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o RISO AMARELLO

SILVA PINTO

O RISO AMARELLO

POLÍTICOS, IMPOLITICOS E OUTROS

LISBOA

LlvKARiA DE A. M. Pereira Editob

ÈO,tS Jiua Augusta L 2, 64

1897

LISBOA

Typographia e Stereotypia Moderea

// Apóstolos //

i8g7

CARTA AO MARIUS

Quando fores um homem, depois de amanhã, que vocês vão depressa, pe- quenitos de hoje! mal terás tempo para seguir estas transformações do meu riso nos domínios do espectro so- lar. Saberás como soube amar-te este sujeito a quem dissolvias o mau humor, d simples nota crystallina da tua tro- ça; hasde, uma vez por outra, consa- grar,—que tu és de santa indole,— al- guns minutos, saudoso, á memoria do teu amigo sombrio; mas «o que aht vem» não te dará tempo para demora- do culto dos Mortos,— nem a ti, nem aos pensantes da tua quadra, Vae ser

gravCj meu filho: vão tocar-se os dois ex&emos, de desespero agudo e de bálsamo divino.., retardado. Mas, em- fim, tu e os melhores dos teus hão de saber que não vale a pena o Egoism.o. Digo-lhes que o Sacrficio é o melhor ^ nas concessões que Deus fez ao Ho- mem, nos limites da inspiração divina. E' como te diz a minha, pratica, meu amado filho !

O ariso amarello^ tem pois de sei^-te explicado hoje, porque não terás tem- po para destrinçar o meu pensamento.

Amarello é o desfecho da velhice muito fatigada^ muito exhaustãj e conscien- temente fora do seu tempo. tu a China j que, ha pouco, em guerra com um inimigo infe^Horissimo, Jugia, porá não ser batida e era batida quando não cedia o terreno. E' o pai:- do <íamarel- lor> em papagaios e em saiotes e em desconsolo da vida. Está velha e no desenxabido sabor da sua velhice: tu- do <iamarello!í> Aas profundas do in- ferno catholico deve existir um (n salão amarello^: o retiro dos velhos condem- nados, fatigados de soffrer, e dos ve- l/ios diabos cançados de caustical-os.

Visões retrospectivas e visões do futu- ro j sug gestões, ambiente, horizontes^ toda a mixordia d'alma d'esses bana- bóias lúgubres e phosphoricos íudo amarello : o amarello baço-mixto das velhas caveiras e dos bramidos agoni- santesf

Amarellas a degeneração das rosas e a face do tísico^ amarello o sol vencido pelo nevoeiro do temporal^ amarellos o depauperamento , o pavor, o desfallecimento , amarellas a fadi- gada desesperação, a descrença a mor- talha da alma; e, com o tempo ^ todo o preto e todo o branco esses dois lu-

tos amarellecidos como a relva que vae morrer ! Amarella a pobre luz que agonisa sobre a face amarellada do esquecido moribundo, e amarellas as aguas do mar ameaçadas pelo fu^ ração! E no embate pavoroso ^ a que tUj quer^idissimo, hasde assistir, verás como são amarellas as faces dos Des- herdados, por mais que o incêndio as aqueça^ e as faces do Christo crucifi- cado, por mais que as aqueçam os ex- ploradores !

E aqui tens o comoj ao termo doesta medonha travessia j onde deixei tudo

o que não ê teu em coração e em cé- rebro,— o meu riso de hoje é o ariso amarellof), que eu deponho, em phan- tasias de colortstaj ahi onde se espe- lham a rosa e o azul que são da tua face e dos teus olhos, Marius queridis^ simo e do meu coração filho!

1897. Silva Pinto.

os QUE FURAM

^^^OMo quer que eu hontem á noite encon- ^^ ti-asse no largo do Ralo o meu amigo Alberto, que eu conheci pequenito e que está um homem, perguntei-lhe, com interesse, ao vêl-o triste:

. Que diabo tem você, n'essa idade, para o tornar murcho? Faltas de massa? Coisas da pequerrucha ?

E vocô? Você lambem é u/n iristc ! (diz- se assim, á moderna).

Eu nâo sou lai o que você diz. Eu não sou triste: sou um homem sem paladar. Gas-

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tei-0 em fomes, em ceias no Café Ingl 'j em Madrid e em iscas na rua da Atalaya. Hoje, não olho para os petiscos, porqup. não lenho gosto. Ólho apenas para os sujeitos que co- mem, ou que fazem por comer, e, porque ache assumpto para risota nos processos dos comi- lões e dos gulosos, passo a vida a rir-me, mas rio-me por dentro, para não offender a visinhança. Agora mesmo estou eu rindo de você, e ninguém o ha-de dizer : pois não é assim i

Decerto. O amigo tem cara para santo.

É um geito que me ficou de pequeno. São contos íargos... Mas, diga-me esse des- gosto I

Foi no largo do Rato, passeando desde a rua das Amoreiras, á de S. Filippe Nery, que o Alberto me disse :

*

O que me cáustica é eu sair a meu pae, o qual JQ sairá a meu avô. Sou d'uma raça in- feliz, de homens leaes e bons. Não é que nós sejamos tolos. Por mim, succede-me e

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succedia aos meus vêr claramenle o cami- nho por onde se chega á mesa da paparoca, mas não lómo por ella, nem pelo diabo! E' preciso um certo feitio hein? para furar nos ajuntamentos. Ora, tenho eu observado que ha duas espécies de furadores : os que dispõem de força e os que não podem com uma gata pelo rabo. Os valentes empurram, affastam para o lado, mettem debaixo dos pés, dão o seu sopapo, fazem berrata, mettem me- do. Os fracalhòes teem a sua politica : não empurram, agarram-se á casaca dos valentes, d'alli apanham uma pizadella, dalii um cas- cudo, soíTrem troça, seu pontapé no cú, mas vão indo : são callados, dóceis, são de borracha, fazem-se invisiveis á força de se re- duzirem, evitam as pessoas que nOo llies ser- vem, para se prenderem ás importantes as que podem ajudar um homem. Se lhes não permitlem que acompanhem comocreados, vão como alcoviteiros, vão até como micróbios na gola do casaco do conselheiro... Você ri-se por fora? I E' que deitou por fora. Você tem graça, o

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que vem a ser a essência da razão. E' pena que não seja um maroto !

Pois essa é que é a minha desgraça ! Dô-me você um cigarro!

Tenho cachimbo. Quer uma cacliimbadat Acceitou. Estava linda a noite. Fomos indo

até ás Amoreiras, e senlamo-nos n'um banco. Alli, o Alberto proseguiu .

A' meia volta, o fracalhão chega ao da meza, e ás vezes chega antes do valente .que se demorou a dar sopapos. Então éque é comer sem se esquecer de ir furando para CS logares de cima, que ó onde estão as pe- tisqueiras finas. No entanto, aqui me tem você, filho e neto de escrupulosos e refinado em caganifancias. Metto-m.e no apertão ; vem d'alli um bóias a piza-me, vem outro e dá-me com o cotovello. Desato á bolacha, mas não insisto : venho para a rua e desafio os sujei tos. Isso vem elles?! Perco a vez, chamam- me asno e chego a convencer-me de que o

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SOU. Por que diabo é que eu bato com os pés, podendo andar mansinho como os ecclesias- licos? Porque c que eu falo alto, podendo bal- buciar como CS esfalfados? Porque ó que eu dou pontapés, em vez de os levar sem dar cavaco"? Porque é que eu, em vez de desaba- far com você, que me não pôde ajudar, não estou fazendo a corte a um ministro, ou a um financeiro que venha a puxar por mim?!

Mas, diga-me cá! Dispondo o Alberto de bons pulmões e de bons pulsos, porque é que não fura á valentona?

Porque tenho nojo dos concorrentes : cada marmanjola ! Uns cheiram o calaboiço, outros a estrebaria. Se eu lhe contasse histo- rias de certos freguezes. . . <>

Não conte, que sei demais.

Sim, você deve saber, mas não lhe tem aproveitado. Você também tem pulsos e pul- mões. Porque G que você não se lança nos aperlos?

Eu sou d'uma natureza contemplativa. Em pagando á tenda, ao padeiro, etc, ponho- me a olhar para as estrellas, se c de noite.

C)

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De dia, óllio para os creancas e para os flores. E' um processo seguro de limpar a alma, cheia de micróbios das croias. A essas praticas in- nocentes furto alguns instantes no dia, não para fazer ai^tc, mas para fazer critica. E' feitio.

Ha-de ganhar muito com isso!

A quem o diz! Olhe que eu vejo a situo ' cão, e trago sempre nos ouvidos uma phrase de um poeta, nosso amigo, que é um grande talento e um homem honrado e que nunca será outra coisa. Diz elle «que a Honra é uma palavra inventada pelos patifes, para nos comerem a todos.»

Esso c de estalo e talvez venha a ser- vir-me ! Hei-de pedir licença a meu avô, mais a meu pae homens Icacs e bons!

os SIMPLÓRIOS E OS SIMPLES

IfITtA. três dios surpreheudeu-me,— como quem 2^L diz; um telegramma de Famalicão, no qual se registrava a expansão jubilosa dos minhotos ao verem a rica pêra do «nobre ministro da guerra,» o qual ministro vae manobrar alli ás margens do Ave. Antes de mais, dei-me a pensar no rio Ave e em Fa- malicão e na estrada de Guimarães e na Por- tella e na aldeia de 5. Miguel de Seide, onde Gamillo Castello Branco, n'ura accordo de es- quecimento e de reconciliação, me hospedava carinhoso e fídalç^o a destoar, no trato como

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nas leltras, da ralé sarrafnral dos estúpidos rancorosos de liontem e de uns incríveis reben- tos—ainda mais porcos de hoje. Foi um bom parenthesis de uraa irresistivel e doce eleva- ção, em coração e em espirito, o que me veiu do convivio.com o meu único mestre e, agora, nas officinas da nossa Prosa, o único que ao termo do meu trabalho eu terei admi- rado n'um crescendo que attinge a adoração. Sombra formidável, sombra do Invencivel, do Inconfrontavel, que me prende o espirito áquel- las paragens de luz e áquelle periodo de re- dempeão! Felizes e descuidadas horas! Era ao tempo em que um quarteto de bandidos fazia mão baixa sobre os meus cobres e a minha descuidada boa-fé : contos largos para um li- vro que hade ter vida, sob o titulo Saldos de contas. Não nos azedemos extemporânea men- te^ e esperem os dois ladrões sobreviventes!

Depois, pensei no telegrarama. Com que> então, muito alegres os simplórios do meu

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querido Minho? Caramba! que goslo aos «dirigentes» converter em manobras as ulti- mas pingas de suor e de sangue de tão joviaes banaboias ! a minha creada Maria Augusta, uma beirôa de Oliveira do Hospital, se me revelou menos patusca, embora camponeza, quando em minha casa ouviu referencias ás manobras e á alegria dos minhotos. Com um ar dorido se me quedou a pobre de Christo, como que a saborear fel de tristez^as. E eu, que muito estimo a honesta e trabalhadora ra- pariga, perguntei-lhe ([ue vinha a ser aquillo das suas amarguras.

Falou-me assim, salvo o pittoresco da sua prosódia, que eu reduzo ao vulgar de minha litteratura :

«Ai, meu senhor! Essas festas eslão-me a fazer pensar n'outras que houve na rainha província, ha coisa de anno e meio. Toda a gente foliou, e a minha gente também. De en- tão para cá, até parece castigo, foi um des- carrilamento! Meu pae paga de renda de umas fazenditas cento e cincoenta alqueires de mi- lho. Pois, e=Le anno passado, a colheita não

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deu para melade^ e apertara m-llie com umas decimas alrazadas, e foram penhorados os boi- sinhos. Somos uns poucos irmãos; não havia pão, e meu pae muito aíllicto. Eu vim a ser- vir para Lisboa, e toda a minha soldada vae para a terra, que eu, ao menos, tenho aqui que comer.»

Tal se explicou a simples Maria Augusta, ([ue não collabora na jovialidade dos simplo- 7^108 e que se afadiga no honrado desempenho da sua tarefa, porque aos irmãositos e ao pae não falte, ao menos, o pão. E, se lhe falam de alegrias dos simplórios, á conta das maroscas dos de cima, deriva-se da resignação á amar- gura. Perigoso contingente critico o da in- dignação dos simples: afíirma-lh'o quem tem visto e observado attentamente como nas al- mas ingénuas a surpreza se transforma em me- ditarão, a meditação em critica, a ciitica em condemnação. . . Cuidado com os filhos da Ma- ria Augusta !

os QUE LADRAM

^Tembro-me, de quando em quando, pou- ^^^ cos vezes, de um sujeito que não vive em Lisboa e que deu sérios desgos- tos, nos tempos da sua residência entre nós, aos transeuntes seus conhecidos. Imagine o lei- tor que tinha relar-ões com o homem e sup- ponha que o encontrava na rua, e que n'essa manhã calçara uns sapatos novos. Bem. A primeira coisa que elle lhe dizia era, n'um tom feroz e sarcástico, como que rangendo os dentes:

De sapatos novos, hein? Sempre ha cada pedaço d'asno \

12 o RISO AMARELLO

E O leitor, se não conhecia bem a fundo o f regue z :

Você cslá doido?

E elle, ergueijdo a bengala .

Doido, seu pulha?! Você lem a pouca vergonha de andar de sapatos novos, como se fosse alguém, c eu ando aqui com os dedos de fora ! seu canalha !

E a questão acabava mal, ou ridiculamente pela fuga do leitor.

Os cuidados que lhe mereciam os bifes co- midos pelo próximo e as calças novas por esse próximo vestidas e os dinheiros que este ga- nhava — e tudo para execrar, ameaçar e ás vezes, mesmo, espancar os laes fclàeSj ^ da- vam para um poema heroe-comico, terminan- do n'um hospital de doidos. Era phenomenal aquelle typo; mos, emlim, tinha uma atenuan- te: a pobreza. Era um invejoso, mas necessi- tado.

Peior, de torpíssima raça, com um dos pés de baixo no Ridículo e o outro na Ferociiade,

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é aquelle galeote que, cheia a pança, esprei- ta a cada momento a situação do próximo, e faz, a cada hora, contas minuciosas dos pro- váveis rendimentos d'esse individuo. Se os ga- nhos são insufficientes para alimentação d'esse próximo, a besta-féra exulta é interessante coisa I orgulha-se da pobreza do outro, alar- deia as privações dos seus correligionários dos verdadeiros luctadores ! dos hom.ens de uma fé! Quer os seus companheiros /)?//'o.?.- e não concebe a puma a dos cutros se- não entrelaçada com a miséria!

Não phontasío. Está-me lendo a besta-féra, que perdoaria ao destino, se eu lhe arrancasse a pelle com a condição de eu perder parte do meu pão. Um artista, que é «ma gloria de Portugal, dizia-me um dia, ahi n'uma rua de Lisboa : «Você não imagina o descrédito mo- ral que me tem trazido a circumstancia de eu não sofTrer necessidades! Se eu passasse fome e andasse com as botas rotas, seria admiravel- mente ornamental e até me perdoariam o ta- lento í»

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.. Um dia d'estes, um compadre da besta- féra dizia-me com Loda a naturalidade : «Vo- cê está ganhando bastante: trabalha para jor- naes, para editores^ tem um empregosito. .. O que tale é que tudo isso ó mal pago.» Este o que tale deu-me para meditar e para me rir por dentro, duas horas bem puxadas. O que vale é que talvez todo o meu traba.ho, que me tem feito cair doente, não me chegará heiíi? para pagar, sem afflição, a minha renda da casa. Se a besta-féra, mais os com- padres, se convencem de que cu ponho de parte, sem difficuldades, o dinheiro para o se- nhorio e para uni fato novo e para um brinde ao Marius, no dia dos seus annos, desatam outra vez, a conspii'ar para me tirarem as minhas fontes de receita. Que é para eu ser um puro!

...O meu leitor ingénuo ignorava que se pôde ser tão canulha, á face do Creador? Pois não lia duvida nenliuma!

o BEZERRO..

^f^M jornal querellado pelo Burnay, ou em

.^•) vésperas de o ser, desata a protestar con- tra as pretensões do ricaço e omnipo- tente. Erróneo protesto! Se o bezerro d'ouro, com a respectiva burra^ não é o senhor do mundo, falta á verdade o Mephistopheles e falto eu l O jornal ingénuo descrê da possibi- lidade de o bicho comprar a justiça. Olhe que compra .' Um amigo meu, que por trez ve- zes foi rico, deixa-se empobrecer para gosar sensações especialissimas que me fazem rir quando olle m'as refere sorrindo. Vejam vo" cemecês isto :

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^

Em período de felicidade que nuo ha ou- tra senào a que vem da burra, vê-se grego o nosso homem para o fim de acommodar na dispensa os vilualhas que lhe offerecem os compatriotas. E' o de Portalegre a fornecel-o de chouriços; é o de Amarante a remetter-lhe do Tierdasco : é o das Caldas a convidal-o com cavacas; e não ó islo... O Onofre dro- guisla propõe-lhe que acceite em deposito uns dinheiros, para os fazer render a seu modo ; o senhorio acha melhor que elle conserve em seu poder a renda de cinco annos; a Soleda- de offerece-lhe uma paixão lardeado de des- interesse; os cocheiros de praça descobrem -se em toda a linho, oo verem-n'o, e chamom-liie sr. conde, e o José do talho resume a im- pressão geral quando diz, oo vôl-o passar: «Aquelle é que está c.. para o mundo!»

Aborrecido o homem, ao vêr de cócoras, por humildade, toda a humanidade da sua pá- tria— como dizia o Jayme, resolve deixar- se empobrecer. Começam ellas: acabouse a remessa dos chouriços c o tratante de Porta- legre é como se não exislisse ; idem a respei-

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to do verdascOj e de cavacas a mesma histo- ria .' O Onofre não llie falia de dinheiro, senão para se queixar da crise; estala-lhe o senho- rio á porta, ao romper a manhã de 20 de maio, mais a 20 de novembro. A Soledade faz con- tas de cabeça e desinteressa-se com um bur- ro muito rico muito amiguinha do burro! e os cocheiros voltam-lhe as costas, e o José do talho commenta, ao vél-o passar: Estou- mc c... para elle!» E' o coice do asno.

Nunca este homem quando rico, solicitou dos poderes públicos a nesga de um favor pa- ra qualquer conhecido, que não recebesse o favor inteiro e o contra-pezo de gentis offer- tas. Pediu uma vez um logar de chefe de es- quadra policial para um pobre diabo. O diabo foi feito commissario, e ao protector foi oíTe- recido o logar de governador civil. Quando pobre nem cabo de policia! Nunca pediu, rico, a absolvição de um réu, que a não obti- vesse... Veja agora o jornal querellado se o bezerro pede uma condem nação !

Dizia o ingénuo Castello Melhor: «Não h^ dinheiro que compre o que mais vale: o amor

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dc uma mulher.» Não? Vão com essas áquclle mono de quem diz a amante, pelas costas : «Que besta e pelo outro lado : «Rico amiguinho Nào se compra, hein?!

A massa faz de um poltrão um Nero no circo a vencer os gladiadores. Tudo accor- do ! Conheço um menino que esbofeteia os creados, a vintém por bolacha. Os creados gostam e os pães do menino acham-lhe dis- posições dominadoras. Hade ser um alho o indèz ! Como elle descobriu no homem as vir- trtdes do cão: humildade cariciosa, em troca do osso! E notaram, a propósito, como os cães ladram aos pobres e acariciam os ricos? Nào está o jornal querellado a vêr um jury perfeitamente canino?

Omnipotente, o bezerro até pode ser bom ! Pôde, por capricho, soccorrer os afflictos. Quem não tem recursos positivos pôde of-

o RISO AMARELLO i^

ferecer lastimas. A' similhança de Deus, leva- rá coices em troca dos benefícios ! Ha quem julgue desconsolador ser lisonjeado e altribuir ao seu dinheiro as lisonjas que recebe : tem doces compensações : adivinhadas pelo José do talho : c . . para o lisonjeiro mundo !

Comprar justiça no seu poiz... Pois que outra coisa é vencer um pleito? Que outra coisa é ter advogado, ter procuradores, chi- canear, ter dinheiro para tudo isso? Dizia um dia d'estes a uma demandista um juiz muito conhecido: «A sua causa está ganha.» Éra em véspera do julgamento. O adversário da nf.ulher encontrou-a na rua e disse-lhe : «Sou rico^ a sua causa está perdida.» Vinte e quatro horas depois, o juiz condemnava a mu- lher.

Com que então nào é omnipotente o be- zerro ? !

E' fazer pouco das burras I

ELEIÇÕES

f^,ui-ME, um dia d'estes, a visitar um velho t^ operário que me conheceu creançaj

^ vão trinta annos. O operário está ho- je reformado, com vencimento e um terço, e diz o bom velho «que abençoado seja o filho do seu patrão,» o qual filho sou eu.

Como quer que seja, fui-me a procurar o meu velho operário que ha trinta annos previra tudo isto: querem crer? Dizia-me o dia- bo do homem, ás horas de descanço, tardes de verão, á borda do lago e os peixes a faze-

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O RISO AMARELLO

rem boquinha contra a superfície da agua : «Fique vossemecê com isto que eu lhe digo : Seu pae é miguelista e tem razão. Não é que o D. Miguel fosse coisa boa, mas é que estes diabos são peiores. Não enforcam a gente, mas esfolam-nos e fazem de nós pouco mais ou menos, e olhe que dão cabo de tudo isto!»

então o meu amigo operário achava que elles dariam cabo de tudo. Mais previdente em seus juizos do que outro amigo meu que foi ministro, que sabe muita Philosophia e muita Historia, e que me dizia vae em seis mezes :

«Y. sabe que tenho sido um homem hon- rado, como particular e como homem publico. Pois bem, tenho medo eh ter remorsos: remorsos de não haver feito como outros, que trataram do seu futuro, espatifando o do paiz. E' assombroso como eu suppuz ingenuamente que tudo isto se aguentaria pelo século XX em fora ! Pois, meu amigo, deram-nos cabo de tudo estes diabos h

Aqui está como o operário e o estadista se encontram em commentarios e até em phra-

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ses, Irinla annos volvidos sobre a previdên- cia. . . do primeiro !

Farto de «homens superiores,» fui-me pois a palestrar com o mestre tintureiro aposenta- do. Encontrei-o no jardim da Patriarchal, a gosar as caricias do sol e a fazer a critica da jardinagem. Disse-me elle logo que me acer- quei: «Estava eu aqui a ver estes amores- perfeitos^ e tinha-me lembrado de seu pae, que no fim da vida gostava muito de flores. (Me- lancólico). Eu também estou gostando ! O senhor, que sabe muitas coisas, mentira I) não me explicará esta ratice

Essa ratice, meu velho, é um documento que o bom Deus lhe mostra, e que vossemecê hade encontrar na secretaria do Paraiso. E' um attestado que lhe direitos à entrada como alma de justo. Não se faz ideia exacta do que será um homem, pelas manifestações da sua infância; mas é fácil acertar com o que um homem foi peias provas involuntárias fornecidas pela sua velhice. Vossemecê foi um

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enérgico trabalhador e um homem honrado; physica e moralmente fallando, foi d'uma canna, como dizem os do norte. Pois bem^ a sua for«;a liquida em bondade, e a amisade As flores é uma demonstra<2ão de um passado de justiça. Alli tem aquelie velhote, que parece não dar pelas flores e que está ahi a profa- nal-as com o hálito da bebedeira mal cozida. E' um velho galopim eleitoral, borrachâo, que abandonou o seu ofíicio, para viver de expe- dientes furta cores. Foi mau companheiro da mulher, foi mau pae, . não foi amigo de pes- soa alguma, não se sacrificou. Para alli está a moer desesperos sobre a descrença nos ho- mens, e o meu amigo, também descrente, acha nas flores compensações e carinhos. Foi para a gente boa que o Creador as fez. Os homens veiidem-n'as á Vaidade, ao Luxo, á Prostitui- ção. Está percebendo o meu velho amigo?

Percebo. E o senhor não lhes tem ami- zade?

A quem?

A's flores.

Ainda não estão bem apertadas as nossas

o RISO AMAEELLO

relações, porque ainda não consegui libertar- me de certos vicios : por exemplo^ a queda para as coisas politicas salvação do paiz, etc.

Aposto que se interessa pelas eleições!

O que me interessa n'este momento é a opinião do meu amigo sobre as eleições.

A minha opinião?! O senhor está ca- i;oando ?

Falo-lhe sério. A dos politicas eu co- nheço : é a d'aquelle velho piteireiro que para alli móe desesperos. Quero ouvir uma opinião limpa. Despeça-se dos amo.res-perfeilos, e va- mos a discutir o caso I . .

Sentados n'um banco da Patriarchal, elle disse e eu ouvi o que se vae lêr ...

2Í> o RISO A3rARi:LL0

II

Tínhamos ficado, o meu velho operário e eu, a contas com as eleições, alli em cima, n'um banco da Patriarchal. . .

Temos nós a votação monarchicha e a votação republicana. No caso dos eleitores mo- narcliicos, - pois que ainda os ha, não vejo sequer apparencias de vantagem n'uma vota- ção contra este governo e em proveito dos outros amigos. Em primeiro logar, estabe- lecido que o eleitor é um sincero partidá- rio da monarchia, deve desejal-a pura, O que ahi temos é o puríssimo regimen monarchico- constitucional, com a bella Carta violavel» com a engorda dos crentes, e vamos com Deus! com uma cerla Jideltdade dos sócios. Fidelidade: quero eu dizer o que se com os Regeneradores fora do poder e sempre de

o RISO AMARELLO

boas falas para o rei, emquanto que os outros

os da travessa da Espera á meia volta na opposição berram contra o «ostracismo» e ameaçara o rei com as cóleras populares e ba- ralham e confundem as violações da Carta com as liberdades publicas. Palavra d'ho"nra, se me desse um dia para monarchico mas estou velho para luxos! seria regenerador. Embir- rei sempre com furta-córes.

Accresce outra vantagem na conservação de nm governo : ó a de nos livrarmos do outro

que hade vir. Entre dois ruidos o que é produzido pelos homens que mastigum e o que produzem os que amolam os dentes cauza- me terror o segundo e o outro inspira-me con- fiança. Ha placidez e beatitude no homem que está comendo e uma certa ferocidade no que espera a vez. Um regala-se e o outro rala-se. E' da Natureza.

...Pelo que toca aos eleitores republicanos^ mantenho o meu parecer, expresso em ca-

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vaqueiras de rica sinceridade : não me parece que hajam muito a ganhar nos tenebrosos mys- terios da urna. Ou teem vontade, ou fingem têl-a. No segundo caso, não falemos n'isso. No primeiro^ seria legitima a impaciência ao termo de tanta marcha infructifera no mes- míssimo terreno. Trez, quatro deputados, bem ou mal falantes; sempre a minoria de Lisboa, o Porto a abster-se e o resto do paiz a encar- neirar-se e a batatear-se. . . Se ao menos fosse um tribuno, um d'estes que varrem a feira dos escândalos, teriamos um espectáculo excitante, mas apenas bacharéis ou simples (Jiscr/rs ! Não me cheira a «fogo sagrado ;♦ é chamusco !

Se a entrada dos republicanos n'uma campa- nha eleitoral tem por fim, como diz o outro, con- tar os forças, eu entendo que o resultado é ne- gativo. Contra a monarchia temos hoje os re- publicanos e os monarchicos descontentes e descrentes; sómma dois terços do paiz. Apu- rase n'uina eleição vinte mil votos republica- nos, desde o Algarve ao Minho, mercê das falcatruas do recenseamento e dos abusos da

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dependência e das abstenções dos que não vão por alli. Que diabo de contagem de for- ças vem a ser a tal contagem ? E para que a produzem? Para animar os da monarchia, ou para desfallecimento dos crentes? Diz-me o Quinhones vidraceiro que são coisas da dis- ciplina partidária e que é preciso respeitar a disciplina. Cautelia ! que dos abusos da disci- plina é que saem as Cartas modo de dizer freios, e se é certo que «o habito não faz o mon- ge», não ha duvida que «o freio faz a besta Dado, porém, que seja disciplina, pôde pa- recer outra coisa. Pôde parecer que no terre- no dos protestos se soífre de moléstias de nota: quero dizer que á sombra das crenças do partido se trata de arranjar pen- nachos. O diabo seria o caso de reagirmos contra os da Cana, para encontrarmos o equi- valente na Republica que hade vir. Equivalen- te em fumaças bem entendido. Mas não pô- de ser: a orientação dos correligionários de Lisboa é «disciplina partidária.» estão os do Porto, que não votam, que mandam bugiar a urna, contra as prescripções disciplinares,

30 o EISO AMAEELLO

mas que fazem um 31 de janeiro. Que, pelos modos, o «sangue nas veias» também é con- tra a disciplina. . .

Tal é o resumo do meditado parecer que o meu velho operário me desenvolveu sobre as eleições geraes, n'um banco da Patriar- chal. Não quero abrigar n'uma abstenção o meu juizo sobre o parecer do bom velho. Vo- to com o excellente homem, não indo á ur- na porque os meus principios nada teem a esperar d'ella ; e dado que eu fosse um mo- naichico, votaria nos que governam, para me livrar dos outros.

CACHORROS!

^^Á está de ha muito, no planeta Júpiter, ^^^ acho eu, aquelle bom homem que foi na sua terra um escândalo vivo. Quinhentos contos herdou do tio o pobre Fortunato, afora o estabelecimento de queijos do Rabaçal de um aroma que lembrava o Roquefort, e mais trez gallegos da esquina. A' volta de dez an- nos eram uma vez os quinhentos contos do Fortunato e de queijos nem aroma!

Austeramente liie saltaram nas desordens da vida e nas incorrecrões e nos desperdicios todos os contribuintes dos quatro bairros de

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Lisboa caloteiros inclusive. E^ circumspe- ctos, raciocinavam que com o bello rendi- mento de uma tal fortuna, o Fortunato pode- ria muito bem fazer para o mundo o que to- dos nós fazemos uns para os outros. Contava- se historias das devassidões do homem e uma croia mãe de dois filhos resultados de seis escândalos, três porfiliio, dizia-lhes: «Olhem para aquelle horror!» Com o que muito se horrorisavam os filhos da mãe.

Conheci o homem. Era de uma serenidade inalterável, que eu mal podia comprehender sem auxilio dos afuroadores de temperamen- tos. Só um dia o vi excitado, n'umas ameaças de epilepsia... Logo lhes digo o caso.

Ora, este bom homem teve um amigo ve- lho que fez o impossivel por lhe amenisar os últimos dias de viver aspérrimo. Com esse amigo assisti eu ao enterro do infeliz, mui- to concorrido o funeral do homem, e foi no

o RISO AMARELLO 33

regresso do cemitério, e nas visiniianças d'el- le, que o sujeito me fali ou assi/ji, como se di- zia nos romances do outro século :

«Veja Tocê esta concorrência. Parece ura divertimento, e talvez seja uma expiação. Vo- cê mal pôde conceber o numero de censores que o pobre Fortunato encontrou, á conta de amar as mulheres e de amar os prazeres da meza. Todos os impotentes, incluindo os cas- trados, e todos os dispepticos se associaram para a critica acerba. Coisa parecida cora ura analphabeto a censurar os gozos da leitura e com uma toupeira a trocar da luz do sol ! Mas emfim, c isso o menos da miséria. O negru- me está nos apodos, nos motejos, nas impre- cações dos Catões a quem o pobre Fortunato valeu em todas as crises rcaes ou phantas- ticas da vida. Deliciosos patifes assoberbados pelas tyrannias do senliorio, do alfayate, do medico, do pharmaceutico e até do arma- dor de enterros, alli foram, á loja de quei- jos do Rabaçal, pedir ao Fortunato que inter- viesse nos casos, contra a desventura. E elle, que conhecia o mundo e que não era um im-

3

34 o RISO AMAKELLO

becil, acudia a tudo. Xão sabia di^er que não. «Arrastaram-ifo para a politica alguns ami- gos^ uns sinceramente, outros por intuitos de exploração. Continuava a dar. O seu fadário ! E quando lhe transnriitliam as reflexões seve- ras dos próprios politicos, a quem elle descon- tava lettras de irrisório valor, o Fortunato pu- nha no espaço os olhos abstractos. Parecia re- fugiar-se, d'um pensamento importuno, n'uma ideia de libertação superior. Deu até ao fim e depois do final. Este accrescimo ao desfe- cho pòz á vontade a critica dos "èeus devedo- res : Era claro que com tal viver, o homem tinha de acabar assim l. .

Prometti dizer-lhes como se deu o caso de eu um dia encontrar o Fortunato immerso em grave espanto. Foi á conta de um homem se lhe dirigir^ a restituir-lhe um dinheiro que eile lhe emprestara. A originalidade perturbara os principios d'aquelle scepiico protector sobre a amável espécie dos cachorros humanos...

TrrtTfíTtrnTftTíTfrffrttTfi^

CAUSTICACOES

/'^WERO hoje lembrar a quasi todos os meus ^^Ê. leitores e contar aos raros que a igno- rara a seguinte anedocta popular, e logo lhes direi porque :

Uma tarde calmosa de agosto, por uma es- trada nos arredores de Lisboa, caminhavam um velho saloio, um rapazito, neto do velho- te, e um burro, pertencente aos dois. Vinham, ou iam, a as três creaturas do bom Deus, e aconteceu, por tal motivo, que diversos tran- seuntes, animados pelo espirito critico que enaltece os nossos compatriotas, produziram commentarios d'esta ordem:

36 o EISO AMAEELLO

Qual será mais burro: o de quatro pés, ou 03 dois companheiros? Então, viram, o velho e o petiz a e o jumento sem carga de espécie alguma ? I

Parece até, Deus me perdoe I que o bur- ro vae-se a rir dos outros dois!

E assim successivamente, n'um crescendo de ironias acerbas que levaram o vexame ao animo dos dois saloios á imaícem e similhan- ça de Deus. E d'ahi resultou ordenar o velho :

Salta tu, d'alii, para cima do burro ! Seguem seu caminho, e, a breves passos^

surge a critica da razSo impura :

Forte caraello (o velhote!) N'aquella ida- de vai a pé, e o mariola do rapaz escarran- chado no burro I

Grande afinat^ão no juizo do saloio velho. E. . .

Salta d'ahi abaixo, tu ! Eu vou para cima !

Vão, ou vêem andando. E a praso de al- guns minutos:

Ora o estafermo do velho! Repimpado em cima do burro, e a pobre creança a ! Ah ! bom marmelleiro !

o EISO AMARELLO 37

Não ! Essa agora é que me parece pou- ca vergonha ! Anda tu para cima !

Eis os dois escarranchados no quadrúpede, e, para logo, vozes de indignação:

Pouca vergonha ! O pobre animalsito car- regado com aquelles dois marmanjos ! Não se pôde ser burro com similhantes feras !

E o saloio velho para o outro:

Deixemo-nos ir! Quem sabe o que elles diriam, se nós levássemos o burro ás costas?!

Aqui teem os meus amigos a critica popu- lar a carrejar elementos para os alicerces do meu jubilo, em determinadas horas da vida. E' quando o meu amigo Marius me revela a mais firme antipathia pelos trabalhos públicos de jornalista, ou coisa parecida. Fora do auxilio material que me presta o innocente, quando eu lhe peço que me copie algum tex- to, não vejo meio de lhe prender, sequer, at- tenção de breves minutos para as lucubrações da critica ou da phantasia. E' todo para a

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Mechanica e por ahi acima até aos problemas da Engenharia. Hade ser um pratico, e lhe falta convencer-se a tempo de que «o seu pró- ximo» não ó boa prenda. De resto, despon- tando essa excrescência, creio que teremos um homem.

De mim não ouso dizer que seja bem um homem o que terá de dor contas a Deus, e vamos a ellas! N'um estado de indecisão me vou arrastando^ á força de muito lidar com os commentadores que na estrada causticaram os dois saloios. Qual me pede moderação, qual me exhorta a violências; d'alli, um me accu- sa de eu me não cheyar ao rego (textual) em matéria de revolução social, e o outro me censura porque eu excito era demasia os ini- migos da bella Sociedade; ha um sujeito que me escreve : «Felicito-o porque o seu cora- ção pôde ahi, n'esse logar de miséria (Casa de Correcção), proteger muitos desventura- dos'>, e outro, que talvez por tenha algum filho, diz de mim peccador : «Quem defen- de as classes desvalidas não deve gosar um logar do Estado!» Mal imagina o mafarrico a

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espécie de gozos (jue um cidadão frue enlre aquellas paredes quando toma a sério a des- graça dos filhos alheios !

Emfim, quero dizer na minha que a histo- ria dos dois saloios e do burro, mais dos cri- ticos dos três, tem de se ^^e conservar no sentido, para que eu á meia volta me não des- oriente e não para ahi descambar em cy- nico depois de uma vida de canduras. andei a pé, me apeei e pedi a outro homem que montasse, calvaguei á garupa. me falta levar o burro ás costas. Não estou para ahi virado e peco a algum critico possante que nos leve todos três I

^^J'-J^^?^^^^Ij^^S^S-S^J^S^S^'^^

CERTA CLASSE

^I^TÃo é porque a renda das casas, que está ^M= alli á porta, me suggira gritos de afflic- ção, nem porque eu recebesse procura- ção da minha classe, que eu me dei esta ma- nhã a pensar por ella nas injustiças d'este mundo torto.

Hão de ter notado os meus patrícios, sem exclusão dos mais obtusos que são muitos, hão de ter notado que na facô da terra é talvez único este paiz em matéria de protec- ção.

vontade de ser desgraçado, fora da mi-

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nha classe, louvado seja Deus! Vem ali um temporal, que arremessa aos céus ou para casa do diabo, as encapelladas ondas do Ocea- no, e com ellas quatro dúzias de barcos de pescadores. D'estes cidadãos, uns morrem e teem os seus males acabados, outros escapam, para serem proterjidoSj mais as viuvas e os rapazitos dos que morreram.

A bondade nacional toca a reunir e desata- se em benefícios de se benzer um crente. Eram quarenta e oito os barcos naufragados, ve- lhos e a caminho de podres; compra -se bar- cos novos as quatro dúzias e mais uma para os apertos! Viveram sempre mis, ou pouco menos, os pescadores sobreviventes, m.ais as famílias: toca o provêl-os de fateota! Por aqueí- las mãos callosas nunca passou mais de um tostão de cada vez: ahi vão libras! E em toda a linha das gazetas a minha classe faz prodí- gios de reclamo e até vae levar a /nassa à terra dos pescadores !

Manifesta-se uma crise económica, que de- termina economias tezas, oíficiaes e particu- lares. Cessam obras do estado e dos com-

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mendadores brazileiros; e centos de operários acham-se sem o gaiiha-pão e sem o credito na mercearia. Immediatamente, a minha clas- se desata á bordoada aos governos e ameoça- os com a revolução, coisa em que não pen- sam os opprimidos. Abre-se subscripções, for- ça-se a vontade dos ministros, dá-se dinhei- rama por essas ruas, e é um coro de lamentos: «Pobres operários sem trabalho!» Chegam os desempregados a achar talvez hein? que não era pressa a collocação ! . . c

Arde um theatro e ficam algumas deze- nas de espectadores, uma rabeca de um maes- tro e duas meias sujas de uma actriz. Corre voz de alerta e nós estamos de fúria sonorosa e de mão estendida. Paga-se a ra- beca ao homem, veste-se e calca se a mulher das meias; rico beneficio para o Melchiades da flauta, mais outro rico beneficio para o cómico Faustino, e sobre as desgraças abre e agita as azas a inexgotavel Bondade nacional.

Não lhes fallo da tropa que tem a sua re- forma^ nem dos empregados públicos que tam- bém a têem, nem dos homens do campo, que

44 o RISO AMARELLO

lorcaram à sua conta os Brazis. Mas nós estamos para as occasiões funestas.

Acontece, no entanto, que* nos fortes ten- taculos da Crise é empolgado o Jornalismo. Desapparecem uns jornaes, extenuados; outros, còm a venda reduzida, arrastam vida de amar- guras. D'ahi reducção de pessoal e reduc- ção de vencimentos ao pessoal imprescindível. Creio, pelas minhas contas, que ha hoje em Lisboa, nos seus vinte e tantos jornaes, uns cem jornalistas que vivem cVisto. Vivem: co- mo é que vivem? Quem se importa com isso? E a especial dignidade da. classe não permit" te que ella use dos seus recursos, pedindo au- xilio para os seus homens sem trabalho permittindo-lhe e impondo-lhe pedir auxilio para toda a gente em afflicções !

