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POESIA AMOROSA DO POVO PORTUGUÊS

POESIA

AMOROSA

DO

POVO PORTUGUÊS

BREVE ESTUDO E COLLECÇÂO

POR

J. Leite de Vasconcellos

Medico, professor na Bibliotheca Nacional de Lisboa, conservador da mesma Bibliotheca, e redactor da Revista Lusitana

Lisboa

Viuva Berirand L C.^ Successores Carvalho k C

73, Rua Garrett, 75 1890

AO MEU PREZADO TIO PATERNO

^nt^íniíí ^^iu 4^uúm ft^mi^ M %t\u

Em lembrança da muita gratidão que lhe devo

Typ. do Instituto Geographico Portuguez

Palácio de Santo Amaro Alcântara

Prologo

o presente volume tem duas partes: na primeira faço algumas observações geraes sobre a natureza, forma e importância da poesia lyrica do nosso povo, juntando ao mesmo tempo várias indicações bibliogra- phico-criticas; na segunda ofFereço aos lei- tores uma collecção selecta de cantigas de amor, dispostas por ordem.

Reconheço que a primeira parte está muito incompleta, porque não tratei de to- das as questões que o assumpto envolve; mas não me accuse por isto a critica, pois, tendo sido primitivamente destinado este livro a fazer parte de uma collecção de volu- mes de numero de paginas fixo, (na qual po- rém não chegou a sahir), e tencionando eu

ainda voltar a occupar-me detidamente d'esta matéria, quando o seguimento dos meus es- tudos m'o permittisse, limitei-me a apresen- tar algumas considerações com que eu mos- trasse a leitores menos práticos como de da- dos na apparencia tão humildes e vulgares, quaes são as cantigas que toda a gente canta, se pode fazer assumpto sério de uma disser- tação scientifica.

Com relação á segunda parte, escusado será dizer que toda essa coUecção foi feita com escrupulosa fidelidade; apenas na transcripção não obedeci geralmente á pro- nuncia popular, e tratei quasi de represen- tar os vocábulos com a orthographia usual, para assim a leitura ser mais agradável ao commum das pessoas. Essa transcripção pho- netica rigorosa reservo-a eu para outros tra- balhos de caracter mais restricto, e mais accentuadamente philologicos do que este.

Lisboa, 1 887-1 >

PRIMEIRA PARTE

Algumas observações geraes

§ 1." Natureza da poesia popular

A poesia em geral. A poesia popular portuguesa. O amor nas can- tigas do povo. Subjectividade e objectividade do sentimento.

A poesia é uma necessidade da alma. Se, pela Índole dos assumptos de que trata, ella pôde ser um instrumento do Progresso, e é em todo o caso um documento da intelligencia humana, pela sua forma, em que o rythmo se allia á vivacidade e exuberância do estylo, é um dos melhores meios de expressão das emoções : por isso ella deve collocar-se entre a linguagem ordinária e a musica. A linguagem fallada não faz apenas as vezes de um simples apparelho-registador das idéas : modificada pelas diversas qualidades da voz, timbre, al- tura, força, velocidade; auxiliada pelos gestos.

IO POESIA AMOROSA

que variam muito segundo os povos e as cir- cumstancias, ella serve em alto grau também para traduzir, como a musica, os sentimentos, porque os sentimentos, num momento dado, põem em jogo a actividade muscular, e a lin- guagem em ultima analyse reduz-se a modali- dades de movimento de músculos.

Todos somos pois artistas, em maior ou menor escala; na alma de cada um existe sem- pre uma corda que vibra sob a influencia de determinados estimulos. E o verdadeiro poeta, na accepção usual do vocábulo, não constitue um ser á parte, extraordinário e sobrenatural: distingue-se somente por ter um systema ner- voso mais impressionavel, em certo sentido, do que o restante dos homens, mas obedece, como estes, ás condições mesologicas, que actuam fatalmente nelle, dirigindo-o, educan- do-©, transformando-o.

Para se encontrar poesia perfeita, não é pre- ciso folhear os grandes poemas, essas conce- pções ora arrojadas, ora delicadissimas, que são a gloria e o orgulho das litteraturas : basta interrogar o povo.

Não ha povo sem poesia. Paliando especial- mente do nosso: apparece nelle um rico thc- souro, de que com este livrinho se tem em vista dar uma pequena amostra no que res- peita principalmente á poesia do amor.

Essa poesia amorosa d vivamente sentida, cm-

DO POVO PORTUGUÊS II

bora os sentimentos que traduz sejam em geral simples, vagos, quasi os elementares : a sym- pathia deante de uma mulher formosa, que se descreve a largos traços, com dois adjectivos vibrantes e duas comparações ; depois o des- pontar da paixão, e a incerteza em que se está de se ser ou não correspondido; vem finalmente o desejado sun, o poeta todo se perturba, mas nuns desejos innocentes e cas- tos, contentando-se ás vezes apenas com a ninharia de um abraço ou de um beijo.

Depois da certeza da correspondência da paixão, apparecem as mil peripécias de todo o namoro: as entrevistas na fonte, que é nas al- deias o ponto de reunião obrigado das moças á tardinha^ as idas ás romarias; os olhares na igreja durante a missa-, as cartas, os anneis e ramos que mutuamente se dão ; os gargarejos ao luar; outras vezes as perplexidades, filhas do acanhamento, da intensidade da paixão, que, assim como ás vezes leva aos maiores arrebatamentos, também não raro contém mudos, extáticos, um deante do outro, dois corações que se amam.

De tudo isso se encontram numerosos e VIVOS espécimens nas nossas canções popu- lares.

Em seguida ao idyllio surgem os arrufos, motivados pelas pieguices d'elle ou pelos ca- prichos d*ella: não ha ironia que não se joguem,

I 2 POESIA AMOROSA

nome feio que se não dirijam. São dois gatos assanhados : passam um pelo outro como se se não vissem, fingem que se não olham, estão verdadeiramente despeitados. Quem viu aquel- les corações outr'ora em fogo, agora mais frios do que o gelo ! um homem fiar-se nas juras de uma mulher... uma mulher entregar o cofre dos seus affectos aos sarcas- mos de um homem. . .

Aquella menina pensa Que não ha outra no mundo. Não é o poço tão alto,

Que se lhe não ache fundo !

Cuidavas, por me deixares, Que eu cortava o meu cabello ; Mas cada vez mais penteada Me hei-de vestir de vermelho . . .

Comtudo, ira amanthim furor brevis. Os arrufos vão-se prolongando; o coração não pôde com a saudade, estala de mágoa, e eis que se desata em lamentos intensíssimos, que mais parece feito de lagrimas, do que de fibras musculares. Gomo o povo é triste! Quando elle vibra a lyra da dor, é que o seu estro se acha mais á vontade. As poesias mais senti- das d'este volume são exactamente as que ser- vem de expressão á tristeza.

A ordem que segui na disposição das can-

DO POVO PORTUGUÊS l3

tigas foi pois esta: uma pequena introducçao ao assumpto (prelúdio)-, as esperanças; os ar- rufos; os desalentos.

O nosso povo nas suas quadras amorosas não canta em geral o trabalho, os encantos domésticos, o lar com as creanças em volta; não é nada pratico, é todo idealista, mas de um idealismo puro, em que paira o amor na sua essência prima, platonicamente. Se qui- zermos conhecer completamente a sua vida moral, os seus usos, superstições e crenças, a sua lucta pela existência, temos de recorrer aos outros géneros poéticos, que nestes de longe em longe apparece uma allusão rápida ; tudo vem como incidente, e não como fim. Parece que o povo não ama para constituir familia, propagar a espécie, e sim unicamente para satisfazer o vácuo da sua alma, ou as im- pulsões momentâneas do ser physico; ama para amar, não tem outra ambição.

Habituado a ver o seu eu em toda a parte, e a julgar o exterior por si, o povo personi- fica a Natureza a cada passo nas cantigas : invoca os astros, os rios, os montes, os valles; attribue ás flores uma vida como a d'elle, identifica com ellas a pessoa amada, e con- ta-lhes os soffrimentos e segredos próprios-, convive com os animaes, chama pelos peixes, falia familiarmente aos bois, e ás horas mor- tas da noite dirige-se assim ao rouxinol :

14 POESIA AMOROSA

Rouxinol das pennas de ouro, Deixa a baga do loureiro, Deixa dormir a menina Que está no somno primeiro.

A Natureza toda é um grande scenario de que se elle aproveita quando precisa.

O artista e o ethnologo, que se encarre- gassem de coordenar, em um quadro seguido, todos esses retalhos do coração do nosso po- vo, fariam um rico monumento ao mesmo tem- po esthetico e artistico.

-^^^ § 2." Morphologia das cantigas populares

Razão dl belleza das cantigas. O que é poesia collectiva. Forma das cantigas. Desafios dos cantadores. Improvisos, descantes. Dichotomia das quadras (antilhese, comparação, absorpcão; obscu- recimento gradual do sentido, obscurecimento total). As variantes. As repetições. Espécies de rima. O cancioneiro liispanhol e o português. O metro. —A estrophe. Phonetica das cantigas populares.

Se do assumpto passamos á forma, que na- turalidade e graça no dizer!

Não se encontra, ou raro se encontrará, um verso forçado, uma inversão anormal ; quanto se exprime em verso, tudo se podia exprimir quasi pelo mesmo modo em prosa.

As cantigas populares oííerecem ordinaria- mente uma extraordinária belleza, o que se deve a serem ellas pela maior parte antiquis-

DO POVO PORTUGUÊS I5

simas e terem corrido umas poucas de gera- ções, que, á proporção que as vão cantando, as vão sempre amoldando aos próprios senti- mentos, e aperfeiçoando, como um seixo rolado pelas aguas, que a pouco e pouco se torna mais polido e luzidio. Este processo de modificação observa-se bem em certas poesias de auctor conhecido, as quaes, passando para a boca do povo, logo se alteram consoante alguns dos principios indicados. A linguagem litteraria, quando passa para o povo, também se modifica, porque fica em condições mesolo- gicas diversas das que tinha.

O que se com a forma, dá-se ao mesmo tempo com a idéa. Pois não é para notar o facto de o povo analphabeto e rude exprimir poeticamente sentimentos tão delicados como os que por toda a presente coUecção se encon- tram? Eu disse a cima que todos esses sen- timentos erão simples: a saudade, a dor, o enfado, etc. Ora nós nos próprios animaes os vemos ás vezes; por isso não se deve estra- nhar que no povo, em um ou outro individuo de systema nervoso mais impressionavel, elles appareçam muito vivos; depois as quadras, correndo de boca em boca, purificam-se ainda mais, como com relação á forma, e chegam a alto grau de perfeição.

Assim se refuta triumphantemente a opinião d'aquelles que dizem que no povo bruto e igno-

i6

POE . AMOROSA

rante não pode ha r cousa aproveitável, di- gna de figurar ao h d das producçÕes dos lit- teratos. TaJ opiniãc í filha de completa falta de observação; re^ ta de ignorância ainda maior que a do pro io povo.

Embora as cançõ tenham origem num individuo, ellas depo soífrem a collaboraçãode todos, e é neste ser do que se chamam poe- sia collectiva, pois n > se pode comprehender que na origem se jur .ssem uns poucos de in- divíduos e ao mesm tempo as compuzessem, como alguns philosc hos absurdamente sup- puzeram que succed a a respeito da creação da linguagem. Se uvc canção individual é efe- ctivamente rude de rma e tosca de sentido, a canção collectiva p ie não apresentar esses defeitos, porque nem odos os individuos pen- sam do mesmo mod ou tem aptidões esthe- ticas e sentimentos uaes, e assim introdu- zem lentamente no p dueto primitivo as mo- dificações que mais t de lhe dão um aspecto novo, muito superior o primeiro. Este espi- rito collectivo é o q ; os allemães chamam Allgeist e Volkgeist, ( tem merecido estudos profundos da parte 2 alguns pensadores, como por exemplo L :arus e Steinthal, que, com a fundação da Z tschrift fúr Volkerysf- chologie und Spraclnvi znchaft em 1859, abri- ram á sciencia can iho novo, estudando a poesia popular, a igem dos mythos, o

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l6 POESIA AMOROSA

rante não pôde haver cousa aproveitável, di- gna de figurar ao lado das producçÕes dos lit- teratos. Tal opinião é filha de completa falta de observação; resulta de ignorância ainda maior que a do próprio povo.

Embora as canções tenham origem num individuo, ellas depois soífrem a coUaboração de todos, e é neste sentido que se chamam poe- sia collectiva, pois não se pode comprehender que na origem se juntassem uns poucos de m- dividuos e ao mesmo tempo as compuzessem, como alguns philosophos absurdamente sup- puzeram que succedêra a respeito da creação da linguagem. Se uma canção individual é effe- ctivamente rude de forma e tosca de sentido, a canção coUectiva pode não apresentar esses defeitos, porque nem todos os individuos pen- sam do mesmo modo ou tem aptidões esthe- ticas e sentimentos iguaes, e assim introdu- zem lentamente no producto primitivo as mo- dificações que mais tarde lhe dão um aspecto novo, muito superior ao primeiro. Este espi- rito collectivo é o que os allemães chamam Allgeist e Volkgeist, e tem merecido estudos profundos da parte de alguns pensadores, como por exemplo Lazarus e Steinthal, que, com a fundação da Zeitschrift fiir Volkerpsj- chologie imd Spraduvissenchaft em 1859, abri- ram á sciencia caminho novo, estudando a poesia popular, a origem dos mythos, o

DO POVO PORTUGUÊS

desenvolvimento da linguagem, todas essas formas espontâneas da actividade psychologi- ca. A collectividade não é uma simples aggre- gação de individualidades: estas unindo-se, adquirem certos caracteres novos que merecem um estudo á parte, que constitue o objecto da Psychologia etimológica, ou Demopsychologia, ainda no que respeita ás cousas portuguesas muito atrasada.

A poesia do povo é de natureza emi- nentemente apaixonada. Herbart explica esta natureza dizendo que a falta de educação in- tellectual faz com que as ideias que ficam isoladas actuem mais fortemente de per si e despertem apenas aquellas com que ellas se podem facilmente combinar. O nosso povo absorve-se todo na paixão: a sua poesia não tem nada de descriptiva, é unicamente dramá- tica; o geral das quadras são apostrophes vio- lentas. Assim a poesia adquire mais vida, por mais directa. A Natureza apparece nellas quasi sempre a titulo de comparação ou fixação de ideias-, o povo não narra situações, apresen- ta-as de cara. Isto está em harmonia com o que se passa na linguagem quotidiana: os nos- sos aldeões, quando estão conversando ou dan- do algum recado, servem-sc de ordinário do discurso directo e quasi nunca do indirecto; as phrases que nos querem transmittir de ou- tra pessoa são repetidas ipsís verbis, pondo

POESIA AMOROSA 2

POESIA AMOROSA

deante de nós essa pessoa a fallar. assim imaginam que se exprimem com clareza. Na- turezas eífectivas, onde a intelligencia é sup- plantada pelo sentimento, elles não sabem contar^ e sim somente pintar ao vivo.

As situações dramáticas da nossa poesia popular encontram a mais completa represen- tação nos desafios.

O verdadeiro desafio é aquelle que se rea- lisa entre dois cantadores^ que para isso, em algumas aldeias do Minho por exemplo, são rogados e assalariados, e nesse caso as can- tigas offerecem o cunho do improviso; no em- tanto o povo sabe de cór inúmeras qua- dras próprias para desafios, que são antigas e por isso muito correctas. Convém ter pre- sente ao espirito esta distincção, que é funda- mental para o perfeito conhecimento da litte- ratura vulgar. Os desafios realisam-se de or- dinário no fim de uma festa de igreja ou de qualquer divertimento profano, como eu tenho observado. Não posso transcrever aqui nenhumas quadras improvisadas, colhidas em flagrante, mas dou algumas tradicionaes.

Estas são do concelho de Paredes :

Tu de e cu de cá, Dois ouriços numa cesta: Nunca venceste demanda, Nem agora vences esta.

DO POVO PORTUGUÊS I9

Tu de e eu de cá, Pelo meio vae o rio: Muito hade ter que ver Este nosso desafio ...

Se eu soubera tu que vinhas, Antoninho carpinteiro, Tinha-te a casa varrida

Cum raminho de pinheiro.

Os cantadores vão passando de assumpto para assumpto, ao capricho da phantasia. Torna-se notável nestes desafios a sátira pes- soal e ás vezes fina ou mordente que o can- tador dirige á cantadeira.

As seguintes foram colhidas em Tras-os- Montes como sendo cantigas ao desafio; quasi constituem "um romance:

O mentrasto é cuidoso, Vós bem cuidado me daes; Bem pensei, minha menina, Que vós me queríeis mais.

Eu. . . querer- vos bem vos quero, Da raiz do coração,

Mas não quero, nem por quanto. Que me vós ponhaes a mão.

Eu a mão não vo-la ponho. Nem sequer bulo comvoscoj d'estar á vossa beira, Nisso faço grande gosto.

POESIA AMOROSA

Bello gosto e prazer. . . Venho aqui por vida nossa: Esta rosa que aqui vedes, EUa é d'outro, não é vossa.

Se ella é de outro, não é minha, Ainda espero de o ser. . .

chamar o padre cura. Que nos venha arreceber.

Falle baixo, não acorde

O meu pae que está a dormir, Tenha muita cautellinha, Porque elle pode vir. . .

Se elle vier, eu aqui

Meu sogro lh'hei-de chamar. . .

Eu sou rapariga nova, Casa não sei governar.

Outras ainda mais novas São casadas, tem marido: Também vós, minha menina. Podereis casar comigo.

as cantigas improvisadas na occasião não são geralmente tão perfeitas; falta-lhes ainda o retoque que o povo em commum lhes pode dar, apresentam apenas o pensamento indivi- dual, mal definido e incorrectamente enunciado no repente do desafio.

No nosso povo ha diversos improvisadores, que apparecem não nos desafios como nos descantes. No meu cAfinuario das tradições po-

DO POVO PORTUGUÊS 21

pulares portugue:{as^ Porto 1882, pag. 40-46, publiquei umas notas sobre o^ poetas populares portugueses (e improvisadores).

As cantigas nos descantes são cantadas ao som de musica. Um descante^ na Beira-Alta, é um ajuntamento de povo que geralmente dança a chula ao som da rabeca, da viola, dos fèrrinhos e do bombo. Quem canta é o da vio- la ou alguém de fora. O povo estende-se em duas alas parallelas, uma de rapazes, outra de mulheres; ao fim a musica. Vão assim dan- çando e andando por toda a povoação.

A poesia popular acompanha o povo em todos os actos da vida, embora as cantigas sejão muitas vezes as mesmas. Ha apenas al- gumas secções especiaes: as poesias do ber- ço, as poesias sagradas, etc. O que mais ordi- nariamente se canta são poesias de amor.

O pensamento de cada quadra é em geral muito simples, como a alma que o enuncia ; por isso a canção precisa de ter principalmen- te forma, e esta adquire-se com uma antime- tabole vulgar, uma repetição, um trocadilho, uma palavra onomatopaica ás vezes sem sen- tido,— o que tudo se na linguagem fami- liar, de que a poesia popular não é senão uma variante especial.

Grandissimo número de cantigas tem duas partes morphologicamente distinctas : uma, constituida pelos dois primeiros versos; a

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POESIA AMOROSA

outra, pelos dois últimos. A distincção ap- parece muito nitida em certas comparações e antitheses, menos exacta noutros casos. O pri- meiro grupo encerra ordinariamente um sen- tido geral, tirado quasi sempre das cousas natu- raes; o segundo, um sentido particular, com applicação a dado facto. Exemplos:

^ A oliveira pequena \ Que azeite pôde dar ?

{ Sou filha d'um homem pobre, \ Que amores posso tomar ?

