Presenteei to the lABKAKYofthe UNIVERSITY OF TORONTO by Professor Ralph G. Stanton RECREAÇÃO FILOSÓFICA, KECREAÇÃO FILOSÓFICA, OU DIALOGO Sobre â Filosofia Racional ^ para Instriid- ção de pessoas curiosas , que não frequentarão as aulas. PELO P. THEODORd D'ALMEIDA da Congregação do Oratório de S. Fiiíppe Neri 5 e da Academia das Sciencias de Lisboa, Sócio da Real Sociedade de Londres , e da de Biscaia. ^exta iínpreásão muito mais correcta que as precedentes* TOMO VII. Trata da Lógica, LISBOA NA IMPRESSÃO REGIA. AKNO M. Í)(:CC. V, f#/» lUenfià ia Meza do Desembarco do Vtíço ^ t Vriviíe^io ReaL índice DO a UE SE TRATA nc^.e Timo VIL TARDE XXXVI. Intfojiiççáo á Fiiosofía Racional. S. I. T^ A mlidade da Lógica , ou da Sei- I^ encia 4? culnvar o .entendimento , §. II. Da inutilidade da Lógica dos Antigos ^ §. IH. JPd-s^ huma ide a da Lógica , íjue se ha de t raiar y pag. ii. TARDE XKXVII. Da nossa Imaginação , c modo , com qu2 obra. 5. I, T> A se PO -teia do que he a nossa Ima- í ^ ginaçao, ou Fantazia^ pa:^. 20. §. II Das Ideas da nossa Imaginação , ou TAR- TARDE XXXVIII. Dá-sç noticia do Entendimento, e das suas I4éas. §. I. T^^s ^àéas do entendimento m com- §. II. D^s Fdéas do entendimento dcerc/t dos objectos negativos^ _ - _ . pag. 44. §. III. Das Idéas , q-^e o entendimento tem por consciência , cu experiência, de si mesmo , §. iV. Das Idéas do entendimento acerca de D^os y e cutros objectes e^piritfiacs , p. 56. §. V. pa Origem das Idéas do entendimento y pag. (S. §. VI. Da natureza , e differença entre 4$ nossas Idéas , juízos , e discursos , pag. 7^, TARDE XXXIX. Das enfermidades do nosso entendimento, e seus çemedios. §. T. T^ A cegueira , ^ue os Pirronios faU JLy sãmente dizem ^^^ tçm o nosso en- tendimento, - pag. 8?, §. II. De httma enfermidade do nosso entendi^ mento ^ que hé a Tenacidade , pag. 94. §. III. Da Precipitação , que he outra enfer- midade do entendimento : e da sua primei- ra raiz, que sao as paixões ^ pag. j 04. §. IV. Da segunda origem da precipitação dQ iuizo. que he o costume y ^ » pag. 114» TARDE XXXX. De outras enfermidades do enrendimento ^ que lhe vem de fora , onde se trata da Arte Crítica. §. I. T^ As ^reoccupa^oes , que nascem dos S^ Sentidos, . - ^ - - pag. ii8* $. II. Dos enganos , que podem oçcasionar as experiências da Fysicd , - - pa^. 1 16. §. III. Do outro achaque do entendimento , qu^ he crer em qualquer authoridad^ '• da au- thoridade do povo, - - - - pag. 1:^1, §. IV. Dos erros , que nos vem da authonda* de dos Doutos^ _____ pag. i:^g^ §. V. Do erro, que nos pode vir pela autho- ridade das testemunhas . - - pag. 1^:6, §. VI. Do erro , que nos pode vir pela autho- ridade dos Historiadores , - pag. 166. §, VII. Do erro , que nasce da corrupção , ou rná jnteíiigencía dos livros , - pa^, ij6. §, VIII. Dos erros, que nascem da md intel- ligencia dos livros , - - - pag. 194. TARDE XXXXI. Do bom uso das nossas idéas.. g. I. y^ O exame , que se deve fazer das ÍJ nossas idéas , antes que sobre ellas formemos algum juizo , onde se trata das Defiriçóes de Nome, - - - pa^. 201.. 5, II. Que se deve fazer exame sobre as par^ tes , de que se çompoe qualquer idéa sim^ pies. pies , e composta , confusa , e distinctay §. III. Convém examinar se as idéas sao res- pectivas, cu não, - . - - pa7, 218. §. IV. Ndo se ha de confundir aidéa das ccti- sas cem a uléa dos seus modos, pa;^. 225:. S, V. Das ide as dos Concretos , e Abstractos ^ TARDE XXXXII. Do Juízo , ou sentença , que di o nosso eniénJipienro. §, I. "p\ /í natureza dojuizo, c suas espC" J-^ cies 5 pelo que toca d quantidade, $, lí. Da certeza, cu se^uraní^a da verdade ^ e dos diversos grãos de probabilidade , que pode haver nos nossos jtú-zjos , e sentenças , §. II T. Examina-se a verdade dos Juízos , a^ jos sujeitos nao existem, ^ - pag. 26^. §. Iv. Das Proposições , a que chãmao Mo- daes , - ' ' ^' ' " ' " P^S- ^'7^- §. V. Das Psoposiçoes Complexas, pa^. 278. §. VI. Das propoÀi^Ões , que são oppostas en- tre si, '-----' ' pa^. 287. $. VII. Das Proposições , que se convertem g pag. 2(, eonsslho? A ii 7<0Ú, 4 Recreação Filosófica Teod, Mui LO faz o trato com pessoas cjue &-• correm maduramente , e com mndamento ^ pa- ra náo errarmos a cada passo ; porém muito mais aproveita para isso o fazermos algumas" reflexões , cpc ou a própria experiência , ou a de muitos varões saoios nos tem obrigado a fazer sobre o nosso entendimento, e modo de o cultivar. Eugénio, o nosso entendim.ento he como hum campo de si fértil , e vigoroso , endo de náo Tarde trigésima sexta^ ^ tão ter dado a Eiígenio antes da Fysícâ, co- mo he costume nas aulas , ifistriicçáo sobre esta matéria : a casualidade assim o dispoz ; c eu acho conveniência no que succedeo por âcaso, por quanto depois de tratarmos da Fi- losofia Natural , ou do Corpo, então he que íica o lugar próprio de tratar da Filosofia Ra- cional , ou ca alma ; pois estas matérias são mais delicadas , por menos sensiveis. Além de que a primeira salla deste grande palácio da Sabedoria convém que seja a mais clara , € alegre para convidar , e attrahir a to Jos a quo «ntrem nos seus gabinetes mais recônditos , c escuros. Eu faço comvo-íco , Eugénio , na culDura do entendimento como fazem os La- vradores com aquelles que de novo ssapplicão á cultura dos campos. Nos primeiros annos , sem lhes darem preceito algum, vão com el- les lavrando as terras ; e depois que a prática os tem meio ensinados , então ajuntáo os di- ctames , ou regras , pelas quacs se devem go- vernar , e guiar em todas as mais sementei- ras , e lavouras ; e cal\indo estes diélam^s so- bre a prática que já tem , os percebem me- lhor, e depois com facilidade os praticáo. As- sim fiz eu comvosco : peg^jei-vos como pela máo , e iui discorrendo por todo o mundo : hoje vos acautelava huma equi vocação , á ma- nhã tirava hum erro , o outro dia vos ensina- va a suspender o passo até apparecer lugar seguro, em que podesseis firniar os pés para o discurso; e agora , que tendes já exercício de discorrer com prudência, estais capaz de rsce- ber 6 Recreação Filosófica " ber com facilidade todos os preceitos pâr^ â cultura do vosso entendimento. fug. Sou contente : e se vedes que eu posso, sem mais estudos , ter instrucçáo nesta maté- ria, não ha razão em ma demorardes. Ami^. gcs, vós sabeis o meu génio, vamos a isso, que já estou impaciente. ^Iv, Deixai-vos disso , Eugénio , que passado pouco tempo vos haveis de aborrecer ; liai-vos de mim, que por experiência vos fallo. Olhai que estas rnaterias não sáo como as da Filo- sofia Naairal : as Cores , os Insectos , os Ceos , e outras cousas semelhantes , sáo de si mui agradáveis , e encantáo a alma : isto ago- ra S20 Methafysicas mui alras , e abstracções delicadíssimas, que nem as haveis c,c p^^rceber. A!ém de que náo vos hão de servir de nada, porque náo haveis de andar a arg-.imentar per ias aulas. Teod» He cousa pasmosa , Eugénio , que sen- do Silvio , e eu táo amigos , como sabeis , táo pouco concordamos nas máximas do En- tendimento. Silvio , o saber a Filosofia rácio-, nal , isto he , a que trará do bom uso da ra- razáo , não pertence só a quem quer gritar- nas aula^ , e andar amotinando as escolas , serve para toda a pessoa : e senáodizei-me: Se todos necessitão de entendimento para migar das. cousas , e discorrer ; todos necessitão de usar bem deste entendimento para julgar bem das cousas ,^ é discorrer com acerto: e assim a todos será utilíssimo o saber evitar todos os erros , que ahi podem occorrer. Se hum homem se dis-. Tarde trigésima sexta. j xingue dos briuos só pelo juizo , quanto me- lhor souber usar do seu juizo , mais liomem he, e mais se difterença dos brutos. Admiro- nie na verdade que os homens caprichem da- quellas qualidades , e prendas , em que os bru- tos lhes leváo vantagem , como v. g. força , ligeireza , voz , etc. e que gastem annos , e annos em se adianrarem aos outros homens nestas prendas ; e que da mais nobre qualida- de que tem , qual he o uso da razão , façáo táo pouco caso , que se contentem com o que ' deo a natureza , sem {\-\zs dar cultura alguaia. Eug, Amigo Silvio 5 vós que estudastes estas matérias , náo sentis o damtio , qie experi- menta quem as não sabe j e aqui se verifica o cornmum adagio Pouco se lhe d d ao rko das misérias do pohn. Eu me siieito, Teo- dósio 5 a todo o trabalho ; se não perceber mdo, sempre entenderei alguma cousa. Si!v. Sempre me parece trabalho inn til. Teod Não soFFro isso. Porque ha de ser inútil a Eugénio a Filosofia Racional ? 45*/"/^ 1'orque náo ha de seguir os estudos espe- culativos : não ha de argumentar nas aulas ■; nem ha de ser Opposiior ás cadeiras, que .hc o paj-a que me tem servido a Lógica , que eu aprendi. §. n. 8 Recreação FUcsj}Jica §11. Da inutilidade daLogiea dos Antigos. 7'eod. A Gora já concordo comvosco ; rendes l\ razão, Silvio , e eu sou desse mes- mo parecer. Eugénio , não fatigueis a vossa cabeça com a Lógica cjue aprendeo Silvio, porque pela sua mesma confissão só ser\'e pa- ra disputar, e armar huns taes sofismas, que ra cousa mais certa, e palpável fica hum ho- mem tão embaraçado, que não pode sahir do labiriniho. Não he assim, Silvio? ifi/v. Pois ahi he que se vè quem sabe bem Lógica , e quem tem juízo t;elicado. Sobre humas C wraàictorias ^ sobre os E fites àa m- zjo, sobre as UhicacÕ s tenho eu arí;umentos que o homem mais experto, se ainda os não ieo, iní^allivelmcnte fica tão embaraçado, que em dez annos se não desembaraça. ^iod. Eu vos explico , Eugerio , algumas pa- lavras dsquellas para entenderde.s m.elhor o que Silvio está encarecendo. Argumento das Ccn'rad'ctorias he provar que huma mesma cousa pode ao mesmo tempo ser , e não ser. ^rgamento sobre os £ntes da. n-tho he sobre aquellas coi^sas que se fingem , que nunca houve , nem pode haver, qre são hum imr possível. Arí^umento sohre as Vhiat^Õ s he so- bre hum corpo estar aqui, ou ?lli. \'e.le vós agora se vos achais com capacidade de provar . ' que Tarde trtgesrma sexta, 9 que huma cousa ao mesmo tempo pode ser, e náo ser ; e enredar sobre isto de tal modo os outros , que ainda que conheçáo que he hum despropósito 5 e falsidade rnanifesta, hão de dizer que sim : e o mesmo digo das outras cousas : achais-vos com animo de aprender es- ta grande sciencia? Bvg. Náo por cerro , nem^ quero tal saber : c ■ de que me serve cá isso ? eu náo quero que- brar a minha cabeça com esses Entes da rd» zão, se sáo cousa que nunca pode aconrecer: nem quero provar se náo o que pode ser ver- dade. Eu acho 5 que se a mim me persuadisse disso mesmo que provava , e que huma cousa podia ao mesmo tempo ser , e náo ser , que me prendiáo por doido , e que o menos era sangra rem-me. Sílv. Será doudice ; mas poucos chegáo a sa- ber bem essas doudices. 7e d Eugénio náo quer dizer isso. Só diz que se elle se persuadisse seriamente dfesses dis- cursos que {crmava , que estaria 4óra de si. Mas, Eugénio, estes grandes Filósofos nestas disputas náo dizem o que sentem : elíes bem sabem que o que dizem he falsissimo^ mias para enredar os outros , váo com muita caute- la caviliosamente escondendo o fío , por onde os que respondem podem atinar com a porta do labyrintho , em ordem a embrulhallos , e prendellos. Sílv, Essa he a maior destreza do verdadeiro . Filosofo. Olhai , três fins mie ensinaváo a inim 5 que havia no argumentar ; e náo sei se me IO Recreação Filosófica me díziáo que isto he de Aristóteles. Hum era fazer negar o concedido , outro fazer con- ceder o negado ; outro obrigallo a dizer algum impossível. Tecd. E tudo vem â ser o mesmo; porque conceder o negado, ou negar o concedido, he dizer que sim , e que náo i e isto bem gran- de impossível he. ^ug. Pois , Teodósio , náo he isto o que que- ro. ^iid Nem he isto o que eu vos aconselho, e acho muita razão a Silvio; porem ainda digo G mesmo que no principio dizia , que he pre- cisíssimo a todos cultivar o seu entendimen- to , e saber as regras , com que se hão de evitar enganos. Silvio cuidava que eu vos que- ria ensinar a fazer enganos , e a /Jrte Scjisti- ca , que he capaz de fazer cahir nos erros mais palpáveis aos que náò se acauteláo ; e eu quèrò-vos ensinar o contrario , que he es- capar dos erros, que a nossa natureza, c pre- cipitação nos costuma metier em casa , e isto a todos convém. Não he assim, Silvio? Silv Náo o nego, nem o psso negar. Teod. Logo náo he tempo perdido o que gas- tar Eugénio nesta Arte de acautelar erro? , e enganos. Eugénio , vai grande differença en- tre a Filosofia Racional dos Antigos , e a dos Modernos ; e nisto não he menor talvez a opposiçáo que tem entre si , do qie a que tem na Filosofia Natural. Eu náo quero ser Juiz 0ntre partes de maior entendimento que o meu: mus como Deos me náo cativou ò entendi' men- Tarde trigésima sexta. ii . mento se não nosMysterios daFé^ deixou-me liberdade para que eu comigo , e comvosço, aqui em particular conversação , diga o que entendo , e siga o que melhor me parecer* Não condemno tudo o que dizem os Anti- ♦ gos 5 nem louvo tudo o que dizem os Moder- nos : nos Antigos acho muita delicadeza , e ás vezes he bem inútil , mas cm partes he precisa : nos Modernos acho muita utilidade , mas algumas cousas se misturão , que são sut perfluas. Engana r-me-hei como os outros, pois sou homem como elles ; mas deixo-vos a mesma liberdade , de que uso ; tomai o que vos parecer útil , e desprezai o que for superr fluo : € cada qual tem tanta licença para jul- gar do que eu digo , como eu tenho para jul- gar do que dizem os outros ; ninguém me faz nisso injúria , como eu a não faço a nin- guém , segundo creio. SÍlv, Ccmo vos sugeitais á mesma lei , de que usais , não ha razão para se queixarem de vós. §. III. Dd'Se huma ide a da Lógica y que se ha de tratar, Tcod, /^ Uero agora dar-vos hum como pla- \y no , 011 breve desenho da instrucçáo , que vos hei de communicar , para fjue vejais com huma vista de olhos se ella he. íl 'Recreação FiJoíofica he , ou não util , não só â vós , mâs â todo o homem , que tem uso da razão. O nosso entendimento tem quatro differentes actos , que são Idéas , Juízos , Discursos , e Me- thodo. iT/7v. Olhai, Eugénio, cí o nosso entendimen- to dos Antigos, como mais pequeno, accom- modava-se só com três actos , que eráo Apre- hensáo , Juizo , e Discurso ; agora lá o en- tendimento dos senhores Modernos he cousa mais alta , e tem mais outro acto , que he ^íethodo ; e lá humas certas idcas , que sáo cousa mais relevante ; nós cá não temos disso. ^eod. Hoje, Silvio, achais-me de bom génio, para concordar comvosco. Mas deixai-me ex- plicar estes nomes a Eugénio , e depois vos responderei. Por esta palavra Idéa quero si- gnificar os actos , que vós tendes no entendi- mento , quando aprehendeis huma cousa , e ficais suspenso , sem dizer nada sobre ella ; -.sem dizer que he , ou que não he. Isto cha- maváo os antigos .fprehcns^o , e os m.odernos Idéa j porque he huma como imagem do ab- jecto : chamai-lhe vós como quizerdes : O se- gundo acro chama-se Juizo , e he quando a ainia diz , qre sim , ou que não : v. g. quan- do digo /? jhilosofii he titil : a% honras são es- timáveis : a fnh'1 floria mo he dij^na de se buscar y etc. O Discurso he quando de hum jui- zo vamos tirando outro , o qual em certo modo lá estava como escondido , v. g. quando digo assim : /l todo o lai fe deve honra : Deos he mu Pai i logo devo dar honra a Deos, Das pri- mei- 7 ar de trigésima s£;%ta. i j meiras duas proposições , ou Juízos , i so *Tarãe trigésima sétima. t^ só me pode representar a sua figura, e genti- leza 5 voz , movimentos , etc. porém náo me pode pintar a sua- alma , pensamento, juizo, bondade , etc. porque nenhuma desras cousas he predicado sensivel , que entre pelos senti- dos externos. Eug, Segue-se da primeira proposição, que es- crevi 5 porque se a Fantazia náo pode repre- senar se náo objectos sensíveis , náo pode nes- sas imagens representar , senáo os predicados , ou qualidades sensíveis ; porque só estas he que entráráo pelas cinco portas dos sentidos externos ; e só o que entra pelas portas se pode guardar no thesouro , ou armazém, com- mum , que assim podemos chamar á Imagi- nação. ^ Teod Vejo que me percebestes admiravelmen- te : vamos agora adiantando o discurço pari ver de que serve ao entendimento esta Ima- ginação. O com.mercio entre a alma , e cor- po, ou entre a imaginação , e entendimento, he huma cousa maravilhosa , e daquellas , que eu julgo inexplicáveis : a seu tempo fallaremos disso j mas por agora quero advertir-vos , que graveis na memoria huma Proposição (quarta) Prop. mui importante j^ e vem a ser : que quando o 4. Entendimento jórma os seus actos espirituaes, também a Imaginação , e o cérebro trabalhão a formar algumas imagens corporaes , e sensi- vel s. Importa muito advertir bem nisto. Silv, Para pormos isto por certo, não vejo eu que haja fundamento. Teod, , Vejo-o eu : e he bem vulgar a experiên- cia. l6 Recreaçâo rUòsôfica " cia. Toda a pessoa que por tempo dilatado es- tá cuidando com applicaçáo n'algum objecto, por mais espiritual que eiíe seja, a cabeça vai cansando , e depois doendo , e r.Q a cabeça doe 5 he sinal que o cérebro trabalhou ; por- que os actos espirituaes da alma per si sos náo podem fazer dores de cabeça. Sih. Isso assim he: dor de cabeça não apode haver sem algum movimento do cérebro , oa dos nervos, que a mortifiquem. Teod. Ainda mais : cada hum depois de ter meditado largamente em cousas espirituaes, e subtilíssimas , se se examinar a si mesmo, achará que , em quanto esteve discorrendo , tinha presente á sua alma alguma imagem sensivel ; e desta imagem cosmmamos achar vestígios em nós, depois de estarmos cuidan- do muito tempo numa cousa ; isto he o que fatiga , e cança a cabeça ; e tanto mais , quan- to caJa hum com mais viveza quer formar em si mesmo esta imagem. Advirto, que esta tal imagem não he preciso qu* seja pertencente aos olhos ; ás vezes he imagem de algumas palavras , outras vezes de alguma sensação corpórea , c dor dos membros ; como v. g. quando nós representamos as injúrias , que nos oisse hum inimigo, ou as dores, que padecía- mos com os golpes , que nos dava , ecc. £ug, SoCegai , que já advirto nisso que, dizeis. Teod. Agora me occorre outro argumento, p?- lo qual igualmente se convence que sempre a Imaginação aconipanha com algumas imagens corporaes os actos do Entendimento. Vós nãa pO' Tàrdí trígesmia sétima. 27 ' podeis negar que o vinho , o somno , o nimia mantimento , e apoplexia difficultáo, ou im- pedem totalmente os discursos do Entendi- mento. Sllv, Não o nego : mas que tirais vós dahi ? *Ieod, E como pode o somno, ou vinho impe- dir os actos da alma , que he huma substancia puramente espiritual ? que impressão pode fa- zer o vinho no espirito ? ou que domínio tem o comer , ou os humores nas acções da alma , que he tão espiritual como hum Anio ? Mais difficii he que hum corpo mova hum espirito, do que mover huma rede aberta hum raio do Sol. Qual he logo o modo , com que pode o somno 5 ou o vinho , ou a apoplexia impedir , ou prender o Entendimento que não possa fa- zer os seus actos , ou pelo menos que lhe se- jáo mais difficultosos í Silv. Vós o direis, 7eod Eu o digo: como a alma não pôde obrar estes actos sem que ao mesmo tempo o Cé- rebro, ou a Imaginação trabalhe formando as suas imagens , e isto por causa da uniáo ma- ravilhosa entre a alma , e corpo ; tudo o que impede o uso da Imaginação , e movimento ordenado do Cérebro , impede também os actos da alma , e o uso do Entendimento : e eis- aqui porque os bêbados , os somnolentos , ou os que estão enfermos de certas enfermidades não podem discorrer bem. Bug, Agora acabo eu de entender huma cou- sa, que. sempre foi para mim digna de admi- façáo; Tinha hum criado que era vivo, e '■ ' ha- 28 Recreação Filosófica habil pârâ tudo : deo huma queda , e recebeò hum grande golpe na cabeça ; mandei-o curar dá ferida , e sarou com facilidade ; porém fi- cou leso do juizo para sempre. Silv. Actualmente tenho eu hum enfermo, «[ue de huma maligna que teve , supponho que fi- ca privado do juizo. Tíod. Eugénio tem hum visinho em Lisboa j a qaem succedeo caso bem contrario por casua- lidade mui semelhante á do seu criado. Sendo rapaz , e estando com outros plantando por brinco huma ridícula orta , hum seu compa- nheiro lhe deo casualmente com a enchada na cabeça : fez-lhe hum golpe lastimoso : daqui seguio-se que sendo até então mui rude , de- p .is foi muito hábil para os esaidos , e hoje he dos Minisiros que temos na Corte de melhor nome. Porem em todos esses casos se dá a mesma razão; porque as enfermidades , e gol- pes grandes na cabeça podem causar mudança considerável no Cérebro , e órgão da Imagi- nação; e esta mudança humas vezes embara- ça , outras facilita os movimentos qae são pre- cisos , para que a imaginação acompanhe os actos do Entendimento , que são puramente espirituaes. JBug, Supposto o que rendes dito , não ha cou- sa mais natural. s. li. ^arde trigésima sétima, 29 §.ii. Das Idéas da nossa Imaginação , gu íantazia. Teod, T? Stes movimentos pois com qije oCe- Í-J rebro se fatiga quando o Entendimen- to trabalha , he razáo que tenháo hum nome , pára fallarmos delles , quando nos for preciso , sem tanto rodeio. O nome que eu lhe ponho he o de fdéas da Ima^tnâ^ão : alguns lhe chamáo Idéas Fantaftuas ^ quehe nome raais estrondoso. Por tanto Idéas da Ima^inni^ão chamo eu ãquellas Imagens interiores y sensí- veis, e materiaes formadas no Cérebro , que representão os ohjeãos , que percebemos pelos: sentidos externos. Tomai bem sentido nestas definições , quero dizer , explicações das pa- lavras 5 que isto evita muitos enganos : e já daqui vedes , que as Idéas da Imaginação são couja material, e corpórea: (Proposição Prop. quinta) porque são movimentos do Cérebro, ^. assim como he cousa material , e corpórea a / pintura , que se faz na retina dos olhos , ou a que se faz nos quadros dos Pintores. '£ug. Eu julgo , que as Idéas da Imaginação sáo huma espécie de quadros , ou pinturas , que ornâo a casa interior , por onde passeia a nossa alma. Silv, Eu lhe chamarei bastidores , que a alma corre a cada passo , e quando quer , nos quaes CO- jo Recreação Filos ofic n ': como em perspectiva está vendo tiido quântci vai pelo mundo. Tcod» Ambas as comparações são próprias , e delias me sirvo agora para accrescentar o que Prop. cjueria ; e vem a ser ( Proposição sexta ) que ^* xftas ííléas da Imaginarão , quando são de objeãos materiaes , podem ser mais , ou me* ms próprias , e representar os seus ohjeãos com mais ou menos miudeza , que lie o mes- mo , quê succede ás pinturas. As quaes hu- mas vezes nos representão os objectos tão miudamente >, que até lhe vemos as pestanas dos olhos 5 e outras vezes apenas nos repre- sentão ao longe huns vultos confusos ; o mes- mo acontece ás pinturas da imaginação , ou Jdéas da Fantazia, A s vezes são estas pin- turas tão vivas 5 e o seu colorido he tão forte , que pouco menos impressão fazem na alma , do que farião se fossem ajudados com a vista dos olhos; e nas mulheres costumão ser mui- to mais vivas estas Idcas da Imaginação. Silv. Tenho encontrado pessoas de Imaginação tão viva 5 que sonhando tomavão sustos ver- dadeiros, de sorte que entraváo em convulçóes , e accidentes , como lhes pudera succeder , se na realidade acontecesse o que lhes represen- tava a própria Imaginação. *Teod, Essa viveza da Imaginação ás vezes ser* ve admiravelmente de ajudar ao Entendimen* to para fazer os seus actos espirituaes com maior perfeição, se o objecto he corpóreo, e sensivel -., he também grande circumstancia pa-» ra os Oradores , e Poetas j porque se servem das Taràe trigésima sétima, ji ' daS pinturas cjiie ella fez para fofmarem as : suas Imagens poéticas, com as cjuaes recreiáo o entendimento dos que os ouvem , e os fa- zem quasi ver ocuiarmente os objectos mui remotos j e daqui se origina serem muito per- feitos 5 e vivos os actos do entendimento com que a alma conhece esses mesmos objectos materiaes, e sensíveis. ^Ví%, O nosso Camões traz ás vezes hiamas Imagens táo vivas, e táo próprias , qací náo falta senão ver com ôs olhos , o que eile está pintando. Tal he aqUella pintura de Tritão , na Estancia 17. do livro 6. que diz : Os cabdlos da barba , e os que descem Da cabeia nos hombros , todos aao Hum limos prenhes d agua j ebem parecem Qjie nunca br atido pente conhecerão : Nas pontas pendmados não falecem^ Os nej^ros mexilhões , cjue alli se gérao ; Nu cabeça por gorra tinha posta Huma mui grande casca de lagosta. Sih. Tendes razão , que ouvindo essa dcs- cripçáo 5 não falta senáo ver com os olhos es- se objecto. ^eod. Porém quando nós consideramos nos ob- jectos insensiveis essas imagens da Fantazia, quanto mais vivas são , tanto peior eíFeito fa- zem em certo modo. '^^ã\ Que entendeis vós por objectos insensi- veis ? são os nimiamente pequenos , como dis- «esteg na Fysica ? TM. 32 Recreação Filosófica Teod. Não ; e fizestes bem em perguntar. Ob* jecto sensível he o que pertence a algum dos sentidos externos , como v. g. pedra , páo , luz, fogo, cores , som , doçura, erc. porém quando não pertence a nenhum dos sentidos externos , chama-se insensível j como v. g. a alma , Deos , os Anjos , o amor , o ódio , os pensamentos, as dúvidas, a virtude, o sim, ou o não ; tudo isto sáo cousas , que não per- tencem aos sentidos externos. £u^. E porque não pertencem aos sentidos ex- ternos? Teod, Porque não tem luz, ou cor alguma, c assim não pertencem aos olhos ; não tem som , e não pertencem aos ouvidos ; não tem alguma doçura , ou cheiro , ou qualidade por onde pertençáo ao olfato , gosto , ou tacto. £uf^, já entendo : porém a mim parecía-me, que nós pelos ouvidos vínhamos no conheci- mento dos pensamentos , e do amor , ódio, virtude, sim, ou não. Teod, Não vos equivoqueis , Eugénio ; huma cousa he o amor , outra he a palavra , que o significa; 03 ouvidos percebem a palavra amor^ porque he hum som , que pertence aos ouvi- dos ; e se for escrita n um papel , sáo quatro letras , que pertencem aos olhos : porém o amor em si mesmo , isto he aquella doce in- clinação da alma para algum objecto, que lhe he agradável , ao qual em certo modo abraça , e une comsigo ; isto não sei que seja cousa pertencente aos ouvidos , nem aos olhos , por- [ que não tem cor alguma , nem algum som. Os Tar.^is trigésima sethna. 33 • Gs sentidos podem perceber alguns íinaes do amor , v. g. olhar desce , ou daqueile modo ^ o abraçar estreitamente o tal objecto, ou algu- mas palavras doees , que sáò testemunhas or- dinariamente do aíFecto interior ; potém mui diversa eousà he ver eu sinaes do amof , oU ver o mesmo amor ; assim como he mui di- verso V6r os criados > e a carroça , que costu- máo acompanhar ào Rei , do que ver o mes* mo Rei em pessoa* £^'g* Já advirto na minha equivocaçáa. Teod. Ora sirva-vos de lição o vosso mesmd erro ; e gravai bem na memoria este dictame : Não he o mesmo ver as circurnstanciãs , (jue cGstumão acowpmhar hum ohjeClo ^ do que ver ts:se memo P^}>(f?o. ( Propoíiçáo sétima) Fa- Pròpi ço esta advertência , por quanto pôr falta dei- j, íâ cahem em mil embaraços pessoas de muià) bom juizo , como pelo discurso desta nossa Instrucçáo ireis vendo. Mas isto não he destó lugar : Vamos ao que hia dizendo. Estss obje- ctos insensíveis j e que não pertencem aoscin» CO sentidos externos 5 também não pertencem á Imaginação; pois, como disse, a Imagina- ção he hum thesouro , que somente tem o que lhe entrou pelas cinco portas dos sentidos ex- teriores. Alguns chamáo a esses objectos m^ sensíveis, ohkclos insensatos, SilVi Assim lhe chamáo muitos livros* leodi Vamos avante* Sabei pois , Eugénio, que dos ohjeães imensiveis vao pode a Ima^ gi nação jonuar Jdéa própria: assentai lá esta Proposição ( oitava ) a qual , supposto o que Ptop, Tom. VII, G vos b. 34 Recreação Filosófica vos disse 5 fica evidente ; por quanto se a ima- ginação só pôde pòf nas suas imagens aquel- les predicados , que errtráo pelos sentidos (pag. 24.^^5 epor outra parte os objectos insensiveisf ft?o tem predicados , que pertençáo aos senti- dos externos (pag. ;;.) liça bem claro que destes objectos náo pode a Imaginação formar imagem , ou Idéa própria , que lhes conve- nha; e assim táo. impossível he formar a Ima- ginação Idéa própria de amor , ou de hum Anjo 5 etc. como he im|x>ssivel ver eu com os olhos o cheiro , ou provar com a lingua á fiiusica, ou cheirar as cores, etc. A qualquer sentido, ou faculdade he absolutamente impos- sível , que represente objecto fora da sua esfe- ra ; e tudo o que he insensível he fora dá es- fera da Imaginação. Eiijí. E como remedeia isso a imaginação, quan»- do lhe he preciso formar Idéa desses objectos í ^ecd, Pínta-nos com predicados alheios , e env prestados : v. g. quer representar hum Anjo, que he espiritual, e objecto insensível, como disse , representa-o como hum mancebo gen- til , cora azas : quer representar o Padre Eter- no , e pinta hum velho venerando com bar- bas , posto em huma nuvem , ou sobre hum globo. Quando o Entendimento considera nes-- les objectos insensiveis , a Imaginação vai tra- balhatido em formar essas idéas impróprias, e «mprestadas, para, do modo que pode , acom- panhar os actos espirituaes do Entendimento, A's vezes contenta-se a Fantazia com repre- 8«niar o« nonjes dessas, cousw insensíveis , ein á-se íioticia do Entendimento , e dsjs suas Idéas. §. I- Das Idéas do Entendimento em commmju Teod. y^^ Ra já que estamos jantos , ná^ f 1 mcfti fiquemos mais a Eugénio , e ^— ^ vamos ao que importa. Haveis de saber , P>j:^enio, q'í2 o Entindimcnto náo he outra cousa senão a nossa meáma alma consi- clerando-a em ordem aos pxtos de conhecer ; e quando a ecnsíder?.mos em ordem aos actos de querer , ou não querer , chama^só vontade, E daqui logo se segue hum a consequência im- pcrtantissima 5 que haveis de imprimJr na me- moria ; e vem a ser , que o Emenáimctno hc cousa espiritual , e também gs ããos do Entendi- mento sao puramente cspirituaes, ( Proposição Prop, nona.) - 9. Sdv. Fica bem claro ; porque serido a alma es- piritual 5 e o Entendimento sendo a mesma al- ma, bem se segue 'que tanto o Entendimenttí como os seus ?.ctos devem ser puramente es- pirituaes. Ale aqui, Eugénio, crede sem susto^ Teoíi. 3? Recreação Filosófica T^cd, Ora lembrc-vos isso^ Silvio ^ e ficai bem ccFto, cjue a nossa alma sendo piiraniente es- piritual , náo tem , nem pôde ter acto alguni de conhecimento ou percepção , cjiie náo seja puramente espiritual. Digo isto , porque náo sti se ainda quereis , como algum dia ( i ) , que a sensação das dores seja acto corpóreo, sendo huma percepção da alma , que he espi^ ritual. 4r/7v. Deixemos agora isso , que já passou esse ponto. Tcod. De boa vontade. Voltando pois ao nos^ so intento : bem grande he logo ^ differença que ha entre o Entendimento 5 e ^ Imagina^ ção ; como também entre os s>ctos da Imagir nação 5 e os do Entendimento , se os tomar- mos na sua nítureza ; porque os acros da Ima-, glnação , ou Fant?.zia sáo movinicntos do cé- rebro 5 que he huma cousa material , e corjx)- rea ; peio contrario os actos do Entendimento sáo acções da aima , e cousa espiritual : r.ão pode pois haver maior difíerença do que a que na entre huns , e outros actos considerados em si mesmo , pois se distinguem tanto , como a mataria , e o espirito. jEí.'?. Por cerco que não pode, Tèod. Bem estamos : s^ndo pois divarsissim.os na natureza os acro^ do Iniendimento, e da Fanrazia , resta saber se sáo diversos na re- pre3enr;;ç;íO ; por quanto duas cousas em si mui diversas podem representar o mesmo ob- jecto. Ponhamos exemplo : est^i palavra Btos es- ( O Tom. IV. T;irde XIX. §, IV. Tarde trkesiniã oitava, jp escrita he bem differenre na nacureza, r'o que pronunciada ; escrita são qiiarro riscos de tin- ta 5 e pronunciada he hum pouco de ar movi- do; e quem duvida que a tinra he mui diver- ça do ar ; porém com mdo ou pronunciada , ou escrita , sempre representa o mesmo ob- jecto. fí/^. Já vejo o que me quereis dizer, e me pa- rece que adivinho aonde se encaminha o dis- curso : quereis dizer que ainda que os actos da Imaginação sejãodiversissimos na naturcza-dos actos do Entendimento , com tudo sempre re- Presentão o mesmo objecto. Silv. Infei-jstes bem; estais adiantado , Eugç-, nio. Teod. Não inferistes bem , nem vos quero tão adiantado. Não corrais diante de mim , que haveis ã^ tropeçar , e cahir em algum erro; pois o caminno náo he muito desembaraçado, *5*i/v. Pois em que errou Eiigenio? 'Tcod. Em dizer , que os actos da Imaginação sempre representaváo o mesmo que represen^ taváo os actos do cntendimenco. Silv» Isso he certissimo: ehe hum axioma ex- presso do Filosofo : Niínl cst in vuelleãii^ quod priíis non fmrit in te mu ; isto he , que nada representa o Entendimento que primeiro se não representasse nos sentidos ; e por con* seguinte nas idéas da Fantazia , ou Imagina- ção: e assim o mesmo objecto, que represen- tão os actos do Entendimento , já estav* re» presentado pelas idéas da Imaginação. Tiod, Jiu lúo negQ que isso seja axioma de Aris- 40 Recreação Filosófica Anstoteles; mas seja ou não seja, queeiícom isso não me embaraço , digo que isso náo hc assim. 4*//^. Pojs nem nesta matéria tendes o Filoso-^ fo por texto? Teod, Náo : olhai , Silvio, Aristóteles te ^e maior juizo do cjue eu ; elle que se defenda a si 5 que eu me cleFenderei a mim. Vamos nós com a nossa Instp.^.cçáo por diante; e no que - vos parecer falso , impugnai-me ; porque se eu vos achar razão , seguir-vos-hei.; e no que eu tiver razão , me ss^uiíeis ; e deixemos quem esrá morto. Silv, Sempre hei de venei-ar a sua doutrina até morrer. Tecrd Tenho pena que eihnão saiba disso, pa- ra vos ser agradecido a hum aftecto tâo cons- tante. Mas deixemos isso , t ugenio , o que ' . vós dissestes ás vezes he assim , e ás vezes náo : Huas vezes as Idéas do Entendimento, e da Imag nação rspresontão o mesmo , corao V. g. quando temos huma idca da pedra , do diamante ^ do rio , das arvores , etc. porque çntáo esses mesmos predicados , ou qualick- des, que representa a Imaginação , são o mes- mo que tem a Idéa do Entendimento ; porém muiias vezes não he assim : donde- quero que escrevais na menioria esta Preposição muiim- Prop, pjirtante (decima). /'5 Jdcas clã hmgina(^/io jo. às vc-L^s ião senielhatUfS na representação ás do EmeVidimento yCUprãs vezes são mui disse- mi!h:intes. £u^, Náo me esquecerei. Tarde trigésima oitava. 41 S'úv. 'Fazei-me a mercê de per alguns exem" pios, (]iie o provem. *J^e d. Com boa vontade. Em rres casos cosm • ma haver grande diíferença entre as Idcas da Fanrazia , e as do Entendimento , e vem a ser nas Idcas das cousas espiritúaes, nas ídcas das cousas nsgativas, e n s Idéas também das cousas corporaes ; quando são dificultosas de pintar com exacçáo : logo fallaremos dos pri- meiros dous casos , que ahi ha de haver mui- ta pendência ; agora para vos socegar fallarei do terceiro. Dizei-me , Silvio , se eu conceber três exércitos , hum de í» posição undécima . E a razão he , pcrque confor!;iie fica dito, só as cousas, que podem entrar pelos sentidos externos , se piniáo na Imaginação ; e claro está , que as cousas , que não tem ser , não se podem perceber pelos sen» tidos ; e por consequência só aquelias cousas que tem ser se podem pintar na Imaginação. t^ítv. Essas cousas nem se podem perceber pcr 7drde trigésima óitavã. 4? lo Entendimento : com que, em quanto a isso estão iguaes a Imaginação com o Enrendi- mento. Teod. E quem ros diíse , que o Entendimento íião podia formar idéa das cousas que não tem éer,- nem apjoarencia do ser, v. g. que nlo po- dia o Entendimento formar Idéa ào n.ída , ou da falta e carência de todas as cousas ? Silv, Do nada corno se pode formar Idéa ver- dadeira, ou pintura? Meu Teodósio , isto hc bem claro ; ver cu que n'umaxasa não esti nada , he náo ver ahi cousíi algaima ; se eU vejo Síl7. Tar^e trigésima oitava. 47 Sílv. Sígnificão o nada, isto he, a falta de tú* das as cousas. Teod, Bem : logo sé Kuma palavra positiva , e verdadeira significa o nada , isto ne 5 a faltai, de tudo : também huma Idéa do Eniendimen- to sendo positiva , e verdadeira poderá signifi- ear o nadt , isto he, a falta de todas as cou- sas. Táo difficil h& representar o nada , co- mo significar o nada' por quanto a significa- çáo he representação ao Entendimento. Logo se vós me concedeis , que eu com huma pa- lavra positiva , e verdadeira significo o que he liada , também com huma palavra intellectual , ou idéa positiva posso representar esse mesmo tiãda. Meditai nisto de vagar, Silvio , porque náo está o caso em responder de repente : revol- vei no Entendimento esta razão , e se achar- des djsparidade, então ma dareis. Eu^, \^alha-me Deos : a razão de Silvio con- vencia-me , mag a vossa prende-me de sorte y que não sei como lhe hei de responder. Tecd, Mais : vamos a experiência de todos. He certissimo que nenhum pode discorrer com o Entendimento sem ter nelle idéa , ou con- ceito disso mesmo acerca do que discorre. Náo he isto certo? Sílv, Ninguém duvida disso* Jeod, Logo se nós todos três agora estamos discorrendo com os Entendimentos sobre o ha- da , he certissimo que todos três. temos no Entendimento Idéa , ou conceito que nos re- presenta, o mesmo nads de que díscoiTenaos. Vedes , Silvio , que viwdes a, confessar , que ceo* 48 Re&eaÇãà Filosoficd tenclss agora no vosso próprio Entendímeritdi isso mesmo que ateimáveis que náo podia ha- ver no mundo ? Slh, Ahi ha engano, e equivocarão, seja ella aonde fon Teod. Sabeis vós o qué me lembra ? he huma resposta bem galante , qu^í deo em Lisboa a hum ami^o meu certo homem de milito juí- zo , que rodos veneramos. Atacaváo-no bem em certo ponto : vio-se elle convencido ; e; porque era homem mui prudente , sincero, e virtuoso , depois de parar hum pouco , disse ! Esse argumento o que provd he , que eu não sei responder-, mas não prova , que iso seja assim ; muitas respostas poderá ter essa ra- zão , que a mim me nao occorrâo. Celebrou- se o dito , e acháráo-lhe novidade , e galanta- ria. Assim sois vós agora : dizeis , ahi ha equi vocação 5 seja como for* Silv. Ora respondei^me a este argumento, que absolutamente n?o tem resposta , por ser evi- dentissimo: A Idéa, que representa o nada ^ nada representa 5 e se nada representa, náohe Idéa , porque toda a ídca tem por essência o representar. Que respondeis a isto, Teodósio? Teod, Por esse mesmo discurso , que tão evi- dente vos parece, vos provarei eu mil falsida^ des. Quero-vos provar , que não dissestes ago- ra nada , nem fallastes. Olhai , e tomai bem sentido : Quem diz nada , nada diz : Vós dissestes nida , porque failastes delle : logo nada dissestes ; e se na.la dissestes , estivestes callado; porque quem falia, alguma cousa ha de dizer. i:^'^. Tareie trigésima oitava. 4^ f «^. Em que labyrinthos de enredos estou met- tido? isto não he para mim. T€od, Náo vos assusteis, que de propósito vos fiz entrar neste labyrintho para verdes quanto sentido he preciso ter nos discursos , para náo tropesar. Este argumento que poz Silvio he de Wolfio 5 daquelle pasmoso homem , que me- receo justamente a muitos o titulo do maior Filosofo do seu século. Mas sendo tão grande homem , equivocou se ; e para se conhecer a sua equivocaçáo , voltei o argumento contra Silvio em huma mareria táo palpável ; e ago- ra o quero explicar mais. Olhai , Eugénio^ q.iem quizer provar 5 que na lingua Portugue- za não ha esta pa.avra h/,íÍ^ aprova huma grandíssima falsidade ^ porém deduz-se do ar- gumento deWolfiO assim: o que significa na- ^a, nada significa; o que nada sifinifica, náõ he palavra, que pertença á nossa iingoa, por- que todas as suas palavras signiHcão : logo na nossa língua náo ha palavra que signifique nada, Eug, Tirai-me por vida vossa o meu juizo deste tormento. Aonde vai aqui o erro do En- tendimento í Tudo quanto dizeis he verdade , c o que vindes a concluir he hum despropósi- to claro. Deixai-me examinar isto: o que si- gnifica nada , nada significa , isto he certíssi- mo : vamos agora adiante : o que nada signi- fica 5 náo significa , também isto he certi:.3Í- mo : o que náo significa náo he palavra da nossa lingua ; disto náo há dúvida : e con- cluis , logo a palavra , que diz nada , náo se Tom, VII. D acha r 5*0 Recrea:ao Filosófica, acha nâ nossa lirtgua Portugueza , e isto hc loucura concedelio, estando actualmente usan- do delia. Ora desemharaçai-me , Teodósio, este enredo. Teoá. O erro está em não reparar , que as mes- mas palavras poetas de hum modo dizem humá cousa 5 e trocadas dizem outra cousa diversa : nada significa , qn;r dizer que a palavra he hum som bruto, sein significação alguma ^ e Significa nada , qnér dizer que a palavra si- gnifica a exclusão de todas as cousas. Ponhamos mais exemplos. Não respondo quer dizer que me calo ; e respondo não , quer dizer que fallei , mas q.ie não concordei nis- so 5 que me pcdiao. Do mesmo modo nao sei , quer dizer que ignoro : sei que tiâo , quer dizer cousa mui diversa : não entendo , quer dizer que tenho falta de percepção : en- tendo que não , quer dizer cousa diversís- sima. Eiig. Já percebo onde ha o engano* Tcod, Respondendo agora a Silvio. A Idca do Entendimento, que representa o nada ^ he po- sitiva , e huma Idéa verdadeira , e dahi não se infere que nada representa , porque isso quer dizer consa mui diversa: assim como acontece na palavra nada^ ou pronunciada, ou escrita; se disser esta palavra significa o nada , logo nada significa j não digo bem , porque con- fundo termos mui diversos , que se equivocâo. A seu rempo vos darei a origem desta diver- sa inteliigencia de termos tão parecidos ; mas adverti, que as mesmas palavras trocando-se, vem t Tarde trigésima oitava. yi Vem ás vezes â significar cousas diversas ; por isso he falsíssima aquelia proposição , que vós ambos , e o senhor Wolho dáveis por certis- sima o que representa nada , nada represen- ta ; aqui he que vai toda a malícia , como tendes visto nos exemplos que vos puz. £ttg. Já vejo porque também he falso dizer: o que significa )iadíi , nada signifxa : he fal- so dizer ; o que diz n^dít , nada diz , e está calado : hé falso o dizer : o que escreve nadíí^ nada escreve. Silv, E em que ficamos ? que eu nâo disse na- da 5 nem fallei cousa ajguma ? Teoà, Dissestes como o homem de melhor en- tendimento especulativo , que conhece a Ale- manha ; e assentando nisso , quero concluir o que hia a dizer , para Eugénio gravar na sua memoria j e vem a ser^ que o Entendimento fdm suíis Ideais Espir iludes pode representar naÕ só ^s cousas positivas , mas também as exclusões , ou jaitas dessas mesmas cousas, (Proposição duodécima) v, g. pôde fazer Idéa Prop- da riqueza , e da falta total da riqueza , que 12. he a pobreza. Pode fazer Idéa da nódoa , que he positiva , e da falta total da nódoa , ou da limpeza , que he negativa : e já daqui se vê a grande diôerença que ha entre a Imagina- ção ,60 Entendimento. A Imagina«j.áo só pode representar o que he positivo ^ mas o Entendimento pode fazer Idea das cousas ne- gativas , e até do mesmo nada , e daqui se respGtfide ao que disse Silvio , que quando eu não vejo n^uma casa cousa alguma ^ vendo as D ii suas Çt Recreação Filosófica suas paredes , e tecros , vejo que não está na- da. Nisto concedo ; porque os olhos t:>mbem são como a Imaginação , que só podem re- presentar o que hé positivo ; e as cousas nt* garivas somente as vem os olhos , e Imag- naçáo impropriamente ; porque não vê o que essas Idéas negativas excluem ; v. g. vejo a pobreza , porque não vejo cffeito nenhum dè riqueza. O entendimento para discorrer neces- sita de formar Idéas das cousas positivas , e negativas. Perdoai, Eugénio, alguma mortifi- cação 5 que estas abstracções vos causarão, que não vos pude dispensar deste trabalho; porque sem isto não se pode absolutamente explicar (quanto ao que entendo) como o en- tendimento conhece a Deos , e as cousas espi- rrtuaes , nem como julga prudentemente em mil casos. Dou-vos o tempo por testemunha. í-ug. Isso que me dizeis do modo com que co- nhecemos a Deos , he cousa mui importante : vamos a saber como o entendimento o co« líiheee. §. III. Tarde trigésima oitava. 53 §. III. Das Idcas , qt/e o Entendimento tem por consciência , ou experiência de si mesmo, Teod, A Ntes que fallemos do conhecimento l\ de Deos , ou dos Anjos , convém fallar do conhecimento que o entendimento tem de si mesmo ; porque este degráo he pre- ciso para subir ao conhecimento de Deos. Concíeticia , Eugénio , chamamos nós á sci- encia , que a aíma tem de si mesma. E co- mo o entendimento pela própria experiência conhece cm si muitas cousas , dizemos que forma muitas idéas pela própria experiência , ou consciência. Todo o homem sabe que está cui:"ando, que discorre, que afíirma, que du- vida 5 que nega , ecc. Hé logo forçoso que te- nha alguma idéa da affirmaçáo , da duvida, dos pensamentos 5 dodiscurço, etc, : porquan- to he principio assentado entre todos, que não podemos conhecer que temos , ou não temos alguma cousa , sem formar delia algum con- ceito, ou idéa. Não he assim, Silvio? Sih. Esse principio , ou máxima he inegável ; por quanto sem eu fazer algum conceito de numa cousa , he impossível que possa persua- dir-me, que a tenho, ou que a não tenho. Teod, Logo se todo o homenj sabe que tem pensamentos j todo o homem tem no entendi- mçn- 54 Recreação Filosófica mento idéa do pensamento : pela mesma rík záo, se sabe que duvida, ou que afíirma, ou que nega , tem idca da duvida , idéa da affir- mação, e idca da negação, etc. Logo o tiosso çntendimento tem idéas dos pensamentos , das dúvida^ y e dos mais .dos , e ^(fo por propri/t Prop. experiência, ou consciência. (Proposição i^.") ?^» JEiijf. já não posso duvidar que nós temos idca dos pensamentos , das dúvidas , e dos actos do nosso próprio entendimento, que mais que- reis agora dizer? Teod. Estas idéas não vem de fora, porque pe- los sentidos externos só entrão objectos sensí- veis. O que tem luz , ou cor , ou figura entra pelos olhos , o que tem algum som entra pe- los ouvidos 5 etc. Ora dizei-me , Eugénio , que cor , ou que figura tem o nosso pensamen- to , que sabor tem o negar , ou que cheiro tem o duvidar ? Nenhum por certo. l>ogo os actos da nossa própria alma , com que affir- mamos , duvidamos , ou negamos , náo per- tencem aos sentidos ; e se náo pertencem aos sentidos , e são objectos insensíveis , também náo pertencem , nem se podem pintar na ima- ginação , conforme ficou estabelecido (pag.55.). JEtífj^. Isso não tem dúvida ? 'Xeod, Talvez que Silvio a tenha : porque ha de defender quanto poder , que o nosso Enten- dimento náo tem idéa alguma , que não se ache nos sentidos , ou exteriores , ou interiores, conforme o proloquio do Filosofo, que já to- cámos : e como tem concedido que o nosso en- tendimento tem idéa dos seus pensamentos , e das I Tarde trigésima oitava, 55' das dúvidas , e das afirmações , etc. se agora conhecer como está obrigado) que a imagi- nação não pode Formar idca desras cousas ; for- çosp.mente ha de confessar que muitas idéas ha no entendimento , que náo ha na imaginação , nem nos sentidos : c fica desvanecida a au- thoridade daquelle proloquio. Silv. O proloquio náo pode fallar nesse sentido. Teod Pois perdoai , que cuidei que fallava : como o proloquio diz absolutamente que nada ha no entendimento que primeiro não estives- se nos sentidos (i), cuidei que se contradizia o tal proloquio, confessando vós , que no en- tendimento havião essas idéas dos próprios acros , as quaes nem se achaváo nos sentidos internos , nem externos , nem por lá rinháo entrado. Silv, Tende mão , que também vos contradi- . zeis ; j í tendes dito , que quando o entendi- mento faz os seus actos espirituaes , sempre a Imaginação forma as suas imagens em corres- pondência delles ( pag. ^6.) Mas agora, Teoíí, Agora digo o mesmo que disse : confes- so que a imaginação sempre acompanha o en- tendimento com alguma imagem material i porem estas imagens não são imagens dos pen- samentos , nem semieihanies ás idéas da al- ma ; são imagens de cousas sensíveis , e bem diversas. V. g. das acções , que fazemos com a mão , ou cabeça , quando negamos ; ou àzs palavras que dizemos quando duvidamos ; ou de ( I ) Nilill est in intcUcctti , qitod prtiis non fiie- rit i,i sfiisu. yá Recreação Filosófica de outra qualquer cousa , que costuma acom- panhar 03 actos da alma. Náo attribuais aos actos da alma o que só se acha nás idcas da imaginação ; porque daqui he que procedem erros, e equivocaçóes innumeraveis. Silv. Tomara já ver que erros são esses. Teod, Náo tardará muito. Mas já t:mos outro caso 5 Eugénio , em que as idéas do Entendi- mento são (como eu dizia) m li dissimilhan^ tes das idéas da imaginação; convém a saber, quando o Entendimento forma idéa dos seus actos espirituaes. • Bugy Fico nisso, e não me esquecerei. §. IV. JDas idéas do Enteiidimento acerca de Deos ; e qutros objectos e ^pirituaes, Teod, /^ Principal officio do nosso Entendi- ■-^ mento ha de ser o conhecimento da seu Creador ; e esta he huma vantagem pas- mosa 5 e a mais estimável dos homens a res- peito dos brutos ; pois estes só vem o que he material , c sensível ; porém os homens po- dem ter conhecimento ate das cousas espiri- tuaes 5 e totalmente insensíveis : e nisto ha- veis de saber , Eugénio , que ha grandíssima equivocação, ainda em homens muito doutos; e que fará em vós , e nos que náo tiverem meditado muito nisto? Náo tem faltado quem diga , que nós fallando das cousas espirituaes , Ú Tarde trigésima oitava, 5' 7 só formávamos no Entendimento idéa das pa- lavras 5 com que as significávamos ; e por ne- nhum modo das mesmas cousas em si. Silv, Isso he huma loucura ; porque então os povos de diversa lingua , ainda que fallassem da mesma cousa , fariáo delia tão differente conceito , como são differentes as suas pala- vras: e sendo tão diversas as idcas de Deos, como poderião concordar no juizo que elles fazem de Deos ? Hum C rego dizendo Theos-^ hum Hebreo dizendo Adotuú ; hum Inglez dizendo God ; hum Francez dizendo Dku ; hum Italiano Iddio ; hum Hespanhol Díqs ; e nós dizendo Deos , faríamos do supremo Se- nhor tão diverso conceico , como são estas pa- lavras : e não poderíamos concordar nos juí- zos 5 que formássemos do Senhor ; pois que. todo o juizo se funda , e estriba no conceito, ou como vós dizeis , idéa, que formamos do sujeito de quem se trata. Bug. Eu discorria por outro modo, e lhe acha- va outro absurdo ; e vem a ser , que se ou- visse dizer a hum Hebreo Adonai , sem sa- ber o que elle queria dizer; como eu ouvia a palavra tão perfeitamente como elle , havia de tazer a mesma idéa , que elle fazia , não sa- bendo eu a sua lingua ; e assim , sem enten- der a lingua , havia de concordar com elle no que dizia de Deos ; o que he cousa summa- mente absurda. Tcod. Ambos vós discorrestes maravilhosamen- te ; e eu só digo que essa opinião hc daquel- las que não me mereceiri o trabalho da im- pu- 58 Recreação Filosófica pugnaçáo : olho para ellas , e cicixo-âs ao lon- ge. O que eu desejo saber he a opinião de Silvio. Silv. A minha opinião (que creio he a com- munissima , nem sei que ninguém diga o con- trario) he que nós somente por semelhança corpórea , e imagem imprópria he que pode- mos formar idéa de Deos ; e o mesmo digo de qualquer cousa espiritual : isto convence-se pela experiência, e pela razão natural : pela experiência , porque nós só concebemos no Entendimento ao Padre Eterno como hum ve- lho venerando sentado emhuma nuvem j con- cebemos hum Anjo, como hum mancebo com azas ; concebemos o Espirito Santo como hu- ma pombinha branca ; e tudo o mais he as- sim : de sorte que o conceito , e idéa , que formamos de Deos , he tão diverso da reali- dade, como he diversa hiima mascara empres- tada do objecto verdadeiro que com ella se apresenta ; e como he diverso hum velho de barbas do Padre Eterno. Tlcó., Ora vós haveis de perdoar-me , que que- ro me exphqueis isso bem , para o poder per- ceber de todo. Dizeis que a idéa , ou concei- to , que formamos de Deos , he táo diversa do mesmo Deos , como he o corpo ào espiri- to , e huma mascara he diversa do objecto, que com eJla se encobre. Stlv, Assim he. Teod. Supposto isso, também o juizo formado sobre essa idéa , que o Entendimento tem de Deos , ha he ser mui diverso da r,:alidade ; pois. Tarde trígesima oitai^a, ^9 como vós já confessastes ( pag. 56.) , e todos dizem , o juízo , e os discursos que formamos de qualquer cousa , se fundão na idéa que del- 1^ tem formado o Entendimento ; e como a idéa he errada , e mui diversa da realidade , também os juízos , e discursos , que sobre el- lâ se fundão ^ háo de ser errados , e mui dif- ferentes do que succede na realidade. S\\v. Não me entendestes: nós bem sabemos, queDeos não he corpo, mas o que dizemos , heque o nosso Entendimento nunca o pôde con- ceber senão com apparencia corpórea ; e toda a idéa que nos representa a Deos , o represen- ta com semelhança de Corpo. TfOíi, Como estas cousas são mui delicadas, não vos admireis de eu as náo entender logo ; tende paciência , que quero entender bem is- to. EHzeis-me que toda a idéa , que formamos de Deos , no-lo representa como se fosse cor- po : está bem ; ora como podemos nós crer , e persuadir-nos que Deos náo he corpo ? Di- rei o fundamento da minha dúvida. Nós não concebemos fogo sem calor , nem a neve sem frialdade , nem chumbo sem pezo ; e por isso todos se persuadem que o chumbo he pezado , a neve he fria , o fogo quente : e quem disses- se o contrario , seria reputado por fátuo : por- que a idéa que formava desses objectos lhe estava mostrando esses predicados , que lhes negava ; e eis-aqui porque eu dizia , que se nós nunca podessemos conceber a Deos senão como cousa corpórea , não havia modo , por onde o Entendimento podesse crer que Deos náo era corpo. S\\v. (o Recreação Filosófica Silv, Não vedes , que essa semelhança corpó- rea he como hiima mascara ? Tecd. Mas para eu saber que essa apparencia he m? seara , e cjue Deos náo he assim como se me representa , cuidava eu que era preciso ter alguma idéa , ou conceito de Deos como he em si 5 e depois olhar para essa apparencia corpórea ; e depois , comoinando huma cousa com outra , dizer que não concordaváo ; e que Deos em si era mui diverso da mascara com que se me representava ao Entendimento. Silv. Pois sim. Eu comparando a Deos em si mesmo com tndo o que he corpo , ou seme- lhança corpórea , sei que sáo cousas bem op- postas , e diversíssimas Teod, E como podeis vós comparar a Deos em si mesmo , com tudo o que he semelhança coqx)rea , sem terdes huma idéa que de huma parte vos represente a Deos em si mesmo, isto he , livre de toda a semelhança alheia ; e de outra parte a idéa do corpo , para dizerdes que as Juas idéas eráo oppostas , e os seus objectos também diversos ? Eu se sempre vis- se a Joáo mascarado de preto ; para crer que elle náo era preto na realidade, era-me preci- so ter alguma idéa de Joáo em si , para que combinando-o com a mascara , dissesse que aquella cor , ou apparencia náo era sua. Po- rém vós dizeis , que eu nunca , e por modo nenhum podia conceber a Deos sem o vercu- berto com essa apparencia corpórea : como posso logo persuadir-me que essa apparencia náo he sua ? Contar-vos-hei o que succedeo a huna Tarde trigésima oitava. 6i hum Theologo coni hum Heregô dos que ôha- máo Anrropomorphitas , que dizem que Deos he corpóreo : argumentava elle contra o Theo- logo , e dizia assim : Porque credes vós que Deos he sábio , senão porque não podemos conceber a Deos , nem formar delle idéa al- guma , sem conceber sabedoria , e todas âs perfeições í logo se eu nunca posso conceber a Deos 5 sem que nessa idéa vá figua corpórea , do mesmo modo que vós inferis que Deos he sábio 5 infiro eu , que Deos he corpo. Eu fi- quei afflicto ; porque não entendi bem a res- posta do Theologo j tomara que vós ma dés- seis i porque sou Catholico como vós , e creio firmemente , que Deos não he corpo , nem tem semelhança disso. SiW, Essa semelhança corpórea que achamos na idéa de Deos , he emprestada, e não he própria. Teod» E por onde sei eu que he emprestada , se nunca posso conceber a Deos , senão assim ? Para eu saber que huma apparencia não he própria de hum sujeito , mas emprestada , he preciso ao menos poder conceber esse sujeito sem ella : logo se eu não posso nunca conce- ber a Deos , sem que essa idéa , ou conceito mo represente corpóreo , como posso eu dizer que essa semelhança he emprestada ? Outro tanto dirá o Herege da sabedoria - e demais perreiçoçs que rorçosamente encontramos na Idéa dé Deos. Amigo Silvio, fallemos since- ramente 5 e em boa paz , isso não he assim ; e nós bem podemos no Emçndimmto formar de Deos , I 62 'Recreação Tilosojicà Deos , € do espirito idéas próprias , cfíie tíos representem esses objeãos como diversos de tU' do o que he corpo. Assentai , Eugénio , na Prop, vossa memoria esra Proposição (14.)- 14. Silv, Pois hé crivei , que tantos homens de juizo assentassem no contrario, sendo falso! Tcod. Não vos admireis , que eu vos direi 2 origem dessa equivocaçáo. Confundiáo as idéas do entendimento com as da imaginação, e attribuiáo ás idéas da alma o que he próprio só das d?- fantazia. A experiência ensina, que quando cuidamos em Deos , a imaginação nos pinta alguma figura corpórea ; o mesmo he cuidando nos Anjos, etc. porem essa imagem corpórea , quaem nós sentimos , he só na imagi- nação , e não no entendimento. A imaginação representa huma cousa , e o entendimento re- presenta outra totalmente diversa ; e eis-aqui apparece outra vez falso o proloquio , que de- fendeis ; que nada ha no etitendimento , que primeiro > ao se ache nos sentidos. No enten- dimento temos idéa de Deos , tão própria , que só a Deos convém , e não pôde quadrar a ou- tra cousa ; e esta idéa , que não possa quadrar a corpo algum , não se acha nos sentidos ; por quanto já está concedido , que na imaginação , c sentidos só se pôde pintar imagem sensivel, e material. £ug. E já são quatro casos , em que vós fal- sificais esse proloquio : o primeiro hé nas idéas espirituaes do exercito , ou figuras de muitos mil ângulos : o segundo nas idéas espirituaes de cousas negativas ; o terceiro nas idéas dos pro- Tarde trigésima oitava, 63 próprios pensamentos : o qnartò nas idéas àt cousas cspirituaes. Sih. Tomara saber como são essas idéas pró- prias de Deos ; de Deos , que he incompre- hensivel. Tsod, Eu o digo : que entendeis vós por idéa própria de qualquer objecto ? Sih, Idéa , que não possa quadrar a outro ne- nhum , senão a elie. Tesd. Bem está: ora a idca de Deos, que nós formamos no entendimento, assim he. Eu vos digo como o entendimento a forma ; e depois me direis se fica próprio o retrato. Quando o pintor quer retratar hum homem , vai pondo todas as feições , que nelle acha ; e se poz alguma , que elie não tem , vai-a tirando ; de sorte que pondo o que tem , e tirando o que não tem , lhe fica próprio o retrato. Assim faz o entendimento , formando a idéa de Deos : todas quantas perfeições acha nas creaturas , ou seja pela própria consciência , ou seja pelo uso dos sentidos , vai ajuntando numa parte, e vai tarando todas quantas imperfeições ahi acha j e tendo feito huma idéa toda cheia de perfeições , excluindo todas as imperfeições, tem feito idéa de Deos. Ponhamos isto em praxe : pela própria consciência , ou experiên- cia de si , tem o entendimento idéa do ser, da existência , e da intelligencia mental ; tudo isto são perfeições , e põe isto no retrato de Deos ; mas acha em si ignorância , e dúvida ; e forma por contraposição- humas idéas positi- vas 3 que excluem estas imperfeições , e diz sem 64 Recreação Filosófica sem ignorância , sem dúvida , e vai ajuntârt-» do isco á idéa do ser , e existente , e intelli- gcnte. Olha mais para as creaturas externaá, e vê força , poder , e ajunta as idcas dessas perfeições ao retrato de Deos ; porém vê ao mesmo tempo nas creaturas fraqueza, vê mor- te 5 vê nascimento , e forma idéas oppostas , c[ue digáo sem fraqueza , stm principio , sem fin j e tudo isto vai para o retrato de Deos. Torna a olhar, e vê nas creaturas grandeza^ vê também a íiguta , limite , matéria , etc. e põe no retrato de Deos a idéa da grandeza; e vendo que figura , limite ^ e matéria sáo im-i perfeições , forma outras idéas contrarias que as excluáo; e ajuntando as idéas de perfeição com as idéas exclusivas de imperíeiçóes , vai pondo tudo no retrato de Deos, e diz assim: Hum ser, que existe, sem principio nem fim; cjue he intellígente , sem dúvida nem ignorân- cia ; que he poderoso sem fraqueza , que tem grandeza sem figura que o termine , que não tem matéria que o faça palpável , etc. Per- gunto agora : c ainda que o entendimento não aperfeiçoe mais o retrato, achais vós, Silvio, que çÚq pode servir a objecto algum fora de Deos? Silv, Certamente náo. Teod. Pergunto mais : e Deos tem isso que se representa no retrato? Silv. Tem. Teod. Ainda pergunto mais : e o retrato tem alguma cousa , c^ue Deos náo tenha ? Silv. Náo. Teod, Tarde trigésima oitava, 6^ Teoã. Logo este retrato , posto cjue seja imper- feito , e tosco 5 he tão próprio de Deos , (]ue só a elle quídra , e a mais nenhum objecto pode ssrvir. Silv. Então escusado he esperar pela Bemaven- turança , se nós já neste mundo podemos co- nhecer a Deos como em si he. Ti^ d. Amip Silvio, vai grande diíferença do retrato, qu* formamos de Deos só pela razão, ao que formaremos guiados pelo iume da glo- rií'. Mas havendo grande diiierença 5 podem ser próprios ambos os retratos. Exemplo : o retrato , que Eugénio tem de seu tio o Com- mendador, he hum retrato bellissimo. Eug. Náo ha dúvida , que sahio propriissimo ; e he dos melhores , que o no3so Francisco Vieira tem leito. E até o primeiro desenho, que elíe faz com o lápis , com razão o esti- n.o ^ c tenho debaixo de vidro em sua mol- dura , porque he propriiss'mo : e náo forão senão quatro riscos de lápis, que num instan- te deitou no papel, estando olh.ando para meu rio ; e depois por esse desenho he que se go- vernou para o retrato, que tenho na livraria. Teod, Ora aJii tendes , Silvio , a resposta do que me dissestes : qieni duvida , que vai gran- de differença d") p*queno destrnho do lápis ao outro rerratn grande, e bem colorido? c com tudo ambos sao retratos próprios do Commcn- dador ; e todos os que os vem , logo o dizem. A diíferença entre elles está , q le o pequeno representa algumas feições do rosto , as prín- cipacs no que toca a%ura, e por maior j oue Tom. vri. E hc Gd Recreaçro Filosófica he o mais que pode hitr a ponta do lapis^ mas o rerrato grande rep/esenra essas mesmas feições com muito maiçíf- miudeza , mais per* fèiçáo, e maior viveza; representa a cor pro* pria do semblante; ç além disso muitas outras cousas que o retrato pequeno n?o pode repre- sentar 5 por ser escuro , pequeno , e em gros-* so» Ora eis-aqui , com a devida proporção, como he a idca , que formamos agora de Deos , a respeito da idca , que formaremos na gloria. Esses predicados , que conliecemos em Deos pelo lume da razão , e da Fe , esses rnesmos conheceremos pelo lun-.e da gloria ; porém com muito maior perfeição , claridade , e viveza : além disso veremos muitos predicados , que não achamos agora cá no nosso rerrato escu- ro 5 c grosse ro. E ainda a comparação não fica tão exacta , como eu queria ; e o llcará , se comparardes o conceito que fazemos do Commen dador , vendo somente esse retrato de lápis grosseiro, com o que faríamos vendo o mesmo Corrmendador vivo , e fallando; porque sempre vai muito do vivo ao pintado. Ora nós cá neste mundo contentamo-nos com este retratinho peq :eno , que trazemos cá na cabeça , feito ás escuras com o dedo do enten- dimento; e na Gloria veremos a Deos clara- mente face a face. Esta comparação he pouco mais ou menos a de S. Paulo : o Santo Apos- tolo diz , que cá vemos a Deos como em es- pelho ; ora este espelho sim he pouco limpo , e não muito cristalino ; mas sempre represen- ta a figura própria do objecto , de sorte que só Tarde trigésima oitava, 67 só a clle convém, posto que pequena , confu- sa 5 e escura ; porém no Geo veremos a Deos , náo em espelho , mas como em si he. Pare- ce-me que ha de haver diíFerença. Silv, E Dem grande. Teod, Concluamos logo , Eugénio, que ò en- tendimento fórma do espirito, e deUeos idéa própria ; isto he idéa , que convém a Deos , é só a Deos pôde q^^adrar. Agora essa idéa im- própria , alheia , e emprestada , que nos repre- senta a Deos , como hum velho venerando ^ ou ao Anjo, como hum mancebo gentil com azas , etc. tudo isso sáo idéas da imaginação , a qual he cousa mui diversa do entendimento. Ora eu náo duvido , que muita gente rústica faça no entendimento idéas de Deos , e dos Anjos semelhantes ás da imaginação ; porém isso he erro , de que eu náo tenho culpa. Eu conheço hum homem táo rústico , que se ga- bou de ler venerado huma estupenda relíquia , e náo acabava de encarecer a sua preciosida- de ; e perguntando-lhe que relíquia era , res- pondeo que era hum osso da perna de S. Mi- guel. Vede que conceito fazia este bárbaro do Santo Arcanjo ; mas deixemos despropósitos de geme rústica. Eus;. Já agora entendo o fim , que tivestes em me explicar com tanta miideza o modo, com que obrava a nossa imíginiçáo , e que diffe- rença tinháo os seus act^s dos actos do enten- dimento j pois já vejo que de conRindir huns actos com os outros nasce atribuírem esses Fi- lósofos ás idéas do entendimento a impropfie- E íi da* 68 Recreação Filoso^ca, dade , e fícção , que somente se acha nas idéa* dt fantazia. E que dizeis a isro, Silvio? Silv, Digo o mesmo que dizia ; porque niigijem me ha de tirar da cabeça , que as idéas do entendimento dependem dos sentidos. E dos mesmos Modernos tenho noticia que todos, ou quasi todos dizem isto. §• V. Dã Origem das idéas do Entendimento, TiOi. Ç\ Que causa mais admiração he , que V/ também eu o digo ; posto que com sua moderação. Is:^o hc cousa mui diversa do que temos tratado. Silvio, vós acabais de di- zer, que vos náo háo de tirar da cabeça, que as idéas do entendimento dependem dos sen- ti jos : assim he pela maior parte \ mas de- pendendo dos sentidos , nem por isso fi^áo se- melhantes ás idéas dos sentidos. Náo havemos de confundir a origem, das idéas com a sua re- presentação Pode huma idéa trazer a origem de huma cousa , e ser diversíssima delia , e mui dissemelhante na representação. Por tan- to , Eugénio , ainda as idéas da alma , que tem a sua origem nos sentidos , nem sempre íáo semelhantes ás idéas dos sentidos. Expii- co-me com hum exemplo. Promettêráo di- nheiro a hum pintor para fazer hum retraio de Cezar; aqui a origem daquella pintura foi a promessa do dinheiro ; o retrato depende do di- Tarde trigésima o? tav a, 69 dinheiro , mas não he semelhante ao dinheí- , ro , nem o representa ; só he semelhante a Cezar, porque só represcnca a Cczar. Assim póJe aconiecer ás iJéíis do enrendimento. Súv. V\%io isso , já concedeis que todas as idéas nascem dos sentidos , poi> ea cuidava , que me qucriíis persuadir as idcas innaias de Pla- tão. En%. Que quer dizer làen^ innaas^. Tevd. Fazeis bem em não deixar passar pala- vra , sem que a entetidais. Idéas i-.vnatas sáo ts i''éas , que nascem junramenre comnosco, e náo se adquirem com o tempo , nem estu- do. Muitos Filósofos dizem , que as idé^s do entendimento sáo impressas por Deos na nos- sa alma , quando a creou , á maneira de sine- tes impressos na cera: outros se explicáo por outro diverso modo. Eu náo me embaraço cem isso, porque o meu intento he dar a Euge^iio instnicçáo do que lhe pôde ser útil , e nesra questão pouca utilidade conheço ; por quanto ainda os mesmos que a seguem, conferi áo que as impressões dos sentidos conduzem para des- pertar estas idcas , e quando os contrários di- zem , q'ie estas idcas dos sentidos sáo precisas para o entendimento formar de novo as suas , respondem elles , que náo ; e que só sáo pre- cisas para a excitar. Seji como quizerem ; que a vós , Eugénio, só vos im^rta saber como apparecem no entendimento as s ias idcas. Sílv, Náo lhe podeis dar outra origem senão a dos sentidos. T^od, Pondo de parte a op'niáo de que as idéas sio 70 Recreação TiJosoficts são innatás , e nascem comnosco : digo , que for quatro moàos pode ^ ahnt adquirir ai sufis idéas ; ou por imitação , ou por exclusão > ou por consciência , e reflexão sobre si mes- ma^ ou finalmente por ahtracção , e precisão» Prop. (Proposição 15.) Quando os sentidos exter- Ij, nos 5 ou a imaginação ofFerecem á alma hu- ma imagem de objepto material , como da pedra, v g. ou do fogo, a alma forma huma idea espiritual , que representa os mesmos pre- dicados , que vê na idea da imaginação , da- quelle mesmo modo que faz hum pinrcr , quan- do forma huma cópia de algum retrato ; e a isto chamo eu formar idéas por imitação. As- sim acontece quando o entendimento cuida de objectos materiaes. Advirto, que ás vezes sa- hem estas idéas do entendimento mais exactas^ outras vezes mais confusas ; como v. g. quan- do formamos idéa de hum exercito ; mas en- tão não he a imitação perfeita. JEíig. Este primeiro modo percebo eu bem : va- mos agora ao segundo. T^od. Q segundo rnodo hc por exclusão : como quando a imaginação nosreprescnra huma cou- sa , e o entendimento a exclue , e bota fora , e faz idéa ào contrario. Ponhamos exemplo: ^ imaginação ofTerece a idéa de nódoa, enfor- mamos a idéa contraria , isto he de limpeza: ou quando a imaginação nos representa crime ou dinheiro, e nos formamos a idéa contraria , de innocencia ou de pobreza, etc. O entendi- mento tem esta virtude ; porque , como disse , fornica idéas negativas ; isto he idéas , que sen- do Tarde tr^fresima oitava. 