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SONETOS

Desta edição imprimiram-se Soo exemplares em papel de linho, numerados e rubricados pelo editor.

os

SONETOS

COMPLETOS

DE

ANTHERO DE QUENTAL

PREFACIADOS POR

J. P. OLIVEIRA MARTINS NOVA EDIÇÃO

COIMBRA

IMPRENSA DA UNIVERSIDADE 1922

04(^/7

1125371

ESCREVENDO cstas brcvcs paginas á frente dos Sonetos de Anthero de Quental tenho a sa- tisfação intima de cumprir o dever de tornar conhecida do publico a figura talvez mais caracte- ristica do mundo litterario portuguez, e decerto aquella sobre qne a lenda mais tem, trabalhado. Estou certo, absolutamente certo, de que este livro, embora sem écco no espirito vulgar que faz repu- tações e popularidade, ha-de encontrar um aco- lhimento amoroso em todas as almas de eleição, e durar emquanto houver corações afflictos, e em- quanto se fallar a linguagem portugueza.

Procurarei, no que vou dizer, guardar para mim aquillo que ao publico não interessa : a viva ami- sade, a estreita communhão de sentimentos, o affecto quasi fraterno que ha perto de vinte annos nos une, ao poeta e ao seu critico de hoje, fazendo da vida de ambos como que uma única alma, misturando invariavelmente as nossas breves alegrias, muitas

6 OsSoíietos cotnpl etos

vezes as nossas lagrimas, sempre as nossas dores e os nossos enthusiasmos ou o nosso desalento.

Discutindo em permanência, discordando frequen- temente, ralhando a miúdo, zangando-nos ás vezes e abraçando-nos sempre : assim tem decorrido para nós perto de vinte annos. Mas o leitor é que nada tem que ver com esses casos particulares, nem com o abraço que trocámos no dia em que primeiro nos conhecemos e que terminará n'aquelle em que um de nós, ou ambos nós, formos descançar para sempre sob meia dúzia de pás de terra fria.

I

Eu não conheço phisionomia mais difficil de de- ! senhar, porque nunca vi natureza mais complexa- mente bem dotada. Se fosse possivel desdobrar um homem, como quem desdobra os fios de um cabo, Anthero de Quental dava alma para uma fa- milia inteira. E sabidamente um poeta na mais elevada expressão da palavra; mas ao mesmo tempo é a intelligencia mais critica, o instincto mais pra- tico, a sagacidade mais lúcida, que eu conheço. E um poeta que sente, mas é um raciocínio que pensa. Pensa o que sente; sente' o que pensa.

Inventa, e critica. Depois, por um movimento reflexo da intelligencia, corpo ao que criticou, e raciocina o que imaginou. O seu temperamento

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apresenta um contraste correlativo: é meigo como uma creança, sensitivo como uma mulher nervosa, mas intermittentemente é duro e violento.

É fraco, portanto? Não. A vontade, em obe- diência á qual, e com esforço, se faz colérico, fal-o também forte d'esta força persistente, raciocinada e na apparencia plácida, como a superfície do mar em dias de bonança. O Oceano, porém, é inte- riormente agitado pelo gulf stream quente e invi- sível: também ás vezes a placidez extrema da sua face encobre ondas de atflicção que sobem até aos olhos e rebentam em lagrimas ardentes. Sabe cho- rar, como todo o homem digno da humanidade.

É d'estas crises que nasceram os seus versos, porque Anthero de Quental não fa^ versos á ma- neira dos litteratos: nascem-lhe, brotam-lhe da alma como solluços e agonias. Mas, apezar d'isso, é re- quintado e exigente como um artista: as suas lagri- mas hão de ter o contorno de pérolas, os seus gemidos hão de ser musicaes. As faculdades ar- tísticas geradoras da estatuária e da symphonia são as que vibram na sua alma esthetica. A noção das formas, das linhas e dos sons, possue-a n'um gráo eminente: não assim a da cor nem a da compo- sição. Aos quadros chama painéis com desdém, e por isso mesmo tem horror á descripção e ao pittoresco. É artista, no que a arte contém de mais subjectivo. A sua poesia é esculptural e hie- rática, e por isso phantastica. E exclusivamente

fi o s S oneíos CO mp letos

psvchologica e dantesca: não pode pintar, nem des- crever: acha isso inferior e quasi indigno.

Os seus versos são sentidos, são vividos como nenhuns ; mas o sentir e o viver d'este homem é de uma natureza especial que tem por fronteiras phi- sicas as paredes do seu craneo, mas que não tem fronteiras no mundo real, porque a sua imaginação paira librada nas azas de uma razão especulativa para a qual não ha limites.

O poeta é por isso um mystico, e o critico um philosopho. O mysticismo e a metaphisica, o sen- timento e a razão, a sensibilidade e a vontade, o temperamento e a intelligencia, combatem-se, ás vezes dilacerando-se. Eis ahi a explicação d'esta poesia que é o retrato vivo do homem. O génio, esse quid divinatorio, que não e' honra para nenhuma creatura possuir, porque nos merecimento aquillo que ganhámos á força de intelligencia e de vontade ; o génio, que é uma faculdade tão acci- dental como a côr dos cabellos, ou o desenho da^ feições ; o génio, que pode andar ligado a uma in- telligencia medíocre, mas que o não anda no caso de Anthero de Quental é o predicado particular e a chave do enygma d'este homem. O génio pre- suppõe a intuição de uma verdade visceral ou fun- damental da natureza. Essa intuição, essa aspi- ração absorvente, e' para o nosso poeta a synthese da verdade racional ou positiva e do sentimento mystico: uma poesia que exprima o raciocínio, ou

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antes uma philosophia onde caibam todas as suas visões. O próprio do génio é querer realisar o irrealisavel ; é ser chimerico, no sentido critico da palavra, quando por chimera entendemos uma ver- dade essencial que não pode todavia reduzir-se a formulas comprehensiveis, ou uma cousa cuja rea- lidade se sente, sem se poder ver.

Dos aspectos quasi inexgotavelmente variáveis d'esta singular phisionomia de homem, d'esta mis- tura excepcional de pensamentos e de temperamen- tos n'um mesmo individuo, resulta porém um t3'po de sinceridade e de rectidão mais singular ainda, porque mais facilmente podia resultar d'ella um grande cynico. E sobretudo um stoico, sem deixar de ter bastante de sceptico; é um mj^stico, mas com uma forte dose de ironia e humorismo; é um mysanthropo, quando não é o homem do trato mais affavel, da convivência mais alegre; é um pessi- mista, que todavia acha em geral tudo óptimo. Intellectualmente é a phisionomia mais dúbia, com- plexa e contradictoria por vezes; moralmente é o caracter mais inteiro e melhor que existe. A sua intelligencia encontra-se permanentemente no es- tado de alguém que, querendo ir para um sitio, re- siste por não querer ao mesmo tempo, sem todavia ter rasÕes bastantes para querer nem também para não querer. O núcleo da sua personalidade, se a encaramos pelo lado praticamente humano, está na energia do seu querer moral, e não na lucidez do

IO Os Sonetos completos

seu pensamento ; embora tenha a pretençao de jul- gar que a sua vontade obedece sempre á sua razão. É verdade que dentro de si tem permanentemente um espelho facetado que representa e critica as mo- dalidades do seu pensamento; mas, por isso mesmo, ou inventa faces de mais ás cousas, e também por vezes o cristal embacia. O que nunca esmo- rece é a bondade luminosa da sua alma. E um homem fundamentalmente bom.

A complexidade do seu espirito dá-lhe uma va- riedade de aptidões singular. Conversador como poucos, fácil, espontâneo, original e suggestivo, iró- nico, humorista, espirituoso, descendo até á pró- pria c/zar^e, não ha ninguém como elle para soltar o carro da sua phantasia critica na ladeira de uma these, e, explorando-a em todos os sentidos, archi- tectar uma theoria. Os seus opúsculos em prosa (da melhor prosa portugueza d'este tempo) têm em geral este caracter. São lógicos, são bem dedu- zidos— sem serem suííicientemente pensados. São fructos da imaginação; são conversas escriptas, d'essas conversas que durante horas seduzem os que o ouvem porque é um charmeur.

Elle próprio se embriaga, não com as suas pala- vras, mas sim com aquella theoria passageira que inventou ad hoc, e, quando alguém lhe objecta um pequeno senão, todavia essencial ao seu edifício ló- gico, resiste, defende-se, irrita-se ás vezes, mas por fim é elle próprio que, com um dito, desfaz toda a

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construcção. Seria um orador, um Jornalista de primeira ordem, se não tomasse apenas a sério a sua missão de poeta, ou antes de philosopho.

Depois de tudo isto dirão pessoas pouco dadas ao estudo do animal homem que Anthero de Quental é um assombro. Longe d'isso. A sua força é a prodigalidade com que a natureza dotou o seu espirito; mas essa força é uma fraqueza. Tem demasiada imaginação para ver bem; e por outro lado o raciocínio critico peia -lhe os voos lumi- nosos da phantasia. de mais para poder ser activo, ou não tem a energia correspondente á sua visão. Se a tivesse, seria verdadeiramente um as- sombro. A imaginação e a razão, irreductiveis nos cérebros humanos com as circumvoluçÕes li- mitadas que contêm, são egualmente poderosas no seu cérebro para que qualquer d'ellas domine. Lu- ctam em permanência, procurando entender- se, combinar-se, penetrar-se, e, no desejo chimerico da synthese, desequilibram o homem, atrophiando- Ihe a energia activa. Ainda assim, felizes d'aquelles cuja inércia desse um livro comparável a este !

Mas é que as suas paginas foram escriptas com sangue e lagrimas ! E doe ver a vida do mais bello espirito consumir-se em agonias de uma alma em lucta comsigo mesmo ! O commum da gente, ao ler as paginas d'este volume, dirá então: Quan- tas catastrophes, que desgraças, este homem sof- freu! que singular hostilidade do mundo para com

12 Os Sonetos co7np l etos

uma creatura humana ! E todavia o mundo nunca lhe foi propriamente hostil, nenhuma desgraça o acabrunhou; a sua vida tem corrido serena, plá- cida, e até para o geral da gente em condições de felicidade.

E que o geral da gente não sabe que as tempes- tades da im-aginação são as mais duras de passar! Não ha dores tão agudas como as dores imagina- rias. Não ha problemas mais difficeis do que os problemas do pensamento, nem crises mais dolo- rosas do que as crises do sentimento. As agonias dilacerantes da morte com as anciãs do stertor, os horrores mais inverosímeis dos crimes monstruosos, as afflicçÕes mais pungentes da saudade, as tris- tezas mais dolorosas da solidão, as luctas do dever com a paixão, os gritos do homem arruinado, os ais da orphandade faminta... tudo, tudo, quanto no mundo pode haver de doloroso, desde a miséria até á prostituição, desde o andrajo até ao velludo arrastado pela immundicie, desde o cardo que dila- cera os pés até ao punhal que rasga o coração: tudo isso é menos, do que a agonia de um poeta vendo passar diante de si, em turbilhão medonho, as lúgubres misérias do mundo. Todas as affli- cçÕes têm o seu quê de imaginativas, e por isso ha apenas uma espécie de homens que não sentem: são os cynicos, esses que perderam os nervos da mo- ralidade, os anesthesiados do sentimento.

Quando se é poeta como Anthero de Quental, a

Prefacio i3

imaginação exacerbada vibra como as harpas que os gregos expunham ás virações da brisa nos ra- mos das arvores. Nenhum dedo lhes feria as cor- das, e todavia tocavam! Nenhuma d'essas des- graças do mundo feriu a harpa da vida do poeta; e todavia essa harpa geme e chora, solluça e grita, porque pelas suas cordas passa o vento agreste das idéas, passa o écco ullulante do egoismo dos ho- mens, atílictivo como os uivos de uma alcateia de lobos famintos.

II

Esta collecção de Sonetos é, portanto, ao mesmo tempo biographica e cyclica. Conta-nos as tem- pestades de um espirito; mas essas tempestades não são os quaesquer episódios particulares de uma vida de homem: são a refracção das agonias mo- raes do nosso tempo, vividas, porem, na imagi- nação de um poeta.

O primeiro periodo, de 1860-2, contém em em- bryão todos os successivos, da mesma forma que as flores incluem em si a substancia dos fructos. Denuncia uma alma sensível, mas patenteia a preoccupação metaphisica na sua phase rudimentar de duvida theologica, e apresenta uns assomos de tristeza que são como os farrapos de nuvens quando velam intermittentemente o sol, deixando antever a tempestade para o dia seguinte. Estes primeiros

14 Os Sonetos completos

sonetos são o balbuciar de uma creança. Român- tica? De modo nenhum. Este poeta não se filia em escholas, não obedece a correntes litterarias : a sua poesia é exclusivamente pessoal. Succedia, porem, que n'esse tempo os nossos bardos clas- sicamente românticos tinham passado de moda; e a Coimbra chegavam por via de Paris os éccos do espirito novo, expresso nas obras de Michelet, de Quinet, de Vera-Hegel, etc.

Tudo isso fermentava no cérebro de Anthero de Quental, mas a sua personalidade não se deixava absorver pelo optimismo que, depois dos românti- cos, se espalhou na Europa, lyricamente ingénuo no Occidente afrancezado, systematicamente philo- sophico na Allemanha hegeliana. Schopenhauer, ninguém o lia. Não era moda. Pois foi essa cor- rente, dominante hoje, aquella em que o nosso poeta, espontaneamente, por um movimento do seu temperamento, se achou levado. Aos dezoito ou vinte annos, ignorante ainda, mas inquieto e pers- crutador, o poeta que desdenha sinceramente da fama e da gloria, no eterno feminino de que nos falia Goethe a synthese da existência. Os seus amores são phantasticos : tem realidade no ceu.

Alli, ó lyrio dos celestes valias, Tendo seu fim, terão o seu começo, Para não mais findar, nossos amores.

E se ainda o dia, a luz, o sol esposo amado, têm

Pr efacio i5

O condão de o encher de enthusiasmo é mister des- confiar de um homem mais caprichoso do que todas as mulheres, porque

Pedindo á forma, em vão^ a idea pura Tropeço, em sombras, na matéria dura E encontro a imperfeição de quanto existe.

Esta nota é mais constitucionalmente verdadeira. «Seja a terra degredo, o ceu destino» diz n'um ponto ; e n'outro :

Minha alma, ó Deus, a outros céus aspira: Se um momento a prendeu mortal belleza E pela eterna pátria que suspira . . .

Não acreditemos também demasiadamente n'isto, porque Deus não passa ainda de uma interrogação:

Pura essência das lagrima») que choro

E sonho dos meus sonhos! Se és verdade,

Descobre-te, visão, no ceu ao menos!

As luctas infantis d'este primeiro periodo para saber se Deus é ou não é verdade, bastam, em si mesmo e no próprio modo por que estão expressas, para nos mostrar que o poeta não saiu ainda das espheras da representação elementar dos seres, para a esphera comprehensiva das abstracções ra- cionaes. Os sonetos d'esta primeira serie desen- rolam-se no terreno da phantasmagoria transcen-

i6 Os Sonetos completos

dente. O traço mais seguro de todos e o mais significativo está n'este verso :

Que sempre o mal peior é ler nascido.

A segunda serie tem a data de 1862-6. Psycho- logicamente é a menos original, artisticamente é a mais briliiante. O Sonho oriental, o Idjllio, o Palácio da Ventura, são obras primas, até de co- lorido. Talvez por isso mesmo que o estado de espirito do poeta o não obrigava a tirar tanto de si, e porque n'esta epocha viveu mais á lei da natu- reza; talvez por isso mesmo a sentiu e pintou me- lhor nas suas cores, nas suas imagens.

