,

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mas illuminadas, fundam a egualdade pela fujeição com- mum e neceíTaria de quanto pela fua grandeza e privilégios as pôde aflbberbar. A revolução democrática inílitue final- mente a liberdade. Quando o monarcha tiver dito, com a fegurança da viftoria, á oligarchia da nobreza: Eu Ibu a força; á theocracia do pontífice: Eu fou o Cefar, e eu e mais ninguém pôde reger monarchias temporaes; então er- guer-fe-ha o povo, e dirá aos que a fi mefmos le appellidam ungidos do Senhor: Eu fou o direito, a razão, o poder, a liber- dade. Então a communidade civil eftará folidamente confti- tuida nos feus inabaláveis alicerces, diftinfto áo fórum o fan- tuario; da vida interior e myftica da confciencia, a vida exterior e mundana da cidade; da egreja independente o eftado livre e emancipado. Affim, quando Sebaftião de Carvalho lucfa durante largos annos por fecularifar o governo e a nação, é elle o illuminado precurfor dos efladiftas liberaes. Na fua politica eftá em gérmen, ainda inconfciente e nebulofo, a fa- mofa thefe de Cavour e a abfoluta feparação entre a profana fociedade unida pelos vínculos do direito, e a voluntária as- fociação das confciencias eítreitadas pela fé.

Alguns têem intentado attribuir a Sebaftião de Carvalho o propofito de romper os laços da unidade com os pontífices romanos. Sob o influxo de propicias circumftancias, bem po- derá o eftadifta impaciente de todo o jugo efpiritual haver quebrado as ultimas prifões, que, durante o diuturno rompi- mento, ainda frouxamente encadeavam a egreja portugueza á de Roma. Muitas das fuás audazes providencias legis- lativas fe encaminhavam com evidencia manifefta a li- mitar os poderes tradicionaes do pontificado e a illidir no conceito dos fieis a crença fundamente radicada na fua pró- pria omnipotência efpiritual. A Deducção chronologica, ape- far das apparencias de refpeito á fuprema cabeça da egreja tem por nota fundamental e dominante uma aberta infurrei-

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ção contra o papado. A Tentativa theologica, efcripta com prodigioía erudição ecclefiaftica pelo oratoriano António Pe- reira, é uma tremenda bateria levantada contra o fummo fa- cerdocio em favor dos direitos episcopaes e da antiga difci- plina da egreja.

N'efte livro memorável hufcava demonílrar o profundo theologo e canonifla, que era licito aos prelados metropoli- tanos o confirmar e preconiíar a eleição dos bifpos feus íuf- fraganeos, e a eftes egualmente o eleger e confagrar os me- tropolitas.

Emquanto as relações com a Cúria eftão interrompidas fem efperança de próximo concerto, os prelados diocefanos, por imperiofa infinuação do miniílro regalifta, concedem a feu arbítrio as difpenfas matrimoniaes. O arcebifpo de Évora, o mais fubmiíTo e obediente fedario do eftadifta, o exemplo d'efta novidade ecclefiaftica. Os paftores das outras diocefes facrificam egualmente os feus efcrupulos á inftante neceífi- dade elpiritual.

CAPITULO XIV

AS REFORMAS DA INSTRUCÇÃO

Na completa e improvifa revolução produzida no enfino publico e na cultura intelledual da nação portugueza pelas enérgicas providencias de Sebaítião de Carvalho, eftá cifrada em grande parte a gloria mais durável e mais pura do minis- tro zelofo e illuminado. Até áquelle tempo e defde a epocha infeliz do fombrio D. João III, parece que os reis de Portu- gal fe deliciavam e compraziam em reger um povo efcure- cido pelas trevas efpirituaes. O poder civil calafetava cioíb e intolerante os refquicios mais eftreitos, por onde poderá fil- trar-fe alguma luz, efclarecendo a torva intelligencia do paiz.

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Os jeíuitas dominavam foberanamente a educação e o enfi- no, afaftando para longe de Portugal toda a faudavel re- formação realifada nas fciencias a datar dos áureos tempos da Renafcença. A Inquifição, apelar de infefta á Companhia, n'eíte ponto lua auxiliar e fua miniftra, efcondia na maléfica fombra da fua bandeira a tenuc claridade, que os influxos jefuiticos deixavam ainda por banir e fequeftrar.

Durante o reinado de D. João V, a ignorância disfarçada nas miferaveis opulências do gongorifmo fem infpiração e fem talento, fizera efquecer inteiramente as quadras gloriofas do antigo engenho nacional. As lettras, que então fe tinham em maior preço, reprefentavam a extrema degradação da in- telligencia. Os esforços empenhados pela Academia de hifto- ria portugueza apenas haviam alcançado paffageiramente fo- mentar os eftudos eruditos. Dos feus trabalhos e efcriptos fe podia com verdade aífeverar que o talento da cortezan cor- poração era apenas a paciência. Durante o reinado longo e infecundo do rei galanteador, nem fequer uma fcentelha de invenção vem reluzir n'aquella denfa efcuridão intelleftual. A boa efcriptura portugueza tivera o feu ultimo cultor no padre Manuel Bernardes, em cuja linguagem e em cujo eflylo tranfparece todavia que o atticifmo vae cedendo o paífo obediente ao conceptismo litterario e á engenhofa frivolidade.

Depois do maviofo theatino a profa nacional arrafta-fe enfermiça, decadente, fem nervo, nem carader varonil. As lettras pátrias, ou fe alimentam de devotas e pefadas infpi- rações nas chronicas monafticas, nas lendas hagiologicas, e nos maífíços fermonarios, ermos egualmente de uncção e de eloquência, ou fe defenfadam com plebeia efcurrilidade nos equívocos e trocadilhos dos vates populares, nas canfadas allegorias do Anatómico jocojo e nas operas meio-ferias, meio-burlefcas da Mouraria e Bairro Aho. Mefmo affim é no theatro, que as mufas nacionaes ainda fabem ás vezes evo-

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car as luas antigas, polto que frouxas infpirações, e é o cftro de um judeu, queimado pela feroz Inquifição, quem evita á amena litteratura a ignominia derradeira.

Se as lettras fob a dominação de D. João V retratam fiel- mente, pela completa aufencia de goíto e penfamento, a fei- ção eífhetica da íbciedade portugueza, as fciencias, que du- rante aquella epocha fe cultivam em Portugal, denunciam que para dos Pyreneus o nevoeiro condeníado pelo des- potifmo e pela Inquifição, intercepta o caminho á luz da Eu- ropa. E então que a Africa principia com verdade, onde co- meçam terras da Peninfula. Nada pôde efpelhar com maior fidelidade o que eram as fciencias em Portugal, do que o feveriíTimo, porém lúcido proceffo, com que Luiz António Verney nos feus efcriptos, principalmente no Verdadeiro me- tliodo de ejiiidar, as condemnou como extrema vergonha na- cional. Nada pôde egualmente miniftrar a medida juíta de quanto era profundamente viciofa e radicada nos efpiritos a ignorância e a tradição, do que a encendida guerra litteraria, profeguida em cardumes de folhetos contra as perigofas in- novações, defendidas e propoflas pelo fuppoíto barbadinho. D'aquelles monumentos fe deprehende o que era a philofo- phia enfinada nas efcolas, onde o nome de Ariftoteles, mas do Ariftoteles efcholaffico, do Ariftoteles da edade media, não do grande penfador da antiguidade, que os fabios portugue- zes não podiam comprehendcr, intimava a profcripção a todas as idcas modernas, a todos os defcobrimentos experi- mentaes, a todas as conquiftas mais brilhantes da razão, des- de Bacon, Defcartes e Galileu, até Newton, Locke, Leibnitz, Buffon e Montefquieu.

A pefada e abfurda fciencia monachal e jefuitica cerrava ciofamente as fuás portas á mais inoffenfiva novidade. O Kofmos e a natureza não eram para o infulfo pedantifmo peripatetico, o que o efpirito moderno tinha largamente

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defcortinado pelos proceíTos experimentaes da obfervação; era apenas a nebulofa phantafia, que a philofophia efcho- laffica havia fabulado fobre a audoridade irrefragavcl de Ariftoteles e dos feus abftrufos commentadores. A phyfica moderna era inteiramente ignorada em Portugal, e o que fob efte nome fe profeíTava nos livros e nas efcolas era um tecido efteril de inanes efpeculações, em que a doutrina do horror ao vácuo e o principio capital das cmifas ocailtas contentavam os efpiritos incuriofos e adftridos ás idéas tra- dicionaes. O Compendio hijlorico do ejlado da Unwerjidade de Coimbra, porventura o livro mais fubítancial e valiolb de quantos fob a pombalina inipiração fe publicaram na con- tenda contra os jefuitas e contra as ufurpações ecclefiaíticas, debuxava na fua laftimofa defnudez os achaques, de que padecia, fem apparencia de remédio, a fciencia e a inftruc- ção em Portugal.

Ás claíTes plebeias e vulgares não miniítrava o poder nenhuma efcola, onde hauriíTe os efcaíTos rudimentos da minima cultura. A parca e viciofa nutrição intelledual po- diam raros aproveital-a nos conventos das ordens religiofas e nas aulas da Companhia. O eftado parecia eftremecer diante da perigofa perfpeftiva de reger um povo illuminado, culto, defveítido de fua rudeza agreífe e accommodada á meia fer- vidão em que vivia. O povo, no conceito da velha monar- chia e no fyftema egoifta dos feus homens de eftado, tinha apenas por funcção na fociedade lidar quanto lh'o permittia a fua bruteza, e produzir nos campos e nas officinas o que bailava á fua exiftencia attribulada, e ao pagamento dos multíplices encargos, que pefavam fobre a terra e o trabalho. Incumbia-lhe egualmente o engroífar na miferrima condição militar d'aquelle tempo as fileiras do exercito real. Toda a fua vida efpiritual fe refumia na crença, em grande parte materialifada pelas fuperftições groífeiras e mais próximas

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da pura idolatria. A fciencia popular cifrava-le unicamente em venerar a Inquifição, obedecer ao clero, e acreditar picdo- famente que o foberano, como eleito de Senhor, era na terra um como vice-Deus.

Nos citratos fuperiores da fociedade portugueza alguma luz íe ditfundia, tibia e mal filtrada. Luz, porém, de fciencia falia, efteril, incapaz de aclarar o efpirito ou de auxiliar o corpo na luda permanente do homem com a natureza; pue- ril e viciofa como theoria; nulla ou perigofa como pratica na vida focial. Das fciencias exaítas, phyficas e naturaes como no feculo xviii fe promoviam e divulgavam pela Eu- ropa, poucos fabiam fequer a exiftencia e os progreífos. Os próprios jefuitas portuguezes, cujas efcolas entre as das cor- porações religiofas eram certamente as mais bem inftituidas e methodicas, defaproveitavam os exemplos numerofos, que no cultivo das fciencias lhes eflavam miniftrando os feus confrades extrangeiros.

Bailaria folhear os livros médicos, publicados na primeira metade do feculo xviii, para defde logo avaliar o que eram as fciencias da natureza em Portugal. Se era, porém, laílimofa e profunda a ignorância nos eftudos mathematicos, phyficos e naturaes, não era melhor e mais aproveitada a cultura intelleclual nas fciencias moraes e theologicas e nas lettras hellenicas c romanas. Tivera Portugal nos tempos mais flo- rentes da Renafcença illuftres humaniftas, cuja fama trans- cendera os eftreitos limites da fua pátria, os Oforios, os Caia- dos, os Refendes, que podiam fem favor emparelhar com os mais fabios cultores da antiguidade. Tivera illuftres e erudi- tos jurifconfultos em um e outro direito confummados. Tivera theologos mui doutos e difcretos, que nas cathedras, nos púl- pitos e nos concílios haviam logrado confociar á verdadeira uncção religiofa a mais larga e feleíta erudição. Florecêra em boas lettras a univerfidade, quando os fabios extrangeiros de

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nome venerando, os Buchanans e os Grouchis, alliados no fraterno convívio do faher a portuguezes beneméritos, aos Gouveias e aos Teives, alcançavam enlaçar a gloria de Coim- bra ao efplendor das famofas academias de Paris, Oxford, Pádua, Bolonha e Salamanca. Os jefuitas, porém, apoíTan- do-fe do collegio das artes, e fujeitando ao feu enfmo e di- recção a univerfidade pela nefaíta e culpofa complacência do fanático João III, haviam com rapidez prodigiofa feito de- cair o magifterio portuguez até o nivel opprobriofo, em que o efpirito nacional jazia adormentado, quando era em meio o feculo proverbial do penfamento e da fciencia, o tempo de Voltaire e D'AIembert.

ía Portugal diftanciado e retrahido na reçaga dos povos civiiifados. Levavam-lhe os demais tal dianteira, que fe afigurava por impoílivel que apreíTando o palTo em esforço extremo, os houveíTe de alcançar e egualal-os na cultura. As três forças dominantes na fociedade portugueza, o ciofo des- potifmo, os ambiciofos jefuitas, e a Inquifição intolerante, fe bem fempre difcordes e rivaes, n'um ponto cooperavam amigas e conjundas, no de condenfar cada vez mais as tre- vas, em que perdia a confciencia de fi mefmo o embrutecido povo portuguez. Quem n'efta laftimofa efcuridade poderia acafo reaccender a lucerna apagada e efquecida? Que efpi- rito fuperior á craveira commum da intelligencia valeria para infufflar a vida nova na amortecida razão de um povo in- teiro? Não havia em Portugal um d'eíl:es génios aífombrofos, um d'eí1:es reformadores illuminados, invencíveis, que pelo influxo magico da palavra, da doutrina, do exemplo, da pre- gação, operam nos efpiritos a mais cuftofa das revoluções, a revolução pacifica da idéa. Alguns homens havia em Portu- gal, que tinham raítreado a furto o que fora n'eíTa Europa culta e progreíTiva fe penfava, fe efcrevia e divulgada. Ho- mens de talento original e creador mui raros fe podiam nu-

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merar. Elpiritos eminentes, d'eítes que dominam e avaffallam os feus contemporâneos, nenhum. A evangelifação nada po- dia para levantar do leu diuturno abatimento a intelligencia nacional. O próprio Verney, que pozera de manifefto as mi- ferias intelleduaes da fua pátria, efcrevêra longe d'ella como quem, diftante de um logar infcdo e infamado, enfina caute- lofo os remédios mais profícuos para combater e debellar a doença contagiofa e inveterada. Contra o lacrilego inno- vador fe havia levantado, ardente em fúria ariftotelica, quafi todo o mundo litterario portuguez. O confelho, a doutrina- ção, a propaganda nada podiam contra a velha tyrannia da tradição. Os fedarios da fciencia monachal e jefuitica de- nunciavam como infeíta e perigofa á religião toda a novida- de fcientifica e litteraria. O fyftema de Copérnico, a bafe e o principio da moderna aítronomia, condemnado em Roma a 5 de março de 1616, como adverfo ás fagradas efcripturas pela congregação do indice, permittido apenas como hypo- thefe e diga-fe a verdade cruamente , infamado com o nome de loucura e facrilegio pelo fanatifmo de Luthero, não tinha em Portugal, quem oufaíTe abertamente profeíTal-o e defendel-o da nota e lufpeição de herefia ou de impiedade. Muitos dos que le tinham na melhor conta de lábios e pen- fadores, ainda hefitavam porventura duvidando fe o papa Zacharias no anno de 745 não condemnára juftamente a um bifpo de notável erudição na aftronomia por ter enfmado pu- blicamente a exiftencia dos antípodas, mais tarde revelados com certeza aos mais incrédulos pelas heróicas navegações dos portuguezes. Ninguém oufaria contraditar a viciofa cor- rente da opinião nos aífumptos do enfino e da fciencia. Era precilb decretar a emancipação da intelligencia, como o go- verno legiflára duramente a reftauração da induftria e do commercio nacional. Ao defpotifmo da tradição, exercido pelas potencias clericaes, era forçofo contrapor a energia do

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poder. Se a luz havia novamente de efclarecer a intelligencia popular, fomente um governo illuminado, poderoíb, irrefis- tivel, com bom êxito podéra proferir o fiat creador, omni- potente.

No momento hiftorico e opportuno, furge d'aquellas fombras adenfadas a figura fevera do grande legiflador. In- quire, eítuda, confulta, examina, decreta e executa. Ao golpe violento do feu baítão, rue em efcombros o caduco edifício univerfítario. No folo ermo e devaftado levanta-fe magnifica a nova e promettedora fundação

Foi apenas por amor da geral illuftração, foi laftimado unicamente pela bruteza e ignorância do povo portuguez, pelo defejo fervorofo, mas theorico de revolucionar profun- damente pela nova fciencia a decrépita e obfcura fociedade, que Sebaftião de Carvalho planeou e inítituiu a reforma da inítrucção? Certamente ponderou em feu efpirito o preço ineftimavel da cultura no valor moral e económico de um povo. Seria porém desfigurar por uma incompleta interpre- tação o fignificado hiftorico dos faftos o attribuir unicamente a um zôlo puro, defintereífado, philofophico pelos progreíibs da fciencia, a parte principal na famofa reformação.

O grande, o máximo problema, em que efteve empe- nhada a energia inclemente do minifiro de D. Jofé, a queífão fundamental, a que as demais ficavam fubordinadas como inftrumentos indiredos ou como complementos neceífarios, era a queftão religiofa, era a empreza de emancipar do jugo ecclefiaítico o Eftado, predominante e fecular. O enfino frou- xo e viciofo, como era por aquelles tempos em Portugal, pendendo quafi inteiramente das ordens religiofas e princi- palmente da emprehendedora Companhia, era um dos po- derofos machinifmos, que ajudavam o clero na obra de avaífallar feguramente o povo portuguez, annuveando-lhe a razão pela fciencia falfa e anachronica, aíTim como lhe tur-

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ba^■a a confciencia pela extrema luperftição e pelo mystico terror.

Eílavam expulfos, infamados, fupprimidos de fado os jefuitas. Eftavam vibrados, ás vezes cruamente, os golpes á poteítade e predomínio clerical no paiz e fora d'elle. Mas ficavam a germinar e a dar frudo as Tementes da doutrina em Iblo apenas defbravado, quall maninho para as idéas anti-clericaes e cifmontanas. Fora a univerlidade conimbricen- fe defde a fua primeira inftituição, como as outras celebradas academias da edade media, uma fundação puramente eccle- fiaflica, erigida por diplomas pontifícios. Durante aquelles íeculos de meia-coníciencia para a Europa, na theoria e na pradica vivia confagrado o principio effencial de que as duas poteítades repartiam entre fi o governo da chriftandade por tal forma, que ao facerdocio e á egreja pertencia a con- fciencia e a razão, o que havia de mais nobre e efpiritual, ao império e ao eítado a força e a matéria, o que havia de mais carnal e mais groíTeiro na vida da humanidade. N'efi:e regi- men abforvente do poder ecclefiaftico, não fe dava poíTivel feparação entre a f é e a fciencia, entre a confciencia e a ra- zão, entre o crime e o peccado, entre o homem interior, a ovelha do evangélico redil, e o homem exterior e politico, o membro da cidade profana e temporal. A egreja tomava conta da alma humana em todas as fuás manifeftações, como cain- do na fua exclufiva jurifdicção. Era aífim que o direito ca- nónico invadia irrefiítivel as relações civis da fociedade. Era aíTim que a egreja reclamava as mais largas e abufivas tem- poralidades, como inftrumento indifpenfavel ao perfeito adim- plemento dos feus fins fobrenaturaes. Era aífim que os pon- tífices romanos fe arrogavam a fupremacia fobre todos os monarchas, refervando ciofamente para a tiara o direito de confirmar as coroas mais poderofas. Era affim que o fummo pontificado abfolvia do juramento de fidelidade aos princi-

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pes, que tinham incorrido no feu mais fevero defagrado. Era affim que as cenfuras, interdidos e excommunhões, ainda que puras penas efpirituaes, eram nas mãos do paftor univerfal e nas dos léus obedientes delegados a arma com que puniam os rebeldes á fua audoridade temporal. Era affim que o ponti- íice de Roma, o fucceíTor e o herdeiro do humilde pefcador de Tiberiades, apparecia no faftigio do poder na edade me- dia, cingindo os dois gládios temerofos, fymbolos das duas eminentes poteítades englobadas n'uma única vontade.

Da egreja dimanava toda a claridade para os efpiritos. A educação, o enfino e a fciencia pertenciam-lhe indivifas, fem que o eftado nem de leve fulpeitaíTe que elle podia fer ao mefmo tempo força e luz. As efcolas tinham nas cathedraes, nos cenóbios e nos morteiros a fua ordinária moradia. As univerfidades recebiam da egreja a fancção e a auctoridade. Mas na ordem hillorica nada ha que não leja conlequente e neceffario. A egreja, no meio das fociedades barbaras, incul- tas, illettradas, violentas e groíTeiras da Europa chriftã, na edade media, cm face dos potentados oppreíTores, brutaes, defnaturados, era em verdade quafi o único afylo, que res- tava patente ao direito, á fciencia e ao efpirito da humani- dade. Os fabios mais illuftres e os mais largos penfadores d'aquelle tempo é, com raras excepções, a egreja que os ins- pira e os recebe carinhofa em feu girão. Alberto Magno, S. Thomás, Rogério Bacon, Lanfranc, Abeilard, Okkam, Gerberto, Anfelmo de Cantuaria, S. Bernardo, Pedro Lom- bardo, os oráculos da philofophia e da fciencia, tal qual a concebia a edade media, vinculam por laços eftrcitiffimios, como homens ecclefiafticos, os trophéus da intelligencia ás glorias do fanduario. Eram os tempos, em que fabio e clérigo eram fynonymos. Decorreram os feculos, tranfmudou-fe a con- dição civil da chriftandade. A reacção meio-pagan da Renas- cença contra a Índole clerical da edade media, principiou a

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fecularilar a fciencia e a erudição. A Reforma de Luthero, de Calvino, de Zwingle e de Melanchton, infurreíta abertamente contra a fupremacia efpiritual de Roma e proclamando o principio do livre exame e a excellencia do juizo individual na anarchia turbulenta das facções religiofas, continuou a en- caminhar os efpiritos a divorciarem-fe da tradição. O feculo XVIII, com o feu largo fcepticifmo demolidor, abriu os pro- fundos alicerces da futura forma focial. No meio da nova fcena, profufamente illuminada pelos jorros copiofos de luz profana e temporal, a funcção da egreja, como prece- ptora da razão, como depofitaria da fciencia, como único fanal da educação, havia terminado finalmente. Ainda mais, a egreja, combatida rijamente pelas hereílas recrelcentes, contraftada pela infurreição aberta dos efpiritos rebeldes, incitada pela urgência da defeza, cada vez proclamava com maior fervor e valentia o feu antigo monopólio intelledual, e exaggerava a repreífão contra toda a fciencia nova, fufpei- tando em cada original expanfão do entendimento a fonte d'onde brotaífe uma nova doutrina herética, mal-foante, te- merária ou offenfiva dos ouvidos piedofos e chriftãos. É as- fim que o poder ecclefiaítico, a partir da Renafcença, fe tor- na mais ciofo e fufpicaz das novidades fcientiíicas, do que nos tempos menos luminofos durante a edade media. É aífim que a egreja reprova e condcmna, como adverfas á lettra das efcripturas e á fua authentica exegefe pelos fanftos pa- dres e doutores, as verdades aítronomicas nebulofamente raífreadas pelos gregos, e profeíTadas com a irrecufavel evi- dencia das fciencias mathematicas pelo génio dos Coperni- cos, dos Keplers, dos Galileus.

Se Portugal era porventura deítinado a entrar no con- cento e convivência intelledual das nações cultas, que mais cedo lhe antecederam na moderna civilifação, urgia fecula- rifar de vez o enfino publico, feparar da cathedra profana o

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púlpito da fé, aíTim como fe bufcára deflindar por fronteiras definidas a ara do facerdocio e a fede curul do império tem- poral, a egreja e a fociedade, o throno e o altar.

Na fituação, a que haviam chegado as relações religiofas do paiz, na contenda tenaciífima entre a egreja e o eftado, a oufada inftituição do enfino fecular era para Sebaflião de Carvalho um forçofo confeftario das fuás antecedentes pro- videncias. Antes de tudo era-lhe neceífario que nada fe pro- fefTaíTe nas efcholas, que não tiveífe o fêllo obrigatório da majeftade e independência temporal. A idéa, aíTim como fuccedia na moeda, não poderia correr no commercio intel- leítual, fem o cunho e a effigie do foberano. Toda a velha doutrina fubverfiva e contraria aos direitos primordiaes e inamiíTiveis do eftado, reprefentado pelo rei, feria profcripta e condemnada com o mefmo rigor, com que fe pune o cri- me de moeda falfa. Ora as doutrinas mais infeftas ás incon- teílaveis prerogativas do poder civil, e mais propicias ás in- vafões do facerdocio na jurifdicção e foberania fecular, eram profeífadas nas efcolas e recebidas pelo vulgo inconfciente como pontos dogmáticos de fé. Era principalmente a faculda- de de theologia, que mais urgia reformar, para que, em provei- to e luzimento da própria egreja, as fciencias divinas fe enfi- naífem expurgadas de todo o abufo e fuperíhção, theologia de Fénélon, de BoíTuet, dos piedofos folitarios de Port-Royal, theologia chriftã manando copiofa das fontes efcripturaes e patrifticas, purificada de todas as frivolidades e fubtilezas da velha philofophia efcholaftica. O direito canónico, tal qual fe deveria profeífar n'uma faculdade catholica, porém não fa- mula da univerfal monarchia pontificia, não chamava com menor follicitudc a attenção do legiílador. Era neceífario pro- feífal-o fem as doutrinas deftrudivas da majeftade e fobera- nia fecular, fem as thefcs derivadas das falfas decretaes ifido- rianas. Era força divulgal-o fegundo o expendiam em feus

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livros audorifados os canoniftas mais cliriftãos e piedofos, po- rém ao melmo palTo os mais adverlbs á invaíao ecclefiaftica nos dominios legitimos do eftado, como o enfinavam Gmeiner e Van Efpen, Riegger e Febronio, íeparando por fronteiras impreteriveis o c[ue pertencia a Deus e o que o Cefar não po- dia abdicar, lem jadura e oftenfa grave do império temporal. Não menos decadente do que o direito canónico, fe ar- raítava encadeado ao código, ás pandedas e ás novellas, ás gloíTas e apoftillas dos doutores a jurifprudencia civil. O di- reito romano relegava para um quafi total efquecimento o direito pátrio, havido em conta de quafi bárbaro pelos zelo- Ibs partidários das conftituições e leis do império. A focie- dade portugueza, como as das outras monarchias fundadas fobre as ruinas do mundo romano, pela mutação dos tempos e dos coftumes, pela feição diverla da nova civilifação, mal podia accommodar-fe litteralmente á legillação de um povo extincfo defdc feculos. Entre os produdos mais admirá- veis do efpirito humano em todas as edades não é de certo o direito romano o que menos pôde com razão maravilhar os que invefligam e meditam as leis e os phenomenos na evolução moral da humanidade. É o direito romano como que o alicerce e o fundamento das fciencias jurídicas c fo- ciaes. D'elle fão os princípios capitães, ainda hoje invocados pelos juriftas; d'elle a própria linguagem technica ainda vul- gar; d'elle a mefma diviiao ainda hoje ufada nos códigos modernos e nos li^vros dos mais audorifados e eminentes ci- vilizas; d'clle o que ha de fundamental na doutrina do efta- do das peíToas, dos contrados e obrigações, dos litígios e acções de lei. Não foi o direito romano alheio em feus influxos aos códigos das nações conquiífadoras, ao Fuero juigo, ao Breviário de Alarico, ás leis dos Salicos e Burguinhões, quan- do o elemento bárbaro e germânico pela irrupção dos po- vos feptentrionaes invadiu e modificou a Icgiflação do velho

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império. O próprio direito canónico fobre o direito romano fe modelou, innovando todavia o que era congruente á nova fociedade efpiritual, que havia de reger. Se Roma, porém, principalmente a Roma cefarea, a Roma das Theodolios e Juftinianos, ainda após a lua queda material perfiftia em governar pelas fuás leis e pelas decifões dos feus jurifpRi- dentes as nações brotadas do leu leio, não era jufto, nem racional, que alterada profundamente a forma Ibcial, crea- das novas relações delconhecidas aos romanos, fagraffem os jurifconfultos, uma luperfticiofa veneração aos textos e commentarios das fuás leis, menofprezando ou efquecendo inteiramente o direito pátrio e, como direito fubfidiario, a moderna legiflação dos povos cultos. Contra efte abulo per- niciofo, com que nas cathedras os meftres profeífavam a fciencia dos Ulpianos e dos Paulos, e nos pretórios os julga- dores derimiam os pleitos fegundo a lei romana e as gloífas de Bártolo e de Accurfio, defdenhando por femi-barbara a pátria legiflação, le levantara Sebaftião de Carvalho em al- guns dos feus mais celebrados monumentos legiflativos, na famofa providencia antonomaíticamente nomeada a lei da boa ra{ão'f e na lei- em que, fendo condemnado o direito illimitado da ultima vontade, fe eftatuiram novas e faluta- res difpoíições acerca da facção testamentária.

As fciencias medicas atteítavam em Portugal um eftado vizinho da barbárie pedante e da mais obfcura fervidão aos antigos, reprefentados em Galeno, e aos árabes da edade me- dia, cujo infallivel luminar era Avicenna. Em vão os Vefalios, os Fallopios, os Fabricios de Aquapendente, e depois d'elles os Morgagnis e os Harveys, haviam revelado admiráveis des- cobrimentos fobre a eflrudura anatómica do homem e fobre

1 Carta de lei de i8 de agoflo de 1769.

2 Lei de 9 de feptembro de 17Õ9.

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as funcçõcs do organilmo. A anatomia na faculdade de Coim- bra continuava a ter por leu guia e único mentor o livro De iifii partiwn do medico de Pergamo. No livro de Braz Luiz de Abreu, que tem por titulo Portugal medico, onde a mais vafta e a mais efteril erudição lacra e profana convive em familiar alTociação com as mais pueris fuperítições, enraiza- das no vulgo e nos doutores, o efcriptor, encruecido na cega adoração da antiguidade, zombetêa com o defcobrimento fe- cundiíTimo de Graeffe, principio e fonte da moderna doutrina phyfiologica acerca das funcções da reproducção.

A medicina é fempre, através da fua longa hiftoria, o produdo neceíTario do que o homem alcança em cada epo- cha defcobrir e comprehender nas leis do Kofmos. Que po- deriam pois ler as fciencias medicas em Portugal, quando a fua mais do que pura auxiliar, mãe e preceptora, a fciencia do univerlb, a fciencia do mundo inorgânico, e a do mundo biológico, a phyfica, a chimica, a hiftoria natural eram tão rilivelmente profeíTadas em Coimbra, que mais valera que o filencio acerca da natureza eftiveíTe alli fempre ininterrupto? E de feito a natureza eftudada em Ariftoteles e nos feus in- terpretes efcholafticos, em Theophrafto, e em Diofcorides e no leu famigerado gloííador o Meftre André Laguna, era uma natureza convencional, contrafeita e accommodada ex- preífamente ao ufo viciofo das efcolas.

Urgia pois, no intereíTe da illuftração e da faude, re- organifar ou antes inftaurar de novo e em racionaes e mo- dernos fundamentos o enfmo medico. Era precifo livrar ao mefmo paífo as povoações do galenifmo cego e infciente dos feus clínicos univerfitarios e da praga dos cirurgiões idiotas e dos algebriftas c medicaftros, talvez menos perigolbs, ape- lar da curteza das fuás lettras, do que os feus vaidofos emu- los, que embalfamavam os miferos enfermos nas beberagens da velha polypharmacia, e lhes celebravam as exéquias, ain-

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da em vida, com os textos claíTicos de Galeno, de Hippo- crates, de Ceifo, em grego ou em latim.

Para iniciar porém as novas gerações na medicina ecle- flica e experimental, defterrando as viciolas tradições da medicina fyftematica, era neceíTario inocular a fundo nos es- píritos o culto fcientifico da natureza, como ella é na lua phenomenal realidade, e como fe revela á obfervação e á experiência, não como a fabricaram nos feus livros os mes- tres da antiguidade, apenas infpirados por falliveis conjedu- ras ou theoricas antecipações. Tudo o que das Iciencias phy- ficas e naturaes fe podia aprender nas efcolas de Portugal fe reduzia quafi litteralmente ás abíurdas e pueris efpecula- ções, que ferviam de appendice e complemento á que então fe appellidava philolbphia. Efcureciam os meftres antes de tudo o efpirito do alumno com as prolixas e nugatorias com- mentações dos predicamentos ariftotelicos. Perfuadiam-lhe que no uíb de artiíiciofos fyllogifmos fe cifrava todo o des- cobrimento da verdade. Entornavam-lhe a jorros na intelli- gencia a eftrondofa, mas eíteril catadupa de uma inane dia- leífica, adextrando-o para a luda dos argumentos palavrofos e fubtis e para as oftentofas logomachias. Embrenhavam-n'o fundamente pelas devefas e andurriaes de uma caliginofa me- taphyfica, tanto mais grata aos meftres e fabedores, quanto mais inacceífivel á luz e á verdade. Apoz eífa infecunda pre- paração os preceptores e os compêndios efcolares, no Colle- gio das Artes em Coimbra, na univerfidade jefuitica de Évora e nos inftitutos monachaes, na volumofa compilação appel- lidada Ciirfo Conimbricenfe ou na indigefta Philofoplua do padre Aranha, refolviam o elfudo do univcrfo e das fuás leis nas doutrinas extravagantes de uma phyfica ideada e cons- truída pelos raciocínios à priori, fem que aos feus vaidofos profeífores occorreífe nem de leve a neceíTidade de inquirir uma vez a natureza pelos proceífos experimentaes.

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Toda a philofophia do elpirito e do Kofmos era pura- mente a peripatetica, ou antes a efcholaftica, dominante na edade media e tenazmente perpetuada, com efcandalo das lettras, na Peninfula pyrenaica até fer adulto o feculo decimo nono. Efta parodia ou múmia de fciencia e as difci- plinas tradicionaes, que haviam conftituido o trimim e o quadrimum das efcolas durante a edade media, eram feguidas e veneradas como um preciofiffimo thefouro, legado por umas a outras fuperfticiolas gerações, e no qual era defefo introduzir a menor innovação. Efta era a forma da fciencia e da erudi- ção, confagrada praticamente pelo clero durante os fecu- los médios, ifto é, durante as epochas, em que elle tinha mais firmemente confolidada a ília mundana dominação e irrompido vidoriofo em todos os interfticios da vida civil e focial.

Ora foi cabalmente na Peninfula, que o faccrdocio, em tudo quanto mais intimamente fe enlaçava com a fociedade temporal, exerceu a maior audoridade, e fe confervou mais extranho e mais rebelde ás influencias da profana civilifação. Era na Peninfula que os inftitutos e corporações religiofas eram geralmente, comparados com os da reftante Europa, os menos illuminados. Os próprios jefuitas, que além dos Pyreneus, em França, na Itália, na AUemanha, na Polónia, tinham patenteado as portas dos feus clauftros á invafão das modernas fciencias, perfevera^'am na Hefpanha e em Portu- gal addidos e fieis á velha philofophia e ás formas efcholas- ticas. Ao influxo perniciofo da preponderância clerical, e á fevera fifcalifação intellectual exercida pela Inquifição no propofito de fruftrar os contrabandos efpirituaes, é jufto o accrefcentar uma nativa e genial difpofição dos povos penin- fulares para ferem confervadores e adverfos ás innovações audaciofas e ás creações originacs em tudo quanto cáe fora dos términos da opulenta e inJifciplinada imaginação meri-

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dional. E de feito parece que os Bacons, os Defcartes, os Copernicos, os Keplers, os Galileus encontram quafi fáfara e madrafta a ubérrima região, onde ao foi, que fecunda e aquenta a arte e a poefia, defabrocham inimitáveis os génios de Camões e de Cervantes, de Velafques e de Murillo. AíTim como ha para as floras e para as faunas uma repartição geo- graphica natural, affim parece também que ao fabor dos climas e dos logares ha para a Europa civilifada uma geo- graphia intelleftual, uma diviíao do trabalho para os efpi- ritos, uma condição predileda e efpecial para as mentaes e creadoras vocações.

Era pois urgente fubftituir á enervante philofophia das efcolas jefuiticas e monachaes uma nova fciencia profeíTada em inftitutos fundados de raiz e immunes da eiva tradicional. De todas as fcientificas efpeculações, a que pôde levantar-fe a razão humana, nenhuma ha porventura, que mais a grati- fique pelos feus frudos do que o eftudo experimental da natu- reza. Efta é de todas as philofophias a menos declive para o erro e a mais preftadia e mais fecunda em verdadeiros reilil- tados para a illuminação do entendimento e para os progres- fos fociaes. Cumpria forçofamente abrir-lhe praça no quadro dos eftudos fuperiores, inftituindo própria faculdade, em que fe podeffe profeíTar.

E, porém, quali impoíTivel o interpretar a natureza fem que para elevar-fe ao defcobrimento das fuás leis, o efpirito fe prevaleça de uma lógica mui outra do fyllogifmo reveren- ciado nas efcolas monachaes; lógica fublime, que nas mãos dos geómetras immortaes é ainda mais poderofa do que os telefcopios mais perfeitos, e os apparelhos mais fenfiveis para ler nos céus a chimica das eftrellas, e defcortinar no Kosmos os arcanos da matéria. E eíte fecundiffimo inftrumento, com que na edade moderna da fciencia os aftronomos pefaram o univerfo e os ph)íicos reduziram a leis invariáveis os phe-

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nomenos do fom e do calor, da luz, da eleíítricidade c ma- gnetiímo. E a geometria e a mechanica e a analyfe mathe- matica, lao as azas ligeiriíTimas do penfamento, a machina de vapor do trabalho intelledual.

Depois de terem florecido por algum tempo em Portugal, principalmente pelo talento admirável de Pedro Nunes, em tanta maneira as fciencias mathematicas haviam decaído, que apenas d'ellas fe aprendiam taxados e incompletos rudi- mentos. Enlinavam-n'as, é verdade, os jefuitas nos feus colle- gios, profeíravam-n'as principalmente em Santo Antão, onde a aula chamada da Sphera fora durante muitos annos o in- ftituto principal, a que os engenheiros acudiam para a fua imperfeita doutrinação. D'ali tinham faido as obras do padre Manuel de Campos, havidas no feu tempo como claíTicas, apefar do feu cunho elementar. Era nos ofíiciaes do exercito, mais ciofos de faber, que fe confervava efpecialmente a herança dos conhecimentos mathematicos, e os nomes de Manuel de Azevedo Fortes, de Serrão Pimentel, de Manuel da Maia, atteftavam que ainda havia quem n'eíla parte hon- raíTe, quanto podia, o nome portuguez. Mas as admiráveis conquiftas da geometria, do calculo, da dynamica, da aftro- nomia phyfica, da mechanica celeíte, afelladas com os nomes gloriofos de Newton, de Pafcal, de Leibnitz, de Clairaut e D'Alembert, d'efta luminofa dynaftia de geómetras, que ti- veram o nome de Bernouilli, ou eram inteiramente ignoradas em Portugal, ou não tinham um lo reprefentante nos eítudos fuperiores. A velha univerfidade encadeada aos predicamen- tos ariftotelicos, adextrada na gymnaftica do fyllogifmo, ar- dente dcfenfora de todas as archaicas doutrinas carcomidas acerca do efpirito e da natureza, defdenhava por indignas da borla doutoral as fciencias fecundiífimas do movimento e da grandeza. Não podia efconder-fe ao audaz reformador dos efludos nacionaes efta mingua laflimnfa, que era ao mes-

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mo paffo uma ignominia e um atteítado vergonhofo da noíTa decadência intelledual. Deu pois entrada ás mathematicas na reformada univerlldade. AíTignou-Uies faculdade privativa, como quem defejava reparar com honrofas crefces o defpre- zo e vitupério, em que tinham por feculos jazido em Portugal. Confirmado no animo do eftadifta o propofito de reformar a inítrucção, cuidou na traça, que haveria de levar. Era for- çofo achegar para os eftudos preliminares de tão árdua refor- mação os poucos elementos, que tinham alcançado fuhtrahir- fe á geral ignorância ou ao phantafma pedante do faher, ainda mais perniciofo que a infciencia. Veiu a inftituir uma grande congregação de homens defabufados e eruditos, a que chamou a. Junta da Propidencia Litteraria\ Prefidiam a efte confelho o próprio Sebaftião de Carvalho e o arcebifpo de Évora então condecorado com a purpura cardinalícia. Eram membros d'aquella junta D. Fr. Manuel do Cenáculo, agora elevado á dignidade epifcopal na de Beja, novamente inftituida, os defembargadores Joíe Ricalde Pereira de Cas- tro, Jofé de Seabra da Silva, procurador da coroa, Francifco António Marques Geraldes, Francifco de Lemos de Faria, reitor da univerfidade, Manuel Pereira da Silva e João Pe- reira Ramos de Azeredo Coutinho. Eram todos devotadiíTi- mos fedarios do primeiro miniítro, zelofos cooperadores da fua empreza, fieis executores da fua vontade, inimigos impla- cáveis dos jeluitas, ardentes propugnadores das foberanas regalias contra as ufurpações e demafias clericaes. Nem todos primavam pela inteireza do caracter, nem luziam egualmente pelo efplendor das fuás lettras, mas eram todos conformes em bem fervir o fevero reformador. Pozeram mãos á empreza com indefeíTa applicação e boa vontade. Repetiam-fe as jun- tas e as confultas. Crefcia a obra a olhos vifta. O primeiro

' Carta de 23 de dezembro de 1770.

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frudo, com que a erudita congregação faíu a lume, foi o Com- . pendio hijlorico do ejlado da iiniverjidade de Coimbra, efcripto ílibftanciofo e eruditiíTimo, onde com a forma fefquipedal e a bombaftica majeftadc caraderiftica dos efcriptos ofiiciaes na epocha pombalina, fe defcrevia por feus paíTos contados a fucceíTiva decadência e abatimento, em que fe havia pre- cipitado a velha univerfidade portugueza defde os infauífos dias do fombrio D. João III. D'eíta laítimofa degradação in- telledual fe imputava no livro a culpa inteira aos funeftos influxos jefuiticos, accumulando contra a ordem condemna- da os epithetos mais injuriofos.

Compoz a Jimta da providencia litteraria e confirmou o rei pela carta regia de 28 de agoflo de 1772 os novos eítatutos, pelos quaes haveria de reger-fe a renafcente univerfidade. E renafcente, fe não inteiramente renovada, era a litteraria in- ftituição, que das ruinas do velho edifício jefuitico brotava promettendo inefperado luzimento á decaída intelligencia em Portugal. Pela nova legiflação académica eram declarados fem vigor os antigos eftatutos de iSgS, fabricados fob o in- fluxo e direcção da Companhia. A faculdade theologica, por fer a que mais inteiramente fe prendia á confiante preoc- cupação do grande legiflador, foi a que antes de todas lhe attrahiu a attenção para que foíTe completa e ajuftada aos modelos mais infignes d'aquelle tempo a fua orthodoxa dou- trinação. Repartiam-fc os eftudos por oito cadeiras, nas quaes havia de profeflar-fe a theologia dogmática e polemica, a theologia moral, chriftan e defpojada de todas as theorias probabiliflas e de todas as relaxações da confciencia, a exe- gcfe do antigo e do novo Teftamento, a hifloria ecclefiaflica, e a liturgia. Deviam fer oito os cathedraticos, féis os fubíti- tutos, illimitado o numero de oppofitores, chamados even- tualmente á regência d'aquelles curfos, quando o pediífe a neceíTidade. Os lentes haveriam de fer efcolhidos por cgual

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e em ordem alternada entre o clero fecular e as corporações religiolas.

As duas antigas faculdades jurídicas, a de cânones e a de leis, foram confervadas na fua primitiva independência. Para ambas fe inítituiram dezefeis cadeiras com egual numero de cathedraticos e mais féis ílibítitutos para cada faculdade. Os eítatutos proclamavam a preexcellencia das leis pátrias febre as romanas, concedendo ás imperiaes a funcção de fubfidia- rias, quando não contradigam a boa razão. O eníino do di- reito portuguez recebia novos defenvolvimentos, como que naturalmente fe antepunha á legiflação e aos coítumes de uma nação antiga e mui diverfa das fociedades modernas e chris- tans. Como eíTencial e luminofa propedêutica ás doutrinas do direito civil de Portugal, ordenavam os eítatutos, que na fa- culdade jurídica fe enfinafle o direito natural e o das gentes, a hiftoria do direito romano, e a hiitoria particular do povo portuguez e da lua peculiar legiflação. N'eíta parte prefcre- viam os eítatutos, que o profeífor expendeífe e condemnaífe claramente as perigofas innovações, as máximas ultramonta- nas introduzidas na pátria legiflação para amefquinhar e des- luzir as regalias majeftaticas em beneficio das preteníoes tem- poraes do clero e dos pontífices.

A invencível fupremacia, que nos eítatutos novos ainda mantinham as fciencias moraes e theologicas fobre as exa- étas, phylicas e naturaes, denuncia-fe na eftreiteza relativa, com que fão n'elles iníthuidas as faculdades de mathematica e philofophia, e principalmente a de medicina. Ao enlino medico eram deputadas unicamente féis cadeiras com egual numero de cathedraticos, apenas dois lentes fubftitutos, e ou- tros tantos demonítradores.

Somente quatro cadeiras conftituiam a faculdade de ma- thematica. Outros tantos cathedraticos e dois lentes fubltitu- tos deviam eníinar as mathematicas elementares, o calculo

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infinitefimal, a mechanica ou, fegundo iVaquelle tempo le cha- mava, a phoronomia, e a aftronomia pratica. Inftaurava-fe ao mefmo paffo um obfervatorio, neceffario complemento dos bons eítudos aftronomicos. Reconhecendo a aka importância das mathematicas e bufcando fomentar o feu cultivo em terra, onde tanto andavam efquecidas ou delprezadas, convidava o legillador á frequência da nova faculdade com attraífivos ali- cientes, abrindo, aos que n'ella fe graduaíTem, algumas das mais honrofas carreiras publicas, e concedendo-lhes valiofas preferencias no ferviço do exercito e da armada.

A faculdade, que nas velhas univerfidades tinha o nome claíTico das artes, fubentendendo n'efta denominação a grammatica, a rhetorica, a lógica, a arithmetica, a geome- tria, a mufica e a aftronomia, foi abolida por efteril, ana- chronica, e fomente accommodada a viciar a inftrucção. No feu logar erigiu-fe a faculdade, que o legiflador cognominou de Philofophia, fe bem o feu deftino principal foífe, não o profeífar as nebulofas efpeculações da metaphyfica, fenão o divulgar as fans doutrinas das fciencias phyficas e naturaes. A philofophia racional e moral, entrava, porém, no quadro da noviíTima faculdade; a phyfica, a chimica e a hiíforia na- tural completavam o currículo académico. Somente quatro cadeiras com outros tantos cathedraticos, e dois lentes fubfti- tutos, altribuia a nova legiflaçáo ás fciencias da natureza, então opulentiíTimas de novos defcobrimentos e largamente divulgadas pela Europa. A mineralogia, a botânica, a zoolo- gia, haveriam de fer enfinadas n'um curfo e n'um anno. Reduzia-fe por eíta forma o feu eftudo ás mefquinhas di- menfões da fciencia profeífada n'um inífituto fecundario. Apefar, porém, da mefquinhez com que o legiflador, depois das fuás larguezas jurídicas e theologicas, repartia o feu qui- nhão á natureza e aífegurava o logar nos feus geraes á philo- fophia experimental, efte primeiro e fyífematico luzir das que

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podem chamar-fe as fciencias da moderna civilifação, era tão novo, tão extranho em terra habituada a fermonarios, e apoftillas de theologos efcolafficos e de romaniílas eruditos, que affim mefmo ainda atteílava a larga previdência do illus- trado legiflador. A philofophia da natureza apparecia então ao egoifmo dos governos, como menos valiofa e preftadia que as demais difciplinas profeíTadas na refundida univerfidade. A theologia haveria de educar prelados e inquifidores, zelofos de feparar o facerdocio e o império; os cânones e as leis, ha- veriam de formar jurifperitos c togados, egualmente dextros em defender as prerogativas do foberano abfoluto contra as irrupções temporaes da egreja, e as tentações da popular au- tonomia. A medicina recommendava-fe como fciencia da vi- da material. As mathematicas faziam navegadores e enge- nheiros. Mas as fciencias naturaes, apefar do efplendor, com que refulgiam pela Europa, ainda não fe entendia cabal- mente como podiam lifonjear no mefmo grau a intereífeira conveniência dos eftados. Eram os tempos, em que Franklin, o phyfico democrata, não era menos illuítre, fegundo o verfo latino de Turgot, por haver arrebatado o raio ás nuvens do que o fceptro aos tyrannos. Mas os milagres da phyfica e da chimica eftavam ainda apenas em principio. Ninguém po- derá ainda adivinhar o que feria a induftria librada n'eftas duas azas poderofiíTimas, rafgando os voos maravilhofos do prefente. Sebaftião de Carvalho e os feus cooperadores na creação do novo enfmo, não fão pois menos dignos de agra- decimento e de louvor. A fua generofa follicitude em obfe- quio ás fciencias da natureza, apparece teífificada pela gran- diofa inftituição do mufcu univerfitario, do jardim botânico, do gabinete de phyfica experimental e do laboratório defti- nado á chimica pradica. E elle o introdudor das fciencias mathematicas, phyficas c naturaes nos quadros do enfmo por- tuguez. Ser-lhe-hia de fobra efte titulo para que o feu no-

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me refplandeceíTe gloriolb na hirtoria da intelligencia em Por- tugal. Foi tal e tão fubida a fignificação, que attribuiu á fua miíTão de reformador, ou antes de novo inffituidor do enfino pátrio, que para efta funcção legiflativa julgou neceffario con- decorar-fe com todo o efplendor da majeftade.

Pela carta regia de 28 de agofto de 1772 conferiu D. Jofé ao feu miniftro a eminente dignidade e os latilTimos poderes de feu plenipotenciário e logar-tenente na fundação da nova univeríidade. PaíTou o reformador á cidade de Coimbra com todo o apparato e oftentação de monarcha verdadeiro, dei- xando na fombra, que merecia em empreza de tanta magni- tude, o foberano mais aífedo a monterias que propenfo a praticas mentaes. Foi logo pondo em feu vigor os eftatutos e ordenando o que cumpria á fabrica e alojamento da refor- mada academia. Do collegio dos jefuitas applicou uma parte á univerfidade, e mandou que no caífello fe erigiífe um edifício nobre e accommodado a fervir de obfervatorio'. Reftaurou e encorporou na univerfidade o collegio das artes, memorando no diploma, que o reífituiu á fua antiga fiorefcencia, as glorias litterarias, de que fora nobiliffimo theatro, e renovando as tremendas accufações contra os jefuitas, que fob a fua direc- ção o tinham defluftrado e corrompido^ Elegeu para as fciencias moraes e pofitivas as maiores habilidades, que fe lhe depararam no meio da quali geral corrupção das boas lettras, provendo as cadeiras em peífoas nacionaes. Era porém de todo inexequível encontrar homens confummados, ou ao menos competentes nas fciencias mathematicas, phyficas e naturaes para lhes commetter a inífauração do novo eníino em difciplinas ignoradas quafi inteiramente em Portugal. Para a faculdade de mathematica ainda lhe deparou a boa fortuna

' Carta regia de 1 1 de outubro de 1772.

2 Provifão do logar-tenente, de iG de outubro de 1772.

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dois nomes illuftriffimos, Jofé Monteiro da Rocha e Jofé Anas- tafio da Cunha. E é notável que por uma fmgular ironia do acafo, Jofé Monteiro era faido havia poucos annos dos claus- tros da própria Companhia, cujos profundiíTimos eftragos na inftrucção o miniftro de D. Jofé era chamado a reparar. De todas as ordens e congregações religiofas, fomente a profcri- pta fociedade teve a honra de contar um dos feus antigos membros entre os que iam derramar defde as cathedras noviffimas a luz da fciencia moderna e fecular. Jofé Anafta- fio era official de artilheria e honrava o exercito portuguez, atteftando nobremente que nas fuás fileiras, apefar da velha negligencia governativa em promover e favonear os bons es- tudos, fe confervára nunca extindo o fogo das fciencias, que mais illuftram e ennobrecem a razão. Os dois únicos repre- fentantes portuguezes das fciencias mathematicas na recente univerfidade eram pois, como aítronomo diftinclo, um je- fuita, como geometra, um livre penfador, para quem de longe fe apparelhavam as futuras perfeguições da inquifição. Os demais profeífores foi neceífario mcndigal-os entre nações extranhas. Eram para a faculdade de mathematica o piemon- tez Miguel António Ciera e o veneziano Miguel Franzini. A faculdade de philofophia teve como feus primeiros cathe- draticos nas fciencias phyficas e naturaes os italianos Van- delli e Dalla Bella, que em Pádua haviam tido egual offi- cio. Todos eftes notáveis extrangeiros tinham de Itália vindo a Portugal para enfinarem as fciencias phyficas e mathema- ticas no coUegio de nobres. Agora trafladados a Coimbra os profeífores, e de vez inítituido o novo enlino, abolia o le- giílador as cadeiras correfpondentes no coUegio', confagran-

> Carta de lei de lo de novembro de 1772, extinguindo no collcgio de no- bres os efludos phyficos e mathematicas por exiltirem eftabelecidos em a nova univerfidade.

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do-o unicamente á inftrucção nas humanidades. a cila fafão deixava Sebaítião de Carvalho inftituida a univerfi- dade, aberta folemnemente pelo miniftro logar-tenente cm outubro de 1772. Volvera á capital, tendo cumprido a mais illuftre e memorável das fuás audazes reformações. Porque era porém agora neceílario que deílie Lifboa vigiaíTe a nova planta, ainda mal fegura em terra ingrata, e acudiíTe com affiduas providencias a folidar a inftituição, foi-lhe proro- gado o officio de logar-tenente. Inveftido n'efta podcrola magiftratura, era elle, no lignificado ampliffimo da palavra, o didador da intelligencia e o monarcha da inftrucção '. Se o miniftro audazmente revolucionário confiderava a fua luda com as potencias clericaes uma empreza gloriofa, não era menos aquilatada no leu animo, como obra monumen- tal, a fundação da univerfidade. Refpondendo ao bifpo de Zenopolis, D. Francifco de Lemos, reitor da univerfidade, e á deputação que viera agradecer a D. Jofé a fruduofa re- nafcença da caduca inftituição, o grande reformador, attri- buindo ao foberano o louvor, que a íi próprio lhe quadrava, podia aííirmar com hiftorica verdade, que era aquella nova creação «o mais gloriofo monumento do feu feliz reinado^». Se a univerfidade era porém deftinada a renovar a vida intelleílual e a iniciar o povo portuguez na moderna civili- fação, a fua luz diff"undia-fe apenas direitamente pelos eftra- tos fuperiores da fociedade. Creando aíTim uma ariftocracia litteraria e fcientifica, fomente o inftituto renafcente poderia por uma acção reflexa e indireda influir nas claífes popu- lares, as mais defalumiadas e envilecidas pela fua diuturna obfcuridade, e por iífo as que mais inftantemente dcmanda-

' Carta regia de 6 de novembro de 1772.

2 OíTicio do marqucz de Pombal ao reitor da univerfidade, na Cnllecçáo de legijlação, de Trigofo, manuícripto da Academia das Sciencias de Lifboa.

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vam os benefícios da inftrucção. São as univerfidades e as efcolas fuperiores como intenfos focos de luz centraliíados nas eminentes regiões da fociedade, e lançando apenas alguns pallidos clarões nas profundezas fociaes. Tendem a fazer da illuítração um privilegio e da fciencia uma oligarchia. So- mente a efcola popular, modeíta, mas patente aos humildes e aos pequenos, alcança diftribuir fraternalmente a nutrição efpiritual e alumiar com bem repartida intenfidade a maíTa inteira da nação. Nunca houvera em Portugal enfino para o povo. Mas Sebaílião de Carv^alho, apefar do leu ahfolutifmo intranfigente e fyftematico, defde as eminências, em que a fua vifta fe alongava no futuro, comprehendia a máxima doutri- naria. «Tudo para o povo, nada pelo povo». O próprio egoifmo da coroa abfoluta devia cifrar o feu intereíTe em re- ger uma nação illuminada, opulenta, poderofa, trabalhadora. Trifte haveria de fer a condição de um rei, fenhoreando a uma turba de mendigos ou a uma horda de felvagens, inve- terados na abufão, jubilados no preconceito e encanecidos na barbárie. Ainda outra razão ponderofiffima o determinava a preencher nos quadros da inftrucção a lacuna, que deixava a efcola primaria. Sebaftião de Carvalho na fua porfia tenaz e inclemente com o poder clerical e jefuitico, vira na ignorân- cia e bruteza popular um dos mais irrefiftiveis adjutorios do feu antagonifta. Um povo illuftrado não pôde fer uma confra- ria de fanáticos. A luz da intelligencia não pôde confentir as trevas da fuperftição.

Eftavam abertos os novos eftudos fuperiores, quando o previdente legiflador acudiu a inftituir o enfino commum e popular". Devia fer miniftrado em efcolas publicas diftribuidas por todo o território portuguez. As difciplinas profeífadas ha- viam de fer a leitura, a efcripta, a orthographia, e os ele-

i Alvará de 6 de novembro de 1772

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mentos indifpeníaveis da grammatica, principalmente no que era concernente d recta conftrucção da linguagem, o calculo arithmetico, a doutrina chriftan e a civilidade. Era eíTencial- mente o mefmo quadro, que até ás reformas da inftrucção cm i836 havia comprehendido tudo quanto os legilladores tinham julgado fuííiciente á illuftração rudimentar. Inftituia o reformador quatrocentas e fetenta e nove efcolas, c]ue cha- mava de ler e efcrcver, attribuindo ao reino quatrocentos e quarenta, vinte e quatro aos dominios portuguezes no ultra- mar, e quinze ás ilhas adjacentes. Além do enfmo official era permittido aos particulares o magifterio, comtanto que attes- taíTem em exame publico a fua capacidade. Na mefma pro- videncia legiflativa, que fundava a inftrucção primaria, fe regulava o numero e a diftribuição das cadeiras de humani- dades. Os profeíTores de latim deviam fer duzentos e trinta e féis, os de grego trinta e oito, e quarenta e nove os de rhe- torica. A philofophia, que na primeira inftituição do enlino litterario não tivera reprefentação, achava melhor graça aos olhos do legiflador, e devia profeíTar-fe em trinta e cinco au- las em todo o âmbito das terras portuguezas.

Havia, como defde logo é manifefto, uma extrema defpro- porção entre o numero das efcolas confagradas á educação e enfmo popular, e a largueza exuberante, com que era dota- da a inftrucção gymnafial ou fecundaria. Era harto parcimo- niofo o quadro dos profcífores primários, exceífivo certamente o dos que tinham por encargo diffundir as lettras claíficas. Se attentarmos, porém, em que era novo, defufado até ali, quafi havido por inútil ou fuperfiuo o enfmo da gente commum e não lettrada, e em que por toda a Europa era vulgar, ainda nos paizes de maior cultura, o cifrar nas humanidades, prin- cipalmente no latim, o melhor thcfouro e ornamento intelle- dual, não podemos forrar-nos a admirar como uma oufada e falutar innovação o reputar o legiflador, como um encargo

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publico, defde então imprefcriptivel, o enfino primário mi- niftrado ás mais humildes e fertanejas povoações. Se refle- ítirmos em que atrazo laftimofo ainda fe encontra a educação official do povo portuguez, agora que é decorrido mais de um feculo depois do giganteo esforço de Pombal, fe rememorar- mos a fumma difiiculdade em obter meftres idóneos e pres- tadios, é forçoíb confeíTar, que pefadas as circumítancias do tempo e a Índole diverfa na forma governativa, as quatrocen- tas e fetenta e nove efcolas inftituidas pelo miniftro de D. Jofé reprefentam um paíTo mais audaz nos progreíTos nacionaes do que as três ou quatro mil, com que Portugal confegue apenas fobrepôr-fe á Ruffia e á Turquia no mappa compa- rativo do enfino popular em toda a Europa.

Não podéra Sebaílião de Carvalho, na prefença da monar- chia, abolir a nobreza hereditária, depois de apagar na legis- lação e nos coftumes a diftincção das caílas e das famílias, nem difpenfar inteiramente o patriciado como elemento íbcial. Pretendera porém aproveital-o, encaminhando-o á commu- nhão com a nova fociedade pelo baptiímo da illuítração e da fciencia. Creára para efte fim expreíTamente o CoUegio de nobres, erigindo-o na cafa onde outr'ora íiorefcêra o mais illuftre noviciado jeiliitico. Sebaftião de Carvalho, como fuc- cede fempre ao homo noviis, principalmente nas monarchias, ao homem levantado de berço obfcuro ou de modefta fidal- guia ás eminências reaes da audoridade e aos vaidofos des- lumbramentos da grandeza ariílocratica, não era inacceíTivel ás complacências com a ordem patrícia, em que abaixo dos duques fe infcrevia. Mas os feus inífinéfos eram eíTencial- mente democráticos no conceito de confiderar o povo como a força dos eífados, e a íua melhoria intelleífual como o tim- bre mais honrofo das nações. O CoUegio de nobres era um feminario exclufivamente deftinado á liberal educação dos que tiveíTem o foro de moços fidalgos. Os filhos dos mecha-

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nicos, ou da plebe dos oíficios e mifteres, não podiam acoftar nos geraes do antigo noviciado da Cotovia, os herdeiros dos nomes mais illuftres. Mas para compenlar etia exclufão, fun- dava o legiflador um novo collegio, que poderia ler appel- lidado o collegio plebeu e defornado de pergaminhos e bra- zões". Era na forma, na inftrucção, na difciplina egual ao da nobreza, que lhe fervia de exemplar e de modelo. Confa- grava-íe efpecialmente a educar os filhos das famílias hones- tas, que não le diftinguiam pelo efplendor do nafcimento, mas viviam pelo trato diftantes da plebeia multidão. Devia n'aquelle inftituto profeíTar-le o grego e o latim, o hebraico, as linguas modernas mais vulgares, a rhetorica e a poética, a chronologia, a hiftoria, a geographia, a lógica, a metaphyfica e os elementos da phyfica experimental. Tinha o collegio em Mafra o feii aíTento. Eram feus profeíTores os cónegos regran- tes de Santo Agoftinho. Pela primeira vez o grandiofo monu- mento erigido pelo monarcha devoto e fumptuario á fua de- voção e á fua vaidade, fervia aos intereífes e aos progreífos da nação.

Apefar do oiro. que vinha copiofo do Brazil, os forçofos difpendios da monarchia com todos os abufos centenários, que não era exequível extirpar inteiramente, não deixavam que os rendimentos do elfado baftaífem a todos os encargos de uma nova civilifação. O enfmo popular não tivera nunca uma verba privativa. Era neceífario acudirá remuneração dos profeífores e á manutenção das efcolas então fundadas. De- cretou o miniftro de D. Jofé um novo importo efpecialmente confagrado ás defpezas da inftrucção publica-. Foi iiiftituida a contribuição indirecta chamada ///i^/<.y/o litterario. No conti-

' .Alvará df i8 de agodo de 1772 approvando os edatutos do collegio de Mafra.

2 Carta de lei de 10 de novembro de 1772.

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nente de Portugal e nas ilhas adjacentes confiftia a nova im- pofição em um real em cada canada de vinho, quatro réis - em canada de aguardente, cento e feíTenta réis em cada pipa de vinagre. Na America e na Africa a cada arrátel de carne confumida devia caber a taxa de um real. Na Afia, nos do- mínios da Africa e no Brazil, em cada uma canada de agua- ardente impunha a nova lei o direito de dez réis. Era aíTim que a intemperança era forçada a cobrir as defpezas da in- ftrucção, e o que mais annuvêa e embrutece a intelligencia a expiar as llias malfeitorias, contribuindo na maior parte a promover os progreíTos da razão.

CAPITULO XV

AS REFORMAS SOCIAES E ECONÓMICAS

Durante o primeiro decennio do feu longo minifterio, a acção governativa de Sebaftião de Carvalho tivera de con- centrar-fe particularmente na peleja tormentofa contra os jefuitas e os lidalgos. Fora principalmente politica a fua con- turbada adminiftração. Nos intervallos, que lhe deixava livres o combate, não fe efquecèra todavia de attender com efficazes providencias ao remédio de muitas neceffidades económicas. E porém depois de mais abonançada a atmofphera focial, depois que fe não remanfados, ao menos comprimidos cftão os ódios e fedições das clalles confervadoras e privilegiadas quando a paz celebrada com Hefpanha após a guerra de 1762 o tem mais largamente libertado dos negócios diplomáticos e das complicações internacionaes, que o enérgico legillador acha lazer e occafião para expandir em varias direcções o feu efpirito audaz e innovador. E então que elle pôde com- pletar o que nos primeiros annos tinha apenas efboçado para

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levantar de feu longo abatimento e lethargia a velha focieda- de portugLieza. E então que a lua vifáo intelledual compre- hende e abraça no feu ampliíTimo horizonte o profpecio da nação, a que prefide, e tafteia as luas mais urgentes preci- fões, e traça á intelligencia e ao trabalho nacional a norma e o caminho, por onde tem de dirigir-fe para conquiftar em poucos annos os proventos e as glorias da moderna civili- fação.

Antes de tudo fere a vifta do legiflador a deplorável con- dição moral da fociedade. E para elle a egualdade o prin- cipio fundamental, a que fubordina as fuás grandiofas refor- mações. Gerindo os intereífes de uma velha monarchia, que julga fer efteio eífencial uma ordem patrícia e uma claífe equeftre, na honra e luzimento fuperiores á gente popular, não c dado ao defabufado reformador o nivellar abfolutamen- te perante a lei e a omnipotência do foberano todos os vaífal- los, confundindo-os por egual na mefma categoria e fujei- ção. Até onde porém lh'o podem confentir as abuloes e pre- conceitos da realeza abfoluta, leva Sebaflião de Carvalho o feu firmiíTmio propofito de approximar as claífes antagoniflas, rebaixando as eminentes e exalçando as inferiores; cerceando a umas os feus hereditários privilégios e a fua influencia no governo; dilatando a outras os feus foros e franquezas e a fua indirecta participação na economia focial; demudando em pura e honorifica nobreza palatina a que era orgulhofa aris- tocracia na accepção politica do termo; convertendo em nobreza civil e claífe media a plebe, que mais fe diflinguia por lou^'avel e fruftuofa applicação ao eftudo e ao trabalho.

A repreífão violenta executada contra os membros da altiva e fediciofa fidalguia, uns ignominiofamente juftiçados nos patíbulos, fem refpeito a feus antigos privilégios, como fe foram gente viliíTima e foez, os outros encerrados nas prifões ou dcfterrados aos logares ultramarinos, fora o primeiro paífo

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n'efte empenho decifivo de abater e humilhar o orgulhofo patriciado. A lei veiu depois completar o que a juftiça come- çara. Continuou o legiflador a obra do juiz e do algoz.

Nenhum grémio de magnates pôde fer mais que uma fombra de vaidades eftereis e decrépitas, fe vivendo Ibmente do luftre dos brazões e do fulgor das genealogias, não tem no folo fincadas folidamente as fuás raizes. E a terra o funda- mento das poderofas ariftocracias, mas a terra quafi inteira repartida em património hereditário entre os feus membros, atada perpetuamente pelos vínculos feudaes ou ao menos continuada nas eftirpes pela inítituição do fideicommiíTo e do .morgado. Sem efte predicado eíTencial a fidalguia é apenas uma tradição, não um poder; um hiítorico monumento, não uma força viva focial. A nobreza desfrudava n'quelle tempo com a egreja a maior parte do território. Os morgados per- petuavam nas famílias a terra hereditária e avoenga. O mo- narcha repartia pelos próceres os bens da coroa, que apelar das prudentes difpofições da lei mental, e de ler em principio vitalícia a conceíTão, ficavam durante longas gerações na mefma familia ariftocratica. Uma porção confideravel dos bens, que tinham a natureza de ecclefiafticos, as commendas, muitas d'ellas rendofiffimas, das ordens militares de Chriífo, de Aviz, de Santiago, diftribuia-as o foberano, como grão meífre e governador de todas ellas, pelos membros da no- breza, confirmando-as habitualmente aos reprefentantes e herdeiros dos antigos commendadores.

Para deftruir de vez a nobreza como elemento politico era forçofo antes de tudo converter em allodial a terra vin- culada, fupprimir as ordens militares, como anachronicas in- ftituiçÕes, fem nenhuma utilidade para a egreja e o eífado, encorporar no dominio da nação os bens da coroa, lauta- mente repartidos por um ociofo e efteril patriciado. Somente, porém, a revolução poderia operar no futuro eftes milagres.

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Mas o miniítro previdente, íe não lograva relblver practi- camente eftes graves problemas fociaes, deixava comtudo incilivamente confignada em notáveis monumentos legillati- vos a fua reprovação ás excepcionaes e abufivas inftituições em que ainda fe firmava o derradeiro poderio da nobreza. Na lei reformadora dos morgados apparecem luminolamente fubftanciadas as razões, que os mais revolucionários inno- vadores poderiam invocar para fubmetter a propriedade pre- dial a um regimen uniforme. Os morgados fão na phrale do legiflador «uma rigorofa amortilação de bens, contraria ao ufo honefto do dominio . . . á juftiça e á egualdade . . . á multiplicação das famílias. . . ao giro do commercio. . . á utilidade publica ... e ao bem commum dos povos » . « Os princípios, continua o eftadifta, fomente fazem admiíTiveis os morgados dentro de certos limites, didados (contra a re- gra) pela razão da utilidade publica da monarchia'». «O au- gmento e confervação das cafas nobres, efcreve em outra lei o judiciofo reformador, fão as caufas únicas por que fe tem permittido os vínculos, aliás prejudiciaes ao erário régio e ao commercio dos paJ)allos^y>. Ahi temos o miniftro profes- fando com vinte annos de antecedência as idéas proclama- das pela grande Revolução. A razão, o direito, a juftiça, a utilidade condemnam fem piedade a amortifação da terra, commum património e nutrimento. Somente a funefta con- temporifação com os preconceitos da monarchia e com as archaicas tradições obriga o legiflador a tentar uma reforma incompleta, a qual todavia reftitue alguma parte das glebas portuguezas á fua primitiva allodialidade.

Ainda não confentia a occafião que de vez fe tiralTcm á nobreza os copiofos bens da coroa, com que fe opulentavam

' Carta de lei de 3 de agolto de 1770, no preambulo. 2 Lei de g de feptembro de 1769, no preambulo.

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as famílias. Era porém exequível o fubordínar o ufufrucío a claufulas prudentes, examinando rigorofamente os títulos das antigas conceíTões, e fubmettendo-as á regia confirmação.

Inftituiu-fe para eíTe fim a junta das Confirmações ge- raes, fob a prefidencia do arcebifpo de Évora, porventura o mais fi.ibmilTo parcial do miniítro omnipotente'. Defde an- tigos tempos andavam as faboarias, o monopólio exclufivo do fabão, repartido em todo o território portuguez por varias famílias de fidalgos, em manifefto damno popular e jaflura do thelburo. A lei encorpora na coroa o monopólio, fazendo ao menos reverter em beneficio do erário, o que d'antes fe acrefcentava com violentas extorfões ás propinas da nobreza.

Havia em Portugal introduzido o coftume e auflorifa- do o egoifmo que a immenfa maioria dos empregos e offi- cios eftiveíTe vinculada nas famílias e n'ellas fe tranfmittiíTe como património inconteftavel e por fi-icceíTão hereditária. Não havia lei que affim converteffe em propriedade vincu- lada o que era eíTencialmente tranfitorio e inftituido não em proveito individual, fenão em ferviço da republica. Efta in- verfão de todos os princípios mais vulgares do bom gover- no tinha por feu titulo e fundamento o direito confiictiidi- nario. Decepou o legiílador mais efte abulo, principalmente proveitofo á nobreza fecundaria, ordenando que os offi^cios públicos foffem meramente peíToaes e vitalícios. São notáveis as expreíTões, com que Sebaflião de Carvalho firma os prin- cípios da boa adminiftração, e reprova o abufo de fubordi- nar a caufa publica ao intereffe parficular. «Nos empregos, efcreve o eftadifta, fe elege fomente a perfonaliffima indus- tria e aptidão das peífoas, que os hão de fervir», porque fão apor fua natureza exercício e minifterio perfonaliffimo com repugnância intrinfeca a ferem trafmittidos», porque «fão

I Carta di; lei de 6 de maio de 17Õ9 e alvará da mefma data.

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commiffão precária e dependente da boa ou condiiíla do official'.»

Não efquece ao omnipotente legiflador o combater as lar- gas fumptuofidades, com que a nobreza pretendia egualar- fe em feu efplendor com a majeftade. Prohibe á fidalguia os cafamentos públicos, celebrados com pompa extraordinária e vaidofa prodigalidade \ Para cohibir o luxo exaggerado, com que os nobres mais opulentos oftentavam em cufloías car- ruagens a fua riqueza, decreta que ninguém polTa em Lifboa e duas léguas em redor tranlportar-le em viatura conduzida por mais de uma parelha. E exceptuando da rigorofa prohi- bição os cardeaes e os prelados, não fe efquece de advertir- Ihes que as fumptuofas e mundanas oftentações não quadram á evangélica pobreza e á humildade exemplar dos tempos apoftolicos. Porque «fera, efcreve o legiflador, muito mais con- forme ao feu eftado que dêem antes exemplos de moderação do que de faufto^».

A efta categoria de difpofições prohibitivas, que em parte fe filiam no erróneo principio fundamental das leis fumptua- rias, a averfão ao luxo e magnificência no domeftico vi- ver,— e em parte fe encaminham a cercear as principefcas apparencias do infolente patriciado, pertencem as prefcripções, com que o miniftro regula a mefa dos generaes, que eram todos com raras excepções os mais altos e poderofos titu- lares, prohibindo feveramente quanto podeífe menofcabar e oífender a fimpleza e a modeftia da vida militara

Emquanto a mão vigorofa de Carvalho vae abatendo a

1 Alvará de 23 de novembro de 1770.

2 Lei de 17 de agofto de 1761.

3 Alvará de 2 de abril de 1762.

4 Alvará de 2 de abril de 1762. Prohibe em campanha as baixellas de pra- ta, com a única excepção da que feja eflriclamente indirpcnfavel, e profcrcve da mefa dos generaes a porcelana da China.

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nobreza rebelde e ambiciola, ora pelo cadafalíb e pelo exí- lio, ora pelo poder enérgico das leis, o fcu empenho mais vehemente é o de abolir na condição civil e no eftado das peíToas as mais iniquas deiegualdades fociaes. A fua legiíla- ção é copiofa de providencias humaniffimas para confagrar a liberdade, não a liberdade politica, de que na lua nionar- chica idolatria é fervente contradidor, mas a liberdade civil e individual. Na lua luminofa comprehenfão da vida civili- fada toda a fervidão é um opprobrio da monarchia, e uma defhonra da humanidade. O rei é o pae, abfoluto e irres- ponfavel, mas não pôde ler o fenhor de uma turba de efcra- vos embrutecidos e aviltados. N'eftes princípios generoíbs fe infpira o legillador para decretar, defde os primeiros annos de feu governo, a liberdade aos indios do Grão-Pará e Ma- ranhão', e para ampliar três annos depois efta humana pro- videncia a todos os indios do Brazil-. É fob as mefmas influencias, que declara fem infâmia as peíToas europêas, que nos domínios da America elegeíTem os feus cônjuges nas tribus indianas\ Quando a eícravidão nas raças africa- nas ainda perfeverava largamente confagrada pela crença de que os negros eram pouco fuperiores a brutos animaes, decreta o magnânimo eftadifta que todo o efcravo feja livre apenas pile terra da metrópole, como fe foíTe contra a pátria um nefando facrilegio que um homem, luftrando pela pri- meira vez as fuás plagas, não viíTe defde logo quebrados os grilhões''. Não contente o legiflador, com que não vieíTem de fora do reino novos efcravos, indigna-o que em terra livre fe indefinidamente perpetuando a fervidão pela des-

1 Lei de 6 de junho de 1755.

2 Alvará de 8 de maio iy58.

3 Lei de 4 de abril de 1755.

4 Alvará de 19 de leptembro de 1761.

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cendencia dos efcravos africanos exillentcs então cm Portu- gal. Não permittiam os preconceitos inveterados, e os inte- reíTes egoiftas que por um rafgo de penna decretaíTe o re- formador a liberdade para todos os efcravos numerofos, que viviam no continente portuguez. Mas deu o eftadifta um talho vigorofo na defhUmana e brutal inftituição. A lei eftatuiu que foíTem livres todos os que d'ali em diante nas- ceíTem de mães efcravas'. Mas não é fomente a liberdade, que o generofo e humano legillador concede á trifte raça condemnada pela avareza mercantil dos portuguezes nave- gadores. A lei não quer que do eítado fervil e opprobriofo paífem pautadamente por feus graus á condição de ingenui- dade. Ficam livres, como os brancos de raça mais illuftre, fem que lhes defhonre a legiflação a incompleta liberdade com o titulo aífrontofo de libertos, «que a fuperftição dos romanos, diz a lei, eflabeleceu nos feus coífumes e que a união chriflan e a fociedade civil faz hoje intolerável » . Eíta condição intermediaria ao animal, á res, e ao homem, á peffoa, afigura-fe ao illuminado efpirito de Carvalho, como uma affronta ao chriítianifmo e aos axiomas fociaes. O ne- gro, oriundo das terras africanas, é para o eftadifla não um animado inítrumento d^ trabalho, fenão um ente racional, difpondo livremente das fuás faculdades. Mas não fe con- tenta o legillador com trahfmudar em homem o c]ue a du- reza e a cubica converteram em pouco mais que vilifllma alimária. Os negros não ficam apenas fendo homens, fão também ao mefmo tempo cidadãos. A lei declara-os hábeis para todos os ofiicios, honras, dignidades, fem a nota infa- mante de libertos. Os efcravos nafcidos de concubinatos ou de legítimos conforcios, ordenava a lei que permaneces- fem toda a vida na fervidáo, fe unicamente as mães e avós

' Alvará com força de lei cie i() de janeiro de lyyB.

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houveíTem fido efcravas. Se a efcravidão, porém, fe deri- vaffe das hifavós, ficariam defde logo favorecidos com a plena liberdade. Attentemos nas circumftancias d'aquelle tempo, em que a lei foi promulgada, no egoifmo dominante das claíles opulentas, nos hereditários preconceitos de raça e de conquifta, na efcaíTa illuftração dos entendimentos, nas confufas noções do direito e da juftiça, e admiremos na providencia humana e chriífianifllma o mais gloriolb mo- numento na fecunda adminilfração do grande reformador. Refpiram defafogados n'ell:a lei os principies luminofos pro- feíTados por Montefquieu e o abbade Raynal, cujas doutrinas meditara certamente o profundo legiflador. O amor da hu- manidade, na fua mais nobre e generofa comprehenfão, efte elevado fentimento, que principia a ter a fua eloquentifQma expreífão no xviii feculo, nos efcriptos dos grandes penfado- res, de Rouffeau, de Montefquieu, de Voltaire e de Alem- bert e nas pracficas dos foberanos iliuminados, do imperador Jofé II, do philofophico Frederico, e do benemérito Leopoldo de Tofcana, infpira o animo do miniífro portuguez e adoça as nativas afperezas do feu altivo e indomável coração. Pôde fer duro, tremendo, implacável com o homem individual, quando o tem na frente por antagoniífa e no caminho por obítaculo ás luas emprezas grandiofas ou ás fuás próprias ambições; mas o homem coUeítivo defperta na alma do eífa- difta os mais vivos fentimentos de fincera fympathia. Nin- guém foi mais que Sebalhão de Carvalho zelador efíicacis- fimo da humana dignidade, em tudo quanto pôde conciliar-fe com a adoração da monarchia. Nas fuás leis, que têem por fim apagar as odiofas diftincções de raças, de famílias e de eftados fociaes, efquecemos o idolatra da realeza, para fo- mente commemorar o philofopho legiflador. A philofophia do feculo xviii, apefar das oftenfivas prohibições da cenfura official, como um elemento incoercível, apparece infinuando-

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le em tudo quanto é concernente ás velhas abufões e ás ini- quidades Ibciaes, nos monumentos legiflativos do infigne reformador.

Offendem-lhe o fentimento e o conceito, que formava da humana dignidade, as odiofas diliincções que o fanatis- mo, defhonrando a religião, introduzira na fociedade portu- gueza. Não pôde o animo íbífrer-lhe que entre homens da melma pátria e egual eftirpe uns lejam havidos na conta de puros e immaculados na afcendencia e geração, e outros qualificados com ignominiofas defignações. Um dos mais intoleráveis preconceitos, e mais fundamente enraizados na vulgar opinião, era aquelle, fegundo o qual fe eftabelecêra e perpetuara em Portugal a diíferença entre chriífãos velhos e chriihíos novos, entre gentes puritanas, cujo fangue não tinha mefcla de mouro, de gentio, ou de judeu, c familias impuras e fufpeitas, cuja profapia fe entroncava em origens infedas de judaifmo. Bem podiam as aguas baptifmaes ter banhado por muitas gerações os filhos de uma familia. Se o tronco era um hebreu convertido ao chriftianilmo, a abufão commum e popular tinha maior poder que o facramento, e os que a egreja havia por feus filhos eram na fociedade vi- lipendiados como efpurios, como ovelhas intrufas no aprifco. Era difficil ludar logo de frente com o funeífo preconceito, roborado pelo tempo e pelo efcuro fanatifmo nacional. Para expurgar o corpo focial de tão ruim enfermidade, era neces- fario um braço vigorofo, e um efpirito elevado acima das mais torvas abufões. Começa o legiflador abolindo os roes das fintas dos chriftãos novos', reprovando, caífando c an- nuUando o abufo, com que fe impunham aos chriftãos, des- cendentes de judeus, encargos fmgulares, que não cabiam aos chamados chrilfãos-velhos; comminando finalmente aos que

Alvará de 2 de maio de 1768.

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com tal pretexto infamalTem a outrem de palavra ou por es- cripto, as penas deftinadas aos réus de libello famolb. Mais adiante e com maior audácia prolegue o legiflador três annos depois. Os defcendentes das peíToas condemnadas na inquifi- ção pelo que era ainda crime de Judailmo, ficavam perpetua- mente infamados e inhabeis. Não podia conceber-fe mais iniqua, irracional inftituição. Baftava que a maledicência e a calumnia divulgaíTem que uma peflba procedia de algum penitenciado por judaizante, para que a inhabilidade abfoluta ou a infamante fufpeição caiíTe inexorável Ibbre o trifle, con- demnado a expiar depois de nurnerofas gerações o fuppofto delido dos feus maiores. Um paiz, onde fegundo infi-ifpeitas autoridades, entre ellas Alexandre de Gufmão, a grande maioria dos habitantes defcendia de judeus, fem exceptuar a própria dynaftia de Bragança, a injuriofa diftincção entre os chriftãos de raça pura e os de raça infecta, era nas mãos do obfcuro fanatifmo ou da malquerença peflbal um terrivel inftrumento de aífronta e de vingança, como na epocha do ter- ror revolucionário, um meio funeftiíTimo de macular peíToas inoífenllvas e refpeitaveis com a tacha de fiifpeitas e indicadas á publica animadveríao. Contra efte abufo efcandalolb arre- mette refoluto o legiflador'. Com o empenho de filiar nas atrocidades jefuiticas todas as viciofas inftituiçúes e todas as formas de fanatifmo e perverfão da íbciedade, nas luas rela- ções civis ou religiofas, attribue Sebaftião de Carvalho aos jefuitas o haverem introduzido em Portugal a diftincção ei> tre os chriftãos, com o fim de tornar odiofo e impopular o prior do Crato, como próximo defcendente de judeus. A dou- trina da pureza e impureza c tratada pelo eftadifta nos ter- mos de defprezo que merecia. Para elle, apelar de extranho aos eftudos phyfiologicos, o fangue humano tem fernprc e em

> Alvará de 24 de janeiro de 1771.

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toda a parte a melma compofiçáo. Reprova em termos íeve- rifllmos a perigofa fuperftição, e congloba fob a forma de um aphorilmo phyfiologico, o principio gencrolb da egualdade perante a geração e o nafcimento, « como le podeíTe haver langue humano, que foíTe originalmente impuro e de outra diverfa natureza » . Decreta o legiflador que as peíToas, de quem le não provaíTe o defcenderem de outras condemnadas por apoftafia, fe não podeíTem confiderar inhabeis. As provas deveriam ler irrefragaveis, firmadas em documentos públicos authenticos, fuperiores á minima fufpeição. Não parou porém o eftadifta neffa incompleta fatisfação á doutrina da egual- dade civil entre os chriftãos de diverfas procedências. Uma nova lei, mais radical e peremptória do que as antecedentes põe termo por uma vez á iniqua e opprobriofa diítincção'. E efte um dos mais infignes monumentos legiflativos, a mais vigorofa proteítação contra o preconceito nacional, e pfeu- do chriítão que fazia dos judeus uma raça maldita e merece- dora da mais impiedofa perfeguição. Aproveita o intradavel contendor da Companhia a bem azada occafião para explanar no preambulo da lei a hilforia d'efte perriicioíb abufo e fana- tilmo. São ainda, no conceito do eíl:adifta, os jefuitas os mali- ciofos introdutores da fubverfiva diftincção com o intento de excluírem do throno portuguez o prior do Crato. Rememora o legiflador a protecção e o favor, com que durante a edade média os judeus foram tradados pelos reis de Portugal. Traz á memoria a D. David, grande privado de el-rei D. Fernando e a D. Judas, leu thefoureiro; a meftre Moyfés, phyíico de D. João I e tão feu favorecido que a fuás inítancias lhe alcançou do papa Bonifácio IX uma bulia de religiofa tolerância para que os judeus não foliem violentados a receber as aguas baptifmaes, e por uma provifão de 17 de julho de 1392 lhes

' Ciirta de lei, conftituição geral c cdiclo perpetuo de 23 de maio de 1773.

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mandou guardar feus invioláveis privilégios. Ainda o próprio D. Manuel, o auftor da perfeguição contra os hebreus, o que os forçou indignamente a fubmetterem-fe pela fua lei de i de março de iSoy, ordenava que os novamente convertidos á catholica foffem cm tudo havidos, favorecidos c tratados como próprios chriftãos velhos, fem que d'elles em coufa alguma foíTem diftindos e apartados. O fanático e fombrio D. João III, o idolatra da Inquifição e o fervo da Companhia, confirmou pela fua lei de 16 de dezembro de i 524 as fenfatas prefcripções do feu antecelfor. Depois de ter feito o elogio dos judeus, ainda mefmo perfiftentes na fua fé, Sebaflião de Carvalho ordena que novamente fiquem em vigor as leis de D. Manuel e D. João III. Declara abolidos os diplomas legiílativos em contrario. Impõe graviíTimas penas aos que oufarem de palavra ou por cfcripto renovar a injuriofa dis- tincção. Aos clérigos commina, como caftigo, a perpetua des- naturalifação e extermínio ou relegação para fora de Portu- gal; aos nobres, a perda da nobreza e dos oííicios e bens da coroa e das ordens militares; aos peões a pena dos açoites e o degredo perpetuo para Angola.

Alfombra na verdade que junto de um monarcha de es- treito entendimento, no meio de uma rude e fuperfticiofa po- voação, na prefença do Santo Officio, cujas fogueiras tinham não muitos annos antes ardido inexoráveis contra miferos judeus, no paiz, onde, após a Hefpanha, era mais bronco o fanatifmo e o preconceito mais fundo e radicado, um minis- tro oufaífe defender e fanccionar com o rigor da lei, que não era o fangue d'aquella raça iniquamente condemnada e per- feguida menos preclaro que o langue dos chriftãos. E mais fobe de ponto a admiração, quando vemos na que chamam liberal Inglaterra os judeus na fegunda metade d'efte fe- culo admittidos á egualdade com os feus concidadãos, quando aíliftimos agora mefmo ás fcenas de felvatica e brutal into-

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lerancia, com que na PruíTia, na terra claíTica da razão e da fciencia, fe levanta a obcecada opinião ameaçando renovar, fe lhe foíTe dado, os dias calamitofos do catholico Fernando e D. Manuel. Nada no mundo exifte mais tenaz e refirtente que os preconceitos fundados nas diílincções de raça e de familia. Tanto mais é portanto de louvar a energia, com que Sehaftião de Carvalho contra elles arremette refoluto á lua inteira extirpação. Mas ainda n'efte ponto o legiflador não fabe eximir-fe inteiramente aos influxos e arrebatamentos da paixão. Os jefuitas fão para elle os caufadores d'eftas perni- ciofas qualificações, que dividiram os portuguezes em chris- tãos de velha raça e de nova geração. Mas a verdade não confente o efquecer que na Deducção chronologica um dos capitulos de mais grave accufação contra a ordem de Jefus é o de ter por ódio ao Santo Officio empenhado os feus es- forços no tempo de el-rei D. Pedro II em reítituir a Portu- gal, com o livre exercício da fua religião, os judeus, que a feroz intolerância trazia foragidos em paizes extrangeiros ou vivendo mal convertidos cm terra portugueza, receando a cada inftante as fevicias da Inquifição".

Entre o fevero legiflador e o chronifta minucioib dos grandes attentados jefuiticos, entre Sebaftião de Carvalho, diéfando a lei, e Jofé de Seabra, efcrevendo fob os feus aulpicios e porventura muitas vezes fob feu diflado, a fa- mofa Deducção, é manifefta, mas em certa maneira defcul- pavel, a contradicção porque ainda pendia no Vaticano in- decifa e talvez periclitante a total abolição da Companhia.

A efte empenho de extirpar nas leis c nos coflumes a dif- ferença focial entre os velhos chriflãos e os chriftãos novos, fe prende a providencia decretada para cohibir a arrogante prctenção, com que uma parte da nobreza fe j adiava de ter

I Deducção chronologica e analytica, tom. i, parte 11, 5 702 c fegg.

