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OS GATOS

FIALHO D'ALMEIDA

OS GATOS

PUBLICAÇÃO MENSAL, DINQUERTTO A VIDA PORTUGUEZA

N. i —Agosto de [889

PORTO

WHA {< C.

/ . 96

FILIAL EM LISBOA

*•- ~íf

SUMMAR10

MEUS SENHORES, AQUI ESTÃO OS GATOS !

- BRIC-Á-BRACOMANIA, COMO CULTURA E COMO DOENÇA -OS GRANDES LARÁPIOS AR- TISTAS, NAPOLEÃO, JUNOT, O «SOUTH-KEN- SINGTON E OUTROS MAIS AQUI d'f.L-REI

ONTRA OS CABIDOS, AS COLLEGIADAS, E AS JUNTAS DE PAROCHIA QUE DEFRAUDAM 0 PAIZl A INDIFFERENÇA DO ESTADO PERAN- TE O OBJECTO d'aRTF. PRÍNCIPES ARTISTAS B SUAS MATILHAS A CAÇA REAL AO BI- BELOT BARÃO dVm PRATO DAS CALDAS UM ALMOXARIFADO POR UM PENICO •] PO POVO EM CASA DOS REIS UMA CAPEL- LANIA DEFENDE OS SEUS MOVEIS Á BORDOA- DA— OS TOCHEIROS DE MAFRA COLLEí DE RECEITAS PA KW SE SFR UM RFI VIRT1 - O ANJO E 0 VICE-ANJO PERFIL DO RFI D. FERNANDO; SUAS VIRTUDES E PERRICES NOS TERRAÇOS DA PENA, VESTIDO DE MA- LHA. A ( \NIAK DF BARÍTONO O TESTA- MENTO nV.LLE E A OPINIÃO PUBLICA EX PRES- SA PELA GRANDE VOZ DAS NOVIDADES AS COLLECÇÕES DAS NECESSIDADES SÂO NOS- SAS, ! TO( \ A < REAR COM l LLAS LM MUSEU

\ ,

d'aRTES DECORATIVAS! O SOUTH-KENSIN- \ E O ENSINO [NDUSTRIAL DA GRAN- BRETANHA- ROUBOS NOS CONVENTOS SAN- TA MARIA D'ALMOSTER -OS ARCHEOLOGOS QUE SE CORTAM ABADESSAS FRANDUNAS UM CELEBRE ACADÉMICO COLLECCIONADOR - NO PAÇO DE S. VICENTE OS CA- PELLÃES QUE VÃO EMPENHAR ALFAIAS AOS ARMAZÉNS DE VELHARIAS A ESTRELLA, OS GRILLOS E SANTA MARTHA -LADRÕES, LA- DRÕES, LADRÕES, NÃO DEVIA HAVER, NÃO DEVIA HAVER! .. COMO SE ORGANISA UM MUSEU D'ARTE ORNAMENTAL, E SE DOTA O ENSINO ARTÍSTICO, SEM AUGMENTO DE DES- PI/X PARA O THESOURO PUBLICAÇÕES DE VRTE E COLLECÇÕES PROVINCIAES O QUE A COMMISSÃO ARTÍSTICA DA (AMARA DEVE FAZER CARTA A S. M. SOBRE AS VANTA- GENS DE SER ASSASSINAI)! I o REGICIDA DE UNHA DE COMO O CULTIVO LAS BELLAS LETTRAS NÀn IMMUNIDADE AOS MONAR- CHAS, PARA AS AMEIXAS DOS CONSPIRADORES QUE LHE CUSTA A V. M. APANHAR UM BA- l ■■■ 5IO? OFFERECE-SE UM REGICIDA COM PRATICA NA PROVÍNCIA ANTÓNIO PEDRO E 0 THEATRO NACIONAL OS ACTORES DINS- PIRAÇÃO E os ACTORES DE SAGACIDADE A PORTUGUEZA NO THEATRO O QUE FICA DE- 3 DA LUCINDA. DE ROSA DAMASCENO E D \ VIRGINI \ « ONCLUSÃO.

Deus fez o homem á sua imagem <• semelhança, e Pez ocritico á semelhança do gato.

A., critico deu elle, como ao gato, a graça ondulosa <i o assopro, o rhon-rhon e a garra, a lingua espinhosa e a cali- nerie. Fel-o uervoso e ágil, reflectido e preguiçoso; artista ;ií<; ao requinte, sar- casta atéá tortura, e para os amigos bom rapaz, desconfiado para os indifferentes, e terrível cora agressores <v adversários. —Um pouco lambareiro talvez perante as bellas coisas, e ura quasi nada scepti- co perante as coisas consagradas; achan-

\ III

doa quasi todos os deuses pés de barro, ventre de giboia a quasi todos os liou hm is, e a quasi iodos os tribunaes, portas tra- vessas.- Amigo de íâzerjongleries com ;i primeira bolla de papel que alguém lhe atii-e, ou seja um poema, ou seja um tratado, ou seja um código. —Pa- ciente em aguardar, manso e apagado, (•mui um ar de mysterio, horas e horas, a sortida (rum rato pelos interstícios d'um tapume, e pelando-se, uma vez cacada a preza, por fazer da agonia d'ella, uma distracção; ora enrolando-a como um cigarro, entre as patinhas de velludo; ora fingindo (pie lhe concede a liberdade, e atirando-a ao ar, rece- bendo-a entre os dentes, roçando^se por ella e moendo-a, a deixai- n'um picado ou a'um frangalho.

Desde (pie o QOSSO lempo englobou

os homens em ires cathegorias de bru- tos, o burro, o cão e <> gato— isto <\

I\

M animal de trabalho, o animal d'atta- que, e o animal de humor e phantasia porque não escolheremos nós o tra- vesti do ultimo ? E o que se quadra mais ao nosso typo, e aquelle que me- lhor nos livrará da escravidão do asno, e das dentadas famintas do cachorro.

Razão porque nos acharás aqui, lei- tor, miando pouco, arranhando sempre c não temendo nunca.

A paixão pelas obras cTarte, está entre os particulares tomando tão grande espaço, que seria justo suggerirmol-a aos poderes consti- tuídos, na mira de vermos ingurgitados com algumas acquisições, o museu nacional. Por Ioda ;i banda o coMeccionador acorda, e <i*> moveis d'esta selecção exótica <|in' lhe aguça i sensibilidade, posto nem sempre venham liliar-se n'um fervoroso culto d'arte pura, e muitas \r/.r^ se expliquem pelo amor do ne- gocio, por vaidade burgueza, por emulações de família, <>u por doença, não obstante con- vergem todos a um resultado nobre e salubcr- rimo, qual <> de libertar da poeira é da ruina, ijuaesquer destroços, minúsculos que sejam, d'essa divina arte com que " Portugal >l" ve-

I-J

OS GATOS

lli«» tempo interpretou o conforto, e soube poetisar os interiores esses refúgios de paz dos combatentes exhaustos pela fadiga das \ iagens e das guerras.

De feito, não se sobe ;i uma residência 'I amanuense, de simples agente de leilões, ou de boticário, sem depararmos na sala, no ga- binete de trabalho ou no tottette, em núcleo ainda, e mais ou menos risível pela prosápia d'etalage3 a famosa, a lambida, a suspirada collecção.

VentaroIIas e selins servidos, pratos das

Caldas e oleographias, indo serve a pôr n'es- tes sanctuarios do medíocre, a mancha de côr que faz entrar na casa o raio d'aregria por- que todos os olhos amortecidos suspiram, ea nota de bem estar que ás vezes falta na man- teiga das torradas, no roupão de madame^ nas botinas tortas das creanças, e u<»s tresen- los e cincoenta mil reis annuaes de monsieur.

os <■ \ I os

13

Cumpre entretanto encorajar no publi- stes instinctos de pega, porque se o li<>- ixiem pobre e deseducado collecciona far- rapos, em vez de bibdots, ascendendo na escala do eolleccionador, á opulência, acha- remos pelos palácios de Lisboa, em exhibições de gosto, os mais impressivos e serpentinos echantilloru dos grandes séculos da arte eu- ropéa.

Demais que esta predilecção 'I" bello, mesmo caraiba, sendo um syndroma de se- riação cerebral d'ordera superior, consola n critério, da opinião pessimista que elle se afi- zera ;i formular sobre a decadência portu- tíueza, ao mesmo lempo que irá precavendo ;i opinião contra as rapinancias e logros, com que os grandes espertalhões da casa e de fora, ha cincoenta annos exturquem o que em Portugal havia de magnifico, em todos os géneros de pintura e de cerâmica, mobília e bordadura, ourivesaria e decoração. Como quasi Iodas as collecções portuguezas (a de li. Fernando aparte) são modernas, acontece nós estarmos desde o principio <l<> século ;i exportar para •» estrangeiro maravilhas, sem a menor consciência d'esta sangria artística,

os GATOS

e sem o mais ligeiro esforço de reacção con- tra ella, apesar dos gritos que vera ;i impren- sa soltar de quando em quando, algumas vo- zes bera intencionadas. Começou o saque com a evasão franceza, onde soldados e capitães carregaram para o seu paiz de França, o que quizeram, destruindo velhacamente o que não podiam levar. E d'esta infâmia guerreira, fi- lha da cobiça mais áspera, deu exemplo o próprio Bonaparte, que enviava no exercito, delegações d'artistas e peritos, com ordem de rapinar tudo o que de precioso houvesse, nos edifícios das povoações invadidas, e antes de concedido o saque á soldadesca. á sua parte Juno! levou comsigo, entre sedas e qua- dros, manuscriptos, gravuras, alfaias sagra- das, moveis, jóias, armas, e maravilhosas

loiças do .lapão e da China, despojos duma

riqueza innarravel, como nenhum rei possua hoje talvez ; e por lai forma abundantes, mie Ires navios quasi não bastaram para os trans- portar. Ainda lhe podemos arrancar a Biblia dos Jeronymos, e não sei que outros monu- mentos d'arte nacional, mercê (ruma recom- pensa em dinheiro, de muito contos. Mas cal- cula-se o destroço, dizendo que em prata

OS GATOS

15

roubada, á sua banda, este bandido arrecadou |,:li,, cima de trezentas arrobas.

Vcha-se graça a um chronista do Echo dt Fbrâ, que escrevia lia dias a seguinte boutadt feroz, a respeito da pobri :>/ do Low re : «o mrii amor próprio sangra ainda, á recordação das maravilhas que viu uo .Museu de Madrid. _L otterra </< Hespariha não foi para nós tão fe- liz, como as expedições </'Jt"/l<i >.— Que especta- cuioso miserável !

í

Quando os francezes se foram, ficaram os inglezes, «I»' rustilhada com alguns portugue- jses, legítimos ou adoptivos, que se valeram do oiro ou da omnipotência, para dos defrauda- rem do ultimo quadro de mosteiro, e irem lançando a unha á ultima bonbonniéré de fa- mília arruinada.

II. i setenta annos qi Sotdh-Kensington-

Museum, de Londres, secretamente mantém entre nós agentes seus, com ordem de vindi-

OS GATOS

marero d paiz de lodos os objectos cParte que iippareçam. E esses homens, que de Portu- gal lêem carregado para aquella espécie de formidável ministério d'artes e sciencias, pelo menos um decimo das preciosidades que elle encerra, esses homens conhecem, como pro-

íissionaes, ponto por | to, a historia das

peças que ainda restam, pertencentes ao Es- tado ou pertencentes ;i particulares, o seu va- lor, os seus detalhes, as suas imperfeições, as suas magnificências, os seus estragos ; e ini- placavelmente, como famintos lobos, eil-os espiam as necessidades de dinheiro dos pro- prietários, até chegar o dia em que a venda forçada lhes lance nas mãos algumas d'aquel- las jóias, divinas e puras, que eiies enamo- ram.

De roda aos agentes do South-Kensintgon ponham-se os espertalhões «pie vem explorar por conta dos grandes ha/ares da Europa... frahcezes que compram para os judeus mil- lionarios de Paris... americanos enviados de Nova-York e S. Francisco, por conta dos ven- dedores de cortumes, enriquecidos, e dos ne- gociantes de loirinho nioiioni.iniaeos de l>ihelo-

'":/'■.. . Accrescentar a isto os espertalhõesi-

OS GATOS 17

nhos modestos da Rua do Alecrim e Moinho de Vento, agentes de colleccionadores portu- guezes; calcular ;i cifra das transacções an- uuaes em seguida; tomar nota do tempo que esta sangria tem durado; e admirar emfím o manancial de riquezas decorativas, indescripti- vel, ii1"' era Portugal !

Ai ! temos assistido impassíveis, como se não se tractasse de coisas nossas, ;i esse des- moronar cTalfaias e obras primas, tramado na sombra pelas collegiadas soezes, por cabidos indignos, e por audaciosos mordomos e in- tendentes, que assim foram trespassando das caixas fortes confiadas á sua guarda, para as galerias dos príncipes e dos grandes, as peças de valor histórico e artístico, sem o menor temor de responsabilidades contrahidas, e ga- bando-se do roubo, inda por cima, com a im- pudência de pulhastros abroquellados sol» os brazões reaes dos seus senhores.

Temos deixado vendei- sem reluctancia, aos estrangeiros, obras únicas, maravilhas ex- tremas d*;iriisi;is os m;iis celebres e os mais deificados pela admiração universal, sem que o Estado tenha offerecido á cubica de fora, um esforcosinho de concorrência, tendente a

2

18 <>S GATOS

adquirir para as galerias nacionaes a obra em almoeda : e sem uma reproducção sequer, mu simples desenho, que ao menos nos conser- vassem a silhouette d'aquellas maravilhas per- didas para sempre (a).

E nas raras bibliotecas e ileposilos do rei- no, as coisas guardadas jaziam a esmo, ainda lia pouco, devoradas pela poeira e as rataza- nas, e sem que nenhuma mào caridosa as fosse de tirar, dando aos touristes, sob uma luz favorável, o regalo d'admirar o pouco que ainda resta.

(u) É conhecida a historia do jarro e da bacia <!<• prata, cinzeladas eassignadas por Benvenuto Celini, que o ourives Tavares, da Rua do Ouro, lanha com- prado cremos que aos viscondes de Cintra, indo-as offérecer mais tarde a l>. Fernando, que as recusou por um mal entendido Ur preço, ridiculo quasi. Jar- ro e bacia, que primitivamente haviam sido offer- tados por pouco mais de meia dúzia de contos, fo- ram comprados depois pelo liarão d'Alcochete, que os vendeu em Paris por noventa e tantos: c aca- bam, depois de peripécias varias nas niàus (los l»-ic- á-bracquistas, de fazer a sua entrada solemne na

OS GATOS 19

Estas afirmativas demandara porém (ixar- se na ideia com exemplos; diflicil caso n'um paizito onde todos se conhecem e tractam por cavalheiros, e onde o procedimento de muitos, servos e bovardos, raro extravasa da m '

io cTourivesaria do South- Kensington-Mu* Assim o refere o jorna] inglez, Decoration.

i conde <ia Folgosa possuía duas terrinas prata, assignadas Germain, queo inarquez d; adquiriu por uma quantia oscill&nte entre onze e quatorse contos, e que acabam de ser vendidas . por quarenta, emos a quem.

Nenhuma d'esta por conquistar, chegando o desleixo a não ficar ta uma simples photographia, para os » -

- de Bellas

20 os GATOS

aceada eavalheirice. De portuguezes que ha quarenta annos fizessem sombra aos prestima- n >s britânicos, na arte d'empolgar um bibdot ;i preços irrisórios, valendo-se ua bestialidade soez dos donos, o mais opíparo pairava, feliz- mente para elle, D'uma altura em que a vontade uão sofíre imposições, afeita ao mando supremo, que se herda com os caprichos, mercê <IV>- s.i excepção odiosa a que se chama dymnastia.

Fácil a este foi chamar aos seus museus privados, muitas palhetas do filão riquissimo que tínhamos, em preciosidades de todos os géneros, pelos palácios e templos do paiz.

Os processos usados para este arrebanhar de coisas raras, uão variou grandemente dos que hoje estão sendo postos em pratica, pelos banqueiros em fortuna, e por alguns dos nossos políticos e jornalistas adoradores de bric-à-brac. Lançavam-se pela província ava- liadores de confiança, convividos no bibdot, e

jtrados secretamente uo manejo de verem o que havia, sema primeiravista lhes parecerem ligar grande importância. Estas creaturas, vista ,i j iia, punham-se a sondai' manhosamente as necessidades do proprietário, as suas preoc-

ições, as suas ambições, as suas prosa-

os GATOS

21

pias ,,v pontos vnlneraveis da confraria, da parochia, ou da municipalidade possuidoras da obra cubicada e em m<'i:i nora concebia-se o plano, 11 lançavam-se os primeiros lineamen- tos para o cerco 1 Sc ;i peça era de vulto, um desenhista enviado de Lisboa recambiava um croquis na volta do correio, afim do Potentado illustre decidir. Na manhã seguinte, os foras- teiros debandavam, fingindo desdenhar um (louco o mérito da obra mas três ou quatro mezes depois, tornava um, e earrement pn ulia a compra, não se mencionando nunca, n'essa primeira abonlagem, o nome il<> com- prador, afim de Dão despertar suspeitas nem cubicas.

Acontecia ás vezes o dono da coisa, não v< n- der a dinheiro, i orque era rico.

ii remédio era offerecer-lhe á queima rou-

V2 os <;.\tos

l>;i uma venera, uma regalia qualquer cTordem hierática, rei d'armas, barão, moço fidalgo .. . Na minha aldeia fez-se um visconde por um prato das Caldas, muito velho. Outro, argucioso, veio ás Necessidades pedir a nomeação ^al- moxarife, com um bispote na mão, que posto exótico, era infamado pelos trazeiros de bastas gerações.

Para ocaso extremo da recusa de venda ser formal, os louvados tinham ainda um

ultimo expediente: pediam o objecto ao pro- prietário, e levavam-no para Lisboa, onde per- manecia até se amollecer de lodo a resistên- cia da collectividade ou do particular recalci- trantes.

Grande porção d'obras d'arte, pertencentes a instituições religiosas e pias, entraram por este meio na capharnaum artística dos nossos príncipes— consortes e governantes, como por exemplo a custodia dos .leroiivnios, ha inimeii- sos annos guardada no museu particular do

rei I). Luiz as pratas da Sé, que por VO-

zidos da imprensa ha pouco tempo foram res- tituídas ao cabido, e emtiin, o quadro de llnl- beín, que a Academia das l!ell;is-.\rles cedeu a

I). Fernando, em deposito, e figura boje

os GATOS 23

nu inventario ilo príncipe, como coisa que le- gitimamente lhe houvesse pertencido, (h)

(b) O snr. Rodrigues de Freitas, n'um artigo do

. BENS DO POVO DEPOSITADOS EM CASA DOS

ih [g, fere este i to, e amplifica :

«Seria ao rtado que também se tratasse de i„ i- - nade deposito, exemplificado no qua-

dro de Holbein, com vantagem para a galeria de D. Fernando, tem tido applicaçâo a muitos outros objectos de arte, e em beneficio >\>- outras pessoas idamente collocadas ; quem sabe .' Talvez a collecçao de todos elles constituísse um museu di-

g le ser visitado por nacionaes e estrangeiros.

Dize s isto fundados n'uma grande serie de Ca- im egaveis . é a 3erie longuissima das appa- rentemente mysteriosas desapparições de tantissi- moe objectos pertencentes aos conventos ; suspei- tava-se geralmente que tivessem sido roubados, ou dados; é muito possível que haja inteiro engano

->;

OS GATOS

Este capitulo das capellanras e irmandades que presentearam os príncipes e os grandes, «'"Ni objectos de que ellas eram simples usu- fructuarias, meras vigias; este capitulo eslava a exigirum inquérito minucioso e implacável, que desconfiamos havia de descobrir muita estorsão, e ferrafr com os costados de muita gente fina no Limoeiro.

Junto a Óbidos lia uma capella, cujo nome não colhe para aqui, cem cuja sachristia exis-

'iii tão atrevida hypothese; foram porventura depo- sitados em casas d.' gente digna de os admirar. É até provável que, se fossem quadros, os depositá- rios mandassem pôr nos caixilhos respectivos o seu brazSo, para melhor assignalarem a protecção que davam a esses depósitos, e o zelo com que os guar- davam. <> quadro de Holbein, por exemplo, podia ter no caixilho as armas de Goburgo-Gotha. Quem sabe? Talvez as tivesse.

ignoramos completamente como se fazem ou se faziam estes depósitos; qual <> formulário da re- messa e do reciho. . .

Quando falleceu D. Fernando, publicaram-se ar- tigos vigorosos, nos quaes foi affirmado que muitos objectos pertencentes ao estado figuravam na -alc- eia particular do esposo de D. Maria II. A asserção não foi desmentida, se liem nos lembramos; pedia

os <;.\ ros

ao

tiara (se existirão ainda?) algumas peças <1»1 mobília artística, maravilhosas .- . tambore- tes turrados de coiro de Córdova, gravffréa de dezenhoa soberbissimos, uma mcza com em- butidos de marfim e ferrarias de cobre cinze- lado, uma pequena credencia, etc., doações, cremos <|llr da rainha I». Leonor, fundadora ou protectora da capellania mencionada.

I». Fernando, que tivera noticia d'aquelles objectos, ou passando por alli, lograra vel-os,

comtudo ser falsa; agora porém, se a.Aeademia de Bellas .\ i-i. fez aquelle pedido, não é sem funda- mento a suspeita de que estava bem informado o auctor dos artigos.

Mas realmente este deposito de um quadro attri- buido a Holbein é um deposito de nova espécie ; a pintura não foi levada para a habitação de D. Fer- nando por não haver onde a guardar ; não seguiu o caminho da régia galeria em virtude de uma or- dem judiciaria; não entrou para ser submettida ame de peritos, afim de sabiamente resolve- rem quem flora o auctor d'ella : entrou por favor'? salim da Bemposta paia a posse de D. Fernando, poreffeitode alguma portaria amigavelmente surda'? Este caso leva-nosa recordar mais uma vezo que se passou cora a ramosa custodia de Belém; esta na posse da Casa Real e comtudo pertence á

26 OS GATOS

fez diligencias furiosas para os alcançar, da administração. Mas ;i todas as suggestões de compra e troca, brinde ou deposito, os honra- dos homens que geriam os bens da capella responderam á cubica real, recusas firmes; e os tamboretes e as me/as não figurarão oa corbeUle viuvai da segunda mulher do rei ar- tista !

Estes exemplos porem nfin são ínirtifrms,

e a mobília da capella .Tapar d'0bidos, se es-

nação; os documentos sobre este facto existem na ('.asa da Moeda; a Casa Real certamente não os desconhece; ella não pôde ignorar que esse monu- mento da ourivesaria foi dado em troca de uma

pouca de praia do palácio da Bemposta, avaliada

'■ih 3:648 #000 réis; importaram-se unicamente do valor intrínseco da custodia, como se o artístico não

fosse O principal !

Também a prata que pertenceu á casa de Nossa Senhora das Necessidades foi entregue a I». Ma- ria II. Entrego u-se-lhe pelo mesmo tempo a de um convento da ordem de S. Francisco; foram regula- res estas entregas? Os documentos que conhece- mos a este respeito, não dão resposta á nossa per*

-unta.

Desejaríamos egualmente conhecer o que foi lei- to da livraria do convento das Necessidades ; parte

OS GATOS '->

capou ás garras do GoburgOj ainda vem a cahir provavelmente nas dos srs. marqoeí da Foz nu Marianno ti»1 Carvalho, que Deus guarde. Na exposição portugueza d'arte ornamental, aalla D. Fernando, vi eu uma grande vitrine de carvalho negro, em talha salomoniea, cu- jas hombrekase cimalhas, recamadas de gros- sas esculpturas de pássaros, caçadores, gno-

d'clla terá ido para a Ajuda, como deposito análogo ao do quadro de Holbein, ou passou toda para as bibliothecas publicas? E a livraria de Mafra? <> au- ctorda Vcscripção minuciosa do edifício d'este nome, diz que na bibliotheca do anti:;" conveDto ba trinta

mil volu - escriptos em todas as línguas, e sobre

as sciencias, industrias, profissões, artes e officios ; prehenchem 150 estantes collocadas sobre ,, pavimento e a galeria... Todas as obras estão sis- tematicamente distribuídas por a e discipli- e alpbabeticamente catalogadas. Notam-se es- pecialmente entre ellas edições riquíssimas de 1 170 a ! ISO dos melhores clássicos latinos, e admiráveis pela belleza d estampas. Encontram-se tam- bém preciosas edições das nossas cbronii tugal, Ck Luziadcu <1>> morgado de Matheus ; museus de pintura, e 'ia- medalhas e moedas a- mais anti-

iriedadeecoll* bíblias anl

modernas em vários idiomas, enti ia- a polyglot-

28

os GATOS

mos e folhagens, eram feitas nada menos que das columnas d'uma capella alemtejana, amiga minha d'infancia, que S. M. l-i teria mandado buscar pelos seus espiões de bibdotoge, tudo por comprazer ao seu papel de salvador da arte antiga e das batatas.

S. M. a rainha i). Maria Pia levou de Ma- fra, contaram os jomaes aqui ha tempos, para

ia. e alguns manuscriptos religiosos em pergaminho, •oiii lettras a capricho, perfeitamente illumina-

<!as.»

A quem pertence tudo isto? Parece-nos que per- tence á nação; comtudo não tem servi, lo para ella. Está na posse Ma rasa real, como o quadro de lloi- bein esteve na posso .lo d. Fernando? Cumpre que as auctoridades competentes o investiguem ; o que Se taes riquezas são .lo povo, passem quanto antes

para bibliothecas publicas.

... Chegamos sempre a concluir que o Holbein jamais deveria ter ido para a casa de l>. Fernando. E embora não tenhamos tido a honra de examinar a escripturação dos depósitos, parece-nos que se pôde apostar 100 contra 1 que na lista dos deposi- tários se não achará sequer um nome de artista que seja poluo, por grande que seja o seu talento.

Assim prosperam as artes e os depositos.it

OS GATOS -'

oe seus aposentos da Ajmla. uns koeheiros de bronie, esculptarados em magnifico estylo, que segundo dos dizem, Qão voltaram ainda ao seu logar.

Dezenas d'outros objectes d'arte, enfileira- dos nas collecções de 1». Fernando e D. Lufe, teem uma historia equivalente.

Daria um perfil bem extraordinário, na lúsr loria da actual sociedade portugueza, se qui- zessemos visional-o com brutalidade e sangue- ntilhomem teutão que foi D. Fer- nando, e que mesi imbevecido ao seu sonho

d'arte, linha tempo para ir lançando golpes de vista frios, mercenários mesmo, sobre as coi-

,la vida pratica qu jercavam. Evidente-

II|t.Mit. que elle possuía muitos dotes de bon- dade particular, todos sinceros, e destronca- dos d'essas virtudes de cathalogo que os con-

m

OS GATOS

selhos d'estado impõem a. is governantes, e n'elles sai» como que as ferramentas do officio de reinar.

Povo nenhum da terra admlttiria boje por exemplo, uma rainha, que (»s jornaes não fetGhisassem como um water-doset de caridade

1,11 lll||;i vitri l'eleganeias, mi uma espécie de

realejo de sanctidades femininas e domesticas. Ainda liem os herdeiros da coroa não apre- sentam a cabeça, pelo postigo materno, ás ge- nuflexões «la comadre, os ministros lhes icem costurada a fatiota de virtudes publicas com •l1"1 elles lião-de mistificar o povo, ioda a vi- ,i;i: fatiota afinada ao sentimentalismo da epo- clia, e ás tendências moraes e sociológicas da geração que ha-de aturai-os. Na carte das vir- tudes governativas dos Braganças, coube por exemplo a D. Cedro v ,, papei d'um carneiri- 11,1,1 mandado fenecer antes d'armado, afim de justificar o cognome cfEspercmçoso que o con- selho resolveu que se lhe desse. D. Luiz veio numa epocha profusa em manifestações d'ordem mental ; então ordenou-se-lhe cristal- lisasse entre o violoncelio e Shakespeare, o que elle fez, charivarisando com bonhomia egual f^u>> dois infelizes martyrcs dos seus

OS GATOS

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ócios... E aproveitando a crise agrícola, <»s go- vernos suggerem agora ao snr. D. Carlos, que paraa recolta da popularidade, S. A. amosende nas predilecções fie lavrador, e de chapéu á serrana, applaudir as asneiras dos congres- sos. Jà aqui <> artificio resalta. Mas lia melhor! \chando-se provido, na pessoa da actual rai- ,,!,;,, o logar de consoladora dos afflictos, e tendo passado de moda o beaterio, está por ag0ra ;, Snr.a duqueza de Bragança sem tra- //s/; _ |.; ;l gente assiste todos os dias a esta comediasinha da sogra e da nora que mutua- mente se usurpam r iniciativa das kermcsses e bazares de caridade uma eom a chave do cofre dos inundados na algibeira, coberta de jóias, e de mão estendida, Sarah Bernbardl da esmola, aos cinco-reisinhos de quem passa

;i outra, um pouco froissée do jogo scenico

,l;i primeira, e contentando-se, vice-anjo mal ensaiado, em vir ás Cestas de caridade parti- cular, nu aos bazares das meninas abandona- das da província, repetir as creaeões mais ap- plaudidaa do anjo topa a lado.

32

<»S GATOS

Paulo Bourgel diz qo Disciple, «é raro que "m homem lançado na batalha das ideias, em pouco tempo se não venha a tornar no come- diante das suas próprias sinceridades.» E que esforços este I). Fernando não fez, para guardar até á morte, na sympathia da cidade, ò sen velho dichê de rei-artista, rei bonenfant, apesar da interferência pessoal pouco correcta que ás vezes se permittia ter nas coisas do Estado, estando recluido á vida de (amilia, e apesar de seu morganático casamento, con- traindo ih» meio do desagrado dos filhos, e das ironias dos seus mais dedicados servido- res !

Ramalho pinta-o como uma espécie de re- quintado burgomestre, no rãour da edade, gosando a existência n'uma atmosphera con- fortável e balsâmica, entre formas raras e cambiantes de índio, vaporosas, lodo entregue

08 o. Mos •!-',>

;i vetteidades de dUettanH, <\\u> mereé da ins- ciencia, percorriam quasi todas as especiali- dades artísticas conhecidas, desde fazer gra- vuras <li' saloios a afcua forle, e pintar loiça, até andar com fatos da Lmcia, nos <li;is de bruma, ;i roncar .mí.is pelos terraços de Cin- tra, para se «lar a iilnsão d'um amor roma- nesco aos cincoenta annos !

Entanto, se por uma banda convém não regatear as verdadeiras qualidades que elle tinha, por outra cumpre pôr em equação os defeitos justapostos i essas qualidades. Era uma sensibilidade dPartista, desunida e mór- bida portanto, propensa ao sonho da phan- tasia que se ala, como ama borboleta de noite, aos intermundios da belleza pura. Masaqnella mesma sua convivência entre coisas d*arte lhe fazia os nervos presentidos, ;< ponto de se lhe produzirem intercadencias no caracter, com grandes alternativas de bizarria e de sec- cura. Deve-se-lhe quasi todo o miserável en- sino artístico que hoje temos. Com o apoio

OU a iniciativa d*elle se levaram ;i cabo al-

gumas exposições de pintura 6 d'arte orna- mental. Muitos dos nossos artistas agradecem hoje .1 mensalidades d'elte, a educação rece-

;\\ os GATOS

bida nos ateliers de Paris e Roma. Os seus gOStOS ifartisla, a sua imaginação visual ifal- lemão contemplador, um raro senso evoca- tivo da pureza das formas, originarias ou typicas d'uma escola, duma nacionalidade ou iruma epocba, davam ao esposo de D. Maria II golpes de vista sagazes sobre muitos ramos d'archeologia artística e (fartes deco- raes: critério este mais d'instincto que d'eru- dição, mas em todo o caso seguro e bem ali- cerçado.

E sem a sua actividade, inteligente, sem o seu ciúme de bric-á-brac(|iiisla, que o ía/.ia policiar os manejos d'alguns larápios influen- tes, e alguma vez rechaçou do campo das ac- quisições, a concorrência estrangeira, Portu- gal teria sido saqueado nos seus bibelots, nos seus moveis, bibliotecas e loicarias, em muito menos tempo do que o foi. Entretanto, nós fizemos sentir como esta interferência de D. Fernando nas coisas estheticas de Portugal,

custava cara, e como elle se identificara ao paiz adoptivo, a ponto de confundir os museus públicos com as suas colleccões particulares, e d'estabelecer com a maior sem cerimonia, migrações de quadros, baixos relevos, bron-

OS GATOS 35

zes, dos nossos conventos para o seu palá- cio real das Necessidades, alardeando *\\w os salvava da cubica mercenária, em nome do

pOVO, «' vindo ;i ;il;i|;inl;ir-sc depois COm cl-

les, não sabemos em nome de que. Na genero- sa franqueza com <|n«' lhe abríamos os braços, e permittimos que elle fosse manuseando, co- mo m'hs, objectos que jamais poderiam se- questrar-se ã tutella do Estado, e á proprie- dade e á posse do paiz^ ia para assim dizer formulada a esperança de todos, em que o príncipe legaria aos museus nacionaes, por sua morte, os soberbos exemplares que lo- grara reunir, graças ao dinheiro que nós lhe demos, á situação moral <|in' lhe creamos, e ao enternecimento, imperdoável, com que o deixamos ir pelas nossas gavetas, ruínas e sanctuarios, basca de surprezas que apasi- guassem ;i neuresthenia de bello que o es- tortegava.

Por isso o seu testamento produziu no pu- blico, estupor primeiro, depois incredulida- de — e ódio por ultimo. Um ódio agreste, fais- cando desdéns «• sedes de desforço, contra a memoria d'elle, contra ;i sim probidade de ho- mem, a Bua integridade de ser pensante, o seu

36 os RATOS

passado, e as affeieões que na vida mais o en- terneciam, (c)

Os longos extractos que damos, do jornal q ii' mais vivamente tractou a questão do tes-

(c) «.As Novidades de 22 de dezembro de 1885: «... Mas o príncipe era homem: HoWiq sum i hil, etc. Ninguém, por mais elevado que seja, po- de fugir a esta condirão. As fragilidades da natu- reza humana dão-sr nos príncipes, como no com- íniiin dos mortaes ; e a doença exerce sobre aquel- les a mesma influencia nefasta, que sobre estes. O cancro (pie se apossou dum coração, e o roeu com aferro implacável, não pôde inspirar mais respeito do que o cancro que dilacerou a face. A medicina foi impotente para extirpar o shirro da cara, como a luz da razão não pôde sarjar o outro, o que lhe invadia o espirito. Essas duas impurezas liquidam- se pela morte (!) Os physicos purificaram o cadáver pelo embalsamamento, á luz tremula dos tocheiros fúnebres os críticos teem de purificar a memoria do príncipe, lavando-o do outro cancro, á grande lu/. da opinião publica. Picará então, como deve II-

- «. \

lamento, se acaso espelham, como o jorna ta pretende, ;i opinião, deixam-nos vèrqueel- l;) considerava o amor do rei pela condessa, como um cancro que lhe fez o coração cruel, e lhe arrancou de o amor dos filhos, o respeito il<> seu passado e '1<> seu nome, aca- rinhados durante quarenta annos pelo afecto leal < r u ni povo inteiro. Mostram esses extractos mais, «-..111 certidões de physicos, que era

.ar. honrado, respeitado i venerado, no panlheon doa reis. Â opinião tem esta missão a cumpr ;,.,,, :, cumprir também e parallellamente a mi de proteger a magestade do rei contra a piedade do nu,,,. e •» expleodor da coroa, que é unia dymuastia e uma instituição, contra as desfaUencias eauei pelos afTectos de família, tanto mais vivos, quanto mais se afogam em lagrimas de dor. . . estamos, e começaremos ãmanhl

\e dezembro de Í885. « l mesmo: ... i». Fernando morreu de dois cancros. < i da face, revelava-o a intumescência e dilaceração dos tecidas; o do coração maniíi stou-se em toda profundidade e crueza, no testamento com que tal-

leceu. 0 testamento produziu no primeiro i nento

mm impi ral d estupor, que a breve l

.a a indignação profunda. Em nosa i op nunca a opinião publica se aflirmou n'ui ia sol da-

38

os GATOS

vavel Dão gozar o rei de todas as suas facul- dades, ao redigir do testamento com que mor- reu, sendo natural que um tal documento lhe fosse arrancado pela mão .ruma mulher devo- rada ,,(' cubica, sem amor ao marido, e levan- do o egoísmo até á infâmia de querer provocar "m mcesto na família. E finalmente accrescen- tam que se inutítise o testamento, confrontan- do-o com outro que o rei Qzera em estado lu-

nedade tão forte, como agora. Como foi que a alma delicada d'aquelle rei artista pôde subscrever um tal testamento > Sem ter perdido o uso da razão, que importa o desconcerto absoluto da vida, teria o snr. D. Fernando perdido o vigor e a energia neces- sarias para resistir a suggestr.es pérfidas e a amea- insidiosas?

(Segue uma co iferenciacom um dos facultativos que trataram o ei, e diz assim :)

"••• O tumor maligno da face não poupou os nervos e artérias, produzindo até a decomposição il. <)s progressos da doença irritaram necessa- riamente as meninges, corromperam os vasos, e al- teraram a circulação. 0 lóbulo anterior do cérebro deve ter sido comprimido, o que a autopsia nao dei- xaria de mostrar. Este lóbulo soffreu por tanto na circulação, e assim na sua nutrição e regular func-

(is GATOS

m

eido; terminando por aconselhar que as col- lecções artísticas do castello e Mda da Pena e ,i() palácio das Necessieades, minguadas ,1,. jóias e pratas em que firandulentamente se substituíram monogramas, voltem ao Estado, senão na totalidade, pelo menos em parte vis- to como si,, do paiz muitas das preciosidades artisticas que as compõem. Nós registramos com jubilo esta impetuosa esfusiada de fran-

eiooamento. A doença teria alterado também o es- tado plástico .1.» sangue, o que viria a influir no modo de sef da actividade cerebral. Effeitos análo- gos se registam nas cacbexias extremas, oos amol- ecimentos cerebraes, etc. B de tudo isto se pôde concluir com afoiteza, independentemente de qual- quer exame especial, e pela marcha geral da doença, que o snr. 1». Fernando, som ter perdido o cahira progressivamente num estado em que as faculdades aflectivas levam racilmente de vencida as faculdades intellectuaes. .

«O tostam. mi t.. de l». Fernando data de 13 >\- neiro de 1886, quando ette estava irremediavel- mente condemnado, e se sabia que a sua vida devia durar apenas alguns mexes, ou mesmo dias, boras, conforme, i » ensejo do testamento foi escolhido conhecimento i, e desalmadamente aprovei-

tado. Tinha feito oatro antes, em 1880. Era o do ho-

40 OS GATOS

queza, que põea questão piara e virgineamente aua dos véus hypocritas, eutre que os jornaes

usam [falar das grandes falcatruas. SódOHOSr

so applauso expulsaremos os trechos em que

se allude em termos pouco generosos ás qua- lidades e intentos d'uma senhora, que seja o que for não tem marido, e resgatara pela sua alliança a um rei de Portugal, quaesquer som- bras que podesse trazer da vida de tablado.

mem são. Para se ajuizar da perfeita Inteireza do li- vre arbítrio do testador, seria necessário confrontar entre si os dois testamentos. Assim se porá em me- lhor evidencia o que pertence ás responsabilidades do testador, e o que pertence á garra da harpia. É preciso por tanto que o testamento de 1880 appa- rcça. Não para se liquidar de todo [observação d > jornalista para quem seja preciso, que não para nós) este processo moral em que está interessada a memoria de D. Fernando, mas também para se ins- truir o processo legal do inventario, que em qual- quer hypothese terá de fazer-se.

«... O testamento ultimo não é obra de D. Fer- nando. Não o pôde ser, porque nem mesmo por um egoismo feroz (que aliás nunca manifestou em vida poderia ser explicado. É descaroavel demais até paia isso. Está alli, sibilando em cada linha, o ran- cor venenoso d'uma ambição que serpeou até aO£

OS GATOS ! I

Sobra a sua tiipidc/ tambem,poucos dados com- provam, desde que essa mulher accedeu a des- fazer-se da propriedade «la Pena, sem violência, e abriu elle mesma ás indagações da justiça, as coilecções adquiridas por herança. D'ahi, não r necessário recorrer ;i harpia que se vinga com •i mào do finado, nem á loucura Incida do prín- cipe, paia explicar testamento, .lá desenhá- mos a sensibilidade mórbida especial de D.

degraus do throao, e que 9e consummiii em esfor- ços impotentes para ter assento n'elie.

.1 e.wTAiuNA procurou oingar-se rum a mV finado... E está também retratada, com toda- as suas unlias. a rapacidade implacável '|ur nem a po- bre gratificação aos mais antigos servidores pou- pa. . . 0 testa oto assim feito pôde ter como oom-

mentario a vibrante apostropbe de Tibullo, na ele- gia iv. liv. u, á oortezã Nemesis.

Ta cavas a concha da mão para arrebanhar mais dinheiro.

< » poeta definiu a harpia com forma tiuma

94 dt dezembro de 1885. .1- Novidades*: Nada temos particularmente ■■outra a snr." con- a d'Edla, Não lhe arremesaamos injurias porque é viuva, como lhe não arremessamos flores quando gposa morganática dosar. Fernando. Nin- guém no» viu por detrás dasjanellat >'" Poj d Ni

\'l OS (.AIOS

Fernando, que era a éftim príncipe, complica- da da (rum artista; caprichosa, desegual, in- transigente ena questões d'obediencia, cheia de violências e dMnfantiHdades, e exteriormen- te glacida e com deasás de bonhomia, como

deve ser a d'um allemào. Em typos (Testes, a altivez, quando ferida, é rancorosa, e raro é que não chegue a lançar mão da crueldade. Ponham agora ao redor d'tim homem as-

cessidades, turvado* humildemente diante da snr.* condessa, (inundo ella poisava << sim mão enluvada x<> braço d'el-rei, porque nunca fomos; e ninguém nos verá fora a apedrejar-lhe as janellas. . . que nSo são suas (allusão a um artigo do Correio da Manhã.

Os nossos artigos são apenas um pallido reflexo da explosão de cólera que rebentou em todas as consciências. Somos apenas um ecoo e nada mais. A opinião publica nunca se pronunciou com uma tal intensidade, e uma tal unanimidade, sem ter por si a justiça, e sem haver um grande malefício a vin- gar. Os próprios que correm a estender o manto da misericórdia sobre a desolada viuva (commentário do jornalista dedicatória de coroa fúnebre) reconhe- cem e confessam que o (estamento d'el-rei D. Fer- nando é um documento lastimoso, e que produziu a mais deplorável impressão... 0 testador podia dis-

(>S GATOS Kl

>im susceptível, .1 família real que lhe não re- cofthece oficialmente <> casamento, Maria r*i.i que parte o oopo, iTum banquete, quando o marido tem desceeo de propor um brinde ;i condessa d'Edla, deante de toda a corte, e os seus sarcasmos quando lhe faliam na wgra, e o seu ódio de princeza authentica, todos os iiins froimé pela impertinência da cantora e accrescentem ainda, para acabar d'exasperal-o,

lo que era sen, como muito bem quizesse. Mas fi Imprensa não pôde negar-se o direito dMnvestigar se na herança do snr. D. Fernando est&o todos os valores que devem estar. Não Falíamos <las in>- cripções d'averbamento ju<- se inverteram em títu- lo portador, para poderem ser sonegadas á he- a, nem nas Jóias de I>. Maria n. qne passaram ,-t . nitro oolo estas jóias, perguntamos nos, não per- tencerão talvez á ror...!'' nem das preciosidades ar- tísticas a que se mandoa razer um monogramma d*usurpação, nem «las pratas em que se substituiu por esse mesmo monogramma, a coroa real. ..» {o Uista '"/'"' repete <> '/-"• mais d'uma >•<■:. '<<> de~ . ,in queêtão, tem procurado transfiltrar noespi- ,!,, feitor} íflo é, que /"<" cita. facto*, nem hieto- ,,, m episódios, /<"/■'/>'<■ "//"/ m coitas d'alto. I. f /,/,-. insistindo em demonstrar </"<• a mr.* condessa 4 'Edla extorquira da razão vacillante do rei, o teeta-

i 1 OS CA TOS

o afastamento do povo, que recusa ao rei ar- tista a sua antiga sympattóa, satyriBando-6 aos jornaes e reuniões publicas, pelo facto d'aquel- le matrimonio escandoloso, e elaro dando a vèr <> quanto o melindrava a violação, pela cabotine, do fauteuÚ em queoutr'ora se sentou D. Maria II.

Ora, injurias assim não se perdoam ; quan- do é impossível cevadas de prompto, o tempo,

mento supra, onde se uãn faliu da snr.* 1>. Maria Pia, t/<h- tanto <> affeiçoava, e se mencionam secca- mente as filhas por as infantes, >■ se irada a swr.* condessa por minha muito QUERIDA E amada ES-

POSA.)