Quem quizer que a relva cresça, Ponha-a no alto vallado;

, Quem quizer o amor firme, Traga-o bem 'scandalisado.

(i A rosa, para ser rosa, / Deve ser d'AIexandria ;

l A mulher p'ra ser mulher, \ Deve-se chamar Maria.

I Delicado é o fumo

( Que passa a telha dobrada;

\ Delicados são os olhos

/ Que namoram por pancada.

^Inda que o lume se apague, ÍNa cinza fica o calor;

\Inda que o amor s'ausente, ( No coração fica a dôr.

I Candeia que não luz ( Não se espeta na parede ;

( O amor que não é firme / Não se taz mais caso d'elle.

É facillimo em cada uma destas cantigas estabelecer a comparação (noutras a antithe- se) entre o primeiro grupo de dois versos e o segundo. Por exemplo na primeira quadra te- mos: asswi como a oliveira pequena não a:[eite^ assim eUj que sou filha de um pobre, não posso aspirar a grandes amores.

O primeiro grupo é uma espécie de logar commum em que a Musa se fixa antes de sol- tar o seu voo, que constitue o segundo.

DO POVO PORTUGUÊS 23

Uma vez ou outra a dichotomia não é muito regular, como neste exemplo :

O amor é forte e não quebra, O rio corre e não cança : Quem me dera adivinhar Se me trazes na lembrança !

não é regular no pensamento; todavia o povo faz ' sempre pausa no segundo verso, o que prova que elle tem consciência da divisão mor- phologica. Este facto é importante, porque, como se sabe, em várias litteraturas os disti- cos (estrophes de dois versos) resultam do desdobramento de uma quadra, cada dois ver- sos da qual deu um d'aquelles.

As vezes a comparação é tão completa, que chega a ser absorpção (imagem), como nesta conceituosissima cantiga em que a mu- lher amada, mas inaccessivel, se identifica com uma flor:

Oh que linda rosa branca Aquella roseira tem ! Debaixo ninguém lhe chega, cima não vai ninguém.

Neste caso, a absorpção dos dois termos da comparação (a mulher e a jlòr) podia ser tal- vez em algumas situações especiaes motivada

24 POESIA AMOROSA

pelo nome próprio Rosa^ vindo assim a qua- dra, pela sua forma, a tornar-se um trocadi- lho, como o povo usa muito e se mais nes- tes exemplos:

o papel com que te escrevo Se eu soubesse que, voando,

Sae-me da palma da máo. Alcançava o que desejo,

A tinta sae-me dos olhos. Mandava fazer as asas,

A penna do coração. Que as pennas são de sobejo.

Se os passarinhos vendessem Náo ha flor como o suspiro

As pennas que Deus lhe deu. Para minha estimação:

Eu também vendia as minhas, Todas as flores se vendem.

Que ninguém tem mais do que eu 1 os suspiros se dão ! (i)

Na cantiga i.^ o equivoco resulta da ho- mophonia QntVQ penna de escrever q pena (sen- timento), e na 2.'' e 3.^ entre pena (senti- mento) e penna de ave; o povo regula-se pelo ouvido, e é por isso que para os olhos as can- tigas não são tão bellas, pois cada uma das palavras tem a sua orthographia. Na cantiga 4."^ o equivoco resulta da homophonia entre suspiro (flor) e suspiro (acto respiratório), bem como do facto de a gente dizer ordinariamente dar mn suspiro em vez de suspirar; quem não estiver bem ao íacto da linguagem vulgar não percebe a fina delicadeza d'estese semelhantes versos.

Eis mais alguns exemplos de absorpção:

(i) Vid. mais exemplos de trocadilhos em Th. Braga, Cancioneiro popular (Porto 18G7), pag. 69, 74 e 128, e em Adelino das Neves, Musicas e canções, pag. 32, 41 e 90.

DO POVO PORTUGUÊS

1. Anda comigo, ó rosa, Deixa ficar a roseira, Andarás p'r ond'eu andar, Serás minha companheira.

2. Rosa que estás na roseira, Fechadinha no botão, Deixa-te 'star, ó rosa, Que te procurarão.

3. Minha mãe é uma rosa, Eu sou filha da roseira : Nunca me apartarei d'ella, Inda que a vontade queira.

4. O ladrão do negro melro Toda a noite assobiou; Pela fresca madrugada. Bateu as asas, voou.

5. O ladrão do negro melro Onde foi fazer o ninho ! pVós lados de Vianna,

No mais baixo pinheirinho.

6. Silva verde, não me prendas. Olha que me não seguras, Olha que tenho quebrado Outras algemas mais duras.

7. Silva verde, não me prendas, Que não tenho quem me corte; Não sejas tu, silva verde,

A causa da minha morte.

20 POESIA AMOROSA

8. Quem quer vender, que eu compro, Um limão por um vintém, Para tirdr uma nódoa Que o meu corarão tem ?

Nas cantigas i/, 2.^ e 3^ a imagem pode resultar ainda do nome Rosa^ que é popularis- simo entre nós; nas cantigas 4.^ e 5.^ ha identificação entre o melro e o rapa:^ vadio ou inconstante, o que se observa ainda noutras canções em que entram aves (i).Nas cantigas 6/ e 7.^5 onde o símile é feito entre a silva e o amor^ que, como ella, também prende, pode ao repente parecer que o appellido vulgaris- simo Silva deu causa a esse símile^ mas as cantigas populares não costumam ser feitas a appellidos e sim a nomes próprios, pois- que o povo de ordinário, no seu tracto fami- liar, não emprega também os appellidos, e prefere servir-se de uma alcunha frisante a servir-se de um appellido, como se assim simplificasse e ao mesmo tempo vivificasse o seu dizer, e como se o nome, por ser imposto no baptismo, e tirado de um santo, tivesse por isso um certo caracter sagrado que o fizesse usar de preferencia a outro (2). Na cant. 8.^

(i) Vid. por ex. as minhas Trad. pop. de Portugal, pag. 161, a respeito do rouxinol.

(2) Com o fim de fixar melhor as ideias, o povo per- sonifica-se a cada passo nas cantigas ; alguns dos nomes mais vulgares, como Manoel, José, António, João, Maria,

DO POVO PORTUGUÊS 27

a nódoa do coração é a mágoa que o cantador sente.

Nas cantigas transcriptas ha pois mais do que simples allegorias.

Ainda que umas vezes a comparação é per- feitamente clara, embora quasi nunca introdu-

Anna, Rosa, andam sempre na balda, conforme as cir cumstancias.

O Diabo leve os homens António, meu oratório,

Enfiados num cordel ; Espelho do meu vestir ;

O primeiro seja António, Quem tem amores com António

O segando Manoel. Vae ao ceu e torna a vir.

Fui á fonte com Maria, Chamaste me triste, triste

Encontrei-me com Manoel, Como a folha do limão ;

Foi a coisa como eu queria, Eu sou triste para ti,

Cahiu a sopa no mel. Alegre para João.

José amo, José quero, Maria, minha Maria,

José trago no sentido ; Meu rosário, meu botão,

Por amor de ti, José, Meu oratório de vidro

Trago o meu somno perdido. Adonde eu faço oração.

Mangerona, bate á porta, Alecrim, vae ver quem é, Se é o cravo, se é rosa. Se é o meu amor José.

Do mesmo modo se applicam também as cantigas a varias terras. Ás vezes a mesma cantiga pôde convir a muitas localidades, como

Adeus, adeus (o nome da terra)

As costas te vou virando, Minha boca se vae rindo. Meus olhos ficam chorando.

E como esta ha muitas mais.

28 POESIA AMOROSA

zida pelas fórmulas como, qual, etc, e outras vezes ella c tão intima que ha identificação ou absorpçáo, acontece porém, não raro, que a relação dos dous teTmos comparados deixa de ser nitida, percebendo-se apenas o sentido por modo um pouco vago e geral, como :

Cortei o elo ú couve, E pu-lo a semear : Andavas muito doidinho, Dei-te tempo de asseiítar. . .

isto é: «assim como á couve se tempo para crescer e desenvolver-se, assim te dei tempo a ti para teres tino».

Embora a noção da divisão dichotomica da quadra nunca se perca no espirito do canta- dor, dá-se ás vezes o caso de a cantiga não se entender, como:

Não ha roxo como o verde, Nem verde como a ortiga: Eu'desejo-te encontrar, Inda que nada te diga . . .

na qual o segundo distico se não liga com o primeiro. Onde este processo de obscureci- mento de sentido se observa bem e nas can- tigas seguidas, que começam por exprimir pensamentos harmónicos, que a pouco c

DO POVO PORTUGUÊS 2Q

pouco se vão tornando cada vez mais diffe- rentes.

Vê-se pois que a evolução do processo foi esta: a principio a quadra offerece nos dois primeiros versos um sentido geral, e quasi sem- pre tirado da Natureza, com o qual se compara o pensamento particular do segundo distico; em seguida a ligação d'aquclle distico com este obscurece-se um pouco, em virtude da preoccu- pação do poeta em se concentrar no segundo distico que contém as ideias fundamentaes; por íim a ligação rompe-se de todo, e os dois primeiros versos servem apenas de arrimo phonetico aos segundos (i).

Em todos os ramos da litteratura popular, contos, romances, adivinhas, ensalmos, etc. ha de local para local variantes do mesmo thema, ao mesmo tempo que se dão confu- sões nas passagens e situações semelhantes. Este phenomeno é devido não á tendência assimiladora do povo, e ao seu acanhamento intellectual, mas ao facto d'essa litteratura ser oral, e por tanto nao-fixa. Nas cantigas encon- tramos também numerosas variantes, como :

Amar e saber amar. . . Ensinou-me quem sabia: Amar, foi a Natureza, Saber foi a sympathia . . .

(i) Tratei d'este ponto um pouco mais desenvolvi- damente na Revista Lusitana, I, 143-157.

3o POESIA AMOROSA

A amar e a escolher amor ^ Ensinou-me quem podia:

A amar foi a Natureza, A escolher, a sympathia. . .

e numerosos casos de versos communs em assumptos differentes, como :

O Villa-Real alegre, Provincia de Tras-os-Montes: No dia que te não vejo, Meus olhos são duas fontes.

Solipanta da solipanta, Solipanta meu ai Jesus: No dia que te não vejo, Nem o sol me quer dar luz. . .

Dá-se até ás vezes o caso de confusão de cantigas profanas com cantigas religiosas.

Assim como na linguagem corrente se em- pregam a cada passo expressões que não tem um sentido real para a comprehensão total da phrase, mas são ou verdadeiros automatismos, ou meros espaços (i), assim também muitas vezes succede que as poesias populares, em vez de pensamentos, contém palavras. Go- mo já notou o sr. prof. Adolpho Coelho, «a lyrica popular tem em geral curto alento. As ideias e sentimentos, que nellas se exprimem, oflerece um quadro sufficiente, na grande maio-

(i) Cfr. a minha Evolução da linguagem, p. 46-47.

DO POVO PORTUGUÊS 3I

ria de casos, a estrophe de quatro versos: mui- tas vezes até esse quadro é de si largo, de mo- do que é mister adoptar versos bordões, repeti- ções de palavras ou de versos para conseguir encher o quadro» (i). Vou dar alguns exem- plos de cantigas com repetições:

Tenho corrido mil terras, Mil terras tenho corrido: Muito cão me tem ladrado. Mas nenhum me tem mordido. . .

Salsa da beira do rio, Da beira do rio salsa: Mais vale uma feia lisa. Do que uma bonita falsa (2).

Nestas duas quadras, á antithese de phrase, ou antimetabole, dos dois primeiros versos, corresponde perfeitamente, em cada quadra, a antithese de sentido dos dois últimos. Aqui a razão não depende pois do facto mecâni- co de completar as quadras.

Vejamos outros exemplos:

Viola, minha viola, Bandurra, minha bandurra: Heide fazer um vestido, Do coiro da minha burra (3).

(i) In Jornal do Commercio, n.» 9:085.

(2) In Rev. do Minho, I, 19. Gfr. uma variante em Ade- lino das Neves, Mus. e canç., p. 37.

(3) In Rev. do Minho, I, p. 19.

POESIA AMOROSA

Lòreiro que bate, que bate, Lòreiro que bateu: Lòreiro que bate, bate, Num amor que foi meu (i).

Nestas quadras ha de facto varias repeti- ções para encher; de mais a mais vê-se clara- mente que ellas foram feitas para serem can- tadas, e então quasi bastavam rimas, em- bora as quadras ficassem sem sentido.

Nas cantigas populares encontram-se por tanto grandes recursos de expressão (figuras de rhetorica) mais ou menos espontâneos, que ás vezes são aproveitados de um modo cons- ciente e artificioso nas obras dos litteratos. A facilidade e simplicidade das cantigas depen- dem não raro d'esses jogos de palavras tão communs, como eu disse, na linguagem fa- miliar. O que é triste é quando os poetas pro- priamente ditos abusam d'isto. Bocage e os seus sequazes foram d'esse número. Toda a gente sabe que a eschola elmanista se fundava principalmente no artificio dos versos: repeti- ções constantes, antitheses, symetrias, etc, por ex. :

Na voz terrivel, nos terriveis olhos Que arremeçam trovões, que accendem raios: Soffre o duro oppressor do aéreo campo, vSoffre o silencio e a paz (2).

(i) In Rev. do Minho, I, p. 80.

(2) Bocage, Obras (ed. da Actualidade), IV, p. 9.

DO POVO PORTUGUÊS

Seus destinos vereis, vereis seus dias (pag. Sj)

Graças, numen clemente, eu corro, eu corro (pag. 39)

Lysia, Lysia feliz ! comigo exulta (ib)

Além do firmamento, além do espaço (pag. 40)

Qual no ceu reluziu, reluz na terra (pag. 44)

materno favor, materno ouvido (ib)

O sol benignos lumes espraiava, Benignos lumes, como espraia a lua (ib)

Feliz meu coração ! feliz meu rogo ! (pag. 63)

Doce filha do céo, doce harmonia ! (pag. 99)

Fujam teus olhos, teus sentidos fujam (pag. 181).

As repetições, as symetrias, as antitheses, etc, teem ás vezes por fim frisar certas ideias, e a linguagem vulgar faz até d'isso grande uso, como quando dizemos «adeus, adeus!», «se tu não queres, quero eu», etc, mas tudo o que c exaggerado enfada, por isso, a eschola elma- nistã morreu; e se houve um artista eminente como Garrett, que num dos seus primeiros ensaios (Retrato de Vénus) a adoptou em parte, como se aqui:

POESIA AMOROSA 3

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DO POVO PORTUGUÊS

35

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pitai i respeito das cantigas populares hispa- nhols, que são geralmente em toantes, e onde a rim consoante é que é a excepção. A evo- luçãcdo nosso lyrismo popular está a par da do lyismo culto: de facto, nenhum poeta por- tugu8 emprega hoje rimas toantes, ao passo que m epochas mais antigas, no tempo da chamda eschola hispanhola (sec. xvii), isso era lequente; pelo contrario os poetas de Hispnha fazem ainda grande uso das toantes. Um acto que torna bem saliente que as rimas toams das nossas cantigas populares provém da ncessidade ou de mau ouvido é que, além de serei relativamente em pequeno numero, e de nesss rimas haver completa concordância en- tre a vogaes postonicas, as consoantes são ás veze da mesma classe, por ex.: viola-namora^ j^elhs^ellas^ cabello-medo^ alegre-leve^ sol-me- Ihor. carvalho-boticairo^ ròta-estopa^ Vianna- ama. corre-dorme^ chumbo-mundo^ amarello- queri, viola-nova^ ielhado-Tiago^ lodo-novo^Bra- "'^-n terra-janella^ airepa-brecãj verde-sede^

Cantigas ao consoante Sáo custosas d'alcançar; Joelhos á terra lanço Para as tuas ináos beijar.

(Pes, Cant. pop. do Alemtejo, jjSj.

Eblaro que nesta quadra a phrase ao consoante, não

ii:a á lettra rima consoante, mas sim unicamente em

34 POESIA AMOROSA

E no centro de Roma, a Roma busca (i) Com que olhos fitará maternos olhos (pag. 3o)

Quanta gloria Fernando ao sábio mestre, Quantos louvores grangeou ! . . , (pag. 48)

Salve ! eis novo clarão, eis novos louros (pag. 5o)

elle mesmo em obras posteriores a abando- nou de todo. A facilidade dos improvisos de Bocage dependia grandemente, quanto a mim, d'esta forma de versejar, que auxiliava immen- 50 a rima, a metrificação. Todas as pes- soas, que alguma vez metrificaram muito, po- dem confirmar por experiência própria isto que aqui digo.

A rima adoptada nas cantigas populares portuguesas é a consoante, o que não quer di- zer que uma ou outra vez não appareçam rimas toantes, mas nestes casos é por ex- trema necessidade ou por causa do mau ou- vido, e não porque o espirito do nosso povo não attingisse aquelle grau perfeito da evo- lução da rima (2). Ha aqui uma differença ca-

(i) Ed. de 1867, pag. 25.

(2) Mostra-se tal ou qual consciência do facto no pró- prio povo; uma cantiga diz:

DO POVO PORTUGUÊS 35

pitai a respeito das cantigas populares hispa- nholas, que são geralmente em toantes, e onde a rima consoante é que é a excepção. A evo- lução do nosso lyrismo popular está a par da do lyrismo culto: de facto, nenhum poeta por- tuguês emprega hoje rimas toantes, ao passo que em epochas mais antigas, no tempo da chamada eschola hispanhola (sec. xvii), isso era frequente; pelo contrario os poetas de Hispanha fazem ainda grande uso das toantes. Um facto que torna bem saliente que as rimas toantes das nossas cantigas populares provém da necessidade ou de mau ouvido é que, ale'm de serem relativamente em pequeno numero, e de nessas rimas haver completa concordância en- tre as vogaes postonicas, as consoantes são ás vezes da mesma classe, por ex.: viola-namorãj velhas-ellas^ cabello-medo^ alegre-leve^ sol-me- Uior, carvalho-boticairo^ rôta-estopa^ Vianna- ama^ corre-dorme^ chumbo-mwido^ amai^ello- querOj viola-noi^a^ telhado-Tiago^ lodo-novo.Bra- iH-ir^ terra-janella^ airepa-brecãj verde-sede^

Cantigas ao consoante Sáo custosas d'alcançar ; Joeliios á terra lanço Para as tuas máos beijar.

(Pires, Cant. pop. do Alemíejo, n.° jj3).

E' claro que nesta quadra a phrase ao consoante, não significa d lettra rima consoante, mas sim unicamente em rima.