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o fangue fem mefcla de gente de nação, e acoimava por in- fedas de judailmo a muitas das familias mais illuftres, evi- tando com ellas alliar-fe por vincules matrimoniaes. Tinham os fidalgos inftituida na egreja parochial de Santa Engracia uma confraria do SantiíTimo, em que, fegundo o compro- miíTo e o coftume, fomente podia fer admittido quem foíTe chrijtão velho, fem nunca fe entender o contrario. O pertencer áquella irmandade era pois um teílemunho e um fignal de puriíTuna extracção, immaculada de toda aícendencia não chriftan. Chamavam-fe os confrades por excellencia purita- nos. Os demais, embora de berço mais infigne, eram des- denhados como de hebraica genealogia. As familias puri- tanas entre fi fe entrelaçavam em conforcios, com inteira exclufão das que, apefar da nobreza efclarecida, tinham a nódoa indelével de procederem de judeu ou raça impura. AíTmi era que poucas familias da mais foberba e poderofa fidalguia, as dos marquezes de Angeja, de Valença, dos con- des de Villar Maior, do Monteiro mór do reino, e outras mais formavam entre fi como uma cerrada congregação, fora da qual as eítirpes mais nobres na apparencia andavam apodadas com o nome injuriofo de chriftãos novos. Contra efta arrogância ariftocratica irrompe o legiílador para a fub- metter á lei commum'. Sebaftião de Carvalho, no pream- bulo da lua providencia, faz dizer ao rei que «elle é a úni- ca fonte, de que podem manar as honras, as graduações, e as qualificações civis». Declara prohibidos os matrimónios entre as familias puritanas, forçando-as a contrahir as fuás núpcias com as familias até ali por ellas confideradas como infedas. Condcmna e fujcita a graves penas os que, delatten- dendo as habilitações de genere, feitas perante a inquiíição e a mela da confciencia e ordens, perfiítam em haver por im-

Alvará de 5 de outubro de 1768.

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puros e íulpeitos de hebraifmo os que vivam expurgados de toda a macula judaica. A fevera providencia foi intimada aos chefes das familias puritanas, que por termos aíTignados na fecretaria de eftado, fe obrigaram a cumprir o que lhes era determinado.

Tal era o íirmiíhmo propofito, com que o delpreoccu- pado legillador fe empenhava em erigir a humana dignida- de como o grande principio focial. O feu lemma parece ter fido abater e humilhar os foberbos e os grandes, e levantar e engrandecer os pequenos e humildes. Não lhe confentiam porém os preconceitos eífenciaes á monarchia abfoluta, e ainda mefmo ás modernas realezas parlamentares, paííar de vez o nivel da egualdade fobre todas as categorias fociaes. A nobreza era, fegundo as idéas d'aquelle tempo, e ainda hoje grotefcamente parodiada é nas modernas monarchias, reputada o alicerce e o ornamento dos thronos hereditários. O movimento democrático não podia pois eflfeituar-fe pela egualdade abfoluta dos eftados e condições perante a lei. O caminho aberto ao engrandecimento das claíTes trabalha- doras e populares, cifrava-fe em as approximar das ordens mais elevadas, conferindo-lhes o privilegio da nobreza. O trabalho, o mérito, o ferviço fão a medida, por que fe aferem as graças e as mercês concedidas aos homens de berço obs- curo e plebeu. E affim que ao fundar a companhia do Grão- Pará declara o legifíador que «o commercio não é mccha- nico, antes officio nobre ' » . E fundado n'eif e generofo pos- tulado, dá a nobreza ao provedor e aos deputados d'aquella fociedade mercantil, em fua primeira nomeação. A mefma dignidade civil é outorgada aos diredores, e aos próprios cai- xeiros e officiaes da companhia do Alto Douro " e aos que

' Alvará de 7 de junho de ijSS.

- Alvará de 10 de feptcmbro de 1756.

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poíTuam dez acções ' da companhia de Pernambuco e Para- hyba-.

Não lhe merecem menos confideração os homens, que cuhivam c promovem as fciencias e as lettras n'um paiz, onde os nobres de naícimento eftavam, com algumas hon- rofas excepções, habituados a defprezar quem dos godos não derivava a fua profapia. E certamente para louvar que o pre- vidente legiílador, com o zelo de fomentar o enfmo e a illus- tração, declaraffe nobres os públicos profeíTores de linguas e humanidades, cujas cadeiras dilTeminava em grande numero por toda a extenfão de PortugaF.

A conftituição da propriedade predial traçava n'aquelle tempo uma profunda feparação entre as ordens da nobreza e as claíTes inferiores da população. A terra allodial era 'em geral plebeia, a terra vinculada era, quafi geralmente, um fignal de raça illuftre. A lei, pela qual Seballião de Carvalho regulou o direito vincular, ampliou a faculdade de inftituir novos morgados aos homens, que fem o lullre da nobreza hereditária foíTem pela fua benemerência nas armas, nas let- tras, nas fciencias, na agricultura, no commercio e nas artes liberaes, como que os efclarecidos fundadores da fua própria dynaftia. Foi aílun que ao lado das hiftoricas eftirpes de in- fignes avoengos e centenária fidalguia fe levantaram, com ellas hombreando em influencia e excedendo-as em riqueza, as famílias dos que nos groífos tratos mercantis e fob os aus- picies do miniftro omnipotente, lançaram os fundamentos á moderna e alta burguezia.

O mefmo efpirito de animar e proteger o trabalho pro- dudor e de exalçar ao menos uma parte da commum po-

' Alvará de 24 de novembro de 1764.

2 Alvará de i3 de agoílo de lySg.

3 Alvará de 28 de junho de 1759, creando os eíludos fecundarios.

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Aoação ás preeminências Ibciaes, egualando-a com a nobre- za, apparece dictando ao legiflador as exempções, com que na lei do recrutamento favorece as clalTes que mais úteis e meritórias lhe parecem. É laftima que Sebaftião de Carva- lho não podeffe completar a fua empreza generofa de res- tituir ao homem Ibcial as plenas immunidades no que era concernente á fua condição civil, abolindo a ignominiofa dis- tincção, com que a ordenação do livro v accommodava as penas aos delidos, não fomente fegundo a fua graveza e enor- midade, fenão também difcriminando no fangue e no berço dos culpados a fidalguia ou a vileza da progénie. Não ti- nham, porém, chegado n'aquelle tempo á inteira maturidade os princípios philofophicos do moderno direito penal, nem efta forma da egualdade, a mais racional e preciofa, a egual- dade nos prémios e nos caftigos, le tinha ainda revelado aos impulfos da poderofa Revolução. A nobreza, fe não era como d'antes um poder e uma força focial, era ainda uma d'eftas renitentes e vigorofas tradições, perante as quaes es- tremece nas abfolutas monarchias o braço do mais eftrenuo reformador.

Se a liberdade e a egualdade entre os membros de uma nação conflituem a fecunda condição do feu aperfeiçoamento civil e material, a maneira, por que a lei define as relações entre a terra e o feu culto habitador, communica á fociedade a fua feição efpecial. A terra é como o pedeftal da huma- nidade. Qual a faz o coíhime, a conquifla, a legiflação, tal é também a conftituição moral e económica dos povos. Como fundo commum, d'onde procede a fatisfação das necelTida- des orgânicas e phyficas, a terra é por fua natureza elfencial- mente indivifivel e incapaz de fer perpetuamente apropria- da. A fua divifão e propriedade é um effeito único da lei. A terra, como o Oceano e a athmofphera, tem por origi- nário attributo a communidade. A lei reparte-a e a vincula

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a um homem, a uma corporação, a uma família, ao fabor dos tempos, das occafiões, das circumftancias, modificando a cada paíTo o elemento hiftorico, que fundou a propriedade, pelo elemento íbcial, que determina a fua nova maneira de exiftir. A terra efcrava, enfeudada, inalienável, caraíterila as epochas de predomínio das claíTes livres e privilegiadas fohre a plebe fervil c indigente, a tyrannia de uma efcaífa minoria de mundanos bemaventurados contra a immenla maioria dos hilotas fociaes. Na terra agrilhoada pôde ílib- fiífir um povo de fervos defherdados. A liberdade pôde germinar e fiorefcer no folo emancipado de todas as peias feudaes ou vinculares. A completa allodialidade é como que a poíTivel retrogradação ao communifmo primordial. N'es- te regimen, onde as glebas fe tranfmittem de uns a outros n'uma perpetua circulação, onde o proletário de hoje lerá o p»roprietario de amanhã, e o opulento de hontem é agora o defvalicio, todos fão, ao menos potencialmente, poíTuidores da lua geira. A terra então é como um immenlb amphithea- tro, onde os c[ue faíram, gofando parte do efpedaculo, dei- xam o logar vallo aos que mais tarde vierem aíTiftir á fes- tiva íblemnidade. A terra não é commum, porque todos a polTuam indivifa ao mefmo paíTo, mas é commum porque todos têem no trabalho e na economia abertos e patentes os caminhos, que conduzem á ília acquiíição. Novas revo- luções no inítavel equilíbrio das humanas fociedades, produ- zindo novos eftados fociaes, exigirão um dia porventura que a terra aífuma juridicamente noviíBmas feições. A terra fera então como o foi, como o calor, como a eledricidade, como a luz, como toda a natureza, que o homem aproveita, domina e faz fervir aos milagres do trabalho, fem a poífuir nem \m- cular no feu morgado. Achar-fe-ha talvez uma forma de communidade, cm que a terra, como a ampliífima officina da induibia univerfal, concentrando em fi os esforços co-

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operadores e colledivos de toda a multidão, reparta equitati- va a cada um o leu quinhão nos frudos da mãe commum. Emquanto porém le não refolve efte problema diíRcillimo, cuja folução leria temerário predizer como impoíTivel, a terra allodial é a condição impreícriptivel das livres e civi- liladas povoações.

É efta verdade, que proclamam a cada paíTo as leis de Sebaftião de Carvalho, relativas á conílituição da proprie- dade. Na fua theoria Ibcial o principio, a que devem llibor- dinar-fe todos os interelTes particulares, é unicamente a caiifa publica'. Na immobilidade e amortifação da terra tinha fido a egreja durante largos leculos a principal collaboradora. Era pois contra o abufo profano e mundanal da propriedade ec- clefiaftica, que o legiílador havia de empregar a repreffão enérgica das leis. Fora fempre defde os primeiros tempos da monarchia follícho o governo fecular em cohibir a cres- cente amortifação exercida pela egreja. A ordenação philip- pina e antes d'ella a manuelina e a aftonlina, prohibiam que os mofteiros, as egrejas, os prelados e outras peíToas eccle- fiafticas podeíTem comprar ou poíTuir bens de raiz nas de- marcações dos reguengos^ ou os adquiriíTem n'outra parte, fem expreffa licença do foberano, nem os havidos a titulo gratuito os houveíTem de confervar em feu poder além do anno e dial Mantendo os princípios, que haviam inlpirado n'efte aíTumpto a antiga legiílação de Portugal, o miniflro de D. Jofé prohibe á egreja o conlblidar com o diredo o domí- nio útil dos prazos por ella poíTuidos. Declara nullas, abufi- vas e de nenhum efíeito femclhantes confolidações. Ordena que de novo fejam emphyteuticados dentro de um anno to-

' Lei de q de feptembro de 1769, carta de lei de 3 de agofto de 1770.

2 Ordenação, liv. 11, tit. 16.

3 Ordenação, liv. 11, tit. 18.

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dos os prédios que defde 1 6 1 1 ' eftejam abufivamente confoli- dados. Não era ainda chegada a occafião de proclamar intei- ramente allodial toda a terra immobilifada pela egreja. Mas o beneficio da emphyteufe vinha em certa maneira fi^ibftituir as vantagens da completa allodialidade e abrir as glebas á induítria das claíTes trabalhadoras e defherdadas. Uma nova providencia eftatue o procelTo, por que em publico beneficio fe haveriam de fazer os emprazamentos das terras ecclefias- ticas\

De todas as leis, porém, que tiveram por efcopo o conter em limites moderados a fiacceíTiva acquifição dos bens tem- poraes pelo efi:ado clerical, teve fem duvida a mais politica fignificação a que poz cobro á infrene faculdade de inftituir a alma por herdeiras As peflbas alligadas por feus votos ás ordens religiolas lao por ella declaradas inhabeis para her- dar; «porque, efcreve o legiflador, a profiíTão extingue os vínculos do langue.» Levanta-fe o eftadifi:a contra a abufiva inftituição das capellas, cujos bens eram principalmente con- fagrados a retribuir as miíTas e os fuffragios por alma do in- ítituidor. Era tão exaggerado e tão incrível o numero de mis- fas, que fegundo eftas piedofas fundações fe deviam dizer durante o anno, que «nem fendo clérigos todos os portu- guezes, dizia com certo pique de gracejo o legiflador, pode- riam celebrar a terça parte das que efta^•am ordenadas » . n'uma das mais pequenas provedorias, fe contavam não me- nos de doze mil capellas, em que havia o encargo pio de quinhentas mil miífas annuaes. Por efte modo, acrefcentava o eftadiífa com remoque faceto ou joco-ferio, « chegar-fe-hia a ferem as almas do outro mundo fenhoras de todos os pre-

1 Carta de lei de 4 de julho de 1768.

2 Alvará de 12 de maio de 1769.

3 Lei de 9 de feptembro de 1769.

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dios d'eí1:es reinos » . Em tom mais s^vave accrelcentava o re- formador: «As propriedades, cafas e fundos de terras, que fo- ram crcados para a íuhriftencia dos vivos, de nenhum modo podem pertencer aos defundos». Decreta Sebaítião de Car- valho que os legados pios em bens de alma nunca excedam a nona parte dos haveres do teftador, e tenham em todos os calos por extremo limite mil cruzados. Somente a efta regra faz excepção para as inilituições que fc encaminhem a íins benéficos e fociaes.

A lei permittia pois que às mifericordias, aos holpitaes, aos orphãos, aos expoftos, ás efcolas e íeminarios podelTe o teífador legar até dois mil cruzados. Todas as difpofições tes- tamentárias e todas as convenções, em que le eítabelece a al- ma por herdeira', fáo havidas por nuUas e de nenhum valor. O legiflador por abolidas as capellas, que na Extremadu- ra não rendeíTem livres dos feus encargos duzentos mil réis, e as que nas demais províncias não tiveíTem de rendimento metade d'efla quantia.

Por efte modo uma parte conlideravel da terra vinculada era reítituida á fua primitiva allodialidade. As novas pro- videncias decretadas para firmar em princípios mais racio- naes e confentaneos á publica utilidade, a velha e anti-demo- cratica inftituição dos morgados, vieram ainda tornar livre uma nova porção do território e precaver a futura e progres- liva amortifação". Se as fictícias conveniências da velha mo- narchia não andaíTem ainda então urgindo como efteio na- tural da majeífade a Ibmbra léquerde um patriciado, e como natural confequencia não eftiveíTem proclamando ler preciía ao luftre da nobreza e á decorola conlérvação das famílias privilegiadas a exiífencia dos morgados, por\'entura das pre-

Lei citada de- y de feptL-mbro du 1769. Carta de lei de 3 de agoílo de 1770.

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miíTas formuladas no preambulo da lei haveria tirado o le- giflador os rigorofos corollarios, que d'ahi forçofamente deri- vavam. Não influiria pouco na manifefta contradicção entre as razões da lei e a fua fentença, o intereffe próprio, com que o eítadifta chegado ás mais altas preeminências da nobreza titular, fe comprazia na fundação e luzimento de uma eftirpe, onde o feu nome ficaíTe nobremente perpetuado. Mas fe as próprias vaidades nobiliárias, defculpaveis n'um homem então mais que leptuagenario, fe o preito rendido ás fuppos- tas exigências da monarchia, a cuja confervação Montefquieu aíTignára por fundamento eífencial a exiflencia de uma lus- trofa fidalguia, ainda predominam no animo do miniftro, o proceífo luminofo feito no preambulo da lei á monrtruofa in- ítituição e ao odiofo privilegio da primogenitura, amoífram o economifta e o philofopho em todo o efplendor da lua illuminada intelligencia, liberta de hereditários preconceitos fociaes. A perniciofa amortifação da terra é energicamente denunciada como um attentado á boa economia, ao direito, á juftiça, á conveniência popular. A lei abolia todos os vin- cules, que na Extremadura e no Alemtejo não rendeflim duzentos mil réis, e cem mil nas outras provindas, e os de- clarava defde logo livres dos encargos. Os vínculos de efcas- fos rendimentos poderiam confervar-fe, quando houveífe na mefma família muitos d'eftes, que reunidos fatisfizeífem ao limite minimo fixado. Se a natureza vincular da proprie- dade não podefle comprovar-fe com expreffa inftituição ou por fentenças tranfitadas em julgado, a terra feria defde logo havida por allodial. Era permittido inftituir novos morgados, precedendo licença regia, e fendo os inífituidores fidalgos e peíToas de nobreza conhecida ou homens beneméritos por ferviços eminentes nas diverfas manifelfações da adividade focial. A permilfão era porém fubordinada a que os bens, que fe pretendeífem vincular, fendeífem em Lifboa íeis mil

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cruzados, trcs mil na Extremadura e no Alcmtejo, e nas ou- tras províncias um conto de reis. Ás peíToas, que tiveíTem aberto paues e defhravado mattos e maninhos, era egual- mente concedido vincular os terrenos conquiftados para a cultura. Como para compenfar em publica utilidade a exce- pção cifrada nos morgados, impunha nos feus redditos o le- gillador o encargo de um por cento applicado a obras pias.

O principal e grande mérito de Sebaftião de Carvalho confifte menos talvez nas reformas realiladas que nos prin- cipies luminofos que anteviu. O miniltro omnividente é me- nos radical na execução do que revolucionário na doutrina. E principalmente um audaz e illuminado precurfor. Como que fubido aos pináculos, d'onde o talento íuperior defcobre ao longe os tempos do porvir, aponta defde aquellas eminên- cias os defeitos e as miferias da terra, em que nafceu. E como um medico, verlado na mais profunda pathologia, formulando o diagnoliico dos achaques Ibciaes, acudindo por um trata- mento fymptomatico ás mais perigofas e urgentes manifefta- ções da enfermidade e legando a mais defafogados therapeu- tas as dolorolas operações a executar pelo ferro da revolução. Allim não torna de improvifo allodial a terra amortifada, mas os primeiros golpes nos mais graves abulbs que a tem es- cravilada, e miniftra nos preâmbulos das leis aos feus mais bemfadados fucceíTores os argumentos com que proftrar a caduca inítituição. E era tal a vitalidade nas raizes, com que os morgados tinham filhado na gleba de Portugal, que pode- ram refiíliir á torrente innovadora de 1820, ás revolucionarias didaduras de Moulinho da Silveira e de Aguiar, á democrá- tica legiflação de PaíTos Manuel, e vieram a cair, não fem grandes contradicções, pela enérgica vontade de parlamen- tos liberaes, fendo decorrido quafi um feculo depois da fa- mofa legiflação do grande reformador.

A terra inteiramente allodial e a egual partilha entre os íi-

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lhos do proprietário fão a íórma democrática da propriedade territorial. Se porém efta conrtituição reíponde perfeitamente ás exigências do direito, da juftiça, da egualdade, não podemos diíTimular que levando diredamente á extrema divifão dos antigos latifúndios, ameaçaria conduzir até á leiva ou á molé- cula, fe outras caufas não cooperaffem para manter aos campos e ás herdades uma extenfão accommodada ao grangeio mais perfeito. Eíta momentofa objecção contra o parcellamento indefinido envolvida naturalmente no problema tão largamen- te debatido entre os modernos economiftas fobre o confronto e preferencia da grande e da pequena cultura, não efcapou á viíta penetrante de Sebaftião de Carvalho, apaixonado e fer- vorofo cultor da arithmetica politica, fegundo então geralmen- te fe chamava á fciencia da riqueza. Reprovando em thefe o direito de teftar e eftatuindo a partilha egual entre os filhos de uma familia, Sebaftião de Carvalho antecipa-fe em certa maneira ás revolucionarias innovaçÕes jurídicas do código civil francez, herdeiro e reprefentante da Revolução. Repu- gna-lhe todavia a extrema divifão da propriedade. O princi- pio da expropriação por utilidade publica tem na concepção do legiflador ampliíTmia latitude, e não fe reflringe apenas como hoje ás commodidades coUedivas do elfado. A lei pôde, fegundo elle, foberanamente prefcrever por meio de equitativas compenfações, a quem deve pertencer em cafos de excepção e em beneficio da agricultura, uma ou outra porção da propriedade. O legiflador condemna inexorável as pequenas glebas a arredondarem as terras mais extenfas, a que fiquem adjacentes ou em que eltejam encravadas'. Em Lifboa c nas outras principaes povoações os terrenos pouco extenfos e as cafas pequenas ou domitiiculas (aífim lhes cha- ma o legiflador) deviam fer reunidas ás cafas grandes, a que

" Carta de lei de 9 de julho de 1773.

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foíTem contíguas mediante a indemnifação do feu jufto preço com mais 2 5 por cento da avaliação. Todas as terras encra- vadas em quintas muradas ou circumfcriptas por vallados, eram adjudicadas ao proprietário principal pelo feu legitimo valor e mais um terço. Era porém condição eíTencial que valeíTem as quintas pelo menos féis vezes tanto como os terrenos annexados. Ordenava outrofim a lei que os prédios rufticos de uma geira não podeífem mais fer divididos, antes fe encabeçaífem n'um herdeiro. As terras de colonos par- ciarios no Alemtejo feriam adjudicadas ao parceiro ou pos- feiro, que tiveífe n'ellas a poífe principal.

Eíla foi uma das leis, cuja violência mais encareceram e reprovaram os inimigos de Carvalho. Não faltaram a attribuir ao egoifmo e avareza do legiflador a principal razão d'efta quebra flagrante ao direito e immunidade peífoal. Se a forçada expropriação ordenada pelo miniftro eífá hoje em manifefta contradicção com as thefes geralmente admittidas nos eflados livres acerca da propriedade, não andava todavia em delac- cordo com o principio fundamental de que no fyífema gover- nativo de Carvalho aos intereífes do individuo fe deviam an- tepor em todo o cafo os intereífes fociaes. Segundo a fua noção de governo politico e de humana aífociação, o poder fupremo tinha o jus e o dever de repartir e equilibrar os bens e com- modidades, como um pae follicito e vigilante pela melhor ordem e proveito da familia patriarchal. Uma côr, fe bem amortecida, manifefta de moderado focialifmo, prevalecia na fua legiflação. A oufada reprovação do direito de tcftar era a condemnação da propriedade na fua forma abfoluta e invio- lável. Quanto á maneira de poífuir a terra e difpor d'ella, os princípios e os ados do miniftro eftavam em plena concor- dância com os exemplos da hiftoria e com as prefcripções es- tabelecidas na antiga e na moderna legiflação. A hiftoria en- finava-lhe de feito que os annacs da propriedade fão os faftos

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da violência, da conquifta, da ulurpação. Roma triumphante repartira a feu labor os agros dos vencidos. Os bárbaros mais tarde dividiram e expropriaram as herdades na Itália, nas Gallias, nas Hefpanhas. Os árabes partilharam entre fi as glebas wifigothicas. Os hefpanhoes c os portuguezes na recon- quiíta da Peninlula remodelaram novamente a propriedade, imprimindo-lhe por carader da lua legitimidade o havel-as conquiftado contra os mouros. A terra tinha lido em todos os tempos e Ibb todas as civililações o theatro e o defpojo da Ilida pela vida entre as raças e as nações. Hiftoricamente apparecia verdadeiro o celebrado aphorilmo de Proudhon, de que a propriedade é o latrocínio. A laftimada exclamação de Virgílio, defapoíTado dos léus campos pelo foldado aven- tureiro e triumphal, após a vidoria de Augufto Cefar, refu- me em poucos verfos quanto é precária, tranfitoria, infubfi- ftente a poffeíTão pacifica da terra, e quanto a força é mais vezes do que o direito o fundamento da propriedade predial.

O Lycida, vivi pervenimus, advena noftri, (Quod numquam veriti llimus), ut poffefTor agelli Diceret: Haec mea lunt, veteres migrate coloni.

ViRGiL., EcLog. IX, Ma'ris, vers. 2-4.

O veteres migrate coloni (lai oh antigos colonos e cultores da terra) refôa a cada paíTo na hiftoria da humanidade c nas paginas da fua legiílação.

As revoluções fociaes mudam a fituação dos Hndes e dos hermes, que feparam as glebas entre íi. A lei confirma ou modifica a conifituição da propriedade, que nafceu da vio- lência e da conquifta. A propriedade é pois emquanto á terra effencialmente ephemera e amovível á vontade do legillador. Não podemos admirar-nos d'efias forçadas expropriações de- cretadas ha mais de um feculo por um eftadifta de poderes illimitados na monarchia abfoluta omnipotente, quando vi-

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mos ha pouco tempo, ante as exigências e as perturbações da Laiid League, ou liga agraria, o governo da Gran-Breta- nha, exercido pelos whigs mais liheraes, lacrificar á elpe- rança de pacificar a Irlanda o principio legal da proprie- dacie, e legiílar a expropriação dos opulentos lenhorios ou Landlords em favor dos colonos ou Laudtenants.

A melma categoria de arbitrarias providencias colorea- das com o maior bem da caufa publica pertence a lei, que mandou arrancar todas as vinhas no Riba-Tcjo entre Saca- vém e Villa Xova da Rainha, nos campos de Vallada, Go- legan e Santarém, e nas margens do Vouga e do Mondego". Em logar da viticultura, que o legiílador julgava ali nociva e inopportuna, ordenava c[ue as terras foíTem reftituidas á cul- tura cerealífera. A razão determinante d'efta lei cifrava-fe na efcaíTeza de cereaes, de que padecia Portugal. O trigo então era como hoje importado em enormes quantidades. O vinho pelo contrario manifeífava uma exaggerada producção. Se- baftião de Carvalho, apefar da aífeítada infiftencia, com que em feus efcriptos glorifica a arithmctica politica e le por iniciado profundamente em fuás doutrinas, defconhece o prin- cipio fundamental da fciencia económica, a liberdade, e coiifiando intemperadamente na acção governativa como enérgico propulfor da Ibciedade, põe o peito a emprezas fu- periores á força coercitiva do poder. Nas luas mãos a terra é plaflica, inerte, obediente para tomar todas as formas ao fa- bor do oleiro ou do toreuta refoluto. Os homens íao apenas as moléculas de um corpo, ás C[uaes elle no recelTo do feu laboratório pôde communicar, no intuito da harmonia e do bem geral, as aggregações e os logarcs, que, fegundo o ideal do feu Eítado, correfpondern á maxitna ventura e ordem fo- cial. A fociedade inteira é um exercito civil, que elle, o ítratégo

' Alvíirá da lei de 2(3 de outubro de 1765.

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da paz e da civililação, pôde a feu talante fubmetter ás formas taóticas mais próprias a oppugnar a miferia, a ignorância, o fanatifmo e o abatimento nacional. Na apreciação e julgamen- to de Sebaftião de Carvalho é precifo a cada paíTo ter pre- fente a epocha, em que viveu, a monarchia, a quem ferviu, a fociedade, que regeu, as idéas, que antes dos tempos de Ques- nay, de Turgot, de Necker e Adam Smith infpiravam nas relações económicas dos Eftados os governos mais ardentes na profecução do bem commum. Muitos annos depois que a lei contra as vinhas era promulgada, ainda o congreíTo americano, quando os Eftados Unidos fe debatiam na luifta memorável contra a metrópole, taxava por uma lei os preços das mercadorias e fazia da violação da liberdade mercantil um inftrumento auxiliar da politica liberdade.

A França era ainda no feculo xviii fecunda em provi- dencias regulamentares e reftricfivas da viticultura, e eram muito frequentes os exemplos de vinhas arrafadas por man- dado e arbítrio da autoridade'.

Na mefma falfa economia politica tem a fua explicação e a lua efcufa a providencia, que prohibe o introduzir na ca- pital os vinhos de Vianna, de Monção, do Porto, de Aveiro, da Bairrada, Anadia, Figueira e outras partes, exceptuan- do unicamente os vinhos doces do Pico e da Madeira-. Na mefma ordem de princípios fe filia a prefcripção, ordenando que nos terrenos de vinhos de embarque fe enxertaífem em tintas as uvas brancas de maneira a profcrever inteiramente o vinho branco'', e caftigando com penas feveriílimas os que adulterem a bebida com perniciofas confeições.

1 Dareíle de la Chavanne, Hijloire des clajfes agricoles cn France. Paris, i858, pag. 454 e 455.

2 Alvará de 17 de outubro de 1768.

3 Alvará de 10 de abril de 1773.

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É principalmente quanto á indurtria vinicola que lao mais frequentes e flagrantes as infracções da liberdade no traba- lho, porque é também para o legiílador a predilecla infti- tuição da companhia do Alto Douro aquella, em que tem poífas principalmente as luas elperanças de riqueza e pros- peridade nacional. A efta poderofa Ibciedade mercantil eftá a cada paffo o eftadifta fubordinando os deftinos da agricul- tura. Apenas eftão próximos a terminar os dez annos aífi- gnados á duração da companhia, apparece a fua exiftencia prorogada por mais vinte annos'. São quafi innumeraveis as providencias que na volumofa legiílação de Sebaftião de Car- valho tem por íim regular por minuciofas prefcripções a cul- tura e o commercio dos vinhos, aíTegurar a fua pureza contra as fraudes e obífar á exaggerada producção e á confequente quebra no valor. Somente é quando a companhia eítá foli- damente robuftecida, quando reparte por dividendo aos ac- cioniftas mais de 7 por cento do capital-, que o legiílador tem por opportuno afrouxar o rigor das leis prohibitivas e dos feveros regulamentos para livrar da concorrência a opulenta aíTociação. E então que fe declara abolido o curfo torçado ás apólices da companhia do Alto Douro, e das companhias do Maranhão e da Parahyba', e fe volve novamente n'efle ponto ao regimen da liberdade nas trocas e tranfacções com- merciaes, concedida antes como privilegio aos extrangei- ros, que viviam em Portugal^ e tinham reclamado inftante- mente contra a dura impofição. E então que o legiflador abre e patentêa livres ao commercio dos vinhos da Extremadura e das ilhas adjacentes os mercados da Africa e da Afia, os da

1 Alvará de 28 de agoíto de i 776.

2 Edital da junta de adminiftraçfio da companhia do Alto Douro, de 26 de junho de 1772.

3 Alvará de 2 3 de fevereiro de 1771. -t Alvará de 3o de agoílo de 1768.

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Bahia, Pernambuco c Parahyba, deixando em monopólio á companhia do Aho Douro a exportação para o Rio de Janei- ro e para os portos fituados ao fui da metrópole brazileira'.

As providencias decretadas por Sebaítião de Cars^alho para fomentar directamente com o favor e o arbitrio do po- der os três ramos da induítria portugueza e crear-lhes em deredor uma atmoíphera puramente artificial, tem a fua na- tural explicação cm primeiro logar no profundo abatimento e inércia da nação, a qual parecia incapaz de melhoria e de progrelTo, fe foffe deixada á fecundante acção da liberdade e aos impulfos defconnexos da energia individual. Em fe- gundo logar infpiravam o reformador as idéas predominantes nas fciencias económicas e íbciaes antes que foíTem não fo- mente vulgarifadas, mas em parte recebidas pelos governos europeus e applicadas prafticamente ao mcchanifmo focial, as verdades enfinadas pelos egrégios fundadores da economia politica, os Smiths, os Queínays, os Turgots, os Morellets. Em terceiro logar era firme o legiílador no preconceito acata- do e feguido reverentemente em toda a Europa continental, e ainda hoje infelizmente profeílkdo com inteira convicção entre os povos neo-latinos, de que e exclufivamente a acção enérgica e irrefiftivel dos governos pôde imprimir impulfos vigorofos á civilifação e ás induftrias das nações, mantidas na perpetua menoridade fob a tutela ciofa de príncipes here- ditários.

Não eram eífas doutrinas invenção e monopólio de Sebas- tião de Carvalho. Eram os principies direítores de Sully e de Colbert na fua politica induftrial e económica, eram no feculo xviii as crenças e as praxes dos mais illuftres reformadores, de Leopoldo II na Tofcana, e do imperador Jofé II na Alle- manha. A intervenção direita, minuciofa, quotidiana de Se-

' Alvará de 6 de agofto de 1776.

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baftião de Carvalho nas tranlacções da vida económica, podia achar a fua apologia nas circumrtancias peculares da occafião e na defidia opprobriofa, em que a monarchia ablbluta havia feito cair a actividade nacional. A influencia dos proceflbs regulamentares e artificiaes não podia, porém, pela fua pró- pria condição de excepções contra-naturaes, fobreviver por largo tempo ao bafejo do legiflador. Tudo quanto, pelo con- trario, o efpirito do memorável eftadifla concebeu e realifou na lua politica meramente revolucionaria, negativa, demoli- dora, perpetuou-le e tranfmittiu-fe como herança á moderna ci^■ililação de Portugal. E que a acção dos governos é pro- liíica e duradoura, quando fe limitam a extirpar ou corrigir tudo quanto é adverlb á peíToal e livre adividade, ou a inífi- tuir com difcrição e previdência quanto pôde indiredamente dilatar e fazer mais fecunda a producção. AlTim poderam fobreviver ao legiflador os primeiros paíTos de Sebaftiáo de Carvalho no caminho fruduofo da liberdade da terra, na mais democrática organifação da propriedade, na mais egual diflribuição dos encargos fociaes, na maior difFuíao dos co- nhecimentos, e na melhor accommodação do direito civil ás neceflidades e condições da moderna fociedade.

Entre as leis, que fe referem ás relações juridicas em Por- tugal, figuram a que deu nova maneira de exiftir á proprie- dade vincular, as que regularam a facção teftamentaria e o direito fucceíTorio, e mais do que eftas é porventura memo- rável a que nos faftos da jurifprudencia nacional fe chama por excellencia a lei da boa raião\ Nada pode, em verdade, fer de maior importância n'uma nação do que os principios fundamentaes, em que fe firma o feu direito civil e as fuás praxes de julgar. A lei da boa ra^ão teve por aífumpto obviar á pradica abufiva, defde muito feguida pelos julgadores e

Carta de lei de 18 de agoflo de i7fj'j.

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advogados, de preferir ao direito pátrio, havido por elles na conta de menos culto e preftadio , a romana jurifprudencia, tal como a formularam as conftituições imperiaes, as doutrinas dos antigos juriíconfultos e as interpretações e commentarios dos Irnerios, dos Bartholos, dos Accurfios e dos outros glos- fadores. No conceito do profundo legiflador a fociedade por- tugueza, collocada pela differença das epochas e pelos pro- greíTos fociaes em condições mui diíTonantes do velho mundo romano, mal poderia governar-fe pela fua legiflação. Pro- hibia pois Sebaftião de Carvalho, que os caufidicos e magis- trados adduzilTem nas allegações e nas fentenças os textos da lei romana ou as opiniões e gloíTas dos doutores em tudo quanto pelo direito pátrio eftiveíTe claramente definido ou na falta de lei efcripta o coífume do reino tiveíTe confagrado. Sem profcrever inteiramente a difcreta applicação da legifla- ção e jurifprudencia dos romanos, ordenava que no foro fe difcriminafle d'entre as leis imperiaes as que têem ou não por fundamento a boa raião. Explanava o legiflador o que por efta expreíTão fe haveria de entender. Tinham as leis por bafe a boa raião: i .°, quando continham verdades eíTen- ciaes e inalteráveis; 2.°, quando fe radicavam nos princi- pies do direito das gentes; 3.°, quando refpondiam ás novas condições e formas fociaes, e ás forçofas transformações, que o progreíTo no decorrer dos feculos imprime nas relações jurídicas de um povo civiliíado. N'efta categoria fe conglo- bam as leis politicas, e principalmente as commerciaes, as económicas e as marítimas com excepção da Lei Rhodia e poucas mais, quafi inteiramente defconhecidas aos romanos, mais ciolbs de conquiftas c feitos bellicofos que de pacíficos tratos mercantis e proveitofas navegações. A lei da boa ra{ão abolia como nocivas á juftiça as ampliações e reftricções do direito pátrio pelas difpofições da lei romana, comminan- do punição aos advogados, que profcguilíem n'elfa pradica

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abufiva, a qual, em tempos de D. João III, Jorge Ferreira de Vafconcellos pozera de manifefto n'uma fcena joco-feria da fua vernacLiIiffima Eiifrofina' . Não era porém o direito romano unicamente o que ufurpava para 11 nos auditórios o que legitimamente pertencia á portugueza legiflação. Junto com o direito cefareo havia quafi ao mefmo tempo irrompi- do em grande parte da Europa latina durante a edade media o direito canónico e pontifício. A Egreja, no intuito perfeve- rante de ablbrver o Eftado e a íbciedade temporal, intervi- nha com a fua legillação elpiritual no julgamento das ques- tões e dos litígios de pura condição profana e fecular. Baftava que n'uma queftão do foro externo fe podeíTe raftrear uma fombra de efpiritualidade, e a femelhança de um peccado, para que a lei canónica fe antepozeíle á lei civil. A Orde- nação philippina confagrava expreífamente efta invafão, efta- tuindo que fendo omiífa a pátria legiflação, fe julgaíTe pelos cânones em todos os cafos, em que eíliveíTe comprehendido algum peccado-.

A lei da boa raião aboliu inteiramente efta pradica peri- gofa de julgar. O eftadifta, que timbrava em feparar por fron- teiras bem vifiveis a Egreja e o Eftado, deixa aos cânones e conftituiçóes pontifícias o julgamento das caufas efpiri- tuaes, e exclufivamente fubordina ás leis civis as relações tcmporaes da fociedade, aífentando que não incumbe aos tribunaes o conhecimento dos peccados, mas e unica- mente o dos delidos. Profcreve o legiflador as gloífas de Accurfio e de Bartholo, mandadas obfervar em alguns cafos pelas ordenações do reino \ Condemna e prohibe a allegação de commentarios e opiniões, porque as audoridades nada

' Eufrofma^ Aclov, Iccna I.

2 Orden. philipp., Liv. iii, tit. 64.

3 Orden. philipp., Liv. iii, tit. 64, § i .

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valem, e devem elcutar-fe as vozes da lei e os diítames da boa razão. Define ainda o legiflador quaes fão as circum- flancias, que devem acompanhar os eftylos e coftumes do reino, para valerem como leis. Determina como fe hão de racionavelmente remediar as omiíTóes do direito pátrio, fup- pridas principalmente pelos aílentos da cafa da fupplicação.

Tal era fummariamente enunciada a famofa lei da boa raião. Ve-le n'ella o elpirito moderno a inlurgir-fe refoluto contra o delpotifmo do paliado e as cadeias da tradição. Admira-fe n'ella o eltadifta fuperior, que comprehende a no- va Ibciedade e adivinha quafi a juníprudencia dos Portalis e dos Merlins e a idéa revolucionaria do código Napoleão.

As modificações introduzidas pelo miniftro reformador na confl:ituição da propriedade territorial influíram indire- (Tlamente fobre a agricultura. Efta forma porém de humana adividade não era aquella, em que o reformador principal- mente concentrava as luas predilecções. A lua paixão domi- nante era a induftria manufaílora e o trato mercantil. Tinha fido o commercio, que tornara poderofo e florefcente o eftreito Portugal. Uma nação, que poíTuia na Africa, na Afia, na America e na Oceania vaftas e fecundas polTeíTões, parecia ao legiflador talhada para empório das riquezas coloniaes. A falfa, mas então dominante theoria da balança do com- mercio, fazia acreditar a Sebaftião de Carvalho que um paiz fe devia furtar quanto podefle a precifar e admittir os extra- nhos artefaétos, e esforçar-le, pelo contrario, em eftendermais e mais os feus mercados para a larga exportação das pró- prias mercadorias. N'efta apertada concepção da força e va- lia das nações, o paiz mais venturolb e opulento leria o que de nada careceffe de extrangeiros. Seria o EJlado cerrado, fe- melhante ao que mais tarde haveria de reduzir a contextura fcientifica no feu Syftema nacional de economia politica o ce- lebrado economifta allemão Frederico Lift. Seria a economia

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da nacionalidade profelTada em todo o leu pleno antagonis- mo á economia colmopolita das modernas elcolas libcraes. Seria o fyftema proteftor exaggcrado até as fuás derradei- ras confequencias em harmonia com o dogma inviolável do egoilmo nacional.

E precifo, porém, julgar os eftadiftas, as fuás idéas e os feus feitos governativos não fegundo as modernas conquiftas das fciencias fociaes e as novas condições do equilibrio inter- nacional ; mas conforme aos princípios geralmente acceitos no feu tempo e á fituação particular dos povos, a quem tiveram de reger. Se a balança do commercio, na ambiciofa e larga fignificação, em que a tomava no feculo paífado a efcola mercantil, é hoje provadamente falfa á luz das theorias e dos factos, não é todavia menos certo que uma nação carece, quan- do menos, de produzir o neceífario para alcançar das outras pelo efcambo o que o feu trabalho não pôde abfolutamente fabricar. Não é também menos evidente que a liberdade mer- cantil illimitada, inftituida como fyftema n\im povo defprovido inteiramente de faculdades produftoras, não confeguirá da ter- ra um grão de trigo, nem da oíficina o artefado mais vulgar. A lei natural e fecundiíTmia da divifão do trabalho internacional fomente pôde fazonar feus fruítos de oiro, qviando no con- certo das nações tem cada uma d'ellas naturalifado e florente em certo grau algum dos ramos do trabalho mais conformes ao clima, ao território, á vocação. Portugal era nos tempos de Sebaftião de Carvalho um paiz, onde a inércia deixava em grande parte os campos fem cultura, as ofíicinas fem lavor. Urgia pois aguilhoar a indolência, incitar a nativa indecifão,' crear a induftria, fomentar o commercio nacional. Não fe conhecia então, nem merecia outro caminho fenão o do fyftema protector com toda a fua variada comitiva de feveras prohibições, de ciofos regulamentos, de tarifas audoritarias e de quotidiana intervenção das forças governativas na troca

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e na producção. O propofito de Sebaftião de Cangalho, nas fuás providencias em favor das induítrias nacionaes, era pois não fomente accommodado á fciencia económica d'aquelle tempo e ás condições do povo portuguez, fenão que cifrava um benemérito ferviço á civilifação de Portugal. Emquanto a humanidade fubfiftir feparada e dividida em diil:in6tas na- cionalidades, fe não hoílis, ao menos dominadas por interes- fes contraditórios, o conceito de nação trará fempre comfigo forçofamente a idéa de emulação e rivalidade entre os povos extranhos e empenhados em fe excederem uns aos outros na riqueza e no poder.

O egoifmo nacional prevalecerá feguramente contra o cofmopolitifmo humanitário.

O eftado tem duas maneiras de inter^■ir na creação e no fomento das induítrias. A primeira direita, immediata, con- vertendo-fe elle próprio em capitaliíta e emprezario. A fegun- da reflexa e indireíta pelas exempções e privilégios concedi- dos ás emprezas nacionaes e pelas providencias que fufpcndem ou annuUam a concorrência dos produdos extrangeiros. A ambas fe foccorreu o reformador, fegundo fe lhe deparava a occafião. É aíhm que Sebaftião de Carvalho eftabelece a ex- penfas do thefouro a fabrica de chapéus em Pombal', a de faiança, no fitio do Rato, fob a immediata direcção do enge- nhofo Bartholomeu da Cofta. Á impulfão do eftado foi devida a ofíicina dos eftuques, e a aula annexa de defenho ornamental fob a infpecção adminiftrativa da fabrica das fedas, e o ensi- no technico do italiano João GroíTr. São extrangeiros princi- palmente os que vem inftituir em Portugal algumas induftrias novas ou reftaurar as que Jaziam defamparadas. A fabrica de vidros da Marinha Grande pertencia ao eftado . Eftava porém

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' Alvará de 24 de março de 1769. 2 Alvará de 23 de dezembro 1771.

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abufiva, a qual, cm tempos de D. João III, Jorge Ferreira de Vafconcellos pozera de manifefto n'uma Icena joco-leria da lua vernaculiffima Eufrofina'. Não era porém o direito romano unicamente o que ufurpava para 11 nos auditórios o que legitimamente pertencia á portugueza legiflação. Junto com o direito cefareo havia quali ao mefmo tempo irrompi- do em grande parte da Europa latina durante a edade media o direito canónico e pontifício. A Egreja, no intuito perfeve- rante de ahforver o Eftado e a fociedade temporal, intervi- nha com a fua legiílação efpiritual no julgamento das ques- tões e dos litigios de pura condição profana e fecular. Bailava que n'uma queítão do foro externo fe podeíTe raftrear uma fombra de efpiritualidade, e a femelhança de um peccado, para que a lei canónica fe antepozeíTe á lei civil. A Orde- nação philippina confagrava expreíTamente efta invafão, efta- tuindo que fendo omiíTa a pátria legiílação, fe julgaífe pelos cânones em todos os cafos, em que eftiveífe comprehendido algum peccado-.

A lei da boa raião aboliu inteiramente efta pradica peri- gofa de julgar. O eftadifta, que timbrava em feparar por fron- teiras bem vifiveis a Egreja e o Eftado, deixa aos cânones e conftituições pontifícias o julgamento das caufas efpiri- tuaes, e exclufívamente fubordina ás leis civis as relações temporaes da fociedade, afl"entando que não incumbe aos tribunaes o conhecimento dos peccados, mas e unica- mente o dos delidos. Profcreve o legillador as gloífas de Accurfio e de Bartholo, mandadas obfervar em alguns cafos pelas ordenações do reino'. Condemna e prohibe a allegação de commentarios e opiniões, porque as audoridades nada

1 Eii/rofiiia, Aclov, fcena I.

2 Ordeii. pliilipp., Liv. iii, tit. 64.

3 Orden. philipp., Liv. m, tit. 64, § i.

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valem, e devem efcutar-fe as vozes da lei e os didames da boa razão. Define ainda o legiflador quaes fão as circum- ftancias, que devem acompanhar os eftylos e coftumes do reino, para valerem como leis. Determina como fe hão de racionavelmente remediar as omiíTões do direito pátrio, fup- pridas principalmente pelos aíTentos da caía da fupplicação.

Tal era fummariamente enunciada a famofa lei da boa raião. Vê-le n'ella o efpirito moderno a infurgir-le refoluto contra o deípotifmo do paflado e as cadeias da tradição. Admira-fe n'ella o elladifta luperior, que comprehende a no- va fociedade e adivinha quafi a jurilprudencia dos Portalis e dos Mcrlins e a idéa revolucionaria do código Napoleão.

As modificações introduzidas pelo miniftro reformador na conflituição da propriedade territorial influíram indire- ctamente Ibbre a agricultura. Efta forma porém de humana actividade não era aquella, em que o reformador principal- mente concentrava as luas predilecções. A fi.ia paixão domi- nante era a indufiria manufaftora e o trato mercantil. Tinha fido o commercio, que tornara poderofo e florefcente o eítreito Portugal. Uma nação, que poflfuia na Africa, na Afia, na America e na Oceania vaftas e fecundas poffeíTões, parecia ao legiflador talhada para empório das riquezas coloniaes. A falia, mas então dominante theoria da balança do com- mercio, fazia acreditar a Sebaftião de Carvalho que um paiz fe devia furtar quanto podeíTe a precifar e admittir os extra- nhos artefados, e esforçar-íe, pelo contrario, em eftendermais e mais os feus mercados para a larga exportação das pró- prias mercadorias. N'efta apertada concepção da força e va- lia das nações, o paiz mais venturofo e opulento feria o que de nada carecefle de extrangeiros. Seria o EJlado cerrado, fe- melhante ao que mais tarde haveria de reduzir a contextura fcientifica no feu Syjlema nacional de economia politica o ce- lebrado economifla allemão Frederico Liíi. Seria a economia

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da nacionalidade prolelTada cm todo o feu pleno antagonis- mo á economia cofmopolita das modernas efcolas liberaes. Seria o lyftema proteítor exaggerado até as fuás derradei- ras confequencias cm harmonia com o dogma inviolável do cgoifmo nacional.

E precifo, porém, julgar os eftadiftas, as ílias idéas e os feus feitos gOA'ernativos não fegundo as modernas conquiftas das fciencias fociaes e as novas condições do equilibrio inter- nacional; mas conforme aos princípios geralmente acceitos no feu tempo e á fituação particular dos povos, a quem tiveram de reger. Se a balança do commercio, na ambiciofa e larga fignificação, em que a tomava no feculo palTado a efcola mercantil, é hoje provadamente falfa á luz das theorias e dos fadtos, não é todavia menos certo que uma nação carece, c[uan- do menos, de produzir o neceífario para alcançar das outras pelo efcambo o que o feu trabalho não pode abfolutamente fabricar. Não é também menos evidente que a liberdade mer- cantil illimitada, inftituida como fylfema n'um povo dcfprovido inteiramente de faculdades produftoras, não confeguirá da ter- ra um grão de trigo, nem da oíficina o artefado mais vulgar. A lei natural e fecundiíllma da divifão do trabalho internacional fomente pôde fazonar feus frudos de oiro, quando no con- certo das nações tem cada uma d'ellas naturalifado e ííorcntc em certo grau algum dos ramos do trabalho mais conformes ao clima, ao território, á vocação. Portugal era nos tempos de Sebaítião de Carvalho um paiz, onde a inércia deixava em grande parte os campos fem cultura, as officinas fem lavor. Urgia pois aguilhoar a indolência, incitar a nativa indecifão, crear a induftria, fomentar o commercio nacional. Não fe conhecia então, nem merecia outro caminho fenão o do fyftema protedor com toda a fua variada comitiva de feveras prohibições, de ciofos regulamentos, de tarifas audoritarias e de quotidiana intci-venção das forças governativas na troca

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e na producção. O propofito de Sebaftião de Can-alho, nas fuás providencias em favor das induftrias nacionaes, era pois não fomente accommodado á fciencia económica d'aquelle tempo e ás condições do povo portuguez, fenão que cifrava um benemérito ferviço á civilifação de Portugal. Emquanto a humanidade fubfiftir feparada e dividida em diftincfas na-- cionalidades, fe não hoítis, ao menos dominadas por interes- fes contraditórios, o conceito de nação trará fempre comíigo forçofamente a idéa de emulação e rivalidade entre os povos extranhos e empenhados em fe excederem uns aos outros na riqueza e no poder.

O egoifmo nacional prevalecerá feguramente contra o cofmopolitifmo humanitário .

O eftado tem duas maneiras de intervir na creação e no fomento das induftrias. A primeira direita, immediata, con- vertendo-fe elle próprio em capitalifta e emprezario. A fegun- da reflexa e indireffa pelas exempções e privilégios concedi- dos ás emprezas nacionaes e pelas providencias que fufpendem ou annuUam a concorrência dos produífos extrangeiros. A ambas fe foccorreu o reformador, fegundo fe lhe deparava a occafião. E affim que Sebaífião de Carvalho eftabelece a ex- penfas do thefouro a fabrica de chapéus em Pombal', a de faiança, no fitio do Rato, fob a immediata direcção do enge- nhofo Bartholomeu da Coita. A impulfão do eífado foi de^'ida a officina dos eftuques, e a aula annexa de defenho ornamental fob a infpecção adminiflrativa da fabrica das fedas, e o ensi- no technico do italiano João Groflr. São extrangeiros princi- palmente os que vem inftituir em Portugal algumas induftrias novas ou reftaurar as que jaziam defamparadas. A fabrica de vidros da Marinha Grande pertencia ao eífado . Eft ava porém

' Alvará de 24 de março de 17Õ9. 2 Alvará de 23 de dezembro 1771.

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eivas ao delenvolvimento indultrial, as idéas profeíTadas pelo eminente reformador, é neceíTario não elquecer que eftas eram as doutrinas realifadas na praxe governativa das nações mais efclarecidas e notáveis pela fua riqueza e excellencia induftrial. A Inglaterra d'aquelle tempo, não obftante a fua indifputavel fupremacia naval e da lua grande indurtria ma- nufactora, continuava a ter por bale e penhor da lua pros- peridade as leis reftrictivas do commercio, inípiradas pelo mais meticulofo egoifmo nacional. Os actos de napegação, prin- cipalmente fortalecidos por Oiiver Cromwell durante o feu enérgico protedorado, e depois da reftauração por Carlos II, a eftreita legiflação dos cereaes, o Íòxov irracional á induflria ainda então imperfeitilllma das fedas na Gran-Bretanha, as pefadiíTimas taxas aduaneiras, com que fe diíiicultava a im- portação, todo erte machinifmo de protecção artificial e ana- chronica, perfeverava triumphante e nem fequer ainda fufpei- tava que fendo paífado o primeiro quartel do feculo xix, um miniífro oufado, Hufkiífon, conciliando o patriotifmo com a verdade, e o governo com a fciencia, demonftraria á velha In- glaterra a inanidade opprobriofa do fyftema protector havido como o palladio da nação. E ainda foi precifo que muitos annos decorreífem antes que a grande meftra das induftrias e a rainha do Oceano, depois da agitação de Richard Cob- den e da efcola económica de Manchelfer, fe refignaífe, á voz do convertido Robert Peei, a defpojar-fe das fuás vi- ciofas tradições e a entrar oufadamente na via triumphal do li\re cambio. A França contemporânea de Carvalho man- tinha ainda em pleno vigor o fyftema regulamentar e reftri- c^ivo, com que o famoíb Colbert encadeara a fuprema direc- ção do eftado todas as formas do trabalho. Somente em i 774, quando tocava o leu occafo o poder e a energia do mi- niltro portuguez, um dos mais eminentes fundadores da eco- nomia politica, Turgot. chamado aos confelhos de Luiz XVI,

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começava com vigor a tralladar para as praticas de um gover- no illuminado as doutrinas, que havia profeíTado em artigos da Encyclopedia, e principalmente nas fuás obras, e entre ellas na mais profunda e memorável, as Reflexões fobre a forma- ção e a dijhibuição das riqueias, publicada em 1766. E me- nos poderemos extranhar as idéas económicas de Sebaftião de Carvalho acerca dos aíTumptos induftriaes, quando atten- tarmos em que os Eítados Unidos, a primeira nação do mundo no prefente, a mais opulenta produtora, a que hoje defcar- rega nos mercados europeus vima grande parte dos cereaes, de que fe nutre a faminta e velha Europa, ainda perfevera impenitente nos decrépitos abufos do fyltema protedor, pro- feflado por muitos dos léus melhores economiftas, fem ex- ceptuar o illuftre Carey.

A confequencia inevitável da legiflação prohibitiva de- cretada por Sebaífião de Carvalho era o contrabando a em- penhar activamente os feus esforços para illudir e lliperar a mais rigorofa vigilância e repreíTão. Deparam-fe a cada paffo nas collecções de leis d'aquelle tempo as penas mais feveras contra os que intentam fubtrahir-fe á acção fiscal'. Parecia que uma valia confpiração fe havia propofto contra- dizer o fyftema prohibitivo adoptado pelo elladifta, e o crime, revertido de circumftancias fubverfivas da ordem publica, encarregava-fe de reprefentar contra as idéas do governo os principies da liberdade mercantil.

A tal ponto fe aggravára o contrabando, que os próprios militares, em vez de auxiliar as perquifições contra os des- caminhos da fazenda, fe juntavam em partidas de dez e vinte homens armados para afifrontarem feguramente as jus-

' Entre outros o alvará de 26 de maio de 1766, creando dois fuperinten- dentes geraes das alfandegas, um para as provindas do norte, outro para as do fui, e o alvará de i3 de novembro de lyyS, dando providencias fobre a faca ou faida de ouro para fora de Portugal.

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tiças c defenderem as fazendas lubtrahidas ás legaes impofi- ções. Recorre o legiflador ás mais duras comminações para enfrear os contrahandiftas de uniforme, decretando que fejam punidas com a pena capital as praças, que em numero de três ou d'ahi para cima fora do ferviço le cncontralTem aperce- bidas com armas brancas ou cie fogo. Com outras não menos terríveis providencias buícava o elfadifta refrear a audácia criminofa dos que aítrontavam publicamente os magiítrados no exercício do feu mandato focial".

Mas a economia politica tem leis tão naturaes, tão neces- íarias, tão fuperiores a todo o arbítrio individual e a toda a coacção governativa, como a lei da gravidade, como as que nas aguas determinam o equilíbrio e o movimento. O legifla- dor, como o architeflo ao projectar nos ares as luas cúpulas, como o engenheiro, ao traçar e conftruir os léus canaes, os feus portos, as fuás defezas contra as prováveis inundações, ha de forçofamente contar com ellas e fazel-as lervir racionalmente ao proveito Ibcial. O primeiro dever do poder publico, quan- do falia pelo órgão da lua lei, é evitar cautelolamente as oc- cafiões de novos crimes para a illudir ou falfear. O fyftema protector e o prohibitivo, e as taxas delmedidas Ibbre os pro- ducfos extrangeiros ou nacionaes têem por impreterível con- leclario o levantar um exercito permanente de infradores e contrabandirtas, combatendo em ordem difperla pela extenfão dos portos e fronteiras, contra uma phalange numerofa e cus- tofiílima de exactores e guardas fifcaes. Mas o erro de Se- baftião de Car\alho é, pofto que cm mais largas proporções, o erro económico preponderante nos governos contemporâneos da Europa continental. De todos os que a luz da fciencia pro- cura illuminar, lao os governos em toda a parte os mais in- crédulos e refradarios em a faudar e receber.

' Alvani de 14 de fevereiro de 1772-

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Se a induítria defvellava o foUicito legiflador e lhe de- buxava em íbnhos de engrandecimento nacional as mais ri- dentes perfpecl:i%'as, não eram menos fagueiras as efperanças de le^"antar de novo Portugal ao luzimento e poderio, com que o leu nome outr'ora havia infcripto entre os mais celebres povos mercantis. Alem da fundação das companhias, de que o paiz veiu a derivar proveitos inconteftaveis, Sebaftião de Carvalho é infatigável cm promover, fegundo os princípios fundamentaes do feu fyftema, a maior Aalia e extenfão das nolTas relações commerciaes. É n'efte ponto innegavel que muitas das fuás providencias merecem juftiffimo louvor.

No feu tempo era eftreito, irracional e egoifta o fyftema colonial dos povos europeus. Cada nação fechava ciofamente os portos das fuás colónias aos navios extrangeiros, e na fua legiflação tomava as mais vexatórias prevenções para que o trafico dos produftos coloniaes eftiveífe exclufn'amente con- centrado em luas mãos. D'ahi provinha a apertada regulamen- tação, em que vivia conítrangida a navegação e o commercio com as colónias. D'ahi que navio algum mercante podeífe de Portugal endireitar para o Brazil fem ir com outros encorpo- rado em frotas que em epochas prefixas fmgravam comboia- das por naus de guerra. A abolição d'efte regimen oppreíTi- vo e contrario a toda a iniciativa e efpeculação commercial é um dos ferviços eminentes do eífadifta á exempção e fran- quia do trabalho. A lei declara livre a navegação para o Bra- zil, abolidas as frotas, e caífadas as antigas providencias que fixavam a epocha da partida c do retorno aos navios do commercio'. Não defifte porém o legiflador inteiramente da intervenção enérgica do eftado nas operações e nos contratos mercantis. A lei fixa o preço dos fretes ás mercadorias de Portugal levadas ao Brazil, e ás que em retorno fe conduzam

Alvará de 10 de Icptcmbro de ijGS.

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em navios procedentes dos portos americanos'. Pela anterior legiflação era vedado a qualquer navio o navegar a outro porto do Brazil, alem d'aquelle a que ia deílinado. Era defe- fo o tranfitar de um a outro mercado na America, embora íoíTe conveniente aos intereíTes mercantis o eleger as praças mais propicias ao feu carregamento. Sebaftião de Carvalho rompe ainda eftas cadcas, que prendiam a navegação, e de- clara que aos navios mercantes é facultado o irem e levarem mercadorias de uns a outros logares na cofta do Brazil, onde o commercio não efteja monopolilado pelo favor concedido ás companhias-. Acabadas as frotas como forçada inftitui- ção não le efquece todavia o legiflador de prover á feguran- ça dos navios, que defejem livremente utilifar a protecção e força dos comboios. Duas fragatas de guerra fairiam todos os annos de Liíboa para o Rio de Janeiro, com o destino de trazerem o dinheiro do eítado e o dos particulares, que d'efi:e modo julgaíTem mais feguro o feu tranfporte. As fragatas fer- \iriam de comboiar na torna-viagem as embarcações mer- cantes, que pretendeíTem rcgreíTar em frotas á metrópole \

Não devem omittir-fe pelo feu efpirito de juítiça e egual- dade as leis promulgadas para abolir as prafticas aduaneiras, com que perante o íifco o Algarve era havido como fe fora na verdade um reino feparado e mal annexo, uma efpecie de Irlanda em Portugal. Reparando a injuftiça perpetrada contra uma parte importante da nação, extingue o legiflador os direitos exigidos no Algarve aos legumes e cereaes, que das mais terras portuguezas para alli fe tranfportavam-*. Abo- liu egualmente todos os direitos differenciaes, com que nas

' Alvará de 29 de abril de 1766.

2 Alvará de 2 de junho de 1766.

3 Decreto de 10 de junho de 1766. ■4 Alvará de iS de janeiro de 1773.

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alfandegas o Algarve era opprimido e conliderado como paiz extranho ou de conqiiiíta'.

Uma das mais notáveis providencias, com o intuito de illuftrar e engrandecer as claíTes mercantis, foi aquella em que Sebaftião de Carvalho conftituiu, como em nova corporação, todos os que exercitavam o commercio na capital. Eftatuia o legiflador a matricula para todos os commerciantes de Lis- boa. Ordenava que todos os guardas-livros e caixeiros tives- fem o curfo da aula do commercio, e eguaes habilitações foíTem exigidas aos fobrecargas, aos caixas e efcripturarios dos navios deflinados para o trafico da Afia. A lei prefcrevia o mefmo noviciado fcientifico para os efcrivães da armada, para os empregos nas companhias geraes e privilegiadas, e para os oíiicios da adminiítração e arrecadação da fazenda publica-. D'efta maneira a fciencia do commercio, methodi- camente profelTada n'um inítituto efpecial, feria largamente divulgada e um dos elementos eíTenciaes aos progreíTos econó- micos,— a cultura do entendimento e a educação profeílio- nal, feria penhor e fegurança de que o trafico portuguez haveria de crefcer e profperar.

Apelar de todos eftes valiofos incitamentos á energia commercial, o rigor regulamentar e a fubordinação da liber- dade mercantil ás preocupações da audoridade refòa, como a nota fundamental, na legiflação de Sebaftião de Carvalho. A doutrina de que o preço é naturalmente determinado pela relação entre a procura e a offerta, o principio de que a troca é um ado voluntário e independente da tutela governativa, ainda não tem podido infinuar-fe no efpirito dos governos, e ainda tem por adverfario impenitente um varão de quilates tão fubidos qual era para o feu tempo o miniftro de D. Jofé.

Carta de lei de 4 de fevereiro de 1773. 2 Carta de lei de 3o de agoílo de 1770.

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Não admira pois que no leu empenho de íirmar as luas pre- diledas companhias com os efteios da autoridade, commine penas feveras aos que comprem as acções d'aquellas Ibcie- dades mercantis por menos do leu valor nominal'. Ainda o legiflador não comprehendia como os fundos públicos e as acções commerciaes deviam por neceíTidade ineluftavel fub- metter-fe ás ofcillações perpetuas do mercado.

As pefcarias portuguezas outfora florefcentes, como de nação eíTencialmente dedicada aos trabalhos Ímprobos do mar, tinham a tal ponto decaído, que chamavam fobrc li a attenção do legiflador. Confiando mais nas poderofas aíTocia- ções commerciaes como infirumentos de fecundidade e effi- cacia do que na acção do esforço e do capital, quando ilbla- dos, inftitue Sebaftião de Carvalho a companhia geral das. pefcarias reaes do Algarve-. Attribue-lhe o capital de quarenta contos, depois elevados até ao dobro por ulterior dilpofição legiflativa"'. Eífa nova inftituição nos léus primeiros tempos exerceu benéficos influxos no melhoramento da induftria pis- catória e na riqueza do Algarve. Em cerca de dois mil contos Ic computaram os produdos das armações na pefca do atum e de outros peixes, defde a fundação da companhia até o anno de 18 12''.

Eis ahi lummariadas as mais importantes e notáveis pro- vifões decretadas por Sebaftião de Carvalho para fomentar e proteger as induftrias nacionaes. D'entre ellas algumas, ainda que em manifefto delaccordo com os princípios fundamentaes das modernas fciencias económicas, tiveram por afortunada confequencia o augmcntar a producção e a riqueza nacional.

1 Alvará de 3o de agoflo de 1768.

2 Eílatutos de 8 de janeiro de 1773, confirmados por alvará de i5 de janeiro do mefmo anno.

-' Alvará de Ti de julho de 1776.

4 Baptiíta Lopes, Chorographia do Algarve, pag. 8g.

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Outras fe não lograram frudos copiofos, tiveram pelo menos a vantagem de accordar os ânimos irrefolutos e dormentes, demonftrando que pela diligencia e pelo trabalho feria ainda poíTivel reftaurar o que leculos de ignorância e ociofidade tinham feito perder e malbaratar.

CAPITULO XVI

o TRIUMPHO

No meio dos negócios variados e multiformes, que tra- ziam prefa a attenção do eftadifta, no intento de promover a reformação e melhoria da nação e reprimir as demaíias de ultramontanos e fanáticos, mantendo a paz e quietação no in- terior de Portugal, nunca um momento deflembrava Sebas- tião de Carvalho a miíTão principal do leu longo e agitado minifterio. Tinha elle fido o primeiro a levantar o grito no feio do catholicifmo contra a poderofa fociedade, inftituida por Santo Ignacio de Loyola. Havia defde os primeiros tempos da fua adminiftração faído a terreiro a combater aquelles re- ligiofos, a quem tinha por jurados inimigos do poder tempo- ral e por obftaculos quafi irrefiíliveis a todo o progreíTo do entendimento e a toda a emancipação da coníciencia. Como ftrenuo luftador tinha envidado esforços fobrehumanos em porfia na apparencia defegual, mas após os rijifluTios comba- tes, ninguém o vira, defalentado e rendido pela fadiga, defam- parar a arena das fuás vicl:orias memoráveis. Tinha proftrado em Portugal a odiada Companhia, mas as hoftes jefuiticas, defbaratadas e profcriptas no paiz, onde fora mais extenfo e oppreffivo o feu longo poderio, cerravam agora as fuás fileiras em redor do Vaticano, e faziam da cidade eterna a derradeira, mas formidável cidadella, em que eftavam des-

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afiando impunemente a cólera e o delpeito dos monarchas mais poderofos. Quafi tinliam fentado no folio pontificio o feu geral, cuja figura altiva e dominante deixava mal vifi- vel na penumbra o vulto macerado do pontífice, prefi:es a efconder-fe nas Ibmbras fepulchraes. A companhia de Jefus era um exercito vencido cm vários pontos nos flancos da fua linha de batalha, tendo porém o centro ainda intado e protegido por defezas ainda então inacceffiveis ao inimigo. Emquanto em Roma continuaífe a tremular a bandeira da or- dem audaciífima, quem poderia aíTegurar-fe contra a poíTivel contingência de que volveíTem os jefuitas novamente á re- conquifta do terreno perdido nas principaes nações da chriftandade? A Companhia e os feus adeptos efperavam confiados a bonança, e emquanto o Vigário de Chrifto os continuaífe a ter de lua mão, e os abroquelaífe com a fua valiofa audoridade, e confiindiífe a fua caufa com a própria fubftancia do catholicifmo, e lhes deífe perante a egreja quafi a fantidade e o valor de um dogma fundamental, não feriam defafifadas as efperanças dos que faudavam como próximo o termo á profcripção e captiveiro.

Clemente XIII Ibubera inflexível refiftir a todos os em- bates das potencias mais empenhadas na total abolição da Companhia. O pontífice, com uma alteza de animo real- mente admirável n'um papa da edade média, fupportára com paciência exemplar as humilhações c as ameaças dos maiores e mais catholicos potentados. Alongando as viftas piedofas e afceticas aos tempos, em que as infignias pontifi- caes eram o prenuncio do martyrio, julgava-fe fadado a fal- var a egreja contra a aífolação da impiedade. Era Leão o magno abatendo com o preltigio efpiritual do fummo facer- docio a majeftade e o poder do bárbaro coroado. Podéra a França coUigada com a Hefpanha na vindicação de uma af- fronta infolita aos Bourbons, tomar com as luas tropas os

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dominios do papa em Avinháo, em Benevento, em Ponte Corvo. Clemente XIII perfeverava impaíTivel e refoluto a defender o que, na fua eftreita mas ingénua comprehcnfáo do pontificado, reputava indiíToluvelmente vinculado á dignidade e á honra da cadeira de S. Pedro. O velho antiftite via com intenfa dor o rei JideUj[Jiino por excellencia quafi inteiramente feparado da cabeça vifivel da chriftan.Via o rei catholico, na terra claííica da inquifição e do fanatifmo, enviar em tom hoftil os feus foldados contra o património pontifício. Via o rei chrijiiauijjimo, o filho primogénito da egreja, pelo órgão do fceptico Choifeul e do violento D'Aubeterre, lembrar-fe mais de que era foberano do que bom chriftão fi.TbmilTo e reverente ás bulias e refcriptos do papado. Via a própria ma- jeftade apostólica, reprelentada na imperatriz Maria Thereza de Auftria, inlenfivel e indiíferente ás tribulações do c[ue fe nomeava o mais alto lucceíTor do apoítolado. Lafiimava-fe, receiava porventura, que um novo condeftavel de Bourbon, acaudilhando as hordas de mercenários, pozeíTe mãos profa- nas nos muros lacratiffimos de Roma, e renovando o capti- veiro de Clemente VII no caftello de Sant'Angelo, lhe in- íiigilTe a derradeira humilhação como áquelle leu gloriolb anteceíTor. Amargurava-le, mas perfiftia inquebrantável. Os jefuitas applaudiam a firmeza do pontífice, que cerrava os ouvidos ás inftancias imperiofas, com que o rei de Hefpanha Carlos III e o duque de Choifeul, o miniftro de Luiz XV, exi- giam a completa abolição da Companhia. Emquanto as duas cortes de Bourbon marchavam na ^'anguarda na campanha, bufcando eftreitar Clemente XIII e fazel-o render á difcri- ção, decretando finalmente a luppreíTão da Companhia, não eítava ociofo o eítadifta portuguez. A fi.ia fervorofa impa- ciência levava-o a confiderar demafiada a manfidão, com que fe haviam os monarchas de França e da Hefpanha. O du- que de Choifeul ordenara ao embaixador francez em Roma,

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que em todos os Icus procedimentos para com o papa Cle- mente XIII fe accordaíTe com o miniftro plenipotenciário portuguez, que retirado a Nápoles não deixava de feguir aíTi- duamente o proceíTo das negociações.

Nos primeiros tempos depois do rompimento das relações com oVaticano, o rei D. Jofé, a quem pelava porventura na confciencia eíte divorcio efpiritual com a apoílolica, de- fejava com ardor que fe bufcaíTe algum meio de honrofa con- ciliação. N'eíte fentido efcreviam íem carader official o pa- triarcha de Lifboa e o próprio Sebaftião de Carvalho. Ao feu efpirito vidente e experimentado nas traças e artifícios da cúria romana, e profundamente convencido da inflexível tempera do pontífice reinante, não fe afiguravam efperan- çofas aquellas oflficiofas negociações. Perfiftia o papa inque- brantável, como quem defejava levar ao extremo ponto a fituação religiofa de Portugal, para que a final vieíTe a fub- metter-fe ás duras condições do pontificado. E era entre ellas a principal que os jefuitas foífem reftituidos, e trium- phalfem orgulhofos do feu humilhado e penitente adverfario'.

Um efcriptor de tão grande auítoridade e tão connexo intimamente com os legítimos intereífes da Santa Sé, o pro- feíTor allemão Theiner, obferva na fua Hijloria do pontificado de Clemente XIV, que um fonho tão piedofo podéra en- gendrar-fe na cabeça dos jefuitas e dos feus obcecados pro- pugnadores.

Na crença lifonjeira de que a lua ordem era deítinada a coexiítir com a própria egreja até á confummação dos fe-

I Gefchichte des Pontificais C.lemcns' \IV nach unedirten Staats/chriften aiis dem geheimen Archive des Valicaiis von profeflbr dr. Theiner, Prafeél- Coadjutor des geheimen Archivs des heiligen Stuhls (Hiíloria do pontificado de Clemente XIV, íegundo documentos officiaes inéditos do archivo fecreto do Vaticano pelo profeílor dr. Theiner, prefeito-coadjutor do archivo fecreto da Santa Sé). Leipzig, i853, parte i, pag. 7.1.

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culos, os jefuitas não defalentavam nas cfperanças de ver reconduzidos ás terras de Portugal os que cm numero de cerca de novecentos então padeciam nos eftados pontifícios a penúria e o exilio. Aflim o confeíTava n'um longo memorial a Clemente XIII o padre Lourenço Ricci, geral da Compa- nhia, com o intento de moílrar ao fanto padre que não podia, nem devia fecularifar e abfolver dos votos religiofos os jefui- tas de Portugal ' .

O monarcha portuguez, apelar da eítreiteza proverbial do feu eípirito e dos eícrupulos da lua meticulola confciencia, era antes de tudo rei e zelador das fuás prerogativas, e per- liftia em laftimar como chriftão e filho obediente da apos- tólica, o que a dureza d'eíta mãe inexorável o conftrangia a fazer como foberano independente em juftitnma defeza do feu direito e da fua dignidade. Carvalho, attentando na in- vencível refiftencia do pontifice a todo o expediente de julfa e decorofa accommodação, não via aberto outro caminho fenão o do enérgico e refoluto proceder das cortes catholicas para forçar o Vaticano a immolar á unidade e á paz da egre- ja as paixões de uma ordem turbulenta e condemnada.

São notáveis as palavras, com que Sebaftião de Carvalho n'um feu papel otferecido ao confelho de eftado por occa- lião de fe difcutir n'aquelle tribunal politico a bulia Aiiiiua- nini faliiti, expreíTa claramente a fua completa defefperança de que podelTe Portugal com as cortes empenhadas na

' «Siccome il papa ha tenuto fempre un cappello vacante per la noniina ili Portugallo, per fperanza che debbano un giorno comporfi le difcordie, che ver- tano tra la corte di Portugallo e quella di Roma, cofi confervandofi rairiflenza di Portugallo, fi verrà a moflrarfi la fperanza che col divino ajuto (lano un giorno por eirerc richiamati i gefuiti in quel regno; Non eft hnpojjibile apud Deinii o)}uie verbum; non ejl abbreviata }namis Domini. E certo che il papa, come padre com- mune per bene di queíto regno e per la premura delia cattolica religione deve nutrire e moftrare una tale fperanza." Memorial do padre geral dos jefuitas d fanlidade de Clemente XIII, Z 4."

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extincção da Companhia, confeguir a paz da egreja durante o funefto pontificado de Clemente XIII. Depois de proteftar o fer a guerra, comquanto um grande mal, o único remédio para com elle fe evitarem maiores damnos, depois de reca- pitular os attentados jefuiticos contra as coroas mais catho- licas, e ponderar o direito aíTédio, em que os jefuitas, tendo á frente o leu indómito geral, haviam pofto o timorato e dé- bil Clemente XIII, accrefcenta o republico eminente, que, to- dos os ados da Companhia e do pontífice têem conftituido outros tantos defenganos defi:ru6I:ivos de toda a efperança de que as calamitofas ruinas e extremofos males, que eftá pade- cendo a egreja . . . poíTam achar reparação ou remédio algum na cúria de Roma, a menos que a Divina Providencia não obre um d'aquelles rarifllmos milagres, que de modo ordiná- rio não cofl:uma fazer baixar ao mundo, emquanto n'elle ha meios humanos, que poíTam fazer ceíTar calamidades taes, como eítas de que hoje fe trata'.

Opinava o eftadifta que, em prefença de um mal, que ia todos os dias mais engravecendo, devia Portugal unir-fe ás cortes de França e de Hefpanha, egualmente oífendidas pela cúria e os jefuitas, para que de commum accordo os redu- ziíTem á razão, e defaíTombraíTem o pontífice do captiveiro moral, em que jazia. Indicava Sebafi:ião de Carvalho que entre os remédios poderia alguém lembrar o que pedia a con- jundura, qual era a convocação de um concilio geral-, mas era expediente demorado, e na epocha actual, fujeito a mil contradicções e embaraços. A guerra aberta, material, inexo- rável, qual poderia fer feita por foberanos a outro príncipe temporal, parecia ao miniítro portuguez o extremo recurfo

Voto original do conde de Oeiras para o confelho de eftado em 24 de agoílo de 1767. Collecçáo dos negócios de Kntna, parte 11, pag. 284 e 285. 2 Voto citado, pag. 28b.

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contra a cúria impenitente. Citava os exemplos memoráveis do imperador Henrique IV contra o papa Gregório VII, de Filippe o formolb, rei de França, contra Bonifácio VIII de triftiííima recordação, do piedolb Carlos V mandando o con- deftavcl de Bourbon á frente dos feus reitres e landfknechts allemães tomar e metter a facco e devaífação a cidade eterna e encarcerar o papa ClementeVII no caftello de Santo Angelo, de Filippe II contra o pontifice Paulo IV. E é notável que Sebaftião de Carvalho, defejando que n'eftes feveros procedi- mentos le catem inviolavelmente as attenções ao lummo fa- cerdote, e le encubra a guerra com o euphemiímo artiliciofo de occiípação das temporalidades, profeíTa que a foberania temporal dos pontífices romanos « nada tem de commum com a egreja de Deus' » . Propunha finalmente Sebaftião de Carva- lho que Portugal, a França e a Hefpanha alcançaíTem pela força a total extincção da Companhia e o caftigo fevero do feu geral, e dos feus principaes cooperadores nos infultos commettidos contra os foberanos coUigados. Defde que do alto do throno pontifício partia n'um chuveiro de raios efpi- rituaes a aggreíTão contra as potencias mais infignes pelo feu catholicifmo, era licito, opinava o efladifta, que á hoftilidade aberta do pontifice refpondcíle a violenta reprefalia. Não po- dia Sebaftião de Carvalho ingerir-fe oííicialmente na queftão, que trazia incendidas contra Roma as três cortes da cafa de Bourbon, porque eftavam rotas as relações de Portugal com o fanto padre. Mas o feu efpirito, dominado pela impacien- te afpiração de ver extindía por uma vez a Companhia, não deixava de empregar todos os meios para inftigar os reis bour- bonicos a uma acção vigorofa, que poderia acafo terminar no emprego da força material. Em feu parecer, as cortes de França, de Nápoles e da Hefpanha deviam concertar-fe para

Voto citiido, pag. 289.

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exigir a demiílao do cardeal Torreggiani, íecretario de erta- do pontifício, e a immcdiata abolição da Companhia. Segun- do uma veríao, o eftadirta portuguez chegava a lembrar em cafo extremo a própria depofição de Clemente XIII, como de quem pela fua conlervação na combatida naveta de S. Pedro poderia porventura ainda expôl-a a mais calamitofas tempes- tades'. Os gabinetes deVerfailles e Madrid apelar da Ília ani- madverfão á cúria, não condefcendiam com os defejos de Car- valho, pondo em eífeito defde logo as providencias radicaes. Mas o duque de Choifeul, miniftro dos negócios extrangeiros de Luiz XV, por muitas vezes exprime nos feus defpachos a confideração, que lhe merecem os ferviços e os confelhos do célebre eftadifta e o propofito de que o embaixador de Fran- ça em Roma bufque lempre concertar-le com o antigo ple- nipotenciário portuguez ^ Egualmente prefcrevêra o governo de Madrid que o leu reprefentante junto da Santa com- municaíle com Francifco de Almada tudo quanto houveíTe de aprefentar a Clemente XIII.

Emquanto a corte de Roma bulcava artificiofamentc na apparencia concertar-fe com a de Portugal, não remittiam os jefuitas e os feus fautores no empenho de levar o pontifice romano e as fuás temerárias oufadias até o extremo derradei- ro. Não contente a cúria de ter por largo tempo, antes e de- pois do rompimento, affrontado com as luas infenfatas provi- dencias a coroa de Portugal, pozera ainda o remate á fua obra. expedindo e fazendo divulgar n'efte paiz a bulia Animanim faliiti, que preítava novas armas á companhia de Jefus para que a feu talante podelfc fortalecer a perpetua confpira-

1 Vilconde de Sant;irem. Quadro elementar, tom. vii, pag. 279.

2 Defpacho de Simonin, encarregado de negócios de França em Lifboa, ao duque de Choifeul, de 27 de outubro de 1767. Santarém. Quadro elementar, tom. VII, pag. 327.

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cão contra o governo portuguez. Mas a lei de 28 de agoíto de 1767, com que Sebaftião de Carvalho reprimira a nova audácia do Vaticano, chegara a convencer os jefuitas e os curiaes feus protedores de que não era vibrando golpes temerofos, que lograriam aterrar o briofo miniftro portuguez e promover a fua proftrada fubmiíTão ao arbítrio da roma- na. Apenas o marquez d'Aubeterre, embaixador francez em Roma, fez chegar ás mãos do papa a valente reprelalia, com que Sebaftião de Carvalho refpondêra na lei de 28 de agofto á nova provocação, foi tremendo, indifivel o terror do ponti- fica oófogenario, perdidas quafi as forças na violência dos combates. Acudiram os jefuitas e os {elantes a aconfelhar a inftancia, a brandura, a humildade, em vez do império, da arrogância e da ahivez. Veiu o papa em efcrever a D. Jofé em termos fentimentaes, exorando-o a que em nome da cari- dade chriftan e da piedade filial para com o pae commum e efpiritual da chriftandade, pozeíTe termo á longa diffidencia entre o paftor univerfal e as ovelhas defgarradas dos aprifcos evangélicos. O breve dirigido ao monarcha portuguez era datado a 3i de agofto de 1767. «Não repugnes, dizia Cle- mente XIII, ó cariílimo filho em Chrifto, a efta paz, c aflim como nós a ti nos dirigimos, fe a tua regia majeftade a nós fe approximar, o mefmo Deus mifericordiofiffimo, que é Deus de paz e de amor, coagmentará entre nós ambos a paz e a concórdia». Em meio. das mais aífeéfuofas expreíTões, com que o vigário de Chrifto bufcava lenir e abrandar o rei de Portugal, e encarecer com palavras evangélicas as excel- lencias da paz na egreja univerfal, nem uma única vez trans- luzia no pontifice o propofito de emendar os aggravos, que fi- zera á corte portugueza, nem de corrigir as infolentes aggres- fões, com que os jefuitas em Roma fomentavam a crefcente defunião entre as nações catholicas e o fupremo chefe efpiri- tual.

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U papa com altucia romana, que lhe parecia accommo- dada á occalião, dirigia na mefma data um breve deprecato- rio ao levero miniftro de D. Jofé. N'eíte notável díjcumento laftimava Clemente XIII, como a maior de quantas calamida- des tinham affligido o feu infauíto pontiíicado, a feparação e rompimento, em que vivia do feu religiofo Portugal. Doia- Ihe no intimo da alma o ver-fe mal-avindo com o Ibberano, cm quem, aíTun como um pae fe enleva e fe compraz n'um tilho dilediffimo, afllm elle fe comprazia e enlevava com aífeclo paternal. Efperava o pontiíice da piedade e religião de D. Jofé e dos exemplos dos feus maiores, que não efta- ria longe o dia, em que fe vinculaíle no^'amente por laços de extremofa conciliação a coroa portugueza e a Santa Sé. Mas a fua principal efperança, dizia Clemente XIII, eftava pofta no auxilio e intercelfão de Sebaftião de Carvalho. «To- das as condições em ti fobejam para coníblidar de novo a amifade entre nós e o rei de Portugal; e entre ellas princi- palmente com razão a confiança, que o foberano tem nos teus confelhos » . Terminava o pontífice a fua epiftola com aquellas palavras da efcriptura: «Attenta, ó filho, na edade proveda de teu pae, e não amargures mais a ília vida».

Juntamente com os breves para el-rei, e para Carvalho, remettêra o arcebifpo de Nicéa, núncio em Madrid, mais duas epiftolas, uma d'ellas dirigida á rainha e outra ao in- fante D. Pedro.

E manifefto que os jefuitas, os curiaes e os lelaíitcs, que tinham aconfelhado Clemente XIII a expedir os breves onde as blandícias hyperbolicas ferviam a efconder e mafcarar a aufencia de um aífumpto para fincera negociação, não po- diam confiar na efficacia de tão inane e pueril expediente. Adivinhavam feguramente que o eíTeito das lettras pontifí- cias no animo de Carvalho feria o que elle cxpreífou n'eftas phrafes de indómito defdem: «Tudo ifto fão palavras patheti-

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cas, que fervem para moverem dos púlpitos o povo igno- rante e que de nada fervem fenão para moftrarem a malicia com que as efcreveu, quem com ellas fignificou defejar um fim, para o qual tem negado e efta aílualmente negando to- dos os meios úteis'».

Eftas expreffões cifraram a fummula da refporta efcripta por Sebaftião de Carvalho e expedida ao papa Clemente XIII com a regia aíTignatura. O celebre uon pojjwniis do inflexivel Pio IX era antecipado n'efl:a epiftola pelo duro miniftro do rei de Portugal.

Na carta efcripta a Clemente XIII por D: Jofé, datada de Azeitão a 5 de dezembro de 1767, o hábil eftadifta por- tuguez excedia no preambulo os termos aflfeduofos de que o papa entretecera a fua miíTiva ao foherano fideliínmo. Defentranhava-fe o monarcha em amoraveis e rendidas ex- preífóes, com que fignificava a fua mais fervorofa devoção e ternura filial á Santa Sede e á pjcífoa venerável do pontífice romano. Depois de fe proftrar aos pés do antiftite fupremo para o venerar como catholico, erguia-fe improvifamente como rei, e rei ludibriado e oífendido, para vindicar em ás- peras, mas verdadeiras exprobraçôes os aggravos e as aftVon- tas, que da cúria longamente recebera. Não era elle quem movera a aberto rompimento as pacificas relações das duas cortes. Não era elle o culpado de que uma ordem de regu- lares, que fe propoz por objedo a conquifta do mundo e por fyftema o homicidio dos foberanos, « . . . e que na corte do pontífice tinha o centro do feu governo, machinaífe dentro n'ella o malvado plano, com que mandara aífaílinar ás por- tas do feu palácio o rei de Portugal » .

Profeguia a refpofta compendiando todas as fucceífivas

' Analyfe dos ahfurdos, que se contém no breve... ile 'ii de agoflo de 1767. Cnllecçãn dos negócios de Roma, parte ii, pag. 149.

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machinações, com que os jeluitas, á Ibmhra protedora do fo- lio pontifício, haviam concitado a jufta indignação do rei de Portugal e o tinham neceílltado a recorrer aos uhimos remé- dios e a empregar o poder Ibberano e lecular para retorquir os golpes do gladio efpiritual, «fí.iftentar o decoro da majes- tade, a dignidade e o direito da coroa e o Ibcego publico dos povos, que viviam debaixo da fua immediata protecção » . Taxava de obrepção e fí.ibrepção o breve de Clemente XIII, que fob color de laftima, de uncção e de piedade, era, como outros forjados na mefma fragua jefuitica, encaminhado a que verteíTem novo fangue as feridas, que na apparencia preten- diam cicatrizar. E ifto fe revelava claramente em que nas lettras do pontífice não tranfluziam, nem por minima allu- fão, os meios, a que a Santa Sede fe propunha recorrer para chamar de novo á obediência efpiritual do fanto padre as chriftandades portuguezas.

De egual teor era na fuhftancia a refpoíta de Carvalho ao breve exhortatorio, em que o pontifíce o exorava a fer interceíTor e medianeiro na fonhada reconciliação. Nada fe podia conceber de mais gentil, graciofo e cortezão do que as palavras em que o ardilolb diplomático agradecia a Cle- mente XIII a conta, em que tivera a lua interceífão. Era porém infelizmente inexequível todo o empenho de concilia- ção e de concerto, defde que no breve dirigido ao rei fe não defcortinava um meio único de tornar effeftiva a defejada accommodação.

Bem fabiam os curiaes e os jefuitas, que a frecha inha- bilmente difparada contra o eftadifla portuguez, rigido e in- flexível propugnador das regalias temporaes, viria defpon- tar-fe na couraça do tremendo antagonifta e que do retorno faíriam certamente mal-feridos. Determinava-os todavia a conta, que deitaram, de que por ertas infídiofas propofições de paz e de concórdia, alcançariam pôr da fua parte a razão

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e a JLiftiça. Dir-fe-ía no mundo entre os illulbs e os malévo- los, que o vigário de Chrifto fe humilhara fupplice e lacry- mofo diante do monarcha portuguez, rojando aos pés profa- nos de um novo Henrique IV a tiara de Hildehrando, e que o obdurado e rebelde filho pródigo repellíra com felvatica bruteza as caricias apoftolicas de um pae anguftiado e extre- mofo.

Com os breves expedidos pelo papa viera juntamente a bulia da cruzada, cujo ultimo fexennio concluíra em 1763.

Julgara Clemente XIII com efta graça efpontaneamente concedida poder teftemunhar o feu efpirito pacifico e o quanto fe comprazia em ter abertos para o foberano portu- guez os thefouros da egreja. Mas ainda efte ardilofo expediente não logrou o eíFeito defejado. Repulfou Sebaftião de Carva- lho com indomável altivez a munificência pontificia. Acerca da bulia da cruzada deu parecer o procurador da coroa, Jofé de Seabra, demonftrando que não era neceíTaria, por- que todas as indulgências e favores efpirituaes, que n'ella íe continham, permaneciam em ^'igor, e a difpenfa de ovos e lacticínios na quarefina entrava na jurifdicção ordinária dos prelados, fem que podeíTem contra ella prevalecer as refer- vas do ÍLipremo pontificado". Conformou-fe com o voto do Seabra a mefa do defembargo do paço, concluindo que de- via negar-fe o beneplácito ao diploma pontifício, que o fis- cal da coroa reputa\a como nova ca\-illação dos jefuitas e affrontofa provocação á majeftade-.

Não baftava porém, no intento do miniftro, declarar lub- repticia a bulia da cruzada.

' Refpolla do procurador da coroa fobre a pretendida bulia da cruzada. Collecção dos negócios de Roma, parte 11, pag. i 58 e fegg.

