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Presented to the

UBRARYofthe

UNIYERSITY OF TORONTO

by

Professor

Ralph G. Stanton

OBRAS

DO

Y. D'ALMEIDA GARRETT.

XXI

o RETRATO DE VÉNUS.

ESTUDOS DE HISTORIA LITTEUARIA.

Digitized by the Internet Archive

in 2009 with funding from

University of Toronto

http://www.archive.org/details/oretratodevenuseOOalme

o

m

ESTUDOS DE HISTORIA LITTERARIA

VISCONDE D'ALMEiDA GARREH

PUHTO

EM CASA DA VIUVA MORE EDITOUA

PRAÇA DE D. PEUHU

18(i7

PORTO : 1867 Typographia Commercial, Bellomonte, 19.

o RETRATO DE VÉNUS

o RETRATO DE VÉNUS

POEMA

.... whiie it puTsues Things unnattempted yet in prnxc, ot rhxjme.

MiLT Parad losl: book 1, v. IS.

CANTO PRIMEIRO

Doce mãe do universo, ó Natureza, Alma origem do ser, germe da vida, Tu, que matizas de verdor mimoso Na estação do prazer o monte, o prado, E á voz fagueira de celeste gôso De raultimodos entes reproduzes A variada existência, e Ih' a prolongas; Q'ie, no Huido immenso logi.slando, Libras sem conto ponderosos mundos.

8

o RETRATO

Que na ellipse invariável rotam fixos, O alma do universo, ó Natureza, Teus sacros penetraes em voo ardido Busco, rasgo -lhe o véo, prescruto, e Yejo Insondáveis mysterios: puro, e simples Nunca ouvidas canções na lyra entoo. Nua d'enfeites vãos a face amena Tu volve ao mundo, que te ignora errado. Qual és, qual foste, qual te apura os mimos A arte engenhosa, tu lhe amostra e ensina.

Como é dado aos mortaes hellezas tuas Co di\ino pincel, co'as magas tintas Estremar com primor, colher-lhe o bejo, Sem donosas ficções meu cauto ensine.

Ficções!... E áureas ficções desdenha o sábio? A douta, a mestra antiguidade o diga. Não; fabula gentil, volve a meus versos; Oraa-me a Ij-ra c'os festões de rosas. Que ás margens colhes da Castaha pura: Flores, que outr'ora de Epicuro ao vate Co austero assumpto lhe entrançaste amenas, Essas no canto me desparze agora.

DE VÉNUS {

Vénus, Vénus gentil !— Mais doce, e meigo Soa este nome, ó Natureza augusta. Amores, graças, revoae-lhe emtorno, Cingi-lhe a zona, que enfeitiça os olhos; Que inflamma os corações, que as almas rende. Vem, ó Cypria formosa, oh! vem do Olympo, Vem c'um mago surrir, c'um terno bejo Fazer-me vate, endeusar-me a lyra.

E quanto podes c'um surriso, ó Vénus! Jove, que empunhe o temeroso raio; Neptuno as ondas tempestuoso agite; Torvo Sumano desenfreie as fúrias . . . Se dos olhos gentis, dos lábios meigos Desprender um surriso a Idalia deusa, Rendido é Jove, o mar, o Averno, o Olympo.

Mas quanto é bello, é grato o vencimento, Se á dor suave do pungir fagueiro. Da ferida se encontra amigo bálsamo, E nos olhos da hnda vencedora Do ardimento o perdão braudo se accolhe! Tu, Marte, o dize, o Cyprio moço, o Toucro; E vós, que ousais na terra imitar numes, Que do sumrao prazer rompendo arcanos,

10 o RETRATO

!N'um momento gosais da eternidade.

Emquanto nas lidadas officinas,

Forjando o raio vingador dos numes,

Vive o coxo marido sem receios,

Ja deslembrado da traidora rede;

Do Cynireo mancebo entre os abraços,

Jaz a esposa gentil ennamorada.

Nas languidas pupillas lhe transluzo

O prazer divinal, que a opprime, e anceia;

Nos inflammados bejos, nas caricias,

No palpitar do seio voluptuoso,

No lascivo apertar dos braços niveos.

Nos olhos, em que a luz quasi se extingue,

Na interrompida voz, que balbucia.

Nos derradeiros ais, que desfalecem . . .

Quem do prazer não reconhece a deusa

No excesso do prazer quasi espirando?

Surri-lhe ao lado o filho de travesso,

E d'entre o myrtho as cândidas pombinhas

Co estremecido arrulho a dona imitam.

Ah! se o gosto supremo a um deus não peja, Porquê mesquinhas leis nos vedam barbaras Tam suave pecar, doce delicto.

DE VÉNUS 11

Antes virtude, que natura ensina!

Desfarte as breves horas decorriam

Aos alheados, férvidos amantes;

E vezes três rotára o disco argênteo

Trivia gentil, sem que no Olympo, ou Lemnos

A esposa de Vulcano apparecesse.

Ja na etherea mansão vagos juizos

Maliciosos forma a inveja, a intriga;

E surriso maligno ás deusas todas,

Do marido iníeliz excita o fado.

Em zelosa vingança ajffana e freme O dcspeitoso Marte; corre, voa, E em busca da infiel vagueia o mundo. Coxeando o segue o malfadado esposo. Dos antigos errores esquecido: Tal é, paixão zelosa, o teu império!

Eis do somno d' amor espavoridos.

Os dous amantes c*o ruido accordam.

Do pavor esmorece o joven tímido;

Por elle anceia a carinhosa amante,

Descuidosa de si; geme, soluça,

E do amado na dor, sua dor recresce.

Que fará!-'. . vacilluute. . . Adónis . . . Marte . . .

12 o RETRATO

O esposo... Ideias, que alma lhe confundem! Com o amante ficar, morrer com elle? Defender com seu peito o peito amado? E salva-lo é possível desta sorte? Deixa-lo?... Fera ideia!.. Ir as suspeitas Dos numes dissipar com sua presença? Que! deixa-lo! o seu bem! Vénus a Adónis ! Tanto não pode a mesma divindade.

Mas este lhe resta único meio: É forçoso: comsigo ao carro o sobe; Voa a Paphos, e ás Graças lisongeiras O precioso pinhor saudosa entrega, Que n'um basto rosal mimoso o guardem, Velem sempre por elle, que aos deuses Se esvaeça o furor. Súbito ao Olympo, Composto o vulto, serenando os olhos, ^'um momento chegou: mago atractivo Que lhe spira dos lábios, das pupillas, Do todo encantador, ódios, suspeitas Desfaz, esquece em ânimos divinos: Tam pouco, ó bellas, persuadir-nos custa!

Arde voltar ao suspirado asylo;

Mas teme a vejam desconfiados olhos;

DE VÉNUS 13

E em tanto Adónis geme, e o seu tormento Mais que o próprio penar lhe punge n'alma. Disenhos volve... Alfim um lhe suscita Novo a mente engenhosa: ei-lo abraçado.

Jaz muito alem do tormentório cabo, (Sempiterno brasão da Lusa gloria) Em não sabido mar, jamais sulcado, Dha aprazivel, deliciosa, e breve. A mão dos homens destruidora, e barbara, Mimos da creação não lhe estragara. A seu grado crescia o bosque, a selva; Vecejava sem leis o prado ameno; D'alvas pedrinhas pelo leito amigo Se espriguiçava o crystalino arroio. Sem temer que impia dextra ouse perversa, No brando curso imterromper-lhe as aguas. Presas não gemem fugitivas Nayas, Nem Dryades gentis feridas choram: Sem arte a natureza era inda a mesma. No mais escuro do copado bosque Ternas suspiram maviosas rolas; E em mais alegres sons, prazer mais ledo, A meiga ave d'amor no arrulho exprime. Outro vivente algum a aura fagueira

14 o RETRATO

Não ousa respirar. Silencio eterno Impera na solidão, dobra-lhe encantos.

Tam suave mansão nem mesmo os numes No ceo conhecem. Da ternura a deusa, Vénus sabe do recanto ameno. Tu, do universo creador principio, Vénus! oh mãe d'amor, oh mãe de tudo! Que amor é tudo, que tu com elle. Ambos creastes e regeis o mundo. Que a natureza sois, ou ella é vossa: Cypria, Cypria gentil, podes acaso Ignorar uma das obras tuas?

"Mãe, (lhe diz, entre alegre e malicioso,

Mas compassivo, o filho) nessa ignota

"Ilha do Indico mar..."— Um doce bejo

O concelho pagou. Súbito parte.

chega; e nova se difunde a vida

Na solitária estancia; em novos germes

O deleite, o prazer renascem, pulam,

Quam doces d' antemão gosou delicias A mui fagueira deusa! O sitio ameno Extasiada contempla. "Oh! quam dit(jsos

DE VÉNUS 15

(Clamou) seremos! Ignorado, occulto,

" O' doce amante, viverás sem medo,

" Aqui, no seio da ventura e gôso,

" Nos meus braços..." Parou suspensa, e geme:

Cruel lembrança lhe assomou na mente;

Agros deveres, pérfidas suspeitas,

Quantas vezes do amante hão de aparta-la.

Suspira: as rosas do prazer se esvaem

Das lindas faces niveas. Pensativa,

Melancólica, e triste.... Eis (fausto agouro!)

Estremecido arrulho alvas pombinhas

Deram á sestra mão. Ah! sim: é elle:

Amor, apoz a mãe, veio ajuda-la.

"Filho (co'a voz lhe diz, que impera em Jove,

" Que tam suave rege a natureza)

" Tu me feriste: não accuso o golpe:

" Amo, adoro esse ferro, que me punge,

" Que na chaga, que abiiu, doçura entorna;

" quero, te peço (que não peja

" De implorar-te soccorro a mãe ferida)

" Derradeira mercê: oh! deixa um pouco

" D'humanos corações fácil conquista:

" Cesse qualquer amor quando ama Vénus.

" A culta Europa lapido discorre,

16 o RETRATO

" E a progénie d'Apollo, almos, divinos, " Os pintores me traze aqui n'um ponto.

Pasmou c'o rogo inesperado o numen:

A causa inquire. "Ah! não: (lhe torna a deusa)

" Não cumpre ainda revelar- t'a, ó filho;

" Cubra o véo do mysterio o doce intento."

Mal disse: e o raio mais veloz não rue Da rubra dextra do Tonante irado, Do que a turba dos cândidos amores A' voz da deusa fende os ares liquides. Quaes voam de Minerva ao sábio clima. Hoje torpe, e servil c'o bruto império: Quaes á augusta senhora do universo; Senhora, emquanto Homa era inda Roma: Quaes ao paiz do mysterioso Etrusco: A' formosa Bolonha, á gran Veneza; Grande emquanto reinou sobre o Oceano: Quaes á suberba Gallia, á Ibéria, a Lysia; Que de Lysia também, tam cara ás musas. Da poesia a rival, a irman tem filhos.

De toda a parte a obedecer contentes Correm ao mando de Cyprina bella,

DE VÉNUS 17

Da natura em despeito, homens creadores, Prometheus, que á matéria informe e bruta Co divino pincel dao forma, e vida; Erguem da campa gerações extinctas; Plantam copados, que enfloream, bosques; Co'a viva historia os homens eternisam; E, fitando no ceo audazes vistas, Aos pasmados sentidos apresentam Visivel, sem rebuço a divindade.

Da fértil em prodigios, d'alta Grécia O pae d'arte divina, Apelles marcha, Thimante, Zeuxis, e Parrhasio, e quantos A culta Grécia, a deliciosa Roma Famosos produziu em sec'los d'ouro: Cimabúe famoso apoz caminha. Que as esfriadas cinzas animando Do engenho, do talento, o faxo vívido Fez na Europa brilhar, e abriu de novo O caminho gentil da natureza Do bárbaro furor fechado, ha muito.

Aos golpes crebros, incessantes, duros Da férrea mão do avaro despotismo, Sem forças, sem vigor jazia, ha muito,

18 o RETRATO

A mísera Bysancio. Em surda guerra Fallaz superstição d'mfames bonzos, Fanatismo cruel, bifronte, e iniquo, Hypocrisia vil, pérfida e dobre, E-uina infausta lhe apressava, e morte. A' vidos sorvos de Roman cubica, Da Latina ambição, riquezas, pompa Roubado haviam insaciáveis, feros De Constantino á corte. Espessa nlivem De negros vicios, de perversos crimes Pousou medonha sobre os tristes netos Degenerados, vis d'um povo illustre. Crestadas, secas pelo sopro ardente Da tyrannia atroz definham, morrem Apesinhadas as virtudes cândidas; Ao cúmulo chegou desdita, opprobrio Dos fados teus, ó Grécia. Eis ante as portas Da famosa cidade, audaz, suberbo Musuhnano feroz, Mahomet se ostenta. Monstros, que o sangue do mesquinho povo ímpios bebestes, ah! tremei, que é elle: Austero açoite das celestes iras Sobre vós descarrega a mão divina. Bonzos, no centro aos claustros profanados Embalde a frente d'horridas maldades

DE VENIS 19

Carregada escondeis: vai, chega;

Sobre asarasd'um deus, a um deus, que ousastes,

lucençando-o, offeuder, vos immola.

Artes," sciencias, a guarida extrema,

Perdeste'-a em fim: voltai, fugi; que Hesperia

Os carinhosos braços vos estende.

Ei-las: oh! folga, venturosa Europa.

cai a pouco e pouco em terra o throno

Da barbara ignorância: as ti'evas do erro

Vai accossando da verdade o faxo.

Arte divina, magica pintura, Foragida também, thesouros, mimos Yens espalhar na mui ditosa Itália. ItaHa! oh! folga: Rapliaeis ja pulam.

FliM IK) CANTO PRIME IKO.

GANTO SEGUNDO

Mas eis, distinctos esquadrões formando. As escliolas assomara ; reina entre ellas Vivaz emulação, que gera os sábios : Vão-lhe na frente os aífamados chefes, Que a pátria honraram c'o pincel divino.

No bello antigo modelando as graças.

Que em mais sábio pincel, mais bellas surgem,

A frente airosa sobre erguendo ás outras.

Vem tribu excelsa dos Romãos pintores.

Deram-lhe o grau supremo árdua sciencia

Das attitudes, d'expressão, verdade.

De audaz composição, nobre elegância,

O correcto desenho, e puro, e grave,

E ([uanto inspira ApoUo ás almas grandes.

Em extusi sublime altas ideias.

22 o RETRATO

É filho seu (que mais sobeja glória !) E.aphael, o divino, o mestre, o numen Da moderna pintura, eterno brilho, Que os Apelles offusca, e Roma, e Grécia ; Que, as barreiras transpondo á natureza, Olhou de face a face a divindade, E as glórias do Thabôr fez ver ao Tybre, E aos d' arte amantes desejar com Pedro Junto ao prodigio habitação ditosa. '

Júlio o mestre imitou, foi digno d'elle : Forte, ardida expressão lhe anima os traços. Que ás profícuas lições dão glória e lustre.

Em cerca aos muros da gentil Parthénope, Onde aprimora a natureza os mimos, E a voz do creador soou mais bella, Onde, entre montes de sulphureas cinzas, Umas sobre outras, as cidades jazem, E a rodo os d' atro fogo hórridos rios A poéticas ficções dão ser terrivel ; Alli, silencio eterno ergueu severo Religiosa mansão ; firmou-lhe as bases

» A transfiguração de Raphael.

DE VÉNUS

23

Austera, descarnada penitencia.

Sobre as azas do ingenho, á voz d'um numen,

Vigoroso, expressivo Spanholeto,

foste, e a assomos do pincel terrível

Em longas vestes surgem, pulam, \ãvem

Fatidicos anciãos ; ás portas velam

Da estancia outr'ora silenciosa, e sancta.

E quando atroz, hypocrita veneno,

Lavrando a furto sob o sacco, e cinza,

Os muros profanou, que ergueu virtude,

Inda no mesto panno af&ictos suam ;

E a gloria do pintor fulge entre o crime. '

Fostes, como elle, berocs da arte divina, Polidoro gentil, vivaz Fattore, Saliente Caravaggio, que exprimiste, Senão bella, fiel a natureza.

Nobre, altivo Cortona, quanto vivem Scenas famosas da nascente Roma ! Nas mães trementes, pallidas filhinhas, Vc como a mesma dòr redobra encantos !

' Quadros dos propliclas por Spaiiliolftlo, na Carluclia do Nápoles.

24 o RETRATO

E O fero aspeito dos Quirinos Martes, Onde a furto da glória amor scintilla ! Ah ! próximo o prazer vai dar ao mundo Prodigios de valor, extremos d'honra, Prole Romana. . . Eis o universo em ferros. '

Amável, temo Sacchi, a ti surriram Do mago cinto de Erycina as graças ; Meigos, suaves dons te esparzem n'alma. Que nos quadros gentis reflectem doces. Belligero Cerquozzi avulta aos olhos Brandir no panno, lampejar mil ferros, E aos roucos sons da sanguinosa guerra. Entre as phalanges baralhadas rotas, Entre abysmos d'horror alçar-se a morte. '^

Quam magos fulgem divinaes, sublimes, Maratti encantador, fácil Giordano, Mimoso Dolce, e vós, que á nova Roma Ingenhos tantos, insondáveis, grandes. Por guerreiros tropheos, suberbos róstros, Triumphos cem do ovante Capitólio,

O roubo dds Sabinas por Cortona. pintor de batalhas.

DE VÉNUS 25

Dais, se menos viril, menos heróico, Ornamento gentil, belleza, encantos.

Ja de acurvados reis não brilha o fasto Da escravidão contentes ; não se antolha Em cada senador um nume, um Jove. Ja nas praças, nos templos não campeiam Os despojos do mundo ; o Circo, o Foro, Prodígios d' arte, da opulência, e luxo. Da barbara ignorância ás mãos cederam. Cheio de Livio o \àajante absorto Não ve do Capitólio a frente erguida Torreada avultar com ferros cento. Não ve povo d'heroes girar-lhe entorno; Da incsp'rada mudança pasma, e geme, E no centro de Roma a Roma busca. Porem, se amiga mão lhe guia os passos, Se o Vaticano e mil prodígios nota. Que do antigo explendor moderam fama ; Então Roma conhece, então venera Nobres resquícios de gloriosos evos.

Tacs da moderna Roma os filhos iam Por travesso menino conduzidos ; E d*altiva belleza ornada a frente,

26 o RETRATO

A magestosa, Florentina eschola De perto os segue : no atrevido ensejo Parece disputar-lhe o grau supremo. Co'a sublime expressão, desenho ardido^ Gigantesca maneira, audaz, mas bella, Se antolha eunobrecer a natureza. Brandas graças d' amor, ternura, encantos Feroz desdenha ; lhe avulta á mente O nobre, a pompa da ideal grandeza.

Não foi sobre o Synai mais formidável,

Que d' Angelo entre as mãos, Moysés terrivel ;

Nem no extremo, derradeiro dia

Julgamento final será mais hórrido.

Co deus, que o peito vos perturba, anceia,

Mais pavorosas não rugis, Sibylas.

Da mão nervosa cada traço é raio.

Que espanta os olhos, que deslumbra a mente ;

Que enxofrado clarão, medonhas larvas

Em todo o horror do Averno ostenta horrivel ;

Que, se um deus pinta, é do castigo o numen,

Que em longa geração pune um crime,

O deus, que no deserto, entre os relâmpagos,

Entre o rouco estampido das trombetas,

Pela voz do trovão legisla ao mundo.

DE VÉNUS 27

Eis, desdobrando hydraulicos segredos, E as mechanicas leis com sabia dextra Movendo a seu sabor, á glória sua, Vinci tam caro aos reis, de o ser tam digno, Seu correcto, purissimo desenho. Engenhoso compor o eleva aos astros, Aos astros, onde fora em vôo ardido Os pincéis escolher, buscar as tintas, Com que d' ultima ceia debuxara Amor, transportes, mysteriosas scenas. Ah ! gire o teu prodígio o mundo inteiro ; E de grado a razão cede ao mysterio.

Cores roubando á natureza, e mimos, Bello como ella, o inimitável Porta Ao gelado silencio de ermo claustro Chamou das nove irmans o choro arguto. Urbino o conheceu ; c o sceptro augusto Curvou ante elle; e, confundindo os raios. Os dous d' alma pintura astros brilhantes. Sem nogro eclypse, sciutillaram juntos.

"Vens, ó Sarto, apoz cUc, ameno, e brando ; Vens, Pcruzzi gentil, fértil Pantorma, Que ao nobre assomo do pincel nervoso,

28 o RETRATO

Co doco encanto das mimosas tintas Fizeste a Raphael, a Buonarrotti D'arte a coroa estremecer na frente. Sec'los famosos d' Alexandre, e Augusto Na Itália renovou macio Allori ; E as meigas cores do pincel Lombardo Quasi Ciogli usurpara ao grão Corregio.

Ah ! veda a musa, e pequenez do ingenho Seguir- vos todos, divinaes pintores : Segura a fama vossa alteia a frente, E o vate ao longe vos contempla os voos.

Gentil Bolonha, que na Europa barbara O faxo das sciencias accendeste, Que o Gothico stupor tiraste ás artes, E as cinzas da virtude apesinhadas Por sanctos crimes de sagrados monstros Cum Benedicto consolaste em Roma, Eis vem dignos de ti, teus sábios filhos, Numerosa familia, antiga e nobre. Que o mel das graças delibando férvida Em quantas flores produzira Apollo, Nobre desenho modelou no antigo, A natura usurpou vivaz belleza,

DE VÉNUS

E o mago, o puro dos gentis contornos, A verdade, a exprossão, o rico d'ordem, E o colorido inimitável, bello. Que emparelha com a arte a natureza.

Assim brilhou di\dno o gran Corregio, Assim Fraucia gentil, assim Mantegna, E Bolognese vigoroso, e forte ; E tu, que o terno amor, e seus encantos, Simplices graças da natura virgem. Da innocencia infantil o mimo, os jogos, As singelas beldades exprimiste No mavioso pincel, mavioso Albano. Nem deslembre de Guido a fértil mente. Talento universal, vago, mas bello. . .

Ca expressão de Zampieri ordem, nobreza, d'Agnese gentil a árdua constância Como os p'rigos desdenha, e ve risonha Ja do ferro do algoz pender-lhe a morte. í'erino aspeito dos ministros bárbaros. Da augusta religião viril triumpho Aos engolfados olhos se apresenta, E, arrebatando o esp'rito a deus, ao vate. Um prodígio a prodigios amontoa.

29

30 o RETRATO

Ve Guerccino também, que ora nervoso,

Ora sombrio, e fero, e terno outr'ora,

Mas sempre encantador, em cada rasgo

Cam portento de mais a arte enriquece.

Qual vira a Palestina o pae dos crentes '

De fe, de submissão dar nobre exemplo ;

Tal vive no pincel, tal inda avulta

Co'as veneráveis cans, e honrado aspeito.

Misero velho ! desgraçado infante !

Que ! tu mesmo, infehz ! co'a mão paterna

Hasde cortar-lhe o fio á tenra vida,

Unica esp'rança de cançados annos.

De mui doces promessas? Como. . . ai triste!

Oh ! como voltará sem elle á tenda ?

Com que olhos fitará maternos olhos ?

Com que voz lhe dirá ?. . Mas parte : e a dextra

Ja, ja quasi. . . Suspende: um deus o ordena;

Um deus é pae também : suspende o crime :

São leis da natureza as leis divinas;

Em premio da tua fe recebe o filho.

Ah ! se ao nome Lombardo é pouco tanto ; Eis tríplice ornamento á pátria ao mundo,

' O sacriíicio de Isiich, quadro famoso de Guercciuo.

DE VÉNUS 31

Doutos Caraccis, que o divino ingenho, Ou co'a dextra gentil ornando a Itália, Ou dando á juventude alnios preceitos Da arte formosa, perpetuando-a aos evos, Nova, estremada lhe augmentáram glória.

FIM DO CANTO SEGUNDO.

CANTO TERCEIRO

Musa, deixemos a mansão terrestre,

Sobre o iníidu elomeuto estende os voos.

Eis sobre as ondas c'o pincel divino

Maga pintura, legislando ás vagas,

Enfreia as iras de Neptuno indómito.

Ve d'Adria o gôlpho tempestuoso, e fero

A' voz da liberdade agrilhoado.

Surge do seio das domadas aguas

A cidade gentil: pasmou de ve-la, .

E corou de vergonha a natureza.

E a mã(j do creador, ao ver confusos,

Baralhados antigos elementos,

Se ao homem, que os trocou, não dera a vida,

Quasi, quasi um rival temera nelle.

Alli, fugindo aos clamorosos brados,

34 o RETRATO

Ao jugo, á servidão da tyrannia, Homens, poucos, mas homens, começaram Com ância a defender sacros direitos. Empório foi depois do rico Oriente, E do alado leão tremeu gran tempo O atrevido colosso Mussulmano. Hoje (Ideias de dor, lembrança amarga!) Da poppa olhando o navegante ao longe: "Veneza aquella foi "— exclama, e geme; E segue a esteira das cortadas ondas.

Veneza foi: compridas, longas eras Foi a pátria d'heroes, foi mãe de sábios; E as dadivosas musas lhe outorgaram Egrégios filhos, que o talento, as vidas A' formosa sciencia consagraram; Que imitando fieis a natureza. Olhos seduzem, e deleitam alma, Que nos toques graciosos, na belleza Da gentil invenção, doce magia Do claro-escuro, rico invento d' arte. Aos mais sábios pincéis não cedem nada.

Deusa, acode á avidez, que o vate enleia. Fere nas coadas da estremada lyra

DE viiííuá 35

Dos famosos varões o nome e os dotes:

Dize a Ticiano, dize quaes natura

Lhe entornou dadivosa encantos simples,

Que, ou arte ignoram, ou subtis a escondem;

Ja d']iumanas feições transsumpto exacto,

Ja co'as nativas cores exprimindo

No ingeuhoso pincel tudo o que existe.

Adriades gentis, olil vinde, as frentes Coroadas de dor, na campa avara Ilumido pranto derramar saudoso! Ai do triste mancebo! o fado iniquo, por chora-lo, o concedera ao mundo! Oh! com quanta expressão, nobre altiveza Castel-franco brilhou, fulgiu mais que homem! E tam breve lhe deu a sorte a vida! E no fuso cruel a Parca dura Um fio tam gentil fiou tam curto!

Oh! suspendei as lagrimas formosas: Longa carreira os ceos marcaram próvidos Aos dous Bellinis, venerandos chefes Da nomeada eschola; á glória vossa Vivem padrões eternos; Piombo illustre, Que a fama ousou balancear d'Urbino;

36 o RETRATO

Pordenone inventor, de quem Ticiano Temeu roubadas as divinas cores; Completo Palma, a quem mostrou natura Sempre formoso o variado aspeito; Animado Bassano verdadeiro; Fértil, e vivo Tintoreto rápido; E tu, Paulo gentil, delicias, mimo Dos voluptuosos olhos da donzella; (Mui grato enlevo do insoffrido amante) Qual Yerona folgou com seu Catullo, Tal comtigo: mil graças, mil encantos Sem mysterio, sem véo te deu, lhe dera Nua de pompas vans, a natureza: Seu renome inda vive; e o teu com eUe, Emque lhe péze á inveja, e seus furores, Hade eterno brilhar. Assim raivosas, Frustradas gralhas invejosas grasnam A' ave olympia de Jove; e entanto os voos Ella ao sol remontando, as mofa, e burla.

Porem mais longe da rinhosa Hesperia Voltemos a attenção: ve como em Flandres, Scena outr'ora infehz da glória Franca, Da Cypria deusa demandando a estancia Vai turba immensa dos rivaes d'Italia.

DE VÉNUS 37

As graças naturaes, singellas, puras

A' porfia a accompanham: não se enfeita

Por suas mãos a simples natureza:

Em loução desalinho bella, e nua

Mimos lhe outorga, que ella conhece,

Que a vós é dado só, magos pintores,

Com arte ignota do universo ao resto

No pincel exprimir fiel, divino.

Prodigios faUem de Yan-Eick famoso,

Do correcto, vivaz, firme Duréro;

Dize-o por todos; se inda alguém no mundo

Ignora tanto, que te ignore os dotes;

Fértil, brilhante, verdadeiro Rubens.

Rubens! Oh nome! O' filhas de Memoria,

Vós, que no Pindo entre o verdor mimoso

Lhe bafejastes divinal espirito.

Quando, Hbrado sobre as azas d'ouro

De sublime, elevada allegoria,

Viu, pintou . . . Ah! fez mais: creou, deu vida

A chymericos entes, vãos, mas bellos.

Que o vivo imaginar lhe debuxara.

Quam doce, e meiga a enternecida Vénus

Com suspiros, com ais, com ternos bejos

Tenta a fúria applacar, retter nos braços

Gradivo impaciente! Olha do monstro

38 o RETRATO

O torvo gesto, o faxo sanguinoso . . . EUa ! . . a guerra crucll a horrível frente Co'a máscara da glória esconde ao numen, E o veneno lethal lhe infunde n'alma. haqueia de Jano o templo augusto; As artes, as sciencias calca o monstro; E a d'auradas espigas, rubros pomos Gentil coroa á agricultura arranca. Ternura, horror, assolação, helleza Com portentosa mão juntaste, ó Rubens. '

Quam hello é na expressão Vaén correcto! Hólbein sublime, vigoroso, nobre! Ván-Rin saliente, harmonioso, e doce! Quam firme é Wanderwérff singello, e puro E tu, mimoso Yan-Dernér, que em Gnido Bebeste as graças, possuíste os risos.

Ah! ja cançada se me aífrouxa a lyra: Rouca, e sem voz mal associa ás cordas Difíiceis nomes de estremados mestres. Um por tantos direi; e o nome illustre Te baste, ó Flandria, a coroar-te a gloria:

' Quadro allegorico da guerra por R.

DE VÉNUS 39

O bello, o simples, verdadeiro, e grande, Do mestre a obra maior, Vandick insigne.

