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QUADEOS

DE

HISTORIA PORTUGUEZA

906 -Imprensa Nacional -1879

QUADE08

I>E

HISTORIA POPJUGUEZA

POB

1. F. SILVEM DA 510TA

soão EFFECnVO DA ACADEMIA REAL DAS SCÍENCIA3 CORRECTi £ MIITO AIGMEMiDi

LISBOA

EM CASA DE A. il. PEREIRA, RVA AUGUSTA, 50 A 52

1879

INTEODUCÇÃO

Eta dous grandes cyclos pôde naturalmente dividir-se a historia portugueza; cada um dos quaes abrange algumas epochas mais ou me- nos importantes; no primeiro a nação con- stitue-se, desenvolve-se, fortiíica-se, estende o-seuLpoder peias terras de Africa, senhoreia ignotos mares, dieta leis ao Oriente, ganha vastos- e productivos terrenos na America, abre caminho ao engrandecimento dos outros povos da Europa, e a final decáe rapidamente até chegar á sepultura de 1580; no segundo resurge, reconquistando n'um dia a antiga independência politica, e procurando depois rehaver^no decurso de séculos, não o pode-

6 INTRODUCÇÃO

rio de outras eras, mas os foros de liberdade, e a robustez e firmeza, que são os meios mais poderosos com que as nações, assim como os individuos, podem luctar contra a adversidade e vencei-a.

Traçando este humilde esboço histórico, quiz o auctor rememorar alguns factos e al- gumas phases do primeiro cyclo, que julga mais fecundo em lição e exemplos. Os instin- ctos imperiosos, definidos, efiicazes dos pri- meiros tempos da monarchia, os actos de abnegação, de perseverança, de intrepidez, de soffrimento, e ás vezes também os de vio- lência e ferocidade, que caracterisam aquellas rudes epochas, as experiências lentas e cus- tosas com que a nação se educou para chegar de frágil infância a virilidade robusta, os ousados commettimentos, as heróicas temeri- dades, áquem e alem dos mares, que lhe deram poderio, opulência, magestade e gloria, os erros e abusos que a despenharam em abysmo de infortúnios, as varias scenas, emfim, d'es-

INTRODUCÇÃO 7^

se longo drama de quasi cinco séculos, consti- tuem o mais rico thesouro das nossas recorda- ções históricas. Convém, pois, tel-o sempre presente, sobretudo na actual conjunctura. Quando, nomeiodas dissensões partidárias, dos erros politicos e das aberrações populares, nos fere os ouvidos a ameaça de que a nossa in- dependência não pôde durar muito, é justo e útil buscar no estudo dos fastos nacionaes os titules do nosso direito, a memoria do que fizemos, e porventura nobres estimules para que os nossos progressos intellectuaes e moraes mostrem ao mundo que, se não somos potencia marítima ou continental, pe- sando com decisiva força na balança dos acontecimentos politicos, queremos, todavia, e devemos ser respeitados pela sciencia, pelo trabalho, pela energia, pelo amor da liber- dade, pela severidade dos costumes, únicas armas com que o espirito da nossa epocha ensina as nações civilisadas a combaterem em lucta generosa.

^ INTRODUCÇAO

Possa esta tentativa não ser de todo frus- trada, e servir ao menos de incentivo para que obreiros mais robustos levantem o mo- numento grandioso das tradições nacionaes.

QUADEOS

DE

HISTORIA PORTDGUEZA

I

FUNDAÇÃO DA MONARCHIA

Bem como a vida dos indhiduos a vida dos povos é dilatada ou curta. Assim muitas na- ções, que existiam robustas e altivas durante a^edade média, annullaram-se ou desappare- ceram, absorvidas umas por estados mais poderosos, desmembradas outras pelas con- veniências politicas; e Portugal, apparente- mente débil na origem, mas que por mila- gres de esforço e de perseverança chegou a constituir a nação mais forte e audaz da Eu- ropa-, vive ainda, e encontrará a sua defen- são em saberem seus filhos repellir, com energia, quaesquer suggestões traiçoeiras ou

10 FUNDAÇÃO

tentativas violentas contra a terra que livres herdaram, e onde livres querem morrer.

Qual tem sido, porém, a causa d'essa lon- ga vida, d'esse vigor da juventude e da eda- de viril, d'essa tenacidade que se conserva ainda no outono da existência ? É o que procu- raremos descobrir, examinando rapidamente a historia dos seus primeiros annos.

Logo que o império wisigodo se desmoro- nou ao embate impetuoso do fanatismo dos árabes, a reacção christã e européa começou immediatamente. Desde a batalha do Grys- sus até o recontro de Cangas de Onis medeiou curto espaço, mas tanto bastou para que os mussulmanos gastassem nas dissensões intes- tinas o provado valor, e para que os godos, retemperados pelo infortúnio, recuperassem a ousadia e firmeza, que são as mais seguras armas dos povos ameaçados na sua existên- cia. O poderio christão foi, pois, crescendo de novo e prosperando, lenta mas persisten- temente, e já, meado o século xi, Affonso VI reinava sem resistência nas Astúrias, GalUza, Leão 6 Gastella, e conquistava ou fazia tribu- tarias as principaes cidades e provincias dos sarracenos da Península.

DA MONARCHIA il

Para as famosas batalhas d'aquelles tem- pos muitos cavalleiros francezes atravessa- ram os Pyriaeos. Impellia-os a tendência guer- reira e aventurosa da epocha; animava-os a idéa religiosa, que attrahia a pelejar contra os infiéis quaníos homens de viva tinha a Europa; dava-lhes esforço, porventura, a esperança de encontrarem fortuna n'um paiz onde, no tumultuar de incessantes combates, se offereciam frequentes conjuncturas para adquirir riqueza e gloria. Entre os estrangei- ros mais notáveis vieram a Hespanha Ray- mundo, conde de Borgonha, e Henrique, seu primo co-irmão. Ao primeiro deu Affonso em casamento sua filha D. Urraca^ havida da rainha Constância, encarregando-o ao mesma tempo do governo da Galliza e da terra por- tugalense; a Henrique concedeu D. Thereza, sua filha bastarda e da nobre dama Ximena Muniones, entregando-lhe com esta alhança o governo do districto de Braga, como con- dado dependente de seu primo. Em breve, porém, todo o território desde as margens do Minho até as raias da provincia conhecida entre os árabes pelo nome de Al-Gharb, foi destroncado definitivamente da Galliza, para

iW FUNDAÇÃO

constituir um vasto senhorio, regido pelo conde Henrique, e sujeito apenas á suprema- cia da coroa leoneza.

O illustre cavalleiro francez applicou pro^- vavelmente então toda a actividade em pro- ver as mais urgentes necessidades do seu dis- tricto, repellindo as invasões dos sarracenos, concedendo foraes a differentes povoações, e tomando, emíim, as disposições que a expe-, riencia d'aquelles tempos ensinava para a de- fensão e segurança das fronteiras, e postoqne a viagem que emprehendeu á Syria nos pri- meiros mezes de 1103 devesse retardar a suai influencia e conquistas, é certo que em 1 106, havia concebido as idéas de engrandecimento e independência, a que deveu acaso Portugal a sua existência como nação. O pacto secreto celebrado entre elle e Raymundo para a re^ partição dos estados -do sogro^ alliança que 'a: morte do conde de Galliza inutilisou; as sgIíh citações perante Aífonso VI moribundo ; e fi- nalmente o modo por que soube valer^se das» discórdias civis a que o fallecimento dorei de Leão deu origem, ligando-se ora comiDu.Ur^ raça, ora com o monarcha de Aragão, e ainda com os fidalgos de GalUza, traduzem o exclu-

DA MONARCHIA 13

sivo intuito de converter o senhorio, que Ibe fora concedido para reger como simples cônsul, em núcleo de um estado robusto e poderoso. E no meio das tempestades politi- cas que varreram o solo ensanguentado da Peninsula durante o governo de D. Urraca, te- ria de certo satisfeito esses arrojados desígnios se a morte não viesse por termo á carreira das suas ambições.

Fallecido Henrique (1 de maio de 1114), e contando o infante Afíbnso Henriques apenas -três annos de idade, tomou D. Thereza o go- verno, e com elle o encargo de continuar o pensamento politico do marido. Apresentava- se árdua e arriscada a empreza, mas a filha de AíTonso VI não desdizia das nobres tradições da sua raça. Cercada dos seus vassallos, iden- tificada com certo instincto de nacionalidade, que então animava todos, ambiciosa, astu- ta, enérgica e tenaz, luctou durante qua- torze annos para manter a independência da terra em que lhe chamavam rainha. Sub- mettendo-se ao rigor das circumstancias, in- clinou por vezes o collo á soberania da corte leoneza; mas não hesitando em quebrar so- lemnes promessas, o que aliás era frequente

14 FUNDAÇÃO

n'esses tempos de bruteza, e ainda hoje não é raro a despeito da civilisação, recusou sempre a obediência quando julgou possivel resistir. Seguindo, emfim, o caminho tra- çado pelo conde Henrique, alimentou habil- mente rivalidades e rancores entre sua ir- mã D. Urraca e o cubiçoso e soberbo bispo de Compostella, e não obstante os damnos e ca- lamidades provenientes das invasões de chris- tãos e sarracenos, augmentou a extensão dos seus domínios ao oriente e ao norte, dando- Ihes ao mesmo tempo incremento em popula- ção, em riquezas e em forças militares.

A affeição intima a Fernando Peres, um dos mais illustres ricos-homens da Galliza, que- brou-lhe nos últimos annos a cadeia brilhante de uma vida aventurosa e feliz. Esquecida de que o terrível neto de Roberto de Borgonha deixara no mundo um successor do seu gé- nio, a formosa rainha entregara ao amante a administração dos districtos do Porto e Coim- bra, e é de presumir que lhe outorgasse tam- bém a supremacia sobre os outros condes ou tenentes do paiz. Nenhum acto indica, talvez, que a intervenção de Fernando Peres fosse desleal ou funesta para a independência da

DA MONARCHIA 15

província, que procurava desmembrar-se dos vastos estados leonezes; mas a fortuna do valido excitara desde o principio o desconten- tamento e ciúme dos barões portiiguezes, e estes, aproveitando o enthusiasrao de nacio- nalidade jà então radicado no povo, e a sede de poder que devorava Aííonso Henriques, lançaram entre a mãe e o filho o facho da discórdia, e accenderam a guerra civil, que, conforme notáveis indicies, começou eni 11 27, para se decidir, decorrido um anno, na bata- lha do campo de S. Mamede, junto de Guima- rães, onde o exercito de D. Thereza foi des- baratado, e ella ficou prisioneira.

Assumindo o poder que tanto ambicionara, o moço príncipe não se limitou a recusar obe- diência ao rei de Leão, cujo domínio toda a Hespanha chrístã e ainda parte da França mais ou menos reconheciam ; ousou invadir por vezes as províncias limítrophes, fundan- do-se, porventura, nas convenções feitas com seu pae, e sobretudo na posse que D. The- reza tivera dos districtos de Limia e Tuy. No meio de graves difficuldades, Affonso Vil, que por morte de D. Urraca empunhara ir- revocavelmente o sceptro de Leão e Castella,

16 FUNDAÇÃO

não pôde a principio impedir essas correrias, nem procurar submetter seu primo ; mas em breve, favorecido pela fortuna, aprestou ura numeroso exercito, e dirigindo-se aos terri- tórios de Galliza, avassallados pelos portu- guezes, repelliu de toda a província os in- vasores. Entretanto, apesar das vantagens obtidas, não se atreveu a proseguir na ag- gressão, e Portugal^ que n'aquelle tempo abrangia apenas metade do actual território, conservou sempre hasteado o pendão da in- dependência.

Assim duraram as cousas até que o anno de 11 37 viu de novo rebentar a guerra. Se- guindo a direcção do enthusiasmo popular e a do seu génio inquieto e bellicoso, Aífonso Henriques alliou-se com os condes Gomes Nunes e Rodrigo Peres e com o monarcha de Navarra, e emquanto este, quebrando a es- peoie de vassallagem que prestara, rompia as hostilidades contra AfFonso Vil, o príncipe portuguez caminhava de victoria em victo- ria, sujeitava os districtos meridionaes da GaUiza, desbaratava os mais illustres capitães inimigos, e iria avante em novas conquistas, se a tomada de Leiria pelos sarracenos e as

DA MONABCHIA. 47

suas trágicas consequências não lhe altrahis- sem a attenção para a defensa dos próprios estados.

Depois de asserenada a tempestade, que expunha parte das fronteiras ás irrupções dos árabes, Affonso Henriques voltou a Galli- za, onde estava também o rei de Leão; mas avistando-se em Tuy, os dous primos ce- lebraram pazes, e como de accordo volveram os olhos para mais nobre empreza : o pro- seguir n'essa longa, patriótica e tenaz cruza- da da Península contra os mussulmanos, lu- cta encetada havia mais de quatro séculos^ e cujas probabilidades de completo triumpho claramente se mostravam favoráveis áquelle dos dous contendores, que, combatendo pelo christianismo, tinha por si a força e o enthu- siasmo, fructo de convicções profundas e da certeza moral do dever.

A guerra contra os infiéis foi favorável ao filho do conde Henrique. Penetrando até o coração do Al-Gharb, onde nunca desde a in- vasão dos árabes os christãos haviam chega- do, ganhou a batalha de Ourique, e saldou assim com os sarracenos os últimos damnos recebidos. A tradição exagerou a pouco e

2

18 FUNDAgÂO

pouco o facto, engrandecendo por uma parte, por oulra atlenuando o numero dos pelejado- res, inventando apparições e milagres, e te- cendo uma notável lenda, que as regras da boa critica histórica irrefutavelmente con- demnam. Se as circumstancias, porém, são fabulosas, nem por isso foram pouco impor- tantes os resultados moraes d'essa batalha, que, habituando òs portuguezes a affrontar em campanha os agarenos, lhes deu animo e vigor para futuras conquistas.

Terminada esta empreza, volveu o intrépi- do principe á lucta com os leonezes. Apoz vários successos, em que a fortuna das ar- mas ora pendeu para AfFonso YII, ora para o infante de Portugal, o grosso dos dous exér- citos avistou-se perto de Val-de-Vez; mas o captiveiro dos mais insignes fidalgos de Leão, que em recontros singulares foram vencidos, a conhecida ousadia dos cavalleiros e homens de armas portuguezes, e emíim a vantajosa posição que estes occupavam, tudo isso e tal- vez algumas outras causas, que as memorias do tempo nos não dizem, constrangeram o or- gulhoso filho de D. Urraca a sohcitar a paz. JVjustaram-se então tréguas, deu-se liberdade

DA. MOXARCHIA 19

aos prisioneiros, restituiram-se os castellos reciprocamente conquistados, e os dous prin- cipes abraparam-se no campo de batalha.

Estes acontecimentos converteram a sepa- ração de Portugal em facto consummado e completo. Tomando o titulo de rei, que havia muitos annos recebia dos seus súbditos, Affonso Henriques realisou, emflm, o altivo pensamento concebido por seu pae, desen- volvido largamente por D. Thereza, e abra- çado com ardor pelos barões portugaezes; e quando em 11 4 3 os dous primos assentaram em Samora uma concórdia definitiva, o im- perador das Hespanhas ou de toda a Hespa- nha, como se intitulava nos seus diplomas Affonso VII, não pôde eximir-se de reconhecer a realeza do príncipe que pozera magestoso re- mate no edificio da independência portu- gueza.

Prevendo, todavia, futuras disputas sobre a legitimidade d'esse facto, que ahás nem as armas nem os tratados tinham conseguido im- pedir, Affonso I resolveu cohocar o throno á sombra do soUo pontiflcio. N'aquelles rudes tempos, em que a exaltação das crenças se associava intimamente com a ferocidade e

20 FUNDAÇÃO

soltura dos costumes, o poder dos papas tor- nára-se uma espécie de dictadura, que todos os monarchas christãos directa ou indirecta- mente reconheciam; e a influencia da corte de Roma era a espada suspensa por um fio sobre os thronos mais firmes, e ao mesmo tempo como que a columna de fogo, que diri- gia as dynastias recentes na carreira das suas ambições. Acceitando as doutrinas theocrati- cas então por assim dizer incontestadas, e aprovei tando-as para o intento quasi exclu- sivo a que se votara, o novo soberano fez homenagem do reino ao summo pontifice, promettendo obediência a S. Pedro, sujeição nominal mais supportavel do que o preito ao imperador, e depois de longas evasivas e ambiguidades, vicio que então caracteri- sava a politica da apostólica, alcançou a conQrmação da dignidade real por bulia de Alexandre 111 de 23 de maio de 1179.

A esse tempo havia o monarcha com- prado o titulo por bem caro preço em qua- renta annos de lides contra os infiéis. Depois da larga campanha com o império leonez os portuguezes tinham escolhido para theatro das suas emDrezas os territórios sarracenos;

DA MONARGHIA

21

á lucta da desraembração succedéra a de as- similação ; e as conquistas de Santarém, Lis- boa, Cintra, Almada e Palmella em 11 4 7, as de Alcácer do Sal e de Beja em 1158e 1162, 6 finalmente as de Évora, Serpa, Moura e Aljustrel em 116 6 haviam constituído a na- cionalidade portugueza com a seiva e robus- tez bastantes para resistir ás procellas que agitavam a Peninsula.

Taes são os lineamentos capitães da histo- ria da fundação da monarchia. Julgando im- parcialmente os homens e as cousas, não hesitamos em aflirmar, que o esforço dos portuguezes n'este longo periodo é uma das manifestações mais soiemnes d'essa tenacida- de assombrosa, que nem se inebria com o triumpho, nem desanima com os reveze^: d'esse affecto generoso e altivo, que nos leva a requestar os perigos como delicias, a affrontar a miséria e a morte para defender a terra que cobre as cinzas de nossos pães; d'essa abnega- ção nobilíssima, que no meio da rudeza da epo- cha conslitue gloria pura e immarcessivel. Vol- vamos, pois, os olhos para as velhas glorias da pátria. O trato dos que foram grandes e fortes livrar-nos-ha talvez do lethargo febrH que nos

22 FUNDAÇA.0 DA MONARCHIA

consome, revocar-nos-ha, porventura, á ener- gia social e aos vividos affectos de nacionali- dade. No meio da indifferença ou do terror, que cerca a geração actual, ouvem-se como que umas melodias suaves que vem conso- lar-nos dos males que nos affligem, e dar-nos animo e ousadia para arrostar as tempesta- des que se enxergam no futuro. É o cântico de recordações que nos legou o j>assado, re- cordações tanto mais fecundas, quanto nos alimentam a esperança de que este paiz tem ainda nobres destinos que cumprir antes de se envolver na Landeira do fundador da monar- chia, e de ir, emíim, occupar no cemitério da historia o largo jazigo das nações que morrem.

II

EMPREZA DE ALCÁCER 1217

Tomando sobre os hombros todos os en- cargos do penoso e arriscado officio de rei, D. Affonso II occupára os primeiros annos do seu governo em debellar as resistências do- mesticas tendentes a restringir as prerogati- vas da coroa e os interesses do fisco, e so- mente se lembrara das tradições guerreiras dos principes anteriores para enviar a Affon- so IV de Castella tropas numerosas, que na memorável batalha das Navas de Tolosa se. distinguiram entre as mais esforçadas pela audácia com que se arremessavam á refrega,, pela constância cora que resistiam ás fadigas^.

24 EMPREZA

pela tenacidade heróica com que aguardavam o embate dos adversados. Em Portugal, toda- via, não se tinham commettido contra os sar- racenos senão algumas inuleis correrias dos cavalleiros do Templo, de San-Thiago e do Hospital, ou dos concelhos mais próximos das fronteiras do Al-Gharb.

N'essas fronteiras Alcácer era como que a chave de toda a moirisma da Península, e o principal foco de resistência ao progresso das armasportuguezas. Governava estapraçaAbu- Abdallah-Ibn-Wasir-Ach-Chelbi, o mesmo ca- pitão, i Ilustre nas victorias e nos revezes, que em tempo de D. Sancho I sustentara o longo assedio de Silves, «e que acompanhara lacub a reconquistal-a. Com tão ousado vizinho os spatharios e os outros homens de armas, que habitavam àquem do Sado, a custo podiam repeUir as incessantes investidas, que trans- formavam aquellas immediações em vasto campo de batalha, onde no meio de torrentes de sangue se via fluctuar triumphante, ora o pendão de Mohammed, ora o estandarte de Ghristo. Para um golpe decisivo cumpria aos portuguezes empregar contra Alcácer forças importantes ; mas nem as propensões pouco

DE ALCÁCER 25

bellicosas do monarcha, nem o estado dos ne- gócios internos offereciam para tal empreza conjunctura adequada.

Tal era a situação das cousas quando entrou no Tejo uma poderosa armada que transpor- tava para a Syria alguns cruzados do Rheno. Os bispos de Lisboa e de Évora, o abbade de Alcobaça, o commendador de Palmella, mui- tos cavalleiros illustres, e vários membros das ordens do Templo e do Hospital instaram com os cruzados para que se demorassem em Portugal, e combatessem ahi os ismaelitas contribuindo d'esta sorte para a gloria do christianismo, e alcançando ao mesmo tempo mais avultados despojos do que na devastada Palestina. Accederam muitos ao convite, con- tinuaram outros a viagem, e a armada surta no Tejo ficou reduzida a cem navios. No en- tanto ao grito de guerra sancta alvoroçava-se todo Portugal, e os reis de Hespanha combi- navam-se para romper a um tempo as tregoas com os sarracenos.

Feitos os necessários preparativos, os con- des de Hollanda e de Withe, principaes capi- tães da frota estrangeira, fundearam no Sado, emquanto os dous prelados, o commendador

26 EMPREZA

de Palmella, e vários ricos liomens e infanções se dirigiam por terra Sobre Alcácer. No dia 3 de agosto de 1217, reunidas todas as forças, tratou-se logo do assalto. Construída no cimo de um monte despenhado, tinha a antiga Sa- lada duas ordens de fortificações ; e as gros- sas muralhas e torres que a circumdavam, as suas portas tecidas de ferro e carvalho, as tortuosas entradas, os fossos profundíssi- mos, tudo a tornava uma das praças, que, em relação á táctica d'aquelles tempos, podia considerar-se quasi inexpugnável. Todavia a crença no auxilio celeste e a emulação de es- forço davam tal vigor de animo aos sitiadores, que a seus olhos desappareciam obstáculos e perigos. Marcharam, pois, á escala, entulha- ram as valias, trabalharam com as machinas de guerra, abriram minas, levantaram tran- queiras, empregaram todo o género de in- strumentos para o assalto, e depois de re- nhidos combates se retiraram aos arrayaes. Assim correram os dias entre as diversas phases de prolongado assedio, quando a 10 de setembro chegaram em soccorro de Alcá- cer os governadores das provindas de Bada- joz e de Sevilha, os wahs de Jaen e de Xerez,

DE ALCÁCER 27

e OS cheiks de Sidónia, Ecija e Carmona, á frente de tropas escolliidas, as quaes se ava- liavam em quinze mil homens de cavallaria e quarenta mi] peões. Acampou o exercito sarraceno a uma légua de distancia dos si- tiadores, que se dispozerara logo para a de- fensa, construindo estacadas e fossos em volta do arrayal. Entretanto o desbarato dos chris- tãos seria inevitável se durante a noite não chegasse Pedro Alvitiz com muitos cavalleiros do Templo e do Hospital, vários fidalgos de Portugal e de Leão, e numerosa infanteria, bem armada e aguerrida. Com este auxiUo cobraram animo os cercadores, e aprompta- ram-se para a lucta, ainda assim desiguahs- sima.

Xa madrugada seguinte á vinda d'esse3 soc- corros os trezentos cavalleiros, que desde o começo tmham assistido ao cerco, sahiram a vigiar o campo e avizinharam-se dos pagãos, epiíheto com que na sua ingénua rudeza nos- sos avós designavam os mussulmanos. Desco- briram estes os portuguezes, e correram a perseguil-os. Firmes como o cedro ameaçado do furacão, os valentes guerreiros não recu- saram o combate, mas depois de porfiada bri-

28 EMPREZA

ga tiveram que desistir e retirar-se, porque o numero dos inimigos era cem vezes maior. Lançando ás costas os escudos, onde as frechas e dardos dos sarracenos ciciavam como gra- nizo espesso, vieram em vertiginosa corrida acolher-se ao acampamento. Entretanto os si- tiadores, vendo approximar os infleis, dispoze- ram-se para encetar a batalha. Foi na vasta campina em face de Alcácer que sarracenos e christãos se encontraram. Deixando a gente dos cruzados em redor das muralhas para obstar a alguma sortida dos sitiados, o mestre do Templo, o commendador de Palmella, os freires das três ordens miUtares ali reunidas, 6 os cavalleiros e homens de armas de Portu- gal e de Leão arremessaram-se denodados á multidão dos infiéis. Estes pararam diante de tal audácia, mas logo que o primeiro assom- bro se desvaneceu apinharam-se cegos de fu- ror, pretendendo envolver os temerários, que tinham ousado affrontal-os. Aos portuguezes, porém, a febre dos combates deslumbrava os ânimos, e ao travar-se a peleja julgaram ver no ar um tropel de cavalleiros, que como os templários traziam cruzes vermelhas nos am- plos e alvos mantos, e que com as espadas

DE ALCÁCER 29

percucientes prostravam os inimigos. A allu- cinação, dando-lhes a certeza da victoria, mul- tiplicou-lhes as forças, e em breve as fileiras dos mussulmanos, forçosamente desordena- das pela rápida carreira com que tinham acos- sado os exploradores, se dispersaram fugindo em completa derrota. Parte dos fugitivos pre- cipitaram-se no Sado, e as aguas devoraram muitos que o ferro talvez pouparia. Três dias durou a carnificina, perto de quinze mil cadá- veres juncaram o campo, e innumeraveis pri- sioneiros constituíram o despojo d'esta famosa batalha.

Soberbos com o triumpho, os christãos ten- taram de novo o assalto, mas a guarnição da praça, não obstante ter perdido todas as es- peranças de soccorro, resistiu com tal energia que os assaltantes tiveram que recuar. Co- nhecendo a impossibilidade de escalar aquel- les baluartes, os sitiadores estreitaram de no- vo o assedio, e assim gastaram ainda muitos dias entre combates e fadigas, até que Abu- Abdallah, vendo que todo o esforço dos seus não conseguiria manter por mais tempo os largos pannos de muros d'aquella arruinada fortaleza, propoz render-se. Acceitou-se a ca-

30 EMPREZA DE ALCÁCER

pitulação, mas foram duras as condições im- postas. Os habitantes ficaram captivos, os ricos despojos do sacco dividiram-se entre os sitia- dores, e a posse d'aquella importantissima praça foi para Portugal o resultado d'esta gloriosa empreza, que retumbou na Africa e na Europa como terrível resposta ás invasões de lacub no reinado de D. Sancho.

III

ULTDIOS ANN03 DE D. SA^-CHO II

Era deveras tumultuaria a situação do rei- no na epocha que pretendemos esboçar. Ban- dos de salteadores, para quem o viver era acaso e a morte espectáculo quotidiano, asso- lavam os campos, infestavam as povoações, e refugiando-se nos logares de asylo zomba- vam do castigo; os officiaes públicos, atlentos principalmente a saciar a própria crueldade e cubica, commettiara em nome do fisco toda a casta de prepotências; e a propriedade, in- vadida e devastada, em vão pedia segurança e invocava as leis. Na curte o desbarate das rendas publicas tornava desastrado e teme-

32 ÚLTIMOS ANNOS

roso O estad^ da fazenda, os ministros succe- diam-se rapidamente, e as luctas de valimento multiplicavam-se, não se astringindo à guerra de tenebrosos enredos, mas semeando cruen- tas discórdias, que depois encontravam nos solares, nos mosteiros, nas municipalidades, nos herdamentos, nas maladias, nos para- mos, terreno fértil para germinarem, cresce- rem e fructificarem. A anarchia, emíim, era por todo o paiz como os fogos de terreno vul- cânico; ao passo que n'uma parte se extin- guia o incêndio, rebentavam em outras tur- bilhões de chammas.

