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Camoens, Luis de. Os Lusia-

das Leite de Vasconcellot: , José

0 texto dos Lusíadas, se- cuendo ... F. Gemes de Amorim.

O TEXTO

DOS

LUSÍADAS

SEGUNDO AS IDEIAS

do snr. F. Gomes de Amorim

ESBOÇO DE CRITICA PII1LOLOCICA

J. LEITE DE VASCONCELLOS

Medico, professor na Bibliotheca Nacional de Lisboa,

conservador da mesma Bibliotheca, e redactor da

Revista Lusitana

PORTO

LIVRARIA PORTUENSE

DE

LOPES & C.* EDITORES

119, R. do Ahvada, 125

1890

O TEXTO DOS LUSÍADAS

OBRAS GLOTTOLOGICAS DO MESMO AUCTOR

Ú dialecto mirandês, 1882.

Flores mirandesas, 1884.

Línguas raianas de Tras-os-Montes, 1886.

Dialeetologia Portuguesa (Contribuições fará o seu estudo), doze opúsculos, 1 883-1 886.

Dialecto hispano-extremenho, a.a ed., 1884.

Contribuições para o estudo da linguagem in- fantil, 1883-18SÓ.

A evolução da linguagem, 1880.

A philologia portuguesa, 1888.

Instituto de surdos-mudos de Lisboa, 1889.

Revista lusitana (philologia e etimologia), collaborada por muitos especialistas portugueses e estrangeiros. vol. I estando no prelo o vol. II.

O TEXTO

DOS

LUSÍADAS

SEGUNDO AS IDEIAS

do snr. F. Gomes de Amorim

ESBOÇO DE CRITICA PHILOLOGIGA

J. LEITE DE VASCONCELLOS

Medico, professor na Bibliotheca Nacional de Lisboa,

conservador da mesma Bibliotheca, e redactor da

Revista Lusitana

PORTO

LIVRARIA PORTUENSE

DE

LOPES & C."-EDI TORES 119, R. do Almada, 123

1 890

PORTO

IMPRENSA MODERNA

5 5, Passos Manoel. ---

cAO

Sr. Dr. José Carlos Lopes

1 1 lustre Professor na Escola Medica do Porto, e profundo conhecedor e apreciador da t.itteratura Caraoneana :

Off.

o antigo discípulo sempre grato amigo,

J. L. de V.

PROLOGO

Com excepção de pequeníssimo número de trabalhos sérios, tudo quanto se escreveu sobre Camões por occasião do 3.0 centenário, e se tem escrito depois, não passa de meras cu- riosidades bibliographicas ou de banalidades. Os nossos auctores comprazem-se em arredon- dar periodos a propósito de encómios que te- cem ao cantor dos Lusíadas: estes encómios porém, por muito repetidos, chegam a parecer ocos, e em todo o caso são inúteis, porque não accrescentam nada de novo ao que se

sabe ha muito.

Quando em meio de tal marasmo se an- nunciou com applausos uma edição critica dos Lusíadas, apressei-me a percorrê-la, na persua- são de que ia achar ahi postos em prática os mo- dernos processos da philologia e da critica lit- teraria, e de que Portugal havia emfim erguido á gloria do seu poeta um tnonumentum aere pe- rennius, mais solemne do que as estatuas, mais profundo do que tudo o mais : a que ponto não subiu todavia a minha surpresa, ao ver! que

nada d'isso assim era, e que :>enas ao montão de frandulagens litterarias que pejam as estan- tes de muitas bibliothecas vinha juntar-se agora mais outra !

As observações que apresento adeante darão ideia da natureza de tal obra. Se o nosso meio litterario fosse diverso, julgo que grande par- te das minhas citações se dispensariam, bas- tando simples referencias ou a indicação dos pontos condemnaveis : mas ha certa classe de gente para quem tudo é preciso, e ainda é pou- co. — Faço esta observação, porque realmente a alguns leitores parecerão taes citações antes luxo de erudição fácil do que vontade de ser claro, e de dar plena razão do meu dito.

/. L. de V.

«Bem sei que o criticar sempre he odioso, porque todos entendem descobrir a verdade pelo meyo da sua intelligencia, e do seu tra- balho, e assim ouvem com máo animo qualquer censura por mais attenta, e leve que seja : porém eu julgo, que em semelhantes casos tanto he culpa fallar contra a ra- zão, como emmudecer contra a verdade».

Bento Morganti,— Disser- tação histor. e critica, Lisboa 1742, pag. 6.

Os Lusíadas de Luiz de Camões, edição crítica e annotada em todos os logares duvidosos, res- tituindo, quanto possível, o texto primitivo pe- la correcção de erros que nunca se tinham ex- pungido, por Francisco Gomes de Amorim, Lisboa 1889, 2 vol. (1).

Referindo-se ás suas annotações, diz o snr. Amorim na Introducção : «Rogo ao leitor, im- parcial e benévolo, que as leia com indulgência, desculpando as faltas que n'ellas encontrar, em attenção á sinceridade que inspirou tal tentati- va» (Pg. 161). Estou certíssimo de que a since- ridade com que o snr. Gomes de Amorim es- creveu três grossos volumes, cheios de noticias interessantes, a respeito de Garrett, foi a mesma com que se abalançou a fazer uma edição revista dos Lusíadas, para assim pousar uma coroa semelhante na fronte dos dois maiores poetas de Portugal ; todavia, se tenho louvores para a boa intenção do annotador, não os posso ter igualmente para a maneira extranha, errada e

(*) A matéria do presente opúsculo sahiu no jor- nal lisbonense O T)ia (n.os 54o, 549, 556, 563, 570 e 576, de 1889; cfr- os n-os 5 e 5 7 7); mas sae agora com algumas modificações.

leviana como se sahiu da empresa em relação a Camões. Nunca talvez se escreveu a propósito dos Lusíadas um trabalho tão infeliz como este, embora ditado por boa vontade e sentimento puro ; e o leitor pasma ao ver como houve um individuo que, sem o sufficiente conhecimento da nossa lingua archaica, sem noção clara do que é a critica philologica. e sem capacidade esthetica bem demonstrada, ousou quasi cons- tantemente emendar um poema ante cujo me- recimento se curvaram reverentes todos os sé- culos, e que é por assim dizer o livro de ouro de uma nação.

Não julgo Camões impeccavel, pois é ho- mem; comtudo o snr. Amorim não podia arro- gar-se o direito de r.divinhar o que Camões quis escrever, nem de o alterar, porque uma pa- lavra sôa mal a um ouvido melindroso, ou por- que uma phrase se não sujeita a uma gramma- tica de encommenda. A critica, num caso como este, em que o auctor assistiu evidentemente ã impressão da sua obra, limita-se a correcções levíssimas, intuitivas, taes como rota em vez de rata (na est. 29, c. I, em rima com. frota), á pon- tuação e a pouco mais.

O snr. Amorim assenta como principio de critica que as obras antigas devem ser postas em linguagem moderna, e por isso escreveu as seguintes singularissimas palavras, revel.vloras do estado mental mais atrasado que se pôde imaginar em critica philologica : «Acabei com o assi, onde pude fazèl-o, o si, o mi, o antiguo, o moura, e todas as outras aflectações, que, no

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estado actual da língua, andavam enxovalhando o poema tanto ou mais ainda do que os pró- prios erros. Uns Lusíadas, ataviados com trajos e ademanes antiquados, dando ares de casqui- lho velho e pretencioso. seriam mais ridículos do que dignos do amor e respeito que univer- salmente se lhes deve» (Pg. 150). Quer isto di- zer que Camões enxovalha a sua obra escreven- do como falia, e que é ridículo usando a sua lingua ! Na opinião do snr. Amorim, os Lusíadas estão repletos de affectações de lin- guagem, e s. ex." poderá dar a tão maculada obra a pureza que lhe falta. Surgem-me, porém, aqui umas duvidas : porque é que o snr. Amo- rim chama neste ponto ridículos e affectados aos Lusíadas, e a pg. 149 considera Camões co- mo ao maior mestre da lingua e poesia portu- gueza» ? Realmente não comprehendo cjDmo Ca- mões possa ser considerado mestre de uma lin- gua que elle escreve com a/Jectação e ridículo. De mais a mais está em contradicção eomsigo mesmo: no titulo da obra diz que pretende res- tituir «quanto possível o texto primitivo» ; a pg. 149 diz : «Fiz diligencia para a vestir á mo- derna [esta edição], como cumpre que seja uma obra eternamente joven». Como é que se resti- tue um texto primitivo, se se traduz em lingua- gem moderna a linguagem archaica ? Não com- prehendo.

Querer modernizar uma obra antiga é absurdo, apesar de tal principio ser muito se- guido pelos auetores portugueses que fazem edi- ções de obras clássicas. absoluta falta

M

de critério os pôde levar a isso. Senão, veja- mos.

Em primeiro logar, pôr em português mo- derno uma obra antiga não é apenas substituir as palavras antigas pelas modernas que lhes corres- pondem, porque as palavras soltas, de per si sós, não constituem sempre a linguagem, é necessá- rio attender ás phrases, e quem poderia sub- stituir a sangue frio uma phrase por outra ? Ora fazer tal, era dar uma idéa falsíssima da obra; e substituir unicamente as palavras avulsas, era fazer trabalho incompleto e ao mesmo tempo desharmonico, porque ficavam phrases e locu- ções antigas, construídas com vocábulos da actualidade.

Em segundo L-gar, quando se trata de uma obra poética como os Lusíadas, cae-se numa enorme contradícção, porque certas emendas, que se fazem num caso, não se podem fazer nou- tro em que as exigências do metro ou da rima obrigam á lição primitiva. Assim no c. II, est. 22, tinha Camões escrito da prôà capitaina, e o snr. Amorim emendou em da proa capitania ; mas na est. 28 ha os versos

A ancora solta logo a capitaina : Qualquer das outras junto d'clla amaina

onde o snr. Amorim conservou capitaina «pOF causa da rima». No c. VI, est. 88, tem Csthões lhe correspondente a lhes, como hoje se usa ain- da na linguagem popular, e era corrente na lin- guagem archaica ; o snr. Amorim, que esquece este uso, ora põe lhe, ora lhes, segundo a con-

H

tagem das syllabas, de modo que aquella es- tancia fica assim com duas formas para expri- mir a mesma idéa ! O snr. Amorim explica o uso de lhe por lhes pela «figura synedoche» (Pg. 48 do vol. II), confundindo assim um pheno- meno mecânico com um phenomeno ideológico completamente diverso ! No c. VIII, est. 6, tinha Camões muito bem

o4ssí o gentio diz, responde o Gama

fazendo do i e do o uma syllaba, como nou- tros pontos : e o snr. Amorim, que se offende com assi, substitue o verso por est'outro

Diz o gentio assim . responde o Gama

ao passo que no c. I, est. 78, deixa ficar o verso

E entrando assi a fallar-lhe a tempo e horas

ao qual põe este extravagante commentario : «Deixo ir, com bem magoa, o assi do v. 1, para que se saiba que não sou eu que o erro (Pg. 233). De certo: foi Camões quem errou! Igual- mente no c. III, est. 1, deixa o verso

Assi o claro inventor da medicina

e diz : «N'este logar, foi-me impossível suppri- mir o assi do v. 5 ; é verdadeiramente o caso em que a figura ecthlipse, engulindo o m final de assim, concorre para fingir que este mau verso fica certo» (Pg. 331). E' a primeira vez que eu vejo uma figura de grammatica a engu- lir m m como quem engole pílulas ! Não o

