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PRINCETON . NEW JERSEY PRESENTED BY

The Author

Al. Alie.

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PRIMEIRA EPÍSTOLA DE PAULO

AOS CORÍNTIOS

PRIMEIRA EPÍSTOLA DE PAULO

AOS

CORINTIOS

(E X p o s i f á o) P o r

C H A R L ES R. E R D M A N

Professor de Teología Prática, do Seminário Teológico de Princeton, New Jersey (E. U. A.), e Pastor da Primeira Igreja Presbiteriana da mesma cidade.

(Tradufáo de D. A. M.)

Rúa Helvetia, 737 Subsolo SAo Paulo 19 5 6

PREFACIO

A Igreja de Cristo é a sociedade mais significativa e de maior importancia que se estabeleceu entre os homens. Nem todo o mundo a aprecia déste modo. Também nem sempre a conduta dos seus membros corresponde á sua orígem divina e á sua missáo impar. Entretanto, os que adoram como seu Senhor o Fundador da Igreja e créem que, por ela. Cristo está realizando o seu gracioso propósito de redimir o mundo, ésses vdo ler com interésse, profundo e constante, a carta de que nos propomos fazer uma exposigáo neste livrinho. Foi escrita pelo Apostólo Vaulo aos cristáos de Corinto e trata de questoes de vital im< portáncia ligabas á vida, ao ministerio e á mensagem da Igreja.

As circunstancias que deram lugar as questoes levantadas foram em grande parte locáis e temporarias, contudo a maneira eomo o apostólo as encara é de interésse imediato e de valor permanente, visto como discute cada uma á luz de algum priu' cípio sempre atual. Todos quantos se interessam pela paz, pureza e progresso da Igreja devem procurar aplicar ésses prin- cipios na solugáo dos problemas urgentes da atualidade.

DO Autor

INTRODUCÁO

A cidade de Corinto está se desenterrando do em que ficou sepultada. Pelo menos é certo que escavacoes recentes estáo fazendo essa velha cidade grega reviver diante dos olhos, no pensamento e na imaginacáo do mundo. Fitar seu grande teatro, 1er a inscricáo ainda existente na "Sinagoga dos Judeus", passear peío pavimento de m^osaicos de suas "vilas" imperiais, e visitar o fórum onde funcionou o tribunal de Gálio é como lancar uma ponte por cima dos séculos que decor- reram daquela época até hoje; é viver as cenas de um pas- sado morto e esquecido.

Noutro sentido, porém, Corinto nao morreu jamáis. Duas breves cartas, escritas pelo Apostólo Paulo, a um grupo de cristáos daquela cidade, conseguiram fazer que incontá- veis leitores seus se familiarizassem com ela através de su- cessivas geracoes. Na memoria désses leitores, Corinto nunca deixou de existir. Por outro lado, á luz de recentes descobertas alí realizadas, essas epístolas de Paulo se tém tornado mais expressivas, mais vitáis, mais dignas de e mais reais do que durante todos estes séculos.

No tempo do apostólo, Corinto era a cidade mais impor- tante da Grécia. Atenas, nao dúvida, era um centro maior de cultura e mais gloriosamente refulgía ñas páginas da historia. Corinto, entretanto, era a capital da provincia romana da Acaia e sobrepujava a todas as outras cidades em importancia política e comercial. Destruida por Múmio, ge- neral romano, em 146 A. C, foi reconstruida um século mais tarde por ordem de Júlio César, recuperando logo e até ul- trapassando sua condigáo anterior de riqueza, beleza, esplen- dor e poder.

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Seu rápido crescimento foi devido, em grande parte, á sua localizagáo. Situava-se no estreito istmo que ligava o Peloponeso ao continente grego e separava os mares Jónio e Egeu. Para o oeste ficava o porto de Liqueu; para leste, Cencréia. Devido a essa situagáo foi chamada "sl Cidade dos Dois Mares". Situava-se pois na rota principal que ligava o Oriente ao Ocidente e tornou-se o principal emporio entre a Asia e Roma.

A riqueza da cidade era enorme. Em populagáo prova- velmente ocupava o quarto lugar entre as cidades do Império Romano. Seus habitantes inicialmente foram colonos, a maioria dos quais eram libertos romanos. A descendencia désses colonos juntou-se uma torrente de gregos nativos.

Afora isso, Corinto atraíra grandes levas de estrangeiros, tanto do Oriente como do Ocidente. Essa gente enchera a cidade e adotara a língua e os costumes dos gregos. Como na maioria das cidades, havia também grande colonia judaica que mantinha suas crengas e seu culto distintivos. Seguramente metade da populagáo era de escravos.

Apesar de seu comércio, Corinto orgulhava-se de sua cultura. Por toda parte viam-se oficinas de artistas, sal5es onde se praticava a retórica e escolas de filosofía. A cidade, todavía, nao tinha apenas fama de riqueza e cultura; também se tornou famosa em maldade e corrupgáo moral. Era sede de uma aviltante modalidade de culto a Venus, bem como de outros cultos licenciosos originarios do Egito e da Asia. "Viver á corintia" ou "corintizar" queria djzer, nos dias de Paulo, viver em luxúria e licenciosidade. Tornaram-se igual- mente proverbiáis expressoes tais como "banquete corintio" e "bebedores corintios".

A fundacáo de uma igreja crista em tal ambiente foi prova notávei do poder do evangelho e uma das mais assi- naladas Vitorias do apostolado de Paulo. Foi um triunfo arrancado á fórca em meio a ameacas de fracasso. O apos- tólo chegara alí abatido ,desanimado e sozinho. Fazia sua Segunda e grande Viagem Missionária. Partindo de Antio- quia, viajara em direcáo do oeste, a Tróade. Correspondendo a um chamado divino, atravessara o mar, rumo á Europa onde, em Filipos e Atenas, fundou igrejas, passando ao sul da Grécia. Em Atenas teve recepgáo fría e desalentadora.

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Voltou a Corinto, chegando alí como estrangeiro desconhe- cido, sem companheiros, desprovido de recursos, sem amigos e sentindo um peso no coragáo á vista da impiedade, da im- pureza e do vicio que alí campeavam. Comecou a pregar sentindo fraqueza, temor e muito tremor, mas determinado a ser fiel á mensagem de Cristo e sua cruz.

Acamaradou-se logo com dois judeus Áquila e Frisca, que havia pouco tinham sido expulsos de Roma e que se ha- viam estabelecido em Corinto como fabricantes de tendas. Como Paulo fósse da mesma raca e do mesmo ramo de ne- gocio, foi por éles recebido com prazer em casa. Paulo achou- os dóceis quando Ihes falou de Cristo. Logo mais recebeu nova dose de animacáo com a chegada de seus amigos Silas e Timoteo. Resultado: passou a anunciar o Evangelho com desusado poder e vantagem. Seus primeiros auditorios fo- ram na sinagoga, mas por causa da exasperacáo e feroz opo- sicáo de seus adversários judeus, abandonou a sinagoga e ^ fundou uma assembléia crista na casa contigua, de Tito ;; Justo. Éste, prosélito dos judeus, cu jo nome a entender V era cidadáo romano, pode oferecer a Paulo um refúgio hon- roso e serviu de estímulo ao grupo crescente dos que se con- vertiam. Entre estes, que se reuniam na casa de Justo, estava Crispo, principal da sinagoga, sua familia e mais outras pessoas importantes. O grosso dos convertidos, porém, saiu de classes mais humildes, até dentre os libertos e escravos. Alguns eram judeus, mas a maioria era de gentíos. Nessa ^cém-fundada sociedade nao havia muitos que se tivessem ducado em escolas, nem dignitários, nem poderosos, nem aristócratas de nascimento. Entre éles via-se o contraste da iqueza e da pobreza, da alta e da baixa sociedade. Os po- ras e de baixa extragáo, porém, formavam a maioria naquela assembléia crista. Muitos haviam sido arrebatados dos mais profundos abismos da luxúria paga.

Por ésse tempo o coracáo do apostólo recebeu o grande lento de uma visáo noturna, na qual o Senhor Ihe ordenou falasse intrépidamente, assegurando-lhe protecáo e éxito. Paulo obedeceu: ficou dezoito meses alí, pregando principal- mente a gentíos e estabelecendo uma animada comunidade crista. Movidos de inveja e odio, os judeus sublevaram o povo e arrastaram o apostólo ao tribunal do procónsul Gáüo. Éste nobre romano, irmáo do filósofo Séneca, recusou-se desde- nhosamente a apreciar as acusagoes de heresia que os judeus

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centavam levantar contra Paulo. Expulsou-os do tribunal e deixou que os gregos espancassem Sostenes, principal da sinagoga. Parece que ele considerou essa atitude dos gregos um ímpeto de bem merecida justica e um sinal de que o povo apoiava sua atuagáo no caso. A atitude de Gálio com írequéncia tem sido interpretada como indicativa de indi- ferenga religiosa. Mais própriamente devia ser considerada um exemplo de tolerancia religiosa e como um aviso de que o Govérno Romano sancionava a proclamagáo do evangelho na Grécia. Assim, quando mais tarde Paulo encerrou suas atividades em Corinto e viajou para Jerusalém e Antioquia, deixou alí uma igreja forte e florescente, práticamente sob a protegáo de Roma e capacidade a prosseguir na evangeli- zagáo de toda a provincia da Acaia.

Em sua Terceira Viagem Missionária, durante a longa permanencia de tres anos em Éfeso, Paulo manteve cons- tantes relagóes com a jovem igreja de Corinto que ficava a oeste, do outro lado do mar Egeu. Foram trocadas cartas entre o apostólo e seus convertidos corintios. indicacoes de que ele fez rápida visita áquela cidade, retornando mais uma vez a Éfeso. Logo ao chegar ai parece que recebeu uma noticia agradável das condigoes da igreja, isso por intermédio de Tito, a quem Paulo enviara com o fim de cientificar os corintios do plano que tinha para socorrer os irmáos pobres de Jerusalém, e de obter a simpatía e o apóio déles. Depois disso o eloquente evangelista Apolo, após um ano de trabalho frutífero em Corinto, juntou-se a Paulo em Éfeso, quando Ihe levou noticias dos irmáos na Grécia. Mais tarde chega- ram-lhe informagoes pouco lisonjeiras dessa igreja, cujas condigoes eram entristecedoras Além do que, uma delegagáo de tres membros distintos da mesma cruzou o mar e foi ter com o apostólo para uma consulta. Outras informagoes claras llie foram prestadas por membros da familia de Cloe.

De todas estas fontes Paulo recebeu seguras e completas noticias da situagáo em Corinto. Os fatos eram quase todos alarmantes. A igreja estava dividida em partidos e desgra- gadamente a disciplina se havia relaxado. Os irmáos con- tendiam uns com os outros, levando suas questoes aos tribu- nais pagaos, enquanto toleravam grosseiras imoralidades em sua vida social. Queriam ser instruidos com relagáo ao ca- samento e mais quanto ao uso de alimentos oferecidos aos ídolos e quanto ao devido emprégo dos dons espirituais. Nao

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mantinham ordem na celebragáo da Ceia do Senhor e alguns até chegavam a negar a doutrina da ressurreiQáo dos mortos.

Com habilidade de mestre consumado, Paulo escreve- -Ihes esta carta, onde trata de todos estes problemas. Em vez de responder cada pergunta ordenando com autoridade ou estabelecendo uma regra arbitrária, ele firma o principio envolvido em cada questáo e déste modo oferece uma solucáo de valor permanente. Sim, porque se as condigoes de hoje diferem daquelas de Corinto, os problemas no entanto sao análogos, servindo para a sua solugáo os principios aqui apre- sentados por Paulo. As questoes diferem na forma, mas na esséncia sao as mesmas, donde se que os principios evan- gélicos que elas envolvem nao perdem sua validade.

Paulo arranja em ordem lógica os problemas que Ihe pro- puseram. Alguns leitores de I Corintios pensam de modo diferente. Nao véem ai nem ordem, nem método, nem uni- dade. Existe um crítico severo que até chega a avangar o seguinte: Paulo "nao tinha a necessária paciencia para es- crever e era incapaz de usar método". Por outro lado, um comentador moderno, dos mais autorizados, diz a respeito desta carta: "Jamáis um edificio intelectual foi mais admi- ravelmente plañe jado e executado, embora com materiais muitíssimo diversos". Os assuntos, com efeito, sao variados e heterogéneos. Comumente sao agrupados em número de dez, a saber: partidos na igreja, escándalos, questoes judi- ciais, impureza, casamento, alimentos oferecidos em sacrificio, comportamento da mulher no culto público, administragáo dos sacramentos, dons espirituais, e ressurreigáo dos mortos.

Postos nessa ordem, vé-se que Paulo trata primeiro de urna questáo eclesiástica, ou sejam divisoes na igreja. Se- uem-se tres questoes moráis: o caso de disciplina, litigios perante os tribunais, e a impureza na vida social. Vém após duas questoes dependentes das circunstancias, isto é, o casa- mento e o uso de carnes oferecidas aos Ídolos. Adiante con- sidera tres questoes litúrgicas: a maneira de a mulher se portar durante o culto, a administragáo da Ceia do Senhor, e o exercício ordeiro dos dons espirituais. Por fim, uma ques- táo de ordem doutrinária: a ressurreigáo.

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Quanto mais cuidadosamente se considere o arranjo déstes assuntos desconexos, tanto mais se apreciará a sar bedoria da ordem adotada pelo apostólo.

Nos nove versículos do coméco da carta, Paulo se detém em considerar a relacáo que entre o crente e Cristo. Esta relacáo vital é que faz da epístola um todo harmónico. Seu conteúdo pode ser sumariado assim: A uniáo com Cristo é desabonada pelas faccoes ou partidos, caps. 1 a 4; é destruida pela impureza, caps. 5 e 6; é enaltecida e ilustrada pelo ca- samento, cap. 7; é profanada pela idolatría, caps. 8 a 10; é simbolizada pela Ceia do Senhor, cap. 11; é aviltada pela de- sordem, caps. 12 a 14; é consumada na ressurreigáo, cap. 15.

O capítulo final instrucoes a respeito da coleta em favor dos eren tes pobres de Jerusalém, contendo aínda re- ferencias e saudacoes pessoaís. Um esbógo mais compreensivo e pormenorizado da epístola se verá ñas páginas a seguir.

NOTA : O texto portugués da I Epístola de Paulo aos Corintios, usado nesta obra, « o da Versáo Revista de Almeida, da Sociedade Bíblica Brasil.

I. Saudagáo e Agáo de gragas. I Cor. 1:1-9.

1 Paulo, chamado pela vontade de Deus, para ser apostólo de Jesús Cristo, e o irmáo Sostenes, 2 á igre- ja de Deus que está em Corinto, aos santificados em Cristo Jesús, vocacionados para ser Santos, com todos os que em todo lugar invocam o nome de nosso Senhor Jesús Cristo, Senhor déles e nosso; 3 graga a vos outros e paz da parte de Deus nosso Pai e do Senhor Jesús Cristo.

4 Sempre dou gragas a Deus a vosso respeito, a propósito da sua graga, que vos foi dada em Cristo; 5 porque em tudo fóstes enriquecidos néle, em toda pa- lavra e em todo o conhecimento; 6 assim como o tes- temunho de Cristo tem sido confirmado em vos; 7 de maneira que nao vos falte nenhum dom, aguardando vos a revelagáo de nosso Senhor Jesús Cristo; 8 o qual também vos confirmará até ao fim, para serdes irre- preensiveis no dia de nosso Senhor Jesús Cristo. 9 Fiel é Deus, pelo qual fóstes chamados á comunháo de seu Filho Jesús Cristo nosso Senhor.

As palavras com que Paulo comeca suas epístolas sao de muita importancia. É certo que essa maneira de comecar cartas nao era exclusividade déle; naquela época era ésse o estilo adotado geralmente. Entretanto nao sao fórmulas va- zias de sentido: significam muito mais do que a simples de- signagáo do autor e daquéles a quem se destinam. A sau- da^áo nada tem de convencional. Tais fórmulas introdutó- rias condizem com o teor das cartas a que pertegam e em alguns casos quase qué encerram um sumário dessas cartas.

Assim, pois, na introdugáo desta, que consiste numa sau- dacáo e num agradecimento a Deus, Paulo menciona os grandes temas que irá desenvolver, isto é, a unidade da Igre-

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ja, sua pureza, seus dons espirituais e sua gloria futura. Os primeiros quatro capítulos que se seguem ocupam-se das dissencoes partidarias que estavam destruindo a unidade crista. Os sete subsequentes discutem a pureza e a santidade da Igreja, que estavam perigando. Os caps. 12 e 14 tratan dos dons espirituais que enriqueciam aquela Igreja. O cap. 15 focaliza a gloria da ressurreicáo que iremos gozar "no dia de nosso Senhor Jesús Cristo". "

Paulo ainda fere outra nota ñas primeiras palavras da saudagáo: é a sua autoridade apostólica, de que certas pessoas ousavam duvidar. Comega, pois, lembrando aos leitores a comissáo divina que recebeu, quando se declara "apostólo de Jesús Cristo". Tal condigáo de apostólo resultou de uma chamada definida e estava de acordó com a "vontade de Deus". A intimagao soara-lhe aos ouvidos quando no cami- nho de Damasco, e depois em Jerusalém. Ésse apelo divino mudara-lhe o curso da vida e descortinara-lhe o panorama de um trabalho mundial, que seria um testemunho vasto em prol de Cristo, para o qual houvera ele sido ordenado pelo eterno propósito de Deus. A íntima convicgáo de ter sido chamado por Deus sempre foi uma inspiragáo para ésse po- deroso mensageiro da cruz. Uma convicgáo igual deve digni- ficar e enobrecer o servigo do mais humilde seguidor de Cristo, que aceite uma tarefa, suporte provagoes e trabalhos, sempre submisso á vontade do Mestre.

Paulo, porém, nao fóra intimado a realizar um trabalho comum. Declara-se "apóstolo" e com isso quer dizer que ocupa a posicáo de testemunha oficial, especialmente escolhido e revestido de poder, de modo que as mensagens que passa a transmitir revestem-se da própria autoridade de Cristo.

Ao seu próprio nome associa o de Sostenes, a quem dis- tingue nao por chamá-lo apóstolo, mas "irmao", isto é, membro da irmandade crista, o qual era bem conhecido dos crentes corintios. Désse conhecimento, porém, nao partilha- mos. Lucas, nos "Atos", menciona certo Sostenes que era principal da sinagoga de Corinto e que foi espancado pelos gregos diante do tribunal de Gálio, depois de Paulo ter sido salvo da fúria dos judeus pelo governador romano. Se se trata do mesmo Sóstenes, inimigo da agora convertido em seguidor de Cristo, nada se sabe ao certo. Basta-lhe a glória de ter o seu nome associado ao de Paulo. Para nós igual-

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mente, é bastante a distingáo de sermos contados entre os verdadeiros irmáos de nosso Senhor.

A carta é enderegada igreja de Deus que está em Co- rinto". Eis ai urna afirmacáo tremenda: a Igreja é uma ins- tituigáo divina; foi estabelecida por Deus e Ihe pertence. É o instrumento de Deus, o meio de Ele agir no mundo. Éste pode menosprezá-la, escarnecé-la, difamá-la, mas foi no céu que ela te ve sua orígem. A Igreja é imortal. Seu destino é glorioso. Em sua luz todas as nagóes se alegraráo um día.

E essa Igreja estendera-se até mesmo a Corinto. Nisso é que estava a maravilha. Mesmo naquela cidade paga, no meio de seu orgulho, de sua impureza, da ansia absorvente com que se atirava aos prazeres e as riquezas, alí uma irman- dade de crentes se formara. E nao na térra um lugar, por maior que se ja a depravagáo de seus costumes e sua perdigáo moral, onde a Igreja de Deus nao se possa esta- belecer.

Tal igreja, em Corinto, Paulo a descreve sendo formada de ''santificados em Cristo Jesús". E diz mais que seus membros sao "santos" em consequéncia de um chamado di- vino. Ser santificado é ser separado do pecado para o ser- vico de Deus, consequentemente para ser puro e santo. Tais pessoas se designam como "santos"; sua condigáo e caráter se devem ao fato de haverem obedecido ao chamado para se tornarem seguidores de Cristo. Por conseguinte, todos os crentes sao santos. Que a santificacao déles nao é perfeita evidencia-se dos capítulos seguintes que descrevem os "san- tos" de Corinto. Todavía possuem a faculdade de ^erem santos, estao sendo transformados pelo Espirito de Cristo para se conformarem com Éle. Algum dia, pois, seráo seme-

Ihantes a Cristo, quando O contemplarem como Éle é.

Essa irmandade de santos nao se limita a determinados lugares. Paulo dirige sua carta nao sómente aos de Corinto, mas a todos quantos "invocam o nome de nosso Senhor Jesús Cristo". E era a essa nota de unidade que os cristáos co- rintios precisavam muito de atender. O espirito de partido e5tava-os dividindo em grupos que se degladiavam; uma preocupagáo orgulhosa de si mesmos fazia-os olvidar outras igrejas e alhear-se délas, de suas práticas e crencas. Assim,

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pois, nesta sentenga do principio de sua carta, Paulo asse- gura a seus leitores que todos os cristáos de Corinto formam um corpo de crentes. Ésse corpo une-se a urna irmandade universal, composta de ''todos os que invocam o nome de nosso Senhor Jesús Cristo".

Ésse "invocar" do nome de Cristo é o brado de que se ergue do coragáo que eré. Ao clamor do Espirito responde-se com uma confianga salvadora. Assim, pois, em todos os lu- gares e tempos, nós que pertencemos a Cristo estamos inse- paravelmente ligados a todos os outros crentes, visto como reconhecemos um Senhor, "déles e nosso". Portanto, esta carta, embora enderezada á igreja de Corinto, também a nós se dirige. Seu escopo é orientar e inspirar os membros de qualquer igreja, até á consumagáo dos séculos.

A Igreja universal, e mais especificadamente aos santos de Corinto, Paulo envia sua saudagáo costumeira e signifi- cativa: "Graga a vós outros e paz da parte de Deus nosso Pai e do Senhor Jesús Cristo". Graca quer dizer o favor ime- recido de Deus, e alude á fonte de toda béngáo espiritual. Paz é a experiencia que resulta de se abrir o coragáo pela para receber tudo quanto Deus oferece em Cristo e por meio de Cristo. Era muito comum os gregos saudarem-se com a palavra "graga". entre os judeus a palavra empre- gada era "paz". Os cristáos uniram uma á outra e Ihes aeram um brilho novo. A saudagáo de Paulo é uma oragáo. E em nossos lábios bem pode expressar a súplica de uns em íavor dos outros, e de nós próprios.

Como costumava fazer, Paulo acrescenta á saudagáo um agradecimento. Mostra-se reconhecido pela graga mani- festa aos de Corinto e especificadamente pelos dons espiri- tuais de que tinham sido enriquecidos; dons, aliás, de que se orgulhavam. No entanto, ésses dons eram reais e preciosos. Nao importa que mais adiante, nesta mesma carta, ele pre- cise instruí-los quanto ao valor relativo dessas faculdades e censurá-los pelo seu abuso. Náo obstante, a carta comega com uma expressáo de sincero reconhecimento pela concessáo désses dons. Se os corintios tinham facilidade de expressáo no testemunho que davam de Cristo, ao lado de um "conhe- cimento" profundo da verdade cristá, deviam isso aos dons com que foram agraciados. Eram ésses dons, além do mais,

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a corroboragáo do testemunho em prol de Cristo que Paulo Ihes dera.

Táo abundante fóra a graga recebida que os cristaos de Corinto nao careciam de nenhum dom espiritual necessário á promogáo da vida e á animagáo de seu trabalho, enquanto aguardavam a vinda de Cristo. E Paulo expressa a confianga jubilosa de que, até á vinda de Jesús, o Espirito de Cristo continuará a suprir as necessidades de seus seg-uidores, de modo que a despeito de provas e tentagoes, éles seráo "irre- preensíveis" no "dia" de sua vinda. A confianga de que a santidade dos crentes será mantida baseia-se nao em algo de om que ha ja em a natureza humana, mas na fidelidade de _jeus que nos chamou á comunháo com Cristo. Pela tor- namo-nos participantes de sua vida. Como crentes, pois, de- vemos partilhar da gratidáo aqui expressa por Paulo, ale- grando-nos porque pelo Espirito de Cristo todo dom e graga necessária nos será proporcionada, a nós que pertencemos a Cristo.

Devemos também participar daquela antecipagáo da glo- ria do céu, sentimento éste que mantinha firmes os cristaos de Corinto. Éles "aguardavam a revelagáo de nosso Senhor Jesús Cristo", e esperavam o aperfeicoamento do espirito e do corpo, no dia do Senhor, assunto de que Paulo se ocupa no cap. quinze desta epístola. A segunda vinda de Cristo, sua aparicáo gloriosa, deve constituir-se urna esperanca vital a animar cada seguidor do Mestre.

Passando em revista a introdugáo, veremos que o nome de Cristo é que fornece unidade e sentido a cada sentenga tía mesma. Nove vézes, nestes nove curtos versículos, o nome tíe Jesús é mencionado. Para ser seu apostólo, Paulo fóra chamado. Em comunháo com Éle, os crentes sao santifi- cados, assim como, por invocá-lO, sao salvos. NÉle, como em Deus Pai, está a orígem da graga e paz. Por Éle se concedem os dons espirituais que confirmam o testemunho de Paulo e ?apacitam seus companheiros cristaos a uma vida de servigo.

m sua segunda vinda centralizam-se todas as esperangas déles. No dia dessa aparigáo será consumada a alegría de ~3us coragoes. A participagáo da vida de Cristo é a esséncia da experiéncia déles, a explicagáo de seu caráter, e a se-

/aranga de seu destino.

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Sem nenhuma dúvida, para os que sao membros de sua Igreja, Cristo deve tornar-se, sempre e cada vez mais, tudo em todos.

II. Os Problemas da Igreja. Caps. 1:10 a 15:58. A. Divisoes. Caps. 1:10 a 4:21.

1. Exortagáo á Unidade. Cap. 1:10-17.

10 Rogo -vos, irmáos, pelo nome de nosso Seniior Jesús Cristo, que faleis todos a mesma coisa, e que nao haja entre vos divisoes; antes sejais inteiramente uni- dos, na mesma atitude mental e no mesmo parecer. 11 Pois a vosso respeito, meus irmáos, fui informado, pe- los da casa de Cloe, de que contendas entre vós. 12 Refiro-me ao fato de cada um de vós dizer: Eu sou de Paulo, e eu de Apolo, e eu de Cefas, e eu de Cristo, i'ó Acaso Cristo está dividido? foi Paulo crucificado em favor de vós, ou fóstes, porventura, batizados em nome de Paulo? 14 Dou grabas porque a nenhum de vós ba- tizei, excet^ Crispo e Gaio; 15 para que ninguém diga que fóstes batizados em meu nome. 16 Batizei tam- bém a casa de Estéfanas; além déstes náo me lembro se batizei algum outro. 17 Porque náo me enviou Cris- to para batizar, mas para pregar o evangelho; náo com sabedoria de palavra, para que se náo anule a cruz de Cristo.

Paulo torna a dirigir-se á Igreja, e sua primeira palavra é urna exortagáo á unidade crista. Possivelmente é esta a primeira necessidade da igreja mesmo em nossos dias. A falha mais berrante numa igreja sao suas divisoes: seu fra- •asso em apresentar ao mundo uma frente unida^ uma men- sagem harmoniosa ou um panorama de entendimento fra- terno.

O apostólo faz a exortagáo "pelo nome de nosso Senhor Jesús Cristo". O nome de uma pessoa é que a faz conhecida, ou é aquilo que déla se conhece. O nome de Cristo, pois, indica tudo quanto dÉle sabemos, como Salvador, Senhor e Mestre. Visto como todos os crentes Lhe pertencem e estáo sob seu poder e diregáo, a simples mencáo de seu nome su- gere a existencia de uma unidade espiritual a que se precisa dar expressáo exterior.

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Espera-se dos crentes que "todos falem a mesma coisa". Paulo nao podia esperar que todos os cristáos se unissem numa declara^áo formal de fé, mas roga-lhes que haja tal unanimidade em torno dos fatos essenciais que se evitem divisoes ou cismas no corpo de Cristo. Os membros déste corpo devem estar "inteiramente unidos" ou "ajustados uns aos outros" (coesos), tendo as mesmas convicQoes intelectuais e opinioes, unificados assim na fé, na esperanga e no amor.

O que ocasionou essa exortagáo á unidade foi uma no- ticia que Paulo recebera por meio de alguns parentes ou servos de Cloe, sendo éste evidentemente uma figura de re- levo na Igreja daquela cidade. Segundo essa noticia, havia graves "contendas" entre os cristáos alí. Nao é preciso pen- sar que houvesse partidos organizados dentro da igreja, ou uma fragmentagáo da corporagáo dos crentes em grupos es- tanques. Mas havia-se manifestado uma tendéncia para a divisáo, segundo a qual alguns estavam renunciando sua lealdade a Paulo, declarando-se seguidores de Apolo, ou de Pedro, ou de Cristo. Quais eram as razoes dessas preferén- cias, ou o motivo dessa diferenciagao, nao se sabe; o que se disser a respeito nao passará de simples conjecturas. Possi- velmente os que se jactavam de pertencer a Paulo, com jus- tiga reconheciam-no fundador da igreja e defendiam estre- nuamente as doutrinas da Graga, expendidas na sua maneira simples de apresentar o evangelho. Os adeptos do talentoso alexandrino Apolo podiam ter-se deixado cativar ela filoso- fía e pela retórica do eminente orador. Aquéles que tomavam Cefas ou Pedro como líder, talvez o fizessem bascados no fato de ser éste o apostólo de maior evidéncia, ou porque se mostrasse ainda inclinado as formalidades e cerimónias do Judaismo. O partido de Cristo talvez protestarse nao se sub- meter a nenhum mestre humano, mas possuir um credo: as palavras do próprio Cristo, segundo a interpretagáo que éles mesmos Ihes davam. Todos éstes partidos afimavam-se cristáos, ao mesmo tempo em que cada qual se opunha aos outros com maior ou menor tenacidade. Todos éles tém sucessores na Igreja de hoje.

Uns sao inflamados de zélo evangelístico; apelam as emogoes; alardeiam pregar "o simples evangelho". Sao lou- vavelmente ativos na conquista de almas. A ordem de suas idéias é um tanto acanhada. Suas formas de expressáo, con-

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vencionais. Simpatizam muito pouco com as pessoas cuja experiencia espiritual difere da sua, Faltam até com a de- vida cortezia aqueles que divergem de suas fórmulas especí- ficas de fé.

Outros preferem uma exposigáo mais filosófica da ver- dade. Apelam ao intelecto. Tém muito gósto com sistemas de teología e se deleitam com especulacoes abstrusas. Outros acham delicia em ritos e cerimónias, que apelam aos sentidos, ao gósto e ao sentimento. Dáo énfase á organizagáo eclesiás- tica. Gostam de buscar a orígem da autoridade de sua igreja em papas e apostólos e mesmo em Pedro. Ésses tais nao admitem "meios de graga" fora de tempos marcados e in- dependente de cerimónias e fórmulas estabelecidas. Ainda outros que repelem toda cerimónia e qualquer autoridade humana. Alegam crer sómente na Biblia e obedecer a Cristo. Procuram combater qualquer seita, assim formando outras para formar as suas. Todas estas sao verdadeiramente cristas; lugar para cada qual na Igreja de Cristo.

Enquanto a natureza humana fór o que é, enquanto o conhecimento que tivermos fór limitado e os gostos variados, difícilmente de se esperar unanimidade de crenca, unidade de organizacáo, ou uniformidade de culto. As "denomina- goes" continuaráo a existir, mas estas podem trabalhar em harmonia. Cada qual pode contribuir com algum beneficio temporal. O que se deplora é o "espirito de partido" (seita) , expresso em rivalidades, ciumes, amarguras e orgulho.

É tal espirito que Paulo censura fazendo uma pergunta incisiva: "Acaso Cristo está dividido?" Se todos os crentes pertencemos a Cristo, cumpre que formemos um corpo. Se nos dividimos e ainda pretendemos estar ligados a Cristo, entáo Cristo precisa estar fragmentado, o que é absurdo.

Sómente Cristo pode ser a verdadeira cabega de qualquer corporagáo de crentes. "Foi Paulo crucificado em favor de vós?" pergunta o apostólo. Se os crentes tiverem na lem- branca quem foi que morreu por éles e a quem, pois, per- tencem, nao teráo essa preocupagáo de dizer que sao de Paulo, de Apolo ou Cefas.

"Fóstes batizados em nome de Paulo?" O que éles sela- ram e significaram pelo batismo foi a em Cristo e nao em

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homem algum, e essa os pos em relacáo vital com Cristo. Ora, devotar-se agora cada um déles a um líder humano, ao ponto de se ver apartado de outros crentes cuja vida espi- ritual se prende á fonte comum, Cristo, é negar essa e renunciar essa relacáo.

Paulo nao sómente censura o espirito de partido, mas frisa um ponto, a saber, tal espirito nao surgiu no meio déles por culpa sua nem por alguma peculiaridade do seu ministé- rio. O fato era que éle próprio se abstivera de administrar batismos, para que ninguém suspeitasse néle a preocupagáo de vincular de um modo assim especial os crentes a si, em prejuizo da relacáo vital com Cristo. Batizara, sim, a Crispo, principal da sinagoga, e também Gaio, o generoso benfeitor dos crentes daquela cidade. Igualmente "a casa de Estéfa- nas". Mas náo Ihe ocorria houvesse batizado outros, do grande número que havia conduzido aos pés de Cristo. Ti- nha bem vivo na lembranca que a tarefa suprema que o Mestre Ihe impusera foi pregar o evangelho e náo administrar sacramentos, por mais importante que isto pudesse ser. Além do mais, sabia em que devia consistir sua pregacáo: apre- sentar com clareza "a cruz de Cristo", e jamáis obscurecer esta sublime realidade fósse pela forma da pregagáo, fósse por especular com o seu fato central e supremo.

Nem sempre os ministros evangélicos se compenetram de que sua tarefa máxima náo é administrar finangas nem or- ganizar igrejas, mas pregar o evangelho. E náo se aperce- bem da possibilidade que de ganharem seguidores para si e náo para Cristo, além do perigo a que se expóem de deixar eclipsada a grande e essencial mensagem da salvacáo com a eloquéncia que exibam e com discussoes eruditas em torno de assuntos correlatos.

2. O Evangelho manifestagáo da Sabedoria e do Poder de Deus. Cap. 1:18-31.

18 Certamente a palavra da cruz é loucura para os que se perdem, mas para nós, que somos salvos, poder de Deus. 19 Pois está escrito: Destruirei a sabedoria dos sábios, e aniquilare! a inteligencia dos entendidos. 20 Onde está o sábio? onde o escriba? onde o inquirí-

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dor déste século? Porventura nao tornou Deus louca a sabedoria do mundo? 21 Visto como, na sabedoria de Deus, o mundo nao o conheceu por sua própria sa- bedoria, aprouve a Deus salvar aos que créem, pela loucura da prega^áo. 22 Porque tanto os judeus pe- dem sinais, como os gregos buscam sabedoria; 23 mas nós pregamos a Cristo crucificado, escándalo para os judeus, loucura para os gentíos; 24 mas para os que foram chamados, tanto judeus como gregos, é Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus. 25 Porque a lou- cura de Deus é mais sábia do que os homens; e a fra- queza de Deus é mais forte que os homens.

26 Iimiáos, reparai, pois, na vossa vocagáo; visto que nao foram chamados muitos sábios segundo a car- ne, nem muitos poderosos, nem muitos de nobre nas- cimento; 27 pelo contfrário, Deus escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os sábios, e esco- lheu as coisas fracas do mundo para envergonhar as fortes; 28 e Deus escolheu as coisas humildes do mun- do, e as desprezadas, e aquelas que nao sao, para re- duzir a nada as que sao; 29 a fim de que ninguém se vanglorie na presenta de Deus. 30 Mas vos sois déle, em Cristo Jesús, o qual se nos tornou da parte de Deus sabedoria, e justi^a, e santificagáo, e reden^áo, 31 para que, como está escrito: Aquéle que se gloria, glorie-se no Senhor.

Paulo viu que o espirito de partido na Igreja de Corinto surgirá de um conceito erróneo do evangelho e do ministé- rio cristáo. Esforgou-se entáo por combater e dissipar ésse espirito, apresentando a verdadeira natureza do evangelho e do ministério sagrado. A cada um déstes assuntos val de- dicar dois capítulos de sua carta.

É bem significativo, atualmente, que os que procurara "reunir a Cristandade"., o tratam de fazer chegando todos a urna compreensáo unánime, déstes mesmos assuntos. Por isso estáo conferenciando sobre F,é e Ordem, dois assuntos que se relacionam com a matéria de que Paulo vai tratar agora. Haveria possibilidade quase nenhuma de divisoes na Igreja se os crentes alcangassem o sentido do evangelho pregado por Paulo e do ministério exemplificado por ele.

Conforme ele diz, o evangelho é urna revelaQáo divina manifestando o poder e a sabedoria de Deus. Caps. 1:18 a 2:5. E mais: sómente pela interpretagáo que o Espirito de Deus Ihe é que pode ser compreendido. Caps. 2:6 a 3:4. Sendo

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pois O que é, o evangelho nao lugar á glorificacáo de nin- guém. Era portante um absurdo os crentes se declararem pertencentes a Paulo, a Apolo, a Cefas ou a Cristo, visto que o evangelho era um só, nao proveniente de homens, mas de Deus.

Censurando essa estulticia partidária, Paulo declara que na pregacáo tinha evitado qualquer manifestacáo de saber humano, para que nao ficasse empanada a esséncia do evan- gelho. Esta ele havia ido buscar na doutrina da cruz de Cris- to. A "palavra da cruz", diz ele, é "loucura" aos olhos dos reputados sábios do mundo, os quais, nao obstante, estao pe- recendc. Mas, para os "salvos" é manifestamente "o poder de Deus". Sua eficácia divina poe em relevo a loucura e a fu- tilidade das tentativas do homem para conseguir salvacáo por si próprio. Essa mesma eficácia Isaías notara em conexáo com outra manifestacáo do poder de Deus. Compadecendo- -se da fraqueza do homem e na iminéncia de manifestar a sua onipoténcia divina, Jeová parecía pelo profeta dizer: "Destruirei a sabedoria dos sábios e aniquilarei a inteligencia dos entendidos".

Contrastando-os, pois, com o seu divino evangelho, Deus tem feito que pareca absurda toda a sabedoria do homem, e impotente todo o seu poder. ''Onde está o sábio?", indaga, "onde o escriba? onde o inquiridor déste mundo?" Nao con- verteu o Senhor em estulticia a sabedoria do século quando fez que se proclamasse a salvacáo mediante Cristo?

Prossegue Paulo na explicacáo de como o evangelho tem feito a sabedoria secular parecer doidice. Em sua sapientissi- ma providencia, Deus permitiu que os sábios do mundo pro- curassem por sós o caminho da vida e um conhecimento salvador acerca de Deus, mas o fracasso foi completo. "Nao conheceram a Deus". Assim pois teve Ele agora o prazer de uma iniciativa sua: proporcionar-nos, pela pregacáo da cruz, o meio de Salvacáo dos que créem em Cristo.

Quando, pois, Paulo fala em "loucura da pregacáo" nin- guém pense que ele está recomendando pregagáo de tolices, nem mesmo está se referindo á pregagáo em si, como um dos meics de propagar a verdade. Antes, ele alude á substancia da mensagem, á "coisa pregada", isto é, "a cruz de Cristo". É isto que ao mundo parece doidice, mas na realidade é uma expressáo da própria sabedoria de Deus.

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Nem judeus nem gregos estao dispostos a receber tal mensagem, dí-lo o apóstolo. Uns e outros estáo cegos por suas próprias idéias pre-concebidas. Os "judeus pedem si- nais", alguma manifestagáo portentosa e espetacular no céu, talvez alguns distintivos ou sinais da realeza de Jesús, urna prova concreta de seu poder político, algumas credenciais que O acreditem como um potentado terreno. assim éles creráo que é seu verdadeiro Messias ésse Cristo de quem se fala.

Os "gregos buscam sabedoria".. Acreditam que o cami- nho por onde se vai as culmináncias de urna verdadeira vida deve ser contiguo ao da cultura intelectual e deve orientar-se por preceitos de alguma filosofia humana. O apóstolo, en- tretanto, convictamente proclama como único Salvador o Cristo que foi crucificado, sendo tal mensagem, evidentemen- te, uma pedra de tropégo, um escándalo, para os judeus que alimentam a esperanga errónea de um Messias político. Para os gentíos era "tolice", pois confiavam em sua própria sabedoria. Para nós, todavía, que aceitámos seu convite e O seguimos, sejamos judeus ou gregos, Cristo tem-se tornado "o poder de Deus e a sabedoria de Deus". Porque, de fato, éste divino caminho de salvacáo que aos homens se afigura uma "tolice", é mais sábio do que a sabedoria déles, e isto que Ihes parece "fraqueza" é mais forte do que qualquer poder humano.

Nao vamos supor nem por um momento que Paulo atri- bue qualquer "loucura" a Deus, nem que ele sonhe em com- parar esta suposta loucura com a sabedoria do homem. Nao. O que ele emprega ai é uma linguagem irónica, frisando que um meio de salvagáo que o homem considera fraco e tólo, é na realidade um meio da sabedoria e do poder divinos.

O apóstolo acrescenta um exemplo oportuno do falso ra- ociocínio do homem néste particular. Lembra aos corintios o juizo errado que o mundo faz déles e daí mostra como Deus realiza grandes feitos por meio daquilo que o mundo despreza:

"Irmáos, reparai, pois, na vossa vocagáo, visto que nao foram chamados muitos sabios segundo a carne, nem muitos poderosos, nem muitos de nobre nascimento; pelo contrário, Deus escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os sabios". Os havidos como "loucos" ou malucos acharam em Cristo uma riqueza de sabedoria espiritual e um conhe-

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cimento salvador acérca de Deus, conhecimento que, pósto em confronto com a sabedoria do mundo fé-la parecer total- mente absurda.

Assim foi que Deus escolheu aos que o mundo considerou fracos e Ihes deu, mediante a em Cristo, uma forca moral que em face do poder natural do homem fe-lo parecer fra- queza. Do mesmo modo Deus escolhe homens e mulheres havidos pelo mundo como vis e desprezíveis, sim, até mesmo aqueles que á vista do mundo nem existem, a fim de fazer déles e por éles santos, mártires e herois, uma verdadeira élite diante da qual o mundo foge envergonhado de si mesmo. Quis Deus que a orígem da maioria dos crentes corintios fósse humilde diz Paulo para que, salvando-os, nenhuma ocasiáo tivessem de vanglória. Pelo poder de Deus e me- diante a em Cristo Jesús, aqueles crentes apagados e in- significantes se tornaram o que nao teriam sido jamáis pelo poder e sabedoria humanos.

Para éles, pois. Cristo se havia tornado "sabedoria da parte de Deus".~ Era Jesús a Sabedoria déles, de sorte que em Cristo acharam tais tesouros de conhecimentos e táo grande cabedal de compreensáo espiritual que nos dominios do mun- do os homens nao alcangam nem por sonho. Cristo veio a ser também a "justiga" déles, isto é, em Jesús haviam alcan- cado o perdáo dos pecados, o cancelamento das culpas e aquela paz de consciéncia que o mundo desconhece. Jesús tornou-se igualmente a ''santificacáo" déles, pois no Salvador encontraram uma pureza e uma santidade de vida que nunca o mundo experimentou. Tornou-se-lhes também Jesús em ^'redengáo", porque nao sómente pagou "o preco do pecado", como se levantou dentre os mortos, assegurando assim a seus seguidores uma redengáo que, no final de tudo, de atingir o corpo tanto quanto hoje alcanga a alma. Á vista de táo grande salvacáo que a graca divina torna certa e segura, e fazendo insignificante a sabedoria humana Paulo pode muito bem concluir fazendo uma citagáo conhecida: "Aquéle que se gloria, glorie-se no Senhor".