Mas, qual ruido, que tumulto, ó musas,

Do Pindo a sacra paz impio disturba?

Quanto vivem ! . . Que lieroes da pátria raios!

Armas!., guerra !.. o furor!., o sangue!., a morte!.

Destroço ! . . horror! assolações ! . . ruínas ! . .

Eis dos Alpes franqueado o gelo eterno;

Nada resiste: c'o rugido extremo

Baqueia exangue de Pyrene a fera.

Co'a Europeia ruina Africa nuta,

Ásia treme; e nas praias de Colombo

A fugitiva liberdade apporta.

A longes terras se accolheu Minerva,

8em rumo as artes desgrenhadas fogem,

A Roma de Catão, d' Augusto a Roma

Não é de Pio a efFeminada corte;

E em vez d'um Fábio tardador, d'um Quincio,

D'um Bruto, um ManHo; prostituta prole

No deshonrado Capitólio avulta.

Quem, bellezas d'Italia, hade amparar-vos ? Quem ! . . Ânimos cobrai; volvei sem medo Artes, seiencias: ja no Kena ovante

40 o RETRATO

O próprio vencedor no seio amigo

Vos accolhe, e aecarinha, e no alto alcaçar

Augusto sólio perenal vos ergue.

No Sena ovante (oh do porvir assombro!)

Em quanto os filhos seus, terror do mundo.

Raios desferem, que o universo atterram;

Renasce mais gentil, vive mais fúlgido

O sec'lo de Luiz; succede á velha,

A' pedante Sorbona, almo Instituto.

Eis novos Raphaeis, arte divina!

Não lamentes Poussin, Gallia ditosa, De Mignard, e Blanchard divinas cores, De Lebrun a expressão, fieis costumes, Paizagens de Lorrain, maga ternura Do voluptuoso, encantador Santerre, Grandioso stylo do vivaz Subleyras: Teus modernos heroes excedem tudo; E ao seio da opulência amamentados, A' voz da glória redobrando exforços, Talvez irão com denodado arrojo Do sólio d'arte derribar a Itália.

Se, entre barbaras mãos gemendo outr'ora, Deveste a Belisario a vida, ó Roma;

DE VÉNUS 41

Se das fúrias cruéis d'liorrida guerra O juramento te isentou d'E[oracios; Se quanto foste em gloriosas quadras A um necessário roubo, á paz, que o segue, Ao ferro audaz de Rómulo deveste; ' Treme d'elles agora, treme, ó Roma; Que no heróico pincel David illustre As cinzas lhe animou; marcham por elle Tua fama a conquistar, roubar teus louros: De Urbino, e Buonarroti o throno prostram; Eis campeia David! Não longe d'elle O terno Girodet, suave, e brando. Que, do Meschacebeu vingando as margens, Co vate insigne emparelhou nos voos, E na pasmada Europa ergueu d' Américo As pomposas florestas, e a nobreza, Ornamento feroz d'um mundo virgem: Que os encantos d'amor, e os seus furores, O poder da virtude, e os seus exforços Dignos d'clle exprimiu, e fez do novo Olhos sensiveis afogar em pranto.

Eis á voz de Gérard das campas rompem ' Quadros eeiebres de Darid.

42 o RETRATO

Extinctas gerações: Saturno as azas Indignado encolheu, e a presa antiga Viu roubar-lh'a o pincel, quebrar-lhe os éllos Da impreterivel, perenal cadeia.

Ruge fremente o mar, bramindo, e ronca

Nas ouças rocas, nas quebradas fragas

Do tormentório mar... se ergue ingente,

E immenso troa o colossal gigante.

Treme d'entôrno o mar, e a terra, e o mundo;

E a voz, que os poios com fragor desloca.

Pela primeira vez á gente Lusa

Pallida imprime a sensação do medo.

impávido, um só, Vasco lhe arrosta:

Pasma a ousadia d' um mortal a um nume.

Oh lagrimas d'Ignez, sangue innocente,

Correi, correi do milagroso panno;

E em lagrimas de sangue o applauso eterno

Aos vates recebei, aos vates ambos.

Oh Gérard! oh Camões! qual mão divina

Vos uniu, vos juntou? Oh! folga, ó pátria!

DE VENLS 43

E tu, Sousa immortal, grata homenagem E,ecebe eterna da mui grata Elysia. *

Ve nas mãos de Guérin qual geme e anceia Pincel, que hervou na dor, que embebe em pranto, Que incestos, crimes (de Trezena horrores) Co Euripides Francez disputa ainda. Quem de pavor, de compaixão não gela Ao ver nas murchas, esmyrradas faces Da bella ainda, miseranda Phedra Surgir do panno, que as conter mal pôde, D'um criminoso amor, violência, e fogo ? *

Guerreira a mente de Yemet fulmina Os raios de Mavorte, o horror das armas; E sobre os quadros de Lc-Gros famoso Os manes folgam de RoUin, Voltaire.

Mas tanta glória inda não basta, ó Francos, Para o completo, universal triumpho: Que no Tbero pincel inda refulge O nome da Ribcra, o de Murillo,

' Celebres pinturas de Gérard na edioílo dos Lusíadas pelo Sr. José Maria de Sousa * Pinturas de Guerin tiradas de Racine.

44 o RETRATO

E duvida d'Albioii mosqueada fera, Vaidosa d' West, conceder-te a palma;- Inda lhes guardam justiçosas musas No bifido Parnaso um grau distincto.

Assim quando no ceo, callada a noute. Cândida brilha sup'rior Diana, Se com menos fulgor, astros com tudo, Gentis avultam nitidas estrellas.

FIM DO CANTO TERCEIRO

CARTO QUARTO

Eia! colhamos as cançadas velas,

Musa: o filhinho da amorosa Veuus

Ja pelos ares líquidos se entranha,

E ledo corre co'as donosas tribus

Dos illustres rivaes da natureza.

Da Europa toda ja voaram férvidos

Da voz ennamorada ao som fagueiro,

Lysia falta. . . A minha Lysia, ó Vénus !

A pátria dos heroes, a mãe dos vates,

A pátria de Camões, do teu Filinto !

Onde a voz de Bocage, a voz do Gomes

Sempre em teu nome resoou na lyra !

Onde a teu culto, mais que em Roma, ou Grécia,

Era cada coração se eleva um templo!

Lysia, de Veuus esqueceram filhos !

46 o RETKATO

Ah ! volve os olhos immortaes, divinos, Aos séculos remotos ; ve no Tejo Como entre as sombras da ignorância Gothica Brilham nas trevas Lusitanas tintas ; Ve do gran Manoel na épocha d'ouro Sobre as bellas irmans como se eleva A divinal pintura ; ve mais perto, Em quanto geme c'o ferrenho jugo A flor, a augusta das nações princeza, Ei'guer das rainas sobranceira a frente ; E alfim nas quadras que marcara o fado Ao brio Lusitano extremo exforço ; Calcando a juba de Leões gryfauhos, Parando ás Águias remontados voos, Como á porfia sobre o Tejo e Douro Apelles mil e mil revivem, fulgem ; Brilha o Luso pincel. . . Ah ! se aura amiga Continua a soprar. . . Não ; férrea pesa A mão do despotismo, opprime, esmaga, Destroe renovos das mimosas artes.

Mas qual ouço confuso borborinho ! E soifi vós ! Ah ! perdoa, alma Erycina: O teu povo fiel tu bem coulieces ; Nem chama-lo cumpria : é lhe sagrada,

DE VÉNUS 47

Inviolável lei um teu desejo.

Ei-lo corre : que luz, que ethereo brilho

De louro e rosas lhe engrinalda as frentes !

Olha entre a névoa de allongados evos, De atroz barbaridade embrutecidos, Como Álvaro rebrilha, um Nuno, ura Annes, E do enérgico Vasco a fértil mente ; E Duarte, e Gromes tam famosos ambos, Tam caros ao gran rei, Manoel ditoso. Ve do illustre Resende a mão facunda, Trocando a penna, que mandara aos evos Os feitos dignos de perenne historia, Pelo arguto pincel ; o sábio Carlos, Que ao divino Correggio usurpa as cores ; Dias, que á pátria transportara ovante O mel, e as graças dos famosos mestres ; Harmonioso Christovão, claro Sanches, Que os mouarchas d'Europa inteira vira D'honras, de bens, accumulá-lo anciosos.

Eis sobre as azas de elevado arrojo Vinga altivo Carapello o cume erguido Dos montes de Judá. La surge, e avulta No mysterioso pauno um deus, uni homem.

48 o RETRATO

Pasmou a natureza ao ver confusos No seio maternal o pae e o filho. Mago pintor lhe renovou prodígios ; E aos tormentos d' um deus tremeu de novo A longa serie dos criados mundos. ' Sensiveis corações, vinde espelhar- vos Nos ternos quadros, que sagrou virtude ; Vinde á sombra do vate, ao seio augusto Da sancta religião, da mãe oaroavel De humanas affliçÕes verter o pranto : Vinde ; e entre a dor vos surgirão prazeres, Prazeres do Christão, doçuras d'alma. Quanta glória Fernando ao sábio mestre. Quantos louros grangeou ! Lopes sublime Juntou d'Urbino aos expressivos rasgos A ardideza gentil d' Angelo altivo. Vasques douto, e regrado os traços mede No exacto petipé da natureza. E tu, Leonor, d'entre a nobreza e fasto, Origens sempre de brutal inércia, Soubeste ás artes levantar o espirito.

Qual do Luso pincel nos fastos vive. I Quadros da paixão de Ch. por Campello.

DE VÉNUS 49

HoUanda creador ! Deusas do Pindo, Eis novo esmero vosso, invento novo ! Vastos arcanos da pintura se abrem, Accumulam-se a rodo almos tesouros ; Graças lhe admira o árbitro da Europa, E na boca dos reis louvores fulgem. Hollanda venturoso ! Ah ! de tuas ditas Taes as menores são : mais deste ás musas, Mais a ti, ao teu nome, á pátria, ao mundo No filho, o grande filho, a glória nossa. Mimo ao pátrio pincel do numen louro.

Cedendo á voz d'um deus, que o chama a nome,

O Cicero Africano erros abjura ;

Sancto prelado o omnipotente invoca,

E d'agua exulta cândido Agustinho.

Portento d'expressão, viva faisca

Do lume eterno, que lhe ardeu na mente.

"Vate ! . . Ah ! não vate : um anjo, um deus te guia,

Move o arguto pincel na sabia dextra.

Do Olyrapo eis surge a magestade, a pompa :

Olha d' Ambrósio o venerando aspeito.

Os olhos, onde cm goso alma trasborda,

D' Agustinho a liumildade, e o gesto vívido,

Onde a força transluz d'activa mente,

50 o RETRATO

Da eloquência viril, saber profundo. *

Pereira natural, severo e forte O terrível pincel por entre ruinas, Entre chaminas e horror meneia ardido. De novo a cinzas reduzida Tróia Por elle foi ; por elle Pyrro ingente Co faxo assolador vagou por Illion. Antolha ouvir-se em pávidos lamentos O confuso ulular da mãe, que espira, E no extremo bocejo aperta os filhos, Do pae tremente, que a rugosa face Entre o seio da filha esconde, e geme, E quizera morrer no doce amplexo. O crepitar das estridentes chammas, O baquear dos templos, dos palácios, E quantas vozes de terror, d'espanto. Quantas scenas d'horror cantaram vates Nas Gregas cordas, Mantuana lyra. ^

Elementos, cedei-lhe ao mago encanto Das vozes do pincel ! Stridentes rompem

' Quadro do baptismo de S. Agustinho. ' Quadro da deslruição de Tróia.

I)E VÉNUS 51

Com ruidoso estampido as cataractas ; Confunde a natureza a essência, os termos, jN^a face do universo impera a morte, Mysterioso baixel ao longe avulta ; E de novo o castigo formidável Os olhos da razão cega d'espanto. '

Olha como apoz elle vem seguindo Valle expressivo, delicado e grande, Nobre Gonçalves, entendido e ornado, Rebcllo audaz, o Buonarroti Luso, E as do patiio pincel divinas Saphos, Ayalla, e Guadalupe, e Ritto, e Browne, E Luiza gentil, que os sabio.s tempos Ao Porto renovou da Grega Aspasia.

Fastoso monumento d'alta Ibéria, Voragem, golphão, que absorveste os rios Do precioso metal, que a ti con-eram ' Do Chily, e Potozi, das índias duas. Soberbo Escurial, onde se aninham. Sob apparente sacco o vicio, o crime. Tu de Cláudio por mim celebra o nome,

' Quadro do diluvio.

52 o RETRATP

Do Camões da pintura, a quem deveste De teus ornatos o maior, mais bello.

Nem sorva o Lettes de confuso olvido Yictorino engraçado, André mimoso. Verdadeiro Apparicio, simples Barros, Vivaz Alexandrino, destro Senna, Barreto original, brando Oliveira, E tu. Rocha correcto, ameno e vívido, Que obscuras scenas da marinlia Pathmos, E o confuso vedor nos exprimiste. Olhos em alvo, mysteriosos seguem Prophetico furor, que o volve e agita. Na dextra a penna mal segura forma Nunca entendidas, enredadas notas. '

Terra fértil d'heroes, solo fecundo, Salve ! Eis novo clarão, eis novos louros Sobre a frente gentil pululam, vivem ! Eis do pátrio esplendor eterna gloria, Raios de Lysia, que a remotas praias. Do magico pincel nas azas d'Iris Levaram em triumpho o Tejo e Douro,

' Quadro de S. João, escrevendo o Apocalypse.

DE VENTJS 53

Dous Vieiras ! Não ousa a minha lyra Dotes brilhantes numerar nas cordas : Assaz por meu silencio o dizem, cantam Lysia, Hesperia, Britania, Europa, o mundo.

Desfarte á voz da meiga Cytherea,

D'amor guiados, sobre as azas do estro,

E-apidos voam n'um momento, e chegam :

Pasmam de vêr a face á natureza,

Tam bella e simples qual na infância ao mundo ;

Os bosques entram : no matiz do prado

Vão com delicia apascentando os olhos.

Eis outeiro gentil se eleva á dextra ;

Sobre elle. . . Assombro quem ja viu, que iguale

Dos illustres varões súbito assombro ?

Amor, o mesmo amor parou de espanto.

De maravilha súbita cortado.

Sobre altas se ergue Dóricas columnas

De fino jaspe cúpula suberba.

Brilha c'o azul do ceo linda saphira

Nos capiteis, nas bases. Das cornijas

Scintilla em fogo do carbunclo a charama.

Mimos, riquezas de pomposo fausto,

^

54 o RETRATO

Quantas com larga mSo semçou profusas Nas entranhas da terra a natureza, Na vastidão dos mares ; tudo aos olhos Extasiados se ostenta. Riu do encanto, E a causa do prodigio amor conhece : Entra ; e apoz elle os estremados chefes.

Languidamente o hraço repousado

Nos hombros niveos do formoso Adónis,

Ei-la ao encontro a deusa da teinura

Lhes sai, e assim lhes falia : " Esta, que vedes,

" Consagrada ao prazer, mansão ditosa,

" Ergueu á minha voz a natureza,.

" De per si se puliu, lavrou-se o marmor,

" E se entalharam gemmas. N'um instante

" Meu doce intento completado houvera,

" Se o que vós podeis, dar-lhe eu pudera.

" Frio, e sem vida não me falia ao peito,

" Não falia ao coração todo esse esmero.

" Oh ! cortai-lhe a mudez, dai-lhe existência,

" E c'o mago pincel toruai-o á vida. "

Disse : e a divina voz do ouvido aos peitos Chammas d'estro, e de ingenho acceude aos vates; E em breve espaço divinaes assomos

DE VÉNUS 00

Daqui, dalli se apinham. Clio alteia Com portentosa mão cantados íèitos ; Alem da natureza o vôo erguido Alça a maga, gentil Alegoria ; Desalinhada, rústica beldade, Singella, e pura a Paizagem uoce Sem mysterio, sem véo cândida ostenta.

Ja Anda é tudo ; satisfeita a deusa

Vai alfim completar os seus intentos ;

E c'um meigo surrir, c'um doce agrado,

Que vale tanto, que enamora tudo.

Assim lhes falia a carinhosa Vénus :

" Vinde, ó filhos ; que um nome tam suave

" Vossos dotes merecem ; vinde : e a empresa,

*' Que na mente revolvo, efíeituai-me.

" Não mando, peço. . . (Ah ! d'uma bella o rogo

Quanto mais vale, que uma lei d'um nume !)

" lletratai-me, ó pintores." Nisto a deusa

O mimoso sendal, ja pouco avaro

Do thcsouro, despiu. Quantas bellezas.

Que divinos encantos não descobrem,

Não pesquisam, não vem ávidos olhos !

Sonhos da phantasia, ah ! não sois nada !

Guindado imaginar, ideal bclleza.

56 o RETRATO

E' frouxo o vôo, limitado o arrojo ; Jí^ão tenteis franquear mysterios tantos.

Cai das mãos o pincel, sem que o percebam,

Aos pintores na vista embevecidos ;

No Olympo os deuses, ignorando a causa,

De insólito prazer sentem banhar-se.

A natureza inteira revolveu-se ;

Sonhada Pytbagorica harmonia

Nas espheras soou mais branda e doce.

Aos entes todos pelas veias lavra

O incentivo do gosto : gemem ternas.

Que ha pouco uivaram, pelo bosque as feras ;

Arrulharam d'amor meigas pombinhas ;

Correu á esposa o nadador salgado ;

E nos olhos da amante leu ditoso

O constante amador perdão á culpa ;

A doce culpa tam querida e bella !

Ah ! muitas vezes não descubras, Vénus, Magos encantos ; ou verás que em breve A força de prazer se extingue o mundo.

Ja do extasi accordada um pouco a turba Dos vates se prepara ao doce emprego.

DE VÉNUS 57

Tintas fornece amor, pincéis as graças ; E eis no panno avultando a pouco e pouco Assomos divinaes ! . . É ella. . . é Vénus ! Eis a forma gentil do corpo airoso Salta, deslisa o fundo apavonado ; Róseos descurvam, se arredondam braços ; Ondeiam n'alva frente as tranças d'ebano ; Doce brilham d' amor os olhos meigos. Os meigos olhos, que prazer scintillam. Que o facho accendem dos desejos sofiregos, E contra o débil resistir do pejo Do atrevido mancebo a audácia imploram. Nas lindas faces purpureia a rosa. Que insensível esvai na cor de neve ; Surri nos lábios o deHrio, o encanto, Que importuna razão tam doce affasta, Que ávidos bejos, deliciosos, ternos, Annuncios de prazer, mutuam fervidos. Despontam no alvo, crystallino coUo Os arcanos d' amor, que anceiam d'elle, Que a furto ousaste, mui ditoso Anchises, Nas trevas do prazer palpar ardido ; Formosos pomos, que ao pastor Idalio Pelo tam cubicado outr'ora deste. . . Deste ; que bem o sei : (não te envergonho';)

58 o RETRATO

Era pobre o pastor, e os seus thesouros Juno lhe franqueou, seus mimos Palias: Sem troca tam gentil tu não venceras.

Mas quanto voa nas mui sabias dextras O divino pincel ! Que ebúrneas formas Voluptuosas surgir das tintas vejo ! Que exactas, lindas proporções esbeltas ! Que norma tam gentil as regra, as mede !

Ja, por milagre de Cyprina, é prompta N'um momento a grande obra. Ei-los de novo A vista do retrato absortos, raptos, E, novos Pygmaliões, por elle anceiam.

De transportada a deusa ao doce amante

Nas mãos a entrega ; e : "Esta (lhe diz) conserva

" Copia fíel da tua amada Vénus.

" Com eUa, ausente, ó caro, te consola,

" Quando longe de ti me re ti verem

" Cruéis deveres, pérfidas suspeitas. "

Admira o joven a belleza, as graças

Do mimoso traslado ; beja, e rega

Com lagrimas d' amor qual um, qual outra.

DE VÉNUS 59

Co' elle, em quanto viveu, sempre abraçaáo As poucas horas, que ficava ausente. Mitigava a saudade : e quando a morte O mancebo infeliz roubou sem pejo, No templo a deusa o coUocou de Papbos, E longas eras recebeu d' amantes Ternas off' rendas, amorosos votos.

AUi, quando natura se empenhara

Em dar-te ao mundo, carinhosa Annalia,

Um e um copiou meigos encantos.

Que, ó minha Yenus, te compõe, te adornam.

Alli, olhos no quadro, os teus formosos

Estremada rasgou ; alli as faces

De neve, e rosas coloriu divinas ;

Alli risonha boca, onde contino

Foi aninhar-se amor, te abriu mimosa ;

Alli o collo d' alabastro puro ;

Os lácteos pomos, que devoram bejos

Do faminto amador ; lisas columnas,

Que sustentam avaras mil segredos ;

Segredos, que. . . Perdoa : eis-me calado.

Volve a meus versos, compassiva amante, Benignos olhos : para ti voando.

60 o RETRATO DE VÉNUS.

Da crítica mordaz censuras fogem : Se accolheres o rude offertamento, Serão meus versos, como tu, divinos.

FIM DO ULTIMO CANTO.

NOTAS

JVotas ao canto primeiro

"Alma origem do ser, germe da vida."

. . . Per te quoniam genus omne animantum Concipitur, visitquc exortum lumiiia solis;

. . . . . libi suaves dedala tellus Summittit flores.

LucBET. de Ter. nat. Lib. I,

"Que tia ellijjse invariável rotam fixos."

Todos sabem, que tal é a orbita, que todos os pla- neta? descrevem.

"Qual és, qual foste, qual te appiíra os mimos "A arfe engen/w^a."

Artes reperla; sunt, docente natura.

Cic. de kg. Lib. I, 8.

"Como é dado aoè mortaes hellezas tuas."

Platão, fallando da musica, diz : (De republ.) que se nSo deve conceiliiar polo prazer, nem preferir a que não tem oiilro objecto, senão o prazer ; mas a que em si contiver a simillianra da hella natureza. Esta sentença c perfeilauienle applicavel ú pintura.

64 NOTAS

E lai é d'ha muito a opinião de todos os rhetori- cos e philologos. (Vid. Arislot., Le Battpux, La- harpe, Lemercier, ele.) Não nos enganemos porém com esla— natureza bella. Nem aqiiillo que lera bellas e lindas formas, é bello;e nen) ludoaquillo, que as tem, o é. Boileau o declara manífeslamen- le, e o prova :

II nest point de serpent, ni de monstre odieux, Qui, par Tart imite, ne puisse plaire hux yeux. D'un piiiceau délicat TartiGce agréable Du plus affreux object fait un ohject aimable.

BoiLEAO: Ari. Poet. Cbant 3.

'A mestra, a sabia antiguidade o diga."

Qnid virtus, et qnid sapientia possint Utile proposuit nobis exemplar.

BOBAT. Ep. II, L. I.

. Fabularum cur sit inventum genus, Brevi docebo. Servitus obnoxia. . . e(c. PflOEDR. Lib. III, prolog.

"Não : fabula gentil, volve a meus versos.

. . . Et, s'il est vrai, que la fable aulrefois Sut á tes fiers accents mêler ?a douce voix; Si sa raain délicate orna ta tête altièie; Si son orabre embellit las traits de ta lumière, Avec raoi sur tes pas permets-lui de marclier. Pour oníer tes attr.iit<, et non pour ies cacher. Voltaire: Henr. Cliant I.

Cosia egro fanciul porgiamo aspersi

AO RETRATO DK VENtIS 65

Di soavc licor groiii dei vasoi, ele.

Tasso: Gerusalém Canto I, slauz. 3.

" . . . O Ci/prio mot;o, o Teucro. "

Adónis, filho do Cyniras, rei de Chypre {Cyprum) Anchises, Troiano etc.

Acbises conjugio Yeneris dignale superbo. ViHG. ^n. Lib. 2.

" -Em quanto nas lidadas officinas. "

Retumbam nas lidadas o/ficinas Echos gostosos das nascentes almas, Quo novos corpos a habitar caminham.

FiLiNT. Elys. Ode a Vénus (Tom. ti.)

" C'o cíitre^nccido arniJho n dona hnitam. "

Presontem ja no eslrcmecido arrulho Os propinquos prazeres.

FiLiMT. Elys. ibíd.

" Porque mpftqnin/ias leis nos vedam harharas " Tam sxace jiecar. . ."

Si il peccar é si dolcc,

E'l non peccar si necessário; ò Iroppo

Imperfeita natura,

Cho repugni ala leggel

O troppo dura legge,

Cbc la natura oirendi I

GuARiNi : pasl. fid,

i

66 NOTAS

Se este crime é tam doce,

Se tanto fugir delle é necessário ;

Imperfeita parece a natureza,

Que fraca á lei repugna,

Ou lei muito severa,

Que a natureza offende.

Traducç. de Thomé Joaq. Gokzaga

"-E* do amado na dor, sua dor recresce.'*

Che r.esempio dei dolore É un stimolo maggiore, Che riehiania a sospirar.

Metastaz : Artass. alto I.

" Dos antigos errores esquecido. "

Errores é usado por Camões nosenlidode longas, e desvairadas viagens— ; Vevrt^iva porem, e outros clássicos de igual nota o tomaram na mesma acce- pção, em que aqui se toma.

"Com o amante fugir, morrer com elle ?'*

Uma deusa não pôde morrer : me diz ja algum critico, muito contente do quinau. Assim é. Sr. critico ; mas no dfilirio das paixões quem se lem- bra da sua natureza ?— Uma deusa com paixões! Os deuses da mylhologia, os numes dos Gregos, ft Romanos não são o mesmo que o deus do philo- sopho (digno de tal nome) (|ue, satisfeito de reco- nhecer a existcucia d'um ente supremo, pára, onde

AO RETRATO DE VÉNUS 67

se lhe acabam as forças, nem prosegue em invesli- «jaçòes. onde se llie apaj^a a luz da fraca razão ; nem em})resla á desconhecida cansa das causas os hahitos, as paixões, a forma, e toda a natureza da frágil e apoucada humanidade. O orgulho de se occiíltar a si próprio a sua fraqueza, e de abaixar aló á sua mesquinhez a idea de deus, por não po- der subir até á altura d'ella, nasce da nossa vaida- de, da nossa ignorância e da nossa miséria. Por isso os iheologos desbocadamente nos pintam, e nos querem fazer crer em um deus vingativo, ira- do, e capaz eu) íim de lodos os crimes e vicios, (|ue elles em sua alma alimentam e nos ([uerem vender por virtudes.

"... Conmcjo ao carro o sobe."

Subir é nm verbo neutro ; mas é este um idiotis- mo bem notável da nossa lingiia , usar de taes ver- bos com força activa, como o fazem os nossos clás- sicos a cada passo.

" Q"(> lhe s/>/ra dos lábios, dasp/tjii/bis."

Ai|uellp, não sei f|UP, Que spira não sei como, Que iiivisivci saliiiido, a visla o \c.

CAHUBá : Ode Cl.

Spirem suaves cheiros

De que se encha este ar lodo.

Ferr. Cuslr. acl. I.

68 NOTAS

" Arde voltar ao suspirado asylo. "

. . . Jamdudum errumpere nubem Árdehant.

VmoiL. Mneid. L. I. v. 580.

" Disenhos volve "

Esta palavra mui portugueza e antiga (embora de origem estrangeira) não égallicismo; exprime bem o dessein francez, e tem por si a atictoridade d'um escriptor bem notável e bem antigo, qual é Damião de Góes. (v. Chron. de D. ftlan. part. I, cap. 4, e passim.)

" Que iam suave rege a natureza. "

. . . . OmDÍs natura aHimanlium Te sequitur cupide.

LucRET. Lib. I. V. 15.

" Mal disse ; e o raio mais veloz não ruc."

Este verbo muito sdoptado por Filinto Elysio, e pelo erudito traduclor da lyrica de Horácio, Antó- nio Ribeiro dos Santos ; e cujos compostos, e de- rivados ja tinhamos {correr, decorrer ele.) tem to- das as qualidades necessárias para a sua naturali- sacão.

Ao RETRATO DE VEKUS 69

" Da rubra dextra do Tonante irado."

. . . . Et rubente Dextra sacras jaculatus arces Terruit urbera.

HoRAT. Od. 2, Lib. I.

"A' VOZ da deusa fende oa ares /iqiiidos. "

. . . . Per liquidum acthera:

Vino. Mn. Lib. I.

" Qnaes ao paiz do mysterioso Etrusco. "

Florença na Toscana, ou antiga Etruria, àilamya- teriosa em razão dos seus augures.

" A' formosa Bolonha . . . . "

Bolonha conta Ganganeli (ou antes Carracioli) nas suas cartas, que um Portuguez, encantado de sua belleza, exclamara : «^'ão se devia mostrar se- não ao domingo.»

'^ E fitando no ceo audazes vistas. "

Cflclam ipsum petímus stuUitia

HoR&T. Lib. II, OJ.

" Aos golpes crebros, incessantes, duros. "

O império Grego acabou era 1448 pela morte do

70 NOTAS AO TIETRATO DE VÉNUS

ullimo Constantino, e entrada de Mahomet II em Consianlinopola, a cujos muros se limitava, ha muito, o vasto império Grego e líomano. Os hor- rores desta tomada de Cp., a immensidade de fa- mílias que fugiram para a Itália, e principaimenle para Veneza, Geuova e Florença, o adiatitanieulo, que este successo causou ás sciencias e artes do occidente ; são cousas sahidas de lodo o mundo. (Vid. Auquétil : prccis de Tliist. iiuivers. tom. 4, pag. 249, etc e Cliateaubriand Gcnie du Christ. part. 3, iib. í.)

llíotas ao canto segundo

" Vão-lhe na f/ente os offamados c/iefes."

Aquelles sam sós homens que se affamam.

Ferreir. Cari. 6, Liv. I.

"iV^o hello antigo modelando as fjvnça!<."

O verbo modelar está p;eralnienle adoptado mas que não seja antigo. Assim como de molde se fez, e deduziu moldar; de modelo se pôde derivar mo- delar.