2 Confulta do defembargo do paço, de i3 de janeiro de 1768. Collecção dos negócios de Roma, pag. 174 e fegg.

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Cumpria dar aos que a tinham fuggerido e minutado, relpofta mais fevera, não de palavras, mas de fados. O fa- nado da camará de Lifboa reprefentou ao patriarcha, pelo órgão dos feus procuradores, os graves inconvenientes que nafciam para as confciencias timoratas e para os intereíTes económicos da cidade c povoações circumvizinhas, que na aufencia da bulia não foíTe difpenfada pelo prelado a prohi- bição dos ovos e lacticínios. Adduzia uma larga memoria, em que hiftorica e juridicamente fe provava que era geral coílume defde íeculos nas diocefes portuguezas o ufar de ovos e lacticínios no tempo quadragefimal'. Deferindo ás inftancias do fenado, o cardeal Saldanha, patriarcha de Lifboa, decla- rou n'um edital que na fua archidiocefe não era de preceito a abítinencia, e que todas as fuás ovelhas podiam fem efcru- pulo, nem embaraço das fuás confciencias, ufar livremente dos ovos e lacticínios-.

D'efta maneira procedia Sebaítião de Carvalho, o inte- merato e animofo regaliíla, que pela audácia das doutrinas e dos feitos no governo deixava na fombra os mais eftrenuos defenfores das liberdades na egreja gallicana, os mais illus- tres magiftrados dos parlamentos em França, e os mais arro- jados propugnadores das regalias majeftaticas em Hefpanha, os Campomanes, os Rodas, os Moninos, que fairam a enfrear as ufurpaç(3es dos curiaes e as invafões do poder cccleíiartico nas foberanas temporalidades.

E mais adiante procedera porventura o efladifta portu- guez, fe o tempo lhe tivera afado a conjundura. Durante a quebra das relações com o Vaticano as egrejas epifcopaes,

Demonllração do poder e obrigação que todos os prelados têem de dis- penfar na abftinencia de ovos e laílicinios, ele. Collecçdn dos negócios de Roma, parte ii, pag 177 e fegg.

2 Edital do cardeal patriarcha de 24 de fevereiro de 1768. Collecção dos negocias de Roma, parte 11, pag. 177 e íegg.

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que iam vagando, ficavam viuvas de paíiores. Não podiam impetrar de Roma a confirmação os bifpos novamente apre- fentados. Pois difpenfemos Roma e a tiara, e volvamos refo- lutos á primeira difciplina da egreja n'aquelles tempos de evangélica fingeleza, em que os papas fe não tinham arroga- do, como lua, a maior parte da jurifdicção inherente ao epis- copado. Era em 1766. Tinha el-rei aprefentado novos bifpos nas diocefes deVizeu e Portalegre. Poderiam os prelados, fcm efperar a confirmação, entrar logo na adminiílração temporal e elpiritual dos léus bifpados? O doutor João Pereira Ramos de Azeredo Coutinho, jurifconfulto verfadiífimo em ambos os direitos, refpondeu com a affirmação e deduziu as provas da fua doutrina em uma obra memorável'. Mandara Sebaítião de Carvalho que uma junta de magiftrados, canoniftas e theologos, em numero de trinta, confultaífe acerca d'aquelle efcripto. Reunem-le a 3 de abril na fecretaria do reino. Eram entre elles os mais notáveis o arcebifpo de Évora, o in- quifidor geral Paulo de Carvalho, o doutor Jofé Ricalde Pe- reira de Caftro, os defembargadores Ignacio Ferreira Souto, Jofé de Seabra, João Pereira Ramos, Fr. António de Sant'An- na, confeífor do rei, Fr. António da Annunciação, confeífor da rainha, o theologo eminente António Pereira de Figueiredo, o eruditiílimo Cenáculo, então provincial da ordem terceira da Penitencia, c Fr. Ignacio de S. Caetano, que depois foi bifpo de Penafiel. Foram concordes todos os votos em que aos bifpos era licito adminiftrar as diocefes antes de recebe- rem confirmação. Apefar de tantas e tão graves auétoridades, em muitas das quaes era indubitável a piedade e a averlão ao fcifma e á herefia, não oufára Sebaftião de Carvalho pôr

' Tratado original fobre o poder dos bifpos nomeados por fua majeílade no tempo de rotura com Roma para poderem adminiftrar os feus refpeíUvos bifpados, antes de obterem as confirmações pontifícias. Collecçáo dos negócios de Roma, parte ii, pag. i88 e fegg.

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em eífeito defde logo a extranha refoluçáo. Quizera a princi- pio florear aos olhos de Roma e fazer luzir ameaçadora a nova arma, que tinha preíles para o combate, como que para incutir-lhe o terror de que aos últimos extremos le podia gradativamente abalançar, fe a romana prudência não com- praíTe a tempo a paz da egreja a preço de extinguir a odiada Companhia.

A crefcente irritação do miniftro portuguez contra os je- fuitas, feus entranhados inimigos, e contra a obcecação dos curiaes chegou ao leu cumulo, quando teve conhecimento do monitorio pontifício contra o duque de Parma e Placencia. Era Sebaftião de Carvalho, como um leão, que ferido no combate recebe novo golpe no lítio mais fenfivel, onde gote- ja langue antiga ferida. O inlulto feito ao duque de Parma recaía ainda mais pefado e affrontolb nos príncipes das anti- gas e mais orthodoxas monarchias. A efte repto do papado era urgente relponder com a derradeira humilhação

Era indifpenfavel que todas as potencias catholicas, inju- riadas pelo ediéto do pontífice, de commum accordo retor- quiíTem com violência a aflronta do Vaticano. Urgia marchar lem dilação e relblutamente contra Roma e impor a Cle- mente XIII a immediata abolição dos jefuitas, cuja proterva impenitencia eftava lem ceíTar aíTligindo a egreja com lafti- maveis turbações e ameaçando convellir e derrotar o catho- licifmo. Se defde c]ue em Portugal fe fizera conhecido o breve Animaritm faliiti, dizia Sebaftião de Carvalho n'um es- cripto oíficial, fe não podia deixar de proceder pelas vias de fado a cohibir as façanhofas temeridades do minifterio ro- mano, e a caftigar os facrilegos infultos do geral dos jefuitas e do feu abominável fynedrio, muito mais fe faziam agora urgentes os enérgicos procedimentos depois que fe haviam aventurado os jefuitas e os curiaes a declarar por defunido do grémio catholico ao duque de Parma e a concitar á rebel-

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lião os feus eftados". Opinava Sebaftião de Carvalho que em todos os eftados catholicos, oífendidos pelo monitorio contra o infante de Hefpanha, duque de Parma, fe deveriam affixar Iblemnes e publicas annuUatorias das excommunhões vibra- das com tão grande iniquidade, expreíTamente áquelle prín- cipe, e tacitamente a quantos no orbe catholico exercitavam livremente os foros e regalias do império temporal. Deviam egualmente as potencias intereffadas no confiido defde logo exercer nas temporalidades pontifícias as juftas repre falias, permittidas por todos os direitos divinos e humanos, com as quaes podeíTem caftigar o atroz infulto^

A i5 de março de 1768 efcrevia Sebaftião de Carvalho a Ayres de e Mello, embaixador de Portugal em Madrid, para que pozeíTe na preiença do rei catholico os perigos imminentes e agora mais cjue nunca temerofos, que eftavam ameaçando as nações catholicas da Europa meridional. Or- denava-lhe que exprimiffe a Carlos III a parte que o rei de Portugal tomava finceramente no ultraje dirigido pela cúria ao infante duque de Parma e a toda a familia de Bourbon. Significava-lhe ao mefmo tempo n'ac]uelle pompofo e figura- do eftylo, que refpira ao mefmo paffo a majeftade e denun- cia as influencias feifcentiftas, que fizeíTe conftar ao rei de Hefpanha a confiante firmeza, em que fe achava de con- correr com quanto foíTe poffivel para que de uma vez foffem cortadas as cabeças da disforme hydra, que eftava derraman- do tantos venenos infernaes na mefma corte, cabeça da egre- ja, e nas de toda a Europa catholica romana \

1 Analyfe do cedulão expedido em Roma... para fulminar as ceníuras n'elle contidas contra o duque de Parma, etc. Collecção dos negócios de Roma, parte 11, pag. 296.

2 Ibid., pag. 298.

3 Carta inftrucliva do conde de Oeiras a Ayres de e Mello. Collecção dos negócios de Roma, parte 11, pag. 3o i.

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Numa carta lecretiíTima a Ayres de e Mello ponderava o inflexível adverlario dos jefuitas fer chegada a mais pró- pria conjuncção de que as potencias otfendidas pelo papa inftaíTem com ^■ehemcncia pela extinção da Companhia, pela dura punição do feu geral e dos feus confelheiros e fautores. E n'uma nota que devia expedir o embaixador de Portugal ao marquez Grimaldi, primeiro miniftro de Carlos III, e cuja minuta ia exarada, ha^■eriam de reitcrar-fe as feitas foUi- citações para que os foberanos colligados exigilTem, como único remédio aos males prefentes. a prompta abolição da funefta fociedade'.

Não dava tréguas Sebaítião de Carvalho á fua enérgica diligencia em eftimular os brios e o vigor do rei catholico e do minirtro napolitano, que tinha então o logar preeminente em feus confelhos. Mas nem Carlos III, a defpeito do feu profundo refentimento contra o papa, nem Grimaldi, apefar de concitado pelos mais ardentes regaliítas, e entre elles o celebrado Campomanes, pareciam áquella fafão determina- dos a ver na extincção total da ordem turbulenta a única baftante reparação ás oíTenfas recebidas pela coroa e ás tur- bações graviíTimas da egreja. Apefar de aggravado na honra da familia. e nas preeminências da regia poteftade, ardendo em defejos de redarguir com alguma eftrondofa reprefalia á audácia dos curiaes, não chegara a comprehender inteira- mente como a confervação dos jefuitas tornaria infeguras, precárias, enganofas todas as demais fatisfações, que lhe po- deífe dar o Vaticano.

Repugnava a principio Carlos III á total abolição da Companhia, por lhe parecer que depois de a expulfar de

I Cana lecretiíTima a Ayres de e Mello, de i5 de março de 176S. Col- lecção dos negócios de Roma, parte 11, pag. 3o2.

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feus eftados, como turbadora manifeíta da paz publica, níío convinha dar aos livres penfadores e aos philofophos um triumpho tão completo como a inteira luppreffão da focieda- de em todo o orbe catholico. O fanatifmo torvo do monarcha e a zelofa defenfão das luas regalias celebravam uma mo- derada tranlacção, e julgavam-fe egualmente fatisfeitos com expullar do território das Hefpanhas os jefuitas das provin- cias helpanholas'.

Acrefcia a eíta frieza no ponto capital da queítão religiofa que trazia agitada a opinião e convulfos os governos, o ciúme delpertado pela idéa de que Portugal, reprelentado pelo íeu grande eftadifta, foíTe parte na pendência, que os foberanos da cafa de Bourbon reputavam como própria e exclullva de qualquer extranha intervenção. Accedendo na apparencia ás inftancias de Carvalho, convinha o gabinete de Madrid, em que o rei de Portugal fe unilTe aos três monarchas da cala de Bourbon em tudo o que le houveíTe de reprelentar a Cle- mente XIII, a propolito do famolb monitorio contra o infante duque de Parma. Aconfelhava porém que em vifta de não ter Portugal miniftro em Roma, delegalTe nos agentes diplo- máticos de França, de Nápoles, de Helpanha a faculdade de pedirem ao papa latisfação por parte do monarcha portu- guez-.

Para folver a objecção de que, na prelença de um longo rompimento com o pontifice, Portugal não tinha em Roma miniftro acreditado, ordenou Sebaftião de Carvalho que fem fazer detença na partida fe embarcaíTe para Itália o antigo enviado portuguez, que em Lifboa refidia áquelle tempo. As

> Saint-Prieft, Hijloire de la chute des jé/uiles au x\m fii^cle. Paris, 1846, pag. 70.

2 Carta de Sehaltião de Carvalho a Ayres de e Mello, de 9 de abril de 17G8. Collecçáo dns negócios de Roma, parte 11, pag. 3o3.

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inftrucções expedidas a i6 de abril de 1768 ordenavam ao antigo negociador que em um navio dinamarquez então furto no Tejo, fe dirigilTe a Génova e d'ali procedeíTe a Pifa e a Siena. D'ali fe lhe mandava que efcrevelTe aos miniftros das três cortes bourbonicas junto do papa, annunciando-lhes o fer chegado e eftar difpofto a ir a Roma, quando elles o houveífem de avifar de fer opportuna ali a fua entrada. Em dois pontos eífenciaes eram terminantes e formaes as inftruc- ções. Em primeiro logar o enviado portuguez deveria, pelo feu hábil e cautelofo procedimento, tirar a occafião ao menor equivoco fobre qual era a natureza efpecial da fua miífão. A fufpenfão das relações entre a cúria e Portugal permane- cia fem nenhum temperamento ou retradação. O enviado portuguez devia em todas as fuás palavras e acções confirmar que o rei de Portugal «nem um ponto cedia da quebra jufta e neceífaria, em que fe achava com os curiaes de Roma, que tinham bloqueado e feito inacceíTivel o paftor univerfal». Em fegundo logar deveria Francifco de Almada accingir-fe tenazmente ao poftulado de que o pontifice era inteiramente irrefponfavel nos ados, que firmava com feu nome, cobria com a fua audoridade e roborava com o annel do pefcador. Inventava Sebaftião de Carvalho, por que ficaífe immune e reverenciada a peífoa do fummo facerdote, a ficção metaphy- fica dos modernos cafuiftas conftitucionaes. Todas as calami- dades produzidas pela obfiinação pontifical tinham por an- dores exclufivos os jefuitas e os iclantes, e fobre as fuás cabeças deveria cair a execração pelos feitos voluntários do pontifice. O rei teftemunhava que nunca havia quebrado, nem jamais quebraria com a peífoa de Clemente III, cabeça vifivel da egreja, antes lhe profeífava (eram termos textuaes das inftmcções) filial amor e veneração, e eftes fentimentos haveria de cultivar ardentemente, quando viífe o papa «res- tituído á fua plena liberdade para lhe adminiftrar juftiça e

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reparação ' . Prelcrevia-fe a Francifco de Almada que guar- dadas eílas refervas eíTenciaes, fe accordaíTe com os mi- niftros da cafa de Bourbon em tudo quanto foffe conducente á extincção da Companhia e á fatisfação pelo aggravo com- mettido contra o duque de Parma e de Placencia. Francifco de Almada faiu de Lifboa a 19 de abril de 1768, mas era fácil predizer que a fua miífão feria deluforia, emquanto Clemente XIII occupaífe a cadeira de S. Pedro, tendo a feus pés como confelheiro e como victima o famofo geral Lou- renço Ricci, e por detraz do efpaldar o gladio flammeante de Júlio II e a fombra terrível de Hildebrando. E de feito, o papa Clemente XIII nem era moralmente irrefponfavel pela defmefurada protecção outorgada aos jefuitas, nem era logicamente reprehenfivel pela fua indomável obftinação. Eítava profundamente convencido de que o fummo pontifi- cado ou era a fuprema dominação efpiritual e temporal, o ufo fimultaneo dos dois gládios, e a omnipotente magiftratura figurada no triregno pontificio, como elle havia fido nos tem- pos mais efcuros da edade media, ou era uma fombra mal diítinda, um vaniffimo fimulacro de uma realeza e de um poder. No efpirito obcecado, mas fincero, illudido, mas hon- rado de Clemente XIII, como no do noífo contemporâneo Pio IX, o papado, como limples império das confcicncias fem nenhuma poteftade temporal, era uma pura e fingular abs- tracção, que não podia corporificar-fe e fubfiftir. Segundo cfta doutrina radicada por largos feculos, Clemente XIII re- putava por fynonymos o papado e a egreja. Todos os que favoreceíTem as pretenfões pontificaes embora damnofas á chriftandade, eram bemvindos e amimados no Vaticano. Os jefuitas refpondiam cabalmente a efta preciofa con-

1 Inftrucção para Francifco de Almada e Mendoça palTíir á Itália. Coltec- çáo dos negócios da Roma, parto iii, pag. 3o.

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dição. Eram como que a velha guarda pontifícia, os mais fieis e devotados defenfores da monarchia univerlal do pon- tífice romano. No meio dos embates e das tormentas que agitavam o papado na legunda metade do feculo xviii a Roma pontifical, á femelhança da Roma imperatoria na de- clinação do leu poder, fe via ao mefino paíTo ameaçada ou invadida pela immenfa exteníão das luas fronteiras. Alçava- fe diante d'ella um poder novo mais temível que a reforma, e reptavam-n"a outros efpi ritos mais audazes que Luthero, Melanchton, Calvino, Zwingle, Beza, ou James Knox. Era a philofophia reprefentada em Voltaire, em d'Alemhert e na turba innovadora da Eucyclopedia. Do outro lado arremettiam contra Roma as egrejas diílidentes, que não celTavam de apodal-a com o terrivel cognomento de moderna e mais cor- rupta Babylonia. E onde os efpiritos fortes ou philoíbphos, e os proteftantes das diverfas confiffões deixavam defguarne- cida a extenla linha de batalha, appareciam amcudando as luas vigorofas arremettidas os cifmontanos radicaes e os intranfigentes regalifias. N'efta laftimofa conjunítura, o prin- cipio da crife porventura a mais tremenda, que tenha pade- cido o pontificado, licenciar ou dilTolver a milicia mais fiel, mais difciplinada, mais provecta nas campanhas eípirituaes, e mais obediente aos arbítrios do papado, feria como fe Na- poleão, depois da fruftranca expedição á RuíTia, fangrado em batalhas defaftrofas, e trahido pelos feus mais perfeveran- tes alliados, tiveíTe abfolto do facramento militar e difperfa- do pelos campos n"uma opprobriofa retirada a velha guarda, aqucUes veteranos, para quem luzira, como o prenuncio de viftoria, o foi radiofo de Aufierlitz. Clemente XIII em obfe- quio á paz da egreja, e como fucceífor efpiritual e evangélico do príncipe dos apoftolos, devia cortar pela raiz a velha ar- vore, cuja fombra, como a de funefta mançanilha, efterilifava e refequia a evangélica feara. Mas como fucceíTor dos pa_

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pas invalbres e terrenaes, era exculavel le em favor não da egreja, mas da diftadura pontifícia, cerrava em volta do feu throno vacillante as hoftes dos jefuitas, a quem melhor que o nome ambiciolb de focios de Jcfus, vinha de molde o titulo verdadeiro de alabardeiros efpirituaes do fanto padre. A Companhia era a columna robuftiflima, em que fe firmava o pontificado, como dominação mundana e temporal. Podia o papa, como Sanfão, abraçando-fe com ella e convellindo-a n'um Ímpeto irrelMivel, fazer que n'um ápice caiffe derrocado o edificio. Alas o papado ficaria envolvido nos efcombros e os philifteus laíriam immunes de todo o perigo para cantar o profano Io triumphc da ^•icloria.

Clemente XIII preferia pois á paz da egreja o confundir os feus deftinos com a fortuna da Companhia, e negava-fe pertinazmente á minima condefcendencia n'efte ponto com as cortes empenhadas na inteira abolição. Com a vifão cla- riffima e penetrante, com que Sebafiião de Carvalho calcu- lava pelo exacto conhecimento das circumflancias e dos ho- mens a fequencia neceííaria dos fucceíTos, prophetifava o eítadirta que íeria impoíTivel o arrancar a Clemente XIII o breve da extincção. No leu conceito, não era a peíToal predi- lecção d'efi:e pontífice pela vetufta Companhia, nem o influxo irrefiftivel exercido no feu' animo pelo facciofo cardeal Secre- tario de eifado, a caufa principal de que os jeluhas perleve- raíTem triumphantes, zombando das potencias, com quem andavam em accefa contenlao. A tenaz confervação dos je- fuitas enlaçava-fe a um fyítema, que era o móbil principal em todas as acções da cúria romana, porque mantendo a Companhia fuftentava os feus próprios e chimericos direitos a dominar a temporalidade dos foberanos'.

' Minuta do que pareceu ao conde de Oeiras que fe podia efcrever a Fran- cilco de Almada. Collecçdn dos negócios de Ronm, parte iii, pag. 33 c 3^.

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Depois que todos os esforços das três cortes da caía de Bourbon fe haviam eftrellado infrucluolbs contra a impalTi- vel refiftencia do pontifice, quando as tropas francezas e na- politanas, occupando varias terras dos eftados da egreja, não tinham determinado no animo de Clemente XIII a relblução de revogar o aflrontofo breve contra Parma, relblveram os monarchas aíTediar mais rijamente o Vaticano, não, como propozera ao duque de Choileul o embaixador francez em Roma, d'Aubeterre, bloqueando e rendendo pela fome a ci- dade eterna e promovendo n'ella a inlurreição', mas dilpa- rando Ibbre o decrépito pontiíice um golpe mais certeiro e inopinado. Recufava deferir ás inflancias de revogar o moni- torio, quando as bayonetas lhe intimavam a delaífronta dos dois filhos mais dileítos da egreja. Pois agora ou o papa aboliria de uma vez a Companhia, ou as confequencias do leu erro lentir-fe-iam repercutidas em tremendas calamidades por todo o catholicifmo. O rei de Hefpanha tinha diíTipado no leu animo os últimos eícrupulos. A averlão entranhavel do elíadifta portuguez a todos os jefuitas, como funeíta e criminofa corporação, tinha paílado inteira, ou porventura ainda exaggerada ao coração de Carlos III. Choileul, que defde o principio da queftão le moftrára adveríb á Compa- nhia, mas adverfo iem paixão e lem rancor, ia agora arras- tado na corrente, a que dava o impuUb principal o Ibbera- no das Helpanhas. A 10 de dezembro de 1768 o embaixador de França e o miniftro plenipotenciário helpanhol aprefenta- vam ao pontifice uma categórica memoria, em que exigiam a immediata fuppreífão. Tinha chegado para Clemente XIII o momento das mais cruéis angufiias. Delenlaçava-fe a tra- gedia, em que, á íemelhança das antigas, a fatalidade enca- minhava cegamente a acção e o desfecho. O pontifice, que-

Siiint-Príclt, Hijioirc de la chute des jé/uites ati wui Jiècle, pag. 76 e 77.

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brantado pelos annos c; cumulado de diílabores, não pôde fobreviver por muitos dias á terrível eítreiteza a que o tinha chegado a fortuna. A 2 de fevereiro de 1 769 vagava a cadeira pontifícia no momento em que era mais grave e em- baraçofa a fítuação da Santa e das potencias contra ella colligadas. Cumpria-fe o vaticínio, com que Sebaftião de Carvalho havia fempre defelperado de que Ibh o pontifica- do agora concluído vieíTe a reftaurar-fe a paz da egreja, com a final extincção de Companhia. Por uma carta participou o facro coUegio a el-rei D. Jofé o eítar vacante o lummo lacer- docio, e apreílbu-fe o monarcha a reíponder-lhe a i de mar- ço de 1769, manifeftando fentimento pela perda do pontífice e fignificando ao mefmo paíTo em termos claros quanto era neceíTario que o conclave, infpirando-fe no bem commum da chriftandade, elegeíTe um papa tão fanto e previdente, que pozeffe termo ás funeftas perturbações que agitavam a egreja, e foíTe exemplo e edificação á grei de Chrifto'.

Eftes votos não refpondiam cabalmente ás duvidas, que preoccupavam o eftadifta portuguez fobre o acerto da eleição no conclave, que ia em breve cclebrar-fe. Sabia Sebaftião de Carvalho que os jefi.iitas não repoufavam um momento para imporem aos purpurados eleitores um papa da fi.ia fei- ção. Tinha para elles chegado juftamente o critico momento, de que eftava pendente o termo ou a confervação da Com- panhia. Egualmente conhecia que eram os cardeaes na flia grande maioria zelofos parciaes da politica feguida pelo papa antecedente, e como taes ardentes defenfores dos jelliitas. Parecia-lhe que os negócios da chriftandade agora na vacante do papado aprefentavam mais funefto cariz do que nas lon- gas e ruidofas conteftações com o ultimo pontífice. Appa-

Carta de el-rei D. Jofé ao facro coUegio, do i." de março de ijOo. C.nllcc- ção dos negócios de Roma, parte ni, pag. 44.

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rccia-lhc imminente e como forçofo conledtario da prepon- derância jelliitica no cullegio cardinalício, a eleição de um papa addicto e ^■inculado fervilmente á facção dos jefuitas e {dantes, de iim llimmo facerdote efcondendo incautamente fob as vertes pontifícias a roupeta efcura da Companhia.

Segundo o juizo de Carvalho, nada podia elperar-fe do conclave, que foíTe conducente á paz da egreja e ao defag- gravo dos monarchas otfendidos. Ao leu animo revolucioná- rio fomente fe afigurava um único remédio contra os influxos perniciofos, que haviam forçofamente de avaflallar os car- deaes. Era a acção prompta, enérgica, refoluta, com que as potencias catholicas, empenhadas principalmente na conten- da, deviam intimar ao lacro coUegio a lua inabalável refolução de não acceitarem como chefe da egreja um pontifice pro- penfo á Companhia. O plano de Carvalho era em verda- de o que parecia mais conforme á Ília irrequieta impaciên- cia e á trifte reputação, em que tinha a fenfatez dos cardeaes. Em primeiro logar, no conceito do miniftro, era urgente que a eleição não recaiíTe em homem condecorado com a pur- pura cardinalicia, antes fe elegcíTe por ^^igario de Chrifto um prelado extranho ao facro collegio, porque não prohibiam os cânones que fe bufcaífe a peífoa mais digna e imparcial, qualquer que foífe o grau, em que eftiveíTe na hierarchia. com a expreífa exclufão dos cardeaes fe poderia evitar que fubiífe á cadeira de S. Pedro um jefuita. A efta perem- ptória intimação devia accrefcentar-fe que o novo papa antes de ler declarada a eleição, folemnemente fe obrigaífe á total extincção da Companhia. Aconfelhava também Sebaftião de Carvalho que para fazer vigorofa e irrefiftiAel a formal inti- mação era conveniente que marchaífem contra os Eftados pon- tifícios as tropas, que foífe então polfivel empregar. N'eftes oufados expedientes, que fariam fair o novo papa de uma Lirna cercada de bayonetas. cifra\a o mlnilfro portuguez a es-

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perança única de que o novo conclave não daria a vicloria aos jelliitas'. N'efte lentido fe expediram inftrucções a Fran- cifco de Almada-, que em Veneza aguardava agora o enle- jo de traíladar-fe á corte pontifícia. Na meíma data le es- crevia aos reprelentantes de Portugal em Madrid e em Paris, participando-lhes o que a Francifco de Almada le ordenara, recommendando-lhes que do plano contido nas inftrucções deffem pleno conhecimento ao governo do rei catholico e ao duque de Choifeul. O antigo enviado portuguez deveria confer-s-ar-fe em Veneza ate que os governos de França e Hes- panha hou^eílem aíTentado em fazer ao conclave a perem- ptória intimação, ou que os reprefentantes d'aquellas duas nações em Roma lhe avifalTem ler chegada a occafião de com elles cooperar nas diligencias e empenhos de uma elei- ção propicia aos Bourbons e a Portugal'.

Quando o plenipotenciário portuguez tiveffe fa^•orave! conjuncção para ir a Roma, deveria fazer-fe acreditar perante o facro coUegio pela credencial, que lhe foi logo expedida.

Os defejos impacientes de Sebaftião de Carvalho não achavam infelizmente nos governos de França e da Hefpa- nha acolhimento proporcionado ás efperanças concebidas. Carlos III c Grimaldi, o leu miniftro. não correfpondiam com demallada cordialidade ás confidencias e ás propoftas do eftadifta portuguez. O rei de Hefpanha, apefar dos bons officios de fua irman, a rainha de Portugal, guardava a re- ferva mais ciofa a refpeito dos negócios graviíllmos de Roma. Pungia-o certamente a reludancia de Carvalho a formar com

' Carta de Sebaíliáo de Carvalho ao fecretario de eftado D. I.uiz da Cunha, de 27 de fevereiro de 1769. CoUecçáo dos negócios de Roma, parte iii, pag. 35.

= Inílrucção fecretiflima expedida a Francifco de Almada em i de março de 1769. CoUecçáo dos negócios de Roma, parte iii, pag. 38.

3 Carta de Sebaftião de Carvalho a Francifco de Almada, 1." de março de 1769. CoUecçáo dos negócios de Roma, parte iii, pag. 43.

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as cortes de Bourbon a ertreitiílima alliança, a que deíde muito o convidavam, e a cuja denegação fora de^•ida a injulia yuerra de 1762. Ao lyftematico filencio, em que le entrin- cheirava o gabinete de Madrid, recatando e efcondendo a Portugal o que era concernente á eleição do novo papa e ã prompta abolição da Companhia, oppunha Sebaftião de Carvalho o defdem com que ligniíicaAa ao rei de Heípanha que feria Portugal em todo o catholicilmo a potencia menos otfendida. le do conclave faiíTe finalmente um jeluita coroado com a tiara. «Se a eleição, elcrevia o eftadifta, foíTe recebida pelas outras potencias, renderia Portugal ao novo papa a devida veneração, mas continuaria a manter illefos os direitos da independência temporal, porque n'efte paiz era enraiza- da nas opiniões e nos coíkimes a repugnância á minima in- \aíao ecclefialíica nos foros e franquezas da majeftade fecu- lar%.

Os projedos audazes do eftadifta portuguez achavam mais bem difpofto a applaudil-os, porém não a conformar- fe com elles totalmente, o mundano e fceptico Choifeul. Efte miniftro de Luiz XV, mixto fingular de cortezão, de es- tadiífa e de philofopho, não participava certamente da im- placa\'el avcrfão, que o fcu contemporâneo portuguez votava lem piedade á Companhia. Não odiava os filhos de Loyola, mas via na confervação da ordem infamada pelas fentenças dos parlamentos e expulfa de toda a França pelo ediíto de Luiz XV, um tronco ainda robufto, que era precifo decepar a bem da paz no orbe catholico. A fecularifação dos jefi.iitas ha\ ia-a elle proclamado como fendo ao mefmo paffo o termo ás turbações religiofas dos eftados e ás privações e amargu- ras de tantos mil religiofos, cumprindo no defamparo e na

' Carta do conde de Oeiras a Ayres de e Mello, de 4 de março de 1 769. (^nllecçdo dos negócios de Ruma, parte iii, pag. 45.

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miferia do exilio a fentença cruel, mas neccíTaria da fua confummada profcripção". Parecia-lhe geometricamente de- monftrado que a diíTolução da Companhia redundava em bem da religião, em proveito da Santa Sede, em beneficio das potencias catholicas e em vantagem dos próprios jefui- tas'.

nos annos derradeiros de Clemente XIII e ainda an- tes dos eítrondofos epifodios occaílonados pelo famofo mo- nitorio contra o duque de Parma, Choifeul manifeftára com infiftencia eftas fuás opiniões, e revelara a intenção de fe- guir em relação ao Vaticano a politica de Carlos III, e aju- dar activamente o monarcha das Hefpanhas nos feus esforços para abolir a funeíta Companhia ^ O efpirito porém do mi- niflro de Luiz XV enfombrava-fe em duvidas eguaes ás do feu vidente collega de Lifboa, quanto á docilidade fácil do pontífice em acceder ás inftancias mais urgentes, ainda mes- mo roboradas pela forçai

E provável que Choifeul, julgando mais faftidiofa e im- portuna do que urgente a diuturna queftão dos jefuitas, fe deixara adormecer nos ócios elegantes de Verfailles, fe não

' «Je vous ai déjá parle, monfieur, plufieurs fois de la fécularifation dts jéfuites, et je crois que je vous ai démontré combien cette opération ferait avantajeufe à la cour de Rome, qui par fe raccommoderait de plus avec le Portugal fous la médiation du roi et du roi d'Efpagne; combien elle ferait agréable aux fouverains qui ont exclus cette fociété de leurs états; enfin de qucUe utilité elle ferait pour les individus jéfuites.» Officio do duque de Choi- feul ao marquez d'Aubeterre, embaixador francez em Roma, i." de junho de 1767, em Saint-Prieíl, Hiftoire de la chute des jéfuites, Appendice, pag. 280.

- «En vérité il me parait démontré géométriquement que la diffolution de la fociété eft le bien de la religion, celui du Saint-Siége, celui des puiíTances catholiques, et celui des particuliers, qui ont été et font jéfuites.» Oflicio de Choifeul a d'Aubeterre em Saint-Prieíl, Hiftoire de la chute des jéfuites, Appen- dice, pag. 27.

3 Officio citado de Choifeul a J'Auheterre do i.» de junho de 1767.

4 Officio de Choifeul a d'Aubeterre, de 27 de maio de i7<)7, em Saint- Prieít, Hifloire de la chute des jéfuites, Appendice, pag. 27S.

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fora a conveniência de obtemperar aos ardentes deíejos de Carlos Iir. Era neceíTario conferir ao rei de Hefpanha a he- gemonia nos aíTumptos religiofos para que aproveitando a íntima alliança firmada entre os Bourbons pelo Pado defami- lia, o tiveíTe a França nos feus intereíTes politicos por fâmulo e fervidor. Não é pois para extranhar que o duque de Choifeul, convindo com o fecretario de eftado portuguez nos perigos de um conclave propicio aos jefuitas, acolheíTe com frieza o proje- cfo original e arrogante, que Sebaífião de Carvalho fizera pôr na fua prefença pelo embaixador de Portugal na corte de Ver- failles. Concordava o miniítro de Luiz XV em ferem laftima- veis e perigofas as intrigas e as paixões, que no conclave fe mo- viam infrenes e mundanas em íãxov dos jefuitas. Conformava com Sebaftião de Carvalho na urgência das vehementes infti- gações, para que fe elegeíTe um novo papa, que podeíTe abo- lir a Companhia. Admittia por neceíTaria a intima colligação da França, da Hefpanha, de Nápoles, de Parma e Portugal. Mas conllderava inexequível a traça propofta pelo eftadifta portuguez de excluir os cardeaes de ferem candidatos ao pa- pado. Em vez das ícveras intimações e da violenta coacção a um conclave cercado de bayonetas julgava baftante o ad- vertir aos cardeaes que fe o novo papa não lupprimiíTe a Companhia, fe arrifcava a não ler reconhecido pelas potencias empenhadas na fua immediata abolição. Na própria occa- fião, em que o duque de Choifeul manifeftava ao embaixa- dor de Portugal eftes fentimentos acerca da quelfão pen- dente em Roma, deixava tranfparecer o leu defpeito de que

' '.Concluiu (Choifeul) que le me não lalhiva mais a miudo n'eíle negocio, é porque, íuppolto foífe grande, era d'aquelles que o occupavam menos, tendo outros de maior entidade não no interior do reino, mas em toda a Europa.» Officio de D. Vicente de SouCa Coutinho, embaixador portuguez em França para o conde de Oeiras, de 23 de março de 1769. CoUecçán dos nefandos de Ro- ma, parte m, pag. 48.

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Portugal defattendeíTe e defdenhaíTe a politica alliança dos Bourbons'.

Firmando-fe no defejo manifcftado pelas cortes de Ma- drid e de Paris, de que o plenipotenciário portuguez defde logo fe traíladaffe á metrópole da chriftandade, a fim de cooperar activamente com os demais agentes diplomáticos, ordenou Sebaftião de Car^'alho que o Almada fem delonga partiíTe de Veneza para Roma. Enviou-lhe as inftrucções, por que devia governar-fe, unindo-fe em concerto efficaz c inceflante com os reprefentantes dos Bourbons, não fomente no que foíTe attinente á eleição, mas principalmente á lecu- larifação dos jefuitas, problema, que no conceito do eftadilia deixava na Ibmbra as demais pendências com o Vaticano. Ordenava-fe egualmente ao enviado portuguez que fegun- do as expreíTas declarações do duque de Choilcul, deveria o Almada advertir os cardeaes de que fe o papa eleito nova- mente fe oppozeífe á extincção da Companhia, ficaria pofto a perigo de não fer reconhecido como chefe legitimo dos catholicos. Infurgia-fe o audaz contradidor do illimitado im- pério dos pontífices contra a forma da eleição, que não tinha, fegundo elle, nem raizes em todo o Novo Teftamento, nem fundamentos na tradição, nem auítoridade na auítera difci- plina da egreja primitiva. A eleição etfeituada no conclave deveria cifrar, em leu parecer, apenas uma propofta, que o coUegio cardinalício aprefentava ao grémio dos fieis, e que fomente fe tornava decifiva, quando recebia da egreja uni- verfal a tacita approvação-.

Tão oufadas, ainda que não defconformes ás praticas fe-

Ofticio citado do embaixador portuguez em França, D. Vicente de Sou- la Coutinho ao conde de Oeiras. Collecção dos negócios de Rorna, parte iii, pag. 48 e fegg.

- Inftrucção expedida pelo conde de Oeiras a Francilco de Almada, em 8 de abril de iTtiQ. Collecção dos negócios de Roma, parte iii, pag. 54 e fegg.

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guidas nos tempos apoltolicos, eram as doutrinas radicaes de Sebaftião de Carvalho em tudo o que tocava á disciplina ecclefiaftica e ás relações do poder temporal com o fupremo pontificado. Efcrevia ademais o intraíiavel regalifta ao leu plenipotenciário que fe foílem illudidas as efperanças, que os governos catholicos haviam porto nas advertências termi- nantes ao conclave, e podeíTe mais com os imprudentes car- deaes o oiro e a obleíTão da Companhia, não haveria obriga- ção de reconhecer um papa jeíuita comprado com o próprio dinheiro das nações, que mais lhe contradiziam a eleição'. Emquanto Sebaftião de Carvalho vivia preoccupado com a votação futura do pontífice, e defcontente das cavillo- fas dilações de Choifeul e de Grimaldi, e predizia como pro- vável a aíTumpção de um jefi.nta á cadeira de S. Pedro, e a funefta continuação das turbações no orbe catholico, pro- feguia o conclave as luas operações e efcrutinios no meio dos mundanos enredos e paixões, que raras vezes deixam de preceder a efcolha do pontifice. E na verdade cm ne- nhuma aíTembléa politica, a mais profana e dividida por difcordias e facções, fe paíTam habitualmente fcenas mais laftimofas e mais denunciadoras do que podem no animo dos homens os intereíTes, as ambições, os ódios, os affedos, as emulações, os proveitos egoiftas, a própria venalidade e corrupção. Parece que entre o pontifice, que le efconde no lepulchro e o que faz a lua primeira marcha triumphal na fella geftatoria, ha um parenthele de anarchia moral e de in- frene dominação para quanto ha de mais carnal e mais re- moto das fantas c evangélicas afpirações. Ahi le repre- lentada a diílimulação e a intriga, o intereffe luctando com o dever, a corrupção Ibbrepondo-fe á juftiça, a ambição afo- gando as relíquias derradeiras das virtudes evangélicas. Ali

Inlirucção citada a Francifco de .Almada, pag. 56.

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os embaixadores e os miniftros das cortes catholicas corren- do a uma e outra parte, bufcando adivinhar os concertos de cada parceria no conclave, ora cortejando, ora ameaçan- do os eleitores, e procurando inclinal-os pela adulação ou pela efperança de largos favores e diftincções. Ali os car- deaes repartidos em corrilhos, enganando-fe uns aos outros, efcondendo em romanos artifícios as lecretas intenções, e forcejando por defcobrir e desfazer os planos dos contrários. Parece que a pomba íymbolica, figura do Paracleto, invoca- da a infpirar com luz divina as decifôes foberanas do con- clave, não le dignaria de voejar n'aquella profana e munda- nal atmofphera.

Não cabe nos limites d'efta noíTa obra o feguir em todas as fuás particularidades a hiftoria do conclave. Somos obri- gados a preterir a agitação, o terror, as efperanças, as roga- tivas e os meneios dos jefuitas, que fitando os olhos no Vaticano, aguardavam dos fuífragios cardinalícios o feu trium- pho ou a ília perdição. Deixemos enleiarem-fe e defatarem- íe os enredos, os pactos e os conluios das facç<5es, que tumultuam no apparente retiro e no afcetico filencio das cellas no conclave. Felizmente para as potencias intereíTadas e para a paz do catholicilmo, a aíTembléa não prolongou por féis mezes os feus trabalhos, como na eleição de Lam- bertini, que fubira ao pontificado com o nome de Benedifto XIV. A 19 de maio de 1 769 os cardeaes conferiam por unanimidade a tiara pontifícia ao francifcano clauftral Lou- renço Ganganelli, que afcendia ao folio de S. Pedro cha- mando-fe Clemente XIV. Não era efte certamente o que Choifeul defejava a principio ver eleito, fenão o cardeal Stop- pani, que lhe parecia mais propicio ás pretenfões da familia de Bourbon.

Não podia o novo papa ver fem grande lafíima que Por- tugal vivcífe como que feparado da de Roma por um rom-

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pimento de annos dilatados. Poucos mezes depois da lua afcenfão á fuprema cadeira, tomou por interceíTor e media- neiro na conciliação de Portugal com o Vaticano ao primeiro miniftro de D. Jofé.

então fe achava em Roma o plenipotenciário portu- guez Francifco de Almada, que a 1 8 de agofto de 1 769 fora pelo papa em primeira audiência recebido com as mais aífectuofas demonftrações de quem tanto fe alegrava com as efperanças de vincular de novo á Santa o rei de Portugal e os feus vaíTallos. Era agora chegada a conjuncção de ten- tar o caminho mais feguro a uma reconciliação fincera e amigável. Sabia o papa que todo o êxito pendia do favor e arhitrio de Carvalho.

Efcreveu-lhe a 28 de agoífo de 176c) um breve em lín- gua italiana, no qual o amimava com lilbnj eiras expreíTões, e lhe promettia, ainda que em termos nebulofos, íatisfação aos feus defejos mais ardentes, quando para iífo fe talhaífe a occafião'. Da negociação iniciada aíTmi pelo pontífice veiu brevemente a refultar que as duas cortes até ali diíTidentes e hoftis, vieram a congraçar-fe, acceitando Sebaítião de Carva- lho o núncio Conti, que o pontífice lhe propozera. Não era porém exempta de condições cila cordial pacificação. Toda a boa harmonia e concordância entre Portugal e o Vaticano feria apenas ephemera e apparente, emquanto fubfiftiífe um jefuita, amoftrando na roupeta que era viva e pertinaz a fua ordem. Na refpoífa de Carvalho ao breve de Clemente XIV apparecia irrevogável o propofito de confiderar a ex- tincção da Companhia como o feguro fiador da paz fincera c duradoura entre Portugal e a Santa Sé-. O papa, natural-

1 Breve de Clemente XIV ao conde de Oeiras, de 28 de agofto de 1769. CoUecçáo dns negócios de Roma, parte iii, pag. ói.

2 Carta do conde Oeiras para Clemente XIV. Oillccção dos negocias de Roma, parte iii, pag. 64 e 65.

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mente receolb do poder e influencia, que em Roma exerci- tavam os jefuitas, e mal feguro com o frouxo auxilio, que lhe preftavam os governos de França e da Heípanha, eftava perplexo e temerofo, ofcillando fempre entre o defejo de pro- ceder á abolição, e o terror que lhe infundia a audácia da Companhia. Sebaítião de Carvalho, coherente com os princi- pios de violenta leveridade, quando a força era o inífru- mento mais efficaz e mais poderoíb de uma prompta e ra- dical reformação, traçava um novo plano, fegundo o qual as tropas napolitanas, que então occupavam Benavento e Pontecorvo, deveriam guarnecer a metrópole chriflan, e re- primir as defordens promovidas pelos exacerbados jefuitas quando o papa decretaffe a abolição'.

N'efi:a efperança de que vieíTe finalmente a fer extinífa a fociedade, continuou a boa e leal correfpondencia entre Sebaftião de Carvalho e o leu novo amigo Lourenço Gan- ganelli. Trocavam-fe de um a outro, no frequente cartear, as mais gentis e aífeduofas exprelTões. Honrava o pontifica com o feu retrato o íecretario de eftado portuguez, e ren- dia-lhe n'um breve italiano as mais aífeflivas graças por fer elle o verdadeiro reftaurador da paz entre Portugal e a de Roma.

Expediu Clemente XIV a 1 2 de dezembro de 1 769, fe- gundo o ufo, uma encyclica aos prelados e decretou ao mes- mo tempo um jubileu univerfal. Aproveitou Sebaftião de Carvalho aquelle enfejo para demonftrar publicamente que nenhum diploma pontifício poderia correr em Portugal fem o régio beneplácito, que havia declarado obrigatório. Conce- deu-o fem detença ás lettras apoftolicas, e permittiu aos pre- lados que nas diocefes as publicaífem aos fieis.

' Relpoítii fccretiffima (do conde de Oeiras) á memoria confidencial de monfenhor Macedónio. Collecçáo dos negócios de Roma, parte iii, pag. 67.

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Era a encyclica notável por três circumftancias principaes, que não podiam elcapar á fina penetração do eftadifta. Es- forçava-fe o pontífice por aíTentar o feu primado de ordem e jurifdicção fobre a egreja univerfal e a lua fi.iperioridade fobre todos os demais bifpos da chrifi:andade, como fe quizeíTe d'efta maneira combater, fem comtudo as memorar, as dou- trinas então correntes entre muitos canoniftas e theologos, que pretendiam reduzir o pontificado ás limitadas proporções da egreja primitiva. Laftimava Clemente XIV as perniciofas opiniões, que vogavam n'aquelle tempo, defi:inadas a abalar ou dertruir as crenças religiofas, e concitava os pafi:ores da grei de Chrifi:o a empenharem todas as forças da fi.ia diligencia e audoridade a fim de repullar a oufadia e a infania das doutrinas adA-crfas á egreja. Alludia o papa vifi^•elmente em grande parte aos encyclopediftas e philofophos, e ás arrojadas concepções, com que o efpirito humano em uma das fi^ias pha- les mais famolas bufcava fi_ibmetter aos domínios da razão quanto lhe parecia andar remoto da fi.ia alçada. Tal era po- rém a fi-ilpicacia do miniftro portuguez, que não deixou de reparar nas palavras da encyclica. Não faltou quem as qui- zeíTe interpretar como reprehenforas e allufivas aos que pre- tendiam fubordinar inteiramente ao império o facerdocio, e talvez que em parte n'ellas fe efcondeíTe um remoque fugi- tivo aos mais ardentes regaliftas. Sebaftião de Carvalho apro- veitou a conjunclura para vibrar um novo golpe aos jefuitas, dando por demonftrado que as erróneas e nocivas opiniões, que o pontífice tanto lamentava, eram as que profeffava impenitente a Companhia. N'efl:e lentido as explicaram em luas pafl;oraes, por ordem do miniftro, o arcebifpo de Évora, e o patriarcha de Lifboa, cujo báculo paftoral, tal era a força e preftigio incontraftavel do poder civil n'aquelles tem- pos de vigor e energia, fomente fabia menear-fe para pafcer a grei chriftan, fegundo o infinuava a vontade irrefiftivel do

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poderofo didador'. Quando a cúria eftava ainda mal fegura da benevolência e fujeição dos monarchas havia pouco hos- tis á Santa Sede, julgava útil o aftuciofo Ganganelli lifonjear na encyclica as majeftades temporaes, exalçando até ás nuvens a excellencia, a primazia, o carader divino, fagrado, inviolá- vel dos príncipes foberanos, c tecendo em phrafes hyperbo- licas o elogio da realeza abfoluta na quadra, em que fe acaítellavam contra ella no horizonte as borrafcas da immi- nente Revolução.

Nos principios de 1770 chegava a Lifboa o novo núncio, Innocencio Conti, arcebiípo deTyro. Não foi porém admitti- do a exercer as fuás funcções fenão depois de lhe haverem fido intimados os limites, em que haveria de ufar das facul- dades concedidas nas bulias da fua commiífáo. Devia o núncio, fegundo lhe era notificado, abfter-fe de tudo que foífe novidade ou fe tivcíTe abufivamente introduzido em prejuízo e perturbação da fociedade civil. A 23 de agofto o rei annun- ciava por um decreto expedido ao defembargo do paço que eftava aberta a correfpondencia com a corte de Roma. Ao mefmo tempo enviava Sebaftião de Carvalho uma carta circu- lar a todos os prelados dioccfanos, declarando-lhes que fe- gundo a lei- não podiam fer recebidos, nem ter execução em Portugal os breves, as bulias e os refcriptos do pontífice fem que houveífe precedido o régio beneplácito.

Se o primeiro miniftro de D. Jofé com efta confummada reconciliação fe julgava propinquo ao feu triumpho, não foi menos celebrada na capital do orbe catholico a paz efpiritual, que trazia de novo o rei fideliífimo á communicação com a Santa Sede. N'uma allocucão aos cardeaes no confiftorio fe-

I Paftoral do arcebiípo de Évora, de 24 de fevereiro de 1770. Collecçáo dos negócios de Roma, parte ni, pag. 81, c paftoral do patriarcha de Lifboa, ibid.

- Lei de 6 de maio de 176.^.

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creto, a 6 de agofto de 1770, Clemente XIV parecia trans- bordar em jubilo entranharei e em fervorofa gratidão ao rei de Portugal. As folemnidades religiofas e as profanas fes- tividades oftentaram em Roma por muitos dias o preço em que era tida a paz e a concórdia com o reino de Portugal.

Defde as primeiras rogativas de Clemente XIV para congraçar com o foberano portuguez a Santa Sede, otferecêra o novo papa conferir o capello cardinalicio á peíToa, que lhe foíle aprefentada pelo rei. Recaiu a eleição em Paulo de Carvalho, que na qualidade de inquifidor e commilTario da bulia da cruzada fora fempre nas queftões ecclefiafticas um fer^•orolb e leal cooperador de leu irmão. Foi promovido á facra purpura. Não chegou porém a gofar a preeminência, porque era fallecido, quando veiu a noticia official d'elta mercê, com que o pontífice quizera indireítamente gratificar os ferviços beneméritos do grande legiflador. No logar que ficara vago no collegio cardinalicio nomeou Clemente XIV ao arcebifpo de Évora, D. João de NoíTa Senhora da Porta, e com efta nova promoção egualmente lifonjeou a Sebaltião de Carv^alho, que no auge da gloria e do poder fempre tive- ra no prelado um tão fanático fatellite, quanto nos tempos adverfos o encontrou defabrido e ingrato defprezador.

Em outras mais importantes conceíTóes moítrou Clemente XIV a boa vontade, com que defejava agradecer os otiicios do eftadifta no reftabelecimento das relações amigáveis entre Portugal e o Vaticano. Foi uma das mais notáveis providen- cias confirmadas pelo pontífice, no breve Sacrofancliim apos- tolatiis de 4 de julho de 1770, a extincção de nove mofteiros pertencentes á opulenta congregação dos cónegos regrantes de Santo Agoftinho e a applicação das fuás rendas ao mos- teiro de Mafra, primitivamente detfinado aos frades arrabi- dos e concedido então aos cónegos regrantes. Não carecia de fundamento parficular efta determinação. Tinham aquelles

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religiofos incorrido no juíto delagrado do miniftro, como fe- ítarios e fautores enthufiaftas do fcifma dos Jacobeus. Con- fiderava Sebaítião de Carvalho que reftituindo á fua pri- meira vocação de inftruir a juventude a congregação, defde largos annos corrompida e relaxada, poderia o novo efpirito inllifflado n'aquella antiga ordem equivaler a uma falutar re- formação. Ninguém pode pôr em duvida que o miniftro illu- minado, que meditara longamente fobre as inftituições eccle- fiafticas e a fua eftreita relação com a íbciedade temporal, não confiava feguramente nas corporações monafticas e no clero regular como efficaz inftrumento de perfeição efpiritual e ainda menos de profana civilifação. Não odiava a par com os jeíuitas as famílias monachaes, mas vendo-as geral- mente defcaidas de feus primeiros inftitutos e tão mundanas e defconformes á evangélica pureza, não houvera fido com ellas mais clemente, fe lhe proporcionara o tempo a conjunc- çáo. Reduzir pois o numero das caías religiofas tão exube- rantes em Portugal, era um paíTo no caminho futuro e não diftante da fua inteira fecularifação.

Diverfil-as da efteril profiíTão da vida contemplativa e ociola para o ofiicio Ibcial de educadoras, fob a vigilância do eftado, era em certa maneira e para aquelle tempo mui outro do prefente, como que reconcilial-as com a íbciedade temporal e trazêl-as defde as alturas, onde nem lempre fe enlevavam nas celeftes beatitudes, a participar no movi- mento e no progreíTo do mundo terrenal. A importância de ver extinda c profcripta da chriftandade a Companhia, lhe fazia parecer inoffenlivas as outras ordens religiofas. E de feito, vencida a uhima campanha e marcados os jefuitas na fronte com o ferrete ignominofo pela mão fuppofta immaculada e infallivel do paftor univerfal, não feria difticil aos futu- ros eftadiftas diradicar de vez o monachifmo e deixar intei- ramente ao clero fecular o conforto e pafcigo das ovelhas.

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Não ertava ainda conclufa a grande empreza, que havia tantos annos occupára o penfamento e a acção do grande reformador. Faltava ainda o decreto da fuppreffão da Com- panhia.

A abolição dos jefuitas foi o principal empenho de Car- valho defde que viu o novo papa fubmetter-fe fupplice e lacrymofo á lua indifputada audoridade, e pedir-lhe anima- ção e adjutorio nos primeiros tempos do tormentolb ponti- ficado. Demafiado fe deveria de alongar o narrador, fe qui- zeíTe referir miudamente as intricadas e efcabrofas negocia- ções, que por parte de Portugal, de França e da Hefpanha levaram finalmente á extincção da Companhia. As melmas defconfianças, que a Sebaftião de Carvalho tinham inlpirado as duas principaes cortes de Bourbon e os feus agentes di- plomáticos em Roma, no pontificado antecedente e durante o conclave, perfiftiam ainda mais aggravadas porventura. Não punha o enérgico efiadifta as fuás efperanças na calcu- lada e inerte lentidão da França e da Hefpanha. Accufa- va-as de haverem com fua vontade e arrogância impe- dido que faiíTe dos fuflfragios um pontífice, o qual, efcudado pela força das potencias contra a rebeldia jefuitica, fe an- nunciaíTe ao orbe catholico, defde a varanda do Vaticano, levando na mão o breve fupprimindo a Companhia. Co- nhecia a malevolencia do cardeal de Bernis, que logo defde o principio do novo pontificado era embaixador francez em Roma, e continuava como negociador as melmas intrigas, com que fe havia aífignalado no conclave. Tinha Carva- lho no breve fecretiíTimo, que lhe efcrevêra Clemente XIV, a promeífa formal da abolição. Tinha em monfenhor Ma- cedónio, confidente do pontífice, um oíficiofo e efficaz me- dianeiro na fecreta correfpondencia, que fe trocava entre Sebaftião de Carvalho e Ganganelli acerca da fufpirada pro- videncia. Sabia que o papa eftimulava o enviado portuguez

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para que foíTe frequente nas luas vilitações ao Vaticano, onde o ardilofo Almada podia contraílar os meneios de Ber- nis e os enredos, que o faziam fufpeitar de propenfo á con- fervação da Companhia. Envidavam os jefuitas os últimos empenhos para defviar o golpe irreparável. Era poderofa em Roma a ibciedade. Tinha parciaes no lacro coUegio, na prelatura, em a nobreza, no mais inculto e rude das claffes populares. Divulgavam diariamente os jefuitas as novas mais abítrufas e as mais manifeífas falíidades com o intento de illudir e enliçar a opinião. Diziam que a ordem de Jefus não feria abolida, mas fomente reformada. O pontífice, em- bora certificaífe conítantemente a Francifco de Almada e a Sebaítião de Carvalho que não affrouxava no propofito da abolição, vacillava perpetuamente, avéxado por efcrupulos, falteado de terrores, ora temerolb do poder coloífal, que ainda fuppunha á Companhia, ora receiofo de que a plebe romana fe infurgiífe em defenfão da ordem revoltofa; agora temendo um fcifma provocado pelos amigos e fautores dos jefuitas, e logo dando pefo ás tremendas prophecias, com que aos jefuitas fe vaticinava próximo o efplendido trium- pho e o termo defaftrofo ao novo pontificado. Não repoufa- va o eftadirta portuguez em combater defde Lifboa as inlidias dos jefuitas, em increpar a tibieza das cortes de Bourbon, em alentar o pontífice defanimado. Rcduplicava as inítruc- ções ao enviado Francifco de Almada, que não defcanfava um momento na tarefa de defconcertar os esforços jefuiticos, e as pcrigofas aftucias de Bernis. As cortes de Bourbon faziam crer a Clemente XIV que a Portugal eífencialmente revertia o proveito principal da abolição. A Francifco de Almada fazia o eftadifta portuguez dizer ao papa que ne- nhum paiz era menos intereíTado do que o leu na total fuppreífão da Companhia, porque tendo-a expulfado de feus domínios e feito contra cila executar uma inexorável legilla-

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ção, fe tinha de Ibbra premunido contra os males, que fazia na chriítandade. Era pois no intereíTe de toda a egreja, que Portugal pedia e reclamava a extincção. Ponderava Sebas- tião de Carvalho, pelo órgão do feu reprefentante, o graviííi- mo erro que feria o reformar uma ordem em fuás malfeito- rias jubilada e endurecida, e por iífo incapaz de emenda e correcção. Ás delongas das curtes de Bourbon, que nas fuás negociações eftavam antepondo á quellão capital da aboli- ção outros negócios de feu intereíTe ambiciofo e pri\ativo, oppunha Sebaftião de Carvalho nas luas enérgicas repre- fentações o dever impreterível, que ao pontífice corria de expurgar da maior praga a egreja univerfal, e o direito, que tinha indifputavel de extinguir a Companhia fem confultar os príncipes foberanos fobre a maneira de proceder á fuppres- fão. Refpondia Clemente XIV, confirmando novamente a palavra, que tinha empenhada defde os primeiros paífos da lua reconciliação, encarecendo os fentimentos de aíFeduo- fa gratidão, que o vinculavam ao rei de Portugal e prin- cipalmente ao feu miniftro, a quem fempre cognominava com hyperbolicos epithetos de agradecimento c de louvor. Tinha o papa fempre em mente a extincção da Companhia, mas queria realifal-a maduramente, e de feição que foífe recebida fem eftorvos por todas as potencias do catholicifmo, fem pôr a egreja a perigo de um ícifma defaftrofo em tempos de ta- manha defcrença e turbação, nem ofi^ender os imperantes, que ainda protegiam ou fuftentavam em feus eftados os fo- cios da mal-aífegurada congregação.

Profeguia Francifco de Almada concorrendo ás confe- rencias, que em Roma celebravam os reprefentantes das cortes de Bourbon, e concertando com elles as inftancias que deviam aprefentar no Vaticano para a abolição da Companhia. Não era porém n'eí1:e accordo oííicial com o cardeal de Ber- nis, e o arccbifpo de Valência, Azpuru, que Sebaftião de

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Carvalho cifrava a fegura eíiicacia para o cxito propicio da fua impaciente afpiração. As fuás efperanças eftavam poftas principalmente nas fecretas negociações conduzidas pelo in- termédio officiofo de monlenhor Macedónio, fervorofamen- te devotado á corte de Portugal. O enviado portuguez não deixou porém de aprefentar a Clemente XIV uma memoria em que, de accordo com os miniftros da caía de Bourbon, pedia inftantemente a abolição. Uma nova circumftancia dif- íicultava porém o paíTo á delongada negociação. O cardeal de Bernis e os outros repreíentantes dos Bourbons preten- diam que o pontífice antes de exarar a bulia da extincção, expediíTe dois breves preparatórios. Em um d'elles o papa confirmaria quanto as cortes catholicas ha^•iam feito em re- lação á Companhia. No outro fubmetteria á approvação e exame dos monarchas a minuta das lettras pontificias, que deviam decretar a fuppreffáo. Sebaifião de Carvalho inven- civelmente repugnava a efte demorado e nocivo expediente. Quanto havia decretado em Portugal a refpeito dos jefuitas, caía dentro da autoridade e jurifdicção do poder temporal, e feria uma abjeda degradação o acceitar um breve do pon- tifice para o confirmar e revalidar, como fe os ados ema- nados da fuprema majeftade podelfem taxar-fe de illegitimos, irregulares, anticanonicos, e careceífem de fer fanados pela auítoridade pontificia. N'outro ponto eífencial divergia o oufado eftadifta portuguez das frouxas pretenfões do cardeal de Bernis. O embaixador francez pedia apenas a extincção, porém não o caftigo dos jefuitas implicados como auctorcs nos defacatos e difturbios commettidos na chriftandade pela ambiciofa Companhia. Sebaftião de Carvalho infiftia ao revez como em ponto fubftancial, na punição exemplar do geral Lourenço Ricci, e dos feus mais turbulentos e culpolbs aífes- fores e confelheiros. Ordenava porém a Francifco de Al- mada, que trataífe principalmente da abolição deixando ao

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arbítrio de Clemente XIV a punição, como áquelle, a quem unicamente competia.

Pouco havia adiantado a negociação quando um fucceíTo inopinado vciu dar calor e eítimulo á irrefolução e tibieza do pontífice. O rei de Portugal, eflando em Vílla Viçofa, e indo a lair a porta do palácio, fora aggredido violentamente por um homem, que lhe vibrou á cabeça um golpe de bor- dão. Livrou-fe o rei, defviando o corpo com ligeireza. Era a 3 de dezembro de 1769. Não faltou quem attribuiíTe o atten- tado ás machinações dos jefuitas. Chega a noticia a Roma. Conlterna-fe o pontífice, e com as mais fignificativas de- monftrações teftemunha a D. Jole a dor, que lhe caufára o defacato á peflba do ungido do Senhor. Efcreve ao rei e a Carvalho em termos de entranhado affedo e fentimento. Não participavam por\entura os jefuitas no intentado regi- cídio, mas na prelença da lua crefcente irritação, não foi difficil acreditar que eram elles os motores da nova atroci- dade. O crime de Vílla Viçofa foi pois um poderofo incentivo a que redobraífem mais urgentes as inftancías reclamando a abolição.

Mas o papa cada vez mais e mais fe enleava n'uma re- de de laftimofas indecifões. Cada vez lhe pareciam mais te- míveis e poderofos os terríveis antagoniftas, contra os quaes o mandavam faír a campo a elle fraco athleta, mal armado para tão defegual rec[uefta, onde a fua torva imaginação lhe predizia que haAeria de comprar com a ^•ida a fua vídoría. N'efta anguftíofa fituação defafogava Clemente XIV as fuás laítimas com o artificiofo Francifco de Almada, prompto fempre a encravar na mórbida confciencia do pontífice o efpinho da fua averfão á Companhia. As confidencias com que o papa fe abria defconfortado com o miniftro de Por- tugal, pedindo-lhe confelho e favor na lua trifte fituação, replicava Sebaflião de Carvalho n'uma carta firmada pelo

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rei e dirigida a Clemente XIV '. Refpondia o monarcha por- tuguez aos Íntimos defafogos do pontifice e lhe encarecia em termos vehementes quanto era neceíTario aproveitar a conjuntura, e decretar promptamente a abolição, a qual viria a fazer-fe inexequível, deixando-fe paíTar a occafião. Diííipava-lhe os receios de fcifma ou diíTidencia das potencias não hoítis aos jefuitas. Ao mefmo tempo fazia o miniftro de D. Jofé paíTar ás mãos do papa uma memoria, em que exa- minando a fituação das cortes catholicas, lhe aíTegurava, em prefença d'eíl:a analyle, o nenhum receio de que a imme- diata fuppreffão produziíTe fenão frudos abençoados á paz da egreja e das nações".

Não defcontinuaram as inítantes follicitações do eftadifta portuguez até que o papa, depois de vacillar mais de três annos entre o cumprimento das folemniílimas promeíTas e os efcrupulos e os receios da lua timorata conlciencia, veiu fi- nalmente a expedir ás cortes catholicas, por intermédio de Carlos III, a minuta da bulia de fuppreffão. O rei de Hefpa- nha tivera fempre em grande honra o fer elle o inftrumento principal na extincção da Companhia. Olhava com ciúme e com defpeito os que lhe difputa^■am o primado n'efle ponto, como fe foffe o poderofo Agamemnon n'ell:e cerco poíto es- treitamente á Tróia jefuitica.

Para condefcender com cita vaidofa pretenfão deliberou Clemente XIV enviar a Carlos III a minuta da bulia, em que intentava decretar a abolição, e commetteu-lhe o encar- go de a communicar ás cortes catholicas para que fobre ella houveffem de fazer as luas obfervacões. Conveiu facilmente

' Carta de D. Jofé a Clemente XIV, de 21 de dezembro de 1772. Collecção dos negócios de Roma, parte ni, pag. i5i.

2 Carta de Sebaftião de Carvalho para Francifco de Almada. C.ollecçáo dos negócios de Roma, parte 111, pag. iS3 e segg.

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Sebaftião de Carvalho em approvar defde logo efte rafcu- nho. Alhanadas pelo papa as difficuldades, veiu finalmente a declarar ao orbe catholico, pela bulia Domimis ac Re- demptor, de 21 de julho de 1773, que ficava abolida para fempre a Companhia de Jefus. Nunca Sebaftião de Carvalho preftou o régio beneplácito a refcripto algum do Vaticano com maior alvoroço do que a efte, que fora tantos annos o fonho mais dilecto e a mais dourada efperança da fija alma. A mais affignalada vidoria das armas portuguezas, a con- quifta mais valiofa, não poderiam celebrar-fe com tantas e tão geraes demonftrações de jubilo univerfal. Tão relevante confiderava Sebaftião de Carvalho a abolição da ordem odia- da, que na carta gratulatoria, dirigida por D. Jofé a Cle- mente XIV, não duvidava em qualificar o acto do pontifica como o maior e mais tranfcendente beneficio, que depois' da redempção do género humano haviam recebido dos fucces- fores apoftolicos de S. Pedro a egreja e as fociedades civis de todo o orbe. A carta de lei, em que o rei de Portugal con- cedia o beneplácito á bulia Dominus ac Redemptor ' traf bor- dava em fubidas expreíTões do mais fervorofo panegyrico ao paftor univerfal, que depois dos esforços infruéfiferos de mais de vinte papas em corrigir e enfrear a ambiciofa e tur- bulenta Companhia, fc determinara finalmente em expungir da communhão chriftan aquelle copiofo feminario, d'onde, no conceito do eftadifta, fe tinham derivado as maiores per- turbações á chriftandade. Depois de exautorados pelo papa, o miniftro portuguez, que contra os jefuitas fora o primeiro a dar rebate vigorofo, vinha, como pontífice profano e re- prefentante fecular da moderna fociedade, lançar contra el- les a excommunhão civil e celebrar com tremenda objurga- toria as exéquias da Companhia.

Carta de lei de 9 de leptembrode 1773.

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A íntima e cordial correfpondencia, que eftreitava as re- lações entre a Guria e Portugal depois da abolição dos jefui- tas, revelou-fe na fácil condefcendencia, com que o papa defpachou os negócios canonicamente mais difficeis, fegundo lh'os propunha o miniftro portuguez. Entre elles não Ibi de certo o menos grave o que fe referia ao bifpo de Coimbra D. Miguel da Annunciação, que no feu dilatado captiveiro fe negava tenazmente a refignar o epifcopado. O poder civil por um dos feus aífos de oufadia mais francamente revolucio- naria, havia-o declarado morto civilmente. Concertou-fe en- tre Portugal e a Santa Sede um expediente, que refpondia ao mefmo paíTo á incapacidade politica do prelado e aos efcrupulos canónicos do papa. Nomeou Clemente XIV a D. Francifco de Lemos para bifpo de Zenopolis, in partibiis inftdelhim, e commetteu-lhe como coadjutor e futuro fuc- ceíTor do réu de eftado a jurifdicção efpiritual e temporal na diocefe de Coimbra'.

Se os jefuitas eram como inftituição ecclefiaftica um fer- mento permanente no grémio efpiritual, e como profana corporação um perigo temerofo para a fociedade fecular, o Santo Officio era mais do que um perigo e um fermento, era para a egreja uma ignominia, uma defhonra para a mo- derna civilifação. Teria Sebaftião de Carvalho vindicado com- pletamente o illuminado íeculo, em que vivia, fe obedecendo ao feu efpirito adverfo a toda a coacção temporal exercida em nome de Jefu Chrifto houveíTe ao mefmo paíTo deftruido a Inquifição e a Companhia. Teria vinculado na mefma con- demnação os Laynes e os Torquemadas, os cafuiítas, que alargavam as confciencias e os caminhos ao peccado, e os inquiridores, que povoavam de fogueiras a eftrada da eterna bcatitude; a roupeta, que aífrontava a humanidade como a

' Bulia Romanus pontifex, de 1 3 de abril de 1774.

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inlignia da fuprema dominação, e o lambenito, que cifrava para a egreja o reinado perpetuo do terror. Não confentiam porém os tempos e as circumftancias que o vidente legiíla- dor levaíle emparelhadas as duas radicaes expurgações. Man- teve a inquifição, porque ainda poderia fervir de auxiliar ao poder régio contra as infidias e tramas jefuiticas. Confervou o leão, cortou-lhe porém as garras e as prefas, e encerrou-o como fe fora na eftreita claulura de uma jaula. O cardeal ar- cebifpo de Évora, D. João da Cunha, era então inquifidor geral. Defde a laíf imola condemnação do Malagrida os ver- dugos reaes em vão eífavam aguardando alguma vidima. A inquifição, açaimada pelo eminente didador, tinha de- generado do feu cruento zelo pela fé. No auto de 17Õ7 ti- nham laido a publico onze homens e treze mulheres, fem que o braço fecular fe maculaffe com. o fangue de ninguém. Eram mais Ienes do que d'antes os proceflfos inquifitorios. Cumpria então reduzir a lei o que era apenas coftume de prudência e humanidade. A el1:e fim faiu o legiflador com o regimento do Santo Ofiício de 14 de agoflo de 1774. Fir- mava-o o cardeal inquifidor. Confirmava-o o foberano". E muito para notar, que onde Sebaflião de Carvalho, na fua larga e providente legiflação, confervou por mera conve- niência ou fujeição ás circumftancias, alguma viciofa, repre- henfivel, ou abfurda inftituição, aífignalou-a defde logo nos preâmbulos ou nas razões das luas leis com o íinete impere- cível da mais Iblemne reprovação. O theorico publicifta con- demnava defde logo o que era repugnante ao direito, á razão, á humanidade, mas o eftadifta pradico vinha corrigir a pri- meira infpiração, confervando como excepção temporária e mal fegura o cjue os princípios claramente anathematizavam. Era como fe contemplando a arvore dellinada a futuro cór-

Alvará de i de Itptcmbro de 1774-

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te lhe deixaíTe no tronco delineada a marca, por onde mão robufta de mais revolucionário demolidor em tempos mais propicios, havia de afundar os golpes de machado para que vieíTe a baquear o annofo roble. AíTmi aos morgados, reftrin- gindo-os, marcara com o cítygma de anti-íòciaes e damno- fiífimos ao progreíTo económico da fociedade. AíTim agora também procedia o legiflador com o Santo Officio. Levanta- va-fe Carvalho contra o que chamava cruel e enganofo meio do tormento. Declarava bem alto que «a egreja, como mãe piiíTima e mãe de mifericordia, não tem o direito de matar, de ferir, de atormentar». Efpraiava-fe o eftadifta nos termos da mais fentida execração contra a prova judiciaria, abfurda, irracional, inhumaniffima no potro, no equuleo, em tratos crueliíTimos. Mas era neceíTario juftiíicar as paíTadas feveri- dades contra o pobre Malagrida. Limitava-fe a applicação do tormento aos novadores, aos herefiarchas, e aos ejpiritos fortes, e ainda n'efte cafo fe remittia de lua antiga atrocidade cite proceíTo infame de inquirir os fuppoftos delidos das confciencias. Inílituia-fe nova forma de proceíTo. Concedia- fe aos réus a máxima amplitude na defeza. Condemnava-fe o dar a teftemunhas llngulares, excepto unicamente os crimes de foUicitação, de figillilmo, e algum outro nefandiíTi- mo. Reprovava o legiflador em termos de merecida afperi- dade os autos da fé, c]ue appellidava «publicas oítentações de horrores e de miferias»; efpedaculos degradantes, oppro- briofos e felvaticos, para os quaes, efcrevia o eftadifta, «fe convidavam os embaixadores e miniftros extrangeiros para teftemunharem de vifta e di\aftgaram nos feus efcriptos por toda a Europa culta o deplorável eftado d'eftes reinos». Ex- ceptuava, apenas, por coherencia com os feus ados anterio- res, os autos da celebrados para trazer á publica vergonha os herefiarchas, como fora, dizia o legiflador, «o monftro Malagrida». Prohibia como regra a celebração d'eftc picdo-

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fo cannihalifmo, em que o humilde, o manlb, o incruento, o amoravel chrirtianifmo, defhonrado pelos feus fanáticos ze- ladores, fazia da uma cruenta religião e da egreja um cir- co pagão e fanguinario, onde as vidimas humanas caiam aos applaufos da multidão feroz e envilecida.

Eftava completa a obra, em que Sebaftião de Carvalho fe empenhara de firmar Iblidamente a independência e Ib- berania temporal, recatando-a ciofamente das incurfões ec- clefiaíficas. Eftava então na culminação da fua gloria. Podia defvanecer-fe fem jaófancia de que o feu longo minifterio tinha fido, depois do defaftre de Alcacer-Kibir, a epocha mais bri- lhante de Portugal, a viçofa rejuvenefcencia de um paiz, que elle encontrara quafi exânime, pobriíluno no meio da rique- za efteril das luas minas americanas, inerte no meio do feu clima feraz e ameniífimo, ignorante e embrutecido no meio da radiofa illuftração da Europa contemporânea, eíquecido e obfcuro apefar das fuás pretéritas grandezas, fanático, fu- perfticiofo, quafi idolatra no meio das mais taifas apparen- cias de piedofa compuncção.

Quiz Sebaftião de Carvalho efculpir em bronze e em mármore o epilogo da fua obra grandiofa. Na praça maior da capital, confagrada como em honra fingular ao commer- cio, que era a força da nação, ordenou que fe erigiíTe um majeftofo monumento, que aos evos perpetuaíTe a memoria gloriofa de fua longa e vigorofa adminiftração. A 6 de junho de 1775, em meio de eftrondofas acclamações e das feftas mais efplendidas de pompofa folemnidade, inaugurava-fe a efta- tua equeftre do rei. Na aufencia de outra gloria peíToal, ti- vera D. Jofé por única benemerência a pertinácia, com que foubera confervar e defender o feu grande confelheiro con- tra as machinações de poderofos e terríveis adverfarios, e a dócil complacência de firmar as leis e os decretos do minis- tro. No pedeftal da regia effigie oftentava-fe n'um medalhão

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de bronze, por graciola benevolência do Ibberano, o bufto do immortal legiflador. Era o debuxo, o lavor, a fundição do monumento, tudo obra nacional erigida a glorias pura- mente portuguezas fem melcla de forafteira ajuda e lublldio. Aquella figura, que lilbnjeira eftá mentindo, a reprefentar o foberano epicureifta e indolente na auftera compoftura e grave continente de um grande batalhador, é apenas um pretexto. O monumento apparece como invertido á poíterida- de imparcial. O vulto principal é Sebaftião de Carvalho. A eftatua do rei é um acceíTorio decorativo, como o elephante e o cavallo de mármore, que ornamentam o pedeftal.

Laftima foi, porém, que ás folemnidades, que por três dias exalçaram em públicos e memoráveis regofijos, em banquetes, em bailes, em apparatofas illuminações, o trium- pho brilhante do eítadifta, lliccedefle a derradeira tragedia judiciaria, de todas as que enludaram o efplendor do leu próvido e fecundo minifterio. Sebaftião de Carvalho, como todos os grandes reformadores, concitava ódios proporcio- naes á audácia das luas providencias, e ao egoilmo dos inte- reíTes que oífendia. de uma vez, em 1771, á porta do paço, um furiolb aggreffor bufcára oftendel-o atirando-lhe pedradas, a que pôde efcapar illefo e imperturbável na lua eftoica ferenidade. Por occafião de fe inaugurar a eftatua equeftre defcobriu-le que um italiano, de nome João Baptifta Pelle, difpozera uma machina infernal, com que intentava efpedaçar o coche do eftadifta, c[uando n'elle foíTe para as- fiftir á Iblemne inauguração. Prelb c julgado pelo tribunal da fupplicação, foi o delinquente a 9 de outubro de lyyS punido ainda com mais cruel rigor do que o tinham fido os réus da conjuração contra D. Jofé. Encerrava affim o rigido miniftro a lua carreira com a melma terrível feveridade, com que defde os primeiros annos de governo aflbmbrára, fem comtudo os defalentar, os léus implacáveis inimigos. Não

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decorreram longos tempos cintes que a vida do monarcha e o miniíterio de Carvalho chegaffem ao leu termo. Em fins de 1776, a faude do rei dava poucas efperanças de que vieíTe a recobrar-fe. Um decreto de 29 de dezembro d'aquelle anno commetteu á rainha D. Marianna Victoria a regência do rei- no. Pouco tempo depois o throno dos Braganças era va- cante, e a princeza do Brazil, com o nome de Maria I, empunhava o fceptro portuguez íbb os aufpicios de uma vi- fivel e impaciente reacção.

CAPITULO XVII

MARTYRIO E CONCLUSÃO

A filha primogénita de D. Jole herdava o throno de feu pae a 23 de fevereiro de 1777. Realifavam-fe finalmente as efperanças tantas vezes mallogradas dos inimigos de Carva- lho, e podiam expandir-fe livremente os ódios por largo tem- po concentrados e recrefcentes com intenfidade correfpon- dente á tenacidade e ao vigor do leu poderofo antagonifta. Todo o poder do grande legillador, como é forçofo nos des- poficos eftados, eftivera pendente do favor e da exiftencia do monarcha. Os alentos derradeiros do Ibberano intimavam fatalmente o feu occafo ao longo minifterio. A dilatada e torva didadura, por mais fecunda e encaminhada que foífe á refurreição e gloria pátria, não fora na lua eífencia mais do que um largo e vigorofo vizirato, mais do que a rara for- tuna de um valido aproveitada pelo talento de um audaz reformador. A única exterior influencia, que o mantivera firme e inabalável no leu pofto, havia fido a vontade e a confiança do moderno fultão do Occidcnte, cuja defidia e frouxidão intelledual o miniftro fagaz e cortezão foubera con-

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verter em força própria. Não o favoneava certamente a aura popular tão volúvel e caprichola ainda mefmo nas focie- dades democráticas, nulla quafi inteiramente nos povos dominados pelo arbítrio de um fenhor. As mais úteis e ge- nerofas entre as fuás reformações, fe haviam difpertado fym- pathicos accordes nos efpiritos mais illuminados, ainda então em efcaffa minoria, não podiam ler comprehendidas pelas turbas ainda mal avindas a affrontar a nova luz. Portugal, fe bem menos que a Hefpanha, era uma nação fanática, in- culta, inquiíitorial. O povo, como fiibjlratimi e fundamento da opinião, era apenas ainda em gérmen. As antigas ariíto- cracias, feculares e ecclefiaíticas, fe não ^•aIiam pela força, exerciam a influencia da tradição, que fempre fubfifte em largos traços, ainda mefmo após as mais radicaes e cruentas revoluções. Carvalho não fora o enérgico executor de idéas reformadoras, engendradas e nutridas no confenfo da nação. As fuás infpirações eram todas exteriores e dimanadas d'efte efpirito do feculo, d'efta luz intelleíftual que tinha principal- mente em França o feu foco mais intenfo, e cujas ondula- ções irradiadas a toda a Europa culta parece que encontra- vam nos Pyreneus uma antepara, que as não deixava áquem d'elles progredir. Se contámos uma hofte pouco numerofa, mas preíladia de homens mais lettrados do que o ^'ulgo, os Cenáculos, os Ricaldes, os Pereiras Ramos, os Seabras, e os mais eminentes magiítrados da ordem judiciaria, togada ariítocracia em toda a parte e fempre emula e ciofa da no- breza hereditária, e fervorofa aduladora da regia poteífade, fe ainda fazemos o conto da claffe media, e mercantil, que faia, nova e predileiffa creação, como a Galathea renas- cendo na officina do mythico eítatuario, ahi teremos quafi encerrada a lifta dos amigos e fautores do grande legiflador. E d'eíres parciaes uns eram os cortezãos ordinários da for- tuna, outros os que eífão fempre enfileirados ao lado do po-

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der. Amigos finccros, devotados na grandeza e na ad^■erll- dade, amigos do eftadirta e da idéa, eíles poucos, raros, iildecifos, affrouxando no afFedo e na gratidão, quando o foi, que fe efcondia entre brumas precurforas de tormentofo vendaval, os não podia aquecer, nem confortar.

O bem que o legiílador tinha feito á fua pátria, fora quafi fendo ella incita, ingrata e adverfa ao próprio beneficio, que recebera. Accrefcia ainda contra o grande eftadiíta portuguez a desfavorável circumítancia de que as fuás reformas tinham íido pela trifte neceffidade aíTignaladas com um rafto de fan- gue defde a trágica fcena de Belém e os judiciários morti- cínios da porta do Olival até á execução do Malagrida e ao cruel fupplicio de João Baptifta Pelle. A mão, com que o reformador diffipiára os nevoeiros da intelligencia nacio- nal, quebrara os grilhões ignominiofos aos fer^■os e aos des- cendentes dos judeus, e repulfára com vigor as invafões do poder eccleíiaítico, apparecia envolta e mal vifn^el na torva atmofphera focial, cmquanto o punho que firmara as fenten- ças capitães, c as ordens de defterro e captiveiro, refulgia com o vivaz e fmiftro efplendor do langue ainda recente. Na phantafia popular a imagem de Carvalho reprefentava-fe eclipfando mal na lua aureola o vulto do algoz. Trifte con- dão dos homens que poderam, pelo influxo imperativo dos tempos em que A-ÍA'eram, fervir pela força as grandes idéas, fazer jorrar a luz faifcando nos campos de batalha e nos patíbulos, circurndar a civilifação com um envoltório de miferias individuaes, e, por um extranho paradoxo, vin- cular ao terror e á crueza o fanático amor da humanidade. Taes foram os Cromwells, os Robefpierres, os Pombaes.

A queda do miniílro devia fer pois tão eftrepitofa, como fora alevantado o leu poder e brilhante a fua gloria. Não podia Sebaílião de Carvalho illudir-fe com a efperança de que os feus inimigos lhe perdoaífem. nem a rainha, devota

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e avaíTallada á vontade de um marido, de curtiíTimo intelle- dto e declarado parcial da reacção politica e religiofa, o con- fervaíTe dominante no governo. Ainda o rei não exhalára os últimos alentos, e o eítadifta aprefentava uma lupplica á rainha regente para que o exoneraíTe de um encargo, para que o eftavam inhabilitando os achaques, os annos, as fadigas de íeu longo e tormentofo minifterio.

Apenas poucos dias decorreram depois que fubira ao throno a filha de D. Joíe, quando Sebaftião de Carvalho pede á Ibberana que longe dos negócios o deixe repoufar nos annos derradeiros. então era apenas miniftro nomi- nal. Já no paço o coníideravam como extranho e importuno. os próprios que lhe haviam lido liíonjeiros cortezãos nos tempos da maior profperidade, como o cardeal da Cunha, lhe voltavam as coitas com arrogância e com defdem. Na íupplica dirigida a D. Maria I, compendiava o canfado minis- tro de D. Joíe os ferviços que fizera á coroa e á nação. Inflava por que lhe foíTe concedida a permiífão de retirar-fe ao quieto e obícuro remanfo do Pombal, onde lhe parecia não have- riam de chegar tão vivos e cruéis os ódios e as vinganças dos feus adverfarios. Comparava-fe na tribulação, em que fe via, ao grande Sully, em quem a ingratidão defconhecêra e oíTufcára as glorias da lua adminiftração.

A 5 de março de i 777 a rainha, deferindo na apparencia ás inftancias de Carvalho, mas na realidade obedecendo á terrível conjuração, que no paço eftava urdindo a famélica turba dos novos cortezãos, demittia do cargo o valido e con- felheiro de feu pae, e permittia-lhe o ir viver na villa de Pom- bal. Ainda a eíla lazão alguns raros amigos alcançavam c^ue não fe defencadeaíTe contra o velho a impaciente e feroz perfeguição. A rainha ao defpedil-o do alto oflicio fazia-lhe a mercê de uma commenda, a de Santiago de Lanhofo, na ordem militar de Chrifto.

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Ncío era porém plaulivel confiar que os rancores de tan- tos annos fe deíTem por fatisfeitos com o retiro de Carva- lho á vida particular. Começavam a exercer-fe manifeftas perfeguições contra alguns dos que foram mais conjundos e confidentes ao eftadifta. N'efte numero fe contavam princi- palmente uma irman de Sebaftião de Carvalho, D. Maria Magdalena, prioreza do mofteiro de Santa Joanna, Fr. Ma- nuel de Mendoça, dom abbade de Alcobaça e efmoler-mór, primo e amigo particular do eitadifta, Fr. João de Manlllha, da ordem dominicana, o qual tivera a parte principal na fundação da companhia do Alto Douro, e um irmão do bifpo Cenáculo, que era frade da ordem terceira da peniten- cia no convento de Jeius.

Bem defejariam os ferozes inimigos de Carvalho, valen- do-íe da plebe efcandecida, afFrontar com violências a pes- foa do illuftre reformador. Eftava porém aufente e longe de Lifboa. Refolveram laciar as luas iras, oífendendo-o em ef- figie. Contra o medalhão de bronze, encravado no pedeftal da eftatua equeífre, choviam diariamente nuvens de pedra- das. Era um opprobrio para a triumphante reacção, que o bufto de quem reiíaurára a capital depois da lua quaíl total aíTolação, ainda perpetuaíle a honrada memoria de tal feito. Uma noite, a defhoras, o medalhão é apeado e poftas no leu logar as infignias da cidade. Refere-fe que ao faber no Pom- bal a nova injuria, Sebafíião de Carvalho, com a ferena for- taleza de feu animo, diíTera, zombeteando : « Não me faz pena que tiraffem a efiigie, porque em nada me era feme- Ihante » . Se das affrontas diredas e peíToaes, que mais podiam vellicar e ferir a fenfibilidade e os brios de Carvalho, nenhu- ma efquecia aos feus vingativos adverfarios, não eram me- nos hoflis as providencias, com que bulcavam abrogar a fua legiílação. A companhia do Grão-Pará e Maranhão, a infti- tuição mimofa do eftadifta, era abolida como contraria aos

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intereíTes públicos'. Os negociantes de Liftoa, para que nem efta claíTe predileda do legiílador faltaíTe no cortejo da reacção, feftejaram com um folemniffimo Tc Dciim a dis- folução da poderofa fociedade mercantil.

No paço dominavam fem emulo os mais altos repre- fentantes da nobreza, jurados inimigos de Car\'alho. Do an- tigo minifterio fubfiftiam apenas no confelho da rainha o aftuto Martinho de Mello, como fecretario de eftado da ma- rinha, e o devoto Ayres de e Mello, na lecretaria dos negócios extrangeiros e da guerra. O vifconde de Villa Nova da Cerveira occupava agora o logar preeminente de miniftro principal.

O Marquez de Angeja recebia o encargo de infpector do real erário, quafi miniftro da fazenda em o no\'o e obfcuro minifterio.

Por teftemunhos inequívocos fe eftava defde então an- nunciando que o governo da rainha, inípirado pelos feus in- vejofos e mefquinhos confelheiros, fe empenhava por ler de todo o ponto o reverfo da anterior adminiftração. A nobre- za arrogante e ambiciofa fonhava a refurreição da fua antiga influencia e poderio. as graças honorificas e rendo- fas ertavam jorrando a flux fobre as famílias mais illuftres pelo berço e mais jubiladas no ódio contra Carvalho. O cle- ro e feus parciaes fuppunham a Ibberana deftinada a re- prefentar em Portugal o mefmo officio, que cm rafgos de cruento fanatifmo exercera em Inglaterra a lua homonyma, depois da herética dominação de Eduardo VI. Os jefuitas oufavam fupplicar a revogação do leu exilio, emquanto não alcançavam refurgir no corpo m)'ftico e triumphal da Companhia. Os parentes mais chegados dos nobres jufti- çados em Belém pediam com arrogância, em nome da in-

' Decreto de 5 de janeiro de 1778.

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nocencia e da juftiça, que fe rcviíTe o famofiíllmo proceíTo e fe declaraíle pura e immaculada a memoria das victimas illuftres. Os fidalgos, que haviam longos annos vivido encer- rados nas prifões, o marquez de Alorna, e os irmãos do marquez de Távora, requeriam com imperiofas intimações que a rainha os declaraíTe por innocentes, porque de outro modo não agradeceriam a Uberdade, nem queriam tomar na corte o feu logar.

Decretavam-fe as honras de benemérito ao conde de S. Lourenço, que jazera nos ergaftulos da Junqueira. Honra- va-fe egualmente com palavras de encarecida fatisfação a memoria do vifconde de Villa Nova da Cerveira, que havia fido embaixador em Hefpanha, e terminara os feus dias na prifão.

Os homens, que mais haviam concitado lobre fi as du- ras reprefalias de Carvalho, eram agora recebidos e fefteja- dos como viclimas de um cruel perleguidor e exalçados á eminência dos martyres ou dos heroes. O bifpo de Coimbra, D. Miguel da Annunciação, a mais completa perfonificação do fanatifino, depois de fer recebido com as moftras de en- tranhavel amor nos paços régios, fazia triumphalmente a fiia entrada na velha cidade univerfitaria. Os bafl:ardos de D. João V, os meninos de Palhavã, D. António e D. Jofé de Bra- gança, voltavam do feu defierro do BulTaco, faudando-os na capital as clamorofas acclamações da plebe defadnada. Jofé de Seabra, que fora o flagello vibrado pelo grande legifla- dor contra a reacção religiofa, regreíTava de feu degredo, recebendo agora os parabéns e os prolfaças dos próprios, que poucos annos antes o haviam aíTociado na fua cólera ás que tinham por nefandas malfeitorias do feu patrono e ins- pirador.

A plebe d'aquelle tempo, incuUa c fempre attreita, na fua infantil volubilidade, a aíTociar-fe ás tremendas reprefa-

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lias das facções, defentranhava-fe cm motejos e doeftos con- tra o homem que via agora proftrado e abatido. Succediam- fe as fatyras e os pafquins injuriofos, condenfando ora em gracejos efcurris, ora em ferozes ameaças o furor e a vingan- ça do partido clerical.