36 POESIA AMOROSA

rato-buraco^ bôlo-fôrno^ convertidas-raparigas^ barviga-cahida^ parcdes-meses^ choca-porta^ dia- bo-endiabrado^ damas-Annas^ sombra-escondãj matto-farto^ roíipa-pouca. Vê-se pois que as formulas aqui são as seguintes em relação ás vogaes: d-<2=d-a, ô-a=ô-a^ é-a-^é-a^ é-o^é-Oj (í-e=é-e, ó'e=ó-e^ e-o=e-o, á-o=á-o^ â-a=â-a^ ú-o= ú-o^ i'a=í-a,ê-e=ê-e,ô'0='ô-o. Em relação ás con- soantes: l-r, Ih-l^ l-d, Ih-r, n-m, m-7i, rr-l, rd-d, l-rn, d-^^ t-rt. As outras consoantes não concor- dam tanto. Estes exemplos forão tirados de uma collecção de 167 cantigas minhctas: nessa série a proporção das rimas toantes para as con- soantes é de 29 : i38, notando-se ainda que ahi a assonancia se aproxima bastante da consonân- cia por causa da homophonia das vogaes e da paridade das lettras consoantes. Nas cantigas gallegas as toantes são em maior número, creio eu, do que nas portuguesas, mas em menor número do que nas hispanholas: ha meio termo; pelo menos em uma collecção de 167 cantigas gallegas achei que a propor- ção das toantes para as consoantes era de 39 : 128, e numa igual collecção de estrophes his- panholas, nas mesmas condições que as galle- gas e portuguesas, essa proporção era de 72 : 95. Não é preciso porém recorrer a estatisticas; basta ter uso d'estas três litteraturas popula- res para se ver a verdade do que affirmo. As toantes hispanholas são muito menos perfei-

DO POVO PORTUGUÊS 37

tas que as portuguesas; naquellas coUecçÕes, ha por exemplo estas rimas: ales-arde^ atos- al^os^ adre-ape^ acia-arta^ onja-oja^ arle-an^ osa- oja^ olvo-ojos^ ancha-arga^ etc. E' para notar que na poesia gallega ha uma vez ou outra in- fluencia da poesia castelhana, e que muitas can- tigas gallegas são exactamente iguaes ás portu- guesas. Comparando as nossas com aqueirou- tras, vê-se porém ás vezes que nas mesmas can- tigas as de attingiram a forma consoante, ao passo que as da Galliza e Hispanha não:

i) Gallega:

Silva verde, non me prendas, que non son da tua terra, nunca silva me prendeu, que non m'apartase d'ela. (i)

Portuguesa:

O'

Silva verde, não me prendas, Olha que me não seguras, Olha que tenho quebrado Outras algemas mais duras.

2) Hispanhola (andaluza):

Tu cayC (calle) traigo por cama. Por cabesera un ladriyo (ladrilho); Con las esquinas me abraso, Pensando qu' estoy contigo.

(1) Bibl. de las trad. pop. espaúolas, vii, 175.

38 POESIA AMOROSA

Portuguesa:

Anoiteceu-me na serra, Das estrellas fiz abrigo; Abracei-me a uma penlia, Pensando que era comtigo.

3) Hispanhola:

Yo siempre te he de adorar, Cueste-me lo que me cueste ; De tu querer no me aparto, Aunque viniera la muerte.

Portuguesa:

Apesar da triste morte, Eu sempre te hei-de adorar; Custe o sangue, custe a vida, Custe, amor, o que custar.

4) Hispanhola:

i Qué bonita está un granado Con las granadas abiertas ! i Qué bonita está una dama Con su galan á la puerta !

Portuguesa:

Muito brilha o branco branco, Ao do branco lavado ; Muito brilha uma menina Ao do seu namorado !

DO POVO PORTUGUÊS 39

5) Hispanhola:

Guarda con gran cuidado Tu honor, senora, Que es vidrio y si se rompe Ya no se solda

Portuguesa

Oh rapazes e cachopas, Vede por onde andaes ; Que a honra é como o vidro, Se quebra, não pega mais.

6) Hispanhola:

La mujer que quiso à un hombre, Guando le ha querido bien, Aunque la amistá se acabe, Siempre hace memoria de el.

Gallega:

Mais o que ben quixo un dia Se a querer ten aficion. Sempre He queda una magoa Dentro do seu corazon. (i)

Não me esquecerei de notar que também existem cantos com as mesmas rimas nas três

(i) Estas canções são extrahidas dos Cantos pop. esp. de F. R. Marin, vol. 11 e iv.

40 POESIA AMOROSA

litteraturas mencionadas, e que podia succe- der que, se se obtivessem outras variantes, se encontrassem versões mais próximas; com- tudo os casos isolados não destruiriam a re- gra geral, e a leitura de uma grande collecçao de cantigas nas três linguas leva ao resultado que apontei acima. E provável que muitas das nossas cantigas nos chegassem por inter- médio da Hispanha, como aconteceu com os romances; nessas, a comparação das rimas toantes de umas com as das outras é que se- ria eloquente, por se verem os esforços (alte- rações de versos, modificações de themas) em- pregados pelo nosso povo para substituir uma rima por outra. Por outro lado também, deve admittir-se que muitas cantigas portuguesas tenham passado para a Hispanha. As cantigas são pequenissimas composições, cachos (peda- ços), como lhes chamam em Tras-os-Montes, e por tanto voam facilmente, e são também mais facilmente modificadas por quem as canta. Nos nossos romances ou xacaras, que são mais fixos, por serem mais extensos, e ter cada um d'elles um enredo que se não pode destruir sem grande custo, ha mais rimas toantes cor- respondentes ás toantes das versões hispanho- las de que elles provêem.

Disse eu acima que as toantes das nossas cantigas resultavam de uma extrema necessi- dade ou de mau ouvido, e não de que o nosso

DO POVO PORTUGUÊS 41

povo ainda estivesse na phase das toantes ou na transição d'estas para as consoantes*, não admira que isto succeda no povo, quando succede nos próprios poetas, naquelles mes- mos que occupam logares proeminentes na litteratura, como vou mostrar.

Nos Sonetos completos de Anthero de Quen- tal (Porto 1866, pag. 55) ha estas rimas: somem dolmen dormem, vindas das Odes modernas do mesmo auctor, onde o soneto a que pertencem foi primeiro publicado ; nesta ultima obra (2.^ ed.', pag. 79) ha uma simples quadra em que se tenta úmd,v combate partel No Ramo de Flores de João de Deus (Porto, 1869) fazem-se rimar: foi suppóe (pag. 5), tu concluo (pag. 29); o mesmo auctor nas Flo- res do Campo (i.^ ed., pag. i52) tem justiça pinça, e nesse mesmo livro ha em vários logares pallidas mádidas^ exalta-se dilata-se^ confesso immenso^ outro encontro^ prega negra^ etc. O sr. Theophilo Braga nas Mira- gens Seculares (Lisboa 1884) pretende fazer rimar continua imia (pag. 198); e o sr. Go- mes Leal, na Historia de Jesus (Lisboa i883) faz rimar Virgem origem (pag. 9 e 69) ^ vir- gens— origens (pag. 36, 50, 54 e 73). Percor- rendo toda a litteratura, ou pelo menos mais alguns livros, seria fácil accumular grande nú- mero de exemplos-, os que ahi ficam, porém, bastam para o intento. Escolhi estes, que

42 POESIA AMOROSA

são propriamente erros de versificação, por- quanto nos mesmos poetas ha ainda muitas outras rimas que commummente se não empre- gam, como: diíei-me freme (nos Sonetos com- pieios^pag. 48), doce seccou-se dissipou-se (ib., pag. 56), repouso desciiidoso (nas Miragens Se- culares^ pag. 70), sede hei-de (no Ramo de Flo- res^ pag. 11), cálix vales (ib. pag. 5i), ouro choro (ib. pag. 64), deixe feche^ queime geme^ inteiro quero ^ sede hei-de^ gera inteira (nas Flores do Campo^ passim), coro om^o (na Hist. de Jesus^ pag. 6), choro ouro (ib., pag. 26), cálix males (ib., pag. lo^)^ passou-se fosse (ib., pag. 120); mas estas rimas podem expli- car-se por influencias dialectaes, quer da na- turalidade dos auctores, quer do ponto em que elles escreveram. E assim também que me não refiro acima ás rimaiS palavra abra (nas Mira- gens Seculares^ pag. i25) nem a Rubens nuvens (que apparece em muitos poetas), por- que em algumas regiões do país confunde-se o b com o v; igualmente deixei sem menção as rimas /r/o —cobriu (nas Miragens^ pag. 216), Chio reflectiu (nas Tempestades sonoras^ pag. 93), mãe Jerusalém (na Hist. de Jesus^ pag. 6), pelo facto de se ellas darem effectivamente na pronúncia vulgar de certas localidades. Toda- via nas obras litterarias a critica poderá censu- rar com razão alguns d'esses factos, poisque ou bem que se escreve em lingua culta ou em dia-

DO POVO PORTUGUÊS 43

lecto. E alguém demasiadamente timido duvidaria notar tão leves senões, ainda em poetas de reconhecido mérito, como aquelles cujos nomes citei.

Nas cantigas populares succede uma vez ou outra que uma palavra rime comsigo mesma, como:

Se tu queres, e eu quero, Temos o contracto feito : Não venha pae nem mãe Desmanchar o que está feito.

O cravo tem vinte folhas, A rosa tem vinte e uma : Anda o cravo em demanda Por a rosa ter mais jama.

Dei um beijo numa negra, Catixa ! não quero mais ! Antes quero d'uma branca, Inda que me custe mais.

Que passarinho é aquelle Q'anda no lóreiro verde ? Não é passVo, não é nada, É a raiz da canna verde.

O meu menino tem somno, Tem somno e quer dormir. Venham os anjos do ceu Ajudá-lo a dormir.

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O meu amor é José, S. José venha com elle, E o traga a esta terra, Para me namorar d'elle.

Coração, não gostes d'ella, Que ella não gosta de ti : Não estejas coração, Tape, tepe, tepe, ti.

Por te amar deixei a Deus, E Deus me deixou a mim ; Não quero ficar sem Deus, Fica tu, amor, sem mim.

Esta noite hei-de ir ás ginjas, Esta noite hei-de ir a ellas ; Quem tiver as filhas guarde-as, Que não me hei-de guardar d'ellas.

Com licença dos senhores. Nossa Senhora da Guia ! Perguntarei ao mancebo Se vem por alguma guia.

Açucena com n'agua Está verde quarenta dias, Eu sem ti nem uma hora, Tu sem mim annos e dias.

Alguns d'esses factos explicam-se psycholo- gicamente, porque as mesmas palavras em func-

DO POVO PORTUGUÊS 45

ção grammatical diíTerente adquirem para a consciência do povo a feição de palavras novas, assim: com elle d'elle^ a mim sem mim^ a ellas d'ellas; muitas das phrases S3i0 pJwases feitas^ e por tanto estão no mesmo caso, como: vinte e iima^ não quero mais^ canna verde^ Se- nhora da Guia^ annos e dtasj contracto feito. Outras vezes não negarei que são verdadeiros defeitos, como dormir numa das cantigas tran- scriptas; ainda assim porém é necessário com- parar mais versões do mesmo thema, para ver se o defeito é individual ou geral. Numa d'essas cantigas rima ti (pronome) com // (onomatopeia), e aqui a consciência de que as palavras são duas distinctas não soffre du- vida. Notarei mais que essas rimas dão-se muito, como se ve dos exemplos precedentes, entre palavras banaes, por ex.: elle^ mim, ti, uma, mais, *sto é, advérbios, pronomes pes- soaes, etc, que, pelas necessidades do dis- curso, se combinam grammaticalmente de mui- tos modos : estas diversas combinações fazem, como disse, com que se considerem palavras ou phrases de sentido novo.

Nos poetas acham-se também casos seme- lhantes. Anthero de Quental nas Odes moder- nas, 2.^ ed., pag. 12, tem a rimar aonde com d'onde; Camões, nos Lusiadas, VIII, 94, tem pai (no sentido de t^alor real) a rimar com vai (no sentido de valor moral), e tem alem d'isso

46 POESIA AMOROSA

d' este geito covcv de geito (I, 81), de tão longe com a longe (ÍV, loi) (i).

O que é bastante frequente nos poetas é fa- zerem rimar palavras homonymas, homopho- nas ou mesmo paronymas, e forçarem as vo- gaes, como: j^ócha roxa (nas Miragens secu- lares^ pag. 220), péiles êlles (ib., pag. 3i), banquete prométte (ib., pag. ji)^pô:{-te pósie fôsie (nos Sonetos completos^ pag. 63), era (verbo) com era (substantivo), etc, etc. O povo em geral não costuma forçar as vogaes, porque se regula pelo ouvido, e não pela vista ou pela analyse lexicologica, como os poe- tas, que nisto erram mais que o povo.

O metro quasi exclusivamente usado nas cafitigas populares é o de redondilha maior; também porém se encontra ás vezes em certas canções seguidas o de seis syllabas, como:

1) A entrada d'Elvas Achei um anel Com letras que dizem : Viva D. Miguel.

(i) Estes factos não são bem iguaes a outros que se dão frequentemente também na poesia litteraria, como quando se faz rimar um substantivo com um verbo da mesma forma, etc, por ex. em Cdimõts^ Lusíadas: estima (II, 86), e parte (VII, 23). Cfr. A. F. de Castilho, Re- sumo do tractado de versijic. port. no Dicc. de rimas do sr. Eugénio de Castilho, Lisboa 1886, pag. 26. Igualmente Camões tem a v\m^ parte (= vae) comparte (= separa)-

DO POVO PORTUGUÊS 47

2) Eu tenho um cãozinho, Você tem dois . . . Adeus, amorzinho, Até ao despois.

O verso natural das cantigas verdadeiras é todavia o de redondilha maior, e este é tam- bém aquelle a que melhor se adapta a nossa língua (i).

(i) Sobre elle cfr. o meu Romanceiro Português, pag. 6, e a minha Evolução da linguagem, pag. lo-ii. No seu art. A poesia popular alemtejana (in Folha de Elvas, an- no de 1889) diz o sr. Soeiro de Brito o seguinte: «Diver- sos metros. ... se empregam no Alemtejo desde o verso de duas syllabas até ao de onze syllabas» (n.° 204). Não duvido da affirmação do Sr. Soeiro de Brito; mas creio que o emprego de outro metro diverso do de redondilha maior, e em certos casos do de seis, deve ser extrema- mente raro em cantigas, e apenas limitado a cantigas de occasiâo, não tradicionaes. Em uma espécie de can- tos tradicionaes que eu descobri em Tras-os-Montes e se cantam por occasiâo das segadas (cfr. o meu Annuario das trad. pop.y pag. 19; conservo inéditas outros mais) ha também um metro que não é o de oito syllabas; mas isto tem uso muito restricto. De passagem notarei que o sr. Theophilo Braga achou rigorosas relações entre a for- ma estrophica d'essas poesias que eu descobri em Rebor- dainhos, e a dos cantos accádicos e chineses (O Povo Português, II, 4o3); é esta uma das muitas affirmaçóes va- gas do sr. Theophilo Braga. Por outro lado o mesmo au- ctor, transcrevendo essas poesias transmontanas na Rev. de estudos livres, III, pag., 122, não transtornou a dispo- sição estrophica que o povo usa, mas ainda me accusou de

48 POESIA AMOROSA

A estrophe natural das cantigas é tambeiiij como se tem visto, a quadra (i).

Tanto o metro como a estrophe estabelecem grande diíferença entre as cantigas portugue- sas e as hispanholas; nestas, alem das qua- dras como as nossas, ha umas estrophes es- peciaes de três versos denominadas soleares

a eu não ter comprehendido. Ora, que eu a comprehendi, prova-o a comparação que fiz no Annuario, pag. 20, com as poesias portuguesas antigas, como o sr.Theophilo Braga também fez; se porém as não dispus no sentido que elle indica, é porque ao collector das tradições populares não é licito alterar o que recolhe.

(i) O sr. Soeiro de Brito diz que no Alemtejo o verso de redondilha maior é usado em quadras, decimas, oita- vas, sextilhas, quintilhas e tercetos (ib., ib.); noutro ponto, affirma mesmo: «as decimas são a verdadeira poesia po- pular» (ib., n.'' 210), Como succede com os versos de mais de sete syllabas, parece-me a mim que estas estrophes, exceptuando a quadra, e talvez o terceto, se não encon- trarão na poesia tradicional, embora os poetas e impro- visadores da aldeia as saibam empregar. Quando se trata de poesia popular, convém estabelecer diíferença entre o que é tradicional, e portanto característico e de raiz an- tiga, e o que é meramente individual ou local. A respeito das cantigas em tercetos escreve também o sr. Theophiio Braga que apenas as tem encontrado no Minho (O Poyo Português, II, 404-405); mas devem ser muito raras. Noutras espécies poéticas, como os adágios, adivinhas, ri- mas infantis, e mesmo certas canções especiaes (por ex. ao S. João, no Porto e arredores) ha varias espécies de estrophes; mas fora da quadra, o que supponho ser mais vulgar é o distico.

DO POVO PORTUGUÊS 49

OU tríades, e outras de sete, que não se en- contram geralmente (a segunda espécie, isto é, a septilha, nunca a encontrei) nas nossas-, exemplo:

i) Donde hay gusto no hay disgusto : Yo quiero aqueya morena Que está bestía de luto.

Anda y que te den un tiro . . . Con pórbora de mis ojos, Balitas de mis suspiros.

2) Yo bien que tu quieres A quien te engana, Y no á mi, que te llevo Siempre en el alma. Mas me consuela Que no has-de encontrar nunca Quien más te quiera.

Morenito és mi amante,

Morenita yo ; Color de chocolate

Tenemos los dos.

; Biba quien tiene Color de chocolate,

Que nunca pierde !

Nestas ultimas estrophes a regra é ser o i.% o 3.° e o 6.° de sete syllabas, e os outros de cinco (i).

(i) Vid. algumas observações, sobre esta forma estro- phica hispanhola, num artigo do sr. Adolpho Coelho, in Jornal do Commercio n.° 9085.

POESU AMOROSA 4

50 POESIA AMOROSA

Além d'estas diíferenças morphologicas en- tre as cantigas de Hispanha e as de Portugal, existem ainda outras (i).

Como o povo se regula pelo ouvido, e não pela vista, o que ás vezes succede nos poetas litterarios, segue-se que na contagem das syl- labas devemos ter em vista a phonetica vulgar, para não irmos ás vezes taxar de erro aquillo que em rigor o não é; o que não quer di- zer que o povo seja sempre fiel a este princi- pio. Assim na cantiga minhota

cortei o meu cabello, vae a minha gala. . . A culpa tive-a eu : Dar ouvidos a quem falia

03.® verso deve ler-se a culpa tivi-a-i-eu^ onde o / da pronuncia corrente evita o hiato; na cantiga

(i) É claro que, se existem diíferenças entre as nossas cantigas e as de Hispanha, muitas analogias ha também ás vezes; mas estas analogias, com quanto aqui sejam mais íntimas, por causa da vizinhança dos p;iises e do pa- rentesco dos povos e das linguas, também se dão com a poesia de outras nações. A quadra, por exemplo, tão vulgar em Portugal e Hispanha, encontra-se como forma popular, e até improvisada, nos habitantes dopais de Gal- les ; igualmente apparece a quadra na Itália, na Grécia, onde deu origem ao distico, nos Alpes allemães^ no Friul. Cfr. F. A. Coelho, art. cit., e H. Schuchardt, in El Folk- Lore andalu{, pag. 260.

DO POVO PORTUGUÊS 5I

Que passarinho é aquelle Q'anda no lóreiro verde ? Não é pássaro, não é nada, É a raiz da canna verde

O I ° verso deve ler-se que passarinho eqiielle^ o 3.° num é passro num é nada^ o 4.° e rai:{ da canna verde^ pois assim pronuncia o povo ; na

cantiga

Minha mãe, tomei amores. . .

O filha, dize-me com quem?

Tomei-os com um alfaiate. . .

O filha, cozia bem ?

O 2.° deve ler-se ójilha di^-me com quem^ e o 3.° tomei-os c'um alfaiate. Mas, como disse, o povo afasta-se muitas vezes da regra; ainda assim, para se fazer uma apreciação segura, é preciso recolher muitas versões de cada can- tiga, pois a mim tem-me succedido não raro no meio de todas essas versões encontrar umas erradas e outras não. O facto de se o povo afastar da regra é também ás vezes apparente, porque, como as cantigas são des- tinadas ao canto, na occasiao d'este fazem-se certas pausas, e assignalam-se ou modificam-se certos sons, contrariamente ao que na reci- tação ordinária succederia (i).