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snr. Amorim desconhece a natureza dos pheno- menos phoneticos, como também não sabe que asst não provém de assim, mas que é assim que provém de assi, forma anterior a assim ; não houve pois ecthlipse nenhuma ! Em muitos versos o snr. Amorim substítue mi por mim ; no c. VI, est. 32, por exemplo, conserva-o po- rém, porque essa palavra rima com desci e venci. No c. II, est. 4, tinha Camões produze em vez do moderno produz^; o snr. Amorim moderni- za-o, porque aqui a suppressão do e não altera a medida, mas no c. IX, est. 58, conserva-o e diz: «não se pôde mudar para produz por ser cunha poética; se tirasse o e, manquejava o verso» (Pg. 190). E o pobre Camões a soffrer resignado tamanhas torturas ! E' certo que o próprio texto primitivo do poema offerece não raro duas orthographias para a mesma palavra, mas esse facto, longe de dever ser sempre taxa- do de erro, deve até ás vezes ser aproveitado, porque nos apresenta a lingua na sua phase de evolução ; ninguém comtudo tem o direito de por no poema o que de propósito não está. Ha ainda outros princípios que militam contra a modernização dos textos antigos. Sup- pondo que cada geração vae alterando, segundo a evolução secular da lingua, um texto qual- quer, poético por exemplo, ora supprimindo sons não pronunciados na respectiva enoca, ora introduzindo outros, ora deixando certas for- mas, num caso para se obedecer ao metro, Doutro para se ir conforme a rima, calcula-se perfeitamente que, ao cabo de alguns séculos,

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esse texto se achará num estado miserável e lastimoso de ruina. A pag. 151 diz o snr. Amo- rim: «Sendc evidente que no modo de expres- sar os seus versos elle [Gamões] se antecipou muitíssimo ao seu tempo, escrevendo para ser lido em quanto durar essa nacionalidade, estou convencido de que interpreto com fidelidade o seu pensamento, excluindo d'esta obra prima tudo o que sejam archaismos, e conservando-lhe a actualidade da linguagem, que estava na in- tenção do cantor sublimado». Confesso que não entendo. Então Camões antecipou-se muitíssimo ao seu tempo para ser lido de futuro ? Se elle fosse além do seu tempo, comprehendia eu ; as- sim, não. Mas como é que o poeta, a não ser por capricho philologico, havia de escrever numa linguagem diversa da do século XVI ?

h malmente, a principal importância de uma obra de arte resulta da forma; e, como essa for- ma depende da linguagem, claro está que, al- terando-se esta, o valor daquella decae imme- diatamente. Um dos modos pelos quaes se ma- nifesta a emoção poética é o rythmo; por con- sequência, se nós vamos desmanchar um verso, vamos ao mesmo tempo destruir um dos efFei- tos que o poeta teve em vista, e para chegarão qual o seu systema nervoso vibrou de certo mo- do. Boa parte do merecimento da poesia dos gregos e romanos está perdida para nós, exa- ctamente por não podermos hoje avaliar com segurança alguns dos elementos do rythmo das línguas em que essa poesia foi escrita.

Torna-se assim manifesto que alterar os ver-

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sos camoneanos, embora para os traduzir cm língua moderna, é falsear o pensamento e o sentimento de Camões. Nem tanto differe da linguagem actual a linguagem d'este poeta, que seja preciso recorrer a meios violentos para receber a emoção que elle quis communicar aos seus leitores 1 E que tinha, ainda assim, que differisse ? Por mais que os modernizem, os Lusíadas mão são um livro para o vulgo.

Nós não poderemos dar aos Lusíadas o de- vido apreço se os não lermos no idioma em que o auctor os escreveu. Os Lusíadas são uma obra antiga, e hão-de ser lidos como tal. Dizer o snr. Amorim que elles constituem um poema para todos os tempos, é proferir uma heresia, se com isso se quer referir á língua. Os Lusíadas são um poema de todos os tempos para nós portu- gueses, mas na idéa, porque palpita alli a alma da nossa nacionalidade ; quanto á lingua, são unicamente uma obra do século XVI : e será tão extraordinário, tão erróneo, tão ridiculo, substituir as expressões antigas pelas modernas, como, por exemplo, fazer representar um auto de Gil Vicente com personagens do século XIX vestidos pelos últimos figurinos de Paris.

De tudo isto se que os princípios em que o snr. Amorim assenta a sua edição critica (sic) são falsos. Um texto antigo não pôde nem deve ser reduzido a linguagem moderna para s dar co- mo tal ; pôde e deve apenas ser an notado nos logares obscuros, mas nunca adulterado. E' cu- rioso que hoje, que os philologos de todas asi nações cultas se esmeram em reduzir quanto-;

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possível os textos litterarios antigos ás formas primitivas, venha o snr. Gomes de Amorim bar- barizar completamente os Lusíadas, e isto com pretensões a resolver um problema !

De mais a mais, o snr. Amorim, não con- tente com mutilar por todos os modos possíveis a nossa Biblia nacional, o cofre sacrosanto de todas as nossas glorias, a crvstallização pura de todos os sentimentos do povo português, vem ainda amesquinhar grande numero de auctores de solido mérito, apenas com o fim de querer exaltar Camões, como se a fama d'este se em- pannasse com a dos mais ! Assim, a pg. 17 do vol. I, diz que os conselheiros de D. Sebastião «roiam com prazer os versos coriaceos de Fer- reira, de de Miranda e de Caminha». A pg. 190 chama rançoso ao Verdadeiro methodo de estudar, de Verney, e a este por ironia o epitheto de sábio, acerescentando que «não passa de escrevedor massudo, pesado, indigesto, de péssimo ou nenhum gosto, tratando a lingua portugueza como se fosse gallega ou moira». Parece incrível ! Então a lingua gallega e a lín- gua moira não serão línguas tão perfeitas como a portuguesa ? Que estranha idéa que o snr. Amorim tem das línguas ! O que vale é que a gloria de Ferreira, Caminha, de Miranda e Verney é superior aos sarcasmos intempestivos do snr. Amorim. Comtudo custa ver pronun- ciar juizos tão temerários.

de Miranda, que foi no nosso país o echo da renascença litteraria italiana, Andrade Caminha, collaborador intelligente d'éssa em-

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presa, e António Ferreira, que, com a Castro, deu ao género dramático entre nós uma feição que lhe faltava ainda, não teem outro valor, segundo o snr. Amorim, senão o de íazerem versos cortaceos ! Não occultarei que a metrifica- ção de Ferreira é, ás vezes, um tanto dura, co- mo de quem, ao escrever sem rima, pela pri- meira vez trilha caminhos Ínvios e difriceis ; mas os versos de de Miranda e Caminha não estão nesse caso. O snr. Amorim a en- tender que nunca meditou nelles, apesar de os condemnar ! Todavia a gloria de Ferreira não se hade medir pela aspereza dos seus versos.

Verney, que rasgou a Portugal horisontes inteiramente novos em philosophia, preparando em parte o terreno para a grande reforma scien- tiíica do marquês de Pombal, e apontando com espirito critico e encyclopedico, desconheci- do até então entre nós, as causas da nossa de- cadência intellectual e os meios de a atalhar. é para o snr. Gomes de Amorim unicamente um sábio rançoso e um escrevedor massudo, porque não manejou a lingua portuguesa com perfeição clássica : como se nós tivéssemos de aquilatar sempre os merecimentos de um homem de sciencia, e de um pensador, apenas pela cor- recção com que elle architecta uma phrase, ou pela arte com que torneia um período ! A todos cabe, é certo, a restricta obrig . :áo de escreverem com cuidado a lingua que escolhem para manifestação dos seus pensamentos ; mas, quando se trata de um homem como Verney, que, depois de passar parte da vida no extran-

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geiro, vem á terra natal, como bom filho, tra- zer os friictos da sua profunda erudição, em- bora, pelo deshabito de fallar português, e por lidar constantemente com idiomas extranhos, haja perdido um pouco a vernaculidade pátria, devemos evidentemente usar de toda a desculpa para com elle.

Para eu fazer uma critica conveniente da obra do snr. Amorim, teria de escrever um vo- lume, pois que todas as suas observações pre- cisam de reparo; por isso, e porque me era em extremo penoso estar a annotar por completo um trabalho, onde não ha o minimo vislumbre de critica scientifica, e onde pelo contrario nun- ca se entra que se não encontre motivo para ásperas censuras, vou limitar a minha anályse ás principaes passagens do canto i.° e 2.0; mas as minhas reflexões serão apenas acerca da lin- guagem.

Começarei naturalmente pelo canto i.°.

Xas est. 2 e 3 emendou o snr. Amorim va- lerosas e antiguas em valorosas e antigas, sem pôr nota nenhuma. Na mesma est. substitue Alexandro por Alexandre, fazendo a seguinte curiosa nota : «E1 tempo que este Alexandro passe a chamar-se simplesmente Alexandre, co- mo toda a gente, apesar da sua altíssima pro- sápia». Então toda a gente se chama Alexandre? E o snr. Amorim dà-se ás vezes a liberdade de empregar estylo jocoso num assumpto d'estes! -Mas o que eu sempre lamento são as suas ra- zões. O nome do rei da Macedónia é grego, e

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tem a forma Alexandros, d'onde os romanos fizeram Alexander (nominativo) e Alexandrum (accusativo) : ora é evidente que a forma camo- neana Alexandra é boa, pois que as palavras portuguesas derivadas do latim não provêem geralmente do nominativo ; do mesmo modo dizemos Lysandro e não Lysandrc, magro e não magre. etc. O sr. Amorim devia também lem- brar-se de que em hispanhol ha Alexandro (orth. ant.) ou Alejandro (mod.), e em italiano Alessandro : formas todas pois com o. A forma portuguesa Alexandre é secundaria.

Na est. 4 não entendeu o snr. Amorim o sentido dos versos

Porque de vossas aguas Phebo ordene Que não tenham inveja ás de Hippocrene

o primeiro dos quaes emendou assim Para que a vossas aguas Phebo ordene

pondo o seguinte commentario : «Como está, não acho crivei que o deixasse o poeta: Porque Phebo ordene que de vossas aguas não tenham inveja ás de Hippocrene ? Alas deve ser o con- trario : o que pretende o cantor é que as aguas do Tejo não tenham que invejar áquellas» (Pg. 185). Ora Camões diz exactamente isso, pois que a expressão porque de vossas aguas signifi- ca em bom português para que a respeita de vos- sas aguas. Na língua archaica e ainda em cer- tas expressões de hoje (ex. «saio por me distra- hir») c muito frequente o uso de por em vez de para ; e na lingua geral é corrente de cm

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vez de a respeito de, por ex. «d'isso não fallarei», que quer dizer a respeito d'isso, etc. Os versos camoneanos devem portanto interpretar-se d'este modo: «Para que Phebo ordene a respeito de vossas aguas (i. é, ás vossas aguas) que ellas não tenham inveja ás de IíippocreneD. Assim tudo está claro, sem ser preciso alterar a lição dos Lusiadas, como o snr. Amorim faz sem fun- damento absolutamente nenhum. Na est. 5 tinha Camões

Que o peito accende e a côr ao gesto muda

onde o snr. Amorim substitue gesto pela pala- vra rosto! E' outra emenda infundada, porque gesto outr'ora tanto tinha a significação moder- na como a de rosto: (*) portanto Camões escre- veu bem. Mas, admittindo mesmo que Camões empregasse gesto no seu sentido actual, o em- prego podia ainda justificar-se, pois que côr si- gnifica, além de uma propriedade physica, tam- bém aspecto, feiçãc, etc. Cicero diz por exem- plo : «Amisimus omnem non modum sucum ac sanguinem, sed etiam colorem et speciem pns- tinam civitatis». se que em qualquer dos casos, embora o primeiro seja o mais provável, Camões não errou ; o snr. Amorim é que a todo o panno se quer mostrar exigente : as suas exi- gências, porém, levam a tão profícuos resulta- dos !