" Vem trihu excelsa de Romãos pintorcí^."

Gregos, Romãos, e toda a outra gente.

Ferreir. Cari. 3, Liv. I.

"E quanto inspira Apollo:.."

O fito que neste poema levei, foi simplesmente celehrar os louvores da pintura, e de seus prin- cipacs mestres. Sou apaixonado amador desta su- blime poesia; contento-me de adnnrar; mas nun- ca dei a menor lapizada. A l<'ilura, a obsf^rvaçào curiosa, e exacta do pouco. (|ue teniio vislo, me deram os limitados conhecimentos, que cm tarn comprida matéria possuo. Ideias vastas, ainda

72 NOTAS

mesmo na liisloria s«') da pintura, apenas pode- rão ser o fruclo de lonp^os estudos, que a minha pouca idade, e mais sérias, mas (|U(j ennojosas occupaçôes prohibem. Declaro pois que, se erro encontrarem os professores, mui grata e grande mercê me farão de me avisar; e conhecerão pela minha docilidade na emenda a pouca presump- cão do auctor.

"E aos (Varte aiiunifcs desejar com Pedro "Jinifo ao2>rodigio. . . "

Faeiamus hic iria tabernacula,

Matth. Evang.

"Em cerca aos muros da gentil Pecrf/iénope."

Nápoles, assim ditta antigamente de Parthénope, uma d.is sereias, que se encheram de desespera- ção |ior não poder vencer Ulysses com o seu can- {o. Junto ao tumulo desta simideusa ou nymplia se edificou uma cidade, que delia tonmu nome. Destruida esta, se tornou em seu mesmo legar a edificar outra nova, dita Nápoles {Neajwlis i>ieamXir cidade nova) nome que inda hoje conserva.

"Umas sohrc outras as cidades Jazem."

Pelos fins do século passado se descuhriram nas visinlianças do Vezuvio as antigas cidades de Her- culano e Pompeia. A cidade de Portici está quasí

AO RETRATO DE VÉNUS 73

situada sobre a anlíga Pompeia, que, assim como o Herculano, fora submergida em uma explosão do Vesúvio.

"E a rodo os cf atro fogo hórridos r/os."

Nas ffrandes irrupções do Vesúvio corre do alto da montanha um, como rio, de fogo. que uma imagem das fingidas torrentes do sonhado Aver- no. - Virgilio, que de certo dos volcões de Nápoles houve a idea do seu Plderjetonle. situou por aquel- les logares os seus— PluUmia regna. (Vid. Stael na Corin.)

''Inda no mesfo 2^(i)U}0 afflidos suam."

.... Sudant in mármore niocsto.

Siu. lai Lib. I.

"Saliente Caravaggio, que exprimiste."

Saliente; porque as figuras de seus quadros tem um ar de rpíêvo, que engana. E' necessária meto- nymia, de que uso muitas vezes para carecterizar os pintores, segundo suas mais distinctas quali- dades.

"Ja di; firciirrados rris tiTio brilha o fasto."

O simples nofoe de Homa basta para fazer nascer uma infinidade de ideias grandes e de magestade.

74 NOTAS

Todos os pensamentos sublimes, que a imagina- ção pôde crear. Iodas as sérias reflexões, que pôde suscitar a raz3o, todds as memorias augustas, que a virtude e a humanidad« podem fazer nas- cer, occorrem e borljiiUiauí associadamente na alma do honieni peNsador com a simples ideia de Roma. O exfôrço dos Horacios, a castidade das Lucrecias, a integridade dos Brutos e Calões, o patriotismo dos Fabios e Scevolas, a magnanimi- dade e valor dos Scipiões, a eloquência dos Ci- ceros. o saber dos Pliuios, a liberalidade dos Au- gustos, a grandeza dos Trajannos, a bumanidade dosTilos, tudo se recorda com a memoria illus- tre da cidade por excellencia.

Imagine-se um bomem cbeio de toda a magni- ficência destas ideias, possuído de respeito e ve- neração, ao entrar em Roma. Ruinas. sepulcros, templo^ derrocados, estradas solitárias, ruas de- sertas... são os miseráveis objectos, que lhe fe- rem os olhos, mui de longe preparados para ad- mirar a senhora do universo. De espaço a espaço descobre verdade) um templo magnifico, um grande palácio; mas breve se desvanece este vis- lumbre de grandeza, e stibito se esvai a nascen- te esperança de encontrar a Roma de Augusto. Estes palácios, estes templos, que se elevam do meio das choupanas (habitação da indiíieucia e da fome) carregados d'ornatos, de sobejo embel- lezados, serão acaso aquelles esmeros de arcbile- tura grande e magestosa, suberba e varonil dos edificios Latinos? Poderá algum d'elles similhar- se ao Foro, ao Palácio, ao Amphilhealro? Descu-

AO RETRATO DE VÉNUS. 75

brir-sc-lia n'al2uma destas modernas praças o me- nor vestisio dos /íosíros/ O Capitólio, o terrível, o venerando C.ipilolio. onde se julgava dos des- tinos das nações, onde os reis curvavam os scep- Iros, e depiiniiam os diademas; d'onde sabiam os irrevogáveis e tremendos decretos, que dispn- iiliam da sorte dos povos, e legislavam ao uni- verso, que é feito d'eíle? O solicito viajante ain- da o descobre; o seu cicerone (guia) ainda lhe mostra o logar d'elie. E será este?— Dilíerente estrada conduz ao cimo do monte; o palácio do senador, alguns restos de quebradas estatuas, de desGgurados relevos são todas as riquezas, todos os tro|)heos. todos os despojos, que ornam o an- tigo alcaçar úo mundo.

Confuso, bumilbado. o viajante não se atreve ja a encarar nenhum editicio. «Os habitantes ao menos (diz elle) talvez conservem alguma cousa ainda de Romanos. Tantas virtudes, tanta gran- deza não podiam extinguir-se de todo.» Um ban- do de miseráveis, uma plebe indigente, vil e sem costumes, são os successores do povo rei; uma corte eiteminada, e entregue aos deleites do ócio occupa logar dos Brutos e Catões; declamado- res sem gòslo, com alíectadas e gnindiídas pbra- ses íi|ue 011 não entendem ou níio cremi f.izpm re- tenir aquelle mesmo ar, que ouviu os eloquen- tes e numerosos sons de Cícero e Marco Antó- nio; assucarados trovadores infectam com os seus —concelli - a degradada lyra de Virgilio e Horá- cio; os Sei piões, os Eiuilios, os grandes generaes, as invcucivcis tropas da iriumpliante republica

7b NOTAS

s3o substituídas por um bando de assoldados Suissos, cujas grandes proesas e valor, cujos puerreiros exforços são o fazer a guarda do papa. Em vez do au?usto e venerando senado, um ajuntamento (l'homens ambiciosos, insaciáveis d'ouro, regem despoticamente; nâo os direitos das nações, e deveres dos reis e povos pelas in- variáveis leis da justiça, como os antigos conscrip- tos; mas o corpo invalido da igreja por elles ar- ruinada e depravada, levando simplesmente o fito em pescar para a barca do humilde S. Pe- dro as riquezas das nações com o sagrado anzol das indulgências, relíquias e breves, «Roma! oh Roma! (exclamará o contristado viajante) tu ja nSo existes; a tua liberdade expirou em Catão, e tu com ella! A liberdade te conservava as vir- tudes, que, mais que tuas façanhas, te consti- tuíram no império do orbe. Perdeste-a; e desde então caminhaste sempre com gigantescos passos ao abysrao de miséria e vileza, em que jazes se- pultada para eterno exemplo do universo.

E com effeito, lai é a sorte de quasi todas as na- ções! Florecem, reinam em quanto a liberdade, ou a larva delia subsiste; apenas se eleva a lyran- nia. caí de rojo com a liberdade o amor das vir- tudes; a servidão embrutece o homem; a socieda- de se muda em um rebanho de escravos; e a mi- séria succede á opulência. Assim cahiu Roma, as- sim Sparta, assim Holianda, assim tantas outras. Que exemplos para os tyrannos, e que terrível escarmento para os povos! Miseráveis déspotas, embreve estendereis o sceptro de ferro sobre

AO RETRATO DE VÉNUS 77

montões de ruínas. Os Vândalos, os Godos, os Árabes não se acabaram ainda; e vós os chamais com tanta anciã! '

' É fácil de ver (juo esta nola foi escri|»la anlcs do dia 21 d Agosto. Felizmente ja se podem liatlar estes assumptos com meãos atrabilis.

]¥o(»s ao cauto terceiro

"" Enfrm as iras de Nejytuno indómito. "

Império premit, et vincli?, et cárcere froenat.

ViRG. Mn. Lib. I, V. 34.

" Ve d'Ad)'ia o golpho tempestuoso efero. "

K o golpho He Veneza, aniigamente chamado de Adria, oii Adrialico, d'uma cidade desle nome.

" Alli, fugindo aos clamorosos brados. "

No meio do século V, foram destruidas por Attila, rei dos Hunos, as cidades de Aqiiilea, Altino, Concórdia. Opitergo e Pádua, todas visinhas ao golpho, então chamado Adriático. Os iiabifantes destas cidades, fugindo ao furor irresislivel, e cruel ferocidade dos. bárbaros, se foram refugiar nas pe- íjiienas e desertas ilhotas do mar Adriático, e fun- daram assim o conjeço de Veneza. (Vid. AnquóiU, Millol, e la Istoria de Vinegia per *")

" Empório foi depois do rico orieide. "

Antes que ha índia fosse descuherla pelos Porlngue- zes, ha tnayor parte da especiaria, droga, e pedraria se vacava pelo mar roxo, donde ya ler d cidade Da-

XOTAS AO RETRATO DE VÉNUS 70

Icxandria, e dalli ha compravâo lios Venezianos, que a espalhaavào 2)ela Europa.

Castanheda Lib. I, cap. i.

" F do alado Leão tremeu (jran tempo. "

Um leão com azas era o timbre, ou armas da re- publica, ou senboria de Veneza.

'^ E negue a esteira das cortadas omJas. "

Eakira. ou esteiro, que assim, e iiidiíTerentemente escrevem e usam os nossos clássicos, éa(|uelle sul- co, que os navio? vão fazendo e deixando depoz si nas aguas, e que bom espaço se conserva depois. Maior é talvez o numero das pessoas que sshem a simpjicissima razfio pbysica deste natural pbeno- mcno. do que o das que o nome portuguez lhe conhecem.

" Foi a jjatria d'heroes,foi mãe de sábios. "

. . . Air Adria in seno Um popolo d'croi saiiuna .

Matbst. Ezio : alto I.

" Adr tintes gentis, oh ! vinde a^fre}ifes. "

Assim como de Tugns Latino fez ílamOes Tágides ; e outros do Douro— Durms Ihirindes «Uc. ; í|uení me impede a mim, que de Adria, fará Adriades?

80 NOTAS

" Qual Verona folgou com seu Catullo."

. . . . Gaudel Verona Catullo, Pelignae d içar gloria gentis ego.

OviD. Trist.

"... Mil graças mil encantos

" Sem mysterio, sem véo te deu, lhe dera. "

Assim como Catullo, Paulo Veronese é notado de pouco honesto. Todos sabem a lascívia e volnptno- sidade (los versos do primeiro: os quatlros do se- gundo tem uma poesia deste género bem mais ex- pressiva.

^' Em que IJie j)eze ú inveja, e seus furores. "

Eu, que apezar da inveja, e seus furores Aos astros levo o nome Lusitano.

Elpi«. I\'onacr. Od. a Vaso. da Gani.

Em que lhe péze, e em que lhe pez são ph rases dos melhores clássicos : mil exemplos, por um, pudera appresentar ; mas citarei o que tenho aqui mais á mão, que é o P. Vieira {Vozes baudosas : voz histor.)

" Scena outr^ora infeliz da gloria Franca. "

As províncias Flamengas foram um dos principaes theatros das ambiciosas guerras de Luiz xiv com a Hollanda. (Vid. Voltaiue Siécl. de Louis xiv.)

AO RETRATO DE VÉNUS 81

"Lhe bafejades dicinal csjJtrito. "

Quasi divino qaodam spirilu inflari.

CicBB. pro Arch. §. 8.

" JE o veneno lethal lhe infunde n^alma. "

Sic effata, facem juveni conjecit, el atro Lumine íumanlis Úxit sub peclore tajdas.

YiRG. iEn.Liv. VIII, V. 56, e seg.

" Quam hcJIo é na expressão Vaén correcto. "

Porventura não serão os verdadeiros accentos da pronúncia nacional, os qne ponho aqui neste e nos outros nomes dos pintores ílamenfíos : piiz-lhe os necessários para o rythmo, que é a minha (ibri^a- ção ; dos outros não sei, pois qne ifjnoro a tal lin- gua; no que, segundo creio, não perderei nada.

" Difficcis nomes d' estremados mestres. "

E hem difíiceis, com eíFeito. para accomodar ao verso com os seus— /c/; rr etc: não são daquelies, de que Horácio diz :

Verba loquor socianda cbordis.

HoBAT. Lib. II, Od.

" Do mestre a obra maior, Waudiek insigne. '*

Voltaire diz algures, fallando de Tasso, que, se é

82 NOTAS

verdade o que vulgarmente se diz , que os Lusía- das, e seu auctor formaram a Gerusalera do pri- meiro, fora esta a mellior obra de Camões. INão estou absolutamente por este espirituoso dito de Vol- taire; mas com justiça o appliquei a llubens, e Wandick.

" E, em vez d' um Fábio tardador. . . "

Assim traduziu Filinto Elys. o Fahius cunlaclor dos Latinos. (Vid. Filint. Ode d Liberdade.)

"... Ja no Sena ovante. "

Sobre a margem feliz do rio ovante, Donde arrancando omnipotência aos fados Impoz tropel d'heroes silencio ao globo.

BocAG. Od. a Filint.

" Qite do Mcschacebeu vingando as margens, "

Este é o verdadeiro nome do célebre rio da Luisia- íia , na America Septentrional, chamado vulgar- mente Mississipi. (Vid. Chateaubriand : Génie du Christ. Part. IIÍ, Livr. 5.)

" Co Euripides Francez disputa ainda. "

Racine bem se pôde assim chamar, não somente por suas absolutas e eminentes qualidades ; mas

AO RETRATO DE VÉNUS 83

pela relativa, e mui particular da similhança dos ingenhos, e feliz imitação de Racine. (Vid. Lahar- PE : Cours de Litlcr. ; Lemekcier : ibid.; e o P. Bru- MOY no Theatr. dos Gregos.)

" Ao ver nas murchas, csmyrradas faces. "

J'ai langui, j'ai séchc dans Ics (eux, dans les larmes. Raciw. Phoedr. Act. II.

Dcsfalleci, murchei no ardor, no pranto.

Trad. ms. do Sr. H. E.

*' Bhim criminoso amor violência efoyo. "

Quaod je suis toule en ícu, vous neles quo de glacc. Phoedr. Act. II.

" Os manes foUjam de Rolliii, Voltaire. "

Le-Gros é pintor histórico; e Iloilin c Voltaire fo- ram liistoriúgraplios francezes.

IVotas ao eaiito «iiiartc»

*'Onde a voz de Bocage, a voz de Gomes."

Outros quaesquer poetas, e de mais nomeada por- ventura, pudera eu citar; mas quiz, quanto em mim era , e o permitlia o assumpto e a obra, prestar homenagem a dous ingenhos, que hon- raram a pátria e a liugua; e dos quaes o pri- meiro depois d'uma fama gigantesca, e maior que seu merecimento, passou a ser enxovalhado por quanto Mevio eBaviosahe dizer Traduziu, traduziu, traduziu tudo como se um iraductor como Bocage não fosse um poeta de muito mere- cimento, e de muito maior, que tantos originalis- tas de nome (de nome sim; que realmente deus sabe o que é); como se Pope, Dryden, Annibal Caro, JoAo Franco Barreto, e tantos outros illus- tres traductores não figurassem mais na repu- blica litteraria que tantos épicos modernos.... Eu não sou dos apaixonados do privilegio exclusivo, (|ue ha certo tempo obtiveram entre nós as tra- ducçòes. Uma nação (|ue assim obra por espirito de priguiça, ou menos-preço de si própria, em vez de enriquecer Sua lilteratura, empobrece-a e perde-a. De J. B. Gomes e da sua Castro tan- to mal como bem se tem dito. Não a dou por uma tragedia perfeitamente regular, não a com- paro ás grandes peças de Bacinc e Alfieri; mas

AO RETRATO DE VÉNUS 85

sei que tem muitas bellezas, e que n'um thea- tro tam pobre, como o nosso, é digna de muita e muita estimação. Para criticar a Castro de Go- mes é preciso encbugar muilas vezes as lagrimas, que ella excita continuamente.

''Calcando a juba dos LcÕes (irypha.nhos^, "Parando ás Agmas efe."

Revoluções de 1640 e 1808.

" . . . . Ah f SC aura amiga " Continua a soprar. . . "

Em Roma, assim como na Grécia, se formariam Zeuxis e Apelles, se os liomanos dessem a Fábio as bonras, que seus talentos mereciam. Diz Cí- cero algures nas QueslOes Tusculanas.

"Inviolável lei um teu desejo."

JVaç5o nenhuma (diz Florian no avant propôs de Sancho) possue a arte d amar, como a portugueza.

, "Os feitos dignos de perenne historia."

. as cousas .... Que merecerem tor eterna historia.

Cahõbs Lvs. Caat. 7.

86 NOTAS

"Sensiveis corações, vinde, espclhar-ros etc."

Vidi ssepius inscriptionis imaginem, et sine lacrymis tran- sire non potui.

S. GnEGOR. II Coneil. Nicen. act. 40.

"Prazorfi do chridão, doçuras d'alma."

Le nouveau testament cbange le gcnie de la peinlure. Sans

lui rien ôler de sa sublimilé, il iui a donné plus de teiidrosse.

Gbateaubrund Gen. du Clir, part. III, Livr. 1, cap. 4.

'^Portento d'cjrprcsmo, rira faísca "I>o lume eterno . . . "

Les peintres. . famille sublime qae le souflle de Tesprilravit au dessus de Ihomme.

Cháieaubriand ibid.

"Fastoso monumento d'aUa Ibéria."

Resta ainda resolver o grande problema: Se a des- cuberta da America foi ulil ou prejudicial d Euro- pa; o qual, emqiianto a mim, depende d'outro mais genérico: Se as conquistas, principalmente longínquas, podem ser úteis a uma nação. Não me atrevo a resolver nem um nem outro. As theo- rias falham quasi sempre em politica, bem como em moral. So noto imparcialmente, que a íles- panba foi poderosíssima nação antes do XVI se-

\

AO RETRATO Ml VÉNUS 87

cnlo; que Portugal, se nos tempos de D. Manoel e João III íloreceu, e deu brado na Europa e no mundo; depois não fez mais que luctar contra innumeraveis desgraças: que não tivemos mais um João lí; e que as conquistas d'Asia e Egypto deram por Icrra com o império Romano. Pro- vêm isto das descubertas em si? Provêm do uso que d'ellas se fez? Continua a minha igno- rância.—Os monarchas liespanhoes fundiram no Escurial. e n'outras cousas d'esta ordem, as im- mensas riquezas das índias occidentaes. ganhas á custa de tantos crimes, barbaridades, irreligião, fanatismo e sacrilégios de Corlêz e de mil ou- tros. Diminuiu no continente hespanhol a popu- lação; não &e fez o menor caso da agricultura; o commercio não foi senão passivo; e, depois d'um breve esplendor, a suberha Ilespanha cahiu na miséria d'uma nação pobre e falta de tudo, a pe- zar de toda a sua prata.— E que diremos de nós? O mesmo, com alguma differença para peior. Todo o homem, que pensa, sabe o que eu pode- ria dizer neste artigo; como para estes escre- vo, elles meenlendom; e eu, com o meu silencio, me poupo ás criticas da ignorância e da sórdida adulação. {E' bem facilr de ver qne ésía nola foi igualmente escripla antes do dia !2í d' Agosto.)

^'Tcrrafcrtil d'he)'oc'S, solo fecumlo, *'Sahr / . . . "

Salve magna parcos fruguru . icllus,

Magoa virum.

Vino. Georg. Lib.

bS NOTAS

"O mmoso sendal, Ja pouco avaro."

O véo dos roxos lirios pouco avaro.

C&MÕES Lus. Cant. 9.

Diripui tunicam, nec multam rara noccbal. OviD. Elcg. iib. 1, Eleg. S.

"Que divinos encantos não descobretn etcJ*

E tuto ciò, cbe piii la vista alletti.

Tas80 Gerusal. Cant. XV, st. 59.

"Sonhada, j^ytliagorica harmonia."

A hnrmonía das spheras é um dos sonhos de Py- tliiigoras. Póde-se ver a satyra galantíssima des- tas e outras philosophicas extravagâncias no ce- lebre poenaa alIem5o Musarion de Wielland: Canto II.

"Arrulharam d' amor meigas pombinhas."

Presentem ja no estremecido arrulho Os propinquos prazeres . FiLiNT. Elys. Ode a Yenus. (Tom. 5.)

"Boseos descurvam, se arredondam braços."

NV®* ^' hpiyvtia (pitm poo oo áxtXcf iír.

HoMER, Odyssea B. (Lib. II.)

AO RETRATO DE VÉNUS 89

*' Ondeiam n'ah'a frente as tranças d'evano."

Os cabellos e olhos pretos eram os mais estima- dos dos Romanos— iV/gra oculis, nigraque capillis: Horat. Se é mau gôslo, confesso que o tenho, Quem amar mais os louros, não tem senão di- zer:

«Ondeiam n'alva frente as tranças (l'ouro."

Assim, eu, e o leitor ficamos ambos satisfeitos. De mais, até lhe posso ensinar um texto, com que provar o seu gosto. E' a auctoridade de Pe- trarca, que nao e peca neste ponto:

L'auro, e i topazj ai sol sopra la neve YincoD le biondc cbiorae presso agli occhi.

Petrarca, rim. Part. I. cans. 9.

"Deste; que bem o sei ..."

Assim é de crer piamente; e, comquanlo o não digam os DD., eu o penso. O leitor pôde ficar pelo que quizer salva fide pois estas matérias fião de mylhologia, e não de theologia.

"Ja j)or milagre de Cyprina é j)rompta."

Manca i! parlar; di 7Ívo allro non chiedi. Ne nuança queslo ancor, se agii occhi credi.

Tass. GeTus. Cant. XYI.

90 NOTAS AO RETRATO DE VÉNUS

"E novos PygmaliÕes por elle ancdam.^*

Pigmalion, quanto Iodar ti dei Deír imagine tua, se mille volte Wavesti qucl, eh' io sol' unavorrei.

Petrarca, rime, Part I, sonelt. S8.

"Admira ojoren a helleza ..."

Faria, pouco mais ou menos, as mesmas extra- vagâncias com o retrato, que o amante de Júlia com o da sua bella.

(Vid. Nouvell. Iléloi. Part. II, Lelt. 22.

"Os lacfcos pomos ..."

Le pome acccrbe, e crude . . .

Tass. Gerus. Cant. XVI.

"Serão meus versos, como tu, divinos.

Me juvat in grcemio doctse legisse puellae, Auribus et puris dieta probasse mea: Haec si conlingant . . . . . Domina judice, tutus ero.

Propert, Eleg.

ENSAIO

Wi â ilIMH Di

ENSAIO

SOBRE

A HISTORIA DA PINTURA

o OBJECTO principal deste ensaio é a historia da pintura. A maior parte do meu poema será inintolligivel sem elle a todo o leitor, que não ti- ver feito um comprido estudo nesta matéria. Menos porem bastaria talvez para a intelligencia do opúsculo: fui mais longo e extenso, princi- palmente na historia da pintura portugueza, porque julguei útil dar á minha nação uma coi- sa que ella não tinha, a hiographia critica dos seus pintores. Sobejo c enfadonho trabalho mo deu: oxalá que approveite! liem pago fico, se, entre todos os leitores , deparar com dous, em quem faça impressão o amor de boas-artes, e da pátria, que toda a obra respira.

94 ENSAIO SOURE A HISTORIA

CAPITULO I

Dos Pintores Gregos e Romanos.

O numero dos pintores Gregos e ainda Ro- manos, cujos nomes chegaram até nós, é grande, mas o d'aquenes, cujas obras ou maneiras co- nhecemos, é bem diminuto. O respeito da an- tiguidade com tudo no-los faz admirar, por ventura mais, do que o seu merecimonto exige. Os quadros modernamente descobertos nas cin- zas do Herculano e Pompeia , alguns frescos conservados nas ruinas de Roma e outras cida- des de Itália tem subejamente mostrado aos en- tendedores imparciaes, que a pintura dos anti- gos, ainda mesmo no seu maior auge, não pode soíFrer compararão com o menor quadro dos Rafados, dos Corrcgios, dos Caracóis, nem mes- mo d'outros pintores de segunda ordem das mo- dernas escholas. Duas coisas principalmente fal- tavam aos antigos pintores. Uma, as tintas, cu- jas bellas composições, descobertas em mui pos- teriores séculos, absolutamente ignoravam; não conhecendo, senão us terras de côr, e os mctacs

DA PINTURA 95

calcinados; faltando-lhes aquellas cores, que dão o tom médio, entro a luz o a sombra, que for- mam o matizado e assombrado, e exprimem a natureza tal qual ella é, e com toda a sua for- mosura: outra, o conhecimento das leis da pros- pectiva, como bem mostram todas as suas obras, que nos restam: defeito este, que salta aos olhos, e de impossivel disfarce. aquelle cego fana- tismo, que faz cançar os pedantes no estudo do Hebraico e Syriaco c d'outras inúteis antigua- Ihas, pode achar nos quadros Gregos e Roma- nos bellezas, niTo digo superiores, mas iguaes ás das magnificas pinturas do bom tempo das mo- dernas escholas, e ainda mesmo das de hoje; com quanto a pintura, á excepção da franceza, bas- tante se approxima da decadência pelo espirito servil, mania das copias e mal entendida imita- ção.

CAPITULO II

Restauração da inntura na Itália.

Cimabúo, nascido era 12'i(), ' e morto cm

' iMuncli o faz nascido cm 1240—10 annos depois.

96 ENSAIO SOBRE A HISRORIA

1300, é conhecido em toda a Europa pelo hon- roso titulo de restaurador da pintura. Ouviu os principios de sua arte d'alguns pintores Gregos vindos a Florença, que ainda conservavam res- tos do hom stylo da nação: aperfeiçoou-se de- pois com o estudo, e imitação dos poucos mo- delos antigos, que então appareciam na Itália. Preciosas descobertas, que se foram pelo andar dos tempos fazendo, pouco a pouco desterraram a barbaridade, que, entre as outras boas-artes, tinha também sepultado a pintura. As estatuas, os quadros, os relevos arrancados das cinzas e ruinas dos famosos monumentos romanos, quan- tos mestres, quantos primores d'arte, d'archi- tectura, sculptura e pintura não deram á Euro- pa! Miguel Angelo confessava dever toda a sua sciencia ao assiduo estudo, que por toda a vida fizera no tronco ' de Hercules, no griqio '^ de Laocoon, no Apello » do Belveder, e n'outros modelos da bella antiguidade.

Com quanto porem a pintura e mais boas-

' Famosos restos da estatua de Apoloi)io Atheniense. ' Obra de três escultores Rhodios Athenodoro, Agesandro e Polidoro. ' Estatua bem conhecida.

DA PIJfTURA 97

artes não possam propriamente dizer-se restaura- das antes do século de Leão X, que foi o de Ra- phael, de Miguel Angelo, de Leonardo da Vin- ci, etc; Cimabúe comtudo foi o pae da pintura moderna; suas obras espalhadas pela ItaHa reno- varam o bom gosto, e abriram os alicerces, so- bre que se havia depois formar o grande edificio das escholas Florentina, Romana, etc.

Todavia, em abono da verdade devemos con- fessar, que, posto que Cimabúe possua com ra- zão o titulo de restaurador da pintura; outros antes d'elle houve, que se o não excederam, lhe não foram ao menos inferiores. De Guido de Senna, pintor do XIII século existe em uma igreja de sua pátria um quadro da Virgem, tão bom como os melhores de Cimabúe: o seu dese- nho é de bom stylo, e ainda fresco de cores, ape- zar do ser feito no principio do mesmo século, como indica a inscripção, que se Ic por baixo.

Me Guido de Sonnis Diebus depinxit amenis; Quem Christus lenis Nullis nolit agcre penis. A. D. MCCXXI.

98 ENSAIO SOBRE A HISTORIA

Ora, a data deste quadro é anterior ao nasci- mento de Cimabi'ie, afíirmado por uns em 1230, e por outros (como Pruncti) em 1240; e por isso os Semienses querem disputar a Cimabúe o titulo, quo a elle e sua pátria, Florença, tan- to ennobrece. Mas debalde; porque de Guido não se conhece outra obra; e de Cimabúe exis- tem ainda muitas, cuja nomeada o faz hoje mesmo celebre e conhecido, e que n'aqucllc tempo serviam de modelo aos seus discipulos.

Do principio também deste século XIII se conservava em Luca um antiquissimo quadro de certo pintor d'aquella cidade: representava S. Francisco d'Assis. Seu deseuho é correcto, posto que um pouco rude; o ar-de-cabeça tem muita expressão, e as mãos são bem tractadas. '

Deste, e d'outros alguns monumentos desta épocha, devemos concluir: que Cimabúe não foi o primeiro que na Itália começou a pintar com menos defeitos: mas nunca se poderá asse-

' Advirto, e fique advertido por todo o decurso deste en- saio, que quando digo, que este, ou aquelle quadro, ou es- tatua se acham em Roma, Florença, ou outra qualquer cidade; deve sempre entender-se antes das ultimas revoluções da Eu- ropa.

DA PINTURA 99

verar, que elle, e sua escliola (a Florentina) não foram os restauradores e pães da moderna pin- tura.