28 <!<■ dezembro <!>■ lss.~>. o mesmo jornal: ... 1 1 rei artista, que era amado do povo, com o qual se misturava nos ajuntamentos e festivida- des, viu-se que nada deixou para o adiantamento e bem estar dos artistas, nem uma insignificante col- lecção d'objectos d'arte para o estudo, o que pro- duziu um arrefecimento súbito nas sympathias de que gosava, e uma indignação vivissima coatra a Egeria funesta que Ibe inspirou uma tal disposição d'ultima vontade. . , bastaria entretanto que o tes- tamento contivesse algumas boas palavras, etc... bastaria que D, Fernando escrevesse o'elle uma dis- posição que resalvasse para a coroa e para a nação

OS 6ATOS *0

em \«v. deaspuir, centuplica-Ilies os Ímpetos, acoamtilanéo os dias de scínimento, em juros d'odio, a<> momento em que a vingança nos desforce integralmente. D. Fernando havia de ter premeditado assim uma desforra, longo tempo, sob as suggestôes e conselhos da espo- sa, não tem duvida, mas por obsessões também do seu próprio rancor de governante achinca- lhado. Essa outorga de riquezas a uma mu-

a propriedade e regalia do Gastello da Pena, que lhe rendido como monumento histórico (isto é, por ii, na quantia mínima. que não podia por forma al- guma significar cedência de propriedade) e que o paiz se habituara a considerar como formosíssima jóia sua. ..»

i8 de dezembro, 85. .... vamos terminar esta primeira serie d'arti- speito do testamento d'el-rei D. Fernando. i das aa consciências pediam uma correcção «lura .• um desagravo proporcional ao malifício; mas al- ta vozes dizem já, basta ! e nós somos e quere- ser apenas os executores da alta justiça popu- lar. .1 segunda serie, }">•■< m. min $e demorará.. . se for preciso. E será talvez ainda mais áspera do que a primeira, e <'"m certeza muito mais interessante -iK- ella. Porque haverá historias largas que con- \ j.ii ,, articulista, <iu>- atrai dissera querer

Wi 08 CAI os

lher que apenas podia auferir d'ellas um gozo egoísta e improductivo, nu detrimento d'um P°vo, que pelo estudo saberia transformar taes maravilhas em instrumentos de critica e •I'1 cultura ; essa doação por certo foi uma vin- gança de mercieiro casmurro, reles e mesqui-» nha, mas devemos recordar que o rei não tinha outra.

apenas encarar as coisas d'alto, refere a aventura de uma sobrinha sem tia, que veio das Salezias para o paço das Necessidades, <■ que parece a snr.» condessa d'Edla quiz casar com osr. infante D. Augusto. Tem- pos depois, esta menina desposava um oflicial de ma- rinha, abandonando o paço bruscamente, com ■> roupa que trazia vestida '.

E continua :

«... esperamos que a sr.« condessa cTEdla se poupará e nos poupará á segunda parte d'esta mis- são dolorosa. Tratando o assumpto dalto, não qui- zemos discutir n'esto momento as questões propria- mente jurídicas que no testamento se ventilam. Ha- vemos, porem, de as acompanhar com cuidado, por que nem podemos resignar-nos a (pie o monumento histórico da Pena saia da corda ou da família real portugueza, nem podemos consenti» que a rapa- cidade LEVE, ENGLOBADOS NA HERANÇA, PRECIO-

OS GATOS í-7

(Br

Sr faltando n<> testamento de l>. Fernando, trasladámos os artigos das Novidades, foi para somente d*elles fixarmos ;is ultimas linhas, que

SOS OBJECTOS D'ARTE QUE PERTENCEM AO ESTADO.

(Sublinhado por nós

Como se vê, este libello <las Novidades, tão ter- rivelmente formulado em seis artigos editoi procedia com methodo, e por series conforme a praxe. Man grado o nosso respeito pelos bomens d'im prensa que tractam coisas d'alto, não descon- remos a anciedade com que esperámos a se- cunda serie promettida, mais <> seu supple nto de

contraprovas e historias, onde facilmente nosso espirito beberia as excruciantes indignações da '»pi- nião, contra a mão <\<> finado e a cantarína. Por desgraça, que essa segunda serie nunca appareceu porque a questão houvesse tomado directri- mciliadoras, entre as diversas parles litigantes, lendo a sr.* condi ssa em poupar talvez ao ar- ticulista, a tal segunda parte doesta missão dolorosa, i ih que ••lio falia; porque muito pouco tempo de- ; da primeira serie apparecer nas Novida sr. Emygdio Navarro era chamado a fazer parte do< gabinete progressista, 'i1"' subiu.

»-N os GATOS

escriptas por uni ministro, quasi valem por declarações de gabinete.

«... não podemos consentir que a rapacidade leve, englobados na herança, preciosos objectos d'arte que pertencem «o Estada. . Ousaríamos completar o sentido do trecho, recapitulando o que atraz deixamos dito, quanto aos meios empregados por D. Fernando, para a amon- toação dos thesouros artísticos que deixou. Assim, S. M. teria adquirido muitos dYsses thesouros por compra, nas províncias e casas o|iiileiilas, mas por preços que alguma vez re- presentaram apenas a crassa ignorância da pessoa que vendia, e o perfeito conhecimento do vaior da obra, por banda da pessoa que comprava aclo esle que os tribunaes punem com o rigor que lhe assiste, (d) S. M. teria

(d) "... La théorie de la valeur èst la règle des esprits civilisés, et qui la mèconnait apparait comme an étre inférieur, stupide nu déraisonnable. Ceei est tellement vrai qu'on ftnirait par arréter un homme qui offrirait roille franes d'une image <l'Epi- n.ii cotée 1111 sou, et qu'on finirait par 1'enfermer comme fou. Le seul fait de ne pas avoir la notion du prix siíffit, dans notre société actuelle, pour faire retirer sa capacite juridique •■[ 1'usage de sa fortune

OS i.ATOS 49

ainda adquirido alguns, ;i titulo de simples deposito, oomo no caso do quadro de Holbein, que o snr. Rodrigues de Freitas verbera. Fi- nalmente, haveria deslocado outros, sem au- ctorisação nem direito, dos legares em que ellee estavam, como por exemplo os Lucca delia Robia do convento da Madre de Deus, l>;ir;i os fixar nos seus salões da Pena e das Necessidades, o que também constitue deli- cio grave, e de sanha a fazer figurar na parte de policia, qualquer desgraçado das ruas que o commettesse.

Por consequência, as collecções d'elle per- tencem-nos, são aossas; cumpre revindical-as para a posse do Estado, e fazer d'ellas um nu- cl Iii museu, indispensável não somente á

ostituição da historia portugueza, e ao es- ludo da arte < i \ i I e religiosa dos nossos gran-

à um bomme, en toate aatre ciroonstance eatimé ca- pable mème dana lea aaaembléea parle-

meotairefl >-t de donner <!<•> loia a<» pays.

i i - ôc momiates detona lea temps et de tona les d'Adam Smitb à Bastiat, et de Ricardo a J.-B.

S;iv. n BOnt I -aLtus sur 06 temia : la définitlOD de la valtur. < » 1 1 n'ett poa encore arrivé á troover use formule nre, laire et precise. La vateor eat tonl à

i

;,(! os GATOS

des séculos— o que é o passado senão lam- bem á reorganisação do ensino artístico o in- dustrial,—*» que é o futuro.

É forçoso aão dentar sahir do paiz nem uma das peças que compõem aquetias col- lecções; evitar os leilões, que nol-as disper- sariam pelas garras dos l)ric-á-l»rae< juistas de todo o mundo, que estão á espreita ; e adqui- ril-as em massa, quer pela aceào dos tribunaes, quer por uma compra amigável, estabelecida em cálculos lícitos, e paga por exemplo com o dinheiro d'uma loteria patrocinada pelo Es- tado.

A fundação d'um museu dYsla ordem, não é hoje um simples luxo em paiz nenhum, mas o repositório de motivos omamentaes, d'ins- pirações (Farte pratica, supérflua ou familiar, simplesmente exótica ou applicada ás indus-

la iois 1'utilité d'un objet particulier par rapport à ,m individu, ''i enmèmetempslapropriétéd'écban- ger cet objet contre un autre d'une atilité sesabla- ble. AopremieralM.nl, ['uiilité semblerait oréeraíule la valeur et former L'étiage auquel cet objet peut monter: la valeur d'an objet est dane toujoura rela- tive, ainsi mi puita a moitíé tari, une maigre sour- ce dans les plaines d'Algérie ont plus de valeur

06 GATOS :»|

tii;i<. ao qual deva prender-se o ensino offici- nal, que lança os povoe no caminho da pros- peridade e da fortuna. K necessário comple- tar :i obra ihs escolas indnstriaes, fundadas por Aguiar, pondo-lhe por cupnla um museu d'aquelles, organisado segundo os planos do South-Kensington.

Para se imaginar o que esse Sout-Ketmn- gton seja, bastará dizer que elle contem para mais de trinta milhões d'objectos d'arte, au- thenticos e inéditos, de todas as epochas, gé- neros, paizes e destinos; e um mimem ainda maior de livros, estampas e manuscriptos, cathalogados com methodo; e outros tantos milhões de modelos d'arte industrial e que tudo isto faz annualmente ;i viagem dos gran- des centros manufactureiros e estudiosos d'In- giaterra, em series combinadas, que um em-

luiiii abondanl ruisseaa dana Pile <!«• K rance: un bifteck :'i bord da radeaa <!<• la Méduse valait plus cher 'i"'»" diamant. Cest lararetéqui íntervient, oompliquée da déslr. Ces deax mobiles ont an role actif dana Ia ratear dea oeavres d'art Lea objets ar- tisti<|iif> i»nt um caractere d'utilité incontestable pour céus qni leaachètent, paiaqa'ila y trouvent desjouis* sances cérébrales, dea modeles, dea stimulanta, des

52 OS GATOS

pi jgado do museu acompanha, com ordem de preleccionar sobre o destino dos objectos que passeia. Museus análogos foram estabelecidos, em .Moscou, Vienna d'Austria, Berlim e S. Petersburgo, ha muito tempo. Em 1885, dias antes do jornal L'Ari, propor uma subscripção publica em Paris, para a ereação d'um Musée

Arte Decoratifs, Ph. Burty escrevia estas palavras :

"La France attend encore im musée analogue au SOUTH-KENSINGTON. Lorsqu'eUe le tentero, malgré les richesses dispersées dcms ses différentes collections nationales, il será foreément bien in- complet. Les étrangers ont ecrémé tout ce qui est d'un interet supérieur, et la coneurrence a amené les surencheres ruim uses. . .„

o museu de Paris foi creado em 1887, e todos conhecem a historia da sua interferência

moj cus d'enseigne nt, ou tout simplement des oc-

casions ile savourer 1'orgueil de la possession et de faire des enyieux. La science économique constate les faits, .-nissi bien psychologiques «i1"' matériels, sans l<-s apprécier au point de vue moral...»

(E. Lepelletier, artigo Justice dans Vart, do Echo de Paris.)

OS GA ! - I

industrias francezas, que vem de dar na Exposição uma tão brilhante prova <le vitali- dade.

Th. Burty queixa-se dos estrangeiros que expoliavara a França, pom dinheiro nas mãos, dos seus thesouros. Pe quem nos queixaremos nós então!?.,. Estrangeiros e nacionaes mais nacionaes agora do que estrangeiros avançando em quadrilhas, teem roubado in- famemente o paiz das suas melhores alfaias e bijoitx, i isto "'iii plena inania dos governos, cujos membros condescendem por vezes, ver- dade seja, a ter no roubo a parte do leão. E quanto mais a fundação <1 um museu d ornamental nos for tardando, tanto maiores desfalques se hão-de fazer no pouco que nos resta. Ás collccções de D. Fernando, umi securas, viriam juntar-se os destroçados espó- lios dos muitos conventos de freiras que i fechando, ou fecharão, em breves «lias as suas portas; e é provável que todos estes ilexpojos reunidos lograssem dar de si um basar ainda vasto, <!•• formosas ."i-.i-.

54

os GATOS

no districtpde Lisboa, conventos fecha- dos contamos este anuo d' oito a nove ; e alguns antigos, com tradicções históricas, fundações de princezas, e restos de sumptuosidades devi- das ao favor de reis e de rainhas. Em quasi todos, sem que se soubesse em globo O qim continham, era voz publica haver trabalhos d'arte, em talhas, colchas, retábulos, lavran- laria artística, mobílias, poterie$} estatuetas, e azulejos: tudo restos d'opulencias passadas, que os capellães-administradores, e as madres, instadas por parentes, por funccionarios civis, ou por simples trampoliueiros, foram vendendo

(>S (iATOS 55

.ilcavez dos tempos, por mn quasi nada mais de tuita e meia. (e)

Um nosso amigo, que foi outro <lia ao mosteiro de Santa .Maria d' Almoster, casa de penitencia onde foram acabar infantas e man- cebas de reis, e ainda aqui ha trinta annos atolhada de preciosidades caras, voltou de com ;i indignação inflada nas palavras, e ba- rafustando contra o desleixo das auetoridades que deixaram roubar estupidamente os san- ctuarios, retalhar as pinturas, fazer fogueiras com as estatuas dos santos e os cotomnellos das capellas; b pennittiram, senão coUabora- ram, nos roubos e salvagerias que vieram a tornar aquella maravilhosa casa a'uma pocilga de camponezes alvares, de sachristas gatunos,

(e) Se nos não falha a memoria, fez-se em 1868 om inventario geral aos conventos de religiosas. Comparando os espólios d'agoracom as listas d'a- quelle, fácil seria calcular o que Boi desviado, para em seguida deitar a policia a rabo .los larápios. Que governo ousaria porém vibrar esta justiça, sem afoeinhar na escadaria dos paços, nas collecções dos ricos, e ua desboora de muitos crismados por ahi de veoeraveisl

56

OS GATOS

e de regedores leiloeiros e canalhas. De quando em quando apparecia por um d'estes velhos -raves, d'oculos, diplomados pela Academia, pela sociedade dos archeologos, ou pela com- missão protectora dos monumentos, o qual a titulo de salvai- a arte, trazia cemsigo o que adregava, esquecendo-ae, poraffazeres, de res- tituir essa colheita ás sociedades sal. ias que o tinham commissionado.

.\'uni mosteiro de Beja, antiquisskno, cuja fachada gothica, posta no alto «ruma escada- ria de pedra, concita o forasteiro á contempla- ção embevecida, conseraram-se, me disseram, por muitos annos, preciosas recordações do velho tempo. As ultimas freiras que houve, um pouco secularisadas pelos pagodes que D. João v mandava ensinar ás suas colle^as d'Odivellas, quando os amantes massadosnão vinham ás entrevistas nocturnas, expediam- Ihes por uma alcoviteira, sob a forma de brin- de, algumas das bellas curiosidades do mos- teiro, baixos relevos, colgaduras, trypticos, gomis, painéis, e peças de mobília, em lermos d'acenderem a carne aos machos lassos, pela espórtula da bugiganga, paga adeantada. Ulti- mamente, houve uma abbadessa, oavaquea-

OS 6 VtOS ."»/

dom dengosa e emérita magana, que convi- dava oa ;ili<>s funccionarios civis a alegres me- rendas* òYonde s.ihi;i bêbeda e Baltona, a acompanhar no cravo versos de Bocage.

Conheci um secretario geral que lhe apa- nhou magnificas prebendas, e um monsenhor, bispo quasi, que não desdenhava fazer sentir ;i freira rábida, nas occasiões <l«i satyriase, o quanto lhe agradaria avolumar a sua colteção, com uma "li outra peça artística do convento. \vxim foram abalando da casa as belias coi- sas; creio que não lia em Beja homem ne- nhum de setenta annos, que não possua no ses gabinete, em paga d'uma noite, alguma re- cordação da zorra professa.

Todo o Alemtejo baixo, na zf >n;i districtal d*entre Évora e Beja, conhece um erudito mazorro, estúpido e rapace, que unis d'uma vei tem figurado em commissões de historia c archeologia. Esse donato reles, que uma academia e um governo, mais reles ainda, se não envergonharam d'enviar ;n> desempenho de missões de confiança, ••num inquéritos d'al- faias em igrejas * I < - província, constatações il<' relíquias mortuárias, relatórios d'arte e scien- <-i:i histórica, ete., deixou pelos sítios de passa-

-xS OS (i.\Ti>S

gem a reputação (rum homem sem escrúpulos, o mais cynicamente deshonesto de quantos mo- nos fardados os governos costumam enviar ao encontro das coisas a que não dão impor- tância.

De todos os inventários que esse homem fez, pelos conventos, revertia metade aos caixotins do seu museu particular, intimidando descaradamente a timidez das monjas e a bes- tialidade dos administradores de concelho, ne- gociando á cara as peças que lhe recusa- vam, e justificando enfim por toda a parte a reputação d'um velho tonto, abraçado á velha- caria d um gatuno exhaustinado. Tem um mu- seu riquíssimo, este mariola, que fui sempre pobre, e nunca esteve prezo, e possue a con- sideração <le gregos e troianos. E com elle, outros eruditos que fustigam na imprensa o abandono dos monumentos, a pobreza dos mu- seus, e ;i selvageria do povo, vão accumulando á sombra das commissões que usufruem, èrtc- à-braca roubados, indiscutivelmente roubados, sem <pie uni ministro austero lhes peca contas da villania com (pie elles se locupletam. Tod;i

a gente conhece ;i historia d' uns azulejos ce- lebres, que um architecto possue nas suas col-

OS GATOS 59

lecções, e a d umas talhas de capella antiga, que um funcckmario bestado arrematou por 20$000 reis, para a decoração d'uma casa de campo. Querem mais factos?

Um cirurgião de cunho, amigo meu, costu- mava comprar ;i um brfoú-braequistã hespa- nhol, bocados d'arte com que ia ornamentando, petit-i*petit, a sua rasa de residência. Aconte- ceu comprar elle ae hespanhol umas cadeiras de pau santo, trabalhadas; e tempos depois, ao voltar do jardim zoológico, uma tarde, o hespanhol que apparece. . . Havia entre os dois pendente o contracto (ruma esculptura em marfim, que obrigou o medico a acompanhar

o espertalhão. E c o o meu amigo passava

por mu convento fechado, o outro, súbito :

Lembra-se V. Kx.;i d'aqueltas cadeiras? Pertenciam aqui a este convento; comprei-as cu ;i abbadessa. . . entravamos de coite, ves- tidos de padres; a fazer negocio.

Por occasião de morrer o patriarcha Igna- cio, antecessor do actual, desappareceu de S. Vicente um quadro gothico, onde, n'um grupo ajoelhado, se via um retrato do infante D. Hen- rique, que passava por authentico. Esse qua- dro está hoje na galeria d'ura titular Bnaucei-

(»(l 08 GATOS

ro, e ninguém lhe vae perguntar como foi que elle o adquiriu. sol» o fcemporado do pa- triarcha actual, roubaram <lc S. Vicente um tapete persa, magnifico, que veio a sim- vendi- do por 5:000 n'uma loja d'adelo, e está actual- mente no gabinete de trabalho d'um homem muito conhecido em Lisboa. Querem ainda mais? Vão visitai- um dia os armazéns d'anti- guidades de Lisboa ; e fmgindo-se interessa- dos perante os objectos de caracter religioso ([lio virem, inquiram do judeu vendilhão a his- toria d'elles.

saberão que ha câpellães que vem á noitinha com embrulhos nas algibeiras anaes da sobrecasaca, negociar objectos de culto, rolos de leias com pinturas de santos, frou- taes o cazulas, miniaturas, pequeninas esta- tuetas e vasos preciosos, por couta das freiras que liquidam, e de conventos fechados aonde o governo ainda não mandou fazer arrolamen- tos.

0 museu das Janellas Verdes é pobre? A Bibliothecá Publica está em risco de não ad- quirir a folleccão Cifka, por falta d'um conto e oitocentos (pie a pague aos herdeiros do col- leccionador? O governo não tem dinheiro para

OS GATOS

Hl

acqui«çõe8? Não ha colleeções completas d'ar- te industrial, religiosa, domestica, ornamen- tal? Poderá! Sc as colleeções do paiz estão sendo averbadas a beneficio dos herdeiros de D. Fernando! Sc os commissarios enviados aos inquéritos dos conventos, não zelam como levem a arrecadação <l<»s espólios, nem pro- curam saber para onde se somem as coisas que faltam ! Sc o paço d'Ajuda regorgita de coisas desviadas do seu logar! Se os funecio- aarios graúdos espreitam ;i agonia das monjas Qonagenarias, para irem elles mesmos, marcar as peças que desejam recambiar para os seus palácios !

E é por isso que os Grillos fecham e não

se apura <lc coisa nenhuma de valor, para

auseus. Que a Estrella fecha, e o encarre-

i de trazer para a Academia objectos d*ar-

te, encontra nos muros quadros reles, la-

vrantarias sornas, e paramentos banaes.

E em Santa Martha e na Esperança, e por todos os mosteiros sellados, a mesma penúria, a mesma pobreza, e a mesma abominável pou- ca vergonha.

Aqui (Tel-rei! isto é uma liquidação ge- ral nos bens do povo; om saque trinta vezes

62

os GATOS

mais vil que o de Junot; uma epopeia de fur- to, mais audaciosa do que a historia celebre d'AUi-Baba, onde lambem figuram cavernas de riquezas, um poderoso chefe, e quarenta la? drões. Morreu o chefe, as preciosidades foram arrola-las, mas os quarenta ladrões multipli- (•aram-sc, e por alii continuam a saquear ali' ao fim.

Movidos pelos alarmantes boatos d'essas vendas fraudulentas, dYssas manhosas caça- rias feitas por agentes suspeitos, ao Irem cul- tual dos nossos templos, e ás baixellas e ador- nos das rasas históricas necessitadas, dois deputados ollereceram ao parlamento um pro- jecto de lei, em que se prescreviam grossas taxas dmnposto aos objectos d'arte que emi- grassem do paiz.

Ora, deveremos dizer que uma semelhan- te proposta, posto sincera lio intuito, lia-de

88 6AT8S 69

ser sempre incompleta nos resultados que pre- tende.

Efe feito, não derivando ella d'um plano de legislação que abranja todos <>s casos, fica de >i impotente, a quando muito fera mal ;n»s Hambrugers, ;i<>s agentes d'Ephrussi, dos Ro- tschilds c «los Van-der-Bildt, que n'esta ultima phase da dqringolade artística que vimos des- crevendo, não passam e?uns inimigos nossos, subalternos. Depois, sendo taes vendas feitas em segredo, podendo ;i maior parte dos obje- ctos d'arte occultar-se em pequenos volumes de bagagem, e não havendo (iscalisacão rigo- rosa sobre os volumes que sabem do paiz, como é que o imposto aconselhado pelos dois parlamentares, ha-de eobrar-se?

0 grande mal não vem agora dos compra- dores estrangeiros: vem dos gatunos indíge- nas, <l;i cobardia e da ignorância dos ministros, incapazes de pedirem contas aos salafrários que nos defraudam, <i emfim <1<is abusos da in<>- narchia, que n'este rama se ha mostrado, dissemos, d'uma velhacaria incomparável. Êíão desse ella o exemplo <l«' larga data, <i nos sa- beríamos se os servidores graduados se arris- cavam a andar por Odivellas arrancando os

64 08 GATOS

azulejos do claustro^ peto Alemtejo extór* quindo baixos-relevos ás freiras, e pela Beira Alta fazendo mão baixa nos celumnellos de talha dos sanctuarios.

O governo de eerto tem eommissarios es* portuládos paca a (iscalisação dos edifícios que lhe pertencem. Que diabo faz a chamada Cóm- missão dos Monumentos? A chamada Academia das Bellas-Artes > A Sociedade promotora das ditas/ A dos ArcheoJogos / A dos Architectos? E a mirabolante Commissão artística da Cama- rá Municipal t

Com foros d^gremiações patrocinadas pelo Estado, ou com simples cédulas de sociedades particulares, aquellas enfermarias de somuam- bulos, de derreados, de preguiçosos e de pe- dantes, tinham obrigação de regular entre si a policia dos monumentos, do lhes vigiar ciu- mentamente OS valores, e de se auxiliarem no procurar dos objectos extraviados ou extor- quidos—isto por dever de fundação ou por simples fervor de patriotismo e nada fazem! Ninguém se importa. Naturalmente os das liei- las Artes fazem costas, em quanto os dos .Mo- mimentos fazem habilidades; e os da Archeo- Jogia fazem escovinhas, emquantoos da Cama-

os gatos 65

r.i Municipal fazem concursos de pintura his- tórica. — Sucia de mostrengos, acephalos e inermes, cuja indifferenca criminosa infunde uma tristissima ideia da austeridade cívica. individual <>n collectiva, dos funccionarios do qosso paiz !

lios sele conventos, ou oito, fechados du- rante os últimos mezes, querem s;il>iic o que o delegado il<» governo conseguiu apurar para museus ? Nada.

n bric-á-brac das Janellas Verdes, que era um punhado de loiças, esmaltes e tabaquei- ras, foi adquirido no Luiz da Costa por 2:800$000 reis, ainda no tempo do marquez de Souza Holstein; e d'então para cá, em quasi nada ha sido acerescentado ! Morre a ultima

freira d'um recolhimento. . . quand lelega-

do do museu chega, ou não encontra nada que arrolar, ou recolhe apenas bugigangas e tarecos velhos, sem valor não sendo raro que mesmo d'estes, a quantidade baixe, não

jabe entre mãos de quem, no trajecto d'uma

i para a outra.

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(ts GATOS

Ao leitor enausea a lista proscripção desdobrada por nós ao travez d'este fascículo, que melhor soaria aos seus ócios, num cas- calhar de trocas e piadas.

Haja paciência: o escarneo virá: mas lhe promettemos publicar todas as denuncias provadas, que adregue de nos endereçar sobre a questão dos museus nacionaes. Chega uma hora difficil em que, sob pena d'um naufrá- gio geral, é necessário corrermos a pon- tapés os intrujões que se apoderaram dos ci- mos, arrogando-se o titulo de chefes e dicta- dores, em todos os ramos da administração e da vida publica, e antepondo ao bem do Es- tado a sua anciã de gosos e riquezas, trahida em toda a linha por um banditismo que nem sequer perde tempo em disfarçar-se !

Porém esta nossa jeremiada vae longa, e

compilaremos rápido os pontos principaes da

exposição.

ns GATOS

67

Não temos um museu d*artes decorativas, nem em embrião sequer, e é indispensável creal-o, se com alguma seriedade cuidamos de dar hausto, pelo levantamento do nivel es- thetico quer no consummidor, quer no pro- ductor, ;ios nossos antigos centros d'actividade industrial. Não temos uma collecção de mo- veis d'arte a que os artífices ignorantes se re- portem, nós que possuímos dos primeiros marceneiros e restauradores de moveis <lu mundo. Não temos um gabinete de ourivesa- rias, constituído com exemplares das nossas officinas da Renascença, nós que ainda hoje executamos com uma perfeição manual sur- prehendente, os trabalhos mais arriscados de lavrantaria e filigranagem. Senhores dos pri- meiros canteiros do mundo, não possuímos, sob a forma de collecções tf atelier, junto ;n»s monumentos, exemplares catalogados consoan- te ;i^ epochas, os destinos, e as deducções ornamentistas derivadas das nervuras geraes iriiin typo d'architectura civil ou religiosa.

Não ha collecções publicas d'estofos, de rendas, e de bordados, n'um paiz que tem as tecedeiras barbaras e geniaes das províncias do Minho e Traz-os-Montes, as rendilheiras de

68 <»^ GATOS

Peniche e de Setúbal, e as maravilhosas bor- dadoras das ilhas «los Acures e de certas po- voações ruraes do Alemtejo. Nas aossas velhas olarias d'Estremoz e das ilhas, onde a esta- gnação multi-secular dos processos de fabrico, produziu o milagre de se haverem mantido entre as mãos d'esses rudes louceiros, sem alteração, todas as linhas do etrusco, o mais correcto; nas velhas fabricas de faiança das Caldas da Rainha, que ha duzentos annos da- vam o vidrado d'uma maneira unira, hoje per- dida : nas serralherias dos arredores de Gui- marães, onde camponios broncos ainda hoje produzem á forja, sem instrumentos, ferragens comparáveis ás melhores da Renascença fran- Ceza e italiana em todos estes fóCOS extiu-

ctos da arte industrial portugueza, não ha

um museu onde os arlistas estudem a archeo- logia ilas suas profissões, as evoluções do pro-

diiclo, as intersecções e as influencias soffri- das por suggestão estrangeira ou sequer uma COÍleCÇãO centra] que lhes expessa esses mo- delos, por viagens circulatórias, como ;is que o Kensington promove atravez as regiões of- ficinaes da Gran-Bretanha.

É indispensável pois creir eSse museu, c

OS GATOS r,<''

por influencia d'elle depois, museus com sede junto às escolas industriaes que estão funda- das, mas onde os exemplares se renovem a prazo, n'uma deslocação periódica e fructife- ra. (f) <>s nirins práticos de havel-o, são em

I rjm dos primeiros actos do actual patriarcha de Lisboa foi dirigir ao ministro da justiça e cultos, um relatório muitissimo sensato, em que se propu- nha a fundação de museus d'arte religiosa, n?

i(. do patriarchado, mas também na de todos osbispadose arcebispados do paiz. Estes museus exhibiriam os objectos pertencentes ás residências prelaticias, e assim todas as alfaias e obras d'arte das i( Lbricasannexas. Cada um d'ellesteria

um conservador estipendiado modestamente, e cre- mos que ás 3uas collecções iria revertendoo espolio dos conventos, na proporção em que estes fossem acabando.

Escuso dizer qual tenha sido a resposta do go- verno. Não lias ia dinheiro! «> sr. Silveira da Motta, director da repartição d'estatistica, e erudito apai- xonado pelas velhas coisas, declarou mesmo aosr. encarregava de crear verba para cus- teio dos museus religiosos, sem sensível augmento d'encargos paia o Estado. Entanto, apesar d'esta vontade, a questão foi atirada de vez ao esque- cimento.

70 OS CA TOS

primeiro logar adquirir as collecções de J). Fernando (</); e em segundo lançar mão do que ha pelos conventos, palácios e quaesquer outros edifícios públicos desoccupados.

Para a realisação do primeiro desideratum lemos a chicana, que lia de pôr de nosso lado a justiça, desde que se provem os poucos es- crúpulos de S. M. o rei finado, o que com boa vontade não ha-de ser talvez difficil ; ou recu- sada a acção judicial, lançaríamos mão da compra em massa das collecções, com dinhei- ro obtido, dissemos, por meio d uma gran-

fgj È uma das maiores, mais variadas e mais completas que andam por mãos de particulares. A secção das loiças é maravilhosa, pelos pratos árabes que contem, e pelas fayanças portuguezas, allemãs <• italianas. Em anuas, mobílias, bronzes, Saxes, é também riquíssima; e assim em quadros antigos, de auetores portuguezes e allemães, mencionada- mente da idade gothica. A collecção de gravuras ii- gura no inventario com um valor approximadn de -13:000#00o réis, e consta de dezesete mil exempla- res, dos quaes muitos raríssimos, assignados por Durer, Rerabrandt, Callot, Ostade, Marco António, Morgher, Vanteuil, Edelvisk, Drevet, Dirk-Stoop, Lu- cas de Leyde, Goltzius, etc.

os GATOS

71

,1,. Loteria, exclusivamente consagrada ao ensi- no artístico, como a da União Central das Artes Decorativas, de Paris, que produziu einco milhões de francos d'uma vez. Lançado <> museu, tractar-se-hia de o ir enriquecendo, a pouco e pouco. E por que meios? Um dis- semos: a entrada immediata, nas salas das Janellas Verdes, de todos os objectos de cara- racter artístico sobre que o Estado tivesse di- reitos reconhecidos, e que se achem dessimi- Qados boje pelos edifícios públicos sem fun-

cção.

Dos outros meios, nlii vão alguns que nos

occorrera :

I.- Compra de collecções particulares ne- gociáveis, em detalhe ou em globo, cujos proprietários desde agora dariam ao Estado condições de preferencia, posto o projecto de lei .los snrs. Fuschini e Consiglieri.

2>( _ Requisições d'objectos por troca, com particulares e museus estrangeiros, de peças que os nossos tivessem repetidas.

8.o_Acquisições decopiase modelos d*obje- ctos (mencionadamente os que digam respeito ;-, arte portugueza e peninsular) «pie figurem em museus estrangeiros, e de cuja reprodu-

"ri os i; aios

cção c estudo se possa tirar proveito pu- blico.

i.° Propostas de compra ás confrarias, bospitaes, misericórdias, juntas de parochia, etc., d'objectos d'arte que por sua antiguida- de ou mau estado de conservação, hajam sido desviados dos seus respectivos serviços e des- tinos, e que constituindo exemplares dignos d'apreço, andem pelos thesouros d'aquelks corporações em eminente risco de perda oa de ruina (h).

5.° Vigiar assiduamente as coisas que não podessem logo reverter ao Estado, evitando por Iodas as formas a sua dispersão, desde ensinar o publico a zelar elle mesmo a con- servação d'esses lhe/ouros, ale definir as

(h) Exemplo: as magnificas lanternas de prata da igreja das Mercês, cinzeladas n'um estylo tão puro como elegante, e muitas outras alfaias d'esta igreja. Exemplo : as pinturas gothicas, sobre madei- ra, que se guardam n um escaninho ignóbil da Ma- dre de Deus, aos ratos, á poeira, e que o padre Coentro mostra aos raros visitantes que se dignam procural-o. Exemplo: um grandíssimo numero de quadros, mobílias, e alfaias, que fazem parte do trem patriarchalj etc.

OS GATOS 73

responsabilidades dos depositários, em bases que (garantissem ao Estado a perfeita manu- tenção e conservação dos objectos d'arte, e as- sim .1 sua revertencia futura aos museus na- cionaes.

Entre os meios práticos de conseguir esta policia, mencionaríamos ainda exposições permanentes, n<> vestiário dos templos, de to- dos os objectos d'arte que as uossas institui- religiosas e pias possuam, e onde <i i»ii- blico se acostume ;i ir reconhece 1-os, estudal-os, e apreciar-lhes <> valor fundação d'um grande cathalogo geral das obras d'arte existentes no paiz, por mãos de particulares, por mãos de corporações, illustrado a grandes phototy- pias, e contendo summariamente a biographia de cada objecto, o resumo dos seus caracteres pstheticos, menção d'escola eauthor, e emflm ,i maior somma de dados materiaes para um computo rápido das nossas riquezas artísticas educação do gosto publico por via <l<i pu- blicações análogas às da Biblioteque de l\ çnemeni de* Beaux Arts, de Paris, feitas por conta da Camará Municipal ou da direcção ge- ral «I"- museus, segundo nm plantologico, e postas .1 concurso entre os escriptores de es-

i * os GATOS

pecialidade e finalmente, reforma completa no ensino das Bellas Artes, attendendp-se o mais possível ao estudo do desenho, tão des- curado em S. Francisco, e chamando-se á re- gência dos cursos, mestres conhecedores da sua arte, muito embora contractados no es- trangeiro, (i)

(i) «Les expositions universelles on pose dans tout sa rigueur, devant le public, la question de l'enseignement pratique du dessin. En presence des peuves éclatantes du concours apporté par cet ensei- gnement á toutes les industries qui exigent un ef- fort de l'imagination et une exécution supérieure, les gouveruements de L'Europe ont compris qu'il fal- lait 1'associer largement á celui des lettres et des sciences.. .Des méthodes techniques ont eté propo- sées á 1'éffet diuitier le plus grand nombre possi- ble d'enfants aux élements du dessin et de Leur met- tre ainsi dans la main un outil précieuxdans quel- que carriére qu'ils abordent. II ne serait pas juste d'attribuer ;i notre temps seu! Ia préoecupation de faire, par 1'habitude du dessin, des mains plusihab-

(is GATOS y>

Desde que o sentimento do bello estivesse na multidão, em via de cultura, veríamos aquella exercer ella mesma sobre as obras d'arte uma vigilância sollicita, e faculdades af- fectivas que haviam d'obstar ao descaminho ,1,. muitos objectos para fora do reino. Veja-se o exemplo de Paris, no Hotel Druot, ha mez e meio, quando a collecção Sécretau disper- sou! Entre as telas d'esse oiuseu havia <> án- gdus, de Millet, scena emotiva, pintada n'uma gamma de tons sombrios e fortes, que o pin- tor vendera em 1867 a M. Feydeau por 1,800

; des v.-.ix pias judieieux. Les corporations, jusqu'á la fin do kviii siéele, enseignaient a les ouvriere le dessin professionel. Le grand siéele wni, aaquel rien n'a ecbappé de ee qui peut former des citoyens, avait cQmprise et agitée cette question .. Léon ,|,. Laborde, dana son rapporl Bur la premiére Esposition universelle de Londres, insista avec éner-

,,- ce point capitel: multiplier l'ins4raction des artisans, entraver les faosses vocations. Cesl toul le contraire de ceque proclame la doctrine académi- que. Dansson livre Union de» arte de Vindustrie, il ecrivatt de fins ta onze siécles de distaoce, U será

une loi qni ordonnera qu' en France, doréna-

vant, tont le monde saura dessíner, comi n 787,

Charlemagnie jetait, á 1'étonnement de ses vastes

/«> (ts CÍÀTOS

francos, que Feydeau vendeu em ISTO a um Pierre Blanc por .'{,000, passando-a este por 5,000 a um certo Vau Pràet, ministro belga, que a vendeu a outro, etc, etc. o Ange- lus apparecer em 1881 na venda Jonh Wilson, por 160,000 francos, e entrar para o Louvre agora, peia quantia inverosímil de 553,000. No leilão Secretan, muitos americanos e iu- giezes vindos expressamente das suas cidades, começaram a picar o quadro, decididos a cin- polgal-o aos naturaes. Por iniciativa d' Antonin Prousí formou-se immediatamente alli, nas

Etats, nu simple décret qui ordonnait qu' a partir de cette dattechacunsutlire. La France de nosjours peut voir avec douleur 1'ignorance de ses enfants dans cette langue naturelle qui est la representatiou iiaturelledes objects. » II conclui á Fenseignement du dessin assimile strictement á celui de l'écriture. Cest en effect ee qui se passe chez un peuple de d'ex- trême Orient que nous traitons cavaliérement de barbare, chez les Japonais.

Tout le monde y sait lire, écrire etdessiner. C est avec le pinceau que les ambassadeura qui nous ont visites récemment prenaient le plus souvent note des objects qui frappaient leur attention.»

/'A. Burty (maitres et petits-maitres)

os GATOS ' i

salas do Hotel, uma sociedade patriótica, que linha por fim rehaver o Angelus para o Lou- vre, não importa a que preço. E essa socie- dade instantânea* nascida d'uma embriaguez (l'arte apenas perceptível em Portugal, arran- cou o Millel das mãos estrangeiras, por um preço archi-doido é certo, mas no meio da mais phrenetica ovação que talvez se tenha feito a uma pintura.

Outra vantagem do uivei esthetico subir, seria, como succede fora, as doações ^obje- ctos d'arte ao Estado, chance de que nós qua- si por completo temos sido privados, e a que mv nmsciis de França e d'Inglaterra devem parte das maravilhas de que se orgulham.

Insistiríamos mais uma vez, sobre a ma- nrii-;, ,|(. recolher os espólios das casas reli- is. \ recolta devia fazer-se estugadamente e porcompleto, não nos conventos fechados, mas em todas ;is easas conventuaes <im> llll,;l teem gente; e fazer-se com methodo, energia, prudência e sagacidade, escolhendo homens acti- vos, novos, e venhamos n'isto não coUecciona- e8. 0 Estado carece d' alijar de si a velhada até gora adstricta a estes serviços de confiança, e que umas vezes por ignorância, por desma-

78 OS GATOS

zello outras, e algumas também por pouco es- crúpulo, tem defraudado o paiz de copiosas obras de valor.

Somos o paiz do general reformado. Á testa de serviços em que se lia mister de braços validos, de caberás claras, e de probidades austeras, não raro é ver paralyticOS a difficul- tarem O expediente, idiotas a exercei' no pessoal pressões intoleráveis, e alipiiladores que por desculpar as próprias rapinancias, abrem bal- cão ás gatunices dos seus subordinados. A contagem do mérito d'um homem, pelos ân- uos de pascigo ás mangedouras do Estado, leva aos cargos opíparos uma frandulagem de Mente, (pie como os burros tem de venerável o orelliame, e unia ou outra vez, a assiduidade.

0 conselheiro Meiicio, espostejado em 77 nas Farpas, pelas ironias terríveis de Rama- lho, acaso deixava então deletrear, na sua in- significância de caguinchas, a nomeação de commissario portuguez na Exposição Univer- sal de 89?

Porque planaltos cortou esta figura, antes de se alar a uma posição de tanta magnitude?

Simplesmente por este a calvicia sobre- pujando esfoutro, a pontualidade.

OS G MOS

K a historia cTaquelle amanuense tísico, que dizia aos collegas rapaces! eu podia ser chefe de repartição, porque estou mhabi- litado.

HL

N'outro ponto viemos sobre o costeio de museus assim organisados, com as suas gran- des compras de eollecções, os seus cathalogos críticos, as suas publicações de livros d'arte, e ;issiin o pessoal adstricto, e as viagens de objectos atravez das escolas industriaes. Cer- tamente que a realisaçâo d'uma tão bella obra custa cara. Mas não pôde o governo fundar uma loteria annual, com prémios <lc dinheiro e obras d'arte, cujo producto convirja todo a questões de bibliotheca e Bellas-Artes ? A ( ommissão Artística da Camará Municipal, por- que não lama hombros á em preza, e vincula ;i sua boa vontade, se alguma tem, a esta grande obra patriótica e alevantada ?

80 os GATOS

Na noite de 15 de julho ultimo, um portu- guez d'apellido Valle disparou no Rio de Ja- neiro um tiro de rewolver contra ;i carruagem «lo imperador Pedro ti, quando este s;ilii;i do theatro SanfAnna, acompanhado pela princeza herdeira e a imperatriz.

o tiro perdeu-se" entre as cabeças da multi- dão que estacionava à porta do theatro, sem raspar chapéu OU muro, nem dar de si outro signa! que não fosse a detonação, a qual nem chegou a ser ouvida por Iodas as pessoas do séquito imperial, incluindo a princeza.

Julgou-se em principio que o regicida fosse um certo Hasslock, redactor d'um jornal re- publicano, homem exaltado, e ao que parece audaz, ti'1 á loucura. .Mas o delegado da policia, Bernardino Pereira, que esfusiou nas ruas do Ria, á mira de capturar o indigitado, ai» topar este, recebeu d'um tal Eduardo Freitas, que acompanhava Hasslock, e passa por amigo particular do conde d'Eu, a denuncia de ter sido Valle o verdadeiro auetor da tentativa.

Preso o assassino e reconhecido, a policia

interroga-o. É um rapaz imberbe quasi, de physionomia inexpressiva, tez desbotada, e

vestiuios d'orgía na figura. Tem mau passado.

os GATOS 81

i' li/.rr dos jornaes Dão poucas vezes re-

correra, para viver, a expedientes. I>i> azedume de aão achar na conducta medíocre que de- seovoivera, a felicidade a que se julgaria com direito, derivou talvez o republicanismo esiul- i<> de que costumava lazer estardalhaço. Na primeira entrevista com o director da policia, <lr. Basson, Valle oega terminantemente que seja elle o andor do crime : em caso contra- rio, até o confessaria com orgulho, pois um tal acto declara Dão faria senão nobilitar pelo martyrio, o republicano que em terras de Brazil o perpetrasse.

Estas declarações desmoronam-se porém, des'que a policia chama a perguntas, pela se- gunda vez, o regicida. E então elle confessa que uni homem, cujo nome não disse, o con- vidara a beber álcool num botequim, travan- do-se entre os dois disputa accesa, no atinen- te .i sinceridade <le convicções anti-monarchi- cas de cada qual : onde o outro declarou ter suspeitas de que em Valle não jogasse a alma heróica (rum verdadeiro filho da republica.

Por aquelle tempo incendia o cognac o olhar do rapazola, que dando murros oa meza, re- forçava esbaforido os seus protestos de febre

«

g$ os GATOS

jacobina, emquauto o interlocutor, por contra- prova, súbito propõe um tiro ue imperador Pedro ii ao que Valle accedeu, esfuriado em obsessões de bêbedo pimpão; Á meia noite, os dois separam-se: é a hora de sahir gente do theatro SanfAnna, a cuja recita o impera- dor fora assistir, .lá 0 cedi»1 imperial aborda o átrio, e a família do monarcha se lhe aco- moda dentro, quando sob o látego do sota, os muares destravam o carro, num arranco enérgico de partida. E foi então que Valle desfechou, sem pontaria, como levando no tiro ,, propósito apenas do estrondo que chama- ria sobre elle as attenções, Eazendo-lhe ganhar a aposta, sem recorrência a derrames de san- gue, que horrorisavam, parece, o seu espirito inconsistente e aparvalhado.