Na est. 6 substitue maura latíça por moira

(x) Vid. adeante, neste mesmo opúsculo.

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lança; mas maura não é archaismo, é forma lit- teraria ! Para que foi pois a substituição?'

0 que se passa na est. 9 é assombroso : Gamões, dirigindo-se a D. Sebastião, diz:

Os olhos da real benignidade

Ponde no chão: vereis um novo exemplo

O sr. Amorim substitue ponde por pondo, ima- ginando que Camões não devia intimar o rei «como quem lhe dava ordens, em vez de lhe dirigir uma supplica . respeitosa». E accrescen- ta: «Só depois d'esta condicional, em que apu- rou a sua modéstia, usa da liberdade de lhe dizer nas duas estancias seguintes : ouvi». Mas o sr. Amorim não repara que no principio da estancia diz CLmões:

Inclinae por um pouco a magestade Que nesse tenro gesto vos contemplo.

Portanto, como é que o poeta quer apurar, pe- lo modo que o sr. Amorim pensa, a modéstia do rei. se começa por se lhe dirigir com o im- perativo inclinae? Na mesma estancia diz o sr. Amorim que a palavra valerosos vem de va- lente!

Xa est. 12 tinha Camões

Os doze de Inglaterra e o seu Magriço

O sr. Amorim substitue doze por onze, abonan- do a sua substituição com estas admiráveis ra- zões: «Se fossem treze, devia contar-se assim; mas eram doze, na sua totalidade; e por tanto

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a lição deve dizer onze; porque com o Ma- griço perfazia aquelle numero; não era dúzia de frade, como todos teem entendido». Xão era dú- zia de frade, mas também não era dúzia de Amo- rim; era dúzia portuguesa. Camões, com a expres- são os doze de Inglaterra, e o seu Magriço, quer dizer: os doze de Inglaterra, contando-se neste nu- mero o Magriço. A conjuncção e exerce na phra- se a funeção de realçar o .Magriço; a cada pas- so nós a empregamos com semelhante sentido na linguagem corrente, por exemplo, quando dizemos: ia o regimento e o seu cominandante á frente, etc, pois que o commandante faz parte do regimento.

Na est. 14 tinha Camões :

Nem deixarão meus versos esquecidos Aquelles que nos reinos da aurora Se fizeram por armas tão subidos, Vossa bandeira sempre vencedora!

O sr. Amorim, que não entendeu a funeção grammatical do ultimo verso, emendou desas- tradamente o 3.0 assim:

Sós, fizeram, por armas vencedoras

imaginando bandeira complemento directo de fizeram, quando Camões quis dizer : se fize- ram tão subidos por armas, tendo sido sempre vencedora a vossa bandeira, ou com a vossa bandeira sempre vencedora. O 4.0 verso corres- ponde ao que em grammatica se chama partici- pio absoluto ou oracional, e por isso liga-se per- feitamente com os antecedentes, sem ser preci-

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so emendar nenhum. Em verdade foi uma pena que o sr. Amorim gastasse tanto tempo e tra- balho para obrigar os seus leitores a chegarem a conclusões tão tristes. Aquelle verso é perfei- tamente comparável com este, quanto á funcção grammatical:

A mão na espada, irado e não facundo

e comtudo o sr. Amorim não o emendou, do que se que s. ex.a não é coherente. Na est. 19 emenda o magnifico verso

As inquietas ondas apartando

neste outro, destestavel,

As desinquietas ondas apartando

dizendo que aquelle está frouxo! Alem d'isso, a palavra desinquietas significa rigorosamente quietas, porque o prefixo des- indica o contrario da ideia expressa no vocábulo a que se junta, co- mo em desataviado, desfeito, etc; em lingua- gem familiar se pôde empregar desinquietas no sentido de muito inquietas, pois é nessa lin- guagem que o prefixo des-, junto a expressões negativas, significa reforçamento, como em des- infeliz, etc. (cfr. ainda desabalado). Vè-se por consequência o inconveniente de alterar o verso. Na mesma estancia tinha Camões estes ver- sos:

As maritimas aguas consagradas, Que do gado de Proteo são cortadas

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que o sr. Amorim transtorna, pondo pastadas em vez de cortadas, porque, «a não ser isto, não havia necessidade de fallar aqui em gado» (Pag. 199). Mas o sr. Amorim não repara em que na mythologia se o nome de gado de fVo- teo a vários animaes marinhos que este guar- dava, embora tal gado não pastasse agua. Que valem pois as razões de s. ex.a ?

A est. 21 também não foi entendida pelo sr. Amorim. Camões disse :

Alli se acharam juntos num momento Os que habitam o Arcturo congelado, E os que o Austro tem, e as partes onde A aurora nasce e o claro sol se esconde

e o nosso auctor emenda o penúltimo verso d'este modo :

E os do Antárctico polo, e partes onde

baseando-se em que «não se pôde admittir que tamanho poeta nos dissesse que entre os deu- ses estavam também as partes onde a aurora nasce: destempero inconcebível!» (O ponto de admiração é do texto). Isto custa a acreditar. E o sr. Amorim ainda ha pouco a accusar Verney de não saber português! Ora os versos de Ca- mões são perfeitamente intelligiveis; querem di- zer: Acharam-se alli juntos num momento

os que tem o Austro, os que tem as partes onde nasce a aurora, e os que tem as partes onde se es- conde o claro sol, isto é, os habitantes do Sul, do Oriente e do Occidente. De modo semelhante se diz em latim : Corinthum habere (ter Corintho,

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habitar Corintho), etc. Igualmente se encontra em Rodrigues Lobo (Obras, ed. 1723, pag. 541

col. 1) :

E ao Pay que tinha então Ponte do Lima

isto é, «ao Pay que habitava então Ponte do Li- ma».

Na est. 24 tinha Camões muito bem :

Como é dos Fados grandes certo intento e o sr. Amorim emendou

Como é dos fados grande e certo intento

dando uma razão das do costume: «que não ha fados grandes nem pequenos»! De modo que não entendeu a funcção grammatical de grandes, que consiste apenas em realçar os Fados (gran- des em poder, poderosos) e não em os contrapor a outros. Mas pergunto eu ao sr. Amorim: que sentido faz nos versos a expressão grande in- tento dos Fados? se que s. ex.a não me pôde responder.

Xa est. 50 ha os versos

Os portugueses somos do Occidente, Imos buscando as terras do Oriente

que o sr. Amorim transformou em

Os portugueses somos ; do Occidente Vimos, buscando as terras do Oriente

dizendo que é melhor vimos do que imos (.-!!) e que «não havia portuguezes, n'aquelle tempo.

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que não fossem do Occidente». outros anno- tadores teem também discutido estes versos, mas o facto discutido parece-me simples, pois elles devem pontuar-sc assim:

Os portugueses somos, do Occidente, Imos buscando as terras do Oriente

e entender-se do Occidente como uma apposi- ção explicativa de Portugueses, tanto mais que ella se dirigia a gente estranha, que ignorava d'onde os Portugueses eram. Um pleonasmo semelhante empregou Camões no verso

Da occidental praia lusitana

pois, se não havia outros Portugueses que não fossem os do Occidente, também não ha outra praia lusitana que não seja occidental. Clara- mente é occidental que qualifica praia lusitana, e não lusitana que qualifica praia occidental: por- tanto o meu argumento vale.

Passo em claro, porque me não sobra o tem- po para as refutar, muitas outras emendas; se ainda assim tenho íeito tantas reflexões, e conti- nuarei a lazer mais, é para que aos leitores não reste a menor duvida sobre o que eu disse aci- ma, isto é, que ao trabalho do sr. Gomes de Amorim faltam todas as condições de critica e de sciencia.

Na est. 66 põe Camões na boca do valero- so capitão as seguintes palavras:

D'este Deus-homem alto e infinito Os livros que tu pedes não trazia.

Como se falia em linguagem do presente, ima- gina o sr. Amorim que ha discordância no verbo, que devia, segundo elle, ser trago, e accrescenta: «Serão, talvez, estas das estancias apagadas pelo mar da costa de Camboja, que o poeta depois se não lembrou de restabelecer, como primitivamente as tinha escrito } Ou de propósito as deixou assim, auctorisado pelos cancioneiros} Quem poderá responder-nos?» (Pg. 227). Responde-lhe o próprio Camões na est. 64:

Dar-te-hei, senhor illustre, relação De mim. da lei, das armas que trazia.

Desde o momento que o poeta empregou re- petidamente a mesma palavra, é para suspei- tar que não houve erro, e sim propósito. .Mas discutamos os argumentos "do sr. Amorim. Realmente seria para estranhar que Camões fosse tão falto de gosto que, suppondo mesmo que o mar de Camboja lhe apagara algumas phrases, deixasse ir um contrasenso, se o hou- vesse, só por se não dar a um pequeno trabalho de correcção. O sr. Amorim amesquinha d'este modo muito injustamente o nosso grande épi- co. Em segundo logar, os cancioneiros não são nenhuns passa-culpas que auctorisem erros de grammatica; se estivessem erros, Camões não os copiaria. Por outro lado as passagens que o sr. Amorim transcreve como justificativas, a pag. 225-226, tem explicação mui diversa d'a- quella que s. ex.a lhes attribue. Vejamos po- rém a final se Camões empregou bem ou mal trazia em vez de trago. Xotando que o verbo é

3*

empregado num dialogo, e que o estylo do dia- logo neste caso deve ser o familiar, chega-se facilmente á conclusão de que o poeta não fal- ta ás leis grammaticaes, pois todos nós usa- mos ainda hoje em linguagem vulgar de phra- ses como estas : «Eu não trazia agora dinheiro para lhe dar; eu não tinha neste momento na- da que lhe dizer, etc». Em todas estas phrases se emprega o preterito-imperfeito pelo presente, nas mesmas circumstancias em que Camões o empregou no texto citado. Outro exemplo se en- contra ainda no c. III, est. 127:

Alova-te a piedade sua e minha,

Pois te não move a culpa que não tinha

onde também está tinha por tenho. Na est. 80 dissera Camões

Porque, sahindo a gente descuidada, Cahirão facilmente na cilada

que o sr. Amorim commenta: «Erro de todas [as edições]. Quer se refira á gente, que sahisse descuidada, quer ao capitão, a concordância grammatical exige que se escreva cairá; e não cairão* (Pg. 234). O sr. Amorim não não entendeu o sentido, como mostrou desconheci- mento da lingua: não entendeu o sentido, por- que o poeta refere-se claramente á gente e não ao capitão-, mostrou desconhecimento da lingua, porque é trivial, tanto no uso familiar, como no dos clássicos, considerar gente como um substantivo collectivo, dando-lhe por concor- dância um verbo ou um adjectivo no plural.