A nebulose do primeiro periodo começava a re- solver-se n'uma tragedia mental, que umas vezes tem os sonhos dos que mastigam haschich, outras vezes fúrias de desespero, ironias como punhaes e gritos lancinantes :

Se nada ha que me aqueça esta frieza, Se estou cheio de fel e de tristeza, É de crer que eu seja o culpado.

Meu pobre amigo, como foi amarga esta epocha! Outros soffreram também, outros penaram eguaes dores, sem conseguirem porem estrangular os mons- tros que defendem os áditos do templo da Sabedo- ria. Heine e Espronceda, Nerval e Baudelaire vi- veram vidas inteiras n'esse estado de ironia e de sarcasmo, de desespero e de raiva, de orgia, e de

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abatimento, de fúria e de atonia, que para ti repre- sentam quatro annos apenas!

Mas e' que não havia em nenhum d'esses homens a semente de abstracção que se descobre no Pa- lácio da Ventura:

Abrem-se as portas d'ouro, com fragor... Mas dentro encontro só, cheio de dor, Silencio e escuridão e nada mais !

Os românticos, mais ou menos satanistas ou sa- tanisados, ficavam-se por aqui. Achando apenas silencio e escuridão onde tinham sonhado venturas, ou davam em bêbedos como Espronceda, ou suici- davam-se como Nerval, ou faziam-se cynicos, á maneira de Baudelaire, cultivando com amor as Flores do Mal.

De 1864 a 74, n'esses dez annos em que a tem- pestade caminha, vê-se a onda negra da desolação espraiar-se ; vê-se o «silencio e a escuridão» que antes surgiam como surprezas medonhas, ganharem um logar apropriado, embora eminente, no regimen das cousas ; vê-se o espirito do philosopho reagir sobre o temperamento do poeta, e tornar-se sys- tema o que ate' ahi era fúria. Bom prenuncio.

N'esta epocha Anthero de Quental é nihilista como philosopho, anarchista como politico: é tudo o que fôr negativo, é tudo o que fôr excessivo; e é-o de um modo tão terminante, tão dogmático e tão affirmativo, que por isso mesmo hesitamos em

X

\& Os Sonetos CO mp l eios

crer na consciência com que o é. Da sinceridade não é licito duvidar, mas contra a segurança depõe a própria violência. A nevrose contemporânea, que produzira n'elle a terceira epocha, de si ainda a quarta; mas se poude galgar a saltos por entre a floresta incendiada que devorou e consumiu os satânicos, não poderá também sair da steppe lú- gubre onde apodrecem os pessimistas, embriagados na negação universal, sem se lembrarem de que são contradictorios no próprio facto de pregarem o que quer que seja?

Ora a isto responde esta própria serie, porque, ao lado dos sonetos crepuscularmente desolados, levantam-se como auroras os sonetos stoicos. Para curar o poeta da vertigem satânica serviu-lhe a me- taphisica pessimista; para o curar mais tarde d'essa metaphisica, servir-lhe-ha a reacção do sentimento moral sobre a razão especulativa. Quando pede Mais lií{, quando chama ao sol « O claro sol amigo dos heroes», quando define a Idea acabando por estes versos diamantinos :

A Idea, o Summo bem, o Verbo, a Essência, se revela aos homens e ás nações No ceu incorruptível da Consciência!

sentimo-nos bem distantes das phantasmagorias do principio e das loucuras da viagem, que todavia o poeta não terminou ainda.

Luctando furioso contra a desillusao, caindo es-

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magado pelo anniquilamento, Anthero de Quental ensiniisniou-se (para usar de uma feliz expressão hespanhola) metteu-se dentro de si, a sós comsigo, apellou- para as energias do seu instincto de ho- mem, e foi isso o que lhe inspirou o bello Hftnno á Ra\ão.

Porem na lucta entre o temperamento de stoico e a imaginação metaphisica, o seu espirito attribulado não conseguiu manter o equilibrio, porque as suas exigências de critico e philosopho (alimentadas agora por leituras variadíssimas e profundas) con- trariavam ou contradiziam as suas vizões de poeta. A maneira que a intelligencia se lhe cultivava, que o saber lhe crescia, que a experiência o educava com mais de um caso doloroso ou apenas triste apurava-se-lhe a imaginação até ao ponto de ver claramente o que para o commum dos espíritos são apenas ' concepções do entendimento abstracto. A sua poesia despe-se então de accessoriosrnãohaquasi uma imagem; ha apenas linhas, mas essas linhas de estatuas incorpóreas tem uma nitidez dantesca.

O seu pessimismo torna-se systematico: e' uma philosophia inteira, a que corresponde, como ex- pressão sentimental, a ironia transcendente. Na Disputa em Família, Deus responde aos atheus:

Muito antes de nascerem vossos pães D'um barro vil, ridículas creanças, Sabia eu tudo isso . . . e muito maisl

2o Os Sonetos CO mp leios

No Inconsciente, este heroe metaphisico, diz assim :

Chamam-me Deus ha mais de dez mil annos . . . Mas eu por mim não sei como me chamo.

Na Divina Comedia os homens queixam-se aos deuses do que soífrem, invectivando-os pelos terem creado

Mas os deuses com voz ainda mais triste Dizem: Homens! porque é que nos creastes?

Como se vê, houve um progresso. No período anterior a negação era violenta e terminante; agora tem como expressão a ironia que é uma das formas conhecidas do saber, e uma das linguagens da ver- dade. Eis ahi o que a reacção moral conseguiu, acompanhada pelo esclarecimento da razão, da in- telligencia e do conhecimento. O antigo poeta sa- tânico, transformado em um nihilista, vemol-o agora na pelle de um pessimista systematico, sorrindo bondosamente, com a ironia n'esses próprios lábios que, primeiro cobertos de espuma, depois nos ap- pareciam brancos de agonias.

Não tinha eu razão para chamar cyclica a esta collecção de sonetos ? Não tem sido este o movi- mento das idéas, a evolução do pensamento creador na segunda metade do nosso século?

Prefacio 21

Quando escreveu o primeiro soneto da quarta serie (1880-4)

socega, depois de tanta lucta, me descança em paz o coração . . .

Anthero de Quental resolveu destruir todas as suas poesias lúgubres. Sentia remorsos por alguma vez ter estado n'uma disposição de animo que agora considerava com horror. Entendia que esses ver- sos tétricos não podiam consolar ninguém, e fariam mal a muita gente. Destruiu-os, pois, com aquella violência própria de um caracter intermittentemente meigo e frenético como o de uma mulher. D'esse naufrágio onde se perderam verdadeiras obras - primas, salvei eu as poesias que vão no fim d'este ensaio; e salvei-as porque as possuia entre os ori- ginaes remettidos em cartas, e mais de uma vez como texto de noticias do estado do seu espirito, ou cartas rimadas.

Que espécie de paz era porem essa em que o seu coração descançava? Era o Nirvana:

E quando o pensamento, assim absorto, Emerge a custo d'esse mundo morto E torna a olhar as cousas naturaes,

A bella luz da vida, ampla, infinita com tédio em tudo quanto fita A illusão e o vasio universaes.

j2 Os Sonetos completos

O Nirvana é o ceu do buddhismo, a religião mais philosophica e menos phàntasmagorica inven- tada pelos homens. É por este motivo que o bud- dhismo attrae hoje em dia todos os espíritos a um tempo racionalistas e mysticos, d'esta epocha em tudo similhante á alexandrina, menos no volume do saber positivo que se não compadece com muitas das theorias sobre que os néoplatonicos es- peculavam. A theoria da Substancia levou-os a elles a uma concepção do Ser que produziu o mytho do Verbo christao, encarnado popularmente em Jesus -Christo. Ora hoje tudo isso vale apenas como documento histórico, e, por paradoxal que isto pareça, o Não-Ser e', segundo a metaphisica contemporânea, a essência de tudo o que existe. O Absoluto é o Nada. O Universo, a realidade inteira, são modalidades, aspectos fugitivos, que se tornam verdades racionaes quando nos appa- recem despidas de todos os accidentes. E como é pelos accidentes apenas que nós, distinguindo-as, as conhecemos, a realidade verdadeiramente e em si é Nada.

Religiosamente, Nada é egual a Nirvana; e o buddhismo é a única religião que attingiu esta con- clusão, summaria do pensamento scientifico mo- derno. O Nirvana é esse estado em que os seres, despindo-se de todas as suas modalidades e acci- dentes, de todas as condições de realidade, condi- ções que os limitam distinguindo-os entre si, adqui-

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rem a níío-realidade (o não-contingente) e com ella a existência absoluta e a absoluta liberdade. Essa liberdade é o typo e a essência da vida espiritual ; e o Nirvana, puro Não-ser para a intelligencia, é, para o sentimento moral, o symbolo e o vehiculo de toda a perfeição e virtude: -radicalmente nega- tivo na esphera da razão, é, na esphera do senti- mento, absolutamente affirmativo. O pessimismo torna-se d'esta forma um optimismo gigantesco ; toda a inércia é condemnada, e o systema das cou- sas, agitando-se, movendo-se na direcção do anni- quilamento final, move-se e agita-se no sentido de uma liberdade evolutivamente progressiva até attin- gir a plenitude. O Universo é uma grande vida que tem, no termo, o termo de todas as vidas a morte, idealisada agora e tornada luminosa e appe- tecivel por essa idealisação.

Leiam-se os dois sonetos Redempção, talvez os mais bellos de todo o livro, e comprehender-se-ha melhor o que fica dito. Leia-se o Elogio da morte

Dormirei no teu seio inalterável. Na communhão da paz universal, Morte libertadora e inviolável !

e ver-se-ha quanto estamos longe do desespero trá- gico de outros annos. A tempestade acalmou.

Na esphera do invisível, do intangível, Sobre desertos, vácuo, soledade, Vôa e paira o espirito impassível

24 Os S onetos CO mp l etos

presidindo á evolução dos seres (V. o soneto Evo- lução) desde a rocha até ao homem, evolução que seria absolutamente inexpressiva se não tivesse um destino, um fim, um ideal. A theoria do progresso indefinido é, com eífeito, racionalmente absurda. Esse destino, para os neo-buddhistas, é o Nada transcendente; esse ideal é a Liberdade. A exis- tência está pois consagrada .racionalmente: falta consagral-a sentimentalmente. Falta ainda ao sys- tema um medianeiro: é o Amor,

Porem o coração feito valente

Na escola da tortura repetida,

E no uso do penar tornado crente,

Respondeu: D'esta altura vejo o Amor! Viver não foi em vão, se é isto a vida, Nem foi de mais o desengano e a dor.

O Universo está pois construido e sanctificado na mente do poeta e na razão do philosopho. Dir- scha portanto que a chimera de que a principio falíamos ficou desvendada, o problema resolvido, conciliada a visão com a razão, e que nos não resta mais do que fazermo-nos todos buddhistas ? Sup- prema illusão ! Creia-o embora o poeta; eu, como critico, observando que o pensamento humano, desde que existe e trabalha, progride sempre, com effeito, mas progride em três estradas parallelas que, por serem parallelas, nunca podem encon-

Prefacio 2$

trar-se, atrevo-me a affirmar a irreductibilidade do mysticismo, racional ou imaginativamente conce- bido, e do naturalismo, ponderada ou orgiacamente realisado. Atrevo-me a dizer que estes dois feitios ou temperamentos são constitucionaes do espirito humano, e que da coexistência necessária d'elles resulta um terceiro o sceptico, o critico, o que provêm da comparação de ambos, e por isso não tem cor, nem é affirmativo; dando-se melhor com a natureza do que com a phantasmagoria, prefe- rindo a harmonia mais ou menos equilibrada, ou mais ou menos claudicante do hellenismo, á orgia desenfreada dos orientaes ; considerando a exis- tência como um compromisso, o dever como uma condição da vida, mas também a fraqueza como uma condição dos homens. Estes três tempera- mentos são correspondentes a typos eternos e irre- ductiveis da consciência humana; e, se o buddhismo é a melhor religião para um mystico do século xix, saturado de sciencia e derreado de cogitações, o christianismo, como directo herdeiro do hellenismo, ha-de eternamente satisfazer melhor os scepticos e os naturalistas, cujo numero é e foi sempre infini- tamente maior, entre os europeos.

« Um hellenismo coroado por um buddhismo » eis a formula com que mais de uma vez Anthero de Quental me tem exprimido o seu pensamento a sua chimera! Chimera, digo, porque a coroa não nos pódc assentar na cabeça, sob pena de a

20 Os Sonetos covipletos

crivar de espinhos e de a deixar escorrendo sangue. Fundar o principio da acção na inércia systematica, a realidade no não-ser, a vida no anniquilamento, e praticamente acceitavel para o commum de ho- mens quando acreditem na metempsycose, dogma tão infantilmente mythico do buddhismo como v. g. o inferno do christianismo. Ao christianismo, po- rém, tirando-se-lhe tudo quanto a imaginação se- mita deu para a sua formação, fica ainda o helle- nismo, isto é, um idealismo mais ou menos pan- theista e uma theoria moral cousas que eu não affirmo que resistam a uma analyse rigorosamente lógica, por isso mesmo que todo o nosso conheci- mento racional das cousas assenta apenas sobre axiomas do senso commum ao passo que, em se tirando a metempsycose ao buddhismo, o bud- dhismo reduz-se a uma névoa de abstracções.

Pobre humanidade, se se visse condemnada á co- roação buddhista ! Nós europeos, incapazes de nos sujeitarmos ao regime da contemplação inerte, soífreriamos as agonias, experimentariamos as afflic- ções do poeta que, tendo no peito um coração activo, tem na cabeça uma imaginação mystica, e, para obedecer ao pensamento, tortura o coração, sem poder também esmagal-o sob o mando da in- telligencia.

D'este cruel estado vêm os documentos que attes- tam a transformação soffrida pela ironia dos pe- ríodos anteriores. Que nome se ha-de dar ao sen-

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timento que inspira os sonetos A Virgem Santíssima e o Na mão de Deus que fecha o volume ? Eu por mim chamarei humorismo transcendente a essa liga intima da piedade e da ironia, e declaro que nunca vi cousa parecida posta em verso. Em prosa, ha mais de um periodo de Renan inspirado por um espirito similhante, embora menos agudo.

O visão, visão triste e piedosa! Fita-me assim calada, assim chorosa, E deixa-me sonhar a vida inteira!

A visão é a Virgem Santissima, e a poesia é tão sincera, tão verdadeira, tão cheia de piedade e un- cção, que eu sei de mais de um h'vro de resas onde andam copias escriptas.

Dorme o teu somno coração liberto, Dorme na mão de Deus eternamente!

Um monge christão escreveria isto. E Anthero de Quental nem é christão, nem crê em Deus, nem na Virgem, segundo o sentido ordinário da palavra crer.

Blasphemar era bom n'outros tempos ; para a ironia também a idade passou; finalmente para o exercido litterario nunca se inclinou a penna que o poeta molhou sempre no seu sangue. Como ex- plicar, pois, o phenomeno?

Por acaso subiu o leitor ao cume de um monte sufficientemente alto para que toda a paysagem lhe

28 Os Sonetos completos

apparecesse á vista, fundida a ponto de não distin- guir uma arvore de um cazal, nem um rio de um valle sem curso de agua? Pois succede assim nas campinas da liistoria do pensamento humano, quarldo as olhamos das cumiadas luminosas da cri- tica. Vêem-se as cousas na sua essência, não im- portam os accidentes. O fetiche que o selvagem adora, a imagem perante a qual se prostra o com- mum dos crentes, o architecto universal dos pen- sadores livres, e finalmente esse quid innominado a que a philosophia moderna chamou Inconsciente

tudo isso é egualmente Deus : somente é Deus percebido pela imaginação infantil, Deus percebido pela intelligencia vulgar. Deus percebido pelo saber incipiente, e Deus finalmente incomprehendido, mas sentido, pela sabedoria. E todas essas modali- dades de uma mesma impressão, recebida e repre- sentada de forma diversa, consoante a natureza e o estado de educação dos homens, são egualmente verdadeiras, egualmente santas e egualmente humo- rísticas, para aquelle que tem coração para sentir as cousas por dentro, e olhos para as ver de fora

objectivamente, como os allemães dizem, e nós diremos criticamente.