71 o ' do em si tão positivas , e verdadeiras , como as outras , representáo s6 a exclusão de aigu- mas cousas : e para isto foi acpella pendência tão renhida sobre se se podia , ou não , ter idca do Nada. £ug. Bem me lembro , e já vou conhecendo utilidade , onde cu cuidei que não podia ha- vella. Teod. O terceiro modo he por consciência , ou reflccçáo sobre si mesmo ; e isto acontece quando o Entendimento reflecte sobre si , e conhece os seus actos ; v, g. quando conhece , que tem pensamentos , que duvida , que ne- ga 5 que afíirma , que fica suspenso , çtc. Es- tas idéas de dúvida , aftirmaçáo , ignorância , etc. todas vem ao entendimento por reflcccâo sobre si mesmo ; e nâo lhe he preciso olhar para fora de si, para ver os seus próprios mo- vimentos. Falta o ultimo modo ^ que he ab- stracção , ou precisão. Eug, "Não entendo essas pdavras. Teod. En vo-las explico. Quando hum homem tem dous predicados , e nós olhamos para hum , e não fazemos caso do outro , isto he , nâo di- zemos que o tem , nem que deixa de o ter, chama-se a isto prescindir , ou absirahir daquel- le predicado. Exemplo : quando tratamos das guerras , e dizemos , que tal Coronel fez es- ta , ou aquella acção , não dizemos se elle era fidalgo , ou mecânico , gentil , ou feio , rico , ou pobre ; prescindimos de tuíío isso. L ra por modo semelhante quando o Entendimento , de- pois de ter considerado numa flor formosa. re- 72 Recreação Filosófica repara na formosura , e náo faz caso de ser , ou não ser Hor , dizemos Cjue por precisão , ou abstracção forma idca da formosura : do mesmo modo conhecendo que huma proposi- ção he verdadeira , reparo de novo na sua ver- dade , e náo íaço caso de cjue afíirme isto , ou acjuillo y mas somente cm que hé verdadeira , neste caso por abstracção j ou precisão formo idéa da verdade. Este quarto modo he poste- rior aos outros três , porque já suppóe as ou- tras idéas j e ranto das que temos por imita- ção , como das que temos por exclusão , co- mo em íim das que temos por conxiencia , ou reflecçáo sobre nós mesmos, podemos for- mar outra idéa por abstracção. Eis-aqui ve- reis, Silvio, por outro modo a summa impor- tância daquelie ponto , que tratamos , se po- dia o cnrendimento rer idea positiva das nega- ções 5 ou do N^da. Silv. Pois que importância descobris vós agora nessa questão para o ponto pre^ientc ? l^eod. Eu o digo ; quem atlirmar , que para eu ter idéa de hum homem que não he bom , basta ter idéa de hornem , sem ter idéa da bondade , necessariamente ha de confundir as idéas de exclusão com as idéas de abstracção y ou precisão , e o mesmo eíFeiro ha de fazer no meu entendimento o excluir a bondade , ne- gando-a 5 do que prescindir delia , náo atenden- do a eila. Ora isto he huma confusão mui no- civa , porque vai mui grande diíFerença de hu- ma cousa a outra , porque quando concebo hum homem que náo he bom , posso segura- mci> í Tarde trigésima oitava, ^^ mcnre dizer delle , que he máo ; e quando concebo só hum homem , sepíi olhar píira a sua bondade , náo posso dizer que seja , ou náo seja máo ; mas fico indiíTerente para o negar , e para o conceder. E isto he ponto, de que se seguem mil equivocaçóes , e erros. Silv, E em que pondes vós a difierença da pre- cisão , e da nei^açáo ? TCiA. Ponho-a nisio; idca , que prescinde, he idéa , que representa o objecto , e que náo re- presenta o outro predicado , de que prescinde i e idca exclusiva , ou negativa , he iJéa que representa o objecto , e representa nelle a í al- ta , ou ausência do tal predicado , que se ex« clue ; V. g. idéa que somente diz Pedro , pres- cinde do dinheiro , porque náo representa o dinheiro ; idéa , que diz Pedro pobre , consta de duas idéas ; huma , que representa a Pe- dro , e outra , que representa a exclusão , ou falta de dinheiro. Isto he cousa mui diversa. Silv. Muito tínhamos ahi que averiguar, se is- to fosse em conclusões publicas j mas consi- dero que he huma insrrucçáo particukr ; va- mos adiante. Teod, Ora está bem : supposta a permissão , que nos dais , já agora se pode averiguar aquei- le ponto, se todas as idéas tem a sua origem ^ dos sentidos , ou se dependem delles. Stlv. Eu estou nisso firmíssimo ; para mim he ponto averiguado. 'liocí. Também alguns Modernos o dizem; e o seu fundamento he , porque se hum menino nascesse surdo , e cego , náo poderia ter idéus ai- 74 Recreação Filosófica algumas ; e já a experiência tem dado alguma prova ; porque se conta de hum menino , que foi alimentado nos bosques entre as feras , tal- vez pela piedade de alguma loba , como. se creo de Remo , e Rómulo , ou por alguma cabra , como he muito usual entre a gente pobre ; e depois se via , que nos seus modos , e gritos , e gestos náo tinha differença das fe- ras. Eu S2 hei de dizer o que entendo , o ca- so de nascer hum menino sem sentido algum , he imaginado , e náo consta se já aconteceo , porque ao menos o sentido do tacvo costuma não faltar de todo , ainda áquelles , de quem parece que a natureza se esqueceo : e muito menos consta se e.5se menino teria , ou náo al- gumas idéas no pensamento. Porém filosofan- do nesse caso , que talvez será possível , di- go, que mui facilmente poderia achar- se a sua alma sem idéa (se náo segui-mos a opinião daquelles Filósofos que dizem , que a essência do espirito he cogitar actualmente. ) *r/7v. Nunca tal segui. Tcod, Boa gente o segue. Vamos ao caso q:ie questionamos : esse homem poderia ficar facil- mente sem idéa alguma na alma ; porque co- mo na ihiaginaçáo náo se achava nenhuma idca 5 que tivesse vindo dos sentidos , a alma as náo podia fazer por imitação -, e por con- seguinte nem também por exclusão , porque eu náo posso conceber exclusão de hurna cou- sa , sem primeiro ter feito idéa positiva dessa mesma cousa. Demais , como a imaginação náo podia trabalhar , talvez que pela mesma ani- Tarde trigésima oitava. 75: união que tem â alma com o corpo , e o cére- bro com o entendimento ^ a sua alma náo pode- ria trabalhar, e por conseguinte náo podia re- reflectir sobre si mesma , nem sobre a sua existência ; e deste modo nem por reflexão , ou consciência poderia ter idéa ; e já daqui ficava sem as idéas por abstracção , e precisão ; porque esse quarto modo suppóe , e depende dos três primeiros , como disse . logo mui facilmente po- deria o homem ficar sem idea nenhuma na alma. 4^/7^. Vós dizeis isso a medo ! e que talvez ! Tsod. Sim. Porque quem sabe se a alma então poderia reflectir sobre si mesma , e dizer , eu existo , eu cuido , etc. Com que deixemos isso assim , que para a instrucção de Eugénio importa pouco averiguallo , que são casos me- thafysicos , que nunca succeaem. Tiro porém huma consequência , que todas , ou quasi to- das as idéas vem por este modo a depender dos sentidos. Humas, como são as de imita- ção , porque estas lhe servem de hum tal , ou qual modelo ; outras , como são as de refle- xão , ou consciência , porque sem o uso de algum sentido a alma ficará talvez como so- pira sem acção nenhuma , supposta esta mu- tua união 5 e dependência entre a alma , e o corpo i e como as idéas de exclusão , e abs^ tracção dependem das outras idéas , vem por este modo todas , ou quasi todas as idéas a ter dependência dos sentidos. Silv. Porque lhe pondes esse quasi todas ? Teod, Porque se a alma por si só puder refle- ctir sobre a sua existência , e depois sobre a sua "jd Recreação Filosófica sua mesma cogitação , e pensamento , então poderá ter algiim?.s idéas , que absolutamente náo dependáo dos sentidos : porém serão mui poucas. Pelo que , Eugénio , por remate de toda esta questão , assentai comvosco , que tosto (\ut as idéãs do enun:lvnento dipernião de algmn modo dos sentidos , nem sempre sao semelhantes às Idéas dos sentidos : pois esta Prop. Proposição ( í6 ) he assas importante. i6, £ug. Náo me ha de esquecer, por isso mesmo que foi muito debatida, §. VI. Da natureza , e ciifferença eutre as nossas idéas , juizos , e díscurços, Silv. \ Gora saiamos a passear pelo iardim , l\ que jnsensiveim3nte temos levado a rard.^ toda dentro em casa, sem que para isso houvesse causa ur^^ente. Vamos respirar hrm ár mais fresco , e náo sejamos descorrezes com a benigna natureza , desprezando os favo- res que nos concede. £u^. Vós estáveis agora com mais espirito de Poeta , que de Filosofo. Silv. já lá vai o tempo, em que tomava estes pontos em caso de honra : vamos a passeio. Teod. Seja muito embora , que Silvio tem ra- zão ; e demos também hum passo com o dis - curso. Até aqui temos visto, Eugénio, a na- tureza das idéas do entendimento : agora em pou- Tarae trigésima oitaTa. 77 poucas palavras vos explicarei qual he a natureza dos juízos , e do discurso , para entrarn"i03 á nianhá a saber as regras , por onde vos haveis de governar com se.^rirança. Já sabeis , Eugé- nio j c|ue as Idéãs sHo bum ^tão d/t ci md mu- do 5 •' suspenso , coui que dia olha para o slQ ohjeão , sem dAk afpnur , ou ?icgar cous,^ aiguma Hide sempre tazendo memoria dessas deffiniçóes. Eu^r, Descançai , Cjue com o lapis cá vou as- sentando n um papel todas as proposições , (|ne são tundamentaes , para depjis as recommen- dar á memoria. Jeod, Fazeis bem : agora digo que o Juho he hum aão da alma , com o q.i^l ajfi mamos , cu negamos do ohjcCtQ ale: uma cousa. De sor- te 5 que em quanto olhamos p>ara o objecto, e p:r mais predicados que vejamos nelle, não afhrmamos nada , nem negamos , fica esse acro na ciasse de mera Apprehensáo , ou Idéa ; porém se afrirmanios , ou negamos qualquer predicado, já fazemos juízo. Eug. Deixai me pôr exemplos , a ver se perce- bo. Digo eu na minha mente ; Hum homem branco , nobre , valoroso , sábio ; até aqui he meramente idéaj e se eu disser: há hum ho- mem branco , etc. já formo juizo. Teod. Dizeis bem; porque no primeiro acto fi- cais suspenso , no segundo não ficais suspen- so, porque dizeis que na realidade ha esse ho- mem. Advirto , que todas as vezes que nos admiramos , ou perguntamos , esses actos per- tencem á classe das idéas , porque náo affir- ma- 78 Recreação Filosófica mamòs , nem negamos. E daqui nasce , Gue cm todo o jiiizo ha de haver verdade , ou fal sidade^ e este he outro sinal infallivel de hum acto ser juizo , ou proposição , que vem a ser o mesmo; por quanto, se no que digo ha pró- pria verdade , ou rigorosa falsidade, he sinal que afíirmo, ou nego alguma cousa; e senão pode haver verdade , nem falsidade , he sinal que o acto náo passou de idéa. Silv, Nisso , que vós dizeis da verdade , ou falsidade de qualquer juizo, tenho eu mil dif- ficuldades ; como também contra o modo de definir, ou explicar o juizo. Tcod. Se são difficuldades , que vos facão du- vidar seriamente do que disse , exponde-as , porque não quero que Eugénio assente como Fundamento da doutrina que esperamos , cou- sas ou falsas , ou duvidosas ; porém se essas difficuldades são as que servem para nas au- las enredarem os entendimentos , ainda sobre aquillo que todos dão por certo , guardai-as pa- ra divertimento das aul s , que eu náo quero ensinar a Eugénio a esgrimir contra o vento. Dizia hum homem de juizo, que 03 argumen- tos das aulas contra estes pontos , de que nin- guém dentro do seu coração duvidava , náo. cráo outra cousa mais, que lições de esgrimir contra o ar , dando-lhe estocadas , e murros, e cobrando grande raiva contra ninguém. Silv. A verdade he , que eu nunca duvidei que todo o juizo affirmava , ou negava alguma cousa. Como também sempre tive por certo, e indubitável , que afíirmando o juizo , ou ne- gan- Taráe trigésima oitava, 79 i ' gando alguma cousa , sempre havia de haver nelle verdade , ou falsidade. Mas sempre são \ estas humas subtilezas dignas de muita esti- \ maçáo, porque são de grande preço. • ; Teod, Náo duvido; mas será para quem asqui- ; zer comprar : para mim náo ; e assim se to- í dos três concordamos no mesmo , passemos i adiante. Digo pois , Eugénio , que o aUendi- j memo para Jvrmar o seu juízo , deve antece- \ dem^mente ter íio menos duas iãéas : huwa do j sujeitd , de íjuCm falia y outra do predicado ^ | ou atributo^ que lhe comedi:^ ou que lhene'^a, | ( Proposição 17. ) V. g. se digo , que a alma Prop- he imortal , devo primeiro ter idéa da alma ^ 17. 1 isto he 5 do sujeito da proposição ; e devo tam- \ bem ter idca da inimortiUdad^y que he o atri^ ( buto , ou predicido , que se affirma da alma, . \ Enião o entendimento comparando huma idéa ; •com outra , vendo se tem connexão entre si, í ou se huma se involve na outra , diz que a \ alma he immortal. Do mesmo modo nos jui- J zos, ou proposições negativas, sempre heprc- :| ciso que o entendimento primeiro tenha idéa \ do sujeito, e idéa do predicado, ou attributo, í para ver se pode excluir huma idéa da outra; e assim depois de examinar a idéa de mate- J rí/2, e também a idéa de cousa cogitante y diz | deste modo, a matéria não he cogitante, ] Eug, Isso percebe-se mui bem , e fica na mi- ; nha memoria essa proposição. \ Teod, Advirto , que as proposições , que cha- \ máo Lógicas , isto he , formadas em todo o ] ffigor Lógico j devem ter ao principio a idéa j do í I 8o Keceaçiío Filosófica do siiJ2Íro 5 depois dizer he ou nÂo he , e no íim devem ter o predicada; como quando di- »Q a alma he es p ir f uni , ^ alyna não he matéria ; pjrém todas as demais proposições se podem reduzir a esre modo , ainda que vulgarmente renhro outra formatura ; v. g. quando digo : Pedro bem rico he ; aqui depois do sujeito ?edrOy vai logo a íd?a do predicado bem rico , e de- pois a af^irmaçáo. Mas reduz indo-se a propo- sição Lógica , deve-sc armar assim : Vedro he ín m rico. Advirto mais huma cousa , em que pode hav:ír graidissima equivocaçáo ; e vem a S3r 5 q le toda a affirmaçáo , ou negação se deve reduzir ao verbo he, au não he. Por isso se dis.er o v rão luflo dcsprezi o muui^, de- ve-se reduzir a esta proposição o varão ju(ii he deprezad r d 3 miudo. E doste modo também se conhece qual he o predicado , qie não he a palavra mundo , mas a palavra despr ZAÒor (lo mundo. Eug. A proposição não tinha essa palavra diS- prczad' r. Te^yd. Não a tinha expressa , mas estava envol- vida na palavra defprezJ , que vai o mesmo que estas duas c dcsprezídor ; e só na palavra he eszá a verdadeira affirmaçáo : o demais he predicado, ou atributo da proposição. Advir- to isto 5 porque serve , Eugénio , para evitar muitos enganos. Silv. Haveis de saber, Eugénio, que todos os mais verbos, que não disserem he , ou uão^hcy se devem reduzir daquelle modo ; v. g. tifiwm^^^ quer dizer he amante: canwhA, he canunh/in- tv : estima , he. estim.iiCr , ó-r. £«^. Tarde trigésima oitava. Zt Èii^. "Não me esquecerá essa lição. Tcoíi. Também quero acautelar , que ás vezes o sujeito da proposição está occuito , e se de- ve entender, ou suppòr manifesto, posto que não se exprima com as palavras ; como v. g. quando digo ignoro os futuros , quero dizer : €u soíi ignorante dos futuros, O sujeito he cu , a afíirmaçáo está na palavra sou , e o predi- cado não he os futuros , mas ignorante dos futuros 5 de sorte que na palavra ignoro se in- cluem estas três eu sou ignorante, Eu^, ]á estou bem capacitado disso ^ eu ocon* servarei na memoria. Teod, Vamos ultimamente a dizer o que he Discurso 5 para rematar a conferencia. O dis^ curso , Eugénio , suppóe dous juizos ; e quan- do o entendimento conhece , que hum se iú- clue no outro , ou nasce delle , então forma o discurso. V. g. a sciencia he ornato da alma -, logo a sciencia he estimável , tenho duas pro- . posições j a primeira chama-se antecedente , a S2gunda consequente; e na palavra logo expri- mo o acto do entendimento , com que conhe- ço que a segunda nasce da primeira , e que em certo modo neila se incluia. Eug, E para ser bom o discurso ^ que se re- quer ? Teod, A seu tempo vos darei as regras; porém agora basta dizer-vos , que quando a segunda proposição verdadeiramente não estava dentro da primeira , não he bom o discurso , ainda <^ que ambas as proposições sejão verdadeiras em si -j como quando digo : Pedro Ix honigm , Iq^. Tom. VII. g go^ Si Recreação Filosófica go he rico ; não discorro bem , porque o ser rico náo se inclue dentro do ser nomem ; do mesmo modo se disser a virtude he louvada dos homens y logo he louvada de Deos -, naa discorro bem , porque a segunda proposição náo nasce da primeira ; pois o ser louvado de Deos náo he cousa , que se encerre no ser louvado dos homens. E basia isto por ora , que já tendes luz bastante para poderdes en- tender as regras, que vos hei de da:r para evi- tar os efros nos actos do entendimento ; que este he o único fim , que me proponho nesta instrucçáo. Agora quero mostrar-vos as obras ,- que tenho feito no meu jardim ; e haveis de achar nelle grande mudança desde o outro tem- po 5 que o passeáveis^ Sitv, Náo ha dúvida , que está ínuko mais de- licioso, Eugénio. JEug. Vamos a ver isso , que de todos os mo* dos me recreais 5 mas quero que vejais se nes- ta memoria , que fui fazendo com o lápis , me esqueceo alguma proposição importante da ins- trucçáo que me tendes dado. | Teod, Tenho visto que sois bem exacto: aqui se encerra a substancia do que vos ensinei. TAR- Tarde trigésima nona.^ 83 TARDE XXXIX. Das Enfermidades do nosso enrendimen* to , e seus remédios. §. I. Da Cegueira , que os Pyrrhonios falsa- mente dizem que tem o nosso entendimento» Teod. /"^ Ra vinde , Silvio , que hoje vos I B hei de tomar o ofíicio , e me hei ^ — de metter a Medico. Silv, Çendo vós tão bom Fysico , eftais meio habilitado para a Medicina, segundo o nosso proloquio ubi desinit Physicus , incipit Me^ diais. Eug. Ainda vós náo acabais (Je Qfer que eu náo entendo latim. Silv. Aos proioquios se deve huma tal venera- ção 5 qiie náo hé licito torcer-lhes as palavras, e Teodósio bem me entende. Tecd. Mas não he essa a Medicina , de que eu fallo ; vos curais as enfermidades do corpo , e eu hei de hoje traçar das do entendimento, que também elle tem seus achaques , e são assas perniciosos , e necessitão de cura. Pof isso eu disse , que hoje vos h^via de tomar a occupaçáo, í" ix Sth* 84 Ktcreaçao Filosófica Sily, Eu cedo delia de boamente , porque não estudei essa casta de Medicina. Eu^, Teodósio, fallemos claro: dizei-me, qne enfermidades são essas do nosso erirendimen- to, porque quero que tomeis o pulso ao meu, ■ a ver se o tenho aclíacado. Tcod. O nosso entendimento sempre caminha para ver , e abraçar a Verdade. Este he o jEm , para que Deos o creou : e assim como os olhos não tem outro fim , nem outro of- iicio 5 senão ver as cores, e a luz , assim o entendimento não pode ter outro fim , seftão conhecer , e abraçar a verdade. Daqui vem , que a differença de hum a outro Entendimen- to 5 pela qual he mais , ou menos estimável , somente está em achar a verdade mais prom- ptamente, ou abraçai! a com mais firmeza, e segurança. Muitos andão por ahi abraçando-se com erros feios , e monstruosos , cuidando el- les que sáo bellissimas verdades: outros andão em busca delia , e rendosa bem perto , nunca a podem alcançar. Estes taes tem o entendi- mento muito enfermo. Porém não he tão ge- ral esta enfermidade, que se estenda a todos, como alguns querem. Muitos Authores ha , e ck boa opinião , que seguem a sentença dos antigos Pyrrhonios , ou dos Académicos , os quaes dizião , que nós neste mundo nunca po- díamos chegar a conhecer claramente a Verda- de 5 nem a ter segurança de que a possuíamos , e tinhamos alcançado (i). Estes homens que- riáo -■ 1' Ç 1 .) Francisco Motteo Vaicrio : Pedro Daniel •^lictio : Pedro Bk1í« , e outros. Tarde trigésima nona, 85' rião fazer transcendente por todos os entendi- mentos huma queixa faisa , que na realidade náo tem. Convém pois desvanecer-lhes esta imaginação, e tirar-Ihes isto do pensamento. SWv, Náo desprezeis essa opinião , porque eu ha poucos dias a encontrei em hum homem famoso 5 o insigne Portuguez Francisco San- ches 5 filho de Braga , que compoz hum livro admirável, com este titulo: Vanjíiito nobre ^ 'primeira , e universal sciençia, que nada se sabe. Este Author segue acerrimamente essa opinião, e bastantemente me persuadi de que tinha razão, Teod. Eu a não desprezo : quero impugnalla, porque me parece falsissima : E creio, que querendo cacia qual dizer na realidade o que sente no ssu coração , ha de confessar , que o seu entendimento não he tão enfermo , que não possa conhecer, e alcançar de certo mui- tas verdades. Para não perder tempo 5 Eugé- nio , convém advertir vos, que ha três castas de eerteza : certeza moral , certeza fysica , e certeza metajysica : a certeza moral se dá^ quando huma proposição só com grandíssima difíiculdade pode ser falsa , v. g. se disser que ' ElRei de Prusia ha de estar mui contente com esta batalha que ganhou. JEu^. Seguramente que o está ^ e isso he bem certo. Teod. Não obstante essa segurança, que tendes da sua alegria , absolutamente , e sem milagre pode ser que o não estime , por algumas cir- cunstancias particulares que ignoramos. Esta cer- 86 Recreação Filosófica certeza pois chamamos semente Aforai : hz outra mais forte , que chamamos Fysica; a qual se dá, quando a proposição só por mila- gre pode faitar : e deste modo costumáo ser certas aquellas cousas ^ que vemos com os olhos, e palpamos com as mãos. Porém esta não he a certeza absoluta , e a perfeita , de queée trata. JSug, Pois ha cousa mais certa , do 'que o que se vê com os olhos ? Teod, Nas feitiçarias , e em alguns milagre^ succede isso , vendo huma cousa que náo he como se vê ; por exemplo , na Eucharisiia ve- mos pão , apalpamos pão , e com tudo alli não ha pão. JSug, Já caio no que dizeis. T-eod, Certeza Metafyska , e absoluta só se dá, quando a proposição nem por milagre pô- de faltar. Ora esta certeza dizião os Acadé- micos , que a náo havia em proposição algu- ma , porque hum homem prudente de tudo absolutamente havia de duvidar. Eug. A verdade he , que parece que elles linhão razão ; porque que cousa he tão certa , que absolutamente não possa faltar, ao menos por milagre , ou feitiçaria ? Silv. Essa opinião , como já vos disse , náo me desagradou ; porque dizião elles ( se me não engano) que neste mundo estávamos tão es- carmentados de enganos , que com piiidencia ps deviamos temer em tudo ; pois até os nos- sos próprios sentidos nos enganavão : e como náo achamos motivo , que nos livre deste sus- to. Tarde trigésima nona. 87 to 5 sempre nos he licito duvidar de qualquer p-oposiçáo , e reeeiar que o que nos parece yerdade, seja delia só huma apparente masca- ra. Lembra-me que usaváo de huma compara- ção galance ; se hum escravo fugisse a seu se- nhor , mandaria fazer a diligencia pelo achar ; porém seria diligencia bem ociosa , e inútil , se os que a fizessem não levassem sjrraes cer- tos desse escravo. De sorte , que sem estes sinaes, ainda topando com elle cara acara , o não conhecerião , porque não levavão sinaes , por onde o distinguissem dos mais homens. jAssim (dizem elles) somos nós com a Ver- dade 5 andamos em busca delia j mas como não temos sinaes certos da verdade, 03 quaes não possáo também achar-se no erro , e na mentira ; ainda dando com a verdade carsi a [^ cara , ficamos na ignorância se ella o he , ou se he algum erro disfarçado , que pareça ver- dade, sem que o seja na realidade. Nesta in- certeza pois sempre o enrendimento fica com escrúpulo , e nunca fica certo que alcansou a verdade. Eu confesso que acho este discurso mui conforme á razão : de sorte , que se ao me- nos, quando os nossos sentidos dessem teste- munho de qualquer cousa , isso não pudesse §er falso , \i nós tinhamos em quem nos fiar para casos duvidosos ; mas se até os nossos próprios olhos nos mentem , de quem nos ha- vemos de fiar? Por isso estes Filósofos dizem (e tem boa gente desta opinião) que não ha nada certo , tudo he duvidoso ; e ninguém po- de neste mundo conhecer a verdade com tal cer- \ 88 Hccreaçi^o Filosófica certeza, que náo possa prudentemente duvidap delia. Sócrates tinna esta proposiçáo por má- xima fundamental , e dizia : Htmia só coma sei 5 que nada sei, Tecd, Já ess3 Filosofo se alargava muito; por- que dizia que sabia ao menos de certo essa sua ignorância ; quando outros até dessa sua mesma ignorância duvidáo. Mas vamos ao ca- so : vós 5 Silvio 5 quereis sustentar o partido dessa opinião , e na realidade a seguis ? Sílv. Supponhamoe que a sigo, quero ver como me convenceis : já daqui digo, que duvido de tudo , ide lá buscar os argumentos que qui- zerdes : eu já duvido delles ; ora convencei-me. ^ug. Desse modo não será fácil, Teod. Duvidai quanto quizerdes ; mas haveis de responder sempre alguma cousa , e náo ha- veis de ficar mudo. Si!v. Isso sim : mas iá vos digo huma respos- ta geral, ehe dizer duvido disso: venha o que vier, não respondo, mais do que isto. Teod, Está bem. Mas vós, quando me dizeis que duvidais, creio quíí existis. Sih. Náo ha dávida que existo ; e como po- dia eu dividar , sem que existisse ? Teod. Logo já estais certo de huma cousa , que he a vossa mesma existência ? Eug. Estais convencido j escorregastes, Silvio, miseravelmente. Sih, Ora digo que duvido, sC existo, ou não existo. Tcod. Está bem ; mas quando duvidais, estais bem certo que duvidais ^ Sílv. Tarde trigésima nona. 8p S'Ú\\ Duvido , e torno a duvidar , e senipre du, vidarei 5 e estou certissimo c|ue duvido. Teod, Logo já esrais certo de huma cousa ; e quando a cabeça vos andasse tão perturbada, que duvidásseis da vossa existência , nunca po- derieis duvidar dessa vossa duvida , isto he, que tínheis es^e pensamento : ora se pensais, e cuidais , e duvidais , por certo que existis ; 1^ pois hnma alma , que náo existe , não pode pensar , nem duvidar. Está logo todo o ho- mem certo ao menos , que elle existe , que pensa , que conhece , e de outras verdades , que a sua própria consciência lhe está mostran- do aos olhos da alma. Silw, Náo posso negar isso , nem ninguém o negará ; mas elies náo fallaváo nesse sentido. Tsod, Mas já temos que he falso o systema de dizer , que nada se sabe com total certeza. Mais : Vós duvidais , ou podeis duvidar , què 2 e 15 são 5 ? que o triangulo não he círculo ? que a bondade he amável ? que a paz he agra- dável á natureza ? Pode alguém duvidar , que huma cousa não pode ao mesmos tempo ser, c não ser o mesmO? pode duvidar, que qual- quer objecto ou he , ou deixa de ser como se diz ? pode duvidar disto algusm ? dizei-me o que entendeis lá dentro da alma. JBúg. Essas cousas são tão manifestamente cla- ras, que parece impossível que se duvide del- ias. Sth. Os Pyrrhonios hâvião de duvidar delias, Teod, Com a bocca , concederei isso ; mas com o juizo , he impossível. Quem quizesse con^ vetit yo Recreação T^ilosofica vencer estes homens , havia de aracallos conr» as suas próprias acções ; porque elles dizendo que nada se sabia , na praxe governaváo-se co- mo os outros que sabiáo. Ora para divertimen- to fingi que estais na presença de hum destes Filósofos 5 que queria viver como homem sér rio 5 isto he , que queria conformar as suas acções com o seu systema , e juizo. Faiiar- lhe hieis , e elie náo responderia \ porque du- vidaria se esse som , que sentia nos ouvidos , era verdadeiro , ou imaginado ; duvidaria se ouvia 5 ou náo ouvia : quereria andar , mas náo moveria hum pé ; pois ainda olhando bem, e reparando , e vendo a casa direita , tinha obrigação de duvidar se alli estava alguni bar- ranco, por onde se precipitasse. JBug. Apalparia primeiro com o pé , como faz quem vai ás escuras. Te r/. Náo seria bastante essa diligencia, por- que também tinha obrigação de duvidar se ti- nha pé , duvidar se topara com o chão , du- vidar se ainda topando com elle , o enganava o tacto ; pois os sentidos na sua opinião são os mais velhacos criados , de que a alma se pode servir , porque a cada passo a enganáo. Teria fome , estaria a huma meza bem pro- vida , e delicada ; mas sem comer, duvidan- do , se era o que parecia , ou se serião cobras disfarçadas , ou rosalgar bem preparado. Nós , c]ue náo duvidamos tanto , iriamos comendo , e; elle nem atinaria com o prato , porque du- vidaria se 03 olhos o enganaváo \ duvidaria se ' a boca lhe ficava para baixo ^ ou para cima do Tareie trigcsima nona. 91 do nariz , e não saberia aonde havia de con- duzir o bocado , que acertava a tomar do pra- to. Vós liàQs : Silv. Creio que náo chegava a tanto a sua lou- cura, Tecd. Huma das cousas ^ de que elles devião duvidar , era se dormião , ou estaváo acordar dos ; se os objectos , com que trataváo, eró.o como sonhos , ou verdadeiros : em fim duvi- dayáo da existência dos corpos ; pois semente os sentidos são únicos testemunhos , que po- dem testificar da sua existência • e nos senti- dos y que sáo enganadores , ninguém se pode fiar. Silv. Também nós dizemos isso mesmo, econi mdo esta dúvida não nos embaraça, que obre- mos como os rústicos , que nada duvidáo do que lhes dizem os sentidos. Teod, Vamos de vagar, Silvio. Nós confessa- mos , que os sentidos são enganadores ; mas nem sempre podem enganar , e por isso ne- nhum homem sesudo pode duvidar da existên- cia dos corpos. Alem de que 5 estes Pyrrhonios, quando pagaváo, e recebiáo, nunca deixaváo de assentar como cousa certa , que dous tos- tões com hum fazião três , e que quatro eráo mais que trcs , e três mais que dous. Nunca duvida vão. que tendo pago , era absolutamente impossiveí ter deixado 'de pagar. Pelo que com igual segurança , e desembaraço se me- neavão em todas as suas acçóes , como faze- mos nós, os que náo temos tantas dúvidas. fug* Meu Doutor , tomáreis vós muitos destes p&f h 92 Recreação Filosófica pelo vosso bairro , que tínheis muitos doudos que curar, e muito lucro que receber da vos- sa Medicina. Sih* Oá PyrrhonioS} Eugénio, náo duvidavão de tudo por falta de juizo ; antes pelo terem he que conheciáo quáo facilmente nos podemos enganar , ainda com os objectos que vemos , e apalpamos. Bug, Mas não obstante o juizo, que vós dizeis tem esses Filósofos, se eu acaso encontrar al- guns delles , os tratarei como se costumáo tra- tar os doudos de doudice parcial : para estes o melhor remédio he náo lhes fallar na maté- ria em que prende a sua doudice , Fiem lhes admittir conversação nesse ponto ; e succede ás vezes que só com isto se curão perfeitamente : assim também farei eu com os Pyrrhonios : co- mo elles governáo a sua vida como os mais; tratão os seus negócios como os outros ; con- versão , estudáo ; e fallando nas mais maté- rias , e questões , são como qualquer dos ou- tros Filósofos ; nem lhes fali arei neste ponto , nem lhes admittirei conversação nelle ^ e cu- rando-os por este modo, vivirei com elles co- mo com os outros homens. 1'eod, Bom remédio por certo , e creio será o uniço para os curar de todo. Silv, Medico sou eu , mas ainda assim me não atreveria a receitallo. T€od, Podieis sem escrúpulo , que lhes náo causaria prejuizo. Mas indo ao ponto princi- pal, já vedes , Eugénio , e ficai firme nisto, que qiiem tivçr o juizo cm seu bigar^ e fai- lar TãYde trigésima nona, 5^5 \àr serio , ha de confessar que muitas cousas se podem saber com toda a certeza , e evi- dencia ; (Proposição 18.) isto he , que se Prop* pode dar scienciá de algumas cousas. Confes- ig, so que ha muito erro , muita ignoraneia , e muita mentira ; mas também ha muitas cousas certissimas , e das quaes não podemos obsolu- tamente duvidar na nossa alma , por mais que affectamos delias. Os primeiros princípios de Geometria , e as noções claras dos objectos , os princípios da Arithmetica , os princípios da Moral 5 são cousas inne^aveis. Que Deos he poderoso , que a virtude hé amável , que o círculo não he triangulo , que quatro e hum são cinco 5 etc. Peio que não he o nosso en- tendimento tão enfermo, que nada Veja clara- mente, sem ser por peneiras (como dizem); nem he tão couxo , que não possa dar hum passo direito. Mas como muitas vezes erra , ainda quando menos o teme, convém ir des- cobrindo as suas enfermidades , para lhes dar opportuno remédio. Bug. O caso he, que todas estas enfermidades são muitas vezes mais nocivas , que as do ' corpo , porque ha erros bem perniciosos • e quem não tiver o entendimento são , cahirá nelles , e padecerá bem graves damnos. Va- mos a este ponto , Teodósio. ^eod. As enfermidades do nosso entendimento são de duas castas : humas são interiores , ou- tras exteriores : das interiores , e próprias da mesma natureza do entendimento , as priíici- paes são duas 3 a saber : Tenacidade , e Pre-- ci- p4 Recreação Filosófica cipitaçao^ ou Leveza. Das exteriores, oúqué' lhe vem de fora , também as principaes são . duas : huma , que procede dos sentidos do cor- po , c]ue enganáo a alma , que se encosta nel- les , e a fazem dar grandes quedas : outra, que nasce da anthoridade dos outros , em quem o entendimento se fia j e por cuidar que vão por caminhos direitos , os segue j maff he enganado, porque levando-o por mil preci- pícios , o fazem dar lastimosas quedas. Con- vém pois tratar de cada huma destas enfermi- dades em particular , para lhes acudirmos cont o remédio. Comecemos por huma , que o faz tropeçar , e cahir muitas vezes ; e de tal mo- do, que o mesmo entendimento o náo perce- be, ainda depois de cahir. §. 11. t>a Enfermidade do nosso entendimento i que chamão Tenacidade, £ug, /^ Uai he essa enfermidade do entendi-*^ \^ mento , que o faz tropeçar tanto ? Teod, He ser tenaz , e demasiadamente fir- me no que huma vez julgou. A Leveza , e a Tenacidade sáo os dous extremos viciosos" de que se deve acauteliar todo o bom juizo ; humas vezes erramos por leves , outras por tenazes j a leveza faz que julguemos precipi- tadamente sem o devido exame j a tenacidade fãz Tarde trigésima nona. 95* faz que desprezemos o exame , por assentar que he cousa indubitável o que huma vez jul- gámos 5 e por nos persuadirmos tacitamente que nos está maldizer sim, depois de termos dito que náo. -i5*/7v. A verdade he , que hum homem ha de ter constância no que diz , e náo parece bem di- zer hoje huma cousa, e á manhã outra. leod. Se isso se faz sem causa grave , não parece bem; porque he sinal de leveza, a qual he defeito : mas fazer essa mudança com cau- sa racionavel , he Docilidade , a qual he hu- ma boa qualidade que faz mais estimável qual- quer entendimento. Porque he próprio do ho- mem sábio o mudar de opinião : o que se de- ve entender , quando se descobre de novo ra- zão maior, que o antigo fundamento. Os ho- mens , que tem de si mesmos grande opinião , são muito sujeitos a este achaque da Tenaci- dade. ^ilv. Quando se ajuntáo a author idade dos aní nos , e dos empregos , e a pública opinião , mais desculpa lhes acho 5 porque sempre he desar , e liça mal a hum grande Mestre , ti* do , e havido por Oráculo , o deixar -se vencer em argumento. Teod, E parece bem , que esse grande Mestre tido, e havido por Oráculo, diga publicamen- • te hum despropósito ? Sili^. isso náo. Teod^ Pois meu amigo , huma opinião falsi , em quanto a sua falsidade estava escondida , ' liáo íkzi» vergonha a ninguém. Todo o ho- mem ç6 Recreação Filosófica mem erra , e os mais elevados Juízos sÍo* oi c[ue mais tem errado ; porém se essa falsidade começa a apparecer , e ma querem mostrar , já he hurii despropósito fechar eu os olhos pa- ra a náo ver, e torcer o rosto, e abraçar-me com o erro antigo , e dizer , mo ha tal , ndo ha tal , sem dar razão, nem admictir razão. _ Pelo que esses que chamais grandes homens , por náo quererem confessar a saa equivoca- çáo , que a ninguém fica mal confessalia ^ mos- trão pubblicamente três defeitos seus ; hum o seu erro , outro a sua teima , e tenacidade em o defender , outro a sua cegueira, náo vendo a razão , que os outros lhe querem mostrar j e talvez já he bem clara aos circunstantes. Silv, Pois então em me contradizendo o que eu digo, devo logo ceder ! Teod^ Náo digo isso, tudo tem seu meio. Eug, Pois que regras hei de seguir , quando il- guem impugnar a minha opinião ? Teod» Eu vo-las ensino. A primeira he náo ata- lhar o outro , quando me quer impugnar ; isto além de ser pouca politica , e má creaçáo , he causa de não se averiguar a verdade. Ora di- zei-me : como posso eu pezar bem o flmda- mçnto de quem me impugna , se eu não o quero ouvir? mal percebo numa palavra, lo- go atiro comigo a suspeitar o que quer di- zer , e começo a dizer ; Nao , Não. Eu te- nho cabido neste defeito muitas vezes , quaA- do tinha mais fogo , menos estudos , e menos prudência : aqui o confesso , e por isso escar- mentado de errar muitas vezes por causa de náito Tarde trigésima noTui, 97 hão attender ao que me qaeriáo dizer , tenho feiío esta reflecçâo : alem disso àevQ attender tio que elle falia com animo indifferente , f meramente politico. O primeiro , a quem ou- vi fazer esta reflecçáo , foi .0 nosso grande Bento de Moura (homem de muito maior merecimento do (^ue vulgarmente se cuida ) : a este ouvi esta judiciosa reflecçáo : muitos^ dizia elle, quando se questiona algum ponto, em quanto eu fallo, não attendem ao que di- go, mas estáo cuidando no que hão de dizer, quando eu acabar de failar j e como náo atten- dêráo ao que eu disse , sanem depois com hum despropósito, que náo ata naJa com o que eu tinha dito. E accrescento , que devemos ouvir com animo indifferente , para podermos dar o pezo , e valor , que essas razoes tem ; e isto como quem entra em dúvida , e náo só por ceremoniâ. Muitos ouvem politicamente j mas estáo com hum surrizo , e abanando hum pou- co a cabeça , como quem diz : Coitadinho , ccmo estás enganado ; isto he hum grande im- pedimento para conhecer o pezo das razoes, que me estáo expondo j porque em quanto náo olhamos dirsitos para huma cousa, náo pode- mos velia bem , nem julgar prudentemente do que ella he em si : ora hum homem que atten- de por força de politica , e está desprezando isso que ouve , rebentando por failar , náo olha direito para o que lhe dizem : e assim náo lhe di o merecimento que essas razoes tem , e fica no que dizia j e por mais que lhe ^ Tom, VII. G pre- 98 Recreação Filosófica preguem , não se afFasta hum só ponto da sua primeira sentença. Silv, A verdade he ,que vós tendes razáo: mas se nos pozermos numa geral condescendência , lá vai o espirito da disputa , em que os Por- tuguezes excedem as demais nações da Eu- ropa. Teoa. Amigo Silvio , haveis de distinguir es- pirito de disputa , e espirito de teima ; o dis- putar he louvável ; o teimar he vicio ; dispu- tar he dizer , e dar razão , ouvir , e respon- der a ponto : isto he huma cousa louvável , e precisa para averiguar a verdade ; mas teimar , he dizer não , porque mo , ou também dar por razáo do que disse , essa mesma razáo, que já me tem desfeito , e destruido. Nos Por- tuguezes ha grande fogo , grande viveza de en- genho 5 e promptidáo , que sáo cousas mui próprias para humà boa disputa ; mas em gran- de parte delles ha muita teima; e quanto mais teimáo , melhor lhes parece que disputáo , o que he erro. Bug, Ora donde procede esta tenacidade : di- zei-me as suas raízes , se as tendes descuber- to, para a desarreigar de mim totalmente. Teod. Primeiramente nasce do que já disse , de estarmos persuadidos , que nos está mal mu- dar de opiniáo , e deixar-nos convencer de ou- trem. Isto he hum erro muito grande , c pre- judicial 5 e muito commum , especialmente nos homens que se reputáo grandes : daqui procede , que entrando em qualquer disputa , cn- j Tarâe trigésima rMa. 99 éhtrão com este animo : Eu hei de fícâr vi- ctorioso 5 seja como for : hei de ficar dizendo no lim isto mesmo que agora digo no princi- pio. Quasi todos entráo com este dictam.e ; e sendo assim , forçosamente ha de haver tena- cidade ; porque como eu hei de no fim ficar com a minha opinião , não tenho remédio se-^ não a torto , e a direito ir sempre dizendo o mesmo , e agarrar-mè ao que disse , venha o que vi6r em contrario. £í/^. Ora isso he muito máo systema. TcctL Por tanto , Eugénio : Quem entra em disputa, para evitar o defeito da Teíiacjdade^ utilmente usará das seguintes máximas : Pri- meira : Póàc ser que eu esteja enganado. Se- gunda : Não me está mal mudar de opinião ^ quando achar outra , que mais se chegue d verdade. Terceira : Devo abraçar a verda- de, ainda que venha da bocca de hum idio* ta , ou inimigo ( Proposição 19.). Ponde lá Propõ- es te dieta me no vosso memorial. I9. £ug. ]i o hia fazendo. '2eod. Com estas máximas he mui facil dispu- tar-se bem , e conhecer-se a verdade no fim da disputa , sem haver teima , nem tenacida- de. Em eu me persuadindo de que mui facil- mente pode ser que erre , já olho com outra attençáo para o que me diz o conrrafio, e pos^ so dar todo o valor , que merecem as suas i-azóes j mas de ordinário, quando eu assento firmemente que digo bem , só cuido no que hei de responder ; comiO quem diz : não há que tratar no que hei de segqir j o caso está G ii eo- IDO "Recreação Filosófica como me hei de defender de quem me per- turba. Nào, meu Eugénio; entrai sempre em disputa com animo indifferente , eprompto pa- ra seguir 5 ou para mudar da vossa primeira opinião 5 desejando unicamente conhecer a ver- dade. SiW, Ainda assim , eu não quizera «^ue já mais me convencessem em disputa alguma. leod. Também eu o não quero , porque nío quero ter erro ; mas se o tiver , e me conven- cerem 5 gostarei de me dar por convencido, que nisso tenho o lucro de conhecer a verda- de. E se me hei de levar da estimação mun- dana , por ser dócil , e sincero e entendido ganho a gloria que perdi por inadvertido. Mais gloria ainda para com os sábios ; ( que he quem no mundo nos pode tentar com a sua estimação ) mais gloria , digo , conseguio ain- da para com o mundo Santo Agostinho com o seu livro das Retratações , em que st des- diz de muitos erros , do que com muitos ou- tros escritos cheios de muita doutpina , e de grandes agudezas do seu pasmoso engenho. E olhando para os nossos dias , contar-vos-hei o que succedeo a hum homem de muito juizo. Tinha dado hum conselho a hum seu Prínci- pe ; e succedeo , que no voto que dera , se descobrirão muitos inconvenientes ; conhecen-» do-os o Príncipe, os lançou em rosto a quem lhe dera o conselho : elle porém tanto que os vio , promptamente mudou de opinião , e vol- tou o voto para a parte contraria ; persuadin- do o Príncipe com todo o ardor , que dalli em Tarde trigésima nona* loi em diante nunca lhe pedisse , nem se fiasse no seu voto só , principalmente nas matérias em que não podia a longa experiência ser fia- dora do acerto. Ficou o Príncipe summamen- te gostoso da docilidade , e com a prompra mudança do voto , á vista dos inconvenientes : e ganhou para com elle muito maior credito, e opinião, do que perdera com o menos acer- to. Não ha cousa que mais bem pareça , do que estar hum homem grande persuadido de huma opinião , e ouvir da bccca de hum me- nino huma palavra talvez dita por acaso ; e então parar, pezalla , fazer-lhe (como dizem) boa anatomia , e depois perder o amor á sua opinião 5 e dar com tudo por terra , e abra- çar-se com o que aprendera da boca do meni- no. Isto só o faz hum homem , que he ver- dadeiramente grande , que ama sinceramente a verdade , e não se ama a si cegamente. Cre- de , am.igos , que ser hum homem grande , he ter huma alma superior ás paixões ; e quem he escravo delias , especialmente do seu amor próprio , he bem pequeno , e faz ás vezes pa- pel bem ridículo ; porque os circumsiantes , que estão livres de paixão , olhão para a ra- zão do contrario, e olhão para a delle, e fa- zem ás vezes bem differente conceito do que elle faz ; e como o vem tão pago de si mes- mo, e da sua opinião, p6em-se a rir, e vem a ser assumpto de riso . quando o pudera ser de louvor , se examinando atentamente o que lhe dizem da parte contraria , cortasse por si em obsequio da verdade 3 ou ao menos mos- ira» JC2 Recreação Vilosofica tfa-sc, que se não cedia, não era por timbre, mâs por achar alli maior força de razão , dan- do a conhecer hum animo prompto a mixJar a toda a hora , que da outra parte conhecesse pezo maior, que fizesse inclinar a balança do juizo. SWv. Eu não posso negar, Teodósio, que ten- des razão : só digo que não haveis persuadir isso a quem estiver , como eu , criado com outras máximas. ?Voí/. Contentar-me-heí com o persuadir a Eu- génio , que ainda não tem essas máximas er- radas , ou preocupações falsas ; e como a sua instrucção he que me obriga a estes discursos , contento-me , se lhe forem úteis a elle ; e se clle se deixar persuadir , consigo todo o meu fim. Mas he magoa ver, que nenhum homem se envergonha de confessar que está doente, c chamar o Medico ; e fica mui contente se elle o livra da queixa que padscia ; e ha de hum homem , que tem hum erro na cabeça , ( que he enfermidade da alma ) envergonhar- se de confessar , que está enfermo , e ter pe-» na que o cureu ? que ridícula cousa seria ir hum homem bem vestido , tropsssar , c cahir na lama , e não querer que o ajudem a levan- tar , e alimpar os seus vestidos das manchas \ A vergonha deve ser de cahir; mas depois que todo o mundo sabe que cahe , não he vergc^ nha levantar-me , nem limpr-me. O mesmo digo do erro : conheço que cahi , conheço que errei , devo logo logo levantar-me , e ficar muito agradecido aquém me ajudou a erguer, e Tarde trigésima nona. 103 c purificar-me daquella mancha. Eugénio, to- mai bem sentido nisto , que este vicio accom- mette a todos ; e todos tem este achaque no seu entendimento 5 e he bem feliz o que delie estiver livre, ou menos opprimido. Eug^ Podeis consola r-vos , que me acho bem persuadido do que dissestes contra a tenacida- de ; e farei rauito por me preservar deste vi- cio do entendimento , supposto ser táo noci- vo, e me dizerdes que he táo geral. Teoà. Vamos agora a tratar de outro achaque encontrado , que he a Leveza , e nímia preci- fitaião no julgar : e somos táo miseráveis, que ás vezes padecem. os ambas as enfermida- des juntas , sendo mui fáceis em dar a senten- ça sem o devido exame ; e tenazes em estar por ella , dizendo como Pilatos quoà scripsiy scripsi , ainda que erremos como elle errou , e conheçamos como elle o erro. Quem assim he , Eugénio , ( deixai-me explicar assim ) tem o entendimento aleijado de ambas as pernas f porque coxea, e cahe para partes oppostas. §, 111. ic4 "Kecreacco Filosofíea §. ni, JDa Precipitação , ^ue he outra enfermidade do i entendimento: e^da sua primeira raizy 1 que são as paixoe-s, í JEug, T7 U esrou persuadido, amigo Teodósio, X_J que entre todas as materais , que ter> dss tratado , depois que conversamos familiar- mente , nenhuma ha táo importante como esta. Silv, Ainda vós não vistes toda a sua impor- tância , porque ainda não' ouvistes as reflecçóes que sobre ellas se farão. Teod. Armai-vos, Eugénio, de paciência, que hei de explicar-me a meu modo ; porém crede que nem numa palavra vos darei , que me pa- reça inútil ao fim da vossa instrucçáo. Eug. Tenho paciência ; e para vos ouvir, me náo he precisa ; pojs com summo gosto recc- bo a vossa instrucção. Teod, O nosso entendimento he velocíssimo no julgar, e naturalmente impaciente de demora, e suspensão , e desta summa velocidade , e impaciência grande procede a precipitarão dos nossos jjizosi porque olhando para o objecto, ainda que nelle não vejamos o predicado de que se trata , se vemos qualquer indicio de o ter, logo nos sentimos propensos a julgar que o tal predicado nelle se acha : de sorte que he preciso fazei forja ao entendimento para o sus^ Tarde trigésima viona» 105: suspender. A pimeira raiz destes males , que he a mais fértil , e abrange a todos os ho- mens 5 são as paixões : aqui ou mais , ou me- nos todos tropeção. Quando hum juizo lison» gea a nossa paixão , seja qual for, sentimos huma incrível força para o formar, e qualquer indicio nos parece muito mais infaliivel , do que na verdade he. Ponhamos exemplos práti- cos. Os louvores externos são hum indicio do interior conceito , e estimação , que fazemos da pessoa , a quem louvamos ; e os obséquios exteriores indicio do rendimento do animo , e desejo de o servir. Quando estamos sem pai- xão 5 isto he 5 quando olhamos de fora , e is- to nos não pertence , facilmente conhecemos a falsidade destes indícios ; e que muitas vezes se beija a mão , que se deseja ver cortada: porém quando os louvores , e obséquios são a nosso respeito , custa muito a ter mão no jui- zo 5 para não crer que são sinceros , e nasci- dos de hum coração benévolo. S'úv, Quem tem juizo não crê nessas cousas, e de tudo duvida, e com razão. *IeQÁ, Eu digo o mesmo de quem tem o juizo livre, e desembaraçado ; mas quando os lou- vores , e obséquios são a nosso rçspeito , são raríssimos os que tem o juizo livre , e desem- baraçado , e que não se sentem arrastar para fazer conceito de que são verdadeiros os affe^ ctos do animo que elles indicão: alias qualhe a razão , por que todos naturalmente se ale- grão , quando os louvâo , e porque se sentem , sjuando se lhes negão estes louvares , ou quan- do IO 6 Recreação Filosófica, do SC impugnáo ? Apenas se conra de hum , ou ourro homem grande q-ue saibáo desprezar os louvores. Eug. Ha poucos dias , que encontrei n um li- vro hum successo , que comprova o vosso pen- samento. Qui2 hum eloquente Orador recitar na presença de certo Emperador do Oriente ( não me lembro do nome ) quiz recitar o seu Panegyrico que tinha composto com delicade- za de estylo , e bom gosto de Eloquência ; e o Emperador lho não consentio , e lhe disse : Fazei antes o Panegyrico dos Capitães anti- gos 5 a fim de que as suas façanhas nos dem liçóes a nós ; por quanto o fazer o elogio de hum homem vivo , he fazer zombaria delle ; principalmente se he Príncipe; porque não he tanto louvallo , porque tenha obrado bem , he lisongeallo para conseguir algum premio. Quan- to a mim , eu digo vos , que em quanto for vivo quero ser amado ; e louvado somente de- pois de morto. 7'eod. Ora quantos exemplos me contais vós destes ? cada qual , Silvio , /vê bem que os outros miseravelmente se deixão enganar dos elogios , e obséquios ; porém se são a nosso respeito ou de pessoas que muito amamos , em fim se ha paixão , logo cremos que entre mui- tos falsos louvores , aquelles são sinceros. SVv* A fallar a verdade isso assim he. Teod. Quereis ver outro principio generalíssi- mo da precipitação do nosso juizo, procedida da paixão? ora reparai na variedade que ha de opiniões sobre qualquer matéria, que náo seja cas Tarde trigésima nona» 107 das notórias , e evidentes ; mas observareis que sempre, ou quasi sempre, quando ha con- tenda 5 cada qual julga pertinazmente a seu fa- vor ; de sorte que nascendo a variedade de opiniões pane da limitação do nosso juizo , e parte da escuridade da matéria , parece que -tão fácil seria julgar eu a favor de mim , co- mo contra mim : pois ser ou náo ser favorá- vel aos meus interesses huma opinião , náo faz nada para ser verdadeira ou falsa. Mas diffi- cuitosamente se achará que disputem duas pes- soas entre si , tendo cada qual por verdadeira a opinião, que lhe he menos favorável. Siv. Eu peJo menos nunca tal encontrei. T^od. Aqui se vè logo qvie a paixão própria de cada hum faz precipitar a sentença do nosso entendimento , impellindo-nos a que demos por certo, e infallivel qualquer indicio da verdade que desejamos. De hoje por diante ireis vos , Eugénio 5 reparando no que encontrareis , e achareis mil confirmações do que digo, Eug. Neste pouco tempo tenho feito já reflec- ção no que mais vezes me tem acontecido, e acho que tendes muita razão. Teod. Convém agora tirar por consequência dous dictamcs práticos , e precisos para julgar bem em qualquer matéria. Primeiro : Toda a vez que o juizo que fcrmamos he conforme d nos- sa paixão , cu interesses , devemos prudente- mente duvidar delle , ao menos em parte. ( Proposição 20. ) . Segundo : Toda a vez Prop. que o juizo , que formamos , he contrario d 20, nossa paixão , ou interesses ^ devemos pruden-^ te- io8 Hecreaçao Filosófica Prop. te dalh por verdadeiro (Proposição 21.). 4-2. Fazei lá a vossa memoria. Ponhamos exem- plos , e ciemos razáo dos dictames. Olho eu para a acção de hum homem , e julgo que he de hum merecimento mui distincco ; se for meu amigo íntimo, devo prudentemente crer, que não he tanto o merecimento, como se me representa ; como quem faz rebate , e descon- to por causa da paixão. Darei a razão disto num símile, com que me explico. Quem vai por huma ladeira abai. (i) Recrèaç. Filosofic. Tòiii. Ill', .pàg. 32. ( 2 ) ToiTí. rir. pag.' 249'. Õ ) Tom. YI. pag. 4^. 11 6 Recreação Filosófica ^ily. A verdade he , que isso lá faz suâ força- ao entendimento. Agora crer eu que mil vezes olhei para hum objecto , e que iodas as mil vezes me enganei com elle ! isto lá custa a crer. 'Teod. Mas por mais que vos tenha custado a crer 5 ultimamente não o tendes podido negar em muitas cousas. Silv, Assim he. ^eod. E agora depois de verdes praticamente que tendo estudos , e perspicácia natural , e boa applicaçáo, ainda assim olhando para hum objecto dez mil vezes , dez mil vezes vos en- ganastes 5 já se vos náo ha de fazer tão difíi- cil o crer isto mesmo cm outros casos. Silv, Por certo que náo ; pois náo ha cousa que mais nos persuada , que temos falta de vista 5 que acharmo-nos enganados pelos olhos . em muitos casos ; e eu comparo os enganos cpdo nosso entendimento aos dos olhos. ^eod. A razão disto he ; porque olhar mil ve- zes para hum objecto sem rehexáo , nem cu- riosidade de o examinar , he o mesmo quj olhar hnma só vez , e de passagem \ por íssd náo nos devemos admirar , que olhando mil vezes 5 nunca vissemos esse engano , que no3 fazcxii conhecer r.o fim da vida. Agora se nÓ5 olhássemos muitas vezes , e de cada huma sempre com dúvida se nos enganávamos, e examinássemos o objecto por ditterentes faces, como firmando bem a vista do entendimento, então desse modo náo era mui facii escapar- nôs ô engano todas essas veze*s j posto que bem Tarde trigésima nona, 117 bem podia absolutamente ser , por não ter o nosso entendimento o soccorro preciso. Daqui vem , que hum rústico , por mais que duvide se o ar péza , ou se o fogo he leve , em quan- to o náo soccorrem com alguma explicação, ou doutrina , sempre ha de ir julgando , è crendo que nenhum desses corpos he pezado. Pelo que convém lomar sentido neste dictame prático : iV?o devemos dar huma cousa por cer- ta y fundados em que sempre a tivemos por verdadeira : convém examinalla do propósito (Proposisáo 2^.). Prop, JEug, Descançai^ que me acautellarei daqui em 25. oiante. TAR. liS Recreação lilosofica TARDE XXXX. De outras Enormidades do entendimento (jue lhe vem de fóra , onde se trata da Arte Crítica. §. I. I>M PreoccHpaçoes qne nascem dos Sen- tidos. Tçod. *V T" Inde , Silvio , qu9 hoje tendes de X/ impacientar-vos muito j porcjiie náo ^ somente tomo o officio de Medi- co 5 mas o de Cirurgião , e tenho que fazer varias anatomias , e incisões , que vos pode- rão molestar, por vos tocarem talvez em par- tes mui sensíveis , e delicadas, Silv. Já estou assas costumada a isso. Masque anathomias são estas ? deixemos metáforas : que matéria preparais hoie para a conversação ? Teod, Descobrir a origem das enfermidades , que ao nosso entendimento vem de fora j e são duas principalmente as suas raízes; huma , que está no nosso corpo ; outra fora dellc. As en- fermidades , que hontem examinámos , são próprias do nosso animo; o qualpecca, ecahe ora por tenaz , ora por ligeiro , e precipitado , Tarde quadragésima. 119 impellido pelas próprias paixões : hoje tratare- mos daqueiles achaques que nascem náo do entendimento , mas Ò.0 corpo , isto he , dos próprios sentidos ; e também dos que tem sua origem nos outros homens. E quanto aos pró- prios sentidos 5 sáo elies os que mais nos en- ganão, e fazem crer mil erros, e com grande firmeza ; que isto he o peior. . Eug. Agora . fico eu admirado ; e não sei de quem me fie, pois até os meus próprios olhos dizeis vós que me enganáo , e que me enga- não muito. Sílv. Não davideis , Eugénio , do que Teodó- sio vos diz j por quanto he certo , que muitas vezes não reparamos bem nas mesmas cousas que nos parece que vemos , e que ouvimos : outras vezes estamos muito distantes , e não alcança lá a nossa vista, e facilmente nos pa- rece que he homem , o que na realidade he hum bruto , que anda a pastar pelos campos. Naquillo que nos persuadem os nossos olhos estando sãos , e em boa distancia , e fazendo nós reflexão , nisso não pôde haver engano; porém no que vemos precipicaJamente, ecom pouca consideração , ou quando os sentidos es- tão enfermos , nisso he que pôde havôr enga- no. Vós tendes hum criado , que quando eu o curei da Itericia , me dizia que tudo quan- to via lhe parecia amareilo : eis- aqui hum ca- so, em que os próprios olhos sempre mentem. Teoí/. Não somente nesses casos costumâo os nossos sentidos enganar-nos. A's vezes por mais reflexões que façamos, ainda estando os sen- ti- I2í!) Recreação Filosófica tidos sáos, e em roda a -sua perfeição naruraí,^ se a externa advertência nos náo faz suspen- der ojuizo , cahimos miseravelmente em er- ros. Com exemplos vos convencerei. Olhai bem para o Ceo n'uma clara noite , reflecti bem 5 e vereis que o Ceo parece aznl , e que tem ÍT^ura de abobeda ; e tudo he engano , como já vos mostrei ( l ) . Vereis que a Lua ^ he brilhante , e mais luminosa que as estrel- .^'ílasj que he maior que ellas , e pouco menor ?ue o Sol ; e tudo já vistes que era engano 2 ) . Vereis que Vénus he redonda , ou es- trellada ; e he engano, porque tem a mesma íigura qua a Lua ( O • Vereis que nas con- rjfinçóes he muito maior, e se aiigmenta a sua . luz ; . e he engano , pois então está mais des- falcada 5 semelhante a Lua no terceiro dia de- - .(:pois de ser nova , como já vos mostrei evi- ' .'denteimenie (4). Eng. Assim he, bem me lembro, e da razão, .: porque isso era, e devia ser assim. Tecd. Ainda mais. Quem se não ha de persua- de dir, a governar-se pelos sentidos, que o Sol he r.'/inuito maior que qualquer Estrella ? e he cou- -egsa absolutamente incerta , e mui facilmente - Sírio , ou o que chamáo Cão grande , será maior que o Sol. Qiiem se não ha de persua- f;;dir, se der credito aos seus olhoa, que o Sol 3^ -o Lua , ( I ) Recreação Filosófica Tom. VI. pag. j, (à) Tom. VI. pag. 42. loj. (O Tom. VI. p.ag. IJQ. (4) Tom. VI. pag. ijçp. Tarde quadragésima, 121 Liiâ 5 e estrellas estão engastadas nessa abobe- da azul , que nos cobre por toda a parte ? e he hum fortíssimo engano. SWv. Ahi nasce o engano da distancia grandís- sima em que estáo esses objectos. TqoL E quem me ha de a mim determinar qual he a distancia certa , na qual se estiver o objecto, me possa eu fiar dos meus olhos? Para hum espirito escrupuloso sempre aqui fi- ca esta dúvida. Mas vamos adiante. Bem per- to de mim está qualquer vidro polido , e ve- jo-o muito bem , e apalpo-o , para que o sen-- tido do tacto confirme o da vista , e julgo que he mui liso , e com tudo isso he enga- no 5 pois as moscas, e outros insectos achão muitas prominencias , e cavidades , onde se segurão, e prendem , tendo os pés para cima sem eahirem : e além disso sei de certo , que os pós , com que se pule o vidro , forçosa- mente hão de fazer , e deixar nelle infinitos regos. Logo já me posso enganar no que vejo com meus olhos , e palpo com minhas mãos ; ainda estando os sentidos sãcs . e perfeitos , e os objectos perto de mim. Mais : Bem perto de mim estão os grãos de arca , e vejo que são redondos ; e he engano , como conheço , se usar de microscópio ; bem perto de mim estáo as vossas mãos , que me parecem mAii lisas; evepdo-as com qualquer Unte convexa ^ pondo-as no seu foco , se vem mais ásperas, e grosseiras que as do mais rústico cavador. .i5'í7v. Já me fizestes rir com isso huma tarde. Tçod, Bem perto tenho eu aquelle copo de agu^ 121 Recreação Filosófica da chuvâ , e vós vedes que está claríssima , e cjue náo tem nada j e Eugénio lhe vio comi- go esta manha mais de dez mil bichinhos a nadar, que os observámos com o microscópio. Bem perto estamos das embarcações ancora- das 5 quando passeamos pelo rio no escaler ; e indo elie á vela, e seguido, ninguém ha de duvidar , se der credito aos olhos , que os Na- vios desmastreados correm para baixo ; quan- do isso na realidade he engano , e impossivel , pois nós somos os que vamos para cima. Em ím, seguindo o systema Copernicano , (,que hoje todos confessáo ser possivel , e náO: ter nada contra a experiência , como já vos mos- trei ) , quem havia deixar de persuadir-se , que o Sol se movia , e a Terra estava parada ; e tudo isso nesse systema he falso, pois a Terra he que se move como hum grande navio , sem que o percebâo os que nelle desde o nascimen- to sempre navegarão. Não digo que succede assim , pois nesse ponto náo fallo agora : digo que se fosse assim , como todos hoje concor- dáo que pôde ser , todos , fiando-se dos senti- dos 5 e achando-os conformes huns com ou- tros , e vendo que a experiência de todos os demais homens confirmava a nossa , creriáo, que a Terra estava quieta , e com tudo isso todos se enganariáo. Bug. Bem aviados estamos , e quem se ha de . livrar de tantos enganos ? Teod. Dos outros sentidos ainda com mais ra- zão podemos desconfiar , porque os olhos são os que mais credito çostumáo ter. Que enga^ nos Tarde quadragésima, 123 nos náo temos pelos ouvidos ? quantos a cada passo se enganáo com o Ecco ? ^ug' Os homens com os Eccos são com»o os bugios com os espelhos, os quaes se persua- dem qrie lhes fica o objecto daquelia parte, donde lhes vem o som, ou os raios da vista. Teod. Ahi tendes vos mais outro argumento do engano dos olhos, Ora deste m.odo he que po- demos ejí^iiinar a persuasão dos olhos , os quaes nos bugios náo sáo mais defíeituosos que em nós : e se elles se enganáo mais , he porque em nós a razão , e experiência nos desenga- na ; mas quanto á persuasão dos olhos , nos bugios, e em nós he a mesma razão i e igual em ambos o engano que elles nos causarião, se a experiência, e a razão nos não acautellassem. £ug. Eu estou pasmado de tanta falsidade no que mais credito m.e merecia até aqui. Teod. Vamos aos demais sentidos. O olíato quanto nos engana , sendo o mesmo corpo cheiroso a hum , a outro fétido i O mesmo he do paladar: muitas vezes hum homem julga suave , e bom hum manjar , que outro julga muiro mal temperado. Todos se queixão dos gui- zados 3 e dos mesmos sentidos nascem esses diversos eíFeitos, e engana-se quemattribue is- so aos objectos. Vamos ao tacto , que esse he o em que muitos se fião mais. Silv. Pelo menos S. Thomé para eile appgila- va nas suas dúvidas , pois queria ver , e apal- par. Teod. Pois também o tacto nos engana dez . mil vezes. Com a vossa mesma mão estando fria. 124 BecreaçoG Filosofe a fria 5 se a metteis em agija hum pouco tépi- da , julgareis que está q-ienre ; e se metterJes a mão mais abaixo , que entre o braço na agua ; certamente vos parecerá fria. Bug. Essa he a qnestáo que tinha al^um dia com os meus criados y quando me preparavão a agna para o banho : elles examinaváo-na com a máo , e protestavão que estava quente ; eu hia a metter-me, e sempre a achava fria, e me arrepiava rodo. Teod. E não dais na causa ? Eug. Já vós ma explicastes noutra occasiáo, dizendo , que como a pelle do braço está sem- pre defendida com o vestido , conserva calor maior que o da agua tépida ^ e por isso ha de âchalia fria : e como a máo desse braço , por- que anda patente ao ar , costuma andar fria , c mais fria que a agua tépida , por isso for- ' çosamente a ha de achar quente j e daqui vem a origem do erro. Teod. Ora , Silvio , hide-vos fiar do vosso ta- cto, edizei-me se haveis de crer, que a agua está fria , e quente no mesmo tempo ; ou di- zei me qual dos dous tactos mente, o da vos- sa máo , ou o do vosso braço ? Qualquer del- le5 q le minta , nos prova o que vamos dizen- do. Por onde, Eugénio , tomai este Dictame importante: Devemos fazer grande reflexão, para nos não enganarmos com os nossos sen- tidos , ainda estando sãos , e bem proporcio- nados , e em distancia competente t Proposi- Prop. çáo 24. ) . Donde se vè , que não approvo a 24. regra geral que dá Fortunato de Brixia na sua Tarde quadragésima» ii^ Arte Critica ( i ) , e o Grande Vernei ( 2 ) , e outros : Qiie mão quanto os sentidos sãos , € bem dispostos ímijormemente nos persuadem^ he verdade j porque se falsifica com os exem- los cjue já aileguei ; onde náo ha milagre al- gum, nem cousa cjne inverta as leis da natu- reza. Efaliando absolutamente, ainda hemais falsa, olhando para o que succede noMysterio da Sagrada Eucharistia ; porque rodos os senti- dos sáos 5 e bem dispostos , unilormemente nos persuadem que alíi está pão , e vinho. ; e enganáo-nos , porque a Fé nos ensina , que náo está páo, nem^vinho, mas sim o Corpo, e Sangue de Nosso Senhor jLSU Christo. Silv. Pois se isso he assim , como me tendes quebrado a cabeça com as vossas experiências fysicas 5 sendo que todas ellas sáo testificadas pelos sentidos? $. II. CO Num. 3jS. (2^ In Logic. pag. mihi 200. 