7 ^ .' ^»'V *jfí*" A' <^ ,.' o -J k^ Presented to the UBKARY ofthe UNIVERSITY OF TORONTO by Professor Ralph G. Stanton THEOLOGIA NATURAL D A RECREAÇÃO FILOSÓFICA i o u HARMONIA D A RAZAÕ EDARELIGIAÓ. '• •' t. HARMONIA DA RAZÃO, E DA RELIGIÃO, Dividida em duas Partes* PARTE I. Do que pertence aos Dogmas da noíTa Fé, Que faz o nono Tomo da Recreação Fílo^ Jofica ^ e he a Theologia NaturaU PARTE 11. Do que pertence aos coílumes da noíTa Religião, Que faz o decimo Tomo da Recreação Fi^ íofoficay e he a Filofofia Moral y ou Ethica. HARMONIA DA RAZAÓ, E DA RELIGIÃO, o u REPOSTAS FILOSÓFICAS AOS ARGUMENTOS DOS INCRÉDULOS, que reputaõ a R«ligiaõ contraria á Boa RazaÕ. Dialogo do Author da Recreação FíIofccelkncia , como a Juiz , cuja fenten- çaferd de tal forma decifiva para mim. ^ ou para mie corrigir , ou para me ani- mar , que debaixo da fua protecção , e ílocil ao feu parecer ^ naÕ temerei outra cenfura '-, e fe V, Excellencia o appro- 'var 5 apoderei publicar efie pequeno Li- vro 5 em quQ fornecerei armas contra ar^ mas do mefmo género. Creio , que nifiq Jirvo d^ Religião , por quem darei a vi- da 5 e d Pátria , a quem a devo, Deos guarde a V, Excellencia para udefenfa da nojfa Fé ^ confolaçao de to* ' ' ^ do êo o povo 5 € ornamento da Santa Tgrf* ja, Cafa da Congregação do Oratório no Efpirito Santo em lo de Fevereiro da de V^ Excellencia Servo humilde Theodoro d' Almeida. > PRE, PREFAÇÃO. SEndo as Obras que fc impiimem ofFerecidas ao Publico > convém que^ cftc fcja informado das intenções de quem lhe faz obfequio de lhe facriíicar o feu trabalho. Eu tenho vifto, com confufaõ minha , a acceitaçaõ, que o Publico tem feito dos primeiros traba- lhos da minha mocidade , na Recreação 'Filofofica y moftrando fer-lhcs agradável o meu intento de vulgarizar o conheci- mento das bellezas naturaes , que todos tinhaõ diante dos olhos e poucos viaõ : crefceo com cfte favor do Publico o de- fejo de o fervir , e continuei com a inf- trucçaô fobre a Lógica, familiarifando , e illuftrando ( quanto a matéria abftra- íia foíFria) os movimento do noíTo enten- dimento no defcobrimento da verdade. Confirmei eftas regras com a Geometria {^ c Mecânica , que formão em dois volumes? í 4o fupplemento á Recreação. E achando- me já algum tanto fatigado pela idade e pelos acontecimentos , me inclinava a ceifar defta fadiga , pofto que goftofa. Porém perfuasões , que eu por modo ne- jihum devia defprezar , me fizeraô pegar cutra vez da penna : entaô o juizo efpe- ■ cuia- culativo, e o íangiie ainda aílívo me con- duzirão a penfamentos mais altos , íubin- do com o diícurfo á parte fuperior da Fi- lo íbíia , que chamaõ Metafyfica\ e cf- crevi na Ontologia as Máximas Gcraes fobre o conhecimento de tudo o que tem exiftcncia , ainda que naó íeja Matéria \ e emrando na Pneumatologia , ou Scien- cia do efpirito, o objeflo principal , que íe offerecia a meus olhos era Deos : ifto iiií^^ a paríe que chamaô Theologia Natu* ràl : porém nefte ponto me achei muitos annos perplexo ^ e vou a declarar o mo-» tivo. A experiência me moftrou , que hoje os Filofoíbs difputavaó neftas matérias por^ modo mui differente do que n'outros tem- pos ; e que os entendimentos foltando-fe lem algum género de freio , embriagados do efpirito da defenvoltura e liberdade, de tudo zomba vaô , refpondendo ao que n'outro tempo fe chamavaõ demonftra- çoes , com certas invedlivas jocoíiis e pi-' cantes ; com o que agradavaõ e engana- vaô efpi ritos menos fólidos e íizudos. Vi que nas matérias mais fagradas da Reli- gião Revelada, eftava6 para elles ocio- Jas as Eícrituras c Padres ; porque os ím- pios nao conhecendo alguma authoridade nos Livros fantos, chamavaõ tudo ao tri- bunal bunal da fua Razaó , dando nelle fenten-^ ça á revelia , contra tudo o que a fua idéa- Ihes naó approvava. Peguei do& fcus Li- vros 5 aíTifti aos feus argumentos , medi por muitas vezes a efpada da Razaó com os Incrédulos, e vi que o leu modo de brigar era por novo eftylo ; nem ufavao de Demonftraçóes feccas da Theologia Natural , nem dos argumentos da Autho- ridade Divina da Theologia fagrada , mas lim de certas ironias e inveâivas galan- tes 5 que com pico, novidade e fuavidade cncatandora , engodando as paixões , fa^ ziaô illufaò ao entendimento; e defte mo* do triunfava o Erro c a Impiedade. Comtudo como a Verdade tem de íi mefma huma belleza encantadora , que fó iiaô agrada aquém a naô vê manifefta^ vi que nas difputas , que pelo efpaço de oito annos eftive obrigado a ter contra roda a cafta de ímpios , que íem fyftema nem uniaô ,ora me ataca vaô em hum pon- to , ora em outro , vi , digo , que quando na força do argumento lhes fuccedia ve- rem a verdade niía e fem enfeite , nem or- nato , ficavaõ íurprendidos e palmados ^ c muitas vezes fe rendiao ; c concebi grandes efperanças de que tratando eftas matérias no tom de Filofofo ferio c ri-^ gorofo, masclaro, lhano ç fimples , po- deria dcria confeguir que a belleza e naturalt formol ura da Verdade , venceffe fem ai-» gum artificio, nem ornato , todas as gra- ças empreitadas , e artifíciofos enfeite» do Erro : e como a Máxima Geral entr& todos os Incrédulos , he que a Religião Revelada fe oppoem á Razaó , tomei por cm preza moílrar n'um eftylo fami- liar , claro , e íimples a Harmonia, que tem a nojfa Religião com a Boa RazaÕ, Nas- difputas e contendas , que formo , dou quanto poílb força aos meus inimigos , e naò me poupo , nem fujo deíTe beilo co- lorido , com que fálíamente enfeitaõ a,^ Erro ; porque além de fazer a Jiçaô mais- inrercíTante, vejo que depois ferve á glo- ria do vencedor toda a braveza do venci- do : e do mefmo modo , que quando o» Ariftotelicos vulgariíavao as iavedlivas e defp rezes da Filofoíia Natural , me ap-. pliquci por credito da verdade a vulgari- íar as armas com que todos triunfalTem daquelles erros e injurias ; aílim agora cfpero , que me fucceda. Naò faço aqui a figura de quem ataca > mas iim de quem fe defende , naò tanto a fi , mas a Reli» giaò que profeíía, rebatendo quanto poíTo os golpes , e voltando-os contra os ini- migos. Naò intento fazer DiíTertaçòes. Tlícologicas 3 e quem as quizer ^ tem mui- tas tos livros excellentes que confultar a noíTo favor : fó quero acudir ás invefli- vas , que na converfaqaó familiar coftu- mao fazer contra a Pveligiao , o que até aqui naò fe fez. A impiedade , perdeo já o rubor, com que até aqui em alguns fe efcondia nos recônditos de hum peito cor- rupto e cancerofo , e tem já infcftado o Publico com o máo cheiro ; e agora com defafogo fé vai manifeftando, e quafi que eftá perdido o horror de que appareça o fcu nome no Publico : feja pois também publico e vulgarizado o remédio ; pois fe nao pode de outro modo atalhar o con- tagio. Deos 5 que he a Verdade fumttia, profpére os meus intentos e íinceros dc- fejos. ** I N D I- índice DAS MATÉRIAS, QXJE AQUI fe trataõ nefte Tomo. ARDE I. Que as matérias da Re^ ligiaS fe devem tratar com muito ref- -peito 5 attenoaõ , e cuidado , pag. i. TARDE II. Do ejlylo , com que fe de- •ve averiçruar a verdade nas matérias de Religião ^ 25'. TARDE III. Sobre a Exijlencia ae Deos ^ 44. TARDE IV. Sohre os M^/flerios da nof- fa Religião em commum , 6s'. TARDE V. Sohre a Lei Natural ^ e Luz da Ra%aõ , e neceJJlLtâe dzs Leis Pofltivas , 104. TARDE VI. Sobre a Matéria , e Ef- piri to , nó. TARDE VII. Da Eípiritualidade , tf Imnort alidade da Alma ^ 144. TARTE VIII. Sobre a Religiaí Reve- lada em connun , 17^. TARDE IX. Sobre o Peccado Original, 207. .TARDE X. Sobre a Máxima , que di&i Fora da Igreja aao ha falvaçao , 248. TAR' TARDE XL Sohrr o Interejfe , que De os tem nas noffas acções^ 288. TARDE XII. Sobre o Culto devido a Deos Interior e Exterior ,517. TARDE XIII. Sobre a Immutabilida- de Divina , e fohre o Fogo vingador. da outra vida , 340. A P P E N D I X, TARDE XIV. Sohre a Graça Divina y e Conceição da Senhora , 362. TARDE XV. Sobre a Conffaõ Júri* cular y 388. RE- RECREAÇÃO FILOSÓFICA REPARTIDA POR VARIAS TARDES. TOMO IX. SOBRE ATHEOLOGIANATURAL; TARDE I. Que as matérias da Âeligiao fe denvem tratar, €om muito refpeito , attetiçaÕ , e cuidado» Bãroneza. ?^ JT al fabeis , meu TJieo- dofio , quanto eílimo agora a voíTa viíita ^ por quanto me tem fido bem penoía , e talvez prejudicial a voíla auíbncia ; a- qucllaà admiráveis inftriicçces , que me fazíeis algum dia nos Sabbados > que A úteis r 2 Recreação Filofojica úteis nos eraõ enraô , c que precífas agora ! O mal , que receáveis , veio ;' e os remédios que entaó me dáveis co- mo prefervativo do mal , agora talvex que íirvao de o curar : pelo menos eu agora temo o que enraÔ naÒ temia : cf- pero qualquer dia meus Irmãos , que chcgaráô de Saumur , c a vivenda no Regimento nao fei íe lhes terá fido pre- judicial 'y por quanto fe cu aqui em mi- nha caía me vejo fummamcnte atacada fabre a Religião , fendo meus Pais taõ catholicos 5 c taõ attentos , que fuccc- derá a meus Irmãos entre toda a varie- dade de fentimentos , que teráõ os feus companheiros ? Eu , c mais Sofia , e Viéloria os temos muitas vezes lamen- tado 5 com bem vivas faudades dos nolTos antigos Sabbados. Theodofio. Na verdade , Senhora , que me confolava fummamente , quando via que vos alvoroçáveis mais com as Inftrucçoes íobre a Religião, que vos dava nos Sabbados , do que com a de Fyfica , Geometria , e Geografia , em que vos entretinheis nos mais dias. Mas dizci-me Vós , quem he que vos inquieta na vofiTa Religião? Baron. EíTcs hoipedes , que nos fozem fa- Tarde primeira. f favor , efpecialraentê quando Vem ú. jantar ; porque já da meza vai a ^ygf* taó armada ^ que dura até á hora do paíle^o ^ e huns com os outros íô di- vertem em mil inveélivas contra quem iiaó quer lentir como elles :• hoj^ te* féis Vós á meza hum que nao he áoB pciores j mas afíiige-me ^ e he peiía ^ por quanto hd komeni de juizo ^ e iiaó deixa de ter graça ^ mas pela lua eonvériaçaô creio que he dos da mo- da : he o Chen) alter Sansfond* Theod, Bem conheço ; e paíleandd Com elle os dias paíTados fobre o Gla- cts y achei que era homem bem iaif^ truido 5 efpecialmente na Artilheria ; fabe bem a fundo eftg iliateriâ > e tsul fervido çom grande diílincçaò. Mas na matéria de Religião naô faliámosd ÈaroH, Elle quer-íe com peíToaâ ^ ou da fua facçaô , òu que lhe nao poííad rei» ponden Chegou-me a dizer ^ que; era mágoa fer eu huma Senhora taâ preil-* dada pela Natureza como elle lá qui:S . dizer ^ e tao diftiníta pelo nafcimen- to 5 e ter hum modo taõ fervil de pen- far na matéria de Religião y pois via que rne amarrava ao que na meninice ítie íiiibaõ enfinado quatro Clérigos A ii tc-« íf Recreação Filofofica velíios , e ignorantes, líto dizia elle i porque eu lhe cortava toda a occaíia5 de diíputa , proteílando-lhe , que nef- fas matérias naõ fallava , porque nao fabia fallar no que nao eftudara ; e que cria no que o meu Paftor , e ]3if- po me tinhaÕ eníinado y do que elle ria muito com certos defdens , que me picavao. Vós experimentareis o íeu modo terrível de argumentar j e co- mo eu tenho em Vós quem me apoie ; hoje fe me picar , falto nelle ; e Vós me acodireis onde eu nao chegar. Theod. Nao temais ; porque íe fordes deslizando em algum ponto , eu com os olhos vos darei linal , e com alguma palavra vos meterei em cami- jílio. Se vos naõ efqueceis das nolTas antigas lições , bem podereis relpon- der o que baile para as fuás letras nef-, tas matérias. Barofj. Creio , que ah i o temos , por- que cliegou carruagem , que parece a fua : naõ me engano : eu o meterei na matéria , tanto que achar occaliaõ; hoje me hei de vingar do que elle tem zombado de mim. Çhevalíer. Qiie bella , e engrajada ellais hoje, Sçahgra ; que vos vejo em ne- Tarde prmeira. jr -gligé ! Os enfeites da moda nao vos fazem falta ; porque eíle ar de defp re- zo da arte , e confidencia nos próprios cabcdaes da Natureza vos fazem o ma- ior elogio. Baron. E porque naô ides Vós Cheva- lier aconfeihar iílb a Madama voíTa Efpofa 5 e ás mais Senhoras , a quem Vós fazeis a Corte , para que fe dif- '' penfem da fadiga enfadonha do Tou- cador ? I ChevaL Deos me livre , porque a minha perlbafaó neíTa matéria me fecharia a porra aos obfequios , pois íe indigna- riaô contra mim , que lhes tocava no delicadiílimo ponto da formofura , que já fe fabe fer para Senhoras ponto mui fagrado. Baron, A m*m naó me efcandalizarieis, fe me quizefleis diííuadir dos enfei- tes 5 porque fomente ufo delles para me naõ fazer fmgular, nem rcprehender com o mçu ufo extravagante as Senhoras da minha qualidade , que dciles ufao j pois nunca tive atrevimento de rcpre- hender j nem zombar de quem me nao offende. ChevaL NiíTo naõ deve cahir peíTca bem nafcida. Ba- 6 KecreaçaS Tilofofca ^aron. Mas calií« Vós ; porque nao cef* iais de me reprehender , e motejar na íiiinh^ lleligiaó com miJ ironias, chif- res , ediíparates , com que Vós ( fem eu vos provocar ) me quereis abalar í]pe ppuios elTepciaes da minha Crença \ e ifto quando nem o meu íçxo , nem a íBÍnha idade me permitrem os eftudos , que me feriao preciíbg para vos ref» ponder com prudência em pontos taq f íT^nciaes. Dizei-mç, Chevalier, fe quan^ do çá vem o voíTo filho mais velho , quç Vos inítruis na Geografia , e no riíço , eu lhe diíTerfe; Ora meu meni- '^ no, deivçe-fe diíío , porque muitas Car-^ tas Geográficas eftao erradas ; os pi- lotos todos os dias aç eítaô cmendan-» do \ ç çireg baluartes , e reveiins , &Ct íaÕ já antigualhas ; hojç nao íe dao ^taçjues em praças ^ he melhor com a gente da guarnição dar huma batalha cm campo razo , &c. e dilleíle ou- tro? defpropofitos fimilhantçs ^ que di* rieis Vós çm o fabendo ? Çh^V^h Teria grande difliculdade em çrçr I que Vós tiveíFeis tido tamanha impuídçncia y porque a mim he quç pertence educar meu filho ; e efla ap-» plíÇçifa^i e çnfino lhe he iummamen^ te Tarãe primeira* 7 te útil , feja ou naô mais útil dar ba- talhas do que aííalros : para a inílruc- çao de meu filho illo he couía elcu- lada , e o que eu lhe enfino , he mui precifo. Bnron. Ora voltai agora contra Vós a voiía repofta. Que me dizeis Thcodo- íio ? Naó tenho eu razaô de me quei- • xar deíle Cavalheiro , que naó perde - í occaíiaó de me tocar neíla matéria , ri- diculizando a minha crença , c iílo por • me fazer obíequio ? Dizei-me Che- vaiier : fe eu primeira , e fegunda vez , e muitas mais ridiculizaíTe na voífa fa- ce os voílos veftidos , os voíTos mo- dos de fallar , os voíTos Pais , ôcc. di- ríeis que eu era mal educada , e que naó fabia civilidade. Porém Vos nao ridiculizais os meus modos , mas lim a minha Religião, a minha Fé , os meus cofcumes , os meus fentimentos de piedade : e iflb a cada paíTo. Ora concordai-me iílo com as leis da civi- lidade 5 e do decoro , que fe deve a quem vos naÓ oífende , nem vos per- tence 5 nem vos pede confelho. Mais eftimo cu a minha Religião do que as modas , e linguagem , os parentes ; e Vós credes que me fazeis óbfequio em 8 Recreação Filofqfica em me oírcnder no que tanto pc- zo ; até a chegar a lifongearme com iivros peíTimos. Çheval, Como fois Senhora de jiiizo , parece-me que deíejarieis ver livros exceJlentes , em ordem a conhecer a verdade. Baron, Mas nunca me trouxeftes livro algum a favor da minha Rçligiaô. Bra- vo modo de querer coniiccer a verda- de em matéria importante : lêr tudo contra, e nada a favor. Ora dizei, Che- valier. Tendes lido muitos livros a fa- vor da minha , e voíTa Religião ? Di- zei-me , quacs leíles ? nomeai-mos. ChevaL Nao faJtao livros a favor : eíTes como nao faô raros , nem efcritos com tanta eloquência , nao metem appetite. Baro»^ Mas fempre temos , que para bem conhecer a verdade ncíla matéria le- des tudo contra , c nada a favor. E quereis que eu caia na mefma injufti- ça ? Se foíTe em Vós zelo da verda- de , havieis de ler huns , e outros , e todos com attençaõ , e nao vos fiar de Vós , mas coníultar quem foubeíle ler . os livros , e enrendelIo$ bem. Cheval, Eu entendo bem o Francez ; nao preciío y que ninguém mos explique. Ba- Tarde primeira, ?y 9 Baron. E porque bulcaftes Vós quem vos explicaíle a Álgebra , Arithmetica , a Geometria, tkc. ? Acafo naô íabieis enraó o Francez ? Para eílas Iciencias .buícaftes Meftres , naõ vos fiaftcs de Vós j e para a iciencia da alma , de Deos , e da eternidade , nao he pre- ciío que vos digaò nada ! qualquer li- vro contra lie o voíío Meílre. Mas dizei-me ; e porque razaó íó ledes os livros que fao contra ? ChevdL Os mais naõ fe podem fuppor- tar : faõ iníipidos. Baron, E fe es livros inlTpidos tiverem a verdade 5 e os lindos livros enfei- tarem a mentira , ficais Vós com o lin^ do erro metido na cebeça , e da ver- dade naõ fabcis nada. Refpondei-me a ifto. Mas já lie muito diiputar pa- ra mulher. Lá vos entrego a queftao a Vós , Theodofioi advogai a minha caufa 5 que eu quoro , que cíle Senhor, ou confelTe aqui , que tem errado a meu refpeito , e que me tem ofFendi- do : ou que me convença ( fe pôde ) a favor da fua caufa. Theod, Boa caufa me deixais na mao : eu nao poderni tratallacom o fogo^e ener- gia 5 com que Vós o rendes feito : po- rém. IO Recreação Filofofica rém fe o Senhor Sansfond me der li- cença , eu accrefcenrarei algumas re- flexões : Vós íupponho que dareis li- cença ? ChevaL Como eu diga as minhas razoes , naõ poílb prohibir , que cada qual di- ga também as luas. Theod, Eu vejo que o modo , com que hoje he moda , e coftume de fallar nas matérias de Religião , e decidir nel- las , he bem eíiranho , e naó fei fe conforme á Razão. ChevaL Sc me fallais em fer conforme á Ra!ZaÕ cílais perdido ; porque em ne- nhum fcculo íe difcorreo mais confor- memente á Razão do que agora : Vós outros 5 que credes tudo quanto vos en finarão , he que tendes a Razaô , como dizem , metida na algibeira , fem vos fervirdes jamais delia. Se Vós fois homem que figa a Boa Razaõ ^ cu vos promeito que ficaremos bem concordes ; e entrarei por eíTe modo na amizade de Mademoifelle a Baro- neza. Baron. Qiiero-vos ouvir : fallai Theo- dofio , e no fim veremos fe o Senhor Sansfond concorda comvofco. Theod, Dizei-me amigo. He conforme á Boa- Tarde primeira, ii Boa Razaô dirputar , e decidir em proporções de linhas , medição de al- turas , ou diílancias inacceíTiveis quem nunca eftudaíTe Icriamente Geometria ? Poniiamos efte caio. Eílais Vós , quç pelo que me dizem , fois inílgne Ma^^ thematico , e fabeis da Taftica como poucos ( eftais , digo , em huma me* za bem guamecida de Madamas , e dç pratos j e no meio do ferviço da me* za entre ditos galantes , e licores , que alegrão os ânimos , e fazem rir a com* panhia ^ íc trata de que tiraô no* vos Mappas da França , e para iíío medem diílancias a que nós nao po* demos chegar , nem a pé , nem a ca* vallo: ou também que trarão de abrir novas eftradas , e diípor huma eftra* da , que vai de cá , de forma que aber* to hum monte , que le encontre , e cor* refponda a outra eftrada , que vem de iá , ou coufas fimilhantes : nenhum dos convidados he Geómetra de pro- fiíTaÔ ; mas alguns por aqui , e por alli Jerao os princípios dos Elementos ; mas nenhum íobre o Terreno refolveo o menor problema , nem talvez fobre o papel, Supponde , digo , que ouvis fallar de pane a parte íbbre a maté- ria , 12 Recreação TilofoficA ria , rir , e chafqiiear dos que lá andao pendurados das altas Torres , ou eníor cados nas arvores mais elevadas com os feus óculos 5 para formar os grandes trianguiíís vifuaes , que eníina a Tri- gonometria : que ouviries Vós neftas razões ? e que dirieis ? ChevaL Ouviria mil diíparátes , porque iíTo he forçofo que digao peíToas , que nunca eítudaraò fériamente huma ma- téria ; eípecialmente íèndo a matéria delicada , como fao os Problemas da Trigonometria. Baron. NiíTo tendes bem razaô , Mr. Sajisfojtd \ porque alguma rez que eu vi -a meus Irmíios ellarem no meu Jar- dim 5 e tomarem por em preza faber quanto diftava hum moinho diílante de certo cafal também diftante ^ e que depois feitas as averiguações , acha- vaó que tinhaÕ acertado , ficava eu paf- mada , como le tivcíTem defcoberto al- ga m ícgredo da Magica* O mefmo me acontecia quando tomavao por aíTump- to das fuás contendas o incdir cá de- baixo a altura de Torres coníidcraveis ; e difputando o BaraÒ com o Cheva- iier icu Irmão fobrc braça mais , bra- ça menos , vi que depois a medida naõ Tarde primeira.» 13 iia6 fe aíFaftava dos cálculos de am- bos , fenaÒ em poncos palmos. ChevaL A quem naô eítada a Trigono- metria parece iíTo impoííivel. Baron. Mais impoílivel me parecia to- marem a em preza de calcular o pezo da Eftatua de bronze de Luiz XIV. qje eftá na Praça de Pau no Bearn , e Ibmente errarão em menos de hu- ma arroba , achando-íe depois na con- ta que mandara o Artifice o pezo ver- dadeiro 5 que ella tinha. ChevaL Na Geometria fe eníina iíTo quando íc trata da medição dos ío^ lidos. Theod, Ora quem nada difto tiver eftu- dado a fundo , como poderá fallar ^ rir j e fentenciar fem dizer mil difpa- rates ? Pois o mefmo digo dos que fal- laó , e decidem , e zombaô em maté- rias de Religião , fem ter eftudado ef- tes pontos fundamentalmente. Que me dizeis amigo ? ChevaL Quem falia niífo he porque tem lido , e eftudado eífe ponto. Theod, E quando ? e como ? e por on- de ? Oh amigo , nós conhecemos-nos. A maior parte dos que fallaó nefte ponto j Q^Ò lem , e talyez nem tem em 14 Recreação Filofofica, em fua cafa hum io livro a favor dá noíTa Religião : apoftemos cem luizcs< E ítí lhes perguntarem pelos motivos á'x noíFa Credibilidade , ifto he , que fazem os noílbs Dogmas criveis , e ra- cionaveis , nada refpondem. lílo hei aílim. Digo mais , que fe lhes pergun- tarem bem o fentido das verdades ^ que cremos 5 poucos lho os que naô fe hajaó de embaraçar nas reípoítas. Nos argumentos que formão contra nós 5 € nas Ironias engraçadas , com que nos atacaô , fe vè que toda afuaTheolo* gia he íliperficial , e errada. Dlzei-mej porque naô eíludaftes Vós a Mathema- tica deíTe modo ? aqui hum bocado , acolá ourro ? e fem reflexão ? Eibn- do a rir j e a beber , e a zombar , fo- prando entre tanto as paixões ^ que perturbaó o coração , e depois delle o entendimento , que cafta de acerta pode haver ? Qual he o Negociante g que admitte , o ajudar contas , e fazer cálculos de câmbios , citando á meza , ou com boa companhia ? Ou depois de hum jantar largo , em que fe pro- varão bons vinhos , ou em quanto o Cabelleireiro o penteia ? Haverá Nego- ciante aílim ? Chg^ 'Tarde primeira. i; ChevaL Só fe for doido , ou quizer per- der o feu dinheiro de propofito : de- pois de jantar ninguém ajufta contas ; c matérias de diniiciro naÒ íaò para tratar com leveza, c fem attençao. Theod. Aíiim he ; lá no Efcritorio ci- tando tudo calado , com os papeis á vifta 3 a cabeça defcmpoada , os âni- mos focegados , he que fe ajuílaó con- tradtos , negociações , e contas ; por- que iílo he íobre fazendas , e dinheiro. Agora cá em matérias de Religião , cm que de huma parte ha Deos ^ a fua Pro- videncia 5 e Atrributos , da outra a nof- fa alma , que naò he de barro , e a Eter- nidade futura , que nos pode fcr mui rantajofa , ou mui prejudicial , tudo iíTo he bagatela ; pódc-le mui bem tra- tar cíTa matéria entre prato , e prato; póde-fe bem difcorrer fem perigo \ e o difcurfo mais galante , e engraçado fe^ rá o mais verdadeiro. He eíle o modo , que a Boa RazaÕ didta para fc averi- guar a verdade neílas matérias ? ChevaL Ainda que eíTas matérias lejaá altas , os principios fao claros , e ma- nifeftos ; qualquer pcíToa , e çm qual- quer circunílancia os conhece, e pode fallar fem embaraço. Jheod, i6 Recreação Ttíofojica Theod, Qiie dizeis , amigo ? Que prííi- cipios mais claros , e manife^^s , que os da Geometria , e Arithm^^tica ? to- dos fabem medir , e contar ; e daqui nalcem todas cíTas fcieocias. Que cou- fa mais clara, e fimples, que com- prar por menos , e vender por mais ? e aqui eftá toda a bafe do Commer- cio j e com tudo ninguém fe fia dos diícuríos , c reíbluçòes tomadas aíTim de paíTagem , e no ar ; mas refolvem neíTa matéria depois de muita refle- xão , e focego. E porque nao ha de fer aíTim a Religião ? Quero-vos con- tar o que me fuccedeo com Mr. H **** Convidara-me elle a jantar , e tinha boa meza , e melhor companhia ; e quando todos eftavao bem alegres , fe introduzio a converfaçaõ fobre a Religião. Era o ponto : íe a Deos fe devia dar culto externo , ou fe bailava o interior , e occulto. A maior parte dos convidados para fc fazerem valer co- mo homens de juizo delicado , diziaô que nao era prccilo : porque ( penfaa elles ) he ter juizo fuperior , o na5 difcorrer como o commum. Ferviaa os difparates , e os pratos : hum me perguntava daqui fe queria defte gui- Tarde primeira. * if zado , outro me oíFerceia do ou tf o : o Criado pelas coílas da cadeira ini^ trazia de beber ; era preciío íaudaf a quem me íaudava , mas he huma verdade fecca , magra , e defcarnida \ e além diíTo a alma vai em procura delia por hum cami- nho duro , árido , deferco , onde nao fe encontra nem huma íombra , que a refrefque , nem arvoredo que a re- cree , nem os alegres paíTarinhos , que nos entretenhaó : a pê vai a al- ma , íuando , c trepando por caminho efcabroío , e fó no íim hc que fe con- foia do trabalho : e daqui vem que por mil apaixonados das Beilas Le- tras 3 achareis dois , ou três que fe entreguem ás Maihematicas. Os Rhe- toricos porém nos propõem a Ver- dade taô beila , taó formofa , e en- feitada , que a alma encantada com tan- tas beliezas da Natureza , e da Arte, que a cada paíTo encontra , nau fen- t.e no caminho o menor trabalho , elevada na harmoniofa fuavidade , com que a conduzem, lem ter duvida na eílrada , nem diíEculdade nos paíTos. A poder fer , meu Xheodofio , eu pre- firo o eílilo ameno , c^ue hoje todds preferem ; nçiii ' hoje ie lem os ou- tros 30 Recreação Filofoftca tros livros. EUes feraõ muito doutos, e fcicntiíicos , mas eu os vejo cober- tos de pó 5 e comidos do caruncho , quando caiuaimente topo com algum nellas ethnres , em que fe naô bóie. Barão, Saõ goítos , minha Irm.í , fao goílos : eu naô me atrevo a condem*- nar o voíTo , que também he meu j mas nao concordo na preferencia , que me parece injuíla ; e para vos con- vencer com a voíla mefma metáfo- ra , dizei-me a quem dais Vos a pre- ferencia em matéria de formo fura y a huma Senhora bem toucada , e cheia de carmim ; coberta de flores , e de fi- ras , e diamantes, com roupas pom- pofas ^ e ricas , em fim tudo o que he formoÍLira empreitada ; ou a huma fim- ples Paftora , a quem a Natureza fez beila , que lavada na fonte , fahe ri- fonlia , e vermelha ,que com hum fim- pies lenço de neve , lançado com ne- gligencia , parte fobre a cabeça , par- te iòbreo peito , deixa ver , e encobre o louro cabello , que fem pós , nem enfeite algum , folto lhe cahe com gra- ça fobre a garganta mui alva : e que no colete ajuftado deixa ver a bei- la figura , e graça natural do feu cor- po ? Tarde fegu nda , 3 x po ? A cjuem vos inclinaríeis Vós para lhe dar a preferencia cm formo- lura ? Baron, Sem duvida , que á Paftora j por- que nós com os enfeites encobrimos muiros defeitos da Natureza ^ e a for- mofura das Camponezas lie a ver- dade pura. Barão. Pois allim faço eu com a belle- - za da Verdade : nos ornatos da Elo^ quencia ha muita trapaça ; goílo mais de huma Demonftraçao fecca. Baron. AíFim he , meu Irmaô ^ mas fe eíTa Paftora taõ bella por Natureza tiver os enfeites do luxo 5 fempre a fua formofurá ha de realçar. Eu na6 digo que havemos de preferir a huma bella Paftora hum mono enfeitado ; mas tanto por tanro os enfeites fem- pre dao maior valor ás prendas da Natureza. Se Vós , Barão , vos pondes a declamar contra os enfeites das Se- nhoras 5 coitadinho de Vós , nao fe- reis recebido nas fuás Aííembieas. Acudi-nos , Theodoílo ; eu eftou pe- jo voílo voto : Sede Juiz arbitro ncf- ta grande pendência. Baraõ, Também concordo no que Vós julgardes : decidi Theodofio. Tkod. 3^ Re&eaçaõ Filofqfica Theod, Ora dizei-me , Baroneza : Quan- do Vós ajuítais contas com os voílbs rendeiros de Armendariz , ou quando dais conta a Mr, Darquibel à,2i% voft las moleílias , ou quando fazeis a Mr. la Bord as voíTas encoinendas de Pa- riz , porque naô uíais das bellezas da Eloquência , e ornatos poéticos , que tanto prezais ? Vós rides ! Baro77, Muita malicia tendes, Theodofio , mas eu refpondo que em niateria.de fáude , e de dinheiro , fao as bellezas ■ da Rhctorica efcufadas : neílas maté- rias íe bufca o fólido , e naô o bo- nito. ^hcod. Eu accrefcento , que neíTas ma-» terias , que perguntei , as bellezas da Eloquência eii:udada,as figuras daRhe- torica , as gradas , os chiíles , , as perguntas enérgicas faõ politivamente nocivas \ porque daó muita occafiao a que fe iníinue a mentira com ap- parencia de verdade. Se a hum Me- dico falIaíTeis com o enthufiafmo poe-^ tico , quando lhe déffeis conta de vof- fas queixas , por hum íiato , ou ligei* ro defluxo , vos encaixava remédios : violentos ^ como fe eíliveíTeis para e.a^ hir na cova. Se hum Negociante re- cè- I Tarde fegunãa, ' 3J cebendo cartas do feu correfpondente , viile que lhe falia va com mil íiguraj G metáforas para lhe dar conta das re- meilas , e encomendas , e que dava a cada encomenda mil engraçado? epiceclos ; que em vez de fallar em cacáo , ferro , e lã ^ dizia : O Ne- óiar dos Hefpanhoes , o Inftrumento de Marte , a Gala das Ovelhas , c^r. que faria eíle Negociante ? Pondo tu- do iíib de parte como coufa ridicula, lhe pediria huma conta em eítilo cla- ro , íimples , e commum. Baron, E tinha razão ^ porque nem tu- do o que he bom , he bom para tu- do, Theod. DiíTelles a verdadeira razão : eu gofto muito das bellezas da Eloquên- cia j e faó muito e muito eílimaveis ; mas para contas de negocio , e de Mé- dicos, &c. faõ poíitivamente nocivas pe- lo perigo que^ ha de fe disfarçar ahi o erro, Atraz do Encanto vai o En- gano ; e quem vos quer enganar, fem- pre começa por vos attrahir , e ( fe po- der fazeiio ) embriagar. Nao confundamos o fólido com o engraçado , ou bonito ; tudo he bom , e tudo tem feus ufos ; fe vos quereis Tom. IX. C di- j4 Recreação Filofojica divertir , e paíTar huma hora de re- creio , lem íahirdes de cafa j bufcai hum livro engraçado : mas fe vos ijuereis inftruir ^ bufcai hum livro/c?- iído. Quando vos divertis , faó lindos os Poetas , e todos aquelles livros , que inifturando hum ar jocofo , e mordaz com razoes apparentes , vos levaó a alma fem fe fentir para onde elles que- rerti : mas quando vos inftruis , buf- cai os que tratao a matéria em eftilo claro , fingelo , e lizo. Confentin-me eí- ta comparação : No volfo palácio no- vo 5 que voíTa Mai anda edificando , bem vedes que manda fazer nas falas ricos pavimentos , e excellentes té- dios : mas os pavimentos faò fólidos de boas madeiras , e os tédios de ef- tuque : os pavimentos faò lizos , os teélos com muitos relevos : e tudo fi- ca bom ; porque os pavimentos fa6 para andar , os tédios fó para ver. Ora trocai tudo , e ponde o chaó de edu- que com mil figuras le vantadas , de meio relevo , e ponde os tedtos de madeiras fólidjis , e lizas , como fica- ria tudo ? Baroíi, Na6 poíTo conter o rizo defle defpropofito, e troca : tudo era bom, mas Tarde fegunda. 35* mas foca dos feus lugares tudo era ridículo , e máo* Theod, Pois iíTo faz quem para fe inf- truir em matérias importantes buíca o eftiio engraçado , e deixa o íimpies* A matéria da Religião he a baze , e como o pavimento , fobre o qual fe haô de dar os pailos da voíTa alma , de- ve fer eíle pavimento fólido , e lizo , para nao tropeçar , e cahir a cada palío. Baro7t. Eílou nerfuadida : mas dizeime Vós , que havemos de fazer de tan- tos bellos livros , que trataó da Re- ligião com hum eílilo encantador ? Só porque faó bemefcritos , havemos de crer , que fempre mentem ? Sei que podem mentir ; iíTo confeílb eu j mas / também podem fallar verdade j e fe o que dizem , nao o he , ao menos tem grande apparencia de o fer, Theod, Eu vos refpondo \ mas deixaime fazer huma pergunta ao Baraõ. Dizei- me amigo. Se vos vierem vender hu- ma boa faca para montar ^ e vos fer- vir no vofío Regimento de Carabinei- ros 5 fe vo-la trouxerem muito enfei-, tada i com bellos arnezes , mantas , e xareis , e redes , e tudo o mais , por ventura haveis de compralla fem a man- C ii dar '3 6 Recreação Filofofica dar defappareliiar de todos eíTes enfeí* les, para a ver nua , e conliecer então a fua figura , e certificar-vos de quê naó tinha defeito ? Por cerro que naô deixareis de fazer eíla diligencia pre- cifa para naõ fer enganado : ilto he no cafo , que quizeíTeis comprar a fa- ca : porém fe fó vos quizeíTeis divertir de a ver paffear , ou brincar , naò fa- tieis eíía diligencia ; porque aílim en- feitada vos liíbngeava mais os ollios. Pois o mcfmo digo , Baroneza, dos bel- ; los livros , em que me fallais. Se vos .^ quereis divertir, lede-os como eftiio. Se vos quereis fervir delles para vos : inftruir fólidamente, mandai-os defap- ' parelhar de tudo o que he enfeite , e ornato , para ver o difcurfo em oíTo , uú , íímples 5 e claro ; e entaô vereis , fe he fóíido , e perfeito , ou fe he manco , e aleijado. Quereis Vós hu- ina prova bem clara do que digo ? Ora mandai-me vir o Poema de Mr. Voltaire fobre a Religião natural de- dicado a ElRei da Prullia. Ba'^^0, Eu o vou bufcar. ^hsod. Vós vereis , Baroneza , hum dif- curfo bem aleijado , fe o virmos nu , e fem ornatos 5 mas bem formofo , quan- Tarde fegujída. 37 quando fe vê com elles , como Vol- taire o aprefenra. Bar ao. Aqui o tendes. "jheod. Ora fazeime o favor de ler aqui no fim do fegundo Canto , onde quer provar , que luppofto Deos darás Leis aos homens , que naó devem eftes re- ceber ordens de mais ninguém. 'Barão. Eu leio. Teremos nós nas nojfas fracas cabeças a audácia de accref- centar os noffos decretos ás fuás Leis immortaes ? Ah , e quem fomos nós fi- guras de Jonho , cujo fer impercepti- vel he vijinho do Nada ? Quem fomos vós para homhrear com o Omnipoten- te ^ e dar , também como fe fojfemos Deofes , noffas ordens d Terra t (*) Theod, Quem fe naô íente abalado com efte vehemente difcurfo ? Ora tiremos todo o enfeite , toda a roupagem def- ta figura \ vejamo-la , como em fi he , e entaõ julgaremos ^ fe he difcurío di- rei- (*^ Aurons nous Tauciace en nos foibles ccr- velles , d'ajoiiter nos decrets a fes loix imnor- telles ? Helas ! Seroit-ce a nous Phantómes dun nioment ( dont 1' etre imperccptible eíl: voifint lu neant de nous niettre a cote du Maitre du To- nerie ) 3c de donner en Picux des ordrcs a la Terre ? 9 8 Recreação Filofofica reito , e bem formado , ou argumen- to corcovado , e monftruoíb : tudo fe reduz a efte diícurfo. Deos põem preceitos aos homens : Nós n ao d eivemos fazer o que Deos/az^: Logo naÕ de^vemos por preceitos a homem algum, Tomara eu que os criadosj de Vol- taire , que o naõ podiaô foffrer , ou a fua pobre Sobrinha , que foi Martyr com elle , tomara que fe ajuftaffcm a refponder-lhe no raefmo tom. Nós cd temos a Lei que Deos nos foz \ e que vindes Vós agora , Vós ji* gurlnha de nada , accrefcentar as vop^ /as ordens as que Devs nos tem pof- to 5 como fe foffeis outro Deos como elle. Que diria Mr. de Voltaire na fua cólera defefperada ? Naò havia de approvar a doutrina , nem achar o dif- curío concludente. Por quanto que im- porta que Deos tenha poílo preceitos aos homens ? lílb naõ prohibe , que cu lhes mande fazer alguma coufa. Contra o que Deos manda , iíTo naó ; mas outra coufa difFerente , iflb naÕ hehombrear com Deos , he confcrvar elTa mefma Jerarquia , que Deos poz. Por vçfltura naó manda Deos pela Lei da Tarde primeira. 39 da Boa Razaô , que hum Pai governe feu filho menor ? Naó manda que quem fe ajuíla a fervir por paga , ou qualquer outro contraíto , execute o que prometteo ? Logo mandar o Pai a feu filho menor , mandar o Amo o feu criado , naó he irritar a Deos , hombreando com elle , como fe nós foffemos Deofes ; mas he fazer huma coufa louvável ^ que concorda com o que Deos manda. Baron, Aquella razaó , que Voltaire dá: nós nao devemos jazer o que Deos faz ; para mim he faJUíTima ; aliás diría- mos : Deos faz bem aos homens , logo eu naõ devo fazer bem aos honuns , que ijfo feria hombrear com o Omni- potente 5 e fazer como elle faz. Ora eu quero agora por traveflura enfeitar eíte abiurdo , que hum homem naõ ha de dar efmola a outro homtm , e me íervirei das meímas frazes., e expref- sóes de Voltaire. Vede íe o imiro , e fe faço parecer bel la eíla monítruofa propoliçaó. Quem terá o atrevimento na fua louca cabeça , de querer lançar fbre as dadivas de hum Deos os feus ri^ dicu/os Dons ? Será acafo o homem ? ejfa 40 Recreação Filofójica ^Sfa Jigura quafi de fonho ^ que appa- ). tece %yn hum momento , e logo dejãp^ . parece ? O homem que ejid hum juro acima do Nada ? EJie pequenino Jer imperceptível oufard a hoynbrear com o Todo Poderofo , emendar tís fuás fal'^ tas , e querer fazer a figura de Deos ^ repartindo tambern [eus jaz ores com os Jilhos do AltiJJimo 4 como fe naÔ ti" . 'uefftm Pai que os f ti flent afife j e ifio mandando-lhes De os que recorra õ a elle , como a fieu Pai verdadeiro ? Que vos parece , Baraô , o irieu difcurío blasfemo ? Baron. Eu naõ vi defpropofito mais bo- i nito , nem diíparate mais bem maf- carado; Theod, Vós , Baroneza , tomaftcs bem o eílilo , e imiraftes a trazc. Baron, Na6 , c]ue eu tinha o livro de Voltaire na maò , para ir feguindo to- das as fuás frazes , e imitar as figu- ras. Se he atrevimento dar preceitos ao homem , porque Deos lhe tem da- do preceitos , também he atrevimen- to dar- prcfentes ao homem, a quem Deos tem dado preíentes. Aqui a fal- íidade íalta aos olhes. Nunca cuidei , 'I heodoíio , que a mentira lè podelíe maícarar taô bem. thecd. Tarde feguiula, 41 Theod, Pois eílimo que conliejais o pe- rigo do engano nos livros que eílao eícriíos com muita eloquência, e arte. Baron, Mas emfim , Theodofio , dizei- me como hei de fazer com eílcs li- vros ? Theod, Naô os ler fem primeiro ter li- do feriamente os livres a favor da voíla crença; porque fem Vós eftar- des armada com o conhecimento da verdade , nao podereis fufpeitar que haja nos outros livros mentira : eílan- do pois bem inllruida na verdade , quando vos atracarem com os 'livros encantadores dos Incrédulos , feparai tudo o que hc flores , c figuras , e metáforas , e ponde o difcurío nu , e críi , dizei : EÍle homem diz iílo por eíla razão , e vereis que em lugar de difcurfos belliffimos na apparencia vos fahem fofifmas bem corcovados. BaraÕ, Mas tamíbem havemos de fazer o mefmo aos outros livros a favor óa, Religião ; pois deve haver igual partido. Thfõd, Sem dúvida : nem niíTo tereis muito trabalho ; porque os noíTos li- vros de inílrucçao fao em eílilo íim- pies, e folido. Eíla he outra circunf- tan- 42 Recreação Filofojica tancia , que achareis , meu Baraô ; os livros a favor da Religião faõ ferios , folidos 5 e íeccos. Oa livros contra cila eílaô cheios de mil inveílivas , flores 5 e imagens as mais bellas j e eíTcs faó os que nos fazem mais guer- ra ; e naô he m.uíto que o povo , que naõ he mui deftro na arte de difcor- rer , fe deixe enganar. BaraS, Ainda tu acho outra deígraça-» da vantagem nos livros máos , e he, que eítes perfuadem huma Doutrina , . que liíongca o coração , e as pai- xões , e a noíTa Religião as cohibe. Ora he natural goftar eu muito de quem me falia ao paladar do meu coração, e com a fraze encantadora ; e iílo quan- do os livros da noíla Religião , que me perfuadem a reprimiras paixões, nao filó regularmente naquclk cftilo encantador , que nós achamos nos Co- rifeos dos Incrédulos. Thcod, Também por cíTe modo vedes Vós que o fequito , que tem eíTa trif- ic , e defgraçada doutrina , naÔ he por força de verdade que fe conheça ; mas fmi por força de liberdade , que fe favo- rece. Baron, Eflim.o cíTe voíTodifcurfo : eu me acau- Tarde fegmida. 43 atautelarei daqui por diante : hei de fazer neftcs Jivros o que me eníinava o meu Meílre de debuxo. Elle me di- zia, que quando viíTe algum debuxo, ou pintura , para examinar o ícu me- recimento traçaíTe com os olhos eíTa figura nua , preícindindo da roupagem, com que eftiveíTe ornada. Ora o cafo he que muitas vezes achava grandes defeitos em debuxos muito applaudidcs pelo povo j porque achava hum bra- ço muito maior que o outro ; huma coxa monílruofa ^ hum pé que hia ap- parecer onde a periía naó podia che- gar , fuppofto o lugar do joelho , &c. Aílim hei de fazer nos livros ; hei de ler menos , mas hei de acertar mais. Vamos a paíTcio , Thcodofio^ antes que venhaõ viíitas , que nos incommo- dem. ^heõd. Vamos Baraõ : eu citou promp- to. TÁR- 44 Recreação íilofqfíca ■■■MHIHBBB ■Hna^MMi MaaMaMaMB HII^BMHBBna ■■■■■■■■ ■MHMHMHI MMIHMnHM TARDE III. Dialogo fohre a Exijlencia de De os. Baron, "T^T Ao vos poíTo ponderar,ineu X^ Theodoíio,a admiração que me fez hontem em huma certa aííem- blea hum noíío amigo que eu naõ no-» ineio. ElJe fallou da Religião com tal • liberdade, foltura , c defcmpeno , que - me pafmei y porque até duvidava em / certo modo da Exiílencia de Deos. Eu . ( dizia ejie) íempre creio que ha hum Dcos ; mas ainda allim ; tomara que ^. ino provariem , e que me convenccf- -rfem ; porque nefte ponto nem todos os difcurfos me agradao. ÍTy^^fi/i. Tomarão e]les poder achar mo- do para duvidar íe havia hum Deos , porque entaò ( poftas as fuás paixões em pleníílima liberdade ) triunfavaó de tudo o que as podeíle embaraçar. Baron, Dizeis bem , Theodoíio , que ho- je o empenho todo he o íiílema da pJe- niíTima liberdade nos coílumes ) por auanto vejo que todos os íreios fe -4Á\ que- Tarde terceira. 45* quebrao. Eu que naô íci mais do que o que ouço a certos íujeitos^que íe pre- zaõ de entendidos , vou cá fazendo minhas reflexões ; e acho que hoje o geral empenho he a íoitura , o def- embaraço da mais ligeira paixaÕ. Do Evangelho iíío já íe íabe que fc zom- ba; das leis da Igreja com muito maior oufadia ; das leis poíitivas também ; naò querem que haja mais que a lei natural j mas eíTa cada qual he quem a ha de entender como quizer ^ por- que o cérebro de cada hum he o Có- digo deíla Lei , como todos fabem. As leis do Pudor , e Decência já naó va- lem. As da boa criação iflo he ridi- cularia. Já os filhos naô tem nada com feus Pais 5 nem os Pais com os filhos ; nem as mulheres devem fidelidade aos maridos , nem eftes a luas mulheres , que iflo he jarretice : em fim, meu Theodofio , lei de cafta nenhuma, nem a Deos ; porque já ouvi , ( e naÓ mo- ra longe de nós quem o dizia ) que Deos naó tem nada comnofco ; que tanto le lhe dá de nós , como nos das formigas ! Pelo que , tirada elTa crença de que ha hum Deos , fica todo o cam- po liyre para cada qual fazer tudo o que y^6 Recreação íllofofica que quizer, que a iílb iie que fe cn* caminha efta moda. Theod, Efle íujeito nao he hum , cujo nome principia pór H , e ceou com- jiofco ha coufa de quinze dias? Vós furrides ? Eu já o tenho ouvido fal- lar de modo que a fua Religião parece- me de Atheo : ao menos na praxe vi- ve como fe o foíTe. Baron, Naó vos enganais : havia de ha- ver agora algum encontro : Deos o traga. ^heod. Nao he iffo o melhor , porque podemo-nos efquentar na difputa , e quando cobra demaíiado calor o ani- mo , nao fe difcorre com muito acer- to : he melhor difcorrermos aqui em paz , e forcejardes Vós a ver fe fe pôde dar fahida aos argumentos que eu fizer \ pois Vós já ^beis como fe difputa. Baron. Seja aíFim \ porque até eu deíTe modo tomo mais o pezo aos argu- mentos. Supponde , Theodofio , que eu nego que haja Deos , ou pelo menos que duvido. Creio o que vejo, e nao creio mais nada. Supponhamos ifto : ponho-me bem obílinada , e teimofa. Theod. Vós, Senhora, nao duvidais do que vedes ? Ba^ T['arde terceira. 47 Baron. Nao. Theod. Bem eílá ; logo credes que Vós mefma exiftís ? Baron, Creio , fim : eu exifto. Theod, E alguém vos deu o fer ? Baron. Sem duvida : foraó meus Pais. Theod, E elles de alguém receberão o fer , e feu3 Pais de outrem , é final- mente havemos de ir parar ao pri- meiro homem : e temos que houve hum homem primeiro. Baron, Algum o havia de fer : e que tirais dahi ? Theod, EíTe homem ^ que foi o primeira na ferie de homens , de alguém rece- beo o ler; foíTe o que folfe ; porque elle nao podia formar-fe a íi mefmo. Ora eíTa coufa , que deu o fer ao pri- meiro homem , exiília ; e ou ella te- ve exiftencia de fi própria , c então lhe chamarei Deos ; ou teve exiften- cia de oucra couía que a produziíTe ; e deíTa coufa faço outra vez a mef- ma pergunta , até darmos com huma coufa que tenha exiftencia , e nao a recebefle de ninguém ; e eíTa coufa que tem exiftencia em í\ 5 fem que a recebeíle d^e outra coufa , he que eu chamo Deçs verdadeiro : logo o Deos %Í Recreação Filofofica "cerããdetro exifle ? Qiie refpondeis ? Baron, Bem quizera reiponder para fuf- tentar o meu papel , mas naô k.i ; por- que conheqo que tudo quanto, poífa dizer 5 he hum defpro|)oíito , e naó os- poíío dizer com advertência. Theod. Tudo fe reíumc em que nenhu^ ma creatura limitada pôde ter de íi mefma a fua exiílencia , e havendo c . de receber de outrem o fer , cila o ha de ter recebido de outra , e aílim í : terá havido huma ferie infinita de cou- fas , e íempre huma antes da que pro- duzio : o que prova ter-fe já paíTado liuma ferie infinita de creaturas. Baron. lílo nao pode fer : ferie infinita já acabada naó pódc fer j que iíTo he contradicçaó manifeíla fer huma coufa infinita , ou fem limite , e ter-fe aca- bado. Th^oã, Mil outras contradicçoes acha- reis nos que quizerem negar a exiílen- cia de Deos. Mas cu vou a formar qu- - tro argumento bem fenfivel. Quem .