Eis ahi a suprema liberdade do espirito, o Nir- vana apenas intellectual, a que eu prefiro chamar impassibilidade subjectiva: um estado que permitte comprehender todas as cousas, analysando-as e classificando-as, sem todavia nos transmittir essa

Prefacio 29

espécie de frialdade de coração, própria dos natu- ralistas quando estudam uma rocha, uma planta ou um animal. O philosopho, impassível ao analysar e classificar os phenomenos do espirito humano, ha-de misturar ao sorriso que provocam todas as vaidades e illusÕes, o amor que merecem todos os sentimentos ingénuos e fundamentalmente bons ; ha-de alliar á comprehensão da nullidade extrínseca das cousas, a comprehensão da sua excellencia in- trínseca; exigindo que o homem seja activo, porque a actividade é boa por ser indispensável á saúde do espirito, embora os objectos da actividade sejam as mais das vezes irritos e nullos, quando conside- rados em si próprios e isoladamente.

E eis ahi as razoes porque eu não sou bud- dhista . . . nem Anthero de Quental o é, embora julgue sel-o. A evolução dolorosa que terminou com o seu ultimo soneto, esta longa e tempestuosa viagem atravez do mar tenebroso da phantasia me- taphisica, parece ter concluído. A edade, talvez, acima de tudo, trouxe ao espirito do poeta uma paz illuminada de bondade e sabedoria, e como a sua alma é san e a sua intelligencia firme e sempre activa, é mais que provável que o declinar da vida de Anthero de Quental enriqueça o pecúlio por si- gnal bem pobre da philosophia portugueza com algum trabalho tão digno de se conservar na me- moria dos tempos, como estes Sonetos que são as amargas flores de uma mocidade. Esse trabalho.

3o Os Sonetos completos

porem, não será um cathecismo buddhista, não pode ser nenhuma revelação milagrosa do verdadeiro systema, porque a sabedoria nos diz que toda a pretenção de Verdade é illusoria, pois sendo nós, a nossa intelligencia, os nossos pensamentos, sim- ples e fugitivas contingências, é loucura pensar que jamais possamos definir o Absoluto. Cada qual sente-o a seu modo, segundo o seu tempe- ramento; e sábio é aquelle que se limita a regis- trar as relações das cousas.

III

Quem deante d'estes versos não sentir elevar-se- Ihe o espirito, como n'uma oração, áquella espécie de Deus que é compatível com o seu temperamento ou com o estado de educação do seu pensamento, é.por que tem dentro do peito, no logar do cora- ção, um seixo polido e írio. Quem, no meio do lidar da vida, roçando os braços pelas arestas cor- tantes que a erriçam de ângulos, pousar o olhar da alma sobre um d'estes sonetos e não sentir o que os sequiosos sentem ao encontrarem um arroio de agua límpida, é porque tem a alma feita apenas de egoismo. Quem, emergindo dos montões de pape- lada que as imprensas vornitam diariamente, deitar os olhos sobre estas paginas, e não sentir o des- lumbramento que os diamantes produzem, é porque

P r e/a cio 3 1

a sua vista se embaciou com o exame dos livros grosseiros em todo o sentido, e a sua lingua perdeu o habito de fallar portuguez.

Um dos nossos mais queridos amigos, um dos que conhecem de perto Anthero de Quental e so- mente o conhece quem com elle viveu largo tempo na intimidade interroga -me geralmente d 'este modo: «E santo Anthero, come vae?»

Dil-o com a convicção quente dos artistas, mas eu, que o não sou, tenho a pôr embargos, porque a santidade não é planta adequada ao clima do nosso tempo. Exige uma porção de sentimento ingénuo que não ha nos ares que respiramos.

A vida contemplativa, porem, a vida asceta in- clusivamente : essa virtude austera para comsigo, tolerante para com tudo e para com todos ; esse observar constante de si próprio e o dispensar de um sorriso sempre bom, embora indifferente com frequência, aos que alguma vez o rodeiam; a cari- dade, o amor, a abnegação, as tentações, as crises, as lagrimas, as afflicçóes, as duvidas cruciantes e as dores angustiosas: tudo o que, reunido, forma uma alma mystica tudo isso mora na alma d'este poeta arrebatada pela visão inextinguível do Bem.

no meu coração, que sondo e meço, Não sei que voz, que eu mesmo desconheço, Em segredo protesta e affirma o Bem.

E para nada faltar a este mystico, anachronica-

Os Sonetos completos

mente perdido no meio do borborinho de um século activo até á demência, tem também uma ardente uma buddhista. Somente o seu Deus, Deus sem vontade, sem intelligencia e sem consciência, é, para nós outros, a quem são vedados os myste- rios da metaphisica buddhista, igual a cousa ne- nhuma.

Este homem, fundamentalmente bom, se tivesse vivido no século vi ou no século xiii, seria um dos companheiros de S. Bento ou de S. Francisco de Assis. No século xix é um excêntrico, mas d'esse feitio de excentricidade que é indispensável, porque a todos os tempos foram indispensáveis os herejes, a que hoje se chama dissidentes.

Oliveira Martins.

OS CAPTIVOS

Encostados ás grades da prisão, Olham o céo os pallidos captivos. com raios obliquos, fugitivos, Despede o sol um ultimo clarão.

Entre sombras, ao longe, vagamente, Morrem as vozes na extensão saudosa. Cae do espaço, pesada, silenciosa, A tristeza das cousas, lentamente.

Prefacio 33

E os captivos suspiram. Bandos de aves Passam velozes, passam apressados, Gomo absortos em Íntimos cuidados, Como absortos em pensamentos graves.

E dizem os captivos: Na amplidão Jamais se extingue a eterna claridade... A ave tem o voo e a liberdade... O homem tem os muros da prisão ;

Aonde ides? qual é vossa jornada?

A luz? á aurora? á immensidade? aonde?

Porem o bando passa e mal responde:

A noite, á escuridão, ao abysmo, ao nada!

E os captivos suspiram. Surge o vento, Surge e perpassa esquivo e inquieto, Como quem traz algum pezar secreto. Como quem soffre e cala algum tormento . . .

E dizem os captivos: Que tristezas, Que segredos antigos, que desditas. Caminheiro de estradas infinitas. Te levam a gemer pelas devezas?

Tu que procuras? que visão sagrada Te acena da soidão onde se esconde?

Porem o vento passa e responde:

A noite, a escuridão, o abysmo, o nadai

E os captivos suspiram novamente. Como antigos pezares mal extinctos, Gomo vagos desejos indistinctos. Surgem do escuro os astros, lentamente.

3

Os Sonetos completos

E fitam-se, em silencio indecifrável, Contemplam-se de longe, mysteriosos, Como quem tem segredos dolorosos, Como quem ama e vive inconsolável . . .

E dizem os captivos: Que problemas Eternos, primitivos vos attrahem? Que luz fitaes no centro d'onde saem A flux, em jorro, as intuições supremas?

Por que esperaes? n'essa amplidão sagrada Que soluções esplendidas se escondem? Porem os astros tristes respondem : A noite, a escuridão, o abysmo, o nada !

Assim a noite passa. Rumorosos Susurram os pinhaes meditativos. Encostados ás grades, os captivos Olham o céo e choram silenciosos.

OS VENCIDOS

Três cavalleiros seguem lentamente Por uma estrada erma e pedregosa. Geme o vento na selva rumorosa, Cae a noite do céo, pesadamente.

Vacilam-lhes nas mãos as armas rotas, Têm os corcéis poentos e abatidos. Em desalinho trazem os vestidos. Das feridas lhes cae o sangue, em golas.

Prefacio 35

A derrota, traiçoeira e pavorosa, As frontes lhes curvou, com mfio potente. No horisonte escuro do poente Destaca-se uma mancha sanguinosa.

E o primeiro dos três, erguendo os braços, Diz n'um soluço: «Amei e fui amado! Levou-me uma visão, arrebatado, Como em carro de luz, pelos espaços!

Com largo vôo, penetrei na esphera Onde vivem as almas que se adoram, Livre, contente e bom, como os que moram Entre os astros, na eterna primavera.

Porque irrompe no azul do puro amor O sopro do desejo pestilente í Ai do que um dia recebeu de frente O seu hálito rude e queimador!

A flor rubra e olorosa da paixão Abre languida ao raio matutino, Mas seu profundo cálix purpurino reçuma veneno e podridão. '

Irmãos, amei amei e fui amado . . . Por isso vago incerto e fugitivo, E corre lentamente um sangue esquivo Em gotas, de meu peito alanceado. »

Responde-lhe o segundo cavalleiro, Com sorriso de trágica amargura: «Amei os homens e sonhei ventura, Pela justiça heróica, ao mundo inteiro.

36 Os Sonetos completos

Pelo direito, ergui a voz ardente No meio das revoltas homicidas: Caminhando entre raças opprimidas, Fil-as surgir, como um clarim fremente.

Quando ha de vir o dia da justiça? Quando ha de vir o dia do resgate? Trahio-me o gladio em meio do combate E semeei na areia movediça!

As nações, com sorriso bestial, Abrem, sem ler, o livro do futuro. O povo dorme em paz no seu monturo. Como em leito de purpura real.

Irmãos, amei os homens e contente Por elles combati, com mente justa... Por isso morro á mingoa e a areia adusta Bebe agora meu sangue, ingloriamente. »

Diz eiitão o terceiro cavalleiro: a Amei a Deus e em Deus puz alma e tudo. Fiz do seu nome fortaleza e escudo No combate do mundo traiçoeiro.

Invoquei-o nas horas affrontosas Em que o mal e o peccado dão assalto. Procurei-o, com anciã e sobresalto. Sondando mil sciencias duvidosas.

Que vento de ruina bate os muros Do templo eterno, o templo sacrosanto ? Rolam, desabam, com fragor e espanto, Os astros pelo céo, frios e escuros!

Prefacio Sy

Vacila o sol e os santos desesperam . . . Tédio reçuma a luz dos dias vãos . . . Ai dos que juntam com fervor as mãos! Ai dos que crêem! ai dos que inda esperam!

Irmãos, amei a Deus, com profunda... Por isso vago sem conforto e incerto, Arrastando entre as urzes do deserto Um corpo exangue e uma alma moribunda.»

E os três, unindo a voz n'um ai supremo, E deixando' pender as mãos cançadas Sobre as armas inúteis e quebradas, N'um gesto inerte de abandono extremo,

Sumiram-se na sombra duvidosa Da montanha calada e formidável, Sumiram-se nu. selva impenetrável, E no palor da noite silenciosa.

ENTRE SOMBRAS

Vem ás vezes sentar-se ao de mim

A noite desce, desfolhando as rosas - Vem ter commigo, ás horas duvidosas, Uma visão, com azas de setim . . .

Pousa de leve a delicada mão

Rescende aroma a noite socegada Pousa a mão compassiva e perfumada Sobre o meu dolorido coração...

38 Os Sonetos completos

E diz-me essa visão compadecida

Ha suspiros no espaço vaporoso Diz-me: Porque é que choras silencioso? Porque é tão erma e triste a tua vida?

Vem commigo! Embalado nos meus braços

Na noite funda ha um silencio santo N'um sonho feito de luz e encanto Transporás a dormir esses espaços...

Porque eu habito a região distante

A noite exhala uma doçura infinda Onde ainda se crê e se ama ainda,

Onde uma aurora igual brilha constante . . .

Habito ali, e tu virás comraigo

Palpita a noite n'um clarão que offusca Porque eu venho de longe, em tua busca, Trazer-te paz e alivio, pobre amigo . . .

Assim me fala essa visão nocturna

No vago espaço ha vozes dolorosas São as suas palavras carinhosas

Agua correndo em crystalina urna . . .

Mas eu escuto-a immovel, somnolento

A noite verte um desconsolo immenso Sinto nos membros como um chumbo denso, E mudo e tenebroso o pensamento...

Fito-a, n'um pasmo doloroso absorto

A noite é erma como campa enorme Fiio-a com os olhos turvos de quem dorme E respondo: Bem sabes que estou morto!

P r efa cio 3^

HYMNO DA MANHÃ

Tu, casta e alegre luz da madrugada, Sobe, cresce no céo, pura e vibrante, E enche de força o coração triumpbante Dos que ainda esperam, luz immaculada !

Mas a mim p5es-me tu tristeza immensa No desolado coração. Mais quero A noite negra, irmã do desespero, A noite solitária, immovel, densa,

O vácuo mudo, onde astro náo palpita, Nem ave canta, nem susurra o vento, E adormece o próprio pensamento. Do que a luz matinal... a luz bemdita!

Porque a noite é a imagem do Não-Ser,

Imagem do repouso inalterável

E do esquecimento inviolável,

Que anceia o mundo, farto de sotfrer...

Porque nas trevas sonda, fixo e absorto, O nada universal o pensamento, E despreza o viver e o seu tormento, E olvida, como quem está morto . . .

E, interrogando intrépido o Destino, Como reu o renega e o condemna, E virando-se, fita em paz serena O va-cuo augusto, plácido e divino...

40 Os Sonetos CO mp letos

Porque a noite é a imagem da Verdade, Que está alem das cousas transitórias, Das paixões e das formas illusorias, Onde somente ha dor e falsidade...

Mas tu, radiante luz, luz gloriosa, De que és symbolo tu? do eterno engano, Que envolve o mundo e o coração humano Em rede de mil malhas, mysteriosa!

Symbolo, sim, da universal traição, D'uma promessa sempre renovada E sempre e eternamente perjurada. Tu, mãe da Vida e mãe da Illusao . . .

Outros estendam para ti as mãos, Supplicantes, com íé, com esperança... Ponham outros seu bem, sua confiança Nas promessas e a luz dos dias vãos...

Eu não! Ao ver-te, penso: Que agonia E que tortura ainda não provada Hoje me ensinará esta alvorada? E digo : Porque nasce mais um dia?

Antes tu nunca fosses, luz formosa! Antes nunca existisses! e o Universo Ficasse inerte e eternamente immerso Do possivel na névoa duvidosa!

O que trazes ao mundo em cada aurora? O sentimento só, a consciência D'uma eterna, incurável impotência. Do insaciável desejo, que o devora!

Prefacio 41

De que são feitos os mais bellos dias? De combates, de queixas, de terrores! De que são feitos? de illusÕeá, de dores, De misérias, de maguas, de agonias!

O sol, inexorável semeador, Sem jamais se cançar, percorre o espaço, E em borbotões lhe jorram do regaço As sementes innumeras da Dor!

Oh! como cresce, sob a luz ardente, A seara maldita! como freme Sob os ventos da vida e como geme N'um susurro monótono e plangente!

E cresce e alastra, em ondas voluptuosas. Em ondas de cruel fecundidade, Com a força e a subtil tenacidade Invencivel das plantas venenosas!

De podridões antigas se alimenta, Da antiga podridão do chão fatal... Uma fragancia mórbida, mortal Lhe reçuma da seiva peçonhenta...

E é esse aroma languido e profundo, Feito de seducçÕes vagas, magnéticas, De ardor carnal e de attracçÕes poéticas, É esse aroma que envenena o mundo!