Concebo as restricções impostas por taes melindres. Seria duro que os julgadores de tantos indivíduos assoalhassem perante os que hontem julgaram e perante os que julgarão

o RISO AMAEELLO 45

amanhã as circumstancias dolorosas de gran- de numero dos seus companheiros como se esta classe fosse comprehendida nas leis da fatalidade que assoberbam todas as outras, Comprehendo os escrúpulos e não deixo de perceber o que me está segredando um leitor pratico em difficuldades da vida...

Diz-me elle:

«Seria lógico que uma forte associação de resistência e de providencia os puzesse a coberto das crises.»

tivemos a associação para discutir po- litica partidária e escolas de litteratura. Deu em droga á falta de convicções.

Emfim... sejamos hcmfcitores!

8^

>oeoeí0i0íeceíeíeoí^coo<>íOí0O^

PAO

-ME, um dia d'eslPS, a ouvir ura comício s^f de trabalhadores: o que elles diriam a ^ propósito do pão e de uma postura do lindo amor de camará municipal^ em bene- ficio dos padeiros influentes em coizas d'urna. Por signal, que o commendador Francisco, a ocçultas da D. Genoneva, que não gosta de o \êr com migo (D. Genoveva é conservadora e pinta-se), pediu-me queo auctorizasse a acom- panhar-me. Que desejava, por mera curiosi- dade, ouvir as reclamoções populares, se o povo não exorbitasse, bem entendido! E eu que viesse, que se mexesse!

48 o RISO AMARELLO

Mexeu-se, Fomos.

A breve trecho, esqueci-me do commenda- dor. Foi quando ouvi discutir o pão legitimo; não o pão rhetorico, mas o que se vende na padaria, a 40 reis o meio kilo. Poucos desvios dos oradores, e aquelles mesmo a propósito do pão do legitimo, nfio o da rhetorica, mas o da padaria, a 40 róis o meio kilo.

Foi, por exemplo, quando elles deliberaram pedir explicações aos gors'erno3 sobre e appli- cação dos dinheiros públicos. N'e5te ponto, Francisco tocou-rae de mansinho no braço...

Que temos F

Quero que o meu amigo me explique... -Diga!

Que demónio ha entre o pão que elles comem e. . .

E o que os governos lhes comem? Algu- ma coisa, amigo commendador !

Francisco reflectiu um momento e, por fim, murmurou honradamente :

Sim. Yisla a coisa por esse lado. . .

o RISO A3IARELL0

49

Foi á sahida do comicio que o meu respei- tável vizinho me ponderou em tom solemne :

Uma coisa que eu nunca pude perceber.. .

Diga !

Sobem os preços dos géneros: a mantei- ga, o assucar, o bacalhau, o arroz, etc, e nunca ha novidade. Apenas se mexe no pão, desata este povo a gritar í Parece que não se importa com o resto ! . . .

Eu digo ao meu nobre amigo : o nosso povo importa-se especialmente com o pão, e? melhor do que eu, lhe explicaria o caso o nosso vizinho João da Egoa aquelle dos pe- quenitos. . .

Conheço. Tenho visto vagamente... uns bréjeiretes.

-- Ora, se o vizinho e amigo olhasse menos vagamente para os bréjeiretes, notaria que desde pela manhã até â noite, andam aquelles oito fréguezes de pão na bocca. Constou-me ha tempos que o pae ganha sete tostões por dia; a mce não ganha nada. D'aquelle5 sete tostões

4

o RISO AMARELLO

tem de sair o alimento de dez pessoas, faleota, calçado e renda de caza. O que imagina o meu amigo que alii se come?

Faço ideia : porcarias !

Porcarias não. Come-se pão, oito pães por dia, em açorda^ com um fio d'azeite e um dente d'alho, ou secco nos inlervallos das açordas. Oito pães: isto á dezeseis vinténs sobre os sete tostões... Veja o meu amigo a razão porque o João da Egoa não berra contra os impostos sobre a manteiga e o arroz e o assucar e o ba- calhau — e por que se revolta quando lhe tocam no pão. E' natural que os meninos do meu amigo embirrem com a pan^oada, porque a mamã os leva ao Baléresqui ou á Viole t te a comerem pastellinhos humedecidos com Arin- to; mas os filhos do ^Toão da Ecfoa. . .

Bem bons pastellinhos me parecem ol- les!

Agora é que o commendador disse bem ! Os pequenos são pastellinhos e os pães em- padas... Mas tomem cuidado os amadores com as indiorestões !

A ESCOLA SGEPTICA

^pjrJfÃo se evola o meu espirito ntravez da ida- S^^ de moderna, mais da idade média, ate ir pousar cm sceplicismos gregos. Os da es- cola em actual evidencia são «os da colónia gallaica» como delicadímionle lhes chamam os periódicos, ao passo ([ue chamam «patifes»> nos marroquinos. Esta iniquidade, seja dicto de passagem, é de panno para mangas... Mas^ vamos alli á nossa gente!

Sceplico o André Rubio, natural de Vi ve- ro, provincia de Lugo. Faz a existência no Chia- do, agiotando, alcovitando, etc, por conta da

52 O RIí^O AMARELLO

humanidade afflicta. Em seus torcicolos no es- trada da existência, o André tem con<(uistado materiaes para um edifício de muita ronha, muita resolução, e muito de boa trora que tomaram dois humoristas possuil-a. E' um ho- mem, o André, e dos de espirito catita. Mas é o vulgar nos espirites gallaicos. Burj^os os marroquinos !

Ora, suceedeu-me um dia, por signal de noi- te^ ser eu incumbido por uma das minhas re- lações cordeaes, mas respeitosas, de averiguar se uma determinada senhora da sua amizade teria regressado á sua casa de Lisboa, de uma villegiatura não sei onde. Como quer que eu me sentisse fatigado, destaquei o André Ru- bio â descoberta. Que visse se havia luz na casa, e que, em ultimo caso de duvidas, inter- rogasse o dono de um estabelecimento visinho, apresentando-se-lhe como enviado de uma fa- milia séria para não «comprometter»^ hein ?

Parte o André. Eu instalo me a uma das me- zas do Tavares. Decorre meia hora. Chega o

o KISO AMARELLO 53

André, e da poria da rua me faz um signal de intelligencia. Abeiro-me do sujeito, e eis que elle, piscando-me o olho entre ladino e severo, assim me diz ao espirito apavorado:

«Pôde ir

Posso ir aonde?!

«Vá, que ella está á espera!...»

Ella, quem, hnndido?! Que fizeste tu, mal- feitor? !

Sereno, assim se expressou :

"Xão me pareceu decente ir perguntar ao homem dr. tenda. Bati á porls. Veiu elia mesmo abrir, caramba, que é bem guapa ! Eu disse-lhe que ia saber se ella linha vin- do; perguntou-me da parle de quem eu ia, e eu, para não estar com fingimentos, disse-lhe que da parte do senhor, e que se podia ir agora ...»

E ella?! Ella, que disse, malvado?!

Pòz-se com historias: que lhe parecia im- possivel: que o senhor é um cavalheiro: que ha- via mijstificacion. . . muita leria; mas eu, que conheço mundo, disse-lhe que o senhor gostava muito d'ella e que podia fazel-a feliz...»

54 o RISO AMARELLO

E afinal?

«Afinal, diz que aquella casa eslá ás suas ordens.» £" o costume. .

Ahi eslá o leilor a saborear a minha agonia e a vér como eu descalço esla bota... Pensei, enviei á dama o sórdido gallego com uma carta de explicações sobre a imbecilidade do misera- ,Tel, e podi-lhe mil perdões, etc. Meia hora de- pois, o André chegou á minha presença, com uma carta da graciosa senhora : congralulava- se a mimosa, pela decifração do enygma e agra- decia-me as explicações.

Mais socegado, expliquei ao André a embru- lhada ; e elle, sacudindo a cabeça : «O senhor podia ter aproveitado. Ella agoira é que não ficou contente . .

Outro. D'es5a vez não eram castos os meus projectos. Foi quando eu disse ao André Ru- bio:

N"aquclle estabelecimento ha um homem e uma mulher. Estão quasi sempre juntos, de

o lilSO AMARELLO ^=^

modo que eu... não sei se me entendes... Quando vires que não esLão juntos, vae a cor- rer, chamar-me !

Duos horas depois conversava eu alli... se lhes digo onde era, descubro tudo. Appareceu, correndo, o André, e disse-me :

Agora !

Agora, hein ?

Agora, que está o homem sôsrnho !

Pondo em duvida a sagacidade do André, eis que me enfureço:

Para que quero eu o homem, grande es- túpido ! f

E elle, accendendo um cigarro:

pelo homem, que é o melhor cami- nho... Olhe que tenho visto muito mundo...

Completo I

©í}íí{?íNí^l?^:í;:;;!ít:í-;c:^{?í|ít!~l--4-^!^^Ns^

ELLAS

A ordem, um tanto desordenada, da crea-

^, , cão, a mulher occupa ura dos últimos so-

calcos era baixo. Quando succede a uma das referidas sèr a George Sand, trata de vestir-sede homem, defingir-se homem, e vem a ser um phenomeno : creanças e railitares sem graduação meios preços de entrada 1

Ha bastantes annos que o Vieira de Cas- tro, que Deus tenha, travou com as Farpo?, que Deus haja, uma interessante contenda : o Vieira de Castro a arrumar a sobredita nas va- randas, e as Farpa.-i a convidarem-n'a para a

58 o RISO AMARELLO

frisa. Venceu o Vieira de Castro; tantos argu- mentos produziu contra a supra -citada, que a opinião pôl-a fora da sala.

E metteu-a em si. . .

Cada um de nós tem dentro de si uma fê- mea. E" aquillo dos desalentos, das irritações, das caganifancias. E' aquillo dos despcrdicios: o ordenado gasto em luvas, cm gravatas e em chouriço preto do pastclleiro franccz. E quando a fêijtca sacode os restos da virilidade ([ue se agacham no fundo do individuo, sae-se um su- jeito— de cabeça bicuda e ôcca, de fateota cm figurino, de vadiagem pelo Chiado, de cheiro a esterco no raciocinio e a opoponax na ves- timenta. E' aquelle sandeu que passa a vida a cortejar, da rua ou das janellas, as peccadoras mais ou menos titulares: é o mesmo que á noite, no circo, faz a corte ás mulheres fáceis mesmo nas barbas da familia. E' aquella besta !

Chega a genle a dois terços da vida, e aper- cebe-sc então de que os gastou com a tal su-

o RI80 AMARELLO 5í>

jeita. Não completou o csludo, não concluiu o trabalho, não aproveitou o destino. Sendo por feitio e fundo generoso, teve horas de sordi- dez. Naturalmente corajoso, algumas vezes foi covarde. Sensato, resvalou á imprevidência. As suas escorrencias de parvoíce, de pusilanimi- dade, de depravarão e de egoismo é ella quem as espreme do fundo do seu pobre ser!

Tenho conhecido muitos homens enganados, ou desdenhados pelas mulheres amadas. Em- prazo os especialistas em fèmeologia a que me desmintam quando eu lhes affirmo, alto e bom som, que ainda não houve homem sacri- ficado a outro homem sem que o preferido fosse um inferior, e em tudo inferior ao sacri- ficado! A mulher escolheu o mais rico, o mais refalsado, o mais condescendente, o mais ubru- tado, o mais despótico: nunca escolheu, para a traição, o mais elevado pelo espirito, pelo ca- racter, pela coragem, ou pela dedicação!

Nunca I

Como quem tem vivido, reparando nas bel- lezas da vida, possuo um milhão de documen- tos demonstrativos de um milhão de taes mi-

60 o RISO AMARELLO

serias. Tenho vislo chorar homens forles, di- gnos, illustres, cheios de passado brilhante ou de futuro superior: tenho-os visto chorar, cona o coração esmagado pela santa alliança da mu- lher amada com o herdeiro imbecil, com o cai- xeiro de modas, com o janota de cabeça bicu- da, com o operário borracho, com o lacaio im- mundo. Tenho visto !

Mas... dizia o Garrett: Todas as mulhe- res são más. E sua mãe? pergunta vam-lhe. Essa não era mulher; era uma santa!... Prendo-me, pelo coração, à evasiva do grande homem... Era uma santa a que me fez o brinde da vida. . . e santas d'outro kalendario, são todas as que me teem feito soffrer.

O NOSSO MUNDO

^f''ESTA quadra, do anno que começa, é pra- xe— tenho uma idéa dar e receber demonstrações de affecto, sob a forma (as demonstraçõesj de paios de Castello de Vide, de garrafas de moscatel, de perus e de outros aconchegos gratos a estômago e pala- dar. Mas, acontece que tanto menos se recebe quanto mais se precisa: que o Fa~ Milhões tem o pateo convertido em armazém de gé- neros alimenticios e que o homem que estas linhas escrece receberá apenas billietes de vi- sita. Cà recebi.

<^2 o RISO AMARELLO

Opportunamente me assalta, desde hontem, a recordação de umas visitas que em tempos eu fazia a uma terra de província, onde me demorava umas temporadas e hospedado em casa de utn aiiàrjo. Dava-se o caso de eu tra- zer em Lisboa uma questão judicial, em que era interessado esse amigo, interessado em que eu vencesse. Eu partia de Lisboa socegado sobre as informações a receber, na absoluta certeza de as colher na provincia, diariamen- te e com uma exactidão de barómetro que se preza. Era assim o barómetro :

Chegava eu á terra do meu amigo, e era recebido na estação— carinhosamente. Não devo omitlir fiue eu partia de Lisboa a troco de mil e uma exhortações : «Venha d'ahi ! Mal sabe o gosto que me ! Estará aqui em sua casa ! O que ha ó de boa vontade ! Nfio nos magoe com a suo recusa!» E eu ia saborear as delicias da amisade: apontamentos para a historia da vida. . .

Uma vez chegado ao lar affectuoso, princi- piava eu a orientar-me diariamente sobre a marcha dos meus negócios, muito melhor de

o KISO AMARELLO 63

que se eu esticessc em Lisboa. Almoçava bem, e esperava a hora do jantar para saber... Jantar na meza e logo ao ver a sopa, eu ticava orientadissimo. Se tínhamos feijão com hortaliça, devia seguir-se bacalhau : tínha- mos embargos á minha questão e os meus in- teresses era risco. Se havia gallinha, preceden- do lombo de porco, etc, a coisa corria bem e o desfecho precipitava-se Era infallivel !

Tinha o meu amigo o seu correspondente em Lisboa, que diariamente lhe escrevia so- bre o andamento dos meus negócios. Se elles inm direitos, choviam -me em casa os presen- tes, e na província os petiscos e as attenções. Se eram más as noticias, eu nâo recebia pre- sentes, e passava a bacalhau com batatas. Se precisava, não apanhava nada, se vinha a opu- lência, choviam-me os regalorios. E eu cor- rectamente orientado. . .

Está o lucidissimo leitor applicando o conto. Vão agora os perus e os paios e o moscatel,

<ít o EISO AMARELLO

e o resto das demonstrações positivas, em de- manda dos albergues onde as vitualhas mal teem esparo para se amontoarem; e onde o presunto, ou a caixa do moscatel, ou a caixa dos charutos levaria satisfação^ vae quando muito o cartão idiota, com o cumprimento e o por muitos annos e hortí^l Mas, se a vida é assim!... diz alli o philosopho. Correm para o mar as aguas; vão as paixões sobre os fe- lizardos saciados e que mal chegam para as encommendas; e o commendador Francisco, que é gajoj, deu no dia 30 uma reunião de estalo, a fingir de rico, para apanhar presen- tes no dia 1. E apanhou !

DISCURSO DA COROA

Jlg^.RiSA um meu collega o caso triste de um É!^^ rei ser o único individuo que não pôde physjcamente desaggravar-se de quem lhe offende a mulher. A's vezes, pôde ser ura al- livio, se o rei é de branda natureza, como o rei de Sião o Isidoro Bermudes. Mas, como quer que seja, ha mais duros ossos no árduo officio de reinar. Imagine-se o leitor sisudo e honesto n'esta situação obnoxia e pyramidal : Vae a sua casa um individuo mais ou me- nos vesgo, de mais ou menos escuros prece- dentes, que lhe faz esta imposição, desenro-

o KISO AMARELLO

lando-lhe em cima da mesa do almoço uma costaneira de papel do Prado toda ella a trasbordar de cursivo :

É para você ir lendo.

?

Para se ir compenetrando d'essas verda-

des.

Para depois lêr, sem balbuciações.

Para lér diante de mil pessoas; e depois vem tudo nas gazetas.

Passa o leitor, pelos olhos, o cursivo da costaneira, e berra :

Mas isto é tudo peta!

É claro.

Mas eu hei-de recitar isto?!

Ha de lêr.

Mas é contra o meu decoro!

Não se faça fino 1

Mas é enganar toda a gente!

Ninguém se illude; não lhe cuidado!

Peior ainda ! N'esse caso faço uma tris- tíssima figura!

o RISO AMARELLO

É dos livros.

Não quero !

Que remédio senão querer. . . ? ! ! !

Nem tudo sào rosas e cacadas...

Você está a caçoar commigo?!

Estou sério como um Hintze pingado !

Está-me saltando aos olhos este episodio hu- mano : o leitor pregando com a costaneira na cara do homem e ordenando á creada Maria Cândida que chame da janella um policia para o livrar d'aquelle doido^ quiçá maroto.

Justo !

*

Agora o leitor é rei : Surge-lhe em manhã brumosa um personagem mais ou menos ves- go e de mais ou menos escuros precedentes:

Trago aqui a tal historia...

Venha isso ! E lê:

Que de petas, seu Zé! Que de pantomi- nices !

E dos livros.

68 o RISO AMARELLO

Relações cordeaes com as nações que fazem troça de nós ? !

-Olé!

Eleições livres? !

Como canta I

Moralidade na administração?!

Pois se deixa ver !

Elsperanças de renascimento?!

É como paxaste !

Confiança na malta?!

Chama-se-lhe um figo!

Ah, Zé! que triste e árdua missão!

gozando, que ainda está moço. A vida são três dias, meu senhor!

(Pausa).

E o leitor, que é rei :

E assiste muita gente?

Assim! Assim! Quasi toda a gente.

E ninguém se ri ?

Não, que a fome não deixa.

E os jornaes?

Hade se ir acabando com essa leria... No entanto, deixal-os cantar, como precei tuava o Mazarini I

o KISO AMARELLO ^^

(Pausa).

Ah, Zé! Que árdua missão! Que espiga!

O que : mentir ? !

Não é isso, homem !

Diga !

É não lhe poder quebrar a cara !

É puro Luiz XIV. Vossa raagestade tem a linha. Mas a quadra é de preceitos consti tucionaes. ..

D'accordo !

E vão. A coisa é lida. E ninguém se ri. Que a fome nao deixa, filhos meus !

O

GAZADOIRAS!

^W|nxunciaram as gazetas uma peça que a ve- ^^^^ lha Judie ia impingir aos lisboetas ali no circumspecto palco da Trindade, e algu- mas d'essas gazetas, de alcobaça e monco, fo- ram insinuando que a tal peça não teria pre- cisamente o parfarn de flor de laranjeira, an- tes lhe não faltaria o de alcova de horisontal, Sobresaltei-me pelas filhas dos outros. Gra- ças a Deus, falta-me a desgraça de as ter!

O comraendador Francisco, testemunha do meu sobresalto, disse-me :

Homem ! Basta que os jornaes digam que a peça é uma obscenidade...

72 o RISO AMARELLO

Não diga mais ! Basta que elles o di- gam !

Foi á scena a rica pouca vergonha pois que tudo isto, além de roupa de francezes, é es- tendal da roupa d'esses guias do pensamento humano, e para logo se deu o caso de o thea- tro se encher á cunha. Não fui lá, porque em coisas de impudência theatral observo o que vae no palco, mas o que se passa na sala tem a minha solemne reprovação.

E' também do coramendador Francisco este sentimento, que nos fica bem ao declinar da vida e que tem de nos ser levado em conta, pelo muito que servimos a desmoralisação pu- blica, era dias de mocidade. E era muito de vêr-se a cara do commendador, quando, no dia seguinte, o encontrei na camará dos pares a ouvir o copioso e arrebatado verbo de um dos salvadores d'este paiz.

Bem me dizia você ! bradou o commen- dador, ao lobrigar-me.

?!

Bem me dizia você a respeito dos avi- sos !

o RISO AMARELLO "3

Que avisos? !

Os avisos das gazetas !

n

Os avisos ás famílias, sobre as poucas ver gonhas das peças !

Esteve lá, o commendador?

Isso é uma historia! Venha você para a rua, que eu lhe conto.

O commendador tem receio de polluir o parlamento ?

Não esteja você brincando. A coisa é sé- ria !

Vamos a ouvir essa coisa séria !. .. Foi á beira da estatua de José Estevão que

Francisco me contou as suas ma^uas.

Imagine você que hontem, ao regressar do parlamento minha mulher, com as peque- nas, perguntei-lhe onde tencionava ir passar a noite. Que eu vi-as vestidas para festa.

(Pausa).

Disse-me minha mulher, continuou Fran

74 o RISO AMARELLO

cisco, que, pela sua parto ia aos Caetanos, onde havia não o sei que religioso, e que as peque- nas iriam, com a tia Brites, cantar a casa das Pires.

E' claro que eu approvei, porque fiz logo o meu plano.

?

Formei o plano de ir á tal peça franceza, com a Soledade.

E* justo.

A vida são três dias, meu rico!

Ha quarenta annos que assim penso.

Pois ahi está I Mas vamos ao caso. Saio; vou á Soledade, e convido-a a vestir-se. Pobre pequena ! Fica-me sempre tão grata I

... De que está você a rir-se?

Foi uma ideia.

Yesliu-se a vapor. Fomos. Comprei um camarote e tocai... Felizmente, eu linha-me occultado ao fundo.

Querem vocês vér ? ! . . .

E' isso mesmo! O panno a subir, minlia mulher com as pequenas a entraram no bal- cão I

o RISO AMARELLO

Toma!

Que me diz você á pouca vergonha?

Eu não digo nada, meu amigo I Se eu des- perdiçasse commentarios em palestra, como diabo poderia escrevel-os em artigos ?!

O mais galante foi a troça da Soledade, toda a noite^l

E' moral.

E o que me pôz fora de mim foi a risota da mãe e das filhas, durante o desfilar d'aquel- las indecencias I

Coitadinhas !

Foi isso quG me disse a machona da mi- nha mulher, quando ao chegar a casa lhe pre- guei uma tremenda descompostura.

Conte-me isso!

Eu disse-Ihes que um amigo meu as tinha visto no tal espectáculo, e perguntei-lhe se as suas dccoções consistiam em levar as filhas a uma escola de adultério i

--E ella?

Disse-me, em grande berrata . «Coitadi- nhas! Estão na idade de aprender I São me- ninas cazadoiras!»

76 o RISO AMARELLO

De aprender o que, sua cavallona I ?

«Cavallão será você ! me disse ella. * Você quer que suas filhas cazem, sem conhecerem os rudimentos da sua posição ? !

. . . Que me diz você a esta ! ?

E estavam muitas meninas no theatro?

Mais de cem, e todas cazadoiras, e sabo- reando tudo ! Que diz você a isto V

Digo-lhe que vamos ter obra,

Que obra? !

Vamos ter uma geração de arromba: me- ninas instruidas no ventre materno, e meni- nos também instruidos. . . Com a Judie na Trindade e com o dos carapaus na admi- nistração publica hão de se rir de nós os bré- jeirinhos... O que vale ó que a vida são Ires dias!

^ V-í Ví^ V, -^^ "^^ zy '^^ ^--' "^^ '"^^ "^"^ '^^ '*'^ ^^ ^ '^^ W;^ <- ^ - - W'v \à^ V;'-- V--- w-^ Va/ '^ > '-^■V V

xPtP-J l,- X" ''} l.' Ir Ir \ ?l?\.^J'l?-w^\?x/' Ir Ir -J xr \?l?-w' -J'-J^v7lí

CINZAS

^p'uMA casa que eu frequento ás 9 horas da noite, e onde se faz critica e se bebe vi- nho verde, dividiram-se hontem as opi- niões acerca do carnaval d'este anno, pelo modo que vós ides vêr :

Primeira opinião: «Esle povo é a vergo- nha da Europa. Ha precisamente cinco annos, acabava de lhe cair em cima a historia do ul- timatum inglez, e por instincto de conserva- ção previra uma série de misérias que não deixaram de vir. . . Mas, um mez depois do ul- timatum, principiaram as brincadeiras de en-

o RISO AMARELLO

trudo, e liou^e folia de arromba. Hão de estar lembrados. . .

Todavia, andava nos ares um conjuncto de esperanças. O povo portuguez, acostumado a uma doce panria cerebral e a sentir-se poupa- do pelas catastrophes, vendo em terras extra- nhas os terramotos, as inundações, o cholera 6 as guerras, e conhecendo os casos pelos te- legrammas e pela prosa dos jornalistas, não po- dia conceber, mesmo em horas de atribulada phantasia, que o destino lhe deitasse a unha e lhe aproximasse da beiçòrra molle e babada a taça das provações. E pelo que toca ás altas camadas a mesma dansa : afeitas ás papi- nhas do credito externo, da pachorrice inter- na, das ajudas do Brazil, da intervenção bené- fica da Providencia, das espertezas dos seus po- liticos padres mestres e da coadjuvação dos compadres : nào suspeitavam de mal que nos chegasse !

De repente, vae-se tudo a trambulhões :— O estrangeiro não vintém e pede amortisa- ções; a pachorrice indigena faz o 31 de ja- neiro; o Brazil não manda chêta ; a Provi-

o PvISO AMARELLO

79

dencia foi para as aguas, tratar do fígado ; os políticos astutos deixam-se ir uns para o ou- tro mundo, outros para um obnoxio descrédito; os compadres caem nas unhas do juiz Veiga, remissão 200 contos. Desapparece o ml me- tal; começa o bródio dos papelitos; surge a crise do trabalho; entra-se nas experiências e nos elixires políticos e sae tudo choldra ; so- brevêm os terrores pelo dia d'ámanhã, as tor- turas para cada hora do dia d'hoje, em que mal se ganha para o padeiro e em que o homem da tenda e o senhorio se vêem gregos ao con- templarem os seus créditos. E é n'esta quadra de misérias e de perspectiva de maiores hor- rores que todo este povo se espoja em camba- lhotas, se desmancha em piruetas e se esfalfa em zurros de jumento bêbedo!

viram mais ignóbil trambolho?* Segunda opinião : «E' certo que este anno augmentou o numero das danças e o de mas- caradas pelas ruas e pelos bailes. Mas o aug- menta provém justamente da miséria publica. Não se obedece ao proloquio: Quem canta seus males espanta Nuo é isso. E' que, se exce-

80 o RISO AMARELLO

ptuarmos os janotas (e entre elles ha muitos que tratam de conquistar credito, pelas dissi- pações...) o publico mascarou-se para pedir esmola ao outro publico o que não se mas- cara porque não tem com que. Contou hontera um emprezario theatral, que, de duzentos in- divíduos mascarados que entraram, domingo, no seu baile, houve cento e noccnta e dois que pediram entrada grátis. Eram pessoas sérias a pedir cédulas de tostão, e eram hcspanholas e portagi(e.^as de refugo a pedirem ceia e amor pago ás horas. Por essas ruas cantaram mas- caradas em grupos, e as vozes, roucas e enfra- quecidas, tinham a nota de mil afflições e pe- diam caldo, sem darem por isso.

Afora esta maioria enorme de miseráveis, ha uma pequena minoria que se diverte: é a dos que se divertem todo o anno á custa alheia: cinco tostões d'este e dez daquelle. E ha tam- bém os palermas: os que arruinam em tre- moços os ganhos d'um mez e que puzerara no prego o relógio, para pagar duas ceias a uma cavallona esparavonada. .

o RISO AMAEELLO 81

Entre estas duas opiniões distinctas como o verde-tinto de Monsão e o j3 cr de -branco dos Arcos de Val-de-Vez, o meu espirito critico inclina-se 6 primeira, mas o meu coração, que não cicatriza, despende em favor da segunda umas pingas dos seus restos. Isto provém tal- vez de eu haver frequentado muito as caixas dos theatros e saber, portanto, o que vae de esforços convulsivos na cara de muitos bons cómicos que riem para nos fazerem rir. Chega-se o crer, parodiando o Talleyrand, - que o riso foi dado ao honxern para occidtar as suas magnas. . .

Cin.^as! Amassem- n"as com as lagrimas der- ramadas a occultas e terão lama.'

^NÇ^5^

FRUCTA DA TERRA

/Concorreram, ha dias, ás phantasias nacio- ^^ naes duas noticias de arromba :

Que vae abrir-se o parlamento. Era sabido.

E que o governo dissolverá esse parla- mento, constituindo-se em dictadura. Esta era inesperada.

A propósito, vem o caso do Melchiades o Melchiades da flauta um que ha treze annos róe um osso orçamental 15 mil réis por mez, nas obras publicas e que durante esses treze annos, desde a hora da sua no-

84 o RISO AMARELLO

meação, lem sido o terror de todos os nossos homens públicos.

Melchiades aclia pouco os 15 mil réis. Mel- chiades quer trinta.

Nas espheras governativas tem-se succedi- do, n'estes quinze annos, todos os partidos, to- dos os políticos, de todas as cores e feitios: pretos, pardos, côr de rosa, alaranjados, fur- ta-córes, còr de burro quando foje, redon- dos, quadrados, ovaes, e retorcidos. E' sabido que jornalistas de lume no olho conjecturam acertadamente quaes os politicos á bica para os sacrificics do Poder. Vae mais longe o Mel- chiades: calcula, com exactidão mathemalica, quaes serão os successores dos que estão á vez. Estão no poder os nephelibatas; vão su- bir os regeneradores: Melchiades faz a corte aos progressistas. Este dom exaggerado de intuição coUoca o nosso homem nas fileiras opposicionistas e não ha outro mais minis- terial!

Melchiades é ante-jainisterial.

O que este homem tem dissipado dos seus 15 mil róis das obras publicas e dos 7$200 da

o RISO AMARELLO 85

flauta no Goiy>eu dos Reíreios é um prodígio tinanceiro. Toda a gente mais ou menos ao serviço dos homens do governo por vir por vir depois de amanhã bem entendido é re- gular e profundamente brindada por este sin- gular pretendente. Charutos de 25 aos correios de secretaria, pacotes de cigarros aos barbeiros politicos e todo o trc/nhlemcnt do bazar dos três vinténs á criadagem dos conselheiros: tal c o passivo do orramento do meu amigo.

Com o olho nos 30 mil róis, Melchiades vae a todos os cafés que se orientam nos jornaes, e todos os jornaes recebidos nos cafés. As- siste ás sessões das camarás, frequenta a ar- cada e as creadas de varias sujeitas de rela- ções politicas e outras. No dia em que o José Dias pediu a demissão do seu grupo, Melchia- des convidou a ceiar a sopeira de uma janota progressista. Iam subir os regeneradores. . .

Na sua orientação vôsga, encontrei -o ha dias de mãos sujas na cabeça estonteada. Certos

86

o RISO AMARELLO

destemperes do Fuscliini trazijoi o Melcliia. des na faina de uma organisação miiiisterial- Descrente da chamada dos progressistas, logo depois da queda d'esta geiíle^ cria o nosso ho- mem n'algum arranjo inesperado. Para depois é que teria de vir o Josó Luciano. E o Mcl- chiades piscava o oliio ao Manoel Gualdino factotum do chefe progressista.

Que me diz você, agora, da situação? perguntou-me o homem.

Parece-me escura. E' verdade que eu te- nho a vista fatigada. . .

Pois a mim parece-me definida. Tenho andado assim azaranzado; mas desde esta ma- nha que principio a vêr a manobra.

Conte- me isso !

O que lhe parece a você que vem depoi^ d'este governo, em dictadura?

Homem ! eu sei ! Talvez D. Sebas- tião !

Não brinque, e oiça o meu raciocínio !

?

Cae a dictadura e vem a Republica. De- pois a Restauração monarchica, mas com D.

o RISO AMARELLO 87

Miguel. Que julga você que eu vou fazer? Sempre são 30 mil réis!

?

Tinha ideia de arranjar namoro com uma crcada do Magalhães Lima; mudei de plano. Em vista do que hade vir depois da Republi- ca, vou deixar um bilhele de visita ao Fer- nando Pedroso e inscrever- me na Geographica.

A favor das missões?

Claro ! Sempre são 30 mil réis !. . Tal é o Mclchiades da flauta.

O «LINDO AMOR;

TW alli em baixo, no largo ex-Pelourinho ^^ onde, no frontão, o amor da pátria é siip- plicio de Tântalo de arrependidas sol- teironas. Lindo amor, com duas dúzias de cabeças, salvo erro, serve de graça os habi- tantes d'este concelho. E' bonito, mas tem seus inconvenientes para os patrões. Deus me li- vre de quem me sirva de graça ! Tenho ca- nudo !

Em matéria de canudos para os municipes (já percebeis?) Lindo Amor parece o órgão dos Martvres !

90

O EISO AMARELLO

Abundam em LííkIo Amor as cabeças me- dicas: ha-as nllopallias, dosimelricas, liomoc- opatlias, raspalbistas, brown-sequards^ de pe- vide, de caroço, seccas e em calda, com ope- rações e sem ellas, com poucos miolos e com menos^ de biliosos e de sanguíneos, de polili- cos de fato feito, de ditos por medida, de coco, d'aba direita, carrancudas, laraclientus. Com taes cabeças, lia outras sem nada dentro e de poucos pellos por fora. E de tudo isto saenr» as delícias de Capua. Cada lisboeta é um An- nibal !

(Nota erudita: Annibal Barca, general das forças de Carthago e o maior homem de guerra dos tempos antigos e dos modernos, depois de haver passado os Alpes e pregado tremendissimas sovas nos Romanos, foi-se a descançar em Capua^ com as suos tropas. Taes excessos e tão prolongados por fizeram aquelles africanos, que deram tempo a que o Scipião, general romano, reorganisasse o exer- cito, desbaratado em Cannas, e fosse levar a

o RISO AMARELLO í^l

Carlliogo a nnieaca de doslnjirão. Âunibal saiu das delicias de Capua^ dando ao diabo o deus da guerra, e foi-se a conibaLer o S:ipião; mas os Carlhaginezes, amollenlados pelo de- boche, deixaram se sovar pelos romanos, e Carthago foi dcslruida... Muito bonito é o saber !)

N"um dos bairros populares de Lisboa o da Praça das Flores ordenou Lindo Amor (jue se abrisse, haverá um mez, uma valia de coisa molle e de mau cheiro. Tal se abriu aos raios acalentadores do nosso estio, e o mes- mo foi que se uma invasão de Hunos accomet- tesse os moradores do bairro supra. Começa- ram os moradores a despedi r-se para melho- res mundos e Lindo Amor applaudia e des- pedia-se d elles com as vinte e quatro cabeças (jue vós sabeis.

A policia fazia listras de sopeiras, os mora-

92 o RISO AMARELLO

dores que iicavain esperavam a sua vez, com a singular resignação do lisboeta, e a impren- sa discutia o vampiro e cu n'ella e com ella.

De repente morre um jornalista, um traba- lhador muito intelligente, muito honrado e com bellos vinte e sete annos esse encanto da vida. Desata a imprensa a advertir os mora- dores e a espancar as auctoridades. Os mora- dores:— «Nós déramos por isso... e estamos». As auctoridades... nem faliemos n'is30. E Lindo Amor com homoeopathia, caroço, pe- vide, allopathia, brown-sequard, dosimetria, chapóo daba, dito de coco e hypotheticos miolos manda tapar o cano!

Recebeu votos de louvor.

Assaz reduzido se achou, por dictadores cruéis, o campo de operações de Lindo Amor, mas a verdade manda Deus que se diga : é impossível fazer mais, com vinte e quatro ca- beças, ou quantas sejam ! Abre valias morti-

o RISO AMARELLO 93

feras; deixo ás escuras a capital ; lava as mãos em coisas da alimentação e os governos for- necem-lhe a bacia; uma vez por outra, demo- ra suavemeate os pagamentos, deixa a cidade em condições de porcaria que dão a nota su- prema da santa resignação dos habitantes e contribuem para o sinistro projecto dos go- vernos:— impellir Lindo Amor para um tal descrédito que o povo receba com palmas a extincçiSo d'esse simulacro de representação municipal. . .

Cae per si Lindo Amor, do com menta rio trocista do seu poço á execução pelos do governo. Cae por si, com frontão c tudo, e com chapéos d'aba e ditos de coco e bro\vn- sequard e dosimetria, mais a pevide, mais o caroço e a liomoeopathia e a allopathia e o raspalhismo e a inépcia e a relaxação e a mioleira. . .

Cae I E demónios te levem. Lindo Amor cabeçudo !

V -j-,A -^ A ^ A --lyy-A

SENHOR PREZIDENTE!

^^ÍENHOR Prezidente ! O que nos tem deitado ^^ a perder, o que nos tem posto n'este es- tado é o coração (Na camará dos de- putados, Carrilho).

Trazem-me á memoria estes dizeres do illus- tre Satanaz de magica uma observação exacta do Eça de Queiroz, pela bocca de um dos seus heroes. Queixava-se tim martyr do amor de que a ingrata Amélia o torturava no coração- e o outro : «Coração é uma palavra decente, que se descobriu para designar omra coisa. »

D'esta vez não se tratava da tal coisa. Quan- do o Carrilho disse coração, logo d'alli lhe

9fi o RISO AMARELLO

saltou o capitão Machado, berrando, com jus- tiça e pulmão sonoro :

«Não é coração ; é estômago. Temos co- mido muito

Pode este capitão, contrariando as myste- riosas leis do Destino histórico, degenerar em major, em tenente coronel e no resto : a meu vêr, ficará sempre o máximo capitão! Nem o Alexandre sovdano os Persas, nem o Júlio Cé- sar pontapeando os Gaulezes, nem o Annibal a contas com os Romanos, nem o Moreau soc- cando os Austriacos, nem o tio Bonaparte es- corchando meio mundo: nenhum d'este3 ma- raus illustres é o capitão máximo. O máximo é elle; Machado é contrapezo. E não se trata de lerias de estratégias; trata -se da eloquência de arromba da que estripa e embucha, da que é sangria e drástico, anesthesico e .. .Bem ! estou eu itía botica !

Não ò coração ; è estômago! Vinha o Car- rilho a dizer, na sua, que teem levado a vida

o RISO AMARELLO

91

OS nossos administradores r soccorrer o seu próximo, em comezainas, em vinhaça, em femeaeo e em verba para miudezas : rapiocas baratas na Agida Roxa, no Carpinteiro da tra- vessa do Forno, mais na Santarena. do Cães do Tojo. Esta amável faina dos que adminis- tram, em proveito de um povo infeliz, ia a commover, de surpreza^ o meu ser moral com- passivo, quando o capitão deitou agua na fer- vura da minha sensibilidade : «Não é coraeãt; é estômago!»

...Não deram; comeram! Quem comeu fo- ram elles ! Ai, que marotos I

Todo um plano de orcamenlologia clássica

como lhe chama o José Dias temperada com suas pitadas da nova, appareceu denun- ciado aos ingénuos pela phrase rezolutiva do capitão. Nào foi tal a sensibilidade : foi a gula ! Não foi o sentimentalismo : foi a luxu- ria ! Não foi o amor do próximo : foi uma pouca vergonha em desarranjo de cifras, con- luios, desvios, falcatruas, comes e bebes— o prolongamento da orgia liberal dos barbata- nas de ha sessenta annos, mas emfim esses

7

98 o RISO AMARELLO

tinham-n'as jogando tezes com os Migueis!

Foi o estômago! Comeram muito.' Come- ram, por fim, o crédito ! E nem a justificação das fomes, que passaram os nossos pães os barbatanas ; nem a explicação do sangue^ que nos inglezes pede abusos de comezaina ! Esles raaraus são uns tysicos !

E d'ahi resulta que eu não vejo era toda a Historia, desde a «noite dos tempos-) até ao Hintze, coisa assim tão pandega como esta pandega :

«Toda a gente deve estar com os gover- nos ! »

E o Sérgio :

«E' preciso robustecer a ordem e o prin- cipio da auctoridade

E os partidos :

«Abusámos do estômago! Comemos muito!»

E o paiz :

«E' verdade : comeram muito! Nós paga- mos ! . . . »

Em toda a bola geographica, escuzam de procurar Não ha outro! Como diz o outro.

iMí^f^^í^mm^^^m

S^^^^:rz^^í^&^ri^^:f^^

HAJA OLHO!