Dotado de Índole generosa, D. Sancho II procurara ao principio attrahir todos os âni- mos turbulentos e ambiciosos para um pen- samento unicO; collocando-se á frente dos barões, dos cavalleiros nobres, dos homens d'armas, da cavallaria e besteiros dos conce- lhos para continuar a guerra de crença e de raça, no seio da qual a nação surgira, e que parecia ser para ella um dos primeiros ele- mentos de vitalidade e robustez. Nos campos de batalha, sobresahindo entre os guerreiros mais esforçados, mostrára-se digno neto do fundador da monarchia, conquistara muitas

DE D. SANCHO 11 33

povoações mussulraanas de grande monta, taes como Elvas, Serpa, Juromenha, Aljustrel, Arronches, Mertola, Ayamonte e Tavira, e finalmente dera á auctoridade real o prestigio das victorias; mas as desordens do governo interno invalidaram em grande parte o resul- tado, das batalhas com que se dilatavam as fronteiras pelos domínios sarracenos. Depois o príncipe, que durante largo espaço quasi nunca descançára a espada de conquistador, e que ao mesmo tempo pretendera pôr em practica as severas leis de seu pae com rela- ção ao clero, deixara esmorecer o esplendor da gloria em annos de indolente repouso; e os prelados portuguezes aproveitando os des- contentamentos e perturbações que enfra- queciam a acção da coroa, começaram a tra- balhar com fundada esperança n'essa longa têa de enredos, de corrupção e de hypocrisia, cujo remate tinha de ser a deposição do mo- narcha.

Varias circumstancias, dentro e fora do paiz, auxihavam mais ou menos os desígnios facciosos. Consistia a principal na situação em que estava o papa, cuja intervenção era in- dispensável, não obstante ter Roma per-

34 ÚLTIMOS ANNOS

elido, pela clobrez e perfídia da sua politica, grande parte da força immensa que havia con- seguido com as virtudes austeras dos primiti- vos padres. A Gregório IX succedérana thiara Innocencio IV, intelligencia elevada e enérgi- ca, mas animo irascivel, ambicioso e indó- mito, que logo mostrara querer sustentar com vigor as antigas doutrinas de Gregório Vil e de Innocencio III. Era o novo papa aífeiçoado a Frederico II, imperador da Allemanlia, mas este viu no êxito da eleição a perda de um amigo, e não teve esperança de que termi- nassem as luctas implacáveis e frenéticas, que, accendendo a irritação em todos os ânimos, dividiam o sacerdócio e a realeza. De feito, depois de muitas negociações e tumultos, Innocencio, perseguido e expulso de Itália pelo imperador, e repellido de França por S. Luiz, de Hespanlia pelo rei de Aragão, de Inglaterra por Henrique III, dirigiu-se a Lyão, e ahi tratou logo de reunir um concilio para depor Frederico. No seu animo deviam, pois, causar profunda impressão as amargas quei- xas dos prelados portuguezes, e movel-o a desthronisar o principe que ousava resistir ao poder ecclesiastico, esquecendo-se não

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de que a sociedade civil era apenas imagem grosseira da sociedade catholica, mas até do signal de vassallagem, que oulr'ora se oífe- recêra á apostólica, e que tornava o paiz de certo modo tributário do sólio pontifício. As circumstancias internas favoreciam tam- bém a empreza. Os interesses oppostos, os ciúmes do poder^ os ódios que resultavam da vehemencia das paixões, a cubica^ a deprava- rão de costumes, o amor de licenciosa inde- pendência, todas as desordens communs em tempos de ignorância e fereza, achavam en- tão ensejo favorável para se patentearem com audácia ; muitos fidalgos, alem dos que haviam seguido a França o conde de Bolo- nha, eram adversos a D. Sancho; e o povo, oífendido pelo esforço brutal' com que os nobres exerciam impimes tanta oppressão, quanta lhe permittiam a extensão dos seus domínios e a fortaleza4os seus castellos, pa- recia indiíferente á sorte do monarcha. Final- mente D. Sancho, impellido pela mais enér- gica das paixões humanas, o amor contrariado e impetuosO; casara com a viuva de Álvaro Peres de Castro, D. Mecia Lopez, filha do se- nhor de Biscava, Lopo Dias de Haro, e de

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D. Urraca, bastarda de Affonso IX de Leão; e esse consorcio augmentàra ainda a desorga- nisação interna do reino, pela desigualdade da allianpa, e pelas emulações e despeitos que desde logo suscitara.

Em tal conjunctura faltava aos conspi- radores encontrar um chefe, capaz de sub- stituirno throno o desditoso monarcha. D. Af- fonso, irmão de D. Sancho, e conde de Bolo- nha pelo seu casamento com a condessa Ma- Ihilde, foi o indigitado. Talento militar e po- litico, tinha sido elle um dos que mais se ha- viam distinguido na famosa batalha de Saintes, dada por S. Luiz a Henrique III de Inglaterra; ambição enérgica e tenaz, podia pela no- breza do nascimento, pela Índole altiva e va- lorosa, e pela influencia dos fidalgos que de Portugal o tinham acompanhado, reunir em volta de si todos os interesses feridos, e ser ef- ficaz instrumento do trabalho dos conjurados.

Julgando, portanto, o terreno preparado, e tendo a quasi certeza de realisar ampla- mente esperanças por muito tempo aíTaga- das, partiram para Lyão os prelados do Porto e de Coimbra e outros descontentes a re- unir-se com o arcebispo de Braga, e ahi se

DE D. SANCHO 11 37"

queixaram ao pontiíice, attribuindo a D. San- cho o estado lastimoso a que havia chegado o reino. Acolheu Innocencio de bom grado os prelados portuguezes, predisposto em seu favor pelas negociações anteriores^ expoz o assumpto ao concilio, e na semana immediata ao encerramento d'essa notável assembléa^ expediu aos barões, concelhos, cavalleiros e povo de Portugal uma bulia, declarando os vários delidos praticados por D. Sancho, e nomeando para a regência do reino o conde de Bolonha.

Escudado com as comminações do pontífi- ce, e depois de ter assignado as vergonhosas promessas de subserviência ao poder absolu- to, ihimitado, omnimodo do clero, promessas que esqueceu quando viu que o podia fa- zer sem perigo, partiu D. Affonso para Portu- gal, onde de feito chegou nos princípios de 1246. Não alcançou, porém, immediatamente a reahsação dos seus desejos. Muitas povoa- ções importantes sustentaram seu preito ao monarcha, muitos cavalleiros-villãos e bes- teiros dos municípios resistiram á usurpação, e entre os próprios membros do clero encon- trou D. Sancho quem não fraqueasse ante as

38 ÚLTIMOS ANNOS

poderosas armas do conde de Bolonha, e o stygma espiritual das censuras.

Teve, pois, o infante de recorrer, por um lado aos assédios e batalhas, por outro ás da- divas, ás promessas, ás seducções de toda a espécie; e se em muitos cavalleiros e alcai- des de castellos os cálculos interesseiros, as ligações de parentesco, a recordação de an- tigos aggravos tomaram o passo sem escrú- pulo ás mais justas considerações, alguns houve também que pelo nobre procedimento constituem exemplos memoráveis de lealdade e energia. A defensa de Coimbra por Martim de Freitas, em que este teve de vencer a audácia e vantagem dos sitiadores, e o des- alento e desespero da própria guarnição, abatida pelas fadigas, pela fome, pela sede, e acaso pelos terrores que gerara o anathe- ma pontifício, é d'aquelles grandes factos que symbolisam uma epocha; mas quando a tra- dição não referisse outros, ou quando a todos faltassem bons testemunhos históricos, a diu- turnidade da contenda, em tempo que não existiam exércitos permanentes, provaria por si o denodo e constância dos lieis partidá- rios de D. Sancho.

DE D. SANCHO II 39

Apesar de tudo, porém, a fortuna das ar- mas pendeu para o lado do infante, e o infe- liz monarcha, depois de se ter defendido com a coragem que sempre mostrara no fervor dos combates, teve, emíim, de soccorrer-se á alliança com Castella. Um corpo de tropas castelhanas, capitaneado pelo valente con- quistador de Murcia, o filho primogénito de Fernando ÍII, e de que também fazia parte Diogo Lopez de Haro, irmão de D. iMecia, veiu dar novo alimento á guerra, que se protra- háii-até os fins de 1247. Chegou tarde, com- tudo, esse soccorro. A ambição e astúcia de D. Affonso, juntas a valor intrépido, tinham aproveitado todos os recursos para se firmar em bases solidas o novo poder, e os intuitos generosos, tanto da invasão, como das dili- gencias perante a cúria romana, a que ainda recorreu o príncipe castelhano, foram com- pletamente mallogrados.

Vergado o animo pela desdita, D. Sancho preferiu o desterro a viver captivo na pátria, debaixo do jugo do irmão, e escolheu Toledo para residir. O exilio veiu então completar- Ihe a escola do infortúnio. O orgulho oíTendi'- do, o desejo de vingança, a compaixão pelas

40 ÚLTIMOS ANNOS

desgraças da pátria, os remorsos dos erros commettidos, as vãs esperanças, emflm, que nunca abandonam^o desgraçado, rebatiam-se, travavam-se, recuavam, succediam-se, con- suraindo-lhe o coração. As memorias sau- dosas da terra de que fura senhor, gravadas como sêllo de amargura no intimo da alma, tornavam-lhe detestável o presente pelo con- traste do passado. Capitão victorioso em mui- tos combates, flagello e terror dos sarracenos, tinha-se engrandecido com gloriosos feitos de armas no conceito de amigos e de inimigos, de naturaes e de estranhos: depois conhe- cera por dolorosa experiência as intrigas da politica, as conspirações dos partidos, as in- gratidões e perfídias dos validos, o ciúme e rancor dos despeitados; e a final via-se des- honrado por uma sentença calumniosa e in- famante, desprezível para o povo que ap- plaude o triumpho, e podendo a custo des- afogar em actos de piedade e penitencia a dor causada na sua alma pelos vicios, pelas tor- pezas, pelas traições, pelas negruras d'aquel- les de quem mais devia esperar lealdade e verdadeiro affecto. Na solidão irremediável do desterro abre-

DE D. SANCHO II 41

viou-se-ltie a existência, a fronte curvou-se para a terra, e antes de passar um anno de- pois de foragido (janeiro de 1248) falleceu em Toledo, pedindo em testamento que o se- pultassem no mosteiro de Alcobaça, onde ja- ziam as cinzas paternas. Nem essa ultima vontade, porém, lhe foi cumprida. Ha infor- túnios que perseguem o homem ainda alem da campa.

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CORTES NO TEMPO DE D. AFFONSO H 12ÕO a 1273

Desde a invasão dos wisigodos existiram nas Hespanhas as juntas, cúrias solemnes, concilios ou parlamentos, que moderavam o poder do rei, e de alguma forma exerciam funcções de soberania. Essas assembléas, po- rém, eram unicamente compostas dos prela- dos seculares e regulares, e dos próceres ou chefes da nobreza. O alto clero escorava o seu poder nos privilégios que lhe estavam vinculados, na opulência dos próprios domí- nios, e na influencia dos interdictos e excom- munhões, que, conforme o pensamento theo-

44 CORTES NO TEMPO

cratico dominante então na christandadCy aterravam indistinctamente o throno e as multidões. A casta nobre estribava a sua for- ça na linhagem, nas riquezas, nos feitos de ar- mas, e sobretudo nas instituições e costumes, que, recordando a cada momento a auctori- dade dos antigos capitães das hostes germâ- nicas, davam immenso prestigio aos seus descendentes. Estas duas classes tinham communidade de interesses; ambas possuíam castellos e senhorios ; ambas se compunham de homens de guerra ou os dirigiam ; ambas, digamos assim, se confederavam por esse imperioso instincto de vida, que se nos corpos collectivos da mesma sorte que nos individues. Os burguezes, os homens de tra- balho, os villãos nada pesavam na balança das graves questões do estado; repeUidos de toda a escala nobiliária, aptos apenas para as contribuições de sangue, dinheiro e ser- viços, não eram considerados como elemento pohtico. A mesma exclusão continuou depois da resurreição da monarchia gothica nas ás- peras serranias das Astúrias, e da sua gra- dual expansão pelos territórios sujeitos ao dominio sarraceno, e nos fins do século xii

DE D. AFFONSO III 43

é que no reino de Leão foram admittidos nas assembléas politicas os procuradores ou representantes das communas. Os phenome- nos especiaes que distinguem a Índole dos diversos estados da Península reproduziram- se em Portugal, e o antigo uso wisigolhico leonez de somente se convocarem para a cú- ria os membros da ordem ecclesiastica e da principal nobreza prevaleceu ainda nas cor- tes congregadas em Coimbra, nos fins de 1228 ou princípios de 1229.

A D. AÍTonso III coube a gloria de prose- guir e desenvolver o systema dos reis seus antecessores a favor dos municípios, por meio íle leis e providencias, na verdade grosseiras incompletas, mas que, apesar da sua im- perfeição, crearam seguros abrigos para as classes populares, e organisaram de modo duradouro a resistência dos foros de liberda- de contra as violências dos poderosos, resis- tência que o direito publico dos nossos tem- pos tem confiado, nem sempre efficazmente, á ficção das garantias individuaes. D. Affonso obtivera a coroa das mãos do clero e da fidal- guia, à custa de concessões e promessas one- rosas e nocivas ; os laços sociaes, assaz fra-

46 COUTES NO TEiMPO

geis n'aquelias eras pela rudeza e desharmo- nia das instituições, haviam-se tornado ainda mais frouxos pelos acontecimentos dos últi- mos annos; o paiz, empobrecido e devasta- do, continuara nas mesmas circumstancias que tinham dado origem ou pretexto á guerra civil no reinado antecedente ; para contraba- lançar, todavia, tantos perigos o ambicioso successor de D. Sancho II forcejou por mos- trar-se digno do poder supremo, multiplican- do o numero dos concelhos, outorgando-lhes privilégios e franquias, convertendo-os em- íim, n'uma entidade politica, audaz, enér- gica 6 poderosa. Esse pensamento que se re- vela em todos os actos do monarcha, faz com que desviemos os olhos da ausência completa de escrúpulos, que lhe macula o caracter, para admirarmos principalmente a ousada e fecunda miciativa. O seu reinado foi epocha de verdadeiro progresso na agricultura, no com- mercio, no avultado incremento da riqueza, nas relações da vida civil, na organisação da justiça, no melhoramento da fazenda publica; quando, porém, não offerecesse todas essas circumstancias importantes e grandiosas, me- receria ainda assim a attençao da historia

DE D. AFFONSO i:i 47

pelo modo por que então se fortaleceram os grémios municipaes.

Grande parte dos actos legislativos de D. Aífonso 111 deriva das curtes celebradas no seu reinado. São as primeiras as de Guima- rães de 1250. Estas curtes foram convocadas, a fim de remediar as largas feridas, que a guerra civil e estrangeira rasgara no corpo do paiz, dando terrível incremento ás diíii- culdades politicas e económicas, às rixas das linhagens e dos individues, e aos hábitos de ferocidade e rapina, vulgares por aquelle tempo até no seio da paz. A lucta constante em que viviam não as classes privilegia- das, mas até as povoações do mesmo paiz e 03 habitantes da mesma povoação^ espectá- culo que ainda nos entristece, não obstante apparecer-nos atravez do nevoeiro de tantos séculos, o desequilíbrio entre os diversos elementos políticos, a barbaria moral, que baralha e confunde muitas e grandes virtudes com a perversão e fereza dos costumes, a ignorância extrema, que lavrava por toda a parte, na nobreza por systema, no clero por negligencia, no povo por carência absoluta de ensino, tudo tornara necessária e instante

48 CORTES NO TEIVIPO

a convocação de uma assembléa, onde se tratasse de contrapor diques a essa torrente de calamidades. Dos assumptos ahi ventila- dos restam-nos os queixumes do arcebispo de Braga sobre os aggravos feitos em geral ao clero; os artigos especiaes offerecidos pelos bispos da Guarda, Porto e Coimbra; as respectivas respostas do monarcha; a lei de 24 de janeiro de 1251, que, como o indi- cam fortes probabilidades, contém as deci- sões tomadas sobre os aggravamentos da no- breza ; e acaso ainda outras leis d'esse reina- do, ás quaes não se pôde designar data pre- cisa. Infere-se d'esses documentos que, ape- sar de não serem adoptadas as providencias severas que as circumstancias porventura exi- giam, se coarctaram ao menos, até onde foi possível, alguns abusos, e se cohibiram os rou- bos e assolações, que se praticavam (em vir- tude dos homizios entre solar e solar) contra os pacíficos e indefesos agricultores das res- pectivas bonras ou terras senhoriaes.

Na primavera de 1254 convocou D. AíTon- 80 III novas cortes, que se reuniram em Lei- ria. Pouco tempo funccionaram ellas, mas esse curto praso empregou-se em satisfazer ás

DE D. AFFONSO III 49

queixas e petições dos povos, revalidar os privilégios e immunidades de alguns conce- lhos, confirmar doações, outorgar reparação aos aggravos de vários mosteiros, promover, emfim, a povoação do reino, especialmente no Alemtejo, fazendo renascer das suas cin- zas as antigas villas e aldeias, creando outras novas, e aítrahindo para aquelles centros fa- mílias que cultivassem os campos, e edificas- sem os burgos, os villares, os casaes, as ha- bitações insuladas.

Das curtes celebradas n'esse anno, e talvez das de 1250, data o serem chamados a intervir nos parlamentos nacionaes os procuradores ou deputados dos municípios. O povo, humilhado pela nobreza e pelo clero, porque os fragmen- tos de feudalismo, que penetraram em Portu- gal, trouxeram os males eoppressÕesd'aquelle systema, sem que trouxessem os seus benefí- cios, ergueu, a final, a voz, por meio dos seus representantes, ao lado dos bispos, dos mes- tres das ordens mihtares, dos opulentos abba- des, dos poderosos vassallos da coroa ; invocou os direitos, que lhe competiam; aíTirmou a sua importância e valor; e ao mesmo tempo trans- formou de algum modo o conflicto de interes-

50 CORTES NO TEMPO

ses locaes em unidade e harmonia de inte- resses communs. No meio da sua humildade, sob o peso, até, de toda a casta de extorsões, os grémios populares tinham-se robustecido lenta mas incessantemente ; com a protecção do rei e a ingerência na resolução das ques- tões politicas constituíram desde logo entida- des moraes, fortes e activas; e se a sua in- fluencia no progresso social da nação não foi nem podia ser prevista até á derradeira con- sequência, é certo, comtudo, que immediata- mente se patenteou como elemento impor- tante contra as violências dos poderosos. Para esta alliança do soberano com os con- celhos, alliança que começara no berço da monarchia, e que se tornou estreita e intima no reinado a que nos referimos, existiram só- lidos motivos. Não resultariam elles de uma convicção profunda e permanente, de um ra- ciocínio lógico e preciso, mas provieram ao menos de uma espécie de instincto, que as resistências dos barões e dos prelados natu- ralmente suscitaram nos monarchas. D. Af- fonso III, ligando-se, pois, com os municí- pios, para resgatar o throno das mãos da aristocracia, fortalecer e organisar a socie-

DE D. AFFONSO III 5f

dade, deu um grande passo para a tremenda lucta, que, partindo em pedaços a escala im- mensa do privilegio, terminou, decorridos dous séculos, pela ruina da nobreza no reina- do de D. João II.

Era 1261 levantaram-se geraes clamores, pedindo a convocação de cortes, a fim de n'ellas se ventilar o direito que a coroa se arrogava de britar moeda, direito que con- sistia era alterar o valor nomúnal da antiga, ou em refundir a prata e devolvel-a à cir- culação com augmento de liga. em 1254 D. Affonso 111 tentara lançar mão d'esse rui- noso systema, que em toda a Europa os prín- cipes tinham adoptado para satisfazerem as necessidades do fisco ou accumularem the- souros; fora, porém, constrangido a ceder diante das resistências da fidalguia e do cle- ro, e promettêra conservar por sete annos a moeda antiga sem quebra ou mudança algu- ma. Findo este praso, procurou de novo re- correr ao mesmo expediente, mas as recla- mações dos súbditos obrigaram-n'o a convo- car as cortes para Coimbra, onde de feito el- las se reuniram nos princípios de abril d'esse anno de 1261. Depois de larga discussão em

S2 CORTES NO TEMPO

que por uma parte se pretendeu legitimar o fado de quebrar moeda, allegaudo-se o di- reito consuetudinário dos reis de Portugal e Gastella; e em que por outro lado se ponde- raram energicamente os damnos e gravames, que nas transacções e em Iodas as outras phases da economia particular e publica pro- duziam aquellas fluctuações do valor mone- tário, convenciono u-se que ás moedas antigas fosse restituído o primitivo preço, que nunca mais n'ellas se fizesse alteração, e que as no- vas moedas cunhadas valessem com refe- xencia aquellas na proporção de quatro para ires. Para compensar o desfalque que essas resoluções iriam de certo causar nos cofres do erário, empobrecido pelas largas doações feitas á nobreza, a qual absorvera em grande parte os bens da coroa, estabeleceu- se um imposto sobre a propriedade, que one- rou exclusivamente a classe popular, mas que esta ainda assim acceitou de boa von- tade, como único meio de evitar os deplora- xveis eíTeitos da viciação da moeda.

As ultimas cortes d'este reinado foram ce- lebradas em Santarém pelos fins de 1273. í)'ellas nos restam a lei de 18 de dezembro

DE D. AFFONSO III 53

d'esse anno, constituindo uma espécie de al- çada, á qual se derara poderes para correger e emendar os males do reino; e a revalidação da provisão de 1265. exceptuando das adiías ou anúduvas certa classe de pessoas, e orde- nando que ninguém estivesse sujeito a esse penoso tributo de serviço pessoal senão em tempo de guerra ou de extrema necessidade. Esta assembléa, convocada para protrahir o momento de tomar uma resolução definitiva sobre as queixas do clero e as exigências do pontífice Gregório X, não deu origem a outros actos legislativos, que possam com certeza attribuir-se-lhe.

Taes foram as cortes celebradas em tempo de D. Aífonso lII, assembléas deveras impor- tantes, que marcam uma epocha notável na historia das nossas instituições politicas. Tal foi o primeiro symbolo e o mais antigo ensaio do nosso governo representativo. Tal foi a origem d'esse terceiro estado, a que se cha- mou o Braço do Povo, elemento humilde mas enérgico, que, crescendo e fortalecendo-se ao supro das procellas e atravez das transfor- mações sociaes, produziu no fim de seis sé- culos a arvore robusta da hberdade.

INSTITUIÇÃO DA ORDEM DE CHRISTO 1319

A idéa de conquistar e defender os logares sanctos, idéa generosa e enthusiastica, que se- ria fecunda em benéficos resultados, se nas formulas que a traduziram não houvesse sido por vezes desviada do seu alvo, tinha arrojado para a Syria muitos guerreiros de ambição ou de ardente, que iam buscar n'aquellas remotas regiões melhor fortuna ou mais segura salvação. No seio d'essa multidão tumultuosa formaram-se as ordens jerosolymi- tanas do Templo, do Hospital e do Sepulchro, e d'ellas sahiram em grande parte os famosos heroes das guerras da Palestina. Guiando nas

56 INSTITUIÇÃO

batalhas as forças dos cruzados, gente colle- cticia, infrene, e desunida entre si por diffe- renças de lingua, de pátria, de principes, de leis, de memorias, usos e costumes, os mon- ges cavalleiros arremessavam-se, serenos e impávidos, no meio dos esquadrões inimigos, e quando não alcançavam a victoria sabiam perecer nobremente. Entre esses homens, po- rém, cujo ardimento jamais aífrouxava, e que pelejavam sem descanço contra os sectários do islamismo, sobresahiam os templários pelo esforço indomável, pela severa disciplina, pela experiência da guerra, e pelas solemni- dades mysteriosas e symbohcas, que os cer- cavam, digamos assim, de uma auréola de terror.

Essa ordem, todavia, era altiva, irascivel e insoíTrida de todo o jugo. Em quanto se pe- lejou na Ásia, a soberba e a ousadia utilisa- ram-se na lucta contra os infleis, povos nume- rosos e aguerridos, ligados pelos estreitos laços de crença e pátria communs; depois, quando as repetidas lições da desgraça foram amortecendo a confiança nas fagueiras iliusões que por tantos annos tinham animado as cru- zadas^, essa.milicia resgatou gloriosamente aa

DA ORDEM DE CHRISTO 37

suas culpas, defendendo a paimo e palmo a terra sancta; ao refluírem, porém, para a Eu- ropa, perdido definitivamente o reino christão da Palestina, os cavalleiros do Templo lança- ram a perturbação e a desordem em muitos dos estados em que entraram.

Poderosos, ricos e privilegiados, destros nas armas e unidos na vontade, os templários pesaram logo com toda a sua força na balança dos acontecimentos políticos, e aproveitando os interesses oppostos, as rivalidades dos ba- rões feudaes, os ódios de familia, a cubica dos monarchas, a miséria dos povos, alcança- ram quasi sem resistência incontrastavel pre- domínio. Os erros, todavia, as paixões^ os vi- dos contrahidos na Syria eram outras tantas arvores venenosas, cujos fructos juncavam a terra; e essa mesma illimitada influencia de- via irritar os povos e os príncipes, e dar azo a profundas collisões. Foi o que pouco tardou a realisar-se. Como os vulcões que depois de successivos abalos rebentam em violenta erupção, expellindo aos turbilhões a lava e o fumo por todo o âmbito da negra cratera, as- sim as diversas causas de aversão contra os templários lavraram, a passo e passa nos ani-

58 INSTITUIÇÃO

mos até chegarem a manifestar-se em scenas de atrocidade. Accusações de actos sacrílegos, occultamente praticados, levantaram-se por toda a parte, e as calumnias mais absurdas foram por isso mesmo as que mais credito mereceram ao vulgo, o qual prefere quasi sempre o maravilhoso ao verdadeiro. Então Filippe, o Bello, rei de França, empolgando o ensejo, e esquecendo-se de que no domici- lio da ordem encontrara protecção e amparo nos dias da adversidade, mandou inesperada- mente prender todos os freires do Templo, residentes no reino, tomando as necessárias cautelas para que não podessem fugir. Diante da vontade do monarcha, n'esse ponto em perfeito accordo com o rancor popular, era impossível ouvirem-se os brados da rasão e da justiça; e as infâmias e iniquidades do processo, os tormentos e supplicios adopta- dos completaram um systema de perseguição digno dos pagãos, quando procuravam afogar em sangue o christianismo nascente. Irritou- se o papa Clemente V com o procedimento de Filippe, mas depois de porfiosa insistência a cubica venceu os escrúpulos. A final uma bulia, proclamando a abolição da ordem do

DA ORDEM DE CHRISTO o9

Templo, estendeu a todos os estados da chris- tandade a politica de exterminio, circum- scripta no principio aos domínios do rei de França.

Reinava D. Diniz em Portugal quando a nova do terrível successo retumbou de um ao outro extremo da Europa. Em todos os reinos christãos da Península tinham os tem- plários prestado valiosíssimos serviços, e le- vado grande vantagem aos outros homens de armas, entre os quaes muitas vezes falhava a força que resulta sempre da unidade de pensamento e simultaneidade de acção. Em Portugal, porém, haviam elles, com a lança n'uma das mãos e a enxada na outra, concor- rido em grande parte para a expulsão dos sarracenos, desbravado charnecas inhospitas^ povoado montões de ruinas, dando ao mesmo tempo provas constantes de fidelidade exem- plar, e não oíferecendo sequer o inconve- niente de estarem as suas preceptorias ou commendas sujeitas de facto a vassallos de soberanos estrangeiros. N'estas circumstan- cias o monarcha portuguez, em vez de apro- veitar a condemnação dos templários para os espoHar das avultadas riquezas que possuíam,

(ÒO INSTITUIÇÃO

imitando assim o exemplo de outros sobera- nos, e satisfazendo as naluraes propensões de avareza, que transsudam aliás dos actos capitães da sua vida, resolveu oppôr diques a essa torrente de implacável perseguição. Na impossibilidade de negar absolutamente obediência ao pontífice sobre assumpto era que, segundo as idéas do tempo, toda a le- gitimidade e poder dos príncipes derivava da egreja, dissolveu a ordem, mas não con- sentiu que fossem presos os templários, e guardou como em deposito os bens que lhes pertenciam.

