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COM REFLEXÕES SOBRE AS CAUSAS E CONSEQUÊNCIAS D AQUELLES

ACONTECIMENTOS QUE TEEM PRODUZIDO MUDANÇAS NOTAYEfS

NO ESTADO GERAL DA HUMANIDADE

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'ELO autiior da revista geographica e histórica DO mundo:

DAS CARTAS SOBRE O ESTUDO POLITICO DA . EUROPA ; DA HISTORIA NATURAL, ETC. ETC.

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PONTA DELGADA

-- - TVP. DE MANOEL CORRÊA BOTELHO, RUA DA ESPERANÇA &

1874

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/

Do í>0

Sendo universalmente reconhecida a utilidade d'informa- ções históricas, uma tentativa que facilite a sua acquisição não deixará por certo de ser bem aceito do publico. Não será, porém, fora de propósito apresentar um esboço do plano.

Comprehender a historia do mundo, em tão resumida obra como esta, parecerá pertencioso; e comtudo, tanto quan- to merece archivar-se na memoria poderá, talvez, reduzir- se a um pequeno âmbito. Narrativas de batalhas e cercos, de desolação e carnificina, despidas inteiramente de interesse, mil vezes repetidas, com longo cortejo de circunstancias mal authenticadas e muitas vezes ficticias, poderão agradar ao es- pirito rude, mas pouco entretenimento oíferece ao leitor intelligente, cujas idéas forem mais esclarecidas, e que desejar circunscrever as suas observações.

O espirito investigador, desejando tirar da historia um quadro verdadeiro da existência humana, contempla a ori- gem e progresso das sciencias e artes, dos systemas e opi- niões, e da civilisação e commercio; de toda a massa, em snm- ma, dos melhoramentos do homem, e adiantamento progres- sivo da sociedade.

Os detalhes d'estes importantes negócios; ou são inteira- mente falhos nos registos das idades passadas , ou escassos e incertos; e não podemos (Telles obter mais que idéas geraes.

/?/

IV

O leitor que compulsar a historia com vistas de a conver- ter em fonte de informação geral, ou de prompta referencia a acontecimentos moraes, com as suas cansas e consequên- cias, ou ao estado politico, religiosoe social do género humano nos differentes periodos de tempo, precisa lixar as idéas so- bre os factos de mais vulto, sobre os traços e cursos magis- traes dos seus negócios, sobre os acontecimentos naturaes que teem, de um modo singular, mudado o aspecto do mundo, determinado as opiniões, ou fixado o destino do homem.

facilitar a acquisíçao e reminiscência da parte mais im- portante, interessante, e de facto a única essencial de conhe- cimentos históricos o intuito da seguinte serie de cartas.

Um summario tios factos principaes tia historia antiga e moderna é apresentado em ordem chronologica, dividido em dez periodos distinctos, dos quaes o primeiro abrange todo o espaço de tempo desde que ha memoria até á subversão do império Babylonieo; o segundo contem o praso entre a fun- dação do império Tersa, por Cyro, e a sua derrubaeào por Alexandre; o terceiro abraça o tempo que passa desde o rei- nado de Alexandre até á vinda de Christo; e o quarto Come- ça na era ehrista e acaba na elevação de Constantino á sobe- rania do império Romano; o reinado d'aquelle príncipe, em razão ela sua importância singular e effeitos conspicuos, ê considerado distiuctamente no quarto período; o sexto co- meça pela morte de Constantino e finda com a subversão do império: d'ahi ate' ao reinado de Carlos Magno eonstitue assumpto do septimo; o oitavo data da morte de Carlos Magno e continua ate ao decimo quinto século, especial- mente caracterisado pelo renascimento das lettras, invenção da arte typographica, descobrimento da America e incre- mento ilo commercio etc; o nono coniprehende aquella idade de emprezas e especulações que, começando pelo meado do decimo quarto, continua ate quasi fins do decimo sexto se- culo; o o decimo periòdo data d'aquella importante era, e apresenta uma revista geral dos tempos modernos.

V base histórica cia obra estriba-se na authoridade dos

V

mais notáveis historiadores; entre os modernos, os doutores Rnssel e Robertson, o Albade Raynal, GKbbon, Messance, Du Cange, e Montesquieu, além de muitos outros que foram oonsultados, e coisa alguma se avança de natureza menos authentica.

A obra acha-se mais oonstruida sobre reflexões, do que sobre factos detalhados, o sinmnario histórico servindo sim- plesmente como base necessária para observações. 0 intuito do author tem sido tornal-a um meio fácil para aquelles que pouco conhecimento lêem d'este género de leitura,, por falta de tempo ou vocação para compulsarem os numerosos e prolixos tratados que constituem a massa de informações históricas, uma reminiscência em sununa para os homens versados em historia, e que possuem conhecimentos minuciosos de tudo quanto aqui ê tratado em globo. 0 desígnio inteiro 6 con- centrar a óptica da historia do huniem, e delinear o esta- do do espirito humano em todas as suas differentes modifica- ções, nascidas de causas externas e fortuitas. Este trabalho, todavia, não é fácil. A narração deve ser concisa e eloquen- te, a exposição ajustada e pittoresca, a investigação exacta e clara, as observações acertadas e persuasivas, as reflexões justas e apropriadas.

A sua utilidade é inquestionável : o publico decidirá do mérito da execução.

CARTA PRIMEIRA

Armuindo ao vosso pedido, tomo a liberdade de vos apre- sentar algumas observações sobre o uso e importância do co- nhecimento de historia , acompanhadas de varias reflexões sobre o modo porque a devemos considerar, a fim de a con- verter em fonte instructiva e agradável de informação geral.

A vossa queda natural conduz-vos ao estudo de historia. Desejaes adquirir um conhecimento geral da humanidade, e esta leitura é o único meio efficaz que se vos offerece.

Para vos prestar aquelle auxilio, que a mediocridade das minhas forças me permitte, aqui vos apresento diversas re- flexões e observações sobre as causas e consequências dos acontecimentos mais notáveis na historia do mundo; com a mira em esboçar a condição geral do homem em cada periodo saliente.

A curiosidade é inherente ao homem, e, até certo ponto, acompanha cada gráo da comprehensão humana, e cada mo- dificação do entendimento. Desde o philosopho até ao cam- ponez, quasi ninguém se encontra que não careça de infor- mação sobre um ou outro objecto; porém, esta curiosidade dirige-se a differentes pontos, em diíferentes intelligencias, na proporção da sna elevação, ou extensão dos seus melhora- mentos prévios. Aquelle colosso de litteratura e philosophia moral, o doutor Johnson, diz: «A curiosidade é um dos ca-

meteres mais seguros de uma intelligencia vigorosa» e ainda mais: «A curiosidade é, em grandes e generosos entendimen- dimentos, a primeira e derradeira paixão; e, talvez, sempre a predominante em proporção ás forças das faculdades men- taes. » Estes são os encómios que aquelle grande observador do espirito humano despensa a esta paixão; porém, com toda a deferência a tão respeitável auetoridade, o louvor é, talvez, antes devido ao curso que toma, que â paixão em si; por- que podemos dirigir a curiosidade aos objectos mais insigm* ficantes como aos da maior importância. O inculto campo- nez limita as suas indagações á esphera da sua freguezia, em quanto que o homem de mais elevada intelligencia, fita a at- tenção nos negócios do mundo em grande, e apetece informa- ções em tudo quanto interessa o homem em geral ; os planos políticos, os estratagemas da guerra, as fluetuações do commercio, e o progresso das artes, sciencia e litteratura.

Esta activa curiosidade do homem pôde satisfazer-se cie dif- ferentes modos, mas nunca em toda a sua plenitude. O via- jante, ao subir unia eminência, entretém o espirito na expecta- tiva da vista que vae gosar da sua summidade; mas, em che- gando a este ponto, tão longe está a sua curiosidade satisfei- ta, que ella opera com dobrada força, e excita-lhe o desejo de contemplar o panorama que lhe fica fora do alcance da vis- ta, e que elle espera será diversa e mais agradável á propor- ção que for progredindo.

Do mesmo modo, o homem de intelligencia cultivada, em quanto investiga as maravilhas da arte, ou os phenome- nos da natureza, traz a curiosidade continuadamente alimen- tada por objectos novos; e a bisbilhoteira da aldêa, que não outro curso aos seus pensamentos que não seja ao dos negó- cios domésticos dos visinhos, mantém a curiosidade tão for- te como incessantemente excitada pelo segredar do escândalo, e frivolidades da visinhança, como pôde o philosopho, quando se entrega á investigação dos mais interessantes phenomenos do mundo physico, moral, ou intellectual.

Segue-se que a curiosidade é uma paixão inherente ao

homem em todas as condições, desde o dourado palácio até á choça de colmo, e opera com incessante actividade em to- da a escala da comprehensão humana; é um objecto de sum- ma utilidade e importância nos seus devidos termos, porque dirige as operações do espirito no campo do aproveitamento, e dá-nos conhecimentos do género humano, vasta sociedade, de que cada individuo é um membro. Para isto precisamos recorrer á leitura. O espirito alimenta se, melhora e aper- feiçoa-se com a leitura e instrucção. O entendimento é um claro, que se pôde encher com varias qualidades de matéria, e seja elle em que escala for, é necessário ler e reflectir para o robustecer: E por que ella falta, muitos Platãos, Aristóteles, Ciceros, muitos Lockes e Newtons trabalham d'arado.

A leitura e a conversação são os dois grandes conducto- res d'informação, mas sem que se cultive a primeira, a segun- da é inefficaz. O liomem que não tiver formado o espirito por meio da leitura não pode dirigir uma conversação, nem co- lher muita instrucção por aquelle canal.

Tem sido frequente e judiciosamente observado, que a lei- tura só por si não é sufíiciente para nos dar um completo conhe- cimento da espécie humana. Admittindo a justiça d'esta obser- vação, devemos, todavia, considerar a leitura como base de toda a acquisição intellectual, que nos instrue na theoria, do mesmo modo que os incidentes reaes da vida e a conversação nos ensina a parte practica a que chamamos conhecimentos do mundo, ou do homem.

Para se obter este género de conhecimentos, a historia é a leitura mais necessária, e a que mais conduz, sem com- paração, a este fim.

Ha livros para todas as capacidades e inclinações, porém, podemos, sem hesitação, dar a preferencia â historia como vehiculo d'informação geral, e diz Cicero, que a nossa educa- ção começa no berço, e acaba na sepultura, comprehendendo os variados géneros, d 'informação que o espirito embebe du- rante a vida, por todos os meios tendentes á acquesição de conhecimentos.

A poesia presta-se para entreter a phantasia, para exaltar a imaginação, e agitar as paixões, mais do que a instruir o espirito.

O poeta cria, na sua mente, e procura formar na dos ou- tros, um mundo ideal, quasi sempre mui diíferente do mun- do real. Seus caracteres e descripções são ficticios. E, como a poesia, o romance não é mais que uma effusão da imaginação.

Elle descreve em varias cores as obras, os soffrimentos. ou os successos de imaginários personagens. A historia, pelo contrario, relata as acções dos homens que realmente existi- ram, e mostra o que soífreram e o que fizeram. O romance descreve o homem tal como podia ou devia sêr. A historia representa-o como é ou fora. A primeira, semelhante â poe- sia, pede os seus traços á imaginação, a segunda recebe-os da natureza.

A historia é* a exposição do homem e da vida humana, e a base de conhecimentos geraes. Irradia as idéas, alarga o espirito, e extirpa os prejuisos mesquinhos e menos liberaes, que obscurecem e viciam o entendimento. Desenvolvendo as causas que influenciam e dirigem as opiniões e o comporta- mento do homem, nas differentes idades, nos differentes pai- zes, e nas differentes condiçõos da vida, e sob differentes go- vernos politicos e religiosos, a historia tende a inspirar senti- mentos liberaes com um espirito de tolerância e benevolência universal.

Em quanto contemplamos os phenomenos do mundo mo- ral, e as scenas infinitamente diversas e complicadas da acção humana, a historia expõe em ordem suecessiva, como em quadro vivo, todas as differentes gerações. Ella demonstra os effeitos dos systemas politicos e religiosos sobre as nações e sobre os indivicluos, e aponta a elevação e a queda d'im- perios, reinos, e estados, com as causas da sua prosperidade e declinação.

Meditando a historia das nações, temos ensejo para in- vestigar as circunstancias que deram origem â sua existência, que promoveram o seu engrandecimento, que os precipitaram

do seu apogeu, ou effectuaram a sua final subversão.

Infelizmente os annaes de todos os paizes desenvolvem um tal tecido de frande e violência, uma tal serie de guerras, batalhas, traições e estratagemas, que muitos ha que tem de- nominado a historia um catalogo de crimes e misérias da humanidade. Estas cousas, porem, não devem passar desa- percebidas, porque mostram de que modo as paixões humanas operam nas differentes posições e circunstancias da vida, eas consequências da sua operação, a extrema, instabilidade de todas as cousas sublimares, e a natureza incerta de todas as expectativas humanas; porem, estão longe de constituir a parte mais agradável, ou valiosa da historia. O entretenimen- to mais racional, como também a instrucção mais solida, ministrados pelo estudo cVhistoria, nascem do ensejo que of- ferece para contemplarmos o progressivo melhoramento do espirito, a origem, adiantamento e influencia das artes e scien- cias, litteratura e commercio, dos systemas e opiniões, o esta- do geral do homem nas differentes idades e differentes pai- zes, e o seu adiantamento, desde a vida selvagem nos mattos e bosques, até chegar á sumidade de civilisação e conhecimen- tos que se encontram nas cidades, collegios, cortes, e senados. São objectos estes que fornecem uma fonte inexgotavel de passatempo racional e interessante informação para um es- pirito investigador e philosophico ; e é por esta razão que cada leitor de historia deve muito attentamente reparar n'a- quelles importantes acontecimentos, que constituem epochas na vida social, que operam mudanças permanentes nas con- dições do género humano, e que parece ter originado uma nova ordem cie cousas.

Estes, como interessantes acontecimentos, devemser bem investigados.

Estudando doeste modo a historia, um novo campo se nosa- bre ao nosso exame. Veremos como os homens, estimulados pe- la necessidade, inventaram primeiramente as artes mais necessá- rias ás suas commodidades e bem estar; como, do necessário, pas- saram aos objectos do commercio, e progressivamente aos do

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luxo, caminhando de grau em grau d'apuramento desde o a- vental da folha de figueira até o manto de purpura e capa de arminhos. Um espirito investigador descubrirá os efleitos que que aquellas artes de necessidade, conveniência e luxo, teem produzido sobre as condições da especia humana, dando vida ao commercio e a toda essa infinita variedade de omcios tão intimamente ligados, a ponto de serem essencial e reciproca- mente necessários, e que não contribuem pouco para cimen- tar o edifício da sociedade, tornando os homens mutuamente dependentes uns dos outros. Observaremos que os homens, mal começaram a assentar e a multiplicar, conheceram a ne- cessidade de se unirem em sociedade, de definirem as suas respectivas posições, e segurarem a posse da propriedade; de estabelecerem uma subordinação regular na sociedade, de re- frearem desejos desordenados por leis salutares, e de se sujei- tarem a uma forma regular de governo; e veremos como a- quelles governos, estabelecidos para o bem commum, depres- sa degeneraram em tyranma; e como, por continuadas uzur- pações, guerras e conquistas, uns*absorvendo outros, se uni- ram, formando extensos e poderosos impérios.

Se os historiadores, mormente aquelles de remotas eras,. tivessem dado a esses interessantes pontos toda a attenção que lhes cumpria, em vez d'encherem volumes com pouco mais que descripções de guerras, batalhas, sitios, assassinios, uzurpações e massacres, teriam os tido uma muito mais exacta emais interessante historia do mundo do que hoje possuímos, ou esperamos nunca possuir; mas infelizmente os antigos escriptores prestaram pouca attenção áquelles objectos, em quanto dão nos detalhados annaes de mortandade e dessolação com a maior mínuciozidade, como se tivessem as scenas de morte e sangue como único assumpto digno da attenção da posteridade, e que podesse recrear o leitor. Se elles tivessem dado ás suas sanguinolentas paginas uma côr mais mimoza, animando-as com descripções commerciaes, scientificas e lite- rárias, a historia seria muito mais instructiva, deleitoza, e ap- proveitavel.

CARTA SEGUNDA

Como sabeis, tem sido observado por muitos e competen- tes juizes, e até mesmo asseverado por alguns que faliam por experiência própria, que a leitura de historia contribue pode rozamentepara o desenvolvimento d'idéasmarciaese para dirigir o gosto da mocidade inexperiente para a vida militar. Relatam alguns historiadores, que, quando os godos foram convertidos ao christianismo, eque a escriptura sagrada foi vertida para o seu idioma, julgou-se prudente omnitir n'aquella traducção os li- vros dos reis, por cauza das frequentes narrações de guerra e carnificina, e com receio que aquelle exemplo estimulasse seu animo guerreiro e selvagem a actos de violência, para os quaes tinham uma natural tendência; e que, por uma interpre- tação fatal, pensassem que a guerra, conquista, e rapina, eram sancionados pela religião que tinham abraçado. Se isto é exa- cto, claramente se a opinião que os homens esclarecidos d'aquelle tempo entretinham da influencia que tem as des- cripções d'emprezas militares sobre o espirito inculto. Toda- via, esta influencia não se attribue inteiramente ao systema de narração adoptado geralmente pelos historiadores; mas tam- bém a errada intelligencia da parte do leitor, ou á sua falta de reflexão.

O espirito juvenil pode ser facilmente mal encaminhado por um louvor imprudente, tributado âquelles cujos talentos milita- res os tornaram felizes em campanha, até mesmo quando âquel- les talentos se empregavam na uzurpação de thronos a que não tinham direito, ou na conquista de paizes cuja soberania não po- diam reclamar. Mas o leitor de si mesmo se deve queixar, se se deixar seduzir por idéas românticas, ou se tirar concluzões er- radas, por menos justas e appropriadas reflexões sobre as ac- ções e acontecimentos da vida humana e suas consequências. Uma reflexão qualquer, não solhe daria uma idéa clara dos cri- mes de muitos vultos da historia, como também o convenceria da extrema incerteza da fama militar.

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Devemos admittir, sem restricção, o valor intrinsico e incon- testável respeitabilidade das qualidades militares quando bem dirigidas: O abuzo d'ellas é que tão somente se faz condern- navel.

A classe militar é, e deve ser respeitada; porém a necessi- dade da sua existência é que é um mal moral; e o folgar em guerras é culpável. A verdadeira coragem consiste em resis- tir ao infortúnio, ou á agressão, em quanto for possível, em soffrer a adversidade com magnanimidade e inabalável forta- leza; a indole de maltratar o nosso semelhante não é ca- racterístico de valor, mas sim d'uma ferocidade selvagem. Não podemos demasiadamente elogiar aquelles que, chamados em defeza da pátria, se destinguem pela sua coragem e bravura em campanha. A perícia militar, e o sangue frio, entre os hor- rores e os perigos da guerra, juntos ao amor da paz, caracte- rizam o verdadeiro heroe; em quanto que o deleite sanguiná- rio na carnificina é o signal inequívoco do bárbaro, e pró- prio d'um Attila, d'um Bajazeto, ou d'um Tamerlão.

Se aquelles que se deleitam em compulsar a historia de feitos militares entendessem, ou quizessem reflectir sobre a natureza da guerra, verião sobre que infinidade de cauzas im- previstas e apparentemente triviaes, depende o bom êxito d'uma campanha, ou d'uma expedição militar, e descobririam que aos exforços combinados d'uma multidão de combatentes subordinados, desde o chefe de divizão, até ao soldado razo, está dependente o resultado d'uma acção e a gloria do com - mandante. Se entrarmos n'umaj usta apreciação das acções humanas, acharemos que a maior parte dos heroes da histo- ria mereceram antes o titulo de salteadores e assassinos do que o de conquistadores; mas a loucura dos homens sobrecar- rega muitas vezes de pompozo louvor, aquelles caracteres di- gnos do seu desprezo, e em vez d'occuparem um logar nos annaes da posteridade devião

«Jazer esquecidos a par dos tyrannos, E em desfazer-se as estatuas e nomes » :

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Arrepiamos nos com a idéa dos sacrifícios humanos dos Pkinicios e Carthagenezes e outras nações da antiguidade; dos Mexicanos, ha apenas três séculos, e ainda hoje entre muitos povos dispersos nas ilhas do mar pacifico, e recentemente des- cobertas pelos nossos modernos navegadores; e não podemos deixar de olhar com uma mixtura de dó, desprezo etedio, gentes que otíerecem taes holocaustos:

Porque estranha illuzão é que, quando acontece ver-se um homem, sobre cujoaltar de ambição e avareza, mais victimas foram imoladas em um dia, que as referidas nações sacrifica- ram em meio século, nos prostramos e adoramos o ensan- guentado idolo ? Se, em summa, esse heroe, tivesse, pelo poder de seu braço, ceifado as fileiras inimigas e reduzido centenas e milhares de creaturas a pó, poderíamos, talvez, respeital-o como um ente superior, com quanto malévolo, e, pelo terror de seu nome, cair aos pés do grande destruidor. Porém, infelizmente, vemos no poderozo conquistador muito apenas um homem fraco e enfermo como nós, inferior, talvez, em coragem e forças, a muitos soldados do seu exercito; e que não possue dotes phisicos ou moraes, pelos quaes, em igual- dade de circumstancias, podesse sobresair a muitos indiví- duos entre a multidão deseonhecida que segue o seu estan- darte.

Se os historiadores teem offuscado a posteridade com as deslumbrantes cores com que nos pintam os feitos dos seus celebres destruidores do género humano, o leitor perde-se por não reflectir devidamente nas circumstancias que acompa- nham aquelles acontecimentos.