O que Pruneti diz a este respeito não destrói os meus principios.

Jamais as sciencias, e artes foram de repente á perfeição. Antes de Sócrates e Platão existiu Pythagoras e outros philosophos, que lhe abri- ram o caminho; antes de Hippocrates, Avicena e Averroes ' houve Esculápio, e outros mezi- nheiros; antes de Homero, Hesiodo e Virgílio, havia Orphcus e Linos; Eschylo, Sóphocles, Euripides e Aristophanes foram precedidos por Thespis; os erros de Descartes allumiaram New- ton; Mairet, Routrou e Cornoille formaram Ra- cine e Voltaire; e entre nós finalmente, antes de Camões, Ferreira e Bernardes houve Gil Vi- cente, Bernardim e outros muitos, quo lhes franquearam a carreira poética. Agora quasi era nossos dias, na brilhante restauração das lettras,

Nilo confundo Avicena, e Averroes com Oippocrates: bem sei a distancia de tempos e merecimentos. Faço porem esta advertência, porque n<1n leia isto aljjum Esculápio cnlhusias- ta, que grite: au tcandalc.

100 ENSAIO SOBRE A HISTORIA

OS Elpinos, "OS Filintos, os Gomes e os Bocages não apyiareceram de repente.

Assim gradualmente foram crescendo os pin- tores na Itália, e adiantando-se a perfeição de suas obras. Nos últimos parocismos do império Grego uma infinidade de professores vinham procurar entre os Italianos um asylo mais se- guro, e uma pátria menos despótica: e quando finalmente em 1448, tomada Constantinopola por Mahometh II, se extinguiu de todo aquel- le phantasma colossal, maior numero ainda se espalhou por todo o meio-dia da Europa, e con- correu para a perfeição da pintura moderna; as- sim como a alluvião de theologos Gregos con- correu, e muito, para a perpetuação das barba- ridades scholasticas, e atrazo das sciencias. São deste tempo Gioto, cujas obras se acham ainda em Florença, Piza e Roma nascido em 1276, e morto em 1336; foi discipulo de Cimabúe, e contribuiu muito para a perfeição da arte pelo bem-ordenado da sua pintura, e boa disposição de figuras.

Masaccio, nasc. em 1417, e mort. em 1521, seria o verdadeiro e completo restaurador da

DA PINTURA 101

pintura, se vivesse mais tempo: o pouco que d'elle resta, acha-se em Florença.

Luca Signorelli di Cortona n. em 1449, e m. em 1521; foi celebre pela precisão de desenho, e belleza de composição, todavia fraco no colorido. Notam- se bem estas propriedades nos seus qua- dros, que ainda se encontram no Loreto e Ro- ma. E este é o ultimo pintor de fama anterior a Leonardo da Vinci, que depois, com Miguel An- gelo, foi julgado fundador da eschola Florentina.

CAPITULO III

Da Eschola. Romana

Apezar de que a eschola Florentina com ra- zão se possa chamar a mais antiga, pois que seus alluranos se começam a contar de-sde Cima- búe; com tudo a Romana foi, e sempre será como a primeira olhada, não em favor e res- peito de seu illustre chefe Raphael Sanzio de Urbino; mas pela bellesa de desenho, elegância do composição, verdade de expressão, e sobre tudo intelligencia de attitudes, que a caracte- rizam e sobreelevam a todas as outras.

102 ENSAIO SOBRE A HISTORIA

As descobertas dos grandes monumentos de pintura e sculptura, que os zelosos cuidados de alguns papas, e outras principaes pessoas de Itália desenterravam todos os dias das ruinas da antiga E-oma, formaram o gosto, dos mestres desta eschola, moldando-o no antigo. E tal é a caracteristica das suas producçÕes. Os rasgos mestres d'aquelles preciosos antigos lhes inspira- ram uma magestosa solemnidade de expressão nas grandes ideias que concebiam; e esta mira, que levaram sempre os pintores Romanos, lhes fez desprezar alguma coisa o colorido: defeito, que bem se esquece por outras, e tão brilhantes qualidades.

Para tecer o elogio da eschola Romana basta nomear Raphael. Que nome nos fastos das boas- artes! Se VirgiHo e Homero não são mais cele- bres, que Zeuxis e Apelles; a glória de Raphael quanto é superior á de Tasso e Ariosto! líao me agrada aquella sentença dos antigos:

Ut pictura poesis— A poesia será como a phitura (Bocage.)

DA. PINTURA 103

A poesia (attrevi-me a pensá-lo assim, e se a novidade não agradar, nem por isso me desdigo) é uma só: aos poetas-pintores, seus primeiros fi- lhos é dado tratta-la viva: os poetas- versejado- res só com o véo do mysterio coberta a podem ver e seguir. A poesia animada da pintura ex- prime a natureza toda; a dos versos porem, me- nos viva e exacta, falha em muita parte na ex- pressão das suas bellezas. Que poeta nos pode- ria dar uma ideia de Rómulo como iJavid no seu quadro das Sabinas? Que versos nos poderiam fazer imaginar a Divindade como a transfigura- ção de Raphael? Que poema nos faria conceber a magestade d' um Deiui Crmdor dando forma ao cáhos, e ser ao universo, como a pintura de Mi- guel Angelo ?

Estas reflexões sobre o paralollo das duas es- pécies de poesia são minhas; por taes as dou, e me encarrego do mal, ou bem, que d'ellas se pen- sar. Por ventura não foi este o conceito dos an- tigos; mas a arte mui atrazada entre cUes não es- tava em propoi ção da nossa; os gregos não ti- nham, como nós, Homeros em pintura. Im- mensas vantagens, como notamos, lhes levam os modernos pintores; a que de mais accresee o

104 ENSAIO SOBRE A HISTORIA

nobre invento da gravura, que (bem como a im- prensa nos facilita o trato dos mais antigos poetas do mundo) transmitte á posteridade e nações remotas os esmeros da pintura, e ainda da scultura. Os nossos Appelles não podem te- mer o ser conhecidos pelos vindouros de nome e fama, como o é por nós o dos antigos; a es- tampa lhes assegura o conhecimento àe facto no mais remoto porvir, e mais longes chmas.

Mui fértil foi a eschola Romana; grande é o numero dos seus pintores: daremos de cada um d'elles uma brevissima, porem exacta noticia: desta maneira terá a mocidade applicada, como em synopse, e sem o trabalho enfadonho de re- volver muitos e antigos cartapacios, a historia completa desta e das outras escholas, em que seguiremos o mesmo methodo.

Século XVI

Rafaelo Sanzio d'Urbino, nascido em 1483, morto em 1420, facilmente julgado o príncipe dos pintores: nenhum (se não for o moderno francez, Mr. David) poderá rivaHza-lo. O bri- lhante colorido de Ticiano, a belleza das tintas

DA PINTURA 105

de Corregio, a gicantesca altivez de Miguel An- gelo não fazem a menor sombra á gloria do gran- de Romano. Raphael levou a sua arte ao grau de perfeição, de que é capaz a humanidade. Per- tender dar uma ideia d'elle é tentar o impossi- vel: o estudo das suas producçÕes é o único meio de o conhecer. Elle ainda vive repartido por seus quadros, um dos mais bellos e ricos ornamentos das cidades que os possuem. Digam-o os tem- plos de Roma, as casas dos principes, o Vaticano (onde existe a sua famosa Bíblia), e sobre tudo a igreja de S. P tetro in monte situada no Janiculo; onde se conserva o primeiro quadro do universo, a única producção da arte, que excede a nature- za, a maior honra do ingenho humano, a melhor obra de Raphael, a sua Transfiguração. Tal foi um dos primeiros homens do mundo, de quem (e com mais razão por ventura, do que Horácio di- zia de si) podemos asseverar, que não morreu todo: Non onínin moriar; ou como ja se disse em portugucz; O sábio não rai todo á sepultura. A belleza principal das suas obras é o desenho e attitudos.

Júlio Romano (Giulio Pippi) n. 1492, m. 1546; foi discipulo de Raphael. Em suas obras,

106 ENSAIO SOBRE A HISTORIA

que principalmente se acham em Roma, se ve que o caracter d'este pintor era a fôrça e ar- dimento: o seu collorido é obscuro, mas o dese- 5iho admirável.

João Francisco Penni (il Fattore) n. em 1488, m. em 1528 ; trabalhou quasi sempre debaixo das vistas, e pelos desenhos de Baphael, seu mestre. Suas obras principaes são as gallerias do Vaticano.

PoHdoro de Caravaggio n. 1495, m. 1543; foi fcom colorista, correcto no desenho, nobre e fero nos ares de cabeça.

José fíibera, hespanhol, e por isso dito il Spagnoleto, nasc. em Valença em 1589, e m. «m 1656. O seu caracter é o vigor e expres- são : todas as figuras austeras e carregadas, prophetas, philosophos, tudo quanto exige um pincel forte e vigoroso, sahia de suas mãos, como das da natureza. Suas obras principaes existiam na cartuxa de Nápoles; e entre ellas, a mais conhecida é a coUecção dos prophetas.

Perrino dei Vague Buonacorsi n. 1500, m. 1547; foi tão feliz imitador do stylo de P^aphael, seu mestre, que muitos de seus quadros passam por d'elle.

DA PINTURA 107

Innocenzio d'Imola n..., m...; desenhou se- gundo a maneira de Raphael, mas coloriu muito bem. Seus quadros são preciosos e raros.

Giulio Clovio n. 1498, m. 1578. Trabalhou sempre em miniatura, e apprendeu o desenho com seu mestre, Júlio Romano.

Federico Barrocci n. 1Õ28, m. 1612. Suas ex- cellentes obras, que se acham em Milão, Bolo- nha, Pesaro, Loreto e Roma, se distinguem pela belleza do colorido (pouco vulgar na sua escho- ia) e que assemelha ao de Corregio, grande ex- actidão de desenho, muita seiencia de luz, e gra- ciosos ares de cabeça.

Thadco, e Federico Zucaro, irmãos: morto o primeiro era 1566; o segundo em 1609. Thadeo tinha grande ingenho e bom colorido; Federico, menos hábil, acabou quasi todas as obras, que seu irmão começara. Acham-se em Veneza, Tivoli e Roma.

António Tcmpesta n, 1555, m. 1630. Foi emi- nente em batalhas, caçadas, mercados, aniraaes etc Roma.—

José (iesar d'Arpin (II cavalier Giuseppino) n. 1560, m. 1640. Seus quadros grandes, que se vem no Capitólio, são históricos e bons; e

108 ENSAIO SOBRE A HISTORIA

notáveis, sobre tudo, pela belleza dos cavai- los.

Michel Angelo Ameriggi da Caravaggio, n. 1569, m. 1609. Suas obras são mui fáceis de conhecer pelo ar de relevo, que dava a todas as figuras por via do assombrado. Esta originali- dade imita bem a natureza. O seu desenho é preciso e fero. Roma e Nápoles.—

Domenico Feti n. 1589, m. 1624. Imitou o antigo, e Júlio Romano; donde houve um carac- ter de desenho fero e vigoroso, com quanto in- correcto. Seus quadros, mui procurados, se dis- tinguem por uma graça particular, e picante. Roma.—

Giovanni Lanfranco n. 1581, m. 1647. Foi eminente nas grandes obras, como platafundos, cúpulas, etc. —Nápoles.

Século XVII

Pietro Beritini di Cortona n. 1596, m. 1669. Todas as suas ingenhosas producções tem um ar de nobreza, que encanta. Mas a obra prima d'es- te grande mestre é o roubo das Sabinas, que Le- brun servilmente copiou.— Roma e Florença.

DA PINTUKA 109

Mário Nuzzi di Fiori n. 1599, m. 1673; alcan- çou um grande nome pela maneira excellente de pintar flores.

Miguel Angelo Cerquozzi dito o das batalhas e bambuc/iatas: nasc. 1602, m. 1666; teve um colorido vigoroso e um pincel ligeiro. Era tam hábil no seu género, que pela simples narração d'uma peleja, traçava logo a ordem do quadro no mesmo panno, em que havia de pintar,— Ro- ma.—

Cláudio Geleo (Lorrain) n. 1600, m. 1682. Todos conhecem este nome; todos sabem que foi o príncipe dos paizagistas. Ninguém conheceu como Lorrain a perspectiva aeria, e o eífeito dos pontos de vista. França.—

Andrea Sacchi n. 1599, m. 1661. Suas pintu- ras ternas e graciosas são admiráveis pelo dese- nho, colorido e verdade de expressão.

Domenico Passignani pelos annos de 1680, pintou com gosto e nobreza, muita expressão, po- rem mau colorido. Florença.

Pictro Tosta n. 1611, ra. 1648; moldou o seu estylo nos antigos do Roma, donde houve um bom e correcto desenho, com quanto rude. Ho ma.

110 ENSAIO SOBRE A HISTORIA

Salvator Rosa n. 1614, m. 1673. Trabalhou muito ; e suas obras se acham por toda a Itália: todas ellas tem um ar de originalidade, que as distingue, muita verdade e bom colorido ; porem o desenho não é perfeito.

Carlin Dolce n. 1616, m. . . . ; célebre pela graça da composição e frescura do colorido.— Roma.

Hiacinto Brandi n. 1623, m. 1719 (outros que- rem que em 1691.) Seus quadros são muito vul- gares: apezar das incorrecções do desenho, e fra- queza de cores, teve com tudo uma belleza d' or- nato, e fecundidade de imaginação, que admira.

Cario Maratti n. em 1624, m. 1713; foi emi- nente nos ares de cabeça : seu desenho é mui as- sisado, e seu colorido brilhante. Todas as com- posições deste mestre encantam, e são bem aca- badas.

Luca Giordano n. 1632, m. 1705. Seu me- recimento principal é a facilidade e presteza , com que trabalhava : muitas obras delle são d'uma bella expressão.

João Baptista Bacici n. 1639, m. 1709; re- tratava bem ; e os seus quadros mostram muito talento, e beKo colorido.

DA PINTUEA 111

Mattia Preti (II Calabrese) teve o ingenho mais feliz na invenção ; bella e rica ordem, e muita originalidade. Nasc. 1643, morr. 1699.

José Passari n. 1654, m. 1714; discipulo e imitador absoluto de Cario Maratti.

Século XYIII

Francesco Solimeni n. 1655, m. 1747. Bella imaginação, nnuito talento, um desenho fero e correcto o constituem n'um dos primeiros luga- res da pintura ; com quanto o seu colorido seja sombrio e pouco doce. A grande qualidade po- rem d'este mestre, e em que elle sobreexcedeu a todos, é o ar de vida, animação e movimento das suas figuras.— Nápoles.

Sebastião Concha morto pelos annos de 1740. Imitou Solimeni ; mas o seu génio fno o não ajudava. Coratudo no hospital de Sicnna ha dcUe uma boa pintura a fresco.

Paolo Pauini, vivo em Roma ainda no anno de 1767. Tem bom colorido, e muito espirito.

Paolo ^lonaldi do mesmo tempo foi pintor de bnmhochata-s muito estimadas.

112 ENSAIO SOBRE A HISTORIA

Pompeio Battoni, retratista e pintor históri- co : o seu colorido é bem imitado de Corregio.

Muitos outros pintores, posto que não de gran- de fama, tem produzido mais modernamente a eschola Romana ; mas não temos delles sufficien- te conhecimento para poder formar um exacto conceito.

CAPITULO IV

Da Eschola Florentina

A eschola Florentina é, por sua antiguidade, a mais respeitável : seu primeiro mestre foi Ci- mabúe ; com quanto, fallando em rigor, Leo- nardo da Vinci e Miguel Angelo mereçam (como ja notamos) o nome de fundadores. As obras dos seus alumnos occupam um logar mui distincto nas collecções mais ricas ; e a Itália, e toda a Europa se julga com elles ennobrecida. Seu gosto de de- senho é fero e decidido ; sua expressão sublime, algumas vezes attrevida, e gigantesca, e mesmo contra- natural, mas sempre magnifica ; o colorido nos seus princípios era rude; apperfeiçoou-se de- pois, sem perder nada da sua viveza, magnificen-

DA TINTURA 113

cia e outras brilhantes qualidades. Esta eschola é a menos numerosa, mas não a menos célebre.

Século XVI

Leonardi da Vinci n. 1445, m. 1520, um dos grandes ingenhos do seu século, foi sculptor, ar- chitecto e pintor. Seu desenho é correcto e puro, e suas obras todas d' uma composição ingenhosis- slma ; das quaes a melhor é sem questão o grande quadro da ceia em Milão. Foi muito estimado de Francisco i de França, em cujos braços mor- reu. O canal de Milão foi dirigido por elle.

Pictro Perugino n. 1446, m. em 1524. Colo- riu graciosamente ; mas, apezar de ser discipulo do Cimabúe, todos sabem quanto é rude o seu ÍDgenho.

Fra Bartholomeo delia Porta n. 1465, m* 1517,formou seu delicado gosto no de Vinci,don- de houve muita correcção e pureza. Seu colorido é bello e natural. Kafaelo não se dedignou de apprender delle a arte de colorir, ensiuando-lhe em troco as necessárias regras da. prespcdim. Roma e Florença.

Miguel Angelo Buonarroti n. 1475, m. 1504 ;

114 ENSAIO SOBRE A HÍSTORIA

esculptor incomparável, magnifico architecto, pin- tor sublime ; não pôde decidir-se a qual das boas- artes pertenceu mais: suas estatuas, seus edifícios, seus quadros, tudo mostra o maior homem do seu século. Teve uma maneira de pincel altiva e fera, e em geral similhante á da sua eschola; vas- tíssima concepção, ideias sublimes e arrojadas, e muita expressão e vigor. Seus quadros princi- paes se acham na capella Sixtina do Vaticano. A antiguidade toda e talvez os séculos posterio- res não tem nada que oppor a tão grande inge- nho : seus quadros são inferiores aos de Raphael, e por ventura aos de alguns outros ainda ; porém Miguel Angelo é mui superior a todos elles.

Andrea dei Sarto n. 1478, m. 1580; foi o maior colorista da eschola de Florença; suas obras, em que se distingue uma maneira larga, e ura pincel fresco e brando, conservam ainda hoje um brilho singular.

Baltazar Peruzzi n. 1481, m. 1536, alem dos grandes mestres, estudou sobre tudo a natureza, foi grande na prospectiva, porem fraco no colo- rido. Ninguém antes de Peruzzi executou com gosto uma decoração de theatro.

Giacomo Pontorma n. 1494, m. 1559 ; dese-

DA PINTURA íla

nhou como Leonardo da Vinci, e coloriu como Sarto. Seu pincel vigoroso, seu colorido brilhante, sua imaginaçíío bella e fecunda o fizeram olhar por Mig. Ang., e Raphael como seu mais temido rival ; e se a louca mania de imitar as maneiras alemans o não fizesse mudar de estylo, por ven- tura os dois grandes mestres não gosariam sós da gloria do primado.

Machcrino de Sienna (chamado Domenico Bec- cafumi) n. 1484, m. 1549 ; desenhou com gosto e correcção, mas coloriu mal.

Mestre Rosso, ou Roux (como lhe cliamam os francezes) n. 1496, m. 1541 ; pintou com muita expressão e viveza, porem ás vezes um pouco rude. Trabalhou quasi sempre em França, onde teve muitos discípulos, e de cuja eschola é julga- do fundador. Fontainebleau.

Alexandre Allori n. 1535, m. 1607; foi gra- cioso e macio, e desenhou com toda a pureza do antigo.

Francisco Rossi (il Salviati) n. 1510, m. 1563 ; e muito estimado pela grande intelligcncia do luz ; desenhou e coloriu bem ; seus quadros se distinguem pelas singulares attitudes das figuras. Florcnra o Bolonha.

116 ENSAIO SOBRE A HISTORIA

Jorge Vasari n. 1511, m. 1574 ; muito céle- bre pelas vidas dos pintores, que escreveu : seu desenho é bom, mas sem energia, e seu colorido fraco. Roma.

Jacoppino dei Ponte n. 1511, m. 1570 ; as suas maneiras são as de Andrea dei Sarto, seu mestre. Foi o melhor retratista da sua eschola.

Século XVII

Daniel Bacciarelli de Volterra n. 1579, m. em 1625 ; desenhou bem, e o que lhe deu grande nomeada sobre tudo, foi a sua descida da cruz na igreja delia Trinità dei monte em Roma.

Ludovico CiogH n. 1559, m. 1673, pintou d'uma maneira firme e vigorosa; mas coloriu principalmente com o pincel de Corregio.

Francisco Vanni n. 1563, m. 1615. Coloriu muito bem, e desenhou sofifrivelmente.

João Manozzi (Giovani di S. Giovani) n. 1490 ; m. 1636 ; foi um dos melhores pintores de sua eschola; seus quadros, que mostram muita intel- ligencia de perspectiva e architectura, se acham cm Roma, principalmente no palácio Pitti.

DA PINTURA 117

CAPITULO V

Da Eschola de Bolonha

A eschola de Bolonha, ou Lombarda juntou era si quanto pode produzir a perfeição da arte. Talvez (geralmente íallando) nenhuma das outras o conseguiu tanto. O antigo foi o seu modelo ; mas sem uma servil e exclusiva imitação ; não tratou de formar systema ; ou, se o formou, foi extrahindo de todos o que achou melhor. As bel- lezas vivas e sensíveis da natureza, a verdade de expressão, a riqueza da ordem, a pureza dos con- tornos a facilidade admirável de pincel, e sobre tudo o colorido da mesma natureza, verdadeiro e encantador ; tudo emfim, quanto offerece a pin- tura, bello e terno, tudo reuniram os com-alum- nos de Cor régio.

Auctores ha hi (como Pruneti) que dividem es- tas duas escholas de Bolonha e Lombardia; po- rém a geral opinião é a que sigo. Sobre o chefe, ou fundador desta eschola, diversos são também os conceitos, querendo uns que seja Francia, ou- tros Mantegna : a questão é de pouca utilidade.

118 ENSAIO SOBRE A HISTORIA

. Skculo XVI

Francisco Francia n. 1450, m. 1518. Suas obras sâo d' um desenho muito assisado, e mui boa cor para o seu tempo. Raphaeí lhe enviou o seu quadro de Santa Cecília para que o corri- gisse. Diz-se que a inveja e dor de ver tam per- feita obra em um mancebo de tão pouca idade, lhe causara a morte.

Andrea Mantegna n. ]4õl, m. 1517; seus quadros raríssimos conservam ainda muito bri- lho, e são de melhor desenho que os de Francia.

Francesco Primaticcio Bolognesse n. 1490, m. 1570; coloriu graciosamente, e desenhou no estylo de JuKo Romano. Alguns, como Pruneti , o que- rem fazer chefe da eschola de França, onde qua- si sempre viveu e pintou.

António AUegri (Corregio) n. 1494, m. 1554. Tinha chegado á perfeição da arte, e ignorava o seu merecimento. O antigo, Raphael, Yinci, etc, tudo lhe era desconhecido ; não sabia senão a na- tureza. Ouviu gabar muito um quadro de Ra- phael, observou-o, e conheceu o seu próprio me- recimento ; soube o que vaha, e nem porisso foi

DA PINTURA 119

mais vaidoso ; antes continuou a dar por mui rasteiro preço seus inestimáveis quadros, cujo colorido e frescura de pincel ainda não pôde ser imitado.

Francesco Massuoli (o Parmezao, ou Parme- gianino) n. 1504, m. 1540. Maneiras graciosas, colorido fresco e natural, muita facilidade e cor- recção no desenho o constituiram um dos pri- meiros pintores da sua rica e fecunda eschola. Os quadros deste mestre são raros e caríssimos.

Lucas Cangiagio, ou Cambiagi n. 1527, m. 1583 ou 85. Pintou com muita facilidade, e o que é de admirar, com ambas as mãos ao mesmo tempo. Teve muita verdade e viveza, e tal ex- pressão nas figuras, que parece que faliam :

Manca il parlar: di vivo altro non chicdi ; JNe manca qucsto aiicor, se agli occhi credi. (Tasso Gerus.)

Os Caraches, Carachas, ou Caraccis, (segundo a nacional e verdadeira orthogi-aphia) mais cele- bres e conhecidos são três. Luiz Caracci n. 1555, m. 1618; estudou muito os grandes mestres c adquiriu uma maneira nobre e verdadeira, ex-

120 ENSAIO SOBRE A HISTORIA

pressão e belleza de colorido. Instituiu uma aca- demia ajudado de Agustinho e Annibal Caracci, seus primos, na qual se formaram Albano, Guido, Guercino e outros illustres artistas.— Agustiuho Caracci desenhou perfeitamente e coloriu bem : dos três é o menos celebre ; n. Iõ58, m. 1603.— Annibal Caracci n. lõliO, m. 1609 , foi superior a seu irmão e primo ; teve um estylo nobre e su- blime, desenho preciso e fero, e colorido muitas vezes admirável. A galeria Farnesi é de todas as suas obras a mais famosa.

Bernardo Castelli n. 1559, m. 1629; grande ami- go de Tasso, a quem retratou, bem como a quasi todos os bons poetas do seu tempo. Foi insigne neste género : desenhou bem e coloriu melhor. Guido Renni (o Guido) n. 1575, m. 1624, Costumam distinguir-se três maneiras differentes neste pintor famoso: a 1.^ forte e assombrada; a 2.* natural e bella; a 3.=^ terna e doce, porem mais fraca. Pintava com a maior facilidade.

Século XVII

Francesco Albani (o Albano) n. 1578, m. 1660; deu-se absolutamente aos assumptos galantes e

DA PINTURA 121

graciosos: seu génio doce e terno o determinou na escolha. O nosso Vieira Portuense o estudou muito e imitou bem.

Domouica Zampierri (Doraenichino) n. 1581, ra. 1641; observou sempre uma ordem magni- fica nos seus quadros, muita nobreza, correcto desenho e verdade de expressão.

Francesco Barbieri da Cento (o Guerchino) n. 1Õ90, m. 1666. Trabalhou com uma facili- dade incrivel: e os seus quadros se encontram por toda a parte: teve um desenho fero e ex- pressão nobre; mas o colorido não é igual. Sua 1.^ maneira é escura e fraca; a 2.^ é mais dura e fortemente assombrada; a 'ò.^ é bella e encan- tadora, e participa do gosto de Ticiano e Cor- rcgio. Nos fins de sua vida, porem, obrigado da miséria, trabalhou mal e sem gosto.

Luciano Borzoni n. 1590, m. 1645. Verdade e intelligencia de expressão, c delicioso colorido o fiíieram um excellente pintor. Teve dois filhos, que o imitaram, e se distinguiram; sobre tudo Francisco Borzoni nas paizagens e marinhas.

João Francisco Frimaldi n. I60(j, m. 1688. Coloriu suavemente e com harmonia; suas pai- zagens são excellentes.

122 ENSAIO SOBRB A HISTORIA

Benvenuto da Ferrara (o Garofalo) n. 1615, m. 1695, foi muito bom colorista e desenhou bem. As suas cópias de Eaphael são muito esti- madas,

Beneditto Castiglioni. Sua pureza de dese- nho, frescura de colorido, delicadeza de toque e grande intelligencia de chro-escuro fizeram os seus admiráveis quadros preciosissimos e caros. Nasceu 1616, m. 1670.

Cario Cignani n. 1629, m. 1673. Teve muito boa composição e desenho; mas pouca expressão por causa do muito-acahado dos seus quadros.— Bolonha.

Século XVIII

Thiarini, chamado o expressivo, morto pelos annos de 1750; teve muita expressão e um colo- rido vigoroso: exprimiu bem as paixões.

Izabel Cirani, do mesmo tempo. Estudou com proveito os grandes mestres: adquiriu um gra- cioso colorido; e, com quanto preferia os assum- ptos terríveis, executou muito melhor os doces e ternos.

Marcantonio Franceschini (o Francesquino)

DA PINTURA 123

morto era 1729. Seu colorido é muito engraça- do, seu desenho precsiso, e sua maneira tem uma bella simplicidade. Os quadros de Francesqui- no tem muita estimação e valor. Bolonha. Marcos Benefiale n. 1684, m. 1764; foi um dos bons mestres de sua eschola por seu correctís- simo desenho, grande energia e expressão, © fecundidade de pincel.— Roma.—

CAPITULO VI

J)a Eadiúh Veneziana

A eschola Veneziana, que reconhece por fun- dadores os Bellinis, Giorgione e Ticiano, pro- duziu excellentes pintores, que imitaram a na- tureza com uma fidehdade, que seduz os olhos. Seu colorido é sábio e encantador, seu claro-es- €Ui'o de muita intelligencia, a imaginação bclla, a ordem rica, e os mais galantes e spiriiuosos toques; cm fim, sua maneira é originalmente encantadora, sobre tudo nas formosas e sabias composições de Ticiano e Paulo Veronese. Os grandes mestres desta eschola desprezaram to- davia alguma cousa o desenho; tam essencial (n

124 ENSAIO SOBRE A HISTORIA

boa pintura. Ticiano, e Giorgione elevaram o modo Veneziano a um ponto, que será difficil iguala-los. Nota-se em geral a esta eschola pou- 60 conhecimento do a u figo, e attitudes.

Século XV

Gentil e João Bellini mortos, o primeiro era 1501, o segundo em 1512, e mui velhos. Seus quadros rarissimos mostram ainda um desenho verdadeiro, mas sem ordem: seu maior mereci- mento é terem sido mestres de Giorgione e Ti- ciano.

Giorgione de Castel-franco n. 1477, m. 1511. Sciencia de claro-escuro, ordem, colorido e de- senho o elevaram em brevissimo tempo (pois vi- veu só 34 annos) á perfeição.

Seuulo XVI

Ticiano Vecelli da Cadore n. 1477, m. 1576. Suas obras espalhadas por toda a Europa fize- ram conhecer este mestre, que discorreu uma longa e feliz carreira, vivendo 99 annos; um quasi inteiro e glorioso século empregado na

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mais nobre das artes. Ignorou o antigo, e falhou no desenho; mas o colorido de Ticiano, e sua ex- pressão, assim como não tiveram modelo, não terão imitadores.