ULTIMAMENTE, varios jomaes chamavam a 5^J attenção dos homens que governam, para certos ;:^uns-juns bellicosos, agitação, perspectivas de chinfrins. E logo outro, dos extremos, como lhes chama o coisa, desatou a prevenir o publico : «E' laço armado aos cidadãos! Não caiam ! A' primeira sarrafusca, mettam-se em casa A quem. elle o diz !

Está-me a lembrar uma... por outra, lem- bram-me duas, para emquanto eu fôr vivo. Uma vez, ha quinze annos, ou coiso assim, juntou-se muita gente, aili no Terreiro do Paço, a bramar contra Lourenço Marques. Um bonito arranjo

100 C RISO AMARELLO

dos regeneradores contra os progressistas— que estavam no galarim e que se estenderam^ por signal, no dia seguinte. Aquelles diabos, tam- bém, caem como cadellas !

Bramam os cidadãos á porta do ministério do reino, onde conferenciavam os ministros e os pees da pátria, e eis que, subitamente, coi- sa de uns dez policias saltam em cima da mul- tidão : uns quinhentos homens que berravam contra o Lourenço!

Eu estava no meio da chusma, com um pro- vinciano meu amigo, alheio aos processos re- volucionários da capital. Devo confessar que eu dava morras ao Lourenço Marques e a voz sonora do meu companeiro estrondeava que nem a do Adamastor : «Morra I Abaixo os traidores! Viva a pátria! Viva a...»

«Prendam tudo ! Cerquem ! Agarra ahi esse cazaca, ó 73 Era a voz da Ordem ! O meu companheiro, empunhando um bengalão horrífico, casquinou uma rizada infernal e vo- ciferou :

"Qual prendei Nem qual agarra! Aqui ninoruem foere

o Rl5fO AMARELLO 101

E a uma das orelhas policiaes, gritou: «Viva a Republica

Para logo, dez braços, revestidos de panno castanho escuro, filaram o meu caro amigo, e o proprietário de um dos braços disse-lhe pa- ternalmente :

«O senhor não se entale! OUie que fugiu tudo

Tinha fugido tudo !

A outra foi por occasião do uliiniatum. Ao anoitecer, um cordão de soldados da munici- pal cercou a praça de Camões, prohibindo, sob pena de tapona, que alguém se approxi- masse do monumento. Nas janellas do centro progressista, os politicos d'esse partido, na op- posição, esperavam a acção popular. No cen- tro regenerador, que também dava para a pra- ça^ os politicos respectivos espreitavam por detraz das janellas com persianas descidas. De repente, ouve-se ao longe um ruido surdo, a respiração e o resmungar das multidões, e

i02 o RISO AMARE LLO

do Chiado desembocam na praça mil a dous mil indivíduos acompanhando um regimento de cavallaria.

A este aspecto, os municipaes. . . põem o apito ó bocca. Estão-se lembrando ?

Foi obra do dous minutos ! Pela rua de S. Roque, pela do Alecrim, pela do Loreto, pela da Horta Secca, pelas do Bairro Alto todos aquelles cidadãos se precipitaram, quaes cabri- tos, eslendendo-se apenas algum hurro !

Lembra -me que, na qualidade de lisboeta, eu me senti mortificado, ao ouvir, n'um pré- dio visinho, as chalaças de alguns provincia- nos em homenagem á ligeireza do meu poço. São bocadinhos que fazem a gente velha !

Com que então, que se mettam em casa ? Pudera I Onde se ha de metter um homem que se preza ? !

Agora sério: eu não recommendo que se sa- fem, nem que fiquem, nem antes pelo contra- rio. O que me parece é que, tornando as dif- ficuldades de dinheiro muito inventiva a ima.

o RISO AMARELLO

103

ginação dos pelintras, talvez nos projectos da pavorosa com arruaça haja intuitos económi- cos do governo. Vão á rua os meus pacíficos concidadãos, e se houver novidade façam o que entenderem ; ma.s não paguem se forem presos ! Ahi é que vossemecès os chumbam !

E se formos presos todos, haja alegria, para haver apetite. E, a contas com o rancho dos maraus, havemos de provar-lhes que não se é impuaemente tyranno em periodo histó- rico de carnaval . .

Vamos tomar absintho I

A MULHER DO ZE

J^Ç' 3 primeira vez que me faz rir a ameaça ^'^. de uma catastrophe no horizonte dos po- bres. Quando em minha casa o sinistro gallego do cabaz avisou, com vinte e quatro horas de favor, de que a coisa ia subir mais cinco réis, eu disse á minha creada, que, de mãos na cabeça, me transmittia o aviso:

E' para amanhã, hein ?

Diz que sim : que é para amanhã.

Deixa-o dizer; não te rales I E ouve cá!

Senhor ! ?

A'manhã não recebas o pão.

1^6 o RISO AMARELLO

E para o almoço?

Confia na justiça de Deus !

Discípula de Voltaire, a Maria Cândida es- quiva-se quanto possível, com escândalo ou sem elle, a crer na intervenção salvadora do géne- ro humano afflícto, por parte do Creador. Foi por isso que, durante as horas em que me de- morei no lar domestico, desde aquella hora ao romper da manhã seguinte, foi um esvurmar de critica biliosa como não ha exemplo em ga zetas de opposíção : creadas, vísinhas, tran- seuntes— tudo collaborava em rugidos contra a pouca vergonha 1

Eu esfregava as mãos, lembrando-me do que dizia o Suchet em Saragoça: «Mau .' o mu- lherio atira-nos com os bacios : estamos per- didos ! . . . »

Ao romper da manhã, vi nos olhos da Ma- ria Cândida os reflexos phosphoricos d'aquel- les projectos sinistros que dão calor è tezura ás Joannas d'Arc e ás Marias da Fonte. No

o RISO AMARELLO

107

pateo visinho, uma gralhada feminil atroava os ares da minha travessa. A Felismina dos ovos, uma anegriscada, com falta de dentes e demasias de lingua porca, berrava :

«Mais cinco réis em cada pão ! Com os rapazes a toda a hora de pão na bocca ! São nove pães todos os dias: vinha a ser: para mais dois e cinco ! No fim do mez sete tos- tões e meio 1 Ghiça I Vae tranca da porta, vae o bispote Deus me perdoe ! vae tudo para cima d'elles ! Sucia de ladrões!»

E eu, levantando me da cama^ para receber a visita do meu padeiro, resmungava : "Es- tão promptos, seus caipiras!»

*

Argolada. E a Maria Cândida, machinalmen- te, pega no pau da vassoura. Que diabo faz você, rapariga? E' o padeiro! Você quer bater no padeiro ? !

(Pausa).

Vou-me á porta. Barretada do homemsi- nho. ..

Que ha de noYo?

108 o RISO AMARELLO

E' O pão, meu senhor!

E a como é esse pão ?

Saiba vóssoria que é a dois e cinco.

Não quero. Pôde levar. E acabou-se o fre- guez !

Mas vóssoria tem quem lho venda mais barato ?

fO mulherio do patco, avisado do lado dos quijitaes, pela Maria Cândida^ forma ent se rni-circulo, em auditório).

Se eu não tivesse quem m'o vendesse mais barato, era escusado eu mudar de padei- ro. Pois não é claro?

Isso é claro ; mas (coçando-se na cabeça) vóssoria diz-me quem é o padeiro?

Não digo. O segredo é a alma do nego- cio.

Também não digo menos d'isso^ e an- tão. . .

O que ?

Antão, também eu vendo pelo preço an- tigo.

E vendeu, e foi quando o homemsinho dobrou a esquina da rua que o mulherio me

o RISO AMARELLO 109

fez uma ovação a primeira que tenho tido em minha vida.

Essa é de mestre, sr. visinho í

Grande coisa é saber, ó tia Mónica I

Foi bem embrulhado o tal m . . . !

isso ! E é que não vencem os pati- fes 1 .. .

Cedi o logar á Maria Cândida, que recebeu a seu turno felicitações por ler um amo tão esperto. Mas d'ahi a uma hora, á mesa do al- moço (pão a 40 réis ! ) chegou-me do pateo a voz da Felismina dos ovos. Como na JvAia de Thomaz Ribeiro, a co^ dizia assim:

«Pois tenho pena que não haja muita por- rada !»

E a Maria Cândida, a labutar na cosinha, resmungando :

Pois faz pena, isso faz!

AS TAES SENHORAS

ICT^u, ou o leitor, um de nós dono de casa,

^y^. com as ricas responsabilidades que nós sabemos tem de subjeitar-se a isto : Receber em casa, na intimidade de todos os momentos, (modo de dizer I) uma senhora^ que nunca viu mais gorda e a quem se obrigado a revelar gradualmente os segredos da sua vida económica, da sua honra e da sua saúde, mais os segredos da sua companheira e de seus filhos. A essa boa senhora a clas- sificação de creada. Sustenta-a, alberga-a, pa" ga-lhe; tem o gosto de a vèr trabalhar meno^

112 o RISO AMARELLO

que fl patroa ; sabe positivamente que tem alli uma denunciante na tenda, no talho, em casa da engommadeira, junto á creada do lado, junto ao bom amigo das patuscadas domin- gueiras. E' hysterica, mal creada por defei- to de educação e por culpa do seu destino. Soflfre-se lhe o cumulo dos desaforos para não ver caras novas...

E' a senhora creada: è o inimigo na praça!

Exige-se-Ihe, poj^ formalidade :

Que não seja porca,

Nem gulosa.

Nem immoral,

Nem respondona.

Uma vez por outra, tudo isto. São testemu- nhas os céus de que eu tenho passado n'este mundo as passas do Algarve e de Alicante: conheço os soffrimentos da miséria em terras extranhas e na minha, os do isolamento na minha terra e nas extranhas, da deslealdade dos adversários, das ingratidões dos soccorri- dos, das calumnias dos mais obrigados, dos caprichos do Feminino^ da Fortuna ardilosa- mente roubada, do trabalho desmedido pelas

o RISO AMARELLO 113

forcas : conheço de perto tudo isso e conheço o resto. 0'Ího tranquillo para o estendal passa- do, e prevejo sorrindo, o estendal futuro. Nada me irrita, nem perturba^ senão a moeda meií- da, 03 trocos da semsaboria : coices d'algum burro chagado, uivos d'algum cão vadio, sce- }ias da senhora Creada o iiúnúgo !

Mas ha excepções honrosas!

Saúdo as excepções beneméritas !

Justos Céus! Eu faço justiça a todas as es- correncias de miséria moral ; não perdoo á relaxação. Foi ha dias que eu vi uma ra- pariga pedir na Repartição Sanitária o livro dos «infelizes.» Ponderou o ex-íellente funccio- nario, meu amigo, áquella filha de Deus que melhor lhe viria a ser aguentar-se na vida do Trabalho... Perguntou-lhe em que se oc- cupàra até aquelle dia tCreada de servir, e estou farta!» «Farta?! Creados de servir todos nós somos. E espera você vida de deli*

114 o PJSO AMARELLO

cias na perdição ofílcial, por modo que nunca venha a fartar-se?» Contou-lhe horrores da mda porca ; ser o esfregão do Amor, levar pontapés dos fadistas, ser enxotada, ao pedir soccorro. Citou-lhe factos. E ella : «Ora adeus! Ao menos diverte-so uma pessoa!"

E', decerto, o pensamento fixo «de quanto uma pessoa se diverte», quo me faz doido, aaais ao amigo leitor, com a historia das taes senhoras. Conto desde as quatro ultimas ao meu serviço: a primeira regressava bêbeda, alta noite, das suas digressões domingueiras com o municipal amigo; a segunda quebrou- me em loiça todo o salário do meu trabalho (je um mez, tinha mau génio; a terceira deixava cair no refogado os habitantes áOi flo- resta de seus cabellos ; a ultima definhava-se? a comer-me o assucar. E trabalhavam menos do que a patroa, comiam «até lhe tocarem com o dedo», recebiam em dia o seu salário, fa- ziam parte da familia... Todas ellas com- mentavam, na visinhança, a minha existência, e foram dizer horrores sobre a despedida . . .

o RISO AMARELLO

llõ

Oiço falar de creadas velhas, cheguei a co- nhecel-as no lar paterno, que soífriara das dores da familia e se regozijavam com as ale- grias d'ella. Noto hoje o contrario, é claro que em regra geral : vejo macambúzia a senhora Creada, quando eu estou satisfeito. Inveja? Mau humor? E' antes aquillo do philosopho: «Está contente: ou lhe aconteceu bem a elle, ou mal a outrem.»

Não acha encantador, meu amigo, andar um dia inteiro fora de casa^ apanhar contu- sões— da adversidade, recolher-se ao lar, a pedir consolações aos seus, mascarando cau- tellosomente as próprias dores e encontrar alli, entre os seus, a espional-o, para divulgar, a tal sujeita que está farta, fartissima de aturar patrões e que pensa, vaga ou fixamen- te, na «vida em que se diverte uma pessoa?...»

116 u PJSO AMARELLO

Mas ha excepções'-. Isso são mimos do céu ! ^"ou botar-lhes annuncio !

(Vinte e quatro horas depois tenho um mimo !

-©í^í®-

VOLTE FOLHA!

ro^ veja agora o leitor, como vêem os meus ^^ olhos peccadores, o que dos autos consta sobre as minhas accusaeões ás tacs se- nhorias (ó aquillo do cnj3Ítulo passado). Cae- me sobre a meza do trabalho, nas salas d'cs- ta reó.acção como diz o outro a seguinte epistola assignada pela menina «Ephigenia Rita, creada de Vossa Senhoria.» Tem razão, por partes, D. Ephigenia, e tem dotes de prosa, que tomaram muitos «litteratos» e «jor- nalistas» lambor-se com elles em serviço da Arte e dos Principies! Esteja calado o leitor;

lis o KISO AMAKELLO

veja e benza-se pelo aperfeiçoamento da es- pécie! E' o grito pela Justiça, grito que sae da cozinha, com o ^estridor da fritada e que leva á sala de vizitas a confusão!

(^Sr. Redactor. Pois que a sua lealdade não contesta a existência de excepções, que são «mimos do céu,» entre a legião das vi- ciosas e das relaxadonas, consinta que eu, aproveitando as horas de socego^ durante as quaes meu amo foi para os toiros e a senho- ra para onde Deus é servido, diga da justiça da minha classe opprimida. Sem duvida al- guma, avult&m, dignas da carga a fundo, que v. lhes arrumou, as creadas gulosas e as por- cas e as immoraes e as madraçss e as bes- beihoteiros e as respondonas ; mas, se é certo que ha panno para mangas nos queixumes e nos protestos dos mal scr^cidoSj não é de ro- zas o viver das condemnadas pelo destino a scrcir os outros. Eu seria d'uma banalidade

o KISO AMARELLO

119

indecorosa para nós ambos, se me limitasse ás phrases maguadas sobre o tri.^tc destino da scvcidão. Xas condições de «pão pão, quei- jo queijo,» em que v. collocou este negocio, é indispensável que eu lhe conte os casos que mais avultam na minha carreira.

(Agora ò que è obra!...)

«Sou de Lisboa, freguezia de Santa Izabel, e nascida na rua de Campo d'Ourique. Meu pae era trabalhador n'uma fabrica, minha mãe era lavadeira. Quem levava o jantar, á fabri- ca, a meu pae, era eu. eu tinha os meus quatorze annos, quando o dono da fabrica, um dia, mo fez festas na cara e me offereceu a «sua protecção». Eu disse-o a meu pae, que me prohibiu de voltar á fabrica. Não voltei, e elle foi despedido.

«Esteve dois raezes sem trabalho, e foi en- tão que se resolveu que eu fosse servir, para não fazer pezo á família, e porque sendo eu fraca do peito não aguentava o trabalho de lavadeira a que se entregava minha mãe. Fui servir. Estive oito mezes na primeira casa, isto foi ha oito annos;— e d'ahi em deante

120 o PJSO AMARELLO

conheci nove casas. E' a media de dez mezes em cada uma.

«Ora, eu llie digo, para consolar os bons patrões da desgraça de serem mal servidos, o que me aconteceu, considerando-me uma boa creada sem immodestia I na carreira que encetei e trilhei. Na primeira casa não me correu mal, a principio; mas como quer (|ue o menino, que andava pelos seus quinze annos, surgisse amarellinho e com olheiras, deu-se o caso de eu ouvir um dia o Senhor dizer, muito assomado, a rainha ama: «O que o rapaz precisa é mulher; c as creadas não servem para outra coisa!.-.»

«Comprehendi que me abriam a porta para a desgraça, afim de que o menino de casta dominadora recuperasse o bello viço da mo- cidade satisfeita. Despedi-me, com espanto d'a- quella boa família, a qual sinceramente esta- va convencida de que as creadas casta infe- rior— não servem para outra coisa.

«Segunda casa: A minha ama encarre- gava-me de despedir os cródores. A procissão d'esses fréguezes durava desde o romper da

o RISO AMARELLO 121

manha até alia noite, pois que se pagava á modista e ao pastelleiro. Véxei-me e sahi.

«Terceira casa : O Senhor offerecia-me a sua protecção (como o outro), e ás minhas mo- destas recusas, respondeu pondo-me no olho da rua.

(•Quarta: Na ausência do Senhor, a Se- nhora . .

"Quinta: Na ausência da Senhora, o Se- nhor. . .

«Sexta: Ao terceiro dia cahi doente, à força de jantar chá e pão sem manteiga. O dono da casa tinha três casas a sustentar, além da casa da familia.

«Sétima: A Senhora tinha ciúmes das creadas e do m.irido, e costumava esbofe- teal-as e esbofeteal-o.

«Oitava : Não me pagaram as soldadas de quatro m.czos que estivo.

«Nona: Pediram-me emprestado o dinhei- ro das minhas economias e ameaçaram-me com a accusação de ladra.

«Devo di/.er-lhe que entre os meus serviços da sexta e os da sétima casa minha mãe mor-

122 o RISO AMARELLO

reu tysica e que meu pae está impossibilitado de trabalhar, aleijado n'um trambulhão n'uma obra, e que sou eu que o sustento, costurando' porque estou desarrumada e «descrente».

«Em todo o caso, em homenagem á leal- dade de V. ponho de parte a descrença e vou deitar annuncio, esperando uma excepção fa- vorável ao meu destino.

De V. Ephigenia Rita.

(Bilhete postab vinte e quatro horas depois: «Parece que surgiu a excepção !

E. R. Visto.

AINDA AS TAES

^Uroduziu nos lares domésticos, desde a J^r' cosinha á sala de vizitas, umas sensa- ções de arromba o que nas columnas d um hi-hehdhomadario eu publiquei acerca d'aqutllas senhoras da cebolada, e dos mar- tyrios que enaltecem a sua coroa. Ephigenia Rita levou, para o seu tabaco, dois bofetões de estalo e assobio, ao ser apanhada por D. Violante de Menezes, sua patroa e prima do commendador Francisco, a lèr as minhas con- siderações á creada do Thimoteo sacristão, en- tre piadas obsoletas e encravadissimas. E a D.

i-^ o KISO AMARELLO

Violante, ao facto das minhas relações de pura amizade com o commendador, pediu ao primo que me contasse as ultimas.

...As quaes ultimas me são relatadas no estylo de Francisco, mais de Tito Livio que de Tácito. Diz-me assim, em epistol<i^ o pri- mo do Violante a esbofeteadora :

«Faço-lhe justiça, caro amigo, quando o supponlio de uma inteirezi e de uma correc- ção que não se torcem a favor de abjectas Maritornes com tomate e alho. Isso que lhe escreveu a Ephigenia Rita deve ser composi- ção romântica, em dueto na serra de Mon- santo ou na barraca do Frege Moscas, na feira de Belém. Minha cunhada, que é senho- ra de respeito, tem gasto, em trez mezes, o melhoi' de libra e meia em aiinuncios a pe- dir sopeira. Não lhe digo o que lhe tem ap- parecido, porque parece troça... A ultima veiu- Ihe ha quatro dias, de uma agencia. Honlem,

o RISO AMARELLO 125

domingo, saiu e, ao regressar da passeiata, saiu-se com esla á D. Violante:

«Que seu tio, que é policio, não a queria alli em casa de minha primn^ porque ella, a Faustina, é menor e com a virtude ameaça- ria, e porque o marido da senhora é um ho- ijin.

"Objectou-lhe I». Violante que não dispu- nha de um burro propicio á tranquillidade do tal lio, mas que, tendo relações de ami- zade com um dos altos chefes da policia, es- tava prompta a dal-o por fiador.

«Mette os dedos no nariz a Faustina, e de- clara que não é isso:— -que não lhe fica bem sair á rua, a recados.

E D Violante, amolando:

«Tudo se arranja. Faço eu os recados, ou vae meu marido. Que ha mais?

«Que o fogão lhe fazia mal aos dentes!»

Não lhe aconselho que tire os dentes^ mes vem gente de fora, para o fogão. Ha mais al- guma cousa, menina?

«Que lhe parecia que mais dez tostões por mez não fariam mal a ninguém

126 o RTSO AMARELLO

D. Violante fez o que você faria, disse o que você diria : de braço estendido para a porta, berrou : «Ponha-se-me no meio da rua!» E a Faustina : «As patroas assira, como a senhora, é que ás vezes deitam a per- der uma pessoa!»

«E saiu^ berrando porcamente. Que diz vo- cê a isto?»

Eu nâo digo nada. Em camiza de onze va- ras me considero .mettidoj desde que me em- brulhei na contenda. a Maria Izabel, crea- da do sapateiro aqui do lado, me destacou o 04 da 10.^, sórdido maroto e emérito papa gal- linhas, que me provoca todas as noites, quan- do eu me recolho a casa e elle a dez passos da minha porta namora os chouriços do sa- pateiro. A noite passada chegou m.esmo a pe- dir-me lume, com muitos intuitos aggressivos, e eu disse-lhe que não podia dar-lh'o, sem quebra de disciplina, sendo eu general de bri- gada e conselheiro encravadissimo.

o RISO AMARELLO 127

E o 94 da 10/:

«Vossa excellencia é que é o conselheiro das unhas encravadas?

«Eu mesmo!

E elle, recuando :

«N''esse caso, desculpe, meu general f Vossa excellencia é amigo das sopeiras! Para o que quizer tem-me em Cabeço de Bola ! E digo á rapariga!...»

Ai, que corja, Deus de meus pães! E tudo á imagem e similhança do Crcador ! Que Creador e que creacão estas croias de tomule o alho! E que benemérita da gente honrada D. Violante, a dos bofetões de es- mlo e assobio f

E o

.02 1

§Eis horas da manliã. Deitei-me ás trez, sobre o espectáculo do Coliseu, a ceia barata e alegre na Flor de S. Roque e a cavaqueira caturra, á frente da Patriarchal, com o preclaro commendador Francisco. Seis horas; e como que aos meus ouvidos estoira um berro formidável : «É o 7.321

Carrego as pálpebras, com uma espécie de fúria; rebolo me no leito solitário e casto, e forcejo por conciliar o somno. Abstenho-me de expansões em pragas contra o mariola, furlando-me a perturbações do espirito encar-

9

130 o RISO AMARELLO

regado de amassar-me o pão para mim e para a família. . .

«É o 7.321! Hoje é cjue rebcnla o Cam- peão!»

Pondera o meu raciocinio á minha cólera de estremunhado que o pohrc homem talvez se levantasse com o sol, para obter com a venda das cautellas o almoro dos filhos. Po- bres meninos! E pobre pae ! Vamos a vêr se eu comsigo pegar no somno...

f<E" o 7.321 ! Hoje é que rebola !<>

Oh! que filho da... Que filho da Desven- tura! Até tem a voz rouca o patife... quero dizer o pobresinho de Christo ! Muito soffre a pobreza n^esle mundo! Uns ao sol, ó chuva, ao frio, apregoando cautellas , outros estatelados em socego, nas delicias do somno...

oE' o 7.321! Quem quer apanhar uma porrada de libras?!»

Afinal de contas, não sei que faz este mal- vado espetado aqui defronte da minha porta ! Se elle girasse, se desse uma volta alli pela rua das Adellas, talvez os saloios da estala- gem lhe comprassem uma cautella... e talvez

o RISO AMARELLO 131

eu pegasse no somno (carrego nas pálpebras com os dedob. . .j

«E' o 7.32Í ! Olhem que ás vezes pôde calhar

Prompto ! Foi-se o somno! Dormi trez ho- ras, o agora? Com que cabjea vou eu tralar da vida? Se eu ao menos pudesse vingar me d'aquelle ladrão ?. . .

«E' o 7.321 ! Ha uma d'este numero!» Se ao menos me pudesse vingar?... Se eu

vou á rua, lemos tapona. Que bonito ! Vem tudo á janella ; a familia accorda em sustos ; o faiante talvez use navalha ; eu estou em fralda de camisa. . .

^'E' o 7.321! Logo é que ella rebola!-» Se da janella eu lhe atirasse com um tijollo

da chaminé ? Boa asneira ! Ou não lhe acer- to, e o patife redobra de gritaria, ou lhe acerto e o mato. E depois? Por causa do 7.321...

«E' o 7.321 ! Ha uma !•> Policia... Se eu apitasse? A boas horas!

A's 6 da manhã estão elles todos resonando, a não ser algum que ande á caça dos padei- ros ! E depois ? Depois, a visinhança nas ja-

132 o HISO AMÁRELLO

nellas, a policia ausente, o facinora a rir-se, e eu . . . que rica figura ! . . . «E' o 7,321! Quem me compra esle diabo?» Creio que ha Deus ! Elle bem o sabe ! Elle bem sabe com que fervor eu lhe peço que me vingue d'aquelle patife I Deus lhe quebre uma perna ! Deus llie um estupor na lingua ! Deus lhe arranje dois coices d'um muar, mes- mo na bocca do estômago 1 Deus lhe fome canina, e sem vintém para uma côdea de pão!

«E' o 7.321! Quem me compra esta lin- deza !

Vou para os jornaes ! Vou ao Moraes Sar~ monto ! Vou ao Segurado ! Vou ao João Fran- co ! Vou ao rei ! Isto não c Lisboa ; é Tan- ger, ó a sentina do inferno ! Ainda hoje ha quem troce do Arrobas, que providenciou contra esta corja ! E afinal, que fazem os suc- cessores? Aqui estou eu doente para todo o dia, azedo, estuporado. . a tiro ! Se ou o matasse com um tiro'?...

"E' o 7.321 ! Olhem que foi regeitado por um gallego

desfazendo-lhe a cabeça com uma canna

o RISO AMARELIX) Í33

da índia! E nntão ? viram uma rica vida assim? Trabalhar dia e noite, luctar com as crises da sorte, fazer das tripas coração e um canalha destes... Vou-me vestir, vou sair, vou tomar ar, para onde não oiça este infame e, ao passar por elle, talvez lhe che- -'ue. . .

(Lavo -me c visto-me em cinco minutos. Precipito-rae para a porta. Ninguém ! Apenas no longe, muito ao longe; «...e vinte c um !»)

E assim vae a vida I

ó

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I.íi^iSvJ■'^jImj^ti"^.4,g^l,è.>WJ^^^

OS DESCONTENTES

[\ mais de um anno que, um dia sim, ou-

^^ ^ ro não, es gazetas publicam o seguinte:

«Xo comboio do norte chegaram hon-

tem 250 (ou 300) passageiros do Minho, com

destino aos portos do Brozil.»

Se a arithmetica não falha, como todas as misérias d'este mundo, temos nós em quinze mezes a media de 225 comboiadas de patrio- tas, á razão de 275 patriotas por comboiada. Ou seja, n'e3ses quinze mezes 61.875 emi- grantes.

Não pode ser. Conheço o Minho, como co-

136 o RISO AMARELLO

nhceo os meus dedos ensaboados e lavados. Por mais que os missionários as preguem nas meninas... do olho minhoto, não creio que a multiplicação se produza por modo tão verti- ginoso que tal contingente forner-a á emigra- ção dos povos !

Sessenta e um mil oitocentos setenta e cinco é muita gente, fora os irracionaes ! Quer-me parecer que, á similhança do que nos theatros se pratica, em pecas de grande mocimentação^ os emigrantes sahem pelo bastidor de Santa Apolónia e vão entrar pelos de Braga e de Fa- malicão. . .

Temos caveira de burro. Perdão ! Ha alli caveira de burro !

Dado, poióm, que reduzida a historia a pro- porções rasoaveis, ainda fique panno para man- gas, ó preciso que todo o bom cidadão bote o olho critico e providencial para similhante pro- blema nefasto e quiçá seringador e desacre- itador. Não é passar o á terra que nos

o RTí^O amarí:llo 137

foi berço, e sair por entre o Bugio e S. Julião, com a sem-ceremonia com que da gaiola salie um urso faminto! Que rasões vão dar de si e de nós lodos, por essas terras de Christo, os camponios emigrantes? Que vão elles badalar e mexericar á nossa custa 1 Então o nosso cre- dito está assim á disposição do primeiro furi- bundo descontente a quem não agrada o nosso passadio?! Se querem realmente passar o pó, deixem declarações honrosas para a pátria que não dão homem por si!...

Vamos a ver em que se fundam os emi- grantes, para assim fugirem aos afagos de ir- mãos e buscar refugio entre pretalhada e ma- cacaria obnoxias e nefandas ! Que lhes falta, aos camponios do Minho?— O bom ceu azul, o bom sol e o bom clima ?

... Ha d'Í3S0 melhor no Minho que na capital. O trabalho? O que la não falta ó terreno para cavar : em Lisboa as ruas são da camará e dos galos da cidade. O pão nosso de cada dia? Mais falta ao verdadeiro lisboeta, pois que elle admille o pão com bifes e Colla- res, e no cnfè T^/varc.-: um pão assim orça poi*

138 o RISO AMARELLO

sete toslôes. Poetis que lhes cantem o In- cognoscivel ? está o Junqueiro em Vianna: sabe da poda como um raio. O amor de Deus? EstAo em melhores relar-ões com elle do que os scepticos de Lisboa. Quando lhes vacille a fè, estão os abIjaJes, para n alco- vitice. Falta-lhos theatro lyrico? E a nós o dinheiro para irmos, e não lemos a com- pensação do rouxinol dos campos. Faltem- Ihes Pilares, Célias e Soledades?

. . . Bem sei eu quem daria tre5 dúzias d'ellas por uma certa Maria Izabel, de Santo Thyrso !

Falta-lhes a commenda da Conceição? Oh, as Conceições das margens do Ave e os pre- ciosos collares dos seus pennugenLos braços !

E a pinga a dez mil réis a pipa ! . . .

São capazes, ainda, de se julgarem pobres

possuindo o que nos falta, os ricos amores de camponezes ! Elles teem, olhem para isto:

o melhor céu, o melhor sol, o melhor cli- ma, trabalho á farta, pão a dar-lhe com ura paUj o poeta Guerra Junqueiro, as relações com o Padre Eterno (apezar do poeta), o canto do rouxinol, a Maria Izabel, as Conceições

o RISO AMARELLO 130

e mais vinho do que nós temos d'aguo no re- servatório dos Barbadinhos. . .

Fora o mais que a gente na cidade perde cedo e elles conservam até á morte. . . as illu- sões e o resto !

E vão-se, ns dúzias, aos centos, aos milha- res— os amigos de Peniche, os Gains da fra- ternidade; vão-se, escamados, para o descré- dito!

E a Pátria a pobre vacca a chorar uns taes bezerros ! Deixa-os ir^ triste seresma ! Ainda te ficam— demais !

PiPELET

^i^Evo explicar ao único leiLor que não co- ^^^ nliece de nome o Pipelct quem seja lai figurão. Vem a sei* um symbolo, creação do Eugénio Sue, nos «Mysterios de Paris.» Pipelct ó um porteiro, vellio, sórdido, ridículo, causticado pelo pintor Cabrion (outro symbo- lo), que lhe prega portidns vingadoras dos in- quilinos martyres. Pipcle/s são pois uns rata- zanas que por ahi patifusam nas escadas de Lisboa e que eu hoje venho denunciar á exe- cração publica e ao olho dos senhorios justi- ceiros.

142 o RISO AMARELLO

Alli para os lados da Estephania havia um não sei se exisle, não o tenho visto que tomara á sua conta, para arranjo finan- ceiro, o modo de viver da formosa Elvira, uma trigucirona de ancas potentes e vasta desmo- ralisaçào em extremo apreciável e apreciada. Eu, ao tempo ha seis annos sentira ger- minar em meu ser o que quer que fosse, muito favorável ás ancas potentes da Elvira. Na au- sência do marquez seu protector (da Elvira, mais das suas ancas), eu tamèni marquezava quanto humanamente possível. Não vos digo mais nada !

Foi em madrugada de janeiro, chovia a po- tes, que eu, ao sair em bicos de pés, escada iibaixo, encontrei o fiel Pipelet estendido no portal, a coser uma bebedeira assaz românti- ca. Seus lábios deixavam escorrer a quintes- sência do torreano do Belford, e de seus dedos da sinistia pendia um papelote, que eu sub- trahi, impellido por mera curiosidade^ e que

o RISO AMARELLO

143

5t

fui lèr á luz dos lampcões do próximo Campo de Sanl' Anna. O papel dizia assim :

«Janeiro.

S. P. {era eu) gratificação í$000

Elvira 8$O0J

O francez 4^000

Senhorio lO^OOu

26$000

Foi na tarde do dia iminediato que a creada particular da Elvira, muito amiga do Pipclct, me esclareceu :

Que eu gratificava o Iraste (pois não era as- sim?) para que elle me facilitasse a Elvira.

Que o Francez o gratificava, para que elle me dilTiculiasse a Elvira;

Que o senhorio o gratificava para que elle a difficultasse a todos;

E que Elvira o gratificava, para que elle a facilitasse a todos.

Quatro patifes em um Pípelet, Felizmen-

144 o Rli^O AMARELLO

te, para nos vingar, <i. todos, eslava a crca- da particular que comia tudo.

Transporta-me o espirito às recordatjões su- pra o que me succodeu ha quinze dias com o Pipclct do prédio //,° 41 rua Barata Sal- gueiro - aWi na Avenida da Liberdade.

Sele horas da noite. Eu ia procurar um meu amigo, morador, por signal, no terceiro an- dar. Estava frio, e o Pipclct fecliara a porta e escondera-se no cul^iculo. Toquei três vezes no botão.

Abrese a porta. Pipclct surge -me, hediondo, e vocifera :

Quem o manda a vossemecê bater Ires vezes ? !

Meus oliios vagos procuram e marcam na face esquerda de Pipclct o sitio onde vae ha- ver um acontecimento. E digo :

Ninguém me mandou. Fui eu quem en- tendeu tocar trez vezes, visto que vossemecê não estava presente, para responder, á primeira.

o raso AMARE LLO

145

Eu não quero fallar ao meu amigo, mas heide dizer-lhe que é vossemecê uma besta muito grande. . . Responde Pipclct:

Sim V ! Olhe lá, que não me ponha elle na rua, o seu amigo!

Replico eu:

Não sei o que fará o meu amigo; mas, emquanto elle nào lhe diz «duas palavras», di- go-lh'as eu. Venha aqui fora !

Desço os dois degraus . Olho para traz de mim. A porta fecha-se ruidosamente. Eu es- pêro dois minutos. A. porta reabre-se, coisa de dois centiraetros, e a voz de Pipelet grita :

Seu estupedo !

A porta fecha-se outra vez...

...Faz-mc falta um amigo que está na ín- dia— o Fernando Leal. Se elle estivesse, iria bater três vezes, puxaria o Pipelet para fora e eu faria de Cabrion. Havia de ser obra divertida.

1^6 o líTSO AMAKELLO

Denuncio os Pipelcts aos senhorios, às El- viras e aos francezes... Os S. P. estão intei- rados: d'ora âvaiUe, em logar de verba, heide entender-me cora a creada particular.

?Í0Í<

FREI THOMAZ

^^ LEREM dizer os tres pontinhos que— Bem ^^ o prega o nosso homem. Toda a gente viu passar, ha tempos, duas cartas do Thomaz Ribeiro a um jornal da Beira Alta, cartas reproduzidas em varias gazetas conspí- cuas de regiões diversas^ como dois brados pa- trióticos de chupeta. Outra vez patriótico ! Mas, verdade, verdade, gosto mais do Thomaz em versos de metro vário.

Os versos são bons, por mais que os aboca- nhem os rapazes. A prosa não é ; dà-se, porém, um caso imprevisto pelo amigo do D.

1^8 o RISO x\MARELLO

Jaijinc: é que ninguém pôde lançar-llic em rosto as causticações e o supplicio do seu hc- roe, eraquanto que o respeito dos nossos ma- les modernos- . Vamos por partes, como diz o outro.

Em suas brauas epistolas aos de Tondella, todo se esbofa o nosso amigo de Carnaxide contra os bacharéis e conselheiros «princi- palmente bacharéis e conselheiros:*^ insiste o homem, e accrescenta: «prejudiciaes e inúteis.» E' sangrar-se em saúde, que frei Thomaz é conselheiro e bacharel^ mas não é inútil, nem prejudicial. Deponha... a senhora de Carna- xide !

Depois de haver estabelecido que aos conse- lheiros e bacharéis de raça devemos a base das misérias publicas, Frei Thomaz deixa-se invadir por «um grandíssimo dó, para os ministros de Portugal.» Veja bem, se tem olhos, o obnoxio Povinho resmungão :

o RISO AMAEELLO 149

Unem desperta um grandíssimo nas entra- nhas de Frei Thomaz não é o paiz om ban- carrota, nem o Zé, de á mostra, á falta de ceroulas e de fundilhos; quem aperta alli o co- ração de Frei Thomaz são os ministros de Portugal !.

«Imagine-sc pondera o nosso homem, o que será governar em Portugal, onde não ha soldados, nem marinha, nem dinheiro, nem gente!" Agora me parece tolerável que o se coce na cabeça, mais onde fòr servido, an- tes de se desentranhar em rcíiexÕes. . . Vamos a essas ricas reflexões !

'São temos soldados: é uma das causas da triste vida dos ministros. A opinião é de Frei Thomaz ; não parece todavia que seja a dos ministros que olham por coisas de guerra em terras portuguezas. Ahi tivemos nós á mão de semear, um ministro catita que passa muito bem sem soldados, ou aproximadamente. Fez manobras com generaes, officialidade c musi-

150 o RISO AMARELLO

cas, e improvisou um inimigo com vinte oito praças de fet e de^escte officiaes. Distribuiu commendas, vinho, licor e doces, atroou os ares saloios com um puin puni de mil pavores e accrescentou verbas especiaes aos seis mil con- tos do estylo. Soldados para que f Frei Tho' maz. que foi ministro da marinha, sabe como se vive som navios, e com um orçamento de grande respeitabilidade ; mas ahi temos outro porque de suas lamentações : Qao não te- mos marinlw. .'

Tenho uma vaga ideia de ouvir, quando tenro infante, falar de um Mendes Leal, mi- nistro da marinha, que, além de fazer bons versos, fazia navios de guerra. Depois, abri os olhos ás coisas da vida e notei que os minis- tros da marinha, mais ou menos dados ao culto das Musas e á exploração da rhetorica, fazem esquadras de meias cascas de noz, para entreter os meninos ; fazem almirantados , dão- se, uns e outros, ao gáudio do arranjo nacional e disse. Do nosso Frei Tiiomaz, quando mi- nistro da marinha, consta-me que não fez coisa nenhuma. E' muito para tão bonita cabeça !

o RTSO AMARELLO 1^1

Que não te/nos dinheiro. A isto responde o bom que bem sabe por onde clle se tem sumido. Não é preciso que lh'o digam os jor- naes revolucionários : bastam, para dar com a língua nos dentes, os conservadores demora^ dos na opposição. Mas é melhor não cultivar banalidades.

Qae não temos gente: «gente para traba- lhos sérios» accrcscenta o nosso homem. Não f ! Então quem fez de Carnaxide selvática um ninho fofo e quente? E quem brindou com seu rico telegrapho a ignota Parada de Gon- la ? Verdade seja, que são estes os dois factos sérios da nossa Historia moderna, e devidos ambos á iniciativa potente de Frei Thomaz critico patriota, mesmo a [saltar. . . cicinho l

Sério, sério, ó Zè!... mas, sério o que? Gúme-lliG e bebe-lhe, emquanto se não acaba o mundo dos patriotas !