Tudo isto, porém, que acaba de Ihes dizer está em íntima relagáo com a censura que faz do espirito de partido existente entre éles. Se a salvagáo procede inteiramente de Deus, se o evangelho é táo singularmente uma mensagem e de uma revelagáo da graga divina, onde achar desculpa para a divi-

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sao dos crentes, ou onde buscar justificativa para um dizer "Eu sou de Paulo", e outro "Eu sou de Apolo"? Por que os crentes haveriam de gloriar-se nos homens? Um conheci- mento exato do evangelho torna absurdo o sectarismo e uni- fica em Cristo todos os crentes.

3. O Método de Paulo anunciar o Evangelho. Cap. 2:1-5.

1 Eu, irmáos, quando fui ter convosco, anunciando- vos o testemunho de Deus, nao o fiz com ostentagáo de linguagem, ou de sabedoria. 2 Porque decid! nada saber entre vós, senáo a Jesús Cristo, e éste crucificado. 3 E foi em fraqueza, temor e grande tremor que eu estive entre vós. 4 A minha palavra e a minha pre- gagáo nao consistiram em linguagem persuasiva dfe sabedoria, mas em demonstracáo do Espirito e de po- der, 5 para que a vossa nao se apoiasse em sabedoria humana; e, sim, no poder de Deus.

Se a igreja de Corinto estava desunida por um espirito de cisma ou facgáo "Eu sou de Paulo", "Eu de Apolo", "Eu de Cefas", "Eu de Cristo" Paulo frisa que a culpa nao era sua. No cap. precedente chamou atencáo para o fato de se haver abstido de administrar batismos, a fim de que nin- guém supusesse ser aquéle um meio de arranjar seguidores para si ou membros para uma igreja Paulistana. Aqui declara que, até no modo de pregar havia evitado ocasiáo a quem quer que fósse de se ufanar de o ter como líder. O evangelho era uma mensagem divina; se assim fósse compreendido nao haveria de dar ensancha á operagáo de tal espirito de partido na igreja. Cuidara o apostólo de pregar de tal modo que o caráter e a origem divina de sua mensagem nao fossem escurecidas pela demonstragáo de sabedoria humana. Dian- te déles, pois, nao havia brilhado como orador que arre- batasse pela eloquéncia, nem quis passar como filósofo, no testemunho da graga salvadora de Deus em Cristo Jesús.

Simples, modesta fóra sua tarefa entre éles, e definido seu propósito. Determinara saber uma coisa Jesús Cristo; conhecé-lO e proclamá-lO do modo menos aceitável á sabedoria do mundo, isto é, apresentando Jesús abismado

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na deshonra da morte de cruz. Cristo e sua obra expiatoria, nao qualquer filosofia humana de salvacáo, constituira-se a suma e a substáncia da mensagem de Paulo.

Dizendo ele ter sido éste o único propósito seu entre os corintios, alguns querem ver nisso a confissáo tácita de que, entre os atenienses, onde ministrava antes fóra outro o seu desiderato. O fracasso do ministério de Paulo em Atenas é, entáo, atribuido ao fato de se ter, ai preocupado com poetas e sábios gregos. Diz-se que fracassou porque no discurso pro- ferido no Areópago tivera acentuado sabor filosófico. Mas aqueles que pensam déste modo compreendem mal a men- sagem de Atenas e nao descobrem o verdadeiro sentido das presentes palavras dirigidas á Igreja de Corinto.

Paulo pregou Cristo em Atenas, mas o método ai usado foi conciliatório e prudente, defendendo o apóstolo com elo- quéncila, fidelidade e poder os direitos de seu Senhor ressus- citado. Sua mensagem adaptou-se perfeitamicnte ao tipo de ouvintes que ai encontrón. Se houve fracasso deveu-se ao orgulho intelectual dos ouvintes, antes que a alguma falha do pregador.

O- contraste a sublinhar aqui nao é o que pudesse haver entre uma e outra mensagem, a de Atenas e a de Corinto, mas é o que ressalta de uma comparacáo da pregacáo de Paulo ccm a de outros mais filosóficos no argumentar, e que tinham empolgado por tal forma os ouvintes que éstes se deixaram arrastar por éles, ao ponto de se declararem seus adeptos ou simpatizantes, perdendo de vista o seu Salvador. Foi éste mesmo perigo que o apóstolo quis evitar quando re- solveu ser simples em seus discursos e claro em sua pregacáo.

Confessa que esteve entre éles "em fraqueza", o que se pode entender no sentido de uma enfermidade física, que o abatesse e humilhasse, constituindo-se para o grande após- tolo uma provacáo dolorosa. Ou talvez queira se referir a uma perturbacáo mental, ou depressáo espiritual, a par do "temor" e "grande tremor" que fizeram de sua primeira es- tada em Corinto um dissabor sem precedente. Vira-se de- solado, sozinho, no meio da grande cidade, ansiando pela chegada de seus cooperadores Silas e Timóteo. O ambiente pesado de um paganismo grosseiro deprimia-o. O orgulho, aquela auto-suficiéncia dos corintios desalentava-o. Sentia

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asco pelas impurezas e corrucáo moral ambiente. Como so- brecarga de tudo, entristecia-o a oposicáo maligna e blasfema de seus mesmos patricios, os judeus.

Foi quando o Senhor Ihe aparecen de noite, em visáo, para llie dizer: "Nao temas; pelo contrário, fala e nao te cales: visto que eu estou contigo e ninguém ousará fazer-te mal, pois tenho muito povo nesta cidade". Com esta visáo Paulo se dispós a depender de Cristo, rnais do que antes. Nao se preocupou mais tanto consigo, com a sua apresentagáo ou com a forma de sua pregacáo. Sua "palavra" e sua "prega- cao", pois, nao consistiram em "linguagem persuasiva" de humana "sabedoria". Nao obstante, foram acompanhadas pela demonstragáo do Espirito e pelo seu poder. Tudo isto de acordó com o propósito divino, para que os ouvintes nao depositassem sua em qualquer aparato de sabedoria huma- na, mas no poder manifestó de Deus.

Á vista disso, portanto, quáo absurdos e pecaminosos nao eram aqueles movimentos partidários que dividiam a igreja, ocasionados por preferencias a mestres humanos e por uma admiracáo jactanciosa dos talentos e das habilidades de po- bres criaturas mortais.

O evangelho, sendo como é um recado divino, focaliza a pessoa de Cristo, aliás num Cristo que foi crucificado. A mazela das divisóes entre os crentes serial debelada se os filhos de Deus se preocupassem mais com o seu divino Se- nhor e sua graga redentora, e tratassem menos das especu- lacoes, teorías e fórmulas humanas.

Por outro lado também os ministros do evangelho devem atentar cuidadosamente no conteúdo de suas pregacoes, que fatos merecem a devida énfase, e mesmo para suas maneiras de expressáo, de modo que fagam jus ao título de verdadeiros pregadores de "Jesús Cristo, e éste crucificado".

4. O Espirito de Deus, intérprete do Evangelho. Cap. 2:6-16.

6 Entretanto, expomos sabedoria entre os experi- mentados; nao, porém, a sabedoria déste século, nem a dos poderosos desta época, que se reduzem a nada;

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7 mas falamos a sabedoria de Deus em mistério, ou- trora oculta, a qual Deus preordenou desde a etemi- dade para a nossa gloria; 8 sabedoria essa que nenhum dos poderosos déste século conheceu; porque, se a ti- vessem conhecido, jamáis teriam crucificado o Senhor da gloria; 9 mas, como está escrito; Nem olhos vi- ram, nem ouvidos ouviram, nem jamáis penetrou em cora^áo humano, o que Deus tem preparado para aque- les que o amam. 10 Mas Deus no-lo revelou pelo Espi- rito; porque o Espirito a todas as coisas perscruta, até mesmo as profundezas de Deus. 11 Porque, qual dos homens sabe as coisas do homem, senáo o seu próprio espirito que néle está? assim também as coisas de Deus ninguém as conhece, senáo o Espirito de Deus. 12 Ora, nós nao temos recebido o espirito do mundo, e, sim, o Espirito que vem de Deus, para que conhecamos o que por Deus nos foi dado gratuitamente. 13 Disto também falamos, nao em palavras ensinadas pela sa- bedoria humana, mas ensinadas pelo Espirito, confe- rindo coisas espirituais com espirituais. 14 Ora, o ho- mem natural nao aceita as coisas do Espirito de Deus, porque Ihe sao loucura; e nao pode entendé-las porque elas se discernem espiritualmente. 15 Porém o homem espiritual julga todas as coisas, mas ele mesmo nao é julgado por ninguém. 16 Pois, quem conheceu a mente do Senhor, que o possa insíiruir? Nós, porém, temos a mente de Cristo.

Algumas vézes ouvimos alusoes á simplicidade do evan- gelho. A expressáo é bastante apropriada, se quer dizer men- sagem crista, livre de quaisquer acréscimos e corrutelas. Num sentido mais verdadeiro, porém, o evangelho nao tem nada de simples, pois envolve a filosofia mais profunda com que se deparou o intelecto do homem. Originou-se na mente e no coragáo de Deus. É táo sutil e misterioso, sobrepuja por tal forma as mais alcandoradas criacoes da razáo huma- na que ninguém o compreende ou déle faz uma idéia corre ta se o Espirito de Deus nao vier em auxilio.

É isto o que Paulo afirma: embora possa parecer "lou- cura" ao homem, e ainda que, na sua proclamagáo, tivesse fúgido a aparatos filosóficos e a qualquer exibigáo de huma- na sabedoria, nao obstante isso o evangelho é verdadeira "sabedoria", reconhecido como tal pelos "experimentados" ou amadurecidos espiritualmente. Todavía, nao é "sabedo- ria déste século, nem a dos poderosos desta época", que se estáo reduzindo "a nada", visto como sua suposta sabe-

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doria está aos poucos se desacreditando, em virtude de sua incapacidade moral e pelo manifestó poder do evangelho. Com efeito, o que Paulo anuncia é a "sabedoria de Deus". Esta esteve "em mistério", na acepgáo neo-testamentária do termo, o que indica nao algo impossível de se compreender, mas aquilo que a razáo humana por si jamáis podia ter des- coberto, ou seja um fato posto em perfeita evidencia somente pelo Espirito de Deus. É ésse mistério que Paulo ai descreve como ''sabedoria outrora oculta", v. 7, cujo conteúdo o Se- nhor nos revelou "pelo Espirito".

Tal sabedoria, aliás o plano eterno da salvagáo por Cristo, esteve oculta do homem. Nenhum gigante do pensamento ou da política a descobriu, pois "se a tivessem conhecido, jamáis teriam crucificado o Senhor da gloria". Os contem- poráneos de Cristo nao tinham qualquer vlsáo espiritual. Nao sabiam o que era verdadeira virtude e santidade; nao eram capazes de apreciar o* amor divino, porque tudo isso, estando corporificado no Salvador, éles rejeitaram, crucifi- cando a Jesús. O meio de salvagáo que Deus, em sua graga, preparara nao foi descoberto pelo homem, nem o podia ser, salvo pela revelagáo do Espirito de Deus.

Uma citagáo de Isaías vem corroborar esta declaragáo do apostólo. Náo é feita literalmente, mas o pensamento central é apresentado. Sublinha-se ai a incapacidade do homem para desvendar aquilo que somente Deus pode revelar:

"Nem olhos viram, nem ouvidos ouviram,

Nem jamáis penetrou em coragáo humano

O que Deus tem preparado para aqueles que O amam".

Náo se alude ai as glorias desconhecidas do céu, como em geral se pensa, mas a referencia é ao meio de salvagáo que Deus preparou pela vida, morte, ressurreigáo e poder salva- dor de Cristo. O olho de ninguém jamáis o descobriu, nem ouvido humano o percebeu, nem coragáo de carne o conce- beu. É divino em sua origem. Saiu da excogitagáo do Es- pirito de Deus. Náo diz respeito simplesmente a um estado futuro de existencia, mas é ura fato que agora se pode conhecer e experim.entar. Paulo o declara, por dizer: "Mas Deus no-lo reveiou pelo Espirito; porque o Espirito a todas as coisas perscruta, até mesmo as profundezas de Deus".

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De sorte que o evangelho nao sómente é divino em sua origem como também o é em sua íntima natureza, visto como sem o auxilio do Espirito de Deus nao pode ser compreendido.

Dizendo que o Espirito a tudo perscruta nao se deve dai inferir um conhecimento parcial que necessite de aperfeigoar- mento, mas trata-se de um conhecimento profundo e minu- cioso, como quando se diz que Deus perscruta os coragoes. E ésse conhecimento Paulo o compara á consciéncia que todas as pessoas tém de si. o espii'ito do homem pode saber o que se passa no seu íntimo, ou o que existe em sua mente ou no seu ccracáo. Assim, o Espirito de Deus pode alcancar os profundos designios, os planos e a sabe- doria de Deus, tudo isto com efeito coi-porificado no evange- lho de Cristo. Para que compreendamos ésse evangelho, de- clara o apestólo, Deus nos esclarece com uma luz que difere da inteligencia comum dos sábios do século, ou seja um de- terminado discernimento espiritual que provém totalmente do Espirito de Deus. Recebemos ésse Espirito para nos ca- pacitarmos a compreender a mensagem da graca, disso mesmo "que por Deus nos é dado gratuitamente".

É esta a mensagem de que Paulo se declara portador, a qual consiste ''nao em palavras ensinadas pela sabedoria humana, mas ensinadas pelo Espirito, conferindo coisas es- pirituais com espirituais". Esta última cláusula pode querer dizer "interpretando coisas espirituais para pessoas espi- rituais", ou "apresentando verdades espirituais por meio de palavras fornecidas pelo Espirito".

Nao é estranhável, pois, que o evangelho parega rema- tada loucura as pessoas do mundo, ao homem "natural", nao espiritual, cuja capacidade de apreensáo nao se estende além da esfera do intelecto. Isto porque o evangelho se ocupa de verdades que pertencem ao reino do espirito, podendo ser compreendidas por pessoas "espirituais". O que ele ai cha- ma "espirito" é o espirito humano influenciado pelo Espirito de Deus, e homem espiritual é aquéle que está sob a influen- cia do Espirito de Deus. Evidencia-se entáo a causa pela qual "o homem natural nao aceita as coisas do Espirito de Deus" e por que estas Ihe parecem loucura e nao as pode entender. Sao coisas que se julgam ou apreciam espiritualmente. O incrédulo, o "homem natural", nao iluminado pelo Espirito de Cristo, nao está aparelhado para apreciar ou perscrutar e

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muito menos compreender o evangelho. Ao passo que "o homem espiritual julga todas as coisas", até o que os olhos humanos nao discernem, nem os ouvidos ouvem, nem o es- pirito concebe, até mesmo aquelas coisas profundas relacio- nadas com o divino. Pode ser inculto, segundo o critério de o mundo julgar cultura, pode ser rude ou falho de inteligen- cia no entender dos homens, mas é capaz de aprender ver- dades que o mais sábio e mais arguto homem natural nao pode perceber. E ele mesmo é um mistério para o homem natural. Nao ninguém no mundo que possa compreender um eren te: "ele mesmo nao é julgado por ninguém".

Por outra parte, nós que aceitámos o evangelho e temos a iluminagáo do Espirito, "nós temos a mente de Cristo". Nao quer isto dizer que a tempera moral do crente seja tao perfeita como a de seu Senhor, nem significa seja sobrehu- mano o conhecimento que tem. Quer dizer que, debaixo da influencia do Espirito Santo, suas faculdades moráis e inte- lectuais recebem tal despertamento, vitalidade ou esclareci- mento que ele pode entender o meio de salvagáo proclamado, operado, aprovado por Cristo e posto ao alcance da inteli- gencia dos homens pelo Espirito de Cristo.

Entáo, se o evangelho tem essa orígem e natureza di- vinas, aqueles que o aceitam por que haveriam de permitir divisoes em seu meio, ocasionadas pelos que o anunciam? Se da parte déstes houver lealdade a ésse evangelho único, os que o aceitam conviráo néle e andaráo concordes; se os que o pregam forem fiéis ao seu ministério, nao permitiráo que o brilho de sua mensagem seja obscurecido pelos artifi- cios da retórica e de uma filosofía humana. O seg;rédo de uma igreja unida, coesa, está na iluminagáo do Espirito de Cristo que faz seja compreendido pelos eren tes o evangelho do mesmo Senhor Jesús.

5. Espirito de partido, prova de imaturidade espiritual. Cap. 3:1-4.

1 Eu, porém, irmáos, nao vos pude falar como a espirituais e sim como a carnais, como a criangas em Cristo. 2 Leite vos dei a beber, nao vos del alimento sólido; porque ainda nao podieis suportá-lo. Nem

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ainda agora podéis, 3 porque aínda sois camais. Por- quauto, havendo entre vós ciúmes e contendas, nao é assim que sois carnais e andáis segundo o homem? 4 Quando, pois, alguém diz: Eu sou de Paulo; e outro: Eu, de Apolo; nao é evidente que andáis segundo os homens?

Nada pode ser mais infantil nos crentes e que mais indi- que atraso espiritual como andarem divididos, em rivalidades denominacionais ou dominados por espirito faccioso. Assim é que, censurando nos corintios seu espirito sectário, decla- ra-lhes que se estáo mostrando com isso ser simples "criancas em Cristo" e agindo á maneira de quem ainda nao provou a regeneracáo.

Foi multo bem calculada a censura, porque os corintios se envaideciam de seus dons e de sua capacidade de realiza- goes, enquanto alguns faziam pouco de Paulo, desdenhando da simplicidade de seu ensino. O apostólo redargüí, dizendo que a sua simplicidade no caso correspondía á imaturidade déles. Apenas procurara adaptar-se á incapacidade de seus ouvintes. Como espiritual, nao Ihes pudera falar como a espirituais, pela simples razáo de nao serem capazes de com- preendé-lo nem de aceitar um ensino mais adiantado. "O homem natural nao aceita as coisas do Espirito de Deus porque Ihe sao loucura, e nao podem entendé-las porque elas se discernem espiritualmente".

Com isto nao quer dizer que nao eram crentes, mas ve- rificou o apostólo que ainda estavam na sua infancia espiri- tual. Já haviam passado pela experiencia do novo nascimento, mas a velha natureza e as antigás propensoes da carne cer- ceavam néles a acáo do Espirito. Nao se haviam desenvolvido e, pois, eram "criangas em Cristo".

De certo que nao é vergonha ser crianga, mas permane- cer crianga toda a vida, parar de desenvolver-se, é coisa digna de lástima. Regeneragáo nao significa perfeigáo moral, senáo o comégo de nova vida. E multo caminho a andar, do bergo á maturidade.

Considerando a condigáo dos corintios, de falta de ma- dureza espiritual, havia-os alimentado com "leite" e nao Ihes dera ^'alimento sólido". Ministrava-lhes o que convinha a criangas. Ensinara-lhes sómente as verdades rudimentares

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do evangelho, pois verificara que nao eram capazes de receber e assimilar alimento pesado, isto é, doutrinas mais difíceis e mais ayancadas. Pregara-lhes "Jesús Cristo, e éste cruci- ficado", mas nésse mister limitara-se a formas elementares e aplicacoes mais simples da mensagem evangélica.

tempo e lugar oportunos para essa pregagáo. Todos precisam saber acerca do perdáo, da paz e poder que resultam da no Cristo crucificado e redivivo. Aceitar ésse Cristo como Senhor e Mestre, e passar pela experiencia do novo nascimento, é comegar uma vida nova.

E nisto é que consiste o desenvolvimento espiritual: apreciar tais verdades, viver por elas, aplicá-las a cada uma das necessidades da vida e entáo ser capaz de receber e apre- ciar outras matérias mais adiantadas do ensino cristáo. Mas nisto é que os corintios falharam. Nao se haviam desenvol- vido, continuavam como criangas em Cristo, e ainda eram incapazes de digerir alimento sólido. Ainda eram "carnais", isto é, néles a "carne" sobrepunha-se ao espirito, a velha natureza com suas ruins inclinagoes mantinha ascendencia sobre a nova. Via-se que éles andavam "segundo o homem", como aqueles que de Deus ainda nao tinham recebido nova vida, tais quais os irregenerados do mundo.

E a prova dessa falta de madureza, désse raquitismo es- piritual, estava ñas invejas, ñas contendas e divisoes. O simples fato de haver desuniáo entre éles era prova de imaturidade espiritual, enquanto os ciúmes e intrigas, que. originavam e mais agravavam tal desuniáo, eram outras tantas indicacoes de falta de desenvolvimento e prova de uma condicáo carnal.

Muitos crentes que se ufanam de pertencer a certas correntes de opiniáo dentro de sua igreja, quando a própria existéncia de tais correntes diversificadas e opostas sao uma desgraga e vergonha. Quando existe tal espirito faccioso no meio do povo de Deus, tem-se ai uma demonstragáo lasti- mável de falta de compreensáo do evangelho de Cristo. Os crentes amadurecidos, "espirituais", regozijam-se na unidade da Igreja. A éles o Espirito Santo revelado as profunde- zas de Deus e os tem feito sentir e gozar a doce realidade de os filhos de Deus constituirern um corpo único. E porque o sentem e gozam, procuram guardar e manifestar essa uni-

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dade que o Espirito opera servindo-se éles do vínculo ou dos elos da paz, "até que todos cheguemos á unidade da e do pleno conhecimento do Filho de Deus, á perfeita varonilidade, á medida da estatura da plenitude de Cristo".

6. Os Ministros sao Servos de Deus, nao Senhores dos Homens. Cap. 3:5-9.

5 Quem é Apolo? e quem é Paulo? Servos por meio de quem créstes, e isto conforme o Senhor concedeu a cada um. 6 Eu plantei, Apolo regou; mas o crescimen- to veio de Deus. 7 De modo que nem o que planta é alguma coisa, nem o que rega, mas Deus que o crescimento. 8 Ora, o que planta e o que rega sao um; e cada um receberá o seu galardáo, segundo o seu pró- prio trabalho. 9 Porque de Deus somos cooperadores; lavoura de Deus, edificio de Deus sois vos.

Paulo mostrou que o espirito de seita na igreja podia ser corrigido á luz do evangelho, considerado éste como mensa- gem da parte de Deus, revelada pelo Espirito Santo. Éste conceito do evangelho torna impossivel que nos gloriemos no homem, ou torna impraticável a divisáo da igreja em parti- dos antagónicos que se manifestam em predilegáo a deter- minados líderes.

Agora éle procura mostrar que tal espirito sectário se corrige também por uma apreciacáo correta do que seja um ministro do evangelho, que é servo de Deus e nao dominador de homens. A palavra ''ministro" tem sua beleza e é suges- tiva. Significa "servo" e é éste o seu sentido no Novo Testa- mento. Nunca significa pastor de igreja ou chefe de uma congregacáo, como na linguagem moderna comumente quer dizer. Paulo declara que éle, Apolo e outros mensageiros do evangelho nao passam de servos que pertencem a Deus, sendo absurdo os crentes corintios dividirem-se em correntes de opiniáo a respeito de homens que Deus enviou para serví-los. Tais mensageiros sao propriedade de Deus, e aquéles que re- ceberam sua mensagem igualmente o sao, pelo que se devem mostrar agradecidos ao Senhor em face do servico que assim Ihes é prestado. Nada de orgulho ou ciúme a propósito dos vários beneficios que tais obreiros proporcionam. Sob éste

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ponto de vista o ministério deve antes congracar os crentes numa gratidáo unánime e jamáis dividí-los ou provocar entre éles rivalidades e emulagoes.

"Quem é Apolo e quem é Paulo", pergunta. Certamente nao tiveram a pretensáo de fundar partidos ou seitas, com ares de quem queria dominá-los. Sao servos cujo único dé- se jo foi o de estabelecerem uma igreja unida e forte, constituida de todos os seguidores de Cristo. Sao ministros por meio de quem os corintios foram levados á fé. Cada qual vai executando a tarefa que o Senhor Ihes assinou. Paulo semeia, Apolo rega, mas é Deus quem faz crescer a planta. Paulo, é verdade, comegou o trabalho entre éles; depois veio Apolo e continuou a obra. Mas nem um nem outro é alguma coisa, porque o éxito de ambos veio sómente da béngáo de Deus. Em si ou de si mesmos nada sao, muito menos na presenta de Deus, de cuja boa providéncia depende o cres- cimento do trabalho.

O interessante, além do mais, é que Paulo e Apolo nao sao rivais. Ninguém pois os considere chefes de seitas. Sao diferentes as tarefas que realizam, mas estáo unidos quanto ao alvo que tém sob as vistas. "O que planta e o que rega sao um". aspiram a uma coisa na vida: o progresso da Igreja. Cooperagao e nao competigáo. As oportunidades e responsabilidades de ambos variam, porisso também a remu- neracáo que váo receber será variada, todavía proporcionada á diligéncia e á fidelidade que um e outro tiver mostrado na obra: "Cada um receberá seu galardáo, segundo o seu pró- prio trabalho".

Ninguém deve alegar superioridade de um trabalho sobre outro, como justificativa de predilegáo por A ou B. Tais pre- feréncias sao de todo destituidas de razáo, atendendo-se a que "nós" ministros evangélicos, "nós" mensageiros de boas noticias, *'nós" servos da Igreja, todos somos "cooperadores de Deus". Nao quer dizer que operamos com Deus. Nao é éste o sentido do apostólo. Somos operadores em companhia de outros, e todos pertencemos a Deus. Como servos do Se- nhor cabe-nos uma tarefa comum, que é laborar no campo de propriedade divina, na Igreja, na térra lavrada onde um langa a sementé que outro logo mais vem regar. Mudando a figura de linguagem, somos operários ocupados na cons- trugáo do grande templo que se destina á habitagáo de Deus.

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Enquanto nós somos cooperadores de Deus, diz o apostólo, por outro lado "vós sois lavoura de Deus e edificio de Deus".

Esta conceituagáo do ministério sagrado assegura uni- dade á Igreja e promove um espirito de humildade e de sim- patía entre os que servem ao Senhor.

7. A Responsabilidade dos Ministros. Cp. 3:10-17.

10 Segundo a gra?a de Deus que me foi dada, lan- cci o fundamento como prudente construtor; e outro edifica sobre ele. Porém cada um veja como edifica. 11 Porque ninguém pode lanzar outro fundamento, além do que foi posto, o qual é Jesús Cristo. 12 Con- tudo, se o que alguém edifica sobre o fundamento é ouro, prata, pedras preciosas, madeira, feno, paina, 13 manifesta se tornará a obra de cada um; pois o dia a demonstrará, porque está sendo revelada pelo fogo; e qual seja a obra de cada um o próprio fogo o provará. 14. Se permanecer a obra de alguém que sobre o tunda- damento edificou, ésse receberá galardáo; 15 se a obra de alguém se queimar, sofrerá ele daño; mas ésse mesmo será salvo, todavía, como que através do fogo. 16 Nao sabéis que sois santuarios de Deus, e que o Espirito de Deus habita em vós? 17 Se alguém des- truir o santuário de Deus, Deus o destruirá; porque o santuário de Deus, que sois vós, é sagrado.

Se as tarefas sao diferentes, diferentes também sao os servos a quem elas sao distribuidas, mas todos sao igualmente responsáveis pela qualidade do servigo que prestar em. Essa variedade de trabalho na Igreja, Paulo acabou de ilustrá-la com a figura do campo, onde um planta e outro rega a se- menté que germina. Mas, para melhor atingir o fim em vista, ele agora troca a figura e passa a falar de um templo. Os ministros evangélicos sao companheiros de trabalho. Ca- da um tem sua parte na edificagáo désse templo, e todos sao responsabilizados pelo tipo de material que emprega e pela maneira de executar o trabalho. Todos se devem esforgar para que a sua construgáo suporte o teste da apreciacáo de Cristo, e assim receba o galardáo.

No que Ihe diz respeito, Paulo assevera que agiu como um construtor entendido no seu mister. Resguarda-se de parecer vaidoso e presungoso declarando logo que a sabedo-

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ría com que agiu deveu-a á "graga de Deus". Nao havia pois nada de merecimento no seu traballio. Langou o fundamento, o coméco da igreja em Corinto, e tudo quanto outros mestres estavam fazendo agora era edificar sobre essa fundagáo. Que se acautelen!, pois, e atentem no que fazem. De urna coisa fiquem cientes: se ja qual for o trabalho que estejam reali- zando, de outra fundacáo é que nao devem cogitar. O Fun- damento lancado foi Cristo. Foi com o anúncio de seu Se- nhor crucificado, ressurto e outra vez esperado do céu que se fundou a igreja alí. O próprio Deus, com efeito, dera ésse Fundamento á Igreja, de sorte que nao houvesse dúvida so- bre isto: "ninguém pode lancar outro fundamento, além do que foi posto, o qual é Jesús Cristo".

Todavía é possível levantar sobre essa fundagáo estrutu- ras de materiais diversos. Um constroi com elementos custo- sos e duráveis, como o ouro, a prata e as pedras preciosas. Outro emprega materiais que se deterioram com o tempo tais a madeira, o feno e a palha. Nao estamos certos sobre aquilo a que exatamente correspondiam ésses variados mate- riais da comparagáo do apostólo. Pensam alguns que se re- fere a doutrinas, umas falsas e outras verdadeiras. os que querem seja a referencia a pessoas, umas chelas de bon- dade e servigais, outras sem nenhum préstimo, que estavam ingressando na Igreja visível. Ainda outros supoem que o apostólo alude aos frutos moráis e espirituais do trabalho de certos mestres cristáos, frutos que apareciam na vida e no caráter de seus discípulos. Sao tres pontos de vista aparen- temente discrepantes, mas que se completam. As sás dou- trinas moldam o caráter e determinam a conduta, ao passo que ensinos erróneos, mediocres, tolos levam a profissoes de vazias de sentido, de modo que as igrejas se enchem fácil- mente e chegam a dar a impressáo de ser grandes e fortes, todavía incapazes de resistir a prova do tempo ou o julgamen- to de Cristo.

Ésse dia de prova e de revelagáo vai chegar, sem nenhu- ma dúvida. "Manifesta se tornará a obra de cada um", ou seja a sua verdadeira natureza. "O dia" da segunda vinda de Cristo "o demonstrará", ésse dia glorioso ainda futuro, quando o Senhor de dar recompensa a seus servos. O julgamento será como fogo, que experimentará o real valor da obra de cada um. A mediocridade e vaidade de alguns

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trabalhos seráo reveladas; outros se mostraráo de valor per- manente. Receberá galardáo aquéle cuja obra fór aprovada, e deixará de recebé-lo quem nao o fór. Todavía nao perderá a alma. Se tiver edificado sobre o fundamento que é Cristo, será salvo, embora perdendo o trabalho que realizou. Seráo semelhantes a quem consegue escapar, a muito custo, de uma casa incendiada. "Ele mesmo será salvo, todavía como que através do fogo". Torncu-se proverbial esta expressáo para significar um escape difícil e arriscado. Também pode ter o sentido de uma vergonha profunda, uma desílusáo tremenda e um rem.orso intenso, que de sentir o ministro que apa- rentemente teve um ministérío bem sucedido, mas que afínal se manifestou sem solidez, mediocre, de aparéncía engañosa.

Tudo isto está em íntima relacáo com o tema do comégo da epístola divisoes na igreja e é de muito valor prático a igreja de nossos días sabé-lo. Primeiro, e pode haver um Fundamento; todos quantos estáo unidos a Cristo constituem um edificio. pode haver uma Igreja Crista. Partidos e seitas, evidentem.ente, sao uma negagáo de tudo isso. Segundo, se Paulo fundara a igreja com a pregacáo de Cristo exclusivamente, os que se diziam adeptos de algum outro pregador nao apenas, com essa atitude, se afastavam de Paulo, mas do Cristo que ele anunciava. Repudiar a Paulo era abandonar a Cristo. Em terceiro lugar, se alguns mestres gozavam de muita popularidade e se os seus adeptos blasona- vam désse fato, a prova real do servigo déles nao estava no louvor dos hornens, mas no julgamento de Cristo. Alguns daquéles que recebiam louvacoes as custas de Paulo ficaráo desapontados um día na presenca de Cristo, em sua vinda. Nao seráo afastadcs da presenga de Deus, é certo, mas qual- quer premio de servigo Ihes será negado.

Paulo encerra esta parte com um aviso solene e apro- priado. As divisoes causam daño, prejuízo, ao santuário de Deus, profanam-no, destroem-no santuário que deve ser inviolável, a Igreja de Jesús Cristo, constituida dos crentes, como pedras vivas. Este santuário apoia-se no divino Filho de Deus e é ocupado pelo Espirito Santo. Se alguém, por seu espirito faccioso, por orgulho ou vaidade causa cisoes na Igreja, ésse tal sofrerá castigo de Deus. "Se alguém destruir o santuário de Deus, Deus o destruirá, porque o santuário de Deus, que sois vos, é sagrado".

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8. Dividir a Igreja é próprio de insensatos. Cap. 3:18-23.

18 Ninguém se engañe a si mesmo: se alguém dentre vós se tem por sábio neste sáculo, faga-se es- tulto para se tornar sábio. 19 Porque a sabedoria déste mundo é loucura diante de Deus; porquanto está escri- to: Éle apanha os sábios na própria astucia déles. ZO E outra vez: O Senhor conhece os pensamentos dos sábios, que sao pensamentos vaos. 21 Portanto, nin- guém se glorie nos homens; porque tudo é vosso: 2Z seja Paulo, seja Apolo, seja Cefas, seja o mundo, seja a vida, seja a morte, sejam as coisas presentes, sejam as futuras, tudo é vosso. 23 E vós de Cristo, e Cristo de Deus.

Os que provocam cisoes na Igreja geralmente o fazem movidos de vaidade e orgulho. Em qualquer caso, sao culpa- dos de um ato de loucura, visto se sobreporem aos demais, defraudando-os por privá-los do convivio e da instrugáo que outros líderes Ihes possam proporcionar e a que todos os dis- cípulos de Cristo tém direito.

Paulo insiste em demonstrar que essa tendencia para de- savengas seria em grande parte corrigida por um conceito exato do ministério cristáo, ministério que existe para servir a Igreja toda e nao a grupos separados dentro déla.

*'Ninguém se engañe", adverte. Ninguém se envaidega, julgando possuir maior clarividencia relativamente ao plano de salvagáo, ou quanto a um exato conhecimento de Deus, o que se obtem no evangelho e na prédica da cruz. Mas, como mostrou no primeiro cap., isso afigura-se loucura aos sábios do mundo, embora seja de fato a própria sabedoria de Deus. Portanto, insiste o apostólo, quem quer que se tenha por sábio, segundo o critério do mundo, deve fazer-se estulto aos olhos déste século pela aceitagáo do evangelho de Cristo. Déste modo tornar-se-á verdadeiro sábio. "Porque a sabe- doria déste mundo é loucura diante de Deus". A palavra de vem confirmar éste asserto. "Éle apanha os sábios na própria astúcia déles" sendo ai a referéncia á futilidade do engenho humano e á sua incapacidade de alcangar os fins que se propoe. Também o salmista vem confirmar esta ver- dade. "O Senhor conhece os pensamentos dos sábios, que sao pensamentos vaos". A idéia é que a sabedoria humana

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é oca, vazia, va, nao sómente quanto aos seus efeitos mas na sua própria esséncia.

Compreenda-se que Paulo está apreciando a sabedoria humana do ponto de ^ vista de sua incapacidade de acertar com a salvagáo e de alcangá-la. Todas as verdades da ciencia e da filosofia, assim como todo progresso em qualquer que seja o ramo do saber humano, sao louváveis e devem ser aceitos com gratidáo, como presentes de Deus. Mas o evan- gelho da salvagáo é sabedoria de Deus, superior a todas as filosofías da térra. Teve sua génese no pensamento de Deus Pal, relaciona-se com o Filho e é revelado pelo Espirito Santo.

"Portan to, ninguém se glorie nos homens". Cesse toda jactancia, vaidosa e egoísta, que faz preferir-se na igreja um mestre por outro. Ninguém se julgue honrado por pertencer a A ou B, seus preceptores. Éles é que pertencem a todos, como servos que sao de todos. Tenha-se na lembranga que tudo é nosso, se pertencemos a Cristo.

Paulo passa a fazer um como inventário de tudo isso que diz ser nosso, de toda essa riqueza que os filhos de Deus possuem. Os ministros sao nossos: Paulo, com o conhecimen- to incomparável que tem do evangelho, com o seu inigua- lável zélo e fervor missionário; Apolo, com todo o seu pro- fundo conhecimento das Escrituras e sua arrebatadora elo- quéncia; Pedro, com aquela santa experiencia de seu contacto pessoal com o Senhor. Todos estes sao nossos. Nao vamos dizer que pertencemos a éles; pelo contrário, éles é que sao nosso patrimonio. Pertencendo-nos, pertencem de igual modo a todos os cristáos. Nao nos privemos de nenhum bem; nao defraudemos a Igreja com as nossas divisoes. Temos o di- reito de privar nao sómente com os mestres favoritos, mas com todos, e receber de todos a influéncia de seu ensino.

Se Paulo, Apolo e Cefas sao nossos, nossa também é a Igreja que representam. O mesmo se diga do mundo. Tudo quanto existe no universo para nosso proveito foi ordenado. "Todas as coisas se combinam para o bem dos que amam a Deus". A vida e a morte sao nossas. É sómente Cristo que sentido á vida e faz que valha a pena ser vivida. É tolice querer negar a realidade dos sofrimentos e dissabores da vida amargos e crueis que sao. Todavía déles procede algum bem permanente, aqui e agora, ou depois. A morte é tam-

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bém nossa. É nossa servente, ainda quando parega domina- dora. É verdade que anda vestida de negro e acompanhada de terror e espanto. Um dia, porém, vé-la-emos remover a cortina e abrir-nos o caminho para outra vida que é ra- diante de gloria e de alegria. "As coisas presentes, como as futuras" também nos pertencem. Todas as condlcoes de existencia e todas as oportunidades que nos chegam com o tempo, tudo pertence ao crente. O presente no-lo o Senhor com vibracoes de vitória na luta de cada dia; o futuro nós o temos revestido dos fulgores da esperanza.

"Tudo é vosso", repete o apostólo, mas logo acrescenta que tudo é nosso sob a condicáo de sermos do Senhor "e vos de Cristo". Se Ele é mesmo nosso Mestre e Senhor, nada se constituí para nós um prejuízo permanente. Nada nos pode ser contrário. Tudo se converte ern ajuda e estímulo para nós e está ao nosso servigo. Tudo nos pertence, está de nosso lado, a nosso favor, porque somos de Cristo, e Cristo é de Deus. A Igreja possui tudo em razáo de estar sujeita a Cristo e sob a dependencia de quem a tudo preside e governa. Cristo, por sua vez, tem tal poder universal porque é sujeito ao Pai e dÉle depende.

Ninguém veja nesta submissáo do Filho ao Pai uma ne- gagáo da divindade de Jesús. Pelo contrário, esta submissáo é uma verdade que nos habilita a imaginar em que consiste a unidade das Tres Pessoas na Trindade Santissima. A so- í berania universal do Filho de Deus funda-se em sua filial submissáo ao Pai. Igualmente, a unidade, santidade e subli- midade da Igreja decorrem de sua submissáo e obediencia a Cristo. Como servos de Cristo, por conseguinte, tornamo-nos herdeiros de tudo.

A vista de tais inter-relagoes ou dependencia, como pode a Igreja permitir divisoes em seu seio? Que valor tem a van- glória de alguém? Que significa sua submissáo a mestres hu- manos? Qualquer crente possui "tudo", inclusive- os próprios mestres que na Igreja servem por um mandato divino. Sua gloria, sua ufania, suas riquezas estáo em Cristo, em quem todos os crentes participam de uma felicidade que Ihes é co- mum, e na companhia de quem adquirem dignidade e apren- dem a viver.

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9. Os Ministros sao Responsáveis diante de Deus. Cap. 4:1-5.

1 Assim, pois, importa que os homens nos consi- deren! como ministros de Cristo, e despenseiros dos mistérios de Deus. 2 Ora, além disso, o que se requer dos despenseiros é que cada um déles seja encontrado fiel. 3 Todavía, a mim mui pouco se me de ser julgado por vós, ou por tribunal humano; nem eu táo pouco julgo a mim mesmo. 4 Porque de nada me argúi a consciéncia; contudo, nem por isso me dou por jus- tificado, pois quem me Julga é o Senhor. 5 Portanto, nada julgueis antes de tempo, até que venha o Senhor, o qual nao sómente trará á plena luz as coisas ocultas das trevas, mas também manifestará os designios dos coracoes; e entáo cada um receberá o seu louvor da parte de Deus.

É duro alguém ser mal compreendido e condenado, quan- do se esforca em cumprir seus deveres da melhor maneira possível, e quando, por "outra parte, ser elogiado quem nao o merece. Foi essa injustica de que Paulo estava sendo ví- tima, e o responsável era aquéle espirito sectário dos corintios, manifestó naquelas predilecoes por certos mestres. Essa par- cialidade, nao sómente prejudicava a igreja, privando seus membros de beneficios a que todos tinham direito, como jus- tamente o apostólo fez sentir, mas era um agravo aos minis- tros que existiam para serví-la. Eram de fato servos da igreja, mas isto nao queria dizer que a Igreja fósse senhora déles. Responsáveis eram, mas perante Deus, a quem serviam. Po- risso nao eram cabíveis as críticas descaridosas que Ihes fa- ziam, nem os crentes deviam servir-se déles para provocarem aquéle dissídio desnecessário na Igreja, que tanto a estava prejudicando.

E assim prossegue aqui na censura daquéle estado de coisas, mas o faz exatarnente como no principio de cada cap. precedente. Em todos os trés casos aplica as suas relacoes pessoais com a igreja as verdades anteriormente apresen- tadas. Aqui, depois de haver discutido a pcsicáo dos minis- tros como servos da Igreja, volt a a considerar os que minis- travam em Corinto e particularmente seu próprio caso e ex- periencia em relagáo com aquela comunidade "Assim, pois, importa que os homens nos considerem como ministros de Cristo". Como querendo dizer: Somos de fato servidores da

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igreja, contudo esta nao deve julgar-nos e condenar-nos, usando de favoritismo com alguns de nós, em prejuízo dos demais, como se fóra senhora ou dominadora nossa. Somos "despenseiros dos mistérios de Deus". A palavra "despen- seiro" empregava-se para designar "um escravo de confianza, incumbido pelo senhor de dirigir a casa, e a quem de modo particular confiava a distribuicáo de tarefas e provisoes aos demais servos". Os ministros evangélicos sao, portanto, des- penseiros e ministradores das verdades divinas. Nao é aos seus companheiros de servico que tém de dar contas, mas ao próprio Deus. Váo aonde sao mandados e reparte com todos o que Ihes tem sido revelado. Fidelidade ao seu Senhor e á sua missáo, eis tudo quanto se Ihes pede. Aceitar a um déstes despenseiros e reieitar os demais é dar a entender que aquéle é mais fiel do que estes, constituindo-se juiz déles quem assim procede, funcáo que é privativa do Senhor.

Paulo vé-se diante désse juíz supremo e ¡declara que pouco se Ihe do que os homens julguem a seu respeito. Táo pouco teria importancia o que Paulo julgasse de si pró- prio. Se nao o acusava a consciéncia de nenhuma infidelida- de no servico, nem por isso ia ele repousar nessa complacen- cia do íntimo tribunal, nem se achava livre de cuidados. Era o Senhor quem o julg^va.

Paulo, pois, concita aqueles irmáos a que abandonem a prática de julgar prematura e oficiosamente os seus mestres, o que tem redundado em desavengas e separacoes. Quando o Senhor vier, entao "trará á plena luz" todos os atos ocultos da nossa vida e revelará os motivos secretos de nossos cora- coes. O louvor que todos e cada um merecer, de recebé-lo da parte de Deus, justo e infalível Juíz, e nao da parte de sectaristas ignorantes e impertinentes. Tais palavras do apos- tólo encerram um sábio conselho. Sejamos tardos e humildes no julgamento dos outros, particularmente no que diz res- peito aos ministros do evangelho. Afastemos de nós a inveja e o desalentó na execucáo das tarefas recebidas, e procure- mos ser fiéis em tudo. Nao nos acabrunhe o que por acaso pensem de nós. Um día de ajuste de contas chegará para todos. 'Terto está o Senhor".