- diífeíle que hum relógio fe via em huma Illia deferta , e que regulava , muito bem todos os movimentos , e . intentaíTe perfuadir que ninguém o ti- nha levado, alli, e que alli eílaya fem •'vv; que Tarde terceira* 49 que ninguém o pozeíTe ai li , e que niiiguem o tinha fabricado ^ naô o te- riaaios nós por doido ? Baron, Sem dúvida. Theod, Pois naô he mais delicado hum Iníedlo que anda pelo chaô , ou qual- quer animal , do que o Relógio mais complicado ? Os antigos , que imagi- navao ferem os InfeCtos nafcidos da podridão , nunca tinha5 ufado do Mi- crofcopio, nem vifto a admirável de- licadeza de feus órgãos , e nao podiao fentir a força deíle argumento : mas Vós , e todos os que tem viílo com o Microfcopio a inexplicável fabcdoria , . que brilha nellcs , pafmais do que nel- les fe vê , e muito mais do que fe nao vê ; porém fe crê , pois por for- ça o ha de haver : Por quanto fe hum liomem nao pôde mover o braço , ou a perna fem mufculo próprio , fem fucco nerveo que encha o mufculo , fem tendão que fe prenda ao oílo , fem ligamento que áte o tendão ao ofíb ; le o mufculo nao pôde ter ac- ção, fem que tenha mil bexiguinha- , &c. : a pulga , o mofquito , e todos os mais infedlos tem precifaõ da mefma fabrica de órgãos próprios para o mo- Tom. IX. D vi- 50 Recreação Filofojica vimento. Quanto á digeftaó , e modo de íe nutrirem pelo fuítento , nelles ha a meíma áifficuldade que nos ani- inaes grandes , que precilaõ de ello- mago 5 e mais órgãos da nutrição , neceíTitaÔ de huma grande fabrica pa- ra tirarem de todos os alimentos hum fucco com mu m para o converter no feu próprio fuftento , e creícerem os mem- bros , e tomarem força vital , de tudo ifto neceíTitaô ; pois a razaô he a mcfma nos animaes grandes , e nos pequenos \ e ainda eftes caufaô maior admiração pela pequenhez ; fendo mais admirá- vel ver hum relógio do tamanho dos olhos de huma mofca ( fe o houvefle ) do que hum relógio de torre. Baron. A pequenhez he fem duvida que augmenta , e nao diminue a diíficul- dade do mecanifmo. Theod. Logo mais impoíTivel he que hum Infedlo íeja produzido fem caufa in- telligente que o formaííe , do que o mais complicado relógio. Barojí, líío ( quanto a mim) he de fum- ma evidencia , c póde-fe pôr a par das propofiqôes mathematicas , e tao claro como que três , e quatro fazem fete» Porém nós vemos que os? Infeítos com tO' Tarde terceira^ yr toda eíTa fabrica que Vós dizeis , naf- cem pela geração de feus pais : como Jogo fazeis daiii pafíagem para a exif- lencia de iium Deos ? Theod, Vós naó reparaíles no que eu dif- ie : diíTe que os Inleólos pediaô cau- fa inteiligente que os formaíTe : eu naô digo , que eíla caufa inteiligen- te, he para formar eíla formiga que ahi vai andando pelo chaó ; ma? para formar a primeira formiga , da qual as mais todas por gerações regulares procederão. Reparai Baroneza , que ef- te argumento he mais forte do que Vós cuidais. Baron, Expiicai-mo bem. Mas eu finto lá fora o Coronel , de quem ha pou- co vos dizia que o tinha por Atheo. Eu o meto na queftaõ : deixai-me com elle até o intereíTarmos no poitto. Tende paciência com os defpropoíi- tos que ouvirdes , que os diz de boa marca. Coronel. Grande cafo Madama ! Vós fe- chada no Gabinete fó por fó com o voiTo Meftre ! iffo he força de Calcu- la , ou algum Problema geométrico interelíante. Deixai-vos dilfo , Senho- ra : o voífo fexo íó deye applicar-^fe D ii ás yi Recreação Filofofica ás modas , e aos attraftivos da bella idade : deixai para nós os eíludos fec- cos , e melancólicos da Mathematica , porque nos pertencem : fazei-vos ca- da vez mais bella para ganhardes os corações de todos com as graças da Natureza , e da Arte. IBaron. A melhor graça que tenho da Natureza he a reâidaô do meu jui- zo 5 taõ coftumado aos eíludos geo- métricos 5 que naó aturo dilcurfo tor- to ; e parece-me que aííim como a mais bella Dama , e mais ricamente prepa- rada fe tiveíTe a cabeça, torta , perdia Toda a mais graça , quer da Nature- za 5 quer da Arte ; ailim ou feja ho- mem , ou fenhora , fe nao diícorre bem 5 nem dá do feu dito razaó ge- nuína 5 para mim hc peior que ter a cabeça torra. Eu prézo-me mais do meu entendimento, que da minha ca- ra 5 porque a minha alma vai mais que o meu corpo ; e aílim naò vos admi« reis do empenho , com que eu me ap- plico á Geometria ; porque goílo de . jiao abraçar huma verdade , fenaô quando cftou certiíTima que naó abra- ço hum erro mafcarado com boa cara. Nas convvírfações de muipos Cavalhei- ros Tarde terceira. 5'3 ros ouço difcurfos que me parecem de mulheres do campo , ou de crian- ças da rua , fem connexaô , lem fir- meza 5 fem princípios : fallaõ , fallaó , com hum ar , c tom magillral , e na5 dizem nada. Eu calo-me ; mas depois venho para o meu Gabinete , e rio á minha vontade. Coronel, E quantas vezes tereis Vós ri- do de mim ? Baron. Vós me fa liais em confiança ? hei de dizer a verdade , porque huma Geómetra , como Vós me cliamais , naÕ faz cum primemos cm matéria de verdade. Muitas vezes tenho rido ; e já iioje o fiz á cerca da converfaçao de hontem , quando Vós fallaveis em duvida da Exiílencia de Deos. Per- doai-me , que eu naó fei a voíia cren- ça j mas quanto a mim \ hum Atheo he hum homem que naõ difcorre. Coronel. Ora fupponhamos que eu fou A- theo ; que tendes que dizer contra iíTo ? Baron. Como entramos em duelo , eu vcs entrego a lança , Theodoíio ; fois meu Meílre , dilputai , que eu ( meu Ccroncl ) refervo para mim o privi- legio de rir , quando ouvir algum def- pro- k: S4 Recreação Filofofica propofito 5 leja de quem for. Em me iiao toando , rio ; que he a arma de Senhora ; arma ^ que tem fraco defpi- qiie. Coronel. Eu vinha viíitar-vos ; naõ vi- nha para diípura : mas já que Vós mandais , eu ixaó me efcufo do duél- lo 5 que iíTo naô me eftá bem ; naõ vos temo , Theodofio. Tbcod. Nem eu : eftimo que Vós fejais o contendor pela circunftancia que to- dos íabem , que Vós fendo homem cultivado com eftudos da Mathemati- ca 3 fabeis bem a força de huma ver- dade 5 quando he deduzida de outra ; c por nao perder palavras , nem tem- po. Nós fallava-mos na matéria quan- do Vós entraftes , e eu dizia , que a producçaó das creaturas , v. g. dos In- leílos , provava evidentemente a Exif- tencia de hum Deos, Coronel, Ora quero ver iíTo : quero ver como huma formiga ^ que eu meto de- baixo dos pés , me obriga a pôr no Throno dos Ceos hum Ser de fumma perfeição ; em fim hum Deos. Theod. Supponho que Vós fabeis da ad- mirável perfeição , e delicadeza da formiga ^ e que he fuperfluo dizer-vos , que Tarde terceira. 55: queafuaconílrucçaô heinais admirável em certo modo que a do íiomem. Coronel. NiíTo eílou mais inftruido tal- vez do que Vós ; porque tenho hum excellcntiflimo Microícopio. Theod. Bem : logo houve huma caufá intelligente que ideou , e que execu- tou eíle admirável mecanifmo da for- miga. Coronel, Sim : as outras formigas que a geráraõ : he grande cafo ! podeis 5 Se- nhora y IV rindo. Theod. Daqui a pouco, amigo : Mas a primeira formiga quem a formou ? E quem lhe deu poder ( fazei reficxao no que accrcícento ) E quem lhe deu poder para que delia por hum con- curíb d!o íexo fahiíTem novas formigas taõ perfeitas como as primeiras , que fahirao à^s mãos Omiiipotentes ? Fal- Jai com.o homem de bem , e franco, que naó proílitue a Verdade que en- tende á Teima que quer fuílentar ; e reparai bem no que pergunto. Eu pof- fo formar hum relógio ; mas he in- crivelmente mais difficil formiar eu hum relógio , o qual poíTa produzir outros muitos mil relógios , e pofTa dai-lhes habilidade para que elles. pof- faõ 56 Recreação Filofqfica fao fazer outros muitos ; e ifl:o fem que nenhum delles tenha intelligen- cia j nem faiba nada do mecaniímo que elles tem , nem de mecaniímo , que dá a feus filhos ; de forte que tudo feja difpoílo pelo Relojoeiro prim.iti- vo. Naó he iílo infinitamente mais per- feito , e difficil , do que limpleímentc fazer hum relógio. Coronel. Naô fe pôde duvidar : ilTo he iiuma coufa infinitamente mais per- feita. T^heod, Bem eftá : pois eíTe Ser , que for- mou as primeiras formigas , tem tal in- teJiigencia , que naõ *fó lhes deo huma delicadiíTima perfeição de orgaos : mas formou de maneira elTes infedlos , que fem clles terem algum conhecimento do fcu mecanifmo próprio , o foííem dando Pais a F.ilhos , e Filhos a Ne- tos , e Bifnetos , tudo em virtude da primeira conílrucçaõ. Deichai-me oue eu ponha em toda a fua clareza eíle ponto. Se as primeiras formigas tivef- íem tal juizo , e intcUigencia , o^wt el- las comprehendcílem bem todo o feu mecanifmo , já iíTo era muito : mas fe além diíTo cífas formigas podeíTem ter intcUigencia , e habilidade para fjor- mar Tarde terceira. 57 mar outros corpos orgânicos femelhan- tes aos íeus próprios , era muito mais : . e fe além djíío íoubeífem enfinar-lhes como elTes jnieftos produzidos haviao de fazer , e formar outros , quem duvi- da que iílo era miuito mais ; e neíle ca- fo já o primeiro Author da Formiga provaria de grandiílima Inteiligercia , e omnipotente Poder : mas o noíío ca- fo iie muito maior , porque is primei- ras formigas nunca íouberaô da íua in- terior organização , como Vos ( meu ^ amigo ) naõ íabeis , nem Zvíadama , dos efcaninlios admiráveis da voíTa organização , porque naq eíludaíles A- iiatomia. Ora íe eílas formiigas naõ íou- beraô nunca do ítu próprio mecanif- mo interno , com.o o pcdiaó dar por própria intelligencia a íeus filhos ? Po- dia ifto fer ? Coronel, NaÓ. Theod, Logo quando Jha derao pela ge- ração , foi em virtude daquejle Au- tiior primeiro que as fez de modo , que pelo limples concurfo do fexo , fe produziíTem novos corpos orgâni- cos femclhantcs aos primeiro?. Tudo de lá veio 3 porque eu argum.ento aí- lim. Toda a obra bem regulada com de- jS Recreação Filofofica delicadeza , e connexôes admiráveis pe- de Caufa intelligente , que entenda o que faz , e dirija as ccufas connexas , preferindo-as a outras naò connexas. CoroneL He evidente. Theod, Efta caufa nao fc acha nas for- migas fegundas , ou terceiras , nem nas primeiras , porque ellas nunca fou- beraô o leu mecanifmo próprio. CoroneL Também concordo. Thcod, Logo efta Caufa intelligente do mecanifmo das formigas de agora, re- íidio no Author das primeiras formi- gas. CoroneL Nao o nego. Theod. Logo eífe Author era hum Ente ^ ou hum Ser , ou huma Coufa ( permit- time eíla palavra das Efcólas , que he precifa ) era hum Ente que tinha gran- de 5 e inim.itavel Intelligencia , gran- de , e inimitável Poder. y CoroneL Tudo ilTo confeíTo , aíTira he : mas que tirais dahi ? naÕ ícífro tan- tos rodeios. Thcod, Vamos de vagar j no fim vo-lo direi. O mefmo difcurfo faço de to- das as creaturas ; que conhecemos , c ' í!Ílim digo : Ou humas forao nafcendo de outras de diíferentes efpccics , ou to- I Tarde terceira, 59 todas as eípecies nafcerao igualmente do grande Autlior de cada Juima ? Elcolhci o que quízerdes : como ne- nhuma le podia fazer a íi n.eíma , va- mos a dar em hum Author Supremo , do qual tudo nafceo, e que com fum- ma Inrelligencia , e Poder fez tudo; com eíta habilidade , de humas crea- turss irem communicando humas ás outras o íeu inimitável mecanifmo. Eíle Author de tudo he que eu chamo Deos: logo he evidente que temos hum Deos. Ora refpondei. Coronel. Refpondo por muitos modos. Theod. Vamos ao prim.eiro. CoroneL Eííe Author univerfiil das crea- turas pode também fer creatura mais perfeita , que todas as mais que ella produziíTe , e defte modo já naô he Deos. Theod. Pois eftá bem : elía nad he Deos , mas fera Deos quem fez eíTa creatu- ra taó perfeita , ou queiii fez a que a produzio , &c. Eu fomente chamo Deos- a quem creou , e nao foi crcado por nmguem j a quem deo exiftcncia ao que vemos, fem que a recebeíTe de ou- trem. Effe primeiro Principio das cou- fas 5 cu da fua çxiftencia he que eu cha- 6o Recreação Filofqfica. chamo Deos : por confeguinte tefnos que ha hum Dcos , porque naõ pode haver exiftencia creada , fcm que tenha havido Principio deíTa exiftencia. Qiial he a outra rcípofta ? Co7'oneL E fc eu vos diíTer que todias efías coufas , que eílaó feitas , naô fo- rao feitas por Caufa intelligenie , mas por hum acafo fortuito das partícu- las da matéria , que íuccedeo arruma- rem-fe deíle modo j que direis Vós enraq ? Baron, Ah fenhor Coronel , licença para rir. Coronel, Efte penfamento he de hum Fi- lo íbfo antigo. Baron, E os Filofofos antigos tinhao pri- vilegio para naô dizerem muita par- voíífe que faça rir a gente ? Eu íem- pre cá vou rindo delles , ede Vós. Ora Vós naõ me direis , quando achaíles hum relógio , ou huma ca faca feita pelo acaío ? fem maò alguma intel- ligente que a governaííe ? Dizei para alii , pela vofía honra. Vós credes iíTo , ou podeis fazer-vos violência de crer eíle penfamento poíTivel ? Coronel. Como me empenhais a minha honra p devo dizer-vcs; Senhora, que te- Tarde terceira. 6i tenho ifto por hum grande defpropo- ííto 5 mas íerve de fallar , porque af- lim fallaô outros. Theod. Vamos pois a outra refpoíb , que eílas eftaô impugnadas. CoroneL E fe eu vos diííer , que eíTe Ente Auíhor de tudo foi a Nature- za 5 e que ella he a Aurhora do uni- verfo 5 que tendes que replicar ? Theod. Ha muitos annos que eu ando perguntando que couía he iíío , que fe chama Natureza , e eftimarei que Vós mo expliqueis. A Natureza he coil- la efpirituai , e inteliigente , ou he coufa bruta , material , e cega ? Coronel. A Natureza hje huma coufa , que todos conhecem , e que ninguém explica : todos a conhecem , porque todos vem os feus eíFeitos , neíla fe- rie continuada de movimentos : ella he a noíTa mai ; nós a conhecemos , ain- da quando a nao podemos bem defi- nir. Theod, Vós bem vedes que eftamos em difputa rigorofa , cujas idéas devem fer claras j e naô em difcuríos poéti- cos , cujas idéas por bcllas , e brilhan- tes faõ confuíiífimas. Se quizerdes que cu Yos falle da Natureza em ar poe- Cl Recreação Filofofica tico , ou oratório , quatro horas nao bafrariaõ , que taó abundante he a ma- texia : mas queremos aqui íaber iílb ^ da Natureza o que he , fe he maté- ria , ou eípirito j fe tem inteiligen- cia , ou íe he privada delia. Amigo, Vós já empenhaftes a voíTa honra com a Baroneza para fallar com o coração ; empenhai-a também comigo por obfe- quio a ella , e dizei , que conceito fa- zeis da Natureza. Deixai-me dizer o meu , que talvez que concordemos. Eu chamo Natureza a B.Jia Serie con» tinuaàa , e coflinnada de movimentos em tudo que he vifivel \ porque o que toca á nolia vontade , e os aífeítos da' animo já nao faò coufa da Natureza : concordais nefta idéa ? Coronel. Concordo : eíTa he a minha mef- ma idéa. Theod. Logo eftamos com o argumento em pé : eíla ferie taô conílante de mo- vimentos no Ceo 5 e terra , e tao bel- Jamente ordenada , fendo ao mefmo tempo taõ varia j e complicada , pe- | de huma grande InteJIigencia , que fe- ja o Author difto , grande Intelligen- cia , e grande Poder. Ora eíTa Intelli- gencia chamo eu Deos. Logo temos que Tarde terceira. 63 que a exiftencia das creaturas nos pro- va que ha Deos. Coronel, llTo fim : o caio eftá fe tudo he matéria , como muitos dizem j que eíTe Deos nao fei como he. Theod, Iffo he outro ponto j ficará para outra difputa , fobre a efpiritualidade de Deos j mas agora a concluíaô hc , que ha hum Deos Aurhor de todas as creaturas , e que naõ recebeo de nin- guém a fua Natureza , e Exiílencia , mas que a tem de fi meímo y e que eíle Author univerfal tem muita InteJli- gencia , e muito Poder. Baron. Ora graças a Deos, que já vejo huma prova clara , de que Vós ^ meu Coronel fois homem fincero , e que vos rendeis á verdade , que fe vos manifef- ta claramente. Vamos a paíTeio. Coronel, Eu dei palavra a Madama Go- vernadora que me mandou convidar para lhe dar o braço no paíTsio efta tarde : eu vos deixo em boa compa- nhia. Adeos. Theod, Ora Baroneza , viftes Vós modo de difcorrer mais atordoado do que o defte homem I Pois aíTim fao todos os mais , quando difcorrem neítas maté- rias. Ba- ^4 Recreação Filõfofica Baron, 'Ainda eu lhe peguei por boa pon- ta 5 que foi Ciiipenliar-lhea íua honra, para que dilTeiíe o que no íeu cora- ção peiiíava. Thcoã, Baroneza , crede que nenhum ho- mem no mundo ( fallo do mundo ci- vilizado) íe perluade que naò ha Deos : .andaô failando , e forcejando , a ver fe podem livrar-fe do remorfo que no feu coração fentem com as fuás def- ordens ; e defejariao de liuma vez ti- rar eíTa cfpinha , e perfuadir-fe , que • elles fao fenhores abfoluros de fuás ac- ções : aqui vai parar tudo. Baron. Mas dizem muito defpropoíito. Theod. Senhora , crede-me : os maiores defpropofitos , quando nos fazem conta , laó beílifiimas verdades. Vamos a paf- feio : chamai o Baraò , que eile aílim que percebeo que ellava cá o Coro- nel com as fuás Filofofias , naò quiz entrar ) mas eu bem o fenti. TAR- J r Tarde quarta: 6; TARDE IV. Sobre os Myfiertos ãa nojja Religião em commum* Èaran. T^T A6 íabels > meuTheodoíio^ JL^ a guerra que me fez hon- tem á noite o noíTo Brigadeiro , zom- bando da minha Crença , que elle cha- mava 5 Credulidade de mulheres y as quacs cegamente entregavao o feu juizo a quem queria pegar delle , para o con- duzir , foíTe para onde foííe. EIlc iini faz , como eu 5 a proflíFao de Catho- lico Romano uo exterior ; mas pelo que me dilTe , fupponho que naõ tem Religião nenhuma* Eu o convidei ho- je para o paíTeio ; creio que naô nos faltará a vir-mc bufcar aqui : tomara (> que o ouviíTeis nella matéria , porque na verdade me abalar muito o feu mo- do de difcorrer j e em matéria de tan- ta importância naó queria fer engana- da. Nem quero crer mais do que de- vo , nem deixar de crer o que ne juf- to. O Bara3 , o Chcvalier , Sophia , Tom. IX, E ^Vi^ é6 Recreação Filofofics Vidoria , e minha Mai todos nos ou- vem nefte gabinete de meu Pai , e naó querem aíliítir á difputa, para nos dar mais liberdade. Theod, Eu naô o hei de atacar , porque naó convém j fe elle me atacar a mim , reíponderei com paz : e naõ temais que o Erro triunfe : fe clle fabe jo- gar a efpada da Razaõ , como homem , naó o temo , que a nolla caula he boa. Baron, Douto he elle : nas fciencias na- turaes julgo que difcorre bem , e pe- lo menos agrada-me : eu o farei en- trar em queftaó : foíFrei prudentemen- te o Xeu ataque , porque he hum pou- co picante , e tem certo ar de deípre- zo , que lá offende hum pouco. Theod. Senhora , aíTim deve fazer, fegun- do o coftume , porque Advogado de caufa má fuppre a falta de razoes fó- lidas com ironias engraçadas. Naó me abaíe com iílo , porque eu quando jo- go o Florete , naó atiro aos veftidos , nem me embaraço que me toquem nel- les ; atiro ao corpo : deixo paílar pa- lavras , vou ás razoes ; e depois fe fi- car vicloriofo , poderei também dizer alguma palavrinha , que firva de re- pri- Tarde quarta. 6y primir certas vivezas de poucos an« nos , e menos eftudo«. Creio que o finro entrar. Se o Brigadeiro tem efe génio picante , e de Oráculo , darme- Jieis licença , que fe eu achar geito , me hei de divertir com elíe , fallando Gom ironia , fingi ndo-me fraco para o fazer efcorregar , e cahir , fem que eu o ataque : e depois de rir-mos hum pou- co , jogaremos a efpada da RazaÕ por outro modo , e de veras , a viver , ou morrer : Pelo que nao vos efcandali- zeis do que eu diífer ao principio , porque no methodo Socrático me he precifa a farça da ironia até hum cer-» to ponto. Elle ahi entra. Baron. Em Vós faliava-mos agora , Se- nhor Brigadeiro , e eu já tinha preve- nido o meu Meftre , e voíTo amigo , da honra que eíla tarde nos farieis. Brigad. Muito tempo ha que defejava communicar-vos Theodofio ^ e nao ten- do occafiaô para receber de Vós eíla honra , me fervi da introducçaó da Se- nhora Baroneza VoíTa Difcipula , que me honra. Theod, Era mutuo em nós ambos efte de* fejo j porque defde que vos ouvi fal- lar em matérias de Fyfica, e vi que E ii éreis <68 Kecreaçao Tilofofica éreis taõ mftruido , defcjei communi- car-vos , por fcr efla a minha appli- caçaõ 5 e o meu gofto : nada acho que fatisfaça mais a curioíidade do homem , nada que o entretenha com maior re- creio. De huma parte a Mathematica com os feus cálculos , da outra a ex- Í)criencia com as fuás obfervaçoes , evao a nofla alma por ambos os bra- ços de tal modo , e com paílbs tao feguros , e taó certos ao Paiz da Ver- dade , que fica delicioíamente embria- gada , gozando da fua amável , e ina- preciável belleza. Brigad, Graças a Deos , Baroneza , que acho em Theodoíio hum homem co- mo eu efpcrava , mas naò como Vós me dizíeis. Vos me pintáveis Theodo- íio como hum homem de entendimen- to fervil , que o deixava levar arraf- trado , e com os olhos fechados para onde o queriaô levar , crendo na Re- ligião coufas que nem elle , nem queni lhas pcrfuadio , podiaô comprehender ; e iíTo me admirava , que fendo aliás hum homem de efpirito tao illuftrado , e taõ indagador da verdade , fe deixaf- fe ir como cego para Regiões defco- nheçidas. Agora , amigo Theodofio, vejo Tarde' quarta. 6(f vejo que fois como eu , e como to- do o homem de juizo , e que nada credes , fenaó o que claramente com- prebendeis com o calculo , e com as obíervaçôes , deixando eíles Myílerios incompreheníiveis ;, que nos eníínáraa quando era-mos meninos da efcóla , os quacs crem tudo quanto lhes di- zem , que devem crer , até que ha hum Papaõ que come as crianças. ^ Theod, Meu amigo , gofto que me to* queis nefla matéria , porque como ten- des juízo imo , poderei cxpiicarmc comvofco , e refleílir com madureza* He fortuna minha dar com quem fai- ba manejar a efpada da Razaõ , e dif- tingiiir hum difcurfo ferio de huma inveíliva jocofa. Ifto pofto , quero-me inftruir do voílo modo de penfar fobrc eíTe Principio de Joaó Jacques Rouf- feau 5 hoje muito adoptado. Hum ho^ mem âe Juizo na o deve crer a que TtaÕ comprehende, Br/gad, He a Máxima mais racionavcl , que jamais fc eftabeleceo. Eu íe nao comprehendo huma coufa , digo , que nao creio. Qiie diíFerença fazeisí Vós de hum homem de juizo a huma ve- lha tonta , que curvada toda fobre o feu 7t& Recreação Filofofica feu bordão ^ vai arraftrando huma al- ma vil , fraca , e já meio morra , atraz de hum Clérigo taô tonto como elJa , que nao entende o que diíle , e ha mui- tos annos lhe eníinaraõ ? Deos me livre , que tendo eu entendimento illuftrado , e íendo homem de eftudos , creia co- mo velha ignorante. lílb nao ; nem me perfuado que Vós fejais afiim. Thtod» Ora dai-me cá hum abraço , meu grande amigo ; que já vejo que me podeis tirar varias duvidas ; pois ten- des juizo claro : Naô me enganava a Baroneza nos elogios , que me fazia de Vós : elTa máxima de naÔ crer o que nós nao comprehendemos clara- mente , lá parece conforme a razaõ. Mas dizei-mc : e Vós a tendes por geral ? Brigad. Geral , e generaliílima ; porque hum homem , que nao fe ferve da lua Razaõ , cm nada fe differença deíTes brutos , com quem vive , e trabalha no campo , lidando fempre com elles j porque nunca dá razaÕ do que faz , nem do que diz ; faz o que Çcw Pai lhe eníinou , e diz o que ouvio di- zer ; e a fua Razão eftá tao ferrugen-i ta como peça que nunca teve ufo. Na- da , Tardg quarta. 71 da , meu amigo ; fe naó comprehender- des bem huma coufa de forma que poffais dar razaõ delia , naõ a déreis crer. Tòeod, Mal íiibeis quanto trabalho me poupais , porque muitas coufas cria cu , c cria firmemente ; mas naô po- dia explicar iíTo que cria ; e entre tan- to o meu entendimento trabalhava , c fuava em vaó ; bufcando a razão que naô podia achar. hrigad, Nufica façais iíTo , amigo , fc quebreis fer tido como homem de jui- zo ; negai tudo o que naÔ puderdes explicar j ou ao menos dizei que naõ credes , para vos livrardes de que vos digao , que o voíTo juizo he cauda- tário de tontos , que vai cegamente para onde cegamente vos levaó. Th^od, Que vafto cam.po fe me abre ago- ,, ra para deíafogar a minha razaô op- primida até aqui com mil dificulda- des. Mas eu naõ fei , amigo , fe Vós feguís eíTa máxima taó geralmente , como dizeis. Brigad, Nao duvideis que eu deixe de a feguir íirmiííimamente ; nem peííca alguma me pode atacar , porque em dizendo que naÓ creio , eílou livre de . todo o argumento. Theod. fL Recrearão Filofqfica Thecd. Tenho enrcndido : ora, amigo > foffrei o meu cí cru pulo , já que me fazeis a honra de fcr meu Meôrc. Que penfais Vós da noíla alma ? BrigacL Eu polío dar- vos mil defini- ções • mas cu fó fei que hc hum cf- piriío intelligente, que percebe as fen- jações dos fentidos , e governa o mo- vimento dos membros, Ifto he o que bafta para o conhecimento da alma. Tteod* Mas conio explicais Vós que paf- iem as fenfaçocs dos fentidos , e d> cérebro material para a alma efpir*- tual ? e também como' paífa o movi- mento , ou determinação da alma ef- piritual para os membros corpóreos ? Como he efte jogo , ella uniaô , eía paíTagem ? Brigad. NilTo ha três Syftemas : o de Leibnitz he cngenhofo , mas he ma- téria de rizo ; o de Defcartcs naó he «ada : o do Influxo Fyfico he impoí- livel : com que niíTo , aqui para nós, naó fc fabe nada. Theod. Oh meu amigo : então digo cu que nao creio , que Vós tenhais al- ma , nem lingua , nem mãos que ella g-overne : porque acabais de me dizer que ninguém coftiprehende conio iíTo f^j«3> Tarde quarta. 73 i.. ftja , c naõ íkbeis dar razaò clara dif- f o ; c afíim , meu amigo , eu naõ creio Mageílade das Efcrituras me deixa ^ j> pafmado j e que a famidade do E- jjvan- po Recreação Filofofica 99 vangellio falia ao meu coração. Exa- >9 minai os livros dos Filoíofos com 99 toda a fua pompa. Ah ! e como faó 5> pequeninos a viíla deite ! Como he 99 poífivel que hum livro ao mefmo » tempo taò fublime , e taó limples 5> íeja obra dos homens ? Poderá crer" 99 fe que o fu jeito , cuja hiftoria fe >> defcreve , jiaõ feja fenaÕ hum puro ?> homem ? Theod, Notai , Baroneza , e fazei affen- IO daquella propoíiçao , que logo ha- vemos de reíledlir nella. Perdoai ami- go , a interrupção , que foi curta > mas precifa : tende a bondade de con- tinuar a ler. Brigad, Também eu reparei neíTa pro- pofiçaó : eu continuo. » Poderá crer- 99 fe que o fujeito cuja hiftoria fe def- 55 creve , naõ feja fenaô hum puro ho- j> mem ! Acafo he efte o tom de hum j) Seftario ambiciofo , ou de algum • 99 cheio de enthufiafmo ? Que. doçura , 55 e que pureza nos feus coftumes ! 55 Que graça penetrante nas fuás inf- 55 trucções ! Qiie elevação nas fuás Ma- 55 ximas ! Qiie profunda fabedoria nos 55 feus difcurfos ! Que prefença de cf- 55 pirito y que delicadeza , que propric- 55 da- Tarde quarta. 91 >j dade em todas as fuás refpoftas ! Que 55 império, e íenhorio em rodas as fuás J5 paixões ! Onde cíhí aqui o homem l j> Onde o fábioquc íabe obrar , foíFrer, 5> c morrer íem fraqueza , e ao mefmo 5> tempo íem oftentaçaõ ? 7? Qiiando Platão ( continua Rouf- íj feau ) Quando Platão defcreveo o » feu Juílo imaginário , cuberto com 3j todos os opprobrios de crime , fendo >? digno de toda a recompenfa da vir- 5j tude 5 nao faz íe naô defcrever exa- 35 éla 5 e miudamente a Jefu Chrifto , 3? a fcmelhan^a falta aos olhos por ?> hum modo tal que todos os Padres 35 da Igreja a conhecerão , e naô he í> poííivel enganar-íe com o retrato. 5) Que preoccupaçoes , e que ce- ^j gueira he precifo ter para fe atre- » verem a comparar o filho de So- >5 phronica , com o filho de Maria ! » Que diftancía de hum a outro ! So- 3? crates morrendo fem dores , nem a 3j menor igaominia , fuftentou com fa- 5? cilidade até o fim o feu papel ; é 33 fe efta morte facii de levar naô hon- 35 raíTe a fua vida , bem fe podia du- 53 vidar fe ú\q com todo o feu enten- 33 dimento tinha fido hum mero So- 33 fiíla. 33 Dl- 91 Recreação Filofojíca >í Dizem que elle inventou a FI-« 5> loíoíia Moral ; mas outros antes del- j> le a pozerao em pratica ; EJle nao >y fez Íena5 dizer o mefmo que outros í> tinhaó obrado. Ariftides tinha fida í^jufto antes que Sócrates explicaíTe j> em que confiftia a Juftiça , c a Vir-» í> tude : Leonidas morreo pela Pátria yy antes que Sócrates difleíTe , que ti- » nha-mos obrigação de amalla. Spar- » ta era fobrio antes que Sócrates lou- jy vaíTe a fobriedade ; antes que eilc yy definiíTe a Virtude , toda a Grécia j> abundava em homens virtuofos. >5 Mas onde achou Jefu Chriílo no » meio dos feus efte Moral puro, e jy elevado , de que Elle unicamente ^ 5) nos deo as lições , e o exemplo ? • 5j Efta altiíEma Sabedoria apparecea yy no meio do fanatifmo o mais fu- » riofo j e efta nobre fimplicidade das 5> Virtudes as mais heróicas veio bon-^ yy rar o mais vil de todos os Povos. í) A morte de Sócrates fílofofando 5> com os feus amigos até o ultimo yy momento , foi a mais doce que fc ' 5> pôde defejar : porém a morte de >» Jefu Chrifto expirando nos tormen- ' j> tos , injuriado , efcirnccido, amaldi- » çoa- Tarde quarta. 93 5) coado por rodo o Povo , foi a mais ?j iiorrivel que fe pode temer. Socra- » tes tomando o vaio com veneno a- ?> gradece a quem lho dá , vendo que j> elle chora , e Jelu Chriílo no meio 5> do mais horrorofo fupplicio pede j> por aquelles mefmos que com a 5> maior fanha , e raiva lhe cftaÕ dan- 5> do a morte. Verdadeiramente fe a 5> morte de Sócrates he de hum fá- 5> bio 5 a Vida , e Morte de Jefu 5> Chrijio faÕ de hum Deos, Thead, Parai hum pouco , amigo , e ve- de bem fe vos equivocais no que le- des : Senhora , aílentai lá aquella ul- tima propoliçaô de Rcuíleau. Barojf. Cá vou pondo que a Plda , e Morte de Jefu Chriflo faÕ de hum Deos, Continuai , Brigadeiro , na lei- tura. Brigai, íj Dirnos-hao ( continua Rouf- j> íeau ) Dirnos-haó que a Hiftoria do 55 Evangelho foi inventada por paf- 5) fa tempo ? Nunca fe inventou por 35 efte modo : e de mais os fartos de 99 Sócrates ^ de que ninguém duvida , 5> faô menos authenticos que os de Jefu 95 Chriílo. Além de que iíTo he fugir , » c naõ dilTolyer a difficuldade. Mui-* 55 tp 94 Recreação Filofojica. )) to mais difficil he de conceber , que » alguns homens por ajufte fabricaf- » íem efte livro , do que fer hum la j> homem o objedlo deile. Nunca os » authores Judeos achariaõ , nem efte 55 Tom , nem efte MoraL O Evarige- 55 lho tem hum caraãer de Verdade 55 taõ grande , tao evidente , taõ ini' 55 mitavel , que o Inventor feria ain* 5j da mais fafmofo que o Heróe, Baron. Bem vos entendo , Theodofio : iulpendei por ora a leitura , Briga- deiro 5 em quanto aflento elTa propo- íiçaò , que hc notável : aqui efcrevo Theodoíio : O Evangelho tem hum caraEier de Verdade grande , eviden* te , ittimitavd. Theod. Vós vedes , amigos , que fe nao pode taliar com mais eftimaçao , e ref- peito de Jefu Chrifto nem do íeu E- vangelho. £ quem affim falia julga bem que ha fundamentos grandes para crer o que nelle fe nos eníina ^ pois que fem fundamento grande , naò ha ca* ra^ier de Verdade grande , eviden- te y inimitável , como diz. RouíTeau : fem fundamento grande naó havia de dizer , que feau ) ejiá cheio de coufas incríveis , 5) de coufas que repugnaõ d RazaÕ , íj e que he hum impoíTivel , que hum í> homem de Juizo poffa conceber , nem ?) admittir. E que havemos de fazer 5> no meio de todas eftas contradições ? » Ser fempre modeílos , circunfpeétos, 5j e refpeitar em íilencio o que nao íli- ?5 bemos nem rejeitar , nem compre- 55 hender , e humilhar-nos diante do 3? Ser fupremo , que he fó quem fa- . 5> be a verdade. Eifaqui o Septifmo ' 5> involuntário ^ em que ficamos. Theod. 96 Recreação Filofofica Thcod, Bafta de leitura , meu amigo : fe- ja-me licito refledlir agora comvofco nas ciaufulas deíTe Artigo. Elle tem razaô em dizer , que ha contradições , fem dúvida que as ha , e mui gran- des ; mas fao no que Rouffeau diz , e nao no que diz o Evangelho. Ide lá contando as contradições de Rouf- feau comíigo mefmo. Diz elle : O Evangelho tem hum caraBer de verdade evidente ; e tam- bém diz : mas ejld cheio de coufas- in- criveis , que repugna o d RazaÕ. Co» mo he ifto ? Logo o caracler de ver- dade evidente , e inimitável , fe acha nas coufas , que repugnaÔ á razão , e ílió incríveis. Mais diz , que Jefu Chrijlo nao pode fer meramente Ho^ 7nem , e que a vida , e morte de Jefti Chrijlo fao de hum De os j mas tam- bém diZ que nao obílante ifib , hum homem de Juizo ttaõ pode admittin o que Elle diz : e quando nada temos hum Deos mentirofo , e defpropoíita- do , que diz coufas 5 que repugnaõ á razaó , e que ninguém pode crer : que vos parece ? Mais diz , que O Evan^ gelho tem hum caraEier de verdade evi- dente ; e inâmitavel ^ mas accrefcenta : Tatàe qjuartã, t^7 tu naS pojfo admittir effa 'verdade. Que tal diícurio'?. Quem vio maior extravagância de eiitendimento ? di* zer : IJfo certamente be verdade , mas eu naõ admitto ejja verdade, Brigad. Rouíleau tinha muito juizo j nin- gucm iiio nega. Theod. Mais juizo diz elle que tinha Jefu thrifto , e que era Deos 5 e comtudo naô eftá pelo que Jeiu Chrifto diz. Tornai a ler o que leftcs. Elle diz , que devemos refpeitar em iilencio a que naõ f abemos rejeitar ; mas qua nao o íabendo rejeitar , ?ia5 9 deve» tnos admittir : e tudo porque ? Porque toma por Sinónimos as palavras coh^ eeber , e admittir \ dizendo he impof- fivel que hum homem de juizo poíía conceber , nem admittir : e mais abai- xo põem por contraditórios rejeitar, e comprehender , dizendo : naò fabe- mos nem rejeitar , nem compreben^ der. Sem rejeitar , nem comprehender , nós admittimos mil coulas certiíílmas - na Natureza , mas efcuriíFimas. Sem rejeitar , nem comprebender admitteni hoje todos as attraççoes Neutonianas em todo o fyílema dps Ceos. Sem r^ ,Tom. IX, G jVi- çS Recreação Filofofica jeitar , nem comprehender admíttem todos as gerações dos Viviparos , ía- hindo os filhos ora fcmeiiiantes aos pais , ora ás mais , ora a ambos , ora a nenhmn j e iíTo ítómcntc porque ha o fundamento da experiência ciara , que o prova com certeza ; logo ha- vendo ( como RouíTeau diz ) o cara-- fler de verdade evidente no Evange^ lho 5 e inimitável , nós fcm rejeitar o que he verdade certiílima , e fem comprehender o que he efcuro , deve- mos admittir o que diíTe hum ho- mem que naõ he puro homem , mas bum homem Deos. Dizei-me , meu Brigadeiro , Vós que ferviíles a ElRei na Marinha , fa- beis como fe governa a navegação pe- la agulha , e que da virtude do Iman communicado ao aço depende rodo o governo das Náos. Mas íupponho que ainda naõ achaftes quem vos dilíeííe, porque razaõ fyfica fc faz eíla commu« nicaçaÕ , e iíTo de modo que mereça acceitaçaÕ. Eu ainda naõ achei expli- cação lupportavel do modo com que o Iman communica a agulha a íua di- recção para o Norte , &c. '^rigad. Nem eu^ e tenho difcorrido mui- 1 Tarde quarta, 99 multo niffo j e bufcada tudo o que Iç tem dito. Theod, Ora fupponde que hum Piloto a bordo , fendo Vós Commandante , vos dizia o que dos Myílerios da Reli- ligiaò diz RoufTeâu. Senhor , efta com- municaçaõ do Iman á agulha tem hum caraãer de verdade mui grande j mui evidente , e inimitável ; mas nenhum homem , feja elle o de maior juizo , me pôde explicar ijp) de ?nodõ que eu poffa conceber , nem comprehender co^ mo ijjo feja , e ajjim no meio defta contradicçao eu devo fer modefto , e circunfpeão , e fem rejeitar , nem ad^ mittir ejla communicaçaÕ da virtude do Iman humilhar-me diante do Ser fupremo , que he fó quem [abe a ver^ dade , Jicando em hum Septicifmo in-^ voluntário : E aflim coníeíTo que naô fei como iíTo he \ e nao fabendo , n>ao creio que fe communique eíTa virtude do Iman para dirigir a agulha para o Norte ; e fem crer niíTo , como poíTa governar a voffa Náo ? Se vos diíFcf- íe ifto , e fe foífe recolher na fua ca- rnera , deixando a Náo fem governo , que lhe farieis Vós ? Brigad, O que eu faria Vós o podeis G ii CQn- 50© Recreação Filôfojíca coníiderar. Deos me livmde femelhan- te doido. ^heod. Pois nao he eíle o modo de dif- xorrer de Mr. Roufieau ! i^migos , naõ nos levemos das bellas palavras defer modejlos , e circunfpeíXos , refpeitan^ do em Jilencio o Ser fupremo que he fó quem fabe a "verdade , (l^c, que ef- tas palavras naõ valem nada. JBaron. Sc vo-las diffeíTe o voffo Pilo^ to a bordo no meio de huma tem- peftade , que mal recebidas íeriaõ ef- fas expreílóes de humildade ? Eu nao poíTo Ibífrer que RouíTcau diga , que he impoffivel que Jefu Chrijlo feja hum puro homem ; e depois que fe Tiao pode admittir o que Elle diz , fó porque fenaô pode comprehender, Theod. Tudo vai de confundir o fer a coufa verdadeira , ou o fer clara , ou majíifefta. Também confundem faber eu que a coufa he , ou faber como he» Eu poíTo eftar certo , ou pela razaô , ou pela experiência , ou pelo dito de hum homem Deos , que a coufa he , e pela curtcza do meu entendimento nao faber o como he. Briga d. Tenho percebido , meu Amigo TUeodofio : eu nao tinJia refieílido taa- Tarde quarta* lor tanto nlíTo , como Vós : agora hei de meditar niílo de vagar. Vamos ás no- vidades da Corte , que naô faltaõ : baila de TJieologia. Tbeod, Deixai-me agora por conclufao fazer hum painel para Vós Baroneza pordes á ilharga do outro que vos deo' o Senhor Brigadeiro , de /juma velhd curvada fohre o feu bordão ^ que fe deixava tollamefite governar nas ma- térias de Religião por hum Clérigo velho 5 e meio tonto , que lhe enfinàra va meninice delia o que nem elle , nem ella comprehendiao : ponde defronte deíle retrato outro que agora vos fa- ço. He hum Filoforo meditabundo , que fentado na fua cadeira , com hu- ma perna fobre a outra , e encoftan- do a cabeça na maò efqucrda com a pluma na direita diz ^ refolutamente : Eu bem fei que houve na Syria hum Jefus de Nazareth , o qual certiíTima- mente na Ó foi puro homem : fei de cer- to que EÍle foi Deos , e o que Elle diz tem o caraSíer da verdade taÕ grande , tao evidente , taÕ inimitá- vel y que 71 a o poffo duvidar : mas na 6 creio o que Elle diz , naò obílante ter o caraãer evidente da verdade. Pois ■JOi RecreaçaS Filofofica Pois porque ( lhe pergunta ) . . . Por^ que naÕ comj:rehendo ijfo que Elle 7ne dÍ2^ . , , . Mais íc £líe de certo hc Deos ( lhe replicaó ) podeis fíar- VI s dellc 5 ainda que naõ comprehen- cais. IJp) nao \ { refponde ) fei que he Deos \ porém naÕ creio a Deos forque naõ e?:tendo. Mas Senhor Fi- Joíbfo ( inftao ) Vós também nao com^- prebendeis mil Myílerios da Nature- za , e Vós os admittis ; porque Vós nao haveis de negar o que os Filo- fofbs todos confeílao na Natureza. If- fo fim (refponde) aos Filofofos na- turaes cede o meu entendimento , cren^ do o que elles me enfinaõ , ainda que eu nao com prebenda \ mas a Jefu Chri^ Jio 3 que f em duvida nenhuma he Deos ^ naõ cede o meu entendimento , e como nao comprehendo , digo que nao creio, i^as matérias palpáveis confejfarei que o meu entendimento he curto , e que ha . muita coufa corpórea na Natureza , que nem eu , jjem homem algum até aqui explicou bem : mas em Deos que he hum Ser Infinito nao quero conce^ der que haja coufa alguma que nao caiba na minha compreíocnfan. A mi^ nha intelligencia para a Matéria , ç Na- Tarde quarta.\ 103 l^atureza corpórea he muito curta : mas para Deos ^ e fua AltiJJima Ha*^ tureza Infinita na o he curta : e afi- Jim diga De os o que quizer ^ fe naS comprehendo , naÕ creio : c com a plu- ma elcreve refoluro Naõ creio \ c vetn hum bando de gente por-fc de joelhos junto dclle , e lhe beijaó a mao , e dizem também : Naõ cremos ^ porque o noíTo Meíl:re naÕ cré. Pendurai , Baroneza , efte painel junto do da Ve- lha 5 e diga o público com quem ít parece o Retrato. Perdoai , meu Briga- deiro , eíta traveíTura por modo de ga- lantaria. Brigad, Vamos Senhora , ás novidades da Corte : deixemos Theologias, ?^â?^ T AR. 104 RecreaçàV Filofojíca TARDE Y. Sehre a Lei Nattírãl ^ e Luz da Ra^ zaÕ : e da necejjlinde das Leis Pojl" ti^vas. §• I. . -' Da Lei Natural , e fua origem. IKaraõ. T? U reparei hontem á noite , XL meu Amigo Theodoíio , que Vós á nieza notaítes hu ma couta , que eu diíTe^ e que por politica naó me quizelíes dizer nada ; mas eu perce- bi 3 que Vós naô approvaveis o que eu diíTéra. Theod, Sim , meu Barão , porque aquel- la propoíi^aò parece boa , mas tem grande veneno occulto ; e eu ( como já vos dilTe ) naò fei ler amigo de meias , e quando abraço ^ ha de fer com ambos os braços ; quero dizer , que me inrereílb, naô fó no bem tempo- ral dos meus amigos , mas também «O eípiritual das íuas almas ^ nem me pa- Tarde quinta. 105' parece poíílvel fer eu amigo verdadei- ro de alguém , e deixalio cahir por Junn deípenhadeiro ^ íem ao menos gritar , e gemer , £ pedir a quantos poíTa , que liie acudaó : tal he a vof- ia fituaçao meu Amigo. Aqui por ora cftamos los , pofto que pelo coftume naô tardará companhia : mas cm quan- to ha lugar , repeli o que hontem dif- feftes 5 quando eu vos fiz finai , que naô dizíeis bem. BaraÕ, Eudilíe , que me agradava o fyf- tema de Voltaire 5 e muitos outros Fi- Joíofos da moda 3 quando dizem, que para hum homem de Juizo fer bom , e virtuofo , bajla feguir intei-- ramente a Luz da RazaÕ ^ ou a Lei Natural \ e parece-me que nifto naó diffe mal. Porque a Luz da Raza6 nos aconfelha todo o bem , e nos dif- fuade de todo o mal : prouvera a Deos que eu , e mais Vós em toda a noíTa vida feguiíTemos bem a L^jss da Razão ^ que para com Deos feria- mos huns Santos , e para com a fo- ciedade dos noííos iguaes feriamos' grandes , e admiráveis Cidadãos, Mas que tendes Vós que replicar a ifto ? Xkeod* Já vos diííe , que a propoficao he lo6 Recreação Filofojica he belHíTima , mas leva grande vene-* no occulto , que he a independência de roda a Lei Pofitiva , ou Efcrita j e niílo ha muito que dizer ; c attre- vo-me a demonftrar-vos a neceíTidade das Leis Pofitivas ; mas para melhor vos convencer , dou-vos por ora de barato tudo quanto quizerdes , com tanto que admittais a Lei Natural ^ que a Ltíz da Razão enfina , e que atureis confiantemente todas quantas conlequencias deíla Lei Natural eu de- duzir por inferências indilpenfaveis : niíío naó vos peço favor : eftais por iílo Barão? Mas ahi vem voíTa Irma. Baroneza, Ouvi que entraveis em dif- curíb ferio fobre matéria de Religião ; quero fcr da partida. BaraÕ, Vindes a tempo, minha Irma , e Vós me acudireis , que Theodofio vai a defafio comigo , e a briga ha de fer com a efpada da Razaõ. Baron, EíTa efpada naó fica mal ás Se- nhoras ; aqui eftou eu , Theodoíio , prompta a brigar contra quem quer que for : a minha efpada naò atten- de nem a parentefco , nem a amifa- de ; he direita , e naò verga , nem fe torce : vamos a iíTo. Já defde o meu tou- Tarde quinta. 107 toucador ouvi a queftao. E que ten- des que dizer , Theodoiio ? Olhai que agora ibmos dois contra Vós. Theod. Como vos conheço , e fei que ambos tendes juizo para manejar a ef- pada da Razaò , eílou certo que ha- veis de ceder. Naô percamos tempo : eílais pelo defafio BaraÕ ? Barão, Eílou prompto : dizei. Thcod. Nós fentimos dentro em nós hu- ma certa voz , que ora nos reprehen- de 5 ora nos louva as noffas acções , fem que nós poíTamos emudecella , ou fazer que concorde com a noíTa von- tade. Bem a noíTo pezar fuccede mui- tas vezes 5 que procuramos com vários argumentos , e razoes bu içadas de pro- poíito perfuadir-nos , que fizemos bem ; mas a voz furda que fentimos no Ga- binete da noíTa alm.a ^ naõ obílante to- dos os difcurfos , nos diz : Fi^ejle mal e ninguém faz calar eíla voz. Muitas vezes o Intereíle , a Paixão , o Ape- tite nos approva o que queremos fa- zer ; mas a voz interior immutavel re- prova , e nos diz : NaÕ faças, Baron, ConfelTo que aíFim he : quanto a ilTo dizeis huma verdade inncgavel. Theod» Bcnl eftá : Logo ejla voz inter- na ío8 Recreação Filofojica na que chamamos Luz da RazaS ^ na o vem de nós. Por quanto fe vieíle de nós 5 podcria-mos íuffocalla , e fendo grande o esforço , fazer que fe callaíle. Barão, Concordamos j e niíTo nao ha dú- vida : eíTa voz interna falia em nós , mas nao vem de nós. Theod. Acere fcen to agora que EJJa vozi he univcrfal \ porque" fe reprehende algumas acções em França , também as reprehende na Turquia , Polónia , RuíFia , America , &c. Eu nao digo , que tudo o que he reprehenfivel em hum Paiz , fe eílranha nos outros ; na5 digo iíTo : digo que ha coufas , que em todo3 os Paizes faó louváveis , e outras que em toda a parte faó re- prehenfivcis. Baron. IlTo nao tem dúvida : que hum homem faça mal a hum innocente j que engane em matéria grave o fea amigo j que injurie a feu próprio pai ; que faça aos outros o que nao gofta- ria que lhe fizelfem a elle , &c. faa coufas que em todos os climas , Re- giões j e Sociedades parecem mal , e que a Voz interna da Razão condem- na : como pelo contrario todos louvao a fidelidade de hum amigo ao outro y a ^Tarãe quinta. 