Gio António Eegillo (il Podernone) n. 1484, m. 1Õ40. A belleza de seu colorido, facilidade de desenho e apurado gosto de invenção o fize- ram temer muito de Ticiano. Nada mais é ne- cessário para seu elogio.

Sebastião Piombo n. 1485, m. 1547. O qua- dro da ressurreição de Lasaro, feito para oppor ao da transJi(juração de Haphael, lhe adquiriu muita fama; e Miguel Angelo, cujo é o dese- nho do dito quadro, quiz por via d'elle dispu- tar a Raphael o priíueiro logar; mas a expres- são, e colorido de Piombo não podaram trium- phar do incontrastavcl merecimento de seu illus- tre rival.

Giacomo Ponte Bassano n. 1510, m. 1592. Amou os assumptos communs, cm que foi gran- de: seu stylo é verdadeiro, e as suas cores ex- cellentes.

André Sciavone n. 152'2, m. 1582; desenhou incorrectamente; porem cuk)riu tam bem, teve UDi modo tam fácil o engraçado, tam bom gosto

126 ENSAIO SOBRE A HISTORIA

nas roupagens, e tam bellas attitudes, que se lhe não pode negar o titulo de grande pintor.

Giacorao Robusti (il Tintoreto) n. 1524, m. 1594. Uma imaginação vivíssima, uma rapidez incompi*ehensivel e um finíssimo gosto o eleva- ram á primeira ordem dos mestres. É prodigioso o numero de suas obras.

Paolo Calliari Veronese (Paulo Veronese) n. 1532, m. 1588. Seus quadros farão sempre as delicias dos amadores da arte pela riqueza d'or- dem, belleza de caracteres, bom gosto de roupa- gens, frescura de colorido e nobre elegância de figuras.

Giacomo Palma (Palma il Yechio) n. 1540, m. 1588; imitou a natureza sempre bella, e com um bem -acabado sem afíectação.

Século XYII

Tiago Palma (Giacomo Palma il giovane) n. 1544, m. 1628. Foi discipulo^de Tintoreto, que imitou optimamente.

Carlos Veneziano n. 1585, m. 1625. Seu colo- rido imita bem Corregio, e suas physionomias engraçadas as de Guido.

DA PINTURA 127

Alessandro Yeronese dito o Turchi, ou Or- herto n. 1600, m, 1670; desenhou bem, e coloriu como um Veneziano.

Sectlo XYIII

Giam Battista Piazzeta morto no fira do XYIII século. Seu colorido é mau, mas o dese- nho imita muitas vezes, e com verdade, a nobre altivez de Miguel Angelo.

Hosa Alba Carriera n..., m. 1761. Seus retra- tos e pasteis são conhecidos em toda a Europa; seu principal merecimento é o novo gosto, e ma- neira singular, com que trabalhou em minia- tura.

CAPITULO YII

Da Eschola Flamenga

A eschola Flamenga é a de Rubens e Wan- dick; tanto basta para o seu elogio.— Yan-Eick, tam conhecido pelo invento da pintura a oloo, foi o seu chefe. Quem amar a nobreza do pincel Romano, a bella arrogância do Florentino, as

128 ENSAIO SOBRE A HISTORIA

graças do antigo, as gentilezas Gregas; não será decerto muito apaixonado das producçÕes Fla- mengas. Os gelos do paiz, o temperamento frio dos habitantes são as causas necessárias e na- turaes do pouco fogo que se lhes nota. Mas, em troco desta falta, que bellezas lhes não acha- rá o amador imparcial e singelol Ninguém, se- não os pintores Flamengos, appresenta em seus quadros um bem-acaòado, um conipkto, que pa- rece superior á paciência humana; uma fideli- dade original na imitação da natureza, que en- canta e admira. O seu defeito todavia é o me- nos-preço d'aquella genérica e fundamental re- gra das boas artes: Imitar a bella natureza; isto he, saher extremar n^ella o helJo do mcdiocre. Nisto falharam de certo, exprimindo-a muitas vezes com a cega punctualidade, e o verbo ad rerbum d'um Jidas interpres; mas este mesmo defeito (permitta-se-me julga-lo assim,com quan- to vou contra o commum parecer) muitas ve- zes ás pinturas Flamengas encantos simphces, e singelos, que em nenhumas outras se encontram. Nesta numerosa eschola se classificam todos os pintores das nações do norte; e se os caracte- res, mais que as pátrias, devem ser neste ponto

DA PINTURA 129

OS verdadeiros dados, não duvidarei também emiumerar n'ella os poucos bous inglezes. Nunca pude gostar da pintura Britaunica: um contra- natural, um monótono, um forçado no colorido, um sempiterno gelo na expressão, que sempre lhe notei, me fizeram olha-la com desprezo, e a não ser o moderno West, (de quem adiante fal- larei) de certo os inglezes avultariam bem pou- co neste ramo das boas-artes.

Século XV

João Van-Eick n. 1370, m. 1441; fundou a sua cschola, e inventou a pintura a óleo. Nada mais se sabe.

Alberto Durero n. 1471, m. 1528. Seu dese- nho é correcto, sua imaginação viva, sua manei- ra firme; mas falhou muito nos costumes.

Século XVI

João Holbein n. 3498, m. 1554. Sua imagi- nação é sublime, o colorido vigoroso, e suas figu- ras tem um ar de relevo, que engana. Em geral

130 "ENSAIO SOBRE A HISTORIA

O pintar deste mestre parece mais Lombardo, que Flamengo.

Otam Vaen ou Vaenio n. 1556, m. 1634; formou-se no gosto Romano, que lhe deu mui- ta correcção de desenho, e hellezia de expres- são; qualidades, a que ajuntou grande intelli- gencia de claro-escuro.

Bloemart n. 1567, m. 1647. Um toque ex- pedito e livre, bellas roupagens, muita sciencia de claro-escuro são os caracteres d'este pintor.

Pedro Paulo Rubens n. 1567, m. 1640. Nada será bastante para fazer descer este grande ho- mem do grau illustre de primeiro pintor histó- rico. Não quero, nem devo occupar-me de seus defeitos; releva-me dizer: que o seu colorido é verdadeiro e brilhante, sua imaginação fér- til, seu claro-escuro sábio, todo elle é encanta- dor.— A galleria do Luxembourg é a sua me- lhor obra: mas um quadro allegorico da guerra (no palácio ducal de Florença) no meu parecer, e no de muitos, não é inferior. Fogo brilhante, nobreza poética, côr excellente; * caracteres in-

' A mui lo me affoito, conceituando da belleza de côr d'uin quadro, que nunca vi, senão em estampa, e nià estampa; mas fio-me na auctor idade de eruditos viajantes. Haverá dous an-

DA P1NTT3RA 131

teressantes, composição precisa, intelligente dis- tribuição de luz; tudo se juutou neste quadro; e n'uin grau de íbrmusura, a que a allegoria pôde remontar. A simples ideia deste painel vale bem uma Iliada, e todos os Klopstocks juntos talvez a não produzissem: a transfiguração de Rubens" dizia um philologo meu conhecido, alludindo ao célebre quadro deRaphael. "A vi- da dos homens sábios é o cathalogo de suas obras" diz um grande litterato. ''' Esta sentença desculpa a minha diíFusao.

Século XVII

António Wandick n. 1599, ra. 1641. Foi dis- cipulo de Rubens, e a maior honra do mestre; verdadeiro e simples na imitação da natureza. O seu género foi o retrato, cm que ninguém o excedeu.

Rembran-Van-Ryn n. 1606. m. 1674; foi grande no c/aro-esciiro, na harmonia das côrcs;

1103 que me communicou esta esLimpa em Lisboa o sábio pbilologoj. B. S. Dos aponlamnntus, que ontão fíz, oxtrahi esU e outras fiiscri|irões, que jior alii vào. ' Vollairc: Sièdc de Louis XIV.

132 ENSAIO SOBRE A HISTORIA

na imitação do relevo. Seus quadros são conhe- cidos pelo fundo negro.

Vander-Kabel n. 1631, m. 1695; distinguiu- se absolutamente da sua eschola pela imitação dos Caracóis, e Salvator Rosa.

Egione-Vandernér, ou Vandernêér n. 1643, m. 1697. Um colorido vivo, um pincel mimoso lhe fizeram naturalmente procurar os assumptos amorosos, em que foi excellente.

Wanderwerfl* n. 1659, m. 1722. Seus toques são firmíssimos, e seu desenho correcto.

Século XVIII

António Raphael Mengs n. 1728, ra. 1779. Tem uma verdade de colorido, e uma facilidade de pincel, que distingue as suas obras de quaes- quer outras.

Gerardow, n..., bem conhecido pelo seu Hy- dropico que existia no palácio real em Turin, e que Mr. Cochin na sua viagem de Itália não duvida chamar o melhor quadro Flamengo, e

DA PINTURA 133

assegura ter sido um dos mais estimados do principe Eugénio. '

CAPITULO VIII

Ba Exdiohi Franceza

A cschola Franceza, filha da Bomana (segun- do Pruneti) honra muito a sua progenitora. Des- de o século XVII as Italianas (seu modelo) de- clinavam muito; ja se não viam Rafados, Cor- regios, nem Ticianos: parece que a natureza, es- gotada por tam grandes talentos, queria descan- car. E nesta mesma épocha (principies do século XVIII, e fins do XVII) brilhavam em França Le Crun, Lesueur, Subloiras etc. Veio o século XIX tam memorando pelas extraordinárias mu- danças, que viu a Europa; e em quanto a revo-

' Maito que li eslas viagens, assim como as memorias do Mr. l'Abbc Richard; de maneira que agora nao poderei a^ severar cm qual dos dous encontrei Gerardow, c o seu hjdro- pico. A' leitura d'ambos remoto os curiosos.

134 ENSAIO SOBRE A HISTORIA

lução Franceza, e suas consequências aniquila- vam em toda a parte ^ as boas-artes; a França apresentava ao mundo o mais brilhante espec- táculo. Por entre o ruido das armas; e o estré- pito dos combates, as margens do Sena,

D' onde, arrancando omnipotência aos fados, Impoz tropel d'heroes silencio ao (/lobo. (Bocage.)

se ornavam com todo o esplendor das sciencias e artes. A mesma Theologia tam seca, e enfa- donha nas mãos de Santo Thomaz, tam immoral nas de Mollina, e Sanches, muda de forma, toma nova essência, e na milagrosa penna de Chateaubriand surge com uma belleza e ma- gestade, que jamais puderam dar-lhe o douto Agustinho, o eloquente Origenes. Com bem jus- tiça, em quanto a mim, se podem a si próprios applicar os Francezes, a respeito das outras na- ções, aquella sentença de Séneca: MuUum ege- rirnt qui ante nos fuerunt, sed non pcragerunt. ^

' A' excepçSo da Inglaterra e Rússia, e tarabem de Portu- gal, que então colhia os fructos de todas a. fadigas de Pombal, e Manique. ' Seiieca£'i3ut. 65

DA PINTURA 135

Nesta époclia brilhante e memoranda nos fas- tos da humanidade, das sciencias e das artes, a pintura renova em Paris os séculos de Augusto, de Leão X e de Luiz XIV. Os generaes victo- riosos traziam de toda a parte os monumentos mais preciosos das boas- artes. O Vaticano, o Belveder, o Capitólio, Roma, toda a Itália foi exhaurida, e suas riquezas de sculptura e pintu- ra transportadas á nova capital do mundo. En- tão appareccram em França David, Girodet, e muitos outros, que vão parelhas com os mais fa- mosos Italianos, se em parte os nSo excederam. Lavater no seu ingenhoso livro das physiono- mias não se attreveu a caracterisar os Francezes. Seus génios e maneiras tam incertos e incapa- zes de classificação, como sua variada phisiono- mia, impedem afíixar-lhes com exactidão a ca- racteristica; e philologos por isso houve, que não quizeram considerar na Franceza uma eschola; porem esta assersão é sem critica, e pouco segui- da. Pruneti no seu Ensaio Pictórico aceusa a eschola Franceza de mau colorido, e ignorância do antigo. Eu, sem me attrever a contrastar este parecer, julgo que tal imputação não pode ter lu- gar na moderna eschola franceza; mas somen-

136 ENSAIO SOBRE A HISTORIA

te se deve referir á antiga. Pruneti todavia não conheceu a eschola de David; mas devia conhe- ce-la seu traductor Taborda; devera estuda-la para emendar o seu original, e exceder assim a mediocridade d'un"i traductor servil, aecrescen- tando-lhe novas ideias. O grande género fran- cez é geralmente o histórico. O chefe desta es- chola, querem uns que seja Roux, ou liosso, ou- tros que Leonai'do da Vinci: Pruneti assevera que fora Primaticio Bolognese,e o faz alumno da eschola Romana. Eu o classifiquei na Lombar- da; mas confesso que me enganei; porque o seu pintar, verdadeira norma, é mais Romano, que Lombardo.

Século XVI

Vovet n. 1590, m. 1649. Teve um desenha altivo, e um pincel vigoroso; mas imitou depois todas as boas e más qualidades de Mig. Ang. de Caravaggio.

Nicolau Poussin: Pruneti o faz nascido em 1594; mas Voltaire {Sièc/e de Louis XIV) asse- vera esta data em 1599. A boa critica decide por este, como nacional, e tam instruído nos

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successos d'um tempo, cuja historia nos deu. O mesmo Voltaire diz que Poussin era chamado o pintor das pessoas de spirito, e accrescenta que também das de gosto se podia dizer. Soube bem o antigo e o desenho; mas o gosto Romano lhe deu um colorido sombrio. Sua philosophia (diz o grande escriptor) o fez superior ás intrigas de Lo Brun, e morreu pobre mas contente em 1665.

Pedro Yalentin de Colonier n. 1600, m. 1632, imitou Poussin; teve um colorido harmonioso, boa ordem nas figuras, mas pouca correcção no desenho.

Jacques Blanchard foi imitador feliz das bel- lezas de Ticiano. Nasc. 1600, m. 1638.

Lesueur n. 1617, m. 1655. Seu ingenho é sublime e elevado, seu gosto de roupagens ma- gnifico. E um dos primeiros pintores da antiga eschola Franceza.

Pedro Mignard n. 1610, m. 1638. O estudo, e imitação de Kaphacl e Ticiano o fizeram al- gum tempo rival de Le Brun; mas a posteridade imparcial o extremou bom.

(jarlos Le ]iruu n, 1619, m. 1690. Sua com- posição, dignidade de exprimir, e fidelidade do costumes se conhece principalmente pelas bata-

138 ENSAIO SOBRE A HISTORIA

lhas de Alexandre, que Voltaire julga superio- res ás de Paulo Veronese; mas apezar do meu respeito a um tal historiador, e philologo, creio que nisto se engana, bem como no elogio do seu colorido, que todos taxam de menos correcto.

Século XVIII

José Vivien n. 1651, m. 1735. Retratou bem a pastel, teve muita belleza e fecundidade de ideias, e executou bem.

Pedro Subleiras n. 1699, m. 1749. Fertili- dade de ingenho, grandeza de stylo, viveza de colorido, magnifica prespectiva, boas roupagens são os seus caracteres, e os d 'um grande pintor.

João Baptista Santerre n...., m.... Seu mere- cimento principal é um colorido verdadeiro e terno. O quadro de Santa Thereza na capella de Versailles é um dos esmeros d'arte mais precio- sos e beUos; com quanto um pouco voluptuoso de mais, do que ao assumpto e logar cumpria.

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Século XIX

David ' é não o primeiro pintor da mo- derna eschola Franceza, mas por ventura o pri- meiro do mundo, depois de Raphael. Que vas- tidão e sublimidade de ideias ! Que força e ver- dade no colorido! Finalmente as suas compósi- tos reúnem todas as boas qualidades, que ape- nas se acham dispersas pelos quadros mais fa- mosos das antigas escholas, e que a elle foi dado juntar. Fallem os prodigiosos quadros de Belisario, do juramento dos Horacios, da morte de Sócrates, e sobre tudo o incomparável quadro das Sabinas, o noii phs nitra da concepção e ex- ecução, e a eterna inveja de todos os pintores existentes e futuros.

' Girodet igualmente se tem distinguido muito pela elegância de suas composições, e suavidade de seu colorido, que nos seus quadros, quer de perto, quer de longe, prescnta quasi o mesmo

' Tinha me feito a mim próprio uma lei de nao nomear ne- nhum pintor \ivo; mas o reconhecido merecimento destes, o serem estranj;eiros, a necessidade de fallar da moderna escho- la Francciii, e não poder faze-lo de outra maneira, me obrigou a infraciãu da lei, c quebra do protesto.

140 ENSAIO SOBRE A HISTORIA

eJBFeito. Não tem as graças viris de David; mas um acabado, uma doçura, uma maneira de ex- primir, que o caracterizara, e tornam por extre- mo encantadoras suas bellas prcducçÕes. Vejara- se os quadros do enterro (VAtala, e da Virgem. Gérard por seus excellentes retratos, chamado o Wandiek de França, é também pintor históri- co e famoso pelo bom arranjo e ordem de seus grupos, pannejado, ou trapejadó de suas figuras, e bella correcção de desenho. Seus grandes qua- dros são o Belisario,a Batalha d'Austerlitz, e ul- timamente a entrada de Henrique IV em Paris, que lhe grangeou o logar de primeiro pintor da Camera de Luiz XVIII; não porque Girodet seja superior a David, nem mesmo igual ; mas porque soube lisongear a tempo.

Régnault é mui conhecido pela correcção do desenho ; porém o seu colorido, em demasia bri- lhante, é mais contrafeito, que natural: todavia deu muitos e bons discípulos, e entre elles o mais famoso é :

Guérin tão celebre pelos seus quadros de Phe- dra, e 115'^ppolito, de M. Sexto, e da narração de Eneas a Dido. Seus caracteres são fogo pictores- co, e muita scicncia de claro-cscuro.

DA PINTURA 141

Le Gros bem conhecido pintor de historia se- gue a David. E mui celebre o seu quadro de Francisco I, e Carlos V em S. Diniz.

Vernet, filho do paizagista do mesmo nome, e que no género de batalhas é sem par. elle conseguiu exprimir com todo o fogo, e energia os brutos, que puxam o carro de Neptuno.

CAPITULO IX

Dos Pintores IngkzcH, e principalmente de West

West é o único inglez, cujas obras mereçam collocar-se a par das boas das outras nações. Os Inglezes não tem o génio da pintura. A natureza do paiz não é bella, o sexo frio e desleixado ; as proporções do corpo em geral irregulares, mal feitas ; o caracter da nação duro e ríspido ; os costumes ferozes ; tudo em fim concorre a impos- sibilitar a Gran-]iretanha do ])roduzir bons pin- tores. Um inglez bem conhecido, o barão do Ches- terficld o confessava, quando n'uma do suas car- tas a certa dama franceza diz : Every country has talents peculiar to it, as well as fruits, or other

142 ENSAIO SOBRE A HISTORIA

natural productions. "VYe here thiiik deeply, and fathom to the very bottom. Italian thoughts are sublime to a degree beyond ali comprebension. You keep tlie midle patb, and consequently are seen foUowed, and beloved (Chestarfield Let- ters : Lett. 444.) Comtudo "West soube distin- guir-se de seus compatriotas por um génio vasto, e desenho correcto ; mas seu caracter de pintura não é sublime ; e o seu colorido (como o geral da nação) contrafeito e impróprio.

CAPITULO X

Dos Pintores Portuguezes

Tem-se escripto muito, e muito controvertido sobre a Pintura portugueza, e sua historia ; mas tanto nacionaes, como estrangeiros (affoitamente o digo) sem critica. O exame de seus escriptos, das obras dos nossos artistas me suscitou a ideia de entrar com o faxo da philosophia neste cahos informe e desembaraçar, quanto em mim fosse, com o fio da critica este inextricável labyrinto. Não pretendo adiantar ideias novas : pois donde as haveria ? Menos ainda refutar as poucas his-

DA PINTURA 143

toricas que temos : pois que documentos poderia allegar? Mas simplesmente examinar o que ha, e dar-lhe ordem e methodo. Eisaqui o que é meu, o resto é dos escriptores, de quem o houve. Com estes dados considerei em Portugal quatro epo^ chás de pintura, umas mais, outras menos bri- lhantes : por via destas divisões será por ventura mais fácil o formar um systema histórico desta boa-arte entre nós.

ErOCHA I

(Séculos XI até XIV)

O erudito arcebispo Cenáculo, Barbosa e ou- tros modernos, na investigação das antiguidades da pintura portugueza, conjecturaram muito e com muita fadiga, mas pouco fructo, O desleixa- ra ento daquelles séculos meio-barbaros em se lembrar da posteridade com a historia de seu tempo, não deixa aos ânimos estudiosos, e amigos da gloria pátria, senão o desejo e infructuoso tra- balho de vagar sem rumo por um pelogo de con- jecturas, a qual mais vaga. Que Itália e Portu- gal eram, nestas cpochas remotas dos séculos XI,

144 ENSAIO SOBRE A HISTORIA

XII e XIII, as províncias menos barbaras da Europa ; seus monumentos públicos, templos, es- tatuas e ainda livros o mostram. Alcobaça e Santa Cruz de Coimbra são, além d'outras, incontras- taveis provas da minha asserção. Vivia entre nós a pintura ; e vivia o melhor, que do gosto do tempo se podia esperar. Quem exigir mais diíFu- são, pôde ver os citados Barbosa, e Cenáculo, e todos os allegados pelo moderno Taborda. O re- sultado philosophico de quanto disseram é em poucas phrascs: Que esta arte antiquíssima en- tre nós remonta ao principio da monarchia.— Que barbara e gothica ao principio, se foi pouco e pouco melhorando, pelas viagens dos nossos mestres á Itália, pelas obras e pintores, que de vinham chamados pelo bom accolhimento, que lhes nossos monarchas faziam. Que existem ainda deste tempo algumas pinturas, cujo auctor se ignora. Que nos reinados d'AfFonso V, e João II ja tínhamos pintores de nome, como Gonsalo Nuno, João Annes, e Álvaro de Pedro. Que o estylo da nossa pintura deste tempo, era um mesclado de gothico e grego-moderno, simi- Ihante ao de Cimabué, Guido de Sienna, e Pedro Pcrugino.— O gosto do antir/o, que então come"

DA PINTURA 145

cava a prevalecer na Itália, e que de se com- municou a Portugal pela protecção, com que o amador das boas-artes, D. Manoel especializou a pintura, assignala a segunda epocha, que se deve contar do XV século.

EPOCHA II

(Séculos XV e XVI)

" Em quanto a França se occupava em justas e t(jrneios, em discórdias e guerras civis, Portu- gal descobria novos mundos, fazia o commercio da Europa, e produzia um sem numero de Ca- mões, antes que em Paris houvesse um Ma- Iherbe " diz Mr. Voltaire (siècle de Louis XIV) , e devera accrescentar que, antes que nascessem Le Brun e Poussin, ja Portugal contava, na longa serie de seus pintores, Grau Vasco, Francisco de HoUanda, Cláudio Coelho, e mil outros. D. Ma- noel chamado o feliz, fui o pae das scieiícias e artes : e se João III C(mtou no seu tempo mais sábios, que seu illustre antecessor, fructos foram, que cm seu tempo amaduraram ; mas devidos ás fadigas do semeador e cultor, o grande Manoel.

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146 ENSAIO SOBRE A HISTORIA

Gran Vasco, Gonsalo Gomes, Fr. Carlos todos são deste tempo. O commercio e conquistas da índia tinham elevado o reino a um gráo de opu- lência, desconhecido então das outras nações. D. IVIanoel quiz eternizar-se com a fabrica do mosteiro de Belém ; conhecendo: ,

Que d^ acções immortaes se murcha a gloria, Se a não regam as filhas da memoria.

(Diniz od.)

Os mancebos de mais esperanças foram manda- dos á Itália a aperfeiçoar-se na pintura. Aífonso Sanches, Fernão Gomes, Manoel Campello, Chris- tovão Lopes e outros, voltaram approveitados, e enriqueceram não Belera e Lisboa, mas o reino e toda a Europa com suas primorosas obras. Veio depois Francisco de Hollanda, Diogo Pe- reira e Cláudio Coelho, que não deixaram ao sé- culo de Manoel e João III que invejar ao de

' Nunca pude affeiçoar-me a D. João III apesar da sua piedade e bondade, apezar do seu amor das sciencias, protec- ção que lhes deu, etc, ele. Donde virá islo? Será do seu ainda maior amor, e do generoáo accolliimenlo, que fez á Sane ta Inquisição.

DA PINTURA 147

Luiz XIV. O stylo pomposo de Miguel Angelo, que tanto agradava ao génio altivo d'uma nação conquistadora, prevalecia muito entre os pintores portuguezes, que nem por isso menos prosaram o desenho de Rapliael, e o colorido de Ticiano, que ainda hoje se admira, em suas bellas com- posições.

EPOCHA III

(Século XVII)

Espiraram com D. Sebastião nas areias de Africa o valor e espirito portuguez ; cairam as sciencias, esmoreceram as artes; e, com quanto os intrusos Philippes favoreciam alguma cousa o talento ; a abundância e riquezas, em cujo seio se crearam sempre os grandes ingenhos tinham desamparado o reino, e sepultado a nação no le- thargo politico, na miséria e na ignorância. As cinzas das sciencias fumegavam com tudo ; c os últimos vislumbres d'um clarão moribundo, mas ainda grande, alluniiaram ainda a Amaro do Valle, Kstevão Gonsalvcs, José d'Avellar e Ben- to Coelho. Surgiu finalmente a independência

portugueza depois de 60 annos de escravidão;

«

148 ENSAIO SOBRE A HISTORIA

mas o génio da nação estava muito abatido ; era necessário ainda o decurso de muitos séculos para o levantar. Vem-se com tudo desta quadra mui- tas pinturas, supposto não mereçam comparar-se com as do bom tempo de Campello e Cláudio. Bem como nos ânimos, reinava na pintura por estes desgraçados tempos a servidão e mau gosto, que se limitava a copiar e imitar com baixeza ; e por ventura pela mesma razão, que nos fez des- prezar a materna lingua, para escrevermos na hespanbola : lisonja vil e indigna do nome portu- guez, eterno opprobrio e mancha de escriptores, aliás beneméritos, como Faria e Sousa, que en- xovalhou sua fama com tal baixeza e vitupério, e a marcou indelevelmente com o ferrete da sór- dida adulação ; perniciosa mania, que tanto es- tragou o idioma de Camões e Barros, e a tal ponto, que os esforços e fadigas de tantos sábios e philologos tem sido pouco para a restaurar.

' E cora eflfeito qual será o bom portuguez, que possa per- doar a Faria e Sousa o ter escripto as suas historias em cas- telhano? Os seus taes e quaes commentarios a Camões, ao melhor dos escriptores porluguezes, ao mais célebre da sua nação, na língua dos uppressores da pátria, dos tyrannos de Portugal ?

DA PINTURA 149

EPOCHA IV

(Séculos XVIII e XIX)

A longa paz do remado de D. João V, o cora- mercio das colónias Americanas, as riquezas e abundância consecutivas fizeram reviver as artes e sobretudo a pintura e arcliitectura. Começou-se Mafra pela mesma razão, que se começara Be- lém: a Itália recebeu de novo muitos alumnos portuguezes ; e como Luiz XIV fizera em Roma, fez João V, instituindo n'aquella cidade uma academia de pintura. Francisco Vieira Lusita- no, Ignacio d'01iveira, e muitos outros foram o digno fructo dos cuidados do monarcha, merece- dor por seus bons desejos d'um século mais phi- losopho, e d'uma corte menosjiypocrita. N'este estado de cousas começou a reinar D. José, ecom elle o marquez de Pombal : tudo mudou de face ; cahiu o colosso jesuitico, o reino d' Aristóteles e a barbaridade Thomistica ' ; brilhou a pintura

' Todos sabem que a philosophia Arislotelico-Tbomislico- escholastica, tam querida de nossos avós, era o opposto diame-

150 ENSAIO SOBRE A HISTORIA

como a poesia, e as outras artes e sciencias. O governo doce e moderado de Maria I acabou de aperfeiçoar o que principiara e adiantara D. José, e o raarquez de Pombal, que na universidade de Coimbra ', em Mafra, no collegio dos nobres, e outras partes tinham instituido aulas de desenho e pintura. D. Maria fundou a academia do nu; em seu tempo ^ se instituiu a de desenho do Porto. A nenhum bom portuguez devem esquecer os vi- gilantes cuidados do intendente Manique, a quem a pintura, a esculptura e mais artes devem tanto em Portugal. Esta fértil epocha produziu ura Pedro Alexandrino, Vieira Lusitano, Teixeira Barreto, Vieira Portuense, Sequeira, e muitos outros, cujos nomes callo, mas bem conhecidos pelas suas bellas producçoes. A verdade, a ex- pressão, o bello natural são os caracteres domi- nantes nestes tempos.

trai d'aquella deflinição de Séneca: Non est philosopMa popu- lare arteficium, nec ostentafione paratum Non in verbis, sed inrebusest. Senec. Epist. XVII Ad Lucil.

' Em Coimbra não teve effeito : dizem as más linguas, q<je por ser cousa d'ulilidTde e espécie ommissa nos (f. e Inst

' Na regência do actual reinante, e demência da rainha.

DA PINTURA 151

PINTORES PORTUGUEZES DA I. EPOCHA

(Século XI até XIV)

Álvaro de Pedro viveu e pintou na Itália pe- los annos de 1450. Nada mais se sabe; mercês á incúria de nossos avoengos. Oxalá que este miserável e vergonhoso exemplo sirva de esti- mulo a netos, que possam melhor que eu, trans- mittir á posteridade a memoria illustre de nos- sos coevos. Noto de passagem que o traductor da oração de Belori assevera, com uma intrepi- dez que me espanta, serem de Gonsalo Nuno, ou Nuno Gonsalves as pinturas da capella de S. Vi- cente na de Lisboa. O mesmo dizem Fran- cisco de Ilollanda e Bermudes.