Como um clarim soando pelos montes, A aurora acorda, plácida e inflexível, As misérias da terra : e a hoste horrível, Enchendo de clamor os horisontes,

42 Os S onctos completos

Torva, cega, colérica, faminta, Surge mais uma vez e arma-se á pressa Para o bruto combate, que não cessa, Onde é vencida sempre e nunca extincta!

Quantos erguem n'esta hora, com esforço. Para a luz matinal as armas novas. Pedindo a lucta e as formidáveis provas, Alegres e cruéis e sem remorso.

Que esta tarde ha-de ver, no duro chão Cabidos e sangrentos, vomitando Contra o céo, com o sangue miserando. Uma extrema e impotente imprecação!

Quantos também, de pé, mas esquecidos, Ha-de a noite encontrar, sós e encostados A algum marco, chorand j aniquilados As lagrimas caladas dos vencidos!

E porque? para que? Para que os chamas.

Serena luz, ó luz inexorável,

A vida incerta e á lucta inexpiavel,

Com as falsas visões, com que os inflamas?

Para serem o brinco d'um dia Na mão indifferente do Destino . . . Clarão de fogo-fatuo repentino. Cruzando entre o nascer e a agonia...

Para serem, no páramo enfadonho, A luz de astros malignos e enganosos, Como um bando de espectros lastimosos, Como sombras correndo atraz d'um sonho .

Prefacio 4^

Oh! não! luz gloriosa e triumphante! Sacode embora o encanto e as seducç5es, Sobre mim, do teu manto de illusões: A meus olhos, és triste e vacillante .. .

A meus olhos, és baça e luctuosa E amarga ao coração, ó luz do dia, Como tocha esquecida que allumia Vagamente uma crypta mons;ruosa . . .

Surges em vão, e em vão, por toda a parte, Me envolves, me penetras, com amor . . . Gausas-me espanto a mim, causas-me horror, E não te posso amar não quero amar-te !

Symbolo da Mentira universal, Da apparencia das cousas fugitivas, Que esconde, nas moventes perspectivas, Sob o eterno sorriso o eterno Mal,

Symbolo da lUusáo, que do infinito Fez surgir o Universo, marcado Para a dor, para o mal, para o peccado, Symbolo da existência, maldito!

A FADA NEGRA

Uma velha de olhar agudo e frio. De olhos sem cor, de lábios glaciaes, Tomou-me nos seus braços sepulcraes, Tomou-me sobre o seio ermo e vasio,

44 Os Sonetos CO mp l etos

E beijou-me em silencio, longamente, Longamente me unio á face fria . . . Oh! como a minha alma se estorcia Sob os seus beijos, dolorosamente!

Onde os lábios pousou, a carne logo Myrrou-se e encaneceu-se-me o cabello. Meus ossos confrangeram-se. O gelo Do seu bafo seccava mais que o fogo.

Com seu olhar sem cor, que me fitava, A Fada negra me qualhou o sangue. Dentro em meu coração inerte e exangue Um silencio de morte se engolfava.

E volvendo em redor olhos absortos, O mundo pareceu-me uma visão. Um grande mar de névoa, de illusão, E u luz do sol como um luar de mortos . . .

Como o espectro d'um mundo defuncto.

Um farrapo de mundo, novoento,

Ruina aérea que sacode o vento,

Sem cor, sem consistência, sem conjuncto...

E quanto adora quem adora o njundo. Brilho e ventura, esperar, sorrir, Eu vi tudo oscilar, pender, cahir. Inerte e da cor d'um moribundo.

Dentro em meu coração, n'esse momento, Fez-se um buraco enorme e n'esse abysmo Senti ruir não sei que cataclismo, Como um universal desabamento...

Prefacio ^5

Razão! velha de olhar agudo e cru E de hálito mortal mais do que a peste! Pelo beijo de gelo que me deste, Fada negra, bemdita sejas tu !

Bemdita sejas tu pela agonia E o lucto funeral d'aquella hora Em que eu vi baquear quanto se adora. Vi de que noite é feita a luz do dia!

Pelo pranto e as torturas bemfazejas Do desengano... pela paz austera D'um morto coração, que nada espera, Nem deseja também . . . bemdita sejas !

i8óo-i8Ó2

IGNOTO DEO

Que balleza mortal se te assemelha, O sonhada visão d'esta alma ardente, Que reflectes em mim teu brilho ingente, como sobre o mar o sol se espelha?

O mundo é grande e esta anciã me aconselha A buscar-te na terra: e eu, pobre crente,. Pelo mundo procuro um Deus clemente, Mas a ara lhe encontro... nua e velha...

Não é mortal o que eu em li adoro. Que és tu aqui? olhar de piedade. Gota de mel em taça de venenos . . .

Pura essência das lagrimas que choro E sonho dos meus sonhos! se és verdade, Descobre-te, visão, no céo ao menos!

LAMENTO

Um diluvio de luz cae da montanha: Eis o dia! eis o sol! o esposo amado! Onde ha por toda a terra um cuidado Que não dissipe a luz que o mundo banha ?

Flor a custo medrada em erma penha, Revolto mar ou golfo congelado, Aonde ha ser de Deus tão olvidado Para quem paz e alivio o céo não tenha?

Deus é Pae! Pae de toda a creatura:

E a todo o ser o seu amor assiste:

De seus filhos o mal sempre é lembrado...

Ah! se Deus a seus filhos ventura N'esta hora santa... e eu posso ser triste Serei filho, mas filho abandonado!

A M. C.

Poz-te Deus sobre a fronte a mão piedosa: O que fada o poeta e o soldado Volveu a ti o olhar, de amor velado, E disse-te : « vae, filha, formosa!»

E tu, descendo na onda harmoniosa, Pousaste n'este solo angustiado, Estrella envolta n'um clarão sagrado, Do teu limpido olhar na luz radiosa...

Mas eu... posso eu acaso merecer-te.'' Deu-te o Senhor, mulher! o que é vedado, Anjo! deu-te o Senhor um mundo á parte.

E a mim, a quem deu olhos para ver-te, Sem poder mais ... a mim o que me ha dado ? Voz, que te cante, e uma alma para amar-te!

À

SANTOS VALENTE

Estreita é do prazer na vida a taça: Largo, como o oceano é largo e fundo, E como elle em venturas infecundo, O cális amargoso da desgraça.

E comtudo nossa alma, quando passa Incerta peregrina, pelo mundo, Prazer pede á vida, amor fecundo, É com essa esperança que se abraça.

É lei de Deus este aspirar immenso . . . E comtudo a illusão impoz á vida, E manda buscar luz e dá-nos treva!

Ah! se Deus accendeu um foco intenso De amor e dor em nós, na ardente lida, Porque a miragem cria... ou porque a leva?

TORMENTO DO IDEAL

Conheci a Belleza que não morre E fiquei triste. Como quem da serra Mais alta que haja, oliiando aos pés a terra E o mar, tudo, a maior nau ou torre,

Minguar, fundir-se, sob a luz que jorre; Assim eu vi o mundo e o que elle encerra Perder a côr, bem como a nuvem que erra Ao pôr do sol e sobre o mar discorre.

Pedindo á fcjrma, em vão, a idea pura, Tropeço, em sombras, na matéria dura, E encontro a imperfeição de quanto existe.

Recebi o baptismo dos poetas,

E assentado entre as formas incompletas

Para sempre fiquei pallido e triste.

ASPIRAÇÃO

Meus dias vão correndo vagarosos Sem prazer e sem dôr, e até parece Que o foco interior desfallece E vacilla com raios duvidosos.

É bella a vida e os annos são formosos, E nunca ao peito amante o amor fallece... Mas, se a belleza aqui nos apparece, Logo outra lembra de mais puros gosos.

Minh'alma, ó Deus! a outros céos aspira: Se um momento a prendeu mortal belleza, É pela eterna pátria que suspira...

Porém do presentir dá-me a certeza, Dá-ma! e sereno, embora a dôr me fira, Eu sempre bemdirei esta tristeza!

A

FLORIDO TELLES

Se comparo poder ou ouro ou fama, Venturas que em si têm occulto o damno, Com aquelle outro affecto soberano, Que amor se diz e é luz de pura chama.

Vejo que são bem como arteira dama. Que sob honesto riso esconde o engano, E o que as segue, como homem leviano Que por um vão prazer deixa quem o ama.

Nasce do orgulho aquelle estéril goso E a gloria d'elle é cousa fraudulenta. Como quem na vaidade tem a palma:

Tem na paixão seu brilho mais formoso E das paixões também some-o a tormenta. Mas a sloria do amor... essa vem d'alma!

P S A L M o

Esperemos em Deus! Elle ha tomado Em suas mãos a massa inerte e fria Da matéria impotente e, n'um dia, Luz, movimento, acção, tudo lhe ha dado.

Elle, ao mais pobre de alma, ha tributado Desvelo e amor: elle conduz á via Segura quem lhe foge e se extravia, Quem pela noite andava desgarrado.

E a mim, que aspiro a elle, a mim, que o amo, Que anceio por mais vida e maior brilho, Ha-de negar-me o termo d'este anceio?

Buscou quem o não quiz; e a mim, que o chamo,

Ha-de fugir-me, como a ingrato filho?

O Deus, meu pae e abrigo! espero!... eu creio!

IO

A M. C.

No céo, se existe um céo para quem chora, Céo, para as magoas de quem soffre tanto... Se é do amor o foco, puro e santo, Chama que brilha, mas que não devora...

No céo, se uma alma n'esse espaço mora, Que a prece escuta e enchuga o nosso pranto . Se ha Pae, que estenda sobre nós o manto Do amor piedoso... que eu não sinto agora..

No céo, ó virgem! findarão meus males: Hei-de renascer, eu que pareço Aqui ter nascido para dores.

Ali, ó lyrio dos celestes valles! Tendo seu fim, terão o seu começo, Para não m.ais findar, nossos amores.

A

JOÃO DE DEUS

Se é lei, que rege o escuro pensamento, Ser toda a pesquiza da verdade, Em vez da luz achar a escuridade, Sqr uma queda nova cada invento;

E lei também, embora cru tormento. Buscar, sempre buscar a claridade, E ter como certa realidade O que nos mostra claro o entendimento.

O que ha-de a alma escolher, em tanto engano? Se uma hora crê de fé, logo duvida; Se procura, acha ... o desatino !

Deus pôde acudir em tanto damno : Esperemos a luz d'uma outra vida, Seja a terra degredo, o céo destino.

A

ALBERTO TELLES

Só! Ao ermita sósinho na montanha Visita-o Deus e dá-lhe confiança: No mar, o nauta, que o tufão balança, Espera um sopro amigo que o céo tenha . . .

Só! —Mas quem se assentou em riba estranha, Longe dos seus, tem inda a lembrança; E Deus deixa-lhe ao menos a esperança Ao que á noite soluça em erma penha...

! Não o é quem na dor, quem nos cançaços, Tem um laço que o prenda a este fadário, Uma crença, um desejo . . . e inda um cuidado . . .

Mas cruzar, com desdém, inertes braços, Mas passar, entre turbas, solitário, Isto é ser só, é ser abandonado!

i3

J. FÉLIX DOS SANTOS

Sempre o futuro, sempre! e o presente Nunca ! Que seja esta hora em que se existe De incerteza e de dor sempre a mais triste, E farte o desejo um bem ausente!

Ai! que importa o futuro, se inclemente Essa hora, em que a esperança nos consiste, Chega... é presente... e á dor assiste?... Assim, qual é a esperança que não mente?

Desventura ou delirio?... O que procuro,

Se me foge, é miragem enganosa,

Se me espera, peor, espectro impuro...

14

Assim a vida passa vagarosa:

O presente, a aspirar sempre ao futuro:

O futuro, uma sombra mentirosa.

A M. C.

Porque descrês, mulher, do amor, da vida? Porque esse Hermon transformas em Calvário? Porque deixas que, aos poucos, do sudário Te aperte o seio a dobra humedecida?

Que visão te fugio, que assim perdida Buscas em vão n'este ermo solitário? Que signo obscuro de cruel fadário Te faz trazer a fronte ao chão pendida?

Nenhum! intacto o bem em ti assiste: Deus, em penhor, te deu a formosura; Bênçãos te manda o céo em cada hora.

E descrês do viver? ... E eu, pobre e triste,

Que no teu olhar leio a ventura,

Se tu descrês, em que hei-de eu crer agora?

i5

A ALBERTO SAMPAIO

Não me fales de gloria: é outro o altar Onde queimo piedoso o meu incenso, E animado de fogo mais intenso, De mais viva, vou sacrificar.

A gloria! pois que ha n'ella que adorar? Fumo, que sobre o abysmo anda suspenso . Que vislumbre nos do amor immenso? Esse amor que ventura faz gosar?

Ha outro mais perfeito, único eterno, Farol sobre ondas tormentosas firme, De immoto brilho, poderoso e terno...

esse hei-de buscar, e confundir-me Na essência do amor puro, sempiterno... Quero n'esse fogo consumir-me!

i6

A

G E R iM ANO M EYRELLES

males são reaes, dor existe; Ppazeres os gera a phantasia; Em nada, um imaginar, o bem consiste, Anda o mal em cada hora e instante e dia.

Se buscamos o que é, o que devia

Por natureza ser não nos assiste;

Se fiamos n'um bem, que a mente cria.

Que outro remédio ha ahi senão ser triste?

Oh! quem tanto pudera, que passasse A vida em sonhos só, e nada vira... Mas, no que se não vê, labor perdido!

Quem fora tão ditoso que olvidasse... Mas nem seu mal com elle então dormira. Que sempre o mal peor é ter nascido!

»7

A M. C.

Não busco n'esta vida gloria ou fama: Das turbas que me importa o vão ruido? Hoje, deus... e amanhã, esquecido Como esquece o clarão de extincta chama!

Foco incerto, que a luz mal derrama, Tal é essa ventura: echo perdido, Quanto mais se chamou, mais escondido Ficou inerte e mudo á voz que o chama.

D'essa coroa é cada flor um engano, E miragem em nuvem illusoria, E mote vão de fabuloso arcano.

Mas coroa-me tu; na fronte inglória Ginge-me tu o louro soberano . . . Verás, verás então se amo essa gloria!

18

AD AMIGOS

Em vão luctamos. Gomo névoa baça,

A incerteza das cousas nos envolve.

Nossa alma, em quanto cria, em quanto volve,

Nas suas próprias redes se embaraça.

O pensamento, que mil planos traça, É vapor que se esvae e se dissolve; E a vontade ambiciosa, que resolve, Gomo onda entre rochedos se espedaça.

Filhos do Amor, nossa alma é como um hymno Á luz, á liberdade, ao bem fecundo, Prece e clamor d'um presentir divino;

Mas n'um deserto só, árido e fundo, Ecchoam nossas vozes, que o Destino Paira mudo e impassível sobre o mundo.

19

A UM CRUCIFIXO

Ha mil annos, bom Christo, ergueste os magros braços E clamaste da cruz: ha Deus! e olhaste, ó crente, O horizonte futuro e viste, em tua mente, Um alvor ideal banhar esses espaços!

Porque morreu sem eccho o eccho de teus passos, E de tua palavra Verbo!) o som fremente? Morreste... ah! dorme em paz! não volvas, que descrente Arrojaras de novo á campa os membros lassos...

Agora, como então, na mesma terra erma,

A mesma humanidade é sempre a mesma enferma,

Sob o mesmo ermo céo, frio como um sudário...

E agora, como então, viras o mundo exangue, E ouviras perguntar de que sérvio o sangue Com que regaste, ó Christo, as urzes do Calvário?

ao

DESESPERANÇA

Vae-te na aza negra da desgraça, Pensamento de amor, sombra d'uma hora, Que abracei com delirio, vae-te, embora, Como nuvem que o vento impelle... e passa.