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10. Reprova-se o orgulho, causador de dissengoes. Cap. 4:6-13.

6 Estas coisas, irmáos, apliquei-as figuradamente a mim mesmo e a Apolo por vossa causa, para que por nosso exemplo aprendáis isto: Nao ultrapasseis o que está escrito; a fim de que ninguém se ensoberbe^a a favor de um em detrimento do outro. 7 Pois quem é que te faz sobressair? e que tens tu que nao tenhas recebido? e, se recebeste, por que te vanglorias, como se o nao tiveras recebido? 8 estáis fartos, estáis ricos; chegastes a reinar sem nós; sim, oxalá reinás- seis, para que também nós viéssemos a reinar convosco. 9 Porque a mim me parece que Deus nos pos, os apos- tólos, em último lugar, como se fóssemos condenados á morte; porque nos tornamos espetáculo ao mundo, tanto a anjos, como a homens. 10 Nós somos loncos por causa de Cristo, e vós sabios em Cristo; nós f ráeos, e vós fortes; vós nobres, e nós desprezíveis. 11 Até á presente hora sof remos fome, e sede, e nudez; e somos esbofeteados, e nao temos morada certa, 12 e nos afa- dígamos, trabalhando com as nossas próprias máos. Quando somos injuriados, bendizemos; quando perse- guidos, suportamos; 13 quando caluniados, procura- mos conciliacáo: até agora temos chegado a ser con- siderados lixo do mundo, escóría de todos.

Mais de urna vez Paulo tem feito sentir que as dissencoes entre os corintios sao o resultado e urna prova da vaidade e orgulho déles. Agora passa a censurar ésse gósto extrava- gante, contrastando sua mesma experiencia de apostólo com a vanglória e auto-satisfacáo dos corintios. Pois éles proce- diam como se estivessem no pleno gozo do Reino futuro e perfeito de Cristo, enquanto Paulo, como gladiador na arena, condenado á morte, sofria os extremos opostos da ca- lúnia, vivia angustiado, atormentado e envergonhado.

"Estas coisas, irmáos", isto é, tudo quanto acabou de di- zer sobre a insensatez dos dissídios na igreja, "apliquei-as fi- guradamente a mim mesmo e a Apolo", ainda que os princi- pios apresentados tenham aplicacáo mais vasta e se refiram á atitude que os corintios mantinham para com todos os seus mestres. Nao dissera aquilo para se defender, mas por causa déles. Esforcava-se por Ihes ensinar urna ligáo de humildade, para que pelo exemplo déles ambos e pela insisténcia com que Ihes inculcava uma atitude correta para com ele e seu

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colega, OS corintios aprendessem a nao ir além do que se achava escrito ñas Escrituras. Paulo nao se quer referir a passagens bíblicas especiáis, mas ao ensino geral das Escri- turas a respeito do orgulho pessoal e da auto-suficiencia. Queria que os corintios evitassem o orgulho e a parcialidade implícitos ñas preferencias pessoais; que ninguém se enso- berbecesse, ninguém se metesse em porfías, exaltando um mestre para humilhagáo de outro. Tal atitude, no caso, nao queria dizer lealdade ou homenagem agradecida as pessoas visadas. Éles com isso apenas alimentavam seu próprio or- gulho. As dissengoes serviam á vaidade déles, e além disso partiam de um sentimento de presungáo; com elas se per- día tempo. "Quem é que te faz sobressair?" Cada qual procurava aparecer, sobressair aos outros, aderindo á sua pró- pria corrente de opiniáo. Mas a ingratidáo era patente: "Que tens tu que nao tenhas recebido?" As próprias excelencias de fulano ou sicrano, que se tomavam como razáo do dissi- dio, eram dádivas do céu. Deviam pois ser motivo de gra- tidáo, e nao de orgulho, visto como tinham sido recebidas.

Mas a jactancia daquéles irmáos era ilimitada. Paulo a descreve com bastante ironía: ''Já estáis f artos"! Como se gozassem dos beneficios do futuro Reino da gloria. *'Já estáis ricos!" sem esperar por nós, apostólos, ascendes- tes a vossos tronos! E quiséramos que reinásseis mesmo, para reinarmos convosco.

Contrastando com essas infantilidades estava a lastimá- vel realidade da situagáo dos apostólos, comparável á dos criminosos condenados á morte e que chegavam ao anfiteatro por último, quando os espectadores se impacienta vam de presenciar lutas pouco sangrentas e, portanto, sem muita relevancia para éles. Os que chegavam no fim eram, porisso, acossados a lutar desarmados com as feras. Para os tais nao havia esperanga de escaparem com a vida. Os apóstolos assemelhavam-se a ésses gladiadores que entravam na arena sabendo que dalí saíriam mortos. se haviam despe- dido dos amigos e saudado o imperador, á vista da morte: "Porque a mim me parece que Deus nos pos a nós, os apósto- los, em último lugar, como se fossemos condenados á morte: porque nos tornamos espetáculo ao mundo, tanto a anjos, como a homens".

E outra véz se dirige aqueles irmáos, agora com sarcas- ' mo: em particular aos chefes de grupos na igreja, mas de

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igual modo a todos os seus sequazes. "Nós somos loncos por causa de Cristo". Custou-lhes essa pecha de loucos o serem leáis ao evangelho que os entendidos do mundo consideravam loucura< ''Mas vós sois sabios em Cristo" tendes apren- dido um método táo eficiente de pregagáo do evangelho que isso vos tem valido um renome extraordinário, tal a sabedoria e a compreensáo que demonstráis. "Nós somos fracos, e vós fortes" fazeis os vossos discursos públicos com bastante aprumo e seguranga, mas nós nao possuimos ésse ar de su- perioridade que ostentáis na tribuna, antes aparecemos com temor e grande tremor. "Vós sois nobres, e nós desprezíveis" a vós recebem com discursos laudatórios e adulagáo, mas nós recebemos afrontas e desprézo.

E estende-se nesse contraste patético, descrevendo o que sofrem os apóstolos por amor de Cristo. Para éles a vida se agrava mais e mais. "Até á presente hora sofremos fome e sede". Possuimos pouco para que imaginemos haver soado a hora do triunfo, o momento augusto da coroagáo. E mais: "Sofremos nudez, somos esbofeteados e nao temos morada certa. Afadigamo-nos, trabalhando com as nossas próprias máos". Portam-se, entretanto, com paciencia e humildade. As zombarias respondem abengoando. Contém-se diante das perseguigoes, sem emitirem uma palavra de queixa. Re- plicam as calúnias convidando todos ao arrependimento e a voltarem para Cristo. E porque se comportam dessa forma dáo lugar aínda a maiores injúrias: "Até agora temos che- gado a ser considerados lixo do mundo, escoria de todos". Ora, se Paulo e seus companheiros apóstolos eram tidos e havidos assim pelo mundo, era absurdo imaginarem aqueles irmáos teriam melhor sorte seguindo um ou outro daquéles desprezados líderes. Se a situagáo déstes era vexatória, de que haveriam de blasonar seus aderentes? Portanto, o orgu- Iho que cindia aquela igreja oarecia de sentido, era uma estupidez sem alma e de todo absurdo.

11. Paulo admoesta paternalmente. Cap. 4:14-21.

14 Nao vos escrevo estas coisas para vos envergo - nhar; pelo contrario, para vos admoestar como a fi- Ihos meus amados. 15 Porque ainda que tivésseis mi- Ihares de preceptores em Cristo, nao terieis, contudo,

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muitos pais; pois eu pelo evangelho vos gerei em Cris- to Jesús. 16 Admoesto-vos, portanto, a que sejais meus imitadores. 17 Por esta causa vos mandei Timoteo, que é meu filho amado e fiel no Senhor, o qual vos lembrará os meus caminhos em Cristo Jesús, como por toda parte ensino em cada igreja. 18 Alguns se enso- berbeceram, como se eu nao tivesse de ir ter convosco; 19 mas em breve irei visitar-vos, se o Senhor quiser, e entáo conhecerei nao a palavra, mas o poder dos en- soberbecidos. 20 Porque o reino de Deus consiste, nao em palavra, mas em poder. 21 Que preferís? Irei a vos outros com vara, ou com amor e espirito de man- sidáo?

Paulo encerra sua Iqnga discussáo fazendo um apelo de pai. As divisoes da Igra ja ocuparam os quatro primeiros caps, da carta. O caso era de tal modo sério que no último pa- rágrafo aínda se sentiu constrangido a empregar um misto de ironía e repreensáo. Agora, súbitamente, Paulo altera suas maneiras de expressáo, como era próprio do seu estilo, e faz um apelo cheio de ternura e simpatía, contudo sem amenizar o tom severo, preparando assím seus leitores para outra ma- téria grave, objeto do cap. seguinte.

Explica o alcance da linguagem que empregou. Em tudo o que expendeu a respeito das dissengoes na igreja, no que sentiu necessidade de censurá-los acremente, procurou o maior bem para éles. "Nao vos escrevo estas coisas para vos envergonhar, pelo contrário, para vos admoestar como a fi- Ihos meus amados". E éles eram mesmo do apostólo. Per- tenciam-lhe como a nenhum outro mestre ou líder. Grande número de novos preceptores (tutores) podía surgir, mas aínda que os tivessem aos milhares, podiam contar com um pai espiritual, que era ele, Paulo. Em comunháo com Cristo e pela prédica do evangelho infudira-lhes uma nova vida. Muito a propósito, pois, concita-os a que o imitem na sua humildade, no desprendímento do seu servigo, e a que re- velem a natural parecenca com o pai, afastando dojseu meio o espirito de orgulho, os dissídios e toda a presungáo. Para ajudá-los a acabar com aquelas desavengas, envíara-lhes Ti- móteo, seu "filho amado e fiel no Senhor", que igualmente se convertera por sua influencia. Timóteo era para éles, pois, como irmáo mais velho, e neste caráter é que devia ser por éles recebído, afetuosa e confiantemente. Sua missáo entre éles seria a de lembrar-lhes os "caminhos" de Paulo, isto é,

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sua maneira de agir, o que éle ensinava em todas as igrejas, sua humildade, abnegacáo e devotamente ao Senhor, Tudo isso que éle sempre ensinou e praticou ñas igrejas.

Mas ninguém compreendesse que, por Ihes enviar Ti- moteo, nao estava disposto a ir até pessoalmente. Alguns adversários seus estavam pensando assim. Com certo ar de triunfo, inchados de vangória, propalavam que Paulo estava enviando Timoteo porque éle mesmo nao queria ir lá. Na ausencia do apostólo aquéles mestres perniciosos se haviam tornado importantes. E a propósito da ida de Timoteo estavam se assanhando e se tornando ainda mais insolentes. Possi- velmente interpretavam o fato como médo que Paulo tinha déles. ''Alguns se ensoberbeceram (andam inchados), como se eu nao tivesse de ir ter convosco. Mas em breve irei visitar- -vos, se o Senhor quiser, e entáo conhecerei nao a palavra, mas o poder dos ensoberbecidos". Paulo iria descobrir e por á mostra a "fórga" de seus enfatuados oponentes, se eram mesmo o que pretendiam ser, com toda aquela empáfia elo- quente. Porque o Reino de Deus que vai ser estabelecido, e portanto os meios empregados neste sentido, como o ser- vigo e a autoridade dos apostólos, nao consiste em palavras, mas em fatos, em "poder". Quando Paulo aparecer entre éles nao se limitará a palavras, a ensinamentos e censuras. Éle vai agir. Como? A resposta dependerá únicamente dos corintios. Se continuarem brigando e se dividindo, como meninos levados e insubmissos, seráo castigados. Se pelo contrário se juntarem e se mostrarem camaradas que se es- timam, Paulo agirá como pai amoroso e perdoador. "Que preferís? Irei a vós outros com vara, ou com amor e espirito de mansidáo?"

Assim é que nestes quatro prim_eiros caps. Paulo procu- rou corrigir ésse espirito faccioso dos corintios e recambiá-los á uniáo de vistas. Foi o primeiro mal que procurou sanar, visto que sómente a uma igreja unida, que o reconhecesse como seu fundador, podia expedir as ordens enérgicas e mi- nistrar autoritariamente os ensinos que viriam logo mais. Hoje em día também, onde quer que exista uma igreja agi- tada pelas ruins suspeitas, pelo orgulho e por ésse espirito faccioso, é necessário antes do mais que se acalme essa agi- tagáo, unindo-se todos em amor e compreensáo, para que se

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consiga progresso, seja na vida crista, seja na instrugáo re- ligiosa e seja no servigo de evangelizagáo.

B. DISCIPLINA. Cap. 5.

1 Geralmente se ouve que entre vos imoralidade tal, como nem mesmo entre os gentíos, isto é, haver Quem se atreva a possiiir a mulher de seu próprio pai. 2 E, contudo, andáis vés ensoberbecidos, e nao chegas- tes a lamentar, para que fósse tirado do vosso meio quem tamanho ultraje praticou? 3 Eu, na verdade, ainda que ausente em pessoa, mas presente no espirito, sentenciei, como se estivesse presente, que o autor de tal infamia seja, 4 em nome do Senhor Jesús, reu- nidos vós e o meu espirito, com o poder de Jesús, nosso Senhor, 5 entregue a Satanás para a destruigáo da carne, a fim de que o espirito seja salvo no dia do Se- nhor. 6 Nao é boa a vossa jactancia. Nao sabéis que um pouco de fermento leveda a massa toda? 7 Langa! fora o velho fermento, para que sejais uma nova massa, como sois de fato sem fermento. Pois também Cristo, nosso Cordeiro pascal, foi imolado. 8 Por isso celebremos a festa, nao com o velho fermento, nem com o fermento de maldade e da malicia; e, sim, com os asmos da sinceridade e da verdade. 9 em carta vos escrevi que nao vos associásseis com os impuros; 10 refiro-me com isto nao própriamente aos impuros désíe mundo, ou aos avarentos, ou roubadores, ou idó- latras; pois, neste caso, teríeis de sair do mundo. 11 Mas agora vos escrevi que nao vos associeis com al- guém que, dizendo-se irmáo, fór impuro, ou avarento, ou idólatra, cu maldizente, ou beberráo, ou roubador; com ésse tal nem ainda comáis. 12 Pois com que direito haveria eu de julgar os de fora? Nao julgais vós os de dentro? 13 Os de fora, porém, Deus os julgará. Ex- pulsa!, pois, de entre vós o malfeitor.

Segundo os rumores que havia, os corintios toleravam em seu meio um caso de grosseira imoralidade. Assim, pois, passa o apostólo a tratar dessa questáo, insistindo que a di- ciplina se aplique ao membro faltoso. Embora fósse éste o caso mais sério submetido á sua apreciagáo, nao Ihe pode dar prioridade porque era necessário assegurar primeiro a uni- dade da igreja, antes de Ihe impor qualquer delibera^áo drás- tica para o referido caso. De outro modo, nao havendo uniáo de vistas, as providencias teriam de partir de um dos grupos

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da igreja, com o resultado de se cavar mais fundo a sua divisáo.

A administragáo da disciplina, pois, em certo sentido, é matéria pertinente á própria vida da igreja, á sua organizagáo e expansáo. Relaciona-se intimamente, como questao ecle- siástica, ao problema do dissídio que a precedeu. Está em jógo, portanto, agora, uma grave falta moral, cuja discussáo, com propriedade, serv^e de introducáo as outras questoes mo- ráis que se seguiráo, a saber, os litigios judiciais e a impureza privada. Como se vé, a ordem adotada pelo apostólo, na dis- cussáo dos assuntos, é rigorosamente lógica, constituindo-se os primeiros seis caps, da carta uma unidade.

1. Merecido rigor. Cap. 5:1-5.

A falta era gravíssima. O ofensor vivia maritalmente com a própria madrasta. Crime desta natureza, mesmo entre os pagaos, de baixo nivel moral, nao seria tolerado. No en- tanto os cristáos corintios, indiferentes ao escándalo, anda- vam ainda se vangloriando de seus líderes prediletos, chelos de orgulho, complacentes com a situacáo. O contrário é que devia suceder: encherem-se mas era de vergonha e langar fora de sua comunháo o culpado de tamanha vileza. Deviam compreender que a verdadeira gloria da Igreja Crista con- siste, nao na eloquéncia de seus pregadores, nem no talento de seus mestres eminentes, mas na pureza moral e na vida exemplar de seus membros.

Paulo, porém, resolverá o que era cabível no caso e estava certo como procedería, se presente estivera na congre- gacáo. E, de fato, ele descreve o ato solene da disciplina como estando a realizar-se: "Considerai-me, pois, presente no vosso meio, a sentenciar, em nome de Cristo e com a vossa aquiescencia, a excomunháo do autor da infamia, bem como a entrega do mesmo a Satanás, para que Ihe imponha sofri- mentos capazes de quebrar a fórca de sua cobica pecaminosa, e, assim, venha a sentir arrependimento, seja restaurado á condigáo anterior, e se salve no dia do Senhor".

É digno de nota que Paulo nao arrebata da igreja o po- der de exercer sua própria disciplina. O govérno é demo-

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orático; a imposigáo de penalidades nao compete a um oficial seu ou a urna ordem sacerdotal. Note-se aínda que na as- sembléia, além da presenca simbólica ou espiritual de Paulo, preside um terceiro Espirito, supremo, de quem procede a autoridade da acáo disciplinar.

Nao se deve supor que éste incidente, algo obscuro, da historia da Igreja Primitiva, sancione a imposicáo de casti- gos corporais como instrumento de disciplina eclesiástica. Sob a direcáo de um apostólo inspirado e estando envolvido na questáo o poder dos milagres, parece que a sentenca pro- ferida no caso determinou uma doenca ou sofrimentos físi- cos. Isto naquela época. Em todos os outros casos posteriores de disciplina eclesiástica, de que noticia, nao se sabe de nada parecido.

O que mais importa, porém, é observar que o sofrimento, de qualquer que fósse a natureza e a procedencia, teve como escopo reconduzir o culpado ao arrependimento, como uma advertencia de que o alvo supremo de qualquer agáo disci- plinar na igreja é a rehabilitagáo dos ofensores.

2. Indiferenga Pecaminosa. Cap. 5:6-8..

Paulo detem-se a considerar a negligencia criminosa dos corintios, que deixavam aquéle escándalo sem a necessária reprimenda, para aludir a outro designio importante da dis- ciplina, que é a defesa da vida moral da igreja. "Nao é boa a vossa jactancia" cegueira e estupidez é blasonardes dos vossos preceptores e das vossas realizacoes, enquanto por ou- tro lado ides tolerando um pecado assim vergonhoso. "Nao sabéis que um pouco de fermento leveda a massa toda?" É conhecida esta figura de linguagem. Um pouco de levedura. em um nada de tempo, toma Qonta da massa inteira. E é assim que a menor cumplicidade no moral, a tolerancia do pecado, a dissimulacáo da impureza, afetam a vida moral da igreja toda. Rebaixa-lhe a tonalidade moral e estimula a prática de outros deslises, ainda que menos flagrantes.

"Lancai fora o velho fermento^ para que sejais uma nova massa, como sois de fato sem fermento" expulsa! dos vossos coracóes toda disposigáo e dése jo ruim, próprios da velha

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vida, de quando ainda nao conhecíeis Cristo, para que como igreja vos caracterize agora urna nova vida e se jais na reali- dade e por experiencia o que como cristáos deveis ser, e o que, de certo, sois no espirito e na intengáo divina.

Como refórgo déste preceito Paulo emprega uma figura, bela e incisiva. Na véspera do primeiro dia de festa pascoal, os israelitas eram obrigados a retirar de suas casas todo o fermento que ai houvesse. E a partir da imolacáo do cor- deiro pascoal no Templo, e enquanto durasse a festa, o pao de fermento era banido das refeicoes. Ora, Cristo é nosso Cordeiro Pascoal. Sendo assim, a vida des que O seguem é uma festa sagrada. Logo, devemos excluir de nossa vida todo pecado, todo "velho fermento" que nos caracterizava antes de sermos de Cristo, "toda maldade e malicia", e entáo cum- pre que em nós transpareca a sinceridade, a verdade e rea- lidade de nossa profissáo evangélica.

3. Por que disciplina e onde se exerce. Cap. 5:9-13.

Em carta anterior, Paulo os havia advertido vigorosa- mente contra a camaradagem contagiante dos impuros. Fóra aliás m^al compreendido, pois entenderam que Ihes proibira qualquer relacáo com pessoas imorais, regra que éles denun- ciaram como impossível de ser observada. É provável que essa interpretacáo servisse de pretexto para nada faze- rem no tocante aos membros faltosos da igreja. Paulo es- clarece, entáo, o sentido da advertencia anterior e insiste no dever da disciplina. A substancia do seu pensamento é o seguinte:

"Em carta passada avisei-vos que nao vos associásseis com gente do tipo do escandaloso mencionado. Mas nao quis dizer que nao tivésseis contacto social com tal gente, os gananciosos, lascivos e idólatras. Seria impossível, como aliás sugerís, evitar qualquer contacto com éles. Para isso teríeis que sair do mundo. O que eu quis dizer e agora repito é que, se algum cristáo professo é culpado de tama- nhas faltas, deveis evitar toda convivencia com ele. Nem sequer comáis em sua companhia. Nao me cabe ditar re- gras ao mundo néste particular. Contento-me em olhar pela Igreja, para que seja irrepreensível, e é éste o vosso mesmo

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dever. Nossa disciplina, pois, nao se estende aos de fora da Igreja. A éstes cumpre deixar que Deus os julgue. disse o bastante. Excomungai langai fora de vossa comunháo a ésse malfeitor".

É evidente que Paulo, aqui, nao recomenda relagoes ou intimidades dos crentes com os mundanos, se puderem ser evitadas. Na carta seguinte tratará específicamente do perigo de se ficar preso, em jugo desigual, com os incrédulos. É ainda evidente que o designio da disciplina eclesiástica é nao sómente reformar os ofensores e preservar a pureza moral da Igreja, como, em terceiro lugar, é defender a reputagáo da mesma. Todo empenho se deve ter em mostrar ao mundo que a Igreja de Cristo nao tolera a maldade moral dentro de suas fronteiras. Possivelmente chegado o tempo, e é agora, de a Igreja zelar por sua disciplina, nao á vista dos culpados de pecados grosseiros, como os de que se ocupa o apostólo nesta seccáo de sua carta, mas também á vista dos "gananciosos" ou ávidos de grandes lucros, dos "extorcioná- rios" e propagandistas mentirosos. Se a disciplina se esten- desse a essa classe de gente haveria reboligo na Igreja déstes nossos dias, táo complacente que é diante de casos tais. Mas os reflexos dessa atitude desassombrada, surpreendente e avivadora se fariam sentir no mundo incrédulo.

C. QUEST6ES JUDICIAIS. Cap. 6:1-11.

1 Aventura-se algum de vos, tendo questáo contra outro, a submeté-la a juizo perante os injustos e nao perante os santos? 2 Ou nao sabéis que os santos háo de julgar o mundo? Ora, se o mundo deverá ser jul- gado por vós, sois acaso indignos de julgar as coisas mínimas? 3 Nao sabéis que havemos de julgar os pró- prios anjos; quanto mais as coisas desta vida? 4 En- tretanto, vós, quando tendes a julgar negocios terre- nos, constituis um tribunal daquéles que nao tém ne- nhuma aceitacáo na igreja! 5 Para vergonha vo-lo digo. Nao há^ porventura, nem ao menos um sábio entre vós, que possa julgar no meio da irmandade? 6 Mas irá um irmáo a juizo contra outro irmáo, e isto perante incrédulos? 7 O existir entre vós demandas é completa derrota para vós outros. Por que nao sofreís antes a injusti§a? por que nao sofreís antes o daño? 8 Mas vós mesmos fazeis a injusti^a e fazeis o

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daño, e isto aos próprios irmáos. 9 Ou nao sabéis qu« os injustos nao herderáo o reino de Deus? Nao vos engranéis: nem impuros, nem idólatras, nem adúlteros, nem efeminados, nem sodomitas, 10 nem ladroes, nem avarentos, nem bébados, nem maldizentes, nem rouba- dores herdaráo o reino de Deus. 11 Tais fostes alguns de vos; mas vos vos lavastes, mas fóstes santificados, mas fóstes justificados, em o nome do Senhor Jesús Cristo e no Espirito do nosso Deus.

Paulo acabara de declarar a necessidade que a igreja tinha de julgar e excluir de seu meio o membro ofensor. Com naturalidade, pois, passa a considerar agora urna falta que esta va se generalizando entre os cristáos corintios, qual a de levarem suas questoes aos tribunais civis. Tal prática re- petia-se com tanta frequéncia que se constituía um es- cándalo público.

É fácil compreender como, tratando-se de gregos, apre- ciadores da oratoria, dos debates tribunicios, de tórnelos sen- sacionais, tivessem uma inclinacáo natural para os litigios. Paulo, porém, a entender que os litigantes eram multas vézes impulsionados por motivos menos dignos. Serviam-se de tais demandas como um meio de fraudar ou lesar outros crentes, seus irmáos. O apostólo, entáo, firma dois principios: primeiro era vergonhoso estarem os crentes a contender constantemente perante juízes pagáos, vs. 1-6; segundo as demandas judiciais entre os crentes assinalam falta de justica e de amor no meio déles, vs. 8-11.

"Aventura-se algum de vos, tendo questáo contra outro, a submeté-la a juizo perante os injustos e náo perante os santos?" A vergonha de remeterem semelhantes questoes aos jm'zes pagáos é posta em relevo por dois fatos: a elevada po- sicáo e predestinacáo dos crentes, e o conceito pouco lison- jeiro que a Igreja faz de juízes daqueia categoría. "Náo sa- béis que os santos háo de julgar o mundo. . . Náo sabéis que havemos de julgar os próprios anjos?" É ocioso querer espe- cular a época referida ai pelo apostólo, as condicoes exa- tas désse tempo, ou se ja a natureza désse estado futuro quando os crentes seráo elevados a tamanha dignidade e au- toridade. É característica de Paulo a maneira inesperada de introduzir, no assunto de que se ocupa, verdades plenas de mistério e de elevado alcance. A referencia que de passagem e multo por alto ai faz de um estado futuro, leva-nos a cal-

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cular, posto que muito imperfeitamente, a giória vindoura. Temos ai urna indica^áo de que os crentes, longe de se tor- naren! anjos, seráo superiores" a éles. Partilharáo com Cristo do govérno de um mundo renovado. Se esta é a verdade, entáo devem ser competentes para, agora, resolver entre si questoes triviais, relacionadas com a vida presente.

É deprimente, nao dúvida, pessoas tais levarem suas demandas á decisáo de juízes pagaos que nao tém essa voca- cáo e predestinagáo honrosa dos crentes, e nem gozam da aceitacáo da igreja. ''Certo que deve existir", concluí o apos- tólo, "alguém na vossa congregacáo que se ja capaz de resol- ver tais pendencias; nao tendes necessidade de recorrer aos tribunais pagaos". As dificuldades entre os crentes devem ser resolvidas pela arbitragem.

Paulo nao quer dizer que o crente nao deve nunca re- correr aos tribunais civis, nem que jamáis terá necessidade de requerer a protegáo das leis de seu país. "As potestades que sao de ordenagao divina", e o povo de Deus tem pleno direito de aceitar qualquer beneficio que Ihe advenha de um govérno seguro e das leis justas de sua patria. Entretanto o que Paulo faz aquí é firmar uma regra. Querelas de crentes e demandas perante os tribunais públicos dáo lugar a escán- dalos e devem ser evitadas. O apostólo chega mesmo a avan- gar que tais querelas sao pecaminosas. "O existir entre vós demandas é completa derrota para vós outros". E a idéia é esta mésmo: derrota. Os querelantes sao derrotados antes mesmo de comparecerem as audiencias nos tribunais. O simples fato de surgirem disputas entre éles e de chegarem elas áquele ponto é uma evidéncia de derrota moral.

O apostólo atribuí a causa e a malignidade de semelhan- tes litigios á determinacáo de certos crentes de lesarem ou fraudarem irmáos seus, ou ainda as atribuí ao ressentimento amargo e ao dése jo de vinganga das partes prejudicadas. Tais litigios sao, portanto, pecaminosos. Será melhor, entáo, evi- tá-los completamente do que se verem presos ñas malhas désse pecado, porque, como adverte aos leitores, "os injustos nao herdaráo o reino de Deus".

Os que usam de tais expedientes, para lesar irmáos seus, merecem ser nivelados aos impuros, avarentos e pervertidos, gente essa que está excluida do Reino. Com aquelas deman-

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das malignas os corintios manifestavam o mesmo espirito do mundo, de que haviam sido libertos. Acabem, pois, com tais expedientes e conduzam-se como pessoas que ja foram puri- ficadas de toda mancha, separados para serem santos, decla- rados justos, em o nome do Senhor Jesús Cristo e mediante o Espirito de nosso Deus.

D. IMPUREZA. Cap. 6:12-20.

12 Todas as coisas me sao lícitas, mas nem todas convém. Todas as coisas me sao lícitas, mas eu nao me deixarei dominar por nenhuma délas. 13 Os ali- mentos sao para o estómago e o estómago para os alimentos; mas Deus destruirá tanto estes como aqué- le. Porém o corpo nao é para a impureza, mas para o Senhor, e o Senhor para o corpo. 14 Deus ressusci- tou ao Senhor, e também nos ressuscitará a nos pelo seu poder. 15 Nao sabéis que os vossos corpos sao membros de Cristo? E eu, porventura, tomaría os membros de Cristo e os faria membros de meretriz? Absolutamente, nao. 16 Cu nao sabéis que o homem que se une á prostituta, forma um corpo com ela? porque, como se diz, seráo os dois uma carne. 17 Mas aquéle que se une ao Senhor é um espirito com ele. 18 Fugi da impureza! Qualquer cutro pecado que uma pessoa cometer, é fora do corpo; mas aquéle que pratica a imoralidade peca contra o próprio corpo. 19 Acaso nao sabéis que o vosso corpo é santuário do Es- pirito Santo que está em vós, o qual tendes da parte de Deus, e que nao sois de vós mesmos? 20 Porque fóstes comprados por pre^o. Agora, pois, glorificai a Deus no vosso corpo.

A terceira questáo moral que o apostólo passa a discutir relaciona-se com a impureza. Mostrou ser pecaminoso o ex- pediente de se servirem alguns de questoes nos tribunais para fraudarem e lesarem outros, no que manifestavam um espi- rito injusto, isso mesmo que os pagaos revelavam naquéles vicios de que os cristáos se haviam redimido. Acha, pois, o momento azado para referir o mais prevalecente désses vicios, a impureza.

"Viver á moda corintia", nos dias de Paulo, era uma ex- pressáo proverbial, reveladora de uma vida imoral e impura. A prática da impureza era peculiar ao próprio culto dos

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ídolos. Nao era, pois, nenhuma surpresa que até alguns eren- tes daquela igreja concluíssem nada importar, moralmente falando, o comer do oferecido aos ídolos e também cometer imoralidades.

Paulo Ihes propusera a doutrina da liberdade crista. In- sistirá que o cristáo podia ou nao observar os dias santos dos antigos hebreus, e que igualmente podia usar ou recusar ali- mentos que houvessem servido no culto dos ídolos. Eram casos de consciéncia, em que podia liaver diversidade de pa- recer, e tais questóes ele as discute largamente no oitavo, nono e décimo caps, desta carta. Éste principio de liberdade crista, evidentemente, tinha sido alegado por éles como ex- cusa da prática da impureza. Paulo mantem o principio, mas estabelece algumas restrigóes, para depois negar sua aplicacáo num caso que, referentemente á moral, nao era in- diferente, senáo um pecado odioso.

Como primeira restrigáo, estabelece que, embora seja lí- cito ao crente tudo quanto, moralmente falando, é indiferente, nem tudo, porém, quanto recebe esta classificacáo é conve- niente ou vantajoso. "Todas as coisas me sao lícitas, mas nem todas convém". Mesmo que a impureza nao fósse proi- bida expressarnente na lei de Deus, podia-se provar que é pre- judicial.

Em segundo lugar, se bem que o crente possa entregar-se ao que é indiferente, do ponto de vista moral, o hábito de ceder voluntariamente a tais práticas pode converter-se em escravidáo espiritual. "Todas as coisas me sao lícitas, mas eu nao me deixarei dominar por nenhuma délas". Um há- bito qualquer, aínda que nao possa classificar-se de imoral, pode escravisar. Porisso que nao sossega enquanto nao é satisfeito. Aínda que a impureza nao fósse abertamente imo- ral, como é, sua fórga escravizadora nao tem igual e jamáis pode ser cohonestada as custas da liberdade crista. "O em- prégo racional de minha liberdade nao pode ir a tal ponto que me veja ameagado de perdé-la".

Observadas as duas restrigoes retro-referidas, a questáo de usar os variados alimentos que existem nao interessa á moral. A impureza, porém, é um caso muito diferente. É violagáo direta de uma lei divina, específica, e nao pode ser alegada como satisfagáo inocente de um apetite natural.

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Paulo nao reprova ésse pecado apenas sob éste aspecto de quebra do Sétimo Mandamento, aspecto que interessa á hu- manidade em geral, mas sob um outro ainda mais elevado, qual seja o da relagáo que o crente mantem com Cristo, seu Senhor. No caso dos alimentos, estes foram destinados ao estomago e o estómago foi formado para recebé-los e digerí- los. Nem uma nem outra coisa pretende para si uma fi- nalidade mais alta, nem quer pertencer a outra ordem de coisas mais elevada, porém seu escopo é servir as nossas presentes necessidades e género de vida. Nosso corpo, en- tretanto, em sua inteireza, instrumento que é de nossas almas imortais, nao se destinou á impureza, porém muito ao con- trário disso foi destinado "para o Senhor, e o Senhor para o corpo" e para sempre.

O corpo é "para o Senhor". Foi projetado para ésse mesmo fim. O Senhor encontra néle o instrumento de que precisa. Reconhece-o como seu e serve-se déle como habita- gao. Pagou o prego de sua redencáo e um dia o transfigurará enchendo-o de gloria.

"O Senhor é para o corpo". É Éle quem instruí quanto á diregáo correta a dar aos seus impulsos e faculdades natu- rais. Sem éle o corpo jamáis alcangará sua natural dignidade e seu imortal destino. Esta relagáo de nossos corpos com Cristo prolonga-se pela eternidade. "Deus ressuscitou ao Se- nhor, e também nos ressuscitará a nós pelo seu poder". No cap. quinze desta carta o apostólo irá deter-se, com mais va- gar, sobre éste assunto. Como vai ser conservada a identidade de nosso corpo na ressurreigáo, ou em que consistirá essa identidade, Paulo nao explica. Mas que o corpo se destina a ésse fim imortal e glorioso o apostólo o declara bascado fir- memente na ressurreigáo de Cristo.

Os corpos dos crentes, pois, pertencem a Cristo. Sao quais membros do seu corpo. Acaso se concebe que ésses membros de Cristo possam servir á prostituigáo? As unioes impuras, pelo fato de serem impuras nao deixam de ser unioes, tanto por sua natureza com por seus efeitos, e sao, porisso, táo verdadeiras como a de nossos primeiros pais no Edén. Náo é menos real a uniáo que conjuga o crente ao seu Senhor. A impureza ou prostituigáo em que esteja envolvido um mem- bro de Cristo é deslealdade e traigáo contra Cristo.

Fugi désse pecado, escreve o apostólo. Náo sómente com- batei-o, mas evitai suas ocasioes, porque a impureza, mais

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do que outro qualquer pecado, profana o corpo. É um pe- cado eminentemente contra o corpo. O do crente, porém, é consagrado a Deus. Ninguém tem o direito de profaná-lo. A impureza ou prostituigáo era, nao raro, urna das partes inte- grantes do culto dos ídolos, nos templos pagaos. Com os cristáos sucede o contrário, seus corpos se devem conservar puros como templos que sao do Espirito de Deus.

Além disso, os crentes nao se pertencem a si mesmos. Foram comprados pelo precioso sangue de Cristo. Devem, pois, pela pureza e santidade de suas vidas, honrar Aquéle a quem pertencem. Esta passagem fornece-nos o ensinamento que o Cristianismo apresenta, isto é, a dignidade e san- tidade do corpo humano. Nao se deve entender a liberdade crista como íicenga para a pessoa entregar-se espontanea- mente a pecados da carne. Ñem as mais agigantadas reali- zacoes espirituais compensam os prejuízos da negligencia e do abuso do corpo. Éste precisa ser visto como instrumento do Senhor Jesús, como templo santo reservado á morada do Espirito de Deus.

A última frase do apostólo ilustra sua habilidade de ex- por as mais belas verdades como joias que cintilam sobre o fundo negro de pecados tais quais aqueles de que trata, bem assim a sua capacidade de aproveitar as realidades mais transcentes, como incentivo das mais elementares virtudes moráis. Assim é que discutindo a questáo da disciplina, das demandas judiciais e da impureza, e apesar de serem tais assuntos bastante ingratos e nao pouco delicados, ele ainda acha oportunidade de intercalar a tocante exortagáo: Cris- to, nosso Cordeiro pascoal, foi imolado por nós, porisso ce- lebremos a festa . . . com os asmos da sinceridade e da ver- dade". Condenando querelas de cristáos perante tribunais pagaos, lembra que os crentes váo ser juízes do mundo e dos anjos. Advertindo contra a impureza, faz uma afirmagáo magnífica: nossos corpos sao templos do Espirito Santo.

E. CASAMENTO. Cap. 7.

Certo número de problemas havia sido proposto, por carta, á apreciagáo do apostólo. Entre éles figurava um questionário relativo ao casamento. Acabando de considerar

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O assunto de urna vida social que devia ser decente, o após- telo, numa sequéncia lógica, passa a responder o citado ques- tionário, visto como ele via, na instituicáo do casamento, uma salvaguarda da pureza privada e coletiva, ou social.

Deve-se notar, entretanto, que nao discute o casamento do ponto de vista de sua moral, mas da sua conveniencia. E para isto observe-se que ele nunca insiste em que as pessoas se casem, nem que deixem de se casar, permitindo ver que essa questáo deve ser encarada do ponto de vista das condi- goes ou do temperam.ento de cada um. As questoes pertinen- tes á disciplina eclesiástica, as demandas em juizo e á pu- reza pessoal foram questoes de ordem moral; mas o que agora entra a apreciar sao dois assuntos morataente indife- rentes — o casamento e o consumo de carnes sacrificadas aos ídolos. E assim, a nova seccáo, posto que intimamente rela- cionada com a precedente, marca uma divisáo bem nítida na carta.

Muita crítica severa tem caído em cima do apostólo por causa do que ele ai declara acerca do casamento. É muito fácil, entretanto, compreendé-lo mal. Dois ou tres fatos con- vem guardar na memória. Primeiro, ele está respondendo a perguntas definidas, cu jo conteúdo exato nao chegou ao nosso conhecimento. Se a discussáo versasse sobre o casamento como instituicáo, encarando-se o assunto de todos os seus^ lados, teria sido muito diferente o seu depoímento. Seus aspectos mais interessantes e sua importancia espiritual sao objeto de atencao do apóstolo em outras cartas que escreveu.

Segundo, o método de encarar o assunto e os argumentos especiáis empregados poderiam ser bem apreciados se sou- béssemos que opinioes erróneas os coríntios mantinham em torno da matéria. Acontece, porém, que nao temos informa- coes completas sóbre isso. Pelo menos parece que alguns crentes tinham o casamento como de absoluta obrigagáo. Outros o consideravam como moralmente inferior, uma es- pécie de concessáo feita aos baixcs instintos da natureza. Ainda outros eram de parecer que, uma vez o individuo se convertendo a Cristo, todas as suas relacoes sociais, inclusive a do casamento, se dissolviam.

Em terceiro lugar, deve-se ver que Paulo escreve refe- rindo condigoes que eram puramente locáis e temporarias. Se tivéssemos de aplicar, literalmente, a cada crente, de

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qualquer época, todas as injungóes do apostólo ai apresen- tadas, seria um desastre. Os principios pelos quais ele se orienta sao invariáveis. Comumente nao é muito difícil distinguir o que se aplica diretamente a condigoes transito- rias e a verdade constante, invariável, que serve de base ao seu ensino. Quando se interpretam corretamente estas ins- trugoes relativas ao casamento, é inevitável reconhecé-las real- mente sensatas e bem calculadas, encerrando em si principios que sao de valor atual e permanente.

Paulo nao esgota o assunto, mas considera-o ñas quatro seguintes relagoes: casamento e celibato, vs. 1-9; casamento e divorcio, vs. 10-24; casamento e servigo cristáo, vs. 25-38; casa- mento "no Senhor", vs. 39-40.

1. Casamento e Celibato. Cap. 7: 1-9.

1 Quanto ao que me escrevestes, é bom que o ho- mem nao toque mulher; 2 mas, por causa da impureza, cada um tenha a sua própria esposa e cada uma o seu próprio marido. 3 O marido conceda á esposa o que Ihe é devido, e também semelhantemente a esposa ao seu marido. 4 A mulher nao tem poder sobre o seu próprio corpo, e, sim, o marido; e também, semelhan- temente, o marido nao tem poder sobre o seu próprio corpo, e, sim, a mulher. 5 Nao vos privéis um ao outro, salvo talvez por mutuo consentimento, por algum tem- po, para vos dedicardes á oracáo e novamente vos ajun- tardes, para que Satanás nao vos tente por causa da incontinencia. 6 E isto vos digo como concessáo e nao por mandamento. 7 Quero que todos os homens sejam tais como também eu sou; no entanto cada um tem de Deus o seu próprio dom; um, na verdade, de um modo, outro de outro. 8 E aos solteiros e viúvos digo que Ihes seria bom se permanecessem no estado em que também eu vivo. 9 Caso, porém, nao se dominem, que se casem; porque é melhor casar do que viver abrasado.

Tem-se compreendido mal ao apostólo, vendo-se néle um asceta que nao dava á mulher seu devido valor e desaconse- Ihava o casamento. Mas, pelo contrário, éle tem o casamento como regra para todos os crentes e nao no celibato nenhu- ma virtude para sobrepor-se ao casamento. Devemos ter esta verdade fundamental presente na memoria se quisermos in-

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terpretar bem tudo quanto éle escreve neste cap. sobre o assunto.

Se o casamento é a regra geral, por outro lado o apostólo frisa que o celibato é um estado honroso. ''É bom que o ho- mem nao toque mulher". Nenhuma virtude especial existe no matrimonio e Paulo com isto procura defender o celibato da pecha de prejudicial e anticristáo. Efetivamente, o celiba- to tem suas vantagens, e Paulo as menciona adiante, vs, 25-38. Nao obstante, a regra deve ser casar. Mas entende-se que se trata de verdadeiro casamento, ou seja a uniáo permanen- te, durável, de um homem e uma mulher: ''Cada um tenha a sua própria esposo e cada uma o seu próprio marido. Tal pro- videncia ajuda na preservacáo da pureza moral sobre que se deve apoiar uma sociedade organizada. Opinioes livres so- bre o casamento sao uma ameaca de morte á instituigáo da familia e á conservagáo da ordem social. Aqueles mestres corintios que enalteciam sobremaneira o celibato ao ponto de matarem todo o estímulo do casamento, precisavam de um corretivo. O casamento foi instituido por Deus no Edén, santificado pela presenca graciosa de Cristo, em Caná da Galiléia, e pela generosidade com que operou alí, numa festa de casamento, seu primeiro sinal. E, por fim, é sancionado por Paulo como instituigáo crista.

Mas havia outro erro sustentado pela maioria dos crentes corintios. Diziam que o estado matrimonial era de tal modo inferior ao celibato que valia a pena os crentes casados se se- pararem, sendo até meritorio fazé-lo. Paulo corrige ésse erro. Tal prática Ihes ensejaria tentagoes desnecessárias. Maridos e mulheres devem cumprir suas obrigagoes mútuas. Se por algum tempo se abstém disso, nao é por mérito que ha ja nessa atitude, mas por consentimento mútuo e por alguma razáo ponderável, qual seja a observancia de períodos espe- ciáis de oragáo.