Todavia o animo justiceiro de D. Diniz co- nheceu que este procedimento, embora des- interessado, era insufficiente homenagem ao passado glorioso d 'esses guerreiros do chris- tianismo, que, derribando o estandarte de islam nos roqueiros castellos do Al-Gharb, tinham firmado e robustecido a independên- cia de Portugal. Meditou, portanto, no modo de conciliar com os deveres á sancta o aíTe- cto á ordem do Templo, cuja existência era ainda de summa importância para o reino. A sagacidade natural e o conhecimento dos ne- gócios suggeriram-lhe o pensamento de trans-

DA ORDEM DE CHRISTO Cl

fundir os teniplarioá para o seio de uma ordem creada de novo, resuscitando, por assim di- zer, o Templo debaixo de epitheto diverso. Proseguindo logo uo empenho de realisar esse projecto, escreveu ao papa João XXlí, que suc- cedêra na thiara a Clemente V, pedindo-lhe a necessária confirmação. Annuiu o summo pas- tor ás supplicas do príncipe portuguez, e aos 14 de março de 1319 expediu de Avinhão, onde por esse tempo residia, a bulia que in- stiluia em Portugal uma nova corporação monastico-mililar, denominada a ordem de Christo. Tinha esta milícia, com mais eílica- zes auspícios de duração, a mesma regra que a dos templários, dominavam-n'a as mesmas idéas, conservava os mesmos senhorios, pri- vilégios e isenções, entraram n"ella todos os antigos freires, e D. Diniz, quando lhe entre- gou os bens com que a dotava, declarou ex- pressamente que a ordem de Jesus Christo se fundara em substituição da do Templo.

Decorrido poucoLmais de um século, um grão-mestre d'essa ordem, o infante D. Hen- rique, príncipe de espíritos altíssimos, inten- tava só com os recursos da ordem, o descobri- mento de aguas, ilhas e costas, que as vastas

62 INSTITUIÇÃO DA ORDEM DE GHRISTO

solidões do oceano tinham até então escon- dido; e dava assim o primeiro passo no cami- nho que levou o império portuguez a todas as partes do mundo, transformando em reino poderosíssimo um dos mais pequenos estados da Europa, e confederando os povos mais remotos com os vínculos fortíssimos da in- dustria, do commercio, da civilisação, do christianismo.

TI

BATALHA DO SALADO 1340

Reinava em Portugal D. Affonso IV, e em Gastella seu genro Affonso XI. Protrahia-se com varia fortuna a guerra entre as duas na- ções, porque os vinculos de família não ti- nham podido suffocar as discórdias entre os príncipes, quando o rei de Fez, Aly-Abul-Has- san, preparando-se para invadir a Hespanha, reuniu um dos mais famosos exércitos, que atravessaram o Estreito emquanto o crescente dominou na Peninsula. Apparelhado tudo para a expedição, começou o embarque dos sarra- cenos, e no decurso de cinco mezes quasi não se passou um dia, sem que as galés mus-

64 BATALHA

lemicas viessem despejar nos portos de Gi- braltar e Algeziras novos esquadrões de sol- dados. Reuniram-se a estes as tropas do rei de Granada, Jusef-ben-Ismail, e sitiou-se logo Tarifa, povoação importante e excellente pon- to estratégico para proseguir a invasão e con- quista.

Defendia-se energicamente a guarnição da fortaleza. A presença da armada christã, que fundeara próximo á cidade, impedia de al- gum modo o transporte de viveres e muni- ções para o campo dos mussulmanos ; e dava ao mesmo tempo aos cercados a esperança de soccorro ou de refugio. Em breve, porém, uma terrível borrasca destrui u-a completa- mente, e tudo então pareceu annunciar que ia bater a derradeira hora do domínio da cruz n'aquellas terras, regadas com o san- gue de tantos martyres.

Em presença do perigo, o orgulhoso Affon- so XI tratou de celebrar pazes com o sogro, e de lhe solicitar a alliança, a íim de resistir á procella que ameaçava rebentar sobre os seus estados. Cedendo á força das circumstancias, e humilhando-se perante aquella que tanto oífendéra e ainda odiava, enviou sua mulher

DO SALADO 65

a el-rei de Portugal, rogando-lhe prompto e poderoso auxilio ; e depois veiu elle próprio pedil-o, ponderando a multidão dos bárbaros, o aperto do sitio em que estava Tarifa, o ris- co com que se defendiam os cercados e o muito que importava a brevidade de soccor- rO; da qual dependia talvez a sorte de toda a fíespanba. Satisfez D. Affonso IV a instante supplica, e dentro de breve tempo partiu para Sevilha, á frente de lustrosa compa- nhia de gente escolhida, posto que pouco nu- merosa, adiantando-se ao grosso do exer- cito, que tinha de marchar mais lentamente por causa dos petrechos de guerra e provi- mentos.

Juntos os dous monarchas, convocaram-se os prelados, os barões, os mestres das ordens militares, os ricos homens, e entre todos se disputou a conveniência de soccorrer Tarifa. O susto fez ahi seu oíTicio, e muitos aconse- lharam se entregasse a praça aos mouros €omo condição de paz, evitando-se uma lu- €ta, que n'aquella conjunctura por milagre não seria funesta. Venceu, porém, o voto contrario, que foi o do rei portuguez e o dos seus vassallos, e depressa o enthusiasmo sub-

66 B.^TALHA

stituiu pela confiança o temor. Achavam-se ali reunidos os principaes cavalleiros das duas nações rivaes; tinham de ser avaliados uns pelos outros onde mais arriscada fosse a lu- eta; e tanto Ijastou para que a emulação de es- forço se accendesse em todas as veias, exal- tasse todos os ânimos, dominasse todas as vontades. Resolvida, pois, a guerra, dirigi- ram-se sobre Tarifa os dous monarchas, fa- zendo pequenas jornadas por esperarem as tropas que de instante a instante engrossa- vam o exercito; e no dia 27 de outubro, ao cahir da tarde, avistaram, emflm, a multidão dos infiéis, cujas tendas, derramadas pelas raizes dos montes e pelos cimos dos outeiros, formavam como que uma cidade vastíssima, cercada por selva de lanças.

Logo que nas ásperas cumiadas de Pena dei Ciervo fluctuaram os pendões de Castella e de Portugal, juntos ao estandarte da cruza- da, as tropas mussulmanas, que se calculavam em sessenta mil homens de cavallaria e qua- trocentos mil infantes, unindo-se cora a rapi- dez do relâmpago e deixando o recinto das tendas, arrojaram-se para as margens do Sa- lado, e ahi aguardaram fu-mes o acorametti-

DO SALADO 67

mento dos inimigos. A noite, porém, approxi- mára-se, e os príncipes christãos não quize- rara no meio das trevas começar a terrível batallia, em que a fortuna das armas tinlia de resolver se os íilhos da Península deviam de novo curvar-se ao jugo dos africanos.

No dia seguinte o sol ia alto, quando o som das trombetas, dos tambores, das chara- melas, dos anafis, dos atabales deu o signal de combate. O exercito portuguez, entoando o psalmo Exurfjat Deus, arremeça-se pela planície, transpõe o rio por entre milhares de frechas, c[ue ferem os ares como sarai- va espessa, e encontrando-se com a hoste do rei de Granada trava uma lucta implacável, frenética, vertiginosa. No meio da ebriedade do sangue baralham-se amigos e inimigos ; as espadas relampejam nas espadas; as lanças, topando em cheio nos escudos, nos capace- tes, nos arnezes, dão um som profundo, que se mistura com o crepitar d'aquellas que voam despedaçadas; muitos ginetes correm á solta, nitrindo de espanto e de terror; muitos ca- valleiros pelejam a pé; e os elmos e cervi- Iheiras rodam pelo chão fendidos e amolga- dos. Afinal os mussulmanos vacillam, e as

68 BATALHA

suas fileiras, vergadas em semicírculos, re- cuara ante a gente portugueza, ondeam, es- palham-se e abandonam o campo, procuran- do na fuga a salvação. Por outro lado as tro- pas castelhanas, capitaneadas pelo príncipe de Vilhena, D. João xManuel, dirigem-se con- tra o exercito de Abul-ílassan, e depois de renhida peleja conseguem romper aquellas grossas muralhas de homens, afoutes e im- pávidos no primeiro conflicto, mas incapazes de resistir tenazmente ao embate incessante dos cavalleiros christãos, que, poucos mas bem armados, investem como leões onde mais acceso vae o travar da batalha. Não ignoram ehes que da sua audácia depende n'essa hora talvez a sorte e a gloria da pátria. Emfim a guarnição de Tarifa, sahindo da fortaleza, apodera-se dos arrayaes mouriscos; fere, ma- ta, vence quasi sem combate os que encon- tra; e derrama assim a ruína entre os inimi- gos, que, no meio de completa anarchia, che- gam a pelejar uns contra os outros, ou expi- ram, sem defensa nem gloria, debaixo dos pés dos cavallos e dos troços de infanteria.

Então o terror consumma o desbarato; e, pela volta da tarde, apenas do brilhante exer-

DO SALADO 69

cito dos mouros de Africa e de Hespanha al- guns milhares de fugitivos, acompanhando 03 reis de Fez e de Granada, correm desalen- tados diante dos cavalleiros christãos, que os perseguem incançaveis até perlo de Algezi- ras.

Grande numero de mussulmanos ficaram captivos, e foi immenso o despojo em ouro, prata, armas e preciosidades de toda a casta. Convidado a escolher d'entre essas riquezas a parte que lhe aprouvesse, D. Aflbnso IV ac- ceitou somente alguns alfanges e bandeiras, 6 um clarim que pertencera ao rei de Grana- da. Os despojos, porém; d'aquena famosa batalha constituíam o preço de menos vaha para o monarcha portuguez. Mais graves eram, sem duvida, os resultados de ordem moral. Sahindo victorioso da emprcza em que nobremente se empenhara, D. AíTonso IV cin- gira-se ás tradições, por tanto tempo esque- cidas das instituições wisigothicas, que consi- deravam como dever impreterível do príncipe estar sempre á frente dos seus súbditos, na hora dos grandes perigos e das grandes glo- rias; renovara o brado de guerra contra os mfieis, que parecia ter de todo emmudecido

70 BATALHA DO SALADO

desde a conquista do Algarve ; patenteara ao rei de Castella qual era ainda a ousadia dos cavalleiros e homens de armas portuguezes ; e sobretudo livrara a Peninsula da invasão dos africanos, e dera a estes uma áspera de- monstração de que não era empreza fácil, nem talvez possivel, subjugar de novoaHes- panha e o christianismo.

YII

MORTE DE D. MARIA TELLES

isrr

Parece que a providencia omnipotente des- tinou a mullier para nos servir de guia e am- paro nos trabalhos e alegrias da vida. O gesto, a voz, os meneios, o volver de olhos, a sua- vidade do sorriso, o perfume e brilhantismo dos cabellos, tudo tem encanto indecifrável, que domina as vontades mais isentas; mas no coração principalmente é que ha thesouros inexhauriveis de generosidade e de innocen- cia, e uma suave melancolia, de que não se enxerga a causa, e que é por ventura a sau- dade inconsciente da sua origem divina. No meio das tempestades da existência acalma-

72 JIORTE

nos as aspirações temerárias, as paixões fer- vidas, as esperanças mesquinhas e insensatas, e consegue salvar-nos de nós mesmos, esque cendo resignada as próprias dores, e exaltan- do-nos pela ternura e pela constância ás re- giões ideaes e bem-aventuradas do puro sen- timento. Ás vezes, porém, anjo despenhado, a mulher arrasta-nos comsigo; devora-nos, entre fingidas lagrimas e seductoras caricias, 03 annos, a energia, os nobres affectos, os sentimentos honestos,^ as noções da verdade e do dever; suscita-nos, desenvolve-nos, completa-nos as más paixões e os ruins in- stinctos, e faz com que aquelle, a quem louco amor fascina, desça ao Ínfimo grau da abjec- ção. Uma d'essas mulheres, excepções que infelizmente não são raras, foi decerto Leo- nor Telles, de cuja terrível historia, longa ihada de crimes, procuraremos narrar um episodio.

A aíTeição cega de IJ. Fernando havia annos que tinha satisfeito as ambições da mu- lher de João Lourenço da Cunha, alma so- berba e ousada, cubiçosa e pérfida, que não se contentara de ver a seus pés, desvairado pela paixão, o moço e generoso monarclia.

DE D. 3ÍARIA TELLES 73

A coroa real, por tantas vezes divisada em sonhos, sentia-a, emíim, segura na formosa fronte: os ultrages que recebera durante a lucta, lavára-os largamente com o sangue dos homens que mais odiava; e perante o seu olhar, sublime de altivez e de energia, não havia cabepa que se não curvasse, nem cora- ção que não estremecesse.

Fòra-lhe para isso preciso supplantar con- siderações sagradas; vencer obstáculos po- derosos; derramar pelo reino a devastação e a miséria; aviltar o homem que tudo lhe sa- crificara^ riquezas, poderio, gloria, a honra própria e a do nome herdado; mas que im- portam desgraças alheias a um animo profun- damente egoista? As balizas, que separam a iniquidade e a justiça, o crime e a virtude, a abominação e a sanctidade, desapparecem aos olhos do espirito reconcentrado num pen- samento único, e contra uma vontade assim inabalável pôde haver diíficuldades, mas não ha impossíveis. Um processo de divorcio, jul- gado por juizes subornados, livrára-a de seu primeiro marido, que aterrado fugira da pá- tria. O repudio da infante de Castella, cujo casamento fora contractado em celebração de

74 IMORTE

pazes, annullára o outro obstáculo. A alliança com o duque de Lencastre, tractado impoli- tico e perfidO; que pôde desculpar-se por ser obra de animo turbado por suggesíões es- tranhas, fizera com que D. Henrique, entrando de repente em Portugal, tomasse Almeida, Pi- nhel, Linhares, Celorico e Vizeu, atravessasse a Beira, oíferecesse próximo a Santarém ba- talha a el-rei D. Fernando, que não ousou ac- ceital-a, e destruísse em grande parte a ca- pital do reino, reaiisando assim os cálculos de fria e paciente vingança, que o instincto de tigre ensinara a D. Leonor pelas atfrontas ahi recebidas. Finalmente a influencia irresisti- vel da rainha no espirito fraco do soberano conservara na curte aquelles d^entre os nobres, que por sympathia, por gratidão, por temor, por intuitos interesseiros ou por liga- ções de parentesco se mostravam inclinados á nova ordem de cousas, e substituíra à se- veridade dos antigos tempos o brilho e a de- vassidão de uma curte voluptuaria.

Apesar de tudo, porém, essa mulher, ora hypocrita e vil, ora insolente e orgulhosa, re- ceiava a cada instante ver derrubado o edi- fício da sua fortuna. Quando a vida lhe sorria

DE D. MARIA TELLES i^

somente esperanças e venturas^ como que descortinava no horisonte a victoria definitiva dos adversários, e acaso se lembraria de que semeara ódios na terra, e de que ainda não colhera o fructo.

Entre os nobres que mais temia conta- vam-se os filhos de D. Ignez de Castro. D. Di- niz, o filho predilecto do rei justiceiro, acha- varse era Castella, e era odiado pelo povo que aos seus conselhos attribuia a invasão de D. Henrique em Portugal. D. João, todavia, era geralmente bem quisto, e no caso de fal- lecer o monarcha, podia ser um emulo que contrastasse de modo irresistível os suppos- tos direitos da filha de D. Leonor. Demais, levado por amor que reputava sincero, e que talvez então o fosse, o infante casara clan- destinamente com D. Maria Telles, a qual, apesar de não ter o viço da primavera da vida, conservava ainda a flor e a graça de uma formosura rica de seiva, pura nas for- mas, e dotada do enlevo que mais prende e mais seduz, o de uma alma cheia de bondade e aff'ecto.

Irmã da rainha e viuva de Álvaro Dias de Sousa, fidalgo illustre e de Unhagem real,

76 MORTE

D. Maria era respeitada pela severa virtude do seu caracter, e querida pelas mercês que fazia, para as quaes lhe suLminis Iravam far- tos meios as rendas das suas muitas proprie- dades, e as do mestrado de GhristO; que lhe fora dado para o filtio, e que em grande parte usufruía. Vendo-a, e accendendo-se-lhe a ima- ginação com os mil encantos concedidos pela natureza ao sexo frágil, para que não haja alma que se lhe não franqueie, ousara o in- fante confessar-lhe o seu amor; e como a bella viuva, entre indignada e piedosa, lhe.?espon- desse que de reis também vinha ella, e que não era dama que se sacrificasse aos deva- neios ephemeros de um capricho, crescera com os rigores o affecto, e D. João recebêra-a por mulher, celebrando um d^esses casamen- tos clandestinos, vulgares na epocha que ten- tamos descrever, epocha em que a hypocrisia estava longe de ser tão rara como geral- mente se cuida, posto que as paixões ainda se mostrassem muitas vezes grosseiras, im- petuosas, indómitas.

Chegada a noticia ao conhecimento da rai- nha, esta em vez de se lisongear com tal con- sorcio, que lhe podia servir de esteio na si-

DE D. MARIA TELLES 77

tuação a que se tinha elevado, julgou-o con- trario aos planos que formara para collocar na cabeça da filha a coroa de D. Fernando, e desde logo a morte da irmã foi resolvida. N^aquelle peito de mármore existia um sentimento sancto e suave, o amor materno; -e esse mesmo affecto apenas lhe inspirou o desenho de novos crimes. Como conseguir^ porém, sacrificar a irmã, e desfazer ao mesmo •tempo o favor popular de que D. João "go- sava pelo génio aventuroso e esforçado? So- prando na alma d'este as duas paixões mais fe- rozes do coração humano, a ambição e o ciúme.

N'uma conferencia com o infante commu- nicou-lhe João Afl*onso Tello, irmão da rainha e inteiramente dedicado aos seus interesses, •que esta desejara a sua alliança com a prin- •ceza Beatriz, e que se o casamento d'elle in- fante não tivesse vindo destruir designios e projectos de longo tempo affagados, a prefe- riria muito á do duque de Benavente, príncipe de origem castelhana, odiosa por em quanto aos portuguezes, em cuja memoria não se ti- nham desvanecido antigas inimisades, e •cruentos e recentes aggi^avos.

A pérfida insinuação produziu o desejado

78 MORTE

êxito. Dominado pela cubica de succeder no tlirono depois da morte do irmão, o filho de D. ígnez de Castro pensou nos meios de se livrar da que havia escolhido por mulher, mais n'um Ímpeto de amor brutal e ephemero, do que por esse affecío intenso e intimo, que se dilata com sereno contentamento até os ex- tremos horisontes da vida. Acceitando como verdadeiras accusações injustíssimas, ou, o que por ventura está mais próximo da ver- dade, creando elle próprio essas calumnias, partiu logo para Coimbra, onde então estava D. iMaria Telles, e dirigindo-se a furto ás casas que esta habitava, mandou arrombar as por- tas. Acordada de súbito, a irmã de D. Leonor levanlou-se assustada e afflicta, e envolven- do-se n'uma colcha que lhe cobria o leito, per- guntou ao infante a causa d^aquelle procedi- mento que tanto a offendia. Na voz^ no gesto, nas lagrimas da desditosa mulher traduzia-se a innocencia e a candura ; no arrebatamento de pudor 'e de cólera, que lhe abrasava as fa- ces, havia um enérgico protesto contra a sus- peita infame; mas D. João tornara -se inac- cessivel á justiça e á piedade. Accusando-a em altas vozes de divulgar o segredo do seu

DE D. MAP.IA TELLES 79

casamento e de trahir a conjuga!, arran- cou-lhe a única vestidura que lhe velava a formosa nudez, e com um bulhão, com que nas vésperas o presenteara o conde de Bar- cellos como que indicando-lhe o destino, a fe- riu no seio e no ventre. Um grito indizivel de angustia partiu dos lábios da pobre victima, que, cerrando para sempre os olhos enxutos, porque n'elles a aíflicção estancara as lagri- mas, teve apenas tempo para invocar com o ultimo suspiro a misericórdia de Deus.

Então em todos os rostos se viu pintado o espanto e o terror; a triste noticia percorreu logo a cidade, e no povo a irritação dos âni- mos depressa chegou ao seu auge, mas o in- fante já havia sabido de Coimbra, e dentro de pouco tempo, tendo alcançado o perdão d'el-rei, era acolhido na corte, como se não tivesse sido o assassino feroz de sua mulher. Entretanto para arrependimento lhe serviu o crime commettido. Lançado o cadáver da irmã sobre a estrada por onde suppunha que a filha subiria ao throno, D. Leonor Telles nem tratou de disfarçar quanto se inclinava de pre- ferencia ao casamento de Beatriz com um príncipe castelhano; e o infante, perdida de

80 MORTE DE D. MARIA TELLES

todo a no amparo e protecção da corte, fu- giu para as províncias do norte, e d'ahi para Castella, onde acabou a vida no meio da sau- dade e dos remorsos, justa punição que se tor- nou ainda mais dura, quando depois da morte de D. Fernando conheceu que tinha destruído toda a possibilidade de succeder no throno, ao qual de certo o elevaria o povo se não fora o seu crime.

Nos livros dos chronistas e nos contos po- pulares se perpetuou esta triste historia; e ainda hoje no antigo castello dos templários, theatro do trágico successo, se mostra o quarto onde foi assassinada a boa e desditosa irmã da nossa Lucrécia Borgia.

VIII

TOMADA DE CEUTA 1415

Rica mais do que nenhuma em homens e feitos grandiosos é a historia da gente portu- gueza. Quem, lançando os olhos para um mappa da Europa, divisa ao occidente da Pe- ninsula este paiz, encerrado na estreiteza de breves limites, imperceptível quasi no meio dos grandes impérios da terra; e considera que ahi existe ha sete séculos uma nação in- dependente, e que chegou a estender o seu dominio por uma parte da Ásia, da Africa, da America, e até ás regiões encantadas e inde- íinitas do Oceano Austral, antevê logo n'esse povo grandes virtudes politicas e guerreiras,

82 T 031 ADA

e nos seus fastos uma excellente escola de entbusiasmo e lieroiciuade. E se depois disso Yolta o pensamento para as recoiTlaçÕes for- mosas e puras, para os trophéus e monumen- tos honrosissimos doesta mimosa e abençoada região, que não deixou parte alguma no mun- do onde não chegasse um eciío das suas glo- rias de todo o género, o resultado doesse es- tudo é a confirmação incontrastavel das pri- meiras impressões.

Pequeno e fraco na origem, Portugal é ape- nas um condado, que ameaçam ao mesmo tempo o então vastíssimo império de Leão e Castella, e o poder ainda formidável dos bellicosos sarracenos, e todavia não lhes resiste com intrepidez e constância, mas até ousa invadir o território dos seus temíveis inimigos, conservando sempre hasteado o pendão da nacionalidade. Depois, logo no co- meço da monarchia, os portuguezes, movi- dos pelo amor da pátria, affecto que amadu- recera e se radicara nos anim^os de modo indestructivel, conquistam grande parte da Hespanha mussulmana, terra abundante de população, enriquecida pela industria, cheia de villas e cidades importantíssimas, forti-

DE CEUTA 83

ficada por todos os meios que a experiên- cia d'aquelles tempos ensinava, e defendida por homeas uaturaim.ente esforçados^ e aos quaes o aferro á terra natal e o fervor reli- gioso ainda, como é de crer, multiplicavam 03 Lrios. Depois eslabelecem-se em larga es- cala 03 concelhos; promove-se a vinda de co- lonos; povoam-se granjas e aldeias; arro- teara-se charnecas e matos; repairam-se e abastecera-se castellos; organisa-se a milicia, a administração; a magistratura judicial, a fazenda publica; consolidam-se intimas allian- ças com algumas das maiores nações, e dá-se sufQ ciente vigor ao espirito municipal, que em parte alguma talvez, durante a edade média, teve mais viva iníluencia no progresso da civilisação. Em seguida, apenas Portugal se collocado vantajosamente com relação aos vários povos da Península, não lhe basta a certeza da sua inviolabilidade, e con- fiado nas próprias forças e destinos, eil-o que se apressa em ir pagar ao islamismo, no solo abrasado de Africa, a divida da invasão e os trances do jugo estranho.

Reinava então em Portugal D. João I. Ao monarcha inconstante e frívolo, cujos defei-

84 TOMADA

tos como homem bastam para escurecer os actos do legislador, succedêra o príncipe mais popular que se encontra nas nossas dy- nastias de imperantes; a um rei hereditário um rei eleito. Ganha a victoria de Aljubar- rota; recuperadas a uma e uma as praças de guerra, de que o soberano estrangeiro se ha- via assenhoreado; firmada, emflm, a paz com Gasteha depois de longos annos de lucta fre- nética, começaram os infantes a instar com D. João I para que emprehendesse conquistar Ceuta, a formosa cidade que desde o tempo dos romanos até ao fim do reinado de Witiza fora dependência de Hespanha; conquista que lhes daria ensejo de alcançarem com honra o grau de cavaheiros, e que dilataria ao mesmo tempo os Umites do império e os da fé. Fol- gou com a idéa o monarcha, a quem os an- nos não haviam amortecido o pensamento fixo de gloria, a que devem attribuir-se quasi todos os actos da sua vida, mas não quiz re- solver-se sem pesar cuidadosamente os peri- gos e vantagens do commettimento, que não se restringia ao assalto de uma praça, aliás bem defendida e guardada, mas que era de feito um repto aos infiéis, que, inflammados

DE CEUTA 85

em brios nacionaes e em fanatismo ardente,- formariam cem exércitos poderosos e intré- pidos contra os temerários invasores.

Reílectiu, pois, em todas essas circumstan- cias; ponderou o voto dos guerreiros illus- três, a censura dos conselheiros leaes^ as preoccupações populares; avaliou com exac- ção a importância dos esforços e a escacez dos recursos; viu que ia travar uma lucta em que todo o ódio e valor da raça inimiga ha- viam de empenhar o uUimo alento; mas lem- brou-se de que era preciso não deixar esque- cer aos seus soldados o duro mister da guerra, de que o único systema consequente e legi- timo de engrandecimento para o reino era alargar-lhe os limites pelas fronteiras costas africanas, de que celebraria assim com um feito memorável o occaso da sua venturosa carreira, e decidiu-se por íim á expedição mais determinado, mais perseverante, mais enthusiasta do que os próprios filhos. Conci- liando, todavia, a confiança na sua fortuna com as admoestações da prudência, tratou dos apercebimentos adequados á magnitude da empreza, e para evilar suspeitas que de certo trariam raiz de taes preparativos,

'8d TOMADA

resolveu que se aproveitasse o pretexto da pirataria com que os liollandezes infestavam as nossas costas, e se reclamasse satisfação do conde de Hollanda com ameaças de guer- ra. Fernão Fogaça, veador do principe, ho- mem astuto, cauteloso e atrevido, foi envia- do a Hollanda para proclamar em embaixada publica 03 aggravos e exigências do soberano portuguez, e revelar secretamente ao conde a verdadeira causa da sua vinda. Prestou-se este ao disfarce, lisonjeado pela demonstra- ção de confiança, ou por ventura aterrado com a lembrança de que as ameaças podes- sem ainda traduzir-se em factos, e o artificio produziu o desejado eíFeito de socegar até certo ponto as populações de Ilespanha e Africa, posto que não tanto que os reis de Castella, de Aragão e de Granada não man- dassem immediataraente embaixadores a Por- tugal, renovando todas as garantias de paz e amizade.

Preparado tudo, levantou ancora do porto de Lisboa a poderosa armada aos 25 de julho de 1415, não obstante haver fallecido poucos dias antes D. Filippa de Lencastre, chamada pelo povo a boa rainha, e a cujas virtudes e

DE CEUTA 87

desvelos deveu acaso Portugal a mais gene- rosa prole, que tem rodeado um tlirono. Par- tiu em demanda das praias sarracenas; em desaíTronta dos gravames n"ouLro tempo pa- decidos; em nome da raça romano-gothica contra o islamismo que lhe lançara a luva; da supremacia da civilisação chrislã contra as caducas instituições politicas, estribadas nas doutrinas falsas ou incompletas do koran. Partiu, sem que nem um leve estremeci- mento pelo futuro quebrantasse o enthusías- mo dos que iam participar dos riscos da em- preza; o excitamento religioso, o espirito aventureiro, a emulação de esforço, e era muitos ainda a cubica, menos hypocrita que n'estes nossos tempos, erguiam com dema- siada força aquelles ânimos para que lhes consentissem vacillar.