A eftrondoía e publica reprovação, que n'eftes aítos, com o favor e confenfo da rainha, fe revelava odienta e in- exorável contra a politica de Carvalho, era a neceíTaria e ló- gica preparação do que fe eftava traçando nos corrilhos e facções do clero e da nobreza. Não bailava que os fober- bos ariítocratas fe viífem guindados improvifamente ás hon- ras e á privança e faciaífem a ambição, a que lhe cortara os voos impudentes o fevero miniflro de D. Jole. Não bas- tava que fe viífem manifeftos os fymptomas da fujeição e vas- fallagem do império ao facerdocio, e que o fanatifmo, como fupremo legiflador, fe aífentaífe no folio de Portugal á mão direita da rainha. Não afpiravam unicamente os inimigos de Carvalho á emenda e correcção do que em feus feitos haviam condemnado. Não os contentava a rápida metamorphofe, que fe ia operando no governo e na politica de Portugal. Bra- miam por vingança eftrepitofa. Pretendiam propiciar com a cabeça de um velho de oitenta annos as cinzas difperfas dos Tavoras, do Aveiro e Malagrida. Os que taxavam des- abridos em Carvalho as cruezas, que exercera, defejavam apenas imitar do feu emulo proftrado a dureza fatal do co- ração, já que não podiam copiar-lhe as magnânimas acções em prol da pátria, e ainda mefmo, depois de caído e humi- lhado, por mais que fe alteaífem não fabiam raftrear-lhe a hiftorica eftatura. Vivia Sebaítião de Carvalho nas fuás pro- priedades de Pombal, emquanto fe acaftellavam vifiveis no horizonte as nuvens precurforas da borrafca. Ali quieta- mente dava ordem aos domefticos negócios, revia e completa- va os feus papeis polhicos fobre o curfo da longa adminiftra-

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ção. Ali efcrevia as luas reflexões ás dezefete cartas publi- cadas em Londres acerca da fituação de Portugal durante o feu fecundo minifterio. Ali traçava algumas das luas obras apologéticas em contra das calumnias e doeftos divulgados com fanha recrefcente, e recebidos como dogmas entre o vulgacho. O que entre os íeus elcriptos d'eíta epocha l'e tornou mais memorável, foi a Contrariedade ao libello, que contra elle fizera articular um certo Mendanha, homem abalfado, mas ao que parece turbulento e de vida mui pouco exem- plar. Celebrára-fe um contrado entre Carvalho e o feu aflual e terrivel accufador. Cedêra-lhc o miniílro umas proprieda- des que poíTuia em Villa Velha, e eftipulára o preço da alhea- ção, não oufàmos aííirmar que com total efquecimento de que um dos outorgantes n'eft:e pado era o fupremo dicfador de Portugal, o outro um homem opulento, mas defegual na valia e no poder. Por motivos occorrentes e extranhos ao contracto, fora o Mendanha camarariamente deíterrado para a ilha Terceira, fem forma de proceíTo, como era ufo habitual na delpotica monarchia. De volta de leu defterro, o inimigo mais fedento de vingança, c|ue de juítiça direita em pleito eivei, tornou-fe por aíTuTi dizer o órgão e reprefentante dos que eftavam accufando o eftadifta pelas que diziam violên- cias, malverfações, atrocidades. Fez redigir por um dicaz e fogofo advogado o feu libello, no qual em vez de limitar- fe a pedir a annullação do antigo pado, por enormiffima le- fão, deduzia longamente, menos as luas particulares allega- ções do que as tremendas e ferozes invedivas contra o longo minifterio de Carvalho. A aggreffão defdc logo vulgarifa- da e applaudida, pedia naturalmente uma digna contefta- ção. Efcreveu-a o eftadifta na fua Contrariedade ao libello, de que fez extrahir diverfas copias. Era uma longa c docu- mentada apologia, que cifrava como que a hiftoria politica de Portugal defde que Sebaítião de Carvalho principiara a

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vida publica, e compendiava os ferviços eminentes do mi- niftro. Efte efcripto paíTava naturalmente de apologia a re- prefalia. Os inimigos de Carvalho não ficavam bem aqui- nhoados n'eft:a luda empenhada com o feu velho contendor. A Contrariedade fez efcandalo. Um decreto da rainha, exa- rado em afperrimas palavras', ordenou que foíTem fuppri- midos os originaes e as copias da conteftação e do libello, confervando-fe apenas os documentos neceíTarios para aqui- latar juridicamente a jufliça dos litigantes. A rainha firmava com o feu nome um papel official, em que o ancião, verga- do aos annos e aos trabalhos, era feveramente reprehendi- do, porque tivera a oufadia de efcrever, dizia o decreto, fob a infpiração do ódio, uma tal apologia, revelando fem re- cato as íntimas negociações do gabinete, oífendendo a me- moria de D. Jofé, e perfiftindo em denegrir reputações, que a foberana fizera publicar intemeratas.

Eftava aberta e declarada a perleguição contra o grande legiflador. Infamava-o a rainha, que a adulação chamou piedofa, e fanática appellida hoje a verdade. Não ceíTavam em torno d'ella as obfeííões para que decretaffe o julgamen- to do miniftro, e completaíTe as oífenfas contra a honra com os tentames contra a vida de Carvalho.

No mez de outubro ordenou a rainha, inítigada na fiaa fraqueza pelas mefquinhas fi.ipplicações dos feus fátuos e vingativos confelheiros, que dois magiftrados foffem ao Pom- bal a começar os interrogatórios ao exilado reformador. Sof- freu Carvalho com eftoica firmeza e conformidade o novo ul- trage, e moftrou-fe nas palavras cortefão e obfequente á fobe- rana dementada que a um velho de oitenta annos, caído havia pouco do máximo faftigio, ia atormentar-lhe os derradeiros dias da exiftencia com uma longa e penofa inquirição. As

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Decreto de 3 de feptembro de 1779.

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enfermidades, que delde longos annos aftligiam o eftadirta, eítavam engravecidas pela velhice proveda e pelos tranfes anguftiofos de tantas humilhações. Que ainda os ânimos mais de bronze c mais Ibbranceiros ás miferias d'efte mundo e ás torpezas de uma corte, não fabem tão rijamente defabraçar- fe da condição de homem e de politico, que lhes não doam fundamente os efpinhos da ingratidão. Eram de fi os in- terrogatórios uma grave penalidade, punição moral, phyfico tormento. Tormento para um ancião tão quebrantado, a quem forçavam muitas vezes a levantar-fe do feu leito para con- teítar por largas horas ás perguntas dos civis inquifidores. Punição e punição injuriofa, porque tal era para quem tinha ainda tão frefcas na memoria as alturas, de que viera des- penhado, o ver-fe cavillofa e duramente interrogado por um obfcuro e malevolente leguleio. E tal era na verdade o con- felheiro da fazenda Jofé Luiz de França, nomeado interro- gante, a quem fervia de efcrivão o defembargador Bruno Manuel Monteiro. Duraram íete mezes as humilhações judi- ciarias infligidas pelos dois magiftrados ao velho eftadirta portuguez. A todas as interrogações, em que bufcavam ad- judicar á fua exclurtva refponfabilidade os feitos de incle- mência e de rigor refpondia Sebaftião de Carvalho fazendo tenazmente relurtir contra o arbítrio do foberano os tiros, com que o frechavam. Não eftava ainda inventada e intro- duzida efta politica ficção ou antes pueril hypocrifia, com que os modernos publiciftas, para conciliarem a poteftade fuprema do reinante com a máxima ideal de que não pôde nunca fazer mal, pretenderam alTentar fobre uma fubtileza metaphyfica ou um conceito puramente convencional o edi- fício do governo, o que ha de mais pratico e inconfirtente com as fobrenaturaes abífracções. Não tinha vogado ainda entre os políticos o fuppofto axioma conftitucional de que o rei apenas reina e não governa. Reinar c governar eram fynonymos. O

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monarcha não era pois impeccavel, nem podia furtar o corpo como homem á moral refponfabilidade, efcondendo-fe como rei por detraz do leu minirtro. O miniftro era pois um fâmulo, um mero executor da vontade incontraftavel do imperante, que pelo fado de o manter jundo de li, podendo-o expulfar dos feus conlelhos e punil-o a leu talante, tomava a fi pre- cípua a audoria nos ados do valido. O langue das vldlmas efpadanava com effeito na cabeça do monarcha. Seria abfur- do hiftoricamente declarar cândida e virtuofa a memoria de Nero ou de Tibério e concentrar nos vultos de Tigellino ou de Sejano todas as exprobrações da poíteridade. Se as vio- lências de Carvalho eram crimes, de que não ha\ia pofllvel remiffão, o principe que as firmara com o feu nome ou era um idiota, ou um affaíTmo, ou indigno de reinar pela lua fra- queza, ou digno de execração pela lua crueldade.

A condemnação de Sebaftião de Carvalho não deixaria pois immune a memoria de D. Jole. Não efcapou certamente eíla difficuldade aos que incitavam a rainha ás ferozes vin- ganças contra o velho. É de crer que ao ordenar contra o miniftro um procedimento judicial não paíTou pela mente da rainha o funeftar com uma Icena de cruenta expiação os princípios do reinado. A rainha era fanática, mas refugia ás fentenças capitães. O feu valido e confeílbr Fr. Ignaclo de S. Caetano, antigo Inftrumento de Carvalho na lua luda com as demafias clericaes, eftaria junto d'ella refoluto a parar o ultimo golpe, fe o quizeíTem desfechar contra o leu antigo bcmfeitor. O intento principal dos ódios contra o miniih"o não era conduzil-o ao cadafallb. Baftava-lhes excruciar com as derradeiras humilhações o animo do fevero legiflador. Con- tentavam-fe com que n'um diploma officlal appareceffe o antigo miniftro de D. Jofé como um incorrigível criminofo, a quem a rainha pela fua piedade e commileração, como fe o verdugo defdenhalTe uma cabeça decrépita, concedia a

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exiftencia. N'uma junta de delembargadores, celebrada a 22 de maio de 1 780, dividiram-fe os votos, opinando uns que fe profeguiíTe o proceíTo judicial, que ertava apenas iniciado pelo interrogatório no Pombal, tencionando outros que era baftante íentenciar camarariamente para que não ficaíTe, di- ziam elles, em fufpenfo o caftigo, que merecia o delinquente.

A queftão era tão árdua e elcabrofa de reíblver, que durante largo tempo ficou Sebaftião de Carvalho efperando no leu retiro em que ^■iria finalmente a defatar-fe a tem- peftade. Vários dos jurilconfultos, que na junta haviam as- fignado a conlulta fobre o proceíTo, eram d'aquelles, que ti- nham auxiliado o eftadifta com fuás luzes e efcriptos n'alguns dos feitos mais famofos da fua adminilfração. Taes eram principalmente Jofé Ricalde Pereira de Caftro e João Pereira Ramos. A grande maioria dos falfos e intereíTeiros parciaes, deixára-fe arraftar na corrente da apaixonada opinião, pre- ferindo á lealdade e á coherencia o favor da nova corte. Os raros, que ainda ficavam no íecreto inclinados á manfidão em favor do velho octogenário, eram tibios e recciofos de incorrer na mefma rígida fortuna. Succedia o que fempre aconteceu ao fequito dos grandes homens, quando a fua eítrella de todo fe efcondeu. O poder, e não a gloria do caudilho retém enfileirados em volta d'elle os egoifmos dis- farçados na pura dedicação. Parece todavia que ás diíficul- dades politicas e judiciarias do proceíTo fe accrefcentava a benévola interceíTão de alguém, cuja privança era mais intima no animo irrefoluto da rainha.

Emquanto no paço fe enlaçavam e complicavam os en- redos, forcejando os mais ferozes inimigos de Carvalho por defhonrar-lhe juntamente o carader e o governo, um nego- cio capital occupava n'effes dias o animo inquieto da reac- ção. Tratava-fe de nada menos que de annullar a fentença proferida pela junta da Inconfidência contra os réus do re-

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gicidio. Se a innocencia dos juftiçados fe julgaíTe n'um pro- ceíTo de revifta, e o governo fe conformaíTe com efta audaz refolução, os delinquentes rellirgiriam na memoria dos vin- douros como um coro de martyres illuftres, immolados á fe- rocia de um ficcario. Se Carvalho apparecia como um aíTas- fino, mal acobertado na apparencia das formulas judiciarias, o máximo rigor exercido contra elle era a jufta expiação dos feus delidos. Era o marquez de Alorna o que em honra dos Tavoras, feus parentes, pedia com inftancia a revifão. Um decreto da rainha', após mil combates e hefitações, concedeu a revifta de graça efpecialiffima. Eram quinze os defembar- gadores que deviam examinar o proceíTo e a fentença con- demnatoria. Entre elles não eram raros os que tinham con- fpicuamente figurado como fatellites juridicos do miniftro omnipotente. Os fecretarios de eftado, fegundo era praxe monftruofa n'efta parodia de grave judicatura, prefidiam ao fynedrio dos legiftas. Após muitas delongas, irritada a im- paciência da rainha ou a dos feus defafifados confelheiros, congregaram-fe de noite no palácio da Ajuda os juizes da revifta, e fendo as quatro da madrugada do dia 23 de maio de 1781, proferiram a tardia fentença abfolutoria, de- clarando indemnes de toda a infâmia e culpa a memoria dos Tavoras e do conde de Atouguia, e reftituindo ás fuás fa- mílias as honras e preeminências de feus maiores. O procu- rador da coroa, João Pereira Ramos, oppoz-fe com embar- gos á fentença, que a foberana, por occultas influencias, e porventura com o efcrupulo de aífociar a uma flagrante ini- quidade o nome de feu pae, nunca chegou a confirmar.

Os echos d'eftas incanfaveis diligencias, com que fe pre- tendia apreífar a final condemnação do perfeguido reforma- dor, chegavam aos feus ouvidos como o terrível ulular dos

I Decreto do lo de outubro de 17S0.

feus crus adverlarios. Efperava a cada inlíante que por íor- çolb corollario da fentença abfolutoria dos Tavoras e do Atouguia, chegalTe ao cabo de tão duras provações o decre- to da rainha condemnando o miniftro de feu pae. Ainda não eram cumpridos bem três mezes depois da fentença revifo- ria, quando um no\o diploma da Ibberana' refolvia finalmen- te as incertezas crueliffimas, em que tinha paílado no Pom- bal mais de três annos o odiado reformador.

Faziam os infenfatos confelheiros que a rainha íirmaffe n'aquelle diploma o juizo mais implacável e fevero contra o miniftro de leu pae, exhalando-le em vagas acculações, que não le preoccupava de aíTentar em factos certos. Declarava que apefar de haverem fido qualificados os feus delictos, como de réu e merecedor de exemplar cafligo, o piedofo co- ração da imperante, attentas as graves moleftias e os decré- pitos annos do efi:adifta. e infpirando-fe antes na clemência que na juftiça, lhe perdoava e remittia as penas corporaes, ordenando-lhe porém de viver a vinte léguas longe da corte, emquanto aprouveífe ao feu animo real. Deixava porém li- vre ao régio fifco e aos particulares toda a acção civil para ferem indemnifados das perdas e damnos, que contra Se- bafi:ião de Car\'alho podeífem nos tribunaes competentes comprovar.

Aífim condemnava implicitamente a rainha, que appelli- daram piedofa, a memoria de feu pae. Segundo aquelle de- creto a longa adminiftração de Sebaftião de Carvalho havia fido um tecido de iniquidades e porventura de violentas ou artificiofas extorfões ao fifco e aos particulares. E como pode- ria fobrenadar á infâmia do miniftro a honra do foberano, que durante vinte e fete annos fora fe não o refponfavel prin- cipal, ao menos o activo cooperador do eftadifta dcfhonradoi'

Decreto de iG de at^ollo de 1781.

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A dolorofa impreíTão, que no animo de Carvalho haveria de fazer o hrutalilTimo decreto, não é precifo encarecel-a com palavras. Não o culpavam de erros, fenão de crimes, e não de crimes políticos fomente, fenão de peculato e con- cuífão no exercício dos feus cargos. Aos oitenta e dois annos cumpridos, não havia fortaleza de efpirito nem robuftez de corpo, que podeíTem refiftir imperturbáveis a tão cruel e iní- qua exprobração. Foi para contradizer as aííirmações ou as fufpeitas de que houveífe abulado do poder para accrefcentar as fuás riquezas, que Sebaftião de Carvalho defcreveu n'uma longa memoria o eífado dos feus bens e a fua proveniência. As dolorofas provações, com que Sebaftião de Carvalho es- tava expiando os largos annos de incontraftavel didadura, eram a trifte, mas neceífaria confequencia da própria natu- reza do poder que exercitara. O feu governo fora politica- mente uma dominação abfoluta, que punha acima das leis a vontade do foberano, e fazia do feu arbítrio o fynonymo da legalidade, e das fuás refoluções irrefponfaveis a norma de juftiça. A fua adminiftração havia lido uma luda de força, não temperada pelo influxo do direito ou da ec^uidade.

Quando o viram prolfrado na arena, onde o tiveram por invencível antagonilla, então foi o retorquirem contra elle as próprias armas que forjara. A violência refpondia a violência, á dureza a feveridade. A guerra é affim em toda a parte. Não é pois para extranhar que o maior miniftro, que Portu- gal celebrou nos feus annaes, foífe egualmente o mais fcvero para com os feus contradiífores, e o mais cruamente maltra- tado pelos feus adverfarios.

Sebaftião de Carvalho recebera da rainha a aftronta der- radeira. Era o perdão da pena corporal. Ao homem que tinha a confciencia de benemérito, em vez dos louros que merecia, condemnavam-n'o por delinquente, e perdoavam- Ihe por velho e achacado. A clemência infamante da rai-

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nha, cm vez de encher de gratidão affeduola o coração do eftadirta, era pelo contrario a ultima tribulação da fua vida. Com as atfecções do animo engraveceu a enfermidade, defde largos dias progreíTiva e accelerada pelos annos. A 8 de maio de 1 782 tocava o leu termo a exiftencia mais fecun- da e mais activa de quantas no gabinete fe votaram ao gover- no e ao bem da fua pátria. Foram os defpojos mortaes do legillador fepultados na egreja do antigo convento de Santo António na villa do Pombal. De c[uantos amigos o haviam circumdado frequentes, ofiiciofos, aduladores nas horas do poder, raros fe atreveram a affrontar a opinião, comparecen- do a render as honras ultimas ao antigo omnipotente diófa- dor. O bifpo D. Francifco de Lemos não faltou ás folemnes exéquias do que fora feu patrono e era então leu diocefano. Pregou o lermão fúnebre o benediclino Fr. Joaquim de San- ta Clara, e honrou a oratória lacra pela forma eloquente do elogio c pela audácia de o pregar n'um tempo, em que a refpeito do eftadifta, a diftamação era virtude, o filencio lufpeição, e lela-majeilade o panegyrico.

Quando haviam paliado largos annos depois que Se- baftião de Carvalho pertencera á ferena jurifdicção da hifto- ria, principiou a poíteridade a fer mais jufta do que foram com elle os léus contemporâneos.

Um decreto do duque de Bragança de 1 2 de outubro de i833 iniciou a reparação devida á memoria do miniftro, or- denando que no pedeftal da eífatua equeftre folTe repofto o medalhão de Sebaftião de Carvalho. Mais tarde, a 1 6 de ju- nho de i856, as cin/as do eífadifta, que reedificara a deítrui- da capital, foram defde o Pombal trafladadas folemnemente para Lifboa, e depois de um officio folemne, mandado cele- brar pela municipalidade lifbonenfe na egreja de Santo An- tónio da Sé, foram depofitadas na capella das Mercês, na rua Formofa.

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A grande c folemniíTima apotheofe do eminente refor- mador eftava porém guardada para quando cem annos fe perfizeíTem depois que fe efcondêra no fepulchro. Por lou- vável e generofa diligencia dos eftudantes de Lifboa, e pela cooperação das claíTes commerciaes, principalmente da ci- dade baixa, fe feftejou na capital com magnificas e oftento- fas illuminações durante os dias 8, 9 e 10 de maio do pre- fente anno de 1882 o centenário do grande legiflador. Um pompofo cortejo civico, em que havia cuftofos carros de artificiolb lavor e invenção, e onde por largas horas des- filaram, precedidas de bandeiras e repartidas em numerofas corporações, milhares de peífoas, foi a mais apparatofa ma- nifeítação de quanto Lifboa, e com ella Portugal inteiro, apreciava os beneméritos ferviços do grande homem á civi- lifação puramente fecular e á moral emancipação do povo portuguez.

A fefta magnifica do centenário foi como que a folemne canonifação civil de Sebaftião Jofé de Car\'alho c Mello. Por ella ficou authenticamente infcripto o nome gloriofo do efta- difta no livro de oiro, onde fe regiftram os beneméritos da humanidade, aquelles que pela tranquilla cogitação no gabinete ou pela enérgica acção na vida praftica, alargaram os caminhos ao progreífo e inundaram de luz intenfa a atmofphera focial. Não é o favor nem a lifonja quem aífim decreta a immortalidade ao homem, que ha um feculo pas- fou. Quando do que teve de humano, de caduco, de terre- nal, fó refla um pouco de pó, quando o feu poder é uma memoria, a fua grandeza um nada, as homenagens ren- didas ao feu nome e á fua gloria reprefentam a jufiiça in- defeflivel da auftera pofteridade. E Sebaftião de Carvalho foi em verdade um grande eftadifta e um grande portuguez. Separemos do feu efpirito as grandes imperfeições e do feu animo os numerofos defeitos, que o macularam, e appare-

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cer-nos-ha como um dos raros portuguezes, em quem ao mefmo tempo concorreram as maiores illuminações do es- pirito, e as mais activas e nobres qualidades do animo. Não era Sebaltião de Carvalho certamente uma d'eftas rariíTimas intelligencias, que nos léus voos mais erguidos raiam a cada paíTo no original e no fublime. Era um talento, não um génio, mas o leu entendimento era profundamente reflexivo e opu- lentado com mui vafta e copiola erudição. A lua palavra, ou tallaffe no idioma pátrio ou fe exprimiíTe em lingua fran- ceza, era fluente, amena, períliafiva, relevada pela gravidade majeítofa do feu gefto e pela nobre compoítura do feu vul- to procero, quafi agigantado. A efcrever era claro e metho- dico, mas diffulb e hyperbolico na idéa, redundante na dic- ção. Comprazia-íe nos fuperlativos e nos advérbios, com que bufcava realçar o penfamento, principalmente quando os feus efcriptos eram deftinados a affear até o monftruofo o carader e as acções dos feus adverfarios e em elpecial dos jefuitas.

Todavia os feus efcriptos puramente litterarios, fe ainda um pouco fe refentem do conceptifmo feifcentifta e dos ter- mos fefquipedaes da epocha de D. João V, denunciam um efpirito de larga illuftração e um eftylo corrente e defaíTe- élado. AíTim o Elogio do primeiro marquei do Loiíriçal, reci- tado na Academia de lújloria, fe não fe levanta demafiado acima do commum nivel litterario do feu tempo, attcfta a clareza do entendimento e a correcção da linguagem. É prin- cipalmente, quando applicadas aos máximos negócios ou aos minimos particulares de politica e de adminiílração, que as faculdades eminentes de Carvalho rafgam os feus voos mais brilhantes. As fuás idéas nem fempre fão ingenitas e origi- naes. As mais das vezes citram-fc na imitação do que lhe parece ter mais efficazmente contribuido para a profperida- dc e grandeza das nações. SuUy e Colbert eftão prefentes

fempre á lua memoria, como Alexandre, Annibal e Júlio Cefar apparecem por modelos ao eípirito guerreiro de Buo- naparte. A idéa, que uma vez fe debuxou no feu efpirito, é por elle tralladada á adminiftração com a indelével impres- fão de uma vontade, que não íabe defiftir nem trepidar. A energia e a perfeverança na refolução conflituem de feito os rafgos principaes da fua phyfionomia moral. O feu caraéter ainda é mais rijo e mais fevero do que o feu efpirito: é a tenacidade do bronze fervindo a encadear a forma fugaz do penfamento. O que elle quer com a vontade omnipotente, é irrefiflivel como a neceíTidade, fatal como o deftino. E pre- cifo que emmudeçam no coração todas as vozes da huma- nidade, quando uma vez fallou a razão do eftado. Por iífo Carvalho facrifica a fenfihilidade á urgência dos feus gol- pes. Para elle o governo é como a guerra, uma luda, onde a primeira condição é aniquilar o inimigo, fe de outro modo não é poflivel defarmal-o. A idéa nova ha de a^'ançar mar- chando fobre a velha tradição. Onde os adverfarios lhe ob- ftruem o caminho, lerá a força o gaftador que derrube e alhane os obítaculos. A dureza de Carvalho é a própria con- dição do feu triumpho. A fua crença vivaz e intolerante na preexcellencia do poder civil e na emancipação intelledual da humanidade, não é apenas enthufiafmo, toca as raias do exaltado fanatifmo. D'ahi vem a febril exaltação que o tem fempre em fobrefalto contra os deteftados jefuitas. D'ahi vem as mais duras perfeguições contra os que bufcam ajudar ou favorecer os intentos da Companhia. Dois defeitos capitães empanam a limpidez ferena do feu animo. O primeiro c o defejo ardente de perpetuar o feu nome e a fua gloria n\ima familia levantada ás honras mais diil:indas da nobreza titu- lar, como fe os grandes homens podeífem ter outra famiha, onde o feu culto fe perpetue, fenão a agradecida pofterida- de, como fe os defcendentes dos heroes não folfem, por uma

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lei providencial, condemnados a rojar pela rafteira obfcuri- dade um nome, com que não podem, uma gloria, que nem fabem comprehender. E d'ahi que fe origina a complacên- cia, com que recebe o titulo de conde de Oeiras, e mais tar- de o de marquez de Pombal. D'efte defeito fundamental de- riva-le um fegundo de não menos defprimor e menofcabo para a gloria de Carvalho. Foi a lua dominante cubica de adquirir e enriquecer, como fe as próprias thefes, que elle rijamente propugnou em luas leis, lhe não eftiveram pro- gnofticando, que pela futura abolição de todas as formas de amortifação, e pelo termo fatal da velha monarchia, as famílias fundadas no privilegio e na munificência dos mo- narchas, leriam em breves tempos reduzidas a eleger entre a mendicidade ou o trabalho, e a confundirem-fe pela egual- dade na maíTa commum e ablbrvente da moderna demo- cracia.

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SEGUNDA PARTE

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SEBASTIÃO JOSÉ DE CARVALHO E MELLO

o EMINENTE PROPULSOR DA EVOLUÇÃO SOCIAL EM PORTUGAL NO SÉCULO XVIII

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Mouftrat iler. ]). J. I.

uem algum dia fe inclinou anciofo fohre o corpo exânime de um pae idolatrado e, de- pois de prolongada anguftia, lhe prelentiu o primeiro palpitar do coração que annuncia- va a volta á vida, eíTe poderá comprehen- der o jubilo immenfo com que os amigos do velho Portugal fentiram o defpertar d'aquel- le nobre povo acudindo á grande fefta das nações, que pare- ce convocada para o fim d'efl:e feculo pelas leis imperiofas da hilloria.

A celebração do tricentenário de Camões fez o effeito de uma defcarga eledrica que abalaffe até o intimo do or- ganifmo a todos quantos poíTuem um coração portuguez. Ceifou inftantancamentc o marafmo que durante cem annos paralyfára aquelle paiz; os herdeiros das velhas glorias can- tadas pelo poeta immortal, fentiram a folidariedade que os

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ligava, defpertaram do pefado lethargo do dclpotilmo, lacu- diram as reminifcencias do ominofo pefadello das fuperfti- ções theocraticas, e entraram de poíTe da fua confciencia inaugurando uma nova epocha de vida publica racional.

A celebração dos centenários dos grandes homens é uma feita eíTencialmente nacional. Nenhuma academia a decide; nenhum governo a decreta; nenhum príncipe a íancciona. A veneração pelos homens verdadeiramente grandes impõe- fe imperiofamente, nalce efpontanea no fundo de todas as confciencias, fentem-n'a os mais felizmente dotados como os mais rudes: acode aos mais inlfruidos como aos mais ignorantes; a uns aviva-lh'a o eftudo: a outros enfina-lh'a a tradição; os reis e os governos tèem cunhado muita moeda falfa de nobreza; o juizo da pofteridade, eíTe é que facil- mente fe não corrompe.

A grandeza humana tem manifeítações variadas como é largo e vario o campo da nofla adividade. Uma nação nobi- lita-fe quando prefla homenagem a um philofopho como Spi- nofa, a um poeta como o Dante, a um artilla como Raphael, a um inventor como Guttemberg; mas quando depois de prolongada inércia, um povo inteiro fe levanta como um homem para celebrar o tricentenário d'aquelle em quem as circumftancias como que perfonificaram a grandeza e até as defgraças da pátria, eíTe povo evidentemente retempera-fe para caminhar energicamente ao encontro dos feus deftinos. As nações como os indivíduos fáo fuj citas a certos desfalle- cimentos de que defpertam para reconquiflar o tempo perdi- do; nenhum peito género fo deixará de vidoriar com enthu- fiafmo cheio de efperança eíTe immenlb reviver da Europa inteira, c]ue emfim fe levanta e fe orienta, penfa e reflede, fente fuás forças e entra denodadamente na phafe de acção que a fciencia lhe indica. A celebração do tricentenário de Camões foi por certo em Portugal, nos últimos tempos, a

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mais vigorofa affirmação do elpirito publico para o grande movimento Ibcial que fe eftá operando na Europa na ultima parte d'en:e feculo. Mas eíTe movimento não é ilblado. Seria ingrato e perigofo defconhecel-o. A republica reerguendo-fe em 1S70, em França, foltou eíTe brado fonoro de emancipa- ção que delpertou os echos e eftimulou a dignidade do mundo inteiro. O tricentenário de Camões teria fido celebra- do ainda quando um Bourbon, um Bonaparte ou um Or- leans governalTe em França. Mas eíTa fefla não teria tido a mefma fignificação, leria apenas um faclo ifolado, e não faria um elo d'eíra immenla cadeia que parte de alem do Neva, atraveíTa como a medula efpinhal de um fyftema ncr- vofo a Europa inteira, e vem perder-fe no grande continente americano, trazendo eíTa corrente magnética emancipadora que defperta a um tempo as mais nobres afpirações.

Os operários do futuro, aquelles que fe dedicam á nobre tarefa de firmar na terra o reinado da jufliça, refpondem uns a outros como fentinellas perdidas n'eíre campo immenfo da actividade humana. As luas fileiras engroífam ao palfo que rareiam as dos feus inimigos, e cada vez fe condenfará mais eífa força da vontade dos povos, determinada pela generalifação de uma verdade fcientifica, que mais tarde fe tornará irrefiftivel.

Entrando aclivamente no grau de movimento da huma- nidade, Portugal e todos os que o acompanham, não traba- lha fó para fi, cumpre o grande dever de acudir ao concurlb das nações para trazer o feu contingente á folução do gran- de problema Ibcial.

Quafi um puro acalb vciu approximar em nolfo culto os dois grandes nomes de Luiz de Camões e de Sebaftião Jofé

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de Carvalho e Mello. O grande fado Ibcial que hoje fe eftá dando em todo o mundo civililado parece uma reproducção ou uma confirmação do que acontecia em todas as focieda- des politicas quando o grande miniftro chegou ao poder. Então o foi da idéa moderna, defpontando no extremo hori- fonte intelleéfual, illuminava apenas cumeadas do efpirito humano.

Bluntfchli, que fe ferviu d'efla imagem, quer dar a honra da iniciação da nova epocha focial ao reinado de Frederi- co II da PruíTia em 1740. E por demais germânica a pre- tenfão.

A nova era eftá irrevogavelmente fixada por um accordo tácito em 14 de julho de 1789, e ninguém poderá jamais conteftar á França, á França que nos últimos feculos fe tem fempre encontrado á frente do penfamento humano, o mé- rito immenlb de ter feito folemnemente a mais enérgica e gloriofa afiirmação da jufliça nos tempos modernos. lUumi- nou-a com o mais vivo fulgor do feu talento e confagrou-a abundantemente com o leu fangue. Um paiz que faz tão prodigiofos facrificios por um ideal, tem direito a que lhe refpeitem as fuás glorias.

Mas fe é inconteftavel que foi em França que reben- tou eíTe immenfo vulcão de faber, de talento e de heroifmo, a que a hiftoria poz o nome da grande revolução focial, também não é poílivel defconhecer que em meados do fe- culo XVIII cm toda a Europa fe operava um trabalho furdo, mas poderofo, de intelligencia que, fe pelas circumflancias da epocha não podia defcer até a grande muhidão dos efpi- ritos fubalternos, deu origem, entretanto, a grandes manifes- tações nas intelligencias mais elevadas. Frederico II merece por certo fer citado entre aquelles a quem, n'eíTas alturas intelleduaes, illuminou primeiro o foi da moderna afpira- ção. Catharina, da Ruflia, não deve ler efquccida; .lofé II,

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de Auftria, acompanhou dignamente os efpiritos mais cultos do feu tempo. A todos clles coube a honra infigne de le pre- occuparem com a queftão focial, que no feu tempo aprelen- tava (nem outra coufa era poíTivel), uma forma muito con- fufa; mas feria injuílo negar a Sehartião Jofe de Carvalho e Mello o primeiro logar n'eíra plêiade illuflre, em que aliás figuraram muitos outros aflros de fegunda e de terceira gran- deza, que tiveram o mais benigno influxo nos deftinos da humanidade.

Se não é illuíao d'elfe immenfo amor que, aos que nas- ceram em Portugal, infpiram fempre ao longe as coufas por- tuguezas, a Sebaftião de Carvalho faltou a felicidade de ter Voltaire por correfpondente e amigo, para que a Europa lhe preílaífe defde meados do feculo paífado as homenagens que nós fempre lhe rendemos. Se em logar de fe atolar nas mefquinharias de Berlim e de Sans-Souci, o rei Voltaire tiveífe ido até Oeiras em 1775 aífiifir á primeira expofição de induftria nacional que fe fez no mundo, é provável que elle tiveífe achado uma formula mais jufta e comprehcnfiva do cjue a do celebre verfo:

Ccjl dn iiorl à prcfciit que iióiis vient la liimicrc

Do Meio-Dia também podia irradiar então alguma luz. ainda para a França d'aquelles tempos.

A grande obra de Sebalfião de Carvalho pode folírer o confronto e a critica de quem quer que feja. A actual fefla o prova. Elle pertence inqueftionavelmente áe]uella claífe de homens cujo nome fòa mais longe e mais forte depois da morte; cujo vulto fe eleva mais alto depois que entrou no tumulo; cuja intelligencia deita um fulgor mais vivo depois que fua voz emmudeceu. Ha cem annos que defappareceu de entre os vivos, e o feu nome como os feus diófos en-

chem a memoria e circulam na bocca de quantos faliam a lingua portugueza. No momento em que a hiftoria aprefen- ta ao noíTo reconhecimento e á noffa admiração os feitos do grande miniftro, defvanecem-fe e fomem-fe como vãos phantafmas, muitos vivos que a forte e a fatuidade condem- nou á irrifão de lhe fuccederem.

É impoffivel contemplar a obra de Sebaftião Jofé de Carvalho e Mello fem reconhecer n'elle o precurfor da gran- de revolução de 1789. E não é dizer tudo, porque não é dif- ficil defcobrir no fcu mais intimo penfamento o gérmen de algumas das mais adiantadas afpirações do noífo tempo. Sebaftião de Carvalho conheceu o abufo immenfo da theo- cracia e 'da metaphyíica, viu claramente a perniciofa in- fluencia do direito romano, entreviu a falfidade de alguns principios económicos cjue ainde hoje dominam grande nu- mero de efpiritos, foi um apoftolo dedicado da egualdade en- tre os homens, quanto o comportavam os preconceitos do feu tempo, trabalhou quanto pôde para a diffufão dos mais úteis conhecimentos, deu um impulfo enorme á induftria na- cional, promoveu a agricultura, o commercio, a navegação, favoreceu as artes, reorganifou a inftrucção publica, difcipli- nou o exercito, dignificou perante o mundo o nome portu- guez, reprimiu a nobreza, refreou o clero audaciofo, efmagou os jefuitas facciofos e rebeldes, conteve Roma imperiofa- mente, deu ao folo de Portugal a prerogativa de libertar os efcravos que o pizaíTem, melhorou a condição dos Índios do Brazil, rehabilitou os chriftãos novos, reedificou Lilboa fub- vertida, efFeituou a primeira expofição de induftria nacional, que vinte e três annos depois foi imitada pela republica

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franceza no fim do feculo, abriu as fontes induftriaes da opulência, encheu o erário e emendou os coftumes. Deixou- nos um exemplo, que até hoje ainda não foi egualado, de uma actividade aíTombrofa dirigida por uma intelligencia tão penetrante, por uma intuição tão perfpicaz, fuftentada por uma vontade tão tenaz e tão firme que parece ter prece- dido de um feculo o efpirito humano. O arrojo com que em- prchendia os mais oufados commettimentos, e a galhardia com que os levava a cabo fazem fingular contrafte com a meticulofidade e inefficacia com que em noíTos dias têem fido tratados os mefmiíTimos problemas. Aquelles cipós ma- tadores a que o grande miniftro mcttèra o machado com braço tão esforçacio, reviveram depois da fua morte, todos nós os virnos reflorir cm noíTos dias, enleiando a arvore da civilifação, fi-iífocando com o feu amplexo pérfido c finifiro as mais legitimas afpirações da fociedade, fem que cfle me- chanifmo hybrido da monarchia conllitucional, que pelas dynaftias é íblidario com os intereffes da reacção e pelo po- vo tende ao eftabelecimento do direito, poíTa chegar a ou- tro refultado lenão a um compromilTo em que o direito é facrificado.

A grandeza de Sebaítião de Carvalho impõe-fe-nos tan- to mais imperiofamente, quanto fomos obrigados a confeíTar que nem tivemos a força neceíTaria para confolidarmos to- das as fuás conquiftas!

A feição mais laliente da adminilfração de Sebailião de Carvalho é inqucftionalmente a tremenda luda que elle tra- vou com a theocracia, e da qual faiu vencedor. Cerca de uma decima parte da população de Portugal vivia na mais ignominiofa ociofidade e tirava a fi.ia alimentação principal- mente dos bens que o clero confeguíra adquirir fob pretexto de garantir a felicidade na vida eterna. Singular fophifma! As ordens religiofas tiravam argumento a feu favor do foc-

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corro que davam á mendicidade que ellas próprias origina- vam! Hoje taes opiniões refugiaram-fe no fundo das facris- tias ou nas alcovas dos palácios; mas ainda exiflem.

O babylonifmo catholico de D. João V cuílára a Portugal fommas fabulofas. Todos conhecem os efbanjamentos de Mafra. Conta-fe que das ruinas da patriarchal queimada fe defenterraram cerca de mil e quinhentas arrobas de prata. Portugal não tinha efcolas nem eltradas; mas cuftodias e relicários de oiro e pedras preciofas, abundavam por toda a parte. Os profeíTores morriam de fome; mas o clero, que por irrifão pregava a humildade e a pobreza, nadava na opulência. Se os phenomenos naturaes andavam um pouco defpercebidos, em compenfação o povo era iniciado nas mais intimas minudencias do fobrenaturalilmo. A idéa cedia o logar á. . . afíirmativa; em vez do eftudo a phantafia. A razão fugia efpavorida diante de uma imaginação febril irri- tada pela fuperftição e pela hypocrifia.

A dominação theocratica em Portugal cm meados do feculo paíTado era verdadeiramente hedionda! O eítado de aviltamento mental e de miíeria a que ella reduzira aquelle pobre povo, é verdadeiramente inconcebivel. Se as condições em que naíceu Sebaftião de Carvalho lhe difficultavam a apreciação das circumftancias em que elle encontrou a fo- ciedade do feu tempo, também vencida efta diíficuldade, elle fe achava baftante perto do poder para o alcançar, e realifar as fuás concepções. O que é certo é que, na falta de uma orientação fcientiflca que n'aquelle tempo era impoíTivel, a lua feliz intuição o infpirou a lançar o primeiro rumo que mais tarde foi regiftado na grande carta da evolução huma- na pela revolução franceza de 1789, e pelo qual depois dos tropeços que lhe atiraram em caminho os Bourbons, os Bo- napartes e os Orleans, a humanidade continua em fua car- reira. O mundo fegue a França.

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Durante um quarto de feculo Sebaftião de Carvalho fin- grou imperterrito por eíTe rumo. Sebaftião de Carvalho elca- pou á trift;e lei de óptica íbcial que não deixa ver os objectos quando fão muito grandes e fe acham muito perto de nós. Sua immenfa eftatura lhe permittia vel-os de alto, medil-os e arcar com elles. Um dos peiores eífeitos das mais odiofas do- minações é o abaftardamento dos efpiritos a ponto de lhes delvanecer toda a efperança de emancipação e liberdade. Sebaftião de Carvalho não fe aterrou, nem diante do terrí- vel tribunal da Inquifição, o maior crime commettido pelos papas contra a humanidade— a maior vergonha que a efpe- cie humana ainda fupportou!

Quer attendàmos ao immenlb alcance dos princípios dis- cutidos, quer ao numero de peíToas interefladas na contenda (porque as queftões com Roma intereíTam toda a chriftanda- de) cremos poder dizer afoutamente que a luda travada por Sebaftião de Carvalho foi uma das mais importantes da his- toria. D. João V conduzira a nação ao ultimo grau de vili- pendio focial e moral a que ella podia defcer. Um terremoto, enchendo de ruinas a capital, levara o pavor aos últimos li- mites do paiz.

O génio humano verdadeiramente uma boa medida do feu grande poder quando, apoiando-fe em tão frágeis fundamentos, ou antes, quando a defpeito de tão temerofos obftaculos, confegue ferir tão duras batalhas, e confegue re- erguer do feu leito de Lazaro, um paiz que parece irreme- diavelmente perdido.

A hiquifição foi açaimada, e á fúria d'eíra corte que tem glorificado pela pintura cm feu palácio o afiTaíTinio de Coly- gny, nunca mais em Portugal foram facrificadas vidimas hu- manas. Fecharam-fe muitas dezenas de conventos. Corta- ram-fe as relações com Roma. Ordenou-fe ao internuncio do papa que dentro em quatro dias (n'aquelle tempo o prafo

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indifpenfavel para o fazer) tranfpozeíTe a fronteira de Portu- gal. Mas o que foi verdadeiramente coloffai foi eíTa campa- nha inexorável que elle abriu contra os jefuitas, começando por prohibir-lhes o púlpito e o confeffionario, declarando-os rebeldes, e terminando por confifcar-lhes os bens e por ba- nil-os para fempre de Portugal e de todos os domínios por- tuguezes, e a final por obter de Roma a diffolução da finiftra e odiofa companhia.

Nós que temos debaixo dos olhos a encarniçada lufla que em França ha pouco fe travou entre a Ibciedade civil e as ordens religiofas; nós que teftemunhàmos como o clero tem defendido palmo a palmo, defefperadamente, o terreno do feu fombrio domínio; nós que temos prefenciado em noíTos dias eíTe fingulariífimo duello entre um ancião enclau- furado no Vaticano e o temperamento mais audaciofo e enér- gico dos tempos modernos, apoiado no mais poderofo dos exércitos e nas mais adiantadas conclufões fcientificas, pode- mos fazer uma idéa do que teria fido em Portugal uma tal luda ha cento e vinte annos, não efquecendo nunca que a ariftocracia e a realeza viram confiantemente no clero, e com a maior razão, o feu mais poderofo e natural (fe nem fem- pre o mais fiel) alliado.

É impoífivel demorar por um momento a attenção Ibbre efte immenfo feito de Sebaftião Jofé de Carvalho e Mello fem regiftrar ao de tão grande nome o de um homem il- luftre, que nós vimos defcer á campa nos tempos modernos, carregado de annos e de ferviços, e cercado de uma venera- ção publica raras vezes egualada. Sem fe elevar ás alturas de que o grande miniftro domina a fua e a nofla epocha, Joa- quim António de Aguiar, a quem as circumftancias não im- pozeram tão onerofa tarefa, teve o mérito infigne de fer o homem de uma grande idéa, e a felicidade rara e in^■eja- vel de a levar a cabo. Joaquim António de Aguiar, o hon-

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rado minirtro da rertauração portugueza, proferiu poucas palavras: mas eíTas deixaram um veftigio indelével e fize- ram echo no mundo. « Com frades a liberdade é impoíTi- vel!» Eis a fua thele em toda a fua mudez e na linguagem do tempo. E poíTivel que hoje achaíTemos uma formula de maior âmbito e ao mefmo tempo mais exada; mas fo- ram eíTes os termos que, fegundo a tradição, primeiro lhe acudiram aos lábios, aquelles que elle repetia conllante- mente até que pôde finalmente obter a anciada afTignatura para o decreto, em virtude do qual no mefmo dia e á mefma hora em Portugal fe fecharam todos os conventos depois de expulfos todos os feus habitantes.

E inútil e defleal voltar o rofto para não encarar todas as peripécias dolorofas a que inevitavelmente dão logar me- didas de tal ordem. Então, como feíTenta annos antes, um numero a%ailtado de homens abatidos pelos annos, incapazes de exercer induftria alguma, foram lançados fem conforto, e talvez fem pão, aos tormentos e ás vergonhas da miferia. Muitos d'elles tinham crenças íinceras; alguns polTuiam a cultura que com taes crenças era compatível. Um homem, cuja memoria nós todos venerámos pelo leu talento, íaber e caracter, e pelos relevantes ferviços que preífou ao paiz, deixou cair da fua valente penna expreíTões cheias de aze- dume para cenfurar cile acto evidentemente indifpenfavel. Alexandre Herculano teve a forte de muitos dos feus illus- tres contemporâneos, a cujo efpirito chegou a luz do cri- tério moderno quando a fua obra eftava muito adiantada ou concluída, e quando a orientação fcientifica lo podia fer- vir para moftrar-lhe os paífados defvios do próprio penfa- mento, e quando não era tempo de refazer a fua difciplina mental. E eífe talvez o fegredo do acérrimo defencantamen- to que nos pareceu enfombrar o ultimo quartel da vida do audor da Vo{ do Propheta.

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Amante da liberdade, fem duvida, aírufi:avam-n'o as ou- fadias de Joaquim António de Aguiar. Ainda que conhe- cendo bem o allemão, Alexandre Herculano parece ter-fe conlervado afaftado d'eíTe movimento, que em feu tempo faziam em torno da qiie/tão-focial os Katheder-Jocialijlen das margens do Spree. Apezar, porém, das cenfuras d'eíT:e ho- mem eminente, ou antes, apezar do feu fentimentalifmo, a pofteridade applaudiu o ado do miniftro de D. Pedro IV, como applaudira o do miniftro de D. Jofé I, que ahás Her- culano jamais impugnou.

Aquelle cancro Ibcial foi por duas vezes cauterizado com fogo, ou antes Joaquim António de Aguiar deu a ultima de- mão á obra de Carvalho e Mello. A fotaina negra defappa- receu para fempre de Portugal, aonde não mais voltará. Po- derão introduzir-fe cavilofamente algumas feitas folapadas. Dos vãos de alguma facriftia húmida ou de algum palácio bolorento podem rumorejar-fe algumas imprecações odien- tas contra a civilifação; mas á luz do foi apparece eífa reprefentação hypocrita em que o phantafma de um fyftema de governo defpreítigiado e o phantafma de uma theocracia caduca fimulam um compromiífo eíferil em cima da vora- gem que os deve abforver a ambos.

O fentimentalifmo latino (die lateinifche fentimentalitãt) le- vou-nos a fazer poefia com as ordens religiofas. Nos clauftros e nas cathedraes efgotaram os melhores artiílas o melhor do feu talento. Architedura, efculptura, pintura, mufica e poefia encontraram no ideal religiofo muitas e bellas infpirações.

Miguel Angelo, Raphael, Paleífrina, Milton (e quantos outros?) lhe deveram a immortalidade, fe não no paraizo ce- leftial que elles fonhavam, pelo menos na memoria dos homens. O amor, eífe fuave inífinófo, pervertido pela littera- tura e contrariado pela legiflação conculcado violentamen- te por um myllicifmo afcetico, ao mefmo tempo irritante e

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inexorável, produziu explofões e delirios que deviam exaltar ardentemente todas as phantafias. Durante muito tempo le- duziu-nos a contemplação d'efles milTionarios que iam entre bárbaros e gentios levar o gérmen da concepção theogonica do catholicifmo. Mas o criticifmo moderno lança Ibbre eíles fados uma luz dellumbrante e defapiedada. Quantas vezes a intolerância, ufual companheira das convicções profundas, deixou da noíTa civilifação entre os povos felvagens os mais triftes e deploráveis veftigiosP! Quando hoje nos acode á mente o vulto do venerável padre António Vieira, todo cheio da fua fabedoria, enfinando aos indios os dogmas do catholi- cifmo, ficámos eftupefados ! Invade-nos um fentimento inti- mo e profundo de trifteza e aíTombro! Envolve-nos uma atmofphera de duvida e defanimo! Taes fão as paragens on- de vae divagar o génio e o faher dos homens!

Qualquer que foíTe, porém, o lyriímo com que Chateau- briand e tantos outros quizeffem reaccender os enthufiafmos esfriados, a arvore do fobrenaturalilmo mirrou para fempre. Sebaítião Jofé de Carvalho, como Voltaire e feus confrades, fizeram quanto homens ifolados podiam fazer para a cortar pela rama. Eftava refervado á grande philofophia d'eíl:e fe- culo vibrar-lhe o golpe final, decepando-lhe a raiz. O tronco que até agora reverdecia de um lado quando o amputavam do outro, não pôde mais haurir a feiva do folo em que íe alimentava. A corrente da metaphyfica eftancou para fempre. A evolução orgânica eítá concluída; agora refta a obra da decompofição.

Sebaftião Jofé de Carvalho defpreftigiou a nobreza, apre- fentando-a ao publico como dos mais nefandos delicios. e fijjeitando-a a caftigos infamantes. Não feremos nós quem

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defenda os tormentos, nem ainda a pena de morte; mas o que hoje ninguém admittirá é que os Tavoras e os Aveiros deveíTem eítar perante a juftiça em condições mais favoráveis que o ultimo homem do povo; e firmar eíte principio era da maior importância focial.

É hoje moda cenfurar os erros económicos do miniftro de D. Jofé. Não admira que elle ignoraíTe uma Iciencia, cuja exiftencia era ainda ha poucos annos conteítada por homens do mais fubido critério e cujos principios fundamentaes fão fempre portos em duvida. Hoje por certo nenhum eftadiíta referendaria um decreto prohibindo a exportação dos me- taes preciofos; entretanto, quantas intuições verdadeiramente geniaes revelavam um tado adminiftrativo, que parecia o re- fultado de uma deducção fcientifica?!

Sebaftião de Carvalho promulgou leis fumptuarias, e ves- tiu-fe e fez vcftir a corte com o panno ordinário da manufa- ftura portugueza. Não falta quem exclame: «Grandes erros económicos!» Não é efte o logar de difcutir as leis fumptua- rias, mas não fe acha em taes difpofições o gérmen da con- demnação d'eíre Jijiphifmo que Laveleye combate tão vido- riofamente, pelo qual a fociedade fe condemna a um trabalho Ímprobo para obter o fuperfluo e o inútil, emquanto lhe falta o neceíTario e o indifpenfavel?

Na reforma da inítrucção publica Sebaftião Jofé de Car- valho introduziu modificações profundas; nenhuma por certo mais importante do que aquella que fujeitou o direito romã-

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no ao critério da boa raião. É verdadeiramente notável que Carvalho ahrifle aíTini a porta á reforma da conftituição da propriedade conforme o direito quiritario, que ainda hoje é apenas uma afpiração de alguns poucos efpiritos mais adian- tados como Laveleye, H. Spencer e H. George. Entreviu elle a falfidade dos principies económicos e jurídicos que tornam a miferia companheira infeparavel da civilifação, e cuja demonftração por abllirdo chegou ao ultimo grau de evidencia na Irlanda?

Os efpiritos, bem como os aítros, procedem por um mo- vimento complexo de rotação e de tranllação. O mefmo fe pôde dizer das fociedades, e d'aquelles que as dirigem. Ha uma ferie de fados que defpertam diariamente outras tantas refoluções, que fe impõem a cada momento, e que exigem prompto defpacho; eíTes conflituem a adividade da rota- ção diária, que de um certo ponto de •\iita fe pôde dizer puramente individual. Mas os efpiritos, como as focieda- des, como os aítros, obedecem também a uma lei de muito maior alcance, traçando nos efpaços infinitos do céu ou do penfamento elfa linha de vaftiífimas proporções, que os as- trónomos denominam orbita, e que nas diítancias incom- menfuraveis do univerfo ou do ideal levam a paragens des- conhecidas.

Emquanto os efpiritos modeítos efquecem, fe é que ja- mais chegaram a comprchender, a importância dos feus des- tinos, aquelles que faíram mais rijamente temperados das mãos da natureza alongam os olhos de águia pelas regiões do infinito e indicam ás multidões o caminho do progreífo. O rude camponez cujas preoccupações não ultrapaífam o limite do campo que cultiva, ou quando muito chegam ao mercado em que vende os feus produdos, ficaria repaífado de terror fe lhe fizcífem comprchender que durante toda a fua vida é arrebatado e revolvido por efpaços e abyfmos fem

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fim, com uma rapidez mil vezes mais vertiginofa que a da pluma abandonada ás fúrias do tufão.

A adminiftração de Carvalho e Mello tem aíTim duas partes diftindas: a da economia diária e interna e a da evo- lução focial. A primeira fem duvida merece o maior elogio. A reorganilação de um paiz corrompido e defmantelado, depois do defaífre immenfo de um terremoto, exigiu real- mente uma adividade aíTombrofa. A fua grandeza principal, porém, terá fempre por fundamento a parte que cUe tomou na evolução focial, na obra do futuro. É principalmente por aquillo que elle trabalhou para nós, que a pofteridade fera fempre grata á fua memoria.

D. Jofé entendeu dever premiar ao modo da epocha o feu miniftro, conferindo-lhe titulos nobiliários e condecora- ções. Aos eruditos e aos aulicos compete regiítrar e apreciar eífas manifeftações do real agrado. Em noífos dias um rei elevando um grande homem a taes alturas faz lembrar aquelle governador de Sevilha exornando com efpeífas camadas de oca e de vermelhão os magníficos mofaicos do Alcazar. Affim como o bom gofto moderno reftaurou os antigos pri- mores artiílicos da civilifação agarena, compete-nos também aprefentar perante a pofteridade o grande miniftro, fob o feu nome verdadeiro, efcoimando-o d'eíras fuperfetações pa- rafitas com que a fatuidade principefca queria chancellar o génio.

Era defculpavel a intenção. A burguezia então não tinha preftado o bom ferviço de defpreftigiar eífas frandulagens que aliás ainda fão objecto de ambição e de refpeito para muita gente.

Quando Sebaftião de Carvalho caiu do poder aconteceu como nas grandes commoções geológicas, em que o folo á beiramar fe levanta inopinadamente fazendo recuar as aguas a immenfa diftancia. Uma onda pavorofa, torpiíTima de to-

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das eíTas fezes que as ruins paixões accumularam ao longe, irrompeu com dobrada fúria Ibbre eíTe terreno abandona- do. A ignorância odienta, a fuperítição rancorofa do clero e da nobreza, longo tempo refreadas, precipitaram-fe fobre o pobre Portugal, que então caiu mais baixo que nunca. Ao devorarem a prcfa todos procuravam o miniflro para n'elle faciarem a vingança. Sebaftião de Carvalho podia exclamar como Álvaro Vaz de Almada na batalha de Alfarrobeira: «Fartar, villanagem!» O derradeiro padre, o ultimo fidalgo idiota vinham atirar o feu infulto ao leão moribundo! A gran- deza da obra do eítadifta pôde medir-fe pela violência da reacção. O efpeítaculo que então aprefentou Portugal teria feus traços de ridículo íe a grandeza da cataftrophe o não tornaíTe verdadeiramente medonho. Os Lilliputianos debal- de tentavam triangulizar o gigante que efcapava com o feu immenfo vulto ás mais efticadas concepções dos feus ini- migos! Debalde o queriam enlear com os ténues fios em armadilhas de pigmeus! A fombra do coloíTo proftrado es- magava feus miferos perfeguidores ! Aquelle nome que ecli- pfára e annullára a realeza, lançava agora um clarão finiftro e uma maldição implacável fobre quantos o vilipendiavam, condemnando-os ao pelourinho da hiftoria. Tal é a vingança do génio! Aquelles bandos de frades e fidalgos famélicos e fandeus, no meio dos quaes fe agitava uma rainha louca, precipitavam-fe fobre o erário para devorar os milhões que o previdente miniflro ali accumulára. Recomeçava em larga efcala o trafico fordido para beneficiar as almas no outro mundo. Exhumavam-fe os mortos e as reputações. Reviam- fe os proceíTos, reformavam-fe as fentenças paífadas em jul- gado; e como no bello quadro do pintor allemão a fombra de Shakefpeare aíFifte folitaria fob as arcadas monumentaes de Weítminfler ao desfilar de todos os perfonagens creados pelo feu génio poderofo, Sebaftião de Carvalho pôde aíTiftir

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de braços cruzados do alto do immenfo pedeftal do exilio, que feus ineptos inimigos lhe haviam levantado em Pombal, a eíTa trifte mafcarada de uma immenfa legião de fanáticos que fe defpenhava inconfciente no immenfo abyfmo do des- prezo da pofteridade! Encarado do feu verdadeiro ponto de vifta, o infortúnio do grande miniftro é bello e digno de in- veja. Se o applaufo dos bons e entendidos aíTignala a verda- deira grandeza, efta íempre recebe a fua mais inconteftavel confirmação do vilipendio dos maus e dos incapazes. Galli- leu fem a inquifição, Dante fem o exilio, Jeíus lem o Gol- gotha feriam incompletos. Depois de taes ódios e de taes infultos elle podia focegadamente baixar á campa, certo de que feus golpes tinham ferido fundo, e de que a femente lançada á terra germinaria em tempo opportuno. Nada fal- tava á fua gloria. A bella eftrophe de Le Franc de Pompi- gnan dará fempre a mais primorofa imagem do génio ludi- briado:

O negro nas paragens

Onde o Nilo tem o berço Lançava infultos felvagens

Ao aftro rei do univerfo.

Era ridícula a offenfa! Emquanto na efphera immenfa

Se perdiam taes clamores, O deus dos raios ardentes Jorra\'a a luz em torrentes

Sobre os vis blafphemadores!

Sebaflião de Carvalho tinha plena confciencia da immen- fa crife focial que íe preparava. Bramiam furdamente debai- xo da terra os elementos que breve iam fazer explofão. Car- valho attento preftava o ouvido e exclamava: «Meus filhos ainda viverão focegados; mas meus netos . . . ! »

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Effedivamente fete annos depois que elle cerrara os olhos á luz do dia rebentava a glorioía Revolução Franceza. Em Portugal lo em 1820 fe deram as primeiras manifeftações publicas da regeneração focial. O esforço confiante do clero e da nobreza para obfcurantizar aquelle pobre paiz ainda pôde produzir a volta de Villa Franca, a mais ominofa pagina da hiftoriada realeza depois da fuga de D. João VI para o Brazil. Mas o fevero caftigo dos jeíuitas deixiíra fundo vefti- gio na memoria popular. A nação não podia efquecer como fe flagellava a nobreza na praça publica. AíTim, o mais que a realeza confeguiu (e não foi pouco) foi eíTa tranfacção hibrida do governo monarchico reprefentativo, em que o quarto ejlado foi mais uma vez facriíicado juntamente com a dignidade de todos. Mas o impulfo dado pelo grande mi- niftro lente-le lempre. Agora que um leculo depois de fua morte as fuás intenções começam a fer claramente entendidas, depois de corrido o véu dos tempos, elle tem direito á honrofa denominação de «grande cidadão».

E tal a força da previfão do génio que foi precifo que decorre íTem cem annos para que bem o comprehendeffemos. Mas emfim chegou o dia em que lhe podemos fazer plena juftiça e ir diante da fua effigie depofitar palmas, coroas e flores. A forma efculptural do monumento da praça do Com- mercio poderia dar logar a uma confufão, que cumpre evitar a todo o curto.

Ordenado por Sebaftião de Carvalho, o rifco do monu- mento tinha de feguir fatalmente as exigências da epocha em que fora levantado. AíTim eífe monumento configna uma injurtiça graviíTima, que o nobre povo portuguez reparará por certo no dia em que entrar definitivamente na poífe do feu próprio governo. A eftatua equcftre deve fer refundida para reprefentar o vulto coloífal e auftero do grande inicia- dor da evolução focial, em Portugal, no feculo xviii.

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No logar em que fe acha adualmente o feu medalhão deverá engaftar-fe o do rei que foube efcolher e fuftentar tal miniftro. Efperâmos que no dia 14 de julho de 1889, por occafião do grande centenário, poderemos fob eíTa forma ra- cional e definitiva preftar-lhe as noíTas homenagens.

Rio de Janeiro.

Henrique Corrêa Moreira.

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A DERRADEIRA INJURIA

E ainda, nymphas minhas, não bastava.. Camões, Liíj. vii, Si.

I

^t/i ^^ ^"^ féretro poílo em folitaria igreja ?

ÒmF^ EíTe que defcanfa, e fe efconde, e fe fome,

Traz de um grande miniftro o formidável nome, Que em vivas letras de oiro e lagrimas flammeja.

fora uma invafáo efqualida braceja. Como um mar de miferia e luto, que tem fome E novas praias bufoa e novas praias come, Emquanto a multidão, recuando, peleja.

O gaulez que perfegue, o bretão que defende. Duas mãos de um deftino implacável e occulto, Vão fangrando a nação exhaufta que fe rende;

4í|9 .Hjh^

D'entre os mortos da hiítoria um único vulto Não refurge; um Pacheco, um Caflro não attende; E a cobiça recolhe os defpojos do infulto.

II

Ora, na Iblitaria igreja em que le ha pofto O féretro, fe alguém podeíTe ouvir, ouvira Uma voz cavernofa e repaíTada de ira, De trifteza e defgofto.

Era uma voz fem rofto, Um echo fem rumor, uma nota fem lyra. Como que o fufpirar do cadáver difpofto A rejeitar o leito eterno em que dormira.

E ninguém, falvo tu, ó pallido, ó fuave

Chriíto, ninguém, excepto uns três ou quatro fantos,

Envolvidos e fós, nos feus fombrios mantos,

Ninguém ouvia em toda aquella efcura nave Deífa voz tão fevera, e tão trifte, e tão grave, Murmurados a medo, as cóleras e os prantos.

III

E dizia eíTa voz: «Eis, Lufitania, a efpada Que reluz, como o foi, e, como o raio, lança Sobre a attonita Europa a morte enfanguentada.

-i-A-^ -ò^

23

«Venceu tudo; eil-a ahi que te fere e te alcança, Que te rafga e te põe na cabeça proftrada O terrível lignal das legiões de França.

« E, como fe o furor, e, como fe a ruina Não baftaíTem a dar-te a pena grande e inteira, Vem juntar-fe outra dor á tua dor primeira, E o que a efpada começa a triíteza termina.

« Es o campo funefto e rude em que fe afina Pugna eftranha; não tens a gloria derradeira De devolver farpada e vencida a bandeira, E fer Xerxes embora, ao de Salamina.

IV

« No emtanto, ao longe, ao longe uma comprida hifloria

De batalhas e defcobertas. Um entrar de continuo as portas da memoria

Efcancaradamente abertas,

« Enchia efta nação, que aprendera a viíloria

N'aquella crefpa idade antiga. Quando, em vez do repoufo, era a lei da fadiga,

E a gloria coroava a gloria.

« E aíTim foi, palmo a palmo, e reduílo a redufto, Que um punhado de heroes, que um embryão de povo Levantara efte reino novo;

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ti»

« E livre, independente, effe afpero produdo Da immenfa forja pôde, achegando-fe ás plagas. Fitar ao longe as longas vagas.

V

« Era efcaíTo o torrão; por compenfar-Ihe a mingua, AíTim foi que dobrafte aquelle occulto cabo, Não fabido de Plinio, ignorado de Strabo, E que Homero cantou em uma nova lingua.

<r Affim Ibi que podéfte haver Africa adufta. Alia, e effe futuro e defmedido império. Que no fecundo chão- do recente hemifpherio A femente brotou da tua raça auguíta.

« Eis, Lufitania, a obra. Os feculos que a viram Emergir, como o foi dos mares, e a poliram, Tranlmittem-lhe a memoria aos feculos futuros.

« Hoje a terra de heroes foffre a planta inimiga. . . Quem podéra mandar aquelles peitos duros! Quem foubera empregar aquella força antiga!»

VI

E depois de um filencio: « Um dia, um dia, um dia

Houve em que n'efla nobre e antiga monarchia

Um homem, paz lhe feja e a quantos lhe confomem

A fangrada memoria, houve um dia em que um homem,

eis

« Pofto ao lado do rei e ao lado do perigo Viu abater o chão; viu as pedras candentes Ruirem; viu o mal das coufas e das gentes, E um povo inteiro de pão, de luz e abrigo.

« EíTe homem, ao litar uma cidade em oíTos, Terror, diíTolução, crime, fome, penúria, l^ão íe deixou cair co'os últimos deftroços.

« Oppoz a força á força, oppoz a pena á injuria, Reftituiu ao povo a perdida hombridade, E onde era uma ruina ergueu uma cidade.

VII

» EíTe homem eras tu, alma que ora repoufas Da cobiça, da gloria e da ambição do mando, Eras tu que um deflino, e propicio, e nefando, Ao faftigio elevou dos homens e das coufas.

« Eras tu que da lede ingrata de miniftro Fizefte um folio ao do folio; tu, liniftro Ao paliado, tu novo obreiro, afpero e duro. Que traçavas no chão a planta do futuro.

«Tu querias fazer da hifloria uma maífa Nas tuas fortes mãos, tenazes como a vida, A mafla obediente e nua.

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20

« A luminola effigie tua

Quizefte dar-lhe, como, á brônzea eftatua erguida, Que o feculo corteja, inda aíTuftado, e paffa.

VIII

I

« Contra aquelle edifício velho Da nobreza, elevado ao lado do edifício

Da monarchia e do evangelho, Tu pozefte a reforma e pozeíle o fíjpplicio.

« Querias defí;ruir o vicio Que a teus olhos roia eíTa fabrica enorme,

E começafl:e o duro officio Contra o que era caduco, e contra o que era informe.

« Não te fez recuar n'eíre afpero duello Nem dos annos a flor, nem dos annos o gelo. Nem dos olhos das mães as lagrimas fagradas.

« Nada; nem o negror auftero da batina. Nem as débeis feições da graça feminina Pela veneração e pelo amor choradas.

IX

« Ah! fe por um prodígio efpecial da forte, Podeífes emergir das entranhas da morte. Cheio d'aquella antiga e fera gravidade, Com que falvafte uma cidade;

tis I

« Quem fabe? Não houvera em tão longa campanha Enfanguentado o chão do lufo a planta eftranha, Nem correra a nação tal dor e taes perigos Ás mãos de amigos e inimigos.

« Tu ferias o mefmo afperrimo e impaíTivel Que viu, fem defmaiar, o conflicto terrível Da natureza efcura e da efcura alma humana;

« Que levantando ao céu a fronte foberana,

« Eis o homem! » diífefte: e a garra do dcftino

hidelevel te poz o feu fignal divino. »

X

E, foltado eífe lamento Ao do grande moimento, Calou-fe a voz, dolorida De indignação.

Nenhum outro fom de vida N'aquella igreja efcondida. . . Era uma paufa, um momento De folidão.

E continuavam fora A morte, dona e fenhora Da multidão;

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28

E devaftava a batalha, Como o temporal que efpalha Folhas ao chão.

XI

E effa voz era a tua, ó trifte e folitario Efpirito! eras tu, forte outr'ora e vibrante. Que poufavas agora, apenas fcmtillante, Sobre o féretro, como a luz de um lampadário.

Era tua eíTa voz do aíylo mortuário, Effa voz que efquecia o ódio triumphante Contra o que havia feito a tua mão poffante, E a inveja que te deu o pontual falario.

E comtigo fallava uma nação inteira,

E gemia com ella a hiltoria, não a hiftoria

Que bajula ou deítroe, que morde ou fantifica.

Não; mas a hiftoria pura, auftera, verdadeira, Que de uma vida errada a parte que lhe fica De gloria, não efconde ás ovações da gloria.

XII

E, tendo emmudecido effa garganta morta, O filencio voltara áquella nave efcura, Quando fubitamente abre-fe a velha porta, E penetra na igreja uma eftranha figura.

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si»

^9

Depois outra, e mais outra, e mais três, e mais quatro, E todas, eftendendo os braços, vão abrindo As trevas, cofteando os muros, e feguindo Como a confpiração nas tábuas de um theatro.

E param juntamente em derredor do leito Ultimo em que defcanla eíTe único delpojo De uma vida, que foi uma longa batalha.

E emquanto um fere a luz que as tcnebras efpalha, Outro, com geíto firme e firmilTimo arrojo, Toma nas cruas mãos aquelle rei desfeito.

XIII

Então. . . O homem que viu arrancarem-lhe aos braços Poder, gloria, ambição, tudo o que amado havia: EíTe que foi o foi de um feculo, que um dia. Um dia baftou para fazer pedaços;

Que, íe aos hombros atara uma purpura nova. Viu, farrapo a farrapo, arrancarem- lh'a aos hombros. Que padecera em vida os últimos aíTombros, Tinha ainda na morte uma ultima prova.

Era a brutal rapina, anonyma, nodurna. Era a mão cafual, que efpedaçava a urna A troco de um galão, a troco de uma cfpada;

eis

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Oh. *-Ò-%-

Que, depois de tomar-lhe effes fignaes funeítos Da fombra de um poder, pegou dos triftes reftos, OíTos íb, e efpalhou pela nave fagrada.

XIV

AíTim pois, nada falta á gloria d'eíte mundo, Nem a perfeguição repleta de ódio e fanha, Nem a fértil inveja, a livida companha. De tudo o que radia e tudo que é profundo.

Nada falta ao poder, quando o poder acaba,

Nada; nem a calumnia, o efcarneo, a injuria, a intriga,

E, por trifte coroa á merencória liga,

A ingratidão que efquece e a ingratidão que baba.

Faltava a violação do ultimo fomno eterno, Não para faciar um ódio infaciavel, Infaciavel como os círculos do inferno.

E deram-t'a; eis-te ahi, ó grande invulnerável, Eis-te oflada fem nome, elparfa e miferavel. Sobre um pouco de chão do ninho teu paterno.

Machado de Assis.

o MARQUEZ DE POMBAL

E A CIVILISACAO BRAZILEIRA

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u fei que na apreciação dos grandes typos da hiftoria, o que mais lhes realça o brilho e mais interelía aos feus admiradores fão os ferviços por elles preííados á humanidade em geral. Goftàmos de ver antes do cidadão o penfador; antes do patriota o homem. Pombal é um d'eíres que, trabalhando para o leu paiz, defprendeu forças em elphera tão alta, encarou problemas tão geraes, que léus feitos intereíTam á caufa do género humano. Atravez do portuguez brilha n'elle o efpiri- to do feculo dos encyclopediflas. Deixando, porém, a outros a tarefa de encaral-o d'elTa altura, leja-me permittido pegar o aíTumpto por um lado mais particular, pela face america- na, brazileira. Pombal foi um fador poderolb do defenvol- vimento do Brazil; foi um agente de ditFerenciação pátria, indigcna, para nós outros americanos; ajudou-nos na elabo- ração da epocha mais fecunda da noffa hiftoria. Qualquer que leja o deftino que os leculos futuros tenham de preparar

tia

a Portugal, qualquer que feja o encurtamento ou prolação do raio de feus feitos, não fera menos certo que a fundação de um povo em o novo continente, a preparação da pátria brazileira, ha de fer contada como o feu maior titulo hiftori- co. O velho duello travado na Europa moderna entre latinos e germânicos tem de protrahir-fe na America em fua luda pela civilifação.

Pombal foi um elemento de vida, um eflimulo de força na Europa e no novo mundo. Em feu esforço para acabar com os últimos veftigios da idade media em Portugal, o mi- niflro de D. Jofé não fe efqueceu do Brazil, e póde-fe dizer que os refultados aqui obtidos foram mais brilhantes do que os da Europa.

Não fei até que ponto dever-fe-ha repetir o logar com- mum hiftorico da união dos reis e dos povos contra os no- bres e o clero, paflagem natural para o predominio da bur- guezia. Em Portugal, pelo menos, o plano parece não ter fido confciente, nem garantido pelos refultados.

A luda de Pombal contra o clero e a nobreza teve um carader circumfcripto, quafi peífoal; e com o defappareci- mento, e ainda em tempo do illuftre miniflro, o clero e a nobreza acharam-fe no mefmo de outr'ora, arrogantes e oufados, em fua eterna união com a realeza. O povo, eífe fempre ifolado e batido em feus direitos.

Em Portugal e Brazil não devemos Ibnhar o conforcio da realeza e do povo contra padres e nobres; realeza, clero e ariífocratas foram-fe defmoronando a pouco e pouco pela carcoma que lhes devorava o intimo, batidos pelo efpirito dos tempos, e efte efpirito é preparado lentamente, penivel- mente, pelo povo, fem alliados contra o tríplice inimigo.

Pombal é um benemérito da hiíforia, não por ter fonha- do a alliança do rei e do povo, não por ter aniquilado a no- breza c a clerezia; elle o c como grande adminiífrador, que

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33

não trepidara em introduzir em Portugal medidas progreíTi- vas, que eftimularam o delenvolvimento nacional e abriram alli a porta ao efpirito do feu feculo. E como o elpirito do feu feculo trazia no leio a femente transformadora e revolu- cionaria, o minilíro de D. Jole I, talvez fem o faber, foi um auxiliar do defenvolvimento democrático. O que o lalva na hiftoria é o leu tempo; elle é feliz cm ter fido homem de lua epocha.

Mas vejamos rapidamente o que era então o Brazil. Em lySo, quando começa a avolumar-le a eíírella de Pombal, a colónia portugueza tinha todos os elementos de feu de- fenvolvimento ulterior. Duzentos e cincoenta annos tinham bailado para a fundação de noílas cidades, a arroteação de noíTos campos, a profperidade de noífas induíirias. O efpirito publico eftava formado. A nação eftava ainda na puerícia; moftrava, porém, o viço das juventudes fortes e fadias.

Todas as luclas que enchem o quadro da hiftoria da America tinham fido pelejadas aqui. Os velhos direitos e pripilegios feudaes dos donatários tinham quafi todos cedido ante o poder monarchico; o 7miniápalifmo burguei tinha me- dido forças com a nobreza territorial na guerra dos Mafca- tes; os negros tinham lavrado o leu protefto de homens no poema dos Palmares-, o nativifmo tinha-fe oftentado no des- dém aos Emboabas; o patriotifmo tinha levantado todas as claífes contra os extrangeiros na libertação de Pernambu- co, do Rio de Janeiro e Maranhão; os fetichiftas Índios haviam lido fuftigados ou cfcravifados pelos Bandeiras; o Amazonas, ao norte, tinha revelado os feus fegredos, e o Rio Grande, ao fui, lido o theatro da rivalidade dos feus povos ibéricos, que vieram continuar luas juftas na penin- fula meridional da America.

Toda uma efcola de poetas, chroniftas e oradores tinha florccido no Brazil; o génio de Gregório de Mattos achara

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grande meíTe para a fatyra. São de notar as invedivas d'efte poeta, o primeiro da lingua no feu tempo, contra governa- dores, padres e grandes funccionarios, indicando d'eft'arte a confciencia que o efpirito popular poíTuia de fi melmo. Pitta lançara os primeiros lineamentos de noíTa hiftoria; mui- tos brazileiros tinham-fe paíTado á Europa e confeguido gran- de laliencia nas lettras e na politica.

E liava preparado o folo d'onde deveria brotar a flor da poefia mineira, e bem perto bruxuleava a luz da Inconjiden- cia. A libertação era qucftão de algumas décadas.

A fegunda metade do feculo xviii no Brazil é a noíTa epocha de mais fecundos efpiritos. A mocidade do tempo de Pombal fornece a plêiade brilhante de brazileiros, que influem nos negócios e na litteratura do reino, continuando as tradi- ções dos dois irmãos Alexandre e Bartholomeu de Guímão.

«Já n'eíre tempo, principalmente defde o Marquez de Pombal, vemos filhos do Brazil occupando os primeiros car- gos do Eftado e outros diftinguindo-íe com efcriptos que ganharam nomeada. João Pereira Ramos, um dos reforma- dores da univerfidade, é guarda mór do archivo da Torre do Tombo. Seu irmão, o bifpo de Coimbra, D. Francifco de Lemos, é reitor e reformador da univerfidade; D. Jofé Joa- quim Juftiniano Mafcarenhas foi feito bifpo do Rio de Ja- neiro, ília terra natal; o báculo de Pernambuco foi confiado a D. Francifco da Affumpção, natural de Marianna, depois a D. Diogo de Jefus Jardim, de Sabará, e mais tarde a D. Jofé Joaquim de Azeredo Coutinho, de Campos. D. Tho- maz da Incarnação, natural da Bahia, é audor de uma co- nhecida Hiftoria ecdefiaftica, publicada em Coimbra em qua- tro tomos. O francifcano Jaboatão, nafcido na villa d'efle nome, publicou uma hiftoria de fua ordem feraphica no Bra- zil; Pedro Taques Paes c Fr. Gafpar da Madre Deus efcre- ^•eram memorias hiftoricas fobre a lua pro^•incia de S. Pau-

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lo; Jofé Monteiro de Noronha, do Pará, em cuja foi vigá- rio capitular, era um ecclefiaflico de baftante laber.

«Na advocacia diftinguiram-fe os cioutores Ignacio F. Silveira da Motta e Saturnino, e como magiítrado fez-fe mui- to notável o defembargadorVellolb.

«Também nas fciencias alguns brazileiros ganharam ce- lebridade n'eíta epocha: Alexandre Rodrigues Ferreira, o Humboldt brazileiro, com fuás extenfas viagens pelos fer- tões do Pará; Jofé Bonifácio de Andrada, viajando como mineralogifta pela Europa, do mefmo modo que o naturalis- ta Manuel d'Arruda Camará c o lluminenfe António de Nola, ao depois lente em Coimbra; Coelho de Seabra, efcrevendo tratados de chimica, além de muitas diífertações fcientificas; Conceição Vellofo, trabalhando em fua grande Flora flwni- nenfe e deixando impreíTos muitos tratados compoílos ou traduzidos; o Dr. Jofé Vieira de Couto, naturalifta em Mi- nas; Manuel Jacinto Nogueira da Gama, diftinguindo-fe cm Coimbra nas mathematicas, do mefmo modo que Francifco Villela Barbofa, e vindo ambos reger cadeiras d'eífas fcien- cias; Pires da Silva Pontes, encarregado dos tratados de li- mites e de levantamento de cartas no Brazil; Jofé Feliciano Fernandes Pinheiro, occupando-fe de traducções de obras que podiam ter applicação á indullria do paiz; Silva Fei- jó, naturalifta empregado em explorações nas ilhas de Cabo Verde; Jofé Pinto de Azevedo, medico diflindo da efcola de Edimburgo, e outros'.»

Faltam ahi os nomes de Silva Lifboa e Hippolyto da Corta, o economifta e o jornalifta, ambos pertencentes á mo- cidade do tempo.

Por efta profperidade da intelligencia manifefta-fe a con- ftituição orgânica do Brazil.

' Varnhagen, Florilégio, tom. i, pag. 54 e fegg

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36

Alguns fedarios da fynietria na hiftoria explicam o ex- pedaculo do deíenvolvimento americano como uma efpecie de reproducção do que fe tem dado na Europa a datar da idade media. Levados por efte penfamento dirigente, divi- dem os povos europeus em latinos e germânicos, catholicos e proteftantes, e os da America em duas iguaes categorias; e d'ahi deduzem uma commoda philofophia da hiftoria.

Se os hoUandezes, por exemplo, fão expulíbs de Per- nambuco, é que era providencial para a marcha da huma- nidade a manutenção da unidade catholica na America do fui. Por um raciocinio análogo dever-fe-ha dizer que a ex- pulfão dos francezes de territórios dos Eftados Unidos, foi também providencial para a manutenção do predomínio pro- teftante na America do Norte. Entretanto a hiftoria não fe prefta a accommodações tão rápidas. Na Europa não exis- tem fomente latinos e germânicos, catholicos e proteftantes; é mifter contar, pelo menos, com os flavos e celtas, e fôra neceífario que todas as raças d'alli tiveífem reprefentantes no novo continente para fer perfeita a femelhança e exaflo o equilíbrio.

Além d'ifto os allemães, o exemplar mais acabado de fua raça, os francezes e os italianos, os mais perfeitos do gru- po latino, não fundaram aqui nacionalidades novas; e bem fe comprehende que a Providencia deveria efcolher os exe- cutores de feus planos entre os mais progreíTivos reprefen- tantes dos povos europeus que defejava tranfportar para a America.

Tal theoria tem, além do mais, o defeito de confiderar a civilifação americana como um todo emigrado, um movei de luxo transferido no convés dos navios da Europa para efte continente; c paíTa a efponja fobre os elementos autóno- mos fornecidos pelas raças indígenas, pela acção do meio phyfico e pelos povos africanos encorporados a nós.

37

No Brazil todos eftes elementos devem fer ponderados. efclarecidos em fua acção!

A noíTa hiftoria não é, não pôde fer, pois, uma copia fer^■il da hiftoria de Portugal; não fomos um povo de nave- gantes. . . e defde ahi começa a ditferença entre a colónia e a metrópole.

A boa politica a feguir no Brazil feria a que deixaífe plena liberdade á acção das diverfas raças exiftentes no paiz, fem impor o predomínio de uma fobre as outras por meio de uma efpecie de felecção artificial, feria a que aju- daífe o defenvolvimento normal do povo brazileiro pela fe- lecção natural.

A efta luz é que Pombal furge aureolado do feio de noífa hiftoria.

Por meia dúzia de fados capitães comprehender-fe-ha todo o alcance da acção do eftadifta fobre o defenvolvi- mento do Brazil:

a) A abolição dos últimos direitos feudaes e reverfão para o Eftado das capitanias reftantes;

b) Emancipação dos indios do Pará e Maranhão, e de- pois de todo o Brazil;

c) Expulfão dos jefuitas e derrota de feus planos anti- nacionaes ;

d) Facilidade de viagem para navios do Brazil e creação de companhias de commercio, como as do Pará e Maranhão, Pernambuco e Parahyba;

e) Elevação do paiz a vice-reinado com a mudança da capital para o fui, a creação de uma relação c de efcolas publicas;

f) Cuidado ás noífas queftões de limites ao norte e fui.

Pombal compenetrou-fe da importância da grande coló- nia portugueza, e attribue-fe-lhe ate vagamente o penfamen- to de mudar a fede da monarchia para Belém, no Pará.

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As três primeiras medidas que ficaram efpecificadas en- cerram todo o leu penlamento politico Ibbrc o Brazil. Era a idéa clara de fazer do paiz um todo compado, com os mefiiios direitos diante do poder central. Ao mefino tempo indiredamente contribuia o miniil:ro para definantelar a ten- dência poíTivel do jefuita para a formação de uma nação em que predominaria talvez o caboclo. Pombal quebrou a efte as cadeias, pondo-o em de igualdade com os de- mais colonos e expulfando o jefuita. O indio deixou de ler uma força politica, paffando ao papel de fimples contribui- dor ethnico. Se tiver ao diante de fer vencido na lucia pela civilifação, dever-fe-ha queixar fomente da natureza.

As outras medidas referem-le ao delenvolvimento eco- nómico e Ibcial da colónia. O Brazil era então, como ainda hoje, quer ao norte, quer ao fui, agricultor; mas atraveífava o momento económico da defcobería das minas de oiro no centro de Minas.

O oiro tinha fido incentivo para o povoamento do inte- rior já antes de Pombal; mas nos últimos annos do governo de D. Jofé a producção efcaífeava. O miniftro comprehen- deu que os áureos tempos de D. João V tinham paífado. Não poz no oiro toda a fua efperança; a agricultura, a in- duífria e o commercio lhe mereceram mais attenção.

Os outros ados referem-fe ás condições geographicas da nação, que procurava as luas fronteiras naturaes. Por efie lado o poderofo miniftro não foi de todo feliz; mas é certo que não affignaria os tratados vergonhofos de 1777 e 1778.

De todos ertes factos a expulfão dos jefuitas é o que tornou mais ruidofa a paífagem de Pombal pelo poder. A acção, porém, do miniftro poderofo não aífume aos olhos dos efpiritos calmos um carader phenomehal. Além de ler igualmente praticado n'outros eftados da Europa, não con- ftituindo afllm uma originalidade portugueza, accrcfce que

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muitiíTimo natural era o choque entre a famofa e turbulenta ordem e o poder civil. O conceito jeluitico da foberania in- directa dos papas Ibbre o temporal era levado a exceíTo e devia chocar mefmo aos reis catholicos, fideliffimos e chrijlia- niffimos . . .

Não fou, por certo, inclinado a admirar muito a vicloria de reis, que le arrogam um direito diinno contra os padres que julgam difpor da graça divina. Uns e outros fe ajudam ou combatem conforme as circumftancias do momento.

Apefar de muito lacunofa n'efte ponto, a acção de Pom- bal tem o mérito de ler uma expreíTão dos fentimentos libe- raes da epocha.

Quanto ao Brazil, não padece duvida a vantagem da coerção do poder jefuitico. O jefuita no feculo xvi, quando ainda não tinha grandes planos políticos, foi útil para a co- lonifação d'eíta parte da America. Nos feculos feguintes a lua acção religiofa era quafi nulla, e a fua influencia politica e focial nociva.

Ha alguma coufa de phantafiofo na opinião d'aquclles que pretendem em noíTa hiftoria eftabelecer um dualilino confciente de duas forças que fe chocam durante os três fe- culos primeiros da conquifta: o colono portuguez e o negro de um lado; o jefuita e o caboclo de outro.

A theocracia Ibnhada pela ordem famofa não pretendia fundar-fe exclufivamente no Brazil onde exiftiam caboclos, e fim também onde os não havia, como no próprio Portu- gal. Aqui na America o jefuita fazia a fua propaganda tanto entre os indios, como entre os negros e os portuguezes. E natural que entre eftes não encontraífe tantos adeptos, como entre os felvagens.

Não fe lhe deve, porem, attribuir o plano confciente da exclufão do elemento europeu. As coufas poderiam chegar a eíte refultado por caufas eítranhas á vontade dos padres.

4* 4*

Nem a lua expulfão do Brazil foi da parte de Pombal uma prova de receio n'aquelle fentido; foi antes uma confequen- cia de fua expulfão da metrópole, onde feguramente não havia perigo de que vieffe a predominar o caboclo.

Como quer que foíTe, o illuftre miniílro de D. Jofé I, por feus aítos, contribuiu para o defenvolvimento normal d'efte paiz, como nação latina, como um prolongamento da civili- fação Occidental. E efte o feu titulo aos olhos dos brazilei- ros. Os últimos cem annos que paíTaram fobre a morte d'es- te grande homem hão confirmado fuás efperanças e idéas fobre o Brazil. Devemos confideral-o como um dos agentes de noífo progreíTo: é de juftiça que o apreciemos tanto quan- to admirou o noífo compatriota, aquelle illuftre efpirito que fe chamava Bafilio da Gama.

Repitamos com elle, fallando do grande miniftro:

« Para fer immortal teu nome auguIl:o

Náo depende do bronze derretido;

Em mais firmes padrões fica inlculpido.»

Sim, fica infculpido em noífa hiíloria; ficará gravado onde quer que eftejam efcriptos os nomes dos bemfeitores da humanidade!

Syl\'io Romero.

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o MARQUEZ DE POMBAL

A LIBERDADE DOS ÍNDIOS

4?

ara julgarmos Sebaftião Jofé de Carvalho e Mello, depois conde de Oeiras, e depois marquez de Pombal, cumpre eítudar os feus ados, no tempo em que viveu, e portanto n'eíre terceiro período da idade moderna, que vae defde a paz de Utrecht (171 3) até a inde- pendência dos Eítados Unidos (1776), que, na opinião de Minghetti, foi precurfora da revolução franceza.

Não é porém noíTo intuito, nas ligeiras paginas que va- mos traçar, em commemoração do primeiro centenário da morte do marquez de Pombal, formar juizo d'aquelle que julgado eftá n'eíl:e mefmo livro, por quem tem o efpirito en- riquecido de lições de hiítoria, e o aprefenta qual elle foi á confciencia imparcial dos contemporâneos.

42

Vamos vel-o, depofitario de todos os poderes Ibciaes pela confiança cega e illimitada de um rei abfoluto; qual o uíb que fez d'eíres poderes em relação ao Brazil, então coló- nia; fe foi além das idéas do feu íeculo; e qual o beneficio que, defapaixonadamente aquilatado pelo Brazil, hoje im- pério, o eleve ao pantheon dos bemfeitores da humanidade.

Nas viagens e defcobertas de nopos mundos, que, no dizer de Draper, marcam os primeiros tempos em que começa para a Europa a epoclia da raião, as nações fe infpiravam em idéas erróneas, que lanccionavam uma barbara jurifpru- dencia ainda enunciada por Mello Freire no feguinte prin- cipio: SERVI AUT NASCUNTUR, AUT FIUNT.

Era um principio de puro romanifino, herdado do berço da humanidade, e que as doutrinas do Chrifto não tinham ainda podido fiipplantar.

SubmiíTos a efliis idéas, e fob o eíl:andarte cuja legenda era v.e victis, correram os ardentes argonautas fobre os povos do novo mundo, e os hefpanhoes, mais do que outros quaefquer, condemnavam os que efcapavam á morte afphy- xiante das minas ás duras penas do captiveiro.

Os portuguezes, lenhores pela delcoberta de Pedro Al- vares Cabral das plagas dos Brazis ou terra de Santa Cruz, dominio e poíTe aíTegurada pela decifão do fupremo arbitro dos tempos, Alexandre VI, não podiam confiderar os indigc- nas lenão como povos conqui fiados.

Foram talvez mais brandos, porque mais brandos eram os feus coftumes, mais humanos os fentimentos dos feus co- rações, mas nem por illo le levantaram acima das falfas

4J

crenças do dia, e ligados a eíTas crenças também fizeram elcravos entre os povos conquiftados.