Que arrojemos de nós quem mais se abraça, Com mais anciã, á nossa alma! e quem devora D'essa alma o sangue, com que mais vigora, Como amigo commungue á mesma taça!

Que seja sonho apenas a esperança, Emquanto a dor eternamente assiste, E engane nunca a desventura!

Se em silencio soffrer fora vingança! ... Envolve-te em ti mesma, ó alma triste, Talvez sem esperança haja ventura!

21

BEATRICE

Depois que dia a dia, aos poucos desmaiando, Se foi a nuvem d'ouro ideal que eu vira erguida; Depois que vi descer, baixar no céo da vida Cada estrella e fiquei nas trevas laborando :

Depois que sobre o peito os braços apertando

Achei o vácuo só, e tive a luz sumida

Sem ver onde olhar, e em todo vi perdida

A flor do meu jardim, que eu mais andei regando :

Retirei os meus pés da senda dos abrolhos, Virei-me a outro céo, nem ergo meus olhos Senão á estrella ideal, que a luz d'amor contém . , .

Não temas pois Oh vem! o céo é puro, e calma E silenciosa a terra, e doce o mar, e a alma... A aima! não a vês tu? mulher, mulher! oh vem!

22

i8Ó2-i8óó

AMOR VIVO

Amar! mas d'um amor que tenha vida... Não sejam sempre tímidos harpejos, Não sejam delírios e desejos D'uma douda cabeça escandecída . . .

Amor que viva e brilhe! luz fundida Que penetre o meu ser e não beijos Dados no ar delírios e desejos Mas amor... dos amores que têm vida...

Sim, vivo e quente! e a luz do dia ,Não virá díssipal-o nos meus braços Como névoa da vaga phantasia...

Nem murchará do sol á chama erguida.., Pois que podem os astros dos espaços Contra uns débeis amores . , . ^e têm vida?

23

VISITA

Adornou o meu quarto a flor do cardo, Perfumei-o de almiscar recendente; Vesti-me com a purpura fulgente, Ensaiando meus cantos, como um bardo:

Ungi as mãos e a face com o nardo Crescido nos jardins do Oriente, A receber com pompa, dignamente, Mysteriosa visita a quem aguardo.

Mas que filha de reis, que anjo ou que fada

Era essa que assim a mim descia.

Do meu casebre á húmida pousada?...

26

Nem princezas, nem fadas. Era, flor,

Era a tua lembrança que batia

As portas de ouro e luz do meu amor!

PEQUENINA

Eu bem sei que te chamam pequenina E ténue como o véo solto na dança, Que és no juizo apenas a criança, Pouco mais, nos vestidos, que a tnenina .

Que és o regato de agua mansa e fina, A folhinha do til que se balança, O peito que em correndo logo cança, A fronte que ao soffrer logo se inclina . <

Mas, filha, nos montes onde andei. Tanto me enchi de angustia e de receio Ouvindo do infinito os fundos ecchos.

Que não quero imperar nem ser rei Senão tendo meus reinos em teu seio E súbditos, criança, em teus bonecos!

27

A SULAMITA

Ego dormio, et cor meum vigilat Cântico dos Cânticos.

Quem anda por fora, pela vinha, Na sombra do luar meio encoberto, Sutil nos passos e espreitando incerto, Com brando respirar de criancinha?

Um sonho me accordou . . . não sei que tinha . . , Pareceu-me sentil-o aqui tão perto... Seja alta noite, seja n'um deserto. Quem ama até em sonhos adivinha. ..

Moças da minha terra, ao meu amado Correi, dizei-lhe que eu dormia agora, Mas que pôde ir contente e descançado,

Pois se tão cedo adormeci, conforme É meu costume, olhae, dormia embora, Porque o meu coração é que não dorme,.

?8

SONHO ORIENTAL

Sonho-me ás vezes rei, n'alguma ilha, Muito longe, nos mares do Oriente, Onde a noite é balsâmica e fulgente E a lua cheia sobre as aguas brilha...

O aroma da magnólia e da baunilha Paira no ar diaphano e dormente... Lambe a orla dos bosques, vagamente, O mar com íinas ondas de escumilha...

E emquanto eu na varanda de marfim

Me encosto, absorto n'um scismar sem fim,

Tu, meu amor, divagas ao luar,

Do profundo jardim pelas clareiras. Ou descanças debaixo das palmeiras, Tendo aos ura leão familiar,

29

QUINZE ANNOS

Eu amo a vasta sombra das montanhas, Que estendem sobre os largos continentes Os seus braços de rocha negra, ingentes, Bem como braços colossaes de aranhas.

D'ali o nosso olhar tão estranhas Cousas, por esse céo! e tão ardentes Visões, n'esse mar de ondas trementes ! E ás estrellasj d'ali, vê-as tamanhas!

Amo a grandeza mysteriosa e vasta,.. A grande idea, como a flor e o viço Da arvore colossal que nos domina...

Mas tu, criança, tu boa . . . e basta : Sabe amar e sorrir... é pouco isso? Mas a ti te quero pequenina!

3o

IDYLLIO

Quando nós vamos ambos, de mãos dadas, Colher nos valles lyrios e boninas, E galgamos d'um fôlego as colinas Dos rocios da noite inda orvalhadas;

Ou, vendo o mar, das ermas cumiadas, Contemplamos as nuvens vespertinas, Que parecem phantasticas ruinas Ao longe, no horisonte, amontoadas:

Quantas vezes, de súbito, emmudeces! Não sei que luz no teu olhar fluctua; Sinto tremer-te a mão, e empallideces.

O vento e o mar murmuram orações, E a poesia das cousas se insinua Lenta e amorosa em nossos corações.

3i

NOCTURNO

Espirito que passas, quando o vento Adormece no mar e surge a lua, Filho esquivo da noite que fluctua, Tu entendes bem o meu tormento,

Gomo um canto longinquo triste e lento- Que voga e sutilmenle se insinua, Sobre o meu coração, que tumultua, Tu vertes pouco a pouco o esquecimento.

A li confio o sonho em que me leva Um instincto de luz, rompendo a treva, Buscando, entre visões, o eterno Bem.

E tu entendes o meu mal sem nome,

A febre de Ideal, que me consome.

Tu só, Génio da Noite, e mais ninguém!

3a

SONHO

Sonhei nem sempre o sonho é cousa Que um vento me levava arrebatado, Atravez d'esse espaço constellado Onde uma aurora eterna ri louçã...

As estrellas, que guardam a manhã, Ao verem-me passar triste e calado, Olhavam-me e diziam com cuidado: Onde está, pobre amigo, a nossa irmã?

Mas eu baixava os olhos, receoso

Que trahissem as grandes magoas minhas,

E passava furtivo e silencioso.

Nem ousava contar-lhes, ás estrellas,

Contar ás tuas puras irmansinhas

Quanto és falsa, meu bem, e indigna d'ellas!

33

AMARITUDO

por ti, astro ainda e sempre occulto, Sombra do Amor e sonho da Verdade, Divago eu pelo mundo e em anciedade Meu próprio coração em mim sepulto.

De templo em templo, em vão, levo o meu culto. Levo as flores d'uma intima piedade. Vejo os votos da minha mocidade Receberem somente escarneo e insulto.

A beira do caminho me assentei... Escutarei passar o agreste vento, Exclamando: assim passe quanto amei!

Oh minh'alma, que creste na virtudel

O que será velhice e desalento,

Se isto se chama aurora e juventude?

34

ABNEGAÇÃO

Chovam lyrios e rosas no teu collo! Chovam hymnos de gloria na tua alma! Hymnos de gloria e adoração e calma, Meu amor, minha pomba e meu consolo!

Dê-te estrellas o céo, flores o solo, Cantos e aroma o ar e sombra a palma, E quando surge a lua e o mar se acalma, Sonhos sem fim seu preguiçoso rolo!

E nem sequer te lembres de que eu choro...

Esquece até, esquece, que te adoro...

E ao passares por mim, sem que me olhes,

Possam das minhas lagrimas cruéis Nascer sob os teus pés flores fieis, Que pises distrahida ou rindo esfolhes!

35

APPARIÇAO

Um dia, meu amor (e talvez cedo, Que sinto estalar-me o coração!) Recordarás com dor e compaixão As ternas juras que te fiz a medo...

Então, da casta alcova no segredo, Da lamparina ao tremulo clarão, Ante ti surgirei, espectro vão, Larva fugida ao sepulcral degredo...

E tu, meu anjo, ao ver-me, entre gemidos E afflictos ais, estenderás os braços Tentando segurar-te aos meus vestidos.,.

« Ouve ! espera ! » Mas eu, sem te escutar, Fugirei, como um sonho, aos teus abraços E como fumo sumir-me-hei no ar!

36

ACGORDANDO

Em sonho, ás vezes, se o sonhar quebranta Este meu vão soflfrer, esta agonia, Como sobs cantando a cotovia. Para o céo a minh'alma sobe e canta.

Canta a luz, a alvorada, a estrella santa, Que ao mundo traz piedosa mais um dia... Canta o enlevo das cousas, a alegria Que as penetra de amor e as alevanta...

Mas, de repente, um vento húmido e frio

Sopra sobre o meu sonho: um calafrio

Me accorda. A noite é negra e muda: a dor

vela, como d'antes, ao meu lado.. Os meus cantos de luz, anjo adorado, São sonho só, e sonho o meu amor!

MAE

Mãe que adormente este viver dorido, E me vele esta noite de tal frio, E com as mãos piedosas ate o íio Do meu pobre existir, meio partido...

Que me leve comsigo, adormecido, Ao passar pelo sitio mais sombrio... Me banhe e lave a alma no rio Da clara luz do seu olhar querido...

Eu dava o meu orgulho de homem dava Minha estéril sciencia, sem receio, E em débil criancinha me tornava.

Descuidada, feliz, dócil também,

Se eu podesse dormir sobre o teu seio,

Se tu fosses, querida, a minha mãe!

38

NA CAPELLA

Na capella, perdida entro a folhagem, O Christo, no fundo, agonisava . . . Oh! como intimamente se casava Com minha dor a dor d'aquella imagem!

Filhos ambos do amor, igual miragem Nos roçou pela fronte, que escaldava . ., Igual traição, que o affecto mascarava. Nos deu supplicio ás mãos da villanagem..,

E agora, ali, em quanto da floresta A sombra se infiltrava lenta e mesta, Vencidos ambos, martyres do Fado,

Fitavamo-nos mudos dor igual! Nem, dos dois, saberei dizer-vos qual Mais pallido, mais triste e mais cançado...

39

VELUT UMBRA

Fumo e scismo. Os castellos do horizonte Erguem-se, á tarde, e crescem, de mil cores, E ora espalham no céo vivos ardores, Ora fumam, vulcões de estranho monte...

Depois, que formas vagas vem defronte. Que parecem sonhar loucos amores? Almas que vão, por entre luz e horrores, Passando a barca d'esse aéreo Acheronte..

Apago o meu charuto quando apagas Teu facho, oh sol . . . ficamos todos sós . . . É n'esta solidão que me consumo!

Oh nuvens do Occidente, oh cousas vagas. Bem vos entendo a cor, pois, como a vós, Belleza e altura se me vão em fumo!

40

MEA CULPA

Não duvido que o mundo no seu eixo Gire suspenso e volva em harmonia; Que o homem suba e da noite ao dia, E a homem subindo insecto e seixo.

Não chamo a Deus tyranno, nem me queixo, Nem. chamo ao céo da vida noite fria: Não chamo á existência hora sombria; Acaso, á ordem; nem á lei desleixo.

A Natureza é minha mãe ainda . . .

É minha mãe... Ah, se eu á face linda

Não sei sorrir; se estou desesperado;

Se nada ha que me aqueça esta frieza; Se estou cheio de fel e de tristeza . . . É de crer que eu seja o culpado!

o PAL.A.CIO DA VENTURA

Sonho que sou um cavalleiro andante. Por desertos, por soes, por noite escura, Paladino do amor, busco anhelante O palácio encantado da Ventura!

Mas desmaio, exhausto e vacillante, Quebrada a espada já, rota a armadura., E eis que súbito o avisto, fulgurante Na sua pompa e aérea formosura!

Com grandes golpes bato á porta e brado; Eu sou o Vagabundo, o Desherdado . . . Abri-vos, portas d'ouro, ante meus ais!J

Abrem-se as poitas dVjuro, com fragor. Mas dentro encontro só, cheio de dor, Silencio e escuridão e nada mais!

JURA

Pelas rugas da fronte que medita...

Pelo olhar que interroga e não nada,

Pela miséria e pela mão gelada

Que apaga a estrella que nossa alma fita..

Pelo estertor da chama que crepita

No ultimo arranco d'uma luz minguada...

Pelo grito feroz da abandonada

Que um momento de amante fez maldita.

Por quanto ha de fatal, por quanto ha mixto De sombra e de pavor sob uma lousa . . . Oh pomba meiga, pomba da esperança!

Eu t'o juro, menina, tenho visto Cousas terríveis mas jamais vi cousa Mais feroz do que um riso criança!

43

IDEAI^

Aquella, que eu adoro, não é feita De lyrios nem de rosas purpurinas, Não tem as formas languidas, divinas Da antiga Vénus de cintura estreita..,

Não é a Circe, cuja mão suspeita Compõe filtros mortaes entre ruinas, Nem a Amazona, que se agarra ás crinas D'um corcel e combate satisfeita...

A mim mesmo pergunto, e não atino

Com o nome que a essa visão,

Que ora amostra ora esconde o meu destino

É como uma miragem, que entrevejo,

Ideal, que nasceu na solidão,

Nuvem, sonho impalpável do Desejo.,,

M

EMQUANTO OUTROS COMBATEM

Empunhasse eu a espada dos valentes! Impellisse-me a acção, embriagado, Por esses campos onde a Morte e o Fado Dão a lei aos reis trémulos e ás "entes!

Respirariam meus pulmões contentes O ar de fogo do circo ensanguentado.. . Ou cahira radioso, amortalhado Na fulva luz dos gládios reluzentes!

não veria dissipar-se a aurora De meus inúteis annos, sem uma hora Viver mais que de sonhos e anciedade!

não veria em minhas mãos piedosas Desfolhar- se, uma a uma, as tristes rosas D'esta palHda e estéril mocidade!

DESPONDENCY

Dtixal-a ir, a ave, a quem roubaram Ninho e filhos e tudo, sem piedade.., Que a leve o ar sem fim da soledade Onde as azas partidas a levaram...

Deixal-a ir, a vela, que arrojaram Os tufões pelo mar, na escuridade, Quando a noite surgio da immensidade, Quando os ventos do Sul se levantaram,

Deixal-a ir, a alma lastimosa.

Que perdeu e paz e confiança,

A morte queda, á morte silenciosa..,

46

Deixal-a ir, a nota desprendida

D'um canto extremo... e a ultima esperança

E a viJa.. . e o amor,. . deixal-a ir, a vida!

DAS UNNENNBARE

Oh chimera, que passas embalada Na onda de meus sonhos dolorosos, E roças co'os vestidos vaporosos A minha fronte pallida e cançada!

Leva-te o ar da noite socegada... Pergunto em vão, com olhos anciosos, Que nome é que te dão os venturosos No teu paiz, mysteriosa fada!

Mas que destino o meu! e que luz baça A d'esta aurora, igual á do sol posto, Quando nuvem livida esvoaça!

Que nem a noite uma illusão consinta! Que de longe e em sonhos te presinta... E nem em sonhos possa ver-te o rosto!

47

METEMPSYCHOSE

Ardentes filhas do prazer; dizei-me! Vossos sonhos quaes são, depois da orgia? Acaso nunca a imagem fugidia Do que fostes, em vós se agita e freme?