O mysterio da expediçcão, na qual tomavam parte os grandes, os nobres, os infantes, o herdeiro do throno e o próprio monarcha, assustou de novo toda a costa de Africa, e não menos a de Hespanha, que ainda occupa- vam mouros; mas sobre tudo as terras de Gibraltar, por se verem abertas e mal defen- sáveis. Em breve, porém, se dissiparam es-

88 TOMADA

ses receios, porque, consultados em Algezi- ras 03 principaes capitães, foi fixado o dia 12 de agosto para se caminhar contra Ceuta.

Ahi de feito surgiu a frota no dia designa- do, mas depois de duas tentativas de desem- barque, que o temporal estorvou, foi con- strangida a voltar para Algeziras. O contra- tempo desanimou alguns. Eram esses de voto que não se tentasse outra vez o desembar- que em Ceuta; que para gloria bastava o arrojo da empreza; e que, se não deviam tornar ao reino sem tingir as mãos em sangue inimigo, se dirigisse a armada a Gibraltar, conquista utilíssima e menos temerária, que daria campo aos valentes para mostrarem es- forço, ao passo que satisfaria as ambições do povo e os interesses da pátria. Nenhuma con- sideração, todavia, dissuadiu D. João I do in- tentado propósito. Perseverante como o ho- mem que, apontando fixamente ao alvo, não desvia nem por um momento a arma senão depois de acertar, desprezou os avisos cau- telosos, que ahás não poderiam ser accei- tos sem desaire, e, como é fácil de suppor, foi a vontade do monarcha que a final preva- leceu.

UE CEUTA 89

Entretanto os mouros, attribuindo a medo a demora dos portuguezes, trataram de des- pedir as tribus numidas que os tinham vindo auxiliar, soldadesca indisciplinada e feroz, que nem entre os inimigos deixava largos vestigios de ruinas e estragos ; mas ainda el- ]as mal tinham sahido, quando no dia 20, ao declinar da tarde, se dirigiu contra a cidade toda a armada christã. Confiados na fortuna, os habitantes de Ceuta pareciam desprezar a procella que de perto os ameaçava, e, quando a noite desceu com denso manto de trevas, illuminaram-se as casas em signal de torva alegria.

Com a primeira luz da manhã seguinte a gente da armada, mettendo-se nas fustas, di- rigiu-se para a cidade, e os infantes D. Hen- rique e D. Duarte, saltando em terra com cento e cincoenta soldados, começaram a pe- leja com os mouros que fora das portas os desaflavam, terçando lanças, arremeçando azagaias, e animando-se uns aos outros com pragas e insultos contra os invasores, intelli- giveis para estes pelos gestos de rancor dos que as proferiam. N"aquelle primeiro impulso os alfanges sarracenos cruzaram as espadas

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portuguezas com o estrépito do enthusiasmo guerreiro, com o ardor do excitamento reli- gioso, com o fogo de uma cólera por muito tempo concentrada. Dir-se-liia, ao ver a fú- ria do combate, que adejaria a victoria sobre um dos campos quando tivesse cabido sobre o outro a total ruina. No entanto fo- ram desembarcando mais soldados portugue- zes, e havendo na praia trezentos ho- mens escolhidos, apertaram estes com os mouros, que, levados mais pelo temor que pelo perigo, voltaram costas, retirando-se para a cidade. Lembraram-se então os infan- tes de que n^aquelle mesmo dia poderiam tal- vez dar fim á empreza, evitando assim o tra- balho e combate incessante de semanas e me- zes, que naturalmeate resultaria de um longo assedio, e os perigos a que se expunham n'uma terra calidissima, onde de certo recrudesceria a peste que de Lisboa os seguira. Decidiram, pois, entrar na cidade com os que fugiam, e, lançando mão do ensejo que o caso oíferecia, perseguiram rijamente os mouros, arrancan- do-os de todas as posições, e fazendo-os api- nhar sobre as portas.

Ahi foi terrível o recontro e disputada te-

DE CEUTA 91

nazmeníe a victoria. O apertado revolver das armas formava uma seiva de ferros, alravez da qual quasi não era possível abrir cami- nho sem galgar por cima dos cadáveres amon- toados, que embargavam os passos dos vivos ; nem os invasores desistiam nem os da cidade aílrouxavam, e de um e outro lado os conten- dores haviam chegado áquelle paroxismo de furor, que faz desprezar a vida para cuidar em produzir a morte. Por fim, não obstante o muito que os defensores trabalharam, não poderam cerrar as portas, nem toliíer entra- rem os nossos de envolta com elles. Os portu- guezes dividiram-se então em dous bandos ; D. Duarte, capitaneando um d"elles, foi su- bindo aos logares altos e fazendo-se senhor de todos até chegar á maior eminência da ci- dade; D. Henrique tomou por outras ruas; e ambos encontraram porfiada resistência, por- que aos habitantes de Ceuta, reduzidos á de- fensiva, o aífecío, que nos costuma prender ao lar domestico, redobrava alento e brios. A fmal, porém, essa mesma resistência aca- bou; os vãos esforços da população mussul- mana para salvar Ceuta foram os clarões derradeiros da lâmpada que se extinguia.

92 TOMADA

A audácia dos infantes e dos que os seguiam, a cobardia do cliefe sarraceno, Salat-ben-Sa- lat, que fugiu apenas soube ter sido entrada a cidade, e o habito da victoria, que desde a batalha das Navas de Tolosa, os próprios ma- hometanos consideravam como devendo tarde ou cedo pertencer definitivamente aos inimi- gos da sua crenpa, facilitaram a conquista de uma das povoações de Africa mais de re- ceiar para os povos christãos do Mediterrâneo.

El-rei, logo que soube estar a cidade de todo ganha, deliberou começar a combater o cas- tello. Depois, impellido pelo enthusiasrno re- ligioso, entrou n'uma mesquita, e ahi de joe- lhos agradeceu a Deus esse feliz resultado de uma tentativa, que a muitos parecera loucura. Recebendo então a noticia de que o castello estava sem defensa e despejado, mandou ar- vorar na mais alta torre o estandarte real; e os raios do sol que se escondia no occidente, não encontraram a bandeira de islam, der- ribada n^esse dia para nunca mais se erguer sobre os muros da soberba Ceuta.

Assim por meio de uma victoria alcançada em poucas horas, dilatou D. João I as frontei- ras da monarchia pelos territórios africanos.

DE CKUTA 93

principiando a realisar o grande pensamento dos reis chamados da primeira raça, e abrin- do caminho aos vastos projectos, ás atrevidas emprezas, aos descobrimentos e conquistas, que deram a esta boa terra portugueza uma epocha de gloria e predominio, das maiores que o mundo tem visto.

IX

REGÊNCIA DO INFANTE D. PEDRO. -COMBATE DE ALFARROBEIRA

1439 a 1449

O cadáver do virtuoso D. Duarte ha^ia des- cido ao sepulchro, onde, omfim, repousava das amar^^uras de tão curto como desditoso reinado. Para a menoridade de seu filho AffonsoV, que então contava seis annos, ficara regente do reino a rainha D. Leonor. Esta, sen- tindo a necessidade de buscar na corte seguro esteio contra a vontade dos súbditos, que lhe não perdoavam ser mulher e estrangeira, e sobretudo ter contribuído com solicitações e conselhos para a funesta empreza de Tanger, procurou associar ao império o infante D. Pe-

96 REGÊNCIA DO INFANTE D. PEDRO

dro, daque de Coimbra, promettendo-lhe ao mesmo tempo o casamento do rei com sua filha D. Isabel, e julgando prendel-o assim pelo esplendor da invejada alliança. Em bre- ve, porém, instigada pela cubica do poder, que foi a paixão predominante dos últimos annos da sua vida, ligou-se com o conde de Barcellos, filho natural de D. João I, e á frente dos seus parciaes, aproveitando todos os pre- textos, tentou de dia em dia coarctar a au- ctoridade do infante.

Então o povo de Lisboa começou a alboro- tar-se, e depois de muitos tumultos e desor- dens proclamou regente e defensor do reino o duque de Coimbra. Suppondo que pouco duraria um poder, assente em tão movedipo aUcerce como é o favor da plebe, a rainha acolheu-se a Alemquer, onde se fez forte; mas as cortes, reunindo-se immediatamente, confirmaram a nova regência, e resolveram que a educação d'el-rei e de seu irmão fosse confiada a D. Pedro.

O estado da nação n'aquella epocha era, na verdade, lastimoso. Parecia que uma es- trella aziaga tinha constantemente presidido aos destinos do fallecido monarcha. A peste

COMBATE DE ALFARROBEIRA 97

assolava o reino; a miséria publica tomava to- dos os aspectos; o infante D. Fernando, heroe e martyr, jazia captivo em Africa; as prophe- cias de mestre Guedelha, o astrólogo judeu, realisavam-se fatalmente; e as gloriosas re- cordações de Aljubarrota e de Ceuta torna- vam ainda mais duros os ílagellos com que a fortuna, como que arrependida de ter sem- pre protegido D. João I, se vingara em cruel- dades sobre o seu successor. Por cumulo de infortúnios o prior do Crato, o conde de Bar- cellos e outros fidalgos, poderosos em influen- cia e valor, julgaram opportuno o ensejo para realisarem projectos de ambição; e, procla- mando a resistência em nome da viuva de D. Duarte, constrangeram o regente a empu- nhar as armas para os conter. Apezar de tu- do, porém, D. Pedro dirigiu com tal prudência o leme do estado, que dentro em pouco tem- po desvaneciam-se os fumos da discórdia, e Portugal respirava á sombra das leis, dila- tando as forças e engrossando as riquezas no seio de perfeita bonança.

Chegado el-rei aos quatorze annos, edade em que, segundo o furo de Hespanha, qual- quer príncipe devia haver inteiramente posse

7

98 REGÊNCIA DO INFANTE D. PEDRO

do seu reino e senhorio, quiz c duque de Coimbra entregar-lhe o supremo poder^ que D. AíTonso, ainda não pervertido por sugges- tões calumniosas, recusou acceitar. A inveja, comtudo, não se enfreia, nem com as ligações de familia, nem cora as obrigações de grati- dão, simples vincules moraes que a historia tem muitas vezes mostrado serem fracos para cohibir a violência das paixões; e as intrigas do conde de Barcellos, então elevado á di- gnidade de duque de Bragança por aquelle mesmo contra quem conspirava, fizeram com que o moço rei exigisse pouco depois ao in- fante os fios da administração, para os sujeitar às influencias de uma nobreza aventurosa, in- soífrida de todo o jugo, mais habituada aos en- redos da corte que ás pesadas occupações do governo, e incapaz por isso de sustentar com lealdade, energia e destreza os interesses da raonarchia.

Tornados d' es te modo reis de facto na re- solução das questões mais importantes, os conselheiros de .D. Affonso V sentiram recru- descer ainda a aversão contra o príncipe, cujo caracter generoso e firme os havia con- fundido cu humilhado. Ha almas impiedosas,

COMBATE DE ALFARROBEIRA 99

at>ysrao de ódios violentos e de paixões pro- fotídas, que, no momento em que se realisa a ventura por largo tempo sonliada, se dei- xam, todavia^ subjugar por estranlio senti- mento de benevolência; n'outras, porém, a pen^ersidade é singular género de fome que cpianto mais damno causa mais appetece, é lo- daçal que até entre formosas paizagens impre- gna a atmosphora de miasmas pestíferos. No regaço da fortuna continuaram, pois, esses ho- mens a malquistar o infante com o monarcha^ que apesar de ter casado com sua prima D. Isabel, entrou a afastar o sogro e a dar-lhe claros signaes de que condescendia sem hesi- tar com as villezas d'aquelles, por quem mos- trara sempre decisiva predilecção. Dotado de Índole altiva e pouco soffredora, lasso do ser- peiar flexuoso dos cortezãos, D. Pedro, em vez de permanecer junto do sobrinho a fim de lhe expungir da mente as pérfidas calumnias, re- tÍTOu-se logo para Coimbra, deixando d' esse modo livre o campo aos adversários para a seu salvo satisfazerem rancores, que o tempo cada vez mais exacerbara.

Debalde correu então á corte a defender o irmão o infante D. Henrique, que n'essa

100 REGÊNCIA DO INFANTE D. PEDRO

quadra residia em Sagres; debalde o conde de Avranches, D. Álvaro Vaz Almada, o mais illustre cavalleiro da Peninsula, alma grande, generosa, leal e intrépida, reptou os accusa- dores do duque de Coimbra, nenhum dos quaes se atreveu a levantar o guante ; de- balde interveiu a própria rainha, procurando entre lagrimas e caricias reconcihar o marido com o pae. Tudo foi inútil. Dominado pela contumácia dos validos e cego pelo orgulho dos verdes annos, D. Affonso V prohibiu ao sogro que voltasse á corte, e como este se recusasse a entregar as armas que possuia em Coimbra, allegando que necessitava d'el- las para se defender dos seus inimigos, de- clarou-o rebelde e partiu contra elle á frente de ura poderoso exercito.

Este procedimento do monarcha operou no animo de D. Pedro uma revolução moral, d'essas que as grandes crises podem pro- duzir ; foi sobresalto, embate, transformação repentina de todas as suas idéas e sentimen- tos. Entretanto, aconselhando-se com aquelles em que principalmente confiava sobre o que havia de fazer, acceitou o aviso do conde de Avranches, e, partindo de Coimbra com dimi-

COMBATE DE ALFARROBEIRA 101

nuta hoste, determinou buscar o sobrinho e genro, pedir-lhe justiça contra os que o infa- mavam, e se a moderação e firmeza não bas- tassem, rota a ultima barreira, repellir a força com a força, arvorando o pendão negro da revolta.

Chegando próximo a Alverca, assentou D. Pedro arrayal nos plainos de Alfarrobeira em sitio assas defensável. Ahi o encontrou el- rei, e logo o cercou completamente, mandando ao mesmo tempo apregoar por seus arautos, que seriam tidos por traidores todos os que não desamparassem o infante. Essa intima- ção, todavia, não produziu o ambicionado êxito, e pelo contrario alguns cavalleiros e soldados, movidos por nobre sentimento de generosidade, vieram unir-se áquelle que o soberano tratava como rebelde. Emquanto isto succedia, e talvez fosse possivel evitar o funesto conílicto dos dous bandos, um acon- tecimento fortuito apressou o desfecho do ter- rível drama.

Os besteiros e esjíingardeiros do exercito real, abrigados uns pelo denso arvoredo que sombreava o ribeiro de Alfarrobeira, colloca- dos outros no cimo de um outeiro que domi-

102 REGÊNCIA DO INFANTE D. PEDRO

nava o acampamento, começaram a varejar com tiros o arrayal do infante. Vendo este os seus leaes companlieiros immolados sem com- bate nem gloria, mandou disparar algumas bombardadas, uma das quaes acertou per- to da tenda do rei. Então a briga empe- nhou-se decisivamente. De uma parte estava um troço de homens intrépidos, aos quaes a desesperança augmentava o esforço; da ou- tra um exercito numeroso e aguerrido, con- tra cujo poder seria impossível a resistência. Como se não bastasse, porém, a desigualda- de entre os dous contendores, o infante feri- do por uma setta que lhe varou o corpo, tombou por terra logo ao principio da peleja, e com a sua morte feneceu em redor d'elle todo o esforço dos ânimos mais robustos. So- mente o conde de Avranches, que havia jura- do não sobreviver a D. Pedro, luctou deno- dadamente contra os de el-rei, senhores da victoria. Cegos de furor, cavalleiros e peões arrojavam-se e cabiam diante d'aquell e vulto, como os vagalhões de mar tempestuo- so se arremeçam e desfazem em frente dos rochedos da costa. No meio de larga clareira, só, impávido e magestoso, o velho cavalleiro

COMBATE DE ALFARROBEIRA 103

da Garrotéa derribava a seus pés quantos d'elle se approximavam, e parecia, como o Campa- neu de Stacio, ameaçar os deuses e os ho- mens. A final, perdidas as forças, baqueou por entre os inimigos, que a poder de golpes de- pressa o acabaram.

O sangue do infante, vertido n'esta carni- ficina, a que mal podemos dar o nome de batalha, não ficou inulto. Da filha do duque de Coimbra nasceu o príncipe que tomou sobre si a obra terrivel da expiação. O cadafalso de D. Fernando de Bragança vingou o assassínio do infante D. Pedro, e mais uma vez se rea- lisou a terrivel sentença biblica, que ameaça punir nos filhos as iniquidades dos pães.

X

CONSPIRAÇÃO DA NOBREZA CONTRA D. JOÃO II 1481 a 1484

Nos últimos annos de D. Affonso V a aristo- cracia tinha chegado ao apogeo do predorai- nio, e os fragmentos das instituições feudaes, que se haviam mesclado com a nossa primitiva organisação social, achavam-se enraizados e vigorosos, parecendo poder resistir perpetua- mente aos esforços do povo e do monarcha. D. João I, o rei de boa memoria, quizera des- truir a quasi independência dos orgulhosos ba- rões, que governavam nos seus solares como senhores absolutos, não hesitando, sob quaes- quer pretextos, em arvorar o estandarte da re- volta, e até em combater contra a pátria ; mas

1Q6 CONSPIRAÇÃO DA NOBREZA

OS príncipes, que se lhe tinham seguido, ha- viam governado com tal frouxidão e timidez, que a nobreza retomara o antigo valimento, e preparára-se para defender a todo o custo os seus foros e prerogativas. Foi então que su- biu ao throno D. João II, alma enérgica, ro- busta e negra, que conseguiu debellar o po- der dos fidalgos, apoiando-se no braço do povo, e enfraquecer o braço do povo, pesan- do depois sobre elle com toda a força e in- tensidade do poder da coroa.

Á falta absoluta de escrúpulos juntava D. João II grande firmeza de génio, extra- ordinária sagacidade e o retrahimento bas- tante para occultar, debaixo de um aspecto frio e de sorrir forçado, o ardor de violentas paixões. Os chronistas, que escreveram sob o patrocínio dos immediatos successores d'esle soberano, charaaram-lhe o príncipe perfeito. Poucas vezes, porém, escriptores cortezãos e lisonjeiros tem respeitado menos a verdade dos factos. Retrato vivo do seu contemporâ- neo Luiz XI de França, manifestou s€mpY€, quer nas leis geraes, quer nos actos próprios e espontâneos, a influencia de um pensamento capital, a que sujeitou todos os affedxje e

CONTP.A D. JOÃO II i07

considerações ; e esse foi o de alluir de vez a preeminência e immuDidade dos grandes vas- sallos da coroa. No seu reinado tem de ir também buscar o liistoriador a fixação das formas politicas, que ressumbram em toda a legislação subsequente, e a que poderemos chamar a transfiguração do absolutismo em despotismo, como a estracíura social anterior se pôde igualmente considerar um meio ter- mo entre a monarchia e as instituições repce- sentativas.

Tal era o inimigo com que a nobreza tinha de combater para conservar a sua preponde- rância nos negócios públicos, inimigo formidá- vel, não pelo seu caracter, mas ainda peio prestigio que o rodeava, e pelas circumstan- cias que favoreciam os planos da sua poli- tica. O throno, aíFagando as sympathias de- mocráticas do terceiro estado, que come-, cava a conhecer a sua força, lançava mão do instrumento mais seguro para assentar o po- der em bases solidas. O resultado, pois, da lucta não podia ser duvidoso. Nos paizes go- vernados pela vontade de um homem, quando á pressão enorme d'essa vontade se associa a opinião popular, o pensamento que

i08 CONSPIRAÇÃO DA NOBREZA

vive no animo do príncipe e das multidões, quer justo quer iníquo, ha de tríumphar infal- livelmente, e a lucta dos que lhe resistem pôde ser grande e nobre, mas é inútil esforço.

Logo que falleceu D. Affonso V, o primeiro acto de D. João II foi a convocação das curtes em Évora, onde lhe prestaram homenagem os senhores, villas e cidades do reino. Ahi co- meçaram os golpes profundos na propriedade, na jurisdicção e em toda a espécie de regalias das classes privilegiadas; reformas cujo fim ca- pital era abater a nobreza e em parte o clero, invalidando-lhes duas poderosas armas, a que a riqueza e a que provém da opinião. Exi- giu-se, pois, dos alcaides e donatários nova forma de menagem, chamaram-se a exame as cartas de mercês e doações, cerceou-se muito a jurisdicção criminal, que os fidalgos exerciam em suas terras quasi sem peias nem termo, e ampliou-se o direito de appellação para as justiças reaes.

Os nobres não souberam encobrir o des- contentamento. Educados na guerra e na cor- te de D. Afíbnso V, habituados a iUimitado poder dentro dos seus coutos e honras, uni- dos, emfim, pela communidade de interesses

CONTRA D. lOlO II

109

e de perigos, de boa e de fortuna, offen- deram-se de que o rei ousasse tomar-lhes contas das violências de um valimento, ao qual a impunidade de largos annos quasi dera fundamento legitimo. D. Fernando, duque de Bragança e de Guimarães, marquez de ViUa Viçosa, conde de Ourem, de Barcellos, de Ar- rayolos, de Neiva e de Penafiel, senhor de trinta villas, e por nobreza e possessões o príncipe mais illustre das Hespanhas, foi esco- lhido como chefe dos descontentes, e isto bas- tou para o seu trágico fim. As expressões ar- rogantes dos fidalgos contra a quebra dos seus foros, os alvitres suggeridos a alguns pro- curadores do povo, as vãs ameaças, os secre- tos conluios, e até os actos inoífensivos e m- diff'erentes, tudo foi traduzido, decifrado, en- venenado e exposto com as cures necessárias para que D. João II podesse, de um lance, satisfazer os aggravos de rei e as vinganças de homem. Prevenido a tempo dos riscos que o cercavam, o duque de Bragança não soube ou não quiz evital-os; e em vez de se refu- giar em Castella, asylo fiel contra a cólera do monarcha, dirigiu-se á corte, que então es- tanciava em Évora, e ahi foi recebido com

MO CONSPIRAÇÃO DA NOBREZA

taes demonstrações de contentamento e aífe- cto, que chegou a julgar-se tão seguro ao la- do do seu implacável inimigo, como no palácio de Villa Viçosa no grémio dos seus parciaes. Não tardou, todavia, que a confiança âe lhe convertesse em arrependimento, e que-, ao bater a hora da desgraça, conhecesse, por do- lorosa experiência, que um coração coraio o do monarcha, abysmo insondável de perver- sidade e hypocrisia, podia disfarçar ódios, mas não sabia esquecel-os. Indo n'um dia, ao cahir da tarde, despedir-se de D. João 11 para voltar ás suas terras, cocduziu-o este a uma casa apartada, onde, certo de que não vibra- ria já em vão o golpe, lhe disse que convinha ficasse preso até se averiguarem as suspeitas do crime de rebellião que lhe imputavam. Vendo o perigo que corria o duque, muitos fidalgos oífereceram dar a el-rei suas alcaida- rias em reféns pelo nobre vassallo; e porque, ao tempo em que essas propostas foram feitas, ainda D. João II receiava as consequências do terrível lance que tentara, quasi con\'^iD em acceital-as. Apenas soube, porém, que as comarcas, villas e fortalezas que mandara co- brar tinham sido entregues, e que de Gastella

CONTRA D. JOiO II 11 1

não havia a temer clamores importunos, man- deu logo que o caso se visse e determinasse por justiça. Assim se exprimem os dous pa- negyiistas do principe perfeito, Rui de Pina e Garcia de Resende^ pobres homens cujo espi- rito cortezâo ucm sempre soube esconder a tenebrosa astúcia e a suprema per\*ersão mo- ral do hejoe dos seus fastos,

A justiça f<3z-se vingança, e a execução si- gnificou somente um assassinio judicial, friae soiemnemente resolvido. Accusado por teste- munhas vis e por inimigos inexoráveis, jul- gado tumuUuariamente por juizes não seus pares,, aos quaes a presença do rei coagia alem disso o voto, o amigo e conselheiro de D. Aífonso V foi condemnado sem o ouvirem, e entregou a vida ao cutello do algoz, no meio dos brados e doestos de uma multidão sem piedade nem pudor, que de toda a parte coiTéra frenética para assistir ao cruento es- pectáculo. N'esse mesmo dia (20 de junho de 1 483}, e depois de ter ficado exposto o cadá- ver por espaço de uma hora, os cónegos da de Évora sepultaram no mosteiro de S. Do- mingos os restos do homem, que fora por muito tempo talvez o arbitro do remo.

112

CONSPIRAÇÃO DA NOBREZA

Á conjuração, por ventura chimerica, suc- cedeu outra verdadeira. O desgosto dos gran- des, durante algum tempo sopeado pelo temor ou pela esperança, convertéra-se em ódio profundo. Decididos a vingarem a morte do duque de Bragança, e a restabelecerem os foros e immunidades da nobreza, accordaram que o meio mais adequado aos seus intentos era assassinarem o monarcha. O duque de Vizeu, o bispo de Évora, seu irmão D. Fer- nando de Menezes, Fernão da Silveira, D. Gut- terres Coutinho, D. Álvaro e D. Pedro de Athaide, o conde de Penamacor e Pedro de Albuquerque eram os cabeças da insurreição; o bispo de Évora, porém, é que, como a ara- nha no centro da téa, urdia e combinava os planos. D'ahi lhes proveio a ruina, porque o incauto prelado não soube prever a traição, e foi justamente essa falta que destruiu todos os seus cálculos. Fiado na apparente amisade de Diogo Tinoco, cuja irmã seduzira, revelou tudo a esse homem, não se lembrando de que lhe dava assim ensejo de vingar offensas, que podia não ter esquecido ; e o aviltado caval- leiro preveniu logo Antão de Faria, camareiro do rei e seu privado, e encontrando-se depois

CONTRA D. JOÃO ir H 3

com o próprio D. João no convento de S. Francisco em Setúbal, relatou-liie circum- stanciadamente os projectos, dos conspira- dores.

Agradecendo a Tinoco com dadivas e pro- messas o serviço que prestara, o rei recom- mendou-lhe in^7olavel segredo, e continuou, como se tudo ignorasse, abalançando-se inde- fenso no meio dos conjurados, oppondo dissi- mulação a dissimulação, e enganando com fingido affecto aquelJes de quem mais se te- mia. Era a calmaria que antecede a procella. No seio das trevas o filho de D. Affbnso V ia aperfeiçoando os planos de vingança, e por isso aguardava sem impaciência o dia propi- cio em que podesse colher no fojo os seus mortaes inimigos.

Este finalmente chegou. Depois de terem por vezes tentado em vão assassinar o rei, os fidalgos assentaram esperal-o em Setúbal, ao desembarcar vindo de Alcácer, e realisarem então o seu intento. D. João II, porém, que lhes presentia os movimentos, fez o caminho da Landeira por terra, bem acompanhado pelos ginetes de Fernão Martins, e pelos bes- teiros e espingardeiros da guarda; e chegan-

114 CONSPIRAÇÃO DA NOBREZA

do a Setúbal no dia 22 de agosto de 1484, mandou logo na manhã seguinte chamar o duque de Vizeu, que pousava em Palmella. Resolvera, emflm, tirar a mascara, e a ex- plosão devia ser tanto mais terrível, quanto fôra duradoura e profunda a necessidade de conservar latente, debaixo de superflcie de gelo, o ardor de ódio intenso e concentrado. Entrando o duque no palácio ao anoitecer, chamou-o el-rei ao aposento que lhe servia de guarda roupa, e ahi, accusando-o de trai- ção, o matou ás punhaladas, na presença de alguns cavalieiros, que para assistirem a esse acto tinham sido convocados. Na manhã se- guinte via-se sobre um estrado, no centro da egreja matriz da villa, o cadáver do duque de Vizeu, com o rosto descoberto e dez feridas de punhal. D'ahi a poucos dias o bispo de Évora, preso na camará da rainha, morria envene- nado no castello de Palmella; D. Fernando de Menezes, D. Pedro de Athaide e Pedro de Al- buquerque eram degolados na praça publica; e D. Gutterres Coutinho expirava ás mãos do carrasco no fundo de um calabouço. Emfun, passados cinco annos, Fernão da Silveira, a quem a nobre dedicação de um amigo salvara

CONTRA D. JOÃO 11 lio

do patíbulo, cahia assassinado em França por mandado do rei de Portugal.