Declara que, se estabelece o casamento como regra entre os crentes, o faz "como concessáo e nao por mandamento". Isto tem levado alguns a interpretá-lo falsamente, pois que- rem ver nesta declaragáo um indicio de que nao estava escre- vendo sob a diregáo divina. Mas o que realmente quer dizer é que o seu inspirado conselho com relagáo ao casamento nao deve ser entendido como mandamento, antes como permis-

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sao. Toda pessoa é livre para proceder de acórdo com as circunstancias que a cercam e segundo sua própria disposicáo.

Entretanto o apostólo declara sua preferencia pelo esta- do de solteiro, se é que, nao casando, o individuo gpze urna vida mais sossegada e mais contente. Embora declare exce- lente o celibato, reconhece que a capacidade para viver sol- teiro é um dom especial. Os que nao possuem ésse dom de- vem casar-se. É claro que a doutrina de Paulo é boa e razoá- vel. Seria absurdo querer que todo o mundo se casasse, pois existem alguns que podem ser mais felizes e realizar sua missáo nesta vida mais desafogadamente e com maior con- tentamento permanecendo solteiros. A regra comum, toda- vía, é casar. O nao casar admite-se como excegáo. Tal o caso de Paulo. É insensatez alguém fazer voto de celibato, a menos que possua o dom e a capacidade natural para cumprí-lo.

2. Casamento e Divorcio. Cap. 7:10-24.

10 Ora, aos casados, ordeno, nao eu mas o Senhor, que a mulher nao se separe do marido, 11 (se, porém, ela vier a separar-se, que nao se case, ou que se recon- cilie com seu marido); e que o marido nao se aparte de sua mulher. 12 Aos mais digo eu, nao o Senhor: Se algum irmáo tem mulher incrédula, e esta consente em morar com ele, nao abandone; 13 e a mulher que tem marido incrédulo, e éste consente em viver com ela, nao deixe o marido. 14 Porque o marido incré- dulo é santificado no convivio da esposa e a esposa incrédula é santificada no convivio do marido crente. Doutra sorte os vossos filhos seriam impuros; porém, agora, sao santos. 15 Mas, se o descrente quiser apar- tar-se, que se aparte; em tais casos nao fica su jeito á servidáo, nem o irmáo, nem a irmá; Deus vos tem chamado á paz. 16 Pois, como sabes, ó mulher, se sal- varás a teu marido? ou como sabes, ó marido, se sal- varás a tua mulher? 17 Ande cada um conforme o Se- nhor Ihe tem distribuido, cada um conforme Deus o tem chamado. É assim que ordeno em todas as igre- jas. 18 Foi alguém chamado, estando circunciso? nao desfaca a circuncisáo. Foi alguém chamado estando incircunciso? nao se fa?a circuncidar. 19 A circuncisáo em si nao é nada; a incircuncisáo também nada é, mas o que vale é guardar as ordenanzas de Deus. 20 Cada um permane?a na voca^áo em que foi chamado.

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21 Fóste chamado sendo escravo? nao te preocupes com isso; mas, se aínda podes tornar-te livre, apro- veita a oportunidade. 2Z Porque o que foi chamado no Senhor, sendo escravo, é liberto do Senhor; semelhan- temente o que foi chamado, sendo livre, é escravo de Cristo. 23 Por prego fóstes comprados; nao vos tor- néis escravos de homens. 24 Irmáos, cada um perma- ne?a diante de Deus naquilo em que foi chamado.

Observa-se que na igreja de Corinto havia pessoas con- victas de que, com a aceitagáo do evangelho, desfaziam-se automáticamente todos os lacos que prendiam o convertido á sociedade, inclusive o vínculo do casamento. Pensando assim, certos cr entes achavam necessário que os conjuges cristáos se separassem e adotassem o celibato. Outros ainda eram de parecer que, se um esposo pagáo se convertesse e a mulher nao o seguisse néste passo, devia ele divorciar-se da esposa descrente. O mesmo devia fazer a esposa convertida, relati- vamente ao esposo impenitente. Paulo estabelece uma regra para os dois casos, a qual serve de norma reguladora de quaisquer que sejam as relagoes e condigoes sociais. "Cada um permanega na vocagáo em que foi chamado". As rela- goes sociais nao devem sofrer abalo e muito menos desfazer-se pelo fato de se aceitar Cristo como Senhor. Muito ao con- trário, devem ser sublimadas por ésse mesmo fato.

Quanto ao primeiro parecer ácima referido Paulo Ihes lembra o preceito expresso do Senhor contra o divorcio, salvo em casos de iniidelidade. "Aos casados, ordeno, nao eu, mas o Senhor, que a mulher nao se separe do marido. . . e que o marido nao se aparte de sua mulher". Acrescenta, entre- tanto, que havendo separagáo nao é permitido um novo ca- samento. Os cristáos que se separassem deviam permanecer solteiros, ou procurar reconciliagáo.

Paulo ainda se refere "aos mais", ou sejam os envolvidos em casamentos mistos. O expediente a seguir nestes casos é mais difícil de fixar, vs. 12-16. Quando um dos conjuges se convertía, nao era essa mudanga de confissáo religiosa uma razáo bastante para divórcio? Devia um espóso ou esposa crente sentir-se na obrigagáo de viver com o outro conjuga que era pagáo? Jesús Cristo nada deixou explícito sobre éste caso, mas o apostólo, sob a inspiragáo divina, oferece uma solugáo. Náo nega essa inspiragáo, antes reveste o seu pa- recer da mesma autoridade do preceito de Cristo atrás refe-

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rido. o que ele quer dizer é que nao tem urna palavra ex- pressa de Cristo, de que possa fazer citagáo; contudo nao deixa de ter urna orientagáo para o caso: "Aos mais digo eu, nao o Senhor".

Resume-se o seu parecer no seguinte: a conversáo de um dos cónjuges nao é razáo suficiente para divorcio, nem o deve ser a incredulidade de um déles. "Cada um permanega na vocagáo em que foi chamado", ordena formalmente. Se hou- ver separacáo, seja por iniciativa da parte descrente. Se o incrédulo consente em viver com o crente, éste nao deve pro- curar separar-se. A parte infiel e os filhos désse consorcio estáo sob a influéncia santificadora de uma vida crista. Isto, entretanto, nao significa aprovacáo de casamentos mistos. Pelo contrário, o apostólo desaconselha tais casamentos, II Cor.. 6:14. Sua doutrina cifra-se nisto: pela conversáo de um dos consortes a familia passa a gozar de uma atmosfera de santidade e das vantagens de um lar cristáo.

Todavía, se um dos consortes, por ser descrente, insiste em separar-se, o crente nao deve fazer objecáo. Querer por fórga que continui essa relagáo conjulgal em tais circunstan- cias, será dar ocasiáo a contendas domésticas. O crente "nao está sujeito á servidao" em tais casos. Uma separagáo ai é aconselhável. "Deus nos tem chamado á paz". Naturalmente que seria possível, continuando unidos, a parte infiel acabar se convertendo. Mas isto é problemático. As vantagens da separagáo, sendo mais próximas e evidentes, superam essa probabilidade remota.

É preciso notar que nada se diz aquí sobre o direito de casar de novo. Como Paulo declarou pouco ser inadmissí- vel novo casamento para os crentes que se separam, tal proi- bigáo parece naturalmente implícita no caso de um conjuge fiel separar-se do incrédulo, visto como nao se aduz coisa alguma em contrário. Além do mais, é muitíssimo imprová- vel que Paulo contradiga o preceito expresso de Cristo, que permitiu o divorcio e novo casamento apenas na hipótese de adultério. Se um marido ou mulher descrente, que tenha provocado a separagáo, vier a contrair novas núpcias, entáo, de acorde com o ensino de nosso Senhor, a parte abandonada ficará absolutamente livre para casar outra vez, agora com um crente.

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Aínda que tais separagoes sejam permitidas e até neces- sárias, de modo nenhum o apóstelo as estimula ou aconselha. Em regra as relagoes conjugáis nao devem ser desfeitas com facilidade. Cada qual deve cumprir todos os de veres do es- tado em que providencialmente foi colocado e em que se achava quando ouviu o chamado divino: "Ande cada um conforme o Senhor Ihe tem distribuido, cada um conforme Deus o tem chamado".

Paulo aplica éste principio as duas principáis catego- rías políticas e sociais do seu tempo. Se um judeu se tornasse cristáo dever-se-ia contentar em ser um judeu cristáo. Aos crentes nao importam muito as discriminagoes nacionais, senáo a obediencia a Deus, e isto é tudo. Nao é do papel do Cristianismo desfazer tais discriminacoes, nacionais e sociais. Se um escravo se tornasse cristáo, sua condigáo inferior nao devia apoquentá-lo. Cumpria-lhe continuar escravo, mas agora com atitudes cristas, sem procurar libertar-se pelo fato de agora ser crente. Em Cristo as distingoes sociais desapa- recem, confundidas ou amalgamadas em uma unidade supe- perior, a sua. O escravo cristáo é liberto de Cristo; de Cristo é escravo o liberto que se converteu. Fomos comprados por elevado prego e pertencemos a um Senhor. Náo nos devemos tornar, por conseguinte, escravos de ninguém, cedendo as suas opinióes e caprichos e procurando alterar a condicáo em que a vocagáo de Cristo nos encontrón. Seja qual fór essa condigáo, social ou política, o cuidado que devemos ter é o de nossas relagoes com Deus.

3. Casamento e Servigo Cristáo. Cap. 7:25-38.

25 Com respeito as virgens, nao tenho mandamen- to do Senhor; porém dou mínha opiniáo como tendo recebido do Senhor a misericordia de ser fiel. 26 Con- sidero, por causa da angustiosa situagáo presente, ser bom para o homem permanecer assim como está. 27 Estás casado? náo procures separar-te; estás livre de mulher? náo procures casamento. 28 Mas, se te can- sares, com isto náo pecas; e também se a virgem se casar, por isso náo peca. Ainda assim, tais pessoas sofreráo angústia na carne, e eu quisera poupar-vos. 29 Isto, porém, vos digo, irmáos: o tempo se abrevia; o que resta é que náo os casados sejam como se o náo fóssem; 30 mas também os que choram, como se

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nao chorassem; e os que se alegram, como se nao se alegrassem; e os que compram, como se nada possuis- sem; 31 e os que se utilizam do mundo, como se déle nao usassem; porque a aparéncia déste mundo passa. 32 O que realmente eu quero é que este jais livres de preocupa?oes. Quem nao é casado cuida das coisas do Senhor, de como agradar ao Senhor; 33 mas o que se casou cuida das coisas do mundo, de como agradar á esposa, 34 e assim está dividido. Também a mulher, tanto a viúva como a virgem, cuida das coisas do Se- nhor, para ser santa, assim no corpo como no espirito; a que se casou, porém, se preocupa com as coisas do mundo, de como agradar ao marido. 35 Digo isto em favor dos vossos próprios interésses; nao que eu pre- tenda enredar-vos, mas sómente para o que é decoroso e vos facilite o consagrar-vos, desimpedidamente^ ao Senhor. 36 Entretanto, se alguém julga que trata sem decoro a sua filha, estando a passar-lhe a flor da idade, e as circunstancias o exigem, fa?a o que quiser. Náo peca; que se casem. 37 Todavia, o que está firme em seu cora^áo, náo tendo necessidade, mas dominio sobre o seu próprio arbitrio, e isto bem firmado no seu ánimo, para conservar virgem a sua filha, bem fará. 38 E assim quem casa a sua filha virgem faz bem; quem náo a casa fará melhor.

Haviam pedido um conselho a Paulo sobre como deviam proceder os pais relativamente as filhas solteiras. Deviam dá-las em casamento, ou negar-lhes consentimento para isso? Quanto a éste assunto ele diz que náo tem nenhum manda- mento do Senhor. Significa inexistir para o caso um ensi- namento expresso de Cristo, como também quer dizer aue sua resposta ou parecer náo deve ser encarado como regu- lamento, ou exigéncia, senáo como conselho, no qual os pais poderáo convir se quiserem, de acordó com as circunstáncias de cada caso. Náo nega a inspiracáo de suas palavras, porém falando assim afirma-se digno de confianga.

A substancia de sua resposta é o seguinte: Consideran- do as presentes asperezas e dificuldades da vida, será mais prudente ñcar solteiro. Assim se evitaráo angústias e o trabalho evangélico encontrará menos empecilhos. No en- tanto a questáo ai náo é de ser certo ou errado casar; náo se trata disto, mas da conveniéncia de cada um, como cada pessoa queira e resolva.

Sublinham-se tres elementos na resposta de Paulo. Pri- meiro, "por causa da angustiosa situacáo j^resente" é bom

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permanecer solteiro, ou, se casar, dispor-se a aceitar com pa- ciencia as responsabilidades que ésse estado acarreta. Esta vida OU a era presente cedo acabará. Esta expectagáo absor- vente da vinda de Cristo chegará ao fim. Os padecimentos atuais dos crentes podem bem ser aqueles que foram preditos como íiavendo de preceder imediatamente a vinda do Senhor. Porisso o casamento e outras preocupagoes humanas nao de- vem empolgar-nos de tal manelra que nos causem desneces- sária ansiedade. Os país nao devem julgar que o casamento aas filhas é a coisa mais importante déste mundo.

Nao se devem tirar conclusoes exageradas do que o apos- tólo acabou de dizer. Nao afirmou que a vinda de Cristo se daria imediatamente, nem disse que os crentes menospre- zassem as obrigagoes normáis da vida e suas sagradas reía- goes. Se o afirmasse estarla em contradigao com o que de- ciarou no resto déste cap. e em outras partes desta epístola. Mas o que ele dése ja é que seus leitores vejam as coisas como aevem ser, guardadas suas devidas proporcoes. E visto como a oraem presente das coisas déste mundo nao é aquela que vaí perdurar para sempre, os crentes nao se preocupem assim aesmedidamente com estas condigoes e relacoes que em breve deíxaráo de existir. Quer que se utilizem do mundo, mas nao de um modo absorvente: "Porque a aparéncia déste mundo passa", vs. 26-31.

Em segundo lugar declara que, tendo-se em vista a tri- bulacáo que assoberbava a Igreja, havia vantagem no celi- bato. O solteiro estava em muito melhores condicoes de prestar servigo cristáo sob variadas formas, e possivelmente era menos tentado e perturbado por distragoes seculares. O que éle visa com éste seu conselho é ficarem os crentes "livres de cuidados". O maior proveito dos leitores é o alvo de sua admoestagáo. Nao tem a intengáo de restringir-lhes a liberdade, senáo ajudá-los a buscar o que é conveniente, a fim de que possam servir ao Senhor sern desviar disso a atengáo.

Em terceiro lugar frisa bem que a atitude de um pai com referencia ao casamento de urna filha é pura questáo de con- veniéncia e de circunstancias. Se o pai entende que nao age decorosamente ou elegantemente com relagáo á filha solteira, especialmente se ela nao está mais na flor da idade, e se é patente a necessidade de se casar, nao tenha dúvida; con-

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sinta no casamento. Nao cometerá nenhuma falta. Mas, contrariamente, se recusar consentir no casamento, devem ser as circunstancias tais que nao déem lugar á menor dú- vida de ser prudente e acertada esta resolucáo. Também é preciso que nao haja nenhum impedimento ponderável para esta resolucáo, como por exemplo o caso de a filha ter sido prometida, ou outra circunstancia que a isso o tenha levado. O pai deve ter o direito legal e moral de opor seu embargo no caso. Tal direito nem sempre foi reconhecido sob a vigencia das leis romanas, isto em virtude dos cos- tumes sociais daquela época. Porisso que, se a decisáo paterna fósse contrária ao casamento, deveria sé-lo por uma delibera- gao pessoal e independente.

Entáo, observadas todas estas circunstancias, pode ser melhor, em dias de apérto e aflicáo, tom.ar o pai a decisáo de negar consentimento ao casamento de uma filha. Nao obs- tante, "quem casa a sua filha virgem faz bem". Náo faz nenhum mal. Contudo, pode haver circunstancias e condi- c5es tais que, permanecendo solteira, o servigo de Cristo ñas suas rnáos prospere mais e o seu caráter cristáo mais se de- senvolva e se firme.

4. Casamento "no Senhor'\ Cap. 7:39-40.

39 A mulher está ligada enquanto vive o marido; contudo, se falecer o marido, fica livre para casar com quem quiser, mas somente no Senhor. 40 Todavia se- rá mais feliz se permanecer viúva, segundo a minha opiniáo; e pensó que também eu t'enho o Espirito de Deus.

Ernbora o caso das viúvas tenha sido indiretamente con- templado ñas instrucoes anteriores, Paulo Ihe faz uma refe- rencia direta na conclusáo de sua resposta ao questionário proposto sobre o casamento. A morte dissolve o vínculo ma- trimonial, declara o apostólo. Assim, morrendo o marido, a viúva "fica livre para casar com quem quiser". Paulo náo quer dizer que se ja ilícito, inconveniente do ponto de vista moral ou anticristáo contrair segundas núpcias, pois albures insiste que as viúvas jovens se casem: "Quero, portan to, que as viúvas mais novas se casem, criem filhos, sejam boas donas de casa e náo déem ao adversário ocasiáo favorável de male-

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dicéncia" (I Tim. 5:14). Todavía, por falar agora em tempes difíceis que a Igreja está enfrentando, afirma que apesar de qualquer viúva estar livre para casar de novo, seu parecer é que será mais feliz se permanecer assim. É de se notar, no entanto, que Paulo nao sómente está escrevendo éste cap. á vista de circunstancias angustiosas de perseguigáo que todos os cristáos enfrentavam, como está insistindo sempre ser a questáo do casamento uma questáo de conveniencia pessoal. Se convém ou nao convém casar, sejam as circunstancias e condicoes particulares de cada um que decidam.

Por outro lado é também evidente que Paulo permite novas núpcias mas nao no caso de divorcio; apenas por morte do marido. É o que diz: "A mulher está ligada enquanto vive o marido".

Entretanto, o ponto a sublinhar nesta instrucáo refe- rente ao casamento de viúvas está naquela frase: "Sómente no Senhor". É claro que o apostólo nao aconselha nem apoia o casamento de crentes com incrédulos. Que quer dizer essa restricáo imposta por ele ao casamento de viúvas casar no Senhor? Quer dizer que nao sómente os novos maridos devem ser crentes, mas que haja motivos cristáos para ésses novos consorcios, de modo a poderem receber a aprovagáo de Cristo.

O apóstolo conclúi éste longo cap., táo chelo de sábios conselhos, com uma afirmacáo que deve ser guardada na memoria de quantos neguem^ a inspiragáo de Paulo, á vista de certas expressoes suas anteriores. "Pensó [digam de mim o que quiserem] que também eu tenho [a inspiracáo do] o Espíi'ito de Deus", afirma éle.

Éste cap. nao é para se 1er as pressas e por alto. Demanda cuidadoso estudo para nao ser mal interpretado. Pode haver néle referéncias a condicoes puramente passageiras e que de fato teráo passado, mas será proveitoso a todo crente pon- derar seriamente os principios básicos estabelecidos ai pelo apóstolo. Tais principios sao aplicáveis a muitos problemas serissimos da atualidade. Podem se tornar padrees dema- siadamente altos para a sociedade de hoje, de costumes re- laxados, porém nao mais altos do que os principios que todo seguidor de Cristo deve acatar. As reflexoes e ensinamentos que constam déste cap. nao sao opinioes transitórias de um

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escritor antigo e fora de moda. Quem ai falou e expenden advertencias tao bem equilibradas nao as atribuiu simples- mente ao seu parecer de homem falível, mas acreditou-se aprovado pelo Espirito Santo naquilo que escreveu.

F. ALIMENTOS OFERECIDOS AOS ÍDOLOS. Caps. 8:1 a 11:1.

coisas que todo o mundo logo que é bom e razoável; porisso logram sua imediata aprovacáo. Outras, porque sao evidentemente erróneas, sao condenadas geralmente. Mas existe um terceiro grupo ou categoría de atos e práticas, acerca de cujo valor moral as opinióes divergem. Repugnam á consciéncia de alguns, mas por outras pessoas, igualmente criteriosas, sao aceitos. Tal a questáo que surgiu na igreja de Corinto, referente ao consumo de comidas previamente oferecidas em sacrificios aos deuses pagaos. Muitos cristáos viam na idolatría mera superstigáo, e sabiam que a carne que tivesse servido em cerimónias do culto pagáo nao tinha, por isso, sofrido nenhuma transformagáo intima, mas era igual a qualquer outra que nao o tivesse sido. A outros, po- rém, parecía que consumir alimentos naquelas condigoes era acumpliciar-se com a idolatría. Consideravam, pois, seme- Ihante conduta moralmente má.

Sao desta categoría os conflitos de consciéncia que ainda os crentes de hoje enfrentam, pois se afiguram a alguns como moralmente indiferentes, ou que nao importam á mo- ral. Para outros no entanto sao questoes serias que impli- cam o bem ou o mal. Sao, por exemplo, os problemas ati- nentes á guarda do domingo, sao os divertimentos sociais, sao certos gastos supérfluos que algumas pessoas se permitem.

Para os cristáos de Corinto a coisa se revestia da maior gravidade. Práticas supersticiosas, idolátricas, permeavam quase todos os costumes naquela época, fossem costumes do- mésticos ou privados, fossem públicos ou sociais, ou ainda os relacionados com a política. Carnes dos sacrificios que se realizavam nos templos eram servidas em tódas as festas sociais. Era o que se expunha a venda nos agougues. E em casa, por ocasiáo das refeigoes, tais carnes eram servidas aos hóspedes que houvesse e que pudessem aparecer de momento.

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Era, pois, iim problema muito difícil e delicado, éste que os amigos de Paulo em Corinto Ihe apresen taram, dése j osos de urna solucáo.

O apostólo podia ter apelado para a decisáo do Concilio de Jerusalém, o qual se manifestara contrário ao consumo de tais carnes. Tal decisáo, contudo, parece que teve aplicagáo local e temporária. Além disso a imposicáo de regras taxa- tivas era contrária ao método de Paulo tratar os problemas daquela Igreja. O que ele fazia era apresentar principios que os leitores apiicassem na solucáo dos seus variados pro- blemas. É exatamente éste método que empresta á epístola que estudamos um valor permanente. Estes mesmos princi- pios que ele apresenta referentemente ao consumo das so- breditas carnes, aplicam-se hoje na solugao de todos os con- flitos de consciéncia e nos orientam na resolugáo de algumas das mais prementes dificuldades com que aínda hoje es- barramos.

Em cap. anterior, tratando de assuntos alheios ou indi- ferentes á moral, declarou que até mesmo nos casos em que podia prevalecer a liberdade cristá, ele náo se deixava escra- vizar por nenhum hábito, aínda que inocente: "Todas as coisas me sáo lícitas, mas eu náo me deixarei dominar por nenhuma délas". Além do que, na Epístola aos Romanos (14:1 a 15:13), instruí relativamente a estes mesmos proble- mas. Contudo, é nos tres caps, seguintes, desta carta que ora estudamos, que ele examina exaustivamente estas difi- culdades. Os principios expendidos podem ser esbogados em cinco ítens:

O ato espontáneo de quem se entrega a tais práticas discutidas pode constituir-se um perigp para os fracos. A liberdade, pois, deve ser regulada pelo amor. Cap. 8.

Tais práticas podem estorvar o trabalho cristáo. De- vemos entáo ser tudo para todos. Cap. 9.

Podem fazer perigar a alma. Acautelemo-nos, por- tanto, para que náo caíamos. Cap. 10:1-13.

Possívelmente nos ídentificam com o mundo. Náo provoquemos, entáo, ciúmes nAquéle de quem somos. Cap. 10:14-22.

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Atendamos ao que convem e edifica, tudo fazenc para a gloria de Deus. Caps. 10:23 a 11:1.

1. O Problema em si. Cap. 8.

1 No que se refere as coisas sacrificadas a ídolos, é notorio que todos somos senhores do saber. O saber ensoberbece, mas o amor edifica. 2 Se alguém julga saber alguma coisa, com efeito nao aprendeu aínda como convém saber. 3 Mas se alguém ama a Deus, ésse é conhecido por ele. 4 No tocante á comida sa- crificada a ídolos, sabemos que o ídolo de si mesmo nada é no mundo, e que nao senáo um Deus. 5 Porque, aínda que haja também alguns que se chamem deuses, quer no céu, ou sobre a térra, como muitos deuses e muitos senhores, 6 todavía, para nós um Deus, o Pai, de quem sao todas as coisas e para quem existimos; e um Senhor, Jesús Cristo, pelo qual sao todas as coisas, e nós também por ele. 7 En- tretanto, nao ésse conhecimento em todos; porque alguns, por efeito da familiaridade até agora com o ídolo, aínda comem como a ele sacrificadas; e a cons- ciéncía déstes, por ser fraca, vem a contaminar-se. 8 Nao é a. comida que nos recomendará a Deus, poís nada perderemos se nao comermos, e nada ganharemos se comermos. 9 Vede, porém, que esta vossa liberdade nao venha de algum modo a ser tropéco para os fracos. 10 Porque, se alguém te vír, a ti, que és dotado de saber, á mesa, em templo de ídolo, nao será a consciéncia do que é fraco índuzida a participar de comidas sacrifi- cadas a ídolos? 11 E assim, por causa do teu saber, perece o irmáo fraco, pelo qual Cristo morreu. 12 E déste modo, pecando contra os irmáos, golpeando-lhes a consciéncia fraca, é contra Cristo que pecáis. 13 E por isso, se a comida serve de escándalo a meu irmáo, nunca mais comereí carne, para que nao venha a es- candalízá-lo.

Tratando de questoes indiferentes quanto á moral, acerca das quais crentes igualmente criteriosos podem divergir de opinláo, Paulo em teoria ou de um modo geral defende a li- berdade crista, mas na prática, ou atendendo a casos parti- culares, impoe-lhe severas restrigoes. É assim aqui. Depois de expor o problema das viandas oferecidas a ídolos, firma o primeiro grande principio: a liberdade precisa ser restrin- gida pelo amor. Frisa bem que as questoes difíceis e delicadas

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que ésse caso envolve nao podem ser resolvidas á base de conhecimentos ou de ilustragáo que se acompanha de seus direitos, mas precisara ser postas em equagáo pelo amor e suas obrigagoes.

Quanto ao consumo de carnes de animáis mortos em sacrificios idolátricos, declara que os cristáos esclarecidos sabem nao produzirem tais carnes nenhuma contaminagáo. Entretanto, na vida crista, é o amor e nao o saber o guia mais seguro. O saber incha, ou enche de soberba, enquanto o amor edifica, A pessoa que presume saber alguma coisa com per- feigáo ainda nao possui um dos elementos essenciais do ver- dadeiro saber. E aquéle que resolve agir exclusivamente de acordó com a teoria que tem acerca do que é e do que nao é permitido, ainda nao decobriu a maneira de viver crista- mente. Mas se alguém ama a Deus, é dÉle perf eitamente conhecido, partilhando de sua divina companhia. A respeito de comer o que foi sacrificado a ídolos, diz Paulo saberem os cristáos que o "ídolo de si mesmo nada é no mundo". É simples produto de imaginagáo e assunto para entreter su- persticiosos. O cristáo sabia existir um Deus, enquanto as religioes pagás se apresentavam com numerosas divinda- des, falsamente assim chamadas. O único Deus é a Orígem e o Fim de tudo. É o Criador de todas as coisas. Os cristáos existem para servi-lO e glorificá-lO. apenas um Senhor, Jesús Cristo, por meio de quem tudo foi criado e nós, cris- táos, conduzidos ao servigo de Deus.

Todavía nem todo o mundo tem éste mesmo grau de conhecimento. Alguns cristáos, de imperfeita, e que se haviam criado e crescido com a nogáo de que as divindades pagás eram mesmo dotadas de poder, ésses náo podiam se desvencilhar da idéia de que as viandas, usadas nos sacrifi- cios pagáos, haviam-se contaminado com alguma influencia oculta irradiada dos ídolos. E, por esta razáo, tais viandas náo prestavam, eram improprias para cristáos. Sabemos que a nossa aceitagáo por parte de Deus náo depende destas coisas. ''A questáo de usar tais alimentos ou deixar de usá- -los náo influí rnoralmente. Mas se alguém é livre para fazer, neste particular, o que entender, deve por outro lado consi- derar se o seu ato afeta outras pessoas. E entáo precisa graduar o uso de sua liberdade, condicionando-o ao bem geral". Convém acautelar-se para que nenhum ato seu pro-

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duza o efeito de um tropégo posto no caminho daquéles cuja consciéncia é menos esclarecida.

Suponha-se, por exemplo, que alguém assim fraco na presencie um outro crente, que nao ligue aos seus escrúpulos, participar de uma festa idolátrica. Nao será isto um incen- tivo para que ele também participe de tais festas, que sua consciéncia reprova? Com isso nao criará ánimo para fazer o que considera erro? A ilustragáo ostensiva do que se julga mais adiantado em conhecimentos, e o egoísmo com que usa de liberdade levam á ruina o outro irmáo por quem Cristo igualmente morreu. De modo que o uso da liberdade, em si mesmo permissível, pode tomar-se um meio de destruigáo de crentes menos adiantados na fé. Agir, pois, assim, des- considerando a fraqueza e a ignorancia de outros, é causar- Ihes grande prejuízo moral e violar a lei de Cristo.

Entáo, concluí o apostólo, se o consumo de tais alimentos oferecidos a ídolos leva um irmáo a tropegar e cair, éle, Paulo, está disposto a jamáis servir-se de tais comidas enquanto viver, a fim de nao causar táo grande mal.

A fraqueza de que fala nao é o estado da pessoa que fá- cilmente se deixa influenciar para o mal. Mas é fraqueza de fé, na pessoa ultra-escrupulosa, que nao entende o sentido da liberdade crista e, pois, nao percebe que o consumo de tais alimentos é matéria que nada tem a ver com a condigáo de nosso espirito perante Deus é matéria indiferente.

De tudo quanto o apostólo acaba de dizer ressalta uma verdade: a consciéncia deve ser obedecida sempre. Seus es- crúpulos ou exigéncias podem ás vézes parecer absurdos, mas nao convém desatendé-los. Cumpre informemos nossa cons- ciéncia, acrescentando mais luzes ás que tenha. Nunca devemos violar seu recato ou suas suscetibilidades. Nessas questoes em que o bem e o mal estáo envolvidos, e sobre as quais haja divergencia de parecer entre os crentes, algumas vézes escrúpulos tolos podem ser superados com reflexoes, conselhos e o exemplo de determinadas pessoas. Entretanto, nao devem ser seguidos tais exemplos, consideragoes ou con- selhos antes de a consciéncia convir néles ou aprová-los.

Por outra parte, jamáis devemos insistir com alguém para que proceda contra sua consciéncia. Nem, por nosso

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exemplo, devemos cientemente estimular outros a agir dessa forma. Antes, devemos dispor-nos a evitar o que se nos afi- gure inocente, se estamos certos de que nosso exemplo pode influenciar outras pessoas para fazer o que elas consideram errado e mau. Todavía, nao convém evitá-lo, se por alguma razáo, a nossa consciéncia reprova esta atitude. Mas se o assunto, a nosso ver, é dos tais que nao interessam moral- mente, entáo o amor é que decide. "Até um certo limite de- vemos regular nossa conduta pela estreiteza mental dos ou- tros, por seus escrúpulos, preconceitos e fraqueza de com- preensáo". Cada qual se esforcé por "acertar o passo com a comunidade crista de que faz parte".

E é assim que Paulo apresenta éste importante principio atinente aos conflitos de consciéncia: Atos espontáneos, do livre arbitrio cristáo, podem fazer periclitar os f ráeos; a liberdade, pois, de ser regulada pelo amor.

2. O Exemplo de Paulo. Cap. 9.

Vimos o primeiro grande principio estabelecido por Paulo no tocante a assuntos que nao interessem á moral, e em torno dos quais haja divergéncia de parecer: a liberdade de ser regulada pelo amor. Ele mesmo se submetia a ésse principio, declarando-se disposto a nunca mais na vida co- mer carne se, com isso, viesse a causar tropégo a um irmáo.

Agora firma um segundo principio, destinado ainda a orientar a conduta dos crentes em tais casos de consciéncia, apresentando-se ele mesmo como exemplo. Refere seu pro- cedimento em Corinto, bem conhecido de todos, a saber, re- cusara aceitar qualquer remuneragáo pelo seu trabalho na- quela igreja, para que ninguém o interpretasse mal quanto aos motivos que o impeliam a trabalhar, ficando assim pre- judicada sua influéncia. Em outras cidades sua atitude fóra diferente, pois recebera com prazer a remuneragáo de seus servicos, pelo menos como incentivo para sua luta espiritual. Em Corinto procederá de um modo, em outras partes agirá de outro, tudo por amor do trabalho em que estava empe- nhado. Com isto éle dava um exemplo de como aplicar o importante principio discutido neste cap. nove de sua carta, a saber: o ato espontáneo de quem se entrega a urna prática

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controvertida pode servir de estórvo ao trabalho cristáo. Portanto, devemo-nos fazer "tudo para com todos".

É bom lembrar que Paulo ainda discute o problema do consumo de carnes oferecidas na idolatría. O principio, que ele ilustra com seu próprio exemplo de renúncia a sustento financeiro por parte dos corintios, aplica-se antes de tudo a ésse problema. Assim como se dispusera a sacrificar sua re- muneragao por amor do evangelho, do mesmo modo deviam estar prontos a se abster do consumo de tais carnes, caso verificassem que, usando-as, a influencia déles junto a outros irmáos vinha de qualquer modo a enfraquecer.

A nós, que estudamos esta epístola, cabe o dever de fazer idéntica aplicacáo prática déste principio aos casos de cons- ciéncia com que nos defrontamos constantemente. Devemos dispor-nos a sacrificar muita coisa do que nos pareca ino- cente, no caso de sua prática vir de qualquer forma preju- dicar nosso trabalho por Cristo.

a. Sacrificio por amor do Evangelho. Cap. 9:1-18.

1 Nao sou eu, porventura, livre? nao sou apostólo? nao tenho visto a Jesús, nosso Senhor? acaso nao sois fruto do meu trabalho no Senhor? 2 Se nao sou apos- tólo para outros, certamente o sou para vos; porque vós sois o sélo do meu apostolado no Senhor. 3 A mi- nha defesa perante os que me interpelam é esta: 4 Nao temos nós, porventura, o direito de comer e beber? 5 E também o de fazer-nos acompanhar de esposa érente, como fazem os demais apostólos, e os irmáos do Senhor, e Cefas? 6 Cu sómente eu e Barnabé nao temos direito de deixar de trabalhar? 7 Quem jamáis vai á guerra á sua própria custa? Quem planta a vinha e nao come do seu fruto? Ou quem apascenta um rebanho e nao se alimenta do leite do rebanho? 8 Porventura falo isto como homem, ou nao o diz tam- bém a lei? 9 Porque na lei de Moisés está escrito: Nao atarás a boca do boi que debulha. Acaso é de bois que Deus se preocupa? 10 Ou é seguramente por nós que ele o diz? Certo que é por nós que está escrito; pols o que lavra, cumpre fazé-lo com esperanza; o que debulha, faga-o na esperanza de reeeber a parte que Ihe é devida. 11 Se nós vos semeamos as coisas espiri- tuais, será muito recolhermos de vós bens materiais? 12 Se outros participam désse direito sobre vós, nao o

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temos nós em maior medida? Entretanto nao usamos désse direito; antes suportamos tudo, para nao criar- mos qualquer obstáculo ao evangelho de Cristo. 13 Nao sabéis vos que os que prestam servicos sagrados, do próprio templo se alimentam; e quem serve ao altar, do altar tira o seu sustento? 14 Assim ordenou tam- bém o Senhor aos que pregam o evangelho, que vivam do evangelho; 15 eu, porém, nao me tenho servido de nenhuma destas coisas, e nao escrevo isto para que assim se faca comigo; porque melhor me fóra morrer antes que alguém me anule esta gloria. 16 Se anuncio o evangelho, nao tenho de que me gloriar, pois sobre mim pesa essa obriga^áo; porque ai de mim se nao prégar o evangelho! 17 Se o fa^o de livre vontade, te- nho galardáo; mas, se constrangido, é, entáo, a res- ponsabilidade de despenseiro que me está confiada. 18 Nésse caso, cual é o meu galardáo? É Que, evange- lizando, proponha de graca o evangelho, para nao me valer de todo o direito que ele me dá.

Recusando sustento financeiro da igra ja de Corinto, Paulo com isto nao quis negar o direito que assiste aos mi- nistros evangélicos de receberem salário para sua manuten- cao e de suas familias. Pelo contrário, afirmou éste direito, declarando que sua recusa, neste caso particular, tinha uma finalidade única, que era o progresso de seu trabalho, ou antes o fizera pelo recelo de que, aceitando salário, isto se constituisse um embaraco para as suas atividades. É o que ele declara: "Para nao criarmos qualquer obstáculo ao evangelho de Cristo", v. 12.

O direito que o ministro do evangelho tinha de receber ou solicitar sustento centava com quatro ou cinco fundamen- tos iniludíveis. Primeiro: Paulo era um apostólo e, sendo-o, tinha direito a tudo quanto era concedido, sem questao, a outros obreiros seus colegas. Seu apostolado estava garantido pelo fato de ter visto a Jesús. Nao queria se referir a uma simples experiéncia espiritual que tivesse de Cristo, nem a visoes que tivera em éxtases experimentados durante o seu ministéric. Referia-se a uma contemplagáo real da pes^oa humana e glorificada do Salvador, privilégio que Ihe fóra concedido na estrada de Damasco. Ésse apostolado fóra se- lado ou declarado auténtico pela sua atuacáo em Corinto. Se cristáos houvesse que pusessem em dúvida ou negassem a legitimidade do apostolado de Paulo, certamente que nao seriam os corintios, porque fóra por sua instrumentalidade

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que ésses corintios vieram a existir como igreja: "Vós sois o sélo do meu apostolado no Senhor".

Por conseguinte, sendo apostólo, Paulo tinha direito ao sustento que outros apostólos estavam recebendo. Tinha também o privilégio, se déle quisesse usar, de se casar e de levar consigo a esposa em suas viagens apostólicas, como era o caso dos irmáos de Jesús e de Pedro. Paulo e seu compa- nheiro Barnabé teriam toda a razáo se recusassem se entre- gar a trabalhos manuais para se manterem, porque o pri- meiro, pelo menos, por sua qualidade de apostólo, tinha di- reito a sustento.

Em segundo lugar: ésse direito ainda é defensável á i vista do que acontece comumente na sociedade humana. O soldado, o viticultor, o pastor de ovelhas, todos recebem paga do seu trabalho. Por que, entáo, excetuar o ministro do evangelho? Mas ainda que alguém objete, alegando que isto acontece no mundo, em negocios seculares, pode-se apelar para a Lei de Moisés. Que provisáo é a sua, relativamente aos bois ocupados em trilhar cercáis? "Nao atarás a boca i do boi que debulha", diz a lei. Nao eram apenas os bois que o supremo Legislador tinha em mente. Seu intuito foi en- sinar o principio da remuneragáo aos que trabalham, de i modo a fazé-los participar do fruto de seus labores, sejam ^ estes quais íorem. Era pois natural que Paulo recebesse sustento material daquela igreja, fruto que era de sua se- menteira espiritual.

E prossegue ele na defesa dos seus direitos alegando que aquela igreja estava mantendo outros obreiros cristáos. Certo que ninguém mais do que éle podia merecer tal ma- nut^ngáo, visto que fóra o fundador daquela comunidade. Todavía, enquanto ésses outros eram pesados á igreja, Paulo ^ renunciara seus direitos, suportando diíiculdades e privaQoes ' para nao dar a ninguém ocasiáo de crítica ou queixa, que podiam resultar em embarago para seu trabalho.

E ainda mais: o direito que o ministério tem de auxilio financeiro baseia-se igualmente no fato de os sacerdotes ju- deus terem sido mantidos pelas ofertas que se levavam ao Templo, recebendo cada qual uma porcáo de carne dos ani- máis sacrificados. E o mais importante de tudo é que Cristo perpetuou essa lei, em sua relagáo com o ministério sagrado,

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ordenando expressamente "aos que prégam o evangelho que vivam do evangelho".

Pois foi um direito assim, firme e divinamente estabele- cido, que Paulo renunciara. Nao o defendía agora como para exigir que fósse respeitado: "Nao me tenho servido de ne- nhuma destas coisas, e nao escrevo isto para que assim se faca comigo". Prefería morrer a perder o gozo de pregar o evangelho sem pedir troco. A satisfagáo de pregar sem re- muneragáo de si era uma excelente paga, um verdadeiro salário. Nenhuma recompensa ele podía aceitar pelo servigo da prégagáo, porque éste era de sua estrita obrigagáo, de seu próprio mister de despenseiro. Ai déle se nao prégasse o evangelho. Entretanto nao fóra por isso que recusara re- muneragáo. A satisfagáo recompensadora que Ihe enchia o peito fundava-se em saber que essa recusa prevenía qualquer crítica e evitava empegos na marcha do trabalho.

É assim que Paulo exemplifica, em parte, a aplicagáo do grande principio que apresenta, isto é, que por insistir em seus direitos a pessoa pode comprometer o éxito do servigo que empreende. A prática de certas agóes julgadas inocentes pode anular a influéncia de seu agente em relagáo a outras pessoas. O fim especial da fixagáo déste principio é responder aínda á pergunta que Ihe fizeram a respeito das carnes ofe- recidas a ídolos. Expunha-se abertamente a censuras o cris- táo que se utilizasse de tais comidas, embora fósse esta prá- tica de si mesma inofensiva. Devia pois ponderar seriamente essa possibilidade de censura, antes de tomar decisoes.

É dever dos crentes de hoje aplicarem escrupulosamente éste principio na resolugáo dos seus casos de consciéncia. O obreiro cristáo precisa ver nao sómente se o seu procedimento é correto, em tese ou de um ponto de vista teórico, mas pre- cisa atender se, embora inocente em si mesmo, ésse procedi- mento nao se expoe a censuras francas ou públicas, contri- buindo assim para por em risco ou anular seu trabalho. No cap. precedente Paulo insistiu na cbrigagáo de se evitarem determinadas coisas indiferentes quanto á m.oral, e isto em consideracáo a irmáos mais fracos. Agora insiste no dever dessa abstencáo, em certas ocasioes, por amor ao trabalho evangélico.

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b. Tornar-se tudo para com todos. Cap. 9:19-23.

19 Porque, sendo livre de todos, fiz-me escravo de todos, a fim de ganhar o maior número possivel. '¿O Procedí, para com os judeus, como judeu, a fim de gan,har os judeus; para os que vivem sob o regime da leí, como se eu mesmo assim vivesse, para ganhar os que vivem debaixo da lei, embora nao esteja eu de- baixo da leí. 21 Aos sem lei, como se eu mesmo o fósse, nao estando sem lei para com Deus, mas debaixo da lei de Cristo, para ganhar os que vivem tora do regime da lei. 22 Fiz-me fraco para com os fracos, com o fim de ganhar os fracos. Fiz-me tudo para com todos, com o fim de, por todos os modos, salvar alguns. 23 Tudo fago por causa do evangelho, com o fim de me tornar cooperador com ele.

Dos cristáos de Corinto, Paulo nao exigirá sustento ma- terial, nem salário, nem qualquer gratificacáo pelos seus servigos. E a razáo fóra querer evitar que o interpretassem mal e o seu trabalho assim viesse a ser prejudicado. Mas ele tivera sua recompensa e esta consistirá naquéle sentimento de independencia, naquéle prazer de pregar sem gratificacáo, naquéle gozo de nao dar lugar á pecha de mercenário. En- tretanto, Paulo nao foi egoísta no uso de sua liberdade. Pelo contrario, livre de qualquer coagáo humana, fazia-se escra- vo de todos na esperanga de ganhar alguns para Cristo. Es- tava livre de escrúpulos mesquinhos, mas permitía que seus movimentos ou sua liberdade fósse cerceada pela fraqueza dos outros, para no fim de tudo ter a alegría de trazé-los ao gozo da liberdade crista que éle táo bem compreendia. Em lugar de aproveitar-se de seus direitos, de fazé-los valer, fez toda concessáo possivel onde quer que percebesse uma possi- bilidade de trazer almas a Cristo. Pois aquéles direitos eram uma idéia, uma abstragáo, nao podendo competir com o fato concreto da conquista de almas. Como éle mesmo disse: "Sendo livre de todos, fiz-me escravo de todos, a fim de ga- nhar o maior número possivel".