João Annes. Deixadas conjecturas, nada mais sabemos deste pintor, senão que vivia pelos an- nos de 1459 por uma carta de privilegio dada por D. Affonso V. ( Vide Taborda, Cenáculo, etc.)

Vasco dito o grande (Gran Vasco). Sabemos por documentos d'aquelle tempo, que vivia ain- da nos fins do XV século. Seu stylo do antigo modo Florentino faz julgar aos sabedores, que

152 ENSAIO SOBRE A HISTORIA

estudara com Pedro Perugino. Desenho, ainda que rude, exacto, attitudes enérgicas, grande co- nhecimento de architectura, bellas paízagens são os caracteres deste insigne mestre, que fértil, e assiduo no trabalho enriqueceu todo o reino com seus primores. Muitos templos de Lisboa, o da Ordem de Christo em Thomar, e outros o attes- tam. Foi pintor de D. AíFonso V, e segundo o traductor portuguez de Belori, também de D. Manoel. Um periódico de Lisboa (que infeliz- mente se intitula Mnemosine Lusitana) quer que o melhor quadro de Vasco seja o da paixão de Christo no horto (em Thomar): pintura (diz el- le) porque um Inglez philologo, dava 6$ cruza- dos, e uma boa copia. Desejava de todo o meu coração, que o redactor, ou redactores tivessem, ao menos nisto, razão: em quanto a mim o amor da pátria m'o faz crer facilmente.

PINTORES PORTUGUEZES DA II. EPOCHA

(Smi/o XV e XVI)

Gonçalo Gomes, de quem nada mais se sabe senão que vivia nos fins do século XV, foi pin-

DA PINTURA 153

tor de D. Manoel; e a estimação, que este sábio rei d'elle fez, é o único, mas relevante testemu- nho do seu merecimento.

Na chronica de D. Manoel é chamado Duarte Darmas grande pintor, e como tal enviado por el-rei a debuxar as entradas de Azamor, Salé, etc. ( Vide Damião de Góes, chron. de D, Man. part. II, cap. 27, pag. 208, ediç. de 1819.)

Firmado no próprio testemunho do auctor assevera (e não sei se com razão) Vicente Car- ducho, e com elle Taborda, que o nosso historia- dor Eesende fora também grande pintor. Não sei se a singeleza d'aquelles tempos é bastante para crermos um homem no artigo dos seus lou- vores.

Fr. Carlos, monge de S. Jeronymo vivia no principio do século XVI. Pintou no stylo de Bo- lonha, e sobre tudo no de Corregio. Ainda que flamengo de origem, suas obras tem mais no- breza, que o coramum d'aquella nação, sem deixar de ter sua bella simplicidade.

Gaspar Dias viveu pelos princípios do XVI século. Mandado a Itália por D. Manoel a es- tudar os grandes modelos, e formar o stylo, sua alma elevada não so contentou d'outros mestres,

154 ENSAIO SOBRE A HISTORIA

que não fossem Raphael e Miguel Angelo. Estu- dou-os, e mereceu imitá-los com dignidade.

Christovão d'Utreclit n. 1478 m. 1557. Ain- da que nascido em Hollanda,-nossos escriptores o fazem portuguez. Soube perfeitamente a pers- pectiva, e juntou ao gosto de Perugino, e João Bellini a maior delicadeza e harmonia de pin- cel.

Affonso Sanches Coelho n. 1515, m. 1590. Dotado pela natureza de quanto constituo um grande pintor concebeu fortes desejos de passar á Itália, onde ouviu as lições de Raphael; hon- ra, que bem mereceu por seu aproveitamento. Chamado por Philippe II á Hespanha ennobre- ceu Madrid; e sobre tudo o Escurial com suas pinturas. Um dos poucos exemplos do mereci- mento premiado foi este illustre portuguez. João III de Portugal, Philippe II, Gregório XIII, o grão duque de Toscana, o da Sabóia, o cardeal Alexandre Farnese, o estimaram, enriqueceram e honraram á porfia. Sua alma bemformada escutou sempre a voz da natureza; e o philologo não excedeu neUe o homem. ( Vide Palomino, Bermudes, etc.)

Peruão, ou Fernando Gomes, mandado á Ita-

DA PINTURA 155

lia por D. Manoel, e em consequência vivendo no principio do século XVI, foi aproveitado dis- cipulo de Miguel Angelo; e suas obras o provara bem.

Manoel Campello também enviado á Itália, e também do mesmo tempo. Ainda hoje se admi- ra em Belém nos seus quadros aquella correc- ção de desenho da eschola Romana, aquella grandeza de stylo, que faz a glória de Miguel Angelo, seu mestre, e que a não faz menos do il- lustre discipulo. Estas brilhantes qualidades lhe grangearam os elogios de todos os sábios nacio- naes e estrangeiros. ( Vid. D. Francisco Manoel de Mello: hoqntcddm ktfras; Guarenti, etc.)

Vasques... viveu pelos annos de 1562. Poucos pintores souberam, como elle, anatomia tão ne- cessária para o bom desenho, e proporções, em que se avantajou, e que lhe deram um mui dis- tincto logar na historia da arte, apezar de seu stylo um pouco rudov,^

Christovão Lopes n. 1516, m.... O stylo pom- poso de Miguel Angelo, que tanto agradava ao génio sublime e elevado dos portuguczes, foi o seu modelo; e juntando a tam brilhante quaUda- de a expressão do llaphael, enriqueceu a Pátria

156 ENSAIO SOBRE A HISTORIA

com as magnificas producções, que ainda hoje são admiradas depois de tantos séculos pelos sa- bedores, e amantes das boas- artes.

D. Leonor de Noronha da casa de Linhares, «. 1550, m. 1636. De Duarte Nunes de Leão na ^escripçíio de Portugal, e de Barbosa na Biblio- th. Lus. sabemos que pintou ex^elkntemente a óleo e illuminnção.

António de Hollanda, inventor da illumina- ção a pontos brancos e pretos em Portugal; e com tanto mais merecimento, que absolutamen- te ignorava a mesma descoberta, que então se começava na Itália. Delle disse o Imperador Carlos V, que mejor le habia sacado ai natu- ral António de Holanda en Toledo de ilumina- cion, que Ticiano en Bolona. Bem pouco vale este elogio, porque homens desta classe nada en- tendem de ordinário de tudo o que pode ter al- gum valor ou merecimento, tendo de mais a mais a presumpção do voto decisivo. Não cons- ta porém, que Deus creasse mais que um Salo- mão, e como este um morreu ha muito tempo, e estes senhores se não dão o incommodo de fazer aquillo, que fazem os que não são SalomÕes, ou não tem a tal infiim, é bem claro o valor de si-

DA PINTURA 157

milhantes elogios. Carlos V porém (façamos justiça) posto que o mais odioso monarcha por seu cruel despotismo, não era com tudo o mais tolo, e algumas luzes lhe tinham ficado de sen- so commum, que se costumam apagar com a.... Francisco de Hollanda íloreceu pelo meio do século XVI. Pintor, architecto, poeta e phi- losopho. Na Itália Paulo III, e todos os gran- des e sábios; toda a Hespanha; em Portugal João III, e toda a corte o estimaram como merecia. (Pois n'aquelle tempo também em Por- tugal se dava preço ao merecimento!) O muito que se tem escripto sobre este memorável por- tuguez, me desobriga de mais extensa apologia. De sobejo lh'a fazem seus preciosos escriptos, suas pinturas, e toda a Europa. De suas pro- ducções é sem questão a obra-prima, o baptis- mo de S. Agustinho (que ainda se conserva em cabeça de morgado na casa dos Castros) em que se admiram reunidos a sabia composição de Ra- phaol, o desenho nobre e altivo de Mig. Angcl., e o bcllo colorido de Ticiano. Julga-se quo morreu cm 1Õ7 4.

158 ENSAIO SOBRE A HISTORIA

PINTORES PORTUGUEZES DA III. ÉPOCHA

{Século XVII)

Diogo Pereira n. 1570, m. 1640. Traballiou muito; e o desvalimento, em que sempre viveu, não lhe aíFrouxou as graças naturaes e puras, que fazem a belleza de suas composições. Mas sobre tudo as scenas de horror foram o mimo do seu pincel. Tive o prazer de admira-lo muitas vezes em suas obras, que por decisiva prova de merecimento, sSo procuradas por altissimos pre- ços para Itália, França e Inglaterra.

Estevão Gonçalves Neto n...., m. 1627. E delle o missal do convento de Jesus tam gabado pelas excellentes miniaturas que o ornam. Sou- be bera o ornato e prospectiva.

Amaro do Yalle n...., m. em 1619. Seu gos- to é delicado; seu stylo grande e expressivo; o desenho correcto, e assizada a perspectiva. Foi pintor de Philippe II.

José de Avelar RebeUo viveu no tempo de D. João IV, que o condecorou com o habito de Aviz. Caracterizam suas obras (das quaes a me- lhor é o >S. Jeronymo da livraria de Belém) um

DA PINTURA 159

stylo da grandeza de Mig. Ang., e um colorido de sumnia verdade.

D. Josephade Ayala n...,, m. 1684. Um in- genho fértil, muita verdade, expressão vivissima são a característica de seus quadros, pela maior parte, de flores e fructos; mas o seu grande gé- nero foi o retrato.

Cláudio Coelho n...., m. 1693. Este homem tam grande e tam conhecido tem sido aboca- nhado por muitos, e exagerado por alguns; mas a opinião geral o constituo n'um dos mais supe- riores graus entre os mais illustres pintores. De- senhou correctamente; coloriu como Ticiano; e conheceu, como poucos, o effeito da prespectiva. Tudo isto se observa principalmente no seu pri- moroso quadro da sacristia do Escurial bem di- vulgado pela moderna estampa de Bartholozzi. ( Vid. Palomin. Mii.s. Uid. pag. 440 até 444; o abbadc Ponzz. Viag. cVEnp. Tom. V. pag. 65 até 126; Bermudez Diccion. hintor. Tom. I pag. 337 até 347; Bourgeoin Tableau de VExpaíjue moderno Tom. I. p. 227.)

liento Coelho viveu no XVII sec. Grande faci- lidade, bom colorido, como o de Rubens, que imi-

160 ENSAIO SOBRE A HISTORIA

teu; pouca correcção no desenho. Conservam-se ainda muitas de suas obras.

PINTORES PORTUGUEZES DA IV. EPOCHÁ

{Século XVIII)

Victorino Manoel da Serra n. 1692, m. 1747. Foi o primeiro, que em Portugal introduziu o gôsto e ornato francez.

André Gonsalves, n...., m.... Foi correcto no desenho, e bom no colorido; mas seu mereci- mento principal é o de copista.

Ignacio d'01iveira, n...,, m. 1781. Distin- guiu-se sobre tudo pelos encantos do colorido: estudou em Roma, e trabalhou muito em Ma- fra.

Francisco Vieira Lusitano n...., m. 1783. Es- tudou muito em Roma, aonde, por concurso, le- vou o premio da academia de S. Lucas. Foi grande na alegoria; desenhou bem, coloriu divi- namente, e teve muita expressão. Apezar de tudo o que a inveja e a ignorância tem suscita- do contra este grande mestre, elle será sempre um d'aquelles, com que a pintura nacional mais

DA PINTURA 161

se honra e ennobrece. Vieira Lusitano é muito conhecido, para me obrigar a maior elogio.

Joaquim Manoel da Rocha n, 1730, m. 1786. Distinguiu-se pela correcção do desenho, e mui- ta expressão. Foi director da academia do nu, e professor na aula do desenho de Lisboa.

Francisco Apparicio n...., m. 1787. Distin- guiu-se muito no retrato e sobre tudo, por uma grande verdade de colorido. Estudou em França.

Luiz Gonsalves de Senna, n. 1713, m. 1700. Foi mui destro no pintar; e em Lisboa se vêm muitas obras suas de grande merecimento.

Jeronymo de Barros Teixeira n. em 1750, m. 1803. O stjdo simples e natural, bom colorido, muita sciencia de claro-cscuro, e de architectura, grande talento para o retrato o constituem em mui distincto legar na ordem dos bons artistas.

Pedro Alexandrino de Carvalho n. 1730, m. 1810. Teve um pincel livre, viveza de cores, e maneiras engraçadas, e foi um dos directores da academia do nu.

José Teixeira Barreto nasc. no Porto 1763, m. 1810. Estudou muito cm lloma, c com gran- des mestres. Seu stylo é caprichoso, ma.s boUo. Foi lente de desenho na academia do Porto.

162 ENSAIO SOBRE A HISTORIA DA PINTURA

Francisco Vieira Portuense n. 1765, m. 1805. Foi primeiro-pintor da camera e corte, director do instituto de desenho do Porto, e estimado e honrado de toda a nação, e das estrangeiras, principalmente da Ingleza. Foi premiado pela academia de Londres. Pintou no stylo do Gui- do e Albano; e, no seu género, não deixou aos portaguezes nada que invejar ás outras nações.

riM.

ADVERTÊNCIA

Fui sempre muito pouco amigo de dar satisfa- ções. Porém esta minha repugnância não é filha de presumpção, nem de orgulho. De todo o meu coração o digo, e todos os que me conhecem, o sa- bem. Nasce d<i persuasão, em que estou, de que a justificação diurna coma está na maneira por que essa cousa se faz. E appUcando esta generalida- de ás composições litterarias, cada vez me conven- ço mais que os prólogos, prefácios, avisos a leito- res, etc. nada fazem, nem fizeram, nem farão nunca ao conceito, que da obra se forma.

S principio foi este, por que na faseada do meu poema não puz tal ceremonia. Recendo -o porem agora, examinando este Ensaio, e conhecendo- lhe infindos defeitos, que me tinham escapado; sendo- me impossível emenda-los; resolvo-me a dar satis- fação; não para pretender Justifica-los, e salvar- me dd critica com subtilezas, e argucias; mas para fazer confissão pública d'ellcs.

Se me é licito x>orcm dizer duas palavras cm

meu abono, direi que tanto o poema, como as no- tas, e ensaio são da minha infância poética; são comjjostos na idade de dezasette annos. Isto não é impostura: sobejas pessoas Jiahi, que m'o viram co- meçar, e acabar então. É certo que desde esse tempo ategora, em que conto quasi vinte e dous, por três vezes o tenho corrigido; e até submettido á censura de pessoas doutas, e de conhecida philo- logia, como foi o Excellentissimo Senhor S. Luiz, que me honrou a mim, e a este opúsculo com suas correcções. Mas todos estes cuidados não puderam (emquanto a mim) tirar- lhe o vicio do nasci- mento.

Eisaqui a minha confissão geral. Os que me ab- solverem ficar-lhes-hei muito obrigado; os que não quizerem; paciência; não me mato por isso. Co- mecei esta obrinha por desenfado: acabei-a por di- vertimento: publico-a por amor das artes: se me criticarem, rio-me, e não fico nml com ninguém.

BOSQUEJO

DA

HISTORIA DA POESIA E LÍNGUA PORTUGUEZA

A QUEM LER

A MINHA primeira ideia quando inteitei esta coUecção, foi dar ao publico um extracto das me- lhores poesias de nossos clássicos. Reflecti depois que não seria ella completa, porque alguns géne- ros ha que não tractaram aquclles illustres escrip- tores : e em tam rica litteratura como é a portu- gueza, pena fôra mostrar pouquidade e pobreza. Resolvi-me por esse motivo a sahir dos limites clássicos. Mas ainda apparecia outra diííiculdade: espécies ha de poesia em que não escreveram se- não auctores vivos ; atterrava-me a lembrança de haver de julgar e escolher obras que aguardam ainda o conceito da posteridade, quaái sempre único tribunal recto das cousas dos homens, es-

168 A QUEM LER

pecialmente do matéria de gosto. Todavia o mesmo motivo de querer fazer esta escolha o mais completa que é possível, me determinou a arrostar ess'outro escolho. Procurei nos escripto- res vivos cingir-me quanto racionavelmente pude á mais geral opinião, escolhendo aquelles trechos que mais approvados teem sido ; ohservando pela minha parte a mais vigorosa imparciaHdade que humanamente se pode. E sendo, como sou, alheio a toda disputa e rivalidade litteraria e poética, se alguma hora no decurso d'esta obra julgarem deslisei d'essa proposta impassibilidade, peço que o attribuam a erro de meu juizo, não a propósito dehberado. *

Queria eu também ao principio conservar a

Muito tempo hesitei se daria logar n'e8ta coIlecçSo a nm poeta (iioje morto) em quem de certo houve algum ingenho, mas que ignorou e desprezou a tal ponto a língua, tam cinica- mente violou o decoro do stylo, as mais indispeasaveis regras do gosto e da boa razão, que seus poemas são uma sentina de gallicismos, e um apontoado de termos baixos, de expressões que não usa gente de bem, de construcções barbaras, de versos prosaicos, semeados áquem além de uma ideia feliz, de um bom verso, de uma imagem poética. se que esta descripção a ninguém quadra senão ao Santos e Silva. Cedi também n'este ponto á opinião que o considera mais do que elle vale, e esco- lhi o que me pareceu menos bárbaro da tal excêntrica Brazilia-

A QUEM LER 169

cada escriptor sua particular orthograpliia ; mas a isso obstaram dous insuperáveis obstáculos. Pri- meiro—não haver, sobre tudo nos clássicos, uma base boa ou em que cada um d'eUes fundasse a sua orthographia para se poderem regularizar as incalculáveis anomalias que se encontram em uma mesma obra, na mesma pagina ás vezes. Segundo— que bavendo sido muitas das obras de nossos poetas antigos e modernos publicadas pos- thumas, é impossivel acertar com o verdadeiro systhema orthographico d'elles. Esta impossibi- lidade augmentou ainda e se estendeu áquelles que apezar de publicarem suas obras em vida, ca- hiram em mãos de novos editores todos ignoran- tes ou descuidados (nenhum conheço, a quem fique mal o epitheto) que em vez de as melhora- rem, estragaram e confundiram tudo. Ora d'al- guns d'esses não foi possivel, por mais diligencias que se fizeram, descubrir as primeiras edições, as

da: e provável é que escolhesse mal, porque difficil é julgar um bomcm bem quando está cahindo com $omno.

Fui obrigado a pdr um grande pedaço, porque em maior es- paço appareceria um maior numero d'e8se8 poucos descuidos felizeã do auctor.

170 A QUEM LER

quaes, segundo observei, ainda assim, não servi- riam de muito.

Accresciam a estes dous motivos a feia appa- rencia que teria a obra que mais houvera ficado recosida manta de retalhos furtaeôres, do que uma colleeção de poetas da mesma lingua.

Determinei pois imprimir tudo com regular e geral orthographia; cujos principios extrahi do uso dos melhores clássicos, uso que nem sempre seguiram, mas que manifestamente se quise- ram seguir ; e são estes :

I. Conservar fielmente a ethymologia quando se lhe não oppõe a pronúncia.

II. Combiná-la com a pronúncia quando esta se oppõe á inteira conservação d'aquella.

III. Nas palavras de raiz incógnita seguir o uso geral,

IV. Nas diversas modificações dos verbos con- servar sempre a figurativa quando a pronúncia não obsta.

V. Não pôr accentos (agudo e circumflexo que são os únicos portuguezes) senão onde a palavra sem elles se confundiria com outra. (Também me servi do agudo para marcar a dieresis por não

A QUEM LER 171

estar ainda adoptado entre nós o signal (. .) que é bem necessário.)

Julgo haver prestado algum serviço á littera- tura nacional em offerecer aos estudiosos de sua lingua e poesia um rápido bosquejo da historia de ambas. Quem sabe que tive de encetar maté- ria nova, que portuguez nenhum d'ella escreveu, e os dous estrangeiros Bouterweck e Sismondi incorrectissimamente e de tal modo que mais con- fundem do que ajudam a conceber e ajuizar da historia htteraria de Portugal ; avaliará decerto o grande e quasi iudizivel trabalho que me cus- tou esse ensaio. Não quero dá-lo por cabal e per- feito ; mas é o primeiro, não podia se-lo. Além de que, a maior parte das ideias vão apenas to- cadas, porque não havia espaço em obra de taes limites para lhe dar o necessário desenvolvimento.

BOSQUEJO

DA

HISTORU POESIA E LINGUÂ PORTUGUEZA

Origem de nossa língua e poesia.

A UNGUA e a poesia porhigueza (bem como as outras todas) nasceram gémeas, e se criaram ao mesmo tempo. Erro é commum, e geral mesmo entre nacionaes, pela maior parte pouco versados em nossas cousas, o pensar que a língua portu- gueza é um dialecto da castelhana, ou hespanhola segundo hoje inexactamente se diz.

Das variadas combinações das primitivas lin- guagens das Hespanhas com o Grego, o Latim, com os bárbaros idiomas dos invasores do norte, e alfim com o Arábigo, nasceram em diversas partes da Península diversíssimas línguas que nem dialectos se podem chamar geralmente, por- que, além de não haver uma commum, do muitos

174 HISTORIA DA LÍNGUA

d'elles é tam distincta a Índole e tam opposta que se lhes não colhe similhança.

Ninguém ignora hoje que o Proençal foi a primeira que entre as linguas modernas se culti- vou, mas que por sua breve dura riao chegou nunca á perfeição. Das nações da Hespanha, as mais vizinhas áquelle crepúsculo de civilização primeiro melhoraram sua linguagem: mas tam- bém lhes coube igual sorte ; nunca de todo se pu- liram. O Castelhano e Portuguez, que mais tarde se cultivaram, permaneceram pelo sabido motivo da conservação da independência nacional, e vie- ram a completo estado de perfeição e caracter cabal de linguas cultas e civilizadas. O Biscainho, Catalão, Gallego, Aragonez, Castelhano, Portu- guez e outras mais foram e são ainda alguns dis- tinctos idiomas : porém so os dous últimos tive- ram litteratura própria e perfeita, linguagem commum e scientifica, tudo emfim quanto cons- tituo e caracteriza (se é licita a expressão) a in- dependência de uma lingua.

Grande similhança ha entre o Portuguez e Castelhano ; nem podia ser menos quando suas capitães origens são as mesmas e communs : po- rém tam parecidas como são pelas raizes de de-

E DA POESIA PORTUGUEZA 175

rivação ; no modo, no systhema d'essas mesmas derívações, na combinação e amalgama de idênti- cas substancias e principios se todavia que di- versos agentes entraram, e que mui variado foi o resultado que a cada uma proveio. Filhas dos mesmos pães, diversamente educadas, distinctas feições, vario génio, porte e ademan tiveram : ha comtudo nas feições de ambas aquelle ar de fa- mília que á prima vista se colhe.

Este ar de familia enganou os estrangeiros, que sem mais profundar, decidiram logo, que o Por- tuguez não era lingua própria. Esse achaque de decidir afoitamente de tudo é velho, sobre tudo entre francezes, que são o povo do mundo entre o qual (por philaucia do certo) menos conheci- mento ha das alheias cousas.

Sem dúvida é que a lingua portugueza comC' çou com seus trovadores, únicos no meio do es- trépito das armas que algum tal qual cultivo lhe podiam dar ; e provável é que assim fosse com pouco melhoramento até os tempos d'el-rei D. Di- niz, que no remanso da paz de seu reinado i)ro- tegeu e animou as lettras, que elle próprio culti- vou também.

176 HISTORIA DA LÍNGUA

II

Primeira epocha lilteraria ; fins do xiii até os principios do xti sec.

D. João I o eleito do povo, e o mais nacional de todos os nossos reis, deu ao idioma pátrio va- lente impulso, mandando usar d'elle em todos os actos e instrumentos públicos, que até então se faziam em Latim. Foi esta lei carta de alforria e de cidade para a lingua que atélli vivera es- crava da dominação latina, a qual sobrevivera não ao império romano, mas a tantas conquis- tas e reconquistas de tam desvairados povos.

Aqui se deve pôr a data da verdadeira aurora das lettras em Portugal, que por singular pheno- meno pouco visto entre outros povos, raiou ao mesmo tempo com a das sciencias ; por maneira que quando o romântico alaúde de nossas musas começava a dar mais afinados sons, e a subir mais alto que o atélli conhecido, as sciencias e as artes cresciam a ponto de espantar a Europa, mudar a face do mundo, e alterar o systbema do universo.

Desde então até á morte d'el-rei D. Manuel,

E DA ror.SIA rORTUGUEZA 177

tudo foi crescer em Portugal; artes, sciencias, commércio, riqueza, virtudes, espirito nacional.

Muitas foram as producçÕes de nossa littera- tura n'aquelle século de glória em que Gil- Vi- cente abriu os fundamentos ao theatro das linguas vivas, Bernardim Ribeiro puliu e adereçou com alguns mimos da antiguidade o género inculto dos romances ' c seguiu (quasi o segundo) o ca- minho encetado pelo nosso Vasco de Lobeira nas composições romanescas ; e ao cabo mostrou aos rústicos pastores do Tejo alguns dos suaves modos da frauta de Sicilia que nenhuma lingua viva até então ouvira soar.

A natural suavidade do idioma portuguez, a melancholia saudosa de seus números nos leva- ram á cultura d'cste género pastoril, cm que raro poeta nosso deixou de escrever, quasi todos bem, porque a lingua os ajudava; nenhum perfeita- mente, porque (inda mal) deram ás cegas em imi- tar Sannazaro, depois Boscan e Garcilasso, e co- piaram pouco do vivo da natureza, que tara bclla, tam rica, tam variada so lhes prescntava por todas as quatro partes de que em breve constou

' Não no scnlido de novcUas, roas no que então bc llic dava.

1^

178 HISTORIA DA LÍNGUA

O mundo portuguez, e das quaes todas ou assumpto uu logar de scena tiraram nossos bucólicos. Nem d'este geral defeito ' (o máximo que por ventura se lhes nota) pode fazer-se excepção, senão for alguma rara em favor de Camões e de Rodriguez Lobo. O Tejo, o Mondego, os montes, os sitios conhecidos de nosso paiz e dos que nos deu a conquista, figuram em seus poemas ; porém raro se descripção que recorde alguns d'esses sitios que vimos, que nos lembre os costumes, as usanças, os preconceitos mesmos populares; que d'ahi vem á poesia o aspecto e feições nacionaes, que são sua maior belleza.

Bernardim Ribeiro foi um tanto mais original em sua simplicidade, o que lhe falta de sublime e culto sobcja-lhe em brandura, e n'uma ingénua ternura que faz suspirar de saudade, d'aquella saudade cujo poeta foi, cujos suaves tormentos tani longo padeceu, e tam bem pintou.

Foi seu contemporâneo Gil- Vicente fundador do theatro moderno, de cujas obras imitaram os Castelhanos ; e d'ellas se espalhou pela Europa o

' Coinmum fainbera nos outros géneros de poesia, onde quer ÍJU8 enlra o descriplivo.

E DA POESIA PORTUGUEZA 179

mau e o bom d'essa irregular e caprichosa scena, que ainda assim suas belle>ías tem.

O próprio Gil- Vicente não deixa de ter seu có- mico sal, e entre muita extravagância muita cousa boa. Bouterweck e Sismondi parece que escolhe- ram o peior para citar ; muito melhores cousas tem, particularmente nos autos, superiores sem comparação ás comedias. A soltura da phrase, o a falta de gosto são os defeitos do século ; o inge- uho que d'alii transparece é do homem grande e de todas epochas '.

III

Segunda cpocha littcmria; idade de ouro da poesia e da lingua ámdo os princípios do xvi ate os do xvii sec.

Com a morto d'el-rei D. Manuel declinou vi- sivelmente a fortuna portugucxa: certo é que as artes progrediram, que a lingua se aperfeiçoou ; porém esse movimento era continuado ainda do

' Rcservo-mc para uma edirilo que pretendo publicar do nosso IMauto, fructo de loiíf^o e penoso trabalho, para exami- nar melhor eslo ponto, e demonstrar o qnu uqiii enuncio.

180 HISTORIA DA LÍNGUA

impulso anterior e não promettia longa dura. Assim succedeu. D. João III colheu os fructos do que D. Manuel havia semeado ; mas de lavras suas, nem elle, nem seus successores viram co- lheita.

Uma cousa todavia que muita influencia teve sobre a lingua e litteratura portugueza e que a instituições de D. João III se deve, foi o cultivo das linguas clássicas, que na reformação da uni- versidade de Coimbra augmentou muito. Os mo- delos gregos e romanos foram então versados de todas as mãos, estudados, traduzidos, imitados. Aperfeiçoou-se a lingua, enriqueceu-se, adquiriu aquella solemnidade clássica que a distingue de todas as outras vivas, seus periodos se arredon- daram ao modo latino, suas vozes tomaram muito da euphonia grega ; d' um e d'outro d'esses idio- mas lhe vieram as muitas, e principalmente da grega, os muitos hyperbatos ; com o que vai rica, Hvre e magestosa por todas as províncias da lit- teratura, que tem decorrido, não havendo ahi gé- nero de composição, para o qual, ou por doce de mais como o Toscano, não seja própria,— ou por mui áspera e guindada como o Castelhano, se não adapte,— por curta como o Fraucez, não che-

Á

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gue,— por inflexível e ríspida como o Alemão e Inglez, se não amolde.