109 a todos parece bem o amor da Pátria , a fidelidade á palavra juíla , d com- paixão dos miíeraveis íem culpa , á protecção dos innocentes deívalidos , &c. "Theod. Ora fuppofta a infinita varieda- de que encontramos em tudo o que he fujeito á vontade humana , ver eíía conformidade total em todas as gcft- tes 5 todos os génios , e todos os cli- mas y prova que efta Lei , efta Voz , efta íentença naó eftá fujeita á von- tade humana ; nem jamais poderáo os iomens ter dominio nella, Nao fei , meus amigos , fe Vós tendes reflecli-» do bem neíla infallivel variedade , que há em tudo o que eílá dependente da noíTa vontade. Baraõ. Tenho refiedido muitas vezes , fuppofto eíTe pouco conhecimento , que me tem dado algumas pequenas voltas pela França , e Hefpanha, O que mais me admira hc ver huma va- liedade fumma até naquellas coufas que íaô da primeira neceíTidade , em que os motivos de obrar íao inteira- mente os mefmos. Exemplo , o fuf- tentOj o veftido , a habitação , fao cou- áas a que todos fe vem obrigados , e lio Recreação Filofofica c pelos mefmos motives inteiramen- te ; todos tem a mefma neceíTidadc de comer para evitar a fome , e íraque- za j todos a mefma neceíFidade de vef- tir para evitar o frio , e a indecencia j todos tem a mefma neceílidade de ca- ías j para evitar as inclemências do tempo 5 e os ladrões , &c. e naó obf- tante ferem eftes motivos os mefmos cm toda a parte ; em cada Paiz fe co- me , fe vcfte 3 e fe edifica por feu mo- do diíFerente. O mefmo tenho obfer- vado nos barcok para o tranfporte pe- la agua dos rios ; cada porto tem os feus barcos por modo differente , ain- da dentro do mefmo Reino. Em Fran- ça faÕ diverias as embarcações peque- nas , fegundo adiverfidade dos portos. Taõ eílcncial he á vontade de hum homem a diíFerença da vontade dos outros homens , que em toda a par- te onde pode entrar a jurifdicçaó do noíTo alvedrio , clle diz , fentenceia , c manda como quer, fem fe embara- çar com o que os outros fazem. Mas que inferis Vós dahi para o noífa cafo ? ^heod. Infiro que efta Lei univerfal , c interna ^ que fem efpcrar pela noíla voa- Tarde ouinta. iil vontade fentencea as noíTas acções , naó vem de nós por modo algum ; e aíTim digo que a hus:» da Razão ^ e a Lei Natural , vem fd de De os quan^ do formou a "Natureza. Baron, Nenhuma dúvida temos em fubf- crcver ; antes eíTe he o noíTo maior fundamento , pois todos devem con- cordar que A Voz interna , que ap- prova 5 ou condem fia as nojfas acções , he Voz de Deos, Iheod, Bem eftá ; vamos á vante. Ora Deos naó fe pode contradizer a íi mep mo ; e o que nos diz a nós pela luz da RazaÔ , ha de fer o mefmo que fc diz a li mefmo. Logo ijjo que a nojja Luz da Razão ( a pezar nolTo ) nos eftá dizendo , he o mejmo que a Ra^ zaõ Eterna de Deos eftd diãando, Baron, Sempre ha de haver grande dif- ferença na Inteiligencia Divina , e a RazaÕ natural do homem. Theod, AíTim he , porque também ha grande diíFerença do Sol que brilha no Ceo 5 ao Sol que brilha em hum pedaço de vidro. Baroneza , fabei que huma he a Luz de hum Entendimen- to Infinito 5 outra he a Luz de hum Eiucndimento creado , c efta diiFeren- 112 Recreação Filofojíca ça na eíTencia baila para dar differen^ ças infinitas nas propriedades de hii- ma 5 e outra Luz , ou Intelligencia : mas o que digo he , que naô ha de liaver contrariedade : naô confundais , Senhora , a àtjferenca com a contra^ riedade. Deos ha de ter muita diííe- rença na Lí/jc Eterna da fua Razão y do que nós na ctfrta Luz da nojpi Razão ; mas naó pode fer contraria Juima Luz da Razão á outra ; porque como a noíTa Luz da Razaò he Voz de Deos , naô pode o Senhor dizer- nos a nós huma coufa , e a fi mefmo 0 contrario , por quanto a nõIHi Luz da Razaô he lium pequeno reflexo da lua. Baron, Entendo , e concordo : vedes , 1 hedoíio , que naô brigamos. §. IL Tia infufficiencia da 'Lei NaturaL Iheod, O E aífim for até o fim , líTo he O o que eu quero : vamos an- dando. Defte principio certo , e cer- tiíTimo fe podem tirar duas confequen- cias y huma legitim?. ^ e verdadeira j ou» Tarde quinta, 115 outra adulrerina , e falfa. Se eu diíTer : A Luz da Razão he a Raz,aÕ Éter- na de De os ; logo o que a Luz da Razaõ approva , ou condemna , Deos o aprova , ou condemna \ lie óptima coníequencia. Mas íe eu diíTer : A Luz da RazaÔ he a Razaõ Eterna de Deos : logo naõ precifamos outra mais luz nenhuma para dirigir os nojyos pajfos , h e muito má co n í "e q ue íi - cia ; poc quanto eu naõ vejo pela mi- nha Luz da Razão tudo quânro Deos vé ; e por coníeguinte para me fazer ver iíTo que cu nao via , bom fera que me dem outra luz, que também venha de Deos , mas por outro efpe- liio menos bailo do que o meu. Se íi minha Razão foíTe nao fo partici- pante da RazaÔ Eterna de Deos , mas igual a ella 5 então efcufava eu outra Luz : mas ainda que a Luz da minha Razaó fe derive da Razão Eterna de Deos 5 nao he igual a cila. Eu fico cego em muitas coufas que Ella vê , c que talvez outro pode ver melhor do que eu j e aíFan nao devo efcufar elfa Luz. ^aron. Já que me puz da parte do Barão , e dos feus amigos , deixsi-me orar Tom. IX. H bem 1T4 Recreação Filofojica bem a fua caula : os que íeguem eíTc fyílema podem dizer: A noíia Luz da Razaó he hum perfeito Código da Ley Eterna de Deos : he hum Ecco da lua Voz Divina , que fóa no nol- fo Entendimento. He hum reflexo da Luz Increada , que cílá brilhando nos fragmentos vis das creaiuras , bem co- mo a luz do Sol faz brilhar hum pe- daço de vidro que pizamos com os pés , e eilá miílurado com o lodo , i&c. Por coníeguinte ( dizem elles ) quem nas fuás acções naõ coníuhar fenao a Luz da Razaó , defprezando toda , e qualquer Lei Poíitiva pelos homens ^ eílá taô feguro de acertar , como fe Deos vifivelmenie andafle dirigindo os feus paflos , e aconfelhando com voz feníivel a todos as fuás acçòes , e mo- vimentos da alma. Ora que maior fe- jicidade , e que maior confolaçaô que eíla ? Eílar cada qual lèguro da ap- provaçao eterna de Deos em todas as luas acções ? Parcce-me , Baraô , que tenho defempenhado bem o officio de Procurador da Caufa dos voflos ami- gos^ Baraô, Certamente que íim , e confef- fo-vos que eíle diícurfo he o que me tem Tarde quinta. iij tem qiiaíi convencido a legiiir eile iyílema. Thcud, Pois entaô fede Vós ambos meus Filcaes : vede íe dou no diícuríb iiuiu paílo falío. Eíla Luz da Razaô que cada qual fente em íl , cada qual a pôde interpretar a feu modo. A mei- ma agua pura , que fahe das entranhas de hum monte , ora paíT^i por certos mineracs com que fermenta , e ferve, e fahe quente fum.egando , e ferven- do \ ora paífa por outras minas dif- ferenres , de forma que gela , e petri- fica tudo quanto ncUa íe lança : aílim he eíla Luz da Razão que vem de Deos : o noíTo cérebro a modifica bem como o molde faz á cera , de forma que fendo de huma mefma natureza fahe de diverfos moldes com figuras mui dif-^ ferentes , e entre íi mui oppoílas. Por iíTo nos Entendimentos humanos , dei- xados a íi mefmos , fuccede grande diíferença e contrariedade nos parece-^ res ; porque cada qual quer fer o úni- co interprete da Voz Divina , que no. feu interior eílá ouvindo. Eiíaqui o primeiro perigo do erro j porque po- de attribuir cada qual á cera todo o defeito do molde , ou á agua pura H ii os fti6 Recreação Filofofica. CS defeitos dos mincracs por onde ella paíTou : ou ao Sol as manchas do vidro quebrado , em que eile reverbera : e (vindo ao noflb ponto) podemos dizer, que lie da Voz da Ra- 2aó 5 e Voz de Deos o que naó he ienaô Voz do noíTo cérebro. Que me dizeis Baraó ? JBaraÕ. Eu confeíTo , que vos aclio mui- ta razaõ, porque as nollas paixões nos fazem entender as coufas como que- remos. ^heod. Haveis de obfervar, meus ami- gos , que em qualquer demanda de parte a parte fe teima , falia ndo ca- ca qual com huma tal fcgurança , e .certeza , c firme adhcfaó ao que lhe convém 5 que julga pela maior injuf- tiça o contrario. Ambos concordaõ no íaélo ; ambos tem as meímas leis , a meíma doutrina , os mcímos princí- pios , por ferem confiantes : ambo^ Yivem no meímo clima , e profeílao os mefmos coílumes ; e com tudo hum diz que Jim , e dará a vida pela fua opinião 'y o outro diz que naÕ , e com tal certeza , que nem duvida. Ora nao procede iílo fomente da variedade de peíFoas , e de juizos > porque então naó Tarde quinta, iif nao feria infállivel penfar cada qual a feu favor. Nunca Vós vereis hum tei- mar a favor do feu contrario ; fem- pre para cada qual he mais certo a que [hQ faz mais conta. Ora fe efte eíFeito faz a paixão do intereíTe nas leis que eílaõ efcritas com termos , e palavras que ninguém pode ignorar , e de que ambos os contendores con-» vem 5 que contrariedade fe achará na interpretação da Lei Natural , cujos caraderes fe naõ vem , e cujos termos , e a força delles cada qual pode dizer que ignora ? ou também os pode ac-^ crefcentar fem que ninguém o crimi- ne ? A Lei da Razão fim lie communx a todos 5 e todos confeíTaô que a tem impreíTa no feu, entendimento ; mas com que termos ^ com que força, com que modo elia fe explica a cada qual , ló elle mefmo o fabe. Quem me pode provar a mim , quando faço hum def- propofito , que eu na minha confcien- cia 5 e com a Luz da minha Razaô nao entendi que fazia bem ? Se eu teimar que aífim o entendi , quem me ha de convencer do contrario ? Ainda que eu minta , quem mo ha de pro- var ? Ba- 1 1 8 Recreação Filofofica Baron, Aílim he : os Principies Gene- raiiíTimos da Luz da Razaô , e Lei Natural fao confeliados por todos ; mas que difíiciildade nz(S lia na appli- ca'yaô a cada fafto particular ? Thecd, Pergunto agora : cu devemos fiar eíía applicsçao lo da pura Luz da Ra- zão , elcrita no cérebro década qual; ou ha de haver regra exterior efcri- ta 5 a qual todos Je devao accommo- dar fobre a applicaçaô a efte , ou á- quclle fado fingular ? Se le admitte cfta Regra exterior efcrita , fobre as applicaçoes , ahi temos a L,ei Fofiti- 'va ^ que na 6 julgava 6 neceíTaria : le pelo contrario íò a Lei da Ríizaõ ef- crita no cérebro de cada qual hn de decidir fobre a applicaqaÕ dos Princi- pies Geraes , que faremos nós quando dois contendores julgarem cada qual que da fua parte eftá a h^i Natural ^ que applica qÇÇqs principies certos ao leu cafo ? Abrirlhes-hemcs a cabeça para ver .com que termos fe explica , c eftá lá gravada a Lei da Ríjzao que elle mentalmente lê ? Ou decidi- remos por quem mais gritar ? Qi.ian- do ha Lei Pfjfitiva j fe podem chamar ambas as partes a que vcjao , e lêao 08 Tarde quinta. ii<7 os termos da Lei , a qual a hum con-" demna , a ourro favorece : mas na Lei naò eícrita quem os ha de obrigar a ambos a que lêaô do mefmo modo^ € que entendao a Lei pelos meímos termos , le cada qual tem no feu cé- rebro o Código 5 que repura ínfallivel , por onde fe governa ? jB^ ri» ;^. Tenho contra iíTo , meu Thco- doíiQ , que Vós no principio nos fí- zeftes aílentar , que e^la Voz da Na- tureza era Voz de Deos , e que nós naó a podíamos mudar , nem torcer. Theod. Diíle ; e ainda o digo : mas iílb he nos Princípios Geraes , que fao de tal evidencia , que ninguém os du- vida : mas na applicaçaò deíTcs Prin- cipias a cafos particulares he a dúvida j por quanto cada qual puxa para íi , e interpreta a Lei a feu modo ; e ainda que no fundo do coração o condem- ne 5 clle fe calla , e disfarça , e gri- ta , dizendo , que a fua Luz da Ra- zão diz o contrario. Baron. Já entendo ; meu Irmão , eu ef- tou convencida : Theodofio tem ra- zão : aliás deixando a cada qual a li- berdade de feguir a Luz da fua Ra- zão 5 lá como úÍq a entender , deixa- mos í2^o Recreação Filofofica mos a cada hum fer Juiz da fua Sen- lença , que he íer Juiz em cauía pro- pria» Ora fendo aílim , quem íe en- . tenderá nefte mundo , lendo cada qual Juiz de fi meímo , lem ninguém o po- - der arguir , de que julga mal ; por quanto ninguém íabe o que lhe dida lá a fua Razão. Galante fyftema pa- ra a fociedade , cuja Lei fundamcn- ' tal he 5 e deve fer o mutuo foccor- ro y e concórdia entre os feus mem- bros. Que refpondeis Baraô ? Barão, Eu naõ fei que vos diga : anda o meu entendimento luclando, naõ poí^ íb focegar como queria. Theoã, Deixai , meu Barão , que eu vos • dê mais forja para eíTa luAa. §. IIL Da nccejjlàade das Leis Pofuivas , e da força Coaãíva» Tõeod. TJ Eduzindo pois o que eílá Xv dito a propofiçócs foltas , que façaõ a ferie do noíTo difcurfo , xiigo : I. Que a Lei Natural como reíí- ' dc xio corajaõ de cada hum , ainda que Tarde quinta. 121 que a ouça , pode negalla , e dizer que tal naó conhece. 2. Que as paixões de cada huin podem oífufcar de tal modo o enten- dimento 5 que erre inteiramente na ap- plicajaôdos mefmos Princípios Geraes, que naó pode ignorar , e deíTc modo naô ouço as vozes da Luz da Razão. 3. Logo nos hc preciía hum.a Lei viíivel , que nos diga o meímo que a Lei da RazaÔ , em ordem a que nin- gucm a ignore , ou poíTa fingir que a ignora , e todos ( antes que chegue o caio 5 que lhe excite a paixão ) con- cordem nos léus termos , c na força delles. Ora como a noíía liberdade he in- dependente da RazaÕ , pode mui bem o homem conhecer , qual he a Ra- zão 5 e fazer o contrario : logo 4 Accrefcento, que a mefma Lei da Razaò pede , que haja huma força coadliv^a que obrigue a todos a obfer- varem a fua obrigação , ou, coíTíO di- zem 5 o íeu Dever ^ por quanto a Lei da RazaÕ m-àwàz y que quem vive em fociedade , e tira delia o proveito de fer íbccorrido nas aftiicçoes , e aper- tes , deve da fua parte contribuir ao bem 122 Recreação Filofoflca bem da fociedade. Efte bem elTcncial he que todos obfervem a Lei da Ra- %aõ \ e como a liberdade pode fazer, que faltem a ifto , pede a Lei da Ra- zão que haja quem os contenha nos * limites da Razaó \ e ifto he o que eu chamo hei CoaSliva. Barão, AíTim he ; mas eíTa Lei Coadli- va pede huma fuperioridade a todos : e quem a deo a eíTe homem , fendo todos iguaes ? Efta he a Razão de Voltaire. Theod. De vagar que tocais hum ponto mui delicado , e por eíTcs Senhores da moda muito mal entendido. Per- guntais : Q[iem deo a fuperioridade a eíTe Homem , que poe n a Lei Po- íitiva expreíía conforme a Lei da Ra- zão efcondida ? Digo que a dá quem a tem. Ora ide comigo de vagar , meu Barão , que o caminho he peri- goíb. Deos pela Lei da Razão manda a todo o homem , que tem efta luz , o feguinte : I. Que ainda que a Natureza fi- zeje todos os homens iguaes , na 5 vi- 'vaÕ todos como iguaes : porque en- tâ6 ( fuppofta a liberdíjde de cada q^ual ta- Tarde quinta. 123 fazer o que le lhe aníojnr no íeu li- vre alvedrio ) naõ haverá íbcieciade al- guma 5 iiinguem poderá eílar íeguro da invafao dos inimigos , nem iium iiomem íe poderia promerter íoccorro , cu ajuda de outro homem ; pois eile nenhuma obrigação podia ter por mo- do algum de Ywo. fazer eíTe lerviço , fendo feu igual em tudo. He logo hum preceito da Lei Narural que entre os homjcns , que vivem em. fociedade , de- ve haver fujeiçao de hum a outro ho- mem. Logo Deos manda pela fua Voz da Lei da Razão, que haja entre os homens fupericridade , e lujciçao. BaraÕ, Concordo : ide dizendo. Thtod, Eíla fupericridade lium.as vezes lie dada pcJa Natureza , como v. g. ao Pai fobre feus Filhos : outras ve- zes he dada por convenção , como o Senado fobre o íeu Povo : mas em to- dos os cafos he efta fupericridade con- form;e a Lei da Razio , por conre-* guinte mandada por Deos ; pois ja concordámos que a Vez da Lei da Razão , era Voz de Deos. Eu me explico mais. Deos nao fe embaraça com que Henrique Dandol feja , ou nao feja Doge cm Veneza ; mas 124 Recreação Filofof.ca mas fuppoílo que o elegerão legitima* ineiite , manda que elie feja íuperior na forma deííe Eílado , c que lhe obe- deçaò. Do mefmo modo pouco impor- ta a Deos , que Francifco feja Pai de João ; mas fuppofto fer feu Pai , quer , e manda , que João lhe obedeça. Pou- co intereífe tem Deos que Pedro íir- va a Luiz , ou Luiz a Pedro : mas fuppofta a venda que Pedro fez a Luiz do feu lerviço por efpaço de hum an- no por certa fomma de dinheiro , quer Deos 5 e manda que Pedro cumpra a íua palavra , e ajufte. Nao importa a Deos nada , que eu vo6 dê huma boa caixa de ouro , &c. porém fuppofto têlla dado , manda Deos , c quer po- fitivamente , que eu vo-la naõ tire com fraude , ou por força. Eifaqui pois , meu Barão , como Deos dá a fuperioridade aos homens que impõem Leis juftas a outros ho- mens : naô põem as Leis por autlio- ridade íua fecca mente , mas pela au- thoridade que Deos lhes deo , fuppofta a convenção dos povos, ou a conquif- ta delles , ou curro legitimo titulo. Vedes como as couías fao mui diver- fas do que Voltaire pintava. Ba- Tarde quinta. ii^ 'Bar ao. Agora eílou convencido ; c vejo como íb de Deos , que a todos he íli- perior , vem a authoridade de toda a Lei Pofitiva , porque íaô fundadas na Lei da Razaó que iie a Voz de Deos. Theod. Concluo agora o que tenho di* to com eítas três propoíiçoes , que lii- reis aíTentando. 1. Toda a authoridade , e fupe- rioridade legitima vem de Deos. 2. Todas as Leis Poíitivas que Íní fundão neíía authoridade , vem de Deos. 3. Logo quem defobedece a eíTas Leis Poíitivas defobedece a Deos. Vedes , meu Baraõ , que quem ad- mittir a Lei Natural , e Luz da Ra- zão , por força ha de admittir as Leis Poíitivas. Ora eílcu defcançado que nao ficamos mal da briga com Vós ambos. Bíiron, Graças a Deos que na6 tivemos gente que nos perturbaííe. Grande fer- viço íizeílcs , Theodoíio , a meu Ir* maÕ , que eílava bem perfuadido de que baftava a Lei Natural. Barão, E Vós naó eílaveis , minha Ir- mã 5 muito longe ; porque vos agra- da vaó todos os difcurfos que eu vos fazia. ^ Ba- 120 Recreação Filofojica l^aron. Lá me fazia pczo a eftimaçaô que faço do voílo bomjuizo: vamos a paffeio , Tiíeodofio. 'Theod, Vamos. T A E. D E VI. Sobre a Matéria ^ e Efpirtto. Baron, '\T Inde , vinde Theodoíio , que V me eííá aqui quebrando a ca- beça meu Irmao com Meta phy ficas , que eu naó entendo. Eu naõ foi olide elie foi aprender eílas extravagâncias de entendimento , que elie naÕ tinha algum dia. Barão, Minha Irma , Vós ledes pouco, e difcorreis muito : a voíTa cabeça lie muito arrumadinha , e todos os voílbs diícurfos tem muita clareza ; as voí- fas idéas fe ataó ; as voílas confequcn- cias faõ claras ; mas quando cu no Re- gimento de Saurnur comecei a tratar com mui diverfas qualidades de pef- loas 5 e quando entrei a \cr vários li- vros 3 confcífo que perdi aquella cla- reza de difcorrer , que algum dia ti- nha Yarde fexta. 127 nha 5 em que nós éramos bem irmãos , e a multiplicidade de idéas me con- funde 5 e deixa perplexo. O que eu di- zia , Theodoíio , a minha irmã . era ( o que Vós bem haveis de faber ) que ha quem fe aíFoite a dizer , que tal- vez numa coufa puramente maceria po- derá ter a força de penfar , e que- rer : e ella efcandalizou-íc muito diilo. Theod, E com razaó. Ora dizei-me , Se- nhora j e eíTe author dá dilío alguma prova ? JBaraS, Naó ; mas fomente diz , que nós vemos cada dia coufas taô novas , e taõ admiráveis , que nos faz lembrar , fe algum dia apparecerá huma maqui- na toda de matéria ^ que penfe , e ame , e efcolha , e queira , &c. Theod, Com que iíTo naô he , fenaô hu- ma lembrança de que algum dia po- derá apparecer huma coufa , que ago- ra nos parece impoíTivel. 'Barão, Aílim he. Baroju Ora deixai-me , Theodofio , di- vertir hum pouco com meu Irmão , que quero tirar-me de hum eícrupu- lo 5 e logo continuaremos a converfa- çaõ féria. Dizei-me , Baraô : e fe vos diíTeflem , que talvez hum dia fe po- def- 128 Recreação Filofofica deííe defcobrir hum modo de Vós fi- cardes invifivel a todos , excepto á- quelles , a quem quizeííeis recrear com a voiFa figura gentil , porém a todos os mais íerieis invifivel ; e ilío vendo tudo y até o interior dos outros j que ca fo farieis defta lembrança ? Baraõ. Nenhum ) porque ilío he hum delpropoíito. BaroH, Pois então porque fizeftcs tanto cafo da outra lembrança , que ainda he maior defpropofito , querendo que a matéria pura poíla peníar, e amar , e querer , &c. ? Baraõ. NaÒ , que eíTa lembrança inte- ^ rcíTa muito. Baron, Em que intereíTa ? fallai claro. Baraõ. Ora , minha Irma , a Vós hei de dizer tudo o que o meu coração eí- condia. Se a matéria pcnfar, e difcor- rer , entaó a minha alma poderá fer pura matéria ; e fe o for, morre com o corpo ; e fe iíFo houver de aconte- cer , poíTo viver á minha vontade , fem opprimir as minhas paixões. Baron. Qiiero-vos dar hum abraço , meu querido Irmão , porque me fallaftes claro , e defcobriíles o que eu ha mui- to percebia , no yoílb coraçaô , e dos ou- 7tírâe fèxta. ti^ outros que trcpaô por paredes acima , para fe livrarem da lei que lhes op- prime as paixões. Vós rides ? ^araõ. Paliando aqui amigavelmente confeíío que eila he a mira de todos quantos Jjftcmas fe inventaÓ , e de quantos difcurfos agora íe formão» Quereis Vós , minha Irma y faber as jprincipaes regras do AlcoraÒ da mo- da , a que todas as mais fe encami* nhaó ; faÓ eílas duas : 1 Huma regra he que As nqffas pai* scoes faõ boas j e que he parvoíce re^ primillas. 2 Que toda a virtude conjijle cm faber amar ; e que toda a alma y que ama , he virtuoja^ Baron, Ifto fuppofto acho^vos razaó em dizer que a alma he matéria ; que nao ha Deos , ou que Deos naó íe emba-; raça comnofco 3 ou que he como Jú- piter adultero > e torpe j e que tcui os mefmos vicios que nós para nos naÕ caftigar depois da morte. Ah , meu BaraÕ , em que labyrintho de confu- fóes 5 e de defpropofitos fe ha de en- redar o entendimento de quem quizer difcorrer tendo effas máximas ? ^araÔ. Minha Irmã , confeíTo a verda oií intelleílual dos ob- jeélos matcriaes , c fenfircis, da CVr, do Som y da JDureza , à"c. Theoã, Sem dúvida j porque o entendi- mento nao pôde julgar de nada fem combinar duas idcas , para dizer eíta idéa caza com eftoutra ( quando af- iirma ) ou efta repugna á outra ( quan- do nega ) E quando o entendimento difcorre , forçoíamente ha de dcfen- volver huma idéa , para ver fe dentro delh acha coula que puche , ou que repugne ao predicado , que lhe que- rem dar. Baron. Entendo bem : a differenja da Imaginação ,6 do entendimento faz que a Imaginação fó pode pintar couías fenfiveis, que nos entraô pelos cinco fentidos ^ e o entendimento pinta o que T!aràe fexta. t^^ que he fcnfivel , e também o que nao he fcnfivel , porque pinta tudo fobre que difcorre , e até pinta as 7íegaçÓes ,' quando fobre ellas difcorre ^ como Vós dizeis na Lógica contra Wolíio , fc me naò engano. Theod, Louvo- vos a memoria ; mas aílim Jie. Ifto pofto nós podemos ajuntar as idéas , que nos parecer , c fazer humas idéas compoílas : v. g. tenlio idéa de lijiha , ajunto-lhe a idéa de reHídao y e pinto hum a linha reSía : depois ajunto-lhe a idéa de numero três V. g., e digo : Três linhas rcElas , vou acere fcentando a idéa de união entre as fuás extremidades de duas em duas , e appí.rece a idéa de Triangu- lo reãilineo ; ultimamente ajunto a idéa de igualdade , e tenho a idéa compofta de Triangulo reãtlineo equi- latero. Bar ao» Mas fe nós ajuntar-mos idéas repugnantes , v.g. Circulo , Quadra- do , naó fica idéa compofta ? Theod, Naô : fica huma idéa quiméri- ca ; porque huma dcftróe a outra. Ora para huma coufa fer compofta de duas , convém , que depois de juntas perfe ve- xem ambas na fua natureza j e iílb naó 134 Recreação Filofojica naó temos nós quando as duas idéas fao repugnantes , como faó eíTas de Circulo triangular , ou quadrado , í^c, porque nem iie circulo , nem he trian- gulo , nem he coufa que pofla íer. HaraÕ. Já conheço a dilierença \ conti- nuai no Yofio difcurlo. Tb^õd, Mas reparai amigos , que fó po- demos ajuntar á primeira idéa as ou- tras j que lhes faó cognatas ; ifto he , da mefma ordem. V. g. A' idéa da Ma^ teria ajuntamos á idéa de extenfao , e dizemos grande ^ ou pequena ; ajun- tamos dura , ou mollc pela reliítencia que faz a outra matéria, Scc. A' idéa de cor ajuntamos o fcr encarnada , ou verde , Ò"c. A' idéa àe fom ajun- tamos o ler agradável , forte , femc' Ih ante , fuave , harmoniojo , è^f . A' idéa de fabor ajuntamos a idéa de doce 3 amargo , azedo , injípido , í^c. Baron, Quereis dizer , que a cada coufa fó devemos ajuntar as idéas das qua- lidades , ou aíFecções , que lhe podem quadrar. Theod. Ora , Senhora , fe Vós fallalTeis com hum homem prcfumido de fabio , que trocaíTe todas cilas idéas , appli- cando as aiFccçoes de humas a l.ujei- tos Tarde fixta. i^^ tos eílranhos. Ponho exemplo : fe vos ciilíerfc que tinha vi fto huma cor aze- da , iium Jom encarnado , que nao ri- ríeis Vós r^ Baron, Eu linha-o por doido ; ou pelo menos por extravagante. Thcod, Eííá bem ; ora iembrai-vos diíTo. Vamos adiante. O eípirito também tem fuás aíFecçÕes , que lhe pertencem , que faó o penfar , o querer , o amar ^ o aborrecer^ o e [colher '^ e cíles eíFei- tos {ào próprios diílo , quefe chama Ef- j)trito. Porque nós chamamos Efpirito ao principio qutpenfa , ou quer , e dif- corre ; ^í". Se lhe quizerem chamar de outro modo , podem fazello : po- rém fervinclo-nos da linguagem com- mum 5 aíiim como damos á matéria eftas aíFccçòes , extenfaÕ , figura , mo^ vimenío , choque , C^í*. affim damos ao Efpirito eíloutras ; penfar , querer , amar , aborrecer , ef colher , (^c, Pa- rece-me que até aqui tudo he claro , e conforme á boa Razaó. Barão. Para mim tudo ilTo he jufto , e também para a Baroneza , fegundo o que nella percebo. Baron. Já vejo , Theodofio , a voíTa ma- lícia : apollo eu que me quereis di-- xcr 5 136 RccreaçaS Filofojica zer , que aíTim como he matéria de riíb trocar as affecçóes , cu attriburos do fom 5 c cores , chamando a hum fom amarello y e a hum^ ,cór f onera -y aílim também íerá a matéria de rifo , dizer que a Matéria penfa, TCbeod. Adivinhaftes , Senhora : mas Vós começaíles a troca ( e deixin-me dizer alfim j e a contradança dos attributos , e naô a acabaftcs. Déíles á Matéria os attributos do Efpirito , e fahio Ma^ teria penfando ; falra caiar agora o Eípirito com os attributos da Maté- ria , c- fahirá o Efpirito quadrado \ teremos metade de hum penfamento ; hum quarta de amor , hum difcurfo amare lio ; hum amor verde ; porque tanto podemos nós dar á matéria o officio do Efpirito dizendo que a Ma^ teria penfa , como dar ao Eípirito , c íèus acbos a$ propriedades da maté- ria , que laõ extenfaõ , metade , quar^ to y câr amare/Ia , verde , &c. Baraõ, Todos nós rimos, e o cafo he para iífo. Thead. Meu Barão , toda a vez que os attributos , ou officios de huma coufa íe daó a outra de caradler diverfo > i«ihem defpropoíuos. Eu naò falia quau-^ Tarde fexta. 137 quando as palavras fe tomao em kn-- tido metafórico , como quando dize- mos hum difcurfo fólido ^ hum pen- f amento agudo ; porque ahi ha outra razaô ; mas tomando as palavras no feu íentido natural ; vede que deípro- poíitos fahem , ainda trocando os at- tributos de coufas fenfiveis , como faó os que pertencem aos noííos fentidos. Dizei que os olhos ouvem ; que os ou* vidos vêm , e com tudo íao ambos ef- tes fentidos corpóreos , animados pe- los cfpiritos nerveos do mefmo cor- po. Pofto que fejaó difemeihances , bem parentes faõ ; mas nao podem trocar os feus officios. Dai ao fabor^ o epithero de a%ul ; dai ao fom o at- triburo de encarnado , ou á harmonia o nome de quadrada , ou ef quinada , epithetos que faó do ta^lo , e vereis beilos difparates. Ora fe troca r^do nós os officios de coufas materiaes , e fen- fiveis , e cafando as coufas , que fao parentas em fegundo gráo , ( deixai-' me explicar aííim ) fahem monílros ri- dículos , fe cafar-mos coufas , que fao íaõ difparadas , como a Matéria , e o Efpirito , que nao pódcm ter maior diíproporçaó , e combinar-mos a cx- tcn^ ijS Recreação Filofofica tenfaS , metade , quarto , foUdez , fi-» gura y cor y Ò^c. propriedades da ma- téria 5 com penf amento , njontade , ^- vior y ódio , dãvida , efcolha , d^r. ef- feitos , ou aólos do Eípirito j lahiráo ainda mais enormes monllros dizen- do : Amor verde , penf amento trian- gular 5 huma metade de ódio y huma dtívida quadrada , c^r. Baron, Ora tornai cá , meu Baraõ , a vir- me com as Metaáficas lá deffes vof- fos livros novos : confeíFai , confef- fai agora , que eu tinha bem razão de me efcandalizar do que Vós me dizieis 5 que alguns aífirmavaô que a matéria poderia algum dia penlar. Baraõ. Eu naô diíTe iílo : diíTe que al- guns diziaô , que talvez pelo tempo adiante , fe defcobriria alguma razaõ para dizer , que a Matéria podia pen- far. Baron. Como vêm de longe o defpro- poliio , elle deve fer bem horrendo ; pois naô ouía a apparecer : he como quem diz : Quem fabe íe pelos tem- pos futuros virá lá do Pólo Antarti- co hum homem que diga , que Vós Bar^o ( fendo o melmo que agora fois) appareceíles lá noaracavallo em huma Águia Tarde fexta, 139 Águia feito Júpiter , efpalhando raios peio mundo ; e iílo daqui a duzentos annos : que diries Vós dillo ? Pois to- da eíta plauíivel quimera naô ata cou- ias taó diítantcs , e iníbciaveis , como eííe dito , que pelos tempos futuros poíTa apparecer razão que diga , que a Matéria pode penfar, Baraõ, Vós , minha Irma, cílais mui a- diantada na matéria de argumentar. Quando eu vos deixei para ir para o meu Regimento de Carabineiros , Vós naó tinheis e(Ta argúcia. BaroTí, Pois que ? Vós cuidais que as mulheres nao tem cabeças , fenaó pa- ra toucados ? nem tempo y fenaó pa- ra os enfeites ? Muitas graças a Theo- doíio 5 que nos deo a nós eice efpiri- to de difcorrer , e a mim efta defcon- fiança de me firmar cm coufas , que nao faó fólidas. Theod. Ora já que voíTo Irmaõ vos acha tao adiantada em difcorrer , refpon- dei-ihe áquella razão , que cWq diíTe , dos novos inventos , e maquinas paf- mofas 5 que cad^ dia apparecem.; que he o fól ido fundamento para que al- gum dia poíía apparecer matéria que pcnfe. ' Baron, 140 Recreação Filofojica Baron, Em quanto vos tenho a Vós pre- fente , antes vos quero ouvir ^ do que fazer a vaidofa figura de íiiofof^ir, Ref- pondei Vós , Theodoíio , que eu niíTo fempre hirei aprendendo. Theod, Meu Baraô , os novos automa- tos , ou maquinas que apparecem , to- dos nafcem de novas combinaçóes da inateria , todas dentro dos limites da fua figura , extenfao , movimento : a- qui íe reduz tudo , e fora daqui naó tem a matéria nada , que tenha ap- parecido. E como o penf amento ^ dú" líida 5 amor , complacência , ^r. naô tem parentefco com figura , movimen- to, extenfao , como quereis efgarava- lar nos efcondrijos da FoJJibilidade , para ver fc achais lá Matéria que penfe. Barão, Já que me tocais no infinito the- fouro da FoJJibiUdaàe , nao poderá Deos , que he Omnipotente , ajuntar á Matéria extenfa a qualidade de pen<» far} T^heod, Deos pôde ajuntar á Matéria cx- tenfa hum principio , que penfe, dif- corra , e ame , &c. Baraô. Pois ahi eílá o que elles dizem ? Theod. Dais-me licença para rir ? Baraõ. Tarde fexta. 141 Baraõ, Na6 vejo o motivo : que dizcis^ Baroneza l aqui ha motivo de rifo ? Baron, Naó o vejo : com que Vós Theo- doJio concedeis que Deos pódc ajun- tar á Matéria extenft , hum principio, que peníe , difcorra , c ame ? Theod. Pois Vós y Baroneza , c voíTo Ir- mão , e eu naò fomos huma matéria extenfa , e figurada ,*á qual Deos ajun- tou hum Principio que he a nofia al- ma , a qual penfa , difcorre , c ama ? Bcíron, Tendes razaô para rir , que tam- bém eu de mim mefma me rio j ven- do que me parecia impoífivel o que cm mim , e em todos os mais eítou vendo. T^eoJ. Meu amigo : Deos pode ajuntar duas couias dilFerent^s , c fazer hum compoílo 5 mas naÕ pôde fazer que hu- ma íeja outra : pode ajuntar a Mate» ria com o Isfpirito ; mas nao pode fazer que a Matéria feja Efpirita. Em nós pôde ajuntar corpo , e alma ^ e cada huma deftas panes goza das Xuas propriedades , e ambas ellas fe attribuem ao Todo : por iíTo dize- mos : EJla Menina formoza dijcarre hellamente , onde a primeira parte de fer Menina , e fer formofa pertenci^ fó 142 Recreação Filofofica fó á Mareria j mas o dif correr perten- ce á fiia aima , porém nunca le diz , que na Menina a Matéria dif corre , nem que o Efpiritohe formojo. Ponha- mos mais exemplos : Se dilTermos que o Circulo he amare lio , que I44 Recreação Filofoficã TARDE VII. Da Efpritu alidade , e Immort alidade da Alma, §. I. Ha fua Effiriíualidade. Baron. IVT Ao vo? poíTo explicar i x\ Theodoíio , a confolaçaô , que me déftes Domingo paíTado , quan- do difpuraíles com o meu parente , o Chevalier y lobre a Immorralidade da noíTa alma : cu na6 cuidei que ellc citava tao contaminado na Religião , que chegalTe a aílentar , que a fua al- ma morreria com o corpo. Iheod, Pois eu eftava mortificado , re- ceando , que o voíTo refpeito fícaíTc offendido com as minhas refpoftas , cm que por fím faltei á attençaõ , que fc devia a hum Cavalheiro voíFo pa-»» rente , e da fua idade. J^aron, A fua idade o defculpa , e tam- bém fer hum fidaJgo , que fomente fe Tardt fithna, 145. occupou na fua vida no ferviço mi-, litar : mas eu nao fei que as voíTas, refpoftas ofFendeíTem a cortezia , que Jhe he devida. Theod, Pois nao reparaftes na Razão uU rima , que elle me dava , para dizer que a noíTa alma morria com o corpof Baron, NaÕ me lembra. Theod, Elle por ultimo dizia : Eu veJQ que os cavallos comem , dormem ^ tem filhos , e morrem : o mefmo ve* jo nos homens j ajfento que nós fo- mos como elles :*eu refpondl p romp- ia mente : Vós f éreis o que quiserdes ^ eu naS, Elle naó reparou na malícia da minha refpofta , de que eu depoia me condemnci a mim meímo. BaroH. Elle tinha-vos impíicientado com. muito defpropofito ; tem defculpa hu-» ma viveza enfadada com ridículos ar-» gumentos j e eu com o rifo disfar^ cei , que tinha percebido a voíTa ma4 licia. Mas vamos ao ponto fériamente, neod. Bpm feria chamarmos voíTo Ir-^ máó , que me diífe , queiia fallar co- migo neíla matéria : elle he efpecu- laíivo , e precifa inftruir-fe bem nef^ tes pontos , porque a vida militar q expõem a mil combates. Tom, IX. 4 Barofí. 146 RecreafaS Filofofica Baron. He jufto , e cm quanto Vós dlf- putais 5 eu me vou inftruindo com du- plicados meios. Poucos dias ha , que me cahio nas mãos hum cadcrninho impreíTo , em que fe dizia , que cer- to Author ( cujo nome me efqueceo ) * entre os Vegetaes , e os Animais fup- punha hum parente fco taÒ grande , que fomente punha a diiferença de mais ou menos gráos de perfeição , e que outro punha tal parentefco entre os brutos , e o homem , que também nao diíFeriaÒ fenaò em mais , ou menos grãos de perfeição : e deíle modo en- tre o Hortelão , e a couve , que elle planta , fomente ha diiFerenja de mais ou menos (i). Btiraõ, Eu fou chamado a juizo j e pa*» ra que íim ? B^ron. Para vos perguntar , fe quereis pertencer á claíTe da couve , ou á claf- * i'e dos brutos , de que nós fomos pa- rentes em gráo mui chegado , fegun- do os Filofofos da moda. Barão. Já fei o motivo da voffa pergun- ta , e naõ eftá mui longe o livro , em que eu li eífc fyílema de querer reu- nir CO ^ hms"^ planta, p. 31 > e 24. Tarde f et ima. 147 nir tudo em huma claffc. Para unirem . os Vegetaes com os brutos , lhes fer- vem de paíTagem os pólipos , que fao Infeftos , que muitos annos paíTáraa por pequeninas plantas 5 tendo a figu- ra delias ; e ultimamente fe defcobrio , que eraô animaes , e animaes vorazes , porque comem huns aos outros , até os feus íemelhantes. Tbeod, E nao ha muitos mezes , que ca vi huma Lombriga , que tinha inteira- mente 5 como os Pólipos 3 a figura de hum ramo de arvore , cuja cabeça ef- tava no tronco , e cftava viva ; tei;ia de comprido quatro pollegadas ;, e o tronco de groíTura de huma penna de efcrever delgada , e a cor muito cla- ra. Conftou-mc depois que a mefma peffoa lançara legunda da mefma for- ma : com que a união das duas claf- fes he fácil , metendo-Ihe efte degráo, no meio. Baron, E que degráo poráo elles para comraunicarem o homem com os bru-i tos ? Barão. Os Bugios : porque eíTes tem muita femelhança com os homens* Qiie- reis Vós fabcr o que eu li }iá poucos K ii ipas '148 Recreação Filofoficã dias (i) ? Eu tomei de cór as pala- vras : Todo o Reino animal ( diz efte livro ) he compojlo de dijferentes ef" fecies de Bugios , huns mais habili' dofos do que outros , na cabeceira dos quaes Pope collocêu a Neuton, Vedes , minha Irma , que tendeg innumcra- veis parentes , que Vós naõ conhe- cieis : daqui por diante teremos me- nos preíTa quando corrermos a pofta ; porque em fim , nefte fyftema os ca- vallos faó noffos irmãos. Baron, Contentarnos-hemos com fermos Bugios mais perfeitos do que os or- dinários. JBaraõ, De vagar, que também dizem mui- tos deíles íenhores , que ellcs faô mais perfeitos do que nós. Os brutos ( á]z hum grande homem dos feus (2) ) tem huma alma capaz de todas as opera- ções , que forma o efpirito do homem ; itto he 5 de conceber , de ajuntar os penfamentos , e tirar huma boa con- iequencia. E outro (3) diz, que os homens efpalhados pelos matos obfer- vã- (O Siílema d'Epicur. (2^ Phjlofoph. du Bonfenf. (j) L' Origine dei' inegaiité des homes. Tarde fetima^ 147 'vãraS , f imitarão a inàujlrta dos brutos j e que affim fe elevarão quaji ao injiinão dos brutos. Com que , mi- nha Irma abarei a voffa vaidade , por- que os brutos foraõ os noíTos meítres ; e nós ( quando muito ) nos elevamos y c quafi que chegamos ao feu juizo. Ou- tro (i) diz , que a razão delies naa terem as producçôes de juizo , que nós temos 5 he porque tem patas em lu- gar de dedos , e porque a fua vida he mais curta que a noíía. Como el- les tem milhores armas , e melhor vef- tido do que nós , tem menos neceíll- dades , e por iíTo tem menos inven- ção ; pois he coufa fabida que o nof- íb meftre quafi univeríal he , e teni íido a Neíeffiãade, Baron, Bafta ^ baila ; que já me aborre- ce ouvir tanto defpropofito : vamos , Theodofio , a fallar feriamente da noí- fa alma , que efta he a matéria ( meu Irmaó ) para a nofla conferencia. BaraÕ, Eílou attento , c goílo de vos ouvir , Theodolio , nefta matéria. Theod. Dois pontos ha aqui ; mas hum depende do outro : o primeiro he , fe (O Eí&it. de i'EíprJt. l^o Recreação Filofqftca fe a alma he efpiritual : o oUtro he, fe fica por iíTo immortal. Quanto ao primeiro , já nós falíamos hum deftes dias 5 que tratámos da diíFerente idéa j que haviamos de fazer da Matéria , e do Eípirito, dando a cada coufa def- tas as fuás propriedades , e eíFcitos ; e já fe vê , que rendo nós a faculda- de de penfar , e de querer , naó po- demos tcrhuma alma que feja matéria. Baron. Se he taô impoíTivel , que a Ma- téria penfe , e eícolha , e queira , e ame , e aborreça , e duvide , &c. co- mo he impoíTivel , que o fom feja a- marélo , ou o penfamento verde , ou o amor encarnado , já fe vê que a noíTa alma he efpiritual, Baraõ. E que dizeis Vós da alma dos brutos ? Eu tenho lido , que muitos Catholicos feguem , que ella he efpi- ritual. Theod. Bem o fei j nunca tal julguei , nem poíFo julgar : e naó obílante os grandes fundamentos 5 que elles tem, eu nunca me pude inclinar a iíTo ; porque ha grande differença da noíTa alma ás fuás (i). Barão. (1) Recreação , tom. 5. Tard. 22. Tarde fetima. i^i Baraõ, Sempre he mais imperfeita. Theod, De vagar : porque íe elles tem alma , que governe , dirija , e coor- dene as fuás acções , tem alma mui- to mais perfeita que a noíTa. Baron. lílo agora naõ creio , meu Ca- valheiro , perdoai-me. Tbeod, Reparai , Senhora , que os bru- tos obrao fcm eftudos , fem educação , fem livros , fem experiência , e fem inftrumentos , e fazem coufas ás ve- zes muito mais perfeitas que os ho- mens. Dizei-me : as Andorinhas , e mais paífaros de arribação , quando fazem os feus ninhos o primeiro an- no 5 os fazem ta 6 perfeitos , como o ultimo ', e nenhum homem os faria aílim , tendo em lugar de mãos , ç de inftrumentos fomente hum bico , e dois pés. A Andorinha que nafceo em Lisboa , fim nafceo no feu ninho ; mas naô o vio fazer y e chegado o Inver- no partio para a Africa , e lá nunca vio a feus pais fazer ninhos , porque lá naó criao , voltou no VeraÓ leguin- te para a Europa , e cuidou logo em fazer o feu ninho. Mais. Quem enfmon ás Abelhas novas a fazer os feus favos com a geo- ifi Recreação Filofqfica geometria admirável , que todos vem , e ninguém antes delias havia de idear, taô própria a íeus fins ? Ninguém por mais douto , que feja , poderá dar idéa diíFerenre , fem muitos defeitos. A A- belha fahio do leu cortiço , e como naiceo cm huma cafinha de cera já feita , njiõ a vio fazer. Sahe com a fua Àbclíiâ meftra , e mais familia , e no primeiro cortiço , ou concavidade ef- cura , que achaó , fazem o feu favo ac- commodado ao lugar ; mas feguindo a mefma idéa inimitável. QLial iic o Jiomem , que fem experiência , fem vêr , nem ler , nem eníino ;, nem inf- rrucçao alguma faça obras perfeitilli- mâs ? BãraS. Mas iíTo he , Theodofio , tudo a nieu favor ; porque creio que tem alma efpiritual. Tkeod, Hum pouco de paciência , meu Barão. Digo que as obras dos brutos pedem tnuito juizo , c juizo muito maior do que o dos homens , quan- do ellcs faõ como os brutos ; ifto he , fem eníino , nem inílrumentos. Até aqui naò ha dúvida. Agora a dúvida he , {2 eilc juizo , que dirige as íuas obras , he a alma que eíti lío bruto , ou Tarde fetima. 15" 3 ou fe he couía fuperior que efteja fo- ra deíTa alma. Baron. Naõ entendo ; iíTo he enigma ; e porque naÕ dais eííe juizo aos brutos , íe elles fao os que fazem eflas obras , e fe governaô com eíías acções ? Theod, Porque vejo nellas duas coufas , que me obrigaõ a naÓ lhes dar a clles eífa gloria. Huma he a uniformidade das fuás acções em todos os feculos, e em todos os lugares do Univerfo. As Abelhas na RulFia ^ no Japão , na America , na Africa , e em Portugal fazem os feus favos com o mefmo ril- CO , e fabrica , fem difcrepancia ; c taõ perfeitos fe fazem agora , como fempre fe íizeraô» Baron, Creio iíTo com facilidade. Iheod, Logo naô he a fua alma , que dirige as fuás obras. Porque primei- ramente he impoílivel , que o Acafo fortuito feja cauía de huma tal feme- Ihança em tempos , e lugares rcmotif- íimos. Dizei , Baroneza , e Vós tam- bém Baraõ ; pode fer que por acafo hum homem raça aqui em Baiona hu- ma obra femelhante inteiramente a ou- tra 5 feita, na Ruília , e outra na Ame- rica 3 fem fe terem os artitrccs com- mu- 154 RecreaçaS Filofojica municado entre íi ? Que obras de ho- mens achais aíEm conformes ? No co- mer , no reítir , no edificar , no na- vegar , nao achareis femeihança ; nao obftantc que todos aprenderão com o mcfmo meftre , que he a Neceffidade : todos tem a mefma neceffidade , mas cada qual come a feu modo , veftc por feu feitio , edifica fegundo a fua fantazia , e forma as embarcações por feu modello. Ainda quando os livros , e os meílres , e a experiência vaó de huns a outros homens , fempre ha dif- ferença nas fuás obras. Logo como po- dia fer, que nao fc communicando os brutos entre íi , as fuás obras em todos os lugares fejaô as mefmas ? Como pode ifto fer, fem que haja hum en- tendimento , que veja em todos os lu- gares ? Como podem fer as mefmas cm todos os fcculos , fem que haja hum entendimento que aíhfta a todos os tempos ? Aguçai , meu Baraó , o voíTo difcurfo Mathematico , e expli- cai-me ifto. Como podem obras dif- tindlas em tempos , e lugares diver- fiífimos , fem haver communicaçaó al- guma , nem por livros , nem eílam- pas y nem meílres , nem experiência , fa- Tarde fetirna. i$^ fahir perfeitiírimamente femelhanrcs ? Só por mero acafo ? Barão, líTo he de máxima impoiTibili- dade. Theod, Logo fó podem proceder de hum juizo 3 que veja em todos os lugares , e cm todos os tempos , em ordem a combinar , e ajuílar humas obras com outras para fahirem perfeitiíTimamen- te femelhantes. Refpoiídei-me. BaraÕ. Parece-me iíTo fummamente ne- celTario : fcm que eíTa caufa dirigen- te aíliíla a todos os Jugares , e tam- bém a todos os tempos , nao pode ajuftar perfeiriíTimamente coufas tao diítantes. Thcod, Accreíce a ifto , que nos homens íim achais alguns movimentos intei- ramente femelhantes em todos os tem- pos , e lugares ; mas faô os movimen- tos , que naó dependem da íua liber- dade 5 como he o palpitar do cora- ção , o ref pirar , e todos os mais que eílaõ na Natureza , e nao na vontade livre : neftas coufas ha uniformidade j mas no que he livre , e procede da alma voluntária , achareis fempre mui- ta diífemelhança. Ora a difpoíiçaô de meios , para os fins , que fe propõem , fao içó Recreação Filofofica fao obras de vontade , que efcolhe o que he livre. Barão, Que me dizeis Baroncza ? Que fali ida \\iQ dais ? acudi-me , fe podeis. E que refpofta lhe dais Vós , Theo- doíio ? Theod, Dou efta : a Intelligencia Divi- na , que ve em todos os lugares , e tempos 5 he a que de tal modo difpoz a organização das Abelhas , que íem jui- zo próprio , mas por impulfo aliíeio façaô eíFas obras taó reguladas. AlTun como hum Relojoeiro em Genebra faz Relógios para toda a Europa , de for- ma que todos os da fua fabrica fazem iguaes movim^entos em qualquer par- te do mundo , onde os levarem. A difpofiqaó para a ordem , e proporção com que o Relógio faz os feus mo- vimentos regulados , nao eftá no Re- lógio , eftá no Relojoeiro. AíTim fao as acções dos brutos , e da fua alma : cila obra as acções , aíTim como a mo- la do Relógio obra os movimentos ; '■ mas a alma naô governa , nem com- bina , nem efcolhe , nem proporciona as acções do bruto com os feus fins ; bem , como a mola naõ combina , nem proporciona , nem dirige , «em efco- lhe Tarde fe tinia. ijj lhe òs movimentos do Relógio em ordem aos fins a que elles íe deí- tinaó. Toda a combinação , e gover- no eftá fóra do Relógio , e também fora do bruto. Baraõ. Naó fei refponder, vamos adian- te : c qual he a outra coufa , que Vós vedes nas acções dos brutos , para lhe» negar a gloria de as dirigirem elles mefmos ? Theod. Ver que defde o principio do mundo até agora nunca houve milho- ramento , nem invenção nas obras dos brutos. Olhai para as obras dos ho- mens 5 e ficareis pafmado do que vao cada qual accrefcentando aos antepaf- fados. Nos princípios da Impreffaá eraó as letras gravadas no páo , de- pois paíTou iíTo para o metal ; depois íe tem poílo em tal perfeição , que he pafmar. Pelo contrario, que adian- tamento tem os favos de mel ? ou as téas de x\ranha ; ou os ninhos dos paf- faros ? &c. Tudo he agora , como lem- pre foi : logo naó he a fua fabrica dirigida pela alma dos brutos com in- telligencia própria, e própria liberda- de , como nos parece. Baron, Bem percebo o voífo argumento." Quem 158 Recreação Filofojica Quem vê a fagacidade dos Bugios , Aranhas , Abelhas , &c. lem terem meftres , nem experiência de ver fa- zer fenielhantes obras , nem inftrumen- tos a propoíito , nem educação , li- vros , ou modelios ; e que os homens nunca tal íizeraõ ; e os mais hábeis de- verão a fua habilidade , e difcurfos . a mcílres , livros , experiência , eftudo , &c. Quem vê (dizeis ) eíta íuperiorida- de da parte dos brutos , eítá tentado a crer, que a fua alma he mais perfeita que a noífa : mas quem vê que elies defde o principio do mundo atégora na- da tem adiantado na perfeição delias , quando os homens nunca paraÔ , e fem- pre vaó accrefcentando , fica obrigado a negar-lhes a elles a direcção , e go- verno das acções ; iílo he , que elles voluntária , e livremente façaõ efta acçaô com eíle fim , e outro , otc. Nao he iílo o que dizeis ? íTheod. Nao ha dúvida , que he a força do meu argumento , para provar a grande diiFerença entre a alma do ho- mem y e as dos brutos ; e que a nolTii , que obra com própria intelligencia , reflexão , liberdade , e efcolha , &c. nao pôde deixar de fer eípirito , fe- ' Tarde fetima. 