120 Recreação Filosófica §. TI. Dos enganos que podem occasionar as ex- periências da Fysica. V Em a tempo a clúvlcla , e ístimo-a, para vos dar a resposta. Nem todas as experiências fysicas merecem credito ; e mui- to menos aqueila segurança, que o entendimento^ quando está desejoso da verdade , deve procurar nos seus juízos. Contãr-vos-hei huma historia, que vos ha de fazer rir 5 mas he verdadeira. Certo Filosofo ( hum dos grandes homens entre osPe- ripateticcs) eatrou em dúvida se os corpos de diversa gravidade especifica cahiáo com igual velocidade ; e para se tirar das dúvidas , foi tentar a experiência. Louvo a resolução; mas vede o grande apparato , e exacçáo da expe- riência. Pega dos primeiros corpos que encon- trou á máo 5 que eráo huma pena , e hiima côdea de páo , chega á janelia , que não era mi>ito alta, e larga tudo a hum tempo, e vêT ( diz elle ) que tudo chega ao cháo também a hum tempo : e sem mais exame volta para dentro , senta-se na cadeira , e escreve coma Theorema mathematicamenre demonstrado ,- que todos os corpos , ainda que fossem de ntú dií-ferente gravidade especifica , desciáo com igual velocidade. Ora supponho que vosr lembraris das orperiencias que vistes em con- tra- Tarde quadragésima, iij trario , e que bem credes que isto hoje he hu~ ma como eregia em matéria fysica. Eíig. Bem me lembra de que o contrario se assentou entre nós, e que a experiência bem exacta o confirmava. Sily. E temos experiência contra experiência? Teod, He cousa que náo pode ser , por quanto a verdade he huma. Silvio , para que as ex- periências nos náo enganem , convém que nel- las concorráo quatro circunstancias': primeira da pessoa , segunda do modo , terceira do tem- po 5 quarta da intem^ão , com qu? se fazem: por qualquer destas circunstancias nos pôde vir o erro , e ficar authorisado com as experiên- cias. Quanto á primeira circunstancia : A ex- periência deve ser feita por pessoa intelligen- te na matéria ; as pessoas que o náo forem , náo podem reparar , e acautellar mil perigos, por onde pôde entrar o engano. Hum homem ignorante , ou ainda que grande letrado n'ou- rra matéria , novato nesta , e sem uso , nem reflexão, nem estudo, que casta de experiên- cias pôde fazer , senão tiver muira cautela, e advertência ? Além disso : Devemos na ex- periência usar de instrítmentos exactos , e não genéricos^ e impróprios , porque muitas vezes dos instrumentos vai o erro. Quantos erros não lemos tido na Geografia , que se tem emen- dado, e vão cada dia emendando ? e a maior parte delles nasceo dos instrumentos náo serem algum dia tão exactos como agora são, A ter- ceira circunstancia he do tempo, porque a ex- ferknçia fysica para nos dar segurança , de- ve 128 RecreãÇfò Filosófica ve ser feita com vagar , e repetida muitas vezes ; huma vez só , podia ser acaso ; agora sendo muitas vezes repetida a experiência , e ver que sempre succede o mesmo etfeito , e principalmente sendo por diversos homens in- teliigentes , e sempre com a devida atienção^ e cautela , já então isto dá grande fundamen- to para se acreditar como verdadeira. Silw Tudo assim será ; mas a intensáo, que he a ultima circunstancia que pediz , essa a reputo por escusada : seja qual for a minha intensáo , sempre a experiência ha de mostrar a verdade. Teod. Enganais-vos , porque a intenção cega muito, e faz ver o que náo ha; terrivel cou- sa he ir eu buscar experiência para provar o que quero que acreditem , porque ja o juizo náo entra livre ; e segundo o adagio , ctndava o cego que via, e cuidava o que queria ^ na- da ha mais fácil de ser enganacío , que o nosso entendimento , quando elle já está propensa a crer huma cousa. Quem já vai a cahir , com o mais leve impulso se precipita. Por isso ho- mens de juizo disseráo despropósitos , v. g. que no Céo se podiáo ler os Decretos da for- tuna , usando dos caracteres das estrellas i) , e lhes parecia que lião lá no Ceo todos quan- tos factos a imaginação lhes queria lá pintar. Mas não vamos a este erro tão esiravagante : vamos ás- hypotheses de que todo a mundo se vio Cl) Veja se a Origenes , Plotino , Reuclino ^ Pico MirandoJanQy Enriqne Cornelio Agripa , Buas- Vignerio, e Athanazio Kirker. TàrJe quadragésima. ílçf Viò cheio no século passado. Todas quantàS Kypoiheses se armaváo , achavão presidio nas iexperiencías fysicas : Yq\o o grande Newton , e mostrou que tudo era falso ; e escava o er- ro em que a preoccupaçao fazia de tal sorte ver , e ápplicar as experiências , que provaVão o que querião. Eis-aqui pois como por dous modos nos pôde enganar , a antecipada opi- nião. Hum 5 porque náo deixa o juizo livre para ver bem o que succéde , examinando co- mo deve ser , todas as circunstancias , a ver* se se erigaha 3 outro , porque infere o que não deve inferir : de sorte que de ordinário o experimsnco Ke verdadeiro ; mas a consequên- cia , que delie tiramos , náo he bem tirada. EUg. Ponde-nle alguns exemplos , que estou nessa posse. Teod. Fez certo Filósofo , ou Químico (i") hu- ma experiência , em que determinada mistura de limalha dé ferro com enxofre mettída de- baixo do cháo 5 passado tempo se inflamma- va 5 e a fazia tremer : até aqui he verdade, inferem daqui fnuitos : logo todas as vezes que a terra treme , procede de semelhantes mi- nerac,5 que se misturáo ; e esta corisequencia fíáo he boa , porque muitas outras cousas po- dem concorrer para fazer tremer a terra. Po- ílhamos ouiro exemplo, que acciara o poríto. Tem hum Peripatetico assentado neste ponto (que he quasi dogma nas suas escolas )j íjuc a Natureza tem horror ao vdçuOy e faz qua- Tom. VII. I tro ^ í ) leirier}'. V X 3 o Recreação Tilosofica tro experiências sobre a subida da agua na se- ringa 5 e bombas , erc. e sem a menor dúvida crê , que ha no mundo este horror do vácuo , ç qiic as experiências quoridianas o persuadem., Nas experiências náa ha dúvida ; mas o erro esi:í na consequência que delias se tira , de- vendo-se attribuir^ como já vos mostrei , ao pezo do ar, isso que se atiribue ao imiagínado horror do vácuo. As experiências fysicas, arni- ca luigenio 5 prováp bem huma píoposiçáo, quando aqueiles effeitos não podem proceder de ojrra causa senão da que se aponta; o que se conhece facilmente, quando maduramente se attende a todas as circunstancias, com que se fazem as experiências. Silv. Na verdade confesso, que tocas essas re- flexões hão de ser de sum^ma importância pa- ra a piáríca , mas acho-as hum pouco imperti- nentes : quem se puzer a seguir todos esses dictames , muho pouco ha de caminhar para diante, ficando suspenso a cada passo. Teoà. Para não tropeçar , e niio cahir , sempre foi conselho prudente , e preciso caminhsr de vaí^ár, e olhando com reflexão para todo-j os Jados. Eu não ensino a Eugénio a correr no caminho das sciencias , quero cnsinalío a não tropeçar : Qzi^ he o meu intento. ^ug, isso he que eu desejo : reduzi-me pois tudo isso a algurn dictame , que conserve na memoria , para a seu :empo observar nas ex- periências fysicas. T^à. Observai este dictame : As experiências jysicas para merecerem credito , aevem ser I Tarde quadragésima* Í31 ' " feitas por pessoas intelligentes , c com instrua fijcntos próprios ^ e com animo desinteressado , € devem ser repetidas (Proposição 25.); de Prop* to-ias as clausulas deste dictame vos dei já a 25* razão. Se o desprezardes , muitas vezes o erro vos enganará , vindo cuberto , e authorizado com a capa formosa das experiências íysicas; como tem succedido a muitos , cujo entendi- mento tem o achaque de crer de leve ; e em ouvindo o nome de experiência fysica , logo abaixáo a cabeça , e dão as máos , e crem o* que se lhes diz como cousa indubitável. Isto he achaq-iie , meu Eugénio : usai deste remé- dio para vos livrar dellé. Eug. Como nada estimo mais que a verdade, far^i muito por me acautellar dessas enfermi- dades de entendimento , que me fazem trocar a verdade pelo erro. §. iir. t>o cUtro achaque do Entendimento , que he crer em qualquer authoridade ; e primei- ramente da authoridade do povo. Teod. /"^ Urada , ou acautellada está enfermí- V> dade do Entendimento , convém li= vrallo de outra náo m^enos danosa , que he a nimia credulidade a qualquer authoridade. Siív. Os ânimos de indoie dócil , e s-incera são mais propensos a este achaque. Ih Teod^ 132 Rccreaçíío Filosófica Tcod. Convém acautdlar a Eugénio , por essa mcsmi razão j e levando a matéria methodi- camente , devemos estabelecer dous princí- pios 5 dos qiiaes- S2 deriva como consequência ludo o q-ie nesta matéria hei de dizer. Como a authoriJade de qualquer pessoa se funda eu que nem essa pessoa esteja enganada em si, nem nos queira enganar a nós , devemos es- tabelecer estas duas máximas fundamenraes. I Não merece credito o dito depeswa ai- f^uma 5 quando duvidamos se quem o disse Prop. se cngancu (Proposição 16.^ 26. 2 Não merece credito o dito de pessoa al- guma^ quando duvidamos se essa pessoa nos Prop. quiz enganar (Proposição 27,) 27. A razão he bem manifesta , porque ou 2 pessoa se engane a €i , ou me queira engaíiar a mim^ já he falso o que me diz ; e por con- seguinte duvidando eu de qualquer destas cou- sas, fica duvidosa a verdade. Eug. Nisso estou , e nisso creio que todo o mando está, c esteve sempre. Tcod. Posto isto 5 vamos examinar huma por huma as authoridaJes que .costumáo fazer-nos caliír em muitos erros , e venha primeiramen- te a do \''ulgo. Para com a gente não cultiva- da com estudos , he incrível a força que tem a aurhoridade do vulgo. Silv. \^alem-3e do Proloquio vox populi vox Dei. Teod. Al?;uns rrocáo esse proloquio vox populi vox diaboH ; mas o caso hc, que nem hum, nem outro he verdadeiro geralmente. Qiia.ncío to- Tayde quadragésima, 133 todos de diversas gerarqnias , c génios , e pro- fiçóes 5 etc. concordào sempreemd mente que o coração não adivinhou , para o tirar dessa falta posse , quando hasta hum , ou -1 outro casual successo para lhe dar a preroga- , tiva ridícula , e impossível de adivinhar. Isto | so pod'a ser por milagre , e obra de Deos , e i em alguns casos por arte diabólica. Mas o per- > suadir-se da natural adivinhação , he erro só íí desculpável em crianças, porque só para com } ellas tem authoridáde o vulgo. l ^^g' \^ejo que tendes razão ; e praticamente vou ] conhecendo que não basta huma pessoa não i ter nunca dúvida de huma cousa, par^ que el- i la seja verdadeira. ; ^ecd. Não convém fazer esta Instruçção muito l difíusa ; por isso não vos aponto mais exem- j pIo3. Rematemos pois aqui com o dietame ' oportuno : Não devemos Jazer caso algum do ' dito do vulgo (Proposição 2^.). A razão he, Prop. porque o vulgo muito facilmente se pôde en- 28. ganar a si j e pela máxima que assima puze- ] mos , havendo este perigo, náo ha authorida- • , de que mereça credito. Vamos ^diante, ] §. IV. (l) Extrema ^ítuáii Itiãus occttyat, Prov. 14. IJ, 138 Recreação íilosoJicA §. IV. Dos erros j que nos vem da author idade dos Doutos. •E^S' T-T ^ pasmar ver como estamos pòr to- AJ da a parte cercados de inimigos da Verdade, porque os erros do vulgo entráo em tudo j e desae a infância acompanháo hum homem , que náo tem estudos , até o deixa- rem na sepultura. Teod. Também os que tem estudos padecem seus achaques no entendimento , dos quaes os mesmos estudos sáo a causa. Quantos erros náo tenho ei tido na cabeça, fundados na an- thoridade dos Doutos ? e quanto? tenho ainda sem os conhecer , e terei até o fim de minha vida ? Feliz he aquelle que tem menos , pois nenhum ha que esteia livre absolutamente des- te mal. Ora eu advirto duas cousas logo no principio para maióf clareza : primeira , que náo fallo seíiáo da authoridadé puramente hu- mana 5 por quanto na authoridadé Divina bem podemos descanç3r que rráopóde induzir-nos a erro; pois nem Deos como infinitamente Sá- bio se pode enganar ; nem pode enganar-nos a nós , sendo infinitamente Bom. A segunda cousa que advirto he , que eu não desprezo a authoridadé humana, porque entáo seria louco rematado j somente digo , que a authoridadé . hu- Tarde quadragésima. 139 . I Jinmanâ costuma ser occasiáo de nós crermos ; muitas cousas, sem as chamar a maduro exa- l mei e per isso admíttimos muitos erros , cpie '\ não admiuiriamos , se náo fosse a capa hon- I rada da Authorldade hnmana, com que se cu- 1 brírão ; são como inimigos disfarçados , que buscáo vestidos dos amigos , para que vindo \ assim cuberios , entrem em nossa casa , sem i lhes perguntarem quem s?.o. Digo pois, Euge- | nio, que a Juíkoridade humanai cu seja de ' algum homem insigne , cu da commum opi- ] niao dos Doutos, posto que mereça r,.uif ave- j neracao , não deve dispença^-nos de exami- ' j nannos muito , ou por nos , cu por pessoas in- j telligentes , e desapaixonadas , isso pue elles \ dizem , para o admittirmos per caí: a certa \ (Proposição iÇ}.^, Observai este dictame , se Prop; ; quereis errar pouco. 29. I Sily. Ainda assim , a fallarm.os sinceratrenre , j amigo Teodósio , todo o mundo condemnará \ de atrevimento a temeridade de negar eu , ou \ outro como eu , o que commumente dizem os ^ homens Douros de Profissão , e ainda algum ^ que seja insigne na matéria. Náo digo eu que i será atrevimento o negar , mas até o per isso i em duvida : especiahriente se a doutrina está • de posse de muitos annos. | Teod. Concordo comvcsco, que he atrevimen* i to; mas ha certos atrevimentos louváveis Ser « huma sentença proferida per hum homem in- j signe , ou muitos , e ser crida por muitos an- | nos , indicio he de ser verdadeira ; mas este \ indicio não he tão forte , que nos dispense do J exa^ í I40 Hecreação Filosófica exame , para lhe darmos credito firme. Sc o mundo seguisse essa vossa opinião , bem po- dia ter a certeza de acabar enterrado em innu- meraveis erros , que algum dia forvío seguidos dos primeiros homens, e de que ninguém en- tão duvidava. Houve algum atrevido que du- vidou ; chamou-os a exame , conheceo-se a sua falsidade, 5 e forão desterrados para sempre da Republica dos entendidos. Ponhamos exem- plos , antes que Eugénio mos peça. jEug. Estou nessa posse. Silv. Ahi vem o pobre Aristóteles sem dúvida. Tecd. Virá , mas bem acompanhado. Grandes homens disseráo que não havia , nem podia haver Antípodas ; creo-se isto muito tempo: houve quem se atrevesse a examinar o ponto : vio-se que era erro mui grosseiro e claro , e ninguém já dalli por diante o seguio. Grandes homens disserão que havia região do fogo ; que havia horror do vácuo ; que o fogo era leve ; que o ar não pezava ; que os insectos nasciáo da simples corrupção ; todo o mundo nesses tempos cria estas doutrinas sem escrúpulo : hou- ve quem se atreveo a examinar estes pontos, conheceo-se que erão erros , e desterrárão-se pa- ra sempre , com bem mágoa do vosso coraçab , Silvio. Mais : quantos homens grandes tem havido noy mundo na Medicina antes de Har- veo i He certo que innumeraveis : com tudo nenhum delles conheceo a circulação do san- j^uc. ; assentavão que tinha fluxo , e refluxo. Veio Harveo , e deixou esta verdade tão cla- ra 3 que hoje pomos as máos na cabeça de que ho- Tareie quadragésima, 141 homens professores não conhecessem o quehu- ma criança podia conhecer , como já vos mos- trei em seu lugar ( i ) . Ora hide lá crer na aarhoridadc dos Doutos , para não examinar SC o que elles dizem he assim, ou náo. Silv, Só os Modernos ^ Eugénio , náo são su- jeitos a erros : supponho que náo peccáráo em Adão ; e náo expsrimentáo as misérias , a que todos os Antigos estamos sujeitos. Tcod. Também os Modernos erráo; e também entre eiies muitas vezes o erro Jeva apôs si a commum torrente ; e se conserva nessa pos- se muitos annos , até que alguém o esbulhe deJia, e restitua ao throno a desconhecida ver- dade. Que authoridade não teve nas Escolias Modernas o Grande Descartes ? com os seus Vórtices , e Turbilhões se pode dizer que re- volveo todo o Orbe litterario; e quasi sem o perceber , meio mundo se achou Carteziano : veio Neuton com outros , e claramente mos- trou a cegueira de muitos , que com a cabeçi baixa , e olhos fechados , mais adoraváo , do qu;i se^uiáo este sysrema : lá virá tempo tal- vez 5 em que se conheça que também erráo muitos , que em tudo adoráo a Neuton , como oráculo do Templo da verdade ^ c querem que por singular excepção náo pague á natureza o lorçoso, mas desgraçado tributo, que paga to- do o homem , de ser sujeito a engano. O raes- nx) digo de Leibnitz , e dos que vierem atrás de ( 1 ) Recrearão Filosófica. Tom. IV. Tarde. XXI. §. 1. pag. 26>, 14^ 'Recreação Fihsofíca de nos. Mas se quereis , Silvio, a fazão, pof que nos Antigos se descobrem mais erros que' nos Modernos , he porque éílts usáráo muito pouco da Arte Critica , rem examinaváo as cousas com tanta fadiga , e diligencia , como se faz hoje , em que para examinar de certo qualquer ponto, não se poupão despezas , nem fadigas , nem ha deâcanço. Agora duvida-se mais , então havia mais lisonja , por isso se errava mais. Também me occorre ouira razáo i por isso mesmo que as opiniões são antigas, lem havido mais tempo para se lhes perder o amof, e para apparecerem os inconvenientes: pode ser que essas opiniões , que hoje sáo moderníssimas , quando forem antigas , sejáo táo desprezadas , como hoje são as dos primei- ros Filósofos. Pelo que , meu amigo , ser a opinião muito antiga , pouco lhe augmenta o pezo da sua authoridade. Stlv, Ora eu não posso soffrer isso : pareci a-me' que a antiguidade, e posse em que está huma opinião , sempre devia conciliar veneração , e credito. Tecd. A antiguidade por si só nem deve con^ ciliar estimação, nem desprezo das doutrinas 5^ a opinião hoie mais antiga algum dia foi mo- dernissima ; e a que ho]e he moderna , algum dia ha de ser muito an^i^:a ; e com tudo huma • opinião nunca cem o?? annos hemais verdadei- ra , nem menos do cjue sempre foi. Pelo que ser huma opinião muiro antiga per si só , náo deve conciliar-lhe veneração ; pois não sáo es- tas as cans que sáo veneráveis. Pelo mesmo- mo-' Tafd^ quadragésima, 145 modo sôr huma opinião moderna , náo a fa2L mais estimável ; antes sendo nimiamente mo- derna 5 por Jsso mesmo fica suspeitosa ; e isto acontece por dous motivos , ou razões : Iiu- ma , porque toda a novidade tem huma certa beileza que alegra os olhos , e muitas vezes engana : segunda , porque estando ainda vivos os Authores da opinião , he mais fácil haver lisonja que mova a segniilos. Depois de esfriar o amor dos Authores, então nos cegamos me- nos com o que elies disserão , e em fim o tem- po aconselha muito , e muitos enganos mostra. Pelo que , Eugénio , gravai na memoria este d'ictame : Quein quizer conhecer a verdade cora seguranc^a , ha de examinar o ponto com animo indi ff crente , olhando meramente para os motivos intrínsecos , oíí razoes fundamen- taes da opinião , e não fazendo caso do nu- mero^ nem antiguidade ^ nem qualidade dos authores que a seguem ( Proposição ;o.) Ad- Prop. virto porém , que não podendo examinar dig- ^o, namente a certeza da questão , olhando para os merecimentos da causa , podemos fundar-nos na authoridade , para dar credito , não firme, iTias receoso j pOr quanto sempre a authotidade dos homens Doutos deve fazer algum pezo , para crermos que alguma razão acharão , quan- ■ do seguirão aquelle ponto : e também porque não se ihé descubrir inconveniente, ou falsida- de em muitos annos , lá persuade de algum modo que o não ha; pelo que só pode ser fun- damento para dar assenço receoso , mas náo firme e. seguro,, e que. dispense de. ejçame, Silv. 144 Recreação Filosófica Silvi Otâ quando vemos que toda hiímâ Esca- la segue de tempos antiquíssimos huma dou- trina , bem pode qualquet homem de juízo firmemente crer que he verdade ; pois não s^ pode presumir que ellc só tenha mais juizo ^ do que milhares de Doutores, que se acháó a favor da opinião contrária , seguida de toda huma EsGoia* Teod, Não digais isso , meu Silvio , porque ríáo ha maior occasiáo de perpetuar erros , do queí sáo as Escolas fechadas. Chamo Escolas Fe- chadas ás que" não dão liberdade para seguir cada qual o que em sua consciífxia entender. Duzentos mil Doutores de huma escola acer- táo tanto como hum só Doutor : porque go^ mo infallivel mente hão de dizer todos os du- zentos mil aquillo , que disse o que foi cabe- ça dessa escola : se elle acertou , acertarão to- dos os duzentos mil ; mas se errou , todos os duzentos mil errdíão. Persuadirem-ss , que o- primeiro que foi levantado em cabeça de es- cola 5 não podia errar, he quererem persuadir huma cousa que ninguém prudentemente pede' crer. E se concede que a cabeça da escola tx>- dia errar , então tanta authoridade fazem du- zentos mil Doutores a dizer o me^mo, huns atrás dos ourros, como se o primeiro, que po- dia mui facilmente errar como qu'alquer. Elks não se podem escandalizar disto : vemos hoje, em mil questões todos os Tomistas a hlim la- do , todos os Escotistas a outro , dizendo o contrario ; hum destes exércitos acertará ; mas o outro certamente erra : ora ató tendes du- zen- Tarde quadragésima, I45' zehtós mil Doutores a adorar de joelhos hum erro: crede agora lá na authoridads das Esco- las. He tal a escravidão que ha em muitas Es- colas, que se algum entrou em dúvida do que he ponto de Escola , deve resistir-lhe como ten- tação contra a Fé , e sacudir para muito lon- ^ge o tal pensamento. Porque o caso náo he examinar se o ponto he, ou he assim na rea- lidade j mas somente se he , ou náo da men» te de Aristóteles , ou deste , ou daquelle Au- thoi. Mas deixemos este ponroi Somente di- go 5 que he huma escravidão intolerável obri- garem a tantos mil homens que sujeitem to-» do o seu juízo ao que disse outro homem ; do qual não con;ta que ficasse isento da pençáo de homem , que hs errar; Errou Santo Agos- tinho tantas vezes , como consta do seu livro das Reiraccaçóes : errarão tantos homens gran- des 5 e náo poderá errar hum cabeça de Es- cola ? Além de que , quando se encontrão as Escolas humas com as outras em qualquer pon- to, como succede a cada passo , sabemos de certo que a verdade só está de huma pax^ré, e que a outra toda em pezo erra ; e como esta opposiçáo he frequentissima , sabemos de cer- to que são freqaentissimos os erros , que le- vão apôs si todos os votos de huma numero- síssima Escola. Ponde, Eugenio, os olhos nis^ to, e vereis que pezòdeve tazer a authoridade humana , principalmente dos Doutos de Escola. Z«^. Náo cuidei que havia es^a escravidão de enten- dimento fora das matérias da Fé i mas vamos adiante. 7€od Falta dar a razão mais fundamental dis- Tom. VII. K K>. 14^ Recreação Filosófica to. Todo o fundamento , por que poderiamosr crer no que dizem , se origina de que nem el- les se enganão a si , nem nos enganáo a nós , como fica explicado. Ora todos os homens, por doutos que sejáo, tem perigo de se enga- narem a si mesmos ; e quando entra nelles o que chamáo espirito de Escola , guardáo com tal religião a doutrina do Mestre , que funda- mento nenhum basta para o desempatar. Ain- da que seja preciso torcer as palavras , e dar- Ihes sentido violento , a doutrina do Mestre nunca , e por modo nenhum se ha de desem- parar: ora isto he huma paixão manifesta , e toda a paixão , como já vos mostrei , occasio- na erro , e cega o entendimento: pelo que, quanto a mim, mais fé merecem dous autho- res bons , seguindo livremente huma resolu- ção , do que toda huma Escola ; porque esses Authores podião julgar sem paixão , e todos os da Escola julgão com paixão , e dão grande susf>eita de estarem preoccupados j e sendo as- sim , não merecem tanto credito como os Au- thores livres , que ao menos não tem a sus- peição manifesta de estarem preoccupados com o espirito de Escola. Sth. Se clies vos ouvissem , mui obrigados vos ficarião. Teod. Se me ouvissem em publico , havião de mostrar-se escandalizados ; se me ouvissem cm particular , os bons havião jde dizer que tinha razão ; e assim o dizem. Sabei que os que juí- gáo sem paixão, andáo rebentando debaixo do jugo intolerável da escravidão em que vivem , sem Tarde quadragésima. 147 sem poderem dar hum passo fórâ di>" c^Yiiflho dos seus Mestres. Elles mesriíos áe me tem cjtieixado , lamenranda-se de' qiie patíi nãír ser- rem privados das suas cadeiras ^ e desprezados entre os seus , sáo obrigados á seguir o'Comra- rio do que enterídem. ^e lhes dessem lil>e>da- de , seriáo os progressos nas Escolas admirá- veis ; porque os engenhos , píincipahtienté' dos Portugiiezes , sáo grandes i mas a escravidão das Escolas lhes prohibe a cultura , e os^ ata dè máos , e pés. Porém vamos: adiante* E:ig. Como' nenhum de nas está sujeito a essa escravidão 5. não nos afflijamosi TeoA. Mas sempre qiiiz advertir istO , poi^ue he huma cousa , que authorisa muito qualíjUer doutrina , ser seguida por mais de douj mil Doutores ; que tantos , e mais se achâo mui- tas vezes n'uma Escola 'í e como pode ser que esta doutrina ser_ia falsa , temos que o efrO"' vos podia entrar em casa , sqtí; qwe desconfiásseis deíle ; pois sendo todo o erfõ de sua natureza vil , vós o acháveis tão respeitado , que trazia »' após si mais de dous mil criados^ nobre^S^ que o seguiáo. Bug. A verdade He , que^ ha humás tais cir- cumscancias, que parece rirão toda a suspeita de engano. A não se fazer a refiejíão- que- ren- des ponderado^- quem havia de desconfiar que mais de dous niii' homens doutos se" ^g*n as- sem ! Mas jcá^ vejo , que sertda eãceâ doUs mil contra outros dous mil , os- qUaeS em Esdóla differente dizem o) contrario , foí^osaifíenfe ha i^M„ de conceder-se* que eínos ha- -- me tem- á seu il Kii fa. 148 Recreação FiloSqfica favor mais de dous mil Votos ^ e votos de ho* iriens doutos. Teed, Quem está mais sujeito a esta miséria , e infelicidade sáo os que em idade tenra apren- dem as sciencias. Está hum }X)bre estudante, Gue começa a aprender huma sciencia , feito (como nós dizemos) pexinho de Santo An- tónio , ouvindo a seu Mestre , homem de gran- des annos , e estudos j condecorado com o S2u gráO) com a cadeira pública, e com a grande reputação entre os Cavalheiros , e povo. Bis- que este seu Mestre com hum tom decisivo dá huraa doutrina , dizendo que he certa , e acarreta huma ssrie de nomes , que o pobre estudante nunca ouvio, e cuida que sáo autros tantos oráculos ; e accrescenta o Mestre , que todos aqueiles Authores dizem aquillo mesmo. Depois de passagem adverte , que alguns Es- trangeiros disseráo o contrario , lá iundados em quatro ridicularias das suas mathematicas , ei- marmotas (isto he assim como vos digo)j^ mas que a verdade, que seguem lodos 03 ho- mens Doutos , he a que élt tem dito. Ora neste caso como pode este pobre estudantinha ter nem pensamento de dúvida do que pronun- cia aquelíe, queelle cuida ser hum grande orá- culo do templo da Verdade ? Parece-lhe , que se chega a ter huma leve lembrança de dúvi- da contra aquella doutrina , já isso be crime t e assim crè firmissimamente o que lhe disse o Mestre , e vai para casa , e nunca mais en- tra em dúvida ; e se viveo oitenta annos , ou- [ tros tantos fica firme no que aprendeo : ora i acon- Tarde quadragésima. 149 acontece ás vezes , que isto que se dá por tão certo, he tão falso como o Horror do vácuo, a Simpathía , e Antipathia , a geração dos In- sectos, e ser o ar leve, etc. Eng. Eu confesso , que acho desculpa aos po- bres discípulos. Teoà, Mas não a haveis de dar aos Mestres. Elles não fazem escrúpulo de enganar os inno- centes. Dão por certo o que não he certo , e por indubitável o que tem muitas dúvidas, isto he crime diante de Deos , e diante dos homens. Eu náo me escandalizo que errem; todos errão ; mas não atem as mãos , e pés aos pobres discipulos , que estando ligados , nunca se livrão do erro. Digão : aqui ha duas opiniões , eu sigo esta que me parece melhor, por estas razões j e deixe-lhes liberdade , e cu- riosidade de examinar a opinião contraria , quan- do elle não tenha a caridade , e paciência de lhes expor com sinceridade os seus fundamen- tos ; digo com sinecridade , porque a não ser assim , melhor he não lhos expc^. Sih. Sempre he mais útil dar-lhes alguma luz dos fundamentos contrários , seja como íor, do que deíxallos em jeium na matéria. Teod, Não sigo isso ; Os fjndamentos expos- tos por quem segue a opinião contraria , se- não o faz com animo sincero, de tal sorte se pintão , que parecem muito diversos do que são. Os Hereges quando expõem aos seus os Dogmas da nossa Fé Romana , e os funda- mentos da nossa Rehgião , de tal sorte os pin- tão, e com taes ditos, chistes, e. mofas, que 0$ fif§it J^ecreacão Filosofirpa ps jtmoçetrtes «^pç ps pyve^ ^ fazem eenc^ito ^ ;^ue np^ ^son^os pouco menos toUos , que os .r«fjentios da AmeriGa : e acontece., que se tos , que os discipulos a reput^o por • loucura íematada. if ip^. Melhpr -era deixallos só com a RQticia de ■que iiavia outra opinião ; pois a seu tempo el- 1^ a podem examinar, e os seus fundamentos sinceramente. Te<)à> Eu tenho-me demorado neste ponto mais do que ;queria \ mas he porque a authoridâde dos Doutos he huma grandissima porta , por onde entr^^p no nosso -eEitenain^nto innumçra- Nt\% erros disfarçados. Esta authoridâde dos Mestres he que fez gemer todo o mundo nos j^^jeculos da Barbaridade, debaixo de hum Ty- -l^iruiicp poder , que sobre os nossos juizos ti- nhão ps antigos erros. -Ora em hum mal tão _ -íiQcivp, e tão geral, convém descubrir até a? ,^:^ltimas raizçs. A razão pois, ^migo, porque ti ©sta authoridâde h^çapa de muitos erros, não y^^ spmente peJa fraqueza do nosso juizo, que como de ho;ii€ns he sujeito sçmpre à enga- nos j mas também porque os Mestres, quan- do çheg^o a certo ponto de gloria , e fama m-^ m.W^ i fiio o erro , que nos pode vir feia authoridade ^ de Testemunhas, Teod. T^Emos mais hum passo , e seja para U matéria mais frequente , e não me- nos importante. Silv. Esta , que acabamos de tratar, bem im- portante he, e assas frequente. *. Tecd. Ainda mais vezes nos vemos em preci- são de dar credito as testemunhas , ou seja pa- ra os factos históricos , ou para os casos de Direito , ou para mil encontros familiares , que occorrem a cada passo ; pois nada he mais fre- quente , que fiarmo-nos para qualquer juizo, e determinação , do que nos dizem os que são testemunhas , ou de vista , ou de ouvido. Silv. Ahi todo o credito depende da verdade das Tarde quadragésima. i$7 das testemunhas. Se são verdadeiras , poucas fazem grande auihoridade; se o não são, nem muitas fazem authoridade alguma. Tecd. Todo G ponto está em que as testemunhas nem se enganem a si, nem nos queiráo enganar anos; por isso he preciso attender a muitas cir- cumstancias , que os Críticos advertem. Eu irei apontando as que me occorrerem. Deve- mos pois attender a quatro cousas : ao numero das testemunhas , á qualidade delias, ao mo- do de deporem, e á matéria que testificão. Silv. Agora hei de vos ouvir com mais gosto , pois talvez que a vossa critica me sirva para certa demanda que me vexa: nella me oppri- , me hum grande numero de testemunhas fal- sas , e poderei dar mais algu.na luz ao meu Advogado 5 para lhes dar as contraditas. iCiod. Não zombeis , porque pode ser que vos seja útil a conversação. Primeiramente no que toca ao numero de testemunhas , guardai esta regra : Toda a vsz que as testemunhas , ain- da que sejdo muitas , tiver ão a origem de hu- ma , não se devem reputar por muitas , mas por huma só. (Proposição ^i.). Exemplo ; Prop, fez-sehuma morie em determinado sitio; hou- :^i.\ ve hum homem que disse , e publicou que fora Femando ; espalhou-ss por toda a Cidade , que elle fora o matador, e vem depor a juizo vin- te ou trinta testemunhas , todas só de ouvido , e dizem que era fama ser Fernando o mata- dor. Isto posto 5 convém examinar , se esta fama nasceo s6 daquelle homem que o disse; porque sendo assim , todas estas trinta teste- I^S Recreaçta Filasofea munhas valem só por humá ; porcp^f se esta fosse maíevoia , ou se enganassef , sem ciiivicja Que mentiád todas as demais que nella sefon- ctaváa. Eu acho hum costume perverso entre muitos 5 cpe se prézáo de bons Christáos , quan- do necessitão de testemunhas para qualquer de- poimento , fazem que alguém conte aqiielle ca- so diante de vários amigos , e depois chamáo os amigos a juizo para deporem unanimemen- te que ouvirão aqueile dito. Eiles juráo ver- dade ; mas deve-se averiguar a quem o ouvi- rão : e conheeendo-sc que tudo nasceo de hum só homem , devem-se reputar por huma só testemunha, e não se lhes deve dar maior au- thoridade , que a de huma só pessoa que o testifique. Eug. Êso he huma cousa summamente confor- me á razão, Tevd. Toéo o motivo , Eugénio , por que o numero das testemunhas augmenta a sua au- thoridade, c merece mais fc, está em que não he tão fácil mentirem sete , v. g. como men- tir só humaj nem também he ráo fácil enga- nar-se sete , como eng?.nar-se somente huma. Mas communicando-se a noticia de hum ho- mem aos sete , se o primeiro se enganar , ou quizer mentir , todos os demais se enganão também , e não diizem a verdade y posta que sejáo pessoas de grande probidade; SiLv. Esoa circumstancia em consciifncitt deve sempre ser examinada. 'J&sd. FOr causa desta, doutrina muitos factos , ^e coprião entre o^ homens pc* cousa indubi- ta- Tarde quadragésima. 159 tavel 5 já na opinião de muitos Críticos mere- cem sua dúvida. Que cousa mais constante en- tre os Doutos, que a celebradissima guerra de Tróia ^ e com tudo não falta quem duvide (i) se ouve ou não tal guerra no mundo , porque todos 03 infinitos Oradores , Poetas , Historia- dores , Filósofos , assim Gregos como Latinos , que falláo nella , se vem ultimamente a fun- dar na authoridade de Homero , ou de hum certo Siargo Poeta mais antigo : e este por ser hum só , e Poeta , não merece tão firme cre- dito , que baste a dar hum facto por cousa in- dubitável. Eu não digo que a não ouve , mas somente aponto este exemplo , para verdes co- mo pode numa cousa falsa chegar a ser testi- ficada por quasi todos os Authores , quando to- dos elles se fundão n'um só. Silv. No direito ha hum proloquio, que o dito de hum he dito dé nenhum (i), isto he, que não merece fé. Tcod, Com tudo tal he muitas vezes a teste- munha ( ainda sendo única ) , que por si só faz grande authoridade : e esta he a segunda cir- cumstancia a que se deve attender ; e vem a ser , a qualidade da testemunha. Porquanto se a tes- temunha he de vista , faz muito maior ati- thoridade , que se he de ouvido. Como tam- bém (1) Veja-se o Genuense na Lógica , onde ci- ta dos Modenos a Christiana Adão , Gerardo Groesio , Struvio , e João Baptista Viço : altim do Dio Ciirysostomo , e Metrodóro , que entre os Antieos pozerão este ponto em grande dúvida. (2) Dictiim umits dlctiun nullicts. t6o ííecreacãò Filosófica bem se he testemunha de maior excepção , oi£ pela sua probidade , e leiras , ou pela sua Pfop. Uignidade (Pioposiçáo :?2.). A razão he, por^ ^Zé c]ue a testemunha, sendo de visra^ náo he tão fácil o enganar-se , como sendo de ouvido: também não he fácil presumir , que minta ou hum homem de bem, ou hum homem de pro- tada santidade. Ahi tendes vós ^ que o marty- íio de S. Joáo Evanaelisra , quando o mettè- ráo na caldeira de azeite fervendo , só consta de huma testemunha, que he Tertuliano ; e com tudo ninguém prudentemente pôde duvi- dar dellc. Silv. Mas ás vezes quanta mais bons são os ho- mens, tanto mais facilmente os enganáo. Teod. Eu quando dou preferencia ao bons , he no que elles testificáo de própria sciencia , di- zendo que o víráo , oU que sabem de certo ^ ou que ouvirão a tal , ou tal pessoa digna de credito ; de sorte que náo dêmos mais valor ao seu depoimento , que aquiilo quQ elles res^ tificâo sobre sua palavra 5 porque nÍ3.^o não hc fácil haver engano : agora quanJo elles se cs- tribáo sobre authoridade alheia , então já po- de haver engano , por mais virtuosos que se- jáo , porque a sua probidade náo livra do en- gano alheio. Eug. T'ambem conduz muito ser hum homem- douto , porque esse sabe o q..e diz. Teod. Coníbrme for a matéria . se for m'âtería Íue peça inteíligencia especial, deve-se a':ten- er principalmente á sciencia -, se for matéria que náo peça especial noticia , e esiudo , de- t Tárcte qúaáragesimíi. i6i vè-se attender á virrudé. Ponhamos exemplai Morreo hum servo dé Deos , e depois de mor- to ficou flexível ou ficou de joelhos, ou hou- ve esta ou aquella extraordinária eircumstancia 1 depõem de todas elias varias testemunhas : di- go agoira , cjue no que toca a ser , ou nào ser natural a postura , a efftjsáo de sangue , o ca- lor , a iaçorrupsão , etc, deve préferir-se humá testemunha doura, em Fysica , c Medicina ^ ain- da que seja hiim heréje j e no que toca ao sim- ples facto que todos presenciarão , deve prefe- rir-se a testemunha mais grave , verídica , c prudente; a qual rherece mais crédito, porquê se suppóé que repara mais no que diz: Por- tanto, Engeriio , guardai esta regra, perténcen-, te á matéria da questáp : Devemos attender d materiít , d qualidade ^ e circhmstançiaÈ dó jacto 5 para por ellas podenrios dar o valof ao numero , e qualidade das testemunhai (Proposição 5^.) > ^ ^^^^ ^-^ ^ terceira cir- í^fòp; tumstancia , que eu tinha dito que devíamos :^2i observar ; convém a saber : a que pertence á matéria. £^g._ Não me ha de esquecer. ^'eód, A quarta circumscancia he o modo , Corri que dâó o testemunho : ás vezes o modo dé jurar logo' .dá a eonhécer ou á verdade, ou á falsidade do animo ; O, Santo Daniel iríspifado por Déos , deste ,m'ado conhécéo a falsidade das duas testemunhas , por cujo depoimento já á ínnocente Susana, hia á sei apedrejada: cha- . ; hreu cada huma de per si ; e examinando o lugar do crime que diziáo ter visto , conheccbf Tom. yil. h quef i6z RecrcaçJío 'filosófica (juè não SC ajustâvão , e por esre modo fícoM manifesta a sua falsidade ( i ) . Outras vezes peli perturbação das testemunhas , ou en- carecimento de palavras se conhece a sua pai- xão 5 e pela paixão se vem a conhecer quão pouco vaie a sua author idade ; pois, conforme o que íica dito, onde ha paix-áo , ha encaro, regularmente failando ou em tudo, ôu ao me- nos em parte : observai pois esta quarta r,e- gra, que dão os Críticos: Nao se dívc atten- der somente ás palavras , mas ao medo , e todas as circwnstaucias , com que se narra o Prop. /^cío ( Proposição :54. )• :54. Eíig, Todas essas regras conservarei na memo- ria com facilidade , porque se ajustáo muito com á razão. Silv. Os Ministros , que devaçáo dos crimes , lem nestes dictames boas rei^ras para senten- ciarem prudentemente. §.vr. ( I ) Danieh cap. ij. Tarâe quadragésima^ 163 §. VI. 2)0 Erro , qUe nos pode vir pela authorU dade dos Historiadores. teod. OS dictames , que se tem éxflidádo, tem applicaçáo amplíssima , e semi- pre muito útil j por cjuarito sempre importa muito o conhecer a verdade; Mas a matéria , a que com mais geral interesse se devem ap piicar 5 he á Historia : aqui vos digo eii , que ne precisa indispensaveimetite toda a crítica, porque estáo os livros cheios de infinitas men- tiras , õ ás vezes táo divulgadas , e tão apa:- drinhadas , que o cntendimerito só pòT fnik- gre deixará de abraçar muitos erros , se náo usar de prudente , m.as rigorosa crítica. Os Historiadores , Eugénio , sáo como testemu- nhas que depõem daquelle facto , ou por sei- encia própria , ou referindo-se a outros , t del- íes se deve entender tudo o que eu disSé em geral das testemunhas 5 porém agora âjutltarei as melhores reflexões , que tenho encontrado fios que trata o ÒQSza, matéria , pertencente aos livros de Historia , para distrnguírFnõí á ver- dade da mentira. £ng. Se fa liais de Fabulas , e Novelas ^ não vos canceis , porque de certo tempo a está parte me aborrecem indisivelmente esses livros ..iíiÉimes i c )ulg0 táo perdido o tenípo que S3 L íi cm- I 164 Recreação Filosófica emprega nessa lição, como o que se gasta em fallar com bobos. Teod. Náo fallo desses , fallo cios Historiadores sérios , porque também nelies ha muira men- tira : humas que nascem do S3U cnCenufmen- to , deixando-se elles persuadir do erro : ou- tras que nascem da sua vontade , enganando- nos a nós maliciosamente. Em ordem ao cre- dito que devemos dar aos AuAores , varias circumstancias nos mandão observar os Críti- cos ; e dáo varias leis. Eu as vou explicando : tomai-as bem na memoria. Primeira : Aos Poetas deve-se muito pouco credito , mais al- gum aos Oradores , e mais ainda aos simples Prop. Historiadores (Proposição ^5.) A razão ne, 3 5» porque nos Poetas a íicçáo própria da Poesia ssmpre mistara a verdade com a mentira ; e por isso se o facto náo nos co"ista de outra parte, fica muito duvidoso, ao menos nas cir- cumstancias ; pois náo sabemos se esra , ou aquella circumstancia foi cousa verdadeira , ou mera íicçáo para ornato da Poesia. Isto faz, como ha pouco disse , diminuir a fé de Ho- mero, celeberri mo Poeta Grego, sobre a guer- ra de Tróia ; e náo falta quem diga , que tu- do foi mera ficçáo , assim como o foi a guer- ra das Arrans, que se attribue ao mesmo Ho- mero (i). Quantas mentiras náo mistura com a verdade o nosso Camões no seu Poema Épi- co sobre a viagem do Gama ás índias ? ne- nhum (i) Genuense na sua Lógica 1. 4^ c. 1. §. xa. - o. Tarde quadragésima. j6^ nKum prudente pode ter por certa qualquer das circumsrancias que elíe ahi narra , pois sabe- mos que como Poeta havia de fingir muito. £ug. Pelo menos as appariçóes de Vénus, os conselhos dos Deoses, etc. bem claras menti- ras sáo^ Teod. E bem escusadas eráo , especialmente quando elle mistura essas fabulas com as ver- dades reveladas da nossa Religião , de que o criticáo severamente os homens mais doutos. Mas isso não he para agora. Falta dar a ra- zão , por que os Oradores merecem mais fé que os Poetas ; mas nunca credito franco e total , especialmente os Panegyristas. Os Oradores pois , se se deixão levar muito da suafantazia, eenthusiasmo, como tem seu parentesco com os Poetas , também fingem , e pintáo 5 e também se lhes deve fazer algum abatimento no que contáo , porque lá costu- mão exaggerar as cousas que fazem ao seu in- tento. Especialmente nos Panegyricos dos ho- mens vivos , e que estão presentes , deve ha- ver grande cautela ; porque ahi he indispensa« vcl a lisonja , que não he outra cousa senão mentira , para lhe darmos o seu próprio nome. Quem ha de prudentemente crer, que he ver- dade tudo quanto diz Plínio no pasmoso , c preciosíssimo elogio de Trajano ? Quem não na de crer , que Cícero realçava com a sua bellissima eloquência o que dizia de Pompeo ? Toda a paixão mente; ou pelo menos dá gran- de entrada á mentira ; e a lisonja , como tam- bém o ódio , sáo grandes paixões, Náo era cer« i66 Recreação Filosófica certamente Verres tão máo , como o pint^ Gi- çero ; nem Demosthenes tal , como o pintou Eschino seu adversário , quando lhe quiz em- baraçar o coroa de ouro , que o Senado lhe pertendia dar ; nem finalmente o mesmo Es- chino era táo máo , como o fez parecer De- mosthenes, defendendo-se extemporaneamente do que o accusava Eschino. Mas com tudo is- to sempre merecem os Oradores muito mais credito do que os Poetas , porque náo tem tan- ta liberdade para fingir ; e a ficção , que so lhes concede, tem limites mui estreitos. Don- de se vê , que com razão se escandalizão os homens de juizo , vendo mentir nos Panegy- ricos muitos Oradores sagrados , que sáo Mi- nistros da verdade 5 e Oráculos do Espirito San- to: e náo tem desculpa alguma para a lisonja dos seus Heroes ; pois louváo homens mortos , cujas almas certamente nada se agradáo de mentiras. JÍ^ug, Sem eu ter feito nisso reflexão ião judi- ciosa , como vos podeis fazer , só por essa ra- zão ultima me escandalizava de os ouvir : mas vamos adiante. ^eoà, A segunda regra he, que o Historiador ^ se mo he homem de juizo maduro , e pruderir te, nem cita pessoas intelligentes na matéria Prop. do facto , merece pouca fé ( Proposição ^6. ) 36. A razão vem a ser , porque não tendo capa^- cidade digna do emprego que toma , mui fa- cilmente se engana a si , e pqr conseguinte cambem, a nós : se he crédulo, dá poí certas as çQusa^ , ^cv^ %5 e3i^amin que trazem mentiras in- toleráveis. Este defeito he transcedentc por todas as nossóes , e por todas as matérias, e por todas as idades. Que mentiras senãoacháo no Aldrovando , e no yítanazio Kirker ? que mentiras não refere Aulo Gelio nas suas iVoí- tes Atiças , não obstante serem tiradas de au- thores Gregos antiquíssimos ? Que mentiras não encontramos em innumeraveis Itineraios , e Viagens que se tem publicado ? Por isso, amigo Eugénio , quando entrardes a ler algu- ma tlistoria 5 convém primeiro, se isto puder ser , examinar o conceito que tem entre os li- teratos o seu Historiador : e quando delle não ache- l68 Recreação Filosófica acheis noticia, por ser mui moclerno, ou pou- co conhecido , ide fazendo reflexão na mes- ma Historia , e o vireis a conhecer. Silv, Nos factos mais importantes devem sem- pre os Historiadores apontar os documentos, em que se fundão , para que não fique a nossa fé somente sobre a sua palavra. ^eod. Alguns não esião por essa lei da Histo- ria ; dizem que devem examinar bem os do- cumentos , mas não citallos no corpo da His- toria 5 antes sim daila aos Leitores hmpa , e corrente : vamos adiante. A terceira regra he esta : Os Aiuhores contemporâneos , e aomes- ticos merecem muito mais credito do que os estranhos , ou mui distantes no tempo j e qunn-. to mais distantes forem , menos jé merecem , excepto se allevao testemunhas contemporâneas , Prop. ou próximas aquellas idades ^^ C lugares (Pro- Xj, poáiçáo ^7. ) . Esta regra deve-se tomar , as- sentando sobre as precedentes , isto he , sup- pondo n'um , e n'outro auihor capacidade , c prudência. Sendo assim, deve preferir-se o con- temporâneo 5 e domestico , porque este corres- ponde a testemunha de vista. Além disso he mais fácil introduzir-se a mentida com o dis- curso do tempo , e disrancia do lugares , por- que vai passando o facto de boca em boca, e se accrescentáo , diminuem, ou mudào circum- $tancias , que totalmente corrompem a verda- de ; e também se dá lugar a que maliciosa- mente se invente , e espalhe pelo vulgo igno- rante, e crédulo alguma mentira. Por esta ra- íião os melhores Críticos tem hoje dado por Tarde quadragésima, i6<) [ fabiílosâs innumeraveis historias , quç nos sé- culos precedentes passavão por certas ; por quan- to examinando os Historiadores , acháo que nem elles virão os factos , por serem antiquís- simos 5 nem allegáo testemunhas próximas á- .quellas idades, que p-jdessem ou de vista, ou de fresca memoria receber a noticia desses suc- cessos. Por este principio (exceptuando a sa- grada Escritura) nenhuma fé merecem asHis^ torias q^Te temos das cousas antes do Diluvio) ; porque as tradicções dos Egypcios , dos Cartha- ginezes , e dos Rabinos , náo tendo monumen- tos proxim.os áque] las idades , em que se fun- dem 5 são mais fabulas de Poetas , do que his- torias serias : e fallando dos nossos , quem se náo ha de rir , lendo a vida de Adão, a vida de S. José , as antiguidades de Évora , e ou- tros livros que correm entre o vulgo? Quem foi buscar os Cartórios daquelles próximos tempos 5 em que de nada se fazia memoria , para ler os seus manuscritos, e tirar delles es- sas noticias? quem foi descubrir medalhas da- quelles tempos , ou pinturas , e inscripções nas pedras , que são os m.onumentos da Historia? Por isso , fora do que consta da Escritura , tu- do o que se diz de Adão he matéria de riso : o mesmo á proporção digo de outros assum- ptos. fiilv. Ainda assim , eu vendo muitos desses li- vros, escritos por homens doutos, e ás vezes com authoridades de Santos Padres , não me atrevo a dar essas noticias por falsas , espe- pialmente se sáo livros antigos. Teo4. I70 Recriação Filoscfica Teod, Por mui antigos que scjáo os livros , são modernissimos a respeito dos successos de que tratáo ; e assim a nimia distancia dos tempos lhes dá lugar a que alguma falsa tradição se espalhasse pelos que vivião no tempo dos Es- critores. De mais , a authoridade dos Santos Pa- dres não basta, quando estes forâo muitos sé- culos posteriores , e não allcgâo fundamento , bastante : podiáo ser muito santos , podião ser muito doutos 5 e de admirável sabedoria nas letras Sagradas , que era a sua própria profis- são , e não terem bastante Crítica, Além de qué, não sendo matéria própria do seu minis- tério sagrado , fundavão-se na voz do vulgo , OU de algum outro livro que achavão , de cuja authoridade não se punhão a tirar inquirições, e sobre a sua fé dizião o que lhes fazia ao ponto. Hum homem que vai escrevendo , e to- ca em alguma matéria , de que não he Pro- fessor , não faz reparo em se valer do que achou em Plínio na sua Historia Natural , ou cm Aristóteles na Historia dos animaes , ou cm Mr. Colone na sua Historia Natural , ou noPadre AthanazioKirker, ou em muitos ou- tros: ora sabemos queestes Authores tem mui- tas mentiras ; porém estas não se devem .im- putar a quem innocentemente se vale delles, usando desta , ou daquella noticia , que lhe serve para a sua reflexão judiciosa. Pelo que nada perde da devida estimação hum Author , ainda que seja hum Santo Padre , se se vale da tradição popular , ou noticia fabulosa , que el- Ic tinha por verdadeira , usando delia para il- lus- Tarde quadragésima. 17 r liisrçar o que vai escrevendo. Por tâtito a sua virtude , nem a sua litteratura por si sés não podem dar valor aos factos , ou nimiamente distantes , ou muit^ antigos. Eu achava galan- teria a certo Cavalheiro Portuguez , que tinha ido por Embaixador á Pérsia : este QUando alguém lhe contava noticia que elle tinna por fabulosa , despicava-se deste modo : Olhe V. m. que lhe hei de contar historias da Pérsia : como ameaçando-o de lhe dar noticia de Pai^ zes tão remotos , que elle náo pudesse conhe- cer a sua falsidade. Mng. Náo ha cousa mais facil do que mentir no que succedeo ha muitos annos , ou se attrihiié a regiões mui remotas, e quasi incógnitas. Teod. Ahi tendes a razão , por que.h© cousa temerária o dar credito a essas noticias , quan« do náo se allegão testemunhas próximas áquel- les tempos , e lugares. Por isso os bons His' foriadores da Antinguidade só se fundão nas Medalhas antiquíssimas , talvez já mui con- sumidas do tempo ; ou também em pinturas daquellas idades , em inscripçóes das lapides sepulchraes , ou das pyramides antigas í e daqui nasce a estimação que fazem os litteratos des- tas peças , que o vulgo despreza pelas ver feias, e velhas, e carcomidas dos annos. Mas nisto mesmo ás vezes se conhece o seu g?ân^ de valor pela antiguidade que inculçáo, e por ella são de grande authoridade para íestifícar factos mui antigos , que de outro modo fica- • riáo ou incógnitos , ou incextos. Vamos áa ou?- tra& Regras (jvçe faltão. 171 Rícreação Filosófica Escritor , tjue costuma ser mentiroso , nSo merece credito : o que for apaixonado a favor do que conta ^ ou cuidar nimiamente em or- nar o seu estilo^ merece que se de algum des^ Prop. conto ao que refere (Proposição ?8. ). 38. Por força desta regra nenhum credito se de- ve dar a Áíafoma , quando conta os seus mi- lagres , nem a outros Authores que aqui não nomeio, para não excitar inimigos. Bug, E donde nos pôde constar a nós que es- te, ou aquelle Autnor he mentiroso f Teod. Pode constar da sua vida notoriamente perversa , como ás vezes acontece ; e também dos mesmos factos que conta, por serem in- verosímeis , ou trazerem circumstancias repu- gnantes. Eug, Dos Authores mentirosos já sei que pou- co caso devo fazer ; mas vós também man- dais ter cautela com os apaixonados. TVoí/. Sim , porque os Authores apaixonados naquelles pontos que lisonjeão a sua paixáo, náo merecem que lhes demos credito inteira- mente , porque a paixáo cega , e a cegueira faz errar. Quem ha de crer os Castelhanos, quando falláo contra os Portuguezes \ quem ha de crer os Inglezes , faliando contra os Fran- cezes ? ou a estes , quando fallarem contra aquelles ? quem ha de crer os Hereges no que dizem contra os Catholicos Romanos ? quem ha de crer os Authores de huma Escola , es- crevendo dos da contraria ? Eu fallo-vos com -liv^rande experiência. Quasi todos augmentáo ou j)ouco , ou muito. Já antigamente os Latino» fa- Târúe quadragésima, 173 fáziáo zombaria dos Gregos , pela summa so- berba , e prâxáo , com que se antepunháo ás demais Nações do Mundo, e por esra razão náo lhes d?.váo credito no que diziáo em sea louvor, e desprezo dos outros» Silv, A'cerca disso vos contarei huiti caso ga- lante , que me aconteceo Domingo passado , . indo eu jantar com o nosso amigo o Com- mendador. Acertou elle a pegar n'um livro de Historia , e deo com huma noticia , que nos fez rir a todos quantos alli estávamos. Dizia o Author , ( e era dos vossos Francezes ) què o Cardeal de Richilieu , para diminuir a força da Hespanhã , tinha dado o Reino de Portugal ao Duque de Bragança , que depois se chamou D. João o IV. Quando isto ouvimos , não pu- demos conter o risoj enos admirámos de que, sabendo até as crianças da rua ahistoíia da nos- sa Restauração , este Author a ignorasse :, e com tudo não era Castelhano , nem escrevia contra os Inglezes , para dizermos que a pai- xão o cegou. Teoã. Bem sei que Autlior he esse : he o Abbâ- de Lãngkt du Fresnoi , o maior homem de Historia que conhecemos ; pelo menos o que mais que todos se cançou em methodo para a saber. Mas cegou-o a sua paixão : náo digo paixão de raiva , mas paixão de amor nimio da gloria da sua Nação : quiz dar ao seu Ri- chilieu a floria (que "não seria pequena) de dar hum Reino a quem quizesse. Amigo , Sil- vio , os meus Francezes , como vós lhe cha* mais , tambçm são homens como os outros , e es- I ^ Recreação Filosófica estáò sujeitos aos mesmos achaques : lá tem as suas paixões , e também encarecem muito as suas cousas. Silv, Ora graças a Deos , <]ne já vos ouvi fal- lar sem paixão; agora vos dou credito. Teod. Pofém o amor da verdade me obriga a dizer , que de ordinário náo encarecem tanto como os Hespanhoes. Eng, E cjue tendas vós , Teodósio, contra os que escrevem Historias com estilo nimiamen- te ornado? pois me parece que também falias- tes nelies na Regra que me destes para me acautelkr ? Teod, Digo 5 que o himio cuidado , que o His- toriador tem em ornar o estilo da sua Histo- ria, lá o faz de algum modo suspeitoso , náo na substancia, mas nas circumstancias. Fostes vós já, Eugénio, a S. Domingos deBemficaí Eug» Fui , e muitas vezes , porque tenho lá hum amigo íntimo. Teod, Oía á manha pela manhã vos mostrarei no grande Fr. Luiz de Sousa a descripçáo des- se Convento, e vereis huma cousa lindíssima , de sorte que vai encantando a quem a lè. Quem se deixar levar dessa descripçáo , for-' mará huma adrniravel idca da sua fabrica , co- mo a mim me acon:eceo , que ainda a não tinha visto ; porem táo grande foi o appetite que concebi de lá rr , quanta a minha descon- solação , quando lá íiji. Ellc náo falta emcou- sz nenhuma: á verdade ; porém de tal sorte a ôma , e" enfeita , que verdadeiramente engana , foítnando rodos idéa muito diveísa da relida-' - de. Tarde quadragésima. 175' de. Huma fonte <]ue tem hum sátiro , de tal modo 3e descreve , que o pensamento conce- be idéa de cousa extraordinariamenre bella , e desra descripçáo nasce grande desejo de se ir ver; porém topa tudo isto n'uma figurinha de barro , com feitio de Sátiro , n'um ridicuio ni- cho de pedra , assas tosca , e immunda dos li- mos 5 e da agua que sahe do tal sátiro. Quan- do a lerdes, haveis de rir, recreando-vos com tudo de ver a força da elegância daquelle ex- cellente Historiador , que sem mentir , assim sabe ornar, e engrandecer. O mesmo digo do nosso Jacinto Freire na vida de D. ]oáo de Castro ; e o mesmo se pode dizer de quasi to- dos os Panegyricos bons ; nos quaes quem qui- zer acertar em cheio com o alvo da verdade, deve abaixar algum tanto a pontaria , porque a pólvora levanta muito , especialmente nos grindes engenhos. Eug, Agora já vejo a razão , por que os His- toriadores , que ornáo muito o seu estilo , me- recem menos alguma fé no que toca ás cir* cumstancias do fscto. Teod. Por conclusão desta matéria vos havia de dar algumas outras regras , que commummente se acháo nos que tratáo esta Arte da Crítica ; porém não quero que â sua multiplicidade vos faça confusão , e em huma só resumirei o que acho em diversas. Para darmos credito a qualquer Historia y devemos de huma farte pezar a qualidade do facto , e sua dijjiculdade , e da outra pe- ^r a numero das testemunhas , e qualidade dei- 176 Rêereaç.lo Vilosoflcâ. delias 5 at tendendo d sua prudcncia , ao teití- po 5 e distancia do lugar em que escreverão , ao modo de narrar^ e paixão do animo, que inculcão 5 e ã conjormtdade de todas as cir- cumstancias , c testemunhos entre si ; e pard onde pezar a balança indijf crente , para ahi Prop. deixemos ir o nosso juizo» (Proposição ^9.) :J9. £^^g- Nessa regra incluis todas às quatro cpd me destes acerca das testemunhas , e íls qua- lío qué me dais ácefca dos HiscoriadoreSí Fi- ca na minha memoria ^ e usarei della^ Teod. Hoje os Modernos usáo bastantementé da Crítica ; e faz<2nd0 justiça aos Historiado^ res mais antigos , nos poupáo bastante traba- lho 5 mostrando-nos claramente aos olhos ou a prudente diíígencia delles em examinar os fa- ctos da Historia j ou a leveza com que afíir- máo sem fjndamento as cousas , fundando-se^ unicamente no i umor confuso do povo. §. Vlí. Dos Erros que nascem da corrupção y oh md intelligcncia dos livros^ 1'rfiilv. /^Otn effeito no tempo de hoje bem iç.-^ V>i apurada está a Critica ; e não sei se íí.; . diga que demasiadamente refinadâ.- Teod. O excesso nesta mater-a nunca pode ser mui prejudici-al; a falta de Critica sin). Mas ainda temos que obviar , meu Eugénio , ou- iro perigo , e origem de grandes erros , e vem r.z .ser a corrupção dos livros , e a sua má in- -WU tel- Tarde quadragésima. 177 icllígéncia. Que importa que hum Historiador lenha todas as boas qualidades , que o fazem digno de fé, se o seu livro ou está corrupto, ou eu náo entendo bem o que elie diz ? Silv. Nisso tendes muita razáo; porque he cou- sa assas commum lerem muitos o mesmo tex- to do Historiador , ou qualquer outro livro , e ficarem com mui diversas opiniões , dando-lhe cada qual a sua intelligencia. Tcoíí. Primeiramente no que toca á corrupção , pode elia ter muitos principios ; e disto trata cxcellentemente a Arte Crítica de João Cle- rico ( I ) .' aquelles livrinhos que hoje me vis- tes sobre o bufete , onde li esta matéria para refrescar a memoria. E fallando dos livros an- tigos 3 maravilha grande seria que ás nossas mãos chegasse algum , que náo esteja corrupto em muitas partes. Como só pelos annos de 1447. (5^ ^^ ^^^ engano) teve os primeiros principios á Arte de imprimir , todos os livros que até esse tempo se publicarão , erão ma- nuscritos j e nesse trabalho principalmente se occupavão os Monges daquelles tempos , ho- mens que náo podiáo ser peritos em todas as matérias que tresladaváo : daqui nascia , que havião de escrever muitos erros por falta de intelligencia, além daquelles em que ainda os mais intelligentes cahem por descuido. Os que dáo papeis a copiar, sabem por própria expe- riência quão desfigurados ficáo quando cahem Tom. Vn. M nas ( I ) Arte Crítica P. j. ses. I. O mesmo se acii;^ ' no P. Lamy daCongreg. do Orat. de França ao Apparato da Bíblia 1. 3. , e no Dupifi^ 178 Recreação FiUsoJiçd nas mãos de copiador , que não he kitefíigen* te da matéria. ^ug. Eu tenho padecido infinito com a copia de vários papeis curiosos , de oue queria fazer huma coliecçáo : todos me vem errados ; e al- guns absolutamente indignos de se conservarem. Teod. Acresce , que serem as letras antigas , os pergaminhos velhos , e ás vezes rasgados , e carcomidos, como também ser a lingua diffe- rente da que tinhão os copiadores , tudo são circumstancia^s , que indispensavelmente fariáa errar : e de mais a pressa nos escreventes, a ignorância ou inadvertência nos que dictaváo , a sua pronunciação pouco clara e distincta , era outra fonte de muitos erros. Além disso mui- tas vezes acontecia , que os copiadores vendo á margem dos livros algumas cotas, que cada qual fazia nos livros do seu uso , imaginayáa que tinhão sido esquecimento , e emenda de quem escrevera esses livros , e temerariamen- te mettião no corpo do livro o que achaváo á margem. Outras vezes se punha huma pala- vra em lugar de outra, porque se julgava sy- nonima , quando na realidade o não era ; e ti- nha diversa força e energia : outras vezeS: \\\>' ma palavra, que estava em abbreviatura , se não entendia bem , e se transcrevia sem que lhe dessem o seu valor , e já isto fazia mudar de sentido a oração. Também se encontrão ás vezes caracteres por antigos mui differentes dos que se usáq ; e quem treslada os confun- de e troca ; o que também acontece a quem copia Inscripções de sepulturas , e pyramides ; ppr- Tarde quadragésima. 