A negrura de semelhante proceder é evi- dente; e se as cousas da terra podessem des- pertar o profundo sorano dos mortos, os cadá- veres d'esse3 homens deveriam muitas vezes apparecer á consciência de D. João 11, tor- nando ainda mais penosas as desgraças, que lhe enlutaram o coração durante os restantes annos do seu curto reinado.

XI

PRIMEIRA VIAGEM DE VASCO DA GAMA

A índia

14t>7 a 149 y

Julgam pruíundos historiadores que os des- cobrimenlos além do cabo Bojador, posto que encetassem para o reino uma grande epocha de gloria e prosperidade, foram talvez a cau- sa capital da rápida e angustiosa decadência a que chegámos nos Ons do século xvr. Entre- tanto não seremos nós que condemnemos esse espirito aventuroso e intrépido, que levou os nossos marinheiros e soldados a praticarem tantos feitos assombrosos de ousadia, de abnegação, de patriotismo. Das victorias que alcançaram nem existem trophéus, das na-

118 PRIMEIRA VIAGEM

ções que se prostraram ao seu esforço indo- mável são outros hoje os senhores, do respei- to e temor em que os tinha o mundo apenas resta a lembrança, e todavia a maravilhosa narração das façanhas d'aquenas eras, das homéricas batalhas de poucos homens contra exércitos, das expedições e conquistas que ergueram uma nação pequena e pobre ao fas- tígio da soberania e da opulência, ainda nos alvoroça o coração de enthusiasmo e amor pátrio, não obstante as preoccupações prosai- cas e calculadoras do século em que vivemos. O descobrimento do caminho marítimo para a índia é, sobretudo, um d'aquelles factos ex- traordinários, de que o espirito mais pene- trante mal pôde medir a extensão. Não fa- lando já dos paizes e regiões incógnitas que acrescentámos á communhão europea, do aperfeiçoamento da navegação e do commer- do, do novo e immenso mercado que abrimos a todas as industrias, do ascendente da classe média que eíTicazmente fomentámos, basta dizer-se que às victorias dos portuguezes na índia deve talvez a Europa não ter succum- bido ao jugo mahometano. Ao passo que nós e os castelhanos nos preparávamos para di-

DE VASCO DA GAMA Á ÍNDIA 119

latar os âmbitos do mundo conhecido, has- tear por toda a parte a cruz, e estabelecer em redor d'ella uma transformação social; ao passo que as outras napões christãs, agitadas por muitas e diversas causas, se entretinham em luctas feudaes de castello com castello, e de paiz com paiz; os mussulmanos iam crescendo em poder, as suas dynastias radi- cavam-se desde o Indostão até ao Mediterrâ- neo, os seus navios sulcavam todos^os mares, o monopólio do commercio asiático constituía os povos em vassallagem dos seus mercados, e os seus exércitos, animados pelo amor da guerra e pelo fanatismo da crença, ameaça- vam de nova invasão os estados da christan- dade. Veneza, a rainha do Adriático, ousava a custo contrastar em parte a influencia de Constantinopla ; mas esse obstáculo depressa desappareceria se as conquistas dos portu- guezes não viessem produzir no mundo com- pleta metamorphose mercantil e politica. Ma- laca e Ormuz, os dous principaes empórios das producções indianas, abriram seus por- tos somente aos novos dominadores; as ar madas turcas, e as do Achem e Jaoa (Su- matra e Java), os exércitos de Gambaya e Ga-

á20 PRIMEIRA VIAGEM

nanor, as forças do Samorim, dos reis de De- kan, do Hidal-Khan e do soldão do Egypto não conseguiram arrancar das nossas mãos o império da Ásia; e as nações mussulmanas, perdido o principal elemento da sua forpa^ foram-se desmembrando, fundindo, esvae- cendo, e eil-as as que restam, fracas e decré- pitas, alongando humildemente os olhos para o occidente, na esperança de que os filhos do christianismo estendam um braço que ampare os representantes e sectários do propheta.

Foi essa a epocha da nossa gloria mais es- plendida. Quem examinasse então um mappa cosmograpliico, desde a linha que distingue a Europa e a Africa até ao cabo da Boa Espe- rança, quasi não encontraria ilha, promontó- rio, costa, golpho ou enseada, onde a fama do nome portuguez não guardasse por si a conquista ; e montando o cabo veria temular o pendão das quinas nos pontos mais impor- tantes do Oriente, e ainda nos remotos archi- -pélagos que depois se deviam chamar a Ocea- nia. Antes. d'essa epocha, porém, houve uma lucta, que 'dur(í>u perto de um século, -e que A^otou ás paginas da ihistoria universal e ao applaitôo da ípoeteridade a meiBoria «d^eases

DE VASCO DA GAMA Á ÍNDIA 121

homens valorosos, que alteraram os destinos do mundo em proveito do cliristianismo, da civilisação e da politica. Os descobrimentos de Gonpalves Zarco e Tristão Vaz, de Gil Annes, de Nuno Tristão, de Goni^alo de Cintra, de Lan- çarote, àe Gonçalo Velho, de António de Nolle, de João de Santarém, de Pedro de Escobar, de Diogo da Azambuja, de Diogo Cão, de Bartho- lomeu Dias e João Infante foram como que os prehminares dos grandes commettimentos. D. Manuel, subindo ao Ihrono no anno de 1495, resolveu continuar a empreza de seus antecessofes, porfia magnânima que tantos sacrificios tinha custado. Ao infante D. Hen- rique haviam-se devido os primeiros traba- lhos e tentativas que prepararam o desco- brimiento da hidia ; D. João 11 fundara na Africa o inaperio portuguez, e deixara ao seu suc- cessor abundantes materiaes para o estabe- lecer na Ásia; ao monarcha venturoso estava destinada a missão de traduzir n'uin facto •estupendo este vasto projecto.

Vigoi-osa foi, comtudo, a resistência que O. >ianuel encontrou nos seus conaelheh*os. Reprovíivam esles o descobrimento como ori- ■gem ittfâUivel .de r.uiaa, lembrando os riscos

122 PRIMEIRA VIAGEM

de mar e terra, o acanhamento do reino e de seus recursos, a vastidão e difficuldade da conquista, e propondo que a vida enérgica da metrópole se applicasse exclusivamente a ex- plorar as possessões adquiridas, o que aliás era diíficil encargo para um povo pouco numeroso. Mas nem duvidas nem suggestões abalaram a vontade do monarcha, que, na febre do enthusiasmo que o incitava à tenta- tiva, como que antevia a aurora do triumpho. Encarregou, pois, de executar a empreza a Vasco da Gama, filho do alcaide mór da villa de Sines, Estevão da Gama, e, entregando- Ihe em acto publico a bandeira, determinou a partida.

Prestes a armada, que se compunha de duas naus, S. Gabriel e S. Raphael, da cara- vella Berrio e de um navio de mantimentos, embarcaram-se em Restello todos os que de- viam ir na expedi pão, e que seriam cento e sessenta homens entre marinheiros e solda- dos. Magestoso espectáculo offereceram então aquellas praias. Era o dia 8 de julho de 1 4 9 7. O sol esplendido banhava de luz o Tejo, as suas margens e a pobre ermida da Senhora da Invocação de Belém, ermida que o infan-

DE VASCO DA GAMA Á ÍNDIA 123

te D. Henrique mandara construir para ani- mar a devoção dos maritimos, e que depois tinha de converler-se no grandioso templo dos Jeronymos. D'ahi sahia uma procissão, guiada pelos freires da ordem de Christo, e seguida de grande concurso de povo, que consternado tinha vindo despedir-se dos au- dazes navegadores. O filo que attrahia a mul- tidão provinha do enlevo que excitam sem- pre as tentativas arrojadas, e esse sentimento achava-se ahi concentrado como no seu gran- de foco, ancioso pelas contingências da via- gem, aíflicto pela probabilidade das catastro- phes, engrandecido pela communicação rá- pida, eléctrica, fascinadora, irresistível de tantos espectadores. Tristes estavam todos, excepto os que partiam, porque a esses ani- mava o fervor e o alvoroço da empreza, não obstante irem cruzar mares nunca navegados, dobrar promontórios, evitar restingas, resis- tir a tempestades e correntes, domar bárba- ros de Africa, combater os mouros^ procurar, emlira, o desconhecido com todos os seus en- cantos e esperanças, mas com todos os seus assombros e perigos. Desfraldadas as velas partiram-se de foz

12 i PRIMEIRA VIAGEM

em fora, aportaram a Cabo Verde, entraram na bahia de Sancta Helena, e depois de mon- tarem o cabo da Boa Esperança com menos tormentas e riscos do que os marinheiros te- miam, e de passarem pela aguada de S. Braz, pela costa do Natal, pelo ria dos Bons Signaes, chegaram, no fim de quasi oito mezes de via- gem, a Moçambique, d'onde logo desaferra- ram algumas barcas, ahi chamadas zambucos, que vieram abica: ás naus. Guarneciam-n'as muitos indigenas, e entre elles alguns bran- cos, que pelos trajos e linguagem se conheceu serem mouros. Por um d'elles, natural de Fez, mandou Vasco da Gama ao xeque d'aquella terra, dizendo que se dirigia á Índia, e que para esse fim llie pedia um piloto. Prometteu o xeque satisfazer o pedido, e veiu visitar os navegantes, porque, a despeito das informa- ções obtidas, cuidava ainda que seriam tur- cos; conhecendo, porém, que eram cliristãos, determinou destruil-os, e quando, desfeitos os vários ardis que para a traição empregara, se viu constrangido a entregar um piloto, in- struiu-o para que em vez de guiar os navios procurasse perdel-os. A fortuna, todavia, que no meio dos seus caprichos se inclina a pro-

DE VASCO DA GAMA Ã ÍNDIA i25

teger os que muito ousam, salvou os portu- guezes, que no dia 7 de abril de 1498 che- garam a Mombaça, cidade importante e para esses tempos civilisada, onde também escapa- ram a graves perigos. Em Melindo, emíim, o rei, não obstante o antagonismo de crenças e de raça, entendeu que devia soccorrer os es- trangeiros, e com esse intuito acolheu-os sem perQdia e deu-lhes um hábil piloto que os le- vasse á índia.

Vinte e três dias depois de lerem partido de Melinde suppozeram os marinheiros ver terra. por vezes, em dias anteriores, se lhes tinha afigurado o mesmo^ e haviam estreme- cido de contentamento e esperança; mas o tempo mostrara sempre que taes imagens eram apenas allucinação, e a alegria se lhes transformara em profunda tristeza, porque cousa alguma abate mais os ânimos do que essas alternativas de illusões e desenganos, que são como os sarcasmos do destino. Des- alentados, pois, e fitos sombriamente os olhos no horisonte, os mesmos homens que, escas- sos de recursos e estando ainda na infância- a arte náutica, se haviam afoutado aos abys- mos cora desassombrada resolução, trepida-

Í26 PRIMEIRA VIAGEM

vam agora, e quasi que sentiam as angustias do desespero. Doesta vez, porém, apresenta- va-se a realidade incontestável, e não tardou muito que distinctamente se conhecesse a proximidade de um continente vastíssimo. Appareciam a final essas praias da índia, que eram para os atrevidos navegadores, o sonho, o enlevO; a paixão que a todos avas- sallava, paixão que fora crescendo com os obstáculos até constituir a idéa fixa, o pensa- mento constante d'aquellas almas enérgicas. Chegada a noite tornou-se necessário virar de bordo, porque fora perigoso no meio das trevas entestar com_ a terra, mas no dia se- guinte, ao romper da manhã, corria a arma- da ao longo da costa com vento bonançoso. Uma cadeia de montanhas, tendo por coroa as nuvens, sobresahia em distancia ; por en- tre florestas de palmeiras divisavam-se sober- bos edifícios; o Oriente, emfim, o recesso dos mysterios, a região dos prodígios, cujas fabulas nebulosas eram ainda inferiores ás maravilhas que se presentiam, patentea- va-se com toda a magestade da sua vegeta- ção opulenta. Avisinhavam-se n^aquella costa três povoações: Calecut, Capocate e Panda-

DE VASCO DA GAMA Á ÍNDIA 127

rane. Os marinheiros, tomando a segunda pela primeira, por engano de Canacá, o piloto indiano, dirigiram as naus a Gapocate, pobre aldeia de pescadores; mas, sabendo ahi qual das povoações era Calecut, foram lançar ferro na enseada da cidade.

Considerava-se n'esse tempo Calecut uma das mais importantes escalas commerciaes da índia, e era sem duvida a mais poderosa de todas as terras do Malabar. Viam-se girar no seu commercio os diamantes e pedras precio-^ sas das ricas minas de Narsinga e do Pegú, as pérolas de Kalckar, o ouro de Sumatra, o âmbar das Maldivas, o marfim, a porcelana, as sedas e damascos da China, o sândalo de Timor, o algodão, o anil, o assucar, as espe- ciarias mais apreciadas, tudo, emfim, quanto pôde contribuir para o uso e delicias da vida. Capital do reino do mesmo nome, constituía Calecut a sede do sacerdócio e do império; tinha, alem de innumeraveis casas, feitas de madeira e cobertas de palma, muitos palácios, templos, arcos e torres soberbas; e estendia- se por largo espaço, contendo, segundo o computo dos naturaeS; cerca de duzentos mil habitantes. Fundada com pouco poder, havia

128 PRIMEmA VIAGEM

ganho dentro de breve tempo aquelle gran- de esplendor, e o seu rei, a que chamavam o Samorim, era o mais respeitado e temido entre os monarchas do Indostão.

Annunciada a vinda dos portuguezes, re- cebeu-os o principe com affago, deu audiên- cia a Vasco da Gama, e declarou acceitar a allianpa do rei de Portugal, promettendo que na frota lhe enviaria embaixadores. Os mou- ros, porém, costumados de longo tempo aos lucros commerciaes d'aquella teiTa riquíssi- ma, e receiando que a inQuencia dos portu- guezes não lhes consentisse de futuro, nem protecção, nem accordo, nem tregoas, nem misericórdia, começaram a urdir traições, tentando persuadir o Samorim de que os na- vegantes eram piratas infames, que levariam o terror do seu nome aos confins do império, como em Moçambique e Mombaça tinham deixado vestígios de crueldade e perfídia; e de que ainda quando fossem súbditos de mo- narcha poderoso, eram de certo homens or- gulhosos e ávidos, que pretendiam, sob as apparencias de paz e amisade, a con- quista e posse exclusiva do solo descoberto. Gonvenceu-se facilmente o principe indiano,

DE VASCO DA GAMA Á iNDIA 129

e desde logo se lhe transformou a boa von- tade, dissimulando apenas o seu ódio para encontrar ensejo favorável de colher ás mãos os estrangeiros.

Debellados, todavia, os tramas pela intre- pidez e astúcia de Vasco da Gama, levantaram ancora as naus, e depois de quasi três mezes de demora n"esse paiz inimigo, seguiram via- gem para Portugal, tendo que vencer de novo graves perigos, e perdendo tantos a vida com as febres, que dos cento e sessenta homens que partiram, poucos mais de sessenta re- gressaram á pátria.

Em Portugal a noticia do descobrimento da índia encheu de enthusiasmo todo o reino. Estavam depostos os temores, patente o ca- minho, encetada, em summa, a nova cruzada de religião, de guerra, de industria e de glo- ria, que ia devassar as barreiras da antiga civilisapão oriental. Justiílcára-se o firme pro- pósito que vencera as apprehensões anterio- res, e D. Manuel, depois de premiar Vasco da Gama e os famosos companheiros, acrescen- tou aos títulos do seu dictado os de senhor da conquista, navegação e commercio da Elhio- pia, Arábia, Pérsia e índia.

130 VIAGEM DE VASCO DA GAMA Á ÍNDIA

O soberbo mosteiro dos Jeronymos foi o padrão erguido á grandeza do emprehendi- mento, á fortuna do resultado, ao favor da providencia; a torre de S.Vicente de Belém, edificada quasi no mesmo período, tornou-se a testemunha gloriosa do immenso poder que depois alcançámos, e que ao passo que avas- sallava o império da Ásia, vencia na Berbéria as bellicosas turbas agarenas, cravava mar- cos de posse em quasi três mil léguas da costa oriental da Africa, e dava á Europa a primazia entre as outras partes do mundo, abrindo caminho á grande revolução intelle- ctual; moral, poUtica, mercantil e guerreira, que, arremessando-se com as obras para alem do acanhado horisonte da experiência^ tornou o século XVI talvez a epocha mais maravilhosa da historia da civilisaçao.

XII

DESCOBRIMENTO DO BRAZIL lõOO

No anno seguinte ao da volta de Vasco da Gama encarregou D. Manuel a Pedro Alvares Cabral, senhor de Belmonte, e alcaide mór de Azurara, o mando de uma armada de treze velas, que devia na sua derrota correr a costa de Sofala, visitar o rei de Melinde, che- gar a Calecut, e proseguir na empreza, a um tempo mercantil e guerreira, iniciada com tanta fortuna pelo primeiro descobridor. Era a frota magnifica e poderosa, e tinha como capitães entre outros, alem de Pedro Alvares Cabral, Nicolau Coelho, que fura na anterior expedição, e Bartholomeu Dias, o primeiro

d 32 DESCOBRIMENTO

que ousara dobrar o cabo da Boa Esperança, e que no seio das suas tormentas ia encon- trar d'esta vez o perpetuo somno da morte.

Preparado tudo para a partida, levanta- ram-se ancoras, desfraldaram-se velas, e cor- tando as aguas sahiu a armada de mar em fora no dia 9 de março, e seguiu viagem prospera até ás alturas de Cabo Verde, onde um temporal desfeito de tal modo agitou os mares, que os navios, envolvidos entre serras de ondas, ora eram alçados no cume das vagas como se ellas os quizessem expellir de si, ora quasi se submergiam na concavidade do abys- mo. Acalmada a procella, juntou-se toda a fro- ta, á excepção de um navio que depois arribou a Lisboa, e continuaram os doze restantes pelo oceano, afastando-se das costas de Africa, ou para evitarem as calmarias da Guiné, como o praticara Vasco da Gama, ou porque para o proseguimento de tal rumo influísse de algum modo o espirito aventuroso e obsti- nado d'esses homens enérgicos, que tudo ar- rostavam e a tudo se atreviam com o ardor que deriva do verdadeiro enlhusiasmo.

As plantas marítimas encontradas no dia 21 de abril, as aves redemoinhando nos ares

DO BRAZIL 133

OU pousando sobre as aguas, um hálito per- fumado impregnando a atmosphera annun- ciaram aos navegantes a proximidade de re- giões desconhecidas; e por isso, na manhã seguinte, apinhavam-se todos nos chapitéus da proa, fixa a vis la no extremo dos mares, onde se divisava como que um ponto es- curo que gradualmente ia crescendo. A final a voz do gageiro da nau capitanea bradou no cesto da gavia terra! , e durante minu- tos só esse grito de contentamento indizível resoou em todos os navios. A ligeira névoa avultara no horisonte. a frota surdia sempre avante, e por fim distinctamente se obser- vava um monte de forma arredondada, lar- gas serranias para o sul, e ao longe uma ex- tensa planície, vestida de sombrios arvoredos. Aproaram então as naus á terra, que pela ignorância d"aque]las eras julgaram os pilo- tos que podia ser uma grande ilha, como alguma dos Açores ou das Antilhas, ancora- ram perto da costa, e na manhã seguinte sul- cavam as aguas em direcção á praia.

Grupos de homens, de mulheres e de creanças appareciam por entre as arvores, e ora se adiantavam a medo, ora se retrahiam.

134 DESCOBRIMENTO

íestemunliando nos gestos o espanto que lhes causavam as embarcações, as velas, as ver- gas, os mastros, cousas como que animadas 6 sobrenaturaes, que pareciam obedecer ao impulso de uma vontade única. Não linha £ssa gente os caracteres physicos das raças africanas ou europeas, e apenas se semelhava com as da Índia na cor baça e no cabello comprido e corredio. Os corpos eram altos e robustos, as feições regulares, a physionomia franca e benévola; e apesar das armas que traziam mostravam-se de Índole pacifica, di- tosos com seus costumes singelos, e satisfei- tos com o que o solo espontaneamente lhes oíTerecia.

Não podendo desembarcar ahi, porque o mar quebrava então muito na costa, seguiram os portuguezes na volta do norte, buscando á feição do vento algum porto seguro onde sur- gissem; e de feito tendo navegado cerca de dez léguas, encontraram no dia 24 de abril uma enseada, onde logo entraram os navios menores, Geando ao principio as naus fora dos recifes, por não se conhecer se havia dentro suíficiente fundo. Entretanto alguns marinhei- ros approximaram-se em bateis á praia, e con-

DO BRAZIL 135

seguiram tomar de sobresalto dous indigeuaS; que andavam numa jangada ou almadia, for- mada a seu modo de ires traves unidas, e que nem tentaram resistir, não obstante trazer um d'elles arco e frechas, e poderem ser facil- mente soccorridos. Levados à presença de Pe- dro Alvares Cabral, procurou este de alguma forma interrogal-os, deu-lhes o que indicaram desejar, enviou-os no dia seguinte para terra, a fim de evitar suspeitas ou receios, e estabe- leceu assim as primeiras relações com os ha- bitantes d'essa parte do novo mundo, que o acaso nos sujeitava, como o acaso entregara a Colombo as costas occidentaes da America, ísão tentaremos descrever as varias scenas de curiosidade e de innocencia por parte dos indígenas, de contentamento, de enthusiasmo e de nobreza por parte dos descobridores, que tiveram como theatro essas praias em- quanto ahi se demorou a armada. O quadro que apresentássemos seria apenas um esboço desenhado a largos traços, que mal consegui- ria trasladar a narração synchrona de P^ro Vaz de Caminha, onde miudamente se repre- sentam os factos e circ-umstancias, e como que resurgem os próprios protogonistas. Cin-

136 DESCOBRIMENTO

gir-nos-hemos, pois, a dizer que, tendo o ca- pitão mandado reconhecer o paiz, e sabendo que era fértil, retalhado de rios caudaes, co- }3erto de arvores fructiferas, e povoado por gentio dócil, com o qual se mostrava fácil a entrada, resolveu tomar solemnemente posse d'essa região, oceano de soberbas e virginaes florestas em que parecia reproduzir-se o éden dos livros santos.

Designado para aquelle acto o primeiro dia de maio, assistiram á missa em terra os nave- gantes, ataviados das melhores telas e de lu- sidas armas; e debaixo d'aquelle céu pu- ro, n'aquella atmosphera balsâmica, perante aquelles horisontes esplendidos, um profundo sentimento de confiança em Deus devia ani- mar esses homens ajoelhados em frente do mesmo altar, esquecidos dos perigos e fadigas, e enlaçados pelas recordações, pelas crenças, pelos trabalhos e pelo pensamento de gloria, que mais ou menos se erguia em todas aquel- las almas de bronze. Em seguida, no meio do resoar das charamelas e tambores, das accla- mações da marinhagem e dos gritos festivos dos indígenas, levantou-se perto da praia uma grande cruz, feita com madeira d'aquellas

DO BRAZIL 137

selvas, padrão glorioso da nobre empreza, que nenhum acto de crueldade deshonrára.

Não quiz Pedro Alvares Cabral demorar no- ticia tão extraordinária, e expediu Gaspar de Lemos para a transmitíir a el-rei, partindo elle próprio d'aquellas praias no dia 3 de maio, e deixando em terra dous degredados, vivo testemunho de posse incontestada. A fortuna, porém, que até então lhe fora propicia, de- pressa o desamparou. Assaltada a frota, por uma tempestade horrorosa proxuno ao cabo da Boa Esperança, abysmaram-se no oceano, com a gente que levavam^ quatro dos onze navios que se dirigiam á índia.

Passados mezes Gaspar de Lemos transpõe de novo a foz do Tejo, e vem annunciar a Lisboa, ao reino, ao mundo o novo descobri- mento. A febre do enthusiasmo exaltou então todos os ânimos, dando-lhes a energia e con- fiança que até essa conjunctura faltara a mui- tos. O pendão das quinas, que tremulava na Europa e na Africa, nas ilhas do Atlântico e nos mares da índia, ia alongar-se pelo occi- dente, e Portugal podia dizer com legitimo orgulho que tomara o primeiro logar entre as nações.

138 DESCOBRIMENTO

Durante muiío tempo, todavia, pouco se cuidou da nova possessão, e D. Manuel, des- lumbrado pelo magico esplendor do sumptuoso Oriente, não se lembrou de a mandar explo- rar como convinha, nem acrescentou aos tí- tulos do seu dicíado um que significasse o senhorio n'aquella immensa região. A espe- ciaria e os diamantes, o marfim e o oiro das conquistas asialicas captivavam exclusiva- mente as vontades; a vassallagem de muitas nações florescentes, as páreas de monarchas dos últimos confins da terra ensoberbeciam a afortunada metrópole; a desmedida ampli- dão de um terreno inculto, e ou ermo ou po- voado de selvagens, pouco attrahia a ambição dos que viam a seus pés os povos desde as cidades de Africa fronteiras até o seio pérsico e o mar da Gliina. com o rodear dos an- nos se conlieceu a importância do vasto con- tinente que a ventura nos off^erecéra. Errado foi o systema de colonisação que se adoptou, funestos os resultados que d'elle derivaram, mas a riqueza do solo e a bondade do clima resistiram á ineptidão dos homens e á barba- ria das leis, e a terra de Santa Cruz tornou-se dentro de um século o fito da cubica e ia-

DO BRAZIL 139

veja das nações maritimas e commercian- tes.

Hoje o Brazil é dilatado império, enérgico, vigoroso e livre. Emancipado da metrópole, não por acontecimentos em parte calcula- dos e predispostos, e em parte imprevistos, mas ainda pela lógica natural do progresso das sociedades^ está destinado, pela sua po- sição geographica, pela excellencia do clima, pelas riquezas que possue, pelo denodo e es- plendor das suas armas, e pelo patriotismo dos seus habitantes a desempenhar uma grande missão civilisadora na historia do novo mundo. Possa o povo infante, filho e em tudo descendente de uma nação pequena mas heróica, viver e prosperar por muitos séculos, dando exemplos de sabedoria e de humanidade ás velhas monarchias da Europa, e conservando com gloria a supremacia que nobremente alcançou nas amplas regiões da America meridional.

XIII

VICTORIAS DE DUARTE PACHECO

1504

As armadas do grande Affonso de Albuquer- que e de seu prinio Francisco de Albuquerque, tendo-se demorado durante mezes na índia, haviam partido para Portugal, deixando em Cochim Duarte Pacheco Pereira com cento e cincoenta portuguezes, entre marinheiros e soldados, a fim de auxihar o fiel Trimurapára na guerra que o Samorim não tardaria a mo- ver-lhe. No vigor da edade, povoado o espi- rito dos sonhos doirados da ambição de glo- ria, habituado ao fervor das refregas, ao marulho e resaca dos perigos, ao remoinho dos successos, ao alvoroço das victorias^

Ii2 YICTORIAS

Duarte Pacheco^ cujo nome apparece na his- toria do império asiático como o do ultimo semideus que combate na terra, tinha a força de animo que vae até á immolação e consum- ma prodigios. Ameaçado por quasi -todos os rajhás do Malabar, os quaes se haviam alliado com o Samorim, resistiu ás solicitações de Trimumpára para que fugisse á infallivel ruí- na e se recolhesse ás costas da Arábia, como fizera Vicente Sodré; levou o terror da sua fama ao seio dos adversários, entrando pelas terras de Repelim, talando os campos, asso- lando as povoações, e consegiíindo desde logo importantes despojos; preparou se, em- fim, para a resistência, resolvendo suster o Ímpeto dos inimigos no passo de Gambalam, soberbas Thermopylas, onde, mais feliz que Leonidas, havia de derrotar o ímmenso po- der do novo Xerxes.