Com os judeus proceden como judeu, guardando suas f estas e jejuns, observando seus costumes e cumprindo seus votos. A vida dos gentíos, que nao tinham lei, procurou adap- tar-se, nao exigindo déles a adogáo das cerimónias judaicas, fazendo citacoes de escritores seus, quando Ihes prégava, e

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até se servindo da inscrigáo que vira em um dos altares déles, fato que ocorreu em Atenas.

Abre um como paréntese para explicar que, acomodan- do-se com os judeus, nao dava um passo atrás em sua orto- doxia, para se colocar sob a lei judaica e fazer disso uma base de salvagáo. Nao, mas que observava essa lei apenas por motivo de sociabilidade e em deferencia aos costumes de sua nagáo. Também com isso queria evitar escándalo des- necessário para os judeus. Entre os gentíos, embora nao exigindo déstes a aceitagáo da lei cerimonial dos judeus, nao estava "sem lei" em relagáo a Deus, mas sob a lei de Cristo.

E mais: para os f ráeos, ultra-escrupulosos e tímidos féz- se fraco, contemporizando com os escrúpulos déles e fazendo concessoes aos seus preconceitos. Em suma, sua maneira de proceder está expressa na frase: "Fiz-me tudo para com todos". Esta expressáo de Paulo significa exatamente o oposto do sentido que tem na linguagem comum de nossos dias, como soa aos nossos ouvidos. Nao se trata de moleza de caráter que faz a pessoa dobrar-se a tudo quanto exista de práticas imorais. Éle nao sanciona aquéle adágio, que diz: "Em casa de sapo, de cócoras com éle". O que refere sao assuntos indiferentes á moral, sao preconceitos sem base, sao escrúpulos tolos. Está respondendo ainda a pergunta referente ao consumo de carnes oferecidas a ídolos. Sabe que o culto dos ídolos nao corresponde a nenhuma realidade espiritual, e eré, por isso, que o comer tais carnes nao é uma questáo de bem ou de mal. Entretanto, a um prégador do evangelho convém abster-se de algumas destas coisas, ino- centes em si, de modo a evitar escándalos que trazem pre- juízo ao trabalho evangélico.

É um principio seu, éste da adaptagáo as necessidades, preconceitos e fraquezas de todas as classes de pessoas, de modo a se poder levar alguns a Cristo. Tudo isto que faz é por amor do evangelho, cuja plenitude de béngáos éle quer dividir com todos.

Éste principio do apostólo deve orientar com maior fre- quéncia todos os seguidores de Cristo e particularmente todos quantos se esforgam em guiar outros na vida crista. Multas práticas inocentes precisam ser postas de lado á vista dos preconceitos e opinióes de outras pessoas. Se se trata

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de agoes pecaminosas, entáo nem se fale. Além destas, po- rém, que considerar os possíveis efeitos ou repercussoes de atos moralmente indiferentes ou neutros. Relativamente a casos de consciéncia é necessário acatar éste segundo im- portante principio formulado pelo apostólo, a saber: Tais acoes, moralmente neutras, a que alguém se entregue, po- dem fazer periclitar o trabalho evangélico; devemos entáo fazer-nos "tudo para com todos".

c. A ¡uta á vista do premio. Cap. 9:24-27.

24 Nao sabéis vós que os correm no estádio, todos, na verdade, correm, mas um leva o premio? Correi de tal maneira que o alcancéis. 25 Todo atleta em tu- do se domina; aqueles para alcanzar urna corroa cor- ruptível; nós, porém, a incorruptível. 26 Assím corro também eu, nao sem meta; assim luto, nao como des- ferindo golpes no ar. 27 Mas esmurro o meu corpo, e o reduzo á escravidáo, para que, tendo pregado a ou- tros, nao venha eu mesmo a ser desqualificado.

Paulo gostava de ilustrar a vida crista com certos fatos da vida esportiva dos gregos. Aqui refere competigoes ou tórnelos déles para frisar a necessidade de dominio próprio e de abnegagáo, mesmo tratando-se de assuntos moralmente neutros. Respondendo á pergunta acérca das comidas ofer- tadas a ídolos, insistiu na necessidade de abstengáo do que em si mesmo é inocente, caso a prática destas coisas sirva de embarago ao trabalho evangélico. Fizera regra sua tornar-se "tudo para com todos", isto é, acomodar-se com os precon- ceitos e escrúpulos dos outros, de forma a poder conquistá-los para Cristo e fazé-los partilhar com éle da plenitude de bén- gáos do evangelho. Outra véz, agora, insiste que todos quan- tos tém de repartir com outros ésse cabedal de felicidade pre- cisam igualmente de limitar sua liberdade e impor-se aquela mesma abnegagáo que éle, Paulo, impunha a si próprio.

Provavelmente refere-se aos Jogos ístmicos, assim cha- mados pelo fato de Corinto ficar situada num istmo. Essas competigoes esportivas, assim como os Jogos Olímpicos, os Píticos e os Nemeus, constituíam-se um grandioso festival cívico-religioso que de dois em dois anos atraía a Corinto multidoes de aficionados. os socialmente livres podiam

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tomar parte nesses jogos, e deviam dar prova suficiente de que durante dez meses haviam recebido o treinamento pre- liminar. Exigia-se dos candidatos que durante trinta dias, antes das competicoes, se submetessem a exercícios no giná- sio, e sómente quando satisfaziam plenamente estas condi- qdes eram aceitos para se exibirem diante das multidoes de espectadores. Um arauto proclamava o nome e a nacionali- dade de cada competidor, assim como também do vencedor, que era entáo coroado com uma grinalda de ramos de pinheiro ou de salsa ou ainda de hera. A familia do vencedor era olha- da com respeito e honra e quando ele regressava á sua cidade natal abria-se uma brecha no muro que a circundava para que por alí passasse. A significacáo désse ato era que a cida- de, que tinha dentro de si um cidadáo de tanto valor, nao precisava de muros para sua defesa. O heroi era imortaliza- do em versos e, em todas as competicoes futuras, destinavam- Ihe um lugar bem á frente de todos, onde se sentava para assistir.

Referindo ésses jogos, Paulo apresen ta dois pontos de contraste. Ñas competigoes gregas, embora todos os joga- dores corressem no estádio, um sómente ganhava a coroa. Mas na vida crista todos podem concorrer ao premio e ganhá- -lo, e devem esforgar-se para isso, uma vez que está prometido. Segundo: ñas competigoes gregas o premio era "uma coroa corruptível", um simples e murchoso festáo de folhas de oli- veira ou de pinheiro, enquanto que, como seguidores de Cristo, lutamos por uma coroa que nao murchará jamáis, coroa de vida, diadema de justiga, grinalda de alegría e de gloria. A vista de uma coroa assim, Paulo insiste com todos os cristáos para que satisfagam as condigces que se impunham aos atle- tas lutadores, e ele mesmo se apresenta como exemplo de quem se esforga para alcangar o cobigado galardáo. Sao claras essas condigoes. Primeiro de tudo, é preciso que haja esfórgo e denodo. Ninguém pense que a vida crista é fácil ou pode ser levada com indiferenga, como brincadeira, mesmo tratando-se de questces em que nao esteja envolvido positi- vamente o bem ou o mal. Um esfórgo continuo de se fazer para que a conduta seja tal que nao escandalize os f ráeos na fé, os críticos e ultra-escrupuiosos.

Em segundo lugar, deve-se ser definido nos esforgos. Dizia Paulo que nao lutava "como desferindo golpes no ar".

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Como crentes, precisamos encarar ésses casos de consciéncia de um modo definido, claro. E importa que os resolvamos com a determinagáo e firmeza. dos que lutam tendo diante dos olhos um alvo certo, u'a meta fixa. Assim como precisa- mos exercer dominio próprio, até nésses casos em que a opi- niáo dos crentes esteja dividida. Temos de nos acostumar ao sacrificio de nossos pontos de vista. O treinamento rigo- roso que se exigia dos atletas gregos era uma ilustracáo da severidade a que o cristáo precisa submeter nao o corpo, mas os apetites ou dése jos déle. A linguagem ai é figurada: es- murrar o corpo, dar bofetadas na cara, levar o corpo ao canto do muro, como fazem os boxeadores com os adversários ven- cidos. É com esta figura viva, dramática, que éle mostra a necessidade de disciplina, de subjugacáo de todos os apetites, os quais, se nao foram contidos assim, poderáo levar á ruina moral e fazer que se perca a coroa.

Diz Paulo que se esforga com tal denodo, agindo como arauto que convoca os competidores ao campo da luta, para que éle mesmo nao venha a ficar desqualificado, como aqué- les que nao se submetiam as regras do jógo. Tendo diante dos olhos um prémio táo glorioso, todos quantos tém ouvido a convocagáo do evangelho, com igual tenacidade, abnegagáo e auto-disciplina devem procurar correr no estadio, combater o bom combate, a fim de que também recebam a coroa imarcescível.

3. O perigo dos hábitos. Cap. 10:1-13.

1 Ora, irmáos, nao quero que ignoréis que nossos pais estiveram todos sob a nuvem, e todos passaram pelo mar, 2 tendo sido todos batizados, assim na nu- vem, como no mar, com respeito a Moisés. 3 Todos éles comeram de um manjar espiritual, 4 e beberam da mesma fonte espiritual; porque bebiam de uma pedra espiritual que os seguia. E a pedra era Cristo. 5 Entretanto, Deus nao se agradou da maioria déles, razáo por que ficaram prostrados no deserto. 6 Ora, estas coisas se tornaram exemplos para nós, a fim de que nao cobicemos as coisas más, como éles cobi?a- ram. 7 Nao vos fa^a^is, pois, idólatiras, como alguns déles; porquanto está escrito: O povo assentou-se para comer e beber, e levantou-se para divertir-se. 8 E nao pratiquemos imoralidade, como alguns déles o

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fizeram, e caíram num dia vinte e tres mil. 9 Nao ponhamos o Senhor á prova, como alguns déles fi- zeram, e pereceram pelas mordeduras das serpentes. 10 Nem murmuréis como alguns déles murmuraram, e foram destruidos pelo exterminador.il Estas coisas Ihes sobrevieram como exemplos, e foram escritas para ad- verténcia, nossa de nós sobre quem os fins dos secuios tém chegado. 12 Aquéle, pois, que pensa estar em pé, veja que nao caia. 13 Nao vos sobrevoló tentacáo que nao fósse humana; mas Deus é fiel, e nao permitirá que sejais tentados além das vossas forjas; pelo contrario, juntamente com a tentacáo, vos proverá livramento, de sorte que a podereis suportar.

Paulo mostrcu que a prática voluntariosa de atos controvertidos ou discutíveis pode levar pessoas a tropecar e, depois, pode servir de estórvo ao trabalho cristáo. Agora é a vez de propor um terceiro principio: Tais práticas podem fazer perigar a alma; portanto, "o que pensa estar em pé, veja que nao caia".

Vem a propósito o exemplo dos filhos de Israel, os quais, a despeito de seus grandes privilégios e vantagens, caíram em graves pecados. A vista do que, o apostólo adverte seus leitores e depois acrescenta uma palavra de animagáo.

Nesta referencia á historia dos judeus, declara que seus pais "foram batizados para Moisés (com respeito a) assim na nuvem, como no mar". Obedecendo á diregáo daquela nuvem gloriosa e passando pelo meio do mar incólumes, re- conheceram em Moisés seu libertador divinamente designado e comprometeram-se a seguí-lo. Além disso comeram do maná que do céu Ihes era dado e beberam da água que, mais de uma vez, brotou da rocha. Esta nao fóra de Cristo apenas um símbolo. Paulo identifica-a com o Salvador. Completa- mente incógnito dos israelitas, Cristo estivera com éles no deserto. Fóra o divino Agente que ministrara as necessidades déles. Assim, pois, ésse alimento e essa água foram espirituais e sacramentáis, dádivas que foram da misericórdia divina. Do mesmo modo os cristáos corintios, pelo batismo, haviam- -se comprometido a ser seguidores de Cristo; e na Ceia do Senhor tinham-se tornado participantes de sua graga.

Entretanto, a despeito de sua posigáo privilegiada e das singulares misericórdias de que foram objeto, os israelitas agiram com deslealdade: "Deus nao se agradou da maioria

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déles, razáo por que ficaram prostrados no deserto*'. Daí Paulo advertir seus leitores que a prática de comer do ofere- cido a ídolos, posto que em si mesma inocente, pode dar lugar a veemente tentagáo, a que éles acabaráo cedendo. O mesmo pode acontecer a todos os crentes: o hábito de se entregarem a prá ticas discutidas, que de si mesmas nao sao más, pode tornar-se ocasiáo de tentagoes muito sutis para serem re- sistidas. Daí podem nascer dése jos e ansiedades pecaminosas; portanto "nao cobicemos as coisas más, como éles cobiga- ram". Nao acóntela venhamos, com tais hábitos, desconsi- derar ao Senhor, objeto que é de nossa suprema satisfagáo e de nosso culto absoluto: "Nao vos fagáis idólatras como alguns déles".

Além disto, nossa sociedade com os que se entregam a tais hábitos pode arrastar-nos a pecados da impureza, ou pelo menos levar-nos á amizade do mundo e áquela desleal- dade a Deus que no Antigo Testamento foi representada sob a figura de prostituigáo (imoralidade) .

"Nao ponhamos o Senhor á prova, como alguns déles fizeram, e pereceram pelas mordeduras das serpentes". A prática habitual de atos duvidosos pode levar-nos a fazer uma idéia errónea da tolerancia de Deus; pode acender em nós o déselo de experimentar até que ponto podemos ir sem cair, ou o desejo de por o Senhor á prova, para sabermos até onde Éle nos deixa ir, sem nos castigar ou reprovar. As murmuragoes de Israel, finalmente, culminaram em verda- deira rebeliáo e na impiedade de uma provocagáo ou desafio a Deus. O costume de a pessoa entregar-se a certas diversoes, nao pecaminosas em si, e a certas práticas que outros acham inofensivas, pode provocar em nós um sentimento de sensa- boria da vida que levamos, de moralidade mais rígida, até que, persistindo ésse desprazer, a situagáo descambe para a deslealdade e finde em verdadeira provocagáo ao Senhor.

Paulo prossegue, dizendo que toda essa experiéncia de Israel serve de instrugáo para nós que vivemos numa época ou em condigoes diferentes e, para dizer melhor, na última era do m.undo, a que vai servir de epílogo a todo éste drama. De modo particular essa experiéncia de Israel encerra um solene aviso contra a presungáo, essa confianga em nós mesmos, e contra a suposigáo Imbécil de que, pelo fato de sermos batizados e de participarmos da Ceia do Senhor, es-

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tamos moralmente seguros. "Aquéle, pois, que pensa estar em pé, veja que nao caia".

Feito éste solene aviso, o apostólo, nao obstante, encerra o parágrafo com urna palavra de animacáo. Embora Israel se afastasse de Deus, e aínda que tenhamos o senso doloroso de nossas fraquezas, nao é necessário cair, nao vamos cair e ficar prostrados. As tentagoes nao nos querem dar tre- gua, é verdade, mas nao fado ruim nem mau destino que nos corte o caminho da fuga ou do escape. Deus permite que nos encontremos rodeados de circunstancias que determinam essas íentaQoes fortes, mas Éle sempre nos prové um meio de escaparmos. Certo é que nao nos devemos colocar, desneces- sária e voluntariamente, em situacoes perigosas. Nao deve- mos contemporizar com hábitos discutidos ou duvidosos. Te- mos de nos devotar com afinco as tarefas que saibamos nos competirem. Com pertinácia e entusiasmo cumpre que en- veredemos por estradas que sabemos serem certas. Sobre- tudo, importa que vivamos por Cristo, para Éle, e procuremos andar em sua companhia. Sómente procedendo assim é que estaremos absolutamente seguros.

4. É vedado participar de festas idolátricas. Cap. 10:14-22.

14 Portante, meiis amados, fugi da idolatría. 15 Falo como a critcriosos, jiilgai vos mesmos o que digo. 16 Porventura o cálice da béncáo que aben^oamos, nao é a comunháo do sangue de Cristo? O pao que par- timos, nao é a comunháo do corpo de Cristo? 17 i:*or- que nós, embora muitos, somos únicamente um pao, um corpo; porque todos participamos do único pao. 18 Considerai o Israel segundo a carne; nao é certo que aqueles que se alimentam dos sacrificios sao par- ticipantes do altar? 19 Que digo, pois? que o sacrifi- cado ao ídolo é alguma coisa? ou que o próprio ídolo tem algum valor? 20 Antes digo que as coisas que éles sacrificam, é a demonios que as sacrificam, e nao a Deus; e eu nao quero que vos tornéis associados aos demonios. Zl Nao podéis beber o cálice do Senhor e o cálice dos demonios: nao podéis ser participantes da mesa do Senhor e da mesa dos demonios. ZZ Ou pro- vocaremos zelos no Senhor? somos acaso mais fortes do que éle?

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Comer do oferecido a ídolos podía ser inocente. No má- ximo podia ser considerado assunto em que a consciéncia crista estava livre para convir ou nao. Agora, usar de tais alimentos em templo de ídolo e na companhia de idólatras, como a participar com éles de uma festa ao ídolo, isto era mul- to diferente. De idolatría, pura e líquida, os cristáos tém de fugir. Nao Ihes compete ver ou experimentar até que ponto podem contemporizar com ela sem participarem realmente do ato idolátrico. Mas o que devem fazer é verificar até onde podem ir, cada vez mais longe, de sua prática. De qualquer modo, nao devem permitir-se nenhuma participagáo em tais festas. E vem Paulo, agora, com o seu quarto e grande prin- cipio. A participagáo voluntariosa nesses atos de culto iden- tifica-nos com o mundo; portanto, nao provoquemos o Senhor a ter ciúmes de nós.

Nao é difícil aplicar éste principio na soluQáo dos pro- blemas de hoje. Certos hábitos que, em determinadas cir- cunstancias, sao, no máximo, discutíveis, em outras circuns- tancias sao realmente hábitos maus. Em si mesmos podem ser neutros moralmente, todavía se praticados na companhia de pessoas impías e em lugares associados ou reservados á prática do mal, identificam por tal forma o cristáo com os inimigos de Cristo que o coragáo de seu amado Senhor senté com isso verdadeiro pesar.

Como reforgo dessa proibigáo de participar de festas ido- látricas, o apostólo passa a argumentar com a relacáo que a Santa Ceia estabelece entre o fiel e Cristo, e mais com a ímpossibílidade moral de unir-se tal pessoa á de seu Senhor e ao mesmo tempo ligar-se íntimamente aos demonios que se supunha representados pelos ídolos e que como tais eram reconhecidos no culto que Ihes era prestado.

A particípacáo de pao e vinho na Ceia do Senhor é símbolo da participagáo, pelo crente, em todos os beneficios da obra expiatoria de Cristo, e da vida espiritual que o Se- nhor infunde em quantos se unem a Éle pela fé. Do mesmo modo, a participagáo coletiva no trabalho e na vida de Cristo pelos crentes faz de todos estes uma unidade ficando constituidos em um pao, em um corpo. Dessa unidade a Ceia do Senhor é sempre um símbolo.

Assim é que, no caso dos sacrificios judaicos, seus par- ticipantes partilhavam de tudo quanto o altar significava.

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Ora, se bem que as divindades pagas nao existam realmente e a idolatría nao passe de ilusáo, contudo atrás dos ídolos estáo os demonios por éles representados, aliás, digamos fi- guradamente, os demonios da concupiscencia, da crueldade e da ignorancia, com os quais se identifica o culto dos ídolos. Concebe-se porventura que alguém se identifique a um tempo com ésses demonios e com Cristo? Nao é antes abso- lutamente necessário decidir entre aqueles e éste? Nao é claro que participar da idolatría é "provocar zelos no Se- nhor"? Atrever-nos-emos a desafiar sua ira? Seremos capa- zes de fugir as consequéncías de seu desagrado?

A prática de acoes discutíveis pode identificar-se de tal forma ao espirito de cobica, de egoísmo e de impiedade que adotá-la será negar o Mestre, o seu dominio sobre nós, e maguar-lhe o coracáo que tanto nos ama.

5. Principios Essenciais. Cap. 10:23 a 11:1.

23 Todas as coisas sao lícitas, mas nem todas con- vém; todas sao lícitas, mas nem todas edificam. 24 Ninguém busque o seu próprio interésse; e, sim, o de outrem. 25 Comei de tudo o que se vende no mercado, sem nada perguntardes por motivo de consciéncia; 26 porque do Senhor é a térra e a sua plenitude. 27 Se algum dentre os incrédulos vos convidar, e quiserdes ir, comei de tudo o que fór posto diante de vós, sem nada perguntardes por motivo de consciéncia. 28 Po- rém, se alguém vos disser: Isto é coisa sacrificada a ídolos, nao comáis, por causa daquéle que vos advertiu, e por causa da consciéncia; 29 consciéncia, digo, nao a tua própriamente, mas a do outro. Pois por que de ser julgada a minha liberdade pela consciéncia alheia? 30 Se eu participo com acáo de gracas, por que hei de ser vituperado por causa daquilo de que dou gracas? 31 Portanto, quer comáis, quer bebáis, ou fagáis outra coisa qualquer, fazei tudo para a gloria de Deus. 32 Nao vos tornéis causa de tropéco nem para judeus, nem para gentíos, nem táo pouco para a igreja de Deus, 33 assim como também eu procuro em tudo ser agradável a todos, nao buscando o meu próprio inte- résse, mas o de muitos, para que sejam salvos. 1 Sede meus imitadores, como também eu sou de Cristo.

Paulo agora encerra e sumaría a longa díscussáo do uso de carnes oferecídas a ídolos, firmando os grandes e com-

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preensivos principios que os cristaos devem aplicar na solugáo de todos os seus casos de consciéncia: Considerai aquilo que fór conveniente e edificante, e tudo fazei para a gloria de Deus

Comega repentindo o grande principio ou lei da liberdade crista: "Todas as coisas sao lícitas". Parece que éles usa- vam esta frase como máxima, na defesa tanto do uso daquelas comidas como de outros hábitos. No cap. sexto insistiu o apostólo em que a liberdade fósse usada pelos leitores, mas no próprio beneficio déles. Agora bate-se no sentido de tam- bém ser limitada ao bem dos outros. E torna a ferir o ponto que serviu de partida á discussáo: a supremacía do amor. De fato, afirma que o cristáo tem o direito abstrato ou ideal de fazer tudo quanto em si mesmo nao se ja pecaminoso; mas, considerando a conveniencia e o bem-estar dos outros, de impor limites práticos a essa liberdade. Algumas coisas, em si mesmas permJssiveis, podem nao ser proveitosas; ou- tras, inocentes em si, podem nao concorrer para a edificacáo do caráter cristáo. Nao se de olhar sómente o lado per- missível das coisas, mas o lado do proveito: ''nao adianta que alguma coisa se ja corre ta ou justa, se ao mesmxO tempo nao fór conveniente". E nenhuma coisa será conveniente, ainda que inocente, se for prejudicial aos outros ou estiver sujeita a mai-en tendidos. Um cristáo nao tem que ver só- mente o seu interésse particular, mas igualmente o dos de- mais: "Ninguém busque o seu próprio interésse; e, sim, o de outrem".

Éste principio ou lei geral vai ilustrado com o uso das carnes de sacrificio. Paulo aconselha aos cristaos que com- prem do que se expoe a venda no mercado, sem perguntarem nada e sem ficarem suspensos, em dúvida, se aquilo foi ou nao foi usado antes na idolatría, o que é multo diferente de servir-se da mesma comida mas em templo de ídolos. O que se adquire no mercado adquire-se náo como parte que tenha sido de sacrificio, mas como alimento que Deus em sua graca nos prodigaliza. "Do Senhor é a térra e a sua pleni- tude", por conseguinte todo alimento que a térra produza é dom de Deus e deve ser recebido com gratidáo.

Se uma outra pessoa, porém, fór escrúpulosa, a situagáo muda de figura. Suponha-se, por exemplo, que alguém é convidado a jantar em casa de um incrédulo e que aceita

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o convite. Tem o direito de aceitá-lo e de servir-se do que Ihe oferecerem, sem perguntar nada, para que a consciéncia nao venha a a tormén tá-lo. Todavía, se alguém lembrar que foi sacrificado no templo aquilo de que vai servir-se, deve recusá-lo, em deferencia á pessoa que o lembrou e por causa da consciéncia nao sua, mas a consciéncia do outro, que fará do conviva, indiferente á questáo, um juizo injusto.

As razoes por que deve proceder assim sao duas, sendo a principal esta: prejuízo adviria de nao fazer caso do que o outro lembrou. A liberdade com que agisse ficaria suleita a condenacao por parte da consciéncia do outro. Se- gunda: provavelmente a alegagáo que fizesse de sua liber- dade para proceder como entendesse no caso e isto em face de urna censura conscienciosa do seu ato, resultarla em pre- juízo certo, porque os outros, vendo-o invocar a béngáo de Deus sobre um alimento considerado sacrifical, denunciariam éste ato como sacrilego e escandaloso. Por que expor-se a pessoa a um mal-entendido déstes sem necessidade? Paulo entáo concluí "Portanto, quer comáis, quer bebáis, ou facais outra coisa qualquer, fazei tudo para a gloria de Deus" Evitai que qualquer embarago moral se coloque á frente de iudeus ou gregos ou membros da Igreja de Deus. Adotai meu principio, diz éle, pois renuncio toda vantagem e di- reito pessoal, procurando em tudo nao meu proveito, mas o do maior número possível de pessoas, a fim de que se salvem".

Termina éle esta exortacao com o versículo que, indevi- damente, foi colocado como primeiro do cap. seguinte: "Séde meus imitadores, como também eu sou de Cristo".

G. USO DE VÉU NO CULTO PÚBLICO Cap. 11:2-16.

2 De fato eu vos louvo porque em tudo vos lem-

brais de mim, e retendes as tradicóes assim como vo-Ias entregue!. 3 Quero, entretanto, que saibais ser Cristo o cabera de todo homem, e o homem o cabera da mulher, e Deus o cabera de Cristo. 4 Todo homem que ora, ou profetiza, tendo a cabega coberta, desonra a sua própria cabera. 5 Toda mulher, porém, que ora, ou profetiza, com a cabeca sem véu, desonra a sua, própria cabeca, porque é como se a tivesse rapada. 6 Portanto, se a mulher nao usa véu, nesse caso que rape o cábelo. Mas, se Ihe é vergonhoso o tosquiar-se,

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ou rapar -se, cumpre-lhe usar véu. 7 Porque, na ver- dade, o homem nao deve cobrir a cabeca por ser ele imagem e gloria de Deus, mas a mulher é gloria do homem. 8 Porque o homem nao foi feito da mulher; e, sim, a mulher, do homem; 9 porque também o homem nao foi criado por causa da mulher; e, sim, a mulher, por causa do homem. 10 Portanto, deve a mulher, por causa dos anjos, trazer véu na cabega, como sinal de autoridade. 11 No Senhor, todavía, nem a mulher é independente do homem, nem o homem, independente da mulher. 12 Porque, como provém a mulher do ho- mem, assim também o homem é nascido da mulher; e tudo vem de Deus. 13 Julgai entre vos mesmos: é próprio que a mulher ore a Deus sem trazer o véu? 14 Ou nao vos ensina a própria natureza ser desonroso para o homem usar cábelo comprido? 15 E que, tra- tando-se da mulher, é para ela uma gloria? pois o cábelo Ihe foi dado em lugar de mantilha. 16 Contudo, se alguém quer ser contencioso, saiba que nós nao te- mos tal costume, nem as igrejas de Deus.

É possível que algum dia se reconhega o apostólo Paulo como o campeáo que se bateu pela emancipagáo da mulher 6 a defendeu. O Cristianismo contrasta vivamente com ou- tras religi5es pela posigáo que concede á mulher e pela de- claracáo que faz de sua dignidade e de seus direitos. Deve-se isto em larga escala á influencia de Paulo, aos seus ensinos acerca da liberdade e igualdade cristas, á énfase que deu ao fato de nao haver, sob Cristo, nenhuma distingáo entre ju- deu e grego, escravo ou livre, macho ou fémea, e de se cons- tituírem todos UM, nos privilégios, ñas oportunidades espi- rituais, tanto quanto em sua posigáo diante de Deus.

Entretanto, modernamente uma jbpiniáo diferente. Paulo é apresentado como inimigo da mulher. Pelos proceres de todos os movimentos feministas ele é visto com horror e repugnancia. A razáo disso está, em grande parte, naquilo que nesta epístola escreveu a respeito do casamento, como vimos, e também no que agora declara relativamente á su- bordinagao das mulher es a seus maridos.

Todos háo de convir que a maior parte do que éle diz aqui se relaciona com u'a moda ou maneira de vestir mera- mente local e temporária. Ninguém hoje insistiría em que as mulheres se apresentassem cobertas de véu por ocasiáo do culto. Entretanto, os oponentes de Paulo nao concordam é com o principio em que éle básela sua orientagáo. Contra-

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riamente, é ésse principio que no parecer dos defensores ds Paulo faz que a diretriz ai tragada tenha importancia atual e valor permanente. Sua esséncia é o seguinte: A igualdade intelectual, moral e espiritual dos dois sexos combina com a dependencia da mulher relativamente ao seu esposo e tam- bém com a sua submissáo e obediencia afetuosa a ele.

Foi exatamente éste ensino de Paulo, a respeito da igual- dade, que ocasionou certa confusáo em Corinto. Foi mal compreendido por algumas mulheres cristas, as quais, do que Paulo Ihes ensinara sobre éste assunto concluíram que dalí por diante deviam considerar-se independentes dos seus maridos. E assim, abolindo um costume aceito por judeus e cristáos, proscreveram o uso do véu e comecaram a aparecer descobertas ñas assembléias públicas. O véu tinha sido con- siderado por elas como símbolo de dependencia e submissáo. Deixando de usá-lo, declaravam com isto que sua nova po- sigáo em Cristo desfazia a relagáo anterior mantida para com os esposos, tornando-as livres e independentes, como des- ligadas dos votos matrimoniáis. Presentemente é possível que uma interpretagáo errónea do principio da igualdade nao sómente esteja causando perturbagáo como até se cons- tituindo um sério perigo. Certa énfase, indébita, sobre a independencia das mulheres está ameagando a vida da fa- milia e colocando, sobre os ombros délas, cargas que nao convém nunca forgá-las a levar.

A dificuldade em Corinto, por alguns aspectos, nao era grave. Paulo apenas está procurando conservar, no culto público, um velho costume que tinha a virtude de fazer dis- tingáo entre os sexos, e porisso mesmo era reclamado pela decéncia. Insiste na sua conservagáo principalmente por causa do equívoco que dera lugar á sua aboligáo.

Comega o exame do caso usando um preámbulo concilia- torio ou apaziguador dos ánimos. Está passando a uma série de assuntos bem diferentes. Comegou a epístola cen- surando nos leítores seu espirito sectário. Depois entrou a apreciar trés questoes moráis, a que se seguiram duas outras moralmente neutras, isto é, o casamento e as comidas sacri- ficadas na idolatría. Vai agora considerar trés questoes re- lacionadas com o culto público, a saber, o uso do véu pelas mulheres, a observancia da Ceia do Senhor, e o emprégo dos

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dons espirituais. O estudo déstes assuntos referentes ao culto cristáo segue-se á secgáo em que se ocupou da idolatría e do uso de comidas relacionadas com ela. Sabe que vai ser ne- cessário passar algumas repreensoes severas e, portanto, co- mega iouvando seus leitores por causa de algumas informa- Qoes favoráveis que Ihe prestaram a respeito déles. É que se tém lembrado do velho apostólo e obedecido as suas doutrinas. contudo uma falha, um.a prática menos própria, que é pre- ciso corrigir, e é esta: estarem as mulheres deixando de usar véu, especialmente quando tomam parte no culto público, na igreja. S se isto é feito em sinal de independencia e insu- bordinagáo das esposas em relagáo a seus esposos, está essa novidade em contradigáo com uma ordem divinamente esta- belecida.

As partes de que a sociedade se compóe, segundo o apos- tólo, sao as familias, e nao os individuos; e o chefe natural de cada familia é o marido. Todavía o exercicio dessa chefia de ser orientado sómente pelo amor, com simpatía e de- votamento cristáo. "Quero, entretanto, que saibais ser Cristo o cabega de todo homem, e o homem o cabega da mulher, e Deus o cabega de Cristo". Afirmando assim o principio de subordinagáo, Paulo afasta logo a idéia de tiranía, egoísmo ou crueldade. Do mesmo modo como o Filho divino é de- dendente do Pai e a Éle sujeit-o, assim os maridos estáo su- bordinados a Cristo e, semelhantemente, as mulheres a seus esposos. Esta subordinagáo náo envolve nenhuma humilha- gáo, nern injustiga, nem qualquer mal. É a maneira de reco- nhecer fungoes e responsabilidades diferentes, excluindo no no entanto todo egoísmo, aspereza ou indelicadeza. Se o esposo tiver em mente a relagáo em que está para com Cristo, náo abusará das suas para com a esposa, que a ele cumpre honrar, sustentar, proteger e amar.

Lembrou o apostólo que éste principio ou leí de subordi- nagáo estava reconhecido no costume, adotado geralmente, de as mulheres velarem a cabega. Náo foi ele quem estabele- ceu ésse costume, nem Ihe deu a significagáo que tinha. Se a sua significagáo era esta, entáo era decente para o homem participar do culto com a cabega descoberta, enquanto a mulher devia té-la velada. Mas se a mulher punha de lado o véu, no propósito de mostrar que náo aceitava a subordina- gáo significada por éle, por que náo ia adiante? Por que náo descobria de vez a cabega? Por que náo Ihe cortava o cábelo

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e nao a trazia rapada? Isto, sim, seria urna pro va maior de independencia e de insubordinagáo ao marido, porque se o cábelo cortado em urna mulher era sinal de viuvez, rapar a cabega era o costume daquelas que menosprezavam o casa- mento, nao o considerando sagrado.

É bom lembrar que Paulo está escrevendo a respeito de cristáos e de mulheres casadas. Que trata de mulheres ca- sadas torna-se ainda mais evidente quando passa a ilustrar o ponto com a historia da criagáo, conforme nos é narrada no Velho Testamento. O homem foi criado em primeiro lu- gar, "á imagem de Deus", e sómente depois foi a mulher tirada do homem. Éste é a coroa da criacáo e reflete a gloria de Deus. A mulher, uma vez que foi tirada homem, é a gloria déste. "O homem nao foi criado por causa da mulher; e, sim, a mulher, por causa do homem". Assim raciocinando, Paulo concluí que a mulher de ve usar véu, visto ser éste o sinal geralmente reconhecido da autoridade do homem sobre ela, especialmente em reunioes públicas de culto, porque ai, segundo comumente se acreditava, os anjos observavam de cima como procediam os cristáos.

Todavía deve-se particularmente notar que Paulo acres- centa logo nao ser esta subordinacáo das mulheres aos ma- ridos contrária á igualdade de pessoas, pois se a dependencia é um fato real, nao deixa entretanto de ser mútua, e para isto se que, se a mulher foi feita para o homem diz o apostólo o homem por seu lado nasce da mulher, toman- do-se ambos, nessas relagoes mútuas e fungoes diferentes, igualmente dependentes de Deus. Ora, náo é humilhante para o homem o ser subordinado a Deus. Logo, tanto esta subordinacáo como aqueloutra sao igualmente honrosas.

Paulo, finalmente, defende o principio em apreco basca- do em certo instinto do homem e num.a intuicáo sua do que Ihe seja conveniente. O senso natural que o homem tem do que Ihe é adequado ou do que Ihe convém, fá-lo sentir a impropriedade de cábelos ccmpridos em si, enquanto que para a mulher isso é uma gloria. Se, pois, o cábelo náo deve ser tirado as mulheres, muito menos o véu de que o cábelo é símbolo.

Entretanto, termina o apostólo, se alguém é contencioso, dado á contradigáo, ele mesmo náo tem tal costume e, porisso,

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nao insistirá mais no que disse. O fato é que essa praxe de abolir o véu nao contava com a aprovacáo dos apostólos, nem era observada em nenhuma igreja.

É interessante observar que, embora o hábito de a mu- Iher velar a cabeca, durante o culto público, nao passasse de um eos turne trivial, corriqueiro que no tempo de Paulo estava generalizado, ainda hoje é observado pela Igreja Romana e entre certos grupos de cristáos. Seu verdadeiro significado, porém, nao é percebido e pouco falta para cair no olvido. E mais: o importante principio figurado por ésse hábito nos tempos antigos, hoje em toda parte é discutido ou impugna- do, no interésse, como se alega, dos direitos e liberdades fe- minis. Parece que essa tendencia em a natureza humana, de reter e valorizar formas vazias de sentido, etiquetas e re- grinhas fúteis, e por outra parte menosprezar ou abandonar principios ou leis importantes que convém perpetuar e seguir.

H. A OBSERVANCIA DA CEIA DO SENHOR. Cap. 11:17-34.

17 Nisto, porém, que vos prescrevo, nao vos louvo, porquanto vos a juntáis, nao para melhor; e, sim, para pior. 18 Porque, antes de tudo, estou informado haver divisoes entre vós quando vos reunis na igreja; e eu em parte o creio. 19 Porque até mesmo importa que naja partidos entre vós, para que também os aprovados se tornem conhecidos em vosso meio. 20 Quando, pois, vos reunis no mesmo lugar, nao é a ceia do Senhor que coméis. 21 Porque, ao comerdes, cada um toma ante- cipadamente a sua própria ceia; e quem tenha fome, ao passo que também quem se embriague, 22 Nao tendes, porventura, casas onde comer e beber? Ou menosprezais a igreja de Deus, e envergonhais os que nada tém? Que vos direi? Louvar-vos-ei? Nisto certamente nao vos louvo. 23 Porque eu recebi do Se- nhor o que também vos entreguei: que o Senhor Je- sús, na noite em que foi traido, tomou o pao; 24 e, tendo dado gragas, o partiu e disse: Isto é o meu corpo, que é of crecido em favor de vós; fazei isto em memó- ria de mim. 25 Por semelhante modo, depois de haver ceado, tomou também o cálice, dizendo: Éste cálice é a nova alianca no meu sangue; fazei isto, todas as vézes que o beberdes, em memória de mim. 26 Porqu» todas as vézes que comerdes éste pao e beberdes o

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cálice, anunciáis a morte do Senhor, até que ele venha.' 27 Por isso, aquéle que comer o pao ou beber o cálice do Senhor, indignamente, será réu do corpo e do san- gue do Senhor. 28 Examine-se, pois, o homem a si mesmo, e assim coma do pao e beba do cálice; 29 pois quem come e bebe, sem discernir o corpo, come e bebe juízo para si. 30 Eis a razáo por que entre vos muitos f ráeos e doentes, e nao poucos que dormem. 31 Porque, se nos julgássemos a nós mesmos, nao seria- mos julgados. 32 Mas, quando julgados, somos disci- plinados pelo Senhor, para nao sermos condenados com o mundo. 33 Assim, pois, irmáos meus, quando vos reu- nis para comer, esperai uns pelos outros. 34 Se alguém tem fome, coma em casa, a fim de nao vos reunirdes para juízo. Quanto as demais coisas, eu as ordenare! quando fór ter convosco.

Nunca será demais saiientar dois métodos, característi- cos de Paulo, de examinar as questoes que Ihe propuseram os de Corinto. O primeiro é o seu hábito de relacionar os assuntos, ainda que insignificantes e passageiros, com os principios que Ihes correspondem, de valor permanente. O segundo é a sua habilidade, mesmo tratando de matéria de- licadíssima, aflitiva e desagradável, de afirmar certas ver- dades em termos extremamente belos, fazendo-as parecer joias caríssimas num engaste rústico, digamos, de barro.

Assim é que, passando a censurar os sérios abusos rela- cionados com a celebracáo da Ceia do Senhor, apresenta farto material bíblico na discussáo da orígem, natureza e signifi- cacáo désse sacramento. Demais disso, recorda a instituicáo da Ceia em termos táo belos que práticamente todos os cris- táos citam suas palavras quando celebram ésse festim sagrado.

Eram extremamente graves os abusos que Paulo procurou sanar. Dera-lhes ocasiáo o costume de os corintios unirem a celebracáo do sacramento a uma "festa de amor" ou refeicáo em comum, de que os cristáos usualmente participavam e que se realizava na abertura de suas reunioes'de culto. Era praxe cada pessoa levar provisoes para aqueles repastos de acordó com as suas posses. Os ricos levavam muito, enquanto os pobres, pouco ou nada. Ésses fomecimentos de comestí- veis eram feitos em proveito de todos, e pelo fato de todos participarem ncsses repastos sociais, tais ceias festivas ad- quiriram um aspecto sacramental. Entretanto, ou no comégo da festa ou no fim, seus participantes celebravam, de modo

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muito singelo o Memorial da morte do Senhor, como por Éste fóra instituido. Os corintios, porém, levados por aquéle seu espirito faccioso, acabaram fomentando divisoes até mesmo dentro daquelas sacramentáis "f estas de amor". Ao 'invés de repartirem uns com os outros suas provisoes, os ricos se mostravam glutoes e bebiam demais, até á embriaguez, enquanto os pobres nada recebiam e, porisso, ficavam priva- dos da festa. Tal profanacáo da Ceia do Senhor era triste- mente escandalosa; Paulo acliou que uma correcao daquéle sério abuso se impunha a todo o custo. Entretanto, sua lin- guagem é comedida. Declara que acredita em parte na iniormacáo dolorosa que Ihe prestaram a respeito. Reco- nhece até que um propósito divino é manifestó naquelas di- visoes, porque em tal situagáo os que sao leáis a Cristo se faráo conhecidos mais prontamente. Lembra-lhes, contudo, que tamanhas rivalidades e táo grosseiros excessos tornavam impossível para éles uma observáncia condigna da Ceia do Senhor, em sua verdadeira significacáo. Frisa bem que, se o propósito déles, quando se juntam, é apenas saciar seu apetite voraz, entáo será melhor que fiquem em casa. Cen- sura-lhes severamente a falta de consideracáo aos pobres, toda a indecéncia de táo vergonhoso comportamento.

Mas o modo que ele acha mais correto de sanar a clamo- rosa irregularidade é lembrar-lhes a instituícáo da Santa Ceia, que éles profanavam, vs. 23-26. Adianta que éle mesmo re- cebeu do Senhor a sagrada tradicáo referente á orígem do sacramento que fóra instituido naquela noite solene em que Cristo se deixara trair. Servia éste mesmo fato para dar én- fase ao amor de Cristo pelos discípulos, amor aue se esauece de si em beneficio dos outros. sentindo projetar-se sobre Éle a sombra da cruz, tomou Jesús o páo e o vinho e instituiu éste sagrado rito. "Tendo dado gracas", partiu o páo, de- clarando aos discípulos que aquilo era símbolo de seu corpo que seria partido por éles. De igual modo tomou o cálice, depois de cear, afirmando que simbolizava o novo concérto que ia ser selado com seu sangue, concérto novo em sua na- tureza, conteúdo e alcance, pois asseguraria perdáo pleno dos pecados e uma durável renovacáo espiritual. Os discípulos deviam observar esta sagrada cerimonia, e todas as vézes que o fizessem, fa-lo-iam em memoria de seu Senhor, como lem- branga dos seus sofrimentos e morte por éles. Cumpria-lhes ceiebrá-la sempre, até que Éle, o Senhor, voltasse.