179 pótqiié 0$ pedreiros ignorantes, e grosseiros de tal modo âs abrirão , que causão grande con- fusão a qnem ?s lê : e de tudo isto se origi- tláo muitos erros ; de sorte que quem confere muitas copias do mesmo livro antigo , nunca achará que perfeitamente huma concorde com outiai Silv. Eu sou tentado com ler rodas as InsCri- pções que encontro, ou nas sepulturas, ôupy- ramides , ou fontes ; e ás vezes nem para traz , nem para diante posso formar conceito das pa- lavras j estando ainda bastantemente vivas as letras. Teod, Nos livros antiquíssimos se acháo as pa- lavras escritas sem pontos, e virgulas, c ain- da sem separações dos vocábulos ; o que dá grande difticuldade á leitura. E isto se acha náo só nos Gregos 5 e Hebraicos antes do tem- po dos Masoretas , mas nos Latinos tambeiíi. Siiv. Nestes tenho eu encontrado muitas ins- cripçóes antigas bem pelo contrario , sempre separadas as palavras com pontos , como nós ■ agora fazemos no fim de cada oração. Teodé Assim fazião 03 antigos , e usavão sem- pre de caracteres grandes : depois mudarão pa- ra 03 dos Longobardos , mais semelhantes aos de hoje; e esta, mudança se acha também nos livros Gregos , e nos Hebraicos , como larga- mente trata o Padre Mabilhon ( i ). sE^^. Náo vos canceis tanto em me fazer ca- thalago dos muitos principios, donde podem nascer erros noá livros manuscritos , porque eu M li dis- ( i) De Re Diplomática ]. j. i8o Recreação Filosófica discorrendo pelo que vejo hoje nos papeis que leio manuscritos , infiro a confusão que trará comsigo a antiguidade. Teod, Acrescentai agora outra causa de erros maiores , que nascerão da temeridade dos Crí- ticos. Muitos , que se mettêráo a emendar os erros , que traziáo os livros , e as orações que achaváo sem sentido , puzerão o que melhor lhes pareceo; e seria muitas vezes cousa bem diversa do que seus authores quizerâo dizer , e disserão com effeito. A*s vezes seria melhor que deixassem ficar o claro em branco , ou esse erro , ainda que fosse despropositado , do que emendarem-no mal : porque quem fosse lendo , se encontrasse algum erro grande , ou algum branco no meio da escrita , logo conhe- cia que alii havia engano , ou falta , e ficava sem saber o que o Author disse , mas não fica- va enganado ; e estando o livro mal emenda- do , quem lê vai na boa fé , e cuida que o Author disse o que certamente não disse : e quem duvida que o engano he peior que a ig- norância ? já se ouve paixão , ou interesse em depravar de industria o texto, como era facil- limo haver , quem ha de depois dar no erro t Eug, Mas nós hoje estamos livres dessas con- fusões 5 porque todos os livros de que usamos são impressos. Teod. Assim he ; mas se falíamos dos livros compostos antes de se introduzir esta Arte de imprimir , que são innumeraveis , todos forao impressos sobre a fé dos que lhes servirão de originaes j e todos os erros que essa cópia ti- ves- Tarde quadragésima. \%i ves^ie, se rransfandíráo para a impressão. Este he o trabalho que hoje tem os bons Críticos, conferindo as impressões com os manuscritos mais antigos , que se conservão nas melhores livrarias, para deste modo corrigirem innume- raveis erros. Os Padres da Congregação de S. Mauro tem trabalhado muito nesta matéria , e tem feiío hum grande serviço á Igreja, refor- mando as impressões de muitos Santos Padres. Por estas razões 5 Silvio, nenhum homem pra^ dente hoje se atreve a affirmar de certo o ver- dadeiro sentir de Aristóteles , porque as suas obras tiverão taes contratempos desde que el- le as escreveo até que se traduzirão, e impri- mirão, que , se o mesmo Aristóteles hoje re- suscitasse , e lesse os seus livros , se não en* tenderia com elles. Silv, Que he bem lamentável desgraça. TeoJ, Parece-me bem essa constância : mas in- do ao nosso ponto , nos livros mais modernos menos erros na , porque os impressores se ser^ virão dos originaes do próprio Author , que são mais correctos. Mas que erros não trazem as impressões ainda as melhores ? Isto posro , Eugénio , tomai este dictame geral : Não de- vemos crer logo francamente aue tudo quanto vemos impresso com o nome de hum Author y foi dito for elle : convém certificar-nos que hou- ve nisso prudente exame ( Proposição 40, ) . Prop, . Para verdes quanto importa observar bem este 40. dictame , quero , além do que está dito , alle- gar-vos alguns exemplos , que vos hão de fa- zer mais prudente, e açautellado. Primeiramen- iSi RecreaÇão Filosófica te no que toca âos Authores Gentios : como ^endo alguns delies de grande nome , eráo os seus livros mui procurados, e pagos por bom dinheiro , falsamente se publicaváo em seu n - Bie muitas obras de engenhos alheios , e assim correrão muitos séculos. Nos Escritores Eccle- $iasticos tem acontecido andarem largo tempo misturados entre os livros verdadeiros , muitos apócrifos. S. jeronymo a cada passo ts,ii fa- zendo mençáo delies , alguns publicados em nome de S, Pedro , outros em nome de S. Clemente seu discípulo , ou de S. Barnabé , e de outros. Não faltou quem se atrevesse a pu- blicar hum Evangelho em nome de S. Tho- mé 5 e algumas Cartas com o titulo de S. Fau- io. Ao mesmo S. Jeronymo fizerão também esta injúria , imputando-Hie escritos estranhos ; e também a fizeiio a S. Gregório , a Santo Aíhanasio, a Origenes, e a outros muitos. Mug. Bem aviados estamos ; e quem se ha de íiar dos li vos ? se até debaixo de nomes láo sagrados se mente táo sacrilegamente. ^goí. Eu vos darei as regras , pelas quaes os melhores Críticos tem descuberto essas falsi- dades. • Silv. Essas quero eu ouvir com attençáo ^ por- que importáo muito. *T€od. A primeira he esta : Se conferido qual- quer livro cem os antigos exemplares , os acha- mos discordes , devemos estar pelos antigos Prop. (Proposição 41.). A razão he , porque piais 41. fé se deve áquelie exemplar que he mais che- gado ^o lefl^pp do Escritor 3 pois só na suppo- si- Tarde quadragésima. 185 sição de que aqueila obra he Feita por elle, ihe ciamos tanta fé , como ás suas palavras ; e bem se vê Que quanto mais antigo he algum exemplar , e mais chegado ao tempo do Es- critor , mais fácil he conservar-se pura a sua doutrina , e mais isenta de corrupção. Isto se entende não havendo especial razão de despre- zar esse exemplar por alguma circumstancia , como pôde acontecer : falíamos de regra ordi- nária. Silv, Isso he bem conforme á razão. Teod. Segunda regra : Se o que dizem os anti- gos de qualquer obra , concorda com o que nella vemos , deve julgar-se vor genuína , e sã; se não concorda^ deve julgar-se por sus- peitosa , ou em todo , ou em parte ( Proposi- Prop. cão 42). 42. Silv. Essa regra tem a mesma razáo que a pas- sada 5 e delia se tira ; porque he crivei que mais conhecimento tivessem da obra os anti- gos 5 e que forao mais chegados ao tempo do Escritor, do que nós qtie vivemos tão aistan- ^ tes desses tempos. Teod. Terceira regra : Obra , de que nenhuma menção achamos no século do seu Author , nera nos séculos imediatos , deve ter-se por suspei- tosa , senão houver razão forte em contrario (Proposição 4;.)* ^ razão he, porque nãohe Prop, crivei que ficasse essa obra (sendo desse Au- 4^, íhor) tão escondida , que ninguém nesse sé- culo , ou nos próximos tivesse noticia delia ; e também não he mui crivei , que tendo delia noticia, i\áo faliassena por algum incidente neg* 184 Pie cr e a cão Filosófica sa obra. Com tudo, como este argumento he dos quechamâo negativos^ náo tem tanta for- ça , que náo possa haver nelle engano ; e com effeito todos dáo por genuínas as obras de Phe- àro , e Quinto Curcio , não obstante serem au- thores , de quem nenhuma memoria encontra- mos nos séculos próximos ao tempo em que escreverão ; porém nelles se acha huma tal pureza de latinidade , e tal elegância , que ne- nhum prudente duvida que elles escreverão na- quella idade; e nem Phedro (como justamen- te ajuiza o Vernei com outros Críticos ) podia ser posterior a Tibério, nem Quinto Curcio a Vespasiano. Por isso nesta regra puzemos a* quelia excepção que dissemos. Silv. E justamente. Teod. Vai a quarta regra: Aquelles livros, ou lugares delles,^de que os Aritigcs duvidarão , ou que negarão , $ó com gravíssimas razoes Prop. se podem admittir ( Proposição 44.) . A razão 44. he bem clara, porque, regularmente fallando , melhor noticia havião de ter os antigos , do que nós , daquelles livros , que já no seu tem- po estaváo escritos. Com tudo pode aconte- cer , que pelos tempos adiante se descubrisse algum outro author até então escondido , co- mo v. g, o Phedro , ou Quinto Curcio , e do seu testemunho, ou de alguma Inscripção no- vamente desenterrada , como a cada passo es- tá succedendo , se deduzisse fundamento para se dar por legitimo esse lugar , ou livro , do qual os amigos duvidarão. Silv, Mas a não haver essa razão , devemos pru- Tarde quadragésima. iSj prudentemente encostar-nos aos antigos. Teod, A quinta regra que dão he esta : Se no livro se achao Sentenças entre si cppostas , de- ve suspeitar-se que está corrupto : excepto se for cousa de mui pcuca importância ^ cu se o Author j aliar só como quem se encosta d opi- nião dos outros , cu mostrar que se retrata ( Proposição 45.) . A razão he , porque não Prop. he crivei que hum homem de juizo diga cou- 45« sas encontradas , só se for cousa tão leve , e de pouco momento , que se supponha que o Author se esqueceo, e não reparou no que ti- nha dito. Também pode acontecer , que lem- brando-se bem do que dissera , e consideran- do melhor no ponto , mudasse de sentença. Santo Agostinho fez isto muitas vezes , e o fazem todos os que amão a sinceridade. Ou- tros nunca falláo segundo a própria opinião, mas somente segundo a opinião commum, e ás vezes só por modo de disputa , e não co- mo quem declara o seu sentir ; e assim faz muitas vezes Cícero , e Quintílliano. Súv» Também noHippocrates se encontra algu- - ma contrariedade ; e dizem os seus Commen- tadores , que he por esse motivo que allegais. Teod. A sexta regra he esta : Livro , em que se faz menção de successos , cu de pessoas , ou de controvérsias posteriores ao Escritor ; - como também se usa de palavras , e estilo, íjue no seu tempo não havia, bem se vê que he apócrifo de todo , ou em parte ( Proposi- Prop. çáo 46.) . Porque não havia o Author de fal- A^* lar do que no seu tempo não havia , nem co- mo l26 Becreaçao Filosófica mono seu tempo aiada se náo fallava. Está re- gra tem muita utilidade, e por ella se conhe- ce serem apócrifos , ou corruptos muitos livros. Por esta razão negáo os melhores Cnricos que seja' de Santo Athanasio o Symbol) que selha attribue, pois vemos que nelle se faz menção de muitas Herezias que nascerão muito depois i como são a de Nestorio , e Eutiches , poste- riores ao Santo. Mas isto he de profissão alheia. Silv, Deixemos isso aos Theologos. Teod, Elles são os que mais necessidade tem destas regras , porque nas matérias Ecclesiasti- cas he muito mais nociva a ficção, e mistura de sentenças , obras falsas , e espúrias , com os legítimos partos dos Authores iilustrados pe- lo Espirito Santo. Noutras matérias náo he tão nociva. A serima regra he esta : Se o livro es- tá cheio de desacertos , mentiras , e cousas itu dignas , não pode ser de homem douto , e- se- rio, ainda que traga o seu nome : ao menos Frop. está mui viciado ^ e corrupto (Proposição 47.) 47, Por força desta regra , cu;a razão he notória , está assentado que muitos livros não são ó:-- quelles Escritores , com cujo nome se honra- váo. Em nome de Santo Agostinho andavâo (entre muitas obras que elle nunca fez , nem podia fazer) huns Sermões aos Monges do hermo , e se nega hoje que sejão do Santo ; porque nelles dizia cousas indignas , e menii- rosas , como, por exemplo , que sendo Bispo de Hiponia , fora á Etiópia , e lá vira com seus olhos Centauros , c homens de hum só olho , e outras pataratas , de que todos hoje zom* bão: Tarde auadra^esima. 187 bão : noutros também usa o AutKor , quem quer que he , de hum tão ridículo jogo de pa- lavras , que bem se vè que não podia ser de hum Prelado sério , santo , e douto , como Santo Agostinho era. S'úv. Que nem os Santos desse caracter este- jáo livres de falsos testemunhos 5he grande mi- séria ! Tecíí. A regra oitava he esta ; Se o estilo he totalmente ídiverso do àaquelle século , ou do que tem o Escritor n'cutras chras certamente suas 5 dcve-se ter per suípãta a obra : como também se o estilo he totalmente semelhante ao de outro Author ^ deve-se attribuir a elle ^ a não haver razão forte em contrario (Pro- Prop. posição 48.) . A razão he , porque cada Escri- 48. tor tem o seu próprio estilo , que he como o caracter do seu animo : e assim como pelas feições do rosto conhecemos as pessoas , assim pelo caracter do estilo se conhecem os Escri- tores. Advirto porem , que deve hctver sua pru- dência no uso desta regra ; porque assim co- mo com a idade mudamos muito nas feições do semblante, assim mudamos também no es- tilo de dizer , especialmente se as obras são feitas em diversos tempos: e ainda que de or- dinário o espirito dominante do estilo sempre se dá a conhecer em cada Author , com tudo he certo que com a idade , estudo , e gosto , se muda ás vezes de tal forma o estilo ^^^^ nós m.esmos estranhamos as obras que fizemos em idade mais fogosa , e menos madura. Tam^ bem is vezes acontece que hum imitta tanto o "lS8 Recreação Filosófica o estilo de outro , cue com elle se confunde ; c temos disto exemplo, e comparação: exem- plo em hum discípulo de S.Bernardo, chama- ■• do Nicoláo, que totalmente lhe bebeo o esti- lo : comparação , por que também se encon- trão irmãos gemios , e tão parecidos , que to- dos os estranrios os trocão , e confundem. Es- ta advertência he de hum homem de grande authoridade na republica das letras , como he o Padre Mabilhon ( i ). Silv. Concordo nisso: mas assim comohe cou- sa mui rara encontras nos semblantes essaqua- si total semelhança , assim também he mui difiicil encontralla nos estilos. Teod. Resumindo agora , Eugénio , o que te- nho dito acerca dos livros genuinos , vos darei dous sinaes certos para os conhecer , cada qual delies basrantemente persuade que o livro he genuíno ; mas achando-se ambos juntos , fa- zem hum argumento certíssimo. O primeiro sinal 5 ou (como lhe chamâo) Nota dos li- vros genuinos , he este : Se houver Manus- critos dignos de estimarão , ou próximos d idade do Escritor , que trarão o seu nome : se o estilo , máximas , e opiniões são as mes- mas que o Author mostra em outras obras suas : se os Escritores próximos dquella idade attribuem essa obra ao mesmo Author ^ e na- da nella se encontra , que seja contrario d Historia daquella idade ^ ou seja indigna do Atithor y seguramente se lhe pdde attribuir o li- (i) Dá Studiis Mo/iasilcls y f, 2, cap. 15. Tarde quadragésima, 1 89 livro y sem escrúpulo ( Proposição 4' •) • ^^^^ regra he do Grande Mabilhon. ( i ). E já PropJ está assas explicada no que fica dito dos sinaes A9* dos livros apócrifos, e corruptos. O segundo sinal , ou Nota he este : Se hu- ma Tradução perpétua , desde os tempos pro- ximos ao Escritor , concorda com o livro ^ de- ve-se ter por genuíno (Proposição 50.) Esta Prop. regra he de Santo Agostinho, que a estabele- 50. ce fortemente , argumentando contra Fausto, terrível herege Manicheo. Tornai de memoria a força , e forma do seu argumento , porque lhe achei especial energia , e viveza , como pr pria deste grande Doutor ; e com pouca dif- íerença diz assim ( 2 ) : 5^ Eu não sei que vos „ hei de fazer, (diz o Santo ao Manicheo) „ quando vejo que a maldade de tal modo vos ^, tem feito surdos ás authoridadcs da Sagrada j, Escritura , que tudo quanto delias allego „ contra vós , achais que não forão palavras ,, proferidas pelo Apostolo , mas fingidas por ,3 algum falsario em seu nome- Tão manifes* „ tamente contraria he á doutrina Christã a „ que vós ensinais , que tláo podeis detender „ esta como Christã , sem dizer que são fai- „ sas as Escrituras dos Aposcolos. Ah , e co- „ mo sois infelices inimigos da vossa }r3pria 3, alma ! Qiie papeis terão já mais algum pe- „ ZO5 e authoridade , se a não tem as Escri- 3, turas Evangélicas , e dos Apóstolos ? Qual ( r ) No mesmo cap. i J. ([2) Lib. 5j. contra Fausto cap.. ó. í ^o Becrea çaõ Filosofca 55 ha de ser o livro , de cujo Author esteja* 55 mos certos , se duvidamos das Escrituras que 55 a Igreja diz , e afíirma que sáo dos Apos- j5 tolos, e forão por eiles propagadas , e por 55 toda a parte do mundo tão altamente decia- 35 fadas ? E quereis que tenhamos como dou- 55 trina certamente dos Apóstolos o que vós 55 dizeis 5 citando authores , que existirão tan- 5, tos tempos depois dos Apo.ioios! ,5 Temos as obras pròlanas, de cujos Au- '55 chores ftiognem duvida , nâo obstante que 5, alguns escritos Ihasquizerão tirar 5 attribuin- 55 do-as a diversos engenhos ; mas foráo repu- 55 diados, oii porque os livros da questão não 55 concordarão com outras obras , que certa- 55 mente eráo desses Authores ; ou porque na- 35 quelie tempo , em que elles escreverão , não 55 podiáo ptíblicar-se , e de então communicar-se 55 até á posteridade. É para não irmos mais longe 55 quantos livros se tem publicado em nome de 55 Hipócrates, os quaes os Médicos nunca recebe-- 55 rão como genuinos , sem que lhes valesse al- 5, gum arremedo nas palavras , e noutras cousas ; 55 porque combinados com outras obras certa- 55 mente de Hippocrates 5 nâo concordaváo com 55 ellas ; e porque quando se publicarão 5 todos 55 os mais escritos deste Author ninguém fez 55 menção destes : ora se nos perguntasse al- 55 guem donde nos constava a nós que erão verda- 55 deiramente de Hippocrates estoutros livros, 55 por comparação dos que reprovamos coma 55 falsos i se alguém tal pergunta fizesse, nin- ^ guem lhe daria outra resposia se nâo rir; • - » per Tarde quaãragesimd. ígi 5, por quanto havendo desde o terapo de Hip- 55 pocrates até o nosso tempo huma continua- j5 da 5 e successiva tradicçáo que o diz , duvidar 55 disso seria loucura. De Placão 5 de Aristo- 3, teies, de Cícero, de Virgilio , e de outros 55 Authores semelhantes , por onde consta aos 35 homens que compuzeráo os livros que se lhes 5, attribuem5 senão por huma continuada con- 55 restação em todos os tempos ? Assim tam- „ bem succede nos exritos Ecclesiasticos. Don- 55 de nos consta o Author verdadeiro deste, 35 ou daquelle Escrito 5 senão porque nesses 55 mesmos tempos em que o seu Author oses- 55 creveo 5 os communicou aos outros Chris- 55 táos 5 e publicou 5 e desses homens a ou- 35 tfos5 ^ ^ outros por huma contin-^tada notí- 55 cia se foráo communicando ; e crescendo 55 sempre com o tempo a sua firmeza , até 55 ultimamente chegar aos nossos tempos , de 35 sorte que se no; perguntarem o author des- 55 ses escritos, não temos a minima demora, 55 nem dúvida em dar resposta. Mas para que* 55 vou buscar cousas tão antigas? Eis-aqui es- ,5 tas mesmas cartas , que temos agora nas 55 mãos 5 se daqui a alguns tempos aíguem ne- 3, gar que aquelias são de Fausto , e que es- 55 tas são minhas ^ com que o havemos de 55 convencer ? se não com se ter communicâ- 35 do essa noticia desde estes qr.e hoje sabem 35 disto 5 até esses que viviráõ nos tempos fu^ 33 turos, por huma successáo continuada. 55 Ora sendo isto assim , quem ha de ser 55 táo furiosamente cego , ( s6 se por maLÍiciíi 55 se 19^ Recreação Filosófica 55 se tiver deixado perverter pelos demónios 3, mentirosos, e enganadores ) quem ha de ser 5, tão furiosamente cego , que sendo a Igreja „ dos Apóstolos táo fiel , táo numerosa , e táo 5, grande a concórdia dos Irmãos , negue que 3, Ella tenha fielmente guardado os seus Es- 3, critos , e commun içado aos successores ? ao 35 mesmo tempo que certissimamente sabe» 35 mos 5 que se conservarão até ao presente as • 3, suas Cadeiras Episcopaes ; e que a quaes- ^-33 quer escritos, ou fora da Igreja, ou dentro ^'33 deila com facilidade isto acontece? „ Até aqui he o argumento de Santo Agostinho , que no original tem mais viveza , e torça 3 do que na minha traducçáo. Sth» Na traducçáo sempre se perde alguma força, e enersía do original. Teod. Mas indo ao nosso ponto , bem vedes que o Santo dá por prova inegável da verda- de dos Escritos Evangélicos 5 e Apostólicos a Tradicçáo continuada 3 esuccessiva desde aquel- les primeiros tempos até os nossos. Sih. Só tenho contra isso huma cousa 5 que me faz alguma dúvida ; e vem a ser 5 que esses mesmos escritos que os Modernos Críticos dáo hoje por apócrifos , parece que gozaváo dessa posse fundada na mesma Tradicçáo continua- da ; e com tudo vemos agora que não eráo legítimos escritos dos Authores a quem ante- - cedentemente os attribuia a continuada Tra- dicçáo. Tcod. Enganai-vos , amigo , porque esses escri- tos apocntos conhec^m-se que osáo, porque a voz Tzitde quadragésima. 193 Vdzcoríimum que osactribuia a este, ouaquel- ie Escritor , não nascia daquelles primeiros tem- pos próximos a seus Authores ; por quanto se nascesse desde esses tempos ^ não os dariáo os Críticos por apócrifos, e falsos. Forao os Crí- ticos cavando bem, e examinando a Tradição até á raiz , e acháráo-na falsa , e viciada , e derão toda a Tradicção por nulla. Eis-aqui pa- ra que he o trabalho immenso de ir desenter- rar eddiçóes antiquíssimas ^ pergaminhos ve- lhos 5 lerras Gcthicas , e mui antigas ; conferir exemplares dos mais antigos Cartórios da Igre- ja , para examinar não a rama , mas as ulti- mas raizes da Tradicção. O Grande Pedro Da- niel Huerio na sua Demonstração Evangélica estabelece vários Axiomas, e no primeiro accres- centa a esta Authoridade de Santo Agostinho liuma paridade que faz força. Diz ellc: iV is- to não basta pam dar por legítimos ^os Sa- grados Escritos , digão os que is^c negao , com que provão que lhes pertencem Os bens heredi- tários de suas casas ? por certo que nem os títulos que censervão em suas casas , nem as ■Escrituras públicas dos Cartórios devem fazer mais fé aue a Historia ; antes menos porque os guardas destes titídos , e Escrituras são poucos homens , e ds vezes pessoas de pouca 'Consideração-', e os guardas^ que conservão os títulos , e Escrituras da Historia , he o Mun- do inteiro, Eug. Tendes razão : esse argumento he fortís- simo. Jeod. Ora supposto isto , já tendes luz bastâHr Tom. VII. N te 194 Becreaçno Fihsofica te para de algum modo vos acautellar de ín^ numeráveis erros , em que a maior parte dos homens tem cahido , originados da cbrrupçáo dos livros : falta ainda fechar outra grande por- ta , |X)r onde cosiumáo- também entrar no nos- no entendimento innumeraveis erros. \^amos a fechaiia , se a conferencia vos náo enfada , por ser longa. Silv. Aié eu estou com appetite de tratar esta matéria , porque a acho importantisaima \ qiian-- 10 mcis , Eugénio , para quem nunca são as conferencias largas. Eug. Por certo que faílastes a pura terdade. §. VIU. Dos erros y que nascem da md intelligencia: dos livros. Teod. Q Endo assim , vou continuando. Que O importa , meu Eugénio, que os livros> estejáo correctos , e que sejáo verdadeiramente dos Escritores , a quem se attribuem , se nós- náo os entendermos bem , nem conhecemos todo o seu sentido ? Eis-aqui pois a grande porta , que eu dizia , de muitos erros i e para isso dá a Crítica suas leis , e ha huma especial Arte , que chamáo Hermenêutica, Silv. A's vezes sobre lug?.resbem claros ao que' parece, ha infinitas dúvidas; e das mesmas pa- lavras tira cada hum sentidos bem oppostos. Teod, Varias regras dáo os Críticos , que eu de. pas- Tarde quadragésima. 195* passagem aponto, porque por ora Eugénio se contenta comliuma noticia mais ligeira , e bre- ve. Agora dar-vos-hei luz que vos allumee, mas que náo vos cegue , nem opprima ; porque sendo a primeira luz nesta matéria , náo deve ser forte. Quando vos for preciso podereis es- tudar mais a fundo qualquer destas matérias, que aqui se tocáo de passagem. EUg, Ensirtai-me como julgardes mais a propó- sito. Teod, A primeira regra He : Quem quizer en- tender bem qualquer Escritor , deve Icllo na língua em que elle escreveo , e entendei la bem (Proposição 51.). Prop. Silv. Pois náo basta ler âs Traducçõés , sendo 51. boas ? Teod. E tão fácil be achar huma Traducç?.o boa 5 e perfeita ? Neste particular náo digo o Sue sinto ^ por vòs náo escandalizar os ouvi- os ; se vós vos puzésseis a traduzir algum li- vro 5 conheceríeis praticamente a summa dif- íiculdade , que ha n'uma perfeita iraducçáo. Nem sempre ha palavras , que perfeitamente correspondáo a outras palavras ; akm disso os ídiorismos , e modos de fallar de cada língua , são diversíssimos ; as Frazes , a Energia , os Adágios 5 os Emphazes são intraduzíveis per- feitamente. Eis*aqui donde nasce grande parte da dífficuldade , que ha em entender a Sagra- da Escritura , quando não sabemos o Grego, e o Hebraico; e por isso nas boas Traducçóes que temos 5 encontramos lugares , que nos fi- cáo escuríssimos , a que náo sabemos dar' sen- N ii ti- 1^6 Recreação Filosófica tido 5 que nos satisfaça , e em rodas as maí^ obras he o mesmo. Fi>gi de Traducçóes c]uan- to puderdes ^ porque he difficillimo achar fiel- ment<3 o mesmo pensamento do Author com â mesma graça , com que elle o expressou. Eu tenho visto traducçóes indignas , c que fa- zem súmma injuria aos Authores^ , e também aos traductores. Nos livios de Mathematica, Filosoíia 3 e outras sciencias mais fácil he'; nas obras de Oratória , e Poesia , onde náo es- tá o ponto somente no que se diz , mas nd . modo com que se diz , he muito mais difíicil ; e a fazer-se p:írfeita , tem na mi-nha opinião muito mais merecimento do que o do propcia Author. JSug. A's vezes ainda os que somos da mesma nação ignoramos a verdadeira intelh*gencia de algumas frazes de outra Provincia diversa da- queila em que nos criámos ; e para isso basta fazer qualquer pequena digressão fora da Prc-' vincía 5 para se acharem termos novos , que . náo entendemos , se os- náo explicão. Teod, Dizeis bem ; ora ide lá entender perfei- . tamenre hum iivro d'um Author náo só d'uma Provincia diversa 5 mas de Reino, e lingua es- tranha , fiando-vos em traducçóes feitas, Deos sabe como. Por isso he tão difíicil a perfeita intelligencia dos livros Sagrados , porque forãa escritos em Hebraico, e Grego. Silv. Mas que remédio havemos nós de dar a isso , se náo soubermos essas lineuas , nem tivermos tempo, e. commodidade de as apren- der ? • " . . Teod. Tarde quadragésima. 197 Ttoâ. Quem tiver idade , e houver de seguir estudos , náo tem desculpa de náo aprender ao menos o Grego , já cjue a nossa felicidade he tanta, que temos hum Priacipe que nos facili- ta esies estudos. Mas suppondo que a idade, e occupaçóes o náo permittem , devemos sem- pre procurar a verdadeira intelligencia naquel- les, de que nos consta que sabem bem a lín- gua , em que o Author esereveo , e náo no? contentar com qualquer interpretação, seja de quem for. Silv, Isso desse modo já he mais fácil. ÍTeod. A esta primeira regra fazem alguns este prudente additamento, seguindo a Cicero (i); e dizem que dá muita luz , e ás vezes he cou- sa precisa para a perfeita intelligencia de al- guns lugares, o saber ávida, costumes, e gé- nio do Author , e os da sua Nação. A razáo bem manifesta he , por quanto do génio , e dos costumes do Author se pode bem inferir o sentido em que fallou. A's mesmas palavras dá differente sentido hum varão Santo , todo inflammado no amor de Deos , ou hum ho- mem perdido entregue aos vicies. Diverso fun- do se deve suspeitar n'um homem astuto, que num singello ; outro sentido' dá hum Professor de sciencia , do que hum ignorante , ás mes- mas palavras , que hum e outro proferem : por conseguinte os costumes , e génio dão muita intelligencia a alguns lugares. Do mesmo mo- do ( 1 ) Cicer. de Invtntlone , libr. 2, cap. 4. -Grotio, Puffcndorf. e outros. 19^ Recreação FilosoSca do se discorre dos costumes da Naçáo do Au- thor 5 ou da sua escola , pois que as frazes sáo táo diversas como as terras ; e dos costumes das Nações depende a diversa intelligencia das frases. £ug. Náo cuidei que tanto era preciso para en- tender hum livro , além de saber a lingua , em que estava escrito. SHv, A's vezes nem todas aquellas diligencias bastão para dar intelligencia verdadeira a al- guns lugares escuros. Teod. A segunda regra mais luz costuma dar, que he : Nao se devem tomar as palavras nuas 5 e descarnadas do contexto , e systema do Escritor ; mas deve-se attender a todo o systema , e princípios de que o Escritor se va- Prof). le (Proposição 52.). Por esta regra se resga- ^2» táo de nuina péssima reputação muitos Escri- tores 5 por quanto alguns espíritos turbulentos tomando entre mãos as suas palavras , e sen- tenças descarnadas de todo o contexto da mais obra 5 sentenceão a seus Authores sem pieda- de , e sem justiça. O grande Newton , Des- cartes, Woiíio, e Leibnitz, que injurias náo tem supportado pelos lerem sem esta cautela ? Tenho porém por certo , que quem os ler com attençáo, se os náo seguir, que ísgo he livre, sempre ha de Fazer delles outro conceito majs honorifico. Desta regra nasce, como consequên- cia , outro additamento ; e vem a ser : Náo devemos interpretar o sentido do Author^ ac^ commodando-nos ds nossas opiniões , mas d$ dellc \ nm indo jd de propósito assentando y Tarde quadragésima. 199 ^íie segue ou que impugna o nosso partido , mas havemos de entrar no exame do seu sen- - tir com total indiffcrem^a ( Propôs !ç5 o 5^)» Prop. Por quanto de outra sorte a nossa preoccupa- 55. çáo nos enganará. Contra este dictame pecca quasi todo o mundo , principalmente os c|uc estáo ligados a als^uma escola : todos acháo o que querem nas palavras do Mestre , a quem interpretáo. Lemora-me , que dizia hum Pro- fessor de Filosofia aqui na Corte (era dos Pe- ripateticos ) , que nunca abrira Aristóteles , que náo achasse facilmente com que provar as opi- niões, que queria estabsUecar. Silv. Esse defeito era da pessoa , e náo de ser Peripatetico, "Teod, Nem eu digo isso : este defeito onde he mais commum, e mais nocivo, e abominável he na intelligencia dos livros Sa^^ados. Os Pregadores, que violência náo fazem á Santa Escriturai ? Fazem-lhe dizer cousas , que nnn- ca o Çspirito Santo disse , nem podia dizer : e he 0s:te sacrílego abuso a cousa mais inrol- leravel , que se consente publicamente sem css- ligo ; e ainda mal, que ás vezes he recebido •con| applauso. Cheguei z ouvir a hum certo Pre- gador cios que chamáo bons , o qual tudo quan- to queria , achava nos livros santos , que quem ■ . melhor pregava , inais mentia. Este homem blasfemo, que se servia do Oráculo do Espi- rito Santo para instrumento da mentira, esta- va na opinião, que pregar bem he dizer cou- sas novas , e impensadas , que puchem por to- - da a admiração dos ouvintes. Qm bem , amboS acertáo , tanto os que pre- ferem o estilo moderno , como os que defen- dem e adoráo o antigo ; mas cada qual no seu sentido, Elles ambos usão das mesmas pala^ vras 5 e parece que as idcas são as mesmas > porém examinando-as , são diversíssimas ; er sendo as idéas diversas , os juizos devem tam- bém ser mui diffei^entes , a quererem julgar bem. Tarde quadragésima prima, 207 r bem. Nesse caso , em que estáveis , questicK riava-se se o Sermão era , ou não era bom, e perfeito; quem quizesse acertar, não havia de dizer promptamente sim , ou não , ainda que o tivesse Jido , ou ouvida com attençáo ; mas havia de examinar bem aquella idéa de Ser^ mão bom , e ver o que quer dizer esta pala- vra. Se por esta palavra queremos entender hum sermão cheio de pensamentos agudos , e delicados , de noticias , e fabulas exquisitas , de períodos harmoniosos, e discursos com no- vidade, que ejécitem a admiração, facilmente concordaráó todos , que os Sermões do Padre Vieira são summamente bons ; não ha perío- dos mais harmoniosos , nem pensamentos mais agudos, e engenhosos^ nem já mais Pregador algum pregou com mais novidade , e admira- ção. Nisto todo o mundo deve concordar ; e neste sentido nenhuma co .upa ração podem ter com elle os melhores Pregadores á moderna , (como dizem). Sílv, Tem boa dúvida : o Vieira he hum ho- mem , que fez inveja ás Nações estrangeiras ;. e posto que desta matéria não entendo , por- que nunca estudei Eloquência , com tudo as- sento íirmissimamehte , quehe o primeiro Pre- gador do mundo ; e graças a Deos , que já vos encontro huma vez concorde com o meu voto. Teod, Sem dúvida que concordo , e me parece ' que concordarão todos os homens de juizo. ^/7v. Agora vejo , que sois hum daqueiles , qiie o lem bem no seu lugar, - TeoL 2o8 BecreaçaÕ Tilosofica Tecdé Agradeço. Mas se nos por bom Scrníão entendermos , como entendem os Mestres da Eloquência com Santo Agostinho , hum dis- curso Evangélico , verdadeiro , solido , e gra- ve , que ensine , e desengane , que agrade ,- e mova os aífectos santos , e consiga o fim pa- ra que foráo na Igreja instituídos os Sermões, então todo o mundo ha de coTicordar rambem , que qualquer Sermão do Padre Bourdaloiie , do Padre Masillort , e dos que seguem os pre- ceitos deste estilo, excede incomparavelmente os do Padre Vieira : e cada qual pelo que em si experimença , o pode provar com evidencia. Não ha quem não confesse , que acabando de ler hum Sermão do VmrsL , fica alegre , e sa* tisfeito daquellas bellezas , que encantão na verdade; mas o coração lhe fica como estava d'antes , e as máximas do mundo ficâo tendo o mesmo domínio no seu juizo (ponho de parte alguns poucos Sermões ascéticos), e a inclinação aos vicios tão forte como de antes. Pelo contrario , lendo algum dos bons Sermões destes , que chamâo Modemos , o entendimen- to fica mais convencido , e o coração mais atacado, quando se não ache rendido. Não Ke assim, Eugénio? Eug. Não posso nega lio sem aggravat a mi- nha própria consciência. Nem Silvio o negará- SHv. Para converter peccadores não duvido que sejão esses Sermões melhores ; porem nóá o que queremos ouvir he hum discurso delica* do, e com novidade ^ que nos recreie, e caa-< se adnvração. Teod, Tar(k qtíadragésma prhna, 209 ÍTW. Indamal que tanto se busca essa indigna . delicadeza , e novidade. Porém nesse sentido não duvido concordar comvosco : somente di- go, que SC esses contendores explicassem bem o que entendiáo por esta palavra Sermão bom , logo a contenda se acabava ; por quanto n'um sentido todos dafiáo a preferencia ao Vieira, n'outro todos a dariáo aos Modernos. Por esta razáo vos digo, que antes de dar qualquer sen- tença nas questões, convém examinar bem o que se entende por aquellas palavras , sobre que principalmente roda a questão. £ug. Ficai deseançado , que náo me esquecerá essa doutrina. Teod. Ora eis-aqui porque os Modernos se can- ção tanto com as definições de ?iome. Èug, Qiie quer dizer definição de nome ? ^ Teod, Definição de nome hé a expressão clara do que eu quero entender por este , ou aquel- le nome. V. g. quando digo : Eu chamo bom aquillo que serve bem para o fim , para que foi feito. Estas definições são mui fáceis de fazer , porque cada qual pode dizer o que no ; seu pensamento corresponde a esta , ou áquel- la palavra ; e ninguém o pode contradizer, porque só ellé sabe o que entende por esta , ou aquella palavra : nem os de fora o podem im- pugnar, porque não estão dentro da sua cabe- ça. Verdade he , que não deve ninguém pro- ceder incoherente , isto he , que se agora por esta palavra bom entendo isto , não devo da-^ qui a pouco entender pela mesma palavra cou* sa diversa ; por quanto essa inconerenciá ori- Tom. VII. O §i- 210 Recreação Filosófica ginaria grande confusão ; e sómehte neste seti- tido me podem impugnar prudentemente algu- ma definição, qiíe faça. Silv, Também me devo accommodar ao usa commum para evitar a mesma confusão. Teod. Dizeis bem : mas isso be quando acho hum uso constante , e bem estabelecido ; e neste defeito tem cabido alguns authores, que sem motivo nenhum solido se affastáo dos de-- mais , dando ás palavras imelligencias diversas^ da costumada. Mas quando eu acho que á mes- ma palavra se dão diversas intelligencias, sem- pre ne utií explicar a minha ; e se os conten- dores dáo outra intelligencia , acaba-se a ques- tão 5 concordando eu com elles no seu senti- do 5 e elles comigo no meu ; alias he questão* de nome, só digna de rapazes. Silv\ Vós dissestes , que fazer estas definições de nome era facillimo; e eu sempre ouvi di- zer, que era cousa mui dífíicurtosa huma boa- definiçáo, Tecd. Duas castas ha de defin'çces : huma , que se chama definição de nome ^ e he facillima, porque consiste em explicar eu o que entenda por esta , ou aquella pah%'r^. Porem a defini- ção da cousa , (como dizem) he mais diffi- cil , porque nella sou obrigado a declarar quaes- são os predicados essensiaes , que constimem essa mesma cousa , c isto tem maior difficul- dade. Mas isto não he preciso para o que ago- ra traio. Eíig. Pois que dicrame quereis agora que eu^ tome na minha memoria i JeoL TCarde quadragésima prhnâ. m TcOtí. Este que já vos dei , e reputo por im- portante í Antes que formeis juizo algum y convém explicar o que entendeis pelo sujeito ^ € o que entendeis pelo predicado y ou attribu- to , em ordem A que não haja equivocarão (Proposição 58. )• Prop. Eug, Nisso estou , e já tenho percebido a ra- 58. záo do vosso dictame. Eu o gravarei na me- moria, e aqui o aponto, para não me esque- cer. Silv. Esse dictame não posso negar j que he uti- líssimo, mas he muito impertinente. Tedd. Seja embora , pois eu creio , que mais vale acertar de vagar , do que errar depressa : o meu ponto he ensinar a Eugénio a evitar er- ros, e não a dar sentença de repente. Poi" tan- to , Eugénio , convém reparar bem na idca do sujeito 5 e também na idéa do predicado, em ordem a que comparando huma com outra , prudentemente afíirmeis , ou negueis hum do outro 5 formando o vosso juizo : e para isso não basta olhar para essas idéas, convém exa- minallas bem , e fazer-lhes sua espécie de ana- ihomia. Eti^, Pois ensinai-ma a fazer , ainda que seja vagar. ^ O íi §. H 212 Recreação Vllosojlda % 11. Qm íQ deve fazer exame sobre as partes , Jef que se compõem qualquer Idéa. Onde se tra- ta das Idéas simples , e compostas i confusas , e dhtinctas, Teod, A Lgumâs idéas hâ, Eugénio, que lo S\ go á primeira vist-a se Conhece serem compostas de muitas ; e verdadeiramente mais se pode dizer , que sáo hum aggregado de idéas , do quehuma só idéa: como v/g. idéa cIe/?io;i- te de ouro , idéa de homem saíio , &c. Ou- tras idéas ha , que ou sáo , ou parecem skn- pies, como idéa da verdade ^ idca da existen' cia , idéa da cor , cct. Quando as idéas são evidentemente compostas , devemos observar este dictame bem importante , que a Lógica dá : Antes que formemos algum mizo acerca de alguma idéa , devemos dividúla , e exa- viinar miudamente as partes de que consta Prop. ( Proposição 59. ) • ^ ^^-^^^ ^^ ' porque sem 59. examinarmos bem cada parte de per si , não podemos saber se tem a idéa do sujeito alguma repugnância com a idéa do predicado ; e sem sabermos isto, temerariamente as ajuntaremos huma com outra. Silv.^ Este dictame he tão conforme á razão, que por si mesmo se insinua. Teod. Com este dictame vai outro equivalente , que vos quero dar , para explicar ambos corft - -« , exem- Taf de quadragésima prima. 21 j exemplos , pois essa prova he a mais congruen- te, mais clara, e mais útil. Eug, E também mais interessante , porque o animo se alegra, quando vè praticamente as utilidades que pôde tirar. A' maneira daquelle que anda minando , que tem particular conten- tamento 5 se a cada passo que dá, vai achan- do ouro , ainda que pouco. Mas que dictame he esse que dizeis ? Teod. Antes que ode, quero advertir- vos , que algumas idéas temos de certas cousas , táo con- fusas , que bem verdadeiramente não sabemos •explicar a nós mesmos , de que partes se com- põem esse objecto , que ideamos ; como v. g. a idéa , que tem hum rústico -ào relógio ^ que somente sabe que he hum engenho de mos- trar as hor.as , mas nào sabe de que partes consta essensialmente ; por isso alguns rústicos ficão pasmados , quando vem bulir aquella má- quina : e talvez alguns suspeição , que tem lá -dentro cousa viva, que f?z aquelles movimen- tos. Pelo contrario , o relojoeiro , ou pessoa >entendida , faz do relógio idéa mui distincta; isto he huma idéa , que separadamente lhe mos- tra as partes essensiaes de que se compõem o relógio ; ,ísto he , pêndula , mola , e determina- das rodas , etc. Isto supposto , já sabeis , que Idéas confusas chamamos dquellas , qne nos representão o objecto , sem que com distinccaó nos representem as partes essensiaes , de ^ue forçosamente ha de constar. . Silv. "^ Alli vai huma definição de nome. Teod. Dizeis bem, ainda que zombais. Semc- Ihan- 214 Recreação Filosofe a Ihanremente, idéas distitictas chamamos dqueU las ) que nos representão o objecto, e miudamente com separação as partes essensiaes , de que forçosamente ha de constar. Postas estas defi- nições 5 vai o dicrame da Lógica : Para for- mar algum juizo , nunca nos contentemos com idéas confusas y devemos procurar as distin- Prop. ctas, ( Proposição 6o. ) A razão he , porque 6o, sem eu ter idéa distincta d'um objecto , náo sei as partes essensiaes de que consta , e náo sei bem verdadeiramente o que he ; c assim não posso prudentemente dar sentença sobre elle. Que pôde dizer hum rústico d'um reló- gio 5 estando espantado a olhar para huma tor- re 5 admirado de ver que de dia , e de noite vai andando o ponteiro , e que o sino nunca falta em dar as horas a seu tempo ? Que po- de dizer qsiq. rústico , que náo seja sujeito a mil erros ? Peio contrario , aquelle que sabe muito bem de que partes consta o relógio, merece credito em tudo o que disser nesta ma- téria. Tendes dúvida destes dictames, Silvio? Silv, Sáo hunsdictames tão conformes á razão, que somente loucos os poderão impugnar; mas acho-os mui escrupulosos , e que quem quizer observallos , poucos juizos ha de formar. Eug, Mas serão mais certos, Silv, Isso sim. Tcod. Pois este he somente o nosso fim , acer- tar nos juizos qu^ fizermos. Vamos a exem- plificar os dictames, e seja o primeiro exem- plo de vossa casa , Silvio. Lembrado estareis a uma pendência mui renhida , que ha entre os Tarde quadragésima pri ma. 215: os Thomistis 5 e os outros Filósofos , sobre se a Lógica he Prática , ou meramente Espe- culativa: rem-se gritado muito nas aulas de parte a parte , e aiada está por decidir a ques- tão, e assim ficará até o fim do mundo. Mas dura á pendência em quanto senáo repara nes- te dictamc , que explico. Por quanto a idca cjue huns tem de coma prática , consta de mais huma parte essensial , que se nâo acha na idéa , que os outros formão. Os que dizem que a Lógica he doutrina prática , dizem que para isso basta ser doutrina , cujos dictamcs se pos- são executar por via de dirca^ão. E como a Lógica faz isto, ensinando-nos a discorrer, tei- mâo que he prática , e daqui ninguém os tira. Os contrários dizem , que para ser doutrina prática he preciso alem disso, que a obra exe- cutada por via dos dictames seja ccusa exter- na ; Q como os actos do entendimento , qu& são o objecto dos dictames da Lógica , não são cousa externa , clamão em Ceo, e em ter- ra que a Lógica nunca foi , nem pode ser prá- tica. £ug. Ora eis-alli apartada de huma vez toda 2 pendência. Sitv. Assim he. Mas se me dais licença , Teo- dósio , julgo esse dictame por escusado , de- pois de terdes dado o outro da definição dif nome. Tcod. Não he supérfluo , antes preciso para se formar bem a definição: este dictame , e ou- tros , que vou a dar , concorrem para eu poder explicar bem qualquer idéa 3 e nâo s6 para is- so. 21 6 Recreação Eilosofíca so , mâs para a formar bem , e coherentemen- te á que formão os demais homens ; de sorte cjue a definição de nome he para explicar aos outros a idéa que eu tenho na cabeça ; e este? dictames servem para cu conhecer bem o que he essa idéa , que costuma fazer-se , e para a formar bem direitamente conforme devo, Silv. Estou satisfeito, continuai. Tecd. Vamos a outro exemplo de nossa casa. Dizem os Neutonianos , que entre todos os corpos celestes ha huma virtude attractiva , que mutuamente os pertende ajuntar. Os senhores Peripateticos dizem o mesmo do ferro , e do iman, e do alambre , e palhinhas , etc. e alegrão-se naturalmente quando ouvem fallâr a qualquer Neutohiano nesta virtude attractiva , parecendo-ihes que já não poderemos negar a que elles admittem entre o ferro, eiman. Náo he isto assim , Silvio ? Silv. Pois sevos admittis essa virtude entre to- dos os corpos celestes, com que consciência podeis negar a que nós damos ao iman a res- peito do ferro ? ^Teod, Vedes , Eugénio , que Silvio se persuade que he o mesmo a virtude attractiva dos Neu- tonianos , que a dos Peripatheticos ? Pois sa- bei , que náo ha cousa mais diversa. Os Peri- ^ patheticos dizem, que esta virtude não he cor- po , por mais subtil que seja ; nem também consentem que seja espirito j dizem que he hu- ma qualidade occulta , e material j mas náo matéria , a qual faz aquelle effeito. Silv. E que dizem os Neutonianos da sua virtu- de attractiva i T^od» Tareie quadragésima prima. 217 Teod. Assentáo , que se não he a Mão do Creá- dor ( a qual obra estes effeitos segundo as leis , que estaoeleceo, quando ordenou a natureza), he algum fluido sulDtil , tendo por impossível que haja essa qualidade occulta, que nem se- ja corpo 5 nem espirito. Por aqnella palavra enrenaem somente a propençáo, e força para o movimento (seja qual for a sua origem); por isso parecendo estes systemas semelhantes em quanto usamos de idéas confusas , se co- nhece que são summamente opposcos, se que- remos usar de idéas distinctas. Bug, A verdade he , que em quanto nós con- fusamente olhamos para duas cousas , não po- demos com prudência affirmar que concordáo , e tem parentesco , ou que repugnâo ente si ; e só depois que sabemos bem , de que consta cada huma dessas cousas 5 he que o podemos affirmar. ^eod. Advirto , que pârâ ser distincta a Idéa , basta que represente as partes essensiacs , de que se compõem o objecto ; e não he preciso que represente miudezas accidcntaes. No exem- plo do relógio me explicarei. Para eu formar numa idéa distincta do relógio , basta que me represente as partes essensiaes ao movimento regular , proporcionado ás horas ; e importa bem pouco que me represente se he relógio •' de algibeira, se de parede, se de ouro^ ou de prata, ctc» Passemos adiante. §. III. •21 8 Recreação Filosófica §. III. Convém examinar se as idéas sao RespC" ctivas y ou não. jEug, A Té aqui vou percebendo muito bem. Silv. -^ Sáo as cousas táo claras , que outro entendimento muito menor que o vosso as per- ceberia , e tão claras me parecem cilas , que me querem parecer supérfluas. Teod, Amigo Silvio , hum dos princípios de frandes desordens nos juizos , e nas acções dos omens , he desprezarem muitas cousas , peJas julgarem supérfluas , e ás vezes não o são. A experiência vos desenganará bem depressa. Hum dos diAames , que vós julgareis bem supér- fluo 5 he este que vou a dar-vos agora , e na verdade he dos mais importantes. Algumas idéas ha, Eugénio, que dizem essensialmente ordem a outra cousa de fóra , como v. g. idéa de semelhante y que diz ordem a outra cousa, ■ á qual ha de ser semelhante ; idéa de maior y ou de menor ; idéa de igual , ou desigual , etc, £ug. Percebo clarissimamente. E como cha- mais a essas idéas , que dizem essa ordem a outra cousa ? yeod. Chamamos idéas Respectivas ', pelo con- trario as idéas que não dizem esta ordem , ou comparação a outras cousas , se chamão jib^ solutas 5 como v. g. a idéa de pdo , ou pedra , ou fogo y etc. Ora convém muito separar hu* mâ$ Tarde quadragésima prima. 219 mâs idéas das outras ; porque se acaso nós usamos diurna idéa respectiva , como se fosse absoluta, infallivelmente tropeçamos. Silv, Só algum cego poderá tropeçar em cou- sa tão clara , e plana. Teod, Não duvido j porem sempre he caridade advertir aos cegos , que não tropecem ; e sem- pre he boa a rodos a advertência , porque ha muitos que tem os olhos limpos , e não vem , porque padecem gota serena. Mas agora me occorre , Eugénio , fazer-vos huma pergunta ; e para que me não esqueça , a faço já. jDizei- me : Poderão duas cousas ser do mesmo ta- manho ; e sendo huma mui grande , ser a ou- tra mui pequena ? Vós rides-vos da pergunta ? JE«g". Parece-me que he impossível. Silv. Não digais isso com susto , que não ha perigo de erro. Teod. Pergunto mais: E se eu disser, que hu- ma cousa mui pequena , pôde ser maior que outra disformemente grande , que direis vós í Silv. Que dizeis hum grande paradoxo. Xeod. Ora estimo saber isso, porque estava cá - n'um erro terrivcl ; e o caso está que ainda se me não pôde tirar da cabeça : e tenho para mim que numa cousa sendo mui pequena, não obstante isso, pôde ser maior que huma mui- to grande : e também digo , que sendo duaj cousas bem iguaes, pode huma ser mui gran- de, e a outra mui pequena. Silv. Se tal credes , he preciso que vos deixeis sangrar , porquç tendes o cérebro offendido. T^od. Talvez que vos não enganeis. Mas di- zei- i20 Recreação Filosófica zei-me : O meu cão chamado Tigre não me tendes dito , que he monstruosamente grande ? Não o podeis negar : também não negareis, que o cavallinho Galego , em que os meus fi- lhos andáo pelo jardim, he mui pequeno , edo$ mais pequenos que tem apparecido na Corte. Silv. Náo ha duvida , que ainda não encontrei nenhum tão pequeno. jE"»^. Já sei onde vai amalicla: estais perdido, Silvio. Teod. Pois ahi tendes huma cousa , que hc es- tremosamente pequena , e ainda assim he mui- to maior que outra , que vós dizeis monstruo- samente grande ; porque sendo o cavallinho mui pequeno , sempre he maior , e muito maior que o cão que vós confessais ser de dis- forme grandeza. Meus amigos, convém repa- rar muito nas cousas , e examinar se a idca he Respectiva , ou Absoluta : nem isto he tão fácil de conhecer , como se cuida , porque Sil- vio com toda a sua agudeza o não advertio, c tropeçou na equivocação. Se vós advertis- seis , que a idéa de Grande era respectiva , não terieis por paradoxo , e loucura dizer eu , que huma cousa mui pequena podia ser maior que outra muito grande : e agora náo o podeis ' negar. Eug. Pois que , Silvio? Sois cego , ou tendes * gota serena , que assim tropeçastes ? Teod, Deixai isso, Eugénio. A idéa absoluta, ' amigos, como não diz ordem , nem depende de outra cousa , por si só tem toda a sua si- •' epificação^ e em qualquer proposição, que s© Tarde quadragésima pf ima, 22 r ' ponha â idéa , sempre quer dizer o mesmo : por isso dizendo eu numa vara , hum palmo , ou huma pollegada , sempre digo o mesmo , quer diga palmo de páo , quer palmo de pan- no, quer palmo de pedra, etc. sempre a idéa de palmo quer dizer o mesmo, porque he ab- soluta ; mas a idéa de grande ne respectiva , e quer dizer : Maior que as cousas ordiná- rias da sua espécie. Por isso hum coelho , que tiver dous palmos, he grande -, e hum carnei- ro , que tiver só dous palmos , he pequeno , porque este he menor que o ordinário , e o coelho maior. Ora dizendo esta idéa ordem, ' e comparação a cousas diversas, claro fica qus . he respectiva ; e que applicando-se aos caens , quer dizer hum tamanho ; e applicando-se aos coelhos , outro ; e applicando-se aos cavallos , outro; e daqui nasce toda a equivocaçáo. Silv, Ainda digo o mesmo , que são equivoca- çóes essas , em que só cahe algum cego: eu me equivoquei na proposição , que como laço vós me armastes ; porém eu não cuidava que vós me propuzesseis enigmas ; se discorresse- . mos seriamente, logo havia de perceber o en- . gano ; e ninguém me parece que errará em discurso sério por falta desse dictame , ou re- . flexão. Èug. Seja isso assim muito embora: não gas- temos com isto tempo. Ponde-me vós , Teo- dósio , mais exemplos , que me confirmem na , intelligencia dessa doutrina. Teod. Já sabeis , que David sendo hum pobre . pastor, fez huma proeza admirável, vencendo 221 Recreação Filosofíc/i o Gigante , homem de estatura monstruosa 5 e bem armado, e versado na ^erra por muitos annos , e além disso dotado áe hum animo au- daz 5 e atrevido ; circumstancia , que dobra, as forças 5 e dá valentia. Ora supponde, que outro Gigante igual era accommettido por todo o exercito dos Israelitas , e que era vencido , e morto, e que eu dizia assim : David matan" do a Goliat , fez huma proeza admirável ; o exercito todo }ez outro tanto ; logo o exercito todo fez huma proeza admirável. Que dizeis vós deste discurso? Eug, Não "me parece bom. Tecd. E com razão; mas o vicio está em que toma huma idéa respectiva como se fosse ab- soluta. Ser huma acção admirável , he cousa que diz ordem ás forças com que se faz ; e da comparação com essas forças he que nasce ser , ou não ser admirável. Ora comparando aouella acção com as forças d'um homem só, como era David he cousa rara ; comparando-a porém com as forças de hum exercito, nãohe cousa 5 que se possa chamar proeza , nem cau- sa admiração. Por conseguinte a idéa de proe-^ za admirável na primeira proposição quer di- zer cousa muito superior ás forcas ordinárias de hum homem ; e na ultima , quer dizer fO«- sa muito superior ás forcas ordinárias de hum exercito. Vedes como debaixo da mesma palavra proeza admirável se vem a entender cousas diversas ? Pois eis-ahi onde está a ma-» licia do argumento. Eug. Confesso que he bem importante essa re- jllecçáo. Teod, Tarde quadragésima prima, 225 jTeoJ. Ponhamos outro exemplo. Dizia Silvia hum dia desres , que se conseguisse hum bom partido, que pertendia , que viveria bem con- tente em toda a sua vida : náo he assim ? SHv. Assim o disse , e o digo j porque em hum homem conseguindo o que deseja , forçosa- mente ha da viver contente ; e eu náo dese)0 mais nada do que ter huma boa renda com pouco trabalho ; e tudo isto comsi^o , se me derem o partido que pertendo : vede agora co- mo poderei eu deixar de viver contente? Teod, Que dizeis áquelle discurso, Eugénio? Eug. Parece-me bom. Teod, Pois eu com a liberdade que me dá a J ogica digo 5 que he erradissimo. Ainda que vos dessem esse partido , náo viverieis contente ; é para vosso desengano , basta ver que todo o muiído se engana com discurso semelhante. Todos andáo suspirando pelas riquezas , cren- do que acharão nellas huma vida tranquilla , e socegada ; e todos se enganáo , porque quan- to mais ricos os acho, mais inquietos os vejo, ' e mais cheios de cuidados; JEug. A verdade he , que praticamente com as riauezas vem os cuidados , e des inquietações. Teod. Convém logo descubrir onde está o vicio • do discurso , com que Silvio se engana , e to- • do o mundo com elle. Na primeira vista o discurso he bom , porque diz assim : Quem con- seguir tudo o que deseja , viverá satisfeito i ' €u só desejo riquezas : logo se conseguir ri- quezas , viverei satisfeito. Mas na realidade o ' discurso he vicioiio , como se conhece na ex-. 224 Recreação Filosófica periencíâ : e o vicio está , em que se hão exá^ mina bem huma idéa respectiva , que nellô vai ; Viver satisfeito , diz ordem aos desejos , que então forem presentes , e não aos desejos passados. Que importa , que com as riquezaí^ satisfaça eu os desejos que antes tinha , se com ellas me vem outros muitos desejos , que não posso satisfazer? E não basta saber que huma idéa he respectiva ; convém reparar bem nisso a que ella diz ordem , para ver se a proposi- ção he verdadeira ou falsa. Aquella primeira proposição , Quem conseguir tudo o que dese- ja 5 viverá satisfeito , parece certissima ; e he muito falsa ; porque completos todos os anti- gos desejos , podem nascer outros de novo, que embaracem a satisfação do animo , e a tranquiliidade : e a idca de satisjeito diz ordem a todos os desejos ^ que poderáó haver, nesse tempo da satisfação, e não só aos desejos pas- sados. Vede vós agora, Silvio, se he tão fá- cil como vós dizieis acautelar estes erros , quando vós , e o commum das gentes cahem nelles ; e vos enganais ainda em discursos sé- rios, e bem graves. Súv. Em tudo se requer miudeza, c cautela. Teod. E muito mais naquellas cousas que pare-* cem claras logo na primeira vista. Pelo que de- . veis imprimir na memoria este dictame : Con-* vém examinar bem se a idéa he , ou não res- Prop. pectiva ^ e a qiie objecto diz ordem ( Propo- 6i. sição 6i,). Já fica manifesta a razão destedi- ctame. Eug. Não hé preciso repetilla , c não me esque* .cerei dellc, §. IV» Tarde quadragésima prima. 12^ §.iv. Não se ha de confundir a idéa das Cousas cmi a idéa dos seus Modos. Silv» T) Raticamente tenho visto , que onde me- Jl nos se temem ôs perigos , ahi se de- vem ellcs temer mais , porque então mais se disfarção. Teod. Convém íogo fazer estes exames com vagar , para evitarmos os perigos que á pri- meira vista se não descobrem : e por este mo- tivo se dáo estes dictames , posto que sejáo tão claros , e namraes , que pareça que ninguém os ignora. Não os damos 5 porque o entendi- mento os ignore , mas para que faça nelles reflexão ; pois vale o mesmo ignorar hum pre- cipício, ou náo reflectir nelle. Isto supposto, continuemos. Duas castas ha de idéas : hu- mas , que representão as cousas* ^ outras , que representão os modos delias ; e bem vedes, que tem grande diversidade entre si : por tan- to «e confundirmos humas com outras , tere- mos grandes erros ; nos exemplos vos ins- truirei melhor. Supponhamos , que eu discor- ro assim: Fos hoje ^ Eugénio^ comestes o que tu comprei : eu comprei humas perdizes cruas^ logo v&s comestes perdizes cruas. Q.ue haveis de responder? £ug. Que isso não he assim , por quanto o vosso cozinheiro as tinha muito oem prepara- das. • Tom. IV. P ^^Oíf, 2^6 Recreação Filosófica TeoíL Mas náo basta dizer (^c náo ^ pára res- ponder a hum discurso , cjue vos obriga a (íi- zer que sim. Vós náo duvidais da prímeir* proposição ; por quanto tudo o que" appareceoF na meza , foi comprado , e assim náo duvidais que s{> comestes o que comprei, Eng. Nisso náo ha dúvida.' Tcod. PoÍ5 também a náo pode haver, que eu comerei as perdizes cruas. E com rudo a con-- sequencia he falsissima. Convém aprompcar o vicio deste discurso ; e para vos náo atormentar mais. 5 eu o digo ]L A<]in> confundè-se a idér^ das cousas eorn a idéa' dos seus modos. Ser perdiz, ou sQt frangão y ou ser patOy etc. sáa cousas ; mas estar cru , ou cozido , estar rw- . teirO' 5 ou trinc-hado , são os diversos modos , com que* pode estar a mesma cousa. Ora vós- bem vedes , que coufundindo-se a substancia de qualquer cousa com o seu modo , se podem arniar grandes cavillações , e enganos ;: e tal he o do discurso^ , que tratamos. Na primeira- proposição que dizia : P^ós comestes o que com-- . preíy. aqiiella idca o que comprei^ ou se pôde tomar peia substancia da cousa que comprei , ou pelo modo dessa cousa : se o tomarmos pe-- la substancia da cousa simplesmente , he ver- dade o que se diz;, porque se comprei perdiz, comestes perdiz ; se comprasse coelho , ou lei- toa, ou rola, issQ mesmo havia de ser , o que vós comêsseis : porem se aquella palavra o que comprei , quizerem tomalla náo só pela subs-, tancia da cousa comprada V mas pelo mo^ío com que estava quanda a comprei, entáo £ca. ■ . a ^àrâe quaãt^âgesima prínia, 127 Ú. proposição falsa , porque comprei as perdizes truas , comprei*a$ com pennas , comprei-as í/7- teiras, comprei-as /r/^í , comvr^i-As pmdura- das ; e de nenhum destes modos escaváo quan- do vós as comestes : pelo que como na segunda proposição se fallà no modo , com que estaváo as perdizes , iá se vê que maliciosamente se confunde a substancia com o mvdo , e se faz grande enganOi Silv. Já vejo que he necessário ser hum homem mui advertido para sé não ver obrigado a con- ceder que comeo perdizes tom pennas* Ora supporldc vós ^ que eu fazia este discurso: Peara verideo-nte o que eu comprei : eu com- prei perdizes cruas : lego Peafo Vemiec-me perdizes cruas. Que vos parece este discurso ? *Teod. Parece^me bem ^ e nao tem vicio ; por* que na primeira proposição aquella ídcâ , o que comprei^ póde-se tomar não só pela subs* lancil da cousa comprada, mas também pelo modo com que estava quaíido a comprei ; pois ainda nesse sentido he verdadeira , por quanto daquelle mesmo modo que ellas estaváo , quan- do as comprei^ estaváo quando elle asvendeo. Pelo contrario naqueroutra proposição í Comes- tes o que comprei y essa palavra deve tomar-se só pela substancia da cousa comprada j e não pelo modoj e condo na segunda proposição des- te discurso se faz menção do modo , temos passagem da substancia para o modo, no que «stá a caviUaçâOj e engano. Ji/v. A^ora está bem entendido o dictame. T«odJ Quero*vos pôr outro sofisma galante , P ii que 228 Recreaçáo Filosófica C|ne pode fazer tontos aos mais expertos.- Çs- taveis vós , Eus^enio , ouvindo hum Sermão, e disse o Pregador : JDeos não he injusto y po- rem por má percepção do vosso ouvido , tiáa percebestes bem a primeira syllaba do injusto i e só arvistes as duas ultimas , j^tisto, SHv, Isso íieeaso, €|ue mii vezes acontece, aáo- percebermos todas as syllabas, nem ainda to- das as palavtas , que o Pregador verdadeira- mente disse-, Teoíl. Ora supposta este caso , digo eu assim : Tudo o que vos ouvistes , foi dito pelo. Pré- gador. F^d's ouvistes- huma herezia , logo & Pregador disse huma herc%ia,. Que vos pare- ce^ este discurso , Eugénio ? £ug.. Máo 5 e péssimo. Teod. E onde está o vicio í JEug, ^^ós O" direis ; e talvez ahi haverá algu- ma equivocação do modo com a substancia-. Teod, Isso he. Oihai , amigo, qualquer -palavra ou se pode tomar pela suDstancia do S07}i , ou peio modo com que se profere ; isto he , ser acompanhada , ou desacompanhada de algu- ma outra voz ou syllaba , que mude , ou con- iirme a sua significação. Esta palavra justO' foi proferida , e foi ouvida ; mas foi ouvida- de hum modo , e proferida de outro : foi ou^ vida só, isto he., sem a syllaba í?í, que des- mancha , e destroe o que elia significa ; mas foi proferida , acompanhada daquella syllabx in: ora vai grande differença nistaj porque se o Pregador áisser nao he justo , diz huma hc- lezia ', e se disser não he injusto , diz huma V3r- Tarde quaò^agesima pfhna, 229 verdade do Evangelho. Pelo que , examinan- do na primeira proposição aquella idea : O qm vós ouvistes , ou se pode tomar pela sub man- eia do som ^ e então he verdidej pois todo o som que entrou pelos vossos ouvidos , sahio pela boca do Pregador j ou se pvSde tomar pe- lo modo desse som , e então fica a proposição falsa 5 porcpe a palavra justo sahio da boca rei o que for preciso para a instrucçáo que per- tende ter ; e o mais que for preciso para al- gumas disputas das aulas , particularmente o trataremos ( i ) , em ordem a não confundir a Eugénio com as cousas que elle não entende, e por outra parte não deixar truncada esta ma* teria na vossa presença , que sabeis dar iodo . o valor á sua importância. SiW> Seja muito embora. ,- Teod, (1) Nas notas se dirá o que só serve paia as aiiias, e para quem tem intelligcncia. 234 Becreaçílo Filosófica Teod. Haveis de saber , Eugénio , que quindo ajunto qualquer objecto com huma cousa que lhe pódc dar aiguma denominação, faço hum concreto : á força de exemplos me farei enten- der com clareza. Ajunto o homem com as ri- (juezas , e daqui nasce denominar se rico ; c tórmo este concreto rico ; do mesmo modo se ajuntar a pedra com a brancura , resulta da- qui chamar-se branca ; faço outro concreto que diz branco. Ora este concreto branco com- póe-se de duas partes : hunia , que chamáo sujeito 5 e vem a ser a pedra \ outra , que q\\^' tnzo forma , evem a ser z brancura. Do mes- mo modo o outro concreto rico compóc se de duas partes : huma , que he o sujeito , c vem a ser o homem ; outra , que hc a jorma , que vem a ser as riquezas, Eug. Como poderei eu conhecer qual dessas partes he sujeito , e qual he forma ? Teod, Facilmente : aquella parte donde nasce a denominação , he a forma ; e aquella ortdc cahe a denominação, chama-se sujeito. VÓ8 bem vedes , que das riquezas he que nasce ô chamar-se Pedro rico ; por isso as riquezas se chamáo forma do tal concreto , e homem he o sujeito delias. SHv. Não vos demoreis nisso , que he claríssimo. Teod, Ora como todo o concreto consta de duas partes , eu posso olhar para huma direitamen- te , e como defronte , e para a outra olhar obliquamente , e como de ilharga. ( i ) Vê^Ò» is* ( 1 ) Nas Escolas se explica isto , dizendo que huma parte vai iii recto ^ e outf4 inçbli^w. Tarde quadragésima prima, ajf ' isto quando eu digo v. g. Salomão foi riço; lu palavra rico , o cjue faz figura principal he só o sujeito das riquezas , porque eu náo di- go , que Salomão foi riquezas , mas que foi sujeito , que as possuioj ora dizendo eu isto, bem vedes , que o que eu affirmo desce grande Rei , não são as riquezas , mas o ser sujeito possuidor delias; e dizendo eu: Sujeito possui^ dor de riquezas , lá olho para as riquezas obli^ quamente , e como de ilharga; mas o que vai em principal figura ser predicado da proposi- ção , e o para que eu olho direitamente , hc o sujeito possuidor ; e as riquezas só são atten- didas como cousa que pertence ao predicado. ^ug. Bem entendo tudo isso, 7'iod, Adverti pois, Eugénio , que aquillo quô verdadeiramente se affirma de qualquer sujei- to, isso he o predicado: também advirto, que o aflirmar deve ser pela palavra he. E assim quando uso da palavra teni , ou outro verbo , devo reduzir, e explicar a proposição ponaes termos , que use da palavra he , para conhe- cer qual vem a ser o predicado; c por isso se digo : Pedro tem riquezas , devo reduzir essa proposição a esta : Pedro he possuidor de ri- quezas ; e então se vê , que o que eu affirmo de Pedro he o ser possuidor , pois só delie he que se verifica que he o Pedro : com isto se acau- telão muitos erros. Isto posto , vamos ao que importa muito. Já disse que o concreto tinha duas partes, sujeito ^ e forma, ' ^g. Assim he. Tçod. Di§senaais, que podíamos olhar para hu» ma ^ 3 6 Fiecreaçãõ Filosófica . ma direitamente , e como defronte , e pára t outra obliquamente 5 e como de ilharga. Eng. Estou nisso. Tloíí, Ora bem : agora accrescento , que posso hzer isto de três modos mui diversos. O pri- meiro he olbar principalmente para o sujeito , e obliquamente para a forma : o segundo he olhar principalmente para a forma , e obliqua- mente para o sí^jeito : o terceiro olhar princi- palmente para o sujeito , e forma rudo junto. Silv. Nunca tal ouvi na minha vida : sempre me creáráo , que só para o sujeito se devia olhar principalmente , c para a forma sempre obliquamente , ou como dizemos nas escolas in obliquo ( r ). Teod, Por isso eu dizia , que algumas novida- des havieis de encontrar ; mas depois particu- larmente fallaremos nisso. Por ora vou atten- der a Eugénio , e dar-lhe exemplos destes três modos de olhar para as partes de que se com- põem qualquer concreto. £ug. Sempre com exemplos entendo as cousas melhor. Teod, Se eu disser : Salomão foi rico , quero dizer que Salomão foi sujeito , que teve rique- zas • e bem se vê , que o concreto rico signi- Jfica principalmente o sujeito , e obliquamente - lÁ olha para as riquezas , como cousa perten- cente ao sujeito. Este he o primeiro modo. Silv. Até ahi me ensinarão a mim. Teod. Se eu disser : O branco he cor , uso de bran- - -CO Esta era a doutrina gera] das escolas. Tarde quadragésima prima, i 3 7 r bíânco como concreto , o qual se deve expli- car assim : A brancura no sujeito he cor > e bem vedes que olhamos principalmante para a forma j e menos principalmente para o sujei- to(í). Eug, Tenho entendido , falta o terceiro modo. Içod, O terceiro modo de explicar os concre- tos , ou de os resolver , hc tomando principal- mente o sujeito 5 e a forma tudo junto. Go- mo quando digo : O arco essencialmente he , torto ', aqui a palavra arco he hum concreto , e quer dizer vara , e tortura juntamente. Fa- zei reflexão neste modo de fallar, porque nel- le attendo igualmente á vara, que he o sujei- to^ e á tortura y que he a forma. Quereis ver co- ( 1 ) Esta intelligencia ^ que era nova nas Esco- las, a publicou ò Padre João Baptista da Congre- gação do Oratório de Lisboa , homem de immor- tal , e saudosa memoria ^ e a prova evidente- mente : porque muitas proposições temos , que todo o mundo dá por verdadeiras , e não o po- dem ser, se não tendo esta intelligencia : exem- plo seja esta: O branco he côr \ se pozermos , co- mo costumão nas aulas , o sujeito In recto , e a brancura In olllquo ^ hei de dizer o sujeUo da bran- cura he côr ; e isto he manifesta falsidade , se pozor tudo in recto ; também he erro patente , ' porque faz este sentido : O sujeito , < 77ja'rs a brancura são côr : logo só pôde ter sentido ver- dadeiro , pondo a Jórma in recto , e o sujeito iit obliquo j dizendo , a brancura no sujeito he cèr ; á vista desta proposição se formão innumeraveis > que só podem ter este sentido. 