Nunca até então se offerecéra na índia aos portuguezes mais opportuno ensejo de ven- cer com honra ou de perecer nobremente. Deixando pois no seu navio vinte e cinco homens, sob o mando de Diogo Pereira, e na tranqueira de Cochim trinta e cinco, capita- neados pelo feitor Diogo Fernandes Correia,

DE DUARTE PACHECO 143

formou Duarte Pacheco a sua frota com uma das caravellas que lhe tinham ficado, e dous bateis devidamente artilhados; tomou para transportes algumas terradas dos Índios, es- pécie de barcos como os nossos do Tejo, que chamamos de agua-acima; e assim partiu para o vau de Cambalam, á frente de pouco mais de setenta portuguezes, e acompanhado por quinhentos nayres de Cochim, dos quaes mais temia traição do que esperava soccorró.

Chegado ao vau no dia 17 de março, antes do romper da alva^ rechaçou uns oitocentos soldados de Calecut, que se haviam adiantado ao grosso do exercito, e que com frechas e ar- remessos tentavam impedir o desembarque, e fundeou immediatamente, mandando ligar com cadeias a caravella aos bateis. Occorré- ra-lhe obstruir d'esta sorte o passo, e neutra- lisar, quanto possível, a superioridade dos adversários que, apertados n'aquella estreita garganta^ mal poderiam revolver-se e orde- nar-se. Feito isto, dispoz-se para o temeroso recontro com a experiência adquirida no meio dos perigos da guerra, e a stoica indifferença que a nenhum lance succumbe.

No dia seguinte, designado pelos agourei-

144 VICTORIAS

ros como feliz e decisivo, determinou o Sa- morim encetar o combate. Unidos com o po- deroso monarcha, sob o pendão de guerra, estavam os reis seus tributários e alliados. Cento e sessenta navios de remo paráos, ca- tures e almadias— , com perto de quatro mil homens de peleja, capitaneados por Naubea- darim, sobrinho e herdeiro do rei de Calecut, e pelo caimal ou senhor de Repehm, occupa- vam o rio. Milhares de soldados estendiam-se, como densa seara de lanças, pelo lado da terra. Tudo, emfim, parecia indicar que o es- forço dos companheiros de Pacheco não po- deria de modo algum resistir ao estoirar da procella, que de uma e outra parte os amea- çava.

Vinte paráos encadeados, formando uma larga e solida jangada, defendida com arrom- badas, e bem guarnecida e artilhada, inicia- ram a batalha, tentando romper a passagem com a força do impulso, ou aferrar com ar- peos a caravella para depois a destruir facil- mente. Estavam, todavia, os portuguezes bem providos de bombardas, de arcabuzes, de pe- louros, de panellas de pólvora, e de quantos artifícios pyrotechnicos se conheciam n'es-

DE DUARTE PACHECO 14o

ses tempos, e depois de vivo fogo dispersa- ram as embarcações, mettendo algumas a pi- que, e cedendo assim ás aguas as primicias do despojo. O caimal de Repelim avançou então com todas as suas forças, ao passo que o exercito de terra, levantando o clamor de combate, se arremessou sobre o vau, a fim de que a victoria fosse indubitável e absoluta.

Aos primeiros tiros os nayres de Gochim, lançando fora as armas para ficarem mais desembaraçados, precipitaram-se em desvai- rada fuga sem terem sequer pelejado. Os pou- cos portuguezes, que rodeavam Pacheco, ex- postos á chuva das frechas arrojadas dos bateis, e aos dardos e pelouros do exercito de terra, viram-se no extremo risco. Para elles, porém, não havia recuar, e a desesperada resistência que offereceram venceu o alvoro- tado embate dos adversários, que não ob- stante a vantagem do numero cederam os postos de que se tinham apossado, e vol- taram aos arrayaes em tumultuosa retirada.

O êxito d"este primeiro combate excedeu todas as previsões. As perdas haviam sido as- sombrosamente desiguaes; enormes por parte dos contrários, diminutíssimas do nosso lado ;

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146 VICTORIAS

mas os fructos de maior valia para Duarte Pacheco foram os de ordem moral. O grande capitão mostrara aos Índios, assim alliados como inimigos^ quanto valia a constância e disciplina dos portuguezes, e redobrara n'es- tes a audácia, predispondo-os para futuras victorias.

D'ahi a dias o Samorim, havendo recebido importantes reforços, ordenou nova investida. Presumindo, porém, que o capital estorvo pro- vinha do valor pessoal de Duarte Pacheco, a quem as proezas tinham cercado de uma aureola de terror supersticioso, procurou dis- trahir-lhe a attenção, enviando parte da frota saltear o navio que ficara em frente de Gochim. O ardil produziu até certo ponto o ambicio- nado effeito, porque o capitão portuguez cor- reu logo n'um dos bateis a soccorrer o navio, que aliás mal se poderia defender se elle tar- dara; mas a parte principal da frota de Cale- cut encontrou nos portuguezes que ficaram em Cambalam a mesma resistência tenaz que havia experimentado, resistência que levara os Índios a supporem que os nossos se ligavam com juramento, como os amoucos de Malaca e de Java, para supplantar quantos os affron-

DE DUARTE PACHECO ii7

tassem, não temendo nunca a morte, cora- tanto que sobre os seus cadáveres se hasteas- se vicíorioso o estandarte da vingança.

Assim decorreram largos dias entre com- bates e fadigas. A desanimapão começou en- tão a lavrar no exercito de Calecut, e muitos dos principaes caudilhos faUaram de levantar o campo. O Samorim chegou a hesitar, e ás instancias dos brachmanes e de alguns mercadores mussulmanos que o acompanha- vam se deveu a resolução de proseguir a em- preza. Tratou-se de commetter a entrada, aproveitando alguns vaus, onde as duas ca- ravellas, de que os portuguezes por essa occasião dispunham, não podessem chegar. Advertido a tempo das novas traças de guerra, Duarte Pacheco mandou fortificar os sitios de- signados, ouriçando-os de estacaria, e encar- regou da sua defensa os nayres de Cochim, aos quaes as victorias dos portuguezes parecia terem despertado o amortecido espmto guer- reiro. Depois collocando as caravellas de sorte que podessem rebater a investida da frota inimiga, e dispondo os bateis para que op- portunamente soccorressem qualquer ponto ameaçado, aguardou com animo seguro a ter-

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rivel lucta de cujo resultado dependia a vida dos seus companheiros, e porventura a con- servação do nosso domínio na índia.

Ao approxiraarem-se os Índios ctioveram so- bre elles, como denso granizo, os tiros de mosquetes e bombardas; mas os nayres en- carregados de defender a estacaria, arrastados pelo terror ou resolvidos á traição, desam- pararam os postos, e os de Calecut, adqui- rindo com isto nova energia e audácia, preci- pitaram-se, como torrente impetuosa, atravez do rio nos pontos em que a baixa-mar o tor- nava vadeavel. A lancha em que estava Duarte Pacheco encontrou-se então em grande risco. Cercada por todos os lados era quasi inevitá- vel cahir em poder dos inimigos, que com as mãos prendiam os remos. Não afrouxou com isso o animo dos portuguezes, mas como que se exaltou o enthusiasmo ardente, es- iorço sobrehumano que não arrosta sem receio os perigos, mas quasi encara a morte sem lhe attentar o horror. Suppondo infaUivel a perda, dispunham-se a vender caro as vi- das, quando a maré começou a crescer, e ao passo que os portuguezes poderam então ma- nobrar mais facilmente, os índios sentiram-se

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DE DUARTE PACíIECO 149

constrangidos a retroceder. Frustrada esta tentativa, as tropas de Calecut recoltieram-se ao acampamento.

Convencido por dolorosa experiência de- que os seus recursos militares não eram suf- ficientes paPa submetter aquella raça indomá- vel, que ao principio julgara fácil debeilar de um golpe, .cuidou o Samorim em aca- bar com ella recorrendo á traição. Com este fim tentou mandar assassinar Duarte Pacheco, e envenenar a agua e mantimentos de que os nossos se podiam servir. Mallogradas, po- rém, essas ciladaS; e vendo que o ílagella- da peste devastava no acampamento os seus- súbditos, o rei de Calecut enviou mensagei- ros secretos com propostas de paz, que Duarte* Pacheco recusou, persuadido de que por esse meio pretendia somente o astuto indiano aguardar circumstancias futuras que lhe fa- cilitassem a desforra.

A altivez da recusa augmentou o terror dos- gentios. De feito o Samorim procurara comi as suas fingidas promessas obter apeoas tre- goas mais ou menos dilatadas, na esperança de reparar os últimos desastres, e de buscar depois pretextos ou de encontrar motivos para

ioO VICTORIAS

romper as estipulações. Collocado, todavia, na necessidade de continuar immediatamente a guerra, resolveu arriscar n'um ultimo e de- cisivo recontro a sorte da empreza.

N'essa batalha, erapenharam-se, pois, de um e outro lado todas as forças. A frota de Calecut abriu o combate, lançando pela cor- rente balsas accesas, cheias de lenha, breu e azeite, que deviam ir ao encontro dos navios portuguezes, como um rio de fogo. Prevendo, porém, esse estratagema, contra o qual de nada valeria o esforço, Duarte Pacheco tinha mandado collocar em frente das caravellas um pontão chapeado de ferro, e defronte doesse obstáculo cousumiram-se em vão as balsas in- ílammadas, ao mesmo tempo que a armada de Calecut permaneceu exposta ao fogo da artilheria portugueza, cujo maior alcance foi n'esta occasião de incontrastavel vantagem. Extincto o incêndio approximaram-se da frota christã muitos paráos, sobre os quaes os gen- tios tinham levantado oito castellos de ma- deira, forrados de chapas de ferro, ou, como hoje se diria, couraçados; mas debaixo de nuvens de balas, frechas e alcanzias os nos- sos não desanimaram, e ao sexto ou sétimo

DE DUARTE PACHECO 151

tiro de um camello, nome que então se dava a certas bombardas de grosso calibre, os castellos foram derrubados. Entretanto pelo lado de terra o Samorim não era mais feliz, e dentro de poucas horas o destroço dos Ín- dios tornou-se geral e completo.

Este prélio de todos os dias, estes vãos es- forços de tropas numerosas para triumphar de um punhado de homens deviam ter um termo. Depois de mais alguns saltos e esca- ramuças sem resultado importante^ o Samo- rim levantou o campo, e no meio de profunda melanchoha recolheu-se a uma espécie de ce- nóbios, asylos para o desamparo da fortuna, onde os brachmanes consomem a vida em pe- nitencia. Duarte Pacheco, voltando a Cochim, foi acolhido pelo rei com a immensa gratidão de quem via n'elle o esteio do seu throno.

A lucta heróica que tentámos esboçar deve afigurar-se aos homens de hoje uma d'essas fabulas brilhantes mas absurdas, com que a tradição costuma ás vezes exagerar os acon- tecimentos. Desapparece, porém, o maravi- lhoso desde que se contemple a situação dos dous antagonistas. Os portuguezes tinham por seu lado o denodo e enthusiasmo, que mal

152 VIOTORIAS

podem de certo ser avaliados n'estes nossos tempos de frio desdém, de sórdido individua- lismo, de incredulidade gangrenosa; tinham a vantagem da posição e das armas, a escola das guerras de Africa, o desprendimento da vida, a severa disciplina que lhes multiplicava as forças, e a auctoridade de um grande ca- pitão, que contribuía para a victoria com a ra- pidez das idéas, com a fecundidade das con- cepções, com a robustez da vontade, com o exemplo do valor. Os Índios, naturalmente fleugmaticos e timidos, não sentiam no animo esses nobres Ímpetos que accende o amor da pátria, aífecto confuso e indefinível, mas pro- fundo e enérgico, que leva os homens aos ris- cos gloriosos, ás resistências temerárias, aos sublimes commettimentos. Demais a obstina- ção com que o Samorim, logo ao princípio da guerra, tinha querido, como touro furioso, romper de frente o vau de Gambalam, ponto estratégico excellentemente defensável, que os nossos haviam por isso aproveitado, su- jeitara a tajes revezes os soldados de Cale- cut, que estes, não obstante a enorme supe- rioridade do numero, vacillaram e tremeram sempre ao o íferecer-se-lhes combate. Duarte

DE rrUARTE PACHECO 153

Pacheco alcançou, pois, repousar sobre os louros da victoria. A profunda confiança na fortuna, e o esforço e constância dos compa- nheiros poderam, emfim, consummar um dos mais extraordinários feitos que o mundo tem visto.

Chegando a Lisboa na armada de Lopo Soares, Duarte Pacheco foi recebido em trium- pho por el-rei D. Manuel. Em todas as cidades e villas de Portugal celebraram-se as proezas do vencedor das índias, e o monarcha afortu- nado congratulou-se com o summo pontífice e com todos os soberanos da christandade pe- las glorias obtidas na Ásia. Feito isto, não se cuidou de Duarte Pacheco durou longo tempo. Nas cortes quem pretende medrar precisa quasi sempre descer á genuflexão requerente ; .desconcertar ou prevenir suspeitas de rivaes e de validos; lisonjear as vaidades inquietas de todas as supremacias e eminências; ar- rastar, emfim, cadeias de aviltamento e de vergonha, como se passeasse livremente com a serena alegria que deveras se encontra na consciência da própria dignidade. Tem de ser lodo; e ao nobre coração de Duarte Pa- checo repugnava profundamente tudo quanto

154 VICTORIAS

era baixo e abjecto. Ninguém, pois, quiz lem- brar-se d'aquelle homem que cimentara com prodígios de valor o dominio portuguez na índia; e por isso passados muitos annos foi nomeado para o governo de S. Jorge da Mina. Pouco, todavia, lhe durou a fortuna. Perseguido pelos invejosos, aos quaes qual- quer fama que se levanta faz logo enfiar de susto, accusado em segredo por testemunhas vis, julgado e condemnado sem o ouvirem, voltou carregado de ferros para o reino. Ahi reconhecida a sua innocencia, recobrou a li- berdade, mas não escapou á pobreza e ao vilipendio. Desde então foi-lhe a vida mar- tyrio insupportavel. A final, esmagado pela ingratidão do monarcha, ralado pelas largas horas de intima agonia, esquecido ou despre- zado por todos, porque nas sociedades cor- ruptas até a virtude é egoista, morreu no seio da miséria.

Tal é quasi sempre a sorte d'esses homens que pela nobre arabipão de gloria conseguem perpetuar o seu nome. Entrando no desterro da vida com sympathia sincera por tudo quanto os rodeia, são logo flagellados pelas paixõe s ignóbeis dos que os não podem comprehender .

DE DUARTE PACHECO ioo

Afortuna, ciosa da natureza, desampara-os; a pátria humilha-os quando os não engeita; e encontram o repouso e a paz no momento em que a alma, cançada de sofrimento, cede ao peso das desventuras.

XIY

MATANÇA NOS CHRISTÃOS NOVOS DE LISBOA

lõoa

*

Até o priDcipio do século xvi os hebreus portuguezes eram considerados como napão á parte, com magistrados, leis, usos e até bairros separados ; mas á forpa de iatelligen- cia, de estudo, de actividade, de astúcia, de perseverança e de união, e a despeito das leis mais ou menos oppressivas a que sempre estiveram sujeitos, haviam conquistado no reino irresistível preponderância. Essa pre- ponderância, de que, como é natura], fre- quentemente abusavam, desafiara o rancor das multidões, que não podiam ver sem inve-

1S8 MATANÇA NOS CHRISTÃOS NOVOS

ja homens desamparados de Deus possuírem grandes riquezas, e exercerem por toda a parte uma espécie de senhorio. Depois de executada a fatal lei, que expulsou de Portu- gal os judeus não convertidos, o furor popu- lar conservára-se por algum tempo latente. Era o \ailcão que socegava depois de violenta erupção, mas cuja chamma inextinguível se escondia debaixo das cinzas, para se alçar de súbito com mais força n'uma explosão tre- menda. Aquelles, portanto, que, vencidos e não convencidos, enervados pelo medo, se- dentos de ouro, detidos pela execução de al- gum grande plano, ou presos pelos laços do amor pátrio e das affeições de familia, tinham trahido as suas opiniões, e renegado a cren- ça de seus avós somente para se conservarem na terra natal, não alcançaram em paga de tantos sacrifícios senão uma tranquillidade equivoca e pouco duradoura. Detestados pelos christãos, posto que na apparencia membros da mesma Egreja, desprezados como apósta- tas pelos instigadores da sua apostasia, en- vilecidos a seus próprios olhos pela vergonha de uma falsa conversão, tragando humilhações e aleives, sujeitando-se a toda a espécie de

DE LISBOA 159

gravames, receiando a cada hora perder a fortuna e a vida, e como que suffocados cora a mascara da hypocrisia, é provável que es- ses homens acolhessem na sua alma, como direito imprescriptivel, um ódio profundo con- tra 03 seus tyrannos, e que não perdessem occasião alguma de o satisfazer, ou por via da usura, vicio aliás coramum da raça he- braica, ou até por meios violentos, quando podessem ser empregados sem iraminente risco. Essas vinganças, porém, exacerbavam ainda a irritação dos ânimos, e tudo denotava que a cólera popular, agitada pelo fanatismo, ia em breve rebentar impetuosa e feroz.

Era na primavera de 1506. A peste assola- va Lisboa, tornando ainda mais dura a triste condição dos seus habitantes, muitos dos quaes, no meio de sobresaltos, de desalentos e de agonias, a custo resistiam ao flagello da fome. Faziam-se preces publicas, e no dia 19 de abril, domingo de Paschoela, ao cele- brarem-se os oííicios divinos na egreja de S. Domingos, houve quem\isse ou suppozesse ver uma luz extraordinária, que illuminava a imagem do Redemptor na capella chamada de Jesus. Reahsára-se o milagre em dias an-

160 MATANÇA. NOS CHRISTAOS NOVOS

teriores; muitos dos circumstantes, porém, mostravam-se incrédulos, e entre elles um christão novo, ao qual escaparam sobre o caso algumas palavras imprudentes. Tanto bastou para alborotar o povo, porque á devoção as- sociára-se o terror; e o desditoso blasphemo foi arrojado para o adro, onde o assassinaram e queimaram, ao passo que dous frades domi- nicanos, erguendo nas mãos Ímpias um cruci- fixo, clamavam contra a heresia. Accendeu-se mais com este estimulo a fúria da plebe, e crescendo o numero dos amotinados com a marinhagem de muitas naus estrangeiras an- coradas no porto, cresceu em todos a ousadia. Os conversos, que andavam desprevenidos pelas ruas, eram mortos ou mal feridos, e ar- rastados indistinctamente para as fogueiras, que se haviam preparado no Rocio e na Ri- beira. A corte e a nobreza estavam fora da cidade, e os poucos oííiciaes públicos que não se tkiham retirado, e que tentaram apaziguar a revolta, apedrejados e perseguidos, es- caparam com a fuga ao impeto irresistível das turbas.

Com as trevas aggravou-se a desordem. Na segunda feira as scenas da véspera repetiram-

DE LISBOA 161

se com maior crueza. não apparecia nas ruas nenhum christão novo, mas aquelle tro- pel de cannibaes não estava satisfeito de ma- tança. Foram acommettidas as casas suspeitas, das quaes, depois de saquearem tudo, traziam para fora os habitantes, e vivos ou mortos os lançavam nas fogueiras. Mulheres, velhos e creanças eram postos a tormento para con- fessarem onde havia que roubar; os templos, os altares, as imagens dos sauctos, os sacrá- rios não livravam da morte os que á sombra d'elles se acolhiam; e muitos christãos velhos, sacrificados á cubica ou á vingança, cabiam promiscuamente com os neophytos ás mãos dos assassinos.

A noite veiu cobrir com o seu véu aquelle longo drama de extermínio, que se renovou no dia seguinte, porém mais frouxamente, porque faltavam as victimas. O numero dos mortos nesses três dias orçava por dous mil; um silencio sepulchral abrangia a vasta área da cidade; e apenas a intervallos o rugido cançado dos algozes reboava por entre os gri- tos afílictivos das victimas. Emfim, pela tarde^ o regedor da justiça, Ayres da Silva, e o go- vernador da casa do cível, D. Álvaro de Cas-

H

i62 MATANÇA NOS CIIRISTÃOS NOVOS

tro, entraram em Lisboa acompanliados de guardas; os estrangeiros acollieram-se aos navios; e o socego restabeleceu-se.

D. Manuel estava em Aviz quando Itie deram a execravel noticia. Indignado pelas atrocida- des commetlidas, mandou logo o prior do Grato e o barão de Alvito com largos poderes para inquirirem dos crimes e castigarem os culpa- dos. Presos os mais notáveis e julgados sum- mariamente, foram muitos condemnados á morte, e entre elles os dous frades, que ha- viam promovido e patrocinado aquella festa de sangue. Os outros dominicanos de Lisboa foram expulsos do convento e inhibidos de tornarem á capital; as auctoridades, que por negligencia ou lemor não tinham buscado op- pòr diques á torrente da anarchia, perderam os officios e os bens; e os moradores da ci- dade, que de algum modo haviam favorecido os sediciosos, tiveram por pena o conQsco. Finalmente um decreto, expedido a 22 de maio, extinguiu a casa dos vinte e quatro, e condemnou Lisboa a perder grande parte dos antigos privilégios. Debalde a camará suppli- cou a el-rei misericórdia para a capital. D. Ma- nuel respondeu que era preciso dar ao mun-

DE LISBOA 163

do aquelle exemplo de rigor, por um lado contra os que tinham commettido, por outro contra os que tinham tolerado a infame car- nificina.

XY

CONQUISTA DE GOA lõlO

«A cidade de Goa, diz Barros, está situada em a terra a que os portuguezes chamam Ga- nará, em uma ilha por nome Tiçuary, que quer dizer trinta aldeãs, porque tantas havia n'ella quando os mouros a conquistaram, e tantas lhe pagavam direitos da novidade que colhiam.» Os geographos modernos conside- ram-n'a a mais importante possessão das que ainda temos na Ásia, e todavia apenas con- serva um pahido reflexo da grandeza antiga. Ruinas sobre ruinas, marcadas com o cunho solemne da historia, e um resto de activida- de commercial que os desvarios dos gover-

166 CONQUISTA

nos não tem podido destruir, eis quasi o que existe da que foi capital das índias, quan- do ensinámos aos demais povos da Europa o caminho do poderio e da gloria.

Era Goa, ao tempo em que os portuguezes a commetteram, excellente ponto marítimo, e a principal entrada dos reinos de Narsinga e Dekan. A segurança do porto, a brandura do clima, a fertilidade do território adjacente, e a altura das muralhas, assentadas á beira do rio, tornavam-n'a um dos mais ricos em- pórios do commercio asiático, e talvez o lo- gar mais adequado para se estabelecer a me- trópole das nossas conquistas no Oriente. Accrescia ter sido, havia pouco, avassallada pelos mouros, e não estarem os indígenas ainda de todo submissos ao jugo dos vence- dores.

Com estas circumstancias é natural que Aífonso de Albuquerque, logo que tomou pos- se do governo da índia, resolvesse no seu animo apoderar-se de Goa ; outros cuidados, porém, e porventura a consciência das pou- cas forças de que dispunha, far-lhe-íam es- paçar a tentativa para occasião favorável. Esta em breve se oíFereceu, e accommodada

DE GOA í€7

maravilhosamente aos seus desígnios. Partido de Cochim com vinte e três velas e pouco mais de mil combatentes, e encaminhando-se a destruir a grossa armada, que o sultão do Cairo apparelhava em Suez, encontrou-se próximo a Onor com Timoja, antigo corsário d'aquella costa, e então nosso alliado, que o dissuadiu de expedição tão longínqua, quan- do linha perto a ilha e cidade de Goa, que n'aquella conjunctura podia invadir com van- tagem, por estar o Hidal-Khan muito desviado d 'esses sítios, detido a conter o fogo da rebel- lião, que lavrava nos seus súbditos, e amea- çava devorar-lhe o throno. Aproveitando um aviso tão conforme aos seus desejos, Albu- querque não quiz, com tudo, decidir por si a opportunidade da empreza, ou porque re- ceiasse a vontade de alguns dos seus com- panheiros, ou por outros quaesquer motivos ignorados hoje ; e convocando a conselho os principaes capitães, ahi assentou com elles o dirigirem-se a Goa, onde de feito surgiu a frota 410 dia 27 de fevereiro de 1510.

O resuhado foi feliz como o previra Timo- ja. Tanto que os habitantes e governadores da cidade viram aquella floresta de navios

168 CONQUISTA

ancorar no seu porto, prepararam-se para a defensa, não obstante o soLresalto do nome portuguez ; rnas a audácia com que os inva- sores arremettiam ás muralhas, ou pelejavam no campo peito a peito, depressa os desani- mou, agigantando-se-llies o perigo á força de o temerem. Era gente coUecticia; a maior par- te sem aquelle desprezo da vida que nasce do exercício da guerra, e por isso não admira que logo aos primeiros revezes desesperas- sem da victoria. Resolveram, pois, capitular com o partido das vidas e fazendas, e propo- zeram n'este sentido as condições da entrega. Incitado pelos generosos impulsos da sua al- ma, Affonso de Albuquerque accedeu á pro- posta, querendo antes recusar aos seus sol- dados o promettido despojo do que protrahir inutilmente os horrores da guerra; e no dia seguinte entrou em Goa, no meio das acclama- ções festivas dos indígenas, que lhe entrega- ram as chaves da cidade, como homens que não se julgavam inimigos, mas vassallos do rei de Portugal.

Entretanto o conservar este domínio não era cousa tão fácil como tinha sido adqui- ril-o. Os Índios, ualuralmente paciflcos e de

DE GOA 169

certo modo affeiíos ao despotismo estranho, conlentaram-se qaasi lodos cora a segurança e amparo que lhes afiançou o vencedor ; raas os mouros, nossos implacáveis adversários por ódios de crença e de raça, e por emulação de conquista, conspiraram desde logo contra o poder das quinas com a actividade incança- vel, com a perseverança e talento de quem não attenta nos obstáculos senão para com- pletamente os vencer. Por outro lado o Hidal- Klian, apenas soube a fatal nova, celebrou pa- zes com muitos reis seus inimigos, os quaes determinaram logo auxihal-o; mandou tropas numerosas, a fim de reconquistar Goa a todo o custo ; e elle próprio se preparou para as seguir, resolvido a dar aos intrusos uma pe- sada demonstração de que pagava com usura as oCTensas recebidas.

Ao principio resistiram os portuguezes com alguma vantagem, repellindo constantemen- te os successivos assaltos, e fazendo gi^ande estrago no exercito dos mouros ; mas quando chegou o Hidal-Khan com sessenta mil solda- dos, e entre elles cinco mil cavalleiros, co- nheceram os mais valentes como a situação era impossível, e instaram com Albuquerque

170 CONQUISTA

para que, abandonada por emquanto a em- preza, tentasse a fortuna por outro meio, te- merário muito embora, mas não de tal sorte imprudente, que o resultado podesse ser funesto. De mau grado amiuiu a isto o animo de ferro do heroe da Índia; faltando-llie, po- rém, os soccorros que mandara vir de Go- chim, vendo-se rodeado de traições, e conhe- cendo que os cercadores pretendiam queimar- Ihe as naus, único refugio com que contava no caso de extremo perigo, mandou embar- car a gente e recolheu-se á frota por entre os tiros dos inimigos, que, ao retirarem-se os portuguezes, os saltearam de improviso, fu- riosos pela inopinada resolução, que lhes frustrava, acaso para sempre, os planos de vingança.

Seguiu-se durante alguns mezes um com- bate incessante e terrível, cujas diversas pha- ses deixaremos de memorar por não valerem para o nosso principal intuito. Baste saber-se que nos princípios de agosto sahiu a frota da barra de Goa, e que aos 22 de novembro atii surgiu outra vez, trazendo cerca de dous mil homens entre portuguezes e malabares.