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A linguagem é um phenomeno ordinariamen te automático, e muitas vezes teem-se em vis- ta não tanto as ideias expressas, como as que na occasião se querem exprimir. se que eu não pretendo absolver Camões dos erros ou de- feitos em que elle por ventura incorrera; mas também não tenho o direito de o emendar: o que devo fazer, como critico, é vêr se posso dar a explicação psychologica dos factos, para não ir considerar como interpolação estranha o que é do próprio auctor. Com quanto pareça um desvio do rigor da syntaxe, é a realidade da linguagem e do pensamento traduzido nella ; portanto não temos nada que corrigir. Os exemplos seme- lhantes abundam. Na est. 24 do cant. I falia Camões da forte gente de Luso; na est. seguin- te diz que ella alcançou favor do ceu e teve os tropheus da victoria; pois, apesar de aqui fal- lar no singular, na est. immediata, que é con- tinuação d'estas, falia no plural, embora se re- fira também á gente, e diz: que alcançaram fa- ma na guerra romana, etc. Porque foi isto? Por- que Camões tem agora na mente a ideia de homens, guerreiros, etc, cujo conjuncto forma o que também se pôde exprimir pelo singular gente. No cant. X, est. 107, lô-se ainda:

Por este mar a gente Lusitana

Que com armas virá depois de ti,

Terá victorias, terras e cidades,

Nas quaes hão de viver muitas idades.

O grande clássico António Vieira diz até na mesma phrase: «Dos que a fizeram d'oiro dire-

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mos depois; o que agora somente me parece di- zer é que, etc.» (na descripção da Fortuna): por- tanto, referindo-se a si próprio, tem num caso

0 singular e no outro o plural. Em João de Bar- ros, por exemplo, leio : «... a gente das outras fnáos], que ficarão, vendo o exemplo de seus vizinhos, leixárão os cascos vazios, e salvárão-se em terra» {Década 2.a, liv. 2, c. 3, fl. 30., ed. 1628); «vendo os nossos como a gente d'estas terradas andavão nadando» (ib. ib. ib., fl. 30). Xos próprios Lusíadas, c. IV, est. 88 se lè:

A gente da cidade, aquelle dia, Saudosos na vista e descontentes . . .

E mais exemplos se podiam facilmente reco- lher. E' por semelhante razão que aqui na Estremadura, tomando a gente por ?iós, se diz: <>a gente vamos embora, a gente queremos sa- hir, etc». Se cito a phrase popular, é porém para mostrar a generalidade das leis da lingua- gem, porque, com quanto a linguagem popular não possa sempre servir de modelo de texto, el- la obedece comtudo aos mesmos princípios que a litteraria, que á custa d'ella vive. Por conse- guinte o sr. Gomes de Amorim emendou in- devidamente.

Xa est. 85 fez o sr. Amorim nada menos de três emendas, qual d'ellas mais infundada!

1 )isse Camões:

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E mais também mandado tinha a terra

De antes pelo piloto necessário;

E foi-lhe respondido em som de guerra

Por isto e porque sabe quanto erra;

o sr. Amorim substituiu de antes por antes, por- que «salta aos olhos que Camões não podia ter escripto de antes, que é locução adverbial, e que significa antigamente, num tempo anterior, e não pode ter applicação aqui, em que a acção é to- da seguida» (Pag. 239). Tanto não salta aos olhos, que o poeta na est. 104 tem

Que Baccho muito de antes o avisara

onde muito de antes está exactamente no mes- mo sentido que a ^xpressão moderna muito antes: donde se que ha correspondência entre o moderno antes e o archaieo de antes, e que por- tanto o texto camoneano está bem. Alas pôde abonar-se este uso com o exemplo de outros AA. No 'Diec. da Ling. Port. de Moraes, - .A ed., citam-se estas duas passagens de Rodrigues Lobo: «Em uma aldeã, aonde o dia d'antes se lhe acabara» (Obras, ed. 1723, pg. 176); «Nem ella a elle o vira dantes d'isto» (ib. pg. 541). A estes exemplos juntarei mais um, que cu co- lhi no mesmo Rodrigues Lobo : «o desejo que lhe causara a noyte do dia dantes» (pg. 50). Todos os exemplos citados provam, e èse é <> meu fim, que d'antes não significa outrora e antigamente. Se o sr. Amorim se desse ao tra- balho de percorrer os nossos clássicos, não lhe pareceria achar tantas c tão graves inexactidr.es

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no texto camoneano: e veria pelo contrário que Camões emprega as mesmas expressões que elles. A segunda emenda toi som de guer- ra em tom de guerra, por o sr. Amorim es- tar «convencido de ser erro typographico» . Realmente não posso descobrir o motivo d'esse convencimento, pois que a expressão em som de guerra e muito frequente na nossa linguagem, e abonada pela litteratura; para não ir mais lon- ge, aqui deixo dois exemplos colhidos em Blu- teau. Vocabulário, s. v.: «Cuidando que em som de guerra lhe quisessem oceupar suas ter- ras» [Monarchia Lusitana. I, 132, col. 2), «e em som de guerra pelo mar se estende» (Tem- plo da memoria, liv. 2.0. est. 118). A terceira emenda consiste em transformar o ultimo ver- so, que citei, neste:

Por isto. e porque bem sabe quanto erra

que o sr. Amorim tenta justificar assim : c(0 verso carecia de uma syllaba: e conhece-se per- feitamente que devia estar no autographo, por- que só ali cabe bem, como natural comple- mento do metro, e do sentido» (Pg. 240). Em primeiro logar. o verso, emendado assim, fica horripilante, em virtude de um principio de me- trificação, que o sr. Amorim esqueceu neste ponto, e que consiste em não fazer cesura nu- ma syllaba proclitica, pelo .simples motivo de que tal syllaba se sempre junta á pala- vra seguinte, e portanto fica com o seu accen-

to tónico subordinado ao d'esta. Um verso, como

*

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Por isto c porque bera sabe quanto erra

que deve ter um dos seus accentos predomi- nantes na 6.a syllaba, ou se ha-de accentuar em sabe, e então sae errado, ou hade fazer demo- rar a voz em bem, e nesse caso deixa de ser natural a expressão, porque ninguém diz em linguagem corrente, a não ser gaguejando, ou em emphase que o poeta aqui não quis lazer, bem . . . sabe, mas bem sabe; e um verso é tanto mais perfeito, quanto mais se aproximar do fal- lar usual. Em segundo logar o sr. Amorim es- queceu-se também de notar que o hiato não é raro em Camões, e que o verso

Por isto e porque sabe quanto erra

pertence a essa classe. Eis alguns exemplos que o justificam neste caso (tirados de outras obras do mesmo poeta) :

O prado, o arvoredo, o rio, a fonte. Ode XII. O airoso meneio e a postura. Ode X. No mais antigo tempo e presente. Ode XIII. E quanto em mostrá-las desmereço. Ibid. Selvático no mundo e habitante. Elegia I. Porque a cerviz ferina e inhumana. Ibid. Ao manso Favonio brandamente. Ibid.

O phenomeno observa-se em muitos mais poetas. E' inútil accumular exemplos ; conten- tar-me-hei com mais clois, de Diogo Bernardes [1\im.is ao Tàom Jesus, ed. 1608):

Que tanto tempo ha que me espera} s. Elegia I. Que direi do extremo a que chegou. Ibid.

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se pois que não é necessário alterar o texto camoneano.

Xa est. 86 tinha Camões o verso

Por lhe defender a agua desejada que o sr. Amorim transformou em

Por deiender-lhes a agua desejada

não sei para que, pois o número das syllabas métricas é o mesmo. .Mas o nosso auctor fez aqui mais uma das suas, que foi substituir lhe por lhes. Pile ora suppõe lhe um erro typographico em vez de lhes (como aqui), ora uma licença (pag. 247). Mas não vejo bem como se haja de estar sempre a modificar uma palavra de uso tão frequente nos quinhentistas. Eu poderia aqui reunir centenas de exemplos d'elle, mas limi- to-me a dois. um que colhi em Ferreira, e outro em Barros: «entre as boas doutrinas que lhe davão [aos filhos] principalmente era» (comedia Bristo. pag. 10. ed. 1771); «tornarão outra vez ás nossas náos a lhe lançar dentro aquella chu- va de setas» {'Década 23, loc. cit., fl. 30). Es- colhi de propósito a prosa para que se veja que não ha licença nenhuma, e que pelo contrario é linguagem usual. Hoje mesmo é frequentíssi- mo ouvir-se dizer em linguagem descurada, mas em virtude da tradição ininterrupta, lhe por lhes. Na mesma estancia dá-se mais um lacto curioso, e que mostra bem o pouco ou nenhum critério que presidiu a esta desgraça- da edição. Paliando dos moiros, que andavam

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pela praia a defender a agua desejada, diz Ca- mões com muita elegância e propriedade:

Um de escudo embraçado, e de azagaia, Outro de arco encurvado e setta ervada, Esperam que a guerreira gente saia: Outros muitos, postos em cilada . . .

O sr. Amorim emenda um e outro em uns e ou- tros, e diz: «E' claro que não pódc ser ; e o próprio verso S o está dizendo. Dois homens a passear, ainda que estivessem armados até aos dentes, e tivessem a força de seis leões cada um. não impediriam três bateis, cheios de portu- guezes, de ir fazer aguada)) (Pg. 240). Alas todo o leitor que taes razões nada provam, por- que a questão não é de hispanholada, é de gram- matica. Camões usou elegantemente de um e ou- tro em vez de uns e outros, por virtude de um pro- cesso psychologico chamado em rhetorica syne- doche, e que neste caso consiste em tomar o sin- gular pelo plural, dando áquelle o caracter de generalidade. Abundam os exemplos litterarios. Em de Miranda (ed. Michaelis) colhi estes:

Não os queria assi tam amarelos, Nem tam achacadiços: este geme. Tyesfoutro chorão os seus olhos bcllos, Outro por Julho e por Agosto teme (Pg. 438);

E que lingoa é dos pastores! Um diz que tens mal de fora, Outro que é mal de amores, Chama-lhe outro mal (Pg. 549).

E em nenhuns cFestes casos quer Miranda dizer que o número era de três! Em Domingos dos

Reis Quita (ed. 1 7 8 1 . vol. II) achei os seguintes versos, em que o poeta falia das aves:

l Jma a cantiga exprime modulada

Com suave gorgeto, outra responde (Pg. 28)

e o poeta também não deseja dar a entender que as aves erão apenas duas. .Mas para que heide eu multiplicar os exemplos? No último verso de Camões, citado acima, ha effectiva- mente outros, com que o sr. Amorim pretende absolver-se: não o consegue, porém, porque Ca- mões, ao passo que nos versos antecedentes (onde deve entender-se: elles, um de escudo, ou- tro de arco encurvado, esperam etc.) contrapôs um a outro, neste não contrapôs outros a ne- nhum, e alem d'isso juntou-lhe muitos, que por força obriga outros a estar no plural: de mais a mais outros é o complemento natural da ideia expressa singularmente em um e outro.

Havia ainda muitas mais observações que juntar ao commentario do canto i.°; todavia passo ao 2.0 para não dar grande desenvolvi- mento á critica, e porque o que ahi fica é bastante para começar a fazer suscitar no ani- mo dos leitores sérias suspeitas acerca do valor da edição do sr. Amorim.