138 • Recreação Filosófica como necessafiamcnte àevo explicar assitti tf concreto ? reparai , que , se o explicar de ou^ tro moílo 5 já a proposição fica faJsa , quando todo o mundo concorda que ke verdade dizer ^ o arco csscnsialmente he torto. Quereis vefr co- mo necessariamente lhe havemos de dar estat jntslligencia ? Ora vede ; se explicasse o con- creto do prímeifo modo, pondo só o sujeito cm principal lugar ^ diria assim : A vara es- sensiahmnte he torta j e isto he falso , porque â vara podia estar mui bem direita j se disses- se do segundo modo : A tortura da vara es" sensialmente he torta , pondo só a forma em lugar principal 5 também dizia huma falsidade ckra 5 porque d tortura nao he cousa torta ; sim faz as cousas tortas , mas ella em si não he cousa torta. Logo somente pondo em prin- cipal lugar a Vara , e a tortura , he que posso dizer com verdade , que necessariamente hc cousa torta ; por quanto he cousa bem clara, que a vara junta com a tortura esseiísialmeni- te são huma cousa torta ( i ) . Silv» Seia como quizerdes : nâO vos quero per- turbar com os meus argumentos ; em particu- lar fallaremos. Tcod, Ora já temos , Eugénio , que qualquer concreto se pode tomar de três modos , ou perf- ilo em principal lu^ar só o sujeito delle , ou só a forma , ou tuoo juntamente sem differen^* ça. ( 1 ) Esta doutrina parece a mesma qtie se dava nas Escolas sobre os concretos Methafysicos ; mas tem grande diífeiença , como adiante se verá. Tarde quadragésima prima, ixg '■ çá< A regra ^ que deveis seguir para o tomar ora de hum modo , ora de outro , he ver qual fica mais natural no sentido verdadeiro da pro- posição j por cjuanto se suppôe que todo o nomem quer faliar verdade , e que a seu sen- tido he aquelle , no qual a proposição fica ver- dadeira ( I ) * ^ug. Prevenistes com essa resposta â minha pergunta ^ porque hia a pergurítar-vos a regra para meu goverrio nessa matéria. lioà. Isco supposto 5 vai o diciame importan- tissimo da Lo2ica : Numa reputemos por htí^ ma mesma utea aqtielle concreto , que sé tOh ma por difjerentes modos (Proposição 63.). Prop* A íazão he , p(»rque airida que a palavra seja 65* a mesma , e o mesmo concreto , vai grander differença em dizer o sujeito da alvtíra y ou áizer a alvura do sujeito , e nada he mais no- civo para o discurso , do que fazer confundir duas ( I ) Se eu disser ^ falíartdo do a^sutar : V.ste hfdnca ke doce , otr este branco he difro , já sar vé que tomo o eonereto branco pelo sujeito in recta , e a fárma in eblujtto , cíi^endo assim : O sujeito' tia brancura hc doee , ou difra : se disser com os Neiítonianos : O branco compõe-se di sete cqfet primitivas , bem se vc que quero pôr s^ a for- ma in recto , dizendo : A hrancura de ijuafquer sn» jeito consta das sete c^rej ; se disser : O hrenc» essenstahnente ittvolve em si hranefíra , manifesta» níente se vè que dçvo pôr in recto tudo ; 'HI9 ' he , fóima, e sofjeita, dizendo assim : Ci*í/V»V, e brancura juntamente , tãê humét cêtis^ ^«e in" . volve em si a brancura. 240 "Recreação Filosófica ■ duas cousas diversas , como se fossem hoftia . mesma. Bug, Conheço a razão , e cá vou gravando na memoria este dictame com os outros. Teod» Para não nos affastarmos do nosso cstiío , ponhamos exemplos em que se conheça o er- ro 5 que, com este dictame se acautela. Digo eu, o branco hecôr^ vos sois branco; logo vos sois cor : isto he hum despropósito. Mas náo basta canhecer isso, convém mostrar onde vai o erro* Por quanto a primeira proposição he verdadeira , a segunda também , e a disposição de ambas he boa , e com tudo isso a cortse- quencia he falsíssima. O erro deste discurso es- tá em que confundo duas cousas diversas , to- mando-as como se fossem só huma : na pri- meira proposição o concreto ^r^WfO toma-se pe- la alvura no sujeito , na segunda toma-se pelo sujeito da alvura : isto são cousas mui diver- sas , e confundem-se , por parecerem a mesma cousa ; e porque assentávamos que branco na primeira , e branco na segunda era tudo o mes- ■ mo , ficava o discurso summamente cavilloso , como acabais de ver. £ug. Com este exemplo entendi melhor a dou- trina , que me tinheis dado. Tçod. Deste mesmo modo se responde a mil outros sofismas , que se podem fazer em qual- ouer matéria ; e tendo diante dos olhos esse oictame , escapareis desses enganos. Nas au- las se tratão muitos outros pontos que omitta aqui , porque não sáo precisos para os discur- sos familiares , e ordinários de Eugénio j porem os Tardv quadragésima prima, 241 os que houverem de tratar as sciencias funda- mentalmente 5 especialmente a Theologia Es- peculativa, devera fazer aqui grande reflexão, porque náo ha matéria. em que mais facilmen- te se façáo sofysaias. E como não basta co- nhecer que o sáo , mas hc preciso conhecei* também onde está o vicio, para o mostrar, e disolver a difnculdadé , convém que os que hou- verem de frequentar as aulas , tenháo nisto hum pouco mais de cuidado , e nâo paissem por esta rriáteria com pé tâo veloz. A vós, kSíIvío , communicarei algumas reflexões, que a experiência me obrigou a Fazer , as quaes a vós , Eugénio , náo sáo precisas. V^amos ago- ra a entrerer-ncs com aliçáo d'humabella tra- gedia , que da Corte me mandou hum meu amigo í que he estudo, que diverte, e insirue notavelmente , e prouvera a Deos que visse eu o Theatro reformado ^ assim como se váo re- formando as Escolas. Eu^. Eu vos digo , que já gosto bem pouco dás Comedias Héspanhólas , pelas quaes algum dia tinha huma paixão inexplicável. Silv. Tomos travada outra pendência : orà va* mos ouvir essa Tragedia , vamos chorar por divêrtiiflento. Tom. VIL Q Aí* 14 i Recreação Filosófica ^Advertência somente para, os que frequentaó as Aulas, /^ S concretos ou se podem considerar por orderrt ^^ ás partes , de que se compõem , ou por ordem sio modo , com que se signiíicão. Considerados por ordem ás partes , de que se compõem , dividem-se em Fpicos , e Methafj/sicos ; e considerados por or- dem ao modoj^^com que se signiíicão, dividem se em accidentaes ^ e essenciaes : expliquemos estes qua- tro nomes. Concreto Fijslca he o que consta de partei Tyslcas ^ isto lie, partes verdadeiramente distinctas entre si; de sorte , quehuma se não possa afíirmar da outra : exemplo , seja rico que consta de sujeito , c de riquezas ; e eu não posso dizer este sujeito he riijítezas , nem também estas riíjuezas são o sujeito. O concreto Methqfysico he o que se compêe de partes J^Iethqfijsiças ^ isto he , de partes , que sendo na rea- lidade huma mesma cousa , .somente pelo fingimento ^o nosso entendimento se distinguem entre si : como quando digo Deus, e resolvo assim, habens Divi- nitatem , quero dizer sujeito da Divindade ; porque verdadeiramente não se distinguem entre si estas duas partes , senão pelo nosso entendimento. Os outros dous concretos distinguem-se pelo modo , com que as partes se significão. Concreto accidental he o que diz sé huma parte in recto , e a outra in obli' ^vo ; como v. g. álbum , quando quero dizer habens albedinem. Concreto essencial he o que diz ambas as partes in recto '^ como quando digo homo t, istohe, corpus , et anima simul. Muitos confundem o con* creto essensial com o Methajysico ; e affirmão que o essensial diz ambas as partes in recto per modum ha- Tarde quadragésima prima. 243 hâbentls , e outra vez todas as partes in ohlU (juo per moditm rei habita ; nisto creio que ha gran- de equi vocação ; porque só se pód» jsto dizer dos concretos Metafysicos , nos qUaes como as duas pax- tes sã > realmente a mesma cousa , pondo huma in rtfcííJ, verdadeiramente põe se ambas ;e pondo-se outra in vbíííjuoj verdadeiramente se pòe ambas em obliquo, peia real identidade, que tem ambas as partes entre si : e por isso dizeado eu Deus , isto he , habens di- 'jinitatem , como o habeiis realmente he o mesmo que divinitas ^ pondo eu sujeito em recto , também po- nho a divliidode ; e pondo eu a divindade em obli- quo , ponho forçosamente também em obliquo o habente , ou o sujeito ; e neste sentido se deve en- tender a commum doutrina , que estes concretos dizem ambas as partes /// recto per 7nodum Iwbentis^ e amb^ís outra Vez em oblujuo per modain rei habitas, Mas esta doutrina nenhum Jugar tem nos s.oncretos , -que constão de partes Fysicas , e que realmente se distinguem entre si ; corno v. g. animátum ^ quando Ó resolvo assim, corpus et anima sitmil; e por isso quem não advertir nisto , forçosamente se ha de equivocai muito. E nenhum embaraço ha para que hum con- creto constando de partâs bem distintas , como v.g* animatuin , álbum j dives , etc. Se exphquem de mo- do que digão ambas as partes in recto j como a- cima se mostrou ; antes he isso precisissimo. Pelo que he cousa mui diversa concreto essencial^ do que concreto Methafysico ; pôde o concreto ser essen- siaj , e não ser methafysico ; porque pode ter par- tes realmente disctintas : e pôde ser Methafysico, .e não ser essensial ; porque pôde representar huma cousa i/í recta , e outra em obUijuo , comO v. p hahens divinitatem , ainda que realmente tudo vá ia neto j e tudo in ohllquo ; uaas foxmalniente sò Q ii jei» 244 Recreação Eilosofica o sujeito he que faz a figura principal , e a fórrtifj ou quasi forma faz a figuia menos principal. Akm disto ha ainda outro ponto que advertir. Al uitas pro- posições ha , que todos dão por verdadeiras , e nSo o podem ser ^ segundo entendo) acommodando-as á doutrina commum ; por exemplo estes : Omne elbum necessário suhjacet albcdini : Omne animatiim necessário iinitiir anim£ , etc. são verdadeiras ; por- que he impossivel haver branco , sem que esteja su- jeito á brancura , nem haver animado sem estar un> do á alma. Ora se eu resolver o concreto fliilma- lum , pondo só o sujeito in recta , l>e falsa , nem posso dizer com verdade : Subjectitm necessário unU tiir anima ; se puzer ht recto só a forma , ainda he peior ; nem posso dizer com verdade : Anima ne- cessário itnititr anima certeza , ou segurança da verdade ; e dos diversos grãos de probabilidade , que pode haver nos nossos juizosy e sentenças, Teod. T3 Assemos agora a tratar de outro pon* JL to mais importante , que he acertar com a verdade nos nossos juizos. A isto he que tudo se dirige, e sobre este ponto não vos enfastiareis de ouvir todas quantas reflexões eu julgar oportunas. Éug. Naturalmente sempre aborreci a mentira ; e o erro he para mim hum monstro o mais horroroso que pode imaginar-se, pois do erro nasce tudo que he abominável , assim como da verdade tudo que he decente, bello, e pro- veitoso. Más vamos a essas reflexões que ten- des feito. Teod, ]á vos tenho explicado com algum va- gar, que o nosso entendimento não he táo ce- go , como o queriáo fazer os Pirrhonios, os quaes queriáo que elle sempre andasse ás apal- padellas, sem nunca se certificar que tinha atinado com a verdade. Também vos mostrei que os seus olhos não eráo cáo prespicazes , que não se enganassem muitas vezes com o erro. Depois disso vos fui acauiellando como ^ pude de algumas geraes enfermidades do en- tendimento , e dos descaminhos que condu- zião ao erro. Mas não vos dei a conhecer nem - osinaj certo da verdade, com o qual podecnos íi- 2 56 Recreação Filosofca ficar seguros , e' descançados , de qiie a consd- guimos 5 e náo nos equivocamos com ella^ nem também vos mostrei os caminhos princi- pães 5 por onde podemos chegar a descubrir este sinal cerco da verdade ^ e que he como caracter delia. Ora isto tenho de fazer hoje, e as seguintes tardes, porque a este fim se en- caminha tudo quanto se diz na Lógica. Eug, Eis-aqui huma cousa , pela qual ando sus- pirando ha muitos tempos : se me ensinaes isto bem 5 dou-me por bem feliz entre os mor- taes. *Teoà. Eu vos satisfaço ; mas vamos de vagar. Para julgar pois com segurança que he verda de o que se me propõe ao entendimento isto he ) que o sujeito tem , ou que náo tei o predicado, de que se trata, he preciso guí dar muitas cautellas : eu as vou dizendo poi CO a pouco nalguns dittames certos. Primei ro : Toda a vez que a idéa do sujeito tet dentro em si a idéa que achamos da parte dà^ predicado ^ segurámentiC o podemos afjirmar Prop. ( Proposição 64. ) . Ponhamos hum exemplo. 64. Se eu disser : Todo o arco he torto , devo exa> minar a idéa doarco, e vendo claramente que envolve em si a idéa de tortura , a qual está da parte do predicado, conheço que essa pro^ posição he certíssima. Segundo dictame : do mesmo modo se na idéa do sujeito observar alguma cousa , que repugne com a idéa da Prop. predicado , seguramente o posso negar ( Fro- ^5. posição ^5. )í ^ ^^ ^^^ evidente esta regra, que basta explicada n'um exemplo , para a en- ^arãe quadragésima secunda, l^j cntcntUmcnto se convencer da sua verdade, Suppònhamos que diz alguém: O triangulo he redondo. Nós olhando para a idéa de triangu- lo 5 achamos que tem esquinas ; e comparan- do Í3so com a redondeza , logo achamos que repugnão estas duas cousas entre si ; e por is- so sem duvida nenhuma dizemos que náo , e claramente julgamos que o U-iangtdo não he redondo. 'Silv. Fazeis injúria a Eugénio , se consummis mais tempo , explicando cousas táo manife»' tas, e patentes, como essas. £tíg. Porém muitas vezes ( e istc^ ha de ser o mais ordinário) ainda que eu examine bern a idéa do sujeito , e a do predicado y não verei claramente quehuma inclua a outra, nem tam- bém verei nellas cousas, que repugnem., Teodi Então devo reparar se vejo na idéa do sujeito algum sinal , que costume andar junto com o predicado , e por esse sinal me posso governar com a devida cautela. Exemplo. Ve- jo hum homem a primeira vez , e propoe- se-me ao entendimento se será enfermo , ou terá saúde. A idéa , que formo delle , com* põe-se de todos os predicados , que lhe são essensiaes , e está tamtem vestida dos" acciden- tes , que nelle acho : em rodos estes predica- dos não encontro nem a saúde , nem cousa que indefectivelmente repugne a ella. Neste caso devo ver se posso achar algum sinal , que de •rdinario costume andar com a saúde, ou cos ' tume acompanhar a enfermidade : e como a talidêz demaziada costuína ser effeito da en- tom. VIÍ. íl fcr- !i5'S Recreação Filosófica fermidade , se hèlle vejo humá éxrremâ fíili- dêz , digo : Este homem he enfermo. Pelo con- trario, se o vejo nutrido, com boas cores, c ar risonho , como estes sáo de ordinário os si- naes, que costumáo andar com a saúde, digo sem escrúpulo: JEste homem está são. Sih» Mas se lhe não tomardes o pulso, podeis facilmente enganar-vos : e só os Médicos , e nem todos , podem fazer nesse ponto juizo certo. ^ £ug. Vós puxais pela vossa jurisdicção : fazeis bem. ^éod. Provera a Deos que ao menos os senho- res Médicos fizesem juizo certo sobre a nossa saúde , ou enfermidade ; mas he grande des- graça , que também ellcs se enganáo. Agora a razão disto faz ao nosso caso , porque os si- naes que acompanhão qualquer predicado, são de differentes classes: nahuns, que sempre, e em todos os casos tem em sua companhia o predicado , e sáo sinaes absolutamente infalli- veis ; outros podem fallar em alguns casos ra- ríssimos ; e outros muitas vezes se acháo sem o predicado , posto que o mais commum , e regular seja trazello em sua companhia. Ora destas* três castas de sinaes resultáo trcs diffe-. rentes certezas, ou seguranças do entendimen- to, quando julga. Se o sinal he absolutamen- te inrallivel , e nunca deixa de trazer em sua companhia o predicado , então , se affirmo o predicado , tenho certeza total , ou methafy- sica da verdade. Porém se o sinal pode falhar s6 em casos raríssimos , e por milagre , então a Tarde quadragésima secunda, t^^ a C^rte^a he somente fysica , porque absoluta- mente podemos, enganar-nos 5 se ahi houver mi- lagre , ou feiticería , ou caso raro da natureza. Ultimamente se o sinal pode muitas vezes fa- lhar , posto que seja communissimo o estar com o predicado , posso prudentemente affir- mallo ; mas a certeza he somente moral ; e dahi para baixo á proporção, vai-se diminuin- do a certeza da proposição , e entra a proba-' hilídaàe 5 a qual tam^bem vai diminuindo , conforme vai diminuindo a difficuldade de es- rar aquelie sinal sem o predicado, até que de- genera a probabilidade em mera duvida , e a proposição fica temicraria , por quanto não se estriba em prudente fundamento. .Síly, Tudo vai da falência que pode ter aquel- . le sinal do predicado , que eu vejo no sujeito ; e á proporção das vezes , que esse sinal pôde falhar, he o perigo do nosso engano , e o re- ceio , e cautela , que devemos ter na. nossa afíirmaçáõ. Eug, Pelo que rendes dito , somente o que eu vir com meus olhos , . he que passo dar por certo , e absolutamente infallivd , com essa jcerteza que chamais methafysica. Teod. De vagar, Eugénio, que ahi pode haver algum engajo mui pernicioso, como vos disse • ha poucos dias. Aquillo , que. os- nossos, olhos claramente persuadem , tem bastante certeza , quando nem a Fé , nem razão forte o contra- diz ; porém nisso mesmo , que os sentidos cla- ramente persuadem absolutamente , pôde haver R ii en- 26o Recreação Filosojicd engâtio , como já vos disse ( i ) . A indâ que concordem os mais sentidos com O que dizem os olhos 5 e náo somente vós , mas todos os mais homens testifiquem isso meámo , ainda nesáe caso podemos absolutamente enganar-nos ou por féiticeria, ou por milagre, e poder de Deos. E para náo irmos mais longe , vede o que acontece no ineffaVel Mysterio da Euchí- ristia. Os olhos persuadem que he pão , o goc- to os ouvidos , quando se divide a Hóstia, o tacto no seu pezo , em fim todos os sentidos uniforme , e claramente dizem , que alli está pão; e com tudo he falso: obrando o poder de Deos todas estas maravilhas , que es olhos não alcanção , porque o Omnipotente lhas esconde. Em. Qual he logo o fundamento , que pode ciar de si huma certeza total , e absolutamen- te infalliveU "Tecd, São dous : hum natural , outro sobrena- tural : o natural he a evidencia , isto he , ver eu claramente peia razão , que na idca do su- jeito se involve o predicado, ou algum sinaí, que h'e absolutamente inseparável òqWc , como quando digo o trimigulo he esquivado^ o cir- culo he redondo , ou lambem o discursivo he espiritual , etc. O fundamento sobrenatural, que me dá certeza methafysica , he o da Fé Divina ; e vem a ser o testemunho de Deos ^ que nem se engana a si , nem me pode enga- nar â mim : e quando eu encontro este teste- munho de Deos proposto pela Igreja Roma- na , fico certo absolutamente da verdade da pro ( i) Pag. 125. et seq. Tarde quadragésima secunda. iÍm proposição, porque este sinal não se pode se- parar do predicado. Assim digo, que se ba- ptizarão o menino como a Igreja ensina , ficou sua alma santificada , e em amizade de Deos , ainda que o discurso natural me não dê a ver a connexão infallivel entre aquelle lavatório de agua, e a amizade de Deos. Fora destes dous fundamentos todos os demais são absolutamen- te falliveis ; porém com esta possibilidade ab- soluta de falfiarem , pode estar huma moral certeza , ou ainda certeza fysica: e conforme for esta connexão , ou parentesio do sinal , que vemos no sujeito com o predicado , assim hc a segurança do nosso juízo. Bm, Tenho entendido, e cem muita facilida- Teoà. Agcra advirto, que o mesmo que se diz do sinal, que acompanha o predicado, se de- ve dizer á proporção do sinal , que lhe repu- gna , e o exclue : c por esta razão , assim co- mo ver eu no sujeito hum sinal do predicado he fundamento para affirmar esse predicado, issim também ver eu hum sinal , que lhe. re- pugna , he fundamento para o negãr^ Bug. Isso he bem manifesto. TQoà. Supposto isto, firmai na memoria estou- tro dictame ; Quando na idéa do sujeito não vemos nem o predicado , nem sinal , íjue cos- tume acompanhallo , nem ccusa, que lhe re- p^gne , devemos abster-nos de conceder ^ ou negar o predicado ( Proposição 66. ) Proj- SUv. Isso he prudentíssimo j porque como hei 66. de dizer huma cousa sem fundamento ? Se eu , não 26 z Recreação Filosófica não vendo o predicado , visse ao menos sihal delle, ia o podia affirmar j mas sem .'sso, he temeridade. Tcod. E também he temeridade o negallo ; por- que muitas cousas pode ter o sujeito em si, sem que eu as veja na idéa , que delíe formo. Deixai-me pôr hum exemplo bem trivial. Pas- so eu por casa de vosso tio Gommendador; se o vejo á janelia , jí sei que está em casa com certeza fysica : se vejo a sua carruagem á porta 5 também julgo prudentemente que és- fáj porque he sinai mui provável de que ain- da não sahio , posto que isto pode absoluta- mente ter fallencia. Se* vejo carruagens alheia á sua porta , também por esse sinal posso colií bastante probabilidade julgar , que está eni ca- sa. Mas se vejo a porta fechada , já sei com- moral certeza que não está em casa ; porque nunca se costuma fechar a porta de dia , es- tando elle em casa. Porém supponhamos que vejo a porta aberta , e que náo vejo carrua- gem 5 nem criados , nestes termos devo sus- pender o meu juizo ; porque julgar que está fora , he temerário , pois pôde estar em casa ; julgar que está em casa , he teirerark) , pois pôde ter sabido ; o seguro he dizer nao sei. Sily. Para isso , meu Teodósio , náo vos can- seis em dar dícrames a Eugénio , que elle sem mais Lógica , do que a que Deos lhe dco , as- sim julgou sempre , quando passou por casa de seu tio. Tcod. Amigo Silvio, eu busco estes exemplos familiares , prque conduzím muito para a in* Tarde quadragésima secunda. 265 lelligencia do dictame ; mas o diccante vão o dou para esses casos familiares , nos quaes se náo erra : além de que esse erro náo valia nada : dou o dictame para matérias de impor- tância , e para muitos casos , em que pessoas de muitos estudos costumâo cahir. A experi- ência vo-lo ensinará. Agora concluo com ad- vertir a Eugénio , que a maior parte dos ho- mens trocáo as palavras nesta matéria com pe- íigo de engano. Muitas vezes dizemos , que vemos hum predicado no sujeito , e tal não vemos, por quanto somente vemos hum sinal do predicado; e como este sinal muitas vezes he hllivel, vimos a enganar-nos nisso mesnio que dizemos ter visto , que he assas commum. Silv, Tal deve ser hum sujeito, de quem o nos- so amigo * * * diz com bem graça , fazendo acçáo viva , que já tem duas covas na cara de . dizer , pondo os dedos nella : Eii o vi com estes olhos ; e que com tudo nunca abrira a boca que não mentisse. T^eod. ]á lhe ouvi essa expressão , que tem bern força , e energia. Mas ainda sem serem ho- mens tão mentirosos como esse, costumâo en ganap-se a cada passo nisso mesmo, que testi- iicão de vista. De ordinário se vemos a hum • homem, que lhe treme a faila, os olhos sin- tilão , o rosto se faz vermelho , ós membros estão inq':ietos, e a voz alterada , dizemos que vimos a sua cólera , sanha , e ira ; e com tu- do sendo isto tudo Fxiovimcntos do animo , náo se podem ver : somente vemos alguns sinaes exteriores, que costumâo acompanhar aquellas in- 264 Recreação Filosófica interiores paixões da alma ; mas esses sinaes não são o mesmo que acjuellas paixões , antes pode acontecer que sejão huma mera demons- tração fingida do animo , que na realidade não está , mas só se quer mostrar encolerizado. Isto vedes vós no theatro , quando os repre- sentantes se mostrão em fúria contra aquelíes, que talvez bem ternamente amão. Por tanto acautellai-vos bem , ainda naquellas cousas , de que vos persuadis que vedes com vossos olhos ; porque muitas vezes só vemos huns sinaes do predicado , e sem escrúpulo dize- mos que vemos o tal predicado. £í*g. Agora vejo que he mais frequente , da que eu cuidava, o errar ; e enganarmos-nos, ain- da naquillo que nos parece que vemos com os olhos : e no que toca ás paixões do animo, e movimento do nosso interior , irei com cau- tela em julgar ; porque quando muito só po- demos ver nuns externos sinaes dos movimen- tos interiores , os quaes costumão ser falliveis. Siív, Aqui ficão condemnados desde logo os que pela fisionomia do rosto , e suas feições , e movimentos querem julgar das inclinações, e costumes, e do animo interior. Teod. Não se pode negar que algum indicio muitas vezes dá o semblante daquellas pai- xões , que ha no interior ; mas esse juizo sem- pre he perigoso , e não passa de provável , pos- to que pode ser tão circumstanciada e^ta pro- babilidade, que chegue a evidencia moral. §. in. Tarde quadragésima secunda. 2 6 J §. III. Examina-se a verdade dos juízos , cujos su* jeitos não existem. Sih. "¥ T 0's ides pondo raes apertos a Euge- V nio , que elie naturalmente vai a dar no Pirrhonismo, e chegará a duvidar de tudo. Eug. Por ora como sou aprendiz na matéria de julgar , bom he cjue o faça sempre a me- do. Vos sois Mestue já mais exercitado , po- deis julgar affoitamente. Teod. Meu Eugénio , crede-me : os homens de mais estudos , mais experiência , e mais en- tendimento sáo hoje os que mais receiáo errar. Mas não convém duvfdar do que he evidente, nem affoitamente segurar o que he incerto: ide-vos governando pelos dictames que vos ÒQi^ e sabei que canJnhais direito para o íim que pertendeis. Sily, Oi» com vossa licença. Eu creio que, ainda governando-se Eugénio por esses dicta- mes , náo vai tão seguro , que não tenha pe- rigo de erro. Vós cfizeis , que quando eu na idéa do sujeito estou vendo claramente hum predicado , ou sinal infallivel delle, posso se- guramente affirmallo. Teod, Assim o disse, e assim o direi, se me não convencerdes do contrario. Sih, Tendes contra isso mintam preposições, cujo sujeito não existe , e se costumão dar por i66 Recreação Filosófica faJsas ; e com tudo na idéa do sujeito se vê claramente o predicado. Eug, Eu requeiro exemplos , porque sem isso pjiiCQ erítendo. SUv, Eu os ponho : supponds que digo : O Rei de Veneza he hunicm , o Mavquez de Cacu lhas he fidalgo ; as Baleias do Tejo são vi- ventes. Vós rides , Eugénio l ora dfzei se sáo verdadeiras, ou falsas estas proposições. j£ug. Os predicados parece que se incluem nas idéas do sujeito ; porque a Baleia esseucial- m^ínte kz vivente -^ os Marquezes necessaria- mente sio fidalgos, e os Reys sáo homens, Silv. Assim será i porem nem Veneza tem Rei , porque he huma Republica j nem o Xéjo tem • Baleias , nem Cacilhas he titulo de algum Mar- quez, qu2 até agora ouvesse. Teod, Chamáo-sc estas proposições nas aulas de subjecto non supponente : e destas costumáo dizer , que são falsas , e na realidade o sáo ; porque não obstante parecer que na idéa do sujeito se ve claramente o predicado, com tu- do não he assim como parece : e a razão he, porque Baleias do Tejo são nada , sáo huma iicção do entendimento , sáo huma quimera : ora as quimeras , e ficções do entendimento náo sáo animaes , nem viventes : o mesmo di^o do Rei de Veneza , que he outra ficção do enrendimento ; e assim náo podemos delle afHrmar predicado nenhum , que tenha entida- de verdadeira , nem dizer delle que he homem. Silv. Pois na idéa de hum Rei náo se inclue o ser homem ? Tcod. Tarde quadragésima secunda, i6y Tedd. Conforme for o Rei : se for Rei verda- deiro 5 então sim 5 se for Rei fingido , não, porque nesse caso còmpóe-se a sua idéa de cousas fingidas. Pelo que , Eugénio , tomai es- te dictame: Toda a vez que o sujeito da proposii^ao se suppÕe que existe ., e na reali- dade mó existe , jd não se podejeíle affir- mar predicado real , e verdadeiro ( Proposi- Prop. çáo 67. ) E a razão he , porque nesse caso fi- 67. ca o sujeito sendo huma pura ficção , a qual não tem ser , nem entidade ; e de huma cou- sa fingida não podemos affiimar cousa verda- deira, e real. Silv. Eu já passei por isto ha muito; mas pa- recé-me que essa regra não he geral ; porque se nós 5 estando a Sc Apostólica vacante, dis- séssemos : o Suramo Pontífice he Figano de Christó y ninguém se havia de rir , sinal de que a nossa proposição seria acertada, e ver- . cadeira ; e com tudo não existia o Summo Pontifice : logo também no nosso caso. Teód. Amigo Silvio, vós pondes huma difficul- dade grande ; mas creio que ha de dar bem luz no presente caso , e dar occasiáo a doutri- na importante. Qualquer sujeito , ou suppo- mos 5 que agora eJiiste, ou prescindimos dis- so , como quem diz , quer agora exista , quer não. Se suppomos que existe , e elle na reali- dade se não acha no Universo , fica sujeito ficticio , imaginário , quimérico , falso, e fa- buloso, e verdadeiramente he hum nada. Pe- lo contrario , se fallando do tal sujeito , pres- cindimos da sua existência , e dizemos , quer a^o- l68 Recredção FildsofJca agora exista , quer não , ( porquê falíamos do sujeito em si 5 e no que toca á sua namrezá , ou á s ja essensia ) então , ainda que elie não exista actuaimente no Mundo , nem por isso fica imaginário, nem Ungido, nem quimérico : e desre modo podemos nos aifirmar muitas cou- sas de sujeitos, que não existem. No caso que alienais, he verdade dizer que o St*mmo Pon- tífice he homem, que he vivente, que he Sa- cerdote , que he Figario de jESií Christo , etc, ; porque quando affirmamos estes predica- dos, nem dizemos , nem suppomos que exis- te o Summo Pontífice, mas dizemos que quer clie exista agora , quer não , quando o ouvei forçosamente ha de ser Sacerdote , vivente , Vigaria de Christo , etc. porque estes predica- dos sáo da sua essensia , e sempre o acompa- nháo. Quereis ver isto claramente ? ora repa- rai. Se eu disser no tempo da Sé Vacante . O Papa , que hoje ha , he homem , ou he Sa- cerdote , etc. não digo b€m , e todos se hão de rir de mim j porque dizer eu : O Papa, éjue hoje ha , he fingir huma cousa na cabe- ça 3 e desta mesma ficção não posso eu dizer , c[ue he homem , nem vivente , etc. Porém ss eu disser simplesmente: O Papa he homem, já digo bem , porque não supponho que existe determinadamente ; mas fallo do Papa absolu- ramente , quer agora exista , quer não , por- que o meu sentido he dizer delle, que toda a vez que existir , ha de ser homem, c Sacer- dote , etc. Pelo que , Eugénio , reparai bem jio dictame , que vòs dei. Eu não disse, que toda Tarde quadragésima secunda, 2 69 toda a vez que o sujeito da proposição não existia 5 já não podíamos affirmar delle predi- cado real , e positivo : disse , que quando a proposição suppunha que existia , e na reali- dade assim náo era , que então tudo era per- dido. E por este motivo, dizer que o Ró. de Feneza he poderoso , que as Balleias do Te- jo são corpulentas , etc. he dizer despropósi- tos, pois as taes proposições suppõem que ha, ou costuma haver Balleias no Tejo , que ha , ou costuma haver Reis em Veneza, e istohe huma ficção. £^g- Já percebo. Tcod, Accrescento agora outro dictame , pelo que disse Sílvio, e vem a ser este : Qifando a proposição não p'óde suppôr , cu não sup- poe a existência actual do sujeito , possa delle af firmar os seus predicados necessários y ainda que não exista-, mas os predicados con- tingentes , não. ( Proposição 60. ) V. g. pos- Prop* so dizer no tempo da Sé Vacante : O Summo 68. Pontífice he Sacerdote , e não posso dizer: O Summo Pontífice he enfermo ; a razão he , por- que os predicados necessários sempre se incluem na idéa do sujeito , ou a seguem em todo o estado , quer exista só no entendimento , quer exista na realidade , e assim não he preciso que o sujeito exista realmente, para sabermos que tem aquelle predicado. Pelo contrario, os predicados que náo são necessários , como nem se incluem , nem acompanháo sempre a idca do sujeito , he preciso esperar que existão, para vçr se os tem , ou se os não tem 3 e por isso ^70 Recreação Filosófica isso quem os affirma , sempre suppõem , ^ue o sujeito existe ; e se não existir , fica o su- jeito reduzido a huma cousa quirnerica , e fin- gida 5 da qual se não pode affirmar predicado verdadeiro, e real. Eug. Tenho percebido bem. Teod. Advirto a^ora , que algumas proposições ha, cuja verdade he mui duvidosa- porque he mui duvidoso , se ellas suppõem , ou não a existência do sujeito. Supponhamos, que mor- rerão todos os Médicos (perdoai a supposi- çáo. ) Silv, Eu perdoo : como eu esteja com saúde perfeitíssima 5 supponde, como quizerdes , que eu morri. T^eocL Está bem. Nesse caso se dissermos: O Medico he homem , fica a proposição duvido- sa; se o meu sentido for: O Medico^ que ha agora , he homem , he falsa ; porque então finjo o sujeito , e dessa ficção affirmo que he homem ; porém se o meu sentido for o Aíe- dico 5 toda a vez que o houver , ha de ser homem y então disse verdade. Por tanto nessas proposições , e outras semelhantes he precisa cautela ; por quanto muitas vezes suppõe , e fingem que o sujeito existe, e isso bota a per- der a sua verdade , pois (como já disse) fi- cáo com hum sujeito fingido, e quimérico; e não suppondo que o ha , mas fallando absolu- tamente , e como quem diz : Se o houver , cts quando o houver^ então não he fingido, ma$ verdadeiro. íX/Zv. Do que tendes dito infiro eu , que dais por Tarde quadrafreshna secunda. 271 por verdadeiras as proposições, que nas Esco- las chamáo de sujeito per accidetis cmjmictOj € predicado sifiiples y como v. g. ohomem bran- co he branco ; o varão sábio he sábio , erc. ainda no caso que náo existáo os sujeitos del- ias. .Teod. Dou-as .por verdadeiras , e essensiaes, quando ellas nâo fingem , nem suppóem expres- sa 5 ou tacitamente a existência dos sujeitos , v. g. o homem , que he agora branco , cu o va- rão , que he agora sábio \ mas falb.ndo fran- camente 5 e prescindindo da sua actuai exis- tência 5 então dou-as por tão verdadeiras ., e essensiaes, como esta : O animal raciamlihe racional^ etc. porque a idca do predicado se inclue manifestamente na idca dosuieiro; erhe .0 mesmo que dizer : Quem tiver deus predi- cados ^ tem necessariamente h^rm destes diKSj ou por outro modo : Quem for honie7n , c além disso for branco , he branco , e náo pode ha- ver cousa mais certa , nem mais evidente ^ e essensial. 45"//^. Pois essa questão nas Escolas he mui de- batida. Teod. Náo o nego : eu resolvo-a com esta dis- tíncçáo. O que faz essas proposições falsas , meu Silvio , he suppôr tacita , ou expressa- mente a existência dos sujeitos , que náo ha : daqui he que vem todo o mal. Silv. Tenho contra isso , que se -eu disser: O homem Leão he homem , ou a.:/J guia racional he águia , deveis dizer , que sáo verdadeiras , porque a idca do predicado se involve na idca do ij^ Recreação Filosojica do sujeito ; e todo o mundo dá essas proposi- ções por falsas , e quiméricas. Teod, E também eu : e negarei , que â idéa do predicado se involva na idéa do sujeito. Olhai , Silvio, quando dous predicados são incompati- veis, o mesmo he ajuniallos, que destruiílos; assim acontece a esses predicados homem ^ t leão 3 ou outros semelhantes ; em os ajuntan- do 5 já o homem fica fingido , e também fin- gido o Leão •■, e por conseguinte na idéa do su- jeito não se inclue a idéa do predicado. Por quanto da parte do predicado como a palavra. homem está só , toma-se por homem verdadei- ro 5 pois não ha quem embarace essa natural 1 intelligencia ; e assim venho a affirmar o ho- mem verdadeiro do homem fingido. Eugénio , lomai sentido neste dictame importante : Quan- do eu ajunto duas cousas , que nunca se po- dem unir, o querer ajuntallas , hefingillas-, e desse sujeito quimérico , e fingido não posso Prop. affirmar predicado real , e verdadeiro i^^ro- f^, posição 69. ) Assim quando digo , hotnem leão he homem , affirmo em lugar de hotnem , e leão verdadeiros , hum homem , e hum leão imaginários. Pelo contrario, quando eu ajunto cousas , que entre si não repugnão , como v. g. homem , e sabedoria , ou brancura , etc. en- tão , ainda que as considere juntas , não as finjo , e posso reputallas por verdadeiras. Sc me entendeis , Eugénio , passemos adiante j mas conservai bem esta doutrina , que he im- porcantissima , muito mais do que podeis ima- ginar. Eug. Tarde ^Quadragésima secunda, 275 tewg. Pàrece-me , Teodósio , que vos tenho en- tendido bem ; e posto que estas cousas pedem grande attenção, náo acho o que receava, se- gundo a informação de Silvio. Silv. Lá iremos para diatíte, quando Teodosia tratar das proposições Modaes , vereis que he hum labyrintho , que ninguém se entende nelle* §. IV. T>a% proposições , a que chamao Modaes, Teod. Q Eja embora já , qiie^não vem fora de O tempo. Olhai , Eugénio , cousas ha , que não sáo difficultosas em si ; mas são dif- ficultosas 5 porque as fizeráo taes , sem que ellas o fossem : eu vos direi neste ponto o que he certo 5 e o que importa : o demais co- mo he escusado j náo importa que seja escuro. Silv. Ora vejamos como feeis essa separação do útil , e do escusado. Teod* Chamamos proposição Modal aquellâ j que não somente diz, que o sujeito tem ou ca- rece de predicado ^ mas que declara o wo- do , com que o tem , ou carece deíle ; v. g. esta : O homem necessariamente he vivente ; o ímpio dif fiei Intente se salva ; o justo ultima- mente he feliz y Anihal casualmente venceoy etc. Estas" proposições para serem verdadeiras, não só he preciso que o predicado esteja no ' sujeito, mas que esteja daqueile modo que el- Tom, VIL S hs' .174 Recreação lilosojicà las dizem , aliás he falsa a proposição. Se eu disser : Creso necessariamente foi rico , não fallo verdade , porque ainda que teve riquezas , náo as teve necessariamente : foi cousa , que mui facilmente podia náo ser assim , como tem succedido a muitos. Do mesmo modo se dis- ser : Pedro casualmente be homem , náo digo bem 5 porque ainda que tem o predicado , náo o tem casualmente^ mas necessariamente. Pe- lo que tomai este dictame único , e importan- tej Em qualquer proposição devemos reparar nao só no predicado , mas no modo , com qne ella diz 5 que o sujeito o tem , ou que carece delle ; e em qualquer cousa que se falte d ver- dade , devemos dar por falso todo o juizo Prop. C Proposição 70. ) E aqui está tudo o que he yo, preciso dizer acerca das Modaes. Eug. Esse dicrame lie bem conforme á razão ; não he crivei que me esqueça. Silv» Adverti sempre , que os Filósofos costu- mão contar só quatro Modos ^Qutvftm a ser, necessário^ impossivel , possiveiy e contingen- te, que isto he cousa importante. *Teod. Podem contar tantos modos , quantos advérbios ha , que se possão pôr nas proposi- ções 3 porque todos elies modiíicão a affirma- ção, ou negação. Estes advérbios, ordinaria- mente , casualmente , provavelmente , rara- mente , commummente , alternativamente , ctc. t apostos em qualquer proposição , já a fazem Modal j de sorte , que podem passar de falsas para verdadeiras , e ás avessas; pois ás vezes convindo o predicado ao sujeito absolutamente , náo I Tarde quadragésima secunda. 'Xfy íiâo lhe convém daquelle modo , que a propo- sição diz ; pelo que , Silvio , não sáo semente quatro classes de proposições Aíodaes , são tantas, quantos advérbios ha. SHv. Sempre se hão de reduzir zos quatro', nent eu nas Escolas conheci outros , senão os qua- tro, que disse. Teod. Debalde tomareis esse trabalho , porque tem aquelles advérbios signiÇcaçóes mui di- versas ; o qua nos importa , he saber , que de todos elles se usa , e em todos se dá a mes- ma doutrina. Agora se se podem reduzir to- dos aquelles quatro , deixo á Vossa curiosida- de: se quizerdes trabalhar em vão, ou diver- tir-vos com isso, podeis fazello. Os Filósofos Peripateticos , Eugénio , eráo tentados com o numero de quatro ; como vião quatro partes do mundo , queriáo quatro humores SÓ no cor- po humano , quatro fazes na Lua , quatro opposiçóes , quatro modaes , etc. ; e seja co- mo for , tudo ha de ser do número quatro. Ora seja como quizerdes, e reduzi a quatro to- dos os advérbios imagináveis , e então serão só quatro as Modaes. Silv. Vós parece que jurastes de não concordar em nada comnosco. Teod. Eu vou attendendo á instrucção de Etí- genio , e passo a advertir-Ihe huma cousa , que não será inútil. Algumas proposições ha , que ainda nas Escolas se chamáo Modaes , e ri- gostosamente fallando, não o são: v. g. estas: O homem ser discursivo he necessário^ ou he cousa necessária , e outras semelhantes». Digo S ii p<>» 1'jG Recreação VildSoUca pois, que rigorosamente fallando, está propo- sição não he moàal , mas absoluta ; porque o sujeito desta proposição não he o homem , mas he todo este diro , ser homem discursivo ; e deste dito se aínrma hum predicado simples- mente , que vem a ser este , cousa necessária ; e como esta proposição affirma o predicado simplesmente , sem adverbio que explique o modo , com que o predicado convém ao sujei- to 5 vem a ficar proposição absoluta , ainda que o sentido delia equivalle a estoutra IVlodal , que diz : O homem necessariamente he discursivo. Advirto mais , que não vos embaraceis com o lugar 5 em que se póe as palavras, para saber qual he o sujeito, ou predicado; por isso tan- to vaie dizer eu , he cousa necessária ser o homem discursivo , pondo em primeiro lugar o verbo he , dahi o predicado cousa necessá- ria , dahi o sujeiro ser o homem discursivo; como se trocar os lufares , e disser , necessá- rio he ser o homem discursivo , ou , ser o ho- mem discursivo he necessário. Eug. já estou advertido , e percebo bellamen- te. Silv. Não vou contra isso , posto que me pare- ce muito escrúpulo não chamar a essas propo- sições Modaes. Teod. Não duvido que se reputem Modaes , por • equivalerem a ellas ; porem , como eu chamo proposição Modal aquella, que affirma, ou ne- ga o predicado , dizendo juntamente o modo , com que o tem , ou o não tem , por esta de- finição ficáo aqueilas proposições cxcluidas , por- Tarde quadragésima secunda. 277 porque o predicado he simplesmente cousa nc" cessaria ^ como já disse. Eug. Pergunto eu : E nas negativas ha a mes- ma doutrina ? Teod. A mesma : porém quero acautelar-vos huma equivocação ; e vem a ser, que a pro- posição Modal não ha de negar o adverbio, mas deixallo isento da negação , v. g. se eu disser : Pedro nao he rico, necessariamente y esta proposição náo he Modal ; para o ser hei de pôr o adverbio antes da negação , deste mo- do: Pedro necessariamente não he rico.. Eug. Mas então he falsa. Teod. Seja embora , sempre serve para exem- plo ; aqui tendes huma verdadeira : Pedro ne- cessariamente não he chumbo. Eug, Tenho percebido. Teod. Pois tendes entendido tudo o que ha nes- ta impertinente matéria que mereça atenção ; o demais serve para se divertiram nas escolas engenhos ociosos. §.v. 17? Recreação Vilosoficsí §. V. Das proposições Complexas- Silv. BEm podeis , Eugénio , crer , que Teo- dósio faz quanto pode por vos livrar de difficuldades ; pois o que nas aulas nos can- cã 5 e fatiga bem o entendimento , o dá por explicado nestas conferencias em quatro pala- vras. Teod. Eu bem sei, que muitas cousas omitto, que nas aulas se tratáo j porém entendo , que nada deíj^arei, que seja preciso para o fim que pertendo. Agora entramos com as proposições complexas, que também tratarei com passo li- geiro; porque me tem ensinado a experiência , que a pessoas de juizo desembaraçado mais fáceis são certas matérias tomadas singelamen- te , do que examinadas com as reflexões das aulas. Agora vós o vereis ; pois explicados simplesmente alguns termos , espero que Eu- génio, sem ter nesta matéria instrucçáo algu- ma , vá respondendo como vós responderíeis : vós que estudastes nas aulas. Dizei-me, Eugé- nio , se eu disser agora , que vos , e Silvio passeais , fa liarei verdade ? £ug. Não certamente , porque eu estou senta- cio, e só Silvio he quem passeia. Teod. Bem está : logo qtiando eu n'mna pro- posi(^ão af firmo ou ^nego algfwi predicado de dons sujeitos juntamente , não basta que hum so Tarde quadragésima secunda. 279 $6 o tenha ou carecia âelle , ]^ara ser ver^a- ãeira (Proposição 71. )• Assentai este dieta- Prop, me. 71. Eu^, Nisso náo ha dúvida : escusado he delle fazer memoria. Teod, Pois isso he o que se diz nas aulas das proposições copulativas ; quero dizer , daquel- las 5 que ajuntáo dous sujeitos com a conjunc- çáo e 5 como eu fiz , dizendo : Fos , e Silvio. Pergunto mais ; e para ser verdadeira esta ne- gativa : Nem Eugénio i nem Silvio estão fat- iando, que he preciso? Eug, Também he preciso que ambos estejão callados ; porque se hum fallar, já a proposi- ção mentio. Teod. Aquillo he , Silvio , o que se diz nas au- las 5 e nada mais ; mas logo me respondereis no fim : vamos ás Condicionaes ; isto he, á- quellas proposições , que afíirmão ou negão o predicado debaixo de cerra condição. Suppon- de vós 5 q\iQ eu dizia : Se he certa a noticia da morte do Papa , temos Sé vacante; per- gunto , para ser verdadeira esra minha propo- sição 5 he preciso que com effcito o Papa es- teja morto ? Eug, Náo. Teod. Será preciso , que com effeito estejamos já em Sé vacante ? Eug. Também não , porque vós não dizíeis que o Papa morreo ; mas que no caso que morresse , se seguia infallivelmente termos Sé vacante. ^ ■ Teod. Bem : logo quando huma proposição for con- aSo 'Recreação Filõsofiia condicional 9 para ser verdadeira ^ não hepre-^ ciso que exista a condição ou a cousa afjir^ niada , basta , e he preciso que a cousa ãffir- Prop. mada se siga da condição, (Proposição 72.) 72, Eis-aqui outro dictame. £m todas as proposi- ções condicionaes vereis isto mesmo que se requere, e basta que da condição forçosamen- te se siga isso que se diz ; por isso He verda- de dizer : Se houver hoje terremoto , ha de haver muito iusto : se o nosso visinho sahir Cardeal , ha de haver muita alegria : se che- gar a frota até sahhado , hei de ganhar três apostas, etc. Ainda que nada disto aconteça, sempre fallo verdade. Jj^ug. Tenho isso por cousa evidentíssima. ITeod. Pois eis-ahi o que se ensina nas aulas , e nada mais ; e por esta razão dizem , que he falsa esta proposição : Se Luiz XV, he bran- co 5 he Rei de Fram^a ; por quanto ainda que he verdade o ser elie branco , que isto he a condição ; ainda que também seja verdade o ser Rei de França ; com tudo como isto de ser Rei de França não se segue de ser bran- co , fica a proposição falsa. Vamos a estou- tra proposição , que já he doutro 2;enero. Sup- ponde que eu di^o ; Porque sou Cardeal y sou Ecclesiastico , faíío verdaae ? fug. E como haveis de faliar verdade , se vó$ sois hum Cavalheiro casado , que nem Car- deal sois , nem tal nunca vos passou peia ca- beça ? ^eod. Pois como! de ser Cardeal não se segue necessariamente ser cu Ecclesiastico ? Tarde quadragésima secunda, 281 Eug. Isso he no caso que vós fosseis Cardeal; mas não o sois. Teod, Eis-ahi como para ser verdadeira esta mi- nha proposição 5 não basta que huma cousa se siga da outra , assim como dizíamos nas con- dicionaes ; mas lie preciso que na realidade se verifique huma , e mais outra. Eug, Assim he , nem eu duvidei disso já mais. Teod. Pois assim discorrem nas Escolas acerca das proposições Racionaes , ou Causaes (cha- mão causaes aquelias , que dizem a causa , ou a razão , por que o sujeito tem o predicado. ) Dizem pois , que para as Proposii^oes causaes serem verdadeiras , he preciso que huma cou- sa se siga da outra , e de mais a mais , que se verifiquem na realidade ambas, ( Proposi- Prop^ ção 7^. ) Por isso dizendo eu : Se for Car- 75. ãeal , sou Ecclesiastico , fallo verdade ; porém voltando a proposição de forma , que não fi- que condicional , mas causal ; usando da pa- lavra porque , ou por quanto , já fica falsa , e não he condicional , mas causal ; e assim pa- ra ser verdadeira, he preciso que eu seja Car- deal , € que seja Ecclesiastico ; e que além dis- so o ser Cardeal seja razão bastante para ser Ecclesiastico ; pois só então concordarão comi- go , se disser: Por quanto sou Cardeal^ sou Ecclesiastico, Eug. Tudo isto são cousas tão patentes , que ninguém me parece que duvidará delias. Teod. Dizeis bem ; mas he preciso reduzir a certog princípios , ou regras esse mesmo com- mum sentir , de sorte que saibamos o porque se 28 2 "Recreação Filosófica «e dá huma proposição por falsa , ou por ver- dadeira. Vamos ás proposições Disjunctivas y que são aqueilas que affirmão hum predicado indeterminadamente , como estas : Pedro ou estd são , oíí enfermo. A estas horas a frota ou chegou A Bahia , ou se perdeo , etc* onde vereis que se affirmão os predicados com inde- terminação. Ora adverti , que aquella disjun- ção ou , humas vezes cahe no sujeito , como cjuando digo : Ou vos , cu Silvio me disserão isto , por não estar certo qual dos dous foi , quem mo disse ; mas estou certo , que hum de vós mo disse : outras vezes aquella jparticula ou cahe no predicado , como quando digo ; Pe- dro he ou rico, ou mui bem governado; c ou- tras vezes a disjunção ou cahe no verbo , co- mo quando digo : Pedro ou he , ou foi Corre- gedor do Crime, Para estas proposições serem verdidelras, basta s^r huma parte verdadeira; porém podem ser ambas , como v. g. nestas que acabo de apontar ; basta que se verifique huma destas cousas para serem verdadeiras as minhas proposições ; porém se ambas se ve- rificarem , também ficão verdadeiras : como por exemplo , se ambos vós me tivésseis dito aquel- la noticia : Se Pedro for rico , e além disso bem governado ; e se Pedro tiver sido , e ain- da for Corregedor do Crime. Donde se vè, que p^ra serem verdadeiras as disjunctivas , hasta a verdade de huma parte ; mas pod^m Pr^p. ser ambas verdadeiras, ( Proposição 74.) No- 74. tai esta regra geral. Silv» E vós nào admittis proposições Disjun- cti- Tarde quadragésima secunda. 285 aivâs , que peção a verdade de huma parte somente , por serem termos oppostos , como quando dizemos : Ou morrer^ ou vencer ; e também como diziáo alguns Santos ; Ou pa- decer, ou morrer^. Teod, Eu explico isso. Como nas proposições disjunctivas oasta só huma parte para serem verdadeiras , he muito frequente usarmos nel- las de partes oppostas , e encontradas : v. g. ou são 5 ou enfermo , ou rico , ou yobre , ou m- nocente , ou culpado ; e quando os termos sáo contradictorios , pondo-se hum , se tira o ou- tro infalliveimcnte : donde se segue , que náo podem ser verdadeiras ambas as partes da Dis- junctiva i porém isso náo nasce da força da Disjunção 5 mas nasce da opposiçáo dos ter- mos 5 que por casualidade aconteceo serem con- tradictorios. A força da disjunção pede sejáo diversos , em ordem a que possa hum estar sem o outro ; pelo que no caso que se exclua hum e se negue , o outro fique ; alias faltarão ambos a hum tempo , c ficará deste modo a proposição falsa , pois náo se verifica o que pede a Disjunção ; porém serem os termos en- tre si oppostos , he cousa que não he da essên- cia da Disjunção ; podem ser oppostos , e po- dem não ser oppostos; mas somente diversos ^ como nestes exetriplos : Ou he rico, ou bem governado; ou Pedro ou Paulo matarão este homem ; ou he pobre ou miserável , etc. os quaes náo tem opposiçáo entre si; e por isso pode acontecer, que cm qualquer disjunção des- tas, ambas as partes seiáo verdadeiras. ^ Silv. 284 Recreação Filosófica Silv. Contra isso está o commum sentir , por- que costumamos formar syllogismos disjuncti- V03 , nos quaes posta a d'sjunctiva , e ved fi- cada huma parte , negamos a outra : e isto não podí ser , senão por ser tal a força desta Disjunção^ que somente consinta a verdade de liuma parte, e náo a de ambas. Teod. Meu Silvio , esses syllogismos disjuncti- vos sáo caviilosos , e a seu tempo vos direi os muitos pengcs , que ha nesse modo de discor- rer. Ainda quando os termos sáo opposros, a força da Disjunção só pede que náo possão faltar ambos a hum tempo, como nessas pro- posições que allegastes para exemplo : a op- posiçáo de morrer , e vencer , só serve á dis- junção 5 porque o Capitão queria que os seus soldados náo ficassem tranquillos , ou militas- sem froxamente , contentando-se com ficarem vencidos ; isto náo queria elle por modo ne- nhum ; e por isso só lhes dava a escolha dos outros dous termos, que era vencer, ou mor- rer ; e que tivesseim por certo , que a não ven- cerem , haviáo de morrer. O mesmo digo dos Santos , quando diziáo a Deos ou padecer , ou morrer j o que pertendião era somente náo le- var huma vida dcscançada e tranquilla ; e náo queriáo ser privados de ambas as cousas , vi- vendo sem padecer i e isto confirma a doutri- na dada , que a Disjunção não pode nunca es- tar privada de ambas as partes: huma ha de veriíicar-se infallivelmente. Agora o seren> os termos entre si tão oppostos, que só hum se possa verificar , he cousa que lá pertence á ma- Tarde quadragésima secunda* 2 Sf c matéria em que cada hum falia , mas tio á força da proposição Disjuntiva. Confesso que como he mui frequente usar dos termos con.- rradictorios na Disjunção ; e neiies posto hum termo se nega o outro , cuidáo muitos Qiiç^ is- to he regra geral , e privilegio da Disjuntiva ; mas he encano , porque isso só nasce da sua opposição dos termos , e não da Disjunção, a qual só pede , que negando hum termo, se inRra o outro , por não poder estar sem am- bos. E desta equivocação de muitos, que cui- dáo que a Disjunção tem esta força , nascem mil enganos nos syliogismos disjunctívos , co- mo vos direi a seu tempo. Silv. Está bem , lá veremos isso melhor. Teoâ, Agora accrescento, que ha outras propo^ siçóes 5 que chamão exceptivãs , as quaes tem suas leis especiaes. Eu ponho huma proposi- ção exceptiva : Todos os filhos de Adão , ex- cepto Ckristo , e . sua Mãi , jorao peccadores. Pede a verdade desta proposição duas cousas : huma , que Christo , e a Senhora não tives- sem o minimo peccado; e outra, que só elles ficassem livres da culpa. A esras se reduzem outras mais ; e todo o ponto está em reparar bem na força da partícula , que se pce, v. g. Somente, excepto, igualmente, tmicamente y depois , ultimamente , &c. Em se reparando bem na força da partícula , ou adverbio, que se mette na proposição , logo se vê , o que he preciso para ser a proposição verdadeira : e não me demoro mais nisro. Sily, Fazeis bem ; porque se vcs mettesseis a 10- a86 Recreação Filosófica todas âs difficuldades , que jogáo com estaa doutrinas , nem em dez dias as acabáveis. Teod, Assim he; e daqui se tira a solução de mil difficuldades , ainda na Theologia , e con- tra os Hereges; porém isso pertence á maté- ria particular que se trata. As leis geraes , e verdadeiras são estas ; cada qual as applique á matéria , sobre que he a questão , reparanda sempre se se falia em rigor, ou de modo vul- gar menos rigoroso. Vamos adiante. Sth. Vamos , que eu gosto de ver a Eugénio caminhar mui socegado por cima de cami- nhos bem escabrosos. Teoí/. Mas seguros. Silv. Isso sim. Teod. Adverti , Eugénio, que â escabrosidade não está tanto no caminho, que eu aponto, e por onde vós ides ; está no que fica ás ilhar- gas ; e quando nos queremos apartar das re- gras geraes , torcendo-as para alguma mareria particular, então hè que achamos mil difficul- dades. Vamos ás opposiçócs. Eug, Vamos ao que quizerdes de mim. §.VL Tarde quadragésima secunda. 287 §. VI. Das proposisoes , que são oppostas entre si. Silv. T? U não posso negar , que cousas ha X-i que sâo fáceis , e bem fáceis ; e com tudo examinadas pelo modo, que costumamos nas aulas 5 íicáo táo embaraçadas , que jamais se podem desenredar delias alguns Homens de juizo delicado. Que cousa mais certa , mais clara , e fácil até aos ignorantes, do que náo poder huma cousa ser , e náo ser ao mesmo tempo ; e com tudo nas aulas ha sete mil dif- ficuídades nas proposições contradictorias , sen- do certissimo na realidade tudo quanto dize- mos delias ; e sendo táo claro , que até os ru- díssimos o sabem, e conhecem. Icod, Quereis vós , Eugénio, que eu vos ex- plique com hum símile o que acaba de dizer Silvio. Lembra-me de ter lido no celebre Mo- liers huma Comedia 5 que eile indtulâ le Bcur- \eois Gentilhome ; isto he , o Campcnez cava- Jheiro. Nesta Comedia pois , tendo introduzi- do hum rústico na empreza de parecer fidalgo da Corte , e tomando mestres para tudo , o representa dando liçáo de ler e escrever , e o mestre faz huma grande explicação fysica do som , e pronúncia das letras , tanto vogaes, como consoantes , v. g. que para pronunciar hum a, ou hum d he preciso abrir a boca as* ih aS8 IRecreaçao Filosófica assim 5 e lançar a respiração deste modo , m<í- ver desta forma a língua , abrir os beiços , com esta figura , etc. e faz isto tão difusa- mente , e com tanta especulação , que o pobre discípulo se vê atarantado com pronunciar hum a. 5 ou hum d; e lhe çua o topete ( como nós cosmmamos dizer) tanto para decorar as re- gras dos movimentos da língua, beiços, eres. piraçâo 5 como para praitcar tudo isto. Ora supposta a sua rusticidadc , bem se deixa ver, que quanto he pela explicação do mestre , ain- da que verdadeira , e exactíssima , nem n'um anno poderia o pobre homem rezar o Padre nosso, O Moliers pinta isto com cores tão vi- vas , e joga de tal modo com o caracter deste ignorante aprendendo , e do Mestre ensinan- uc-o 5 que fará rir o homem mais melancóli- co ; e na verdade , que ninguém pode conter o riso, quando se representa hum homem at- tarantado, e ensaiando-se muito tempo a pro- - nunciar hum a , ou hum d , etc. cousas que* esse mesmo rústico , sem que nunca tivesse mestre algum , pronunciava com todo o desem- baraço. Já vos rides sem ver a Comedia ? Eug. Basta fingir na consideração esse passo para não me poder conter. Teod. Pois fazei de cnnra que os Filósofos são outros taes mestres do Camponez cavalheiro ; pois sabendo todos nós que huma cousa não pôde ao mesmo tempo ser , e deixar de ser isso mesmo que he , nos armão taes arengas , e difticuldades , que aos pobres estudantes ihes . dá bom trabalho responder a mil argumentos ^ que Tairâe quadragésima secunda, 1 8ó» qué sé formão Sobré as contradictorias \ e lhes custa a explicar , que se huma cousa he isto ou aquillo , não pode nesse tempo , e hesàe sentido deixar de ser isso, que suppomos que he. -Ewp-. Ainda não sei bém que cousa são contra- dictorias. Teoà, Duas caâtas ha de opposição entre os juí- zos , ou proposições ; hum as são coiitr adicto^ rias entre si , outras contrarias : quando hu- ma proposição diz Somente o que he preciso para falsificar , ou impugnar ò que diz â oU- tfa j fica sua cohtradictorià ; porém se diz al- guma cousa de mais , já fica contraria : po- nhamos exemplos. Dizeis vós , olhando para esre rio : Todos os Hdviós , que estão no Te- jo ^ sdo Inglezes. Se eu impugnar isto, dizen- do que algum navio do Tejo nao he Inglety tendo dito somente o que he' preciso para fal- sificar o vosso dito ; e neste caso á minha pro-* posição he contradictofia dá vossa. £tig. Bem percebo ; e como hei de impugnai- la coni huma proposição que seja não contra- dictoria, mas contrariai Teod. Podern ser muitas as contrarias da vossa proposição 5 porque qualquer cousa , que eií accrescente a minha contradictoria , já fica náo CO ntradictoria , más contraria , que he mais. Supponde vós que eu ài^ó : Nenhum navio do Tejo he Ingle'Z, , já fica contraria ; porque par? ser falso o que dissestes , bastava havèf al2;um navio, que não fosse Inglez; e' eu di^o rhais, porq^ie affirmo qué nenhum heíns^ez. Tom. yil. T Sily. 290 Recreação Filosófica SUm. Dessa não ha dúvida , que he contrârk , e sáo as que hie ensinarão nas aulas : agora quero ouvir quaes sáo as outras. Teod, Eu as assino. Supponde vós que eu digo : Muitos navios do Tejo não são Inglezesy eis-ahi huma contraria ; vai outra : Aqudle na- yio ultimo do Tejo não he Inglez , também he contraria ; porque nestas dqas digo mais al- guma cousa além do que he preciso para ser falsa a proposição de Eugénio. Não somente digo que algum navio não he Inglsz ,, mas ac- çrescento que esse tal navio he aquelle deter- minado j e isto he demais. Tanto assim , qqe por isto só que eu accrescento, pede ser falsa a minha proposição juntamente com a de Eu- génio. Daqui he que nasce aquella regra , Sil- vio y que todos dão sobre a verdade , ou falsi- dade das proposições oppostas. Dizem , Eugé- nio,, que das contradictorias , se hum.a he fal- . sa ^ a outra cjue impugna , ha de ser Forçosa- mente verdadeira ; mas as contrarias podem . ser juntamente falsas ; de sorte , que sendo hu- , ma falsa , não se pôde dahi inferir que a ou- tra he verdadeira : por quanto como eila , alem do preciso para contradizer a outra , accrescen- ta alguma cousa , nisso que accrescenta pódc ser demaziada , c perder, como dizem , por carta de mais. Nesse exemplo , que puz. > se vê isso bem claramente. Vós ãiziels, que to- dos os navios do Tejo erão Inglezes ; isto he . falso ; e se eu me contentasse cem dizer , al- gum navio do Tejo não he Inglez^ isto infal- livel mente seria verdade j porém se accrescen- las- Tàrãe qUaâragenma seúunàã, 2$ í tasse que esse tal era este primeiro , oú âqueí- fe ultiíno 5 isto podia ser mentira ; como stu:- cede agofdf pois este primeiro , e acfuelle ul- timo sáo Inglezes. Também se accrescentasse 9 ?uô muitos ríaviòs estaváo aqui , que náo erâo rtglezes 5 podia ser falso ^ por quanto baâtáva que houvesse hum que o nao fosse , para a vossa proposição se falsificar. Ultimamente se> eu me náo contentasse com dizer que havia al- gum navio que náo era ínglez , mas accres- centasse que nenhum havia aqui que o fosse, ainda era mais demaziado , e por conseguinte tâmbem era falsa a minha proposição. O que hz que minta quem impugna huma pro- posição falsa ) he ser demaziado no modo de a impugnar 5 e como posso sella por muitos modos, por isso pot muitos modos também me posso desviaf da verdade ; e assim coiitra- dizendo-nos hum ao outro , ambos podèmos dizer o que ríáo he assim. £^g» Ambos mentiamos nesse caso ; eu por af* firmar mais do que devia ^ e vós por negardes mais do qUe era razáo. Teõd, Pofcm nas contradktorias n^pode zcút^ tecer isso; porque se huma proposição somen- te diz o que he preciso para a outra ser falsa , e estoutra chegar a ser falsa , já que?m a eort- tradiz fiUa verdad.e. E»g, Já entendo ; e vertho a concluir y goe as contiiídiíítdrias não podem ser ambas fal^^í mas as contrarias sim. Pergitnto agpía : E po^ deráó ser ambas verdadeiras? feod. Essa pergcínrtf rtátj^ ar foíieiíT, âe igaras- T ii sék 1<)^ Re cr ea crio Filosófica seis bem: pois se elías se contradizem, eím- pugnão mutuamente , como podem ser verda- deiras ambas ? J£ug. Tendes razão. TeoJ. Adverti , que para se formar a contradiz ctoria de qualquer proposição he preciso cau- tela , em ordem a não por se náo o preciso para falsificar a outra; e isto he cousa de mui- ta importância , porque até os Hereges se va- lem destas equivocaçóes contra os Catholicos , e he preciso estarmos acautelados. O modo mais ordinário, e mais seguro de fazer a con- tradictoria de qualquer proposição he por hu- ma negação que negue toda a proposição in- teira 5 como se eu contradissesse a vossa pro- posição deste modo: Nem todos os navios do Tejo são Inglezes. Convém muito ver bem em que lugar hei de pôr a minha negação ; porque , pondo-a fora de lugar , ficará talvez a proposição contraria, e poderá ser demazia- da , e falsa. Como se dissesse : Todos os na-, vios do Tejo não são Inglezes. Etig. Essa ficava falsa. Teod. Hei de por o nao antes de tudo. Bem. vejo que ás vezes náo faz a proposição senti- do' mui natural e claro ; mas devo -explicallo por outra que o declare bem , a qual ha de di- zer somente o que for bastante para falsificar a primeira , v. g. se disser : Pedro certíssima'., mente he Santo , direi : Não he certissimamen- te S finto ^ porque para falsificar o dito basta que não seja a sua santidade tão certa , como dizem 3 e não he preciso negar absolutamente a san- Tarde quadragésima secunda, ' 193 Santidade , basta negar a certeza. Do mesmo modo seria dernaziaJo se dissesse ccrtissima- mente não he Santo , porque isso ainda era maito mais , porque era negar a certeza , ne- gar a santidade , e so':re isto affirmar , que Kavia certeza de náo ter a santidade. N'uma palavra vos advirto , que a palavra nía , em rigor s6 pode negar o qi^ vai depois díella, pjsto que no commum modo de faílar isto tem sua excepção , por força da natural collocação de que usamos em algumas frazes vulgares: como quando duvidando da certeza de alguma testemunha pouco segura , dizemos : Isso ago- ra mui certo nao o he : onde a coUocaçáo põe o não depois da palavra certo , devendo ser o seu lugar antes desta palavra , deste mo- do : Isso agora nao he mui certo. Porém nes- tes casos logo se conhece o sentido , e se per- cebe a collocação. Eug. Essa regra boa he. Teod. Advirto mais, que náo convém tomar as cousas materialmente , como fazem os rapa- zes ; mas devemos tomallas como homens de juízo, e seriamente. Eu me explico. Se vós disserdes huma proposição , e eu vos quizer contradizer, não me hei de agarrar ás palavras materialmente , contentando-me Com as impu- gnar ; mas hei de impugnar as palavras con- forme o vosso sentido. Exemplo. Dizia Wí- clefo : Os accidentes nao ficao na Eucharistia sem sujeito ^ quero eu com a Igreja contradi- zer esta proposição , náo hei de dizer cega- -^ mente: Os accidentes ficão sem sujeito ^ como • dizem os Peripatheticos, Silv, 594 'Recreação ViUsofica filv Pobres PeripatheticQS 5 nunca se lhes per- doa. T^od, Não me interrompais com o vosso génio jocoso. Náo elevemos , Eugénio , contradizer t Wiclefo deste modo , porque isso he tomar fis palavras cé^mente ; havemos de tomallas no seu sentido : elle queria que ficasse páo, e accidentes , e o dizer , não ficão accidçntes sem sujeito , era dizer , ficao com sujeito. Isto supposto , quem quízer contradizer esta pro- posição de Wiclefo, ha de dizer: Os acciden- tes mo ficão com sujeito- E deste modo não nos embaraçamos sobre o ficarem , ou náo fi^ carem aecidentes ; mas sobre o não jBcar sub- stancia de pão , que esse he o ponto principal da Igreja contra o Herege. ^Hg. Agora me lembro do que me dissestes ha annos, e entendo isso muito melhor, T^eod. Advirto ultimamente , que como a qua^ lidade das contradictorias he tal , que náo con- sente serem ambas verdadeiras , nem ambas falsas ; se se negar huma proposição por ser falsa ^ podemos logo inferir a sua contradi- etoria como verdadeira : e do mesmo modo se se conceder huma proposição como verdadei- ra, podemos logo negar a sua contradictoria Prop. como faha. ( rroposição 75. ) Tomai sentido 5^5. neste dictame. Eug, E nas contrarias posso usar do mesmo mo^ do de argumento , inferindo huma , se me ne- gâo outra ? J^eod, Esquecia-me acautelar isso: por nenhum ^pdo podeis argumentar ag^im. A razão da djf- Terde quadragésima fecunda, a^^* difFerença he bem clara : porque das duas con- tradictorias huma forçosamente ha de ser ver- dadeira 5 como já disse : logo se nezáo huma , hão de conceder-me a ourra ; porem as con- trarias podem ser ambas falsas; e por esta ra- zão quem r?ega huma , pode negar também a outra. Súv, No exemplo dos Navios tendes huma cla- ra demonstração disso ; se eu disser : Todos estes navios sao Inglezes , haveis de negar is- to como falso ; e se eu inferir a contraria : Logo nenhum destes navios he Inglez , tam- bém ma haveis de ne^ar ; porque tanto n'u- ma, como na outra era excessivo. Eitg. Entendo agora bem. Teod. . Mas tencb vós neeado esta : Todos os navios são Inglezes y pode Silvio inferir acon- tradictoria : logo algum navio destes não he Inglez, Esta forçosamente se ha de conceder. Vamos a outro ponto , que este quanto mais se especula , mais se difficuíta. Eug. Já eu me hia confundindo com esta dif- . rcrença de contrarias e contradictorias. §. Vil* T^OS Recreação Filosófica §. VIL I>as Proposições, que se convertem. J'eoã, A Gora querovos explicar outro modo XX que ha de argumentar , que conduz muito para fazer patente huma verdade , q'ie estava occulta ; e vem a ser a conversão das praposiçóes : isto he , voltallas ás avessas, fondo o predicado em luvar do sujeito, e o sujeito em lugar do predicado : v. g. dizeis vós : Algum Santo he rico ; posso inferir: Logo algum rico he Santo. Isto , que nçsres exemplos parece cousa pueril , e escusada , he de muita importância paia tudo o que he ar- gumentar a convencer , quer seja em Geome- tria , quer em Theolo^ia , quer em qualquer outra matéria. Silv, Náo ha dúvida , que manejando estas ar- mas, quem he desiro nellas , facilmente pode embaraçar a qualquer desacautelado , e o en- redará , ainda em cousas bem claras , e pa- tentes. *Teod. Náo queria eu que esse fosse o uso des» tas armas ; queria que Eugénio só as empre- gasse em fazer patente, e manifesta a verda- de escondida. Muitos dos que tem engenho vi- vo abusão das sciencias , empregando os seus díctames para m^.o fim ; eu ensinarei o uso , e acautelarei o abuso , dizendo-vos como vos podereis livrar de que vos enredem os Sofis-. W5. Eug. Tarde quadragésima secunda. 