Com esta gente determinou AíTonso de Al-

DE GOA 171

buquerque rehaver Goa ou acabar na conten- da. Reconhecendo, todavia, a insufficiencia dos seus recursos militares para tomar á es- cala vista uma cidade tão fortificada e guar- necida de defensores, meditou num ardil, que equilibrasse até certo ponto a desigual- dade de forças. O engenho natural e a expe- riência da guerra depressa lho suggeriram; e o logar tenente de D. Manuel, que via raa- ILsarem-se uns apoz outros quasi todos os seus planos, contou de antemão com a vi- ctoria, não esquecendo, todavia, nem as mais leves precauções para o bom êxito do com- raettimento. Era isto, era a audácia nos proje- ctos junta á prudência nas combinações que tornavam invencível o insigne capitão. Quan- to, pois, o systema oílensivo dos assédios em taes casos recommendava, quanto os petre- chos e provimentos de que dispunha podiam subministrar, tudo foi por elle empregado para que a tentativa, que parecia desatino, tivesse por termo a desaífronta e a gloria.

No entanto os soldados, convictos do pró- prio esforço, pediam com enthusiasmo o com- bate. Não tardou elle muito. Fixado para o assalto o dia 25, e reunidos na véspera os

172 CONQUISTA

capitães da armada, decidiu Albuquerque que se investisse a cidade pelo lado da ribei- ra, em quanto alguns bateis com gente e ar- tilheria simulavam o ataque por diíTerentes partes, e distrahiara d'esse modo a attenção dus sitiados. A empreza assustou os nossos, não por si, mas pelo general que declarou querer expòr-se ao balanço da aventura. Supplicaram-lhe, por isso, que deixasse a elles sós o risco, e aguardasse o resultado, para que, se cahissem, houvesse quem os vin- gasse, e não se perdesse de todo o que se pos- suía na índia. Resistindo, porém, Albuquerque ás reiteradas instancias, e conhecendo-lhe to- dos o caracter inflexível, prepararam-se para aquelle feito, que então seria indecoroso deixar de levar a cabo.

A fortuna favoreceu mais uma vez a audá- cia dos conquistadores. Os mouros, ao senti- rem o rumor dos bateis que vogavam ao lon- go da praia, correram á frontaria da cidade, suppondo que por alli queriam os cercadores tomar terra ; e reconheceram o engano, de que não era possível resguardarem-se, quando, ao rom.per d' alva, ouviram o som dos instrumentos bellicos na ribeira e pela costa

Í)É GOA Í7S

acima. Entretanto não desanimaram com isto, mas comparando o seu numero com o dimi- nuto dos sitiadores, e a vantajosa posição cora a de quem, apesar de tudo, delDaixo dos pés os poderia investir, offereceram resistência desesperada, e tanto mais terrivel, quanto o rancDr entre os dous exércitos se accumulára por largos dias sem poder resfolegar. Por ou- tra parte os portuguezes^ trepando pelas tran- queiras, não obstante choverem sobre elles milhares de tiros e arremeços, pelejando braço a braço com os cercados, luctando e rolando de pedra em pedra para de novo su- birem, e cada vez com mais denodo, conse- guiram a final arrombar uma das portas, por onde se arrojaram destemidos, como homens aos quaes a febre dos combates exaltara até o delirio.

Despedaçado o dique, começou na aper» tada senda um fluxo e refluxo dos dous ban- dos contendores, combate indeciso e acérri- mo que apenas durou instantes. Era denso o enxame dos que vedavam a entrada, mas aquelles mesmos, que ao principio tinham mostrado impetuoso esforço, tomaram-se de repentino susto ao experimentarem de pert»

174 CONQUISTA

a tempera das espadas inimigas, e desampa- rando tumultuariamente os postos, acolhe- ram-se ao interior da cidade, onde os inva- sores, cegos de ira, se entranharam apoz elles. Travou-se então nas ruas e praças de Goa a maior força da refrega, porque os mou- ros eram dez vezes mais numerosos, e pele- javam enraivecidos por terem cedido o passo a tão poucos; mas isto não impediu que os soldados de Albuquerque, soccorridos a cada instante pelos companheiros que chegavam, constrangessem, emíim, os defensores da ci- dade a deixal-a para sempre.

Se os mouros levavam, fugindo, perda e desar, a victoria não sahira incruenta aos portuguezes; poucos havia que não estives- sem feridos, e Albuquerque, abraçando um d'elles, exclamou : «Filhos, que não sei que vos faça senão que romperei as vestiduras diante de el-rei, porque vos faça mercê, que vos honrastes a vós e a mim». Assim sabia o varão extraordinário, que a Providencia pa- recia ter creado para perpetuar nas nossas mãos o império da Ásia, adquirir a aífeição dos seus soldados, aos quaes com o exemplo infuQdia esforço, com as revelações lumino-

DE GOA 173

sas do génio uma conGança sem limites, com a severidade, talvez excessiva, o respeito e a obediência.

Albuquerque, porém, não era somente guerreiro. O homem que fundou e firmou o império portuguez do Oriente, subjugando Ormuz, Goa e Malaca; que planeou a ruina completa do poder mussulmano com o des- viar o curso do Nilo e destruir a casa de ^ Meca; que deixou, emfim, tal memoria entre os vencidos^ que elles vinham depois diante do seu tumulo invocal-o, pedindo-Ihe justiça, era uma d'essas intelligencias eminentes, que abraçam por inspirações súbitas e fe- cundas todos os ramos do saber humano; era um d'esse3 nobres espirites, que, perse- guidos pela incredulidade, pela inveja, pelo terror, pelo ódio, pelas paixões mesquinhas ou infames dos que os não podem ou não querem entender, conseguem, todavia, elevar-se ra- diantes acima de tudo quanto os cerca. Profun- do conhecedor das boas doutrinas politicas, não quiz confiar á sorte das batalhas o emprehen- dimento de novas conquistas antes de assentar o dominio de Goa em bases seguras e du- radouras, começando assim a realisar o pro-

176 CONQUISTA DE GOA

gramma pacificador, que devia pur mages- toso remate á nossa grandeza na Ásia. Admit- íiii pois vassallagera aos indígenas; prometteu segurança e protecção aos mercadores es- trangeiros; recebeu embaixadas e homena- gens da maior parte dos soberanos indiaticos ; mandou cunliar moeda em nome de D. Ma- nuel; melhorou e refez as fortificações; pro- moveu com dadivas e promessas casamentos entre os portuguezes e as mulheres da ilha ; dirigiu de tal modo as cousas, que dentro de pouco tempo esta povoação importantíssima parecia que desde muitos annos estava su- jeita ao império portuguez; e depois de lançar á terra essas sementes de grandeza e de prosperidade é que continuou a cadeia de feitos de armas, que lhe mereceu dos adver- sários o nome de leão dos mares, e que o ele- va, no conceito dos historiadores, com Gesar e Bonaparte, á altura d^esses gíganles de ac- ção, a que chamamos heroes.

XYI

EMBAIXADA AO PAPA LEÃO X 1514.

Era pela volta da tarde de um d'aquelles formosos dias de março, que na Itália ante- cedem a primavera. O ar estava puro e se- reno, e o sol brilhava magestoso no chão azul dos céos. Nos campos reverdeciam os salguei- raes, enfloravam-se os cômoros silvestres, arrelvavam-se de violetas as planícies, e em- balsamava-se a atmosphera com as madre- silvas e as rosas bravias qiie se enredavam pelos vallados. A natureza mostrava -se ra- diosa, e no meio d'esse immenso concerto de sorrisos, a capital dos povos catholicos pare- cia resurgir, juvenescer, alegrar-se, trasbor-

178 EMBAIXADA

(lar cie vida e de ruido, volver, emfim, aos saudosos tempos das suas glorias e triumplios.

Desde o romper de alva os habilantes dos diíTerentes bairros da cidade, e ainda os das visinhas aldeias agitavam-se, remoinhavam, surdiam de todos os lados, enfileiravam-se pelas ruas, guarneciam os balcões e varan- das, trepavam ás ruinas, apinhavam-se nos terraços, ofTereciam a quem de longe os avis- tasse um kaleidoscopo variadíssimo e magni- fico.

O espectaculO; que assim alvoroçava a ci- dade eterna, era o de uma ceremonia mages- tosa, em que Portugal, levantado ao fastígio da dominação e da opulência, apresentava á Itália de Leão X o resultado dos esforços per- tinazes e assombrosamente felizes dos nave- gadores e guerreiros, que haviam dilatado a e o império até os extremos recessos do Oriente. Rodeado de sua corte esplendida de grandes artistas, de poetas notáveis, de sá- bios illustres, de cardeaes, de monges, de clérigos e de cavalleiros, o faustoso pontífice ia receber a homenagem das nossas conquis- tas asiáticas; e n^essa íloma, que por mui- tos séculos como que absorvera e resumira

AO PAPA LEÃO X 179

na sua historia a vida da humanidade, iam passar entre as preciosas reliquias do mundo antigo as riquezas não menos admiráveis de um mundo até então quasi desconhecido.

Nos fms de 1513, quando na índia pos- suíamos Goa e Malaca; quando Unhamos forta- lezas em Cochim, Calecut, Socotorá, Angediva, Cananor, Goulão, Columbo, Ghaul,Pacem, Ter- nate e Sofala; quando eram nossos alliados ou tributários os reis de Cochim, de Ormuz, de Tidore, de Ceilão, das Maldivas, de Goulão, de Melinde, de Zanzibar, de Quilòa, de Bati- calá e de Pacem; quando por toda a parte abríamos novos caminhos e largos horisontes á sciencia, á poUtica, á civilisação, ao chris- tianismo, quiz el-rei D. Manuel, n'uma embai- xada solemne, tributar as primícias d"esse3 domínios ao chefe da christandade, aprovei- tando ao mesmo tempo o ensejo para recla- mar que se emprehendesse guerra contra os turcos, que proseguisse e se concluísse o con- cilio de Trento, que se definissem, emfim, como era instante, as prerogativas e immu- nidades da igreja portugueza.

Partiu com esta mensagem Tristão da Cu- nha, levando por accessores os doutos magis-

180 EMBAIXADA

trados Diogo Pacheco e João de Faria, e por secretario o velho pagem da escrevaninha de D. João lí, Garcia de Rezende. Iam também por gentis-homens da embaixada muitos fidal- gos e cavalleiros, e entre elles Nuno da Cu- nha, que depois foi veador da fazenda de D. João III e governador da índia.

No dia 12 de março de 1514 entrava em Roma o préstito solemne, precedido pelos ar- cheiros suissos e besteiros da guarda pontifl- cia. Seguiam-se os charamelleiros da embai- xada portugueza; os trombetas e atabales do papa; trezentas azemolas cobertas de ricos reposteiros, levadas de rédeas por outros tan- tos azeméis; um cavallo persa, que o rei de Ormuz offertára a D. Manuel, e que, montado por um Índio, trazia sobre as ancas uma for- mosa onça domesticada ; e logo um soberbo elephante de Ceilão, que despertava sobre- tudo a attenção dos espectadores, e que con- duzia n'um cofre valiosíssimo o mais rico pre- sente que o rei de Portugal offerecia a Leão X, um ornamento pontifical completo, todo de chaparia e figuras de ouro e pedraria pre- ciosa, primor de arte que alguns então ava- liaram em quinhentos mil cruzados.

A.0 PAPA LEÃO X

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Fechavam aquelle extenso séquito os em- baixadores de Portugal, os da Allemanha, de França, de Inglaterra, da Polónia, de Veneza, de Milão e de Bolonha, o governador de Ro- ma, arcebispos, bispos, clérigos, frades de todas as communidades monásticas, os gen- tis-homens das curtes estrangeiras, e muitos cavalleiros portuguezes, trajando todos es- plendidas telas e brocados, chapéus orlados de pérolas e aljôfar, e longas cadeias de ouro a tiracolO; esm.altadas com diamantes e ru- bins.

Foi tal, emíim, a pompa da embaixada, que assombrou os que haviam visitado as mais celebres capitães da Europa; e poude ser comparada com o apparato e magestade dos antigos triumphos. Até n'isso, até nas maravi- lhas do esplendor e do luxo, era grande a estatura moral dos homens d^aquelle tempo.

XVII

PRIMEIRO CERCO DE DIU 1338

O assassinio de Badhur, rei de Cambava, ti- nha inflammado contra os portuguezes o ódio dos povos indianos. Uma voz terrivel de vin- gança, um clamor phrenetico de guerra reboa- ra por todos 03 ângulos da Ásia. Cresciam de dia para dia os inimigos do nosso dominio, e agitavam-se como mares revoltos por violen- ta tempestade. O Samorim apromptára uma poderosa frota, cuja capitanea dava ao corsá- rio, a que os nossos chronistas chamam Pate- macar; Soleyman, pachá do Cairo, dirigia-se á bidia com uma armada de setenta e seis

184 PRIMEIRO CERCO

galés, na qual trazia, além dos marinheiros e escravos, sete mil cVesses janisaros, que ti- nham, havia pouco, assenhoreado o Egypto, homens aguerridos e indomáveis^ cuja fama enchia de terror as nações da Europa ; os reis do Achem e de Jaoa sobresaltavam o senho- rio de Malaca, e o commercio e navegação no oceano indico; Khodja-Safar, emíim, arran- cando a mascara com que por algum tempo se fingira aífeiçoado aos poríuguezes, collo- cava-se á frente dos exércitos de Cambaya, debaixo das ordens de Lur-Khan, e rompia as hostiUdades acommettendo Diu.

Esta ilha, hoje habitada apenas por dez mil visinhos, dos quaes a maior parte são na- turaes do paiz, era então uma das mais im- portantes escalas commerciaes do Oriente. D. Nuno da Cunha, partindo para Goa, d'onde mais largamente podia prover aos cuidados do governO; deixara a defensão da cidade, e em ultimo aperto a da fortaleza, a António da Silveira de Menezes; e este, que se havia as- signalado pelos feitos practicados na enseada de Cambaya, tratou de se preparar para a lucta com o propósito de valor tranquillo, com o pensamento de resistência tenaz, que

BE DIU 18^

durante séculos exaltaram o prestigio do no- me portuguez.

No dia 26 de junho appareceu de súbito na villa dos Rumes, próximo á ilha de Diu, Khodja- Safar, á testa de quatro mil homens, saltean- do o baluarte de Francisco Pacheco. Quaíorze eram apenas os defensores d'esse posto avan- çado e perigoso, mas tantos bastaram para atalhar o impeto do assalto, dando tempo a que maior numero de soldados viesse soccor- rel-os. Retrahidos os inimigos, António da Sil- veira fortificou os passos do rio, como a ur- gência das circumstancias permittia, mandou encher de agua a espaposa cisterna da forta- leza, cohibiu as sedições, que na cidade os mouros suscitavam, e dividiu pelas differen- tes estancias os seus soldados. Logo que che- garam, porém, os doze mil homens capita- neados por Lur-Khan, reconheceu o capitão portuguez que não era para a pouca gente de que dispunha o contrastar em campo aberto a torrente dos adversários, e determinou con- centrar todas as forças no castello ou alcá- çova, abandonando a cidade.

Bastantes dias eram passados desde que a fortaleza começara a debater-se cora as tro-

186 PRIMEIRO CERCO

pas guzarates, quando as galés dos turcos, as naus, as caravellas, os navios redondos, as galeaças, as fustas, os patamarins e terradas fundearam no porto de Diu. Então as alas do exercito de Cambava, derramado por toda a ilha, vieram entestar com os mussulmanos, cu- jas embarcações do lado do rio fecharam o cerco, tolhendo aos sitiadores toda a esperança de soccorros. Khodja-Safar, mais receioso dos alliados do que talvez dos inimigos, ponderou a Soleyman que eram sufficientes para a em- preza os recursos que possuia, e que a armada poderia por isso dirigir-se a Goa ou a Cochim, para ahi proseguir a guerra contra os portu- guezes com resultados mais importantes e permanentes. A sede de rapina, ou, o que não é menos provável, a natural fereza, levou o astuto janisaro a perfilhar o dictame contra- rio. A final concordaram todos n'este voto, e estreitou-se desde logo o assedio.

O primeiro ponto fixado para o assalto foi o baluarte da villa dos Rumes, onde então es- tavam com Francisco Pacheco setenta homens de peleja. Para facilitar o commettimento mandara Soleyman construir uma torre de madeira, á similhança das usadas pelos ro-

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manos e godos, que, egualando a altura das muralhas, arrojasse dentro d'ellas enxames de homens armados. Ao cabo de poucos dias aprestou-se a agigantada machina, mas por um d'aquelles lances de ousadia, de que a fortuna costuma ás vezes namorar-se, conse* guiram alguns portuguezes incendial-a, não obstante choverem sobre elles os tiros dos soldados que a guardavam. Não desistiram com isso os cercadores. Aluida pelo vaivém dos engenhos e pelos pelouros da artilheria, uma porção de muralha oscillou, fendeu-se, cahiu despedaçada, e logo muitos dos inimigos, trepando sobre as ruinas, tentaram escalar o baluarte. Então foi solemne o espectáculo que todos presencearam. No cimo d'essas ruinas appareceram dous homens a suster o embate dos assaltantes, e ora com panellas de pólvo- ra, ora com pesados golpes expediram uma tempestade de ferro e fogo, diante da qual não valia força nem denodo. Onde tinham desapparecido as muralhas esses homens con- seguiram suppril-as. O espaço que defendiam era estreito, e os turcos nãa podiam aprovei- tar a enorme superioridade do numero, senão para renovarem os combatentes, que, despe-

188 PRIMEraO CERCO

nhados pelos portuguezes, rolavam de pedra era pedra até aos fossos. Assim se conservou durante um dia inteiro o baluarte da villa dos Rumes, como penhasco em meio de temporal, atormentado pelas tumultuosas ondas dos as saltantes, até que estes desistiram a final da empreza, deixando o campo juncado de ca- dáveres.

Mas a constância dos defensores do baluar- te^ o esforço supremo d^esses valentes esta- vam perto do seu termo. Renderem-se ou serem sufTocados pela multidão que os com- primia com estreito cinto de ferro, era a al- ternativa que lhes restava. Tratou-se da ren- dição. No dia seguinte franquearam-se aos turcos as portas do baluarte, mas ainda então alguns portuguezes, exaltados por nobre sen- timento de patriotismo, mais amoucos que soldados, mais temerários que valorosos, pre- feriram morrer defendendo o pendão da cruz a vél-o abatido pelo estandarte muslemico. De um d'esses loucos sublimes nos conser- va a historia o honrado nome. Ghamava-se João Pires o pobre velho que, cahindo, ven- ceu em gloria os vencedores.

Obtida não sem gi^ande estrago esta pri-

DE DIU

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meira vantagem, propoz Soleyman a António da Silveira, que entregasse a fortaleza, offere- cendo a todos os seus defensores a vida, a liberdade e os meios necessários para se diri- girem a Goa ou onde llies aprouvesse. Des- prezou o capitão a proposta, e desde logo assestáramos turcos a sua formidável artilhe- ria em seis estancias, que Khodja-Safar indi- cou como seguros pontos estratégicos para derrocar as ameias, inutilisar os instrumentos de defensa, e impedir os trabalhos e reparos a que os nossos tivessem de recorrer. «A somma de artilheria, ordenada para bater a muralha, diz Barros, eram nove basiliscos de desacostumada grandeza, dos quaes cada um deitava pelouro de noventa até cem arráteis de ferro coado; cinco espalhafatos que lança- vam pedra de cinco e seis e sete palmos em roda: quinze leões e águias; quatro colubri- nas; e alguns canhões de bater, que eram para espedaçar uma rocha massiça. Da outra artilheria havia oitenta peças entre esperas, selvagens, meias esperas e falcões». Dis- postas assim as cousas, esbombardearam os turcos a fortaleza por espaço de quasi um mez, erguendo ao mesmo tempo trincheiras,

190 PRIMEIRO CERCO

abrindo minas, levantando bastidas, empre- gando catapultas e escadas, tentando, emfim, por varias partes o assalto, e sendo sempre galhardamente repellidos.

N'esta lucta de todas as horas as refregas e sortidas diminuíam o numero dos cercados, a fome espalhava nos rostos a paUidez, a peste ameapava devorar os que escapavam á morte dos combates, os três ílagellos que Deus vibra contra os homens no dia da sua cólera opprimiam os intrépidos defensores da fortaleza. Parece, porém, que a Providencia lhes concedia egualmente forças sobrenatu- raes para vencerem taes angustias. De todos os moradores da cidadella nenhum deixou de contribuir para o amparo commum. Aquelles, a quem a fraqueza do sexo ou da edade impe- dia o uso das armas, corriam a juntar os mate- riaes de guerra, amontoar pedras para reparo dos muros, collocar em redor dos soldados tudo quanto podia ser força e servir como elemen- to de resistência. Para os homens de guerra a defensa não era trabalho incessante e acérrimo, era lucta furiosa peito a peito, ora sobre os adarves despidos de ameias, ora no campo em repentinas sortidas, ora n'essas

DE DIU 191

estradas subterrâneas que os cercadores abriam para entrarem dentro da fortaleza, e onde no meio da escuridão ou á luz in- certa e avermelhada dos fachos os cercados iam procural-os. Os capitães adoptavam como modelo a serena constância, a inabalável in- trepidez de António da Silveira, que appare- cia em toda a parte, exhortando uns, aju- dando outros, vigiando sempre, acudindo a tempo a qualquer ponto ameaçado, multipli- cando com a sua presença os ânimos e as es- peranças. Diante dos baluartes, que quasi não eram senão ruinas, repetiam-se com te- nacidade os assaltos, e os portuguezes ob- tinham breves intervallos de descanso, en- 'chendo de matérias inílaramaveis as cavas ou fossos, e entretendo em frente das muralhas um cardume de labaredas, que, zunindo, crescendo, ennovelando-se, respirando um bafo ardente, estorvavam por algumas horas a approximação dos siliadores. Dos seiscentos soldados que existiam na fortaleza ao come- çar o assedio, e dos cincoenta, que, vindo de Goa em quatro catures, tinham conseguido pela calada da noite escoar-se a remo surdo por entre a armada dos turcos, e entrar a sal-

Í92 PRIMEIRO CERCO

vo em Diu, havia apenas nos fins de outubro, por occasião dos últimos assaltos, duzentos e setenta homens capazes de menear as armas. N'estes homens, porém, em vez do egoísmo cego e brutal, que no meio de males sem re- médio como que petrifica os corações, exis- tiam a dedicação e o enthusiasmo, que o amor da pátria pôde gerar, virtudes nobilíssi- mas a que se devem, a que se deveram sem- pre, esses arrojos da natureza para alem de si mesma^ a que chamamos maravilhas.

Baldados foram, pois, todos os commetti- mentos. O ardil encontrou sempre a vigilân- cia, a superioridade do numero nunca pode vencer a pertinaz resistência. O desalento apoderou-se então dos sitiadores. Perdida a esperança de reduzir á viva força os torvos muros da fortaleza, Soleyman e Khodja-Safar resolveram levantar o cerco. No dia 5 de no- vembro sahiram os turcos do porto de Diu e o exercito guzarate retirou-se para Cambava. N'esse mesmo dia abocaram a barra duas fus- tas capitaneadas por D. Luiz de Athaide e D. Martinho de Sousa, pertencentes á frota de António da Silva Menezes, que formava a dianteira da armada de D. Garcia de Noronha.

DE DIU i93

Este, que succedéra no governo da índia a Nuno da Cunha, mas que estava longe de o egualar na honradez e patriotismo, enviava, emíim, o soccorro que teria chegado tarde, se a intrepidez e perseverança dos defensores de Diu o não houvessem felizmente escusado. A fama doesta resistência heróica, d'este memorável exemplo de energia e audácia, augmentou ainda o prestigio do nome portu- guez. Amilicia dos ottomanos, d'esses incan- sáveis ceifadores de cidades e reinos^ d'esses valentes que tinham nos últimos tempos con- quistado Rhodes aos hospitalarios, arrancado a Grécia aos venezianos, e derrotado Luiz o Grande da Hungria e a flor dos seus cavallei- ros, essa milicia aguerrida de que a fero- cidade deslustrava o valor, e á qual o habito de triumpho parecia tornar invencível, vira, a final, a sua soberba abatida diante de um punhado de homens, e dos pannos rotos de muros de uma fortaleza arruinada. Por isso o rei de França, Francisco I, quiz ter o retrato de António da Silveira na sua galeria de va- rões i Ilustres; por isso a narração das façanhas practicadas em Diu foi escutada entre as na- ções enristas com admiração e entliusiasmo;

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194 PRTMEIRO CERCO DE DIU

por isso OS mais poderosos príncipes do Orien- te apressaram-se em pedir a paz ou solicitar a alliança d'esses homens extraordinários, que, morrendo ou triumphando, saldavam com o islamismo e com a Ásia os ultrages e aggra- vos que a cruz e a Europa tinham recebido desde que a perda de Constantinopla consum- mára fatalmente os desastres dos cruzados nas terras da Palestina.

XVÍII

DEFENSA DE MAZAGÃO

Portugal, chegado ao fastígio do poder no reinado de D. Manuel, não podia escapar ás leis da humanidade e ás vicissitudes dos gran- des impérios. A seiva da arvore social exhau- ria-se no hracejar immoderado, e n'essalucla temerária contra nações poderosas e sobera- nos traiçoeiros, lontra linguas, costumes, in- teresses, rehgiões e preconceitos diversíssi- mos, o que admira, attenta a nossa pequenez e a extensão iliimitada das conquistas, é que a estrella das nossas victorias não declinasse mais depressa do zenilh para o occaso. Não foi, todavia, sem gloria essa mesiíia decadeii-

196 DEFENSA

cia, porque os poucos portuguezes, que dis- persos pelo mundo defendiam as colónias, animosos na desgraça como na fortuna, as cederam depois de porfiada lucta, e diante de adversários contra os quaes não vale audácia nem esforço; acabando de se gastar mais por fomes de assédios que por armas de peleja, e buscando honroso tumulo nos rotos lanços de muros das desmanteladas fortalezas.

Mas não é da prolongada agonia do império portuguez na Ásia e na Africa, que por ora temos de tratar; chamam-nos factos e succes- sos realisados n'uma epoclia em que ainda a nação se julgava cheia de vitalidade e vigor, posto que os primeiros symptomas de decre- pidez fatalmente se tivessem apresentado na perda de Gabo Aguer, e sobre tudo no desamparo de Safim, Azamor, Arzila e Alcá- cer em tempo de D. João III.

Sabendo o scherif Muley-Abdalá, rei de Marrocos, de Fez, de Terudante, de Suz e de muitos reinos e províncias d'Africa, que a for- taleza de Mazagão estava mal provida de ar- tilheria e munições de guerra, e guardada apenas por poucos arcabuzeiros, determinou conquislal-a. Era n'esse tempo Mazagão um

DE MAZAGÃO 197

ponto verdadeiramente importante. Situada nas praias do Atlântico, o mar banhava-lhe os muros, deixando-llie nos fossos suíficiente altura de agua, e tornando-liic fácil receber da metrópole soldados, viveres e toda a es- pécie de soccorros. Podia, pois, considerar-se excellente base de operações, e o padrasto mais de receiar para a visinha cidade de Mar- rocos.

Com estas circumstancias as tentativas dos sarracenos para se apoderarem da fortaleza, tentativas frequentemente repetidas e sempre mallogradas, eram fáceis de explicar. D'esta feila, porém, parecia certa a victoria, e por isso o scherif encarregou a seu filho Muley- Hamet, moço brioso e valente, o mando de numerosas tropas, que um historiador italiano d'esse tempo avaha em duzentos mil homens, mas que, conforme calculam escriptores tam- bém coevos, a poucos mais poderiam subir de cento e cincoenta mil. Fosse como fosse era espantoso o numero em comparação com o dos portuguezes, e havia sobre tudo entre essa gente, em parte collecticia e desordenada, muitos cavalleiros e infantes habituados á guerra e á disciplina, e habèis capitães enca-

198 Defensa

necidos nos cargos da milicia e no tumulto dos combates.

Acampado o exercito a curta distancia de Mazagão, começaram os trabalhos do cerco, e com tal actividade e enthusiasmo, que em poucos dias se elevou defronte da fortaleza uma grossa trincheira; onde os mouros assen- taram as baterias com grave damno dos cer- cados. Estes por seu lado não estavam ocio- sos, e Rui de Sousa de Carvalho, capitcão mór na ausência de seu irmão Álvaro de Carvalho, acudia com diligencia a remediar o que fal- tava na fortificação, mandando ao mesmo tempo jogar a artilheria contra os trabalha- dores do campo, e determinando por vezes sortidas e escaramuças, em que o Ímpeto dos portuguezes, repentino e devastador, conse- guiu sempre assombrar a turba dos inimi- gos.