As emendas que o sr. Amorim faz ao poe- ma são ás vezes verdadeiras caturrices. Assim. por exemplo, tendo Camões no cant. II, est. 5,

Cumprirá sem receio seu mandado

para que havia elle de acerescentar a seu o arti-

4o

go o? O sr. Amorim sabe com toda a certeza que o artigo possessivo se emprega a cada pas- so, em dadas circumstancias, sem ser precedido de o. Parece-me inútil accumular aqui muitos textos comprovativos de tal emprego, pois elles apparecem tão frequentemente; todavia minis- trarei dois: um de Ferreira (ed. 177 1 , t. II, pg. 44)

Seu tempo seu desejo baixo e vil;

outro, do próprio Camões (elegia III, ed. da cA dualidade)

.se queixava

De seu escuro e triste nascimento.

Na est. 12 escreveu Camões, segundo a linguagem do seu tempo:

Põem em terra os giolhos, e os sentidos Naquelle Deus

e o sr. Amorim não substitue giolhos por joelhos, mas accrescenta este formidável com- mentario: «Todos lêem giolhos, no v. 3, quj pôde ser muito bonito; mas que eu não usarei, salvo quando obrigado pela rima» (Pg. 260). Pondo de parte a forma empregada pelo nosso auctor, que é imprópria da gravidade do assum- pto, vè-se que s. ex.a não razão nenhuma sé- ria para supprimir a palavra giolhos. Será gio- lhos um archaismo anterior a joelhos} Será uma alteração d'esta? Nada nos diz s. ex.a; apenas observa que não achou bonita tal expressão, co- mo se um critico tenha de regular-se unicamen-

4i

:e pelas suas opiniões, pelo seu mero gosto Subjectivo, e não pela realidade dos factos. A Llavra giolho representa um deminutivo do at. genu (cfr. fr. arch. genouil).. e não se mcontra em muitos AA. antigos, quer poetas, juer prosadores, como também ainda no povo la Beira-Alta, etc, o que prova a vitalidade i'ella. Dos AA. antigos lembrarei de .Miran- da (ed. Michaelis) :

E o que não podem ousar

De ler se em «{olhos não (Pg. 243).

\Tos seguintes vè-se mesmo que a palavra rima:

.Mas posta de giolhos

A vós os olhos: tudo mais são nadas (Pg. 54 1 )-

0 sr. Amorim esquece ordinariamente os usos da língua ; s. ex.a não devia criticar Camões sem ter a certeza de que as phrases que nelle suppõe erradas se não encontram noutros A A. O resultado d'este esquecimento é dar-nos elle orno anómalo ou como falso o que é regular e verdadeiro.

.Mais um exemplo. Na est. 14 disse Camões:

Dentro no salso rio entrar queria

que o sr. Amorim commenta: «Dentro no salso rio lêem todas as [edições] no v. 8. Escrevo do convencido de ser esta a lição do poeta. Se el- le quizesse dizer no rio, não escreveria dentro» (Pg. 261). Mas dentro no em vez cie dentro do è boa linguagem portuguesa, como mesmo se

dos AA.; nas Varias T(imas de Diogo Ber- nardes (ed. 1608, eleg. 1) V-se também

De mi. por quem vós sois, me defendei E do mais que de vós minh'alma aparta; 'Dentro no vosso lado a recolhei.

Na est. 18 dos Lusíadas está o seguinte: Inclinam para a barra abalisada\

mas o sr. Amorim emenda a ultima palavra em balisada, «para que se entenda bem que a barra! estava assignalada por balisas. e não que era bar-: ra notável ou distincta» (Pg. 264). Em primeiro logar, a acepção de abalisada no sentido de dis- tincta e notável provém da idéa material de ba- hsa, e a semelhança das vozes não é motivo pa- ra que uma se modifique arbitrariamente, como se não modifica também por exemplo ponte que tem uns poucos de significados; em segun- do logar. abalisada, neste sentido metaphorico. não se emprega com propriedade a respeito de uma barra, portanto aqui não ha confusão; em terceiro logar, abalisada, no sentido de marcada por balisas, é usual, como se d'este exemplo de Sa de .Miranda (cit. ed., pag. 451)

Ca nos deixou o caminho abalisado

a que eu poderia juntar mais.

Na est. 23 tinha o nosso épico

Taes andavam as nymphas, estorvando cA gente portuguesa o fim nefando. . .

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c o snr. Amorim emendou a primeira phrase do segundo verso em da gente, porque não era «pos- sível acreditar que o poeta assim escrevesse! (Pg. 269). Eu não me admiraria muito se o sr. Amorim mostrasse desconhecimento da Língua archaica, porque esta se aprende em con- dições muito especiaes ; mas, realmente, nem ao menos o sr. Amorim estar ao correr da lín- gua moderna é caso para deveras lamentar. Pois então não se usa tão frequentemente em portu- guês a (e seus equivalentes) em vez de Jc em hrases como estas: «estorvei-ZAe os intentos =estorvei os intentos a"elle), castiguei os erros este sujeito (—d' este), etc. etc...? Como o sr. Amorim é sincero admirador de Garrett, aqui em também um exemplo colhido nelle (poe- ma Camões, cant. Y, est. 11), nuns versos que toda a gente sabe de cor, ou pelo menos co- nhece:

O' Cintra! ó saudosíssimo retiro, Onde se esquecem mágoas, onde folga . De se olvidar no seio d natureza Pensamento que imbala adormecido O sussurro das iolhas

Ora, tanto em estorvar o fim d gente, como em olvidar-se no seio d natureza, d vale da. .Mas o mais interessante é que o próprio sr. Amorim usa a mesma syntaxe algumas linhas adeante. a propósito da est. 25: «ou a agua do mar da Cochinchina lhe apagou de tal modo os caracte- res...»— onde lhe, que equivale a a elle, está em vez de d'elle. D'aqui se conclue que o que a

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agua do mar da Cochinchina ; pagou foi a me- moria do sr. Amorim, o qual combate nos ou- J tros locuções de que elle mesmo se serve!

Na est. 35 torna-nos a apparecer rosto em I vez de cesto. Camões disse:

Tão formosa no gesto se mostrava, Que as estrellas, o ceu e o ar vizinho E tudo quanto via a namorava. . .

O sr. Amorim substitue gesto pela palavra rosto e acerescenta: «No v. 2 è impossível dei- xar ir gesto em vez de rosto, como todas [as edições] lêem. Ninguém me pode convencer de que tão altíssimo poeta fosse o auetor da troca. Elle escreveu rosto, e eu assim restabeleço» (Pg. 277). De passagem notarei ao sr. i\morim que para corrigir Camões é necessário mostrar um pouco de cuidado no phraseado: ora tão altíssi- mo não é português. Mas vamos ao ponto dis- cutido. Mais uma vez direi que o sr. Amorim : se não deu ao trabalho de fazer estudos com- parativos sérios a respeito da linguagem de Ca- mões ; senão reparem os leitores bem : Camões diz naquellcs versos que Dione, indo-se d'entre as nvmphas, se mostrava tão formosa no gesto, que

.. .tudo quanto via a namorava,

e o sr. Amorim nega formalmente que CaSnões escrevesse gesto: mas Camões na Kgloga 1 .a (ed. da lA dualidade, pg. 14) tem quasi as mes- mas palavras:

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Formosas Nymphas vejo-na verdura,

CUJO divino GESTO O CEO NAMORA. .

Nem esta coincidência de situações conven- cerá o sr. Amorim de que o poeta empregou gesto e não rosto? Ha mais. Na egloga 2.a, pg. 21, torna Camões a dizer de outra nympha:

Não é a gentileza De teu gesto celeste Fora do natural?

E a pg. 24 da mesma composição:

Mas Echo, NAMORADA DE TAL GESTO

onde outra vez entra a ideia de namorar. E a pg. 38 da egl. 3-a:

Os guardadores que, cantando o gesto Formoso e honesto das pastoras que amam.

E na elegia 2.a. pg. 16:

Despois que a deusa em pedra converteu De seu humano gesto verdadeiro, A ultima voz lhe concedeu. . .

Em todos estes exemplos, incluindo o que o sr. Amorim sem razão corrige, gesto tem o sentido de conjuncto de feiçòes. Na egloga 3.*, pag. 44, ha ainda :

Vès as nymphas do Tejo, que mudando Me vão pouco a pouco, o claro gesto Noutra mais dura forma traspassando

em que gesto se pôde entender como rosto. E' inútil acerescentar mais casos.

+6

Na est. 29 escreveu Carndês :

Cum delgado sendal as partes cobre De quem vergonha é natural reparo. . .

O sr. Amorim emendou de quem em de que. sem reparar na funeção grammatical de quem; este pronome, com a preposição de, pode ter al- li, quanto a mim. a significação de d'ella (ou d'aquella de quem), vindo pois os versos a ser : «cobre as partes d'ella. de quem é natural re- paro (i. é, «cobertura, resguardo» etc.) a ver- gonha». Este phenomeno de absorpção de sen- tido dá-se também na seguinte passagem da comedia Bristo de António Ferreira (ed. 1771, pag. 14): «Verdadeiramente muito deve a Deos. a quem elle deu filhos mancos», o que signifi- ca: «muito deve a Deus aquelle a quem elle etc.»: portanto, assim como. em cima. de quem quer dizer d ' ella de quem, assim neste caso a quem quer dizer parallelamente aquelle a quem. Xo texto da Bristo não ha erro. pois eu verifi- quei a passagem na ed. de 1622. que é tida co- mo prmceps (existe na Bibliotheca Nacional) : está elles em vez de elle por erro mani- festo.— E' verdade que, como em português archaico, e ainda hoje em certos casos, o prono- me quem se reíere ás vezes a cousas, podem também os versos interpretar-se á lettra. Com qualquer das hypotheses. porém, não acho mo- tivo para a emenda do sr. Amorim, tamvj mais que ella, ou um sentido diverso d'aquclle que Camões quis exprimir, ou falseia a gram- matica do poeta. Abundam nestes commen-

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tarios factos semelhantes ; como eu me não propus a analvsar a obra tocla, pelos motivos que dei, não os posso indicar por completo. todavia aqui deixo um, muito característico, do canto IX, est. 93. Disse Camões :

E ponde na cobiça um freio duro E na ambição também, que indignamente Tomaes mil vezes; e no torpe e escuro Vicio da tyrannia infame e urgente, Porque essas honras vãas, esse ouro puro Verdadeiro valor não dão á gente: Melhor é merecê-los sem os ter, Que possui-los sem os merecer.