297 Bug. Aisim como o meu intento não he en- ganar ninguém , assim também he livrar-me de que me enganem. Teoà, Com effeico aqui são mui fáceis os enga- nos ; por isso mesmo que os erros se enco- brem com huma tal apparencia de verdade , que nenhuma suspeita dáo, de que debaixo des- ta apparencia se occulte o erro. Sabereis pois , Eugénio 5 que dous modos ha de conv^ricio própria : huma perfeita , a que nas aulas cha- máo simpliciter ; outra menos perfeita , a que nas aulas chsmáo per accidens. A perfeita con- serva a mesma quantidade na proposição; is- to he, converte huma universal em outra uni- versal, e huma particular em outra particular : a outra conversão menos perfeita converte hu- ma universal em oura particular. Silv. Ponde-lhe exemplos , qr.e vos ha de en- tender melhor. Teod Se eu disser : Todo o homem he viven-* te ; logo todo o vivente he homem , fiz huma conversão simpliciter , ou perfeita , porque con- verti huma universal n^outra tan bem univer- sal ; porém supponde vcs que eu dizia : Todo o homem he vivente ; lego a^gnm vivente he homem , neste caso fazia huma conversão per accidens , ou menos perfeita ; por quanto de huma universal inferia huma particular ; e co- . mo não se conservava a mesma quantidade na proposição, ainda que se conservassem os mes- mos termos , e o mesmo verbo , não ficava a conversão tão perfeita. ^ug. Mas eu reparo em que essa conversão , que 2.98 Recreação Filosófica . ^ue chamais perfeita , he falsa , por quanto nem todos os viventes são homens. Teod. Reparais bem : mas eu de propósito es- colhi esse exemplo , para que vísseis que 1 proposição universal atíirmativa náo se pode converter com essa conversão perfeita , e que só admitte a menos perfeita. Agora a univer- sal negativa , e a particular affirmativa, essas sim: podeis convcrtelias perfeitissimamentc. Eu vos ponho exemplos. Ide vós praticando as doutrinas ; convertei esta universal negativa : Nenhum homem he pedra. ■Eug. Supponho que devo passar o sujeito para predicaclo , e q predicado para sujeito , e con- servar o mesmo verbo , e também a mesma - quantidade na proposição. Silv. Assim he : feito isso , está bem convcrti- • da a proposição. ^^g- Pois eu o faço : Nenhum homem he ve- dra : agora converto ; logo : Nenhuma peara - he homem, 7'eod, Assim he : conservastes a palavra ne- nhum , que he o sinal da quantidade univer- sal; conservastes o verbo he, e puzestes o su- jeito no lugar do predicado 5 e o predicado em lugar do sujeito ; fizestes o que devieis fazer. Convertei agora esta particular affirmativA : Algum pobre he feliz, Eug, Converto-a deste modo : Algum feliz he pobre. Teod. Acertastes. Eug, E a particular negativa náo se pódc con- . verter? Teod. Tarde quadragésima secunda, -299 Teoí. Nãoj e se não, vede se desta: Algum animal não he leão , podemos inferir , logo al- gum leão não he animai Bug, Isso he grande falsidade. Teod, Supposto saberdes já como se faz a con- versão perfeita , ou simples ; convém saber quaes são as proposições, que consentem essa conversão. Sabei pois , que só a universal ne- gativa, e particular affirmativa se podem con- verter perfeitamente. Não digo isto, porque nunca se ache proposição universal affirmativa que fique verdadeira, ainda depois de conver- tida , mas porque isso será casualidade ; e nós somente damos regras seguras , constantes , e infalliveis. O mesmo digo da particular nega- tiva , que só por casualidade ficará verdadeira , s| se converter com conversão perfeita. Que- reis saber a razão de huma , e de outra cousa ? Eug. Quero. Teod. Olhai, Eugénio, a identidade (isto he, ser huma cousa o mesmo com outra) lá tem sua semelhança com a união ; e he mutua , assim como a união : se este dedo está unido á mão , também a mão está unida ao dedo ; c do mesmo modo a identidade : $e aqueíle ho- mem he aqueile vivente , também aquelle vi- vente he aquelle homem. Bug. Até ahi he cousa evidentíssima. Teod. Vamos á distincção, que consiste em hu- ma cousa não ser outra : digo pois , que se assemelha á separação ; e assim como a sepa- ração entre duas cousas he também mutua , e não pode o pomo estar separado do ramo, sem 300' RecreâÇ^o Filos òfcd sem que o ramo esteja separado do pomo ; as- sim também a distincçáo : se tudo o qre he homem se distingue de tudo o que he ^edra , também tudo o que he pedra se distingue de tudo o que he homem, Eug. Também nisso concordo facilmente , por- que he evidentissimo. Teod. Pois aqui tendes a razão , por que secon- vercem as duas proposições , que disse : Con- verte-se a particular aftirmariva ; po''que se he verdade dizer : Algum pobre he feliz , he si- nal que esse pobre (seja qual for.) e esse su- jeito feliz sáo huma mesma cousa : logo esse sujeito feliz também he o mesmo com esse pobre; e por conseguinte podemos dizer: Al- gum feliz he pobre. Eug. Náo ha cousa mais clara, e convincente. Teod. Vamos á universal negativa : se he ver- dade dizer ; Nenhum homem he pedra , he si- nal que entre todo o homem ^ c tudo o quche pedra , se dá distincçáo ; e que nunca se acha- rão estas duas cousas identificadas : logo ne- nhuma pedra terá identidade com homem; e assim he verdade dizer : Nenhuma pedra he homem. Percebeis isto? Eug. Claramente. Teod. Demos agora a razão , por que as outras duas proposições , tanto a universal affirmati- va , como a particular negativa, náoadmittem esta conversão , se náo por casualidade. Vós bem vedes , Eugénio , que por eu conceder o pouco , náo me podem obrigar a que conceda o muito. Eug. I Tarde quadragésima secunda, ^ xoi Eug, He eerto. *1 eod. Ora quando digo : Todo o homem he vi- vente j concedo identidade entre todos os ho- mens 5 e alguns viventes , mas não com todos os viventes 5 alias diria, que os homens tinháo identidade com os cava lios , com os- lagartos , coríl as baleias , &e. nem eu puz na proposi- ção palavra alguma que estendesse a palavra vivente a todos os viventes , nem disse : Todo o homem he tcdo o vivente; o que estendi foi. o termo homem , dizendo : Tcdo o homem. Supponde ogora , <]ue vós convenceis , dizen- do 5 logo Todo o vivente he homem ; já nesta proposição púnheis identidade entre es Homens, e todos os viventes ; e isto he multo mais do que eu tinha dito , porque na primeira só fal- lava de alguns viventes ; e por este motivo náo me podeis obrigar a concedello , porque quem concede identidade com alguns viventes , náo fica obrigado a concedella com rodos. JSug, Tendes razão. Vamos á particular nega- tiva. Teod, Digo o mesmo. Se eu disser : Algum animal não he leão , digo que os leões se dis- tinguem de algum animal , mas náo de todos os^ animaes ; e se disser , logo : Algum leão mOf he animal , concedo dístiricçáo entre esse leão , e todos os animaes •■, por quanto quem diz absolutamente não he animal^ nega todos os animaes. Ora isto he muito mais do que eu tinha concedido ; e sendo mais do qi:e ha- via dito, não me podem obrigar, pelo que ti- nha dito, a que o conceda: por isso, secon- ver- joi . Recreação Filosófica verterem desse modo a proposição particular negativa , digo que não he segura a conversão , nem válida. Não he isto assim , Silvio ? Si\v, Assim he. Teod. Ainda falta o dar-vos alguns dictames pa- ra acautelar os enganos , que vos podem fazer • os Sofistas maliciosos, paliando o erro debai- xo da evidencia destas leis consftantes das con- versões. £ug. Antes que passemos a isso, deixai-mc re-^ capacitar esses dictames : A universal nega- tiva , e particular affirmativa podem-se con- Prop. verter perfeitissimamente. ( Proposição 76.) 76. Cá faço memoria deste dictame. Teod, Assim he ; agora accrescentaí que a uni- versai affirmativa póde-se converter com con- Prop. versão menos perfeita (Proposição 77. )> *sto 77. he , em particular : por exemplo , se disser : Tcdo o homem he vivente , posso dizer : lo- go, algum vivente he homem : a razão he, porque se todo o homem he vivente , ha dei haver identidade entre o homem ^ e algum vi- vente ; logo também ha de haver identidade entre algum vivente , e o homem ; e podere- mos dizer : Algum vivente he homem ,. que isto he o que diziamos na conversão. Bug. Nunca me dissestes cousas mais eviden- tes, que estas. Teod, Mas por claras , e evidentes não deixão de ter alguns perigos : logo os vereis. Quero dar-vos as regras para as cautelas : Toda a vez que hum termo na mudani^a das proposições se não entende do mesmo modo , }a a eonver^ são ') » Tarâe quadragésima secunda. 505 ' sSo leva vicio, (Proposiçáo 78.) A razão he, Prop» porque imporia pouco , que a palavra seja a 78, mesma , se não He o mesmo o que eu tinha na minha mente , quando usava delia. Ponho exemplo. Estando Sé Vacante, se eu disser: Todo o Papa he Christão , digo verdade ; e se ea a converter : Logo algum Christão he Pa- pa. 5 não dieo bem ; porque isso he mentira, estando a Se Vacante. Eug. Está galante argumento! Eu sei que Í5so não he assim ; mas não sei como me hei de desembaraçar dessa difficuldade. Teod. Destas ha muitas , as quaes se fur.dáo em doutrinas certíssimas , e evidentíssimas, mas; insensivelmente nos conduzem a absurdo» horrendíssimos , por não termos a devida cau- tela. Haveis de saber. Eugenia ^ que qualquer nome, v. g. homem , ou se pode tomar pelos significados , que existem , ou por tcdos os significados , (juer clies existão , quer não ; ora vai grande difterença de huma cousa á outra j e por isso se n'uma proposição se tomar o no- me hojnem só pelos homens que existem , e na. outra se tomar absolutamente, vem a na- ver grande engano, cuidando eu que he a mes- mas cousa 5 sendo na realidade ccusas mui di- versas ; esta doutrina he geral. Accrescento agora huma observação , que haveis de achar vcgrdstdeira , e importante. Quando o predicado he accidcntal ao sujeito, costuma o sujeito ro- naac-se: somente pelos que existem ; per isso se eu disser : Híwi hcttiem he rico ; him Chris- ' tÔQ hei Papa ; hum navio está parado ^ ctc. to- 3C4 Recreação Filoxo^ca todos suppõem que eu fallo dé homens j e Christáos, e navios existentes, e só dos èxis' tentes : pelo cc^rrario se eu disser : O homem he racional ; o Chrhtão crê em Chrtsto ; o na- vio he feito de madeira , todos suppóem que eu fallo absolutamente não só dos homens , e navios, que existem, mas de todos geralmen- te ; por quanto como affirmo destes sujeitos predicados , que lhes são essenciaes , quer elles existáo 5 quer náo existáo , sempre lhes con- vém os taes predicados. Sílv. Nisso todos concordão : náo tenhais naquií- lo duvida , Eugénio. £ug. Estou por isso: continuai. Teod, Supposto isto , estabeleçamos humâ re- gra geral, pela qual nos havemos de governar em mil acontecimentos : Toda a vez que o predicado he essencial ao sujeito , jste natu- ralmente se toma absolutamente não sd pelos que existem^ mas pelos que não existem. Pe- lo contrario , quando o predicado he acciden^ tal ao sujetto , este naturalmente se toma só Prop. pelos que existem ( Proposição 79. ) , porque 75^. só delles he que se pôde verificar a proposi- ção. Eug, Estou nisso , e cá vou assentando com as demais essas regras , que estabeleceis. Teod, Isto supposto, quando nós voltamos hu- ma proposição , e a convertemos , acontece mui Frequentemente , que sendo antes o predi- cado essencial, fica accidental , v. g.se disser; Todo o que tem cinco moedas, tem duas ^ di- go huma proposição^, em que o predicado- he es- i Tàr:k niíadrâírcsimã xecunda, :^05' éssehcial ; pois qicm tem cinco , não pode dei- xar cie rér díias : ora S3 converter a proposi- ção, fica yÁ o predicado áccidentai, poiquese converte nesta : J]lgtim , que tem duas moc- ílas 5 tem cincG ; e bem vedes que he isro cou- sa mui contingente , é accidenial. Daqui se- gue se, que peia regra que vos acabei de dar^ os termos mudáo dé supposiçáo ; porque na primeira proposição corno essencial se romaváo absoUnamentc , e oa se^^unda eomo accidental se roniao someuie pf-ios que exis:em. Eííg Appiicai essa doutrina ás proposições da ciitiiculdadé , que ji me parece vou attin^indo a resposta. Teod. Na primeira proposição ; Todo o Papd he Christão , ahiimo hum pred eado essencial , pois o Papa verdadeiro náo pode deixar dj ser Ciiristáo j e por isso failoabsolui amante de todos os Papas , quer exisiáo , quer náo exis- táo ; e qviando a converso , dizendo : Alginn ChíistãG he Papa , affírmo hum predicado ac- cidencal-, pois a qualquer Chrisiáo , que subir áqueJla Dignidade, íoi isso cousa mui contin- gente , e duvidosa , por esse nioiivo todos que me ouvem dizer isto , suppóem que eu failo só dos Christáos quô existem ; d já assim si n;uda de supposiçáo , pois na primeira propo- sição a palavra Chriiiãj se tomava abioiuta- meite, e na segunda somente pelos Christáos qiie existem. Eiig. Logo nem todas as converçóes, que di5- 3"sces, são seguras. Teod. São seguras j quaííd^ náo se muda d^ Tv)m, VIL V >up. I 3c6 Hecreaylo Filosófica SLipposição ^ fazei vós , qne se temem as pa- lavras na mesma siippcsiç?o em ambas as pro- posições 5 e vereis como fica bo:^ a cop.versáo. Onando eu disser ; Tcdo o Papa he Ctris- tão^ perguntai vós de qne Papas ou Chrísráos falio eu , SC dos que existem , ou dos futuros , e pretéritos ; e eu responderei , que não faílo dos que existem , pois sei que nenhum Papa existe no tempo da Sé Vacante ; e cambem não fallo dos Christáos que existem , pois es- ses não sáo Papeis. Supponde a2;ora , qiTC eu na segunda proposição fallo também dos Chris- lãos passados, ou futuros, e achareis muitos, de quem se affuma com verdade , qiie sáo Pa- pas , pois dizemos: S. Pedro he Pap^ , £e- nedicto XIF. he Papa , etc. Bem vejo que de ordinário quando digo : Algum Cbristao he Papa , tomo isso pelos que existem , accom- modando-me ao sentido natural , mas isso he falso no tempo da Sé vaga ; porem se me qui- zer conservar na mesma supposição da propo- sição antecedente, hei de faiiar dos Papas, e rhrístãos absolutamente, prescindindo da sua existência ; ^ nessa supposição fica verdadeiro dizer : Algmn Christão he Papa. Perdoai , Sil- vio, a mirsha demora neste ponto, que eu jul- go por mui importante , e q-u*z que Eugenia me percebesse com toda a clareza. Silv. Eu estim.ei a vossa explicação , porque a 3cho muito natural , e conforme á boa razão. Teod. E haveis de reparar, que quasi todas as cavillaçóes , que se armão nestas regras de convçrsòes , nascem daqui : e per esta razão , CO- Tr&de quadragésima secunda. 307 como ros tomamos as palavras no sentido rriais íiatural , e obvio , n^iima proposição tonamos a pvilavra só pelos sujeitos , que existem , c na outra tomamo-la absolut-ímente , e prescin- dindo cia existência , e deste modo , sem fó- pararmo? , variamos de supposiçáo. Porérri ago- ra acaurellados com esra adveriencia , podere- mos tomar os termos em ambas as proposi- ções na mesma supposiçáo , e fica tudo verda- deiro. Torno a recommendar-vos , Eugénio , Cjue cjuando vos virdes embaraçado com algu- ma difnculdade senielhante , exam.ineis bem este ponto , e observai se algum termo n'uma parte se toma pelos sujeitos que existem , t na outra absolutamente ; por quanto sendo assim ^ já Vitais a raiz da eavillaçáo ; pois, íiáo se to- mando a palavr^a em ambas as partes do rries- mo modo , he como se não fosse a mesma pa- lavra nas duas proposições. Silv. Também algum dia me vi embaraçado com outras iemelhanres proposições ^ como v. g. Nenhum hcmnn he Files of o , a qual pode ser vtJrdadeira , morrendo todos os Filósofos ; e com tudo estoutra , em que elia se conver- te : Nenhum Filoscfo hc homem , semprí^ he falsa : mas agora vejo que para todas serve a mesma resposta, Tecct. Como Eugénio fne entende , e vós con^ corda is , não acumulo mais doutrinas, nem dif-^ ficuldades , porque a parcimonia nesta itíarefià he mui precisa para a clareza. Basta porho'e;- agora gozemos do rerreio da passagem 3 entre- tendc-nos em convèrsaçáò mais amena , e qué V ii fios 3o8 Recreação ViJosofJca nos deixe attender ao que vai pelo rio ; porque eu vos affirmo , que nem sei se tem saKido , qU entrado alguns navios , nem tenho dado fé do que tem passado por diante de meus olhos. l^ug, O mesmo me tem succeJido a mim : nem estas matérias se podem tratar bem com meia àttençáo da nossa alma: querem toda a atten- çáo, e toda a alma. Teoà. São mais abstractas que as da Fysica ; e quanto mais fogem dos sentidos , mais puxão pela attenção do entendimento. A* manhã en- traremos a fallar do Discurso. Silv. Ainda falta muita cousa sobre as propo- sições. Falta a conversão por contraposição; faltão as ConsecusÕes. Teod, Essa conversão por contraposição não he legitima conversão , he hum modo de argumen- tar, que eu explicarei a seu tempo; e o mes- mo digo das ConsecusÕes , que são espécie de discurso. Além de que, agora Eugénio me não havia de entender bem : á. manhã continuare- mos com o que eu julgar mais a propósito. £ug. Em tudo me conformo çom o vosso pa- recer, e sujeito á vossa vontade. Teod. Demos agora hum passeio , que a vira- ção nos convida. Silv. Seja embora. TAR- Tarde quadragésima terceira, 309 TARDE XXXXIII. Do Discurso bem formado. §. I. Do que se requer fará ser o Discurso hom. Teod. y*^ Ra 5 amigo Silvio , hontem pas- I I seámos com o corpo , e hoje pas- ^•-^ searemos com o entendimenio. Ou para o dizer melhor , trataremos de como a nossa alma deve caminhar , quando quízer passar de huma verdade para outra 5 para que náo succeda cahir nessa passagem cm algum precipício. Silv, Cousa he que succede a muita gente boa, Teod. Duas qualidades ha de pessoas , que tem maior perigo que as outras , de cahir em er- ro , quando váo a discorrer. Huns são os de engenho vivo , e fogoso ; outros os de juizo leve ; e ambos cahem mui facilmente quando discorrem : acontece nos passos da alma o mesmo que acontece nos do corpo. Os rapa- zes , Eugénio , andáo sempre a saltar , e cor- rer de huma para outra parte , sem reparar on- de põem os pés , levados ão impero , e impa- ciência 5 que lhes causa a idade fogosa , e a le- 310 Becreaçaa Filosófica leveza dos pés, e também a da cabeça; epor jsso dáo muitas (Quedas a cada passo, sem<.]tie a experiência de bumas os ensine para acau- tellarem as outras. Assim sáo muitos bomens , que por ter engenbo fogoso , e impaciente , mal põe buma proposição, ariráo logo comsi- go á consequência , sem dar tempo a que o lui- zo repare bem onde ba de pôr os pés ; ào que nasce cabirem em muitos erros. Outros cabem por ter o juízo mui leve , de sorte que ainda que oibem muitas vezes para as cousas , não be eom a reflexão precisa para verem bem es- se mesmo obií-jcto para onde olbáo ; e assim cuidão que be pedra íirme , o que na realida^ de be atolleiro , e dão comsi?;o em. terra : que- ro dizer , cuidão que be verdade certa , se.-u- ra, e clara, quando nada disso be , e cabem no erro. Eug. Pois eu i'í não sou rapaz ; e assim como a idade me não consente esses saltos perigo- sos nos movimentos do ccrpo , náo be razão que seja m.enos acautellado nos do entendi-* mento. Teoà, A primeira cautela íí a rendes nos dicta- mes,quevo3 dei acerca r'o Ivom usodas Idcas , e do Juízo ; ai^ora vos dsrei outros a respeito do Discurso. De doi;S princSpios procedem os erros no discurso : o primeiro be de ser falsa a proposiçáâo antecedente ,'que be o funda- mento, em que fszemcs força, e ermo íinca- pé , para passar ac:ic.-n;e : o segundo be de ser mal t rada a conseque-.icia , e náo porn-os o secundo pé onde o devianiCS per , e tirarmos a Tarde quadragésima terceira. 511 a consequência que não devíamos tirar. Nos diciames antecedeates bastantemenre acautelei os erros , que vos podem vir do primeiro prin- cipio : agora acaucellarei os outros : he preci- sa artençáo bastante. Silv. Nisso descançai : pois ninguém se pode gabar de ter discipuÍ3 mais attento. £tig. A politica , e o desejo da minha instruc- çáo assim o pedem. Teod. Antes que passamos adiante , supponho que vós bsm sabeis, que eu por esta palavra Discurso entendo h^imã passagem que a al- ma faz de huma proposição para outra , a qual delia se siga. A primeira proposição cha- nu-se anteccdenie 5 a que se infere delia cha- ma-se consequência, ou consequente. E daqui logo podeis tirar luz para fazer varias refle- xões importantes. Primeira , que não basta en- cadeiar duas proposições entre si , para haver discurso ; por quanto se huma náo nascer da outra , ainda que eu faça passagem de huma proposição para a outra , não formo discurso. Eug. E que he preciso para huma proposição se seguir, e nascer de ourra ? Silv. Qiie esteja dentro delia , assim como o menino deve estar dentro do ventre de sua mâi , para a seu tempo delia nascer. Vós rides ? Tcod. O caso he , que zombando vos explicas- tes adn-iir,ivelmente. Nem eu me podia expli- car com mais propriedade. Se huma proposi- ção se não inclue , e está fechada dentro da outra , como ha de poder rirar-se delia , ou nascer delia, ou se^uir-se delia? que ludo he o 3 II Recrea^ílo Filosófica o mesmo? Esta he a energia caquella palavra logo. Por tanto iiqi:e-vo5 esta regra inipressa na memoria : Tcdo o discurso para ser bem deve injerir da yrcposlao anu a dente ãqrúílo somente que esiivcr envolvido dentro delia. Prop. ( Proposição So, ) §0. £ug. Entáo de que rae serve o discurso ? por- que se eu por elle não renho nada de novo, mas somente o qne tinha envolvido dentro da primeira proposição , que eu i.?. co'^hecia , de pouco ou nada rne vem a servir o disccrrer. ITçod- Sempre nos serve de muixo o bgm dis- curso 5 porque com elle conkeço claran-.ente , e vejo com os olhos da slma o ciue , por estar dentro da outra proposiç^.o , não podia ver tão claramente. Tornemos a comparação de Silvio. Nascendo hum menino , não lemos neste mun- do nada da novo , que antes não houvesse; mas vemos cip.ramenre cá fora , e conhece- mos bem o que não podíamos ver , nem. co- nhecer em quanto não nascia . Assim he a ver- dade, que pelo discurso sô deduzio de alj^uma proposição, onde se continha ; porqoe p:r esr te meio ficou manifesta , e antes estiiva oc- cuha, fug. A^ora. me convencestes : qual he a ourra reflexão que d»zieis ? Teod' A se^;;unda reflexão , ou conseqr.encia , q'iepoJcmos tirar da definição do discurso, he esta: Pode hum discurso ser bom^ ainda que Prop. ccnste de propcsií^ócs falsas. ( Proposição 8 1. ) 8i. A razão he , pcrquj assim como huma ver- dade pôde ter deriirj em si outra vçrdade, tam- Tarde quadragésima terceira, 31^ rambeni hnraa falsidade pôde ter dentro em si outra falsidade ; por conseguinte , se eu discor- rendo inferir de huma falsidade ontra , que dentro delia se incliie , já discorro bem ; por- que conj-orme a definição , úz a minha alma passagem de hiima proposição para outra que delia se siga. Bng, Mas sendo tudo falso, pôde ser bom , e v(?rda ^eiro disca"so ! TfOrt'. Reparais bem , mas não conRindais hu- ma c^íjsa com outra : ha discurso hom , e ha discurso verdadeiro : disciir^o bom he o que infere bem j isro he, o que tira a consequên- cia 5 que la estava dentro da outra proposição donde se inferio : se faz isto , he discurso bom, A2PT3. ser o discurso verdadeiro , he mais al- guma cousa , porque recjuer que seja verdade o que elle diz j e para isso he preciso qie se- jáo rodas as proposições verdadeiras. Tenho- vos posto no costume de pôr exemplos , devo fazeilo já por obrigação. Se eu disser assim: £u sou Rei de Castella , logo sou Monarca poderoso , todos dirão , que eu não fallo verda- de , e que náo he verdadeiro o meu discurso ; mas todos hão de confessar, que eu discorro bem j porqne che:'^âdo a ser Rei de Casiella , havia de ser Monarca poderoso , pois isto se encerrava dentro da primeira proposição. Silv. Kío ha vliiVida que vós , se fosseis Rei de Casiella , forçosamente havieis de ser Mo- narca pod-roso. Tccd. Reparastes, Eugénio, no que disse Sil- vio ? Silvio fez agora huma proposição condi- ^ ci- ^lÁ Recreação Fi/ovofica cional 5 em que servia de condição o antece- dente . e afhrmava o consequente ; disse assim : Sc fosseis Rei de Castellãj eisaqui o antece- dente servindo de condição: Hãvieis de ser Monarca poderoso ; eis-aqni affirmada a con- sequência. Ora lembra-vos o que vos disse das proposiçc3es condiclonaes ? qae para a proposi- ção condicional ser verdadeira bastava que da condição se seguisse o afôrmado , ainda que tudo fosse falso í £f^g. Lembrado estou disso. Teod. Pois aqui tendes a prova , e o funda- mento de todo o bom discurso. Examinai,. e vede se podeis formar huma condicional ver- dadeira 5 em. que o antecedente sirva de con- dição 5 e o consequente seja o afirmado ; se a puderdes fazer de sorte que fique verdadeira , fica o discurso bom ; se a não puderdes fazer , be o discurso máo , ainda que as proposições sejão rodas verdadeiras. J^ug. ]á estou nessa doutrina bem instruido. Mas dizei-me isto : e quando eu ponho pri- meiramente duss proposições , e delias infiro huma terceira proposição , qual he a antece- dente 5 e qual a consequente ? Tecd, Fizesres bem em perguntar, porque hã- vieis de equivoc?r-vo3 alguma vez. Quando se faz isso chama-se esse discurso syllogismo , co- mo V. g. esie; Todo o homem he vivente y Pedro he homem : Logo Pedro he vivente. As Tarde quadrãgcsms terceira, i^jt^ As primeiras duas proposições juntas Fazem hum antecedente j e a ultima proposição, que leva a palavra logo , he a consequência , ou conclusão. Ora as duas proposições chamáo-S3 ^premissas .;, e á primeira delias costum?o cha- mar maior , á segunda menor ; porém ás ve- zes se rrocáo. E!'g. E em aual delias se contém a conclusão, 0!i de qual delias nasce ? Teod. Nos syl}o2;ismos mais perFeiros , e natu- raes pode inclnir-se em qualquer delias; de sor- te porem qne hunia serve de conter dentro em si a conclusão ; e a o'irra de mostrar como nella se contém tudo , em ordem a que nós a tiremos para Fora com a palavra hgo. Com o exemplo já posto me entendereis melhor. Nes- se discurso a conclusão se inclue na primeira, diz ella 5 que Todo o homem he vivente. Ora nesta regra geral se comprehende também Pe- dro ; e por conse^^uinte quando eu digo , que Pedro he vivente . digo claraniente o que já tinha dito na primeira conFusamente ; e a se- guncia proposição somente serve de declarar que Pedro pertence áquella regra geral que di- zia Todo o homem he vivente. Silv. Isso está mui claro , e sempre me criarão com isso. Agora o que não entendo he dizer- des vós , que a conclusão se pôde incluir tam- bém na segunda proposição : isto para mim he cousa nova. Tecd. Eu o mostro. Qimlquer termo commum tem duas cousas, que^sáo, extensão e compre- hencRo. Ftls. extensão ^ pertence o termo a mui- tos 5x6 Kecreação Filosófica ros sujeitos , como v. g. o termo homem , que pertence a Pedro, Paulo, Francisco, etc. Pe- la comprehenção , envolve o termo muitas idcas ; como V. §. o termo homem , que envolve a idéa ds vivente, racional, corpóreo, etc. Pos- to isto , digo que a conclusão sempre se en- volve no antecedente • mas podemos dizer que se envolve na maior , porque o sujeito da cont clusáo , que he Pedro , se envolve na extensão do sujeito da maior , que he homem ; e no de- mais são o m.esmo as duas proposições , como se vê , escrevendo huma por baixo da outra : Todo o homem he vivente: (maior) Logo Pedro he vivente. (conclusão.) Aqui se vê , que quem diz Todo o homem , também falia em Pedro. Podemos também di- zer , que a conclusão se envolve na menor ; porque o predicado da conclusão , que he vi- yente, se envolve na comprehenção do predi- cado da menor , que he homem ; e no demais náo differem essas duas proposições : escre- vei-as com o lápis huma per debaixo da outra : Pedro he homem : ( menor ) Logo Pedro he vivente (conclusão.) Vedes que na idéa de homem se envolve a idca de vivente ? e por conseguinte quem diz homem , diz também vivente. Posta esta ex- plicação, se vê manifestamente como no mes- mo syilojismo pode a conclusão considerar-se ora inciura na mnior, ora na menor, como se vê escrevendo assim o syllogismo inteiro , e re- flectindo bem nelie ; To- Tarde quadragésima terceira. 3 1 7 Todo o homem he vivente-, Pedro he homem: Logo Pedro he vivente. Aqui com hnma visra de olhos se conhece o cjue vos disse. Efíg. Assim he : o Pedro da conclusão inclue-se em Todo o homem da maior , e o vivente da conclusão inclue-se na idéa de homem da me- nor. Silv. Sempre o outro modo de explicação he mais natural. Teod. Mas também deste modo se verifica a essência de c|iiaic}uer discurso, a qual está em por huma proposição , e depois tirar cá para tora o que lá estava dentro delia. Puz esta pro- posição : Pedro he homem , e entro a exami- nar o que se envolve nisto de ssr homem , e acho que se envolve o ser vivente ; e vou lo- go affirmar claramente isto mesmo de Pedro-, c formo o discurso , dizendo : Pedro he homem : logo Pedro he vivente. Por tanto, Eugénio, quando eu ponho huma proposição so , e del- ia tiro a consequência , já se sabe , que den- tro da primeira se ha de incluir a' segunda ; quando ponho duas proposições antes da con- sequência , huma serve de conter a conclusão , outra serve de mosttar como se contém ; e a palavra logo a rira para fóra , em ordem a co- nhecermos claramente o que lá estava escondi- do. Supponho que me entendeis. £ug, Clarissimamente. §. II. 3i8 Recreãç'^0 Vtlosof.cã §. n. T>o Pd qii "^nncípio , ou Máxima fundamental ^ le dd a forca a todo o discurso bom. Teod. 'XJ Amos a^ora a mostrar donde nasce V a força de todo o discurso bom ; ou qual he o Principio , por que todo o homem de juizo maduro está obrigado a conceder a consequência , quando elia He bem deduzida. Silv. Nisso já sei que haveis de ter pendências comigo , porque íbi criado com o meu Quae sunt eadem , etc. e vòs seguis o Dtci de omní , etc. ( i ) Teod. Eu , amigo Silvio , não faço ten^ ão de contender comvosco agora , que s6 cuido em instruir a Eugénio : náo me metro nestas ques- tões ; vou-o in;5tR]indo como mais util me pa- re- ( I ) O PrJncip'o , çu? nas Escolas se dizia quef era o íundamento de todo o discurso, era este ; Q^une sunt caáem tml tertlp,^ sunt idem Inter se ; esteí scrAu'a para os vilogisinos aífirmativos ; e para os ne- gativos servia e^te ! Qíiandíf ciam est idem aUcai ^ cai aliud non est icem , ipsa (juoijiie non sunt i.ieni inter se. Depr)Í5 os ATodçrna? examinando bem a Aristóteles , ac!iá'ão cue para os aifirsp.ativos elle se valia do Princií. io D/cí de omni ^ isto he : Quoã dicltur de ali^rto , dícUitr de fímni eo , qtt>>d ést ip. $um , e pjra os ne'/atu os sç vaíia do Diei de .atilo , isto he : Qjiod negatur de alií^íío , de nnílo , qaod est ipíitm , dicí pjtest. Tarde quadragésima terce 'ra. ^ 1 9 rece. Quem se agraciar da minha explicação , si:^a-me ; quem náo se agradar delia , íique-se em paz ; e deixe-me ir o meu caminho , que eu náo impu.^no ninguém , nem desprezo nin- guém. Vamos ao caso , Eugénio. Vós já sa- neis que a conclusão , 0:1 consequência se en- volve dentro do antecedente. Eíig. Estou lirme nisso. Tecd. Logo a boa consequência hc parte do an- tecedente. (Proposição 82.) Prop. Eíig. Náo o posso negar. 82, Teod. Ora firmai bem na vossa memoria essa proposição, porque he importantissima. Eug. Descançai , que certamente me náo es- quecerá. Teod. Digo agora huma verdade claríssima , a qusl quero que ponhais bem defronte dos olhos ioda a vez que discorrerdes ; e vem a ser es- ta : Quem da o Todo y dd qualquer parte dei- le j e quem nega a parte , nega também o Todo. (Proposição 8^.) Duvidais disto? Prop, Eug. Sò se tosse louco poderia duvidar decou- 8^, sa tão manifesta. Qiiem me dá cioco y neces- sariamente me dí dons, porque dous sâo par- te desses sinco ; e quem me náo quer dar dous , muito menos me quererá dar cinco , que sáo o Todo daquella parte. Qiie dizeis, Silvio. Sih. Não me pergunteis isso. Tecd. Estamos bem concordes. Pois, amigos^ eis-aqui o Principio fundamental , por onde Eugénio se ha de governar , para obrigar a . todos, a que lhe concedáo a consequência , quando ella for boa j por quanto como a con- se- 320 Recrearão FiloscficA sequencia he parte dó Antecedente , vem & ser o Antecedente hum Todo a respeito da consequência: e assim pelo Prircipio, que aca- bo de explicar, q lem der, ou conceder o An- tecedente, que he hum Todo^ ha de dar, ou conceder a Consequência , que he a sua par- te j e quem negar a Consequência , que he parte , ha de- ser obrigxdj a ne^ar também o Antecedente, que he o Todo. K deste modo fica obrigado a negar isso que concedeo , c confessar que fez mal em o conceder ^ mas se náo quizer confessar, q;ie errou , então conceda também a Consequência ; pois he loucira dar o Todo , e ne^ar a parte , que nelle se con- tém. Concordais nisto, Silvio? Silv. Quem pode deixar de concordar comvos- co , sendo isso hurna cousa evidentis^ima ? Mas Teod. Deixemos esse wãs para ouira cc^asiáoj náo embaracemos a Eugénio com dispu'as dá aulas. Como dizeis que ist he verdade , pos- so sem escrúpulo instruillo por este modo. Silv. Tendes razão : mas terve-me o sangue quando vos vejo tomar estrada diversa da qu3 sempre vi seguir aos outros. Teod. Pois se vos terve o sangue, sangrai vos, que para isso sois Medico. Vamos ao que im- porta. Outra propôs iç?.o ha , Eugénio, qne pa- rece boa, e parenta des.'c Principio tundòiiicn- tal , que expliquei ; mas he iaisa , e o»'^;em de grande* enganos ; e vem a ser esra : Qffent nega o Todo^ nega a parte que nelle h ccn- téfUj es a he hunu mm granu«, emui d -^lar- cada falsidade. -t^^» T(^rãe qt/ac^agesmâ ter cê ir ti. Ji t Èw, A mim parecia-me é§^â proposiçio vcfc\t- deira ; porque se nego 6 Todo , nego iudo quanto vai deniro delis, Tcod. Engana ís-vos. Ora védep : áé vós me pe- dirdes cinco moedas por titula de divida , eu hei de negallas , e dizer que tal não ha ; que as náo devo ; c q.ae as náò quero dar j mas com tudo se me pedirdes duas moedas , náo. as negarei , porque corn eífeito vo-ias devo; . Ora vedes , que sendo duas moedas parte dé cinco , eu posso negar as cinco , que sáo o Todo , e náo negar as duas , que sáo a parte, £ug. Tendes razáo , equivocava-me* ^ - Toed. Ora vamos experimentar estes Princípios em áígum discurso , paia ver se elles obrigáo , ou não a todos a que , se concederem o Ante- ^ cedente , concedão também o Consequente. Ea ponho este discursai O homem de bem hao fa% accao md ^ Ò peccado he accao md '- ^. ^ _, . Logo o homem ãè bem ndo fdk peccadâ. Como este discurso he hcfin ^ ^eve o Gonse-» quente ser parte do Antecedente ^ e com effei- to he parte da maior ; o que se vè claramén(- te, conferindo humaptoposição com outra: es- crevei-as ambas em hum papel j huma pòr bai- xo da outra, deste moda: O homem de bem vão fai aéçãò má : Logo o homem de bem não jâ% peccado. Cotejai-as agora, e ach^areis^ qtie só difFerera íiísroj a maior diz accao md^^ eoiísequer.ciiji Tom. VIL X diz 3^2 Recreação Vílosoficâ diz peccado. Ora quem não vc , que ná pala- vra ãc^ão md se involve também o peccãdc ; sendo o pcccãào btima acç^ão md , como diz a menor í Supponhamos agora, que algum Fi- dalgo ás avessas , quefo dizer, Fidalgo, que faz acções vis , e peccados públicos , suppo- nhamos , digo , que quer defefider-se ; e que , concedidas as premissas , nega a consequência , dizendo , que cm hum homem Cavalheiro , co- mo elle , não são repfehensiveis certos pecca- dos. Este homem forçosamente oíi ha de con- ceder a consequensia , que negou ; ou negar o Antecedente , que concedeo ; porque ac(^ão md he hum Todo , que comprehende em si , co- mo parte sua , tudo o que for peccado ; por conseguinte , se me concede o Todo, ha efe conceder a parte; e se me nega esta parte, ha de negar o Todo. Se diz , que o homem de bem deve fugir de tcda a acção md , forço- samente ha de dizer , que deVe fugir do pec- cado. E se teimar, dizendo, que pode náo fu- gir do peccado , então fez muito mal em di- zer, que como homem de bem havia de fugir de tcda a acção md. Sílv. O pobre homem ha de ver-se aperrado ; porque dizer, que deve fugir de toda a acç^ãó md , mas náo do peccado , que he acção má , he contradizer-se manifestamente : dizer que o peccado não he acção má , he herezia ; dizef que elle náo he homem de bem , supposto o fazer publicamente acções más , isso náo lhe está bem. Sempre está apertado. 7€0d» Alli vereis , Eugénio , a força do discur- so. Tàrâe quâdragèsinta fci^ceird. 323 to , e do Principio , em qiié éííd sê funda : ati- tes que formássemos o discurso ^ aquelle ho- mem tinha na cabeça estás proposições. Pri- meira : No homem de bem , é fidalgo mo sãó reprehensiveis certos pectados* Segunda : O ho- mem de bem deve fugir de tcdâ a ãccão md ; porém sendo o peccado acção má , bem vedes que o tal Cavalheiro se contradizia , ora con- cedendo 3 ora negando ao homem de bem es- ta acc^o md , e mui socegado agázalhava nó seu entendimento esta contradicçao ^ sem ad- vertir nella ; veio o discurso , é por força del- ia já conhece o ssii erro'.- Variítís adiante. §. in* bo primeiro preceito , pãrâ fómâr àisciír^ SOS bons, Etig. Q E tudo for tão clara éorrio áré aqui , v3 nenhum susto tenho de não perceber. ^eod. Trabalharei por vos fazer tudo claro, sem que falte ao substancial , e' importante ; para o que já tomo a licença de omittir tudo quanto me parecer supérfluo aos meus inten- tos 5 e vossos ; e dou licença a que cada qual julgue de mim como quizer , é ainda sem eu lhe dar essa licença , assim o farão. ^í7v. Em huma instrucção particulaf podeis se- guir o methodo que quizerdes ^ sem offensa de ninguém, X ii reoà. 324 Recreação TilósoUcd Teod. Entre vários raodos de formar discursas^ al^^uns ha , que s?o ciarissimos , e perFeitissi- 11103 : darei hum dictame para os formar , e de caminho expiieo o seu artificio. Mas an- tes de tudo advirto , que eu chamo regra ge- ral a qualcv^er proposição universal , porque falia geralmente de todos os seus sujeitos. Is- Prop. to posto 5 vai agora o dictame. (Proposição 84. 84. ) Posta hnma re^ra geral , se ella se appli- cãr a algum sujem , diga-se per conclusa» desse sujeito o que se disse na regra geral. Vamos agora a reduzir este dictame á prática, e ponhamos alguns exemplos. Seja este o pri- meiro : Todo o vicio he feto ; (Regra geral ) A yingayiç^a he vicio: (applicaçáo) Logo a vingança hejeia, ( coíicliís.^, ) Aqui tendes hum discurso perfcitissimo , cujo artificio he o mesmo que vos disse : pomos primeiramente a regra geral , que todo o vicio he feio ; depois a ppl içamos esta regra ao vicio da vingança , e na conclusão dizemos da vin- gança o que fica dito na regra geral ^ convém a saber, que he cousa feia. Ora a evidencia deste discurso está em cpQ , se huma regra se concede , e me dizem y que hum determinado sujeito pertence a essa regra geral y claro fica que deste determinado sujeito hei Je dizer o - que se disse na regra geral. Por quanto a re- gra sendo geral he hum Todo j o sujeito , a que se applica, se lhe pertence^ he parte des- te Tarde quadragésima terceira* 325'' te Todo; por eonsíguinte, se me dáo o To- iíio, hão dsdar-nie tambsm a pnrce delle, con- forme o Axioma ou Principio estabebcldo, Etig. Cousas táo evi lePires como esta , se se ex- plicáo mais , taz-s^^-lhes injúria. *TeocL Ponho outro syllogismo negativo com o mesmo ^rdíicio. A injúria de Dcos^ nunca dá honra ; ( Reg.^er.^ O desafio he inyíria de Deos : ( applicaç^o) LfOgo o desafio nunca dd henra. (conclusão.) £íig. Estou corrente neste modo de discorrer. Cá assento esse dictame na minha memoria. Teod. Falta agora advertir duas cousas para cau- tela. Primeira , que a regra deve ser absoluta- mente gerai; porque não o sendo , e falhando em algum caso , pôde acontecer que esse tal caso , em que falha , seja aqueile a que se vai applicar no syllogismo; eentio já temos falsi- cade na conclusão , como acontece neste dis- curso : Todo o homem estima o ouro ; (, Reg. ger. ) S. Francisco foi homem : ( applicaçáo ) Logo S. Francisco estimou o curo. ( conclusão. ) Aqui o discurso pecca , porque usa de huma regra , que não he absolutamente geral , mas acmirte sua? excspçóes; e por Í3S0 a conclu- são he errada. Silv. Quando se formão estes discursos perfei- cissimos 5 já se vô que deve ir tudo em gran- de rigor; e então as regras geraes sempre são jibsolutamente geraes , ç sem excepção akuma, Jcod, 5^0 "Recreação Vilosofica ^eod. A segunda advertência he , que muitos discursos parece que sáo formados por este di- ^tame , c não o são ; porque parecendo que a regra se applica , em vez de se applicar se aparta. Eu ponho bum exemplo : O que Deos manda he santo j A Virgindade Dcos nío a manda: Logo 4 Virgindade nao he santa, IBug. Esse discurso nao he bom, seja pelo que íSr. A m^ior he verdadeira , e também a me- nor ; porque a Virgindade aconselha se , mas não se manda no Evangelho ; porém a conse- quência he falsa , e falsíssima. U'eod. E pareçç o discurso armado na forma dos outros 5 que ha pouco disse ^ mas he enga- noso; e o engano está em que, jposta a regra geral , não se applica ao sujeito da conclusão : reparai no syllogismo, e examinai a menor: que diz a menor? Bug. Di^ assim ; a Virgindade Dcos não 4 manda,, ^Teod. Pois isso não he applicar â regra geral, he excluilla. A regra geral falia do que se manda ; a menor diz da Virgindade , que se mo manda. Ora he bem claro , que aquillo /jue Si não manda , não cabe na regra geral, que só falia daquillo, que se manda. Silv. Em vez de applicar a regra geral á Vir- gindade, se exclue delia. ^eod. Ora isto, que aqui he mui claro, ás ve- zes se disfarça de modo , que engana a gran* íles homenç. Eu yi a hupi homem de pasmo^ Tarde quadragésima terceira, 3 27 80 engenho, que deo grande credito á sua na- ção , andando róra do Reino ; e em hum Tra- tado seu da Santíssima Trindade , dá mil vol- tas para responder a ccrio argumento , o qual tem este artiíicio , que acabo de mostrar ; e sendo hum homem pasmoso, não advirtio nes- se en;::^ano ; por quanto se advertisse nelle , nem resposta lhe quereria dar, peia náo me- recer. Silv. Não ha juizo tão ajudo , qys ás vcze$ não tenha inadvertência. Teod. Por este mesmo dictame se podem for- mar outros discursos menos claros , mas igual- mente seguros. Vós já sabeis , que as propo- sições affirmativas se convertem , trocando-se o predicado em sujeito, e o sujeito em predi- cado: com esta ditíerença somente , que a par- ticular se conserva sempre com a mesma quan- tidade 5 e a universal se converte em parti- cular. Bug. Bem me lembro. 7VW. Isto supposco, a proposição que applicít a regra geral , como sempre he afíirmativa , pode converter-se ; mas ou convertida, ou an- tes de se converter, sempre serve de fazer ap- plicação da regra geral; porém quando se con- verte , já fica o wliogismo menos cUro, Ponha^ ipos exemplo. Digo assim : João o Santo he feliz ; ( Regra geral ) Algum pobre he Santo ■ ( appiicaçáo. ) J^ogo algum pobre he feliz. JEs- g^S Recreação Filosófica Esre syllogismo he perfeitíssimo , c está peb dictame proposto ; mas se eu converter a me- nor , e não disser : Algum pobre he Santo ^ mas algum Santo he foíre , sempre a regra ^çral Vque fall^ de todo o Santo , se applica ao pobre , de quem hei de faliar na conclusão ; fe por isso fica o silogismo seguro , posto que náo fique táo claro , pgr ser aqUellá applicaçáo jmenos natqral; eu formo o syllogismo inteiro: Todo o Santo he jçli% ; ( Regra geral ) Algum Santo he pobre: ( applicaçáo. ) Logo algum pobre he fçliz. Conferi hum com o outro , escrevçndp-os em I^urn papel , e vereis que toda a diversidade dos syllôgismos consiste em ser a applicaçáo mais ou irienos natural. Eug. Escrevendo-se ambos , c cotejando-se en- tre si , eonhece-se cLarameete o auiiicio , e a diversidade de ambos. "jTeod. Porém se eu converter só a conclusão , ' tendo deixado as duas premissas intactas sem as converter , fica também o discurso bom, posto que menos natural ; como se disser : Todo o Santo he feliz ; ( Reg, geral ) Algtffn pobre he Santo: (applicaçáo) Logo algum pobre he feliz : ( conclusão ) Logo algum feliz he pobre, ( convertida.) E ahi tendei a conclusão que logo podíeis tirar immediatamevite das premissas ; mas então íica* va o syllogismo menos naíural. Tarde quadragésima terceira. 329 ^coA, Por tanto , Eugénio , confirma i-vos ao dicrame que vos dei , e usai delle de qualquar modo que vos parecer , coíh tanto que vos se- gureis na substancia do dictame, que he pôr a regra geral , depois a|:ipliealla , e no fim con- cluir 5 dizendo desse objecto da applicaçío o que se di/i na regra geral. ^ng, Náo me esquecerei nunca. §• IV. Po segundo dictame , para formar discur- sos bons. Tcod, f^ Uero agora dar-vos outro dictame pa- V^ ra formar com diverso artificio mui- tos discursos bons. Mas para me en- tenderdes bem 5 quero que fecais difíer?nça de duas cousa? diversas , que parecem huma mesma. Posta qualquer regra geral , posso as- sinar objectos que não pertencem á regra , e objectos que differem delia ; isto he , que náo jconcordão com elia : ponhamos hum exemplo , digo eu : Toào o koniem foge dos defprezos ; eis-aqui huma regra geral : se depois disso me fallarem nos leóes , ros cavallos , nas pedras , ctc. tudo isso sáo objectos que náo pertencem á regra , porque só falia dos homens ; mas se me apontarem S. Francisco , direi que perten- ce á regra , mas que náo concorda com ella , antes differe delia muito ; pois a regra diz que fogem dos desprezQs ^ q S, Francisco os bus- cava. ^t^S* i 330 Kecreação Filosófica Eug. Descançai , que bem se percebe o c|ue ht não pertencer , e ocue he ndo concordar •, náo penencer he náoeniur na ciasse dos sujeitos; e náo coneordar , he ser por outro modo do que diz a regra : se a re^ra diz foge dos despr?' zos 5 náo concordar he náo lu;^ir ; se a regra dissesse não foge dos desprezos , enráo nesse caso náo concordar era íugir. Socegai , que percebo bem. Prop. Tcod. Estimo: vai agora o dictame. ( Propôs i- 85. çáo 85. > Posta huma reç^ra geral , se apparecer su- jeito^ íjue com eÚa nao concorde , bem pode- mos inferir qtte lhe não pertence. Já adverti que a regra lia de ser absoluta , e rigorosamente geral ; com exemplos me expli- co melhor. Digo assim: Todo o sábio he dócil \ ( Regra geral) O teimoso nao he dócil : ( diFiere. ) Logo o teimoso não he sábio. Quero pôr outro discurso com regra geral ne- gativa : Nenhuma matéria entende j (Regra geral) j4 nossa alma entende: (difíere.) Logo a noisa alma não he matéria. Deveis reparar que nestes dous dircursos o ar- tificio he o mesmo : a differença está em que n'um a regra geral he affirmativa, e nesse ca- so a proposição que assina o objecto que náo concorda , deve ser negativa , como vedes no primeiro discurso : n'outro porém a regra geral he Tarde quadragésima terceira, 331 he negativa , e nesse caso a proposição , em que se pce o objecto c]ue não concorda , deve ser affirmativa , como se vê no secundo syiio- gismo. f^ug. Tenho entendido bem. ^Xecà, Cgmo a Lógica trata as cousas por mo- do scientifico, tem obrigação de dar os dicta- mes, e dar também a razão dellcs. A razão pois deste dictame he o mesmo Principio, em íjue eu disse que se fundava toda a força syl- lo^istica : Quem dá o Tcdo dd a parte. Por quanto se me dizem, que todo o sábio he dó- cil , dão-me hum Tcdo , quero dizer , huma regra geral , que comprehende como partes to- ados 03 sábios. Ora negando me a conclusão, querem que o teimoso pertença a esse numero dos sábios , e que seja pane desse honrado To- do ; ao mesmo tempo que dizem na menor, que esse teimoso não he dócil ; donde v^m a dizer juntamente , que Todo o sábio he dócil , e que huma parte desse Todo ( que vem a ser o terceiro) nao he dócil , contra o Principio que diz : Quem me concede o Todo , conce- de-me tudo que for parte delle. Por conse- guinte , quem estiver nesta máxima , ha de conceder o dictame assinado; e confessar, que posta huma regra geral , se apparecer sujei- to 5 que não concorde com ella , certamente lhe não pertence. JBug. Estas cousas são mui verdadeiras, porém mui delicadas. Teod. Mas também mui evidentes e claras. l^Ug, Assim he. Pergunto agora , se à regra 352r Be cr e aça o Filosófica geral deve ir sempre em primeiro lugar? Tecd. Deve ir em primeiro iu^ar , S3 qaizer- mos que o discurso lique mui natural ; mas se a puzermos em secundo lu^ar , também íi- ca o discurso bom , com tanto que sempre a conclusão seja a mesma , isto he , qu3 diga que o tal sujeito náo pertence a refira geral. Eu ponho hum mesmo discurso, posto de am- bos os modos 5 para verdes quá sempre fica bom. Digo assim : Nenhum homem de bem serve ao demónio ; O que pecca serve ao deuwnio : LcgG o que pecça não he homem de bem. Fste discurso está natural , porque fica a regra geral em primeiro lugar. Agora ponho a re:^ra geral cm segundo lugar ; mas com a conclusão sempre do mesmo modo , que se ella estives* se em primeiro : O que pecça serve ao demónio j Nenhum homem de bem serve ao demónio (R,) : Logo o que pecca não he homem de bem, JEu:g. Já estou advertido ; e para conhecer qual he a regra geral , logo os termos me ensináo ; porque em vendo a palavra Todo, Nenhum y Qualquer , já vejo que essa he a regra geral. Silv. Fazei vós , Engenio , alguns syllogismos conform^es a este segundo dictame, para vos desembaraçardes , é Teodósio ficar socegado, e certo de que entendestes bem. ^ug. Deixai-me ir de vagar , que me parece que atiiursi, Tarde quadràgej^ima terceira. 353 todo o homem de honra merece credito ; (R. g.^ Quem mente não merece credito : (difíers.) Logo quem mente nao he homem de honra. ÒTeod. Esrá bem feiro este discurso , e confor- me ao segundo dictame : fazei outro corri re- gra geral negativa. £ug. Quem he senhor d'uma cousa , nãó bs seu escravo; (R^p^a ger.) O avarento he escravo do ouro : ( difFers. ) Logo o avarento nao he senhor do curo. Teod. Estais examinado, e approvado. Advertência sdtHente para aquelles que fre- cptentdrão as aulas. NAs e<;cólas para se significarem dS diversas pro- posições de qúe <;e pCdem formar os dircursos ^ se valem das quatro vogaes, significando o A a Uni- versal atfirmativa , o E a Universal neeativa , o I a particular àffirmativa ^ o O a particular neijativa. Alcrh disso , se estabelece que as três proposições du t)Ualquer discurso só podem constar de três termos. O que vai nas duas premissas , chama se meio-ternw 5 os outros dcu5 chamão-se extremos , hum maior , ou- tro menor ; e Os dous extremos se ajuntao na con- clusão. Quando o 7nclo termo he sujeito em huma premissa e predicado em outra , dizem que he a PrU meira Jigttrít, Quando o melo termo he predicado em ambas , he a Segunda figura ; e quando he sujeito em ambaç , he a Terceira figura. Na primeira as- sináo qifatro modos directos, os quaes valendo-se da significação das vogaes que disse , significao por CS- ^^4 ^ RccréàçãO Filosófica estes vocábulos Barbara , Celarent , Darll , Fír/V 5 é estes quatro modos e;táo conlormes ao primeiro' preceito , que assim se òto ( paír. j 19.) . Na Ter- ceira ngura se assinao seis monos Darapil , Felap- ton ^ Disamls , Dutisi , Bocârdo ^ IPerison ; e estes estão conformes ao me';mo primeiro preceito , ap- plicando-se não do modo mais natural , mas do ou- tro menos natural , (^úe fica explicado. Òs modos' indirectos dá primeira figura Baralipton , Òelaiites\' Dahitis ^ Fopesnín ^ Frismeso também pertencem ao" mesmo primeiro preceito , havendo alguma conver- são ou transposição nas proposições , ou só na con- clusão. Porém os quarro modos , que assinão para st segunda figura , a saber ,- Cesore , Camesires , Fes-' úno , Baroco\f pertencem ao seeundo preceito. Ad- virto , que a regra geral em Bocardo está ria pri-'^ meira , não obstante ser particular : nem podia es- tar na segunda ; porque sendo affiritiativa , não pô- de em si conter huma regra geral negativa, qual he a que rege huma conclusão negativa. Agora para se descubrir na primeira ( t\Ío obstante ser particular ) esta regra geral , deve attender-se a que tem o pre- dicado distribuído ; e que por hum modo seguro se pôde também distribuir o sujuito , para haver re- gra geral negativa. Isto se vê melhor , praticando esta doutrina em hum sylogismo. All(}ttls homo non est Ia pis , Cntnis homo est animal Ergo aUíjuod animal non est laplsj Perguntemos de que se x^erifíca a maior ; c dando-noí Pedro V. g. digamos : Ergo Feirus non est lapls ; e depois infiramos esta: Ergo nulliiis Petrus est lápis. i' depois reduzamos a menor , que he universal at fir- ma- Ta rde titíadr^igesinía i cr ceifa, 335- mativa , a esta siní^iilar : Petrris est animal^ por- que nella se envolve ; e ííepois convertamos essa singular, dizendo: Ergo àUqiiod animal est Petrús i depois arma-se em Ferio este sylogismo. Ktitlcis Petrtis est Ia pis AUcjuod animal èst Petriis Ergo allcjiiod animal non est hplí, A qual lie a mesma conclusão óe Bocàrdo 4 onde se ■('ê que estava envolvida na primeira proposição. Isto tem ohrigaçSo de dizer todos os que se valem do prin- cipio Dlci de nttUo , porque lião de mostrar proposi- ção 5 onde se contenha o dito^ principio. Vos syílogismGs truncados , a que chamão Enthymemas. ; Siív. T^ Dais por completa a instrucção sobre i JJ/ os syllogismos absolutos , s6 eom estes dons dictames ? Teod. Sim , por quanto creio que por elles se podem fazer todos ossyllogismos quecostumão dar-se por bons, sendo de proposições simples e absolutas. Í'Sih, Ainda náofallaste^ àos Enthymemas , que \- sáo firequentisáimos , e deviáo ser primeiro, por \ serem huns meios syllogismos' e mais imperfei- tos. ^eod. Agora he o seu lugar , porque só âgorâ me podia entender bem Eugénio : haveis de sa- ^^3^ Recreação FilofCfficà saber j que nestes sylogismos que tenho tivpXi-' cnclo 5 muitas vezes supprimimos alguma propcn siçáo, por ser mui sabida , e táo notória, que ainda sem a proferi rmv^s , tcdos a tem no peri- samento : deste modo fica o syllogismo muti-^ lado , porque se lhe' cortou huma parte j mas a consequência sempre ne a mesma, e tem a: mesma força, que teria, se estivesse completo, p3r quanto a proposição que se supprime nun* ca deve ser proposição de que se duvide. Eng, Ponde-me exemplos, e entenderei melhor. Teod', Com muito gosto. Suppõnde vós que for- mávamos' este syllogismo : Todo o homem pode enganar-se ; Vós sois homem: Logo vós podeis enganar-vos. Tínhamos hum s^-llogismo completo , e'bem feito i porém como ambas as premissas são mui claramente verdadeiras , podemos suppri- mlr qualquer delias ; e pondo só. huma , infv^ rir a consequência. O mais ordinário he por a regra geral , e supprimir a applicaçáo , como cousa escusada , por ser notória j e assim òxz^-* mos: Todo o homem pode enganar-se: Logo vos podeis enganar-vos. Neste caso a proposição que se supprimio foi ©áta , vós sois homem , a qual por notória se não explicou. Este modo de argumentar tem ás vezes mais galanteria, e graça, porque efA cena modo lá como que se enfastia o entcn- *tarãe quadragésima terceira, 3 :^ 7 dimento , quando lhe lembrão huma cousa dé que elle não podia esquecer-se. S'úv. Também agrada, por ser mais breve. Teoà. Assim he. Outras vezes porém suppri- me-se a regra geral ; e pondo-se clara a appli- caçáo, tiramos a consequência, como quando dizemos : Vós sois homem : Logo podeis enganar-vos. Eug. Já vejo que abi se deve çntendér a regra geral que diz : Todo o homem fóde enganar- se. Teod. Poréin deste modo não íicà tão ciará á razão e força da consequência , porque sempre nasce da regra geral ; e como esta fica supprí- mida 5 fica o discurso menos claro, mas sem- {)re bom. Advirto porém que não deve suppri- mir-se senão proposição , que seja mui notó- ria ; e pór isso cdm grande energia suppriíni- inos em alguns discursos proposições falsas , querendo deste modo que insensivelmente pas- sem por notórias , e sabidas ; como se hum iiiecanico quizessé em paizes remotos passàf* por Cavalheiro , diria por este modo : Eu não tenho carruagem , nao posso sahir fora , por- que os titulares da Corte nunca aiidão a pé , supprimindo , e dando por notória a proposi- ção que aJli faltava , e que devia dizer : Eh SOU Titular ; mas este não o dizer ; e dailo á entender como cousa notória , e sabida ^ tem mais energia do que dizello claramente. Sily. Nos discursos familiares são estes syllogis- Toín. VII, Y mos 338 Recreação Filosófica mos mutilados muito mais frecjuentes que os outros. Teod. De ordinário náo se acháo na conversa- ção estes syilogismos secos , de termos sim- ples, e formados daquellas três proposições es- sensiaes ; mas convém saber bem como elles se formão em lermos simples , e absolutos, para depois com facilidade perceber se são bons ou máos em termos mais ornados , e compos- tos ; ou também mais concizos ^ ou mais sup primidos. Eug. Assim he em tudo. Teod. Seguem-se agora os syilogismos comple- xos , isto he 5 formados de proposições Condi-* cionaeSi Dijuncúvas^ etc. Silv. Oh , Deos nos acuda : e quem se ha de entender com isso? Tcod, Não tenhais terror pânico, que não sois criança. Socegai , que em poucas palavras po- de Eugénio ter regras para formar bons syilo- gismos dessas proposições complexas , que tan- to medo vos mettem , e tão precisos são na praxe. Silv. Confesso que praticamente usamos mais destes syilogismos complexos, que dos outros simples e absolutos ; mas se ainda as regras , que nas aulas se dão para os simples , causão tanto embaraço , que será , se quizermos re- duzir os outros a regras certas ? ^eod. Tudo hc mais fácil do que vós imagi- nais. §. VI. Tarde quadragésima terceira. 339 §. VI. Dos syllogismos condicionaes. SiW. "T 7" Ejo fazer milagres , que nunca éspc- ▼ rei ver na minha vida. Teod. Alndá haveis de ver milagres maiores , sé Deos nos ajudar. Os syllogismos condicionaes são os que se valem de alguma proposição con- dicional , a qual ordinariamente he a regra ge- ral. Ora a condicional rem duas partes j a sa- ber, a Condição^ e o Dito. Eug. Que chamais vós Dito ? Teod. Chamo dito de hu.iia proposição o que ella affirma , ou nega ; v. g. digo eu : Se Pe- dro he fraco , não deve ser soldado ; nesta proposição ser Pedro fraco , he a condição, é não deve ser soldado, he o dito j o qual sem- pre se funda sobre a condição ; humas vezes este dito he negativo , outras vezes he afíir- mativo, como logo vereis. £í^g. Estou já inteirado do que dizeis ; conti- nuai no que qyerieis dizer. Teod. Digo 5 que de dous modos podemos dis- correr condicionalmente j o primeiro he ; Pos- ta a condicional como regra geral , e depois verificada na menor a condição , podemos in- jerir na conclusão o dito da condicional. ( Pro^ Prob; posição 86. ) Mostro exemplo , e £ca io^o ^6.- explicado o dictame. Y ii Sé 340 Recreação Filosófica Se a lisonja he vicio , não he dtgna de ho* mem de bem ; Ora a lisonja he vicio: Logo não he digna de homem de bem. Vedes que a condicional dizia , que a lisonja . não era própria de homem de bem , no caso que fosse vicio ; depois verificou-se que era vi- cio 5 e seguio-se concluir que com efFeito a lí^ sonja não era de homem de bem. Este modo de discorrer corresponde ao primeiro dictame dos syllogismos perfeirissimos ^ porque a con-" dicional equivale a huma absoluta , que diga assim : Todo o vicio he indigno de homem de bem j depois se diz que a lisonja he vicio , fi-* ca na consequência , que he indigna de homem de bem , conforme o primeiro dictame. E to- da a condicionai se pode trocar por hiima ab- soluta , que sirva de regra geral : e deste mo- do fica provada a segurança deste dictame. Silv» Pouca prova necessita ^ por ser evidentís- simo; pois manifestamente a conclusão se en- volve na maior , e se verifica na menor ; de sorte qne dizendo nos, que a lisonja , no ca- so que seja vicio , não he de homem de bem , c depois verificando-se que he vicio , já está dito que a lisonja não he de homem de bem : e quem negar isto , nega o que conc^deo nas premissas. Éug. Percebo bem. Teod. O outro modo de discorrer condicional- mente he este : Posta a condicional na maior , g excluído o dito na menor ^ podemos nàcon^ Tarde quadragésima terceira. 