(i) Notarei a propósito que na enunciação das nossas poesias populares pôde haver diversos graus: recitação simplesmente narrada (como nas adivinhas, nos provér- bios e ás vezes nos romances), cantilena (como nas fór-

52 POESIA AMOROSA

§ III. Importância da poesia do povo

A vida domestica. A vida social. Influencia da litteratura popular na litteratura erudita. A arte. A satyra. Poesia histórica. As tradições em geral.

Vejamos agora a importância da poesia po- pular. Depois dos profundos estudos publi- cados sobre o assumpto em toda a parte, e das riquíssimas coUecçÕes que estão nasbiblio- thecas de todos os estudiosos, parecerá por ventura ocioso vir ainda fallar da importância da poesia popular; mas ao lado das intelligen- cias cultas ha sempre os cretinos, a par dos trabalhadores sinceros e devotados não deixam nunca de surgir os zoilos, que para todas as coisas sérias tem sorrisos de zombaria, pelo simples facto de serem incapazes da compre- hensão de qualquer problema, ou de se ergue- rem um pouco acima do estreito horisonte em que se circumscreveram: por isso permit- ta-se-me o que vou dizer.

Encarando a poesia popular pelo lado his-

mulas da chuva, do nevoeiro, do arco-iris, que teem melopeia especial), e canto propriamente dito (nas cantigas e outras vezes nos romances). A cada um d'estes graus correspondem commummente poesias próprias: assim, as adivinhas nunca são cantadas, e as cantigas são originaria- mente destinadas ao canto. ~ Cfr. G. Nigra, Lapoes.pop. iíai, in Romania, V, 417.

DO POVO PORTUGUÊS 53

torico, ella revela-nos interessantíssimos da- dos que muitas vezes por meio d'ella nos são conhecidos; encarando-a pelo lado esthe- tico, a nossa alma vibra de emoção, tal é a magia intima que em versos de apparencia tão tosca se contém. Não me refiro exclusiva- mente ás cantigas ; abranjo também na deno- minação de «poesia popular» as rimas infan- tis, os ensalmos, as adivinhas, as orações e esconjuros, os romances ou xacaras, e ainda os adágios.

Diz-se vulgarmente: isto não passa de fri- volidades. Sim, são frivolidades; mas o homem não as dispensa jamais. Quem é que se não lembra com saudade das canções que ouviu na sua terra, á tarde, á hora em que o pastor recolhe os gados; á noite, nos animados se- rões das mulheres; a todo o momento, nos campos, nos lavadoiros, nas eiras ?. . . Emba- lam-nos no berço ao som de cantigas ternas e maviosas; quando somos maioreszinhos, exercitamos as nossas faculdades intellectuaes decifrando as adivinhações ou repetindo de cor sentidos romances que a nossa avó ou a nossa tia nos ensinou; depois de homens feitos, tra- duzimos as verdades moraes ou os principaes phenomenos agrícolas ou meteorológicos por meio de rifões. Não nos acompanha con- stantemente a poesia popular? És crente, ahi tens innúmeras rezas com que te podes

54 POESIA AMOROSA

dirigir aos teus santos; és fraco de espirito e supersticioso, lança mão d'essas fórmulas magicas, que te satisfarão ; és poeta, bebe no mellifluo veio da musa do povo a tua inspi- ração mais viva. Quem se ri da poesia popu- lar, ri-se de si mesmo, está em contradicção comsigo, porque não ha ninguém, embora bronco e rude, que um minuto na vida não precise de se soccorrer de um provérbio, de uma rima tradicional. Por aqui se que ávida particular do homem se acha essencialmente impregnada da poesia popular. O que seria do nosso povo se não cantasse! Como lhe correria triste e desolada a existência, se os seus lábios não soubessem repetir ao menos uma singela quadra, um innocente estribilho! A prova mais frisante do valor e merecimento da poesia popular está em que ella se mani- festa em todos os actos da vida e em todas as classes. O marinheiro, o lavrador, o al- mocreve, o soldado... todos cantam, uns para se distrahirem e o trabalho lhes custar menos, outros para se estimularem. Grande parte do serviço campestre passa-se ao som de canções, como as vindimas no Douro, as segadas do centeio e do trigo em Tras-os- Montes, as debulhas na Beira. A este respeito ha também povoações mudas ou quasi. Devo dizer que vivi perto de um anno no Cadaval, percorrendo constantemente todo o concelho

DO POVO PORTUGUÊS 55

no exercício da clinica, e que raríssimas vezes ouvi cantar.

Que ardor não desperta o hymno patrió- tico (tornado popular) da oMaria da Fontel

Eia avante, Portugueses, Eia avante, não temer. . . Pela nossa liberdade Batalhar até morrer!

Tanto vigor épico em tão poucas palavras!

Na poesia popular é que os poetas mais verdadeiros vão retemperar o seu estro. Mui- tos dos nossos poetas o tem feito. A natura- lidade e graça dos versos de João de Deus deriva em grande parte da exacta compre- hensão do estylo e da verdade da poesia do povo ; quantas vezes elle não occulta a vulga- ridade do pensamento num dizer simples e suave que nos encanta a todos que o lemos ? Pois o característico dos versos de João de Deus não está nos grandes raptos de imagina? ção, mas sim o sentimento e a singeleza de que reveste tudo o que escreve, e até parece que quanto mais simples d a idéa, mais brilha a forma, que elle nunca ou quasi nunca força e pelo contrário aproxima da linguagem cor- rente. O mesmo acontece na poesia popular. Que expressão pôde haver mais bem tradu- zida do que esta ? :

56 POESIA AMOROSA

Oh ! o seu nome Como eu o digo E me consola ! Nem uma esmola Dada ao mendigo Morto de fome !

(Tiamo deflores, pag. 44).

Que se deve também exigir mais da musa popular na seguinte cantiga? :

Não ha nome de que eu goste Como o nome de Maria. . . Quem te deu tão lindo nome, meu segredo sabia. . .

Algumas das quadras mais deliciosas da Morte de ^. João de Guerra Junqueiro são imitação ou reminiscência do estylo da poesia do povo, como a pag. 56 e 67, i.* ed.:

Passei-te rente ao mirante E dei de cara comtigo, E tu lançaste ao mendigo O teu olhar um diamante.

Meu coração é quadrante, Quadrante do meu desejo : Nas horas em que te vejo, Não marca mais que um instante.

Que diíferença entre esta poesia graciosa, e essas monstruosidades de phantasia doente, com que elle ás vezes se apraz, num ardor

DO POVO PORTUGUÊS 57

bombástico, fóra de todos os limites do senso critico, e que dão a tantas das suas composições feição gongorica de nova es- pécie !

Ainda outros poetas tem aproveitado a inspiração popular, como Simões Dias nas Peninsulares, e Anthero de Quental nas Pri- maveras Romajiticas. tenho ouvido cantar ao povo versos de L. A. Palmeirim, e elle mesmo introduziu nas suas Poesias (pag. 3i5 e 36o, ed. de Lisboa, i85i) estas duas qua- dras populares :

Foge d'ahi, lobishomem, De cima d'esse telhado, Deixa dormir o menino, Deixa-o dormir descançado.

S. Gonçalo d'Amarante, Casamenteiro das velhas, Porque não casaes as moças ? Que mal vos fizeram ellas ?

que se cantam em muitas partes com levissi- mas variantes. Se remontamos mais longe, não nos será difficil encontrar em Bernaldim Ribeiro e mesmo em Camões, etc, vestígios da influencia do povo. No Cancioneiro da Va- ticana, que encerra composições dos primei- ros séculos da nossa litteratura, ha também, ao que parece, vestígios de influencia popular.

58 POESIA AMOROSA

E Gil Vicente ? Basta abrir os seus Autos para igualmente os encontrar, em abundância (i).

A poesia do povo é a reproducção fiel das idéas e tradições que constituem uma das bases da nossa nacionalidade. O historiador, que nos seus estudos a despresar, fará por força obra incompleta. Pois, como se ha-de apreciar devidamente a psychologia da nossa raça, se se náo tomar nota das suas ten- dências poéticas, se se não conhecer o seu fôlego para o lyrismo ou para a epopeia, se se não julgar o seu gosto artístico? Depois, a grande maioria das composições que se repetem entre os aldeões portugueses não

(i) Além da poesia popular propriamente dita, que é anonyma e tradicional, ha a poesia feita por um ou outro individuo de veia poética, embora sahido da classe do povo (são estes os puetas populares, cfr. supra, pag. 20 21; e a sua poesia póde-se chamar semi-popular); ha ainda a poesia feita para o povo pelos litteratos (por ex. certas Loas do Sr. João de Deus) ou pseudo-litteratos (o que en- tra na litteratura de cordel;) mas o povo pôde também aprender poesias que originariamente lhe náo forão des- tinadas, ainda que o facto é mais raro, com quanto eu tenha ouvido cantar nas ruas O noivado do sepulcro de Soares de Passos. Gomo é frequente cantarem-se nas salas das pessoas educadas certas canções em jogos ou com acompanhamento de guitarra, violão, etc, a pouco e pouco estas canções se podem propugar, primeiro pelas creadas, depois pelos serviçaes de fora, etc. É presiso po- rém que essas canções cultas quadrem com o génio po- pular, o que nem sempre succede.

I

DO POVO PORTUGUÊS 59

são património exclusivo delles, encontram-se noutros paizes, que as receberam da mesma fonte commum d'onde o nosso as recebeu, ou no'-las communicaram, e em qualquer dos casos se bem que número de questões his- tóricas ellas levantam, e como convêm reco- lhe-las, compará-las, discuti-las. Ser-me-hia muito fácil reunir aqui innúmeras variantes estrangeiras de canções, rimas, xacaras, eni- gmas, annexins, etc. análogas ás que se dizem cá; mas como este opúsculo é um trabalho li- geiro, apenas uma contribuição para um traba- lho maior, limito-me a remetter o leitor para os livros especiaes onde encontrará matéria de so- bra para se convencer do que digo, se por acaso não acredita nas minhas palavras. Essas com- posições communs, pore'm, aclimando-se no nosso solo, tornando-se interpretes da alma das multidões, podem chamar-se portuguesas na sua forma actual; e é por isso que eu affir- mo que o seu estudo ê indispensável para a recta apreciação do nosso génio.

Olhando agora as cousas mais de perto, e considerando as cantigas unicamente como documentos artisticos, não é tão grato aos espíritos sentimentaes lê-las e até decorá-las ? Não sei que poeta algum faça, ao mesmo assumpto, melhores quadras do que essas que aqui transcrevo :

6o POESIA AMOROSA

Eu fui o que disse ao sol Que não tornasse a nascer : A' vista d'esses teus olhos, Que vem o sol fazer ?

Annel d'ouro, annel d'ouro, Salta fora do meu dedo, Que tu foste o causador De me eu cativar tão cedo.

vae o sol p'r-ó deserto Dizer as penas que tem. Quem me dera ir com elle Cobrir as minhas também !

Tendes um lindo cabello, Pelas costas ao comprido : Parecem-me fios d'ouro Ao martello rebatido.

D'aqui d'onde estou bem vejo Olhos que me estão matando: Matae-me de vagarinho, Que eu quero morrer penando.

Costumei tanto os meus olhos A namorarem os teus, Que, de tanto confundidos. Nem sei quaes são os meus.

E como esta podiam transcrever-se muitas mais. Os pensamentos são ás vezes vulgares; mas a graça está em os enunciar por meio de

DO POVO PORTUGUÊS 6l

uma fórma simples e bella, de modo que elles parecem novos (i).

Uma feição curiosa da litteratura poética do nosso povo é a satyra. Que chiste se não revela nas seguintes canções !

Não cortes a videirinha, Nem a raiz á serralha, Que é o sustento dos homens Nos annos de pouca palha.

Homem casado, és tolo, Para que tocas viola ? As cordas custam dinheiro, A ti ninguém te namora.

Menina, case comigo,

Não tenha medo á fome :

O meu pae tem uma «quinta» (2),

Que sustenta a quem não come.

Adeus, adeus, cantadeira, Adeus, adeus, regalar : Nunca vi morrer em Senão as velas do altar.

(i) Gomo todas as coisas tem excepção, não quero di- zer que muitas vezes se não encontrem também poesias populares péssimas quanto á arte, e em comparação com as poesias litterarias ou mesmo com outras populares. Mas na litteratura mais rica que haja, e no próprio poeta mais perfeito que appareça, succederá o mesmo. Uns fa- ctos não destroem os outros.

(2) A quiiita-feira.

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POESIA AMOROSA

Eu quero cantar baixinho, Que me não ouça o vigário ; Não quero levar peccados Aos pés do confessionário.

Andas para me enganar, Tira de mim o sentido ; Muitos cães me tem ladrado, Poucos me teem mordido.

Menina não se namore De homem que viuvou; Não queira criar os pintos Que outra gallinha chocou.

O povo, por causa da sua imaginação viva, precisa de se valer de metaphoras arrojadas, de allegorias, de comparações frisantes. E o que se vê, por exemplo, nestes versos :

No meio d'aquelle mar Está um barco de cortiça ; Se és casado, arreda, arreda, Se és solteiro, atiça, atiça.

Fechei a porta d desgraça, Entrou-me pela janella ; Quem nasce para a desgraça Não pode fugir a ella !

Apesar de se dizer frequentemente que o nosso povo perdeu as suas tradições históri- cas, isto não é de todo exacto, porque, pro- curando bem, alguma cousa se encontra nesse

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DO POVO PORTUGUÊS

63

sentido. A própria poesia popular revela um certo numero de factos. A mais antiga allusão que actualmente se pôde descobrir é a de pa- gãos, escondida em algumas formulas poéti- cas (i). Era esta uma expressão vaga que algre- ja contrapunha a todos aquelles que não erao christãos. Na linguagem corrente ha a expres- são no tempo dos Mouros, para indicar um pas- sado muito remoto. O povo esquece facilmente os factos históricos nos seus pormenores, por- que lhe falta o estímulo das fontes escritas; mas quando aquelles são de natureza gran- diosa, e exerceram acção profunda, então ficam na tradição a titulo de reminiscên- cias. O povo não se importa com a chrono- logia, nem com a geographia, nem com o ri- gor lógico: tudo para elle é vago. Os Mouros erão muitos ricos, deixaram immensos thesou- ros, e faziam cousas maravilhosas. Nesta cren- ça não ha nada mais indeterminado. Qualquer edificação antiga, que pela suas ruinas impres-

(i) O que primeiro se dizia dos Pagãos disse-se de- pois dos Mouros: este nome substituiu pois aquelle. Gfr. um art. do Sr. Martins Sarmento a este respeito, in Pan- theon, Porto 1 880-1 881, pag. io5 e 121. Deram-se factos semelhantes noutros paises. Na litteratura medieval Sar- racenos e Turcos designavam todos os inimigos da chris- tandade, quer elles fossem Ingleses, quer Normandos, etc. Simrock disse também : «entre pagãos e Turcos não havia differença» {Deutsche Mythologie, p. 584, apud Le moyen âge, I, 246).

Ò2 POESIA AMOROSA

Eu quero cantar baixinho, Que me não ouça o vigário ; Não quero levar peccados Aos pés do confessionário.

Andas para me enganar, Tira de mim o sentido ; Muitos cães me tem ladrado, Poucos me teem mordido.

Menina não se namore De homem que viuvou; Não queira criar os pintos Que outra gallinha chocou.

O povo, por causa da sua imaginação viva, precisa de se valer de metaphoras arrojadas, de allegorias, de comparações frisantes. E o que se vê, por exemplo, nestes versos :

No meio d'aquelle mar Está um barco de cortiça ; Se és casado, arreda, arreda, Se és solteiro, atiça, atiça.

Fechei a porta á desgraça, Entrou-me pela janella ; Quem nasce para a desgraça Não pode fugir a ella !

Apesar de se dizer frequentemente que o nosso povo perdeu as suas tradições históri- cas, isto não é de todo exacto, porque, pro- curando bem, alguma cousa se encontra nesse

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sentido. A própria poesia popular revela um certo numero de factos. A mais antiga allusão que actualmente se pode descobrir é a de pa- gãos, escondida em algumas formulas poéti- cas (i). Era esta uma expressão vaga que a Igre- ja contrapunha a todos aquelles que não erao christãos. Na linguagem corrente ha a expres- são 110 tempo dos Mouros, para indicar um pas- sado muito remoto. O povo esquece facilmente os factos históricos nos seus pormenores, por- que lhe falta o estímulo das fontes escritas; mas quando aquelles são de natureza gran- diosa, e exerceram acção profunda, então ficam na tradição a titulo de reminiscên- cias. O povo não se importa com a chrono- logia, nem com a geographia, nem com o ri- gor lógico: tudo para elle é vago. Os Mouros erão muitos ricos, deixaram immensos thesou- ros, e faziam cousas maravilhosas. Nesta cren- ça não ha nada mais indeterminado. Qualquer edificação antiga, que pela suas ruinas impres-

(i) O que primeiro se dizia dos Pagãos disse-se de- pois dos Mouros: este nome substituiu pois aquelle. Gfr. um art. do Sr. Martins Sarmento a este respeito, in Pan- íheon, Porto 1 880-1 881, pag. io5 e 121. Deram-se factos semelhantes noutros paises. Na litteratura medieval Sar- racenos e Turcos designavam todos os inimigos da chris- tandade, quer elles fossem Ingleses, quer Normandos, etc. Simrock disse também : «entre pagãos e Turcos não havia differença» (Deutsche Mythologie, p. 584, apud Le moyen âge^ I, 246).

04 POESIA AMOROSA

sione a imaginação, era dos Mouros; qualquer esculptura ou pintura menos vulgar, qualquer penedo ou gruta^ de proporções fora do com- mum, pertencia a essa estranha gente. Os mouros eram da Mourama^ e a Mourama era uma terra muito longe; e nada mais se conta da posição d'esse phantastico país, ao qual a imaginação attribue quantas maravilhas e gran- dezas pode sonhar (i). Outra designação po- pular é o tempo dos Affonsinhos. A este propó- sito diz o sr. Th. Braga: «Sob os reis D. Af- fonso I a D. Aífonso III a sociedade portuguesa organisou-se pelo estabelecimento dos Foraes, reconhecendo a independência dos Concelhos; é crivei que sob o despotismo monarchico es- sas liberdades locaes fossem designadas irri- soriamente como uma cousa do tempo dos Affonsinhos)^ (2). Não me parece provável que se desse um deminutivo aos nomes dos pri- meiros reis. A explicação que supponho mais natural da phrase é esta. Nos primeiros sécu- los da monarchia correu uma espécie de moe- da denominada nos documentos escritos di-

(i) A Moirama entra também nas cantigas:

Fostes ao Senhor da Serra, Nem um annel me trouvestes, Nem CS Moiros da Moirama Fizeram o que tu fizestes.

(2) O povo português, II, 496.