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E Paulo acrescenta um solene aviso a essa impressionante narracáo da orígem do sacramento: "Por isso, aquéle que comer o pao ou beber o cálice do Senhor, indignamente, será réu do corpo e do sangue do Senhor". O que Paulo quer dizer é que aquele procedimento vergonlioso dos corintios, atrás referido, era verdadeira profanacáo désse festim sa- grado: era uma demonstracao de que nao viam no mesmo um memorial da morte de Cristo; era um insulto ao corpo e ao sangue do Senhor, sim_bolizados nos elementos da Ceia. Paulo nao visa, com esta advertencia, afastar da Santa Ceia pessoas indignas. Algumas vézes isto pode ser necessário, mas é erro introduzir agora essa idéia, que o apostólo nao tem na mente. O resultado dessa interpretacáo errónea de suas palavras tem dado lugar a que multas pessoas inocentes se afastem da mesa do Senhor e motivado perplexidades desnecessá- rias. Paulo nao está discutindo o caráter pessoal dos par- ticipantes da Ceia, mas o modo como se conduzem durante sua celebracáo. É como acertadamente declarou um dos an- tigos intérpretes das Escrituras: "A indignidade dos partici- pantes é uma coisa; a maneira indigna da participacáo é ou- tra muita diferente" ("alia est indignitas edentis, alia esus"). Muí tos julgam que, pelo fato de a consciéncia acusá-los de faltas, nao convém aproximarem-se da mesa do Senhor. Mas saibam que, por maiores que sejam essas faltas, todos sao benvindos á mesa, se a ela se chegarem verdadeiramente ar- rependidos e desejosos de reencetarem uma vida de consa- gracáo e santidade. Nao era o intento de Paulo causar de- sassosségo as consciéncias delicadas e sensíveis. O que pro- curou corrigir foi a grosseria do procedimiento de seus lei- tores, frisando que a celebracáo da Ceia do Senhor nao devia dar lugar a glutonaria nem a bebedeiras.

Hoje em dia muito pouca probabilidade de se darem tais escándalos. Nao obstante, convém acatar a admoes- tacáo do apostólo: "Examine-se o homem a si mesmo" esteja certo da significacáo dessa festa sagrada; certifique-se que está apercebido da grande importancia désse culto, "e assim coma do pao e beba do cálice". É notável que Paulo nao corrige os sérios abusos daquela igreja abolindo a sua "festa de amor", ou impondo a adocáo de vinho fraco, nao fermentado, ou limitando aos clérigos a participacáo do vi- nho eucarístico, ou ainda tornando menos frequente a comu- nháo; nada disto. Procura antes corrigí-los, advertindo os co-

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mungantes a que considerem cuidadosamente a santidade e a significagáo salvadora da morte do Senhor.

Adianta ainda que semelhantes abusos vinham sendo punidos com doenga e morte entre os membros daquela igre- ja. Qual fósse a verdadeira natureza désse castigo, nao está explicado. Mas afirma que nao era um juízo de Deus, se- melhante aos que ocorrem comumente. Era antes uma dis- ciplina com um propósito definido, qual o de levar os corintios ao arrependimento e á salvacáo final. Os que participassem da Ceia do Senhor deviam examinar-se a si mesmos quanto aos motivos que os levavam áquéle ato e quanto ao estado de seus coracoes. Por ésse exame ou iulgamento íntimo livrar-se- iam do julgamento e da disciplina com que o Senhor visita os irreverentes e profanos.

E termina a apreciagáo do caso com uma exortacáo prá- tica. Quando os crentes se reunissem para aquéle repasto em com.um, deviam esperar "uns pelos outros". Se alguém sen- tisse fome, fósse comer em casa, antes de se encaminhar á reuniáo na igreja. Deviam advertir bem que a Ceia do Se- nhor nao foi destinada a matar a fome de ninguém, antes a simbolizar uma relacáo espiritual com Cristo. Todos quantos se acercam da mesa sagrada, sentindo sinceramente seus pe- cados e desejando ardentemente novas f oreas espirituais, po- dem aproximar-se sem médo, confiados de que o Senhor, em cuja presenga real estáo chelos de gozo, pronto está para receber a todos, perdoá-los e comunicar-lhes nova vida e re- novada fórga.

I. O EMPRÉGO DOS DONS ESPIRITUAIS. Caps. 12 a 14.

Multa gente de convir que os dons espirituais, a que Paulo se refere em suas cartas, foram certas habilidades tem- porárias e sobrenaturais, concedidas aos primitivos cristáos com o fim de ajudá-los ou assistir a éles na fundagáo da Igreja. Tais dons podem nao existir mais hoje. Entretanto, os prin- cipios ou regras que Paulo apresenta na discussáo désses dons aplicam-se por igual aos talentos cu habilidades na- turais e providenciáis que Deus concede hoje visando ao

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nosso aparelhamento ou adestramento para a propagacáo do evangelho e para a edificagao e extensáo da Igreja.

Deve-se a maneira pela qual o apóstelo discute aqui o assunto as circunstancias especiáis existentes em Corinto. Ésses dons ou habilidades sobrenaturais estavam sendo con- siderados pelos cristáos corintios como fins em si mesmos. Estavam sendo usados para envaidecimento e prazer dos que os possuíam. Os mais vistosos daquéles dons, ou se ja os que mais chamavam atengao sem que ao mesmo tempo fóssem os mais úteis, eram os mais valorizados pelos corintios; daí o exercício désses dons provocar invejas, envaidecimento e divisoes. Com o fito de corrigir ésses abusos, Paulo mostra, no cap. 12, que o propósito dos dons espirituais é a edifica- gao da Igreja. No cap. 13 indica o amor como elemento que dirige ou orienta o exercício désses dons. No cap. 14 mostra que o valor relativo déles afere-se pelo grau de sua utilidade á Igreja.

1. O propósito dos Dons Espirituais. Cap. 12.

a. Como aferir as influencias espirituais. Cap. 12:1-3.

1 A respeito dos dons espirituais, nao quero, ir- máos, que sejais ignorantes. 2 Sabéis que, outrora, quando éreis gentios, deixáveis conduzir-vos aos ídolos mudos, conforme éreis guiados. 3 Por isso vos faQO compreender que ninguém que fala pelo Espirito de Deus afirma: anátema Jesús! por outro lado, ninguém pode dizer: Senhor Jesús! senáo pelo Espirito Santo.

O emprégo dos dons espirituais é a terceira questáo re- lacionada com o culto público, apreciada pelo apostólo; das trés é a mais difícil e a de maior importancia. O uso de véu pelas muiheres e uma observancia condigna da Santa Ceia eram matéria de decoro público e diziam respeito á ordem externa do culto na igreja; enquanto os dons do Espirito Santo eram experiéncias sobrenaturais, misteriosas e pes- soais, intimamente ligadas e indispensáveis á vida e ao cres- cimento da Igreja. Comega o apostólo lembrando a seus leitores que, antes de se haverem convertido a Cristo, estive- ram su jeitos a certas fórgas espirituais que os impeliam ao culto dos ídolos. Éstes eram imagens mudas, sem vida e

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indefesas, tais quais os falsos deuses que representa vam. Convertendo-se, porém, os cristáos tinham sido guiados pelo Espirito Santo a prestar culto ao Deus vivo e verdadeiro que, nao sómente podia falar e agir, como por seu Espirito podia conceder aos homens urna capacidade misteriosa de expressáo, assim como, do tesouro de sua graga, liberalizava outras fa- culdades ou talentos, necessários ao servigo de seu Filho.

No entanto, os adoradores daquelas falsas divindades, juntamente com cristáos e judeus, acreditavam que uma pessoa qualquer podia vir a ser possuída de outro espirito além do seu próprio, o qual passava a empregjá-la como seu instrumento, servindo-se para isso das faculdades dessa pessoa, cujos movimentos eram por ele dirigidos. Corinto vivia repleta de adivinhos e sacerdotes que, nao ficando atrás dos apostólos cristáos, proclamavam-se dotados de inspiragáo divina e de poderes sobrenaturais.

Iniciando, pois, sua dissertagáo sobre os dons espirituals, Paulo sentiu a necessidade de sugerir a seus leitores a ma- neira como podiam distinguir entre as manifestagoes do Es- pirito de Deus e o palavrório e extravagancias inerentes- as práticas e crendices dos pagáos. Apresenta um excelente mé- todo de teste dos espirites, a saber, a lealdade a Cristo. Essa lealdade será a característica de toda palavra ou mensagem que provenha do Espirito de Deus.

um segundo teste, de que o apostólo se ocupa a se- guir: o teste ou exame de sanidade. Temos que mencioná-lo aqui porque foi por nao compreenderem a vantagem déste exame que havia tanta confusáo na igreja de Corinto. Os adivinhos ou prognosticadores gregos expressavam a inspira- gáo de que se diziam cheios com um estranho delirio ou fre- nesí. E chegavam mesmo a gabar-se da completa loucura que se apoderava déles. Pronunciavam, entáo, seus oráculos **^tal qual a Pitonisa, escumando e com os cábelos desgre- nhados". Porisso os cristáos corintios inclinavam-se a acre- ditar que, quanto mais a pessoa se alienava ou endoidecia, perdendo consciéncia de si mesma, tanto mais era certo estar sob o poder e influéncia do Espirito de Deus. Ésse érro explica, em parte, por que ésses cristáos foram levados a preferir os dons ou habilidades mais espetaculares, e despre- zar outros mais práticos e mais úteis. Paulo parece Indicar que o Espirito Santo opera servindo-se da mente do crente,

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por Éle esclarecida, de sua visao despertada ou vivificada, e de sua capacidade de raciocinar, sendo que, no caso de ver- dadeira inspiragáo, "os espirites dos profetas estáo sujeitos aos próprios profetas".

Vejamos entáo o primeiro teste ou prova da operagáo do Espirito, de que Paulo se ocupa agora, a saber, a absoluta lealdade a Cristo: ''Ninguém que fala pelo Espirito de Deus afirma: anátema Jesús! por outro lado, ninguém pode dizer: Senhor Jesús! senáo pelo Espirito Santo". "Anátema Jesús" ou "amaldigoado", e "Jesús é Senhor" eram duas exclama- goes contrárias, dois brados inconfundíveis e inconciliáveis que se erguiam dos dois lados em que a sociedade humana se dividía os fiéis e os infléis, os cristáos e os pagaos e eram dois infalíveis sinais: o primeiro, da atuagáo do espirito do mal; o outro, indicio certo da influencia do Espirito de Deus. A primeira exclamagáo, quem sabe? talvez partisse de um individuo qualquer, todo agitado, a tremer, inimigo da cruz, que um dia penetrou na assembléia dos cristáos para perturbá-los. Mas, fosse qual fósse a causa de sua alu- cinagáo, procedesse de onde procedesse o espirito de que estava possesso, o fato é que nao podia ser um agente do Espirito Santo. Por outro lado, por mais humálde que fósse o cristáo, por mais obscura que fósse a sua condigáo na igreja, e por mais comuns que fóssem os seus dotes espirituais, era um verdadeiro instrumento do Espirito de Deus se, humilde mas sinceramente podia confessar "Jesús é meu Senhor!"

O valor desta doutrina, nos dias que correm, é inestimá- vel. Há, hoje, multas experiencias e dons que se dizem es- pirituais, aos quais se deve aplicar o teste ou exame de sa- nidade crista. Sem dúvida que o Espirito Santo pode falar aos seguidores de Cristo e Ihes comunicar talentos ou habi- lidades necessários ao servigo de Deus. A sua influencia devem ser atribuidos impulsos misteriosos e frequentes, e ao seu poder, o éxito de muitos trabalhos evangelísticos. To- davía, ésses dons, impulsos ou orientagoes que se supoem procedentes do Espirito devem ser sempre submetidos a pro- vas e justificagoes no tribunal da razáo e do senso-comum. Quanto mais alguém estiver sob o poder do Espirito Santo, tanto mais suas faculdades mentáis e seu poder de raciocinio estaráo atívos e vígUantes.

De sorte que a atitude que alguém mantiver para com Cristo deverá servir de critério no julgamento do seu estado

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espiritual. Ninguém, por mais culto que for, por maiores que puderem ser os seus predicados pode com justica ser cha- mado espiritual ou piedoso, se blasfema de Jesús Cristo.

Evidencia-se, entáo, déste ensino do apostólo, que o Es- pirito Santo está de continuo presente em cada seguidor de Cristo. Sem o seu poder ninguém com sinceridade chega a confessar a Jesús como Senhor. Se o crente é capaz de fazer tal confissáo, deve ter isto como consoladora prova de que o Espirito Ihe comunicou nova vida e está disposto a tomá-lo como seu instrumento na edificagáo da Igreja de Cristo.

Além do que, nao se deve julgar a espiritualidade dos obreiros cristáos pelas aparéncias. Os dons naturais, é ver- dade, variam de pessoa para pessoa. Popularidade, elogios algumas vézes sao conquistados por individuos cuja vida es- piritual é precária e ilusoria. A verdadeira prova é a devocáo a Cristo. E na maioria dos casos, aqueles que se devotam a seu Salvador vivem incógnitos, seus esforcos e suas lutas por Cristo quase nao aparecem, nao sao corihecidos. Contudo, a consagracáo déles ao servigo de seu Senhor é um fato. Nao nenhuma dúvida que tais pessoas vivem chelas do Espi- rito Santo.

b. Os Dons sao Diversos. Cap. 12:4-11.

4 Ora, os dons sao diversos, mas o Espirito é o mesmo. 5 E também diversidade nos servidos, mas o Senhor é o mesmo. 6 E diversidade ñas realiza- qoes, mas o mesmo Deus é quem opera tudo em tocios. 7 A manifestagáo do Espirito é concedida a cada um, visando um fim proveitoso. 8 Porque a um é dada, me- diante o Espirito, a palavra da sabedoria; e a outro, segundo o mesmo Espirito, a palavra do conhecimen- to; 9 a outro, no mesmo Espirito, fé; e a outro, no mesmo Espirito, dons de curar; 10 a outro, opera?5es de milagres; a outro, profecia; a outro, discernimento de espíritos; a um, variedade de línguas; e a outro, capacidade para interpretá-las. 11 Mas um e o mesmo Espirito realiza todas estas coisas, distribuindo- as, como Ihe apraz, a cada um, individualmente.

Os dons concedidos á Igreja de Corinto foram muitos e variados, mas todos oriundos de uma fonte divina e destina-

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dos ao bem comum dos fiéis. Por consegulnte, haviam todos de ser considerados dons de Deus, e tinham de ser usados com sabedoria, segundo a intengáo de quem os concedia, que era o bem geral da igreja e dos estranhos a ela.

Indicando a Orígem divina désses dons, Paulo menciona Deus o Pai, Deus o Filho, e Deus o Espirito Santo, as tres pessoas da Trindade Augusta, como um Deus, iguais todas elas em sua esséncia e nos seus atributos. A cada pessoa da Trindade ele associa um aspecto désses dons espirituais. Quanto á natureza e á sua orígem, sao concessoes da graga divina, sao talentos ou habilidades. Quanto ao seu fim ou propósito, sao "ministérios" destinados a servir, a ajudar e a fortalecer a igreja. Quanto aos seus efeitos, sao operagoes ou manifestacoes de poder divino.

Constituem ésses dons uma unidade, apesar de sua va- riedade, e isto em razáo de procederem de uma fonte única, e também pelo fato de a palavra "diversidade" também sig- nificar ''distribuicáo", ou, como Paulo acrescenta, cada qual é u'a manifestacáo do Espirito. A unidade existe ainda pelo fato de todos servirem a uma finalidade comum, que é a prcmogáo do bem ou dos interésses da igreja. "A manifes- tacáo do Espirito é concedida a cada um, visando um fim proveitoso".

Sendo dons espirituais, por tanto, nao se destinam ao uso particular com que se envaidecam os seus possuidores; e, sim, ao aproveitamento de todos os fiéis.

Em seguida Paulo enumera ésses dons. É lícito supor que éles podem ser divididos em trés classes. Nao nada de fantasía nisto, como alguns declaram. A primeira classe estarla associada particularmente com o intelecto; a segunda, com a vontade; e a terceira, com as emogoes. A palavra da sabedoria e a palavra do conhecimento sao faculdades por Deus concedidas; aquela diz respeito a descobertas ou pes- quisas, e esta refere-se a aplicagoes práticas da verdade. É de notar que ambas encabegam a lista dos dons, como sendo os mais importantes, todavía para os corintios eram os úl- timos^ os de menor valia. Acreditavam éles que, quanto mais a razáo e a consciéncia enfraqueciam ou deixavam de fun- cionar, tanto mais o Espirito operava no individuo. Mas o apostólo indica o contrário: os dons mais excelentes eram

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exercidos em paralelo e na mesma intensidade com que a razáo e a inteligencia funcionassem.

Entre os dons que se relacionam de modo especial com a vontade, Paulo menciona a fé. Naturalmente nao quer sig- nificar a "fé salvadora", porque esta nao é um dom especial, antes é comum a todos os fiéis. A salvadora é a raiz mesma da vida crista; nao é um de seus frutos. O que ele, pois, refere aqui é aquela "firmeza em Deus", aquelas "ou- sadia heroica", aquela que "transporta montanhas". Esta, sim, é produzida pela presenta e pelo poder do Espirito Santo no coragáo.

A seguir vém os dons de curar, que entendem com a mi- raculosa habilidade de curar diferentes classes de doengas, Também alude a "operacoes de milagres", com o que prova- velmente indica o poder de ressuscitar mortos, de expulsar demonios, de infligir castigo aos adversários da fé, de que o apostólo dera exemplo em suas viagens missionárias.

Quanto ao dom de profecía e o outro de discernimento de espíritos, Paulo se refere, antes do mais, a uma capacidade miraculosa de expressáo, visto como, segundo alguém disse, "a profecía nao nasce de uma resolugáo ou de reflexáo pró- pria do profeta, senáo de um poder que independe déle, poder que se assenhoreia do seu espirito e indú-lo a falar de modo a impressionar vivamente es ouvintes". Entretanto, como é fato existirem falsos profetas no meio dos verdadeiros, ha- via o dom correlato ao de profecía, ésse de "discernir" espíri- tos, o qual consistía na habilidade de se descobrir, para pro- veito da igreja, se alguém, declarado profeta, era dirigido por qualquer mau espirito, ou se era inspirado por Deus.

No final da lista vem o dom de línguas e o outro, de "interpretagáo de língua". Tem havido multa especulagáo em torno da natureza des tes dois últimos. É de todo provável que o dom de línguas, aqui mencionado, nao era idéntico ao que se manifestou no Dia de Pentecostés. Provavelmente nao consistía na capacidade de falar línguas conhecidas; era antes uma "influencia ou fórga superior, sobrehumana, que empolgava e emocionava profundamente", e capacitava o in- dividuo a "orar, cantar, ou dar gragas numa linguagem extática e ininteligível aos que nao estivessem dominados da mesma emocáo". Néste caso o dom em aprego entende

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própriamente com os sentimentos ou emogoes, e pouco in- teressa o intelecto ou a vontade, os quais durante o tempo de sua manifestagáo, ficam suspensos ou inativos.

As emogoes que fóssem causadas pura e simplesmente pelo Espirito e expressas em fala ou discurso misterioso, podiam ser compreendidas por alguém posto, pelo mesmo. Espirito, em comunháo mental com o que falasse. Seria entáo necessário que alguém, assim capacitado, interpretasse o que se tinha dito. O Espirito habilita va-o a traduzir em linguagem clara e corrente as expressoes extáticas de quem possuisse o dom de línguas.

É notável como Paulo coloca no último lugar os dons a que os corintios davam prim.azia e m.ais cobigavam. Os mais emocionantes, espetaculares, estavam muito longe de ser os mais úteis á igreja, para sua edificagáo. Nao devemos con- siderar estes dons como variadas aptidoes naturais, senáo como verdadeiras habilidades sobrenaturais. Pode acontecer que hoje Deus nao os conceda mais aos crentes, todavía, em compensagáo, vários e variados talentos que Éle concede aos que seguem a Cristo. Ésses talentos tém, igualmente, sua orígem comum na munificiéncia providencial de Deus; sua finalidade é também comum servir á Igreja. O fato de provirem de Deus e de ser uma a sua finalidade deve afastar dos que os possuem toda vaidade e orgulho e fazé-los sentir sua imensa responsabilidade em procurar o bem co- mum, o proveito geral da Igreja.

c. A Unidade da Igreja. Cap. 12:12-31.

12 Porque, assim como o corpo é um, e tem muitos membros, e todos os membros, senáo muiíos, consti- tuem um corpo, assim também com respeito a Cris- to. 13 Pois. em um Espirito, todos nós tomos bali- zados em um corpo, quer judeus, quer gregos, que escra- vos, quer livres. E a todos nós fci dado a beber de um Espirito. 14 Porque também o corpo nao é um membro, mas muitos. 15 Se disser o pé: rorque nao sou máo, nao sou do corpo; nem por isso deixa de ser do corpo, 16 Se o ouvido disser; Porque nao sou dliio, nao sou do corpo; nem por isso deixa de o ser. 17 Se todo o corpo fósse ólho, ,onde estaría o ouvido? Se todo fósse ouvido, onde o olfato? 18 Mas Deus dispos es

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membros, colocando cada um déles no corpo, como ine aprouve. 19 Se todos, porém, fossem um membro, onde estaría o corpo? 20 O certo é que muitos membros, mas um corpo. 21 Nao podem os olhos dizer á máo: Nao precisamos de ti; nem aínda a ca- beca, aos pés: Nao preciso de vós. 22 Pelo contrarío, os membros do corpo que parecem ser mais fracos, sao neeessários; 23 e os que nos parecem menos dignos no corpo, a estes damos muito maior honra; também os que em nós nao sao decorosos, revestimos de especial honra. 24 Mas os nossos membros nobres nao tém ne- cessidade disso. Contudo Deus coordenou o corpo, con- cedendo muito mais honra áquilo que menos tinha, 25 para que nao ha ja divisáo no corpo; pelo contrário, cooperem os membros, com igual cuidado, em favor uns dos outros. 26 De maneira que, se um membro sofre, todos sofrem com ele; e, se um déles é hon- rado, com ele todos se regozijam. 27 Ora, vós sois cor- po de Cristo; e, individualmente, membros désse corpo. 28 A uns estabeleceu Deus na igreja, primeiramente apostólos, em segundo lugar profetas, em terceiro lu- gar mestres, depois operadores de milagres, depois dons de curar, socorros, governos, variedades de iinguas. 29 Porventura sao todos apóstolos? ou profetas todos? sao todos mest«res? ou operadores de milagres? 30 Tém todos dons de curar? falam todos em outras Iinguas? interpretam-nas todos? 31 Entretanto, procura!, com zélo, os melhores dons. E éu passo a mostrar-vos aínda um caminho sobremodo excelente.

A grande diversidade de dons concedidos aos crentes nao discrepava da unidade da Igreja; pelo contrário, assegurava- Ihe essa unidade, visto como cada urna daquelas aptidoes se destinava a prestar um servico que era necessário á vida comum da Igreja e ao seu crescimento. Para ilustrar esta im.portante verdade Paulo emprega a conhecida figura ou parábola do corpo humano. Os escritores gregos tinham-na usado com frequéncia, referindo-se ao Estado ou "corpo po- lítico". É de muito efeito o seu emprégo aqui pelo apostólo.

A Igreja é o corpo espiritual de Cristo. De fato, Paulo chega a avanzar mais: identifica a Igreja com Cristo: "Assim como o corpo é um, e tem muitos membros, e todos os mem.bros, sendo muitos, constituem um corpo, assim tam- bém com respeito a Cristo", v. 12. Nao se podia declarar, com maior énfase, a unidade da Igreja Crista, como o faz o apostólo, a seguir: "Em um Espirito todos nós fomos batizados em um corpo, quer judeus, quer gregos, quer escra-

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VOS, quer livres. E a todos nós foi dado a beber de um Espirito", V. 13. Até mesmo certas distincoes, aparentemente insuperáveis, existentes no mundo antigo, como a que havia entre judeus e gentíos, entre escravos e livres, desaparece- ram todas sob o influxo do Espirito de Deus, formando todos os cristács um corpo pela influencia do mesmo Espirito, que os levava a participar de uma vida comum.

Muita gente, hoje em dia, emprega a frase ''batismo do Espirito" para indicar uma nova experiencia que é possivel vir depois da conversáo, ou para expressar novos aumentos de peder espiritual. É provavelmente mais biblico definir tais experiencias com estoutra expressáo "Encher-se do Espiiito". Pode a pessoa "encher-se" multas vézes, porém batizar-se com o Espirito Santo isto pode ocorrer uma vez na vida do individuo. O batismo é essa atividade inicial do Espirito Santo, pela qual o crente é levado a unir-se ao corpo único e indivisível de Cristo, a saber, a Igreja Crista, á qual todos os cr entes pertencem.

Paulo mostra que a Igreja é um organismo vivo, tal qual o corpo humano. Muitos sao os seus membros, mas cada qual é necessário á vida e ao bem-estar de todos os demais. Perder qualquer um déles é mutilar o corpo.

Deve ser lembrado que o apostólo está encarando um problem.a particular daquela igreja. Os corintios exageravam a importancia de certos dons espirituais, particularmente o de falar linguas. Os que nao possuíam. ésses dons mais am- bicionados eram tentados a ficar descontentes e a privar a igreja dos seus servicos, que, se nao davam tanto ñas vistas, também nao deixavam de ser necessários como os outros. Por outro lado, os que possuiam ésses dons de m.aior sen- sacáo inclinavam-se a monopolizar os lugares de mais evi- dencia ñas reunioes da igreja, humilhando assim e afastando os outros, que nao podiam competir com éles em tanto brí- Iho e importancia.

Paulo, pois, corrige essas faltas empregando a parábola do coi-po. Quáo absurdo seria um membro, digamos, o ou a máo, recusar-se a funcionar, a agir, como se nao per- tencesse ao corpo, porque sua funcáo diferia da funcáo de outro. Pois é igualmente absurdo um m.embro da igreja invejar o dom que nao tem e recusar prestar á igreja o ger- vigo que está em suas fórcas realizar.^ Vs. 14-20.

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A segunda falta é rematada loucura. Um órgáo do corpo nao pode despiezar os outros, declarando nao precisar déles, porque todos, formosos ou nao, sao partes integrantes do corpo, dependendo a saúde déste da funcáo regular de cada um. É estulticia, igualmente, qualquer membro da igreja desprezar outros menos aquinhoados, supondo que sua pró- pria vida espiritual nao vai sofrer se ele continuar menos- cabando os que brilham menos, ou os que sao menos admi- rados do que ele. Vs. 21-25.

É obvio que vale a pena aplicar estes principios á Igreja de hoje. Mostram-nos éles que é tolice invejarmos os dons que nao temos, ou desdenharmos dos que nao tém os nossos. O apostólo que deixar bem gravada sua doutrina, de modo que, no resto do cap., menciona de novo os vários dons do Espirito, reforjando assim a mesma licáo para os leitores.

A nova lista de dons difere algo da apresentada nos vs. 8-10. Agora a ordem nao é ditada pela natureza íntima déles, de modo a se relacionarem com o intelecto, com a vontade ou com as emogoes, mas atende antes á importancia relati- va déles na obra e na edificagáo da Igreja. Na dianteira vém os "apostólos", comissionados diretamente por Cristo e incumbidos da suprema tarefa da fundagáo da Igreja. Em. segundo lugar, os "profetas", que recebiam revelacoes da parte de Deus, e cujo ministério era itinerante, entre as igre- jas. Terceiro, "mestres", que expunham a doutrina do evan- gelho, explicando-a e aplicando suas verdades á vida prática. Seguiam-se ministérios menos importantes, como o da ope- ragáo de "milagres", relacionando-se estes particularmente com a cura de doengas físicas; "socorros", que ministravam aos pobres e órfáos, aos enfermos e estrangeiros, ajudando-os em suas necessidades; "govemos", aqueles que se encarrega- vam própriamente dos negocios eclesiásticos. Em último lugar, como de menor importancia, vinha "variedades de línguas".

Esta ordem, em que sao novamente apresentados os dons espirituais, deve ter valido como censura aos corintios, pelo desacato com que tratavam Paulo, desdenhando de seus dons e enaltecendo, quais criancas, a aptidáo espetacular de falar línguas. Quando o apostólo declara que todos éles sao concessoes soberanas de Deus, quer com isso ensinar que ninguém deixa de ser necessário á vida da igreja, por menor

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que seja o dom que recebeu. Vs. 26-28. Éstes ensino é aiiida reforcado por nova enumeracáo dos dons, agora em forma de perguntas: Como foi que Deus os distribuiu? Deu-os todos a cada pessoa? Absolutamente nao, porque, se o fizesse, cada membro seria completo em si e seria independente dos ou- tros. Dar-se-ia neste caso a destruicáo do próprio corpo. Paulo, pois, frisa esta segunda verdade: nenhum membro da igreja se basta a si mesmo, por mais importantes que sejam suas aptidoes. Vs. 29-30. Fica, portanto, bem esclare- cida a dependencia mútua dos membros da igreja, em vista dos seus diferentes dons e talentos, assim como nao resta mais dúvida quanto ao dever de cada um exercer com fide- lidade o seu, seja éste qual fór.

Paulo, no entanto, termina esta dissertagáo exortando seus leitores a que procurem, zelosamente, "os melhores dons". Mas, se éles sao dádivas soberanas de Deus, como afirmou, esta excrtacáo pode ter o seguinte sentido: Aca- tando, valorizando os dons recebidos e usando-os com fideli- dade, os crentes podem assim ficar habilitados a receber maiores aptidoes e se tornaráo mais úteis no exercício da- quelas que possuem. Provavelmente Paulo, com isso, quer se referir aos "dons melhores" da profecía e do ensino (mes- tres), com os quais se ocupará adiante, cap. 14. Antes, po- rém, vai fazer uma pausa, para referir, numa imortal passa- gem sua, o "caminho sobremodo excelente", ou seja o mé- todo de conseguir e exercer todos os dons proveitosamente é o caminho ou o método do amor, cap. 13.

2. O Método do Amor. Cap. 13.

A incomparável passagem de Paulo a respeito do "ca- minho" ou método de exercer os dons espirituais é táo su- blime e arrebatadora em sua substancia, foi escrita com tanto ritmo e poesia, que se tornou conhecida como "Hiño ao Amor". Alguns se surpreendem com o fato de haver Paulo escrito esta passagem,"sendo ele quem era. Mas isto apenas revela que nao compreendem o apostólo. Pois o Paulo que conhecem é o escritor sagaz de inteligencia, inexorável na lógica, severo, frió, insensível e austero. Entretanto o ver- dadeiro Paulo era também um homem de emocoes profun-

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das, de verdadeira sensibilidade, devotado aos amigos, hu- mano, compassivo, terno até as lágrimas. Se nao soubesse

simpatizar, se fósse incapaz de sentir afeicoes, nunca teria ,

conquistado, como conquistou, a admiracáo de multidoes, nem I

teria podido compor a maicr poesia lírica que éste mundo |

viu, éste cap. 13 de sua primeira Carta aos Corintios. t

Outros nao tém podido atinar com a razáo de ter sido esta passagem escrita pelo "apóstolo ou campeáo da fé", e nao pelo "apostólo do amor", Joáo evangelista. Deve ser lembrado, no entanto, que nao havia antagonismo entre éles ^ dois; cada qual podia escrever sobre uma ou outra das re- feridas virtudes, para Ihes frisar a importancia, e por isso é que Joáo também escreveu sobre a "vitória que vence o mundo, a nossa fé", e Paulo, por seu lado, chegou a fazer aquela afirmacáo profunda, de sentido vasto: "O amor é o cumprimento da lei".

Com efeito, Paulo apresenta-nos agora o amor como vir- ¡ tude ou graga, e náo como aptidáo ou dom espiritual. ' considerou as "línguas", a "profecia", as "curas" e outros miraculosos dons concedidos á Igreja Primitiva. Agora vai j mostrar o caminho, o meio de usar ésses dons e, déste modo, i como aproveitar a vida crista em todos os seus aspectos e em toda a sua plenitude.

A virtude, considerada aqui, náo é o amor para com Deus, que é a mais elevada forma de amor. Náo é o amor para com os que nos sáo caros, o que seria mera emogáo, egoística e sensual. Mas é a atitude do coracáo e do espirito que devemos cultivar para com a humanidade inteira. Se o empolgante discurso de Paulo em torno desta virtude fór con- siderado como hiño, pode ser dividido em trés estrofes, corres- pondendo á necessidade, á natureza e á perenidade do amor.

a. O Amor é Indispensável: Cap. 13:1-3.

1 Aínda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se náo tiver amor, serei como o bronze que soa, ou como o címbalo que retine. 2 Aínda que eu tenha o dom de profetizar e conhe^a todos os místérios e toda a ciencia; aínda que eu tenha tamanha ao ponto de transportar montes, se náo tiver amor, na-

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da serei. 3 E aínda que eu distribua todos os meus bens entre os pobres^ e aínda que entregue o mea próprío corpo para ser queimado, se nao tíver amor, nada dísso me aproveitará.

Antes de mais nada, o amor é absolutamente indispensá- vel. Paulo mostra-o em relagáo com o exercício dos "dons" espirituais, e é ainda indispensável o amor em qualquer das atividades e relagoes da vida. Para os cristáos corintios o dom mais apreciável, devido á sensagáo que produzia, era o de "línguas", a habilidade de ficar em éxtase e emitir pa- lavras compreendidas por aqueles que tivessem o dom correspondente da interpretagáo. Ainda que alguém possuísse ésse dom, a mais sublimada forma de linguagem, e falasse as "línguas" que foi concedido algumas vézes aos homens falar, ou mesmo as línguas dos anjos, a própria linguagem do céu, se nao fósse animado pelo amor, seu discurso seria apenas um barulho sem sentido, ''como o bronze que soa, ou como o címbalo que retine".

Os cristáos corintios corriam o risco de produzir pala- vrórios sem sentido por causa do espirito de partido, de ciúme e vaidade prevalecente no meio déles. Mesmo hoje, certos prégadores e defensores da fé, embora eloquentes, al- gumas vézes, no púlpito, se esquecem da simpatía crista, da cortezia, do amor, de modo que suas prégagoes sao rispidas, estridentes, metálicas. Perdem com isso sua utilidade e seu poder de persuasáo.

Do mesmo modo, se alguém tivesse o dom de profetizar, essa capacidade especial de interpretar as verdades mais pro- fundas e mesmo de predizer acontecimentos; e ainda que, para exercer ésse dom, fósse capaz de compreender todos os "mistérios" da revelagáo divina, e possuísse toda a "ciéncia" déles; ainda mesmo que tivesse o dom da que opera mi- lagres, ésse poder que nosso Senhor referiu como capaz de remover montanhas; se tivesse tudo isso mas sem a inspi- ragáo do amor, seu caráter cristáo seria falho.

Pode acontecer, hoje, alguém possuir o conhecimento da verdade divina, aer hábil na exposigáo das Escrituras e demonstrar a mais firme em Deus, e ainda carecer de amor. Néste caso nao será um exemplo de vida crista; nao é nada.

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Mais ainda: pode alguém ser caridoso, ao ponto de dar aos pobres tudo quanto possua; pode deixar-se arrastar á fogueira, como mártir da fé; se nao fór animado pelo amor, nenhum galardáo recebará. Sua caridade poderá ter nascido da esperanga de recompensa ou louvor, do desejo de ser visto; a morte no fogo pode ter sido motivada por mero fanatismo, pela ambigáo de ser considerado santo, por obstinagáo ou soberba.

Paulo emprega uma énfase admirável nestas frases su- cessivas, em que acentúa a inutilidade da profecía e da fé, da caridade e do sacrificio da vida, a menos que o motivo de tudo se ja o amor. O dom de línguas nao quer dizer nada. A influencia da profecía ou da nenhum valor tem. A oferenda dos dons, e até o martirio, nao garantem nada. Para que a vida, em qualquer de suas esferas, tenha valor, proveito ou significagáo, é de absoluta necessidade que seja informada pelo amor. Sem o amor nenhum dom poderá ser exercido de modo próprio, nenhum talento poderá ser bem empregado. Sem ele a profissáo da crista nao passa de pretensáo, o servigo na igreja é infrutífero. Sem ele todas as relagoes da vida sao imperfeitas, toda as suas atividades carecentes de motivo, fúteis e ocas. No sentido mais pro- fundo, deixar de amar é deixar de viver, é extinguir-se.

b. Como se manifesta o Amor. Cap. 13:4-7.

4 o amor é paciente, é benigno, o amor náo arde em ciúmes, nao se ufana, nao se ensoberbece, 5 nao se conduz inconvenietemente, nao procura os seus iníerésses, nao se exaspera, nao se ressente do mal; 6 nao se alegra com a injusti^a, mas regozija-se com a verdade; 7 tudo sofre, tudo eré, tudo espera, tudo suporta.

Pode ser difícil definir o amor; discerní-lo ou descobrí-lo é que nao o é. Paulo nao ensaia nenhuma definigáo, análise ou'descrigáo déle. O que faz é tragar-lhe os movimentos, a agáo. Mostra o que o amor faz e senté, assim também o que foge de fazer. Recorda os modos pelos quais se manifesta. E enquanto faz isso, vai aplicando essas manifestagoes do amor ao caso concreto que tem diante de si, isto é, vai pro-

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curando a solugáo de um problema particular, qual seja o dos corintios. É no interésse dessa igreja que ele escreve, Igreja conturbada e dividida exatamente pelo modo como encara seus dons espirituais e como os exerce ou emprega.

Paulo disse que, sem o amor, de nada servem os dons. Mostra, agora, como haveriam de pensar e proceder os seus possuídores se fóssem animados pelo amor. demonstrou que o amor é indispensável; agora é a vez de mostrar que é reconhecível ou iniludível. Que é necessário, o declarou; vai agora revelar sua insigne beleza, sua intrínseca excelen- cia e seu encanto. Nao é do amor como abstracáo que o apostólo escreve; nem é sua pretensáo fornecer um sumário completo de suas qualidades ou elementos. Nao obstante, o que ai expende é o mais perfeito panegírico do amor que se escreveu. Embora procure apenas sanar as discordias, divisoes e lutas que agitam a igreja de Corinto, demonstra, como nenhum escritor antes nem depois jamáis conseguiu, o de que é capaz o amor se Ihe derem permissáo de governar os coragoes, os lares, quaisquer ajuntamentos de pessoas, igrejas, seja qual fór a comunidade, em qualquer lugar do mundo. Em quinze frases de beleza incomum o apostólo, em traeos bem vivos, descreve como opera um principio ou re- gra que tem poder para transformar toda a vida humana.

"O amor é paciente (sofre), é benigno". Em duas curtas sentencas está descrita a esséncia do amor, ou em que con- siste sua operagáo. Éle nos faz pacientes no sofrer o mal, ativos no conferir béncáos. O mal a que se faz referencia ai é o que decorre da provocacáo e da injúria. O amor é magnánimo em suportar ésses maleficios. Nao permite que a amargura e a ira operem. Tem firmeza de ánimo em sofrer afrontas. Nao guarida a ressentimentos. Perdoa nao sómente sete vézes, mas setenta vézes sete.

Nao paga o mal com outro mal. É benigno. Nao é meramente passivo; está ativamente ocupado com fazer o bem. Usa de finezas. Seu espirito benévolo está expresso numa conhecida regra do bom viver: "Por esta vida passarei esta vez. Assim, pois, todo o bem de que sou capaz, todo obséquio que puder dispensar a qualquer ser humano, quero hoje realizar. Nao o deixarei para amanhá, nao o negligenciarei, e por esta razáo: nao passarei por aquí outra vez".

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"O amor nao arde em ciúmes" (náo é invejoso). De si mesmo generoso, nao se deixa ralar pelos talentos de outrem. E se alguma vez for superado por um competidor, nao se irrita, nao se aflige. Nada de ciúme, se o rival levar o premio.

"Nao se ufana". É humilde, nao é presungoso. Nao tem aparatos, nao anseia fazer demonstragoes de seus dons su- periores ou tornar-se alvo de admiragáo imerecida. É isto o amor. Nao é arrogante para com os inferiores nao se ensoberbece. Nunca se torna ridículo por falta de modéstia, por irreverencia, por assumir um aspecto de superioridade, ou manifestar importancia pessoal.

"Nao se conduz inconvenientemente"; é todo cortezia. A arte da polidez nao se aprende sómente em livros de eti- quetas sociais. Brota do íntimo. Inspira-se em simpatía e é orientada pelo acatamento aos sentimentos alheios. Co- mumente é a falta de amor, antes que de ciencia ou de edu- cagáo, que leva aos maus modos, as inconveniencias, as gros- serias. Sem dúvida que nao receita para se fabricar cavalheirismo e cortezia, que nao emanagoes naturais de um coragáo simpático. O amor nao pode ferir, nem causar des- gostos, nem criar situagoes embaragosas. Éle é contrário a toda contenda inconveniente. As dissengoes que transtor- navam a Igreja de Corinto nao eram fruto da cortezia do amor, porque esta, por sua própria natureza, se logo a conhecer e isto na maneira como os cristáos comegam a tra- tar aqueles de quem divergem.

O amor "nao procura os seus interésses". É eminente- mente altruista. Nao é sinal de amor, isso de andar a pessoa insistindo sempre nos seus direitos. O amor é retraído, nao exige precedencia para si, reconhecimento, aplausos, nem mesmo a consideragáo que possa parecer de pleno direito, visto como o amor é mais profundo do que a justiga.

Tem bom humor, é jovial; "nao se exaspera". Nunca o amor é irritável. A facilidade de zangar-se, o mau humor, que se costuma chamar "o vicio dos virtuosos", muitas vézes é o único sério defeito de um caráter que, sem éle, seria excelente. E quando acontece que um caráter excelente se deixa macular tristemente por essa falha, a situagáo da pessoa torna-se deveras lamentável, porque ésse defeito cos- tuma causar indiscrítível infelicidade e sofrimentos. Contu-

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do, um meio excelentíssimo de prevenir tamanho desas- tre: a cura infalível de um temperamento irritável, que se revela na imposicáo da vontade do individuo, na énfase á sua dignidade está em cultivar perseverantemente o amor altruista, que se consagra aos outros.

O amor ''nao se ressente do mal", déle nao faz conta. Acumular no coracao a memoria de maleficios recebidos, de ingratidóes, de queixas, de agravos, de golpes moráis; manter um como registro rigorosamente exato das injúrias sofridas de outrem isso nao sao maneiras do amor inspirado por Cristo. O amor nao somente é capaz de perdoar, como tam- bém de esquecer completamente.

O amor nos faz caridosos para com as faltas e fracassos do próximo. ''Nao se alegra com a injustica", nunca se re- gozija quando os outros váo mal, á maneira de uma desforra. Nao fica satisfeito, no seu íntimo, com as fraquezas mo- ráis, com as maldades ocultas de um rival; nao tem interésse em espalhar más noticias, boatos maliciosos; nao se gloria com a prevaléncia do mal.

"Regozija-se com a verdade". Quando a verdade triunfa, o amor compartilha as suas alegrías. Se quiserem ver ai uma referencia á verdade do evangelho, entáo é fato que o amor se deleita com seu progresso, com sua afirmacáo e de- fesa. Mas se aceitarmos para essa "verdade" outro sentido mais provável, qual seja o oposto de falsidade, do erro, e se considerarmos justica como antónimo de iniquidade, ainda assim vibraremos de júbilo com a vitória do amor. O amor exulta quando a verdade desbarata a calúnia, quando a sus- peita se prova infundada, quando o prejuízo e o mal sao des- feitos, e o direito prevalece. "O amor alegra-se com o bem".

Sempre está pronto a excusar os outros . Cobre com um manto de boa vontade todas as faltas do próximo. Tudo ele "suporta". "Tudo eré", acredita que tudo é bom. Nutre confianca até para com os suspeitos. Capacita-nos a ter no próximo e dar as suas atitudes sempre o mais alto e o melhor sentido. Essa dem.onstracáo de confianca multas vézes traz logo sua recompensa; faz que até nos individuos mais depravados se revelem qualidades boas, virtudes de cuja existencia ninguém suspeitava antes.