341 ssquencia neçar a condirão , ( Proposição 87.) Prop. como neste discurso : 87. Se a mentira alguma vez for louvável , Deos ha de approvalla. Ora Dços nunca pode approvar a mentira : Logo nunca he louvável. Também este segundo dictame concorJa com o segundo , que se deo para os syllogismos ab- soluLOS ; porque convertendo a condicional em regra geral absoluta do modo que fizemos ha pouco, sem majs diligencia liça o syliogismo absoluto, e governado por esse segundo dicta- me (pag. ^29.) E^u o façOi e cotejando hum com outro sillogismo , vereis como hum equi- vale ao outro : 1'udo o que he louvável ,Deos approvai A mentira nunca Deos a approva: Logo a mentira nunca he louvável, Eug. Gós^to muito deste modo de provar os dí- ctames , fazendos-os connexos huns com os ou- tros já provados , porque huma só razão con- • firma ambos. ^eod. Destes dous modos se podem fazer bons discursos condicionaes. Advirto agora , que ha aquf hum modo de discorrer péssimo, que cos- tuma enganar os desacautelados ; e vem a ser este : Posta a condicional , excluir a con- dição para excluir o dito , isto he péssimo mo* do de discorrer ; ponho exemplo , e vereis : P^ 34?' Recreação Filosófica Pedro y se matou, tem crime; Ora Pedro furtando não matou : Logo Pedro furtando não tem crime. Estes discursos correspondem aos que já de- mos por enganosos ha pouco (pag. 326.) , quando disse que posta a regra geral , e ne- gando-se a applicaçáo delia a certo sujeito, não era licito negar delle o que se dizia na regra geral , e que eráo falsos este , e seme- lhantes syllogismos. Todo o íjue mata tem crime., O que somente furta não mata : Logo o que somente furta não tem crime, ^ug. Deos nos livre de semelhantes discursos. §. vri. Dos discursos disjunctivos , e copulativos, \feod. "XJ Amos a outros discursos mui frequen- ^ tes 5 e usados , que são os Disjuncti- vos : Isto he , que se fundão sobre huma pro- posição disjunctiva. Para serem bons , vos dou esta regra: Poita huma disjunctiva ^ ç nega- da huma parte , infallivelmcnte se pode infe- Prop. rir 0. outra. ( Proposição 88. ) g8. E^g' Venha exemplo , e fica entendido o.di- ctame. Teod. Poucos dias ha que ouvi discorrer por çste modo a hum Ministro do Evangelho , e yi Tarde quadr/7gesma terceira, 343 vi na commoção dos ouvintes que todos se deixavão convencer da sua efficacia. Dizia el- le assim : O pcccador , quando não jaz caso do que Dcos manda ; huyna de duas , ow se })a de ficar rindo de Deos , vor ter zombada delle imprmeniente , oh tem ae çahir debaixo 4a sua espada terrível . Ora de todos quan- tos me ouvem nao ha hum que se atreva a dizer-me , que espera ficar-se rindo de Deos : Logo haveis de confessar-me , que tendes de ser summamente infelices , çahindo debaixo da. sua espada tçrriyel. Eu reduzo o discurso ^ poucas palavras, para se ver melKoi* o seu ar- tificio : Quem desobedece a Deos , ou se fica rindo delle impunemente , çu o ha de pagar ; Não se ha de ficar rindo impunemente : Logo ha de pagallo, Eug. ]á vejo o artificio: dizemos na maior que ou ha de ser isto , ou aquilio i depois na me- nor dizemos , não he isto , e inferimos , logo ha de ser aquillo. Desre modo tenho en dis^ corrido muitas yezes , sem saber nada de Ló- gica. ^eod. Convém agora saber a razáo disso que fazieis , e provar o dictame. Como a disjuncti- va nunca pôde ser verdadeira, sendo ambas as partes falsas , segue-se que se eu excluo hu^ ma parte , não ha remédio senão admittir a outra. E também aqui se verifica a doutrina já dada, de que a conclusão está incluida nag premissas j porque dizendo-se na maior , quQ 344 Recreação Filosófica huma daquellas duas cousas ha de ser verda- deira ; e dizendo-se na menor , que náo he es- ta , já nisso mesmo se diz que hc verdadeira a outra parte. jEí/^. Isso he claríssimo. T^od. Advirto , que ha perigo aqui de huma equivocaçáo. Maliciosamente se formão alguns discursos , que são péssimos , e enganáo com sua apparencia de verdadeiros , e são desce mo- do: Posta a disjunçtivay admiitem huma par' te , para na conclusão excluir a outr^. Por este modo se tazem muitos enganos. Ponho exemplo : Vejo que Pedro em todas as suas fiincções apparece com li^zimenro , e digo que elle ou herico^ ou bem governado: desta pro- posição verdadeira pode algum valer-se para discorrer 3ssim : Pedro ou he rico ^ ou bem governador, Eu sei que elle he bem governado: Logo não he rico. Este discurso não presta , porque verifica hu- ma parte para exchiir a outra ; e suppõe que a disinncciva não pode ter ambas as partes ver- dadeiras , V. g. que náo pode o homem ser iunramenre rico , e bem governado. Ora isto he falsíssimo, porque para a disjunctiva basta huma parte verdadeira , mas não lhe faz mal que o sejão ambas ; pode ser huma verdadei- ra 5 e ser também a outra. Pelo que , meu Eugénio , não confundais este máo modo de discorrer com o outro que vos ensinei como bom : Posta a disjunctiva , e excluida huma par- Tarde quadragésima terceira, 34^ parte , forçosamente se ha de aàmhtir a ou- tra., porque não podem ser ambas falsas 5seri' do verdadeira a disjunctiva. Mas posta a disjun- ctiva, e verificada huma parte , nem por isso se segue , que se ha de excluir a outra ^ por- que ambas podem ser verdadeiras, Bug, Já percebo a cavillaçáo , e o motivo do engano i e fico acautelado. ^Ti/v. Só tenho contra isso , que tenho ouvido dizer , que para a dijunctiva se requeria algu- ma opposiçáo entre as duas partes , e quenáa podíamos dizer : Pedro ou he homem , ou vi- vente ; porque homem , e vivente náo se op- põe , antes hum traz cqmsigo o outro predica- do : e se nós estamos nesta doutrina , então algum fundamento ha, para que, se admitti- mos algum membro da disjunctiva , excluamos o outro 5 v. g. se dizemos: Pedro çu mente y ou falia verdade ; eu sei de certo que mente : logo não falia verdade. Teod. Amigo Silvio , não duvido que tenhais ouvido isso ; porém rnuitas cousas tereis ouvi- do que náo são verdade. Para huma disjurir, ctiva rçquer-se alguma diversidade das partes , de sorte que possa alguma delias ser verdadei- ra sem a ourra o ser, aliás he ridícula a pro- posição; mas não he precisa aopposição entre- ps membros , ou partes da disjuncçáo : por is- so vendo que hum homem disfarçou huma in- júria , digo com acerto : Fulano ou he san- to , ou prudente , e mais ser prudente náo se oppóe a ser santo. Vós muitas vezes vendq hum homem que náo pode comsígo , dizeis que 34<^ Recreação Filosófica que ou está doente , ou muito fraco \ e não se oppõe estas duas cousas , basta que haja di- versidade ) de sorte que possa estar algum des- ses membros sem o outro, como acontece nos exemplos que disse , e também no que vós apontastes : como v. r. se vejo ao longe mo- vèr-se hum vulto, digo, o que lá vem ou he homem , ou pelo menos vivente ; e basta po- der ser vivente sem ser homem , para ser a proposição acertada. Silv. Sempre quando os membros são oppos- tos , fica a disjunctiva mais clara , e o discur- so mais patente. Teod, E ás vezes mais cavilloso ; porque em^ sendo a opposiçáo contraria , já temos o laça armado para cahír no engano. Ora que medi-, zeis a este discurso? O Mentiroso ou se ha de crer , ou contra^ dizer ; O Mentiroso nunca se deve crer : Logo sempre se deve contradizer. Silv. Parece-me bom, e ahi vereis o que aca- bo de dizer ; porque a disjunctiva consta de duas partes entre si oppostas , e logo se vè como o discurso procede com clareza. Teod. Pois se he bom este discurso , trazei comvosco sempre agua ardente , e panoâ para fios; porque seouverdes de andar contradizen- do sempre os que mentem , tendes de ter mui- t^ pendência. X f.iig. Pois aquella proposição disjunctiva não he verdadeira \ Teod. Tarefe quadragésima terceira, 347 TVoíí. Digo que não : e pela opposição de seus membros parecia mui verdadeira , mas sáo de- masiadamente oppostos 5 isto he , contrários , e não só contradictorios. Se disséssemos , ou havemos de crer o mentiroso , ou deixar de o crer , isso sim ; mas ou çrev , ou contradizer , isso he muito, porque a prudência manda em muitos casos nem crer , nem contradizer , mas callar, e disfarçar. Adverti, Eugénio, emhu- mâ doutrina mui importante : em sendo os membros da disjunctiva oppostos com opposi- ção contraria , nem por isso deis a disjunctiva por verdadeira ; e por essa razão , negada hu- ma parte, se não pode affirmar a outra. Mh. Seja como quizerdes , que não estou com animo de questionar hoje. Téod, Passemos agora aos discursos copulativos ^ que são o avesso , ou contrario dos disj:incti' vos. Ponho logo o exemplo , e depois expli- carei nelle o seu artificio : Ninguém pode estar innocentc , e culpado; Todos nos somos culpados em Adão: Logo ninguém está innocente. O seu artificio he este : Posta hmna copula- tiva , que negue a conjunção de duas partes ; se depois se verijica huma dessas partes , no fim exclue-se a outra. ( Proposição 89. ]) Po- Prop^ demos pôr também por exemplo hum discur- 8p. 30 de ]£SU Christo contra os Avarentos. Di- zia o Senhor assim : Nao Si 348 Recreação Filosófica Não fadeis servir a Deos , e ás riqueza Vós , avarentos , servis as riquezas : Logo não podeis servir a Deos. A maior he expressa ; mas o Senhor occultou a menor , e a consequência , deixando-lhes is- so a elles, para que a si mesmos se condem- nassem. Aqui agora ha outro perigo de cavil- laçáo , e engano ; e vem a ser , quando , pon- do a regra geral (a qual não consente que es- tejáo as duas partes juntas), depois na menor excluimos huma das partes , para na conse- quência affirmar a outra ; isto he muito máo : com hum exemplo me explico. Digo assim : Não se pode servir a Deos, e ás riquezas i O pródigo não serve ás riquezas : Logo o pródigo serve a Deos, £ug. Nada , nada desse discurso ; elle he fal-^ so, seja pelo que for. Teod, Dizeis bem : o que devia ser para ser bom este discurso, era : Por na maior a regra geral, que negue a conjunção de duas par- tes , e depois na menor verificar huma par- te, para na consequência excluir a outra -^ e como este discurso ultimo faz pelo contrario, nega huma parte , para pôr a ourra , fica ca- vifloso. JEug, Dissestes bem , que este modo de discor- rer era contrario do disjunctivo. O disjuncrivo nega huma parte para affirmar a outra ; e es- te copulativo affirma huma parte para negar a outra. Em cada hum dos discursos fazenda o i Tàrãe quadragésima terceira. 349 o que deve , fica bom y fa2endo o contrario ^ lie cavilloso. Teod, A razão deste dictame he esta. Posta a regra geral , fica impossível âjuntarem-se am- bas as partes ; ora se a menor verifica huma , bem se infere na conclusão que se deve ex- cluir a outra ; aliás estarião ambas juntas , con^ tra o que disse a maior. Eug, Estas doutrinas accommodão-se tanto com a razão , que huma vez explicadas , não po- demos duvidar delias por modo algum. Teoà. Privilegio be esse só da verdade. Orâ destes discursos complexos , que vos tenho ex- plicado , eu resumo aqui em três dictames tu- do quanto tenho dito , para que vos não con- fundais, e mais facilmente Vos lembreis. I Nos condicionaes , posta a condição , aí* fií-mai o dito : e negado o dito , negai a Condição. t Nos disjunctivos , excluída huma parte, ponde a outra. % Nos copulativos , se puzerdcs huma par^ te^ negareis a outra* ÍE fora disto tudo he cavillaçâo , e engano. Conserva i-os na memoria. Em. Descançai , que nunca me esquecerei de oictames câo racionáveis* S. Vltt h JJO Recreação Filosófica §. VIII. Dç cutros moãoí que ha de discorrer bem. Teod. \ Lém deçtes modos que temos diro, i\ outros modos ha de discorrer mui i usados : hum delles he o que nas aulas se cha- ^ ma conversão de contraposição. Eug. Não entendo esses vocábulos. *Teod. Ora eu vos digo o que isto quer dizer, explicando o artificio destes discursos : Posta huma regra geral affirmativa ^ de todo o con- traditório do predicado , se pode af firmar o Prop. contradictorio do sujeito. ( Proposição ^o. ) 50. Como V. g. Todo o homem^de honra falia verdade : Logo quem nao falia yerdade não he ho^ mem de honra. Eug. Esse modo de discorrer paréce-me bom. Teod. E funda-se no segundo dictame , e no principio fundamental que assinei para os dis- cursos perfeitos. Se a regra affirmativa he ge- ral 5 he sinal que o predicado se involve no sujeito 5 e he como parte delle ; por conseguin- '. te quem náo tiver o predicado , que he par- te , náo pode ter o sujeito , que he como hum rodo, segundo o Principio, ou Máxima, que diz: Quem negar aparte^ deve negar otodo^ Silv* E como explicais vós essa conversão ni particular negativa ^ onde náo ha essa regr* Tarde quadragésima terceira, 35: i TeoL Essa conversão ainda que a haja, náo se usa delia praticamenie , por ser summamente barbara, constando a consequência de três ne- gações ( I ) ; e como Eugénio nunca se ha de servir deste modo de discorrer , de que me ser- . ve explicar-lho > Eug, Doutrinas inúteis náo mas ensineis por vida vossa , que he cousa nociva occupar a memoria com ellas , podendo encher esse váo com outras doutrinas de muita utilidade. Tçod, Outros dous modos ha de discorrer , que nas aulas chamáo consecuções : hum he consc- tuÇío de ovpostos > outro consecui^ão de con- juntos : sobre cada hum vos darei hum dicta- me para vosso governo. Para a consecução de oppostos sirva esta regra : Postos dous ter- mos contradíctorios , se affirmais hum , vo- deis negar o outro i e se negais hum^ podeis affoitamente affirmar o outro. (Proposição Prop; pi.) Exemplo. Nas acções moraes ser licito^ 91. e ser prohibido , são termos contradíctorios : digo eu agora ; de qualquer acção moral , que falíeis , se afíirmardes hum desses dous ter- mos , podeis negar o outro ; e se negardes hum, podeis affirmar o outro. Eug. Entendo , e parece'me que me atrevo a. pôr exemplos do que dizeis : digo ;»f3sim : ' ( t ) Fa7-se assim segundo as regras da aula : Algum animal , não he homem '. logo al^ttm não Ao- ^iiH ^ nã9 he não animal. , 35 i Recreação Fihsofca A guerra entre Christaos não he acção ^rò* hibida y Logo he acção licita. Aqui vendo excluído hum termD , affírmo o opposro. Agora porei exemplo , èm que ven- do posto hum termo, exclua o outro; e dige assim : Ú duélb entre Christaos he acção prohibida z Logo não he acção licita. Tcod. Acertastes : e a razão desse dictame he bem manifesta; porque sendo os termos con- tradictorios , nem podem estar ambos , není faltar ambos ; por conseguinte pondo hum , podemos negar o outro ; e negando hum , po- demos por o outro. Advirto porem , que al- guns termos parecem contradictorios , e sáo contrários , e nestes ha grande perigo de en- gano ; porque negado hum , nem sempre se pôde inferir o outro; e a razão disto he, por- que sendo contrários , podem faltar ambos a jium tempo. Agora estes dous termos doente , c sãoropo- sicÔcs antecedentes , se ella se inclue dentro de alguma, he bom o discurso y senão se con- tém , he mão. ( Proposição 95. ) Já hontem Prop. vos disse cousa equivalente , mas agora o que- 95. ro explicar mais praticamente , que já me ha- veis de entender melhor. Para conhecerdes cla- ramente , e com facilidade se a conclusão se inclue n'alguma proposição antecedente , ha- veis de advertir no que já disse : todo o ter- mo tem extensão , e tem comprehensao. Quan- do o termo he commum , que convém a mui- tos sujeitos , como v. g. homem , que convém a muitas pos^oas , dizemos que tèm extensão , a qual he total, quando ao term.o sô ajuiita a palavra todo , nenhu n , qualquer ^ ou quando vai depois da negação , porque esta exclue tu- do : isto he extenção. Agora comprehensao do termo he incluir na sua idéa, ou conceito es- tes, ou aquelles attributos: coniov. g. homem que envolve na idéa ser vivente, ser mortal, ser ircatura de Deos , ser corpóreo , ser dis- cm- 3^(3 Recreação Filosófica cursivo^ etc. Tudo isto se envolve nâ compre^ hensáo do termo homem. Siipposto isto , par^ examinar se a conclusão de qualquer discurso se inclue nas proposições antecedentes , hei de cotejaila com qualquer delias ; e como a con-? clusáo só difíere de qualquer proposição ante- cedente em hr.m termo, não resta seriáo com- binar este termo com q outro , em que diffe- rem ; se se inclue , ou na extensão , ou na comprehensáo 5 he bom o discurso ; senão se inclue, hecayilloso. Ponho exemplos; e digo assim: Toíí^ d ingratidão he ín4ign^ de h^m h(h mem honrado y Todo o peccado he ingratidão : Logo todo o peccãdo Ije indigno 4e bondem honrado. Temos que examinar se a conclusão se inclue na maior : v. g. cotejemos huma proposição com outra , e para isso esçrcvei-as com o la^ pis huma deb?iixo da outra : ponde lá : Toda a if '.gratidão he indigna y etç. Logo todo o peccado he indigno , etc. Só differem estas proposições em que a con- clusão diz peccado , e a maior diz ingratidão» Pergunto : e o peccado não he hurna espécie de ingratidão^. Eug. .Sem dúvida , porque he ingratidão a Deos. Teod. Bem está : logo se o peccado se inclue na extensão do termo ingratidão , claro fica ^ que a conclusão se inclue na maior , e fica q discurso approyado, ^^Z' Tarde quadragésima quarta, 561 ^ug. Poucas cousas tenho entendido láo coni' pletamente , como esta : a diligencia de repa* rar nas proposições escritas he precisissima pa- ra as cotejar bem , que de cabeça náo he fa^ cil fazello. Teod. Cotejemos agora a conclusão com a me- nor, a ver se tambe.n se ineluc neihi escre- vci-as para as cotejar : Todo o pecçado he ingr^úddo : Logo todo o pçccado he indigno de hum homer}i de honrai. Aqui só differem em que huma diz ingrati- dão 5 outra diz indigna de hum homem de honra. Ora na idéa da ingratidão achar-se-ha ser cousa indigna de h^ni homem de honra ? fug. Náo ha cousa mais abominável , mais feia, e mais indigna de hum homem de hon- ra 5 que ser ingrato ao seu bernfçitor. Quem xne chamar ingrato , chama-me quantos no^ mes feios , e vis pode chamar-mç. Eu no conceito de ingratidão tenho ser huma cousi. vilissima , e indigna da honra , da razão, da Christandade , e da Civilidade. Teed. Está bem. Pois se isso he assim , já a conclusão se Inclue também na menor. Por isso se eu disser somente: Todo o peccado he ingratidão , lego he indigno de hum homem de honra , discorro bem , porque na proposi- ção antecedente se inclue a conclusão. £ug. E será preciso que a conclusão se inclua náo só n'uma proposição antecedente , mas em anibas»^ Teod. 362 . Recreação Vtlosofíca Teod. Sendo o syllogismo negativo, deve cons- tar de huma premissa negativa , e outra affir- mativa , e a conclusão sempre ha de ser ne- gativa. E sendo isto assim , somente se pode incluir a conclusão na premissa negativa. Po- rém sendo o syllogismo affirmativo, pode con- ter-se em qualquer delias ; mas sempre fica mais claro o buscalla na que serve de regra geral ; e achan o-se n'uma proposição , he es- cusado buscalla na outra ; porque já se sabe que pôde delia ^asCer, e tirar-se para fora. £ug. Percebo a differença dos sylíogismos af- íirmativos aos negativos ; e por essa razão muito mais fácil será de examinar a malícia dos ne^çativcs. Teod. Lnganais-vos , porque esses dão em cer- to modo mais occasiáo aos enganos ; e senão , experimentai : supponde <^uq eu digo assim : )^os mo sois Sílvio 'j Silvio he hcmcm: Logo vos não sois homem. Que respondeis a isto ? As premissas são cer- tas , e a consequência parece bem deduzida ; mas certamente aue o não lie : onde está o erro ? Sílv, . Vós rides , o rir não he responder ; já que estais tão adiantado nesta instrucção , respon- dei a isto. Eng. Como hei de responder, se está provado r que náo sOu homem ? Teodósio com o seu discurso me dispensou do trabalho de respon- der^ porque me privou da racionalidade. Co- mo Tarde quadragésima quarta. 3Ô3 ' fíiõ ellô he o que eu náo sou, pÒde ter o juí- zo que eu náo tenho , e dizer o quíí eu náo di^o. Teoà. Está bem : oríi vamos a examinar pelo dictame que vos dei , se a conclusão se con- tém dentro de alguma premissa. Mas antes que entremos nessa empreza, dai-me attençáo a huma doutrina muito importante. Olhai , Eugénio , pos'^a huma cousa , póe-se todos quantos attributos ella tem ; mas negada essa cousa 5 nem por isso se negão todos os seus attributos. Exemplo. A mentira tem estes at- tributos , :>er jçiã , ser nociva , ser contra a bcnra , ser prohilnda , etc. onde quer que me puzerdes mentira , seguramente podeis pôr Jeia 5 íiociva , prchibida , etc. Mas de quem negardes a mentira , nem por isso podeis ne- ear aque les attribi^tos ^ porque se disserdes o Jurto não he mentira , náo podeis dizer : logo náo he jeio 5 náo he nociyo , náo he prohihi' do 5 etc. Suppcnho que entendeis isto : falta dar a razáo. He esta , que já disse muitas ve- zes: Posto o todo, põese aparte. Mas nega- do ô todo 5 nem por isso se nega a parte. Ora como qualquer attribmo, ou predicado de hu- pia cousa he em certo modo parte delia , so- gue-se claramente a doutíina , que vos dei j que cuero que graveis bem na vossa memoria, como quem na carta de marear nota os bai- xos 5 em que hia perigando , para sempre se desviar deiles : Posta qualquer cousa , pode- mos por todos quantos attributos ella tem. Mas negada qualquer cousa , não he seguro nç' 364 Recreação Filosófica Prop.. negar todos os seus attributos ( Proposição ^. 96. ) Eug. Tendes razão em dizer , q^^ essa dou- trina he mui importante : ide agora explicalla. Teod. Aqui agora tem uso o dictame, qie aca- bo de vos dar: quem for Silvio, ha de ter tu- do quanto elle tem ; mas quem não for Sil- yio , não fica por isso privado de todos os at- tributos, de que elle goza. Quem for Silvio, ha de ser Medico , ha de ser rico , ha de ter muito juízo 5 ha de ter génio jocoso , e ha de ser homem. Mas quem náo for Siivio , bem pódc ter muitos dos attributos , e predicados que nelle ha. Muita cautela , Eugénio, com as conclusões negativas : quando as comparar* des com as premissas, não haveis de compa- rar predicado com predicado ; v. g. aqui náo haveis de comparar hopiem com Silvio ; mas haveis de comparar nào ser homem , com nÕo ser Silvio ; e logo vereis como a conclusão i... náo se envolve na maior', porque nao ser ho- -y-mem algum ^ he mais do que não ser Silvio; c como o mais náo se pode incluir no que he fica maniíesio que a conclusão , que diz nao sois homem , náo se pode envolver na maior , que diz nao sois Silvio. Ao contrario do que seria , se o syllogismo fosse aflirmativo com o mesmo artificio : supponde que eu dizia : Vos sois Silvio; Silvio he homem : Logo vos sois hcmem. Dizia bemj porque S£r Silvio y he muito mais, que Tarde quadrageshna quarta, 3 óy (jue simplesmente sn homem : logo dizendo â conciusão sois homem ^ e a maior sois Silvio, menos diz a conclusão , do <-]ue a maior , e vem a ficar incliiida nella , e ser bom o dis- curso. Vede a differença que vái da cortciusáo negativa á affirmativa. £ug. ]á estou bem capacitado delia , e confir- mado no dictame, cjue me acabais de dar. §. II De dons sirtaes para conhecer que a conclusdê se não contém nas premissas* Teod. y^ Uero-vos dar alguns sinaes para fa- \j cilmente , e como á primeira vista de ^ olhos conhecerdes as conclusróes , que se não contém nas premissas. G primeiro he: Toda a vez que hum termo na conclusão se toma geralmente , e na premissa não se to* ntava assim , /W a conclusão não se contém na premissa : (Proposição 97. ) a razáo he , Prop. porque o termo tomado geralmente he mais 97. «xtenso do que quando se náo toma assim : logo fica na conclusão em certo modo maior 3ue na premissa 5 e por conseguinte náo sepó- e comprehender nella. Silv. Isso he o que nas aulas se explica , dizèfi- do que na conclusão se náo ha de distribuir termo algum , que se náo ache distribuído nas premissas, Teod. 5 66 KecreaÇ^o Tiiòsó^ca Teod. Não ha duvida, que isso mesmo he: p& nho exemplo, e fica explicada a re^^ra: Todo o Avarento he vicioso ;- Alguns ricos são avarentos : Logo todos os ricos são vieiosos. Este discurso hia sendo bom , mas á cbriclu- sâo o botou a perder , porque devia dizer ai-' guns ricos ^ e disse todos os ricos j e isto lhe íez muito mal , peía re^ra que acabo de dar : quem diz todos os ricos , Gomprehende todos , e na menor s6 se fallava de alguns : lo^o mais ampla fica a coriciusáo , que a menor ^ e ji não pócle caber dentro delia , e por isso tam- bém náo pode nascer delia- -uStilv. Náo digais liiaís, que está cíarissfmo; só •Hl falta saber ^e Eugénio se lembra dos sinaes ,'•, por onde se conhece que hum tçrmo está di^ tribuido.j ou se toma geralmente. ^^Ií£. Quancáo tem an es de si a palavra To- .^^ avy Nenbímy çu qual quer y ^xç. : T€od. E também quando o termo está negado, qoiH , i'::e.«xciuido , e rem antes de si a palavra Nãoy *r^ eif^-porquç quem nega , e exclue hum termo, ex- clue todo? os aeus inditiduos absolutamente. iJig. já me -dissestes isso , e fizestes bem em' iTjo lembrar outra vez. Vanrios a<^ outro sinal, que dizieis. Tevd. Muitíis vezes vos tenho ditò^ -tiu? para o diíscurso ser bom , deve haver hutí>a ff g^a, geral , e que esta éevQ appliç^r-se ao su-jeito da conclusão. Ora para isto convé^íJ que hum mesmo termo vá em ambas as premissas , c Tarde quadragésima quarta. 367 a este tal lermo chamamos Meio termo, Di- «o agora : Tcdã a vez que o Meio termo em ricnhwna premiísa se toma geralmente , he o discurso mdo. ( Proposiçáo (;3. ) A razáo he , Prop. porque nesse caso posso eu n'uma premissa 5^. tomallo por huns , e n^outra por outros sujei- tos i e assim náo ficâ huma premissa bem explicada pela outra : com exemplos me ex- plicarei melhor. Digo eu assim : escrevei lá , Eugénio. Todo o Avarento he vicioso -, Todo o Prcdí20 he vicioso ' Logo todo o Pródigo he avarento. Este discurso náo he bom , porque o Meio termo he a palavra ví cioso 5 e náo se toma ge- rahtiente na primeira , nem na secunda. Na primeira falla-se de huns viciosos , que g;uar- dáo o dinheiro como relíquias; na menor fal- la-se de outros viciosos mui diversos 5 que oes- pa'háo como arêa ; assim náo se une huma proposiçáo com a outra, nem huma he appli- caçáo da outra. Ainda que ambas levem a pa- lavra Todo , esta só tem virwde para fazer to- ' mar geralmente o sujeito , mas não chega a sua virtude ao predicado. Eu ponho, outro dis- curso ,. cuja distribuição chegu.e ao predicado , e vereis como fica bom. Digo assim v Nenhum Santo he vicioso ; . Toda o pródigo he vicioso : . Logo nenhum pródigo he Santo. Este Gonclue bem y porque na maior se falia .de 3<^)8 Kècrcação Filosófica de todos os viciosos,- e por conseguinte tim- bem os pródigos ahi se cumprehendem. Se en- tendeis bem 5 pa3san70s a outra cousa. Eug, Entendo : socegai. ' §. ÍII. t>os sofismai , qtte peccao no fundamento. Teod. "C? M qualquer matéria òs erros são mui- JL2j tÒ3 , e a ve'rdade fie somente humá : e esta he a propriedade dos desvios , que sáa muitos em hv.m só caminho direito. Por tan- to convém pouco a pouco ir descubrrndd os prineipios dos desvios, e perigos que pode ter, quem- anda em busca ds verdade. E porque (X bom discurso ,< segundo o que está dito , con- siste em- huma regra geral bem appl içada , donde se tira a consequência ,- podem todos os descaminhos dí verdade , e Vidos do dis- curso também reduzir-se a tres' classes.- Por- que huns pcccáo no' fundamenro' , ou na re- gra geral j outros péccát) na applicaçáo ; outros- pcccáo na nlá inferência da conclu- são. E começanda pela primeira classe doS' discursos , que péccáo no fiin-damento , aqui pertencem- y os que' se futidáo nas Máximas-^ erradas , por causa das preoCcupacoes , oir freJHtzos , dos qúaes já fallei no principio' desta Lógica. Discurso fundado ehi rfiaximi errada, óu seja da Auihoridade , ou dos sen-* tidos , ou do costume, ctc. já se vê que' pec- Tarde qUaãragesimnqudría. 369 p2cca no fundamento. Tarribem aqui perten- cem ot que tomão poí' fundamento do díscut- so aqnillo, que devia 5í?r fim delle. à'ilv. Nas escolas chamamo:; a isso peiereprin- cipiutn ; cousa que. Arísto'teles reprehende ; de âorte que por nenhum modo ha de ííum htn mem siippór como furídamenco ácí seu discur- so aquilio mesmo que vai a provar ; pc*fque se eu o voU a provar , he certo queí ainda se duvida da sua Vetàids ; e duVidárído-se' deiJá , como pode ser funds mento de bom discurso? Teod. Dizeis muito benl : 6 eu só tenho qiie apontai* exemplos. E já que faílasíes em Aris- tóteles, sirva de exemplo hum máo discurso, queQanileo notolí río ínesmo Aristóteles; Per- doai 5 Silvio 5 este sacrilégio. . . Silv. Gailííeo notar erros em Adstoteíes ? rio iVestre de todo o mundo , e que ensinou a discorrer a todo o género humano, he grande atrevimento! Quem hsvra de dizer aAfisíòte- Ics , que Gàllileo havia ds notar erros^ nos seus discursos ? Nunca tal lhe veio ao pensamento. Teod, Dahi o que se segue he , que Aristote-^ ies nãõ era Profeta , è que não adivinhava fu- turos : deixemos isso. Élle para prôva^r que a terra está no centro do Universo , fâz este ài§- curso: Em todas as cousas graves ha inclina- rão para ò centro do Mundo i e como por ex- periência sabemos , que todas as cousas peza- das inclinão para o centro da terra , segue-se que o centro da terra he o mesmo centro do mundo y ou do Universo , e que assim o glo- bo da terra fica no meio do Mundo. Tom. VII. Aa Silv. XJO Recreação Pr /os o fica Silv, E que máo he esse discurso ? Teod, Suppõs como fundamento, que o^ cor- pos graves incirnáo para o centro do Univer- so; ef isto he o mesmo qiie elle pertende pro- var , e do qiie diividáo todos. Os que disserem com Copérnico , Descartes, Nevton, e ou- tros 5 que a Terra he Imní planeta , e que o Sol fica , como já vos expliquei , no centro da Universo j ou deste systemá planetário , a que pertencemos , niása mesmo negáo que os cor- pos graves inclinem para o centro do Univer-- so. Eu náo digo que Aristóteles sUppõe como' fundamento do discurso a mesma conclusíío- claramente ; mas que suppôe a mesma con- clusão disfarçada , sendo esta táo incerta , e tão duvidosa como cUq : pois inclinarem 09 corpos graves para o centro da Terra he cer-- tO'^ agora ser centro do Universo esse ponto y para onde ínclináo os graves , he coUisa incer- tissirha , e que hão negar todo5 os que nega- rem 5 que a terra esteja nesse centro do Uní- sVerso. Sílv. Como o fim destas conferencias nao he revindicar a honra de Aristóteles , calo-me; Mas sabei que ahi havia muito que dizer, Teod, Fique-vos pois na memoria esta caucél- la 5 Eugénio : Hum Aiscfirso nao deve tomar por fundamento aqtúllo mesmo , de que se dn- Prop. vfda , € que se intenta demonstrar, (Propo- 5)íí. sição 99.) Eug, Eu vou notando todos esses perigos do erro , como o Piloto vai notando na carta de marear todos os cachopos , e baixos , em que vio perigar os outros. Teod, ^arde quà hagê sim â quarta. 371 Tkoà. Ainda ha aqui oufrd pííri^o ; e vem a s^r, supprimir a rhaxjma do discurso , não sen- do eiia mui evidente. Algúrls juizos fo^^osos , e impacientes , cm vrz de expressar a regra geral do discurso em cjue è€ fufícíáo , a siippri- mem ; e suppfitnida eiíá ^ náo se descobre tan-^ to a sua incerteza , 011 falsidade ^ éomo se fosse expressa ; e assim passa sem ser re- gistaííá 5 é leva o erro encuberto , sem que ncrs o conheçamos. Comi õs exemplos me explico melhor. Se perguntarem á hum Peripatherico , se sobre a região do ar ha região cb fogo , res- ponde promptamerite que sim ; e querendo dar a razão , di'2 : Assim o diz ioda a escola Pe- ripathetica com o seu príncipe Aristóteles ; e liça com muito socego , supprimindo a regra geral 5 ou fundamento deste discurso ,- que he es- ta : Tudo quanto diz a escola Peripathètica èom o seu príncipe , he verdade. Ora mui pou- co ha de ver , qneni não vif que esta regra ge- ral he falsa j e se algum a expremisse clara- mente no discurso , logo nícrs-trava á sua paí^ ião 5 cegueira , ou leveza 5 pbrém como se supprime , pássâ itisensivéimente , e ao lon- ge, e ninguerri faz tão madura reflexão sobre ella , nem se examina , e assiim íica o discur- so falso. Silv, E quem vos (íiz que he faísó ? Teod. Por ora contento-me com que' tenha pe- rigo de o ser ; pois sobre á sua verdade já fal- íamos , quando tratámos da região do fogo: foi força de exemplo. Porém com tudo isso , se vós qimndo para prova de alguma cousa alle- Aa ii gár- 372 Recreaç/io Vllosoflcâ gardjs â Aris oteles , claramente puzerdes C5tá máxima : Tr.ào c\uanto Jristotelcs diz he verdade , todos se hão de rir de vós , e mui- to mais 03 que tiverem noticia do muito em cjue errcp , como homem crue era. Síh* Desse mesmo modo discorrem muiros' , qaando dão por fundamento de qualquer dito o estemunho de outros. TiOd. Náo o nego; porem se esse testemuníio he tal 5 que possa supporrar o pezo desta re- gra geral, o que juliano diz he verdade^ fi- ca o discurso bom ; se náo pôde com prudên- cia exprimir-se esta proposição , já íica o dis- curso fraco , e sem furrdamesnro. E de cami- nho vos quero adverdr, Eugénio, o que mui- tos bons críticos advertem , que convém repa- rar nas circunisrancias que dáo przo á Autho- ridade, para ver se pode , ou náo, ser funda- mento do discurso. Alguns dizem : Este voto he deste Príncipe , ou daquelle grande GeníJ- ral , ou claqueiie Letrado. Resta saber se a matéria de que se lalla he tai, qnc sejáo pró- prias as circunstancias desses sujeitos , para dar pezo ao seu voto. Se he em matéria de guer- ra , mais pezo tem o voto de hum bom Ge- neral; se he de politica, mais pezo tem hum voto de hum Príncipe ; se he desta , ou da- quella maieria , perrenceme aos estudos de hum Leirado , os seus estudos dáo pezo ao seu vo- to. Porem de ordinário confundimos isto; e se hum homem faz no Mundo figura respeitá- vel , a tudo dá pezo a sua authorldade , náo devendo ser assim. Estava eu ha poucos dias em Tar.^e quadragésima quarta- 373 ^m huma conversação , em qu3 gavavão gran- demente hum cerco Orador , que nos tempos passados florecera na Corte ^ e quem o gava- va sómeme dava por andamento do seu di- to ter f>rá^ado com grande acceitaçáo da Cor- te i respondeo hum crítico , dizendo: E tal- vez Ljíie nesse tempo a Corte entefidesse bem pouco de eioquenclã. Todos se surriráo , e náo se faliou mais no ponto j porque se eile dis- sesse que os Prcfes3or?s da Eloquência , e 03 que linháo feito estudo por bons livros sobre a Arte de persuadir, todps o apprcváo, então discorria bem, suppondo esta regra por íundi- mento do seu discurso: O que uniformemente apprcvão na matéria de Eloquência es Pro^ fessores^ ou os que seriamente a estudão por bons livros , he bum. Mas ser hum Sermão ap- provado por hum Príncipe , ou por hum Ge- neral 5 ou por hum Letrado na Jurisprudência , ^ se não consta que tenháo nesta matéria ou es- tudos , ou bom gosto 5 nada faz para julgar- mos que he bom. ^ug. Nisso mui freqnenteniente costumamos cahir todos , se náo temos muira cautela. Tcod: Pois se as quedas sáe (requentes , deveis com mais razão acauteiar-vos ; e assim tomai de memoria este dictame : Não se deve sup- p-imir no discurso proposição , que não seja - mui evidente. ( Proposição" 100. ) E a razão Prop. deste dictame he bem manifesta ; porque ck- ioo, primindo-se a proposição , fica defronte dos . olhos , e facilmente se conhece a sua falsida- de j e supprimindo-se 5 passa ds corrida, e ao lon- 374 RecreaçSo TilosMjlca ionge , ç náo s^ repara nçlla , e a deijcafnof ir como verdadeira , sçndo ás vezes bem falsa^ T,ug. Descançai , qua fico bem adverrido. T^ecà. Outro perigo ha de suppor insensivelr mente proposiçêes faÍ3as para fundamento do discursQ 5 e àcor^tece principalmente quando a pçssoa, em cuja authoridade no? fiamos, falia com graça , e §ugvçmenre §e insinua nos co- rações dos qns a ouvem , porque insensível^ jnente assentao todos nesta máxima disfarçada \ O que este homçrn diz he verdade. E por i-j- so os Mestres d^ ^ne de persuadir en^ináo não çó a per cuidado na substancia dos argumentos , Que provem a vsrdade ; mas em todos os mo- ídos de insensivelmente' se ir cada qual inirodu- ?-indo no coração ds quem o ouve; em prdem a que, tendo-llve já dominado o coração, lhe çaptivèm também o entendimento. Eis-aquí porque tem feiro tanto damno os discursos do desgraçado Voltaire ; infelicíssimo homem , que devendo a Deos hum engenho pasmosq , e ra- rissimo , todo o tem empregado contra Deos 5 c contra a Religião, temperando com hum tal assucar , e graça o veneno de seus falsos dis- cursos , que quem o lè , se deixa pouco â pou- co ir persuadindo , sem querer. Ao mesmo tem- po que disso mesmo que elle diz , se fosse di- to seccamenrc , e se?n os enfeitçs da sua arte de fallar , nenhum homem se deixaria conven- cer. Por isso acho que se explicou bem quem ^ acabando de Içr hum seu Poema sobre a Re-5 iigiáo Natural , e o seu Optimismo , se expU^ cpu em Fr^ncez deste modo : C çst m Dç* Tarde quadragésima quarta, 375' mon cloquent cc qni parh : He Ivjin demónio elocjuente o 4112 ac]ui talia. Por tanuo ttndz grande camela , Eugénio , co^ii aquclles , que 'íaliíio com graça, e com íraze agradável , por- cjue a mesma amenidade de estilo faz c\us ia- sensivelmente assentemos nesta regra : O qiic este homem diz be verdade. E se náo , per- gunto eu: Húma cousa dita em verso eloquen- tíssimo , ou com muita energia , e graça , he mais verdadeira do que se tosse dita simples , e seccamente ? J^íig. Certamente náo •, mais agradável sim , po- rém mais verdadeira não. T^eod, Logo para nós tomarmos por fundamen- to do nosso discurso o diro de hum Author, náo devemos hzer caso algum da sua graça , da galanteria dos seus versos , ou da amenida- de do seu estilo ; e por isso quando o Author tiver estas circunstancias , devemos acautelar- nos muito, e nunca nem expressa , nem taci- tamente suppôr esta regra geral : O que diz este grande homem he verdade , porque pode a amenidade do estilo encubrir muita malícia. £íig' Fico advertido disso. ■Teod. Ponde logo íirme na vossa memoria es- toutro dictame : Quando es discursos são ame- nos , e mttí cngra^^ados , deve-se por mais cui- dado no exame das suas proposii^Óes , porque tem mais perigo o engano^ (Proposição 10 1.) Prop- Eng. Nunca me destes dictame mais preciso, 10 1. nem mais import,ints, §, IV; 37Ó li^creação Filosófica §. IV. Bos disamçs j fíue peccao na md appli- Teod. QEguem-s2 gs discursos , que , tendt^ C5 fundamento cerio , peccáo na má ap- plicaçáo 5 que destes rsmbem encontramos mviiros na praxe. Supponhamos que no passeio vos encontrais com lium cavalheiro , a quem tirais o vosso chapéo , ou fazeis algum com- primento ^ e qns elie V05 náo responde; ticais ardendo , e dizeis com.vosco : Este honwfu he incapaz de vivçr entr.e gente çivilisàda, Náo he assim ? jEiig Assim he; e crçio, que dizendo isso, ne- nhuma injuria lhe fazia, *Tccd. Fazeis injúria : nem tendes motivo par^ assim ocondsmnar. Vós quando o condemnais no Tribunal àQ vosso entendimento , formais este discurso : Todo o soberbo , c impolitico he incapaz de viver entre gente civilizada \ esiç homem he soberbo ^ e impolitico : logo he inr capaz de vivçr entre gente civilisada, ^ug. E que máo he esse discurso ? Teod. Pode ser máo ; porque a regra geral sim he verdadeira , e o fundamento do discurso he Jíom 5 mas í^ applicaçáo he precipitada , ç pó* de náo ser boa : se o Cavalheiro náo advertis- se em tal , ou por ver pouco , ou por ir cui» íJando çiT) çQiísa mui diversa , já nesse caso Tarde quairagesima quarta, y^j erráveis , porque nem era soberbo , nem in> politico , e desse modo não lhe podeis appli' car a regra geral, que tínheis estabelecido. f''!ig' Agora advirto, que desse modo terei er- rado muitas vezes. T^oà, Os engenhos vivos , e promptos tern mais perigo disso ; porque apenas tem a regra .geral, ou fundamento, como sabem a. que fim se prepara essa regra , e todo o seu intento he tirar a consequência , dão hum salto j e sup- primindo a applicaçáo , atiráo comsigo á con- sequência: de xjue nsgce, qne sendo ás vezes hum erro, ou cousa mui duvidosa, cuidáo que he numa cousa certíssima. Pelo que , meu Eu- génio, tomai este dictame : Nao nos cGntçn- temos com ser o fundamento , oti regra geral verdadeira ; examinemos sq está bem applica- da. (Proposição !02.) - Pro[ Sllv. Muira paciência he" necessária a hum *ho- 102 mem para ser bom Lógico. Teod. Amigo Silvio , nunca se acertou pela pre- sa , nem errou peio vagar em discorrer j não está o caso em julgar depressa , mas em jul- gar bem. São estes dictames errados ? Sllv, Não : são para mim evidentíssimos. 'Teod, Pergunto mais , e são inúteis ? Silv. Também náo , ss hei de fallar sincera- ' mente. ^ug. Pois sendo isso assim, não me fatigo de os ouvir. Teodósio , quero caminhar de var gar, e não qu^ro cahir depressa. ^cod. Vamos á terceira classe de discursos máos, por ger ^, consequência precipitada. 378 Recreaçaâ FiJosoJica §. V, ,Dos discursos, que pcfcão na çomequeneiíi pnçipitada. Silv. /^ Uanro a mim (]\i^si todos os cuz são \J máos 5 p2Ccáo nisto. Teod, A's vezes já o vicio vem de longe, outras só está o vício na má conssqiiencia. O primeiro modo de peccar nesta mataria , que me occorre agora , he inferir huma regra ge- fal, sem ter corrido o que he preciso para is* so. Ponhamos exemplo ; Quer algum persua- dir que os Cometas sáo annúncio de succes- sos calamitosos , e allega que no anno de tan- tos appareceo hum Cometa , e morreo jnlio César ; que em outro tal anno a appariçáo de outro Cometa , se seguio a morte deste , ou daquelle Príncipe ; que em outro anno a tal calamidade precedera hum Cometta ; que . cm outro determinado anno depois do Come- ta se ateara a guerra , etc. e infere assim : Logo toda a vez que apparece Cometa , de- vemos recear calamidade. Este discurso, to- das as proposições em que se funda , sáo ver- dadeiras ; mas a consequência he má , e pre- cipitada ; porque para tirar por consequência . hilma regra geral , he preciso que nunca fal- te ; e para isto náo basta o exame de quatro , ou cinco casos , pois por todos esses Com.e- tgs , a quç SC ^eguíráo calamidadçs ? se pode-. ráó Tarde quadragésima quarta^ yf^ jfáõ allegar dobrados, a que fienhuma notave^ calamidade se seguio. Sih. No meu tempo náo : sempre rem sido annúncios infeiices. feod. Já n'putra occasiáo examinámos essa ma- téria ; e como os casos funestos lembráo mais do que os ordinários , facilmente vos lembra- reis das calamidades que se seguirão aos Co- metas ) e dos Cometas, a que ?e náo seguir rão 5 não vos lembrais. ^£ug. Não nos embaracemos com isso , que per^ tence á Fysica. fT^od, Outro exemplo porei em matéria diver- sa , que pertence aqui. A's vezes para tirar- mos por consequência huma regra geral, usa^ mos de huma disjunctiva , mas que não he bastante. Hontem cahistes vos neste defeito , e agora vo-1q quero por diante dos olhos para cautela , porque as próprias quedas ensinao mais que as alheias. Faltáráo-vos as cartas de vosso irmão , e discorríeis assim : Ou me fal- tão cartas por meu irmão estar enfermo , ç devo entrístecer-me ; ou porque se esquece de mim , e devo q\ieixar-me ; ou porque mas fur- tão no Correio , e isto me olfende : Lo^o por qualquer npdo que isto seja , tenho razão de me affiigir , e itiqfiiçtan, Btig. É vós náo achais esse discurso bom ? ^^eod. Não; porque para haverdes de tirar essâ consequentia geral , e dizerdes por qualquer modo que fosse ^ era preciso ter corrido todos, e vós somente fallastes em três , e muitos jniai§ podido ser os motivos dç vos faltarem a? 3 8o Recreaç/ío Filosófica as cartas. Podia ser por estar próximo â par- tir, e ter feicb conta de ser carta viva ; podia ser por descuido do S3u criado , qnando Itívou as cartas ao Correio ; podia ser por inadver- tência de quem fez as listas no Correio ; po- dia ser equivocaçáo à^ vosso irmão , mecieri- do-as no masso do Alémtéjo , p^ra onde cos- tuma escrever i porque por todos estes modos Sê me tem a mim retardado cartas : e já des- enganado de que não erào os motivos ráo fu- ]>est03 como temia , me emendei de s^r Pro- feta, e agoureiro de mim mesmo. Eug. A verdade he , que quem vai a tirar hu- ma consequência , de cuja verdade está persua- dido , não tem paciência para andar correndo , e examinando todos os cantinhos, por onde po- de esrar escondida a falsidade , e engano ; e logo dá a sentença absoluta , e geral. Mas eu me acautelarei. ^eed. Ponde pois na vossa memoria este dicta- me : Nunca de casos particulares se infere Prop. regra geral , senão ccrrendo-os todos. (Pro- 105. posição 103.) O modo mais fácil de o fazer, he formando huma disjunctiva de partes oppos- tas, de sorte qn* qualquer caso, a escapar de huma parte , náo escape de se comprehender na outra. Como se sahindo a desafio , eu dis- sesse comigo: Ou mato a meu contrario , ou mo o mato : se o mato , fico perdido ; 5e o 7ião mato , também fico perdido : logo chegan- do a sahir a desafio , sempre estou perdido. ^Hv. A este modo de argumentar chamáo nas ^ulas ^r^umento Bicornç , ist^ he , d^ duas poi\n Tãrãé quacírãgêshna quarta. 3 8 i pontas ; de sorte que ou n'uma , ou noutra se encrava o inimigo. Mas nem sempre se pó^e argumentar desse modo. Txcã. Qiiero agora abrandar hum pouco o ri- gor desta lei. Q.iando a consequência , que pertehdo tirar, náo he huma regra geral rigo- tosissima 5 mas somente huma fegra geral mo- ralmente failando , então basta discorrer por huma grande parte de individaos , e casos par- ticulares. Isto acontece quando vemos que al- gum moço de boa índole , génio brando , e tenra idade , com as más companhias se per- verte; porque tomando occasiáo desse caso, e colitando mais alguns , qtie sáo âsáás frequen- tes , depois , de referir quatro ou cinco , tira- mos esta consequência , que Todo o mancebo ih pouca idade y e génio dócil , se dá com md$ companhias^ se corrompe. Ettg. Esse discurso he frequencissimo j e sem- pre o tive por bom. Teod Bom he na realidade ; porque nós não perrendemos na consequência dar huma regra geral rigorosa , mas só queremos dizer que is- to he o que succede commummente. Silv. Quando todos os casos particulares se fun- dão na mesma razão , acho que basta menor número de successos para inferirmos por con- sequência a regra geral , como acontece no presente argumento. Teod. Dizeis bem ; porque como a tazâo do génio, idade, e má companhia, fazem huma cousa , que mui fortemente inclina para o mal , não s6 pela experiência dos casos particulares , ' mas ^ii Recrea çao Filosófica rinas também ptía disposição das circuhistânciai' podemos conjecturar o que succederá nos mais casos de semelhantes circunstancias. Mas quan- do nâo ha razáo , que seja fundamento para a fegra geral, se elle somente se funda nos ca- sos particulares,, convém que sejáo muitos mais i aíiàs podem proceder de huma casuali- dade, e não fica a regra geral verdadeira. SiW. O que succede náo poucas vezes. §/"sr[. Dos discursos mdos peta eqàiyocdijSo das' palavras. 'teoí. T 7 Amos á outra espécie de sofismas/ V mais maliciosos ,' e mui fi-equentes ,' c sãòosqíie se fundão em equivocaçáo de pa- lavras. Palavras ha' , que s%nificáo ás vezes' cousa j bem diversas ;- e valendõ-t^ eu da mes*- ma palavra , ora a tomo por huma cousa , òrá por outra, e venho deste modo a vender duas cousas por huma , e fítzer hum terrivel enga- no. Com hum sofisma destes me fizeráo rir muito , quando andava em Coirnbra ; e foi hum caso garlante. Estávamos huhs poucos de .^estudantes a conversar j e hum Veterano tinha tomado por empreza persuadir a certo Nova- to , que o boi ao presepe se salvara. Repug- nou o Novato a dar-lhe credito , e o Vetera- no fingindo grande impaciência , se queixou da sua. incredulidade a outto , que casualmen- te Tarãe-quadrãgési}7iã quarta,. 38 J te entrava de novo. Esre , que percebco o in- refiro cia queixa , mostrando grande desprezo do NoVato 5 respondeo còm bem energia : E dcníle 5 se nao dahi , íe originou o signo ãe Tauro, Vós rides ! pois o mesmo me succc^ deo a mim, e a todo o congresso ; pois nin- guém pode conter o riso , vendo tal lembran- ça.- O discurso tácito deste Estudante era es- te í No Ce o ha T atiro j 7 amo he boi : logo no Ceo ha boi. Silv. Dâi-me vós esse discurso por bom , que então 5 havendo de ter algum boi entrado no Ceo 5 está cm primeiro liígar o boi do pre-. sepe. Eug. Seguramente : mas diZéi , Teodósio , on- de está o vicio do discurso? Teoà. A palavra Tauro tem duas significações , ou significa a constelação ãa Ceo , ou o ani- mal da terra : estas duas cousas são mui di- versas j mas o discurso as confunde como se fossem huma -, e na primeira proposição Tau- ro significa a constelação, na segunda signifi- ca o animal ; e assim a equi vocação da pala- vra faz a confusão. Por tanto , Eugénio , to- mai este dictame : Nunca no discurso se de- ve consentir palavra , íjue ahi tenha dous sentidos, (Proposição 104.) ' Profi Eug. Pela galanteria do exemplo me ha delem- 104. brar sempre o dictame. T^od. Todas as palavras dão lugar á equivoca- çáo , se ha malicia em quem usa delias ; pot- que ora se tomâo por si mesmas , ora pelo sexi -' dignificada : exemplo será este discyrso. -•> Ho- J?4 È.ecreaçãoVihsóficd Homem nao tem p, Pedro he homem. Logo Pedro não tem pí Aqui ha failacia 5 ou engano; porque â pâlá^ vra homem na maior toma-se por si mesma / e na menor toma-se peio seu significado , por isso se faz grande confusão. JEug. Mas que hei de responder a Cstes discur- sos, sendo verdadeira cada proposição de por si, e parecendo bem armadas, e sendo a con--' sequencia falsa•^ Teod, Em vós conhecendo a itialicia de quem assim vos quer confundir , se for matéria de' pouca importância, dizei-lhe que sim, e con^' corda i com tudo o que eile vos disser. Deste modo zombais delle , como elle quer' zombar- de vós , por quanto- argumento* para menjnos não merecem resposta de homens sérios. Po- rém outros sofismas se fazem mais malicio- sos , e mais nòcfvos , porque são em matérias de muita importância: o seu artificio consiste também n'um engano de pakvras ; e vem a ser , que com a mesma palavra significamos huma cousa ^ ora tomada absolutamente, ora tomada em determinado estado-, emodo. Lem- brai-vos do que Vos tenho dito acerca dos Caw- vretos , pois agora tem seu lugar essa doutri-- na. Se eu disser Arco , com esta palayra pos- so significar ou a vara que succede estar lor* ta, hzendo somente reflexão na vara simples- mente; ou posso significar a vara determina- damente posta desse estado , isto he , fazencio rè- farãe qtiaãrãgésmá quarta. 3 ^^ .fííftexâo tarnbeiTi sobre o tnodo com que esta. Ambas estâS cousas se sxpiicáo pela me.^íma palavra , tendo em si bem grands diversidade : e sendo isto assim , não podem deixar de nas- cer d'aqul grandes enganos ^ se de hiima par- te houver malícia , e da outra náo houver cau- tela. Ponhamos este exemplo; O arco necessariamente he torto-. Esta vara he arco : Logo esta vdra necesUriãniente he tortd. Aqui toda a malicfâ eítá é'm fazer , que a mes- ma palavra se tome em diversos sentidos ; na maior a palavra arco toma-se por huma cou- sa , que essencialmente consta de vara , e tor- tura j e na menor toma-se a mesma palavra arco pela vara,- que casualmente succede es-tar . torta, e isto sáo cousas mui diversas. Eug, Bem me lembro do que me dissestes 03 dias passíadós em hurn dicrame , que me des- tes : Que por modo nenhum, tomasse o mesmo Concreto em dous sentidos no mesmo discuisj .(pag. 2^9, et seq.) Tcod. Estimo bem a voísíl ttémofli ; e por conclusão desta , matéria acauteiai-vos bem des- te perigo grandissimo, e disfarçado , e tomai este dictame impor cantissimo : Nunca tomei i huma palavra em doUs sentidos no mesmo dis- curso; porque sendo a palavta a mesma y pa- rece que significa huma mesma cousa ; e to- mando-se em dous sentidos 5 verdade iramen • te Significa cousas diversas j e remes enga- no 5 aehando-nos com duas cousas por huma Tom. Vil. Bb n^es- 38Ó Recreação Filosófica mesma ; e daqui s^hem erros gravissiiiíos : p.pontarei alguns , e dou a conferencia por aca- bada. Diz o ímpio Libertino : '^cíu Christo diz no Evangelho , que veio salvar os pecca- dores ; cu pcccando livremente, seu peccador : logo pectando livremente , hei de salvar-me. £ug, Decs me livre de tal blasfémia ;' onde es- tá ahi o erro? Teod. A\iÚ2LVTã. peccadcrpóòa diversidade , qtic ha entre os dotts Mc- íhcdos de Invenção, e de Doutrina. Teod. ^ -^ Oje ^ meií Silvio , rendes que ouvir' |— I lingua nova , porque havemos de- -^ trará r do quor nunca nas vossas au- las se tratou', e vós reputais- por bem inutii. Sih. Ainda nas mesmas matérias, Cjue estudei, vós lhe fazeis tal mudança , que sempre ve- nho a ouvir lingira nova , nem vos ouro aquel- les termos , com que me creáráo , nem hum signáte , nem hum exerciter , nem hum for" malitcr ^ ou r^^dtípUcative. Paciência, que em ' tudo ha modas : mas vamos adiante. E que mareria temos para hoje ? Teod. Havemos de tratar ào Methodo. J^tíg. Que quer dizer Methodo ? que quero lo-- go ir pei cabendo. Tcod. Methodo chamamos nós: Jl crdctnyccni que a alma deve dispor os seus jmzos , e dis- cursos para conseguir o fim , que intenta. Silv. Qv:er Deos , que sem isso passarão to- dos os Filósofos até a^^ora. Com que também isto he Lógica ?■ T^^^ Tarde quadraiiesim a í uintcu 3 %<) Teód. Também. Ami^o Silvio , luveis de sa- ber, qvie para S3 conh-^cer hum a verdade , 0.1 para se provar , nvVo basca muitas vezes Kura só syliogismo, sáo necessários muitos. Ora es- tes muitos syllogismos podím-se arrumar de muitos modos , e convém que a ordçm seja boa 5 para não confundirem , em vez de acla- rarem. Assim como vós julgais importantissi- ma a ordem , e disposição de vários juízos pa- ra formar hum bom syllo^^lsmo , também he importantissima a ordem , e disposição entre vários syUo^ismos para formar huma boa de- monstracão. Propcsiçóes verdadeiras mal dis- pos'^a3 não fazem bom discirso; e do mesmo' modo dis:ur3cs verdadeiros mal arrumados , nã j fazem bom argumento , nem boa demonstra- ção Para isto , meu Silvio, requer-se grande e.igenho, 011 grande estudo , e reflexão. Pes- soas ha, qie gritáo huma tarde inteira, e nadx concluem ; e pessoas , que com duas palavras aracão hum homem , e o prendem de mãos, e de pés 5 e obrigão a confessar a verdade. Etig. ]á sei que' quer dizer Mctbodo , conti- nuai. ^Tcod. Dous fins pôde ter hum homem nos seus argumentos : hum he achar a verdade incógni- ta , e escondida ; outro he dalla bem a conhe- cer depois de achada. Como são doas os fins da dem.onstração , cu argumento , dous hão de ser também 03 caminhos , por onde o deve- mos conduzir. ExpliCvi-se bem a diversidade destes dous methodos com o que nos acontece nas Genealogias. QLieremos saber a Genealo- gia 59Ô Recreação Filosófica gla de hum Heroa, e começamos a fazer ânà» thomia no seu sangue ( psrmirti-me a expli- cação), entramos a examinar de quem he íi# iho, depois seai gyós , bizayós , terceiros, e cjuarros avós , etc, cada vez subindo mais pa- ra cima , até dar rjo que foi cabeça da famí- lia. Achada poréir* a ascendência , quando que- remos dalla a conhecer , começamos dessa ori^^em da familia , e vamos tecendo a serie genealógica , çontrahindo-a sempre mais , e mais até chegarn^os aoíleroe de quem se tra^ ta. De sorte qu,ã quando queremos achar a Genealogia do Heros , começamos debaixo pa- ra cima ; e quando a temos achado , e a que- remos, declarar rnais , começamos de cima pa- ra baixo. O methodo de achar , he ir cavan- do desde o sujeito particular, -subindo sempre ás cabeças da família. Mas o m.ethodo de a explicar he começando dessa cabeça de fami- lia, e vir descendo até o particular. Silv, Acontece como na conducção das aguas da vossa quinta : o methodo de achar a agua foi cavando, e minaiido desde a vossa quinta até á raiz do monte , onde estava a mái da agua ; e o methodo de a dar a beber a todos , foi começando a encanar essa agua lá desde a sua origem , e sitio , onde apparecep , fazen- do-a sempre descer até á fonte , que lhe tí- nheis preparado. 1'eod, Boa comparação escolhestes , que âssim he na verdade. ^M, Com ella tenho entendido beni o que ^i?ei3, Tarde quadragésima íjuint^, 391 Tcod. Melhor ainda o entendereis, vendo pra- ticar hum 5 e outro methodó. Quesrlona-se , por exemplo 5 se a ahr.a do homem he immor- tal. Se isto for ainda incógnito, ou duvidoso, devemos examinar a verdade por hum modoi mas depois d2 acharmos essa verdade , deve- mos provalla por oiuro. O primeiro modo , ou methodo de a achar chama-32 Analjttco , ou por Anályse ; o segundo de ensinar chama- se Symheiico, ou por i^'''^''^^^- Começo pois a cavar nos predicados da ahiia , para ver se en- tre elles acho esta verdade. ^ nossa alma he iiumortaL Para achar esta verdade , entro lo;^o a cavar .no objecto da cuestáp j e examinando o que he a nossa alma , acho esta verdade, I No homem ha snlntancia intelligente. Vou cavando mais ; e digo , esta substancia ou hs simples , ou composta de muitas tam- bém espiritUvass , das quaes cada huma seja simples ; aliás se comporia a alma de infini- tas substancias , sendo cada huma das partes composta de muitas , e cada huma delias de outras muitas, etc. z Ora como a intelligejicia nao he cousa que possa nascer da conjunção de muitas par^ tes entre si , assim como nasce a figura , a ex tenção , a flexibilidade , segue-se que se es- sa alma he intelligente , e consta de partes, alguma delias ha de ser intelligente ^ aliás de muitas substancias incapazes ^de percepção re- sul' 39^ Ilecrcarãõ Filosofca sulrarta alma intclligeme ; e essa parte que for intelligente , o ha de ser por si , e inde^ pendente das mais, pois que a união, e con- junção não dá intelligencia. Logo essa psrte he intelligente , sendo simples , e por conse^ guinte :; No homem ha substancia intelligente^ e simples. Continuemos para diante. A sub- stancia sirnples n.^vO pode perecer , nem ser desrruida, por lhe desunirem as partes , pois as não tem : e por conseguinte não pode ser desiruida , ficando alguma cousa delia , assim como he destruído o homem , -ficando o cor- po na terra , e a alma no Ceo ; ou como he destruída huma arvore, ficando parte em cin- zas , parte em vapores , parte nas partículas de fogo que voarão 5 erc. Por canto a substan- cia simples se perecer , ha de perecer de todo , e anniqnillar-se, náo ficando nada delia ; logo 4 Esta substancia simples só pode serdes- tmida por anniíjuillação. Sendo assim , fx^ isenta da jurisdicção das creaturas , por quan- to se sabe que nenhuma creatura pede reduzir substancia alguma a ser nada : assim como não pôde converter o nada em substancia , creando ; também náo pede converter a sub^ stancia verdadeira em /í/íJi.'?, anniquillando-a. O que nós vemos fazer ás creaturas quando des- troem outras 5 hc mudar huma cousa em ou- tra , V. ^. páo em cinzas , agua em vapor , edificio em pedras soltas , etc. -, mas nunca ve- mos converter huma substancia cm nada. Isto çupposto, temos- mais esta verdade ^ que t Tarde quaãra^esÍ7na quinta» ^9^5 5 A alma do homem nao pode ser des- truída pelas creaiuras. 6 Ora nós chamamos immortal .0 que mo pode ser destruído por cr e aturas. Temos io^o a verdade que buscávamos ; a saber , que 4 alma do homem he immortal, Eis-aqui huma demonstração pelo Mechodo analytico, ou á^Invcn:ão. Qiiero agora fazer outra demonstração , em que mostre a verda- de que achei, e vai peio methodo syntheúco ^ ou de doutrina. 1 Primeiramente : Eu chamo immortal tu- do aquíllo que não pôde ser destruído pelas creaiuras. ( Defin. ) 2 Além disso , supponho como cousa cer- ja, que ascreaturas não tem ; orça para anni- quíllar , e reduzir a nada aquiílo que tem ser real, e verdadeiro. (Axiom.) Segue-se daqui que as creaturas nãopodem destruir a substancia simples ; porque como esta náo pode ser destruída por separação de partes , pois as não tem , s6 poderia ser des- truída por anniquillação , para o que não rem £crça todas as creaturas , conforme o Axioma precedente j e por conseguinte tçmos escuotra verdade. ^ A substancia simples não pode ser des" truidapor creaturas. 4 Também devemos suppôr esta verdade certa. A íntelligencia , e virtude dejonhecer^ não sç forma y^nem está em conjunção depar^ Uí9 (Axiom.) 394 Recreação Filosofic.t $ Logo a substancia intelligente he sim- ples. (Prop. dem.) 6 Logo a nossa alma como he intelligen-' te, he simples. (Prop. dem, ) Isto siipposto, discorro assim. A substancia simples náo pôde ser destrui- da pelas creaturas (num. v)j ^ nossa alma he simples (num. 6. ) Logo náo pode serdes- rruida pelas creacuras : isto he o que nós cha- íiiamos ser immortal (num. i.) Logo A nossa alma he immortal, £ug. Eis-ahi já demonstrada a verdade da ques- tão. Teod. Aqui ved'es como quando cu quiz acKar a verdade , que ainda nao sabia , fui desdí o •objecto da questão , que era a alma , subindo para principies .?;eraes ; porém quando quiz provar a verdade, que tinna achado, comecei por princípios geraes , para vir parar á alma , Cjue era o objecto da questão. Se fizestes re- flexão n'uma , e outra demonstração, verieis que em ambas dávamos os mesmos passos , isto he , tocávamos nas mesmas verdades j po- rem toda a differença estava na ordem. jEug. E qual desses methodos achais vós que he melhor ? Teod. Cada qual se deve usar para o seu fim. Para achar a verdade , da qual se duvida , só pôde ser o primeiro , que he he o Analytiço ; porque forçosamente havemos de começar a cavar desde o objecto d^ questão , pois não Tarde quadragésima quinta. 3 9 5' sabemos de que lado nos ha de vir a luz da verdade. Por isso cavamos aqui mesmo, e va- mos descubrindo pouco a pouco donde vem a luz. Porém para provar a verdade já conheci- da 5 he incomparável menre melhor o segun^ do , que he o Sjnthetico. E^náo posso deixar de vos dizer, que de ordinário nas escolas se procede ás avessas ^ porque as provas das ques- tões são peio methodo Ánalirico ; de sorte que a prova vem a acabar nos princípios geraes , quando per qIIqs he que deviamos principiar. Silv, Eu nunca reparei nisso : vós em tudo achais que reprehender. ^eod. Vós bem vedes , que de ordinário o mo- do de provar he este. Põe-se hum syilogismo , cuja conclusão he a proposição do assumpto 9 e depois formão segundo syilogismo , o qual prova a maior, ou menor do primeiro, e de- pois a maior , ou m^enor deste se prova por terceiro syilogismo , e as proposições deste por quarto, etc. não he assim? Silv, Assim he. Teod. Pois este he o methodo de achar , e não o de doutrina. Haviáo de começar por este principio , em que acabou a prova , e dahi ti- rar a proposição do terceiro syilogismo , e des- te inferir a do segundo , e do segundo a do primeiro , e deste a proposição do assumpto. Assim em menos palavras se prova mais ef- ficazmenie , e com mais clareza , e também se evita o enfado de mil syliogismos. Ora quando na invenção se tocáráo diversas propo^ gições , que neces§itaváo dç prova , e cada nu- ma 396 Recreação Filosófica ma levou cliFferente rumo ; para demonstrar a verdade achada, devo pegar de hum principio, que conduz para a prova de alguma propôs;^ çáo , que já sei que me he precisa , e ir tirar,* do consequências até estabelecer essa proposi- ção j depois dobro a folha , como dizem , e salto a outro principio , no qual se funda a prova da outra proposição , e vou deduzindo áQ:'iSQ principio consequências até estabelecer es-outra proposição ; valho-me então de am- bas 5 e vou-as encaminhando até á consequên- cia deseiada. Silv. Cada qual porte-se como foi criado. Teod. Dizeis beai, cjue isso he ter constância. Passemos adiante , Eugénio , e vamos a dar as regras , que se ò.Q^rQvn observar nestes dous methodos , tanto no de invensáo , como no de doutrina. §.n. Das leis do Methcdo Analytlco , ou de In-^ V ene 40. Silv. /^ Ra vamos a essas leis , que eu esta- va dei bem tempo Lógica , e nem me lembro de que semelhantes pontos se tratas- sem , nem ouvi fallar em tal ; mas também não ouço faliar em infinitas cousas , que então me davão bem cuidado. Eug. Cada qual como o creárâo. Não perca- mos tempo , Teodósio. Teod. Eu as vou explicando pouco a pouco. I Tarde quadragésima qUlnta, 357 PRIMEIRA LEI. Á Ntes que ie busque a verdade de qualquer jtl. proposição 5 deve-se reparar muito nella. (Proposição 105) Esta he a primeira lei para Prop, achar a verdade de Cjuaiquer questáo , aiiàspo- 105* deremos cuidar que achamos a sua verdade, e enganar-mo-nos , ou poderemos tella diante dos olhos , e náo a- conhecermos. Da falta de ob- servância nesta lei succedem algumas desor- dens 5 porque formamos na imaginação huma idca mui diversa da questão proposta : humas vezes por accrescentar circunstancia, que nel- la não havia ; outras por reputar por circuns- tancia essencial o que tal não he , e casual- mente se |7Õe no enigma ^ outras vezes em í\m por não advertir em alguma circunstan- cia , que a questão tinha.. Ponhairios exem-^ - pios. Em huma occasião certos rapazes- pesca- dores perguntarão a Homero : Quaes eráo os animaes , que quem os apanhava , ficava sem elles í e náo 03 caçando , os levaya para ca- sa. Dizem que Homero , por mais que cançou a sua cabeça , não achara a verdade deste eni- gma. Silv. "Níem eu sei como possa elle ser verdade. Ora deixai ver se lhe dou no ponto da solu^ ção . . , . . Eug, Não vos canceis, que facilmente nos di- rá Teodósio a sua solução , e escusamos de cortar o fio ao discurso. • - ■ Teod, Homero confundio-se , porque náo repa- « rou jçS Pi^ecreação Tilosofica rou bem na questão. Poz na sua idéa circurís- tancia, que a questão de si não tiiha. Coma os que faz ião a pergunta erão rapazes de pes- cadores , cuidou que os animaes da questão serião peixes , e com csia circunstancia berrv difficultoso era achar a verdade do enigma : porém a questão só falia va de animaes abso- lutamente. Silv* Ainda fallando de animaes absolutamen- te 5 eu não sei como possa ser verdadeiro a enigma. Teod, Vede se ha alguns animaes , que traga- mos em nós mesmos , os quaes nos sejáo tão desagradáveis 5 que tanto que os achamos, os lancemos fora de nós. Etig. ]i sei : desses rerião os rapazes as cabe- ças bem providas. Ora não ha dúvida , que he verdadeiro o enigma , é bem verdadeiro. Teod, E toda a sua difíiculdade estava em não reparar beni nos termos da pergunta. E por is- so quem arma os enigmas os veste ás vezes ■ de circunstancias escusadas , para que estas , confundindo-se com as outras precisas , deixem o ent jndimento confuso , para não reparar bem no que deve. Tal he este enigma Qual he a primeira cousa que faz hum veado, quando se poe ao Sol ? Silv. Quem ha de agora saber cá isso ? s6 quem andar nas m.ontarias , e tiver noticia de todas as acções dos veados. Teod, ]á estais cahido no laço do enigma. A questão não diz , que isso que faz o veado tan- to que chega 30 Sol > he tão particular do vea- do. Tarde quadragésima quinta* 399 _cò) qu3 nenhuma eutra cousa o faça : o per- guntar-se só do veado , náo he dizer , que só q\íq o faz j pôde ser que seja cousa transcen- dente por tudo. Silv. Náo me demoreis mais , que eu tenho tentação com enigmas , ou adivinhações , co- mo lhe costumamos chamar : dizei o que he ? Tecd. He a sombra : nem pode haver cousa mais prompta , como he apparecer a sombra do veado, tanto queeile se puzer ao Sol. Vós estais rindo 5 e com razão ; mas vedes prati- camente 5 que toda a dificuldade estava em buscar cousa que fosse própria do veado, quan- do elle se põe ao Sol y ailàs S2 disséssemos , qual he o effeito que faz qualquer corpo opa- co 5 quando se póe defronte do Sol , logo to- dos diziáo, que era a sombra í ■Eíig. Sem dúvida. Tecd. Também se pecca ntsta matéria por de- feito; isto he , por não reparar em circuns- tancia essensial, como succede quando se pro- põem a questão da possibilidade do movimen- to perpetuo por artificio : respondem muitos com o movim.ento dos Moinhos de agua, ou cousa semelhante ; náo advertindo que nellas o movimento he pela natureza , e não pela arte , como diz a questão que se examina. Va- mos á SE- 400 Becreação Fílosõjicd S E G U N D A L E I. ^r<^ .^c examinar a verdade de qualquer questão , deve-se dividir a questão em' Prc^/ quantas partes for possiv ei ( Proposição i c6.) io6. iistâ lei he importante para se conhecer bem a questão , erú ordem a obrigar o entendi- mento a que repare em rodas as circunst.Tncias , por quanto huma só que lhe escape , pode ser causa do erro. Ponhamos exemplos. Quesno- na-se se he cousa justa condsmnar Pedro á morte por commerter furto. Devo separada- mente considerar 3 que quer dizer consa justa y isto he, conforme as teisj depois reparar em ser Pedro , isto he , Eccíesiastico , ou .Secu- lar 5 menino , ou ancik», mentecato , ou ho- mem de juizo , etc. Devo também reparar na palavra commetter , para ver .se foi com ad- vertência, ou sem eiia, se estava bêbado, ou demente , etc. Devo reparar ria palavra jur- io 5 para examinar qiie furto foi , se grave, ou leve, se com sacrilégio, ou rapina^ ou re- peiiçáo, etc. Ultimamente reparar na morte, pftra saber que morte ha de ser; e na palavra condemnar , para saber por quem ha de ser condemnado , se por. Juiz secular , ou Eccíe- siastico ; desta , ou daquella jurisdicção, ecc. Huma só circunstancia, que se despreze, po- de occasionar muito grande erro na resolução deste ponto. . SilV' Desse modo he segurissimo o não errar : mas he huma impertinência muito grande. Teod^ Tãtde quadragésima quinta. 