159 "^ ja a alma dos brutos o que quizerem , porque nelles naô ha , nem perfeita in- telligencia , nem efcolha , nem liber- dade. Barão, Eu nunca me poderia perfuadir; nem fei que homem ierio ie períiia- da 5 que deixe cada qual de ter em li huma alma efpiritual , vendo que nós fomos dotados de conhecimentos , e da liberdade das noíías acções , e de amar, aborrecer, duvidar, 6cc. o que certiífimamente naô cabe na matéria. Vamos adiante á Immortalidade da noífa alma , que he o ponto mais con- trovertido entre os Incrédulos. Theod, Primeiro devemos tratar da fua íimplicidade. §. II. Da Simplicidade da nojfa alma. Baron, /^ Ue quer dizer Jimplicidadc \^ da alma ? NaÕ entendo bem eíles termos. ^heod. Chamamos Jimples huma coufa quando nao he compofta de muitas. Na noíía alma ha varias funcçoes : .ella aprehende , julga ^ difcorre > du^ vi-' j6o Recreação Filofojica vida , nega , &c. e ifto fe chama En^ tendimento. Ella fe recorda do paíTa- do , e iíTo i'e chama Memoria : ella ama , aborrece , quer , e naô quer , efcolhe , dcfpreza , e iíío íe chama Vontade, Agora alguns queílionao fe ifto fao diverfas coufas que fe ajun- tem na alma , aílim como no corpo fe ajuntaó o cérebro , o coração , e eilomago , que tem cada qual luas de- terminadas operações , que naó fe podem trocar , e faõ entre fi coufas muito diverfas, Baron. Eu aíTento que tudo he o mef- mo , e que as três diverfas potencias / fao três empregos da mefma alma. Theod. Affim fe diz commummente : mas eu levo o meu penfamento mais avan- te 5 c pergunto , fe eíTa alma , que en- tende j quer , e fe lembra. Se he hu- nia coufa íimples , ou fe he ( como o corpo em que vive ) hum compofta de varias peças : eícolhei o que qui- zerdes , e vamos difcorrendo. Barofi. Ora eu quero , por traveífura de entendimento, quero fuppor que a nof- fa alma fe compõem de muitas par- tes fim pies. Vejamos como me arguis de falfidade. Sede Vós , meu Irmão , Tarde fetimê* l6t juiz dcfta noíTa difputa , para vêr de, que parte fica a razaô. Barão. Com gofto \ porque ainda cao vi difcorrer neíTe ponto. Vede Vós , Theodofio , como diícorreis : olhai que eftou feito voíTo juiz. Theoã, Sê-de embora. Se a noíTa alma he compofta de muitas partes efpiri- tuacs j eu quero faber fe cada hunm deíTas partes per fi íó he inteiligen- te 5 e í"e hc livre, e tem alvedrio? £aron, líTo naó : a alma 5 que dcíTas par* tes rcfulta , lie que tem intclligencia , e vontade : porém as partes , de que fe compõem , naõ tem eíl a intclligen- cia : aíFim como hum Relógio tenx movimento , e as partes de que fe compõem feparadas , nao tem movi- mento. Thsod, E naÔ me direis Vós , de que modo fe pódc fazer , que de muitas partes , das quaes nenhuma tenha in- teliigencia , refulte huma alma inteU Jigcnte ? líto de Intelligencia , ou Von- tade naó pode nafccr da combinação ^ e ajuntamento de partes. A compara- ção do Relógio naó vos defende ; por- que o Relógio fem corda naõ tem mo-.^ yimento algum 3 e as fuás partes en^ Joxn. IX. jt* par-. t6i Recreação FiJofqficã particular também nao o tem ; e fe íallais do Relógio com corda , que tem movimento , hc porque a mola real lho dá ; e eíTa mola real fó por li 3 fe a enrolarem , c depois a dei- xarem , le fól ta com movimento rá-* pido : eíle movimento , que na mó- Ja folta, dura hum inftante 5 quando o Relógio eftá armado , dura vinte e quatro horas ; porque a combinação das rodas , e a pêndula a demóraõ , e naõ deixaõ que a mola fe defen- volva 3 fenao pouco a pouco. Fazei Vós 5 que a mola real eftalle , parou o Relógio 5 e naô tem m.ovimento o todo 5 porque também a parte delic o náõ tem em íi , nem lho pode dar. Barão. Minlia Irma , eu fou juiz , nao teimeis , que eu naõ poíTo entender como de muitas peças naõ intelligen* tes refulte huma alma, que entende, quer, e difcorre , &c, Baron, Pois fcja huma parte da alma in- íclligente , c outra feja dotada da von- tade 3 e de ambas juntas refulte a al- ma , que he intelligente , e livre, TheocL Também naõ pode fer ; porque elía parte da alma , que livremente quer ^ c que efcolhe , deve faber que he Tarde fetima. 16^ he iíTo 5 que ella quer , e porque ra- zão eícolhe. Se eíía parte por fer pri- vada de intelligencia naõ entende na- da 5 e he cega , como pode amar , como pode aborrecer , como pode pre- ferir itto áquillo ? Se Vós , Baroneza , tiveíTeis duas criadas , das quaes hu- ma viíTe muito bem , mas foíTc muda> para determina* coiiía alguma ; outra falIaíTc muito , e foíTe capaz de deter- minar tudo , mas eftiveíTe cega , e fur-^ da ; que poderiao fazer em voíTa ca- fa , quando Vós vos naõ achaíTeis neila ? Baron, Nada fem dúvida ; porque a que via naô podia dizer nada á outra ; e a que podia mandar , nem via ;, nem lhe diziao nada , porque era furda. Eftando eu em cafa , entaô a que via , com acenos me dava parte a mim , e eu me valia da outra para fallar ^ q dar as ordens. Barão, Pois então ponde Vós , Barone-^ za 3 três partes na alma , huma que fe* ja intelligente , outra que tenha a li- berdade . e a terceira que fe íirva de ambas , para fazer que a intelligencia de huma governe a liberdade da outra, Baron, Pois feja aífim : tenha a noíTa al- L ii inâ Í54 Recreação Filofojíca ma três partes : fiquemos nilTo. Theod. Mas efta terceira parte que vai fazer a voíTa figura ^ deve ter intelli- gencia para entender o que lhe diz a criada , que vê ; e deve ter liberdade para determinar o que lhe parecer á criada , que muito falia. "Baron, Por força deve fer aífim : feja como quizerdes, cofti tanto que po- nhais trcs partes na alma. 2'heod. Efta bem : ora tendo Vós ncíTa alma huma parte fimples , que parti- cipa 5 e tem a intelligencia da primei- [ ra ; e que também participa , e tem a liberdade da fegunda , neíle cafo ten- des huma parte da alma , a qual por íi fó pode mui bem fazer tudo o que faz a Alma toda , porque ella he /;;- telUgente , c livre, Baron, Naõ o poííb negar. Hheod, Pois fe Vós admittis huma par- te da alma , aue fendo fimples em íi tem tudo o que faz a Alma total , de que fervem lá effas duas peças efcu- fadas ? Vamos á comparação. Se Vós eftais em caía , e podeis vér , e po- deis fallar , de que vos fervem cíTas duas criadas huma cega , outra muda ? Barão, Botai fora , mmha Irmã ^ cíTa^ ;..-; duaç Tarde fetlmai t6f duas criadas inúteis , e confeíTai z Theodoíio , que a alma por força de- Ye fer fimples ; ifto he , que a mef- ma fubftancia , que entende , he a que tem liberdade, rizefte-me juiz , tende paciência , que fcntcnceio fem carne , nem fangue. Baron, Eftou pela voffa fentença ; e ago- ra fico firme no que Theodofio tem provado : paíTemos adiante. ITheod, Agora fegue-fe a grande queftao da Immortalidadc da Alma , coufa que cftes Senhores nao querem conceder por modo algum. §. III. Da Immortalidade da Alma. \ BaraÕ. HH Enho obfcrvado , que efte X he o ponto , em que elles fallao com maior empenho. Baron, Com razão : porque fe a alma morre com o corpo , naô tem que te- mer caftigos das fuás defordens ; nem O virruofo pode efperar premio da fua virtude. Eu nao lei nada das voílas "provas metafificas ; mas o que fe cafa mais com a razaõ ( ainda prefcindin- do i66 'Reereaçaõ Filofofica áo da Fé ) he , que a iioíls almíf he Immonal ; porque , dizci-mc Barão , o Creadcr ^ que nos deo a liberdade ^ e também a Luz da Razão '^ e Lei 'Natural , cerramcnic foi para que nós a ieguiíTe-mos nas acções iiv^res. Qiicm de noite dá hum arcliote ao íeu cria- do , que manda a sjgum recado , cer- tamente he para que ^\\q fuja dos prc- cipios , e figa o bom caminho , até fazer o que lhe manda. Naô he ailim, BaraÓ ? liarão. Sem dúvida : porque fe o Amo nao quizeíTe que executalTe o que lhe ordenava , nao Ví-\q. daria o recado , nem o archote para o livrar dos pe- rigos , que aconteceriaõ na execução do preceito. Baron, Logo fe Deos noídco a Lei Na^ tural ^ e a Luz da Razão ^ c junta- mente a liberdade he porque quiz , que nós feguifle-mos eíla luz , e obe- deccíTemos a eíla Lei. Barão, Sem dúvida : mas que tirais da- hi para a Imm.ortalidade da Alma ? Baron. Tiro , que fe nós na6 fizerm.os • o que Deos intenta , e obrar-mos con- tra a Lei Natural , que Elle nos dco , neceffariamcnte fe ha de defagradar dif- Tarde fetima. 16 j dlíTo , e por confeguinte (como juP- to ) nos ha de caíligar. Aliás a crea- tura poderia aíFoitamcnte zombar de feu Creador , ficando impune : o que naó he decente ao Ser lupremo. BaraÕ, Também concordo nilTo ; mas vamos ao Ponto da Immort alidade , que he o ponto da queílao. Baron, Mais paciência , Baraô ; fe Vós concordais niffo , de que quem obra mal 5 por força deve fer caftigado , e quem obra bem , deve fer premia- do 3 hum por obedecer ao Creador , outro por zombar delle , entaõ forço- íamentc ha de haver vida depois def- ta ; e a morte nao ha de deftruir a al- ma 5 porque de ordinário fucccde , que os bons 5 e virtuofos faõ toda a vida opprimidos; cos preverfos muitas ve- zes triunfaô , e levaò a diííoluçaó im- pune até á morte : e aíFim , meu Ir- maõ , bem vedes que ou depois da morte ha de haver premio , e cafl-i- go ; ou Deos ficará bem mal , dando licença que neíla vida os bons fejao opprimidos , e os máos cheios de fe- licidades. Baraõ. Agora conheço o voíTo argumen- to 3 e confeffo , que eíla razaõ he mui for- •i68 RecreaçéiS Filofofíca ^ forte ; porque além da Liiz da Ra- zão , que condemna as noíTas acçóes preverías , temos hum eílimulo , que nos remorde , e accufa , c reprehen- de ; e eftc eftímulo he fem dúvida a Voz de Deos , que nos reprehcnde j e quem zombar defla Voz para ir le- guindo a fua vontade , e defprezan- do a de Deos , forçofamente deve ícr caftigado ; e pelo contrario premiado quem for fiel a cfta Lei da Natureza , e Luz da Razaõ , e Voz interna ; ora naõ o fendo aqui , neceíTariamcnte ha de haver outra vida , cm que fe dê a cada qual o que merece. Que di- zeis a ifto , Theodoiío , que eftais tao calado ! Theod. Digo , que difcorreis muito bem ; c os que diícorrem o contrario , fa- zem á fua Razaò huma grande vio^ Jencia. Mas vamos a outra prova me- tafífica , de que Vós , Barão , haveis de goftar , por terdes génio de efpe- culaçaó. Barofj, E também cu : vamos a eíla prova. Theod, Huma coufa compofta de multas partes pode deftruir-fe, fem fe aniquiJ- Jar parte alguma delia ^ fomente pela def. Tarde f et ima, 169 defuniao 5 e defcompoíiçaá delias. Poc exemplo : Hum Palácio pode deílruir- íc 5 e íer arrazado , fem que fe def* trua parre alguma delle ; mas fó pela feparaçaò das partes que o compõem : alli íe vê a cantaria pelo chaõ , a ca- liça em montões , as madeiras em pe- daços , as telhas quebradas , e tudo feito huma montanha de deílroços ; c com tudo nada fc deftruio. Defte mo- do perecem as coufas que laÓ com- poftas de muitas : porém as coufas que íaõ íimples , naó podem perecer dcíle modo , por fe dcfmancharem : porque fe ellas naò tem partes , nao fe po- dem desfazer deíle modo. BaraÕ, Pois de que modo as pôde Deos deílruir. Tbeod. Reduzindo-as a nada , que ifta he que chamamos aniquillar : efta hc a differença de hum poder infinito ao limitado , que Deos como omnipoten- te pode fazer paflar huma creatura do Nada para o Ser , crcando-a de no- vo y e também do Ser para o Nada , aniquiliando-a. Os homens porém na- da diíto podem fazer ; fó pódcm fe- parar as coufas , que cftavao juntas , ou ajuntar as que eílavao feparadas. Quan- «70 Becrcaçab Filofoflca Qiiando fe faz hum ediíicio , nada fa- zem os homens , fenaõ ajuntar de hu- ma certa maneira os materiaes , que de longe mandão vir,* mas tudo quan- to eílá no ediíicio depois de acabado , eftava muitos tempos antes em diver- fos lugares : como também fica efpa- Ihado pelo campo tudo quanto com- punha hum edifício , quando clle fe arruina. O mefm.o digo das obras da Natureza. QLiando creíce huma arvo- re , le ajunta o que eftava difpcrfo , em quanto naò concorria a agua , e terra , ou íàts , &c. O fogo altera , muda, analyfa, refolve , &c. mas na6 faz que pereça totalmente fubftancia ne- nhuma. Efte falto do Ser para o Nada he de infinita diftancia j fomente hum ' braço de força infinita o pode ven- cer : nas obras das creaturas fó ha a differença de eftarem as partículas da matéria , ora de hum modo , ora de outro. Creio que concordais niílb ? ^J Barão, De forma o tendes explicado , que eu nenhuma dúvida tenho. Theod. Concluo agora o noíTo ponto. As coufas , que faõ fim pies , e naó conf- taõ de partes , naõ le podem defman- char, e desfazer^ por confeguintc , crea- Tarde fe tinta. . jyi creatura nenhuma tem acçad fobre el- Jas ; c deíle modo íicaô izentas de to- da a torça , que ha na Natureza. Nef- te íentido he a noíTa alma immortal ; ifto he : nao ha na Natureza força para a deíiruir ; porque fendo fimples , naÓ a podem defmanchar : ora para ani- qujllarem , e reduzirem a víada naô tem as creaturas força alguma. AíTim , fó o Creador , que a tirou do Nada , a pode tornar a reduzir a eíle Nada : o que Deos nunca faz. Baron, Agora já faço conceito da noíTl Immortaiidade; porque o homem mor- re por fcr comporto de duas coufas alma , e corpo y fepara-fe huma coufa da outra , e desfaz-fc o homem : da mefma forte o noíío corpo podem def- fazello 5 e queimallo , &c. porque conf- ta de muitos membros ; mas a alma fendo fímples ;, como dizeis , he im- poiTivel que a Natureza a dcílrua , c fica deíle modo immortal. Baraõ, E que me dizeis á alma dos bru- tos ? Theod, A alma dos brutos ; iílo he : a parte que nelles obra os mo7Ímentos , coníifte no fangue , ou na parte mais efpirituofa deilc ^ a que chamaõ e/pt- ri" 172 Recreação Filofofica. ritos anima es , ou fucco nerveo , que trabalha nos mufculos , e faz os mo- vimentos : eíla alma naõ he fim pies , por iíTo exhaurido o fangue ^ fe dlíFi- pa 5 e deftróe : a intelligencia porém , c]ue dirige os movimentos , eftá em Deos 5 e fora dos brutos : aíTim como a mola do Relógio , que hc como a fua alma , eílá no Relógio ; mas a in- telligencia ÒQÍÍQS movimentos eftá na cabeça do Relojoeiro , c naó fc aca- ba ainda que quebrem o Relógio. Já em outras occaíioes vos fallei nifto (i) : por iíTo naó me explico mais. ^aron. Agora refpiro , Theodoíio , por- que fei o como , e a razaõ de fer a noíTa alma Immortal : até aqui cria ifto 5 mas confufamente. Por ora baf- ta de efpeculações : vem vilitas , vou recebellas : Adeos. (i) Recr. tom. 2. Tard. ult. e tom. 5.Tard. i. TAR^ Tarde oitava. ij^ TARDE VIII. Dialogo folre a Religião Revelada erft commum, ^aron. T Sfo naó , Theodolio , iflb nao. X Bem pôde ler que o Conde tenha fua extravagância no modo de penfar acerca da Religião , mas In^ crédulo naõ hc : tem muito juizopa-^ ra adoptar íemelhante lyftema. TCheod, Senhora , pódc fer que eu me en- gane ; mas o modo , com que elie fet explica 5 bem dá a entender , que o feti coração eftá gangrenado : picai-lhc Vós com disfarce na matéria , e ve- reis o que fahe do tumor disfarçado. A fua máxima he efta , que Deos igual- mente recebe gloria por qualquer mo- do , que os homens lhe dem ci^lto ^ quer íejaò Mouros , quer Judeos , quer Gentios , quer Chriílaos ; que iílb de ter eíla , ou aquella Religião he o meiíno que levar o veílido de huma , ou de outra cor ao beijama6 em dia de annos , onde baila que fe- 174 Recreação Filofojica jã decente , e rico , e pouco importa o fer encarnado , ou roxo , ou azul ," &c. Mas como he terça feira , em que coíluma vir jantar comvoico , hoje vos podeis certificar do que digo. JBaroTJ, Eu pafmo de vero cxceílb a que cliegr» efta deíefperada febre de diícor- rer livremente. Theod, Naó vos admireis , porque que* brado huma vez o freio da Religião Romana , tudo ha de feraíTim. O Ca- ilíolico lujeita a fua crença ás Efcri- turas interpretadas , nao como elle quer , mas como quer a Igreja ; e por iíTo todos cremos o melmo em todosí os tempos , e cm todos os Paizes : po- rém fe cada qual toma a liberdade de interpretar a Efcritura , ou de for- inar máximas , em que fe eftribe para difcorrer na Religião , virá tempo em que dez mil cabeças teráó dez mil Re- ligiões j por quanto nenhuma razão • ha para que os outros accommodem o feu juizo ao m.eu , e eíles nao per- tendaõ que eu accommode o meu jui- zo ao feu. Baron, Todos fe devem accommodar á RazaÕ , que he a Lei geral de todos os entendimentos, Tbeod. Tarde oitava» ijf Yheoã. Dizeis bem , Senhora : todos ef- taõ por iíTo que dizeis ; mas cada qual quer que o ídolo da fua Razaá ■ feja o geralmente adorado por todos ; e como cada qual tem na lua cabeça o leu particular ídolo , todos perten- dem confeguir a adoração geral dos outros. Sc houveíTe huma lo Raza6 em todos , dizieis bem ; mas dez mil cabeças tem dez mil razoes ; e punin- do cada qual pela fua Razão , temos huma geral diíTençaé. Mag ahi eílá o noíTo Conde , fe me naô engano. Conde. Naô ha diícipula mais attenta ás lições de íeu Meílre do que Vós a fois ás de TheodoCo. Ora deixai , deixai 5 Senhora , cíías fubtilezas me- tafiíicas 5 que vos roubaÕ á bella fo- ciedade 5 para que Vós nafceftes. Eu, em vos naò vendo nas noíTas aíTem- bleas , já vos coníidero toda occupa- da nos voíTos cihidos mathematicos. Senhora , já que a Natureza vos def- tinou por elTas bellezas , que com ma6 larga repartio comvoíco , para ferdes a alegria da humana íbciedade , para que nos roubais o que de direito he noíTo ? A voíTa livraria fabeis onde ha de fer ? no voíTo toucador ^ e os vof- 17^ RecreaçaS Filofofica voíTos livros íó devem fer as joIa# precioías. As flores , e fitas fuprcm mui bem os cálculos delicados : dei- xai iflb para voííbs Irmãos , que fao foldados , e devem eíludar a Taélica. Baron, Com que em naô me vendo com jóias 5 com flores 3 e fitas , já naõ me devo prefentar na beila íociedade ! Conde, Naó digo ifl^o , Senhora , antea vos confeiío , que hoje que eftais fem algum enfeite , me pareceis mais bei- ja , mais engraçada do que nunca. To- mara 5 que vos folie permittido ap- parecerdes aíilm como eílais á tarde na Aíiemblea j verieis que todos os olhos fe fixavaô em Vós , porque ten- des hoje hum naÓ fci que , que vos faz extraordinariamente bella. Baren, Pois com eífeito hoje me achais . melhor do que nos outros dias ? Conde, Incomparavelmente melhor ; ho- . je o voífo rofl:o brilha ^ com huma graça encantadora. Baron. Mal fabeis quanto eftimo fabcr iífo , porque entaõ já dei no fegredQ da for mo fura. Conde. E qual he ? Baron, He que hoje me fui confefl!ar; e a belleza da minha alma vejo ago- Tarde oitava. 177 ra que reverbera no meu femblante. Já vejo que tenho cara de vidraça ; porque apparece fora , o que vai cá dentro. Eu me íinto no inrerior muito mais alegre , e fatisíeira ; e nada duvido que o meu roílo participe da mudança do meu efpirito. Tomai Vós , Conde , eíla meíma receita , que tam- bém vos prefentareis nas aílembleas mais gentil do que nunca. Conde. Ora , Senhora , eu naò efperava do voílb juizo ) que tiveílcis taõ gran- de prevenção : diícorrei como pelfoa , que fe naõ deixa levar cegamente pela fanática fanrazia dos Padres. Quem tem difcurfo fólido , prefcinde delias idéas , e ferve a Deos em efpirito , e verda- de \ e naô fe liga a certas ceremonlas de Religião , que mudaõ conforme os climas 5 em que vivemos. Baron, Com que Vós naó credes firme- mente neíla Religia6 , que exterior- mente profeílais 1 Failais feriamente, ou brincais ? Conde, Naô me permitte o decoro , que vos devo , o zombar nefta matéria. Eu nem creio , nem deixo de crer ; naó me embaraço com iíío : porque hum homem , que fabe difcorer fóli* Tom. IX. M da- ' 178 Recreação Filofofica damcnte , naõ fe liga a Religião ne- nhuma. Aqui tendes Vós , Theodoíio, que íe fallar íinceramente , talvez que tenha o meímo modo de penfar , que cu tenho ; porque o leputo por ho- mem fóiidamentc Filoíbfo. Tbeod, Naõ me he licito , Senhor , en- cobrir o meu modo de penfar , já que Vós me defafiais , e a Baroneza o de- leja faber. Eu penlb como a Barone- za inteiramente ; porque muitas vezes temos communicado os noffos fenti- mentos. Sou Filofofo , e faço proíif- fao de o íer ; mas íabei que quanto inais tenho refledido na Religião , mais firme me acho na minha crença. E fe quizerdes , eu vos direi os mo- tivos , em que me fundo. Colide. Motivos fim : motivos de bea- tice , que vofiTa ama velha vos enfi- nou á chaminé , quando Vós éreis mi- nino. Que motivos fólidos me podeis aliegar , que convenção hum Filofo- fo ? Nao fei que os haja : e fenao , goílarei de os ouvir. Theod, E eu de ver como Vós lhe ref- pondeis. Barojj, Eílá travado o defafio , que eu defejava j e eu ferei a teftemunha. Mas ro- Tarde oitava, 179 rogo-vos a ambos , que ponhais de par- te tudo o que nao fèr refpoíla íòlida , porque de ditos engraçadas , e reípof- tas íimuladas eílou cil beníi enfadada. Amigos 3 Honra , e Verdade , e Siu'^ ceridade \ e coitado daquelie que me faltar a iíto \ porque com a authorida- de de Senhora , naõ lhe hei de perdoar. Fallai jTheodofio. Theod. Eu fupponho , Seiíhores , que Vós firmemente credes eíTe fadlo hif- torico , de que ninguém duvida j iíto he 5 que houve na Paleftina ha mil e fetecentos annos hum homem chama- do Jefus Nazareno ^ o qual dizia , que era Filho de Deos , e que por iíTo o matáraó , &c. Conde. Diffo nao duvido : do fadlo hií- torico naó fe difputa , nem fe duvida. Tbeod, Bem eílamos : pergunto agora : Ou effe homem mentia , ou fal/ava verdade ? Efcolhei o partido , que qui- zerdes , que para mim tudo me faz jogo. Conde, Como me dais eíTa liberdade , di- go por ora , que mentia : e Vós , Se- nhora , naõ vos efcandalizeis j porque como ifto he hum defafio , e duelo de difcurfo , quero-me pôr na poftura , Mu e. i8o Recreação Filofojica e lituaçaó mais ventajofa , que poíTa ler , para naô fer vencido. Vamos a ifto , Theodoíio , fupponde que digo, que mentia. Theod. NeíFe cafo haveis de conceder que eíle homem era o mais malvado , que jamais houve no mundo. Conde. líTo naó ; era máo por fe fazer Filho de Deos , fem o fer j porém mais nada. Theod, De vagar ; porque já temos hur ma blasfémia a mais execranda , que fe pode dizer : por quanto Elle di- zia , e eníinava que era o Filho fubf- tancial do Omnipotente ; e de fua mef- ma natureza j e igual a Elle , e o mef- mo com Elle na fubftancia. E ifto nao foi dito no calor de alguma difputa , em que o cérebro efquentado coftu- ma ás vezes faltar fora dos eixos , em que deve rolar o pcnfamento raciona- vel 5 e forjar idéas romancefcas y ou talvez a lingua veloz pronuncia com pouca reflexão o que a idéa \\\q, didla. líTo nao foi aílim ; antes pelo contra- rio 5 Jefu Chrifto com animo pouzado , conilante, e continuado por mais de três annos , fempre o diiíe em públi- co, e em particular , e aíTim o man- dou Tarde oitava. i S r dou pfégar pelo mundo todo. Com que já vedes , que iílb nao era qual- quer crime 5 fe teimardes em dizer que EIlc mentia. Conde, Pois feja como dizeis ^ que eu agora nao faço a íigura de feu Apo- logiíla. Theod, Ora hide ouvindo , e vereis hu- ma tal ferie de precipicios , e barran- cos , em que por força haveis de ca- hirj-que talvez que vos vejais obri- gado a tornar a trás no caminho que tomaftes. Conde, Vamos a razoes , e deixemos pa- lavras de ameaços. Theod. Sim , vamos. EíTe homem teve arte para perfuadir effa fua máxima a huma grande parte do mundo j e iíTo fem foccorro algum humano : porque primeiramente nao teve o foccorro das letras. Nenhum Apoílolo foi homem letrado : huns eraô pefcadores j S. Mattheus , negociante ; S. Paulo , que mais alguma inílrucçaõ teve , nao al- cançou a Jefu Chrifto em vida ; e nem efte Senhor em 11 mefmo deo jamais a conhecer que tiveíTe eíludos huma- nos. Os feus mefnios inimigos fe ad- miravao de o ver fallar como falia- va i82 Recreação Filofojíca va , fem que o viíTem jamais apren- der. Além diíTô o Povo Judaico era fum* mammenie ignorante ; a Cidade , em que o Senhor nafcera , era mui pe» quena , e delprelivel : a fua vida até os trinta annos , foi fempre retirada , e occuíta ; ajudando no trabalho a hum Carpinteiro, e a huma pobre Cofturci- ra 5 fua Mái. Todos eiles fadlos fao confiantes. De mais , em toda a Judéa naô havia cafta alguma de eíludos , íenaó o dos Profetas. Onde foi Jefu Chriílo aprender cíFa arte de perfua- dir tao fublime ? taô íimplès , e taó efíicaz , que triumfou de todos os Fi- lofofos , e Sábios ? Se efta pcríuafao iiaõ foi ( como Vós dizeis ) triumfo da verdade ) fe aqui naó houve foccorro da Divindade , pois Deos naô mente : he forçofo dizer , que aqui houve foc- corro diabólico. Baron. EíTas coufas fomente ouvidas me fazem horror. Theod. Mas he precifo que Vós , c o Se- nhor Conde vejais os horriveis pre- cipícios j em que forçofamente cahi- ráó os que tomarem efte caminho , que çlle tomou. Conde Tarde oitava. 183 Conde* Hidc continuando , que na6 he eíla matéria tal , que em quatro pala- vras fe aclare. Os ouvidos de Senho- ra devota iaò nimiamente delicados : hide difcorrendo. Ibeod, Acere fcentai agora , que Jefu Cliri- ílo naó íe valeo para a introducçaó do feu Evangelho da authoridade de gran- des perlbnagens ( como ordinariamen- te fuccede ) os Apoílolos erao da ple- be ; naò houve Doutor que o prote- geíle , Rei que o patrocinaíTe , ou Prín- cipe que o favoreceíle. Nenhum de feus Dilcipulos tinha lugar honorifi- CO y ou emprego de dependência j ne- nhum , nem pelas luas cãs , nem pela authoridade , nem pelo entendimento tinha merecido de antemão o fequito do Povo ; antes pelo contrario Jefu Chrifto com quatro homens , por to- dos os títulos defprezados , teve po- der de perfuadir a grande parte do mundo coifas fummamente árduas , co- mo era crer , que hum homem pobre , defcalço , e açoitado publicamente ^ e morto em hum patibulo , e pregado em hum páo affrontofo , era o verda- deiro FilJio de Deos- ; e outras cou- fas deíle género. E 184 Recreação Filofojica E notai que eíta rápida propaga- ção do Chriftianiímo foi depois de jelu Chrifto morto , e juftiçado pu- blicamente. Refledti bem nifto , e tor- no a dizer , meus Amigos , que fe aqui naó houveÍTe Braço Divino , e virtu- de do Ceo 5 havia de haver aftuci4 , e maquina dos Infernos ; e Jefu Chí*if- to entaò author deííe engano , /'eria hum monftro de iniquidade. Conde, Naô tireis coniequencias taõ feias , que fe afflige a Baroneza. Baron, Mas ellas , meu Conde , fad na- turaes : fe fao feias as confequencias , feios faó também os principios , de que elJâs nafcem. Continuai ^ Theo- doíio. Theod» Vamos pois difcorrendo por to- dos os meios , que atéqui tem havi- do de perfuadir. Teria acafo Jefu Chrif- to ao menos o foccorro do dinheiro ? do dinheiro , que Vó>; fabeis mui bem , que perfuade por hum modo occulto , e tal , que fentindo-fe cada dia os feus eíFeitos , naÕ fe fabe atéqui explicar o modo com que obra. Mas ninguém ignora , que Jefu Chrifto em toda a iua vida foi pobre ; e pobri/Fimos fo- raÕ os fcus Apoílolos : vivco fem fauf- Tarde oitava. 185' fííufto de rico , nem oílentaçao de po- bre ; franco , fincero , igual , e colie- rente em tudo : defprezava as rique- zas fem foberba , e recebia íem aJÍFe- elação os pobres 5 nunca oiíendendo por modo nenhum os ricos. Baron, A caía de Zaqueo , que era ri- caço , foi Elle jantar com toda a ci- vilidade ) e tratava com o Regulo , que o bufcava , íem o menor deidem. Em íim ninguém ha de dizer , que Elle déíTe nunca coufa alguma para que. o íèguiíTem. Theod. Naõ dizeis tudo , Senhora , ac- creícentai , que acoafelhava a quem o queria íeguir , que repartiile os léus bens pelos pobres , e que depois de eílarem deípidos das riquezas , vief« fem entaô para o feu feguimacnto ; e com tudo ilfo em poucos tempos fe acharão Chriftáos fem numero. Aqui naô chega a força humana. Baron, Certamente , naÕ. Theod. Ainda mais : acafo valerfe-hia Je- fu Chriílo do favor das armas , para introduzir o feu Evangelho , como fez Mafoma , que com o .alfange na mao he que catequiza , defende , e prop.1- ga a fua doutrina ? Faria con.o de» ^ pois iS6 Recreação Filofofica pois fez Luthero , o qtial para intro* duzir a fua Seita , fez arder toda a Saxonia em guerras ? Conde, Nao tem faltado fangue derrama- do por conta do Chriílianifmo. Theod. Sim : ma;: como ? Naò fao os Chriftãos os qiíe o fizeraô derramar ; - lie pelo .contrario : os inimigos do Chriílianifmo fao os que tem feito derramar aos Chriítãos todo eíTe fan- gue. Notai bem , meu Conde : Jefu Chriílo em lugar de ie valer da for- ça , c da violência , enfina a Maníi- dao 5 a Doçura , a Humildade ; e a folFrcr que lhe tirem a capa , dando de mais a mais a túnica : vede que contrapoíiçaõ ao fyftema dos Maho- metanos , e dos mais Sedlarios , que por intriga , e a ferro e fogo fazem os feus Cathecumcnos. Torno pois a inferir , que fe Jefu Chriílo nao ufou deíles meios , c confeguio huma taó rápida propagação do Evangelho , iíTo foi fem dúvida por virtude Divina. Tlâron, Que refpondeis , meu Conde ? Theod. No fim re (pondera } deixai-mc profeguir , Senhora. Vós amigo fabeis , e todo o mundo o confeíla , que o mais fcguro meio de introduzir hu- ma Tarde oitava, 187 ma doutrina nova , he o favorecer com ella as paixões j por quanto facilmen- te cremos tudo o que nos quadra aos noíTos defejos. Quem deixa de crer hum Advogado , quando elle diícor- re , e trabalha para rnoíirar que temos razão ? Mas fe apoz de nós \\\z vai faliar a parte contraria , nao he pof- íivel pcríuadir-fe deffe mefmo difcur- fo 5 que nos convenceo a nós ; e iíto fuccede fempre , ferapre. Ora de que nafcerá , que fempre hum fe deixa per- fuadir deííe difcurfo , c o outro nun- ca ? Senão de que o difcurfo fa- vorece os defejos do primeiro , e con- tradiz os do fegundo : e aífim vai na- turalmente o Entendimento para onde o coração vai j e cufta muito á alma abraçar com o juizo tudo o que nos humilha , abate , e condemna. Eifaqui o meio de que Mafoma fe fervio pa- , ra introduzir o AlcoraÓ ; e de que fe fervem os Proteftantes , franqueando mil coufas , que os Romanos prolii- bcm : Eifaqui a bazc do fyítema dos Incrédulos , que todo fe encaminha a favoreceras paixões, e a lhes dar ple- na liberdade. Ora eifaqui a maior maravilha do Evan- iS8 Recreação Filojojica Evangelho de Jefu Chrifto ; porque nunca houve doutrina mais contraria ás noíTas paixões , do que a do San- to Evangelho. He doutrina tal , que obriga os Martyres a foíFrer os mais horríveis tormentos , que jamais fe imaginarão ; e ifto nao a hum , ou ou- tro 5 que fe podia fuppor doído , ou rematadamente prcoccupado \ mas a milhares , c milhares de Chriflãos de todas as idades , fexos , fortunas , cli- mas , condições , e eftados. Faz hor- lor vêr todo o mundo armado com ferro e fogo contra o Chriftianifmo , e o inferno todo defcfperado , tiran- do aos homens até os lentimcntos da Humanidade j que podiao favorecer os Chriftãos ; e vêr ao mcfmo tempo , que quanto mais fangue fe derramava por efta caufa , mais cfefcia a femen- te Evangélica , regada com aquellc fangue. E ainda fem olhar para os Mar- tyres , quem vê bem a doutrina de Je- fu Chrifto , ha de confcíTar , que a vida de hum bom Chriftao hc hum continuado martyrio , em que fe fa- zem morrer as paixões a fogo lento , ou fulrocadas á força ^ dentro do pei- to. Tarde oitava» 189 to. Dizei-me , Senhores , nao nos obri- ga o Evartgelho a iacrííicar a carne , os intereííes , e o pondunor munda- no ? Por ventura as Leis íevéras da Pu- reza , da Juftiça , da Caridade frater- na , nao nos obriga ô a nos dei natu- ralizar em certo modo da própria Na- tureza ? Que mais pode fer ? nao obri- ga a doutrina deíle novo Legislador a perdoar aos inimigos , e a fazer bem até aos que mais cruelmente nos tem perfeguido ? Pois efta doutrina publi- cou-fe , feguio-fe, abraçou íe por pef- foas innumeraveis ; e iílb refiftindo ibe fempre todas ás paixões da carne , todas as máximas do mundo , toda a forqa do. Inferno ^ todos os intereíTes da vida ; refiftindo toda a força dos Imperadores, € todos os fyftemas dos políticos. Em íim tudo foi contra o Evangelho, to- dos os Fa ri fé os 5 todos os Doutores, todos os Príncipes j e nao obftante iíTo , Jefu Chrifto o introduzio rigidamente fçm o min imo foccorro , nem de au- thoridade , nem de fciencia , nem de armas , nem de dinheiros , nem de úi-^ licias 5 nem de carinhos : em huma pa- lavra, fem foccorro algum humano. Lo- go 5 ou Deos empenhou o feu braço para tpo Recreação Filofojica para efta empreza , c Jeíu Chriílo -era leu Filho ; ou íe o naó era , mas an- tes íeu inimigo , e blasfemo ( como dilTeíles ) íbis obrigado a dizer, que trazia a feu mando os demónios j e iiTo ( notai bem ) para huma empre- za , a que eiles meímos bem claramen- te , c com toda a força fe oppunliaò ? Baron, Que he ilTo , meu Conde ? ef- tais affiiélo ? Fallai. Emudeceftes ? ^heod, Naô me atalheis , Senhora , com a voíía viveza impaciente , que ainda naõ quero refpofta ao argumenío, que vai para diante. Eíle homem pois ; para perfuadir a íua doutrina , fez admirá- veis prodígios , mui raros , e extraor- dinários ; e muitos feitos de propoíi- to para prova de que Elle era o ver- dadeiro Filho de Deos. Ifto faó fa- ílos conítantes , c notórios a todos ; e iílo he que fez refolver meio mun- do , parte para o feguirem pafmados, e admirados do que viaÕ ; parte para o perfeguirem defefperados. Depois que o mundo he mundo , ninguém te- ve mais admirável fcq.uito , ninguém mais horrivcl perfeguiçaõ. E além difib, tanto huma coufa, como outra , fe communicou a feus Apof- Tarde oitava, 191 Apoftolos , fazendo todos elles prodí- gios por íua ordem e mandado j tu- do para prova da Divindade de feu Meltre ; e lendo elles , como feu Mef- tre , perfeguidos , e mortos. Ora he crivei 5 que hum puro homem podcí- fe voltar de pés para cima ( para me explicar aífim ) toda a Natureza ? e que fizeíTe fervir a feus intentos os Ceos , a Terra , os Mares , e todos os Elementos ? que zombaíTe das en*- fermidades , da Morte , e dos Demó- nios ; que fe ferviífe do paíTado , do prefente , e do futuro ; que penetraf- fe em, fim o interior dos corações ? E tudo ifto fem que Dcos o protegeíTe ? Dizei-me , he ifto crivei ? Ora fe Elle naô era Filho de Deos , he impoíTi- vei , que Deos o ajudaífe ; porque en- tão Deos feria author do noíTo erro, e cúmplice na mais horrenda blasfé- mia ; e ifto por efpaço de três annos continues , em que foraõ continuados os prodigios , feitos de propoílto em público 5 na face de todo o mundo , defafiando Jefu Chrifto os fcus contrá- rios , para lhes provar com elles effi- caciiPimamente , que Elle fallava ver^ dade. Dizei , Conde ^ pode Deos dar a 192 Recreação Filofojica a mao com tanta forja ^ e efficacia para qi:c triunfe hum erro , o mais íeio que fe pode dar , e o mais in- juriofo á íba Divindade ? Dizei ago- ra 5 Senhores , he iílo crivei*? Ref- pondei-me , Conde. Conde, Deos aílim como nao pode men- tir , também naô pode concorrer por modo extraordinário para que triunfe o Erro , e a Mentira. Theod» Bem eftamos : logo fe Jefu Chrif- to mentia , naô podia fer a Virtude Divina quem lhe délfe força para fa- zer eííes prodígios , nem abalar aílim o mundo todo. Barojt, Já o Conde diíTe que nao ; que 110 cafo que Jefu Chrilto mentiife , nao podia fer ajudado por Deos. Thcod. Logo haveis de conceder , que neíTe caio tinliaos Demónios a leu mando , e que eftava confederado com ellcs. Credes ifto , Conde ? Barofj, Naô digais , Conde : nao vos tente o eípirito de teima a pronunciar femelhante blasfémia. T^heod, Naô tenhais íuílo 5 Senhora, que o naô pódc dizer , porque prevê as confequencias , que eu lhe poíTo de- duzir, Sc o quizerdes dizer , que abo- mi- Tarde oitava, 19 j mínavel feria elTe Homem ? Mas co- mo le concorda com eíh maldade fum- mamente execranda o eníinar o Senhor huma Doutrina a mais fanta , e pura , e coherence, que jamais le eníinou em to- do o mundo. Concordai-me , Conde, hu- ma alma preverliílima 5 com humas máxi- mas as mais fantas , que nunca le ima- ginarão. Em toda a vida de Jefu Chrif- to , e em quaíi dezoito íeculos , que depois delle a Igreja tem durado , ne- nhum dos innumeraveis inimigos del- le , e delia pôde achar o mais leve defeito na fua Doutrina. Ora Doutri- na , que examinada por tantos tem- pos ^ e por tantos inimigos nao fahe mordida , e criticada , tem a prova mais authentica de fer fanta > e pura. Comparai o Evangelho com todas as Seitas dos antigos Filofofos , todos empenhados a dar leis para a virtude; e nao achareis nenhuma , cujas máxi- mas fe cheguem , naó digo eu , de perto 5 mas nem ainda de longe pa- ra a heroicidade , fantidade , c pureza do Evangelho. Q^iem pode comparar a Idéa de Deos que eífas Seitas nos davaô , com a fublimc Idéa , que nos daõ os Myf- Tom, IX. N te- 194 Recreação Filofojica terios altiíTimos , que nos enfina oE- vangclho ? Ainda a Idéa , que nos daô os Profetas , he mui imperfeita poíla a par da que nos daõ as palavras de Jelu Chriílo. Fallai , Conde , com fin- ceridade , e dizei qual he em todos eíTes fyftcmas , que imaginaó os Mo- dernos , que naõ elleja cheio de mil in- coherencias , e abíurdos ( fallemos cla- ro ) de mil horrores ? Se foffe aqui o lugar de difcorrer fobre effe ponto , VóSjBaroneza , ficaríeis pafmada : ma» vamos ao ponto. Se nos cingimos particularmente ao regulamento das acçõei» humanas, quem oufou jamais duvidar que a Dou- trina de Jeiu Chrifto foíTe a mais fu- blime y a mais nobre , e a mais util á humanidade ? Efta Doutrina Evan- gélica he fem duvida a mais ncceíla- ria para as Leis ; a mais convenien- te para a pa;i dos Eftados ; a mais doce para a economia das famílias ; a mais própria para a confolaçaó dos affliclos ; a mais conforme á boa Ra- zão 'y a mais fuave na converfaçao hu- mana. Dizei agora , Amigos , como po- dia hum homem preverio enfínar nu- ma Doutrina taõ fanra , \^>õ pura, taâ porq^ue atrás de hu. mas f Tarde oitava. 197 mas raz6es vem outras , que eu nao poíTo occultar : no fim reipondereis a tudo o que tiver dito. Todos íabem qnc a incoherencia he o caraéler do Fingimtjito ; e que a Mentira tem granae diíiicuklade de fuftentar em público theatro o icu pa- pel por muito tempo. Ora os inimi- gos dò Senhor trabalharão bem na íua vida , c muito mais depois da íua morte , para lhe defcobrirem v. mini- ma incoherencia , quer nos feus con- felhos entre fi , quer entre os feus di- <ílames , e as tuas acções ; e nunca Jha poderão achar. Logo Jefu Chriílo nao raentio quando dizia , que era o Fi- lho de Deos. Porém vamos mais avan- te 5 porque para qualquer parte , que voltemos os olhos , fe defcobrem no- vos argumentos , e creio que aíTás for- tes. Conde, Deos me livre dos voíTos olhos , Senhora , que me eftais alanceando com elies , e perguntando mudamen- te o que finto dos argumentes de Theodolio. Elie me attaca failando , e Vós olhando : ora deixai-me coníide- rar no que Elle vai dizendo , que a matéria he a mais importante , que fe pof- ipS Recreação Filofojica poíTa tratar. Continuai , Theodofio , e perdoai a interrupção , que efta Se- nhora me obrigou a fazer-vos. Baroji. Elle perdoa , perdoa de boa von- tade 5 quando naó foíTe por ler eu a culpada , leria por elle vos ver mais macio j> e hum tanto inclinado ao feu parecer : mas já a interrupção he lon- ga \ nós nos calamos : fallai , Theo- cloíio. Tbcod, Continuo pois ainda com outro no- vo argumento. Que homem appareceo . jamais no mundo , que fe viíTe taó li- vre como Jeíu Chrífto de tudo o que era paixão 5 ou defordem , ou excef- fo ? Vélo-heis no modo de fallar gran- , de , e fublime ; mas fem jadlancia , nem a menor oftentaçaõ. Vêlo-heis hu- milde 5 e aiFavel , communicando com . pobres , com peccadores , com crian- ças y mas fem baixeza. Vêlo-heis fa- bio fem vaidade j eloqucntiíEmo fem artificio ; forte em arguir feus inimi- gos , mas |fem cólera. Vêlo-heis cheio de zelo pela honra de feu Pai y mas fem perturbação ; injuriado em públi- co cora huma bofetada , mas fem per- der a paz 5 manifeftando com fumma energia a íua innocencia.. Qiie força ! que Tarde oitava. r^(f que manfidaó ! que igualdade de ani- mo fe vèiii a hum melmo tempo na fuás refpoftas ! Defafiaô-no para mâla- grcs , ettando pendente na cruz ; e dao-lhe piques bem injuriolos ; e ren- do toda a Omnipotência na fua maô , nem deo o mais leve íignal de oíFen- dido : e Senhor de íi , fó cuidou em cumprir , c confummar a obra da Re- ' dempçaó , a que viera. Moftrou que obrava pela RazaÔ , c naó por dcf- pique , nem vingança ; e fazendo mi- lhares de prodigios para fazer bem , nem hum fó fez para caíligar na oc- caliaó do maior aggravo , e ifib ten- do na mao a Omnipotência. Qual he . o homem , ainda juíHíFimo , que te- nha feito outro tanto ? Pergunto ago- ra , Conde ,* e poderia obrar aífim hum ■ homem , que foíTe prevcrfiíFimo , e de huma maldade jamais imaginada ? • Poderia fenhorear dcfte modo as fuás . paixões , naó em hum dia , mas em mais de três annos de contínua com- . municaçao com feus inimigos ? Ainda mais : confideremos a fua politica ', onde fe vio que a houveíTc ^ . mais fã , e menos favorável aos in- tentos da maldade ? Vós , Senhores , fa- 200 Recreação filofqfica íabcis , que a politica lie a arma mais fubtil , e cfficaz com que os malicio- ios caminhão aos feus intentos , e que iempre vaô por cftradas occultas , e encobertas , e por caminhos torcido», c Mas Jeíu Chrifto pelo contrario diz : O que eu vos dijjer de noite , publicai' d va maior luz do dia \ e o que eu vos differ ao ouvido , prégai-o a todos quantos o quizerem ouvir defde o lu^ gar mais alto , e elevado ? Ora dizei , Amigo , caminha alTim hum homem cmbulleiro , e fummamente máo , que pertende enganar com artificio ? As ibas palatrras eraÓ claras ; a fua Dou- trina manikfta ; o feu didlame era que falialTem claro : íim , íim \ naô , naõ. He efte o cílylo de hum enganador ? Conde. Bafta , baila , Theodoíio , que cu jiaô quero paíTar por louco j e fomen- te ie o foíTe , deixaria de conhecer a força do voíTo argumento. Nunca eP- perei , que me attacaíTeis aíTim ; c ima- ginava que negando, ou duvidando da Divindade de Jefu Chrifto ticava livre dos tiros dos Chriftaos ; mas ago- ra vejo que quanto mais quiz duvidar da fua Divindade , mais me precipi- tei , tíT.o podendo conciliar a malicia in- Tarde oitava, 20 r indiíivel , que ncíTe cafo teria , com a fantidade inegável , e Divina , que em todas as fuás palavras , e obras reí- plandccem. Eílais contente Baroneza ? Baroij, Ora graças a Dcos , meu Con- de *, graças a Deos , que vos vejo pro- ceder como Jiomem de jiiizo íaõ , e também de honra ; porque conhecer a verdade em matéria raó grave , c cftar ridiculizando o difcurfo com ref- poílas fora de propofito , naô he pro- ceder com honra , nem eu vo-lo ha- via de confentir. Conclui agora , Theo- doíio , efazei-me hum epylogo do que eílá dito 5 para que eu me polTa de- fender , quando me atracarem. Theod. Eu vos vou dizendo as propo- fiçocs que eítaó tratadas : Vós as hi- reis ajuntando , e de caminho replica- reis 5 fe em alguma confequencia tiver- des dúvida ; c Vós , Conde , podeis fa- zer o mefmo , por quanto ás vezes jio calor da difputa naô lembra algu- ma refpcíla , que depois , eftando nós de fangue frio, nos occorrc. Ide, Ba- roneza , pondo na voíTa memoria o que vou a dizer. Baron, Dai-me Vós as flores , que cu farei o ramalhete. Theod. 201 Recreação Filofofica Theod, Jefu Chriílo , ou foi o peior de todos os homens , c o mais abominá- vel 5 ou foi o melhor de todos. Baron. Pois naõ ha meio ? Tbeod, Naô : porque dizendo Ellc de íi que era Filho de Deos , ou men- tio , ou faliou verdade : fe fallou ver- dade , entaó he hum homem Divi- no ; fe mentio foi hum homem blas- femo. Ora nós vemos em Jefu Chriílo mil argumentos , que nao podem fof- frer que folie homem máo , c em fum- mo gráo preverfo. 1. A fantidade da fua Doutrina, pura, fanta , coherente e fublime co- mo jamais appareceo no mundo. 2. Praticar elle eíTa Doutrina á rif- ca , e iíTo em toda a fua vida ; po- dendo Elle difpenfar-fe da Lei para os homens , porque era Deos. 3. Ser a fua innocencia examina- da por feus inimigos , fem que ja- mais lhe pódeíTem achar defeito , o que depois que o mundo he mundo , nunca íuccedeo a homem máo ; e máo por exceífo , c em gráo fummo. 4. Nunca fe vio cm Jefu Chrifto o minimo movimento de Paixão , e iíío cm mais de três annos , em que te- Tarde oitava. 203 teve encontros , e difputas. Nunca nel- le fe vio jaEiancia ^ nem oJientaçaÕ ^ nem "jaidade : nunca lijonja^ n^m frou- xidão ^ nem temor : nunca perturbarão sj\o diícuríb j nunca hejitaçaõ nas ref- poftas , &c. 5. Nunca fe vio o mínimo fgnai de mentira \ falJava francamente ; nao goftava de doutrinas em fegrevio , e mandava que de cima dos telhados prégaífem de dia o que liie tivcííem ouvido dentro da cafa no difcuríb da noite. Qual foi o homem mentiiofo que fallou defte modo ? 6. Nunca fe lhe vio incoherencia , nem mudança 5 nem contradicçaõ , ca- radlcr eílencialilíimo da mentira. Logo. Jefu Nazareno nao pode fer reputado por homem blasfemo , e men- tirofo j e por confeguinte fallou ver- dade , dizendo , que era o Filho de Deos : e fe era Filho de Deos , tudo que nos revelou he verdade. Mais. Eíle Jefu Nazareno tinha a feu favor hum poder fuperior a todo o poder , e induftria humana ; e necef- fariamcnte havemos de dizer, que o Todo Poderofo o ajudava ^ e iílo por muitas razões. Por- a04 Recreação Filofojica 1. Porque naò teve o foccorro das letras , efcolhendo para Apoílolos ho- mens rudes , e pela maior parte to- talmente ignorantes, 2. Porque naõ teve a protecção de Príncipes , antes fempre íe retirou delles, 3. Naõ teve o foccorro das armas , ou da violência ; antes a fua Doutrina foi íempre perfuadida com brandura , e lua vi da de. 4. Naó tinha a feu favor as pai- xões , porque a íua Doutrina cm vez de a lifongear , eníinava a reprimillas , c mortificallas. 