Gomettido o feito, Valle corre atravez as mas da cidade, sem jamais escolher as menos frequentadas, nem procurar disfarcar-se entre os passantes, mas delendo-se ao contrario a cada passo, para mostrar aos conhecidos o rewolver com o cartucho queimado, cujo des- tino elle explica, alegre quasi, aos que se achegam a lhe escutar os dizeres de gabazola.

OS 8ATOS 88

Estamos pois em face «ruiu regicídio pica- resco, que salvaguardada a Ggura venerável do monarcka brazileiro, tem diabólicos visos de sceua encommeudada para emocionar thea* trai mente ;i opinião, o regicida, que i<'in o nome do nosso primeiro actor cómico, é con- vidado á bebedeira por um personagem mys- terioso, imiiii botequim d'alcunka romanesco, Cafte de Londres, ao soai- a hora fatal da meia noite.

Produz-se o tiro, que nem chega ;i ser ou- vido por Iodas as prsso;ts da comitiva impe- rial, não podendo o próprio andor d'elle in- fonnar mesmo se o cartucho estaria embalado, visto como, de carnifice que estava, nnn sequer verificou o estado da arma «pie lhe deram.

Aqui se deita o commissario Bernardino a rabo d'ellc, reforçado d*um capitão que assi-

*

84 OS GATOS

gna Lyrio; e os dois d'esfusiote Lnquerem da gentana das ruas, se acaso o regicida sinistro alli passou.

De grupo em grupo, e esquina nu esquina, vae a lei, de que é manitanço o Bernardino, amparada na forra, que Lyrio exprime pelos seus galões de capitão, seguindo o rastro da fera pelos cheiretes de pólvora que por ven- tura o cano da arma inda trescale (se outro cheiro os não guia, muito mais fedorento e in- dicador); e em tão boa hora caminham, que vão aíocinhar os dois com o amigo particular do conde d'Eu. Trava-se alarde. Bernardino viera a farisear regicidio no republicanismo escamado •rilasslock; Freitas porém salva o amigo da injuria policial, produzindo a denuncia de co- nhecer o sicário authentico . . . por signal que ainda ha bocado vinha a brandir um rewol- ver, rua acima, e ao passar perto dYlle, cs- tendendo-lhe a mão, dissera até :

Matei agora mesmo o imperador, seu Freitas. É extraordinário como um regicidio abre o apetite! .lá viu? . . . Vamos cear.

Ora, n'estas alturas do drama, tudo quanto a effervencia monarchica do amigo particular do genro, ponde fazer em desafronta á mages-

(ts GATOS 85

tade 'l" sogro imperial, foi recusar a offerta da ceia, aão por horror á hediondez do assas- sino que lhe fazia o convite, mas pela razão, mais digestiva do que civica, de ter ceado.

.Mas eil-o que vae depor ao tribunal; e diz um jornal brazileiro do seu depoimento:

«Parece que as revelações d'Eduardo Frei- tas são importantes, e que aão se limitou a dizer o que viu, como também o que sabia dos antecedentes do crime, e dos seus conse- quentes, chegando a declarar o nome da pes- soa a quem Adriano, depois de dados os ti- ros, entregou o rewolver . .

Estranho amigo de príncipes, este Freitas que passeia de noite com os republicanos exaltados, e deixa fugir sem protesto os regi- cidas, para, postado no caminho, os denun- ciar depois aos Lyrios da iropn, e aos Bemar- dinos esbodegados da policia! Estranho amigo

de príncipes, este que pormenores sobre

as conspirações tramadas contra o throno, mas no fim das conspirações terem gorado!

Elle sabe de tudo, conheci' tudo, os antece- dentes do crime, o criminoso, as suas rela- ções, as SUaS ideias, (piem lhe SUggeriu a

tentativa de i te, e quem lhe recebeu a ar-

86 08 catos

ma, depois d'essa tentativa malograda! Ea policia, tão ávida em esquadrinhar de que mansarda robespierriána teria sahido o re- wolver carregado, a policia depois de o ouvir, manda-o em paz, exactamente como faria a um alguazil seu, ensaiado a capricho, n'este papel de tyranno d'entremez. (k)

(k) «... Aqnella bala, disparada muito natural- mente depois da partida do snr. D. Pedro n, muito naturalmente disparada para o ar, serviu entretanto paia eixo de toda a actual comedia. Ella serviu para demonstrar o valor d'essas declarações de gente que se offerece em holocausto á liberdade, e recla- ma o primeiro logar somente quando se trata de fu- gir a uma phantasmagoria d'attaque, ou a um man- dado de prisão. Ella serviu também para que todos os candidatos a baronias ou eommendas escovassem os seus zelos monarchicos e as suas dedicações ao imperador, e envergassem semelhantes vestuários

os GATOS

87

Todos conhecem a situação moral e politica do lim/.il contemporâneo. K' a d'um povo jo- ven, debatendo-se como um pássaro, na estrei- ta gaiola d'um regimen caduco. Os últimos trinta annostransformaram-no. Ks viagens abri- ram aos homens de todas as cathegorias, hori- sontes intérminos e profundos.

A mocidade veio á> escolas da Europa cor- rigir os vicios da nica amollecida pelos ener- vamentos do clima, e pela subserviência an- cestral, herdada em hábitos timidos <i humil- des, d'esses primeiros colonos grosseiros e plebeus que nós pozémos.

De todos os ramos d^ctividade physica e

para a provisão de felicitações com que actualmen- te andam a cumprimentar o snr. D. Pedro u.

Boa comedia! I!'»a e proveitosa para lições !.. que perdure toda essa comedia phantastica de regi- ci<li>> Inspirado em reuniões secreta» ou inventado

pela policia, conform xplicar a voutade de

cada um. Não ha porém razão para fazer uma vi- ctima, para Bervir á curiosidade publica i colo compungente duma creança debatendo-se em plena desgraça, e para maior gáudio de tercein

Pardal Mallet Gazeta de ju-

lho.)

88 OS GATOS

especulativa do commercio, da sciencia, do jornalismo, da politica e da arte tirou o Brazil delegados seus, <|uo envia quotidiana- mente aos certamens de civilisação do velho c novo mundo : e esses homens trazem ás missões ardores insaciados, talentos cálidos, curiosidades vividas e tenazes : e ao voltar ao paiz, encontrando a rotina em cada braço da especialidade professada, motejam-na, inves- tem com ella, e por ultimo esmagain-na. Hoje, essa vasta nação destinada a ser talvez para o mundo, no século xx, o desdobramento d'a- quillo que foi Portugal no século xvi, posto não seja ainda uni compósito uniforme d'ele-

«... Se ao facto em questão applicassemos esto critério e a hermenêutica juridico-penal, seriamos lixados a suppor que o resumido attentado foi obra de encommenda para reavivar a sympathia publica pela causa monarehica e tornar odioso o partido re- publicano.

Esse expediente, notório de uma raça sentimen- talista como a nossa, no seio de um povo generoso e de indole pacifica e branda como o povo brasilei- ro, não deixaria de produzir effeito. ..»

(Quintino Bocayuva O Paiz, artigo «Os dois factos».)

os GATOS 69

mentos progressivos, marcha todavia a passos de gigante para uma renascença de caracter formidável, que ha-de comptetar-se a breve trecho, mercê tios núcleos de civiiisação quo- tidianamente fundados do precurso do império, por esses innovadores que da Europa lhe che- gam, devorados de iodas as sedes de reforma.

A sua sciencia repete as experiências e con- firma as leis nos grandes laboratórios da Fran- ca e d'Allemanha. V agricultura restaurasse, amplia-se o commercio ; o capitai abre fontes de credito, inexhauriveis, em lodos os manan- eiaes sterlinos da Europa e da America do Norte, d'onde jorram as grandes emprezas d'industria, viação e alta finança. .Nascem as ar- tes: a litteratura balbucia e tenta adaptar-se ás formulas scientiflcas em voga, tendo na frente uma poesia, que aparte a ingleza, é a mais vehemente e a mais lyrica do mundo.

Porta-trombeta d'esta era nova que se res- pira já por grande numero de cidades liia/.i-

leiras, o jornalismo transmuta-se, revestindo a feição d'um grande campo de torneios, onde os campeões vem luminosamente justar pelos ideaes de liberdade, de pátria e de justiça. E

sempre que algum patriota, 0 imperador in-

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cluido, eircumvaga os olhos á procura d'um canto de terra, cuja felicidade aspirai' para o Brazil, esse canto evocado por cada brazilei- ro, em horas d'extasi, esse paiz modelo é sem- pre o mesmo, os Estados-Unidos, com a mes- ma forma de governo, o mesmo systhema rápido e efficaz de colonisação, e o mesmo aspecto de forra robusta e de consciência inex- pugnável. .V hora presente, quasi se pôde di- zer que ha no Brazil, entre os homens d'acção, um único monarohieo, o imperador, e esse por deveres de profissão, jamais por fé. No dia da sua morte, a realeza, cuja actual manuten- ção é uo Brazil simplesmente o acto de defe- rência d um povo meigo ás caturrices dum ve- lho philosopho bondoso, a realeza liquidará em S. Christovam (!), vindo o d'Orleans agio-

(l) «... A situação presente e a impopularidade do príncipe consorte, fazem-nos presentir que a ter- ceira monarchia brazileira não tardará a vèr repro- duzido em si o drama terrível de epie foi theatro a França, durante e depois do reinado de Luiz \vt. Que Deus inspire <> imperador e sua santa esposa, fazendo-lhes entrever toda9 as tristezas, todas as amarguras e todas as afflicções que parecem amea- çal-os n'iniia epocha próxima!... Que os bomens

(is GATOS

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lár i>r';i junto do seu primo o colide de Paris, o que talvez <> faça mais sympathico ;'i clien-

lella.

A abolição total da escravatura, eom que a regente cuidava de sustar por longo tempo ain- da, a invasão da ideia democrática; aabolição não fez senão subir <> nível revolucionário, por- que á iiiuii não recrutou complacências no parti- do republicano, b á outra desviou da coroa os fazendeiros, classe poderosa, privada por aquel- I,. decreto dos serviços gratuitos de oitocentos mil trabalhadores, e não indemnisada ao de- pois, como pretendia, dos capitães fabulosos que o mesmo decreto lhe arrancou. Emquanto Pedro II andava por fora do im-

politicoe resgatem os seus erros, e qne o sen amor ao poder desappareça perante a paixão do intei nacional, e o devotamente á grandeza da pátria.. .1 zeta da Tarde, do Rio). kA Republica Federativa Brasileira será porque deve ser. Toda ;i solução do problema Be acha cir- cumsoripta pela rida <l" soberano actual. Se l». Pe- dro n entrevê os acontecimentos bumanoa i»'l" prisma da intuição philoeophica que lhe atribuem, elle será o primeiro, como ftiho da pátria, a applau-

92 OS GATOS

perio, os republicanos do Brazil, cuidando que elle voltasse á pátria, embalsamado, preci- pitaram por tal forma ò movimento insurrecto, que se chegou a temer pela segurança do Es- tado. Tuia campanha intelligentemente condu- zida, por homens que desmentindo a indolên- cia lendária da terra, entrecruzavam por todos os focos da vida civica e rural, a sua ivde te- naz de propaganda, fazendo apostolagens nos clubs e nas praças, nas fazendas e nas esco- las, afizera o espirito ardente da joven nacio- nalidade a dizer alto as suas angustias e os seus sonhos, sem receio ás revindictas dym- oasticas, impotentes de resto a amordaçal-a. A ponto foi que os adeptos do turbilhão

dir do fundo da sua consciência, este despertar vi- ril do povo generoso e grande que o protegeu quan- do elle ci-a orphão, e que no decorrer da sua longa vida, soube sempre testemunhar-lhe affeição e res- peíto, apesar dos erros da sua politica, e dos maus resultados da instituição fatal que elle representa.» (Q. Bogayuva Ao partido republicano brasilei- ro, manifesto que se bem nos recorda, termina con- vocando para .'50 d'agOSto um grande congresso fe- deral republicano, na província de .Minas Geraes).

os GATOS

!U

revolucionário, centuplicaram de numero e d'exaspero, graças á eloquência fogosa, barba- ra, e um pouco emphatica, de cabecilhas como Silva Jardim, Quintino Bocayuva, Lopes Tro- vão, José do Patrocínio, etc.

A propaganda foi Iam rápida, enérgica e fulgurante, que a breve trecho núcleos de sub- versão romperam a harmonia factícia do im- pério, quer pelos campos, quer pelas cidades intellectuaes e commerciantes, fecundados pe- los apóstolos videntes que dissemos ; sendo ne- cessário que as auctoridades viessem reprimir a eflervescencia dos ânimos, prohibindo comi- cios, mettendo era processo jornaes e jorna- listas, e ate valendo-se da forca armada muitas vezes.

Desde que a realeza é pois no Brazil uma agonia, o papel dos seus médicos -em espe- rança, e dos seus lacaios -em esteio moral, consistirá simplesmente cm transigir com «> partido forte, revestindo a covardia <\<> acto

94 os GATOS

em europeis de cerimonial dymnastico, que nem sequer darão ao Estado um exterior da antiga galhardia.

partido republicano escrevera no seu programma a abolição total da escravatura: veio a princeza e enfeitou com cila a sua re- gência ! A restauração agrícola era egualmen- le uni dos grandes problemas que a democra- cia se propunha resolver: e o gabinete Affonso Celso corre a empolgal-o !

Para inutilisar os galgões da onda revolu- cionaria, o governo imperial que uão pôde impòr-lhe diques d'ideias, manda ao seu en- contro os esquadrões e vem os conílictos de Bagé, de Jundiahy, d'Itabapoana, de S. Paulo e de .Minas (ieraes encarrega a calumnia de morder no calcanhar dos vencedores: e vem a comedia do regicídio, á saliida do (healro de SanfAnna.

Por mais que tenha feito ;t critica do Rio, para varrei- da hombridade do actual ministé- rio a suspeita (Testa tareada regicida, sempre ,-i opinião eonverge teimosamente a ella, por encontrar porto bloqueado a qualquer outra hypothese plausível, .lámais alguém pensou no Brazil em attribuir o tiro d' Adriano do Vallea

os GATOS 95

suggestòes republicanas. A democracia brazn leira bate de frente, sem recorrer como a nos- sa, a chicanas, nem como a bespanhola, a liau- ditismos. (»0

Ninguém pensa tão pouco em explicar o tiro pela impulsão d'um degenerado e d'um maníaco. Ninguém o explica por determinação expontânea d'um arrebatado, filha d'um exas- pero d'ideias de natureza politica ou philoso- phica. E aquelle desconhecido que cognac antes de suggerir a tentativa de morte ao ra- pazola. . aquelle conde d'Eu que faz postar denunciantes no caminho <l<>s Bernardinos e dos Ly rios... a teimosia «la policia em tor- oar o assassínio cúmplice d'uma conspiração republicana... todos estes episódios convém

.. . Seja qual IV» r a intensidade e a maivlia erada da propaganda republicana, essa propa- ganda visa um ideal politico e não se apoia senão em princípios.

Na presumpção de interpretar os sentimentos do partido politico que tenho a honra de represen- tar, e fallando com a auetoridade que decorre do mandato de que me acho investido, pi curar

que na propaganda do partido republicano não en- ►mo elemento, nem isto seria tolerado, o desi-

96 OS GATOS

gem diabolicamente a creditar a existência d'uma pantomima ministro-policial, mal cons- truída em verdade, e ainda peormente execu- ta.la.

Logo em seguida ao attentado, o imperador foi alvo d'ovações que se repetiram, no dia seguinte e nos mais, por banda de Iodas as colónias e coílectividades particulares e publi- cas do império. Pedro 11 correspondia aos tes- temunhos d'apreço com a sua habitual simple- /a de grande velho conhecedor da giria dos homens, contrafeita no intimo por servir de joguete a estes passes forains do seu governo. A frieza que elle apparentou desde a primeira hora do crime, significa não lauto o desprezo da vida, como o das illusorias festanças com

gnio de qualquer injuria ou offensa, moral ou ma- terial, quer ao chefe do estado, quer ás pessoas da sua família.

N'esta hirta incessante da politica, forte pelo sen direito e pelas nobres qualidades que o impul- sam, o partido republicano pôde, como tantos ou- tros partidos em tantos diversos paizes, chegar até ao extremo da revolução; mas não chegará nunca até manchar-se com a ignominia, nem a deshon- rar-se pelo desígnio de um crime.

OS GATOS 97

que os ministros publicamente !li<' detraem ;i magestade luminosíssima dos trabalhos e dos annos.

Teve, como monarcha, uma palavra que rescende ligeiramente aos deveres scenogra- phicos »la sua profissão, e que alvitraríamos lhe houvesse sido aconselhada, se não fora sabida a sua austeridade. Foi quando, chegado a palácio, depois da scena do tiro, rende graças por ter sido um estrangeiro, que não um filho Ao Brazil, o auetor do attentado.

Esta phrase, repetida pelo commissario de policia, imiiii officio ao paiz, e pelo presidente <}n conselho depois, ao plenipotenciário argen- tino, lembra um mot-cPordre de despeito ou

A violência nunca fundou Dada que fosse per- dnravel. O crime nunca serviu, nem servirá de base para sobre ''li'1 assei iiarem-se as fundações de ne- nhuma obra ><>li'ia e correcta.

Victimar um homem não importa suffocar uma idéa <»n destruir uma instituição.

as e;ui>;i> vencidas s os partidos desalenta- dos podem recorrer, na cegueira do desespero, a taes expedientes «•ondemnaveis...»

(Q. Bocayuva, artigo Vou» Factos, no Paiz).

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revindicta, injustamente vibrado á mais activa, á mais intelligente e á mais prestante socie- dade colonisadora do Brazil, a portugueza. (n) Resabe vagamente á assafoetida d'uma inju- ria, que enausea, mesmo quando á face da critica, nem sequer represente a digestão d'um dispauterio. As grandes virtudes que exalçam o caracter d'um homem, podem muitas mv.cs ser o reflexo das qualidades d'um povo; mas

(n) «... Primeiro que tudo, esse rapaz não é propriamente estrangeiro, no sentido em que essa qualidade podia servir de argumento para tirar va- lor á tentativa. Veiu para o Brazil com 8 annos e hoje tem 20; aqui se formou o seu espirito, e o que sabe aqui o aprendeu; se alguma politica pude in- fluir sobre o seu espirito— e todos os que o conhe- cem dizem que elle nunca cogitou d'isso— é a poli- tica desta terra, a unira que elle talvez conheça; e que a conhece pouco, prova-o o facto de pensar que pôde ser applaudido por alguém sendo grosseiro com o Imperador, ou que podia ser agradável a al- gum partido, deitando uma larga nódoa de sangue em uma propaganda que tem sido sempre feita no terreno pacifico das idéas...»

(Gazeta de Noticias, do Rio).

nv ,,\ ros 99

raro é que os malandros isolados refranjam ou- tra coisa que Qão seja a maldade, fermentada pelo meio moral em que elles vivem, ou a lou- cura, que iicin sequer às vezes tem família, quanto mais ter casta ou nacionalidade !

o conde de Mathosinhos, partido da sua aldeia com um sacco de roupa e um chapéu braguez, chegando á riqueza pela perseveran- ça do seu esforço heróico e immaculado, e constituindo-se espécie de rei pastor (ruma grande tribu d'obreiros incansáveis em pro- curador <lc lodos os desvalidos, sem discre- pância de sei- ou de iiarào ; Ramalho Ortigão e Eduardo Lemos, vindo pela Europa, até á Rússia, abrir mercados para os prod.uctos agrícolas do império, e installando a'um pa- lácio magnifico o Qubineti Portuguez de Leitura, a maior bibliotheca actual do Rio de .Iam iro: o liarão do Alio Mearim, Martins do Pinho, fun- dando e subsidiando " Liceu L/ftcrario Por- tugue^ onde se faculta a instrucçãoa lodos os indivíduos que a reclamem ; António de Mello,

o erudito r tino llielanr||olir<i, enlrelcildo com

Camillo polemicas litterarias do mais puro la- vor; e como estes, duzentos mil portugueze . do -"ii caracter ou do seu quilate, collabo-

*

IDO OSCATitS

rando infatigavelmente, com a honra mais al- h), em prol da civilisação norte-americana ris quem pôde dar ao Brazil a imagem da alma portugueza, de que a brazileira hoje exhala, orgulho nosso, o mais divino quinhão da sua essência ! Quanto a Adriano do Valle, não si- gnifica nem coisa nenhuma, alem do exem- plo triste do que pôde uma cabeça irara ao serviço d'uma politica dissoluta.

Numa coisa somente os ensaiadores da comedia foram babeis: a escolha do lyranno! Esse paiz que tem no capoeira o assassino ideal, scientifico, inverosimil, que abre ven- tres a um tanto, sem perguntar o nome se- quer de quem lhe paga, mais uma vez repul- sou a industria nacional, neste ramo perfeita, ,i beneficio (rum titere de fora, assegurando assim (pie a scena trágica não passaria duma bufona imitação. Resta saber se na guerra que as auctoridades fluminenses movem contra Adriano, não irá mais do que o luxo empba- tico d uma pavorosa politica que rendeu pro- moções e veneras, sobre distanciar o dMliieaus cada vez mais, do sólio imperial. É natural que os capoeiras despeitados da preferencia dada a um estrangeiro, em matéria de serviço

o-. GATOS

official, busquem aziumar contra eUe a obses- são dos magistrados, desforrando do inerme a desconsideração vibrada á classe d'aquelles ;ili;i/ inimitáveis extirpadores.

Esta tragedia brazilica me põe de queixos, meu senhor e rei de Portugal, a cogitar na forma porque V. M. tem comprehendido até o pesado encargo de reinar. A.té ao dia 15 de julho ainda havia no mundo dois mo- narchas immunes para as tentativas d'assassi- nato V. M. e seu ii<> Pedro. Para qualquer < !( is dois, ;i situação era deprimente, um pou- cochinho. Reis 'i1"' ";m gramam chumbadas do povo são como ;i> cigarreiras que nãoapa-

uli; cascudos dos amantes, umas lesmas a

cuja existência se perdeu <> interesse. Emtanto ;i desdita de VV. MM. ia tendo conforto no próprio seio familial V. M. consolando-se de lhe não furarem ;^ costellas, na immunidade ilr seu li" imperador ; este, illudindo as suas bazoíias <\>- grande rei, c ;i integridade das

[02 OS GATOS

costellas de V. M. Uma tal miragem acaba porem, senhor, d' evaporar-se. I). Pedro n tem a sua ameixa para a Historia: por signa] que o caroço nunca appareceu! E ahi está V. .M. agora sosinho a carregar com a ignominia de nunca hiaver despertado ódio a ninguém. Desde Alexandre da Rússia até Kalakana de Sandwich, iodos os monarchas contemporâ- neos hão bemerecido do povo, inequivocos tes- temunhos d»1 respeito e d'afiecto, sol» a forma de minas de dynamiir e de balazios M. V., moita ! É indecente.

Perspicaz (-orno é, e delirando talvez por cahir cm graça aos vindouros, mediante uma façanha diversa da dom-juansextite chronica da sua família, V. M. haverá predito a urgência d'apropinquar á sua real pessoa uma tentativa- sinha de regicídio, não digo das grandes, mas attinente emlim ás suas posses. Porque ás transformações d'este tempo, nem escapam íris nem patriarchas ; e se é certo que uns e outros estejam dispensados d»' fazer as gran- des guerras e de pregar as grandes cruzadas, não pelo duvidoso tenho a instancia de cada qual aproveitar a occasião de se fazer temido, e sobrelevar ao vulgacho, por uma altiva bra-

os GATOS 103

\ uri ante os perigos inda que sejam apocri- phos, como <»s do tio de V. M.

Pintar <> gosto que todos teríamos, ven- do V. M. emparceirar na escala do martyrio, com outi - collegas, grous coroados,

graças á ferocidade d'um sicário, é coisa que não pôde o colorido exangue d'esta penna, afeita a chronicar discursos arroyanos, e a aluar epitaphio ás artes fuschinisadas por es- ses saguões - jardins-publicos iv paços conse- Ihios. Mas calcularia V. mercê 0 are.» de tal jubilo, meu senhor, abiscoitando uma ovação- sinha galopinada pelo rapaz, e então me- dindo a toda a grandeza histórica, a vergo- nha de que libertava a monarchia, caso uma inoffensiva bomba de dynamite viesse a re- bentai- aos pés mais que tudo Raphaeis Gabrieis d' Assis Gonzagas, etc, de V. M. !

104 OS GATOS

Sobrevenho portanto, meu rei e padre, com patrióticas instancias, a que V. M. se deixe chumbar seja por que buraco fôr. Ah, senhor meu, que rica coisa é um monarcha que procura dar lustre ao seu reinado, vindo ã estacada caçar lauréis e palmas, sem outra defeza contra as jugatas da turba, além d'uma inoffensiva camisola de flanella! No tocante a armamentos, é singular que emquanto as ma- chinas de guerra vão complicando a ferocida- de das nações, e enfreando a sciencia ao ser- viço da hecatombe, esteja a armadura dos guerreiros reduzida ás formas simples da ca- misa Jagger, dos suspensórios 1'ivei, e (ias meias de borracha contra as varises das per- nas. Denuncia islo que a coragem do homem leni crescido, pois que elle dispensa o aço de lhe proteger o cavername, e que V. M. evi- tando dar motivo de zanga aos seus vassallos, pelo receio pessoal (ruma agressão, baixa por esie facto escandalosamente do uivei épico aonde os reis devem moslrar-se, como em obeliscos de gloria, para as ovações triumphaes da posteridade. E islo me peza, senhor, que possuindo V. mercê todos os attributOS (rum grande e illustre rei, de bravura esteja mal

os GATOS 105

servidOj a ponto de sujai- as ceroulas mal lhe dizem que foi um camarada seu espingar- deado. (o) Está puis V. M. um monarcha aceado ! Pôde limpai' as ceroulas á parede !

Veja o imperador l>. Pedro, seu tio, que o Dia pintou tomando d'assalto a fortale- za d'Uruguayana, de chapéu desabado, e ruja fria coragem o mesmo jornal assinala, con- tando que ao ealiir ao mar, perto do raes, a primeira coisa que fez foi descalçar as botas —que homem! e a segunda recusar o capi- lé momo que lhe offereciam, á guiza de cal- mante. Ta-- rasgos habilitariam por si sós, epicamente, o Mo Pedro a um bronze he- róico na Tijuca, quanto mais o saber-se com que temeridade carlovingia elle levou a cabo

eu papel de naufrago, afastando o escal- dão de pés prescripto pelos médicos, e appa-

iido em piugas á corte, que ao som d" coro d'aventureiros <l> Guarany, se propunha vasar-lhe copinhos de cognac.

o monarcha brazileiro lhe vem delineando

Marquez d'Alvito: el-rei d. luiz na inti- midam, pag. I í.

106 os (JATOS

pois, meu senhor e rei, o curso de heroe que V. M. terá de frequentar antes de constituir a

sua preciosa pelle em alvo á pontaria dos algo- zes» É abrir matricula nas aulas de martyrio ! Imitar o outro. Ir por exemplo de coroa des- abada conquistar o forte de Caxias, façanha commoda, alli tão perlo do paço, e com ch«r- á-banes Ires vezes ao dia. Cahir ao mar, como o senhor D. Pedro, inda que tirando as babu- chas, o povo lhe lobrigue por baixo, piugas de cautchouc Oh meu senhor! fosse eu rei, e ■diabos me levem se não tinha nomeado re- gicida da minha real camará (sem perda de direitos para o dr. .May figueira) o faccinora mais catita, da Penitenciaria. A realeza carece de sagrar-se no espirito da turba, pela espé- cie d'aureola que põe n'um homem a realisa- ção d um acto extraordinário. Por GOnsequen- cia faca V. M. com que o escadeirem. Não abrenuncie, por Deus, esta proposta., gritando que se renta para os Meputas que lh'a alvi- tram. A Razão d'Estado antes de tudo. É o barbadão de Veiros que lhe acena. 1). João Y! pie do tumulo lhe diz: dei.xa-ie chumbar, Lúlúsinho.

Porque emfim V. M. não tem agora tão

tis GATOS

grandes coisas do sen reinado que possa pres- cindir assim dum regicidio. A nota <!<> ódio é : ío aecessaria ao prestigio da sua coroa, como a mota de vinte mil reis. Mesmo, n'essa dymnas- tia de frustes que vae de 1>. Joào iv a D. João vi. Dão apparece um anico rei com a bonho- mia parrana de V. .M. D. João rv era um polirão, mas emfim tinha a mulher. D. João v, um femeeiro, mas propulsou as artes do luxo a um explendor requintado e extraordl- n irio. A Affonso vi faltava aquillo que Brown- Secquard anda a restaurar uas regiões infra-um- bilicaes dos homens velhos : emtanto elle con- seguiu gastar a enclausura de Cintra, primeiro que a prisão <> gastasse a elle.

E convenho mesmo que l>. José fosse um maricas, que andava sempre a tasqui- nhar barrigas de freira : mas, meu senhor, o lemos em broDze do Terreiro do Paço, porque teve a habilidade de arranjar um ter- ramoto authentico, um ministro enérgico, e uma tentativa de regicidio menos mal engeró- cada.

N'este carnaval de Braganças, é poisV. St. o único que intenta penetrar os humbraes da Historia, sem bagagem— apenas coma sua tra-

108 OS GATOS

duçãosinha do JEfomtef, a greve dos chapellei- ros, e sr. José Luciano preso por uma cor- rente ao realejo constitucional onde ha vinte e seis annos V. M. móe a sua própria marcha fúnebre. Ah, que pobreza de feitos históricos ! que suppressão de vícios e manias! que au- sência de vultos glorificadores da sua gover- nação!... V. M. não tem a sen lado Luizas de Gusmão; o luxo da sua corte infere-se pe- las equipagens do sr. ex-conde de Mesqúitella e pelas toilettes do .sr. Teixeira Lacrau ; V. M. está como D. Affonso vi, e ainda não de- liu que eu saiba, prisão nenhuma; e tendo por barrigas de freira a glotoneria de l>. José, llão leve ainda, nano elle, as compensações do terramoto, do ministro, ou da tentativa de regicídio. Como ha-de o reinado de V. .M. fazei' fumo, se ninguém contra elle Inda fez fogo? E a decadência!... antigamente emigra- vam do paiz caixeiros de lenda, cavadores do campo, e uma ou oulra aclrizita da Trindade. Agora, até os regicidas.,, uns desgraçados que a casa real deixa inaclivos (pouca vergo- nha!) e que pia ganharem a vida, teem d'ir trabalhar para o Brazil.

Recapitulo : V. M. tem tudo a ganhar em

OS GATOS

III!)

ser assassinado. Mecha os pausinhos p'ra isso, despache-se ! Digne-se verter o seu sangue^ antes que a Historia, julgando-o, sollicite a posteridade a verter aguas.

Convenhamos porem, que apesar do meu dito, eu não fujo a reconhecer em V. M. al- gumas preciosíssimas qualidades * 1 * ^ reinante. E comigo o povo, real senhor. quanto a isso, em vefdade, muito obrigados lh'estamos. por Dem da pátria, V. M. traduziu tão mal Shakespeare, que esfriou em nós o felichismo pelas obras primas estrangeiras subtil ma- aeira esta de V. M. reconduzir o gosto á ex- clusiva adoração das nacionaes ! e este bello exemplo, se Dão vate o das pingas de seu tio Pedro, reveste pelo menos uma flamancia d'a- inor pátrio, digna d'intervir nos desdéns anti-

MO OS GATOS

Lusitanos do venddo da vida Ramalho Ortigão. Mas meu senhor, se o cultivo infeliz das bel- las-lettras inhabilitasse os monarchas para as ameixas dos sicários, estaria o imperador do Brazil mais que nenhum outro livre e isempto de taes fructos, em razão das esquirolas poéti- cas i[iui intermitentemente exgrega pr'as ga- zetas: e viu V. M. Como Adriano lhe aliníou com um, sem grandemente acatar a sonetaria imperial !

Sc Quincey rimou as excellencias do assas- sinato como obra d'arte, V. M., assíduo inter- prete da poesia trágica d'Alem-Mancha, podia liem trazer a vernáculo este poema, preambu- lando-o (Fuma falia em que enaltecesse o re- gicídio como obra de politica. Era trabalho onde o meu rei despejaria a contento geral as asneiras que lhe tivessem sobrado dos seus outros trabalhos litterarios, c que podia sug- gerir talvez ao snr. Gualdino Comes, por via do rancor plumitivo, o tirasio que V. Al. ja- mais pechinchará do snr. Consiglieri Pedroso, mercê do jacobino.

Oh meu senhor, habilite-se ! Uma reles bomba que seja. Para o effeito moral até um buscapés seria bastante. Não faça caso das

os GATOS

I I

l recauções da medicina, venha á cidade re- pontar c'o povinho, chamar-nós typos, dar canelões nas nossas mulheres fazer emfim pelo tirasio emquanto é tempo. N'estas coisas de martyrio, a primeira abordagem custa um pouco. Que transtorno faria a V. M. um balasio, sabendo a ovação que abichava fl»1- pois de morto?

Ah, que vida monótona tem sido ;i de \ . M. . . . jantarinhos de canja magra no quarto, violoncello quando vão artistas de S. Carlos, e como hors-d'(Buvre, a pouca vergonhasinha extra-matrimonial ás quintas-feiras ! ... V. M. carece de sahir quanto anteá d'essa apathia. Iin brazileiro, senhor, não usufrue maior ri- panso, do que o meu rei sentado n'esse throno, ,, com a marrafa a dividir-lhe o craneo em duas metades parallellamente encarquilhadas. E quando os republicanos cuspirem á face de v. \|. os •>v»|> contos da sua dotação, como ha-de V. M. justificar essa maquia auferida dos erários, não tendo feito no decurso d'um anno, outra coisa que não seja abrir e fechar cortes, levar salvas a bordo, e tapar e desta- par ladrões e tolos, consoante a matula dos gabinetes que governam?

I 1 '1 OS GATOS

Com o tirasio era outro aceio. Pela tenta- tiva de regicídio, disse Guizot, a inoffensivi- dade dos reis cola-se á veneração dos povos, como um rabotalho de trampa á barriga d'um macaco: e os povos tanto esgatanham n'essa veneração, que acabam por abrir-se o ventre, Sem que a mistella de saia e deixe de feder.

Se por consequência, V. \\. está resolvido a acceitar o alvitre da sua próxima eliminação, porvia Lefaucheux, e Dão achar sicário idóneo que lhe expeça um balasio aos quartos poste- riores, d'aqui me offereço eu com toda a leal- dade, certo de que V. M. não haverá que di- zer do trabalhinho.

De mais, V. M. me conhece. Ora se não!... Eu era um que estava de chapéu de coco, n'um dos bancos do Aterro, haverá seis annos, uma tarde que V. M. passou de lunetas fumadas, for signa! que até lhe mostrei o Diário de Noticias. . .

Tenho vinte e cinco annos d'idade, lindo talhe de lettra, e des'que me metteram o ler e o escrever no corpo, ando mesmo hydrophobo por espatifar um desavergonhado. Gontracte-me, senhor ! lia em mim um sicário á altura da im- portância européa de V. M. E garantias! fui

os GATOS | l.í

eu que atirei a bomba ás janeilas do rei do Porto, GSorreia de Barros, de combinação com elle mesmo. Sou portanto um regicida com pratica ua província, um regicida em segunda mão, bem conservado, e podendo mostrar abonacões como o primeiro, .luro que não fa- rei questão <lc preço. Somente, como apesar do meu ódio, eu nfio quero que V. Al. morra, porque emfim podia vir outro peor, combina-

re s ;i conspirata por forma que eila revista

todas ;is apparencias de seria, sem todavia deixar d'abexigar-se por dentro, com todas as inoffensividades de jocosa. Eu lenho i,i em casa um rewolver de uickel, muito lindo, e que é por signal de cautchauc, onde, nos meus intervallos <!»• faccinora, uso guardar pi- cado de Kentuky. Se acordarmos em intrujar ;• Europa com a comediasinha d'onde \ . M. ha-de sahir ovante e lieróicisado, pôde combi- nar-se a coisa para <>< começos do inverno, uma noite, ao acaba? do lheatro. . . Eu ponho um estalo d*entrudo uo gatilho da arma ; V. Al. mette oa bocca um zagalote; e quando, s,,l» um jorro eléctrico, pozer o no estribo da

carruagem, eu de meu lado— pif! paf! <;

deito a fugir, ermraanto V, Al. cal i os bra-

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144

os GATOS

cos dos seus officiaes, não sem primeiro en- tornar sobre a camisa um frasquinho de tinta carmezi.

Attenta a eòr da tinta, e o fado de V. M. cuspir a bala no delíquio, os médicos não se recusarão, creio eu, a jurar sobre <>s Evange- lhos, que V. M. foi ferido... Emtanto, n'este tão fácil plano, um temor me alanceia :

Com a bravura que todos lheconhecem, V. M. é capaz de morrer de susto, mesmo tendo a certeza de não ler morrido <!<> tiro.

31 d'agosto i!e 1889.

OS GATOS

FIALHO JVALMEIDA

OS GATOS

PUBLICADA» ) MENSAL, D'INQUERITO Á VIDA PORTUGUEZA

PORTO (\^.\ Editora Alcino Aranha & C

llim ilo Bomjarditn, 96

FILIAL EM LISBOA

75, llua dos lie.li ozeiros, 7.~>

PORTO Typ. da Empreza Litteraria e Typographica

178, Rua de D. Pedro, 184

SUMMARIO

0 VIOLINISTA SÉRGIO N'UM CAFFÉ DA MOURARIA - O SEU TYPO, O SEU JOGO B O SEI' BUMOR— ASPECTO DO BOTEQUIM

MUSICA AUDITIVA E MUSICA «VISUAL»: A SYMPHONIA HERÓICA, A DAMNAÇÃO DO FAUSTO, E O QUINTETO DE MENDELSSOHN

A RECEPTIVIDADE PARA A MUSICA É UM CAsu DE MOMENTO A HORA DE GLUECK, A HORA DE WAGNER, A HORA DE BEETHOVEN, E A HORA D'OFFEMBACH

O ARCEBISPO DE PERCA RESTABELECE MIRACULOSAMENTE A TIRAGEM INTESTI- NAL DO GENERAL VALLADAS, GRAÇAS AO is<> DE BEMI-CUPIOS MUSICAES ÉVORA JUBILOSA POB ESTE PRODÍGIO DO PRÍN- CIPE DA [GREJA, NUNES MUSICAS IN- COMPREHENDIDAS A ÁRIA DAS JÓIAS, A SUA tNTENÇÂO, A SUA ALMA, E OS CAMBIANTES DA SUA INTERPRETAÇÃO NO THEATRO POR CAUSA DA MUSICA VI- SIONANTE DESCOBRE-SE A POUCA VERGO- NHA IiVm CARREJÂO— PARA QUE SERVE

VI

A SERENATA DO FAUSTO, NOS CAFFÉS DE FADISTAS— 1DYLLIO RÚSTICO —SÉRGIO, MEPHISTOPHELES NA RUA: QUEM ME UMA TERCEIRA. VISTA, OU OS ÓCULOS VERDES DE BOCCACIO ? INTERVÉM O DIABO QUANDO ELLES SE RESOLVEM A PROCRE AR APONTAMENTOS PARA A HIS- TORIA DAS NÁDEGAS DO REI NOVO O «REPÓRTER», LOJA DE FRESSURA AS MULHERES DEVEM FUMAR?— MORTE DE S. M. O REI LUIZ MYSTERIOS QUANTO Á DIVULGAÇÃO DA DOENÇA ÚLTIMOS DIAS NO PAÇO DE CASCAES AS LAGRI- MAS D'0PFICI0 SÃO CUSPO MAL POSTO— SYXTIIETISA-SE O REINADO TRANSACTO O REI GUARDA-MARINHA E O REI ES- TUDIOSO: O SEU SYSTEMA DE CORRUPÇÃO E A SUA SUPERIORIDADE MORAL SOBRE OS DEMAIS OS CÃES DO BOM JESUS DE BRAGA E 0 SR. MINISTRO DA FAZENDA O REI FAZ-SF PODER OCCULTO DE TODAS AS SITUAÇÕES O ESTADO FOI ELLE REI PODER MODERADOR, REI ACADEMIA REAL DAS SCIENCIAS, E REI EXPOSIÇÃO DE SAPATOS I)'OURELLO NA AVENIDA O DITO DO VELHO SAMPAIO O QUE É O

VI]

PARLAMENTARISMO NOS PAIZES CREADOS \ CACETE - CONTRADICÇ lo ENTRE OS NOSSOS DISCURSOS E OS NOSSOS ACTOS MISÉRIA I". CRÁPULA DO PAIZ —AS ES- COLAS BUPERIORES TRANSPORMAM-SE EM OFFICINAS D^NGENHEIROS E BACHA- RÉIS NEGOCIÁVEIS —O AGIOTA ,0 FAL- LADHR K o VRTIClOLElRO , CONSIDERA- DOS OS TRÊS RATAS DA SITUAÇÃO POLI- TIC V ACTUAL 'Tl, MIN LNC1 \ SOCIAL DO AGIOTA : QUEM N LO Ê D< i BURNAY, Ê DO FÓZ; QUEM NÃO É I»1» HERSENT, !:: DO BARTISSOL AS GORGETAS POUR LA REUSSITE DE L'AFFAIRE DELIQUES-

< IA D \ VEDA PORTUGUEZ \. NOS SEUS DUM. ms LSPECTO - D \ CONS 3IENC1 \ E DA MORAL DESPREZO PUBLICO POR TODOS

COMMENSAES DA ORGIA POLITICA OS QUE SE DESPEDEM, COMO VICENTE MONTEIRO E CONSIGLIERI, SÃO APUPADOS PAPEL POLITICO DO REI: A SUA tNTEL- LIGENCJ \. A se \ ESPERTEZ L, \ SUA M \- NEIRA DE C LPTAR PERFIL D \ H \INIIA PIA, E SU \ M LR LVILHOS L [NTUIÇÃO D \ M LGESTADE MODERN \ EM 19 DE M LIO MARIA PI \ E FONTES FOR LM OS UNI

VIII

COS MESTRES B AMIGOS DO REI —PORTU- GAL GOVERNADO PELAS ESPOSAS E FI- LHAS DOS MINISTROS UM CONSELHO DISTADO MEMORÁVEL— AJTN AL D. LUIZ

FOI BOM OU MAU? APOLOGO DA CAIXA DE MUSICA NA CAIXA DE CHARUTOS O QUE FICA D'ESSES 28 ANNOS DE REINADO O REI NOVO O PRÉSTITO FÚNEBRE NA ESTRADA DE CASCAES A LISBOA, SOB A NOITE A Cl I E( 1 A DA AOS JERONYMOS : ASPECTO DO TEMPLO— O TRUC DA CAU- DA — CONCLUSÃO.

3|

5( rgio, primeiro violoncello de S. Carlos,

[ar concertos todas as noites a um café

de fadistas da ma Fernandes da Fonseca, an-

Carreirinha do Soccorro, mesmo defronte

da caixa do Príncipe Real.

É d'estes raros artistas, irregulares por herança mórbida, que passam a vida a cortar as amarras que prendel-os possam a todas e quaesquer conveniências da vida social, e cuja acuidade esthetica se afusa na proporção da ausência do senso moral, que dir-se-hia con- trariar-lhes as rêveries do seu mundo interior. de povo, alto, secco, avermelhado d*al- cool, e com uma pequena cabeça de sargento velho d'opera cómica, Sérgio é o typo d'< decilitreiros que monologam de noite pelas

2

K) os GATOS

ruas, ás esquinas ladeirentas, às portas das

escadas, diante dos monumentos e dOS carta- zes, pondo uma silhouette hoffmanica na bana- lidade do fora de horas de Lisboa.

Jamais, na sua vida de violoncellista raro, ora sollicitada pelas deferências dos convictos admiradores da sua arcada, ora pela blandicia d'esses parvenus que querem tirar da convi- vência com músicos e pintores, meros partidos scenicos de dandysmo. . . jamais elle conseguiu moedar-se ás formulas artificiaes da correcção, sem a qual o mais bello espirito se arrisca a passar nos saiões por um eivado, entre os desdéns das mulheres, as jugatas dos sport- men, e a iria insolência dos velhos pilotos do cotillon.

Assim como Heine, que admittia uma classificação de plantas— as que se comem e as que se não comem Sérgio conhece dos homens duas cathegorias: com gravata, e sem gravata.

No primeiro grupo põe elle os seres infe- riores, os pedantes, os márOtOS, os intrujões, os idiotas e OS vadios: sendo no segundo on- de, esquadrinhando bem, ainda se pôde en- contrar gente capa/.

os GATOS I [

l»a> suas relações com os gravatas, o artista não tem tirado senão desaires, massadas e sem- saborias, e por principio aborrece-os, muito embora não recuse a mão a vários que lhe es- tendem as (Telles, do 'i1"' vae logo desin- fectal-a com abiuções de canna branca, ao i alcoólico mais a geito.