401 *T€od. Seja embora ; porém mais tempo se gas* ta em altercar razoes , e bem inutilmcrite ^ quando a questão se resolve com precipitação, porque tudo são bulhas, e não se sabe quem tem razão '. e fazendo o qiie eu digo , logo se ) Vê onde vai o erro , ou equivocaçáo , no caso que a haja. Vamos á TERCEIRA LEt. Todas as circunstanèias inúteis se devem pôr de parte. (Proposição 107.) O fim Prop. desta lei he evitar confusão ao entendirtiento ; 107. porque quanto menos cousas tem que exami- nar, mais pode reparar, e attender acadahu- * ma delias. Por exemplo, na questão que dis- se, examinando nós a Pedro, podemos achar muitas circunstancias úteis ^ e muitas inúteis : V. g. se era homem de probidade , ou perdi- do ; se era secular , ou Ecclesíasticó ; sé for- moso , ou feio , Letrado , ou idiótâ , ríco , ou pobre; Portuguez , ou estrangeiro, etc. Des- tas circunstancias algunias são importantes , outras não ; lançadas fora as inúteis , fica maisí lugar para pezar , e examinar as importantes : porém advirto que ás vezes he importante hu- ma circunstância , que parecia bem inútil. Eu já vi nesta Corte livrar hum homem da forca pela folhinha de algibeira. Não cuideis qUe zombo , porque lhe valeo a circunstancia de não haver luar naquella ora em que lhe im* putavão o crime ; e huma testemunha , e tal- vez a mais forte , allegava , que com a luz Tom. VIL Ce dQ 401 Recreação Filosófica èo luar o tinha visto commetter o crime : veb a folhinha , e pelos dias da Lua se examinou que não havia luar acudias horas ; e escapou da rnorte. JEttg, Em matérias semelhantes náo ha despre- ,, zar nada. Forte susto havia de ter o pobre homem. 7'eod. Náo tinha outra defeza para contradizer as testemunhas. . Demos mais outra lei. Q U A R T A L E I. Á S cousas certas separao-se logo das in- 'Pfop^ UÍ certas , que admittem questão. (Propo- lOOr siçáo io8.) Esta lei he de grande importân- cia ; porque feira esta separação, tem o nosso entendimento menos cousas a que attender, e pode examinallas melhor. Vamos a praticar a lei no caso do furto , de que ha pouco fallei. . Supponhamos que he certo ser Pedro secu- . làr 5 certo que estava senhor de si , certo que fez a acção criminosa ; e tamhem que he certo ser repetida , e que as leis determinão pena de morte aos furtos desta qualidade , quan- do são graves : toda a duvida , e questão cahe agora somente sobre a gravidade da matéria, c circunstancia de arrombamento , ect. ; e co- mo somente este ponto he o que resolve a ques- . táo 5 facilmente se examina a sua verdade j o . que não aconteceria , se promiscuamente se , ríallasse em todas .as circunstancias. Ainda fal- .'Xio mais duas leis precisas: huma he a ' J ''"" QUIN- Tarãe quadragésima quinta. 403 QUINTALEI. A S partes , em que se resõlveo a questão , -/l devem-se ir ajuntando outra vez , a vet se do seu ajuntamento nasce luz para a ver- dade. ( Proposição IC9. ) Esta lei deve-se ob- Pròp. servar , porque muitas vezes succede que de 105^» nenhuma circunstancia por si so nasce a con- nexão com o predicado, de que se questiona; mas nasce de se ajuntarem duas circunstan- cias. Exemplo. Supponhámos que a questão do furto he sobre se Pedro ha de ser con- demnado como sacrílego , por fazer furto es- tando na Igreja, De estar Pedro na Igreja não se segue , que foi sacrílego. Também o não foi por furtar simplesmente ; mas foi sacíiiégo, por se ajuntar a acção do furto com assistên- cia no templo. JBug. Muita paciência ^ e multa reflexão he precisa para averiguar qualquer ponto com certezíi. Teod, Assim he; porém todo ò trabalho, que emprego em achar a verdade , he bem empre-: gado. Vamos á ultima lei. S E X T A L E I. /^ liando , jeito tudo isto , nao apparecer J^ luz para conhecer a verdade da questão y deve-se buscar huma , ou muitas idéaÉ que medeiem entre o predicado , e o sujeito . delia , a yer se por cilas vem a desçubrir-se Ce ii . . eí-» 404 Kecreaçao Vtlosofica Prop. ç^^^ connexão. ( Proposição 1 10. ) Expíico a ^^^* lei 5 e fica provada a sua utilidade. Temos hu- ma questão fortemente debatida sobre a de- manda de D. Luiz , que pcrtende ser senhor da quinta do Sobral 5 esta questão não se po- de resolver com se examinar sómeme o sujei* fo, nem o predicado, ainda com todas as cir- cunstancias já ditas : he preciso buscar algu- mas idéâs médias para descubrir esta connexão , se a houver. Ver se ouve aqui doação , ou compra legitima ; e havendo-a , por ella pode- mos conhecer que D. Luiz tem direito á di- ta fazenda : se não ouver doação , ou com- pra ^ pode haver herança , como eile perten- - de ; por quanto quer que sua madrasta com- prasse a dita fazenda , e que a deixasse em testamento a seu pai , de quem o dito D. Luiz á herdou na sua legitima. Três cousas ha aqui, que necessitão de exame para saber se D. Luiz tem o tal direito. Huma he , que seja filho le- gitimo de D, Jorge seu pai ; a segunda he, tíue o testamento , em que sua mulher lhe deixou a dita fazenda , fosse válido ; a tercei- ra em fim , que a compra que fizera D. Um- belina sua mulher, fosse boa: sem estas três cousas se examinarem , não pode ninguém co- nhecer com prudência , que D. Luiz tem di* reito á dita fazenda ; por isso deve com miu- deza ser examinada cada huma destas cousas de per si ; porque estas idéas mediando entre O predicado , e sujeito da questão , dão a co- nhecer que ha, ou que não ha connexão entre elies ; que D. Luiz tem , ou que não tem o cal direita, Eftg^ Tarde quadragésima quinta, 405' í«^. Todos estes dictames se conformáo ad- miravelmente com a razão ; e a experiência mostra que são bem necessários. S'úv> Os que são prudentes , e querem atinar com a verdade , sem estes dictames , e só le- vados pela boa razão , fazem tudo isto. Icoà. Pois essa he a obrigação da verdadeira Lógica 5 dar aos que o não sabem aquelles di- ctames 5 que paticão com prudência , e feli- cidade 5 os que sabem buscar , e achar a ver- dade. Nem para outro fim se insticuio a Ló- gica 5 senão para que cada qual pudesse achar nos dictames juntos aquellas regras , que se achão dispersas no uso dos sábios de muitos annos. Passemos adiante. Eug, Falta agora o Methodo de ensinar a ver- dade , depois de huma vez a termos achado, §. III. jD^í primeiras três leis do Methodo Sjuthe- tico, ou de Doutrina» Teod, \ Chada a verdade , convém ensinalk /jL com clareza , e certeza ; de sorte que quem nos ouvir , claramente a conheça , e se certifique delia : para isso se começa por cou-- sas certas, e evidentes, ás quaes o nosso en- tendimento dá assenso sem o menor escrúpu- lo ; e depois se vão deduzindo consequências , as quaes , por nascerem de verdades evidenr tes >, também o íicáo sendo : pois humas dão luz 4o6 "Recreação Tilosofíca luz ás outras, até que por consequências su6- cessivas se infere á conclusão que se percen- dia : e vem por este modo a íicar certa , e clara , caminhando sempre o entendimento com passos seguros. Silv. K quaes são essas verdades certas , por onde se deve principiar? *Teod, Sáo definições , e Axiomas. As defini- ções , como já vos disse , são de dous modos : ou são definições de nome , ou de cousa : as definições de^nome consistem em explicar ca- da hum o que quer significar por esta, ou por aquella palavra : as definições de cousa consis- tem em explicar , que predicados são essen- siacs a esta , ou áqueiia cousa ; no que ha gran- de differença, porque sobre eu declarar quaes são os predicados essensiaes de qualquer cou- sa, pode haver grande questão , diíficuldade, e dúvida: porém em declarar eu o que enten- do por esra , ou por aquella palavra , nisto ne- nhuma dúvida pode haver: por quanto quem liie pode a mim negar , ou impedir , que eu signifique por huma palavra o que eu digo que quero significar ? por certo que nisto ninguém me pode por duvida : e por conse- guinte as definições de nome são evidentissi- mas. Em eu dizendo : Chamo triangulo a is- to, círculo a estoutro , etc. deve-sc estar pe- lo que eu digo. Silv. He livre a cada qual explicar-se como quizer. T^od. Nisso alguns preceitos ha conformes á wzáo , que já toquei. Mas além das defini- ções Tarde quadragésima quinta, 407 coes de nome, se acha no methodú Syntheth €v , 011 de Doutrina uso de Axiomas. Tomai sentido , Eugénio : Nós pela palavra axio- mas entendemos humas verdades tão certa^s è claras , que ^uem entender os termos , não duvide 5 nem possa duvidar delias. Eug. Eis-ahi huma definição de nome. Teod. 'Dizeis bem ; e ponho por exemplo al- guns axiomas pertencentes a diversas matérias. Digo: Finte são mais que dezenove ; a vir- tude he amável ; corpo e espirito^são cousas diversas y etc. Eug. ]á sei que cousa são axiomas. Teod, Ora supposto isso, no Methodo de dou- trina observem-se estas íeis. PRIMEIRA LEI. PAra se mostrar com evidencia a verda- de achada , só devemos usar de defini- ções de nome , axiomas , ou proposições evi- dentemente provadas \ Proposição 1 1 1. ) a ra- Prop. zão desta lei he , porque náo sendo assim , já 1 1 1- a proposição , que se provou , pôde ficar du- vidosa , nascendo a duvida de que não fosse verdadeira alguma proposição , que serve de fundamento. Porém náo entrando na demons- tração se não definições de nome, e axiomas evidentes , ou proposições já demonstradas , ninguém pode duvidar de ser verdadeira a con- clusão ; por quanto se suppõe que a dedução ha de ser legitima. Siiv. ■408 Recreação Filosófica Silv. Náo ha dúvida que assim bem provada fica ; mas isso na praxe he quasi impossível. Teod. Se vós tivésseis estudado Geometria , ve- ríeis que lá náo ha outro modo de provar; e se leseis o grande Wolfio , acharíeis que em todas as matérias usa deste methodo scientifico de Mathematjca , posto que ás vezes escorre^ ga como homem que he , e se equivoca ; mas com boa desculpa , e sempre tem grande me- recimento. E nesta obra sevè, como em qual- quer mataria , se o Mestre sabe , pode mos- trar a verdade por hum modo evidente , qu que muito se cheguç para essa evidencia. Va-» mos a outras Içis. SEGUNDA LEI, Njdo se deixe passar termo escuro^ que sç não explique com a síia defniçao de r/o- Prop. vie. (Proposição iij.) Prova-se estalei, por- 112. que ás vezes toda a pandencia , e escuridade da questão se desfaz com se explicar bem o que se entende por huma palavra , a qual tal- vez se julgava clara , e que todos a cntende- ^ rião ; mas na verdade não a entendiáo todos do mesmo modo. Porei hum exemplo , que ensinará a muitos a não julgarem por supér- fluas muitas definições. Simão Stevin , céle- bre Maihematico do Príncipe de França, faz huma grande bulha sobre esta questão ; se a unidade he numero, ou não; e leva com im- paciência , que muitos digáo qr.e não he nú- jnçjro. Nçsta contenda ambos os partidos ten^ r4- Tarde quadragésima quinta, 409 râzáo , e nenhum a tem j porque toda a pen- dência cessaria , se cada qual declarasse que he o que entende por esta palavra número , palavra , que todos talvez reputarão ser de signiíkaçâo tão notória , que escuse a defini- ção. Vede se isto he assim: Stevin ^ segundo a sua doutrina, ha de definir o número assim: Número he aquilio , /Je/o que se explica , e tonta a quantidade de qualquer cousa ; ora segundo esta explicação , quem pôde duvidar cjue a unidade he número ? pois por ella ex- plicamos , e contamos quanto huma cousa he maior que a outra. Porém os que segui- rem a definição . fim que intenta : provando o que lhe negarão , faz que lhe concedáo a consequência , que en- tão deduzia do que lhe não querião conceder, a qual se suppõs' levar a difficuldade. Mas se do que está concedido vir que se segue a dif- ficuldade, que intenta mosttar , deve inferilla do que concederão, porque desse modo chega mais brevemente a fazer conceder huma cou- sa contraria á conclusão. Adverte-se que os syllogisraos devem ser os m.ais curtos que for possivel ; porque sendo compridos , não he fá- cil repetirem-ss , nem perceber-se toda a força que tem ; e sem se perceber bem , a força dos syllogismos , não se pode avaliar bem o pezo da difficuldade que elles levão. Isto he de summa importância , serem curtos , e so com as palavras preciosas. Nunca sofírerei e.ii syUogismo de arguente a palavra porque ; es- sa 4^4 Recreação Filosófica " sa palavra significa razáo de outra cousa ; guâr-i dem lá esse porque i ou essa razão , para quan- do for precisa ; digáo a proposição simples; que se lhe duvidarem delia , puxaráó peio porque , c então a provarão. Vai grande dif- ferença dos syllogismos de quem faz huma dissertação, aos syllogismos de quem disputa^ O que faz huma dissertação, deve por tudo mui claro , e com algum ornato j o ornato he para agradar, a clareza he para convencer; e por isso deve insinuar a razão de tudo o que diz , quando não for manifestamente verdadei- ro. Mas o que disputa , como vai dando, ao seu contendor o seu discurso por partes , deve dar-lhe cada cousa de per si , e offereccr-lhe a proposição simplesmente ; se a acceita , pou- pou-lhe o trabalho de mostrar a razão, por que a dizia ; se lha não acceita , deve então provalla de propósito. Estes syllogismos cur- rss, e limpos de todo o ornato, e ampliação, íicão mui formosos: e logo se vê se são, ou não são concludentes. Também tem outra uti- lidade ; e vem a ser, que negada hnma pro- posição, como he simples, e não contém di- versas cousas, sabe-se o que se nega, e sabe- se o que se deve provar i e quando huma pio* posição levava comsigo o porque , ou cousa differente , que a fazia mais abundante , não se sabe onde prende o escrúpulo , que a fez negar , nem para onde se deve encaminhar a prova , qqe a faça conceder. Estas são as prin- çipaes leis do Arguente. Silv, Acho-vo^ muita razão j e a verdade, he que Tarde quadragésima quinta, 41 ^^ que estas leis são precisíssimas para se dispu* tar como he razão. E que Íeis temos nós pa- ra o Defendente ? tTçod. Também deve observar suas leis não me- nos importantes para conseguir o seu fim de mostrar a sua conclusão firme , e livre das dif- íiculdades. Pois he certo que para hum homem . conseguir qualquer fim , que intenta , deve ca- minhar por certas leis. PRIMEIRA LEI Para o Defendente. Teod. /r% Defendente tendo repetido o syUogis- ^ mo que se lhe oppÕe , responda 2/5- iinctamcnte a cada proposição delle. ( Propo- Prop. sição 120.) Esta lei he importante , e tem 12O. duas partes : darei a razão de ambas ellas. De- ' ve o defendente repetir primeiro todo o syllo- gismo que lhe oppóe, porque isto tem mui- tas utilidades ; huma he mostrar aos ouvintes , e ao arguente , que percebeo bem todas as suas proposições , e a sua deducção delias : se- gunda 5 moderar hum pouco o fogo que nas respostas nimiamente repentinas costuma ser origem de muitos erros ; e isco ainda nos gr;an- des estudantes, e de especial habilidade. Gran- de mercê he de Doos conhecermos as cousas como são, olhando para eJlas de vagar; que- ., rçr logo repentinamente ver as intrigas occul- tas, e difficuldades do discurso , e acertar lo- go o nó da difficuldade , isto he querer huma cousa muito difficil : pelo qye prudentemente se 426 Recreação Filosófica se repete primeiro o syllogismo todo. Porém repetido elle , deve-se a cada proposição dar a resposta ; porque como aqui se pertende exa- minar s? aquelle discurso prova , ou náo pro- va contra a conclusão, e isto depende de ser verdadeira cada proposição de per si , deve examinar-se a s^ua verdade separadamente, pa- ra o arguente saber qual ha de provar. Se a proposição he absolutamente verdadeira , deve conceder-se absolutamente , e sem medo , por- que a verdade nunca foi mãi da mentira ; se cu estou certo que a proposição , que se me ofFerece , he verdade , nao devo ter medo de a conceder , porque nunca delia se me ha de seguir senão verdade. Mas se a tal proposição for falsa , deve absolutamente negar-se : se ti- ver hum sentido verdadeiro , e outro falso , de- ve explicar-se ; e depois conceder hum , e ne- gar outro. Advirto aqui , que não parece ra- zão que o defendente esteja (como alguns) a distinguir sempre as proposições, fazendo de cada huma explicações imaginarias , que nunca vierão ao pensamento. Isto somente ser- ve de demorar , de embrulhar , e de fazer o acto summammente injucundo. Outros á ma- neira de homens de pouca palavra , tornão atrás do que huma vez disseráo : e aquelle mesmo sentido , que concederão absolutamente , quan-r do distinguirão huma proposição , depois não o deixão passar em salvo, sem novas , e no* vas explicações. Silv. Em distinguir nunca ha perigo. Teod, Mas ha deiiiazia , super fluidacle , enredo , Tarde quadragésima quinta. 41 y e embaraço para nunca se expor a difficulda- , de. Parccem-se estes defendenres com aquelie . Toureador (continuemos com a mesma com- paração) que 5 estando todo o concurso pre^ parado para ver a contenda , elle para se li- vrar dos perigos e sustos , se fosse para a por- ta do Touril 5 e embaraçasse por todos os mo- dos que sahisse o Touro. Eug. Mostrava notável valor , e destreza í o concurso ficaria bem contente. Desse modo nem o Touro fazia as sortes , nem elle mos- trava que se sabia livrar delle. Teod. Pois assim são estes defendentes : con- vidáo os arguentes para virem expor as difíi- culdades que tiverem contra a sua conclusão, e em vez de os deixarem com politica expor a sua razão de dúvida, só cuidáo em os suf- fecar ao principio, para que elles não possáo dizer o que lhes occorre. Isto em bom Portu- guez não he defender bem conclusões, lie im- pedir que se argumente; e erâ mais fácil im- pediilos 5 fechando-lhes a porta , e não os dei- xando entrar em casa. Toda a formosura des' tes actos consiste em deixar pôr francameptq roda a difíicuidade ; e cortalla , dando-lHe só p golpe no principal nó , por onde se ha d'3 dissolver. Ora quando succeder encontrar cou- sas falsas no syllogismo, mas que não fazem ao ponto 5 donde depende a solução da difíi- cuidade 3 devemos dar-lhe passagem , mas não concedellas ; dizendo que passe a proposição sem exame , que he o mesmo que dizer , que gupposto não a julgamos por verdadeira , por nos '42^ Recreação Filosófica nos nâo embaraçarmos com o exame desse ponto , o Giial náo he preciso , a suppomos embora verdadeira , para ir ao ponto princi- pal. Os que amáo sinceramente o exame da pura verdade , fazem isto para ir examinar o ponto da difíiciiidâde ; os que se temem desse exame , estimáo distrahir o ar?,uente com qual- cjiier outro exame de cousa diversa , e negãp tudo o que he falso. Silv. Ora se ambas as proposições forem ver- - dadeiras, e o syllogismo , por ser cavilioso , tirar consequência mal tirada , que deve fazer ' o defendente ? Teod. Deve conceder ambas as premissas , e negar a conclusão ; por quanto só tinha obri- gação de a conceder , se elia estivesse dentro das premissas ; porém como se suppóe que náo se inclue nellas , pois he mal deduzida , ne- nhuma injuria faz em conceder as premissas , e negar a consequência. Mas se fizer isto a algum syllogismo bom, saiba que o arguente pôde dar tal volta ao syllogismo , que appa- reça claramente a injustiça que lhe fez , e que negou a consequência , que já estava virtual- mente concedida ría^ premissas : o que he feio 5 e dá a conhecer a ignorância do defen- dente. SE. Tarde quadragcshna quinta. 429 SEGUNDA LEI Para o Defendenie. Tcoà. f\ Defendente imo deve dar a razão do ^^ que dizy se não depois de exposta to- da a diíficuldade. (Proposição 121.) A ra- Prop. záo desra iei he 5 porc|ue se a não observar, 121. necessariamente ha de haver grande perturba- ção. Convém dar a cada cousa o seu tempo: e então o tempo he só para pezar bem a áií- iicuidade do arguente ; e isto só se faz , exa- minando bem cada proposição daquellas , em cjue ç\l'i se funda : se eu , que defendo , tenho motivos para a conceder , ou negar , devo obrar segundo esses motivos ; mas não he tem- po de os expor , senão no fim , e aqui se oc- cuppa a TERCEIRA LEI Para o Defendente. Defendente no fim jaca hum epilogo bre- ve da forca da difjículdade , e da sua solução. (Proposição 122.) O fim desta lei Prop* he 5 para que o que se disse por toda a dis- 122, pufá ée possa perceber clafaiiiente , pondo-o ilianie dos olhos em poucas palavras j e aqui cabe bem dar a razão do que disse , durando a disputa ; pois deste modo não perturba já o arguente , antes faz que á vista do pezo íÍos fundamentos que J.ia por hum a parte , se, pos- sa dar a justa esiimaçáo aos iundamentcs que ha 450 Recreação Filosófica hâ pela outra. Em tudo se requer brevidade , e clareza : dizer só o preciso , porque o de- mais , além do ser supérfluo , he nocivo, pois embaraça, e furta a attençáo do que lie digno delia. O nosso espirito naturalmente se entas- t ia de tudo o que ne nimio , e começa a abor- recer-nos , e afíligir-íios tudo o que reputamos por supérfluo ; e estando a alma com tédio, para nada olha com attenção, e perde-se todo o trabalho, porque íallar diante de quem não attende seriamente , he fallar debalde. Estes são os dictames mais precisos , e úteis neste modo de disputar , que se usa nas escolas : porém para a conversação , ha outro Metho- do de disputar muito mais claro , convincen- te 5 e breve , e também mais engraçado : e neste queria eu que vós , Eugénio , fizésseis particular estudo , porque he o que mais vos convém para os encontros , que tereis a cada passo. JEug. Não me demoreis isso , por quem sois, parque me quero prevenir para esses encon- tros. §. VI. Do Methodo de disputar de Sócrates. ^ TVr Aõ sei que Methodo he esse, que vós Xl tanto encareceis, que he diverso des- te de syllogismos encadeiados, de que usamos nas aulas : nunca usei d-^ outro methodo se- não deste , até nas conversações. Teod. Tarde qtíaãrãgesma quinta, 43 1 Teoà. O Merhodo , a cjue chamão Sccratko ^ ou de Sócrates , he mui claro , e mui próprio da conversação , porque he cheio de politica , de perguntas 5 e respostas; o que tudo he mui frequente nas conversações familiares. Consis^ te o seu artificio em obrigar o nosso contra- rio a que explique tanto a proposição que de- fende, e todas as suas consequências, que vem a apparecer manifestamente a contradicção , oií absurdo que neila se encerrava. Eug. Isso por esse modo he mui nobre , e mui conveniente. Ponds-nos exemplo prático desse modo de disputar. Tecd. Antes que ponha o exemplo , darei os dictames , para Heâr mais clara depois a sua intelligencia. PRIMEIRO DICTAME. O Arguente deve portar-sc cem o scíí ad- versário como se delle quizesse aprender ' fundamentalmente a sua dontrina. (Proposi- Prop. çáo 12:5.) A razão deste dictame he , porque 12:5. deste modo o defendente íinceramente abre todo o systema da sua doutrina, sem ocultar cousa alguma '; e por conseguinte tem o ar- * guente lugar de ver as incoherencias , ou ab- surdos , que nessa doutrina se involvem 5 o que não costuma sticcedcr , se não se observa este dictame, porque então o deiendenre falia com reserva , e por partes he que vai dizen- do ora este ponto , ora aquelle , conforme o pede a disputa : e nunca se percebe tão bem o 43^ Recreação FiJosojica , o systemâ da doutrina , corno dando-se tod* francamente. Além disso, pode ser que o ar- guente deste modo fassa diverso conceito da doutrina, e lhe pareça melhor do que antes; pois que ouvindo-a com animo sincero , tem mais disposição para penetrar a connexáo de suas partes entre si , e conhecer a verdade , se a houver. Por onde, quer queira impugnar, quer defender , he útil esta diligencia. Além deste dictame , deve observar outro. SEGUNGO DICTAME. O Arguente deve mostrar maior rudeza, e maior dejejo de perfeita intelligencia na- quelles pontos onde suspeita que se envolve a falsidade ; de sorte que seja o contrario obri- gado a explicar as palavras escuras , e as consequências da sua doutrina , até que por Prop. 5/ appare^a a falsidade escondida. ( Proposi- 124. ção 124.) A razão he , porque este methodo encami- nha-se a que o mesmo defendente mosrré a falsidade da conclusão que defende , e deste modo se consegue isto. Agora já podei^ me- lhor entender os exemplos , ôs quaes não po- dem ser tão bons ^ como serião , se Silvio não estivesse já advertido da minha simulação ; mas sempre o faremos do melhor modo. Vos Silvio , haveis de fazer agora este papel como ■ de comedia ; defendei vos , que eu representa- rei o arguente. Silv. E que ponto ha de ser o da questão í Teod, Tarde quadragésima quinta. 455 T^oi. Seja o da alma dos Brutos , em que sei que estais mui firme , e nclla podeis sem vio- lência representar bem o papel de defendente da doutrina Peripathetica^ ^£ug. Náo lhe ha de custar a fezer bem o pa- pel 5 porque èt dentro do coração lhe sahirá tudo quanto disser a seu favor. Começai vós, Teodósio. Teod. Amigo Silvio, sei qué tendes meditado muito neste ponto da alma dos brutos, e to- mara que sinceramente me instruísseis da vossa doutrina , porque a queria entender bem , e se- guilla , se me parecer verdadeira. Dizei-me s'e reputais a alma dos brutos por espirito? Silv, Por nenhum modo: aliás seria immortal como â nossa alma. Teod, Pois credes que he pura matéria a almâ j que os faz mover ? ííí/v. Nem também isso: hehuma alma mate- rial , mas de nenhum modo he matéria ; e posto que seja da mesma esfera , c da mesma ordem que a matéria , c dependente delia , nem he espirito , nem he matéria ; he material. Teod. Está bem ; e supponho que esta alma material da mesma ordem da matéria , e da mesma esfera he o principio de todas as ac- ções dos brutos , assim como a nossa alma hé o principio de todas as acções do homem. Silv, Claro está; porque em todo o vivente a sua alma he o principio de todas as suas ac- ções; e aqui vereis o despropósito dos Moder- nos, que querem que huma pouca de matéria seja nos brutos o principio das suas acções, Tom ; VII. Ee iertf 434 Recreação Filosófica sendo tão admiráveis , e que a sua alma seja como a mola no relógio. Lu me admiro, cjuc se capacitem disto , sendo as acções dos bru- tos tão judiciosas , e sagazes , que ás vezes excedem as dos homens 5 como vemos na ra- posa, nos cáes de caça, n# bugios, erc. Teod. Visro isso roda a industria que admira- mos nas acções dos brutos tem a sua raiz nes- sa alma , que lhe dais : e essa alma he que acautela os perigos; essa alma dispõe os meios para conseguir os fins ; essa alma forma os pasmosos discursos , que admiramos. Sítv» Nunca lhe havv?mos de dar discurso per- feito como ao homem. TeOí/. Eu não digo , que elles tem discurso per- feito. Só pergunto se essas acções dos brutos que neiies vemos, com as quaes elles lá bus- cáo meios para conseguir o que desejâo; essas acções 5 as quaes vós dizeis que em certo mo- do vencem as dos homens , pergunto se pro- cedem dessa alma , que elles tem , de sorte que seja elia quem as disponha , e governe ? *í/7v. Isso sim , por quanto não ha duvida ne- nhuma , que para isso he que Deos deo a al- ma aos viventes , para lhes mover os mem- bros, e governar as acções. leod. Pois sendo assim, não percebo bem co- mo essa alma pode ser material , isto he , da mesma ordem , e da mesma esfera da mate-í ria 5 como vós dissestes ; por quanto se a ma- téria pura náo pode discorrer , nem dispor , e governar as acções com sagacidade , e indus- tria , parecia-me que também essa alma de que fai- Tarde qt^aíírageshna qinnta. '43 fr falíamos , sendo material , e da mesma esféfa l e virtude que á matéria , também náo poderia governar essas acções táo admiráveis. Perdo- ai-me a rudeza; mas tomara entender isto bem* Silv, Sempre vai grande difíerença do que he matéria a alma material. Teod, Pois se vai grande differença ^ já então havemos de por ã alma material em esfera , e ordem muito superior á matéria , pois po- de governar as acções do bruto , que a maté- ria não pode governar , principalmente vendo que as dispõe , e governa com tanta astúcia, que ás vezes igualla , e ás vezes vence as do homem, como vós confessais. Súv. Pois que dúvida pode haver nisso , sê â razão o convence ? Heoà. Já agora vou entendendo melhor , porquô ao principio cuidava eu que vós dizieis que essa alma era material, por ser cá da mesma ordem, e da mesma esfera da matéria: ago- ra he que vejo que me enganei ( i ) . Mas só me resta o entender como pode essa alma sem ser espirito , nem cousa que se chegue para essa classe ; como pode , digo , dispor meiosi para conseguir fins , acautelar perigos, etc. . Não entendo como pode estar a formiga despe- jando o celeiro depois da chuva , e seccando o trigo ao Sol , prevendo que se o náo secca, ha de grelar j se grelar náò lhe dura ; se lhe não dura , vem o Inverno , e náo acha- Ee ii rá ( I ") Actui já apparece a contradicção cora que fica dito assima (pa^;. 43 J.) 436 Kecreâçao Filosófica ti provimento y se náo achar provimento , ht de ter fome ; e se tiver fome , ha de padecer incommodo , e trabalho , e talvez a morte: náo sei como possa huma alma material ir adevinhando futuros encadeiados , e distantes , e ao mesmo tempo acautelar esses futuros com huma serie bem ordenada de meios oportu^ nos 5 conhecendo , que se o trigo estiver ao Sol, ha de seccarj seccando , náo ha de gre- lar ; não grelando , durará muito tem.po ; du- rando 5 tem que comer em todo o Inverno ; tendo que comer , náo padecerá fome , nem a morte, O mesmo vemos no cão , que estando satisfeito de comida, vai esconder na terra o osso que lhe sobeja , para o ir buscar a seu tempo : aqui adevinha a fome , quando náo houver tanta abundância de ossos; adevinha, que se o não esconde , virá outro cáo que lho coma ; que se o enterrar bem , ninguém dá com elle j que a todo o tempo que quizer, Jilli está i que remediando-se com elle , esca- pa da fome , etc. Tomara entender bem como a alma material pode conhecer tudo isto. SWv. Os brutos se fazem esses discursos , he por hum modo material , e sem juizo : elJes náo aprendem Filosotia, nem estudáo Logic2„ Icoà, Essa he a minha maior confusão, que Gueria que vós me explicásseis bem , porque vejo que muitos homens com alma racio- nal, e espiritual, e estudando muito, náo tem a providencia 5 e cautelas, que admiramos nas formigas , nas raposas , cáes , bugios , etc. e djgo cá comigo : Valha-me Deos , se xv.^ en- COBr» Tarde quadragésima quinta, 437 contrar com algum MãtmaVnta , (<^ue hái muitos por nossos peccaclos nestes tempos) e me disser , que os homens náo tem alma es- piritual , eu náo hei de saber dar-lhe resposta ; porque o argumento em que eu me fiava era mostrar-lhe as acções dos hom.ens bem orde- nadas , pelas quacs elies se acautélâo dos fu- turos 5 e se lembrão do passado ; e como a matéria náo pode ter memoria do passado, nem prever os perigos do futuro, nem conhe- cer a connexáo , e proporção de huma acçáo presente com o damno futuro, por quanto es- tas cousas não cabem nos sentidos , parecia- me que havia de convencello , e obrigallo a dar ao homem huma alma espiritual. Mas ago- ra como me dizeis, que as acções dos brutos são ás vezes mais sagazes que as dos ho- mens , como me dizeis que a sua alma he quem lhas governa , dispõe , e ordena , como me dizeis que essa alma não he espiritual y lico confuso (i); porque se huma alma, sem ser espirito nem espiritual, pode governar to- das as sagacíssimas acções dos brutos , e co- nhecer proposições , futuros , e passados com cautelas , e astúcias , etc. fico com a boca ta- pada , se me disser outro tanto da alma do homem. Silv. Eu confesso que tendes razão. Essa he huma das cousas mais difficeis de explicar, e que nós náo sabemos. Mas o que eu digo hc assim 3 aliás que quereis vós que eu diga ? Teod, X,i) Eis-aqui a outra contradic ^ão mais manifeste '438 Recreação Filosófica Teod. Eu nao quero nada : só digo ( será por ignorância minha ) que entendia melhor o qne Gizem os Modernos ; porque elles dizem , que â alma dos brocos so tem por ofíicio mover os seus membros , como a mola do relógio move as rodas ; mas que a alma não dispu- nha as acções, nem as governava , e ordena-^ va; que Deos era quem as combinava humas com outras , e dispoz , qjando formou aqael- las máquinas. Assim como quem governa , e coordena os movimentos do relógio , he o re- lojoeiro que rem muito bom juizo , posto que - esteja fora do relógio , e taívez já seja mor- to, quando o relógio ainda vai andando bem, por disposição , e governo delle. ísro parecia- me mais natural, e conforme á razáoj porém não vos agasteis , que será isto pouca percepção minha. £ug. Ora basta de papel de comedia , q-ie já não posso conter o riso. Vós agora imiras- res bem a raposa , cuja astúcia tanto exaltas- tes , e fostes com a maior dissimulação des- cubrindo todas as incoherencias , e contradic- ções das doutrinas dos Peripateticos ; e já ve- jo que este modo de disputar, e arguir he mui- to mais politico, e mais galante, e mais útil. Silv. E não fiz eu também o meu papel mui- to a vosso gosto? JEug. Sim , e o fizestes bem de coração , di- zendo o que na verdade sentieis dentro delle. Teod. Ora sabei que dou por concluída a vos- sa insrrucçáo sobre a Lógica. Não vos poupei ^ cousa alguma , que me parecesse necessária - p.^ Tarde qv.adregesima quhta, 4^ 9 pira o fim que tendes de discorrer bem , t acertar com a verdade nos vossos juizos. Tu- do o demais que omicti , me pareceo ou inú- til 5 ou posicitivamente nocivo : pode ser que me enganasse , não o duvido : cada qual vá por onde meilior lhe parecer , que eu fui por este caminho. i\gora vamos a diverrir-nos a ca-, sa do nosso Amigo N. que chegou de fora on- tem á noite. Silv. Não posso acompanhar-vos , nem estes^ dias , porque sou chamado para huma junta fora dá cerra ; e pela manhã tenho de fazer jor- nada 5 he preciso preparar-me esta noite ; e já e>tava receiando que hoje não acabásseis a Ló- gica 5 pois teria disgosto , se a não visse concluir. Teod. Também eu o estimo •, e pois que vos ausentais , peço-vos que vos não demoreis mui- tos dias , que Eugénio vos espera com sauda- de grande. Eug. Sem vós virdes não entramos em outrát matéria. Silv. Nem a minha occupação , nem a vossa amizade , e obediência me consentirá fora da terra muitos dias: licai-vos embora. ^Teod. Ora, Eugénio, já que ficamos sós, que- ro agora que me mostreis essa vossa memo- ria , que Silvio chama de algibeira , porque quero ver a serie dos Dictames , que vos te- nho dado em toda a Lógica , e quero ver se falta algum , que vos seja preciso. Eug. Aqui os tendes nesta lista , postos pela mesma ordem que mos ensinastes. Vede-a de vosso vagar .... 7€0à, '44<5 Recreação Filofofica Teod. Tenho lido , e somente vos recommen- do , que tomeis estes Dictames bem de me- moria , que achareis neiies huma guia segu- ríssima 5 e como hum fio que vos desemba- rasse dos labyrinthos , em que costuma o nos- so entendimento enredar-se. £ug. Para os confirmar na memoria , he qu© os escrevi neste papel. Teod. Vamos á nossa visita, Mu^. Vamos, GA, 441 CATALOGO DAS PROPOSIÇÕES FUNDAMENTAES , cm que se contem toda a Lógica. Da nossa Imaginação, e seus actos. Proposição I. J Imaginarão, ou Fantasia y^ somente pode representar "^ -^ as imagens dos objectos sensíveis , que se percebem pelos sentidos ex- teriores , pag. 2 3. Prop. 2. jÍs Imagens da Fantazia podem ser mui diversas de tudo o que se percebe cem os sentidos externos^ pag. 24. Prop. ^. A Imaginação nunca pode em objecto algum representar predicado^ ou attributo , cu qualidade senão sensivel , isto he , que possa entrar pelos sentidos, pag. 24. Prop. 4. Quando o Entendimento forma os seus actos espirituaes , também a Imaginaí^ão, e o cérebro trabalhão a formar algumas imagens corpóreas , e sensíveis , pag. 25. Prop. 5. As idéas da Imaginação são cousa material, e corpórea, pag. 29. Prop. 6. Estas Idéas da Imaginação , quando são de objectos materiaes , podem ser mais, ou menos próprias , e representar os seus ob- jectos com mais , ou menos miudeza , pag. ^o. prop. 7. Não he o mesmo pintar as circunstan- cias , que costumão acompanhar hum objecto , que ver esse mesmo objecto ^ pag. 33. ' Prop, 44^ Catalogo Prop. 8. Dos objectos imensiveis mo pôde a Imaginarão formar idéa própria , pag. ^, Do Entendimento , e suas Idéas. Prop. p. O Entendimento he cousa espiritual^ e todos os actos de Entendimento são puramente espirituaesy pas;. 37. Prop. 10. yís Idéas da Imaginação , humasve* zes são semelhantes ás do Entendimento na re- presentação 5 outras vezes são mui desimi- Ih antes , pa^. ac. Prop. II. ./^ nossa Imaginação só pode jormar ide a das cousas . que tem ser positivo , pag. 4^. Prop. 12. O Entendimento petas suas idéas es- pirituaes pode representar não so as cousas posiivas 5 mas também as exclusões , ou fal- tas dessas mesmas cousas, pag. 51. Prop. I ^. O nosso Entendimento tem idéas dos pensamentos , das dúvidas^ e dos mais actos, e isto por própria experiência, ou consciência , Prop. 14. Bem podemos no entendimento formar de Deos , e do espirito idéas próprias , e que nos representem esses objectos diversos de tudo o que he corpo , pag. 62. Prop. 15. Por quatro modos pode a alma ad- quirir as suas idéas , ou por imitação , ou por exclusão , ou por consciência , e reflexão sobre si mesm^, ou finalmente por ahtrac- çío, pag. 7^. ProD. i^. Pos*o que as idéas do entendimento dependão quasi wnpre dos sentidos , nem sem- pre ãas Vro{wslcÕes Fundamenta es, 443 fYQ são semelhantes ás iãéas dos sentidos , pag. 76. Prop. 17. O Entendimento para formar o seu juizo 5 deve pelo menos ter dnas ide as : hu- 7na do sujeito , de cjuem falia 5 otitra do pre- dicado y ou attrihuto ^ que se lhe concede^ ou nega, pag. 79. Das enfermidades do nosso entendimento, e seus remédios. Frop. 18. Quem tiver o juizo são, e fali ar se^ rio, ha de confessar que muitas cousas se po- dem saber com toda a certeza, e evidencia, pag. 92. Prop. 19. Quem entrar em disputa para evt*ar o defeito da Tenacidade, utilmente usar d das seguintes Máximas, Primeira : Pode ser que eu esteja enganado. Segunda: Nao me estd mal mudar de opinião, toda a vez que aehar outra , que mais se chegar d verdade. Terceira: Devo abraçar a verdade, ainda que ^venha da boca de hum idiota, ou de hum inimigo , pag. <;p. Prop. 20. Ioda a vez que o juizo que forma- mos , he conforme d nossa paixão , e interes- ses , devemos duvidar de lie , ao menos cm parte, p3g. 107. Prop. 21. Toda a vez que o juizo^ que forma- mos , he contrario d nossa paixão , cu inte- resses, devemos prudentemente dallo por ver- dadeiro, pag. ic8. Prop, 444 Catalogo Prop. 22. No% juízos que fazemos a favor de nos mesmos , devemos sempre fazer desconto grande, pag. 109, Prop. 25. Não devemos dar huma cousa por certa, fundados em que sempre a tivemos por verdadeira. Convém examinalla de propósito , pag. 1 17. Prop. 24. Devemos fazer grande reflexão para nos não enganarmos com os nossos sentidos, ainda estando sãos , e bem proporcionados , e, em distancia competente, pag. 124. Prop. z^. As experiências fysicas para ynere-. cerem credito, devem ser feitas por pessoas in- telligentes , e com instrumentos próprios , e com animo desinteressado , e repetidas vezes , pag. 150. Prop. 26. Não merece credito o dito de pessoa alguma, quando duvidamos se quem o disse se enganou j pag. 1^2. Prop. 27. Não merece credito o dito de pessoa alguma , quando duvidamos se essa pessoa nos quiz enganar, pag. 132. Prop. 28. Não devemos fazer caso algum do dito do vulgo, pag. 137. Prop. iç. A authoridade puramente humana ^ ou seja de algum hotnem insigne , ou da com-^ mum opinião dos Doutos , posto que mereça muita veneração , não deve dispensar-nos de que examinemos muito , ou por pessoas tntel- ligentcs , e desapaixonadas ; isso que elles di- zem, para o admittinnos como cousa certa , pag. 139. Prop. :5o. Quem quizer conhecer a verdade com íc*. das Tr oposições Vunàarãentaes^ 445^ 3eguran^a , ha de examinar o ponto com ani- mo indijferente , olhando meramente para os tnotivos intrínsecos , ou razoes jundamentaes da opinião , e nao fazendo caso do numero^ antiguidade , e qualidade dos Authores que a seguem^ pag. 14:5. Prop. :5i. Toda a vez que as testemunhas , ain- da que sejão muitas, tiverão a sua origem em huma , não se devem reputar por muitas , mas por huma só , pag. 1 57. Pfop. :52. A testemunha sendo de vista jaz mui- to maior authoridade , que sendo de ouvi- da; como também se he testemunha de maior excepção , ou pela sua probidade , e letras , vu pela sua dignidade , pag. 159.. Prop. 33. Devemos attender d matéria , d qua- lidade 5 e circunstancias do facto , para por ellas podermos dar valor ao numero , e qua- lidade das testemunhas y pag. 161. Prop. 54, Não se deve attender somente ds pa- lavras 3 mas ao modo , e d todas as circuns- tancias ^ com que se narra o facto, pag. 162. Prop. 35. Aos Poetas deve-se mrú pouco credi- to ; mais algum aos Oradores ; e mais ainda aos simples Historiadores , pag. 164. Prop. 36. O Historiador y se nao he homem de juízo maduro , e prudente , nem cita pessoas intelligentes na matéria de qualquer facto y merece pcuca fé , pag. 166. Prop. ^y. Os Authores contemporâneos , e do- mésticos, merecem muito mais credito do que os estranhos ; ou mui distantes no tempo ; e quanto mais distantes forem , menos fé m.ere- cem y 44^ Cataío^^o cem j eíccepto se alhgao testemunhas contem- poraneas y ou próximas dquella idade ^ e lu^ .gares ^ pag^ i68. Prop, 38. Escritor que costuma mentir ^ nao me- rece credito j o que he apaixonado a favor do que conta , ou cuida nimiamente em ornar o seu estilo , merece que se dê algum desconto ao que refere^ pa^. 172. Prop. 39. Para darmos credito a qualquer His- toria^ devemos de huma parte pezar a qua^ lidade do facto , e sua difficuldade , e da ou- tra pezar o numero das testemunhas ^ e qua- lidade delUs ; attendendo d sua prudência , ao tempo , e distancia do lugar em que escre- verão, ao modo de nanar ^ e paixão que in- culcão 5 e d conformidade de todas as circun-- stancias entre si ; e para onde pezar a- balan- ça indiff crente y para ahi deixemos ir o nosso- juizo, ^ pa:^. 17^. Prop. 40. Nao devemos crer lego francamente , que tudo quanto vemos impresso com o nome de hum Author , foi dito por elle : convém certificar -nos que houve nisto prudente exa^ me y ^ pag. 181. Prop. 4.1. Se conferindo qualquer livro com os antigos exemplares , os achamos discordes , de- vemos estar pelos antigos ^ pa;. 182. Prop. 42. Se o que dizem os Antigos de qual- quer obra 5 concorda com o que rtella vemos , deve julgar-se por genuina ^ e sã ; se não concorda , deve julgar-se por suspeitosa , cf» em todoy ou em parte ^ pag. 183. Prop. 43. Obra^ de que nenhuma mcnsãoacha^ âas Vr oposições Vunãamentaes, 447 mos no século de seu Author , nem nos sécu- los immediatos, deve ier-se por smpeitcsa^ se não houver razão jorte em contrario, pag. 18^. Prop. 44. Aquelíes livros , ou lugares deites y de que os Antigos duvidarão , ou que nega- rão 5 só com gravíssimas razoes se pedem ad^ mittiry ^ pag. 184. Prop. 45. Se no livro se achao sentenças entre si cppostas y deve suspeitar-se que está cor- rupto ^ excepto se for cousa de nmipcuca im- portância y ou se o Author jallar só como quem se encosta d opinião dos outros 5 ou mos- trar que se retrata ^ pag. 185. Prop. 46. Livro , em que se faz menção de successos , ou pessoas , ou de controveriias posteriores ao Escritor ; como também , se usa de palavras , ou de estilo que no seu tempo não havia , bem se vê que h'e apócrifo em to- do , cu em parte , pag. 185. Prop. 47. Se o livro está cheio de desacertos mentirosos , e cousas indignas , não pode ser de homem douto y e serio ^ ainda que traga o seu ncme-y ao menos está mui viciado ^ e cor- rupto ^ pag. 18^. Prop. 48. Se o estilo he totalmente diverso do daquelle século , cu do que tem o Escritor n'outras obras certamente suas , deve-se ter por suspeitosa a obra 5 ccíno também , se o estilo he totalmente semelhante ao de cutro Author y deve-se attribuir a elle ^ não haven- do razão jorte em contrario ^ pag i^^^j, Prop. 45;. Se houver Manuscritos dignos de es- tima^ao , ou próximos d idade do Escritor ^ que Í^48 Catalogo que tragao o seu^ nome : se o estilo , máxi- mas , e opiniões sao as mesmas que o Authot mostra em outras obras suas : se os Escrito- res próximos dquella idade attribuem essa obra ao mesmo Author, e nada nella se encontra, que seja contrario d Historia daquella ida- de 5 nem seja indigno do Author , segura- mente se lhe pode attribuir ^ pag. i8p„' Prop. 50. Se huma Tradic^ão perpétua , desde os tempos próximos ao Escritor, concorda com o livro y deve-se ter por genuíno , pag. 189. Prop. 51. Quem quizer entender bem qualquer Escritor , deve lello na lingua em que elle escreveOy e entendella bem, pag. i95» Prop. $1, Nao se devem tomar as palavras n4as , e descarnadas do contexto , e systema do Escritor , mas deve-se attender a todo o systema , e Princípios de que o Escritor se vale, ^ pag. 198. Prop. 53. Não devemos interpretar o sentido da Author, accommodando-nos as nossas opiniões , mas ds delle ; nem indo jd de propósito as- sentando que segue, ou que impugna o nosso partido , mas havemos de entrar no exame do .seu sentir com total indifferen^a , pag. 199. Prop. 54. As palavras do Apíthor devem-se to- mar no sentido mais obvio , e literal ; excepto se esse sentido for cousa absurda , ou encon- trar as regras precedentes , pag. 200. Prop, ^s. Quando no Escritor se achão opiniões encontradas , deve-se ver se de propósito mu- dou de sentença 5 e sendo asjim , devemos' seguir a ultinui : porém se nao se conhece o Ani- das Vroposlçoes Funãamentaes, 449 animo espresso de ter mudado opinião , have- mos de ver onde f aliou da matéria mais de Í Propósito ', e este lugar deve preferir-se áquel-' es , onde j aliou de passagem. De sorte que conferindo entre si todos os lugares em que falia da matéria , devem preferir-se os mais tlaros ou mais de propósito , ou mais repeti* -í dos ^ e os mais bem fundados , pag. 201. Prop. .5^. Quando o sentido he duvisoso , ou es- curo 5 deve-se interpretar por conjectura ; e esta deve fazer-se sobre três cousas , a ma- téria 3 as circunstancias , e o jim , pag. 202, Do bom uso das nossas Idéas. Prop. 57. Antes que formemos juízo de qual- . quer matéria , convém examinar seriamente as idéas , sobre que se estriba esse juizo^ pag. 205. Prop. 58. Antes que formemos algum juízo , convém explicar o qtíe se entende pelo sujei- tOy e o que se entende pelo predicado , em or- dem a que não haja equivocai^ão , pag. 211. Prop. 55í. Ames que formemos algum juizo ácer» ca de alguma idéa, devemos dividila^ e exa- minar miudamente as partes de que consta ^ pag. 212. Proo. 60. P ara formar algum juizo^ nunca nos contentemos com idéas confusas ^ devemos pro- curar as distinctas y pag. 214, prop. 61. Convém examinar bem se a idéahe, ou não respectiva y ea que objecto diz ordem y ■ pag. 224. Jom. Vn, Ff, Prop. 45ro Catalogo Prop. 6i, Nunca confundamos a idéa^ que te* presenta a substancia em si , com a idéa que representa também o seu modo ^ pag. 229. Prop. 6:5, Nunca reputemos por huma mesma idéa aquelle concreto , que se toma por diffe" rentes modos, pag. z^c^. Do ]uizo , ou sentença , que dá o nosso enten- dimento. Prop. 6^, Ioda a vez que a idéa do sujeito tem dentro em si a ide a que achamos dapar* te do predicado , seguramente o podemos af- firmar y pag. 1^6* Prop. 6^. Se na idéa do sujeito observar algU" ma cousa que repugne com a idéa do predi' cado y seguramente o posso negar y pag. 25^. Prop. 66, Quando na idéa do sujeito não vemos nem o predicado , nem sinal , que costume a- companhallo , nem cousa que lhe repugne , de* vemos abster-nos de conceder, ounsgar o pre- dicado^ pag. 261. Prop. 67. Toda a vez que o sujeito da Propo- sição se suppÕe que existe , e na realidade nao existe , se não pode delle a/firmar predicado real, e verdadeiro, ^ ^ pag. 267. Prop. 68. Quando a proposição nao pede , nem suppÕe a actual existência do sujeito , posso deite af firmar os seus predicados necessários y ainda que não exista ; porém não os predica- dos contingentes, pag. 269. Prop. 6c). Quando eu ajunto duas cousas que nunca se podem unir, o querer ajumallas be fin- das Vr oposições Funãamentaes, 4^ r • fingiílas , e desse sujeito quimérico , e fingido não posso aj firmar predicados y real , e verda- deiro ^ ^ pag. 272. Prop. 70. Em qualquer proposição devemos re- parar não só no predicado , mas no modo com que ella diz que o sujeito o tem , ou que ca- rece delle j e em qualquer cousa que se falte d verdade , devemos dar por falso todo o jui-- zo, - ^pag. 274. Prop. 71. Quando eu n' uma proposição af firmo ^ ou nego algum predicado de dous sujeitos jun- . tamente , não basta que hum só o tenha cu careca delle , para ser verdadeira^ pag. 278. Prop. 72, Quando huma proposição for condi- cional , para ser verdadeira , mo he preciso • que exista a condição , ou a cousa affirma^ da , hasta , e he preciso que a cousa aí firma* da se siga da condição , pag. 280. Prop. 73. Para as proposições causaes serem verdadeiras y he precito que huma parte se si^a da outra, e que ambas se verifique ^ pag. 26 1. Prop. 74. Para serem verdadeiras as disjuncti^ vas 5 basta a verdade de huma parte ; mãs ^odem ser ambas verdadeiras , pag. 282. Prop. 75. Se se negar huma proposição por ser falsa, podemos logo inferir a sua contradicto-* ria como verdadeira : e do mesmo modo 5 se se conceder huma proposiç^ão como verdadeira^ podemos logo negar a sua contradictoria co- mo falsa y pag. 294. Prop. 76. A universal negativa 5 e pauticular affirmativa , podem-se converter perfeitíssima-' mente 3 pag, 502, Ff ii Prop. 45*^ Catalogo Prop. 77. A universal affirmativa pdde-se con- verter com conversão menos perfeita, p. :^02, Prop. 7H. Toda a que hum termo na mudan- ça das proposições se não entende do mesmo modo, já a conversão leva vicio, p. ^02. Prop. 79. Toda a vez que o predicado he «- sencial ao sujeito , este naturalmente se toma absolutamente, não so pelos que existem, mas também pelos que nao existem : pelo contrario ^ quando o predicado hé accidental ao sujeito, este naturalmente se toma só pelos que exis- tem, pag. 504. Do Discurso bem formado. Prop. 80. Para hum discurço ser bom , deve in- - ferir da proposição antecedente somente aquil" lo que estiver envolvido dentro delia, p. ^12. Prop. 81. Pode hum hiscurço ser bom , ainda que sonste de proposições falsas, pag. :5i2. Prop. 82. A boa consequência sempre he parte do antecedente, pag. :^i(), Prop. 8:?. Quem dd o Todo, da qualquer par- te delle; e quem nega a parte, nega também o Todo, pag. i^ip. Prop. 84. Posta huma regra geral , se cila se applicar a algum sujeito^ por conclusão diga- se desse sujeito o que se disse na regra geral , pag. :524. Prop. 85. Posta huma regra geral , se appare- cer sujeito que não concorde com ella , bem podemos inferir que Iheuão pertence , p. 7,7p, Prop. 86, Poua a condicional como regra ge- ralj, das TroposiçSes Fujíãamentaes. 45*5 r/1/5 e depois verificada na menor a condição 9 podemos inferir na conclusão o dito da condi' cional y pag. ^^9. Prop. 87. Posta huma condicional na maior , e depois exclu-indo-se na menor o dito , pode- mos na consequência negar a condição , pag. 341. Prop. 88. Posta huma dijunctiva , e negada huma parte , podemos inferir a outra , pag. 342. Prop. 8p. Fosta buma copulativa que negue a conjunção de duas partes , se depois se veri- fica huma dessas partes , no fim se exclue a outra y ^ Pag. ^47,. Prop. po. Posta huma proposição geral af firma- tiva 5 de todo o contradictorio do predicado se pode af firmar o contradictorio do sujeito y pag. 7,so, Frop. 91. Sendo dous termos contradictorios ^ se affirmamos hum , podemos excluir o outro ; e se excluimos hum , podemos af firmar o cutro , Prop. 92. Sendo dous termos contrários, sempre he bom o discurço , que vendo hum termo af- firmado , nega o outro ; mas não he bom , se , negado hum termo, af firma o cutro, p. t^^/x, Prop. 9^. Quando as palavras não mudao de^ sentido , tanto podemos af firmar de hum su- jeito dous predicados juntamente , como cada hum de per si , pag. ^^5-4. Prop. 94. Negado qualquer predicado solto , podemos negalo também , pondo-o juntamente çom outro 3 porém negando dous predicados jun- 4^4 Catalogo juntos y não he licito negar cada hum de per ^^ pag- 355- Dos sofismas , ou discursos maliciosos Frop. 9f . Confrontando a conclusão com as pro* posições antecedentes , se ella se inclue dentro de alguma , he bom o discurco ; se nao se contem y he máo, "* pag. ^59. Prop. 96. Posta qualquer cousa , podemos por quantos attrihutos ella tem -^ mas negada nu- ma cousa , não he seguro negar todos os seus attrihutos , pag. 364. Prop. 97. Toda a vez que hum termo na con- clusão se toma geralmente , e na premissa se não tomava assim , jd a conclusão não se contém nas premissas, pag. 365-, Prop. 9R. Toda a vez que o Meio termo em nenhuma premissa se toma geralmente , he o discurso mdo^ pag. 367. prcp 09. O discurso bom não deve tomar vor fundamento aquillo mesmo de que se duviaa , e que se intenta demonstrar , pag. 370. Prop. ICO. Não se deve supprimir no discurso proposição que nao seja mui evidente , pag. r, 573- ' ,. Prop. loi. Quando os discursos sao amenos, e engraçados , deve-se pôr maior cuidado no exame de suas proposições , porque ha maior perigo de engano, pag. 375. Prop. 102. Não nos contentemos com ser o fun- damento ou regra geral verdadeira , exami- nemos se está bem applicada^ pag. 57;7. Prop.' ãas TropnsíçSes Tuúãamentaes 45'f Prop. 105. Nunca de casos particulares se in- fere consequência geral , senão córrendo-os to^ dosy ^ pag. 580. Prop. 104. Nunca no discurso se deve consen" tir palavra , que nelle tenha dous sentido^ , pág. 385. Do Merhodo. Leis para achar a verdade, 1 Prop. 105. Antes que se busque a verdade de qualquer proposição , deve-se reparar muito nellay pa^. 397. Prop. 106. Para se achar a verdade de qual- quer questão , deve-se dividir em quantas par- tes puder ser , ^ pag. 400. Prop. 1C7. Também para isso todas as circuns-^ tancias inúteis se devem por de parte , p. 401, Prop. lob. j4s cousas certas separem-se togo das incertas 9 e que admittem qtiestão^ p. 402. Pròp. lop. As partes , em que se resolveo a questão , devem-se ir ajuntando outra vez , a ver se do seu ajuntamento nasce luz para conhecer a verdade^ pag. 403. Prop. iio. Quando , feito tudo isto, não apa- recer luz para conhecer a verdade , deve bus- car-se huma , ou muitas idéas que medeiem entre o sujeito , e o predicado da questão , a ver se por ellas se descobre esta conexão , pag. 404. Leis 45'6 Catalogo Leis para ensinar a verdade. Prop. III. Para se mostrar com evidencia a verdade j d achada , só devemos usar de De- finições de nome , Axiomas , e de propòdcSes evidentemente provadas , P^g- 407. Prop. 112. Não se deixe passar termo escuro y que se não explique com a sua definirão de nome, . , pag. 408. Prop. M ^. Nas Definições de nome não se use se não de vozes áe significarão notissima, oU já explicada, pag. 410. Proç. II A. Em lugar de Axiomas só devemos pôr aquellas verdades, que consideradas com atten.ão medíocre, sejão tão claras, quenin- guem seriamente as as possa negar, p. 114. Prop. 115. Para se demonstrar huma verdade pelo methodo Sinthetico, devemos começar pe- los Axiomas geraes , e definições , e ir con- traindo pelas consequências do discurso estas verdade geraes ao objecto particular da quês* tão^ pag. 415. Leis para âs disputas, Prop. 1 16. O Arguente antes de impugnar a questão deve conhecer mui claramente o senti- do delia, - pag. 419» Prop. 117. O Arguente disfarse tudo o que não faz ao ponto , ainda que seja manifestamen- te falso, pag. 421- Prop. 118. O Arguente deve abster-se de toda- a palavra de injuria ^ desprezo y ou vaidade , pag. 422. Prop. ãas Proposições Funãamentaes. 45^7 . Prop. I ip. O Argíiente deve dispor de modo o sjllogismo, que prove só o que lhe negarão no antecedente ^ ou tire alguma consequência diO que no antecedente lhe disserão, pag. 423. Prop. 1 20. O Defendente , tendo repetido o syl- logismo que se lhe oppõe , responda distincta- mente a cada proposição delle ^ pag. 425. Prop. 121. O dej endente não deve dar a razão do que diz , senão depois de exposta toda a .. dijficuldade y pag. 429. Prop. 122. O Defendente no fim faça hum epi^ logo breve da força da difficuldade ^ e da sua solução y pag. 42p. Leis para a disputa Socrática. Prop. 123. O Arguente deveportar-se com o sen contrario como se delle quizesse fundamental^ mente aprender a sua doutrina , pag. 4:51^ Prop. 1 24. O Arguente deve mostrar maior rà^. . dezay e maior desejo de perfeita intelligencia tiaquelles pontos , onde suspeita que se invóU ve falsidade , de sorte que seja o contrrario- obrigado a explicar as palavras escuras^ e consequências da sua doutrina , até que por si mesma appareça a falsidade escondida , p. 432. IN- 458 índice DAS COUSAS MAIS NOTÁVEIS, que se contém neste Tomo VII. A Bstrac^ão, como se formão idéas por abs^ JlÍ. tracção, pag. 71. ^ctos do entendimento, quantos sáo, pag. 12. Sáo puramente espirituaes, pag. 37. Sáo differentes dos da imaginação, pag. 38. jíctos da imaginaç^ao , o que são , pag. 38. Nem sempre representáo o mesmo que os do entendimento 5 pag. 39. j^nimastica y o qae he , pag. 16. Antecedente y o que he, pag. 32. Aprehensão , o que he , pag. 1 2. Arguente y que fim deve ter, pag. 417. Que leis deve observar, pag. 419. Arte critica y suas leis, pag. 124. Authores , o escreverem muito , não prova que são os melhores , pag. i ^ 3. Quando se deve attender a sua Religião , Credito que merecem, pag. 161, Authoridade do povo, erros que causa , p. 133. Deve-se desprezar, pag. 137. Auéoridade dos Doutos , merece veneração , pag. 14^ Mas deve-se examinar, pag. 143* jiuthoridade das testemunhas , pag. i$6. Dos Historiadores, pag. ^6^, Das ãas cousas notáveis, 45* 9, Das Escolas, pag. 144. Axioma , o que he, pag. 407. B "Ty Icortie , que casta de discurso seja , pag. -D 580. /^Erteza, quantas, e quaes sejáo , pag. 85'. \y 164. Pode haver certeza de muitas cousas , p. 9:5. Circunstancias , com que se devem fazer as ex- periências Fysicas , pag. i :5o. Comprehensão , o que he, pag. :^i^. 7,^(j. Concreto , o que he , pag 2 ^4. De que partes consta , e como se cnamáo , pag. 234. Como se pode tomar , pag. 2 16, Conclusão, o que hé, pag. -^i^, Deve-se incluir nas premissas, pag. :^ir. Se he preciso que se inclua em ambas, pag* Modo de conhecer, quando se não contém nas premissas, pag. 7^6^, Condição <^ o que he, pag. 5^9. Consecução , o que he , pag. 351, Consecjuencia ^ o que he, pag. ^11. Consciência , o que he , pag. ^ ^. Como SC formão idcas por consciência , p. 71. Consequente ^ o que he, pag. 311, Conversão das proposições , o que he, p. 2^6, Quan» 4^ índice Quantas câstâs ha de conversão, pâg, 2p^, Que proposições se convertem , e como , pag. 298. Conversão por contraposição ^ o que He, p. ^50. Coração y ne erro dizer que adivinha, pag. 135. Credito , o que merece o dito das pessoas , pag. 152. Não o devemos dar ao dito do vulgo , pag. 1^2. Qual devemos dar aos Poetas , Oradores , e Historiadores, pag. 1^4. Alguns livros não merecem nenhum , p. 176. O que merecem os Escritores , pag. 180. D > inx Efendente y que fim deve ter, pâg. 4.1^^ JL>'Que leis de observar, pag. 425. etc. Definições , deve que vozes se deve usar nellas , pag. 410. De nome, pag. 406^.; De cousa , pa^. 406. Discurso y o que he, pag. 81. 511. O que he preciso pârâ ser bom , pag. 3 1 2. Como se forma bom, pag. ^24. 1529. Por quantos princípios pode ser máo, pag. ^68. etc. Como se conhece se he bom , ou máo , pag. 314. ^59' ^^' ^ Pode ser bom , ainda que as proposições se- jão falsas, pag. ?I2. DifFerença entre o bom, e verdadeiro, p. 313. Dijunctivo, pag. 342* Co- àas cousas notáveis. áfit Copulativo, pâg. 347, JDuspHta, que fim deve ter, pag. 417. Dito, nas condicionaes o que he, pag. 439. T^ Ngano , que podem occasionâr as experi JLi encias Fysjcas, pag. 128. Enjermidahes do entendimento ^ pag. 93. 118. Sua origem, pag. 94. 104. 114. 118. 123. Seus remédios, pag. pp. 117. 124. Entendimento , o que he , pag. 37. Como obra, pag. 12. Pode formar idéa do nada , pag. 45. Pôde representar as exclusões , ou faltas das couas, pag. 5I. Tem déa dos pensamentos , das duvidas , etc. pa?- 53- Forma idéa das cousas , e não só das pala- vras, pag. 57. Pode formar idéa própria de Deos, pag. 61. Como a forma , pag. 66, De quantos modos forma as suas idéas , pag. 70. Suas enfermidades , quantas , e quaes são, pag. 9^. 118. Enthymemay o que he , pag. 336. Erros , que nos podem vir da authoridade do povo, pag. 132. Da authoridade dos Doutos, pag. 138. Da authoridade dos Mestres , pag. 146. . Da authoridade das testemunhas , pag, 1^7. Da 4^^ Tndice Da authoridâde dos Historiadores, pag. i6%l De alguns livros , pag. 17Ó. D4 corrupção y ou má intelligcncia delles, pag. 176. 194. Escolas fechadas ^ o que sejáo, pag. 144. Erros 5 que causáo , pag. 144, Escritons , que credito merecem , pag. 177. Espirito , pode o entendimento formar idca pró- pria delle , pag. 6;. De Escola, erros que causa, pag. í/^6» De contradição, quão máo seja, . pag. i^^. Evidencia , o que he , pag. zèo» Exclusão 5 como se formão idéas por exclusão, pag. 70. Extensão y o que he, pag. :^^ç. Experiências jysicas , com que circunstancias se devem fazer, pag. 127. Quando merecem credito, pag. 150. jT^ Antasia , veja-se Imaginação. Jl Fim , que deve ter a disputa, pag. 417. Que deve ter o Arguente, pag. 418. Que deve ter o Defendente, pag. 418. H HErmeneutica , o que he, pag. rp4. Historia , como se lhe deve dar credito , Historiadores , que credito merem , e quando, pag. 162. 166. Quando se devem attender mais , pag. i6S, 174. Idca das cousas notáveis. 463 JDêa^ o que he, pâg. 12. 77. Sua origem , pag, 6^, Jdéas da Imaginação i pag. 29. Do Entendimenro , pag. ^8. Todas , ou quasi todas dependem dos senti- dos, pag. -5. Jâéa^ do nada. pap. 4^. Jdéa$ innatas , o que são , pag. 6p, /déas , por imitação , exclusão , reflexão , ou consciência, e por abstracção, pag. 70. Simples, e compostas, pag. 212. Confusas 5 e Distinctas , pag. 21^. Respectivas, e Absolutas, pag. 218. .' Das cousas , ou da substancia , e do modo, pag. 225. Dos Concretos, e Abstractos, pag. 2:54. Imaginação, o que he, pag. 21. Chama-se sentido commum , pag. 22. Que objectos pode representar, pag. 2^. Pode representar os objectos de diverso modo , do que entrão pelos sentidos , pag. 24. Forma imagens, quando o entendimento faz os seus actos, pag. 25:. Suas idéas , c como representa os objectos, pag. 29. Não pode formar idéa própria dos objectos in- sensiveis, pag. ^^. Como os representa, pag. :54» Seus actos, pag. 38. Se pode representar o que hc positivo, p. 51, Co-, '4í54 índice Como fórmà idéa de Deos , e do Espirito, . P^3- ^7- , , .... Imitarão , como se formão idéas por imitação^ pag. 70. Jwízo, o que he, pag. -7. Para se formar, são precisas idéas, pag. -79. De sujeito que não existe , pag. 265. Como se pode nelle afíirmar o predicado do sujeito, pag. 267. L/ T" Eis do Methodo Analytico , ou de Inven- Xjçáo, pag. ^97. Do Methodo Synthetico , ou de Doutrina , pag 407. Que deve observar o Arguente, pag. 419. Que deve observar o Detendente, pag. 425. Leveza, o que he, pag. 94. J^ivros , erros que causão alguns, pag. 152. Pouco credito que alguns merecem , pag, i 8. Corruçáo de alguns , e sua má inteiligencia , pag. iy6. 194. Quando se devem julgar por genuínos , ou por suspeitosos, e corruptos, pap. 18:5. Como se devem Ijer para se entenderem bem , pag. 195. Lógica^ o que he, pag. 15. 20. Sua utilidade, pag. ^. 14. Innutilidade da dos Antigos, pag. 8. Differença entre a dos Antigos , e Modernos , pag. 10. . Idca da que se trata, pag. ir. . .Sc he prática, ou especulativa, pag- 215* Maior das cousas notáveis. 465° Mjior, o que he, pâg. 15 if. Aíeio termo , o que he , pag, ^ó-j. Se se náo toma geralmente cm alguma pre- missa 5 hç o Discurso máo , pag. i^óy. [Menor , o que he , pag, n^ i ^ . Methodo, o que he, pa^. 13, 388. Quão preciso seia, pag. 14. 389. Analytico, ou de Invenção, pag. ^91. 5uas leis , ' pag. 397. Syntetico, ou de Doutrina, pag. 391, Suas leis, pag, 40T, De disputar ordinário , ou das aulas ^ pag, 417. De Sócrates, pag, 450^ N NAda , póde-se representar por huma idéi positiva, pag. 47. O y^ Bjecto sensível y o que hc, pâg. 32. t>^ Insensível, pag. 32, Insensato, pag. 3^. Náo he o mesmo que as circunstancias que o acompanháo, pag. 33, O negativo p6de-se representar, pag. 51. Opinião^ o que a faz ser attendivel, pag. 11.3. Oradorçs y que credito merecem, pag. 164. Gg Ff* 4^^ í^#? I JEtere principium , o que He , pig. ^ép, Pyrrhonios , ispu çrro sobjre o entendimen- to, pag. 84. P getas ^ merecem poqco crçditq, pag. 164, PôstuladoSjy o que he , pag. 414, Precipitação , p que he , pag. 94. >ua origem^ pag. 104. 114. Seu remédio, pag. 117. Precisão j o que he, pag. 71. Differçnça entre a precisão, e negação, ^'"7^ Premissas^ quaes sáo, pag. i^ 3K. Prcoccupacão ^ a qug nasce dos sentidos, p. 118. Principio ^ fundamental de todo o bom discur. so, pag. ?I9- Proposi^ão , o que he , pag. 248- Logica, pag. 79. §u;i quantidade, ^ pag. 245?. Õuanías espécies ha de proposições , pag, 249. Singuiar, pag. 24p. Particular, pag. 249. Universal, pag. 2^9, Ji^definida, e a que çquival pag. 2^0. 253. Disjuncra, pag, 252. Desuhjecto non supponente^ pag. 265. De sujeico per accidens conjmcto , e predica, do simples^ pag. 271. Wodaes , e p que he necessário para serem verdadeiras, pag. 273. Algunias se ch^rnao erradamente Modaes , f"^-^^^- Tom das cousas notáveis, 46 f Complexas , e o que he necessário pára sereni verdadeiras, pag. 278. Condicionaes , pag. 279. ^acionaes , ou Cau^aes, pag. 281. Disjunctivas, pag. 282. Exceptivas, pag. 28^. Oppostas, pag. 287. ;Contradictorias 5 pag. 289. Contrarias, , pag. 2S9, ,Que proposições se convestem , e como , pag. 298. Qual se pode suprimir no discurso, pag. 375, Psicologia , o cjue Ke , pag. 10. .0. Q Uantidade da proyoskao , o qye hc , pag. 249. ^ ^ ^' R TJ E flexão ^ veja-se consciência. X\ Como se formão idéas por reflexão, p. 71. Regra geral, o que he, pag. 7^1^,, Como se deve applicar, pag. ^77. Ç Entido commumy o que hc, pag. 22. l3 *S^//o^/5mo , o que hç ; pãg. 314. Condicional, pag. ^39. Sofistica y o que he, pag. 35P* Te- 478 índice das cousas notáveis. T TEnaciãaàe , o que he, pâg. ^5-, Donde procede, pag. 98. Seus remédios , pag. 99. Testemunhas , deve-se âttender âo seu nufnero- ro, e quando, pag. 157. A sua qualidade , e como, pag. 159. A materjji em que depóeiii , c modo , pa^, 161. V FErbo he , deve entrar nâs propôs icces , pa^. 80. Ferdade como se pode conhecer a dos juízo* pag. 156, F í M» S^'M^