5". Para prova de fer a fua Dou-* trina do Ceo , fazia prodígios , em que moftrava poder fuperior á Natu- reza , e nunca fe vio homem com tal poder fobre a terra. 6. Dava poder a feus Difcipulos para fazerem prodígios , e curar en- fermidades , e iffo íem exceílaõ algu- ma. 7. Vexava , c opprimia 0$ Demó- nios , e os lançava fora dos poíTeílbs ; por confeguinte naÕ era ajudado por elles para eíles prodígios. Logo. Ou havemos de dizer , que o Tarde oitava. aof o Omnipotente fomentava a mais hor- renda mentira , e a maior de rodas as blasfémias ; ou que Jcfu Nazarena naS mentia , fiem blasfemava , dizen- do , que Elle era o Filha de Deos ver^ da de ir o. Logo : Jefu Nazareno f aliou nif* fo verdade ^ e he o verdadeiro Filho 4e Deos. Logo : Devemos crer ^ que Ellè àiffe j e obedecer ao que mandou , por- Que o Filho de Deos deve fer acere- ditado 5 c obedecido. Logo : Todos os Myjlerios , que nos enfinou no Evangelho , devem fer cri-m dos a olhos fechados , porque o Filha de Deos o diíTe , fejaô ou naó fejaá fuperiores á noffa Razaó , porque o Filho verdadeiro de Deos nao mente. Logo : Devemos crer que Elle jun^ dou a fua Igreja , e que lhe deo hu- ma Cabeça vifivel para feu governo, a qual ficou em feu lugar , e a eíTa Cabeça devemos obedecer , porque allt cila pofta pelo Filho de Deos. Logo : Havendo de durar a fua Igre- ja até o fim do mundo , como Elle profetizou , até o fim do mundo ha de durar a obediência d Cabeia vifivel fqfta por Jefu Chriji». to- 2o6 Recreação Filofofica Logo : Nao he a fantiàade ãoS Papas , nem o feu Poder Temporal o que nos obriga a obedecer-lhe j mas o lugar 5 que Elles occupaÕ ^ e a Au^ thoridade Divina de Jefu Chrifto , eyit cujo lugar ficar ao : e por conleguin- te naõ ic ha de attender á matéria dos preceitos da Igreja para regular a noiía obediência j mas íim á autho- ridade Divina , que Jefu Chrifto Fi- lho de Deos concedeo a quem Elle poz por Cabeça da Igreja. Aqui tendes , Baroneza , o E py lo- go , ou ramalhete 5 que pedieis. Baron, NaÔ o porei no peito j mas na cabeça , para me fortificar contra os attaques , e irrilões dos que me def- affiarem. Ora , que me dizeis , Conde } He efte o modo , com que os voílbs camaradas attacaõ ? Co'jde, Já o diíTe , e o torno a repetir : nunca vi eftas coufas com a luz , que agora tenho , e hei de refleftir nefte ponto de vagar : por ora dou-me por convencido. Baron. Sendo aííím , vamos para a me- za , que já ouço , que faô horas. Eif- aqiii como eu gofto de difputar com razões , e focego , e paz ^ e nao com chif- Tarde nona, 207 chlftes , e bellos ditos , e galantaria» que agradaó , mas naõ convencem. Theod. Vamos. TARDE IX. Sobre o Peccado Original. Baron, T 7" 0's na6 podeis crer , Theo- V doíio , o que tenho foffrido eftes dias ao Brigadeiro , que temos tido por hoípede aqui neUas faldas dos Pirincos : tem-me morto com chaf- Gos , e irrifôes fobre a minha credu- lidade nas matérias de Religião. Ef- tou vendo que tdaqui por diante to- dos devemos ir ( como os que que- rem íer Doutores ) eíludar Theologia ; porque todos me argumentao , e nao íei refpondcr-lhes. Theod. Aífim he 5 Senhora; todos fal- laõ , e todos criticaô , e zombaò , que clía he a moda. Mas fobre que ma- téria principalmente vos tem attâcado ? Baron. Hontem foi fobre o peccado Ori- ginal 5 dizendo que era indigno de Deos caftigar os filhos pelo peccado do pri- mei- ao8 Recreação Filofofica meiro Pai \ que iíTo fomente fe achava na crueldade dos homens. Eu íei que eile defeja enconirar-fc comvoíco , porque diz que vos quer abrir os olhos. Naò vos retireis , que eJle em percebendo , que Vós eftais no meu quarto , naÓ tarda. Theod. Eu naò hei de fugir do duelo ; difcorreremos , e no fim le verá quem rem os olhos fechados , ou abertos. . Eu creio que o íinto vir. Introduzi Vós a queítao , que eu naò devo atta- car ninguém. Brigad. Em bella converfaçaò eítareia Vós , Senhora , occupando os voffos penfamentos. Mas eu vos vejo hum ar irifte 5 e algum tanto afflifto. Que tendes , Seniiora ? Porque vos naõ re- creaes nos beilos entretenimentos , que a volía idade , a voíTa formofura , a voíla amável Índole vos offerecem } Desfrudai , Senhora , a bclliífima pri- mavera dos voíTos annos , e deixai cuidados triites para outros membros da fociedade > deílinados a penfamen- tos melancólicos. Naõ me achais ra- zão ? Baron, Os que gememos neíle valic de Jagrimas em caíligo do peccado de AdaÕ, Tarde nona. 209 Adam , nao temos idade em que nao paguemos a pena da noíía deígraça. Brigad, Ora deixai-vos , Senhora , def- ias fabulas Ciericaes , com que o vof- íb Parroco vos tem melancolizado a alma. Achais Vós , Theodoílo , que he digno de clemência de hum Ser de Bondade Infinita punir todos os homens pelo que fez AdaÕ ? fazer-nos viver hnma vida mileravel , e até def- íinar-nos por eíle crime a pena eter- na de nos privar da gloria ? Vós que tendes tanta authoridade fobre o en- tendimento da Baroneza , tirai-lhe ef- fas fúnebres idéas , que nao concor- daò com a Boa Razão. Baron. Ora eftimo bem , que Vós niíTo difcorrais com Theodoíio , porque ellc melhor do que eu , vos faberá refpon- der 5 e eu ficarei inftruida. Dizei , Theo- doíio 5 aqui ao Senhor Brigadeiro o que neíle ponto me diíTeftes algum dia ^ quando tinha a confolaçgô de me inftruirdes. *Iheod, Eu faço tal conceito do Senhor Brigadeiro , que também eílimo efte encontro , porque poderá com a fua perfpicacia deícobrir alguma falha ( fe a houver ) no meu modo de diícor- Tom. IX. O rer ; 210 Recreação 'Filofofica. rer ; e vos peço que francamente me digais , em que pecca o meu dilcur- • fo , porque eu com goílo vos ouvi- rei. Ponhamo-nos , Amigo , de fangue frio 5 e longe daquella acrimonia de difputa , em que cada qual , íeja co- mo for , quer fuftentar o íeu dito. Eu exponho francamente todo o meu mo- do de penfar , e o hirei dizendo par- te por parte , para que Vós , Brigadei- ro , o examineis bem miudamente. Mas ' peço- vos a palavra de hoiiiem de bem , que naô me liáveis de regatear hum ^Im^ quando o voíío entendimento vos diííer 5 que eu tenho razão. Brigad, Vós falia is de hum modo , e to- mais hum tom como eu nunca vi nas difputas. Eu vos dou a minha pala- vra de honra , que aíFmi o farei. Baron, ElH acceito o duelo : eu fou a Madrinha ; vamos a iíTo. Theod» Por ventura , Senhor ^ Vós direis que Deos tinha obrignçaó de conce- der ao homem os Dons jobrenaturaes , que lhe dá por fua Bondade ? Baila fó o nome de Sobrenaturaes para fc dizer que faõ fobre , ou além da Na- tureza ; e por confeguinte naó faõ de- vidos á Natureza Humana. Brigad, Tarde nona. 21 1 Brlgad, NiíTo tendes razão , e mais que Theod, Logo o Homem naó tem na fua pura nature::,a titulo algum para exi- gir de Deos , que lhe conceda alguia Dom Sobrenatural \ e muito menos a Bemav€nturan^'a eterna , que he o primeiro , e principal Dom , que con- íiíle na vifta eterna da Divindade , e he huma eipecie de Transformação , em Deos , aifim como o ferro pene- trado do fogo parece transformado eiu fogo. O que le deve á natureza do homem he o conhecimento de Deos , quanto a Razaô natural alcança. Ora deixai-me explicar ifto. Os Theologos diftinguem três efti- dos : o da pura Natureza \ o da Na-" ^ ture%a inteira \ e da Natureza cor* rupta, Confiderando o homem no ef- tado da pura Natureza nao podia ter direito a coufa alguma além da Na- tureza. No eftado da Natureza intei^^ ra 5 em que verdadeiramente Adaô foi creado , a promeíTa da Bemaventurança naó foi abfoluta , mas dependente da lua obediência , e merecimentos ^ fal- tando os quaes nenhuma injuria fari-^ Peos a Adam , fe o mandaíTe logç O ii para ^12 'Recreação Filofofica : para o Inferno , como fez aos Anjos quando peccaraô ; e por iíTo pelo cri- me de Adaõ ficou elle , e íeus filhoô no eítado da Natureza corrupta , em que todos naícemos. Neítc eílado fi- cou a porta do Ceo cerrada de todo . para o género humano. Jefu Chrifto o conquiítou com a fua morte ^ e aíTim uinguem tem direito ao Ceo , fenao Elle , e feus filhos , que faô os que fe baptizaô \ por ilTo o Senhor difle , que Elle era a Porta , e que í'ó por Elle deve entrar quem houver de íer íalvo. Ifto he para Vós , Baroneísa- E Vós , Brigadeiro , tendes dúvida niílo ? Brigad. Delcançai , que eílou por iílb : vamos adiante j naó me importaõ cf-»^ fas metafificas : ide dizendo. Theod, Creou Deos a Adam , e fuppofto o que me dizeis , naó tinha obriga- ção pela natureza pura do homem de o deftinar para o Ceo , nem para a iua vifta clara ; e por confeguinte fó o fez no cafo de que o homem lhe ubedecefie, e obfervaíTe o preceito que lhe havia de pór^ Brigad. Andai para diante , que niflo concordo : vamos ao ponto. Tbeod. Quem nao quer tropeçar , svai pou- Tarde nona. 215 "" pouco a pouco 5 e apalpando ; aííim como eu faço. Suppoílo iílo , peccan- áo Adam , ficou privado da Bemaven- turança . que Deoslhe prometteia con- dicionalmente ; e além diílo Deos o • privou rambem de muitas coufas , que lhe tinha concedido , como era o do- minio fobre as de mais crcaturas ; e ficou condemnado á morte , e aos tra- balhos da vida 5 e miferias , de que efteve livre em quanto nao peccou. Br/gad. Qiie elle folFe caíligado erajuf- tiílimo } mas íeus filhos que culpa ti- verao ? Explicai-me V(3s iflo , que tu- do o mais que diííerdes naô vai na- da : Que culpa tiveraÕ le os filhos ? Theod, Ainda naõ havia filhos entad. Cain , que foi o primeiro, nafceo quan- do feus Pais já eílavaó fora do Parai- fo 5 e amaldiçoados por Deos ; e def- fe modo os filhos de Adaõ fomente tem direito á lua enchada , e ao fru- do dos feus fuores , e a nada mais. Supponde , meu Brigadeiro , que hum Soberano por ter inclinação a hum mo- ço folteiro o tomava para a fua Ca- mera , e confiando-lhe os fcu2 fegre- dos , o mandava para certa empreza - com promeíTa de o fazer Duque , fe nella ^ T 4 R ecreaca õ Filofofica nella fe houvefle com fidelidade , e valor ; iras cjue cfie valido le tinha portado com acções tao vis , que por cíTe motivo havia iido dtíleirado para a Ilha de Bourbon , ou cuiro piefi- dio j e c]ue ntíia Ilha efie infeliz ca- iava , e tinha hihcs , a quem na fua . velhice contava as loucuras da fua mo- cidade , e como por ler louco perdera o íer áquelle tempo Duque , c elles íeus filhos grandes fidalgos. Ncftc ca- ío poderiaõ aquellcs filhos lamentar- fe da fua difgraça , e da loucura de ieu Pai j mas naó queixar fe daquelle Soberano , nem té-lo como injuílo , c cruel por naô os fazer fidalgos. Creio que ambos Vós eílais nifto. Pois o mefmo fuccedeo ao? filhes de Adaò; porque quando elles naíceraò , já leu rai eílava criminolo , e caftigado. Po- demos lamentar-nos da nofia forte > e da defordem de AdaÕ : mas por mo- do nenhum nos podemos queixar de Deo5. Baron. Que me dizeis , Brigadeiro , do a7^'umento ? ^heod. Dai licença , Senhora , que ain- da \^2iO concluhi. Se ElRei mandaílc cortar hum braço aos filhos de íTe feu in- Tarde fetima, ii^ infeliz valido , ou arrancar-lhes hum dos olhos, feria injuílo ; porque os braços 5 e os olhos íaó devidos á hu- manidade V e naó vindo eftes bens de ElRei 5 mas fim da Natureza , naõ devia o Soberano privar dclies eílcs homens , que naõ tinliaô crime pef- foai nem do braço , nem dos olhos , que erao feus. Mas a gala , as jóias , as honras 5 os títulos, &ic, bens que fomente procedem do Soberano , e nao foraó nunca devidos á Natureza deíles hciiicns 3 bem pode o Soberano ne- gar-lhos aos filhos, que ainda haviao de nafcer ; e negar-lhcs fem a mini- m.a injuftiça , ou crueldade. BarojL Agora íim , Theodofio , agora faço huma idéa clariíFima á^Go. pon- to , que eu atégora cria como Catho- lica , mas nao conhecia com a eviden- cia , que agora conheço. Theod, Tudo, Senhora, eftá em que a Bemaventurança naô he hum Bem que pertença á humanidade ; fomente te- mos direito a ella fundado no titulo de hlhos de Deos , e herdeiros de Je- íu Chriílo. QiJem nao tem efte titu- lo , e eíla honra , nenhum direito tem ao Reino dos Ceos 3 porque fómenrc por 2j6 Recreação Filofofica por eíTe titulo fe pódc poíTuir ; ora aííb faz o Baptiímo na(]ueJles que o recebem; quem naõ lie baptizado ne- nhum direito tem. Brigad. Eftá bem , Theodoíio , quanto á Bemavcnturança ; mas a morte , as doenças, as enfermidades, os traba- lhos da vida faõ caftigos , com que Deos eftá punindo os filhos de Adaò , que nao tiveraõ culpa no dcliélo que leu Pai cometteo muito antes que el- les nafceíTem ; e ifto lá tem naò fci que de duro. Theod, Vou refponder a iíTo : ( nao te- nhais fufto Baroneza , que déftes ago- ra íignal de ficar furprendida ; focegai que o ponto eftá mui meditado.lA morte , e as doenças , e calamidades faô elFeitos naturaes da conftituiçaõ do corpo humano , e fomente faõ cafti- gos do peccado em hum fentido , que vem a fer : Se Adaõ nao peccafle , Deos o faria immortal , &c. e entaó feus filhos nafceriao de Pais que te- riaó outra Natureza , reforçada com o Dote da immortalidade ; c já neft^e ca- / fo 5 fe Deos déíTe a morte , ou doen- / ças aos filhos de Adaõ , poderiaõ tal- vez queixar-fe dcilc. Mas quando el- ies Tarde nma, 217 Ics nafceraó já a natureza de Ada6 ef- lava privada deffe Dote da Immorta- lídade \ e já era a fua conílituiçaõ pu- ramente íegundo a Natureza : ora a iSíatureza pela fua conftituiqao trás comfigo doenças , caniaço , e morte. Diicorrei comigo : l'oda a maqui- na que trabalha le gafta ; todas as peças gaftadas , fraqueaó ; fraqucando quebraõ ; quebrando faltaõ , e a ma- quina toda fe defordena. Aílim fao to- das as obras da arte ; e aílim faó tam- bém as da Natureza. Ifto vemos nas arvores que naò peccarao 5 vemos nos minerais , e até nos brutos o vemos. Tudo quanto ha na natureza , tem cer- to movimento , que pela continuação vem a caufar alteração , e mudança , c finalmente ruina. Se Adão folTe ^q\ , Dcos lhe daria o Dote fobrenatural da Immort alidade , que o faria íuperior a todos eíles defcontos : mas como naò foi fiel , Deos naô lhe fez eíTc favor fobrenatural ; e fe os filhos her- darão dellc huma Natureza arruinada ; naõ fe podem queixar de Deos , porque lha nao deo melhor. Poderá hum po- tro nafcido de pais da mcfma cfpe- cie queixar-fe ^ porque naõ nafceo ho- mem 2i8 Recreação Filofojica mem ? Poderá queixar-fe o Infeflo , porque naó nafceo com natureza maia nobre ; ou huma lagartixa , porque naõ tem a natureza de Águia ? Cada animal fó tem direito á natureza , c qualidades , que tiveraõ feus pais ; por- que no fer que os pais daò aos filhos, he que fe funda todo o direito , que elles podem ter ás boas , ou más qua- lidades dos pais ; logo fe qusndo naf- ceraó os filhos de Adaô já a li^a Natu- reza deilc ellava eftragada , e corrupta , naò tem feus filhos direito^ a outra coufa. Brigad, Em Adaõ o comer o pa6 com o fuor do feu roflo , foi verdadeira- mente caíligo. ^heod. Sim y em Ada6 foi caftigo , por- que teve crime , e porque antes do cTÍmc nao tinha eífa precifaõ \ nem a teria , fe o naô cometteíTe : mas nos feus filhos efia neceffidade foi huma confequencia da Natureza corrupta que Jierdaraõ dos pais. Vós naõ podeis negar, que os fi- lhos ^ue nafceraõ de pais, cuja Natu- reza eílá eftragada pelos vicios , nao coftumaõ ter faude robufta ; porque a natureza dos filhos he continuação, ou Tarde nona. 219 ou ramificação da Natureza dos Pais ; e tronco vicioío naò dá ramos perfei- tos. Por iílo os filhos de Adaô tem Tieceííidade de procurar o luftento com trabalho 5 e tile trás caníaço , o cnn- faço fadiga, e efta he xViãi da fraque- za 5 a traqueza das enfernndades , e elias da Morte. Baron, E como explicais Vós a rebel- dia que nós temios em nós mefmos , c difficuldade em domar as paixões ? Tibeod, Se Adão pelo peccado perdco aquelle domínio pacifico, que tinha fobrc todas as fuás paixões , até en- tão fujeitas á Razaó , quando feus íi- Jhos nalceraõ , já as paixões nos pais eílavaó rebeladas ; e por iíTo nos fi- lhos logo apparecco a deíordem ; como fe vio entre Cain , e Abel ; c nefte fentido nao fó as doenças , c Morte , mas a rebelião da? noílas paixões he effeito do peccado ; e em certo mo- do caíligo do que cometteo Adão , de que nós participamos. Qiie dirieis Vós fe alguém fe queixaíTe por naô ter duas gargantas , em ordím a con- iervar ávida quando tiveíTe hum gar- rotilho ; ou também fe lamentaíTe , e criminaíTe a Deos de injuílo ;por lhe nao 22Ò Re&eaçaS Filófofica nao dar olhos para trás , em ordem a defender-fe de íeus inimigos ? Zom- barieis de femelhantes queixumes : pois o mefmo diremos a quem quizer cri- minar a Deos pelas calamidades da vida ; por quanto nós fó temos direi- to á Natureza femelhante á de noíTos pais 5 quando nos déraò o fer. Baron, E muita parte dos trabalhos da vida vem da nofla liberdade , e de ca- da qual preferir o feu commodo ao alheio ; o que faz hum terrivel jogo y no qual por força puxando cada qual para íi , fomos huns contra os outros ; e quanto mais vivas faô as noíTas pai- xões , maior he a guerra, que por cau- fa delias nos fazemos. Brjgad. Tendes explicado ilTo muito bem lá a voíTo modo : mas para mim he árduo crer que os meninos , que morrem fem Baptifmo haó de ficar privados para fempre da vifta de Deos. Theod. Pois Vós naó me acabais de con- ceder 5 que efla vifta de Deos nunca foi devida á Natureza Humana ? Nao acabais de conceder , que fomente he devido ao TituJo de filhos de Jefu Chriílo ? Nao acabais de conceder, que fó pelo Baptifmo he que o homem pó- Tarde nona. ^21 , pôde fcr fílho de Deos Homem ? Lo- go como eílranhais , que lhes naõ dtm huma coufa , que por nenhum modo fe lhes deve ? Supponhamos que fe naó obrou o Myílerio Ineífavel da noíTa Redempçaô : Cain foi homici- da y e Abel foi juílo : morrendo am- . bos 5 nenhum hiria para o Ceo , por- que nenhum era filho de Deos : mas Cain feria atormentado , e Abel naó. . Pois o mefmo digo dos meninos , que morrem fem Baptifmo : nao vsm a Deos , nem a iíTo tem direito algum : tem tanto direito como huma pedra tem direito a que a ponhaô na coroa de huma Torre. Mas os adultos , que como Cain fízerao crimes pelToaes , além de naó verem a Deos , feráó caf- tigados á proporção de feus crimes. Vedes, Amigo, que a Doutrina da nolTa Religião no peccado Qriginal naó tem nada de dureza , nem de in- : juíliça , nem de crueldade? JUrigad. Pois naó he dureza mandardes . Vós tantos mil innocentes para o In- ferno , e atormentallos com o fogo, e tormentos eternos , fó porque elles • ' naó tiveraÓ a felicidade de receberem o Baptifmo ? Eíle Dogma da voíTa R^- li- 222 Recreação Filofofica ' ligiao he fuminamente árduo , e me • parece indigno da Bondade Divina. Theod» E quem vos diíTe , que era Dog- ma da nolFa Religião , atormentar eter- namente os mininos que morrerão íem Baptiímo ? Nós 5 meu Amigo, aqui nao averiguamos opiniões altercadas na Theologia ; defendemos o que he Dog- ma firmado pela Igreja , como ponto de Fé. Brigad. Pois niíTo eftou eu ; mas Vós enfinais como Dogma , e ponto de Fé j que os meninos , que morrem íem Bap- tiímo ficaõ privij.dos para lempre da viíla de Deos , e que vaô para o In- ferno fer atormentados com fogo e te r- ' namente. Nao , nao ; diílo , meu Thco- doílo , nao podeis Vós defembaraçar- vos. Theod. Veremos. Fazei- me , Baroneza , mercê de mandar bufcar ao volfo Ga- binete o Catiiecifmo , por onde volTa Irma Viítoria eftava os dias paífados preparando-fe para o exame da Paícoa. Baron, He o Cathecifmo de Montpei- lier : e que quereis achar neiie para o cafo prefente ? Theod» Quero moftrar aqui ao Senhor Brigadeiro , que nao he Artigo de Fá o Tarde nona, 223 o que elle nos imputa como tal : que tragaó o quarto tomo , que trata dos Sacramentos. Bufcai j Senhora , ahi on- de falia do Baptifmo , o que íe diz dos meninos que morrem íem elle. BrJgad, Pois naõ he iíTo Dogma de Fé ! Eu eftava niíTo. Vaó logo para o Ceo , como os outros , que fe baptizarão ? Como he ifto , Theodoíio ? Tirai-me defta confufaÕ : ou huma coufa , ou outra. Theod, Amigo , faó coufas mui diíFeren- tes as duas penas , ou caíligos que pa- decem os miferaveis no Inferno : hu- ma he a que chamaó pena de damno ; ifto he , a privação da vifta de Deos , c naô ir para o Ceo , nem gozar da fe- licidade , que a vifta de Deos trás com- íigo , nem da companhia dos Anjos , &c. Outra he a pena , a que chamaó de fentido j ifto he , os tormentos que ahi padecem. Que os meninos que morrem fem Baptifmo , naô vaó para o Ceo , nem vêm a Deos , nem go- zao de nenhuma deftas felicidades , hc certo 5 e hc de Fé , e Dogma expref- ' famente enfinado por Jefu Chrifto quan- dodiífe, (\wt Aquelle que naÕ nafcef- fe fegunda vez pela agua y e Ejpiri-^ to 224 Recreação Filofqfica to Santo , fia o entraria no Reino de Deos ( I ) , o que a Igreja entende do Baptifmo. Agora que fcjaó atormen- tados 5 he coufa que a Igreja naõ de- cidio ainda. S. Agoftinho com muitos Santos Padres diz , que íim. S. Tho- maz com innummeraveis Doutores , c Theologos diz , que naÔ. Baron. Aqui eftá o Cathecifmo , para que Vós 5 meu Brigadeiro, vejais , que Theodoíio naô truca de falfo : iéde Vós melmo. ( Parte 3. Se[f, i, cap. 2.§-3-) Brigad, Pergunta : SaS condemnados os meninos , que morrem ftm Baptifmo ? Refpoíla. Fie ao fe par a d os de Deos eternamente , que ht a maior pena dos condemnados. Mas a Igreja naõ tem decidido ^ fe padecem também a pena do fogo no Inferno A Efcritura naõ o diz claramente. A Tradição naõ he clara fobrc efle ponto ; e os Theologos fe a eh ao divididos fobre efla quejlao. Theod, Bafta : tendes viílo que naÔ he Dogma ; mas íim opinião controver* tida entre os Tlieoiogos. Bri- (i) ^'íjl (juis renatus faerit ex equa & Spíríttg Stífííla non poteji iníroirc in Rc^mnn D^h Joan. j. 5» Tarâe nonai m^ Brigad. Já vejo , que eíTe ponto he con- troverrido entre Vós. E que fentimen- to iie o voíTo , Theodofio ? Theod, Eu venero infinitamente a Santo Agoftinho , como S. Thomaz fazia , a quem chamaô alguns por iííb O pa^ queno Agoftinho ; com tudo agrada-me mais a opinião de S. Thomaz , que he a commum do Povo , que reputa eiTes meninos no Limbo fem pena , íiem gloria. Mas acabada a conferen- cia 5 eu vos moftrarei , Baroneza , as razoes , porque me agrada mais efta opinião , fem dcfprezar a contraria. Mas fempre quero que fiquemos nif- to \ que a Igreja nada tem decidido , nem nos manda crer , que os Meni- nos fem Baptifmo fejaó , ou naó feja6 atormentados ; fó fim que ficaò pri- vados do Ceo ; iíTo fim : porque na6 laÓ. filhos de Jefu Chriílo , como já vos expliquei ; e fe naô faõ feus filhos nao fao feus herdeiros. Brigad, Já entendo. Barofí. Tirai , Theodofio , claramente a confequencia , que tiráveis j que a Doutrina da Igreja fobre o peccado Original naó tem nada de crueldade , jiem de dureza, nem he contra a boa Tom. IX» P Ra- 126 Recreação Filofofica Razão. Lembrai-vos , Brigadeiro , qúe eftá empenhada a voíía honra para nao efcopclerdes o que vos diz o voíTo en- tendimento. Briga d. AíTim he ; Vós com efla lem- brança me ataftes as mãos y aliás com quatro graças , e doic furrizos vos im- pediria levar ao fim o voíTo difcurfo. Baron. Pois iíTo faz-fe ! E em matéria de tanta importância ! Brigad. Naô he tempo , Senhora , de cuidar em efcrupulos. Theod. Mas eu naõ dou ainda o ponto por difcutido , como eu defejava. Brigad. Pois dizei tudo , que agora já vos oiço com appetite. TÍJeod, Atégora fó provei, que a dou- trina do peccado Original nao tinha nada contra a boa Razão. Porém ago- ra quero mais : quero que a boa Ra- zão nos dê armas para nos perfuadir- mos , que em Adão houve effe pecca- do Original, j e que eftragou a noíTa Natureza. £rigad, Eris mihi magnus Apolo : fe o fazeis , Theodofio , dou-vos hum abra- ço , e bem apenado. Iheod, Acceito como devo , todo o fignal da Yoffa amifade : mas eu nao pro- onet- Tarde nona. 227 metto demonílraçao ; prometto prova mui convincente , e clara. Baron, Também eu eftou com alvoroço. T/jeod, Tudo o que Deos fez fora do homem , he no feu género perfeitif- Hmo. Já fabcis Baroneza ( fegundo o que vos enfinci na Ontologia) que a perfeição de qualquer coifa íe deve tomar de fer , ou naô fer bem dif- pofta para fe confeguirem os fins a que fe deílina j daqui fe toma a per- feição dos artefaftos , comparação grande para fe julgar da perfeição das Obras da Natureza. Iftofuppofto, to- das as obras de Deos fora do homem fa6 no feu género pcrfritiífimas. Que delicadeza , que fabedoria , que admi- rável mechanifmo fe vê nos órgãos de qualquer plania ? Como eftá tudo alli difpofto , e bem ordenado para a fua nutrição , e producqaõ das flores , e frudlos ? As raizes recebem o fucco , e começao logo a alterallo , e difpol- lo : as iibras interiores do tronco o fazem fubir até as ultimas pontinhas dos ramos , a pezar da fua gravida- de , pela Lei dos Tubos Capiihires ; nas íeries horizontaes de utriculos ef- taõ . guardados vários fuccos^ que fer- P ii men- 228 Recreação Filofqfica mentem com o primeiro , que o co- zaõ , alterem , e preparem para a nu- trição : na cortiça outros valos pró- prios para defcer outra vez o fucco ás raizes , em ordem á circulação del- le no corpo da planta , como o fan- guc no corpo animado. As tracheas , que correfpondem aos noííos bofes , fendo órgãos da fua refpiraçaÕ , que admirável conftrudtura tem , fendo to- das formadas de liuma fó fibra enrof- cada , como hum cordel á roda de hum dedo , em ordem a alargar- fe a tra- chca , e ellreitar-fe alternativamente como he precifo para a refpiraçaó das Plantas. Baron. E que me dizeis dos Infedlos ? \[heod. Os Infcclos , quanfo a mim , fao os Diamantes em ioda a coUecçaÔ das Obras da Natureza. Ella brilha muito mais nellcs Bichinhos da terra, que no Sol , e na formozura dos Af- tros. Eu nos Ceos vejo hum magnifi- co efpelho da Grandeza de Deos j mas aqui nos Infedos o vejo da fua Sa- bedoria 5 da fua Providencia ^ e da fua Incompreheníjbilidadc total. Hum Fi- lo fofo , que o fabefer, quando chega aqui ; e ao ponto da fua propagação , ia« Tarde nona. 21^ inteiramente fe perde , e atira comíi- go ao mar profundo das maravilhas de Deos ; e fem ter a que íe pegue para nadar , fc deixa goílofamence per- der neíle abylmo infondavel. Qfie aftucia nos meios de confe- guir os feus fins ! que medidas ! que proporções! que conílancia ! que uni- formidade ! Quem cníinou Geometria ás Abelhas , a quem todos os Mathe- maticos juntos nao poderiao dar rifco para fazer os feus favos melhor do que ellas fazem , nem com mais uti* lidade , nem com mais economia ? Quem governa as Aranhas em todas as fuás féis efpecies , para lhes enli- nar a armar as fuás têas , ou redes para caçar outros infeclos volantes ? Ninguém poderia mudar qualquer cou- fa nas Obras da Natureza fem que íi- caíTem menos boas. Tudo quanto os homens tirão , ou põem nas obras da Natureza , as faz imperfeitas. Qiianto mais formoíiis faò as arvores , que crefcem no campo livre á Lei da* Na- tureza , lançando com liberdade -os ramos para huma , e outra parte , e encurvando graciofamente os troncos , 4x5 que as outras , que cahindo dcf- gra- 2^o Recreação Filofqfica graçadamente nas mãos de hum Jar- dineiro 5 faó obrigadas por trifte me- tamorphófe a converrer-íe em pyram:-^ des , aves , ou cavallos , &c. Srigad. NiíTo vos achao razaô os nof- fos modernos Jardineiros , que fe in- clinaô ao gofto Ingiez , e bufcaó na formação de feus Jardins huma per- feita imitação da irregularidade regu- lar da Natureza. Mas continuai. Theod. Pelo contrario o homem , a crea- tura íem qucftaó mais nobre de quan- tas Deos tem feito , que a pezar da fua deígraça , ainda moftra que foi fei- to para fer fenlior das mais creaturas , que imperfeições naô tem na fua ef- pecie ? Segui-me de vagar , neíte exa- me , que importa. Deos lhe deo a Luz da Razão , e o altiífimo dominio da fua liberdade , coufa em que o homem fomente a Deos fe aíTemelha. Repa- rai no Dom da Invenção ^ que elle tem , formando coufas novas a cada paíTo , e valcndo-fe de admiráveis meios pa- ra confeguir coufis , que pareciaõ im.- poííiveis ? Que aflucia para caçar as Aves que voao remontadas pelos ares , e os Peixes efcondidos , e retirados no fundo do mar, ora para regallo das me- Tarde nona, 23 1 mezas , ora para Te alluimar com o ef- :^ premacete que tiraó das mais monf- • truoías , e fugitivas Baléas ! Quem nao diria , qtie vivendo eítes animaes em duas regiões , ambas vedadas ao homem fobpena de morte , nao haviao de eftar livres da fua injuíla perfe- guiçaõ ? Mas nao obftante iíTo , o ho- mem tudo vence , e de tudo fe fer- ve. Que refinada paciência , e delica- deza de engenho para medir a gran- deza , e diftancia dos Aftros ! e que conílancia para poder adivinhar o leu curfo , e fixar os tempos das fuás re- voluções 5 e Ecclipfes ? Qiiem nao pafma do modo , com que até pezao o Sol , a Lua , a Júpiter , e a Satur- no ; ainda que nao políaô pezar Mar- te 5 nem Mercúrio , nem Vénus , que lhes ficao mais chegados ! Nada diíèo ha nos brutos , onde huma ferie fixa , confiante , e uniforme de movimentos vai feguindo fempre o feu caminho fem novidade , fem a menor invenção , fem o minimo augmento. Baron, A verdade he , que por mui fa- gazes que pareçao os brutos nas fuás acções ; jamais fe vio nelles a menor invenção : c o ultimo" favo de mel que 2^1 Recreação Filofofica que faráô as Abelhas no fim do mun- do , naò feiá mais perfeito que os qué fizeraó ha três mil annos ; nem os de huma província feráõ mais bem fei- tos que os de outra. Theod, Vejo- vos impaciente , Brigadei- ro , porque naó vedes a que fim fa- ço efta que parfcc digreííao : ora ten- de hum pouco de paciência , c vereis que ifto naô he occiofa ampliação dií- fo que todos Aibem. Brigad, Difcorrci como quizerdes , que com gofto vos ouço. Theod. Quanto a liberdade , que temos » quem pode avaliar dignamente o pre- ço defta admirável , e Divina jóia. Po- dem os homens prender-me , arrnftar- me , matar-mc, iíTo fim ; mas obrigar- me a que eu queira , fem eu querer , JíTo he impofiivel. Agoa jFogo , Ceos , Terra , Ventos , e Mares , rogos , a- meaços , prémios , caftigos , nada pô- de abalar a vontade do homem , fe clle nao quer. Sou livre , e abfoluto fcnhor ( diz qualquer ruftico ) nin- guém tem authoridade , nem poder pa- ra me obrigar a que eu queira. Naõ quero , e eftá dito. Eíla foberania fó Deos a tem , c o homem. Naõ fallo dos * Tarde nona.. %. 233 dos Anjos , porque os Senhores contra quem difpuramos , naÕ crém nelies. Baron. O Brigadeiro furrio-fe. Theod, Vamos ao argumento agora. Efta fu prema obra , que Deos fez com tan- to empenho , fe acha com mais defei- tos do que quantas o Senhor tem crea- áo ; e eila he que fe affaíla mais que nenhuma do fím para que foi feita. Porque, primeiramente , o Entendimen- to foi feito para nos guiar no conhe- cimento da verdade ; e nos achamos cheios de mil erros , c abfurdos- Te- mos inclinação para amar a verdade ; mas todos caminhão pelo caminho da mentira ; e quem melhor fabe men- tir , mais fe preza de habilidade , e fe deívanece fobre os outros. Igno- ramos as coufas mais palpáveis , e ain- da ninguém foube como a fua alma eftava unida ao fcu próprio corpo ; nem também foube como li um Caf- tanherio dava caílanhas , e as caíla- nhas outra vez caftanheiros ; porque ifto das fementes das plantas he myf- terio efcondido aos mais hábeis Filo- fofos. Baron. Inda mal , que tanta verdade fal- lais. Theod. 234 Recreação Filofojica Theod, Quanto á vonrade cila foi feita para amarmos o Bem ; porém qual nc o mortal , que nefta , ou naquella ^ occafiaô nao bufca o mal ? Ora pode haver maior aleijão ? Todo o homem, appetece a alegria , e eftes defejos vem nas raizes da nolFa Natureza : e qual he o homem do juizo , que fe naó veja cercado de muitos motivos para a trifteza ? Haverá em todo o Uni- verío creatura mais amofinada , e in- feliz do que he o homem ? He Lei innata amar cada crearura a lua feme- Ihante. Nenhuma fera deftróe as da fua efpecic , fenaó rariííima vez; e os homens fe eílaô matando Iiuns aos ou- tros continuamente , fendo contra feus femelhaníes peiores j^ue as mais fe- rozes feras ; e temos grande gloria qup.ndo inventamos modo de matar mais gente com pouco trabalho , ou de fazer feridas incuráveis. Em huma palavra deo-nos o Creador liberdade, c Razão 5 para que efta governaíTe a- quella ; e he coufa ordinária , que a - llazaõ diz huma coufa , e a liberda- de ouvindo os feus confcihos faz o contrario. Ora naõ he ifto outra bem grande aleijão , e monílruoijdade ? Ain- Tarde nona, 235' Ainda mais : nenhum animal tem tantas enfermidades como o homem ; nenhum tantos inimigos , nenhum tan- tos fuftos. Que tormento nso temos com a ludla das noflas paixões ? que inferno ? que anguílias ? e nada difto fe vê nas outras creaturas , que com . hum palTo confiante , firme , e unifor- me vaô cada qual aos feus fins. Con- cordais niíto Amigo ? Brigada E como poíTo deixar de con- feíTar huma coufa evidentifilma ? O homem he hum compendio de perfei- ções , e também de defeitos com fu- perioridade em huma , e outra coufa ás de mais creaturas j ifto he ponto demonílrado. Theod. Mas eu obfervo , (\\\q quando hum Artífice de grande inteiiigencia faz a fua obra com fummo empenho , cui- dado , e defpeza , fe vemos que a obra que efperava-mos perfeitifTima , r.ppa- rece com defeitos extraordinários-, di- zemos que a obra teve defmancho , e que naò eftá como fahio das mãos do Artifice. Exemplo: Seviííe-mos hum relógio de ouro , guarnecido de bri- lhantes , e feito por Julião le Roi , ou outro infigne Relojoeiro de Pariz , e 236 Recreação Filofoflca e que fora deílinado de propoíito para a Rainha mandar de prefcnte á Ruf- íla ; mas que eíle relógio parava a cada paíTo , e que naõ tazia os mo- vimentos com regularidade : quem dei- xaria de crer, que o relógio tinha ti- do alguma queda ? Todos affirmariao que naõ tinha fahido aíTim da maõ do Relojoeiro , pois o feu nome fegura- va a fciencia , c a lua riqueza nos dava a conhecer o cuidado , e o em- penho : Pois efte he o cafo , cm que cftamos. Nao ha em todo o Univer- ío ob/a por hum lado mais primoro- fa 5 por outra mais cheia de defeitos . do que o homem : Logo efta obra nao íahio aílim das mãos do feu Ar- titice , que hc Déos. No homem tudo he defordem , em Deos tudo ordem fumma ; naõ podíamos íahir defte mo- do das fuás máos : logo efca obra cahio , e teve deímancho : cite foi o pcccado Original , origem de todos os noílbs males. Reparai que eíla delbr- , dem do homem começou nos filhos de Adaõ , pois Caim por pura inve- ja matou feu IrmaÕ. Logo a defordem veio de feu próprio Pai. Baron. Qiie me dizeis , Brigadeiro r Tarde nona. 237 necd. Efperai , Senhora, que ainda que- ro rematar o diícurfo. Nós temos em ; nós mefmos hum principio que no» . chama para â verdade , e para o bem : temos as paixões que nos impeliem para o mal , e nefta contenda conti- nua eftá o combate , e a guerra , qu2 todos ícntem. Pergunto agora : don- de vem ao Jiomem a Razaõ , e incli- nação para o Bem ? JSrigad, De Deos ? TAefid. E donde lhe veio o principio , que repugna a efte bem , eíTe princi- pio , que quaíi nos arrafta para o mal ? Naô podemos dizer , que hc de Dcos pois naõ pôde Deos attrahir-mc para o bem 5 e impeliir-me para o mal : períuadir-me a virtude , e eftar arre- íoando a favor do vicio. De Deos he impolTivel que venhaô eílas inclinações contrarias. Brigad. Aíllm hc : mas que inferis dihi? Theod, Logo toda a inclinação para a or- dem veio de Dcos na noíTa formação , e toda a inclinação para a defordem veio da queda que o homem deo , veio da rebelliaó das noílas paixões. Bem como o doente , que vai andando , e cahindo ; o qual deve o andar á íua na- 238 Recreação Filofojica Natureza primitiva ; mas o cahir á fuá enfermidade. Brigad, Bafta , Theodofio : dai-me cá hum abrajo : crede que me tendes fa- tisfeito. Baron, Vede, meu Brigadeiro, que dif- ferença vai de difcoirer de fangue frio , e efpirito poufado , a fallar com chif- tes , e mofas , e gracinhas em conver- façaõ interpolada , que he como Vós cofíumais difcorrer. relo menos quan- do Vós me tocais , e outros Cavalhei- ros neftas matérias , fempre he dizen- do galantes chiftes para agradar , mas naõ allegando , como faz Theodofio , razoes para convencer. Bngad, Baila de Theologia , Senhora ; ponde efcóla , que eu quero vir a- prender comvofco. Agora convém que eu vá íaudar Madama volTa Mai , que ainda hoje naó tive a honra de lhe fallar. Baron. Fallemos agora de novidades da Corte , Theodoílo. Theod. Fallemos , que nefte correio nao ftltaô. Baron, Mas antes que fallemos em no- vidades da Corte , quero que me cum- prais a promeíTa , que me fizelles du* ran- Tarde nona. 239 rarte a difputa , de me inftruir a mim particularmente das razões que vos mo- viaó a inclinar mais á Sentença de S« Tliomaz , que põem os Meninos fem baptiímo em lugar fem pena , nem gloria , naõ obftante a Senrença de S. Agoftinho, e outros Santos Padres, que juigaó o contrario. Por quantp , am- da que efta opinião de S. Thomaz me quadra mais com o meu génio feme- nino 5 brando , e compaíTivo , com tu- do gofto de difcorrer mafculinamen- te , e com folidez , e dar a razaó do meu parecer. Mas advirto , que eu nunca aprendi Theologia , nem faço tenção de a eftudar : fallai-me em lin- guagem que eu entenda. Theod, Farei por vos fatisfazer. Eu fal- lando com o Brigadeiro conteniei-me com lhe moftrar , que eíTa Sentença que condemna os . Meninos ás penas do Inferno , naõ era Dogma de Fé ; porque a minha obrigação era defen- der a minha Religião de todos os ar- taques , que os ímpios lhe fazem j os quaes na Sentença de S. Thomaz ne- nhuma força tem \ e bem viftes que elle pafmou de ver que naÕ era iílb Dogma ^ mas Sentença controvertida por :24o Recreação Filofojica por muitos Tlieologos , de cuja Pé j ■' e boa Religião ninguém fe arrreve a duvidar. Quem ha de duvidar da Fé, c Religião de S. Thomaz ? que naÔ fó €ra devotiíTimo Difcipuio de S. Agof- tinho 5 mas que eftudava muito pelas Santas Efcrituras , e Padres : e naó obf- Tante iíTo em muitos lugares expref- famente diz , que os Meninos que mor- • rem fcm a felicidade do Baptifmo , íi- • cao privados para femprc da vifta de - Deos 5 mas fem tormento algum (i). Qiiem ha de duvidar da Fé , e da Re- Jigiííò de S. Boaventura ( 2 ) ? Quem la de duvidar da Fé , e da Religião de Scoto , cabeça da efcóla dos Sco* tiftas ? o qual junto com S. Thomaz, cabeça da efcóla dos Thomiftas , in- volvem hum numero fem numero de Thco- (1) S- Thom. ^. part. qiiíçft. i. a. 4. Ad jecun* jâum dicendum , qund pcccato Originoti tn JuXiira re- tributione ncn debctur pcena fevfus, O inefmo in 2, dift. ^J. q. 2. a. 1. Ideo carenúa hujus v'i/ionU efl •própria , ^ fola poena oricjnalis peccati pojl niortein, O meímo quaeft. 5. de Maio a. 2. O ir.efmo in j. cliíl. 22. a. I. onde aíijgna o lugar do Limbo dos JVleninos in (jito funt tenebrje propter carentiam Di- vina vijlnús , ^ propter caventiam Gratta ; Jcd non cjl ibt ulla pcena ftaiJibUis ... & alibi. Ca^ i). Boiuv, in 2. diíl. 33. a. 2. q. i« Tarde nona. i^t Theologos , a quem a Igreja alíida jiao reprehendeo ? Qiiem ha de duvi- dar da Fé , e Religião de S. Gregó- rio Nazianzeno ( i ) , que em huma OraçaÕ febre o Baptifmo diz expref- famente , que eíles Meninos nem com Gloria Celefte , nem com tormentos feráó fentenciados pelo Juiz Supremo? Quem ha de duvidar da Fé , e da Re- ligião do Cardeal Belarmino , de Soa- res , e Vafques , Theologos , que to- dos refpeitaõ ? naô para feguir as fuás opiniões , mas para naó ultrajar a fua Fé. Quem ha de emíim duvidar da Fé , e Religião da opinião mais com- mum , c geral , que ha perto de qui- nhentos annos na Igreja fe eníina , íem que a fua Cabeça formalmente a re- prehenda ; como fe pódc ver no Car- deal Gotti ( 2 ) , que trata cfta matéria diíFufiíIimamentc ; onde cita S. Tho- maz em todas as refpoílas , que o Tom. IX. a San- (i) Greg. Nazianz. Orat. 40. de Baptifm. Po/ire^ tni dtntque nec CoeUjll glaría , nec fuppritiis ajujh Jiidlce affiàuntttt' ; ut pote ijui ^ lUet Jignaú nonfue^ rint ? improhitatc tamen careant. (2) Gotti Tom. 6; quierl. 10, Dúbio 5. perto» tum. O mefmo Tom. JJ' de Sacram. 3c Baptifau p. mihi 26 j. :242 Recreação Filofofica Santo Doutor dá aos fundamentos da SenKenp contraria, BavGíi. Já vejo , Theodofio , que Vós tínheis eRudado o ponto. Theod, Naò vèát^ , Senhora , que he de grande importância , por huma parte rcvindicar a reputação de tantos ho- mens grandes j e por outra tapar, quan- to puder fer , a boca aos que infultao a noiTa Religião , aíBrmando que nós feguimos Dogmas cruéis , e contra as Leis da Caridade do noíTo Divino Le- gislador. Siga cada qual a que qui- zer 5 mas naõ queira fazer Dogma de Fé 3 o que a Igreja naó tem declara- do. Além de que , os que íeguem S. Thomaz fazem juftas reflexões fobre S. Agoftinho 5 que com grande vehemcn- cia efcreveo contra os Pelagianos , os quacs , naõ obftante excluírem os Mcni- • Jios naô baptizados do Reino dos Ceos, ^ diziaó , que ícm entrar no Reino de Chrifto podiaó por outro modo ter , vida feliz , c beiíiaventurada. Os argu- . mentos doSanto íaó fortes , mas as rcf- '' poftas , que lhes daõ os que fcguem a S.Thomay. , nao faõ dignas de delprezo. Jiaron, Dizei-me alguma coufa fobre . iífo , quanto eu poífa entender. ^ Tarde nona. 245 ' Theod, Santo Agoftinho , e os Santos Pa- dres , que o feguem , tomaô o funda- irento principal da fua Sentença , que affirma , que os Meninos fem baptif- mo teráo penas eternas ; tomao ( di- go ) da Sentença que o Supremo Juiz dará a todos os homens no ultimo dia. Sabemos que o Senhor dividin- do todo o género humano em duas turmas , porá a dos eícolhidos á ma6 direita , e a dos réprobos á efquerda ; c dirá aos que cíHverem á maõ efquer-^ da 5 que vao para o fogo eterno (i). Argumenta agora Santo Ágoflinho : eftes Meninos naÓ podem eftar i mao direita , porque Jefu Chrifto pofitiva- mente exclue defla maÓ todos os que naÓ tiverem nafcido fegunda ve? pela agua , c pelo Efpirito Santo (2) : logo ficao a maó efquerda : e íendo aíFim, hao de ouvir a Sentença do fogo eter- no , que o Senhor dirá aos que cíli- verem deíía parte. Porque nao tendo o Juiz mais que duas mãos , na6 ha QJi íe-^ (1) Dlcet his (jui a /inijliis erunt , Difceciíte h me ... , In i^nem ^ternum. (2) N/Ji (jtiis renatus fucrit ex acjua i^ Spir}' tit Sanão noii fotejl iníreirí in Tegnum Dei. Jo>n. 3- V. 5. ^44 RecreaçaS Filofofica fenaó dois lugares , e duas fcntença^: a dos filhos de Deos na6 lhes perten- ce : logo perrence-lhes a dos répro- bos , que he naò fó privação da vifta de Deos , mas pena de fogo. Baron, Oh , Thcodoíio , eíTe argumento he í-ortiíTimo. Theod, Todos aíTim o confeíTaó , e eu também : mas a refpoíla que S. Tho- maz , c os mais lhe daõ , he tiracia do mefmo lugar ^ e naõ merece dcl- prezo. Baran. Agora vos ouço com grande a p- pctite ; c nunca cuidei que matérias \ de Theologia me intereílaífem tanto. Que refpondem ? Dizei-mo. Theod. A Sentença do Supremo Juiz aos da mao efquerda naô he fimplelmcn- te que va5 para o fogo eterno , mas diz, que vaõ para lá , porque teve fo- tne , e naÕ lhe der a 5 de comer , ckc. (i). Ifto he ; porque faltarão as obras boas 5 que deviaô fazer. Ora aqui cer- tamente naò entraô os Meninos , que morrerão fem baptifmo. Dizem ago- ra os que feguem S. Thomaz : fe nin- guém (i} Vijicditf a me .... in i^nevi Mi>'tiuni . . tfurívi mm , CT npn dedljlls mihi mandacare , ^f . Tarde nona. 24^ fiiem dirá que os Meninos fe compre- endem no crime que a Sentença al- Jega , como fe haó de comp^rehender no caíligo que a Sentença fulmina ? Baron, Eílou calada : efla refpolla fa- íisfaz. Theoã. Accrelcentai : que a Sentença dos réprobos nao fó falia do crime , e do cajilgo 5 mas ata o ca (ligo comi o cri- me , dizendo, que huma coufa he que traz comfigo a outra ; pois efta he a força da partícula enim,. que íigniíi- ca porque , ou por quanto, Deíle mo- do : diz o Senhor ; Ide para o fogo , porque nao fizejies o que devíeis. Lo- go fe o Senhor por modo nenhum ha de arguir os Meninos de faltarem ás Obras de Mifericordia efurivi ; co- mo os ha de comprehender no fogo ignem aternum j e ifto quando decla- ra, que o fogo fó veio pela falta de obras boas non dedijlís} S. Agoíli- nho nao deixou de ver efta diiiicul- dade , e efcre vendo a feu grande ami- go S. Jeronymo fobre efte ponto (i) diz (i) Aiig. Ep. 28. aliás 166. ad HieroDyn. Scsi cun ad poenaí venlum €jl parvulorum , ma^nts intlil crxilí) coarãor angtijíiis , ncc quid rcfpondcani prorfus inveah. 