VEJAM ISTO !

t-ryv3

|ndam por alii amigos do s:overiiO a quei- è xar-se e com um bocadinho de razão,

vamos com Deus I de que os mau.s patriotas folgam com as desgraças do paiz, para que se estendam os governantes. Repito : ha no facto dos queixumes certa razão, pois que o procedimento dos taes fróguezes é^ sem duvida, obnoxio e (|uieá um tudo nada pati- fuso. Se os «patriotas», depois de conjuradas, por um esforço de toda a gente portuQuc^a, os difticuldades externas, resolvessem tomar con- tas severas a quem as originou, claro que em

^54 o RIí^O AMARELLO

Ino correcto proceder não acharia nesga de lombo, para ferros, o mais dextro bandari- Iheiro. Mas, como quer que no descalabro da coisa publica avultem responsabilidades de to- dos, não ha esperanças de julgamento onde existem réus.

E' por esta razão a consciência de seus peccados e ainda por outra superioridade ve- lliacaz os cálculos dos patriotas no ostracis- mo, ou a dez passos da manjadoura, sobre o muito que pôde render em paparoca o sacri- fício do poder: é por tudo isso que os sizudos farçolas se absteem de aguardar os aconteci- mentos c de pedir contas aos «criminosos», e berram pela quôda de um governo, sem dis- cussão, nem lórmulas de juramento. «Abai- xo o ministério, pois que o estrangeiro nos sa- code o pêllo

Como quem diz : «Ora, ainda bem que o rico estrangeiro nos abre, á força de coices na Pátria, o accesso á palhada do poder!» Não ha nada mais pulha, ricos filhos I

o RISO AMAKELLO 155

A não ser oulra coisa, de ultima hora, e essa é de três assobios. Quero eu referir-me aos protestos contra os maus sentimentos que exploram as desgraças de um povo em pro- veito de um partido e á pouca vergonha dos protestantes, quando os vejo nas condições que eu denuncio. Nada menos que esta coisa que vossemeccs vêem :

A braços com os alentados mariolas que da- vam por Custodio de Mello e Saldanha da Gama, achou-se durante sois mezes a republica bra- zileira. Descalabro financeiro do paiz, perda de vidas, ruina de particulares, a revolução purificadora servindo de pretexto a ejaculações d'asneira5 de cem mil velhacos subalternos, a favor das bellezas do passado podre : taes os miseráveis tópicos para a historia da sujíssima aventura. Gomprehende-se, todavia, a anciã, a fúria dos traficantes que no advento da Re- publica encontraram embargos á prosperidade, ao accrescentamento em bens e distincc<'»GS. E'

io6 o RISO AMARELLO

a lucla pela vida pandega. Mas o que ultra- passa, por forma indecorosa, os limites da re- gular patifaria c aquillo dos nossos patriotas que ardentemente desejam a ruina d'uni paiz ruina financeira e perda de vidas e fazen- das,— porque um systema resvale ao des- crédito do systema que disfructamos ou an- tes do systema que nos disfructa. Opina ura vulgar pantomineiro— que ta/ném se trata da lucta pela vida, n'essa coisa de desacreditar a Republica : c alji temos n('»s uma correcção de magarefes, que estonteia as pessoas de since- ridade : os ricos patriotas portuguezes que pe- dem aos santos da sua crença a ruina e a des- graça do Brazil j)ara que se estenda o systema que llies desagrada; e que, entre nós, no seio da mãe pátria, pedem ao estrangeiro todas as aíTronlas e sobre a pátria todos os dissabores para que se estenda um go- verno.

Isto os da opposiç;">o. Os governamentaes queixam-se, com certa justiça, de que lhes con- vertam o seu governo em bode expiatório de sessenta annos de pagodeira e fazem votos

o RISO AMARELLO 157

aos céus por que a Republica do Brazil recem- nascida boja de expiar as trampolinas de que sairam os millionarios do Impeeio.

Cheira a fedor, ^ ou eu não sei o que c nariz !

POLITICA

^^E me pergunlam «onde está o inimigo,» ^^ eu respondo sem hesita<;Ões : «Na oppo- siçao monarchica. « Tirem d'ahi os rege- neradores; guindem ao poder os progressistas, ou o dos carapai/s, ou qualquer grupo de furta cores, e eu responderei à tal pergunta : «Está na opposieão monarchica o inimigo.» Claro, como o branco d'um ovo, que ao regimen da monarcliia devemos as glorias e os proventos de que á ultima hora nos ufana- mos á face do mundo. Isto assente e compre- hendido, cada governo que surge é um auxi-

HíO o RISO AMARELLO

liar em descrédito do systema: assim o en- tende o mais illustre dos conselheiros espe- cialistas em unhas encravadas, quando funga do interior da careca: «O dever de lodo o bom cidadão consiste em dar forea ao gover- no.» E' o inslincto de conservação, que falia á ratazana vulgar, a qual destroe e não ci- menta o pardieiro.

Dar for«;a ao governo na phrase da nul- lidade confortada é fazer parede contra an- notnçõos audaciosas, critica irreverente, tudo o que tem foros de ideia. Ha no fundo de um conservador por instincto dois inquisidores. Um papagaio é mais traiçoeiro que um abutre.

Xo rápido declive em que marcha esta lin- deza da nossa vida histórica não ha ahi jar- retes firmes de politico que moderem a velo- cidade adquirida. O amável systema constitu- cional, que sophismou os direitos do povo, cer- ceou, ao mesmo tempo, a forca da auctorida-

o RISO AMARELLO 1(>1

de suprema. Os nossos avós foram comidos pela Carta, mas a monarchia, fingindo transi- gência, perdeu força relativa para o Mal e perdeu-a em absoluto para o Bem. Pôde o systema corromper, devorar, perseguir segun- do as formulas com violações^ ou scin ellasy mas não pôde enforcar o cidadão, nem moêl-o a cacetadas, como nos obnoxios tem- pos do Miguel : ahi a perda relativa nos do- minios do malefício. E'-lhe absolutamente impossivel sustentar um grande ministro, re- formador e austero, contra as conspirações dos que engordam refractários a austerida- des e a reformas : na esphera da acção bené- fica está solidamente manietada.

N'estas circumstancias, cada governo que succede a outro governo é um factor de desas- tre moral para o systema que nos pôz na es- pinha, o que deve atenuar suas culpas, á barra do julgamento popular. E ahi está a ordem de censiderações que me estabelece firmemente n*este apparente paradoxo politico: «Está na opposição monarchica o inimigo.»

162 o RISO AMARELLO

Dadas as condições sentimentaes de impres- sionabilidade e de confiança, que resultam do temperamento meridional com uns pósinhos de relaxação : dadas estas condições como ca- racterísticas do amigo Portuguez, succede que um grande bolas, ou um grande traste recem- cahido da cevadeira governamental, passa, a breve trecho, á qualidade de perseguida, de victíma, de alvo de mysteriosos rancores. Foi no governo um inepto, ou um tratante; es- tendeu-se ; desata na opposicão a berrar pela moral politica e contra as violações da cons- tituição: lentamente ou rapidamente, segundo a estação do anno, moderada, ou quente, ou regelada, o homem reconstituo o seu grupo. Succede ás vezes que um governo lucta com os encargos resultantes das medidas que elle deixou. Não importa ao moralista, n«m im- porta ao publico. Caiu o homem ; prega con- tra 03 abusos : converte-se em fagueira espe- rança : lavadtnho^ está como nono !

o RISO AMAEELLO 163

O que se com um individuo succede com um partido politico. Devorou, esbanjou, atro- pellou, favoreceu estúpidos e marotos; traiu povo e rei, alternada ou simultaneamente. Um bello dia, accorda substituido. Um mez de si- lencio; d'ahi o esboço de ameaças, promette revelações sobre os motivos da sua queda, in- sinua que a sua desgraça lhe provém do seu patriotismo e do seu respeito pelas liberdades publicas. E' victima, é martyr; á meia volta, é outra vez uma esperança...

E assim o sentimentalismo d'este bom povo adia soluções, á espera do que ainda pôde fa- zer aquelle homem ou aquelle partido em op- posição severa : e assim se fundamenta como verdade de estalo o meu supposto paradoxo : «Está na opposição monarchica o inimigo do paiz.»

W

SAÚDE PUBLICA

ASSOMBRADO fiqueí esta manhãs quando uma velha gorda minha visinha, assaz alco- viteira era seu passado e besbelholeira por todo o sempre, veiu á rua e depositou á beira da sua porta um respeitável embrulho, sobre o qual se precipitaram sem detença os <?uatorze gatos da visinhança. Esfarrapado o invólucro, sairam tripas de peixe, e durante o dia os restos do festim dos bichanos esmalta- ram, á luz do sol, as pedras da calçada, pondo no ar umas fragrâncias de cloaca suja, e rega-

166 o RISO AMARELLO

lando as vistas com o furta-côres das podri- dões mimosas.

O caso de á rua descer a velha gorda ex- plica-se por um sério aviso do dono da casa: «A policia recebeu ordens. Vejam agora se atiram com as tripas do peixe ao meio da rua ! Diz que faz mal á saúde publica

Em homenagem á saúde publica e á policia, a boa velha absteve-se de atirar da janella, como costuma, a tripalhada immunda : veiu depo8Ítal-a no passeio. E se, depois d'isto^ me disserem que a nossa gente é insusceptivel de educação, sebo para a critica !

Hão de ter ideia de eu haver annotado as relações sociaes das creadas com seus patrões: a diffiouldade de encontrarem elles uma boa creada e ellas uns patrões bons. Era aquillo da falta de respeito, por demasias de confian- ça, da falta de moralidade, ou de senso moral, ou de senso pratico, a corroer o lar e as suas intimidades. Agora lhes falo de creadas, a pro-

o RISO AMARELLO 167

posito da hygiene, pois que as diarrhéas da cholerina puzeram em scena as preterições hygienicas.

Tive eu em tempos ao meu serviço e como companhia única uma creada «de respeitável idade» (esta declaração è para as meninas casadoirasj. Era séria, conspicua, silenciosa, de boa pratica nos cosinhados picantes : era emfim uma creada confortaviel. Descobri um dia que uma determinada aranha estabelecera na casa do jantar, a um recanto, precisamente junto ao meu logar, uma teia de formidáveis dimensões. Chamei sobre o caso a attenção da D. Josepha era Josepha o rico amor! e eu próprio demoli a teia com a minha ben- gala. No dia immediato vi a teia reconstruida. Calei-me e esperei uns qumze dias. . .

Ao termo dos quaes, fiz observar á D. Jo- sepha — que as rainhas occupaeões não me permittiam a necessária assiduidade no servi- ço da limpeza caseira^ e que, portanto, eu lhe pedia que a seu cargo tomasse aquelle assum- pto de teias d'aranha^ etc. Foi-me respondido que todos os dias tirava a maldita da teia

168 o RISO AMARELLO

e que a maldita da aranha, tornava áquella pouca vergonha.

Calei-me, e, sem que D. Josepha o notas- se, colloquei na teia um miolo de pão. Ao cabo de oito dias, estava a teia com miolo e tudo. Conclui pela relaxação da mulher e passei a observar o seguinte :

Que debaixo da minha cama nunca pene- trava umn vassoura. Havia camadas de lixo, que, com os micróbios respectivos á poeira, justificaram o meu furioso catharral;

Quo a D. Josepha accumulava, dois e três dias, debaixo da chaminó, a? coisas do barril do lixo, deixando passar a carroça, sem se lembrar de despejal-o ;

Que a mesmissima D. Josepha deixava em duas escarradeirns de vidro realisar-se a pe- trificação... do que caía;

Que no cesto da roupa suja havia obra ac- cumulada a perder-se na noite dos tempos;

Que na pia da cosinha entravam os só- lidos;— agua, que os impellisse, dava massa- da á D. Josepha ;

Que, emfim, a raulhersinha não possuia

o RISO AMARELLO 169

objectos de toucador, e servia-se com os meus pentes, etc.

Demoli a teia que a D. Josepha armara so- bre a minha confian<2a, e puz no meio da rua aquella aranha. Nao a substituí porque a D. Josepha era a decima terceira creacUi que eu contractara em pouco mais de um anno. E todas porcas!

Vem isto para chamar, a propósito de pre- tensões hygienicas, a attençâo das donas de casa as que não commungam nos principios da D. Josepha sobre as fa«_'anhas escondidas de suas excellentissimas creadas. Deus me li- vre de aggravar, com tal aviso, os brios da D. Felismina, creada do commendador Fran- cisco, que traz a casa um verdadeiro palmito e que tracta do que è seu diz o pérfido porteiro ás collarejas. Mas, regra geral, onde uma D. Josepha tem a seu cargo, sem fiscali- sação superior, a suppressão das porcarias ca- zeiras, se o cholcra o legitimo —não se di- gnar honrar-nos a hospedagem, não será por falta de vehiculos.

o TAL DIA!

TEM ahi, veloz como am raio dos diabos^ o % dia da renda de casas, -das afflicçoes "'" e das caganifancias. Está-me alli a fazer si-naes o Quinhones vidraceiro, e eu bem en- tendo o meu velho. Quer elle dizer, na sua, que ainda faltam vinte e dois dias para que um ho- mem «se explique. -em pagamentos ou em fogareiros resolutivos de causticaeoes. Quinho- nes tem sempre, para a dia 20, do.s fogarei- ros a postos, com o respectivo sobro, e co- meça no dia 18 a batalha, que não é precisa- mente de flores. Se em <|uarenta e oito horas,

172 o RISO AMARELLO

bem mexidas, lhe não acode o Mysterioso, com os quarenta mil e quinhentos do semestre, Quinhones bem sabe o que lhe cumpre ; mas isso é para o dia 18.

A impassibilidade de Quinhones deixa a perder de vista a dos criminosos celebres que, após a condemnação é morte, esperam em ul- timo recurso a clemência do chefe do estado. Quinhones, réu de extrema penúria, está con- demnado ao fogareiro e espera, fresco e tezo como saloio em véspera de matrimonio, que a clemência do Acaso o conserve ao Torreano e ás iscas.

Tem a sua variante ao Luiz XV : «Quem vier atraz que feche a porta

Nem todos os lisboetas fruem o stoicismo do meu velho amigo. Ha sujeito que, desde a aurora do dia 1 de janeiro, não pensa n'outra coisa que nào seja o dia 20 de maio. E nem todos são réus de penúria. Ha, por exemplo, o Felisberto *das notas» assim chamado por-

o RISO AMARELLO 173

que O pae morreu no degredo em Africa, onde expiara e hábil fabrico de notas falsas. O Fe- lisberto, que vive da sua agencia, não faz me- nos de cincoenta mil réis mensaes e, vivendo com a mulher, tem de despeza certa trinta mil riis. A renda da casa é de trinta e seis mil réis por semestre, ou seja seis mil réis por mez. Pois^ senhores, nunca o raio do Fe- lisberto conseguiu extrnhir, dos vinte mil réis que lhe sobejam, seis mil réis para o paga- mento da renda. Yae-se-lhe tudo em «extra- ordinários», de que elle mesmo não sabe dar conta. Succedeu que eu uma vez lhe pedisse um esforço de memoria sobre os dispêndios extraordinários^ e o Felisberto, depois de sé- rias mafutaçÕes : «Eu sei lá, homem ! Olha! em bilhetes de visita gastei hoje dois tos- tões! E' o diabo esta coisa dos bilhetes

Lembra o alpista do outro; pois não lem- bra?

Elle é o casaco novo, é o jantarinho no Ta- vares, é o charuto de três vinténs, é o brinde

1T4 o RISO AMARELLO

á Faustina em beneficio, é as luvas inglezas com os flammantes «vivos», é as «coisinhas» do salchicheiro francez : é o grandíssimo diabo das fraquezas reles, a lançar um justo na per- dição 1 O Felisberto jura, qual batoteiro crys- talisado, jura todas as noites ao consultar os desfalques, cohibir-se severamente dos des- perdícios, mas, com a invasão do alegre sol na sombria alcova dos juramentos, dissipam- se os remorsos, e os pavores e uma nova orien- tação installa-se no animo do fréguez : «Para que diabo me estou eu a ralar, se posso mor- rer d'hoje para amanhã? Então eu não heide desenjoar-me do estúpido fígado caseiro, co- mendo a minha perdiz no restaurante? E d'ahi, a vida são três dias : vamos espremendo a teta dos «extraordinários

E por tal modo espreme a teta que o tal dia 20 estoura-lhe uo casinhoto e Felisberto põe na cabeça os pés de cima, n'uma ataran- lação que não tem nada de philosopho. Esta manhã o encontrei eu na rua de D. Pedro V, e disse-me o diabo do homem : «Estás ama- rello ! Porque não vaes tu para o campo ? Eu

o RISO AMARELLO 1^5

quando sinto desarranjo vou para o campo. Que a vida sâo três dias ! » E' o que mata es- tes demónios : tratarem muito da saúde !

Se eu quizesse dizer-lhes o que me consta, iodos os semestres, em vilanias, fajardices, hu- milhações, quedas de homens e mulheres considerados e que á primeira dôr de cabeça vão para o campo !... Deus de nossos pães! eu não alvejo com estas reflexões os desgra- çados que se estorcem diariamente na con- quista do pão da farailia e a quem não sobra para /)ô/' de parte. O que me está buzinando nos ouvidos é aquillo do Monte Pio Geral a encher-se de penhores em vésperas de via- jatas régias e de batalhas de flores !

BEMFEITORES !

f^AL ! o meu Bem Esta é do Mil- ton e, observadas de perto as misé- rias do mundo, é de toda a gente. Nos desastres nacionaes encontram o seu Bem as opposições, que os lançam á conta do go- verno; na morte de um homem rico está o Bem dos herdeiros que não morram de amo- res pelo sujeito; está o Bem da menina vir- tuosa na queda da sua amiga, quédB que mais exalta o poleiro da sua virtude; e, che- go ao ponto, está n'uma invasão epidemica o rico Bem dos negociantes de específicos

178 o EISO AMARELLO

phormaceuticos, droguistas e amadores de sal- vação.

Aqui está um^ nos jornaes, que nos conta a historia de duas colherinhos de certa coisa, que ao pae receitou um sábio, nos Brazis, e que o salvaram do cholera por todo o sempre. Vingou, o pae, colher da generosidade do sá- bio n receita da tal coisa e legou-a a seu fi- llio, que hoje a annuncia nos papeis, na Lisbia adorada, e que a vende na sua botica rua de tal, numero tantos. . Não digo! Era o que faltava,

Nota curiosa d'esle especifico de pae a fi- lho:— «E' inteiramente vegetal e por isso in- nocente. » Diabo de historia! Agora vejo que teem algo de animal os cogumellos que ma- tam quem os come. Torpes animalejosl

Em toda a linha, tem sido uma pagodeira não para os médicos, tolhidos pela impo- tência do bacillus, mas para os homensinhos das drogas e dos vegetaes, escarranchados no

o RISO AMARELLO 1'^

pavor das famílias. Em melancólica pasma- ceira se finava o droguista Fagundes, da rua do Capellão, sem que viva alma lhe desse im- pulso ao commercio, a não ser em pôs da viscondessa, para a dentuça das vizinhas. Pois, meninos, ha quinze dias para cá, todo elle se escagarrinha em chloreto de cal, para as pias do Borratem. Cincoenta por cento sobre a droga, e não lhes conto nada : traz d'olho um prédio na Avenida !

Hade-me lembrar que o irmão d'esle dro- guista, um tendeiro de S. Paulo, tendo voci- ferado como um diabo, contra a Inglaterra e o Salisbury, a propósito do ultimo atum, ar- ranjou-se com a historia da manteiga, reco- Ihendo-a na baixa do descrédito e pondo-a f -ra, quando passou a mosca, com duzentos por cento sobre a mislella. Foi um encanto : limpou-se o estuporsinho do homem, e hoje empresta a 72*^'o aos patriotas implacáveis e sem vintém.

E ahi temos nós outro que achou o seu Bem nas humilhações da Pátria.

180 o RISO AMARELLO

A sério, se é possível, me quer parecer que á nossa adorada policia, nos intervallos das perturbações cupidineas que leva ao bojo da sopeira Josepha, e do regalorio dos espe- ctáculos, com subsidio pela empreza, não fi- caria mal, deitar o olho aos especiãcos, guian- do-se pelos processos do Pedroso de Lima na apanha de «quartos para alugar». Todas as manhas, um ou dois subordinados do bacha- rel Vidocq passeavam no Diário de Noticias as suas vistas e alli recolhiam em cuidadosa lista as moradas dos infelizes, escancaradas,, pela miséria, á invasão de toda a gente. Não havia licença registrada ? Multa sobre os pobres diabos! Encheu o papinho— a poli- cia !

que, tão implacável, caiu a fundo sobre os pobres de Christo com «quarto para dois amigos,» veja a sympathica instituição se vin- ga rehabilitar-se no juizo dos homens, mais. no tribunal do Divino, applicando-se á leitura

o RISO AMARELLO 1^1

dos annuncios na apanha de inventores de específicos! Faça lista; depois, faça colheita de amostras. Depois, que o Laboratório diga dos inventos e que os poderes públicos se preoc- cupem nos inventores. Se o especifico vale di- nheiro, compre-se com o dinheiro do paiz, e divulgue-se o mysterio, para utilidade geral. Se o especifico é uma burla tribunal e ca- deia e multa de bota-abaixo para o hemfei- tor!

Nada vos digo dos médicos, porque não me «praz a companhia de cem mil sujeitos que se espatifusam em chalaça diária áquella clas- se e que á minima esfoladura do focinho ber- ram pelo sr. doutor. Basla-me, para embargo a irreverências, que o doutor Sousa Martins, poderosa synthese de um talento enorme na vastissima base de um saber profundo e de uma abnegação incomparável proteja com a sua presença o ultimo dos insignificantes que

182 o RISO AilARELLO

O malsine de collcga. Veneração aos que nos salvam, e paz aos que nos salvariam, se pu- dessem ! Nenhum dos subalternos, que trope- çam no diagnostico e na receita, faz aquillo por mal ...

<GÍÍD' <?;?? «Gfí? <^'{ÍP V?^ <?í> 'í?í> <?^ 'GííC' 'Í?f5' «í^

ORIGENS

^ muito natural que nem todos os leitores^ feitos, embora, â imagem e similhança de Deus, no que toca ás exterioridades, é natural, digo eu, que nem todos possuam no sótão craneano a partícula divina que leva um homem a pensar como Victor Hugo, ou como o Pina, ou como eu. Refiro-me, para o caso de hoje, ao que acontece aos leitores de apurada intelligencia como a de nós três. Digam- me os cavalheiros se lhes não succede, como a qualquer dos vivos, e como

184- o RISO AMARELLO

succedia ao que morreu, transportarem-se a regiões da alta critica pelo caminlio do sim- ples facto material. E' assim como vossemecês vão vèr :

Segue o seu caminho, por S. Pedro d'AI- cantara, de casa para a repartição, o meu vi- sinho conselheiro Figueiredo, director geral. Faz sol. O conselheiro aproveita a sombra do arvoredo, para dar luz e ar á careca mages- tosa e brunida, cubicada pelas moscas como claro fundo para manobras pretas. Eu, sentado n'um banco, olho casualmente para a vasta fronte de Figueiredo fronte que chega até á nuca : lembro-me de Victor Hugo : lembro-me da Lenda dos Séculos : procuro na obra dos modernos, trabalhinho que se lhe aproxime da Lenda : nada que se aproxime : derivo- me á conclusão da decadência poética : cis- me em plena critica, a propósito da calva do meu visiriho !

Outro caso: Desço a rua larga de S. Ro- que. A dez passos de distancia vae uma saia carmesim no corpo de uma desconhecida. Lembro-me de uma saia d'aquella cor, que eu

o RISO AMAEELLO 185

conheço n'um corpo dos meus peccados : penso no tal corpo : penso na cabecinha da formosa: vejo-lhe os olhos os olhos da El- vira, não lhes digo nada ! Sobe o meu espi- rito á Bemavenlurança. . . Que vem a ser a Bemaventuranea ? Estou a contas com as re- ligiões, com a fé, com as lendas: em pleno criticismo religioso a propósito d'uma saia carmesim ! Não lhes tem succedido, meus filhos!?

Vem isto a propósito d'um telegramma que esta manhã esvoaçou ao alcance dos meus olhos fixos. Diz assim :

«Foi muito com movente a entrevista dos imperadores Guilherme e Francisco José. O imperador d'Austria abraçou e beijou muitas vezes o soberano allemão.«

Todos nós sabemos, e importa recordar, para o nosso fim que a Áustria foi pela fa- milia do Guilherme expulsa da Confederação Germânica, depois da rica batalha de Sado\va,

Í86 o KISO AMARELLO

na qual balallia cerca de cem mil homens, entre mortos e feridos, austriacos e prussia- nos e respectivos alliados, ensoparam a terra com o precioso sangue de suas veias. Dezenas de milhares de famílias privadas dos seus che- fes ou dos seus filhos, outras tantas despoja- das dos seus bens, pela devastação da guerra, morte^ ruina, miséria, lagrimas, o grande diabo do fedorento inferno ! E tudo para que a família real da Prússia occu passe na Confe- deração Allemã o legar da família imperial austríaca, correcto e augmentado em patifa- rias. Sobre tudo isto paz assignada e o Fran- cisco José beijando o Guilherme I, e conser- vando a sua ternura ao Guilherme II, o dos macaquinhos no sótão .'

Claro que o que se com as duas monar- chias dá-se com todas e póde-se dar com to- das as republicas, mais ou menos formali- dades. Os chefes de estado não conservam resentimentos pela bordoada que espatifou

o RISO AMARELLO 187

'o^ seus poços. Ha razões politicas, essa linda coisa que pÕe a França de cócoras em frente da Rússia e que leva os russos a darem vivas aos seus «amigos» da Criméa. E em toda a parte os bons povos estão ás ordens, para ap- plaudir a habilissima politica dos seus chefes de estado. Offerecem o lombo e a camisa, e a pelle e os ossos em homenagem á coisa na- cional, muito bem expioradinha pelos patus- cos que se beijocam. Não ha pandorga alle- mão, a pedir esmola, que se não julgue feliz pela grandeza do Bismarck e pelo predominio do império no concerto das nações! De tudo isto se origina e vem do telegramma dos beijos que à humanidade falta ainda não sei o que, para deixar de ser burra... Onde ha pretextos nacionalidades, coisas para que a comam, falta o brio vulgar, ou o vulgar juizo, que assiste ao tigre, quando desembai- nha as garras, e ao kagado, quando se mette na concha e deixa correr o marfim.

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A' URNA!

Fulgencio, alli da Santa Caza, não em- pregado, mas exposto; empregado é elle na telha e nos tijolos de Marselha, —ha Ires dias que não come, nem dorme e, diz a esposa, que não faz mais nada, a não ser tra- tar de si para o acto solemne que rebenta ámanhà como diz o cego. Tratar de si, mo- ral, intellectual, material e economicamente: tudo para bem do seu physico.

Fulgencio trata muito do seu physico. Não é egoista o Fulgencio.

190 o RISO AMARELLO

Ha^ pois, três dins ([ue elle medita e se agita olhando o facto e escarranchado nos seguin- tes tópicos d'arromba:

A questão de consciência : E' caso serio. Fulgencio é homem direito e por aquelle não se rebaixa o mundo. Quando acerta em ir com dois amigos ás iscas da A talava, pÕe logo a questão prévia : contas 'h Porto. Quando lhe fazem um favor, não dorme emquanto não res- titue. Não paga juros, porque odeia a agiota- gem. Assim, se lhe dão nm banano, elle uma castanha. E á noite espoja em familia a alma consolada. E' liso I

Votar no mais digno : eis o caso eleitoral. Fulgencio matuta no terreno das considera- ções moraes. O Desiderio oífereceu-lhe vinte e cinco tostões; o patrão da telha ameacou-o com a expulsão; o Baptista, padrinho dos dois pequenos, é credor de gratidão por favores, d'estes que prendem um homem. E' preciso servir todos três; mas como? E d'ahi não se trata de vis interesses. Qual dos recommenda- dos é o mais digno : o do Desiderio, o do pa- trão da telha, ou o do generoso Baptista?

o RISO AMAEELLO

191

Ha tres dias que Fulgencio matuta e vae tirando, com um pataco de benzina, as nódoas da íateote preta. Que o maldito sebo da gola está cada vez mais lustroso; parece chifre po- lido! E Fulgencio, esfregando e matutando:

«Os vinte e cinco tostões do Desiderio, se eu puxasse por elles, á ultima hora, chegavam a sete mil e quinhentos. Dava para um fato completo no estabelecimento da Gueixa aos al- faiates ! Não ê para desprezar. Mas se o pa trão me põe na rua, porque eu não pego na lista da casa? E o meu compadre Baptista, que prometteu sapatos novos ao Chico e ao Fortunatinho !.. . E, afinal, o principal não é isto. O principal ó saber-se qual dos tres vo- tos me deixaria em paz com a minha con- sciência ! . . . »

(Toca mais benzina! Nas calças, as joalhei- ras são de côr de burro quando foge. Fulgen- cio põe-lhes graxa de lustro e puxa-a com uma escova macia. F'arece que tem nos joelhos duas placas de verniz !)

192 o RISO AMARELLO

«Se eu rae guiasse pelos jornaes V re- flecte, com o semblante illuminado. Parece im- possível como as idéas acodem ás vezes^ quan- do a gente está mais atrapalhada! Talvez seja do cheiro da benzina!...»

Dito e feito. Esta manhã, Fulgencio gastou quatro e meio em gazetas, das mais façanhu- das e de diversos credos e matizes.

Estendeu-se de barriga para o ar, em cima do seu honesto leito de casados e^ emquanto sua esposa, a D. Genoveva, refogava um ba- calhau de apelite, Fulgencio leu 3 jornaes do partido do Desiderio, 2 do do patrão da telha, 3 do do compadre Baptista, e a Nação. Esta foi logo arrumada. Fulgencio é liberal de polpa.

Ora, da meditada leitura dos oito periódicos politicos, extrahiu Fulgencio estas noções so- bre os três candidatos recommendados á sua consciência :

Que o A está carregadinho de roubos.

Que o B é um piteireiro de marca X.

E que o G pontapés na familia.

o RISO AMARELLO 193

As gazetas lh'o affirmam, Ih 'o juram e lh'o provam se tanto fòr preciso.

Não ha de ser preciso. Fulgencio teve uma idéa que o fez saltar da cama, como se D. Ge- noveva o chamasse a berros contra um crime hediondo. Saltou da cama e ficou extactico, assombrado de tanta luz interior...

Até que D. Genoveva lhe gritou, da cozi- nha : «Está prompto o bacalhau, ó mono!»

Sentou-se á mesa, e, no seio de sua familia, a contas com o almocinho, pòz para ali o seu plano :

«Visto serem três indignos, acceito as três listas e voto n'uma, á sorte. Recebo do Deside- rio, fico bem com o patrão e tenho sapatos para os pequenos. E fico bem com a minha consciência.»

Metteu n'um sacco as três listas; um dos pe- tizes tirou uma, que Fulgencio dobrou sem ler como fazem os galiegos ás cautellas, e amanhã vae mettel-a na greta!...

Declaração solemne e pessoal : A mim nin- guém me tocou em nada.

i3

RHETORIGA

"Tíí'"^' santo homem que foi muito meu ami- tíM' °*^' *^''^ ^ poeta hespanhol Ruiz Agui- lera, que Deus tenha ! dizia-me um dia, á conta de haver lido alguns jornaes porlu- guezes : «Assombra-me como tudo isso ahi se escreve impunemente. Em Hespanha, a meio caminho dessas campanhas jornalisticas, leria havido morte de homem

Estava eu agora a deleilar-me suavemente nas recordações dos tempos de Aguilera. Foi a propósito de leituras nefandas <"' jornalismo politico, em quaes leiluras, realizadas na cama,

I

190 O RISO AMARELLO

antes de pegar no somno, me foi dado sabo- rear amenidades d'e5te theor causticante : O alentado ladrão da fazenda publica. . Veja-se na sua obra de latrocinio esse gatu- no ^ espécie de polca sinistro. . .

Polvo I sei ! Foi antes de pegar no som- no; e da cama berrei á minha creada que não lhe esquecesse polvo para o jantar seguin- te ! E prosegui na leitura :

O pai:? hade ai fim fa-^er Justiça, pendu- rando 11 um pelourinho os traidores como esse depravado mariola...

Apaguei a luz, e adormeci, á similhança do mariola dcpracado.

Esta manhã, quando acordei e a minha creada me perguntou se o polvo teria de ser com arroz, lembrei- me das descomposturas da véspera, e senti- me rir por dentro. De- pois pensei no Aguilera ; d'ahi nos pescadores de Espinho . . e n'um medico meu amigo, o José Augusto Vieira, que ha quatro annos se foi ao descanço. . . e n*outro meu amigo que tam-

o RISO AMARELLO 197

bem se foi— o Cnmillo o grande Gomillo Castello Branco I E agora volto a pensar co/n mais força n"aquelles homens a propósito de descomposturas politicas e da serenidade com que se apanham. . .

Pescadores de Espinho.— ^e ainda os não viram na praia, ao tirar das redes, fulos, pu- lando de raiva, dizendo as ultimas e chegando os murros fechados ás caras uns dos outros: se depois d'isto não notaram que nunca ha um estalo entre os furibundos da classe é por- que são encravadissimos de entendimento e de critica.

Passo ao grande Camillo. A toda a hora esse desventurado falava no suicidio. Durou annos esta preoccupação. Falei d'ella um dia ao meu pobre José Augusto Vieira, e o me- dico tranquillizou-me :

Esteja você descançado. A' forca de fallar no suicídio e de pensar n"elle, um homem chega a dar ao seu espirito a fadiga impotente de um elástico repuxado.'

Era isso. Um elástico lepuxado ! í:::fe'iz- monte, aquelle ainda serviu í...

lí^8 o RISO AMARELLO

Um elástico repuxado ! E' o caso dos pesca- dores de Espinho todos os dias a toda a hora, n'uma berrata prenhe de ameaças, uma visão horrífica de sôccos e pontapés e no fim a serenidade indifferente do mar em cal- ma. Nem sombra de um biscoito I Santa con- fraternidade !

E ó assim que os meus collegas do jorna- lismo politico assombram o indígena pelo seu cynismo. Trocam as ultimas. (Eu troco, tu trocas .') e não ha meio de aquecer a có- lera até ao rubro í O pah hade dependurar esse mariola. . . Ponham os olhos nesse alen- tado ladrão... Cuidado com esse polco si- ni.^tro .'. . .

E' verdade, ó Maria Cândida ! Cuidado com esse polvo sinistro, e cuidadinho com o arroz» ô menina !

OIÇAM LÁ!

[,Wma bella manhã de julho como se usa- 'J va ha trinta annos, dizia-me certo ho- mem publico assaz pratico em maroscas e em ingenuidades d'este mundo : «E' coisa que muito me assombra a sua brandura! Se você quizesse, poderia fazer mal. Você tem visto, e sabe dizer o que tem visto.»

Sensível aos affagos no amor-proprio, para alli fiquei a derreter-me. Com que então^ se eu quizesse, a coisa cheiraria a esturro?!... Fe- lizmente, liquidei, de ha muito, em santa con- formidade. Deixar correr! estou velho: tenho

200 o RISO AMARELLO

cem annos, tenho cem mil annes, e sei o que vale o auditório d'um pregador— n'esla aldeia. O Fialho d'Alraeida, que ha dias se retirou á provinda, não se preoccupou nas manhas do auditório: sacrificou-se ao espirito dos Evangelhos, e fez chover do alto do púlpito, du- rante annos, castanha brava em cima de mil cabeças de burro, mais das cabeças dos bu»'- riqueiros quando estes achavam graça ao flagicio. E" obra «de uma canna" toda aquella tempestade dos Gatos. No declinar do seu vi- ver, quando o pujante sarcasia houver de con- sagrar uns serões á leitura d'aquella obra, poderá cotejar cada pagina de verdade com os embargos, as calumnias, e as escornadellas que soffreu e que lhe ennegreceram os hori- sontes da vida. Nada se perde em dissabores para quem um dia reagiu contra as podri- dões da maré. A canalha máxima tem regis- tro dos seus vergões e salda contas a longo prazo. E' o conhecimento d'esta verdade que me conserva n'um retrahimento suave^ quasi idyllico. Pelos alentados patifes tenho a con- sideração relativa á potencia dos seus caninos

o RISO AMARELLO

201

e ó dos seus chavelhos. Não me metto em dancns.

Finlho d'Ahiieida não se contentou com os serenas glorias da sua arte pura. Se elle, li- mitando a sua actividade á producção das mais bellas paginas da litteratura dos Moder- nos, houvesse deixndo no pasto os felizes do seu tempo, é de crer que liquidasse em diplo- mata acreditado em Honduras. Deu-Ihe para provocar os bichos, esquecendo que o im- mortal trocista Camillo Castelio Branco teve de vender os livros, acho que para pagar á tenda a margarina ingleza, e desconhecendo talvez, o meu Fialho, aquellas palavras do Teixeira de Vasconcellos: «Nunca expiei os malefícios praticados, mas sim, e cruelmente, as verdades que deixei cair.»

Gratamente me impressionaram umasderaons- trações de sympatiiia que o combatente ha dias retirado obteve de numerosos escriptores mo- dernos. Mas ha um ponto, na chronica, que

202 o RISO AMARELLO

se me afigura eivado de satanice: é aquillo de um noticiarista lhe consagrar esles dizeres si- nistros: «Que o illustre escriptor, depois de retemperado na vida de provincia, volte ao combate, com uma pujança nova

Dado que os vae-vens da minha accidentada existência me levassem um dia a descançar, vivinho e fresco, em terras provincianas, e que eu vingasse arranjar «uma pujança nova»

como lhe chama o outro, esperta seria a civilisação moderna, se lhe deitasse o dente ! Carnes velhas, carnes mortas e carnes podres

é o que cumpre ao banquete contemporâ- neo ! Um philosopho das minhas relações di- zia-me ha dias : «N'este meio social em que vivemos, o individuo tem, ao entrar na pra- ça, uma bala prezo á perna, por uma grilheta de ferro. Se não limar a grilheta^ se não se desprender da bala, não chegará a ser coisa alguma. A bala chama-se a Honra,»

E' azedo como o d'um pepino : mas a isto chegámos pelos modos. . . Digam-me os ele- vados espiritos e os honrados caracteres^ que por ahi agonisam no viver escuro, se os não

o RISO AMARELLO

203

humilha^ se os não degrada, se os não avilta na dignidade da espécie o ar triumphante de mil e um bisborias, que, para serem «gente» tiveram de limar a tal grilheta I Digam se não escorre do quadro e moldura a quin- tessência de phantastica podridão! Digam, que eu estou calado^ porque me não conspur- quem os focinhos d'estes mastins !

ENTENDEM-N'OS ?

'avia mais de um mez que eu não tinha no- *s^ ticia do commendador Francisco, quando esta manhã esbarrámos (salvo seja !) um -Com o outro, ali na alameda de S. Pedro d'Alcantara, onde ambos, de nariz no ar, nos occupavamos em admirar os passarinhos. Fica bem este bucolismo a velhos scepticos muito espicaçados por abutres, pássaros bisnaus e passarocos de bico amarello, que nos dão a pre- libação do ajuste de contas com os vermes da sepultura.

Está orordo o commendador. Veiu do Minho,

206 o RISO A»L\RELLO

onde, em Famalicão, pelo que me diz, honrou, na estalagem da Eugenia o desacreditado es- tômago lisboeta, devorando em presuntos e gallinaceos quanto importaria ao sustento de dez frades, ou de vinte náufragos, ou de um amanuense. Está gordo e vem saturado de ale- gres philosophias, á conta das mixordias poli- ticas e outras escorrencias da patifaria na- cional.

Sentámo-nos n'um banco, olhando para os lados do Monte e da Penha de França e dé- mo-nos a recapitular tudo isto de que vosse- mecês teem noticia.

Pouco li em jornaes, me disse o commen- dador ; mas vi o bastante para concluir que está tudo mais ou menos doido.

E eu, sentindo despertar as fúrias da velha lingua :

Pois é dos livros !

Uma que me deu no goto, estava eu em Guimarães, e li a coisa n'um jornal do Porto, remessa de Lisboa, foi a historia das cobran- ças, com intimação, penhora de tarecos, o diabo !

o RISO AMARELLO 207

(Pausa).

Bem achado o processo, conLinuou Fran- cisco, e tanto mais que todos vocês, os da im- prensa, não pediam, havia mezes, cutra coisa. Pareceu-me apenas, e confesso que me des- gostou, que vocês soffriam desgosto, por se verem assim tão satisfeitos.

?!

Tenho uma suspeita de que não ha coisa com que vocês embirrem como aquillo de um governo os satisfazer a vocês na oppo- sição, realisando medidas indicadas e intima- das.