O Sr. Amorim emendou ouro puro em oiro impuro, porque «se o poeta qualificava as hon- ras de vãs, não podia escrever em seguida oiro puro, tanto em vista do que dissera antes, co- mo do que depois acrescenta» (Pg. 216). Che- go a pasmar de tudo isto! Aqui ha dois erros: um de sentido, outro de língua. lia um erro de sentido, porque, tanto em vista do que esta an- tes, como do que depois se acerescenta, Camões quer dizer effectivamente ouro puro: em vista do que está antes, pois que se refere a cobiça e ambição, e ninguém tem cobiça e ambição de ouro impuro, mas sim de ouro .muito puro; em vista do que esta depois, porque seria um absur- do imaginar que alguém deseja merecer ouro im- puro ou possui-lo. Vejamos agora o erro de lín- gua. O sr. Amorim tomou a palavra vãas (ou vãs na sua orthographia) como synonima de vazias e ocas, e foi por isso que não comprehen- deu os versos; mas, se s. ex.a se desse ao in-

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còmmodo de fazer estudos comparativos, conclui- ria que tal palavra não tem aqui essa significa- ção, e sim a de vaidosas. No Dicc. da Ling, Port. de Moraes dão-se os seguintes exemplos d'esta ultima accepção: «soldado mais vão que a mesma vaidade» (Miranda, Estrangeiros); «mais vão que um pavão» (Eufrosina). A estes exem- plos junto eu mais um que encontrei em Antó- nio Ferreira (Liv. I, carta X, pg. 47 do vol. II, ed. cit.):

Procura honras, estados e altezas, Ambicioso vão, farta esse peito...

e mais outro que me offerece Bernardes na car- ta III:

Enchendo peite:, vãos de vaidade...

se que ambicioso oco, vazio, seria uma contradicção, ao passo que ambicioso vaidoso comprehende-se. Eu podia fazer remontar mes- mo esta significação ao latim, mas os exemplos citados bastam. Agora percebe-se que Camões, quando escreveu

.... essas honras vãas, esse ouro puro Verdadeiro valor não dão á gente: Melhor é merecel-os sem os ter, Que possuil-os sem os merecer,

quis dizer: honras que enchem de vaidade os que as possuem; porque taes honras é que é melhor merece-las sem as ter, do que tè-las sem as me- recer. O ouro puro está exactamente no mesmo caso. Porque é, pois, que o Sr. Gomes de Amo-

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rim se deixou levar da sua phantasia, e não estudou a questão nos termos em que eu a po- nho?

A emenda que o sr. Gomes de Amorim fez na est. 38, do c. II, não a julgo também acertada. Lia-se :

E se torna entre alegre magoada;

o nosso auctor accrescentou um e a alegre, de modo que ficou entre alegre e magoada. A ra- zão que é: «O e deve ter cahido na compo- sição; Camões não fazia o verso sem elle» (Pg. 281). Mas a mim parece-me que o sentido se comprehende bem sem o e, pontuando-se as- sim:

E se torna, entre alegre, magoada. ..

i. é, torna-se magoada entre alegre, fica ao mesmo tempo um tanto alegre, um tanto magoa- da. Não se me objecte que entre precisa de dois termos ; de facto também se diz entre choro- so, entrejino, entrebranco etc. Assim como nós dizemos hoje «F. estava entre choroso», também Camões podia dizer, como disse, que a deusa se torna, entre alegre, magoada.

Na est. 41 tinha Camões, segundo a lingua- gem do seu tempo:

Mas moura em fim nas mãos das brutas gentes, Que pois eu fui . . .

O sr. Amorim altera moura em morra (de

maneira que até fica um cacophaton horrível),

4

e mostra que não entende ^ que pois eu fui. Vamos ao primeiro caso. A razão que s. ex.a para substituir moura é interessantíssima; diz elle: «Se se tratasse de mouras encantadas, ain- da poderia explicar-se o gosto. . . » . Isto parece impossível, mas está escrito a pg. 282. Ora toda a gente sabe que moura e moira são for- mas archaicas correspondentes ao lat. *moriat (=moriatur). Elias, e outras semelhantes, ap- parecem em muitos AA. de boa nota, por exem- plo: Bernaldim Ribeiro, egloga 2.a : «moiro-me assim»; Diogo Bernardes, ''Bom Jesus, ed. 1608, foi. 1 : «que moura aqui por vós», e foi. 3, «de não morrer por elle, mouro agora»; Ferreira, I, 171: «Inda que viva, inda que mouraf>, e 72 «mais mouro, mais vivo»; de Miranda, pg. 246: «que o tempo não quer que moura»; o próprio Camões disse na egloga 2.a, em rima com louro e ouro:

Outra cousa de mi, senão que mouro.

se vê, portanto, que se não tracta de mou- ras encantadas. Vamos agora ao segundo caso. Escreve s. ex.a: «Que pois eu fui. . . é similhan- te ao Quos ego de Virgílio, na Eneida; e uzado com a mais apropriada elegância» (Pg. 282). Não era pouco que o sr. Amorim desconheces- se, como temos visto, o uso do português mo- derno e o uso do português antigo; quanto mais ainda vir também perder-se nas sinuosi- dades do latim! S. ex.a não cita a passagem da Eneida, mas refere-se certamente ao L. I, vv. 133-135:

5i

Iam caelum tcrramque mco sine numine, venti, Miscere, et tantas audetis tollere moles? Quos ego!

Reproduza mos os versos de Camões :

.Mas moura em fim nas mãos das brutas gentes. Que pois eu fui.

Em ambos os casos houve o que em rhe- torica se chama aposiopése (reticencia), mas basta ter leve conhecimento de grammatica para ver que quos é um accusativo. e que por tanto não è comparável ao que camoneano. O sr. Amorim podia, como muitos, não ter en- tendido a íuncção d'este que, a qual não é effecti- vamente clara, mas não devia fazer a compara- ção que fez com o latim. A phrase que pois, ou equivalente, não é única; eu encontrei na elegia III do próprio Camões mais dois casos:

O1 fugitivas ondas, esperae:

Que pois me não levaes em companhia,

Ao menos estas lagrimas levae!

Que pois de todo vive consumida, Porque o mal, que possue se resuma... Imagina na gloria possuida:

D'estes exemplos se que a phrase tem si- gnificação correspondente a que, visto que, etc. Esta minha interpretação coníirma-se ainda de algum modo com os versos dos Lusíadas na estancia antecedente áquella em que está o pois que :

Ora, pois, porque o amo, é maltratado, Quero-lhe querer mal, será guardado.

52

O modo de construir assemelhr. se mais ou me- nos a :

Mas moura emíim nas mãos das brutas gentes, Que pois eu fui...

Quer dizer: Vénus, notando que o p <ovo portu- guês, por ser amado por ella, é maltratado dos deuses, a (firma agora que lhe quer mal, para que o effeito seja também inverso do primeiro, isto é, para que os deuses se mostrem benévolos ; logo depois porém, por uma transição brusca, muito própria de quem está fallando exaltadamente, e com dúvidas acerca do que obterá, exclama despeitada : deixa-lo morrer, que eu fui por consequência... (a causa, etc). Em ultima ana- lyse, que pois pôde até substituir-se pela phrase invertida Pois que, como o leitor facilmente ve- rifica nos exemplos dados acima. E' por isso absurda a comparação com quos ego.

O snr. Amorim não é infeliz nas suas emendas, é-o também nas suas explicações. As- sim, a respeito do verso (est. 42)

Que moveram de um tigre o peito duro

escreve elle : «Que moveram quer dizer que mo- veriam: por exigência do metro, serviu-se da syncope» (Pg. 285. cfr. a errata do vol. I). Syn- copc significa, em grammatica, suppressão ; ora, pergunto eu, que suppressão houve aqui" o sr. Amorim seria capaz de chamar syncope ao emprego syntaxico de uma forma verbal por outra. Mas que triste ideia tem da linguagem

53

quem imagina que um poeta pôde alterar a seu bel-prazer a phrase para obedecer ao metro e á rima! As alterações que se fazem em poesia são de harmonia com o uso ou com a historia da língua; as excepções são muito raras, e ainda assim or- dinariamente por analogia com outras alterações reaes. Nas nossas aulas de português ensina-se a cada passo que, por exemplo, Mavorte, imigo, veloce, inda, esprito, etc, são figuras poéticas. i. é, artifícios para acertar os versos ; mas não ha nada mais falso, e grande desconhe- cimento do assumpto pôde levar a proferir taes heresias : de facto, Mavorte vem de íMavors -ortis; imigo cncontra-se muito na prosa, por ex. em Fernão de Oliveira (Grammaiica, 2.a ed., pg. ii, etc.) ; veloce é um latinismo poético vulgar nos prosadores quinhentistas, por exemplo em Miranda, pg. 418, etc ; inda è a forma anterior de ainda, e hoje emprega-se vulgarmente, do mesmo modo que esprito, que d'antes se empre- gava mesmo em prosa, se emprega hoje com muita frequência no povo. O sr. Amorim per- tence também á cschola velha, e é por isso que no uso corrente de moveram por moveriam não mais do que uma syncope «por exigência do metro» !

Eis aqui mais um exemplo dos processos críticos de s. ex.a. Na mesma est. 42 ha o verso

De modo que d'ali, se se achara

com o qual o sr. Amorim estacou não sei por- quê. O commentario que lhe faz é o seguinte : «Acaso não diria. . . . em vez do que está :

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De modo que se ali se achara OU

E se com ella ali se achara?» (Pg. 283).

Vêem os leitores que o sr. Amorim propõe á vontade uma emenda ou outra, não sem mo- tivo, mas sem invocar nenhum critério. D'esta maneira os Lusíadas podiam ser emendados em todos os versos ; e, ainda mais, quanto ha es- crito podia soffrer refundição. S. ex.a regu- la-se pelo seu ouvido e pelo seu gosto ; ora, como não ha dois gostos nem duas sensibili- dades absolutamente iguaes, segue-se que, des- de o momento em que s. ex.a se decidisse a fazer uma revisão das obras litterarias em geral, alte- raria tudo. E não se cuide que eu exaggéro. O sr. Amorim fez nos Lusíadas mais de quatro- centas e cingoenta emendas ; e não contente com isto propõe ainda que se façam mais du- zentas e duas. Parece incrivel, mas é verdade. Quando isto é para uma obra impressa ha três séculos, em vida do auctor d'ella, que faria se o sr. Amorim tentasse rever as obras da anti- guidade clássica e da idade-media, que che- garam até nós em manuscrito ? Na est. 47 tinha Camões :

Vereis este que agora pressuroso. Por tantos medos o Indo vae buscando.

O sr. Gomes de Amorim alterou o ultimo verso a esta maneira :

Por tantos mares o Indo vae buscando

55

e accresccntou com ar prophetico : «... . para mim, nãoé só' duvidoso, é certo, que deve ler- se mares em vez de medos» (Pg. 286) ; dizendo mais : que Vasco da Gama não era nenhum fracalhão ridículo, nem nenhum fiaspalhão (ve- jam os leitores que linguagem tão conveniente !) que se apavorasse ! Ora foi, exactamente, por elle ter passado além de tudo o que para os homens constituía medo, i. è, perigo, que se re- velou heroe. Bastava ter o sr. Gomes de Amo- rim raciocinado um pouco, para deixar de fazer a estranha alteração que fez. Além d'isso, outras passagens existem no poema que confirmam este modo de expressão. No cant. VI, est. 82, lê-se :

Se tenho novos medos perigosos

Doutra Scylla e Charybdis passados...

Nem com a repetição da palavra se convence o snr. Amorim,— que neste ponto tem também o arrojo inaudito de emendar medos em mares ! E comtudo, o próprio Camões está a encami- nhá-lo, pois no mesmo cant. VI, est. 95, diz:

Por meio d'estes hórridos perigos, D'estes trabalhos graves e temores Alcançam os que são de fama amigos As honras immortaes e gráos maiores...

Aqui não é medos, è temores, mas vê-se que isso nada faz ao caso, em virtude da identidade da ideia. Mas eis outra passagem, que aclara ainda mais a questão, se é possível (c. IX, 16):

56

commettendo os ^uros medos

Do mar incerto

Depois d'esta citação, é impossível que ao sr. Amorim restem dúvidas. Com uma phraseolo- gia semelhante, disse também de Miranda (ed. cit., pg. 546):

E desque bem se afirmava, Saído d'aquelc medo, Contra nós co rosto ledo Em som de cantar tornou.

De um lado o sentido e do outro os textos con- firmam pois a minha censura. Na est. 54 estava :

Levando o idololátra e o moiro preso

e o sr. Gomes de Amorim transtorna assim o verso :

O idolatra levando, e o moiro, preso.