Lendo as façanhas d'Alexandre, Scipião, Hannibal e Cezar, ou d'outros modernos cabos de guerra, seguimos attentamen- te o chefe, admiramos a sua pericia militar, e sentimo nos in- teressados na sua sorte, sem ao menos pensarmos um momen- to na multidão d'inferiores que caem a seu lado, e no immenso numero de victimas sacrificadas, antes que o idolo resplende- cente se eleve ao seu altar. Se cada um, cuja imaginação se escandece denthusiasmo militar, tivesse a certeza dalcançar

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toda a fama e gloria que deseja, a ambição teriaalguma des* culpa, mas aquelles que desejam obter nomeada, dessolando o mundo, e destruindo os seus semelhantes, deveriam considerar que gloria e fama não podem ser a partilha de todos; e que nas legiões romanas houve um ('czar, e um Alexendre no exercito que conquistou a Pérsia. De lodos os officiaes su- bordinados que serviram sob as ordens d'aquelles celebres conquistadores, quam poucos se acham enlistados nos annaes da gloria militar ! Quam poucos transmittiraím seus nomes á posteridade! E, comtudo, muitos d aquelles heroes secundá- rios eram iffuaes em coragem e destreza ao eonunandanto em chefe. Os Comm andantes de destacamentos e devizões, com quanto o resultado do plano geral d'operações dependa principalmente do seu merecimento, raras vezes icem a for- tuna de verem seus nomes baixar á posteridade, em quanto que aquelle do general sobresae nos annaes da historia.

O olhar fixa-se sempre sobre o commandante em chefe. Com quanto Cezar, nos seus commentarios, se nao recuza a reconhecer o mérito, e a descrever os feitos dos seus oiHcia.es, pouco saltemos do seu caracter e talento. Do perigo e fadiga, da guerra da gallia partilharam elles; a gloria da conquista porém é toda de Cezar.

Os grandes chefes, que serviram com Alexandre, com quanto fossem homens de habilidade militar consutnmada, soldados de provado merecimento e coragem, disciplinados sob os marciaes pendões, e instruídos por Philippe de Macedó- nia, teriam passado desapercebidos, se nao tivessem apode- rado e dividido entre si, os domínios do seu victorioso senhor, exterminado a sua família ,etingido as cans no sangue uns dos outros, fazendo-se mais conspícuos pelo crime do que por seus talentos politicose militares.

Sc estudássemos historia philosophicamente, deveríamos, lendo a descripçao d'uma campanha, em vez de prestar a at- tenção inteiramente ;i sorte do general, contemplar igualmen- te as privações soffridas pelos bravos soldados que compõe o seu exercito, e a cujo valor e esforços elle deve oseu triumpho

1!

e glotfia.'Se pensássemos no infinito numero de combate que dizima, não a espada, mas também aífome, aépíd< e a fadiga iusopcraveis da guerra, é que báixãò á palia, d< nhecidos e sem distincção, achar-nos-hiamos babilitadoí formar melbor juízo doa horrores das batalhas e descobriríamos que aquelles brilhantes feitos dermas que resplandecem corri um brilho seductor nas paginas da historia, com quanto não passem de farças recreativas para os leitores, são tragedias n;i.< -i para um grande numero dos que representam n'éllas, como também para milhares dfoutros que acham ínvolvi- dos nas suas consequências.

Fosse a historia estudada como cumpria, as mais trágicas descripçdes que mancham suas ensanguentadas paginas poderiam approveitar á nossa ínstrucção, subordinadas á boa razão.

8e ao menos attendessemos ás lagrimas da viuva e âO orphao, bc podessemos escutar os gemidos dos feridos é inò- ríbttndos, c se nos figurasse a apparencia esplendida e bellí- à?um exercito ao entrar em campo, comparada com o es- pectáculo dolorozo dos seus restos despedaçados, depois de renhida peleja ou sanguinolenta campanha, ficaríamos attonítos, e contemplaríamos horrorizados os terríveis efíeitos das paixões humanas. Uma cabeça bem organizada, deduzi- ria destas considerações ínstrucção e entretenimento; entre- tenimento trágico de certo, porém que, fazendo brotar emo- ções de dó, prazer á alma sensível e compadecida.

Para se Mrár o rerdadeíro partido da historia, o leitor preciza examinar1, reflectir, e comparar; e preciza igualmente ter um coração dotado de sentimento. O homem incapaz de sentir OS males alheios, insusceptível dose impressionar, olJjan

do a infelicidade do seu semelhante, sem poder coHocar«sé

no seu lo^ar, a lim de pensar, sentir e obrar em idênticas cir- cunstancias, não tem a preciza dispo ' - pari o estudo de historia; porque do modo por que escreveram os antigos, e ainda hoje escrevem os modernos historiadores, cada pagina é um drama.

3

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Quando tiverdes ponderado estas reflexões, e examinado a sua justiça e propriedade, não duvido que merecerão a vossa approvação. No entanto, vamos entrar n'um campo mais aprazível.

Apresenta-se-nos agora um objecto interessante e digno da nossa apreciação, em que uma meditação judicioza dliisto- ria contribuo eminentemente para desenvolver a natureza do entendimento, e para corrigir as nossas idéas e opiniões.

Em quanto o plyilosoplio contempla a quasi interminável variedade d'estabelecimentos políticos e religiosos existentes no mundo, e o curso das idéas do homem em difíerentes épo- chas, e em difíerentes paizes, a historia, vem poderosamente em seu apoio; e diiatando-llie a vista e as idéas, extingue a- quelles prejuízos menos liberaes que estreitam o espirito, que embotam os sentidos, e obscurecem o entendimento. O erro e o prejuizo teem uma quasi influencia universal sobre o ho- mem; e é em proporção ao derramamento de luz sobre o espirito, que esta influencia dimiuue ou se aniquila. Certas preoccupações se assenhoreão de nós e dominam a nossa ra- > desde a infância, desde o primeiro raiar da intelíigencia: São inspiradas por hábitos systematicos embebidos com o leite, por opiniões correntes, e pela conversação e authoridade daqueiles que nos cercam, que nos são mais queridos, e que exercem sobre nós maior influencia. Cada nação, cada seita religiosa, cada classe da sociedade, tem prejuízos particulares que se fortificam por circunstancias diversas; adquirem raiz mais profunda conforme os livros que se estuda, conforme o paiz em que se vive, a condição social, e milhares d'outros inci- dentes. Se pegássemos em certo numero de creanças, cujas ca- pacidades fossem aproximadamente as mesmas, se a todas dés- semos igual educação, e as coliocassemos no mesmo mister, qualquer ligeira differença que se notasse no seu aproveita'

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mento, devido aos seus differentes graós de applicação e intel- ligeneia, ou outras circunstancias accidentaes, sempre encon- traríamos em todas, mais ou menos, o mesmo pensar, os mes- mos prejuízos, as mesmas idéas e opiniões. Porém se, do con- trario, tiverem sido educadas cada uma a seu modo, seguindo differentes caminhos se de um fizermos soldado , d'outra um marinheiro, cVoutra um lavrador, d'outra um negociante, se outra for educada em um convento, entran- do em uma das ordens religiosas da igreja Romana, outra ministro da igreja protestante, outra enviada a um paiz ma- hometano, e, depois d/uma educação própria, vier a ser mufti da religião musulmana, se outra for educada entre os Bhramanes da índia, e outra entre os Tártaros, ou entre os discípulos de Confúcio, ou adoradores de Foe, na China ou no Japão, viriamos nos seus dimerentes prejuízos, opiniões e idéas geraes, toda a força e influencia das circunstancias ex- ternas e eventuaes sobre os homens: O prejuízo por mil dif- ferentes formas actua, mais- ou menos, sobre cada individuo da espécie humana; mas especialmente sobre o homem rude e analphabeto, sobre os escravos de hábitos systematicos, e das modas; e a sua influencia é prejudicial á cultura do espirito bem como á verdadeira religião e caridade christã. Creando a ignorância e o orgulho, o prejuízo tende a enfraquecer, ou a destruir a philantropia universal, tão recommendada pelo Author da religião christã.

Nada contribue tanto para exterminar prejuízos mesqui- nhos como são os conhecimentos geraes d'aquellas circunstan- cias e acontecimentos que em differentes idades, teem tido lo- gar no mundo, e que teem, d'um modo decidido, determina- do a condição e opiniões da humanidade; e estes conhecimen- tos provêem do judicioso estudo da historia antiga e mo- derna.

D'aqui nascem idéas claras e grandiosas, com as quaes se não casa o espirito de perseguição e intolerância.

Em quanto o fanático protestante, condemna, talvez, sem apreciação alguma, o que elle denomina os absurdos da ígre-

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ja catliolica, o catholico fanático escommunga o protestante que nega obediência áquella que elle reputa, igreja infallivelf em quanto o calvinista condernna o arménio e o arménio ao calvinista, porque raciocinam differentemente sobre o mys- terioso plano da redempção, e dos decretos divinos; em quan- to os fanáticos de cada crença se condemnam e perseguem mutuamente; o pliilosopho esclarecido, qualquer que seja a sua crença, em cada homem um irmão; e considera a massa collectiva da humanidade como uma familia, filhos de um Pae commum. Em quanto o fanático não respira senão intolerância e perseguição, o christianismo illustrado e bené- volo considera as diíferentes nações do mundo como vivendo sob diverso regimen, e os entrega todos nas mãos d'um Ente Divino, que rege e dispõe de tudo como julga conveuienter e d'uma maneira que a nossa fraca razão não alcança.

Colhemos mais vautagens d'um estudo judicioso e metho- dico de historia do que se pode enumerar; porém, para seguirmos este ramo de modo que possamos haver instrucção e informações authenticas, devemos estar em guarda contra os erros e imperfeições dos historiadores.

A historia é uma parte útil e nobre, mas muito defeituosa, da litteratura. Se considerarmos a dificuldade que se encontra em apurar a verdade no tocante a factos acontecidos nos nos- sos dias, em que a arte da imprensa concorre poderosamen- te para o derramamento de conhecimentos, e franqueia os carmes da informação, tornando tanto a revelação da verdade, como o descobrimento da falsidade de mais íacil e rápido al- cance do que nos tempos passados, não podemos rasoavel- mente ter plena confiança nas narrações de circunstancias particulares que acompanharam os acontecimentos da anti- guidade. Se fora possivel aos historiadores transmittir-nos as intrigas secretas das cortes e gabinetes, e explorar as verda-

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deiras causas das acções humanas, a historia seria muito mais valiosa, porque apresentaria um quadro mais exacto da hu- manidade, demonstrando com mais clareza as causaes secre- tas dos grandes acontecimentos. Não podemos, porém, pre- sumir que elles obtivessem informações seguras sobre ma- térias que geralmente se ajustam com o maior segredo; e por tanto devemo-nos acautelar contra o que nos dizem aquelles historiadores, que, para realçar os seus escriptos, recorrem á imaginação, e fazem supprir pela conjectura o lo- gar que devia occupar a informação authentica. Taes escriptores, não podendo dizer-nos como as suas personagens fallaram e procederam em certas occasiões, obrigam-nos a fallar e a proceder como elles próprios, em idênticas cir- cunstancias, fariào. As eloquentes orações que apparecem em Tito Livio, Jozephus, Salustio e outros historiadores antigos embellezam as suas obras, agradam ao leitor e provam vanta- josamente os talentos do escriptor, mas devem na maior par- te ser considerados como discursos do author, e não dos in- dividuos a quem são attribuidos. Alguns escriptores tem o arrojo de nos dar um detalhe dos debates dos concelhos pri- vados, das mais secretas conversações e intrigas palacianas, com a precisão de quem fora ministro d'estado de principes que viveram nos tempos a que se referem, e que nada se pas- sara sem o seu conhecimento; nem tão pouco escrupulisam entreter-nos com narrações circunstanciadas d'uma batalha, ou d'um cerco, ou mesmo das operações duma campanha in- teira, feitas com tão pretenciosa fidelidade, como se elles em pessoa entrassem em campo com o exercito, e acompanhas- sem cada destacamento empregado nos differentes serviços durante toda a contenda. Taes descripções devem ser recebi- das com reserva, e, geralmente fallando, inteiramente des- presadas. Dizia o doutor Johnson : « Falíamos em historia, mas, não consideramos quão pouca historia, realmente verda- deira, temos.

Não se questiona se estes e aquelles reis reinaram, se taes ba- talhas se deram, se taes praças foram tomadas, e taes paizes cob-

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quistados , como se nos conta; mas convém notar que todo o colorido de historia é mera ficção. »

Tão somente os grandes traços, os mais importantes factos que tem dado origem a effeitos notáveis, devem attrair a nossa attenção, excitar a nossa reflexão e occupar logar na nossa reminiscência. Este meio d'estndar historia, fará, não ha duvida, circunscrever os seuslimites, e trazel-a a um circulo mais limitado, mas hade realçar o seu valor, porque rejeita erros e tudo que è supérfluo, aproveitando as informa- ções genuínas que offerece. No que respeita a detalhes histó- ricos, toda a vez que o escriptor os offerece ao exame do lei- tor, deve, sob pena de pôr a sua reputação em risco, provar, como, e d'onde obteve as informações que apresenta, aliás tem de perdoar a incredulidade dos vindouros, se não derem inteiro credito aos seus escriptos.

As conjecturas engenhosas e racionaes sobre as causas, consequências e circunstancias, são certamente admissíveis, e até em muitos casos desejáveis em historia, porque tendem a auxiliar as reflexões do leitor, suggerindo-lhe idéas que lhe não teriam facilmente occorrido, mas devem ser dadas como taes, e não como factos.

As observações e deducções d'um historiador sagaz e philosophico podem apresentar o objecto debaixo d'um ponto de vista mais luminoso do que se constasse d'uma simples re- lação do facto; mas o leitor cauteloso deve sempre considerar as suas observações como meras conjecturas, se as probabi- lidades não forem tão fortes que lhes estampem o cunho e valor d'uma authenticidade inquestionável. Muitos historia- dores escreveram séculos depois dos acontecimentos que des- crevem, e por consequência basearam as suas obras sobre re- cordações avulsas e fragmentos d'outros escriptos, de cuja veracidade não poderam conhecer, nem tão pouco descobrir por que meios aquella noticia fora adquirida e a influencia estranha que os dominaram. Nós sabemos sob que auspicios escreveu Voltaire vários traços históricos, e ninguém ignora

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que Josephus descreveu as guerras dos judeus sob a influen- cia dos romanos.

Muitos tem cuidadosamente dado aos seus escriptos uma forma adequada a agradar aos seus protectores, e a attrahir amigos entre uma classe particular. Outros temem-se do re- sentimento d'homens collocados no poder , e sobre outros actua a honra do seu paiz, ou o amor de partido.

O que sabemos dos acontecimentos dos gregos e romanos vem d'escriptores d'essas nações: por consequência, devemos suppor parcialidade nas suas relações, com esta differença, que, sendo a Grécia dividida em muitos estados independen- tes, rivalisando em gloria, reputação, e prosperidade; e sendo numerosos os escriptores entre elles, eram, de certo modo íiscaes uns dos outros, o que os obrigava a serem conscien- ciosos, e isto não aconteceu entre os romauos, que estando unidos em um va^to corpo politico, e animados por fortes prejuízos nacionaes, estavam á vontade para escreverem a gosto.

Comtudo, se o amor pátrio dos gregos não teve tantas largas como gozaram os romanos, a viveza da sua imagina- ção, e a sua natural propensão para a idealidade, forneceram ampla matéria para o engendramento de narrações poéticas, e de facto, as primeiras historias gregas não se podem ter na conta senão de fabulosas. Muitas observações d'estas sobre a historia grega e romana podem applicar-se, em larga escala, á generalidade de historiadores d'outras nações e d'outras ida- des.

De todas as variedades d'assumptos históricos, a historia ecclesiastica seria a mais valiosa, se podessemos confiar na sua authenticidade ; porem, infelizmente, por um estranho desvio do verdadeiro curso das cousas, aquillo que devia ser melhor, é pelo contrario o peior ; porque, aqui, alem da informação, e outros defeitos inherentes á historia em geral, os prejuizos religiosos influem poderosamente. Os annaes da igreja, são, na maior parte escriptos por ecclesiasticos, forte- mente ligados a este ou áquelle ponto theologico, que elles

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consideram uni dever religioso sustentar, e um meio para a salvação eterna. Não podemos, portanto, esperar uma histo- ria authentica e imparcial da igreja christâ" sahida das mãos d'um fanático catholico ou protestante. Se, hoje, um author se pozesse a escrevel-a, os documentos que lhe servissem de base, seriam tão repassados de prejuízo e espirito de seita, que em breve tempo se perderia no intrincado labyrintho de contendas religiosas, e acharia a verdade tão corrompida pe- las contradicções cavilosas d'escriptores theologicos, a ponto d'apresentar obstáculos invenciveis á execução do seu desí- gnio. O mal agora é por consequência irremediável. Elie pôde comtudo attenuar-se pelo bom senso e penetração do leitor, observando restrictamente esta regra, que na estima- ção do valor intrinsico das obras dos historiadores, estadistas, e theologos, mas particularmente nas d'estes últimos, deve- mos, em primeiro logar, procurar descobrir a influencia de prejuizos, paixões, ou interesses, sob os quaes se lançou mão da pennapara escrever, para então dar o devido desconto aos effeitos que taes influencias lhes devião necessariamente pro- duzir nos ânimos. Este é o fio que nos deve guiar atravez o labyrintho de asserções contradictorias, opiniões bruscas, e differentes representações das mesmas acções e circunstan- cias, que nos deve dirigir na apreciação do mérito dos autho- res, e determinar até que ponto podemos acreditar o seu tes- temunho, e a deferência devida á sua opinião. Sem este ex- ercício das faculdades, os livros podem tanto desencaminhar- nos como instruir-nos. Avaliando a authenticidade de rela- ções históricas, três são as regras principaes a obsarvar; a probabilidade ou incerteza dos factos recordados, a natureza da prova que os confirma, e até que gráo são corroboradas ou contradictas pelas circunstancias geraes do mundo ao tempo em que tiveram logar. Sobre estes principios deverá o leitor exercer o poder descrecionario de acreditar ou suspender o seu juizo; evitando todavia cuidadozamente, os dous extremos do scepticismo e da credulidade, que são igualmente adversos ao melhoramento da instrucção.

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CARTA QUÍITA

Outra consideração d^igual peso, e ainda mais evidente importância, brota espontaneamente no espirito do leitor.

Um perfeito conhecimento de geographia e de chronolog-ia torna-se indispensável ao estudo de historia.

Estas são as duas grandes lnzes, sem as quaes seria a his- toria um chãos, e sem a devida attenção ás circunstancias de tempo e iogar, narração alguma seria intelligivel, nem pode- ríamos investigar as causas e consequências dos acontecimen- tos. A geographia é uma sciencia instructiva, e o seu estudo extremamente deleitoso 5 porém, á semelhança da historia, «stá sujeita a uma infinidade d'erros e defeitos, menos difri- ceis, comtudo, a corrigir do que aquelies da historia. A dis- tancia de mil léguas, como o decurso de mil annos, mar- gem ao erro, e logar ao abuso de credulidade dos leitores, apresentando descripções fictícias; mas estes erros, ou absur- dos , d'escriptores geographos, estão sujeitos á censura e correcção de cada viajante; e esta consideração basta para afastar o escriptor, que preza a sua reputação, de empregar a falsidade.

Respeitante á correcção d^erros e defeitos, uma circumstan- cia notável e particular descrimina as obras dos geographos d'aquellas dos historiadores. A geographia presta-se á correi- ção e aperfeiçoamento, em quanto que as transacções e acon- tecimentos da historia, pertencendo ao passado, de dia £>ara dia vão caindo em obscuridade.

A verdade geographica pode ser satisfactoriamente levada á evidencia, ou a sua menos veracidade descoberta por ulte- rior inquirição; porém os factos históricos apenas existem nos annaes do tempo e memoria da posteridade. Um paiz pôde ser revisitado, mas as cousas passadas não podem ser invocadas e apresentadas novamente ao nosso exame.

Os geographos podem ás vezes, coma mira no volume da obra, ou para entreter o leitor, entregar-se um pouco á fic-

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ção nas suas descripçôes de paizes pouco conhecidos, ou ra- ramente visitados; mas isto não acontece em relação aos pa izes mais explorados, sob pena de serem apanhados em fla- grante mentira; e todas aquellas partes do mundo que tem sido o theatro dos feitos d'antiga e moderna historia, são tão bem conhecidas, e tantas vezfcs teem sido descriptas, que nenhum erro importante deve receiar-se. O estudo de geogra- phia ê extremamente recreativo, e o conhecimento d'aquella sciencia é de tão fácil acquisição, que o ignoral-a é imperdoá- vel a quem aspira aos foros d'uma educação litteraria. E' igual- mente tão transcendentemente útil, e tão universalmente in- teressante, que a cada individuo interessa mais ou menos.

Qualquer jornal torna se inintelligivel a quem não tiver co- nhecimento de geographia.

Em quanto á parte chronologica de historia, vem muito mais para ocaso fixaraidéa sobre um plano bem conhecido de caracteres, ou acontecimentos contemporâneos, do que sobre- carregar a memoria d'aridos e trabalhosos cathalogos de datas. Quem se der convenientemente á leitura de historia, chaman- do á lembrança qualquer caracter natural, circunstancia, ou periodo de tempo, recorda-se immediatamente de todos os factos memoráveis contemporâneos. Reflectindo sobre qual- quer periodo notável na historia de qualquer nação, as cir- cumstancias politicas, religiosas e civis, não d'aquella, mas das circum vizinhas, se lhe apresentarão logo á vista.