Claro é que a historia, a oratória, todas as ar- tes do discurso deviam de florescer com tal augmento. Com ellas todas medrou e cresceu a poesia na delicadeza, na harmonia, no gosto ; po- rem desmereceu muito, demasiado na originali- dade, no caracter próprio, que perdeu quasi todo, em a nacionalidade, que por mui pouco se lhe ia. Todos os deuses gregos tomaram posse do mara- vilhoso poético, todas as imagens, todas as ideias; todas as allusões do tempo de Augusto occupa- ram as mais partes da poesia ; e mui pouco ficou para o que era nacional, para o que tínhamos, para o que podíamos adquirir ainda, para o que naturalmente devia nascer de nossos usos, de nos- sas recordações, de nossa archeologia, do aspecto de nosso paíz, de nossas crenças populares, e em- fim de nossa religião.

do Miranda, verdadeiro pao da nossa poe- sia, um dos maiores homens de seu século, foi o poeta da razão e da virtude, philosophou com as musas, c pootisou com a philosopliia. Seu muito saber, sua experiência, seu tracto aíFavcl, e até a nobreza do seu nascimento, lho deram indíspu-

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tada superioridade a todos os escriptores d'aquelle tempo, dos quaes era ouvido, consultado e imi- tado. Sá de Miranda exerceu sobre todos os poe- tas d'aquella cpocha a mesma espécie de império que veio a ter Boileau em França, e mais mo- dernamente Francisco Manuel entre nós. Intro- duziu na poesia os metros italianos, e os modos, versos e combinações de rhymas de Dante e Pe- trarca : e desd'alii quasi se abandonaram inteira- mente (excepto nas voltas e glosas) os nossos an- tigos versos de redondilha, e absolutamente os de arte maior e menor, que ainda assim mui pró- prios são para certos assumptos, segundo com fe- liz exemplo no-lo mostraram antigos e modernos poetas. Nem o mesmo de Miranda igualou nunca em composições hendecasyllabas a pureza, a correcção, a naturalidade e sublime simplicidade de suas redondilbas nas epistolas, que hoje são seu maior e quasi único titulo de glória.

São de admirar suas comedias, e são notá- vel monumento para a historia das artes pela fe- liz imitação dos antigos, e pelo que excedem quanto até então se tinha escripto. Porem o theatro portuguez creado pela musa negligente e travessa de Gil- Vicente e João Prestes, carecia

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de reforma, mas não podia supportar uma re- volução. As comedias de de Miranda sem ca- racter nacional, mui clássicas de mais não eram para reformá-lo: o mesmo direi, e o mesmo succedeu ás de Ferreira, a algumas poucas mais que depois vieram. O etfeito d 'estas composi- ções, aliás preciosas, foi funesto: os litteratos enjoaram-se (e com razão) do theatro nacional, e não se deram a corrigi-lo e melhora-lo: o pú- blico preferia (e com razão também) o com que fôracreado, o que o interessava, o que o diver- tia, e antes queria rir com as grosserias dos au- tos populares, que bocejar e adormecer-se com as finuras d'arte e correcções d'essas comedias, que tudo tinham, menos interesse, onde todo o spirito havia, menos o nacional.

Sc houveram de Miranda e Ferreira esco- lhido assumptos portuguezes, se houveram pin- tado os costumes naciouaes, e prescntado ao público, em vez de quadros itahanos, um espe- lho em que se elle visse a si e aos seus usos, c se risse do seus próprios defeitos; fico em que houveram reformado o thoatro em vez de lhe empecer: e acaso gosariaraos ainda hoje em uma scena rica e abastada dos resultados d'esse im-

184 HISTORIA DA LÍNGUA

pulso, quando não temos senão que chorar, e vivemos, sobre o theatro, das migalhas que men- digamos a estrangeiros pelo triste meio de tra- ducções, que (as dramáticas sobre tudo) nun- ca podem ser boas.

de Miranda escreveu alem d'isto algumas éclogas bastante frias, vários sonetos geralmen- te de pouca monta. Um d'elles á morte de Le- andro e Hero é excollente, mas castelhano, e por esse achaque o não incluí na escolha. ^

Não posso deixar de querer mal a tam illus- tre portuguez pelo muito que escreveu n'essa lingua estranha; com que não privou a natu- ral do fructo de suas tarefas, mas fez maior dam- no ainda com o exemplo que abriu; exemplo funesto que nos cerceou a litteratura, que nos defraudou d'uma Diana de Monte-maior, de tantas boas coisas mais, e ao cabo ia perdendo a lingua.

Mas eisahi António Ferreira para combater esse mal em sua origem: ei-lo ahi esse portu- guez verdadeiro, ardente amador da lingua,

' A. Rib. dos Santos tradazia este soneto em portuguez e (cousa inexplicável em tal homem!) o deu por seu.

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clamando a todos, pugnando contra todos os que não prezavam e aditavam o pátrio idioma com as producções do ingenho e das artes. O pro- fundo conhecimento dos clássicos gregos e lati- nos, o finíssimo gosto que em seu estudo tinha adquirido, a felicidade com que sempre os imi- tou, a pureza da phrase, as riquezas com que adornou a língua deram aos versos de Ferreira grande popularidade entre os Ktteratos e corte- zãos (que, ao aveço de hoje, as lettras viviam então quasi na corte) e fixaram determina- damente o género clássico entre nós.

Cegou-se todavia o nosso bom Ferreira na imitação dos antigos; copiou-os, não os imitou: c d'ahi, enriquecendo a lingua, empobreceu a litteratura, porque a avezou a esse hábito de co- pista; cancro que roe o espirito creador, alma e váda da poesia nacional. Tão cega foi esta imi- tação, que seus mesmos versos, aos quaes hoje ninguém defende da nota de ásperos e duros (e muitos direi— errados) os fazia assim de propó- sito por querer usar das ellipses gregas c lati- nas, a que repugna a Índole de nossa lingua, so toleráveis em certas vozes que na prosa mesma 80 pronunciam e escrevem no final com m ou

186 ' HISTORIA DA língua

sem elle. Este desagradável defeito dos versos de Ferreira é principalmente sensivel nas dicções que teem final no que chamámos (mal ou bem) diphtongos nasaes de ão, e muito mais quando n'elle é o accento predominante da palavra.

Os sonetos são frios desengraçados; nas éclo- gas ha beliezas muitas, e mui grandes, mas es- palhadas: nenhuma d'éstas composições toma- da per si pôde merecer o nome de bella. Porem das odes, ha d'ellas que são puramente horacia- nas, e se lhes fallece a elevação (que não era esse o génio de Ferreira) sobeja-lhe a graça, a elegância e a adornada phiiosophia, que não agradam menos, nem de menos valor e mérito são que os extasis pindarieos, ou os requebros anacreonticos. O que é sem dúvida é que nas linguas vivas Ferreira foi o primeiro imitador feliz de Horácio, e o primeiro dos modernos que pulsou a lyra clássica. Das epistolas, ha algu- mas que podem pleitear em concisão e fino dizer com as boas do lyrico romano. Quanto á pure- za da moral, ao nobre patriotismo, áquelle ge- neroso sentimento da honrada liberdade de nos- sos avós, áquelle enthusiasmo da virtude; esse

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respira, mostra-se e resplandece em todas as suas obras.

Mí>6 a verdadeira glória de Ferreira é a Castro, producçSo admirável per si mesma, pelo tempo em que a escreveu, por todos os lados por que se considere. Não é ainda líquido en- tre os philologos se era possivel o ter visto Fer- reira a Sophonisba de Trissino, que mui poucos annos antes da Castro appareceu: mas é sem a minima questão reconhecida a superioridade da tragedia portugueza á italiana: pasma como sem ver um tlieatro, sem mais exemplares que os gregos e latinos, podessc Ferreira tractar tão delicadamente um tal assumpto em um género desconhecido da antiguidade. E notável a pri- meira scena da Castro, a scena d'el-rei e dos conselheiros no acto II. a do acto III. em que o coro traz a Castro as novas de sua cruel sen- tença, onde aquella pergunta de Ignez: mor- to o meu senhor, o meu infante?" rasgo de su- blime, porem d'um sublime todo sensibilidade, ao qual nom o qi('il mouràt de Corneille pode coniparar-se; e finalmente os coros, que sem pai- xão são superiores a todos os exemplares da an- tiguidade, e não teem que invejar aos tão gaba-

188 HISTORIA DA LÍNGUA

dos da Athalia. Nâo dou a Castro por uma tra- gedia perfeita: ainda em relação ao seu tempo e aos conhecimentos da scena d'então tem ella defeitos: não haver uma scena em que se encon- trem Pedro e Ignez, não haver algum esforço do infante para lhe valer, deixam a peça muito nua de acção, e lhe entibiam o interesse. A ver- sificação (que todavia é de preferir aos versos sesquipedaes e himpados com que hoje está pre- vertida a scena portugueza) pécca geralmente por dura; mas essa mesma é por vezes bella; e para bons entendedores muito ha hi que estu- dar; e oxalá que os nossos dramáticos lessem e relessem bem a Castro, e apprendessem alli, pe- lo menos, naturalidade e verdade de expressão, que tanto lhes fallecem.

Não estava ainda n'este auge a poesia portu- gueza quando um homem pouco conhecido dos lettrados, mas ja célebre per suas aventuras e valor, foi para tão longe da ingratissiraa pátria despicar-se de seu desamor com a mais nobre vingança; a de levantar-lhe um padrão, com que não entram as idades, e que conservará ainda o nome portuguez quando ja elle houver desap- parecido da terra. Muita erudição (pois sabia

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quanto se soube em seu tempo) ingenho dos que vêem ao mundo de séculos a séculos se reuni- ram em Camões. Esse homem levantou a cabe- ça la das extremidades d' Ásia, e viu tudo pe- queno á roda de si, todos os poetas pigmeus, to- dos acanhados com as linguas modernas ainda mal perfeitas, escravos da imitação clássica, in- certos e entalados todos entre o cego respeito da antiguidade e as novas precisões que as novas ideias, que o novo estado do mundo requeria. Teve animo para conceber e força para execu- tar um rasgado e necessário atrevimento do se abrir caminho novo, de crear emfim a poesia moderna,' dar não so a Portugal, mas á Europa toda um grande exemplo, e coustituir-se o Ho- mero das linguas vivas.

Não me espaço o acanho de meus limites para dizer de Camões o que era indispensável; antes a celebridade do seu nome me deixará pa- rar aqui para dar logar a tractar de menos co- nhecidos nomes. direi que a influencia de Ca- mões na nossa poesia, e em toda a littcratura portugueza foi tal que desde então hoje ainda se não deixou de sentir, mesmo nas epochas em que mais desvairados teem andado nossos poo-

190 HISTORIA DA LÍNGUA

tas com as empolas do gongorismo, ou mais luná- ticos com os esfusiotes do clmanismo. Quasi que não houve género de poesia que não tractasse: tem sonetos admiráveis; éclogas (sobre tudo as primeiras) excellentes; mas principalmente de todas as poesias menores são o mais sublime e perfeito as canções, género a que deu uma no- breza e elevação desconhecida mesmo em Pe- trarca: sirva de prova e exemplo aquella que começa— "Junto d' um sêcco duro e estéril mon- te." Dos Lusíadas, de suas bellezas e defeitos, das controvérsias sobre umas e outros, está cheio o mundo Htterario.

Contemporâneo de Camões e ousado também como elle a encetar a carreira épica foi Jeróni- mo Cortereal. O Cerco de Diu, que é notável monumento litterario, e que de certo se teve al- gum exemplar foi a Itália do Trissino, é uma fria narração, em que ha bellas ideias áquein alem, muita riqueza de linguagem, pouca de poesia, e pelo geral maus versos. E comtudo é talvez Cortereal o primeiro (em data) poeta des- criptivo; e creou elle acaso esse género de que tanto blasonam hoje inglezes, alemães, e até francezes, e que todavia nós tínhamos séculos

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antes d'elles. Ja no Cerco de Diu ha muitas boas descripções; mas no naufrágio de Sepúlveda ha d'ellas subhmes.

Entre muito devaneio de imaginação e de mau gosto, entre aquelles insipidos requebros de Pan e de Protheu apparece todavia a morte de D. Leonor que é um trecho da mais bella poesia, da mais fina sensibilidade que se tem composto.

De todos esses poetas que então floreceram é na rainha opinião o menos poeta esse Pêro d' An- drade Caminha, a quem da amisade e celebri- dade de Ferreira e Bernardes vem talvez o maior renome. Ainda assim tem algumas odes boas, simplicidade com elegância por partes de suas composições: cpigrammas, são alguns ex- ccllentes.

Sobreviveu a todos estes e á pátria, que não tardou em perecer, o suave cantor do Jjiina que levado per D. Sebastião para testimunhar seus altos feitos, do que devia ía/or um poema, per- deu-se cora seu rei, e jazeu captivo em Africa. Pondo de parte a questíio das éclogas (na qual do certo não andou de boa Faria c »Sousa) a íjual, ainda que própria do logar, é mui longa

192 HISTORIA DA LINGDA

para os meus limites; Bernardes foi excellente poeta; e com quanto sua linguagem é pobre, e em geral pouco variadas suas composições; a suavidade de seu stylo, certa m^elancholia d'ex- pressão que lli'o requebra e embrandece darão sempre a Bernardes um logar mui distincto na poesia portugueza.

Mas a nação se perdera nos arcaes de Afri- ca, já a glória portugueza estava ofifuscada; com ella foram (como sempre vão) as boas artes. Ainda brilhara a espaços faíscas do grande lu- zeiro que se apagara; mas não eram senão faíscas.

Ainda Luis Pereira deplora na Elcgiada a ruma da pátria, mas esse canto fúnebre é quasi o canto de cysne da poesia nacional, que parece querer fenecer com elle, e n'elle moribunda se mostra. Ha excellentes oitavas derramadas per esse poema, algumas descripções felizes, grandíssima riqueza de linguagem; mas pouco mais.

Fernão Alves do Oriente dififuso, intrin- cado nos primeiros labyrinthos dos conceitos ita- lianos mostra a visível decadência da poesia: as musas que tão louçans, e ingenuamente bel-

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las tinham folgado pelas várzeas do Tejo e do Mondego com Ferreira e Camões, apparecem aíFeitadas com arrebiques e cores falsas, como essas damas para quem se desbota a flor da ida- de e lhe querem ainda supprir o viço com em- prestados ornamentos, gentilezas compradas e postiças. E todavia ha na Lusitânia transfor- mada pedaços lyricos excellentes, e alguns bucó- licos soôriveis. Assim elle nos dissesse mais do seu Oriente do que nos disse: assim houvesse enriquecido a litteratura com mais imagens de tantas que sua Ásia lhe oíferecia, e com que houvera additado a mãe pátria. Onde o fez, n'a- quella écloga em que conta a historia de Sala- dino, é elle verdadeiramente poeta; c se d'ahi tirarem alguns trocadilhos que tinha apprendido cm Itália, excellente e digno de imitar-se é o resto.

IV

Terceira epoclia lilleraria; principia a corromper-sc o goílo e a declinar a liii{,'ua. Começo, até o Um do xvii sec.

Porem os symptomas do Gomjorisnw e Ma- rinmnu se manifestavam cm Itália c Castel-

13

194 HISTORIA DA LÍNGUA

la; não perfeitos ainda, não no auge a que os le- varam os dous poetas, aliás ingenhosos, cujo nome vieram a tomar; mas assim mesmo a poesia moderna estava toda gafa d'essa lepra de su- berba requintada.

Vasco Mousinho de Quevedo, que sem dispu- tar é depois de Camões, nosso primeiro épico, ahi tem em toda a nobreza de seus versos a quebra de bastardia d'esse defeito, que todavia é n'elle ainda raro. Mas que bellezas tem esse tão mal avaliado Affonso Africano, a que a ce- gueira e o mau gosto tem querido preferir a quixotica e sesquipedal Ulyssea, a hyperborea e campanuda Malaca! Não é regular o poema, não é uni todo perfeito; o maravilhoso é frio, e a acção toda não mui bem deduzida; mas que ri- quissimos episódios a enfeitam! A descripção de Zara, o jardim incantado onde aporta o prín- cipe D. João, e alguns outros trechos são cu- nhados com o sêllo da verdadeira poesia, e ani- mados da luz que o ingenho. Quanto ao stylo, é com poucas excepções fluido e elegan- te; custa a achar em tão longo poema uma rhy- ma forcada ou má: e a mesma linguagem, sup-

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posto decline um tanto da primeira pureza, é ainda de boa lei e valiosos quilates.

D'ésta epocha é também Rodrigues Lobo, cujo grande logar como prosista não é aqui próprio de examinar: de seu merecimento poético a com- mum opinião tem com justiça decidido dando- Ihe um dos primeiros (eu quizera o primeiro) logar entre os bucólicos antigos; e outro mui dif- ferente e inferior entre os épicos. E certo, o Condestabre, apezar de muitos e bons pedaços descriptivos, é frouxa e morna composição. Que dififerente era a frauta que ia fioando pelas mar- gens do Lis, a dulcissima frauta de Lobo, quando comparada com a tuba heróica, para cuja altivez lhe fallccem natureza e arte! seus pastores são verdadeiros pastores, sua lingua- gem é verdadeira do campo, não lhes sahem pe- los golpes do pcllico as alfaias da cidade, tão mal encubcrtas pelos outros bucólicos, os quaes, sem excepção do próprio Camões, todos peccam por mui sabidos e lettrados, por discretos e ga- lantes mais que soem ser aldeãos e pastores.

Alem d'isso ha derramados pela Primavera, Pastor peregrino, ctc, pedaços lyricos de sum-

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ma belleza, romances excellentes e verdadeira- mente dignos de admiração e estudo.

Tinhamos perdido a independência; perde- mos logo o espirito nacional, o tymbre, o amor pátrio (que amor da pátria poderá haver em quem pátria nSo tem); a lisonja servil, a adu- lação infame levou nossos deshonrados avós a desprezar seu próprio riquíssimo e tão suave idioma, para escrever no guttural Castelhano, preferindo os sonoros helenismos do portuguez ás aspiradas aravias da lingua dos tyrannos. Ver- gonha que so tem par nas derradeiras vergo- nhas com que nos enxovalharam a lingua e a fama os tarellos , francelhos, gallici-parlas e toda a caterva dos gallo- manos!

Em Castelhano escreviam esses degene- rados portuguezes: mas pouco importava que o fizessem, que n'isso fraca perda tivemos nós: de toda essa cafra de versos castelhano-portu- guezes pouco ou nada ha que espremer.

D'ésta commum baixeza se alevantou o hon- rado e douto magistrado Gabriel Pereira de Cas- tro, que depois de ter aberto na jurisprudência um caminho novo e n'aquelle tempo tão difficil por grandes verdades então perigosas, tomou

E DA POESIA PORTUGUEZA 197

ousado a trombeta de Homero, e não se arrojou a menos que a competir ao mesmo tempo com a Iliada e Odyssea; que tanto abraça o assumpto de seu poema. Grande é a concepção, bem dis- tribuídas as partes, regularissimo o todo, regu- lar e bella a acção, bem intendidos os episódios; mas o stylo.... o stylo é, prototypo da Phenix- reiMscida, o requinte do gongorismo, cujo patri- archa foi entre nós, pervertendo-nos, á sombra de sua grande fama e brilhante ingenho, todo o resto escasso que de gosto tinhamos ainda, in- trincando a poesia (senão que também a prosa por mau exemplo) n'um dédalo inextricável de conceitos, de argucias, de exagerações, de affec- tada sublimidade, falsa c van grandeza; com que de todo veio a torra a poesia nacional, e acabou a grande eschola de Camões e Ferrei- ra, que tantos e tamanhos alumnos havia pro- duzido. E suppunha esse homem vaidoso ter sobrepujado com as queixotadas da sua Ulyssea as naturacs bellczas dos divinos Lusíadas!

Quasi o mesmo errado trilho, mas que menos brilhante e com inferior ingenho, seguiu de Menezes na Malaca. Esse poema, que tanto tem engrandecido o mau gosto, é na minha opinião

198 HISTORIA DA LÍNGUA

um dos derradeiros títulos de glória da litera- tura pprtugueza. E todavia é bem regular, bera concebido, e a espaços se lhe encontram grandes rasgos de gentileza poética. A falia de Asmo- deu no conselho infernal faz lembrar muito a de Lúcifer em Milton. Porem quando agitado o poeta do génio mau que avexava e endemoni- nhava os poetas d* então, começa a guindar-se a transpor os derradeiros limites da natui-alidade; esquece todo o deleite que algumas estancias mais descuidadas nos haviam causado, e é forço- so desemparar a dura tarefa de tão incommoda leitura, porque verdadeiramente incommoda e cança tal stylo, tal phrase, tanto hyperbolico luxo e destemperado alambicar.

Quarta epocha: idade de ferro; aniquila-se a littoratura, cor- rompe-se inteiramente a língua. Fios do xvii, até mea- dos do XVIII sec.

Mas ainda estes tinham sua nobreza, havia não sei que grande entre todas essas nuvens de talco; talvez lhes viesse dos assumptos: porem

K DA POESIA PORTUGUEZA 199

seus discípulos que ainda quizeram ir avante, deram em fazer silvas, acrósticos, e engendra- ram todos os outros monstros (originários, se- gundo Diniz, do paiz das hagatellas) e distillan- do mais e mais as quintas essências dos concei- tos, tanto torceram e retorceram o ja delgado fio poético, que de todo o quebraram. So Manuel da Veiga o atou momentaneamente em uma ou duas lyras da Laura de Amphriso. Logo tornou a estalar: e per ahi , andaram as pobres musas portuguezas jogando as cabras-cegas pelas éclo- gas de Poliphemo e Galatea, pelos romances hendecasyllabos, e per todos os outros escondri- jos do gosto depravado, de que boas amostras se conservam no precioso tombo da PJicnix-re- nascida e alguns outros hoje ignorados livros d'essa triste data.

E todavia ja nós tinliamos recobrado tão glo- riosamente nossa independência, ja o nome por- tuguez tornara a ser honra e nobreza, e ainda essa lepra castelhana lavrava.

Dous grandes escriptores, anibos prosistas e ambos dignos de muito louvor, concorreram para a continuação d'este mal. Quem podia deixar de admirar Vieira? Quem não iria levado pela

200 HISTORIA DA LÍNGUA

torrente de sua eloquência? Quem resistiria aos Ímpetos de arrebatamento de Jacinto Freire? O grande talento de ambos, a vasta erudição e desmedido iugenho de Vieira sobre tudo, fizeram grande damno á litteratura: sabiam, escreviam perfeitamente a lingua, tinham grande crédito na corte, tractavam grandes assumptos, anima- va-os o nobre e sincero enthusiasmo da glória e liberdade nacional: tudo foi após elles; imita- ram-lhes vicies e virtudes; como não distinguiam em Vieira o grande orador, o grande philoso- pho do gongorista aífectado (quando o era) não estremavam em Jacintho Freire o historiador, o panegyrista do declamador, do académico vão; ruim e bom seguiam. E como é mais fácil imi- tar a aífectação, que a naturaHdade, as argucias de arte, que as graças de boa natureza; os imitadores foram alem de seus typos noafíecta- do, no mau d'elles, ficaram immenso aquém do que n'esses era bello e para imitar.

Nem o conde da Ericeira que traduziu a Ar- te poética de Boileau e d'elle levou tão immere- cidos e banaes elogios, tomou d'ella triaga bas- tante para se curar do veneno commum: e ainda assim melhor é sua frigida Henriqueida que os

E DA POESIA PORTUGUEZA 201

outros versos que por então se faziam em Por- tugal: porem o único olho que o fez rei em ter- ra de cegos, não lhe era bastante para ver e acertar com a vereda da posteridade. Ahi mor- reu no seu século e ahi jaz pela poeira de alguma livraria de bibhomaniaco.

As academias de historia, de Htteratura do tempo de D. João V, as associações ridículas de todos os nomes e descripções que então se for- maram, a mais c mais empeioraram o mal, que progressivamente cresceu até o ministério do marquez de Pombal.

VI

Quinla epocha: restauraçio das lettras em Portugal. Meio do século XYiii alé o fim.

A civilisação e as luzes que a geram, tinham- se estendido do sul para o norte. A corrupção que após ellas vem em seu marcado período, as fora apagando, ou enncvoando ao menos, na mesma direcção. De sorte que pelos fine do XVII século o meio-dia, que havia sido berço da illustração da Europa, quasi se cnnoitava daa

202 HISTORIA DA LÍNGUA

trevas da ignorância, as quaes pareciam voltar como em reacção para o ponto d'onde partira a primeira acção da luz que as dissipara.

O norte, que mais tarde se havia allumiado, progredia no emtanto: as boas letras, as artes, as sciencias floreciam na Inglaterra e por quasi toda a Allemauha. Milton, Descartes, Newton e Linneu brilharam ao septentrião da Europa; e nós meridionaes estudávamos as catl/egorias e as sumnms, aguçávamos distincções, alambicáva- mos conceitos, retorcíamos a phrase no discur- so, torcíamos a razão no pensamento.

Porem a face do mundo estava começada a mudar: as antigas barreiras que a politica e os preconceitos erguiam entre povo e povo quasi de- sappareciam; as mutuas necessidades, e até o mesmo luxo, faziam quasi indispensável preci- são as permutações do commércio; e o commér- cio fraternizou as nações.

Reciprocamente se estudaram as linguas, ge- neralizou-se esse estudo: então é que exactamen- te os sábios começaram a ser de todos os paizes: os bons livros pertenceram a todas as linguas; e verdadeiramente se formou dentro de todos os estados um estado que (sem os inconvenientes

li DA POESIA PORTUGUEZa 203

do status in statu dos ultramontanos) com justi- ça e exacção obteve e mereceu o nome de repu- blica das lettras, a qual é uma, universal, e sem perigo de scliisma.

Os effeitos d' esta alteração no modo de exis- tir do universo foram sonsiveis: as luzes não so reverteram (sem retrogradar) do norte para o sul, mas se diíFundiram geraes. A França viu então o século de Luiz XIV; Itália deixou sanc- to Thomaz e os comncetti por melhor pbiloso- pbia e melhor gosto; Hespanha teve o seu Car- los III; e Portugal no reinado d'el-rei D, José subiu á altura dos outros povos, senão é que em muitas cousas acima.

E ainda na reforma da universidade não ti- nham apparecido Monteiros-da-Rocha e os ou- tros portuguezes que d'alli expulsaram a barba- ridade entrincheirada em Coimbra como em sua ultima cidadella da Europa, e ja a razão e o gosto recobravam seu império na litteratura; ja as odes do Garção, as obras do padre Freire e de outros illustres philologos haviam afugen- tado as .silvas, os acrósticos, e os campanudos periodos do conde da Ericeira, regenerado a poe- sia e restituído a lingua.

204 HISTORIA DA MNGUA

Outravez ainda o limitado d'este bosquejo me impede de mencionar outros ingentes que tan- to mereceram da pátria e da litteratura e remo- çaram a perdida língua de Camões. Exige o meu assumpto e o meu espaço que me estreite no círculo poético.

Garção foi o poeta de mais gosto c (por aven- turar uma expressão que não é legitima, mas pode ser legitimada portugueza) de mais fino htcto que entre nós appareceu até agora. Have- rá n'outros mais fogo, outros ferverão em mais euthusiasmo, crearão acaso mais; porem a deli- cadeza de Garção so tem rival na antiguidade. A musa pura, casta, ingénua, nunca lhe desvai- rou: em suas composições ha d'ellas onde a mais aguçada crítica não esmiunçará um defeito. Tal é a cantata de Dido, uma das mais sublimes con- cepções do ingenho humano, uma das mais per- feitas obras executadas da mão do homem. Todo se deu ao género lyrico, especialmente ao Hora- ciano; e n'esse ninguém o excedeu, antes nin- guém o igualou. A ode á virtude, a que se in- titula o Suicídio (que pela primeira vez sai a lume n'esta coUecção) outras muitas que longo fora enumerar, são de uma beUeza, d'uma cor-

E DA POESIA PORTUGUEZA 205

recção, d'um acabado (como dizem os pintores) que difficilmente se imitará, tarde se chegará a igualar.

Não da mesma sorte António Diniz, que mais arrojado, mais pomposo, menos correcto e ele- gante, assim correu mais caudalosa, porem me- nos pura torrente. Em quanto lyrico, tem ras- gos pindaricos verdadeiramente sublimes; mas o todo de suas odes é em demasia ornamentado; e ellas entre si peccam amiúdo de monotonias o repetições. Talvez o jugo dos consoantes, que tão desnecessariamente se impoz, o acanhou a isso. Mas nas anacreonticas é elle sem disputa o primeiro poeta portuguez, e digno rival do an- cião de Teios. No género bucólico também nos deixou mui bonitas cousas, nenhuma perfeita. Porem a verdadeira coroa poética do Diniz Tha- lia lh'a teceu, que não outra musa. O Hyssope é o mais perfeito poema heroicomico de seu gé- nero ' que ainda se compoz em lingua nenhu- ma: se no castigado da dicção o excede o Lu- trin; no desenho da obra, na regularidade do

' Digo He íeu gp.ncro, porque o Orlando furioso também é heroicomico, mas doutro genoro.

200 HISTORIA DA LÍNGUA

edificio, na imaginação, foi o discípulo de Boi- leau muito alem de seu grande mestre: e com mais exacção se diria de um e outro o que de Camões e Tasso presumpçosamente disse Voltai- re: que se a imitação d'aquel]e fizera este, a sua melhor obra era essa. O palácio do génio das Ba- gatellas, a conversa do deão na cerca dos capu- chos, a ressurreição e vaticínio do gallo assado, a caverna d'Abracadabro serão, em quanto hou- ver gosto, estudados como exemplar pelos litte- ratos, lidos e relidos sempre com prazer per to- dos os amigos das artes.

Após estes vem o virtuoso e honrado Quita, a quem pagou a pátria com miséria e fome as immensas riquezas que para a lingua e littera- tura de seus versos herdou. Um pobre cabellei- reiro, a quem as musas que serviu, os grandes que com ellas honrou nunca tiraram do triste officio, pôde de sua baixa condição social alevan- tar-se do primeiro grau litterario, que acaso lhe disputam ignorantes ou presumpçosos, nenhum homem de gosto deixará de lh'o dar.