Não contente com substituir idololátra por ido- latra, ainda em cima altera a ordem das pala- vras, e commette a imprudência de accrescen- tar que não idololátra è «mal soante», mas que, «ainda que o esfolem vivo» (!!), não crè que Camões escrevesse tal palavra. O sr. Go- mes de Amorim porfiou em accumular constan- temente contrasensos sobre contrasenso?. e agora não ha que esperar outra cousa, infeliz- mente. A palavra idololátra não tem nada de extraordinário, porque assenta no latim ídolo-

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latria : e que extraordinária podia ella ser na nossa lingua, se nós dizemos a cada passo zoo- latria, astrolalria, litholatria, etc. ? A composi- ção é a mesma : idololatria (idolo-latria) está para ídolo, como astrolatria (astro-latria) para astro, e assim por deante. A palavra idolatra é que é pelo contrário uma forma alterada pela pronúncia. Camões também usa d'clla noutros pontos, mas isso não é motivo para repcllirmos idololatra: do mesmo modo elle usa de Marte e Mavorte, duas formas distinctas, aquella cl<> lat. Mars,-artts, e esta do lat. Mavors^ortis. No citado verso camoneano a pronúncia tem de ser idololatra em vez de idololatra, mas isso é para o nosso caso uma questão secundaria, pois, ao passo que hoje dizemos autôcrata, di- zemos juntamente democrata, quando devia ha- ver conformidade de accentuação. Fica assim demonstrado que a emenda do sr. Amorim 6 infundada, como todas as mais. Na est. 55 tinha Camões:

De modo, filha minha, que de geito Amostrarão esforço mais que humano...

O sr. Gomes de Amorim emenda de geito cm de feito, sem ao menos reparar no cacopha- ton (c?e/è*7o=defeito)! e a razão que é que «de modo que de geito não pode ser de Ca- mões» (Pg. 293). Iftse dixit ! é quanto basta. Mas o poeta não diz de modo que degeito, diz de modo, filha minha, que de geito amostrarão, etc, o que differe, pois que de modo liga o sen-

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tido d'esta estancia com o da antecedente, e de geito modifica amostrarão. Quantas vezes não emprega Camões de geitol Por exemplo (ed. da oA dualidade):

não sabia

Que me senhoreavas cTeste geito. Soneto ioo.

Oh Hippolyto casto, que de geito

De Phedra, tua madrasta, foste amado. Soneto 106.

Se vós me daes a vida ci'este qeito

Nos males que padeço Canção, fag. 10.

A correcção de feito não tem pois nada que a re- conimende.

Na est. 63 (do mesmo c. II) disse Camões :

Gasalhado seguro te daria,

E, para a índia, certa e sabia guia.

O sr. Amorim transformou certa e sabia ^aia em certo e sábio guia, porque «a minha guia, se nos referirmos a homem, é tolice» (Pg. 298). não sei como hei-de commentar o sr. Amo- rim, pois o vejo escrever inconveniências. Se de um homem se não pôde dizer tu és a minha guia, também se não pôde dizer, por ex., João foi uma boa testemunha, e comtudo diz-se! Em- bora hoje mais frequentemente se use de meu guia, em relação ao masculino, todavia minha guia não é tolice, como o sr. Amorim affirma, e tal phrase apparece nos AA ; em ita'.ino a palavra guida, que corresponde á nossa, também é feminina, embora se reíira ao masculino. De mais a mais, se houvesse erro typographico, não

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seria provável que elle se manifestasse logo em duas palavras certa e sabia: quero dizer, se Ca- mões tivesse escrito certo e sábio guia, como o snr. Amorim falsamente suppõe, de gcito o ty- pographo alteraria os dois adjectivos ao mesmo tempo, e então teríamos certa e sábio guia ou certo e sabia guia. Por isto. pelo uso dos outros AA., e pela comparação com testemunha, e com o italiano, fica claramente provado que o texto dos Lusíadas está bem. Xa est. 70 lê-se :

E, como o Gama muito desejasse Piloto para a índia, que buscava,

. . . dizem-lhe todos que tem perto Melinde, onde acharão piloto certo.

O sr. Amorim emendou acharão em achará. porque «o agente d'esta oração é o Gama», e increpa os commentadores e editores que dei- xaram estar como estava. EíTectivamente á pri- meira vista, e a quem ler com pouca attenção. parece que a syntaxe pedia achará; comtudo o sr. Amorim devia notar que Camões, na pri- meira parte da estancia, falia do Gama, e que por tanto põe os verbos naturalmente no singu- lar; e que na ultima parte falia dos .Moiros, relatando o que estes responderam ao capitão português : ora, como o Gama representa toda a armada, claro está que os .Moiros, dirigindo- se-lhe, podiam empregar o verbo no plural, pois tanto o tinham em vista a elle como aos compa-

6o

nheiros também. Assim os versos hão-de enten- der-se d'este modo : «como o Gama desejasse piloto para a índia, os Moiros dizem-lhe todos que [elle e os companheiros] tem (=teem) perto Melinde onde acharão piloto certo». Logo a emenda do sr. Amorim não tem o minimo fun- damento.

Na est. 85 disse Camões:

Louvavam muito o estômago da gente

e o sr. Amorim substitue estômago por animo, e commenta o facto com umas palavras tão gros- seiras e tão insensatas que ate tenho pejo de as transcrever. Bastava o sr. Amorim abrir o 'Vo- cabulário de Bluteau, s. v., que acharia: «Es- tômago no sentido moral : Fulano tem estômago para tudo. Estas coisas não me fazem bom es- tômago», e a phrase da Monarchia Lusitana, I, 189, col. 3 : «A quem esta nova não fez bom es- tômago». Tudo isto também ainda hoje se diz, e no emtanto o sr. Amorim atreve-se a riscar do texto camoneano a palavra estômago ! Com a mesma ordem de ideias se liga a forma fami- liar moderna estomagar-se . Em latim também a palavra stomachus tem o sentido moral de gosto, desejo, alem de outros, e ha nessa lingua, co- mo na nossa, stomachari ; em italiano diz-se con- tro a stomaco (=de vontade) e Jare sto?naco, stomacare, stomacarsi, eg'u ai mente em ac pção moral; em hispanhol estômago «metaphorica- mente se suele usar por valor, resolucionD . diz o Dicc. da Acad. esp.; em francês sestomaqutr

6i

liga-se ainda com a mesma ordem de ideias. O sr. Gomes de Amorim gosta de fechar os olhos á luz da evidencia, e de os abrir entre as sombras do erro.

Na est. 102 escreveu o poeta:

Que ouviu dizer que noutra terra Com gente da sua lei tivesse guerra.

O sr. Amorim substitue tivesse por tivera, e faz a seguinte nota: «Tivesse guerra, lêem to- dos. E' evidente o erro typographico. O poeta deve ter escrito como eu : e não com a falta de syntaxe, que lhe imputam» (Pg. 324). O sr. Amorim não é para meias medidas ; condemna sempre sem appellação. Mas o peor é que o próprio Camões, nas Oitavas, I, pg. 13o. diz:

E ao longe de uma clara e pura fonte Que, em borbulhos nascendo, convidasse Ao doce passarinho, que nos conte Quem da cara consorte o apartasse . .

onde se apartasse em vez de apartara,— o que destroe a affirmação do sr. Gomes de

Amorim.

Na est. 105, onde Camões tinha

As estrellas e o sol der lume ao mundo

o sr. Amorim substituiu lume por luz, porque dar lume quer dizer dar calor, e aqui a ideia é de luz! O sr. Amorim nem ao menos reparou que o verbo alumear, que significa dar luz, vem

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de lume! Com relação a outros textos, basta que eu cite de Miranda (pg. 537):

Dai lume á escura vista, antes á cega... e o próprio Camões (od. xn) :

O ceu desimpedido Mostrava o lume eterno das estrellas . . .

E' também vulgar esta expressão: ter lume tios olhos. Por tanto lume não quer dizer calor. Aqui termino as minhas considerações acerca dos dois primeiros cantos, tendo-me li- mitado, ainda assim, por falta de espaço e de paciência, á discussão dos pontos principaes. Se em dois únicos cantos eu encontrei tantos erros que condemnar, calculam bem agora os leitores o que seria se eu analysasse por inteiro o commentario de todos os dez cantos! .Mas desejo fazer ainda algumas considerações ge- raes, antes de encerrar o meu trabalho.

Um dos factos que mais me impressionou ao ler o corrimento do sr. Amorim foi ver que s. ex.a se serviu constantemente de linguagem pouco em harmonia com a seriedade do assum- pto. Passo por alto o tom geral da Introducção, que tem mais forma de palestra íamiliar, á Cas- tilho, do que de critica bibliologica : mas quero citar algumas phrases avulsas. No voK I. pg. 153:' «só se eu julgasse que Luiz de Camões estava idiota, quando escreveu similhante ver- so... deitar fora esta parvoice, etc». E o que é

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mais para estranhar é que o sr. Amorim não tem nunca por fim depreciar Camões ! A pag. 253 e 280 : «quem tiver pachorra». A pg. 302 : «E foi talvez por isso que o poeta lhe virou os pés para a cabeceira». A pg. 305 : «Quanto ao assi, mando-o passear». A pg. 306 : «... heroes gregos, que não faziam cousa nenhuma sem comesaina». A pg. 315: «Para aggravar a as- neira». «A pg. 326 : «Carecem de cunhas os v. 3 e 5, para não manquejarem, como o auetor [Camões] manquejou de um olho». Nem a des- graça do poeta o commoveu ; antes lhe serviu de pretexto para zombaria ! A pg. 279-280 : «... bem se pôde prometter um doce a quem tirar d'ali uma opinião a limpo». No vol. II, a pg. 40 : «Reduzidos os Lusíadas a esta lingua- gem, teríamos um bom poema saloio». A pg. 125 : «é ridículo, chocho». A pg. 250: ando per- dido no meio de tanta asneira». E assim por deante ; escuso de fazer mais citações fastidio- sas.

Se publico apenas a anályse das notas do cant. I e II dos Lusiadas, não quer isto dizer que eu não percorresse com attenção todas as observações philologicas do sr. Amorim ; mas para critica summária parece-me que basta o que ahi fica. De todas as alterações que o sr. Amorim introduziu no poema, as que me pa- recem menos dignas de censura são as seguin- tes. Trata-se das mulheres que ficavam na praia a clamar á partida de Vasco da Gama ; e lè-se no c. IV, est. 92 :

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Nestas e outras palavras, qi'- diziam Os velhos e os meninos os seguiam...

O sr. Amorim emendou os em as, porque sup- pôs haver referencia directa ás mulheres. Na mesma est. lê-se também :

A branca areia as lagrimas banhavam Que em multidão com ellas se igualavam.