Estará apto em todos os tempos e occaziões, a desenro- lar mentalmente um quadro do mundo moral, e num golpe de vista, observar distinctamente as circunstancias e condições geraes da humanidade em differentes idades. D'igual modo, quem tiver extensos conhecimentos de geographia, achará fá- cil delinear na mente, como se fora sobre um mappa, toda a superfície conhecida do orbe terraquio, suas divizões naturaes e politicas, seus mares, rios e montanhas etc. como também as cidades de maior consideração. Não será fora de propósito observar que, o que muito facilita a acquisição de conheci- mentos geographicos, é acostumar-mo-nos a conservar na

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memoria os logares collocados debaixo do mesmo meridiano. Isto contribue muito para o arranjo methodico d' idéas geo- graphicas, e ajuda a fixar na idéauma verdadeira representa- ção da superfície da terra.

Poderá ser objectado, que um tal arranjo methodico de co- nhecimentos históricos e geographicos é uma tarefa laborioza. E', porém o contrario. A sua acquiziçâo é perfeitamente la- cil, e requer um pouco de methodo na reflexão, e exame d'aquelles livros que tratam destes objectos. A execução fácil e expedita d'um trabalho, seja de que natureza for, dependa mormente do meio que se procura para se conseguir o fim. Lançados os ahcerces, a mais consírucção é fácil. Quer estu- demos arithmetica ou geometria; mathematica ou os clássicos; qualquer que seja a sciencia a que nos dediquemos, se não for methodicamente, pouco mais fazemos que accumular idéas confuzas e mal digeridas, que nunca se podem converter em sciencia. Muitos ha que lêem muito e aproveitam pouco, porque não o teem feito com methodo e reflexão; esquecem-sè do que leram tão depressa fecham o livro, e queixam-se da sua falta de memoria, ou multiplicidade dafTazeres; mas a cauza está mais na falta de systema do que na organização, porque é in- contestável, que se estudarmos com methodo, se contemplar- mos as couzas sob todos os pontos de vista, se as considerar- mos com todas as suas combinações, connexõese dependências, possuimo-nos d ellas por tal forma, que nenhuma multiplici- dade ou variedade d'occupações, nenhum decurso de tempo, ou outra qualquer circunstancia, as pode apagar, salvo nos cazos de defeito phisico d'espirito ou imbecilidade. E'forçozo, porém confessar que uma multiplicidade d'afTazeres; conjunc- tamente com o decurso do tempo e abandono do estudo, apa- gam da memoria grande copia de circunstancias minucio -, zas, mas a combinação das couzas, permanecem; tanto, que, se alguém ao principio se achar perplexo, qualquer recorda- ção chamará, e retocará na memoria as idéas, obscuras e dis- persas sim. mas não de todo obliteradas. Uma bem combinada e vinculada serie dldéas, pode ser comparada a uma cadêa, da

qual, quebrado um ^6 fuzil, os demais seguem todos apoz;

Tudo quanto estiver profundamente impresso no espirito, jamais se apaga inteiramente da memoria.

Cada negoeio, cada transacção, das quaes temos tido per- feito conhecimento em todas as suas particularidades, sempre nos lembra; e, comquanto auzentes da imaginação, depressa lhe afíluem, em quanto que, couzas pouco notadas, das quaes pouco conhecimento tomamos, e que por consequência pouca impressão produziram, escapam facilmente, por haver deixa- do tão somente fracos e obscuros traços, que depressa se gastam, e que difticilmente se reorganizam.

Não obstante os erros e defeitos a que a historia está, sujeita, o seu estudo 6 indispensável a todo e qualquer indi- viduo que aspire ao conhecimento das sciencias geraes, acima do commum.

E tanto isto é reconhecido, que jamais houve vulto politi- co ou litterario que não enthesourasse conhecimentos histó- ricos, como também geographicos; tanto, quanto, na idade em que viveu, aquellas sciencias se achavam cultivadas, e hoje em dia, em todo o paiz aonde as sciencias e a litte- r atura florescem, ninguém, destinado ás lettras, ou á vida pu- blica, se deixa ignorante daquellas sciencias que constituem parte essencial duma educação liberal.

As varias imperfeições da historia, muitas das quaes pro- vêem de causas absolutamente inevitáveis, depreciam o seu valor, sem todavia supplantar a necessidade que temos delia. O orador, o poeta, o moralista, e otheologo, ali udem frequen- temente a objectos históricos para solemnisar acontecimentos notáveis, instituições, costumes ou hábitos em difTerentes ida- des e paizes. Portanto, quem desconhecer este estudo, não pôde entender bem as composições rhetoricas e poéticas; ou as obras do moralista e do theologo.

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Nao podemos, porém, admittir a necessidade da retenção de toda essa massa de circunstancias, pouco interessantes e menos authenticas com que os historiadores tem. insuflado os seus volumes, na maior parte imaginarias; mas quando as ti- véssemos por verdadeiras, quasi que nao mereciam esse traba- lho. Os traços salientes de historia, os factos de primeira ordem, authenticidade inquestionável, corroborados por consequen- as evidentes e circunstancias comprovativas; grandes e im- portantes acontecimentos, que teem deixado decidida e visivel influencia sobre o aspecto geral dos negócios humanos; ca- racteres distinctos que tem sido agentes principaes em tran- sacções notáveis; a origem e influencia dissociações politicas civis e rehgiozas; a condição geral da humanidadade em dif- ferentes epochas, estes são os tópicos que reclamam a atten- ção do leitor, e que nào lhe devem escapar.

Os caracteres distinctos e os acontecimentos memoráveis sào as balizas históricas a que nos podemos soccorrer, e pelas quaes a ordem chronologica d'um grande numero de cir- cunstancias subordinadas e dependentes pode ser dirigida e recordada.

Uma revizão geral e comprehensivel da historia da hu- manidade, bazeada n'este perfil, seria igualmente instructiva e recreativa. Aprezentaria á vista contemplativa um quadro das couzas, e um aspecto moral do mundo, em periodos sue- cessivos, e concentrando as partes . mais apreciáveis d'infor- maçào histórica, tornar-se-hia um summario útil e convenien- te, depois de compulsados os volumozos livros da historia an- tiga e moderna.

CARTA SÉTIMA

Olhando o grande perfil da historia, os acontecimentos memoráveis e importantes que tem determinado as condições da humanidade, e tornado o aspecto moral e intellectual do inundo tal qual o vemos na actualidade, descobriremos am«

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pia matéria para uma detida reflexão, eem muitos casos sere- mos obrigados a recorrer á conjectura, fundada sobre dif- ferentes pontos de probabilidade , em muitos casos tão corroborada por circunstancias geraes existentes, que se podem quasi reputar certos.

Do estado primordial da humanidade, pouco sabemos por informação histórica, e por meio de conjecturas, fundadas na natureza das cousas, podemos alargar a es- phera das nossas idéas. E' muito de suppor que o ho- mem tivesse existido muito antes que começasse a escre- ver a historia do que em redor d'elle se passava. Ao principio, toda a sua attenção se deveria circunscrever ao estudo dos meios para a subsistência própria, e em tornar a vida, até certo ponto, commoda.

N'aquelle estado de simplicidade, difficilmente pensariam em transmittir os seus actos á posteridade, nem mesmo teriam cousa digna de recordação.

E' aqui que o conhecimento que temos do homem e das suas necessidades, deverão supprir a deficiência da his- toria.

Da própria experiência poderemos imaginar a qualidade das casas, ou ao menos cabanas, que elles construiam para se resguardarem da acção do tempo. A agricultura merece- ria alguma attenção, em ordem a que a terra produzisse o ne- cessário para a alimentação do homem; os animaes seriam domesticados e subordinados á sua vontade; e as artes mais essenciaes á commodidade do homem, inventaram-se antes que fossem cultivadas as lettras, e consignado á es- cripta o pensamento.

D'estas circunstancias todas, poderemos rasoavehnente concluir que os primeiros traços históricos consistiram nas tradições transmittidas de pae a filho, atravez de suc- cessivas gerações, e de facto, constituem ellas a base das primeiras recordações históricas. Taes são as narrações fabulosas dos primeiros historiadores entre os gregos. Ti- nham elles as legendas históricas dos padres egypcios que

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acobertaram a religião e a sciencia com o niysterioso réo allegorico ; e os gregos , em muitos casos, interpretando mal os primeiros periodos da historia , presentearam-nos com um tecido monstruoso e absurdo de narrativas fabu- losas de reis que jamais reinaram, e de heroes de descendên- cia celeste. Sendo a superstição natural ao homem, an- tes que a philosophia illuminasse a sua razão, não é de admirar que os primeiros historiadores enchessem as suas obras com contos da communicação dos deuses e semi-deuses com os homens, e da frequente interferência d'agentes so- brenaturaes nos negócios humanos. A viva imaginação dos escriptores gregos das primeiras idades, exaltada pela su- perstição, deu largas aos mais absurdos contos. Por esta razão o período que decorre, desde a fundação da socie- dade politica e civil na Grécia, até á guerra de Tróia, pó- de-se apropriadamente denominar a éra fabulosa; e. de facto, a maior parte do que se nos conta concernente áquella guerra, tem evidentemente o cunho da inverosimilhança; por isso que, tudo quanto sabemos d'ella funda- se nos rsagos poéticos da imaginação creadora de Homero. Em rigor, não ha nada que possa reclamar o titulo d'uma historia dos negócios gregos, anterior ás guerras persas. Em quan- to á historia das outras nações pagãs, não era menos fabulosa e absurda que a dos gregos; e, de facto, tudo que d'ellas sabemos tem -nos sido transmittido pelos authores gregos.

Quando consideramos o estado geral do mundo, nas pri- mitivas idades, em relação ao seu adiantamento politico, commercial e litterario; com quanto nos recreamos com a sua leitura, cifra-se ordinariamente em romance histórico; até que os gregos, esses celebres improvizadores, ou pelo me- nos aperfeiçoadores das artes e sciencias, cujos esforços litte- rarios foram os canaes de transmissão de conhecimentos, tinham attingido considerável altura e civilização; e até que as artes mais necessárias, chegassem a um soffrivel gráo de perfeição, aquelias de conveniência, luxo e elegância, come-

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içaram a florir entre elles; período que se não pode fixar mui- to antes da primeira guerra persa, que tivera logar qui- nhentos e três annos antes de Cliristo.

Esta é a epoelia em que começa a historia profana; tudo quanto for preciso colligir concernente ao estado da humanidade, e aos acontecimentos que tiveram logar no mundo, anterior áquelle período, temos de procurar por informação nos escriptos sacros dos judeos. Esta considera- ção naturalmente conduz-nos a voltar a nossa attenção pa- ra os annaes da nação hebraica, tidos come sagrados por aquelle povo, e cuja authenticidade tem sido reconhecida pela parte mais considerável e illustrada da sociedade. Se- ria, até, imperdoável íVuiii exame de historia antiga, não tentar uma justa intimação d'aquellas celebres recordações que tanto tem attrahido a veneração dos christãos e excita- do o ridículo dos infiéis. N'estes escriptos achamos a única informação aceitável da creaçào do mundo, e do principio das cousas; da dispersão da espécie humana, e origem d'an- tigas nações, e, imparcialmente, devemos confessar, que a narração d'estes acontecimentos, independente da authori- dade elevada que a saneciona, traz um cunho intrinsico de probabilidade. A narração sacra é incomparavelmente mais rasoavel que as cosmogonias dos gregos; e quan- do analysada apparece, não provável, mas estrictamen- te philosophica. A narração sacra da creação, representa a separação d'essas particulas voláteis da matéria que consti- tuem claridade, d'aquellas mais carregadas e opacas, como é a primeira obra do Creador; ou, em outros termos, a primeira operação da natureza, depois que a vontade do Ente Supremo pozéra em movimento o vasto chãos de ma- téria informe, que fluetuava na immensidade do espaço.

O segundo periodo se nos representa como aquelle em que as aguas, separando~se, construíram um firmamento, dividindo-se as aguas das aguas; expressão esta, que, até ho- je, se nos figura obscura e quasi inintelligivel; mas cujo sentido parece ser, que havendo mergulhado as particulas

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térreas, formando corpos sólidos, as partes aquosas, sendo mais leves, boiaram ao de cima, cobrindo toda a superfí- cie da terra ; e que, transbordando as aguas, os plane- tas foram separados pela expansão do ar, chamado firmamento. O primeiro processo da creaçao foi a des- cida das aguas para os valles, ou partes mais iu vaza- das do globo, por cujo processo se formaram os mares e a terra; ea terra ficando enchuta, adquirio a sua força vegeta- tiva e começou a produzir. O quarto período é descri pio como aquelle em que as partículas voláteis da claridade se formaram em corpos compactos, constituindo o sol cos astros fixos, que sito difierentes soes illumínando difierentes syste- mas. 0 quinto e sexto períodos distinguem-se pela creaçao da vida animal; e por ultimo, o homem, chefe dobra da nature- za, foi formado; e isto não podia ter logar em quanto a terra não tivesse chegado á perfeição da sua força vegetativa, em ordem a produzir o necessário para a alimentação d'homens e animaes.

Esta hvpothese de philosophia natural, e das propriedades da matéria., e precizainentc a que o philosopho poderia suppor que fosse o processo gradual da natureza, quando o JVulerozO Fiat deu ás varias partes da matéria suas proprieda- des difierentes, c poz em movimento os innumeraveis átomos que constituem o universo, longos ou curtos que fossem os difierentes períodos d'este trabalho.

Existem duvidas se aquelles períodos eram dias naturaes, determinados pela rotação do globo sobre o seu eixo; por- quanto, durante os primeiros três períodos, ou dias, a luz se nos representa como destacada da escuridão, ou as partículas luminozas das opacas, e boiando ao acazo no infinito: e o sob e outros globos luminozos, não tendo sido formados até o quarto período, não podiam a noite e o dia, até esse tempo, deseriminar-se pela appariçào e desapparecimento dos orbes celestes.

Quanto ao mais que hc segue concernente aos jardins do Éden, se não fòr uma np.rraçào de factos positivos, também

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nada contem d 'impossível. Sobre a longevidade dos anti diluvianos, se nâo temos provas collateraes, e circunstan- cias concorrentes, que corroborem os sacros escriptos, é claro que as nâo podíamos esperar, e nenliuma evidencia contradictoria temos para invalidar a sua authenticidade; e fora, incontestavelmente, tão fácil ao Soberano Distribui- dor de todas as cousas, formar a constituição do corpo humano, para resistir novecentos annos, como a noven- ta.

O livro do Génesis, escripto on não por Moisés, o que é muito provável, porque tem, quasi inteira relação com os factos acontecidos antes da existência de toda e qual- quer historia escripta , foi sem duvida communicado ao auíhor, quem quer que fosse, ou por tradição, ou por re- velação; e a reputal-a tradição, era muito fácil introduzir- se-lhe uma leve variedade de nomes e datas, sem todavia affectar a sua authenticidade. Dos subsequentes escriptes de Moisés, o livro do Êxodo, em parte, é histórico, e em parte legislativo; e o Levitico é totalmente d'esía natureza. Os Números é na maior parte histórico; e o Deuteronomio con- siste na repeiição de muitas leis promulgadas nos livros an- tecedentes, com outras addicionaes, intermediadas d?exhor- taçoes eloquentes á obediência; mas contem pouca matéria histórica, fora a morte de Moisés, ^ddi-clonada por al- gum subsequente escriptor. Em todos estes livros, declara Moisés pozitivamente, que as leis e ordenanças por elle da- das ao povo, são ordens do Ente Supremo, a elle expressa e inequivocadamente reveladas ; mas, em quanto a factos históricos, appeila algumas vezes para os seus próprios co- nhecimentos, e outras para as tradições recebidas de seus antepassados.

O livro de Josué contem a narrativa da conquista de Canaan pelos Israelitas, e provavelmente fora escripto pelo próprio Josué, ou sob sua direcção; porém, ignora-se por quem fusseelaborado o livro de Juizes ; attribuindo-se a diífe rentes indivíduos em diíferentes idades; pois parece

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uma collecçao de peças avulsas de historia nas quaes se não observa a ordem chronologica, e em alguns logares pouco fá- ceis drajustar. Estas descripções pertencem a um periodo tumultuoso e effervescente; um periodo de barbarismo, igno- rância e anarchia, no qual os Israelitas incommodados conti- nuamente por commoçÕes intestinas, molestados por inimigos estrangeiros, ou empregados em repellir as suas aggressões, pouco vagar tinham para attender á exactidão dos aimaes do seu paiz. Quando chegamos aos livros de Samuel, acla- ra-se um pouco o horizonte. Os negócios dos Israelitas princi- piaram sob a administração d'aquellejuiz e propheta a tomar um aspecto mais tranquillo; e os historiadores sacros escrevem com mais acerto. O livro dos Reis apresenta exactidão em quanto á ordem chronologica e outros requisitos essenciaes d'historia, que lhes dâo , a este respeito , uma decidida superioridade sobre todos os outros apontamentos da anti- guidade. A idade de cada um dos reis de Judá, ao tem- po da sua ascensão ao throno, e a duração do seu reinado,, são claramente desenvolvidos, tanto que não o termo de vida de cada .um, mas toda a duração da monarchia Ju- daica, desde David até ao captiveiro babylor.ico, facilmente se podem calcular. Todos os traços e factos salientes são descri- tos com tanta clareza, e firmemente corroborados, por evi- dencia colateral, pela observância perpetua de solemnida- des religiosas, instituidas em commemoração d'acontecimen- tos importantes, e pela sua affinidade com as circunstancias contemporâneas doutras nações ( particularmente dos E- gypcios e Babylonios,j que, consideradas como descripção d'occorrencias politicas, as recordações judaicas teem o cunho da authenticidade, infinitamente superior áquelle que se pode conceder, n'esse respeito, a outra qualquer historia do mes- mo tempo. A historia da nação Israelita, durante o periodo da sua existência, ao principio como um , e depois, como dividido em dous reinos separados, é clara, concisa e chro- nologicamente coherente; e, á excepção de poucas datas e números , que facilmente se podem attribuir a erros de.

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transladação , traz signaes de veracidade,, em quanto* descreve os acontecimentos de um período' em que os; gregos assomavam apenas d'um estado de barbarismo f e durante o qual a sua historia consistia inteiramente em legendas absurdas de deuses e heroes, e contos ficticios de' soberanos que nunca reinaram, e de indivíduos que nunca existiram.

Teni-se notado que os historiadores judaicos frequen- temente imputam as suas calamidades nacionaes aos vicios dos seus monarchas. Se , todavia , attendermos ás medo- nhas aceusações dos prophetas contra os nobres, habi- tantes opulentos, e mormente contra os sacerdotes, pode- remos concluir que as calamidades attribuidas por alguns historiadores aos crimes dos seus príncipes, podiam, com igual propriedade, attribuir-se á vingança divina contra os peccados dos padres e do povo. A imputação, todavia, não é incompatível com a boa moral. Diz-nos a razão, e confirma- o a experiência, que os erros dos chefes são sem- pre prejudiciaes á nação em geral pelas suas consequências moraes. A mesma observação pode fazer-se em quanto á predic- çào de calamidades aos filhos, pelos vicios dos pães. Isto é o mes- mo que dizer a um homem em boas circunstancias, cuja des- peza excede a sua receita. « Vós provavelmente nunca ex- perimentareis faltas, mas fareis incorrer em pobreza a vossa posteridade.» Alguns reis cVIsrael e de Judá, como muitos mais príncipes, alienaram, com os seus vicios moraes, ou políticos, o espirito dos seus súbditos, e conjuraram uma serie de circunstancias desfavoráveis, que no fim se tornaram fataes á posteridade; e 6 desnecessário alargar muito a es- phera das nossas observações para conhecer que isto tem acontecido a muita gente na vida privada e publica. Alem de que, por uma expressão figurativa, os vicios da nação, podem em alguns casos, chamar se os vicios do rei, seu representante e chefe; ou esta imagem pôde algumas vezes empregar-se para designar os vicios predominantes do reinado, e não os vicios pessoaes do príncipe.

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CARTA GUTAVA

O reinado de David é illustre e interessante; apresenta-nos uni homem d'obscura posição elevado ao throno d'Israel, depois ^experimentar os cambiantes da fortuna; e, quando collocado em authoridade, engrandecendo o seu poder por meio da força militar, estendendo os seus domínios pela con- quista, e enriquecendo-se a si e aos seus súbditos com os espólios do inimigo. Ao leitor que preferir contemplar a pros- peridade d'um povo, a traçar as pegadas sanguinolentas d'um conquistador, este reinado não deixará de ser interessante. Expõe á nossa vista a consolidação duma monarchia até ahi tremida e precária; a instituição de regulamentos e or- denanças religiosas e civis, e o progresso rápido no caminho da tranquilidade e opulência d' um povo, apenas sahido da obscuridade e ánarchia.

O reinado immediato de Salomão, apresenta nos uma brilhante perspectiva do reino dTsrael, no zenith da sua opulência, felicidade e esplendor; e gozando todas as delicias da tranquilidade, de maneira tal, e por tanto tempo, como nunca aquella nação experimentara, não desde o estabe- lecimento do governo monarchico, mas mesmo em tempo al- gum anterior áquelle período.

O reino d'Israel pesava então na balança politica das nações. Dava as leis a todos os pequenos domínios entre o Enphrates e o Levante, chamado na Escriptura Sagrada o grande mar; e conservou o fiel entre as poderosas monarchias do Egypto e da Assyria.