Embora fe não fizeíTem tardar os protefi:os, lavrados pe- las leis dos fenhores reis de Portugal, em obediência aos diélames das bulias do Vaticano a favor da liberdade dos Ín- dios, embora denodados e defintereíTados apoftõios do chris- tianilmo n'aquellas paragens, como o immortal padre Antó- nio Vieira, ÍLiftentaíTem, com arroubos de uma convincente eloquência, e por ados de inquebrantável vontade, o grande principio da liberdade dos homens, que o invido reforma- dor do mundo focial havia pregado, como bafe de uma mo- ral defconhecida aos antigos philofophos, é certo que o mar- quez de Pombal teve de intervir para acabar com abufos inveterados, alimentados por intereíTes individuaes, em me- nofcabo de preceitos de leis tão fabiamente promulgadas.

Affim é que pela lei de 6 de junho de lySõ recommendou a execução de outras leis anteriores, cujas difpofições pare- ciam efquecidas, as quaes ordenavam que as peíToas dos Índios, como o feu trabalho, como a fi.ia propriedade, eram invioláveis e fagradas, e mandou que eíTas leis também fos- fem applicadas aos indios do Pará e do Maranhão; injio ejlar reconhecido, diz a lei, que a caiifa que tem produzido tão pernicio/os eff eitos confijtia, confijle ainda, em fe não haverem Jujlentado os ditos indios na liberdade que a feu favor foi de- clarada pelos fumtnos pontifices, e pelos fenhores reis meus pre- deceffores.

Parece porém que, apefar de tão decifivas como termi- nantes medidas, que apefar da voz dos fummos pontifices, e de feus enviados apoftolicos, o erro continuava pelo abufo, que alimentavam fordidos e inconfeífaveis intereíTes, pelo

4 si»

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que o grande miniftro promulgou a lei de 8 de maio de 1758.

Efla lei declara livres fem reftricção a todos os índios habitando os domínios de Portugal, bem como todos os feus bens, aíTim de raiz como femoventes e moveis, a fua lavoura e o feu commercio.

E defde então nenhum indio mais dentro do território de jurifdicção portugueza foi confiderado escravo.

Não era poílivel que quem levava a liberdade aos povos da colónia, deixaíTe que na metrópole fe fizeíTe trafico de carne humana, e que debaixo de feu céu alguém nafcelTe com o ignominiofo ferrete da efcravidão.

E por ilTo fez promulgar o alvará de ig de leptembro de 1761, prohibindo a entrada de efcravos em Portugal, fob pena de ferem confiderados livres; e por iíTo mais tarde fez promulgar o alvará de 16 de janeiro de lyyS, declarando que ninguém mais nafceria efcravo em terras de Portugal.

Lendo-fe o primeiro alvará não fe pôde deixar de reco- nhecer que um governo, por fer abíbluto, feja defpota ou tyranno, defprezando ou ufurpando direitos individuaes.

D. Jofé n'eíre alvará decreta que o efcravo vindo a Por- tugal em companhia de feu fenhor, torna-fe livre, como fe de ventre livre tivelle nafcido.

Até aqui efta difpofição nada tem de arbitraria : fica tudo dependente da vontade do fenhor.

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Mas a difpolição poderia dar logar a abufo, e eíTe abufo o alvará trata de impedir, dizendo, que eítá fora da protec- ção da lei o efcravo que /ponte Jua fuja e venha a terras de Portugal ; eíTe voltará na fua condição ao logar d'onde faíu.

Não fe confagra melhor o direito de propriedade par- ticular.

Lendo-fe o fegundo alvará encontra-fe n'elle confagrado um principio de philofophia, e que um feculo depois vi- mos alguém conteftar em nolTo parlamento!

AíTim fe exprime o alvará: « . . . E que todos os fobreditos, por eíFeito d'efl:a minha paternal e pia providencia liberta- dos, fiquem hábeis para todos os oíiicios, honras e dignida- des, fem a nota difhnda de libertos, que a fuperftição dos romanos eftabeleceu nos feus coftumes, e que a união chriftã, e a fociedade civil faz hoje intolerável no meu reino, como o tem fido em todos os outros da Europa » .

Grandiofo contraíte! Em 1778 o marquez de Pombal não quer que o eítado de efcravidão fira e humilhe aquelle que d'elle faíra ou d'elie nafcèra, acompanhando-o com a nota diftinííta de libertos, equivalente a eíTa marca em braza que o arbítrio leva ao corpo do egreífo das galés, como fe a pena não tiveífe expiado o crime.

A liberdade, qual as aguas luftraes do baptifmo, lava toda a culpa original.

Perante a lei todo o cidadão deve fer igual no direito e na dignidade humana, tenha ou não pertencido, tenha ou não nafcido n'eíre eftado, completamente eítranho á fua von-

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tade, incompatível com a fua natureza moral; eftado e con- dição anormal que fe fuítenta pela força bruta efmagadora de todo o direito.

A infâmia da pena, confequencia da infâmia do crime, perde-fe pela rehabilitação.

Quem fe tornou infame pelo crime tem o dever de fe moftrar regenerado e digno da fociedade.

A ignominia da efcravidão morre, defapparece comple- tamente pelo a6lo da manumiíTão.

O homem innocente que gemeu nos ferros da efcravi- dão, pela vontade tão fomente de outrem, não tem o dever de fe moftrar regenerado; readquire direitos que a violên- cia fequeftrára, é livre como fempre o devera fer.

A ignominia da efcravidão não pôde infamar o homem que adquire a fua liberdade, porque o homem por vontade própria jamais feria efcravo.

A doutrina de Pombal Ibbre os eífeitos da efcravidão, no feculo XVIII, moftra quanto efle grande efpirito havia ca- minhado, arcando e vencendo falfos preconceitos, prejudi- ciaes fuperftições, que podem fer vencidas pela educação e illullração, aliás n'eífe tempo mefquinhas e limitadas.

É certo, pois, que por taes aflos reformadores, quando no congreífo de Vienna, em 181 5, as grandes potencias dis- cutiram e proclamaram a abolição da efcravatura, o pequeno Portugal não foi de certo a nação a quem fimilhante doutrina furprehendeu, porque, graças ao miniftro marquez de Pom-

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bal, quarenta annos antes tinha fido decretado: ninguém pija falo litfitano como ejcravo, ninguém pela primeira vei a luiJob o céu das terras de Viriato que não Jeja homem liire.

E porque Pombal, que, com tanto denodo quanta ga- lhardia, foube cortar abufo por abulo, e tornar a liberdade dos Índios uma realidade ; porque Pombal, que com tanta convicção quanta tenacidade foube aífrontar intereffes, com- bater preconceitos, proclamando a liberdade do ventre, c tor- nando inacceíTiveis as fronteiras de Portugal ao efcravo; por que razão Pombal deixou que nas colónias permaneceífe eíTa mentira ás convicções do chriftão, eífe cancro ao futuro focial o efcravo?

Foi porque a um homem fó, embora a um homem da altura do marquez de Pombal, não era licito concluir a obra que um feculo ainda não pôde completamente realifar.

Os grandes homens que fe notam de tempos a tempos na vida das nações, muito fazem e de muito fão dignos, quando, operários providenciaes da civilifação, deixam cm feu caminho pedras indeftruéliveis que fe vão accumulan- do, e formando o grande edifício focial-humanitario, o qual aliás jamais fera completo, porque a lei do progreífo é inde- finida!

E Sebaítião Jofé de Carvalho e Mello, fe tudo não fez, fez muito para que hoje a hilloria o confidere, com titulo indifputavel, benemérito e bemfeitor da humanidade.

N'eíl:e coro internacional de certo que não deftoa o Brazil, não porque feus filhos não fão dos últimos a alimentar eífe fentimento fecundo de fraternidade, que é a bafe da

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união de todos os povos, como porque, quando olham para a hiítoria de fua pátria, n'ella encontram veftigios valiofos das elevadas viítas adminiftrativas do immortal miniftro de D. Jofé I.

Rio de Janeiro, 3i de dezembro de 1881.

Dr. Thomás Alves Júnior, advogado.

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IL MARCHESE Dl POMBAL

cir anno in cui nafceva Don Sebaftiano Car- valho, futuro emancipatore dei Portogallo dal dominio temporalc dei clero, ferveva in Roma ed in Torino tra Ia corte papale e il Duca di Savoia Vittorio Amedeo il Grande una gran lite per la fucceíTione nei feudi cofi detti ecclefiaftici dei Piemonte; chè, il Papa ed il Duca di Savoia volevano rivendicare ciafcuno a il diritto di nomina, con la conceíllone delle relative prebende. Fu quello il primo ferio tentativo che 11 fece in Piemonte o, per dir meglio, dai principi Sabaudi, per condurci a quclla compiuta indipendenza dello flato dalla Chiefa, una delle opere che diftinfero il governo riformatore dei fempre com- pianto Conte Camillo di Cavour.

Fin dal tempo di Vittorio Amedeo II, rautorità dei domi- nio temporale pontifício in Piemonte fu grandemente fcoíTa; dei che fenti la Corte Papale cofi grave il danno, che non

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tardo a minacciare e poi a lanciare veramente Pinterdetto, contro il piccolo ftato che ofava ribellarfi alia fua autorità. Una queftione, come accade, ne conduce un'altra, e, in bre- ve, 11 vide il Duca Vittorio Amedeo II, quantunque uomo religiofo, prendera Tattitudine d'un principe intieramente indipendente innanzi alia Santa Sede. Sortenitore prudente ma animofo, non meno che dottiíTimo de' diritti dei principe innanzi ai Pontefice ed ai CoUegio de' Cardinali, era Tamba- fciator di Savoia Conte Gerolamo Marcello De Gubernatis, già prefidente dei Senato di Nizza, poi ambafciatore di Sa- voia a Madrid ed a Lif bona, finalmente Miniftro di Stato a Torino e Gran Canceliiere di Gafa Savoia nelFanno ftelTo in cui il Duca di Savoia cambio in regia la fua corona ducale. Per cura di lui fu nominato il fratello Clemente De Guber- natis Grande Inquifitore di Stato a Torino, eh' era un modo di affermare che 11 voleva togliere Tinquifizione alia fetta miíleriofa che 1'aveva fino allora governata, per farne un tribunale ordinário e manifefto di giuftizia fovrana. Volle poi la fortuna delia mia vita, che la mia laurea foffe la prima laurea in lettere dei nuovo Regno d'Italia e eh' io, nella mia tell di floria, imprendeíTi a combattere con argomenti ftorici i diritti de' pontefici fi.il potere temporale e le relative dot- trine dei cardinal Bellarmino; dei che i giornali cattolici dei Piemonte, come di grave fcandalo univerfitario, levarono allora grande rumore.

Con quefti precedenti, quantunque ftraniero, invitato a fcrivere alcune parole llil marchefe di Pombal, io poíTo dire con fincerità che mi trovavo preparato a fimpatia per quel poço che già conofcevo delia vita operofa dei grande rifor- matore portoghefe. Ma quefta fimpatia faccrebbe leggendo la bella monografia dei Conte di Carnota fiai Marchefij di Pombal; valfe a diminuiria la leitura delle infami Memorie che i Gefiiiti divulgarono in parecchie lingue per ofcurare il

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nome dei Sully, dei Colbert, dei Richelieu portoghele. Quan- tunque io intenda, pur troppo, come i Gefuiti ahbiano fulla maggioranza de' lettori ottenuto intiero il loro fcopo, avendo effi fatto próprio il motto dei Voltaire : calomnie{, calomniei, queLpie chofe en reftera, il fatto íleíTo che il Portogallo ed il Bralile íi preparano a rcftaurare, cent' anni dopo la morte dei marchefe di Pombal, con una dimollrazione Iblenne, la me- moria di lui oppreíTa dalla calunnia pofluma de' fuoi nemici, dimoílra che la floria è finalmente una gran giuftiziera.

Vivendo ora io da molti anni in Tofcana, avrei defiderato per una cofi grande occafione, porgere un tributo, che valeíTe, alia memoria dei Pombal, raccogliendo da quefh archivii tutte le notizie che giungevano dal Portogallo alia Corte Gran- ducale, nel tempo delFamminiftrazione dei grande uomo di ftato. Ma, difgraziatamente, quefti archivii fono quali muti in- torno alia floria portoghele di quel tempo. Nella rovina delia dinaftia Medicea, le relazioni eftere furono quafi intieramente interrotte, e nel principio dei nuovo governo lorenefe le cure dei riordinamento interno dello flato occuparono talmente Tanimo di Pietro Leopoldo, ch'egli pote daríi aíTai piccoio penfiero di quello che accadeva negli altri ftati, coi quali gli baítava di poter riftabilire relazioni ufiiciali nella forma piú conveniente.

Tuttavia, poichè dallo ífelTo povero carteggio di Lifbo- na alia corte lorenefe, appare di tratto in tratto in ilcorcio la figura dei conte di Oeyras, come d'uomo occupatiíTimo, fpeíTo infermo, e fovra ogni altro, autorevole, e alcun poço autoritário; e poichè qualche cofa vi c pur detto che può illuminarne la condotta verfo il clero e verlb le nazioni lira- niere, io credo d' interpretare il voto degli onorevoli pro- motori dei Centenário di Pombal, levando da due filze deli' archivio lorenefe que' brani che poífono, in cjualche modo, conferire ad illuminare la floria portoghcfe di quel tempo.

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II Carteggio incomincia nell' anno 1766. II refidente au- ítriaco Giambattifta de Kail avea puré ricevuto Tincarico di rapprefentare a Lif bona il Granduca di Tofcana. Prima pra- tica dovea eíTer quella di ftabilire il ceremoniale, e fi fecero immediate premure perche dai Sovrani dei Portogallo il nuovo Granduca veniíTe trattato come Altezza Reale e come Cu- gino. A Lif bona la pratica ando molto in lungo, non forfe per mala volontà dei Miniftro degli eíteri portogheli, Don Luigi da Cunha, ma per la lentezza confueta degli afFari. Una domanda limile era già ftata fatta fm dali' anno 17 14, fotto il governo di Cofimo terzo, a mezzo dei cavalier Giudici; e la corte di Lifbona ne avea convenuto. Ma gli atti di quel negoziato erano fcomparfi con le altre carte delParchivio di ílato nel terremoto di Lifbona. Di piú il Granduca incaricò il fuo refidente d'interporrc i fuoi ufficii per la rifcoíTione d' un credito che il Bali Ottaviano Giufeppe de' Mediei van- tava preífo il Governo Portoghefe. Le prime lettere dei refi- dente íi riferifcono pertanto ai cerimoniale, e ai credito dei Mediei. II 18 ottobre deli' anno 1766, il refidente de Kail fcriveva ai miniftero tofcano ne' termini feguenti:

«Abbenchè, feconde tutte le mie già anteriori ed anche rinnovate fegrete notizie, non fia la difficoltà fopra quefto Cerimoniale o Trattamento, ma piú tofto una tal quale già qui accoftumata e da tutti e in tutto pur troppo efperimen- tata dilazione, fe non Túnica, almeno la maggior parte delia fopradetta fofpenfione.»

Ma fu quefto argomento giova meglio udire la intiera relazione che, in forma di lettera, fpediva in Tofcana il refi- dente de Kail il 20 gennaio delfanno 1767.

«Avendo rinnovato per parecchi intervalli fpeífe volte le mie Iftanze apprelTo quel fignor Segretario di Stato Don Luis da Cunha, fenza mai averne potuto cavare altra rifpofta, altro eíTetto di prima, mi fono finalmente determinato a

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tenerne parola con il fignor Conte d'Oeyras, che mi promife con moita prontezza di parlarne. Lui fteíTo, con Taccennato fignor Segretario, otto giorni dopo, piú o meno, eíTendo io con quefti in Conferenza per altre occorrenze, e non volendo tras- curare una cofi buona occafione, di fcuoprire Teífetto delia promeíTa dei fignor Conte, giudicai a propofito di toccare nel Dilcorfo ancora quefta pendenza; ma indarno, e lenza che il mentovato fignor Segretario aveíTe mai mutato il fuo prece- dente linguaggio già ufato. Vedendomi con ciò da capo e credendo di non dover reftar in quefta incertezza, mi rifolfi a ritornare dal fignor Conte, a farli, come effettivamente feci, il ragguaglio dei contegno dei detto fignor Segretario, pregandolo nelFifteílb tempo di aver la hontà di dirmi che cofa avevo fi- nalmente da rifpondere alia Corte di S. A. R., almeno per mio difcarico. La fua rifpoíta fopra di ciò era: Egli dunque non ha detto altro? queíto aífare bifogna terminado, io me ne impe- gno; io faro, io parlerò; ed avendo io riprefo, ch'io dunque di queífa dichiarazione fteíTa mi farei fervito per mia giuífifica- zione, e favrei fcritta alia Corte, egli mi replico di fofpendere, e non farlo, e che egli avrehhe parlato quelfifteíTo giorno me- defimo. Reítando le cofe in quefto ftato, e vedendo che il fignor Conte non oftante che fpeíTo c'incontraílimo nelle fue AíTem- blee, non motivava mai niente, mi avanzai di nuovo a ricor- darli piú volte, ma non con altro fe non con quefto effetto, che egli fi fcufó di non aver ancora potuto parlare, ora per non eífere ufcito di cafa, ora per eíTere ftato indifpofto, ed ora per non aver veduto il mentovato fignor Segretario, fino che quefti parti finalmente con la corte per Salvaterra, per non tornarfene, fecondo il coftiime, fe non fui principio delia quadragefima e che, per ciò fteíTo, ho creduto di non dovere indugiare di piú con la prefente mia umiliífima relazione, diíTerita fin ora per la fpcranza che aveva che, vifte le continove mie reiterate iftanze, e le ridette promeífe d'un giorno alFaltro, fi farcbbe

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manifeftato qualche fucceíTo piú rilevante e defiderato da participare. Per altro, mi fi aíTicura fotto mano, che non ò per mancanza di volontà, per difficoltà dei trattamento dovuto a S. A. R. per un altro odiofo motivo, ma Iblo per via di una già qui inveterata lentezza nelli affari, che quefto, come tanti altri vanno cofi alia lunga, tanto di piú che la convenuta rifpofta, fecondo lo ftile fubfiftente, dovrebbe in effetto eíTere ftefa dal fignor Conte lui fteflb, la maggior parte troppo occupato, non Iblo con tutti li interni, ma ancora esteri affari, fu i quali ogni notte in cafa fua con il tante volte men- tovato fignor Segretario regolarmente conferifce, e ordina. So poi di piú e mi fu fcoperto in fomma coníidenza, che il mo- tivo delle tardanza di quefta rifpofta fui principio non era altro che un dubbio fui Trattamento da darfi a S. A. R., non già per diminuire il dovuto, ma bensi e piú tofto aumentar e renderlo piú diftinto per via delia Dignità Arciducale, fe foífe conveniente, trovandofi in un cafo nuovo e fenza anteacta, parte bruciati, e parte fmarriti con tutto TArcliivio in tempo dei gran Terremoto doppio imharazzo per cui, nel fopra- detto principio, fi fcriífe alia maggior parte de' Miniftri refi- denti di quefta alie Corti foraftiere per confulta e informa- zione fu tal Trattamento da eífe ufato con S. A. R., fenza che dopo abbia potuto arrivare a venire in cognizione delle feguite rifpofte. Mi reffa da comunicare ali' E. V. che dopo aver avuto ricevuto con lettere dei fignor Bali Ottaviano Giu- feppe de Mediei tutte le refpettive informazioni riguardo alie fue confapute pretenlioni, ho ugualmente tentato in una delle fopradette mie converfazioni con il fignor Conte di incam- minare quefte pendenze, e che egli mi rifpole che di quefto fi farebbe parlato dopo, e che prima bifognava fbrigare il negozio dairinterrotta corrifpondenza. Eífendo quefta circo- ftanza che non mi fembra convenirmi di parteciparfi da me ai fignor Bali, ho giudicato di dimorare a rifponderli Uno a

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queft'oggi medefimo, e di rimettermi nella mia lettera a quel tanto che V. Ex." troverà próprio di avviíarli. »

La lettera feguente dei confole auftriaco Stocqueler, ai quale il Granduca di Tofcana concedeva puré la fua íiducia, informa d'una fpedizione mifteriofa di navi fatta ai Bralile neiranno 1767, delia quale non ho trovato ricordo nel libro dei Conte da Karnota. In quefto libro fono riferiti que' Ibli brani dei carteggio dei refidente inglele Kay, i quali poílbno giovare a mettere in rilievo la flima che gli Inglefi facevano dei grande miniftro portoghefe, e il luo buon defiderio di man- tenere, con Tindependenza dei Portogallo, i migliori rapporti con la ricca ed intraprendente nazione inglefe. Ma è proba- bile che non lia ffuggito alia penetrazione dei refidente in- glefe, quanto apparve manifefto ai confole auftriaco, che ciò è la fpedizione di navi portogheíi ai Brafile foífe una prudente dimoftrazione contro agli Inglefi. II conte d'Oeyras avrà forfe meglio d'ogni altro comprefo che, per farfi rifpettare dagli Inglefi, era neceífario che i Portoghefi deífero prova d'animo rifoluto e di forza, e però in virtú deiraíTioma : si pis pacem para bel/um, volendo mantenere i fuoi buoni rapporti con eíTi, armo le cofte dei Brafile che, indifefe, avrebbero forfe potuto tentare la potente nazione britanna a impadronirfi intieramente delle celebre mine d'oro braíiliane. Checchè ne fia, ecco quanto fcriveva da Lisbona ai miniftro dei Gran- duca il confole Stocqueler il g giugno delfanno 1 767 :

«Monfeigneur. Pour ne pas manquer d'inflruire Votre Excellence de tout ce qui fe paífe d'intéreírant à cette Cour, j'ai rhonneur de dire que depuis le premier de ce móis, on arme à la hâte deux vaiífeaux de 64 canons qui doivent ser- vir d'efcorte à cinq navires de tranfport qu'on chargc de toute forte de munitions et attirails de guerre et habillements militaires. Pour faire cette expédition plus promptement, on fe ferve de trois navires de la compagnie de Pernambuco,

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qui avaient déjà une partie de leur charge et qu'on a fait débarquer. On dit qu'on y embarquera des troupes, mais jusqu'à préfent on ne fait qu'il y ait des corps nommés à cet eífet.

« La deftination de cette expédition eft un myftère. On dit dans le public qu'elle va aux lies Açores pour châtier des fou- levés qui, ne voulant pas faíTujettir à des nouveaux impôts, doivent avoir maílacré le Gouverneur; mais il y a des raifons qui ne laiíTent pas ajouter foi à ces bruits, et dès que j'ap- prendrai quelque chofe de pofitif, j'aurai Thonneur d'en faire d'abord le rapport à Votre Excellence. On embarquera dans le courant de cette semaine environ 40 jéfuites de ceux qui font dans les prifons pour les envoyer à Genes.»

11 16 giugno, il confole Stocqueler torna a fcrivere fullo fteíTo argomento, facendo rilevare che vennero prefi per ar- mare la fquadra navale reggimenti dali' interno, ove non fi trovano uííiciali inglefi:

«Par ma lettre du 9 courant j'ai eu Thonneur de comu- niquer à Votre Excellence qu'on faifait aftuellement ici les préparatifs pour une expédition et que la deftination que le public lui donnait était pour les lies des Açores. Mais ce bruit étant tout-à-fait tombe parce que les lettres arrivées de- puis des mêmes líles ne parlent d'aucun foulèvement, on ne doute plus que 1'expédition qui confifte en deux vaiíTeaux de guerre et neuf navires de tranfport avec toute forte d'attirails de guerre et qui doivent aller à Lagos prendre à bord deux ou trois régiments d'infanterie, eft deftiné pour renforcer les places maritimes du Bréfil.»

A queft'ora, gli inveftigatori delle ftorie portoghefi devono già avere intieramente rifchiarata quefta pagina delia loro ftoria navale. Tuttavia non è forfe fenza curiofità il leggere quello che fe ne fcriveva allora alFeftero da un auftriaco che non dà, dei refto, fegno di una grande benevolenza pel conte

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d'Oeyras, nelle fue informazioni, e chc, probabilmente, fen- tiva fimpatia per i geluiti prolcritti.

Ecco pertanto quanto egli fcriveva il 7 fettembre deli' anno 1767 da Lifbona ai governo dei Granduca:

« Les Aftaires Eccléfiaftiques continuent d'occuper la pre- mière attention du miniftère. Dans le Conícil d'Etat qu'on a tenu le 24 et qui a dure fix heures, il y a été lu le placet que le procureur du Roi a prcíenté à Sa Majefté et dans lequel fai- fant une répétition de tout ce qui a été déjà dit contre Tinfli- tut et la doctrine des jéfuites, il ajoute que cette doctrine ayant acquis des racines três grandes parmi le peuple, d'oú il fenfuivaient des maux immenfes, et que Texpérience ayant fait voir que tous les remedes qu'on y a voulu apporter n'ont à rien fervi juíqu'à préíent, parce que cette doctrine et cet in- ftitut fonttoujours declares faints et bons par la Cour de Rome, et que cette Cour tout-à-fait jéfuite et le Pape étant dans des circonftances qu"on a trou\'é le moyen de lui dérober la vé- rité, lui Procureur du Roi devait le reíTouvenir des moyens dont plufieurs Empereurs fe font fervis dans des cas il a faliu faire déclarer par des conciles les dodrines qui étaient bonnes ou mauvaifes, et que le cas actuei en clt un; parce que ces dodrines étant en foi-mêmes hérétiques et la cour de Rome et le Pape obfédé aprouvant cette doftrine, ils ont donné eux mêmes dans Fliéréfie, et il finit pour fup- plier le Roi d'y porter tel rémède que la grande fageífe lui diítera. Je crois que dans le dit confeil on a rien determine et que Favis du Cardinal Patriarche a fait au moins que le Roi n'y ait pas pris aucune rélblution finale. Cette pièce, aulTi bien que 1'hiftoire des jéfuites en Portugal, les preuves de cette hiftoire et une collection des lois fur Fautorité ecclé- fiaftique font déjà imprimes, mais on ne les debite pas, et on les imprime aclucllcment en langue italiennc et fran- çaife, et comme ce font des pièces intéreíTantes, j'aurais foin

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d'en procurer des exemplaires pour les envoyer à \"otre Excellence. »

II 27 ottobre 1767, il confole Stocqueler annunzia la morte dei refidente Kail e aggiunge:

«Monfenhor Sans Paejo Prélat de la Patriarchale, dont, en general, on refpedait les vertus, a été conduit dans un cachot, comme prifonnier d'état. Ses biens et fes papiers ont été confilqués et on ne lui a pas permis de fe faire accom- pagner par aucun de fes domeftiques. »

II 19 gennaio 1768 lo fteffo ícrive:

«Depuis deux jours on a commencé à diltribuer la fe- conde partie de la déduction chronologique analytique, avec une feconde réquifition du procureur du Roi qui a pour titre : Réquifition du procureur du Roi sur les ruines qui ont fait dans ces royaumes et fes domaines fintroduílion clande- ftine des Bulles in Coena Domini, et des Index Expurga- toires Romano-Jefuiticos, toute dans les termes détaillés de la feconde partie de la Déduction Chronologique, etc. Ces deux pièces imprimées en portugais, et que je n'ai pas eu le temps que d'en lire le fommaire des matières, doivent fervir de bafe à une nouvelle loi en conféquence; et cette loi rè- glera auíTi définitivement la juridiction des deux empires eccléfiaftique et féculaire en Portugal. Dimanche au foir il feft tenu un confeil d'état auquel le Comte d'Oeyras n'a pas pu être préfent, parce qu'il fe trouve depuis dix jours au lit et foigné des fuites d'une bleífure à une jambe. Le confeil d'état aura été aílemblé probablement pour 1'appro- bation de la loi fufdite que le Comte d'Oeyras y aura fait propofer afin qu'elle puiífe être publiée inceífamment. Cette feconde partie de la déduction, la réquifition du procureur du Roi y annexe et la loi en conféquence par lefc[uelles le Comte d'Oeyras a dit vouloir faire le plus grand et dernier de fes fervices à la patrie, efl: d'une nature à donner plus

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d'occupation à la cour de Rome que tous les imprimes et toutes les démarches qu'on fait jufqu'à préfent. »

Lo fteflb Stocqueler il primo marzo 1768, fcriveva:

« Les ouvertures que le Pape a fait dernièrement pour un acommodement et par un Bref adreíTé au Roi, ont été reje- tés, et la Bulle de la Croizade que Sa Sainteté a envoyé en môme temps, a été renvoyée. Le commiflaire de la dite Bulle a fait affixer la déclaration que j'ai Thonneur d'en- voyer à Votre Excellence, comme auífi le Mandement du Cardinal Patriarche, qui en clt une fuite. »

Ed otti giorni dopo: «II fagit de fe concerter réciproque- ment pour régler les aífaires avec la cour de Rome; mais ce projet efl d'autant plus difficile que les deux miniftères pen- fent ditféremment. Le Marquis Grimaldi parait être autant incline pour la modération que le Comte d'Oeyras pour la hrulqucrie. Le tribunal de Tlnquifition a fait retirer tous les vieiLX affixes, ne voulant que foient entre les mains du puhlic ceux dernièrement publiés. Le Roi a donné à la Confrairie de la Miféricorde de cette ville le couvent, Téglife et tout ce q^ui appartient aux autels de la maifon profeíTe des jéfuites.»

Le notizie feguenti dei confole Stoqueler, dei 1 2 aprile 1768, 11 riferilcono tutte alie queftioni ecclefiaftiche :

«II eft afluellement fous la preíTe la feconde loi, par laquelle le Roi fait ériger un nouveau tribunal compofé d'un prélident eccléfiaflique et de quelques eccléíiaftiques et fécu- liers, auquel feulement eft referve le pouvoir de donner per- miíTion pour les livres qu'on voudra faire imprimer et Texa- men de ceux qui entreront dans le royaume, au point que ni révèque ni Tinquifition, ni le Delembargo do Paço ne doi- vent plus fen mêler; mais en échange un des membres du tribunal fera le vicaire du Patriarche, un miniftre de Tinqui- fition et un autre du Defembargo do Paço. Les matières feront décidées à la pluralité des voix.»

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Dal paíTo feguente, fi rileva che le difpofizioni delia corte di Torino verfo quella di Roma non erano il 26 aprile 1768 come quelle di circa fettanfanni innanzi:

11 L'alliance avec la cour de Turin que le Comte d'Oeyras avait cru néceíTaire au commencement des brouilleries avec Rome, et fur laquelle on a ^al depuis qu'on avait mal com- pté, vient à préfent d'avoir lieu et de foi-même avec la cour de Parme.»

Le informazioni leguenti ci moftrano il conte d'Oeyras ineforabile caftigatore dei clero ribelle:

26 Aprili: «Monfenhor Magalhães vient d'ètre banni du royaume qu'il a du quitter en trois jours de temps; et les pè- res Salvador Conca de Fordre de Saint Gêrome et Joachim Forjas, Auguftin, ont été relegues à des couvents éloignés de cette capitale. Comme j'ignore abfolument leur crime j'in- formerai Votre Excellence au moins de ce que je fais de leur perfonnel. Le premier a été lecrétaire de la reforme des jéfui- tes et les deux autrcs font proches parents du Cardinal Pa- triarche, tous trois hommes lettrés et de la confulte de Son Eminence.»

21 Giugno: «Le dofteur Jofeph Mendes da Cofta un des plus favants membres du tribunal eccléíiaftique a été banni du royaume. Le père Alhandra, erémite de Saint Paul, et un père Capucin ont été arretes. Les pères de la milfion de Saint Vincent de Paul ont reçu ordre de n'en point faire dans cette ville et fon diítriít, et il y a quelque temps qu'on a dé- fendu aux miífionaires des autres ordres Texercice des miffions dans cette ville.»

26 Luglio: «On prétend que le chevalier Pecci qui eft ar- rivé depuis quek]ues femaines de Rome et en dernier lieu de Genes, fera declare directeur du Collège des Nobles, et qu'on Ta fait venir expròs pour remplir cette place.»

Qui terminano le notizie dei Portogallo pervenute alia

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corte Tofcana, fotto il governo dei conte d'Oeyras, rapprefen- tato principalmente come un perfecutore de ' gefuiti e de' loro fautori. II conte d'Oeyras aveva probabilmente imparato dal Machiavelli che i nemici bifogna carezzarli o fpègnerli ; egli non volle carezzarli, e li fpenfe. Quindi la fama che s'acquiíl:ò nel fuo tempo e che dura ancora, d'uomo duro e violento. Fra que' termini eftremi propofti dal Machiavelli, vi farebbe flato un mezzo termine degno di un animo grande, quale íi rilevò in parecchie occafioni, il marchefe di Pombal. Senza carezzarli, fenza fpègnerli, i nemici egli avrebbe potuto vin- cerli, forte come egli dovea fentirfi per la íiducia che infpi- rava ai fuo rè, dei cuore dei quale come il cancellière di Federico II, tenne ambo le chiavi, volgendole

Serrando e diííerrando fi soavi,

Che dal fegreto fuo quafi ogn^uom tolfe.

Probabilmente, quello fteíTo Duca d'Aveiro, quello fteíTo marchefe Távora che boriofo dei loro folo fafto magnatizio, moftravano un cofi fiero difprezzo per la piccola nohiltà dei Carv^alho, e fe quefti aveífe moderato la fua impazienza, vedendo ch'egli continuava a regnare potente e a fervire con nobiltà il fuo paefe, avrebbero finito per reprimere il loro ridicolo orgoglio, e ricercato, effi medefimi, Talleanza dei nuovo vero gran fignore dei fuo tempo. Noi fiamo teftimonii ogni giorno, innanzi ai trionfo prefente delle democrazie, di nobili ben noti, fino a pochi anni innanzi, per la pompofa vanitá di titoli ai quali non corrifponde in eíTi, alcun próprio valore, alcuna vera dignità, alcun fenfo di fchietta nobiltà, e che fi fanno demagoghi per entrar nei parlamenti e per car- pire ufíicii per i quali fi veggono ora foflituiti agli antichi privilegi ariflocratici i nuovi privilegi burocratici.

Vedendo i vecchi nobili che i governi democratici coníi- nuano a viverc, invece di fortificarfi eíTi fteffi, unendofi, edu-

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candofi, iftruendofi, moltrando di avere idee piú alte, piú larghe e di concepire in modo piú nobile e piú dilintereffato rintereffe pubblico, 11 umiliano fino a contentarfi delle briciole che cadono dalla menfa demagógica, per partecipare, col loro farto che fempre negli occhi dei volgo, ai comune ban- chetto. Quanto meglio prowederebbero eíTi, invece, alia loro dignità, ai loro intereíTe ed alia salvezza dei loro paefe racco- gliendofi in una laboriofa e ftudiofa e paziente afpettazione, finche ritorni il giorno in cui il paefe abbia di nuovo bifogno di loro. L'ariftocrazia e la democrazia Ibno due grandi poteri fociali che 11 contendono da íecoli il governo delia Ibcietà umana; quando Tuno decade, Tahro riforge; quando Tuno è flanco, l'altro rinvigorito e nuovamente purificato viene a far nuovamente valere la fua virtú. Un potere fcatena, Faltro potere tempera ; un potere mette a prova la forza dei numero ; faltro il valore de' pochi; fefperienza degli errori d\in pote- re giova alfaltro; fariítocrazia richiama il mondo dalle idee baífe e volgari; la democrazia lo libera dal pericolo che il regno prolungato de' pochi 11 converta in eterna e moftruofa tirànnide. Entrambi i poteri poífono eífere benèfici, quando viene il loro tempo; ma fono benèfici foltanto a condizione che non fi faceia alcuna confullone frà eífi, e che i due po- teri ben diftinti non riefcano ad un organifmo ibrido, informe, fimile a quello di cui danno, pur troppo, mefchino afpetto parecchi degli odierni governi coftituzionali, che paiono acco- gliere in tutti i vizii delle ariítocrazie e delle democrazie, fenza ferbarne le virtú.

II marchete di Pombal, fentendofi veramente nobile, non ifdegnava, di certo, e non difprezzava la fua condizione di nobile; ma la fua maggior fodiíTazione innanzi ai fèmplici titolati e cofi detti grandi dei regno doveva elTer quella di avere egli fteífo accrefciuta la própria nobiltà. Nato fòmplice gentiluomo, diventò conte d'Oeyras, e marchefe di Pombal,

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per llioi meriti perfonali; e quando ftabili che i profeíTori piú eminenti dell'univerrità riceveíTero il trattamento de' nohili e quando fondò il Collegio de' Nobili miro a foftituire con la nuova educazione liberale ed intelligente de' nobili un nuovo valore reale ad un antico valore íittizio.

Si comprende, pur troppo, aíTai bene come Tantica no- biltà feudale. che fino a quel tempo, con la fola moftra de' fuoi vecchi blalbni, trionfava, non foíle contenta dei nuovo ordine di cole inftaurato dal Carvalho, e che i gefuiti onnipotenti Iblo a condizione che fi manteneíTe nella focietà portoghefe lo Jfahí qiio feudale abbiano adoperato ogni loro arte per farlo durare. Chè, per quanto fiano riufciti a perfuaderci che il Carvalho farebbe ftato piú grande íe fi foíTe fuoi nemici mortrato piú mite, non fi riufcirà mai a perfuadere che il duca d'Aveyro e il marchefe di Távora non miraíTero, in ódio dei luo miniítro, ch'eíri chiamavano il Sebaftiano, a togliere di vita il Giufeppe, Ibflenitore fedele e co- rtante delTuomo di génio nel quale egli aveva ripofta ogni fua fiducia.

I gefuiti accufarono il Re Giufeppe di debolezza. Sem- bra, invece, ch'egli abbia dato una prova di gran forza mo- rale, mantenendo il potere nelle mani dei Carvalho, a dis- petto di tutti gli intrighi orditi a corte contro di lui, e di tutte le calunnie che i fuoi nemici, aiutati dai gefuiti, avevano pro- palato. Un uomo che fappia refiftere imperterrito alia calunnia, e che la refpinga quando eífa venga a colpire un amico di cui fa fi:ima, è un uomo di gran carattere; tali caratteri fono rari, e il Giufeppe moftrò d'avere un tal carattere. Sia dunque gloria ai fuo nome, e poífa il fuo nobile efempio gio- vare ancora ad altri principi. Che importa fe il campo d'azione nel quale f 'efercitava la prudenza dei Giufeppe col génio dei Pombal era un campo riflretto? II nome dei Pombal non divenne forfe mondiale? E il Portogallo ed il Brafile non fen-

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tono forfe anche oggi i beneficii dei paíTaggio ai governo di un uomo di génio, che doveva puré, chechè ne penfino i nemici dei fuo nome, avere un gran cuore?!

Deploriamo tutti i fuoi errori; nella repreíTione fu vio- lento e parve inumano; era bello che egli fteíTo fi faceíTe caftigatore fpietato de' fuoi nemici, valendoíl delia forza pu- blica che egli aveva nelle proprie mani ; la verità ú deve a tutti, ma piú ai grandi, i quali dovrebbero fentire piú alta- mente ciò che conviene; Pombal a Porto e fui Rio Morto fi è un poço macchiato, e piú volte, ne' giorni delia fua difgra- zia, avrà certamente rimpianto di non eíferfi moftrato piú umano e piú grande, quand'era ai fommo delia fua potenza. Ma non fi poteva fenza un gran cuore, fentire com'egli fenti, una nobile impazienza di far grande, profpera, indipendente, rifpettata la fua pátria. Senza un gran direttore fpirituale in- terno, fenza una grande cofcienza di patriota, farebbe flato impofllbile che Tattenzione dei miniftro portoghefe fi portaífe come fece, con prowedimenti falutari, a tutte le fonti delia profperità nazionale, per renderle tutte infieme produttive; il commercio, Tindurtria, la marina, Fefercito, le arti, le let- tere, le fcienze dovettero a lui folo il loro nuovo riforgimento. E molti de' fuoi pro\^edimenti apparivano cofi liberali che precorrevano, prima delia rivoluzione francefe, il movimento liberale moderno, il quale gli ftorici demagogici ripetono quafi efclufivamente da eífa. No, i Bogino in Piemonte, iTannucci e Pietro Leopoldo in Toscana ed a Napoli, Giufeppe II in Lom- bardia, e tutti gli economifli e ítatifti dei fecolo paífato aveano già preparato il terreno fecondo per le riforme; la rivoluzione francefe fu un uragano che ifterili e difertò il terreno ed ebbe per confequenza il militarifmo Napoleónico e la Santa Al- leanza. Se invece 1'opera pacifica dei riformatori liberali aveífe potuto profeguirfi fenza interruzioni, a queff ora avrem- mo, invece, quel progreífo che pone Tlnghilterra a capo de-

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gli odierni popoli civili. E il Pombal, nel luo Ibggiorno a Londra e nelle lue relazioni coi miniftri ingleli, avea dovuto imparare moita arte di governo, moita fcienza di flato.

Che può ora dire uno flraniero parlando dei Pombal in- nanzi ad un publico infigne di portogheíi e di brafiliani, che non folo ne venera la memoria, ma che ha già intefo intorno ad effo da ftorici bene informati tutto quanto può eíTere laputo ai noftri giorni? Certo, non aggiungere un fatto, un'idea; ma folamente alTociarfi, con mente rifpettofa, alPomaggio che la nobile nazione portoghefe rende ai fuo grande benefattore dei fecolo fcorfo. Confervar la memoria de' benificii ricevTiti è fempre, per i popoli come per gli individui, un fegno di gen- tilezza e di civiltà. Convien dunque che il Portogallo ed il Brafile inalzino ora un monumento alia memoria dei mar- chefe di Pombal, come nel fecolo venturo nelFanno 1961, i noítri futuri nepoti pel centenário dei conte Camillo di Ca- vour, celebreranno il nome e la gloria dei riftoratore delia for- tuna e indipendenza d'Italia; e a quelfi omaggi nazionali è bene che tutte le nazioni civili rechino il loro confenfo am- mirativo. I grandi benefattori d'un popolo diventano, quafi inconfapevolmente, benefattori delFintiera umanità; chi rende piú civile, piú profpero, piú grande il próprio paefe, non può impedire che una parte di quella civiltà, di quella profperità, di quella grandezza, íl riverfi benéfica, piú o meno diretta, fulle altre nazioni. No, non è vero che un vicino veramente grande, faceia noi piú deboli; egli, invece, infegnerà a noi la via per confeguire in cafa noftra, coi noflri proprii mezzi, una fimile grandezza; folo il povero impotente può eíTer gelofo dei fuo vicino potente. Quanto a me, nelle condizioni prefente d' Itália, non potrei terminare con altro augúrio piú cordiale che quello di veder forgere nel mio próprio paefe un uomo dei génio e deli' animo di Sebaftian Carvalho. II Umberto I diventerebbe facilmente il nuovo Don Giufeppe di quefto defi-

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derato, neceíTario, animofo riformatore, il quale fapeíTe ciò che fi deve fortemente volere, e le cofe fortemente volute tra- duceíTe in pronte opere durevoli. Utinam!

Firenze, 26 decembre 1881.

Conte Angelo De Gueernatis.

DER MINISTER POMBAL

EIN LEBEXS- UXD CHARAKTERBILD

AUS DER

ZEIT DER AUP^KLAERUNG

it Stolz und Bewunderung blickt unler Zcit- alter auf die Geiftesheroen des voriíien Jahr- hunderts und beeifert lich, ihre Nahmen und Thaten dem gegenwãrtigen Gefchlechte ins Gediichtniss zurLickzurufen, wenn der Ge- hurts- oder Todestag des einen oder andern Gelegenheit dazu bietet. So hat Frankreich im Jahre 1 878 das Andenken an Voltaire und RouíTeau durch Gedachtnifsfefte gefeiert; fo hat Deutlchland im Jalir 1S81 feinen grofsen Schriftfteller LeíTing in feiner Stellung zu dem Geiftesleben leiner Zeit den nachgebornen Gefchlechtern vor die Seele gefiihrt; lo Ichickt fích jetzt die portugierílche Welt an, ihrem grofsen reformatorifchen Staatsmann Pombal, dem Zeit- und GefinnungsgenoíTen des Kõnigs Friedrich II von PreuíTen ein Denkmal zu ftiften. Und in der That hat man alie Urfache an jene Zeit der philofophifchen Aufklarung zu erinnern, wo fo viele neue reformatorifche Ideen dem frucht- baren Mutterfchoofse entkeimten, wo man nicht nur den Schutt verjahrterVorurtheile und úberlieferter Dodrinen weg-

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raumte, fondern auch neue Anfchauungen und Lebensformen ins Dafein rief, wo man die beítehenden Einrichtungen und Zuftande und alie abgelebten Inftitute und Satzungen durch die Gebilde der Vernunft, des rationellen Denkens, des ge- funden Menfchenverftandes zu erfetzen fuchte. Die ganze ge- bildete Welt Europas war von der machtigen Strõmung des neuen Zeitgeiftes durchzogen, der in Paris feinen Urfprung und feine Geburtsftatte hatte. Es foU nicht geleugnet werden, dafs der Cultus des menfchlichen Genius und der Vernunft mitunter zu einem neuen Gõtzendienft fiihrte, dafs die Philo- ' fophie des Senfualismus den Sinn fiir das Hõhere und Ideale in den herrfchenden Kreiíen abftumpfte, dafs der Glaube an eine moralifche Weltordnung vielfach erfchúttert ward; abar es wâre unrecht, úber diefen dunkeln Schattenbildern die Lichtftrahlen zu úberfehen.Wenn der clericale Obfcurantifmus oder die rigorofe puritanifche Weltanfchauung in jener Zeit einer gahrenden Ideenwelt nurVerfall und Entartung erblicken mõchte, fo vergifst diefe morofe und peíTimistifche Auffaífung, dafs auch zugleich die Gebote der Humanitat, der Menfchen- liebe, der GewiíTens- und Geiítesfreiheit zur Geltung kamen, dafs die wichtigften Faftoren des modernen Staats- und Gefellfchaftslebens in den Aufklarungsideen jenes philofo- phifchen Jahrhunderts ihre Wurzeln haben, dafs die Erzeu- gniífe einer unfreien Zeit und einer unwúrdigen Geiftes- knechtfchaft, wie Inquilltion und Ketzerverbrennungen, wie Hexenproceíre,Torturen, graufame Hinrichtungen, entehrende Feudalrechte befeitigt oder gemildert wurden, dafs die Gefell- fchaft Jefu, welche nur in der Herrfchaft der rõmifchen Hie- rarchie und in der Unterordnung der Võlker unter die geiftliche Autoritât das Heil der Menfchheit erblickt, gebrochen und aut Jahrzehnte von der Oberflache der Welt verbannt ward. Aus diefen Kreiíen philofophifcher Lebensanfchauung iít Pombal, der Reformator Portugals hervorgegangen.

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KOENIG JOSÉ I. UND POMBAL. DAS ERDBEBEN VON LISSABON

Das Haus Braganza war einft durch einen Akt des Na- tionalwillens auf den portugiefifchen Thron erhoben worden. Diefen Urfprung feincr Macht hatte João V aus dem Auge verloren und ais abfoluter «Kõnig von Gottes Gnaden» re- giert, nur den Clerus und den hohen Adel begúnftigend. Ein folcher Ruckfchritt zu iiberlebten Formen, eine folche aus- fchliefsliche Anlehnung der fouveranen Monarchie an zwei bevorrechtete und bevorzugte Stande, welche zu der herr- fchenden Zeitrichtung und Zeitbildung in fchroffem Gegenfatz ftanden, konnte den noch kaum befeftigten Staat von Neucm den Sturmen der Anarchie entgegentreiben, von Neuem biir- gerliche Bewegungen hervorrufen, die den lauernden neidi- fchen Nachbarftaat leicht zur Wiederaufnahme der frúheren Feindfeligkeiten anfpornen mochten. War doch die Colonie dei Sacramento, auf einem feifigen Vorgebirge am Nordufer des Rio de la Plata, welche die Portugielen im J. 1678 ange- legt und feitdem gegen viele Anfechtungen behauptet hatten, ein fteter Erisapfel zwifchen den beiden pyrenaifchen Kõnig- reichen. Portugals Staatswefen bedurfte einer dem Geifte der Zeit entfprechenden Reform, folhe es fich ais freier lebens- kraftiger Staat erhalten.

Diefe Reform folhe dem Reich in glitnzender Weife zu Theil werden durch einen Mann, der dem ncuen Kõnig Jo- feph Emanuel zur Seite ftand wie einfl: Richelieu dem fran- zõfifchen Kõnig Ludwig XIII. Diefer Mann war Sebaftian Jofeph de Carvalho e Mello, Graf von Ocyras, bckannter unter feinem Ipiiteren Titel Marquis de Pombal. Abkõmm- ling eines alten Adelsgefchlechts von maííigem Vermõgen, hatte er nach vollendeten Sutdien in Coimbra durch einflufs-

reiche Verwandte in LiíTabon eine Anítellung erhalten, war dann von Kõnig João V mit diplomatifchen Auftragen nach London und Wien gelandt worden, hatte auch in Paris einige Zeit verweilt und kannte fomit die wichtigften Stadte Euro- pa's, die feinem fahigen und empfanglichen Geifte Belehrung geben konnten iiber Staatsverwaltung und Volkswirthfchaft, ' úber kirchliche und religiõfe Dinge, uber moderne Zeitbil- dung und priefterlichjefuitifche Weltanfchauung. Und je mehr er íich mit den Ideen der Aufklarungsphiiofophie befreundete, defto melir kam er zu der Ueberzeugung, dais die õífentlichen Zuftande in Portugal nur dann einer BeíTerung entgegenge- fiihrt werden konnten, wenn die hierarchifch-ariftokratifche Atmofphare, die wie ein tõdtlicher Mehlthau íiber alie Lebens- functionen gelagert war, durchbrochen und weggefegt wurde. Und lo machtig und úberwaltigend war die Perfõnlichkeit des Mannes, dafs, fobald er nach dem Tode des alten Kõnigs durch den Einflufs der kõniglichen Wittwe, einer õfterreichi- fchen Kaifertochter, von dem Sohn und Nachfolger in das Minifterium berufen ward, die alten klerikalen Râthe bald weiclien mufsten, dafs Carvalho mit fouverãner Machtfiille das Regiment fuhrte und der Polhik und Staatsverwaltung Portugals einen andern Charakter aufpragte. Der neue Mi- nifter, bereits einundfunfzig Jahre alt (geb. i3 mai i6gg) und in zweiter Ehe mit einer Tochter des Feldmarfchalls Daun vermahlt, wird gefchildert ais ein Mann von ungewõhnlich hoher Geftah, dabei wohlgebaut und fchõn, feine Gefichts- bildung gciftreich und ausdrucksvoll, fein Benehmen gewin- nend, feine Sprache leicht und flieífend, von einer melodi- fchcn, íiberaus anmuthigen Stimme unterftLitzt. Sein Einflufs in LiíTabon war machtiger und gebieterifcher ais der feines Zeitgenoífen Choifeul in Verfailles, weil Kõnig Jofé dem fran- zõfifchen Monarchen nur in dem Hange zur Sinnenluft, zu cinem gcnufsreichcn Hofleben, zu Jagd, Mufik und Theater

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ahnlich war, ihm aber nicht gleichkam in der Willenskraft, m dem defpotifch-autokratifchen Hcrrfcherlinn, in der ruck- fichtslofen Selbftíucht, in dem hochmiithigen Souveranetats- gefiihl. Arbeitfcheu, wenig befãhigt und durftig unterrichtet, úberliefs Kõnig Jofeph die Staatsgefchafte und die Laft der Regierung dem gewandten Minifter, welcher gegentiber fei- nem Fúrften ftets die Formen eines Cavaliers und Hofmannes beobachtete, wíthrend er feine Gegner mit defpotilcher Hand niederwarf. Um fo mehr Zeit konnte der Kõnig auf feine Liebhabereien verwenden, um fo ungeftõrter fur feine Opern und feine Kapelle, fíir den Bau und die Einrichtung eines prachtvollenTheaters forgen, um fo haufiger demWaidwerk nachgelien oder fchõnen Frauen den Hof machen, fo viel es die Eiferfucht feiner fpanifchen Gemahlin, einerTochter Phi- lipps V geftattete. Jofeph liefs den Minifter auch darum ge- wahren, weil die ganze Perfõnlichkeit des muthigen durch- greifenden Mannes feiner eigenen fchwachen und furchtfamen Natur imponirte, fo dafs er ihm nicht entgegenzutreten wagte. Dabei erkannte er mit richtigem Inftinkt, dafs Pombal, indem er die nationalen Krafte fammehe und entwickehe, die S lan- des- und Sonderintereífen der feudalen und klerikalen Ele- mente bandigte und niederhieh, zugleich die Kõnigsgcwalt und die Priirogative der Krone hob und ftarkte.

Der hohe Adel, der fich im unbefchriinkten Befitz aller wichtigen Hof-, Regierungs- und Richterftellen befand, fich einen grofsen Theil der Kronguter angeeignet oder durch den verftorbenen Kõnig hatte zutheilen laífen, fah mit Mifstrauen und Abneigung auf den Landedelmann, den cinzigcn und wahren Inhaber der Macht der kõniglichen Autoritat, der alie Aemter und Gefchafte einer forgfaltigen Aufficht und Controle unterwarf, mit einer Menge von Reformplanen fich trug, in unheimlicher Vielgefchâftigkeit und mit fpâhendem Blick Alies pruftc und Vicies anderte. Von ahnlichen Gefiihlen

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war der Pralatenftand durchdrungen. Jener fiirchtete fúr feine Sinecuren, feine eintraglichen Stellen, feine ufurpirten Do- manen und Jahrgelder, diefer fúr feine Vorrechte, feine Ein- kúnfte und Emolumente, feine reichen Inftitute und Pfrunden; beide fur ihren Einflufs, ihre Machtftellung, ihre Herrfchaft. Ihre Befurchtungen waren nicht ungegrúndet. Nachdem Car- valho, oder wie wir ihn fclion jetzt vorgreifend nennen wol- len, Pombal die Regierungsgewalt in feine Hande gebracht, fich des Kõnigs verfichert und die Hof- und Staatsâmter mit zuverlâffigen Leuten, mitVerwandten und Anhangern gefullt, begann er mit der Lebhaftigkeit und Beweglichkeit eines Siid- landers das gefammte õffentliche Leben zu reformiren. Durch eine Fluth von Verordnungen fuchte er die Mifsftande in der Verwaltung zu befeitigen, die zerriitteten Finanzen zu ordnen, Induftrie und Handel zu heleben. Selbll: das grofse National- ungluck, das Erdbeben von LilTabon, das die Gemuther der Zeitgenoífen fo machtig erfchútterte und von der Geiftlichkeit ais ein Stra%ericht Gottes gedeutet ward, wurde von dem energifchen Staatsmann zu reformatorifchenWerken benutzt. Es ift allbekannt, dafs an dem Fefttage Allerheiligen, an einem heitern fonnigen Novembermorgen plõtzlich ein Natur- ereignifs eintrat, welches in dem Zeitraume von einer Vier- telítunde den grõfsten Theil der ftolzen Stadt Liífahon in Trummer legte, Taufende von Menfchen unter den einftúr- zenden Gebauden begrub und vereint mit einer Sturmflut des Tajo und einer mehrere Tage andauernden Feuersbrunft Tod und Verderben in jeglichcr Geftalt úber die entfetzten Einwohner hrachte. Das kõnigliche Schlofs, der neucrbaute Palaft des Patriarchen, zahllofe Kirchen, Klõfter und Wohn- hauser fielen in Trummer zufammen. Die Zahl der Ungluck- lichen, die an diefemTage des Schreckens und derVerwti- ftung unter den Ruinen oder durch Feuer oder WaíTer um- kamen, wird auf 3o:ooo gefchiitzt. Und zu den empõrten

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Elementen gelellten fich die Leidenlchaften und wilden Triebe der Menlchen: aus den Gefangnillen iHirztenVerbrecher und Rauber hervor und verubten, unterlHitzt von dem Abfchaum der Bevõlkerung, den jede grofse Stadt in ihrem SchooíTe birgt, Frevel und MilTethaten aller Art, die rohen Begierden durch Handlungen thierilcher Lull, durch Mord und Dieb- llahl, durch Verruchtheit und Ziigellorigkeit fattigend. Auch uber andere Kúrtenorte, uber Setúbal, Oporto, Algarve dehnte fich die wilde Naturgewalt aus. Der Kõnig, der fich mit feiner Familie in dem Luftfchlofs Belém befand und dadurch dem Verderben entging, liefs fofort den Minifter zu fich rufen und richtete in der Angíl: feiner Seele die Frage an ihn: «Was ift zu thun, um diefem gõttlichen Strafgerichte zu begegnen?» Feít und ruhig antwortete der Graf: « Herr, die Todten be- graben und fúr die Lebenden forgen». VoU Bewunderung blickte der Monarch auf den muthigen ftandhaften Mann und fein Vertrauen zu ihm war feitdem unerfchutterlich. Er wiir- digte deífen hohen Genius, der feiner Regierung Glanz und Ruhm zu verleihen verfprach, und fchiitzte ihn gegen alie Anfchlãge und Kabalen der Gegner und Neider. Und nie hat ein Staatsmann mit mehr Umficht und Entfchloífenheit in Tagen der Noth und des Schreckens gehandelt ais damals Pombal. Sein Wagen, in dem er die Unglucksltatte befuchte, war mehrere Tage und Nachte fein fteter Aufenthaltsort, fein Arbeitszimmer: mit wunderbarer Energie traf er Mafsregeln zur Erhaltung der Ordnung, zur Unterbringung des Volkes, zur Vertheilung von Lebensmitteln. Er felbft hat in wenigen Tagen gegen zweihundert Decrete erlaífen. Die Todten wur- den begraben, verbrannt, ins Meer gefenkt, damit nicht auch noch die Peíl: das Elend mehre; die Verwundeten wurden in Sicherheit gebracht und verpflegt; zur Aufnahme der Ob- dachlofen wurden Hiitten und Bretterbuden errichtet; durch OefTnen der kõniglichen Kornfpcicher und durch Herbei-

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fchaffung fremden Getreides fteuerte er der Noth und trug Sorge, dafs kein Armer durch Hunger umkam; er liefs Mili- tar aus den Provinzen herbeikommen, um die Sicherheit zu erhalten, und wehrte durch ftrenge und rafche Juftiz den Dieben und Uehelthatern. Niemand durfte die Hauptftadt verlaíTen, damit kein geraubtes Gut verfchleppt werde. Die befchadigten WaíTerleitungen wurden in Stand gefetzt, den Fanatikern, welche die Gemiither angíligten und aufreizten, wurde Einhalt gethan. Die ProzeíTionen und õíTentlichen An- dachtsubungen mufsten eingeftellt werden. Er vergafs es nie, dais der Jefuitenpater Gabriele Malagrida das Nationalungliick fíir eine himmlifche Zúchtigung wegen des gottlofen Regi- ments erklarte. Und ais die Ruhe in die Gemúther zuriick- gekehrt war und man zu dem Wiederauf bau der Stadt fchritt, da beftand Pombal darauf, dafs breite StralTen angelegt und zweckmafsige anlehnliche Wohnhaufer errichtet wurden, da- mit das Volk fich an Reinlichkeit gewõhne und LiíTabon Ichõ- ner und gefunder wúrde. Zu dem Ende liefs er auch pracht- voUe gemeinnútzige Gebaude auffúhren wie Bõrfe, Kaufhaus, Arfenal, freie Platze und einen õffentlichen Garten anlegen, die WaíTerleitungen verbeífern u. A. m. Wiire der Plan zu Stande gekommcn, am Ufer desTajo bis nach Belém eine Promenade mit Baumpflanzungen aufzufúhren, fo wurden die Reize der portugiefifchen Refidenzftadt noch wefentlich erhõht worden fein. Hatte er zuerft die Staatsmittel zur Linderung des Elends verwendet, fo bediente er fich jetzt derfelben zu Anlagen im allgemeinen Intereíle.

II

DIE PORTUGIESISCHE REGIERUNG IM KAMPFE GEGEN JESUITEN

UND PAPSTTHUM.

Pombais Name hat eine weltgefchichtliche Bedeutung erhalten durch fein kúhnes Vorgehen gegen die Jeluiten. Es

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iíl: eine bekanntcThatlache dafs die GelelUchalt Jelli leit ihrer Grundung in deii beiden Kõnigreichen der pyrenailchen Halb- inlel íehr grofsen Einfluís erlangt und dafs insbelbndere João V sein Vertrauen und feine Guníl den Ordensbrúdern in hohem Grade zugewendet hatte: fie waren nicht blofs die Beichtvater und GewiíTensrathe der ganzen kõniglichen Fa- milie, der Haupter des Adels und der Hofwelt, auch in den Angelegenheiten der Politik wurden lie um Rath gefragt; die wichtigrten Aemter und Hofltellen gingen gleiclifam durch ihre Hande; Schulen und wiíTenfchaftliche Anftalten ftanden unter ihrer Leitung und Pflege ; die lUiffionen in den Colonien wurden von ihnen belorgl. Es war ein eigenthúmliches Zu- lammentreífen, dafs die Ordensglieder gerade um die Zeit, da die Spitzen der Gefellfchaft den philofophifchen Reform- ideen huldigten und die Gemúther der Gebildeten den reli- giõfen und kirchlichen Dingen abgewendet waren, fich mehr wie je mit fremdartigen weltlichen Gefchaften abgaben, dafs fie in Nachahmung der englifch-oftindifchen Compagnie in Handels- und Geldfachen fich einliefsen, nach einem felb- ftandigen politifchen Staatsorganismus tracliteten, fich nur zum Schein einer hõheren Autoritat unterwarfen, in Wirk- lichkeit aber durch allerlei fophiftifche Kunfte und Umge- hungen nicht nur der wehHchen Obrigkeit, fondern felbfl: den Gefetzen undVerboten des Papftes fich zu entziehen wufsten. VonWerten und Often trugcn ihre KaufmannfchitFe Colonial- waaren nach den europaifchen SeepUttzen. Die Handelsun- ternehmungen gingen freihch nur von einzelnen Mitghedern aus; aber der Gewinn kam dem ganzen Orden zu gute. Diefe mercantile Thãtigkcit des Ordens trat befonders bei einem Prozeífe zuTage, den ein Marfeiller Handelshaus gegen die GefeUfchaft anftrengte, ais diefe fich weigerte, die von dem Generalprocurator der Miífionen in Welhndien ausgefteUten und von dem Haufe angenommenen Wechfel anzuerkennen

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und zu bezahlen. Unter diefen Umftânden, ais die ganze Welt mit Spaiinung dem Ausgange der gerichtlichen Unter- fuchung entgegenfah und mit Indignation auf das unredliche Treiben dcs Ordens blickte, war es ein gewagter Schritt, ais die Jefuiten auch gegen die Regierung des kiihnen Staats- mannes in LiíTabon feindfelig auftraten.

Auf der ludlichen Halfte des americanifchen Continents hatte der Jeílútenorden bald nach feiner Begriindung feine weltgefchichtliche MiíTion am grofsartigsten entfaltet. Un- widerftehlich drangen die Vater in die Urwalder vor und wufsten fich das Vertrauen der von den Spaniern mifshan- delten Eingebornen zu erwerben. Auf diefen Zúgen betraten fie zueríl den Boden von Paraguay, wo fie mit Genehmigung des Kõnigs von Spanien ein eigenes Gemeinwefen unter fei- ner Oberlioheit errichteten. Der ganze Staat follte ein chrift- liches Patriarchat darftellen und trug auch in der That ein focialiífifclies Geprage. Die Indianer wurden ais Kinder be- handelt, an LandwirthfchaftViehzucht und religiõfe Uebungen gewõhnt, im Uebrigen in jeder Beziehung bevormundet und auf eine mõglichst niedrige Stufe von Wiífen und Urtheil reducirt. Jede Familie hatte ein kleines Befitzthum, aber der grõfste Theil des Landes war Gemeindeacker (poífeflio Dei). Mit dem Ueberfchuífe der Ertrãgniífe trieb der Orden einen grofsartigen Handel, deífen Gewinn dem Staate felbft wieder zu gute ftommen follte. Um Einfalle abzuwehren, wurden Grenzfeftungen angelegt und die hidianer waíTenfahig ge- macht. Das Land felbft war jedem Fremden verfchloífen und felbft Spanier konnten nur zeitweilig im Gefolge des Gouver- neurs und des Bifchofs Zutritt erhalten. Dem Namen nach ftand Paraguay unter der Oberhoheit der Krone Spanien; aber diefe Hoheit war bei der grofsen Hingebung des kõniglichen Haufes in Madrid an die Gefellfchaft nur ein Schein und Schatten; die Vater der MiíTion benahmen fich

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ais felbílãndige Herren und Gcbieterdes Ichõnen und reichen Landes, hielten alie Europaer fern und regierten tiber die Indianer, die lie aus Wáldern und Wiiften in ihren Nieder- laíTungen am Uruguay gefammelt und in Dõrfern und Flecken zur Gemeinfchaft der Arbeit, der GCiter, der Zucht und des Lebens herangezogen hatten, wie Hirten uber ihre Heerden. Da wurde zwifchen den \'erwandten Hõfen von Madrid und LiíTabon einTaulchvertrag abgerchloflen, in Folge deffen die Portugiefen die viel umlirittene Colónia dei Sacramento gegen fieben MiíTionsbezirke (Reductionen) in Paraguay abtraten. Die Jefuiten íctzten alie Hebel ein, um den Landertaufch zu verhindern; ihr Einflufs und ihre diplomatilchen Kunfte wa- ren jedoch nicht ausreichend. Da reizten die geiftlichen Vater ihre indianifchen Schutzlinge zum Wideriland, verfahen fie mitWaffen und ftellten franzõíifche Offiziere, die fie in Dienft nahmcn, an ihre Spitzc. So erhob fich ein mehrjahriger Búr- gerkrieg, der erft nach grofsen Anftrengungen, Koften und Befchwerden von Seiten der vereinigten fpanifch-portugiefi- fchen Armee beendigt ward. Die Indianer wurden durch Gomez Freire de Andrada, Statthaher von Rio Janeiro befiegt und theils ais Sclaven behandelt, theils in die Urwalder und Wufteneien zuruckverfetzt, aus denen die MiíTionare fie einíl hervorgezogen. Diefe Auflõfi.ing des Jefuitenftaats hatte An- fangs fur Paraguay fchlimme Folgen: was unter der patriar- chalifchen Regierung gefchaffen worden, ging wieder der Verõdung entgegen. Aber mit der Zeit erwies fich die Aus- weifi-ing der Vater ais ein fegensreiches Ereignifs fúr die Fort- bildung und Hebung der weiffen Bevõlkerung in America. Denn jetzt erft fing diefelbe an, fich den Studien zu widmen und an dem geiftigen Leben Europa's zu betheiligen; jetzt erft fiihlte man das Bcdurfiiifs, die eigencn Krafte anzu- ftrengen, ein íelbftandiges Culturleben zu íchaffen.

Der Krieg in Paraguay hatte der Krone Portugal ^•iclc

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Millionen gekoftet; es war daher begreiflich, dais man in LiíTabon gegen die Anftifter und Urheber deíTelben in den heftigíten Zorn gerieth. Zugleich hatten die geiftlichen Herren keine Gelegenlieit unterlaíTen, das Volk wider die Regierung aufzureizen. Nicht genug, dafs fie, wie erwahnt, das Erdbeben zu agitatorifchen Zweckeii verwertheten ; ais Pombal in der Umgebung von Oporto den Weinbau in den fiir Rebland weniger geeigneten Gegenden zu befchranken fuchte, theils um mehr Boden fiir Getreide und andere Produkte zu ge- winnen, theils um die Qualitat und damit die Preife des Port- weins zu fteigern, und dann denWeinhandel in Oporto einer privilegirten Handelsgefellfchaft iibertrug, wandten auch hier die Jefuiten alie Mittel an, um dasVorhaben des Minifters zu vereiteln oder zu verkúmmern. Es kam fogar zu einemVolks- aufftand, der miiitarifches Einfchreiten nothwendig machte und nur durch ftrenge Strafgerichte unterdrúckt werden konnte. Und nun hielt íich Pombal fiir berufen und berech- tigt, gegen den feindlich gefinnten Orden mit aller Energie vorzugehen. Er wufste, dais ihn íein Monarch in Aliem ge- wahren laffen, ihm in Nichts entgegentreten wurde. Es war ein ganz unerhõrtes Ereignifs, ais in einer Septembernacht (19 Sept. 1757) die Beichtvater des Kõnigs, der Kõnigin, der Infanten in das Jefuitenklofter gebracht wurden und allen Religiofen des Ordens verboten, ohne ausdriickliche Erlaub- nifs bei Hofe zu erfcheinen. Bald darauf legte der portugie- fifche Gefandte in Rom dem Papfte eine Reihe von Akten- ftucken vor, worin die Entartung und Verweltlichung der Gefellícliaft Jefu dargethan war, ihre Handelsunternehmun- gen, ihre Wucher- und Geldgeichâfte, ihre Betheiligung am Verkauf von Sclíiven und am Schleichhandel, ihre polifilchen Umtriebe im Kõnigreich wie in den Colonien. Der Minirter erreichte feinen Zweck. Papll Benedict XIV bctraute am I April 1758 den Cardinal Saldanha mit derVifitation und Re-

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formation der Geíelllchaft Jefu in den Kõnigreichen Portugal und Algarve Ibwie in den portugiefílchen Colonien Oft- und Weftindiens. Dieler verhot darauf den Mitgliedern der Gefell- fchaft Jefu alie Art von Handelsgefchaften und befchrânkte ihre Thatigkeit im ganzen Umfang feines Patriarchats. Allein noch in demfelben Jahr ftarben Benedict XIV und Cardinal Saldanha, und nun ftrengten die Jefuiten alie Krafte an, den paprtlichen Stuhl im Interefle ihres Ordens zu beletzen. Der Nachfolger war Clemens XIII, ein frommer und wohlmci- nender, aber in den Dingen der Zeit wenig erfahrener Kir- chenfurft, eifrig befliíTen, die Autoritat des Pontificats unver- letzt und ungefchwacht zu halten. Diefem úberreichte fofort der Ordensgeneral eine Denklchrift, worin er die der Gefell- fchaft vorgeworfenen Vergehen und Unordnungen in Abrede ftellte und auf die Verlegung der Unterfuchung nach Rom drang. Clemens XIII, der in den Jefuiten die treueften Vcr- fechter des Papftthums und der Religion fah, fchenkte ihncn vollen Glauben. Damit wãren wohl Pombais Reformplane begraben worden, hatte fich nicht ein Ereignifs zugetragen, das ihn rafcher zum Ziele fiihrte, ais durch den geiftlichen Gerichtsgang je mõglich gewefen ware.

Ais einft der Kõnig in Begleitung feines Kãmmerers und Gunftlings Pedro Texeira von einem nachtlichen Befuche. den er der Gemahlin des Marquis Luis Bernardo de Távora abftattete, von Belém nach dem Schlofs Ajuda fuhr, fielen zwei Schiilfe in denWagen, durch welche Jofeph am Arm und in der Seite leicht vcrwundet ward. Die Sache wurde fehr gehcim gehalten, um alies Auffehcn zu vermeiden und Vorkehrungen zur Entdeckung und Haftnahme der Urheber zu treffen. Der Kõnig hielt fich vor aller Welt verborgen, wahrend der Minifter mit raftlofer Thatigkeit die Unterfu- chung betrieb. DerVerdacht fiel auf den Hcrzog von Aveiro und die Familic Távora. Man war iibcrzeugt, dais eine Ver-

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fchwõrung zum Umfturz der Regierung bertehe, deren Fâden lich in die hõchften Adelskreife zu verlaufen fchienen. Schon waren tiber drei Monate feit dem myfteriõfen Attentat ver- floíTen, ais plõtzlich die drei Edelleute, die man fúr die Haup- ter des Compiots hielt, der Herzog von Aveiro, der Marquis von Távora und fein Schwiegerfohn der Graf von Atouguia ins Gefângnifs gefuhrt und ilire Papiere mit Befchlag belegt wurden (i3 Decbr. lySS). Unter den Scliriftítucken w^aren einige Briefe, in denen man rathfelhafte und dunkle Andeu- tungen eines verbrecherifchen Vorhabens zu finden glaubte. In einem deríelben Ias man die Worte: «Um die Autoritat des Kõnigs Sebaftião (Sebaít. Joí. de Carvalho) zu zerftõren, muíTen wir die des Kõnigs Jofé vernichten » . Bald befanden fich alie Glieder der zahlreichen und angefehenen Familie Távora, Manner wie Frauen, an verlchiedenen Orten unter Schlols und Riegel; die Frauen in Klollerkammern, die Man- ner, mit Ketten beíchwert in Kerkerlõchern und ehemaligen Thierbehaltern. Und da man die nahen Beziehungen diefes Adelsgefchlechts zu den Jeluiten kannte, wurden auch meh- rere Ordensbruder in Haft genommen und ihre Klõfter und Collegien durch Soldaten abgefperrt. Darauf wurden die Verhafteten auf Grund von Auslagen und Geftandniílen, die man ihnen durch Torturen und Zwangsmittel abgeprefst, von einem befondern Gerichtshofe des Hochverraths und Maje- ftatsverbrechens íchuldig erkannt und zu den entehrendften und martervoUften Strafen verurtheilt. Acht Glieder des reich- ften alteften Adels, welche die hõchften Ehrenamter bei Hof und im Militar bekleidet hatten, ftarben auf dem Schaf- fott (i3 Jan. 1759); ihre Leichen wurden auf das Rad ge- íiochten, ihre Guter eingezogen, ihr Name gefchandet. Antó- nio Alvarez Ferreira, der die Stutzbiichfe abgefeuert hatte, wurde an einen Pfahl gebunden und lebendig verbrannt. Jofé Mafcarcnhas, Herzog von Aveiro, ein Verwandtcr

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des kòniglichen Hauíes, in deíTen Familie das Amt des Mordomo oder Oherhofmarlchalls erblich war, der Mar- quis von Távora, ehcdem Vicekõnig in Oftindien, Icinc ftolze Gemahlin, einíl: eine gefeierte Schõnheit und auch jetzt noch trotz ihrer vorgerúckteren Jahre eine ftolze Edeldame von kõrperlichen und geiftigen Vorziigen, ihr Sohn Jofé Maria, ein trefflicher talentvoller junger Mann von einundzwanzig Jahren und lein alterer Brudcr Luis Bernardo, mit deíTen fchoner Gemahlin Tiíerefe der Kõnig das heimliche Liebes- verhaltniís unterhalten hatte, der Graf von Atougia, Schwie- gerfohn des Marquis und mehrere Diener des Haufes mufsten die Bitterkeit eines gewaltfamen Todes erleiden. Nur die Marquise Tiíerefe felbll: wurde in einem Frauenklofter unter- gebracht, ihrem Stande gemais behandelt und dann in Frei- lieit gefetzt. Die Verurtiíeilten, úber deren verbreciíerifche Plane und Handlungen ein amtlicher Bericht verõffentlicht ward, warcn alie erklarte Feinde des Minifters, den fie ais einen weit unter ihnen ftehenden Emporkõmmling haísten und beneideten, der fie um die Gunft des Monarchen ge- bracht, deíTen Reformen fo tief in die kirchlichen, politilchen und gelellfchaftlichen Traditionen einfchnitten, der ihrem Ehrgeize, ihrer bisherigen Machtftellung Einhalt zu gebieten gewagt, der die Jefuiten, mit denen das Haus Távora von jeher durch Bande der Pietat, der Religion, des Vertrauens verknupft war, vom Hofe und vom Beichtftuhl verdrangt hatte. Eine groíse Anzahl Verwandter, Freunde und Gelinnungsge- noíTen wurden in graíTlichen Kerkern gefangen gehalten.

Bei der Abneigung, welche Carvalho, der um diefe Zeit wegen feines Verdienftes um die Entdeckung des Complots zum Grafen von Oeyras erhoben ward, gegen den machtigen Jcíuitenorden hegte, ftand zu erwarten, dais man die gcricht- liche Verfolgung auch iiber diefe geiftliche BrLiderfchaft aus- dehnen wurde. Man hatte bereits zehn Mitglieder, die man

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ais Anftifter und Mitfchuldige betrachtete, unter ihnen den Pater Gabriel Malagrida, einen gebornen Mailãnder in Ge- wahrfam gefetzt und ihre Papiere und Brieflchaften wegge- nommen. Man fand bald manche verdachtige Anzeichen, die auf conlpiratorifche Anfchlage gedeutet werden konnten. Ihre zuverfichtliche Haltung, ihr herausforderndes Benehmen, ihre Dreiftigkeit gegen die õífentliche Autoritat vor dem Mordver- fuch, die Ausfagen Aveiro's bei feinem Verhõr, verfangliche AeuíTerungen, dafs der Konig nicht lange leben und die Ty- rannei des Grafen bald ein Ende nehmen wiirde, aufgefan- gene Briefe nach Rom, worin die Lage des Reiches und die Bedrãngnifs der Ordensbrúder in grellen Farben dargeftellt waren; diefe und andere Dinge wurden ais Beweife ihrer Schuld und bõfen Abfichten gedeutet. Schon einige Wochen nach dem Blutgerichte (Febr. lySg) konnte der franzõlilche Gefandte in LiíTabon an den Minifter Choileul berichten, «man behauptet, die Jefuiten hãtten das Volk aufwiegeln follen, im Falle der Kõnig getõdtet worden wâre»; und einige Wochen fpâter meldete er nach Paris, man habe entdeckt, dafs drei der verhafteten Ordensgeiftlichen in die Verfchwõ- rung verflochten gewcfen, und dafs Mitglieder der Gefell- fchaft Jefu ais die Anftifter des Mordanfalls angefehen wiir- den. Sie hatten die gereizte Stimmung und den verletzten Ehrgeiz des Herzogs von Aveiro und der Familie Távora iiber widerfahrene Zurúckw^eifungen von Seiten des -Kõnigs benutzt, um fie zu dem verbrecherifchen Unternehmen an- zufporncn. Auf Grund folcher Schuldbeweife wurde im Laute des Jahres lySg eine Reihe von Mafsregeln gegen die Gefell- fchaft Jefu in Anwendung gebracht, die ihrer Exiftenz und Wirkfamkeit in allen der portugiefifchen Krone unterwor- fenen Landern ein Ende machten.

Nachdem in einer an Papft Clemens XIII gerichtcten Denkfchrift die Entartung des Ordens von den urfpriinglichen

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Grundílttzen, das ungefetzliche und aufruhrerifche Betragen íeiner Mitglieder in Paraguay und Brafilien, die confpirato- rifchen Umtriebe des vorigen Jahres dargelegt und der heil. Vater erlucht worden, das gerichtliche Vorgehen gegen die des Hochverraths verdãchtigen Ordensbriider zu geftatten, damit fie nach den Gelblzen beftraft wiirden, ergingen kõnig- liche Auslchreiben, welche den Jcfuiten das VerlaíTen ihrer Klofterwohnungen und den Verkehr mit Weltlichen unter- fagten, ihre Wirkfamkeit im Beichtftuhl und auf der Lehr- kanzei hemmten, das Vermõgen der Gefellfchaft und ihre Schritítiicke mit Befchlag belegten. Der Papft liefs gefchehen was er nicht zu verhindern vermochte: der ZeitgeiíT:, die õífentliche Meinung, die Vorurtheiie und Abneigungen der Regierungen und der herríchenden KlaíTen waren machtiger ais die kirchliche Autoritat. Clemens mufste lich begniigen, die Befchuldigten und Angegriffenen der Milde des Kõnigs zu empfehlen. Doch konnte man lich in Rom nicht ent- IchUeíTen, die Jeluitenvater in Portugal einem weltlichen Tri- bunal zu unterwerfen; man furchtete, es mõchte cine Wieder- holung des ProzeíTes gegen dieTempelherren in Sccne gefetzt werden. Auch hatten mehrere hundert Bifchõfe und Cardi- nãle Deutfchlands und Italiens ein Schreiben an den Papft gerichtct, mit dem Erílichen fich der bedrangten Ordens- briider anzunehmen, und in allen Landern wurde von den Jefuiten felbft und ihren Frcunden und Anhiingern eine Fluth von Schmahlchriften, verlcumderifchen Befchuldigungen, feindfeligen Nachredcn und Angritfen wider dieTyrannei der portugiefifchen Regierung lolsgelaíTen. Das Breve, welches die Erlaubnils zu dem Gerichtsverfahren gegen die ange- Ichuldigten Kleriker ertheilte, war daher mit lo vielen Cau- tclen verfehen, dafs es zu einem umfaíTenden Prozeís, wie ihn der Minifter beabfichtigte, nicht hinreichte. Nur gegen bcftimmte Perfonen und unler dem Vorfitz eines Geiftlichen

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foUte die Unterfuchung ^'or fich gehen. Auch war der Nun- tius angewiefen, das Schriftftúck dem Kõnig felbfl einzu- handigen. Man hoíTte, der lalbungsvolle Curialílil werde auf das Gemuth des der Kirche und dem rõmifchen Stuhle mit Ehrfurcht ergebenen Fiirften feines Eindrucks nichtverfehlen. Abar Pombal, von dem Inhalt des Schreibens unterrichtet, bewog feinen Monarchen, die Annahme des Breve zu ver- weigern. Es wurde ais ein Eingriff in die Prarogative der Krone angeíehen, dafs man Leute, welche Unterthanen zur Empõrung verleitet und fich in hochverrãtherilche Complotte eingelaíTen, dem Arme der Gerechtigkeit entziehen wolle.

Diefer Kriegserklarung gegen Rom liefs der Minifter einen Gewaltakt folgen, welcher die ganzeWelt in Erftaunen fetzte und bald auch in andern Lândern Nachahmung fand. Ermu- thigt durch die ungunftige Stimmung, die gleichzeitig in den BourbonTchen Staaten gegen die Jeluiten zu Tage trat, gab Pombal (i 3 Sept. lySg) den Befehl, dafs alie Religiofen der Gelellfchaft Jefu aus ihren Ordenshãufern und Klõftern abge- holt und zu Schiff nach dem Kirchenftaate gefúhrt wtirden. Diefer Befehl wurde mit grofser Hãrte vollftreckt. Zwei ragu- fanifche Schiffe, die kaum den nõthigen Raum hatten, fúhrten etliche hundert, meiftens bejahrte und an ein gemachliches Leben gewõhnte geiftliche Manner nach Civita Vecchia, wo fie iiber zwei Monate in kalter Jahreszeit in den Cajúten aushar- ren mufsten, bis Vorkehrungen zu ihrer Aufnahme getrotten waren. Nur diejenigen Jefuitenvater, welche ais Mitfchuldige oder Mitwiífer der Verfchwõrung bereits in Haft gebracht wa- ren, blicben im Fort S. Julião an der Miindung dcsTajo einge- fchloífen, wo das Volk fie in ihrer Ordenstracht vom Geftade aus fehen konnte. Zugleich wairde von Amtswegen cine Reihe von Schriftftucken gedruckt und bei allen Gerichts- und Re- gierungsftellen niedergelegt, um in Zukunft ais authentifche Documente der Schutd und der vcrderblichcn Grundfatze

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und Handlungsweiíe der Jefuiten fo wie zur Rechtfertigung der Líber fie verhangten Ausweifung zu dieiien.

Dies war die Einleitung zu einem ganzlichen Bruch mit Rom. So fchwer es dem kirchlich und glaubig gefinnten Kõnig fiel, mit dem heil. Vater in Unfrieden zu leben, der Einflufs des gewaltigen Mannes, der den fchwachen unlclb- ftandigen Furften mit Verfchwõrungsplanen und Nachftel- lungen der Jefuiten angftigte, war mãchtiger ais die Furcht vor dem Kirchenhavipte und feinen geiíllichen Waífen. Zehn volle Jahre dauerte das feindfelige Verhaltnifs zwifchen LiíTa- bon und Rom; neue Krankungen und Zwiftigkeitcn fcharften den Streit; gehaífige Flugfchriften und Druckwerke, von beiden Seiten in die Oeftentlichkeit geworfen, fuhrten der Flamme fortwahrend neuen Brennftoff zu. Im folgenden Jahr (6 Juni 1760) wurde bei Gelegenheit der Vermahlung des Infanten Pedro mit des Kõnigs Tochter, der Thronerbin, ein grofses Nationalfeít veranftaltet. Da blieb allein der Palaít des Nuntius Acciajuoli unbeleuchtet, weil man unterlaíTen hatte, ihn offizicll von dem Feft in Kenntnifs zu fetzen. Einige Tage nachher wurde der Cardinal genõthigt, LiíTabon und das ganze Kõnigreich in grõflíer Eile zu verlaífen. Dies hatte die Ausweifung des portugiefifchen Gefandten Almada aus Rom zur Folge. Er begab fich nach Florenz, w^o er Flug- fchriften in kirchenfeindlichem Sinne verhreitete, die dann in derTiberftadt vcrdammt und verbrannt wurden. Nun íolgten neue Zwangsmafsregeln: alie Portugiefen wurden aus dem Kirchenftaat, alie papftlichen Unterthanen, Geiftliche wie Laien, aus Portugal ausgewiefen. Die Regierung in Lilfabon unterfagte jede Ausfúhrung -von Geld und Gut nach Rom ohnc kõnigliche Erlaubnifs und jede Einholung oder An- nahme von Bullen oder Brcven. Die gehaífigen Schriften, Libelle, verleumderifchen Flugblatter, die in allen Landern gegen Pombal und den Kõnig ausgeftreut wurden, hatten

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zur Folge, dafs der Minifter auf der eingefchlagenen Bahn immer energifcher vorging. Er wollte die Gefellfchaft Jefu fúr alie Zeiten in Portugal vernichten. Zu dem Zweck wurde im Febr. 1 7 6 1 verfúgt, dafs alies Vermõgen, welches der Orden an Gutern, Haulern, Geldrenten, Waaren in Portugal befitze, dem Fifcus verfallen fei und alie Lândereien, die einft von der Krone verliehen worden, an diefelbe zurúcker- ílattet werden foUten. Und bald erregte ein neues Schaufpiel die Aufmerkfamkeit von ganz Europa. Der wegen Theil- nahme an dem Complot verhaftete Pater Malagrida, der ais Beichtvater der Familie Távora und vieler adeligen Haufer grofses Anfehen in den ariftokratilchen Kreifen genofs und ais Prophet und Heiliger verehrt ward, der aber íeit dem Erdbeben gegen das herrfchende Regiment eine feindíelige Sprache gefiihrt, viel von gõttlichen Otfenbarungen, Vilionen und Weiflagungen geredet hatte, wurde auf Pombais Befehl vor das Inquifitionstribunal geftellt, und ais ihn diefes wegen Gotteslaíterung, falfcher Prophezeiungen und Irrlehren ais Ketzer und Feind des katholifchen Glaubens verurtheilt und dem weltlichen Gerichte uberantwortet hatte, im Angefichte einer grofsen Menfchenmenge von dem Henker zuerít er- droíTelt, dann verbrannt (20 Sept. 1761). Der Verurtheilte, ein achtzigjâhriger Greis, bei dem Phantafie und religiõfe Schwãrmerei weit iiber feine Vernunft und Einficht gingen und auf deíTen Geift die aufregenden EreigniíTe und die lange Gefangenfchaft verwirrend eingewirkt zu haben fcheinen, hielt die Wahrheit feiner Prophezeiungen bis zum letzten Augenblick aufrecht. Die Jefuitenfreunde fahen in ihm cinen wimderthatigen Mãrtyrer, der dem HaíTe Pombais zum Opfer gefallen, Andere betrachteten ihn ais einen Fanatiker, dem Verftand und richtiges Urtheil verloren gegangen. Dafs die Regierung die Inquifition, deren Jurisdiction und Machtbefug- nifse Pombal felbít im Anfang feiner Verwaltung befchriinkt

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hatte, nun zu ihren ordensfeindlichen Zwecken gchrauchte, den Pater ais Ketzer den Flammen uberlieferte ftatt ihn we- gen Hochverraths durch das Gcricht verurtheilen zu laíTen, machte natiirlich in Rom und m der ganzen katholifchen Welt bofes Blut und erweiterte die Kluft zwifchen den beiden Machten. Der Kõnig befetzte den erzbifchõflichen Stuhl von Bahia ohne die Beftatigung der Curie einzuholen, und ais der Bifchof von Coimbra in einem Hirtenbrief fich in feind- feligen Aeufferungen gegen die Gottlofigkeit und unkirchliche Richtung der Regierung erging und neues Unheil íur die Nation daraus prophezeite, wurde er feines Amtes entfetzt und ins Gefangnifs gebracht, der Hirtenbrief õffentlich ver- brannt, das Bisthum unter andere Verwaltung geftellt und das kõnigliche Cenforamt oder «Tribunal des GewiíTens» zu ftrenger Ueberwachung aller klerikalen Schriftftucke ange- halten. Wie in den Bltithetagen der Inquifition fullten fich die Gefangniíle mit Schuldigen, Unzufriedenen, Verdachtigen. Auf der Buhne fah man den ins Portugiefifche uberfetzten «Tartufte» im Jefuitenornat erfcheinen.