ÍBÍ

guindo esta lei zoológica das espécies jantes descriminadas segundo o trapo que trazem ou não trazem lacado á volta do pes- coço, que Sérgio depois de ter bastos annos convivido com pessoas de sociedade, mercê do seu togar na orchestra de S. Carlos, i refere i descer ás baixas espiraes de gente subal- terna, onde os seus arrazoados impressionam, iis ditos teem echo, e o seu divino instru-

| -J os GATOS

mento todas as noites o salva, pela virtuosidade magnifica do estro, do grotesco naufrágio de uma eamoeca apanhada Com grogs offerecidos como remember de preito pelos admira- dores em mangas de camisa e tamancos, que

para OUVil-O locar vem ao Café Iodas as noiles. Ás oito horas, QO corredor estreito e com- prido que é a sala do botequim de fadistas que lhes disse, todo occupado com duas filas de mezas onde os freguezes abancam, sentados em mochos de pau, para saborear a pequenos goles, uma cerveja que parece feita d'ourina ãlbuminurica, ou qualquer chávena d'esse cate aegro e pegajoso que a .Mouraria designa pelo pittoresco nome de carocha; ás oito horas uào ha no botequim um logar único, devoluto. Por uma rotula de dois pórticos, ao fundo, inter- calada de prateleiras de garrafas, d'onde se franjam, por transparência, fogos de rubis de Greme rosa e d'aguardente de ginjas, esmeral- das de Kermann, grandes topasios de licor de canélla e tangerina, pousa o busto docafézeiro, em camisola, um gordanchudo, barbaceno e alvar, que trata a freguezia por gajos, e coça as piugas nos entreactos da confecção dos ca- pilés. De roda, outros gallegOS ajudam, indo

(is (, \'|US 18

do fogão para <> balde das lavagens, da gaveta das colheres para os trés-fonda da baiuca, d'on- de aos intervallos de silencio vem um guin- char d'enormes ratazanas. Nas paredes, qua- drinhos de mulheres offerecendo os seios á sucção de quem nas observa bicos de gaz flambando s*b tulipas de loiça pendentes do taboado ; e por entre as lilás de bancos onde mal cabe a perna do moço que foz o serviço, atravessa de quando em quando uma espé- cie de rodeuse da rua Suja, chuchada, vestida de branco, '•«nu tamancos nos pés e lesmas de cabello ruivo sobre a testa.

Adeus ó avem !

Tó, lambedor! retruca ella. Emquanto a sala, súbito hillariada por

aquelle epitheto de vicio, rompe em dichotes r pisos sobre o escadeirado cocheiro de noite que a mulher assim classificou, e que em des- forço promette rompcr-lhe a peida com chuli- |,,i. em a apanhando á gandaia, n'outro sitio.

li os ga ros

-*^M

Penetrando a garganta estreita do café, to- pa-se á esquerda, n'uma espécie de púlpito de ripas, um piano alugado, comi o seu indispen- sável cornaca, o pianista, homem balofo e d'o- culos, os queixos presos n'win açaimo de bar- ba côr de coiro, e em ioda a figura a desillu- são d'um professor primário demittido : e logo, entre os principaes do café, typos de coco, a unha em Indo, o olho engenebrado, segue iuiiiki cadeira d'almofada, o violoncellista. En- tre violoncello e piano, primeiro que o con- certo parla, ha sempre altercações roufenhas

sobre 0 bocado a lorar, e a pouca execução

do troca-teclas encarregado de fazer de roda á melodia de Sérgio, o acompanhamento. Homem, diz este, apenas o pianista zoa

na sala OS primeiros compassos : isso não é

os GA ros

15

musica, é um boi i1"' saltou a trincheira do sol ! Ora queira embolar-se, amigo Pratas, e fazer lavor de seguir o que está.

recomeçam. <> outro, triste, com um ca- chimbinho de raiz posto entre os dentes, bebe um trago de pintada lentamente, e vè-se-lhe Q0 ;1||(, d0 craneo a coroasinha de calva bran- quejando, como cortada no polo d' uma melan- cia sem chorume.

—Toquem o Chegadinho faz, faz, diz uma voz, quando o pianista, preoccupado d'arte, faz correr uo teclado a melodia do Fausto, ua Ivermesse. E a mão de Sérgio, tremula de çs, dando saltos macabros, cora as pontas dos dedos choreicos, sobre as cordas, súbito lixa-sc, lança uma arcada profunda, decisiva, uitida c de mestre, uma d'estas arcadas fris- sonantes, onde vão quarenta annos de musica e d'ouvido, d'aspirações, de sonhos, de traba- lhos, e que pela expressão pathetica deixaram Ser vibrações de cordas sobre cordas, se- uâo vozes partidas «I" coração da angustia hu- mana, Deus o sabe! para a névoa dos proble- mas eternos e insondáveis.

É então um momento typico, oa rastilhada ,1,. fumadores e bebedores que estão confusa-

16 os GATOS

mente, emborcados sobre as bancas da alfurja, bovinos, broncos, e trescalando o rapozinho dos seus corpos tisnados pela mnrraça do suor c das vestes de trabalho. 0 calor asphixia, um ralo passa nas respirações sustadas para ou- vir: e cada vez mais a fumarada dos cachim- bos vae relegando para planos distantes, os grupos de bebedores que estão ao fundo, a rotula onde o cafézeiro entrega as bandejas e trocos, e a encardida silhouette dos mocos da rosinha, de quando em quando mordida pela chanima da fornalha, sobre que pulam, em caldeiras de cobre, cachões de beberagens. Se alguma voz então corta o silencio, logo as ca- beças todas se levantam n'mn shul ! de cólera egoisla, que fecha a bocca dos mais audacio- sos; e o violoncello cala-se ainda, á espera de que |iasse na sala o primeiro calafrio ^impa- ciência, iodo elle banhado u'essa onda de (luido emocional que cola cTalma a alma, engrossado

pela nervosidade dos mais fraCOS, e revolu- teando d'entorno ;i indifferença dos rudes, conquistal-a e fundil-a, como uma cera molle, sob a conturbadora volúpia do seu spasino.

rànlim cessa o piano os latidos do acom- panhamento: a \o/ de Sérgio regouga ainda

os GATOS 17

contra o pianista algum dichote verberando a desfilada pastosa dos acordes, que elle com- para a grasnidos de patos, d' uma poça quando bruscamente, a melodia dovioloncello esboça as primeiras volutas, pelo ar '.

4E

li vocês repararam porque processo os grandes músicos conseguem fascinar um au- ditório, seja d'artistas ou de carregadores, de cretinos d'asylo <>u d'animaes de jaula, carni- ceiros? Coisa singular! uão é tanto pelos ou- vidos que essa musica dos grandes auditivos qos doma, é pelos olhos. Ha sons <\\w ferin- do o tympano, nos fazem gosar, sem duvida, mas pela vibração rythmada que produ- zem, localmente. Uma tal musica, ao ir do ou- vido ao cérebro, faz-se emoção por certo, mas

IS os GATOS

não tem poder para evocar dentro de nós es- tados plásticos, sol» cuia martyrisante acuida- de OS OUtrOS sentidos visionem a porção de

goso que a alma assimilou. Copulado por cila, o espirito permanece infecundo, e a reminis- cência ao repassar-lhe os bocados transcenden- tes, não sente a necessidade de os repelir em certos e determinados togares, ou sob o domí- nio de certos e determinados estados psycho- logicos.

É esla a musica da cabeça, a musica escri- pta ou executada sem dor, feita pelo maestro de cor, c interpretada pelo artista com sabe- doria, mas sem alma. Sempre que releio Mas- senet, ou nico tocar o Pablo Sarrasate, o inte- resse domina-me, mas sem nenhuma espécie d'ideaçã0 embevecida. Aipiiilo será bem leito, ou sábio, correcto, inimitável : emlanlo eu nào consigo, durante a audição, isolarr-me de mim próprio, amordaçar as aniraalidades do meu ser: e aconteceu-ine ter fome, ouvindo Sarra- Sate locar pedaços de lleriol. . .

Oh! mas outra musica lia de que o ouvido é mero receptáculo instantâneo, transmissor mudo; outra musica que a imaginação visual plasticisa rápido, em imagens, quasi «pie ia

I»v ,, M'I)S

19

,-i dizer dotadas d'existencia, imagens que se vêem, si> palpam, se enlaçam, soffrem e es- morecem, como essas apparições translúcidas que os mediums lheosophos desagregam de si, e deixam no ar, pairando, em linhas phos- phorentes, feitas d'um íluido astral, e repro- duzindo aos olhos d'um circulo de crentes, a physionomia ou a figura da creatura ausente ou morta, que evocámos.

Extraordinário pheuomeno, não da cor- respondência, mas da substituição inconsciente, em dadas crises psychicas, d'uro sentido por nutro, sem ruptura do satuo physiologico !

Os contemporâneos, Tschaikowski e Gou- noil aparte, substituíram o calculo integral àquelle divino não sei que, que presta ás pa- ginas de certos velhos symphonistas a melan- cholia theogonica de Jehovahs foragidos, que soluçam. A musica actual é cortez e fria, mes- mo n i violência, e é necessário tornar ã mar- cha fúnebre de Beethoven, na Symphonia li - ir exemplo, á walsa de Berlioz, na Dainnação do Faurto, e âquella melodia rara de violino, que anda o primeiro tempo no quinteto celebre de Mendelssohn, pr'a smtir bater o c 'ii plena musica visual, pias-

20 os «.aios

ticisante d'essa que tem a imagem como poder supremo d'expressào.

Quem alguma vez escutou a walsa dos sylphos, tocada cm surdina, numa orchestra de mestres, não mais esquece a paysagem lu- nar que viu desenrolar-se-lhe deante, á mar- gem (ruma ribeira trágica e (tarada, onde os cannaviaes se sublinham apenas na noite, em tons (Ta/ul e phosphoro, muito vagos, e o diabo passa, de pescoço estendido, as azas lassas, de cocaras quasi, aos pulos sobre a roca, como um griffo caduco á procura d'al- ii ias que escorchar.

E sem rumor, d'entorno aos troncos, ge- leiras, penedias, começam a passar de vagar rondas de gnomos, leves como luzeruas, em- bryões de seres inutihsados na officina de Deus, fugidos do barril dos restos da creaçâo, correndo o mundo, incorpóreos e maus, a impulsionai- os crimes e as doenças... ea cadeia dYsses pequenos monstros expirala,

n'uma dança infectante, ora quebrando a bicha

das suas formas deliquesrentes, deslazendo-se na reverte da noite hvperborea, incognoscível, onde as coisas lêem formas de bailada mm voltando com fermentações de larvas, n uma

OS G MOS

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furia ,|r viver febricitante, e apenas rythmada pelo ting-ling das gottas cahidas da folhagem. i;,.,n depressa, á medida que o lento se co- ,,„.,.., a caracterisax nos violinos, o nosso ou- vido pára, toda a espécie de som parece que morreu, mas os sentidos fundem-se-nos n'um único, a visão, e eil-a seguindo no ar 8 turbi- lhão diaphano ^espectros, que elia invocou, ,,,„• cambiantes, com uma sensação de relevo quasi physica, e uma magia d'assombro ex- traordinária!

aJ^

Mas assim como as evocações dos mediums querem penumbra e silencio pr'a travestirem materialisações involucraes, assim as imagens acordadas pelos músicos reclamam para se produzir, a ausência de suggestões que des- viem o espirito, a attenção, d'outras mate-

-- OS GATOS

rias. Um salão de concerto, com a polychromia dos trajos, as distracções da belleza feminina, a affectação dos typos, e a chateza das opi- niões pedantescamente alardeadas, raras vezes ''' amphitheatro attinente á transformação do phenomeno acústico em luminoso: Tem por demais motivos irritantes, vindos das luzes, das cores, da permutta das ideias e da inten- sidade rubra dos desejos, que entram em nós '•nino agentes corrosivos da sutilima trama mental sob que poderia dar-se a transposição sensória que lhes disse.

Tam pouco o isolamento absoluto convém á materialisação (appliquemos a palavra dos theosophos) de certos trechos. Meyerbeer por exemplo, não é musica paca se ouvir sósinho em parte alguma. Pelo contrario, Ghopin, que seria ridiculo de dia, ao ar livre, readquire na alma o sen prestigio doloroso, quando locado a deshoras, n nina alcova de mulher, sobre um jardim d'esguias arvores, á lua.

me lenho snrpreliendido a pensar se a

questão da receptividade psychica para a mu- sica não será exclusivamente um caso de mo- mento. 0 som (l'imi harmónio, por exemplo, tocado na rua por um cavallariço estúpido que

OS GATOS -•">

passa, consegue às vezes orvalhar de sonho a melancholia d'um artista, cuja nervosidade em outras boras se permittiria desdenhar ;i mais correcta musica d'um quarteto de mestres eu- ropeus. Um andaluz extasia-se, por exemplo, como qualquer homem do uorte, ante a chorai de Luthero, entoada a plenas vozes por uma bancada d'estudantes teutões d'olhos azues : e ril-o abysmado, elle um fogoso, que tem sol liquido por sangue, em tudo quanto ha de profundo e recôndito, de reflectido e de sério, u'aquella musica de bruma, crepusculisada em presentimentos do aurddá^ tão peculiares ás raças metaphysicas. E eu vi unia aldeia bronca chorar toda, cavadores e mulheres do campo, ao som da Ave-Maria do OtheUo que ama senhora cantou no coro d'uma vetusta igreja alemtejana.

Logo, ii. 'In sempre a espécie d'instrumento que transmitte a musica, nem sempre a raça de que o auditor faz parte, aem sempre a educação, nem sempre o meio. são factores in- dispensáveis á justaposição de tal trecho a tal sensibilidade.

A razão da idolatria havida por certos compositores e instrumentistas, está oa magia

os GATOS

com que o génio (Telles consegue vir identifi- car-se, atravez dos séculos, ao nosso; está na eloquência com que esses grandes consolado- res ,lns contam, pela melodia ouvida, a senti- ble™ pathetica, a felicidade, a negação, o desespero, que contravieram em nós numa hora apathica em que, sem elles, não teríamos voz com que reagirá enervancia d'aquelles es- tados íntimos, e psychologia ou lucidez com qae julgal-os— está na bonhomia emfim, na sensitividade rara, com que elles gravaram na nossa reminiscência, para sempre, esses esta- dos, com o fealhe doce d uma medalha votiva á quintessência das nossas alegrias e das nossas dores. Cada hora da vida exige, para apasi- guar-se, uma musica diversa, como cada enfermidade reclama uma diversa therapeu- tica. A alma tem crises, resolúveis somente aos encantamentos (ruma ária lenia de Glueck, sopros d'epopeia que reclamam Wagner como interprete, manhãs de névoa em que lhe é -ra- lo exhalar-se entre uma symphonia de Beetho- ven, c ihedios cor tinta nankin, obsessões canalhas, cabotinagens, que lhe fazem bater o pé, nada menos que a provocar galopes d'Offenbach.

os gatos ->;

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É por esta razão que num concerto publi- co, feito de bocados heterogéneos, apenas se '' sensível ao trecho que vem condizer ao nosso momento psychologico, e que o mesmo con- certante, ouvido .-,,111 indifferença ou enfado d'outras vezes, súbito, ama uoite, se aos re- vela sob um aspecto passional que nunca lhe havíamos podido escortinar.

vocês repararam que uma ceia com mo- ças, n'um cuté de rapazes, pede o fedo, e que nâo ha rapariga nenhuma com derriço, que Qão foque ih. piano a serenata «Ir Schuberl ? Conhecem por certo ;i historia do general Val- adas, commandante <l;i divisão militar «lo Alemtejo. Homem dureiro, com atonias de tripa superiores talvez ás suas atonias de cé- rebro, acontecia-lbe fazer das defecações, ver- dadeiros partos, tamanhas dores lavravam qo guerreiro, ao alijar das primeiras cibalas ma- linaes !

Foram contar ao arcebispo de Perga estes martyrios; e monsenhor Nunes, verborrheico preclaro «lo púlpito eborense, sabendo o que custa teruma pessoa vontade e não poder, vae •nselha pr'aquilIo, nada menos do que o hymno da Restauração.

■j

26 OS GATOS

Ali, que remédio! Todas as manhãs vaca charanga em grande uniforme cornetear-lhe ao

reverso, o drástico famoso.

Lusitanos é chegado

O dia da Restauração. . .

c ha sele mezes que por efflcacia d'elle o ge- neral remoça, que é um louvar á tripa... ca- gaiteira.Em Évora, agora, quando ao primeiro

sol o forasteiro intrigado ouve os acordes do resolvente canto patriótico, ha sempre um ebo- rense amável que lhe explica a opportunidade d'essa musica, que (ruma banda da fronteira foz fugir de pavor os castelhanos, e dar de corpo aos generacs da outra banda.

OS GATOS 27

Na existência actual está reservado â mu- sica pouco mais ou menos o papel que a reli- gião teve na antiga, tia árias que andam ha séculos, incomprehendidas, pelo mundo, á procura d'um estado affectivo ou intellectual qu'interpretar, assim como ha espiritos, tris- tezas, sonhos, que ainda não acharam musica que lhes sirva de lenith Pevangelho. Evi- dentemente que o drama visual desenrolado aos olhos d'um grupo, pela audição d'um nu- mero de musica escolhido, raro é para todos os dilettantes o mesmo, visto como, mesmo nos phenomenos ópticos directos, a sensação chromatica, posto que idêntica em todos, nun- ca pôde ser mathematicamente igual de retina para retina.

Ora, são os infinitamente pequenos (Testas differenças de sensação que constituem a ori- ginalidade individual dum temperamento, e elles que, no campo esthetico, evocam ás \e- l'uin mesmo motivo fixo, qualquer que elle seja, as comprehensões artísticas mais an- tipodaes.

Todos temos ouvido a ária das Jóias a seis ou oito prima-donas de génio, a Patti, a Sem-

brich, a Ti lorini, a Tetrasini, a Ván-Zandt,

js os GATOS

a Nevada e a Devriés... Digam-me se al- guma d'ellas lhes reminiscenciou as outras, na interpretação d'aquella maravilha. E todavia o respeito ao escripto do maestro em todas subsiste: está a cinzelura para assim dizer arestal do relevo musico que Gounod lhe deu, as cadencias que elle prefere, a nitidez meló- dica que tanto o caracterisa.. . a alma canto é diversa, porque essa está na cantora, e não se impõe.

Com os músicos instrumentistas succede o mesmo. A musica, sendo uma linguagem uni- versal i»«>sia ao serviço d'uma sensibilidade uni- versal, logo implicitamente deixa prever como essa linguagem possa por na mesma phrase, conforme a pessoa que falia, e a quem se fal- ia, cambiantes de ternura, de mysterio, d'iro- nia, de brutalidade ou de franqueza, alterna- tivas—questão d'intuito moral, de tom, qi

mais grosseiro instrumento dá, quando vibra- do por algum grande artista em inspiração. Porque emfim, interpretar uma obra d'arte é tra- duzir em vulgar uma sensibilidade, dar reper- cussão dentro de nós a unia alma idêntica : e uão se imagina como o violoncello de Sérgio catechisa a alma d'esses ignorantes plebeus,

OS GATOS -_(|

pela emoção pathetica do som, que lhes pertur- ba a rudeza em não sei que melancholias an- cestraes !

Na primeira noite em < { 1 1 < cu fui, vestido 'l'1 saloio, ao botequim de fadistas da Carreiri- uli;i. aconteceu-me ouvir-lhe a serenata do Faus- to, por uma forma que jamais na minha vida esquecerei.

Entrara no caffé uma espécie de carreiro escanhoado como um cónego, reboludo de músculos, sanguíneo, e debordando apetites sensuaes : d'estes homenzarrões de Torres que vem trazer vinho cm carros o1'» Alemtejo, e le- vam cm deboches a noite, pelos alcouces e caffes musicaes d'entre a Magdalena e o Capellão.

<> homem entreabriu <»x batentes á j<>ur do botequim, espreitara um momento, de charu- to na bocca, e com um ar decidido dirigira- se a abancar na meza, ao da porta ; quan- do ai» reparar que alguém ficava entre portas, perplexa, tornou a erguer-se, vindo parlamen- tar rã fora da baiuca. Cinco minutos depois voltava elle, conduzindo ;i força quasi, com palavras mal firmes, para um logar na som- bra do piano, ama saloiasita receiosa, toda confusa das ^-uir^ avinhadas, da incidência

30 OS GATOS

das luzes, e da audácia de se aventurar assim innn sitio prohibido. Os dois sentaram-se. E ella enfesada, tremula, n'um delírio de corça surprehendida, procurava apagar-se mais na sombra do seu canto: linha um saiote azul de chita pelos hombros, a estamenha amarel- la, escorrida ás ancas, debruada de preto e muito cúria, o lenço atado pelas duas pontas tendidas, sobre a testa: e em toda a sua ado- lescência de lavadeira, a exasperada virgin- dade d'uma cadella ciosa que fugiu da estala- gem, attrahida pelo bulicio orgiaco do bairro, emquanto a mãe Bicava a roncar talvez sobre a tarimba, entre trouxas de roupa, ao dos

burros. . .

Primeiro (pie o homenzarrão conseguisse fazer-lhe aceitar qualquer bebida, foi um suor d'angustia, uma canceira, durante a qual umas poucas de vezes a rapariga fez com a espinha, o sobresalto ascencional de quem se vae er- guer, para outras tantas a fascinação do ma. eho a esganar alli d'encontro ao muro, sob a

avidez sardónica dos homens, e as delirantes febres da copula, (pie Ih." vibravam todas no typo, com uma espécie ^animalidade louca e irresistivel.

OS GATOS 8i

Erafim, o rapaz trouxe aguardente, caffé. . . e o carrejão, apenas as chicaras foram cheias, vasoo ih» d'ella umcopasio cheiosinho d'aguar- dente. Todo o seu fito por certo que era ir aquecendo o caco á raparigota : e achegara-se, tocava-lhe com o joelho de lado, contra a coxa, tinha-a mordida em diabólicos circulos de pos- se, vivos a ponlo que ella deixou emfím de lhe poder supportar o olhar chispante, e começou de responder ás suas perguntas, palavras in- coherentes; tremiam-lhe as pálpebras, tre-

iiii.ini-ll s dedos; os cantos da sua bocca

tinham paresias spasmicas p'ra beijos, e den- tre as roupinhas do vestido, os seios erectis, crispados como ventres, subiam c desciam, com um sofrear toraxico de soluços.

82 OS GATOS

A brusca entrada (Telles fizera erguer uma ou outra cabeça preseatida. o cocheiro de noite, que estava em successo de ridiculo, des'que a rapariga ruiva o casquinara, quiz descarregar de si as attençoes, e começou a tossir com modos ribaldeiros, piscando o olho para o logar onde a saloia linha ido alojar-se. de todos os cantos, os risinhos corriam, meias vozes no ar zombeteavam ; e por ven- tura a chacota redundaria em apupo, se o vio- loncello de repente não faz voltar as attençoes dos maltezes para os primeiros apellos da se- renata que Mephistopheles diz, por debaixo do balcão de Margarida.

É uma terrível coisa, vaga a principio, penetrante e glacida a um tempo, a verter de- líquio amoroso por todos os gemidos, perversi- dade satânica por todas as rizadas, c com volutas por onde sobem e descem roldões de desejos e ideias que contrastam, injurias que principiam por supplicas, escarneos que vão acabar cm extasis divinos. . .

Assim como do hymnario dos symphonistas primevos, sobe o disco vermelho e oiro da aspiração terrena para os cimos, assim d'aquel- la monstruosa injuria ^\o diabo á innocencia,

OS C IT8S 33

uma língua de víbora rompe a imbuir peço- nha em iodas as almas, do preciso instante de as prosternar, estonteadas de paixão.

M i- que eternidade viva a d'essa musica ! Que intensa alchimia psychica a d'essa sere- nata, de cuja fúria corações escarchados pu- lam ainda, com virulências d'amor extra- animal !

oh como o possível do aú-ddá estremece nos sens flancos, e como os seus gemidos fe- cundam a culpada terra de presagiosl A ras- tos do seu echo vc-se uma aza tremendo ainda por librar-se aos mundos da pureza, quando um caprino bate compasso ás farandoles cynicas do vicio. E quando finalmente ella se firma, por gradações mal sensíveis, na pertur- badora nupcia d'aquelles dois sentimentos an- úcos, o amor e <> escarneo, súbito, o ou- vido perde a noção do instrumento que a nuança; direis que falia então uma bocca de

carne, uma DOCCa de mvllio, em que um dos

lábios fosse d'anjo, e o outro lábio tosse de

demónio.

34 OS GATOS

E começámos a revivera scena goethiana,o

bandolim do diabo desviando Grctchen da pre- ce, a rua esconsa, de cidade medieva, nevoen- ta a deshoras, cheia de silencio c casas de gra- nito, nichos fumosos, lampeões na agonia... e o tentador concitando a donzella a vir escutar ■a serenata, tendo Fausto na sombra, e sobre o gorro as duas pennas de fogo a esgrimirem no ar, como floretes. Aquillo rápido, febril, relampagueante, como uni illusionismo de vida desenrolado n um cérebro cataléptico, mas in- tenso, inolvidável, profundo, porque a virtuo- sidade do artista era um completo prodígio d'intuição psychologica, e havia no jogo d'elle um mordido pictural, a restituir, formidável e completa, a impressão dramática que o toma- ra, á simples evocarão mental d'aquella scena.

OS GATOS 35

Ini];i a serenata nem esboçará os primeiros lineamentos melódicos, um movimento d'in- teresse friccionava o dorso de todos aquelles ásperos matullos.

A rudeza faz com que os homens do povo tenham o espirito em fragmentos, mesmo ape- zar do coração lhes bater d'uma peça. Pela quasi completa carência «l»1 methodisação no pensamento, a imaginação d'elles, como a ra- zão, tem grandes ooites, e por instantâneos relâmpagos fulgura. É ouvil-os fallar, reco- nhecer nas conversações de muitos, pontos foeaes de rectidão, bom senso e intelligencia, grandiosos, finuras singulares, isto per- dido n'umossuario <lii disparatados e confusos solliloquios.

Que admira pois que um homem culto vi- sione a musica d'um jacto, emquanto o popu- lar exige tempo e suggestões exteriores auxi- liares para fazel-o? Quando, depois da phrase ma Vamico favorito, os dedos de Sérgio foram por cima dos bordões do violoncello, a imitar o rir do diabo, com uma malignidade humana incomparável, no calafrio «los corpos sentiu-se, como no ralo oppresso dos gorjas, e no galgão dos hombros movidos para o mesmo ponto

36 OS GATOS

da sala, sentiu-se, dizia eu, que um grande esforço mental se estava fazendo em todos os

francos, c que esses homens do povo tenta- vam esfarrapar interiormente um grande cer- raceiro, para attingir a nitida visão d'essa tra- gedia ({ue a mephistophelica musica interpre- tava.

Do que elles se haviam apercebido logo foi do cynismo da gargalhada lívida, intercadean- do-se aos haustos de horrivel magua, que põem n'aquelle canto, como uma dolorosa som- bra no escarneo. E com os cotovellos na ban- ca elles torciam-se, pedindo suggestões ini- ciaes d'onde partir pr'a visualisação : e bem depressa uma loucura phosphorejava nos olhos de todos; raivas nervosas quebravam as unhas, como animaes de preza, d'encontro á impotên- cia do esforço até que de repente um velho cor de bronze, todo rasgado no fato como um doido, se ergueu de sobre o banco em que estivera, c meio bêbedo, circumvagando os olhos (Vagida, deu com o idyllio da raparigo- ta e do carreiro, perdidos na sombra que o piano deitava sobre o canto de mesa adjacen- te...

O rompante d'esse carregador enorme e ju-

os GATOS 37

piteriano, levara na direcção do sen olbar, os mais olhares ; «' àlli se fez então, ua lucidez de todos, a revelação visual da serenata.

Resvalado assim <l<>s paramos da musica, para o real, o drama de seducção plasticisou- se desde esse instante, nas três figuras da saloita, de Sérgio e do carreiro, e com tão vi- vo crescendo d'impressão do auditório, que Fausto fugiu logo com o braço ua cintura de Margarida, desviando as pernas tremulas do calor seminal «las suas saias, a assoar-se com grandes roncos de disfarce, emquanto a risada de Mephistopheles morria em echos sardoni-

pondo o mau estar d'uma placa que falso sobre a mezinha de cabeceira d' uma pula.

\o contrario do que haveria succedido an- tes do violoncello concitar Margarida, para

38 OS GATOS

as aphrodisias toxicas da culpa, lodo o bote- quim começou a murmurar da canalhice de Fausto, e a deixar transparecer pela pequena simplesmente uma ironia benigna, misturada

de piedade e de desejo. Os dois agora, lodo o seu desejo era siiiuirein-se nas profundezas da terra, escapar áquella infamante exhibição dos seus arroubos, sahir da kermesse incólu- mes, sem saraivada d'apupos e assobios, .lá elle correra a aba do chapéu p'ra sobre os olhos, afogueado, batendo na mezacoma qui- na do dinheiro, prestes a sahir; enupianlo ella, meio erguida, eslralejava os dentes de terror d'encontro á chicara, e engolia o caffé quasi a ferver, entornando-o por cima das roupi- uhas, olíegaule, o olhar descido, OS beiços brancos, n'um assomo d'angustia inexprimível.

E d'alli a bocado clles sahiram; o homem puxava as calças, á porta, fingindo um dia- logo de despedida com a lavadeira. Deram assim alguns passos na rua, de mãos dadas, escutando as chuffas que a partida motivara, e fugindo ás luxes, com uma prestesa de (piem conseguiu escapar-se a um supplicio atroz dVmpalaçào.

mais além, numa ilha de sombra, como

OS GATOS 39

elle a conservara presa por um braço, fallan- do-lhe ao da bocca, com a solercia da sua bestial virilidade, eu vi-a de repente fazer um safanão para fugir. I»»1 novo, um tremor ner- como fazia zig-zaguear sobre a parede ;i sua silhoudie devirgem aymphomanica, deba- tendo-se entre a preconcepção d'uma hora de deboche, e os presagios da vóz do violon- cello, cujo diabólico rir lhe historiava talvez ;i vida 'In prostíbulo, e as agonias sem fim do hospital.

Estiveram assim por muito tempo: ella a fugir, elle agarrando-a : e pela cadeia das mãos a luxuria do homem transflltrava-se toda, por desfallencias hystericas, ao appare- |]k> de gozo innato, ao útero servido por or-

-. que ella era. E eu vi-a estortegar-se assim mais d'uma hora, como uma ciosa gata que se esfrega, em delíquios, por um sacco de raiz devaleriana... Vi-a voltar-lhe as costas dez vezes, livre, e outras tantas convergir como sonâmbula, á perdição de lhe sentir a carne, espedaçal-a e agora louca, sem re- ceio dos apupos, mostrando <> rosto, e convi- dando-o, tentando-o, na esfuriada obsci erótica que a rola !

'iD OS GATOS

Evidentemente que se eu possuísse a ter- ceira vista que William Crooks diz que ha-de assistir aos últimos homens, quando a dege- nerescência houver feito dos netos dos ne- vropathas actuaes, raehiticos seres com cabe- ças il»1 génios e adivinhos, môvendo-se irres- ponsavelmente, por suggestões longínquas e theogonicas, sobre um cadáver de inundo des-

actuado pela fecundação dos raios solares : essa

terceira vista me faria ver sem duvida, como ao Macbeth na sala do banquete, sahir um es- pectro da terra, Mephistopheles, o génio adunco de todas as malevolencias psychologicas, cor- lado em morcego de purpura, e descrevendo deredor da mulher as suas grandes espiraes funestas d'impulsor.

Mercê do endemoniuhamento que oviolon- cello pozera no idyllio, esse Mephistopheles deveria ter, sol» a calote de fogo, a cabecinha estreita de Sérgio, ioda feita d^accentos cir- cumilexos, e espiritualisada em mascara de bode de sabbat... .lá a intervenção d'este ter- ceiro typ©, na scena, me trespassava, não sei, d'um glacial horror á medulla, remexendo na minha razão as íundalhas de loucura pen-

OS GATOS 1 1

sanle que vivem, á espreita da hora em que devam precipitar-me em Rilhafolles.

Mesmo, houve um momento em que eu vi Positivamente em pó, por traz da rapariga, o tentador terrível alongar as unhas, como de •l1"'"! fosse desencrasaHbe do seio as radicu- las ultimas do remorso; e forçoso me foi cha- mar alguém, Umto a allucinação visual entra- ra em mim !

""!'■ tranquillo, posso analysar sem partir i extraordinária perturbação mental d'esse minuto. Procederia ella da tinta delirante sob 'l,lr eu vejo, de na uns tempos para cá, todas as coisas dramáticas ou triviaes que me cir- cumdam ?

Emtanto é certo que eu não phantasio, ao '' "ina forma escarlate enredar nas suas espiras sinistras, a mulher. Explico 0 phenomenoporuma aberração synergica ^^ eixos oculares, resultante da fadiga dos glo- bos irritados pelo calor do eaffé, pelo reverbe- ro das luzes, pela entoxicação talvez do ramo ,,n tobaco, e mais remotamente ainda pelo dvnamismo anormal em que a musica mepoze-

cerebro, bereditariamente propenso de si, ás meias-visões macabras da alta uevrose.

.^2 OS &ÀTOS

^

M

.Estou a vèr o carrejão bovino a enlaçar nos galfarros dos dedos a pequena, este grupo movendo-se numa reintrancia de beco sem lampeões, que a sombra alaga, por entre incer- tezas de fundos movediços, e perspectivas fal- sas de planos e d'arestas.

Da falta de luz do largo, e do estado efTe- ctivo e mórbido da minha ideará.), teria re- sultado, supponho, uma de duas :

_0u a incoordenação dos meus eixos ópti- cos desdobrou o grupo das duas figuras, vendo eu quatro, uma das quaes se perderia em som- bra, cmquanto a outra, tinta na purpura «rum reverbero de camas para pernoitar, pousava a distancia, como uni ser de verdade e expiação.

Ou a percepção real do grupo amoroso me serviu simplesmente para evocar imagens

OS GATOS 43

cerebraes, que Be objectivaram, dando nascida á imagem allucinatoria do diabo, igualmente avermelhada, pelo clarão da lanterna do pros- tíbulo.

Esta visão porém fôra instantânea, e rá- pido o frio da aoite restituirá ao meu sèr pen- sante a integridade. Atirei o charuto, disposto ;' caminhar p'ro meu destino, quando o chu- visco engrossou de modo que tive de me aco- lher, quinze passos além, u'um vão de porta. 0 reverbero da hospedaria era fronteiro, a fil- trar coágulos de sangue sobre as poças da rua lamacenta: luz sem reflexos, deixando a treva espojar-se nos pavimentos baixos do prédio, como um animal d'esponja e de carvão.

rânto a difiusão da luz era medíocre, que os meus olhos de míope não poderam discre- par «'ih começo mais que uma brecha de som- bra na sombra, demarcando o portal da casa, e sobre a lama a mancha clara d'um gato que atravessou direito a ama sargeta... Mas pouco ;| l"»1"'" ;| pwpilla acomodara-se-me ao bastidor de noite queera esse becco de viella miserável, e vi que sahia um pulso do portal, um pulso de homem comido pela treva do corredor que dava accesso ao valhacouto, agitando no ex-

*

y OS GATOS

tremo ama formidável mão toda de dedos, re- sumo e cúmplice do dono, agarrada á saloia, nmi uma persistência de Liana que vive e me- dra peias seivas do tronco a que se enrosca.

o movimento de sucção e de palpar des- ses dedos de carrejão lascivo (que dir-se-hia ejacularem spermas de gozo por cada contacto de papiua nervosa da mulher) é uma coisa que jamais em minha vida esquecerei. E ella cir- cumvagavao olhar de corça ao de redor, de- batendo-se sem energia, u'uma nubilidade febril debacora ciosa, e exasperada, quebra- da como apetite d'uma arma que brutalmen- te a rasgasse, até aos mus fundos poceiroes ,la maternidade o do prazer.

Dois minutos aquella mão tateou assim - braço .la mulher, que se deixou tragar final- mente pela porta, e desapareceu a reboque do pulso, emquanto o mortiço gaz dava a rubes- eencia «la lanterna as contracções d'um útero titiiado, e o violoncello de Sérgio começava a gemer longe a maldição de Mephistopheles.

Souviens toi du passe, Quand sons 1'aile des anges Abritant mu bonhenr. ..

os ga ros

;:.

A pretexto d'assistir ao baptisado do filho duques d'Aos1 l, foi S. \. o príncipe real visitar ;i exposição. Não esquadrinharam os |or- riajaria por conta própria, ou estipen- diado; nem petos telegrammas se infere que ;, peregrinagem d i príncipe houvesse outro al- cance diplomático, além d'aquelle que põe os patai [ ios ás mezas uns dos outros, <•" as

gran- . a permutar dilates n'es-

rranciú cosmopolita, que os discursos da 1 1 classificam depois tf estreitamento à

>r porém os telegrammas foram parcos em ilterar a avidez justissima <!<> povo, quanto á missão politic l». Carlos, por outro

lado exultem o que elles nos dizem «la

attitude mai r S. \.. no precurso de

todo " regabofe.

indo a liavas-, o príncipe, apenas pôz

o ii i '. fez-si logo guiar ao bazar

de três vinténs do Melicio, no pavilhão das

Artes, onde esteve assentado; e em seguida ao

arma is Caldas '1" Bordallo, no

esteve sentado também ; e

i ifl '. cm cujos andares,

, red es e gabinetes, com hom-

40 OS GATOS

bridade egual tomou assento. Recepção da co- lónia portugueza, sentado. Conversação com o língua Marianno Pina, sentado. Jantar ao comité, sentado. Comédia Franceza, sentado.

Sentado recebe as felicitações dos enviados de Carnòt, sentado beija-mão aos lambedo- res officiaes d'estremidades, sentado deixa a Franca, sentado chega a Itália, sentado assiste ao baptisado do primo, vae esperar a tia Mar- garide, dorme, esvida-se, passeia...

Por esta insistência do telegrapho, parece pie estar sentado foi o sacrifício que S. A. houve por bem fazer por fora, de mais ca- valleiroso e producente ao prestigio europeu dos seus estados. Não é por tanto um prínci- pe, é um assento.

.lá um fino humorista, ferido pela preferen- cia que a obesidade dava, em S. A. a mu dis- tricto do corpo onde a gordura até então fora apanágio exclusivo da Vénus hottentote, o de- finiu nVstes dizeres pretexto para umas nádegas.

\ accrescentar, com os telegrammas na mão— de que elle por signa! abusa um pouco.

OS liATOS

Al

Vai cm dois annns que o Repórter quoti- dianamente produz um boletim sobre <>s fíga- dos dos seus co-proprietarios e redactores. Se- gundas, quartas e sextas, trezena ã hepatite do dr. Marçal Pacheco, mais estremecida hoje nu Europa do que as varises «las pernas de Bis-

marrk.

..... porque " nOSSO glorioso ami.ur<>, inex- plicável parlamentar, e nunca assa/, chorado jornalista, etc., vai indo melhor das lalen- h.sissimiis cacholas, sim senhor: razão por que nos trocou hontem pelo Algarve, para onde partiu a dar escoante á bilis que <> Lam- busa. Com as duas mãos no coração, d'aqui endereçamos a Pacheco, uma das mais lumi- nosas intelligencias do parlamenl las pes- carias d" Algarve, votos do mais sincero ju- bilo, ele. ...»

Terças, quintas e sabbados, trezena às ca- chollas «lo <\v. Alpoim, com ladainha idêntica á> melhoras, e os mesmos gloria in exeeUis as qualidades mentaes do viajor. A differença do lausperenne consiste apenas, para os dois, na menção <\>> ponto de chegada, e no qualificativo anteposto á intelligencia de cada um. Por exem- plo, Marçal, quer para Paris, quer para o

''s os GATOS

Algarve, é sempre unia das mais luminosas. Alpoim, quer tome bilhete para Lamego, quer para as Pedras Salgadas, nunca deixa de ser

uma das mais esclarecidas. Claro está que este modesto epitheto desnivela Alpoim, de Marçal, na adjectivação da casa, pelo menos, sem lhe tirar todavia o usufructo do cumprimento em lettra redonda, escripto á partida e á chegada, com as duos mãos no coração conseguinte- mente com os pés.

Esta cantata dos fígados, tracejada pelo Repórter como pretexto para um reclame aos miolos, que fallar nào por Lamego e Loulé, como pelo restante paiz também, onde os fígados dos dois conspícuos parlamentares, mesmo enfermiços, quero aventar que sejam talvez ainda mais apreciados do que as iscas. Por ventura a concorrência dYsle saboroso pe- tisco, á celebreira visceral dos dois preopinan- tes, levaria o Repórter a atirar assim prodiga- mente ás voracidades da turba, com ellas ou sem ellas, o cacholame cirrotico dos seus...

ínvio periódico que dás de merenda aos assignantes, as miudezas da tua própria redac- ção! Calumniado Prometheu que jamais em- palmaste do ceu o fogo sacro tu que tens

OS GATOS i't

sacro, é certo, mas sem outro fogo celeste além do hemorroidal ; e se alguma cousa em- palmas, Dão é rogo, bI oticias; e essas ja- mais ;í habitação dos deuzes, mas á reportage dos outros camaradas !

Quando nos boletins diários da tua hepa- tite caseira, oiço gemer o coração do enterne- cido localista, e ao Jornal dosJornaesie sinto a língua, vem-me a suspeita de que tu Dão sejas talvez como jornal, obra d'espirito, mas ••••li! esses penduricalhos de Bgado, coração e língua, pura e simplesmente uma esbeiçada loja de fressura.

Ah ! toma lento, Repórter, toma tento !

A gloria, que levanta estatuas aos que padecem tTideaes alevantados, Dão sei por que, esquece-se quasi sempre de registrar o nome dos que padecem dMctericia.

0 Daily Telegraph ofterece á- cogitações do publico britannico, um difllcil problema, qual o de se averiguar Be as mulheres devem fumar ou não.

50 OS GATOS

Chovem rai-las á redacção do Daily Tele- graph, na maioria opinando que visto ser o tabaco um excitante intellectivo, e equipara-

rem-se actualmente os dois sexos na concor- rência à lueta pela vida, quer por via da scien- cia, quer por via da industria, quer por via da arte, nenhuma razão plausível d'ora avante im- pedirá que a mulher fume.

Completamente d'acordo. Somente na pra- tica de mais este vicio, nós quizeramos que «lia não feminilisasse o tabaco, attenuando-llie os cfteitos por meio de macerações mui pro- longadas, e levando aos lábios, por pura pose, de quando em quando, uma palliativa e magra cigarrilha. Esta pratica, que vem per- turbar a puresa do hálito ás senhoras, nem se- quer ao menos lhes facilita, pela esthesia ner- vosa, as locubrações do pensamento. Por con- sequência, madamas, ou V. E\.« esquecem o tabaco, ou então passam a fumar charutos de homem.

Em 19 de outubro, pelas 1 1 horas e 5 minutos da manhã, morte de S. M. o rei D. Luiz, no palácio de Cascaes.

Desde muito se previa desfecho trágico á

os BAT06 -<\

enfermidade do pobre agonisante, cujos úl- timos mezes foram um martyrio cruel de to- das as horas, quer Latejando nas garras da tortura physica, quer nas da intriga palaciana, de sobejo por elie adivinhada atravez as con- solações ambíguas dos fâmulos, aborrecidos de tantas noites perdidas ao de redor da sua paralysia.

A doença do rei foi uma coisa obscura para todos, e acerca d'ella mil contradictorias ver- beram correndo as folhas dos periódicos, wi-vr.cs que uns attenuavam, e exageravam outros, conforme o interesse partidário <>u pes- soal ligado á conservação ou á aniquilação do soberano.

Da bocca th^ facultativos do paço, nem uma palavra coada ;i tal respeito. A uma, o segredo profissional, n'aquella altura solemne, mercê da hierarchia altíssima do enfermo, in- hibia-os de qualquer informação precisa ou cathegorica. \ outra, a policia da rainha, bre sequestrar <I<» paço os indiscretos, com tal arte assediava os assistentes, <im' lli«'s ín- ria pagar com o desfavor do throno a m;iis li- geira indiscreção d'algum, fora, aos ouvidos

imprensa e da opinião.

52 <>S GATOS

Comprehende-se emtanto a anciedade ge- ral, perante aquella mysteriosa agonia passeada de palácio era palácio, quando entre as locaes optimistas dos jornaes do governo, e os som- brios prognósticos dos jornaes da opposição (os dois jogando os dados com os últimos dias do rei, com o sentido no ganho das próximas eleições) um campo de cogitações se abria, enorme e vago, aos receios de uma súbita ca- tastrophe que alancearia de magua o espirito publico, ainda não preparado a vèr no throno outra cabeça que não a d'esse bonacheirão o sceptico 1>. Luiz.