Os canaes do commercio abriram-se, e os seus recursos explorados, de tal modo, que deve parecer extraordinário, em tão remota idade. As esquadras d'Israel, dirigidas por marinheiros tyrios, negociavam para as terras d'Ophir; que muitos conjecturam fossem na Costa da Incha, ou al- guma das Ilhas orientaes, em quanto outros as fazem existir nas costas orientaes cVAfrica. N'estas viagens lucrativas, augmen- tou-se a opulência da nação que David havia, creado

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•om 03 espólios da guerra. Esta brilhante perspectiva, não continua todavia, muito tempo. Salomão, infatuado, se- gundo parece, por uma não interrompida prosperidade, não põe limites ao seu luxo e magnificência, e tributa pesadamen- te o seu povo, para poder sustentar tão enormes despezas. Estas duras contribuições crearam desaffeições entre os seus súbditos; e para o fim do seu reinado, deram origem a uma facção perigosa e forte, que, por occasião da successão do filho manifestou-se em rebellião , e terminou na completa revolta das dez tribus que sacudiam o seu feudo á casa de David.

As tribus revoltosas , tendo eleito rei a Jeroboam, a monarchia dividiu-se nos reinos d'Israel e Judá. A alta po- litica do novo rei dlsrael produzio uma separação religiosa também, porque Jeroboam, temendo que em quanto os reis de Judá fossem senhores do templo onde se offereciam os sacrifícios, e aonde todo o povo era obrigado a recorrer em dias determinados, teriam sempre ascendência sobre o reino dlsrael, e sendo os sacerdotes e os levitas aífeiçoados á casa de David, íez construir um novo templo, instituiu nova com- munidade eeclesiastica , produzindo assim o scisma entre os observadores da lei mosaica, que nunca mais se extinguiu. A religião das dez tribus, pouco depois d'esta separação, desviando-se mais e mais da instituição original da lei, tornou- se em breve um mixto de judaismo e idolatria pagã, e assim tem continuado.

Depois d'esta memorável epocha da historia Israelita, pouco mais se encontra nos annaes d'aquella nação, alem das trasacções e acontecimentos, que são ordinariamente o objecto das recordações politicas. A historia dos reinos de Israel e Judá, semelhante á de todas as nações antigas, apre- senta nos uma continuada scena de guerras sem interesse, assassinios, rebelliões e uzurpações, as quaes eram muito fre- quentes no reino dlsrael, em quanto que o de Judá adheria cora inalterável aífeição aos legitimos descendentes de David. A historia, em summa, d'ambas as nações, desde o periodo da

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sua separação, é um ' catalogo de crimes e calamidades d'um povo em declinação, até que vemos a total extincção do reino das dez tribus, que foram transportados para a Assyria e dispersas por difTerentes partes d'aquelle paiz, d'onde nun- ca mais regressaram; e o povo rude deixado no paiz, cruzou- se com gentes extranhas, de que nasceram difíerentes nações, mais tarde conhecidas pelo nome de Samaritanos. Isto acon- teceu 720 annos antes de Jezus Christo. O tremido reino de Juclá ainda continua a gosar uma existência precária, in- vadido varias vezes pelos babylonios, tornado tributário, e por fim inteiramente subjugado; a sua metrópole e templo arrasados até os alicerces por Nabuchadonosor, 587 annos antes de Christo, e todas as principaes familias e gente útil conduzidas para Babylonia.

Considerando os costumes bárbaros do tempo, e o modo sanguinário de fazer a guerra, vemos que o rei de Babylonia procedeu n'esta conquista com quanta moderação se poderia esperar, depois das repetidas provocações que recebera de Zedekiah.

Nabocodonozor tinha collocado a coroa sobre a cabeça d'aquelle príncipe, depois de haver deposto seu sobrinho Je- comah. EUe não lhe impozéra condição alguma pesada. El- le não exigira mudança alguma na religião estabelecida, ou nas leis pátrias. Elle não o obrigara a receber em Jeruzalem uma guarnição babylonica, nem em fortaleza alguma de Judá. Elle não o privara da administração da receita e depeza pu- blica, nem da direcção dos negócios do estado. Sob estas sua- ves condições de tributo e alliança, havia Zedekiah recebido das mãos do monarcha babylonico um sceptro, que. sem o seu favor e poderosa protecção, nunca poderia ter sus- tentado; e nao obstante tão assignalado favor, renunciou á ami- zade d'aquelle príncipe, e, entrando em alliança com o Egypto, inimigo declarado e rival da grandeza babylonica, manifestou a mais determinada e rancorosa hostilidade contra o genero- so bemfeitor, de quem recebera a coroa e o reino, e a quem jurara fidelidade em nome do Deus dTsrael, aggravanélo

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assim a sua falta, juntando o perjúrio á traição.

Nao é por tanto d'admirar, que uni conquistador ambi- cioso c forte desse ao mundo um exemplo terrível da sua vingança, contra um príncipe pérfido, cuja consciência se não ligava pelo juramento, cuja fidelidade favor algum po- dia segurar, e de* quem recebera tamanha ingratidão.

Comtudo, não obstante as provocações que Nabocodo- nozor recebera da nação judaica e do seu rei, não parece que elle procurasse vingar- se d'aquelle povo.

O monarcha culpado sofrreu como exemplo de justiça Di- vina e humana, pelos detestáveis crimes de perjúrio e ingrati- dão; e a pena de morte foi immediatamente applicada a to- dos os principaes ofliciaes da sua corte e exercito que tinham sido seus conselheiros na revolta: mas ao crime d'aquelles homens , expiado com o seu sangue , seguio-se a moderação. Os principaes cidadãos e os mais abalisados ar- tistas, em todos os ramos, foram removidos para Babylonia, aonde gosaram consideráveis privilégios; e aos lavradores e povo, foram-lhes adjudicados terrenos, posto ignorarmos as condições do seu arrendamento.

Alguns acontecimentos notáveis, que tiveram logar du- rante o captiveiro, vem transcriptos no livro de Daniel; par- ticularmente a erecção da estatua de Belo, nas campinas de Dura, ou nas immediações de Babylonia, ou dentro da cidade; e o acontecido a Sidraeh, Misach, e Abdenago, por occasião de se recuzarem â adoração dos idolos.

Merece aqui dizer-se, que, com quanto milhares de ju- deus, então residentes em Babylonia, não partilhassem a idolatria, nem por isso eram perseguidos, e parece que estes três homens, sendo pessoas de distineção, empregados do rei, cuja graça possuiam, foram apontados por conselhei- ros intrigantes e aceusados de desobediência ás ordens reaes.

A liberdade de culto era livre aos judeus em Babylo- nia, e sendo este o único caso conhecido em que fossem compellidos a outras formas de religião, ha toda a razão para acreditar que o edicto do rei fora manejo de eortezãos, que

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queriam envolver na sua geaéraliilade certos indivividuos a quem nào eram affeiçoados.

A insânia de Nabocodonozor é outra notável circumstan- cia, e conta-se em termos tão figurados, que teem embara- çado muitos leitores menos versados na phraseologia biblica. Não lia, porem, fundamento para questionar a sua veracida- de. Será, talvez, uma tentativa vã, querer conciliar os cálcu- los contradictoriosdos chronologistas, sobre uma grande parte das occorrencias de remotas epoclias. Conquistou-se Jerusa- lém no decimo nono anno do reinado de Nabocodonozor, e o captiveiro durou setenta annos; porem não, é 'pós- sivel averiguar a duração d'este reinado; e não menos é pos- sivel descobrir exactamente em que tempo foram coordena- dos os livros da escriptura sagrada; com quanto seja bem sabido que isto teve logar pouco depois do regresso dos Ju- deos do captiveiro. Infere-se, portanto, d'aqui que esta estra- ordinaria historia foi escripta cerca de cincoenta annos depois da emancipação dos Judeos. Nabocodonozor foi o maior monar- cha, como também o caracter politico e militar mais distincto do seu tempo, e a todos os respeitos a personagem mais conspicua que até ahi figurara no mundo. Alguns Judeos que voltaram do captiveiro, e mesmo os habitantes idozos de Ba- bylonia, poderiam, talvez, quando estes factos foram escriptos, recordar-se do seu reinado e ascircumstancias da sua insânia. Tão notável facto, na historia d'um homem tão cunspicuo e celebre, deveria ser conhecido de todos e publicamente fana- do, tanto entre os Judeos como entre os Babylonios, e qual- quer falsidade inimediatamente refutada.

Os historiadores sacros contam, que Nabocodonozor pas- seando nos jardins de seu palácio, e absorvido na contem- plação da sua grandeza e poder, esquecido d'Aquelle a quem tudo devia, ficou instantaneamente privado de rasão.

Não ha nisto improbabilidade alguma phisica Milhares de casos semelhantes encontram-se nos annaes da medicina. De- pois, dizem-nos que fora transformado ena animal, expressão figurada de que se serviram para exprimir a sua destituição

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de rasão, característico maior da natureza humana, que des- crimina o homem do bruto. Pela descripção do cabello cres- cer-lhe como as penas da águia, e as unhas como as garras d'um pássaro, aquella deformidade exterior, consequência na- tural do estado d'insania, não é mais que uma hyperbole.

Em quanto acorrer pelos campos como os animaes, é pro- vável que o infeliz maníaco passasse a maior parte do tempo percorrendo os jardins e os bosques do palácio debaixo da inspecção de pessoas a cujo cargo estava a sua conservação.

Parece que, durante a moléstia do monarcha, Evilmero- dach, seu filho e successor, governara o reino na qualidade de regente. Nabocodonozor, pelos seus talentos politicos e militares, suas extensas conquistas e obras sumptuosas, tanto em Babylonia como nos campos adjacentes, tinha indubita- velmente adquirido poderosa ascendência sobre os ânimos dos seus súbditos; e quando se lhe restaurou a intelligencia, foi lhe o poder entregue inviolável. O monarcha, recuperada a rasão, reflectindo segundo parece, em seus crimes e soífrimen- tos, concebeu uma idéa clara da fraqueza e insufficiencia hu- mana, por mais elevada que seja a posição do homem; da ins- tabilidade do seu poder e grandeza, e da sujeição absoluta dos maiores monarchas á vontade do Ente Supremo, que, segun- do os direitos imprescriptiveis da sua providencia dispõe de tudo como lhe aj)raz.

Estamos agora chegados áquelle periodo interessante da historia dos Judeosque se torna notável pela restauração d'a- quelle povo á liberdade, ao seu paiz e natural existência, me- diante o favor dos monarchas persas, que, coma maior libe- ralidade e munificência abriram o real erário, a fim de lhes fornecer os meios pecuniários de que precizassem para a reconstrucção do templo e da cidade.

Na subjugação dos Judeos e destruição de Jerusalém, por Nabocodonozor, comparada com a restauração por Cyro e se- guintes reis da Pérsia, temos uma exposição luminosa da ma- neira maravilhoza porque a Divina Providencia dirige e go- verna os negócios humanos.

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Nabocodonozor é constantemente apresentado, pelos his- toriadores sagrados, e pelos prophetas, como ministro escolhi- do, da ira de Deos contra um povo criminozo, e Cyro é igual- mente apontado como instrumento da sua misericórdia: po- rem não devemos imaginar que semelhantes considerações in- fluíssem directamente, na politica dos Gabinetes de Babylonia e da Pérsia. Nabocodonozor, na sua conquista da Judêa. co- mo em todas as suas emprezas, era estimulado pela ambição e pela avareza, contribuindo também a vingança, contra um principe que o tratara com a maior ingratidão, dando-lhe por tanto um pretexto plausivel para engrandecer o seu poder, pela total subjugação d'aquelle paiz, e para se apropriar das riquezas da metrópole e do templo. Iguaes motivos, sem duvida, influíram em Cyro na guerra contra os Babylonios e na subversão da sua monarchia. Aquelle principe, bem como os seus successores, fora, segundo parece, favorável á religião Hebraica/ por isso que os Persas detestavam a idolatria dos Babylonios.

Achariam, provavelmente, certa affinidade entre aquella religião é a sua própria, em razão dos sacerdotes Judaicos conservarem ' sempre vivo o fogo sagrado, elemento ti- do pelos Persas corno symbôlo da Divindade.

Pode-se, porem, allegar com bom fundamento, que os reis Persas olhavam com rivalidade o poder e população da Babvlonia, e a aversão de seus habitantes ao governo Per- sa, que mais tarde rebentou n'uma perigoza e obstinada re- volta, no reinado de David Hystaspes; e a partida de tão gran- de numero de Judeos, que, depois de tão prolongada, resi- dência, quasi se tinham naturalizado em Babylonia,! podia ser considerado como um dos ■> íeios mais efficazes para en- fraquecer e reduzir gradualm-r5 te aquella cidade ao estado de decadência. Isto parece ter sido sempre uma das máximas politicas da corte Persa.

Assim vemos que, tanto Nabocodonozor como Cyro, fo- ram levados tão somente por motivos políticos, mas tudo is- to andava subordinado a v a direcção invizivel, e é assim

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que a Providencia dirige as acções dos homens tornando-as instrumento da sua vontade absoluta, regulando os negócios do mundo conforme o vasto e complicado plano de cauzas e effeitos existentes desde séculos sem fim, na presciência eterna de Deos, sem com tudo constranger a liberdade do homem.

Esta serie de causas moraes e phisieas, e a continuada successão d'acontecimentos, são desde o principio das couzas, presentes á intelligencia Divina; porém todos os effeitos são regulados por uma combinação de circumstancías, tão estreita- mente ligadas, que umas sem as outras não podem subsistir. A historia do mundo è nada menos que a historia da pro- videncia eterna de Deos; e com quanto algumas das suas paginas sejam superiores â nossa comprehensão, é todavia um dever nosso estudar este grande mysterio.

U/í

De tudo quanto a historia nos apresenta de curioso e in- teressante, o adiantamento progressivo do espirito humano, no que respeita á perfeição das suas faculdades, é o que mais agrada.

As emprezas destruidoras de conquistadores, podem fascinar por momentos, mas as fadigas modestas do estudante e do ar- tista, do architecto e do lavrador, que aformoseam a terra e a convertem em um paraizo terrestre, com quanto não bri- lhem com tanto esplendor, amenizam o quadro com cores mais suaves e sombras mais amenas.

As artes e as sciencias embellezam o mundo, e a investi- gação da sna origem e do seu progresso seria a mais brilhan- te paginada historia. E' pois muito de lamentar que os antigos escriptores tenham quasi inteiramente desprezado tão gran- de ebello assumpto, e que tudo quanto sabemos d'estas cousas seja colhido de fragmentos e apontamentos dispersos, diffi- cilmente desentranhados d'uma massa confuza de factos sem

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importância, alguma. Está, todavia, da parte do leitor delí- genciar enthesourar noções geraes da historia do homem e da sociedade civilizada.

Lancemos um golpe cie vista, ebem passageiro que elle é, sobre o periodo que acabamos d'atravessar, e que se descreve nos escriptos sacros, periodo que abrange o tempo que vae da creação do mundo até a subversão da monarchia babylo- nica. Durante esta longa serie d'annos, havia-se formado uma grande variedade cVinstituições politicas, civis e religio- zas; estabeleceram-se os rudimentos de diversas artes e sci- encias; o espirito humano tinha, em muitos paizes, melhora- do; e a terra cultivára-se e grandes cidades e magnificos edifícios a embelleceram: d'estes interessantes factos, pouco se nos transmittio, a não ser o que respeita as leis e instituições judaicas, algumas idéas vagas do commercio antigo, e algumas excellentes amostras d'estylo eloquente nos Prophetas enos Psalmos. N'aquelles venerandos monumentos d'antiguidade, seguimos os Israelitas, desde as idades patriarchaes, atravez os tempos turbulentos d'ignorancia barbara, até chegarem a um grau maito subido de civilisação e apuro. Das suas instituições civis e religiozas, temos uma conta clara e explici- ta; mas em quanto á sua perfeição nas artes e nas sciencias, pouca informação possuímos, nem facto algum existe que nos uma idéa muito lizongeira d'ellav Não parece que os Ju- deos fossem nunca uma nação scientifica ou philosophica. Infe- rimos que foram dextros em todas as artes de necessidade e conveniência, mas não que tivessem feito notável progresso naquellas de luxo e ornamento. Da sua litteratura podemos formar uma idéa mais exacta.

Nas partes históricas da Biblia encontra- se um estylo no- tavelmente claro e conciso, e nas partes didácticas uma ma- ravilhoza perspicácia. Os escriptos dos Prophetas são, na maior parte, compostos em estylo poético, porem differentes uns dos outros, e todos elles originaes. A maior parte d'elles abun- dam d'idéas e sentimentos elevadissimos, repassados d'ener- gia, e embellezados com os mais brilhantes rasgos d'ima-

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ginação oriental. Isaias, sobre todos, á viveza d'imaginação e esplendor d'idéas, junta um estylo tão enérgico e tão doce- mente harmonioso e eloquente, que muitas vezes tem sido ap- pellidado o Demosthenes dos Hebreus; e os seus escriptos bastarião para nos dar uma elevada opinião da litteratura He- braica. Quanto ao ■commercio d'aquelles remotos tempos, te- mos apenas idéas muito imperfeitas, e assim mesmo, preci- zamos recorrer a circunstancias geraes, a citações ao acaso, e a conjecturas. Deve-se, comtudo, notar que mesmo nas ida- des patriarchaes, o commercio era tão conhecido, que o ouro e a prata serviam como meio para o regular, e que as artes ornamentaes, tanto eram cultivadas em alguns paizes, que pulseiras, anneis e outros artigos de vestuário, estavam em uzo. Aonde essas jóias se fabricavam, ignoramos; mas prova- velmente eram de manufactura egypcia; por quanto, da anti- ga e numerosa população d'aquelle paiz, e por outras circuns- tancias collateraes, podemos rasoavelmente suppor, que entre as suas obras engenhozas, muitas das artes mais secundarias que deleitam a vida foram cultivados pelos Egypcios em re- motas eras; e a historia sagrada nos informa que os Ismaeli- tas e Medianitas, entretinham trafico com o Egypto, primei- ro commercio estrangeiro, talvez, conhecido entre os homens. Nos tempos tumultuozos que se succederam á idade pa- triarchal, poucas informações existem concernentes ao estado do commercio. Num exame geral, porem, percebe-se que as ar- tes mechanicas, e vários géneros de manufactura, tinham fei- to em alguns paizes considerável progresso, nos tempos de remota antiguidade. Isto conhece-se pelos materiaes curiosos e ricos do tabernáculo. e paramentos do gram sacerdote. E' fo- ra de duvida que os Israelitas trouxeram comsigo do Egypto muitos conhecimentos das artes, sciencias e lettras. O Egypto de tempo immemorial, adiantara-se , progressivamente nas sciencias e na litteratura; e durante a maior parte.do tempo que estamos agora contemplando, tornou-se celebre pela sua judicioza politica legislativa e civil, como também pela vasta extensão da sua população e cidades, pela magnificência

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de seus edifícios, e Restado florescente da sua agricultura.

A todos estes respeitos destinguia-se das nações contem- porâneas, não exceptuando a própria Babylonia. Porem, o' Egypto nunca foi uma nação guerreira;- tanto que, estando ra- ras vezes em hostilidade com os visinhos, a sua historia politica pouco se enlaça com a delias. Sesostris é o único dos con- quistadores Egypcios d'alguma nomeada nos annaes da his- toria, e não obstante as ficticias, ou ao menos incertas rela- ções d'alguns escriptores, pouco sabemos dos seus feitos, ou o alongamento das suas conquistas; e a discripção que d'ellas en- contramos em alguns livros devem ter-se na conta de roman- ces históricos. A verdade é, que a historia de Sesostris, como tão bem dos mais Reis Egypcios é tão confusa, tão invertida e exagerada, que poucos são os factos authenticos que po- demos achar nos annaes dos seus reinados, ou mesmo na his- toria geral d'aquelle paiz, e que não passa d'um tecido de contos allegoricos e legendas improvizadas pela astúcia de seus sa- cerdotes, regulados por uma chronologia ficticia da sua pró- pria invenção e que nos foram transmittidos pelos gregos, que' sendo naturalmente apaixonados do maravilhoso, e admirado- res da philozophia e historia Egypcia, adoptaram a sua chro- nologia ideal. Os antigos tão frequentemente suppriam a fal- ta d'mformações authenticas, em relação ás transacções de re- mota antiguidade, chamando em seu auxilio a mythologia fa- buloza, que quanto mais estivermos convencidos da utilida- de e valor da historia, mais nos devemos pôr em guarda contra as legendas dos sacerdotes e dos politicos, que escre- veram com o fim de melhor dominar os ânimos da po- pulaça.

Era monarchico o governo do Egypto,

A longa dynastia de Reis que reinaram anterior á subver- são da monarchia pelos Babylonios, denomina-se alinha dos Pharaós. Deve-se notar, que Pharaó não era nome próprio, mas sim titulo entre os Egypcios, equivalente ao de Rei entre nós; assim, os appellidos de Pharaó Necko, Pharaó Hophani, si- gnificam Rei Necko, Rei Hophani, etc. Parece que nunca

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fora absoluta a forma do governo Egypcio; mas até que pon- to se subordinava a regulamentos positivos, nào possuímos documentos sufficientemente autlienticos para o determinar, mas, avaliando por cireumstancias geraes, podemos rasoavel- mente concluir que Rei e povo estavam directa, ou indirecta- mente sob o dominio absoluto dos sacerdotes, e que estes mi- nistros da religião eram de facto os soberanos do Egypto. 1 Visto é prova que quando os Reis, e pessoas do povo, falle- ciam, syndicava se do seu comportamento em vida, e da sen- tença do respectivo tribunal dependia serem enterrados com pompas fúnebres, ou privados d'essas honras. Este extraordi- nário tribunal furiccionava acto continuo á morte do individuo; o escrutinio era rigorozo, e como fosse objecto da maior im- portância entre os Egypcios, assim como entre a maior par- te dos povos antigos, pode-se bem presumir que fora institui- do pelos sacerdotes para sujeitar monarcha e povo á sua au- tlioridade; e fácil é suppor qual seria a sorte do principe que tivesse o infortúnio de cair no seu desagrado; porque cumpre notar que a denegação d'honras fúnebres, entre os Egypcios, importava a exclusão do Paraizo, aonde as almas dos justos atravessam séculos eternos d'indiscriptivel felicidade.