E' claro, tira -nos assumpto.

E pretexto para lambada, hein ?

Clarissirao.

Muito bem. Comprehendo, sem esforço. Estão vocês no seu officio e estão correcta- mente, mas como diabo se explica a opinião publica 1

Quero cu dizer : toda a gente reclamava, com CS jornaes, a execução dos devedores á fazenda. Em Famalicão, como em Ruivães.

208 o RISO AMARELLO

como em Lisboa, ouvi eu protestos de mil dia- bos contra os governos que não perse/juiam os caloteiros. Que era tudo a mesma sucia, que se entendiam e arranjavam: uma grande choldra ! me dizia um abbade minhoto, á mesa da Eugenia, com o entono d'um fre- quentador do Mar^ tinha. Vae d'ahi o governo salta nos devedores, e a opinião coUoca-se ao lado d'elles !

Bom coração !

E boa cabeça de burro! Veja você: vão os officiaes de deligencia em sua missão, e re- trocedem corridos. Seria natural que o juizo publico se revoltasse contra a audácia do de- vedor que os correu. Nada d'isso, que eu bem ouvi! Foi uma berrata de troça aos pobres ho- mens do fisco : que era para saberem como ellas mordem; que alli é que ellas se pagam ! Seria humano que os pobres se revoltassem contra a petulância dos devedores ricos, e to- massem o partido da Lei. Seria lógico, a quin- taesseneia da lógica, que a opinião applau- disse a moralidade reclamada por vocês ha um anno e tanto, com applauso d'ella. Afinal...

o RISO AMABELLO

209

E' tudo claro. Eu explico...

Claro como o nariz de um preto 1... Va- mos almoçar ao Tavares!

Fomos.

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PESTE !

'Xgf^^ vinle annos e pico, era moda a frizada JEL3 trunfa, o rolo de papeis na dextra e o pizar de palco. As inteUigencis de truz concentravam-se no theatro Taborda, mais no theatro do Aljube e quem não era Talma era burro. Lembro-uie do Granate, muito pratico em explosões de Tasso e que no Frei Caetano Brandão despertou flatulências n'uma geração afflicta, me haver dito uma noite no Passeio Publico :

Você anda- se aqui a perder 1 Você vinha a dar um cvnico 1

212 o RISO AMARELLO

E durante um mez, eu em casa fazia a in- dignação de minha avó, quando, encarando-a fixamente, bascolejava um risinho de mofa e encolhia os hombros, voltando costas á an- cian. Era cynico ; e a boa velha : «Tu des- andas para maluco, mas teu pae chega-le

Era trágico. .

Deram em droga os Talmas, e estendeu-se- Ihes um grande ridículo sobre os nomes e os feitos. Desertaram os finórios, quando o No- ticias vulgarisou o fino gosto pela instrucção, mais pelas lettras. O tyranno Galvão expe.lliu um romance philosophico para o Panorama resuscitado, e a ingénua Livramento esguichou no Almanach de Lembranças dois sonetos com crimes hediondos embryonarios. Vieram da comparsaria os Araujos, com odes, folhetins, devaneios^ operas cómicas e bufas, uma tram- picalhada que excitou fora os Formonts da madureza, e dentro deu alento á legião dos fa^e ahi^ não jsás mais longe, uns caguin- chas, de quem diz o Pato em veia critica : «A falarem d'amor, e não teem por onde se lhes pegue.»

o EISO AMARELLO

213

Esta epidemia de litteras, expiação de ve- lhos peccados de uma raça de maus íigados, teve um martyr, e a historia do martyrio vinha a ser uma das melhores que o pobre Guilherme d'Azevedo contava aos seus ami- gos. Era o caso de um rapazote, o Mesquita maluco, alumno do Collegio dos Bernardos, publicar todas as semanas, na primeira pagina do Noticias :

«Está ligeiramente incommodado o litte- rato Alipio de Mesquita ;

Aggravaram-se os padecimentos do litte- rato Alipio de Mesquita ;

Está felizmente melhoro lilterato Alipio de Mesquita."

E recomeçava todas as semanas. O Guilher- me tinha phrenesis, e devorou-os até ao dia em que me cahiu nos braços, berrando :

Apanhou uma sova o litterato Alipio de Mesquita !

Em enchentes de damuado goso, pedi ao

^1^ o RISO AMARELLO

Guilherme que me explicasse aquelle encanto; e elle :

«Imagine você que no Popular apparece, esta manhã, uma sova no collegio dos Bernar- dos. Imagine você que o Gaudêncio, director dos Bernardos, a sova, e que d'alii desata a matutar. . . Passa em revista os inimigos da cas9, passa em revista os rapazes do colle- gio... De repente, fulo: «Eu não tenho em casa senão um litterato ; é o Mesquita malu- co, o Alipio ! Não é outro senão elle Chama o AUpio, e diz-lhe^ com falas mansas: oLá vi o seu bello escripto no Pop7/.lar.» O outro, que não tinha visto a sova, faz-se tolo e agra- dece o elogio..! Oh, céus! Salta-lhe o Gau- dêncio nas orelhas , ó menino ! Aquillo era bolacha e pontapél Oh, Santa Litteratura! Oh, dia da redempçao ! Oh, pagode bemdito!...»

Como a um dos seus heroes no theatro fez dizer o Guilherme, foi aquella sova no Alipio o melhor dia da sua cida da vida de Gui- lherme, bem entendido. No sovado não creio que fizesse mossa, nem me parece que o exem- plo fruclificasse. . . São tantos, estes raios do

o RISO AMARELLO

215

diabo, que me dão visões biblicas; pragas de gafanhotos, chuvas de lesmas, —mas ha peior ainda do que os litteratos que escrevem : hão de crer que são os improductivosl?

Diz-me alli seguidamente o Mathias dos Pró- prios Nacionaes :

« E' o caruncho do século ! O remédio é deixar cahir

Não me despeço da praga.

NOS E ELLES

^G>í)

•^Ti;^^AO me hade esquecíer que ahi á volta de 73 ha vinte e quatro annos um jor- nalista pratico dizia á minlia aprendiza- gem escaldadiça : «Não La jornalismo mais honrado do que o nosso. Será virtude ? Será timidez? Será excesso de cortezia? Será de- masia de pobreza que lhe tolhe os voos para exigências gordas

Duvidei^ n'aquella época, da original coree- ção dos meus patricios da ciasse. Depois, vim

218 o KISO AMARELLO

confrontando, aprendendo, rectificando o meu juizò que está hoje feito em abono dos mar- tyres do officio e confusão dos seus estúpidos diffamadores. Diffamadores e exploradores!

Eu bem sei que a classe não é bcmqidsta pelo maior numero, a não ser no momento preciso em que se abre a urgência dos seus serviços. N'esse momento é bemquista e ado- rada : é a primeira instituição dos tempos mo- dernos e é o supremo refugio dos opprimi^ dos. E' quando appella para a Caridade, em beneficio dos «afogados sobre-viventes» e dos «queimados» -- em igualdade de circumstan- cias; é quando pede á camará municipal que retire um obnoxio urinol da travessa de S. Bonifácio; é quando noticia, a rogos encober- tos, as melhoras da esposa do conselheiro e o bello exame do menino Francisquinho filho do Norberto dos coiros; é quando recommen- da as pilulas do inventor Pescadinha, ou o li-

o BISO AMARELLO 219

vro, prosa ou verso, do joven e talentoso Ber- gamota e os dotes artisticos da Philoraena,— sempre nova e esperançosa sempre o estu- porinho ! é quando communica ao publico, tamé/n a rogos de fabrica coberta^ a partida do José Fidelio para a Trafaria, e quando sud- prime a noticia de baver sido agarrado em adultério o joven Malhias fresco. E horas depois, como quem diz no momento imme" diato ao serviço, o jornalista passou de novo ao estado de execravel : é um pedante, um pe- lintra, um zero á esquerda nos fartos dividen- dos da borga social. Fructos, algo merecidos, da santa condescendência !

Falla-se muito de fórcij a despropósito de mil insignificâncias. Deixem-me dizer-lhes, a propósito da nossa questão, que fora as «condescendências» supra e outras são devi- damente negociadas. Quem quer reclamos á sua vaidade, á sua mediocridade, aos seus ar- ranjos, passa pela admijdstração. Creio que

220 o RISO AMARELLO

aqui e na Zululandia que possue um rico jornalismo se o caso de o jornalista es- tar ao serviço de toda a gente e ser olhado com olhos tortos, se alguma vez quer que o sirvam. fora, excepto no paiz dos Zulus, o jornalista protege ainda mesmo quando ne- goceia ; entre nós tratam-n'o como protegido

quando elle presta serviços.

Serviços escreoendoy ou serviços porque deixe de esci^ecer. . .

Haverá quatro annos vem a calhar um distincto engenheiro francez procurou-me em Lisboa, para o fim de eu lhe redigir uns «considerandos» destinados aos jornaes, sobre as vantagens de uma sua empreza industrial

que pretendia instalar-se em Lisboa e que ahi temos instalada. Estudei o assumpto e re- digi os «considerandos»: trabalho de algumas horas. O engenheiro leu e disse-me que eu comprehendera tudo e adivinhara o resto; e tão penhorado me deixou pelos seus louvores á minha penetração bem tardia, ainda assim!

que, ao perguntar-me qual era o preço do

o RISO AMARELLO 221

meu trabalho, eu estive, por um triz, a dizer- Ihe que não falássemos n'isso !

Era muito sagaz o engenheiro. Riu-se da minha «delicadeza» e a seu turno comprehen- deu tudo e adivinhou o resto. Foi quando me disse: «Creio que os senhores em Portu- gal trabalham por amor da Arte, o que lhes deve produzir muitos credores. Mas, como eu nâo sou artista, e sim industrial, sigo outros processos : o trabalho vale tanto, ou não vale nada. Visto que você não diz nada, eu digo- Ihe que o seu vale tanto : é isto que eu tenho a honra de lhe entregar.»

E pagou-me, por algumas horas de traba- lho,— o que um jornalista regularmente remu- nerado ganha em trez annos n'uma folha diá- ria de Lisboa.

Fiquei muito amigo de Gruvellier, porque lhe devo bizarro estipendio do meu labor e uma lição memorável.

Vem isto para sustentar que é mais digna

222 o RISO AMARELLO

de bemquerença, do que de hostilidades sur- das, a classe que toda se esfalfa em condes- cendências,— e entre os Zulus,— e que até se esquece de castigar devidamente os alar- ves que lhe cospem desconsideração e diffa ma- ção. Como fim de vida, se a boa sorte não intervier no caso, estão na Avenida da Li- berdade as cadeiras do asylo, para guarda e cobrança do aluguer. E nem uma greve ! E nem uma colligação previdente, pelo futuro de cada um 1 Nada, que nós todos, á força de pensarmos por ellcs, esquecemo-nos de pen- sar em nós !

o CASO DO SGÍPIAO

'Xo venho referir-me eruditamente áquelle caso de o Sei pião (vulgo O Africano), um subalterno, haver ganho, em Zama, a partida contra o grande Annibal. A historia é a do Scipião Carneiro, ex-empregado dos pharoes, que ha um anno foi despedido, por trampolinices rasteiras e a descoberto de pro- tecção efficaz. Foi ha dez mezes^ pouco mais ou menos, que eu desacertei em encontrar o Scipião, meu antigo companheiro de colle- gio, n'um preparo lamentável: fato de verão em fevereiro, botas cambadas, como o intel

224 o RISO AMARELLO

lecto do Arlequim Júnior, barba da noite dos tempos, collarinho refugiado n'um co.chc-ne^ de fiel amigo, olhos encovados, faces cavadas e lívidas e gestos humildes de homem perdi- do— isto é, sem credito nas mercearias...

Foi por essa occasino sinistra que o Scipião Carneiro me expôz a mim, velho pratico em desgraças, esta situação vulgar:

«Imagine você: o meu ordenado dos pha- roes creava-me um deãcit de quinze mil réis mensaes. Cahi nas garras de um agiota um que tem feito casa, recommendada nas gaze- tas, a 6 por cento ao mez. Eu mal ganhava para similhante biltre. Depois, aconteceu mor- rer minha sogra, na occasião do meu desem- prego. Luto, enterro, e veiu a renda da caza, e eu sem empiego e nas unhas do agiota. Estava-me sendo indicado o caminho do sui- cídio ; mas você está d'aqui vendo viuva e quatro órfãos sem dinheiro, sem credito, sem coisa para empenhar ou para vender. . . Bo- nita perspectiva: que diz você?

Que sempre é bom viver.

Bomfl

o RISO AMAEELLT'

Mellior. . .

E iVaqui resultou o separarn":o-ri'os, e!Ie mais consolado, e eu mais triste.

Ha quatro dias, por signa! era á noite, en- contrei o Scipião Carneiro,— estava à porta da tendinha j no Rocio, junto ao Arco do Ban- deira. Tinham decorrido des Tiie^es sem que eu o visse. Era o mesmo homem : fato de verão em pleno inverno, botas cambadas co- mo o intellecto do Arlequim Júnior, barba da noite dos tempos, colhuinljo refugiado n'um cache-ne~ de fiel amigo, olhos encovados, fa- ces cavadas e lividas e gestos humildes e sup- plicantes de homem perdido isto é, sem cre- dito nas mercearias...

Como vae você ? perguntei-lhe, atormen- tado.

Na mesma. . .

Na mesm.a ?.'...

E' verdade: sem emprego, sem dinheiro, sem credito, quatro pessoas de familia... e

226 o RISO AMARELLO

sem esperanças de melhoria, e nas garras do agiota !

Mas como diabo se aguenta você?

Aguento-me como quem tem no orça- mento, o passivo que você vê... Tudo nega- tivo 1

Separámo-nos tristemente Mas foi d'ahi a dez minutos, á porta do Marrare que eu vin- guei comprehender o Falcão de Salvaterra, deputado chronico e patriota idem, que me fal- lou dos males da pátria e na sua confiança, d'elle, em que não haverá coisa de maior. Disse-me assim o Falcão :

«Ha dez annos que tudo isto vae desa- bar, e está Tia mesma: não temos dinheiro, nem credito ; estamos nas garras dos agiotas; temos de nos sustentar e aos nossos ; não ha o pão nosso de cada dia : ha a assignatu- ra em S. Carlos, de cada noite. Como diabo se arranja o dinheiro ? Não sei. Mas tudo se arranja. Vamos vivendo como quem tem no

o RISO AMARELLO

22"

orçamento (o pais^j o que você \è:—tudo ne- gativo !. . .

E d'ahi, conclui eu que podia dormir tran- quillo sobre a sorte do Scipião Carneiro... e sobre a sorte do meu paiz,— pois que ha n'es- tas coisas da existência mysteriosas coisas que fazem viver paizes, e Scipiões, de tudo quanto ha de mais passivo-

Sem intuito secreto !

-^H^

_^^^^^^^^.l.l.^^

GHEGUEM-LHE!

Í^EXTE-SE consolado um homem, quando ao fflí^ termo da vida isto está por pouco! reconhece que trilhou um bom caminho. Por agora, alludo ao da cordura, da modera- ção— creio que me entendem, em coisas de jornalismo. Se alguém está zangado, não sou eu. A meu modo, sem me esquentar^ tenho dito quasi tudo o que sentia. Falta um resto: a vêr se Deus me vida e termos pró- prios ! Firma-se esta alegria de hoje em arderem

230 o RISO AMARELLO

as barbas do men vizinho, sem perigo para a integridade do meu bigode. E' á conta de diversos políticos da liberal Jamilia, com ap- plauso de vários jornalistas liberaes (os migue- listas estão calados), projectaram uma lei de rolhas que deixe a perder de vista a do que o Senhor tem. E a coisa vem a propósito, diz alli o jornalista do saguão, de serem ag- gredidos o rei, mais a auctoridade muito respeitados pelos partidos da família^ como é publico e notório !

O velho Tibério, philosopho epicurista, que está agora a semi-cupios em Espinho, faz-me observar, em epistola sobre o que lhe consta das gazetas, que é tudo historia: que os po- líticos importam-se tanto com o principio da auctoridade como elle Tibério— demagogo com tinturas de mystico. E tão lucidamente expõe, deduz e concluo o dianho do Tibério, que o melhor é talvez melhor e mais prudente ceder-lhe eu a palavra, para elucidação das al- mas cândidas.

Vejam isto :

o RISO AMARELLO

231

o. . . Coisas e tal. . . quero que você me di- ga como é que esses diabos teem trepado e engordado e adquirido consideração, ó mize- ria dos humanos ! [Tibério tem este feitio de declamador antigo) a não ser pelo despresti- gio, por elles forjado, do principio de toda a auctoridade ! Rebaixaram a magestade real, impondo-lhe a outhorga da Constituição (77- herio è ás vejes legitiniista) ; depois trouxe- ram n'um sarilho essa magestade, nas luctas civis dos cartistas, dos setembristas, do diabo! E explorara m-n'a em seu proveito, os Cabraes e os inimigos dos Cabraes, e esfarrapou-a o Saldanha no 19 de maio, e a fel e vinagre a puzeram os jornalistas da Monarchia, desde o Sampaio aos que você conhece. E são os repu- blicanos, que ó preciso reprimir f! Eu não sei se elles teem dentes ; mas quem tem mordido são os outros. Mordido e comido!

232 o RISO A31ARELL0

«Mas não é o prestigio da monarchia que os partidos constitucionaes teena arrastado pela amargura : é em geral o principio da aucto- ridade, desde o prezidente do conselho de mi- nistros até ao regedor de Seide, que ha dias eu vi, com estes olhos^ a carregar cestos de esterco! Veja você: na questão do ultima- tum inglez, como a coisa saisse dos progres- sistas, os regeneradores fazem uma gralhada medonha, vão garotos apedrejar as redacções (bem sei !), o Barros Gomes e os outros são classificados burros e traidores, e pulam os regeneradores. Bem. Destacam esses figurões o Barjona a entender-se com o beefj e tal sal- galhada arranjam que o ministério vae de pernas ao ar, com berra ta dos progressistas no parlamento:— «TraidoresI burros! pulhas!» Eu bem vi e ouvi, que eu estava lá, para sa- ber como os liberaes aguentavam o prestigio da auctoridade e das intituições !

«Ao depois me disseram, e correu mundo, que o Lopo Vaz tinha arranjado aquelle sari-

o RISO AMARELLO 233

lho das negociações^ para encravar o Hintze 6 o Barjona. E' de finório; mas, para susten- tar o decoro da auctoridade e dos princípios e para acalmar a opinião publica contra os agi- tadoreSf é de se limpar a mão á parede !

«Fazem -se eleições, e você bem os ouve no parlamento e bem os nos seus jornaes d'elles: o governador civil exorbitou, como um

ratante, que é; o administrador do concelho eslá nas unhas do morgado das Nabiças, que lhe enche o de petisqueiras e de vinhaça e que o faz trabalhar pelo candidato Canellas; o regedor não tuge nem muge, porque tem ca- dastro de fajardices : -— e tudo isto se desen- rola e assoalha, em homenagem ao principio da auctoridade ! Você sabe d'isto como eu.»

Bem sei.)

Estas ponderações do Tibério, se por um lado me fazem tremer pela independência na' cional (com ellas, ou sem ellas), pelo outro lado deixam-me em paz com o futuro. Pôde

234 o RISO AMARELLO

surgir nova lei de rolhas, ou de batoques: eu não preciso, não gosto ! Cauto, cordato, paci- fico, e a entrar pelo meio-grosso : tal sou eu, no meu crepúsculo.

os GRAVES NADAS

^^^Ê a gente um homem... mas, o melhor <y^ é citar um caso.

No atelier do pintor Columbano ha en- tre diversos retratos de pessoas conhecidas, um retrato meu, que é um primor do grande artista. Em frente d'esse retrato estava, ha dias, um vizitante, um inglez, e disse, contemplan- do-o : «Oh I este senhor tem cara de não ser um feliz

Até certo ponto. Que eu sou hoje mais feliz, mas fiquei com a cara d'outros tempos, e fal- ta-me pachorra para arranjar outra. Sue-

236 o RISO AMARELLO

1

cede, todavia, que urna vez por oulra se di- visa n'ella— e assim m'o participam um te- nuissimo traço de jovialidade, ou outro, não menos ténue, de amargura. Vae-se a ver o porque da alteração; é o que se com a cara do meu vizinho Anacleto, sem tirar nem pôr.

Em doze horas aproveitáveis do dia, tenho eu notado, pôde um filho de Deus e dos mys- terios ser alternadamente o mais venturoso ou o mais desgraçado dos homens uma boa dú- zia de vezes. A coisa é de haver sangue e de haver nervos; miolos não são muito preci- sos. Vamos a conferir, o leitor e eu, uma das contas do que aconteceu na sexta-feira passadaj entre o levantar da cama e o estirar- se n'ella.

A's 9 da manhã.— «Que bello dia! Um dia para trabalho e para descanço ! Tenho que fa- zer até ás duas. Depois, vou tomar o sol, por esse campo fora, e janto n'alguma tasca de

o RISO AMARELLO 23'

saloios. Não tenho nada que me cuidado, e sinto-me com saúde. A' vida !...»

Um salto da cama abaixo. Escorregadella. Cae sentado, e dóe-lhe. Pontinha de mau hu- mor, e marcha para o lavatório.

Lava-se; procura as toalhas. Não lhe puze- ram toalhas. Cliama, e ninguém responde. Tudo dorme. Bate com o no chão e sente uma dôr terrivel no calcanhar. Despertou o rheumatismo. «Dia perdido! Diabos levem o sol! Diabos levem o campo!...»

São dez horas. A' mesa do almoço. Mau gosto na bocca, e o bife sabe-lhe a bacalhau. «Coisas que a mim acontecem!» E o vi- nho sabe-lhe a vinagre. . .

Mas vem o pequenito. Bons dias! Festas; beijos. Que olhos os da creança ! «Ora adeus ! Póde-se ser infeliz^ com este anji- nho?!»

Onze horas. Faz-se tarde. Ao trabalho ! Sae, cantarolando para dentro. Que sol ! Que Deus tâo bom ! . . . Passa um troca-tintas que tem

238 o RISO AMARELLO

por costume cortejar o sujeito. O sujeito leva a mão ao chapéu, o outro diz-lhe adeus com um movimento de focinho. «Oh, quo besta!»

Azeda. Vem um moço de padeiro e arruraa- se á parede. Logar ao moço de padeiro...

«Está bonito! d*aqui a pouco, sou me- nos que um burro!»

A' meza do trabalho. Uma da tarde. Olha o Frège-rnoscas a dirigir-me biscas!.. . A elle! Está tudo apostado em irritar-me os nervos ! Que porca vida esta

Duas horas «Está aqui uma carta (Pau- sa e attenção em todo o ser.) «Uma carta sua, (á!ella!J Oh, consoladora! Não ha peza- res; nãa ha inferno; não ha côr preta! Não ha infelizes! Aqui é que é o céu... minha adorada

Cinco horas da tarde. Em casa^ o jantar promptinho. Cheira, que regala. A Maria Cân- dida esmerou-se ! Mas... veiu um papel im- presso. — «Salta esse papel E' o aviso da

o RISO A31ARELL0 239

decima a cinco dias. principiou a rela- xar-se. ..

«Venha esse maldito jantar!...» Que diaf Que série de espigas, de semsaborias, de pou- cas vergonhas!... «Que diabo tenho eu no forro do casaco ?. . (Apalpa; tira : são cinco mil rèis^ em notas, que considerava perdi- das).

«Bella sopa ! E ha para ahi um cheiro divino, a mayonnaise, ó rapariga ! Que ex- cessos de perfeição í Terás tu vistas matrimo- niaes?!»

Nove horas da noite. «Acaba o dia como principiou ! Não se pôde entrar n'um bote- quim. Só se ouve asneiras!...»

E Deus indifferente ! E a morte cuidadosa !

UMA IDEIA!

tiziA-ME um dia d'estes um amigo do rei e algo do senso-commum : "^ Vae-me parecendo historia, e de grande absui-do, esta de se pedir, a cada mo- mento, nos jornaes e nas cortes, a reducção da lista civil.

Historia ? !

E' o que eu lhe digo. A meu ver, a re- ducção tem de ser formal, ou não fallemos rr.ais n'isso I

Faliemoi:, com os diabos ! Você é amigo

i5

242

O RISO AMARELLO

do rei. Quero que me descalce a bota da for- malidade!

Pois descalcemos ! (Pansa) Quanto rece- be a família real, por anno ?

Eu sei! Ofíicialmeiíle, creio que anda por quinhentos contos e pico.

Bem. Deve-se reduzir tudo a vinte contos por anno.

M I

Vinte contos, e não se falia mais n'isso !

Conle-me lá, filho de Deus ! Como diabo quer você. . .

Pouca parola ! O estado dará vinte con- tos por anno. Esta somma, com o rendimento da caza de Bragança, chega e sobeja para a sustentação luxuosa da familia do chefe do es- tado; mas o supra-citado estado obrigar-se-ha a pagar tudo quanto o alludido chefe, mais a fami- lia, deixarão de pagar, desse dia em diante.

A ouvir I

E* indecente e de perigosa indisciplina que o rei, ao visitar um quartel, tenha de dei-

o RISO AMARELLO 24-^

xar dez libras para melhoria de rancho. O es- tado pagará as dez libras, paixc solemnisca^ a visita.

E' justo.

E' vexatório que a rainha não possa ir á procissão do Senhor dos Passos^ sem receber mil e um memoriaes, pedindo esmola. O es- tado pagará as esmolas a titulo de corteja para com a rainlia.

Vamos andando !

Vamos depressa! O estado pagará tudo juanto o rei tem de pagar por deveres de cor-

tezia, ou por imposições do officio. Pagará aos cortezãos famintos, aos estudantes sem re- cursos, ás viuvas desamparadas, ás senhoras visinhas e velhas, que a rainha soccorre, aos náufragos sobreviventes, ás angustias da pá- tria atomatada, aos que seringam e aos que supplicam e aos que ameaçam; dois terços da nação !

Fora com as liyperboles, ó tiosinho I

Qual hyperbole, nem qual diabo! O que não pôde ser é continuar assim. E' impossível c|ue aquella gente tudo aquillo por sua von-

244 o RISO A3L\RELL0

tade: logo, ha coacção, ha transigência, e d'ahi resulta a suspeita de que ha calculo : quer dizer, o que ha de mais aviltante para o esmoler e para os soccorridos. Ora, accresce o seguinte: o marquez de Mijoka pôde recusar uma esmola, sem que por isso fique deshon- rado e leve descomposturas publicas. Imagine você aquella familia a recusar dar esmolas. Caía-lhe em cima o poder do mundo, a lirar- Ihe a pelle: Que a sua obrigação é dar, cisto que recebem !

Diabo! E' que recebem muito ! E a misé- ria é tanta !

Pois é justamente o meu ponto I E' pre- ciso que recebam pouco, relativamente, e que o estado soccorra a tal miséria e o resto-, que tem outro nome. E' preciso que o chefe do estado possa chamar seu, como nós cha- mamos, áquillo que se lhe paga. E' preciso que se acabe com a situação lamentável d'uma familia que tem de devolver tudo quanto re-

o RISO AMARELLO 245

cebe, apanhando todos os dias uma carga, porque recebe demasiadamente !

Parece-me razoável o que você diz.

Está você convencido. O que lhe falta é convencer-se d'outra coisa, que você conhece Veuillot e que atirou á cara de nílo sei quem : «E' de que não é digno do nome de escriptor o homem de lettras, que, uma vez por outra, não oppõe a sua opinião á opinião publica. o Você tem sobre o assumpto uma opinião pessoal ; escreva-a, imprima-a, divul- gue-a, c ao diabo o que sabe I

Vou-me á obra !

Diga isso I E encoste-se ás razões fi- nanceiras : o rei passa de 500 a 20 contos para si e para a familia : economia de 480 contos para o thesouro. Ha encargos de cari- dade e de brindes de cortezia ; mas o que o rei não pôde allegar a falta de recursos, pôde allegal-o o tiiesouro: e nem caridade, nem cortezias dispendiosas. Aqui d'el-rei, que os in- felizes \\Z\o teem soccorros ! Mas recebe-os in- directamente o estado, que é mendigo e dos mais necessitados. . . E ganha a moralidade

246 o RISO AMARELLO

que não esbanjados quinhentos contos na sustentação cVurna família !

de rizota !

Meu amigo ! dizia o outro, que você conheceu : «X'este raundo se dizem a rir as coisas sérias. Em tom grave toli-

EDUCAÇÃO

iTpENHO para mim que no accidentado cami- ^i^ nho da Perfectibilidade, por onde vamos caminhando como uns catitas, rebenta- nos ahi á meia volta um «curso de velhaca- ria» obrigatório, que tão urgente é elle como a vaccina. A meu vêr, o que nos perdeu a todos, na primavera da vida, foram es bons conselhos e a Mo^^al em acção, desajudados de positivos esclarecimentos, ou de rudimen- tos, sequer, sobre o que nos esperava n'"este mundo. Não faço paradoxos, nem chalaça, pa- lavra d'honra ! Quero que me digam se a edu-

2Í-8 o RISO AMARELLO

cação vem apenas como relevo de prendas naturacs e subsidio de doles artisticos, ou se deve habilitar o homem a aguentar-se nos con- tractos da vida !

Vejam-me aquelle pobre rapaz, convencido ao sair da infância de que a sociedade se orienta pelo Amae-tos uns aos outros ! Dis- seram-lh'o o pae austero, a mãe amoravel, os auctores moralissimos, os sérios amigos da casa e os dramas do Príncipe Real. Põe o na vidinha pratica, e, desde o período dos exa" mes até aos naufrágios da velhice, é de se benzer, arrepelar e arnicar nos lombos o in- feliz crente. Estudioso, foi reprovado, quando o condiscipulo relaxadão obteve distincções á força de corromper examinadores; depois, se lhe repete era concursos públicos a scena da patifaria; nas luctas da vida, armado de. probi- dade, de boa-fé, incapaz de mentir, de intrigar, de bajular, de sorrir a preceito, de atraiçoar, de se prostituir, de se alugar, de se vender,

o RISO AMARELLO 249

meticuloso em pontos d'honra, severamente crente na lealdade dos contractos, limitando as suas relações a meia dúzia de mágicos da sua estofa, encarando ferozmente os velhacos e tendo para os triuinphos dos insignificantes um mixto de espanto e de desdém, ~ ao ter- mo da vida, por uma cruel lacuna em sua educação, o homem intelligente e trabalhador e leal achar-se-ha preterido e escarnecido pe- los outros, deslocado na existência, annullado para os gosos do espirito os que resul- tam de «observar exacto". Acodem-lhe então os velhos chavões melancólicos : Se a Moci- dade soubesse... e, como o Balzac registra: Que mal fí^ eu á Sociedade?! a exclamação dos néscios.

Tudo porque ns vozes austeras e as vozes amoraveis, dando-lhe lições de virtude, se abs- tiveram, affavel e estupidamente, de lhe ensi- nar o resto! Cuidadosamente evitaram re- velar-lhe que abre caminho o mais temi- do, ou o mais calculadamente sabujo : o que

250 o RISO AMARELLO

troveja ou o que sorri a preceito : o que obre as portas a pontapés, ou o que lambe o pata- mar, para que lh'as abram. Não lhe disseram que ha em torno de cadn homem de algum valor dezenas de seus irmãos em Christo em- penhados e obstinadcs em comôl-o, ou em perdêl-o, por conveniência directa e imme- diata, ou por instinct" de concorrência. Não lhe perraittiram suspeitar que, se, ao termo do dia, apertou duzentas mãos, é mnis que prová- vel serem dois terços d'ellas de indifferentes e um terr-o de inimigos. Desconheceu, ao esboçar um contracto, que n'elle arriscou a vida, ou a honra, ou o descanço da existência, eu o di- reito ao respeito próprio. Ignorou que os no- bres, elevados e puros ideaes e as palavras que os formulam são principalmente applaudi- dos pelos tratantes afim de que os honrados crentes se obstinem na pratica da boa-fé. Não vingou aperceber-se de que, entre todas as bestas-feras da Creação, sJ a que por Ho- rnern é methodicamente malvada : as outras obedecem ao instincto, ou ás urgências da ne- cessidade.

o EISO ASIARELLO

251

Na corrente, que dia a dia se avoluma, d'es- tas matizados misérias, torna-se, pois, de sé- ria conveniência que os pães e os mentores da infância lhe abram os olhos sobre o que a espera na vida pratica e não encham de mi- nhocas o cérebro da Innocencia. Isto para o século que ahi vem ; o que existe é facto consumado. Não haja perigo de que esta prosa venha a desmoralisar um innocente, ou a con- verter um patife !

A VÊR QUEM PASSA

raiLA

C/ti)^

um certo modo de ser [reGolucionaiHo, em que a ferocidade se allia á insensa- tez. De sinceridade a não ser no ódio não falemos. E', por exemplo, o espirito revolucionário do sujeito que, podendo ter dado um soffrivel continuo de secretaria, nu- triu fumaças litterarias e se encafuou no Jor- nalismo, ou na Litteratura. Escreve mal e por- camente, incapaz de cerve^ de estylo, de real vigor e de elevação ; é um marau petulante, sem ideias, sem amor aos livros, sem o res- peito da arte £^ (jue se encosto^ e tornando toda

954

O RISO AMARELLO

a gente em quem fareja superioridade um objectivo do seu ódio. Quer tudo abaixo! nâo porque ha torpezas e iniquidades no Exis- tente, mas porque se sente um inferior, por mais que esbraveje e que se empine : porque, emíim, ser um superior é ter talento, ou co- ração, ou dignidade, ou tudo junto, quanto preciso a distinguir um homem entre alguns centenares de seus irmãos; e o rancoroso, que é um subalterno pelo talento, deixou resequir o coração ao fogo do ódio e considera di- gna a vingança. Vingança de que ? Das pagi- nas que outros escrevem bem, dos gozos que elle adivinha encontrados por outros na consideração própria e na que conquistam en- tre os homens dignos, e nas vantagens da Fortuna fruídas pelos Felizes da terra. Elle baralha tudo, para o seu rancor: as superiori- dades legitimas e as apparentes distincçÕes de- vidas ao Acaso.

Um desgraçado assim pôde ser um mau es- criptor, um actor pateado, um inventor san- deu; em qualquer dos casos é perturbador, como um d'esses mosquitos que trombeteiam

o RISO AMARELLO 255

§i hora em que pretendemos descançar, e que ameaçam com ferroadasilas peçonhentas. Sem- pre incommodam pois não é assim? Qual é o homem, capaz de espalmar dez mil mosqui- tos, com um revez de mão, que não tem ac- cordado com empolas no rosto, devidas a es- ses excommungados, depois de uma noite mal dormida a enxotar os estuporinhos ?

O grande escriptor Louis Veuillot, a quem eu devo admiráveis pontos de vista para o des- tilar do cortejo, cita algures essa família de maus atormentados e vae até á Revolução Franceza, em busca de modelos e de resul- tados dos taes tormentos. Onde o sangue mais cruelmente, ou mais inutilmente, era derra- mado, lá estavam os dominadores de espirito subalterno. Nem Coudorcet, nem Aíirabeau, nem Vergniaud, seriam capazes de desempe- nhar o papel de Fouquier-Tinville, ou o de Collot dHerbois, ou o de Heberl, ou o de Bil- laud-Varennes. N'um dia de revolução justi-

256 O RISO AMARELLO

ceira, os medíocres e os insignificantes assa- nhados tornam-se medonhos: cada mosquito é um rhinoceronte !

A's vezes^ acontece que o subalterno cheio de ódio é conservador, e ameaça com o zum- bido e o ferrão os partidos revolucionários. Esse caso é mais immundo que feroz. No ódio não ha o impulso da inveja : ha o calculo do tratante. As combinações de ataque são a frio. Formam uma contra-revolução, acaso um tanto por conta alheia, sempre e muito por conta própria ; e teem uma phrase carecteris- tica apontada aos que não estão d'accordo com a ordem de coisas estabelecida : «Canalhas, que não comem, nem deixam comer os outros!»

Mas é raro que entre esses mosquitos figu- rem os pequenos burguezes, que não sabem escrever e que desejariam hrmar artigos. Es- ses são, em regra, revolucionários, e adoecem de raiva quando pensam no escnptor consi- derado,— como os impotentes ao verem passar na rua um sujeito que ó feliz com as mulheres.

NOTAS A' MARGEM

|X|'50í^'^ c{"6 O ministério regenerador está ^^ bem morto e não pode fazer bem, a troco de boas palavras, não renuncio a dizer algumas sem licença da critica, nem a mini ma attenção pelos maus sentimentos que dispertem. Algumas palavras boas, não di- tadas pela sentimentalidade á beira de um fu- neral, mas impostas pela sinceridade. Gi-acas aos rigores de um destino, ha momentos feli- zes em que eu fruo as delicias do meu isola- mento. «Extrahir do Mal certo Bem» fora previí'.o pelo Milton.

'7

258 o RISO AMARELLO

Taes delicias consistem em dizer e proce- der como entendo e como o entende o amigo fiel que eu consulto. . ao espelho. E a Opinião dos cafres que vá... aonde os Fados a man- dara!

Vou referir-me áquelle homem que foi a al- ma do ministério na opinião do maior nu- mero. Claro que falo do sr. João Franco ; ou- tros não foram alma, mas barriga, ou cachi- monia, ou pés de baixo. Ao ex-ministro do reino devi eu a abertura da fronteira a um meu amigo, que elle expulsara de Portugal, uma escola primaria para algumas dezenas de saloiositos meus amigos, intervenção pro. tectora em favor de alguns opprimidos, e em todos estes casos promptMão, affabilidade e a manifestação de jubilo por me haver sido útil e ás cauzas de justiça que eu lhe recommen- dara. Também lhe devo o gozo de um diver- tido e prolongado espectáculo : o de alguns patriotas revoltados porque eu era amigo do dictador pretenderem valer-se de tal ami-

o RISO .AMAKELLO 259

zade, para o fim de obterem favores^ e, em seguida á minha recuza em intervir, desata- rem a vociferar contra o escândalo da amiza- de supra. Houve o bom e o bonito; e, um dia, tudo será publico.

... O ex-ministro da justiça pensou, certa hora, que cu poderia ser de alguma utilidade n'uma Casa de Correcção, e alli me collocou mtcrinamentc, promettendo tornar cffecéica a minha nomeação^ se eu gostasse do lagar re- munerado ridiculamente. Gostei do logar, sem embargo dos ridículos interesses, porque nào me julguei inútil aos miseraveisinhos reclusos. Aquillo faz-se por coração; não ha dinheiro que o pague. Todavia, a nomeação levantou zurros e uivos, e, em homenagem á Moralidade que chegou a suspeitar beliscada, o sr. António d'Azevedo não me nomeou eíTectivo. Eu gostei do logar, supponho que o exerci com dedicação; mas o excellenle homem não gostou da ideia de responsabilidades tremen- das, e deixou-me desamparado e exposto ao

260 o RISO AMARELLO

mau destino ! Yale-me a pratica das situações difflceis e o conhecimento das fraquezas do Homem, e sigo em taes crises rezultantes o conselho de Camillo Castello Branco : pita- deio-me do meio-grosso.

E ahi teem os sandeus revoltados contra as minhas relações pessoaes com o dictador uma lição severa para terem juizo e vergonha: é aquillo de o sr. João Franco, que era a alma do ministério, se haver" abstido de animar o seu collega da Justicn a tornar-me inamovivel nas Mónicas. Não se mexeu o meu affeiçoado ministro : chegou a parecer-me que elle exi- gira ou esperava conversão minha, dado que eu o julgasse capaz de me calumniar. Nas di- versas horas de aprazível conversação com s. ex.', vi-o porém testemunhar-me, com a af- fabilidade, muita consideração, e prefiro crer que elle se absteve de intervir em meu favor justamente para não me desconsiderar.

E^ta mini .1 nota à margem das minhas re-

o EISO AMARELLO 261

lações coiTj os dois ministros, é-me imposta por um sentimento de equidade. Careço de jus- tificar a minha abstenção no concerto de exe- crações que acompanhou o sahimento do go- verno. Ao sr. João Franco devi o que consta da minha nota e do meu reconhecimento ; ao ex- ministro da Justiça excellentes intenções, embargadas por um excessivo pudor... de ho- mem publico; quanto aos seus companheiros de governo foram nullos á face do Eterno e á do ministro do reino e não lhes faltarão, como nullidadeS;, substitutos.