Todos á unia, incertos da duração d'essa vida de rei, previam o instante em que a paralysia das pernas lhe subisse aos braços, em que a sclerose cerebro-espinhal lhe es- tendesse a abolição sensorial, do ouvido aos olhos, tornando o enfermo n uma espécie d'es- tranho morto-vivo, paralytico e cego, gastral- gico e mudo, consciente e deliranti alimen- tado por uma sonda, despejado das urinas por outra, parindo as teses a ferros, phlyctenado, hediondo, coberto de escaras, e contaminan- do-se, pesadello horrível! d*essa podridão va- garosa, methodica, generalisada, atrocíssima,

os GATOS ■'••

sem pressa, em que os tecidos eps órgãos, decompostos, ainda para assim dizer fingem ler vida, e "mii que a dor remorde o intimo do ser continuamente, mil vezes mais fulgurante (|() que mm organismo integro— porque o sup- pliciado tem consciência (fella, e nem se- quer pode jogar a voz p'ra se queixar !

Em tomo á cadeira de rodas em que os lacaios passeiam da alcova para o terraço, este cadáver Incido e nostálgico, reconstruir u,,, drama é coisa fácil, a quem se lembrar de Frederico n d'Allemanha.

os velhos servidores, receosos de per- der o prestigio na corte, quando esse rei sor- rir pela ultima vez, pallidamente, às arttficio-

consolações que lhe trouxerem. São os ministros, lívidos como grilhetas, e acossados como cães, n*um canto da antecâmara, a du- vidar se acharão no caracter do rei novo, aquella amável tolerância com que sempre os recebera o rei finado. Sio os chefes da opposi- ção, esfaimados por seis annos d'exilio, circum-

,,,,!,, de roda ao crepúsculo real as cynicas figuras, a especular chim a impaciência febril do herdeiro do tnrono, cuja memoria é boa, e t;iii presidente de consell [ue primeiro

Vi OS GATOS

o Iractar por magestade. É a Igreja que Qão quer perder o final d'acto, c a cada momento espreita á poria, impaciente, com as sagradas vestes n'uma trouxa, aguardando a hora em que naja de fazer engulir ao viajante o pão ázimo, como um bilhete de primeira classe, para a viagem das siherieas neves do outro mundo. E finalmente a rainha ia a dizer a imperatriz Frederico soberba e esculptúral nas suas grandes roupas, os seus olhos ^es- tatua dolorosa, a pallidez de Juno despenha- da, arrastando-se sem forças, de sophá para sophá, lassa de vigílias sem conta, allucinada de ciúmes sem refrigério, agarram lo-se a to- das as vergonteas da esperança, pedindo á sciencia a resurreição d'esse cadáver, promet- tendoa Deus magnificas offerendas; e logo re- negando Heus e renegando a sciencia, ao sentir as suas lastimas quebrarem-se d'encontro á mão de bronze do destino, (pie a relega, magnifica orgulhosa, á semi-sombra (ruma vida subal- terna, tão asphyxiadora para os predominios theatraes da sua grande raça.

E, fatalidade d' um cargo que tantos inve- jam como supremo pináculo das grandezas da terra ! fazendo tremulo ãquella agonia do

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monarcàa, não tia talvez uma única lagrima sincera, uma lagrima só, que evaporada deixe Q0 cadinho outro resíduo além dHmpuras coi- sas, ambições resvaladas, prestígios findos, ia- voritismos em naufrágio lagrima que refran- ger podesse a pura essência da angustia sem mistura, essa liqmfaceão ternissima da alma, que provocam no coração dos simples, <>s que- ridos mortos que d'este mundo se vão sem blas- phemar. Oh, é cruel, pensar que mau grado a sincera intenção talvez de todos os come- diantes d'aqoelle drama lúgubre que linda, ne- nhum d'elles possa exhimir-se á suspeita de ter vindo alli chorar por partí^prís, apenas a me- lancholia d'um, poderia mostrar-se como uma Goisa isempta d'egoismo: mas esse reviravol- teavaem velocípede, sobre a esplanada dopa- ,-,.. qo dia em que os médicos tiravam das pernas de seu pae, pedaços de tecido em gan- inrenal

56 Q8 GATOS

Fecha os olhos o rei, e o panno tomba so- bre o quadro dos physicos que lhe agarram com pinças, sol» uma chuva de phenol, na car- ne que vem aos bocados, e sobre que uão é possível produzir a mumificação pelos anti- putridos e balsâmicos que manda a pragmáti- ca. E porque se desarma o tablado dos appa- relnos fúnebres do cenotaphio, quando a car- caça do pobre litterato vai engrossar o fumeiro real de S. Vicente, não se persuada o leitor •pie o drama finda, visto como, apenas se representou ainda a primeira parle d'uma vi- brante e grandiosa triologia.

Recompile se pode a summula d'essa pri- meira grande peça histórica, que leve o palá- cio d' Ajuda por scenario, e levou vinte e oito annos a representar em Portugal.

Logo no prologo figura um rapazola, loiro e bonito, bravo c leal como um cadete, que teve d'abandonar o seu navio de guerra, quando uma noite, estando a jogar com ca- maradas, lhe vieram dizer que seu irmão, o rei, tinha morrido. Nada na sua vida de bordo attestaria as saburras selectissimas do seu san- gue, se não lura o tratamento (Falteza que lhe davam, tanto a sua expansiva gentileza, a cris-

OS G kTOS r»7

talinidade, a graça, Faziam d'elle um doidiva- nas d'escola, um jovial fettow de convez, cora a paixão das viagens, do jogo, do vinho edas mulheres.

Em Vngola, onde esteve aguarellando pal- meiras e bebendo cognac, <, governador pre- parou-lhe ama espécie de revolta com solda- dos e pretos ensaiados, persuadindo-o de ter sido elle o abafador da sedição. Ao baccarat, muita vez lhe succedia perder tudo, e pedir dinheiro aos mais modestos guarda-marinhas que o cercavam. E quanto ao amor, o adorá- vel rapaz tanto seguia á risca os preceitos de I». Sebastião o casto, seu parente, que até lhe imitou ;i aventura de que falia picarescamente <> chronista *e como houvera calornas casas da marqueza, & deect i rua das fermoeae

de quem houve molesti

Para o Mn-.. um, onde o assentou a morte d'um rei que i;i começar a ser funesto, eil-o trazendo a bonhomia fundamental da sua raça, qne é uma espécie d'atrophia da vontade, complicada d'uma espécie de velhacaria. En- tretanto .1 sua alegria tempera-se, a sua impe-

offlcial de ma- rinha pandego e sensual, d'essa espécie d*edi-

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58 os GATOS

çãO anterior do infante D. AlVonso, brota nin personagem qovo o estudioso pachorrento, sceptieo risonho, o grande corruptor bem humorado, que estudou nos livros a lei da reedição periódica dos caracteres, que soube amaciar as verduras juvenis pelo convívio das artes e das lellras, que aprendeu a procurar nos homens a repercussão do mesmo ponto fraco, e a valer-se dVlle emtim para os do- mar sem ruido, nem apparente esforço, nem precipitações, nem compromissos.

Aos conselhos de nm grande homem dVs- tado, ([lie o adorava, deveu elle o levantar 0 respeito d»1 si próprio á altura de uma força inexpugnável, e o desprezo pelos outros a ca- thegoria d nm lemma governativo, inillndivel —o todo involiicrado em laes formulas d'afle- etuosidade e deferência, que mesmo nas snas crises violentas de caracter, jamais alguém lhe viu nm lie que atraiçoar pudesse os exte- riores da mais correcta inpersonalidade. Poucos monarchas haverão seguido mais ao rigor as praxes constitucionais, que fazem do rei um ídolo de barro, omnipotente e inútil, sagrado

e subalterno, investido de poderes platónicos, quasi sem responsabilidade nem exercício, as-

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signando de cruz, discursando d'ouvido, e fa- zendo por toda ;i parte a caricatura d'um Deus contemporâneo, d'um Deus de Roma, que falia aos peccadores p< la bocca dos seus padres, i nem sequer é responsável pelas calamidades que elles acarretam.

Sabendo o pi eço de todos aquelles que o cercavam, e adivinhando pelos sarilhos jorna- lísticos nu parlamentares dos que ainda vi- nham longe, approxiroadamente o que esses Ihr viriam a custar, era exímio em receber- Ihes os botes imj assivel, ao momento em que <> inimigo se lhe tornasse perigoso ou ne- cessário, e urgisse, para montal-o manso, <in- gir-lhe ao dorso uma vistosa albarda <li' mi- nistro.

Das três gei i - n *as politicas sobre <|in' assenta a constituição do estado, a represen- tação popular, a coroa e a camará alia. todas file pezou i tra sagacidade d'alemtc-

jano «■ de allemão, loiro e sabido. Posto o seu conhecimento < - sen ien i e da torpeza dos homens, p isto <> inabalável conceito em que se tinha, a - :onducta 'li' rei salta il<- chofre: lazer das duas camarás i"<la<lns paia n throno, atrelar-lhe os ministi >s como bri-

f>0 OS GATOS

does esparvonactos, e guiar elle mesmo o carro sósinho, mas sans eu avoirVair, e conservando aos cavallos a illusão de serem elles os co- cheiros.

Este domesticar da fera humana, pela im- passibilidade risonha d'um homem, cuja força única eslava apenas no orgulho hierar- chico, ao passo que faz do rei um dos maio- res desprezadores de homens que tem havido em Portugal, por outro lado nobilita-o, porque entre a jolda de gorilhas cynicos que é a ca- mada dirigente do nosso paiz, aquella figura era das poucas que parecia marchar na vida, amparada ao respeito inabalável da sua mis- são.

Na sua maneira de corromper havia ama suprema finura intelligente, calculada por for-

OS GATOS M

ih i a não humilhar jamais o corrompido, e •» deixar pairar fora de qualquer suspeita gros- seira, o corruptor. Por occasião do snr. Ma- rianno de Carvalho escrever no Popular :is catilinarias celebres da capa de ladrões, o ca- ricaturista Bordallo produziu no Álbum das Glorias uma figura do rei, que aparte o pro- pósito satyrico, visiona aquella particular fei- ção do seu caracter. Representa ella S. M. :i caricaturar o jornalista, que está de barrete phrygio, em mangas de camisa, ;i fumar um cigarrinho: e sublinhando o desenho, o sor- riso do rei guarda essa expressão indefinível, que era sempre a d'elle em publico, riso mor- to de lábios exangues, lábios franzidos, riso p'ra dentro, que podia ser tudo, fastio, bon- ilade, lassidão, firmeza ou comedella, mas que i olhar illucida a'uma palheta de reflexo insupportavel, não pela agudeza, ;i<» contrario pela proposital vacuidade.

M;ii< tarde, quando o pamphletario 'I" Popular seguia ;i familia real na viajem ao norte, ajaezado n'essa hrda »l<' castellos, que é a camisola de forças dos furiosos açulados contra o throoo, aconteceu passar o rei no Uom .1 1--. 1 1 - , por entre duas cazotas de corpn-

»'e2 os GATOS

lentos cães dinainarquezes. Um d'elles magro, escanzelado, formidavelmente colérico e auda- cioso, começou a ladrai' ao rei com grandes vozes; emquanto o outro nédio, tendo acabado

um repasto de ministro, se viera arrastando a um aceno da luva moderadora, ate ás grades da jaula, na esperança de passar a língua hu- mildemente, por cima d'aquillo que mais con- dissesse á vontade real. . .

Dizem que S. M. se voltara então para a rainha, e a meia voz dissera, apontando-lhe c'o beiço alternativamente o mastim fero e o mastim sarrafaçal :

São assim todos, antes e depois de co- mer.. . na Ajuda.

Estahaveria sido talvez a única palavra on- de o sarcasta revelasse a convicção da sua esma- gadora superioridade moral sobre os demais. Habitualmente o rei comprazia-se em vencer sem honras de guerra, em conquistar, mas sem exhibição de prisioneiros, certo de que quan- to mais se apagasse por traz do seu biombo constitucional, tanto mais a influencia da co- roa iria crescendo sobre a matulla dos homens públicos histriões dos seus estados.

Assim elle poude ascender som protesto.

(is GATOS

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lentamente, seguramente, de simples orago Dominai da egreja politica, á <i":,si omnipo- tência «rum Jehovah conciliador mas firme, bonacheirão mas gajo, distribuidor de todas as graças e fortunas politicas, mola real «I»1 todos os manejos, e poder occulto de todas as situações. Com mais rigor ou menos, eu po- deria dizer «í1"' " Estado foi elle, durante os vinte 6 oito annos que reinou.

Não que parecesse tolher Q'alguma coisa, a observância formal da constituição que re- ge as attribuições e funcções de cada poder do Estado! Não que jamais cuidasse em facultar ou impedira este ou áquelle, o exercício legal ,l,i auetoridade! Nem que violado bouvesse alguma vez o património commum da liber- dade, iM» que ella tem de sagrado, a opinião, expressa pelo voto, pela palavra ou pela es- cripta. 0 respeito real por todas aquellas re- galias publicas, a que está >\>- guarda a lei politica, tinha o ar de ser vivo e indiscutível. Era um escravo da formula. Mas contradicção estranha ! apezar de todos os seus rigorismos de praxista, nem sempre, durante o seu rei- nado, foi a constituição o Evangelho do po- der; oem o sunragio quem indigitou sempre

(,< QS GATOS

os homens para a direcção dos negócios pú- blicos; nem o mérito quem por direito de 9on- quista se revestiu nos cargos de importância ; nem as honradas famas que atiraram para a •ainara real, os conselheiros; nem tam pouco o culto da opinião (piem conservou no mando, ••> despeito dos clamores geraes, os funcciona- rios puídos pela suspeita de crimes hediondos. Elle affastava ou approximava os partidos, conforme lhe convinha; prolongava ou encur- tava nas mãos d'um grupo, o exercício do po- der, conforme lhe fazia conta; e moderando a impaciência d'este chefe, com deferências do- seadas sabiamente... uma partida de bilhar na Ajuda, meia hora de conversação n um Jo- gar publico...; desviando suspeitas de favori- tismo d'aqueiroutro, por uma espécie de fuga simulada, para o lado da facção politica con- traria; contrabalançando um esbanjamento de dinheiros com a fundação à'uma obra phi- lanfropica; escamoteando a sentimentalidade publica com uma visita a um palco de misé- ria, a instituição d'um premio litterario, meia dúzia de coisas lacrimosas escriplas num jor- nal d'incendiados, ou a postura d um crachá no peito d'um comediante em ovação... Sim»

06 GATOS ou

o Estado foi elle. Nos seus mais complicados fuDCcionalismos, nas suas dependências remo- tas, oas suas minuciosas attribuições. Foi elle! Muito embora as praxes constitucionaes não fossem violentadas, os ministros guardassem o aplomb de verdadeiros administradores, e a Carta esfregasse, por debaixo do avental, as mãos de satisfeita. EUe era ao mesmo tempo poder moderador, suflragio <i camarás, aca- demia das sciencias, ministério de beneficên- cia, exposição de carneiros na Tapada, e exposição de chitas na Avenida. Absorvia in- do, substituia-se a tudo, estava por detraz de tudo. E n*iini jantar intimo, pintando a um amigo o lastimoso estado do paiz, a decadên- cia das instituições, a feita d'iniciativa, o res- valo da probidade cívica •' familial, o velho Rodrigues de Sampaio disse uma vez:

Portugal boje, é o rei.

Ninguém synthetisou ainda esta choldra mais fundo nem melhor !

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Dado o prematuro fim de D. Pedro v, po- deremos dizer foi 1). Luiz o nosso primeiro rei constitucional. O seu reinado é a adapta- ção infeliz a um povo de mariolas, d'um d'es- ses systhemas políticos theorioos que a Ingla- terra impingiu, nos começos do século, aos paizes da Europa seus subordinados, sem pri- meiro indagar se filhos de homens governados a podei' de chicote, estariam aptos ;i espojar sob um regimen de liberdade, outro modo de vida que uào fosse o do desaforo e o da licença. É o tempo em que uma aristocracia decrépita, copulada por uma democracia impúbere e desorientada, pare de si um estranho mundo d'androgynos e de frustes, e cm que os mal- feitores fugidos dos pinhaes não atravessa- dos por seges de posta, vem de casaca e de

farda, com gran-cruzes ao peito, roubar no próprio portal das instituições, os transeuntes.

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Por toda .1 parte formulas luminosas, evo- hés ao direito, estatuas de bronze ao devota- mente e ao martyrio, hymnos á sciencia, e á ignorância prédicas, e á intelligencia coroas e

>es.

... Em 1862, abertura da Escola Normal; exposição do Porto em 65; em 67 abolição da pena ultima; em 69 abolição da escravatura; estatuas a poetas, a legisladores, a guerreiros, i patriotas; travessias e estações civilisadoras m' africa; caminhos de ferro, centenários, fes- tas agrícolas... Dir-se-hia o alvorecer d'uma era de oiro. este reinado. Uma espécie de res- surreição 'I" século de Péricles, em que os ho- mens fazem o balanço de todas as ideias, pro- mulgam em dictadura a realisacão de todas as utopias, e vão lançando o veio decisivo, sobre os que bemereceram da pátria e da hu- manidade.

\ cada momento se espera ver realisado

aquelle ideal de pau qp - Goncourts so-

nham m'uma sociedade que fosse uma aris- tocracia de capacidades, aberta a todos, um

rno promulgando ;i extineção da miséria .• da valia eommum, decretando a religião ea justiça gratuitas, instituindo o ministério '!"

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soffrimento publico, empenhado cm dar á in- validez c á doença, uma hospitalidade admi- ra v< d.»

Oh, mas que de chimeras e mentiras !

Aquelles ostentosos credos das borras, afi- nal não vão alem dum reclame feito a publi- canos. 0 humanitarismo romântico dos dis- cursos e dos livros, não passa afinal (rum travesti ridículo do egoísmo. Promulgam-se roi/as sublimes, mas nunca se praticaram coi- zas mais abomináveis. Sim, é verdade, nós sacrificamos á justiça,— o que nos não impede dYsperular c'o privilegio. Exaltamos a intelli- gencia, mas vamos deixando ao abandono os sábios e os artistas.

Fundamos asylos, mas prosliluiinos as mu- lheres, e attentamos contra o pudor das crean- cinhas. Abriram-se escolas— magnifico ! mas quem está ahi que saiba ler? Os con- dcnmados uào padecem a pena ultima ; mas padecem a penúltima, que lhes prolonga 0 marlyrio, e é peor. Não lia escravos if.Vfri- ca : ha-os mais perto, aqui nas ofíicinas de Lisboa. Estações colonisadoras no Nyassa... que é uma coisa que falia ainda nos descam- pados do Alenitejo e Traz-os-.Monles. Caminhos

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de ferro : resta agora arranjar mercadorias e passageiros. E quanto a festas agrícolas, <inr bem cabidas seriam, n'um paiz que pelo me- ãos tivesse, agricultura !

\ pavorosa descrença que hoje irapalluda tudo, e afugenta os tímidos das batalhas da vida, ao conluiar-se á cubica, ganha uma es- pécie d'audacia fria e fauve, que desatréla ua escalada da riqueza <• do mando, <>s audacio- Vs classes dirigentes povoam-se de theo- ricos que ninguém ouve, e d'especuladores e bandoleiros que todos lemem.

\ politica é o balcão em que se vem reba- ter por cédulas d'empregos e honrarias, as mais bellas forças creadoras da uação ; e mer- ,\n bom preço das consciências, n'aquelle mercado d'estrume contemporâneo, eis-nos assistindo á deserção dos homens cultos, de todas as profissões nobres e finas ; eis-nos tes- temunhas da 'mania de todas as actividades so- s iinlrii.ihl.-uir>. sciencia e artes, mercê dos engajadores políticos que todos os dias nol-as desguarnecem dos engenhos que me- lhor poderiam fazel-as caminhar.

quinze annos, a ambicâ de nós to- dos í ser rico, seja como for : e ser ri<"'> em

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Portugal é hoje quasi tão difíieil como ser honrado. A vida eomplicou-se d'exigencias, sem grandemente alargar os praseres que lhe deviam de ser correlativos. Subiu o preço de tudo, e á medida que o struggh se faz cada vez mais inquietante, o campo em que elle se exerce cada vez é mais safaro e improductivo. Por toda a parte, a pequena industria absor- vida pelo monopólio; a posse da terra resva- lando das mãos do camponez para as màos do syndicato; o braço da machina substituin- do o braço humano; o estrangeiro senhor dos nossos portos, dos nossos rendimentos e dos nossos campos; e o povo emíim explorado por todos, pelo padre, pelo recebedor, pelo deputado e pelo rei, sem recursos com que valer ás plantações phylloxeradas, sem igreja <»nde a religião de seus pães lhe custe apenas a fé, sem lhear que o vista, sem escola que 0 ensine, sem hospital que 0 íracíe, e sem a geira de terra que o sustente.

Nas próprias escolas superiores, a mocida- de, perdido o sentimento da bierarchia scien- fitica, e a consciência d uma missão superior ás pequenas misérias do dinheiro, segue os cursos sem enthusiasmo, pelo fim d'arran-

OS kTOS ~\

}<ir-<i\ e zombeteando o espirito da profissão ,-i que esses cursos dão direito.

A scteneia resvalou assim do seu pontifi- cado espiritual »' supremo, a uma espécie de forja onde se malham em vez d'engenhei- e legistas, simplesmente imberbes aego- ciaveis, particularmente cynicos e servis, arti- gos de corruptella, < [ nc as famílias vão empe- nhar depois as companhias de caminhos <l«- ferro e aos comités eleitoraes onde aquella farraparia tem valor. Coimbra por exemplo, tem o monopólio dos oradores (a); Lisboa <v

na legislatura d'este anno vem á camará de vinte e <>it" ;i trhita bacharéis novos em folha, e ainda nem sequer desencasqueados das bencias da batina universitária.

É conhecida a historia do conde <l<- Valbom en- saiando o filho, nas ferias do primeiro anuo de 'li- .1 discursar contra um governo imaginário,

Fornecendo elle mes os apartes, para acostumar

sangue frio. Tanto o menino estava certo do destino alto com que o futuro viria lardoal-o, que inda de fraldas .

ira que anda a estudar o meu lindinho? untou-lhe uma vez o conde da Figueira. V<< minito.

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Porto reservam-se o fabrico de financeiros e jornalistas.

E sobre estes ires typos de rufiões era vo- ga, o agiota, o fallador, e o artigoleiro, é que turbina, graças á apathia de cinco milhões e meio de portuguezeSj o moinho politico, onde durante vinte e oito annos i'ez farinha o ex- ibido rei.

Estabelecido que tudo em Portugal corre ao dinheiro, não vale apontar que a todos so- breleve em importância, o agiota, e este tenha nas suas mãos o artigoleiro eo fallador, tanto monta dizer a imprensa e o parlamento, e atravez d'elles, negue o diabo se pôde a mo- uarchia.

E verosimilmente o que acontece: jornaes e camarás, quem não fôr do conde, ser do

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marquez, e quem Dão fôr Hersent, ser Bartis- sol. Entanto esta batota publica sempre leria ura ar menos devasso, se as cautellas apa- nbadas no bolso dos políticos, pour la reussi- /• </. Vaffaire, traduzissem ao menos o advento de capitães portnguezes á execução das loucas obras que os ministros fazem votar. . . para a i dos dotes de suas (ilhas, e para o cos- teio dos bric-â-bracs de suas esposas. Mas nem sequer esta consolação resta ao paiz !

A iii la empenhada n'aquelle phrenesi de

corromper funccionarios, para construir por- tos que estragam os rios, e caminhos de ferro que estragam passageiros, toda ella ou qua- si toda vem de fora. Mandam-na as judiarias de Paris, os banqueiros d'AHemanha, eos la- drões de colónias de Inglaterra. Ella soa nas do parlamento, nas diatribes dos periódicos, e nas concessões secretas dos mi- nistros; tremula no pau de fileira d e nos formidáveis titans dos novos poi letra-se na magnificência dos contractadores d'emprestimos, e na prodigalidade insólita de certos jornalistas. Funda sem escrúpulos, por onde quer que passe, o regimen dos trinta di- nheiros, e a sua tentação, que rola dos gene-

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raies aos mais somenos pows-íwows do exercito politico, afunda em dilúvios de lama as sagra- das conquistas da liberdade, e o luminoso prestigio entre que devera aureolar-se a ideia

do Poder !

A citarão de fados n'este ponto, além de repisar infâmias conhecidas, serviria a nos grangear conflietos pessoaes. Quem reler os jornaes dos últimos nove annos, quem recor- daras legislaturas dos últimos quatorze, quem st> fizer dizer ao ouvido os preâmbulos de certas fortunas, e as biographias de certos nomes, por demasia se illustra, á guiza de concluir que nós somos verdadeiramente os netos dos aventureiros por quem o snr. I). Pedro iv repartiu, como recompensas de guer- ra, os pedaços do reino usurpado á progeni- tura, e os filhos d'aquelles deputados que Ro- drigo da Fonseca comprava feitos, pela ra- zão de lhe sahírem mais baratos.

D,, resto, é um contrasenso exigir que os costumes políticos sejam melhores que os par- ticulares. 0 parlamentarismo não falhou entre „ns, por mau regimen, mas porque não ha formulas efíicazes para nacionalidades caducas como a nossa.

S GATOS

Conclue-se d'isto a deliquescenci i da vida portugueza, dos seus du] los aspectos da com - ciência e da moral. começa primeiro uma separação completa e desdenhosa entre os in- teresses da grossa massa da população, e os da matilha que reparte entre si os dinheiros

rendas publicas, e se crapulisa n;i porfia

adalosa do poder. Vè-se em seguida a in- differença publica crescer em matéria politica, os jornaes serem lidos por passatempi

remo serem mencionados como uma variante d'anecdol is obscenas, a politica armar em profissão sem hombridade, em im- pune chantage, e jornalistas e homens d'i do enfileirarem, uo conceito - . I <> em ratoneir --'nus.

Os bem intencionados apressam-se a aban- d mar ao seu destino a causa publica, como \ icente Monteiro e Consiglieri, por não serem

tes oem cúmplices dos crimes de leso-povo que sob a égide d'ella se commettem. Virá um dia em que o povo desnaturado por todas aquellas lições de compra e vend . farto de ludíbrios e vexames, abdique por fim do seu ideal d'autonomia, | erca .1 noção de solo, en- cha d'escremento as p iginas da historia. . . <•

7(í os GATOS

permitia Deus que o não ouçamos bramir, com desesperada voz, aos echos da fronteira :

Livrem-me d'esta canalha que me fez odiosa a liberdade, que em paga d'isso aqai lhes offereço a minha servidão !

Sobrepujante á sociedade irremissivelmen- te frasearia que pintei, o papel politico do snr. D. Luiz haveria por força que seguir alguma das versões que vou dizer.

Ou o rei se tinha proposto a corrigir autoritariamente os desmandos, pondo no throuo uma espécie de continuado de seu ir- mão D. Pedro V Ou participava da orgia dominante, consentindo nos saques, para á sombra d'elles gastar folgadamente Ou ten- do sondado a índole do povo, c os caracteres dos servidores e homens públicos que o cer-

OS GATOS 77

cavam, emprehen lia, como elle fez, uma obra d'absorpçâo centrípeta, matreira, paciente, en- tre os differentes círculos da vida social por- tugueza e «» throno, posto como um foco de crístallisação, no centro d'ell<

Nenhum homem fino, está claro, haveria seguido as duas primeiras. A da violência, porque ella sobre não ter fundado nunca uma obra perdurável, daria de si a formação quasi instantânea d'um grande partido hostil á realeza. \ da crápula, porque além das con- sequências vacticinadas â primeira, acarretaria ella mais uma, funestíssima desgostar a Eu- ropa dos Bragancas, e taeHhes perder as ami- sades que sempre teem ligado os uossos prín- cipes às velhas monarchias.

Não houvesse outro testemunho das facul- dades 'I" monarcha extincto, a simples linha conductoríal de seu reinado bastaria para con- duzir o medico nevrista nostico d'um cérebro archi-perfeito. Era um intellectua! : demonstrai a sua habilidade politica, revela- da pelo modo qne atraz ; muito melhor do que a cobardia physica do seu animo, do que as suas aptidões de musi :o, do que <iv- seus ii-! i. e <1" que a

78 OS GATOS

sua prodigiosa vocalisacão de polyglotta. .Ja- mais esses olhos de gomma, esses olhos d'agua, sem fixidez de pupilla, esses olhos de retrato e dMdolo, que rolavam o olhar sem ponto áti mira, e olhavam p'ra dentro, p'ra longe, para toda a parte, excepto para a coisa em que apparentavam tixar-se; jamais esses olhos ao envolver um homem, deixaram de tirar d'elle a prova real d'um talento ou d'um caracter e em qualquer (Telles, sendo possível, forcejava o rei por abrir um canto de sympathia onde installar-se, como senhor ou como camarada.

Tão agudo era por fim este. propósito seu de seducção, qtíe muita vez elle dispensou OU reduziu a etiqueta, para mais directamente hvpnotisar, por via democrática, a gratidão on a fraqueza dos indivíduos de quem desejava approximar-se.

A collaboração da rainha foi neste ponto d'iima efficacia suprema e incomparável. Pou- cos mònarchas da Europa haverão tido com- panheira mais intelligente, associada mais há- bil, e comediante mais finamente senhora da marcação thronicia, e da mise-enrscene dymnas- tica.

No jogo d'ella, nada vtflgar, nem mesmo

os (. VTOS

79

as brasquerias, Dera mesmo as palavras sol- . nem mesmo as toilettes ' s da sua

ultima phase de mãe de filhos homens. Sobre um throno dMmperio, esta mulher tiraria sem duvida como um modelo de grande imperatriz. Dizem-no a sua indiscutivel grandeza d'animo, a sua orgulhosa comprehensâo do prestigio real, a transcendência rara do seu typo, mol- dado para o throno com um inolvidável poder d'offuscação, e mais que tudo as suas súbitas intuições da magestade moderna, que é ioda artificial como uma creação de theatro, e no entanto continua a esmagar ainda, sob as rodas do seu carro, as desgraçadas e cegas multidões.

Quantas vezes, o animo do rei, ao ir hu- milhar-se e transigir perante a ameaça d'uma conspiração politica, ou d*um violento ataque dos jorn tes, encontrou a seu lado essa varo- nil figura a ordenar-lhe energia, e a sustentar ella as prerogativas da coroa enxovalha- ,1 r; Em !'•» de maio, quando <> Saldanha su- l,i.i ,i Vjuda, acaudilhando tropas insurrectas, <■ terror do rei f<>i a tal ponto, que se fechou i)'iini cubículo dn paço, sem força quasi para articular uma palavra. \ raiana veio ter com

80 OS (ÍATOS

o marido, incitou-o a resistir contra Iodas as intimativas que representassem menoscabo á magestade; c vendo-o passado, branco, gague- jante :

O senhor é um m... ai quem podesse descer á rua com unia espada !

N'este reinado neutro de vinte c oito an- nos, podre de paz e de costumes, com tam- pas il'oii'0 sobre catacumbas de miséria, e vil- lanagens odiosas sob apparencias de progres- so e d'egualdade, duas figuras apenas conse- guem romper a chatinagem commum, aspirar á consagração da estatuária, e adquirir por vezes a grandeza histórica de typos domina- dores e extranormacs. São a rainha, e Fon- tes, os dois verdadeiros mestres, os únicos sinceros amigos que teve S. M. o rei D. Luiz.

Maria Pia ensinou o marido a ser rei. Fon- tes Pereira de Mello ensinou seu amo a ser politico. Pelas lições do ministro, aprenderia o monarcha a respeitar as apparencias quanto á lei, e a substituir-se aos partidos, no ponto em que a acção dYlles ia sei' nulla, ou amea- çava tornar-se contraproducente ou perigosa: isto sem os desprestigiar jamais á face da na- ção. Assim cuidámos ler sido governados,

os GATOS 84

D'esses vinte e oito annos, que os jornaes of- Qciosos chamam progressivo*, unicamente | ><*1;» vontade collectiva, expressa pelo voto, e resu- mida aos charivaris do parlamento, e nas

nem sempre paciQcas do conselho doestado quando era o rei quem fazia pender a ba- lança, as mais < 1 ; i s vezes, pondo n'um prato o seu veto de senhor inexpugnável, embora bran- do de gesto, e cordeal e meigo de sorriso.

Com os seus conselhos, Fontes deu-lhe força. Com r sua uobresa, ;i rainha impòz-lhe auctoridade. Expira o ministro, mas a rainha fica, e é ainda ella quem galvanisa esse vale- tudinário cada vez mais sceptico dos homens, que de bom grado passaria o resto da vida a interpretar Sakespeare n'um canto de biblio- theca, ea dar vasante pelo amor ou pela mu- sica, i porção de sonho que d'Allemanha lhe trouxera o romanesco sangue de seu pae. Ex- pira o ministro, e o rei então comprehende que se a vacuidade ambiciosa das camarílhas politicas que o cercam, lhe permiltira arro-

je até alii o papel de primeira e única loi- ça inabalável do paiz, é essa mesma vacuida- de quem d*ora avante o impedirá d'aglutinar os homens em partidos nítidos e estremados,

<S^ os GATOS

de fazer mover a engrenagem constitucional sobre roldanas solidas, de dar á representa- ção nacional nina sombra sequer de legitimi- dade—porque se esfarella indo em igrejotas

de seis e sele, postos de roda d'um balofo, proclamado em família chefe de facção.

Mercê (Testa dsgringolade snccessivamcntc affirmada em quatro annos de cadeiras parti- das, de discursos pulhas, e de composições e si- zões para a direita e para a esquerda do antigo partido fontista, ahi temos thronando um dos compósitos ministeriaes mais heterogéneos e peores que leni havido, porque governam o paiz as esposas e as filhas dos ministros, em- quanto <>s maridos e <»s pães andam pescan- do, nas alias e. baixas de fundos que elles mes- mos provocam, a fortunasinha arranjada de combinação com os banqueiros.

Tivesse o rei escutado a voz da espo- sa, naquelle memorável conselho de mi- nistros, uma tarde, quando o gabinete atur- dido ptdas terríveis accusaçòes feitas a um dos seus membros, ousou supplicar da coroa, dizem, a iminediala amputação do aceusado : e não teríamos assistido a essa barafunda medonha de processos, represálias exerci-

OS GATOS ,S'»

das contra adversários, sobre o testemunho de minutas duvidosas ; de copias photographi-

documentos officiaes, mandadas tirar aos volumes, pelos ministros, como arma de vingança contra futuras accusações; e a toda insolente prosápia que se lhe vem seguin- do dopois, fundada na impunidade d' uma pri- meira absolvição, e ameaçando impor-se em dictadura á do rapazolla recem-coroa-

[ue ahi está no paço de Belém, á espera do primeiro ensejo p'ra debutar com uma to- lice.

untar-me-hão agora se o senhor I». Luiz foi !>"ni ou mau, como soberano. Bom, dada a espécie de gente que o cercava. Pe - simo, quanto á ruína <1" paiz, que o seu rei- nado adcantou mais què uenhum.

D'elle se conta <ill('- sabedor <l;i^ eiupal- manças que lhe fazia o medico, u'uma pre-

i\n de charutos, mandara occultar- Ihe na tampa um apparelho de musica, que desandou a tocar, d' uma vez em que o vicioso doutor tentou abril-a. Isto define talvez i sua attitude sobre o throno, qne foi b d'um in- telligente bem intencionado, frouxo é verdade, mas eh ;" do respeito de sen cargo, e cons-

84 96 BATdfl

ciente das altíssimas responsabilidades que impendem â corna, como fiadora das institui- ções e da ordem nacionaes. infelizmente elle Dão podia esconder realejos d'alarme na lam- pa de Iodas as concessões e contratos do sen ministério, attento o barulho infernal que isso faria a Ioda a hora, em toda a parte, e por to- dos elles. Qualquer linha, de condueta diversa d'aquella que pessoalmente seguiu, haveria precipitado irreparavelmente a nação em ban- carrota politica e financeira. Entanto o seu rei- nado escora apenas nina obra de presente, e não deixa um raio de luz que atravessando a historia, recordar o seu nome á civilisação. Foi ephemero, deletério, sem ideal, sem hom- bridade. Do seio dos costumes políticos, que elle talvez pretendesse adoçar, rebentam cada vez mais paixões ignóbeis. E d'aquelles vinte e oito annosde parlamentarismo não fica um orador; de lautas pugnas jornalísticas não liça um ar- tigo; da litteratura que elle apadrinhou, não lica uma pagina; dos artistas que protegeu, não fica um quadro, uma estatua, um edificio; e d'essa alta finança emfim, que fez no seu reina- do a chuva e o bom tempo, não restará sequer um perdulário de gosto, ou um philantropo.

.is ., nos 85

Fechando o casa.

0 rei que vem, tergiversa do pae, ou con- tinua-o? Saltando para a tipóia do throno, eil-o entra na Ajuda governado i><'l<> snr. José Luciano, o mesmo sereno que .naba '1*' levar a S. Vicente o rei finado. É mau começo !

Emquanto simples janota, o snr. I>. Car- inha uma certa graça ao interpretar a co- roa como uma espécie de chapéu de coco, em oii... que se passeia em trens de pra

,'i catita nos beijamãos de que reza o ka- íendario. Mas depois d'aclamado, o caso muda: ;i coroa pesa, e o janota, ou a põe como deve, ou '- mbora. Vida nova numa Be fez

com gente velha.

86 OS GATOS

Seguada-feira -2! d'outubro, pelas 10 ho- ras da Qoite, foi o cadáver do rei trazido da alcova mortuária de Cascaes para o grande c iche que devia arrastal-o até aos Jeronymos. Estava uma aoite escura e tormentosa, com ventania e chuviscos ; por forma que a aba- lada da cidadella, á luz «los brandões e dos archotes, foi uma d'estas grandes pinturas a dois tons, negro e vermelho, magnificas para gravar no espirito a nota fúnebre, e para tra- zer a emotividade publica á suasão óptica (1'iiiiia espécie de calastrophe irreparável. Sa- bido da camará ardente, o cortejo desceu as escadas que vem da bateria ao pateo da cida- della, desenrolando-se lentamente, em sUhouet- tes tenebrosas, sobre o fundo da muralha lambida pelo sanguino de chamma dos luzei- ros. Vinha adeante um monte de Sguras, que me disseram ser os imarda-roupas, os moços de camará, particulares e reposteiros, o>m brandões que derretiam de lado, ao revolu- teai' dos fogachos torcidos pelas inquietações da ventania; e logo apoz o grande vulto da tumba coberta de velludõ roçagante, e trazida

cm padiolla por archeiros fardados de verme- lho e d'amarello. A<piel!e enorme caixão vinha

o- GATOS

S7

sem pressa, e d'aonde eu estava, parecia <in,> alguém por detraz se lhe tinha agarrado á ca- irá, como quem se abraça, desesperado, ;i uma jangada que vem de rustilhão, por uma cheia.

Era a rainha.

Grande e de negro, com uma cauda de lastima e um grande veu de musa da trage- dia, essa mulher tinha no porte a formidável rigidez com que a dor cadaverisa o orgulho humano, e esse prestigio hierarchico, araplis- simo, grandioso, que mesmo aos sceptieos se impõe como um retoque de Deus sagrando as is pre lestinadas a eternamente intervir nos destinos dos homens e das nações.

An lado d infante, o filho amado, o queri- ib <; i, o mais que todos real e galhardo gentilhomem da família esse de roda a ruja impetuosa mocidade, franqueza rude, e lim- pidez serena de caracter, todas as sympathias acordam, como em presença d'uma Ggura des- herdada por engano chronologico, da fortu- na politica de ser rei. . . E vem depois minis- tros, açafatas, padres, gentishomens : aquil- lo tudo espalha-se com altitudes phantasmati- iteo, 1111111 circuito piedoso que é

88 os GATOS

uni drama de tinta da China e vermelhão, á Luz das tochas quando de vagar um coche avança, os padres se achegam murmurando as encommendações do ritual, e o athaude entra por fim dentro do cano, qo meio da estropiada da cavallaria que se põe a cami- nho, pela estrada de Lisboa, da sotiirnidadc da noite (pie amadorna as alturas, da impa- ciência do vento que faz bruxulear as cham- mas dos tocheiros, e da melancholia do ocea- no, phosphorente, alli perto, a cantochar o psalmo das grandes agonias apasiguadas em- liui no seio da morte !

Lenta, mui lenta, a procissão caminha pela estrada, abandona o povoado, entra nos cam- pos; a rainha fechou-se n'um landeau, os di- gnitários fizeram o mesmo; os eivados vão de roda ao carro fúnebre, espalhando o cre- púsculo das luzes, palmilhando a lama de bi- corne, vestidos d'escarlate e d'amarello co- mo arlequins. A cada passo, uma casa entre- mostra-se nas arvores, um portão de quinta entreabre-se, luzes avançam, e é toda uma fa- mília <pie desce a receber o enterro, attonila da mistura de grotesco e de trágico que elle repercute. Depois percorrem-se ainda novos

OS GATOS 89

campos de sombra, atasqueiros medonhos, miI.is ásperas entre rochedos e muros : e ouvem-se <>s cães latir funebremente, ha vozi- dos de mochos, e estrondos de canhões longín- quos, que vem sobre a agua, n'um ullular oVespanto e de pavor.

A estrada é difficil, pedregosa, ondulante, ora a eslreitar-se entre barreiras, ora a des- cer tumultuosamente a terrenos do leveda e escusos valles, em que se ouvem gorgear as lymphas dos barrancos.

Nas arvores que passam, desconnexas de forma, em grupos umas, outras destacadas como torres e monstros na côr de cinza do ar, ha como acenos de pantomima e de ga- lhofo. As rajadas do vento trazem do largo rumores não se sabe de que, segredos, bei- jos, imprecações, misérias, lastimas, insultos —todas as vozes das coisas em que ainda ha consciência e restos de pessoas. E quando se I11""' o ouvido á escuta, ouvem-se phrases in- teiras, da terra que tem fome, do ar que tem miasmas, das arvores que uru» querem mais estar captivas, do mar que pede que o lar- guem, para tragar d*mn gole o mundo in- teiro !

i

90 OS GATOS

A obsessão da morte paira na ideia de quan- tos alli vão. Raros conseguem, n'essa aspérri- ma jornada, fechar olho; é uma inquietação, uma impaciência, unia angustia de lodos os nervos e de todos os suspiros, que parece que se tem no peito a pedra d um sepulchro, e que todo o resto da vida se nade passar as- sim 11'aquella treva espessa, empós d'a<pie!!a rainha pallida, comboiando o rei morto, como Joanna a doida, atravez as solidões dos seus estados.

.lá não tem conta as vives que o préstito fez alto, as cabeças vieram espreitar ás vidra- ças dos carros, e cravados em lama até ás cur- vas, os archeiros se uniram p*ra desencalhar dos atascaes o coche mortuário. Longe, n uma zona do ar que deve ser a cúpula de Lisboa, um diiVnsivo rubor tinge de vivo a noite lo-

OS GATOS ÍU

brega. É o reverbero do gaz d'encontro ás nu- vens. E a cada instante, fitando âquella aurora ephemera e movediça, que ll;m avança, nem se caracterísa, nem se alastra, todos pergun- tam se falia muito ainda, impacientes porque lhes finde o pezadelio.

i viuva quer que esse caminho não fin- de, que essa jornada prosiga sem acabar ja- mais, ao vento, ,'i chuva, entre as animalidades chimericas que a imaginação ergue das trevas, entre os soluços da sua alma ulcerada demar- tyrios, entre a agitação dos pânicos tumulares, e Iodas as grandes illusões crucificadas e des- feitas d'aquella sua ultima noite de rainha. Dòr, que deliciosa tu és para essa mulher que ainda tem a coroa na cabeça, qu nulo cila ousa comparar-te ás grandes agonias d'enve- Ihecer amanhã n'um palácio sem c >rte, nem recepções, nem comitivas, alli, a um canto, longe da culminância do throno, - i vohés la imprensa, dos grandes triumphos scenicos de roçagar 1 ;ados e velludo cida tal-

vez pelos próprios miseráveis que ella cobriu de benefícios, e dos dignitários e servidores que fez tremer sob a imperii estão do

seu olhar !

92 OS GATOS

ol, (.onio ella quizera encher esse caminho de círios que fossem incêndios, como ella qui- zera tetanisar esse cadáver de gestos que fos- sem resurreições, e surgir outra vez transfi- gurada ante o seu povo, reviver a existência altivola d'outr'ora, quando em S. Carlos, ves- tida côr de malva, os cabellos magnificos em aureola, via as mulheres invejarem-lhe o pres- tigio, e toda a gente emover-se á incompará- vel distincção da sua estatuária !