O estado antigo de tão celebre paiz como o Egypto, se fosse possivel profundal-o, constituiria uma feição pronunciada na historia geral do mundo: é, por tanto, uma grande pena que tão pouco se tenha sabido, a não aceitarmos como ver- dadeiro a mythologiaallegorica e fabulozas legendas de seus padres. Temos, todavia, informações mais authenticas das suas íeis e politica, que da historia das suas instituições ou d'ou- tros acontecimentos, occorridos n'aquelle reino. E com quanto não esteja no nosso programma tratar esta questão minucio- samente, todavia não podemos deixar de fallar na divisão do povo em seitas distinctas, que não permittia ao filho se- guir senão aquella que seguisse o pae. Este systema não se en- contra em outro qualquer paiz notável, antigo ou moderno, á excepção da índia, que tem levado muitos a suppor que os seus inhabitantes foram originariamente uma colónia

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'egypcia, ou que os egypcios foram colónia da índia.

A origem das nações, na maior parte, acha-se perdida na noite dos tempos, e as emigrações e o encruzamento da espécie humana sào tão numerosas e diversas, que é impossivel seguir- Ihes o rasto at>-avez tão difíerentes ramificações. O celebre costume de dividir o povo em classes distinctas, tem sido; to- davia, muito applaudido por alguns escriptores e condemna- do por outros. Por muitos é julgado altamente conducente á perfeição das artes e sciencias, fazendo convergir para um ponto a experiência accumulada de successivas gerações. Se, todavia, fosse um motor favorável aos resultados da expe- riência, era um obstáculo invencível aos esforços do génio, restringindo-lhe o vôo.

Alem de reprimir o génio, tinha outro mal. Esta distinc- ção continha em si o principio da desunião, que, sfcgundo as nossas idéas modernas, podia ter sido extremamente perigosa e causa de internas commoções, á semelhança da não menos odiosa e notável distincçâo, entre os patricios e plebeus de Roma nos últimos tempos.

E' notável que nunca ouvíssemos fallar das rixas intes- tinas, ou das revoltas dos povos, quer do Egypto, quer da índia ; mas ha a tomar em consideração, que as divisões e sub-divisões do povo, sendo tantas, se contrabalançaram, evi- tando que se tornassem perigosas aos governos.

Outra cireumstancia importante nos occupa agora. Estas distincções foram sanccionadas pela religião, e especialmente introduzidas no Egypto e na índia.

N'este ponto os sacerdotes egypcios, e os brâmanes da índia, estão ambos d'acordo, encontrando-se no mesmo campo e em iguaes circunstancias.

Se procurássemos este systema politico na sua origem e principio fundamental , acreditamos que não passaria d'um artificio dos sacerdotes para segurarem o po- der e influencia, para desanimar todo u esforço aspirativo do génio, e extinguir toda a idéa ambiciona emprehendedora n'a- quelles que elles procuravam sujeitar; como também divi-

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ah* a grande massa da população eia muitas classes distin- ctas, contrariando-se mutuamente, obstando pelos dogmas da religião á formação de coalisões, de modo que fossem o me- nos possível perigosas as suas authoridades clericaes, as quaes, cumpre notar, haviam concedido que a ordem militar partilhas- se seus privilégios, porque elles bem sabiam que nem seme- lhante systema de governo, nem outro qualquer, podia tolerar- se sem a força armada ; e a ascendência que a religião lhes deu sobre um povo naturalmente supersticioso, forneceu-lhes os meios de subordinar os militares á sua direcção.

Se foi a Assyria ou o Egypto o paiz em que primeiro se cultivaram as sciencias e artes, é uma questão difíicil; e per- dida como está na noite dos tempos, impossível até de de- terminar.

Comtudo, se as apparencias merecem alguma considera- ção; a conjectura mais rasoavel seria, talvez, a favor do Egypto. A regularidade da sua administração civil; os vastos diques do Nilo; os numerosos canaes e outros trabalhos admi- ráveis para o melhoramento da agricultura; as ruinas magni- ficas da architectura egypcia, que, ainda hoje, têem resistido á acção do tempo; especialmente as pyramides, aquelles estu- pendos monumentos da tosca magnificência das eras primiti- vas; e as soberbas ruinas de Thebas, restos mais notáveis de explendor antigo, de que nenhum outro paiz se pode van- gloriar, e da mais remota antiguidade, fora mesmo do alcan- ce de recordação histórica; com muitas outras couzas que ex- citam a admiração dos modernos viajantes, como acontecia aos philosophos gregos que visitaram aquellepaiz ha mais de dous mil annos, todos apontam o Egypto como o paiz aonde grandes emprezas foram primeiramente concebidas, e aonde primeiramente o homem fez progressos na civilisação.

O Egypto, pela sua situação central, presta-se admira- velmente aos effeitos de commercio e navegação.

O Nilo, correndo em todo o comprimento do paiz, facilitou os meios de trafico interno, pela fácil conducção de mercado- rias d'um para outro ponto, e não podia deixar de suscitar aos

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egypcios idéas vantajozas de navegação; e provavelmente foram elles o primeiro povo que pensou n'isto, posto que fossem depois supplantados pelos Phinicios. Qs Tyrios, circunscriptos em uma ilha de pequenas dimensões e possuindo pouco na terra firme, estavam na necessidade de supprirem os defeitos de lo- calidade, tão desfavoráveis á agricultura, aproveitando a sua posição em beneficio do commercio, e a opulência que por este meio adquiriram os tornou poderozos. Os Egypcios, pos- suindo um terreno da maior fertilidade, não fizeram do com- mercio sua principal industria, á maneira dos Tyrios. Entre estes, o commercio era objecto de primeira ordem; entre aquel- les era secundário; consequentemente não é para admirar que os Tyrios sobresaissem no que era objecto principal da sua industria, a fonte da sua opulência e poder, e para o qual o espirito nacional pendia fortemente por circunstancias locaes. Em epocha tão remota como o reinado de Da- vid, reidTsrael, cerca de 145 annos depois da guerra de Tróia, e perto de 1048 annos antes de Jezus Christo, immensa^ quantidades d'ouro e de prata tinham sido introduzidas nos paizes por elle conquistados, situados todos entre o Euphrates e o Levante.

Resta pouca duvida que aquelles metaes tivessem sido impor- tados nestes paizes, grande abundância tal, pelos canaes do com- mercio Egypcianno e Tyrio, mas principalmente por estes últimos.

Os Tyrios commerciavam por differentes caminhos para a índia, e, sem duvida, para a costa d' Africa, por meio do mar vermelho, que, com o Golpho Pérsico, formavam, os dous gran- des caminhos pelos quaes se fazia o commercio para a índia e para Africa. Desta, subindo o Euphrates e o Tigris, podiam supprir a Babylonia e a Assyria dos seus variados productos; e do Euphrates, como também do mar vermelho, as mercado- rias do Oriente eram transportadas por terra para o Tyro, e dahi novamente dissiminadas por differentes paizes. Deste mo- do as producçoes de differentes climas eram amontoadas, per- mutadas e enviadas por differentes vias, por mercadores Tyjcios»

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O período mais florescente deste commercio foi aquelle dfe> tempo do reinado de Judah. A descripção da variedade e ex- tensão d'este trafico, e que se no capitulo 27 d'Exequiel, é o mais curiozo documento d'esta espécie que se pôde encon- trar nos escriptos da antiguidade, pela razão que apresenta um detalhe claro e minuciozo dos negócios commerciaes do povo mercantil mais celebre d'aquelle tempor e d'onde podemos formar uma idéa mais clara e justa da natureza e extensão- do commercio comprehendido no velho mundo, que d'outro do- cumento qualquer de moderna data. O Tyro, depois íum cer- co retardado, pela sua posição favorável, por espaço de 13 an- nos, cahio sob o domínio de Nabucodonozor, um anno apenas anterior á tomada e destruição de Jeruzalem; e cerca d'um anno depois d'aquella memorável epocha, o Egypto foi preza do mesmo conquistador feliz.

Isto foi o golpe fatal que poz termo ao explendor e opulên- cia dos dous antigos e celebres reinos do Egypo e do Tyro, tão famozos nos annaes da sciencia, civilisação e commercio..

Depois d'este período, os espólios das nações e as riquezas do mundo centralizaram-se naBabylonia; e depois da conquis- ta d'aquella monarchia por Cyro, os dominios da Pérsia fica- ram sendo o theatro do commercio, da opulência, e do luxo;: o Egvpto, o Tyro e a Babylonia ficaram comprehendido^ dentro dos limites d'aquelle extenso e poderozo império.

Lançando um golpe de vista retrospectiva sobre um perío- do de tão remota antiguidade, e do qual restam tão poucos monumentos históricos, vemos a historia do Egypto d'envolta com a fabula, suaphilosophiaetheologia atravez um véo ^obs- curidade hieroglytíca, e muitas de suas instituições politicas e civis perdidas no esquecimento.

Dos Assyrios nada sabemos, e muito pouco dos Babylonios, em relação ao seu viver civil e social, e aos seus costumes nacionaes e populares. A sua forma de governo era monar- chica, e parece ter sido dispotica; seu modo de viver, appa- rentemente magnificente e luxuozo; o seu espirito em geral dado á superstição, e a religião um systema da mais crassa.

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iidblatria: podemos mesmo suppor, que a idéa d'um ente su- premo, preexistente e eterno,, author da existência de todas as eouzas, fora o principio original e fundamental da religião dos Babylonios, como também de todas as outras nações; mas ellas parecem, como outras muitas, haver perdido, com o andar do tempo, quasi de todo a idéa primordial.

A original adoração d'um ente supremo degenerara para o Zabaismo, ou adoração dos corpos celestes.

A humanidade, em todas as idades, tem sido tão sensivel á sua própria fraqueza e nenhum merecimento para se aproxi- mar ao throno do soberano regulador dos destinos, que vio a necessidade d'um mediador entre si e o Todo Poderozo, a quem imaginavam tão superiormente collocado que nâo podia attender ás sua preces, ou dar attenção aos sens negó- cios. Estas suposições e a dificuldade que elles encontraram para satisfatoriamente explicar certos factos em opposição a outros, e a mescla dc^ bem e dx) mal, sob o governo imme- diato de semelhante Ser, levou-os a adoptar a hypothese da existência de diversas deidades subordinadas, governando o mundo sob a direcção d'um Ente supremo* Como os pagãos não tivessem os deuzes subalternos na conta d'entes suma- mente perfeitos, as suas vontades oppostas e violentas paixões, segundo as idéas do paganismo, explicaram de certo modo as desordens do mundo. Os Babylonios imaginaram ver nos cor- pos celestes aquellas divindades medianeiras ; suppunham ca- da um dos astros a habitação d'um ser intelligente e podero- zo, delegado do ente supremo e creador de todas as eouzas, para inspeccionar e dirigir os negócios humanos. Os sacerdo- tes eram astrónomos; elles observavam activamente as revolu- ções e os movimentos dos astros, attribuiam-lhes o governo e influencia sob determinados dias conforme a sua rotação, e queriam pelas suas diversas posições e configurações, predizer o futuro. D'este modo nasceu a falsa sciencia da astrologia judicial, da corrupção da astronomia exercida pela clas- se sacerdotal. A Babylonia foi o berço da astrologia, d'onde passou para o Egypto. Muitos querem que ella se tivesse an-

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tes originado n'este ultimo paiz, passando então para a Chal- dea. Qual destas duas supposições seja a verdadeira, é uma questão que se não resolve. A primeira opinião, porém, é a mais seguida.

E' certo , porém, que ella existia n'um período re- moto em ambos os paizes; e não é pouco extraordinário, que tão falsa sciencia se fizesse quasi universal em todo o mun- do, e que chamasse tanto a attenção, e influenciasse tão po- derosamente sobre as esperanças e receios da humanidade em quasi todas as idades e paizes, sob quasi todos os regimens politicos e religiosos, com quanto reprovada e condemnada pelas doutrinas christãs.

Até mesmo hoje, grande parte do vulgo em todos os paizes da europa, cré fortemente na predicção do futuro pelo estudo dos planetas. Este facto se explica pela investigadora cu- riosidade do homem, sempre desejoso de profundar o destino. Ultimamente, a phylosophia solida, e as idéas apropriadas a assumptos astronómicos teem repellido os absurdos e as incon- sistências da astrologia; e mesmo assim ha quem de bom grado faria reviver aquella pertendida sciencia, e restaurar- lhe seu antigo credito, attribuindo aos planetas uma influen- cia sobre os acontecimentos physicos e moraes, pela cooperação de causas naturaes.

Porém a phylosophia e a experiência concorrem para de- monstrar, que no systema da natureza todas as cousas são dirigidas por causas, até certo ponto, próximas, e não por causas excessivamente remotas; e a astronomia certifica-nos que é tal a distancia dos corpos celestes, que não ha margem a suppor que elles possam ter considerável influencia sobre a ordem physica, e muito menos sobre a moral do nosso globo, quer em relação a nações, quer a individuos. Admittindo a realidade d'uma influencia planetária sobre os negócios de nações e communidades, seria necessário, a fim de precisar a sua natureza e extensão, que tivéssemos uma cor- recta e bem authentica historia astrológica do mundo; mas obra alguma d'esta natureza se encontra; e quando mesmo os

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effeitos d'esta influencia sobre os negócios de nações e corpos collectivos se podesse precizar, ainda assim seria impossivel determinar de que modo actuava ella sobre os indivíduos. Considerando os effeitos terriveis de calamidades publicas, de pestes, de terremotos, ou a destruição da espécie humana em batalhas e assaltos, aonde milhares d'homens caem n'um dia, grande seria a nossa credulidade, pouco em harmonia com a phylosopha ou com a boa razão, para admittir que tan- tos individuos de differentes idades, vindos de difTerentes pai- zes, e envolvidos em uma infelicidade geral, tivessem nascido sob a mesma influencia planetária, e que a sua sorte fosse determinada pela mesma disposição dos corpos celestes. Uma pertendida sagacidade n'esta imaginaria sciencia tem sido, não obstante a sua incompatibilidade com os dictames da ra- zão, e os princípios de verdadeira phylosophia, um instrumento útil nas mãos dos impostores em todas as idades, e em todos os paizes, para o effeito de converter em vantagem própria a ignorância e credulidade do vulgo; como acontecia entre os sacerdotes da Babylonia, cuja religião, á feição da dos Egypcios, parece ter sido um jogo complicado e mysterioso, calculado para a acquisição de riquezas e* poder; e para se assenhorearem do espirito do povo.

A historia da humanidade não offerece uma mais evidente prova dos extensos e douradores effeitos de systemas es- tabelecidos e opiniões geralmente recebidas, em rela- ção á intelligencia humana, como a predisposição notável, pela astrologia judicial, que, provavelmente, nunca seria lembra- da, se não tivesse sido creada pelos sacerdotes da Babylonia, com cujo systema theologico estava essencialmente entrela- çado, e por cuja sancção e authoridade íoi acreditada por um povo crédulo e supersticioso, com cujas idéas phi- losophicas e religiosas estava de perfeito accordo.

E' desde periodo remoto que a astrologia se estendera da Babylonia aos paizes orientaes, e com o andar do tempo por todo o mundo civilizado. O apparecimento da christanda- de diminuio-lhe o credito, mas não a exterminou á maneira

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doutras numerosas superstições do paganismo.

Com quanto a religião christã condemnasse o estudo dyes= ta falsa e ideal seiencia; de tal modo ganhara terreno, que por fim foi tida em tanta estimação entre christãos, como fora entre pagãos; e hoje mesmo muita gente da plebe dos paizes christãos cre piamente que o destino do homem pode ser predicto pelo estudo da astrologia judiciosa. Que uma seien- cia chimerica, nascida de hypotheses erróneas e absurdas , in- ventada por sacerdotes Babylonios, adquirisse tamanha áurea e uma influencia tão universal sobre o espirito da humanidade, é uma circumstancia notável na historia.

A religião Zabiana ou Babylonica, que. segundo o Doutor Russell, e outros investigadores acreditados da antiguidade, consistia principalmente na adoração dos orbes celestes, como deidades invisíveis, que, como imaginavam os ido- latras, regiam o mundo, subordinados ao poder soberano d'um espirito eterno, infinito e omnipotente, degenerou gradual- mente naadoroção d'imagens, erguidas como symbolos e re- presentantes d'aquellas divindades celestes.

Todavia, S. Jeronymo, e outros, suppõem que a idolatria, teve a sua origem <na elevação de estatuas em honra a reis e heroes, que, no decurso do tempo, vieram a ser objectos d'es- ta adoração; e asseveram que a estatua de Belo, o suecessor de Nemrod, e rei de Babylonia, fora o primeiro objecto d'esta qualidade d'adoração. Talvez que estas circunstancias ambas concorressem para produzir este effeito. Cousas, porém, de tão remota antiguidade não se podem profundar.

Desde o tempo da fundação de Babylonia e de Nenive, a historia deixa-nos quasi tanto nas trevas em relação aos acon- tecimentos polkicos que tiveram logar no antigo império dos Assyrios, como acontece a respeito das suas leis, instituições, e costumes até a extineção do império pela revolta dos go- vernadores da Media e de Babilónia, e morte de Sardanapolo.

Tudo que se nos de Belo, de Nino e de Simirimis, vem tão mal garantido, que nada que se pareça com a verdade póde-se asseverar; e mesmo depois d'ar^uelles acontecimen-

ifcos, a historia cias nações é tão confusa, que não podemos ter n'ella confiança.

Seria tarefa árdua e desnecessária , procurar conciliar a-s contradieções entre historiadores e chronologistas sobre a or- dem de suecessão e reinados dos reis de Babylonia, antes e depois de Nabueodonozar. Cada escriptor tem estabelecido uma hvpothese sua, esforç^ndo-se por a sustentar, e chrono- logistas modernos íeem frequentemente empregado meios tra- balhosos a rim de descortinar a verdade atravez as sombras da contradição. Comtudo, attendendo ao que nos dizem os antigos, e ás discobertasdos modernos, muito apenas sabemos, que de- pois da morte de Sardanapalo, o império dos Assyrios e dos Babylonios quese reputa tudo e a mesma cousa, estivera algu- i; as vezes unido, e outras dividido, até que a cidade deNenive, poi motivo da sua revolta foi completamente destruída. Isto aeha-se patheticamente descripto pelo phrofeta Nainim. De .->te ac< mtecimento não ha particularidades na historia, e por consequência nenhuma outra ídea podemos d'elle formar que não seja a que nos fornece o phrofeta no seu vivo e colorido quadro. Do reinado victoriosoe esplendido de Nobocodonozor nào possuímos noticias suecintas e coherentes; logo somos obrigados a reunir os factos dentre os fragmentos da historia sacra e proi>na, e tissim mesmo, de todos os reis de Babylonia, é elle o unieo de quem temos algum conhecimento digno de credito.

Do génio e costumes nacionaes dos Babvlonios, podemos, talvez, formar alguma idéa soffrivelmente justa pela combina- rão de circumstancias bem conhecidas.

Eílès não tinham certamente feito considerável piogresso nas sciencias; mas o seu entendimento era prejudicado na maior escala pela superstição que a sua religião tendia a inspi- rar c a nutrir. D'isto, a sua cultura da astrologia, e de todas as outras artes d'adevinhação, com uma assiduidade e devoção, de que senão encontra exemplo na historia das outras nações cia antiguidade, e uma prova incontestável.

Os seus astrónomos haviam feito considerável pro-

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^resso nesta sciencia etinhão descoberto eprecizado a rotação dos orbes celestes, tanto quanto os habilitava a prognosti- car os eclipses. Alguns dos primeiros philosopjios grego» dirigiram se a Babylonia acolher informações sobre astro nomia e outros ramos scientiíicos; e a este respeito, Babylo1 nia reclama um quinhão com o Egy.pto nas honras cie haver instruído a Grécia. A plaaice igual e extensa em que era situada Babylonia, e a pureza da sua atmosphera durante uma grande parte do anuo, eram vantagens consideráveis pa ra os astrónomos chaldeos. Os Egypcios possuíam também as mesmas vantagens d'um céo sem nuvens ; mas os planos do Egypto não sendo em todas as direcções tão extensas co- mo os cia Chaldea, não offereciam tão dilatado horizonte; nem tinham os Egypcios, nem mesmo outra qualquer nação antiga ou moderna, um observatório de tão estupenda altura como a grande torre do templo de Belo. Dizcm-nos alguns es criptores que a linha perpendicular d'esta prodigiosa construc- çjio não era inferior a uma milha; mas quem ha que o acre- dite? Aquelle elegante e erudito escriptor o doutor Russell (que reunira e examinara acertadamente a descripção feita por aquiles auíhores antigos, que a viram, e munieiozamen- te se informaram das suas dimensões) diz que o templo for mava um completo quadrado, tendo cada uma das faces 1:200 pés. D 'esta descripção elevemos inferir que o templo era de forma cubica, mas a falta de declaração da sua altura torna tudo d u. idoso. Do centro cVeste ediíicio nascia a torre de 600 pés em quadro e outros tantos de altura. Sobre o alto d'esta torre que segundo as combinações melhores, se eleva- va á enorme altura de 1:800 pés, assentava o celebre obser- vatório de Babylonia, aonde os sacerdotes faziam suas ob- servações astronómicas.