Não leva á paciência um meu camarada que eu me abstivesse «de atacar, duran- te o periodo regenerador, o ministro João Franco, que era, precisamente, a alma do ministério.» Eu lhe disse que sim : que era a alma e que outros eram barriga, ou pés de baixo. E também lhe disse que ao alludido

262 o RISO AMARELLO

minislro devi protecção para gente que a me- recia, e não deixei de llie dizer qual foi essa protecção. Suspeito que o meu camarada de- linquiu, era inconstância, ao deixar de lêr as minhas primeiras «notas á margem». Ou te- nho de suppôr tristemente que sua mercê per- tence ao numero dos que consideram a Ingra- tidão excellenle bfise para a Austeridade. Diz- me, naturalmente, como o Fidelio, que as fi- nezas do estadista eram de um particular facto que deixaria o ministro a descoberto ; e eu respondo lhe que era o ministro quem as fazia, e elle quem podia fazel-as. Bem o comprehendiam assim uns intransigentes que me pediam a minlia intervenção junto ao mi- nistro meu affeiçoado, afim de obterem viola- ção da Lei, e que, muito nobremente irritados pois que eu não servia para taes festas, barafustavam em conciliábulos, em nome da Austeridade, porque eu ia fiscalisar o tristissi- mo viver dos pequenitos da Gaza de Correc- ção.

Em hora feliz deixaram esses mariolas de se manifestar publicamente. Do «-dizetu, direi eu»

o RISO AMARELLO 263

com Políticos, para espectáculo de ociosos, se dis- pensa a minha decrepitude; mas, se taes mar- manjos houvessem dado signal publico da sua in-di-gna-ção, teria havido festa nas cavalla- riças de Augias. .

Note ainda o camarada que, tendo eu con- servado certa rezerva, como jornalista^ relati- vamente aos actos de governo do sr. João Franco, não me abstenho de lh'os condem- nar á hora da sua sabida do Poder e depois d'ella^ como ainda— não tendo obtido, sequer, d'esse meu poderoso amigo a simples effecti- vidade no meu triste logar não hezito em reconhecer e affirmar, com o meu reconheci- mento, a minha sympathia pessoal por aquelle homem, e a minha consideração pela sua ener- gia entre os decadentes graduados na madra- ceira e distinctos pela zaronzice em que tremem da própria sombra.

E deixe-me dizer-lhe que raro será o ho mem que não se julga obrigado a poupar ai-

264 o RISO AMARELLO

guem a quem politicamente deveria aggre dir com vigor. x\gora me lembro de alguns austeros que assim se absteera cautellosamente de aggressões, e oxalá, por honra da Auste- ridade, que os motivos do seu silencio fossem tão confessáveis, e tão alto podessem osten- tal-os como eu confesso e ostento os da mi- nha abstenção em aggredir o sr. João Franco durante o seu governo e fora d'elle.

Não creia o tal meu vaniarada que eu, modelo de imprevidência, estou agora pre- parando o terreno para, a um praso desco- nhecido, rehaver o direito de apadrinhar junto áquelle ministro pretensões dos taes intransi- gentes. Deixo no goso de taes finuras uns go- liardos que se sentiram possuídos do fogo re- publicano— ao chegarem as vaccas magras da Monarchia. . . O resto para um dia de ma- gro — como dizia o Mestre.

1

^^^í^fefes^^^^feí^-

AMANHA

M1'enho idéa de eu haver lido, pouco depois W^ da guerra franco-prussiana, um episodio contado por Thiers e occorrido pouco an- tes da guerra. Foi o caso de o velho estadista passear uma noite, a horas mortas, n'um bairro, então solitário, de Paris, a pensar nos perigos do dia seyuinte, e encontrar-se com Jerôrae David, outro homem publico creio que Prezidente do Senado, o qual também girava, solitário, entregue a idênticas preoccu- pações. Os dois homens, amargurados e aver- gedos ao peso das conjecturei-, en tabelaram

266 o RISO AMARELLO

demorada palestra, de f[ue resultou separa- rem-se ao romper dn mnnhã, mais acabrunha- dos do que antes do seu encontro. Os factos justificaram-lhes as preoccupações.

Lembrei-me a noite passada da palestra dos dois Francezes, ao deparar-?e-me. por volta da uma hora, no largo das Amoreiras, um meu velho amigo que tem visto mundo o Carlos Jorge, que por alli passeava medita- bundo. Eu fora até áquelle ponto deserto, afas- tando-me do bulício da cidade, sabidas de espectáculos, rnido das casas de pasto e folia dos noctívago-^ alegres, e dera-me a con- jecturar coisas graves, ncorca do dia de áma- jihã. O Carlos Jorge, ao que me disse, pre- occupava-se em egual assumpto. Não éramos precisamente dois homens de estado, a contas com problemas de salvação publica ; éramos, porém, dois sócios da collectividade portu- gueza, a entrevôr ciaeis responsabilidades de alheias culpas i.o horizonte do nosso destino.

o RISO a:\iarello 267

Foi com uma expressão de magua succum- bida que o Carlos Jorge me disse :

«Por mais que eu passe em revista as hypolheses de bamburrio em favor da nossa terra, não entrevejo ccisá tranquillisadora. Bamburrio de sete séculos é a nossa exis- tência, a d'estas noventa léguas de compri- mento no cachaço da Hespanha, com indepen- dência, vida histórica, descobertas, conquistas e extravagâncias. Temos comido o diabo : do Brazil, da índia, e as ordens religiosas, e seis- c%ntos mil contos a essa Europa, e levamos a vida em lastimas banaes, nos intervallos da pandega ! Somos uma agglomeração de ma- draços, de piadistas, de declamadores, incapa- zes de comprehender ou de acccitar esta idéa: que, tendo acabado as minas de além-mar, os bens dos frades e o credito nos mercados de dinheiro, é preciso finalmente trabalhar. Dizes tu e digo eu que de trabalho estamos nós fartos^ de todos os dias; mas é preciso ar-

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rumar a brincadeira. O trabalho de que eu fa)o seria uma reacção da coUenlividade nos domínios da Industria e da Agricultura, aqui e nos territórios de além-mar que ainda nos restam e que nos servem para enriquecer governadores ladrões, emi(uanto o estran- geiro nos não apanhar tudo. E depois, uma desorientação que mette medo : a idéa fixa de que estamos promptos e de que nos falta preparar as malas. Não antevês um bello dia de amanhã

Na corrente das preoccupaçÕes do Carlos Jorge, claro que fhe dei razão, e para alli, no largo deserto, caturrámes até romper a manhã, como os dois estadistas em Paris. Remexemos em tudo : nos territórios d'Âfrica, centenares e centenares de léguas incultas, e uns troca - tintas a goisernar no littoral, limpando a crosta dos fundilhos e fazendo casa na Europa, e nos terrenos do continente, em baldio perpetuo, sem que o miserável cavador d'enxada veja preluzir no horizonte a possibilidade de por

o RISO AMABELLO 269

sua conta os cultivar. Distribuímos responsa- bilidades : as do povo relaxado e da imprensa desorientada^ sem esquecermos as do Estado imprevidente; nem o aforamento das terras imposto ao grande proprietário, nem a crea- cão dos pequenos bancos ruraes a substituir o cancro do Hypothecario. E do trabalho espe- culativo, nos gabinetes, nada surge pratico, que o povo entenda, que o faça erguer-se para reclamar auxilio na sua mda nova de traba- lho remunerador. Se elle não sabe sequer, a que tem direito I Se lh'o não dizem com leal- dade !

Fixámos a impunidade que, em regra, esti- mula á improbidade homens públicos e homens do commercio : uns suggestionados por ou- tros. A propósito lhe contei historias de em- prezas industriaes em que os fundadores se constituem em estado-maior, para ruina dos accionistas. Em tal terreno, as fallencias, at- tribuidas ao mau estado dos negócios, provém ordinariamente dos processos de ladroeira dos

m

270 o KISO AMARELLO

gerentes, e, como victima, algo sei de taes processos. E d'esta desorientação no terreno salutar do nosso renascimento económico, e da perfeita orientação da malandrice, e do fa- talismo que põe um povo inteiro a berrar que está tudo perdido, nos intervallos da tourada e do peixe frito, deduzimos que, a não ser por um novíssimo bamburrio providencial, o nosso dia de amanhã deve ser tempestuoso, tanto peior para os recemchegados.

E a Providencia deve estar farta da grande espiga portugueza !

Ó

INNOCENTES

í>m\i^^^'^^'^^^ "™ <iÍ9, na redacção de uma fo- lha lisboeta, apresentar-se um cavalheiro de- luvas pretas— como Blanqui de- clarando que, recem-chegndo (Li S. Thomé e chamado Félix (esquecc-mo o .-.ppellido), pu- zera a mira em nbrij- caminho pela via do Jornalismo Politico; que tinha (no toutiço) as suas idéas politicas, e que da sua entrada na liça algo resultaria, em benefícios para a pátria de nós todos. Félix, com as luvas pre- tas, queria publicar na gazota o seu artigo de iniciação. Eu assistia ao desenvolvimento do

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programma duplo d'aquelle magico, pois que eu pertencia á redacção. O director politico do jornal, d'olho fito nas luvas pretas do Félix, excitou o homem ás aventuras aspérrimas da Vida Publica, e disse-lhe que apresentasse o artigo revelador de suas aptidões. Regressou Félix no dia seguinte, e deixou artigo, o qual monstro abria nos seguintes termos :

«Estamos no prego. A Liberdade está es- borrachada, os perniciosos fructos da indolên- cia do povo e da libertinagem se assim ouso exprimir-me dos individuos que prezidem aos seus destinos." - •»

Era um rebento se assim eu ouse expri- mir-me— do conselheiro das unhas encrava- das. Foi devi lamente bandarilhado o Felix^ corrido, e c xpulso. Ouso crer que regres- sou a S. Thomé, desilludido como o Luciano das Illusões Perdidas, e sem haver encon- trado um Vautrin.

Illusões ao mar !

Lembrei-me do Félix, a prop' -ito de umas

o RISO AMARELLO 273

luvas pretes que ha três dias vi, dependura-^ das, n'um ferro velho da feira da Ladra. So- nhei com as luvas, depois com o Félix e d'ahi a genése d'este artigo...

Ainda agora, na rua de S. Roque, um su- jeito das minhas relações disse-me, ao encon- trarmo-nos á porta do Tavares :

«Ainda bem que o vejo \ Ha oito dias que trago aqui um charuto especialissimo, para você. E' da Havana e. não custa menos de cinco tostões. Como você seja apreciador. .

Brindou-me com o charuto, que eu fumei eraquanto o- diabo esfrega um olho. Persignai pareceu-me um conduta de 25, com dominó, côr decafê, o que não embarga o meu reco- nhecimento.

E a propósito do charuto da Havana e que não custa menos de cinco tostões, lembro-rae do seguinte casa de innocencia : . . .: .„ j

Inventara o sr. Barjona a Esquerda Djjm/. iwMicft. e, cora seus excellentes modos, capti- váfa áiversos cavalheiros, até áquelle dia fora dos -centros poli ticos. Eu.fiii um' d'elles^.;emí homenagem ^os excellentes modos; ^dò cwfe^:^

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274 o KISO AMARELLO

aos precedenles «liberaes» desse cavalheiro. Filiei-me, pela primeira e ultima vez. Acudi- ram de vários pontos do paiz numerosos inno- centes, e alguns delles me pediram informa- ções, que eu forneci propicias aos preceitos de filiação. Entre esses neophitos veiu-me de Traz-os-Montes o poeta Xavier de Menezes, vulgo O Meneses caipira, a quem eu pergun- tei, com a sisudez de um partidário convicto que diabo trazia elle ao partido novo.

E o Caipij-a, batendo no lado esquerdo da sobrecasaca, sobre o coração d'elle e a algi- beira interior d'ella, disse-me, com sorriso mysterioso :

«Alguma coisa nova e importante para o nosso chefe.»

Que diabo nos Iraria do Norte do paiz o Xavier de Menezes, vulgo O Meneses Caipi- ra f L'm plano de revolução Esqucrdo-Dyni- nastica? Projectos novissimos de legislação salvadora ? Uma alliança da Liberdade e da Egreja, destinada a excitar as sonorosas fu-

o RISO AMAKELLO

lias do Augusto Ribeiro? Um estudo sobre a applicação drástica do conselheiro encravadis- simo ás cólicas do partido novo? Pedi, sup- pliquei, ameacei, e Caipira n'uma reserva de Talleyrand. Foi na escada do chefe, cinco minutos antes de eu o apresentar, que o su- jeito me explicou o enygma, sacando-o do bolso furtado da sobrecasaca preta -- tão preta como as luvas do Félix :

«Aqui tem você o que nunca viu Olhei. Era um charuto, envolto em papel

doirado.

«Aqui onde o vè. disse-me com voz cava o Caipira^ custa doze vinténs, e nunca se viu fazenda assim : E' da Bahia !•*

Api-ezentei o Caipira. Elle aprezentou o cha- luto. O chefe deu o charuto ao creado. O creado vendeu-o poi- três vinténs á cieada, [ue o deu ao 34 da 6.*

Caipira é hoje mesli-e de meninos onze vinténs poi- dia— nas immediações de Villa ReaK

^^^&^^^\^^^^x7^^?^^^^T^^'.

HYGIENE E COISAS

meu velho Carlos Jorge dizia-me hontem ao anoitecer, na feira de Belém : , , Andas tu n'esse fadário de demolí- çÕesinhas, psychologias e ratices, e não te passa pela- cabeça a ideia de ser útil â valer á humanidade da tua rua, denunciando-lhe os funestos effeitos de um vicip^que^ espatifa^ as gentes ! . . .. . ,.-c, ;-,',.,.,,.. ,,

Conta-me isso, ó menino I Estende para ahi a tua ideia !

Fala tu do tabaco a este desgrar-ado po- -vo: dize-lhe, como pratico e victima, que {és,

278 o RISO AMARELLO

todos os horrores d'es5e maldito vicio ; relata episódios, casos, coisas do diabo —que a gen- te soffre com a pouca vergonha da cigarrada, da charutada, mais da cachimbada! Escancara o deficit da saúde, mais o deficit do orçamen- to particular, resultantes d'essa mania porca- Ihona ! Torna-te benemérito, que tens idade para isso : olha que, ás duas per tres^ estás na cova e não deixas coisa que se veja!

Tu és o diabo, Carlos Jorge! Estás jus- tamente a mexer-me na ferida ! Quem te di- ria, senão o instincto diabólico, que eu penso dia e noite em armar á gratidão dos povos V Eu não o dou a perceber, alma de cântaro ! mas tu devassas-me o pensamento! Queres, então, que eu me occupe dos tabacos ?

Trata dos perniciosos eíTeitos da fumaça, e conta com uma estatua equestre '

E foi assim, espicaçado pelo Carlos Jorge» que eu resolvi dizer- vos o seguinte:

# Ha dias^ subia eu a rua de S. Roque e en-

o RISO AMARELLO 279

contrei o meu amigo Ravasco, que me disse:

Eu vinha a observal-o a distancia. Você cambaleia, como eu, e deve ser pelo mesmis- simo motivo. Você fuma?

Constantemente. Ainda bem que se me depara oulra victima ! Com que então você cambaleia? E' da intoxicação dos rhins^ perdoem- me os sábios, se digo asneira !

E para ali enumerámos os dissabores resul- tantes da Nicotina : Frouxidão das pernas, digestões impossi^eis, palpitações do coração, perda de memoria, perda de vista, espasmos de larynge, tremor nervoso, prababilidades de asthma, hálito especial de tabaquista (não é bem o aroma do jasmim) e, no orçamento uma verba de tremer !

Principia-se, ao sair da infância, por fumar ás escondidas para fazer de homem; d'ahi, ao termo de enjoos e bebedeiras cruéis, vem o acosLumar-se um cavalheiro á excitação produzida pelo tabaco, propicia aos trabalhos do espirito, e á distracção quê a fumaça pro- p orciona em horas de aborrecimento; ha quem, a breve termo, lhe- descubra consolação

280 o RISO a:viarello

aos momentos de amargura. Deliciosas phan- tasias que desabrocham n'um vicio estúpido, tyrannico, porco e abominável, do que o Es- tado extrae uma das maio*"es refceitasi.

Encontrei ha mezes um dos nossos honíensi públicos, que é uma gloria do Professorado, Contou- me elle que. havia uns vinte annos, re- solvera deixar de fumar, tendo se reconliecido nu espinha em resultado do tabaco de fumo^ e devendo ao uso de tal peste repetidas syncopes, allucinações e um mal-estar insupportavel. Re- solveu acabar com o tabaco e cumpriu co- rajosamente. Durante vinte annos não fumou. Nos primeiros dias é grave, e ha individuos a quem a privação súbita e absoluta de tal peste pôde ser realmente funesta. Elle passou altiva- mente por cima das saudades, das inquietações « das oífertas de charutos pelos amidos e pe- Ids conhecidos, até áquelle dia em que nos en- icontràmos. N'esse dia^ por extravagância, xS^mprara um maço de cigarros, fumara ura

o RISO Á3IARELL0 281

doestes e tivera im média ta mente um ameaço de syncope. Arremessara o mâço peia janella ^óra e agradecera á Providencia o aziso of- ferecendo-o á minha deplorável cegueira.

Cegueira disse elle. Não é bem cegueira:

uma vergonhosa fraqueza a que nos domina

a mim e a tantos outros e parece-me útil e urgente apresental-a aos pobres rapazinhos que ás escondidas principiam para fazerem de homens, e às victimas que ainda puderem furtar-se a tal horror. Em regra, os mais pos" santes trabalhadores de espirito citarei Ro- chefort não fumam: não carecem de extita- çãoy nem de distracção, nem de consolação. Estão livres de enfraquecimento de vista, de perda de memoria, de tremores nervosos^ de palpitações de coração, de más digestões, de espasmos de larynge, de ataques asthmaticos e de tremenda verba no passivo orçamental :

livres joor tal motivo, bem entendido, e esse motico é implacável Afastada a questão hy-

282 o RISO AMARELLO

gienica, ha sujeito que gasta em fumo quanto lhe serviria para a renda das casas. Digam d'estas coisas os pães aos filhos no inter- vallo das historias para rir e da leitura do Barba A:^ul !

Termino entre a decima e a undécima ca- chimbada, e não ha uma hora que me levan- tei da cama. . . Experimento todas as afflicçÕes que lhes disse. e offereço-lhes esta confis.são.

APERTOS

^^Aiu O ministério regenerador^ e diz-me Ti- ^^ berio que tal facto não ata nem desata nas penosas circumstancias em que nos vemos encravadissimos. Não é que o philoso- pho se oriente pelos câmbios e pelo sarapatel das maniversias financeiras; a sua pedra de to- que é o orçamento cazeiro.

Pôde qualquer escagarrinhar-se em demons- trações optimistas e podia o Hintze jurar aos deuses do Bensaude que estamos plethoricos de arome: se a dona da casa diz ao meu ve-

284 o EISO AMARELLO '

lho Tibério que é preciso mais dínlieÇo para as compras, o philosopho vota ás fúrias infernaes o orçamentologo e o outro, e faz con- tas de cabeça que sommam a ruina da pá- tria. A ideia do benemérito Correia Guedes augmentando o preço da carne ameaçou de congestão cerebral o meu velho amigo. As li- ções de Arménio e de cornetim dão a Tibério uns cincoenta mil réis mensaes, vae para seis annos. Poz-se elle na marmellada de dispen- der aquella quantia^ vivendo, aliás, parcimo- niosamente. D'ahi, principiou o encarecimento das coisas. Tibério embargou o cataclysmo, tomando o café mais fraco, deitando agua no vinho, preferindo as balatas ao pão ; cort<m -no luxo do bife e entrou pelos farináceos" | com o que engordou balofamente, como o M da 6.* Deitou fundilhos nas pantalonas e tom- bas nas botifarras, e fez lustrar chapéus do tempo de Robespierre. Emíim, luctou, armado de resignação económica, contra a patifaria da crise. Hoje declara-se extenuado, e resolveu tratar-se bem e fazer dividas. Homem ao mar !

o RISO AMARELLO

285

Heis de ter notado que as severas noções de rectidão esbatem-se quando os apertos caus- ticam um cavalheiro. Ha mesmo um dilado al- lusivo á virtude que sae pela janella quando a fome bate á porta, etc. Tibério não chegou à fome, nem a sua vfrtude se escapuliu ; mas sobre o microscópio do philosopho estabele- ceu-se uma crosta, que por um triz O não inu- tiliza. Diz-me o bom homem que tem pena de nãó sér.negociante, para fallir; ou banquei- ro, para passar o pé. Estas bolhas de cynismo rebentam â superfície das seriíigações e da des- crença sem o habito do soffrimento. Tibério teve sempre de seu, até aos cincoenta de sua idade : pessimâslcòridíçõés; de' résistenrGia ! - ' "-

-rio B oup 'ís;)í:'!Bv ií..

''P^iíigriòsffóâTsl^M *'íirínõ^'-tini sábichdtô ãll6- riíãí) '' ô" suitífdiò' em maésa -^ Humanidade. Tibério diz-me que ha erro : que talvez se' sUi- êMWoi-cfY\\to^,'<is, espcúfetf\^»^iasi<<ipíè^ a

?86 o RISO AMARE LLO

grande maioria dará em rapina nte, e que ve- remos povos transformados em quadrilhas: um retrocesso a orainososs periodos de civilisa- çÕes embryonarias, ou exóticas. E o meu ve- lho conterrâneo accrescenta, maguadissimo, que chegou no peior tempo : grandes perigos de miséria para os honrados, e ainda código penal para as imprudências. Que não chorou na barriga de sua mãe I

Grandes desorientações, e eu a achar justifi- cado aquillo do Fialho d'Almeida : o dizer- me um dia o admirável escriptor, com a sua verve paradoxal e demoniaca : «Você cuida que esta leria da letra redonda hade durar eternamente? Menino I mais dia menos dia, os povos desatam a berrar grandes patus- cos I que não estão para aturar as escriva- Ihadellas e que os litteratos vão cavar, e crear porcos Também me quer parecer que a cri- tica tem os seus dias contados, e que é preciso cuidar de outro officio. Por mim, não se me de crear porcos: os conheço de lhes ha- ver lan<;ado pérolas. Desorienta-ões dos apôitos, e estes são de

o RISO AMARELLO 287

espalmar um rhinoceronte ! Uma noite destas, encontrei um meu conhecido syndicateiro, que ! me disse, aterrado : «Você não imagina como i.sto está!» Não, não imagino como isso está. Horrivell Medonho! se não faz nada i O que I limparam tudo '? !

No outro pólo, diz-me o visinho esteireií-o que passa dias sem accender o lume e que mal chega para pão secco. Eu tranquilliso-o, pelo que diz respeito aos dois pequenos : para elles ainda ficam umas sopitas, e, sendo pre- ciso, accrescenta-se o caldo. Não digo esta ba- nalidade para o fim de ser condecorado : é t para estimular o meu visinho macaista, muito '. rico, e que poderia dar uma sopa diária a al- ^ gumas dúzias de pequenitos: talvez o fizessem commendador.

... Está ahi o Carnaval á porta. Hão de vêr que de miseráveis ostentarão por essas i'uas os farrapos, elles vestindo os das mulheres, ellas os dos maridos e enlambusarao a cara feita á imagem e similliança da de Deus

288 o BISO AMAEELLG

para apanharem esmolas, a titulo de diverti- mento. Houve tempo em que Tibeiio me di- zia:— «Sim, muita miséria, mas as tabernas cheias!» Hoje é elle quem observa: «Os que enchem as tabernas não são os da Miséria : esses hão de apparecer em certo dia...» E Tibério treme n'um grande medo.

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N'AQUELLAS IDADES

tEscENDo eu hontem a calcada de Santo André, saindo da Correcção (isto è para os fazer enraivecerj, deparou-se-me o commendador Francisco, que subia, de cabeça baixa, grave e algo melancólico, dos lados da rua da Palma. Por um triz, nâo warraca no meu physico o commendador! Puz-lhe a mão no horabro, e interpellei-o amigável :

Para onde é a ida, commendador ?

Ia com ideia de encontral-o; confiava no acazo, que, pelo visto, me foi propicio.

Em (juo posso cu scr-lhc ulil? Mas, se Tic

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290 o RISO AMARELLO

parece, vamos para baixo, que eu levo com- migo a mais real das fomes.

Vae jantar a caza ?

Vou, para os lados da Praça das Flores. Espiga, pois não é assim ? E' para que saiba que nem tudo são rozas na minha sinecura.

Arri()iou carreira o commendador Francis- co, e veiu commigo, pela rua da Palma, tra- vessa e largo de S. Domingos, largo de Ga- mões, Avenida, até ao ascensor da Gloria. A' beira do ascensor parou, para me contar o resto da seguinte leria :

«Imagine você que a Soledade descobriu um dia d'esteâ, no bolso furtado do meu par- dessus, documentos comprovativos... como diabo quer você que eu lhe diga ?

Da sua traição ?

E' como ella diz : da minha traição. Foi ha oito dias. Pois meu rico senhor, tem sido um inferno de trezentos milhões de diabos ! De noite põe-me no regimen das canelladas: tenho

o RISO AMARELLO 291

as pernas cheias de contusões; de dia, ás ho- ras da comida, quebra a loiça e lança-me no estômago pezadelos e amargores que nem vo- cê imagina! E, na presença da creada, cha- ma-me burro, ladrão, garoto a um homem de cincoenta annos e outras coisas que se ouvem na travessa do Poço.

Faço ideia; aquillo é de origem.

Se é de origem? E' filha de uma pei- xeira, e andava de e |)erna, ati-az da mãe. Eu puz-me no costume de fazer festas á pe- quena e de lhe dar umas pratinhas, e ella chegava-se para mim... coitadinlia !

E' mau pòr-se em taes costumes; depois vem a pòr se n'outt'os.

E' verdade, depois puz-me noutros; e n'esta idade o peixe morde com anciã.

Silencio de cinco minutos, durante os quaes poupei, com movido, as angustias do commen- dador. Subitamente, elle :

Como descalçar este par de botas V

292 o RISO AMARELLO

O que? As canelladas nocturnas?

Mais os pratos em cacos, e as invectivas e as poucas vergonhas da travessa do Poço.

Corte pelo são !

?

Faça-se honaem : imponha ordem, amarre de noite a Soledade, vista-lhe um colete de forças, e ministre-lhe por sua mâo, o meio bife ; em ultimo caso, chegue-lhe a roupa ao coiro sem duplo sentido!

Você fala bem! Queria vêl-o !

Também eu quizera ver-me, que a So- ledade é de se lhe lamber os dedos até ao co- tovello ! Mqs quaes são as difficuldades da re- pressão ?

Eu lhe digo: foi ante-hontem que, ao al- moço, ella interrompeu o silencio de um quarto d'hora, para me dizer : «Olhe que o annel de brilhantes, aquella rica prenda que ,você me deu nos meus annos, perdeu-se não sei onde. Agora é arran>ar outro ; ouviu, seu cara d'asno?!» E eu, que Deus sabe os apu- ros— você entende-me, respondi-lbe: «Mas is=o, filha, r.r.o icm gr. ca ncr.iiuma I Se por-

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deste o annel, parlicipa-se á Policia Zás ! traz ! Oh, que duas bofetadas !

Que você chuchou ?

Justamente! Eu fiquei sem pinga de san- gue; mas, agora aqui em particular: cuida o amigo que eu pensei nos bofetões, era desag- gravos, no grandissimo diabo?

Pois em que pensava você?!

Duas lagrinns indecorosas desprenderam-se dos olhos ardentes do commendador; e elle :

Pensava na delicia das bofetadas que ella, uma vez por outra me dava por brincadeira; u olhar teirivel e tempestuoso dava-rae a sug- gestão das meiguices da creatura; os berros faziam-me lombrar as doces brejeirices que ella me dizia ao ouvido, a puxar-me e belis- cai-rae a orelha ! E o hori-ivel da minha exis- tência é o pensar em que aquella plástica, aquella perna e oquelle pésinho, aquelles olhos, aquelle halit^. acfuelle todo da sua car- ne e do seu espirito, tudo aquillo pode vir a

204 o RISO AMARELLO

sei- piopriedade d'oulío, se eu me insurgir, como você aconselha. Insurgir-me? Você a viu andar? a viu rir-se? Já...

Ainda não. Mas também ainda não lhe dei anileis; nem levei bofetões da sua linda mão; nem lhe ouvi palavrões obnoxios, desde garoto a calvagadura, nem me quebrou .a loi- »^a, nem me tornou ignóbil. Commendadoí- ! reaja e safe-se I Olhe que você está n'uma sentina !

Estou... mas é muito confortável.

S\^^^^

FORA

"f^iziA-ME um dia d'estes umjoi cu jornalista: JjUf) —«Eu trabalho n'aquelle jornal, mas ^^ não é porque eu precise : é para me en- Ij^eter, e porque tem suas vantagens.»

Referia-se nas «vantagens» á entrada grátis nos espectáculos públicos, à possibilidade de «conquistas fáceis» (lindo carocho!), á «gloria» de ser um collega. . . Que no mais é para se entreter !

Pazia-me notar, ainda ha pouco um dos officiacs CO meu officio que, em geral, as fo- lhas do Porto são superiores á maioria das de

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Lisbon em unidade de critério, em coorde- nação, em metliodo, em regularidade de senso- commum. Eu expliquei que, pelo ordinário, o jornalista no Porto não está alli «para se entreter,» nem com o olho nas taes vanta- gens. O proprietário do jornal tem a sua em- preza, o que o não dispensa de ter a sua po- litica; o jornalista tem n'essa empreza a sua profissão, e ama essa profissão, porque ella lhe o pão de cada dia e o prestigio relativo ao seu esforço e á sua intelligencia.

Mas, voltando ao nosso jooen, as causas da sua collaboração gratuita, para entreter, são d'uma complexidade de mil diabos. O tal jor- nal é pobre ao termo de dez annos de existên- cia, porque lhe falta especialmente, para fa- zer fortuna, o espirito industrial. O politico escreve o seu artigo e deixa o resto aos «vo- luntários»— aos que vão para se entreter e para as taes coisas... O Teixeira de Vascon- cellos, um padre-mestre do jornalismo, res- pondia a alguém que lhe perguntava:— Quanto paga V. a Fulano?.. .

«Eu?! Não lhe levo nada!»

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Ora, tudo isto está fóia da discussão me- nos quando aggi-ava casualmente os direitos dos officiaes do officio. Não é raro que a cAó* mage caustique em Lisboa os jornalistas obtendo elles como explicação e desculpa das emprezas: «Nós fazemos o jornal como v. sabe: com os rapazitos que vão por alli e que não ganham nada. . E' irrespondivel a não ser que haja ouvidos pai-a esta ordem de refle- xões:

Haverá dois annos, incumbiu-me d'um traba- lho um estrangeiro muito intelligente e muito trabalhador. Não falámos em remuneração : sub-entendia-se. A um terço do meu trabalho, o meu empresário disso-me : «Estou satis- feito : é isso : você entendeu perfeitamente e desempenha melhor. Vamos ás nossas contas; e peça o que qidzer !

Fipuei perplexo^ lembrando-me dos contos de fadas, quando a Posphorina diz á Maria de Pau :— (^Pede o que quizeres, menina, e tudo te concedo

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Elle viu me sorrir; imnginou extremos de timidez e alolhou-os, explicando :

«Não ha para mim senão duas classes de individuos : os que me são muito úteis e os outros. Aos primeiros retribuo a utilidade, sem olhar a despezas. Aos outros dou o me- nos que posso : ás vezes nada. Tenho-me visto bem com o processo. Em troca de muito e bom trabalho muito dinheiro. E não re- ceie que eu o aciusc de exigente. Pelo con- trario : eu discordo dos que fedem pouco ^ e com os que não pedem nada com os que trabalham grátis nem para o céu

Creio que lhes contei esta historia.

Está o meu joven patricio no seu direito trabalhando para se entreter; mas faça isso por modo que não prejudique com os seus es- bocetos a pintura dos que traballiam para vi- ver. E' certo que o emprezaiio aprecia as borlas e que parte do publico devora gato por

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lebre; mas, independente dos resultados pi-ati- coSj funestos, no andar dos tempos, ao em- prezario e ao publico, é preciso ter consciên- cia, leviano mancebo ! Ha familias de bom porte prejudicadas por esses entretenimentos ; ser colleçja para casa do Diabo I

VENTO LESTE

ts rugidos longiquos, que, d'além frontei- ras, vem excitar as flatulências do con- selheiro das unhas encravadas, tamèm trazem n'uma causticação permanente o meu caro commendador Francisco. E' a ponto de D. Gertrudes, a respeitável e hedionda com- mendadora, haver surprehendido hontem seu esposo a dar o tratamento de excellencia ao Juan de Bigas, seu moco de recados. «Ex- cellencia a um gallego!» bradou a horrível dama, atónita e enfurecida. E Francisco, em tom proflietico c su^.uiiibi'': : «ri^^egos 'o-

3W2 o RISO A3L\RELL0

dos nós podemos ser; e d'uiii dia para o ou- tro I»

Ideia fixa do commendador; Que da histo- ria de Cuba, aggravada com a das Filippinas, vem a surgir a carrapata revolucionaria, e d'ahi uma invasão de gallegos e mais povos da nação irmã. Ora,' o commendador, que ao- ceita os productos hespanhoes, sob as formas de artistas de zarzuela, de toureiros e de Ma- gdalenas sem arrependimento, e que applaude taes productos, como refinadissimo apreciador, embirra, algo espavorido, com a hypothese de uma invasão. Tendo assistido impassivel aos protestos vehoraontcs dos cu ligados contra as violações da Carta., experimenta um indomá- vel horror, quando prevê as violações da So- ledade pelas milicias da Hespanha. A Soleda- de, viva e fresca, é a pedra de toque do amor- pátrio do commendador Francisco. Suspeita elle que de muitos outros.

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vão mezes, depois que eu disse aos meus trez leitores effectivos: «^A Hespanha perderá Cuba, mas vêr-se-ha livre dos Bour- bons.» E' infallivel, eu nunca me engano senão em meu prejuizo; e, pois que sou in- teressado nos destinos da Hespanha, devo crer que não me illudo em meus vaticínios de alta politica. A breve prazo, quando menos o es- perarmos, rebeiita-uos por ahi a noticia de pronunciamento, com lodo o rabo-leva de sen- sações: occorre-me, a propósito, que uma noite d'esLas, estando eu no largo de Bailas, a ou- vir a musica, um gi-upo de trabalhadores lis- boetas, dos que trabalham nos saloios, refe- ria-se ás hypotheses de próxima revolução em Hespanha, e um d'elles deixou cair a seguinte phrase prophetica : «Aquillo estoira quando a gente estiver a divertir-se; e depois chega- rá a nossa vez.»

E' justamente a possibilidade de também chegar áquelles a sua vez um dos factores da ataranlação de Francisco. Depois de con-

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jurados os terrores da invasão possível, ocom- mendador todo se escagarrinha, pensando na eventualidade de uma anarchia medonha, de^ de Santa Apolónia até Campolide, apanhando com seus horrores alli o largo do Rato., onde a Soledade tem fruído o tributo dos homens á sua picante formosura e ao seu catitismo enebriante. «Imagine você (dizia-me ha dois dias o commendador) que uma turba multa de scelerados invade a habitação da pobre pe- quena, e lhe salta em cima! Excommungada Cuba ! Excommungada Hespanha revolucio- naria! Excommungados agitadores! Você tam- bém tem dado a sua conta

Ponderei ao afflicto commendador— que, sen- do a Soledade mulher pratica^ não deixará a esta hora de ter previsto a hypothese de lhe saltarem em cima os demagogos, e que o es- pirito volúvel e impressionavel da catita talvez prclibe as delicias da varionle, farta dos as- saltos dos cor.so: vadorcs. E q\'\ cmfini, nTo

o RISO AMARELLO 305

vale a pena abafar as expansões dos revolto- sos de Cuba, nem embargar a fatalidade das Leis Históricas, porque a Soledade corre o perigo qui»:á do seu agrado de soffrer a sorte da Carta Constitucional. Que o prior da Lapa^ mais o Augusto Ribeiro reajam pelo pudor da velha croia que teve boa perna nos arredados tempos dos Passos, entende-se e admitte-se, pois que os dois varões são reco- nhecidamente dois vulcões, ou, peio menos, dois fogareiros de prote.sto; mas cumpre ao Gommendador Francisco, cuja paciência de ameigo da Soledade é proverbial, conformar-se com a ideia de uma invasão gallega, mais de uma expansão demagógica por onde der na plástica e nos créditos da moça !

o TAL PROBLEMA

^j^^Ão oíferece duvida que o nosso próximo ^^ demasiado próximo! é, em regra mais tolo do que mau; todavia, é a maldade quem cartas n'este mundo, se- gundo a conclusão do velho Josó Lopes, um ex-soldado da pátria e um enérgico trabalha- dor, ao presente invalido e a viver de esmo- las na aldeia de D. Maria. Viver de esmolas » e ha uns poucos annos, entre os infelizes a quem um mez de chuva lançR na miséria são as lavadeiras e os trabalhadores do cam-

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po, é, todavia, uma demonstração de bon- dade anichada nas almas dos desgraçados. Va- Iha-nos o espectáculo consolador !

Tinha sua fortuna a família do José Lopes, ao rebentarem as luctas entre D. Miguel e o D. Pedro: familia de miguelistas, o que lhe valeu perder tudo, pois que os liheraes incen- diaram-lhe a casa e os armazéns de vinhos, em Villa Nova de Gaya. O rapaz contava ao tempo uns quinze annos, e deu-se a trabalhar de tanoeiro, para sustentar-se e á mãe e a uma irmã; o pae succumbiu ao pezar que lhe causou a sua ruina. Instalado o novo sys- tema, foi d'ahi a poucos annos chamado ao serviço militar o meu heroe, e na fileira o surprehenderam as luctas entre patuléas e ca- bralistas. Mãe e irmã falleceram um pouco- chito de fome, e o rapaz, alistado por decer ao serviço do systema que o desgraçara e aos seus, consagrou-se á defeca das liberdades pu- blicas^ seguindo a sorte dos patuléas. No Alto

o RISO AMARELLO

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do Viso, uma bala fracturou -lhe uaia perna: Soffreu amputação.

Durante annos, viveu, todavia, pelo seu tra- balho, fabricando brinquedos de pau. Ultima- mente, ha quatro annos, veiu-lhe o rheuma- tismo e prostrou-o. Levam-lhe o pão e a sar- dinha assada ao seu miserável catre os pobres visinhos que mal teem para os filhos.

Conversávamos hontera, eu e elle, acerca d'essas misérias e d'ahi nos derivámos á phi- losophia do caso. Foi á conta de eu lhe dizer que ha, n'este mundo civilisado, sujeitinho que possue duzentos e quarenta mil contos ou dose mil contos por anno^ ou mil contos por me^, ou uns trinta c tre^ contos por dia: isto ao juro innocente de 5 p. c. (*) Fe- chara os olhos o pobre velho, e, quando eu o

(*) E' o americano Jay Gould. Abaixo d'elle, ha sujeitos como o Mackay, com 225 mil contos, o Rothschild iaglez com 180 mil contos, o Vanderbilt, com 113 mil contos... í:tc.^ etc.

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julgava abysmado na contagem da dinheirama, elle reabriu os olhos, e disse-me:

«Eu não chegarei a vêr coisa nenhu- ma, nem talvez o senhor: que tudo isso está muito enraizado, e as forças das victimas es- tão dispersas. Sou um pobre homem, um igno- rante, mal sei exprimir-me; mas penso con- stantemente— n'este isolamento; e, quando não é nos infortúnios da minha pobre gente, é na impossibilidade de que as coisas no gé- nero dessa estejam livres de um termo. Creio que hade ser medonho, mas tem de ser. Não concebo o nivellamento das condições ecpno- micas de cada homem, pois que ha os pou- pados e ha os pródigos; mas o que eu.entre- vejo é o fim da miséria. Não haverá indivi- dues cora trinta e tre^ contos por dia, mas deixará de ser «possível» não porque ultra- passa a infâmia, mas porque excede o absur- do—creaturas sem albergue, sem pão, e sem garantia de arrimo, quando impossibilitados de ganhar a vida. Olho para as transforma- ções politicas que se apregoam, e, por mais radicaes que as annunciem, ou que as de-

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sejem, não vejo n'ellas uma nesga de me- lhoria para a situação dos Miseráveis mais de quatro quintos da Humanidade. Se ha pro- messas, se o Proletariado entra no Credo, é preciso que nos lembremos para duvidar. Lembremo-nos de que a alma do Povo foi sempre illudida nas revoluções: veja-a em França, a auxiliar o advento de trez republi- cas— e burlada sempre I Os Miseráveis teem de contar comsi.^o exclusivamente...»