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Mas, como se de comportar o amor nos dias maus, quando se perde toda a confianza nos homens, quando aquilo que antes apenas se suspeitara ruim, agora está descoberto, agora paténtela toda a sua maldade, que nao se pode encobrir como se de comportar o amor em siutagoes tais? Mesmo em crises desta ordem o amor nao desespera. Se nao mais esperanza de uma justificagáo para o mal cometido, se ele é notorio e indescuipável o amor ainda tem confianca, ainda é impelido a acreditar na possibilidade de uma reforma, numa rehabilitagáo, e apela para mais uma tentativa, crendo na vitória final. Porque "o amor tudo espera".

E "tudo suporta", sem desanimar, indefesso até ao fim. Paciente, nao apenas por alguns momentos, mas por longos dias, durante anos a fio, quando a esperanza vai vendo sem- pre adiado aquilo que espera, ele, o amor, nao se cansa ja- máis. Sob o fardo pesado de uma prolongada dem_ora ele se firma e sustenta, sempre esperando, com bravura perse- verando e corajosamente suportando.

Sao estas, entáo, algumas das manif estagoes da virtude que conhecemos sob a denominagáo de amor. É difícil de ser imitada, falsificada, ou escondida. É mais desejável que todos os dons, ainda que estes se apresentem com o encanto das maravilhas, com a seriedade dos mistérios, e com a au- réola dos milagres. Mais do que estes, a operag^o do amor contribuí para a unidade e edificagáo da Igreja de Cristo. Sob o seu completo dominio a vida mais obscura torna-se um trepidante manancial de fórga, a prestar servigos e a promover concordia. Pela fórga do amor imperando vito- rioso nos coragoes, Jesús Cristo, ai entronizado, fará que o mundo, aflito e em expectagáo, alcance a idade de ouro e de gloria para a qual está destinado.

c. A perenidade do Amor. Cap. 13:8-13.

8 O amor jamáis acaba; mas, havendo profecías, seráo aniquiladas; havendo línguas, cessaráo; havendo ciencia, passará; 9 porque em parte conhecemos, e em parte profetizamos. 10 Quando, porém, vier o que é perfeito, entáo o que é em parte será aniquilado. 11

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Quando eu era menino, falava como menino, sentía como menino, pensava com menino; quando cheguei a ser homem, desistí das coisas próprias de menino.

12 Porque agora vemos como em espélho, obscura- mente, entáo veremos face a face; agora conhe^o em parte, entáo conhecerei como também sou conhecido.

13 Agora, pois, permanecem a fé, a esperanza e o amor, estes tres: porém o maior déstes é o amor.

O amor é imorredouro. Contrastando com os dons e talentos, que tém seu lugar e sua finalidade no tempo apenas, o amor é uma virtude que por toda a eternidade continuará manifestando seu glorioso poder. Paulo continua tecendo- Ihe louvores e tem agora oportunidade de contrastá-lo, de maneira definida com os dons de profecías de línguas e da ciencia, outorgados que foram para fortalecimento e orien- tagáo da Igreja dos corintios.

No exercício désses dons nao se dispensa o amor, mos- trou-o Paulo, e mais: a posse dos mesmos deve dar ótima oportunidade a espléndidas manifestagoes do amor. Entoa agora nova estrofe do Hiño. Canta o apostólo que esta vir- tude perdurará depois que todos ésses dons virem passar sua oportunidade. "O amor jamáis acaba; mas, havendo pro- fecías, seráo aniquiladas; havendo línguas, cessarao; haven- do ciencia, passará".

''Seráo aniquiladas". Concedamos que os dons espiri- tuais, outorgados á Igreja dos corintios, limitaram-se á Era Apostólica. Ainda que Paulo nao o afirme aqui, essa limita- gao era um fato provável. Pelo menos é certo que ésses dons, exatamente como os houve em Corinto, nao existem mais. Contudo o contraste que Paulo apresenta nao é entre os fatos da Era Apostólica e os do tempo presente, senáo entre os do presente, considerado de um modo geral e incluindo, portanto, a idade apostólica, e os da idade futura que se ini- ciará com a vinda de Cristo. Os dons espirituais foram con- cedidos, na melhor hipótese, apenas para uma época caracte- rizada por sua imperfeigáo, época preparatoria; mas o amor, éste de continuar, de perdurar, será indispensável ainda mesmo "quando vier o que é perfeito".

Seja no tempo, seja na eternidade, o amor nao deixará de existir. É imperecível. "Havendo profecías, seráo aniqui- ladas" — nao porque sejam falsas em si ou nada conformes com a verdade, senáo porque teráo sido perfeitamente rea-

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lizadas e porque, na era vindoura, nao haverá ocasiáo nem necessidade de qualquer dom profético. Mas "o amor jamáis acaba".

"Havendo línguas, cessaráo", nao porém o amor. A fina- lidade do ambicionadíssimo dom de línguas foi apenas pro- duzir um efeito passageiro, e auxiliar na fundagáo da Primitiva Igreja. Mas sua necessidade, hoje, passou, e cer- tamente, no porvir, essa capacidade aparentemente misteriosa de proferir discursos ininteligíveis nao será mais desejada. Contudo, "o amor jamáis acaba".

"Havendo ciencia, passará". Como e por que passará, Paulo o diz com vivacidade e clareza: ao aparecimento de Cristo, o que agora é parcial e imperfeito se desvanecerá, inevitavelmente, diante do perfeito e completo. Toda a nossa ciencia, mesmo a que se concedeu aos primitivos cristáos, gragas a uma especial iluminacáo de seus espíritos, é frag- mentária, temporária, provisoria: "Ha vendo ciencia, passa- rá". Mas "o amor jamáis acaba".

Néste ponto o inspirado compositor acrescenta alguns versos extras a esta estrofe do seu Hiño ao Amor. Com o fim de esclarecer o sentido em que os dons temporários se desva- neceráo, emprega duas comparacoes: o conhecimento infan- til e os reflexos de um espélho. Como sabe todo adulto ajuí- zado, a percepgáo limitada que as criangas revelam das coisas, no devido tempo cederá lugar á compreensáo mais perfeita da idade madura: "Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, pensava como menino; quando cheguei a ser homem, desistí das coisas próprias de menino". O ser humano normal cresce, progride, desenvolve- -se. A mudanga que ésse desenvolvimento acarreta, seia nos modos de falar, se ja ñas íntimas disposigoes, se ja na menta- lidade transformagoes estas que o apostólo mesmo expe- rimentou quando se foi tornando homem é um retrato vivo da transitoriedade dos conhecimentos imperfeitos que hoje temos das coisas, os quais iráo crescendo até atingirem o grau da perfeita madureza, o que se verificará nésse dia alegre da revelagáo de Cristo em sua gloria. Entáo, nossos olhos se abriráo para ver aquilo que é permanente e eterno. O que é do tempo cessará de existir, mas "o amor jamáis acaba".

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Quem náo percebe o significado da segunda comparacáo? A imagem de um rosto amigo refletida num espélho para nós é imperfeita e nao nos satisfaz de modo algum; o que quere- mos é vé-lo face a face, queremos désse rosto ter urna visáo imediata e perfeita! "Agora vemos como em espélho, obs- curamente, entáo veremos face a face". Enquanto a situacáo fór a atual, poderá ser indireta, um tanto imprecisa, a apreensáo das realidades divinas. Esquemas falhos, impres- soes foscas, vagas, sombreadas, reflexos torcidos ou defor- mados — tudo isso contrasta vividamente com aquela in- tuigáo direta, aquéle conhecimento instantáneo e perfeito que haveremos de ter e gozar na gloria futura!

Com referencia a espelhos e seus defeitos, Corinto os conhecia. De fato, cidade antiga, era afamada por seus es- pelhos feitos de metal polido, muito aperfeicoados para aquela época. Nao obstante, por mais fiéis que fóssem as imagens por éles refletidas, nao chegávam a ser nítidas, eram som- breadas, em comparagáo com a visáo direta dos objetos. Assim, o conhecimento que temos atualmente de Deus é de igual modo obscuro, mercé dos mistérios que topamos a cada passo. Hoje vemos "obscuramente", como através de quebra- -cabega ou enigma; logo mais, porém, veremos o Senhor ime- diatamente, sem a interferencia de meios, assim como Éle nos agora. É verdade que jamáis o conhecimento que dÉle tivermos será completo como o seu, mas será conhecimento direto, sem mais a interferéncia de nada, tal qual o seu a nosso respeito. Hoje, o conhecimento que temos de Deus contrasta com o que Éle tem de nós, mas um dia será digno de comparar-se com o conhecimento que tem atualmente de nós: "Agora conhego em parte, entáo conhecerei como tam- bém sou conhecido". O conhecimento de hoje, parcial, pas- sará um dia, mas "o amor jamáis acaba".

Por ser incompleto e parcial ésse conhecimento, nao vamos cair no érro fatal de, por isso, julgá-lo engañoso ou váo ou inútil. Posto que imperfeito, diz respeito a grandes realidades que sáo objeto de nossa e fundamento de nossas eternas esperangas. Por ser imperfeito nao é que nos possa engañar. Aquilo que Deus nos concede deve ser rece- bido com gratidáo, desenvolvido continuamente e usado com sabedoria. Viver k meia-luz désse pouco recebido é a única condigáo de se ficar preparado para receber mais ampios

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conhecimentos e mais claras visoes do pleno dia celestial. Para as nossas presentes necessidades é suficiente.

E ainda: táo imperfeitos sao nossos conhecimentos atuais que nunca se deveráo tornar motivo de tola ufania, de pre- sumida superioridade, de orgulho, de contenda. Com todas as suas limitacoes e imperfeigoes, nao devem nunca dar lugar a ciúmes, vaidades, divisóes e porfías. Por que haveríamos de nos alegrar tanto com elogios a ésses dons temporários, que em breve desapareceráo? Antes cultivemos, demonstre- mos essa virtude que sobreviverá ao tempo, que torna capazes seus possuídores para o mais elevado servigo de Deus.

O que é parcial desaparecerá, mas o que é perfeito con- tinuará sempre triunfante em sua obra "..o amor jamáis acaba".

Com justiga tem-se chamado o amor "a coisa mais im- portante desta vida", e também é a que mais resplandece na gloria do céu. Que de sobreviver aos dons temporá- rios, afirmou-o Paulo; mas agora vai dizer que o amor ultra- passa em importancia as virtudes eternas. Nao supera so- mente as coisas perecíveis; o amor tem supremacía entre aqueias outras que permanecem. Das trés virtudes cardiais do Cristianismo, o amor é e sempre será a principal. "Agora permanecem a fé, a esperanga e o amor, estes trés: porém o maior déstes é o amor". Com esta nota de exultagáo e de plena certeza o apostólo atinge o ápice do arrebatamento, para encerrar o seu hiño belíssimo.

"O maior déstes ..." em que é, entáo, que consiste esta supremacía? Nao, certamente, por ser mais durável o amor do que a f é e a esperanca. Algumas pessoas que tém estudado éste Hiño entendem que o advérbio "agora", usa- do néste último versículo, quer dizer que na era atual per- manecem a fé, a esperanga e o amor, mas na era futura a e a esperanga deixaráo de existir, ficando o amor. Multo pelo contrário, Paulo afirma que os trés váo perma- necer, mas o amor, entre éles, terá preeminéncia. Por que é preeminente o amor, Paulo nao se detem a explicar. No comégo do hiño sugeriu uma razáo: a sem o amor é im- perfeita nao passa de um assentimento frió do intelecto, uma submissáo passiva da vontade, e carece do calor da de- vogáo de que o coragáo é capaz. A esperanga sem o amor

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será egocéntrica, será impura. Mas a verdadeira e a le- gítima esperanga completam-se no amor, verdadeiro e per- feito. O amor é o fim último délas duas, sua *realizagáo plena, seu alvo mais alto, sua meta final. É o mais abengoado fruto da e o maior bem antecipado pela esperanga.

Acresce que, contrastando com a e a esperanga, o amor tem um lado que se inclina para o que é humano. A nos poe em justas relagoes com Deus; a esperanga nos coloca numa atitude correta para com o futuro; mas o amor faz-nos entrar em relagoes perfeitas com os nossos semelhantes. Tem seu valor na vida particular de cada um, mas também apro- veita á coletividade, fortalece a Igreja, faz raiar luz e ale- gría para a térra inteira. Verdadeiramente o amor é o que de maior existe no mundo.

Que necessidade haverá de procurar outras explicagoes para a supremacía do amor, se basta saber que, sobre todas as coisas, o amor participa da própria natureza de Deus? A fé, a esperanga e o amor sao todos imortais, mas o amor é divino. A e a esperanga ajustam nossas relagoes com Deus, mas o amor é da própria esséncia da divindade. Deus nao eré, Deus nao espera, mas Éle ama. O amor é supremo por uma única razáo, a seguinte: "Deus é Amor".

Em conhecermos Deus, em reconhecermos seu amor por nós é que se origina e se firma o amor que a Éle dedicamos e ao nosso próximo. "Amamos porque Éle nos amou pri- meiro". Aqueles que continuamente estudam e pesquisam o amor, para Ihe descobrirem as origens, a natureza e as manifestagoes, esta preciosa sentenga da Primeira Epístola de Joáo fornece a pista que leva ao desejado fim. O próprio Deus nos chama para que empreendamos essa pesquisa e fagamos essa descoberta. Éste incomparável hiño que ai te- mos, da autoría de Paulo, nao foi escrito apenas para deleitar os que apreciam o belo, nem para censurar nossa vida vazia de amor, nem aínda para despertar em nós qualquer senti- mentalismo ou pieguice em face desta virtude crista que é o amor. Nada disto, mas foi escrito para nos incitar á agáo, imediata e constante. A conclusáo inevitável a que chegamos com o estudo déste Hiño é que devemos procurar o amor, com urgencia e sem esmorecimentos, e andar néle, na cer- teza de que é "um caminho sobremodo excelente".

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Tornemos a pesquisá-lo. Nenhum busca ou inquirigáo, nenhuma aventura a que o homem se lance em toda a sua vida será mais nobre, de maior valor, mais compensadora do que esta. Porque no tempo como na eternidade nao haverá nada assim grandioso, nem melhor, nem mais refulgente do que o amor.

3. Os Valores Comparados e o devido emprégo dos Dons Cap. 14.

O dom de línguas é ambicionado, e defendida a sua legi- timidade, por muitos cristáos da atualidade. Se essas línguas sao reais, se o respectivo dom é legítimo e outorgado por Deus, isso é uma questáo de fato que precisa de ser resol- vida com provas. A maior parte das pessoas, porém, está convencida de que nunca houve prova bastante de ser o fe- nómeno em aprégo a manifestagáo de um verdadeiro dom. Créem que se trata antes de uma forma de histeria, de uma experiencia que engaña pelas aparéncias. Em qualquer caso, é bom lembrar que Paulo considera as línguas pelo menos como o último dos dons do Espirito a serem desejados. E viu a necessidade de advertir os cristáos corintios contra o abuso do mesmo e o aprégo exagerado em que o tinham.

O que parece é que o dom em lide nao era idéntico ao que se manifestou no Dia de Pentecostés, pois o que houve naquela ocasiáo foi a capacidade de falar línguas estran- geiras, Hnguas vivas e conhecidas no mundo, e por isso mesmo foram compreendidas pelos que as ouviram. Mas o dom de que Paulo trata agora manifestava-se, sob a influen- cia de um éxtase, na prolagáo de sons que eram enten- didos, nem pela pessoa que falava, nem pelos que a ouviam, a nao ser que um dos presentes, que possuísse o dom de interpretagáo, traduzisse aqueles discursos. Quem daquéle modo falava, fazia-o para Deus. Dominado por emogáo pro- funda, possivelmente orava, cantava ou dava gragas á ma- neira de quem pronunciava palavras, mas sem que ele mesmo entendesse o que dizia.

íntimamente relacionado com ésse dom, havia o outro de profecía. Em ambos os casos quem falava era movido pelo

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Espirito Santo, mas o profeta se dirigía ao povo, fazendo urna revelagáo. Transmitía a todos uma mensagem que Deus Ihe segredara ao coragáo. A predicáo de acontecimentos nao era parte essencial de seu ministério. Podía fazer e deixar de fazer parte de suas mensagens. Mas tudo quanto dizia era em linguagem clara, por todos compreendia. O apostólo vai mostrar agora que o dom de profetizar é muito superior ao de línguas, e instrucoes sobre o exercício de ambos.

Estas instrucoes baseiam-se nos fatos apresentados nos dois caps, precedentes. O primeiro déles mostrou que todos os dons foram destinados á edificagáo da Igreja; o segundo, que todos os dons devem ser exercídos sob a influencia do amor. A finalidade déste cap. 14 é mostrar que o amor ao próximo de influir na escolha de um dom que mais^con- tribua para a edificacáo, e éste é o de profecía, de preferéncía ao de língua, e que o amor de inspirar, igualmente, u'a maneira própría e decente de empregar tanto um como o outro.

a. Profetizar é preferível a falar Línguas. Cap. 14:1-25.

1 Seguí o amor, e procura! com zélo os dons espiri- tuais, mas princijpalmente que profetizeis. 2 Pois quem fala em outira língua, nao fala a homens, senáo a Deus, visto que ninguém o entende, e em espirito fala mistéríos. 3 Mas o que profetiza, fala aos homens, edi- ficando, exortando e consolando. 4 O que fala em ou- tra língua a si mesmo se edifica, mas o que profetiza edifica a igreja. 5 Eu quisera que vos todos falásseis em outras línguas; muito maís, porém, que profetizásseis; pois quem profetiza é superior ao que fala em outras línguas, salvo se as interpretar para que a igreja re- ceba edificacáo. 6 Agora, porém, irmáos, se eu fór ter convosco falando em outras línguas, em que vos apro- veitarei, se vos nao falar por meio de revelagáo, ou de ciencia, ou de profecía, ou de doutrina? 7 É assim que instrumentos inanimados, como a flauta, ou a cítara, quando emitem sons, se nao os derem bem distintos, como se reconhecerá o que se toca na flauta, ou cítara? 8 Pois também se a trombeta der som incerto, quem se preparará para a batalha? 9 Assim vos, se, com a língua, nao disserdes palavra compreensível, como entenderá o que dizeis? porque estaréis como se falás- seis ao ar. 10 sem dúvida, muitos tipos de vozes no mundo, nenhum déles, contudo, sem sentido. 11 Se eu,

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pois, ignorar a significagáo da voz, serei estrangeiro para aquéle que fala; e éle, estrangeiro para mim. 12 Assim também vos, posto que desejais com ardor dons espirituais, procurai progredir, para a edificaeao da igreja. 13 Pelo que, o que fala em outra lingua, ore para que a possa interpretar. 14 Porque, se eu orar em outra lingua, o meu espirito ora de fato, mas a minha mente fica infrutífera. 15 Que farei, pois? Orarei com o espirito, mas também orarei com a mente; cantarei com o espirito, mas também cantarei com a mente. 16 E se tu bendísseres apenas em espirito, como dirá o in- douto o amém depois da tua acáo de grabas? visto que nao entende o que dizes; 17 porque tu de fato dás bem as grabas, mas o outro nao é edificado. 18 Dou gracas a Deus, porque falo em outras linguas mais do que todos vós. 19 Contudo, prefiro falar na igreja cinco palavras com o meu entendimento, para instruir outros, a falar dez mil palavras em outra lingua. 20 Irmáos, nao sejais meninos no juízo; na malicia, sim, sede crianzas; quanto ao juízo, sede homens amadure- cidos. 21 Na lei está escrito: Falarei a éste povo por homens de outras linguas e por lábios de outros povos, e nem assim me ouviráo, diz o Senhor. 22 De sorte que as linguas constituem um sinal, nao para os eren- tes, mas para os incrédulos; mas a profecía nao é para os incrédulos, e, sim, para os que créem. 23 Se, pois, toda a igreja se reunir no mesmo lugar, e todos se puserem a falar em outras linguas, no caso de entra- rem indoutos ou incrédulos, nao diráo porventura que estáis loucos? 24 Porém, se todos profetizarem, e en- trar algum incrédulo, ou indouto, é éle por todos con- vencido, e por todos julgado; 25 tornam-se-lhe rna- nifestos os segredos do coragáo, e, assim prostrando-se com a face em térra, adorará a Deus, testemunñando que Deus está de fato no meio de vós.

Duas razoes Paulo apresenta da necessidade de o amor inspirar a escoiha do dom de profecia, antes que o de linguas. A primeira é a consideragáo que se deve ter aos irmáos, vs. 1-19; a segunda é o deseio de que os incrédulos se convertam, vs. 20-25.

"Diligenciai seguir éste Caminho do Amor que vos acabo de indicar", diz éle. "O resultado será dése j ardes mais e mais os dons do Espirito, particularmente o de profetizar, de preferencia ao de linguas, e isto porque a profecia edifica a todos, ao passo que o de linguas aproveita a quem fala. Quem se externa em lingua desconhecida, é a Deus que fala, e nao aos homens. Ninguém o compreende, embora, em

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seu espirito, fale segredos que da parte de Deus Ihe foram revelados. Mas o que profetiza, fala para edificacáo, anima- gao e conforto de todos. Aquéle pode beneficiar-se, mas éste edifica a Igreja. Ora, eu gostaria que todos vós falásseis em línguas, porém muito mais estimaria que todos profe- tizásseis. Éste último dom de profecia é, portan to, o preferí- vel, a nao ser que a pessoa que fale em línguas se ja capaz de interpretar o que diz para proveito espiritual da Igreja. Que vantagem haveria se eu vos falasse debaixo da influen- cia de um éxtase, se ao mesmo tempo nao juntasse ao meu discurso alguma palavra de sentido claro, palavra de reve- lagáo, de ciencia, de profecia ou de doutrina?" Vs. 1-6.

Como ilustragáo da inutilidade das línguas que nao se interpretam, Paulo emprega duas comparagoes, uma de ins- trumentos musicais, e a outra da linguagem humana: "Se, por exemplo, numa orquestra os instrumentos nao emitirem sons distintos, notas afinadas, como se saberá o que é que se toca? Assim, se a trombeta nao der som claro de se com- preender, quem se aprestará para a batalha? Do mesmo mo- do, as vossas falas espirituais seráo de nenhum proveito se nao forem claras e inteligíveis. O mesmo se diga dos idio- mas: cada qual tem seu sentido, mas se alguém nao entende a língua em que Ihe falam, nenhuma idéia colhe do que ouve. Portanto, se apreciáis e cultiváis os dons espirituais, julgai-os do ponto de vista de sua utilidade e do auxilio que podem prestar". Vs. 7-12.

Insta o apostólo para que, se alguém fala em determina- da língua, ore pedindo o dom da interpretacáo. Poe em relevo a superioridade do culto inteligente sobre o que é me- ramente emocional. E afirma que se ele ora em língua des- conhecida, seu espirito fica inativo, porque nao acompanha o que diz, preferindo ele orar e louvar a Deus com o pensa- mento a sentir meras emogóes. "Se a oragáo é fervorosa, ex- citada e nao inteligível, como pode o incapaz de Ihe inter- pretar o sentido fazé-la sua dizendo Amém á vossa agáo de gragas? Se é sincero tal culto, nao aproveita aos ouvintes. Nao subestimo o dom de línguas, porque eu mesmo o possuo no mais alto grau. Todavía, ñas reunioes da Igreja prefiro falar cinco palavras e ser entendido pelos outros e assim instruí-los, a falar dea mil e nao ser compreendido". Vs. 13-19.

Havia algo de infantilidade no prazer que os corintios sentiam quando estavam naquéles arroubos linguareiros e

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ininteligíveis. Oxalá fóssem meras criancas com relagáo ao conhecimento e á experiencia do mal; no espirito, na ca- pacidade de fazer distincáo entre o útil e o inútil, íossem adultos.

Que vantagem havia naquéles palavrórios extáticos? Nao edificavam os crentes, nem levavam nenhum incrédulo á conversáo. Esta segunda razáo da inferioñdade das línguas, ] comparadas com a profecía, é frisada por uma citacáo do Antigo Testamento. Quando os israelitas, dados ao vicio da ' embriaguez, zombaram da mensagem simples de Deus trans- ! mitida por Isaías, considerando-a apropriada sómente para criangas, o profeta advertiu-os que o Senhor Ihes falaria de outra maneira. Dar-lhes-ia uma licáo pelos labios dos inva- sores e conquistadores assirios. A linguagem déstes expres- saria a condenacáo de Judá. Deus falaria, entáo, retribuindo á maldade de seu povo, numa língua estranha e de estran- geiros, nao para Ihe despertar a fé, senáo para Ihes con- firmar e consumar a incredulidade.

De igual modo, o dom de línguas tinha o mesmo designio fatídico relativamente aos que rejeitavam o simples evange- Iho de Cristo. Nao se destinava a conduzí-los ao arrependi- | mentó, antes confirmava-os na incredulidade, com o que éles tinham de assentir. Ésse fenómeno evocava expressoes do desprézo déles votado á Igreja e as suas mensagens. A pro- fecía, entretanto, destinava-se a reacender os ánimos e a fortalecer a fé. Vs. 20-23.

Ainda para ilustrar essa inferioridade do dom de línguas, Paulo figura uma reuniáo da Igreja, quando todos os miem- bros a um tempo falassem línguas. Suponha-se entáo que um individuo entrasse pela primeira vez alí, sem co- nhecer nada de cristianismo, ou alguém que se obstinasse no erro, náo querendo aceitar a verdade. Qual seria a im- pressao recebida? Náo haveria de pensar que entrara sem o saber numa roda de doidos? Se o dom de línguas fósse o mais importante que um crente pudesse exercer, s^undo o parecer dos corintios, podia o seu exercício, por todos os crentes, redundar em um desastre desta ordem? Por outro lado, suponha-se que todos na reuniáo estivessem profeti- zando, quando entrasse o incrédulo ou alguém que náo pos- suísse qualquer dom. Qual o resultado? Todos o levariam a convencer-se da verdade, todos Ihe esquadrinhariam os sen-

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timentos, os segredos de seu coragáo se revelariam, e ele cai- ria sobre o seu rosto e adoraría a Deus, dizendo: "Na ver- dade, o Senhor está no meio de vós".

Por conseguinte, o dom de profetizar é superior ao de línguas, nao sómente porque, como foi dito, edifica a igreja e interessa a razáo, ao invés de provocar emocoes, mas também porque, como agora se acabou de ilustrar, pode ser exercido com seguranga por toda a igreja, e por causa de resultar na conversáo de incrédulos.

Aplicando estes principios as condigoes atuais, ninguém se sentirá impulsionado a dése jar nem o dom de profetizar, nem o de línguas, mas a procurar um conhecimento mais nítido da relativa importancia das emocoes e do raciocinio na vida e no servico cristáo. É possívei haver muito fervor e excitamento religioso em alguns, nao em muitos, ajunta- mentos de cristáos. A maioria das igrejas precisa orar fer- ventemente por um novo movimento e nova orientagáo do Espirito Santo, para que os que adoram a Deus conhecam algo da paixáo, do gozo, do arrebatamento, da exultagáo, da esperanga triunfante que comumente eram experimentados pelos primitivos cristáos, até mesmo em Corinto.

Por outra parte, se os pecadores tém de ser conquistados para Cristo, o apelo aprecisa ser feito nao as emocoes, como igualmente ao intelecto. Nada de desejar línguas que ninguém entenda; nada de procurar revelagoes prof éticas de verdades que nao se achem ñas Escrituras. O que deve haver é uma solicitude persistente por novas visoes de Cristo e de sua graga, e oragoes incessantes no sentido de o Espirito Santo capacitar para o ministério evangélico homens de zélo e paixáo apostólica, cujas mensagens sejam táo simples que o menos douto as compreenda, todavía táo convincentes, táo sábias, táo lógicas e táo inteligentes que ínter essem os mais cultos e os mais bem informados.

b. Regras para o exercício dos Dons. Cap. 14:26-40.

26 Que pois fazer, irmáos? Quando vos reunís, um tem salmo, outiro doutrina, éste traz revela^áo, aquéle outra língua, e aínda outro interpreta^áo. Seja tudo feito para edificacáo. 27 No caso de alguém falar em

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outra lingua, que nao sejam mais do que dois ou quan- do muito tres, e isto sucessivamente, e haja quem in- terprete. 28 Mas, nao havendo intérprete, fique calado na igreja, falando consigo mesmo e com Deus 29 Tra- tando-se de profetas, falem apenas dois ou tres, e os outros julguem. 30 Se, porém, vier revelagáo a outrem que esteja assentado, cale-se o primeiro. 31 Porque todos podereis profetizar, um após outro, para todos aprenderem e serem consolados. 32 Os espíritos dos profetas estáo su jeitos aos próprios profetas; 33 por- que Deus nao é de confusáo; e, sim, de paz. Como em todas as igrejas dos santos, 34 conservem-se as mulhe- res caladas ñas igrejas, porque nao Ihes é permitido falar; mas estejam submissas como também a lei o determina. 35 Se, porém, querem aprender alguma coisa, interroguem, em casa, a seus próprios maridos; porque para a mulher é indecoroso falar na igreja. 36 Porventura a palavra de Deus se originou no meio de vos, ou veio ela exclusivamente para vós? 37 Se alguém se considera profeta, ou espiritual, reconhe?a ser mandamento do Senhor o que vos escrevo. 38 E se alguém o ignorar, será ignorado. 39 Portanto, meus irmáos, procurai com zélo o dom de profetizar, e nao proibais o falar em outras linguas. 40 Tudo, porém, se- ja feito com decencia e ordem.

Paulo a entender que o principio que determina o va- lor relativo do dom de profecía e o de linguas deve ser apli- cado na justa avaliacáo de todos os outros. Trata-se do principio ou regra da utilidade e da edificagáo. Os dons mais apreciados devem ser justamente os mais úteis á Igreja e ao próximo. A luz déste principio Paulo agora oferece algumas instrugoes práticas relativas ao emprégo dos dons espirituais no culto público. Refere-se de modo especial, pri- meiro ao uso de linguas, vs. 26-28, depois ao exercício da pro- fecía, vs. 29-36, para terminar mencionando a autoridade que tem para dar essas normas reguladoras do exercício de todos os dons, vs. 37-40.

Estas instrugoes especiáis sao necessárias á vista da pro- fusáo de dons existentes na igreja de Corinto. Suas reunioes podiam degenerar em desordem e confusáo, o que seria um perigo. Quando reunidos, cada qual ficava ansioso por de- sempenhar uma parte no culto. Éste queria entoar um salmo de louvor, outro desejava pregar um sermáo, aquéle procurava comunicar uma revelagáo, aqueloutro, em transe, queria prorromper no palavrório de uma língua, e ainda outro

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estava ansioso para nao perder urna oportunidade de inter- pretar qualquer coisa. E todos queriam falar ao mesmo tempo, inclusive as mulheres. Era urna desordem horrível.

Do pior da confusáo eram as línguas as responsáveis, e isto porque vários membros, exuberantes de entusiasmo, que- riam ser ouvidos a um tempo só. Paulo, pois, precisa repe- tir-lhes a sua regra fundamental relativa ao emprégo de to- dos os dons: "Seja tudo feito para edificacáo". Quanto ao emprégo de línguas, determina que apenas tres pessoas, no máximo, se facam ouvir em cada culto. Além disso, o que se disser deverá ser explicado á congregacáo. E se nao houver intérprete presente, guardem siléncio os capazes de falar em línguas. Calados tenham sua própria comunháo com Deus.

Mesmo que se trate do superior dom de profetizar, se- menté duas ou tres pessoas se facam ouvir em cada culto. Se outros profetas estiverem presentes, provem sua inspira- cao julgando, em siléncio, se o que se diz procede ou nao do Espirito de Deus.

Se enquanto um está talando, algum outro, que nao se espera que fale, recebe uma revelacáo, cale-se o primeiro, porque se cada um der, assim, preferéncia a outro, todos poderáo ser ouvidos e todos se beneficiaráo. Ninguém deve alegar que está sendo impulsionado por Deus e que, por isso, nao pode resistir ao desejo de profetizar. Éste dom de pro- fecía está sempre sujeito á vontade do profeta. Se é o caso de uma verdadeira inspiracáo que venha de Deus, o dom será exercido discretamente e com amor fraternal; porque os espíritos dos profetas sujeitam-se a éles. Mas, se aquela segunda revelacáo vier de fato interromper a primeira, e se ésse segundo profeta estiver mesmo inspirado por Deus, te- remos uma confusáo causada pelo Espirito Santo, o que nao se pode admitir, porque Deus nao é de confusáo senáo de paz.

Mulheres casadas nao devem exercer públicamente o dom de profetizar. Paulo teve ocasiáo de corrigir certas anomalías com referéncía á maneira de vestir, e agora men- ciona algurrias inconveniéncias, relativas ao dom da palavra, que surgiram naquela igreja. E o ponto em que se baseia é o mesmo anterior, a saber, o marido é o cabeca da familia, e a mulher é dependente do marido. A autorídade de ensinar na igreja e o exercício público da profecía cabiam aos ma-

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ridos e nao ás mulheres. Estas nem deviam interromper o culto sob o pretexto de fazer perguntas. Se quisessem per- guntar alguma coisa que o fizessem em casa, a seus esposos. Era improprio para mulheres casadas tomarem o lugar de seus maridos no desempenho do oficio de profeta na igreja.

Paulo concluí insistindo com veeméncia na autoridade de suas instrugoes. Se os corintios nao se quisessem submeter a elas, por que motivo seria? pergunta. Por acaso se iulga- vam os inventores do Cristianismo? Era a religiáo de Cristo propriedade exclusiva déles? Nao era antes o Cristianismo que tinha o direito de estabelecer suas próprias regras, suas exigencias, como entendía que fósse de justica? Além do que, acresceríta, a melhor pro va de que alguém é profeta ou de- tentor de outros dons espirituais é o fato de reconhecer, como mandamentos de Cristo, tudo quanto Paulo está escrevendo. Se, entretanto, por motivo de ignorancia, vaidade e rivali- dade, alguém deliberadamente rejeita as instrugoes ácima ministradas, o apostólo recusa-se a discutir com ésse tal. Assuma ele a responsabilidade e as consequéncias de sua ignorancia. "Se alguém, porém, o ignora, ignore", fique ignorante.

Quanto á questáo da relativa importancia das línguas e da profecía, aquelas nao eram para ser preteridas ou des- prezadas, embora se devesse desejar mais ardentemente a pro- fecía. Mas, qualquer que fósse o caso, a grande regra dos cultos na igreja é esta: "Tudo se ja feito com decencia e ordem".

Admita-se que o dom de línguas haja cessado e que o de profetizar tenha visto passar sua oportunidade, contudo as instrugoes e ordens de Paulo a respeito déste assunto encer- ram verdades de valor permanente. Por um lado o pe- rigo de que alguém, no desempenho de seu oficio pastoral, deixe de procurar o desenvolvimento das aptidoes de pessoas que podem ser multo úteis na igreja. Por outro lado, em- bora ao culto público, por ésse motivo, falte maior entusiasmo e emocáo, deve sempre ser governado pela razáo, caracte- rizado pela decéncia, e dignificado pela ordem.

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J. A RESSURREigAO DOS MORTOS. Cap. 15.

A mentalidade dos filósofos gregos a simples idéia de ressurreicáo do corpo afigurava-se grotesca e absurda. Quan- (Jo Paulo, em Atenas, no discurso que alí proferiu, tocou néste assunto, foi ridicuiarizado, e parece que em Corinto aconte- ceu a mesma ccisa. Pelo menos havia na igreja desta última cidade alguns que negavam a doutrina da ressurreicáo do corpo. Quase que somos gratos por essa manifestacáo de incredulidade, visto como deu ocasiáo a que Paulo escrevesse o cap. que agora temos diante dos olhcs uma das mais brilhantes realizacoes suas, que ao mesm.o tempo é uma das mais admiráveis obras-primas de literatura.

Lendo-se éste cap., dois ou tres fatos devem estar pre- sentes á memoria. Primeiro: Paulo discute aqui a ressur- reicáo do corpo e nao a imortalidade da alma. Éste último fato é dado como admitido pelas Escrituras, e igualmente por Paulo, néste capítulo. A ressurreicáo e a imortalidade sáo fatos intimamente relacionados entre si. Se a primeira é verdadeira, a segunda dispensa provas, sendo que nesta dissertacáo de Paulo é dado como aceito que a ressurreicáo do corpo implica a consciente e feliz imortalidade da alma. Náo obstante, os dois fatos sáo distintos. Os gregos, em co- mum com todos os povos e racas, criam que a alma estava viva no além-túmulo, mas náo tinham idéia alguma de res- surreicáo. É doutrina peculiar, exclusiva do Cristianismo que a alma, separando-se do corpo, na morte, revestir-se-á outra véz de um corpo imortal, que será sua nova habitacáo. É uma crenca que absolutamente nada tem que ver corn a crendice da transmigracáo das almas, ensinada por outras religioes, nem com aquéles indecisos fantasmas do além- -túmulo, em que os gregos acreditavam. Néste cap., Paulo náo discute se a alma sobrevive ou náo á morte, mas trata do retorno dos espíritos, que reanimaráo os corpos.

Em segundo lugar, convém lembrar que Paulo, aqui, trata da ressurreicáo dos crentes e náo dos incrédulos. Como nosso Senhor ensinou claramente, "todos os que se acham nos tú- mulos ouviráo a sua voz e sairáo: os que tiverem feito o bem, para a ressurreicáo da vida; e os que tiverem praticado o mal, para a ressurreicáo do juizo". Ou como Paulo disse: "Haverá ressurreicáo, tanto de justos como de injustos". Tem

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sido objeto de discussao se as duas ressurreigóes seráo simul- táneas ou nao. Mas Paulo aqui ocupa-se apenas com a res- surreigáo dos que sao de Cristo "na sua vinda". Aliás é éste o terceiro fato importante a considerar néste cap.: o apostólo refere um acontecimento que ocorrerá na Segunda Vinda, com a reaparicáo pessoal de Cristo. As Escrituras silenciam completamente em tomo da experiencia ou si- tuacáo dos fiéis entre a morte e a ressurreicáo. É difícil, se nao impossível, fazer idéia de um espirito fora do corpo. Todavía sabemos que estar "ausente do corpo" é estar "pre- sente com o Senhor". Ainda somos assegurados que "deixar o corpo" é "estar com Cristo, o que é incomparavelmente me- Ihor". Entretanto ésse estado dos espirites fora do corpo nao é final nem perfeito. Na vinda de Cristo as almas dos fiéis seráo revestidas de um corpo imortal, á semelhanga do corpo glorioso de Cristo ressuscitado e elevado aos céus, onde está á direita do Pai. Esta doutrina, por conseguinte, difere daquela segundo a qual as almas dormem desde a morte até ao dia da ressurreicáo. Corrige igualmente uma outra con- cepgáo que por ai existe, de que na morte as almas trocam seus corpos mortais por outros imortais. Quando morrem, os fiéis entram num estado de bem-aventuranga e ficam em comunháo consciente com o seu Salvador. Todavía a gloria désse estado será consumada ou aperfeicoada na vinda do Senhor e com a ressurreigáo dos corpos.

Discorrendo sobre esta doutrina, Paulo se detém primeiro a considerar o fato ou a realidade da ressurreigáo, vs. 1-34; depois, trata do modo como se dará, ou seja a sua natureza, vs. 35-58.

Como fundamento do fato, ele apresenta a ressurreicáo de Cristo, vs. 1-11. Afirmando-a, mostra que ela torna ine- gável o fato da ressurreigáo, vs. 12-19, assegura a ressurreigáo dos crentes, vs. 20-28, e também produz seus efeitos práticos na vida de todos éles, vs. 29-34.

Tratando do modo como se dará a ressurreigáo, primeiro discute sua natureza, vs. 35-49, para depois discorrer sobre a mudanga que se verificará nos vivos e nos mortos á vinda de Cristo, vs. 50-58.

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1. A Rcalidade da Ressurreigao. Cap. 15:1-34. a. A Ressurreigáo de Cristo. Cap. 15:1-11.

1 Irmáos, venho lem.brar-vos o evangelho que vos anunciei, o qual recebestes e no qual ainda perseve- ráis; 2 por ele também sois salvos, se retiverdes a pa- lavra tal como vo-la préguei, a menos que tenhais crido em váo. 3 Antes de tudo vos entregue! o que tam- bém recebi: que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, 4 e que foi sepultado, e ressus- citou ao terceiro dia, segundo as Escrituras, 5 e apa- receu a Cefas, e, depois, aos doze. 6 Depois foi visto por mais de quinhentos irmáos de uma vez, dos quais a maioria sobrevive até agora, porém alguns dormem. 7 Depois foi visto por Tiago, mais tarde por todos os apostólos, 8 e, afinal, depois de todos, foi visto também por mim, como por um abortivo. 9 Porque eu sou o menor dos apostólos, que mesmo nao sou digno de ser chamado apostólo, pois perseguí a igreja de Deus. 10 Mas, pela graga de Deus, sou o que sou; e a sua graga, que me foi concedida, nao se tornou va, antes trabalhei muito mais do que todos éles; todavía nao eu, mas a graca de Deus comigo. 11 Portanto, seja eu, ou sejam éles, assim pregamos e assim créstes.

Afirmando a doutrina da ressurreigáo dos mortos, Paulo apoia toda a sua argumentagáo no fato indisputado da res- surreigáo do Senhor. Tem de lembrar éste fato aos corintios, fazendo-os ver sua relagáo com outras grandes verdades da crista e especialmente com a da ressurreigáo dos corpos. Estas verdades, declara ele, sao elementos essenciais do evan- gelho que Ihes pregara e que por éles fóra recebido, evangelho que ainda retém e do qual, se é evangelho genuino, depende a salvagáo déles.

Entre éstes fatos salientam-se os seguintes, que foram recebidos pelo apostólo, fósse por tradigáo oral, fósse por meio de revelagáo: a morte de Cristo por nossos pecados, se- gundo as Escrituras; seu sepultamento; sua ressurreigáo ao terceiro dia, como predito ainda pelas Escrituras; e suas apa- rigoes a testemunhas escolhidas.

Paulo sublinha o fato de haver Jesús morrido "por nossos pecados", isto é, a favor déles, para expiá-los, a fim de que se tornasse possível o seu perdáo e déles nos pudéssemos livrar. Éstes fatos foram preditos pelas Escrituras, através da lin- guagem figurada daquéles sacrificios e instituigoes, assim

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como em salmo e em profecía. O fato da sepultura de Jesús é mencionado de propósito, tanto para indicar a realidade de sua morte, como para salientar que Éle ressurgiu real- mente. Os leitores, déste modo, sao colocados diante do tú- mulo vazio, fato que pode ser explicado pela ressurreicáo. Nao foi um desmaio aquilo que Jesús experimentou na cruz. Foi verdadeira morte: "Cristo morreu". Se nao tornou, a viver, se foi mentira ou ilusáo o seu levantamento dentre os mortos, por que nao se achou seu corpo no túmulo onde fóra sepultado?

"Ressuscitou ao terceiro dia", como fóra predito pela Es- critura, e segundo o testificaram testemunhas competentes e em número suficiente. Das aparicoes de Cristo redivivo a essas testemunhas, o apóstolo menciona seis. Omite o nome de María de Magdala e apresenta em primeiro lugar Pedro, visto ser éste mais largamente conhecido e de modo especial em Corinto. A Pedro que o negara, a Pedro antes que aos outros, a Pedro sózinho apareceu Cristo ressurto. Nao se sabe o que Ihe disse Jesús nessa ocasiáo, nem o tempo e nem o lugar dessa aparigáo. Um silencio sagrado envolve éste episodio. Deve entretanto Ihe ter f ala do Jesús palavras de perdáo. Néste caso, tal experiencia concorreu mais para transformá-lo de Simáo em Pedro, o homem rijo como ''pedra", do que todos aquéles anos que antes levara na com- panhia de seu Salvador. Pelo menos é o que se infere do fato de ser aqui chamado ''Cefas", o nome prof ético recebido de Cristo.

Em seguida Paulo menciona "os doze", reunidos no ce- náculo, Tomé ausente. Foi quando Jesús comeu com os dis- cípulos, assegurando-lhes que nao estavam diante de um es- pirito desencarnado, senáo perante um corpo que realmente ressurgira dos mortos.

"Depois foi visto por mais de quinhentos irmáos de uma véz", em um monte da Galiléia, naquéle encontró que, antes de morrer, prometerá ter com os discípulos no referido local. E foi alí que éles receberam a grande comissáo de fazer discípulos de todas as nacoes.