D'esta extraordinária altura o astrónomo via a terra e os çeos expostos a uma larga e não interrompida prespectiva, que, segundo os cálculos mathematicos, dando desconto á curvatura da superfície do globo, não podia alcançar uma

meia inferior, sobre aquelle pai/ plano, que de 50 milhas

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era todas as direcções, e por tanto abrangiam consideravel- mente maior extençâo que todo o terreno comprehendido en tre os diffe rentes braços do Euplirates e do Tigris. Por cima e por baixo a vasta extençâo appresentava uma perspectiva ma gestoza, apropriada a encher a mente do expectador d'uma idea pavoroza e elevada da grandeza do universo, em quan to que proporcionava aos astrónomos Babylonios occasião para observar os movimentos dos corpos celestes, por longo tempo, durante a sua apparente passagem, desde alinha do nascente até á extremidade occidental de tão extenso horizoB- te. A prodigioza altura d'esta torre, com quanto certificada por todos os historiadores e antigos viajantes, quazi que aba- la a credulidade dos tempos modernos; e se não attingia a altura descripta por authores antigos, devia necessariamente Sér extraordinária para poder authorisar exagerações tão au- daciosas; porque viajante algum se abalançaria a dar tão incrí- vel elevação se não (ora realmente objecto d'admiração.

O génio dos Babylonios, tanto quanto podemos julgar acontecimentos conhecidos, pendia para as construções de grande apparato e suprema magnificência em architectura, como podemos conjecturar, não pela construcção do templo de Belo, como também pela extensão do palácio real, da vas ta cerca, e do massiço dos muros da cidade. O plano, as fortifi- cações e embellezementos de Babylonia, fazem honra aos seus authores, quaesquer que fossem, e dão nos uma idea elevada do poder e grandeza d'um povo que executou trabalhos de tal magnitude.

Não deixa d'admirar, quanto os escriptores que nos transmittiram a descripçào d'esta antiga e afTamada ci- dade, desharmonizam entre si no que respeita a extensão e " altura das suas muralhas, e as suas noticias sobre aquella par- ticularidade attestam evidentemente quanto é incerto a historia em relação a detalhes circunstanciados. Diodoro Siculo diz- nos que os muros de Babylonia tinham 45 milhas em circun-. ferencia. Clitarcho descreve os como tendo 365 pés d'aho,. fortificados com 150 torre-s. Strabão diz-uos que tinham 48

milhas de circunferência. Quinio Çurcio descreve a sua altura

como sendo de 15() pés, .'52 de largura e a circunferência em 4G milhas. Heródoto assevera que a sua altura cru de 3:00 pés grossura 75, e a sua circunferência de ()0 milhas; e com quanto este ultimo seja universalmente acc usado dexagera- dor, pendendo para a ficçâ* o, nao hm descripção, roas em muitas outras circunstancias, o engenhoso Doutor Kussell ten- de muito a dar-lhe a preferencia; por isso que de todos quan- tos escreveram acerca cie Babylonia, fora elle o único que a vio no auge do seu explendore magnificência. E', todavia im- possível conciliar estas noticias contradictorias, posto que d'cllas, collecti vãmente tomadas, podemos inferir que a cidade era d'úum extensão immensa, e as suas muralhas d'es- pantósas dimensões. Em quanto ás differentes noções que d'ellas temos, devemos ter em vista (pie Dário Hystaspes as reduzira á metade do que antigamente tinham sido em con.se quencia da, revolta da cidade contra o governo persa,, de modo que a descripção feita por aquelles que conheceram Ba byloniá anterior áquelle acontecimento, comparada com aquella dada por quem a visitou depois deve, necessariamente, deferir muito. Air. d'Anville denominado por muito», especialmente por mr. Gihbon, o príncipe dos geographos, diz que quando for assentado em que devam ficaras antigas tradicções sobre a extensão de Babylonia e de Thebas, no Kgypto,, deduzida a parte exagerativa, e reconhecidas as medidas, achar sc-ha que aquellas famozas cidades oceupavam o grande mas nao incri vel espaço (\o. 25 ou 3(J milhas, hvpolhese esta muito d i flo- rente do que geralmente se acredita. (Memde 1' academie, <l'"e.) Asnim. do concurso testemunhal de todos os historiador.esan fi- gos, e dos seus eouimentadores modernas, e<>ni quanto dis- cordem largamente em parricularidesj podemos concluir que Babylonia ultrapassou em área as nossas maiores cidades eu- ropeas; e como fosse quadrada a sua forma, igual a duas juntas em quanto a extensão; mas em razão das eazas nao se- rem contíguas, e as ruas muito largas e distantes, formando nas suas confluentes grandes largos ajardinados c nsesto,^

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terrenos cultivados, nao se podo suppor que eguaVisse em po pulaçao as cidades de Londres ou I'ans. O plano, quer fosse effeito da prcniedilaçao, ou de capincfe®, era «inandioso, lindo e Útil, eombina.ndo cm seourança, recreio o salubridade.

0* M. marchas Uabylonieos quenndo tornar a sua capi- tal inexpugnável a toda, a sorte d'assalto, coidieeida n'a- quelles tempos, a cercaram d'altos e grossos muros, ede fos

kos d'uina largura c profundidade proporoionaes, cheios com us aguas rio Kuphrates qvsss corra pelo centro da ei dâde. As runs eram dispostas em linlias lactas em todo o comprimento e largura da cidade, eruzando-se em ângulos agudos; de modo -que década encruzilhada, podiam vei--.se qilatrò portas da Cidade, formando cada rua, uma vista ma^ni íica, inteiramente dilforente das ruas estreitas e tortuosas das nossas cidades europeus.

A vasta extensão ccmprehcndida entro os muros propor- cionava a cada oaza o seu quintal e admittia a cultura de cereaes, ficando acidado livre dos receios da forno no caso do ou-eo. quazi inadmissível em presença de seus meios do deíeza. 1'nia outra circunstancia (1'extraordinai ia utilidade, e que geralmente tem passado desapercebida, enoontra-r>e n'este plano: consistia no modo particular poi que souberam harmo- niza r as condições locaes á natureza do clima; pois se uma cidade como líabylonin cercada de muros de tão prodigiosa altura sob a influencia d'uma temperatura ardente e um solo húmido, edificada n'um paiz baixo e plano, tivesse sido fe- chada em um pequeno espaço como as nossas cidades moder- nas, fora um poço de peste contagioza. A altura das mura- lhas evitaria a circulação do ar, e tornaria a atmosphera da cidade em estremo insalubre e fatal para os seus habitantes; e a todos estes effeitos perniciosos se obstou pelo plano franco e rural que presidio á sua construcçao, combinando se admirável e judiciosamente a magnificência, segurança o condições hygi' nicas; circunstancia digna d'attençâo conside- rando e < p eha remota em que se deu.

Xabucodonozor, esperando som duvida estabelecer uma

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monarehia too estável como o próprio mundo, dou comple- mento ás fortiíicaçoes e eintaelesrementos da cidade. Todos os seus vastas planos, conitudo, foram cedo reduzidos a nada por aquella providencia que tudo dirige e governa, e que po- de a todo o tempo confundir as ideas dos mais sábios, dis- pondo com uma presciência incomprehcnsivel, uma ordem ininterrompida de cauzas e efíeitos que determinam o resul- tado de todos os projectos humanos. A opulência e o poder dos Babvlonios produziram depressa a negligencia,, junto ao mais extravagante luxo. Senhores da maior parte do mundo, os reis da Babvlouia. succçssores ^\^ grande Nabucodonosor, longe de seguirem 0 seu exemplo e medidas vigorosas, entiv- garam se á indolência e afennnaçào, Pesprozarani OS negoeios políticos e militares, e uma completa relaxação de deseiplina se inlroduzio no exercito. As tropas Bab vlonias que, n O tempo de Naboeodouo. ior, pareciam invencíveis, estavam tao ilegene radas que na guerra contra OS Medas e Persas, nào poderam encarar o inimigo; e soiVreram uma continuada serie de revê ees. A historia offerece poucas noções que mereçam confiança aobre as cauzas inunediatas e particularidades daquella guer ra. Tudo que podemos eolligir a esse respeito c que os Ba bylonios, quasi constantemente batidos, presenciando a sub- jugação de seus vastos domínios, foram finalmente obrigados n se encerrarem na sua capital, aonde, estando concentrada toda a remanescente força Lo império, tiaram-se na altura e segurança dos muros para, os proteger dos assaltos do inimi- go, em quanto seus vastos eelleiros, ajudados pelos recursos dos terrenos inter muros os pozèsse ao abrigo das privações. A corte, embalada com estas ideas de segurança, e immersa na sensualidade, pouco cuidava dos meios de defesa,

A rainha Mu> administrava o reino, e o rei Balthazar era estranho aos negócios públicos.

Estando as cousas n'esta> circunstancias, Cyro foi infor made pie n'u;na certa festa próxima, toda a cidade se acha- ria mergulhada no maior esta lo de deboche e embriaguez.

K cebeiulo estus n >tieias, fonu >u o projecto de cortar

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os diques do KuphraVs, uni pouco a cima da cicfadej e des- pejai' as suas correu, !'s para dentro tios vastos reservatórios feito b por Na-bocodonozor para receb< ■ícn-i as cheias daquel- le iio, e que, formando se na Mcdea e Arménia, costuma- vani inundar o paiz e ás vezes a, propr acidade. Dando execik i a estG plano na véspera, da, lesta,, seccando o rio, . krehar as suas tt'0'pas pelo leito, e, ou porque encon- trasse os brônzeos portões abertos, ou porque os forçasse, en- trou na cidade sem oppozição, e encontrou habitantes, sol- dadesca e toda, a corte, entregues aos prazeres da intemperan- ça e libertinagem. Dirigindo se então ao palácio real, forçou a sua entrada,, e rei e cortezãos foram passados á espada no meio da sua orgia.

Assim cahiu Babylonia, a mais celebre cidade da antiguidade, 538 annos antes de Jesus (Jhristo no reina- do de Sérvio Tullio, rei de liana: acontecimento este que c Misi.it ue a primeira grande revolução e transferencia de po- der e de propriedade entre a humanidade; po>* isso que os m ■marchas d'Assyria e Habylonia sempre se reputam uma ea mesma, sendo a ulliina minto apenas uma continuação da primeira, sob uína dynastia dilferente de príncipes.

Durante o período de tempo em que as margens do Nilo, do Tyro e do Kuphrates foram o grande theatro das faça- nhas humanas, e (pie os paizes aonde a civii.saç «o, aa Bcien- cias e o luxo mais dominavam, toda a Kor.ipa,. ;i :.•. j>çãoda ; ireia achava se na mais selvagem ignorância, s mo m lisleve c inlieoi mento de quaesquer das artes ou das cu rrò m . Ladés da s. n-iedade civdizada. De todos os rCuropeos os í ,i regi tm toram o único povo que começava a sair das trevas. Tào cedo como a era de Moizes, os Gregos tinham estabelecido os rudimentos de um governo e economia politica, e durante o periodo que decorre desde a saída dos israelitas do Kgypto e o estabe- lecimento da monarchia na caza de David, os seus diílerentes reinos e estados tinham tomado uma face regular e systema- tica, e d'ahi até a óra assignalada pelo reinado de Nabueodo- nozor, tinham feito progresso ivm Neiencia* e na, çivilisaciio.

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Nào foi, porém, senão quasi no começo do reinado de Nabocodouozor, que os philosopfoos gregos, viajando no Egy- pto e na Chaldea, principiaram a importar para o seu paia as sciencias das outras nações: a epoclia da phiíosophia gre- ga data d'este tempo.

Esta memorável era disringue-se por uma tão bri hante constellação de grandes e illustres caracteres, como nenhum outro tempo apresenta; porque Nabocodouozor, que com to- da a razào, pode ser considerado o fundador da monarchia babydoniea, e, a quem, inquestionavelmente, ella deveu a sua grandeza, foi contemporâneo de Cyro que derribou aquelle esplendido editieio politico, e que sobre as suas ruinas fundou o império persa; tendo nascido, segundo a chronologia mais acreditada, no quarto anno do reinado de Nabocodouozor, €00 annos antes da vinda de Christo. N'este tempo reinava Periandro em Corintlio e Pesistrato em Athenas; Sólon, Da- niel, como também Anaximandro e Pythagoras, foram coevos com os mencionados personagens, conspieuamente politicos. Em quanto a Grécia fazia grandes adiantamentos nas scien- cias e na legislação, formava-se uma nação na Itália, designa- da pela Providencia para dominar toda a humanidade civili- sada.

Roma, a predestinada senhora do mundo, foi fundada por Rómulo, no reinado de Achas, ou Alias, rei de Judea 752 annos antes de Christo, e 148 anterior ao começo d'a- quelle de Nabocodonozor, segundo os mais seguros aponta* mentos chronologicos. Não podemos comtudo suppor que es- ta computação de tempo, em relação aos acontecimentos de uma epocha remota é obscura, se possa bem definir; pode- mos apenas consideraha aproximada da verdade; mas o ana- chronismo de poucos annos é de fraca importância sob um ponto de vista geral de historia antiga, em que os próprios historiadores e chronologistas, apoz trabalho de iníructifera tarefa, não vêem a um accordo.

A cidade de Roma, quando ainda recentemente edificada sobre o Monte Palatino, continha cerca de mil casas ou eh o-

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ças, construídas de terra e cobertas de colmo; e o palácio de seus reis compunha-se dos mesmos materiaes: O nume- ro de seus habitantes capazes de pegar em armas, orçava por três mil, e todo o território romano teria apenas oito mi- lhas em diâmetro. Os habitantes compunhão-se de vagabun- dos, proscriptos, endividados e malfeitores, reunidos por seu selvagem fundador; e para bem de augmentar o numero de cidadãos, foi refugio de todos os indivicluos de semelhante laia. De tão vil fonte procedeo o maior e mais poderoso império que jamais existio.

Entre os cidadãos da joven Roma, não podemos, comtudo deixar de notar uma Índole grande e prudente, como também um génio guerreiro e emprehendedor. Promulgaram se leis sabias e regulamentos salutares adequadas a um estado de re- cente data, no reinado de Rómulo. Numa-Pompilio, segundo rei de Roma, amava a paz; e no seu reinado longo e tranqui- lo coordenou, com minuciosa attenção e exactidão, as institui- ções civis e religiosas dos Romanos; e pode ser considerado o author das suas leis e religião. Rómulo foi o David, e Nu- ma o Salomão dos Romanos.

O aspecto geral do mundo nos fins do periodo que acaba- mos de percorrer, é este; o império persa fundado sobre as ruinas da grandeza babylonica, reunindo as partes mais ricas, mais populosas e mais bem cultivadas do mundo sob o seu dominio; as republicas gregas consideravelmente adianta- das em matérias legislativas, administração e na arte da guer- ra; Roma no seu começo, sob um governo absoluto, mas apenas emancipada do barbarismo, pouco conhecida, e não occupando posição distincta na ordem das nações; e todo o resto da Europa n'um estado semelhante áquelle das tribus selvagens da America, quando primeiro descobertos pelos hespanhoes.

Este obscuro periodo pode ser apropriadamente chama- do a infância da sciencia e da civilização.

Estamos agora na apreciação d'um periodo mais cheio d/in- teresse e mais esclarecido, que abrange a existência do impe-

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rio persa e clá ampla margem ás considerações do investiga- dor estudioso.

A Pérsia, reino insignificante e dependente, apoiando-se sobre as minas do império Babylonico attinge o mais elevado gráo d' opulência, poder e esplendor, mas cedo começou a desviar-se do rigoroso plano de administração do grande Cy- ro. Os seus monarchas occupandoo supra summum da gran- deza humana, degeneraram nas virtudes que elevaram seus victoriosos antepassados ao throno e adoptaram a pompa, os- tentação e luxo effeminado da corte dos monarchas Babylo- nicos, causa da sua queda, subversão do seu poder, e extinc- ção da sua raça. Esta severíssima lição não actuara sobre os reis Persas.

A Pérsia, mantendo o seu esplendor, decahiu do poder. A administração se fez corrupta, o governo fraco e impotente, e a disciplina militar cahiu em desmazelo e abandono : o mo- narcha geralmente, fallando, estranho aos negócios públicos, e a monarchia descançando mais sobre a sua antiga fama do que sobre o seu poder d'então, em quanto que os gregos, seus rivaes, aperfeiçoando-se diariamente nas artes e na guerra, começaram a desafiar o poder do grande rei e de seus nume- rosos mas indisciplinados exércitos. Alguns dos monarchas persas, é verdade, pareceram acordar do lethargo e a desen- volver um espirito emprehendedor, que, por um momen- to, prometteu fazer-lhes reviver a gloria e restabelecer-lbes seu poder decadente; mas estes exforços eram vãos, ef- feitos apenas d'um poder que declinava.

Dário Hystaspes foi o primeiro monarcha da Pérsia que emprehendeu uma guerra contra os gregos; mas os ensanguen- tados campos de Marathon fez-lhe appreciar a coragem, disci- plina e tacto militar dos seus inimigos europeos ; e depois do fim desgraçado d'uma guerra caracterizada pela derrota por parte dos persas, aquelle principe, legou juntamente com a

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coroa, ao seu successor, Xerxes, a sua animosidade contra a Grécia, eo seu desejo de lavar a affrontà da Pérsia. Xerxes, fez soar a trombeta da guerra em todas as provincias de seus vastos dominios, e depois d'extraordinarios preparativos, a- tacou a Grécia 481 annos antes de Jesus Christo com o mais formidável exercito de que lia memoria.

Heródoto calcula a força de Xerxes em um milhão e sete centos mil homens d'infanteria, e oitenta mil de cavallaria. Trogus um milhão de e oitenta mil de cavallo. O nu- mero de galleões orçava por duas mil duzentas e oito, e os navios de transporte em três mil.- Os historiadores divergem, porem, muito em relação ao numero das tropas persas, como sobre todos os assumptos, quando nos querem dar uma conta exacta de números e d'outras particularidades minuciosas, que na maior parte, bazeam nas versões populares, em lo- gar de as procurar na fonte verdadeira. A sua discordância respeitante a esta grande e importante transacção é apenas seme- lhante a outros innumeraveis factos d'incerteza histórica, em relação a circunstancias miúdas, das quas é quasi moralmen- te impossivel que o historiador tenha perfeito conhecimento; e cumpre não ser demaziado crédulo quando virmos que nos querem convencer d'aquillo que elles próprios ignoram.

Não obstante estes erros inevilaveis e discordâncias pal- páveis não existe, todavia, razão para duvidar que estes pre- parativos bellicos foram os maiores de que ha conhecimento ; e prova-se, até á evidencia, quanto foram vastos os recursos do império persa, e irresistível seu poder, se aquelles podero- sos meios tivessem sido bem applicados, mas o numero não podia triumphar da coragem,, da disciplina militar, e do patrio- tismo. A Grécia, áquelle tempo, formava um grupo d'estados independentes e ás vezes hostis; porem a invasão estrangeira os obrigou a adoptar medidas decisivas em commum. Os gregos, pondo de lado todos os assumptos de descontenta- mento e animosidade interna fizeram, por interesse próprio, causa commum. A' excepção dos thebanos, todos os mais estados que eram inteiramente ligados aos interesses persas

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entraram lúima confederação fundada no comuiurn interesse de repellir uma invazão estrangeira que ameaçava nada me- nos que a conquista e escravidão da Grécia.

A historia não nos quer dar em detalhe as particulari- dades desta grande contenda, mas procura deleitar-nos com noticias circunstanciadas dos debates que houve nos conse- lhos que se reuniram, tanto entre os gregos como entre os persas; as opiniões de Mardonio, sobrinho de Xerxes, e com- mandante do exercito, de Artabazo e do próprio Xerxes, e os argumentos produzidos por elles a favor e contra esta grande empreza; com muitas outras minuciozidades que poderemos considerar mais como embellezamento histórico, que noticia verdadeira de factos, que seus authores nos não dizem por que meios vieram no conhecimento cio que se passou n'a- quellas reuniões militares dos chefes gregos e persas.

Conservando, comtudo, os detalhes circunstanciados como mera ornamentação histórica o que ha de verdadeiro a respeito cVesta memorável expedição, merece em elevado grana atten- ção da posteridade. O rei da Pérsia com a sua multidão sem conta, passou o Heilesponto da Azia para a Europa. Os gre- gos foram compellidos a retirar em presença d 'um exercito apparentemente irresistível; mas a heróica e incomparável defeza dos Thermopilas, estreita garganta nas montanhas da Thessalia, oíferecida por Leonidas e os seus espartanos foi para os persas uma amostra do valor e disciplina dos gregos. Vencido o rei de Sparta com o seu valente destacamento, pe- lo numero, n'aquelle sempre memorável combate, os persas obtiveram uma entrada sem obstáculo no interior da Grécia; e os athenienses, na impossibilidade "de defender a sua cida- de refugiaram-se nos navios. Xerxes avançando com o seu enorme exercito, saqueou e devastou o paiz sem piedade, ar- razou os templos dos deuzes da Grécia, e incendiou Athenas á vista de seus horrorizados habitantes, que,, de bordo dos na- vios, eram espectadores indignados das chammas que redu- ziram a cinzas a sua capital, envolvendo a sua propriedade e os seus templos numa conflagração geral.

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Ao mesmo tempo avançara a esquadra persa, mas foi com- pletamente derrotada pelos gregos, que depois se aventura- ram a atacar os persas em terra. Mudou-se então a fortuna da guerra. Os persas batidos, perseguidos e desanimados, começaram a retirar. Por esta occasião os gregos, concerta- ram um plano digno de lição para todas as nações em casos semelhantes. Em vez de cortarem a retirada do inimigo ter- rorizado, o que lhes teria sido fácil, proporcionaram-lhe todos os meios dmvasão. Consideraram prudentemente que uma tão numerosa hoste d'inimigos armados, agglomerada no seu paiz, sem possibilidade de retirada, podia, levada do desespero, lançar mão de medidas enérgicas; e certamente, antes que se podesse subjugar tamanho numero, o paiz offereceria um es- pectáculo horrorozo de mortandade e desolação. Ainda mes- mo que se entregassem prisioneiros, o numero bastava para produzir a fome n'um paiz tão circunscripto como a Grécia. Sob este ponto de vista os gregos muito de propósito fizeram constar no campo inimigo que elles tinham resolvido destruir a ponte de barcos que os persas haviam construido sobre o Hellesponto, medida esta que estavam longe de tomarem. Até se diz que Themistocles, commandante da armada grega, a titulo d'amizade, informou o rei Persa desta resolução.