I". em terríveis golphões, as suas lagrimas de novo a asphixiam : a camareira toma-lhe a cabeça, de joelhos supplica-lhe coragem: ella alo pôde, ella rebenta; soluços trágicos der- rancam-lhe aarchitectura oobre de princeza, o temperamento hysterico visiona-lhe para alem do real, as contusões da sua grande queda, f dos gritos da garganta, semi^roucos, lè-se a angustia da christã que não p l( afogar em si ;i cólera da rainha impotente para mandar castigar Deus, fano o faria a qualquer regici- da, seu vassallo !

\ cada momento o infante, Inquieto, traz o cavallo á portinhola do landeau, bale nos vidros: os dois rostos contemplam-se.

Petite mère, vas tu bien !

os GATOS 98

Oh, se ao menos este filho mais novo fosse o rei ! . . .

Na lama. os coches ameaçam ficar despeda- çados,as grandes rodas aeravam-se aos eixos, rangem as correias, o gado esfalfa-se, e a fadi- ga dos moços é pelo menos egual á dos muares.

Luzes iiiiiii vale. Um logarejo! õ caminho aplaina-se, e pela primeira vêz podem marchar em préstito ordenado.

A beira da estrada, iUnminados com lâm- padas eléctricas, chalets anisam no cen plum- os cocurutos d'ardozia: ha stores de co- res, salinhas de jantar com arbustos de luxo, pianos abertos, cristaes, gaiolas e tons claros; depois cantos de parqui . d'onde sahe um bu- lício de cascatas e de folhas, portões senho- riaes, alterosos cancellos, grandes palácios mudos como fortalezas: e de todos os recan- tos da noite chegam tochas, homens e senho- ras, creados ainda em avental, bebés que trazem na bocca uns restos de bríoche e de torrada, toda uma população volúvel de praia que tomou chá mais cedo, essa noite, e vestiu ;i pressa o dominó do lucto publico, para as- sistir entre duas walsas, ao que ella inti- tula a chegada <lo cirio de Casi

94 OS GATOS

Á passagem do féretro alguns inclinam-se, d ura murmúrio d' avidez passa nas boccas é a rainha, é a rainha quando o landeau fe- chado entra na zona luminosa do caminho. Todos desejariam vêr o rosto d'ella, tanto a me- moria do publico está cheia de rumores sen- timentaes. . a sua dedicação magnifica, as vigílias no quarto do marido, e das palavras solemnes que ao filho disse, hirta e de negro, estendendo a mão, sem anneis, sobre o ca- dáver. . . Lamenta-se em geral que os focos elé- ctricos tenham estragado o golpe de vista fú- nebre das tochas, 11 que aos iniciadores da recepção não occorresse mandar parar a ma- china, em termos «las lâmpadas ^incandes- cência não acanalharem âquelle ponto, o ves- tuário d'entrudo <los archeiros.

É a rainha! é a rainha! e algumas tochas quasi lhe vem bater nos vidros do landeau, como a chamal-a, para que venha agradecer a proscénio aquella manifestação de sentimento. Ella não sente, ella não ouve : passa indifferente a algazarra e aos commen- tarios. . . é que o seu ouvido bebe, atravez do brouhaha d'esse publico grazina, disfructador, postiço e miserável, não sei que som de pia-

os GATOS 95

nu. i,'i longe, lento e abafado entre os arvore- s, um som de piano hostil, que nem á pas- sagem do rei morto <illiz calar-se.

j"; é-se talvez feliz I Srr feliz. . . aonde? como? E esta ideia molesta-a por fÔrma que as -nas lagrimas rompem outra vez, u'um cho- ro manso, agora sem soluços, sem queixas, íuima eflusão de ternura súbita, fundente, choro de mulher emfim desilludida das arti- Qciaes condolências de quem, mesmo ao inte- ir-se por lastimas d'outrem, por mais que queira, Qca totalmente estranho á essência del- ias.

Oh lagrimas puras de rainha desilludida, que te resolves alfim a ser mulher! Deus ha- verá pesado essas amaríssimas horas da tua fraqueza, e permittido que tu, não podendo entrar na immortalidade por mercê de gran- ., i menos Qques na memoria dos artistas, como uma translúcida visão '1" femi- nino eterno e do ireal !

% OS GATOS

Outra vez o cortejo entra na noite, e pro- segue entre os clarões <]<>s archotes, a sua va- garosa marcha mortuária. Na frente ha um

esquadrão de soldados a eavallo, moços com fachos, e logo em seguida os trens num gran- de renque, após dos quaes vem o landeau da

rainha, o coche fúnebre e o carro de respeito, fechando tudo com as gentes do infante, e outro magote ainda de creados a eavallo. AqiiHIa lenta cobra engolpha-se, coleando, na escuridão phantastica da estrada, onde o cla- rão dos fachos deita instantâneos golpes de vermelho. Á direita, por baixo dos taludes da rocha, o rio resfolga : é uma planura densa e alcatroada, linhas dYspunia e phosphoro nas

ondas, fervores e fugas, galgões, açoites, o

para além d'agua, uma grande barra de mon- tanhas, esbatida a nankim sobre um cen d'es-

66 GATOS 97

ponja, onde escorregam franjas gigantescas, em todas ;>s gradações do cinzento lívido das nuvens prenhes d'agua. Da esquerda, abruptos socalcos, despenhadeiros 6 ranhuras de cal- vários, onde alguma arvore se estorce às ra- jadas do vento. E para além, charnecas ala- gadas de tinta, sem luzes, sem perspectivas, sem arvores, d'uma desolação perplexa, a res- sumbrar nostalgias d'ossuario. Dir-se-hia nina paysagem do rei Lear, a três cores opacas e infundiveis, negro, o vermelho e o pardo, e nenhum horisonte mais que a névoa, e ne- nhuma decoração além d'aquellas núpcias orgulho e da morte, arrastando-se ao passo dos cavallos.

Carcavellos. A estrada internou-se pela terra, deixamos d'ouvir o rio, e n'essa cam- pina raza ha ura silencio de campos sem cul- tura, que o latido «los cães apenas atormenta. Alguns pinhaes mais além, gemem ao longe; depois a estrada enterra-se entre muros de quinta, galga pontes vetustas, lançadas por cima «li1 riachos; passa-se o arco, e Oeiras apparece. Novos archotes, gente ás janellas, luzes, magotes de povo ao longo da rua irre- gular por onde o enterro passa. . . Depois, tor-

98 us GATOS

nam-se a ouvir os marulhos do Tejo, pela di- reita, ;i dois tiros d'espingarda, e alvejam co- mo montanhas d'ossos, a um lado e outro «lo caminho, os depósitos de pedra dos canteiros de Lisboa. Entra a chover. A.s grandes franjas de nuvem que zebram o ceu, parece que se alongam cada vez mais, como enormes crepes. Por momentos dil-as-hieis miragens d'arvores gigantes, cryptomerias, copressos, wellingto- uias, todos os monstros da flora anti-diluvial dos velhos continentes, com a sua sensação de pesadello subterrâneo e mina de hulha, a sua luz hyperborea, e a frialdade medullar que infundem as grandes obras da natureza em via de regressão ao eterno nada. Caxias, Gibalta, Boa Viagem. . . uma vida começa a trepidai' a'esse muda longiquo arrabalde de Lisboa. A estrada vae quasi toda á beira rio. lia poucos arvoredos, mas os jardins abun- dam, fechados em muros alvos, os chalets abrem os olhos pelas persianas das janellas,

tornam-se a vèr salinhas confortáveis, inte- riores de família, nurserys claras onde as creanças de bibe tomam chá, ou adormeceram

nos braços das poltronas: e de repente, no alto da Boa Viagem, <> panorama do rio abre-

06 GATOS '•,'->

mi leque, na aoite, entre Ires fogos <!»■ pharoes— Cacilhas, S. Julião, e Torre de Be- lém!

Rembrandl apenas, ou Domingos Sequeira, poderiam dar n impressão do que me passou pela cabeça, n'aquelle morro calado sobre <> mar, às duas horas d'aquella madrugada d'ou- tubro, sol» a chuva e o vento, e os aspectos trágicos da natureza e dos homens conluiados na mesma conspiração de bello-horrivel. É qaasi certo que me liei-de rir amanhã d'estas visões, cujo fundo d'assombro não existia lal-

senão na febre gestadora do meu cérebro: entanto é extraordinária ;i epilepsia com que a imaginação começa a esfuriar-se em certas lioras, e larga, das cavernas do medo, bes* tiario ila allucinação doida e disforme ! Sobre a planura d'agua, em baixo, nm

imento ascencional d'ebullição fazia-se na sombra, um rumor de diluvio mt eut prestes a engulir d'um salto a costa e a terra: aquillo crescendo em vozidos roucos, da bar- ra, como um tropel de loiros furiosos: quan- do por cima, nutro bestiario maior rolava já, <li' nuvens lobregas, d'animaes-demonios, de

a talhados na turgencia da deformidade,

100 OS GATOS

larvas e sphinges, morcegos e pantheras, mis- turando espécies incoherentes, as viscosas ás córneas, e o todo a esfarrapar-se em chuva

SObre a cabeça das coisas que locava. Aqui e

além, fanaes que por instantes se somem : phosphorencias que voam, como fogos-fatuos, sobre a crista das ondas; ou súbitos relâm- pagos, a que succede uma Gada d'estrondos de canhão... E das bandas da terra, a mes- ma indecisa abundância de negrumes, sem si- lhouette, imbricados mis nos outros como ar- dósias, e obliquando-se, em sinuosas linhas, á agua. São terras lavradas, parques, fun- dões adormecidos, charneca, solidão . . De- pois uma serie de manchas lívidas, sobrancei- ras ás informes corcovas d'essas trevas, a tre- pidarem d'incertas claridades: e por ultimo as raras, as fugitivas zonas luminosas... o re- verbero d um candieiro ífuui muro branco, o braço (ruma torre, hirto no ar aquillo sus- penso em attitudes de capricho, e entre esse ruge-ruge de vida invisível, que é á noite, a

respiração dos sítios habitados.

I)'ahi por deante, é Lisboa. Successi- vamente a estrada povoa-se de gente, ha candieiros de petróleo nas janellas, carro-

OS GATOS 101

e burros de lavadeiras do caminho, po- li s pateos, nas tabernas, á porta das estala-

. QS.

Cruz Quebrada: nova recepção com bran- s, mi bairro dos chalets. Seguidamente o c >rtejo faz a sua entrada no Dafundo, passa . itre o jardim publico e as residências de campo que alli ha, entra em Algés ao troar dos canhões da bateria, avança ainda pelo corredor do Bom Successo, e vem apontar fi- nalmente ao arco, como uma scena de Hugo, interpretada a guache, por Gustavo Doré.

\ chegada aos Jeronymos é lúgubre, o resmunga : ha nevoeiros que fecham o jonte, e envolvem n'uina gaze alvacenta, g lampeões ; e cada vez mais o ceu rebate sobre íCtos, ventre á t>n- . o seu chuvisco fino e enregelado! Da fachada L.r<>iliie;i da igreja, ama- n Ho ferrugem, que dir-se-hia feita d^ssos ca- riados, apenas se lobrigam na luz dúbia, aos lados do pórtico, grandes janellas esguias, cu- jos vitraux choram vermelho e azul, em gran- gottas, e a torre bysanthina de Cinatti, i no angulo solido do edifício, como a

[02 os &AT0S

thiara d'um papa sepultado dentro, aos pés do altar.

Do sitio em que eu estou, aquella thiara immensa occulta-me as primeiras torres dos dormitórios da Casa Pia, e um grande bocado ainda de muralha: e vejo longe, dois phantasticos laivos perderem-se uo ceu cin- zento, brancos e linos, que são as outras duas torrellas octogonas entre que se abre a en- trada paia o Museu Commercial.

Dentro, na igreja impossível d'esclarecer cnii! luzeiros de lâmpadas e Inchas, uma sa- grada penumbra erra nas naves: ha pavores seculares, restos de lendas trazidas das via- gens, demoninharias medievas, nos escani- nhos das capellas e dos nichos: e pela abo- bada alta, artezoada em caixões de bordos salientes, figurando rozaceas, cruzes e xadre- zes, turvos vapores osciilam como incensos, apagando os relevos, prolongando mais a des- mesurada altura tias columnas, e locando tudo do quer que é d'apotheotico e d 'incerto. Aparte a capella-mór, todo o templo está limpo de decorações e d'ornamentos, e conserva, á luz

(iv GATOS 103

das velas, a sua Qudez monástica ©grandiosa. E é magnifico vèr todos esses columnellos pallidos subirem, alados quasi á força de li- geiros, té ao tecto, a destacar sobre <> boquei- rão de noite que é ó coro ás escuras, aberto ao vago, e em cujo mysterio os ckatom da ro- sácea pòem como dois olhos de gato, cor de phosphoro.

Kis o instante do cortejo abordar a grada- ria externa do mosteiro. Renques de povo en- chem os passeios fronteiros a essa grade, e é pelo c rredor intermédio que <»s lanceiros mi, que os trens desfillam, e os homens de vermelho brandem archotes, como velhos d'entrudo, ao de redor do carro fúnebre. Vejo uma procissão de tochas golfar então da por- taria dos Jeronymos, descer á rua, envolver em clarões bruxuleantes o pórtico e todas as incorpóreas rendas da fachada : e logo, u circulo de chammas, homens d'escuro virem ao chão, reverenciando a mulher que sahiu il(» landeau, e que parece enorme e sphingica, n'aquella postura immovel, entre as brumas do veu, como uma allegoria de dòr e expiação.

un

OS GATOS

.lá prestes, grandes alas se abriram para deixal-a passar, direito á igreja. Porém ella voltou-se, alguma coisa lhe falta, abaixa a vista; c a camareira comprehende...

É a cauda, que convém primeiro despregar nas lageas, em pregas tnagestaticas, uma a uma, não ella estragar a sua grande en- trada d'atriz, na scenographia gothica da igreja.

^3f%=.

OS GATOS

FIALHO IVALMEIDA

OS GATOS

PUBLICAÇÃO MENSAJ .

D*INQUERITO Á VTDA PORTUGUEZA

3— Nff^mbro de 1889 a Fevereiro de

PORTO

Casa Editora Au mo Aranha & C*

Bua ,;,, Bonjardim, 86

FILIAL EM LISBOA Bua dos i: ~n

PI >RT< I Typ. da Ernpreza Litteraria e Typographica

178, Rua de D. Pedro, 184

SUMMARIO

O ENTERRO DO REI D. LUIZ BANDEI- RAS A MEIO PAU, VITRINES A MEIO TAI- PAL, SALVAS A MEIA PÓLVORA, E PA- TRIOTAS A MEIA LAGRIMA A COMEDIA DA DÒR: JORNAES, TALHOS E LOGISTAS

OS QUE TRAFICAM COM A MORTE O NOBRE ANCIÃO QUE AGRADECE AS DE- MONSTRAÇÕES DE PEZAR AOS ESTRAN- GEIROS — CORRELAÇÕES MVSTERIOSAS ENTRE 0 CHAVELHO E O LUCTO LISBOA MACABRA— DE COMO NADA A DIVERTE MAIS DO QUE LM ENTERRO PALA A HISTORIA DA MINHA AFFECTI VIDADE O QUE FOI O SAHIMENTO FÚNEBRE DO REI OS MAGNATAS TLLM QUASI TODOS CARAS D'ESTUPIDOS OU DE FACCINORAS

RÁPIDO ESBOÇO DO PRÉSTITO POR QUEM CHORA ESSE COCHEIRO HE PRAÇA?

AS DEPUTAÇÕES POPULARES— O REI EM DUAS PORÇÕES PORQUE NÃ<» VEIO

VI SUMMARIO

A TERRA O D'EDIMBtrRGO DE COMO O ENTERRO DO TIO ACIRROU NO SOBRINHO IDEIAS DE PROPAGAÇÃO— PEDE-SE AO PUBLICO QUE VISITAR O HOSPITAL E A ESCOLA MEDICA AS ENFERMARIAS, AS AULAS, E O RETRATO DE D. JOÃO VI DERROCADA GERAL O DR. THOMAZ DE CARVALHO DECRETA A ABOLIÇÃO DO CAPILÉ REFORMAS A INTRODUZIR NO CURSO MEDICO COMO OS GOVERNOS CU- RAM DO ALTO ENSINO D. LUIZ DECLA- RADO PAE DA MEDICINA PORTUGUEZA RECEANDO FICAR SOB OS ESCOMBROS, ALGUNS PROFESSORES COMEÇAM A DAR AULA NOS JARDINS JOSÉ LUCIANO VI- SITANDO A ESCOLA MEDICA, ASSUMPTO PARA O PRÓXIMO CONCURSO DE PINTURA HISTÓRICA DO RECEBIMENTO QUE POR BANDA DOS CATHEDRATICOS HOUVE GUARDA-CHUVA SYMIíOLICO, E DIALOGO EM QUE SE RELATAM PRODÍGIOS D^CU- LISTICA O HOMEM DOS TRÊS OLHOS O CASO DA OPHTALMOLOGIA FACULTATI- VA—JOSÉ LUCIANO, ARBITRO MÁXIMO DOS DESTINOS DA FACULDADE FORNA- DAS DE LENTES SEM CONCURSO MAN Kl-

SI MMARIO Ml

ELA PRATICA D'AVERIGUAR SE UM RATÃO É CELTA - ÍNTERVIEW COM 0 IMPERA- DOR DO BRAZIL— A BORDO DO «ALAGOAS , DESAMPARADO O AMIGO REPÓRTER E 0 AMIGO DE PENICHE A ROUPA SUJA PRÍNCIPES NO DESTINO DAS NAÇÕES

DE COMO DEODORO SABIA QUE O IM- PERADOR USAVA MKIAs BORDADAS— AS LI IAS DE BENJAMIM CONSTANT E As CE- LAS DO CONDE D'EU O EXERCITO

NAS CEROULAS UM ANTAGONISMO DE A, i; BEVOLTA-SE DJEIAS DE D. PEDRO II SOBRE A BANDEIRA DA REPU- BLICA—A FARINHA DE PAU, REFRIGE- RANTE DOS ESTADISTAS BRAZILEIROS SINQULAB MANEIRA D 'ACABAR UMA IX- TERYIEW —CARTA A D. CARLOS SOBRE AS MAGNIFICÊNCIAS DA SUA ACCLAMA- ÇÀO SEMELHANÇA ENTRE S. M. E O CO- CHEIRO DA SNR.a DUQUEZA DE PALMELLA

NECESSIDADE QUE I 1IS i; AS COCOTTES DE SEREM BELLOS COMPU- TAM- FESTAS REAES CORTE- JOS ANTIGOS— CRITÉRIO HISTÓRICO DA REALEZA AFINAL DE CONTAS, QUEM É V. M.? —GALERIA DE MONSTROS BRIGAN-

viu sim mm; io

TINOS O PAÇO É UMA DEPENDÊNCIA DA LEGAÇÃO BRITÂNICA— CHEGADA DO COR- TEJO AO PALÁCIO DAS CORTES: OS ARAU- TOS, OS COCHES, E AS BARRIGAS DAS PER- NAS DOS REIS D' ARMAS ASPECTO DA SALA DO THRONO O NÚNCIO DE ROXO, E (IRA VIDO O COUPLE REAL: PEDEM- SE UMAS SAIAS PARA O REI, E UM BIGO- DE POSTIÇO PARA A RAINHA— FOME NO EXERCITO E INTERFERÊNCIA DO CIMONTE NO GENERALATO A CORTE EM S. DOMIN- GOS—D. CARLOS I E ULTIMO REI DE POR- TUGAL—O BRAZIL ENVIOU-NOS O SEU IMPERADOR NO «ALAGOAS»: PAGUEMOS- LHE A OFFERTA, ENYIANDO-LHE CARPAS, N'UMA BARRICA DE SALMOURA— HA VIN- TE DIAS QUE O PAIZ NÃO FAZ SENÃO GRI- TAR, VIVA A REPUBLICA! —A COROA NÃO TEM MAIS QUEM NA DEFENDA: TODO O EXERCITO É REPUBLICANO O SONHO D'U- MA GRANDE FEDERAÇÃO PENINSULAR AMANHÃ.

Sabbado 26 cToutubro, trasladação da ma- jestade extincta para o carneiro real de S. Vicente. Foi um dia feriado em toda ;i cidade. Quasi todos os estabelecimentos fecharam as suas portas. Quasi toda a gente appareceu de lucto oas ruas. As bandeiras estiveram a meio pau. I»»' quarto em quarto de hora, os ca- chões das fortalezas e navios de guerra davam salvas. E os jornaes publicaram retratos do monarcha, com artigos de choro em verso e prosa, deplorando aquella perda nacional. . .

quatro dias antes, esta jeremiada co- meçara ;i produzir nos ânimos nm vago esta- do irritativo, um nojo dos homens, e um asco :i feira das vaidades, sobremaneira nocivos á eclosão de qualquer sentimento sincero e des-

•10 os GATOS

interessado. Na barafunda de todos aquelles testemunhos públicos de condolência pelo thro- no, o que se viu foi cada qual sacarrolhar do caso o expediente que mais rapidamente lhe po- desse dar dinheiro, vangloria, ou probabilidades d'exito em qualquer coisa. A comedia da dôr, representada por vinte ou trinta cortezãos, na alcova mortuária de Cascaes, viera-se genera- lisando, por espirito de bugiaria, de zona em zona, descambar em farçadas de rua, mer- cê da inconsciência da bestiola popular que macaqueia o que vê, sem grandemente pòr sombra d'intuito n'aquelles actos reflexos do

sen eiXO nervoso amoltecido.

Não houve em Portugal ninguém, graças a Deus, que não violasse o respeito da magesta- de morta, talhando-o em taboleta de loja de fazendas, «mu episodio de galhofa, ou em thu- ribulo infame para abjectos Te Deums á raa- gestade viva !

Brazões d'ediíicios públicos e lojas de cau- tellas, cobriram-se de negro: Os jornaes trafi- (.;ir;llll com a agonia real, matando o senhor D. Luiz seis horas mais cedo, para serem os primeiros a vender suppleinentos .dioramin-

gões. Coronéis fizeram-se pagar versos na im-

OS GATOS I I

prensa, dando pezames á rainha, e de cami- nho attestando a disciplina dos seus regimen- tos. Nos armazéns de modas, exposições de merinos de lucto, onde os dísticos dos preços se entrelaçavam d'allusões ao chorado mo cha. Lojas de bugigangas, armaram a frontaria de crepes e pannos mortuários, como se os bonecos de porcelana estivessem dentro a ce- lebrar exéquias pelo rei. E de quarto em quar- to de hora, durante três dias, os cuvilheiros de Belém tiveram alma de massacrar os leito- res do Tempo e Novidades, com filetes do gran- de desgosto em que tombara a l>. Amélia, ao saber que lhe tinha sahido a... sorte grande !

No capitulo das manifestações de dòr indi- vidual, chega a ser clownico o sardonismo que a canalha publica fez chispar dolueto de- cretado pelo snr. José Luciano, qo Diari

mo. Homens que não haviam deitado lucto pelos pães, cobriram-se todos de fumo pelo rei. No dia do enterro, vi eu m descer a Rua Nova do Carmo, coberto de nojo, e trazendo uma facha de crepe enorme, i;<» chapéu de chuva. Outro, velho, d'aspecto aristocrático, entrou na livraria Feriu lavado em pranto, e dirigindo-se :i um empregad .

[2 <>s GATOS

pediu-lhe transmittisse ao cavalheiro francez, dono da loja, os agradecimentos queelle, como lusitano de gemma, lhe trazia al4i4 attenta a prova de benevolência que a França dava ao paiz, conservando meio taipal aparafusado nas vitrines do estabelecimento d'um «los sens re- presentantes.

E para cumulo do desaforo, um talho que ahi ha p'ros Romulares, adornado de cabeças de boi, em barro e gesso, enramalhetou os chavelhos das rezes(b) com louro e crepes

(&/Esta correlação mystica entre a homenagem devida aos mortos, e o corno, é uma das poucas características sobreviventes á hoje apagada ín- dole portugueza. Ahi vâo dois exemplos. Um ga- ,. idero do Ribatejo, a quem morrera a senhora, a I fimeira vez que, depois de viuvo, forneceu curro para uma tourada em Santarém, mandou enfeitar

-omilha preta os paus dos bois. Ao fim de far- I .ado o decimo terceiro, todo o mando por modos i quiria, como era crivei ter uma mulher abys , ,,|n em tamanho lucto, quatorze mandos!

Ao bandarilheiro F... homem estimado, d'uma

occasiao morreu-ll pae, como infelizmente suc-

c «de a toda a gente. A morto do velho, claro está,

nduzindo o orphão a apropinquar-se na Praça ,i , Campo de SanfAnna, um beneficio, onde elle ap-

(.v GATOS

ondeantes, três dias ao" tempo que aprovei- tava aquelle ensejo de magna, para augmcntar trinta reis tio preço das mãosinhas de car- neiro.

Ora, uma cidade que exteriorisa o respeito pelos mortos pela clownesca forma que viram, se por um lado tem d'esse respeito uma com- prehensão semelhante á do escarneo, signal da aniquilação completa do caracter civico; em compensação tira do fúnebre um riquíssi- mo filão de pittorescò, que pôde até inspirar

eu vestido ;i caracter, mas toda a farpei la pre- ta (fazeviche. Abre-se >< curro, um toiro espirra, e ii>> cachado o artista galhardamente lhe crava : quarteados, ficando erecto na arena, e com um ramo rte perpetuas em cada mão que escamoteara de dentro das garrochaa '

I l OS CA TOS

uma arte nova, st- habilidosamente o canalisa- rem, da índole avulsa da massa, para as loeu- brações dos que produzem co'a penna c c'o cinzel.

Lisboa è singular !

Não lhe bastava ter do amor uma noção invertida... ou duas, senão despolarisar tam- bém a tristeza e a alegria, dos seus focos d'im- pressão psychica uormaes, fazendo-nos vêr por exemplo os entrudos em fúnebre, e as Sema- nas Santas em hillariante ; os baptismos em lacrimoso, e os enterros em humorístico. E o que geralmente se dá. Nada nos torna mais bisonhos do que um baile de mascaras. Nada restabelece curso ao nosso bom humor como um enterro. 0 motivo é simples. Geralmente, entre nós, o mascarado parece um morto, ao passo que os defunctos Icem quasi sempre o ar de mascarados.

Um companheiro de casa que eu tive em estudante, jóia entre as jóias, meu insepará- vel amigo de recreios e trabalhos, Cinco ân- uos, comette um dia a refinada tolice de mor. rer. Horas e horas, 0 meu desespero nào co- nheceu calmante ou refrigério. Doze dias, febril, velara eu ao de redor da sua cabeceira,

(In GATOS 15

e depois d'elle morto e glacido no leito, fui eu ainda quem lhe compoz a ultima toUette, Alguém que vinha ás vezes, acordando na minha fraqueza orgânica, cachetisada por três dias da mais completa abstinência, lembrou-se, na derradeira noite em que velámos, d<- me trazer do Baltresqui, um pacotesinho de san- dwiches. Oh torpeza da carne! Tanto bastou para que eu, mesmo sem deixar de chorar, pensasse menos no morto, 8 cada vez mais nas sandwiches,

A proximidade do repasto açulava-me a fome, que a presença do amigo me obrigava a deixar sem victualhas. Venceu por fim a

besta, era lalai : e por cansa d'nma pouca de

viiella com mostarda, surprehendi-me eu a ter ódio aos despojos do mais fiel companhei- ro da minha mocidade ! E mais este era um amigo: que será então com os que a gente

Bem conhece ! . . .

A nossa vida é lào curta, a nossa miséria tão ínfima, tão deses] erada a lueta em que qos vamos, que no que se pensa ó em viver (tu jmir u jour, empenhado em dois fitos : fazer oiro de meio mundo, e guerrear ou es- carnecer do outro meio. Ser mau tornou-se

16 OS GATOS

uma necessidade contemporânea. Ser perverso um ideal... que infelizmente poucos sabo- ream.

o homem não é mais irmão do homem, ú

seu concorrente, é seu rival. A fortuna (Trile não quer dizer o premio (rum esforço respei- tável : representa apenas a dentada em qui- nhão que nos pertence. Por cada um que

morre, menos uma bocca esfomeada a defrau- dar-nos. Acresce além <Tisso que os poderosos representam quasi sempre, apard'uma concor- rência enérgica, por via de regra uma extorsão methodisada e legitimo desforço é que nos riamos quando elles tombam, e u<>s vinguemos (Telles, apupando-os depois de mortos, uma vez (pie nos foram prejudiriaes.

É o meio termo (Testa represália ferina «pie se dá, sempre que Uslioa assiste ao passa- mento d'algum alio personagem. Esta capital

(Talcovileiras e de gatOS pingados, de homens

com apertos e mulheres com dilatações, am- biciosa mas inerte, pobre mas nunca resigna- da, quando passa um enterro, transfigura-se, e eil-a a debitar larachas sobre o morto, qual

mais sumarenta de velliararia e de pilhé- ria !

os GATOS I /

lii fúnebre, a maldita, se bem que quasi sempre ria justo. Por exemplo, o humorismo que ella desenvolveu no enterro do rei, des- lumbraria o próprio Edgar Põe, si' fosse vivo. tquelle estranho cortejo de macacos com far- das e de mulheres com farrapos, de carros fie llòres e berlindas d'entrudo, de vendedores de boquilhas e professoras d' instrucção prima- ria, de bombeiros d'Ajuda e de meninos en- geitados, contentes todos, mirando-se, lara- chando, detendo-se a comprar pastellinhos, a altercar com os cocheiros, a fazer adeusinho .,. pel ições ; aquelle cortejo afinal que repre- senta '.'

Ninguém o soube. Não teve caracter. Foi apenas patusco, <* em certas passagens, abje- cto. Podia ter sido tudo... a coroação da rai- nha do Gongo, um certameu de cretinos, o casamento Fernandes, ou a batalha das flo- res... Tudo! excepto homenagem prestada ,-, memoria d'um homem que l"< »í vinte <i oito unnos nosso rei !

18 OS GATOS

0 senhor 1>. Carlos, esse radiava, laquei- la sua passeata primeira de rei posto jubi- loso a ponto de Dão ter ares nenhuns de me- nino orphão, e ter ao contrario todos, de viuvo. Em torno d'elle, príncipes e embaixa- dores, moços fidalgos, moços de curro e mocos da vida, í';iziani-I hc uma espécie de ga- leria de figuras de cera, qual mais estupenda d 'insignificância.

Porque è singular como as physionomias da maior parte dos nossos homens públicos depõem desagradavelmente a seu favor!

Em poucos ha essa aobreza calma de li- nhas, essa serenidade profunda de olhar, essa luminosa architectura moral emíim, que conta as luetas da intelligencia d'um homem, "min-

OS GATOS IV

terrnptamente servido por ama consciência inviolável. A maior parte sào pequenos mons- tros de olhar strabico, ou vago, ou fugidio, ou injectado; caras balofos, olheirentas, dessy- metricas, com um stygma, algumas, «lo quer que é de inquietador, que ;i gente não sabe o que seja, mas está ;i servir de syndroma ;'i manqueira occulta, e a prevenir a opinião contra a boa dos esforços d'elles, em prol da causa que juraram servir.

Outro detalhe: assombra o predomiuio

<|iic <• typo estúpido coi i a ganhar na com-

l>ostura, (exterior pelo menos) dos nossos grandes funccionarios ! Ha uma mistura de porc de fila, de mal indro e de titcre,

em muitas d'aquellas faces de primeiros ofíi-

- de secretaria, de governadores civis, de tenentes coronéis, de generaes, de bispos, de deputados, de conselheiros d'estado e de mi- nistros. Por sobre as golas das fardas, dos collarinhos altos de cerimonia, das voltas ro-

symbolicos das sociedades sabias e das ordens militares, as papadas oleosas dizem nutrições prevaricadas, apople-

- de bilis odienta, intrigas rábidas, cubi-

salyriases secretas d'amor e vinho a

20 os SÀTOS

horas perigosas. Era raros as feições mantive- ram pela vida fora, a correcção de seres su- periores, imraaculadamentc votados ao marty-

rio tias lides cerebraes, que vesleiu a alma

dos homens, rumo a figura, u uma adolescên- cia perpetua e espiritual. É ver-lhes o riso, uma careta, estudada ao espelho, para cada effcito scenico da vida ; ouvir-lhes as vozes,

de galãs professos ou pães nobres, dislillando palavras maravilhosas, mas sem repercutir jamais sineeridades ; e surprehendel-os por liiu quando a mascara lhes lomba, e por de- traz do cortezão surge o carnivoro* tigre ou byena, que do seu antro segue o lio d um plano tenebroso, syndicato ou embuscada po- litica, venda de penna ou venda de palavra... \ espécie d'e.\ito de Ioda esta exhibiçào de mascaras e bobos, em publico, Irahe-se nas

chufas e arremedes do povoléu contra «is mais (Telles. Al cada momento, um brado rompe

(Ih que maroto! é algum director de banco

ou politico illustre que segue no préstito. Os lampeões do gaz, cobertos de crepe, parecem

inulatOS ile chapéu alio, alugados para locarem

ganzá no precurso do enterro. A passagem dos

vj'ol<'scos é uma ovação macabra e ininterrupta.

OS GATOS

-21

o visconde \., brasileiro moço fidalgo, so- liiv haver substituído a plumagem branca do bicorne, por outra negra, fez-lhe coaer um lençol de panno preto na prezilha, o <[u;il lhe , como o d'uma senhora viuva, lhe dar duas voltas á roda <lo cachaço.

Yuiu grande carro vae-se o Maria Fer- nandes saracoteando, a mostrar o crachá da casaca, coberto de negro, como um brazão de cervejaria. Defronte da casa do Restello, pal- mas, galhofa: S. M. nova mesmo, deita a ca- beça fora do coche, para sorrir. As janellas do conde estão iodas cobertas de cortes de calças, <i ha coroas de perpetuas cosidas a meio da grade das saccadas. Engenhoso! Pa- iiin jazigo de família, e ha a vantagem de se aproveitarem depois as perpetuas, pr'a xarope. No coche de D. João v. onde o rei todos os florões dourados do tejadilho vãe cobertos de fumo, como am preservativo contra as moscas. Uma conversada, uma al- irra. Adeus ó visconde! Então não vens?— Ai que massada! de risota, con- tar historias, baforejar fumaças de charuto pelas portinholas dos coupés. . . E entre tan- to, milhares de earas joviaes, faz impressão a

22 OS GATOS

d'um cocheiro que enxuga as lagrimas. Um cocheiro de praça, coitado! a amofmar-se pela morte do rei. Ora, diabos levem o rei!

0 que elte vae chorando, é a morte d um cavallo.

No Terreiro do Paço incorporam-se as de- putações populares. É a parte mais seria do cortejo. .Mal porém o elemento grave que et las

melem em scena. comera a impòr-se, a verve dos espectadores rebenta de seu lado, e ah'1 ao fim, não lia meio de fazei' salgueiro fúnebre com lai gente.

Ás jauellas (rum escriplorio coiumerci.il do Cães Sodré, damas da alia, trajando es- curo, e formosíssimas, caramba ! passam de mão em mão um cacho (luvas, que todas que-

os GATOS -■">

ivm debicar como calhandras, disputando-sc o cacho entre piruetas de grande alacridade ; e algumas entreteem-se mesmo a tamborilar com bagos sobre as cartollas de quem vae iando. Os dois carros de flores recordam aos dandys, com saudade, os carnavaes de Nice: e uma mulher da rua exclama ingenua- mente :

Então o rei vae em duas porções?!

A cada momento ha claros no cortejo, pa- ragens em que se intromette o homem dos pasteis, pondo uma nota pelintra d'arraial.

Vozes avulsas :

vem agora a commissão <!as cama- reras. . .

A caixa económica dos tacões aos domi- cílios. . .

A tropa começa : batalhões onde os sol- dados teem números de diversos regimentos; coronéis, <'ujns estuques se fundem, pingando

o gobre os crachás dos uniformes. A <j.\- bosidade <1<> si-, general <!•' divisão tem um successo. Um diabo grita-lhe : estás gravido, Miguel !

Outro propõe-Jhe, cosa antes as medalhas nas costas. A alein-ia do sr. I>. « '.-n l< >s é uma

■i ; OS 6AT0S

coisa em verdade esfusiante. Que affabilidade, que verve: até parece que tem menos carne nos sobr' olhos! K ifislo, um grito :

0 d'Edimburgo não veio!

Estava pr'a vir, mas logo pela manhã sen- tiu-se incommodado. Tanto, que apenas al- moçou seis garrafas de vinho do Porto, e quando ia a erguer-se da meza, cahiu com uniu d'estas syncopes a que são atreitos em Portugal os marujos e os príncipes d'Ingla- terra.

Mis o cadáver chegado a S. Vicente. Os canhões troam. Dobres ^ sinos. Fuzilaria nas ruas. É aquelle 0 momento solemne, defini- tivo, único, em que o rei morto despe de vez ;i sua dalmatica de chefe, para transformar-se em lixo e múmia e foi esse também o que a Igreja escolheu, para dizer á rainha ipie a al- ma do marido devia estar áqnella hora a cear com Satanaz !

Por forma que não houve injuria que a cabouqueira do bondoso rei uão apanhasse. Príncipes e aulicos, grandes e humildes, indo lhe ultrajou a memoria, em vez de venerar-

llfa. 0 filho rin-se d'elle. AntigOS ministros chamarain-lhe devasso e papas-molles. O pa-

os r.ATOS 25

triaroha compara-o á mulher adultera. K noite, aquella rustilhada official, batendo em trens vertiginosos, <l'á volta de S. Vicente, aquella rustilhada tinha o ar de virar as cos- ta* ao pae, para chegar a tempo d'ainda se poder anichar junto do íilho.

Não foi d'esses talvez o Hoenzollern, a quem se partiu o coche de ceremonia, e que vindo ao Rocio a pé, c'os ajudantes, largou d'ahi n'um calhambeque, pr'a casa da Carlota.

Pede-se aos cidadãos rpie ainda conser- vam algum amor ás coisas do paiz, vão dar uma vista d'olhos pelos edifícios da Escola Medica, e pelo chamado Real Hospital de S. Josó. Dizemos-lhe que hão-de gostar, e mais colherão subsídios para fazer uma pequena manifestação de sympalhia ao sr. José Luciano, •i primeira vez que adreguem vèl-o passar, de nariz ao vento, em qualquer sitio frequentado.

I.á verão como é que o senhor do reino '•ura os interesses do povo, e como é que os ministros respondem ás sollicitaçòes que to- dos os dias lhes estão fazendo os funecionarios

-20 OS GATOS

encarregados de zelar a medicina o a beniíi- cencta publica, na primeira cidade do paiz.

Comecem pelo hospital, onde continua a não haver uma sala de recepção para doentes, nem salas de rechange para onde fazer o tras- bordo d*enfermos durante a desinfecção das enfermarias funecionantes, nem hospitalisações isoladas para doenças de contagio, nem servi- ços especiaes de maternidade, nem uma ins- trumental completa para o exercício da cirur- gia c de medicina, nem um amphitheatro para operações, e nem sequer um quarto decente onde tratar um enfermo, mediante estipendio combinado. Percorram, atravez um dédalo inextricável d'eseadinholas e corredo- res sinistros, os innumeros andares d'aquella incommensuravcl arca de Noé e n'csses an- dares as enfermarias innumeras, atochadas dVnfermos em numero triplo ou quádruplo do da sua lotação hygienica e normal.

Estudem a capacidade respiratória dos âm- bitos, a altura e disposição dos tectos d'umas enfermarias que ha nos forros do edifício, a dis- tribuição da luz, os systhemas de ventilação e aquecimento, a natureza das alfaias que giram no serviço, a mobília de muitas d'essas enfer-

•iv GATOS 27

marias, <> estado carunchento dos solos, a humidade ressumbrante de certos muros, a capacidade <la massa d'arvoredos e jardins: c concluam depois, mesmo sem serem médicos, como é que aquillo se chama o Real Hospitalt em vez de se chamar por exemplo estrumeira ou matadoiro. Os amigos reporters, que lodos os dias crucitam nas gazetas, quando lhes vão dizer que o Banco regeitou a deshoras da noi- te, algum bêbado escoriado na festa, c que recebido iria incommodar na enfermaria, de- zenas e dezenas de verdadeiros doentes: os

amigos reporto? não se lembraram ainda d"en- trevistar os facultativos de S. José, ou de per- correr com um hygienista disponível (que os ha sempre promptosadar o braço a qualquer teiro que lhes offereça publicidade) todos aquelles fundões medonhos do Hospital, onde a viva sollicitude do enfermeiro-mór, e os dis- vellos «los clínicos assistentes, pouco logram fazer, attenta a vergonhosa pobreza, e a in- qualificável promiscuidade em que tudo jaz alli. Com o edifício da Escola Medica, ainda peor.

Desde a primitiva, foi esse edifício um cha-' vasca! indigno dos estudantes e pri fessoreí

-JS os GATOS

que alli se davam rendez-vous. Não havia unia aula onde, não digo coniinoda, mas decen- temente, um escolar podesse ouvir uma pre- lecção. Os bancos destinados ao auditório, além de não possuirem costas, tinham por leito uma taboa de dois palmos, de pinho tosco, c nem uma carteira por deante, um púlpito de musica, um pedaço de taboa sequer, sobre que collocar um livro, ou escrever a lápis um apontamento. As collecções e laboratórios (faualyses, os museus especiacs annexos ás cadeiras do curso, como o de cirurgia opera- tória, os d'anatomia pathologica e normal, o de histologia e histo-physiologia, eram corre- dores sem luz nem direito, mobilados igno- bilmente, com armários toscos, onde faltava tudo, exemplares e instrumentos, e onde os raros espécimens existentes, estavam para alli com um ar d'mstallaçãO provisória, á espera de que nos ministérios sobrasse verba, das despezas surdas e das gratificações escandalo- sas, para então se prover ao abastecimento d'a- quellas secções de ensino scicntiíico c profis- sional. Quanto a bibliotheca, não fal lemos : é uma ruma ^alfarrábios archeologicos, res- guardada nas estantes por meio de redes de

OS GATOS -20

capoeira, e servida aos curiosos em mezas de botequim de província.

Ao forasteiro que vindo ao Hospital de S.

iis annexos escolares, por acaso torcia

o nariz perante os desconfortos que via,

nas enfermarias, nas salas d'estudo, nunca

o cicerone deixava d'observar :

Confessemos que seja um pouco magro tudo isto : entretanto v. ex.a vae apreciai- as duas maravilhas da casa !

As duas maravilhas eram, no andar nobre; a chamada sala do conselho, ornada de sa- nefas cor de sangue, c formando em ordem de sumptuosidade, logo depois das famosas ca- sas d'audiencia do tribunal da Boa Hora; e defronte d'esta, no gabinete de histologia, um retraio a óleo do sr. D. João vi, de casaca verde e meias de linha, hoje apeado a um can- to, c servindo d'alvo, felizmente, ás inconti- nencias d' uretra da rapaziada.

Esta installaçãó não eia, como se vé, lu- xuosíssima, e n'esta epocha aperalvilhada, cm (pie tudo mira ao confortável, e ale nas suas repartições os senhores amanuenses tecm fo- gões <• parquets nítidos, dava uma impressão d'austeridade ouvir prelecciouar Sousa .Martins

30 OS GATOS

tuim telheiro frio e desabrigado, c assistir ás demonstrações d'anatomia de Manoel Bento, ínima especíe de amphitheatro de palhaços, especado por traves de pinho, immundo como um estabulo, e todo cheio ti*1 correntes d'ar como um casebre.

Um dia raiou porem, cm que á falta de conforto e â falta (Faceio, veio ajuntar-se um factor novo, e este inquietante : a falta de se- gurança ! Não ter caloriferos, nem fauteuils, nem púlpitos girantcs nas aulas, nem livros mo- dernos nas bibliothecas, nem apparelhos espe- ciaes nos gabinetes, era triste; mas emfim, estava a scieneia dos mestres a supprir aquellas deflieieneias, e a bemerecer tão duros sacrifícios. Km termos que aos rapazes conti- nuaria a ser grato o ir bebei- entre aquellas unas paredes d'albergue, as cogitações da sa- bedoria, se de repente não entra com elles a desconfiança das paredes se estarem prepa- rando, para uma bella manhã lhes cahirem em cima dos costados. De, feito, ou porque o solo houvesse oscillado, desviando comsigo, da linha de prumo, o empedramento dos ali- cerces, ou porque as paredes da Escola Me- dica começassem a embirrar, tardiamente ê

OS GATOS

31

certo, com o patronato do sr. D. João VI, o certo foi que o casebre desandou a esbeiçar por todas as bandas, e a exprimir desejos de se es- tiraçar para cima dos canteiros racbiticos do

jardim.

A dtgringolade começou pela biblioteca, que houve por bem mostrar a luz atravez as desinlersecções dos planos sólidos, súbito -<■- parados, ao tempo em que deixava vergar em papos ameaçadores, todos os madeiramentos do tecto e do soalho. D'ahi correu aos outros cantos do edifício, e houve que se especar os muros d" gabinete de histologia, do amphi- theatro d*anatomia e da aula de pharmacia, fugir tias aulas, alliviar os madeiramentos de lodo o peso de mobílias e alfaias que precipi- tar podessem a derrocada, transportar emfim osbocaes dascollecções e a instrumental dos la- boratórios, para os corredores e escaninhos do andar de baixo, onde jazem a esmo, que- brados muitos, inutUisados quasi todos, tfuma triía de ladra a lazer corar de vergonha e de cólera, lentes c discípulos.