14^ Recreação Filofojíca diz íincera mente : Quando chego a tratar dos cafligos dos Meninos , cre- de-me que me lejo em grandes an- guflias 5 nem acho verdadeiraynente que refponda, Efcre vendo o Santo con- tra Juliano Apoílata (i) , diz : Eu nao digo , que os que morrem fem haptif- mo , que ferdõ cajligados com tal tor- mento , que melhor lhes fora o ?iaÕ ter vafcido : e mais abaixo repete o mef- mo. Onde fe vé que o Santo nefte tor- mento dos Meninos fe via apertado ; e por iílb em outro lugar diz , que ( 2 ) aquelles que além do peccado ori' ginal , que contrahiraõ , nao accrefcen* tarao alp-mn peccado , terdõ o tormen- to o mais brando de todos. Baron. NeíTe modo de faliar bem fe vê que o Santo , nao por génio , mas ef- crupulo da intelligcncia da Sentença do (i) O mefmo Santo Doutor contra Julian. c. 11. Ego (lutem non àico párvulos Jine baptlfmate mo^ rtentes tanta pcena ejje pUãendos , ut eis non nafcl •potius expediret . . . quje ( pocua ) qualls CT* quanta erit , quamvís definire non pofjim , non tamen audeo dicçi-e , qaod eis , at nulli cjfent , quam ut ibi ejfent , -potius expedirei. (2) Aug, in EnchirJd. c. 9J. diz : MittJJima fane cmniuin poena erit eorum , qui pr e que \ naô tem defpenhadeiros. Brigad. Vamos ao ponto principal ; dei- xemos eíTas difcufôes menos eíTenciaes. Dizei ) Theodoíio •: porque razão nao dais licença que entrem no Ceo a go- zar da Bemaventurança , fenaõ os fi- lhos da Romana Igreja ? Se me ex- plicais eíle ponto de forma que eu fique fatisfeito > vereis em mim hum fanto. Baroji, Eu vos executarei pela palavra: defcançaik Tbeod. Eu quero certos preliminares , Xom. IX, R en> 258 RecreaçaS Filofojica em que devemos concordar , e depois formarei o meu argumento. O primei- ro preliminar he , que í? Direito d Gloria eterna , VifaÔ de Deos Beati- fica , i^^c, naÔ he , nem jamais foi prenda da "Natureza humana , ou qua- lidade 5 ou condirão devida^ dfua In- tegridade ; porque Dom fobrenatural nunca foi devido á Natureza, Brigad. Nifto já nós concordámos o» dias paíTadqs , e he bem claro , que os dons fobre , ou além da Nature- za , nao podem fcr devidos á Natu- reza. Vamos adiante. Theod. Acere fcen to agora o fegundo , e he ) que fomente a promeffa que Deos fizeffe a Adão , e feus filhos , de que lhes daria ejja Bemaventurança no ca- fo que lhe fejje obediente ) fó eJJa pro- meffa , digo , he que lhes podia dar algum direito condicional d Gloria do Ceo. Brigad, Concordo , e fem efcrupulo ; porque ilFo he aílim. ÍTheod^ Ainda digo mais ; que tendo AdaÕ perdido pelo feu crime , ejje direito , 7iem elle , nem feus filhos o padiaÕ re* cu per ar pelas Juas acções puramente fuás , i naiuraes y c ifto por duas ra- zões : Tarde decima. ^5*9 z6es : huma , porque eftando elles crí- minoíbs , naô podiaó as íuas obras ter acceiraçaò para por ellas merecerein o perdaõ do íeu cri:ne : Muito mais nao fendo peíToas de alguma forte conde- coradas para ferem acceitas. Segunda , - porque obras da Natureza nao podiao ter proporção alguma para merecerem a Gloria do Ceo , c vifta clara de Deos, que he Dom fobrenatural , c o maior: e aílim os filhos de Adaô , fem lhes vir algum foccorro extraordinário do Ceo , naô podiaõ alcançar efte direi- to á Gloria eterna , que feu Pai tinha perdido : concordais também niffo ? Brigãd, Acho eíTa verdade taô eviden- te , que me admira que vos queirais fegurar , fazendo-a ponto de conven- ção : mas como quereis ir com eíTc mcthodo , approvo , e convenho tam- bém ncíTe artigo. Tòeod, Ultimamente digo , que o Filho de Deos feito homem naõ fó quiz pa- gar por Adaô , c feus filhos , era or- dem a lhes alcançar o perdaô j mas com a íua morte de Cruz mereceo o fer Rei da Gloria ; e ncíTe eílado quiz adoptar os homens fazcndo-os filhos feus pela regeneração do Saptifmo , e Rii em 26o Recreação Filofqfica em confccjuencia diíTo feus herdeiros* Eifaqui em que eftá todo o direito á Gloria , que podem ter os homens : conílfte fomente em ferem hlhos do Rei da Gloria , com direito á heran- ça de feu Pai. Achais nefte noíTo Dog- ma alguma coufa contra a boa Razaó , ou alguma coufa contra a Bondade de Deos , e fua Caridade ? Brlgad. NeíTa acçaó a mais heróica que íc pode imaginar , brilha ineffavelmen- te a Bondade Divina , e he hum lan- ce de caridade o mais digno de Deos, que fc pode dizer. Theod, Porém dizei-me mais ifto ; fe ha ahi alguma coufa contra a boa Ra- zão ? que me he preeifa efta palavra. Brigad, Nada ; nada fe acha ahi contra a boa Razão. Theod, Ora bem : vede agora , meu Ami- go , as confequencias ncceíTarias que fe fcguem dos Preliminares , que ten- des concedido , que dizeis ferem fum- mamente conformes á boa Razaõ ^ e dignos da Bondade de hum Deos. Scgue-fc em primeiro Jugar^ que Jefii Chrifto Filho de Deos he o Rei da Gloria noíTo Redemptor , e o Princi- pio de toda a noíla felicidade fobre- ixatural : que dizeis ? Brigad, à Tarde decima, 261 Fr/gad. Concordo : feja. Theod, Segue-le em fegundo lugar , que ninguém tem direito á Gloria , íenao quem for filho de Jefu Chriílo , pois iómentc neíla íiliaçaõ he que íe fun- da o direito á fobrenatural herança. Alfim como ninguém tem direito á Coroa de Inglaterra , de Hefpanha , de Suécia , &c. fenaõ quem for fi- lho , ou defcendente deíTas Gafas Reae?. Brigad, Saô eíías confequencias tao na- turaes , que naó fe podem negar. Theod. Ora como pôde fer íilhodejefu Chriílo, herdeiro de feus merecimen- tos e Gloria , o Judeo que o blasfe- ma 5 e dereíla ? O PagaÒ que onao conhece , e que adora o Sol , a Lua , os monílros , e as mais ndiculas crea- turas 5 e até os .homens que forao vi- ciofos , e cheios das maiores abomi- nações ? Seráó eílcs filhos de Jefu Cliriilo ? Como ha de fer feu filho o Mouro , e o Turco , que o abomi- naó , que lhe preferem o Profeta fal- fo 5 e perfeguem a quem o adora ? Como ha de fer filho de Jeiu Ch riflo , e feu herdeiro 3 o- hicrcdulo , que de- pois de ler os Evangelhos os dei pi c- za ? depois de ter noticia de Jefu Chrif- 202 Recreação Filofojíca Chrillo zomba delle jCÍcarnece de quem o legue 3 e põem todo o eíludo , c elo- quência , eaílucia , e íagacidadc em re- belar contra ellc os povos 5 que neile criaô 5 e o adoravaó ? Como pode ler filho de Jefu Chrifto o ímpio , que nas obras he apoílata da Fé que confefla com a boca ? que com as obras cleíobedece a íeu Deos , conhe- cendo mui bem , que Eile lhe man- da o contrario ? Como ha de efte ho- mem íer filho de Jefu Chrifto , fe eile tem em pouco as promeíTas , com que o convida para ofeuferviço, de lhe dar a Bemaventurança j e as ameaças dos caíligos pela fua deíenvoltura ? Dizei , meu Amigo ; tendo o Filho de Deos vindo ao mundo fundar a Igre- ja , enfinar o Evangelho , e eftabele- ccr pela fua Lei a eltrada do Ceo ; do Ceo que eile unicamente conquiftou, como poderemos dizer , que faò feus filhos 5 e herdeiros de feus ferviços , c da gloria merecida com elles , eíles homens que o pçrfeguem ! Que me dizeis 5 Amigo ? Brigad. A fallar com íinceridade , ne- nhum deffes homens merece fer filho de I Tarde decima. 263 de Jefu Chrifto , nem feu herdeiro : mas explicai-me mais eíTe ponto , que a luz vai-me raiando no horizonte \ porém ainda naó diAingo com clari- dade os objeftos de que trato : ide diícorrendo, Theocí. O Filho de Deos foi quem inf- tituio cfte morgado da Gloria , e cha- mou á fua herança , fomente os feus filhos : ifto he , os que foíTem rege- nerados á Graça pelo Baptifmo : e as palavras deíla Inftituiçao faó bem cia- ras : Sem c[ue cada qual torne a naf- cer pela agua , e EJpirito Santo , naõ pode entrar no Reino dos Ceos, Falia do Bâptiímo , e diz , que por elle re- nafcem^os como filhos feus , tendo pri- meiro nafcido como filhos de noffos pais. Baron, As palavras faÓ bem claras. Tbeod, Porém ainda ha mais : Jefu Chrif- to neíía Inilituiçaò do feu Morgado , fez como Vós outros ás vezes fazeis nas Inftituiçoes dos voíTos , chamando os voíTos defcendentes ; m.as desher- dando pofiii vãmente deíTes voíTos fi- lhos , cu netos todos os que fízeíTem crimes de Leza Mageftade ; ou que foíTem falfos á Pátria , ou rebeldes ao So- 264 RecreaçaS Filofqfíca Soberano , ou faifos ao Morgado , ^c. AíTiQi fez o FiJho de Deos. De- clara que delFes que forem feus filhos pelo Bapriímo , iicaráô desherdados todos aquelles que fizerem crimes de Leza Magcftade Divina , ou forem re- beldes ao Rei da Gloria , &c. Pelo que aqui ha duas claffes de peíloas , que licaõ fora da herança Celeftial ( 1 o- mai bem fentido , Baroiieza , que ás ve- zes confundis huma com outra cou- fa ). Huns ficaô fora da herança Ce- leftial , porque naõ foraõ chamados a ella ; e aqui entrao todos os que nao fa6 filhos de Jefu Chriílo , nem jamais foraó baptizados , como faò os Judeos , os Mouros, os Gentios. Outros ha que faó filJios de Jefu Chrifto , c baptiza- dos ; mas ficaô fora da Celefte heran- ça por ferem desherdados delia expref- iamente pelos crimes que comettcraó ; e aqui fc comprehcndem os Incrédu- los , os Hereges , os ímpios ; e a clau- fula , em que ficao desherdados ; he bem clara , porque o Senhor manda a feus Apoftolos que vao por toáo o mundo baptizando ; mas enfinando-lhes logo a guardar tudo quanto Elle lhes- tem mandado : e em mi! claufuias do Evan- I Tarde decima. 265 Evangelho declara expreíTamcnte o meímo ; ifto he , que Eile exclue do Ceo os que teimao em defobedecer- Ihe 5 íem guardar a lua Lei íoberana. Barofi, líTo agora me faz grande eícru- pulo. Pois roda a pelToa que comette peccado grave , fica desherdada da he- rança do Ceo ? Theod, Se morre neíle eftado , fem dú- vida ; mas íe he filho de Jefu Chriílo pelo Baptifrao tem os íeus merecimen- tos nos Sacramentos , em virtude dos quats pode alcançar perdão , e rcíli- tuir-íe pela confiflao boa á graça , c eftado da amifade de Deos , recobran- do o direito á herança Celeftial , que pelo peccado tinha perdido. Eftais ík- tisfeita ? BaroH, Agora fim : ide lá contendendo com o Brigadeiro. Theod. Ifto íuppofto , dizei Amigo : fe hum Africano , ou hum China , ou qualquer Americano vieíTem a Heípa- nha queixar-fe de que nunca o dcixa- vaõ governar neífeThrono , fendo elie homem como os mais , quem naõ ri- ria de femelhante pertençao ? Todos -' o teriaõ por louco 5 pois para gover- nar no Throno de qualquer Eftado , naó a66 RecreaçaS Filofqfica naõ baila fcr homem, he precifo fer filho , ou defcendente dena Caía Real Hereditária. Dizei agora : Seria por ventura impiedade naó os deixar jamais fubir ao Throno de Heípanha , Ingla- terra , ou Suécia ? Brigad, Naó , certamente. Theod, Logo naó he impiedade prohi- bir , que herdem o Reino do Ceo to- dos efles , que naó íaó filhos dejcíu Chrifto por mais que fcjaÓ homens,! como os filhos da Igreja. Barorí, Qiie dizeis áquillo , meu Briga- deiro ? Brigad. Eu naó poíTo com dois comba- tentes ,a hum tempo ; deixai-mc cá com ThcodofioiVós, Senhora, íois rerrivel ! Baron. Perdoai-me, porque eu tenho olha- do para as arvores , c ainda naó vi nenhuma efta tarde com as raizes para o ar , como Vós dizieis : Mas eu dei- xo o campo a Theodofio. Brigad, O que me faz mais horror , Se- nhora , faó os Gentios , que nunca ti- veraó noticia de Jefu Chrifto : A in- nocencia deftes noíTos femelhantes cla- ma no intimo do meu peito. Ah Se- nhora , deixai enternecer o voiío co- ração, e naó queirais caftigar taócruel- men- Tarde decima. 267 mente eítes innumeravcis innocenres. Baron. Até ahi bailo eu , meu Brigadei- ro. Naó acaba de dizer Thcodofio , que para os que naõ forem íilhos de JcAi Chriílo o ficarem fora do Ceo naó he caíligo ; he inhabilitaçao , e falta de direito. Ora , dizci-me. Se hum dos meus cafeiros iiomem bom, manfo , e fizudo , que nunca fez mal a ninguém, quizelle entrar com voíTos íilhos á herança da cafa de Santo Ef- tevaò , Vós naÓ o confentirieis cer- tamente : naò obítante ler a voíTa ca- fa das maiores defta Província da Bai- xa Navarra. Brigad, Certamente naÓ. Os meus An- tepaííados icrvindo á Coroa ha mais de quatrocentos annos , naó ferviraó, e naó receberão as balas , para re- partirem os feus ferviços pelo vofTo cafeiro , ainda que feja muito bom ho- mem. Baron, Outro tanto, meu Brigadeiro : Vós naó fois cruel , nem caíligais o meu cafeiro , excluindo-o da herança da voíía cafa , porque tW^ naó tem direito algum a ella : iílo naó he caf- tigo 5 he inhabilitaçaõ. O Filho de Deos naô iníliíuio para os que naó foi- 268 RecreaçaS Filofojica foíTcm Teus íiJhos o Morgado adquiri- do peJos feus ler viços : naó fe podem queixar, íe os naô deixarem entrar nelle. Brígad, Naò íerá caltigo , mas elies iem- pre vao para o Interno. Vede fe Jie crueldade , ou naô , fazellos padecer fem culpa. The o d. De que Gentios falia is Vós , meu Amigo ? Dos que feguirem em tudo| a Luz da Razaô , fem obrar jamais 1 contra a Lei Natural ? Ou fallais dos que levados das luas paixões , como nós j mifcravelmente cometterem cri- mes contra a Lei Natural ? Quero la- ber de quem f^allais , para refponder ?i Brigad, Failo de todos : fallo dos cri- minofos 5 e também dos innocentes. Theod, Pois quero refponder com diftinc- çaô. Os que forem pcccadores , e fur- tarem , ou matarem , ou fizerem ou- " tros crimes contra a Lei Natural , fc- raó ( como os noífos peccadores ) caf-. tigados com tormentos á proporção de feus crimes : mas os que toda a fua vida viverem , e morrerem fem obrar coufa alguma contra a Lei da Natureza , eíTes ( fe accafo houver al- gum em todo o mundo) j eífe tal , ou ( como fegue S. Thomaz } fera illuf- tra- Tarde dtcima, 26^ trado por Deos íingularmcnte , e fal- vo pela Fé em Jefu Chriílo ^ e pelo Baptifino de defejo ; ou ( fendo tao innocenre como os meninos ) correrá a mefma forte , que tem os que mor- rem neíTa idade fem Baptifmo. Huns c outros fícaó fora do Reino do Ceo, por naò ferem filhos do Rei da Glo- ria 5 por quanto fomente pelo Baptif- mo he que renafccmos como feus fi- lhos : e por confeguinte nem os Gen- tios, nem os filhos dos Chriftáos , que morrem íem Baptifmo , tem direito ao Ceo , e ficaô privados da Eterna Fe- licidade , ao que chamaõ pena de Dam- 710^ e vaó para o Limbo fem pena , nem gloria , como vos diíTe os dias pafifados , fallando dos Meninos. hrigad. Se Vós metteis no Limbo naá fomente os Meninos filhos de Chrif- táos , que morrem fem Baptifmo , mas todos os Gentios adultos , que obfcr- varem perfeitamente toda a vida a Lei da Natureza , mui cheio , e atulhado haveis de ter o Limbo : porque fao innummcravcis os Povos , que vivem perfeitamente fegundo a Lei da Ra- zão , e nunca ouvirão o Nome de Jefu Chriíto. Que innocencia naõ reina nos cer- 270 Recrearão Filofofica Certvoes da America Meridional , on- de nao pôde ainda entrar , ou pene- trar o conhecimento do Chriílianif- mo ? ou lá na America Septentrional pelo Miífiílipi , Canadá , Bahia de Hiidfon 5 e Ccrroes da Califórnia , e Groelandia , onde os Geios reráô mo- derado as paixões , e naõ tem ainda os Europeos introduzido a péíiima Lei da ambição , e má té , que tantos ma- les cauía entre nós ? Quem quizer ver homens innocentes , vá bufcallos lá a eíTes Certóes , onde os homens fao me- nos homens na civilidade , mas verda- deiramente homens nas innocentes Leis ' da Natureza , e Boa Razão. Theod, E Vós tendes correi pendentes fi- dedignos neíTes Paizes ? peíToas que lá tenhaó vivido , e contratado , e que * políaó dar bom teílemunho de feus ufos, coílumes , c procedimentos ? Se Vós dizeis , que ainda lá naõ chegou nem o Nome de Chrifto , nem os £u- ' ropeos ; quem vos trouxe de lá t^ó miúdas noticias ? Quem vos diflc , que lá naó ha paixões , que naõ ha ambição , que naÕ ha defordens ? Qiiando eífes Paizes fe vaõ conquif- tando , fabemos , que muitos comera gen- Tarde decima. 271 " gente 5 ifto he , entre íi liuns aos ou- tros do feu melmo clima , por ferem inimigos mutuamente ( coulá que nem os brutos fazem ) , e pafmamos da bru- talidade de fcus coftumes. Pois fe quan- do fe conquiftaó , fe achaô taó bárba- ros , e taó máos , com que confcien- cia dizeis Vós , que os mais , que ainda fe nao conquiílaraò , todos vi- vem innocentcs , e perfcitiílimamente conformes á Lei da Razaô ? Quem vos diíTe , que todos os Gentios Cli- vagens regularmente obfervaô em to- da a fua vida a Lei da Natureza ? Brigad. Lede a Hiftoria de Mr. de Bou- gainville na defcoberta de Taiti , ou nova CAthéra , onde elle diz , que ahi fe guardava perfeitamente a Lei da Natureza. Tbeod, Ah , meu Amigo Brigadeiro , c que matéria de rifo forneceíles ago- ra á noíTa converfaçaó ! A eloquência de Mr. de Bougainville cnrouqueceo á força de pregar os elogios delia bar- bara gente, que lhe cahio em graça , e á tripulação do feu Navio , pela ef- tranha polidez , com que os naturaes da terra lhes vinhaô oíFerecer as fuás filhas - as mais formofas. Mas dizei-me , de que iji Recreação Filofojica que modo feguiaô todos a Lei da Na* tu reza , fe ahi havia ladroes , como conílâ da fua Hiíloria ? Como leguiao todos a Lei Natural , fc haviaò Leis para cohibir os crimes ^ e para os caf- rigar , com.o elle confeíTa ? E que tem- po tiveraô os Ibldados para tirar hu- ma inquirição exadla de vi ta ^ mo- ri bus de toda eíla barbara gente ? E quem entendia a lingua delles habi- tantes de quem na6 tinhaô aié aquel- le tempo havido as mais leves noti- cias ? E da verdade delTe tal qual In** terpretc , que por neceílidade le poz a elíe officio , que teílemunhos temos ? Nao podia dizer o que quizeíTe ? E que tempo tiveraó para nos affirmar o que diziaõ da innocencia geral def* les bárbaros , quando todos eftavao occupados , huns a gozar das delicias ^ que fe Ihesfranqueavaõ ) outros a fal- var as amarras , que fc corta vaó nas pontas das pedras , por onde roçavaô ; outros a contratar , trocando pregos por peças de tafetá de papel , de que Madama d'Armendariz Mãi da Senho- ra Baroneza me deo hum bom peda- ço ? Vós , Amigos 5 por ventura naá •íabeis o Privilegio antiquiífimo , que tem I Tarde decima» 275' tem todos os defcobridores de novas Ilhas , de poderem mentir a feu lai- vo , principalmente em mares remo- tos ? Que mentiras naó conhecemos ngora nos primeiros defcobridores da America ! Vós ignorais o que he o Homem ? e que quando lhe tocao em- huma certa tecla , todo o orgaó fôa com admirável confonancia : franqueai aos foldados , e marítimos a porta de Vénus , e vos diráõ maravilhas , e o Paiz mais infame lerá pintado como os Campos EI7Í10S. Vós , Brigadeiro , fabeis que coufa faó foldados ; e eu conheço bem os marítimos. Briga d» NilTo naó poíTo deixar de con- cordar comvofco. Todos tem hoje eífa hiftoria , como huma Noveila. Baron. Pois eu confeífo , que dava cre- dito ao que me tem dito da innocen^ cia delíTa gente inculta. Tòeod, Ora vinde cá : difcorramos pela própria experiência. Nós temos edu- cação , livros 5 Evangelho , &c. tudo o que nos perfuadc o bem, e retira do mal. Os Hereges igualmente tem toda a Efcritura , e muitos Sermões , e meftres que os educaô , e retirao da Tom. IX, S . ex- 2^74 Re(rreé^^aõ Filofojica mal. Osjudeos tem o merino, excep- to o Evangelho j mas tem os Profe- tas , c todo o/rcftâmento Velho. Os Mouros tem o feu Alcorão com mui- tos confelhos bons. Pergunto agora : Achais 5 Baroneza , que entre os Ca- tholicos 5 ou Hereges, oujudeos, ou Turcos íeja coufa regular obfervar-fe a Lei Natural ? e oblervalla fcmpre , fempre em toda a vida ? Eu naò pol- ío dizer iílb de mim , e mais naô me tenho por dillbhjto : mas as nofías paixões luílando fempre com a razaò , i qual debaiio , qual de cima , humas vezes vencem , e temos crime contra a Lei Natural , outras vezes faó veii- '' cidas , e a virtude triunfa. Baron, O mefmo confeflb eu de mim , ' e todos devem confefiar o melmo j' porque eu naô conheço ninguém , que ou mais , ou menos naÔ fe veja arraf- tado alguma vez das paixões. JTheod, Pois fe nós , que temos educação , e mil foccorros contra as paixões , ainda aííim cedemos muitas vezes a ellag , como he crivei , que os barba- i TOS , fem a menor educação , fem foc- ' corro algtim da Natureza ^ ou da gra- ça Tarde decimai 27 5* ca fempre triunfem das fuás paixões ? .E fe nem fempre triunfaõ y como fe pode dizer delJes que em toda a vi- da obfervaó a Lei Natural ? Barone- za , o homem em toda a parte tem a mefma conílituiçaó , em toda a parte tem as mefmas paixões , ou mais , ou menos indómitas , ou domefticadas. Baron. Talvez que nos Gentios as pai- xões fejaò menos vivas , ou mcnoa defordenadas do que em nós 3 e aífim nao lhes faraó tanta guerra. Tbeõd, Qiiereis dizer niíTo , que as Leis Sagradas feitas para corrigir as pai- xões ; os confelhos do Evangelho da-* dos pelo Filho de Deos para as mo- derar , e também as promeíTas Divi- nas para nos convidar á virtude , e ás ameaças de Deos , em ordem a que nos retiremos do vicio ; tudo ifto que nós temos , e elles naó tem , he a cau- fa da depravação dos noílbs coftumesj pois que elles naó tendo nada diíTo , íaó muito melhores. Ora dizei , Ba- roncza , cabe iílo na voíTa credulida-r de ? Baron, Naó : naó cabe nella femelhante defpropoíito ; eu naó reparei no que difle. &XI "theoi.. 276 Recreação Filofofica V^heod, Logo lemos; que fe nds na 6 nos podemos gabar de que cm toda a nof- fa vida fempre tenhamos fcguido a Lei Natural , e obrado fegundo a Rc- fti Razaó 5 muito menos o faráõ os bárbaros que naõ tem Lei , nem Ci- vilidade 5 nem inílrucçao , nem Reli- gião , entregues como brutos a tudo o que lhes pedir o appetite , c a pai- xão : e por confcguinte vede ^quzió longe da veriíimilhança hc a máxima de muitos ,;quc fundados neíla deferi p- çao âsi Nova Cit bera y aíTentaÕ que o» Gentios regularmente obraõ fegundo a Lei Natural. "Éaron. Agora faço reflexão , que huma Máxima tao importante, e taò abíona , e incrível , he fundada unicamente no dito deífe Interprete , que fe fana in- telligente da lingua deíla terra , onde nao finha jamais ido, nem fe fabia, que a houveíTe no mundo. Na verda- de que grande fé merece elTe chama- do Interprete : e além diíTo o feu tef- tcmunho he contrariado pela mefma liiftoria , e explanado por hum Hiílo- riador poético no génio , mais appli- cado a pintar com cores lindas, que a retratar a verdade. E ultimamente ain- Tarde decima. 277 ainda ha outra falha no Difcurfo , que he julgarem pelo que elle dilTe deíla Ilha , para concluir que aííim feria em todo o mundo bárbaro. Vede , Briga- deiro , que loucos faÕ os homens quan- do querem apoiar as fuás paixões ; e como fohre hum Nada fundão maqui- nas de grande importância, Parece-me iílo a extravagância de hum Pintor , que debuxou hum Palácio grande , fuf- tentado fobre duas flores com os feus pés delicados. NaÓ faò menos dignos de rifo os que difcorrem deíTe modo. Brirad, Naô íe fallc mais em Mr. Bou- o gainville ; vamos ao ponto principal. Thcod, Digo pois , que os Gentios que pcccarcm contra a Lei Natural , feráó excluidos do Ceo , ( ao que chamao fejía de Daynno ) , e atormentados com pena de Sentido , á proporção de feus crimes : mas fe houveíTe algum Gen- tio , que obraíTe exaélamente o que lhe manda a Lei Natural , que ei[e homem naó irá ver a Deos no Cco , porque nunca foi filho de Jefu Chrifto , nem pertencia á fua familia ; mas fendo elle tao innocente nos coílumes , como os Meninos, naõ fera atormentado com tormentos alguns 3 porque fegundo a dou- k j?7? Recreação Fihfojica doutrina de S. Thomaz , de que falia» mos os dias paíTados , o peccadx) de Adão o privou do direito ao Geo , mas na 6 o fez réo de pena^ , e tor- mentos ; que ifto he o que commum- mente fe diz dos Meninos , que mor- rem fem Bapiifmo 3 que íb xzm pena de Damno, Brigad. E achais que he pequeno tor- mento ver ir os íeus femelb^ntes para o Ceo , e que elles íicao de fora. lílo fó , mortifica mais que todos os tor- mentos íenfiveis. Theod. Amigo Brigadeiro ; naó vos dei- xeis levar da primeira apparencia : re- fledli antes de fentenciar. Toda a pena e mortificação , que podemos ter , fe funda na injuftiça que fe nos faz em nao attcndcr a tal , p^ qual direito que temos ao que dcíejavamos. Dizei- me , que pena tem qs Aldeões do vof- fo povo de nao ferem herdeiros com voíTos filhos do voíTo preciofo Mor- gado ? Lembrou nunca iílo a nenhum dos fubditos das voíTas terras ? Brigad, Certamente nao : tomáraõ elJes que lhes. rendeíTem bem as fuás /eá- ras , paríi me pagarem o quarto. Tòcod^ E porque ? fenaô porque fem di- rei- Tarde decima. 179 reito a huma coufa , nem ha efpcran- ça ; e fem elperança fruílrada naõ ha pena : çffes Gentios nenhum direito tiv^erao ao Cco , e nenhuma eíperan- ça ; naô fe lhes faz injuria , nem el- les devem ter pena. Vede , meu Ami- go , que a verdade vai lempre fobre nadando a todas as difficuldades ! Brigãd, Aílim he , naô vos poOTo negar que tendes pofto iíTo em hum ponto de clareza , que eu naô eípeiava ; mas que razão podia ter NoiTo Senhor pa- ra eípecializar cíle terreno em que Vós os Catholicos viveis , ás outras Pve- gioes onde nunca fc ouvio o nome do Salvador ? Efta cfpinha fempre me em- baraça , e afflige. Theod, EÍlc Privilegio na 6 he do terre- no j porque aqui mefmo nos Paizçs Catholicos morrem muitos íem Bap- tifmo , e íicao privados do Ceo : Aqui meímo ha muitos baptizados , cut por Ibus crimes faó desherdados da Glo- ria 5 e fe perdem : ao mefmo tempo que dos Paizes bárbaros , e gentílicos vemos vir cada dia por modos nao ef- , perados alguns , que tendo noticia do Evangelho , recebem o Baptifmo ,6 í herdao o Cco. Com que , meu Ami- go > 28o Recreação Filofojicn go 5 nao ha aqui favor feito ao terre-* no ; ha graça livremente feita a huns , mas naô concedida a todos. Brigad, Sempre me parece tal qual in- juíliça em Deos , por nao conceder a todos eíTa meima luz , que concede z alguns. Tbeod, Nao ha maior injuíliça do que femelhante accuíaça6. Quem jamais obrigou a hum Soberano a que nao íizefle beneficio a ninguém , já que nao os havia de fazer a todos ? Vós nao fendes concordado comigo , que pela culpa de Adaô ficou elle privado de to- do o direito á Gloria , e que feus filhos naícendo já depois da deígraça do Pai, nunca tiverao tal direito ? 'Brigad, Concordei. Tkeod. Podia logo Deos nao voltar ja- mais os feus olhos de clemência para homem algum ; e ilfo fem a menor injuftiça , ou crueldade ; afilm como fez aos Anjos , em quem executou a fua juftiça plenamente , fem perdoar a nenJium. O mefmo podia fazer nos homens : Dizei j podia ? ou nao po- dia ? Brigad. Nao o nego : bem podia, Theod* Pois fc o Senhor fem injuftiça po- Tarde decima, i^i podia na6 dar liberalmente remédio a nenhum homem , fera injuíto por dar liberalmente remédio a alguns ; ainda que nem todos íe aproveitem dellc ? Quem jamais foi cruel por fazer bem ? ou injufto por fazer mercês , além de toda a juftiça ? NaÔ he Dcos , Se- nhor dos feus Dons para os dar ^ e conceder a quem muito quizcr ? c iílo fem que haja da parte delles o me- nor merecimento ? Se Deos fó podef* fc fazer favores a quem lhos merecef- fe , feria efcravo , e naó Senhor; por- que ao Senhor fempre competio a li- berdade em fuás acções , quando nad prejudicao a direito algum. Eíla liber- dade fomente he para fazer bem , a quem mais quizcr ; ainda que lho nao increça ; mas nao para fazer m^al a quem lho nao merecer : porque fazer mal a quem nao tiver crime , Jhe cruel- dade ; mas fazer bem a quein nao ti- ver merecimento , he liberalidade. Além de que , Dcos nao fechou a porta a nenhum filho de Adaõ para receber a luz do Evangelho ; e quan- to he da fua parte tem franqueado a todos o ferem feus filhos pelo Baptif- mo , c poderem por eíla filiação fer her- aSz Recreação Filofojica herdeiros do feu Reino. Na6 ha para elle diftincçaâ de Judeo , nem de Gre- go , de Bárbaro , nem Romano. As íuas riquezas a todos podem chegar, e as derrama com abundância por hum modo univerfal , que a ninguém ex- clue: primeiramente, porque o Evan- gelho o mandou pregar por toda a parte; em fegundo Jugar, porque os Sacramentos do Baptiímo , &c. a to- dos íe franqueaô , fe os deiejarem. A fua Providencia tem brilhado no mo-j do rápido , e fuave , com que o No-| me de Jefu Chrifto fe tem annuncia- do em Rcgiôps innuraeraveis , c remo- tas j fcrvindo-fe Deos humas vezes até da ambição dos homens , outras da fua crueldade , outras da verdadeira injufi? tiça , e emfim de outros vicios dos homens ; vicios que Elle deteíla , mas de tudo íe fsrve para os fins da pro-s pcigaçaò da Igreja. Nao ha parte çon-; íidcravel no mundo , onde fe nao te- nha annunciado o Nome de Jefu Chrif- to. Primeiramente, narj ha na Europa canto , ou recanto em que Elle feja ignorado. Na Turquia da Afia , onde o Salvador viveo , e morreo , e onde íe vencraõ os Lugares íàntçs , como: pó- Tarde decima, 2S3 p(')de fer o feu nome ignorado ? Nas índias Oricnracs , onde vive o com- mercio dos Europeos , lie bem conhe- cido p Cliriílianifmo. Na China ha mais d? vinte mil Chriílaos ; e me- nos que ifto bailava para que neíle Paiz dilatado eílc fanto Nome nao foíle defconhecido. Em toda a Tartaria RuíTa dcfde a Europa até o Cabo de Kant- chaftkâ a Religião he fciimatica , c por confeguintc naô fe ignora a Chrif- to : nas bordas da Africa íbbre o Me^ diterraneo o ódio dos Mouros faz o Chriílianifmo conhecido \ e quantos captivos detém lá os Piratas , tantas fementes tem o Evangelho. Na Coíla de Guiné , e Ilhas ad- jacentes , no Reino de Congo , Loan- go 5 Benguela , no Monoraotapâ , e Rio de Sena , em Moçambique , Qui- loa 5 Melinde , eCofta de Zanguebar, tem os Portuguezes plantado a Cruz de Chriílo , e a tem regado com fan- gue : nas Molucas , nas Fxlippinas , o commcrcio que traz para a Hefpa- uha as riquezas da terra , leva muitas vezes as do Ceo : e na America , quer Septcntrional , quer Meridional fabe- mos que hoje tem feito grandes Con- quif- • 2 §4 Recreação Filofojica quiftas o Evangelho. Quafi tudo o que ' vai do Rio das Amazonas , até o Rio ' da Prata eftá no dominio dos Portugue- zes ; e o Paraguai fe reparte entre cl- les 5 e os Hefpanhoes ; e eíles por to- do o Chili , Perii , Velho , e Novo Mé- xico , e a Califórnia ; e os íngíezes por todas as fuás Américas , e Canadá ; e os Francezes pelo MiíTuTipi , bufcan- do os intereíTes das fuás nacòes , le- vaó a noticia do Chriftianifmo. Que mais quereis para que Jefu Chrifto naá exclua nenhum terreno , c conheçais a franqueza de poderem todos fer fcus filhos 5 e íèus herdeiros. Por ventura ( como já diffe ) nao podia Jefu Chrif- to paffar fem fe lembrar dos homens , como naó fe lembrou dos Anjos ? Brigad, Podia. Theod. Naó podia lembra r-fe de hum , ou dois 5 ou quiuro ^ fazendo-os feus filhos, e herdeiros por Privilegio ef- pecialiíTimo ? Brigad. Podia. TCheod* Logo pode fem injuria de nin- guém chamar com efpecial empenho a vinte mil , ou quarenta mil , ou quan- tos qulzcr, íem chamar com efpecial empenho todos os mais. Que dizeis ? Brigad. i Tarde decima^ iSy Brigaâ. Nao poíTo negar que aflini he. Tieod. Logo com muiia mais razaõ o pode Deos fazer , franqueando as por- tas da fua Igreja a todos j e pela fua Lei firmemente eílabelecida adoptar por filhos feus os que crendo nelle fe bap- tizarem dcfte , e daquellc m.odo : c ifto fem a minima injuria de ninguém , nem apparencia de crueldade, antes com fummo louvor de todos : Dizei Jim , ou fiaÕ} Lcmbrai'Vos que vos tenho conjurado pela YOÍTa honra a falia r com íinceridade. Brigad. Naó vos cfqueceo eíTa palavra ! Conjurais-me pela minha honra : ora digo que fin , fim , niílo verdadeira- mente concordo. Theod, E também na6 fera injuílo , fe a alguns dcíles filhos adoptados , ou re- generados , a quem cm virtude dos feus merecimentos tiver dado o direito á herança celefte , fe os desherdar deíTe direito , e deíla herança por comette- rem crime de Leza Mageílade Divi- na , ou por lhe defobedecerem em ma- téria grave ; aíFim como fazem muitos Inftituidoresdos noííos Morgados ; que dizeis ? Brigad. Quizera negar , mas nao poílo. Theod. m. 2^6 Recreaça5 Tilafojica Theoi, Logo rodos os que nao faô bap- tizados 3 ou que fendo-o , oífendem a Jefu Chrifto , fícao fcin direito á glo- ria : refpondei , meu Amigo. Br/gad, Dcixai-me com tantas confequen- cias , que me fafigao muito. Sheod, Nad deixo : por força haveis de concordar , e então tiro a ultima : lo- go be fummamente conforme á Ra- zão , e ás idéas que todos temos , que fora da Igreja Romana naó ha falva- çaô : os Judeos , Mouros , e Paí^ãos porque naó faó filhos de Jefu Chrifto, por confeguinte naô tem direito a fua^ herança : os Hereges y os Incrédulos, os Ímpios porque fao desherdados def- fa filiação , e herança por conta dos feus crime? peíToaes. E quanto aos Gen- tios 5 ou Pagãos que nunca ti verão no- ticia de Jefu Chrifto , digo , que ficarão fora do Cco por na6 ferem feus fi- lhos , e alem diíTo atormentados fo- mente pelos feus crimes peílpaes ; e • por naó guardarem a Lei da Nature- za , que nenhum delles ignora : fó por iíTo he que haó de fer atormentados, e á proporçiíó dos feus crimes feráo os feus tormeíiros. Que me dizeis „ Amigo ? Baron* Tarde decima* 187 ilarofí. Diz que já as arvores eílao de raizes para o ar , e já fallaò os ro- chedos : naõ he aílim , Brigadeiro ? Br^gad, Na6 fe pôde difputar na pre- íença de Senhoras i que attacaó de for-* ma , que hum homem de bem naõ íe • pôde defembarâçar. Baron, Nao vos queixeis de mim : quei- xai-vcs de que Theodofio vos penho- rou a voíía honra , obrigando-vos com ella a iiao fá! lar contra a linceridade. Ah meu Brigad^firo , fe Vós nos vof- fos íyílenias difcorreííeis com a íin- ceridade , c miudeza , e folidcz , com. <}ue aqui fe difcorre , naô publicarieis tantos abfurdos. Ora eu vos perdo-o as irrifoes do principio , e fabei , que em quanto ha razoes fólidas > nao fe. combate com graças , e irrifoes joco- fas. Vamos bufcar a noffa companhia, que fupponho anda pelo bofque , e eu já ouvi rir a Madarna voíla Efpofa , vou buícaJla ^ que fou bem fua amiga, Brígad, Vamos : podeis tomar a boda de Doutora em Theologia. Baron. Inda aíFim , nad me aíFoitarei a attacar ninguém em matéria de Reli- gião , como Vós me fazieis a mim , mas inda bem , que eíloi^ bem vinga- da. Brigad. 288 Recreação 'Bilofofica Brigad. Com gloria minha me venccf- tcs , Senhora. Theod, Com gloria , e com proveito \ porque ficaftcs mais illuftrado. Brigad. Nao o nego , Theodofio. TARDE XI. Soírc o Infere ffe , que Deos tem nas noffas acções. Baron. TVT Ao fabeis , Theodofio , o X^ animo que me tendes da- do €om as noffas conferencias fobre a Religião ; e o bem que me parece , que íizeftes ao Brigadeiro. Hontcm á mcfa fe excitou entre vários Cavalhei- ros huma queftao , para mim nova ,' acerca do intcreffe , que Deos toma- va nas noffas acções , e huma Senho- ra ( o pcior he que era minha Tia , a Marqueza ) feguia que Deos naó fc embaraçava com as noffas acções ; mi- nha Mãi defendia o contrario ; e o Brigadeiro falia va com huma modera- ção naõ coftumada , ou foffe por naõ contradizer minha Mãi , ou foffe por Tíirde decima primeira. 1S9 naÔ ir contra os fcnrimentos da íua alma , porque nunca aiFenrou na opi- nião de minha Tia» Theod. E eíTa Madania hc peíToa de e (la- dos ? Baron. Tem muitos eftudos de bellas Je- tras ; e tem compoílo varias peças de Theatro. Theod. Oh ^ iíTo he, prova grande para ter attendivel voto na matéria de Re- ligião 5 e conhecim.ento de Deos ! Com que , já os Myfterios de Deos andaa pelo Parnafo ! He defgraça. Baroji. Quereis Vós que a deíafiemos pa* ra a diiputa ? Thevd, Por modo nenhum : eu nao bri- go com Senhoras , porque tem cenas leis de Politica , que ataó muito as mãos no difcurlb : agora fe o Amigo Brigadeiro vier , podeis tocar-lhe na matéria , e veremos o feu fentimento. Baron, Creio que nao vos podereis li- vrar do combate ; porque ella nao tar- da : quero prevenir-vos j porque tem hum ar 5 fobre maneira , picante , e al- tivo na difputa. Theod. Se tem juizo íólido , c fabe atu- rar as confequencias do que tiver con- cedido 5 naó a temo • poílo que fem- Tom. IX, T pre 2Ço Recreação FiJofoficd pre cufta brigar com armas deíiguaes , e a hiima Senhora nao fe pode dizer . o que fe diz a hum Filoíofo. Ahi a temos. Míirqueza, Já fe fabe , que Vós , Ba- roneza , haveis de eftar com as vollas Filofoficas delicias : cm citando aqui Theodoíio , já a Baroneza nao appa- rece , encantada com as voíTas doutri- nas. Nao me façais , Theodoíio , voar tanto efta rapariga lá pelos ares , c aftros 5 e Ceos que nos defappareça hum dia j que nao he para perder a fua companhia. Theod, Senhora ; cu nao poífo deixar de fomentar o íeu efpirito curiofo de in- dagar a verdade , fendo aliás a fua per- cepção tao clara , como Vós fabcis : E o que mais me obriga a fervilla neC- ta matéria, he vêr-lhe huma conftan- cia fumma em fuftentar todas as con- fequencias , que legitimamente fe fe- gucm de qualquer propoíiçao em que tenhamos aíTcntado : porque , Senho- ra , Vós nao fabeis quanto afflige a hum Filoíofo difputar com almas de azougue , que na difputa nao páraô , nem tem coníiftencia , ora concedem, ora negaõ , dizem e defdizem ^ e nao fabe Tarde decima primeira 291 fabe ninguém como polia haver-fe com ellas. Marq, Nada , nada \ iffo nao preíla. As almas bem feitas naó fallaó fenaô quan- do tem idéas claras ; e como naó tem cfpirito fervil , eílaô íempre cheias da- quelle nobre enthuílaímo que a Na- tureza ihes forneceo , para bufcar , e unicamente feguir a verdade , calcan- do as máximas do vulgo , e opiniões já corcomidas de velhas , e idéas ral- teiras. Eu defeípero de almas peque- ninas 5 que á maneira de formigas lou- ras 5 em encontrando huma palhinha le- vantada no caminho por onde hiao , já íicao atarantadas , e voltao bufcando outra eílrada. As almas grandes , e ge- nerofas faõ como as Aves que cortao pelos ares direito , fem fe verem obri- gadas a caminhar pelos torcicolos das eftradas , por onde vai a gente de pé. A verdade , meu Theodoíio , he o úni- co objedlo 5 que deve amar hum en- genho grande : authoridade , coilume , preoccupaçóes , tudo iflo he palha , que fc deve lançar ao vento. Que me dizeis , Baroneza ; naò fois defte voto? Barofí. Aííim me tem creado Theodo- fio ^ e Vós naõ podíeis achar hum ef* yii . pi- 292 RecreaçaS Filofojica pirito mais conforme ao voíTo ; por- que em todas as iníl:rucç6e« , cjue me tem dado , fempre vi , que íe naô ata- va á opinião deftc , ou daquelle \ nem ainda ás communs de certos tempos : failar-lhe a cllc na belleza da verda- de , he tocar-lhe na tecla única , que lhe fax confonancia. Marq, Sendo aílim , Theodofio , conver- faremos com gofto , e communican- do-nos mutuamente as noíTas idéas , mutuamente nos enriqueceremos hum ao outro ; pois nao fendo Vós efcra- vo de opiniões velhas , naõ ellranha- reis fc virdes , que eu penfo com no- vidade, ■Theod. A informação, que de Vós me ti- nha dado a Baroneza , e o que eu al- canço pelo que aqui tendes dito , me faz eítimar cita occaíiao de aprender de|Vós ; e vos feguro que nao achareis amante mais firme da verdade do que Theodofio : porém , Senhora , haveis de dar licenqa ao meu efpirito íince- ro 5 que vos declare o meu receio de entrar comvofco em difcuílaõ alguma ^ porque o caradter de Senhora impõem hum tal refpeito a hum homem bem criado, que nao pode difcorrer com Tarde decima primeira. 293 a liberdade , que temos 0$ Filo fofos huns com os outros , ou com a Ba* roneza , cujo caraáler de Difcipula dá contiança tal , que compenfa bem o acanhamento que infpira o de Senhora. Marq. Naò , naó ; Tiíeodoíio , iílb nao quero cu : os que me liíongeaó , me fazem o favor de dizer que eu tenho efpirito mafculino em corpo de mu- lher : com que 5 na difputa eu íou Mar- quez , nao me trateis como Senliora , e fiquemos niílo : efcolhei a matéria da noíFa converfaçaÒ j e vereis como me porto. Baron, Eu efcolho : Seja o que Vós, mi- nha Tia, dilTeíles hontem á meza , que Deos nao le embaraçava cá com as noíías acções , e que quer boas , quer más , para Deos tudo era matéria de de fp rezo. Marq. Se Theodofio tem engenho no- bre , como eu cuido , também ha de fer defle fenrimento. Qiic me dizeis ? Theod, Senhor Marquez , nao concordo : Vós rides ! Tomo a licença que me deíles , dizendo, que na difputa ercis Cavalheiro , e nao Senhora. Marq, Fazeis bem , fazeis bem ; gofto diiío : mas vamcs ao ponto : e porque nao concordais comigo ? The@d, 294 Recreação Filofofica 7hcod, Porque naõ dou fentença fem vér os autos : dizei Vós , Senhora , o mo- tivo que tendes para eíle lentimento ; e fe for mais forte do que eu tenlio para o contrario , eu cederei ; mas fe o meu for mais convincente, pelo vof- fo mefmo admirável fyílema , e pela voíla mefma palavra , vos concorda- reis comigo. Dizei Vós primeiro. Baron. Eíiá pofto em razaõ : o primei- ro lugar fempre fe deve ás Senhoras : correi Vós , minha Tia , a primeira lan- ça ; veremos com que eícudo fe de- fende Theodoíio. Marq. Dizei-me Vós , Thcodo/Io , nao devemos nós fazer de Deos a Idéa m.ais nobre , e mais elevada , e mais digna da fua Infinita Grandeza , que puder- mos ? Theod, Devemos. Marq, Bem eftá ( figo meu Cavalheiro, efte methodo fintético, porque difputo com homem mathematico j e he o mais fe- guro para conhecer a verdade ) e Vós quereis ifto. Thod. A p provo. Mrrq, Logo devemos julgar de Deos , como julgamos das peílbas m.aiores , e mais elevadas , que temos no mun- do. Tarde decima primeira, 29 j do. Ora , os Grandes naõ fe embara- çaò com ridicularias , e o íeii enten- dimento íbmente fe occupa de obje- elos nobiliífimos ^ e dignos de entra- rem no gabinete do feu entendimen- to. Áílim os objedtos que róiaó no pen- famenro dos Grandes , e entretém 09 feus cuidados /faô coufas também mui grandes ; c á proporção que Vós ides defcendo pelo Throno abaixo , ides encontrando cuidados fobre coufas mais miúdas , e raíleiras ; até que chegando aos últimos criados da cavallierice y ahi achais cuidados fobre eíle cavallo , ou aquelle , fe precifa de fer ferrado , ou naó , &c. De forma , que he indecen- te ao Throno ter cuidado das coufas vis. Dizei-me 5 Theodofio : Se o Im- perador da China , Senhor de vaftiíTi- mos Dominios ^ que eftao nos feus Eí- tados 5 ellivcííe mui afíiiclo porque duas formigas , lá em hum boraquinho efcurode Naokim , ou de Cantão, ef- tavaô ás bulhas fobre hum graô de tri- go 5 a qual o havia de levar para o feu celeiro ; e porque a fegunda por fer maib valejite , o roubava á pri- meira , depois de eftar de poíle delie ; fe cíle Monarca perdeíTe o fomno por cila 2^6 RecmcçaS Filofqfica tfta grande dciordem dos feus Efta- dcs , que diries Vós defte Imperador? Tbeod, Que era hum pobre homem. Maj^q. Bem eílá : logo do meímo mo- do devemos difcorrer de Deos ; por quanto em comparação de Deos todos nós , e ainda os maiores Monarcas lò- nics humas mui pequeninas formigas. Mais diftancia vai de nós a Deos eíle Ser Supremo , e infinitamente Infini- to , do que entre as formigas de Can- tão , e o grande Imperador da Chi- na ; e fe Vós achais indigno do Im- perador , que elle fe embarace com as bulhas , e injuftiças de duas formigas entre íi , mais indigna he de Deos o embaraçar-fe codi os furtos , e outras acções dos homens. Que me dizeis , Baroncza ? Eifaqui porque cu hontcm na meza fallava dcíle modo. A Vós , que fois huma rapariga , naõ me can- ço de dar razaó do meu dito , por- que nem todos faõ capazes de enten- der tudo y a Theodofio íim , que ellc fabe bem fuílentar ( como diíle ) as confequencias de huma Máxima bem affentaaa : aílentando pois nefte prin- cipio de que ninguém duvida de que he indecente á grandeza das pelloas a vi- Tarde decima primeira, 297 vileza dos cuidados , fegue-fe que fen- do os homens , c íuas acções obje- dlos vililíunos a reípeito da Divinda- de , vem a fer indecentiíTimo , que Deos no ícu sitiííimo Throno dos Ceos fe embarace com o que fazem eíles bi- chinhos que chama o homens- cá neítc globofinho da terra. Que dizeis ,Theo- dofio ? Theod, Digo 5 que ainda Vós podeis am- plificar mais o voíTo argumento com o que tendes diante dos olhos : naó reparais no voiío filhinho , que eftá «aquclla varanda brincando com feus Primos 5 todos á roda de huma carape- ta 5 a qual a ha de fazer bailar mais direitinha ; e chorando ha pouco por- que a de feu Primo durou mais tem- po que a fua : cuidados próprios da- quclla idade ; mas que feriaò impró- prios de Vós , ou de qualquer de nós outros , e mais impróprios do gabi- nete dos Soberanos , e grande Confc- ]ho de Eftado ? Donde fe tira a máxi- ma fundamental , que Vós pondes , que á proporção , que crefcc a grandeza dos perfonagens , crefce a indignida- de de que fe occupem com coufas vis , e abatidas. Baron, lícf^ ReereaçaS Filofofics Baron, Por certo , que feria coufa bem galante , fc fahifle da Corte depois de muitos Confelhos de Eftado hum De- creto para que foíle queimada a cara- peta do pequeno Chevalier , porque naò bailou taó direita , como devia. Marq, Pois então mais ridículo fera di- zerem y que Deos manda queimar hum bichinho da terra , a que chamaó ho- mem , porque naó andou taó direito nos feus coílumes como devia : Que dizeis 5 Theodoíio ? Theod, Nao vos podeis queixar de que eu aíFogaíTe o voíTo argumento , ou quizcíTe illudillo. Baron. Eu vejo-vos, Theodofio, taÓ def- aíFogado , que naó moílrais receio de que vos vençaó , e lancem por terra : eftou impaciente de vos ouvir a ref- poíla. Dizei pois : Concordais com mi- nha Tia ? Theod, Certamente naó ; e mais bem ve- des que dei corda ao argumento. Ora, Senhores , ouvi-me com a mefma at- rençaõ , que eu tive ; c rcfpondei-me com a mefma íinceridade , que por certo a matéria he graviíTima , c gra- vilTimas as confequencias delia : per- doai-mc fe for vagaroío nos meus paf- fos , Tarde decima primeira. 