Mit richtigem Urtheil erkannte der Minifter, dais nur durch Hebung und Verbreitung der Volksbildung die Nation von der Macht der Hierarchie und von den Banden des Aberglaubens und der priefterlichen Einwirkung befreit wer- den kõnnte. Darum war er unermiidlich beftrebt, durch Auf- klíirungsfchriften, durch Errichtung von Volksfchulen und Unterrichtsanftalten aller Art, durch Herbeiziehung fremder Lehrer und Buchdrucker der geiftlichen Herrfchaft auf immcr zu fteuern, im Gegenfatz zu den unfruchtbaren Mõnchs- fchulen praktilche Anílalten fiir das Leben und fiir nationale Bildung zu grundcn. Wir werden fpater die Reformthiitig- keit des Miniífers auf allen Gebieten des Staats und der Volkserziehung kennen lerncn, durch welche ein neues Por- tugal gefchafTen werden folltc, wúrdig den tibrigen Cultur-

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ftaaten an die Seite zu treten. Zunachll: benutzte Pombal die Zeit der Mifshelligkeiten mit Rom zur Befchrankung der klerikalen und kirchlichen MachtbefugniíTe. Ais ein Cano- nicLis gegen das Urtheil einer Staatsbehõrde in einer Pen- fionsfache Einfpruch erhob und mit der Excommunication drohte, wurde diefe Anmafsung durch ein kõnigliches Decret vom IO Marz 1764 zuruckgewielen und dabei in fcharfen Worten betont, dafs die Krone die Macht und Pflicht, die Unterthanen zu fchirmen unmittelbar von Gott habe, und dafs es eine Mifsachtung der íbuveranen Fúrftengewalt fei, die in zeitlichen Dingen keinen Hõheren anerkenne, wenn die Kirche, ftatt das Erbe und den Weinberg des Herrn zu vertheidigen die kõnigliche Autoritat angreife. Darauf wurde verfQgt, dafs keine Excommunication uber Behõrden oder Beamten ohne die unmittelbare Cognition des Kõnigs ver- hangt werden dúrfe. Um der Vermehrung des Kirchenver- mõgens und den erbfchleicherifchen Kunften des Klerus Schranken zu fetzen, erging die Verordnung, dafs alie Or- densleute, weibliche wie mannliche, bei ihrem Eintritt in eine geiftliche Kõrperfchaft von jedem vaterlichen und miitterlichen Erbtheil ausgefchloíTen feien. Schenkungen, fromme Legate und Vermachtniffe fur SeelenmeíTen wurden befchrânkt und durften einen beftimmten Vermõgenstheil nicht úberfteigen. Eine grofse Zahl von Mõnchs- und Non- nenklõftern vmrde aufgehoben und die Aufnahme von No- vizen vor ihrem fúnfundzwanzigften Lebensjahr und ohne ausdriíckliche Erlaubnifs des Kõnigs verboten. Alie ohne kõnigliches Placet bekannt gemachten pãpftlichen BuUen und Breven, insbefondere die von den Jefuiten heimlich eingefuhrte Bulle «in Coena Domini» gegen Irrlehrer, Ketzer und Schismatiker (1768) wurden fiir ungiiltig erklart, die Unterfcheidung zwifchen «Neuen Chriften» und «Alten Chrillen» aufgehoben und dadurch die Rcchtsungleichheit,

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die hisher die crftercn von den uílcntlichen Aemtern aus- gefchloíTen hatte, heleitigt. Feiertage und ProzeíTionen wur- den vcrmindert. Durch diefe Gcfetze und Vcrordnungen ^vu^den auch die Befugniíle und der Gefchaftskreis des Inquifitiontribunals eingefchrankt, wenn gleich das Amt felbft noch fortheftand, und mehr im Dienfte der Regierung ais der kirchlichen Rechtglauhigkeit angewendet ward. Doch kamen keine Autos de mehr vor, man hegntigte fich mit Gefangenhaltung. Die Todesftrafe wurde iiberhaupt unter Pombais Regierung felten verhangt, dagegen war es nichts Ungewõhnliches zu gleicher Zeit zwanzig oder dreilTig, die in eine Veríchwõrung oder in aufruhrerilche Bewegungen ^'er^vickeIt waren, ins Gefangnils gefiihrt zu lehen. Aber um Uebelftande und Gewohnheiten, die durch hunderjahrige Tradition und Uebung zur\'olksnatur geworden, zu vertilgen, reichen die Krafte eines einzigen Mannes, und wiWc er noch fo kiihn und gewaltig im Aufraumen, nicht hin. Zum Nieder- rciíTen war Pombal der rechte Mann, zum Aufbauen hatte CS einer ruhigeren, befonneneren Perfõnlichkeit und einer langeren Dauer der herrfchenden Zeitrichtung bedurft.

Die Jelliiten glaubten die feindfelige Stimmung, welche in Portugal und in den BourbonTchen Landern gegen den Orden fich lo fcharf kund gab, durch die Autoritat des von ihnen beherrlchten Papftes Clemens XIII niederhaltcn zu kõnnen. Sie envirkten daher durch ihren Einflufs imVatican, dafs insgeheim eine Bulle entworfen ward, worin nicht nur die Gefellfchaft Jefu aufs Ncue bellatigt, fondern auch die in den letzten Jahren ausgeftreuten gehafligen Angaben und Berichte ais bõswillige Verleumdungen erklart wurden. Diefe Bulle vom 7 Jan. 1765, bekannt unter dem Namen « Apoftoli- cum pafcendi múnus», ward durch die Nuntien allen Bifchõ- ten der Chrillenheit zugeftellt. Sie folhe den AngriíTen gegen

den Orden ein Ziel fctzcn, hatte aber den entgegengefetzten

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Erfolg, fie forderte die Feinde zu Gegenmafsregcln heraus: in Neapel und Venedig wurde die Bekanntmachung und Ver- breitung verboten, in Frankrcich úbcrgab man das Schrift- ítuck an manchen Orten den Flammen, in Portugal, wohin es auf Schleichwegen gelangte, wurde auf Antrag des Kronan- walts in einer durch Beiziehung der angelehenllen Theologen und Juriften verftarkten Staatsrathsíitzung die Erklarung abgegeben, die BuUe, ^velchc die Jefuiten durch unwLirdige Kunftgriífe erlchlichen hiitten, verletze die Rechte der Krone, gefilhrde die Ruhe des Reichs und ftõre den Frieden der Kirche. Ein eigenes Gefetz belegte daher das Befitzen, Dru- cken und Verbreiten derfelben mit Ichweren Strafen (6 Mai 1765). So lõfte fich mehr und mehr das Band auf, das Rom bisher mit den katholifchen Staaten fo innig verbunden hatte. Schon wurden zwilchen Liflabon und Paris Scliriftftúcke ge- wechfelt, wie man bei dem piípftlichen Stuhle die Aufhebung des Jefuitenordens am nachdrucklichften betreiben kõnne. Auch das Madrider Cabinet fuchte man zur iMitwirkung zu gewinnen. Wenn die drei Kronen, meinte Pombal, mit ein- miithigen Forderungen fich an die Curie wendeten, lo kõnnte lie weder die Authebung der GelelUchaft Jelli noch die Ab- ílellung anftõffiger Mifsbrauche in Religionslachen verwei- gern. Ein neues kõnigliches Manifeft erklarte (28 Aug. 1767), dafs jeder Jeluit, der in Portugal betroffen werde, ais Hoch- verrather und Majeftatsverbrecher beftraft werden wiirde. «Die Ordensglieder und ihre Freunde und BelchiUzer íeien die unverbelTerlichen und gemeinlamen Feinde allcr welt- lichen Macht, der hõchften gefetzmãíTigen und von Gott eingeletzten Obrigkeit, der Ruhe und des Lebens der chriU:- lichen Fúríten und des õífentlichen Friedens der Staaten». Alie Portugiefen foUten fich durch einen vor den Magiíb-aten abzulegenden Eid feierlich vejpflichten, mit der Gerellfchaft Jefu in keinerlei Verbindung zu ftehen oder ihre Lehren zu

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thcilen. Ais Antwort auf die Bulle richtete Kõnig Joleph ein Schreiben an Clemens XIII (6 Decebr. 1767), worin er unter \'erricherung leiner Ehrfurcht fur dcn heil. Vater felbft fcin Bedauern auslpricht, dafs derfelbe cinen Ordcn in Schutz nehme, der fich die Ermordung der Furften, die Aufwiege- lung der Unterthanen, die Stõrung des õffentlichen Friedens durch Scbriften undThaten zum Ziele leines Strebens celetzt. Die \'organge in Portugal wirkten auf Spanien und Frankreich zuruck. Dem Nuntius in Madrid \vurde bereits die Andeutung gemacht, wenn Clemens XI 11 fich noch langer weigere die Sãculariíation der Gefellfchaft Jelli vor- zunehmen d. h. die Mitglieder von ihren Gelúbden loszu- Iprechen und in den Weltpriefteríiand eintreten zu laíTen, lo kõnnte es leicht gelchehen, daís dem paprtlichen Stuhle einige leiner Befitzungen entriffen ^vúrden. Die Kirche felbft und die Autoritat ihres Oberhauptes litten unter den Schla- gen gegen die Jelliiten. In Portugal íing man an fich an den Gedanken einer Trennung von Rom zu gewõhnen. Die Erzbifchõfe ertheilten kirchliche Difpenfationen tiuf eigene Hand; erledigte Pfrunden wurden durch die Regierung befetzt; die Frage iiber den Primat des rõmifchen Bifchofs wurde gefchichtlich erforfcht und die Selbftandigkeit des Landcsepifcopats nachgewiefen; die portugiefifche Geiftlich- keit machte fich mit dem Gedanken vertraut, dafs Kirche und Staat einen unaufloslichen Bund mit einander fchlieífen, Krone und Epifcopat wie in England zu einem einheitlichcn Organifmus zufammenwachfen mõchten. Wie fehr immer der in lei nem Gewilfen geangftigte Kõnig eine Ausfõhnung wtinfchte und anftrebte, der Papft felbft machte fie unmõg- lich durch das eigenfinnige Bcharren auf der Riickberufung der ausgewiefenen Jefuiten. Wie hiltte Pombal auf eine folche Bedingung fich einlaften kõnneni' So dauerte das feindfeligc Verhiiltnifs fort und erweiterte fich zu einem Kampf aller

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romanifchen Võlker gegen das Pontificat. Das ftrenge Ver- fahren des heftigen Papftes Clemens XIII gegen den Herzog von Parma gab den Anstofs zu einem Streite, der von den katholifchen Hõfen ais cine allen Souveranen gemeinfchaft- liche Angelegenheit betrachtct wurde. Pombal war der An- ficht, man mulTe durch vereintes Vorgehen den Papll: aus den Banden befreien, in welchen ihn die Jeluiten gefangen hielten, feine ganze Umgebung beftehe aus Gliedern diefes Ordens, fo dais der wenig crleuchtete und fchwache Greis im Vatican die Dinge der Welt nur nach ihrer einfeitigen und egoiftilchen Darftellung erfiihre. Der portugiefifche Mi- nifter erblickte in der Auflõfung der Gelelllchaft das einzige Mittel, fie fiir immer von dem Kõnigreiche auszufchlieíTen. Ohne dieíe entfcheidende Maísregel war zu furchten, dafs der Infant Dom Pedro, der ganz andere Anfichten hegte und die anticlerikale Richtung des Grafen verablcheute, nach dem Tode Jofephs die Rúckberufung der geiftlichen BrLider- fchaft anordnen wiirde. Aber Choifeul war der Meinung, man folie warten, bis die Tiara auf ein anderes Haupt kame und dann bei dem Nachfolger die Sache mit mehr Energie betreiben. Grõfseren Eifer entwickelte Karl III von Spanien, der fich befonders verletzt fiihlte durch das feindfelige Auf- treten der Curie gegen feinen NeíTen, den Herzog \'on Parma. Er bewirkte durch feinen Minifter Aranda, dafs Frankreich das pâpftliche Gebiet an der Rhone befetzte, dafs Neapel Befitz von Benevent und Pontecorvo nahm und dafs die Gefandten der Bourbon'fchen Hõfe im Vatican Denkfchriften einreichten (Juni 1768), in welchen unter andern Forderungen auch die Auflõfung der Gefellfchatt Jefu dringend verlangt ward. Diefer entfcheidende Schritt war ein Herzílofs fiir den kranken Papft, der Nagel zu feinem Sarg. Noch ehe das zur Berathune iiber die fchwierige Laae einberufene Confiltorium

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zufammentreten konnte, ftarb Clemens XIII (2 Febr. 1769).

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Schmerzerfullt und kummervoll fuhr er in die Grube hinab. Sein elfjahriges Pontificat war eine ununterbrochene Kette von herben Mifsgcfchicken, Unfallen und Demiithigungen. Das Gebíiude der Hierarchie war innerlich erfchuttert, aus feinen Fugen geriíTcn, allen Stúrmen der Zeit preisgegeben. Auf die Kunde von dem Ableben des Papftes Clcmens XIII kehrte der portugiefifche Gefandte Almada von Florenz nach Rom zuriíck und verband fich mit den Botfchaftern der drei Bourbonfchen Hõfe von Frankreich, Spanien und Neapcl, um bei dem neuen kirchlichen Oberhaupte die von dem Vorganger lo beharrlich verweigerte Auflõlling des Je- fuitenordens zu betreiben und damit den Weg zur Wieder- herfteilung des Verkehrs zwifchen der Krone Portugal und dem heil. Stuhle anzubahnen. Seine Bemiihungen waren von dem glanzendften Erfolg gekrõnt. Cardinal Ganganelli, der mit feinem Vorganger nur den Namen nicht aber die Gefinnung und die Politik gemein hatte, gab den Abgefan- dten unter der Hand zu verftehen, dafs er, fobald die Um- ftande es geftatteten, dem Verlangen der Hõfe nachkommen wiirde. Zugleich gab er dem Kõnig und dem Minirter von Portugal folche Beweife von friedfertiger und verfõhnlicher Gefinnung, dafs bald eine vollftandige Ausgleichung der Streitigkeiten erwartet werden durfte. Im Juni 1 770 hielt der neue Nuntius, Innocenz Conti, ciner altrõmifchen Gra- fenfamilie entílammt, feinen Einzug in Lilfabon, vom Hofe und von dem ganzen Lande feierlich empfangen. Bei dem allfeitigen Wunfche einer aufrichtigen Verfõhnung fand man fchnell Mittel und Wege die kirchenfeindlichen Edikte wir- kungslos zu machen, ohne die kõnigliche Autoritat zu fchwa- chen, fo dafs fchon im Auguft der papftliche Botfchafter nach Rom berichtcn konnte: «Jegliche Angelegenheit geht gegenwartig hier in der beften Ordnung und Ruhe vor fich. Die ganze Vergangenheit ill vergeíTen und Alies wieder ins

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alie Geleife gebracht. Die Nuntiatur iibt ihre Rechte aus ohne die geringfte Beeintrachtigung; die ganze Bevõlkerung jubelt, indem fie den Verkehr mit Rom auf rechtskrâftige Weife wieder erõffnet fieht » . Auch im Vatican empfand man grofse Freude, dafs die Scheidewand endlich gefallen war. Der Papft feierte das glíickliche Ereignifs mit einem Tedeum und die Bevõlkerung der Tiberftadt durch eine Beleuchtung ihrer Haufer. Der Erzbifchof von Coimbra, der feinerWúrde nicht entfagen wollte, wiirde « wegen vorgerúckten Alters und anderer Grande » feines Amtes enthoben, die erledigten Bis- thumer mit wiirdigen Pralaten beletzt, alie Folgen des zehn- jahrigen Schisma auf entgegenkommcnde Weife ausgeglichen. Der Minifter hatte alie Urfache mit dem Gange der Dinge zufrieden zu fein. Er brauchte nicht mehr zu furch- ten, dafs die Jefuiten wiederkehren und feine Reformen durchkreuzen oder riickgãngig machen wiirden. Der Kõnig bewies ihm feinen Dank und feine Anerkennung durch die Verleihung des Ranges cines Marquis von Pombal. Um fo unzufriedener w^aren die Jefuiten felbll und ihre ultramon- tangefmnten Parteigenoílen und fie unterlieífen nichts, um durch Verdachtigúngen, Verleumdungen, unheilverktindende Prophezeiungen den neugefchloíTenen Bund zwifchen Rom und Liífabon wieder zu zerftõren. Aber ihre Tage waren gezâhlt. Pombal erlebte noch das Aufhebungsbreve, in welchem Clemens XIV., nachdem er fich durch langere Zurúckgezogenheit und Sammlung fúr den wichtigen Schritt vorbereitet, die Gefellfchaft Jefu fúr aufgelõft: erklarte und zugleich in Rom felblt alie ihre CoUegien und Ordenshaufer fchliefsen liefs (Auguft lõyS). In Liífabon ^vurde das Ereig- nifs mit Dankgottesdienft, Illumination und Freudenfeuer begrúfst. «Der Marquez von Pombal», fchrieb damals der englifche Gefandte in Portugal nach London, «ift befonders vergnijgt úber die Vernichtung einer Kõrperfchaft, mit wcl-

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cher er fo viele Jahre in Streit gelegen. Man muls ihm das Verdienft zugeftehen, dafs er der erfte in diefem Jahrhundert war, der es wagte, eine Gelelllchaft offen anzugreifen, die an manchen Hõfen und zumal an dem portugiefifchen fo grofsen Einflufs befafz » .

III

POMBALS REFORMTHAETIGKEIT UND AUSGANG

Wie lehr immer die kirchlichen Angelegenheitcn die Arbeitslíraft des Minifters in Anfpruch nalimen, dennoch fand der energifche Mann noch Zeit, auch den úbrigen Seiten des õífentliclien Lebens eine grofsartige Rcform- tliatigkeit zuzuwenden. Man blickt mit Erftaunen auf die Schõpfungen, die fein fruchtbarer Geist ins Leben rief, wenn dabei auch nicht geleugnet werden foll, dafs er bei der Einfugung feiner gefetzgeberifchen Ideen in das Gewebe der Wirklichkeit oft mit defpotifcher und gewaltthatiger Hand in die beftehenden Zuftande, Rechte und Ueberlie- ferungen eingriíí. Ohne Finanzen, ohne Credit, ohne Handel, ohne Induftrie, ohne Landheer und Seemacht, fo urtheilt ein ZeitgenoíTe, kampfend gegen feindfeHge Elemente, wel- che alie weife berechneten Mafsregeln zur Herftellung der zerrLitteten Staatsmafchine lahmten, gelang es dem grofsen Manne Finanzmittel zu fchaflen, der Regierung wieder Vertrauen zu ervverben, Handel und Schiífahrt anfehnlich zu erweitern, den Fifchereien in Algarve neues Lebcn zu geben, eine grofse Anzahl Fabriken und Manufacturen zu errichten, die Literatur und die Wiífenfchaft aufzumuntern durch die Neugeftaltung der Univerfitat Coimbra und Errichtung verfchiedener Anftalten fiir den õífentlichen Unterricht, das Landheer zu ordnen, neue Feftungcn auf- zufiihren, die alten herzuítellen, eine Achtung gebietende

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Flotte zu Ichaífen, dem Kõnigreiche das Ansehen, worin es ehedem im Auslande gestanden, zuriickzugeben und aus den Triiirimern von LiíTabon eine prachtigere, grõfsere und volk- reichere Stadt, ais die alte gewelen, erftehen zu laíTen. Mag Pombal bei diefer vielgeíchaftigen Thatigkeit auch manche Mifsgrifte gethan, auch manches Angefangene unvollendet gelafíen, Manches verfucht und unternommen haben, was lich in der Folge nicht bewahrte, fo war es doch lediglich feiner Arbeit, feiner Einficht und Energie, leinem Scharfblick und weiten Gefichtskreife zu verdanken, wenn Portugal aus der Abhangigkeit vom Ausiand, aus den Ketten einer hie- rarchiích-ariílokratifchen Zwingherrfchaft erlõít ward und in die Reihe der úbrigen CuUurftaaten eintrat.

Dais Pombal der Haufung der Giiter in unproduktiven Handen Grenzen fetzte, indem er die Erwerbfucht der Kirche belchrankte, die Ausdehnung der adeligen Befitzun- gen auf Koften der Krone und des freien Bauernftandes hemmte, dais er dem Weinbau ungeeignete und unergiebige Bodenftrecken entzog, war ein grofser Schritt zur Hebung und VerbeíTerung der Landwirthlchaft und zur Mehrung des Getreidebaues. Doch lag ihm vorzugsweife die Fõrderung der mercantilen und gewerblichen IntereíTen am Herzen. Sowohl die Errichtung einer grofsen Compagnie zur Cultur der Weinberge in der Umgegend von Oporto, die wie erwahnt zu agitatorifchen Umtrieben benutzt ward, ais die Befõrderung der Seidencultur, wozu man gegen 20,000 Maulbeerbaume aus Frankreich kommen lieis, hatte in erlter Linie den Auflchwung des Handels und der Induftrie zum Zweck. Auch Wollemanufaduren und andere Fabriken und Gewcrbc wurden durch Staatsmittel gefõrdert und fremde Arbeiter und Handwerker zur Einwanderung aufge- muntert. Wie freute íich der Minifter, ais er in feinem Dorfe Oeyras, das cr mit herrlichen Baumanlagen und Ziergàrten

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gefchmúckt, einfl: dem Kõnig eine Ausftellung inlandilcher InduftrieerzeugniíTe vorfuhren konnte! Er grúndete eine Handelsjunta, deren Statuten er felbft entwarf, und errich- tete in LiíTabon eine Schule, worin zweihundert Zõglinge in allen Zweigen des Handelswefens und der Schiffahrtskunde unterrichtet wurden. Er felbft und andere Minifter und Beamten wohnten der õffentlichen Prtifung bei, um der neuen Schõpfung mehr Anfehen zu geben. « Manufaduren und Handel», fprach er einft, «bereichern und civilifiren eine Nation und machen den Staat machtig. Die Seele des Handels aber liegt in der Freiheit des Volks » .

Die Krone fetzte Pombal feiner Reformthatigkeit auf durch die Fúrforge und Pflege, die er der Volksbildung und den Unterrichtsanftalten zuwendete. Von der niedern Ele- mentarfchule bis zur Univerfitat machte fich der hohe Sinn und der weite wiífenfchaftliche Gefichtskreis des Ministers bemerkbar. Hunderte von Schulen aller Art wurden ge- griíndet, in denen alie Unterrichtsgegenftande in einer pada- gogifch organifirten Stufenfolge unentgeltlich gelehrt wur- den; hunderte von Profeíforen und Lehrern auch aus dem Auslande fanden Verwendung und Anftellungen ; fur die adelige Jugend wurde in Liífabon «das kõnigliche Adelscol- legium» gegrundet mit trefílichen Lehrern fiir alie Wiífens- zwcige humaniftifcher und realiftifcher Art; die Univerfitat Coimbra erfuhr eine gtinzliche Umgeftaltung, die einer Neufchõpfung gleichkam. Durch Vermehrung der Lehr- ílíihle, durch Anftellung wiífenfchaftlich- philofophifch gebil- deter Profeíforen, durch Errichtung akademifcher Gebaude fur Studienzwecke und Instrumente, durch eine Sternwarte und durch einen auf freier humaner Grundiagc aufgebauten Organifationsplan wollte Pombal ein Werk ins Leben rufen, das die Jefuitenanrtalten ganzlich in Schatten ftellen follte. Sein Helfer und Rathgeber bei der Einrichtung war ein

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Prieíler vom Oratorium, Manoel do Cenáculo de Villas Boas, fpãter Erzbifchof von Évora, ein Mann von vielfeitigem WilTen, «ein Brunnen ohne Grund und Schlamm», dem wieder António Pereira de Figueiredo, ein grundgelehrter freifinniger Theolog zur Seite ftand. Auch bei den Mittel- fchulen wurden vorzugsweife Prieíter vom Oratorium ver- wendet. Neben den Sprachen des Alterthums follten auch die portugiefifche Sprache und Literatur, neben dem rõmi- fchen Rechte die heimifchen Gefetze und Institutionen zur Geltung gebracht v\'erden; den philofophifchen und mathe- matifchen WiíTenlchaften wurde befondere Aufmerkfamkeit gewidmet. Die Reform der Univerfitat Coimbra war das «Signal zur Wiedergeburt der Wiffenfchaften » in Portugal. Neue Lehrbiicher und Lehrmethoden verdrangten die fcho- laftifch- jefuitifche Unterrichtsweife und eine grofsartige kõnigliche Druckerei nebíl: Schriftgiefserei folhe dazu dienen die Wiffenfchaften zu beleben und durch die Druckerzeug- niffe dem Gemeinw^efen niitzlich zu fcin.

Zugleich richtete Pombal fein Augenmerk auf Verbef- ferung der Rechtspflege und des Gerichtsverfahrens und fchuf nach reifen Berathungen mit Richtern und rechts- kundigen Mânnern ein Gefetzbuch, das der grõfste portugie- fifche Jurift «ein wahrhaft goldenes Gefetz» genannt hat, ein aus alteren Ordonnanzen, Gewohnheiten und Rechts- beftimmungen zufammengeftelltes und im Geifte der Zeit und der modernen Wiffenfchaft redigirtes Landrecht, klar und bíindig und mit ftrenger Schcidung der Juftiz und Verwaltung. Eine neue wachfame Polizci unter einem thati- gen Intendanten fiihrte in Portugal, insbefondere in den fiidlichen Gauen einen Zuftand õffentlicher Sicherheit herbei, wic er bisher noch nie beftanden. Diebe, Múffigganger, Pasquillanten verfchwanden mehr und mchr.

Auch das Finanz -und Steuerwefen und der gefammte

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Staatshaushalt wurden mit Verftand und Umficht geordnet. Die Errichtung von vier Rechnungskammern erleichterte die Ueberficht und Controle úher Einnahmen und Ausgaben; die Einfíihrung eines Schatzamtes ais Oberíteuerbehõrde vereinfachte die Erhebung der õffentlichen Abgaben und gewahrte grõfseren Schutz gegen Betrug, Unterfchleif und Bedrlickung. Selbít úber die Hoflialtung und des Kõnigs Hauswefen erflreckte fich die Aufmerkfamkeit des Minifters. Und noch niemals war Brafilien eine fo ergiebige Quelle des Reichthums fur die Portugiefen wie unter Pombais Ver- waltung. Jahr aus Jahr ein trugen reichbeladene SchiíTe Gold, Edelfteine und koftbare Waaren in den Hafen von LilTabon. Zwei Handelsgefellfchaften vermittelten und befõr- derten den Verkehr; Directoren leiteten die Verwaltung, die Rechtspflege und das Unterrichtswefen in den einzelnen Provinzen des grofsen Landes, Miffionen wurden in die entlegenen Gegenden gefandt, um die Eingebornen zu bekehren, zu unterrichten und zu cultiviren, an Fleifs und geordnetes Leben zu gewõhnen.

Nicht blofs in den inneren Zuftíinden Portugals fchuf die Verwaltung des Marquis von Pombal eine neue Aera; er wufste auch nach Aufsen die Ehre und Wúrde des Kõnig- reichs zu wahren und ihm die Achtung der grõfseren Staaten zu verfchaíFen. Ais wahrend des fiebenjãhrigen Krieges (Aug. lySg) ein englifches Gefchwadcr einige franzõ- fifche Schiffe in die Bucht von Lagos verfolgte und fie ohne Riickficht auf die Neutralitât des Landes wegnahm oder zer- ftõrte, trat Pombal ais Riicher des verletzten Võlkerrechts und der Ehre der portugiefifchen Flagge auf. Er konnte frei- lich keine Kriegsflotte gegen die erfte Seemacht Europa's unter Segel gehen laíTcn, nicht durch einen Gcgenakt der englifchen Nation zu Gemuthe íuhrcn, wie ungrofsmúthig es fei, gegen einen kleinen befreundeten Staat ihr Ueberge-

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wicht geltend zu machen; aber leine Noten an das cnglifche Minifterium athmeten das Selbftgefíihl eines Mannes, der nicht ruhig hinnehmen woUte, dais England das Land am Tajo ais einen Vafallenftaat, ais ein von ihm abhangiges Territorium behandle. Seit funfzig Jahren, fagte er, fei Grofsbritannien durch vortheilhafte Handelsvertrage im Be- fitze folcher Vorrechte und Befreiungen in Portugal, dais die Kaufmannfchaft des Infelreichs jãhrlich einen Gewinn von einer Million Pf. St. aus dem Lande ziehe, dafs der Bedarf desVolks an Getreide, an Kleidungsftoífen, an Fabrikwaaren aller Art zu zwei Drittheilen von England geliefert werde. Diefe Handelsgefetze und Monopole kõnnten gekúndigt und aufgelõít werden, Frankreich wurde mit Freuden dem portu- giefifchen Volke unter die Arme greifen und feinen Bedúrf- niíTen mit dem eigenen Ueberflufs an Naturprodukten und KunfterzeugniíTen abhelfen. An der Themle verftand man den Wink und die verfteckte Drohung, und der Minifter Pitt war klug genug nachzugeben und die verlangte Genug- thuung zu gewahren. Dadurch wurde das gute Einverneh- men wieder hergeftellt und die Englãnder konnten nach vsàe vor ihre reichen Goldladungen einbringen. Allein fie blickten mit unheimlichen Gefiihlen und mit Aerger auf die fchõpferilche Thatigkeit Pombais, die Portugal unabhangig von dem Auslande zu machen fuchte. Die Klagen der bri- tifchen Kaufleute wurden immer lauter und bitterer; die Zeitungen und Flugfchriften nahmen einen gereiztenTon an; in der Griindung der Handelsgefellíchaften, in den induftriel- len Unternehmungen, in dem Bemuhen, die Portugiefen auf ihre eigenen Fuíle zu ftellen, erblickten die Englãnder Ein- griffe in ihre fo lange genoíTenen commerciellen Vorrechte, eine Beeintrachtigung ihrer Monopole und Begunftigungen. Diefe Stimmungen traten zeitweife zuríick, wenn die poHtifche Lage Europa's der cnglifchcn Regierung das enge

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Bundnils mit Portugal N-ortheihaft machte. So im Anfang der fechziger Jahre, ais Choilcul durch den «Familienpakt» alie Zweige des Bourbonilchen Haufes zu einem ewigen Bund vereinigte in der Ablicht, Englands maritimes Ueber- ge^^•icht zu brechen. Portugal wurde eingeladen der Con- vention beizutreten, der neutralen Stellung, welche bisher der britiíchen Seeherrlchaft fo nachdriicklichen Vorlchub geleiltet, zu entfagen. Ais das Cabinet von Liflabon der Auíforderunc widerftand und dcm Freundfchaftsbund mit

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England trcu blieb, wurde in Paris und Madrid der Plan gefafst, fich der portugiefifchen Seehafen zu bemachtigen und durch Befetzung des Kõnigreichs ein reales Unterpfand zu erwerben, das man leiner Zeit gegen Groísbritannien verwerthen kõnne. In Spanien mochten auch die alten Ero- berungsgedankeii wieder auftauchen. Man hatte in Madrid nicht vergeíTen, dais Portugal nur durch einen re\-olu- tionaren Handrtreich aus einer fpanifchen Provinz ein lelb- llandiges Kõnigreich geworden war. In diefer drohenden Zeitlage entfaltete Pombal wieder eine ahnliche Thatigkeit und Energie, wie nach dem Erdbeben. Die Felkmgen wurden in Stand gefetzt und mit reichlichem GelchiUz verfehen, die Armeen verftarkt, Watfenvorrathe gefammelt. Vom Fort Julião ftarrten 1 20 Kanonen auf den Tajo herab. Ais das LiíTaboner Cabinet in einer hõflich aber feftgehal- tenen diplomatifchen Note der Ipanilchen und franzõlifchen Regicrung erkliirte, dais Portugal dem Angritfsbund der verwandten Hõfe nicht beizutreten, Ibndern in leiner bis- herigen Neutralitat und Freundfchaft zu beharren ent- fchloíTen fei, erfolgte die Kriegserklarung und das Einrúcken einer fpanifchen Occupationsarmce in Tras-os-Montes (Mai 1762). Pombal hatte das portugiellíche Heer bis zu einer Stiirke von 60:000 Mann gebracht; allein cr konnte llch bald úberzeugen, dais die der Waífen und des Kriegs ent-

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wõhnten Truppen der feindlichen Uebermacht nicht ge- wachfen leien, dais das vaterlãndifche Gefúhl und der Nationalhafs gegen Spanien, wovon die portugiefiíche Ju- gend durchdrungen war, den Mangel an Uchung und Dis- ciplin nicht zu erfetzen vermõchte, dafs auch die englifchen Offiziere, die ihm die Londoner Regierung zur Verfúgung llellte, und einige Regimenter Hiilfstruppen unter Lord Ti- rawley, einem farkaítifchen Irlander, nicht geniigten. Er richtete daher feinen Blick nach dem an militarifchen Kraf- ten fo fruchtbaren deutfchen Reich und uhertrug mit Zurtimmung Englands dem Grafen Wilhelm von Lippe- Schaumburg, einem erfahrenen Kriegsmann, der in London geboren, eine Zeitlang in der englifchen Carde gedient, dann unter Ferdinand von Braunfchweig mehrere Feldzuge im liebenjabrigen Krieg mitgemacht und in feinem Stamm- lande militarilches Organifationstalent an den Tag gelegt hatte, cien Oberbefehl úber das portugiefifche Heer und die englifchen Hiilfstruppen. Prinz Karl von Mecklenburg-Stre- litz erhielt das Commando tiber die Artillerie. Im Juli 1762 fammelte fich das franzõfifch-fpanifche Heer unter dem Oberbefehl des Grafen von Aranda tibcr 42:000 Mann ftark in der Umgegend von Ciudad Rodrigo und riickte in Beira ein, um in das Herz des Landes vorzudringen. Das portu- giefifch-englifche Heer, bei welchem unter dem reichsgraf- lichen Oberbefehlshaber, der den Rang eines Feldmarfchalls hatte, die englifchen Anftthrer Bourgoyne, Townsend, Len- nox, Clarke das Meifte leifteten, war kaum halb fo ftark ais der Feind, da ein grofser Theil der Truppen in den Feftungen lag oder die Nordgrenze hiitete. Die Spanier und Franzofen machten daher Anfangs rafche Fortfchritte. Sie zwangen die Feftung Almeida zur Ucbergabe, brachten das Gebirgsland im Often der Sierra Eftrella, zwifchen

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Mondego und Tajo in ihre Gewalt und fchlugen ihr Haupt-

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quartier bei Caftello-Branco auf. Bald anderte lich jedoch die Lage. Der Reichsgraf und dic englilchen Oherften be- letzten die fteilen Gebirgspaííc und hemmten das weitere Vordringen dcs Feindes; die Bergbewohner, empõrt iiber die graufame und vcrheercnde Kriegsweife der Spanier und entflammt von Nationalhaís, Ichaarten fich in Banden zu- fammen und organifirten gegen die Eindringlinge den kleinen Krieg in Schluchten und Waldern; Townsend fuhrte mit groísem Geíchick einen vielbewunderten Marlch úber die Hõhen der Eftrella aus, wobei die Portugielen viel Ausdauer bewiefen, indem fie in zerfetzten Kleidern und Schuhen die felfigen Wege hinanícliritten, liaufig Spuren der blutenden Fiifse zurúcklaíTend. Im Herbft, ais noch Regen und Kãlte eintrat und Mann und Rofs vor Hunger und Ermattung zu- lammenlanken, fah ficli Aranda genõtliigt, cinen Theil leiner Truppen úber die Grenze zu ftihren und in Alcântara unter- zubringen. Im nachften Monat (Okt. 1762) folgte er lelbft mit dem Rerte des Heeres, die Kranken und Verwundeten in den Lazarethen von Caftello-Branco zurúcklaíTend. Aber auch die Portugiefen und Englander bedurften dringend der Erholung; daher willigte der Reichsgraf-Marfchall ein, dafs lie in verfchiedenen Grenzftadten Winterquarticre bezogen. Neun Regimenter wurden nach Portalegre verlegt, um das Eindringen der Feinde in Alemtejo zu verhindern. Der Ab- fchlufs des Friedens von Fontainebleau zu Anfang des nachften Jahres (Febr. 1763) machte auch dem Krieg in Portugal ein Ende und ftellte die Zuftande her, wie fie vor dem Feldzug gew'efen. Nach dem Frieden kehrten die englifchen Húlfstruppen zuriick. Der reichsgrâfliche Ober- feldherr aber blieb noch einige Zeit in Portugal und unter- ftutzte den Minifter in feinen Bemiihungen, die einhei- mifchen Truppen feldtCichtig zu machen, die Milizen zu organifiren, die Feftungen in Vertheidigungsftand zu fetzen,

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mit Rath und That. Elvas wurde durch ein Fort verftarkt, das noch jetzt den Nameii «Lippe» fiilirt. Ais cr cndlich (Sept. 1764) das pyrenaifche Laiid, das ihm lelne ganze militarifche Disciplin und Kriegszucht zu dankcn hatte, ver- liefs um iiber England nach Dcutlchland zuruckzukehren, fchlug er alie Geldbelohnungen aus und begntigte fich mit dem Ruhme und dem Danke der Nation.

Diefer Verbefferung des Heerwefens und der gleichzei- tigen Verftarkung der Marine hatte es Portugal zu verdanken, dafs der Krieg, der zehn Jahre fpater zwifchen den beiden Pyrenaifchen Staaten auszubrechen drohte fiir die Portu- giefen einen gunftigen Verlauf hatte. Ein Grenzftreit in Súd- amerika hatte zu Feindfeligkeiten zwifchen den beiden Go- vernadoren von Bralilien und Buenos-Ayres gefuhrt, wobei die fpanifchen Kriegsmannfchaften in zwei Gefechten den Kíirzeren zogen. Diefer Streit der Colonien fchien fich nach dem europaifchen Mutterlande hintiberfpielen zu wollen. Schon befetzten abermals portugiefifche und fpanifche Trup- pen die Grenzlandfchaften. Die englifche Regierung, die bei ihrem bevorftehenden Kampfe mit Nordamerika nicht auch noch in pyrenaifche Kriegsangelegenheiten verwickelt fein mochte, fuchte den Streit zu vermitteln. Allein fie erreichte nur fo viel, dafs in den portugiefifch-fpanifchen Grenzlanden das bereits geztickte Schwert nicht wirklich zum Kampfe gefchwungen ward. Defto hitziger entbrannte der Krieg im Gebiete des Rio Grande. Kõnig Karl III hatte den friíher gefchloíTenen Taufchvertrag verworfen, woUte aber doch nicht gerne auf die Colónia dei Sacramento verzichten. Er fchickte eine grofse fpanifche Flotte mit 12:000 Seefoldaten unter Pedro de Cevallos nach Buenos-Ayres in einem Au- genblick, da Kõnig Jofeph fchwer erkrankt war und feinc Gemahlin, Karls Schwefter die Regentfchaft in LiíTabon úbernahm, fniiit Pombais Einflufs auf die Regierungs-

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gefchafte unficher und fchwankend ward. Diefer Conftel- lation hatte es der Kõnig von Spanien zu danken, dais der Streit zu feinem Vortheil endete. In dem zwifchen der Kõni- gin-Regentin und ihrem Bruder abgefchloíTenen Prãliminar- frieden von San Ildefonfo (i Okt. 1777), dem dann einige Monate nachher der AUianzvertrag zu Pardo folgte (i i Marz 1778), wurde die Grenze am La Plata und Uruguay feftge- fetzt und die Colónia dei Sacramento den Spaniern úber- laffen. Seitdem hõrte der Schleichhandel mit Buenos-Ayres auf und ihr Wohlítand fank.

Ais der Friedensvertrag von Pardo zwifchen Spanien und Portugal abgefchloíTen ward, war Kõnig Jofeph Ema- nuel nicht mehr unter den Lebenden. Er hatte noch die Frende dem grofsen dreitagigen Fefte beizuwohnen, das der Minifter bei der feierlichen Enthullung der prachtvollen Reiterítatue des Monarchen auf dem « Handelsplatze » in Liífabon veranítaltete (6. Juni 1775), ein wahres Volksfeft mit Umzugen Feuerwerk, Banketten und Beluftigungen aller Art. Aber fein Gemúth war verdliftert; ein zweiter Anfall auf fein Leben bei Gelegenheit eines Jagdrittes, Mifsftimmungen und Intriguen in der kõniglichen Familie, Mifstrauen gegen feine Umgebung hatten die Heiterkeit feiner Seele, apoplektifche Anfalle die Gefundheit feines Kõrpers untergraben. Der Staatsfecretar Seabra, der thatigfte Mitarbeiter Pombais in allen civilifatorifchen Arbeiten, wurde plõtzlich in Ungnade entlaflen und auf ein Landgut verwiefen, ohne dafs man genau die Urfache erfuhr. Es ward behauptet, er habe feine Stellung zu eigenniitzigen Zwecken mifsbraucht. Seine Ent- fernung war das erfte Zeichen, dafs es den Ranken und Kabalen der dem Minifter feindfeligen Hofpartei bald gelingen werde, auch Pombais Machtftellung zu erfchuttern. Der Kõnig felbft bewahrte jedoch dem grofsen Manne, der fiinfundzwanzie Jahre lane das Staatsruder mit fo krãftiger

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und gefchickter Hand geleitet, íein Vertrauen bis zum letzten Athemzuge. Er freute fich mit allen Freunden der neuen Ordnung, dais der Mordplan eines Italieners, der den erften Minifter bei dem erwahnten Nationalfefte mit einer Art Hõllenmalchine aus der Welt fchaífen woUte, vor der Aus- fíihrung entdeckt und vereitelt ward, und der Verbrecher, der fein Vorhaben eingeftand, dem blutigen Strafgericht úberliefert werden konnte (6 Okt. 1774). Bald nachher traten . wiederholte Krankheitsanfalle ein, die den Kõnig nõthigten fich von allen Staatsgefchaften zuriíckzuziehen und feine Gemahlin Maria Anna zur Regentin zu ernennen. Drei Monate nachher machte ein wiederholter Schlaganfall feinem leidensvoUen Leben ein Ende (24 Febr. 1777). Seine altefte Tochter Maria, die mit ihrem Oheim Dom Pedro vermahlt war, erbte die Krone. Der papftliche Stuhl, der vor dem Streite die Dispenfation zu der Verwandtenehe gegeben, hatte auch nach dem Wunfche des fterbenden Monarchen eingewilligt, dafs der Sprõfsling diefer Ehe, der fechzehn- jãhrige Enkel des Kõnigs Jofeph, Prinz von Beira, mit feiner einunddreifsigjâhrigen Muhme Donna Maria Francisca Bene- dicta, Jolephs zweiter Tochter vermahlt ward, zwei dynafti- Iche Heirathen, die fali: ais blutfchânderifch gelten konnten und dem Herrfcherhaufe kein Gltick brachten.

Ehe noch des Kõnigs letzte Stunde gekommen war, reichte Pombal, der wohl wufste, dafs, wenn der kõnigliche Stíitzpfeiler gefunken ware, die zahlreichen Gegner des Allge- waltigen mit leidenlchaftlichem Haffe wider ihn losbrechen wiirden, der Regentin ein EntlaíTungsgeluch ein. Alter, An- ílrengungen und Kõrperleiden hãtten feine Krafte erfchõpft. Sie mõge andere Manner ihres Vertrauens ernennen, die er in die Gefchâfte einfúhren wolle, und ihm geftatten, feine noch kurze Lebensfrift auf feinen Giitern in der Zuriíckgezogen- heit zuzubringen. Er fúgte dem Gefuch einen Rechenfchafts-

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bericht uber feine Verwaltung und den Zuftand der Finan- zen bei, der an Sully's Beifpiel erinnerte und mit Recht allgemeine Bewunderung erregte. Er wies nach, dafs aufser dem Diamantenvorrath im Staatsfchatz und in der kõnigli- chen KalTe achtundfiebenzig Millionen Cruzados vorrathig feien, ein in der portugiefifchen Finanzgefchichte unerhõrter Fali. Ehe die Regentin eine Entfcheidung getrofFen, ftarb der Kõnig und Donna Maria beftieg den Thron (i Mãrz 1 777). Da wiederholte der Minifter fein Gefuch und die neue Kõnigin gewahrte ihm vier Tage nachher den erbetenen Abfchied in der gnadigften Form. Und nun trat ein võlliger Umfchwung in Syftem und Perfonen ein. Maria war fchwa- chen Geiftes und zeigte fchon Spuren von Seelenítõrungen, die in der Folge zur Unheilbarkeit fich fteigerten ; ihr Oheim- Gemahl war fo fehr in kirchlicher Glaubigkeit befangen, dais er jeden Morgen mehrere Male die MeíTe befuchte und jeden Abend dem Gebetsgottesdienft andachtig beiwohnte. Beide hatten daher nichts Eiligeres zu thun, ais die Gefan- gniíTe zu õíTnen und die wegen Theilnahme an den Ver- fchwõrungen oder wegen Widerfetzlichkeit gegen die Mafs- regeln der Regierung in Haft befindlichen Geilllichen und Edelleute in Freiheit zu fetzen. Der Bifchof von Coimbra eilte aus dem Gefangnifs in den Palaft, wo ihn Dom Pedro umarmte ; mehrere geiftliche Stellen kamen nach dem Vor- íchlage des Nuntius an andere Kleriker; die wichtigíten Staats- und Holamter wurden adeligen Herren úbertragen, welche ais die entfchiedenften Gegner des Marquis bekannt waren. Zuerít wurde ausgeítreut, Pombal habe feine Stel- lung zu feiner eigenen Bereicherung benutzt: da wies er aktcnmâfsig nach, dafs erwâhrend feiner ganzen Verwaltung nurfein Miniliergehalt und geringe andere Emolumente bezo- gen und niemals kõnigliche Donationen, Gratiíicationen oder fnoftige Gnadenerweifungen, wie fie von den Souverancn an

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begúnítigte Perfonen verliehen wLirden, angenommen habe. Defto eifriger war man bcftrebt, die von Pombal getroífenen Reformen und Einrichtungen in Schatten zu ftellen oder ruckgângig zu machen. Der Gerichtshof, der die Jurisdiction des Nuntius in Schranken halten folhe, wurdc befeitigt; der Papft erhielt eine halbe Million Gulden zur Entfchadigung fiir die Unkoíten, welche dem rõmifchen Stuhle einít durch die Ueberfiihrung der Jefuiten nach CivitaVecchia erwachfen wa- ren; dem Patriarchat wurden alie Giiter und Einkiinfte, die ihm der Marquis entzogen hatte, zuriickgegeben, und wahrend man den Vorfteher der kõniglichen Druckerei aus dem Lande jagte, wurden die aus dem Kalender geftrichenen Feiertage, fo wie die Bruderfchaften, Prozeílionen u. a. D. hergeftellt. Pombal hatte fich durch feine defpotifche Verwaltung zu viele Feinde gemacht, ais dafs diefe nicht alie Hebel zu feinem Verderben hatten einfetzen follen. Adelige, Geiftliche, Jefuiten entftiegen aus den Gefângniífen wie aus Grabern und vereinigten ihre Angritfe gegen den fruher fo gewaltigen Mann. Es geníigte ihnen nicht, dafs durch eine Revifion der Prozeífe lie fiir unfchuldig erklart und in ihrer Ehre, ihrem Rang, ihrer gefellfchaftlichen Stellung hergeftellt, dafs die gegen die Familie Távora gefallten Richterfpruche ais unge- recht und nichtig caíTirt, dafs die Beftraften von jeder Schuld und Makel freigefprochen wurden; Viele verlangten Entfchadigung von ihrem Verfolger; Alie dúríteten nach Rache. Aus dem Fufsgeftell des Reitermonuments wurde in einer Nacht das bronzene Medaillonbildnifs des Minifters herausgenommen und an feine Stelle das Stadtwappen gefetzt. Pamphlete und polemifche Flugfchriften dritngten einander; eine derfelben, das beruchtigte «Libell» aus der Feder eines Adligen, ging fo weit in Verleumdung und Verunglimpfung, dafs der Minifter eine fcharfe Widerlegung der boshaften Schmahfchrift ausgehen liefs. Zugleich fam-

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melte er in feinem Palaíte zu Pombal, wohin er fich zuriick- gezogen, die Materialien zu einer Rechtfertigungsfchrift tiber leine \'envaltung, nicht um fich zu râchen, wie er felbft fagte, Ibndern um die beleidigte Wahrheit oífenbar zu machen. Die Kõnigin wurde unruhig; in ihrem Innern entítand ein Kampf zwifchen ihrer Hinneigung zu den kirchlichen und politilchen Traditionen und dem Gefúhle der Pietat gegen ihren Vater, in deíTen Namcn und mit deíien Zuftimmung und Unterfchrift doch alie Verfugungen des Reformminifters erlaíTen waren. Sie glaubte den Sturm dadurch belchwõren zu kõnnen, dafs fie beide Flugfchriften, das «Libell» wie die «Vertheidigung» durch ein Dekret unterdríickte. Ais aber die Stimmen der Widerlacher immer lauter ertõnten, die Klagen und Befchuldigungen immer mehr anwuchfen, wurden zwei kõnigliche CommiíTare mit ausgedehnten Vollmachten nach Pombal abgeordnet, welche den Marquis úber eine Menge Fragen gerichtlich ver- nehmen Ibllten. Vor diefen mufste fich der achtzigjahrige Greis fúnfzig Tage hindurch taglich fúnf bis acht Stunden lang verantworten, bis man ihn krank und erfchõpft zu Bette brachte. Auf Grund diefer fchriftlichen Aufzeichnun- gen erklarte {i6 Aug. 1781) die Kõnigin nach Anhõrung ihrer Rathe, dafs der Marquis fiir fchuldig und ftrafwúrdig zu erachten fei, dafs fie aber aus Rúckficht auf fein Kõrper- leidcn und feine Altersfchwache, «mehr der Milde ais der Ge- rechtigkeit eingedenk», keine Beftrafung úber ihn vcrhangen wolle. Doch folie es den Befchadigten unverwehrt fein, bei den Gerichten Klagen auf Erfatz zu erheben. So fchwebte das Damoklesfchwert noch ferner tiber Pombais Haupte.

Aber er folhe bald durch eine hõhere Macht von allen weiteren Verfolgungen und Bedrãngniífen befreit werden. Am 8 Mai 1782 verfchied er in den Armen feiner Gattin im dreiundachtzigrtcn Lebensjahr. « Das Befte meines Kõnigs

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war ftets mein Zweck», waren íeine letzten Worte, «wo ich gefehlt habe, gefchah es aus Mangel an Einficht, nie mit Willen » . Unftreitig darf Pombal den grõlsten Staatsmannern des Jahrhunderts beigezahlt werden: er war zum Herrfchen geboren, klar im Erkennen, von hõheren politifchen Ideen getragen, energifch und entfchloíTen bei der Ausfúhrung. Nach feinem Tode gingen feine Schõpfungen allmahlich unter; Priefter und Mõnche herrfchten wieder am Hofe und in der Schule; ftatt der Anftalten fúr Kunít und WiíTen- fchaft wurden Klõfter und fromme Stiftungen errichtet und gepflegt; Aberglaube, Unreinlichkeit und UnwiíTenheit kehr- ten wieder bei dem Volke ein, und die Nation fank zurúck in den Zuftand der Abhangigkeit und Hulflofigkeit, aus dem fie Pombais krâftige Hand zu reifsen gefucht. Aber noch in den nachften Jahrzehnten waren die wohlthatigen Wirkun- gen der Reformthatigkeit des grofsen Minifters fichtbar. Reformator auf allen Gebieten des õffentlichen Lebens hatte er viele neue Aníchauungen geweckt, viele neue Richtungen angebahnt; diefe Spuren konnten nie wieder ganz verwifcht werden, wie wenig auch die zu Ichwarmerifchen Religions- iibungen geneigte, dem heiligen Stuhl und der Geiftlichkeit ítreng ergebene Kõnigin und ihr befchrankter «fehr devoter» Gemahl den Zeitgeift begriífen und wiirdigten, unter deíTen EinflúíTen Pombal gehandelt. Triíblmn, Seelenangít und Schwermuth wurden endlich lo machtig in der ungliickli- chen, von Zweifeln und Beangftigungen gequalten Frau, dafs zuletzt ihr Geift von der Nacht des Wahnfinns verdunkelt ward, fo dafs, da ihr Erftgeborner Jofeph bereits im J. 1788 geftorben war, ihr zweiter Sohn Johannes bis zum Tode der Mutter die Regentfchaft iibernahm.

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MARQUEZ DE POMBAL

INTRODUCÇÃO

DEFINIÇÕES E ESCLARECIMENTOS

A HISTORIA

maior parte dos hiftoriadores e biographos, que efcreveram, e os que efcrevem ainda hoje acerca do Marquez de Pombal, quafi exclufi- vamente fe occupam, pelo que refpeita á fua vida publica, dos aftos do feu governo; e tra- tam da fua acção e influencia adminiftrativa, económica, moral e religiofa, pondo de lado ou deixando no efcuro do quadro, ora grandiofo e brilhante, ora mefquinho e fombrio, por elles traçado, a fua acção e in- fluencia politica, as quaes, comquanto não foíTem coufa que para logo fe vifle oftenfiva, e apparatofa fe moftraíTe, nem por ilTo deixaram de fer poderofas e enérgicas, como depois fe veiu a fentir e a conhecer claramente, comparando e rela- cionando antecedentes e confequentes hiftoricos.

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Em qualquer dos dois pontos de vifta, publico e parti- cular, a perfpediva hiftorica, iíto é, a realidade dos fados moftra-fe-nos profundamente perturbada e o colorido moral, ifto é, a juftiça, deploravelmente compromettida, pela par- cialidade á miftura com a ignorância d'aquelles que, ou do- minados pelo propofito de exaltar, ou arraítados pelo defejo de deprimir, falfificam e deturpam os fados, por tal arte 'e com tal empenho, que mais e melhor poffam fervir de mol- de e matéria prima á fua critica fubjediva, imaginofa, theo- logica, metaphyfica, e por iíTo inteiramente arredada dos ele- mentos e proceffos pofitivos, os únicos que podem fervir ás modernas conftrucções ícientificas da hiítoria, quer fe trate de um homem, de um povo, de uma nação, quer da huma- nidade inteira. As operações complicam-fe, fem duvida, em qualquer dos cafos, mas os proceíTos e a critica, em uma pa- lavra, o methodo e a doutrina, permanecem inalteravelmente os mefmos.

Pelo que refpeita á fua vida particular, parece que fe comprazem, encomiaítas e detradores, em fazer do Marquez de Pombal o protogonifta de phantafiofos romances e inve- rofimeis lendas, em que o dramático e o cómico fe mifturam e combinam em variados e extravagantes melodramas. E to- davia foi elle o homem mais pofitivo e pratico do feu tem- po, não diremos fomente em Portugal, mas em toda a Eu- ropa, e no qual uma intelligencia efclarecida e uma vontade inabalável tiveram fempre a rara virtude e a energia inflexí- vel para fubjugar a imaginação perante a realidade, e fujei- tar ao bom fenfo e ao tino pratico aquelle fentimentalifmo, que, a par do efpirito revolucionário, tão falientemente ca- raderifava os philofophos e eftadiftas do xviii feculo.

Em todos os trabalhos hiftoricos é condição indifpenfa- vel de boa critica não confundir o que lubjediva e peíToal- mente pertence ao individuo com o que objedivamente per-

tence á coUedividade no meio focial, o que é arbitrariamente litterario, com o que deve fer obrigatoriamente fcientifico.

A hiftoria, ainda ha poucos annos, vivia em relações in- timas com a litteratura, e tinha, nos programmas officiaes, por companheiras infeparaveis, a amante rhetorica de Quin- tiliano e a lógica elementar de Genuenfe e de outros com- pêndios, principalmente ad tifiim femiuarionim; infufílava-lhe eí\a irmã querida o elpirito theologico-metaphyfico, e aquel- la, pelo menos, contornava-lhe as formas, e veftia-a fegundo os caprichos da moda philofophica de efcolas rivaes e va- riegados fyftemas.

E aíTim, os mais notáveis hiftoriadores, aquelles mefmos que tomaram para fi, ou receberam dos feus contemporâ- neos, ou mereceram á pofteridade o titulo augufto de philo- fophos, eíles mefmos animaram os feus trabalhos de um principio vital que lhes aprouve efcolher, e, confoante a elle, deram a forma que mais lhes agradou ás luas obras. Umas vezes é o myjticifmo theologico e eíTa efpecie de fatalifmo metaphyfico de J. B. Viço, procurando fubordinar ás com- binações fubjectivas de feu penfamento e ás creações phan- tafiofas da fua imaginação atrevida, a que elle o nome de leis e de /ciência nova, a realidade dos fados, coordena- dos em fynthefes mais ou menos arbitrarias.

Outras vezes é o naturalifmo poético e fentimental de Herder e, até certo ponto, de Michelet e E. Pelletan, que- rendo encadear por analogia a evolução hiftorica de certos povos e da humanidade no movimento geral da natureza. Tudo lhes ferve: o curfo dos aftros, a formação do globo, o fluxo e refluxo das marés, as epochas ou cdades geológi- cas da terra, a alternação das eftações, etc, fão, por com- paração e analogia, outras tantas leis que dominam e regem o dcfenvolvimento hilforico das nações. Traçando e colorin- do, com o artiftico pincel da mais aprimorada litteratura,

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quadros maravilhofos, pretendem fazer á hiftoria o que Ber- nardin de Saint Pierre fez á natureza.

Uns, como BoíTuet e Chateaubriand, fão elevados pelo myíticifmo catholico e pelo fentimentalilmo chriftão, tradu- zidos em uma forma attrahente e fafcinadora, ás mais fubli- madas e recônditas regiões da metaphyfica religiofa, nas quaes o fatalifmo providencial impelle e dirige os preftabele- cidos deífinos de cada povo e da humanidade em geral.

Outros, e d'eírcs é o maior numero, forcejando por des- prender-fe do empyrifmo vulgar e groffeiro da «narração dos fados», vão cair no ecclefliímo efteril e na erudição balofa da «expofição ligada e difcurfiva dos acontecimentos verda- deiros, para inítrucção da humanidade» .Taes fão Millot, Rol- Hn, Cantu, Guizot, Thiers e muitos mais.

Eftes vicioibs proceííos, effes falfos critérios, eíTas inapro- priadas formas de tratar aíTumptos hiftoricos ainda vigoram entre nós, comquanto fe tenha confideravelmente melhorado o noíTo eftado mental. Os trabalhos de Alexandre Hercula- no, pofto que reprefentem um grande progreíTo, uma opu- lenta conquifla, e, como trabalhos crhicos, revelem, em um grau elevado, o efpirito metaphyfico de rebellião contra as impofições theologicas e intervenções do Ibbre-natural na evolução hiftorica portugueza, accufam ao mesmo tempo, em aquelle infatigável explorador, a mais lamentável inópia de bafes e elementos fcientificos, e denunciam a carência quafi completa do verdadeiro critério pofitivo; e bem o pre- fentiu, e por fim reconheceu, elle próprio, penitenciando-fe d'eíra enorme falta no retiro e na Iblidão de Valle de Lobos.

E em verdade, fe pelo lado critico, Alexandre Herculano fe nos aprefenta e avulta como revolucionário ingente, de- molidor audaciofo, iconoclofta defapiedado de falfos idolos e fuppoífas divindades, pelo lado fcientifico, nos apparece como doutrinário, armado com eífe apparatofo eccledifmo

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incoherente, que lhe inocularam a leitura dos livros do feu prcdiledo meítre Guizot, de Thiers, de Cantu, de SchaefFer e de quantos, a torto e a direito, arrotearam o campo, e rafga- ram o caminho, por onde o noíTo illuftre concidadão devia fazer, na pátria, a Ília traveffia hiftorica, defde o milagre de Ourique até á excommunhão e arrependimento de D. Af- fonfo III, ou, melhor diríamos, defde a formação da noíTa nacionalidade na Peninfula até ás mais pequeninas efpeciali- dades do governo municipal e adminiftrativo, nos primeiros feculos da fua exiítencia.

E foi em noíTa opinião a tardia confciencia d'eíre vicio radical, d'eíra lefão congénita irremediável, e não o defgos- to ou o defpeito, obfequiofas condefcendencias e affeduofas contemplações, motivo que determinou o noíTo primeiro his- toriador critico a engeitar o filho defeituofo e inviável das fuás excavações archeologicas, e comquanto fempre vi6fo- riofo, a depor as armas apoz tantos certames gloriofos tra- vados contra os preconceitos tradicionaes do vulgo, e contra o obfcurantifmo fyftematico dos reaccionários, que, vencidos na luda, fe refugiaram, como é velho coftume, no redudo habitual das injurias e das calumnias, que fobre elle arremes- faram deforientados os loucos e raivofos defenfores do re- troceíTo.

Outros efcrevem a hiftoria, como fazem romances ou com- põem dramas; e julgam que, traduzindo ou imitando os li- vros de Ferdinand Denis ou de M. Bouchot, confeguem na- turalifar producções extrangeiras, nas quaes, fe abundam o efpirito mercantil e o amor do lucro, efcaífeiam o efpirito fcientifico, o amor e o zelo efcrupulofo da verdade e faha a dedicação patriótica.

Também alguns, cm e^uem por certo não faltariam ca- pacidade e bom cabedal fcientifico para emprehender origi- nariamente magnificas e folidas conftrucções hifl:oricas, fe

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contentam em refundir e reftaurar, fegundo a moderna fcien- cia, a convite de qualquer livreiro efpeculador, as velhas e obfoletas producções de Cefar Cantu, á femelhança d'aquel- les emigrados portuguezes, que havendo enriquecido no Bra- zil, regreíTando á pátria, carregados de oiro, querem levantar fobre o velho pardieiro ou fobre o arruinado cafarão, onde nafceram e viveram os feus progenitores, elegante e fum- ptuofo palacete, fegundo a moda e o bom gofto da epocha.

Por ultimo apparecem, e deflacam, por entre a multi- dão, efpiritos muito efclarecidos, intelligencias repletas de boa doutrina politiva, e por iíTo fcientilicamente bem orien- tadas, logicamente preparadas pela nova difciplina, preten- dendo alliar as modernas bafes fcientiíicas e os novos pro- ceíTos de invefligação com a clareza, fimplicidade e minu- dência, de que, em affumptos hiftoricos, ufaram os noíTos antigos e mais conlcienciolbs chroniftas. Mas, quando, por exemplo, julgámos ir encontrar um eftudo real e profundo, da mefologia e da etimologia applicadas a Portugal, depará- mos apenas com umas elementares noções de chorographia e ethnographia portugueza.

No mais, defcripções e quadros traçados e coloridos com raro brilhantifmo e notável energia, próprios, fem duvi- da, para integrar em uma valiofa e deleitavel producção romântica, e nos quaes as furprezas, o imprevifto de um myfticifmo theologico, os acafos de um fatalifmo brutal e materialifta e um como peflimiímo fyftematico fubftituem as previfões da fciencia e as leis naturaes e invariáveis, que, nas fuás relações neceíTarias de antecedência, coexiftencia e confequencia, regem e ligam, em um movimento continuo de evolução, os fados paíTados, prefentes e futuros, que pheno- menalmente traduzem a vida dos povos, das nações, da hu- manidade.

E aíTim é que no fundo de quafi todos os trabalhos hilfori-

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COS, emprehendidos e executados por efcriptores portuguezes, encontra-fe um precipitado de fentimentaliímo romântico, de fubjedivilmo metaphyfico e de providencialifmo fobre- natural theologico, diluido com algumas pequeninas doíes de moderno efpirito fcientifico em um eccleftifmo heteroge- nio e amorpho, comporto de elementos repugnantes, que, quando não tenha o defaftrofo cífeito de nos allucinar ou fazer fcepticos, lervirá apenas de nos embuir com uma té- nue camada fuperficial d'eíre verniz de erudição a retalho, que os doutrinários fabem manipular nos feus laboratórios clajjicos e officiaes, e expõem á venda recommendado pelos rótulos de reclame, fellado na junta coníliltiva de inftruc- ção publica e com a etiqueta carimbada no minifterio do reino.

Sobretudo o romantifmo, e aquillo a que geralmente fe nome de litteratiira preponderam em quaíi todos os noíTos trabalhos hiftoricos, quando, alem d'iíro, o que é frequente, os não corrompem e viciam o preconceito de feita, de par- tido, de efcola, intereíTes e conveniências particulares em fuás múltiplas e variadas combinações.

Se, por exemplo, paíTàmos immediatamente da leitura de um capitulo da Hijloria de Portugal de Alexandre Herculano á leitura de um capitulo do Eurico ou do Monge de Cijlcr, de uma pagina da Hijloria de Portugal de Rebello da Silva para uma pagina da Mocidade de D. João V, a tranfição não fe prefente; a maneira de efcrever é idêntica, o efpirito que vivifica os dois trabalhos o mefmo. E fempre a imaginação a levantar phantafticas perfpedivas e a eftender enganofas miragens por fobre a realidade dos fados; é fempre um es- tylo feduófor e attrahente ao ferviço de fentimentos peífoaes, noções fubjeflivas, de conveniências partidárias.

Pede a juítiça que façamos algumas excepções: a pri- meira, e bem merecida, em favor do dr. Coelho da Rocha,

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lente de Direito Civil na Univerfidade de Coimbra, com re- lação ao feu preciofo livro Enfaio fobre a Hijloria do Governo e da Legiflação de Portugal, etc. Não a fundamentaremos: por brevidade diremos fomente que o dr. Coelho da Rocha não era litterato, nem poeta, nem rhetorico, nem politico; ju- rifconfulto e homem de fciencia, legundo a Iciencia do feu tempo, foi experimentaliíla nos proceffos de inveftigação, pofitivo e, por iífo, imparcial na critica, iíto é, no modo de ver e apreciar os faftos, os homens e as inflituições.

Também é certo que alguns modernos penfadores fe toem esforçado por emancipar-fe dos velhos preconceitos e vicio- fos hábitos, herdados de nolTos meftres e tranfmittidos pela meiquinha e deplorável educação intelledual, que nas efcolas fecundarias e nos curfos fuperiores recebemos. Honra lhes feja, fe bem que ainda nenhum o confeguiu de um modo completo.

Mas, apefar da fua vaíta e complexa erudição e folida fciencia em todos os ramos, facriíicam tudo á forma, e ainda fe curvam, reverentes idolatras do e%lo, perante as arrui- nadas aras da velha rhetorica. Outros, por mais que leiam e releiam e foffregamente devorem os produdos da efcola po- fitivifta, e procurem refazer o feu efpirito e renovar o leu es- tado mental na philoíbphia comteana, fegundo os commenta- rios e gloífas de Littré, de Wyrouboíf, não confeguem apagar nos feus cfcriptos hiíloricos as gratas reminifcencias de Viço e Michelet, feus primeiros meftres; e o myfticifmo theologi- co e metaphyfico d'aquellc e o naturalifmo fentimental d'efte a cada paífo repontam no caminho, para denunciar as raizcs, que o machado innovador da critica pofitiva, cortando o tron- co, não pôde expungir.

Felizmente a hiftoria vae-fe hoje eftreitamente ligando, em indiflbluvel conforcio, com a fciencia defde a mathema- tica até á íbciologia, cortando com a metaphyfica e com a

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rhetorica eíTas relações illegitimas e eftereis de hons frudos, relações que o delenvolvimento do efpirito humano foi afrou- xando cada vez mais, e, por fim, ha de annullar completa- mente. A hifloria tem hoje por elementos orgânicos da fua conftituição fomente aquelles que lhe fornece a realidade verificável dos fados, e por únicas formas aquellas que lhe vae miniflrando a phenomenalidade evolutiva que traduz, na fua complexidade crefcente, a vida progreíTiva das focieda- des, e a civilifação, cada vez mais opulenta, da humanidade no feio da natureza.

II

EVOLUÇÃO POLITICA

A palavra politica é uma d'aquellas de que, vulgar e fcientificamente, mais fe tem ufado e abufado.

Todos faliam em politica; mas não haveria talvez quem, fe lhe perguntalfem inefperadamente o que entende por po- litica e o que efta palavra figniíica, refpondeífe fem hefitações e embaraços; ninguém daria uma definição que refiíl:iífe á critica mais fuperficial e empyrica.

Uns entendem por politica «o governo das fociedades». Dizem outros que a polhica tem principalmente por objedo « a forma governamental de um paiz » . Aííirmam alguns que ella comprehende »as inftituiçóes admittidas por differentes grupos de uma fociedade ou por diverfas fociedades». Que- rem eítes que a politica feja «a arte de governar a cidade, um povo, uma nação» . Suftentam ac]uelles que ella «abrange, na fua vafta efphera, as relações entre governantes e gover- nados», e tem, «como fciencia e como arte, a miífão de es- clarecer e dirigir os governos na fua acção e influencia fobre os cidadãos e eíf rangeiros » . A politica aíTim comprehendida

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é uma arte, um complexo de regras e de expedientes, que fe refolve na combinação, mais ou menos aítuciofa, dos fins e dos meios de governar, fegundo as circumftancias de occafião e opportunidade.

Todas eftas definições, fe não fão um circulo viciofo, em que fe refponde á pergunta com a mefma pergunta, traduzem apenas eífe empirifmo vulgar e groífeiro, a que, por ignorân- cia e força de habito, fe convencionou chamar politica ou melhor ainda habilidade.

Modernamente é mais elevada e mais fcientifica a com- prehenfão da politica. Na fua accepção mais ampla, dizem os innovadores é «a fciencia da ordem e do progreífo, ap- plicada ás fociedades humanas » . A conciliação d'efl:es dois termos ordem e progreífo refume em fi toda a fciencia efpeculativa e pratica da politica. AíTim confiderada, a poli- tica já não fe limita ao governo de uma cidade, de uma pro- víncia, de uma nação, fignifica «a direcção da humanidade inteira no fentido da fua evolução natural e hiftorica » . Mas qual é a fciencia ou ramo de fciencia que não deva ter como bafe fundamental e condição impreterível a conciliação da ordern com o progreífo, que é uma lei univerfal da natu- reza?!

No meio d'efl:a confufão de idéas e abufo de palavras, que ainda adualmente enchem e, arbitraria e tumultuofamente, revolvem o campo da fciencia focial e particularmente da po- litica, podemos affirmar que eíta não é fimplefmente uma arte, a combinação habilidofa de expedientes tranfitorios ; é uma fciencia experimental, que tem por fontes a natureza e a hiftoria.

Para nós a politica, e é efta fem duvida a fua compre- henfão pofitiva, aprefenta-fe, na ordem natural e hiftorica, a primeira das fciencias, em que, na fua ordem hierarchica, fe fubdivide a fociologia. Efta, nas luas mais elevadas afpi-

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rações, fuppõe o conhecimento real e profundo do fer huma- no, confiderado em fi, nas luas origens, nas fuás tendências progreíllvas, nas luas aptidões múltiplas, nas condições ne- ceíTarias da lua complexa exiftencia, e, por iffo, nas luas re- lações com o univerlb de que elle faz parte integrante. A po- litica tem pois, como a lociologia, raizes profundas que é forçofo procurar, atravez da indefinida complicação de todas as Iciencias. A vida politica de um povo é uma refultante das leis naturaes que regem o mundo, e o produtflo de uma evolução hiftorica particular, que le coordena no movimento geral afcendente da humanidade, no decurlb dos leculos e por toda a parte.

A fociologia, na fua maior generalidade e complexidade, eítuda as condições de exiftencia, internas e externas, do organifmo focial humano; ou mais concifamente, é a fciencia da condicionalidade Ibcial humana, nos phenomenos que a traduzem (conhecimento empirico), nas leis que a regem (conhecimento fcientifico), nos principies fupremos e univer- faes que a fuhordinam (conhecimento racional). E como as fociedades, do meímo modo que outro qualquer organilmo vivo, fe formam, conflituem, renovam, conlervam e perfis- tem, defenvolvem e aperfeiçoam, garantindo-fe nos meios em que vivem envolvidas e como que mergulhadas, as focieda- des precifam de condições de formação, conftituição e re- novação, de confervação e perfiftencia, de aperfeiçoamento e de garantia; e como em todo o organifmo deve haver um certo grau de vitalidade orgânica, acrefcentaremos e col- locaremos convenientemente um outro grupo de condições, as condições de vitalidade.

D'aqui as cinco fubdivifões ou ramos que nós entende- mos, que naturalmente fe devem e podem fazer na fociologia:

I." Condições de formação, conftituição e renovação Politica.

2." Condições de vitalidade orgânica Economia.

3.° Condições de conlervação e perfiftencia Adminis- tração.

4." Condições de delenvolvimento e aperfeiçoamento Moral.

5." Condições de garantia Direito.

Abrtendo-nos de grandes explanações e largos commen- tarios, que a indolc d'ell:e trabalho e eítreitos limites de uma breve introducção não nos confentem, diremos apenas, que as bales da noffa claíTiíicação exiftem politivamente eílabele- cidas na fociologia e experimentalmente verificadas na Ins- taria.

São eíTas bafes fcientificas e effas laboriofas verificações experimentaes, que no dizer profundamente verdadeiro de um moderno fociologifta, explicam elTa efpecie de terror que a politica infpira áquelles homens que têem eífudado baftante para faber o que elles ignoram, e a lamentável cegueira d'ac[uelles que, tendo a pretenfão de governar uma nação e dirigir a ília politica, contando fomente com os recurfos e expedientes da lua aftuciofa habilidade, perdem o leu tempo, e arruinam o feii povo.

E affim que pelo proceíTo fcientirico empregado, chegá- mos a determinar objectivamente, de um modo precifo, e a limitar, por um termo irreludivel, a fciencia politica. E fe a fciencia focial tem por objedo as condições de exiítencia dos organifmos fociaes humanos, fe nos domínios da fciencia focial efpeculativa vêm coordenar-fc todas as leis e todos os princípios defcobertos e fornecidos pelas outras fciencias, fe na fociologia pratica devem combinar-fe e cooperar as ap- plicações d'eífas mefmas leis e princípios á ordem e progreífo focial, eíTa mefma coordenação e efla mefma cooperação têem de realifar-fe na politica theorica e na politica applicada. Logo a fciencia politica immediamcntc fubordinada, como

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parte integrante, á fociologia geral e ahftrada, tem de fub- ordinar-fe á biologia, ás Iciencias phyfico-chimicas e a todos os princípios, leis e meios de inveftigação dependentes da aftronomia e do calculo. Em politica, como em tudo, é in- difpenfavel uma ralao, um critério fcientifico, um enorme poder de precifão pofitiva, pois, fe aíTim' não foíTe, teríamos como principio motor dos movimentos fociaes da humani- dade a força bruta e cega do acafo, e por lei o arbítrio ca- pricholb dos grandes homens, dos heroes, dos deules.

Entendemos por evolução politica progreíTiva, a fucceíTão natural e hirtoricamente coordenada de períodos ou phafes de exiftencia, que uma fociedade atraveíTa ou percorre na fua formação, conftituição e renovação orgânicas, de modo que poíTa adquirir o necelTario grau de vitalidade correfpon- dente (progreíTo económico), prover á fua confervação (pro- greíTo adminiftrativo), preparar e realifar o leu aperfeiçoa- mento (progreíTo moral), e garantir-fe mais e melhor em todas eftas condições de exiftencia contra a acção, reacção e influencia, prejudiciaes e damnofas, dos meios internos e externos, d"onde eflas condições originariamente derivam o território, a população e o eftado Ibcial (progreffo jurídico).

Decadência e retroceíTo fignificam a evolução em íenti- do contrario; e por iflb, em oppoíição áquella, lhe chamare- mos evolução retrograda.

III

DA INFLUENCIA DOS GRANDES HOMENS E DA ACÇÃO INDIVIDUAL

Quando abrimos a maior parte dos livros de hiftoria, e procuramos defcobrir os motivos, a que os hiftoriadores at- tribuem os factos ou phenomenos fociaes, encontrámos con-

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ftantementc e geralmente invocados, como factores principaes a propidencia e os grandes homens. E eíTes livros, na fua maioria, fão apenas um tecido de biographias de reis, de generaes e de homens de Eftado, que á Providencia aprouve efcolher para feus delegados e interpretes, ou meros inftru- mentos na realifação dos feus myfteriofos defignios fobre o mundo. A influencia dos meios, das raças, das crenças, a continuidade hiftorica, a tranfmiíTão hereditária, a evolução progreíTiva, tudo quanto modernamente e, fegundo os verda- deiros methodos fcientiíicos, e para os eípiritos fuperiormente dilciplinados pela fciencia, forma o real e pofitivo dos phe- nomenos hiftoricos, não fe vêem, não fe encontram, parece não haverem lido ao menos prefentidos.

Tendo de nos occupar da acção e influencia do Marquez de Pombal na evolução politica da nacionalidade portugueza, também precifámos de nos explicar acerca da maneira como comprehendemos a acção e influencia dos grandes homens nos deftinos dos povos, das nações e da humanidade, por maiores que os pofl'amos conflderar no génio e na adividade, por mais laliente que feja o relevo e impreflionadora que nos pareça a perfpeftiva, com que deftacam e avultam no quadro hiflorico onde figuram.

Os phenomenos fociaes, afllm os mais importantes como os mais fecundarios, eftão fujeitos, como pheiíomenos natu- raes e objedivos, a leis fixas que os aggregam e encadeiam regular e indiíToluvelmente por luas relações de antecedência, coexiftencia ou fimultaneidade e confequcncia.

Verdade é que efias leis não lao ainda bem conhecidas e formuladas; fe o foflem, a fociologia eftaria conftituida nas fuás generalifações abftradas e nas luas efpecialidades con- cretas, no todo e em cada uma das fuás partes; mas nem por iíTo o principio de fubordinação deixa de fer verdadeiro e experimentalmente verificável.

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Todo o fafto politico e, por iffo, toda a reforma ou reno- vação politica, fe cila não é o relultado de um puro capricho ou devaneio individual ou de uma temeridade revoluciona- ria, e por iíTo ephemera e perturbadora, fe ella tem um certo alcance e influencia, para ler efficaz e permanente, deve ter a fua ralão de exiftencia nos léus antecedentes direitos, e produzir, no meio que a recebe, e ao qual fe adapta, os feus inevitáveis confequentes. Logo todo o homem politico, todo o reformador, digno d'efte nome, deve ter a comprehenfão e, por iffo, a confciencia d'effes antecedentes e confequentes que Ião, ou devem ler, o determinifmo da fua acção renova- dora, e como que a idéa progenitora e fundamental das fuás reíormas e emprehendimentos.

Que Vafco da Gama tiveffe furgido no xii feculo e Chris- tovam Colombo no mefmo ou no xiii feculo, e elles pode- riam ler bifpos, Icudes, papas, guerreiros ou doutores da Igre- ja, mas não teriam fido navegadores; poderiam ter fundado um império, um reino, um condado, um convento, uma abba- dia, uma univerfidadc, mas não teriam fido os defcobridores de novos mundos; vel-os-hiamos dirigir uma cruzada á terra fanta, pregar uma herefia e commandar uma guerra reli- giofa, mas não teriam aberto um novo caminho para a ín- dia, nem conquiftado á velha humanidade da Afia e da Eu- ropa o continente americano, para fe expandir e como que rejuvenefcer em novas e acrefcentadas civilifações.

O império de Napoleão III, do mefmo modo que o impé- rio de Napoleão I, do mefmo modo que o império de Othão o grande e de Carlos Magno, caiu, porque elle, como todos efles grandes homens, todas eflas notabilijjimas individuali- dades, obedecendo a moveis puramente fubjedivos, em que as ambições egoiffas e as miragens da imaginação prepon- deravam, não tinha a confciencia do feu tempo, e longe de aproveitar os antecedentes direitos e provocar os confequen-

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i2b

tes legítimos na evolução progreffiva do feu tempo, os per- turbava na lua con\'ergencia, contrariava e enfraquecia na fua efpontanea energia critica e renovadora, fubftituindo as leis naturaes e hiftoricas da humanidade pelo arbítrio, e oppondo os caprichos da fua vontade abforvente e defpotica ás correntes civilifadoras do meio, que mais tarde ou mais cedo devia fubmergir e afundar para fempre o novo im- pério, que flufluava, fem direcção e fem rumo, á mercê das ambições de um homem, no intereíTe de uma familia e de uma numerofa clientela de aulicos e apaniguados efpccula- dores, ávidos de honrarias e riquezas.

Nenhuma das condições objectivas, das verdades pofiti- vas e experimentaes, que, natural e iieceíTariamente, derivam umas das outras, foi comprehendida e refpeitada por eftes re- tardatários políticos, que têem o único feftro de tomar fonhos como fe foram realidades, e os feus próprios fentimentos, os feus intereíTes, as fuás afpirações individuaes, corno leis ca- pazes de fubjugar as fociedades que os toleram, e dar ás na- ções o impulfo vigorofo e indomável, que poderia tornal-as felizes e poderofas; mas para as fazer fuás efcravas e, não raras vezes, fuás idolatras.

Ora, fão efles homens aquelles, a quem os noífos políticos de hoje e os noífos hiíforiadores de hontem chamam envia- dos do céu, inftrumentos de Deus, braços da Providencia, mandatários da divindade, delegados do Omnipotente. E aíhm a paífagem do governo abfoluto para o regimen par- lamentar do conftitucionalifmo monarchico explica-fe pela generofidade patriótica, e depois pelos heróicos esforços e po- derofa influencia de D. Pedro IV; a independência do Brazil, longe de fer um produdo efpontaneo das circumftancias, refultado e impofição de uma lei de defciivolvimento orgâ- nico, a mefma lei que determinou na antiguidade a emanci- pação das colónias gregas e phenicias, e nos tempos moder-

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nos a libertação das colónias ihglezas e hefpanholas da America, e ha de emancipar Cuba e quantas tenham chega- do á maturidade, c, para os brazileiros, um favor da Provi- dencia e uma dadiva principelca do primogénito de D. João VI, e, para os portuguezes, um caftigo de Deus e uma dupla, traição do príncipe ao pae efpoliado d'aquella parte dos léus domínios e á pátria privada dos léus recurlbs. A unidade italiana é um mimo do céu, um prefente da divindade, offerecido á Itália, ou melhor ainda á dynaftia faboyana pela mão poderofa de Victor Manuel, a quem os homens da igreja catholica chamam o açoute da Providencia, como outr'ora os romanos chamaram ao Attila o flagello de Deus. A unidade germânica, o novo império allemão é o produclo de um capricho, de uma ambição egoifta, ou melhor ainda de uma allucinação diplomática do príncipe de Bilmarck; e a republica franccza eftá apertada nas mãos omnipotentes do Ir. Gambetta; fe um dia o fabio eftadifta e o enérgico tribuno, em um momento de mau humor ou de delalento, abrir as mãos ou as metter nos bolfos do leu pardejfus, a re- publica franceza cairá no abyfmo de um quarto império, mefrno fem o precedente de um confulado retrogrado ou de uma didadura militar intolerante, para fer fantificado pelo papa, defendido pelo fenado ariftocratico e pela guarda pre- toriana de um novo Celar Augufto, que poderá exclamar, diante de um povo fafcinado pelos efplendores deílumbran- tes de uma corte magniíicente e apparatofa, ou narcotifado pelos venenos da centralifação e do auctoritarifmo, « o EJtado fou eu a França foii cu», parodiando Luiz XIV, ou fazendo o plagiato de Naptoleão I.

A hiftoria e a politica affim comprehendidas e aíTim expli- cadas, o deítino das nações e da humanidade, entregue ex- cluíivamente ao génio e á vontade dos grandes homens, á direcção e influencia das indi^■idualidades privilegiadas, faz-

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nos lembrar um relógio nas mãos infantis de um collegial. Que lhe importa a elle o curfo natural do tempo, e as leis .orgânicas e difciplinares ás quaes eíM fujeito na fua educa- ção e aprendizagem? Tudo vae bem, tudo corre na medi- da dos feus defejos e ao fabor do feu egoifmo, logo que os ponteiros marquem a fufpirada hora do recreio e do re- poufo. Uns querem que elles le adiantem, outros que elles fe atrazem, e todos pretendem fubftituir o mecaniímo inte- rior da fabrica, regulado fegundo as leis do movimento da terra e do univerlb, pela fua vontade, pelo feu arbitrio, pelo feu intereífe; todos fe enganam, e foífrem as confequencias do feu erro e o caftigo da fua falta; e mais tarde ou mais ce- do terão de confultar a natureza para, em conformidade com as fuás leis e indicações, coUocar devidamente os ponteiros no quadrante.

Ora pois a politica não é um capricho peífoal, também não é uma arte; é uma fciencia de obfervação e de expe- riência, que tem por campo immenfo de exploração a natureza e a hiftoria. Confultemos pois a hiftoria e a natureza, e veja- mos o que ellas nos dizem e enfinam a refpeito dos grandes homens e das individualidades celebres.

Dos exemplos que apontámos, e que poderíamos multi- plicar e alargar até ás proporções de uma completa inducção experimental, podemos feguramente concluir:

I Os grandes homens fão o producto de uma evolução anterior; a fua acção e influencia feriam nullas ou infigni- íicantes, fe ellas fe manifeftallem em uma epocha ditferente, e fe defenvolveífem em um meio diverfo d'aquelle que os pro- duziu. Logo, para determinar o valor real e pofitivo da acção e influencia dos grandes homens, é indifpenfavel eftudar bem a epocha, e conhecer bem o meio ou eftado focial que os pro- duziram.

2.° Não fão os homens que geram os fados, e criam as cir-

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cumftancias do feu tempo; mas, ao contrario, lao os fados e as circumftancias do tempo que geram os grandes homens, eftimulam e provocam a fua acção e influencia reformadoras.

3." Os grandes ferviços que uma individualidade pode- rofa prefta ao feu tempo, á fua nação ou á humanidade inteira, na fciencia, na induftria, na poUtica, fão relativa- mente pequenos, fe os compararmos á enorme fomma he- reditária, accumulada pela experiência de muitos feculos e de muitas gerações.

4. ' Uma grande defcoherta, uma invenção, que á primei- ra vifta fe nos antolha furprehendente e maravilhofa, nunca faiu completa do cérebro de um único homem; é um pro- duófo lentamente elaborado, e a confequencia de invenções e defcobertas fucceíTivamente feitas e accumuladas durante fe- culos. E juífamente o que fuccedeu com a pólvora, com a imprenfa, com a machina a vapor, com o telegrapho eleílri- co, com a circulação do fangue e com quantas preciolidades fcientificas e induftriaes formam o mais rico e folido thcfou- ro da humanidade.

5." No dominio da politica, a fuperioridade dos grandes homens confifte em conhecer o palfado, comprehender bem o prefente, prefentir e prever a direcção phenomenal do futuro, impellir e dirigir os povos na fua conquifta e realifação.

A fuperioridade dos grandes homens no dominio politico, ainda que muito menor do que no dominio fcientiíico e induflrial, não deixa todavia de fer real e inconteftavel. É precifo um juizo muito efclarecido pela obfervação e pela experiência e um raciocínio muito feguro para defcobrir, atravez da infinita complexidade dos phenomenos fociaes, a direcção e o fentido da evolução de uma epocha, e prever futuros acontecimentos e novas transformações.

Alem de uma grande fuperioridade intelledual, o ho- mem de Eífado. o verdadeiro homem de governo, precifa

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de um caraíter auftero e de uma enérgica vontade inque- brantável, a fim de não perder a influencia moral, o preftigio e a audoridade publica fobre a multidão, condição indis- penfavel á fácil e prompta realifação dos feus planos de re- forma e renovação focial. «Governar é prever e prover»; e para prever é indifpenfavel a fciencia experimental e pofitiva. A maior e a mais perigofa de todas as ambições é a de cjuerer governar um povo e dirigir a politica de um eftado fem o talento neceffario para iíTo.

Cada grupo de fados ou phenomenos fociaes correfpon- de fimultaneamente a um ou outro grupo de condições de exiftencia, fegundo a claíTificação que fizemos, e a uma phafe de evolução continua, com fuás transformações e metamor- phofes, as quaes p>henomenalmente traduzem, em correntes tranquillas ou precipitadas, patentes ou occultas, o movi- mento afcenfional das fociedades, defde a fua origem até entrar franca e abertamente no oceano pacifico da civilifa- ção, no feio immenfo da humanidade, que as recolhe e apro- veita em ultima eftancia.

EíTe movimento pôde fer demafiadamente accelerado pela acção imprevidente e pela influencia perturbadora dos revolucionários, retardado ou empecido pelos esforços retró- grados de obftinados reaccionários, ou paralyfado pela im- mobilifação fyftematica dos confervadores empíricos. E n'eíte modo de fer da evolução focial pôde ter larga e profunda in- fluencia a acção de um homem, de um governo, de um par- tido, de qualquer feita ou aíTociação particular; nenhum, po- rém, homem, governo, partido, feita ou aíTociação, nem todos colligados confeguiriam produzir ou deítruir o movi- mento, quando muito poderiam modifical-o, ou alterar-Ihe a direcção e o fentido, mas creal-o na fua origem e fornecer- Ihe o ponto de apoio, iíTo nunca; a origem vem-lhe da pró- pria natureza e o ponto de apoio miniftra-o a hiftoria.O Mar-

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quez de Pombal, que conhecia a hiltoria geral da civilifa- çáo, e particularmente a da nacionalidade portugueza, pos- luia, alem da pofitiva comprehenfão do prefente, a clara pre- vilao do futuro. Sabia que as reformas fociaes não devem começar por uma fuperíicial renovação morphologica do go- verno, mas por uma renovação intima das condições de exiftencia do organifmo Ibcial. Aquella fem efta, o fabia elle perfeitamente, é uma apparencia fem realidade, fão co- mo effes brilhantes meteoros de eífeitos defaftrofos, que, quan- to mais brilham, mais depreíTa fe apagam e desfazem; podem derramar mais alguma luz nas imaginações exaltadas dos re- volucionários; mas não tèem, nem podem ter a realidade pal- pável e a eílabilidade perfiftente d'aquellas reformas que, par- tindo directamente da renovação vital da fociedade, affedam e melhoram a fua conftituição orgânica.

Foi também por iíTo mefmo que elle, procurando evitar a revolução, preparava, por uma renovação geral e profun- da dos elementos orgânicos da fociedade portugueza, uma transformação politica, económica, adminiftrativa, moral e jurídica correfpondente, tendo, porque não podia deixar de ter, a convicção de que a mudança na forma de governo, apropriada ao novo eítado Ibcial, viria fatalmente, como confequencia inevitável e produíto efpontaneo d'efra reno- vação. Não foi, nem podia ler revolucionário na rua, á frente do povo; foi revolucionário no feu gabinete, ao lado do rei.

Não empregou a liberdade nem invocou a democracia, para, em um momento, deftruir o poder e a audoridade e arrui- nar o abfolutifmo, ferviu-fe do poder abfoluto e da autori- dade defpotica para fundar a liberdade e preparar o futuro da democracia.

O Marquez de Pombal foi, no feu tempo, um opportu- nifla ao ferviço da revolução.

Vejamos fe o podemos moftrar.

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CAPITULO I

ANTECEDENTES HISTÓRICOS

Depois da refurreição nacional, que, em 1640, reftaurou a independência de Portugal, efmagado pelo pelo oppreíTor de eftranho jugo, devida, não como pretendem alguns ás combinações grandiofas e á politica admirável de Richelieu, mas á patriótica iniciativa e á dignidade heróica dos confpi- radores pop»ulares, a nação portugueza recobrou a fua au- tonomia politica, defpedaçou as algemas de tão odiofa fer- vidão económica, defprendeu-fe, por um foberano esforço de coragem, dos braços de ferro, em que, durante longo e an- guftiofo periodo, a tinham apertado os defpotas caífelhanos, e levantou íbbre o throno, em que havia aíTentado Aífonfo Henriques e o Meífre d'Aviz, chefes, fe não filhos do povo, eleitos e acclamados por elle.

Portugal entrou de novo no dominio e poíTe de fuás con- quiftas; o foberano opulento do Oriente, o defcobridor ou- íado e o civilifador generolb de ignotas plagas e de extra- nhas gentes, ergueu-fe do tumulo que lhe tinham aberto o arrojo pueril de uma creança, ávida de glorias vãs, e a im- becilidade trôpega de um velho cardeal fanatizado.