O sr. Amorim substitue ellas por ella, por que- rer que haja concordância com o singular areia, que está antes. No segundo caso creio que o poeta considerou areia como collectivo, tendo antes em vista a pluralidade dos objectos do que o seu conjuncto, e por isso usou de ellas logo adeante, para de algum modo estabelecer conformidade e symetria entre lagrimas e areias, comparadas reciprocamente umas ás outras ; vimos exemplos semelhantes noutros pontos, e eu poderia ainda reunir mais. No primeiro caso, com quanto o rigor syntaxico pareça reclamar effectivamente as, todavia talvez se possa defen- der o texto, interpretando o os como reíerido não ás mulheres que acabavam de gritar, mas também aos homens mencionados na est. 89. Teríamos assim: de um lado, os homens suspi- rando e as mulheres lastimando-se ; do outro, como correspondência, os velhos e os mcnmos a segui-los. Ainda assim, como a minha critica não tem de modo algum por objecto pôr a tractos o sr. Amorim, mas apenas chegar á verdade, devo dizer lealmente que pelo menos a primeira emen-

6«!

da me não parece de todo desacertada, porque é, descrevendo as lamentações das mulheres, que Camões se refere sem interrupção aos velhos e meninos, e porque, com os versos 5.0 e 6.* da est. 89, e o 4.0 da est. 92, a entender que estabelece opposição, de um lado, entre os ho- mens (que suspiravam) e do outro, entre as mulheres («que o temeroso amor mais descon- fiai)) e os velhos e meninos («em quem menos estorço põe a idade») : assim, á firmeza dos va- rões, como serjs mais fortes, oppõe a fraqueza em commum nas mulheres, velhos e creanças.

Em compensação, porém, o sr. Amorim até ás vezes substitue palavras de Camões, genuina- mente portuguesas, por barbarismos; temos um exemplo no cant. VIII, est. 92, onde estava fazenda vendibil, que o nosso auetor transfor- ma em fazenda vendavel ; ora vendavel é um gallicismo (fr. vendable), tanto mais repugnante quanto é certo que temos em bom vernáculo vendível (lat. vendibilis), e que aos verbos da 2/ conjugação não correspondem adjectivos em -avel (só próprios da i.a), mas sim em -ivel (arch. -ibil), como se em temível, crivei, ap- petecivel, etc.

De maneira que o sr. Gomes de Amorim escreveu 2 volumes in-8.°, um de 527 pg., e outro de 455 pg., de que fez mais três edições, em papel Japão. Whatman e pergaminho, e uma edição menor destinada ás escholas (!), de 391 pg. (x), apenas para nos apresentar uma

(*) A' frente cTeste volume esta a seguinte dedicato-

66

única emenda, ou, se quiserem, ouas, que, apesar de não serem totalmente infundadas, são ainda, assim incertas ! Eu percorri attentamente, como disse, todos os commentarios linguisticos do sr. Amorim; pois, com excepção do que deixo dito, não julgo acceitavel nem uma das emendas que s. ex.a propõe. Aquellas mesmas que s. ex.* sup- porá intuitivas, como algido medo em vez de alegre medo (IV, 26) (*), caminha em vez de ca- minham (VII, 45) (3), aguas túmidas cm vez de aguas húmidas (VIII, 48) (3), porque os mandou em vez de porque mandou (X, 144) (4), c todas as outras, podem refutar-se com os textos. Uma edição critica dos Lusiadas não consiste em os

ria : «Ao povo e á juventude das escholas : a mais correcta edição que até agora se fez dos Lusiadas». Ficaria con- soantemente a verdade se se dissesse incorrecta em vez de correcta. Mas o que eu mais admiro éo arrojo do dedicante. (!) Camões empregou aqui alegre correspondente- mente ao latim alacris (ou alacer), no sentido de agitado, vivo, etc, e não no sentido de contente. Poderia alguém citar-me também o c. IX, 16, onde o poeta diz: os duros medos timidos e ledos; mas aqui vê-se que elle quis estabe- lecer antithese : medos (=perigos), ora timidos, ora ledos. Pelo menos é o que a mim me parece.

(2) No caso presente a construcção syntactica é aná- loga á que se observa em outras passagens do poema.

(3) Vid. também húmido rocio em G. P. de Castro, II, 48. Os pleonasmos semelhantes abundam cm Camões, por ex. : escura treva (quando falia do Velloso), etc.

(4) Aqui mandou está dito de modo geral : cfr. também o adagio: quem quer voe, quem não quer. manda. Camões naquella passagem, quando diz que o Rei mandou. quer dizer que elle soube mandar, soube ser Rei.

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corrigir, pondo melhor o que se considerar como mau, mas em restituir a forma primitiva do poema. se que Camões não foi sempre impeccavel ; comtudo não é a nós que pertence faze-lo dizer o que elle realmente não quis ou não pôde dizer. Na opinião do sr. Amorim as primeiras edições dos Lusíadas sahiriam do prelo pouco mais ou menos como o que em lin- guagem typographica se chama uma prova de granel ou de galeão, e s. ex.a trata, a todo o panno, de rever e corrigir essa prova miserável: no emtanto, muito hábeis e sabedores eram os typographos, que sempre os seus erros se po- dem justificar com passagens dos principaes mestres da lingua !

O sr. Gomes de Amorim tem ainda meio de attenuar o passo que deu, meio que eu me atrevo a lembrar: é recolher, e inutilisa-los, todos os exemplares que andam no mercado. Com relação ás escholas, de certo os respecti- vos inspectores impedirão que tão desnaturada obra penetre, pelo menos ofricialmente.

O sr. Amorim nem sempre aproveitou ou discutiu certas emendas feitas pelos seus an- tecessores, como eu podia provar ; outras vezes como suas (embora por lapso) alterações propostas, por ex. no c. III, est. 113, meio mortos, que se lê, e também erradamente (se- gundo penso) na ed. da Actualidade ; e no c. X, est. 5, trocavam, adoptada na ed. do sr. F. A. Coelho.

Uma vantagem que creio tem a obra do sr. Amorim (vantagem indirecta) é provar-nos que

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mesmo para aquelles indivíduos habituados a lidar com as letras, como s. ex.8, algumas pas- sagens dos Lusíadas sufficientemente claras pas- sam no emtanto por obscuras, d'ondc a ne- cessidade de que alguém faça d'aquelle poema uma edição critica e seriamente commentada, como ella o deve ser nesta epocha em que a Philologia está num grau de tanto progresso. A edição que o sr. prof. F. Adolpho Coelho nos deu em 1880 (do Gabinete Português de Leitura, do Rio de Janeiro) vem acompanha- da de um breve glossário inspirado nas pres- cripções do novo methodo philologico (*).

Ao terminar a minha critica, o que eu de todo o coração desejava era que o Sr. Amorim se convencesse de que me não animou, ao fa- zê-la, o gosto de dizer mal, e sim unicamente o de exercer um direito que tem todo e qualquer leitor ao acabar de percorrer uma obra com cujas idéas não concorda, por possuir argu- mentos com que as rebater, e por as julgar no- civas; só lamento que s. ex.* pusesse a sua boa vontade e sincero enthusiasmo, que eu sem dúvida alguma a reconheço, ao serviço de uma causa irremediavelmente perdida.

Muitos leitores acharão por ventura esta crítica um pouco pesada, e quereriam que eu

(*) Com relação a outras obras de Camões de 1 citar aqui as muito apreciáveis criticas da sr.a D. Carolina Mi- chaelis de Vasconcellos. E1 também para lembrar o traba- lho allemão de Storck. Isto que digo não tem por lim lan- çar no olvido estudos como o de Juromcnha e de outros.

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me espraiasse antes em considerações philoso- phicas; mas responder-lhes-hei que, sem a aná- lyse dos factos, todo o trabalho de synthese é nullo. Efectivamente em Portugal os escrito- res moços, e muitos mesmo dos que o não são, preoccupam-se o seu lanto com as chama- das— altas questões syntheticas, e sorriem des- denhosos dos que, antes de chegar a ellas, e sem ter pressa d'isso. querem primeiro fortiíi- car-se com a investigação miúda e parciente dos materiaes ; mas isto não é porque entre nós abundem as naturezas philosophicas, é por que sae muitíssimo mais barato aprender gene- ralidades banaes e dissertar pomposamente so- bre ellas, embora o primeiro raciocínio seguro que se lhes opponha as reduza a pó, do que estudar com sinceridade e a fundo qualquer questão. Resulta d'aqui que, emquanto nós gas- tamos a maior parte do tempo com folhetins e obras de phantasia, vem os estrangeiros inves- tigar os materiaes que temos, e que nós de- víamos ser os primeiros a explorar: tanto suc- cede isto com as sciencias históricas, como com as sciencias naturaes.

Farei agora um resumo da critica. Parece- me ter demonstrado o seguinte :

i.°) que as bases em que o sr. Amorim assenta a sua edição são falsas ;

2.0) que o snr. Amorim não tem conheci- mento sufficiente, quer do idioma, quer da mé- trica do tempo de Camões, nem comprehende bem o que é a vida da linguagem em geral ;

3.0) que não raro s. ex.a deixa de entender

o sentido de muitas passagem importantes dos Lusíadas, não quando a respectiva lingua- gem reveste forma archaica, como também quan- do se aproxima do uso moderno ;

4.0) que, como consequência de tudo isto, a presente obra está cheia de contradições ;

5.0) e de erros grosseiros que illudirão com- pletamente quem a ler desprevenido ;

6.°) finalmente, que á própria linguagem do commentador falta aquella gravidade que se quer em trabalhos didácticos como este.

Apesar de tudo, porém, houve em Por- tugal, e até nesta corte, jornaes que tesseram francos e rasgados elogios á obra do snr. Go- mes de Amorim !

Lisboa, i7-8-°9-

ERRATAS

A pag. 25, linha 23, o verso

Sós, fizeram, por armas vencedoras deve lêr-se assim:

Sós, fizeram, por armas tão subidos A. pag 68, linha 24, em vez de a duvida algu- ma a reconheço,,, deve lêr-se «duvida algumas reco- nheço»

ALGUMAS OBRAS

DE

J. LEITE DE VASCONCELLOS

Tradições populares de Portugal. Esta obra comprehende os seguintes capítulos: 1 Os astros. n Fogo, luz <■ sombras. 111 .1 atmosphera. IV A agua. v A terra. vi As pearas.— yu Os metaes, vi 1 1 Os vege- taes. ix Os animaes. x 0 homem e a mu- lher.— xi Seres sobrenaturaes. I vol. xv 320 pag., Porto 1882 . . . 500 rs.

Ânnuario para o estudo das tradições populares portuguesas (eollaborado por todos os especialistas de Portugal), iv —90 pag., Porto 1882 . . ylOO rs.

O dialecto mirandês (premiado em con- curso pela Sociedade das línguas români- cas de França), 40 pag., Porto 1882 . . . 300 rs.

Flores miraudesas (texto em mirandês, com notas phiíòlogicas e vocabulário), 40 pag., Porto 1884. .. im rs.

Estudo etnographico (acerca da ornamenf tacão dos jugos e cangas dos buis no Ln- tre-Douro-e-Minho, —com estampas), 18 pag., Porto 1881 200 rs.

VorliHjal prehistprico (vol. da Bibliolhe-

cu do povo e dos escholas), Lisboa 1885 . . •~>,) rs.

Romanceiro português (vol. da mesma

BibliolhccuJ, Lisboa 1886 50 rs.

Bailadas do occiílcnte. Este vol. de ver- sos divide-se em três livros: i Lyrismo, n Epopeia e m Dritmn, 342 pág., Porto 1885. 500 rs.

Diccionárío <la chorographia de Por- tugal, Porto 1884 500 rs.

A philologia portuguesa. 57 ffeg. Lisboa

isss 200 rs.

Poesia amorosa do povo português. Breve estudo e collecção de 144 pag., Lis- boa 1890 400 rs.

Reyista Lusitana (philologia e etimologia i, col laborada por muitos especialistas por- tugueses e estrangeiros. Preço do l.° vol. 2£000 rs ( ) 2." vol. esta no prelo.

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