N'outra vida e outra esphera, aonde geme Outro vento, e se accende um outro dia, Que corpo tinheis? que matéria fria Vossa alma incendiou, com fogo estreme?

Vós fostes nas florestas bravas feras,

Arrastando, leoas ou pantheras,

De dentadas de amor um corpo exangue..,

Mordei pois esta carne palpitante, Feras feitas de gaze fluctuante . . . Lobas! leoas! sim, bebei meu sangue!

48

UMA AMIGA

Aquelles, que eu amei, não sei que vento Os dispersou no mundo, que os não vejo, Estendo os braços e nas trevas beijo Visões que á noite evoca o sentimento . . .

Outros me causam mais cruel tormento Que a saudade dos mortos . . . que eu In /ejo , Passam por mim, mas como que têm pejo Da minha soledade e abatimento!

D'aquella primavera venturosa

Não- resta uma flor só, uma rosa . . ,

Tudo o vento varreu, queimou o gelo !

Tu foste fiel tu, como d'antes, Inda volves teus olhos radiantes . . . Para ver o meu mal . . . e escarnecel-o !

49

A UMA MULHER

Para tristezas, para dor nasceste. Podia a sorte por-te o berço estreito N'algum palácio e ao de régio leito, Em vez d'este areal onde cresceste:

Podia abrir-te as flores com que veste As ricas e as felizes n'esse peito;" Fazer-te ... o que a Fortuna ha sempre feito . Terias sempre a sorte que tiveste I^

Tinhas de ser assim... Teus olhos fitos, Que não são d'este mundo e onde eu leio Uns mysterios tão tristes e infinitos,

Tua voz rara e esse ar vago e esquecido. Tudo me diz a mim, e assim o creio, Que para isto tinhas nascido!

5o

voz DO OUTOMNO

Ouve tu, meu cançado coração, O que te diz a voz da Natureza; « Mais te valera, e sem defeza, Ter nascido em aspérrima soidão,

Ter gemido, ainda infante, sobre o chão Frio e cruel da mais cruel deveza, Do que emballar-te a Fada da Belleza, Como emballou, no berço da Illusão!

Mais valera á tua alma visionaria

Silenciosa e triste ter passado

Por entre o mundo hostil e a turba varia,

(Sem ver uma flor, das mil, que amaste) Com ódio e raiva e dor... que ter sonhado Os sonhos ideaes que tu sonhaste! »

5i

SEPULTURA ROMÂNTICA

Ali, onde o mar quebra, n'um cachão Rugidor e monótono, e os ventos Erguem pelo areal os seus lamentos, Ali se ha-de enterrar meu coração.

Queimem-no os soes da adusta solidão Na fornalha do estio, em dias lentos: Depois, no inverno, os sopros violentos Lhe revolvam em torno o árido chão..

Até que se desfaça e, tornado

Em impalpável pó, seja levado

Nos turbilhões que o vento levantar . , ,

Com suas luctas, seu cançado anceio, Seu louco amor, dissolva-se no seio D'esse infecundo, d'esse amargo mar!

53

864-1874

A IDEA

Pois que os deuses antigos e os antigos Divinos sonhos por esse ar se sonnem, E á luz do altar da fé, em Templo ou Dolmen, A apagaram os ventos inimigos;

Pois que o Sinai se ennubla e os seus pacigos, Seccos á mingua de agua, se consomôm, E os prophetas d'outrora todos dormem Esquecidos, em terra sem abrigos;

Pois que o céo se fechou e não desce Na escada de Jacob (na de Jesus ^) Um anjo, que acceite a nossa prece;

É que o lyrio da não renasce: Deus tapou com a mão a sua luz E ante os homens velou a sua face !

55

11

Pallido Christo, oh conductor divino! A custo agora a tua mão tão doce Incerta nos conduz, como se fosse Teu grande coração perdendo o tino.,

A palavra sagrada do Destino Na bocca dos oráculos seccou-se: A luz da sarça ardente dissipou-se Ante os olhos do vago peregrino!

Ante os olhos dos homens porque o mundo Desprendido rolou das mãos de Deus, Como uma cruz das mãos d'um moribundo!

Porque se não seu nome escrito Entre os astros... e os astros, como atheus, não querem mais lei que o infinito!

56

I

IH

Força é pois ir buscar outro caminho! Lançar o arco de outra nova ponte Por onde a alma passe e um alto monte Aonde se abra á luz o nosso ninho.

Se nos negam aqui o pão e o vinho, Avante! é largo, immenso esse horizonte... Não, não se fecha o mundo ' e alêm, defronte, E em toda a parte ha luz, vida e carinho !

I

Avante! os mortos ficarão sepultos... Mas os vivos que sigam, sacudindo Como o da estrada os velhos cultos!

Doce e brando era o seio de Jesus...

Que importa? havemos de passar, seguindo,

Se alêm do seio d'e!le houver mais luz!

IV

Conquista pois sósinlio o teu futuro, que os celestes guias te hão deixado, Sobre uma terra ignota abandonado, Homem proscrito rei mendigo escuro!

Se não tens que esperar do céo (tão puro, Mas tão cruel!) e o coração magoado Sentes de illusÕes desenganado. Das illusóes do antigo amor perjuro;

Ergue-ie, então, na magestade estóica D'uma vontade solitária e altiva, N'um esforço supremo de alma heróica!

58

Faze um templo dos muros da cadeia. Prendendo a immensidade eterna e viva No circulo de luz da tua Idea!

Mas a Idea quem é ? quem foi que a vio, Jamais, a essa encoberta peregrina? Quem lhe beijou a sua mão divina? Com seu olhar de amor quem se vestio?

Pallida imagem, que a agua de algum rio, Reflectindo, levou... incerta e fina Luz, que mal bruxulêa pequenina... Nuvem, que trouxe o ar, e o ar sumio . . .

Estendei, estendei-lhe os vossos braços, Magro da febre d'um sonhar profundo, Vós todos que a seguis n'esses espaços!

E emtanto, oh alma triste, alma chorosa, Tu não tens outra amante em todo o mundo Mais que essa fria virgem desdenhosa!

^

VI

Outra amante não ha! não ha na vida Sombra a cobrir melhor nossa cabeça, Nem bálsamo mais doce, que adormeça Em nós a antiga, a secular ferida!

Quer fuja esquiva, ou se oífereça erguida, Como quem sabe amar e amar confessa. Quer nas nuvens se esconda ou appareça, Será sempre ella a esposa promettida!

Nossos desejos para ti, oh fria,

Se erguem, bem como os braços do proscrito

Para as bandas da pátria, noite e dia.

Podes fugir... nossa alma, delirante, Seguir-te-ha a travez do infinito, Até voltar comtigo, triumphante!

60

VII

Oh! o noivado bárbaro! o noivado Sublinne! aonde os céos, os céos ingentes, Serão leito de amor, tendo pendentes Os astros por docel e cortinado!

As bodas do Desejo, embriagado

De ventura, a final! visões ferventes

De quem nos braços vae de ideaes ardentes

Por espaços sem termo arrebatado!

Lá, por onde se perde a phantasia

No sonho da belleza; lá, aonde

A noite tem mais luz que o nosso dia;

Lá, no seio da eterna claridade. Aonde Deus á humana voz responde; É que havemos abraçar, Verdade!

6i

VIU

Lá! Mas aonde é là? aonde? Espera, Coração indomado 1 o céo, que anceia A alma fiel, o céo, o céo da Ideia, Em vão o buscas n'essa immensa esphera!

O espaço é mudo : a immensidade austera De balde noite e dia se incendeia . . . Em nenhum astro, em nenhum sol se alteia A rosa ideal da eterna primavera!

O Paraiso e o templo da Verdade,

Oh mundos, astros, soes, constellações!

Nenhum de vós o tem na immensidade..

A Idea, o summo Bem, o Verbo, a Essência, se revela aos homens e ás nações No céo incorruptível da Consciência!

62

A UM CRUCIFIXO

Lendo, passados 12 annos, o soneto da parte i.* que tem o mesmo titulo

Não se perdeu teu sangue generoso,

Nem padeceste em vão, quem quer que foste,

Plebeu antigo, que amarrado ao poste Morreste como vil e faccioso.

D'esse sangue maldito e ignominioso Surgio armada uma invencivel hoste... Paz aos homens e guerra aos deuses! poz-te Em vão sobre um altar o vulgo ocioso...

Do pobre que protesta foste a imagem: Um povo em ti começa, um homem novo: De ti data essa trágica linhagem.

Por isso nós, a Plebe, ao pensar n'isto, Lembraremos, herdeiros d'esse povo, Que entre nossos avós se conta Christo.

$3.

DIALOGO

A cruz dizia á terra onde assentava, Ao valle obscuro, ao monte áspero e mudo Que és tu, abysmo e jaula, aonde tudo Vive na dor e em lucta cega e brava?

Sempre em trabalho, condemnada escrava, Que fazes tu de grande e bom, comtudo? Resignada, és lodo informe e rudo; Revoltosa, és fogo e hórrida lava...

Mas a mim não ha alta e livre serra Que me possa igualar! ... amor, firmeza, Sou eu só; sou a paz, tu és a guerra!

Sou o espirito, a luz! ... tu és tristeza, Oh Iodo escuro e vil! Porém a terra Respondeu: Cruz, eu sou a Natureza!

64

MAIS LUZ!

(a guilherme de AZEVEDO)

Amem a noite os magros crapulosos, E os que sonham com virgens impossíveis, E os que se inclinam, mudos e impassíveis, A borda dos abysmos silenciosos...

Tu, lua, com teus raios vaporosos, Cobre-os, tapa-os e torna-os insensíveis, Tanto aos vícios cruéis e inextinguíveis. Como aos longos cuidados dolorosos!

Eu amarei a santa madrugada, E o meio-dia, em vida refervendo, E a tarde rumorosa e repousada.

Viva e trabalhe em plena luz: depois, Seja-me dado ainda ver, morrendo, O claro sol, amigo dos heroes!

65

THESE E ANTITHESE

não sei o que vale a nova idea, Quando a vejo nas ruas desgrenhada, Torva no aspecto, á luz da barricada, Como bacchante após lúbrica ceia...

Sanguinolento o olhar se lhe incendeia; Respira fumo e fogo embriagada: A deusa de alma vasta e socegada Eil-a presa das fúrias de Medea!

Um século irritado e truculento

Chama á epilepsia pensamento,

Verbo ao estampido de pelouro e obuz . .

Mas a idea é n'um mundo inalterável, N'um crystallino céo, que vive estável... Tu, pensamento, não és fogo, és luz!

60

II

N'um céo intemerato e crystallino Pôde habitar talvez um Deus distante, Vendo passar em sonho cambiante O Ser, como espectáculo divino.

Mas o homem, na terra onde o destino O lançou, vive e agita-se incessante: Enche o ar da terra o seu pulmão possante.. da terra blasphema ou ergue um hymno.

A idea encarna em peitos que palpitam : O seu pulsar são chamas que crepitam, Paixões ardentes como vivos soes!

Combatei pois na terra árida e bruta, que a revolva o remoinhar da lucta, que a fecunde o sangue dos haroes!

9

67

JUSTITIA MATER

Nas florestas solemnes ha o culto Da eterna, intima força primitiva: Na serra, o grito audaz da alma captiva, Do coração, em seu combate inulto:

No espaço constellado passa o vulto Do innominado Alguém, que os soes aviva: No mar ouve-se a voz grave e afflictiva D'um deus que lucta, poderoso e inculto.

Mas nas negras cidades, onde solta Se ergue, de sangue mádida, a revolta. Como incêndio que um vento bravo atiça,

Ha mais alta missão, mais alta gloria: O combater, á grande luz da historia, Os combates eternos da Justiçai

68

PALAVRAS D'UM CERTO MORTO

Ha mil annosj e mais, que aqui estou morto, Posto sobre um rochedo, á chuva e ao vento: Não ha como eu espectro macilento, Nem mais disforme que eu nenhum aborto...

o espirito vive: vela absorto

N'um fixo, inexorável pensamento:

«Morto, enterrado em vida! u o meu tormento

É isto . . . do resto não me importo . . .

Que vivi sei-o eu bem . . . mas foi um dia,

Um dia no outro, a Idolatria

Deu-me um altar e um culto... ai! adoraram-me,

Como se eu fosse alguém I como se a Vida Podesse ser alguém l logo em seguida Disseram que era um Deus... e amortalharam-me!

69

A UM POETA

Surge et ambulaf

Tu, que dormes, espirito sereno, Posto á sombra dos cedros seculares, Como um levita á sombra dos altares. Longe da lucta e do fragor terreno,

Accorda! é tempo! O sol, alto e pleno, Afugentou as larvas tumulares . . . Para surgir do seio d'esses mares, Um mundo novo espera um aceno...

Escuta! é a grande voz das multidões!

São teus irmãos, que se erguem! são canções,

Mas de guerra . . . e são vozes de rebate!

Ergue-te pois, soldado do Futuro, E dos raios de luz do sonho puro, Sonhador, (aze espada de combate!

70

HYMNO A RAZÃO

Razão, irmã do Amor e da Justiça, Mais uma vez escuta a minha prece. É a voz d'um coração que te appetece, D'uma alma livre, a ti submissa.

Por ti é que a poeira movediça De astros e soes e mundos permanece ; E é por ti que a virtude prevalece, E a flor do heroísmo medra e viça.

Por ti, na arena trágica, as nações

Buscam a liberdade, entre clarões;

E os que olham o futuro e scismam, mudos.

Por ti, podem soffrer e não se abatem. Mãe de filhos robustos, que combatem Tendo o teu nome escrito em seus escudos!

1874-1^^^

HOMO

Nenhum de vós ao certo me conhece, Astros do espaço, ramos do arvoredo, Nenhum adivinhou o meu segredo, Nenhum interpretou a minha prece...

Ninguém sabe quem sou . . . e mais, parece Que ha dez mil annos já, neste degredo, Me passar o mar, vê-me o rochedo E me contempla a aurora que alvorece...

Sou um parto da Terra monstruoso; Do húmus primitivo e tenebroso Geração casual, sem pae nem mãe...

Mixto infeliz de trevas e de brrlho, Sou talvez Satanaz; talvez um filho Bastardo de Jehovah; talvez ninguém!

DISPUTA EM família

Dixit insipiens in corde suo: non est Deus

Sae das nuvens, levanta a fronte e escuta O que dizem teus filhos rebellados, Velho Jehovah de longa barba hirsuta, Solitário em teus Géos acastellados:

« Gessou o império emfim da força bruta! Não soffreremos mais, emancipados, O tyranno, de mão tenaz e astuta, ] Que mil annos nos trouxe arrebanhados!

« Emquanto tu dormias impassível, Topámos no caminho a liberdade Que nos sorrio com gesto indefinivel..

«Já provámos os fructos da verdade...

O Deus grande, ó Deus forte, ó Deus terrível,

Não passas d'uma van banalidade! »

76

Mas o velho tyranno solitário, De coração austero e endurecido, Que um dia, de enjoado ou distrahido, Deixou matar seu filho no Calvário,

Sorrio com rir extranho, ouvindo o vario Tumultuoso coro e alarido Do povo insipiente, que, atrevido, Erguia a voz em grita ao seu sacrário :

« Vanitas vanitatum! (disse). É certo Que o homem vão medita mil mudanças. Sem achar mais do que erro e desacerto.

«Muito antes de nascerem vossos pães D'um barro vil, ridículas crianças. Sabia eu tudo isso . . . e muito mais I »

77

MORS LIBERATRIX (a bulhão pato)

Na tua mão, sombrio cavalleiro, Cavalleiro vestido de armas pretas, Brilha uma espada feita de cometas, Que rasga a escuridão, como um luzeiro.