Por falta de casas, as lições começaram a

dar-se um pouco em toda a parte, no barra- cão das autopsias, dos corredores d'entrada do

•>- OS GATOS

edifício, sob a marqueza que antecede a Bata

do conselho, nos palcos do hospital, ou pelas clareiras molhadas do jardim— e assim, á min- gua ilc dez melros de soalho firme, onde eol- locar um púlpito e quatro bancos, alguns pro- fessores, receando pelas vidas dos seus alum- nos, pensam em dar aula nas suas próprias residências, ollerecendo á sciencia o refugio que o Estado lhe nega, mercê da rancorosa nullidade do mandarim que está zelando (zoi- lando é melhor) estas questões.

E todavia, ha trinta annos que com mais ou menos zelo os enfermeiros-móres recla- mam perante os poderes públicos, remédio contra as deploráveis condições do Hospital, agora intoleráveis, graças á afluência d'enfer- mos que de toda a parte advém ; e que o con- selho da Escola intenta aperfeiçoar e comple-

OS GATOS 33

lar o ensino medico, reclamando dos mesmos poderes a decretação das medidas qne adequa- das julgou àquelle intento. A resposta, ou tem sido nulla, ou vae-se mantendo em intér- minas promessas, qual mais cynicamente dei- xada por cumprir.

No nez de novembro ultimo, a afíluencia a s. José foi de tal ordem, que todas as en- fermarias tiveram que installar leitos em tri- plicado, passando os doentes que ainda assim sobraram d'estas palhotas arranjadas á pressa, para barraras de madeira, mandadas armar nos jardins do Estephania. Por outro lado, o ■ai subalterno das enfermarias, vilmente . mal escolhido, sem educação proflssio- nal, nem garantias de vida, é cada vez mais i assistir a todos os leitos, com a sollicilude paciente, a regularidade e o inte- resse que deviam convergir n uma oceupação de tanto escrúpulo. Não ha uma irmã que ad- ministre um remédio, oa diga a um enfermo

alguma boa palavra de conforto. Nas enfer- marias de homens, o serviço é quasi lodo feito por gallegos, que alem de poucos, são o me- nos adaptáveis possível â missão de carinho qne são chamados a preencher.

34 os cvrits

Quanto ao serviçe clinico, se é verdade que muitos directores d'enfermaria fazem o possível para prover a Iodas as urgências, uão

é menos certo ser incompatível o interesse,

com os excessos de trabalho a que os mes- mos funcciona/ios são forçados. No espaço (ruma ou duas horas quotidianas, que lautas são as tpie o mais excepcionalmente zeloso medico pôde consagrará sua enfermaria, como distribuir a attenção, com lucidez egual, por oitenta ou noventa enfermidades differentes, sotlVidas por indivíduos que por via de regra nem queixar-se sabem?

Ila-de haver ciuco ânuos, sendo enferinei- ro-mór o dr. Thomaz de Carvalho, baixou um ukase mandando suspender nas enfermarias as libações de capilé, medicamento este que Custava sete contos amuiaes ao Hospital, e com que os enfermeiros empanturravam os infelizes, dias e dias, até o facultativo ter occasião de os examinar.

Pelo que respeita ao zelo do Estado pelos progressos da medicina portugueza, a solli- . -ilude tem-se mantido, perante os relatórios e proleslos da Escola .Medira de Lisboa, á mes- ma altura de farfalhice inepta e de besfiali-

OS GATOS •"*•">

Inl.' supina, eomque EUe havia permit- tido encarar a questão do Hospital de S. José. Com os progressos da medicina e a c>pe- ctalisaçào, successlvamente mais nítida, dos seos diflerentes ramos de sciencias comple- mentares e accessorias, arge cada vez mais desdobrar cadeiras fundar cadeiras novas, ampliar o programma das antigas, e enrique- cer emflm de subsídios práticos, quanto mais abundantes melhor, a aprendizagem d'uma profissão que todos os dias se entremeia de responsabilidades e de perigos, e se eonstitue em arbitro d'uraa multidão de causas sociaes escabrosas, mercê da conversão de todos os núcleos de humanidade, em agremiados sem fim de diathesicos e de psyeopathas. N'es- ta ordem d*ideias, tem o conselho da Es- cola resolvido scindir por exemplo, em duas cadeiras, o estudo «la physiologia— a primeira abrangendo o estudo das propriedades vivas da célula e dos tecidos, e reservando-se a segun- da a physiologia mais complexa, dos órgãos, e •) unisono orgânico emfim, d*onde resulta o individuo e ser— e assim lazer professar á parte o estudo da hygiene, e o da medicina legal, seiencias cada vez mais complicadas, e

36 OS GATOS

ainda hoje reduzidas na Escola, a corriquei- ras noções sem solidez. Tam pouco o estudo da anatomia topographica cabe na actual ca- deira d'operações, e o da anatomia pathologi-

ca pôde continuar, como ate hoje, platónico e murcho, desajudado das luzes dachimica bio- lógica, e truma pratica tenaz no laboratório. Egual mente é necessário desdobrai- as patho- logias, interna e externa, fundando cadeiras es- peciaes d'aquelles ramos mórbidos, que por sua importância e hodierno progresso mais rega- lias teem ganho de sciencias autónomas. K por outro lado as clinicas, que fazem o medico, posto dirigidas (como de rcslo as outras ca- deiras theoricas) com uma consciência scienti- fica que faz honra ao corpo docente, também não podem, como estão, ministrarão estudan- te, n um tirocínio de dois ânuos, a educação profissional de que este carece. Seria mister tornar mais aturada a frequência do escolar na enfermaria, pela fundação do internato e. a superintendência de chefes de clinica: des- centralisal-as, separal-as em salas especiaes, como por exemplo a das doçuras cutâneas e syphiliticas, a das doenças nervosas, a d'ohptal- rnologia, a das doenças da maternidade, doeu-

OS GATOS 37

ças de creanças, etc. com laboratórios anne- ko$, onde se repetisse i anatomia pathologi- câ, a physiologia e a chimica orgânica particu- larmente referentes ao grupo uosologico a en- carar.

imo os governos teem comprehendido estas necessidades, dissemos. Em balde a administração dos hospitaes concita os minis- tros do reino, a visitarem <>s serviços clínicos i!as differentes casas d'assistencia publica, á sua guarda. Em balde os directores da Escola Medica, nas sessões solemnes <la distribuição ,1.- prémios, toem chamado aos reis, os fami- liares de todas as sciencias, chegando um a arengar, sem vergonha nenhuma, que I». Luiz era o pae da medicina. Manteiga inútil!

Pela simples força da sua importância, um tal problema uri.» consegue interessar os ci- mos «la politica, que entre varias razões sobre- leva esta : a de não ter havido nos corpos <li-

;}8 os GATOS

rigentes do Hospital e da Escola, unia loira d'intriga eleitoral, onde a teimosia d'um ho- mem pozesse a voz que a simples questão

seientifíea jamais logrou fazer zoar, ás orelhas de burro do governo, lia mais de eincoenta annos que o hospital de S. José está eondcm- nado, e outros tantos que os engenheiros crea- ram um projecto d'Escóla, éscolhendo-se local pr'a fundação, e até mandando-se apontar no orçamento a verba costeadora. . . que a trapa- ça ministerial depois sumiu por facturas de casamentos régios e baptisados, por viajatas de convalescença a capitães de luxo e de prazer, e por desobriga de jóias da coroa, nas casas de prego onde esses adornos teem escrínio cer- to lia muito tempo.

Ha cinco mezcs, quando findo o anno le- ctivo, o conselho da Escola Medica attentou pela millcssima vez na impossibilidade d'em pleno inverno preleccionar aos alumnos, nos pateos e jardins da cerca hospitalar únicos logares garantidos contra a derrocada foi um professor amigo lembrar timidamente ao snr. José Luciano o bem que faria uma visita d'el- le, aos restos das aulas e amphitheatros pa- thologicos, tanto mais que pelo lado da segu-

(is GATOS 30

rança individual, não havia perigo: a rapazia- da toda estava a férias, e o caso «la autopsia á Bemvinda fora um episodio que a cirurgia escolar jurava não mais repetir, em qualquer outro microcephalo.

Sobrerogado poraquellas palavras amisto- sas, ti ministro murmurou que havia d'ir, va- gamente receando ainda <> quer que fo uma cilada, cair-lhe cm cima um corredor dos especados, abater o soalho sob o pesoarroba- ceo da sua insignificância, vir um magarefe da sala dos cortes e marcal-o todos os pusi- lânimes terrores emfim, dos inconscientes que prohibidos organicamente de medir o alcance dos seus actos, nunca sabem se estão puros ou conspurcados.

.lá tranquillisado d*esses pavores, avançou uma manhã, de correio atrás, pela poria do

Carro, vindo desabrochará fachada da Escola,

a cujo pórtico o conselho Escolar descera a re-

celiel-o. Aqui calcou os inrvilaveis SOCOS de bor- racha, symbolo das precauções a tomar na es- pinhosa senda da vida publica, paSSOU ás mâOS

do secretario o chapéu de chuva, imagem em volto das grandes elocubrações governativas que

0 linam dando .10 nariz a iillima esfregadella,

10 OS GATOS

sobre os borbotões homerrhoidarios que alli pegou o habito de continuamente farejar nas perfídias dos seus irmãos de guerra.

Cumprimentos trocados, quando iam a comboial-0 pela escada, direito á secretaria, s. ex.a recusou-se a entrar, attenta a derro- cada presumível; e aos repoupos, como um sendeiro que se pega, recuou novamente até ao pateo, circumscrevendo pela banda de fora ms muros do casebre, á busca d uma entrada segura para a Escola, que não achou : e assim foi indo, pela porta de grades, até dar de fo- cinhos com a lavanderia.

Ora aqui está, disse o snr. José Lucia- no, um edifício onde os senhores podiam preleccionar condignamente! Ricos salões! A barrella dos enfermos de S. José, acaso enoja- ria aos convívios da sciencia?

Fm pouco menos do que a enojaria a barrella dos enfermos de S. Bento. Entanto, não se fizeram as cloacas para logares d'cnsi- namento, senão no caso previsto da chimica do esterco ter dYnsaiar os seus reagentes, na focinheira dos estadistas mal creados.

É uma indirecta. . .

Que relembra a v. ex.a os inconvenien-

iis GATOS 1 1

tes de chalacear, usando assim galochas de cautchauc. Ora venha d'ahi vêr o casebre on- de a infâmia dos políticos tem esquecido, ha cincoenta annos, o mais útil e o mais brilhan- te estabelecimento scientifico de Portugal. Retrocederam com elle quasi aos empur- . fazendo-o entrar nas ruínas alfim, onde o seu terror era drolatico, taes estrallos lhe dava ò queixo convulsivo, e tão grotesca a descorrelação das suas abstractas pernas de fantoche, recusando-se, as tristes, a amparal-o na marcha, mais além. Mostraram-lhe tudo, as paredes fendidas, <>s tectos descolados, soa- lhos podres, os bocaes do museu todos parti- dos; e uas casinhotas das aulas, madeiras soltas, janellas sem vidros, poeira, lixo, e toda a fedorenta desolação dos sítios onde tran- seunte se agacha em altitudes de budha es- tercorario. Quando ia a descer

Mas onde é a Escola? inquiriu s. ex.a

É o qne todos os visitantes perguntam, e nenhum de nós lhe sabe responder.

ii snr. José Lnciano recolheu-se n'esta res- i alguns minutos: e lembrava assim um pinto morto, boiando na sania d'um ovo snl- íidrado.

i

42 <>s GATOS

De feito, é indispensável proceder á reedificação, e sobro planos amplos, e des- de já.

E desde já, opinaram todos, animados.

Vou mandar preparar verba ao orça- mento. Aponte, ó Brito. Vou mandar rever o projecto dos engenheiros. É indispensável dar á sciencia morada condigna, erguer o nivel scientifico, preparar a medicina d'ámanhã... Por consequência, senhores, poder-nos-hemos entender. Todos aqui são homens de pala- vra?

Todos homens de palavra!

Escripta e escarrada?

A nossa escripta; agora escarrada, a dos collegas de v. ex.a.

Condiccionemos pois. Eu dou a Escola. .Mas os senhores hão-de-me metter um Lente sem concurso.

Regulamentos e dignidade profissional nos prohibem de transigir com essa vellia- cada. 0 concurso é uma instransmissivel ga- rantia, sobre que a Escola estriba a legitimi- dade mais ou menos inviolável das suas anpii- sições. Abolil-o é lazer bancarrota na austeri- dade do magistério, pôr a educação da juven-

os GATOS i •'»

tu. lo ;'i mercê dos valdevinos sobrecellentes das secretarias e «las ftscalisações aduaneiras e ferro-viarias. Sem concurso, quem impedi- ria V. Ex.a de nos despachar por exemplo o padre Brandão, professor de partos?

0 meu protegido não è ahi nenhum in- truso em artes de curar. Facultativo pela Es- cola de Lisboa, foi ao estrangeiro informar-se d' uma especialidade clinica mimosa, consti- tuindo-se em Vienna d' Áustria discípulo ama- do dos primeiros ophtalmologistas do inundo, e vindo a sagrar-se professor na grande uni- versidade d'll«'i lelberg, onde por signal, Bis- marck. . .

conhecemos o truc, nâo insista.

Deixar partir um lai homem, si limiar o erro histórico, que despedindo Co- lombo, e não aceitando oa serviços de Stanley, machadou mortalmente, á distancia de séculos, a frondosissima magnólia da eivilisaçã i conti- nental e ultramarina do nosso paus.

E aparb ! motivos philosophi não terá V. Ex.a outros, de natureza mais do- mestica, a verramar-lhe no sestro d.' met- ter o homem ?

A verdade é que um afli teu sof-

+

\ \ OS GATOS

fria folhos. En sou franco ! Cataratas aos olhos pares, um dos quaes por signa) que e .1 de vidro, »i uma espécie de conjunctivite no olho impar. Ghama-se o especialista ; ope-

i i "ni. . .

E o doente desandou a vêr.

Por todos os lados !

Mesmo do olho de vidro?

Mesmo do olho impar. Aquillo havia er pupilla artificial que lhe rasgaram. Ali,

viu as estrellas !

É o costume.

—Mas ficou com um olho admirável. Air l -;n menina.

E como no conto do macaco, a menina

tem . . . camisa?

Em termos que necessito pagar ao dou- tor estes serviços. Dar-lhe um alfinete de pe- dras, seria galhardo em brazileiro; mas um presidente de conselho necessita de savoir faire com mais munificência. Conto portanto fázel-o professor da stra especialidade, na pri- meira escola cirúrgica do 'pai*. É negocio sal- dado, e o edifício da Escola far-se-ha, <h><^

que OS senhores digam uma palavra.

Por acquiescencla nossa, V. Ex.a sabe

.is GATOS

i5

que não dispensaremos eoncurso ao sen pu- pUlo. E as razoes são flagrantes. Para receber

,i corpo docente um individuo, <i>ia Casa aio sabe d'outras proficiências, alem das que perante ella vem authenticar-se, em provas publicas. Foi por concurso que todos os pro- n|ni entraram. Sr elle não serve, abu- lam-no para todos, e o protegido de V. Ex.a entre depois. Agora se elle continua a ser lei, ▼enha o ophtalmologista prestar acto «las dis- ciplinas e sciencias que propriamente consti- tuem a summula <!<• curso geral de medicina, que depois d'isso, o nomeal-o proprietário d'oma cadeira, sem <>s tramites de promi r adjuvato a que os nossos lentes substituti s -• subjeitam, annos e annos, posto represi ainda ama preferencia escandalosa, enl eoadunavel a amas apparencias de justiça, mercê dos tstu<l<»s especiaes do nomeado, e ,i,, aparte das matérias incluídas no plano d t eadeira nova. Esta é a lei. Tudo quanto V.

fizer fora da moldura que lhe deixamos, importa, eomo disáe B. Raposo no seu relató- rio ao conselho d'Instrucção Publica, w*

onvt niencku do ensino t da causa publica, ofensas dt principiai '■

íli OS GATOS

da creação e provimento das cadeiras, b escar- neo dos direitos adquiridos, e trabalhosamente consolidados pelos substitutos.

De mais, á Escola repugnaria qualquer re- forma concebida fora âa lógica e do criterig scientifico aconselhados por ella em mais d'uma representação aos poderes públicos. Estriba-se a aprendizagem clinica, que é a parte útil da cirurgia e da medicina, cm no- ções de sciencia geral, que o alumno aspira Mor exemplo do estudo da anatomia, da phy-

igia, da pathologia geral, da hygiene e da matéria medica, e sem o conhecimento das quaes a missão do medico á cabeceira do enfer- mo, seria a d'um curandeiro empírico e pe- dante. D'onde se infere que toda a reorgani- sação do ensino deverá proceder dos funda- mentos para as cúpulas, principiar pelos de- senvolvimentos, sizões e remodelações pro- postas para as cadeiras fundamentaes acima ditas, tocando-se as especialidades por ulti- mo, em vez de se andar ás cabriolas pelos catitismos da sciencia, como essa ophtalmolo- gia que é para assim dizer uma prenda de senhoras, e entre as cadeiras de creação pro- posta, resahe com nma importância subalterna,

OS GATOS

\~

visto estudar-se ella, por fragmentos embora, a differentes alturas do curso actual, (c)

*

Taes foram as objecções oppostas pelo corpo docente da Escola, aos caprichos mór- bidos '1" sr. ministro do reino, que se retirou

... p ,rque, se alguém pensa que, até hoje imnos sabiam das escolas, sem noção d'ophtal- tnologia, redondamente se engana.

icionavam os professores de anatomia a dos órgãos da visão? Não faziam analogamente os eg de physiologia? Os de patholoj ,gia, além de outros pontos de path . monstravam o uso do respectivo ar- \-, i tem cabido aos de patholo- . eterna e anatomia pathologica tratarem das Excloiu-ee alguma vez, do ensi- no da medicina operatória, a parte respecl ,s e operações no apparelho visual? N mostram nas clinicas moléstias dos olhos? E ás de- cadeiras não pertence, a cada uma, sua quota

parte de estudo attinente u coisas d íulistica?...»

B. Raposo. R latorio

',s OS GATOS

de nariz apopletico, saccudindo na portada do casebre, á maneira d'invectiva, o po das suas sandálias de cautchauc.

Logo alli se futurou que o descontenta- mento do reformador da optalmologia —que se escamuge ao desembolso dos honorários do medico, lezando as prerogativas de toda uma faculdade fosse embaraço ao começo das obras da Escola uova, e travão ferrenho para as reformas scientificas reclamadas. Erro tora suppôr alguém que os institutos onde se prepara o posso;!! superior das sociedades, pairassem em regiões inacessíveis aos capri- chos asnaticos dos bonzos que aos mandam, estribados na inania physica das classes eru- ditas, o na impunidade de prepotências ante- riores.

0 resultado foi ordenar o snr. José Lucia- no por sua conta e risco, e ao inverso do conselho dos entendidos, a creação d'um cur- so d'ophtalmologia, funccionando paralela- mente á Escola Medica, mas de frequência facultativa para os estudantes, e d'estipendio e organisação professoral muito diversos dos observados no curso ordinário.

De feito, prefixa o decreto, a par da funda-

os GATOS

','.>

çao da cadeira nova, quem determinadamente ha-d* mt o professor, e desfecha creando um posto d'ajudante, de provimento fechado á occalistica nacional— pois se stereotypa tfelle a condição do candidato ao togar, ser estran- em ordenados aufere o lente imposto, annualmente mais, do que entre ordenad gratificações d'exercicio, os lentes «I»- concurso; e assim <> adjunto fica em situação monetária sobrelevante á dos pobres professores substi- tutos, que se arriscam a ganhar durante dez, quinze, vinte annos, um estipendio em ver- dade irrisório, attentos os labores terríveis que tiveram de vencer para conquistar o seu

togar.

Sobre estes excessos, acresce ainda o de ser a cadeira espúria, a unica que se o lu- xo de ler ajudante preparador encartado. Para as mesmas clinicas, tão trabalhosas, não houve anda meio de se ateancar um chefe de sala, ,|in- reforce as explicações do cathedratico, »i ministre aos alumnos, por detalhe, o tão In- dispensável tirocínio das minuciosas coisas de enfermagem e de pequena cirurgia.

A bofetada do ministro estala portanto aqui com lenâvel fracasso, nas barbas «ruma cor-

">(l OS (iATOS

poração que se não quiz dobrar ás collisões liystericas e domesticas que o derrengam ;i elle e calcula-se pela violência do acto, o pe- rigo em que incorrem as mais graves coisas do paiz, desde que um tal homem pôde revo- gar códigos e preterir direitos, com a sua sim- ples pennada de politico gafo* e sem que nin- guem desça á pua a escadeirar-lhe o despo- tismo.

De feito, o sr. José Luciano não se impor- I 'ii com a opinião dos entendidos; não quiz saber das Leis que a prudência poz de guarda á soberania do alto ensino scienlilico ; desde- nhou a razão e a lógica da reforma radical que lhe propunham c com uma insolência que (em similar na bestialidade, emquanto o estudo da physiologia periga, amontoado assim nus cento e vinte lições prováveis d'um anno lectivo; emquanto o estudo da hygiene e

o da medicina legal são pura hypolhrse; em- quantoa microscopia mórbida é lettra morta; emquanto as pathologias e as clinicas recla- mam ampli;ir-se; e o edilicio da Escola desa- ba, c a bibliotheca envelhece, c os museus cada dia estão mais pobres: o idiota, em vez de remediar d'uin liauslo eshis misérias, de

08 C LTQ6 51

firmar com o sea nome uma obra perdurável, so xr n;i Escola Medica uma repartição de sorrelfas plumitivos, e n'esta um escaninho onde pôr a comer tranquillamente um afi- lhado.

Claro vae que u'esta reprknenda nossa. Dão entra para nada o nome do homem estu- dioso a quem o snr. José Luciano deu, com a sua arbitrariedade, um renome diverso do ,,,„. eiie mais tarde vira a conquistar talvez na sciencia portugueza. <> professor avulso d'ophtalmologia não th'<vr, a nosso vèr, da sympathia votada aos trabalhadores e aos es- tudiosos, | elo facto d'um guita lhe ter aberto azinhaga fácil ;'• tomadia de 1000000 reis men-

.. sem trabalho nenhum— embora pare- cendo duvidar, com o supprimir-lhe as diffi- culdades do concurso, das suas apregoadas aptidões de Babio e de professor.

Até nós, os governos, quando apertados para arranjar um poiso de favor aos scns

mignons, tinham um campo d'accão certo <• sabido onde lançal-os— campo de responsabi- lidades modestas, como -\ burocracia, as admi- nistrações d,' provinda, oa pequenos consula- dos e os carj ilternos ^ legação— coisas

Da <>s GATOS

inofifensivas erafira, bem ou mal pagas, l»ri- Ihantes quando muito, e que se defraudavam o erário, nunca vinham a perturbar a circu- lação das ideias e dos interesses fundamentais da sociedade. Para servir uma canja ao primo d um collega, os ministros revolviam tudo, do pessoa] das repartições, ao pessoa] das embai- xadas, mas paravam, transidos de respeito, no Limiar de certos sanctuarios por sua natu- reza inacessiveis ás polluções da cainçada rw- cutiva.

ingénuos tempos !

Hoje os conselheiros d'el-rei arrogaram-se poderes omniscientes, invadiram as attribui- ções dos tribunaes superiores, c entram de chicote e esporas nas salas dos cursos, pondo junto ao altar da sciencia, em vêz de tripode, um mijadeiro. 0 que indigna não é tanto o snr. Gama Pinto, eathedratisado de graça, no hemi-cyclo professora] da Escola Medica, como o snr. José Luciano feito arbitro máximo dos destinos da faculdade !

Se o caso dVsIr alropHIamcnlo da lei

menoscabando a aristocracia scientifica (rum grupo, em vêz de partir (rum tal typo, hou- vesse partido d um homem de talento, íami-

08 GA/TOS •>;>

liar a ia os altos estudos, entender-se-hia que

o ministro procedera talvei por puro fetchis-

iin» de sciencia, embora mofando as formulas

i provisão. Mas uem semelhante liy-

pothese logra dar-se, viste como, em primeiro

logar o sr. José Luciano é cerebralmente um

csvasiado, e em segundo, o snr. Gama Pinto

não paira agora tão alto, que oão podesse

concorrer á ophtalmologia com o snr. Lou-

., ,ia Fonseca, ou com o snr. Mello

Vianna.

Ora, o melhor.

caso da provisão d'um lente por au-

icia exclusiva d'um ministro, aão é des- graçadamente um caso avulso. Tem antece- dentes escandalosos uo Instituto Industrial, e vae ter consequentes breve, na Escola Medica e ao Curso Superior de Lettras.

Kmpóz da ophtalmologia, e antes mesmo que se principio às obras da Escola e á re- forma geral do curso de cirurgia e medicina, hemos que vèr creada uma cadeira de psy- chiatria, eom especiatisação d?um certo ho- mem para lente, e dispensa do concurso im-

•' i (is GATOS

plicita, que é para fechar as probabilidades da nomeação a quaesquer outros candidatos. E assim a respeito do Curso Superior de Let- tras, hoje deserto, se projectam remendos, cm guiza d'accommodal-o a uma espécie d'escola nonnal para professores d'instruccão secunda- ria, modilicando-se o programma das disci- plinas actuaes, e juntando-se-lhe outras, em cuja provisão medita o sf. José Luciano aco- corar de mão beijada, alguns satélites seus e meninos de coro descontentes.

Ora, é necessário rechassar de vez estas exorbitâncias infames do poder, que põem as mais nobres actividades do espirito á mercê do auctoritarismo emphatico dos nullos, e in- troduzem nos quadros scientificoso mistilbrio cm que asam assalgalhar-se entre nós, os quadros aobiliarchicos. É necessário que esse tal ministro do reino d ama vez perceba que se Dão cathedratisam doutores pela mesma receita com que se aviscondalham brazileifos, <• que se é certo que a toga vestida pelo sr. Gama Cinto não deshonra felizmente a Escola

.Medica, mercê dos talentos prováveis do neo- pliito, nem por isso O perdão d'aclo deixa de ser uma odiosa esmola, que se vinga do be-

(is GATOS

aeficio que presta, defraudando a altivez de quem ua a ceei ta.

Taes concessões, se bem que U,I|;| ml ou" tra fez inoflensivas, em geral costumam purgar de si nefastos resultados, baixas <l<> uivei moral e mental das gerações estudiosas, repulsa dos homens de valor ao magistério, e desanimo emfim da mocidade, de si pro- pensa á negação de todas as magistraturas contemporâneas.

Evitem-nos pois o espectáculo do ensino superior gerido por curiosos, e acabe a pro- tecção do Estado aos sabichões sob palavra de honra, como esse zoologo que exclamou uma vez na Polytechnica

As rãs são lagartos sem rabo.

Ou como ess'outro, grande esvurmador origens étnicas do homem, que costumava di- zer no Curso Superior de Lettras :

Desabotoem as calças d'nm homem ; se f0r (|(. febrica coberta, nâo ha que errar— é celta !

56 08 GATOS

ínterview com o imperador do Brazil.

A sua chegada a Lisboa, recambiado do throno pela revolução picaresca de 15 de ao- vembro, o imperador do Brazil não viu á ro- da de si senão personagens de caracter offi- cial, e Qoticiaristas e reporters ávidos de im- vidades com que fazer aiijíiniMitar a venda aos seus jornaes. Colónia brazileira, muito pouca, e essa constrangida e remordendo contra o soberano deposto um desdém, que nem por ter nascido á véspera, deixava de ter iodas as apparencias d'um ódio antigo e figadal.

Comprehende-se eiilaníi» a villania, O vc- Iho príncipe, que protegera e acarinhara mui- tos d'aquelles egoístas, auxiliando^-lhes os accessos para a riqueza ou para oseargospu- blicos, o velho príncipe descia a Portugal exbautorado, e não era para elles no im- pério o esteio da Ordem, não garantia com o sen governo a alia de fundos, não podia dar pensões a estudantes ea escriplores, não

fazia cônsules nem despachava plenipotenciá- rios; e desembarcando pobre, era uma espécie de cousin Pons, de cuja eslima nenhum brazilei- )() authentico, ou portuguez abrazileirado, po- diam auferir vangloria ou espórtula de vulto!

os ti m<»s 57

Km termos que fora do carinhoso circuito dos três ou quatro amigos leaes que vinham ;i bordo, a família imperial achou ao des- embarcar em Lisboa, as caras de cortiça do séquito do sr. I>. Carlos, e a refllante mati- lha dos reporters, ávida <l<' conspurcar a

restade do infortúnio com a inexprimível solercia das interviews, obscenisada por essa absoluta falta de pudor dos que fazem da al- covitice um ganha i>âo.

Percorrer as reportages il»1 fama, durante os primeiros dez dias que o imperador teve cm Lisboa, é edificar-se a gente ri' uma mul- tidão de mexeriquices, de parvoiçadas, d'abu-

de confiança, de catumnias, que nem por passarem no jornalismo por qualidades repu- tadoras de mocinhos talentosos, deixam <lc vir íid Código como outras tantas causas de pronuncia.

o jornalismo meudo está entre nós toman- do uma feição tão pouco nobre, que inutili- v.ii-u seria quasi uma obra de razão. Mas não

rora a melhor occasião de liquidar esta pendência, que apenas feri para dizer que não foram intuitos d'entrevisteiro, nem propósitos d'esclarecer m últimos }Uicos do

58 (>s GATOS

Brazil, quem me levou lia dias ao Braganza, com uma pouca de ternura pelos dois uobi- lissimos velhos desthronados. ía-me pois a acercar do snr. D. Pedro II, quando subita- mente me cortou <> passo um dos taes repor- ters, precisamente no instante de se annun- ciar o almoço imperial.

Á vista do gazeteiro intruso, dos seus mo- vimentos de fura-vidas, da sua sem ceremonia de sachrista, e do seu collarinho de boi racha., S. M., que ainda não dera pela minha presença, mal disfarçando um gesto d'enfado, estendeu a mão mollemente ao hoinemsinlio, com a re- signada bondade de quem de lia muito se entre- tém, como Esopo, a fazer fallar os animaes-

,lá sei a que vem, disse o soberano des- ilironado, ao gazeteiro-. V. quer saber, qual o menu do meu almoço, o maiére d'kotdYd& in- íormal-o... pôde dizer que Wt substituir o sauté cVagneanr aux pois, por umas iscas de fígado á la brandura dos nossos costumes. . . que dei além d'isso uma audiência de meia hora ao pedicuro, e que mudei de roupa branca ao levantar, lla-de querer examinar talvez a roupa suja ?. . .

A roupa suja! disse o enlrevisleiro, íaris-

OS OATOS 59

cando. I'. um pormenor muito interessante, e em que nenhum dos nossos collegas tocou ainda. A minha intervieic d'amanhã versará então sobre a influencia da roupa branca n » queda das dymnastias. Diga-me pois, meu senhor, quantas vezes por semana mudava V. v|. no Brazil, de roupa branca.

Antes de vir ;'i Europa, ires vezes, mas depois das viagens, comecei a mudar todos os dias.

K á medida que esse requinte d'aceio ganhava publicidade, acaso notou V. M. effer- vescencias no partido republicano ?

De quando cm quando effectivamente, havia nos elubs e n<>s jornaes, rumores d' - meaça contra throno, mas attribui-os sem- pre a factores estranhos ;'i minha renoi i quotidiana de piu$

Pôde V. M. informar-me, se usou algu- ma vez no Brazil, meias bordadas?

Em dias de gala, confesso; mas eram iodas feitas pela imperatriz, e cm nada faziam exorbitar a lista civil.

E Deodoro sabia-o?

Não posso dizel-o. Entanto a redaçã lançou-m'o em rosto, para concluir d'es-

60 <>s GATOS

ta minha concessão á moda, o que ella cha- mava as demasias <!<> mni poder pessoal.

E todavia eu não li/ mais do que imitar, pela adaptação d'este insignificante artigo de toilette, a elegância dos moços do Rio e Petró- polis, que é requintada como sabe, e vem de Paris directamente.

Isso o perdeu! aventurára-se a excla- mar o entrevisteiro.

Mas desde que eu me esforcei, durante quasi meio século de reinado, por adaptarão meu paiz, as mais amplas conquistas da liber- dade e da civilisação, que mal havia em in- troduzir na corte, um poucochinho do luxo que essa civilisação fomenta? Benjamim Cons- lant, o austero, o próprio Benjamim, usa li- gas por cima do joelho. . .

Qual era, meu senhor, a côr habitual das ceroulas de S. A. o conde d'Eu?

Os CÓzeS, vermelhos, o que lhe valeu

no povo uma reputação de déspota refece... as pernas brancas, cor da bandeira de Hen- rique, e com uma flor de li/ amarellada so- bre as costuras da juneção.

Os senhores d'escravos sabiam que as ceroulas de s. A. tinham cozes?

08 GATOS <»l

É i[ii;isi certo. Mas foi o exercito, que não usa ceroulas, quem primeiro viu mas de meu genro, um antagonismo de casta, e deci- diu insurgir-se, antes que o governo as fizes- se incluir no grande uniforme.

lie modo que a causa fundamental e remota da revolução brazi leira, oão seria tan- to o descontentamento pessoal do Deodoro, que queria a presidência do conselho; uem tampouco os vivas á republica dos alumnos da Escola Militar, mas pura e simplesmente o uso e abuso que S. A. o conde d'Eu fez do Brazi I, (fiiui artigo que <i amigo Banana cos- tumava vestir, por dentro das calças.

Sem tirar nem pôr ! Tanto me pareceu esta .1 origem histórica da transformação po- litica porque o meu paiz acaba de passar, que

p raphei a Beaurepaire de Rohan, para este expor ao governo provisório a minha con- cepção sobre a uova bandeira. Sabe o furor com que <"•■< ha duas semanas, se entreteem por a discutir a composição do novo pavi- lhão. Pois a minha ideia é simples. Sobre um fundo listrado a mm-, ir e ouro, mna- ceroulas atravessadas por um espadalhão . . . As cerou- las representariam <> gordio monarchico,

62 OS GATOS

cortada em dois, pela espada d' Alexandre

Deodoro da Fonseca.

.Mas á vista dos fados, é positivo que o governo provisório também as não usa?

S. Magestade redarguiu :

Nos paizes cálidos, onde o suor abunda, a pouca roupa branca é um signa! d'austeri- dade.

Nossa Senhora! como no tempo quente, lodos esses grandes homens deverão andar assados !

Acaso ignora, que uão lia estadista bra- zileiro que não polvilhe as regueifas com fart- nlia de pau?. . .

Oh ! as jovens nacionalidades ! . . . Den- tro de noventa annos, todo o Brazil dirá: veneremos a memoria de nossos maiores, que se republicanisaram por uma questão de trajos menores.

Vou almoçar, disse o imperador. Que mais deseja?

Desejava... desejava que V. M., certo do meu profundo /elo á sua causa, me em- pregasse ahi de/ tostões.

Singulares, estes reporters ! Acabam lodos as ittíerviews da mesma maneira.

OS OATOS 63

_ i; julga V. M. que uma restauração seja

possível ?

li. Pedro, á porta da casa de jantar, e des-

pedindo-se :

Ai de mim ! rehaver o império é quasi tão inverosímil, como rehaver os dez tostões.

Meu senhor D. Carlos de Bragança e d'Or- leans -muito mais d'Orleans, que <!<> Bragança.

A reputação que por Villa Viçosa haveis < 1 * grande e sábio príncipe, alhada ao que li»'i lido <i;is explendidas alfaias que dizem brilhar n, ,s thi souros '1" vosso paço, me conduzi- ram da pobre herdade onde apascigo gados e agriculto terras p'ra vos pagar <> melhor d»1

vinte ín las de Unta, às festas da vossa co-

ticunhadas d'opiparas uos annuncios das companhias de caminhos de ferro por cujo bilhete d*ida e volta me desguarneci de seis mil reis, não conl indo farnel, e um va- rino estragado pelos gorgolejos d'um compa-

64 os GATOS

nheiro de viajem que se emborrachou p'ra vos dar vivas.

Do meu casalejo trazia em Colha uma ad- mirarão de saloio p'ra quanto visse, e por N, Senhora do Guadalupe vos juro que ninguém sentiu ainda melhor vontade de crer ua pre- destinação divina dos reis sobre o destino dos povos, e na omnisciência da vossa missão co- mo Dador da prosperidade económica c social de que lauto havemos mister.

Mau grado as calumnias espalhadas ao de redor do vosso nome, mau grado 0 allianca- rem-me amigos vossos a exiguidade da vossa intelligencia e a inverosimilhanca da vossa pe- danteria ; mau grado o dizerem-me, senhor, que mentíeis com um descaramento inolvidá- vel, e escarafuncháveis nas vénias com uma teimosia imperecível, todas estas asserções eu referi a estímulos de corte, a mal entendidos d'antecamara, a ciúmes d'aulicos e a interven- ções de republiqueiros. E repensando na estir- pe olympica do vosso nome, comigo mesmo dizia, ao sentir-me vencer pela suspeita Ten- do este rapaz tão glandes vícios na ascendên- cia, como é possível não ser elle um poço de virtudes? !

06 GATOS 65

Adquiri n'uma loja um retrato vosso, e contemplando-vos, proseguia meu sonho de vos glorificar como a mu enviado do Senhor. Gordo de mais me parecesteis para monarcha (rum paiz que está na espinha, e immovel e dura se me affigurou vossa verónica, onde de- balde busquei vislumbres, verdade seja, d'a- quella vossa origem superior. Com uma ca- belleira d'esparto numa cara de pecego, «' dois olhos de fayança semelhantes aos cacos

(Tiiiii bispote, antes me destes, senhor, a ideia

do cocheiro inglez da senhora duqueza de Pal- mella, do que a alta e deslumbradora visão da auctoridade real, transfigurada no specimen Minis puro «la helle/a aperitiva e intangível, hoje em dia ião ulil aos príncipes como ás cocoUes, attenta a circumstancta d'ambos terem de fazer com elia, «píer dentro da Carta, quer dentro da cama "" toa </< choses.

Resiguar-me-hia entretanto a dobrar o joe- lho aos pés do throno, impugnando a melho- ria do que vós éreis, e que o iinliecil pholo-

grapho talvez houvesse deturpado, por suges- tões do feroz Gonsiglieri— se de repente não

acorda em mim a profecia sinistra de mie os que riem no lucto, lifio-de por forca derramar

6t) os GATOS

lagrimas na gala ; e o presentimento de que vós, senhor, que chalaceastes no coche de I». João v, no dia do enterro, os venerandos res- tos de vosso pae, no mesmo carro havíeis de

pagar a irreverência, pelos apupos do povo, ii() próprio dia da vossa acelamação.

De feito <pie foi ella, a vossa acclaniacào, ;| mais que o fiiíiMTo ilo prestigio monarchico, amortalhado em velludilhos de magica, e se- guido por macacos trajando á corte, acocora* dos em berlindas de carnaval? Eu quizera, senhor, que vós n'esses cortejos antes hou- vésseis feito figurar um boneco em vosso |<> gaF, vindo comigo por entre a turba das ruas, recolher os commenlarios que fazia o povo á passagem dos carros iriímipliaes. Quizera que avisado da preparação lenia mas firme do es- pirito publico para nina transformação politica que cada vez vos cinge de mais perlo, aieada como vae pelas manobras da colónia do Bra- zil, e pela exosmose politica de líespanha que renegará a estrangeira, mal pereça a pe- quenina lesma chamada Aífonso \m come- çásseis a preparai' com tempo as vossas inalas, ;i fazer economias, a pòr no lianco de Lon- dres os vossos modestos haveres patrimoniaes,

os g \ ros

de caminho fazendo praticar as línguas b i , primogénito, visto como o elle não po- der succeder-vos no throno, sob nome de rei Luiz Filippe, i é razão pr';i que não ga- nhe a sua vida, leccionando francez, sob a ta- boleta modesta de Luiz Filippe.. . Leite. Por- ,|,„. os , i tempo deixaram * 1 * * ser desde

hontem, wna revelação do incógnito aos vi- dentes-, pr*a se tornarem n'uma legenda fatí- dica, que todos podem soletrar nitidamente. Seja qual fòr a formula governativa que adve- nha, melhor ou peor, mais despótica ou mais livre, os dias da realeza estão contados, pois seria indigno de nós o conservarmos por che* fe um personagem a quem vimos de desfei- tear de fond en comble.

E note V. M. ! não foi o povo quem ini- ciou esse acto publico de chacota á monar- chia, nem os republicanos que andaram pelos grupos, alliciando chufas dos ânimos descon- tentes. Foram os aulicos, foram os ministros, foram os Íntimos, foram os cavallariç servidores de V. M. «ill(> ° provocaram. EUes que animados de propósitos drolaticos, e , Mi,, desdéns de mi* uaes aos que

está lendo a administração do theatro de S.

68 os GATOS

Carlos, tornaram as festas n'um sorvedoi- ro de dinheiros públicos, eraquanto iam re- duzindo a magnificência real a uma panto- mima de chechés vestidos de farrapos, vergo- nhosa para lodos, e a transudar grotesco por iodas as costuras. Elies que dictaram o estylo decorativo das salas em que havíeis de cantar o juramento, os pavilhões da parada e o pro- gramma da vossa procissão pelas ruas da ci- dade, só comparável ás danças de carnaval, as mais immundas, e entestada de reis d'ar- mas com as barrigas das pernas ao contrario> c passa vantes que piscavam o olho ás ovari- nas, dando, no transcurso do préstito, com as massas de prata na caberá dos gallegos.

Ali, como os monarchas lusitanos d'agora tergiversam, mendigos tontos, da estonteado- ra pompa das coroações, das embaixadas, das entradas Iriumpliaes, dos cortejos e dos sa- cres, dos seus grandes antecessores da Renas-

os GATOS

69

cença, quando as riquezas esbrazeavam n<»s erários, o luxo do Oriente e da Itália ia so- bredoirando d'offuscantes apotheoses a di obra de conquista e descoberta, e o génio da gloria erguia as azas, para levar ao longe, i»1- lo terror e pela audácia, a atoarda dos nossos commettimentos ! Basta ler em Damião de Góes e no padre Osório, a descripção da em- baixada de D. Manoel a Leão \, para se ajuizar da magnificência estridula d'um cortejo portu- rniez no século xvi, e repassar pela vista <> que 'li/. Fernão Lopes sobre a entrada 'l" mestre d' \\ix no Porto, acclamado rei, para sem mais detonga acquiescermos na consan- guineidade profunda d'aspiraçôes e interesses, que jungia a investidura do rei, á grande al- uiu pathetica e heróica da nai

;ratissimo e invencivel Cezar, (rf) ha poucos dias que são vindos a esta cidade de Roma embaixadores do sereníssimo rei de

Damião de Góes, Ch. Del-Rey D. K

BISPO DE Si LVE9, F< itOS 1 '

70 OS GATOS

Portugal, a dar obediência ao nosso santo Pa- dre Leam. Sun entrada foi cousa fermosa pa- ra ver, porque eram ires embaixadores, hum da ordem dos Baroens, que tinham o primeiro logar, e os outros dois doetores em leis, os quaes ira/iam buma magnifica e pomposa com- panhia. Primeiramente vinham diante seis trombetas e seis charamelias ; depois hum ín- dio sobre aum fermoso cavallo ornado de huma sella da índia, o qual trazia de traz de

si sobre as cubertas das ancas do cavallo,

huma besta semeliavel a um Leão pardo, mas de menor corpo, e mais delicada, e de muitas e desvairadas cores. A este seguia hum Ele- phante índio, que trazia em cima de si hum cofre com um rico presente, que o sereníssi- mo e christianissimo Príncipe enviava aos san- Ctissimos Padres, S. Pedro e S. Paulo, e cm seu nome ao mesmo Saneio Padre. O cofre era cuberto de hum panno tecido douro, com as armas fleaes, que não iam somente cubria

o COfre, mas ainda todo o Klephanle, em cima do qual lua outro índio vestido de huma roupa douro e seda, á palavra do qual o Elephante obedecia, caminhando por um spaço; e logo após elle seguião algumas azemelas mui fermo-

os 6AT0S 71

300, dizem os Innai - Histoiui os) cuber- ,,:,, reposteiros de raz e Beda, de diver- sas cores e insígnias. Al raz destes vinham os criados dos embaixadores mui bem ataviados, (tantos, quantas as azemelas) e apóz estes a ordem dos nobres, que eram em numero <l<i ciocoenta, lodos vestidos de pannos douro e . com colares de ouro, não menos de peso que demostra, de que os mais delles davam grande resplandor por caso das muitas perlas e pedras de que eram semeados; e entre to- dos os outros num filho do primeiro embaixa- dor, ao qual seguia o Rey d'armas do dito Rey, vestido de huma roupa de panno douro, com as armas do reyno coroadas, e cerca- das èm torno de mui formosas perlas e ru- bis; e lodos em briosos ginetes com sellas,

peitoraes, caprazões e mais arreios dour a-

ou de lavor, esmaltados de perlas e pe- dras de gran preço. Após estes vinham os embaixadores vestidos magnificamente, e o pri- meiro delles trazia bum mui rico ehapeo de perlas, nãm digo somente ornado, mas lodo coberto. Depois dos embaixadores vinha muita gente de conselho, de grave e honrada pre- i qo lim i<» a turba dos familiares.