Soou depressa no reino a noticia do cerco, e desde logo muitos cavalleiros e soldados quizeram participar dos riscos da empreza» Posto que os hábitos de luxo e a& riquezas adquiridas na Ásia tivessem de certo modo amortecido as virtudes politicas dos nossos maiores, não estava o caracter portuguez

DE MAZAGAO 199

ainda gasto, como moeda velha, cuja marca o roçar de muitos annos houvesse extincto. O ardor de patriotismo, que então se reve- lou, recorda os actos mais heróicos da nossa edade média. Moços illustres, a quem os brios sobrepujavam os annos, embarcavam-se furti- vamente ; fidalgos velhos* exaltados por bizar- ria subhme, emprehendiam a jornada, de que aliás estavam isentos pela edade e longos ser- viços; muitos imploravam como mercê e re- compensa aíTrontarem os combates e a morte; outros, reputando em pouco o sacrifício da vida, levavam ainda á sua custa navios cheios de soldadesca e munições. Havia como que uma embriaguez de enthusiasmo, o esforço convertêra-se em delirio, e o espirito religioso associado á cubica de renome abrasava com tal intensidade os ânimos, que foi preciso que a rainha D. Catherina, regente na menoridade de seu neto D. Sebastião, prohibisse com pe- nas severas novos embarques, e desse termi- nantes ordens para que não partissem mais na\ios.

Entretanto os mouros preparavam-se para o assalto, disparando a artilheria contra a for- taleza, e procurando ao mesmo tempo cegar

200 DEFENSA

O fosso com faxina ; e supposto que os tiros, os arremeços e as matérias escandecentes, que sem tregoa choviam das ameias, ferissem e inutilisassem muitos dos que se emprega- vam n'aquelle trabalho, venceu, a final, a constância dos sarracenos, que conseguiram não entulhar a cava, senão levantar próxi- mo á muralha um grande terrapleno, que em- parelhou com a maior altura do baluarte, a ponto que assaltantes e defensores pelejavam corpo a corpo, braço contra braço, á espada e lança varada, como em desafio ou batalha campal. Nem assim, porém, poderam os mou- ros entrar na fortaleza. Álvaro de Carvalho, que fura dos primeiros que chegara do reino, combatia á frente dos seus soldados, onde mais acceso ia o fervor da batalha, sem toda- via esquecer o oíficio de capitão, e o nobre exemplo e a emulação de esforço tornavam invenciveis os portuguezes.

Frustradas as tentativas de assalto, come- çaram os cercadores a minar o principal ba- luarte; presentido o perigo pelos de dentro procedeu-se logo á contramina; e d'esta ma- neira as duas estradas subterrâneas desem- bocaram uma na outra, e os sitiadores topando

DE MAZAGÃO 201

ahi com os sitiados travaram renhida lucta em que por algum tempo se ouviu somente o tinir das espadas e alfanges, o bater das alavancas e alviões, e rápidos gemidos de agonia abafados pelo praguejar dos que pele- javam. Quem quer que, todavia, olhasse para os dous grupos, poderia facilmente prever a qual d"elles pertenceria a victoria. De um la- do os mussulmanos, transbordando de cólera por verem descoberto o'ardil de que se tinham valido, mais cuidavam de ferir que de guar- dar-se: do outro os christãos, aproveitando a estreiteza das galerias, que de algum modo neutralisava a desproporção de forças, com- batiam com a serenidade e confiança de quem evita o perigo sem o temer. Era a lucta do fu- ror e da intelligencia : indubitável, pois, o des- fecho. Não conseguindo quebrar aquella mu- ralha de homens, hgados pela cadeia fortís- sima da disciplina e do renome, os sarracenos recuaram desesperados; e os portuguezes, ficando senhores da obra, utilisaram-n'a desde então em damno dos cercadores.

Seria longo descrever todas as scenas d'esta defensão heróica, lances e episódios pasmo- sos, que a muitos parecerão hoje fabulas so-

202 DEFENSA

nhaclas. Basle saber-se que durante quasi dous mezes os defensores da fortaleza, com- batendo peito a peito nos adarves, sustenta- ram o apertado cerco, e detiveram no repe- tido acommettimento os innumeraveis assal- tantes. Estes, quebrados os ânimos pelas diffi- culdades imprevistas, fallavam de levantar o sitio, mas Muley-ílamet, que na sua soberba tinlia crido fácil o triumpho, quiz proseguir na empreza, e no dia 1 de maio deram os mouros ultimo assalto.

Durou elle largas horas^ mais ardido e san- guinolento, mais bravo, mais atroz, mais pa- voroso do que nenhum outro tinha sido. Ao principio diante dos sitiados, firmes e immo- veis como rochedos, cahiram e despedaça- ram-se os esforços successivos dos esqua- drões da mourisma; depois as duas hostes, revolvendo-se, enlapando-se, confundindo-se, formaram quasi um grupo único, ennovelado, convulso, monstruoso; emfim o sol se incli- nava para o occaso, e ainda a victoria estava indecisa. Assaltantes e defensores, julgan- do-se instrumentos de missão divina, tinham um pensamento, uma esperança, uma von- tade, um intuito, o da gloria da sua crença

DE MAZAGÃO 203

se triumphassem, o da palma do martyrio se morressem.

A noite veiu pur termo ao combate e jun- tamente ao cerco. Baldadas todas as tentati- vas para submetter a fortaleza, o desalento apoderou-se dos sarracenos, e Muley-Hamet, sem tentar mais fortuna nem feito de impor- tância, levantou o campo d'alii a poucos dias.

Desde então até que o poderoso ministro de el-rei D. José a cedeu por tratado aos mar- roquinos, foi sempre Mazagão o ponto a que se dirigiram as correrias, os acommettimen- tos, 03 assaltos da flor das tropas muslemi- cas; mas os nomes dos defensores que lucta- ram como heroes, e em frente de cuja Grmeza expirou constantemente a fúria dos adversá- rios, jazem ignorados ou esquecidos, porque a guerra que durante três séculos sustentá- mos em Africa, theatro onde até mais tarde se patenteou nobre e desinteressado o esforço portuguez, não teve Barros nem Coutos que a escrevessem.

XIX

DESASTRE DE ALCACER-QUIEIR. -REINADO DO CARDEAL D. HENRIQUE

137S ti 1Õ80

As recordações da pátria são como as me- morias de familia; tem o que quer que é sau- doso e saneio, que occupa suavemente as lar- gas lioras da solidão, que attenua muitas dores do espirito, que povoa a alma de mais entes para amarmos, e que engrandece e vigora o sentimento de nacionalidade, suscitando, com as virtudes e façanhas dos nossos antepassa- dos, o altivo e nobre desejo de imital-os. Ás vezes, porém, esse fallar de avós comprime- nos de amargura o coração quando nos com- íiiem0ra eertas epocha^j em que a pátria )u*

206 DESASTRE DE ALCACER-QUIBIR

clibriada e abatida, viu desfazerem-se uma apoz outra todas as suas grandezas; epochas tanto mais desastrosas, quanto a degeneração e ruina, que assignalam, contrasta com o po- der e fortaleza de outros tempos. A historia portugueza, aliás tão formosa e invejada, não está isenta d'essas paginas de luto, e uma d'ellas, e por certo a mais triste, é a que lem- bra os reinados immediatamente anteriores á dominação castelhana, espaço de poucos an- nos que bastou ás glorias de Portugal, para descerem do apogeo ao occaso.

O reinado de D. Sebastião é notável por um facto único, a derrota de Alcacei'. O projecto de submetter as terras da Berbéria, berço das nossas conquistas de alem mar, não era tão louco como a desgraça o apresentou, e devia encontrar favor na vontade popular, porque assentava nas tradições e rancores de uma guerra de séculos, e na conveniência incon- testável de se alargar o território portuguez pelas fronteiras costas africanas. A nação, comtiido, sentia-se cansada e pobre para a ousada tentativa, e ainda que assim não fosse invalidavam-lhe as probabilidades de victoria, por um lado a cega vaidade do monarcha, por

REINADO DO CARDEAL D. HENRIQUE 207

OQÍro a tenebrosa politica de D. Filippc II, cuja desregrada cubica contava por alliadas uma astúcia e actividade inexcediveis.

Era tal estado de cousas, esmorecidas as grandes virtudes guerreiras da edade média, julgou-se necessário que o monarcha, antes de se aventurar longe da pátria á sorte das batalhas, aguardasse que a febre da discór- dia consumisse politica e moralmente as. for- ças dos sarracenos; mas até n'isso foram mal- logrados todos os bons planos de fortuna, porque o império de Marrocos, apesar das luctas intestinas e das perturbapões e males causados pelas oppostas parcialidades, não decahíra a tal ponto, que não podesse resistir com vantagem a uma invasão estrangeira. Muley-iMoluk, homem de extraordinários ta- lentos militares e políticos, e de um denodo a que a escola do infortúnio associara a pru- dência, tinha derrubado do throno seu sobri- nho Muley-Hamet, que, frustradas todas as tentativas para recuperar o poder, implorara por fim o soccorro dos portuguezes. Essa alliança, porém, convertera uma contenda do- mestica em lucta de rehgião e de liberdade, guerra sancta que dava aos soldados africa-

208 DESASTRE DE ALCACER-QUIBIR

nos a força que resulta sempre do fanatismo religioso e do amor da independência, natu- ral em todos os povos; e Muley-Moluk fize- ra-se depressa estimado da maior parte dos mussulmanos, não tanto pela firmeza com que restabelecera a ordem e administração do estado, como pela repugnância que, con- forme é fácil de suppur, excitara nas multi- dões a liga do rei desthronisado, e dos seus parciaes com um povo inconciliavelmente ini- migo por antagonismo de crenças e de raças. Eram 4 de agosto de 1578 quando o moço rei portuguez, desprezando o voto cauteloso dos principaes capitães, determinou romper a peleja contra o poderoso exercito dos mou- ros. Ao principio conseguiram os nossos ma- nifesta superioridade. A cavallaria que acom- panhava o rei, intrépida, posto que pouco numerosa, e o terço de aventureiros rompe- ram e desbarataram, logo do primeiro Ím- peto, a vanguarda dos adversários, que, iu- capazes de sustentar o violento embate c de resistir frente a frente, se dispersaram, fu- gindo pela extensão da planície; Muley-Mo- luk, buscando com heróico esforço reanimar os seus, cahira moribundo nos braços dos

REINADO DO CARDEAL D. HENRIQUE 209

caides, e os clamores de alegria com que os christãos se arremeçavam á refrega, como se o dar e receber a morte fosse prazer de um torneio, diffundiam o temor no centro dos in- fiéis, que mal obstariam á fúria da torrente, se o grosso das nossas tropas, aproveitando o ensejo, se empenhasse com igual denodo n'aquelle repto tremendo. Mas em vez d'isso uma voz de desalento, produzindo nos caval- leiros e peões um daquelles terrores pânicos, de que não faltam exemplos, nem até entre soldados que uma severa disciplina prepara para a victoria, mudou n^um instante o aspe- cto da batalha. Os árabes, conhecendo a des- ordem no arrayal contrario, e cobrando no- vos brios, com o auxilio das forças de reser- va, voltaram a disputar o terreno, que quasi haviam cedido sem combate, e em breve o sangue europeu regou abundantemente os áridos campos de Alcácer.

Então, quando as fileiras dos velhos solda- dos de Castella, da Itaha e da Allemanha debalde tentavam ordenar-se, e era grande a confusão e o susto nos terços dos portugue- zes, precipitaram-se contra o nosso exercito as ondas dos eavalleiros mahometanos, e

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âlO DESASTRE DE ALGAGER-QUIBIR

apoz elles a turba dos alarves, que do alto dos visinhos montes observavam o resultado da peleja, para baixarem como aves carni- ceiras, sobre os restos dos vencidos. Desde esse momento os signaes de derrota torna- ram-se dolorosamente certos para os nossos, que todavia ainda combateram com o fito na desesperada empreza de soccorrerem o soberano, facilitando -lhe os meios de retirar- se a salvo.

D. Sebastião, porém, nascera com animo altivo e coração generoso. Os mimos com que fora tratado desde o berço ; a educação aca- nhada que recebera na adolescência; as má- ximas de castidade que o privaram dos aíFe- ctos puros e sanctos de familia, aíTectos que suavisam os caracteres mais duros ; as sug- gestões dos validos, que, despertando-lhe pensamentos ambiciosos, lhe devoravam o socego, a reflexão e a mocidade; e finalmen- te, como é certo, as intrigas e mesquinhos enredos da curte haviam excitado as más pai- xões, que fermentaram terrivelmente no seu coração de mancebo, mas não tinham de todo pervertido os nobres sentimentos da sua al- ma. Yendo a batalha perdida, não quiz sobre-

HEINADO DO CARDEAL D. HENRIQUE 211

viver aos seus, e arrojando-se como leão on- de quer que o combate era mais acceso, recusou sempre com altivez o entregar-se ou fugir. A final cahiu ou desappareceu no meio da multidão, e com a sua falta expirou o vi- gx)r nos peitos mais esforçados. O resto foi uma larga carnificina com que os mouros, senhores do campo, saudaram o triumpho, humilhando a intrepidez e constância dos ca- valleiros e homens de armas portuguezes.

Chegada a Lisboa a noticia do trágico des- fecho da jornada de Africa, e duvidosos os ânimos sobre o destino do monarcha, foi en- tregue o governo do reino ao cardeal D. Hen- rique, velho insensato e tímido, tão sequioso como incapaz do poder; e Portugal despe- nhou-se então sem amparo na mais afílictiva phase da sua longa existência. As virtudes militares e politicas de nossos maiores, e so- bretudo as antigas leis do paiz, em completa harmonia com as suas necessidades e mdole, haviam-nos até esse tempo conservado li- vres do jugo de Castella, cuja tenaz ambição nunca deixara de olhar para esta pequena faixa de terra como para uma província re- bellada ; mas o estabelecimento do regimen

212 DESASTRE DE ALCAGER-QUIBIR

absoluto sobre as ruinas damonarchia liberal da edade média; o espirito de intolerância, que, perseguindo e expulsando os Judeus, privou todos os domínios portuguezes do tra- balho, do conselho e dos capitães de uma ra- pa intelligente e activa ; a sede do ouro, que fez desestimar a agricultura e industria do solo natal pelo engodo das fáceis riquezas que se adquiriam na índia e no Brazil ; os des- acertos económicos e administrativos do go- verno da metrópole, e dos seus delegados na Ásia, na Africa e na America; e por ílm a ul- tima catastrophe nos campos de Alcacer-Qui- bir tinham produzido a irremediável e extre- ma decadência, que nos obrigou a curvar o collo ao despotismo estranho.

Durante o curto reinado do cardeal D. Hen- rique, os ânimos estiveram sempre alvoroça- dos com os receios, cada vez maiores, acerca da successão. O prior do Grato, o duque de Bragança e D. Fihppe II eram os pre tenso- res que contavam maior numero de probabi- lidades, mas nenhum dos dous portuguezes pcssuia as forças necessárias para tomar so- bre os hombros a empreza de D. João I, em- quanto que o rei de Hespanha, dotado de ca-

REINADO DO CARDEAL D. HENRIQUE 213

racter enérgico e de uma perfídia sem limites, tinha todo o poderio de vastíssimos dominios para combater e debellar as resistências que encontrasse. Essas não foram longas nem ob- stinadas.

O velho cardeal rei, pouco favorável no principio a D. Filippe II, em breve mudou de resolução, compellido não menos por ap- prehensões pusillanimes, do que pela cubica e pelo ódio, que foram as paixões permanen- tes dos largos annos da sua vida. A principal aristocracia, antepondo os cálculos interes- seiros ao nome illustre de seus avós e á pró- pria dignidade, não duvidou pactuar com os procuradores de Gastella, que, á força de ouro e promessas, arrastaram a nacionalidade por- tugueza ao mercado das traições infames, dos enredos miseráveis, das torpes vinganças, das abjecções ignavas. O povo, irreflectido e va- riável como o mar que ora freme colérico e se despedaça em vagalhões gigantes, ora se es- preguiça brincando com os flocos de espuma que lhe saltam no dorso; o povo, dilacerado pela fome, pela peste e pelos desastres da guer- ra, não podia senão murmurar, porque os seus soldados^ os seus capitães, os seus juriscon-

214 DESASTRE BE ALCACER-QUIBIR

sultos, OS seus magistrados, os seus bis- pos, os seus príncipes, tudo quanto no reino havia de nobre e rico por illustrapão e por linhagem, ou tinha desertado para o par- tido estrangeiro, ou se conservava indeciso, não obstante os riscos da pátria. Finalmente a persuasão commum de que a paz individual e domestica poderia consegnir-se com o sacrifício completo da independência politica tirava ás almas mais robustas aquella te- nacidade fria, aquella firmeza de vontade, que não mede os obstáculos, e para a qual não ha impossíveis.

Debalde nas curtes, que se reuniram pri- meiro em Lisboa e depois em Almeirim, cor- tes que eram apenas pallido reflexo de representação nacional^ alguns homens intré- pidos e probos protestaram eloquentemente contra a imbecilidade e corrupção dos pode- res públicos ; debalde a voz auctorisada de Phebo Moniz, alto exemplo de virtudes pu- bhcas no meio da prostituição geral, instou com os procuradores dos povos e com o mo- ribundo monarcha para que não se entregas- se o reino ao domínio estrangeiro, e se res- pondesse com energia ás ameaças de D. Fi-

1\EINAD0 DO CARDEAL D. HENRIOUE 215

lippe II; debalde, emfim, as classes inferiores, que são as ultimas onde se desvanece o afer- ro á terra da pátria, davam visiveis signaes de supportar de mau grado a ruina que lhe preparavam; a força moral da nação tinha des- apparecido, e a força material, que aliás é sem- pre illusoria quando falta a unidade do pen- samento e o ardor do enlhusiasmo, liavia-se dissipado, a pouco e pouco, na extensão des- medida das conquistas, até acabar de todo nas planícies d'Africa.

Assim, apenas fallecido D. Henrique (31 de janeiro de 1580), os governadores do reino nomeados anteriormente, dissolveram as cor- tes, receiando que podessem ser o centro on- de se alimentasse enérgica resistência aos in- teresses de Castella; e a acceitação do fdho de Carlos V para rei de Portugal foi definitiva- mente resolvida. Pouco depois um exercito de vinte mil homens, capitaneados pelo duque de Alba, o sinistro pacificador dos Paizes Baixos, entrava no Alemtejo para lavrar com a espada o epitaphio das liberdades portuguezas; e o monarcha odioso, denominado o demónio do Meio-Dia n'uma epocha em que os progres- sos da civilisação ainda não tinham diíTundido

216 DESASTRE DE ALÇACER-QUIBIR

a brandura do tracto entre os homens, con- seguiu tomar posse do seu novo reino, tendo que vencer a fraca opposição de uma parte do povo, e d'esses raros cavalleiros que, no meio de gente gasta e pervertida, conserva- ram sempre os nobres sentimentos de inte- gridade e patriotismo.

NOTAS

«Fundação da monarchia.»

^"este quadro e em parte dos immediatos tentámos resmnir era breves paginas o que está admiravelmente exposto nos tomos 1.'' e 2." da Historia de Portugal, de A. Herculano. Sem este facho brilliantissimo ser-nos- liia de certo impossível sahir da confusão e obscuri- dade, em que se envolvem os primeiros tempos da monarcliia.

Pag. H

oPro\incia conliecida entre os árabes pelo nome do Al-Garb."

Era quatro grandes divisões, conforme a geographia árabe, se repartia a Península: Al-Djuf, o norte; Al-Ki- blab, o meio dia; Al-Sliarkiah, o oriente; Al-Gliarb, o occidenfe. Com este nome, por isso, se designava n'aquelle tempo a vasta extensão de território, que cora-

218 NOTAS

preliende lioje as províncias do Alemtejo e Algarve, e que, juntamente com uma porção da Extremadura lies- panbola e acaso da Andaluzia, formava os estados dos emires de Badajoz. "^

Pag. 32

fí^Xos licrdamentos, nas maladias, nos paramos.»

A palavra herdamento significou até o século xv o mesmo que herdade, quinta, casal ou qualquer prédio rústico, arrendado ou não arrendado, e quer incluido dentro de muros ou marcos, quer composto de courel- las separadas.

A denominação de maladia, muito frequente nos do- cumentos dos séculos xi, xn, e xni, indicava o tributo a que eram olírigados os individues, que, incapazes por qualquer motivo de se defenderem e a seus bens, alcançavam protecção de algum homem poderoso, do qual por esse facto como que se constituíam servos. Chama vam-se tamJ)em maladias as habitações e terras, em que os serviços, foros ou pensões se pagavam.

O termo paramos equivalia ao de honras e coutos, e designava quaesquer propriedades, cujos moradores eram exemplos do serviço militar (ho.sle e fossado), e dos tril)utos reaes (faro e peila).

Pag. U

«Dirigiu-se a Lyão.

lN"essa epocha a cidade de Lyão, hoje uma das mais ricas e industriaes da Europa, pertencia nominalmente

NOTAS 219

ao império romano-germanico, mas era na realidade tão independente do imperador da Allemanlia como do rei de França, e de algum modo estava sujeita ao próprio arcebispo.

Pag. 63

«Âly-Abul-Hassan.

Os nossos clironistas. geralmente pouco escrupulo- sos em questões de investigação e de critica, chamam- llie Âli-Boacem. A inscripção commemorativa que se encontra na cathcdral de Évora, confundindo o nome de família com o do individuo, dc?igna-o por Abena- marim. Conde, na liistoria do dominio dos árabes, cha- ma-llieAly-Abul-lIassau-beu-Otman-ben-Jacub-ben-Ab- delbac-de-Beni-AIcrin.

que fallcámos na inscripção que está na de Évo- ra, junto á capella da invocação da Cruz, transcrevel-a- hemos na integra, alterando unicamente a extravagante orthograpliia do original, porque não podemos com- preliender que sirva conscrval-a na publicação de an- tigos inéditos, senão para difíicultar a leitura d'estes.

=Era de 1378. Rei Abenamarim, senhor de alem do mar, confiando em si e do seu grande haver e poder passou áquem do mar com >'aforra, filha do rei de Tu- nes, para perseguir e destruir os christãos. Tarifa, e o seu poder era tamanho, que se não poude tomar, e pois rei D. Affonso viu que não poude ser certo, houve receio de por si veio a Portugal, a demandar ajuda ao IV AíTonso de Portugal, seu sogro, e a elle prouve muito de lh"a fazer com seu corpo e com seu poder; logo sem tardança começou o caminho para a fronteira, e

2-20 NOTAS

mandou que os seus se fossem apoz elle. De Évora le- vou cem cavalleiros e mil peões, de que Esteves Car- voeiro foi por alferes. Lidaram com os mouros, e o rei de Portugal entendeu com ei-rei de Granada, e rei de Castella com Abenamarim, e foi mercê de Deus que nunca mouro tornou rosto, e morreram d'elles tantos que não poderam dar conta. O rei Abenamarim c o de Granada fugiram. Ko arrayal de el-rei Abenamarim acharam grande haver em ouro e prata, e o houve el- rei de Castella. Mataram ali ^'aforra, e muitos mouros ricos, e outros mouros, e meninos infinitos. Captivaram um filho de Abenamarim, um seu sobrinho e umarsua neta. Deus seja para sempre bento, por tanta mercê, quanta fez aos christãos.=

Pag. 129

«E D. Manuel acrescentou aos titulos do seu

dictado os de senhor da conquista, navegação e com- inercio da Ethiopia, Arábia, Pérsia e índia.»

iN"esse mesmo anuo de 1499 mandou el-rei lavrar os portuguezes de ouro, com a legenda =Ema?mcl Rex Porlugaliae, Algarbiorum cilra el ultra in Africa, et Dominus Guinae, e ao redor das armas ^Conquista Navegaçam, Commercio Aetiopiae, Arabiae, Persiae, Incliae.

Decorrido pouco tempo eram insufficientes esses titulos para corresponderem com exactidão aos desco- brimentos, ás conquistas, á influencia e poder dos por- tuguezes. Hoje que vivemos ao crepúsculo da nossa passada gloria, conservámos ainda a antiga formula,

NOTAS 221

van lembrança do largo património que dividimos com as outras nações.

«Os amoucos.»

Acerca d'aquelles a que se dava este nome, e que em varias batalhas tornaram deveras árdua a victoria aos portug-uezes, encontra-se larga noticia em Damião de Góes, João de Barros, Diogo do Couto, e na rela- ção annual das missões do padre Fernão Guerreiro. Os viajantes e escriptores estrangeiros, que ultima- mente têem discorrido sobre as cousas da índia, nem sempre investigadores conscienciosos, suppõem que nayres e amoucos tèem a mesma significação, confun- dindo a casta nobre ou guerreira da população in- diana com a situação extraordinária em que os nayres ás vezes se collocavam quando decidiam morrer na demanda de vingança.

Um dos casos em que os índios se ajuramentavam para esse bárbaro costume era quando davam seguro a alguém de o defenderem, se a pessoa assim asse- gurada recebia alguma oííensa. Cbamava-se a isto jan- gada. «Tendo um forasteiro, diz Couto, necessidade de um d'estes nayres para passar de uma parte para a outra, por segurar sua pessoa dos ladrões e saltea- dores, chega-se a um nayre, e llie pede seja sua jan- gada, e lhe por isso algum dinheiro, valia de meio cruzado. Este nayre, tanto que lhe toma o seu dinlieiro, lhe a mão em signal que o toma em sua guarda, e assim o leva comsigo até onde o outro lhe releva, muito seguro e sem receber alTronta de pessoa algu- ma. E se acaso este forasteú-o for avexado ou affron- tado de alguma pessoa, fica esta injuria tanto á conta

222 NOTAS

d'este nayre e de toda a sua geração, que logo se ajuntam todos e se oíTerecem a morrer até satisfaze- rem aquella aíTronta, usando certas ceremonias, como homens que se despedem da vida, rapando as barbas de mna ilharg-a, que é o signal de homens determi- nados a morrer . . . e juntos todos deão n^aquelle logar onde lhe fizeram a aíTronta, e o destruem e abrazam. Pelo que é isto tão arreceado em todo o Malabar, que se um portuguez (que é a mais odiosa nação de todas com os mouros) quizer passar de Cananor para Go- chim, por todo aquelle Malabar, posto que esteja de guerra, e por meio dos mouros que lhe beberão o sangue, tomando sua jangada vae com ella iam seguro como por Alemtejo, sem ninguém lhe perguntar duen- de vem nem para onde vae.»

Paj. 161

«O numero dos mortos n"esses três dias orçava por dous mil.'>

Os judeus, na allegação ao pontifico Paulo III, des- crevendo as scenas de sangue e agonia, rpie nx*ste qua- dro tentámos esboçar, aífirmavam que mais de quatro mil pessoas haviam n'esses três dias cabido ás mãos dos assassinos, em Lisboa e nas aldeias circumvizinhas; mas as memorias coúvas e os historiadores calculam coQsoantemente em dous mil o numero dos que foram viclimas na horrorosa hecatorabe.

índice

PAG.

Introducção 5

Fundação da monarchia 9

II Empreza de Alcácer 23

in Últimos annos de D. Sancho II 31

lY Cortes no tempo de D. Aílonso 111 43

V Instituição da ordem de Christo 55

YI Batalha do Salado 63

VII Morte de D. Maria Telles 71

YIII Tomada de Ceuta 81

IX Regência do infante D. Pedro. Combate de

Alfarrobeira 95

X Conspiração da nobreza contra D. João II. . 105

XI Primeira viagem de Vasco da Gama á índia 117

XII Descobrimento do brazil 131

XIII Victorias de Duarte Pacheco 141

XIV Matança nos christãos novos de Lisboa 157

XV Conquista de Goa 165

XVI Embaixada ao papa Leão X 177

XVII Primeiro cerco de Diu 183

XVIII Defensa de Mazagão 195

XLX Desastre de Alcacer-Quibir. Reinado do

cardeal D. Henrique 205

:Sotas 217

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