DO POVO PORTUGUÊS 65

nheiro alfonsim', no feminino dizia-se, segundo os mesmos documentos, moeda alfonsina. É possi- vel que ao lado de alfonsim se dissesse popular- mente affonsinho^ pela alternação nos suffixos -im e -inho, e pelo mesmo motivo pelo qual de Alfonso se fez Affonso. Assim, no tempo dos Affonsinhos viria a significar: «no tempo em que se usavam os affonsinhos ou alfo7isins;)^ da mesma maneira hoje dizemos 7to tempo dos pin- tos^ no tempo do arro^ de iS^ e se começa a dizer no tempo dos patacos. Outra designa- ção genérica é esta: do tempo dos Franceses^ que começa a substituir-se d do tempo dos Mou- ros. Os Franceses foram os últimos invasores; pelo seu aspecto physico, pelo seu trajo, pela sua lingua, divergiam inteiramente de nós; por isso, e pelo terror que com as suas devastações e crimes de toda a ordem espalharam pelo país, causaram profunda impressão nas po- pulações, que os não puderam ainda esque- cer e a quem elles servem para designar uma epocha medonha. Rigorosamente fallando, os dois meios mais populares para designar um tempo afastado são apenas : os oMouros e os Franceses. Os Ingleses também deixaram na lingua a palavra ingresia (de ingres=inglcs) para designar balbúrdia. Tanto na tradição moderna, como nos AA. antigos, transpare- cem allusões a vários factos intermediários áquelles, ou posteriores. No trabalho que cs-

POESU AMOROSA 3

66 POESIA AMOROSA

tou fazendo não me posso alargar sobre o as- sumpto; alem disso elle foi tractado em parte pelo sr. Theophilo Braga no seu pequeno es- tudo A historia de Portugal na vo^ do povo^ reproduzido in O Povo Português^ vol. II; pelo sr. A. Thomás Pires nas suas Cantigas histó- ricas recolhidas da tradição oral na provinda do Alemtejo (publicadas no periódico O El- vense); e pelo Sr. Alberto Pimentel na Oáusa das Revoluções, a que adeante me torno a re- ferir.— Em geral o espirito que domina nas nos- sas poesias populares históricas é o do epi- gramma e da zombaria:

O Junot foi aos infernos Buscar duas testemunhas: Achou as portas fechadas, Pôs se a esgravatar co'as unhas

O Junot e o Maneta Fizeram uma funcção : O Maneta deu o braço, O Junot o coração.

Olha a condessa da Ega Que anda a cavallo no cão: Pedindo ao ladrão Junot Que lhe a sua mão.

Assim se refere o povo ao teinpo dos Franceses. De D. Miguel diz elle:

I

DO POVO PORTUGUÊS 6j

D. Miguel quando chegou A' barra de Lisboa, Disseram logo os malhados: Esta obra não está boa.

Nas seguintes quadras a oMarta da Fonte é admiravelmente caracterisada :

ol A Maria da Fonte

E' uma grande matrona:

Passou revista á tropa,

Vestida de amazona. i-A.

A Maria da Fonte /

E' uma guerreira boa: *.

OíD/Zi Jurou á sua tropa

De entrar em Lisboa.

A Maria da Fonte E' uma mulher guerreira: Bateu-se co'o Saldanha Na provinda da Beira.

A Maria da Fonte Co a sua espada na mão Jurou vencer Toda a nação.

Fallou á sua tropa: «Vamos para a frente «Bater o Saldanha «E cortar-lhe a frente.

As poesias históricas das três guerrasj/?e;n'«- sular, liberal e da patuleia não são tão populares

68 POESIA AMOROSA

como as cantigas dos outros géneros, porque são mais modernas, com um cunho individual mais pronunciado; devem pois mais rigorosa- mente denominar-se semt-populares. Não andão ainda no país todo, e são principalmente os veteranos e um ou outro enthusiasta quem mais as sabe. Antes de receberem a verdadei- ra feição popular, ellas provavelmente, no todo ou em parte, esquecer-se-hão na memória do vulgo. E' notável que o período brilhante das nossas descobertas e conquistas ultramarinas quasi não deixasse vestígios na tradição oral. Apenas hoje ha referencias, e estas numerosas, ao Brazil, mas isto é por causa da emigração que constantemente se faz para lá. Uma es- pécie de tradições históricas menos mal repre- sentada é a que tem por assumpto as lendas de santos, como S. Gonçalo de Amarante, S. Antó- nio de Lisboa, etc, para o que concorre a influencia ecclesiastica. Nas cantigas, romances, etc. ha diversas allusões a paises estrangei- ros, como Roma, AUemanha, França, etc. Es- pero reunir num trabalho posterior tudo o que a respeito das Tradições populares históricas eu tenho encontrado no nosso país, e então en- trarei em desenvolvimentos em que aqui não posso entrar.

Além dos dados históricos que as cantigas nos fornecem, e que nos elucidam bastante acerca dos caracteres do nosso povo, ellas con-

DO POVO PORTUGUÊS 69

tém aqui e alem indicações de usos, costumes, superstições e adágios, o que muitas vezes nos prova a vitalidade d'estes e a importância de que gosam no povo. Gfr. o que se disse a cima, a pag. i3.

Seria um nunca acabar, se eu tentasse in- dicar todos os pontos por onde a poesia po- pular merece as attenções da sciencia. E a propósito de sciencia, citarei aqui as palavras de um bom mestre : «11 y a encore des per- sonnes qui s'étonnent de voir ce gros mot á propôs de choses en apparence si frivoles et vulgaires; mais il n'en estpas moins vrai que la poésie populaire a un intérêt scientifique des plus grands, tellement qu'une science à part est en train de se constituer autour d'el- le» (i). Esta sciencia está hoje constituida.

^^ § 4. Bibliographia do assumpto

Allusóes em obras antigas ás cantigas populares portuguesas. Collec- çóes modernas. A bailada (sic) da Serra da Estrella. Cupido nas tradições poéticas.

As collecçÕes de cantigas populares são mo- dernas ; nos AA. e documentos antigos ape- nas se encontram allusões a ellas. Desenvolver este assumpto fica para outro logar; aqui li-

(i) Gaston Paris, in Melusine, 1877, I, col. 2.*

70 POESIA AMOROSA

mito-me a curtas notas. As Constituições dos bispados e os concílios prohibem emepochas muito remotas que se cante nas igrejas: isto prova a existência de canções. Em Gil Vi- cente não faltam também indicações d'ellas. Num auctor do século xvii, Villas Boas e Sampaio, ha vestígios de cantigas populares que eu completei num artigo publicado in En- cydopedia Republicana^ Lisboa 1882, pag. 100 sqq., e reproduzido in Revista do Minho, I, 41, sqq. Num auctor do século xvii, o dr. Manuel da Silva Leitão, encontram-se as seguintes cantigas populares:

Dizei-me, minha menina, Com que fazeis o carão. . . Com sopinhas da panella E com vinho de tostão (i).

Toda a mulher que não dorme Quando o homem vem dos bois, Ou ella hade dormir d'antes, Ou ha-de dormir depois (2).

Em um reino não ha dous reis, Em um coração dous amores; Nunca pôde servir bem Um servo a dous senhores (3).

(i) Arte com vida ou vida com arte, Lisboa 1738^ pag. 23.

(2) Ib., pag., 3 18.

(3) Ib., pag., 36o. Estas indicações devo-as ao meu amigo e antigo professor o sr. dr. José Carlos Lopes, que,

DO POVO PORTUGUÊS 7I

O mesmo medico traz o dictado

Olhos verdes

Em poucas caras os vedes (i)

que se completa hoje com a seguinte cantiga modern»:

Olhos pretos, olhos brancos,

Olhos azues, olhos verdes:

Estas quatro castas d'olhos

Em poucas caras as vedes.

Em 1864 publicou o dr. Christ. Fr. Beller- mann em Leipzig a seguinte obra: Portiigie- siscJie Volkslieder iind Roman^en, Portugie- sisch iind deutsch , mit oAumei^kiingen (Can- tigas e romances populares portugueses, em português e allemao, com annotaçÕes). Esta collecção também contém musicas. Alguma das poesias não sao populares. A obra é po- rém interessante (2).

A primeira collecção portuguesa regular de cantigas populares, em ordem de data, é a que se intitula Cancioneiro popular, publicada pelo sr. dr. Theophilo Braga no Porto em 1867.

ao mesmo tempo que é um distincto lente na Escola medi- ca do Porto, possue profundos conhecimentos de biblio- graphia portuguesa, incluindo a parte que se refere á nossa medicina.

(i) Loc. cit., pag. 49.

(2) Cf. um art. in Romania, II, 125-126 (de Morei Fa- tio), e o meu Romanceiro português (n.^ 121 da Bibl. do Povo), pag. 10.

72 POESIA AMOROSA

Como passaram por ella 22 annos, o auctor de certo lhe faria modificações se a reimpri- misse hoje. Nella figura ainda, como authentico, o Poema da Cava, e as Canções de Egas Mo- niz e Gonçalo Hermigues, bem como a Elegia de D. Mendo Vasquez (que Fr. Fortunato de S. Boaventura publicou na Hist. chroji. dcAlcob. Provas e addições ,pag. 64), o que tu- do tem todos os visos de apocrypho. Sobre as poesias do Condestavel, que estão, publica- rei, logo que possa, um estudo critico. Ou- tras composições d'essa collecçao tem auctor co- nhecido. Uma ou outra mais devem ser conside- radas como não-populares, por exemplo algu- mas de pag. 1 53. Apesar d'esses defeitos, o Can- cioneiro popular tem muito valor, não pelo que encerra, como pelo caminho que abriu (i). Este caminho estava porem indicado por Almeida Garrett no prologo da 2.* ed. do seu Romanceiro: «Resolvi, sob nova denominação de Romanceiro e Cancioneiro Geral^ reunir todos os documentos que eu pudesse para a histo- ria da nossa poesia popular, desde onde me- morias ou conjecturas ha, até á epocha actual, acompanhando-os de explicações e glossas, que vão servindo de nexo, que sejam como a liaça, o nastro, que áte estes pergaminhos».

(i) Vid. a seu respeito uma apreciação critica de Morei Fatio in ^{pmania, II, 127-128.

DO POVO PORTUGUÊS 7^

Garrett não chegou a publicar o Cancioneiro. Como trabalho de synthese publicou Garrett um estudo intitulado Da poesia popular em Portugal y que sahiu in T{epista Universal Lis- bonense^ \o\. V, 1 845-1 846, pag. 439, 450, 4605 473, 483. Este trabalho comprehende três ca- pítulos, sendo um de introducção. Nella as- senta Garrett que a litteratura pátria se de- ve inspirar no sentimento e nas tradições da nacionalidade: «O tom e o espirito verdadei- ro português esse é forçoso estuda-lo no gran- de livro nacional, que é o povo e as suas tra- dições, e as suas virtudes, e os seus vicios, e

as suas crenças, e os seus erros Reunir e

restaurar, com este intuito, as canções popu- lares, xacaras, romances ou rimances, solaos, ou como lhe queiram chamar, é um dos pri- meiros trabalhos, que precisamos» (pag. 441). Depois esboça a historia dos estudos acerca da poesia popular realisados na Europa. No cap. II tracta das origens da poesia popular nas nações modernas. No cap. III tra- cta da poesia popular de Portugal e suas diver- sas epochas.Sob cl dQnomimçao áepoesiapopular ou poesia origiiial portuguesa, elle comprehen- de: i) a poesia aborígene (resto da poesia dos Lusitanos); 2) a poesia provençal; 3) a poesia mixta. Não é possível discutir aqui todos esses pontos; basta que diga que Garrett en- tra também em considerações com a poesia

74 POESIA AMOROSA

erudita, e que a respeito da popular falia prin- cipalmente dos romances ; muitas das suas affirmações carecem hoje de correção. po- rém enuncia a these da separação que se deu em grande parte da nossa litteratura en- tre os escriptores e o povo, these que o sr. prof. Th. Braga depois desenvolveu.

De 1869 são os Cantos popular^ es do archipe- jago açoreano, do mesmo sr. Theophilo Bra- ga, onde ha uma valiosa collecção de canti- gas (i).

Em 1871 publicou-se no Porto o i.°vol. do Cancioneiro do povo portiigiih^ contendo Can- tigas populares^ coUigido pelo sr. Francisco Xavier da Silva. Muitas das cantigas são ge- nuinamente populares; noutras creio ter havido retoque.

O sr. Adelino António das Neves e Mello (filho) publicou em Lisboa em 1872 umas Mu- sicas e canções populares colligidas da tradição^ seguindo o caminho traçado por Th. Braga. A collecção é geralmente fiel (2).

Nas collecções publicadas pelo sr. Adolpho Coelho in Zeilschrift f. rom. Phil, de Grõber, III, 61-72, e in Romania (1874), não ha pro-

(i) Sobre estes Cant. pop. vid. uma critica do sr. Olivei- ra Martins in Rev. critica de litteratura mod., Lisboa 1869, n.o 2.

" (2) Cfr. Bibliographia critica de Ad. Coelho (art. de Th. Braga), pag. 204 sqq^*í-ÍJi-i.'

DO POVO PORTUGUÊS 'jS

priamente cantigas populares, mas sim rimas infantis, orações e ensalmos. Cfr. o meu Ro- manceiro Português^ pag. lo-ii.

Em 1879 publicou-se em Lisboa uma Col- lecção de cantigas populares colhidas em dife- rentes terras das provindas e ilhas adjacentes (folheto de 85 pag. Anonymo). Tem algumas canções verdadeiramente populares; tem ou- tras retocadas-, tem outras porém nao-popu- lares.

Na Romania, x, 100-116 (o art. tem a data de Março de 1880), publicou o sr. Z. Consi- glieri Pedroso umas Contribuições para um ro- manceiy^o e cancioneiro popular português, onde se conteem estes assumptos:

Uma pequena introducção ; I. Romances; II. O Natal (Janeiras) ;

III. Os Reis ;

IV. Orações;

V. Cantigas a S. João ; VI. Parlengas infantis e jogos populares; VII. Enigmas populares.

Tem alem d'isso no fim das pag. algumas no- tas comparativas e explicativas. Cfr. o An- nuario das trad. pop. port., i.° anno, pag. 74. A collecção mais numerosa é a do sr. Antó- nio Thomás Pires, a qual conta uns poucos de milhares de canções, distribuídas por va-

/

76 POESIA AMOROSA

rios jornaes, como a Sentinella da Fronteira (onde tem sabido os Cantos populares do Alemte- jo), o Ehense, Jorvial da Manhã, etc. Poucas ve- zes se vê, como nesses trabalhos do tão intelli- gente quão modesto investigador, tamanha de- dicação e amor perseverante pelas tradições populares. Logo que o sr. Pires possa coordenar e classificar num volume ou volumes tudo o que traz disperso pelos periódicos e revistas, de certo terá erguido um bello monumento artís- tico em honra do povo português, sem fal- lar do inexgotavel auxilio que as poesias e mais tradições reunidas por elle prestam desde á philologia e ethnographia nacionaes. A propósito dos Cantos populares insertos nsi Se7i- tinella da Fronteira disse com razão o illustre G. Pitrè : « . . . importante raccolta, laquale pub- blicata a parte (e lo merita davvero) sara do- cumento delia poesia popolare in Portogal- lo» (i).

Posso também mencionar neste logar os Can- tos populares do Bra:{il do sr. dr. Sylvio Ro- méro, Lisboa i883, 2 vol., pois que a tradição portuguesa se propagou ao Brazil. Nessa col- lecção ha muitas cantigas, e algumas musi- cas (2).

Em 1885 (Lisboa) publicou o sr. Alberto

(i) In Archivio per le tradiponi popolari, 11, 626. (2) Vid. a minha critica in Revista de estudos livres, i883. .Jjii;^.;

DO POVO PORTUGUÊS 77

Pimentel A Musa das revoluções, memoria sobre a poesia popular portuguesa nos acon- tecimentos políticos onde, como o auctor confessa,' ao lado das composições propria- mente de caracter popular, ha muitas de ori- gem erudita (como por ex. os hymnos patrióti- cos) e outras de procedência incerta. Este li- vro encerra muitos factos interessantes, e é um dos mais valiosos do sr. Pimentel. Como não posso dedicar-lhe agora uma critica ex- tensa, limito as minhas observações apenas a dois pontos. A pag. 44 sqq. insere o sr. Al- berto Pimentel uns versos que elle denomina Bailada da Serra da Estreita, mas cujo sentido diz que não entende; esses versos forão escritos de memoria por um velho octogenário da Bei- ra-Baixa. Tenham elles a origem que tiverem, vê-se que, quem os fez, desejou representar as luctas do tempo de Viriato, que, segundo a lenda, era um pastor dos Herminios. Uma das estrophes é:

Romanos avançam Ao cume da serra, E o luso se passa Para detrás d'ella.

Bastava isto para refutar a authenticidade da Bailada, quero dizer, para provar que ella não tem nada de popular nem de antigo. Com effeito, a palavra Romanos, se se houvesse con-

78 POESIA AMOROSA

servado na tradição oral da Serra da Estrella, estava transformada em romãos ou romóes (cfr. S. ^omão = 5. Romano, invocado na mesma bailada); em vez de ao cume da serra o povo beirão diria antes ao alto, ao cruto (=coruto), á cruta, etc; a palavra luso não é popular, e é além d'isso uma palavra forjada unicamente pelos nossos eruditos, pois não se encontra nos AA. clássicos, latinos e gregos, que tra- ctaram da Lusitânia; o termo correspondente, empregado por elles, é lusitano (e liisitanicd). A analyse grammatical de outros trechos leva ao mesmo resultado. O povo não diria cer- tanemte íngreme (em alguns portos do sul diz-se ingríme), nem separaria assim o senti- do de um verso:

A gente do velho Maioral

nem faria uma interrupção como se aqui :

na frente,

Co'o peso d'annos andando, Do triste rebanho. . .

nem diria a rir ou chorando, mas sim rindo ou chorando (ou a rir ou a chorar), nem ainda em- pregaria o termo óptima e a phrase magna turba (na Beira dir-se-hia antes: gentiaga, etc). Mas ao mesmo tempo que estes factos denunciam completamente a origem erudita, ha outros

DO POVO PORTUGUÊS

que parece revelarem que houve influencia po- pular, verdadeira ou imitada, na poesia, por- que esta encerra rimas toantes, e até uma curiosa quadra

S.* do Desterro Bemdita sejaes Inda hoje no templo Nos ouviraes,

onde ouviraes, por ouvireis, foi pedido pela ri- ma, como no romance de Santa Iria (versão beirã) se diz também:

Pastores do monte Que gado guardaes,

Que' ermida é aquella ''"* \ '

Que alem branquejaes ( = branqueja)?

OU então

Pastorinho

Que no monte andaes, Que ermida é aquella Que alem alvejaes (i)?

Não me é licito duvidar da veracidade da informação colhida pelo sr. Pimentel, por isso eu não digo que a poesia foi feita ad hoc, mas o que sustento é que ella é de origem erudita

(i) Apud os meus Romances pop. port., Barcellos 1881, n.« 34.

8o POESIA AMOROSA

muito recente, e que, quando muito, teria ser- vido para alguns jogos, festas ou cavalhadas populares, como se usa em varias terras. As- sim fica resolvido em parte o problema que o sr. A. Pimentel propôs no seu livro. A pag. 46 o sr. Pimentel traz outra poesia, tira- da do Arco de SanfAnna de Garrett (II, 93, 3.^ ed.), de cuja aiithenticidade elle suspeita. Aqui não deve haver dúvida nenhuma. Esta poesia foi feita por Garrett de propósito para o romance, como também Herculano fez os versos da Dama de ca^y^iy que inseriu nas Lendas e narrativas, II, 37 e 41, 5.^ ed., não obstante lhe chamar «cantiga de bruxas»; mas elle aqui falia como romancista e não como historiador.

Entre os collectores das tradições popula- res portuguesas merece também menção o sr. José da Silva Vieira, pela sua Revista do õMi- nlio, que se consagra exclusivamente a esse as- sumpto. O sr. Vieira publicou mais dois opusculozinhos intitulados —Ramalhete de can- ções populares colhidas no concelho de Esposende (1887) e õMateriaes para a hist. das trad. pop, do concelho de Esposende, I, Cancioneiro, Espo- sende 1888 (i), ambos fieis, embora ahi se ve-r

(i) Sobre este ultimo vid. uma critica in Cowiw^rc/o de Portugal^ de Lisboa, n.° 2800, de 1888, pelo sr. Armando da Silva, moço de innegavel vomadc e enthusiasmo pelos estudos ethnographicos, nos quaes porém irá longe se

DO POVO PORTUGUÊS 8l

ja que ao coUector falta ainda certa orienta- ção.