A consequência, porem, foi, que Xerxes, possuído de ter- ror pânico, immediatamente retirou; e tendo deixado um exer- cito de 400:000 homens, sob o commando de Mardonio, pas- sou com o resto das forças o Hellesponto em regresso á Azia. Mardonio na campanha próxima foi completamente derrota- do, morto, e o seu numerozo exercito, sufficiente para con- quistar a Grécia inteira, completamente aniquilado. Deste mo- do o mais poderozo exercito levantado por nação alguma até hoje, não experimentou mais que a derreta e infelicidade. Es- ta memorável expedição constitue merecidamente um marco notável na historia e é digno d'especial menção. EUe apre- senta um povo bellicozo e patriótico repellindo a invasão for- midável dum inimigo cujo numero e recursos eram dez ve- zes maiores que os seus, e apresenta um notável contraste

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entre o patriotismo e disciplina militar d'um lado, e o luxo, effeminação e direcção do outro. As campanhas subsequen- tes entre a Grécia e a Pérsia foram acompanhadas de diver- sos resultados; mas no todo, com vantagem da parte dos gregos. Os persas depressa reconheceram n'elles um inimigo terrível e perigozo que aspirava a rivalizar com elles em po- der. Os monarchas persas, procuraram então intrigar as republicas gregas entre si, comprando os chefes mais activos e indivíduos de maior poder e influencia, eo seu ouro, por muito tempo, agitou a Grécia com a guerra civil.

Chegou a final um período, em que os negócios da Grécia tomaram um rumo tão fatal ás liberdades d'aquelle paiz, co- mo á existência da monarchia persa. Philippe, rei de Macedó- nia, um pequeno, e até então quazi desconhecido reino, fora na sua mocidade reféns do» Thebanos e educado conforme a sua jerarchia.

Tinha estudado philosophia e rhetorica com os melhores mestres, e na carreira das armas foi dirigido pelo grande Epaminondas. Naturalmente emprehendedor e dotado de ra- zão clara, soube aproveitar-se vantajozamente da instrucção que recebera de tão eminentes homens; e subindo ao throno de Macedonea com estes auspícios, começou por formar pla- nos gigantescos para se tornar poderoso. Por uma serie de medidas politicas habilmente concertadas, fez-se reconhe- cer membro do conselho amphytionico, ou assembléa geral dos gregos, semelhante, segundo parece, ás dietas do império Germânico. Conseguido isto, pelas armas e pela intriga, cedo adquirio uma ascendência decidida sobre os diíferentes esta- dos gregos, e comprando os principaes chefes, e empregando todos os meios de força e fraude, subjugou-os completamen- te, tanto, que com quanto conservassem o titulo de republi- ca, Philippe era, na realidade, soberano da Grécia. O reinado de Philippe é notável, e os acontecimentos que nelle occorre- ram são curiosos e interessantes; mas, por muito esplendidos que pareção ser seus talentos militares e políticos, a sua mo- ral é detestável. Vemos neste príncipe a mais luzida habili-

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dade aproveitada para o mal. Não era somente philosopho, mas um consummado orador; e, fora de toda a duvida, um dos maiores estadistas e generaes que o mundo tem produzi- do. Todas estas brilhantes qualidades empregou elle no en- grandecimento do seu poder, á custa da liberdade de seus visinhos; e a sua carreira toda é um quadro de politica sem consciência e conducta sem principios. A parte mais louvá- vel do caracter de Philippe era o seu amor das bellas artes; e a mais recommendavel acção da sua vida o grande cuida- do que lhe mereceu a educação de seu filho Alexandre. Es- colheu um elegante palácio, em logar retirado, como o mais apropriado para esse efieito, e contratou o celebre Aristóteles para seu preceptor em philosophia e litteratura, em quanto elle próprio o exercitou nas armas sob os seus invenciveis es- tandartes. Se a vida de Philippe é digna da attenção do es- tudante, a sua morte é nada menos interessante e notável. Offerece-nos ella uma prova claríssima da instabilidade da grandeza humana e da incerteza de todos os seus projectos. Philippe resolvera invadir o império persa, com todas as forças confederativas da Grécia e da Macedónia; medida altamente popular entre os gregos, que se enthusiasmavam na esperança de fazer recair sobre aquelle império os males que elles haviam soffrido com a invasão de Xerxes. Para isto convocou o conselho geral dos estados gregos. A quota com que deveria contribuir cada um estado fora estabelecida, e Philippe, sendo proclamado generalíssimo da confederação grega, empregou uma extraordinária actividade no prepara- tivo de formidáveis aprestes para esta grande expedição. O seu exercito inteiro estava prompto para passar o Helles- ponto, no mais perfeito estado de disciplina e organisação mi- litar, e apparentemente nada se oppunha ao começo duma contenda que deveria decidir da sorte da Grécia e da Pérsia. Nesta promettedora conjunctura, tão lisongeira á sua ambi- ção, Philippe resolveu-se ostentar a sua pompa e grandeza perante os gregos celebrando as núpcias de sua filha: mas quanto não é volúvel o destino ? No meio do espectáculo

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mais brilhante jamais presenciado na Grécia, cercado dos seus guardas e primeiros officiaes dos estados gregos, que pouco faltavam para lhe renderem honras divinas, Philippe foi apu- nhalado mortalmente por um assassino desesperado, e imrne- diatamente expirou, levando para o tumulo todas essas vistas lisongeiras d'uma monarchia universal, deixando a seu filho e successor Alexandre a execução da sua grande empreza contra o império persa. Assim terminou o importante reina- do de Philippe, rei de Macedónia, cujos planos gigantescos, juntos ao seu extraordinário tacto no gabinete e no campo de batalha, produziram a maior mudança nos negócios do mun- do até ahi conhecido. Os seus projectos foram levados a ef- feito por Alexandre, do modo que todos sabem.

Este principe em cerca de doze annos, tinha conquistado o império persa e aberto aquelle celebre caminho para a índia, tão fallado na historia, e depois do seu regresso d'aquella fa- mosa expedição, morreu em Babylonia aos trinta e três ou trinta e quatro annos d'edade, 324 antes de Jesus Christo. A fortuna e victorias d'Alexandre tinhão sido das mais brilhan- tes de quantas a historia recorda, e o seu reinado constitue uma muito notável epocha nos negócios humanos, apresen- tando uma nova ordem decouzas e produzindo uma mudan- ça extraordinária e importante no aspecto politico do mundo. A subjugação do império persa por Alexandre e seus gregos desenvolvem uma serie de cauzas e eífeitos altamente dignos da attenção do historiador, do estadista e do philosopho. As guer- ras entre a Grécia e a Pérsia são d' uma natureza mais inte- ressante que quaesquer outras anteriores. Durante todo o pe- ríodo, que decorrera entre a primeira invasão da Grécia por Dário Hystaspes, e a extincção da monarchia persa, que te- ve logar por occasião da derrota e morte de Dário Codoma- no 330 annos antes de Jesus Christo, vemos o contraste en- tre um povo que se eleva e um povo decadente ; entre uma nação fraca de recursos, mas bellicosa, activa, e emprehen- dedora, e outra numerosa e opulenta, possuindo recursos vastos, mas luxoza e eífeminada; cujo poder era mais ficti-

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cio que verdadeiro, cujos numerosos exércitos sustentaram um falso renome de bravura, e de cuja corte a ostentação of- fuscava a vista das nações visinhas com uma falsa demons- tração de poder.

O objecto d'aquellas guerras era na maior parte d^mpor- tante interesse. Até então fora a Azia o theatro de todos os grandes acontecimentos; e, juntamente com o Egypto, tinha sido a sede das artes e sciencias, da litteratura e commercio, e a única parte do globo aonde se havia traçado profun- dos planos politicos e estabelecido reinos poderosos. A Eu- ropa até então passara desapercebida, mas começava a emancipar se do barbarismo. A Grécia recebera do Egypto e da Babylonia os rudimentos da civilisação, adquirindo al- guns conhecimentos das sciencias.

O seu povo, activo, engenhoso e emprehendedor tinha es- tabelecido colónias na Itália, na Hespanha, e sobre as costas meridionaes da Gallia, como também nas ilhas do Meditterra- neo, e começado a estender-se commercialmente, como tam- bém a adiantar-se na philosophia e na litteratura, Os gregos tinhão, pelo seu génio activo, aproveitado estas circunstan- cias em seu próprio interesse a ponto que depressa se torna- ram rivaes d'aquelle império potente que dominara todas as partes então conhecidas da Azia. As guerras entre os gregos e . os persas tinhão de decidira grande questão, se á Azia ou á Eu- ropa competia a supremacia. Apoz longa contenda a balança pendeu para o lado da Europa, que então ganhou uma su- perioridade sobre a Azia, e tem-na mantido até hoje. Nenhum acontecimento precedente envolvera consequências de tanta magnitude sob o ponto de vista moral ou politico. A expe- dição d' Alexandre contra a Pérsia é a empreza militar mais celebre na historia, e o seu resultado o mais brilhante. Ella effectuou a segunda grande revolução de poderes que cons- titue um marco notável na historia da humanidade, e deu a Alexandre o titulo do maior e mais feliz conquistador do mun- do— porem se elle pode reclamar a fama de consumado esta- dista e general, é um tanto duvidozo. A sua habilidade a este

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respeito tem sido. não obstante o brilho da sua feliz carreira e qua tanto tem assombrado a posteridade, avaliado por dif- ferentès modos. Uns o applidam temerário, outros lieroe. Uns admiram a sua magnanimidade e heroísmo, e o conside- ram o primeiro entre os guerreiros, em quanto que outros o re- I entam como um espoiiador de nações e açoite da hu- manidade. Na apreciação do seu caracter convém, porem, guardar o meio termo. Na sua invasão da Azia elle certamente tinha um pretexto melhor que a generalidade d'aquelles que, em "dilfe rentes periodos, teem aggredido os seus visinhos. Con- siderando o negocio sob o ponto de vista de patriotismo, foi certamente a empreza mais popular que se podia tentar, co- mo coincidia perfeitamente com os sentimentos de resenti- mento nutridos pelos gregos pelos insultos e injurias que re- petidamente tinham soffrido dos persas.

No que respeita âs circunstancias especiaes d'Alexandre, era-lhe imposta esta empreza como uma necessidade, sob pe- na de perder a estima da confederação dos gregos e macedo- nios, seus súbditos. Seu pae intentara a empreza e tinha feito todos os preparativos para a levar a efíeito. Elle organisára um exercito superior em táctica e disciplina militar a tudo quanto se conhecera; e Alexandre tinha muito apenas de se collocar á sua frente e guial-o ávictoria e á conquista. Nesta conjunctura estava na absoluta necessidade de acabar o que Philippe começara e que teria levado avante se a morte não viesse frustrar seus planos ambiciosos. Nestas circunstancias não era dado a Alexandre desistir duma empreza sem se mos- trar pusillanime perante o seu e vindouros séculos, e conse- guintemente na sua invasão da Pérsia, elle deve estar justificado, ou pelo menos desculpado, perante os que refle- xionam, visto que não fizera mais que qualquer outro homem em circunstancias semelhantes se veria obrigado a fazer.' A sua subsequente conducta, em diversas occasiões, tanto du- rante o curso d'aquella guerra, como d'outras emprezas foi, porem, tal, que a não podemos considerar subordinada a outros princípios que não fossem a ambição e enthusiastico

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amor cie gloria e que a posteridade classificaria de temerário arrojo' se um resultado feliz não viesse imprimir-lhe o cunho da magnanimidade. As circunstancias, porem, que impozeram a Alexandre o dever de conquistador tendem muito a dimi- nuir, ou pelo menos a obscurecer, a sua reputação como ge- neral aos olhos do leitor intelligente.

Philippe concertara tão habilmente seus planos, organisára tal exercito, e fizera taes preparativos que o bom resultado era quasi infallivel. Alguns escriptores cVaqueile tempo, di- zem que cada praça d'aquelle exercito tinha as qualidades precizas para ofiicial, e que cada official possuía sufnciente táctica militar para o habilitar para o cominando em chefe. Em asserções d'esta natureza convém dar algum desconto, era habitual aos gregos exagerar; mas é fora de duvida que a grande maioria do exercito d'Alexandre se compunha de veteranos, exercitados nas armas por aquelle grande mestre de táctica militar, Philippe, que formara a phalange macedo- niana por tal modo impenetrável, que era quasi impossivel romper o compacto das suas fileiras. O seu successo, por tan- to, não é para. admirar, conduzindo tal exercito contra um inimigo tão pouco guerreiro; cujas forças, com quanto nume- rozas, eram mal dirigidas e sem disciplina. Se Alexandre não estivesse á frente d'esse exercito, se não fosse ajudado pe- los conselhos e esforços de generaes como Parmenio, Sysima- cho, Antigono, Perdiccas, Cratero, Ptolemeu, e outros; ou se elle tivera voltado as suas armas para o ponente contra os aguerridos romanos em logar de atacar os effeminados persas, os seus negócios terião provavelmente tomado um differente aspecto, e elle teria talvez brilhado escassamente^como conquis- tador invencivel, nas paginas da historia. Mas a todos é visí- vel, que nesta guerra, as circunstancias das duas nações belliger antes e o estado dos seus exércitos era tal que qualquer general d'habilidade medíocre no logar d' Alexandre, não te- ria podido falhar. Possuindo todas as vantagens duma excel- lente educação litteraria e militar, e dotado por natureza de coragem, magnanimidade, e génio, Alexandre parece talhado

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para grandes acommettimentos; mas podemos tão somente avaliar o sou caracter politico e militar pelo que effectiva- mente operou, e nesta estimativa devemos admittir que cada circunstancia devidamente pesada, os feitos d'Alexandre im- portaram um trabalho menos árduo que os de muitos outros guerreiros, cujo successo tem sido muito menos brilhante e cujos nomes tem um esplendor inferior.

E' forçozo, porem, confessar, que muitos dos planos d'Ale- xandre revelam não espirito guerreiro mas também tacto politico e commercial, e tendem mais a dar-lhe honra do que a attribuir-lhe um desordenado amor de conquista. A sua fundação da cidade d' Alexandria, n'uma posição tão extremamente vantajosa para o commercio, pa- rece inculcar idéas felizes das vantagens provenientes d'este trafico; e o florescente estado d'aquella cidade em quanto continuou a ser capital d'um reino independente, como, mais tarde, sob os impérios romanos e byzantano, prova a boa ra- zão da sua escolha de tão favorável posição para uma grande cidade mercantil.

O facto d'elle mandar Nearcho explorar as costas da Pérsia e da índia mostra também que actuava n'elle um espi- rito investigador, a fora a avidez de conquista; e, se tives- se attingido idade avançada,que não teria feito, quando, sub- jugada a melhor parte do mundo, a conquista não podes- se offerecer-lhe as mesmas tentações?

A historia dá-nos noticias contradictorias sobre a morte des- te conquistador. Muitos a attribuem aos effeitos d'envene- namento, opinião que, se considerarmos as suas arbitrarieda- des, a tantos respeitos anthipaticos aos gregos e macedonios, e sobre tudo as ambições desmedidas de seus generaes, não é nada improvável; mas ella resente-se egualmente de muita poesia como se j^ode ver em Plutarcho e outros authores. Opinam outros que elle morrera de doença originada por excessos e embriaguez, porem, tudo quanto podemos colligir d'essas contradicções é que elle falleceu em Babylonia de febre, cerca de 324 annos antes de Christo, e 215 depois da

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conquista d'aquella cidade, e fundação do império persa por Cyro.

Levados pela natureza do assumpto a fazer algumas obser- vações geraes sobre uma guerra a mais importante, coroada pelos mais esplendidos resultados até então registados nos annaes militares, como também sobre a Índole e condições do mais celebre dos conquistadores, passemos a analysar o progresso das artes, das sciencias e da litteratura du- rante o período de duzentos e quinze annos que decorreram desde a existência do império persa, desde a sua fundação so- bre as ruinas de Babylonia 540 annos antes de Christo, até á sua final subjugação pelos gregos sob o commando de Ale- xandre, 330 annos antes da era do Senhor. Voltando os olhos sobre a Grécia durante este interessante período, apresenta-se- nos uma grande e magnifica perspectiva do progresso rápido da intelligencia humana em todos os campos da sciencia e litteratura. Os rudimentos da philosophia e administração ci- vil, e de quasi todas as artes e sciencias que a Grécia rece- bera do Egypto, tinhão sido tão proveitosamente cultivados e melhorados pelo génio activo e penetrante de seu povo, que no espaço de menos três séculos, desde os primeiros en- saios na civilisação da sociedade, os gregos haviam progredi- do por tal forma na architectura, na pintura, em estatuária e em outras artes d'ornato, bem como em toda a sorte de com- posições litterarias, que jamais íoram excedidos. Seus traba- lhos em todos estes géneros teem sido considerados modelos; e os seu escriptos, em todos os differentes ramos, são ainda hoje tidos como typo de perfeição litteraria. Em sublimidade de idéas e clareza de raciocinio, os seus philosophos prendem a nossa admiração; e os seu poetas e oradores, se alguma vez teem sido egualados, nunca foram certamente excedidos nem em tempos antigos nem modernos. No tempo de Ale- xandre, ou antes de seu pae, Philippe, e na idade immediata- mente anterior, a Grécia apresenta um quadro interessante do estado cultivadissimo da intelligencia humana. A educa- ção da mocidade era um dos pontos principaes entre as cias-

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ses ricas, sem o que ninguém podia aspirar aos cargos civis ou militares, bastante numerosos em rasão dos differentes es- tados em que se devidia a Grécia. Estas condições erão forte estimulo de industria e emulação. As frequentes guerras que os gregos declaravam uns aos outros, como egualmente con- tra seu potente adversário, o monarclia persa, ubrigaram-nos a entregar-se ao estudo da táctica militar e exercício das ar- mas : de modo que as artes e as armas, a litteratura e a di- plomacia erão cultivadas simultaneamente, e franqueavam caminho ás diversas dignidades e honras. Na idade que pre- cedeu o reinado de Philippe de Macedónia, a Grécia apre- senta-se-nos como um paiz offerecendo todos os estímulos imagináveis ao exercício de todas as faculdades, e d'um povo esforçando-se para levar a intelligencia do homem ao supre- mo grau de perfeição. Contemplando, porem, o aspecto do mundo na generalidade, vemos que a Grécia, muito apenas, nos offerece tão lisonjeiro quadro; o resto do mundo immer- so em luxuoza efieminação, ou selvática ignorância, apresen- tava um deplorável e hediondo contraste. A Pérsia enchafur- dando-se em luxo e riquezas, ostentando, unicamente magni- ficência e esplendor, perdeu de seu poder e grandeza primi- tiva á proporção que a Grécia attingia o zenith da sua glo- ria. O Egypto perdera seu antigo esplendor, e estava sugeito á Pérsia. N'aquelles paizes as sciencias, sem duvida, esta- vam sendo cultivadas; na Pérsia pelos magos, e no Egypto pelo clero; mas aonde o génio e a illustração não são meios indispensáveis ao engrandecimento, geralmente florecem mui- to quando o gosto nacional toma um curso difFerente. Sob a influencia d'um governo dispotico as sciencias poucas vezes tomam incremento a não ser que um príncipe intelligente oc- cupe o throno, e saiba apreciar e galardoar o génio e a illus- tração. Se, comtudo, aos egypcios e aos persas ainda tivesse ficado algum conhecimento e gosto pelas artes e sciencias, não podiam competir com os gregos,muito superiores nas artes e nas armas. Basta notar que a elevação da Grécia effectuan- do a quedada Pérsia, todos os nossos monumentos d'antiga

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bciencia nos vieram da primeira. Nenhuma das obras dos ma- gos da Pérsia ou dos padres do Egypto ou da Babylonia da antiguidade nos foram transmittidos. O tempo e as revolu- ções destruidoras que tantas vezes teem mudado a face do universo foram o naufrágio universal de toda a sabedoria an- tiga que existia anterior á era da litteratura grega. Qualquer que fosse o estado das scieneias entre os babylonios, egypcios, e persas, nenhum dos seus monumentos litterarios baixaram até nós. Todas as noticias que temos d'aquellas nações, da sua historia, do seu estado politico, da sua religião, dos seus conhecimentos scientificos e litterarios e costumes, á excepção d'aquellas luzes que nos proporciona a historia sacra, tem-nos vindo por meio dos escriptores gregos. Os gregos espoliavam os thesouros da litlevatura de todas as na,ções, e qualquer scien- cia que achavam^ faziam-na sua. Assim, não temos por onde aferir o progresso iitterario d'outras nações; e da gran- de massa da sabedoria grega é impossivel determinar quan- ta é da sua lavra, e quanta foi importada de fora. De todas as nações da remota antiguidade, os judeus são o único povo cujas obras litterarias teem, por uma combinação extraordi- nária e providencial, chegado aos tempos modernos.