Caminhas no teu curso aventureiro. Todo involto na noite que projectas ., o gladio de luz com fulvas betas Emerge do sinistro nevoeiro.

«Se esta espada que empunho é coruscante, (Responde o negro cavalleiro-andante) E porque esta é a espada da Verdade.

Firo, mas salvo... Prosto e desbarato, Mas consolo... Subverto, mas resgato, E, sendo a Morte, sou a Liberdade.»

78

o INCONSCIENTE

O espectro familiar que anda commigo, Sem que podesse ainda ver-lhe o rosto; Que umas vezes encaro com desgosto E outras muitas ancioso espreito e sigo,

E um espectro mudo, grave, antigo. Que parece a conversas mal disposto... Ante esse vulto, ascético e composto Mil vezes abro a bocca... e nada digo.

uma vez ousei interrogal-o :

Quem és (lhe perguntei com grande abalo)

Phantasma a quem odeio e a quem amo?

Teus irmãos (respondeu) os vãos humanos, Chamam-me Deus, ha mais de dez mil annos . . . Maa eu por mim não sei como me chamo...

19

MORS-AMOR

(a LUIZ DE MAGALHÃES)

Esse negro corcel, cujas pussadas Escuto em sonhos, quando a sombra desce, E, passando a galope, me apparece Da noite nas phantasticas estradas,

D'onde vem elle? Que regiões sagradas E terríveis cruzou, que assim parece Tenebroso e sublime, e lhe estremece Não sei que horror nas crinas agitadas?

Um cavalleiro de expressão potente, Formidável, mas plácido, no porte, Vestido de armadura reluzente.

Cavalga a fera extranha sem temor.

E o corcel negro diz: «Eu sou a Morte!»

Responde o cavalleiro: «Eu sou o Amor!»

$Q

ESTOICISMO

(a MANOEL DUARTE DE ALMEIDA)

Tu que não cies, nem annas, nem esperas,

Espirito de eterna negação,

Teu hálito gelou-me o coração

E destroçou-me da alma as primaveras...

Atravessando regiões austeras, Cheias de noite e cava escuridão, Como n'um sonho mau, oiço unri não, Que eternamente ecchoa entre as espheras ,

Porque suspiras, porque te lamentas, Cobarde coração? Debalde intentas Oppor á Sorte a queixa do egoismo...

Deixa aos timidos, deixa aos sonhadores A esperança van, seus vãos fulgores... Saba tu encarar sereno o abysmo!

Bt

ANIMA MEA

Estava a Morte alli, em pé, diante, Sim, diante de mim, como serpente Que dormisse na estrada e de repente Se erguesse sob os pés do caminhante.

Era de ver a fúnebre bacchante! Que torvo olhar! que gesto de demente! E eu disse-lhe: «Que buscas, impudente, Loba faminta, pelo mundo errante?»

Não temas, respondeu (e uma ironia Sinistramente estranha, atroz e calma, Lhe torceu cruelmente a bocca fria).

Eu não busco o teu corpo . . . Era um tropheu Glorioso de mais .. . Busco a tua alma Respondi-lhe; «A minha alma morreu

Bi

DIVINA COMEDIA (ao dr. JOSÉ falcão)

Erguendo os braços para o céo distante E apostrophando os deuses invisíveis, Os homens clamam: «Deuses impassiveis, A quem serve o destino triumphante,

Porque é que nos criastes?! Incessante Corre o tempo e gera, inextinguíveis, Dor, peccado, illusão, luctas horríveis, N'um turbilhão cruel e delirante...

Pois não era melhor na paz clemente Do nada e do que ainda não existe. Ter ficado a dormir eternamente?

Porque é que para a dor nos evocastes?»

Mas os deuses, com voz inda mais triste.

Dizem: «Homens! porque é que nos criastes?»

9

ESPIRITUALISMO

Como um vento de morte e de mina, A Duvida soprou sobre o Universo. Fez-se noite de súbito, immerso O mundo em densa e algida neblina.

Nem astro reluz, nem ave trina, Nem flor sorri no seu aéreo berço. Um veneno sutil, vago, disperso. Empeçonhou a criação divina.

E, no meio da noite monstruosa,

Do silencio glacial, que paira e estende

O seu sudário, d'onde a morte pende.

uma flor humilde, mysteriosa, Como um vago protesto da existência, Desabroxa no fundo da Consciência.

84

II

Dorme entre os gelos, flor immaculada! Lucta, pedindo um ultimo clarão Aos soes que ruem pela immensidão, Arrastando uma aureola apagada...

Em vão! Do abysmo a bocca escancarada Chama por ti na gélida amplidão... Sobe do poço eterno, em turbilhão, A treva primitiva conglobada . . .

Tu morrerás também. Um ai supremo, Na noite universal que envolve o mundo, Ha-de echoar, e teu perfume extremo

No vácuo eterno se esvahirá disperso, Gomo o alento final d'um moribundo, Como o ultimo suspiro do Universo.

85

o CONVERTIDO

(a GONÇALVES CRESPO)

Entre os filhos d'um século maldito Tomei também logar na impia meza, Onde, sob o folgar, geme a tristeza D'uma anciã impotente do infinito.

Como os outros, cuspi no altar avito Um rir feito de fel e de impureza... Mas, um dia, abalou-se-me a firmeza, Deu-me rebate o coração contrito!

Erma, cheia de tédio e de quebranto, Rompendo os diques ao represo pranto, Virou-se para Deus minha alma triste!

Amortalhei na o pensamento,

E achei a paz na inércia e esquecimento

me falta saber se Deus existe!

86

ESPECTROS

Espectros que veles, emquanto a custo Adormeço um momento, e que inclinados Sobre os meus somnos curtos e cançados Me encheis as noites de agonia e susto! ...

De que me vale a mim ser puro e justo, E entre combates sempre renovados Disputar dia a dia á mão das Fados Uma parcella do saber augusto,

Se a minh'alma ha-de ver, sobre si fitos. Sempre esses olhos trágicos, malditos! Se até dormindo, com angustia immensa.

Bem os sinto verter sobre o meu leito, Uma a uma verter sobre o meu peito As lagrimas geladas da descrença!

87

A VIRGEM santíssima

Cheia de Graça, Mãe de Misericórdia

N'um sonho todo feito de incerteza, De nocturna e indizível anciedade, É que eu vi teu olhar de piedade E (mais que piedade) de tristeza...

Não era o vulgar brilho da belleza, Nem o ardor banal da mocidade... Era outra luz, era outra suavidade, Que até nem sei se as ha na natureza

Um mystico sofFrer... uma ventura Feita do perdão, da ternura E da paz da nossa hora derradeira..,

Ó visão, visão triste e piedosa! Fita-me assim calada, assim chorosa. E deixa-me sonhar a vida inteira!

88

NOX

(a FERNANDO KEAL)

Noite, vão para ti meus pensamentos, Quando olho e vejo, á luz cruel do dia, Tanto estéril luctar, tanta agonia, E inúteis tantos ásperos tormentos...

Tu, ao menos, abafas os lamentos,

Que se e.xhalam da trágica enxovia...

O eterno Mal, que ruge e desvaria,

Em ti descança e esquece, alguns momentos

Oh! antes tu também adormecesses Por uma vez, e eterna, inalterável, Cahindo sobre o mundo, te esquecesses,

E elle, o mundo, sem mais luctar nem ver. Dormisse no teu seio inviolável. Noite sem termo, noite do Náo-ser!

«9

EM VIAGEM

Pelo caminho estreito, aonde a custo Se encontra uma flor, ou ave, ou fonte, Mas bruta aridez de áspero monte E os soes e a febre do areal adusto,

Pelo caminho estreito entrei sem susto E sem susto encarei, vendo-os defronte, Phantasmas que surgiam do horizonte A accommetter meu coração robusto...

Quem sois vós, peregrinos singulares? Dor, Tédio, Desenganos e Pesares . . . Atraz d'elles a Morte espreita ainda...

Conheço-vqs. Meus guias derradeiros Sereis vós. Silenciosos companheiros, Bemvindos, pois, e tu, Morte, bemvinda!

go

QUIA /ETERNUS

(a JOAQUIM DE ARAU'0)

Não morreste, por mais que o brade á gente Uma orgulhosa e van philosophia . . . N<ão se sacode assim tão facilmente O jugo da divina tyrannia!

Clamam em vão, e esse triumpho ingente Com que a Razão coitada! se inebria, É nova forma, apenas, mais pungente, Da tua eterna, trágica ironia.

Não, não morreste, espectro! o Pensamento Como d'antes te encara, e és o tormento De quantos sobre os livros desfallecem.

E os que folgam na orgia impia e devassa Ai! quantas vezes, ao erguer a taça. Param, e estremecendo, empallidecem!

NO TURBILHÃO (a jayme batalha reis)

No meu sonho desfilam as visões, Espectros dos meus próprios pensamentos, Como um bando levado pelos ventos, Arrebatado em vastos turbilhões...

N'uma espiral, de estranhas contorsÕes, E d'onde saem gritos e lamentos, Vejo-os passar, em grupos nevoentos, Distingo-lhes, a espaços, as feições . . .

Phantasmas de mim mesmo e da minha alma. Que me fitaes com formidável calma. Levados na onda turva do escarceo,

Quem sois vós, meus irmãos e meus algozes? Quem sois, visões misérrimas e atrozes? Ai de mim ! ai de mim ! e quem sou eu? ! . . .

92

IGNOTUS

(a SALOMÃO SÁRAGGA)

Onde te escondes? Eis que em vão clamamos, Suspirando e erguendo as mãos em vão! a voz enrouquece e o coração Está cançado e desesperamos . . .

Por céo, por mar e terras procuramos O Espirito que enche a solidão, E a própria voz na imniensidão Fatigada nos volve... e não te achamos!

Céos e terra, clamai,, aonde? aonde? Mas o Espirito antigo responde, Em tom de grande tédio e de pezar:

Não vos queixeis, ó filhos da anciedade, Que eu mesmo, desde toda a eternidade. Também me busco a mim... sem me encontrar!

93

NO CIRCO

'a JOÃO DE deus)

Muito longe d'aqui, nem eu sei quando, Nem onde era esse mundo, em que eu vivia , Mas tão longe... que até dizer podia Que emquanto andei, andei sonhando...

Porque era tudo ali aéreo e brando,

E lúcida a existência amanhecia . . .

E eu... leve como a luz... até que um dia

Um vento me tomou, e vim rolando . . .

Cahi e achei-me, de repente, involto Em lucta bestial, na arena fera, Onde um bruto furor bramia solto.

Senti um monstro em mim nascer n'essa hora, E achei-me de improviso feito fera . . . É assim que rujo entre leÕes ago>ra !

94

NIRVANA

(a guerra JUNQUEIRO)

Para além do Universo luminoso, Cheio de formas, de rumor, de lida, De forças, de desejos e de vida, Abre-se como um vácuo tenebroso.

A onda d'esse mar tumultuoso Vem ali expirar, esmaecida . . . N'uma immobilidade indefinida Termina ali o ser, inerte, ocioso . . .

E quando o pensamento, assim absorto, Emerge a custo d'esse mundo morto E torna a olhar as cousas naturaes,

A bella luz da vida, ampla, infinita, com tédio, em tudo quanto fita, A illusâo e o vasio universaes.

95

CONSULTA

(a ALBERTO SAMPAIO)

Chamei em volta do meu frio leito As memorias melhores de outra edade, Formas vagas, que ás noites, com piedade, Se inclinam, a espreitar, sobre o meu peito...

E disse-lhes: No mundo immenso e estreito Valia a pena, acaso, em anciedade Ter nascido? di^ei-mo com verdadç. Pobres memorias que eu ao seio estreito...

Mas ellas perturbaram-se coitadas! E empallideceram, contristadas, Ainda a mais feliz, a mais serena...

E cada uma d'ellas, lentamente, Com um sorriso mórbido, pungente, Me respondeu: Não, não valia a pena!

96

VISÃO

(a J. M. EÇA DE QUEIROZ)

Eu vi O Amor mas nos seus olhos baços

Nada sorria já: fixo e lento

Morava agora ali um pensamento

De dor sem tregoa e de íntimos cansaços.

Pairava, como espectro, nos espaços, Todo envolto n'um nimbo pardacento . Na attitude convulsa do tormento, Torcia e retorcia os magros braços...

E arrancava das azas destroçadas A uma e uma as pennas maculadas, Soltando a espaços um soluço fundo.

Soluço de ódio e raiva impenitentes.. E do phantasma as lagrimas ardentes Cahiam lentamente sobre o mundo!

97

880-1884

to

TRANSCENDENTAL IS MO

(a J. P. OLiVEIRA MARTINS)

socega, depois de tanta lucta, me descança em paz o coração. Cahi na conta, emfim, de quanto é vão O bem que ao Mundo e á Sorte se disputa.

Penetrando, com fronte não enxuta. No sacrário do templo da Illusão, encontrei, com dor e confusão, Trevas e pó, uma matéria bruta...

Não é no vasto mundo por immenso Que elle pareça á nossa mocidade Que a alma sacia o seu desejo intenso.

Na esphera do invisível, do intangivel, Sobre desertos, vácuo, soledade, Vôa e paira o espirito impassivel!

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EVOLUÇÃO

(a santos valente)

Fui rocha, em tempo, e fui, no mundo antigo, Tronco ou ramo na incógnita floresta... Onda, espumei, quebrando-me na aresta Do granito, antiquissimo inimigo...

Rugi, fera talvez, buscando abrigo Na caverna que ensombra urze e giesta; Ou, monstro primitivo, ergui a testa No limoso paul, glauco pacigo...

Hoje sou homem e na sombra enorme Vejo, a meus pés, a escada multiforme. Que desce, em espiraes, na immensidade...

Interrogo o infinito e ás vezes choro... Mas, estendendo as mãos no vácuo, adoro E aspiro unicamente á liberdade.

loa

ELOGIO DA MORTE

Morrer é ser iniciado. Anthologia grega.

0 Altas horas da noite, o Inconsciente

Sacode-me com força, e accórdo em susto.

Como se o esmagassem de repente,

Assim me pára o coração robusto.

\

Não que de larvas me povoe a mente Esse vácuo nocturno, mudo e augusto, Ou forceje a razão por que afugente Algum remorso, com que encara a custo..

Nem phantasmas nocturnos visionários,

Nem desfilar de espectros mortuários,

Nem dentro em mim terror de Deus ou Sorte . . .

Nada! o fundo d'um poço, húmido e morno. Um muro de silencio e treva em torno, E ao longe os passos sepulcraes da Morte.

io3

Na floresta dos sonhos, dia a dia, Se interna meu dorido pensamento, Nas regiões do vago esquecimento Me conduz, passo a passo, a phantasia.

Atravesso, no escuro, a névoa fria D'um mundo estranho, que povoa o vento, E meu queixoso e incerto sentimento das visões da noite se confia.

Que mysticos desejos me enlouquecem? Do Nirvana os abysmos apparecem A meus olhos, na muda immensidadel

N'esta viagem pelo ermo espaço.

busco o teu encontro e o teu abraço.

Morte! irman do Amor e da Verdade!

104

Ill

Eu não sei quem tu és mas não procuro (Tal é minha confiança) devassal-o. Basta sentir-te ao de mim, no escuro, Entre as formas da noite, com quem falo.

Atravez do silencio frio e obscuro Teus passos vou seguindo, e, sem abalo, No cairel dos abysmos do Futuro Me inclino á tua voz, para sondal-o.

Por ti me engolfo no nocturno mundo Das visões da região innominada, A ver se fixo o teu olhar profundo . . .