Era, todavia, fombra mageífofa de um vulto heróico, furgindo por entre as ruinas de lumptuofo edifício deíman- telado.

Nem exercito, nem marinha; fem commercio, fem indus- tria; exhauítos os cofres do eftado, perdido o credito, nominal a riqueza de fuás maravilhofas defcobertas, vafio o thelburo de fuás conquiflas!. . . com a aureola de paífadas glorias; fem outro titulo perante as nações, alem da merecida grati- dão a que tinha direito pelos valiofos ferviços preftados á

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humanidade e a cíTa religião, a que o prenderam logo no berço.

Dir-fe-ia que o milero revivera por momentos, para logo depois tornar a morrer defalentado.

Mas havia para elle a eíperança no futuro, firmada na lembrança do paflado; exiftiam amontoados, fobre os mares e nas fuás p)Oíreírões abandonadas, os ricos efpolios da fua antiga grandeza: retomou animo, ganhou coragem. Efta- va o leu nome efcrip>to fobre toda a extenfão do oceano, echoava por todas as regiões do globo, brilhando na coroa de poderofos monarchas, exiftia gravado no coração de muitas nações florefcentes ; por iíTo todas acolheram com applaufo o brado da fua independência, e lhe ajudaram a manter a li- berdade, que defaftrofamente havia perdido nos plainos de Alcácer Quibir e fobre o leito do cardeal rei moribundo.

Os herdeiros da cafa de Bragança, os populares foberanos eleitos pelo poi'o, os primeiros reprefentantes d'eíra realeza le- gitima, nem comprehenderam a fua elevada miífão, nem lhes importaram as neceíTidades do feii p)ovo, nem, ao me- nos, fouberam aproveitar-fe do amor e da confiança que n'elles haviam depofitado os que, refgatando o reino, lhes cingiram o diadema, e lançaram fobre os hombros a purpu- ra de duas dynajlias.

Não emprehenderam reformas ; não traçaram plano algum de polifica definida; não promoveram o defenvolvimento ou, ao menos, a reftauração da agricultura, da indufiria, do com- mercio, da navegação, de quantos elementos conflituem a vida laboriofa, a adividade produdora, o bem eftar íbcial, a profperidade moral e económica de uma nação livre, inde- pendente e opulenta de tudo quanto poderia tornal-a gran- de e rcfpeitada. Exhaurindo o erário, fem adivar as forças produdoras da riqueza publica e particular, fem abrir novos mananciaes de producção, lem dotar o paiz com melhora-

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mentos de reconhecida utilidade, a lua única preoccupação, todo o feu empenho limitava-le, parecia comprazer-le até em augmentar e completar o defpotifmo, que extranhos para haviam importado, o gofto da epocha e o exemplo de ou- tras cortes muito favoreciam, engrandecendo ao mefmo tem- po os jefuitas, dando força e apoio ao tribunal da inquifição, mantendo um fauíto ruinofo, propagando o amor e a paixão do luxo, mais do que inútil, prejudicial, e, por vezes e em muitas coufas, infolente, defmoralifador; confumindo com vai- dades realengas, em fumptuofas conítrucçôes, em dilpendio- fas obras d'arte, e, o que é peior, em beatificas e exageradas piedades mundanas, capitães immenfos, fommas fabulofas.

D. Pedro II e D. João V, fafcinados pelo brilho deílum- brante e pelo apparato tumultuofo da corte de Luiz XIV, fi- zeram d'efte rei abfoluto, libertino e folgazão, confiderado, n'aquelle tempo e pelos retrógrados e fanáticos, o prototypo da realeza abfoluta, o feu aperfeiçoado modelo, fem todavia lhe imitarem uma única das fuás virtudes.

Um, leguindo a lua politica e imitando na adminiftração o leu exemplo, lançou ao efquecimento as formas da antiga monarchia reprefentativa; reprimindo a nobreza e o clero, fem libertar o povo, preparou o abfolutifmo.

O outro, animado de um efpirito romanefco e comicamen- te aventureiro, dotado de uma imaginação infantil e de um temperamento ardente, dominado por uma piedade exage- rada, ou efpeculando com uma calculada hypocrifia, imitou Luiz XIV nas faas vaidades, invejou-lhe a pompa e o es- plendor da lua corte, fatisfez os mais pueris caprichos e as mais extravagantes phantafias, nada lacrificou ao bem do povo, enriquecendo a envia romana, esfalcou o theiburo pu- blico, enfraqueceu a agricultura e a navegação, ennervou o efpirito de actividade nacional, em uma palavra, o rei faná- tico e libertino. . . fanatilbu e defmoralilbu o povo!

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Portugal, arrancado pela mão do povo ao jugo de Cas- tella, é, em 1703, hypothecado pela realeza aos inglezes que o exploraram, e ainda hoje exploram, como o poíTuidor de explora a propriedade alheia; Roma elpeculou também; a nobreza e o clero completaram efte lyftema de legal e con- vencionada pilhagem!. . ,

Portugal era no começo do reinado de D. Jole I o que a França principiara a íer deíde o reinado de Luiz XV.

Por toda a parte o abandono da agricultura, o delprezo pelas artes, infignificantiffimo o trato commercial ; um gover- no monarchico lem prelhgio, um throno efplendido de pur- pura e oiro fem folidez; o jelliitilmo e a nobreza lilbnjeian- do e trahindo o rei, fanatilando o povo e elpeculando com a lua piedade, dominando e opprimindo a multidão ignorante e lliperfticiola, gofando fem trabalho, adquirindo por meio de violentas e aftuciofas ufurpações e confilcos, accumulando lem esforço; o luxo e a immoralidade para uns, a miferia e a degradação para outros. . . Tal era a fituação perigofa e aíTuftadora, o triíte efpeótaculo que a nação portugueza e o leu eftado Ibcial exhibiam, quando Sebaftião Jole de Car- valho e Mello appareceu na fcena publica, e concebeu o arriscado mas grandiofo projedo da lua emancipação, refta- belecimento e progrelTo, por meio da renovação intima, pro- funda dos feus elementos orgânicos e das fuás adormentadas e gaftas energias.

O eftado lamentável de quali completa deforgani facão e ruina, em que Portugal fe debatia, a oppreífão que fobre nós exerciam algumas cortes extrangeiras, nomeadamente a de higlaterra, que de Portugal havia feito não lo pupillo, mas vaífallo obediente, dirigindo-nos a politica, exhaurin- do-nos as fontes de toda a vida económica, dominando em todos os noífos portos, explorando as noífas colónias occiden- taes e obrigando-nns a votar a um quafi completo abando-

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no as ricas poíTeíTóes do Oriente, fingindo manter em equilí- brio na fua balança commercial a noíTa independência politi- ca, e opprimindo-nos, vexando-nos como povo conquiftado, eram motivos fortes, eítimulantes irrefiftiveis para deter- minar o animo e defpertar o defejo de applicar remédio a tamanhos males, quebrar aquelle jugo funeftiflimo ou, pelo menos, attenuar as confequencias defaftrofas, que, de dia para dia, fe iam aggravando, em todo o portuguez que fe conhe- ceíTe apto, pela capacidade fcientifica e força de vontade, para tentar, com probabilidade de bom êxito, tão ouíada e patrió- tica empreza.

O homem, que as circumftancias reclamavam, afado para tal commettimento, appareccu, e foi Sebaítião Jofé de Car- valho e Mello.

CAPITULO 11

o MARQUEZ DE POMBAL E O SEU TEMPO

Era pleno feculo xviii.

Principiara a arvore da renafcença a produzir os feus frudos, e de lua frondofa copa pendia lobre a cabeça do povo o abençoado pomo da liberdade: fem que lhe aguar- daíTem a queda muitos efpiritos alevantados, vontades firmes e perfeverantes haviam calculado as leis da mechanica focial, e, em harmonia com ellas, traçado a mechanica politica do regimen conjlitucional ; diftinguindo fomente rei e povo, não reconhecendo outras entidades ou forças fociaes, demonflra- ram a neceíTidade de abater o orgulho da nobreza e deftruir a influencia preponderante do clero, elementos economica- mente inúteis e politicamente prejudiciaes a um tal lyftema.

O foi da democracia moderna começava de furgir e fe elevava no horifonte das fociedades europêas, e com ellc des-

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pontava também, do lado da França, o dia da emancipação popular.

A Europa agitava-le em feus fundamentos; fentiam-le, de efpaço a efpaço, uns vagos e finirtros rumores, que impres- íionavam os efpiritos; extranhas convulfões abalavam o gran- de corpo focial, como fymptomas precurfores de uma próxi- ma crile moral e politica.

A impaciência popular avifinhava-fe do fcu momento fatal; o governo monarchico abfoluto, defacreditado em qua- fi todos os eftados da Europa, repellido no Novo Mundo e declarado por muitos efpiritos efclarecidos e redos o peior dos governos, elperava, todos os dias, o momento em que foíTe executada a fua lentença de morte.

A acção da philofophia critica, apoderando-fe das intel- ligencias elevadas do leculo, ía-lhe preparando o fupplicio revolucionário no tribunal da opinião publica, ao mefmo tempo que a philofophia orgânica ia lançando, por entre as ruinas do velho e galfo regimen catholico feudal, os funda- mentos do novo regimen [cientifico indiijMal, que lhe devia fucceder. Os philofophos de Inglaterra e de França trabalha- vam fervorofos na propaganda liberal e revolucionaria.

As theorias de Baccon e de Montefquieu tinham fido pro- fundamente defenvolvidas e levadas até algumas das fuás ultimas confequencias.

A interferência da Inglaterra, a fua acção politica, envol- vida na forma, e como que disfarçada debaixo da apparencia de um groífo trato commercial e maritimo, influenciava, tam- bém de um modo enérgico e profundo, a fituação moral e económica dos povos; como as cruzadas, em nome de Deus e pela fé, produziram, ou antes provocaram, em feu tempo, notável transformação focial, transformação que as inven- ções e defcobrimentos marítimos dos xvi e xvii feculos com- pletaram, e defenvolveram.

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Um vento philofophico, fe é licito aííim dizer, íopra^a da Allemanha, da Inglaterra, da França e da America, e murmurava, e trazia aos ouvidos de muitos as palavras liberdade, emancipação, democracia, republica e outras, que fignificavam não eftar longe o momento, em que o povo, confcio da fua força e fenhor da fua vontade, reivindicaíTe os feus originários direitos, uíurpados pela realeza, ultrajados pelos nobres, e, em parte, abíbrvidos pelo clero.

Uma nova forma de governo exiftia na mente de mui- tos homens illuftres, franca ou difllmuladamente traçada e defcripta nas obras philolbphicas, politicas e económicas do feculo.

As matérias combuftiveis, que fe haviam de inflammar ao primeiro fopro da fúria popular, para accender a revolução, acercavam-fe por toda a parte, e convergiam de todos os la- dos.

Alguma coufa de extraordinário e aíTombrofo fe prepa- rava no laboratório immenfo da Europa.

Algum monumento, de fumptuofa fachada e magnifica architedura, mas gafto e apodrecido pelo roçar dos tem- pos, ia defabar até os alicerces.

Era a bajlilha monarchica do abfolutifmo; era. o capitólio jefuitico da theocracia, minados nos fundamentos, abalados na fua apparente Iblidez ! . . .

Finalmente as inítituições, os poderes, as opiniões. . . tudo annunciava que a transformação eftava imminente, e, inevita^'cl e fatal, devia operar-fe por uma revolução geral e profunda.

Rabelais, Bayle, Fontenelle, Baccon e Montefquieu pre- pararam a aurora do grande dia; Diderot, Alembert, Turgot, Condorcet e Rouífeau animaram-lhe cada vez mais os raios luminofos ; Voltaire, o novo afiro da philofophia critica e de- molidora, aguardava Mirabeau o génio da eloquência, para,

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relumindo aíTim toda a fciencia, toda a energia do feu feculo, darem ao fentimento e a idéa revolucionaria a força con^in- cente e perfuafiva da realidade.

Foi no feio d'elTa atmofphera, repaflada de novos ele- mentos e impregnada de novos germens de vida, que o es- pirito de Sebaftião Joíé de Carvalho e Mello crefceu, fe de- fenvolveu, e preparou para vir a fer o que na realidade foi, com grande applaulb de nacionaes e eftrangeiros, e de certo com maior proveito noíTo, fe tivelfe logrado levar a cabo a renovação politica, económica, adminiftrativa, moral e juri- dica do feu paiz, que tão habilmente emprehendêra, e á qual miravam as viftas, eminentemente liberaes e patrióticas, do miniltro de D. Jofé.

Cultor aíTiduo de todos aquelles eftudos que habilitam o homem para bem governar, herdeiro do aperfeiçoamento de muitas fciencias e artes, que podiam illuftrar o mundo politico e determinar a profperidade e engrandecimento dos povos, lendo e meditando os livros económicos, políticos e financeiros, que, em feu tempo, inundavam a Europa, ia dis- pondo o animo e adquirindo o neceíTario grau de talento e aptidão para entrar um dia afoito, e lidar defaíTombrada- mente com os negócios da alta governação e adminiftração publicas.

Tomara por modelos, efcolhêra para feus meftres Riche- lieu, SuUy, Colbert, Argenfon, e as máximas, as memorias, os teftamentos políticos e financeiros d'eftes eftadilfas, mas principalmente a moral, a philofophia e os trabalhos fcien- tiíicos dos encyclopediftas, foram o thefouro, onde aquella intelligencia vafta, aquelle efpirito eminente, aquella vontade firme e enérgica fe enriqueceram, e adquiriram luz e força para produzir o que depois fe viu e admirou; e bem me- rece elle os louvores e applaufos da poftcridade que, em no- me da honra nacional c para gloria da pátria, decreta e ceie-

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bra, um íeculo depois da morte do grande homem, a fua apotheofe.

Sebaftião Jofé de Carvalho e Mello, difcipulo fervorofo das idéas philofophicas, politicas e económicas, que a Fran- ça efpalhára por toda a Europa, e a America do Norte havia de realilar praticamente nas fuás inftituições republicanas, á fombra das quaes foram acolher-fe grande numero de emi- grantes europeus, comprehendia bem o eftado de fermentação revolucionaria, que, por toda a parte, agitava os ânimos.

Génio perfpicaz, philofopho profundo e hábil politico, previa, como o antigo miniftro de Luiz XV, que uma crife tempeftuofa fe avifinhava para tudo transformar e regenerar tudo, ou tudo perder.

«Uma revolução é quafi fempre um mal, dizia elle, com os olhos fitos na hiftoria, uma enfermidade, que, depois de anguífiofa lucta e demorada convalefcença, poderá dar ao corpo focial martyrifado vigor e robuflez.»

Penfando aííim, era natural que concebeíTe, e defde logo traçaíTe o plano, immenfo, profundo e íalutar, de renovação e progreíTo, fem perturbar a ordem, cuja realifação efpe- rava a opportunidade de occafião para fe moftrar e defen- volver de um modo verdadeiramente efíicaz e proveitofo ao feu paiz, gloriofo para elle e para o rei, em nome e por auto- ridade do qual e a bem do povo, devia progredir afanofo e inflexível na tarefa reformadora, que o feu génio concebera, confeguiu oufadamente emprehender e praticamente execu- tar, como vamos ver e apreciar.

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CAPITULO III

o MARQUEZ DE POMBAL E OS ACTOS PRINCIPAES DO SEU GOVERNO

Quando Sebaftião Jofé de Carvalho e Mello, por cir- cumftancias, talvez cafuaes e impreviftas aos olhos do vulgo, mas bem conhecidas e hoje preci lamente determinadas por aquelles que eítudam e analyfam, em toda a fua complexi- dade, os phenomenos fociaes, appareceu á frente dos negó- cios públicos do Eftado, aíTenhoreando-fe do monarcha, concentrando em fi todo o poder politico nacional, abatehdo a nobreza, reprimindo o clero e fubjugando o povo, Portu- gal era património do rei, feiídatario da corte de Roma, objedo de exploração para as duas ordens privilegiadas, ermo de patriotifmo, pupillo de nações eftranhas. O reino, povoado de fumptuofos edifícios, e a corte, deflumbrante de oiro e fe- das, como a fízera e deixara a prodigalidade monftruola de D. João V, dobravam fob o enorme pelo de tantas pompas em magnificências vans e defmoralifadoras. A nação, pobre de adividade e iniciativa para trabalhes úteis e produdivos, definhava, na mais defolada e repugnante miferia, á mingoa de moralidade e infirucção, e pendia fobre o fundo abys- mo, que um luxo reprehenfivel e uma criminofa ociofidade lhe tinham aberto pelas próprias mãos do rei, dirigido pela corte de Roma, aconfelhado pelos jefijitas, lifonjeado pela nobreza e dominado pelo beaterio.

Filho do feculo xviii, herdeiro da Renafcença, educado na philofophia e na politica dos encyclopediftas, admirador dos grandes homens da França e da Inglaterra, verfado nas fuás theorias, mantendo com alguns boas relações de ami- fade e familiar correfpondencia, feguidor das fuás máximas.

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iniciado na vida politica e diplomática da Gran-Bretanha, Sebaftião Jofé de Carvalho e Mello via, bem claramente, os males que affligiam o povo, e degradavam a nação, e que o único remédio que podia oppôr-fe-lhes era ou a revolução popular, a guerra civil, tempeftuola e terrível em fua acção, talvez falutar e benéfica em fuás confequencias, ou a refor- ma pacifica e diplomática das inftituições.

Para operar a transformação, que não os philofophos annunciavam theoricamente, mas, de dia para dia, fe appro- ximava da fua realifação pratica, tinha forçofamente de em- pregar ou o meio violento da revolução popular ou a evo- lução accelerada, mas bem combinada, fenfata e efficaz de um vafto e complexo plano de reformas. Para a revolução precifava de fervir-fe, como inftrumento, da força incon- fciente do povo; mas como e por que procelTos poderia elle arraftar eífa maíTa bruta, inerte, beftificada pela ignorância e pelo fanatifmo?!

Para emprehender reformas quem é que lhe havia de dar a precifa força e a indifpenfavel audoridade? O -clero? A nobreza? Mas fe o clero e a nobreza eram, entre nós e n'aquelle tempo, os maiores obftaculos, a lagoa impura d'onde fe levantavam os deletérios miafmas que envenena- vam o povo e matavam lentamente a nação?!

E depois como luftar e vencer as refiftencias, que, inac- ceffivel montanha, fe erguiam diante da luz, ainda frouxa e duvidofa, do futuro?

Quem lhe reftava pois? O rei? O rei fim, mas fem par- lamentos, fem confelho de eflado, o rei abfoluto, o rei des- pótico, infallivel na fua rafáo, omnipotente na fua vontade.

E do rei fe fcrviu para camartello deftruidor de tudo quanto pôde embargar-lhe os paífos e tolher a fua acção reformadora, preparando ao mefmo tempo o povo pela in- ftrucção c pelo trabalho, como podcrofo elemento de rcorga-

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nifação e regeneração focial. Abandonando pois o plano re- volucionário por ler impraticável, inefficaz e fem duvida, n'aquelle tempo e para Portugal, contraproducente, quando porventura foíTe poffivel, optou pelos proceíTos reformado- res evolutivos.

Como politico propoz-fe o plano e as fahias providencias de Richelieu, mas com outro fim e mirando a mui divcrfos rclultados; como economifta e financeiro esforçou-fe por imitar SuUy e Colbert; dilcipulo de Quefnay, aprendera com elle e com os phyfiocratas que é no Iblo onde refide a principal fonte de riqueza e as matérias primas de toda a producção; como Adam Smith não ignorava que o tra- balho pode arrancar á natureza os feus produdos, e, trans- formando-os, fazel-os fervir á fatisfação das neceíTidades hu- manas, á felicidade nacional e á profperidade domeftica.

Foi defpota, foi tyranno, foi fanguinario. Muito embora. O meio em que viveu e as circumftancias que o envolviam, as ciladas, as confpirações, que, por toda a parte, o perfe- guiam e infidiavam, explicam fatisfaftoriamente as violências commettidas e os bárbaros expedientes, de que, mais de uma vez, fe viu obrigado a lançar mão. O que não pôde negar-fe ao Marquez de Pombal é eíTa grande virtude da franqueza, rara em políticos e principalmente nos políticos do feu tem- po. Podia ter fido aftuciofo e hypocrita como o celebre Ma- zarin ; preferiu a força e a violência do grande Richelieu. O que não pode negar-fe é que o Marquez de Pombal teve a clara comprehenfão do feu tempo e do feu meio, e foube prever o futuro, e prover, como ninguém antes d'elle o havia feito, ás grandes e urgentes neceífidades do prefente, e pre- parar o advento de um fyftema focial mui diverfo do que dominava a fociedade portugueza fua contemporânea.

A maneira como fe houve e os meios que em.pregou é o que vamos examinar.

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Deixemos pois a critica, íempre mais ou menos arbi- traria e apaixonada, e entremos no campo politivo dos fa- étos, que experimentalmente comprovam as noíTas affirma- ções.

Valendo-fe, por um bem combinado calculo, da protec- ção, que, defde muito tempo, lhe difpenfava a viuva de D. João V, da docilidade e benevolência de D. Jofé I (que de feu pae havia recebido uma mediocre e fuperficial educação, fendo por natureza débil em forças e talentos), gofando entre nós de um nome illuftre, que, a par de outros titulos, tinha por fundamento a fubida reputação que alcançara em Vienna d'Auítria, não perdeu a primeira occafião, que lhe pa- receu opportuna, para, aproveitando o favor e a confiança do rei, falvar o feu paiz, reivindicar a independência da na- ção e dar liberdade ao povo.

Foi o feu governo um dos periodos mais gloriofos da nos- fa hiítoria!

Foi Sebaítião Jofé de Carvalho um dos maiores vultos do feculo XVIII !

Foi então que fe travou no meio de nós a mais porfiada luda da reacção com a liberdade!

E por ilTo que, entre os grandes génios, fadados para ou- fados commettimentos, entre os miniítros enérgicos em em- prehender e vigorofos em executar, não ha nenhum que fe lhe avantaje, nenhum que, em menos tempo, mais fe diítin- guiífe, maiores benefícios prodigalifaífe ao povo e mais gloria alcançaífe ao rei:

Reftaurou a difciplina militar.

Fortificou as praças d'armas.

Renovou a marinha.

Reanimou a agricultura.

Reftaurou e defenvolvcu as artes, de todo efquecidas, e vivificou o commercio moribundo.

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Reftabeleceu e firmou o credito publico, e organifou as finanças.

Reformou e ampliou os eftudos fi.iperiores, fegundo os progreflbs litterarios e fcientificos do feculo.

Abriu as portas da inftrucção popular, fechadas pelo je- fuitifmo, áquelles que, durante feculos, haviam fido conde- mnados ás trevas da ignorância e da fi.iperílição.

hiftituiu mais de oitocentas efcolas gratuitas para o enfi- no primário.

Creou, e dotou collegios, efcolas fecundarias e profeífio- naes para a navegação, commercio e outras induftrias.

Diminuiu as prerogativas, cerceou os privilégios, e abateu o orgulho da nobreza.

Tentou apagar ódios de raça e extinguir ludas de cren- ças religiofas.

Abriu caminho amplo á confufão das claffes e á egual- dade perante a lei.

Tornou livres os indígenas do Brazil, e levantou barrei- ras ao trafico infame e degradante da efcravatura.

Reprimiu as defpoticas exigências e a preponderância or- gulhofa da infaciavel Inglaterra.

Fruftrou os planos ambiciofos da Hefpanha.

Celebrou tratados políticos e commerciaes com muitas nações da Europa, e com outras o pado da noíTa independên- cia, impondo-lhes o refpeito pela noíTa dignidade nacional.

Fundou e organifou companhias de commercio e indus- tria, para reanimar as noíTas colónias, ou de todo abando- nadas, ou prefa da cubica de extranhos efpeculadores.

Refiringiu o tremendo poder da inquifição, e profcrevcu os autos de fé.

Dobrou, e venceu a preponderância pontificia, e refreou, por vezes, a cholera do Vaticano, apontando ao Papa quaes os limites onde devia expirar o feu poder temporal e politico . . .

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Subftituiu á auftoridade dos jurifconfultos romanos e ás argucias e fophifmas dos gloffadores, que mantinham agri- lhoadas as leis e a jurifprudencia ao império ablbluto de uma fciencia convencional, curvada fob o pefo de muitos íeculos e decrépita, a audoridade da Rafão, «eíTe poder fobera- no, capaz de defcobrir a verdade»; alargando aíTim o campo de exploração a um dos maiores génios do feculo, Pafchoal Jofé de Mello Freire, o fabio jurifconfulto portuguez, que por fi ío egualou, fe não é que excedeu, ao mefmo tempo Mon- tefquieu e Beccaria.

Vendo que as artes e as Iciencias floreciam na Ingla- terra e por quafi toda a Allemanha, para logo viu também a neceflldade de operar uma revolução completa no mun- do fcientifico, litterario e artiftico; e foi ella tão profunda e falutar, que, no dizer de Almeida Garrett, «tudo mudou de face; caiu o coloffo jefuitico, o reino de Ariftoteles e a bar- baridade Thorniftica, para lhe fucceder Milton, Baccon, Des- cartes, Newton, Linneu e outros».

E que o reflexo de uma nova luz brilhava do lado do fe- tentrião, para inundar com o feu efplendor a nós «os me- ridionaes, que eftudavamos as categorias e as fwnmas, agu- çávamos diftincções, alambicávamos conceitos, retorcíamos a phrafe no difcurfo, e torcíamos a rafão no penfamento», nada produzindo de bom e útil ao progreflb da humani- dade.

A reforma da univerfidade produziu logo: Jofé Analtafio da Cunha, Avelar Brotero, Monteiro da Rocha, Mello Freire e muitas outras illuftrações, que, exterminando a barbaridade theologica, haviam de produzir a civilifação, e, fundando a republica das letras, pela foberania da fciencia, única verda- deira e legitima, abater, fe não deítruir, o império ablbluto de uma audoridade prepotente, acoitada fob a roupeta jefuitica e entrincheirada por detrás do volumofo, mas indigefto, cor-

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pus Jiiris romanoniin, das leis canónicas e dos mil in-folio dos gloíTadores e reinicolas.

E a univcrfidade de Coimbra começou de ler mais uma prova eloquente, não da influencia, mas também da fe- cunda iniciativa, que as luiiperjidacles defenvolveram fempre em preparar e promover as transformações evolutivas da ci- vililação e as revoluções do progreíTo pela liberdade.

Bem fabia elle, porque a reflexão e a experiência poucas vezes deixam illudir os homens de génio, que á republica das letras, á emancipação da intelligencia deviam fucceder a democracia politica e a liberdade para o povo.

Foi também em virtude d'efta lei que á profunda refor- ma religiola do feculo xvi fuccedeu a revolução focial de 1688 em Inglaterra; e á grande revolução litteraria e fcien- tifica das idéas no feculo xviii a revolução politica de 1789 em França.

Ordenou que as execuções por divicias paraíTem dian- te das portas das cadeias, que até 1774 em Portugal, até 1867 em França, íe abriam, como ainda hoje em Inglaterra, para fequeftrar a liberdade d'aquelles, que muitas vezes não ti- nham outro crime alem da pobreza, outro delido alem da miferia.

E quando ainda hontem a imprenfa liberal de todos os paizes faudava, cm nome do progreíTo, e applaudia, como gloriofa e civililadora, a abolição de tão odiofa pena, have- mos de ficar filenciofos ante a memoria do Marquez de Pom- bal, que a eliminou, um feculo prim.eiro, em nome da hu- manidade?!.

Finalmente, o Marquez de Pombal, ufando da oppreífão e da tyrannia, empregando o terror e o defpotifmo, mirava á grande transformação focial, que em França fe operou de- pois; preparava, pacifica e diplomaticamente, o que ella pôde alcançar por meio de uma conflagração geral, e entre-

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gando-fe a todos os exceíTos, a todos os horrores da guerra civil, á guilhotina e ás barricadas, com que immolava os feus próprios filhos, e aíTolava as cidades, as villas e os campos, enfanguentados pelos combates fratricidas ou entregues á vo- racidade das chammas, á pilhagem e á carnificina!. . .

Não recuou o Marquez de Pombal, porque o julgou ne- ceíTario e de maravilhofo effeito para libertar o povo, diante do cadafalfo, levantado para rolarem algumas cabeças no- bres.

Não tremeu o Marquez de Pombal, quando lavrou o de- creto que expulfava os Jefuitas; pois com tão rafgada medida não beneficiou Portugal, mas a Europa inteira e o Novo Mundo; com efte adto de fabia politica quebrava as cadeias, com que os padres da companhia amarravam as confciencias ao pofte de uma convencional; limpava o corpo íbcial da luperftição e do fanatifmo, que rapidamente fe propagavam e defenvolviam, por toda a parte, aonde penetrava o mórbido contagio da roupeta dos maus e falfos companheiros de Jefus!

Para alguns fão eftes dois fados dois grandes e execran- dos crimes; para outros duas louváveis virtudes; para nós dura neceíTidade, confequencia forçada na realifação de um plano falutar e benéfico.

A nobreza e o jefuitifino eram, n'aquella epocha, os obs- táculos gigantes, que fe oppunham ao eítabelecimento da li- berdade.

A nobreza e o jefi.iitifmo, def herdando, efpoliando o povo de tudo o que podia tornal-o livre e independente, difputando o poder, a infiuencia e a preponderância monarchica, eram eítorvo invencível ao Jyjtema reprejentativo, á adopção e re- conhecimento legal das garantias conjlitucionaes e das prero- gativas da coroa, que a philofophia politica do feculo, as ne- ceíTidades do tempo e o exemplo da Inglaterra inftantemente reclamavam, cuja triangulação havia fido habilmente traçada

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fobre a inviolabilidade do rei a refponfabilidade dos minis- tros e a foberania do jt7o;'o.

O Marquez de Pombal queria a liberdade para a pátria e para o povo, como a primeira fonte de engrandecimento e profperidade nacional.

O Marquez de Pombal não phantafiava theorias politicas nem traçava fyftemas philofophicos; não efcrevia pungentes ironias e alperos epigrammas; não defendia e exaltava o pro- teftantifmo, para cenfurar e maldizer a egreja catholica; não perfuadia á revolta, nem excitava os povos á pilhagem e á carnificina; concebia medidas úteis e prudentes, c executava- as conforme as circumftancias imperiofamente o exigiam.

A regeneração íntima dos homens e das inftituições, e não a organifação/or/;?!^/ e fuperficial do fyftema governativo, foi o feu firme propofito, objedo confiante da fi.ia aftividade e defvelo, embora para o confeguir foíTe neceíTario dominar o rei, opprimir e defacreditar os nobres, defprefiigiar e aba- ter o clero.

Tinha porventura o ra força, energia, firmeza de von- tade, fciencia e coragem para íalvar a nação e o povo, e de- tel-os á beira do abyfino, que de dia para dia lhes cavavam profundo tantas caufas de ruina!'!

Seria baftante robufto o feu braço, poderofo o feu fceptro de oiro, valiofos os diamantes da fi.ia coroa, para poupal-os ao choque revolucionário, que, de perto e ao longe, le prefen- tia, e que em breve devia abalar a Europa inteira, confi- deravelmente agitada pelas pulfações, que violentas fe fi.icce- diam no coração da França, e que a faziam eftremecer até ás mais afaftadas e.xtremidades?!

Qual teria fido o deftino do pequeno e então pobre e hu- milhado Portugal, fe o não houveífem preparado para refiftir á onda revolucionaria, que mais tarde lhe devia paífar por fobre as quinas e inundar os feus cajlellos ?!

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Exiftiria hoje Portugal, como nação e paiz independente, fe lhe não houveíTem dado, annos antes, força e coragem, recurfos e patriotifmo, para não fuccumbir abatido ante as armas viítoriofas do moderno Cefar, que, debaixo da forma do defpotilmo e da tyrannia, da invalao e da conquiíta, con- tra a fua vontade ou, melhor ainda, lem o prefentir, fazia, com a ponta da efpada e com a boca de feus mil canhões, a propaganda liberal?!

Era eil:a a fituação, difíicil e aggravada por muitos males, em que o lábio e corajofo minilfro de D. Jofé le propoz á tarefa enorme de reftaurar a pátria, quebrar o jugo extranho, que lhe pefava odiofo, extinguir aquella vexatória exploração ingleza, que, debaixo da apparencia de uma benéfica tutela, lhe ia aniquilando as forças phyficas, ao mefmo tempo que outros, invocando a f é e o Evangelho, a cruz e a redempção, abrindo maímorras e atiçando fogueiras, iam apagando a luz na alma e immobilifando o efpirito crédulo do povo! . . .

Reífabelecer a aítividade e a ordem no feio da familia portugueza, dar-lhe a liberdade, fundar a felicidade domeftica e a profperidade publica, tal foi o feu elevado empenho.

E, pois, a intelligencia, a vontade, o poder de um ho- mem,— reanimando uma nação moribunda, preftes a efcon- der-fe no cemitério da hiftoria, embora as gerações vindouras, preftando-lhe a devida homenagem, houveíTem de lhe gravar fobre a campa o mais gloriofo epitaphio; chamando á vi- da, ao trabalho, á liberdade e á independência um povo es- cravo da nobreza e do clero, e, por iíTo, da ignorância, do fanatifmo, da indolência e da miíeria; elevando e fazendo refpeitar um rei fervo da corte de Roma, rajfaílo da higla- terra. . . .

Luíta infatigável de tantos annos, fe não de todo infrudi- fera, porque a fcmente, que ficara efcondida na terra, veiu mais tarde a germinar com o calor das revoluções, foi toda-

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via mallograda pelas intrigas dos nobres e do clero, pelas ambições da Inglaterra e da Hefpanha. Aquelles, ainda hypocritamente curvados fobre o catafalco de D. Jole, jura- vam o exterminio do homem, que confideravam feu impla- cável e invencivel inimigo; eítas, infinuando, ás occultas, a queda do independente miniflro, promettiam apoio fegiiro aos que emprehendelTem, e conleguiíTem derribal-o.

A morte do rei fuccedeu pois a queda do miniflro, e por ultimo a condemnação e o exilio do varão preftante e bene- mérito, calumniado, perfeguido e procelTado por ter amado e fervido a pátria, o povo e a liberdade!. . .

Poucos annos depois da fua morte, apreffada talvez pela condemnação, que o obrigara a encerrar-fe em logar obfcuro e afaftado da corte, onde oftentára fciencia e poder, força de vontade e energia, regulando fabiamente os deífinos da nação, que, por fua direcção immediata e em fuás próprias mãos fe havia reanimado e engrandecido, realifavam-fe em França as prophecias da revolução, com todos os horrores da guerra civil.

A cabeça de Luiz XVI rolava nos degraus do cadafalfo, que lhe alevantaram os defpotas da liberdade, como também em Inglaterra havia caído abatida a cabeça de Carlos I. A guilhotina fazia vidimas, tragava, devorava, em nome da deufa da rafão, como a fogueira inquifitorial em nome da re- ligião fanta! O punhal revolucionário, impellido pelo braço homicida dos revohofos, alaftrava as ruas e as praças de cadáveres, quafi com a mefma fúria, com que a realeza ca- tholica e o papado em outras eras immolaram os albigenjes e os fedarios da religião reformada.

Foi feu intuito, objedo de feus infatigáveis esforços, ob- ter, por meios brandos e pacificos, os mefmos refultados, que fe attribuem á grande revolução de 1 789, conquiftar as mes- mas idéas, fazer dominar os mefmos princípios, firmar o

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poder dos reis na foberania de todos, dar a liberdade ao povo por meio de uma conflituição reprefentativa, femelhante á que vigorava em Inglaterra, embora para o confeguir foíTe neces- fario uíar de tyrannia contra alguns nobres, decretar o ex- termínio de uma congregação mais politica do que religiofa, odiada em toda a Europa e em muitas regiões da Ameri- ca, condemnada pelas Univerfidades feculares, mal vifta dos povos e de uma parte confideravel do clero, e até repudiada pela Egreja.

Era forçofo, em tão arrifcado e perigofiírimo lance, em circumftancias tão anormaes, oppor á tyrannia de alguns a tyrannia de um fó, ao defpotilmo de muitos o defpotifmo em nome do rei; de outra forte não confeguiria defarmar as ci- ladas, desfazer as intrigas, cortar os tramas, fruítrar manejos, furprehender confpirações, que tudo e por toda a parte a no- breia e o jefuitifmo eítendiam, e machinavam ao rei, ao feu minijlro e ao povo, que, ligando-fe, por um pado inviolável, não tardariam a deftruir-lhes a infolente preponderância, a extinguir-lhes os privilégios, a fupprimir-lhes as regalias, a alevantar-lhes os foros, a picar-lhes os bra{óes, em uma pa- lavra a dobrar-lhes as orgulho/as cervis fob o jugo inflexivel da egualdade perante a lei.

Se o Marquez de Pombal não foffe vidima de falfas accufações e vis intrigas, fe fe confervaíTe mais algum tempo á tefta dos negócios públicos, invertido do fupremo governo da nação, fe houveífe gofado junto do throno de D. Maria da mefma confiança, apoio e favor, que alcançara perante D. Jofc, a conjtituição liberal teria apparecido primeiro em Portugal do que em França, em Hefpanha e em outros paizes, e o fyftema reprefentativo feria proclamado entre nós, pelo menos, ao mefmo tempo.

É efta uma verdade, que immediatamente deriva dos fados, e que difficilmente poderá efcurecer-fe.

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o despotilmo, a tyrannia de que le argúe Pombal, era importa pelas neceíTidades, como o único meio de chegar á liberdade.

Foi por iíTo que lhe mereceram particular cuidado e des- velado efmero a fciencia e a educação popular, a agricultura e as outras induftrias, as artes e os officios, que arrancando os homens da abjecção, que a miferia gera, da ociofidade, que enerva e perverte, têem a fingular virtude de emancipar o povo, entregando nas fuás mãos, com o fceptro do trabalho, a rea- leza politica e a foberania nacional. AlTim preparava elle a verdadeira democracia, irto é, a paíTagem evolutiva e pacifica do velho regimen para o regimen [cientifico indiijirial.

Não ignorava por certo efte grande homem, que a liber- dade e a tolerância com a liberdade e com a tolerância podem folidamente fundar-fe no feio de uma nação.

Bem fabia elle que os partidários da liberdade e da tolerância devem deixar o emprego da força aos partidários da força e da intolerância.

Mas efte principio humanitário, que hoje começa a converter-fe em preceito obrigatório e a penetrar nos hábitos da confciencia particular e publica, efte grande principio theorico, era naquella epocha, fenão defconhecido, attentas as circumrtancias, de impoíTivel applicação na pratica.

O que no feculo xix, em 1868, não pôde realifar a Hes- panha, era nos fins do feculo xviii uma utopia impraticável cm higlaterra, em França, e muito mais em Portugal.

Os defignios do grande ertadifta e as fuás viftas eram patrióticas; o feu ideal a emancipação politica, religiofa, moral e económica do povo, que elle conhecia grande, opulento e fobcrano na hiftoria, pequeno, pobre e efcravo no prefcnte; o móbil que o determinava o amor da liberdade.

Sebaftião Jofé de Carvalho moftrava, em muitos dos feus adíos, fer, no interior da fua alma c no intimo da fua con-

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fciencia, pela rafão e pelo fentimento, um dos maiores e mais enthufiafticos liberaes do feculo xviii.

Se não pôde ver executado o feu plano e levar ao cabo tão gloriofa empreza, arremeíTando para longe a mafcara do defpotilmo, foi porque o não deixaram; foi ainda a reacção, que lh'o impediu, a injuítiça que lh'o eftorvou.

Defpojado do poder, privado da acção governativa, con- demnado ao oftracifmo politico, exilado para longe da corte, afaítado dos negócios públicos, viu mallograda a fua obra nas fuás ultimas confequencias; não lhe embaciaram porém a gloria, não lhe quebraram os brazões, e, o que é de maior valia, não lhe extinguiram a gratidão no coração dos povos; e, fe ao tumulo baixam efperanças, devia acompanhal-o a lembrança de que um dia as fuás idéas haviam de fer rea- Ufadas, os feus principios triumphar, e o plano, que lhe ab- forvêra a exiífencia inteira, pofto em plena execução, o feu nome exaltado, a fua reputação glorificada e os feus inimi- gos, os inimigos do povo e da liberdade, confundidos.

Se ao Marquez de Pombal não permittiu a adverfida- de das circumftancias continuar a obra do conjlitucionalifmo, cabe-lhe, todavia, a bem-merecida gloria de preparar o paiz e os povos para a proclamarem quarenta annos depois da fua morte em uma conftituição democrática.

CAPITULO IV

o MARQUEZ DE POMBAL E A SUA INFLUENCIA CONSEQUENTES E CONCLUSÃO

A transformação que Portugal experimentou, pela acção previdente e reformadora do grande miniftro, aos elementos de força e profperidade, que não iniciou, mas com que legalmente dotou a pátria, ás inftituições politicas e econó- micas, e aos germens de educação popular, que femeou, de- vemos em grande parte os benefícios, que, com rafão, fe at- tribuem á revolução liberal.

Sem o génio fecundo, fem a intelligencia vaíta e a dedi- cação inexcedivel de Sebaítião Jofé de Carvalho, feria Por- tugal conquifta partilhada entre a França e a Hefpanha, ou nação livre e independente?

No eftado de deforganifação politica, de defordem moral e económica, de miferia e degradação, a que Portugal tinha chegado antes da fua adminiftração, feria poífivel o triumpho gloriofo do partido liberal em 1820?

Cremos firmemente que não: alTim nol-o dizem a rafão e a confciencia, firmadas na hiftoria e efclarecidas pela cri- tica dos fados.

E por iíTo que entre as caufas remotas, mas elTencial- mente determinativas, da transformação liberal, que depois fe operou, devemos confiderar, como uma das mais impor- tantes e efificazes, o governo forte e enérgico, a adminiftração fabia e illiiftrada, a politica fevera e, por vezes, intolerante do Marquez de Pombal.

Abone a hiftoria imparcial a verdade, que o paradoxo efconde.

Que importa a cxpulfão dos jefuitas?

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Era uma neceíTidade para o eítabelecimento da liberdade politica e da tolerância religiofa, que o Marquez de Pombal amava, queria fundar, e que elles deteftavam. A extincção dos jefuitas era condição impreterível, bafe fundamental de todo o progreíTo moderno.

Que importa, que do alto do cadafalfo rolaíTem as cabeças de alguns nobres, que, ociosos e embriagados no mais efcan- dalofo luxo, confpiravam contra o rei, odiavam as reformas do minifterio, queriam privilégios e prerogativas injuflificaveis, opprimiam, e vexavam o povo, nada fazendo em beneficio da pátria; e, de mãos dadas com os inquiíidores, com os difcipulos de Loyola, dedicados familiares do fando ojjicio, procuravam a morte do rei, a queda do miniftro e a ruina da nação?!

A morte politica da ariftocracia feudal era uma neceíTi- dade indeclinável para libertar o povo e eftabelecer, como garantia jurídica, a egualdade perante a lei.

O Marquez de Pombal obftou por uma fabia politica ao defpotifmo do rei, á oligarchia dos nobres, á theocracia dos jefuitas, á miferia e á degradação do povo.

«Foi, como fe exprimem alguns, odiado dos nobres pelo feu nafcimento e pelo feu liberaliímo; dos inquiíidores pela fua tolerância e moderada piedade; dos jefuitas pelo feu faber e perfeverança ; da populaça por fua feveridade; dos inglezes pelos obftaculos que lhes oppoz, e com que abateu a fua prepotência commercial e politica. »

Os inimigos implacáveis do miniftro lo com a morte do rei poderam derribal-o, mas não perdel-o. Afaftaram-n'o dos negócios públicos; mas, nos dias do feu poder, nem lhe torceram o animo, nem lhe afrouxaram os esforços, que con- tinuadamente empregou para o engrandecimento e regene- ração da fua pátria.

Interrogae a politica, a moral, a jurifprudencia, as finan-

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ças, a agricultura, o commercio, a induftria, as artes, a na- vegação, a milicia, a inftrucção publica, e até a própria reli- gião; confultae as leis, as inftituições e os coftumes, e por toda a parte encontrareis, ainda hoje, a fua acção benéfica e reformadora, a fua poderofa influencia.

A guerra implacável, que então lhe fizeram os retrógra- dos e os abfolutifias, os nobres e os jefuitas, a inquifição, a Hefpanha c a própria Inglaterra, é a mefina que a reac- ção machina e promove ainda hoje, e tem promovido fempre contra os liberaes.

Se o Marquez de Pombal foi defpota, fe empregou o ter- ror e a tyrannia, não lhe vinham d'alma taes exceíTos, nem lh'os infpirava o feu génio altivo e fevero, mas liberal e bem- fazejo; provocava-lh'os a reacção dos nobres e dos fanáticos, exigiam-lh'os as neceíTidades da pátria e a refiftencia dos ve- lhos e inveterados prejuizos do paíTado.

Não foi para exaltar o delpotifmo, nem para lifonjear o monarcha, que, por amor do povo e para bem da nação, pa- recia adorar a realeza.

Não foi para fatisfazer vaidofas ambições de quem nun- ca moftrára tel-as, que a memoria do augiijlo príncipe fe gra- vou no bronze da eftatua equeftre, nem o monumento levan- tado para impor ao povo a idolatria monarchica.

Todos os grandes homens, como todos os fantos, têem a fua eftrophe na epopea legendaria do povo.

Affonfo Henriques, Meftre d'Aviz, Nuno Alvares Pereira, João das Regras, Vafco da Gama, D. João de Caftro, Affonfo de Albuquerque, Camões, João Pinto Ribeiro, e mil outros, perpétuos na hiftoria, fão creações ideaes na immortalidade da legenda.

O Marquez de Pombal, tendo fido na realidade tudo o que diffemos, é no bom fenfo dos povos um ente legendário. E um typo ideal, que não fe apaga, que jamais fe apagará

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na confciencia e na imaginação do noíTo povo, como o ferão no futuro, e em parte o eftão fendo Gomes Freire, Fernan- des Thomaz, Borges Carneiro, Ferreira Borges, Moufinho da Silveira, PaíTos Manuel, Alexandre Herculano. . . fão fem- pre eftes os homens que o povo efcolhe para cantar na fua lyra de oiro, para perpetuar-lhes a memoria na fua rude, mas efpontanea e fincera poefia.

Todos os grandes homens começam por fer utopiftas; a fua vida é uma luda fem tréguas. Em uma das mãos o ca- martello deftruidor do palTado inútil que refifte, na outra o facho civilifador das idéas novas, alumiando o caminho do futuro que a lua rafão defcobre.

Para premio as mais das vezes o martyrio; para recom- penfa o efquecimento ou a injuftiça na hiftoria.

Mas, para falval-os d'eíre efquecimento ou reparar eífa injuftiça, eftá o bom fenlb, o efpirito refto, a alma poética, o coração agradecido dos povos, a legenda, eífe rdatus in- ter divos, com que elle íignifica, e apregoa a immortalidade e faz a apotheofe dos feus heroes.

A eftatua de D. Jofé I pôde tomhal-a a mão foberana do povo, ou pulverifal-a a lima edaz do tempo, que aíTmi gafta o granito como o bronze, e tudo confome.

A realeia abfoluta, depois de haver durante feculos con- trariado os progreífos da civilifação pela liberdade, pôde fer amanhã um facto utópico^ fem valor na confciencia da hu- manidade, fem deixar faudades nem merecer bênçãos; mas o homem grande pela grandeza do génio, pelo acerto e ener- gia de acção, o homem, que, illuftrando a pátria, beneficiou o povo, é vulto que fe ergue mageftofo ante os olhos de to- das as gerações que paífam e em todos os feculos que voam; tem a immortalidade no fcntimento intimo das maífas, na confciencia do povo, em cada coração um altar de fauda- des, em cada cabeça um monumento de gloria, em cada

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boca uma trombeta a apregoar-lhe as virtudes. . . e todas as mãos fe erguem para o abençoar e applaudir.

Que a realidade hiftorica do grande Sebaftião Jofé de Carvalho e Mello correfponde á pocfia da legenda provam-o muitos documentos, cuja authenticidade não pôde fer contes- tada: foi por iíTo que nos difpenfámos de os apontar ou tranfcrever.

E quando erigimos cftatuas, e levantamos columnas, e fu- blimâmos arcos de triumpho, e cunhámos medalhas comme- morativas, e gravámos legendas no mármore ou no bronze em honra dos grandes homens, é fempre em honra e para gloria da humanidade, para marcar eftadios n'efte caminhar inceffante da civilifação univerfal, de que a humanidade é o infatigável, omnipotente e fabio creador, e não para impor, em nome de um paíTado irreftauravel, ás novas gerações a adoração dos f eus fetiches, a idolatria dos feus deu/es, o culto dos feus; mas apontar-lhes o exemplo dos feus beneméritos.

Não foram os germens da civilifação, defpontando ao foi da renafcença, a luz irradiada pela philofophia do feculo XVIII, o brado univerfal de 1789, as armas de Napoleão I, o drama fanguinario de 18 17, que prepararam a revolução de 1820.

De longe, de mui longe nos veiu e fe gravou em Portu- gal o efpirito de liberdade e de independência. Manifeftou-fe, bem folemnemcnte, na iniciativa popular em i385; mais fo- lemnemente ainda em 1640; arraigou-fe, de um modo profun- do e indeftru6tivel, durante a fabia adminiflração de um gé- nio reformador, que lhe preparou o campo de fuás legitimas conquiftas, e removeu os eftorvos, que lhe empeciam o cami- nho, por onde, mais tarde, devia deixar feu raftro luminofo.

Foi eífa epocha o prologo fecundo das revoluções! Effe homem o precurfor admirável do liberalifmo!

Foi mais uma lufta gigante dos opprimidos contra os

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defpotas; a reacção /ocial contra, a reacção idtramontana; lu6ta na qual, por fim, a liberdade pareceu fuccumbir, e deixar-fe efmagar debaixo dos pés da ariftocracia orgulhofa e da clerelia degenerada e pervertida, para mais tarde refurgir, e erguer-fe do mal encerrado tumulo, vigorofa e oufada para cantar no dia do merecido triumpho o hymno da legitima vidoria!

Em Portugal, como em Inglaterra, como em França, a revolução reformadora teve os feus precurfores: para não fallar em muitos outros, de mais circumlcripta efphera e me- nor vulto, apontaremos para o celebre miniftro de D. Jofé.

Coimbra, abril de 1882.

Dr. Manuel Emygdio Garcia.

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A LEGISLAÇÃO POMBALINA

oje que cm toda a Europa fe denuncia uma reacção contra as phantafias do efpiritualifmo ou do romantifmo dominante no fegundo quar- tel do feculo, é chegado o momento de fazer juftiça ao grande portuguez de ha cem annos. Portugal nunca deixou de o venerar como o Sanfão cujos hombros alluiram as columnas miferaveis d'eíra fociedade fradefca e beata, educada pela férula dos jefuitas e coroada por D. João V Rei-bolonio, como dizia Alexandre de Gufmão, o brazileiro, ou Grande- governador da ilha dos Lagartos, como diíTe, antes de fer queimado, o illuftre António Jofé.

Mas o antigo efpirito portuguez acclamava fomente em Pombal o Anti-chrifto, o inimigo figadal dos jefuitas, ao paffo que o moderno efpirito jacobino ou radical veiu tam- bém acclamar apenas o plano dos ataques ás velhas infti- tuições nacionaes, a fúria demolidora do eftadifta que, infpi- rado pelo mecanifmo abftrado do feculo xvni, difcipulo de

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Newton e Defcartes, lavrou o terreno para a fementeira das doutrinas individualiftas e radicaes com o arado dos princí- pios utilitários que não infpiravam menos o Marquez do que os eítadiítas dos noffos dias.

Tempo é de moftrar, porém, que efte principio reves- tia no feculo xviii formas de realidade bem diverfas das modernas. A Utilidade que então apparecia como a alma do Eftado, tornou-fe depois o apanágio abfoluto do individuo: negou-fe a realidade dos corpos colledivos, negou-fe-lhes a autoridade eminente, diíTipando-fe theoricamente a idéa de nação e prégando-fe o ilblamento ou a autonomia dos indi- víduos congregados fortuitamente fobre a immenfa área do globo. O humanitarilmo tomou o logar do civifmo, o cofmo- politifmo fubftituiu o amor-patrio, o liberalifmo paíTou por fobre as idéas de audoridade focial, negando-as, ao mefmo tempo que um vago efpiritualifmo deifta negava o Deus po- fitivo das religiões chriftans. Dir-fe-hia que um nevoeiro denfo, envolvendo em li todas as coufas reaes, apagava os contornos, efbatia as cores, pondo em vez de noções defini- das e pofitivas, um cháos vago, diíTufo, confufo, de opiniões poéticas. Chamou-fe Romantifmo a effa revolução cujas ul- timas refracções ouvimos ainda hoje no vozear eftridulo mas efporadico dos clubs da demagogia radical. Ha trinta an- nos era um clamor unifono de enthufiafmos, de efperanças, de illufões finceras, ingénuas e univerfaes!

Effa nuvem que paffou, como paffa ás vezes uma tro- voada para limpar os ares, era a nebulofe das idéas natura- liftas: era uma nuvem de reptos fentimentaes, apaixonados, abfolutos por iffo mefmo que eram efpontaneos, chimericos por ferem apenas fentidos, fortes por ferem ingénuos. Era a explofão de um naturalifmo inconfciente, rebellando-fe con- tra todas as idéas formaliftas da mecânica dos architedos claíTicos na politica, nas artes, nos coftumes. O vendaval

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paíTou, vafaram as torrentes, regreíTaram os rios aos feus leitos depois de terem ennateirado as terras das margens, e viu-fe então que motivo pofitivo e real determinara a crife. Os architedos tinham chegado a efquecer que o material humano tem veias e fangue, que o homem não é uma ab- ftracção numérica ou geométrica ou chrematiftica; tinham chegado a penfar que uma nação era uma tavola de xadrez ; tinham concebido como abftracções mathematicas, os ho- mens, as coufas e as nações. A reacção romântica, ou libe- ral, naturaliíta e efpiritualiíta pois todos eftes caraderes partilha paíTou, mas paíTando alargou os horifontes do penfamento, e reconítituiu o edifício do direito fobre duas bafes naturaes a Vontade, ifto é, o querer dos cidadãos, e a Egualdade, ifto é, a affirmação da tendência neceíTaria das fociedades para uma approximação fempre crefcente das condições de todos. Antes da crife, a Vontade era fymbo- lica, perfonalifada em Deus e no Rei, e a Egualdade era ainda inconfciente, pois fe realifava fob as formas antagóni- cas da protecção ariftocratica.

A defínição d'eíl:es dois princípios deu uma fignificação nova á velha palavra Democracia. Poderíamos juntar-lhe o adjeótivo /cientifica, pois de fado a fciencia, introduzindo- fe em todas as efpheras do penfamento contemporâneo, dá- Ihe uma phyfionomia fem precedentes. Eífa Vontade, eífa Egualdade, que fícaram como fumma, ou fynthefe, das re- voluções da primeira metade do feculo, não fão hoje os fentimentos e phantafias poéticas dos arrebatamentos d'ou- tr'ora. São princípios tão íntimos, tão reaes, tão pofitivos, tão orgânicos, como as leis geraes da cofmogonia ou da biolo- gia. Concebidas aíTim e não nos é licito concebel-as de outra forma apparecem-nos como a alma de um corpo, denunciando-nos a realidade pofitiva, moftrando-nos o viver orgânico e íntimo das fociedades: feres tão reaes na congre-

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gação dos feus elementos humanos, como o homem o é na congregação dos feus órgãos, e cada órgão na reunião de cellulas de que fe compõe.

Os princípios deduzidos, pois, da revolução naturaliíla do principio do noíTo feculo, reagem contra o penfamento fubjedivo que a infpirou; e reagindo vão prender-fe ou li- liar-fe nas idéas do feculo xviii, como um eftio fuccede a uma primavera depois que as trovoadas de maio revolucio- naram as feivas e as fontes. Por iífo nós diífemos ter che- gado o momento de fazer a apotheofe do noífo eftadifta, não como demolidor do paífado, mas como apoftolo do futuro. Um feculo baftou para que voltaíTe a coordenar-fe a ferie dos anneis que formam no tempo a evolução das idéas.

Quaes fão os princípios pofitivos que infpiram a legifla- ção pombalina em fi, defpida das formas accidentaes ou his- tóricas (monarchia, ariftocracia, fyftema-mercantil, etc.) que os revertem? Parece-nos poderem reduzir-fe a duas expres- fões fummarias:

A primeira é a de que uma nação é em fi um todo, um corpo, um organifmo, vivendo por leis que lhe dão homo- geneidade, confiftencia e força baftante para ter uma con- fciencia nitida do feu querer e do feu poder, da fua au- doridade e da fua nobreza. Eífa nação do penfamento pombalino era uma conftrucção apparatofa, como os templos claflicos, de pórticos oftentofos, com uma cúpula a mo- narchia— efcadarias de nobreza, archontes como na Gré- cia, parachiftas como no Egypto, e pelos pateos vaftos as plebes de peões fubmiífos.

A fegunda denuncia, no fundo da pompa claíTica, um penfamento pratico. O templo é um fcenario, não é um fa- crario. Cúpula, degraus, pórticos não fe levantam do chão como efílorefcencias efpontaneas da alma religiofa: fão utili- dades, fão neceíTidades indifpenfaveis á confervação do edi-

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ficio focial. Monarcha, fidalgos, facerdotes, throno, nobreza, clero, fão inftrumentos de fomento e manutenção do povo, na fua unidade total e concreta. A utilidade geral é de íado o principio das leis: não é o culto de um deus que nos anima ou de um foberano que adorámos embora fe ve- nere effe deus e fe obedeça a eíTe foberano, por iífo que, aufentes ambos, o edifício inteiro da fociedade cairia por terra em ruinas.

Não cabe de certo nas acanhadas proporções d'efl:e arti- go analyfar perante os textos das leis os vários caradteres das numerofas reformas pombalinas, para verificarmos a exa- étidão do que antes deixámos efcripto. E em vez de abraçar- mos o conjuncto da legiílação do Marquez, eífudando-o nos feus traços geraes, entendemos mais ufil e mais pratico limi- tar-nos a uma efpecie: feja eífa o regimen das heranças, dos legados pios e dos morgados, conforme fe das leis de 25 de junho de 1 766, de 9 de feptembro de 1 769 e de 3 de agofto de 1770, todas mais ou menos completamente revo- gadas pelos decretos dos dois primeiros annos do governo reaccionário de D. Maria I.

A primeira d'eíras leis tem como fim corrigir o defvaira- mento dos teftadores «reduzindo com os referidos abufos bárbaros e cruéis muitas e muito numerofas familias á lafti- mofa indigência», diz o preambulo. O legiflador tem em vifta manter de a unidade da família, molécula da focie- dade, viciada profundamente entre nós defde o feculo xvi, primeiro pelas expedições ultramarinas e fuás confequencias, depois pelo myfticifmo da educação jefuita. A beira do tu- mulo, o moribundo efquecia os filhos pelos padres, e a forte dos que deixava na terra pela fonhada fortuna das regiões ultra-tumulares phantafticas. Explorando com uma finceri- dade mais ou menos genuina efta difpofição dos efpiritos, o clero fomentava os abufos, e eram frequentes verdadeiros

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crimes e extorfões: «profanaram as difpofições canónicas e a difciplina regular nas frequentes fimulações e extorfões com que fizeram fcrvir os cânones da Egreja e os eftatutos das ordens religiofas á infaciavel e eftranha cubica » . A franque- za crua com que as coufas fe dizem nas leis pombalinas attefta mais ainda a força e a convicção que as infpirava do que a violência das fuás difpofições pofitivas. O Marquez foi o ultimo eítadifta dos antigos que teve génio e a coragem con- fequente para fallar verdade. Dos modernos ha um único: Moufinho da Silveira.

A lei de 2 5 de junho creava uma ferie de caufas de nullidade de teítamento, e n'eíra ferie o obfervador encontra a revelação dos proceífos criminofos com que fe extorquiam as heranças. A lei annullava toda a herança e todo o lega- do a favor de parente d'aquella peífoa que tiveífe efcripto o teftamento, a favor de confraria ou corporação a que per- tenceífe: os bens iriam para os herdeiros legitimos, ou, não os havendo, para o íifco. Tampouco podia herdar o parente ou o afiliado na confraria ou corporação do letrado habitual confelheiro do defunto; tampouco frades podiam fer teíta- menteiros; e eram nuUos todos os teítamentos lavrados pelo enfermo no feu leito, quando atacado por uma doença grave ou aguda.

Conforme fe vê, a lei de 2 5 de junho tinha apenas, diga- mos aíTim, um carader preventivo ou policial; mas a que fe lhe feguiu três annos depois, em g de feptembro, feria mais fundo, introduzindo alterações graves no regimen das heranças. O feu penfamento evidente é impedir a diminuição das caJas de fidalgos ou burguezes enriquecidos: eííasfami- lias que para o eítadifta do feculo xviii eram a corte do monarcha, força da nação, núcleos de fomento e ancoras de fegurança. As idéas modernas de egualdade na diítribuição da riqueza, de divifão da propriedade do folo, não tinham

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lurgido ainda; e le hoje a eítrudura das nações fe concebe de um modo democrático, ha um feculo as leis do noíTo Marquez moítram a uhima forma que as idéas ariftocrati- cas reveftiram quando á nobreza do fangue e á protecção feudal fe fubítituíra na philofophia do direito a idéa da utilidade.

A lei de g de feptembro ordena que todo aquelle que herdar, tendo parentes até ao quarto grau, não poderá dis- por em vida do valor d'eíras heranças. Se não tiver outros bens alem d'elTes poderá teftar a tcTça, mas exclufivamente a favor de um filho ou defcendente; tendo porém riqueza lua própria, adquirida por trabalho ou induftria, a difpofição teftamentaria da terça é livre. Quando o herdeiro não tenha parentes até ao quarto grau, poderá difpor de metade dos bens herdados e de todos os adquiridos como bem lhe pa- recer.

«Porquanto, diz em feguida a lei, tem chegado aos últi- mos exceíTos a defordem e a defhumanidade com que nos teftamentos fe coftuma quotidianamente (debaixo dos pre- textos de caufas pias e bens-da-alma) abular impia e intole- ravelmente da fraqueza e defacordo dos teítadores preoccu- pados com as funeftas cogitações da vida e da morte ...» porquanto, na fua grande maíTa, os bens diflrahidos da for- tuna das famílias iam parar ás mãos abforventes de um cle- ro fanatifado e ávido eíTe clero inimigo da eftabilidade do templo da nação a lei eífabelece:

Que os legados pios ou bens-da-alma não poíTam jamais fer fuperiores ao terço da terra livre, ifto é, ao nono da tota- lidade dos bens do teítador; e que cm todo o cafo eíTa quan- tia nunca poderá exceder o máximo de 4oo.'!íooo réis. Efie limite é egualmente importo aos herdeiros do que morreu ab intejlato, para as defpezas de íliífragios pela alma do de- funto.

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Que enorme campo de lavra fupprimido! Não parava, comtudo, aqui o atrevimento do Marquez. EUe queria dis- folver a confraria de facriftães que a nação fora no tempo de D. João V e voltou a fer no de D. Maria I, terminado o interregno do autocrata. A vida de frade era a melhor e a mais rendofa: cortou a queftão pela raiz, excluindo todos os que profeíTaffem do direito ás heranças ab intejlato, ás heranças diredas paternas, e á fucceíTão dos bens vincula- dos.

O efpirito mylTiico portuguez tinha enxertado na inftitui- ção vincular uma inftituição religiofa: as capellas, taes e tan- tas que tornavam muitas vezes uma inftituição de direito económico, e uma invenção deftinada a manter os grandes núcleos de riqueza e a tradição das famílias, n'uma fimples fonte de rendimentos pingues e eternos para a clerezia. As confiderações da lei a tal refpeito fão inífrudivas e eloquen- tes :

« Por uma parte, fão tantos os encargos de miíTas, que ainda que todos os indivíduos exiftentes n'efl:es reinos em um e outro íexo, foíTem clérigos, nem aífim poderiam dizer a terça parte das miíTas que confiam das inftituições regifta- das nas provedorias dos mefmos reinos; cm uma das mais pequenas das quaes (por exemplo) fe acharam inftituidas doze mil capellas e mais de quinhentas mil miíTas annuaes.

í Por outra parte, para fe diíTimular e cobrir a referida impoíTibilidade, fe affeílam Bulias Millenarias que não exis- tem, nem poderiam exiftir fem o reprovado vicio de fimonia; e fe fazem negociações fordidas de flores, doces e outras mercadorias, a troco de miífas Ibllicitadas para as fazerem gyrar as peífoas que as bufcam depois de confeguidas.

«Por outra parte, aíTim fica fendo incomparavelmente menor o numero de almas beneficiadas com as miífas que effeítivamente fe dizem, ou podem dizer, do que o das ou-

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trás almas, quafi innumeraveis, que fe não aproveitam nem podem aproveitar das outras miíTas accumuladas e luppoítas que não podem dizer-le.

» Por outra parte, fendo licito, no prefente eftado de defor- dem, a qualquer proprietário de bens, gravar as fuás terras com os referidos encargos, tendo feu filho a mefma liberda- de, e paífando efta ao neto e bifneto e mais defcendentes, dentro em poucas gerações ficarão eftas terras, não inúteis, como moleftas ás famílias dos fobreditos inflituidores . . . e fe chegará ao calo de ferem as almas do outro mundo fe- nhoras de todos os prédios d'eftes reinos.

«E por outra parte, efte cafo, fendo muito trifte, fomente figurado, acha-fe tão infelizmente fuccedido que, fe todos os encargos adualmente impoftos fe cumpriífem, não baila- riam para a fatisfação d'elles todos os rendimentos das pro- priedades d'eftes reinos . . .

«As propriedades de cafas, os fundos de terras e as fa- zendas que foram creadas, diz ao depois a mefma lei, para a fubfiftencia dos vivos, de nenhuma forte podem per- tencer aos defuntos. Nem ha rafão alguma para que qual- quer homem depois de morto haja de confervar até ao dia de juizo o dominio dos bens e fazendas que tinha quando vivo. Menos a pôde haver para que o fobredito homem pre- tenda tirar proveito do perpetuo incommodo de todos os feus fuccelfores até ao fim do mundo ...»

Ifto era dito, como fe vê, n'uma linguagem franca, chan, popular até, como a dos relatórios poíleriores de Moufinho da Silveira, como a de todos os que tèem convicções e força no carafter e na intelligencia. A franqueza é o melhor fym- ptoma do génio, e o eftylo baço, anonymo, arrevezado, das fecretarias de hoje ficará como um documento da incapaci- dade dos fecretarios que a nação tem tido.

Ao nervo do eftylo correfpondc a nitidez das decifões:

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Prohibição abfoluta de creação de novas capellas; abolição das devolutas ou que forem devolvendo á coroa por vacantes ; limite de um decimo do rendimento dos bens encapellados para encargos pios; nuUidade de todas as difpofições ou con- venções caiifa mortis ou inter-pivos em que fe inftituir a alma por herdeira; livres todos os bens de Capellas e Anniverfarios que renderem, deduzidos os encargos, menos de i ooJíooo réis nas províncias do reino e 2ooí?ooo réis na corte e Extrema- dura.

Efta ultima difpofição prende-fe diredamente com o as- fumpto da lei de 3 de agofto de 1 770, a ultima das três que efcolhemos para o noíTo eftudo. Eíla lei é um prenuncio do penfamento realifado feffenta annos depois por Moufinho: é o principio da reftauração da propriedade rural pela reacção contra o regimen vincular. Atacar os morgados, dir-íe-ha, é illogico para o penfamento de um eftadifta como Pombal, o que via na corte de grandes famílias opulentas o alicerce da fortuna da nação. Não é; a idéa do eftadiíta apparece clara n'eftas palavras que tranfcrevemos :

«Sendo a inítituição dos morgados em geral uma rigo- rofa amortifação de bens contraria ao ufo honeífo do domí- nio que o proprietário tem por direito natural, contraria á juftiça e á egualdade em que eíTes bens deviam fer reparti- dos entre os filhos; contraria por iflb á multiplicação das fa- mílias, contraria ao gyro do commercio que dos melmos bens em liberdade fe podia fazer . . . mas fendo por outra parte neceífaria a referida amortifação nos governos monarchicos para eftabelecimento e confervação da nobreza ...» a lei fup- prime todos os vínculos de rendimento inferior a 2002^000 réis na Extremadura e Alemtejo, e a ioo;jíooo réis nas ou- tras províncias, falvo quando uma cafa exifta com o ren- dimento fommado de vários vínculos minufculos; fupprime todos os vínculos que correm fem títulos fuíficientes ; fup-

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prime os morgados, creados para os filhos-fegundos e os de agnação e mafculinidadc; eftabelecendo que não fe creará mais vinculo fem licença regia efpecial, e que effa licença nunca poderá fer dada a bens de rendimento inferior a réis 2:4003^000 na corte e i:2oo.:*ooo réis nas provindas.

O penfamento é pois claro, a decifão nitida : o vinculo é uma inftituição excepcional e até contra direito, mas Juftifi- cada pela neceíTidade focial de grandes núcleos de proprie- dade, de familias ricas iíTo a que no feculo xviii fe chama- va nobreza, mas que era uma claíTe inteiramente diverfa da antiga ariítocracia fegundo o direito feudal dos godos da Hefpanha.

Efte rápido cftudo que fizemos, aíigura-fe-nos eminen- temente illuftrativo. Todo aquelle que applaudir o grande Marquez, quando elle coarda o direito natural de teftar os bens próprios a favor de quem quer que feja, com o fim de falvar a alma, ou de enriquecer as egrejas; todo aquelle que alTim fizer, é contraditório comligo mefmo quando acclame ao mefmo tempo o radicalifmo liberal individualiíta, cuja pri- meira confequencia natural é o direito abfoluto de dilpor de tudo o que nos pertence e é noífo, como e quando muito bem nos aprouver. Perante a doutrina, é lógica a liberdade de teftar, como exifte em Inglaterra o ex-modelo das nações. Se nós, continentaes, não penfàmos aflim, e entendemos ne- ceífaria á confervação da fociedade uma legiflação regula- dora das heranças, coercitiva do jus utciuii et abutendi: nós feremos inconfequentes fempre que negarmos a realidade de um principio anterior, de uma idéa ou de um critério fupe- rior á idéa da liberdade individual. Eífe principio, eíTa idéa, eífe critério, é como que a alma da fociedade: é a egualdade, que infpirando as normas de uma juífiça focial diliributiva, tem de combinar-fe com a força expanfiva das vontades in- dividuaes, n'uma equação que o eftadifla de génio formula e

que, deftruida, de fi as revoluções anarchicas ou as ty- rannias brutaes.

Eis ahi o que hoje a fciencia do direito diz pela boca do feu mais eminente cultor, o grande Bluntfchli; e por iffo, agora que os nevoeiros naturaliftas do romantifmo indivi- dualiíla e liberal fe diffipam, furge o momento propicio para reftabelecer fobre o feu pedeftal de gloria o noffo grande es- tadifta.

O que deixámos efcripto moftra comtudo que, fe nós ap- plaudimos o principio da fua legiflação, não é do noífo tempo applaudir da mefma forma as theorias em que eífe principio fe vafava no feculo xviii. A ariftocracia e á monar- chia fuccederam a egualdade nas claífes e a democracia nas inítituições; mas a evolução natural das theorias não deftroe a noção da fociedade em 11, como realidade de exiílencia col- lediva dos homens.

Na fua Hijloria do Futuro o padre Vieira efcrevêra: «Ah! fe os reis e monarchas confideraífem que as purpuras que veftem lh'as empreita Deus da fua guarda-roupa para que reprefentem o papel de reis emquanto elle for fervido!» Então, na ferie de miniftros da egreja que por feculos to- maram fobre fi o veftir e defender os reis, o padre era o alfayate dos foberanos. O ideal da monarchia jefuita era theocratico.

No feculo xviii, lê-fe nos preâmbulos da lei de 9 de feptem- bro de 1769: «E fendo infeparaveis da alta e independente foberania que nas matérias temporaes recebi immediatamen- te de Deus Todo Poderofo o poder de regular as difpofi- ções dos bens de meus vaífallos em commum beneficio. . . » Vê-fe pois que o fymbolo fe fimplificou: no Ablblutifmo o rei é facerdote civil.

Hoje é foberana e abfoluta a fociedade. Traduzam-fe pois democraticamente as formulas antigas, e ver-fe-ha a

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identidade de um penfamento orgânico expreíTo de um mo- do evolutivamente variável.

O momento do Marquez de Pombal precede o noíTo ; o noíTo eftadifta é pois um precurfor, embora a fua doutrina fe formulaffe de um modo hoje caduco para nós, e a fua empreza falhaíTe em um paiz abaftardado por dois feculos de educação jefuita.

Oliveira Martins.

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o MARQUEZ DE POMBAL

A COMPANHIA DE JESUS

publicação do decreto que em 3 de feptembro de 1759 expulíou para /e}7ipre de Portugal e feus domínios toda a forte e difciplinada mi- lícia da Companhia de Jelus é o fado, fe não mais importante, pelo menos mais ruidofo de toda a vida publica do Marquez de Pombal. A eíTe decreto audaciofo deve o miniftro de D. Jofé o ler conhecido ainda hoje d'aquelles mefmos que não lêem a hiftoria; porque o povo portuguez, que efqueceu todos ou quafi todos os ados políticos da fua longa dida- dura, fixou eíTe de memoria e, ao penfar agora na figura im- perativa e proeminente do eftadifta revolucionário, não n'elle nem o diplomata, nem o economifi:a, nem o miniftro reformador da inftrucção nacional, mas o inimigo da Com- panhia, o inclemente pcrfcguidor dos jefuitas.

Sobre o ado didatorial de 3 de feptembro de lySg, pre- ludio fignificativo de um rompimento de amigáveis relações

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tradicionaes entre a corte portugueza e a cúria romana, de- correram já cento e vinte e dois annos; e no entanto ainda fe não extinguiram de todo as paixões que no momento pro- vocou. Minoradas, fem duvida, pela acção pacificadora do tempo, é todavia certo que ainda hoje fe exacerbam no fun- do de muitas confciencias as emoções de lympathia ou de rancor que, no accêfo da luda, le defencadearam em torno do enérgico minifi:ro. Os fentimentos d'eíra epocha não revi- verão mais com o vigor febril que os carafterifou um dia, nem a Europa do feculo xix tornará a ler, de certo, os pam- phletos virulentos e acrimoniofos com que os amigos do Marquez e os amigos da Companhia inundaram, na hora da luda, a Europa do feculo xviii; mas, porque exiftem ainda ultramontanos impenitentes e revolucionários fem educação fcientifica, taes fentimentos, que um dia foram coUedivos e intenfos, reapparecem, embora individuaes e enfraqueci- dos^ agora que fe celebra o centenário do homem que os provocou.

Ao eítrepito formado pela conjuncção defharmonica de encomiaíticas declamações e defconcertados proteítos, impor- ta refponder ferenamente com a hiftoria na mão. Compete- nos a nós, homens de uma geração que fe educou no eftudo fevero da philofophia fcientifica, proclamar fem paixões inop- portunas a inteira verdade.

Para comprehender o fado hiftorico da expulfão dos jefuitas é mifter confideral-o nas fuás caufas determinantes, na maneira efpecial por que foi preparado e levado a effeito, e ainda nas confequencias a que deu origem. As condições geraes do paiz ao tempo em que o fado fe realifou e as in- tenções que prefidiram no efpirito do miniílro á publicação do celebre decreto, fão também circumftancias de que não podemos abftrahir, fob pena de fazermos um eftudo incom- pleto e uma falia apreciação.

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N^eíle fentido examinaremos as relações do Marquez de Pombal com a Companhia de Jefus, relações hoftís cujo epilogo tremendo foi o decreto de lySg.

Ucnoncer à ies voluntés propres ert plus méritoire que de réveiller Ies morts.

Pas d ennemi qui loit aufTi dangereQX que Tableuce de tout ennemi.

LOVOLA.

Introduzidos em Portugal no reinado de D. João III, os jefuitas alcançaram rapidamente Ibbre os efpiritos e Ibbre a politica do paiz, graças a circumítancias que adiante lerão eftudadas, uma preponderância que o tempo não fez fenão acrefcentar progreíUvamente até ao reinado de D. Jole. A realeza abfoluta, apparentemente foberana, foi na realidade pouco e pouco avaíTallada pela Companhia; D. João III, D. Sebaftião, o cardeal D. Henrique c D. João V reprefen- tam outros tantos e fucceíTivos exemplos da abdicação moral e politica da monarchia nas mãos do jefuitilmo. A nobreza, tão arrogante dos feus pergaminhos, tão ciofa do leu vali- mento, lentia-le inerme diante da humildade aftuciofa dos jefuitas, que no efpaço de poucos annos fe tornaram em Portugal os directores efpirituaes e os meftres da ariftocracia inteira. O povo, lentamente fanatifado e embrutecido pelo terror dos autos-da-fé, veiu a fer também para o jefuita o mefmo que efte, obedecendo ao preceito expreífo de Loyola, fora defde todo o principio para os fuperiores da Companhia: a lima na mão do operário. E a própria Inquifição, eíTe forte poder difcricionario que D. João III implantara entre nós, eíTa inftituição religiofa que tinha raizes fundas na hirto- ria do Occidente, porque aqui nafcêra em plena idade media, eíTa mefma, poucos annos depois da inftituição da Compa-

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nhia de Jefus em Portugal, lentia-fe abalada, reconhecia-fe impotente para dominar as confciencias.

E não era no reino que a Companhia imperava. Efcu- dados pelo preftigio de S. Francilco Xavier, cobertos pelo nome e tradições do piedofo allucinado, os jefuitas viviam, antes mefmo da introducção da Companhia em Portugal, res- peitados, adorados quafi na Afia, na Africa e na America. Eram ahi defde muito os diftribuidores do pão efpiritual das confciencias e os educadores do entendimento, como foram mais tarde os primeiros capitaliftas, os banqueiros e os com- merciantes mais ricos. O Portugal fanático para quem, como oblerva Francifco Luiz Gomes, a converfão dos infiéis era defde feculos uma paixão abforvente, uma ambição e uma gloria, applaudia commovido o jefuitiímo que aíTim avan- çava triumphante, levando ás paragens longiquas o ardor prolelytico de Jefus e a difciplina fevera da Igreja.

D'onde emanava para a Companhia eífe eftranho poder que a tornou por toda a parte dominadora abfoluta das con- fciencias e arbitra, muitas vezes, dos deftinos políticos das nações? E precifo refponder: da ignorância geral do tempo em que fe fundou, da exaltação fincera dos feus inflituido- res, dos proceífos hábeis e da inquebrantável difciplina dos feus foldados. A convergência d'eftes fadores é indifpenfavel para explicar o dominio do jefuitifmo; um não pôde ler evocado como caufa.

A ignorância do feculo de Loyola fignifica muito, mas não explica tudo; muitas ordens religiofas, coevas do jefui- tifmo, não tinham, a defpeito do obfcurantifmo geral, confe- guido profperar. A mefma Inquifição, mais antiga três fecu- los na Europa do que a Companhia e contemporânea d'ella em Portugal, impoz-fe pelo terror, imperou pelo auto-da-fé, mas não logrou, explorando a ignorância do povo e dos reis, eftender os largos domínios efpirituaes e temporaes da

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Companhia que a minou como inftituição religiofa, difpu- tando-lhe a lubmiíTáo dos crentes, e como inftituição politica, cerceando-lhe a autoridade, alienando-lhe as fympathias dos grandes.

O myfticifmo apaixonado e fincero porque o foi dos inítituidores da Companhia não é também lufíiciente para explicar o império dos jefuitas. Santo Ignacio e S. Francifco Xavier, fe lhes faltaíTem a confciencia do próprio valimento e o efpirito dilciplinador, não teriam deixado atraz de li, ao morrerem de inanição e de febre, a forte Companhia que a Europa recebeu primeiro para a combater e expulfar depois. EíTes homens, em quem, por uma fingular anomalia pfy- chologica concorriam llmultaneamente, como nota o fr. de Pompery, uma exaltação fanática levada até ao delírio e um efpirito methodico de organifação levado até á minúcia, não foram produdos efporadicos e inconfcientes do myfti- cifmo catholico; foram fim os mais altos reprefentantes de uma viva emoção genérica, as fortes individualidades que fouberam aproveitar e difciplinar em folida organifação os homens que penfavam e fentiam de egual maneira, fob o influxo de análogos fentimentos. Os que a elles fe juntaram, conftituindo-fe foldados voluntários da ordem nova, acceita- ram o pacto de fujeição aos fuperiores, indifpenfavel para que a unidade e a difciplina fe perpetuaífem inquebrantáveis e puras, atravez dos tempos, como na hora em que um fen- timento commum os congregou pela primeira vez. D'ahi a pafllva e incondicional fubmiífão aos chefes, que fempre caractcrifou a Companhia como organifmo colledivo; d'ahi também um poderofo elemento de força para o jefuitifmo.

Nada ha de extranho n'eíte fafto; a Igreja viveu aíTim os feculos áureos do feu explendor e da fua grandeza. Quando a unidade fe rompeu, quando o efpirito de livre exame des- pontou e os fcifmas fe declararam, a barca de S. Pedro, fen-

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dida, aberta de todos os lados, metteu agua e principiou a defcer, por forma que não ha marinhagem robufta que a falve do naufrágio.

Mas o obfcurantifmo focial, as intenções primitivas dos inítituidores da Companhia, a forte difciplina dos léus mem- bros ainda não baítam para explicar o phenomeno que efta- mos examinando do crefcente poderio do jefuitifmo: os pro- ceíTos efpecialiffimos empregados para dominar a fociedade conflituem, como annunciâmos, um elemento indifpenfavel da etiologia do fafto. EíTes proceíTos foram os mais hábeis e os mais radicaes que é poffivel conceber; no emprego d'elles não ha aflucia apenas, ha talento também.

Seguindo as tradições do catholicifmo, a Companhia, pe- netrou n'eífes três grandes baluartes de acção: o púlpito, o coníiíTionario e a efcola. Mas, porque exiftia dentro dos invencíveis redudos uma população notável de emiíTarios de todas as ordens, reprefentantes de todas as inftituições reli- giofas, o jefuita procurou inutilifal-os; a Companhia, com ef- feito, accentúa lucidamente o fr. Oliveira Martins, não le li- mitava a concorrer, queria dominar abfoluta. Era precifo confeguir que o púlpito, o coníiíTionario e a efcola paíTaflem á exclufiva poífe do jefuita. A cmpreza era diíiicil, eriçada de fortes obftaculos; mas, precifamente porque o era, impor- tava tental-a. A Companhia de Jefus foi fempre uma focie- dade de combate; aíTim a caraderifou Santo Ignacio de Loyola quando diífe: não ha mais pérfida tempeftade que a calma- ria, nem mais perigofo inimigo que a aufencia de todo o ini- migo.

Para confeguirem o fim ambiciofo que fe propunham, os jefuitas focorreram-fe dos papas de quem fouberam habil- mente confeguir para a Companhia immunidades, indulgên- cias, difpenfas e privilégios taes que nenhuma outra ordem pôde defde então fazer-lhe concorrência na alliciação dos de-

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votos. Os jeluitas, aos votos ordinários de pobreza e caftidade, tinham juntado o de obediência elpecial e abfoluta ao papa. Efte additamento iilbnjeára por tal modo os chefes lupremos do catholicifmo que as bulias de 1549, i582 e 1(384 i-hegani a conceder aos jeluitas nada menos que o poder de reformar os ertatutos da ordem, accommodando-os ás neceffidades de occalião, fem pré^•ia confulta á fanta fé. Os jefuitas co- meçaram affim por manietar os próprios papas, eftabele- cendo, pelos meios brandos da legalidade, a almejada inde- pendência da Companhia. O primeiro palTo eftava dado. At- trahidos e fafcinados os crentes e os devotos pelos privilégios excepcionaes da ordem nova, importava agora manter a co- hefão efpiritual pelo enfmo, pela predica e pela coníàíTão.

N"efle intento abandonaram os jefuitas os velhos proces- fos terroriftas e bárbaros de outras inftituições religiofas. Con- vinha fer aífavel e brando; convinha depor a feveridade que gera o medo para revellir a complacência que produz o amor. AíFim, ás perfpedivas do inferno, ás deprimentes ameaças de eternos caftigos de que tanto ufou e abufou defde o co- meço o myíticifmo catholico, oppunham agora os jefuitas as promeífas de perdão e as efperanças de refgate ainda aos mais criminofos. Por iffo a Companhia triumphou da pró- pria Inquifição. Francifco Luiz Gomes frifa bem eíte ponto quando efcreve: «A Inquifição empregava como proceífos únicos de acção a ameaça, a tortura e a fogueira. A Com- panhia de Jefus tirava a fua força das efperanças que fazia defpontar no coração dos defefperados, das confolações que dava aos inconfolaveis, do feu amor por todos. A Inquifição era um tribunal; a Companhia uma fociedade. Uma queimava os corpos ; a outra inflammava as confciencias' « . E os jefuitas não foram complacentes e brandos; foram mefmo aftucio-

' F. L. Gomes, Marquis de Pombal, efquijje de /a rie publique, iSôg.

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famente opportunijias. Para fe elevarem, para exercerem do- mínio conveiu-lhes ao principio tranfigir com os vicios e a immoralidade dos grandes; e tranfigiram até ao ponto de baixarem á categoria de meras culpas e peccados veniaes os maiores crimes, os vicios mais abjedos. Que importa, di- ziam entre li, que os meios lejam maus íe o fim é bom? O próprio Santo Ignacio juftificava eíTa tranfigencia, porque differa: aos homens inteiramente abforvidos pelos intereíTes mundanos não fe falle abruptamente na falvação da alma; feria empregar uma armadilha fem engodo. E a Companhia, commentando praticamente a máxima do meftre, mundani- fava-fe um pouco, tranfigia com a corrupção, lifonjeava quantos podiam concecier-lhe uma parcella de aucloridade, creava emfim uma vafta clientella.

A moral fácil do jefuitifmo, tão diverfa da frieza fombria e glacial de outras ordens, era um attraclivo. Quem deixaria de procurar aos pés do confeífor jefuita a abfolvição que os outros padres negavam? Quem iria trocar pela feveridade que faz das pequenas culpas grandes peccados a benevolência complacente que reduz os crimes a leves faltas? Ninguém, de certo; e muito menos os grandes. Aífim é que os reis pro- curaram de preferencia os jefuitas para confeflbres. A expo- fição devota de efcrupulos e de peccados fempre abfolvidos feguiu-fe naturalmente a confiança e a fympathia dos mo- narchas pelos jefuitas; e todos fabem hoje como os aflutos confeífores exploraram em proveito próprio e da Companhia eífes ingénuos fentimentos fobre os quaes, como folidos ali- cerces, conftruiram o edifício da fua enorme auítoridade.

Conquiftada a realeza pelo confiífionario, os nobres, pres- furofos de feguir o exemplo que vinha do alto, caíram egíial- mente aos pés dos jefuitas; os que não envergaram o habito da ordem, confiaram-lhes a direcção das confciencias e a educação dos filhos. A plebe, imitadora inconfciente das ai-

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tas camadas Ibciaes, procurou também no llgillo do confiíTio- nario jcíuita uma parcella das indulgências e do perdão que pareciam trazer confolados e felizes os grandes do reino.

Eftava tomado o primeiro redudo; ninguém Ic atre- via a difputar-lhes a poíTe.

Reftava conquiílar a efcola c o púlpito, pondo cm de- bandada beneditinos e francifcanos. Foi o que a Companhia, protegida pelos reis e dilpondo de bons meftres e de bons pregadores, confeguiu rapidamente. Ninguém orava com mais eloquência, ninguém conhecia melhor os fegredos do enfino; fobretudo, ninguém como o jeluita accumulava nos templos quando pregava e nas efcolas quando enfinava, Ibciedade mais feleíta: a fina flor da ariftocracia, a corte, os burgue- zes opulentos. Ninguém podia concorrer com o jefuita na conceíTão de indulgências, ninguém lábia aclarar como elle os myíferios do grego e do latim. Na própria Allemanha pro- tef1:ante, nota o Ir. Oliveira Martins, todos concordavam em que a mocidade aprendia mais e melhor com os padres da Companhia, que com todos os outros meftres. Fácil foi aos jefuitas monopoliíar o eníino. D. João III entregou-lhes em i555 o Collegio das artes, e prohibiu a entrada para a uni- verfidade, nas faculdades de direito e theologia, a quem não tiveíTe eftudado ali os preparatórios. O collegio de Évora, de profeíTores jefuitas, foi em i55g elevado á categoria de uni- verfidade, e os doutores d'ella faídos equiparados em foros aos de Coimbra.

AíTim o jefuitifmo avaíTalára tudo em Portugal; o clero das outras ordens religiofas e os padres leculares fentiam-fe inútil ifados. O confiíTionario, o púlpito e a efcola eftavam nas mãos da Companhia que, para tudo ter por fi, creára também um thcatro popular onde ás vivas reprefentações dos autos de Gil Vicente fubftituiu o deíempenho das iníuUás e narcóticas tragi-comedias latinas.

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Senhora abfoluta do reino, o que fez a Companhia? Pro- curou reahfar o ideal myftico dos inítituidores, deftruindo no homem a intelligencia e a vontade para reduzil-o á pas- fividadc abfoluta e ao completo automatifmo que deftroem o cidadão e fazem apparecer no logar d'elle o afceta. Não fe efqueça que a Companhia de Jefus foi fundada para coníb- lidar o principio catholico da auftoridade, á hora meíma em que o proteftantiímo apparecia, como reforma religioía, apoiada no principio do livre exame. A Companhia repre- fenta pois uma reacção contra a liberdade e a favor do ca- tholiciímo. Luthero preconifava a livre dilcuíTão, a inde- pendência do crente em matérias de confciencia religiofa; Santo Ignacio exaltava a doutrina oppofta da obediência paíTiva do homem á Igreja e ao papa que a reprefenta. Mas aíTmi como o livre exame é uma chimera onde não exifte a intelligencia eíclarecida e a vontade forte, aíTim a autori- dade abfoluta é uma ficção onde não ha o entendimento atrophiado e a efpontaneidade morta. Por iíTo a Companhia, auftoritaria e papifta, comprehendeu a neceffidade eíTencial de deftruir o homem tal como a natureza o fizera, efpon- taneo na intelligencia e na vontade, para reduzil-o a um cadáver, como Santo Ignacio dizia com lelvagem energia.