Este é em meu humilde conceito o nosso me- lhor bucólico: tomo a liberdade de contrastar a opinião commum, porque o meu dever de crítico

E DA rOESlA POTITUGUEZA 207

me obriga a ennunciar lealmente o meu pensa- mento. Tenho para mim (e fico que acharei quem me siga se de boa quizerem entrar no exame) que a immensa cópia de composições pastoris, as quaes não são riqueza, mas desper- dício de nossas musas, ou peccam por empoladas, por inverosímeis, por baixas, por demasiado na- turaes, por sobejo elevadas. Um meio termo dif- ficilimo de tocar, de n'elle permanacer, um sty- lo singelo como o campo, mas não rústico como as brenhas, são dos mais difficeis requisitos que d'um poeta se podem exigir. Se tem ingenho, custa-lhe a moldar-se e a retc-lo que não suba mais alto que a difícil medida, e raro deixa de a exceder, de perde r-se do bosque e acabar em jardins cidadãos e conversas do damas e cava- lheiros o que começara no monte ou na várzea entre pastores e serranas.

Nem Virgílio d'ahi escapou, nem Sannazaro, nem Camões; Gcssner sim, e depois de Gessner, o nosso Quita. Não digo que não tenha defeitos, ainda em seu género pastoril; mas a boa e hon- rada crítica falia em geral, louva o bom, nota o mau, porem não faz tymbrc em achar defeitos e erros na menor falta para se rcgosijar da censu-

208 HISTORIA DA LÍNGUA

ra. Grandes homens, grandes erros: a natureza da mediocridade é cingir-se a tristes preceitos para esconder sua mesquinhez: porem de taes nunca fallou posteridade. Horácio e Boileau fo- ram atrevidos quando lhes cumpriu, e despreza- ram regras e arte quando os chamou a nature- za, e lhes mostrou o sublime. Philinto, que os sabia de cór, também se levantou acima das re- gras, e nunca foi tamanho. E todavia foi elle o maior poeta de seu século: mas os grandes in- genhos não contraveem a lei, sâo superiores a ella, e são eUes viva lei.

Mui distincto logar obteve entre os poetas portuguezes d'ésta epocha Cláudio Manoel da Costa: o Brazil o deve contar seu primeiro poe- ta, ' e Portugal entre um dos melhores.

Deixou-nos alguns sonetos excellentes, e riva- lizou no género de Metastasio, com as melhores cançonetas do delicado poeta itahano. A que di- rige á lyra com sua palidonia imitando a tão conhecida do mesmo Metastasio a Nice, Grazie air ingani fiioi, póde-se apontar como exccUente modêllo. Nota-se em muitas partes dos outros

* Em antiguidade.

E DA POESIA PORTUGUEZA 209

versos d'elle vários resquícios de (jongorismo e aíFectação seiscentista.

E agora começa a litteratura portugueza a avultar e enriquecer-se com as producçoes dos ingenhos brazileiros. Certo é que as magestosas e novas scenas da natureza n'aquella vasta re- gião deviam ter dado a seus poetas mais Origina- lidade, mais differentes imagens, expressões e stylo, do que n'elles apparece: a educação euro- peia apagou-lhes o espirito nacional: parece que receiam de se mostrar americanos; e d'ahi lhes vem uma aíFectação e impropriedade que quebra era suas melhores qualidades.

Muito havia que a tuba épica estava entre nós silenciosa, quando Fr, José Durão a embo- cou para cantar as romanescas aventuras de Ca- ramurú. O assumpto não era verdadeiramente heróico, mas abundava em riquissimos e varia- dos quadros, era vastissimo campo sobre tudo para a poesia descriptiva. O auctor atinou com muitos dos tons que deviam naturalmente com- binar-se para formar a harmonia de seu canto; mas de leve o fez: so se estendeu em os monos poéticos objectos; e d'ahi esfriou muito do gran- de interesse que a novidade do at^sunipto c a va-

14

210 HISTOKIA DA LÍNGUA

riedade das scenas promettia. Notarei por ex- emplo o episodio de Moêma, que é um dos mais gabados, para demonstração do que assevero. Que bellissimas cousas da situação da amante brazileira, da do heroe, do logar, do tempo não poderá tirar o auctor, se tam de leve não hou- vera desenhado este, assim como outros painéis?

O stylo é ainda por vezes affectado: la sur- dem aqui alli seus gongorismos; mas onde o poeta se contentou com a natureza e com a sim- ples expressão da verdade, ha oitavas bellissimas, ainda sublimes.

Depois de Diniz o logar im mediato nos ana- creonticos pertence a outro Brazileiro.

Gonzaga mais conhecido pelo nome pastoril de Dirceu, e pela sua Marilia, cuja belleza e amores tam célebres fez n'aquellas nomeadas ly- ras. Tenho para mim que ha d'essas lyras al- gumas de perfeita e incomparável belleza: em geral a Mariha de Dirceú é um dos livros a quem o publico fez immediata e boa justiça. Se houvesse por minha parte de lhe fazer algu- ma censura, me queixaria, não do que fez, mas do que deixou de fazer. Explico-me: quize- ra eu que em vez de nos debuxar no Brazil soe-

E DA POESIA PORTUGUEZA 211

nas da arcádia, quadros inteiramente europeus, pintasse os seuá painéis com as cores do paiz on- de os situou. Oh! e quanto não perdeu a poesia n'esse fatal erro! se essa amável, se essa ingénua Marilia fosse, como a Virgínia de saint-Pierre, sentar-se á sombra das palmeiras, e em quanto lhe revoavam emtôrno o cardeal suberbo com a purpura dos reis, o sabiá terno e melodioso, que saltasse pelos montes espessos a cotia fugíu como a lebre da Europa, ou grave passeasse pela orla da ribeira o tatu esquamoso, ella se entretivesse em tecer para o seu amigo e seu cantor uma grinalda nuo de rosas, não de jas- mins, porem dos roixos martyrios, das alvas flo- res dos vermelhos bagos do lustroso cafozeiro; que pintura, se a desenhara com sua natural graça o ingénuo pincel de Gonzaga!

Justo elogio merece o sonsivel cantor da infe- liz Lindoya que mais nacional foi que nenhum do seus compatriotas brazileiros, O Uraguay de José Bazilio da Gama é o moderno poema que mais mérito tom na minha opinião. Scenas na- turaos mui bem pintadas, de grande e bella exe- cução descriptiva; phrase pura e sem affecta- ção, versos naturaos som ser prosaicos, e quan-

212 HISTORIA DA LÍNGUA

do cumpre sublimes sem ser guindados; não são qualidades communs. Os Brazileiros principal- mente lhe devem a melhor coroa de sua poesia, que n'elle é verdadeiramente nacional, e legítima americana. Mágoa é que tam distincto poeta não limasse mais o seu poema, lhe não desse mais amplidão, e quadro tão magnifico o acanhas- se tanto. Se houvera tomado esse trabalho, de- sappareceriam algumas incorrecções de stylo, al- gumas repetições, e um certo desalinho geral, que muitas vezes é belleza, mas continuado e constante em um poema longo, é defeito.

Muito ha que os nossos auctores desempara- ram o theatro: eisahi o faceto António José, a quem muitos quizeram appeUidar Plauto por- tuguez e que sem duvida alguns serviços tem a esse titulo, porem não tantos como apaixonada- mente lhe decretaram. Em seus informes dra- mas algumas scenas ha verdadeiramente cómi- cas, alguns dictos de summa graça; porem essa degenera amiúdo em baixa e vulgar. Talvez que o Alecrim e Mangerona seja a melhor de todas; e de certo o assumpto é iminentemente cómico e portuguez: hoje teria todo o mérito de uma comedia histórica: e se fora tractada no ge-

E DA POESIA PORTUGUEZA 213

nero de Beaumarchais, produziria uma excellen- te peça.

VII

Epocha, segunda decadência da língua e litteratura; gallicismo e traducções.

A' volta este tempo se formou a academia das scieucias de Lisboa pelos generosos esforços do duque de Lafões. Esse corpo scientifico, de quem tanto bem se augurou para a lingua e lit- teratura nacional, nem fez tudo o que d'eUe se esperava, nem uma parte mui pequena do que podia e lhe cumpria fazer: mas nem foi inú- til, nem, como alguns tecm querido, prejudicial. E todavia sua força moral não foi bastante para vencer um mal terrível que no tempo do sua creação se manifestava, mas que depois, cresceu e avultou a ponto, que veio a tornar-so quasi indestructivel.

Este mal foi o gallo-mania, que sobre per- verter o caracter da nação, de todo perdeu o acabou com a combalida linguagem: phrascs barbaras repugnantes á Índole do idioma, ter-

214 HISTORIA DA LINGUÀ

mos hybridos, locuções arrastadas, sem elegân- cia, formaram a algaravia da moda, e prestes in- vadiram todas as provincias das lettras. Estudar a lingua materna, como aquella em que falía- mos e escrevemos, é dos mais difficeis estudos, ha mister longa e porfiada applicaçao. Que bel- la invenção para a ignorância e para a preguiça não foi esta nova linguagem mascavada e de furtacôres, que todos podiam saber sem fadiga, cujas leis cada-um moderava e arbitrava a seu modo, alterava a seu sabor com tam plena liber- dade de consciência! Foi a religião de Mafoma: propagou-a a incontinência, a soltura, o desen- freio do appetite. Desprezaram-se os clássicos, apodaram-se de ignorantes, de rançosos; e os que não ousavam, por algum resto de vergo- nha, desacatar assim as honradas cans dos nossos mestres, sahiram então com o banal e ridiculo pre- texto de que ninguém podia le-los pelas maté- rias que tractaram; que tudo eram sermões, vi- das de sanctos, historias de conventos, de fra- des. Vergonhosa desculpa! Comquê as décadas de Barros, que foi talvez o primeiro que intro- duziu com feliz execução o stylo clássico na historia moderna, são chronicas de conventos?

K DA POEiSlA PORTUGUEZA 215

Fernão Mendes Pinto, o primeiro europeu que escreveu uma viagem regular da China e dos extremos d' Ásia, são vidas de sanctos? E d'es- sas mesmas %idas de sanctos, quantas d'enas são de summo interesse, divertida e proíicua leitura! A vida de D. Fr. Bartholomeu dos Martyres tem toda a valia das mais gabadas memorias histó- ricas, de que hoje anda cheia a Europa, e que ninguém taxou ainda de pouco interessantes. Quando outra cousa não contivesse aquelle ex- cellente livro senão a narração do concilio de Trento, a viagem e estada do arcebispo em Ro- ma, já seria elle uma das mais curiosas e im- portantes obras do século XVI. E D. Francis- co Manuel de Mello, e Rodrigues Lobo, e Ca- mões, e grande cópia de poetas de todos os gé- neros, — tudo isso são sermonarios, vidas de sanctos?

Miséria é que o geral dos portuguezes jurou nas palavras de quatro peralvilhos que essas ca- lumnias apregoavam: passou em julgado que os clássicos se não podiam ler, e ninguém mais quiz tomar o trabalho nem sequer de examinar se sim ou não assim era.

ÍJ'cstc estado de cousas apparcceram em Por-

216 HISTORIA DA língua

tugãl dous homens extraordinários, ambos do- tados pela natureza de prodigioso ingenho poé- tico, Francisco Manuel e Bocage. Aquelle, fi- lho da eschola de Garção e Diniz, cultivou mui- to tempo as musas clássicas, e imbuido no gosto da antiguidade, ja imitador e rival de Ho- rácio e Pindaro, começou a ser conhecido em idade madura. Este, quasi desd'a infância poeta, appareceu no mundo em toda a eíFervescencia dos primeiros annos, ardente cantor das pai- xões, enthusiasta, agitado do seu próprio natu- ral violento, rápido, insofirido, sem cabal instruc- ção para poeta, com todo o talento (raro, espan- toso talento!) para improvisador.

Ambos começaram imitando os grandes mes- tres de seu tempo, seguindo cada- um em seu gé- nero o stylo e gosto adoptado e geral desde a restauração das letras no meado do século. Mas não são ingenhos grandes para seguir, senão para fundar escholas: ^nem tardou muito que cada um, per seu lado, não sacudisse todo jugo da imitação, e seguisse livre e rasgadamente um trilho novo. Bocage a quem seu fado, por mais aventureira lhe fazer a vida, levou ao antigo theatro das glórias portuguezas, voltando d' Ásia

E DA POESIA PORTUGUEZA 217

foi recebido em Lisboa entre os applausos dos muitos admiradores que tinha deixado na vi- ril infância de seu talento poético. Augmentou- se esta admiração com os novos improvisos do joven poeta, com a extrema facilidade, com o mui sonoro de seus versos. O fogo de suas ideias ateou o enthusiasmo geral; a mocidade inflamou- se com o nome de Bocage: de enthusiasmo dege- nerou em cegueira, em mania; nâo lhe viam defeitos; menos eUe em si mesmo. Ninguém duvidava que os improvisos dos cafés do Rocio eram superiores a todas as obras da antiguida- de, e que um soneto de Bocage valia mais que todos esses volumes de versos do século de João III. e do de José I. Esta era a opinião commum da mocidade; e tam geral se fez, tantas vezes a ouviu repetir o objecto de tal idolatria, que for- ça era que a accreditasse, que com ella se desva- necesse e desvairasse.

Isso lhe aconteoeu. O temperamento irritá- vel e ardentíssimo de Bocage o levava natural- mente ás hyperboles e exagerações: essas eram as mais admiradas de seus ouvintes; requintou n*ella8, subiu a ponto que &e perdeu pelos cspa- çog imaginários de sua crcação phantastica,

218 HISTORIA DA LÍNGUA

abandonou a natureza, o a suppoz acanhado ele- mento para o génio. Mais elle repetia eternida- des, nnmdoíi, ceos, espheras, orbes, fúrias, gorgo- nas; mais dobrava o applauso; mais delirava elle, mais o admiravam. Ao cabo, nem elle a si, nem os outros a elle o intendiam. ' A par e passo que as ideias desvairavam, desvairava também o stylo, e emfim se reduziu a uma continuada antithese, perpétuos trocadilhos, tours-de- force, pulos, saltos, rumpantes, castelhanadas, com que se tornou monótono e (usarei d'uma expressão de pintor) amaneirado.

A metrificação de Bocage, julgam-na sua me- lhor qualidade; eu a peior; ao menos, a que peio- res effeilos causou. Não fez elle um verso duro, mal soante, frouxo; porem não são esses os úni- cos defeitos dos versos. As varias ideias, as di- versas paixões e aífectos, as distinctas posições e circumstancias do assumpto, do objecto, de mil outras cousas, variada medida exigem; como exige a musica vários . tons e cadencias. A mes- ma medida sempre, embora cheia e boa, o

* Assim lhe suecedeu, principalmente em muitos dos, por natureza e essência, hypertlolicos elogios dramáticos; gé- nero de composição estravagaote e tj^uasi sempre ridiculo.

E DA POESIA rORlTGUEZA 219

mesmo tom, embora afinado, a mesma harmo- nia, embora perfeita,— o mesmo compasso, em- bora exacto, fazem monótona e insuportável a mais bella peça de musica ou de poesia. E taes são os versos de Bocage, que nos pretendem dar para typo seus apaixonados cegos: digo cegos, porque muitos tem elle (e n'esse numero que conto) que o são, mas não cegos. Imitar com o som mechanico das vozes a harmonia intima da ideia, supprir com as vibrações que podem fe- rir a alma pelo órgão dos ouvidos, a vida, o mo- vimento, as côrcs, as formas dos quadros natu- raes, eisahi a superioridade da poesia, a vanta- gem que tem sobre todas as outras bellas artes: mas quam difficil é perceber e executar esse dc- licadissiino ponto! Poucos o conseguiram: Fran- cisco Manuel foi entre nós o que- mais finamen- te o intendeu e executou, mas nem sempre, nem cabalmente.

Porem nos intervalos lúcidos que a Bocage deixava o fatal desejo do brilhar, n'alguns ins- tantes que, dospossesso do demónio das hyperbo- les e anthiteses, ficava seu grande ingenho a 808 com a natureza c cm paz com a verdade, en- tão se via a immensidade d'essa grande alma, a

220 HISTORIA DA LÍNGUA

fina tempera d'esse raro ingenho que a aura po- pular estragou, perdeu o pouco estudo, os costu- mes desregrados, a miséria, a dependência, a sol- tura, a fome. Muitas epistolas, vários idílios marítimos, algumas fabulas, e epigrammas, as cantatas, não são medíocres títulos de glória. Dos sonetos ha grande cópia que não tem igual nem em portuguez, nem em língua nenhuma, d'uma força, d'uma valentia, d'uma perfeição admirável. O resto é pequeno e pouco. A lin- guagem é pobre; ás vezes fácil, mas em geral escaca. Sabia pouco a língua; a força do gran- de ínstincto lhe arredava os erros; mas as belle- zas do idioma, as e ensina o estudo. As traducções de Ovídio, Delille e Gastei são pri- morosas.

Mas de traducções estamos nós gafos: e com traducções levou o ultimo golpe a litteratura por- tugueza; foi a estocada de morte que nos joga- ram os estrangeiros. Traduzir livros d'artes, de sciencias é necessário, é indispensável; obras de gosto, de ingenho, raras vezes convém; é quasi impossível fazê-lo bem, é míngua e não riqueza para a litteratura nacional. Essa casta de obras estuda-se, imita-se, não se traduz. Quem assim

E DA POESIA PORTUGUEZA 221

faz accomoda-as ao character nacional, dá-lhes côr de próprias, e não veste um corpo estran- geiro de alfaias nacionaes (como o traductor), mas a esse corpo feições, gestos, modo, e Ín- dole nacional: assim fizeram os Latinos, que sempre imitaram os Gregos e nunca os traduzi- ram; assim fizeram os nossos poetas da boa ida- de. Se Virgilio houvera traduzido a Iliada, Ca- mões a Eneada, Tasso os Lusiadas, Milton a Je- rusalém, Klopstock o Paraizo perdido; nenhum d'elles fora tamanho poeta, nenhuma d'essas línguas se enriquecera com tam preciosos monu- mentos: e todavia imitaram uns dos outros, e d' essa imitação lhes veio grande proveito.

Esta mania de traduzir subiu a ponto em Portugal, e do tal modo estragou o gosto do pu- blico, que não lho não agradavam, mas quasi não intendia os bons originaes portuguezes: a poesia, a litteratura nacional reduziu-so a mo- nótonos sonetos, a trovinhas d'amores, a insípi- das enfiadas

De versinhos anõcs a anans Nerinns.

Tam baixos nos pozoram os admiradores o imi-

222 HISTORIA UA LÍNGUA

tadores de Bocage, a quem justamente a critica stigmatizou com o nome de elmanistas,— e de el- manisrno sua afFectada esctola. N'elles se mostra- ram exagerados os defeitos todos do enthusiasta Elmano, sem nenhum dos grandes dotes, das brilhantes qualidades do poeta Bocage.

Alguns ha coratudo de quem esta asserção não deve intender-se em todo o rigor da phra- se. João Baptista Gomes, auctor da Castro, mostrou n'ella muito talento poético e dramáti- co. D'entre os bastos defeitos d'essa tragedia sobresahem muitas bellezas. Desvaira-o o ehna- -nismo; derrama-se per madrigaes quando a aus- teridade de Melpomene pedia concisão, força e naturaHdade; perde-se em declamações, extra- vaga em legares communs, inverte a dicção com antitheses, destrói toda aillusão com versos amiúdo s.esquipedaes e entumecidos; mas per meio de todas essas névoas brilha muita luz de ingenho, muita sensibilidade, muita energia de coração; predicados que com o estudo da lingua que não tinha, com a experiência que lhe falle- cia, triumphariam ao cabo do mau gosto do tem- po, e viriam provavelmente a fazer de João Bap- tista Gomes o nosso melhor trágico. Atalhou-o

E DA POESIA PORTUGUEZA 223

a TOorte em tam illustre carreira, e deixou or- phão o tteatro portuguez que de tamanho talen- to esperava reforma e abastança.

Mas em quanto Bocage e seus discípulos ty- rannizavam a poesia e estragavam o gosto, Fran- cisco Manuel, único representante da grande es- chola de Garção, gemia no exilio, e de la com os olhos fitos na pátria se preparava para luctar contra a enorme hydra cujas innumeras cabeças eram o gallicismo, a ignorância, a vaidade, to- dos os outros vicios que iam devorando a littera- tura nacional.

A sua epistola sobre a arte poética e lingua portugueza, pôde rivalizar com a de Ho- rácio aos Pisões : força d' argumentos , elo- quência da poesia, nobre patriotismo, finissimo sal da satyra, tudo ahi peleja contra o monstro multiforme.

Que direi das odes? Minha intima persuasão é que nunca lingua nenhuma subiu tam alto como a portugueza na lyra de Francisco Manuel. Que ha em Pindaro comparável á ode a Afon- so d' Albuquerque? onde ha poesia sublime, ele- gante, immensa como seu assumpto, na dos no- vos Gamas? se o patriotismo fali asse alguma

224 HISTORIA DA LÍNGUA

hora aos degenerados netos de Pacheco e Albu- querque, que poderia elle dizer-lhes igual áquel- la inestimável ode quo se intitula Neptuno aos portuguezes? E quando a liberdade troa na es- pada de Washington, submette os raios de Jú- piter ao sceptro dos tyrannos aos pés de Fran- klim, ou tece pelas mãos de Penn os laços de fra- terna união! Que immenso, que gi-andioso é o cantor de tamanhos objectos! Quando nas odes a Vénus, a Marfisa, a Mareia voltando inopinada^ no hymno á noite se requebra em amoroso jubi- lo, ou se enternece de saudade, todo é graças e primores de Hnguagem, de imaginação, de stylo, de delicadeza, de inimitável poesia. No género Horaciano não é elle tam puro e perfeito como Garção, mas nem intendeu menos nem imitou peior o seu modelo.

Entre as epistolas ha muitas admiráveis: dos contos e fabulas, alguns com elegante sal e chis- te. As traducçõcs do Oberon de Wielland, da Guerra púnica de Silio Itálico, mas sobre todas, a dos Martyres de Chateaubriand, são thesou- ros de linguagem e de poesia.

Nenhum poeta desde Camões havia feito tan- tos serviços á lingua portugueza: so per si Fran-

E DA POESIA PORTUGUEZA 225

cisco Manuel valeu uma academia, e fez mais que ella; muita gente abriu os olhos, e adquiriu amor a seu tam rico e bello, quanto desprezado idioma: e se ainda hoje em Portugal ha quem estude os clássicos, quem se não envergonhe de ler Barros e Lucena, deve-se ao exemplo, aos bra- dos, ás invectivas do grande propugnado r de seus foros e liberdades.

Nos últimos periodos de sua longa vida afrou- xaram as enérgicas faculdades d'este grande poeta, e excepto a traducção dos Martyres (que assim mesmo tem seus altos e baixos) quasi tu- do o mais que fez é tibio e morno como de um octogenário se podia esperar. O nimio temor de comiueter gallicismos, a que tinha justo e sanc- to horror, o fez cahir em archaismos, e affecta- ção demasiada de palavras antiquadas e excessi- vos hyperbatos. Não são porem estas faltas, nem tantas nem tamanhas como o pregoou a inveja e a ignorância.

Muito honrosa menção deve a historia da lin- gua e poesia portugucza a Domingos Maximiano Torres, cujas éclogas rivalizam com as de Quita e Gessner, cujas cançonetas são, depois das do Cláudio Manuel da Costa, as melhore* (juí! temos.

226 HISTORIA DA LINOUA

Foi este muito intimo de Francisco Manuel, mas tenho por mui exagerados os elogios que d'elle recebeu.

António Ribeiro dos Santos, honra da magis- tratura portugueza, foi imitador e emulo de Fer- reira: poucos ingenhos, poucos characteres, pou- cos stylos ha tam parecidos; se não que o auctor dos coros da Castro era muito maior poeta, e o cantor do grande D. Henrique muito melhor me- treficador. Esta ode ao infante sábio, algumas ou- tras a vários heroes'")ortuguezes,algumas das epis- tolas, e especialmente os versos que lhe dictava a amizade para o seu Almeno, são d'uma elegância e pureza de linguagem raríssima em nossos dias.

Este Almeno é Fr. José do Coração de Jesus, missionário de Brancannes, ([ue traduziu os pri- meiros livros das methamorphoses de Ovidio em excellente, requissimo, puríssimo portuguez, mas em maus versos: e ainda assim, alguns d'elles são feHzes: é de estudar, de versar com mão di- urna e noctiiniii esse começo de traducção para quem quizer conhecer as riíjuezas de uma lín- gua que compete, emparelha, vence ás vezes, a sua própria máe laiiuu.

E DA POESIA PORTUGUEZA 227

Duas ou três odes d'este virtuoso e erudito pa- dre sao mui bonitas.

Nicolau Tolentino é o poeta eminentemente nacional no seu género: Boileau teve mais força, mas não tanta graça como o nosso bom mestre de rhetorica. E de suas satyras ninguém se pode escandalizar; começa sempre per casa, e primei- ro se ri de si antes que zombeteie com os outros. As pinturas dos costumes, da sociedade, tudo é tam natura], tam verdadeiro! Confesso que de todos os poetas (juc meu triste mister de critico me tem obrigado a analysar, único é este em cuja causa me dou por suspeito: tanta é a paixão, a cegueira que tenho polo mais verdadeiro, mais engraçado, mais bo)n homem de todos os nossos escriptores. Aquelle bilhar, aquella funcção de Imrrinhos, aquelle rha, aquellas despedidas ao cavallo deitado á margem; o memorial ao princi- pe, o presente do pcriim, são bcUezas que so nãt> admirarão atrabilarios zangãos em perpetuo es- tado de guerra com a franca alegria, com o in- génuo gosto da natureza.

De José Anastácio da Cunha, que das mathe- maticas puras nos deu o nielhoi' curso que ha cm toda Europa, d'cs3C infeliz ingcnho (que ta-

228 HISTORIA DA LÍNGUA

lento houve ja feliz em Portugal?) a quem não impediam as rectas de Euclides, nem as curvas de Archimedes de cultivar também as musas; de tam illustre e conhecido nome que direi eu senão o muito que me pcza da raridade de suas poesias? Todas são philosophicas, ternas e re- passadas d'uma tam meiga sensibilidade algu- mas, que deixam n'alma um como echo de har- monia interior que não vem do metro de seus versos, mas das ideias, dos pensamentos. Toda- via ha mister le-lo com prevenção, porque (provavelmente estropiada de copistas) a phra- se nem sempre é portugueza de lei.

O padre A. P. de Souza Caldas, brazileiro, é dos melhores lyricos modernos. A poesia biblica, apenas encetada de Camões na paraphrase do psalmo super Jlumina Bahylonis, foi per elle ma- ravilhosamente tractada; e desde Milton e Klo- pstock ninguém chegou tanto acima n'este gé- nero.

A cantata de Pygmalião, a ode O homem sel- vagem são excellentes também.

Aqui me cai a penna das mãos: o estádio livre para a critica imparcial acabou. Nem posso continuar a exercê-la sem temor, nem o faria

E DA POESIA PORTTGUEZA 229

ainda assim, pois não quizera ver revogadas minhas presumidas sentenças pela severa pos- teridade, quasi sempre annuUadora de juizos contemporãos.

Não posso todavia fechar este hreve quadro sem patentear a admiração, e o indizível prazer que me deu o poema do Passeio do snr. J. M. da Costa e Silva, cuja existência tinha a infelicidade de ignorar (tam pouco sabemos nós portuguezes das riquezas que temos em casa !) e que não sei que tenha que invejar a Thompson e Dehlle, se não for na pouca extensão e, acaso dirá mais se- vero juiz, em algum verso de demasiado Elma- nismo. Quanto a mim, folgo de me lisongear com a esperança que seu auctor lhe dará a amplidão e mais (poucos mais) retoques com que ficará por ventura o melhor poema d'esse género.

Apczar dos motivos referidos, pedirei uma vé- nia mais para mencionar como um poema que faz summa honra ao nome portuguez, a Medita- ção do snr. J. A. de Macedo, ([ue tem sido cen- surada por quem não é capaz de intendê-la. Não sei eu se ella tom defeitos ; é obra humana, e de certo lhes não escapou ; mas sublimidade, cópia

230 HISTORIA DA LÍNGUA

de doctrina, phrase portugueza, e grandes ideias, lh'o negará a cegueira ou a paixão.

Cita-se com elogio o nome do sur. J. F. de Castilho, joven poeta que se despica da injuria da sorte que o privou da vista, com muita luz de iugenbo poético.

Os dytJnmmhos do snr. Curvo Semedo, as odes do snr. J. Evangelista de Moraes merecera grande favor do publico : os apologos do snr. J. V. Pi- mentel Maldonado são por certo dignos da maior estimação.

As Georgicas do snr. Mozinho d' Albuquerque fizeram a reputação poética de seu benemérito auctor. Alguns lhe adiaram deraaziada erudi- ção, e queriam mais poesia e menos soiencia. Eu por mim tomarei a confiança de pedir ao illustre poeta, em nome da litteratura portugue- f.a, que na segunda edição de sua tam útil obra não desdenhe de aproveitar os muitos e riquis- sinaos ornatos que habilmente pode tirar de nos- sas festas ruraes, de nossas usanças (como feiras, serões, desfolhas, etc), das descripções de nos- so formoso paiz; com que decerto fará mais na- cional e interessante seu estimável poema. -Não sei tambom se alguma incorrecção typographica

E DA rOESIA POKTUGUEZA 2'il

OU de cópia, seria origem de varias imperfeições e impurezas de linguagem, que os escrupulosos (e em tal matéria é forçoso se-lo) lhe notam.

Tudo isso esperamos os portuguezes que nos vangloriamos de sua excellente obra, ve-lo me- lhorado na próxima edição que ja reclama o ]m- blico impaciente.

A litteratura portugueza não mostra presente- mente grandes symptomas de vigor: mas ha mui- ta força latente sob essa apparencia; o menor sopro animador que da administração lhe venha, ateará muitos luzeiros com que de novo brilhe e se engrandeça.

l-IM.

índice

DAS OBRAS CONTIDAS NESTE VOLUME

Pag.

Retrato de vénus ". . . . 7

Notas 63

Ensaio sobre a historia da pintura . . 93

Bosquejo da historia da poesia e língua

pobtugueza 167

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