7-2 OS GATOS

Saturara a receber e acompanhar os embaixa- dores portuguezes, <>s do imperador e dos reis de França, Castella, Polónia, e os das repu- blicas de Veneza, Sena e Bolonha, hum irmão do duque de Milão, e outros grandes senhores prelados com suas famílias, a que se ajunta- ram bizarramente vestidos os portuguezes cor- tezãos que andavam em Roma, ecclesiasticos e seculares, o que indo fazia uma representa*- (■.'ii) numerosa e luzidissima. o Papa com mui- tos cardeaes se foi ao Castello de Sanfangelo,

por ver passai" os embaixadores. Todo o povo universal de lioma correu por ver esta novi- dade, o que nam lia maravilha, porque pou- cas vezes, ou nunca aconteceo mandarem os Príncipes Christãos legados a Roma com iam magnifico aparato, nem Roma no tempo pas- sado, quando possuía muitas províncias, posto que visse alguns Elephantes da Ethiopia e de Africa, nam vio nenhum dos das índias, o qual Elephante em chegando deante da janella onde o Papa eslava lhe fez reverencia, pondo os

jeolhos no chão, fazendo além d'isso outras cousas (pie lhe o seu redor mandava. Depois desla primeira vista foi assinado dia, no qual os embaixadores forão ao Paço, onde fezerão

mv BAT08 7:5

obediência na maneira acostumada, fazendo liiiin delles numa arenga mui prudente, em latim, <' digna de príncipe christào. Depois em outro dia assignado forao a Belveder, onde o Papa eslava acompanhado de todo- los Gardeaes e embaixadores, e alli lhe apre- sentarão oa does que lli»' levavão, não menos sumptuosos, que religiosos, dando-Jhe pri- meiro unia caria d'aquelle mui poderoso Rei, que continha em poucas palavras o seguinte. tile offerecia as primícias das cousas da índia e Ethiopia, ao nosso muito piedoso Salva- dor, ■ a Apóstolos, S. !'■ /'•" e S. Paulo, t "" seu Vigário na terra, pedindo a

Sanei iode humildosamente, que aceitasse

uetta benigna vontade,

com que lhos dl* mandava. Os does eram as

idas vestiduras tanto para os ministros

Como para OS ClerígOS, para servirem a toda

maneira de sacrifício, e tanto ao offieio da Missa como ao das vésperas -ás quaes cha- mam túnica, aknategas, casutia, rapa. d assim ornamentos de Aliar. Todas estas vestiduras eram tecidas douro, e tam cobertas de pedras preciosas, e perlas, que em poucos togares se podia ver o ouro; e 'Tam as perlas, e pedras

74 <>s CA TOS

postas o metidas com artificio admirável, per alguns nos entrelaçados a maneira de numa Romã, o qual artificio era cousa muito para vèr, porque a obra era maravilhosa, sumptuo- sa, e magnifica, em certos lugares era como pintada de ouro e seda a face de nosso Se- nhor, a dos Sanetos dons Apóstolos distincta- mente, ornados de muitas perlas e pedras pre- ciosas a que nós chamamos scravonetas ou rubis, nam contra feitos, nem polidos, mas nulos e simples, assim como se trazem dos lugares em que se achão, com seu resplan- dor natural, tal qual se deve as cousas divi- nas, (pie direi mais para comprehender tudo em numa palavra, a matéria era preciosa, mas a obra a sobrepujava com espanto. Iam tam- bém mitra, bacio, ancis, cruzes, cálices e thu- ribulos, tudo de ouro ao martcllo, cuberto de pi^i Iraria, e muitas moedas de ouro, de qui- nhentos cruzados cada uma, tamanhas como grandes maças. 0 que fez dizer ao nosso San- cto Padre Leam certo, assim é de crer, que a nenhum papa da Igreja romana foram apre- sentados tam ricos presentes, nem iam fermosos ornamentos, nem iam prectosos.y

os ga ros

"... o qual recebimento ordenarom f< / d'esta guisa. Todalas nãos, que erom no Rio, muito cedo pela manham, foram apendoada bandeiras e estendartes, e postos muitos verdes ramos em certos togares, onde cada hum en- tendia, que podia melhor parecer. Os b delles andavam todos enramados com trom- betas e pendoens davante e de ré, fornidos de homens que bem os remavam, delles em camisas com sombreiros de rozas e outros de libré de ramos e flores, segundo se cada lnms melhor correger podiam, hs gentes da Cidade carecétes de todo nojo, e as me- lhores vestiduras, que cada hum tinha ; fi r- viam andando por toda a parte, trigando de se correger tam bem, que nom podessem ser prazmadas. As ruas por Ira dle avia de Ir, atá aos paços Ira avia de ponzar, erom estradas de ramos e flores, e ervas de bons cheiros guisa, que do cham nora parecia cousa aenhu-

(e) Fernão Lopi

78 OS GATOS

ma. As porias das casas destas ruas crmii Io- das abertas e enramadas de louro c doutros frescos ramos, deUes, que pendiam com- pria, outros tecidos iam espessamête, que leyxavam Logar, que todo nom fosse coberto de seda e oiro e brocado, e esto podiam bem fazer uaquelle tempo, que era qo mes de Mayo; o forçava-se cada bum de vencer seu vizinho por corregimentG de portal, e sobrado, poen- do as porias defumuras de lautos e nobres cheiros, que bem podiam afugentar qualquer mao ar, que tosse corrupto. As janellas lan- çavam panos e mantas e outras roupas, de seda e linho bordado, que afermosentavam muyto as ruas, polas quaes andavam certos homens, que desso tinham especial carrego, fazendo afastar e correger toda a cousa sobeja ou mingoada, que trovar podesse sua bòa or- denança. As janellas das casas todas erom acupadas com fermosas donas e molheres dou- tra condiçam, com gram desejo e amor de o vêr, assim guarnecidas de taes.corregimeatos, que fealdade e mao parecer, não ousou na- quelle dia entrar na cidade. Km certos loca- res avia bandos de molheres que canlavam

cantigas, e cordas armadas para treparem lio-

OS <"■ wos i

mens que bem d sabiom fazer, quando El Rey alli chegasse, los misteres <• outra moita gente er0m encommendadas danças, e jogos doutras maneiras, em que andavam velhos e mancebos todos em leda vontade. &s molheres isso mes- mo em sen bando fizerom péllas muyto bem corregidas, ;i^ quaes acompanhavam com muy- 1 1- cantigas, delias feitas em louvor Del Rey, e outras acostumadas, nom somente as de menos estado e condiçam, mas muytas das

- ,1,1 Cidade andavam eom ellas por honra da resta. A porta por hu El Rey avia de vir. estavam muyto? Cidadãos honradamente ves- tidos com guarnimentos douro e prata, e muito outro pevo, foram com a insígnia da Cida le, huns com varas uas mãos pêra reger os jogos, como El Rey chegasse, outros pêra ir em sua companhia até aos Paços, hu avia de pousar. Nom com menos sentido de o receber honra- damente se fez prestes com sua cleresia <> tjonrado Dom Johão Bispo desta Cidade, rica- mente em Pontifical vestido, isso mesmo to- dolos ootros feativalmente, com os melhores corregimentos que tinham, e sendo todos asei aguardando, cada hum em seu lugar, pareceo

nte Del Rey da parte dáiem de Gaya, por

78 os GAT08

liú El Rey avia de vir, e os bateis que anda- vam caleando pek) Rio, foram logo alli muy prestes com grandes apupos, e grande tanger de trombetas, mostrando grande lédice, antre os quaes era liimi grande e fermoso batei rica* mente corregido e toldado, em que El Rey avia de passar. E como El Rey entrou com esses fidalgos e das outras gentes quantas poderem caber naquelle e nos outros bateis, começa- rom lodos ;i bogar ao longo do Rio. 0 Del Rey deante muyto apendoado, e os outros to- dos detraz que era grande prazer de vèr. E á porta de miragaya, o estavam attendendo, como deaziamos, sahio El Rey em terra por húa larga e espaçosa prancha, o beijar da mão e mantenhamos Deos,. Senhor, era tanto que uniu podiam aver vèz de cumprir suas vonta- des; 6 depois de bum bom espaço, <"j. se nisto detiverom, tallou bum Cidadão, a que desto era dado carrego, e disse :

Senhor, tomai esta insígnia em vossas mãos^ <■ por ella nos poemos em vosso poder, e vos fa- zemos }>reito, e menagem de uos servir com os corpos e averes atá despender as vidas por hon- ra do Eeyno e vosso serviço.

El-Rey, em quanto elle esto disse, leve as

OS GATOS

7!)

m, ins oa baste delia, dizendo Que assi era ei- to prestes para despender a vida e corpo por oonra (|(, Reyno, e defensam deites, <• que os avi;i por bons e leaes, e mes feria multas mer- eés, quando lhe per elles requeridas tossem. KiiI.mii começarom a regef Buas danças e 5, nus quaes muy a miude, em muy alta (> clara vôzbradavàa dezendo Vim K l;"j iK Johamf uivai

El Rey liia muito passo pola Cidade, que num podia (lontra guisa, porque a gente era tanta polas ruas polo vèr que parecia que se queriam afogar, e as donas que estavãe ás ja- nellas, folgavam altamente que o mantivesse

I a muitos annos e bons, e que muyta fosse

sua vida, e boa, e outras taes razoens, e em dizendo esto lançavam de cima muytas rozas c flores, milho e trigo* e outras cousas. Aqual festa e recebimento desta guisa feito, demo- via muytas d'ellaí a regar suas formosas faces n,ii, doces e aprazíveis lagrimas, e assi foi Kl i;r\ levado com este prazer e lédiee aoa paços, lni avia de pousar, e as gentes ae tor- uarom festejando, cada nuns para suas casas, e em esse dia depois de comer lhe foi talar a molher do Condestabre, a qual elle nunca \i-

80 OS GATOS

ia, nem cila a elle. El Rey a recebeo niuy bem, e lho fez grande agazalhado e honra; e som alguns que dizem que auteque se delle partis- se lhe fez Kl Rey mercê para cila e para seu rido, de Bouças e terra de Basto, c terra de Pena, e de Barroso, e mais de Barcellos, e de Penafiel dv Bastos; e que de todo lhe mandou logo feizer carias c privilégios* quaes pêra es- to cumpriam: Mas nós engeitamos tal opinião, e aprovamos aquella que diz que eslas terras, e outras que foram dadas ao Condestabre quando Kl Rey depois da Batalha lhe deu o Condado Dourem, e Barcellos, como depois ouvireis.»

Está V. M. a entrever como estes cortejos brotam naturalmente d' uma plethora domi- nante á flor das duas epochas : na de D. .Ma- noel a riqueza, (pie passando pelo brazeiro d'Azia, abre o Portugal guerreiro em llòres de maravilha : na de D. João I o amor do po- vo, que farândola com elle numa ronda de figurinhas festivas, ogivalmente ingénuas, co- mo as que se veem bailar em Westminster, de ao de redor certos sarcophagos.

OS r.Aios SI

Ora, se V. M. arremedando na ridícula or- denação do seu cortejo acclamatorio, a pom- pt Lithurgica dos nossos reis da Edade Me- ilia, e as etiquetas peralvilbas das antigas cortes similares da de Luii hv, teve em vis- ta revindicar perante o povo, o descabido prestigio do seu throno, b restabelecer que a realeza se estriba, apesar das modernas ctmnistas democráticas, na predestinação «Ir origem divina d'onde procede para os reis a aactoridade, e na oAuscancia do cerimonial luxuoso, de qne a magestade é implícito co- rollario, o meu rei desculpará mas devia i.t mexido naelboros seus pansinhos, em ter- mos '!•' ser ao menos digno, <> que apenas foi carnavali

Nenhum <1<- nóe Bstranbaria que <> menar- eha d'um pai/, pobre, fosse de manto e see- ptro, prestar juramento n'um simples landtau a quatro soltas, b sem mais cortejo do que meia dúzia de coupés levando a corte, e al- guns esquadrões de cavalleiros no couce da romagem. povo baveria aceitado esse cor- tejo na sua expressão de seriedade modesta, como o que mais discretamente convinha a imi pai/ comido de dividas, roubado «• escar-

<VJ os GATOS

necido pelos seus adiados, e por lodos os mo- tivos inhabil para acompanhar a Europa nos seus grandes troles de progresso, nas suas epilepsias de novo, e nas suas remodelações de civilisação.

Gomprehende-se que D. .Manoel, sob cujo sceptro Portugal houve o Brazii e metade da índia, grandes retalhos dWírira, e archipella- gos no tenebrosíssimo mar da Oceania que I». Manoel que fez d'este filete de terra, por um Instante, o assombro do mundo, e o bazar de lulas n> civtttsações velhas e novas, buscasse estadear luxo atttnente á apotheose universal de que ao mesmo tempo se consti- tuirá centro e propulsor !

Eram outros os tempos !

O rei que aos seus títulos agregava o se- nhorio das cinco partes do mundo, (ira de leito o suzerano e proprietário d'esses incom- mensuraveis e mysteriosos domínios. O seu throno, montões de pedraria e oiro, que trinta naus lhe carregavam de lodos os jazigos do mundo; e o seu direito, sobre aascer da re- velação, como o de Deus, cscorava-se a mais num espirito de conquista, dYleiçào e de cas- ta, <pie imprimiam á dymnastia uma indizível

feição de patriarchâdo. Para elle, a forca, quando não provinha d'uma superioridade de Luzes e de razão, sorvia alentos n'essa crença profunda n'wna magistratura suprema, que ' a primeira condição da soberania. Tudo advi- nha a engrandecer e ;i revigorar as dymnas- ti.is... a tradicção, <> fetchismo cego do povo, um espirito politico superior ;i<> espirito de consanguinidade e de família, ;i incarnação he- reditária providenciai d'algum grande princi- pio necessário a existência <la> sociedades; mil cirGumstancias emfira que ;is faziam in- substituíveis, como introduetoras da humani- dade nos iatormundios da civilisaçâo. Fallar por exemplo na creação da aacionalidade fran- ceza, é fazer a historia dos Capelos : evocar ■I,, dos nossas descobertas e conquistas, é rificar a dymnastta de àviz. Comprehende-se poisqueo rei da terra, uma vèz definido entre «-sks lermos, carecesse i isceus, de revelar-se aos mortaes por entre

magníficos invólucros^ •• <| s nimbos d'oiro

sob que se n is revel i nas cathedraes a Hóstia

Santa, desçam do alio. para vir lantejoular as

dalmaticas dos conquistadores e dos imperan-

\ magnificência não é aqui um aeceasorio

8 í OS OATOS

ephemero do costume, senão que entra a três quartos na fascinação que a realeza, infallivel e sagrada, deve produzir na turba multa dos mesteiraes e dos homens de guerra.

Se D. Manoel em vez d'enviar a Leão x o seu embaixador Tristão da Cunha, entre o cor- tejo veronésico que vimos, simplesmente o tem remettido a Roma u'um Banimento de po- bres atavios, aquelle senhor do mundo seria pelo menos tão reles como o foi V. M., que sem ser senhor de coisa nenhuma, se enlrajou ile rei de coitas, para vir n'um carro do sé- culo xvm, com botas á frederica e mais em- plumachado do que uma catatuà, jurar a constituição inim parlamento que parecia uma barraca de leira, e n'uma sala de município que os jornalistas Irancezes tomaram por uma capella de padres jesuítas.

Porque atinai de contas, quem é V. ML? A ultima vergontea reinante d' uma dymnastia

.is i, nos

85

que nascei aorta, e cujo advento ao thro- n ,. historiador algum poude ainda explicar por iiin.i qualidade qualquer extranormal, di- reito de conquista, poderio de fortuna, génio politico, nu qualquer ínfimo rasgo de valor. o primeiro rei da sua casa mi, como toda a gente sabe, um cagarola, que ainda na vés- pera do dia em que <>s conspiradores foram propor-lhe a coroa a Vilta Viçosa, se dispu- ,,li;i ,i figurar no séquito do hespanhol Fillip- !„. iv. ,- cu'].) filho, estancado pelo onanismo, expirou In» meio de santos, n'um delírio mys- tico, repellindo a família, e engulinde hóstias de quarto em quarto «I»' hora. D'ahi para ci- ma é tudo um fim de raea, em que os libidi- iutercalam nos freiraticos, em que os cob urdes se succedem aos impotentes, e em ,|i,(. os doidos dão origem aos sachristães, e estes ain la aos toureiros e ;h>^ usurpadores. Percorrer a galeria real da casa brigan- dna, é visionar historicamente a synthese fe- roz d'aquelle jacobino çue exclamou d'uma vez ii i Convenção : os reis são na ordem mo- rai, o que ua ordem physica si a monstros.

li,, feito, é -"l> :" égide de Bragança que :i rea- leza se desintegra em Portugal do teu papel de

86 OS GATOS

cornaca dos povos, e faz estalar as lianas que jungiam o throno á alma publica, cahindo de tutora em filha proéiga, e reduzindo o pontifi- cado real a uma espécie de parasitismo. De 1640 a 1834, o espirito dyoanastico ainda podia ter sido para nós um instrumento de progresso, se lhe não coartassem a acção, as dissoluções dos antepassados de V. M.

E se o meu rei duvida, vamos abrir a his- toria e liquidar. Fácil tarda, (pie sobre ser he- dionda é divertida ! Ahi vem Afonso vi, de que ioda a gente conhece o famoso processo, filia- dor das suas devassidões entre as de Luiz XVI, sádico e impotente, mandando ás amantes dee boulex de la crasse de ses pieds (f) e as de Henrique m, que se vestia de noiva para attrahir ao leito os seus mignons. Ahi vem D. João v, sultão dos conventos, com o delírio das grandezas como Luiz ii da Baviera, que arruina o paiz pondo boudoirs de duzentos mil cruzados ás madres Paulas, c quartos de cama onde os lençoes são perfumados d'incenso, antes da

(f) JOURNAL DES GONCOURTS, 2." V.

os QAT06 s'

copula, «' os penicos de prata teem por azas, grupos de seraphins em oração. A h i vem 1>. José, cuja Imbecilidade partilha a liugua, en- tre travessas de doce, «i os nombrís das fidal- gas a quem o Marquez mandava perseguir os filhos e os maridos. Depois Maria i, a doida aympbomauica, de saias erguidas no meio da ni;i, ;i unar que o pae a arder dentro do inferno, e a dizer obscenidades no meio das aspersões dos padres jezuitasJ Depois l>. João vi. trinta vezes chavelho e cantochista, usan- do bofe em vez de papel, no water-doaet, tra- hido por todos, contradizendo-se borrado de medo, fugindo para o Brazil com os thezou- roa da nação, e abandonando-nos, canalha! ao protectorado de Beresford que decretou o martyrio de Gomes Freire! E por qui fora., assim chegamos, eo/uinarta, sem alludir a l>. Miguel, mu moço de cocheira, e sem mecher um brazileiro !». Pedro, um tarímbão, á des- connexa pessoa de V. M.

N'estea 250 annos quantas humilhações, quantas decadencias, quantas vergonhas! Com os Braganças, Portugal deixou de ter nos íris os fiadores da sua prosperidade e da sua glo- ria, 6 passou a atural-os cOfflO a IVitnivs <l

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88 OS GATOS

mastins da Gran-Bretanha. 0 paço tornou-se a'uma dependência da legação britanniea: os reis de Portugal, bonecos de palha dos pleni- potenciários do pai/ dos bêbados, das prosti- tutas c dos ladrões.

Uma a uma, sob o regimen deprimente de taes reis, vemos Portugal entregar as terras

(Talem mar por elle descobertas ou tomadas, perder a iniciativa do commercio e navegação dWzia c da America, desvinculara forte e ca- valheirosa nacionalidade dos séculos anterio- res, e receber da Inglaterra, em vergonhosís- simos tractados de commercio e diplomáticas chantages, humilhações comparáveis ás que as nações victoriosas costumam exigir, pela força da guerra, das nações humilhadas e vencidas.

Portanto meu senhor, se a dymnastia que V. M. representa, nunca teve a radical-a no espirito do povo uma forte corrente de tradi- cção gloriosa, nem a justitirar-lhe o advento um principio politico indispensável á manu- tenção da nossa integridade ; se está provado que nenhum dos reis da sua casa tem sido na evolução da vida portugueza um instru- mento de progresso, e se todas as derrotas,

os g wos 89

todas as aítrontas, todos os enfraquecimentos, todas as indignidades, todas as vergonhas, andam jungidas á Incúria de vos termos guar- dado até agora a vós, reis de cartão pin- tado, duas vezes estúpidos e rapaces, liqui- dando em corrupções que nós lemos pago com o suor e le dos tributos— Be todo

isl i é verdade, como explicar ;i mascarada da i acclamação por um desejo de reembu- lir no antigo prestigio histórico uma realeza que [amais teve prestigio, e d'alardear magni- r, cu -i;i uni i casa real que até compra fiado o champagne com que nas comidas de gala bebe á paz da Europa ?

Ainda hoje não quero crer n'esse cortejo apotheotico, sujo, arrastaido o seu ar de ron- da mortuária, e a cuja ;iiiLrii>iinv;i miséria faltou uma ponta de vinho, p*ra nos lembrar o cyrio de V S. do Cabo. K<»i do Largo das Cortes i|m' "Mi vi chegar essa funérea dança de quinta-feira gorda um piquete de caval- laria na frente, quatro chechés d'amarello <• rubro, bicorne e vara, a figurarem de nwços d'estribetra, e muitos gallegos depois trajando a inn :i, com vestimentas de bailado sobi i

velludilho, que me disseram ser os

7

00 OS GATOS

arautos, reis d'armas e passavantes, gentes sem sexo. de cujas meias sahiam, pelos ras- gões, rolos de trapo, restos de buchadas de pernas que esvidavam, d'aborrecidas co'as tí- bias de seus donos.

Toda esta cáfila passou em cavados de car- roça, mal arreados, coxeando, O peito hirsu- to, pondo na via um melaneholico rastro de bando de touros e d' arraial.

Ao cabo de meia hora d'espera, disse uma vóz que alii vinham os coches. A municipal esbatia sobre, os passeios a turba dos curio- sos, ensandwichando-a contra a parede, com a ponta dos sabres, e espanejando-a por ul- timo, com os rabos dos cavallos. O primeiro coche allim surgiu tropegamente, no alto da nova rua que atravessa a cerca da Esperança : era uma coisa corcunda e doirada, a gemer dos calos sobre um leito de carro de bois, e que infundia o aspecto do conselheiro Naza- reth, envidraçado no ventre p'ra se lhe vêr digerir os figurões que linha comido. Aquillo ia puxado á sirga por calabres de linho crú, como uma zorra de fabrica, os solas rubros esporeando cavalicóques cheios dVmplastros: e por traz, na taboa cercada de talhas de ca-

OS G MOS

91

pella, figuras d'anjos raziam motétes de pe- drastas aos sotas do churrião que sr seguia. Assim passaram três d'aquelles monstros, com velludos sem brilho, velhos oiros comidos aos detalhes, levando dentro toda a casta de ber- bigões cobertos de placas de seguros, e re- puxando ao alto das pinhas, n'uma infinida- de de pennas de capão.

Na minha simpleza rústica, atrevi-me a per- guntar a una cavalheiro, se seriam velhos do asylo. .

Na, não senhor. Isto é a casa civil de Sua Magestade.

E que serventia elle a esta casa?

É conforme. Uns escrevem nos jornaes que s. M. lé, outros •applaudem as asneiras que s. M. di/, e o resto está encarregado de II, r repetir que o povo está contente.

E S. M. acredita?

Emquanto lhe pagarem. .

Vou-me d'ahi, na «nula. até ás Cortes. A en- ii;i,l;i, um baldaquine dlestofo escarlate, que a ventania rasgou, deixando as taboas uuas á vela, como umas nádegas de pedintes. Pela

|;ili;i Ii;i lima |i;|vsideir:i de juta drsrÚTa- d;i. que atravessa 0 veslilmlo de tijollO, I

Í>-J OS GATOS

avança pelo corredor do claustro, entre po- lires vasos com cebolas alvarrãs e ramas de

pinho c loiro lanchadas, a fazer (Tai-bnstos

raros. Depois aa escada que leva á sala do throno, estreita, esconsa, coberta de hera co- mo a da rua dos Condes no beneficio (lo Sousa BaStOS,a mesma passadeira guia-DOS, espalma- da e exangue como uma tonia, aos intestinos da representação nacional. O ingresso nas tri- bunas é vedado: o mulherio invadiu lodos os cantos, e eu desço, e escorregando, intrujan- do, sempre consigo meter um na sala da cerimonia.

A minha primeira ideia é que vamos assis- tir a uma ferra. As senhoras teem quasi Iodas trajos de passeio, chapéus de telha, binóculos ao travez, vestões abotoados; e em baixo, nas bancadas do circo, alguns deputados e pares teem verdadeiramente um ar de bois. Aqui e alem, no pele-mele das carecas e das fardas, duas ou três leves manchas humorísticas: o cipello cramezi do (Ir. Valle, babujado de coi- tares i1 corações de filigrana, faz recordar la- vradeiras da Maia, pimponaças: ao fundo, enorme, im movei e vermelho, o bispo de Coimbra parece o Hotel Central: e ifnma pol-

OS GATOS

93

trotil ml, o m-. presidente da Camará, João Chrysostomo, Becco, esmoído, entre dois me- ninos á Lniz w, dá-me a visão a"um carapau rrito, n'uma malga de Coimbra— entre dois dentes d*a!ho.

Ali meu senhor, que decoração de sala, que alcatifas, que sanefas! As draperm do Ihrono velludo d*algodão esmaecido, com galões d'enterro pobre. Nos degraus, o tapete é feito ,1,. bocados. Não ha uma bambinetla fresca nas tribunas, occoltando a terrível miséria dos papeis cebentos, rotos, sobrepostos, ou sequer um fundo d'estofo, sobre orae fazer destacar um typd de mulher. E isto entriste- porque havia perfis diliciosos. _n d'aqueHa de roxo e rendas brancas, les olhos de Gioconda, um bonnésinho roxo nos cabellos. . . Coquetu fêmea ! e que barriga ! Mus é o núncio. —Outra vea gravido? \,, .,,iH do Hymno da Carta, o cortejo en- tra. Adiante os arautos, que >(' bipartem para 09 dois lados do throno: depois o sr. infante condestabre, que noa degraus se vae postar, d'estoque erguido : logo os gentis-homens e as

9 í (»S (iATOS

damas do séquito, mal amanhadas nas suas roupas de cerimonia ; e por ultimo OS reis, acertando O passo, com romeiras de pedes, mantos roçagantes, e attonitos de ninguém os

mandar recolher ás coloriages dos baralhos de carias, (Tonde parecem ter saindo.

Ainda liem as figuras se não lêem innnolu-

lisado para o quadro do juramento, duas

coi/as saltam, deploráveis. Primeira, que a gentilhomeria da corte é insufliciente para mn ensemble dramático de geito, e fora mellioi metter na sala os coros de S. Carlos, ensaia- dos de mais a mais para primeiro acto do Hamlet, onde ha nina entrada de reis, com marcha, toda chie. Segunda, <||1(' sendo V. M. muito mais baixo do que sua esposa, (g) e ur- gindo que a pessoa que perante os Estados vem conslituir-se fiadora das instituições, ol- fereça as mais soldadescas garantias de segu-

(g) Esta desproporção dalturas é tão extraor- dinária, que sendo ainda lua de mel no Paço de Be- lém, um reposteiro ouviu o snr. D. Carlos dizer p'ra sua esposa:

tfélie, pnnlia-tue em cima da meza, (pie lhe quero fazer olhos gaiatos.

os GATOS

95

rança e de força, errado andou quem lhes não fez iroear os vestuários, nem pediu â rainha o sacrifleio, d*a bem do Estado, ser ella quem lesse o juramento— com nm bigode postiço. K aqui abro parenthesis para lhe lançar en rosto a Rnoa voz. V. M. talvez aão seja bem digno d*um throno, mas em compensa- ção merece um palco. A escola dramática, o timbre com que V. M. leu o juramento ! H, ,;... Olhando a postura rígida <1<> infante, em sobre os degraus do throno, e com o chanfalho aberto d<i Nun'Alvares— do bello infante cocheiro, em cujo peito brilhava pela primeira vez a gran-craz <1<>s atropellamentos —todos perguntavam se elle nas imposições do seu cargo estaria ali a lazer guarda de hon- ra ao monarcha, ou simplesmente a apresen- tar armas ao barytono. Mas meu senhor, como tudo de roda de V. M. <>>rt>rvr uma agonia de fm th i" fSn, uma enregelada miséria de paiz dtarogne, de paiz gasto, de paiz morto, de paiz podre! Nas bancadas da sala, pelas tribunas, ás portas, todas essas figuras lêem, como paiz, um ar crivado de dividas: os fidalgos são pe- queninos, Bnlnhos, com um ar de coelhos e de grooms. Entre as damas da rainha, que

%

os GATOS

são oito, tantas quantas as províncias, uma sem nariz, fcrunculosa, é talvez a allegoria do Algarve, E como a pragmática prescreve que o alferes mor chegue á varanda, para accla- mar três vezes, á multidãq da rua, p rei de Portugal, succedeu que a sua voa cahiu do alto, sem repercussão, sobre o terrível silen- cio do Largo, onde alem do piquete de lancei- ros, a anica multidãq que havia era o popular José Augusto,

Percorrendo a cidade, em balde uVHa pro- curei signaes de festa. Quasi totfasas lojas es- tiveram abertas, funccionaram os escriptorios

de ÇOmmercio, e a população que nas ruas se

agregou a vêr passar o cortejo tinha um ar d'enfado e de birra, um ar de troça e descré- dito, que nnpallidecerieis, senhor, se a liv<\>- scis podido ouvir monosvllaliar.

os «.mos 97

Na travessia dás Cortes para S. Domingos, emquanto ieis com vossos fardalhões e ou- rangos titulados, churriando aos solavancos das snmptaosas berlindas, não se ouvia senão futurar coisas anarchicas, em formulas de desdém, que um tribuno audacioso faeil have- ria transmuttado em cólera revolucionaria.

\< duas bandas da rua, os regimentos postados, feitos de contingentes de proveniên- cias diversas, faziam unia salgalhada d'uni- formes e números, d'escandalisar os mais in- difterentes ás questões do porte militar. A soldadesca guarda uma apathia marroquina, um ar uY tristeza penitenciaria, a fazer lasti- ma. Na cara de qaasi todos os officiaes ha privações. Desengonçados como bonecos, e seguros nos estribos pelos camaradas à pâi- zana, os coronéis escarrancham-sé com dôr sobre os eavallos, os rins quebrados, ò peito

illejando d'asthma e tosses chronicas, e tão litteralmente cobertos de medalhas, que (lir-sc-iiia terem feito da ferda, escarrador. roa Augusta vi eu uma espécie de sagol tra- jando i generala (um (Testes generaes padei- ros, d' Administração Militar e Sociedade Primei- iode Dezembro,com cicatrizes de siphilts e car-

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98 OS GATOS

min na orelha, que os marujos ingleses pedem lh'os deixem levar p'ra bordo, atados a cordéis) sacear dos coldres, cuidareis que um revolver, senhor? uma caixa de rapé e um lenço d' Alcobaça. Em S. Domingos, a mesma miséria de decorações, a mesma indigna pompa de lausperenne e d'arraial, e a mesma troça de burguezes scepticos, e de populares desilmdi- dos. Quando o cortejo se apeia dos coches, não se vêem senão fardas cebosas nos cacha- ços, e com maculas de stearina secca e cal- deirada. Quasi todas as boccas vão a mascar pastilhas de cantharidas, e á passagem d'al- guns venerandos sustentáculos do throno, con- selheiros e grãn-cruzes, as faniqueiras que se apinham ao guardâvento, estendem o braço p'ra lhes puxar os rabos das fardas.

Adeus ó catita !

Á altura das cornijas passam, em peque- nos papos d'estofo vermelho e branco, velhas sanefas semelhantes a liadas de chouriços. Ha grandes palmas por todos os altares, symbo- licas talvez das extorsões que o povo tem sof- frido, sobre o altar da pátria sacrificada ao egoísmo dos reis.

E meu bom senhor— se podesseis ter vis-

.is CULTOS

to i gente que a S. Domingos foi commnngar nos louvores da igreja á vossa coroação! Se podesseis ouvir os rumores do que á vos* i passagem sr arengava ! . . .

Não, não era o moHtenhavos Deos que o | - vii dizia no Porto ao seu camarada <lc guer- ra, d mestre d'Àviz, a saudação patriótica ▼os ouvistes, nem rosas o que vos atiravam, nesfl lagrimas de jubilo as que a cidade i rou ao vms ver (lassar, sagrado rei! Ao des- gosto que nos inspira o parasitismo dos vos- i nenhuma espécie d'apego que a monar- chia nos desperta, e ao vivo ódio que referve no peito contra todos aquelles que nos teem posto n'este estado sejam minisl d' Inglaterra ou sejam ministros de Portu( príncipes de Bragança ou príncipes da doa Capellistas veio ajuntar-se o escai d'esse cortejo ignóbil, bufonico, estupend i, que sr foi digno <l" vós, nem por is* ft-z menos vergonha, visto como elle achi lha a ideia do puder, que vós tendes oh ção Ai' respeitar emquanto fordes o chefi oaçlo.

Tenho ainda nas f;,,-rs .1 ardência da alii

ia que por vós Boffri por essas ruas, e con

100 OS GATOS

os que acompanharam os jornalistas franceses e hespanhoes, do rosto d'elles bebendo ancio- samente o fel d'uma ironia horrível, que se mercê da polidez lhes fechava a bocca, nem

por isso se lhes tralha menos no faseias, em alternativas de frouxo e crispação.— Não, não foi o mantenhavos Deos, a saudação popular que vós ouvisleis, mas chufas, apupos, vaias: os fadistas que vos apontavam ás cigarreiras,

Olha, \ae o canário. . . os conselheiros ila corna que vos faziam trai- ne, (-(Mito ralos d'esgoto ao faro d'uma coslel- leia de cevado; e uo coro da igreja os capa- dos góchinliando o seus latins de festa, d'onde pareciam sabir convites para prostituições in- confessáveis; e á porta os moços dVsíribeira, com meias (Kalgodao e a barba por fazer, ca- tando piolhos de redor do carro 1>. João v, en- tre um regougar de velhas macbethicas, que pediam esmola p'ra vos pagar um vinho de honra. Tanto era fúnebre o aspecto da ceri- monia, que um homem simples, (pie sem du- vida checara, como eu, da sua terra, abor- dando um archeiro, lhe perguntou se aquillo ainda eram exéquias pelo rei ! Esl is agora são pelo reinado.

OS GA ["OS

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101

Cançado de sustentar uma monarcliia que o não acompanha nas suas aspirações, que marcha diametralmente opposl i aos seus in- teresses, que i partilha das suas alegrias, e que até tem escarnecido os seus pesares, e povo desinteressoth-se d'ella, degredou-a da cruzada nacional, começou a considerâl-a co- mo uma estrangeira sospeita que se lhe abo- letou em casa, delegada e espia d'essa maço- naria de reis que traz jungida a si a Europa escrava, e estanca e bebeasseivas das nações.

K meu senhor, este movimento não pára, esta Bnspeiçâo não se corrige. Duzentos e rin- eoenta anoos de miséria, fizeram do povo por- taguei ama lagoa podre, em cujas sanias po- dem Tiver e medrar as carpas coroadas. \ draga que limpar o pântano dos limos, ha-de pescar

102 OS GATOS

as carpas orgulhosas, e envial-as em barricas de salmoura, quem sabe! a qualquer hotel de. França ou d' Inglaterra, E essa draga está-se armando entre nós ha muito tempo: vêem- se-lhe as peças formidáveis, os cyclopicos gonzos, c as cadeias de bronze humano que lhe circulam, ululando, pelo meio das gotei- ras c engrenagens.

Podem os espiões de V. M. denunciar ao ] ssaro d'Arcos as isoladas offtcinas aonde se está acabando de bater uma ou outra peça -,'inidaria. Podem os Irabuijueiros dYI-rei mel ter as sessentas cargas á cara d'alguns descuidosos operários que se repousam, pondo

►as no pedestal da estatua dos poetas, e desforçam, pondo alhos no pedestal da es- tatua dos monarchas. Podem os Serpasitos, os Lopositos, os Arroiositos, arrasar esta ou aquellá Forja descoberta, suspender a Pátria, fechar 0 Henriques Nogueira, ipierellar do Sé- culo e dos Debates. . . Que nos faz isso? A de- mocracia é como as outras febres; um bacil- lus propaga-a, e do cérebro de cada affectado que '• despotismo sequestra á liberdade, mi- lhares de germens se cvolam, a contaminar ou- tros tanlos reputados immunes, horas antes.

o> GATOS

108

\s ultimas ebullições anti-inglezas recam- baram do pavilhão monarchico os últimos fieis, e ha vinte dias que o pak Dâo faz senão gritar, viva a republica !

Este grito propaga-se, e galvanisa de cada esperança morta, ama aspiração pujante e fe- cundíssima. Repetem-no em Coimbra três mil boccas frementes d*academicos ; repetem-no ,, , porto oito mil rapazes do commercio e das repetem-no em Lisboa as cem mil vozes validas das classes fortes, activas, cul- ,;1 lerantes. Os lyceus do paiz, é ao som d'elle que vão pelas mas das suas cida- des, pedir esmola para comprar ínvio- guerra. Os municípios, é ao sôm d'elle que votam quantias para o thesouro de defeza na- cional. \s associações de commercio, é ao som d'elle que juram não comprar mais nada ao inglez. N is aulas, o professorado insmua-o. Nos centros militares e chefaturas civis, os 1 1... foncrionarios acquiescem a admittil-o 0 o obre-U >><'im<> d'uma Jerusalém futura ,• libertada. E outros signaes!

Quando lia mu mez se reuniram no salão da Trindade, eerea «l*- quinhentos cidadãos de igas proveniências, com a aristocraci

o;

OS GATOS

clero na vanguarda, afim de subscreverem os

fundos necessários ao armamento nacional, essa espécie de junta de salvação publica que invo-

cou o auxilio de ioda a gente, não pronunciou

sequer O nome de V. M. Todos os jornaes ino- narchlCOS, sem omissão (rum só, vae em qua- renta dias se enlreteem a bosquejar, sobre as permissas das recentes agitações patrióticas, o provável futuro politico do paiz: e todas as hypotheses essas folhas discutem e assigna- lam, excepto a (rum rei no throno portuguez* Quem nos impedirá então de pòr escriptos no Paço, no dia em que o Alagoas chegue a este porto?

0 exercito?

V. M. mandou indagar (piem especial- mente compra e os trinta mil exemplares (pie o Século vende? V. M. nunca ouviu fatiar nas cinco mil Folhas do Poço (pie a guarnição de Lisboa absorve em cada dia? Nas Leituras de propaganda que a ofticialidade inferior dos regimentos faz nas paradas dos quartéis, á soldadesca?

Oh, nada, nada impedirá a draga de revolver o fundo da lagoa, muito embora as cadeias partidas deitem sangue, e a guarda

08 GATOS 105

inunici|i;il traVB uma OU outra vez a macliina

cyelopica. Este paiz sem industrias metallur- gtcas, tem abertas por toda a parte as suas Corjas, onde dia e noite martellam, braços de ferrreiroa que ignoram o cançaço. Leve-nos muito embora o Africa dois ou três : vinte estão prestes a retomar o malho vigoroso, e

a fazer estriar, sobre a bigorna do ódio, os fundamentos á'uma existência social comple- tamente inédita, propulsora da scieucia e da

riqueza, remodeladora das instituições e dos

COfetumes, que liberte a consciência moral e nacioualise a arte, refaça a politica, defenda

a terra, E acima de tudo nos desiUVoute.

Por ventura lia sido uni erro de propagan- da, eSSfl democracia tímida, platónica, strila- inente pregada intramuros das conveniências monarchicas; e haveria produzido resultados mais decisivos 6 mais fundos, a estatuição (1'uina COBSptranda permanente, por via de sociedades secretas, que desviassem o ppvo da simples espectação rethorica, armando-lhe o

braço, e repetindo-lhe que se não fazem re- voluções sem alguns martyres.

O descuido no entanto justilica-se. Antes do ultimalum inglês o da revolução do lirazil,

106 os <;atos

raros de nós poderiam lazer sondagens certas na profundeza e na eftíeacia da cruzada repu- blicana que pregávamos: e mal dispostos con- da a Hespanha, menos ainda nos sentíamos dispostos a enfunar o estandarte da ideia, com correntes d' opinião sopradas do outro lado da fronteira.

Agora mudou tudo. Os verdadeiros inimi- gos de Portugal desmascararam-se. A linha que nos separa de Hespanha é apenas uma illusão óptica de políticos, filha d um erro his- tórico ile sete séculos, que desviou a Pe- nínsula da sua missão de grande potencia, e tem defraudado a família latina d' uma força, que virilisando-se, poderia ter disputado, quem sabe ! a hegemonia do mundo, ás raras loiras.

Hoje, a Hespanha deixou de ser para nós o papão, e o Brazil, nosso filho, muito bem pôde, mercê dos 300:000 portuguezes que temos, ser no futuro politico, o nosso sugges- tor. Desde que a Hespanha se republicauise, teremos Portugal meltido entre dois fogos, e fácil seria então tornar viável aquelle grande sonho d' uma federação peninsular, que ha tan- to tempo espelha ao longe, entre cerraceiros

OS GAT06 l(>"

de névoa platónica, a soa gigantesca mancha de nação.

Esta* v. M. i ver a pujança d'esta espécie de Rossia do oocidenle que seriam <»> anti- qoissimos estados da Lusitânia e da Ibéria, conluiados para a Inata da vida, em pequenas republicas solidarias e autónomas; e por certo abrange a sofeerbia da formidável potencia que nós fartamos, portagdezes e hespanhoes, abertos ao mar por lodos os quadrantes, com um império colonial que seria o segundo na fortuna territorial «las nações da Europa, ma- gníficos portos, esorodras temerosas, picto- rescas cidades, culturas, minas, e Iodas as ri- quezas da industria e da arte, fecundadas por uma raça outra vez fuveneseida petas aguas lostraes da democracia pura.

\ omnipotência d,esse colosso novo sopésa-

ionhando-0 ligado á França, e constituin*

(|() ,-,,,,, eiia um novo regulador dos destinos

,1,, niuinlo. i; o expleador da sua adolescência

lecimstrue-se, pondo Lisboa nas unias COBM

,,,,,,-, cidade de dois milhões de habitantes, chave do Atlântico, lerminus toda a rede ferro-viaria da Europa, ponto áa convergência do incalculável eoÉunercio americano. . . c

108 <»s GAT96

magnifica de grandeza, coberta d'estatuas e palácios, com o museu de .Madrid nas Janel- tas Verdes, mulheres de Hespanba renovando o typo mórbido das nossas, forasteiros aos milhares, parques de léguas á beira do rio amplíssimo como um mar e a par do luxo, um alio tom de civilisação e de cultura, a litteratura opípara, a sciencia seria, uma arte independente e depois ainda, no fim de tu- do, a vingança.

Oh, a vingança !

Por ventura vem longe ainda essa condi- rão sine qua non da nossa felicidade, que uma federação peninsular pode trazer, e que começando por expulsar o dinheiro tnglez das nossas necessidades e das nossas em prezas, viesse em cuspir de Gibraltar os fardas ver- melhas, em correr a chicote do interior d'. Afri- ca, esses puritanos meio padres, meio gatu- nos, que civilisam o negro com algemas e ópio, acabando por e\pulsal-os enilim da ín- dia, e por lhes estancar a iniciativa, o presti- gio e a força, cm todos os cantos do mundo onde o maldito polvo cuidasse de viver sugan- do os seus irmãos.

Vem longe de certo! Mas nada pode des-

OS GATOS

109

viar a corrente, embora lenta, embora obscu- ra, da convergência politica de Portugal para ;i Dação irmã, nem contrariar no futuro essa confederação ideal de toda a ibéria, base

(ruma era de Oiro, »-m que OS filhos dos nossos

filhos, senhor, repassando em memoria a fiei- ra de reis da casa de Bragança, encontrarão para V. M. estes dizeres :

Sim, era um tal Carlos, sempre cercado de gastronomos e de loureiros, e que chamava pioihfira ao paiz de que era rei.

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