Na Folha d'Elvas, do anno de 1889, tem publicado o sr. Soeiro de Brito uma série de artigos curiosos com o titulo de oA poesia po- pular alemtejana, onde o A. se occupa ao mes- mo tempo das danças populares da província. A este art. me referi acima, pg. 47 e 48 e notas. O sr. Soeiro de Brito estuda especial- mente a poesia de occasião, que, embora po- pular e também importante, convém distinguir sempre da tradicional.

Como trabalhos syntheticos refiro aqui, alem dos artigos de Garret tpublicados in Rev. Unip. Lisb., e mencionados acima (pag. 73), mais os seguintes:

a) A poesia popular nos campos por L. A. Palmeirim. In Archivo ^ittoresco, VIII (i865), pag. 138, etc; reproduzido, segundo me dizem, num folheto, e mais tarde publicado como appenso ao volume Galeria de figuras con- temporâneas com o titulo de A poesia popular nos campos^ Porto 1879*, d'aqui foi transcripto na^^e- vista do Minho^ vol. ii-iii, e creio que ainda nou- tros jornaes. O artigo é em forma de folhe- tim romântico, como em 1882 fez Francisco

souber primeiro que tudo fortificar-se com severa edu- cação scientiíica.

POESU AMOROSA 6

82 POESIA AMOROSA

Rodriguez Marin no seu opúsculo Juan dei Piieblo. Tem algumas observações exactas, embora ligeiras e superficiaes, mas também tem várias affirmaçÕes menos conformes. As- sim por ex. diz o sr. Palmeirim: «Desconhe- cedora das tradições pagãs, a gente do campo nega-as por instincto, e mata a sede poética na fonte pura da Natureza». Ora isto não é verdade, porque a máxima parte das tradi- ções populares actuaes é de origem pagã. Ou então o A. não se exprimiu bem. Continua elle: «Cupido, o clássico e brincalhão Cupido, é para os poetas da aldeia um rapazote sem importância. O deus vendado não tem entre elles aras nem culto:

Quem pintou o amor cego Não no soube bem pintar. O amor nasce na vista, Quem não vê, não pôde amar».

{Ar eh. Pitt., ib., 14Ò).

, Nesta mesma quadra se prova que o povo repete, embora inconscientemente, a tradição de Cupido, pois se serve da periphrase amor cego. Mas eu conheço muitas canções com o nome de Cupido:

DO POVO PORTUGUÊS 8^

Se me não sabes amar, Vem cá, que eu te ensinarei; O meu mestre foi Cupido, se não saberei, (i)

Hei-de escrever a Cupido Mandando-lhe perguntar Se um coração offendido Tem obrigação de amar. (2)

Chamaste ao meu cabello

Cannavial de Cupido,

Também eu chamei ao teu

Laços que me tem prendido. (3) »

Na eschola de Cupido Para te amar aprendi ; Para bem de te fallar, Uma carta te escrevi. (4)

No tribunal de Cupido Me fizeram julgador ; Não sei como haja quem de Sentenças contra o amor. (5)

(i) Th. Braga, Canc. pop.^ 1867, pag. 93.

(2) Id. ib. pag. 109.

(3) Adelino das Neves, Music. e canç. pop., 1872, pag. 72. Cfr. A. Th. Pires, Cant. pop. do Alemtejo, n.» 387, e estas variantes:

Chamastes ao meu cabello Chamastes ao meu cabello

Cannavial de Vianna; Dobadoura de dobar;

Eu também chamo ao teu Eu também chamo ao teu

A deshonra de quem ama. Sarilho de ensarilhar.

{"Rev. do Minho, I, 18.)

(4) Th. Braga, Cant. do archipelago, 1869, pag. i35.

(5) A. Thomás Pires, Cant. pop. do Alemtejo, n.° 3o5, (in Sentinella da Fronteira).

84 POESIA AMOROSA

Cupido é quartel-mestre,

quartel aos seus soldados :

Bem puderas tu, Cupido,

Dar quartel aos meus cuidados, (i)

Cupido doe-se d'uma asa, D'uma penna que perdeu : Cupido sempre penas A quem sem penas nasceu. (2)

O Cupido me mandou-o De Lisboa 'ma fitinha, Para prender as meninas Que usam saia sem bainha (3).

No Brazil colheu o sr. Sylvio Romero as seguintes quadras:

Cupido, rei dos amantes, Cupido soube amar; Ainda depois de morto Do amor se quiz lembrar.

Topei Cupido chorando, Perguntei si era dor ; Cupido me respondeu Que era paixão de amor.

Topei Cupido em desprêso, Cousa que nunca pensei ! Deitadinho pelo chão. . . Até c'os pés lhe pisei !

(i) Id. ib., n.o 719.

(2) Da Madeira. Rev. do Minho, I, 48.

(3) Soeiro de Brito, A pões. pop. alemiej. (in Folha de Elvas, n.° 2o5).

DO POVO PORTUGUÊS S5

Cupido subiu ao monte, Fazendo grilhões de prata, Para prender todo aquelle Que tem paixão por mulata.

Cupido, Cupido, aquieta, Não esperdices tua prata, Que é de bem que não se prenda Quem tem paixão por mulata.

Na eschola de Cupido Eu fui o decurião : Aprendi mais que Cupido, Vejam si sei ou não. (i)

Estrellinhas meudinhas, Escadinhas de Cupido, Ou matae-me aquelle ingrato, Ou tirae-m'o do sentido. (2)

Cupido, por ser lettrado, Aprendeu a cravador: Elle cravou diamantes No peito do seu amor, (3)

Eu vi Cupido montado No seu cavallo picaço, De bolas e tirador, Faca, rebenque e laço. (4)

(i) Cant. pop. do Brapl (i883), I, 207.

(2) Ib., ib., 221.

(3) Ib., II, 9.

(4) Ib., ib., 33.

86 POESIA AMOROSA

Cupido subiu ao throno,

Descalço, pisando em flores,

Dizendo : viva quem amo

Morra quem não tem amor (amores), (i)

Cupido, o rei dos amantes Monarcha mui atrevido, Na serra do infernilho Fez corcoviar um novilho (2).

Eu também tenho colhido directamente na tradição popular algumas cantigas em que se falia de Cupido. Veja-se ainda zMiscellanea folklorica de A. Th. Pires, (in Elvensé)^ XXV, Conceito popular de Cupido, onde se reúnem 14 canções em honra do «rei dos amantes».

Todos estes factos provam bem contra o asserto do Sr. Palmeirim. Com quanto não haja dados para poder filiar directamente, sem interrupção, a tradição moderna de Cupido na Mythologia pagã, todavia não se deve negar que Cupido gosa de grande popula- ridade na poesia amorosa. Essa populari- dade deduz-se ainda de que o nosso po- vo identificou Cupido com a vida real : chama-lhe mestre, e falia por vezes na sua es- cola, dá-lhe um tribunal, e um throno, trata-o familiarmente por quartel-mestre (3) e cravador,

(\) Ib., ib., 48. {2) Ib. ib., 64.

(3) Numa canção alemtejana. Ella foi certamente reco- lhida em Elvas (residência do sr. A. Th. Pires), praça d'ar-

DO POVO PORTUGUÊS 87

e falia com graça no seu camiavial, como um poeta clássico faria, pinta-o com asas, a pren- der os homens com grilhões de prata, e con- sidera-o como rei dos amantes, ou deitadinho pelo chão a chorar com uma grande paixão de amor.

Percorrendo as collecções estrangeiras, en- contramos ainda o deus do amor:

Cupido, como nino Se lamentaba:

Y Vénus como diosa, Le consolaba. Hazlo conmigo,

Y tu serás diosa

Y yo Cupido (i).

Cupidillo no gastes

Chanzas conmigo,

Que si no tengo amores

Los he tenido;

Conmigo chanzas,

Que si no tengo amores,

Tengo esperanzas (2).

Cupido me ensenó á amar Yo como nino aprendi ; Cupido fué mi maestro, Yo su discípulo fui (3).

mas onde a vida militar se reflecte a cada passo nas tradi- ções populares.

(i) F. Rodriguez Marin, Caní. pop, esp., II, n." 1867.

(2) Id., ib., n.o 1868.

(3) n.o 2189.

88 POESIA AMOROSA

En la escuda de Cupido Tengo de tomar leccion, Por ver si encontro en el mundo, Quién te quiéra más que yo. (i)

Dices que no te tengo Mucho carino; Preguntarselo puedes, Al Dios Cupido. Porque sin duda Dirdme hirió con flecha, La màs aguda. (2)

No vayas á la tienda

Del Dios Cupido;

Que por cualquier deleite

Lleva un sentido.

con cautela,

No cambies los sentidos

Por bagatelas. (3)

Numa d'esses cantigas falla-se também da eschola como numa das nossas; a influencia erudita é porém mais clara nas hispanholas do que nas portuguesas, porque naquellas entra também Vénus, dá-se a Cupido o nome de dios, representam-no com flechas, etc.

Em canções populares italianas acho tam- bém (dialecto de Roma):

1

(i) n.o 2191.

(2) n.o 2396.

(3) n.o 5982 (vol. IV). I

DO POVO PORTUGUÊS 89

Pò' mannò da Cupid' a 'mpáràne E r imparássi li versi d'amore; Qudnno commincia'ssi a ccompitáne Venissi, bbélla, e m' arubbàssi ér còr. (i)

Nestes versos apparece ainda a ideia da es- cola, revelada nas palavras imparam (apren- der) e ccompitáne (soletrar).

Noutra canção lê-se:

L' amór é ccièco e nun vede lume,

verso com que o coUector compara uma phrase que se encontra num ms. do sec. XVII Uamore è cieco e non conosce íume (2).

Se a tradição de Cupido remontasse no nos- so povo ao paganismo, havia de haver allu- sões a ella noutras partes (em superstições, etc.),e o nome devia ter outra forma; como elle apparece na poesia, eu concluo que tem ori- gem erudita mais moderna, embora não muito próxima de nós.

Mas volto ao artigo do Sr. Palmeirim.

Este A. não se propôs tratar o assumpto scientificamente, e quis apenas tratá-lo como ar- tista, num simples devaneio litterario; claro está por tanto que a minha crítica não deve ser muito exigente.

(i) Sabatini, Saggio di cant. popol. romani, Roma 1878, p. 27. (2) Id., ib., ib.

90 POESIA AMOROSA

b) Historia da poesia popular portuguesa, por Theophilo Braga, Porto 1867, 221 pag. A apreciação de todo o volume não é trabalho para uma simples nota como esta, tanto mais que o livro, por causa da sua data, está evi- dentemente hoje atrasado. No meio de muitas affirmações phantasiosas, e apesar da pouca ordem das matérias, ha porém bastantes observações finas no decurso da obra, e no- ta-se, da parte do auctor, certo sentimento poético que quadra bem com o assumpto (i). Podem ver-se outros estudos syntheticos do sr. Th. Braga nos prólogos que tem feito, quer a livros seus, quer aos de outros, como os Cantos pop. do Brazil, de Silvio Romero, e o Cancioneiro pop. gallego, de Ballesteros; cfr. ainda O povo português do mesmo auctor, vol. I e II em vários logares. No Parnaso Port. mod. do mesmo A. ha pequenas coUecçÕes de poe- sias populares gallegas, ás quaes elle consa- gra na introducção da obra algumas paginas.

c) A poesia popular no Braiil por Silvio Ro- mero (in Revista Bra^ileira.^ vol. i, 11, iii, v, vi e vii). Como o titulo indica, o trabalho refe- re-se particularmente á tradição brazileira, e por tanto sae, em parte, fora do meu plano. Eis os titulos dos capítulos: / Caracter dapoe-

(i) Sobre a Hist. da poesia pop. port.^ de Th. Braga, vid. uma critica de Oliveira Martins, in ^ev. critica de liUerat. moderna, n.° 2, Lisboa 1869.

DO POVO PORTUGUÊS 9I

sia popular' brasileira, o povo, seus costumes e fes- tas, suas cantigas e historias ; II Philosophia de 'Buckie e o atraso do povo brasileiro; III-V Ana- lyse dos escriptores nacionaes que trataram da poesia popular do Brasil, onde o A. se refere com especial individualização a Celso de Ma- galhães, José de Alencar e Carlos Koseritz; VI As miilhei^es e creanças como factores da poe- sia popular, as sandes da mesa; VII Origens; VIII Transformações da lingiia portuguesa na Qámeiica; IX As modinhas e lunduns, littera-

TURA DE CORDEL, O PEREGRINO DA AmERICA, O Cy-

clo provável dos Bandeirantes; X Falta de ca- racter^ ethnico original. O sr. Silvio Romero é um critico enérgico, investigador diligente, e deseja seguir o bom caminho; comtudo, ás vezes arrebata-se e cae em exaggeros filhos da precipitação, ou da sua natureza de fogo. Terei muitas occasiões de analysar algumas das ide'as expendidas nestes artigos.

Entendi que devia fazer todas essas obser- vações bibliographicas, porque hoje não existe sciencia sem critica, porque o leitor fica assim melhor orientado : em tudo quanto se escreve, deve haver a máxima cautella em não propagar noções erradas. E certo que não existe ninguém infallivel ; mas empregue cada um os máximos esforços por acertar, que terá cumprido a sua obrigação.

92 POESIA AMOROSA

Além do que ahi fica apontado, como col- lecções ou trabalhos especiaes, podem ain- da encontrar-se muitas cantigas populares por- tuguesas, tanto nas revistas do género, nacio- naes e estrangeiras (Rev. de etimologia e de glot- tologia, Annuario das tradições populares por- tuguesas, Revista do oMinho, Revista Lusitana, Archivio delle tradiíioni popolari, El folk-lore betico- extremem, etc), como nos próprios jor- naes litterarios e politicos do país ou do Bra- zil, por ex. diário Illustrado, Commercio portu- guês, Jornal da Manhã, Aurora do Capado^ Gaveta Litteraria do Rio de Janeiro, etc. Tem sido mesmo moda ultimamente publicar can- ções populares nas folhas periódicas (i).

O estudo scientifico do cancioneiro popu- lar do nosso país está pois definitivamente inaugurado. Oxalá que o modesto volume que hoje sae á luz possa contribuir de algum mo- do para o progresso d'elle!

(i) Como appenso ao estudo da poesia popular portu- guesa, podia-se tractar da gallega, pois que os gallegos são o mesmo povo que nós, ethnica e linguisticamente; mas, como disse a respeito da poesia brazileira, isso sahia um pouco fora do meu plano primitivo. Sobre a Galliza cfr. porém supra, a pag. 90,

SEGUNDA PARTE

Collecção selecta de poesias de amor

Não canto por bem cantar. Nem por ter falias de amante: Canto para dar gosto A quem me pede que eu cante.

Não canto por bem cantar, Nem por bem cantar o digo: canto para alliviar Penas que trago comigo.

O cantar é dom dos anjos; O bailar, dos namorados; A alegria, dos solteiros; A tristeza, dos casados.

O cantar é para os tristes, Quem o pôde duvidar? Quantas vezes cantarei Com vontade de chorar.

94 POESIA AMOROSA

Quem canta^ seu mal espanta, Quem chora, mais o augmenta Eu canto por espalhar A paixão que me atormenta.

Quem canta seu mal espanta. Quem murmura, penas tem: Vale mais andar cantando, Que murmurar de ninguém.

Janella sobre janella, Janella rente no chão ; Tanta menina bonita. Nenhuma na minha mão !

A rosa, para ser rosa. Deve ser d'Alexandria ; A mulher, p'ra ser mulher, Deve-se chamar Maria.

Maria, minha Maria, Meu rosário, meu botão, Meu oratório de vidro Aonde eu faço oração.

DO POVO PORTUGUÊS 95

Maria, minha Maria, Tu és o meu ai-Jesus ; Nos dias que te não vejo, Nem o sol me quer dar luz.

Meu coração é relógio, Meu peito badaladas : Nos dias que eu te não vejo, Trago-te as horas contadas.

Manuel, tão lindas moças. . . Manuel, tão lindas são. . . Quero-te bem, Manuel, Da raiz do coração.

O meu amor é um anjo, Deu-m'o Deus e eu não no mVeço: Todos m'o querem comprar. . . Anjos do ceu não tem preço.

O meu amor é da rua, fora ninguém o sabe : Tem o andar meudinho. Tem o passear tão grave. . .

O meu amor é da rua, Eu no andar o conheço: Tem o andar meudinho. Como a folha do codêco.

96 POESIA AMOROSA

Oh que rua tão escura, Não vejo nada por ella: Bem puderas tu, menina, Pôr candeias á janella. .

Pus-me a contar as estrellas, a do Norte deixei, E por ser a mais bonita Eu comtigo a comparei.

Oh minha estrella do Norte, Agulha de marear, Eu por ella me governo, Quando te quero fallar.

Oh luar da meia-noite. Tu és o meu inimigo: Stou á porta de quem amo, E não posso entrar comtigo.

Menina do amarello, Diga-me quanto custou, Que me quero vestir d'elle. que tanto me agradou.

A amar e a escolher amante Ensinou-me quem podia: A amar foi a natureza, A escolher, a sympathia.

DO POVO PORTUGUÊS (jy

Que lindo botão de rosa Aquella roseira tem! De baixo ninguém lhe chega, cima não vae ninguém.

Bem sei que sou atrevido, E de atrevido passei. Em deitar os meus sentidos Tão alto como deitei.

Assubi á amendoeira. Toda me enchi de flores : Ainda sou tão novinha. me pretendem d'amores!

Quem diz que o amar enfada. De certo que nunca amou: Eu amei e fui amado. Nunca o amar me enfadou.

A perpétua, se cheirasse, Era a rainha das flores : Mas a perpétua não cheira, Por isso não tem amores.

Eu queria ser ourives. Do oiro que vem de fora ; Queria doirar os dedos Ao tocador da viola.

POESIA AMOROSA

C)8 POESIA AMOROSA

Uma silva me prendeu, Uma silva pequenina : Não ha coisa que mais prenda Que os olhos de uma menina.

Silva verde, não me prendas, Olha que me não seguras, Olha que eu tenho quebrado Outras algemas mais duras.

Os teus olhos me prenderam Logo da primeira vista : Quem tem olhinhos que prendem, De casa tem a justiça.

Meu amor, se te prenderem, Deixa-te dar á prisão : O annel que tu me deste Será a tua livraçao.

Tendes dois olhos na cara, Que parecem dois ladrões : EUes andam pelo mundo Para roubar corações.

Tendes os olhinhos pretos, Inda agora reparei : Se reparasse ha mais tempo, Não amava a quem amei.

DO POVO PORTUGUÊS 99

Tu tens os olhinhos pretos, Como o retroz de cozer. Nascemos um para o outro... Que lhe havemos de fazer?

Delicado é o fumo Que passa a telha dobrada; Delicados são teus olhos, Que namoram por pancada.

O coração e os olhos São dois amantes leaes : Quando o coração tem pena, Logo os olhos dão signaes.

Olhos, que de ver se entendem. Devem de andar amestrados : Deram tempo ao officio. Ou nasceram ensinados.

Costumei tanto os meus olhos A namorarem os teus. Que, de tanto confundidos. Nem sei quaes são os meus.

Ó senhor juiz-de-fóra, Ponha justiça na terra, Prenda-me aquelles dois olhos, Que estão àquella janélla.

100 POESIA AMOROSA

Eu fui O que disse ao sol Que não tornasse a nascer: A vista d'esses teus olhos Que vem o sol fazer ?

Tendes um lindo cabello Pelas costas ao comprido: Parecem-me fios de ouro Ao martello rebatido.

O teu cabello, menina, Mette-te infinita graça: Parece meadas de ouro Adonde o sol se embaraça.

não tenho coração, m'o tiraram do peito: Onde eu tinha o coração, Nasceu-me um amor-perfeito.

O meu amor da minha alma, Quanto tenho tudo é teu, a minha alma não, Que hei-de dá-la a quem m'a deu.