299 fos , porque quero ir bem feguro. Marq. Podeis tomar bem fentido nos paísbs que dais , que nao vos hei de deixar pôr pé çm falfo , fem vo-lo di- zer bem claramente. Theod. Iflo quero : vamos. Eííe princi- pio 5 cm que fundais o voíTo argumen- to , que he bem verdadeiro , de que as peíToas grandes naó cuidaó em cou- fas pequenas , funda-fe cm que nao pode a noíTa intelligencia applicar-íe a tudo ; e quanto mais attende a cou- fas vis 5 quanto menos dá attcnçaó a coufas lerias , e de importância : da- qui vem , que os criados de Ínfima or- dem devem appJicar-íe a couías mí- nimas 5 porque tem a cabeça defoccu- pada de coufas maiores : o que naó acontece aos Mordomos , e Criados da primeira ordem ; pois iieíTes a obri- gação he fomente de coufas mais gra- ves ; mas com tudo nunca cuicaô da- quellas que fó pertencem aos fenho- res. De forma que fe tem por maté- ria de grande louvor quando huma peíToa grande , e muito grande pôde ao mefmo tempo tratar negócios de ul- tima importância , e attende até ás mí- nimas miudezas de fua própria caía. Marq, - V gco Recreação Filofojica Marq. líTo he mui raro. Theod, Nao duvido ; mas prova mereci- mento grande por jTfo meímo , que hc 1^6 raro j prova grande , esfera , pois a naõ fer cila mui grande todo cíTc lugar que occupaõ as coufas raílciras , fcna tirado a negócios de maior im- portância : Quando a attcnçaõ que ie dá a huma couíá , naò tira a que fe di a outra , a multiplicidade de ob- jectos 5 em que cuidamos , he perfei- ção, c naõ defeito. Que perfeição nao he no Sol poder ao mefmo tempo il- luminar os Planetas , allim como il- luftra toda a terra , e ao mefmo tem- po favorecer com a fua luz o humil- de caracol , que fahindo da fua caf- ca 5 a elle fe aquenta. Sc o Sol occupado com cftas hu- mildes bagatellas faltaíTe a eíTe nobilif- íimo emprego de trazer em hum giro todos eíTes Planetas , e Cometas , c cf- clsrecer toda effa Região immcnfa , de que elle he como a alma , feria gran- de imperfeição : porém Vós bem ve- des que para o Sol feria o mefmo , que fe multiplicaíTem muitos mundos , ou que efte fe aniquillaííe: elle igual- mente rico , e b^enevolo , para todas as Tarde decima prhneh^a. 301 as partes enviaria igualmente os fcus raios , fem cjue a profuíaó de Juz pelos novos mundos diminuiíle em nada a que eftc noflb mundo recebia ; ncni também rcdundaíTc em benefício de hum mundo , o na6 precifar o Sol de attcn- der a outros. Marq. Na6 explaneis mais cíTe ponto, que o que Vós dizeis , he fem controveríia. Tòeod, NaÒ fucccderia aíGm a huma to- cha acceza ; porque íè lhe foíTe pre- cifo dar iuz em varias íallas , feria ne- ceííario deixar ora efta , ora aquella para illuminar as outras ; c quanto mais íe multiplicaífem as falias, que deviao fer allunaiadas por huma tocha , mais prejudicadas ficavao as que neceílita- vaõ delia luz. Marq, Também niíTo concordo. Mui ef-^ crupulofo fois , pois caminhais taó de vagar. Thesd* Nada he fuperfluo : e daqui tiro huma confequencia , que de diverfo modo fe deve difcorrer da luz quaíi infinita do Sol , e da luz limitada de huma tocha : creio que concordais ? Marq, Sem a menor dúvida. Theod^^ Logo do mcfmo modo havemos de difcorrer mui diíFcrentemsine da In- tel^ 302 Recrearão Filofofica tclligcncia de Dcos , que he infinita , e da inreliigencia de hum iiomcm , que fempre he limitada. Em Deos , hc perfeição ellcncial ver rudo , faber tudo , cíhr prelente a tudo , naô igno- rar a minima coufa , que exifta : alfun como he perfeição do Sol illuílrar tu- do ; e feria ainda o Sol mais perfei- to 5 fe tudo penetraíTem os feus raios , fendo para elle todos os corpos tranf- parcntes. Mas cm hum homem feria imperfeição applicar-fe as coufas ri- diculas , porque iífo provava que na- da fe applicava a couías ferias , e de importância ; pois fendo a lua capa- cidade limitada , tudo quanto foíTe at- tender a humas coufas, era dar menos attençaó a outras. BãroH, Minha Tia , façamos juftiça á verdade : cfta refpofta fatisfaz. Marq, Sois fácil de contentar. TòeoS, N-ãó refpondais ainda , Senhora, que naõ he tempo. Pergunto fe feria perfeição no Imperador da China , o faber ( fem fe cançar ) tudo quanto fuccedia no feu vaíliílimo Império ? Reparai , Senhora , que digo faber , c naõ à.\<^,o eftudar , ou exaymnar ^ ou efquadrinhar. Qual leria mais glorio- fo? Tarde decima primeira. 305 fo ? hum Príncipe , que tiveíTe tal in- telligencia , que foubeíTe tudo , até as minimas coufas , fera cançar a íu a ca- beça em as examinar, ou outro que nada Ibubelíe 5fenaô de coufas grandes ? Marq» Sem dúvida , que fempre o fa- ber foi maior perfeição , do que igno- rar 5 ainda que feja acerca do mais pe- queno objefto. Theod, Dais logo licença , que eftabele- çamos cila máxima , que I. PROPOSIÇÃO. Deos vê y e conhece todas as nojjas ac^ ções , penf amentos , e defejos, Marq. Q Endo Deos huma coIIecça6 de O tudo o que he perfeição , fein o minimo defeito , nem imperfeição y e fendo fempre maior perfeição o fa- bcr , do que o ignorar , feg uc-íc que Deos tem perfeita, e clariílima intcí- ligencia de todas as noíTas acções. Dif- fo nunca duvidei. Theod. Bem eftamos : Agora accrefcento outra propoíiçaõ , que Deos vê tudo fem o menor cançaço. Antes que Vós concedais , ou duvideis deita máxima , que- I 304 Recreação Filofqfica quero por honra minha fallar fobre iíFo ; porque nem rodos tem o juizo taõ vivo 5 c perípicaz como Vós , Se- nhora , que com hum iimples olhar vedes o que outros naó alcan^aó íem muita reflexão. Naô he Deos como nós , nem pen- fa como nós penfamos. A circunda n- cia da uniaõ com efta maíTa corpórea , que temos , nos canja no penfar : co* mo Vós fois inítruida na Pficologia , ou Sciencia da alma , polfo , e devo fallar-vos levando o diicuríb defdc as ÍLias mais profundas raizes. NaÕ pódc a noíía ahna diícorrcr fem que o nol* fo cérebro trabalhe : eiíahi porque lu- do o que ou impede , ou facilita os movimentos do cérebro impede , ou facilita a intelligencia da alma. O vi- nho moderado cfperta o cérebro , c dá aos Poetas novo fogo , c enthufiaf- mo ; fendo nimio o perturba, carrc-% ga , e opprime , e nos tira o ufo da Razão : também o leite , a comida abundante , ou o fomno íaó inimigos do difcurfo agudo , e delicado ; nao porque a comida , ou bebida tenha ac- ção Ibbre a alma ; mas porque embo- ta , entupe , e faz inútil o cérebro ^ ç fem Tarde decima primeira^ 305* fem que efte trabalhe como be razaô^ a aJina nada pode fazer : deixai dor- mir o homem , e fazer perfeita digef- taó , fe quereis que vos ajufte huru- calculo , ou difcorra com íegurança. Difto ninguém , que tenha feito eftudo» fobre as acções da alma pode duvidar ;, e daqui nafce o canfaço da cabeça , quando a fua applicaçaõ he nimia , oa por diuturna , ou por multiplicada , ou por fer mui efcura a matéria. Nada difto pódc cahir em Dcos , cujo mo- do de entender , e íaber naõ he acom^ panhado de trabalho do cérebro : Poiç coDÍèguinte podemos por eftoutra II. PROPOSIÇÃO. Deos tudo vé , e fabe fem canfaço. Marq, TVTEíTe modo de difcorrer com.: JLN paíTos taõ pequenos , e tao feguros , fc fazeis honra ao voflb juí- zo 5 fazeis injuria ao meu. Nunca vi- ria ao penfanjento de ninguém duvi- dar diíTo. ^heod, O aviíb , que me fizcftes , me fa2 acautellar nos meus paíTos , que para 1 ferem feguros , devo ir de vagar , e apalpando. Accrefcento agora : Tom, IX. U. PROt 305' Recreação Filofqfica III. PROPOSIÇÃO. 3)cos nos deo a luz da Razaõ para que a fegmjjemos. •i.A Lias Deos obraria por hum mo- jlV do indigno. Para que deo o Crea- . dor olJios ao homeiTi , íenaõ para vêr , c governar-íe pela viíla para os íeus . paííos ? Para que lhe deo ouvidos , fe- • iiaó para ouvir , e governnr-fe pelas • vozes , ou eílrondos ? &c. Logo tam- '.bem deo a luz da Razaó ao homem para que o homem governalTe por ella as luas acções j aliás obraria ícm fim , como fazem os tontos. Supponho que concordais niíTo. Marq. E fuppondes bem, ^Jheod, He logo eíTa luz da Razaõ hu-. ma Voz Divina , que nos aconfelha , -que façamos efta , ou aquella acçaõ , e ' ►nos prohibe outras j porquanto o mcí- 'ino he pôr Deos na minha alma efta Voz > que me cnfma em todos os ca- vfos , do que enfinar-me elle mefmo. . Baren. Que he Voz Divina fc conhece :.bem , como dizeis , porque Deos a poz na noíTâ alma quando a creoii i i '■-■ ■ . ^ ^. Tarde decima primeira* 307 e também porque Vós em outro tem-» po mo prováveis ; a íaber, porque ao homem he impollivel fazer calar eíTa Voz , por mais que elle fe empenhe , c fe esforce. Hum homem apaixona- do , tanto que começa a esfriar o fo- go da fua paixão , que tratos naò dá 20 feu juizo para que a fua razaõ ap- prove o que a paixão lhe aconfelha > forma mil difcuríbs , faz invedlivas , préga-fe a íi mefmo , pondera mil ra- zões a favor , ou verdadeiras, ou fal- fas j mas a luz da Razaõ eílá fempre dizendo Naõ. Toma pareceres , para que os juizos alheios façaõ calar o feu próprio , o qual naõ he poíFivel que approve o que a paixão quer : nao bufca votos indiíFerentes , e inteiros , bufca-os flexíveis , e em vez de cfpe- rar a fua decifaõ fíncera , os previne, formando-lhe hum longo arrazoado a favor da fentença , e voto que perten- de ; ora a pezar de tudo iflb a luz da Razaõ naõ pôde calar-fe , e a Voz in- terna o condemna , e diz Naõ ^ nao j naS, Ora fendo eíla Voz fuperior a toda a força humana , deve fer tida por Voz Divina. Mara. Sendo a Razaõ humana bum mio TJii da k goS Recreação Filofofica da Divindade , que fahindo da Razão eterna vem illuminar o noílb entendi- mento , tudo o que diz eflc raio da Divindade, a mefma Divindade o diz j e aflim concordamos todos, que IV. PROPOSIÇÃO. 'A luz da Razão he a Voz de De os* Theod. li yT Al fabcis quanto eftimo eíla xS/jL voíía PropoíiçaÓ : c juntan- do-as 5 digo aílim : Deos vê , e fem canfaço iodas as noíTas acções ( Prop. I. e 2. ) e para as governar nos deo a luz da Razaó em ordem a que a feguilTe-mos ( Prop. 3. ) de forma que cila luz da Razaó fe deve reputar por Voz de Deos : Logo fe efta luz da Razaõ approva humas acções 5 e re- prova outras , como todos experimen- taó , fegue-fe , que Deos approva hu- mas acções das noílas , e reprova ou- tras. Marq. Vós me enredais por hum modo , que eu me vejo hum tanto inclinada ; mas fempre me parece indecente aba- ter-fe o Ente Supremo a cuidar em ' ridicularias* Tkod. Tarde decima primeira. 309 Theod, Já vos refpondi , Senhora , por- que iíTo era indecente a hum Prín- cipe 5 e em Deos era perfeição ; por- que em hum homem eíTe cuidado cm coufas minimas provava falta de at- tençaó ás grandes ; e em Deos a per- feição infinita o obriga a nada igno- rar , e também a nao ter no conhe- cimento das coufas a minima fadiga , ou ca n faço. Baron. AíTim he ; ja nos fatisfizeíles^ a eíTa difficuldade , que me aííuftou ao principio. Theod, Rcfledli , Senhoras , niílo que di- go : Quem formou a conílrudlura do homem , e os feus fentidos externos , e internos ? Quem formou efta harmo- nia evidentiíTima , mas inexplicável do cérebro com a alma ? Sem dúvida que foi Deos , e mais ninguém. , pois nós naó conhecemos na collecçaõ de crea- turas , que fe chama Natureza, coufa alguma , que tenha o juizo , aftucia , fciencia , e poder para formar o en- tendimento de hum homem : creio que concordais nifto ambas Vós. Marq. Concordamos , fem efcrupulo. -Theod. Pois , Senhora , fe nao he indigno ' de Deos , nem indecente , que com as fuás 3 IO Recreação Filofofica fuás mãos ( a nolío modo ) formafle com tanta intelligencia , e fabedoria inimitável a cabeça de jium homem com intelligencia , e liberdade ; fera indigno o querer , que cíTa cabeça an- de nos feus movimentos internos co- mo elle deíignou no plano da Raza6 , c que lhe rifcou quando a fez ? Vamos á comparação do Imperador da Chi- na. Se vos conftaíTe que elle com mui- ta habilidade tinha formado com a fua própria maô huma formiga viva ; te- ríeis por indigno delle goftar que a formiga fe moveíTe fegundo o plano que tinha formado para os feus mo- vimentos 5 quando ideara eíTe infedlo? D zei , Senhora , com fínceridade. iSarofí. Vós , minha Tia , rides ! Theodo- íio quer huma refpofta ciara. Marq. Pois dai-lha Vós. Concordai com elle , e ficareis ambos fatisfeitos. Theod, Eu o naõ fico fem a voíTa ref- pofta , Senhora. Do fentimento da Ba- roneza tftou bem certo ; do voíTo he que eu queria certiíicar-me. Bem fa- beis que a hum Filofofo nao cftá bem depois de puxar pela cfpada do dif- curlo , rcna6 ou vencer , ou ficar ven- cido ; quero faber como fico , fe prof- tra- Tarde decma primeira, gtr trado 5 fe viéloriofo. Tenho goftado de difputar comvofco , porque eftou vendo a través da voíTa eíludada dif- íimulaçaô , que feníís todo o pezo da RazaÒ , e a força dehuma legitima confequencia ; o que naô fuccede fa- cilmente com outros contendores. Marq, Theodofio , fabei , que por ago- ra naô me occorre refpoíla aos voíTos argumentos ; eu meditarei mais niílb ^ e íe me occorrer foluçao , eu vos buf- carei : agora converílemos em outras matérias. Dou-vos o parabém , Barone- za , de terdes hum meftre como Theo- dofio : agora deixai-me retirar , que lá fora tenho companhia que me eípera. Baron, Daqui a pouco Teremos comvof- co , deixai-me refleClir cá com Theo- dofio mais hum pouco nefta matéria , que para mim he nova. Mar Cl, He jufto : filofofai quanto qui- zerdes. Theod, Ainda nos faltaõ , Baroneza , ou- ' tros argumentos menos efpeculativos , porém mais fenfivcis , e fortes. Baron, E quaes fao ? Theod. Supponde que era verdade o que voíTa Tia penfava , e que Deos nao fe embaraçava com as noífas acções , e 312 Recreação Filofofica e que cada qual era fenhor difpotí* CO delias , que horrível confufaõ ha- veria em todo o mundo ! Ponde a voíTa família comeila plena liberdade década qual fazer o que muito quizer , fem que Deos , nem creatura alguma fe embarace com a fua difpotíca vonta- de 5 que confuzaõ , que horror feria a voíTa cafa ? Barofí, Sempre meus País haviaõ de ter direito fobre as acções de fcus filhos , c dos criados a quem pagaó , e a quem fuftenrao. *Iheod, Por modo nenhum : Ora atten- deí-me. Se Deos que he Pai de hum modo muito mais forte do que aquel- Ics que nos gerarão , naõ tem niíTo condado nenhum ( fegundo o fentimen- to deíTes meus fcnhores ) como podem os vPais que nos gerarão , ter authori- dade fobre as noíTas acções ? Primei- ramente a noíTa alma bem fabeis Vós . que toda na fce do feio da Divinda- de , e que nem Pai , nem Mãi tive- raò acçaõ alguma fobre a noíla alma , porque he fubllancia efpiritual creada do Nada ; pois nem nafceo de outra alma , nem rambem de matéria : por confcguinte fó de Deos immediatamen- tc Tarãe decima primeira. 313 »r te podia nafcer. Daqui fe vê já que o modo , com que Deos nos deo o fer 5 he muito mais tigorofo do que o dos Pais : vamos agora ao corpo. Quem orgánifou o corpo humano ? Dizei 5 Baroneza ; diícorrei com toda a liberdade ; mas naô digais coufa con- tra a voíTa boa Razaô. Barotí. Eu o digo : O corpo do primei- ro homem foi organifado por Deos immediaramente ; mas os corpos dos mais homens forao organiíados por feus Pais. ^heod, E como ? Se os Pais nunca fou- bera 6 anatomia , nem a fn brica do cor* po humano , nem a conftrucçaô do mí- nimo orgaó deiles ? Direis que orgá- nifou hum Relógio quem nunca fou- be de que rodas confiava hum reló- gio ? que orgánifou hum orgao , ou qualquer outra coufa , quem nunca vio de que partes fc compunha , nem co- mo fe difpunhad , e proporcionavaô ? Direis que o Lavrador que femeou huma planta he quem a orgánifou ? Elle a plantou , e regou \ o Sol a fez fermentar ; mas nunca houve Filofofo que difleíTe, que o hortelão tinha for- Eiado a admirável organifaçaõ de qual- quer 3 14 Recreação Filofofica quer planta : pois muito menos o po- dereis Vós dizer de qualquer animal , por fer nelles a organiíaçaõ muito mais admirável , e incógnita a feus pais. Direis que hum cavaIJo difpoz , ar- mou 5 e dirigio a organifaçaô de hum potro ? Muito menos logo o podeis dizer do homem, que naõ tendo luz da Anatomia , naó fabc de quantos ven- triculos coníla o coração. Baroií. Vejo que diííe hum difparate , cuidando que dizia huma cou ia indu- bitável. Adiante. Theod. Logo fe Deos fendo Author da alma , e o Direftor da organifaçao do corpo , nao querem que tenha direito para fe embaraçar com as noíTas ac- çOes 5 e que podemos fazer o que mui- to quizermos fcm que Ellc fe efcanda- lize , nem alegre j fem que approve nem reprove \ com que razão eíTe di- reito que negais a Deos , quereis Vós dar a voíTos pais ? Do mcfmo modo argumento para os criados : a paga , e o Ajftento , que^ voíTos pais dao aos voíTos criados, nao tem comparação com o fuftento , que Deos dá a todas as fuás creaturas , nem com os benefícios , que cada mo- men- Tarde decima primeira, 315' menro delle recebemos. Logo fe eftes dois tirulos de foldada , e luftento daó direito a voíTos pais para poder go- vernar as acções dos voflos criados , c}uem o ha de difputar a Deos ? E fe o negarem a Deos , como eíTes Filo- fofos dizem , quem fupporrará a in- confeqiiencia de o dar ás creaturas ? Senhora , bem vedes que quem qui- zer admittir a extravagante opinião , que feguia a Senhora Marqucza , ati- ra comíigo por huma ribanceira abai- xo , para fe defpedaçar em mil dcf- penhadeiros de abfurdos. Baron, N26 vos canceis mais , que eu eftou perfuadida , e naó acabo de ad- mirar-me 5 que haja homem de juizo, que fofíVa no feu penfamento idéa tao abfurda. TCheod» Nao vos admireis , Baroneza ; porque o appetite de penfar com no- vidade 5 e de fe fazer admirar , e de franquear a liberdade de coílumes , he huma comichão indizivel do efpirito efquentado ; o qual naó confente re- fledlir nas confequencias : olha para o penfamento novo , bello , brilhante ; manifeíla-o logo enfeitado com qua- tro galantarias de hum engenho vivo , e 3 1 6 Recreação Filofqfica e engraçado , e fecha os olhos ás Con- fequencias ; e fe alguém o aperta , na5 fe refponde , fenaõ com hum fur- rifo enérgico , e com hum Quem f a- be ? acompanhado de certo geito , e ' fe da6 por desfeitos os mais íólidos argumentos. Baron, O cafo he , que eu pela expe- riência conheço , que aíTim he ; e que quem mais graça tem , melhor reípon- de. Deos queira que minha Tia faça reflexão , e caia em fi. Theod, A eftas horas já ella eftá bem in- rcreíTada no jogo , e bem pouco fe lhe dá dos argumentos , que lhe fizemos. Nao fejais aíFim : Confiderai , e refle- <íti 5 e naô tenhais a infupportavel ma- nia de vos agradardes de tudo o que he novo , ou referido com graça , ef- pec ia l mente fe faõ coufas que joga6 com Deos , e com a Felicidade Eterna, Baron, Muito vos devi fempre , Theo- dofio ; mas agora mais do que nunca. Vamos a parfear , que hoje naó que- ro a companhia brilhante das mais fenhoras ; porque nao acabo de admi- rar a facilidade com que fe admittem abfurJos horrendiílimos , e de confe- quencias da maior importância. TAR. Tarde ãeciniéí fegunãa. 317^ TARDE XII. Sohre o Culto devido a Deos Interior , e Exterior. Barou. TVT Ao poíío folFrcr , meu Ba- X^ 3io , a mofa que voíTo Ir- mão fez honrem , quando me encontrou fahindo da Capella com algum final de compunção , porque acabava de af- fiftir ao tremendo Sacrifício do Altar. Ba/io. Senhora , eu nao poíTo defculpar meu Irmaó na groíTaria com que vos tratou : figa eJIe o que quizer na ma- téria da Religião , nunca h« permit- tido a hum Cavalheiro o iníultar hu- ma fenhora , principalmente nos pon- tos em que o Fanatifmo tem ganha- do fobre os corações femininos hum total império. Eu nunca vos fiz fe- melhante incivilidade , ainda que nao difcorde muito dos fcntimentos de meu Irmao. Haron. Agora vejo, Theodofio, que Vós na6 vos enganáveis. Pois com efi^eito , meu Bailo ^ Vò$ concordais com voíTo Ir* I 3i8 RecreaçaS Filofqfica Irmaó nos fenrimentos , que elle tem acerca do culto de Deos ! e dizeis que Deos naõ fe embaraça com as nolTas adorações , nem obíequios ? Balio, Eu 5 minha Senhora , feguirei o que vos agradar , porque nao eílou em lu- gar público , nem obrigado a dizer os meus fentimentos ; e aíTim poíTo dar ' á politica , e á amifade alguns direi- tos 5 que a fevéra Filofofía em outra» circunftancias nega. Tbeod. Pois eu , meu Amigo , julgo que a Baroneza teria por prova de amifa- de , fe Vós ( fem tomar fogo , nem fazer difto matéria de enfado ) lhe diíTelíeis os motivos que vós outros tendes pa- ra julgar que a Deos he bem efcuza-J do o noffo culto, nao fó o Externo," mas também o Interior ; por quanto tem particular defejo de examinar fun- damentalmente eftes pontos. Baron, Certamente : naõ porque cu du- vide ; mas porque eílas difputas na prefença de Theodoíio me daõ huma grande luz , e efta me dá grande con- lolaçaõ na minha crença ; c ( fe he poífivel ) duplica a firmeza da mmha • Keligiaõ, Afllm ;eu vos rogo, que nos • exponhais todas as razões ^ para cha- mar-? Tarde decinia fegundd. 319 mardes com alguma incivilidade ( per- doa i-me Balío ) chamardes Fanatifmo á nolHi crença firme nos pontos da Religião. Baho. Efcapou-mc cíTa palavra , que ca quiz reprimir , mas já naò era tem- po : porém , como fois íaÔ benigna J podeis disfarçalla. ITheod, Dizei pois , Balío , porque jul- • gâis que Deos nem quer , nem appro- va 5 nem faz cafo algum do noíTo Cul- to , ainda o mais religiolo ? ^^- Baho. Eu naô fei fe a Baroneza fe en- fadará de eu dizer o meu modo de ' penfar taò diíTonante do feu : mas fe prometíeis , Senhora , naõ vos efcan- daiizardes , eu o direi francamente, v. Baron, Prometto naô nre enfadar , com tanto que Vós fejais homem raciona- vel 5 e que foíFrais que de hum a pro- pofiçao íc tire huma confequencia , e defta outra , e que fe naó tiverdes gar- ganta para tragar as ultimas confe- quenclas , vos refolvais a lançar fora. os principios donde elias fahiraô , fe as tiverdes tragado. Tbeod. Adivinhaftes , Senhora , o que eu queria dizer , porque todo o homem ,v que fe preza de g fer, tem obriga- jio Recreação Filofofica ça6 de abraçar todas as confequencia^^ que íe íeguirem legitimamente lie hu- . ma máxima , le a julga por verdadei- ra , e a tem abraçado. Balío, NiíTo eílou , e me envergonharia; do contrario. jBaroff. Pois cntao , meu Balío , podeis fallar , porque ainda que os ouvidos ( le me horrorizem ao principio , efpe* - TO que jio .fim Vós penlareis por mo- ' do diíFerente. Salio, Sendo Vós , Senhora , minha ca- tequifta , ferei dócil a deixar-me per- fuadir. Theod. Dizei pois a razaõ dos voíTo» fentimentos. 'Balío, Deos he huma coufa tao alta , tâo íublime , e taò fuperior á noíTa esfera , que tudo o que for affeme- Iballo a nós , he fazer lhe injuria. Nem os fentidos nos podem dar idéa algu- ma , que o nao ofFenda ; nem o en- tendimento fazer conceito , que lhe naÓ feja injuriofo : aíllm todo o Cul- to , que lhe queiramos dar , lhe he matéria de deíprezo , e nenhum cafo delie pôde fazer. Baron, Antes que paíTeis adiante , ex- plicai-vos, fe fallais do Culto exterior, em T^rde decima fegunda. 321 em que o Pagaó , o Judeo , o Mahome- tano , e o Chriílaó differem ; ou le também fallais do Culto interno , com que toda a creatura fe deve humilhar na prelença de Dcos , que a creou , e deíejar venerallo , ao menos no feu co-. raçaô. Theod, Nao atalheis , Senhora 3 o Balio , que na força do difcurlb bem fc ha de conhecer o fentido^, em que falia , que he excluir todo o Culto até o in- terno 5 porque fe funda na fuperiori- dade do Ser fupremo á noíTa vililfima condição ; e eíla fupcrioridadc o obri- ga a defprezar tudo o que for noífo , tanto externo , como interno. BaL AJiim he , e niílo tenho dito o que baila. íheod, Bafta para a voíTa franca confilTao ; masmaõ baila para a noíTa curta intelr ligencia ; e aflim peço licença para va- rias perguntas. Dizei-nos : Eííe Ser fupremo infinitamente fupcrior á nof- fa intelligcncia , he o que nos creou ? ^aL Sem queílaó : EHe foi o noíTo uni^/ co Creador. Theod, Bem eílamos \ e creio que eíTe mefmo Senhor , naó obílante a íua infi- nita fuperioridade , formou y c traçou Tom. IX. X ' íi jií. Recreação Filofqfica a idéa de tudo quanto em nós fez ; a alma , o corpo , as potencias , e os ítn- tidos 5 tudo lie obra fua. Ora por ven- tura naô foi Elle quem fe abaixou do altiíUmo Throno da fua inacceíRvel Di- vindade , para pôr as luas mãos neíta obra fua , que fe chama Homem ? BaL Certamente Elle nos formou , e fó^ mente EUf ; e ninguém o ajudou nef- fa obra das fuás mãos , e da fua IplcI- ligencia ; pois a fumma delicadeza ," fabedoria , e ordem , que apparece cm nós , fó de Deos podia nafcer ; e cu naõ poíFo negar , que fomos obra das fúas mãos , e da fua fuprema Sabedoria. ^heod. Vejo que dizeis como nós. £ per- gunto mais : Sc eífe Deos he quem po^ em nós cHa Luz ãa Razão ^ que tantq nos diílingue , e faz fuperiores a todas as demais creaturas ? "BaL Sem duvida. Theod, Mas eu nefta Luz da Razão ^ que ò fupremo Ser nos deu , comprchendo naó fomente a luz da intelligencia , e força de combinar , deduzir huma ver- dade de outra , &c. ', mas entendo tam- bém efta Voz interna , que nos diz : If^ to he bom \ eji outro he mdo : tu deves ■ fazer ifto ^ e reftjiir áquillo , &c. En- tendo Tarde decima fegunda, 315 tendo efta Voz intima , que todos os homens ouvem , e que muitas vezes quereriamos naó ouvir. Entendo eíla Lei intima , que nos entina , reprelren- de , argúe , louva, fallar por eífa Voz^ ou em nos mandar " por effa Lei ? Julgo eu , que qi>em manda , hc fempre com o fim de que lhe obedeçaô : quem falia he cora o fim de que o attcndao : quem allumea V he com o fim de que íigaõ a bom ,, fu- gindo Tarde decima fegunda, 325' gindo do máo caminho , que a luz lhe defcobre. BaL Niílb concordo eu ^ e todo o ho- mem de juizo ha de concordar. Theod. Ora que coufa pode ,haver mais conforme á Voz interior , que nos fal- ia , e á Luz da Razão j que nos allu- mia , e á Lei da Natureza , que nos governa , do que venerar huma crea- tura aquellc Senhor , de quem recebco todo o feu fcr , e todas as fuás perfei- ções , e n'uma palavra , Tudo ? Efta fujeiçao do inferior ao fuperior , efte obfequio do agradecimento ao Máxi- mo Bemfeiror , porventura eíta home- nagem ao leu Soberano , naó he huma coufa , que a Luz da Razaó moftra fer devida ? e a Lei da Natureza nao a manda ? e a Voz interior de cada qual na6 lho perfuade ? Parece-me que nin- guém o pode duvidar : Logo Deos (cuja he eíTa Foz interna , eíTa Luz , e ena Lei ) quer , e manda que lhe fejamos agradecidos , que o venere- mos , e que lhe rendamos homenagem» BaL Sem duvida. Theod, Pois iíTo fe chama Culto de Deos. JSaroH, Forte pontada vos deu agora , meu Balio ! Vós nao eftais bom. Que ten- , §16 Recreação Filofofíca tendes ? Vós mudaftes de cor. Tendes siguma coufa ? "Bal. Naó zombeis. Senhora, agora. Co- mo tiraíles eíTa coníequencia , Theo- ' dofio ? TChcod, Deíle modo. A Luz da Razão nos manda fer agradecidos a quem nos faz bem , e obíequiar a quem nos deu o fer , em qualquer género que feja ; e dar homenagem ao noíía legitimo So- berano. Duvidais difto ? Bal, Naó duvido diíTo. ^heod, E quem nos deu eíTa Luz da Ra- za6 ? BaL Deos. Theod, Logo Deos he quem nos m:índa venerar os Superiores , e agradecer a quem nos deu o fer , &c. Logo Deos manda que o veneremos , e lhe renda- mos homenagem , pois que Elíe foi quem nos deu o fer , tirando-nos do nada , dando-nos a vida , &c. Parece- me que naò foi mal tirada a confequen- cia. BaL E de que lhe ferrem lá os noíTos obfequios ? %heod. Eu nao digo que tenha neceífida- de delles : digo que nós devemos ob- fequiallo por obrigajaó noífa , e nao por k Tarde decima fegunda. 327 por intereíTe dcile. A grandeza infinita de Deos faz a iua íumina independea- cia j mas a noíTa íumma dependência dellc 3 e inferioridade fundão a noffa devida veneração. De que ferve ao voffo Graò Meftre , que no dia dos feus annos Vós gaíleis tanta pólvora nas falvas de artilharia , que deu hon- teni a voíTa náo ? Por certo , que de ' nada lhe ferviaõ : Mas pede a Razaó , que fendo Elle o voíío Soberano , que vos deu a volla commenda , Vós lIVc façais eíTe obfequio. Porventura fó te- mos a Lei do IntereíTe ? E fomente po- demos mandar aquiiio , de que recebe- mos utilidade ? Deos manda-nos que o honremos , naõ por intereíTe feu , mas por obrigação noíTa ; porque aíFim he decente , que íeja : e também para que por eíTe modo mereçamos o pre- mio 5 c que Elle nos faça felizes. Di- zei : Se os volíos Sobrinhos , a quem tendes feito tanto bem , vos forem in- gratos j e incivís , e nenhum cafo fi- zerem de Vós 5 quando vierdes aqui , parecer vos-hâ bem ? BaL Certamente naó ; nem a peílba al- guma pareceria bem. Thcod. Nem aosjudeos, nem aos Tur- cos ^ ^lí Recreação Filoíofica cos , nem aos Gentios pareceria bem ? Uai. Certamente naó , fe forem homens , em quem a RazaÓ governe : agora fe foíTem brutos , naó digo nada. Theod, Logo haveis- de conceder , que eíTe agradecimento , e obfequios , que elles vos devem , naõ he preoccupaçao - de alguma peíToa , ou familia , ou re- ligião ; mas he lei gravada na Nature- za racionavel de todo o homem. Bal, E quem o duvida. ^heod. Vós que duvidáveis , que eftivef- fe gravado na Razaó de todos os ho- mens o ferem agradecidos a Deos , o refpeitallo, e obfequiallo ; porque fc Deos naó mandou pela fua Lei Natural, que todos os homens lhe folfem agra- decidos , e veneraíTem ; também naá mandou que os voíTos Sobrinhos ( que . de Vós receberão o ferem gente ) vos refpeitem , venerem , e obfequeem. Pa- rece-me , que eíTa voz interna , que os Judeos , Turcos , e Gentios , Hereges , e Catholicos ouvem dentro do feu co- ração 5 e que lhes perfuade , que he devido o obfequio , e veneração , o refpeito de voífos Sobrinhos , olhan- do ao que Vós por elles tendes feito , muito mais lhes ha de perfuadir a ve- nera- Tarde decima fegunda. 329 neraçaõ a Deos ; porque lie muito ' mais o que todos nós lhe elevemos. BaL DelTe modo nao duvido. ^beod. Logo Dcos manda , e quer que o veneremos , e lhe demos Culto : E por confeguinte a Deos fe deve dar Culto. Baron. Ora fe he permittido intrometter- fe n'um duelo de homens huma efpada feminina ( nao digo bem , huma agu- lha , que he a única arma de mulheres ) eu diria huma coufa , que me eftá fer- mentando na cabeça. Vós dais-me li- cença ? BaL Senhora, na contenda de entendi- mento naõ ha efpada , que reconheça diíFerença de fexos : Vós conheceis bem a razão , e manejais baftantemente a lingua : diga-o eu , a quem nao pou- pais golpe algum , que faia a geito* Eu vos ouço ; dizei , Senhora. Baron, Quando Deos fez os olhos com a fabrica , que Vós fabeis , e Theodolio me moílrou , que fim teve Deos em ef- tar fabricando hum orgaô taõ bem ar- mado ? BaL Teve por fim , que o homem por eiles viíTe. ]Saron, Pergunto mais : E que fim teve na 35© RecreaçaS Filofajica na fabrica , ainda muiio mais efttidada dps ouvidos ? Sem duvida , que foi para que o homem por elles ouviíTe , c na lingua para que fallaiTe , &c» Ef- tais nifto ? SaL Eftou ; e que inferis dahi ? Baron. Que quando formou o cérebro , e deu á alma a Intelligencia j que quaa- do formou o coração , e deu á alma a virtude de querer , e deteftar , &c. > foi com a]gum rim : c qual ícria , Balio ? £aL O fim de formar o noíTo entendi- . mento, foi fem duvida para conhecera verdade ^ e o do noílb coração para amar o bem ; e por ilTo todos gofta- mos da verdade , e de tudo o que he bom. ^aron. E onde achais Vós mais verdade , que na Verdade fumma , e eterna ? On- de achais Vós mais bondade , que na Bondade Infinita de Dcos ? Sup ponho que lhe naô haveis de preferir nad;^ creado ao Infinito. Logo , meu Balio , Deos vos creou o volTo entendimento » e o voíío coração , para que conhcccn- do-o a Elle , o eftimeis , e o ameis , á proporção da fua Bondade. Qiie di- zeis ? Refpondci-me. BaL Oh Senhora, iílb nao he agulha, hc Tarde decima [egunãa. 331 he lança ; e naó iie linha ^ que enrede , he difcurlb que prende. Baron. Aífim íerá : mas refpondei-me. BaL Digo que Dcos me creou o entendi- mento , e o coraqaÓ para o conhecer , e amar. Baron. Loga quer , e manda , e teve por fim da voíTa producçao , que Vós lhe delíeis Culto ; por quanto eu nao fci que o Culto íeja outra coufa , íenaõ a veneração , a eilima , o amor , &c. BaL Cá no interior do coração cílá fei- to ; Deos he Eí piri to , e quer í'er ado- rado em eípirito , e verdade, Baron, Mas ao principio naÓ o iVizith : já temos que também o Fanatilmo em parte fe tem fenhoreado de Vós ; mas vamos adiante. BaL O que nego he o Culto externo^ e cer- tas ceremonias , de que os homens fé- rios zombaô , porque íliô íb para quem naó vê íenaõ o corpo ; mas nao para Deos , que vê a alma , que neífa he que deve fer adorado. Theod. Agora iíTo he comigo. Eu con- cordo comvoico 5 que para Deos he indiíFerente ufarmos nós para final da noífa fubmiíTaõ , amor , e mais affc- ílos , que lhe cçníagramos no cora- J3* Recreação Filofojica çaó , ufar , digo , defta y ou daquella ce- remonia externa ; mas o que digo he, que devemos dar a Dcos Culto , naô fó no interior do efpirito , mas exterior- mente com o corpo. IBaL E porque ? Tomara faber eíTas ra- zões. Tbeod. Naó olheis para mim. Senhora : deixai-me dilcorrer iem diftracçaõ : bem vos entendo. Baron. Ora, meuBalio , eu nao poíTo dei- xar de me rir : vejo-vos com tanta au- dácia no principio da qucftao , lançar tantas cliiípas , e no fim dais ás azas , porque na6 podeis mais j e quando tornais ao combate fahis com o mefmo tom de defprezo ,como fc naõ tiveíTeis levado o voíTo quináo. Ora ifto dá vontade de rir , com mais razaõ do que vós-outros rides de nós. Perdoai , . meu Balio , que mulheres em diíputas iaó mui atrevidas. BaL Vou levando minhas lições , que fendo de huma Dama taô bella , e tao difcreta , gloria he o recebellas. Baron, Perdoai , Theodofio , o inter- romper-vos. Theod. Meu Amigo , vamos ao ponto. Se nós foliemos puramente efpiritos , eu Tarde decima fegunãa. 335 cu vcs diria , que Deos fe contcnta- -va com as noilas adorações , e Culto meramenre efpiritual •, e fariamos co- mo os Anjos, que lhe formaó a fua Corte efpiritual como EJJe he ^ mas fendo nós também corpóreos , deve- mos dar a Deos Culto na alma , e no corpo ; porque os homens entre nós naó fazemos huma fociedade efpiri- tual i fazemos huma fociedade vifivel, c corpórea. Se fendo Deos Author, e Confervador de todas as creafuras vi- fiveis , e invifiveis , nós nos contentaf- femos com o venerar no noíTo coraça6, como ás efcondidas de que nos viíTem , que teílemunhos dávamos , de que fa- tisfaziamos á primeira , e univerfal obrigação de dar Culto , e veneração ao noíTo Creador ? Seria bem , que hum Soberano apparecendo na fua Corte cercado dos feus próprios vaíFallos , e validos , a quem tiveife tirado de hum Nada civil , Elle fe achaíTe fem acom^ panharaento , cortejo , e obfequio , contentaiido-fe cada qual dos feus cria- dos 5 ou validos de lhe fazer algum ferviço da fua Camera ? Parecer-vos- hia bem efta abílinencia , e referva de todos, deixando-o paíTar fem lhe fa- zerem 354 Recreação Filofojica zçrem a minima cortezia , ou o menor ^ obfecjuio ? IBaL jSJaò: IfTo oíFenderia a boa Razão. Theod Diz-eis bem : mas porque ? lenaa porque ícndo o Soberano cabeça da- quellâ Povoação , \\\q deviao todos , nâô fomente veneração occuJta, mas pu*blita ; è a razão mais radical difto he , porqtrô >fabendo todos que aquelie « homem he o meu Soberano , de cuja * vigila^iciâ , € poder depende a miniia ■ conlervâçao , devem todos faber, que eu coriefpcndo da minha parre á ve- ' neraçaÓ , que o feu lugar merece. O mefmo digo no noílo cafo: todos fa- bem que nós fomos crearuras de Deos, a quem devemos tudo : Jogo he razão que faibao que nós o adoramos coma • tal ; pois fendo os benefícios , e depen- - dencia de Deos» piiblicos , devem fer '■- públicos ã valíaílagem , e os obfe- quios. Efta fociedade vifivel de ho- "• mens nos impõem efta indifpenfavel V obrignçao , que tendo nós todos huma ' Lei 5 devemos moftrar huns aos outfos ^' -que a obfervamos ; aliás efcandaliza- rhos , e faremos huma grave ferida no corpo civil , fe ou faltamos , ou occul- tamos à fatisfaçao deiTa obrigação co- nhecida. BaL à Tarde decima fegunãa. 335: BãL O aiie importa he o Culto interior , que efíe lie que pode agradar a Deos ; o Culto exterior fomente he para os homens- Theoã, Também he para Deos. Ora já que Vós tanto teimais niíTo, quero Ver como me reípondeis. Vós eílais conf- tante , que Deos naõ fe embaraça cOin o noíTo Culto viilvei , e externo. BnL Sim. Theod. Ora dizei- me : Todas as acções viliveis , que a Lei da RazaÓ manda , ou Deos por cila , naô íaÓ hum verda- deiro Culto de Deos^ que o quer, que o pede , que o determina , he fem du- vida , que efte he o melhor Culto ^ c rendimento , e obediência : logo le ninguém duvida , que a Lei da Razaô , ou Deos por elia manda acções viíiveis, ninguém deve duvidai", que o Culto exterior lhe íeja devido. Baron» Ah , meu Baljo , que vos vejo ca- hindo no Fanatiíino por inftantes ; c entaó como he iíTo ? Taô forte efta- veis , e fraqueais a cada paíTo? B^/. Vós 5 Senhora , naó perdeis jogo: eu faliava daquellas acções externas ^ que fomente tem por objed:o a venera^ çaq do fuprcmo Ser 3 porque das<òu- trás. 336 Recreação FiJofqfica trás , que íaô mandadas pela Lei Na* rural 5 naõ duvidava. TCheod, Ora ainda cíTas mefmas nao pode hum homem Filofofo negar , que fe- jaó devidas , fe he devido a Deos o Culto interno ; porque concorda , c concorre para elle. Nós , meu Amigo , temos de tal modo encadeadas as duas fubítancias do corpo , e alma , que huma joga com a outra por modo cer- to , e infallivel , poílo que inexplicá- vel. Qual he o homem que para excitar no feu coraça6 os aíFcftos eípirituaes, fe nao ferve dos movimentos corpó- reos ? Taó eftreita he a comrounicaçaá intima das fubítancias. Dizei-me Vós , Balio : Naõ fentís Vós difFercnça no voíTo coração quando acabais de cfcre- ver com ternura a Madama ^ ** ? Eu vos feguro , que naõ fendo dia de cor- reio, vos achareis com o coraqaõ bem frio 5 efpecialmente achando-vos em numerofa^ou efcolhida companhia: po- rém quando no voíTo gabinete efcreveis á voíTa mimofa Valida, o coração vos fica palpitando, o peito fe internece , e ás vezes os olhos lá íicaÕ bum idos. Pergunto agora : o bico da penna , que cfcreveo , teve algum encanto para exci-, tar Ta rãe decima fegunda» 537 tar no voíTo animo aíFedlos de amor , e de ternura ? J^al, Naô por certo ; mas cíTa eícrita me fez avivar a reprefenta^aó da fua figu- ra , da fua fuaviíFima voz , do fcu modo aíFavel ; e efta lembrança me moveo a aíFedlos efpirituaes de faudades, amor^ &:c. Theod, Pois o mefmo dizemos ^ Amigo ^ do Culto de Deos externo : eíles ados externos de adoração , dr petição , de louvor, &c. jogaõ com os aflos da al- ma , e os excitao , avivaõ , e augmen- taô ) e fe devemos a Deos a veneração • interna do coração , também liie deve- mos a externa , que joga com a inte- rior. Nós em quanto fomos huma com?» poíiçao de duas fubílancias entre íi uni- das , corpo , e alma , naó podemos fa- cilmente obrar , fem que ambas ellas concordem : por iífo a veneração cor- poral tem grande connexnõ com a do efpiriro , e huma fe deve a Deos , quan- do a outra lhe he devida. Baron, Eu acho que feria bem diííicil ^ que nós tiveíTemos na alma frequente- mente hum affeíílo efpiritual , fem que o corpo nos acompanhaíie com mo- vimentos próprios a eíTe aiçfmo fim.. Tom. IX. X: ' Q^ú 33^ Recreação Filofofica Qual he o homem que eltá rriíle , que Jiaó o molrre no iemblanre ? Em quem ha alegria , duvida , goíto , ira , latif- façaó ) &c. 5 que naõ pinie na Iba fyfio- nomia todos elFes movimentos , e af- feiçoes da lua alma ? O noíTo roílo hc como as vidraças de huma Janterna , que deixa ver atravéz da fua fubftancia a Juz interna , que dentro arde : logo deve reluzir no corpo a veneração, e o cuito , e reípeito , que na noíTa alma - dermos a Dcos : e ie me concedeis , Balio 3 que devemos a Deos o culto da aJTía , também o devemos no corpo y e naó fó o Culto interno , mas o exter- no he devido a Deos. TiaL Como Deos he Efpirito puro , jul- gava eu , que fe contentava com a nof- fa adoração efpiritual : porém delíc modo que dizeis , concordarei facil- mente. Baron> Tirai o jacilmente , porque fe concordais , foi bem contra vontade . e a mais nao poderdes. 'BaL Vós 5 Senhora , naó me perdoais nada 1 Baron. Naó vos perdoo , porque no prin- cipio fallaftes com muita íatisfaçaò de < vós mefmo^ e eítimei que conheccííeis, que Ta rde decima fegunda. 339 que ha muitas peíToas de juizo , que iiaó tem os voífos feiuimentos , e os de voíTo Irmao. Conclui , Theodoíio. Theod. Concluindo pois , meu Amigo , digo que Deos ( aflim he ) naó precifa nem de hum Culto ,/iem de outro. Nao lhe devemos o Culto , porque Elle p neceílite , dcvemos-lho , porque nós fomos delle j e a noíTa creaçaõ , e de- pendência, e participação do ler que temos dado pela fua maô, he que nos? impõem efta Lei. Se nós foíTemos pu- ro efpirito como os Anjos , entaô lhe deviamos o puro Culto efpiritual , e ío interno : mas como nós fomos hum compoílo de natureza corpórea , e ef- piritual, c tudo he de Deos , tudo tem delle a mcfma dependência , e deve o mefm.o reconhecimento , pois tudo re- ccbco delle o fer: logo tudo lhe deve homenagem , fubmilíao , adoração , c rcfpeito : e aíTim naõ fomente a alma , mas também o corpo lhe deve o Culto, porque tanto elle , como a alma , eítaa na mefma Lei da, obrigação. E além diíTo o Culto externo naõ he inútil , por fer próprio para excitar , augmen-^ tar, e confervar o Culto interno. Baron, EíTa razão, meu Theodofio, aiiu Yii da 340 Recreação Filofofica da Vós me liaô tinheis allegado ; fó vos tinha ouvido as outras \ mas efta de íer o corpo também creatura de Deos , obrigado ao reconhecimento , e obe- diência , e vafiallagem , he muito at- tendivel. Bal. Eu naõ me opponho, explicando as €0ufas deffe modo : já naô acho cíTe ponto contrario á boa RazaÓ , como eu cria d'antesr Baron. Crede-me , Balro ; pQUca gente reíiedle como deve fer antes que faile : nao fejais aílim. Vamos ao jogo. BaL Vamos. TARDE XIII Sobre a Immutabilidade Divina , e [obre o Fogo vingador da outra vida. § I. Da Immutabilidade Divina. Theod, il Ue fozeis Vós ambos aqui, ^^^ meus Amigos ?~ A Baroneza naõ concorda comvoíco , Chevalier., íe- T^^rde decma tercet^n 341 feja qual for o objecto da contenda. Vós ellaveis taô influídos na difputa , ique vindo eu por toda eíla rua do Jar- dim , nenhum de Vós me vio , até que junto de Vós vos faudei. Cbeval. Acho a minha Irmã muito ef- peculativa , e quer que cu Ví\t expli- que as coufas de forma , que fique taô fatisfeira como fe as viííe com os olhosj e iílo na6 pôde fer. Baron. Também Vós ,ChevaIier, repli- cáveis bem vezes a Theodoíio , pedin- do mais , e mais explicação das couías que nao entendicis. Já vos cíqueceis da Geometria , ou das duvidas nella quando a aprendíamos ? Iheod. Louváveis defeitos vos lançais Vós em rofto mutuamente. Goílo de vos ver aííim criminofos ; mas vamos ao cafo da queílaô , e aproveitemo- nos do tempo em quanto na6 vem gen* te. Baron, Nao entendo bem , Theodofio , eíla Immutabil idade de Deos. Porque fabemos que Deos ora cíVá propicio , ora irado: humas vezes perdoa , outras caíliga ; a huns foíTre , a outros faz pa- gar ajuílapcna de feus atrevimentos, c eílas mudanças cm Deos me embara- çaò 34^ Recreação Filofqfica çaó a idéa , que eu tinha da fua Immu- tabilidade j porque efta me parece , • que coníifte na tirmiííima conftancia de fer inalterável ; pois nem íe pódc ar- repender do que huma vez quiz , nem Jhe ha de fucceder coufa de novo , que o faça tornar atraz. do começado. Cbeval, Pois quereis Vós , Baroneza , que Deós foíTe taõ leve como as fenhoras mulheres ? Vós outras em nada tendes conftancia; e caprichais da volubilida- de do voflb alvedrio , e quereis fó por- que quereis , e depois fem que nada íe mude 5 nao quereis , fomente porque nao quereis. No Campo de S.Roque , quan- do fe trabalhava na tomada de Gibral- tar 5 conheci eu huma Senhora Hefpa- nhola , que em companhia de certos Cavalheiros viera ver os aproches , c era baftantemente dotada de viveza de engenho , e refpoftas mui galantes ; e arguindo-a hum dia com certas queixas ÍDroprias do voíTo fexo , refpondia com lum ar de fyftema bem novo : Eu (di- xia ella furrindo-fe ) fou fenhora do meu coração inteiramente : fe amo , he porque quero amar: fe me ponho mal com eíTas peíToas, a quem quiz bem , he porque quero por-me mal com eíTas pef- I Tarde decima terceira. 