Poderá parecer a efpiritos menos reflexivos (e tem-fe es- cripto) que a Companhia não vifava a deftruir o entendimen- to; crer-fe-ha até que, enfinando o jeluita melhor do que ninguém, longe de aniquilar a rafão humana, elle fe propu- nha robuftecel-a. Attenda-fe porém: o enfino é um meio educativo que pôde dar tantos effeitos diíTerentes quantos os proceíTos que n'elle fe empregarem e os objectos fobre que fe exercer. O enfino que produz o fabio e o philofopho, cria também o fimples erudito; a efcola que produz os grandes penfadores, de fi igualmente os cafuiftas inúteis. Importa, pois, quando fe falia de enfino, inquirir dos proceflbs por que

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clle fe faz o dos aíllimptos fobre que fe exerce. Todos com- prehendem que não é indifferente enfinar a cartilha ou a mathematica, enfinar pelos proceíTos fecundos das fciencias cxperimentaes ou pela dialedica eíferil do probabilifmo theo- logico. O que eníinaram e como enfinaram os jefuitas? Eis o que importa determinar para comprehender na eíTencia a acção hiftorica da Companhia.

Na efcola primaria os jefuitas propinavam á infância a doutrina chriftã compilada na cartilha de Canillo, primeiro provincial da Ordem na Allemanha; na efcola fecundaria profeífavam as linguas mortas o grego e principalmente o latim; nas efcolas fuperiores, emfim, reftaurando o trimim da Efcolaftica, efmagavam os cérebros juvenis fob a ava- laiiche da grammatica, da rhetorica e da dialeclica. A car- tilha principiava na creança a obra de atrophiamento e de intoxicação mental que no adolefcente viriam acabar os fuc- cedaneos enérgicos do tripiíim de Alcuino. Os jefuitas remon- tavam habilmente á idade media. A cartilha, infulfo repo- fitorio de orações e dogmas, não feria comprehendida, mas decorada e inconfcientemente repetida, pela infância; para a formação do futuro homem-cadaver nada convinha me- lhor. A grammatica, tão abftrada e tão árida, enfinada na idade em que o fentimento moral irrompe e quando os cére- bros defpertam cheios de curiofidade e de vida, era tam- bém um poderofo veneno, um narcótico excellente; affim o penlbu o inftituidor Laynez. A rhetorica, banalidade retum- bante, e a dialeftica, difíicil machinifmo de engrenagens fyl- logiíticas, epichrematicas e Ibriticas, tão apparatofo e tão infecundo, convinham, de certo, á creação de pedantes e fa- bios falfos, fervidores da Igreja e do papado. O eífudo das linguas mortas conftituia uma diverfão de todo innocente fendo, como era, fimultanea com a aprendizagem do cate- chifmo, da grammatica e da dialeftica. «A Companhia dava

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nas Seleãas, diz o fr. Oliveira Martins, os textos claíTicos, bons para exercicios rhetoricos, fem perigo de que os leito- res comprehendeflem e íe namoralTem do naturalifmo vivo da antigvúdade'».

O eftudo das Iciencias, eíTc era pelo jeluita pofto de la- do; eftava ahi o contra-veneno que ao neophito era precilb cuidadofamente efconder. Para o enfino da mathematica ha- via na Univerfidade uma cadeira apenas; e a medicina, in- terdigas as diíTecções anatómicas e as vivifecções, tornára-le um eftudo fem bafes, um ofiicio de atrevidos curandeiros. Não fe confultava a natureza, liam-fe os livros; não fe eftu- davam idéas, decoravam-fe palavras e formulas.

A educação jefuita foi efta; Portugal que a recebeu ficou emparvecido e narcotifado a dormir um fomno de feculos. A Companhia, realifados n'efte canto do Occidente o delejo e a afpiração de Loyola, transformado o paiz n'uma popula- ção de fomnambulos, difpoz difcricionariamente de todos e de tudo. O dominio efpiritual abfoluto e inconteffado trou- xe naturalmente comfigo, por uma inevitável generalifação, o poder temporal; e affim é que não ha pendência interna- cional ou queftão de politica interna portugueza nos feculos XVI, XVII e XVIII em que o jefuita não figure, fe lhe convém. No Brazil acontecia o mefmo; e no Paraguay, no primeiro quartel do feculo xviii, o indígena, vergaífado pelo jefuita, beijava fervilmente, como um rafeiro, a mão que o ferira em nome de Deus!

II

O eftado de apathia e corrupção profunda a que no meia- do do feculo xviii chegara o paiz, educado pela Companhia, reclamava medidas enérgicas de reforma. Em plena monar-

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J. P. Oliveira Martins, Hi/hiria du Portugal, vol. ii. Lilboa, 1881.

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chia abfoluta eíTas medidas não podiam partir da nação; tentou-as o poder minifterial reprelentado em Sebaílião Jole de Carvalho e Mello. Veremos de que maneira, com que re- fultados e Ibb que intenções. Sem a difcuíTão d'eftes três pontos mal le comprehenderá a acção hiftorica do miniftro de D. Jole.

Penfam muitos ainda hoje, e tem-fe efcripto com deplo- rável leviandade que Carvalho e Mello, expullbr dos jeluitas, foi um livre penlador. Não feria para eftranhar que afllm ti- veíTe acontecido, porque o eftadifta portuguez pertenceu ao feculo de Voltaire, de Condorcet, de Diderot, d'Alambert, ao feculo dos encyclopediftas que, emancipados da theologia, fizeram ouvir na Europa o grito revolucionário e tremendo: nem padres, nem reis abfolutos! A verdade, porém, é que o Marquez de Pombal não feguia a linha doutrinaria traçada pelos grandes efpiritos do leu tempo. Que os energúmenos religiofos recolham as luas iras e os livres penfadores as luas apologias até occafião mais própria: o Marquez de Pombal não pôde juftamente fervir de objeftivo nem de umas, nem de outras. O Marquez foi um bom catholico, um pouco in- coherente, é verdade, a quem Voltaire farcafticamente cha- mou o amigo da Inquijição. Grande, certamente, fe o com- parámos á raça de pigmeus devotos do Portugal jcíuita, o Marquez fica todavia muito áquem dos grandes homens do feu feculo, na moral e no entendimento. Voltaire chegou mcfmo a rir-fe um pouco d'efta pcrfonalidade, que do fun- do do feu orgulho de burguez colérico e acrimoniofo decla- rava, em nome da nação, guerra á Companhia de Jefus para fubmettel-a depois na peflba do padre Malagrida ao julga- mento do mais abjedo e impopular dos tribunaes, a Inquifi- ção. Fazendo nas palavras do philolbpho francez um certo defconto de ironia defconto a que nos obriga o conheci- mento de Portugal no feculo paífado é mifler concordar

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em que ha iVellas um fundo de bom fenlb e de jufta com- preheníao. É o que quem examina defpreoccupadamente a hiftoria.

A luda contra os jefuitas por parte de Carvalho e Mello, que ao tempo não polTuia ainda o titulo por que é mais co- nhecido, irrompeu no momento em que o governo de D. Jóle, procurando executar o tratado pelo qual a Hefpanha cedia o Paraguay aos portuguezes em troca da colónia do Sacramento, encontrou por parte dos paraguayenfes uma violenta reacção armada, que os padres da Companhia levantaram e mantive- ram com fmgular tenacidade e pericia. Documentam a habi- lidade com que os jefuitas fouberam tornar forte a revolta americana, as cartas do general Gomes Freire e do gover- nador do Maranhão, Xavier Mendonça. Efte ultimo efcrevia a Carvalho e Mello, feu irmão: «Não poíTo reprimir os je- fuitas; a lua politica fagaz pôde mais que os meus cuidados. Logram fobre os indígenas uma influencia abfoluta ' » .

Para caítigar a audácia da Companhia, Carvalho e Mello principiou por mandar publicar dois decretos conformes ao breve Immenfa Paftonim Prindpis, pelo qual Benedido XIV prohibíra aos padres jefuitas, ao tempo de D. João V, intro- metterem-fe em negócios feculares. Efte breve, que os jefui- tas tinham deixado cair em efquecimento, era, pela origem d'onde partia, oífenílvo da dignidade e completa indepen- dência da Companhia; recordal-o, foi o grito de guerra. Ao mefmo tempo Carvalho inculcou a D. Jofé a neceffidade de defpedir todos os jefuitas confeífores da familia real e da corte, prohibindo-lhes expreífamente defde eífe dia a entra- da no palácio. O rei accedeu á vontade do miniftro; e os jefuitas, perdido o confifllonario real, experimentaram um

I S. J. L. Soriano, Hiftoria do reinado de el-rei D. Jofé e da adminiflra- çáo do Marque'^ de Pombal, tom. i. Lilboa, 1S67.

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rude golpe, precurlbr de outros maiores. Não contente ainda, Carvalho mandou redigir um relatório ou memoria de todos os crimes da Companhia na America até lySy. Efta memo- ria devia ler prelente ao papa pelo embaixador portuguez em Roma, Francifco de Almada. Carvalho efperava que o papa, indignado d vifta da expofição d'eíres crimes, que eram muitos e grandes, lançaíTe mão de meios enérgicos e violentos contra os jefuitas. As elperanças do minirtro tinham algum fundamento; o papa era o mefmo que annos antes desfechara contra a Companhia o breve Lnmeufa Pajlorum Priucipis. Carvalho enviando a Francifco de Almada, íeu pri- mo, o relatório, efcrevia-lhe ao mefmo tempo uma longa carta na qual lhe ordenava que mantiveíTe junto do papa uma at- titudc enérgica. N'eíra carta Carvalho contava minuciofamen- te a Almada os crimes dos jefuitas em Portugal, attribuindo- Ihes calumniofamente o levantamento popular do Porto por occafião da inílituição monopolifta da Companhia dos Vinhos do Alto Douro. N'eífa revoha defpoticamente abafada por Carvalho, o jefuita não entrara. O miniftro de D. Jofé fa- bia-o perfeitamente ; mas, convindo-lhe ver a Companhia em toda a parte, não vacillava em defcer á calumnia.

O leitor admira-fe, de certo, que um miniífro da efta- tura de Carvalho e Mello falfiíicaíre a verdade. Mas infeliz- mente era aíTim; e a hilloria tem obrigação de dizel-o. Fran- cifco Luiz Gomes, profundamente affeiçoado á memoria do eftadifta portuguez e audor de um livro Ibbre a fua vida, o mais confcienciolb que conhecemos, efcreve: »Um outro de- feito tinha que não podemos pcrdoar-lhe: é a pouca exactidão e a pouca linceridade com que narrava os fados, quando iífo lhe podia convir aos feus intuitos'». E mais adiante: «Raras vezes fallava fmceramcnte nos feus, cfcriptos; allega-

' F. L. Gomes, obr. cil-, pag. 192.

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va fempre intenções e motivos diverfos na realidade dos que o levavam a aftuar'». O mefmo au6lor antes diíTera: «Carvalho não fazia efcrupulo dos meios a empregar, quando mefmo elles foíTem os mais indignos^». Vc bem o leitor que não fizemos uma affirmação gratuita quando declarámos o Marquez de Pombal inferior em moralidade aos grandes homens do feu tempo.

Quem poderá perguntar ainda: Para que mentir e calumniar na accufação dos jefuitas, fe a fimples realidade dos lliccelTos os condemnava? Condemnava e condemna, de certo, para quem labe ver a acção íntima da Companhia nos feus grandes proceíTos de corrupção, para quem por um es- tudo attento chega a reconhecer que o abulo do poder tem- poral e os crimes políticos do jeluitifmo fão naturaes e ne- ceffarias confequencias dos próprios princípios audoritarios da Ordem e do catholicifmo que ella genuinamente repre- fenta. Huber diz com lucidez extrema: «E precifo não es- quecer que os attentados da Companhia contra a Igreja e contra o efpirito humano foram antes d'ella enlaiados pelo papado, recaindo pois uma parte da refponlabilidade d'eíres crimes fobre a cúria romana, de que os jeluitas não foram, no fim de tudo, mais do que a milicia elpiritual'». Afllm a condemnação do jefi.iitirmo envolve a da religião catholica; a Companhia é uma fuccurfal da Cúria. O miniftro de D. Jofé, porém, não viu iffo. F. L. Gomes diz expreíTamente : «Carvalho nunca accuíbu os jefuitas de pertencerem a uma fociedade cujas máximas foíTem contrarias á moral de Chrifto e á independência e fegurança dos Eftados e dos príncipes. Accufava-os, fim, de fe terem defviado dos princípios de

' F. L. Gomes, obr. cit., pag. 194.

2 Ibid., pag. iSi.

3 Huber, Les Jéfiiites, traJucção franceza. Paris, 1S74.

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Santo Ignacio e dos exemplos de S. Francilco Xavier. . . CoUocado n'efte terreno movediço, emmudecia muitas vezes diante do argumento dos adverfarios que liie diziam: fe exis- tem abulbs, reformae-os, mas não toqueis na inftituição, cuja pureza Ibis o primeiro a reconhecer ' » . Carvalho e Mello não viu, pois, claramente o problema que tentava refolver. Como catholico que era, não percebeu a acção effencial da Com- panhia; viu apenas os abulbs, viu as confequencias, mas não foube reconhecer que um fio lógico, refiftente e neceíTario, as prendia indiíToluvelmente aos principios de Santo Ignacio. Aífim, quando os crimes e os abulbs dos jefuitas lhe pare- ciam pequenos ou pouco numerofos para reclamar do papa, em nome d'elles, medidas enérgicas contra a Companhia, avolumava-os, multiplicava-os.

Proíigamos, porém, a noíTa narrativa.

Chegadas a Roma a memoria official contra os jefuitas e a carta particular que a acompanhava, Almada procurou immediatamente o papa. Benediclo XIV excitado, como Car- valho previra, pela leitura da memoria, pirometteu defde logo a Almada chamar o geral dos jefuitas, e fazer-lhe fentir quanto os religiolbs da Companhia fe tinham afaftado da moral chriftan e da pratica dos feus deveres. Almada, porém inítigado pela carta particular do primo, não fe contentou com tão pouco; lembrou ao papa que os abulbs da Compa- nhia reclamavam mais fevero caftigo que uma fimples adver- tência paternal. O papa concordou e decidiu, a pedido de Almada, que foífe nomeado um ^ ilitador e reformador da Or- dem dos jefuitas com auctoridade baftante para reprimir em Portugal e feus domínios os abufos d'eft:es padres. O vifita- dor e reformador feria o cardeal Francifco de Saldanha, pes- foa aífeiçoada ao governo portuguez.

' F. L. Gomes, loc. cii.

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Efta negociação era grave, e reclamava por parte dos intereíTados um ablbluto íegredo. O cardeal Timoni, le- cretario do papa, era amigo dos jeluitas e podia levantar difficuldades ao plano de Almada; Benedifto XIV affim o comprehendeu, mandando, a inftancias do embaixador por- tuguez, expedir pelo cardeal Pacionci, amigo de Almada, o breve In fpecula fiipremae dignitatis, que invertia Saldanha no cargo de reformador da Companhia. O breve foi minutado pelo próprio fecretario particular do embaixador portuguez e fielmente copiado por Pacionci. Não ficaram lem recompen- fa os bons ferviços d'en:e cardeal. Alludindo a elle, Almada efcrevia ao primo: «Não fe efqueça de enviar-me aiineis de brilhantes ou coufa digna de fer-lhe offerecida » . Veremos adiante que papel Carvalho fez defempenhar ás pedras pre- ciofas no luborno dos cardeaes durante todo o feguimento das negociações diplomáticas contra os jefuitas.

O breve In fpecula fiipremae dignitatis, de cuja expedi- ção os jefuitas não fouberam, mau grado o zelo infatigável dos feus amigos em Roma, foi-lhes intimado juridicamente em 12 de maio de lySS, formando-fe auto d'eíTa formalida- de folemne.

Francifco de Saldanha inftigado por Carvalho e Mello, não delcanfou. Três dias depois da intimação do breve, o cardeal reformador publicava uma paftoral cheia de termos violentos, cm que prohibia expreíTamente aos jefuitas o com- mercio de mercadorias provenientes da Afia, da Africa e da America, e bem affim as operações bancarias de toda a or- dem a que defde muito fe entregavam, fazendo concorrência aos feculares. N'eíra paftoral os jefuitas eram comparados aos « Numularios e vendilhões que Chrifto azorragára no tem- plo». Os golpes vibrados pelo próprio clero contra a Com- panhia eram profundos e fucceffivos. A 7 de junho do mes- mo anno o cardeal patriarcha de Lifboa, D. Jofé Manuel,

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mandou affixar ás portas das igrejas um edital em que fus- pendia aos jeíuitas a faculdade de confeíTar e pregar não dentro da capital, mas em todo o patriarchado. Seguindo o exemplo do prelado de Lifboa, todos os bifpos do reino paíTaram igual ordem nos domínios das fuás refpeftivas dio- cefes. Os jefuitas perdiam tudo.

Entretanto, da^■a-fe em Roma um acontecimento funeíto ás pretenfões da corte portugueza: Benedi6fo XIV expirava. PaíTemos por fobre a hiftoria indecorofa de intrigas, de fu- bornos, de corrupções de toda a efpecie que caraderifaram a eleição do novo papa; o que nos importa faber é que foi Clemente XIII, amigo dos jeíuitas, o fucceffor de Benedicto XIV.

A Companhia teve um momento de efperança. Ricci, ge- ral dos jefuitas, aprefentou defde logo ao novo papa uma longa memoria na qual fe cjueixava de que o governo por- tuguez tiveíTe tornado extenfivos a todos os padres da fua Ordem crimes e culpas que, quando muito, teriam commet- tido alguns; jurava a innocencia dos fuperiores da Compa- nhia, e terminava pedindo ao papa que fufpendeíTe a reforma começada em Lifboa pelo cardeal Saldanha. Sint iitfiint. Cle- mente XIII, fem nada participar ao embaixador portuguez, fubmetteu a memoria de Ricci á confulta e decifão do Sacro CoUegio, onde as opiniões fe dividiram, votando uns pela revogação immediata do breve In fpeciila fupremae diguita- tis, infiftindo outros, Racionei entre elles, por que continuaíTe a reforma, como o exigia o governo de Portugal. No meio das opiniões encontradas dos cardeaes, o papa refolveu con- temporifar, recommendando ao núncio em Portugal que vifi- taíTe o reformador Saldanha, e lhe aconfelhaíTe toda a mode- ração e prudência no defempenho da fua melindrofa miííão.

Emquanto iílo fe paílãva em Roma, dava-fe em Lifboa, na noite de 3 de feptembro, o celebre attentado contra a vida

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de D. Jofé. Três jefuitas, Gabriel Malagrida, João de Mattos e João Alexandre, foram pelo Tribunal da Inconfidência de- clarados cúmplices no crime, embora não exiítiíTem contra elles, aíTim como não exiftiam contra a família Távora, pro- vas claras, mas llmples fufpeitas, problemáticos indícios.

O Tribunal da Inconfidência, creado por decreto de 9 de dezembro de lySS para julgar os réus do attentado de 3 de feptembro e os de futuras conjurações poíTiveis de natureza femelhante, era uma inftituição antipathica, que reprefentava na ordem civil e politica o papel ominofo da Inquifição na ordem religiofa. EíTe tribunal foi prelidido por Carvalho e pelos outros miniftros de eftado, feus manequins. Tudo ahi foi lummario, expedito, cynicamente precipitado. A defeza foi uma formalidade e o inquérito das teftemunhas uma burla indecorofa; os réus não foram ouvidos e, porque faltaflem provas, inventaram-fe. Debalde fe procuram hoje documen- tos que eítabeleçam claramente a cumplicidade dos jefuitas no attentado de 3 de feptembro; não fe encontram. Carva- lho, interrogado na hora da defgraça fobre a cumplicidade dos padres jefuitas, refpondeu apenas que o Tribunal da In- confidência os declarara réus. Efla refpoíta é evidentemente a evaíiva defgraçada de um efpirito menos efcrupulofo; ten- do prelidido ao tribunal que julgou os padres jefuitas como réus no attentado de 3 de feptembro, Carvalho ou poíTuia as provas da criminalidade e devia declaral-as para fe juíti- íicar, ou as não poíTuia (a verdade é eífa) e então procedeu arbitrariamente, por um defpotifmo vizinho da ferocidade. Nós não pomos em duvida, um momento, que os jefuitas fos- fem capazes de attentar contra a vida de D. Jofé; o regicídio afiava no efpirito da Ordem, e contra o monarcha portuguez havia por parte d^eífes padres refentimentos profundos. Mas fufpeitas e probabilidades não lao provas; e a juftiça exige para condemnar, clfas e não aqucUas.

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Entretanto os três jefuitas eram encarcerados no forte da Junqueira e todos os outros cercados em luas cafas e colle- gios ou encerrados na quinta do duque de Aveiro, onde che- garam a paffar longas horas de fome. Ao mefmo tempo todos os bens d'eft:es ecclefiafticos eram confifcados como proprie- dade de réus de alta traição.

Feito ifto, Carvalho e Mello efcreveu longamente ao pa- pa, impetrando de Sua Santidade auflorifação para que a Me^a da Confciencia, julgados ecclefiafticamente os jeluitas, réus do attentado de 3 de feptemhro, os entregalTe ao braço fecular; ao melmo tempo pedia que tal audorifação, de ur- gente neceffidade n'aquelle momento, íe tornaíTe perpetua e, como tal, eífectiva todas as vezes que fe trataíTe de cafos fe- melhantes ao que na occafião o forçava a efcrever a Sua San- tidade. Carvalho terminava fazendo votos por que todos os feus actos minifteriaes mereceíTem a benção apoflolica que ar- dentemente defejara. Efta carta mereceu de Voltaire palavras implacáveis de ironia. Luiz Gomes procura proteger Carvalho dos ataques do philofopho, afíirmando que o miniftro por- tuguez, á maneira de BolTuet, redobrava calculadamente de refpeito para com o papa todas as vezes que procurava dar um golpe fundo nas prerogativas de Roma. Explicação be- nevolente, mas inacceitavel : a polidez diplomática, quando fe agitavam intereíTes, nunca foi o apanágio de Carvalho. Ac[uelle refpeito pelo papa não era nem fingida cortezia, nem calculo; era fim a elTufão de um fentimento fincero de ca- tholico. Refpeitava ingenuamente o papa, não obftante odiar e bater a milicia efpiritual da Cúria. Efia inconfequencia, de refto abfolutamente inevitável no efpirito eftreito de um ca- tholico que fuppunha poffivel a reforma dos jefuitas por in- termédio da Igreja, que lhes adopta os princípios, revela podcrofamente que Carvalho ignorava a intima hiitoria do mechanifmo religiofo. Appellava para Roma, porque não fabia

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que era ella a alma mater d'eíra feita teiiebrofa e valente que o incommodava. Queria reformar abufos e dirigia-fe á Cúria, fem fe lembrar de que no apparelho centralifta do catholi- cilmo o calor que anima e excita os órgãos periphericos vem de lá, d'eíre coração recôndito.

Efcrevendo ao papa, Carvalho dirigia ao mefmo tempo car- tas confidenciaes a Almada, pondo-o ao corrente da nova ne- gociação, e inftruindo-o minuciofamente fobre o modo por que devia comportar-fe em face do Sacro Collegio. «Com- bata, eícrevia Carvalho, o luborno dos jefuitas, defcobrindo quem fejam os cardeaes e as peíToas mais importantes em relação ao negocio e comprando-os por todos os meios pos- fiveis, fem fe expor a ler por elles facrificado.Vale mais e é menos caro fazer a guerra com dinheiro do que com armas. Tenho aqui mais de cem mil cruzados em fina prata lavrada em Paris e em porcelana de Saxe. Não fei como lhe mande tudo ifto para Roma, fem que fe lhe defcubra a procedência e o deflino. Poderei enviar-lhe também alguns diamantes brutos, que mandará lapidar ahi; diga-me, entretanto, fe po- dem fervir para cruzes, peitoraes, etc. Mando-lhe quatro an- uais dignos de ferem oíTerecidos para comprar ou pelo me- nos difpor á noífa parte alguns bons amigos. As pedras podem ler lapidadas em Lifboa, mas c um trabalho demo- rado; fera melhor offerecel-as em bruto, como amoftra dos produdos dos paizes tão queridos da Companhia». Em igualdade de circumftancias, um jefuita teria procedido como Carvalho; e não deixaria de juftificar á própria confciencia o indecorofo dos meios pela neceíTidade de alcançar os fins. O embaixador portuguez, recebidas as cartas de Portu- gal, poz-fe energicamente em acção. Infelizmente para o bom andamento das negociações, Torrigiani, cardeal fecretario, era parente de Ricci, geral dos jefuhas, e o próprio papa fentia- fe inclinado á caufa d'eftes padres. Almada previu defde logo

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O infucceffo que efperava as pretenfões do governo portuguez. Não fe enganava. Os mezes iam paíTando fem que le che- gafle a uma folução qualquer. Foi então que Carvalho e Mello, impacientado com as delongas que a violência do feu carader fazia parecer maiores, e prevendo talvez uma conclulao desfavorável aos feus defcjos, publicou, precila- mente um anno depois do attentado contra o rei, o decreto celebre de 3 de feptembro de lySg, expulfando de Portugal e feus domínios todos os padres da Companhia de Jefus.

Não eftava tudo terminado ainda. A expulfão fora pouco; os ódios de Car^^alho exigiam uma fcena de langue. O padre Malagrida, ultimo reprefentante da Companhia, eftava ainda vivo, e podia bem íervir de protogonifta n\im apparatofo drama, que elcéfrifaíTe e commo^'eí^e Lifboa inteira.

Gabriel Malagrida, confeílbr do paço no reinado de D. JoãoV, eftava doente e na decrepitude; e os fotfrimentos de três annos de ifolamento n'um cárcere cheio de humida- de onde paíTava os feus dias na oração e na penitencia, tinham acabado por enlouquecel-o. A Vida da glorio/a Santa Anua, que efcrevêra na prifão, era o documento vivo das alluci- nações de um efpirito enfermo. Nada lhe valeu, porém: nem a idade, nem os foffrimentos phyficos, nem a loucura. Servia mefmo aíTim, fervia de todos os modos para o drama; defde que veftiffe a roupeta do jefuita, era um fymbolo que fe podia infultar na praça publica com applaufo de uma corte e de um povo tão eftupidos como fanguinarios.

Carvalho e Mello fubmetteu o infeliz ao julgamento da Inquifição, velha inimiga da Companhia, que o degradou das ordens ecclefiafticas e arbitrariamente o entregou á juftiça fecular. Soriano obferva caufticamente que o tribunal da In- quifição era ao tempo prcfidido por Monfenhor Paulo de Carvalho, irmão do miniftro de D. Jofé.

Deplorável!

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o tribuna! da Relação confirmou a lentença inquifitorial, condemnando Malagrida a ler garrotado, queimando-fe-lhe depois o cadáver para que d'elle e fiia fepultiira não ficajje memoria no mundo.

A 2 1 de feptembro de 1 76 1 realifou-fe a execução na praça do Rocio. Carvalho e Mello diftribuíra largamente cartas de convite para a fejla. O corpo diplomático, a no- breza, reflos da que exiltia ainda, delegados de todos os tri- bunaes, reprefentantes de todos os minifterios, deputados de todas as inftituições officiacs, tudo foi convidado e tudo compareceu. Em torno da praça tinham-le previamente le- vantado barracas para as peíToas de difi:incção aíTifiirem; e ao centro elevavam-le, ricamente adornados, o tabernáculo em que a fentença devia ler lida e o cadafallb que devia gar- rotar o defventurado louco. Deftacamentos de cavallaria e infanteria circumdavam a praça, eftendendo depois em linha até ao convento dos dominicanos. Aíllm era precifo para conter na ordem até ao fim milhares de efpeftadores: toda a populaça de Lifboa. Não fe pouparam nem esforços, nem dinheiro na mife en fcène do drama.

Á hora aprazada furgiu na praça, entre dois padres, a figura pallida e tremula do condemnado. Um ulb tradicional, e não fei mefino fe uma lei, efiabelecia que n'eftas condições os ccclefiaíficos fe defpojaíTem dos hábitos das luas ordens. Para o jcfuita abriu-fe uma excepção odiofa: Malagrida ves- tia a roupeta da Companhia. Affim era precifo: o habito era tudo, era o fymbolo. O velho jefuita voltava em todas as direcções um olhar amortecido a que as névoas da loucura e do terror davam n'aquella agonia uma eftranha expreíTão; tremia e encoftava-fe aos padres para não cair. Conduzido ao tabernáculo, leram-lhe a lentença da Inquifição que o declarava, fegundo o eftylo, um falfo propheta, um herético e um fingidor de relações que Deus concede aos J cus ver-

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dadeiros fervos. O jcluita omiu calado o capitulo de accu- fação. Por que eftranhos mundos de myfticifmo erraria o efpirito d'aquelle defgraçado?

Concluida a leitura, o cadafalfo armou-fe e o carrafco fez o leu dever. Depois veiu o auto-da-fé, o corpo foi atirado ás chammas e tudo acabou no meio de um lllencio ahfoluto. Não houve, com effeito, n'aquella maíTa enorme de corações humanos uma voz que fe ergueíTe para proteftar. Carvalho devia eftar fatisfeito: o terror da fua peíToa paralylava as energias de uma cidade inteira!

III

O leitor que agora conhece a maneira por que Cars^alho e Mello levou a eíTeito a expullao dos jeluitas, pôde bem ajuizar quanto ha de falfo nas opiniões vulgares Ibbre o alTumpto. Ha ainda muito quem penfe que o miniftro de D. Jofé procedeu ferenamente contra a Companhia, deíhtuin- do-a por um calculo frio de radicalifmo anti-religiofo, como o cirurgião que corta fundo nas carnes para ir bufcar as raí- zes primitivas de um cancro. Não foi aíTim : o que efcrevemos deve ter provado que o efladiíta nem viu eíTas raizes, porque não lh'o permittia o feu efpirito de crente, nem teve a fere- nidade do operador, porque a ilTo fe oppunha o fcu cara- fter violento e arrebatado.

Primitivamente, Carvalho defejava apenas reformar a Companhia, combatendo os abufos de que fe tornara res- ponfavcl cm Portugal e na America; foi para iíTo que pediu o auxilio do papa. O attentado contra o rei fuggeriu-lhe depois a idca de caftigar civilmente os padres incurfos nos crimes políticos de confpirações; n'eífe intuito impetrou de Roma auclorifação para que o tribunal ecclefiaftico, julgados

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religiofamente os réus, os entregaíTe ao braço fecular. As re- ludtancias da Guria e as delongas d'eíl:a negociação, em que Carvalho batia a Companhia, íubornando indecorofamente os cardeaes do Sacro CoUegio, impacientaram o efpirito ir- requieto do eítadifta, que n'um acceffo da cólera decretou a expulfão dos jefuitas. Não foi, pois, um fereno calculo, uma comprehenfão dos intereffes moraes do paiz que prefidiram no animo de Carvalho á publicação do decreto de 3 de fe- ptembro; foram, fim, o defpeito contra Roma, a neceíTidade de defaífrontar a realeza e, fobretudo, o defejo de uma vin- gança que a guerra jefuitica do Paraguay fizera nafcer no feu efpirito dominativo e implacável. A execução de Gabriel Malagrida, dois annos depois de expulfos todos os jefuitas, é a prova; e nem todo o refpeito pelos ferviços do Mar- quez de Pombal pôde conteílar eíTe documento vivo na his- toria.

As intenções de Carvalho e Mello não foram, pois, nem anti-catholicas, nem democráticas, como fe tem dito. Não foram anti-catholicas, porque o eftadiíla portuguez, contraria- mente aos encyclopediftas, era um crente; não foram demo- cráticas, porque a realeza abfoluta era para elle um fetiche cuja adoração impunha tyrannicamente ao paiz. «No fyfte- ma focial de Carvalho, efcreve Soriano, as funcções de rei eram mandar o que muito bem lhe aprouveíTe, e as da na- ção toda obedecer fubmiíTa e paíTivamente, fem nem ao me- nos lhe permittir o direito de cenfura ou de reprefentação em contrario'». O fr. Theophilo Braga reforça a opinião de Soriano com eftas palavras expreffivas: «Pombal confidera- va a realeza acima dos povos como uma guarda providen- cial do tiirpe peais; para elle toda a barbaridade refinada pela tortura não bailava para caftigar os crimes de lefa-ma-

' Soriano, obr. cit., vol. i.

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jeftade, cuja fcitncia certa c vontade foberana eram o funda- mento de todas as leis'».

Mas mais alto que todas as audoridades faliam os fa- dos. Nós vamos apontar três, particularmente demonítrati- vos da afiirmação contida nas citações que fizemos.

O livro de Velafco de Gouveia, Jiijla Acclamação^ pro- clamava o principio da foberania nacional. Carvalho e Mel- lo, incommodado por effa doutrina liberal, fubmetteu o livro ao exame de cinco doutores da univerfidade de Coimbra para que o declaraíTem apocrypho e fem aufforidade jurídi- ca. Os nomeados alllm o fizeram, imputando a obra aos jefuitas, e declarando atoniiiiareis os princípios n'ella conti- dos. E figniíicativo.

Outro fado. Quando em fevereiro de lySy fe declarou no Porto a revolta popular a que nos referimos, provocada pela creação da Companhia do Alto Douro, monopolifadora do commercio dos vinhos, Carvalho e Mello mandou imme- diatamente ao foco da agitação uma alçada que no efpaço de cinco mezes prendeu nada menos de 478 indivíduos. Exercendo preíTão fobre os juizes e forçando-os a confide- rarem a revolta um crime de lefa-majejlade, Carvalho con- tribuiu para que fubiíTem ao patíbulo 2 1 dos implicados n'aquelle movimento. Para provar que a revolta merecia a claíTilicação que lhe deram os juizes, Carvalho efcrevia: «A majeftade não conlifte na peíToa do rei, mas nas fuás leis e Eftado». A realeza era tudo; uma cidade que fe revoltava., ferida nos feus intereíTes por um monopólio, era nada.

Um ultimo fado ainda. A Meia do Bem Coinininn, conliderando um attentado contra a liberdade e contra os intereíTes dos que faziam commercio entre Portugal e o Bra- zil, a exiítencia da Companhia do Grão-Pará e Maranhão,

I Th. Braga. Do adreníu cvulutivo das idcas democralicas. Lifboa, 1879.

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creada por decreto de ii de agofto de lySS, reprefentou ao rei no fentido de annuUar o ado minifterial d'efta data. A re- prefentação, apoiada em argumentos ferios e confiderações económicas importantes, era concebida em termos modera- dos e refpeitolbs. O que fez Carvalho e Mello? Ferido no feu orgulho, maguado por encontrar uma refiftencia, decla- rou a reprefentação um crime de lefa-majejlade, aboliu a Meia do Bem Commiiin, mandou prender todos os lignata- rios da reprefentação, e fez condemnar a degredo para a Africa o advogado que a redigira, João Thomaz Negreiro, que não chegou a cumprir degredo, porque, retido á efpera de navio na prifão do Limoeiro, ahi encontrou a morte e o tumulo por occafião do terremoto. Era efte o modo por que Carvalho e Mello comprehendia e commentava o direito de petição. Era aíTim que elle antepunha a fua vontade e o preftigio da realeza abfoluta aos intereíTes dos cidadãos.

Relgatam-no d'eftas culpas, apreíTo-me a dizei o, ados bons; nem nós pretendemos que o Marquez de Pombal des- confideraíTe a profperidade do paiz. Seria ahfurdo pretender tal: feria efquecer ados como a abolição cia efcravatura, a rehabilitação dos judeus, a reforma da univerlidade e ou- tros ainda que nos impõem o dever da gratidão. Mas nem por iflb é menos certo que lhe mereciam mais folicitude os intereffes da coroa que os dos cidadãos; nem por iífo deixa de fer verdade que ás prerogativas da monarchia abfoluta vidimava, fem perplexidades, os intereíTes e os direitos do povo. Ao catholico, pcrfeguidor dos jefuitas, correfpondia o ablblutifta, perfeguidor da liberdade, embora libertador dos efcravos. O homem que combatia a Companhia de Jefus para purificar a religião, cujos principios admittia como crente, era o mefmo que combatia a liberdade para dar es- plendor d realeza, cuja invefhdura divina era o feu credo politico eflencial.

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Efte fetichifmo do Marquez de Pombal pela realeza ab- foluta, no Icculo dos encyclopediftas, denuncia acanhadas preoccupaçôes mentaes de que os altos efpiritos do feu tem- po le tinham emancipado já.

Conhecidas intimamente nos proceíTos de manifeítação e nas caufas determinantes as hoftilidades de Pombal con- tra a Companhia de Jefus, vejamos agora, refumidamente, quaes foram as conlequencias do ado de 3 de feptcmbro.

Expulfos os jeÍLiitas, ficaria Portugal defaífrontado da nu- vem negra que defde D. João III lhe viera efcurecendo os horifontes? Aufentc a roupeta, reviveriam no efpirito do po- vo, amortecido e quebrado pelas algemas de uma educação deprimente de feculos, o vigor e a coragem dos tempos for- tes da noíTa nacionalidade!' O Ir. Oliveira Martins refponde: «O reinado de D. Maria I vem demonífrar que o braço de ferro do Marquez de Pombal não podéra defviar da carreira da decompofição, eíta fociedade envenenada pela educação jefuita. O miniftro pôde exterminar a Companhia; mas não pôde extinguir o feu efpirito, nem os feus difcipulos, que eram em Portugal toda a gente, incluindo Pombal em pes- foa . . . Como a charrua que revolve a gleba, exterminou as plantas vifiveis; porém as raizes dos cardos ficaram e rever- deceram'».

É efta a verdade que o próprio Marquez dolorofamente verificou nos últimos annos de vida. Morto D. Jofé, que lhe dera força, que lhe fanccionára com aucforidade de rei ab- foluto todos os ados minifteriaes, Pombal, ifolado e efcarne- cido na velhice, viu erguer- fe impetuofa e cheia de vida a reacção que vinha, como um cyclone irreverente, derrubar a feara querida das fuás reformas. Os inimigos do Marquez

> Oliveira Martins, obr. cil., vol. ii.

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rehabilitaram-fe; e o beaterio, que principiava na corte, onde a rainha emparvecida chorava noite e dia os erros de feu pae, eftendia-fc por todo o reino com geral aprazimento. A hora das defiUuloes chegara: os perfeguidos tornaram-fe per- feguidores. O miniftro de D. Jofé, no ultimo quartel da vida, com oitenta e dois annos de edade, foi fubmettido a um in- terrogatório fevero em que pigmeus e nullos lhe pediram arrogantemente a juftificação dos feus aítos adminiftrativos e politicos.

Debalde o velho e alquebrado eítadifta declarava, para obftar ao defdobramento de importunas minuciofidades, que todos os feus ados tinham merecido a approvação do rei, de accordo com cuja vontade foberana procedera fempre. Efta declaração não o iíentou da refponfabilidade completa e abfoluta em face dos inimigos, agora arvorados em juizes feveros e teftemunhas implacáveis de accufação. O defaforo e arrogância do interrogatório official attingiram o efcan- dalo; entre outros, o abjedo e repulfivo intendente da poli- cia atreveu-fe a defmentir os depoimentos do Marquez. O leão decrépito recebia o coice d'aquelle Pina Manique de que reza a fabula. Exhaufto e deprimido pelo rude golpe moral, mais talvez que pela edade e pelos foífrimentos phylicos, o Marquez de Pombal acabou por implorar para os feus cri- mes a piedade da rainha! Foi uma queda. Mas Luiz Gomes diz bem: «Os homens que fe levantam por meios violentos e extraordinários não defcem, cahem. São como as folhas que a violência do vento ergue ás grandes alturas e que, fere- nada a tempeftade, tombam folicitadas pelo próprio pefo'».

A reacção tremenda do reinado de D. Maria I não a provocaram, certamente, os jefuitas expulfos, mas provocou- as, o que vale o mefmo, o efpirito da Companhia que ficara

I Luiz Gomes, obr. cit.

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arraigado nas confciencias. Os jefuitas de roupeta tinham paflado as fronteiras á voz imperiofa do Marquez de Pom- bal; mas os jefuitas de cafaca, mais temiveis, porque não têem uniforme que os denuncie, effes ficaram; nem podia deixar de fer: quem tentaíTe expulfal-os no feculo xviii, te- ria de defpovoar o reino.

1 V On lie détruit que ce qu'on remplace.

A. CoMTE.

Terminada a parte propriamente hiítorica do eftudo que nos propozemos fazer, apontemos agora algumas confidera- ções que elle nos fuggere, e que a commemoração do cente- nário vemi tornar opportunas.

O jefuitifmo não morreu. O efpirito incoercível da Com- panhia paira ainda fobre a Europa e fobre a America, como a tremenda ameaça de futuras agitações poffiveis. O jefui- tifmo é ainda hoje, não o efqueça ninguém, a feita religiofa que conferva puras as tradições aucforitorias e centraliftas do catholicifmo ; é ainda a milícia difciplinada de Roma, te- naciíTima, perfiftente, armada e difpofta fempre para a luda contra o livre penfamento. Os mefmos fempre na eífencia e no efpirito íntimo dos feus princípios, mas proteiformes nas manifeítações, os foldados do jefuitifmo mudam de táctica e de nome quando lhes convém, mas nunca de intuito. Se lhes vedam a entrada nos confeíTionarios, penetram nos hofpitaes, onde defvelando gratuitamente os enfermos, fe apoffam dos efpiritos por uma propaganda vagarofa e infenílvel, mas ef- ficaz, porque parece protegel-a a idéa generofa do definte- reífe; fe lhes prohibem a apparição nos púlpitos, entram na imprenfa c faliam d'ahi pelos jornaes e pelos livros á intel- ligencia dos fuperfticiofos e dos fracos; fe lhes rejeitam a denominação antipathica da Ordem, mudam de nome e con- tinuam defaíTrontados a fua obra, conftruindo cfcolas, ele-

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vando templos, minando fempre, fem tréguas e fem des- alentos.

O povo ignorante acceita-os de rofto alegre, e as claíTes confervadoras, obcecadas pela faudade do paíTado, hoítis ao prelente e ao futuro, preftam-lhes, como fe viu ainda ha pouco em França, um incondicional apoio. N'eíl:as condi- ções o jefuitifmo profpera hoje mefmo nos paizes catholicos. Em Portugal e no Brazil, nações atardadas em que exifte ainda efta coufa irriforia que fe chama religião do EJlado, ninguém ignora a influencia decifiva do jefuita.

Deftruir efta influencia deletéria que nos envenena, amar- rando ao paflado os que deviam olhar para o futuro, folidi- íicando inftituições provedas que nos tolhem o movimento expanfivo e agora urgente das reformas politicas e fociacs, eis um dever que á geração nova importa fortemente cum- prir. Mas de que maneira? Pelos proceflbs revolucionários, pela violência? Não o cremos. A hiftoria do Marquez de Pombal deve fervir-nos de exemplo e de lição. Ha em todas as queftões de transformação Ibcial, como em todas as de transformação biológica, um fador de que íe não pôde pre- fcindir: é o tempo. O proceflb revolucionário confequen- cia metaphyfica das doutrinas e concepções politicas ante- riores á conftituição fcientifica da fociologia , pretendendo fupprimir aquelle fador, ha de conduzir fempre e fatalmen- te ao infucceífo. Simulará transformações, mas não as fará. Deftruirá abufos, privilégios e erros, mas na apparencia ape- nas; porque, no fundo, os erros, os privilégios e os abufos ficarão fubfiftindo. O Marquez de Pombal no meiado do fe- culo XVIII expulfou para Jhnpre de Portugal e feus domínios os jefuitas, por um decreto revolucionário; e comtudo ao de- clinar do feculo XIX, cento e vinte e três annos depois do de- creto, os jefuitas vivem ainda ao noflb lado. A França expul- fou-os também duas vezes, em i5g4, primeiro, e depois em

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1762; e todavia ainda hontem a vimos cm lufta com elles. A Inglaterra deftituiu a Companhia em iSyi ; mas em 1601 teve de proceder de novo contra cila, porque, a defpeito das medidas legaes, a roupeta achara meios de introduzir-fe de novo. A RuíTia decretou igualmente a expulfão dos padres jeluitas cm 17 17; mas em 181 7, precifamente um feculo depois, viu-os de novo florefcentes no feu folo, e teve de ex- pulfal-os outra vez. Affim é lempre: as inftituições que fe radicaram nos efpiritos não fe deftroem de um momento para o outro a golpes de penna ou de cfpada.

O proceíTo revolucionário pôde ler exigido pelas cir- cumftancias de uma fituação defefperada; e é então o remé- dio extremo que a afflicção collediva de um povo explica e juftifica. Em cafos taes o proceflb a empregar não fe difcute, porque não ha logar para reflcdir; e a revolução apparece como um movimento defordenado, como a explofão ruidofa de um foífrimcnto que não conhece leis. Foi o que em Fran- ça aconteceu em I7g3. Mas n'eíres cafos excepcionaes, úni- cos que fe juftificam, o proccífo revolucionário e a revolução confundem-fe : não ha um miniftro que decreta ou um gene- ral que fe impõe; ha, fim, uma fociedade que fe agita, a maioria de um povo que proclama violentamente direitos que um defpota ou uma pequena minoria lhe não deixavam proclamar ferenamente. Eis o que importa advertir. Fora d'cífes cafos anómalos, que nos paizcs onde o povo tem um parlamento fe não podem repetir, o proceflb revolucionário confunde-fe com o moderno jacobinijmo, e fignifica apenas, por melhores intenções que lhe prefidam, a impofição fempre odiofa da minoria á maioria de um povo; é precifamente o contrario da revolução, em que a maioria de um paiz, oíTen- dida nos feus direitos pelos privilégios da minoria, impõe a efta a fua vontade ou, o que tanto vale, define a fua foberania.

A diftincção que eftabelecemos entre proceíTos revolucio-

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narios e revoluções não é um jogo de palavras; é a confi- gnação de um fado bem eíTencial que devia andar lembra- do e que infelizmente anda efquecido.

Derivando d'eítas confiderações geraes para o cafo efpe- cial que nos occupa, repitamos a pergunta feita: Como nos cumpre proceder em face dos jefuitas? Expulfal-os, feria re- montar ao paíTado em bufca de novas defiUufóes. O proces- fo a empregar em noíTos dias é outro: mais morofo, de cer- to, mas mais radical e mais feguro.

Os jefuitas vivem da ignorância do povo pelas raizes do catholicifmo, como os tortulhos vivem da humidade dos pântanos. Cortar a parte apparente dos tortulhos e deixar o pântano é trabalho baldado; os cogumelos, confervada a raiz em terreno apropriado, reapparecerão tantas vezes quantas as que forem cortados. Que ha pois a fazer? Eítan- car o pântano para matar a raiz; inítruir o povo até que o catholicifmo que é hoje a fuperftição fyftematifada, tenha perdido toda a influencia que ainda conferva nas confcien- cias. Uma vez confeguido ifto, um governo virá que, interpre- tando a vontade efclarecida e preponderante do paiz, procla- me a feparação da Igreja e do Eftado; e então, perdido o dominio Ibbre as confciencias e perdido o apoio oíRcial, o jefuitifmo defapparecerá naturalmente, fatalmente, fem vio- lências e fem agitações. E nem mefmo lhe reftará o direito de queixar-fe: ninguém o expulfa, é elle que fe retira.

Os meios a empregar para chegar a efte fim, fão os pró- prios jefuitas que nol-os eníinam. Elles têem o púlpito, o confellionario e a efcola; empreguemos nós armas iguaes, que as temos: a imprenfa, as conferencias populares e a es- cola também.

Proceder affim, é feguir o caminho feguro. E efte o pro- ceífo evolutivo, único efíicaz. É longo, dirão muitos. Não o conteftàmos; mas porque o é, precifamente porque não

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abftrahe do tempo, factor eíTencial, os feus refultados ferão certos, radicaes. O proceíTo revolucionário dirige-le ás appa- rencias; o proceíTo evolutivo ao fundo mefmo das inftitui- ções. O primeiro procede contra a roupeta; o fegundo con- tra o catholicifmo que lhe força. Um extirpa os jefuitas uniformifados, o outro, todos os jefuitas. O proceíTo revo- lucionário vê Tómente a Companhia de Jefus; o proceíTo evo- lutivo vê principalmente e mais fundo a Igreja, ell:a ultima haftilha, como lhe chama um pofitiviífa francez, em que to- dos os reaccionários Te refugiaram para dar o derradeiro combate á democracia.

Qual dos dois proceíTos convém ao radicalifmo democrá- tico? A hiíl:oria condemna um; a Tciencia focial preconifa o outro. A geração nova que efcolha.

JuLio DF, Mattos.

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o MARQUEZ DE POMBAL

E A RESTAURAÇÃO DA

LITTERATURA PORTUGUEZA

omecemos por carafterifar o efpirito e a ten- dência hiftorica do leculo xviii, para julgarmos ^ da coherencia dos esforços quer da audorida- de, confinada no cefarifmo, quer da intelligen- cia, amefquinhada nas academias. A organi- fação da fociedade moderna foi iniciada pefos jurifconfultos do fim da Edade media, que fun- daram a egiialdade civil; atacando a prepotên- cia dos barões feudaes, que fe impunham pela impetuofi- dade arbitraria, procuraram eftabelecer a lei efcripta, quer redigindo as garantias locaes, ou fazendo reviver o direito romano. Affim a vontade era fubordinada a uma norma prefcripta. Pela forma efcripta as garantias locaes deram força ás populações trabalhadoras dos campos e dos burgos, e acordando o fentimento do individualifmo fufcitaram eíTes movimentos revolucionários que deram em terra com a des- egualdade feudal. Era uma grande parte da obra que firmou

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a ordem focial fobre a eítabilidade do direito; o terceiro cita- do, ou a exiftencia jurídica do proletariado, tornou-fe a con- dição para o defeiivolvimento de um poder central, a quem convinha reconhecer o novo principio da egualdade civil.

EíTe poder era a realeza, que fe deítacou e tornou inde- pendente do feudalifmo pela hereditariedade dynaítica; o trabalho dos jurifconfultos coadjuvou eíta independência pela renafcença erudita do direito romano, em que prevale- cia o efpirito centralifta da unidade imperial. Preoccupados exclufivamente da egualdade civil, os jurifconfultos abando- naram o outro elemento imprefcindivel do progreíTo, a liber- dade politica, que os feus conhecimentos humaniftas teriam encontrado claramente definidos na civilifação hellenica. D'efte abandono refultou, que todas as republicas da Edade media foram caindo diante da abforpção do poder monar- chico, e por ultimo a própria egualdade civil ficou expofta aos caprichos de um poder irrefponfavel, tornado abfoluto, defpotico e cefarifta.

O que fe não fez pela tradição hiftorica, completou-fe pela efpeculação philofophica e pelas afpirações fentimen- taes, que infpiraram as litteraturas. É por iífo que o proble- ma da liberdade politica pertence ao feculo xviii, ao feculo dos encyclopediftas, aos litteratos, como Voltaire e Rouífeau, e aos philofophos, como Montefquieu, Diderot, Condorcet, Turgot, vindo as revoltas communaes a acharem o feu com- plemento definitivo no grande phenomeno da Revolução franceza.

Em Portugal achámos a primeira parte do movimento da reorganifação focial moderna; defde o feculo xv, que florefcem entre nós os grandes jurifconfultos e codificadores, João Mendes, Ruy Fernandes, Ruy Botto, João Façanha e Fernão de Pina, alguns dos quaes, como Velafco de Gouvêa, chegaram a prefentir a liberdade politica affirmada em prin-

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cipio na doutrina da foberania nacional. Mas o noíTo fecu- lo XVIII não teve philolbphos, e os litteratos eram académi- cos convencionaes que imitavam os cânones rhetoricos das epochas da decadência claíTica, não tinham idéas, eftavam fora do leu tempo, e as fuás afpiraçóes limitavam-fe a aco- llierem-fe ás graças do cefarifmo omnipotente. Como não exiftiram philofophos, nem os litteratos fe infpiravam da verdade do fentimento, por iíTo não fe crearam opiniões, e os raros efpiritos que fe alimentaram das doutrinas dos en- cyclopediftas e dos phyfiocratas, calaram-fe com o terror da repreífão ou emigraram de Portugal, mefmo antes da terrivel intendência de Manique fechar as portas á entrada dos livros francezes, ou mandal-os queimar na praça publica pela mão do carrafco, ou apprehendel-os nas livrarias particulares, como fe fez á de Frei Joaquim de Santa Clara, á de Jofé Anaftafio da Cunha, á de Bocage e até ás encommendas do duque de Lafões, parente da cala real. As idéas franceias e o pliilofopliifino, como em Portugal fe defignava a corrente da liberdade politica, foram duramente abafados por todos os poderes confervadores do eftado. Por iíTo defde a renafcen- ça, em que fomos grandes, até ao primeiro quartel d'en:e fe- culo, Portugal profeguiu em uma irremediável decadência a cuja caufa fe pôde ainda attribuir a apathia adual, a falta ou a fophifmação da liberdade politica. O feculo xviii tão rico em Portugal de homens de talento e de fciencia, contrafta com a profunda irracionalidade das inftituições por falta do complemento da egualdade civil na liberdade politica. O próprio Marquez de Pombal, extremamente regalifta, tornou eífa liberdade um crime de lefa-mageftade, chegando a pu- nir com feveridade o direito de reprefentação.

Qual feria n'eftâs condições deprimentes o deflino do homem de lettras? No feculo xviii, em Portugal, o poeta era um miferavel, que fe admittia á mefa dos creados das cafas

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fidalgas, e, como diz o próprio Tolentino retratando-fe in- confcientemente, acabava fempre por pedir efmola; fuppria o antigo coftume dos bobos dos palácios feudaes, metrifi- cando encómios fobre todos os fucceíTos da realeza ou da ariítocracia. As compofições mais appetecidas eram as que não tinham penfamento, que le ouviam no intervallo das grandes digeítões dos banquetes e dos outeiros poéticos dos abbadeçados, vindo a conftituir um género de compofições jocoferias, e acabando por le diíTolverem na obfcenidade. Os poetas tornavam-le por efte meio, não diremos popula- res, porcjue elles ignoravam as fontes vivas da tradição, mas a fabula da gente, chegando o nome do poeta a tornar-fe fynonymo de fordido e def bragado; os mais conhecidos per- tencem á corte de D. JoãoV, effes Thomaz Pinto Brandão, Alexandre de Lima, o padre Braz da Cofia, Frei Lucas de Santa Catharina e Caetano da Silva Souto Maior, o Camões do Rocio. Efte fymptoma de decadência intelledual perfiftiu fob D. Jofé, em António Lobo de Carvalho, e Bocage e o próprio Filinto Elyfio facrificaram parte do feu talento a afta perverfão do fentimento. Não havia outro intuito fenão louvar, encomiar, panegyricar com defcaro até á indignida- de; o que fe efcrevia não era obra litteraria, era para uns uma garantia contra as prepotências de cefarifmo, para ou- tros um ganha pão, um pretexto para os prefentes dos ricos, e os mais elevados viam n'eíre trabalho um nobre ócio, um honefto paíTatempo, que não deixava que a confciencia fe infurgifl"e contra a intolerância catholica ou contra a violên- cia cefarifta. N'efte intuito é que fe formaram as academias litterarias, em que os defembargadores, os confelheiros, os altos funccionarios do eftado, os fidalgos, le reuniram, como conftituindo uma claíTe á parte, mas fimilhante á dos efcri- bas do Egypto ou da China, porque a lituação politica de Portugal era idêntica á d'eíras civilifações primitivas. Al-

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guns efcriptores, como Cruz e Silva, tinham vergonha de pubHcar os léus produdos Htterarios pelo fado de não des- luftrar a refpeitahilidadc de defemhargador! Comprehende- fe bem n'ell:a demência intelledual, em que a litteratura não tinha deítino, porque é que eíTes dois poderes, o Catholi- cilmo e o Cefarifmo, patrocinaram effe género de cultura. Defde o feculo xvi, os jefuitas apoderam-fe do enfmo publi- co, para embaraçarem a intelligencia por um efteril e ôcco humanilmo, afaílando-a da corrente de renovação fcientiíica que prepondera com Gallileo e adquire a lua maior intenfi- dade depois de Delcartes. Pelo feu lado a realeza cefarifta favorecia as academias litterarias emquanto ellas adormen- tavam a afpiração da liberdade politica; D. João V protege a Academia de Hiftoria, o Marquez de Pombal patrocinou momentaneamente a Arcádia de Lifboa, e o intendente Ma- nique era o protedor nato da Nova Arcádia ou Academia de Bellas Lettras, durante a demência de D. Maria I.

A acção profunda do Marquez de Pombal eftendeu-fe também á litteratura; batendo os jefuitas na regulamentação do enfino official, foi-lhe ao encontro no defenvolvimento dos productos humaniftas. E extraordinário o numero de vo- lumes de verfos compoítos para a ceremonia da elevação da eftatua equeítre e para as feitas reaes; o Marquez era im- placável para as fatyras em verfo, e ai d'aquelle fobre quem caííTe a fufpcita de um verlb menos refpeitolb contra a fua peíToa, porque ficaria fepultado para fempre nas mafmorras da Junqueira. Efta fituação de efpirito explica-nos como, tendo o Marquez de Pombal fido um dos membros da an- tiga Academia de HiJIoria portugueia, fe achou primeiramen- te bem difpoíto em favor da nova fundação da Arcádia Ulyfftponenfe, e como acabou por fim em perfeguir por des- confianças ainda não explicadas os principaes dos feus mem- bros, como Garção.

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Façamos a tranfição do reinado de D. João V para o de D. Jofé, para comprehendermos melhor a influencia de Pombal na litteratura. A opulência do reinado de D. João V contrafta com o eftado miferavel da nação, arrazada pelo tratado de Mettwen, reduzida em 1732 á cifra de menos de dois milhões e meio de habitantes em geral indigentes, porque a terra pertencia aos morgados, aos titulares, ás ca- fas real de Bragança e do Infantado, e ás corporações mo- nachaes; e eftupidecida, porque o enfino eílava monopoli- íado pelos frades e reduzido a dilciplinas pedantefcas. As riquezas defpendidas nas conítrucções pharaonicas, eram o produéto cafual das minas de ouro do Brazil, e não a con- fequencia de uma força viva, como a riqueza que provém da induífria. As minas do Brazil produziram de 1714 a 1746 em ouro amoedado 96.04o:62 8w'4i5 réis, e em dia- mantes 12:000 contos. Comprehende-fe como a monarchia era um poder myíteriofo, e como as energias individuacs fe abandonavam á vontade foberana que diftribuia eítes re- curfos. Tão extraordinário capital corrompia, não fecunda- va; viu-fe iíTo tanto na arte como na litteratura. A bafilica de Mafra e a Patriarchal não produziram uma efcola artís- tica, e o gofto de recócó, a chinelaria tomados da moda fran- ceza e o eítylo jefuitico acabaram de deftruir todas as no- ções do bello que exiftiam na alma portugueza. O eftupendo theatro da Ribeira (i755), onde o architedo decorador Ser- vandoni phantafiava ornamentações defvairadas, capazes de arruinarem um eftado, não produziu nem a opera nacional, para a qual exiítia o elemento nacional da Modinha^ como o declara StraíFord, nem o drama litterario apefar do talento excepcional do defgraçado António Jole. A fundação da es- plendida Bibliotheca da Univerfidade de Coimbra, começa- da em 10 de abril de 171 2 e terminada em 1728, cuflou 66:6225? 129 réis; e a compra da livraria de Francifco Barre-

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to por 5:6oOv00o réis, a do padre La Rue em Paris, e a de João Baptifta Lerzo, bem como as remeíTas de Lucas Seabra da Silva, tudo foi improfícuo, porque os lentes não fe inftruiram e a Univerfidade defceu ao ponto de em 1772 o miniílro de D. Jofé ter de reorganifal-a pela omnipotência official. A fundação da Academia de Hijloria portiigiieia, em 1720, não creou entre nós o critério da hiftoria, apefar do rei a dotar com todos os privilégios imagináveis, mandar-lhe patentear todos os cartórios do reino, nomeando paleogra- phos para tirarem as copias precifas, e impondo por um decreto de 14 de agoíto de 172 1 o refpeito aos feus vaíTal- los por todos os monumentos architedonicos. Apefar de to- dos eftes influxos, a decadência intelleítual vê-fe patente no eftylo e nos refí.iltados das noticias, praticas, orações, elo- gios e diíTertações dos feus membros.

Uma coufa faltava para que efles generofos esforços fru- éfificaíTem, a liberdade! A nação não tinha parlamento, o povo não tinha terra, o trabalho era confiderado degradan- te, a educação publica ell:ava em poder dos jefuitas, a con- fciencia era atropellada por um clero abforvente e canni- bal, o efpirito crítico tinha a efpionagem do Santo Ofíicio e a fogueira, a realeza era um fetiche, e a ariítocracia uma proftituição galante. Era um meio excellente para a indigni- dade campear infrene, mas nunca para fe crearem conce- pções artifticas, ou fe manifeftarcm os penfamentos fecun- dos. Um povo fem opinião, fubmiíTo ao regimen que corta toda a manifeftação do penfamento fobre os actos do gover- no difcricionario, os efpedaculos deftinados a defviarem as attenções da caufa publica, as idéas confideradas como um perigo focial, tudo conduzia ao cretinifmo, á idiotia, para exprimir a qual é ainda generofa a palavra decadência. E efla decadência nacional não podia deixar de aggravar-fe com as monítruofidades de um rei epiléptico, fauítofo como

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Luiz XIV, devaíTo como Luiz XV, e fanático como Filippe II; tal era D. João V, que o leu contemporâneo Frederico II, o violador da Pragmática Sancção, e portanto leu inimigo, retratava com efta phrafe farcaftica, mas profunda: «Ses plai- Jirs étaient des fonãions facerdotales, fes bátiments des couvents; et fes armées des moines et fes inaitrejjes des religieiifesy> . As tentativas de reforma litteraria fob D. João V caíram pela efterilidade do meio focial e official, poftoque d'ahi provies- fem os germens de novos esforços. Ainda aíTim, eíTes ger- mens pertenceram á iniciativa particular e individual, e é notável como os primeiros esforços para a fundação da Ar- cádia de Li/boa foram a continuação do antigo grupo litte- rario denominado a Academia dos Occultos. Em uma oração recitada na Arcádia em lySS, Garção toca em um rápido elboço todos as tentativas encetadas no reinado de D. João V, depois da paz geral, para a reorganilação da inftrucção publica e da litteratura portugueza; fervir-nos-hemos das fuás próprias palavras que encerram a hiftoria dos prece- dentes d'eíra academia reformadora, afphyxiada Ibb a acção abforvente de Pombal: «A teimofa guerra com que nos vi- mos obrigados a rebater a fúria dos helpanhoes ainda não permittia que entre o ruido das armas e motim dos tambo- res fe deíTe ouvidos á harmonia das mufas; continuava a decadência. Ajuftou-fe a paz; focegaram-fe os ânimos, mas tão inveterado eftava o contagio, que fe houve quem o in- tentou, não houve quem não defefperaífe da reflauração das bellas lettras, das artes e das fciencias em Portugal. O nego- cio era tão importante e de tão difficil êxito, que nem ainda o grande efpirito e pródiga mão de D. João V pôde confeguir mais do que lançar os primeiros fundamentos. Eftimou os lá- bios, premiou os meftres, enriqueceu as livrarias do reino, e fundou a Real Academia de Hiftoria. Roubou-lhc a morte efta gloria, quando principiaram a amanhecer as primeiras luzes

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em Portugal do bom gofto, da verdadeira erudição e da prudente critica. Devemos alegrar-nos de fer inconteftavel que o primeiro documento em que podemos fixar a epocha d'eíla reftauração é o papei crítico que compoz e imprimiu o árcade Sincero Jerabifcenfc (lySg). É verdade que alguns efpiritos mais fortes tentaram efta empreza ainda hoje ár- dua, e então impoíTivel; mas como nas primeiras efcolas reinava certo efpirito de opinião, que foberbamente luften- tava o efpirito do mau gofto, o verdadeiro methodo ( 1 747) ou le não conhecia ou fe defprezava. Fundaram-fc academias. Algumas permaneceram fem mais frudo que o de propaga- rem o contagio. Nos últimos annos do reinado de D. João V apparecem os primeiros crepuículos do bom gojlo. então a Sociedade dos Occidtos, eftabelecida em um palácio em que fempre habitaram as mufas, e fundada por um génio extraordinário, herdeiro não do fangue, mas também dos raros talentos e virtudes dos feus progenitores, trabalhava n'eíte tempo na reftauração da lingua portugueza, do eftylo e da boa poefia. Poderia fer que a ella fe deveífe toda a gloria fe a publica defgraça não feparaífe tão útil e tão fa- bia companhia». Como fe vê, Garção ennumera as tentati- vas de renovação litteraria que precederam a fundação da Arcádia de Li/boa, e a cataftrophe do terremoto de Lifboa de 1755 trunca os últimos esforços da academia dos Occid- tos. Primeiramente eífas tentativas vifaram todas a obterem a intervenção ofíicial da omnipotência do abfolutifmo. As- fim em 17 10 Mello da Fonfcca aventava que D. João V é que podia mandar reformar a lingua portugueza dos muitos plebeifmos que a afaftavam da pureza latina. Bluteau attri- blie á munificência de D. João V o ter-fe publicado o grande Vocabulário portugue^; emfim a Academia de Hijloria rece- beu o influxo real, « com o exemplo do cardeal Richelieu, que no anno de i635 eftabeleceu em Paris a Academia

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franceza. . . » Depois de todas as preffôes do cefarifmo, que reftava á iniciativa individuai? apenas a bajulação do con- ílituido. Apenas Verney, continuando em Portugal o criticis- mo iniciado em Helpanha por Benito Feyjó, fez no Verda- deiro methodo de ejíiidar uma analyfe fundamentada do enfmo jefuitico e das eftereis difciplinas em que fe efgotava a in- telligencia portugueza, analyfe que produziu uma vigorofa reacção da parte dos jefuitas em folhetos pfeudonymos, que defvairaram por algum tempo as opiniões; mas o trabalho negativo de Verney teve a extraordinária importância de levantar a queftão do enfino publico e de fervir de bafe ao penfamento das reformas pedagógicas do Marquez de Pom- bal. Até onde os regulamentos têm efiicacia, eftende-fe a intervenção do eftado; mas o mundo moral eítá fora d'efta alçada, e o que então fe chamava o ffojfo era incoercível, ninguém fabia como trazel-o á difciplina. Tal era a preoc- cupação dos efpiritos, que fentiam a nova corrente da in- telligencia que Jacob de Caífro Sarmento recommendava a D. João V a traducção das obras de Bacon como primei- ro paíTo para as reformas, ou como Verney reconheciam a importância das doutrinas de Defcartes e de GaíTendi. Os jefuitas efterilifavam todos os esforços, impondo a confer- vação do eftreito ariftotelifmo da Philofophia conimbricenfe, que irradiava do CoUegio das Artes fobre Portugal, che- gando a formular no Ritual theologico: «Não fe defenderão opiniões contra a Lógica conimbricenfe». A confervação do acanhado humanifmo, com que os jefuitas durante o feculo XVII nos fepararam do movimento intelledual europeu, pro- longando-fe pela circumítancia de fe acharem miniftros de D. João V, coadjuvou ainda no feculo xviii a perfiftencia d'eíre eípinto fei/centijta, a que fe dava o nome de mau gos- to, e contra o qual procurou reagir a Arcádia, fob a protecção de Pombal. Antes porem da cooperação do mi-

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niftro, effa reacção contra o mau gojlo era um ataque dire- cto aos jefuitas, como fe viu pela celeuma levantada com as Cartas de Verney, e é por ilTo que o titulo de Occultos, fob que fe aggremiaram alguns efpiritos, nos revela que havia alguma coula de liberdade e de protefto a que fe el1:ava defacoftumado e que condiz com as tentativas de emanci- pação intelledual encetadas fob egual fegredo em França e Inglaterra. Em Portugal imitavam-fe as modas francezas, e liam-fe de preferencia os efcriptores do começo do reina- do de Luiz XIV; as relações de Boilcau com o conde da Ericeira moftram-nos que fe procurava em França a direc- ção mental pela rafão de que eftavamos divorciados politi- camente da Hefpanha intelleclualmente annuUada fob a de- gradação de Filippe V. A influencia franceza penetrava na peninfula, mas não era ainda a corrente philofophica e litteraria dos efcriptores que precederam a Revolução; ao primeiro impulfo correfponde, como notámos, a Acade- mia de Hijforia, a traducção da Poética de Boileau, e tudo quanto provinha das pompas do cefarifmo; os proteftos, as idéas novas, a revolta mental, o efpirito encyclopedifla muito tarde é que reflediram em Portugal, parte nos aclos do grande miniftro, parte nas afpirações do príncipe D. Jofé e no duque de Lafões ou ainda em Jofé Anaftafio da Cunha. Mefmo em França efte trabalho de reorganifação mental fora fecreto. A influencia que a liberdade do penfamento no dominio da politica exerceu, fobre todo o feculo xviii e em todos os paizes, começou a fortalecer-fe em uma aífociação de livres penfadores chamada o Club de Fentrefol, da qual falia o marquez de Argenfon nas fuás Memorias: «Era uma cfpecie de Club á ingleza, formado de indivíduos que gos- tando de difcorrer fobre o que fe paflava, podiam reunir-fe e communicarem, fem terror de fe comprometterem, fua opi- nião, porque fe conheciam bem uns aos outros, e fabiam

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com quem e diante de quem fallavam. Eíta fociedade cha- mava-fe o Entrefol (fobreloja) pelo logar onde fe reunia, que era a fobreloja onde habitava o abbade Alary. Ali fe acha- vam fempre gazetas de França, da HoUanda e melino jor- naes inglezes. » D'Argenfon hiftoría nas fuás Memorias efta aíTociação iniciadora da primeira efcola dos economiftas francezes e dos próprios encyclopediftas; muitos dos feus membros eram altos funccionarios da politica e do clero, mas bafta citarmos eífe typo extraordinário de evangelifador da humanidade, o Abbade de S. Pedro, o audor do Projedo da Pai perpetua, para determinar-fe a ordem da elaboração mental que fe eftava paífando nos efpiritos que precederam Montefquieu e Rouífeau. Era a incubação da fociedade eu- ropêa, voltada para o problema da liberdade politica, porque mefmo fem o contado com efta nova corrente da crítica, da philofophia e da litteratura, em Portugal manifeftaram-fe caraderes de um individualifmo altamente notável, como o Cavalheiro de Oliveira, que fe refugiou na Hollanda, então o redudo da liberdade de confciencia, o originaliírimo ab- bade António da Cofta, que o erudito Burnay confiderava uma efpecie de Rouífeau com mais elevação moral, e que viveu no foco das fummidades artifticas de Vienna, o gran- de medico António Ribeiro Sanches, cujas defcobertas fo- ram proclamadas por Vic d'Azyr, um dos fundadores da phyfiologia. Em Portugal tel-os-íam queimado. Mais tarde quando eífas idéas philofophicas fe accentuaram, começou a reacção tremenda primeiro pela morte mylteriofa e repen- tina do príncipe D. Jofé, o amigo de Jofé II, pelo encar- ceramento de Jofé Anaftafio da Cunha, e pela expatriação de Félix de Avellar Brotero e de Jofé Corrêa de Serra, não fallando de Francifco Manuel do Nafcimento envolvido, tal- vez já por caufa das fuás diífidencias litterarias, n'efta per- feguição da epocha denominada do intolerantifmo.

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Sahe-fe pouquiíTimo da Academia dos Occultos; alguns dos opulculos laídos d'ella delcobrem uma Ibciedade de ver- fejadores fem penfamento. Garção attribue-lhe planos de re- novação litteraria, que le não realifaram pela difperfão cau- fada pelo grande terremoto, perleguindo comtudo o mefmo penfamento na fundação da Arcádia de Lifboa, cujos pri- meiros membros haviam pertencido á corporação anterior. A Arcádia teve a virtude de nalcer da iniciativa particular, mas foi rojar-fe ante a omnipotência official, e para captar effe influxo achou-fe infenfivelmente reaccionária, primei- ramente pela contemporifação com o elemento feifcentifta, depois pela fubmiífão ao efpirito jefuita que a tornou odiofa ao Marquez de Pombal e a deixou morrer na inanidade. Cruz e Silva e Garção foram os dois principaes vultos d'eífa corporação litteraria, e pelas fuás relações com o Marquez de Pombal fe conhece o que o grande minirtro pretendia; Cruz e Silva, no poema heroi-comico do Hyffope, dera um golpe profundo nos infatuados ridiculos do mundo clerical, e o miniftro eítimava-o por elTa fua cooperação na obra da fecularifação focial; Garção era o amigo intimo dos padres das Neceífidades, conviva da ariftocracia hoftil ao audaciofo reformador, e por iífo foi fob um pretexto fútil encarcerado no Limoeiro, onde expirou mezes depois. Celebrando a pri- meira reunião da Arcádia, dizia Garção em um difcurfo: « Chegou o feliz inftante de nos ajuntarmos, então fundámos efta fociedade, jurando padroeira d'ella a immaculada rai- nha dos céus e da terra, debaixo do ineífavel titulo da fua puriíTima Conceição». Começando por bajular o fanatifmo religiofo, a fua actividade tinha de defpendcr-fe cm bajular a auftoridade do abfolutifmo monarchico; os três fundado- res. Cruz e Silva, Thcotonio Gomes de Carvalho e Efteves Negrão, eram altos funccionarios da confiança do miniltro, e trouxeram para a nova academia a benevolência d'aquelle,

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que também começara a fua adividade mental pela Acade- mia de Hijloria. Pela fua grande preponderância peíToal, Theotonio Gomes de Carvalho foi o primeiro prefidente; Cruz e Silva redigiu os eftatutos, fazendo dos actos da fo- ciedade nas queftões criticas uma efpecie de inquifição de eftado; Eíteves Negrão ficou o fecretario perpetuo. A pri- meira reunião definitiva da Arcádia celebrou-fe em 19 de julho de 1757, tendo-fe realifado uma outra preliminar em II de março de 1756. Parece que o miniítro omnipotente aíTiftiu a eftes actos. Garção, em um difcurfo recitado em 1758, allude a eíTa benignidade oííicial: «Ganharam as nos- fas obras nova reputação; conciliou refpeitos o nome de Árcade; e deíejou o publico aíTiftir ás noíTas conferencias. Atrevemo-nos a louvar um príncipe a quem Plinio podia fem lifonja recitar o famolb panegyrico de Trajano. O mes- mo foi ouvirem-nos, que eftimarem-nos os homens mais fa- bios e prudentes." Olharam o frudo do noíTo trabalho como para uma vantagem da nação. E a grande alma d'aquelle vigilante miniftro, que não tira os olhos do adiantamento da pátria, com publicas demonítrações nos honrou e animou, para não defirtirmos da diíiicultofa, mas illuítre empreza a que facrificavamos os noíTos eftudos. Segunda vez nos ou- viu, fegunda vez nos honrou; de lua mefma bocca ouvimos expreífões com que em Portugal não cuftumam faltar os miniífros. Podemos aíTeverar que vimos aquelle grande co- ração, e que n'elle cftava vivamente impreíTo o incanfaval zelo com que traballia pelo bem de feus compatriotas, com que honra e com que eftima os portuguezes beneméritos. Não tardará muito que o publico conheça que efte género de lettras lhe merece uma feria attenção, e que as eftima porque as conhece » .

Apefar d'eíl:as homenagens ao miniífro, elle não patroci- nou a Arcádia, talvez por defcobrir-lhe a errada compre-

henfão do feu deftino; em uma d'eíras vifitas officiaes de Sebaftião Jofé de Carvalho, o árcade Garção fez a leitura de uma ode emphatica, em que celebra o génio adminiftra- tivo do miniflro:

No Menalo, íe Arcádia não levanta

Em honra de teu nome

Uma Ibberba eftatua,

De rico jafpe, como tu mereces,

Seus hymnos te confagra,

E n^elles \iverá tua memoria;

Teu nome efcreveremos

Em nolfos corações, em noffos verfos.

Porém o miniftro abandonou a Arcádia como um foco de reacção jefuitica e não cumpriu nenhuma das fuás promes- fas. PaíTados cinco annos, ainda Garção fonhava com eíTe ambicionado favor ofíicial: «Tempo, tempo virá em que cheguem os eccos do nolTo merecimento aos ouvidos de quem o eftima, de quem o conhece e de quem o protege, ainda quando o defcobre defvalido, pobre e defprezado; nós ouvimos de fua bocca promeffas que não hão de faltar, e foi a noíTa cobardia quem deixou fugir a occafião. Cuide- mos em merecer o premio, que é mais fácil confeguil-o do que merecel-o, e ordinariamente o defeja quem o não me- rece». Na ode alludida de Garção ao conde de Oeiras, o poeta refere-fe á malevolencia que pretendia defluftrar as acções do miniftro:

Não ergue a mão cruenta a fria morte Contra fonoros verfos! Em vão levanta templos e columnas Quem da pátria os louvores não merece;

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Teu zelo incontraftavel,

Tuas acções illuítres, cantaremos!

A macilenta inveja

As viboras cerúleas delpedace!

Os grandes fucceíTos de extermínio da cafa de Aveiro em 1758, a neceíTidade de occorrer á invafão do exercito hefpanhol, o ataque deilemido á poderofa corporação dos jefuitas, fe nos moftram por um lado a extraordinária adi- vidade do miniílro que o embaraçava de animar com o feu favor a Arcádia, por outro lado outros tantos themas íbbre que o elpirito reaccionário dos jefuitas e das familias arifto- craticas envolvidas na confpiração contra o rei, fe haviam de exercer, minando o favoritifmo do miniftro. Para elle a Ar- cádia era um centro de reacção; os feus principaes mem- bros eram frades e padres. E como nada tinha a efperar d'ali, deixou-a vegetar no eftiolamento e extinguir-fe na ina- nidade. A occajião perdida a que allude Garção, pôde deter- minar-fe antes do primeiro golpe vibrado em 1757 contra os jefuitas; d'ahi em diante a luda tornou- fe mais violenta, e a Arcádia no meio da reorganifação geral ficou um corpo eftranho. O próprio Garção nada via n'efl:a ordem de cou- fas confinado na imitação do feu Horácio, e elle próprio pela lua educação no Collegio dos jefuitas e pelas idéas po- Hticas nas relações da Gaieta portiigiieia, pela intimidade peíToal com as familias ariftocraticas perfeguidas, como a de Alorna e a do conde de S. Lourenço, incorreu no ódio do poderofo miniftro, fob o qual fuccumbiu.

Sabendo-fe o motivo da prifão e morte do conde de Óbidos, por ter chafqueado no paço acerca do nome de Se- baftião (que D. Sebaftião não podia vir a reinar em Portu- gal, porque eftava governando outro Sebaífião) é fácil de perceber como a vaidade irafcivel do minifiro poderia

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lem fundamento determinar a ruina do indefefo Garção. Pelo crime de fazerem verfos, ou de lhe encontrarem em cafa verfos fatyricos contra o Marquez, morreram no forte da Junqueira o efcrivão do fifco Salvador Soares Cotrim e o padre António Rodrigues; Tolentino efteve fempre calado até ao dia da viradeira. E verdade que Garção tinha cele- brado em uma pompofa epiftola a di6fadura do i Mar- quez de Pombal, comparando-o a Atlante cujos hombros fuftentava o folio portuguez, comparando-o a Mazzarino, a Richelieu e a Colbert, mas no meio das fatyras anonymas que circulavam contra o valido de D. Jofé, era poíTivel que alguma foífe por intrigas particulares, fobretudo do elemen- to feifcentifta e diíTidente que ficou fora da Arcádia, attri- buida a Garção. As mefmas vaidades fe infurgiram e pro- duziram mais tarde a prifão de Bocage. O titulo de Árcade tornou-fe uma diftincção honorifica, fobretudo defde que eífa academia celebrava conferencias publicas nos palácios do eftado, a que aíTiftia por mais de uma vez o miniftro fobe- rano. Na fua oração de lySS, Garção precifa eftes fados como caufa do enervamento da Arcádia : « Ganharam as nos- fas obras nova reputação, cohciliou refpeitos o nome de ár- cade, e defejou o publico afliftir ás nolTas conferencias». Por iíto fe acirraram azedas vaidades, e fe digladiaram defpei- tos, como fe nota n'eíre grupo da Ribeira das Naus, capita- neado por Filinto. Garção innfte em outro difcurfo: »A noffa ambição (não vos aíTuilieis). a grande ambição de gloria com que nos facrificámos ao trabalho de tão profundos eftudos foi quem nos reduziu a tão extrema penúria, foi quem exe- cutou tão vergonhofa cataftrophe; julgámos que entre montes não cabia a noíTa fama; quizemos expol-a a maior theatro, e Deus, que não podia deixar de proteger noíTos defejos em- quanto foram finceros, não tardou em levantar-nos á maior altura de honra e eftimação. Apparecemos aos olhos do pu-

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blico, agradámos, fomos ouvidos, conheciam-fe os noíTos nomes, refpeitava-fe a Arcádia. Então enamorados de tão alta fortuna, nos pareceu mal tornar para um monte e viver em cabanas.

«Prefidir n'uma grande fala, magnificamente decorada, rodeado de ouvintes illuftres, fabios e virtuofos que talvez converfavam no fucceíTo da campanha (1762) emquanto nós fallavamos, ou eftavam com o lápis notando palavras, que lhes pareceram novas porque não leram Ferreira, nem as toparam nos fermões de Vieira; cantarmos noílbs verfos ao fom de uma orcheílra immenfa e talvez imprópria; ifto é que julgámos honra ...» A eftas ironias, Garção acrefcenta o pen- famento primordial que motivava a inércia: «que era indis- penfavel fazer mais feíTôes publicas, porque eíte foi o único objedo da fundação da Arcádia, ainda que tal não lem- brou aos fundadores.» N'efte difcurfo recitado em 1762, quando o efpirito publico fe occupava com a campanha di- rigida pelo conde de Lippe, Garção alludia ás duas feíTões apparatofas de 29 de outubro de 1759, na fala da Junta do Commercio, por motivo de Sebaftião Jofé de Carvalho fer agraciado com o titulo de conde de Oeiras, e de 14 de mar- ço de 1760, nas NeceíBdades, celebrando as melhoras de el-rei D. Jofé. Uma grande parte não fe preoccupava da reítauração da litteratura portugueza; inftrumentos incon- fcientes do cefarifmo que fe impõe pela força contra as idéas, e que cobre a prepotência com as pompas deflumbrantes, elles queriam fomente a honra de ferem viftos em um falão fumptuofo e em uma pofição exclufiva. Foi ifto o que tor- nou o nome de Árcade honrofo e appetecido, e foi efte o motivo por que fe confervou a lifta dos feu§ nomes, e por- que aquelles que imprimiram em vida os feus verfos fe não efqueceram de fe nobilitar com o cognome poético que fe tornou moda mefmo fora da Arcádia. A litteratura tinha de

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reproduzir fatalmente o meio focial, e os bons talentos da Arcádia, como Garção, Diniz e o Quita, e ainda as mais fervorolas vontades, como Manuel de Figueiredo, acharam- le impotentes, porque a adividade litteraria, foh o cefaris- mo bragantino que outro deftino poderia ter, fenão a baju- lação do poder? No feu bom fenfo fecular, Montaigne trans- creve uma phrale de Tito Livio, que fynthetifa todas as de- cadencias intelleduaes e artifticas: « Titus Liviíis dict iray que le laugage des liommes noiírris foiíbs la voyaiité, ejl toiís- joiírs plciu de raines ojleiítatioiís etfaidx tefníoignages^ n . Eis a fynthefe de toda a nofla adividade mental do feculo xviii; a um diíToluto e apparatofo D. João V, correfpondem obras litterarias pautadas pela Arte de faier conceitos, deftinadas a elogiar com devoção budhica o monarcha e todos os fuc- ceíTos da vida do paço. Poefia, eloquência, theatro, hiftoria, tudo traz eíTe cunho da bajulação e da indignidade lervil, e ao melmo tempo o tédio de uma linguagem empolada e fem idéas, violentada a exprimir emoções fem naturali- dade, nem verdade. Se a acção dos jefuitas no humanifmo da Europa fe manifefta na perverfão do gofto, que fe pro- paga a todas as litteraturas do feculo xvii, no feculo xviii o cefarifmo continuou eífa decadência pela influencia direita para a banalidade. A maior aítividade litteraria defpendeu- fe em incalculáveis rumas de verfos, lamentando a morte da princeza D. Francifca Benedida, a elevação da eftatua equeílre, a morte prematura do príncipe D. Jole, o nafci- mcnto do principe D. António, e quando o Marquez de Pombal fe recolheu á vida privada eífa quantidade pafmofa de fatyras e de epigrammas que a covardia dos homens de lettras lhe atiraram de todos os lados. Ifto explica a relação do Marquez de Pombal com a litteratura; o próprio Cruz e

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Silva, que o glorificava em uns verfos epifodicos do Hyffo- pe, na queda do miniftro cortou, legundo a tradição, os ver- fos que defagradavam á reacção dominante. Apenas um poeta, Jofé Bafilio da Gama, o auítor da pequena cpopêa brazileira o Uniguay, teve a coragem dos feus fentimentos, não efquecendo que devera a Pombal o perdão do defterro para Angola pelo motivo de ler jcfuita. Nicolau Tolentino, verberando nos feus fonetos o miniftro fob cujo governo fe contivera em filencio prudente, ultrapaífa a indignidade, porque vilava unicamente a lilbnjear os refentimentos dos que difpunham agora do poder.

A litteratura nas fuás formas orgânicas, lyrica, épica e dramática, exiftia por uma reproducção material ou ma- caqueação dos exemplares convencionaes. O fentimento in- dividual, que produz a emoção do lyrifmo, eftava reduzido á indignidade c á fubmiífáo de um defpotifmo degradante, e por iífo fubmettia-fe ao convencionalifmo auiítoritario, pa- rodiando fem intelligencia os lyricos romanos. A acção, que produz a epopêa, eftava centralifada no poder ablbluto, e por iífo as individualidades heróicas não tinham que fe ma- nifeftar porque nada tinham que fazer; Pombal comprehen- deu ifto, mandando vir da AUemanha um general, o conde de Lippe, para dirigir a campanha defenfiva contra a Hes- panha. Emfim, a creação dramática, que fe funda no con- trafte da opinião publica com as fituações individuaes, como podia defabroxar, fe a opinião eftava contida entre as duas preífões tremendas, a orthodoxia catholica pelas fogueiras do Santo Officio, e a rafão do eftado, pela forca e garrote? As- fim o theatro, que não chegou a ter vida nas mãos de Ma- nuel de Figueiredo, foi uma miftura de plagiatos remenda- dos indiftindamente das comedias hefpanholas, italianas e francezas, para diftrahir uma fociedade a quem era conve- niente afaftar-lhe a attenção do exame da governação pu-

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blica. Apefar da grande força de Pombal e da fua eftupen- da iniciativa, elle não pôde eftimular o delenvolvimento da litteratura, porque matou o fentimento da libe}\iade politi- ca da nação, exagerando até ao abfurdo a idéa do regalis- luo, que o levou a applicações verdadeiramente monftruofas. O que inlpirou os génios fuperiores da litteratura do feculo XVIII, e os fez, com relação á independência da fociedade, os verdadeiros cooperadores dos philolbphos, e continuadores dos jurifconfultos da Edade media, íó penetrou em Portugal no fegundo quartel do feculo xix, quando Garrett levado pelo enthufialmo do Romantiímo, poz as novas formas lit- terarias ao lerviço da liberdade politica, pela revivefcencia das tradições nacionaes, pelas impreíTões direitas de duas emigrações, e pela participação das ludas do conítituciona- lifmo. Sendo a miffão do grande homem o exercer a fua força na convergência de todas as adividades Ibciaes para eíTe ponto commum que conflitue a vida hiftorica de uma nacionalidade. Pombal ultrapaíTou elTa miíTão, ablbrvendo todas as energias, e dando ao progreíTo a forma de abalos produzidos pela lua impetuofa audoridade peíToal. Aquillo que, pela fua natureza automática depende de uma forte re- gulamentação, lubUfliu; porém o que é uma expreíTão ou a confequencia da liberdade moral e intelleclual, ou ficou fora da acção minifterial, ou atrophiou-fe, como as plantas deli- cadas que murcham quando fe lhes põe a mão.

Theophilo Braga.

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índice

PRIMEIRA PARTE

O marquez de Pombal: r''"'-

Capitulo I Introducção i

Capitulo II Os primeiros annos de Pombal 21

Capitulo III Pombal no minillerio 48

Capitulo IV O terremoto 84

Capitulo V Primeiras incurfões contra os jefuitas io5

Capitulo VI A companhia dos vinhos do Alto Douro i38

Capitulo VII Os jeluitas 161

Capitulo VIII A conjuração 178

Capitulo IX A expuHão dos jefuitas 2o5

Capitulo X Vigor e dignidade 243

Capitulo XI A educação e o trabalho nacional 262

Capitulo XII A guerra com a Hefpanha 278

Capitulo XIII O facerdocio e o império 3i7

Capitulo XIV As reformas da inflrucção 365

Capitulo XV As reformas fociaes e económicas 3g6

Capitulo XVI O triumpho 444

Capitulo X\'ll Martyrio e conclufão 495

SEGUNDA PARTE

Seballião Jofé de Carvalho e Mello O eminente propulfor da evolução

focial em Portugal no feculo xviii i

A derradeira injuria 21

O marquez de Pombal e a civilifação brazileira 3 1

O marquez de Pombal e a liberdade dos Índios 41

II marchefe di Pombal 49

Der minifter Pombal Ein Icbens- und charakterbild aus der zeit der auf-

klaerung 67

Marquez de Pombal:

Introducção, definições e efclarecimentos 1 1 1

Capitulo I Antecedentes hifloricos i32

Capitulo II O marquez de Pombal e o feu tempo i36

Capitulo III O marquez de Pombal e os aílos principaes do feu go- verno 141

Capitulo IV O marquez de Pombal c a fua inllucncia, confequentes

e conclufão 1 55

A legillação pombalina 161

O marquez de Pombal e a companhia de Jefus 175

O marquez de Pombal e a rellauração da litteratura portugueza 21 1

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