Pedrinhas da minha rua, Hei-de-vos mandar picar Com biquinhos de alfinetes Para o meu amor passar.

DO POVO PORTUGUÊS lOI

VÓS, menina^ sois a neve, Vosso pae é o calor: Vosso pae derrete a neve, Vós derreteis o amor.

Hei-de-te amar tantos annos, Gomo folhas tem o vime: Quero ver em tantos annos Qual de nós será mais firme.

As telhas do teu telhado, As pedras do teu balcão. Essas te podem dizer Se te sou leal ou não.

Déste-me alecrim por prenda, Por ter a folha meuda: Quiseste-me exprimentar. . . Amor firme não se muda.

Amar e saber amar, Qualquer amante faz isso; Amar-te com lealdade. eu nasci para isso.

Debaixo da madre silva Anda o meu bem encoberto: Anda o mundo suspeitoso, Ninguém o sabe de certo.

02 POESIA AMOROSA

Aperta-me a minha mão, Que é um signal encoberto: Antes que (i) o mundo murmure, Ninguém o sabe de certo.

Debaixo da malva roxa Tenho um segredo escondido: Todos sabem que eu namoro, Ninguém sabe o meu sentido.

Coitadinho de quem tem Seus amores em segredo: Passa por elles na rua, Não lhe falia, que tem medo.

Debaixo da ponte nasce Agua clara sem lodo: Sempre é muito adivinhar O amor por quem eu morro!

Fiz a cama no loureiro, Cuidando que era calado: Loureiro é chocalheiro. Tudo traz assoalhado.

(i) = Ainda que.

DO POVO PORTUGUÊS IO3

Minha maça vermelhinha Navega, não vae ao fundo: Inda que eu queira, não posso. Tapar as bocas ao mundo.

Debaixo das frias ondas Cança o peixe de nadar; eu não canço, menina, De te querer e adorar.

Amor com amor se paga, Nunca vi coisa mais justa: Paga-me comtigo mesma, Meu amor, pouco te custa.

Amor com amor se paga, Porque não pagas, amor? Olha que Deus não perdoa A quem é mau pagador.

Vem tu, meu cravo branco. Tão branquinho como a neve: De Deus será castigado Quem não pagar o que deve.

Quando te eu vi, logo disse: Lindos olhos para amar! Que linda boca p'ra beijos! Oh quem t'os pude'ra dar!

104 POESIA AMOROSA

Dá-me um beijo, dou-te dois, Dou-te assim paga dobrada: E stylo de quem namora Não ficar a dever a nada.

Quem me dera ser ditoso Como o linho que fiaes ! Quem me dera esses beijinhos Como vós no Hnho daes !

Dá-me da pêra a perada, Da maçã um bocadinho. Da laranja um gomo, Da tua boca um beijinho.

Menina que está á janella. Quisera ser o seu leito, para a ver debruçada, No peitoril do meu peito.

Fui ao jardim do teu peito Para colher uma flor: Não achei amor-perfeito, Mas achei perfeito amor.

As estrellas do ceu correm Todas- numa carreirinha: Assim corre o meu amor Da tua porta p'rá minha.

DO POVO PORTUGUÊS IO5

Ferros de el-rei (i) são prisões, Mas o amor é mais forte: Para os ferros inda ha lima. Para o amor ha a morte.

Cum fio de retroz verde Quero, amor, que me cosaes O meu coração ao vosso, Que se não desate mais.

A flor da malva é roxa, O verde lhe virtude: Eu passei por ti doente, Agora levo saúde.

Quem quer bem, dorme na rua, A' porta do seu amor: Das pedras faz cabeceira, Das estrellas cobertor.

Cortei o bico á rola, E mais a espiga ao centeio. Quem tem seu amor bonito Ri-se de quem o tem feio.

(i) É expressão antiga para designar a cadeia ou prisão.

06 POESIA AMOROSA

Tenho dentro do meu peito Um escriptorio de vidro. Com chaves de diamante Para me fechar comtigo.

Eu morri uma vez. Achei o morrer tão doce. . . Inda tornava a morrer. Se por tua causa fosse!

Não morras, amor, não morras. Que quem morreu, acabou! Eu também morro por ti, Olha da sorte que eu sou. . .

Oh meu amor, quem te disse, Que eu a dormir suspirava? Quem t'o disse não mentiu. Que eu alguns suspiros dava. . .

passei o mar a nado Nas ondas do teu cabello: Agora posso dizer Que passei o mar sem medo.

Fui assentar-me entre as nuvens, De uma estrella fiz encosto: Abracei-me a uma d'ellas. Cuidando que era o teu rosto.

I

DO POVO PORTUGUÊS IO7

Eu quebrei o cantarinho A porta do meu amor: Mandou-me apanhar os cacos E tornou-o a compor.

Não ha pão como o pão branco, Nem carne como o carneiro, Nem vinho como o maduro, Nem amor como o primeiro.

O cravo branco é firme,

Até no cheirar é doce:

Não ha amor como o primeiro,

Inda que elle vário fosse!

Não ha cravo como o branco. Nem verde como a ortiga: Sempre gosto de te ver, Inda que nada te diga.

Eu não sei que sympathia Meus olhos comtigo tem... Quando estou á tua beira (i) Não me lembra mais ninguém.

(i) A tua beira por ao teu lada. Vulgar no Minho, on- de esta cantiga foi colhida.

08 POESIA AMOROSA

O serpão nesse teu peito Enverdece está a crescer: Também eu á tua vista, Me sustento sem comer.

Eu queria-te fallar, Mas tenho guardas de fronte, Que me trazem em vigia Gomo o coelho no monte.

O meu coração é terra, Hei-de-o mandar lavrar, Para semear desejos Que tenho de te fallar.

O. meu amor me disse hoje Que domingo fallaremos; A semana tem seis dias, Mas eu inda quero menos. . .

Amanhã é dia santo, Hei-de ir á missa do dia, Para ver o meu amor A' porta da sacristia.

Se fores domingo á missa, Põe-te em parte onde te eu veja. Não faças andar meus olhos Em leilão por toda a igreja.

DO POVO PORTUGUÊS IO9

Adeus, ó rua da igreja, Tão comprida como as mais: No meio tem altas torres, D'onde combatem meus ais.

O loureiro é páo verde, Chega ao lume, logo estala: Assim é meu coração. Quando comtigo não falia.

Fui á fonte por te ver, Ao rio por te fallar: Nem na fonte, nem no rio Nunca te pude encontrar.

Assubi á amendoeira,

Pus o na estacaria:

Ai! Jesus, que estou ausente

De um bem que tanto queria.

Meu amor de tão longe, ' Chega-te para perto. Que me doe o coração De te ver nesse deserto.

O meu amor de longe. Perde um dia vem-me ver : Qiiem não appai^ece, esquece, Também eu posso esquecer.

no POESIA AMOROSA

Vae-te, carta venturosa,

Ver um bem que Deus me deu :

Antes tu, carta, ficaras, No teu logar fora eu !

Carta, vae onde te mando. Responde e sabe fallar : Dize que viste meus olhos Maguados de chorar.

O meu amor de tão longe, Resolve-te, vem-me a ver; As cartas não valem nada, Para mim que não sei lêr.

Ausência tem uma filha Que se chama . . . saudade: Eu sustento mãe e filha Bem contra a minha vontade.

O roxo é sentimento. Eu sinto não te ver: Sinto mais a tua ausência Que a hora em que hei-de morrer.

Ao tempo que te não vi. o caminho tem hervas : O bem que tu me querias Tu diz'-me se inda o conservas.

DO POVO PORTUGUÊS III

Quatro com cinco são nove, Para doze faltam três: Se algum dia te faltei, Aqui me tens outra vez.

Meu amor, vieste tarde, Não te estou agradecido: Vieste por outra banda, Tinhas-me o amor perdido.

Minha mãe mandou-me á herva, Eu á herva não hei-de ir: O lameiro tem buracos, Tenho medo de cahir.

Minha mãe mandou-me á herva, Eu herva não sei segar; Mandou-me fallar d'amores, Eu d'amores sei fallar.

Abre-te, janella d'ouro. Coração, salta fora: Anda ver o teu amor, Que chegou aqui agora.

O amor, quando se encontra. Causa penas, e gosto: Sobresalta o coração. Sobem as cores ao rosto.

I 12 POESIA AMOROSA

Fui á fonte dos amores. Passei pela dos cuidados, Enchi o cantVo de rosas, Fiz a rodilha de cravos.

Fui á fonte dos amores, Bebi, tornei a beber: Stava o meu amor defronte, Regalei-me de o ver.

Entre cannas e canninhas, Agua deve de nascer: Menina, que está na fonte, Dê-me agoa, quero beber.

Minhas idas, minhas vindas, Minhas idas ao serão (i): Foi o meu tempo perdido, Minhas passadas em vão.

Fostes ao Senhor da Serra, Nem um annel me trouxestes; Nem os mouros da Mourama Fazem o que vós fizestes.

(i) Nas aldeias do Norte, pelo menos nas da Beií-a- Alta, é costume em certos meses do Inverno juntarem-se as mulheres á noute numa saia ou loja para trabalharem em

DO POVO PORTUGUÊS

113

O amor é um regalo Para quem se sabe avir: Acceitar e não dar nada, Ser liberal no pedir.

O sol prometteu á lua Uma fita de mil cores: Quando o sol promette prendas, Que fará quem tem amores?

O annel que tu me de'ste, Quarta-feira do Senhor, Era'-me largo no dedo, Apertadinho no amor.

Meu annel das sete pedras, Salta fora do meu dedo, Que tu foste o causador. De eu tomar amor's tão cedo!

Minha maçã vermelhinha, Não a comi, nem a dei: Tenho-a na minha caixa. Com ella te pagarei.

commum, á luz de uma candeia paga por todas. Chama-se a isto o serão, que dura em geral até á meia-noute. E' ponto obrigado também para os namorados.

POESIA AMOROSA 3

14 POESIA AMOROSA

Vem tu cá, esmalte verde, Diamante na valia: Cada vez te quero mais, Isto foi feitiçaria. . .

A silva nasce da silva, A silva nasce do chão: O amor nasce da alma, Da raiz do coração.

Da palmeira nasce a palma, A palma nasce do chão: O querer-bem nasce da alma, Quero-te bem do coração.

O limão talha o fastio, A laranja o bem-querer. . . Tira de mim o sentido. Se me queres ver morrer.

te quis um bem tamanho. Com outro mais pequeninho;(i) Quero-te coma (2) mim mesmo, Que mais queres, meu bemzinho?

(i) Esta cantiga foi colhida no Entre-Douro e-Minho, onde o deminutivo de pequeno é pequeninho.

(2) Coma por çomo ç forma archaica, ainda hoje muito popular.

DO POVO PORTUGUÊS Il5

Se eu te não quero bem, Deus do ceu me não escute; As estrellas me não vejam, A terra me não sepulte.

Eu não perdia o meu somno, Por mais amor's que tivesse. . . Quem tem amor's, não dorme, Quem os não tem, adormece.

Quem tem amores não dorme, Quem não dorme está acordado; Mas se dormir é não tê-los, Deus me somno pesado.

Dizem que o amor é morte, Oh quem me dera morrer! Mais vale morrer d'amores Do que sem elles viver.

Até os peixes no mar, Aquelles mais no fundo. Também tem os seus amores Como nós neste mundo.

Botei o limão corrente, A' tua porta parou: Quando o limão te quer bem. Que fará quem o botou?

Il6 POESIA AMOROSA

O rouxinol canta alegre. Por ter a dama no ninho. Olha como é constante O amor de um passarinho!

A roseira com suas rosas Toda se humilha no chão: Quando a roseira se humilha, Que fará meu coração!

Vós, menina, sois a arvore Onde se enxerta o amor: Quem vae tarde, colhe a rama, Quem vae cedo, colhe a flor.

Assubi á oliveira, Colhi flores ao desdém: A todos digo que morro. a ti digo por quem.

Eu subi ao limoeiro, Colhi uma vergasta: O amor que é entendido, Meia palavra lhe basta (i).

(i ) Cfr. o dito vulgar: para bom entendedor meia pala- vra basta.

DO POVO PORTUGUÊS II7

Não te lembras, ó menina, D'aquella noite de verão? Tu a contar as estrellas, Eu as pedrinhas do chão. . .

Meu amor, meu amorzinho, Quem te atirara mil tiros, Cuma pistola de prata, Carregada de suspiros!

Esta noite cahiu neve Numa folhinha de couve: Oh quem me dera cahir Nos braços de quem me ouvel

O amor é forte e não quebra, O rio corre e não cança: Quem me dera adivinhar Se me trazes na lembrança I

Oh! que pinheiro tão alto, Que tão alto comprimento! Quem dera que os braços fossem Onde vae meu pensamento!

Debaixo d'esta ramada Nem chove, nem faz orvalho; Menina, se ha-de ser minha. Não me tanto trabalho.

POESIA AMOROSA

Atira-te d*ahi abaixo, Que eu d'ahi me deitei: Aventura-te, ó menina, Gomo eu me aventurei.

A folha da oliveira E mais comprida que estreita; Desengana o teu amor, Não o tragas em suspeita.

Atiraste-me c'um cravo, Cuma folha me feriste; Viste-me correr o sangue. Nem por isso me acudiste. . .

Suspiros e ais e dores, Imaginações e cuidados. São o manjar dos amantes, Quando andam arrufados.

Suspirando, dando ais. Anda o amor pela rua; Suspira quanto quiesres, Que eu nunca hei-de ser tua!

DO POVO PORTUGUÊS II9

O' ingrata, tu dormes, Dormes e não suspiras... Se me tu quiseras bem. Suspiraras, não dormiras.

O meu amor, a quem deste O teu lenço de pintinhas? Com quem foste repartir O amor que tu me tinhas?

O annel que tu me deste. Era de vidro, quebrou-se: O amor que tu me tinhas Era pouco e acabou-se.

Candeia que não luz, Não se espeta na parede: O amor que não é firme, Não se faz cabedal d'elle.

O meu amor ^da a lanços. Anda a lanços^^. cidade: não ha quem rínce nelle Cinco reis de lealdade.

Coração que a dois ama, Com elle não tenho fé: O teu amor é partido, Mas o meu inteiro é.

120 POESIA AMOROSA

Quem tiver dois corações, Dê-me um, que bem o emprega: Eu tinha um, e dei-o A quem agora m'o nega.

O' coração retrahido, O' cara cheia de enganos, Olha a paga que me deste De te eu amar tantos annos!

Desgraçado é quem ama, Sem primeiro ser amado! Fica c'o tempo perdido, O coração magoado.

Eu corri o mar á roda, Cuma vela branca accesa: Em todo o mar achei fundo, em ti pouca firmeza!

Todo o mar alumiei Cuma vela branca accesa: Em todo o mar achei fundo em ti pouca firmeza (i).

( i) Uma variante do i.° verso c como se viu na quadra anterior: Eu corri o mar á roda. Convém fazer aqui uma observação importante. Evidentemente uma vela ac- cesa a correr o mar é extravagância, mas o povo

DO POVO PORTUGUÊS 121

O mar anda de luto, Também as embarcações: se não pagam amores Senão com ingratidões.

A' minha porta está lama, A' tua está um lameiro: Quando de mim fallares, Olha para ti primeiro.

Eu culpada, tu culpado. Venham as culpas á mesa. Eu culpada por ser firme. Tu pela pouca firmeza.

Agua, sustém-te nos valles, Não sejas tão corredia: não ha amores leaes Gomo noutro tempo havia.

A canna verde no mar, A canna verde na areia. . . Sou leal a todo o mundo, Todo o mundo me falseia.

foi levado a ella em virtude da perda do sentido primordial de yela de embarcação que foi confundida phoneticamen- te com vela combustivel; perdida assim a significação, o phantasioso povo caminhou mais longe ainda, alargando

122 POESIA AMOROSA

Os presos contam as horas, Os degradados os annos: Como não contarei eu, Menina. . . os teus enganos?

Hei- de fazer um vestido De malva roxa do chão, Para ver se te resolvo, O' ingrato coração.

Torno de novo a queixar-me. Meus ais não fazem effeito: Podem abrandar as rochas, Mas não abrandam teu peito.

Eu hei-de amar uma pedra, Deixar o teu coração . . . Se uma pedra não me deixa, Deixas-me tu sem razão!

Loureiro, verde loureiro, Vós que daes a baga branca. Não posso mostrar carinhos A quem me mostra carranca.

a sua ideia, porque o poeta agora não se contenta em correr o mar, mas alumia-o também. Provavelmente na forma primitiva da cantiga entrava a vela branca apenas, sem mais acessórios que a fizessem assimilar á luz.

DO POVO PORTUGUÊS I 23

Bem tolo é quem se mata, Quem por amor se empenha, Sem primeiro reparar Em que matto corta a lenha.

Hei-de-te vir a deixar Onde o rio faz a volta: O amor que não é firme, Deixá-lo! pouco me importa.

Arriguei(i)o rosmaninho, Arriguei, está arrigado: Tira de mim o sentido, Que eu em ti o não trago.

Tu cuidavas em me eu rir Que me tinhas na mão: Eu não sou tão rabaceira Que coma a fructa do chão!

Altas torres tem teu peito, Nas mais altas me eu vi* Não se me que outrem suba Escadas que eu desci.

(i) = oArranquei.

124 POESIA AMOROSA

A madre-silva é cheirosa,, Amargosa na raiz : Não te gabes que me deixas. Pois fui eu que te não quis.

Nem tanto estar á janella, Nem tanto olhar para o chão; Nem tanto tirar o lenço Da algibeira para a mão.

Cuidavas, por me deixares, Que eu de paixão morreria : Foi-se um amor, ficou outro, Vivo na mesma alegria.

Cuidavas por me deixares, Que por ti deitava dó: Bem fraco é o navio Que tem uma amarra só.

Cuidavas, por me deixares, Que eu cortava o meu cabello: (i ) Mas cada vez mais penteada Me hei-de vestir de vermelho. (2)

(1) Ha aqui demonstração de lucto.]

(2) Este verso está nos meus mss. com a forma

Hei -de vestir-me de vermelho ;

DO POVO PORTUGUÊS 125

Aquella menina pensa Que não ha outra no mundo. Não é o poço tão alto, Que se lhe não ache fundo.

Hei-de amar o junco verde, Em quanto tiver verdura: Mas o teu coração não, Inda não fiz escriptura.

cortei o meu cabello. vai a minha gala: A culpa tive-a eu, Dar ouvidos a quem falia.

O amor é grande mal. Não amar é mal maior; Mas amar sem ser amado É dos males o peor.

mas emendei-o assim por me parecer que ficava mais em harmonia com a linguagem corrente, e alem d'isso me- tricamente certo.

126 POESIA AMOROSA

Por te amar deixei a Deus, que gloria perdi! Agora vejo-me só, Sem Deus, sem gloria, sem ti!

Se eu tivera que dar, dera*, Não tenho que dar, acceito: Acceito penas e dores Causados por teu respeito.

O jasmim cahiu do ceu, . Quebrou o á açucena. Não ha gosto sem desgosto, Que logo não cause pena.

Abre-te, janella d'ouro, Da mais íina pedraria: Tu fostes a causadora De eu padecer algum dia.

Assubi ao limoeiro. Cheguei ao meio, cahi; Dizem que o limoeiro é morte, Eu para morrer nasci.

Hei-de subir ao loureiro, E de hei-de clamar Que me fugiu a ventura Na maior força d'amar.

DO POVO PORTUGUÊS

Ondas do mar abrandae, Que eu quero pescar um peixe, Eu quero deixar o mundo Antes que o mundo me deixe.

Meu lenço de cercadura, Hei-de-te pisar aos pés; Antes que saiba que morro, (i) Hei-de saber quem tu és.