Dizia o escriptor Pinho Leal, o do Porixi' (jal Antigo e Moderno, quando queria exal- tar os dotes intellectuaes de um homem : «Não é tolo de todo». Tal direi do José Lo- pes. Não é tolo de todo, a não haver vaidade da minha parte pois que eu penso como elle.

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V9J

MOLÉSTIA DO TEMPO

/t^ONTOu algures o saudoso poeta Gonçalves ^M Crespo que, uma vez, um padre das suas relações e proprietário de uma folha po- litica sertaneja lhe pedira um ou mais arti- gos, em que verberasse o governo. Annuiu o poeta, escrevendo um ou mais artigos de es- cacha, com o seguinte fecho severo e conclu- dente : «Mais moralidade, sr. ministro do reino!» Gonçalves Crespo nunca chegou a saber quem era o ministro do reino, nem o que elle tinha feito n'este mundo.

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Cae-me debaixo das vistas, n'este momento, uma folha diária, na qual eu vejo, n'uma sec- ção de politicas a seguinte coisa profunda : «O governo continua a dormir sobre as occor- rencias de Lourenço Marques com o cônsul da Allemanha.» Naturalmente, acode-me a lembrança de Gonçalves Crespo a exigir mais moralidacle ao ministro. Salvo o talento do poeta 0 os seus intuitos trocistas, que o jornalista de hoje não tem talento, e escreve a sério a severa annotaeã'o.

Também me occorre uma anecdota que ha annos me contou o malogrado erudito Graça Barreto. Era elle estudantote, e ouviu falar de uma subscripção que os habitantes da Croácia tinham realisado em favor de Pio IX. O su- jeito, que se referira ao caso, via com maus olhos o Padre Santo, e d'ahi o haver chamado aos subscriptores Os infames Croatas. Diabo, que tal disseste! O Graça Barreto, enchouri- çado, ao ouvir, li-3s dias depois, o elogio de Pio IX, bradou :

o RISO AMARELLO 315

«O que lhe vale são os infames Croatas !i> Uma estupefacção, e um dos circumstanles

perguntou carinhosamente ao fedelho :

«Mas que gente vem a ser essa, meu me- nino?!»

Fiquei todo embezerrado, e safei-me: dizia-me o Graça Barreto. Eu não percebia o que tinha dito.

#

No mesmo género, que o dia está de chuva, para historias . .

Falava Guerra Junqueiro n'uma reunião po- litica, e um papa-moscas, irritado contra o grande poeta, porque o achou todo janota e de barba feita, deu o seguinte aparte^ como se diz no Brazil :

«E o que o senhor disse na Morte de D. João ? .'»

Houve rizota de varias intenções e de diver- sas estupidezes, e eu perguntei ao papa-mos- cas :

Que diabo disse elle no tal livro, a pro- pósito de conflictos iuternacionaes ?

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Se não sabe, aprenda ! Ou o senhor está a caçoar comigo ? !

Por estas e outras, se deu o caso de me di- zer hontem á noite á meza do hotel, em Ca- necas, o meu vellio philosopho Tibério :

Acho que em todos os regimens politicos existe uma lacuna importante : é a falta de um appendice á folha officiaL destinado á publica- ção dos alvitres individuaes, em casos de atrapalhação dos governos.

E' bem imaginado.-

E é urgente, para o apuramento do Juizo Publico. Note você como um sujeito incapaz de desembrulhar-se de um conflicto com um vizinho da escada, que lhe faz bulha para baixo, berra contra a estupidez e a inércia de qualquer governo do seu pequeno paiz, quando esse governo se a contas com as insolên- cias e as ameaças de uma nação poderosa ! E' irritação patriótica 1 D'accordo, uma vez poi' outra. Mas o que se torna grutesco são as phrases soltas, desdenhosas, de qualquer bana-

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boia que exige idéas resolutivas^ sem elle mesmo ter sombra de uma idéa, sem haver estudado, nem percebido as origens de uma questão; lhe não falo dos sujeitos que não se importam com ella para coisa alguma, e que badalam ou rabiscam, para se darem ares de entendidos, ou de indignados. Olhe você para aquelle alcoólico, que é um funccio- nario bem pago^ porque tem um parente que o arrumou fora dos merecidos varacs de uma carroça^ e que todas as tardes, no café^ se ares de revoltado pela marcha da coisa pu- .blica. . .

Conheço o bicho.

Bem. Ha de tel-o visto a berrar em circu- les de revolucionários e, meia hora depois, a rir-se da pandega de tudo isto, em grupo de parceiros que o desprezam, mas que o atu- ram— em attenção ao protector. Que idéas possue aquelle bêbado? Que noções de decoro nacional ha no espirito d'aqueile idiota ? Que sentimentos dignos se albergam no caverna- me d'aquelle pulha? Ora, ahi tem você para que eu queria o tal appendice á folha official.

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?

Sujeito apanhado a badalar ou a labis- car , sem demonsliaeão de raiólo e de senti- mento, seria obrigado a redigir o seu pensa- mento, o qual seria publicado no tal appen- dice. Esfarrapar os Hintzes pôde ser mérito rio^ mas é bom vêr as unhas de certos bichos.

7írrrmTrTTTnTrrtTrrrrrTn\

A UM MAIS NOVO

^|iE quando em quando, lembram-se de con- ' sultar-ine recem-chegados á vida de caus- ticações. E' em longas cartas, de ingénua desolação umas, outras de enthusiasmo cortado de hesitações. Aqui tenho uma, rece- bida hontem de Coimbra, da qual extrahi os seguintes periodos :

«Quando foi aquilio do ultiraatum^ tinha eu treze annos. Chorei muito, pela minha fra-

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queza de cieanrola, pelo enxovalho atirado á minha pati-ia, e depois pelo malogro da resis* tencia moral. Decoiieram estes seis annos. Te- nho hoje dezenove, e um livi-o de versos, de que lhe envio uma amostra. Peigunto-lhe se fiz bem e se vou bem. Appello para a sua ex- periência, pai-a a sua sinceridade e pai'a os seus "sentimentos de sympathia pelos seus irmãos mais 7WC0S. Entende o que eu quero dizer- Ihe.. Entendo.

#

E pois que o entendo, direi a esse mais naco que os seus versos de hoje desmentem o seu sentimento de ha seis annos^ embora pareçam a resultante. E a razão é simples : a sua amar- gura deve ler sido verdadeira, e os ve]*sos de hoje são falsos. Considerar tudo podre e per-^ dido, porque o galho mais depauperado da ar- vore latina não offerece resistência de um tronco em plena seiva, é cingir-se de animo feito a uma linha de convencional tristeza. Que diacho influem na Humanidade os episódios de

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uma naçêo decadente? E que importa a essa Humanidade o suicídio de um onfermo em- bora illustre ? Mais ainda: Que tem um ho- mem de dezenove annos com o que se passou em 1890? Que tem, mesmo, com as desgraças de hontem ? Toda a con'*entraç80 espiritual de um recem-chegado deve ter o Futuro por ob- jectivo. Todo o seu ideal deve ser feito de sa- crifício, — a não preferir o contrario : a lucta aberta, pelo gozo. Collocar-se entre estes dois pontos, affirmando desalentos, descrenças, my- santropias, desprezo pelos homens sem ter soffrido a deslealdade, a ingratidão^ a deturpa- ção calumniosa dos seus actosj as consequên- cias cruéis da sua boa-fé e da sua dedicaçâO;, as aggressÕes e as injurias dos sem cotação intellectual : essa altitude de Réné de Cha- teaubriand, ou do Moisés de Vigny:

Seigneu"- ! Voiis m'ave^fait puissant et solitaire ; Laissei-moi m'cndorTntr du sommeil de la Teirel

... esse doloroso desdém, meu joven ami- s: \ e^:i;:va'o nos í;cm*[los do inn coroi^inl, so-

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bre a perfídia das Mulheres, porque viu em casa uma creada trocar dois beijos, á porta da escada, com o homem da hortaliça.

E ainda quando os baldões e as inclemên- cias da vida lhe tenham embranquecido a ca- beça, antes da hora, e reconheça finalmente que tem no destino o pas de chancCy a que allude o nosso Baudelaire, ha de faltar-lhe di- reito a cuspir sobre esta podridão. É que não ha podridão absoluta onde se revolve a Dòr> e as maldições e os desprezos não podem ser direito humano na Terra onde os rhinoceron- tes e os tigres, as feras mais cruéis, se batem e morrem pelas fêmeas e pelos filhos. Dado que a Sorte lhe distribua os encargos de ob~ sercadov e annotador publico, n dolorosa tra- vessia da existencie pôde auctorisal-o, quando muito, a minar, pela irreverência, os prestà- gios falsos, avisando de certo modo os viajan- tes crédulos ou distrahidos. Mas não ha incle- inencias, nem baldões, que o libertem do dever

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do sacrifício, menos ainda que o auctorisem a desprezar a Humanidade. E não conte com as- sociados, nem lhe importem os adherentes, nem espere admiração, nem justiça, nem reco- nhecimento ! Baste-lhe a consciência e creia sempre n'ella !

Dado que a Arte lhe houvesse parecido um formidável baluarte e uma forte arma, não se illudiu; mas desvirtuou a condição e o elemento de resistência e de acção. os perpétuos cul- tores dos anceios, dos anhelos e dos deoaneios os das flores e dos amores, os do coração e da visão podem condemnar, como os castrados cqndemnam a fecundação, os di- reitos da Arte no terreno das reivindicações. Todas as conquistas da Sciencia e todas as suas aspirações : todas as monstruosidades e todos os soffrimentos dos Desherdados : todas as im- prcmdcncias, mais ou menos calculadas pelas Tyrannias novas, todo esse conjuncto de amanhes está sob a alçada da Arte. Não lhe

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direi, facilmente erudito, o que vem desde Juvenal até Hugo. O meu amigo tem tempo para leituras, e supponho que não lhe faltará disposição. Creio que entendeu o que eu lhe disse...

ABC

^W5o termo de seis semanas de doença, vie- ^^^^ ram uns dias do sol pôr- me de pé; e vou proseguindo na travessia. Hontera dei comigo na minha aldeia, onde ha venta- nias agrestes, mas puras. A petizada tem cres- cido e, como dizia João de Deus, parece que sente mais juizo à conta da instrucção pri- maria. Â professora é uma senhora dedicada e intelHgente, conformada com o seu nobre, mas penoso, destino de educadora de peque- ninos selvagens. A influencia das primeiras lettras faz-se sentir nos saloiositos; diz-me um

CO

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velho da terra que é da snhjeição o estarem elles menos bravios - o não jogarem a pedra- da, desde manhã ao vir a noite, e o terem uns certos ares de gravidade que fazem rir a t.ia Gr i lia. E eu digo ao velhote que não é tal da suhjeição, mas das responsabilidades de- sejadas pehi infância e respeitadas por ella. E offereço-lhe exemplos.

Aqui esto o Mai-ius, com o> seus dez annos brincalhões, ([ue abandona goslosamenta os brinquedos logo que eu o encarrego de trans- crever umas linhas de um livro, ou de um jornal. Faz pensar e elucida a gente a gravida- de da creanea, ao desempenbar-se da tarefa, ufanando-se, ao termo do seu trabalho, de me haver ajudado a fazer um capitulo, ou um ar- tigo I Todos nós temos visto todos os que vêem, está claro o afan cora que as crean- «:-as, em geral, procuram tornar-se úteis, en- carregar se de coisas sérias. Mais tarde é que vem a mandria com as outras prendas do- iioraem.

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No estabelecimento de reclusão e de ensino, •onde tenlio occasião e obrigação de observar, ha novos provas e é entre os menos inno- centes. Prender, encerrar na prisão um pe- ffuenito, dar- lhe de comer e deixal-o depois a papar moscas— corao desenjoativo não lhe ti- ra nem põe na indifferença irresponsável e no ar descarodote de um, ou no feitio matu- to de outro. Mas logo que arranquem o pe- queno á inutilidade: logo que lhe distribuam tarefa um trabalho na officina ou uma lição na aula a physionomia adquire gravidade, e não se me tira da cabeça que o caracter vae com a physionomia.

E' evidente que, se lhe supprimirem em absoluto as horas de distracção, virá o horror pela tarefa, e á expressão de gravidade succe- derá a do aborrecimento, ou da irritação. Mas se lhe supprimirem os encargos, depois de el- \q lhes haver tomado o gosto, e lhe deixarem todo o tempo para folia, não sobrevirá ape- nas o tédio pela brincadeira : virá também a

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consciência da inutilidade. Recordo-mc do maior castigo que me applicava meu pae: *Não faças nada! Diverto-te, que ó o que tu sabes fazer!» Nunca experimentei humilhação assim! O que?! Pois eu não tinha préstimo para coisas sérias?! Vmha pois a ser uma espécie de Carocho um gato que havia em casa, que não apanhava ratos e sabia comer I

*

Pois é verdade: o Caroço diz com inten- ção aquelle primor de João de Deus:

Anclaca um dia. Era pequenino. Nos arredores De Na^areth. ..

O António Rato, que é mais mazorro e que passava todos os dias do anno á pedrada aos cães e aos gatos da aldeia, mostra-se preoc- cupado na divisão das syllabas e deixa tran- quillos 50 p. c. dos irracionaes. As pequenitas

o RISO AMARELLO 329

Tão muito adiantadas, e n'um centro de civi- lização seriam o «enlevo de seus maiores». Principalmente a Augusta e a Angélica reve- lam aptidões de espirito que me fizeram agra- decer a Deus a minha idéa de lhes arranjar a escola. E a propósito, encontrei esclare- cido o tal arranjo no espirito de todos os sa- loios maiores. Foi a tia Grilla quem os elu- cidou nos seguintes termos, emquanto batia a roupa, no tanque do senhor Limas:

«Ora, que estão vocês para ahi com pre- gações e adivinhas 1 A coisa entende-se, sem ir a Coimbra (como se em Coimbra entendes^ sem meJior!). O sr. Pinto {sou eu) chegou a esta terra, viu os pequenos por ahi aos coices, Deus me perdoe ! e quiz fazer d'elles gente. Teve dó, é o que foi! E d'ahi não esteve com aquellas: pediu ao sr. ministro do reino, acho que é do reino o que governa no Terreiro do Paoo, pediu-lhe uma escola, e o sr. mi- nistro deu-lhe a escola. Depois veiu a mestra e ahi está. Diabo ! Não custa nada a perce- ber ! »

E não custa. Percobe-se melhor do que a

330 o RISO AMARELLO

lettra da maioria dos discursos parlamenta- res, dos quaes a intenção se percebe delicio- samente. E' aquillo: Tive pena; pedi ao mi- nistro João Franco; o ministro também teve pena e fez-me a vontade. Prompto I

Pois^ meus amiguinhos de D. Maria, estão vocês á entrada da vida, e sempre me parece melhor levarem luz do que entrarem na escu- ridão. A luz é isso que a mestra lhes está dan- do. Dizem os velhacos que vocês seriam mais felizes —se não vissem nada. O que elles que- riam era apanhal-os ás escuras!

VEJAM ISTOl

'm politiqueiro sertanejo, ao lambisco per- m) manente de candidaturas e mais mixor- dias, mandava rosnar ha tempo, na sua gazeta, contra ns demasias do meu aze- dume. A rosnadura vinha com a mastigação de outras porcarias^ que ficaram ás moscas va- rejeiras, como o parvoeirão, pois que não bas- tam as inconveniências de lingua para conquis- tar resposta. Ora, quanto a eu ser taciturno, azedo, o diabo que o leve, devo dizer que bem me preoccupo em buscar assumptos para jo- vialidade, mas acontece que o negregado Des- tino me subtrahe á vista fatigada o pittoresco ornamental dos casos, e me deixa contem-

•^32 o RISO AMARELLO

piar a carcassa negra das poucas-vergonhas da Vida. Agora mesmo se me depara o que ides vèr.

E' n'uiii joriifll de Oliveira de Azeméis, sec- ção de annuncios. Leiam e riam-se, dado que se lhes não aperte o coração I Vejam essa in- fâmia da Lei !

Vejam islo :

«ARREMATAÇÃO

«No dia 14 do correrile, pelas onze horas da maníiã, á porta do tribunal d'este juizo, vão á praça, para quem pretender arrematnr, pela segunda vez, c por mctnde da sua avaliação, os moveis penhorados na execução por custas em que ó exequente o Agente do Ministério Publico, e executado Francisco de Rezende, o Mítraía, solteiro, do logar da Graciosa, fre- guczia de Loureiro, cujos moveis são os se- guintes:

Duns caixas (](> pinho^ poíjucnas, no valor do liO róis.

o RISO AMARELLO 333

Duas masseiras, pequenas, no valor de 50 réis.

Um casaco, usado^ no valor de GO réis.

Uma carapuça preta, no valor de 50 réis.

Duas enxadas, no valor de 100 réis.

Um podão e uma picareta, no valor de 100 réis.

Duas foices de meia lua, no valor de 70 réis.

Uma canastra e um engaço, no valor de 75 réis.

Um maço rodeiro e seis paus de mão, no valor de 10 réis.

Um ancinho, um alguidar, trez forcados de pau, seis taboas de dez palmos, ou 2,2 metros, no valor de 290 réis.

Oliveira d' Azeméis, 8 de março de 1897,

O escrivão, Francisco Ferreira cV Andrade

Verijíquei. O juiz de direito

Sai'iac^o c Carne ro.«

334 o RISO AMARELLO

Lôram? Saborearam aquillo das enxadas do trabalhador, do casaco no valor de 60 réis, da carapuça no valor de meio tostão: to- da aquella miséria incomprebensivel, atroz, que parece inventada e trazida a publico— para re- voltar as almas?! Viram como a observância da Lei pôde envergonhar um juiz e um es- crivão—pois que eu, por mim, sentiria vergo- nha e horror ao assignar aquella hediondez?! Acham que estas immundicies sociaes predis* põem um sujeito á galhofa e que não auctori- zara o mau humor? E quem demónio o man- da observal-as? pergunta-me o commendador Francisco. E eu pergunto a meu turno, ao commendador : Que diabo quer você que eu observe, dados a comprehensão e o sentimento que eu lenho da minha profissão, compre- hensão e sentimento que a convertem n^um^ destino? E' certo, garanto lh'o, que eu não passo a vida no registro dos horrores e das injustiças o que seria a manifestação de uma enfermidade; mas, se eu e os de meu feitio

o RISO AMARELLO 335

não se preoccuparem nos softriraentos e nas iniquidades sociaes, quem hade affirmar aos Miseráveis a existência de um vinculo moral entre os Homens? Sem duvida, ha ontros re- cursos de consolação : esperan<3a de um mun- do melhor ; mas creio, como o outro, que è melhor obra pensar no aperfeiçoamento d'este mundo do que bordar liypotheses sobre o Des- conhecido futuro.

Mal satisfeito, o commendador Francisco exigiria outra coisa : talvez julgasse que eu poderia extrair assumpto para galhofa, da lista dos objectos para arrematação. Não ha duvi- da : a minha Arte poderia servil-o, descenda á sua Gangrena.

-^4--

GAZETEANDO

'^T^fo meu tampo da oscola primaria dizia-se -entre os petizes: Fazer gazeta. Era aquillo de faltar à aula, vadiando pelos arredores de Lisboa, correndo o risco certo de pagar a gazeta, cora lingua de palmo, na escola e no lar domestico. Hoje faço gazeta dispensando-me de annotar casos do dia, entrada do anno, preoccupaçÕes patrióticas, negrumes de futuro social. O meu espirito compraz-se na recordação.

338 o RISO AMARELLO

O meu pobre e bem amado Júlio César Machado dizia-me um dia.

«Tu viste mais desgraçada vida do que esta nossa? Um carpinteiro sae de casa, ao domingo, para espairecer. Os amigos e os co- nhecidos que elle encontra falam-lhe de pas- seios ás hortas, de vinho novo, de raparigo- tas catitas da ultima fornada. Grande risota, projectos alegres, pandega no horizonte. Dois jornalistas, ou homens de lettras, encontram- se em dia de regabofe : o assumpto obrigató- rio é a politica, é a eleição do Justino que está tremida, é a rotação dos partidos, é o jornal novo que vae sair. E d'ahi a gente azéda-se com a eleição do Justino, porque está tremida, e não deixaria de zangar-se se ella estivesse segura ; irrita-se com o jornal novo que vae sair, porque ó de presumir que seja uma fonte de parvoices. E' claro que, na hy- pothese de uma obra prima, a irritação seria a mesma.»

o RISO AMARELLO

Tinha razão o meu querido Júlio. De suas palavras se originou era mim a tendência para fugir aos assumptos obrigatórios em parolice. E ahi está porque, tendo-me hontem de ma- nhã procurado Tibério, para o fim de me fa- lar de politica, eu mandei o philosopho á tá- bua.

E ao anoitecer, no largo da Graça, eu e- dois velhos do meu tempo tratávamos do que vae ser lido.

Contou um d'elles:

«Hontem á noite ia eu para casa. Tinha um serão a fazer, e possuia de meu 70 réis. Três vinténs para tabaco e 10 réis para phos- phoros. O combustivel para o cachimbo estava garantido; para o cérebro havia de arranjar- se. Eu subia do alto da Cotovia para a Pa- triarchal, quando á esquina, onde fica o pala- cete do Ribeiro da Cunha, me saiu uma mu- Ihersita, com uma creança ao collo e outra pela mão.

«Balbuciou a mulher não sei o que. Velha-

340 o RISO AMARELLO

cazmente, eu desviei os olhos, mas a minha desgraça fez cair as minhas vistas sobre as caras das creanças. Eram de cera, e que olhei- ras ! Dois poemas de fome, meus amigos !

«E' claro que larguei logo os 70 réis, e fui para casa bufando. Levei parte da noite a trabalhar, sem tabaco; eu contava com dinheiro no dia seguinte. Mas valeu-me este pensamento fixo: Se eu não tivesse soccor- rido aquella gente, adeus descanço de espirita e adeus assumpto 1

«E depois, concluiu o homem, vocês nãa imaginam como o pequeno mais velho se pa- recia com o meu pequeno.'...»

Ficámos calados todos. Vinha por entre as arvores um raio de luz do lampeâo visi- nho. Olhámos uns para os outros. Todos nós tínhamos lagrimas. Que diz a isto o prior da rainha freguezia?

...Bellos dias de inverno! Que sol! Que céu azul ! Tibério, muito bucólico, diz-me hoje que tem vontade de pastar nos campos ver-

o RISO AMARELLO 341

dejantes, desde a Porcalhota a Queluz. Não commungo na suggestão dos pastos, nâo in- vejo as cabras, mas invejo os cabreiros tis- nados, curtidos, insensiveis ao frio e ao calor, robustos, indolentes, felizes ! E lembro-me de nm bom amigo que, ha dez annos, Deus le- vou,— meu companheiro em digressões pelo campo. íamos ambos, ao romper da manhã, por essas terras fora, e levávamos um livro, a novidade da semana, para absintho do al- moço, discussão outra vez. De quando em quando irritavamo-nos, e elle, com o seu olhar sereno: «Parece que estamos na cidade!»

Depois riamos. Hoje elle não ri.

Nem eu.

HONTEM E HOJE

|^^|coNTECE, uma vez por outra, estabelecer- 1^^^ se que os homens d' agora ficam a per- der de vista, nos dorainios da virtude, em relação aos homens de outras eras. E al- ternadamente acontece o contrario : demon- strar-se que em relação aos joelhos, como vir- tuosos, ficam os nocos a caturrar n'uma al- cofa.

Sobre a controvérsia nos dêmos hontem a uma discussão substanciosa, o commendador Francisco e eu, n'um intervallo dos Donas Marias, nos corredores. Ponderou-me Fran-

344 o EISO AMARELLO

cisco que, na sua mocidade, as Soledades eram, como quem diz, muito mais respeita' das: que os editores responsáveis de taes en- cantos não soffriam, como os de hoje, dores de cotovello e de cabeça, e que podiam dor- mir em paz, confiados na lealdade do inimigo.

Tal disse o commendador, e accrescentou : «E supponho que é assim em todos os ra- mos da existência.»

Foi n'este ponto que eu homem e victi- ma de Lettras fiz observar ao meu velho amigo:

*

Não é tanto assim. Onde me o com- mendador, ha um quarto de século que eu me desunho na vinha do Senhor, e aqui te- nho lidado com o melhor e com o mais podre de uma geração em retirada e de outra gera- ção— que vem surgindo. Posso-lhe dizer no- vidades em matéria de dados comparativos; e a propósito vem o meu desabafo á conta de umas lindas amostras de maroteira moderna.

o RISO A^IARELLO 345

Eu lhe explico. E' dos livros : como quem •diz do conhecimento de toda a gente, que ha vinte annos e tanto existia uma confraria litteraria chamada Elogio mutuo, composta de académicos, ou de pretendentes a taes glo- rias, a qual confraria monopolisava noticias <ie jornaes, trabalho para theatros, benevolên- cia dos editores: por consequência a atten- çâo do publico. O velho Castilho era o padre- mestre da sucia. Romperam com o prestigio e os respeitos convencionaes e os interesses d'aquella gente o João de Deus, o Anthero e o Theophilo Braga chronologicamente. De- pois, na Reoolução de Setembro, o Luciano Cordeiro, que é hoje conselheiro e pacato, ar- ranjou um grupo de resistentes, que, em prosa e em verso, arrancou vários chinos ás carecas dos «consagrados». Quando eu rompi o fogo, não foi bem contra as emboíias dos que pretendiam substitui-los. Você entende?

Entendo e interesso-me; mas, se li- cença. ..

Diga!

deve ter principiado o terceiro acto.

346 o RISO AMARELLO

Não se íncommode ! ouvil-o, que eu fico falando sô.

Você offende-me ! Leve o diabo o espe- ctáculo! Vamos nós á cavaqueira para o Suisso?

Pois vamos cavaquear para o Suisso f E foi n'esse café, de gratas recordações,

gratas ao dominó e ás damas que eu pro" segui :

Decorreram annos. Emancipou-se a mo- cidade. A celhacarta entrou no tumulo, ou na indifferença. Era de esperar que uma ca- mada ao facto dos sacrifícios em que se fir- mara a sua emancipação tivesse pelos seus confrades trabalhadores um respeito carinhoso, em harmonia com os dotes de trabalho e de sacrifício d'esses individuos. Não acha? Pois eu lhe conto: Ha tempos escrevi e publiquei um livro; emquanto não foi conhecido o bom êxito do meu trabalho, o Mendes que é um dos mais espertos da purria dava-me abraços protectores (!) e escrevia locaes enco* miasticas, que me guindavam a Homero da

o RISO AMARELLO 347

lusa prosa. A pura -se que o livro agrada : cae o homerasito na frieza e supprime os abraços e os seus apertos de mão, que algo teem de gelatina. Não o entendo; publico outro livro: os leitores augraentaram em numero e n'elles augmentou o agrado eu não tenho culpa! Pois, meu amigo, o homemzito recolhe o aper- to de mão, fala-me de passagem, como se ros- nasse; revela-se meu fidagal inimigo e lança- me na alma a saudade pelos velhos os que formavam quadrado contra os suppostos con- correntes e implicitamente contra as mani- festações covardes da inveja estúpidas e ver- gonhosas. Que diz você?

Acho que tem razão. por casa, fora da Litteratura, vem a dar-se o mesmo.

?!

Quero eu dizer: Em épocas passadas, an- tes da Soledade, os meus rivaes faziam obra á valentona bengalada e tiro. Hoje mettem à frente as alcoviteiras. O que se chama um rebaixamento moral : pois não é assim?

Mal sabe você como tem razão n'essa tolice !

-^7\^^^^vQ^\^^^^^^^7^0y^:^^^^^^

ESTUDANDO

t'uM professor eminente, que ha annos fal-. leceu e cuja vida foi distribuida pelo es- tudo e pelos conflictos. . . é melhor ci- tar-lhe o nome Augusto Soromenho : d'este professor illustre, vinha eu dizendo, escreveu Camillo Gastello Branco, em duas paginas do Cancioneiro Alegre^ como nunca se escrevera em lingua portugueza, antes de Camillo, e como ninguém mais escreveu depois d'eile. Foi á conta da ijigratidão de Soromenho, sentimento deplorável, que, mil vezes demon- strado, deu amargos de bocca ao irritável tra-»

350 o RISO AMARELLO

balhador, os quaes amargos lhe abreviaram a existência. Augusto Soromenho affirmara-se ingrato, revoltando-se contra o que suppunha incorrecções dos amigos a quem mais devia em attenções e benefícios, e protestando, alta e furiosamente, contra taes desvios na vereda da equidade. Ao procedimento d'esse homem não faltou quera chamasse perversidade, ou- tros lhe chamaram loucura, outros ainda at- tribuiam-n'o a pose de integridudej e alguns lhe applaudiam a independência, como se fosse louvável a independência de gratidão. Camillo chamou ao desgraçado pendor d'aquelle espirito «uma falsa comprehensao da Hon- ra». Queria dizer o Mestre que não é ver- dadeira Honra a que desata, ou destroe vio^ lentamente os laços de humanidade. Parece-me bem assim.

#

Ora, é indispensável radicar no animo este axioma de moral, para que o espirito, á millessima volta sobre as grelhas da civilizada Telhacaria, não simplifique a observância de

o RISO AMARELLO 351

deveres humanos dando ao diabo todos os sentimentos de equidade e confundindo tudo, para o seu desdém, para os seus rancores» para as suas reprezalias. E vem isto a propó- sito dos queixumes que hontem eu ouvi a um meu camarada mais novo que eu pela cer- tidão de idade, e incomparavelmente mais novo ainda uma creança pelo que tem visto. Assim me confidenciou :

~ «Imagine você que durante uma longa temporada fiz parte de uma redacção. A pro- va de que nunca me desviei dos preceitos de boa camaradagem para com os meus collegas estava nas demonstrações diárias de sympa- thia e de consideração^ que me tributavam. Havia mesmo um companheiro que se enter- necia quando me falava do meu filho, fazendo votos pela felicidade da creança e pelas mi- nhas prosperidades. Um bello dia, por moti- vos de ordem económica, tive de abandonar aquelle meio carinhoso. Continuei a encontrar- me com o excellente e sensivel camarada, uma vez por outra, e sempre me perguntava pelo menino, fazendo votos pelo futuro risonho da

352 o RISO AMARELLO

creança, e tendo lagrimas nos olhos em ho- menagem aos meus cuidados paternos. Ainda ha três dias tal succedeu...»

Lagrima no olho em permanência? (re- flexão minha). E' que talvez lhe atiçasse...

«Sim, creio que não desadora a geropiga. Mas oiça você o reslo. Foi h ontem á noite que um ex-coUega nosso me informou do se- guinte:—Que não se passou um dia de camaradagem, sem que o sensivel cidadão me intrigasse junto à direcção do jornal, arran- jando uma verdadeira scie contra o meu tra- balho— pouco e mal feito, denunciava o meu terno amigo. E quando, depois de eu sair d'a- quella folha, recusei entrar para outra, o meu enternecido admirador disse ao novo empre- zario que não se importasse: que não per- dia nada: que eu trabalharia pouco e mal: que eu era doente e algo mandrião, etc». Gomo você vê^ o meu enternecido amigo tinha em vista o futuro e as felicidades do men me-

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nino, luctando por embargar ao pae o traba- lho que era o ganha-pão.»

E sempre de lagrima no olho, hein ?

«E falas doces, toada maviosa, chega-se a duvidar, mas o nosso ex-coUega que me in- formou, disse-me : «Auctorizo-o a dizer-lhe que sou eu quem o desmascara.» Creia que não pôde haver duvidas.

Não as tenha. Naturalmente, o sujeito é irresponsável, hein?

«Completamente !

Pois não isso servir-lhe de panno d'a- mostra da Humanidade. Você está novo, e corre o perigo de vir a desconfiar de toda a gente, o que é ainda peior de que confiar em todos. Se o tal patife gosta de geropiga, como não hade elle ser traiçoeiro ? Se assim o é, com as aggra vantes da covardia, para que pensa você n'elleV Admitta esses enxovê* dos á sua cloaca, mas nunca ao seu pensa- mento! Olhe para o céu, e não para os re- cantos dos muros, mas, quando levantar os olhos, acautelle sempre as algibeiras. Percebeu?

...Tinha percebido.

23

MALVADOS

^^HAMA-ME a attenção um leitor assíduo ^m para um caso de infantecidio praticado por uma Maria do Carmo, e pergunta- me se eu vi atrocidade assim. E' para con- cluir— que com o supplicio chinez das bas- tonadas nas solas dos pés ! Ora, eu digo ao assíduo leitor, que vi coisa peior : a mi- nha gata Gallinha, um bichano amarello, de rabo espetado, que parecia uma cenoura, o qual bichano comeu dois filhos, ao dal-os â luz, ha bastantes annos. E eu não fiz mal á Gallinha, porque a julguei irresponsável.

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Veja agora o assíduo leitor o retrato da Maria do Carmo, estampado no Século, e per- gunte ao anthropologistu doutor Francisco Fer- raz de Macedo que acha elle n'aquelie typo bifronte. Acha-lhe o que eu attribuí á gata: irresponsabilidade absoluta. Pergunta-me ago- ra o leitor assiduo se a Sociedade deve conceder á Maria do Carmo a impunidade que eu concedi ao irracional que devorou os filhos; e eu digo-lhe que se deve obstar a que a mulher venha a reproduzir monstruosidades de tal sorte, e que, se eu não creei um hos- pital para gatos alienados criminosos, foi por- que não me interessei nas porvindouras fa- çanhas da gata facinorosa.

Até mesmo me consta que se corrigiu, e que nunca mais comeu filhos... seus. co- mia os filhos das gallinhas da visinhança.

Mas o assiduo leitor não me dispensa de lhe citar um caso da ultima semana, digno das bastonadas chinezas. Eu lh'o indico. E'

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aquelle que um jornal da noite narra nos se- guintes termos :

«Na estrada do Poço dos Mouros, 23^ resi- dia, desde o principio do anno passado, uma familia composta de casal e dez filhos me- nores.

O homem está inutilisado por uma doença nervosa, as creanças nada podem fazer; a mulher trabalha, lucta, pede esmola, para sustentar a casa. Mas com todos os seus es- forços, sô consegue prolongar uma existenoia de raartyrio.

Vivem na maior miséria, sem pão, muitas vezes; sem cama, sem cobertores. Sobre os horrores da fome, o supplicio do frio!

Uma coisa tinha a pobre mulher em gran- de conta: a renda da baiuca em que vi^^am.

Haja fome, muito embora, e frio, mas não falte o tecto I

Cortava na minguada ração de cada dia, e, vintém a vintém, ia juntando a renda, que entregava adiantadamente ao senhorio, no fim do mez, sem falta.

Em dezembro ultimo, porém, a colheita foi

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O RISO AMARELLO

insufficente. Muita fome, e nem um vintém para a renda do mez de janeiro.

Havia doze dias que viviam aquelles infelizes sob a ameaça terrivel de serem postos no meio da rua.

Hontem pela manhã, sahiu a pobre mulher, para ver se alguém se compadecia da sua desgraça. Andou de porta em porta, pediu, supplicou. ..

No emtanto^ o senhorio^ um tal Manuel Ma- duo, aproveitando-se do ensejo, procedeu ao destelhamento da casa, com o intuito de se ver livre dos miseráveis inquilinos.

Chovia. Tanto melhor !

As creanças e o enfermo pediram-lhe de mãos postas que tivesse compaixão, que es- perasse alguns dias mais...

Foi implacável, desalmado.

A sinistra obra realisou-se. A chuva alagou a tegurio e os seus desprotegidos moradores.

Se alguns visinhos, compadecidos, não re- colhessem aquelles desgraçados^ estes morre- riam de frio.

Imagine-se a dôr e o desespero da mãe,

o RISO AMARELLO

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quando regressou, apoz uma peregrinação in- fructifera por essa cidade. ■■»

...Outros jornaes narram o episodio; mas a esta hora estará esquecido por quasi to- das as pessoas de estômago aconchegado. Não se perde em repetir a historia.

Lembrei-me, a noite passada, ao lêr essa narrativa, d'aquella scena da Dor Suprema^ quando a Júlia diz ao senhorio:

«O sr. tem filhos? E elle :

Tenho sim, menina.

«E gosta d'elles?

Se nào heide gostar ! Sou o pae.

«Andam bem vestidos^ bem camidos?...

Quanto eu posso.

«Que Deus lh'os ponha nús e esfaimados? rotos, miseráveis, a comer o esterco das ruas como os cães pelo barril do lixo! . . .

...lornoro se a lei das bastonadas á chine^

360 o RISO AMARELLO

sa^ virá a implantar-se n'este paiz, para sa- tisfação do leitor assíduo e minha. Mas, se tal senhorio, o da estrada do Poço dos Mou- ros, tem filhos. . . declaro-lhe que tenho d'elles !

Hão de pagar as dividas do pae. Olhe que eu tenho visto mundo!...

«S^ «>^ <?-^ ^^ -SRS- «>» <CÍ5' «S?

OS PEQUENITOS

I^^ENHO contra a França varias razões de <^M§> queixa o que decerto a incommodará

* menos do que a rivalidade alleman. Ca- reço de justificar os meus resentimentos, pois que TiberiOj de mãos na careca, me diz, cora voz cava e afflicta : «O paiz da Revolução ! A pátria do seu Robespierre etc. Não se trata agora dos motivos por que eu a adoiOf mas das cauzas por que a olho de revez quando não ha adoração.

Em primeiro logar, a Republica Franceza,

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a dos Grandes, a da Convenção, burlou o Proletariado, o Primeiro Império invadiu- nos, com morticínio e roubalheira, a Mo- narchia de Julho, a de Luiz Filippe, aÊfron- tou-nos e roubou-nos em pleno Tejo, a se- gunda Republica, a de 48, espatifou a Revo- lução em Roma, e, outra vez, burlou os Pro- letários;— o Segundo Império, o do Napoleão- de galão branco, cuspiu-nos a porcaria da Charles et George, d terceira Republica^ a actual, principiou pelas execuções sumraarias dos Proletários e promette comer, mais uma vez, o Proletariado. Afora tudo isto^ faz pou- co de nós o Gaudissart, que ahi vem a Lis- boa, vender-nos mixordias de Cognac e de Bordéus, e que passa as horas do almoço e as do jantar a dizer mal da gente, á meza da seu hotel com duas coco?!^e5 de exportação que alli se fazem finas com os nossos amado- res pacovios.

*

Mas, compensando, —como canta o dos St^ nos, ahi temos nós, eu e os outros amigos

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da Pequenada, noticias da capital franceza» que me deram hoje alegria pelos Pequenos de e amargura pelos da nossa terra. São as noticias relativas ao que vae em barafun- da no concelho municipal de Paris, etc. não se incommodem os de cá, que não se tra- cta de vivas ! Nas sessões do alludido conse- lho estão sendo apresentados relatórios diz o informador sobre a assistência ás mães pobres e a assistência ás crianças abandona- das; no parlamento forjam-se novas leis de repressão contra os pães desnaturados ; abi^em- se congressos protectores da infância, o mo- vimento em favor dos pobres bebés é enorme e encontra a maior sympathia do publico.

«O que, principalmente, se pretende ac- crescenta o informador é chegar a impedir, por medidas seguras, o abandono ou a morte das creanças recemnascidas, salvaguardando- as, mesmo antes do nascimento, com os soc- corros dados ás mulheres gravidas. Depois ha as creches-, as escolas maternaes, as cantinas, as garderies escolares, os comités de patrona- gem, etc, etc.«

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Cá, não temos nada d'isso. Teria graça que era sessão do Pelourinho ípardonl) alguém pe- disse a palavra, a orientar o nosso conselho municipal na vereda representada por estes algarismos :

O anno passado, o conselho municipal de Paris gastou uns 300 contos de réis com as mães pobres, as amas de leite, os orphãos e os enxovaes das creanoas. Recolheram-se 4.515 creanr-as abandonadas e foram prestados soc- corros a 10.293 creanças indigentes... E aqui estou eu a esquecer-me dos erros e dos cri- mes politicos da Franr-a, e aqui me tem ella em adoração ! . . .