Fixai o, comprehendel-o, basta uma hora, Funérea Beatriz de mão gelada... Mas única Beatriz consoladora!

io5

IV

Longo tempo ignorei (mas que cegueira Me trazia este espirito ennublado!) Quem fosses tu, que andavas a meu lado, Noite e dia, impassivel companheira...

Muitas vezes, é certo, na canceira, No tédio extremo d'um viver maguado, Para ti levantei o olhar turbado, Invocando-te, amiga derradeira...

Mas não te amava então nem conhecia:

Meu pensamento inerte nada lia

Sobre essa muda fronte, austera e calma.

io6

Luz intima, afinal, alumiou-me. .. Filha do mesmo pae, sei teu nome, Morte, irman coeterna da minha alma!

Que nome te darei, austera imagem, Que avisto n'um angulo da estrada, Quando me desmaiava a alma prostrada Do cahçaço e do tédio da viagem ?

Em teus olhos a turba uma voragem, Cobre o rosto e recua apavorada... Mas eu confio em ti, sombra velada, E cuido perceber tua linguagem...

Mais claros vejo, a cada passo, escritos. Filha da noite, os lemmas do Ideal, Nos teus olhos profundos sempre fitos..

Dormirei no teu seio inalterável. Na communháo da paz universal. Morte libei-tadora e inviolável!

107

VI

quem teme o Não-ser é que se assusta Com teu vasto silencio mortuário, Noite sem fim, espaço solitário, Noite da Morte, tenebrosa e augusta. t.

Eu não: minh'alma humilde mas robusta Entra crente em teu átrio funerário: Para os mais és um vácuo cinerario, A mim sorri-me a tua face adusta.

A mim seduz-me a paz santa e ineffavel

E o silencio sem par do Inalterável,

Que envolve o eterno amor no eterno luto.

io8

Talvez seja peccado procurar-te, Mas não sonhar comtigo e adorar-te, Não-ser, que és o Ser único absoluto.

CONTEMPLAÇÃO

(a FRANCISCO MACHADO DE FARIA E MAIA)

Sonho de olhos abertos, caminhando Não entre as formas e as apparencias, Mas vendo a face immovel das essências, Entre ideas e espiritos pairando...

Que é o mundo ante mim? fumo ondeando, Visões sem ser, fragmentos de existências . . . Uma névoa de enganos e impotencias Sobre vácuo insondável rastejando...

E d'entre a névoa e a sombra universaes me chega um murmúrio, feito de ais. É a queixa, o profundíssimo gemido

Das cousas, que procuram cegamente Na sua noite e dolorosamente Outra luz, outro fim preseniido . ..

109

LAGRIMA RERUM (a tommaso cannizzaro)

Noite, irmã da Razão e irmã da Morte, Quantas vezes tenho eu interrogado Teu verbo, teu oráculo sagrado, Confidente e interprete da Sorte!

Aonde vão teus soes, como cohorte

De almas inquietas, que conduz o Fado?

E o homem porque vaga desolado

E em vão busca a certeza, que o conforte?

Mas, na pompa de immenso funeral, Muda, a noite, sinistra e triumphal. Passa volvendo as horas vagarosas..

É tudo. em torno a mim, duvida e luto; E, perdido n'um sonho immenso, escuto O suspiro das cousas tenebrosas. . .

I IO

REDEMPÇAO

EX."* SNR* D. CELESTE C. B. R.)

Vozes do mar, das arvores^ do vento! Quando ás vezes, n'um sonho doloroso, Me embala o vosso canto poderoso, Eu julgo igual ao meu vosso tormento..

Verbo crepuscular e intimo alento Das cousas mudas; psalmo mysterioso; Não serás tu, queixume vaporoso, O suspiro do mundo e o seu lamento?

Um espirito habita a immensidade: Uma anciã cruel de liberdade Agita e abala as formas fugitivas.

E eu comprehendo a vossa lingua estranha, Vozes do mar, da selva, da montanha... Almas irmans da minha, almas captivas!

Ill

II

Não choreis, ventos, arvores e mares. Coro antigo de vozes rumorosas, Das vozes primitivas, dolorosas Como um pranto de larvas tumulares,

Da sombra das visões crepusculares Rompendo, um dia, surgireis radiosas D'esse sonho e essas anciãs affrontosas. Que exprimem vossas queixas singulares

Almas no limbo ainda da existência, Accordareis um dia na Consciência, E pairando, puro pensamento.

Vereis as Formas, filhas da Illusão, Cahir desfeitas, como um sonho vão. E acabará por fim vosso tormento.

112

I

voz INTERIOR

(a JOÃO DE deus)

Embebido n'um sonho doloroso, Que atravessam phantasticos clarões, Tropeçando n'um povo de visões, agita meu pensar tumultuoso...

Com um bramir de mar tempestuoso Que até aos céos arroja os seus cachões, Atravez d'uma luí de exhalaçÕes, Rodeia-me o Universo monstruoso...

Um ai sem termo, um trágico gemido Echoa sem cessar ao meu ouvido, Com horrivel, monótono vaivém...

no meu coração, que sondo e meço, Não sei que voz, que eu mesmo desconheço, Em segredo protesta e affirma o Bem!

ii3

LUCTA

Fluxo e refluxo eterno. João de Deus.

Dorme a noite encostada nas colinas. Como um sonho de paz e esquecimento Desponta a lua. Adormeceu o vento, Adormeceram valles e campinas...

Mas a mim, cheia de attracções divinas, Dá-me a noite rebate ao pensamento. Sinto em volta de mim, tropel nevoento, Os Destinos e as Almas peregrinas!

Insondável problema! . . . Apavorado Recua o pensamento ! . . . E prostrado E estúpido á força de fadiga.

Fito inconsciente as sombras visionarias, Emquanto pelas praias solitárias Echoa, ó mar, a tua voz antiga.

114

LOGOS

(ao SNR. d. NICOLAS SALMERON)

Tu, que eu não vejo, e estás ao de mim

E, o que é mais, dentro em mim que me rodeias Com um nimbo de affectos e de ideias, Que são o meu principio, meio e fim . . .

Que estranho ser és tu (se és ser) que assim

Me arrebatas comtigo e me passeias

Em regiões innominadas, cheias

De encanto e de pavor ... de não e sim . . .

És um reflexo apenas da minha alma, E em vez de te encarar com fronte calma Sobresalto-me ao ver-te, e tremo e exoro-te...

Falo-te, calas... calo, e vens attento... És um pae, um irmão, e é um tormento Ter-te a meu lado ... és um tyranno, e adoro-te!

it5

COM OS MORTOS

Os que amei, onde estão? idos, dispersos, Arrastados no gyro dos tufões. Levados, como em sonho, entre visões, Na fuga, no ruir dos universos...

•> E eu mesmo, com os pés também immersos

Na corrente e á mercê dos turbilhões,

vejo espuma livida, em cachões,

E entre ella, aqui e ali, vultos submersos...

Mas se paro um momento, se consigo

Fechar os olhos, sinto-os a meu lado

De novo, esses que amei: vivem commigo,

Vejo-os, ouço-os e ouvem-me também. Juntos no antigo amor, no amor sagrado, Na communháo ideal do eterno Bem.

ii6

OCEANO NOX

(a a. de AZEVEDO CASTELLO BRANCO)

Junto do mar, que erguia gravemente A trágica voz rouca, em quanto o vento Passava como o vôo d'um pensamento Que busca e hesita, inquieto e intermittente,

Junto do mar sentei-me tristemente, Olhando o céo pesado e nevoento, E interroguei, scismando, esse lamento Que sabia das cousas, vagamente...

Que inquieto desejo vos tortura. Seres elementares, força obscura? Em volta de que idea gravitaes?

Mas na immensa extensão, onde se esconde O Inconsciente immortal, me responde Um bramido, um queixume, e nada mais...

117

COMMUNHAO

(ao SNR. JOÃO LOBO DE MOURA)

Reprimirei meu pranto!... Considera Quantos, minWalma, antes de nós vagaram, Quantos as mãos incertas levantaram Sob este mesmo céo de luz austera!...

Luz morta! amarga a própria primavera !- Mas seus pacientes corações luctaram, Crentes por instincto, e se apoiaram Na obscura e heróica fé, que os retempera...

E sou eu mais do que elles? igual fado Me prende á lei de ignotas multidões. Seguirei meu caminho confiado,

Entre esses vultos mudos, mas amigos. Na humilde de obscuras gerações, Na communhão dos nossos pães antigos.

ii8

SOLEMNIA VERBA

Disse ao meu coração: Olha por quantos Caminhos vãos andámos! Considera Agora, d'esta altura fria e austera, Os ermos que regaram nossos prantos...

e cinzas, onde houve flor e encantos! E noite, onde foi luz de primavera! Olha a teus pés o mundo e desespera Semeador de sombras e quebrantos!

Porem o coração, feito valente

Na escola da tortura repetida,

E no uso do penar tornado crente,

Respondeu: D'esta altura vejo o Amor! Viver não foi em vão, se é isto a vida. Nem foi de mais o desengano e a dor.

119

o QUE DIZ A MORTE

Deixai-os vir a mim, os que lidaram; Deixai-os vir a mim, os que padecem; E os que cheios de magua e tédio encaram As próprias obras vans, de que escarnecem,

Em mim, os Soffrimentos que não saram, Paixão, Duvida e Mal, se desvanecem. As torrentes da Dor, que nunca param, Como n'um mar, em mim desapparecem,

Assim a Morte diz. Verbo velado. Silencioso interprete sagrado Das cousas invisíveis, muda e fria,

É, na sua mudez, mais retumbante Que o clamoroso mar; mais rutilante, Na sua noite, do que a luz do dia.

NA MÃO DE DEUS

EX.*" SNR* D. VICTORIA DE O. M.)

Na mão de Deus, na sua mão direita, Descançou a final meu coração. Do palácio encantado da lUusão Desci a passo e passo a escada estreita.

Como as flores mortaes, com que se enfeita A ignorância infantil, despojo vão, Depuz do Ideal e da Paixão A forma transitória e imperfeita.

Como criança, em lobrega jornada, Que a mãe leva ao coUo agasalhada E atravessa, sorrindo vagamente,

Selvas, mares, areias do deserto... Dorme o teu somno, coração liberto, Dorme na mão de Deus eternamente!

121

índice

Pag.

A cruz dizia á terra, onde assentava 64

Adornou o meu quarto a flor do cardo 26

Ali, onde o mar quebra, n'um cachão 52

Altas horas da noite, o Inconsciente io3

Amar I mas d'um. amor que tenha vida r.5

Amem a noite os magros crapulosos 65

Aquella, que eu adoro, não é feita 44

Aquelles, que eu amei, não sei que vento 49

Ardentes filhas do prazer, dizei-me 48

Chamei em volta do meu frio leito 96

Chovam lyrios e rosas no teu collo 35

Como um vento de morte e de ruina 84

Conheci a belleza que náo morre 7

Conquista pois sósinho o teu futuro 58

Deixae-os tir a mim, os que lidaram 120

Deixal-a ir, a ave, a quem roubaram 46

Depois que dia a dia, aos poucos desmaiando 22

Disse ao meu coração : Olha por quantos 119

Dorme a noite encostada nas colinas 114

Dorme entre os gelos, flor immaculada 85

Embebido n'um sonho doloroso ii3

Empunhasse eu a espada dos valentes! 45

Em sonho, ás vezes, se o sonhar quebranta 3^

Em vão luctamos! Como névoa baça 19

Entre os filhos d'um século maldito 86

Erguendo os braços para o céo distante 83

Espectros que velaes, em quanto a custo 87

Esperemos em Deus ! Elle ha tomado 10

Espirito que passas, quando o vento 32

Esse negro corcel, cujas passadas 80

Estava a morte ali, em pé, deante 82

123

Pag.

Estreita é do prazer na vida a taça 6

Eu amo a vasta sombra das montanhas 3o

Eu bem sei que te chamam pequenina 27

Eu não sei quem tu és, mas não procuro io5

Eu vi o Amor mas nos seus olhos baços 97

Força é pois ir buscar outro caminho! 57

Fui rocha, em tempo, e fui, no mundo antigo 102

Fumo e scismo. Os castellos do horizonte 40

Ha mil annos, bom Christo, ergueste os magros braços 20

Ha mil annos, e mais, que aqui estou morto 69

não sei o que vale a nova idea 66

socega, depois de tanta lucta loi

Junto do mar, que erguia gravemente 117

1 mas aonde é ? aonde? Espera 62

Longo tempo ignorei mas que cegueira 106

Máe, que adormente este viver dorido 38

Mas a Idea quem é? quem foi que a vio 59

Mas o velho tyranno solitário 77

Meus dias vão correndo vagarosos . . . . 8

Muito longe daqui, nem eu sei quando 94

Na capella, perdida entre a folhagem 39

Na floresta dos sonhos, dia a dia 104

Na mão de Deus, na sua mão direita 121

Na tua mão, sombrio cavalleiro 78

Nas florestas solemnes ha o culto 68

Não busco n'esta vida gloria ou fama 18

Não duvido que o mundo no seu eixo 41

Não choreis, ventos, arvores e mares 112

Não morreste, por mais que o brade á gente 91

Não se perdeu teu sangue generoso 63

Não me fales de gloria: é outro o altar 16

No ceo, se existe um céo para quem chora 11

Nenhum de vós ao certo me conhece 75

Noite, irmã da Razão e irmã da Morte no

Noite, vão para ti meus pensamentos 89

No meu sonho desfilam as visões 92

N'um céo intemerato e crystalljno 67

N'um sonho todo feito de incerteza 88

O espectro familiar, que anda commigo 79

Oh chimera, que passas embalada 47

Oh! o noivado bárbaro! o noivado 61

Onde te escondes? eis que em vão clamamos q3

Os que amei, onde estão? idos, dispersos 116

Outra amante não ha! não ha na vida 60

Í24

Pag.

Ouve tu, meu cançado coração 5i

Pallido Christo, oh conductor divino ! 56

Para além do Universo luminoso gb

Para tristezas, para dor nasceste 5o

Pelas rugas da fronte que medita 43

Pelo caminho estreito, aonde a custo. 90

Pofs que os deuses antigos e os antigos 55

Porque descrês, mulher, do amor, da vida? i5

Poz-te Deus soItc a fronte a mão piedosa 5

Quando nós vamos ambos, de mãos dadas 3i

Que belleza mortal se te assemeliia -3

Que nome te darei, austera imagem 107

Quem anda por fora, pela vinha 28

Kazáo, irmã do Amor e da Justiça 71

Reprimirei meu pranto!. . . Considera 118

Sáe das nuvens, levanta a fronte e escuta 76

Se comparo poder, ou ouro, ou fama 9

Se é lei, que rege o escuro pensamento 12

Sempre o futuro, sempre 1 e o presente 14

Sói Ao eremita sósinho na montanha i3

males são reaes, dor existe 17

quem teme o Não-Ser é que se assusta 108

por ti, astro ainda e sempre occulto 34

Sonho-me ás vezes rei, n'alguma ilha 29

Sonhei nem sempre o sonho é cousa 33

Sonho de olhos abertos, caminhando 109

Sonho que sou um cavalleiro andante 42

Tu, que eu não vejo e estás ao de mim ii5

Tu, que dormes, espirito sereno 70

Tu, que não crês, nem amas, nem esperas 81

Um dia, meu amor, e talvez cedo 39

Um diluvio de luz cáe da montanha 4

Vae-te na aza negra da desgraça 21

Vozes do mar, das arvores, do vento iii

123

BINDIMG C^^.ZT. FEB 8 - 1967

9261

Q4A17

1922

Quental, Anthero de, 1842-1891

Os sonetos?- completos. Nova edicao

Colm^bra, Impr. da Universidade (l922)

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