Um homem do tipo de Pedro admite-se que podía ser vi tima de um sonho ou ilusáo, julgando-se na presenta de Jesús ressuscitado. É muito menos possível que os Doze se

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enganassem. E quando "mais de quinhentos" homens apre- sentam seu testemunho unánime sobre éste fato, entáo nao mais alimentar dúvida razoável sobre o mesmo.

"Depois foi visto por Tiago", o próprio irmáo de Jesús, que antes nao cria nÉle, e cujo testemunho, por esta razáo, é tanto m.ais valioso. A posicáo de lideranca que veio a ocupar na igreja de Jerusalém paténtela o poder transforma- dor da confianca em um Cristo redivivo.

"Mais tarde por todos os apostólos" foi visto Jesús, es- tando Tomé presente o discípulo duvidador, patrono de todos os cépticos, cuja obstinacáo em duvidar tem sido sanada pela visao de Cristo ressurto, na presenca de quem fazem eco as palavras désse apostólo: "Senhor meu e Deus meu".

"Depois de todos", escreve Paulo, "foi visto também por mim". Isto se deu quando se dirigía a Damasco. Essa apa- ricáo, corporal como todas as outras, táo de súbito trans- mudou o Saulo perseguidor em Paulo que ele se compara a "um abortivo". É que contrasta seu caso com os dos outros, pois estes foram gradual e normalmente se desenvolvendo, do estado de simples discípulos até chegarem á madureza do apostolado, á perfeita condicáo de mensageiros de Cristo.

Rememorando seu passado de perseguidor da Igreja, Paulo declara-se "o menor dos apostólos", "indigno de ser chamado apostólo". Todavía está presente á sua lembranca que, pela graca divina, seus labores apostólicos ultrapassa- ram os de todos os colegas. Nao é menos decisivo aqui seu testemunho a favor da ressurreicáo de Cristo. É de fato o mais eloquente de todos os testemunhos, pelos dois motivos que apresenta: Primeiro, fóra perseguidor da Igreja. Como explicar, razoavelmente, o fato público e notorio de comecar, de repente, a pregar ésse evangelho que combateu, e a es- tender a Igreja que antes procurara exterminar? Segundo: como explicar que o perseguidor ultrapassasse todos os ou- tros em fervor apostólico e no éxito dos trabalhos? existe uma explicacáo: a visao que teve do Senhor redivivo.

O testemunho produzido com referéncia á ressurreicáo de Cristo é absolutamente unánime. "Portante, seja eu, ou sejam éles, assim pregamos e assim créstes". Nenhum fato podia ser mais bem atestado nem mais razoavelmente crido. Pois é tal o fato da ressurreicáo está no fundamento, na

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base do evangelho pregado pelos apostólos e crido sempre pela Igreja Crista.

b. O despropósito de se recusar a Ressurreigáo. Cap. 15:12-19.

12 Ora, se é corrente prégar-se que Cristo ressus- citou dentre os mortos, como, pois, afirmam alguns dentre vós que nao ressurreigáo de mortos? 13 E, se nao ressurreicáo de mortos, entáo Cristo náo ressuscitou. 14 E, se Cristo náo ressuscitou, é va a nossa prégagáo e a vossa fé; 15 e somos tidos por falsas testemunhas de Deus, porque temos asseverado contra Deus que ele ressuscitou a Cristo, ao qual ele náo ressuscitou, se é certo que os mortos náo ressusci- tam. 16 Porque, se os mortos náo ressuscitam, tam- bém Cristo náo ressuscitou. 17 E, se Cristo náo ressus- citou, é a vossa fé, e ainda permanecéis nos vossos pecados. 18 E ainda mais: os que dormiram em Cristo, pereceram. 19 Se a nossa esperanza em Cristo se li- mita apenas a esta vida, somos os mais infelizes de todos os homens.

Nao é certo que algum dos cristáos corintios negasse a ressurreigáo de Cristo, mas o acervo de provas dessa dou- trina, apresentadas aqui por Paulo, a entender que se fazia necessário um reforgo da mesma. Entretanto, havia alguns entre éles que negavam a ressurreicáo dos crentes. Ora, se negavam isto, recusavam na verdade a idéia de qual- quer ressurreigáo. E por isso, quando o apostólo demonstra que a ressurreigáo de Cristo foi uma realidade, mostra ao mesmo tempo que é impossível crer néste fato e asseverar por outro lado que náo ressurreigáo, porque "se náo ressurreigáo de mortos, entáo Cristo náo ressuscitou". E mais: negar a ressurreigáo de Cristo será declarar mentiroso o testemunho dos apostólos a respeito désse fato. E náo isto como será também desabonar o inteiro sistema da cristá.

Pormenorizando as consequéncias dessa negagáo, Paulo declara (1) que ela invalida a mensagem do evangelho, "a nossa prégagáo", que néste caso fica vazia, sem conteúdo, visto como a ressurreigáo de Cristo é a própria substancia das Boas Novas. Sem conteúdo, toma-se ''falsa". Depois (2)

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a crista apresentar-se-ia engañosa, "va", sem substancia; edificada sobre o alegado fato da ressurreicáo de Cristo, ca- recería de alicerce em que se apoiasse, serla minada em sua base.

Consequentemente, (3) ficaria provado que os apostólos eram "falsas testemunhas" e da pior espécie, porque esta- riam apresentando um testemunho aleivoso acerca de Deus e, por isso, contra Ele a mais horrível forma de impostura visto como Paulo atribula ao poder de Deus a ressurreicáo de Cristo. E nao isto, como também (4) a nossa seria "va", nao sómente no sentido de carecer de conteúdo, como no de ser fútil, ineficaz. Se a ressurreicáo de Cristo fósse irreal, também os efeitos que Ihe sáo atribuidos náo existi- riam. Os crentes náo estariam salvos. Falando mais claro

(5) , ainda estariam nos seus pecados, porque, se Cristo náo ressuscitou, é, néste caso, um Cristo que foi e permanece condenado; náo é um Cristo justificado, e por certo que náo pode garantir a justificacáo dos crentes. Seguir-se-ia, entáo

(6) que os que morreram "pereceram". Dormiram confiando em Cristo e certos de uma feliz imortalidade, mas acordaram daí para sentir-se perdidos, sob a condenacáo de Deus.

Por fim (7), com referencia aos crentes ainda vivos, se com todos os seus sacrificios e privacoes o que éles possuem nesta vida é apenas uma esperanca depositada em Cristo, mas esperanca sómente e nada mais, esperanca que nunca de ver realizado o que espera, falsa esperanga de uma sal- vacáo presente e de uma gloria futura sáo tais crentes, de todos os homens, os mais dignos de lástima.

Vé-se, pois, que a ressurreicáo dos mortos náo é mero sonho, nem é para ser recusada esta doutrina assim leviana- mente. Se náo a aceitamos, teremos de recusar com ela a ressurreicáo de Cristo e a salvagáo que ela nos garante: ruirá por térra todo o sistema da cristá. Mas, recolocando no seu lugar o alicerce désse sistema, cuja remocáo Paulo fi- gurou por um momento, toma o apostólo a levantar sobre ele a majestosa estrutura da fé, que se eleva as alturas, pe- netrando ñas nuvens da bem-aventuranca infinita e eterna que ela tem reservada para os crentes e para todo o uni- verso de Deus.

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c. Garantida a Ressurreigáo dos Crentes. Cap. 15:20-28.

20 Mas de fato Cristo ressuscitou dentre os mortos, sendo ele as primicias dos que dormem. 21 Visto que a morte veio por um homem, também por um homem veio a ressurreicáo dos mortos. 22 Porque assim como em Adáo todos morrem, assim também todos seráo vi- vificados em Cristo. 23 Cada um, porém, por sua pró- pria ordem: Cristo, as primicias; depois os que sao de Cristo, na sua vinda. 24 E entáo virá o fim, quando ele entregar o reino ao Deus e Pai, quando houver destrui- do todo dominio, bem como toda autoridade e poder. 25Porque convém que ele reine até que haja posto todos os inimigos debaixo dos seus pés. 26 O último inimigo a ser destruido é a morte. 27 Porque todas as coisas su- jeitou debaixo dos seus pés. E quando diz que todas as coisas Ihe estáo sujeitas, certamente exclui aquéle que tudo Ihe subordinou. 28 Quando, porém, todas as coisas Ihe estiverem sujeitas, entáo o próprio Filho também se sujeitará aquéle que todas as coisas Ihe sujeitou, para que Deus seja tudo em todos.

É com urna nota de triunfo que o apostólo passa ao lado positivo de sua argumentagáo. Em contraste com a suposi- cáo tremenda do que seria se nao houvera ressurreicáo, ele agora firma as benditas consequéncias da ressurreigáo de Cristo. É que ela garante a ressurreigáo dos crentes e o cum- primento de todo o propósito redentor de Deus.

Cristo é ai declarado "as primicias dos que dormem". Os primeiros graos amadurecidos ou o primeiro feixe de espigas as primicias que se apresentava a Deus pela páscoa, era o penhor e uma amostra da colheita que se avizinhava, Assim, Cristo ressuscitado foi apenas o primeiro de uma enor- me multidáo que se de levantar dentre os mortos. Sua ressurreigáo vale por uma promessa divina de que os crentes ressurgiráo também, e dessa ressurreicáo é ela o exemplo. Diz Paulo que "dormem" os crentes que morreram. É alusác ao sonó do corpo na morte. A alma náo dorme, mas perma- nece em comunháo consciente com Cristo. O apostólo, aqui, está tratando é da ressurreicáo do corpo. Esta se verificará pelo poder de Cristo e em virtude da reiagáo dos crentes com Éle. Do mesmo modo como estáo sujeitos á morte todos quantos procedem de Adáo, assim quantos pela estáo uni- dos a Cristo recebem a garantía de se libertar do poder dessa mesma morte. Esta náo é apresentada aqui pelo apostólo

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como de necessidade para os seres finitos que somos, senáo como uma calamidade que o homem atraiu sobre si, da qual precisa livrar-se, e isto pelo poder da vitória de Cristo em sua ressurreigáo.

"A sequéncia estabelecida por Deus é esta: Primeiro, a ressurreicáo de Cristo, tipo e penhor de nossa ressurreigáo; depois, a ressurreigáo dos que o seguem, e isto na sua vinda. Após virá o fim, quando Éle apresentará ao Pai o reino con- sumado". Dizendo Paulo "cada um por sua ordem", empre- ga uma enérgica expressáo militar. Cada soldado marcha em seu próprio regimentó, indo á frente o grande Coman- dante; passa a gloriosa companhia de seus seguidores e, por fim, o restante dos mortos.

"Entáo virá o fim", nao simultáneamente com a apa- rigáo de Cristo, mas em seguimento a esta. "Logp mais vem o fim". Será o tempo em que Éle entregará "o reino ao Deus e Pai, quando houver destruido todo dominio, bem como toda autoridade e poder". "No intervalo entre a Segunda Vinda e o fim" o Reino de Cristo será consumado. "Devemos, pois, considerar sob o reinado de Cristo tudo quanto ocorrer desde sua aparigáo até á época chamada fim. Haverá tam- bém uma sequéncia na ressurreigáo dos mortos. . . (1) Cris- to, as primicias; (2) os crentes em Cristo na sua vinda; (3) todo o resto da humanidade no fim, quando ocorrerá o juízo final".

O reinado de Cristo consumar-se-á, chegará á sua pleni- tude, na ressurreigáo dos mortos. "O último inimigo a ser destruido é a morte". Apresentou-se a morte, antes, como servente dos fiéis, cap. 3:22; agora como inimiga. Ela é uma e outra coisa. A morte afasta a cortina e leva a alma á pre- senga do Senhor. Entretanto é inimiga, porque seu triunfo sobre os nossos corpos lugar a angústias, a separagoes, a lágrimas. Na ressurreigáo, porém, "quando éste corpo cor- ruptível se revestir de incorruptibilidade", de com certeza a morte ser "tragada pela vitória". A ressurreicáo destruí-la-á.

A entrega do Reino a Deus e a sujeigáo do Filho ao Pai náo significam, de modo nenhum, que Cristo deixará de reinar, ou que náo é divino. "A sujeigáo de que se trata é apenas aquela que sua condigáo de Filho implica. Náo sig- nifica inferioridade de natureza, nem abdicagáo de autori-

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dade. É antes a livre submissáo do amor, esséncia do espi- rito filial".

A morte de Cristo, como sua ressurreiQáo e seu reinado, tudo isto está nos planos divinos para que o propósito re- dentor do Pai chegue a ser consumado, em virtude do qual somos levados á comunháo com Ele que em toda parte está presente, cuja vontade é suprema em todo o tempo, Éle o Deus que é "tudo em todas as coisas".

d. A doutrina na prática. Cap. 15:29-34.

29 Doutra maneira, que faráo os que se batizam por causa dos morios? Se absolutamente os mortos nao ressuscitam, por que se batizam por causa déles? 30 £ por que também nós nos expomos a perigos a toda hora? 31 Día após día morro! Eu o protesto, ir- máos, pela gloria que tenho em vós outros, em Cristo Jesús nosso Senhor. 32 Se, como homem, lutei em Éfeso com feras, que me aproveita isso? Se os mor- tos nao ressuscitam, comamos e bebamos, que amanhá morreremos. 33 Nao vos engañéis: as más conversa- qoes corrompem os bons costumes. 34 Tornai-vos á so- briedade, como é justo, e nao pequéis; porque alguns ainda nao tém conhecimento de Deus; isto digo para vergonha vossa.

Uma vez firmada a doutrina da ressurreigáo, Paulo agora se detém um pouco para aplicá-la aos leitores, lembrando- -Ihes que essa doutrina está vinculada as suas mais sagradas esperanzas. Outra vez adota o método de indicar o que é que se perde recusando-se a ressurreigáo. As aplicagoes prá- ticas desta verdade podem ser mencionadas como segué: (1) O batismo pelos mortos tem sua razáo de ser; (2) o sacrificio feito no trabalho evangélico nao é perdido; (3) o sensualis- mo é fruto da falta de bom-senso; (4) é perigoso conviver com os que duvidam dessa doutrina.

Com referencia ao batismo pelos, ou por causa dos mortos enorme diversidade de opinioes. Muito difícilmente que- rerá dizer batismo vicário, de alguém que confessasse o nome de Cristo visando com isso salvar um amigo que morrera incrédulo. Nem se trata de batismo que alguém aceitasse em lugar de um crente que morresse sem éste sacramento. Nao

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prova alguma de que tais práticas fóssem correntes nos dias de Paulo. A interpretagáo mais provável é a seguinte: quando pessoas descrentes viam morrer entes queridos, na sua grande dor e desolagáo voltavam-se para Cristo, levadas pela esperanga de se encontraren! de novo com os seus ama^ dos na bem-aventuranga da ressurreicáo. E, de fato, nao Ihes seria frustrada essa expectativa. O batismo de tais pessoas, que antes de tudo era motivado por urna forte afeigáo humana, nao deixava de ser uma prova comovente de na vida futura, vida que é inseparável da ressurreigáo.

A vista dessa bendita certeza nao era de estranhar que os obreiros cristáos se expusessem continuamente a perigos e morte. Era o caso de Paulo. Dia após dias a ameaga de morte pairava sobre éle, tantos eram os perigos e dificul- dades que o rodeavam. Se nao houvesse recompensas futu- ras, nem uma feliz imortalidade, por que, do ponto de vista himiano, tinha éle lutado "em Éfeso com feras"? É muito improvável que o houvessem langado á arena; o mais certo é que fóra compelido a contender com individuos ferozes e sanguissedentos. Onde estarla a recompensa de tamanha luta, se a ressurreigáo fósse um sonho ilusorio? Se o fósse, haveria razáo para se adotar a estúpida filosofía do sen- sualismo: "Comamos e bebamos, que amanhá morreremos". Era comum ouvir dizer isto em Corinto, e ainda hoje é má- xima corren te: "Da vida nada se leva", logo concluem gozemo-la quanto possível. A luz da imortalidade e da glo- ria vindoura é patente a insensatez dessa filosofía.

Muitos corintios parece que se deixaram influenciar por essas idéias epicuristas, devido á sua convivencia com pagáos. Porisso é que Paulo adverte os leitores contra o perigo de associarem-se aqueles que punham em dúvida as verdades essenciais do Cristianismo, como por exemplo a ressurreigáo. "As más conversagoes corrompem os bons costumes", diz o apostólo, citando, ao que parece, um provérbio corrente na- quela época. Como que diz: "Despertai do torpor que a ne- gagáo desta verdade produzido. Nao vos deixeis levar pelas más influéncias daquéles que tém posto em dúvida esta doutrina. A sabedoria enfatuada dos tais nao passa de ignoráncia: "ainda nao tém conhecimento de Deus". O apostólo quis, dessarte, lancar-lhes em rosto a vergonha do procedimento de alguns déles que ousavam duvidar de táo importante verdade. E déste modo realga que é essencial

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crer na ressurreigáo. É bom, portante, advertir que a de- termina a conduta. Os que desejam conservar-se de todo cientes e compenetrados de Deus precisam firmar-se ñas verdades que Éle nos tem revelado.

2. A Natureza da Ressurreigáo. Cap 15:35-58.

a. Como seráo os corpos redivivos. Cap. 15:35-49.

35 Mas algruém dirá: Como ressuscitam os mortos? e em que forma de corpo vém? 36 Insensato! o que semeias nao nasce, se primeiro nao morrer; 37 e quando semeias, nao semeias o corpo que de ser, mas o simples grao, como de trigo, ou de qualquer ou- tra sementé. 38 Mas Deus Ihe corpo como Ihe aprouve dar, e a cada uma das sementes o seu corpo apropriado. 39 Nem toda carne é a mesma; porém uma é a carne dos homens, outra a dos animáis, outra a das aves e outra a dos peixes. 40 Também corpos celestiais e corpos terrestres; e, sem dúvida, uma é a gloria dos celestiais e outra a dos terrestres. 41 üma é a gloria do sol, outra a gloria da lúa, e outra a das esírélas; porque até entre estréla e estréla dif éren- las de esplendor. 42 Pois assim também é a ressurrei- Qáo dos mortos. Semeia-se o corpo na corrupgáo, res- suscita na incorrup^áo. Semeia-se em desonra, ressus- cita em gloria. 43 Semeia-se em fraqueza, ressuscita em poder. 44 Semeia-se corpo natural, ressuscita cor- po espiritual. Se corpo natural, também corpo espiritual. 45 Pois assim está escrito: O primeiro ho- mem, Adáo, foi feito ser vivente. O último Adáo, po- rém, é espirito vivificante. 46 Mas nao é primeiro o espiritual, e, sim, o natural; depois o espiritual. 47 O primeiro homem, formado da térra, é terreno; o se- gundo homem é do céu. 48 Como foi o primeiro ho- mem, o terreno, tais sao também os demais homens terrenos; e como é o homem celestial, tais também os celestiais. 49 E, assim como trouxemos a imagem do que é terreno, devemos trazer também a imagem do celestial.

Paulo afirmou a certeza da ressurreicáo. Agora passa a considerar a sua natureza ou a maneira como se efetuará. Primeiro trata do caráter ou constituigáo dos corpos na ressurreigáo; depois considera a mudanga que se operará nos corpos dos vivos e dos mortos, na vinda de Cristo.

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Abre a discussáo com duas perguntas que talvez fóssem formuladas pelos que recusavam a dou trina, ou possivel por algumas pessoas sinceras que desejavam esciar eciinento a respeito do assunto: "Como ressuscitam os mortos? e em que forma de corpo vém?" A primeira pergunta sugere que a ressurreicáo é impossível; a segunda, que é inconcebível. O apostólo responde ao inquiridor chamando-o "insensato" ou irrefletido. Bastava que desejasse usar seu raciocinio para encontrar resposta até nos campos de lavoura. Cada sementé primeiro morre, deixa de ser o que é, para tornar-se planta, adquirindo assim uma forma mais elevada de existencia. É verdade que as sementes nao morrem assim literalmente como os corpos, mas deixam de existir como sementes para assumirem a forma de planta ou árvore frutífera.

Esta analogía nao prova a ressurreicáo. O que faz é responder á dificuldade proposta, mostrando o processo pelo qual Deus realiza o que parece impossível, fazendo, que con- forme as leis por Éle estabelecidas, a mesma vida surja sob outro aspecto mais glorioso.

Adiante Paulo mostra a grande variedade de formas sob as quais se manifesta a vida animal. Declara que existe igualmente grande diferenca entre os corpos dos celícolas e dos que habitam na térra, assim. como difere o esplendor solar do brilho da lúa e das estrélas. Deus, portanto, é capaz de prover aquela forma de corpo que se adapte as necessi- dades da alma imortal.

O apostólo nao tenta descrever a natureza íntima de um corpo ressurto, mas do que éle diz aqui e do que se segué evidencia-se (1) que existe uma diferenca entre o corpo que ressurge e aquéle que morreu e foi sepultado. Nao nada que indique se ja o corpo redivivo composto das mesmas par- tículas materiais do que morreu. O que Paulo ensina é exa- tamente o contrario. de ser muito mais glorioso. O corpo natural está su jeito a ruina, a perder a graga, a enfraque- cer-se, enquanto o corpo ressurto estará livre de todas estas limitacoes e imperfeigoes, será corpo glorioso, perfeitamente adequado as necessidades do espirito glorificado, assim como o corpo mortal foi feito de modo a servir as necessidades da vida presente.

O semear na "corrup^áo. . . em desonra. . . em fraque- za" nao se refere ao sepultamento. A presente vida é a

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época da sementeira; o corpo mortal de onde, após a morte, vai surgir outro diferente, se acha em ponto de germinar.

(2) O corpo redivivo, portanto, ainda que diferente do que morreu, será idéntico a éle. Nao diz o apostólo como ou até onde será preservada a identidade. Talvez haja disso urna analogía na identidade que entre o corpo de um menino e éste mesmo corpo quando na idade adulta. Cada partícula ou molécula foi substituida por outras e, nao obstante, o corpo é o mesmo. Assim é com os corpos na ressurreigáo: "diferentes e todavía os mesmos, ai está um dos paradoxos da crista". Ver-se-á que os corpos gloriosos retrataráo os corpos mortais, conservando-lhes as respectivas características pelas quais se reconheceráo. Ainda que perfeitos e imortais, a natureza déles corresponderá, de alguma forma, á dos corpos corruptí- veis e fracos, do primitivo estado. Paulo nao trata de nova criacáo, mas de ressurreigáo, renascimento, reaparigáo.

(3) Os corpos na ressurreigáo seráo produzidos pelo poder de Cristo e háo de trazer estampada em si a imagem do Sal- vador. Nao seráo corpos mortais reconstruidos, nem serao o desenvolvimento de um germe indestrutível que os "corpos naturais" ora contenham em si; nem seráo o produto de uma fórga natural que presentemente resida no corpo humano, nem ainda seráo um etéreo "corpo astral" que atualmente ha- bite no corpo natural. Nada disto. Os corpos na ressurreigáo seráo produto do poder divino, uma reprodugáo dos corpos que foram sepultados; déles possuimos um modélo ou exem- plar no corpo de Cristo ressurto e glorificado.

O primeiro Adáo, por um ato criador de Deus, tornou-se "ser vívente"; o último Adáo, Jesús Cristo, em virtude de sua ressurreigáo, tornou-se "espirito vivificante". É esta ordem a que também aquí se observa: primeiro, como descendentes de Adáo, fomos feitos, á sua semelhanga, seres viventes que habi- tamos corpos mortais e trazemos a imagem de nosso pai ter- restre; mas, como seguidores de Cristo, havemos ainda de ser revestidos de corpos imortais e traremos estampada em nosso ser a imagem de nosso Senhor celestial.

b. A Transformasao dos Morios e dos Vivos. Cap.

15:50-58.

50 Isto afirmo, irmáos, que carne e sangue nao podem herdar o reino de Deus, nem a corrup§áo her-

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dar a incorrup?áo. 51Eis que vos digo um mistério: Nem todos dormiremos, mas transformados seremos- todos, 52 num momento, num abrir e fechar dos olhos, ao ressoar da última trombeta. A trombeta soará, os mortos ressascitaráo incorruptíveis, e nós seremos transformados. 53 Porque é necessário que éste corpo corruptível se revista da incorruptibilidade, e que o corpo mortal se revista da imortalidade. 54 E, quando éste corpo corruptível se revestir de incorruptibilidade, e o que é mortal se revestir de imortalidade, entáo se cumprirá a palavra que está escrita: Tragada foi a morte pela vitória. 55 Onde está, ó morte, a tua vitó- ría? onde está, ó morte, o teu aguiiháo? 56 O aguilháo da morte é o pecado, e a fórca do pecado é a lei. 57 Gracas a Deus que nos a vitória por intermédio de nosso Senhor Jesús Cristo. 58 Portanto, meus amados irmáos, sede firmes, inabaláveis, e sempre abundantes na obra do Senhor, sabendo que, no Senhor, o vosso tra- balho nao é váo.

Tratando da ressurreicáo dos fiéis, Paulo discute um acontecimento que ocorrerá, nao por ocasiáo da morte, mas na vinda de Cristo. Resta, pois, uma pergunta a responder: Quando Cristo voltar, qual será a sorte dos que estiverem vivos? Precisaráo morrer, para que possam partilhar da bem- -aventuranca dos que ressuscitarem?

Os corpos dos que estiverem vivos nessa ocasiáo certa- mente seráo transformados. Asseverando isto o apostólo co- meca novo parágrafo: "Carne e sangue nao podem herdar o reino de Deus", isto é, o corpo humano, cuja substancia é carne e cujo elemento vivificante é o sangue, nao é adap- tável ao futuro estado, nao convirá ao mundo celeste. E acrescenta: "Nem a corrupcáo pode herdar a incorrupcáo". Um cadáver, certamente, nao pode ser lugar de habitacáo para para uma alma imortal. Destarte, para se adaptar á gloria futura é mister que o corpo sofra uma transformacáo, trata-se de vivos ou de mortos.

Relativamente á transformacáo dos vivos, Paulo decla- ra que tem uma revelacáo. "Eis que vos digo um mistério". Mistérfo, entretanto, na linguagem do apostólo náo quer dizer algo oculto, mas aquilo culo conhecimento esteve antes vedado mas agora está revelado. "Nem todos dormiremos". Os crentes todos náo váo morrer. Alguns estaráo vivos quan- do Cristo vier. Seus corpos seráo transformados. A mudanga será instantánea, como o movimento das pálpebras. Será

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anunciada pelo som da "última trombeta". Naturalmente o apostólo nao quer se referir a urna trombeta de verdade, nern as trombetas apocalípticas. Nao quem possa saber em que consistirá éste sinal divino. Na Primeira Carta aos Tessa- lonicenses apresenta-se associado á *'voz do arcanjo": "Por- quanto o Senhor mesmo, dada a sua palavra de ordem, ouvida a voz do arcanjo, e ressoada a trombeta de Deus, descerá dos céus, e os mortos em Cristo ressuscitaráo primeiro; depois nós, os vivos os que ñcarmos, seremos arrebatados junta- mente com éles, entre nuvens, para o encontró do Senhor nos ares".

Torna o apostólo a afirmar a necessidade desta transfor- magáo dos vivos e dos mortos, declarando cimiprir-se na mesma a profecía bíblica referente ao livramento final, triun- fante do povo de Deus: "porque é necessário que éste corpo corruptível [o corpo que está morto] se revista da incorrupti- bilidade, e que o corpo mortal [o corpo vivo] se revista da imortalidade". "Entáo se cumprirá a palavra que está escrita: Tragada foi a morte pela vitória". Entáo, mas nao agora, falaremos em vitória que o será de fato. Durante certo tempo, por ora, a morte vai alcangando seus triunfos. Nao adianta negá-lo. A morte é uma realidade e é inimiga; vence e destroi. Sua vitória, no entanto, é passageira, durante certo tempo. Quando Cristo vier, ao ressurgirem os mortos e se transformar em os vivos, entáo, em toda a realidade, a morte será tragada pela vitória.

"O aguilháo (ferráo) da morte é o pecado". É o pecado que faz amarga a morte, que Ihe empresta o caráter de pena- lidade ou castigo. É o pecado que a torna dolorosa, uma verdadeira desgrana. "A fórca do pecado é a lei", porque esta é que Ihe a fórga que tem. Sempre foi da experiencia humana que as exigéncias da lei e suas ameagas apenas exas- peram e arrastam a alma para deslises cada véz mais graves. Por meio de Cristo, Deus livra o crente destas duas fórgas adversárias, removendo de seu coragáo o sentimento de culpa e o pavor do juízo. Por seu Espirito concede-lhe o poder de realizar o que a lei exige. Aliás, éste livramento agora nos é concedido; mas, quando formos livres de todas aquelas preocupagoes pesadas, das perdas, dos pesares que a morte tem ocasionado; quando conhecermos a legítima liberdade dos filhos de Deus e acharmos na retidáo continuo prazer, e isto no lar celestial de nosso Pai, entáo com alegría mais pura

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uniremos nossa voz ao coro universal "Gragas a Deus que nos a vitória".

Colocando, assim, os leitores diante da visáo da gloria inefável que os aguarda, como revelada néste capítulo, nao admira que o apestólo ponha o ponto final nesta preciosa dissertacáo fazendo-lhes uma exortacáo prática: "Portanto, meus amados irmáos, sede firmes, inabaláveis, e sempre abundantes na obra do Senhor, sabendo que, no Senhor, o vosso trabalho nao é váo".

III. CONCLUSÁO Cap. 16

A. A Coleta em Favor dos Pobres de Jerusalém. Cap.

16:1-4.

1 Quanto á coleta para os santos, fazei vos tam- bém como ordenei as igrejas da Galácia. 2 No primeiro día da semana cada um de vós ponha de parte, em casa, conforme a sua prosperidade, e juntando, para que se nao fagam coletas quando eu fór. 3 E, quando tiver chegado, enviarei, com cartas, para levarem as vossas dádivas a Jerusalém, aqueles que aprovardes. 4 4 Se convier que eu também vá, éles iráo comigo.

Nao vale a pena discutir se as instrucóes dadas, aquí, com referencia as ofertas para os cristáos pobres de Jerusa- lém devem ser consideradas como décimo-primeiro e último tópico desta epístola, ou se constituem o primeiro parágrafo de seu capítulo final. A mente do apostólo, pelo menos, essa coleta se apresentava como da maior importancia, nao sendo difícil descobrir a razáo do seu profundo interesse no caso. Antes de tudo, a simpatía crista levava-o a procurar alivio para seus irmáos e companheiros, particularmente por se tratar de patricios seus. Aliás, no Concilio de Jerusalém, ao aceitar o encargo de evangelizar o mundo gentílico, prome- terá lembrar-se daquéles crentes pobres. Seu principal mo- tivo, pcrém, era o desejo de congracar os dois elementos da Igreja, gentíos e judeus, por ésse ato de caridade que, para estes últimos, seria expressáo da simpatía dos cristáos gentíos por éles, bem como sinal da genuinídade de sua fé.

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É fácil também saber por que havia tantos pobres entre os cristáos de Jerusalém. A única razáo nao foi, como alguns tém dito, aquéle ensaio pouco prudente de comunismo cristáo a que éles se aventuraram. A comunidade de bens fora temporária, ocasional e voluntária. A causa mais provável e constante fóra a perseguicáo e o ostracismo social sofridos pelos cristáos em Jerusalém da parte de seus concidadáos. A prosperidade económica daquela cidade dependía em larga escala dos ritos e cerimonias do Judaismo. É claro, pois, que os convertidos ao Cristianismo podiam encontrar alí di- ficuldades para arranjar trabalho que Ihes garantisse a sub- sistencia. De qualquer modo, as aperturas daquéles cristáos eram bem grandes. Para socorré-los Paulo envidou esforgos, procurando angariar ofertas em todas as igrejas que havia fundado.

Tratou-se do caso com os corintios, mas pouco fizeram. Porisso é que Paulo Ihes repete agora as instrugoes que, a respeito, dera as igrejas da Galácia. Tais instrucoes, de gran- díssimo valor para as igrejas de hoje, encerram a maior parte das regras necessárias ao exercício da beneficencia crista e á administracáo das finanzas da Igreja.

(1) As ofertas seráo feitas por cada membro da congre- gagáo. ''Cada um de vós ponha de parte, em casa". Ricos e pobres, velhos e mogos, todos devem entrar com sua parte neste servigo.

(2) As ofertas seráo sistemáticas. Cada um deverá con- tribuir, e isto semanalmente. "O primeiro dia da semana'* era reconhecido no tempo de Paulo como o dia do Senhor, dia da ressurreicáo. É um dia conveniente para atos regu- lares, como éste, de culto cristáo contribuir para o sus- tento da obra do Senhor.

(3) Ainda uma terceira regra, a da proporcionalidade. Alguns podem dar mais, outros daráo menos. Cada um de- verá dar "conforme a sua prosperidade". Um modo de siste- matizar as ofertas de beneficéncia é entrar com uma parte certa, definida, como por exemplo o décimo da renda. As quantias entregues com regularidade crescem de volume, tomando-se menor a carga para todos, o que nao sucede quando as contribuigóes se fazem extemporánea e irregu- larmente.

(4) Náo deve ser necessário usar apelos ocasionáis e emocionantes, para que os crentes contribuam. Paulo ex-

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pressou o dése jo de que nao se fizessem coletas quando éle chegasse, pois quería devotar-se á instrugáo dos corintios e nao ocupar seu tempo com essa arrecadacáo de dinheiro. Sua visita poderia dar oportunidade a que se levantasse grande soma, mas éle queria que éste assunto se resolvesse antes de sua chegada.

(5) Quando se fazem apelos de ve haver os mais elevados motivos. É natural, entáo, que muitos opinem que éste pará- grafo relativo as ofertas se ja posto no fim do cap. precedente, como parte integrante do "assunto ai tratado. Depois de se deter por longo tempo apreciando a gloria da ressurreicáo e da vida futura, Paulo acrescenta inopinadamente: "Quanto á coleta para os santos ..." A ressurreicáo seria um motivo de contribuicáo. Essa coleta seria parte da "obra do Senhor" em que os fiéis deviam ser abundantes á vista da vitória que Ihes pertencia "por intermédio de nosso Senhor Jesús Cristo".

(6) Os fundos de beneficéncia devem ser administrados cuidadosamente. Cumpria aos corintios nomear uma comis- sáo de financas, uma junta administrativa, que zelasse pelas ofertas. Aquéles que fóssem cuidadosamente escolhidos, ao chegar, daria cartas de recomendacáo para a igreja de Jeru- salém. Existe algo de tocante nessa providéncia. Os intuitos de Paulo tinham sido mal interpretados. Insinuacoes ma- liciosas tinham sido feitas em torno de um pretenso interésse pessoal do apostólo naquelas ofertas. Éle, entáo, procura precatar-se contra o menor fundamento de suspeita. Entre- tanto, essa providéncia deve sempre ser tomada relativamente á administracáo de fundos de beneficéncia. Deve-se manter uma escrituragáo regular de todo o movimento, para se pre- venir qualquer suspeita de peculato.

(7) As ofertas de beneficéncia devem ser bastante gene- rosas para que sejam dignas de Cristo e de seus servos. Paulo a entender que éle irá levar a Jerusalém as ofertas das igrejas, se elas forem bastante vultosas para atribuir impor- tancia a essa viagem. Se convier que vá, os mensageiros da parte da igreja o acompanharáo.

Algumas ofertas se tornam despreziveis nao por serem pequeñas, mas porque ficam muito aquém do que podem ser. Sáo uma vergonha para a Igreja e para aquéles que a representam. Tem-se acanhamento de prestar relatório de quantias táo mesquinhas. As ofertas dos crentes devem cor-

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responder á profissáo que éles fazem de desapego ás ooisas da térra, e de serem hefdeiros do celestial Reino de Cristo.

B. As Visitas de Paulo, Timoteo e Apolo. Cap. 16:5-12.

5 Irei ter convosco por ocasiáo da minha passa- gem pela Macedónia, porque devo percorrer a Mace- dónia. 6 E bem pode ser que convosco me demore, ou mesmo passe o invernó, para que me encaminheis ñas viagens que eu tenha de fazer. 7 Porque nao quero agora ver-vos apenas de passagem, pois espero perma- necer convosco algum tempo, se o Senhor o permitir. 8 Ficarei, porém, em Éfeso até ao Pentecoste; 9 por- que urna porta grande e oportuna para o trabalho se me abriu; e muitos adversários. 10 E, se Timoteo fór, vede que esteja sem receio entre vos, porque traba- Iha na obra do Senhor, como tambcm eu; 11 ninguém, pois, o despreze. Mas encaminhai-o em paz, para que venha ter comigo, visto que o espero com os irmáos. 12 Acerca do irmáo Apolo, muito Ihe tenho recomen- dado que fósse ter convosco em companhia dos irmáos, mas de modo algum era a vontade déle ir agora; irá, porém, quando se Ihe deparar boa oportunidade.

Mencionando a oferta em favor dos pobres, Paulo referiu sua próxima visita a Corinto. Agora detem-se a esclarecer mais os planos que visa executar. Em vez de deixar Éfeso mais cedo e viajar diretamente, rumo ao ocidente, a Corinto, acha necessário prolongar sua estada alí, propondo-se agora ir via Macedónia. Frisa o fato de que deverá "percorrer a Macedónia", seja para indicar uma modificagáo em seu pla- no, seja para mostrar, como alguns supoem, que sua viagem será uma excursáo evangelística, visando com ela completar o trabalho comegado em sua primeira missáo.

outra razáo para demorar-se em Éfeso. Se fór imedia- tamente a Corinto, terá de tratar com severidade os membros daquela igreja. Deseja dar-lhes tempo bastante para resolve- rem alguns dos problemas sérios a que se referiu. Mas a causa principal da demora em Éfeso é que alí se oferecia agora, ao trabalho de evangelizagáo, boa oportunidade: "porque uma porta grande e oportuna para o trabalho se me abriu". Além disso, havia "muitos adversários", o que era mais uma razáo para se demorar lá, visto precisar combater ésses inimigos no interésse da obra.

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Embora protele assim a sua viagem a Corinto, sua visita a esta cidade nao será feita as pressas. Nao dése ja apenas passar pela cidade, mas permanecer por algum tempo. Os negocios da igreja alí demandam muita cautela, agáo ponderada e nao de afogadilho. Pode até passar o invernó e dar-lhes oportunidade a que o encaminhem ñas viagens que tenha de fazer, seja em demanda de Jerusalém, se ficar decidido, seja em diregáo do ocidente, a Roma, o que ele tanto almeja.

Timoteo fóra enviado a Corinto. Nao se sabe ao certo o tempo em que alí chegou, nem coisa alguma dessa visita. Se vier, pede o apostólo que o recebam cordialmente. Sua mocidade, sua natural timidez e sensibilidade, possivelmente sua falta de cultura podiam induzir os corintios a tratá-lo com descortezia. Lembra-lhes o apostólo que Timoteo está empenhado no servigo de Cristo, tanto quanto ele, e assim é digno da maior consideragáo. Sua missáo entre éles era delicada e difícil, porisso o apostólo insiste em que o man- dem de volta em paz.

Paulo gostaria de enviar-lhes um mensageiro mais idoso, como Apolo. Havia até instado com éste a que fósse. Mas Apolo recusou-se terminantemente. Parece que estava muito desgostoso com aquelas dissengoes partidárias em Corinto, as quais davam a entender ser ele rival de Paulo. Nada tinha a ver com essa rivalidade e porisso insistía em ir adiando sua visita áquela igreja até que a situagáo amainasse e se mos- trasse mxais favorável. Nésse ínterim Timoteo foi enviado. É com profunda solicitude que Paulo aguarda o relatório que ele e seus companheiros Ihe traráo.

C. Exortagoes e Saudagoes Fináis. Cap. 16:13-24.

13 Sede vigilantes, permanecei firmes na fé, por- tai-vos varonilmente, fortalecei-vos. 14 Todos os vossos atos sejam feitos com amor. 15 E agora, irmáos, eu vos pe?o o seguinte: (sabéis que a casa de Estéfanas é as primicias da Acaia, e que se consagraram ao servido dos santos), 16 que também vos sujeiteis a esses tais, como também a todo aquéle que é cooperador e obreiro. 17 Alegro-me com a vinda de Estéfanas, e de Fortunato e de Acaico; porque estes supriram o que da vossa parte faltava. 18 Porque trouxeram refrigério ao

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meu espirito e ao vosso. Recoiihecei, pois, a homens como estes. 19 As igrejas da Asia vos saúdam. No Se- nhor muito vos saúdam Aquila e Priscila e, bem assim, a igreja que está na casa déles. 20 Todos os irmáos vos saúdam. Saiidai-vos uns aos outros com ósculo santo. 21 A saudagáo, escrevo-a eu, Paulo, de próprio punho. 22 Se alguém nao ama ao Senhor, seja anáte- ma. Maranata! 23 A graca do Senhor Jesús seja con- vosco. 24 O meu amor seja com todos vós em Cristo Jesús.

Chegando ao ponto em que vai encerrar sua epístola, Paulo faz exortagoes concisas, de sentido bem claro, como se foram ordens a soldados: vigiai, estai firmes, sede corajosos, fortes, bondosos. Expressa o imenso prazer e o grande alivio que experimentou com a presenga e as mensagens dos dele- gados de Corinto. Menciona particularmente Estéfanas que, juntamente com sua familia, fóra o primeiro grego convertido a Cristo e que se devotara em servir á Igreja. Paulo insiste que tais homens sao dignos de toda a deferencia. Podem ser ouvidos e obedecidos sem recelo algum.

A primeira das saudagoes fináis procede das igrejas da Asia; nao sómente de Éfeso, como de toda a provincia. Paulo nao visitara todas aquelas comunidades cristas, todavía es- tava rodeado de representantes seus e, destarte, conhecia como aquelas igrejas simpa tiza vam com os corintios. Paulo gostava de enlagar assim as igrejas, servindo-se de expressoes chelas de amor. A segunda saudacáo enderegam-na Aquila e Prisca, amigos pessoais do apostólo. Devem os corintios lem- brar que éste casal hospedou a Paulo, enquanto esteve. Depois, haviam arriscado a vida por ele. A saudagáo de Aquila e Prisca junta-se a de toda a sua familia e de todos os cristáos efésios que, na sua casa hospitaleira, se reunem para o culto. Segue-se a saudagáo de toda a irmandade de Éfeso: "Todos os irmáos vos saúdam".

Quando ouvissem 1er estas saudagoes de afeto espiritual, os corintios estavam convidados a expressar, por sua vez, seu companheirismo em Cristo, mediante a saudagáo cerimonial do "ósculo santo".

E chega o momento de Paulo, com solenidade, apor ao manuscrito o sinal de próprio punho, sua saudagáo autogra- fada. Esta consiste (1) no título: "A saudagáo, escrevo-a eu, Paulo, de próprio punho". (2) Segue-se um duplo moto, cuja

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primeira cláusula declara maldito, "anátema", quem quer que professe crer em Cristo, mas nao sinta por Éle real afeicáo. A segunda cláusula consiste em duas palavras ara- maicas "Maraña tha" multas vézes traduzidas: Senhor, vem!" Traz isto á lembranga a súplica final do Apo- calipse: "Vem, Senhor Jesús". Há, por outro lado, quem entenda essa expressáo aramaica como significando urna pro- messa profética: "O Senhor vem", "sua volta se aproxima", ''perto está o Senhor", "Maraña tha".

(3) Havendo declinado a grande senha da Igreja, usada nesta expectativa da vinda do Senhor, Paulo acrescenta sua béncáo, e o faz empregando suas palavras favoritas de des- pedida: "A graca do Senhor Jesús seja convosco". E como nao fez em nenhuma outra de suas epístolas, poe o ponto final com palavras de ternura e amor. Fóra compelido a censurar severamente os leitores, por causa de suas desaven- gas, mas agora assegura a todos éles o seu afeto: "O meu amor seja com todos vos em Cristo Jesús. Amém".

F I M

Éste liyro foi composto e impresso

em Dezembro de 1956. ñas oficinas

GRÁFICA MERCÚRIO S. A. Al. Cleveland. 3^3 - Sao Paulo - BraaU

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