343 pefToas, aquém quiz bemj nao precifo de motivos para huma ou outra coufa , pois nelTe calo o meu coração íeria efcra- vo do meu entendimento , e eíle o era dos objedlos , que lá fe mudáÕ como querem , e vinha deffe modo o meu co- ração a fer elcravo dos outros , para fomente ter os aíFeftos , que elles me mereceíTem. Nada , nada ( dizia) que- ro amar quando muito eu quizer ; que- ro delçonfíar quando me parecer; que- ro-me deixar defte , ou daquelle aife- ^ go Theodoíio , deixai-me dizer , que he Myílerio , que nós de- vemos crer cegamente , porque nos mandão crer ; mas Vós com toda a vof- fa Filofofía , nao me podereis explicar como as almas efpirituaes fe poderá queimar com fogo corpóreo. Nao vos eícandalizeis , Baroneza ^ que eu creloj mas confeiTo que nao entendo. Baron, Se he Myfterio , como Vós áU TomJX. Z zeis 354 ' Recreação Filofqfica zeis 5 naõ he de admirar , que na6 o comprehendais ; porque fe o entendeí- feis claramente , já naõ era Mylterio, ^ ChevaL Vós eftais muito mais adiantada do que eu , pois tendes mais lições de Theodofio : chamem-lhe Myfterio, ou nao y eu tomara que me déíTem diílo alguma idéa , com que eu poíTa defem^ baraçar-me de meus camaradas , que naó acho taõ dóceis á Regra da Igreja como eu íbu. TCheodn Se eíTcs camaradas faó Filo fofos que difcorrem , eu vos darei modo de os convencer ; agora fe faõ Filofofos , que naõ difcorrem, naô façais cafo dei- les. ChevaL Difcorrem , e argumenta© com mil razoes , que me parecem claras. Ora dizei-me , como pode huma couÍíi ^ que be material , ter acçaõ fobre efpi- ritos ? Vós podereis agarrar com as mãos hum Anjo , ou hum Demónio , fe o quizerdes fazer? Pois aílim como os braços , que faõ de olTos , e carne , naõ podem prender hum efpiriro , tam- bém o Fogo material naÕ poderá ter acçaõ fobre o efpirito. *Xf3e§d. Ora , meu Chevalier , e como pó- * -de agora o Fogo material ter acçaõ íot bre %arde decima terceira, jy^ bre o voílb efpirito ? Quando vos che- gaô liuma vela aceza a hum dedo , gri- tais , e fe vos prenderem , íoífrereis . huma dor iníbíFrivel. Duvidais que fe vos meterem em huma fogueira, que o voíTo efpirito , e a voíTa alma padeja huma dor intolerável ? ChevaL Naô duvido , Deos me livre de o experimentar j mas fem iíTo íqí de certo , que a minha alma padecerá hu- ma dor maior que todas as dores. ^heod. Bem eílá : Ora como me explicais ilFo filofoficamente ? O fogo da vela he material \ a voífa alma he efpirito : co- mo pode agora huma couía material atormentar o voíTo efpirito ? ChevaL lífo bellamente fe explica ; por- que o fogo atormenta o corpo , e o cor- po pela união com a alma faz paílar a dor para a dma. Theaê, Oh , meu Amigo , ainda fois mui r fácil de contentar. Ora , naô me direis , como he eíTa paíTagem deífa dor da corpo para a alma ? Vamos , meu Ami- go , a iíTo. O corpo he matéria y a al- ma he efpirito : como pódc logo o cé- rebro, movido pela impreííao do fogo^ fazer tal tormento para eíTa fenf^çao da alma , como Vós í abe is ? Explicai- n.e 2 ii ^ ciOCi ^$6 Recreação Filofojica cíTa paílagem do corpo material para a alma eipiritual , e eu vos darei kuni abraço bem apertado. Naó me venhais contentar com palavrinhas , que naó di- zem nada : quero explica jaô que íc en- tenda. ChevaL Ifío naó fei eu. TJjeod, Pois nao perguntareis a eíTes vof- Ibs camaradas > que laÕ taò grandes Fi- lofofos , que vo-lo expliquem. ChevaL Nem por cem abraços , que eu lhes oífereça y mo faraó leguramcnte : explicai-mo Vós, Theod. Nao fei , nem ainda encontrei quem o foubeíTe. Meu amigo Cheva- lier , nefta matéria todos fr:bem que a coufa he , e ninguém fabe o como he : que o efpirito lente dor ou deleite , de- pois de certas imprefsões que os ob- jedlos fazem no fentido externo , e de- pois no cérebro , iíTo he notório. Ago- ra como iíío iie , ninguém o fabe. Três fyftemas ha fobre iífo : hum he o dos Antigos 5 de Infxuxo Fyfico ; outro de Defcartcs , outro de Leibnirz \ e ne- nhum delles agrada a Filofofos férios.. Porém feja como for : eu fei que o lu- me queima , e que fe o lume me chega ao corpo ; a alma fe afflige iiaíinito j e que Tarde decima terceira, 35'/ <]ue cu feria mui louco fe me deixafle meter em liuma fogiieira mui focegado, dizendo : O íume he matéria , a minha alma he efpiritual ^ e na Õ peide a jjia te- ria ter acção fobre a minha alma \ e ãjjim a minha alma na fogueira nao fe ha de afjiigir, O mefmo digo no noílo cafo. Cheval, Agora em quanto a minha alma eftá no corpo , o lume tem acção fobre o corpo , e efte quando fe eílá queiman- do hc o que tem acção fobre a alma pa- ra lhe caufar a dor : mas lá no nolío cafo o fogo immcdiatamente ha de ter acçaó íobre a alma. Vós rides , minha Irmã ? Ora ifto tem que dizer. Baron, Rio-me ; mas calo-me : logo fal- laremos. Proíegui , Theodofio. Theod. O rifo da Baroneza he bem funda- do , porque tanto cuíla a explicar eíla acçaô do cérebro fobre a alma , quando eílamos vivos , como eíTa acçaô do fo- go fobre a alma depois que morremos. ChevaL Nao tendes razaó , Theodofio , porque eftando o homem, vivo , eihí o cérebro taõ unido á alma pelo Creador , que feira 2 impreífao no cérebro , logo íe communica á alma pela ur.iao que Dcos poz entre cHas duas coufas \ e if- to 3j8 RerreaçaS Filofofica to nao ha depois do homem morto. Theod, Pois fe Vós credes , que o Crea- dor unio de tal forma o cérebro á nof- ia alma , que a impreííaõ no cérebro fe communica a alma , e deíle modo he que lhe doe a queimadura ; eíTe mefmo Creador , quando quer caftigar eíTa al- ma , depois do homem morto , pode unir o fogo á alma de forte , que im- mediatamente lhe caufe a mefma dor, que ihecaufava mediante o movimen- to CO cérebro ^ porque tanto he corpo o fcgo , como o cérebro ; e fe Deos faz eíia uniaó , e harmonia entre o cé* " rebro 5 e o efpirito , porque a nao fará entre o mefmo fogo , e eííe efpirito ? 'Baron, Percebeis agora , Chevalier , o motivo do meu furrifo ? Poisaquillo vi eu logo 5 tanto que vos ouvi a voíTa relpofta. ChevaL Vós cílais meftra neftas metafy- licas, jBi2r^«» Eftes íaó os meus exercícios deat- taques de praças , e batarias, &c. huns fabem huma coufa , c outros fabem ou- tra* Também as mulheres tem dois de- dos- de teíla , e*ncm fó cuidamos nas fitas 5 c nos enfeites. Perdoai , Theo- dofio , eíla5 interrupções de gente vi- va. Theod, Tarde decima terceira, 33:9 Thedd. Quando as interrupções nad dif- trahenn , naô deixaó de ler úteis. ChevaL Porém , ineu Meílre , eu ainda replico ; para nós confeííariiios eíla paílagem inexplicável do movimento do cérebro á fenfaçaó da alma , temos a prova innegavel da experiência de todos. Quando ha huma tal certeza de . hum ponto, ainda que elle feja abfo- lutamente inexplicável , fe admitte , confelíando a noffa ignorância : por iflb dizemos , que as imprefsdcs do cé- rebro excitaò á fenfaçaó do efpirito , e a dor : porém eíla communicaçao entre o fogo , e a alma immediamcnte donde confta ? e quem nos prova que iíío he aílim ? Theod, Naô dizemos que he aíTim , por- que o vejanwsj mas porque o diíFc quem naõ mente. Se nós nao viílemos no Evangelho lugares exprefliíTimoã , que o dizem , e a Tradição confiante fundada neíles lugares exprelííílimos , que o dizem , entaÕ defculpa tinha quem negaíle eíTe Fogo vingador ; mas nóu o dizemos fobre a palavra de Je- fu Chrifto y que expreíTamente o diz. \ Eu o que faço como Filofofo he r^Ç- ponder a eíTa impoffibilidade , que os vof- $6o Recreação Filofofica , voíTos camaradas fiJofoficamente op- poem ; e digo que eíTa difficuJdade iiaó vai nada , porque he a mefma que naõ vai nada para negar a comunicação cnrrc o corpo , e a alma. lílo he o que pertence ao Filoíbfo , moílrar que naó tem eíTe ponto nada de contrario á Boa Razão. Agora fe ha fundamento para dizer , que affim he , ide ás fon- tes da Theologia , e vede íe eíle Ho- mem Deos , que nos veio enlinar o ca- minho da íalvaçâõ , vede l'e Elle diz ou naó , que os criminofos hajaõ de fer punidos com o fogo depois da morte ; c vereis que na formal fentença do caf- tigo dos réprobos no ultimo dia , ex- preílamente o declara : Ide malditos fará o fogo , que ejld preparado para o demónio , e feusjequazes. Onde ha- veis de advertir, que fogo preparado para o demónio , he preparado para hum efpirito ; e o que pode <)ueimar demónios , pode queimar almas. Ch^vaL Naô vos canceis mais , Theodo- íio , que eu eftou perfuadido ; e admi- ro-me do empenho , que acho em que- rerem duvidar , e negar a torto e a direito, tudo o que pôde reprimir os viciog. ncodx Tarãe decima terceira, 3^1 TfJâod Nao vos admireis , porque pela converiaçaó deíles Filofofos teieis vif- to 5 que o íeu ponto he tirar da fua ■crença tudo o que pode embaraçar a loitura dos coftumes. Huns negaó a Immortalidade da alma , para naô te- ' -rem que temer na outra vida os caíti- ' gos dos crimes, que commetterao ntÇ^ ta. Outros nao podendo negar a Im- ■ mortalidade , e efpiritualidade da al- ' ma 5 que razoes bem claras perfuadem , fe voitao pata outra parte , negando ^ que lá liaja fogo para caíligar os ví- cios 5 &c. Baron. Tomara eu faber, fe por duvida- rem aqui deífe fogo , fe o apagaô lá ; para nao o acharem , quando a morte os lançar nos abyímos. Qual he o ho- mem, que dizendo-ihe peilbas mui ver- dadeiras e ferias , que eftava ordem de prizaô paííada para o mandar para a BajUlha , e para o Canadá , íe con- tentaíTe com fòzer mil argumentos pa- ra duvidar que houveíTe Eãftilha , ou que neífa terra houveífe taô máo cli- ma , como fe diz , e que fícaíTe mui def- • cançado pelas íuas razoes , e fe deixaf- íe prender 5 e meter abordo ferti re- ' médio ? Pois o mefuio me parecem , Che- 3^2 Recreação Filofofica , Chevalier , eíTes voíTos camaradiasi Qiier creiaò , quer naõ creiaô , em mor- rendo acharão o calligo , que negáraó , e íem íaber como , íerao punidos. Ou , aliás mente o Filho de Deos , que o diííe ; e falta Dcos a dar aos crimino- fos caftigo á proporção dos fcus cri- mes ; porque a privaça6 do Ceo he igual para todos os que faó condemna- , -dos ; mas como entre elies ha grande diveríidade nos crimes , pede a elTen- ciai Reílidap dajuftiça Divina , que , haja tormentos na outra vida , que mais ou menos atormentem os criminofos. Baila , meus Amigos , que vem gent^. ; APPENDIXI. TARDE XIV Sobre a Graça Divina , e Conceição \ da Senhora. Madam, /^Ra nem fó minha filha j V^ nieu Theodol^o , merece que Vós tenhais a paciência de a inilruir nos artigos, que pertencem á Religião, Tam- Tarde decima quarta, 363 Também eu fou invertida por eíTes : meus Hofpedes ; e ainda que me tem ' íilgum refpeito , mais do que a eila , ■ para me fallarem com imprudência nef- íes pontos , em que lhes naò failo ; com tudo muitas vezes me he precifo disfar- <■ çar com trabalho o meu enjoo , por nao fer incivil com quem me vifiia : hoje creio que naô temos ninguém , - porque o cafamento do vofíb vifinho leva todas as nolTas amigas , e efta tar- de efta remos fós , Eu , e a Baroneza , e Vós. Theod. Também cu eftimo , que a noíTa converfaçao feja pacifica , porque nem íempre goílo de brigar , e em matéria de fumma importância , como foi a de antc-hontem. Dizei pois Vós fobre que matéria ha de hoje rolar a converíaçaoi ou diga-o a Senhora Baroneza. M^adam, Eu fou a que p hei de dizer , porque minha filha tem mais occaíiões de vos ouvir do que eu. Quero que rne expliqueis iílo de Graça ; porque toda a minha vida tenho ouvido fallar na Graça , e nunca me explicarão clara- mente o que fignifica efla palavra , nem varias coufas , que me eníinaó acerca 4ella* Baron. 564 Recreação Filofojíca Baron. Já minha Mãi me tinha recom- mcndado , que vo lo perguntafle ; mas como os encontros caiuaes com os Fi- iofofos da moda nos metiao em difpu- tas diírerentes , nunca vos pude coníul- tar fobre eíle ponto. Agora , Theodo- fio , fatisfazeis á curioíidade de ambas. Tkeod. Efta palavra Graça tem duas fi- gnificaçóes : humas vezes fignifica Fa- Dor , outras íignifica Belleza , ou For^ mo fura que agrade, Madam, Tendes razão , porque dizemos humas vezes , que Elllei concedeo ef- ra Graça a tal e tal peffoa : outras ve- zes dizemos , que achamos n'um dito graça , que huma peiToa agradável tcin graça -^ que efta ou aquella peflba nos cahio em graça , ccc. j mas cu fal- ia va da Graça , de que íe trata na Thcologia. ^eêd» 7'ambem eíTa tem eíTes dois fenti- àos , que vou explicar feparadamente. §1. Tarde decima terceira. ^6; § I. Primeiro fentido. Graça , ou Favor, PRimeira mente tudo aquillo , que nós concedemos a alguém, lem obrigação, mas por favor , fe chama huma Graça \ e como Deos nos concede muitas coufas fem obrigação alguma, tudo hc Gra- ça , que Deos nos faz \ e aífim ha duas caftas de Graça de Deos ; huma he : Graça natural ^ que involve todos os bens namraes , que Deos nos concede , como v. g. os olhos 5 o entendimento , a faude , a vida , as riquezas , &:c. , tudo fao gra- ças 5 que Deos concede aos homens, porque nada difto era obrigado a dar- nos i mas além deíla Graça natural ha outra Graça fobrenatural , que confiíle nos Dons fobrenaturaes , que Deos nos dá , porque quer , fem ter obrigação alguma de o fazer. Creio que tudo iílo fe entende com facilidade, Madani, Qíiando eu o cornprehcndo , nao po- ^66 Recreação Tihfojica: podeis duvidar , que o tenhais explican- do bem. Theod. Ora nós temos duas potencias ^ que ambas precifaõ defte foccorro ce- leftial em ordem á falvaçaõ y e vida chriftã. Temos entendimento , que lu- da com as trevas da ignorância ; e te- mos vontade , que geme com a rebel- dia das noíTas paixões furiofas. Ao en- tendimento manda Deos graça , illuf- trando-o , e dando a conhecer a^ cou* ias celeftcs , e efpirituaes , tudo o que he da vida futura ; e iíTo por modo mais claro , e mais convincente do que pode fazer a fimples natureza. Além diíTo também ao coração manda Deos huns toques que o defpertaô ; huma inclinação que o facilita para o bem , e hum horror que o affaíla do mal , fem lhe tocar na liberdade. A eftas luzes y e a eftes toques chamaá os Theologos Auxílios , ou Graça excitante , oa Graça auxiliante , &c. Madam, Tudo iíTo entendo , porque tu- do palTi por mim , e dentro da minha alma eu fentia. Theod, Eftas luzes , e eftes impulfos, co-- mo vêm da maõ de Deos immediata- mente , fao fobrenaturaes , e Deos os Tarãe decima qnaría. ^6f <■ dá , ora mais fortes , ora mais brandos , conforme quer : e iíTo também affim o experimentamos. Baron, A's vezes fao tao fortes , que a alma fente huma força a que naò reíif- te. Theod. Deos quando com empenho quer * levar a alma ao fim deftinado , a põem como em cerco , e lhe manda tantas lu- zes 5 humas atraz de outras; tantos im- pulfos huns fobre outros , que a alma cançada de refiílir ^ emfim fe rende l ; fem que Deos lhe toque nos delicadif- íimos foros do alvedrio. Madam. Tenho percebido : vamos ao ou- tro fentido^ em que fe toma a palavra Graça, Baron, Dai-me licença , Senhora : e por- que chamais a eíTas illuftraçôes , e im- pulfos para o bem Graça , ou Favor ? Theod, Porque ninguém merece eíTas il- luftraçôes , e toques interiores. Quan- do Deos os dá , he por liberal bcnefi- , cencia fua : e pofto que fempre dá mais . ou menos graça a cada qual ; com tudo ,^ o Senhor por favor , e mercê dá efta ; ou aquella illuftraçaô maior , efte ou . aquelle impulfo interior mais forte. He -. como a chuva do Ceo ; que Deos dá i . por- 5^8 Recreação Filofqfíca porque quer , e quando quer ; e fe poiT iiaõ íicar no noíTo poder a chuva , fem- pre he favor o dá-la , muito mais dire- xnos ilto deíTes auxilios internos , qux; Deos dá quando quer , e a quem quer , e como quer. Baron, Agora fim: eftou inftruidíí. Madam, Eíla minha filha he mais çfpe- culativa do que eu : Vós , Thcodoíio ^ rendes a culpa de a terdes feito taó-íi- lofofa : continuai. 7beod, Pois fe Vós ambas eftiis íatisfei- tas , eu naó o eílou ; porque ha aqui muitos pontos , que Vós deveis faber, c certamente naó entendeis claramentev Baron, Eifahi huma prova da voíla ami- fade , querer inílruir-nos ainda aiém das noffas perguntas. Sabeis Vós como iíTo he ? he como hum amigo , que naá fomente dá quanto \\\q pedem , mas oíFerece , e dá muito mais do que lhe tinhaó pedido. Dizei pois iíTo , que queríeis dizer. Theod. Nefta economia da Divina Graça com a noffa liberdade ha muitas cou- fas 5 que a TheoJogia certa nos eníina , e que nós devemos crer ^ mas poucos entendem claramente : eu para vos ex- plicar todos eíles pontos com hum fí* mile Tarde decima quarta. 369 mile fenfivel , tenho iuima com para çaá familiar, que me parece própria ; por- que feníiveímente me põem diante dos olhos os pontos delicados , que conci- liaô a Graça com o noíTo alvedrio , fem a íubtileza das Efcolas. Baron. Quanto mais familiar for a com- paração , tanto mais clara fera , e mais prefente ao noíTo efpirito , que fe ef- triba a cada paíío fobre coufas A?nfiveis» Theod, Fingi , Senhora , que vedes iium poço mui alto com muito lodo no fun- do , e que neííe lodo eftá hum homem : claro eftá que efte homem por íi fó naa pôde faltar do poço para fora , fem que com alguma corda cá de fora o puxem ^ e tragaó acima. Affim entendo eu, que he o peccador no eftado infeliz , por- que fem que Deos o traga , e tire do poço , naô pode vir fora : creio que entendeis. Baron. ClarlíFimamente : dizei o mais. Theod, Supponde pois , que vedes huma corda com hum grande cefto , em que pôde eíTe homem vir : fe f e deixar me- ter no cefto , e trazer acima y fahirá do poço. x^íTim eííe homem fe confen- . te, em que Deos o traga define modo acima , fahirá do perigo , e fera falvow TomJX. A4 Ma« ^^6 Recreação Filofofica Mas obfervai , que o homem por fi fó pôde 5 ou reíiftir a que o metaõ no cef- to , ou depois de metido voltar o cef- to 5 e cahir no lodo ; mas por li ío nao pode vir acima , nem hum pal- mo mais do que quer a maõ fuperior , que puxa por elle j e deíTe mefmo mo- do o peccador nao pode por íi fó dar hum pulo para a falva^aó , fem que a Graça de Deos o puxe j m.as por li fd pode perder-fe. Madam. AíTim me diziaõ , e enfinavao j mas eu nao o entendia , e me fazia con- fufaõ termos nós liberdade para o mal fó com as noíTas forças , e nao liberda- de para o bem , fem a Graça de Deos. Nem bem entendia como eíta Graça de Deos nos levava a Deos fem nos atar , nem nos prender , deixando-nos fem- ' pre a liberdade de naõ ir. i^gora en- tendo bem. Theod, Eftimo : vou continuando. EíTe homem em quanto naõ fahe do poço , eítá fem pre em perigo de cahir ; e eí- te perigo he o mefmo , quer o homem difte do fundo hum palmo , quer vinte braças : aífim nos fucccde a nós com a Graça , porque em quanto naO íahimos da vida prefente para a futura ^ eltamos em ^ T^arde decima quarta: ^yt em perigo de defcaliir da Graça de Deos , e cahir no peccado , e eííe pe«* rigo he igual no iiomem , que íe con- verteo ha pouco , e no que l'e conver- teo ha vinte annos \ porque em quan^* to he vivo , e tem liberdade , pode ca- hir do ceílo , ou efcorregar a corda , ou largallo a maó , que o puxava para cima , enfadada da lua reíiftencia. BaroYi, VaÕ-me quadrando elTas compa* rações , tanto que me perfuadem por modo clarilUmo eíTas verdades , que na Doutrina me diziaô. Continuai. Theod. Eu o faço. Se o homem lizer to- das as diligencias por fahir , ou por fubir deprelía , nada confeguirá , fe quem eílá cá de fora naô quizer por favor botar a corda , e o ceílo , e pu- xar para cima : fe a maó íuperior fizer ifto , he por favor , que quem eftá na poço nao tem poder para obrigar a quem eftá cá de fora que o faça. AíFim fuccede a qualquer de nós cem Deos : nunca podemos merecer dejuiliça, que Deos nos chame , nem puxe , nem leve a Çi : quando o faz he por favor , e gran* de favor ; e por iíTo eíFes chamamentos, e meios de fahir do poço faõ favor ^ mercê j e Gra^a como ha pouco vos di« zia. Aaii Har :;57^ Recreação Filofojica £aron, Nao vos fei agradecer a compa-* ♦ ração. Tbeod, Ainda vai avante. Se os homens ' . depois de vir no cefto , fe agarraó bem á corda , por elia diligencia , e cuida- do tem mais bem fundada efperança de . :,que nao fe volte o cefto , e caíao : mas . le elle fe pozer a brincar , e dançar dentro do cefto com foltura , talvez - que quando menos o cuidar , fará hum : ,inovimento falfo , e fe voltará o cefto , ., e cahirá no fundo: aíTim íom.os nós ., fe fomos fieis á Graça de Deos , pe- gando-nos bem á Doutrina fanta , que . nos conduz á fa Ivaçao , temos mui bem ' fundada eíperança da nofla felicidade ; .. mas fe pelo contrario quizermos viver ' com foltura , fem attender á Doutrina fanta , que nos faz ir para cima , quan- .do menos o cuidarmos , delcahiremos dos coftumes precifos para a íalvaçaó , e vamos no fundo do poço. Madam, Nao ire efquecerei nunca do cefto : continuai. Thead, Digo mais ^ que fe quem vier fubindo no cefto , íe pegar ás hervas que eftao pelas paredes do poço , tem perigo de duas coufas ; huina he que • cjuem puxa pela corda , fentindo efta '«.. tnaior Tarde decima quarta. 373 maior reíiftencia , além do pezo , po- derá largar a corda , e naó puxar mais , € vai tudo ao fundo do poço de panca- da : e aíTim nos faz Deos a nós , quan- do ariTahidos pela Graça Divina va- mos fubindo felizmente , fe em vez de fufpirar por fali ir do poqo , nos agar- ramos ás hervas viçofas dos deleites , •e divertimentos profíinos , pode cançar a Mao Divina , e ceifar deífa força , que fazia, e cahimos na infelicidade primeira : eifaqui huma infelicidade. A outra defgraça , que lhe pode vir , he , fe continuando a corda a puxar pa- ra cima o ceíto , em quanto o homem fe agarra , e nao quer largar as hervas do poço , voltar-fe o cefto , e cahir o homem no fundo. Pois ái^ff^ modo fuc- cede a muitos , quando puxando Deos para cima o peccador , elle fe apega aos divertimentos mundanos , c ás vezes volta-fe o cefto ; a Graça de Deos o deixa 5 e o homem vai para o fundo , e Deos fica juftifícado. Mddam, Naô tenho modo para vos agra- decer a comparação ; entendo tudo ií- to taÓ bem , que nunca me acharei con- fafa como d'antes. ,Btvon, Agora entendo eu , porque botan- do 374 Recreação Filofofíca do Deos abaixo tantas cordas , e tantos cellos , como homens que eftavaô no fundo , taô poucos vem a fahir do po- ço para o Paiz íeguro da Eternidade fe- liz. Os obítinados naó largaò o lodo, nem íe deixaÓ meter no cefto : os lou- cos depois de metidos neíie, fe põem a dançar, e brincar com imprudência , e cahem do ceílo : os outros que tem lau- dades das delicias perigofas , e naõ que- rem vir com a prefteza que a Graça de Deos pede , mas lá pouco a pouco, por caufa das faudades de feu infeliz efta- do 5 eftes fe prendem ás hervas das pa- redes 5 e fazem que ou ceife a Graga de Deos a thamallos , ou venha a Deos a graça do Senhor vazia , e elles fahindo do certo dos bons coílumes , e vida re- gular 5 caiaó em baixo. AíHm os fieis á Graça Divina , que fe agarraõ á cor- . da , e naó fazem reíiílcncia , fahem fo- ra felizmente 3 e dos outros , muitos fe perdem. Theod, Comtudo a Graça de Deos ás ve- zes he laô forte , que Deos torna a lan- çar ceílos , e mais ceílos , e fe querem pegar-fe ás hervas , lhes atira racs pol- pcs ás mãos , (deixai-me explicar af- íiiD ) e paclia taõ promptamcnre , que 05 Tarde decima quarta. 375^ os põem fora do poço , quando menos o efpcravaô. Deos he omnipotente, e fabe bufcallos de tal modo , que elles fe dei- xem fuavemente trazer no ceílo ; e por mais loucos que foíTem , Deos ílies dá ou medo para naõ bulirem com figo, ou gofto de eftar quietos no ceílo, c para naò faltarem fora , rapidamente os puxa. Taes faõ os peccadores que com a Graça extraordinária fe falvao. Baroíí* Entendemos perfeitamente : mui- to vo-lo agradeço. Madam, Paffemos agora ao outro fenti- do da palavra Graça. § II. Seguido fentido. Graça ; ijio he , helkza , ou fornwfura que agrada. Tbeod. ^ I ^ Ambem no fegundo fentido , JL ifto be, qualidade que agra- da 5 ha duas claffes de Graça ; porque ha qualidades que agradao aos homens, e fe chama Gráça natural : v. g. a gx?^- ça que tem hum corpo airofo , hum roilo engraçado , huma lentença qiic agra- 37^ Recreação Filofoficã agrada: hnm naõ fei que , que ás ve- zes fe encontra, e fe naõ fabe explicar, mas que faz a coufa agradável : elles dores , ou qualidades íaõ Graças na- tura es, Baron, Tudo aquillo que agrada , dize- mos que tem graça j e como as coufas nos agradaõ por mil princípios da Na- tureza , também de mil princípios naf- ce eílí Gr2i(^A natural. iVqui cahe bem , Theodoíio , o que me eníinaftes na On- tologia íbbre o Agradável , e Injucun- do. Continuai. Madam, Minha filha eftá mais adiantada do que eu na intelligencia da voíTa dou- trina 5 Theodoíio ; he rapariga , tem mais tempo 5 e menos cuidados: pôde aproveitar-fe das voflas inílrucçoes. Va- mos agora a mim : hide dizendo. ITheod, Porém o que faz a noíTa alma bei- ja , e engradada aos olhos de Deos , naÒ pode íer o que faz o corpo engra- çado aos homens ; deve fer couía fu- perior ; e iílo he huma belleza fobre- iiarural , que Dcos infunde na alma , que a faz formofa , bem como hum raio do Sol cahindo fobre hum pedaço de criftal , o torna bello , brilhante , for- mofo , e hum pequeno Sol, Eíle dom ce- I ^" ■ Tarde decima quarta. 377 celefte he que fe chama Graça fantífi" cante, Baron, Ora dizei-me , Theodofio, como pode Deos , que he hum Senhor de perfeição infinita , achar graça nas crea- turas taô vis , como nós fomos , e taõ cheias de defeitos , que de ordinário quando nos conhecemos mais pelo tra- to continuado , fempre no? deígofta- mos huns dos outros. Que fera Deos cujos olhos fao fummamente delicados, Madam. Nao digo eu , Tlieodoíio , que me tendes feito eíla minha filha dema- fiadamente efpeculativa. Theod. Deixai , Senhora , que aífim fe vai inftruindo ; como ella he dócil , a t^fpeculaçaõ naó lhe prejudica : Deos, nos livre de gente efpeculativa , fe he amarrada ao feu juizo. Ora, Senhora, €u vos explico eíTa pergunta bem íilo- foficamente. Baron, líTo he o que eu quero ; porque as explicações theologicas pertencem ao noíTo Cura, Theod, Tendes razad, Baroneza , na vof- fa duvida ; porque hum gofto fumma- , - mente refto naô pode agradar-fe de coufas vis , e imperfeitas ; c Deos , -^ cuja reílidaó do juizo hs infinita , lo < - fe 378 Recreação Filofojíca fe pode agradar completamente do que he infinitamente perfeito , que iílb fo- mente Elie o he. Porém eíla fua per- feição Infinita reverbera nefta , ou na- quella creatura em quem Elle lança ef- te 5 ou aquelle Dom , que a faz mais , ou menos femelhante a Elle. Eu vos ponho hum exemplo. Tem voíTa Mãí determinado cafarvos com o Baraó de **^ Cavalheiro que Vós muito elH- mais , já nao fó porque na verdade o merece , mas também pelo laço futuro qi»e ha de ligar os voítos corações , o qual naÕ coftuma vir de repente ; mas pouco a pouco crefce , &c. lílo poílo tendes Vós hum retrato feu mui perfei- to no Gabinete de voíTa Mai , e Vós o eftimais muito, e muitas vezes vos ve- jo parada a olhar para elle com toda a attcnçaó , e fatisfaçaô : ora Vós naô fois de tao máo gofto , que eftimeis hum pouco depanno , e féis vinténs de tinta , que he o que alli ha : mas como alli fe vê huma femelhança do voíío futuro Efpofo , efta femelhança do ob- jcélo amado , faz também amável eíTe panno do Painel , e do Retrato. Na6 lie iíto afiim ? Vós rides ? Buron, Quem yos deo licença , Theodo- fio , Tarde decima quarta. 379 íio 5 para entrar no gabinete do meu coração a elquadrinhar os íeus mais el- condidos fegrcdos , quaes faõ os do af- fedo ? Mas já que entraftes , e vif-» tcs o que nelle eílava , calai-vos , e guardai para Vós o fegredo , que me furtaíles. Sabei que he aíTim : nao me envergonho diante de Vós , qué fois confidente. Mãdam, Naô he fegredo 5 minha Filha, o que todos devem louvar em ti , e muito menos para Theodoíio , que for- mando o teu coração deíde a meninice , tem nelle plantado os aíFedlos , que a Razaõ pede , e a Religião nao prohi- be. Continuai , Theodofio , que ifto faó defdens da fua qualidade. *Theod, Menos eftimais Vós o retrato das Pulfeiras , porque ainda que feja mais preciolb na matéria , nao fahio tao pa- recido como o do Painel j e muito me- nos o retrato , que tendes de lápis na Pafta de voiTo Irmão o Chevalier ;, por- que ainda fe parece menos: deforma que o gráo da voíTa eílimaçao naô fe mede pela matéria dos retratos , mas fomente pela femelhança , que neíTas matérias apparece do objedlo , que vos agrada. Pois affim he Deos com as fuás crea- 3S0 Recreação Filofofica creaturas : fobre humas derrama maior abundância de Dotes , que as fazem mais femelhantes a EUe , do que fo- bre outras ; e á proporção deita feme- Jhança Divina he a eíHmaçaõ , que Deos faz deífes feus retratos , ou das creaturas. Quando as obras , as pala- vras, os peníiUTienros de huma alma faó mais femelhantes ás de Deos , efta creatura fica mais amável , e mais en- graçada naturalmente ; o que fucce- deo a todas as creaturas no principio, do mundo , quando fahirao das mãos do feu Creador , o qual olhando para cilas ,as achou muito boas. Mas fe fo- bre ellas Deos derrama algum Dom ef- pecíal , e fobrenatural , que realce eíla iemelhança com hum retoque Divino, então fe augmenta a efti mação , e o en- graçado for outro modo fobrenatural i . e quantos mais gráos deíle Dom fe a- charem na alma , majs femelhante fica a Deos , mais formofa nos feus olhos , iVi2íi% engraçada ; que ifto he o que fe chama ter mais Graça, Baron. Sendo aífim ; fe eíTa creatura cheia deiTes Dons , fizer alguma acçaô indi- gna , contraria a Deos , e ao que Elíe faz, e quer, e manda , já perdeo eíTa fe- Tarde decima quarta, 5H1 femeJhança , eíía graça, elTe dom , e eíTa eftimaçao , que Deos delia fazia ? ^heod. Dizeis muito bem , Senhora , que iffo he o que vos hia agora a dizer. Madam, Qualquer dia , minha Filha , efpero de te ver no púlpito a pregar* 'Baron, Pois, minha Mai ^ enfmando-me Theodoíio a difcorrer fobre os Aftros , elnfedos, e quantas coufas ha no Uni- verfo 5 naô he juílo difcorrer , e filofo- far no que me toca á minha alma? Madam, Tens razão ; eu te louvo , c agradeço a Theodoíio. Mas dizei-me como fendo nós raÔ vis a refpeito de Dcos 5 Elle pode pôr em nós a fua fe melhança Divina. Tiheõd. Nem vos admireis , Senhora , que Deos fum ma mente perfeito fe poíTa re- tratar nas creaturas mui vis : nao vedes muitas vezes eílar brilhando entre o io- do hum pedaço de vidro , ou huma poça de agua bem pouco limpa ; porque o foi fobre eíTas coufas lança os feus raios , e cada huma delias parece hum foi, que nos recrea , e fatisfaz ? Pois o mef- mo faz Deos lançando , quando lhe apraz , os raios da fua Form.ofura fo- bre nós creaturas bem vis , e quando eftes raios vaô refleílindo para os olhos 582 Recreação Filofqfica de Deos , fe cftá eíTe Senhor revendo na íua própria perfeição , que na crea- tura poz ; ficando ella foraiofa a feus olhos Divinos , pollo que com belleza empreitada. Madam, Naò digais mais , Theodoíio , que entendi perfeitamente Baron, Pois eu , minha Mãi , ainda te- nho que perguntar duas coifas , fe Vós me dais licença. Madam. Pergunta , Rapariga , quanta quizeres ; porque eu em quanto naa vem viíitas , com goílo aíTiílo á tua Conferencia. Baron, Deos ss demore efta tarde , ou embarace de todo ; porque nenhuma • converfaçao , minha Mãi , nos fera mais agradável. Madam, Que naó ouça6 iíTo eíTes Cava- lheiros que te daô remoques j mas per- gunta o que quizefes. Dk Tarde decima quarta. 383 § IIL DigreJJaS Jobre a Conceição da Virgem Senhora, Baron, T T E fobre hum ponto , que X -l tem connexaó com o que tratámos , e vem a fer : queria que me explicaffeis bem claramente o Privile- gio da Mãi de Deos , fendo concebida em Graça , contra a Lei de todos os fi- lhos deÃdaó , que foraó concebidos em maldição , e peccado : Defculpai Theo- dofio , eftas perguntas , porque a nin- guém hei de perguntar illo fenaõ a Vós* Madam. E talvez que ninguém te refpon- da tanto a teu gofto como o teu Mef- trc : eu com gofto vos ouvirei , Theo- doíio. Theod, Para que me obrigais , Senhora , a fallar neftas matérias , que faô mais próprias do voíTo Paftor do que de mim ? Baron, Como Vós me rendes explicado filofoficamente os pontos da minha Re- ligião , naò he muito que também me expliqueis efte. DÍ2:ei pois como he ' efte Privilegio. Th€od. 3?4 Recreação Filofojica V^heod, He Lei geral fundada naá fó ng Natureza , mas na diípofiçaô do Altif- tiífimo , que os filhos de hum liomera maldiro, rambem íejaó deíagradaveis"* Naô fomente ficao privados das hon- ras , e favores que feu Pai perdeo , mas que iícaô em certo modo participantes do feu crime : Saó de huma certa ma- neira parte de feu s Progenitores j e af- lím como foraô herdeiros de fuás hon- ras , e bens , íicaô participantes da fua defgraça, ^ Baron, Tudo iíTo entendo bem ; e por iíTo hc que nao entendo eíTe privilegio , que fe concedeo á Virgem Senhora , por fer Mãi de Deos : porque fendo filha de Adaô , como qualquer outra mulher, devia herdar a fua mefma defgraça , ^ porque naÕ era menos filha do que as outras 5 nem por iíTo havia de fer me- nos herdeira dos feus crimes. Creio que nao foi , e he Myílerid efte que muito interefla a minha devoção: mas nao entendo claramente como iílb foi. Viheod, Ora eu vos digo como eu o enten^ do ; fe vos^ nao agradar , o vofTo Paf- tor , ou o voíTo Bifpo vo-lo explicaráá [ melhor. 'Baron. O meu Paílor enfiname a çrèv ; nad »^Q'v-.^ «. Tarde decima quarta^ ^Zf ' naS me cníina a entender : dizei-me pois como Vós entendeis eíle M/fterio ? Theod, A nódoa da culpa original fomen- te nos vêm , por fermos filhos de Adaò ; c fomos filhos de Adaõ , quando o noíTo corpo he animado pela alma: em quanto naò ha efta união da alma , e a corpo , naô ha homem , neni filho de Adaò. Ora Deos coftuma produzir a alma no corpo , em que ha de habitar j de forma que o primeiro momento , era que a alma exiíle , he aquelle em que principia a animar o corpo mal forma- do no ventre materno. Por eíTa razão fomos concebidos em peccado ; porque a alma logo no principio da lua exif- tencia he alma de hum filho de Adaò; e fica criminofa por fer filha de crimi* nofo 5 e amaldiçoado. Até aqui naõ ha nada cfcuro. Baron, Nada : ide profeguindo. Theod. Ora dizei-me : e fe Deos creaffe a alma da Senhora , nao logo no fen corpo , que havia de animar , mas fe- parada , c depois da fua exiílencia a uniíTe ao feu corpinho preparado , já a alma da Senhora no primeiro inftante naô era filha de Adaó , pois ainda nao tinha tocado corpo humano. E neíle Tom.IX. Bb pri-í 3S6 Recrearão Tilofojica primeiro momento , em que fahia das Mãos deDeos , fem tocar no corpo hu- mano , podia Deos crealla com os Do- tes da íua Graça , como creou a alma de Adaó. E Tendo aíTim , eftando a al- ma bemdita munida com os Doies íb- brenaturaes da Graça Divina j já no fegundo inftanre , quando Deos a uniíTe ao corpo , tinha o antidoto do pecca* do ; porque quem vai cheia de luz , naÔ pode temer as trevas , e quem vai cheia de Graça , nao pode dcfagradar ao Senhor. Sim era filha de Adaô ncf- fc inftanre , mas primeiro fora filha de Deos pela Graça ; e aífim como o Ver- bo pela fantidade infinita que tinha ab eterno naõ podia contrahir a mancha de filho de Adaõ , quando fe unio ao cor- po humano ; afilm a alma da Senhora , eftando munida com o Dote da Graça fantificante , que recebeo no primeiro inftanre nas Mãos de Deos , c longe do corpo humano , que lhe eftava pre- parado 5 naó podia contrahir a culpa de filha de Adaô. BaroJi. líTo agora entendo eu claramente: que me dizeis , minha Mai } Madam, Que tivefte habilidade para me fazer eftudar Theologia, Sempre ouvi fal- I Tarde decima quarta. ^^f fallar neíles termos dí primeiro inílaiV te , &c. ; porém nunca reflcéli nifto co-* mo agora : digo que também entendo.' Theod, Naô me parece que haja impedi-^ mento algum para dizermos ifto \ por* que Deos igualmente podia crear a al- •ma da Senhora , ou logo no corpo or- gânico , que lhe eftava preparado , ou íeparada delle ; e depois de bem mu- nida com abundância de Graças celef- tes , unilla a eíle corpo : e lendo aJíim , já quando fe achava íilha de Adaò tinha em fi mefmo quem impediíle o peccada de Ada6 : aíFim como hum archote acc- zo entrando n'uma cafa eícura eítá bem livre de ficar em trevas , como eftavao todas as coufas , que aiii fe achavao antes ; mas fe o archote nao entrar ace- zo 5 fica cm trevas comtudo o mais. Porém fe o voíTo Pároco vos difler , que ifto nao pode fcr, accommodai-vos coin a fua explicação , porque he voí** fo Paftor. Madanu Ora , Theodofio , mal fabeís quanto eftimei efta cafual occafiaó de me aclarardes elles dois pontos , que eu nunca entendi claramente. Agora fe quereis , vamos a palTear todos tre?. y6^í>i. Vamos, que o ar frefco nos convida* Bbii TAR^ 388 ^ecreaçjõ Fílofofica APPENDIX II. TARDE XV. Sobre a ConfiJfaÔ Auricular. Major. /^ Uanto a iíTo , Senhora , pcr- \9 doai-me : eu louvo a voíTa ^^ devoção , mas naõ a figo. Vós ides com frequência ao voíTo Paf- íor lavar a voíTa confciencia ; eu naó eftou obrigado a tao peníionada devo- ção. Nós cá os Militares temos outras leis ; e as Senhoras como mais ocio- fas , podem fer mais devotas. BaroTi. Nao fabia eu iífo , meu Major ! Com que ha duas leis na noíTa Reli- gião ! iiuma para as Senhoras , e outra para os Militares ? Pergunto agora : e também haverá dois Ceos ? Ou lerá hum mefmo Ceo , mas teremos para clle dois diifcrentes caminhos ? O meu caminho , Major , he o do Evange- lho : e teremos nós dois Evangelhos , que nos enlinem dois caminhos dilFe- rentes ? Major, T^rde decima quinta, 389 IMajor, Vós 5 Senhora , tendes muita ló- gica 5 e naõ fe pode fallar comvofco , porque cm tudo difcorreis com rigor lógico. Eu digo que os Militares , ain* da os Catholicos Romanos, naó fe con- feilaô 5 fenaó pela Quarefma j nem an- daô lá com eífas devoções melancóli- cas : e muitos vejo eu no meu Regi- mento , que fe tem por mui devotos ; porque fe defobrigaõ pontualmente : outros porém conheço eu , que ha mui- tos annos , que fe nao defobrigaõ , e eu íou hum delles , fallando fincera- . mente. Baron, Afortunados homens , que nao ttm peccados , de que hajaó de pedir perdão a Dcos. Ora dizei-me ;, fe tem €Íles ordem dos feus Chefes para terem cenrinelias á porta do Inferno , para . que ninguém lá entre . fendo bom Mi* litar ? deite modo he pouco neceííaria a confiílao. Major. Naõ he por iíTo j mas perfuadem- - fe , que baila que cada qual no feu co- ração peça perdaõ a Deo$ dos feus pec- cados ; porque Deos he quem lhos h^ de perdoar. Baron, Bom era iíTo ^ fe foíTe aíTim : mas temos nós quem nos fcgure eíla noticia tZQ 39^ Recreação Filofojlca taô agradável , para nos podermos fiar niiTo 5 e delcanjar em matéria tao gra- ve ? Major, Todos os Proteftantes feguem if- ío i e eu , ainda que lou Catholico Ro- .mano , como me criei com elles , nao eílou mui longe de os leguir ^ porque me faz conra. Buron, Conta vos faz iíTo ; nao duvido , e tambcm a mim a faria ; mas o cafo eílá fe eíTa conta he errada i porque de que me ferve viver e morrer neíTa con- ta e opinião, e depois da morte achar que eíTa conta nao era aííim ; e que era verdade , que fomente pelaconfiíTaõ au- ricular íe pcrdoavao os peccados ? e que fareis Vós entaô , meu Major ? Pe- direis licença ao voíTo Coronel para voltar a eíle mundo a confeflar-vos ? Major. Ora nao fejais taó melancólica , Baroneza. Theod. Bom confelho , Senhora , bom confelho vos dá o Senhor Major : mas íobre que cahe eífe confelho ? Eu ate aqui nunca vos conheci melancólica. B^ron. Chegais a tempo , Theodoíio ; o Major chama melancolia a idéa de que feja precifa a confiííaõ para íe nos per* Coarem es peccados. Major. Tar^e decima quinta. 39! Major, Eu fallo pela boca de muita gen- te de juizo 5 que tem a coníiílaó auricu- lar por invenção de frades , e fuperíti- çaô melancólica , e tormento das conf- ciencias efcuíado : nada j nada. Eu di- go, que as oíFeníaís de Deos , fó Deos as pode perdoar. Ha maior defpropg- firo do que dizerem os PP. curioios de faberem a noíía vida, que pode hum fa* zer quantos crimes quizer contra Deos, zombando da íua Lei , e que depois em hum Frade IhQ botando huma ben- ção 5 k lhes perdoaô tcdas eíTss inju- rias , que a Deos fizera \ injurias que fomente Deos pode perdoar? Ora dei- xai-vos diíTo. The o d. Que me dizeis , Baroneza , a tro- voada ? Vede que trovões eftavaó cf- condidcs na nuvem eleílrica. Baron, Ide Vós defarmando eífa nuvern carregada ( como Franklin manda ) c offerecei-lhe a ponta aguda do voífo difcurfo. Major, Louvo , minha Senhora , a metá- fora : naô eílranheis o fogo ; mas em matéria de Religião facilmente me ele- élrizo. Bar^n, Tratemos pois , Theodoíio , cfte poi]to fériamente ; mas km eítrcndo , '39^ Recreação IHlofofica nem trovoada : fallemos como bon» amigos. Theod» E quem vos diíTe , meu Major , que os homens perdoaõ effes peccados por authorídade fua ? Acafo naó per- doaó os Defembargadores , e Miniftros deJRei , os aggravos que os delinquen- tes íizeraô contra o Soberano ? Major, Perdoaó em nome do Soberano , que para ilTo lhes deu poder. V^heod. Pois fe hum ho^mem , que talvez pelo feu nafcimento he bem pouca cou- ía 5 chega pela authoridade, que oPrin- - cipe lhe dá, a tal poder , que perdoa os crimes e defobcdiencias ás Leis do Prín- cipe , como vos admirais , que Deos de aos homens authoridade , para que cm feu Nome perdoem os crimes con- tra as Leis do Senhor ? Major. A comparação he boa ; mas fal- ta provar , que Deos lhes déííc clTa au- thoridade. Do poder , que o Soberano dá aos feus Miniftros Togados , nos confta pelas Leis 5 e pelos feus Decre- tos , que todos lemos , e todos enren- demop. Se tiveíTemos femelhante De- creto com eíTe poder e authoridade da- da por Deos aos Frades e Clérigos , cjDtaô proteíto que logo me veriaò con- Tarde decima quinta. 395 feíTar , que ha mais de quinze annos , que o naó faço. ^aron. Deos me acuda : quinze annos ! E que msita brava tereis , meu Major ? Mas lá vos havinde com Theodoíio. ^heod. Antes que prove ilTo , que dizeis 5 pergunto, meu Amigo , com íinceridade. E Vós credes nos Evangelhos , como Chriílao , ou também íois Incrédulo ? ^ajor. líTo nao : Incrédulo na6 íbu ; fou bom Chriftao , poílo que naó viva co- mo legitimo Catholico Romano. Sini fui baptizado como fílho de Catholi- cos 5 mas criado com Proteílantes , de cuja doutrina nao me aíFafto muito : porém creio firmemente no Evangelho, e em tudo o que nelle nos eníina Jefa Chriílo. ^heod. Bem eftamos : dqÇ^^. fuppoílçaojá tenho modo para difcorrer com funda- mento. Ora dizei-me ; Vós eítais pre- íente no que Jefu Chriílo diíTe aos íeus Apoíloios depois de refafcitado ? Major. Muitas coufas diíle , e naó fel de qual he que Vós faílais. Theod. Entrando o Senhor no Cenáculo ás portas fechadas, fallou a feus Difci- pulos , e diíTe-lhes : Recchcí o Efpiri- to Santo y e nifto lhes foprou na face ; e 394 Recreação Filofofica ■e feita eíla ceremonia de preparação , Jfies diíTe : Os peccados que Vós per-' doardes ^ feraõ perdoados \ e os que Vós nao perdoardes y nao o feraÕ. ( Joan. 20. 22. ) Major, Bem prefcnte cílou , pofto que iiaô tinha reparado nelFa preparação de lhes dizer o Senhor , que recebeíTem o Efpirito Santo , e de lhes ter foprado na faee j agora me íizeftes refiedir nel-? Ia. Tbeod. Já vedes que nao fe pôde fuppor, que foi de pouca importância o que o Senhor Jhcs queria dizer ^ quando o Senhor os prevenio com o fopro da fua Divina Boca , e com a infuíaô do Ef- pirito Santo. Em Jefu Clirifto todas as palavras , e acções fe fuppoem mui juf- tas y e bem conlideradas j e eftas ( que - nao faò ordinárias ) nos daô grande idéa do que o Scnlior hia a fazer. Major. Mas que quereis Vós tirar dahi ? Tijead, Eu o direi a feu tempo: mas per- gunto , fe achais que eíle preambulo do Senhor prova , que hc coufa extraordi- nária o que vai a dizer , ou fazer. Baron, Qlíg fuíto he eíle , Major ? Que he o que vos embaraça ? A per- gunta lie bem limples , e clara ^ nao ha aqui Yarde decima quinta. 39^ ^^ui que temer: áiZQi Jim ^ ou naõ : com qualquer repoíla íátisfazeis a Theodoíio. Major, Eu cá me entendo , Senhora : rnas já que me apertais, digo que íim : Efta prevenção na boca do Filho de Deos de dar aos Difcipulos pelo ieu fopro o Efpirito Santo , e de os pre- venir com iíTo , bem denota que he g'-ande myfterio , ou doutrina mui grande o que vai a dizer : Qiiereis mais , Baroneza ? Continuai , Theodo- fio. TBeod. Ora bem : logo as palavras que fe feguem de lhes dar poder para per- doar , ou nao perdoar os pcccados con- tra Deo? , tem força e eíFeiro mui gran- de : aliás feria o eíFeito delias hum fan- taílico cumprimento do Filho de Deos, como o que fazem os homens nos feus vãos cumprimentos. Major, llío he indigno de Deos : cu nao poíío dizer iíTo. Iheod. Logo o Filho de Deos concedeo aos Apollolos verdadeiro poder para perdoar , ou nao perdoar os peccados ; € iffo com tal efficacia , que o que elles cá fizerem na terra , feria confirmado lio Ceo ; por quanto as palavras fao bem 59^ Rerreaçaõ Filofojica bem clara? : Os pcccados que perdoar^ des ^fer ao perdoados , eos que naÔ per^ doardes ^ nao o feraõ, (S.Joaõ 20.22.) Que me dizeis a iílo ? Major. Eítá feito \ concedo que os Dif- cipulos de Jefu Chriíto , e léus Succef- fores feráô effe poder: mas aqui ain- da naó temos confiííaô , e muito me- nos auricular : temos que podem per- o fogo 5 e a energia com que o fizeftes, moftrava hum animo bem cheio daRa^ zaÓ , e bem feguro do que dizia , e comtudo agora vedes , que tudo era em vao. "Major, A mim parecia-me , que pedin- do cada qual perdão a Deos , e ellanda arrependido no íeu coração , iffo baf- tava. TheocL O pedir perdão a Deos , e o arre- pender-ie no íeu coração , íem duvida que he precifo, para queDeos perdoe, e Tarde decima quintaí /{ot e muitas vezes fuccede que baila , quan* do temos hum arrependimento ciíeio de amor , e amor de Deos íobre tudo , qual ]ie a contrição perfeita ; mas íem- prc ha de o peccador ter defejo de fe confeíTar , e prcpofito de o fazer , po- dendo. A razaõ diíto he , porque len- do Jefu Chrifto o Rei da Gloria , nin* guem pode lá entrar , fenaô peies Teus merecimentos, e pela virtude do feu Sangue. Ora efte Sangue de Chrifto naô eftá depoíitado nas orações , que faço a Deos , mas em alguma ceremo- ma inftituida por Chrifto , quaes faa os Sacramentos. Porque dizeis Vós-^ outros , que fem baptifmo naó ha ial- vaçaò 5 fenao porque nas aguas fantifi- cadas defte Sacramento he que eftá de- poíitado o Sangue do Salvador , para recebermos a primeira graça de adop- ção , ou regeneração ; ora também nas palavras do Sacerdote, queabfolve, eftá depoíitado o Sangue de Chrifto para a fegunda graqa da reconciliação» Se os Proteftantes dizem , que a pezar das palavras de Jefu Chrifto ponde- remos ter modo de fermos perdoados , c que bafta pedir a Deos pcrdaô p3- ra me dar por reconciliado , porque TomJX, Ge naa \{óz Recreação FiJofqfica ' nao ha de bailar , que hum Getttlo diga 3 e peça a Deos , que o faça fcu filho 5 para o fer da Igrej a , ainda que fe naô baptize ? Maior. Diráõ que JeAi Chrifto inftituio o modo de entrar na Igreja , que he lo pelo Baptifmo , o quii de inimigos de ; Deos nos faz feus fiíhos. TCheod. Pois bem vedes que também inf- tituio o modo de nos reconciliar-mos com Deos , que he pela eonfilíaó. Tan- to huma coufa , como outra , faó cere- monias externas a que Jelu Chrifto unio a virtude de feu Sangue , que he fó- . mente omeío da noíTa fantificaçaô. De- mais , que nefta admirável Jerarquia , da Igreja , naó podia Deos determinar , que cada qual foíTe juiz da fua caufa : Se baftaíTe cada qual pedir perdão a Deos 5 e dizer que eftava arrependido , cramos todos nós juizes da própria confciencia , para nos dar por perdoa- dos depois das maiores maldades , fem mais motivo , que dizermos que havia- \ mos pedido perdão a Deos. Nao he , aílim que fe obra nas fociedades hu- manas : he precifo quem caftiguc , quem abfolva , quem perdoe , quem reprove , para nao ler cada qual juiz de Tarde decima quinta. 403 de Ç\ meíino. Porém ifto já he fora da queftaó y que fó era moftrar , que a confiíTaÕ auricular foi inftiruida por Chrifto 5 n^-ió de paíTagem , e com pa- lavras equivocas , mas de propofito ^ e com muita reflexão , e preparação, e todos os finaes de hum grande Sacra- mento. Major, Defcançai , que cftou perfuadi- do. Vamos a outra matéria , que para converfaçaõ de Senhoras já he muita theologia. Barofj. DeíTa goílo mais que de modas * e de enfeites. Vamos paífeân F IM.