Deixem-me dizer lhes uma cousa. O sr. dou- tor Rodrigo Vellozo, redactor da Auroro, do Cai:ado, de Barc«ll:>s, um amigo desvellado dos trabalhadores do espirito diz n'um dos últimos números da sua tolha, a propósito do meu ultimo livro publicado (De Palanque) as seguintes couzas, que eu me permitto trans- crever, para assanhar os obnoxios inimigos da minha decrepitude :

o RISO AMAEELLO

ÍÍ65

«Indisputavelmente, é o sr. Silva Pinto ura dos nossos mais pujantes escriptores, e a sua obra vae-se impondo de tal modo, que bem poucos serão os que se não deixem vencer d'ella e de lhe prestar o culto de sua admira- ção, e será uma, das poucas, que ficará e so- brenadará, n'esse maré magnum de publica- ções, como documento incontrastavel da valia do escriptor e da chateza dos tempos em que viveu.»

. . . Tal diz o meu estimado collega, e eu aproveito o ensejo para lhe dizer que não con- to muito, nem pouco, com a generalisação de tal culto, nem com a sobrevivência do meu trabalho ao trabalhador. Mas não me despe^ ço de uma ambição pessoal a única a acom- panhar-me ao fim : é a de que o meu traba- lho seja de alguma utilidade aos Rotos. . . e aos Pequenitos na sua maioria filhos d'elles. Essas duas condensações de Miséria, avergadas á Iniquidade Social, formam a ultima realida- de para quem viu desfazerem-se tantos so- nhos. . .

A SERIO

^^pAZ-sE mister muita serenidade e, a espa- ^1^ ços, algodão nos ouvidos para que uma ^ pessoa se não deixe desnortear : por tal modo se affirma em confusão o sentimento na- cional, n'este periodo da nossa Historia furta- côres. Antes de mais, e afastando o lixo, temos alli aquelle enxovedo, que, nas boticas, diz mal de mim aos frequentadores d'ellas, e que na rua me corteja ceremoniosamente. Que dizer- Ihe ? Que fazer lhe ? E ahi tem wu leitor as- síduo porque eu deixo passar aggressões im- pressas, sem manifestações minhas de gran-

368 o RISO AMARELLO

des resenLimentos : é porque o patife, para mim, nâo é o adversário que publicamente offirma o seu azedume, mas- sim o inimigo desprezivel que joga coices de mula manhosa contra a minha sombra e que me dirige» em face, os seus sorrisos e a demonstraçãa dos seus respeitos.

Arrumada a porcaria, outros assumptos.

. . . Alli tivemos nós, a semana passada, na camará dos pares, um discurso de opposição, do sr. D. Luiz da Gamara Leme, cavalheiro respeitável e estimável, que ha muitos annos me ti ata affectuosa mente. Se eu houvesse de dizer-lhe asperezas, tendo de referi r-me ao seu discurso, eu deixaria em paz as referencias- Porque não sou um político, nunca saberei conjugar as investidas violentas com as rela- ções pessoaes de mutua estima. Chamar infa- me, por deveres de Politica, a um homem de quem se é amigo e que se considera é das taes que eu ficarei sem perceber.

o RISO AMARELLO

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Mas o discurso do sr. D. Luiz da Camará Leme não auctoriza aggressões, nem aos seus próprios inimigos, dado que os tenha aquelle cavalheiro primoroso. Annotações de um sim- ples observador, como eu, isso sim. Ha mesmo n'ellas demonstrações de apreço, pois que não vão os tempos de feição a prodigali- sal-as a subalternos.

No discu.f-so do orador historiou-se muito do que é dominio de toda a gente. Mais uma vez, reajo contra o prurito de chamar «novi- dade,» ao que uns cem jornaes, diariamente, todo o anno, contam ás multidões. Mas, em- fim, o orador da oppozição não tem de apre- zentar "novidades», nem é responsável pela descoberta de tal predicado, nas coisas dos seus discursos. A questão é outra : é que o velho regenerador e fanático do Saldanha não quer vêr que a Regeneração de hoje, como ahi está, é filha da Regeneração de hontem o que não quer dizer que o sr. Hintze seja um filho do Fontes : creio que me entendem, O sr. D. Luiz da Camará pôde dizer, cora auctoridade indiscutivcl : «Nós todos os Ve-

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O RISO A5IARELL0

lhos somos culpados de havermos dado a este Povo a Carta Conslilucional. (E desculpando- se :) Mas não previramos as consequências: a inevitável deturpação da alfoi-ria ! (Contricto :) As desgraças de hoje são a expiação dos nos- sos erros, pelo remorso, e da condescen- dência, da credulidade do Povo porque se a pão e laranja

Não diz isto o velho general, e em logar do que não diz, pede senhoras para governar-nos porque ellas teem pudor. Sem esforço de malícia, direi ao amável ancião que muito go- vernados temos sido por ellas, em quasi todos os períodos da nossa Historia ; e em mui- tos d'elles sem intervenção do Pudor. Dispen- sa-me o illustrado orador de eu lhe citar pagi- nas da Historia supra ; e eu não me dispenso de lhe annotar ainda outro desvio da sua cri- tica. E' do anno passado.

Quero eu referir-me a uma publicação, em que s. ex.^ appellava, em ultima instancia,

o RISO AMARELLO

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para a Senhora da Conceição afim de que ella nos salvasse. Baixaram, porventura, os aulos? Ou renunciou s. ex*, temendo o rezul- tado da appelação^ Nòo me permitto brincar nem de leve, quando, para o fazer, tenho de arripiar o sentimento religioso; mas, justa- mente a sério^ pondero ao illustrado homem publico —que da appelh^ção para a Padroeira, à hypothese do governo feminino, ha um pen- dor trocista, que pôde agradar a Politicos, mas que é subsidio para a Desorientação. Estamos em ura periodo severo, para muitos, temí- vel— da nossa vida liistorica e a critica fa- cciosa por parte dos responsáveis politicos é simplesmente desgraçada. Digo os responsá- veis politicos, pois que um velho regenerador, ex- ministro da coròa^ com tinturas de fana- tismo saldanhista, não pôde ser alheio a res- ponsabilidades. O sr. D. Luiz da Camaia sabe, como todos, que as não tem nos crimes; mas o seu nome subscreve os erros iniciaes; está inscripto no Monumento Constitucional.

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Taes discursos^ resumindo, não valera como Oppozição e valem muito, infelizmente, para a Dissolução. Olhe s. ex.' e olhem os outros que o Povo tem os olhos abertos e mui- to, apezar de estar deitado e n'uma immobili- dade de dorminhoco. Não lhe falo dos palra- dores, mais ou menos diíTamadores, que pa- pagueiam o que mal soletram nas gazetas e que se dão ares de patriotas revolucionários, quer nas hortas, a contas com o peixe frito, quer nos conciliábulos da botica : não lhe falo de especuladores estúpidos com pretenções a maus: falo-lhe de um Povo que s, ex.* não conhece e que eu conheço de perto : o de uns Rotos de olhar fixo e de pensamento alerta, de qnem eu sou amigo e de quem nada tenho a esperar a não ser, no fim da travessia, o aperto da sua mão. . .

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EiVI MOÇAMBIQUE

[CARECE decretada n impossibilidade de dis- cutir a administração de Moçambique pelo major Mousinho d'Albuquerc(ue, sem prévias genuflexões perante a valentia, a ho- nestidade e o patriotismo d'aquelle official. Ora, a administração é deplorável e está debaixo da alçada do jornalismo para a critica, e da do governo para a repressão. Quanto ás genu- flexões, seria tempo de pór-lhes termo, pois <7ue esses joelhos são os que tocaram o chão quando o major Quilinan desafiou em Ingla- terra um velho quakcr grosseirão. Todos nós

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temos prezentes os telegrammas de cem mil patriotas alli ao Século, nos quaes o «heioico major« era saudado como a maior gloria do Portugal moderno, E eslamparam-n'o em len- ços d'assoar e pintaram-n'o em loiças baratas e... ninguém se lembra d'elle.

As adorações excessivas e malbaratadas a frio, a propósito de banalidades, devem ser des- agradáveis a quem pi'atica um acto digno de real apreço, qual o de Mousinho e dos seus trinta e tantos camaradas, ao porem termo à guerra mediante o aprizionaraento do rei pre- to. Isto pelo que toca ao sentimento d'esses ze- losos servidores da pátria, decerto tão aggra- vado pelas pataratices quão sensível ao sincero reconhecimento do paiz. Mas ha superior ini- quidade ao fundo da questão.

É aquillo dos permanentes e repizados qua- lificativos, excepcionalmente outhorgados ao major Mousinho d'Albuquerque, a propósito dos seus erros de administração. Bravura, ho-

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nestidade e patriotismo são qualidades que de- vemos suppòr existentes em todos os camara- das do alludido militar. Um jornalista, que deve ser incapaz de calumnias, de escroque- ries e de covardias, está dispensado de affir- mações de extraordinário talento; mas o sol- dado dispensado do talento, ainda mesmo do mais ordinário, não podemos imaginal-o sem os attributos do valor, da honestidade e do pa- triotismo. N'estas condições, Mousinho d'Al- buquerque é um modelo pois que deu excel- lentes provas e cada um dos seus camaradas de Chaimite é outro modelo; e presume-se que todos os militares portuguezes dariam si- milhantes provas, se fossem chamados a pro- duzil-as.

Militar brilhantemente provado, o capitão Mousinho foi feito major por distincção. Jus- to ! Inventaram-n'o commissario régio: e ahi estão os alicerces do que se está vendo. A classe militar e muita gente que não veste far-

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da divertiiam-se á custa da nomeação de An- tónio Ennes paia dirigir, como generalissimo' as operações contra o Gungunhana. Eu tam- bém me ri. Mas se a falta de um Annibal> além do resto, não permittiu que o sr. Ennes desempenhasse o papel de Scipião o Africano^ o caso é que esse jornalista, muito estudioso e sabedor em administração, decretou coisas que o commercio e a industria na Africa Orien- tal indicam hoje ao governo da metrópole^ co- mo devendo ser restabelecidas^ em substitiu- ção aos dea^etos de Mousinho. E' certo que na epopêa napoleonica vemos o grande Corso^ nos intervallos das suas victorias, fundar o Código Napoleão e discutir com Laplace na Academia, mas as faculdades extraordinárias do Grande Capitão do século, perraittindo-lhe ser a um tempo o máximo general dos tempos mo- dernos, um grande legislador e um espirito eminentemente scientifico, não se apresentam assim reunidas para o simples caso histórico de uma lucta de Portugal cora os Vatuas e da reforma simultânea da administração de Mo- çambique. O sr. Ennes a guerrear dava-nos

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vontade de rir; o sr. Mousinho d'Albuquerque a administrar vontade de chorar ás victi- mas da sua administração.

Ignoro se o actual governo quer vôr a si- tuação, com mais atlentas e sérias vistas do que as do seu antecessor. Não é esse o meu caso de hoje. Apenas reajo contra a obstina- ção, humilhante e iniqua, dos que censuram os decretos absurdos e arbitrários de Mousi- nho, em desenrolar a lista das qualidades he- róicas e outras do prestigioso official, como que para se desculparem da ousadia de timi- das censuras. Não prevejo os acontecimentos em Africa : estou muito longe dos individuos e desconheço-os completamente; mas entendo que a hora de reclamar energicamente, sem fétichismos, contra o estado de coisas em Mo- çambique já bateu ha muito. Das responsabi- lidades terá a critica o seu quinhão !

os TAES

tiziA-ME ha annos, no Porto, um poeta sen- timental, dos que gemem as desditas das impuras: «Olhe você que ellas teem coração, e provam-n'o. O essencial é tocar-lhes em certa corda.

Tocar-lhes onde ?

Eu lhe explico. Uma noite d'estas, n'um grupo d"aquellas infelizes, quiz eu experimen- tar. . .

A tal corda ?

Justo.

E tocou-lhe?

Toquei. Falei-lhes das mães, ás rapari-

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gas, e tudo desatou a chorar. queria que você visse.

Faço urna ideia. Pensei que o meu ami- go lhes falara do puro amor e que extrahira verdade do celebre verso de Hugo :

Et L'amour nia refait une tirginitè.

Isso não experimentei.

Nem experimente, que é peta! A tal no- ta, que o amigo descobriu, de sensibilidade, é o resto da infantilidade ; isso hade chorar quando a crápula houver corroído o coração da Mulher. Quanto ao Amor, que não é da creança, mas da própria Mulher, uma vez em- porcalhado, é como a nódoa da tinta preta, a que se applique sal d'azedas : pôde mudar de côr, mas fica sempre nódoa. E não é á super- fície, apenas: vem da raiz das podridões.

Então não ha Magdalenas ?

Desde que não ha Christos.

Ora, lembrei-me da nota descoberta pelo poeta, a propósito do seguinte caso que, ha

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dias, presenciei sem procurar nota alguma. Um rapaz recluso na Correcção, como ineov- rigivel, manifestou-me, por vezes, tal amar- gura na physionomia^ que eu pensei em saber as causas d'ella. Fora alli collocado pelo pae, que é um excellente homem^ trabalhador e vé- xadissimo por escorre gadellas do filho. Inter- roguei o rapaz, que me affirraou o seu arre- pendimento,— affirmação a que eu dei o devi- do apreço; sem embargo, porém, do meu sce- pticismo, disse ao rapaz que solicitasse do pae uma visita, afim de verbalmente se entende- rem. Escreveu o filho, appareceu-lhe o pae, conferenciaram e. . . chegamos ao ponto.

Dissera- me o rapaz, explicando-me a sua amargura, que desejaria sair e aprender um officio, mas que lhe pezava, mais que todos os dissabores, o vêr-se despregado ou esquecido pelo pae. «Ha tantos mezes aqui mettido, ó como se eu não existisse ! Nem uma noticia de nossa casa Foi justamente n'esse aban- dono que eu pretendi introduzir a acalmação por amor do pae e do filho.

. . . P jis, meus scnhor.-'s e amigo.:, terminada

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a entrevista do rapaz e do progenitor, vou eu dar com tiquelle a soluçar. Suppuz que a en- trevista houvesse cavado mais fundo resenti- mento, e perguntei ao desolado moço se não obtiver.! concessões : se llie não era permitti- do entrar na vida do trabalho, patrocinado pelo auctor dos seus dias, etc. Respondeu-me, sempre soluçando, que o pae estava por tudo: que reclamaria a sua soltura e que lhe fa- ria aprender o officio, e que chorara ao avis- tal-o.

E que mais queria você ?

E' que não me importa para nada as mi- nhas coisas .'

Conte-rae isso ; o que é então que lhe importa ? 1

,Meu pae disse-me que correm mal os seus negócios, e disse-m°o a chorar. E eu» nem aqui nem fora, lhe posso servir de couza alguma. Se os negócios lhe corressem bem, eu não teria duvida em pedir-lhe prote- cção. Assim, se eu fòr paia caza, ainda atra- palho mais a sua vida.

Foi elle quem lh'o disse?

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Não, senhor ; mas é o cfue eu vejo que acontece. Elle, coitado, está por tudo.

Fiz vêr a este incorrigiuel entre os Ínfimos desgraçaditos embryonarios —que estava erra- do o seu modo de ver as couzas ; que justa- mente porque seu pae não era feliz, a compa- nhia do filho que assim se mostrava deve- ras arrependido allivial-o-hia de parte dos seus desgostos: que não seria impossivel prin- cipiar já n'um ofíicio, a ganhar alguma coisita como aprendiz : que, com boa vontade e algu- ma protecção, poderia cedo ganhar com que auxiliasse o activo do orçamento domestico : que pensasse na amargura do pae, a debater- se nas difficuldades cruéis da existência, e com o filho n'uma caza de desgraçados : que a vida não era precisamente uma passeiata pelo campo em dia de verão, mas uma tra- vessia de mar tempestuoso e cheio de mons- tros da pelle ou das escamas de todos os dia- bos : que se fizesse homem, não resigna-

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do em frente da Desgraça^ mas dando-lhe empurrões e pontapés. Expliquei-lhe como o Infortúnio é uma espécie de vestuário elástico que mais aperta o homem quanto mais elle se encolhe, e mais se alarga consoante a re- zistencia expansiva. Ponderei-lhe que affasta- dos elle e o pae seriam, dois desampara- dos a sofiFrer, e que, se a união faz a força, é especialmente no soffrimento. Emfim, ao ter- mo do meia hora, o rapaz nao chorava, e escutava com avidez, aclara ndo-se-lhe a phy- sionomia. Pediu-me para reflectir, e...

O resto dos acontecimentos é de segredo profissional, e é também dos dominios da rida alheia vedados a narrativas publi^-as. O que eu pretendi foi apenas demonstrar que ha real- mente notas admiráveis de abnegação e dedi- cação entre os chamados incorrigiveis^ e Dão são as notas da sensibilidade das impuras que se lembram da meninice : são faiscas de um fogo reprezado e generoso abafado pelo Egoís- mo Social !

GUERRA !

esta liora, quando eu na aldein de D. Maria, aonde vim descanrar do tracto com uns menores desgraçados, no conví- vio de outros que também me julgam seu ami- go, — a esta hora, digo, quando eu me congra- tulo por haver pedido ao ministro João Franco o pão do espirito para todos estes pequenitos, e, a perder de vista pelos campos e aldeias, tudo é paz e apparente felicidade, em bai- xo os nossos irmãos em Christo, súbditos do rei Jorge da Grécia, e os nossos primos, vas-

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sallos do Sultão Abdul Hamid, formam o pulo., como feras, para o fim de se espatifarem os irmãos em homenagem ao Hellenismo e os primos porque embirram com os irmãos. Tur- cos e Gregos, e grego se um homem, dado que tome a sério esta Humanidade cada vez mais doida, sem offensa ás grandes velhaca- rias !

Alli temos nós na Turquia e na Grécia duas expressões de decadência moral e de tradições magnificas de Grandes Civilisações. Deram o que tinham a dar, em affirmações de superio- ridade nos dominios da intelligencia, ou nos da Acção conquistadora, e para alli cicein n'ura estado comatoso, de que saem apenas quando a intriga das Potencias as excita para provo- cações e carnificinas.

Não menos grego se um irmão, ou um primo d'aquella gente, quando nos jornaes de Paris que a mocidade das escolas, fre mente de enthusiasmo hellenico, busca forçar a opinião e a acção official da França, em de- feza da pátria de Lionidas., contra os Turcos. Ora, a mocidade estudiosa e, em geral, a Eu-

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ropa culta não devem ter esquecido que outra nação hoje retalhada e distribuída prestou á Civilisação christan o bom serviço de a sal- var contra os Turcos, debaixo dos muros de Yienna. Como pagaram as Potencias á Poló- nia de João Sobieski esse razoável serviço ? Espatifando-a três nações egoistas e dividindo entre si os despojos. Que faz pelos heróicos Polacos o corarão francez? Nada; transporta à Grécia as suas sympathias e os seus enthu- siasmos. Hoje, não ha Francez que brade ás bochechas do Czar : Vice la Pologne ! E, por- ventura, o enthusiasmo pela Grécia vae na corrente das bajulações ao Russo. A mocidade actual deve livrar-se do romantismo : deve ser previdente.

*

Supponho que as causticações da vida poi^ tugueza não permittirão que entre nós venha a nascer a fina flòr do sentimento grego. Mas o commendador Francisco foi ha dias surpre- hendido pela D. Gertrudes, sua horrorosa es- posa, a passear um dedo alv^. e pegaioso pelo

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mappn da Europa, encarainhando-o (o dedo) para os Dardanellos. Lembrava a odyssêa ver- tiginosa do Sacarrão no encalço dos dois ma- raus. A meu ver, Francisco traz d'olho a Gré- cia e temol-o, quiçá, em vésperas de lame- chismo pelos manes de Alexandre Magno. E*^ pois^ ao commendador que eu recomraendo placidez e olho critico. Veja bem que aquelles Arménios e todas as christandades no impé- rio turco^ incluindo os filhos de Creta, são embrulhados ha um horror de tempos, por mãos mysteriosas. ora inglezas, logo russas^ ora todas juntas, para o fim de provocarem o furor dos Turcos e apressarem a obra de par- tilha do império ottomano. Resultados teem sido: christãos massacrados e, na ultima ho- ra, as Potencias pávidas, rosnando umas con- tra outras. Agora excitaram a Grécia, e, ao verem-n'a tomar a serio o papel que lhe dis- tribuiram, não se atrevem a auxilial-a, nem se atrevem a contei-a. Que diabo vae sair d'alli ? !

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...Céus! Que maravilha de tempo! Que azul que sol de oiro e que vegetação esme- raldina! Como Deus é grande ! pois que eu não creio que tudo isto seja obra do sr. Hin- tze, ou de qualquer outro dominador... A es- cola primaria de D. Maria sim : essa deve- mol-a ao sr. João Franco.

RATICES

■^^^01 na botica do Ladislau, nos saloios, que ^^^ eu, ha dias, tive a nitida percepção de uma tolice quiçá nacional, porventura de toda a raça latina, talvez de todas as raças que se refocilam em leitura de gazetas. Deu- se o caso de os penetras da terra, divididos em dois grupos de politicos, cada um d'estes agarrado á folha jornalistica de seu partido, colherem n'ellas argumentos de truz contra a folha adversa: melhor explicando: os regene- radores exaltavam as biscatas e as accusações do seu jornal aos governantes progressistas,

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hoje no poder, e os d'este ultimo partido ber- ravam enthusiasmados as lecriminações e as biscas do seu orgao ás passadas administra- ções i'egeneradoras.

Pondera-me o philosopho Tibério, que está presente e que vae seguindo com vistes tole- radas o que eu vou escrevendo : «Não ha coisa mais natural do que a leitura dos órgãos jornalisticos politicos, pelos respectivos parti- dários, e a esquentação dos leitores assa- nhados pela argumentação. Onae demónio viu você a tolice?!»

Vae o philosopho ser esclarecido. Na quali- dade de professor de Arménio e de cornetim, Tibério tem pago contribuições de arrazar um cidadão as de industria e as indirectas pela elevação dos preços dos comestíveis e pela di- minuição do numero de discipulos, avergados ao peso das crises. Ora, as desgraças da pá- tria, em que o philosopho tem o seu quinhão, procedem das maniversias dos partidos que, alternadamente^ teem governado esta mãe-pa-

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tpia. Não ha pailido innocente, nem ha salva- dor extraordinário que não tenha culpas no cartório. Quando o órgão progressista diz aos regeneradores : «Vós devorastes vinte mil contos em determinado periodo», o órgão re- generador não se defende negando. Respon- de invariavehTiente : «E vós em tal periodo engulistes vinte mil e quinhentos contos.» Cor- recta resposta, de se lhe tirar o chapéu ! O accusado de esbanjamentos, etc, não nega : limita-se á confrontação dos seus peccados com os peccados do accusador. Em frente do pu- blico, não diz: «Este sujeito calumnia-me !• Diz simplesmente. «Também elle esbanjou, ou prevaricou!» E prova-o tão claramente co- mo o outro provara a accusacão.

N'estas circumstancias, os leitores das duas folhas, dividindo -se em grupos, para applau- dir as diversas revelações, esquecem-se abso- lutamente de que são elles quem paga tudo ora os esbanjamentos do Regenerador, ora os

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do Progressista. Imagine-se que um proprie- tário tem dois feitores que alternadamente lhe administram as propriedades. Um d'el!es ac- cusa o outro, perante o patrão, de se haver cortado, durante tal época do seu serviço, em determinadas sommas. O f)atrão ouve, volta- se para o feitor accusado que está presente e espera defeza. Vae d^ahi o accusado, lon- ge de negar, limita-se a dizer: «E aquelle, que me accusa, corta-se com superior quan- tia, quando lhe chega a vez.» E o patrão ri-se e applaude, esquecendo-se de que a victima foi elle. Se lhe chamassem immoralissimo san- deu, sem um vislumbre de senso-moral ou de vergonha, não lhe faziam sombra de uma af- fronta. Que me diz o philosopho á conclusão? Estas e outras an notações a similhantes ra- tices parecem estar no animo de toda a gente, pois que não me falta quem diga : « E' tão exacto e tão simples!» Outros embirram com ellas, e esses reconheço-os eu, pelo sorriso fulo que me atiram de revez, á falta de energia para dar coices, quando me encon- tram por essas ruas. Se uns certos alvares,

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com carão de massa de pevide, soubessem quanto eu conheço de seus cadastros ou do de quem lhes toca por perto seriam mais cautellosos, todavia, nos seus cnmmentarios biliosos ao que não entendem, escripto ou praticado. Isto é o esboço de uns carolos por cima d'aquellas cabeçorras de estúpidos de- vassos— que a esta hora inclinam as orelhas 80 instincto do perigo...

MEDITAÇÕES

fENHO ideia de um discurso do Castellar, proferido ha bons vinte annos, e tão ha- bilidosamente construido que dirieis um caslello de cartas, feito cora três baralhos. O malabar da elocfuencia, que «no poente da vi- da e na aurora da tolice» é do Camillo, pede ao Padre Santo a pacificação da Terra^ desdobrava-nos o quadro magnifico da era christã, dezenove séculos de coisas magicas e todas de conquista nos dominios do Per- ' :itOf passando, como gato por brazas, por

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cima da incubação da Idade-raédia e do fiasco terrivel da Renascença, fiasco previsto dolo- rosamente pelos pensadores do movimento, como toda a gente sabe e se está lembrando. Dava-nos o Demosthenes do Passeio do Pra- do assim um alteioso edifício (de papelão : não esqueça !j de vinte séculos dezenove feitos, tendo a traz do si a Revolução France- za, com a conquista da Li-ber-da-de e os es- boços das «duas manas» que nós sabemos e as descobertas scientificas do prezente século. O próximo, o que ahi vem, seria a cúpula, sem esquecer pára-raios, terraços para balões captivos e jardins suspensos, com seus lagos e respectivos peixes de três cores, sempre a victoria do Symbolo ! e a Humanidade feliz e perfeita, com a benção papal, se deixa vêr, sobre os príncipes que se cazam e, gene- rosamente irmã, sobre as bestas-féras de face humana, que, no fundo das minas, se espati- fam para os gozos da Bemaventurança. .

Bom Castellar! Cornêta-mór do Ideal-Per- feito !

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Simplesmente, esse orador, esse politico, esse professor de Historia, ainda não via ha vinte annos, quando não viam os cegos!

e hoje vê, melhor do que eu, mas appel- lando para o Leão XIII, ainda não via, o excellente homem, que a Revolução Franceza cicatrizara em falso a espantosa chaga social,

a que, em 48 e em 70, veiu a esguichar pús e sangue á cara dos clinicos mésinheiros e que, cicatrizada de novo, como nós sabe- mos, alastra-se no corpo social, dentro e fora da França se deixa vèr. E é para curar essa chaga, que se alastra e fermenta, que o bom republicano, ou coisa assim, pede agua benta ao Padre Santo ; e o Leão XIII, que eu me*obstino em considerar de olho Jino^ faz o que pôde em agua benta, em encyclicas e em bênçãos papaos. E os espiritos curiosos perguntam aos fieis que haverá de commum entre a «tal moléstia» e similhante therapeu- tica. Está respondido, como ides vèr.

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Um grande homem do jornalismo contem- porâneo, o polemista invencivel, cfue foi a alma do puro Ultramontanismo e que via longe e firme, como nenhum de nós, forneceu-me, a noite passada, umas suas paginas de leitura, que por acaso me haviam escapado a mim seu leitor de cada dia. Esse Louis Veuillot, contundente e fulminante, terrivelmente sedu- ctor, quando mais o entendemos, refere-se ao movimento de perseguição liberal contra as ordens religiosas, contra as associações de be- neficência catliolica, contra as irmãs da cari- dade e contra os padres. Serenamente, con- trariando os máximos estúpidos, que lhe cha- mam verrinoso, sem o terem lido, o redactor do Unicers confronta a resistência opposta áquellas collectividades e áquelles individuos cora a tolerância concedida na sociedade libe- ral a todos os focos de libertinagem e de dis^ solução e a todos os emprehendimentos ga- nância illicíta que vinguem subtrahir-se á acção do Código, e, confrontando, não se de-

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riva. quul politico de entremez, a discussues de superioridade de partidos, ou de superiori- dade de principios. Vae o seu dedo em braza direito ao terrível caso. Aos liberaes subalter- nos, peixe miúdo ao lambisco de Voltaire e da Revolução malograda brada o ultramon- tano: que a recclação da vida futura, com seus gozos compensadores da miséria, aos desventurados d'este mundo, tem por fim im- pedir que esse» desventurados perturbem as delicias terrestres dos opulentos da Sorte, e que a perseguição dos liberaes aos reccLado- res da Bemaventurança, aos que desligam das coisas da Terra os espiritos dos desher- dados, é obra de puros imbecis I Elle o disse, e, trinta annos volvidos, a Egreja de Leão XIII o está pensando. E aos pataratas egoístas poderá hoje Castellar esclarecel-os sobre' os resultados do accordo. Diga-Ihes o republicano ou coisa assim que espécie de cúpula nos traz o século xx para c edifício da civilisa- ção em ires bai-alhos I

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Mas, não se tracta do século que ahi vem ; apenas do onno que chega. O nosso paiz, que vive aiijour Ic jour, não tem vistas para evo- lução de séculos: dá-lhe panno para mangas um anno novo, pobre mouche de la cloche na transformação de um mundo ! O que nos importa saber é se isto dura, se isto conti- nua, se isto melhora. E entram em scena os provérbios portuguezes : «Não ha mal que sempre dure.» «De hora a hora Deus me- lhora.» Não está direito, doces fatalistas! A morte interrompe a duração dos males e Deus peiora uma vez por outra : lançae em conta dos provérbios e não nos fieis na Virgem, meus amores papudos!

Agitar o sudário das nossas misérias é inú- til: todos as sentem: todos estão convencidos. De utilidade seria que os brios não fossem in- solência, nem as energias petulância, nem a revolta chinfrinada, nem a meditação atordoa- mento^ nem o modo de vida o expediente. Mas, vão reformar o modo de não-pensar,

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O modo de não-crer, o modo de não-ousar de uma raça abastardada e perdida, que nem para o Egoísmo apresenta exemplares de gran- deza ! Metade do paiz atordôa-se em festas conforme as posses de cada um; outra metade ignora tudo, e sente a miséria que a faz fugir, a tocar harmonium no convez dos pa- quetes do Brazil, e a outra pois que é no paiz das ires metades encolhe-se nos antros, para agonisar e para morrer, e mal noti- cias de si. . .

®í^^

os DA MISÉRIA

^J'uMA publicação litteraria e artística de Lisboa, convida-me um escriptor novo (*) a abandonar a minha missão de guer- rilheiro, pelo posto de general. Não crô o meu joven collega na sinceridade da minha vechice, e entende que os meus dotes e recursos me impõem responsabilidades e encargos, por mim,

(*) Este artigo responde ao do sr. Mayer Garção, no D. Quiehote, n." 5. Posteriormtnte houve mais desenvolvida e sempre agradável polemica n'aquella folka (n.« 9) e nas «Noi- tes de Vigilia», n."' 5 e 8.

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chétif, considerados esmagadores. De ha muito me abstive de responder, pois que^ em regra, as interpellações, as intimações e os convites desequilibram-se em insensatez que me afflige pelas misérias da espécie, e ninguém que pre- ze os foros do são juizo pára na rua, a con- versar com malucos. Mas o sr. Mayer Garção realça os primores da intelligencia com a ob- servância da cortezia e com evidente sinceri- dade. Ganharia s. ex.^ com as minhas teimo- sias de guerrilheiro, dado que ambicionasse palestra. Se eu fosse um general como ge- nerosamente m'o deseja, com graves riscos para a minha inexperiência no com mando, a hierarchia militar vedar-me-hia responder ao brilhante alumno, decerto premiado, recem- vindo do coUegio militar. Assim, fora da fi- leira, é-me permittida a palestra^ sem quebra de disciplina.

Ora oiça-me o sf^mpathico e juvenil colle- ga, camarada, ou companheiro, a propósito da sua intimação ou do seu convite a que eu

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suba da questão pessoal ás «espantosas Mar- selhezas do fim do século». Ha annos se deu o caso de eu me interrogar, um dia, sobre a utilidade dos meus dotes e dos meus recursos no vasto e complexo terreno das reivindi- cações dos Opprimidos e dos Explorodos. Pen- sei com força e brevemeute, pois que se eu .não resolvo em alguns minutos os meus /)ro- hlcmas, terei de abandonal-os, em demasias de perturbação: é do meu estado mórbido. Em tal preoccupação e a seu termo, estabe- leci, metaplioricamente, o seguinte :

Trabalha-se nos cavoucos de um edifício novo. Ha falta de trabalhadores, pois que a consciência dos altos méritos nào permitte á maioria dos recem-chegados e á dos que vem chegando rebaixarem-se ás suhalteimices do aterro e dos alicerces. N'e5tas condições, tu (era com migo que eu falava), no resvalo de uma vida atormentada a um final libertador, podes consagrar a uma obra útil, embora su- ballernissima, a tua sinceridade e o leu es- forço. Vae^ pois! Emquanlo os Novos, cheios de vigor, de enthusiasmo, de talento, e orien-

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tados mal nascidos, se preparam para a con- strucçào do edifício, tu, velho trôpego, esfal- fado, de orientação dos AíTonsinhos cumpre o teu dever! Leva o teu cesto de entulho aos alicerces do edifício, pois que para mais nfso serves, e terás direito a um esquecimento hon- rado, no resvalares da tua fadiga a um final descanço !

Tal eu disse a mim próprio, e desde logo metti liombros ao trabalho rude. O entulho que eu levei á obra com punha -se do registro, da denuncia e da flagellação de tudo quanto nos dominios ao meu alcance me appareceu como Iniquidade, Embuste, Traição, Improbi- dade, Tyrannia, Pedantismo, Hypocrisia, ou Descaramento. Não è com materiaes nobres que se formam alicerces revolucionários: é com os detrictos de uma ciuilisação. Sem empreiteiro, que não fosse a minha consciên- cia, eu cumpri o meu encargo; dei conta do meu destino: isto é, trabalhei até agora, sem recompensas, sem direito a ellas, sem louvo- res que não sejam os das almas generosas, com alguns sacrifícios que não metterei na

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conta, e com algumas contusões 9 esfoladu- ras. Esperei, ao menos, que me deixassem acabar em paz. Vejo que nem isso conquistei I

Não é outra coisa, senão perturbar o fim da vida de um pobre trabalhador de cavou- cos, intimarem-no a assumir, na construcção do edifício, uma superior direcção de traba- lhos de architectura e quiçá, de artes deco- rativas. Eu, por diversas metaphoras, conver- tido em guia, em general, em orientador, a imposição dos recém chegados, que dispõem da terraplenagem feita e dos alicerces con- struídos! Eu, abatido por soíTrimentos Ínti- mos, que me deram, ao sair da infância, a nitida comprehensão de «um inferno» : eu, que na travessia da existência amaldiçoada e é assim a explicação da minha velhice, re- geitada pela certidão baptismal, que n'essa travessia, digo, me dispensei de auxiliareb e supprimi, como que methodicamente, todas as futuras ètapes de consolação e descanço :

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eu convidado, á ultima hora, aos brilhantis- mos e ás fascinações de estado-maior em cam- panha annunciada e inevitável ! Não haverá ahi delicada malicia em tal cumulo de gene- rosidade?

Esperar? Falam-me dos que esperam, eem nome d'elles. Citam-me referencias minhas á immundicie social, e entendem entende o meu joven collega que eu devo ir até ao fim. Onde é o Hmf Esta interrogação esbo- çava-se imperiosamente, em seguida á inti- mação. Appliquei o ouvido, e não ouvi a res- posta. Felizmente, eu me interrogara; respondera, e communicára ao meu publi- co as conclusões colhidas. E' alli no Prefacio aos Santos Portugueses, que o meu benévolo camarada, na hora das bagatellas, não deixa- rá de ter lido.

A próxima recolução não delegará em ninguém : deduz-se o que hoje me affirraa do que hontem, n'aquellas paginas., registrei como signal de alerta! Não delegará era chefes, em guias, em directores, em generaes: nào vale a pena invental-os. Não consagremos culto

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aos directores e aos orientadores ! Abaixo o culto dos heroes, mais reles que o culto dos deuses ! Aquelie final da Iniquidade dispensa as fórmulas e os processos d'ella.

Registral-a, combatel-a, denuncial-a, mar- cal-a a vei melho e a branco, fumegantes^ nas faces, nos olhos, no peito sobre o coração, ó formar um cadastro que não apressará o ãnif mas que justifica o seu advento. E, so- bre o pavor da Iniquidade, iremos arrancando concessões ao Mundo Velho. Essas republicas radicaes e sociaes, que o meu camarada me accusa de servir, não constituem outra coisa na esphera politica; e ha as concessões da Phtlantropia aos seres fracos e innocentes. O trabalho em detalhe dista aceia-se, como vê, da simples questão pessoal. . .

Diz o meu joven camarada que os meus mestres, o Gustado Planche, o Veuillot e o Camillo cumpriram a sua missão, pois que não perderam de vista o seu ideal: é isto sal-

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vo a redacção. Eu, discipulo hurailimo de to dos elles e agradeço do coração ao meu ca- marada o seu tributo áquelles espíritos citados por tantos inconscientes, eu, pelo visto, dei- xei de aprender com áquelles mestres o pro- cesso que vida ás expansões e ás affirma- ções do espirito: a observância exacta do cul- to de um ideal. Não será pueril e não será uma supuração de orgulho suppòr e affirmar, eu próprio, que na modesta e sombria labora- ção do meu espirito, dadas todas as condições de relatividade, eu fui, até hoje, tão pertinaz e tão firme como qualquer d'elles, no proces- so e na inspiração qne lhes valeu o tributo de um moderno, bem intencionado? 0'lho para os meus recursos, para o meu publico, para o meu tempo de indecisões e de terrores e concluo que não deshonrei os meus modelos em tenacidade. Cito-os agora, pois que os ci- tam á minha desorientação. Elevou e susten- tou Planche a dignidade da Critica, affirmou o homem do Unicers a «vida» do Ultramon- tanismo, condensou o nosso romancista incom- parável, na sua obra, os melhores vultos da

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Comedia Portugueza, e nunca perderam de vista os respectivos nortes. em baixo, con- servo no meu os olhos fatigados. Na aggres- são de um quarto de século aos falsos prestí- gios^ na lucta com as tyrannias que abatem ou aviltam o homem e que empeçonham os embryões as minhas creanças, o pensa- mento fixo, ou o ideal, foi a defesa dos ven- cidos e foi o protesto contra a vacuidade do mundo moral esquecido na partilha das con- quistas da Revolução. Trabalhei em baixo ; fui bem ouvido pelos Miseráveis de que te- nho provas, e um tanto pelos Vencedores, e, por igual, provas possuo. Poderei ador- mecer em paz^ sobre dez mil paginas escri- ptas, sem que um futuro inanuseador da mi- nha obra vingue descobrir n'ellas a Improbi- dade, ou a Covardia, ou a Condescendência. Desejo igual destino, sem dores iguaes, á creança de quem sou amigo.

-^H*^

índice

Os que furara t

Os simplórios e os simples 7

Os que ladram 11

O bezerro 15

Eieições 21

Cachorros ! 31

Causticações 35

Certa classe 41

Pão 47

A escola sceptica 51

Elias 57

O nosso mundo 61

Discurso da coroa 65

Cazadoiras 71

ÍNDICE

TAO.

Cinzas T7

Fructa da terra 83

O «lindo amor» 89

Senhor prezidente ! 95

Haja olho! 99

A mulher do 105

As taes senhoras Hl

Volle folha! 117

Ainda as taes 123

É o 7.321! 129

Os descontentes 135

Pipelet 141

. . . Frei Thomaz 147

Vejam isto ! 1'3

Politica 159

Saúde publico 165

O tal dia! 171

Bemfeitores ! 177

Origens 183

A' urna! 189

Rhetorica 195

Oiçam lá! 199

Entendem-nos ? 205

índice

PAft.

Peste ! 211

Nós e elles 21 7

O caso do Scipião 223

Cheguetn-lhe ! 229

Os graves nadas 235

Uma ideia ! 241

Educação 247

A vêp quem passa 253

Notas á margem 257

Amanhã 265

Innocentes 271

Hygiene e coisas 277

Apertos 283

N'aquellas idades! 2íi9

Fora 1 295

Vento leste 301

O tal problema 307

Moléstia do tempo 313

A um mais novo 319

Abe 325

Vejam isto ! 331

Gazeteando 337

Hontem e hoje 343

índice

PAO.

Estudando 349

Malvados 355

Os pequenitos 36 1

A serio 367

Em Moçambique 373

Os taes .' 379

Guerra ! 385

Ratices 391

Meditações 397

Os da miséria 405

j^ Silva Pinto, António da

9261 O riso amarello

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