Meu lenço de cercadura, Toda me vejo cercada: da vista dos teus olhos Me vejo desamparada.

Meu lenço de cercadura, Todo aos ramos, aos ramos: A maior pena que tenho. Não o rompermos nós ambos. (2)

(1) Neste verso a expressão autcs que está em vez de aÍ7ída que, como é frequentíssimo no fallar popular.

(2) A rima nesta quadra é, como se vê, toante; toda- via a palavra ambos em linguagem rápida e desaffectada. e com especialidade numa phrase em que í7;;ií?osseja pro- clitica, pôde pronunciar-se at7ios, c então a rima ficaria consoante.

128 POESIA AMOROSA

O tempo que te eu amei Melhor fora estar doente. . . Tempo tão mal empregado, Dado de tão boa mente!

O altos montes, ouvi-me, Tende de mim piedade: Roubaram-me o meu amor Na flor' da minha idade!

Quem me quer vender, que eu compro, Um limão por um vintém. Para tirar uma nódoa Que o meu coração tem?

Quando eu aqui cheguei, Dei um ai, tremeu a terra, Recolheram-se as estrellas, Sahiu o sol á janella!

vae o sol abaixo. não nasce onde nascia: não dou as minhas falias A quem as dava algum dia.

não sou quem d'antes era, Nem quem d'antes se dizia: quebraram as vidraças Do espelho d'onde eu me via.

DO POVO PORTUGUÊS I 29

Fui ao jardim do teu peito. Achei o jardim fechado; O jardim também se fecha Para quem é desgraçado !

Quando o rouxinol padece, Uma ave tão pequena, Que fará meu coração Mettido em tanta pena! (i)

D'aqui d'onde estou bem vejo Olhos que me estão matando: Matae-me de vagarinho, Que eu quero morrer penando.

Tenho o meu coração triste, Sempre prompto p'ra chorar, por não saber a sorte Que Deus tem para me dar.

Fechei a porta á desgraça, Entrou-me pela janella: Quem nasce com sorte. Não pôde fugir a ella.

(i) Aqui ha um trocadilho entre pena, sentimento, e as pennas do rouxinol.

POESIA AMOROSA Q

130 POESIA AMOROSA

Eu sou sol e tu és sombra, Qual de nós será mais íirme? Eu, como sol a buscar-te, Tu, como sombra a fugir-me !

Que me quererá a desgraça, Que atrás de mim corre tanto? Hei-de parar e dizer-lhe Que eu de a ver me não espanto.

As pennas de uma pombinha Contadas são vinte e cinco; Mas as penas que eu padeço Conta-as Deus, e eu as sinto.

O' triste sombra, acompanha-me, Desgraçados dae-me a mão : Venha tudo o que for triste Affligir meu coração!

Quando eu te não amava, Contente, alegre vivia ; Roubaste-me o meu socêgo, Ai Jesus, quem tal diria !

Toda a minha vida trouxe Fita verde no chapéu: Agora trago cilicios Para ver se alcanço o ceu...

DO POVO PORTUGUÊS l3

Com as lagrimas fiz contas, Pus-me a rezar ás escuras!. , . O morte, que tanto tardas, O vida, que tanto duras!

Nunca pensei nesta vida Que por meu amor chorasse: Agora choro por elle. . . Ninguém sabe p'ra o que nasce!

Passarinho, que cantaes Nesse raminho de flores: Cantae vós, chorarei eu. . . Assim faz quem tem amores.

Eu tenho á minha janella Um cravo roixo pintado, Regado com aguas finas Que meus olhos tem chorado.

Tenho chorado ao dia Lagrimas mais de noventa : Quem canta seu mal espanta. Quem chora seu mal augmenta.

Se ouvires tocar os sinos. Não cuides que são trindades : Sou eu que me estou morrendo. Pelas tuas saudades.

132 POESIA AMOROSA

Fui-me ao jardim passear, E achei um lenço dobrado, Cheio de lagrimas tristes Que por ti tenho chorado.

Neste lenço deposito Tristes lagrimas que eu choro, Por eu não poder voar Aos braços de quem adoro.

Os meus olhos são dois peixes Que nadam numa lagoa: Choram lagrimas de sangue Por uma certa pessoa. . .

Ai! meu Deus, ai! quem acode A quem não sabe nadar! Ás meninas dos meus olhos Que se afogam a chorar!

Inda hoje não comi Senão lagrimas com pão, Que estes são os alimentos Que os meus amores me dão.

Lagrimas são meu almoço Janto suspiros e dores, Á tarde merendo ais, Á noite ausência d'amores.

DO POVO PORTUGUÊS I33

Se pedras fossem as lagrimas Que eu por ti tenho chorado, Mandava fazer um forte No meio do mar sagrado.

as hervas do campo choram, as flores, de mim tem dor, por ver a crueldade Com que me tratas, amor.

Tenho dentro do meu peito Um cravo branco-dourado. Salpicado d'aguas tristes, Que eu por ti tenho chorado.

Não sei que mal fiz ao sol. Que não na minha rua; Vou-me vestir de preto. Que de branco anda a lua.

Tenho á minha janella Um ramo de violetas : Por amor de ti, menina. As minhas galas são pretas.

Com minhas lagrimas tristes Estes sitios vou regando... Oh! quem é tão infeliz. sente allivio chorando!

l34 POESIA AMOROSA

Os meus olhos, de chorar, nenhuma graça tem; Tenho-lhes dito mil vezes Que não chorem por ninguém.

O olho da vide chora Lagrimas de seis a seis; Também os meus olhos choram . . A causa bem a sabeis.

Dizem que o chorar que tira As penas ao coração: Tanto tenho eu chorado, E as penas inda estão.

Chorae olhos, chorae olhos, Que o chorar não é desprêso: Também a Virgem chorou Quando viu seu filho preso.

Ninguém descubra o seu peito, Por maior que seja a dor: Quem o seu peito descobre A si mesmo é traidor.

O cravo, depois de roxo, Foi-se queixar ao jardim; A rosa lhe respondeu : Tudo por tempo tem fim!

DO POVO PORTUGUÊS l35

Adeus, ó tempo passado, por não tornarás: Quem com lagrimas fizera Que elle tornasse a trás!

Adeus, caminiio da fonte, de mim não és seguido: quebraram as vidraças Onde eu trazia o sentido!

Adeus, chafariz da praça. Onde a agua sobe e desce; Nem a agua me mata a cede, Nem o teu amor me esquece.

Inda que o lume se apague, Na cinza fica o calor: Inda que o amor se ausente. No coração fica a dor.

Atirei c'uma laranja Da Ribeira-Nova ao cães. Para ver se me esquecias. . . Cada vez me lembras mais.

Meu amor, que estás tão triste, Diz-me quem te morreu? Que alegria pôde ter Quem o seu amor perdeu?

l36 POESIA AMOROSA

Laranjeira do d'ouro, Deita raminhos de prata: O tomar amores não custa, O deixá-los é que mata.

Hei-de subir ao teu peito Por uma escada de prata. . Tomar amores não custa, O deixá-los é que mata.

Se passares pelo adro No dia do meu enterro, Pede á terra que não coma As tranças do meu cabello.

Vou-te dar a despedida, Minha laranja redonda; Que eu hoje não canto mais, Por agora bonda, bonda, (i)

Vou deitar a despedida. . . Por hoje não canto mais: me doe o céu da boca, E o coração inda mais.

(i) Bondar ( = lat. abundare) significa bastar.

NOTA FINAL

Em 1882 comecei a publicar a Bibliotheca ethnogra- phtca portuguesa, de que sahiu este volume :

I. TRADIÇÕES POPULARES DE PORTUGAL, que servia como que de introducção geral á serie toda, e onde eu, por isso, e porque logo previ que os restantes volumes tardariam a apparecer a lume, recolhi muitos fac- tos que tinham cabimento nos outros.

No meu plano de colleção geral das tradições popu- lares do nosso país entram ainda os seguintes volumes, cujos materiaes estão jd ha muito reunidos por mim, e de que por vezes, em jornaes ou folhetos, tenho dado amostras :

II. SUPERSTIÇÕES. Como a maior parte do vol. pu- blicado com o titulo de Tradições populares de Portugal encerra superstições, aqui tenho que incluir principal- mente as que recolhi depois. O caracter d'este volume é religioso, tanto em sentido pre-christão, como christão. Entram aqui também as lendas locaes, e deviam entrar os ensalmos, orações e certas fórmulas supersticiosas, se não ficassem melhor na secção da Litteratura. Igualmente é aqui o logar dos amuletos.

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' «ra do douro, ^e prata: : "^ «»rcs não custa, Cai«)sé que mata.

*' ^c subir fo teu peito P Ma escadt de prata. . «mores não custa, -.^•los é (jue mata.

S iMres pelo adro

■o meu enterro, I j terra que não coma A tszis da meu cabello.

Vi IK dar a despedida, M a linm;a redonda; Qi ev hoje não canto mais, Po a^ora— bonda, bonda, (i)

a despedida...

y:-' mais: _. boca, o inda mais.

NOTA

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EmiffiicoMcaifÉiaíiafl

fhíu porti^ è fi ^ fliil

I. TRADiÇÓESfORUe-r sema cooo que è mát^ : onde eu, por íbdl e pfi i^ - volumes tardnB i fpnor tm^

tos que àiai cAbÍb wii

NomeopiMèd^piAi

laresdoioaopén^ cujos mattms e^ » fe ^ ^ de que por TCB, I amostras:

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rlAêhHdjreJsigíúf

NOTA INAL

necei a public: a Bibliotheca ethnogra- ?a, de que sahi este volume :

:ÓES POPULAES DE PORTUGAL, que

[ue de introdu:ão geral á serie toda, e isso, e porque )go previ que os restantes iam a apparecea lume, recolhi muitos fac- cabimento nos)utros.

IO de coUeção^eral das tradições popu-

país entram mda os seguintes volumes,

\s estão ha mito reunidos por mim, e

tzes, em jornae ou folhetos, tenho dado

iTIÇOES. C - lo de T

Içóes.

r

á^

138 POESIA AMOROSA

III. FASTOS. Incluo aqui as festas de caracter popu- lar, e as tradições em relação com o tempo. O assumpto d'este vol. pertence rigorosamente ao antecedente; mas, em virtude do desenvolvimento que toma, pôde constituir um vol. separado, embora a seguir. Em parte liga-se também com os outros.

IV. COSTUMES. Gomprehenderei aqui os jogos, as bellas-artes (musica, dança, iconographia, etc), as indus- trias, os trajos, a vida domestica e rural, com a descri- pção dos vários instrumentos d'esta, como fiz no Estudo ethnographico a propósito dos jugos e cangas dos bois no En- tre-Douro-e-oMinho ; comprehenderei ainda a descripçâo dos gestos populares, dos namoros, casamentos, funeraes, modos de passa-tempo com adivinhações, etc. É claro que muitas vezes tenho de abrir aqui a secção, e dar-lhe desenvolvimento noutro logar ; assim, por exemplo, as adivinhas hão-de ir na Litteratura, adeante.

V. LITTERATURA. Conforme a linguagem é ou não sujeita a certas condições rigorosas de harmonia (medida, accentuaçâo ou quantidade, e ás vezes rima), assim se denomina prosaica ou poética, podendo ainda estabele- cer-se graus intermédios, do que resulta a prosa poética, como vemos por exemplo em certos capitulos do Eurico de A. Herculano. Com quanto se conceba que todos os assumptos que se tratam em prosa se possam tratar em verso, tem-se porém destinado este para certos assum- ptos em especial; d'aqui o dividirem-se as composições litterarias em duas grandes classes principaes : poesia e prosa. O mesmo se pôde fazer em relação á litteratura popular.

I. Poesia. vimos que a poesia tem de entrar nou- tras secções mais ou menos. Aqui considera-la-hei no seu conjuncto, e por isso constituo as seguintes secções:

A) Lyrica. Nesta secção incluo :

DO POVO PORTUGUÊS I Sq

a) Poesia do berço ;

b) Rimas infantis^ comprehendendo também certas fórmulas (contra o nevoeiro, etc) ;

c) Adivinhas, também chamadas adivinhações ;

d) Poesia amorosa^ dispondo as cantigas segundo a ordem natural por que se succedem os sentimentos que as produzem ;

e) Poesia saíirica. Parodia. Em parte entram no § an- tecedente ;

f) Desafos, que também em parte entram nos §§ d-e;

g) Ensalmos (cfr. vol. II). Também aqui deviam en- trar na origem certas fórmulas do § b, mas perderam em parte o caracter religioso;

h) Orações e varias outras fórmulas. Como algumas orações, etc. são em prosa, devem ir na respectiva sec- ção;

i) Adagies. Esta parte fica indicada aqui, mas de- ve ir na secção mixta, pois que ha adágios em prosa e verso. Os adágios são de muitas espécies : topographicos ou tópicos (geralmente em forma de apodo aos habitan- tes de certas localidades), meteorológicos, a gr i colas, mo- raes, etc;

j) Poesia histórica;

k) Cantos das más (Reis, Janeiras, Maias, romarias, ladainhas, etc), que entram também no vol. dos Fastos;

1) 'Poesias varias (ex. : vestígios das choradeiras, etc).

B) Épica. Entram nesta secção os romances ou xaca- ras, que são também de varias espécies (sagrados, histó- ricos, etc). Ás vezes é difficil decidir se uma composição deve ser coUocada aqui, ou nas orações (por exemplo o rí?s- ponso de St.° António), ou nas cantigas históricas. Por outro lado os romances que degeneraram em prosa, pas- sando á classe de contos, pertencem a outra secção.

C) Dramática. Também em parte é em prosa. Esta sec- ção é a mais pobre da litteratura oral. Composições drama-

140 POESIA AMOROSA

ticas extensas, verdadeiramente tradicionaes, ha poucas, ou não as ha mesmo, porque as que se usam teem caracter individual. Ha porém rudimentos: assim podem conside- rar-se como taes o julgamento do gallo, e outros julga- mentos que se fazem em certas occasióes (Entrudo, etc), as /oj5, certos jogos e coros (nos Reis, etc). No conti- nente, pelo menos na Beira-Alta, o povo chama entreme- ses ás composições propriamente dramáticas. Na mi- nha infância vi naquella provincia um pequeno manu- scripto com letra, talvez, do sec. xviii, copiado por um frade, e em que havia versos da corrida do gallo.

2. Prosa. As composições prosaicas formam certas classes, segundo a sua forma e o seu assumpto, embora to- dos os assumptos se possam tratar pela mesma forma. Nos nossos compêndios de rhetorica destinados ás aulas despreza-se sempre este principio, e assim é vulgar ver na mesma linha, ao lado do discurso oratório, por exem- plo o discurso histórico, como se a historia se não pu- desse tratar em forma de conferencia. Segundo a forma, creio que as composições litterarias em prosa se devem classificar assim:

a) narrativas propriamente ditas, se o auctor expõe o seu assumpto ao correr, por exemplo um jornal, um diccionario, etc;

b) dialogadas, se o auctor desapparece, e apenas in troduz personagens que faliam entre si, por exemplo um drama, e esses numerosos hvros que possuimos com o próprio titulo de Diálogos;

c) narrativo-dialogadas ou [românticas], se ha combi- nação dos dois géneros precedentes, por exemplo a no- vella;

d) oratórias, se o auctor falia a um auditório, por ex- emplo os sermões, brindes, lições, conferencias, etc;

e) epistolares, se o auctor trata com pessoas ausentes quasi como se estivessem presentes, e por tanto se lhes dirige directamente.

DO POVO PORTUGUÊS I4I

É claro que ainda uma carta ou um discurso oratório podem fazer parte, quer de uma narração ou de um dialo- go, quer de uma composição narrativo-dialogada; mas isso é um incidente, não constitue ahi espécie definida. Qualquer assumpto de sciencia pôde ser tratado por todas aquellas formas: assim é que se tem escrito cartas sobre a Mathematica (ex. as de Euler), romances com ca- racter scientifico Julio-Verne) ou histórico, etc. Classi- ficar as composições litterarias quanto ao assumpto é o mesmo que fazer a classificação das sciencias; por tanto não é trabalho para aqui. Qualquer dos assumptos pôde ser explanado com extensão, ou apenas em trata- dos^ memorias, dissertações, etc, ou ainda com o feitio de critica^ quando se não expõe uma doutrina seguida, mas se tem de apreciar pontos expostos.

A litteratura exclusivamente prosaica do nosso povo offerece em especial á consideração os contos q facécias, e certos modismos, como por exemplo as comparações («verde como as hervas», «preto como o carvão», etc.;, de que o Sr. A. Thomás Pires publicou numerosos es- pécimes.

3. Género mixto. Não quero significar com esta expres- são a prosa poética, de que fallei acima (d'esta não co- nheço exemplos na litteratura popular), mas quero refe- rir-me ás composições que tanto podem ser em prosa como em verso, e àquelloutras de que ha exemplos com as duas formas, a saber: romances degenerados, orações, entremeses, adágios, etc. Também tenho ouvido con- tar em forma de conto romances que porém não perde- ram ainda a forma poética.

Com estes materiaes, e com os outros recolhidos pe- los diversos investigadores portugueses, os Srs. Theophilo Braga, Adolpho Coelho, António Thomás Pires, Consi- glieri Pedroso, etc, é que se ha de proceder ao estudo completo da historia e significação das nossas tradições,

142 POESIA AMOROSA

como em parte tem sido ensaiado. As tradições populares não nos dão ideia do estado mental do povo que actualmente as conserva, dão-no-la também a res- peito do passado, quando a significação antiga d'ellas se determina, e servem para mostrar as relações entre os povos que as propagaram e que as receberam, alem de esclarecerem ainda outras questões.

Na lista summaria que acima fiz dos volumes que te- nho para publicar não foi meu intento referir-me senão aos materiaes propriamente ditos, i. é, considerados em si, independentes de todo o trabalho de apreciação, compa- ração e investigação genética. Este trabalho, como disse, diífere do primeiro, e por partes se pôde fazer.

O volume que hoje oftereço ao publico é uma d'essas partes, embora acanhada, pelas razões que dei no pro- logo.

índice

Prologo

PRIMEIRA PARTE

§ 1. Natureza da poesia popular: A poesia em ge- ral. — A poesia popular portuguesa. O amor nas cantigas do povo. Subjectivi- dade e objectividade do sentimento. 9

§2. MORPHOLOGIA DAS CANTIGAS POPULARES!

Razão da belleza das cantigas. O que é poesia collectiva. Forma das cantigas. Desafios dos cantadores. Improvisos, des- cantes. — Dichotomia das quadras (antithe- se, comparação, absorpçáo; obscurecimento gradual do sentido, obscurecimento total). Espécies de rima. O cancioneiro hispa- nhol e o português. O metro. Phone- tica das cantigas populares 14

§3. Importancl\ da poesia do povo : A vida do- mestica. — A vida social. Influencia da litteratura popular na litteratura erudita. A arte. A sátira. Poesia histórica. As tradições em geral 52

PAG.

§ 4. BiBLioGRAPHiA DO ASSUMPTO : Allusócs em obras antigas ás cantigas populares portu- guesas.— Collecçóes modernas. A baila- da (sic) da Serra da Estrella. Cupido nas tradições poéticas ... 69

SEGUNDA PARTE Preludio 93

As ESPERANÇAS 94

Os ARRUFOS I l8

Os DESALENTOS 125

Nota final 1 3/

ERRATAS

PAG.

LINHA

EM VEZ DE

LEDE

l8

3

effectivas

affectivas

78

M

portos

pontos

90

19

pequeiias collecçóes

uma pequena collecçáo

107

nota

a tua beira e lada

á tua beira e lado

*•

Estas

são as mais importantes

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PQ Leite de Vasconcellos Pereira

V^l6l de Mel 2^ José

L7L^ Poe^a sunorosa do povo

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