Não obstante a universal aniquilação das obras litterarias da Babylonia, do Egypto e da Pérsia, parece por circunstan- cias geraes, que aquellas nações não tinham feito grande progresso n'aquelle ramo. A sabedoria dos Babylonios e dos egypcios é frequentemente mencionada na escriptura sagrada. Tão remotamente como a idade de Moizés os conhecimentos scientiíicos dos últimos são citados, e o legislador hebraico fora, segundo se nos diz, instruido nas scieneias dos egypcios. E o propheta Jeremias dirigindo-se á Babylonia, diz: «Atua sabedoria e a tua illustração te hão pervertido. » Estes e mui- tos outros trechos, que se encontram nos escriptos hebraicos estão- nos dizendo que o povo da Babylonia era estudioso e amante dos melhoramentos intellectuaes, com quanto dado á superstição, e confundido no erro, como todos os antigos pagãos, cuja religião senão subordinara á luz da divina revê-

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lação, e cuja pliilosophia se fundara inteiramente sobre con- jecturas, e não na experiência. Em quanto aoegypcio, os pró- prios gregos não se envergonham de lhe tributar os maiores elogios pelos seus conhecimentos e pliilosophia. As magnifi- cas minas de Thebas não menos attestam o antigo esplendor do Egypto, e aquelles de Persepolis provam que a Pérsia fora a sede das artes e d'uma elegante magnificência, e se as producções litterarias dos persas, á maneira das dos gregos, nos tivessem vindo ás mãos, é* provável que a nossa idéa a seu respeito fosse ainda mais favorável. O fatal resultado po- rem da sua derradeira contenda com a Grécia, dando mesmo desconto á parcialidade grega e seus prejuízos nacionaes, pro- vam evidentemente o péssimo estado da sua administração civil e militar. Um dos grandes erros no systema de governo da Pérsia era a divisão do seu império em um numero de departamentos desligados e quasi independentes, cujos gover- nadores cuidavam tão somente da administração interna, sem se julgarem obrigados a tomar quaesquer medidas a bem da segurança geral do império como nos dizem as noticias que temos das suas convenções com os gregos, e todas as suas operações militares na guerra contra Alexandre evi- denciam a maior falta de táctica, a par da maior relaxação de disciplina. Os seus numerosos exércitos marchavam mais pa- ra uma revista do que para a batalha, e todo o seu material de guerra era mais vistoso e rico do que útil.

Saindo do campo em que temos estado e lançando a vista sobre os judeus e romanos, sem transposição de tempo, ve- mos os primeiros um povo tributário á monarchia persa no goso de suas leis e religião, e vivendo pacificamente sob a sua protecção; e os últimos uma nação guerreira, e patriótica no seu principio. Os romanos tinham vivido sob um gover- no monarchico durante o espaço de 245 annos, a contar da fundação da sua cidade, e durante este tempo tinham succes- sivamente reinado sete soberanos; mas a monarchia romana parece ter tido sempre um poder limitado e que o senado e o povo partilhavam da administração. Tendo expulso o ul-

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timo de seus reis Lucio Tarquinio, por appellido o Soberbo, em consequência do rapto de Lucretia, senhora romana, por seu íilho e d'outros actos diversos de despotismo e oppressão, constituíram uma forma republicana de governo, cerca de 508 annos antes de Jesus Christo, e 27 antes da in vazão da Grécia por Xerxes, e 178 antes da subjugação do império Persa por Alexandre. Os romanos tinham começado o seu engrandecimento por meio da guerra e conquista, mas as suas conquistas eram ainda de pequena importância, e passou-se muito tempo antes que estendessem os seus domínios longe das circumvallaçôes entrincheiradas da sua cidade. Ao tem- po que Alexandre conquistou o império Persa, o território romano não constituía uma porção maior da Itália que a actual campanhia de Roma; e Roma, mais tarde, senhora do mundo, não pezava então na balança politica das nações. Os romanos áquelle tempo nenhum progresso tinham feito nas artes e na litteratura. Falla-se de seus oradores e dos seus discursos, mas a sua eloquência vinha d'uma intelligencia cla- ra e vigorosa mas inculta, sem aquella argumentação e estylo, sem aquella eloquência estudada chamada rhetoríca, tão cul- tivada e tida em apreço entre os Gregos. Em quanto aos Ju- deus, nunca foram con&íderados como povo scientiíico ; mas durante este período entregaram-se ao estudo da philosophia sufficientemente para continuar as opiniões dos philosophos do oriente com os seus preceitos religiosos. D'aqui nasceram as duas seitas rivaes dos phariseos e sadduceos desconhecidas durante a existência da monarchia judaica, anterior ao capti- veiro de Babylonia. D'estas duas seitas celebres a dos sad- duceos seguio rigorosamente a lei de Moisés, em quanto que os phariseos adoptaram, além de varias tradições judaicas, as opinões que haviam adquirido nas suas relações com os ba- bylonicos e persas nos tempos do captiveiro. A terceira seita, chamada dos Essenes appareceu egualmente entre os judeus. O celebre historiador Flávio Josephus dá-nos um detalhe cir- cunstanciado dos preceitos religiosos d'aquellas seitas.

Depois d'este esboço politico, moral e intellectual relativo

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aos persas, jucleos, gregos e romanos no período decorrido entre os reinados d'aquelles celebres conquistadores, Cyro e Alexandre, e que abrageit a existência do império Persa, faz- se-nos preciso voltar a atíenção para o estado geral dos pai- zes mais notáveis do mundo moderno durante este interessan- te período da antiguidade. Á Europa inteira, á excepção da Grécia, euma diminuta parte da Itália, era então desconhe- cida.;Qs paizes hoje tão florescentes nas artes e nas armas, aonde todas as sciencias úteis e ornamentaes chegaram a tão elevado grau de perfeição, aonde cada ramo d.e litter atura se cultiva tão esmeradamente, aonde todos os canaes de com- mercio se exploram com tanta industria, aonde se encontra toda a elegante commodidade da vida social, aonde o luxo rei- na em todas as suas variadas formas, aonde abundam gran- des eipopulosas cidades, e aonde são tão numerosas e pros- peras as universidades e academias: esses paizes que hoje en- vião suas frotas para recolherem os productos de cada difie- rente clima, e estabelecer colónias nas mais longínquas plagas do globo, estavam ainda immersas na obscuridade do barba- rismo, e tão pouco conhecidos para o então mundo civilisado como são para nós ainda os desertos da Arábia e da Tarta- ria, ou o interior d' Africa. Era este o estado dos paizes de maior nomeada da actualidade ao tempo em que a Grécia che- gara ao zenith de seu esplendor e quando sua engenhosa po- pulação tanto progredira nos variados ramos da scien- cia humana. Quando Athenas era a sede das sciencias e da litteratura, abundando em seminários, e repleta de philoso- phos, oradores, legisladores e de heroes, Londres e Paris, ho- je os centros de tudo quanto é grande e elegante não eram mais que pântanos. Mudança espantosa! Nos tempos de Philippe e Alexandre, a Itália, a Hespanha e a França eram para a Grécia, o que são hoje para nós os sertões da America, e todo o resto da Europa, a excepção, talvez, da costa do sul da Grãn-Bretanha.

A Allemanha, a Polónia, a Rússia, a Dinamarca e a Sué- cia não eram mais que vastos terrenos demattase charnecas,

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intransitáveis pântanos, desertos sem trilho, habitados por animaes ou por homens no mais selvagem estado, in- feriores aos mais civilisados tribus cia Nova Zelândia e d'ou- tras ilhas do mar do sul quando descobertas. E o Egypto, quem tal diria, berço das artes e sciencias, aonde a philosophia co- meçou ese desenvolveu o génio do homem em toda a sua va- riedade, e a Grécia aonde a sabedoria do Egypto se melho- rou, e aonde todas as artes e sciencias que podem embelezar uma nação foram levadas a um grau de perfeição que cau- sou a admiração da posteridade, passaram ao estado da mais crassa ignorância, e de seus magníficos edifícios apenas restam as ruínas.

A própria posição cValgumas das mais celebres cidades do antigo mundo, não se pode hoje determinar. Nineve, tanto tempo a capital do império Ássyrio, e Babylonia a gloria das nações e o enlevo dos Chaldeos anniquilaram-se por tal for- ma que ninguém nos diz hoje aonde existiam, e em quanto á memorável cidade de Memphis, muito tempo a metropoli do Egypto, e residência real dos Pharaõs, bem que tenhamos in- questionáveis provas da sua extensão que uns dizem ser de 17 e outros 19 milhas em circunferência, como também da sua magnificência, os mais curiosos gec-graphos e antiquários nãó poderam descobrir o logar aonde fora fundada. Poucas cir- cunstancias da geographia antiga teem sido tão discutidas co- mo a posição d^sía famosa cidade. Viajantes modernos co- mo o di\ Pocock, o capitão Norden, mr. Savary e outros muitos teem procurado resolver este problema, e cada um tem dado ra- sões plausiveis a favor da suahypothese,mas discordam entre si.

As testemunhas de todos os authores antigos que tem fei- to menção de Memphis levam-nos a crer que assentava sobre a margem esquerda do Nilo; mas em quanto que uns a collo- cam aonde hoje está Gise defronte do Cairo, outros a fazem 15 e 17 milhas mais ao sul, e o capitão Norden opina que a maior das pyramides existia entre seus muros. O anniquila- mento total de Nineve, de Babylonia e de Memphis são pro- vas em summa da instabilidade das cousas humanas.

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Depois da vista retrospectiva que acabamos de lançar so- bre um interessante periodo da historia do mundo, passare- mos á consideração d'outro, mais importante ainda, por isso que nos aproxima dos tempos modernos.

O periodo em que entramos é aquelle que começa pela mor- te d' Alexandre e finda no nascimento de Christo. Ao principio vemos todas as partes conhecidas da Azia, que haviam for- mado em primeiro logar os impérios da Assyria *e da Baby- lonia, e depois o império Persa, como também a Grécia, úni- co paiz civilisado e scientifico da Europa, sob o regimen abso- luto cVurna força militar grega; Roma, estado nascente e guer- reiro, e o resto da Europa como são hoje os sertões da Ame- rica para nós.

Um novo scenario vae agora desenvolver-se. Começa a predominar o poder romano; e ás victorias de Roma se deve a civilisação e a instrucção de toda aquella parte da Europa que fica ao sul do Danúbio e ao oeste do Rheno. A' medida que nos afastamos das sombras da antiguidade o quadro il- lumina-se. As convulsões que abalaram o munclo com as ambições desenfreadas dos successores d'Alexandre, teein de sobresair nestas paginas. Durante a maior parte deste pe- riodo os acontecimentos políticos do mundo constituem dous dramas clistinctos e importantes, cuja representação teve lo- gar em dous difierentes theatros. No Oriente as incessantes guerras dos generaes d'Âlexandre e de seus successores entre si, fizeram tremer toda a Grécia e os paizes occidentaes da Azia, em quanto que no occidente a ambição insaciável e em- prehendedora de Roma trazia agitada a maior parte da Eu- ropa, principalmente na sua longa e desesperada contenda com a republica de carthago sua grande rival. As reciprocas hostilidades, os interesses oppostos, as irreconciliáveis animo- zidades, e inumeráveis crimes dos generaes Macedonios e dos successores da sua uzurpação, são suficientemente desenvol-

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vícios pelos historiadores. Um golpe de vista sobre a con- dncta e destino dos principaes d'aquelles usurpadores basta para despertar reflexões sem as quaes a leitura simples de historia é trabalho ocioso e perdido.

Tão depressa fechou Alexandre os olhos, os principaes che- fes se consultaram sobre os negócios públicos. Ptolomeu vo- tou pelo governo d'um concelho supremo de generaes, e que tudo que dissesse respeito á parte administrativa fosse resol- vida por maioridade d'aquelle concelho; em quanto outros proponham que Perdiccas fosse eleito rei. Neste violento es- tado de cousas, Arhideu, filho de Philippe, mas não de 01ympias,e por consequência irmão d'Âlexaudre pelo lado paterno, foi aclamado rei pelo exercito, e os generaes tiveram de confirmar esta eleição. Perdiccas e Leonato sahiram então de Babylonia, e fizeram matar Meleagro pela parte activa que tomara na eleição d' Arhideu. Reuniram então o exercito nas immediações de Babylonia e apossaram-se do rei. Novo con- celho de generaes teve então logar na qual dividiram entre si o império, deixando a Arrhideu o titulo apenas de rei, e de- ram a Perdiccas superioridade sobre elle com a denominação de Protector. Antipater, a quem o concelho fizera governa- dor da Macedónia, subjugou a Grécia, que se lhe havia re- voltado, guarneceu militarmente Athenas, aboiio a forma de- mocrática do seu governo e meteu a administração nas mãos de cerca de nove mil pessoas de distincção e meios, estabele- cendo deste modo uma aristocracia em substituição do syste- ma precedente.

Destituio o povo de todos os direitos de sufiragio, e fez pas- sar uma considerável parte para a Thracia. Antipater tentou a morte do celebre orador Demosthenes. Vendo este grande homem eminente a sua morte pedio licença d'alguns momen- tos a sós para escrever, e aproveitando a occasião envenenou- se, para o que andava preparado.

A ambição desenquieta dos generaes, não tardou, porem, a produzir os maismortiferos effeitos e a trazer em agitação o império todo. Ptolomeu, Antipater, e Crater declararam guer-

ra a Perdiccas, o qual invaclio o Egypto, província governa- da por Ptolomeu, e foi morto por seus próprios soldados.

Foi elle o primeiro dos generaes macedonios sacrificado n'aquellas guerras civis, e á sua morte seguiu-se a de Crate- ra, morto na batalha contra Eumenes. Ântipater, depois da morte de Perdiccas foi feito Protector, e levou o rei e a rai- nha para Macedónia, deixando Antigono na qualidade de go- vernador, ou tenente, cia parte aziatica do império. Ântipater faleceu na idade de oitenta annos: era homem de letras e fo- ra estudante d'Aristoteles. Polysperchon foi então escolhido para Protector; mas Cassandro,, filho d'Antipater, immediata- mente se revolucionou contra elle. Polysperchou restaurou o governo democrático d'Athenas e das outras cidades da Grre- cia, e fez morrer a maior parte do partido aristocrático. Deste modo foi a Grécia alternativamente viciima da oppressão da aristocracia ou da licensa popular, sob a tyrannia dos usur- padores macedoneos do império d'Aiexandre. A immediata commoção intestina foi uma guerra entre Antigono e Eume- nes, na qual Eumenes, depois dos actos mais heróicos no cam- po de batalha, onde desenvolveu um talento degenerai consum- mado, foi traindo pelo regimento dos Ârgyraspides, ou escu- dos de prata, e entregue nas mãos d'Antigono, que o fez mor- rer. Durante estes acontecimentos, Olympias, mãe d'Alexandre magno^ apossande-se do rei Arrhideu e de Eurydice sua rai- nha, os fez matar, e nomeou o joven Alexandre, íiilio de Ale- xandre, e de Roxena, herdeiro do império. Cassandro impre- hendeu então uma expedição contra Olympias, que, com Ro- xena, seu joven filho Alexandre, e toda a corte, encerraram-se em Pydisa. Olympias foi obrigada a entregar-se a Cassandro, e a instancias deste foi julgada e condemnada, em grande con- celho de officiaes macedonios, á morte; justo castigo dos seus muitos crimes d'ambição e crueldade. Assim cahio pela mão do executor, a mulher de Philippe de Macedónia, e mãe d' Ale- xandre magno.

Tendo Antigono, pela traição dos Ârgyraspides, consegui- do anniquilar Eumenes seu prudente e corajoso rival, asse-

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nhoreou-se de toda a Medea e Pérsia, matou Pithon, e correu com Seleuco para fora de Babylonia; mas a sua repentina e extraordinária elevação levantou coutra elle uma forte confe- deração dos outros generaes. Ptolomeu, Cassandro, e Seleu- co fizeram causa commum para abater o exhorbitante poder de Antigono, que por este tempo assumira o titulo de rei, no que foi imitado por Ptolomeu, Seleuco e Sysmacho; foi deste modo que o império grego ou Macedónio, que existio apenas durante a vida d'Alexandre, perdeu logo depois da sua morte até mesmo a sua existência nominal e dividio-se em vários reinos independentes e hostis.

Esta confederação, porem, foi fatal para Antigono. Seleu- co readquirio Babylonia e os paizes da Azia superior: Tendo- se Antigono apoderado de Cleópatra, irmã d' Alexandre Ma- gno que estava esposada a Ptolomeu, fel-a matar, para que Ptolomeu não podesse approveitar uma alliança com a famí- lia d' Alexandre, cuja memoria era cara aos soldados da Ma- cedonea. Assim procuraram aquelles usurpadores exterminar a íamilia inteira de seu victorioso senhor. Levando os prín- cipes confederados por diante a guerra contra Antigono, Sys- macho entrou também na confederação, e Antigono foi morto na batalha d'Issus, perto da cidade d'Ephezo que elle deu contra as forças alliadas de Seleuco e Sysmacho. D'este mo- do cahio este ambicioso e desenquieto uzurpador, com oiten- ta annos d'idade. Morrendo Cassandro em Macedónia, seu fi- lho Alexandre foi mandado matar por Demétrio Poliorcetes, filho d'Atigono; e seu outro filho Autipater, foi igualmente morto por ordem de Sysmacho, cuja filha elle despozára: De- pois d'isto fez Sysmacho matar seu próprio filho Agathocles, cuja mulher e filhos procuraram a protecção de Seleuco, e o levaram a declarar guerra a Sysmacho. N'esta guerra mor- reu Sysmacho e se.us quinze filhos todos por differente modo, Sysruacho, na idade de setenta e quatro annos cahio em ba- talha.

Depois da morte e derrota de Sysmacho, Seleuco passou á Europa a fim de se apossar de Macedónia, aonde foi traiçoei-

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raruente assassinado, contando então setenta e quatro, ou se- tenta e cinco annos de idade.

Assim cahio, por assassinio, Seleuco o derradeiro dos ge- neraes da eschola de Philippe de Macedónia, e que tinham acompanhado Alexandre na sua brilhante e extraordinária carreira de conquistas, Ptolomeu morreu no Egypto pouco autes da morte de Seleuco. Não era um principe guerreiro, mas humano e generoso, e de todos os generaes d'Alexandre foi o único que resistio ás tempestades que se incendiaram incessantemente no horisonte politico d'aquelles tempos agi- tados; porque Ántipater morreu de velho, justamente no co- meço d'aquellas commoções internas, e por conseguinte pou- co experimentou de seus horrores.

Quasi periodo algum da historia da humanidade apresen- ta um quadro tão horroroso dos terriveis efíeitos das paixões humanas como aquelle que seguio a morte d' Alexandre. Os generaes que serviram com elle, e que depois usurparam o seu império, com quanto fossem os domínios de cada um sufíicientemente extensos e ricos, para serem todos grandes e poderosos, monarchas, eram elles tão ambiciosos, que sacrifi- caram a um espirito turbulento e insaciável toda a tranqui- lidade e ventura da vida, convertendo todos os paizes situa- dos dentro dos limites da sua jurisdicção, em vasto theatro de sangue e de crimes. Não exterminaram a familia intei- ra de Philippe e d'Alexandre; mas diligencearam, e por íim conseguiram, á viva força, á traição, a sua mutua des- truição.

Drama algum tenha talvez havido no theatro moral cio mundo mais notável e interessante como aquelle que nos apre- sentam os generaes que se apossaram dos domínios d'Âlexan- dre. Tinham sido disciplinados por Philippe e visto a Ma- cedónia, até então um reino desconhecido, sair dum estado abiecto, tomar uma parte activa na politica do mundo, e ga- nhar uma preponderância decidida sobre a Grécia. Tinham partilhado os trabalhos de Philippe e esperavam partilhar da sua gloria na conquista da Pérsia. Tinham testemunhado a

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prematura queda de seu guerreiro e politico mestre, e pre~ senciado a execução de seus vastos projectos por seu filho. Tinham sido os principaes actores na conquista do império persa e, seguindo seuvictorioso estandarte, tinham penetrado na Bactria e na índia, paizes até então desconhecidos para os gregos. Tinham assistido á prematura morte de seu chefe con- quistador, e ao termo de todos os seus ambiciosos projectos. Tinham visto cair nas suas próprias mãos as suas vastas con- quistas, e, de pobres officiaes macedonios, que tinham sido, vieram a ser príncipes soberanos, e cada um talhou jDara si um reino mais rico e extenso que aquelle de Macedónia. Ti- nham-se lançado num novo mundo, e a sua fortuna excedera as suas mais lisongeiras ambições, mas não lhes assegurou, no fim de suas vidas, aquella tranquilidade e repouso, que a idade, e uma longa vida de continuados trabalhos pedem. As suas mutuas animosidades e hostilidades intermináveis en- venenaram-lhes seus últimos dias ; e depois de tão brilhante esteira de conquistas, passaram á velhice no meio de pezares, de desordens e carnificina; e poucos d'elles baixaram á terra em paz, apresentando á posteridade um exemplo memorável dos terriveis eííeitos d'uma ambição illegal e insaciável.

Quando reflectimos sobre a grande empreza d' Alexandre, e a sua brilhante conquista da Pérsia, não podemos deixar de notar, que pouco menos desastrosa foi para os vencedores do que para os vencidos, quer considerada pelo lado das con- veniências nacionaes, quer pelo dos seus efieitos, em relação aos individuos mais interessados n'ella. Sob o ponto de vista de nacionalidade, a prematura morte d' Alexandre; o desmem- bramento e divisão do seu império pelos generaes macedonios, e as suas incessantes guerras, agitaram aquelles paizes inces- santemente, acarretando immensos males aos seus habitantes. Os gregos, principalmente, sendo compellidos a seguir o des- tino d'aquelles uzurpadores rivaes, conforme exigiam as dif- ferentes circunstancias que imperavam, estavam, mais que quaesquer outros expostos aos horrores da guerra,e á constan- te tyrannia e oppressão de seus differentes senhores; foram

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•menos victimas de seus patrícios cio que teriam sido dos per- sas se elles tivessem conquistado a Grécia. Reflectindo so- bre as consequências d'estas memoráveis conquistas no que respeita aos indivíduos que as fizeram, vemos que foram fa- taes á sua tranquilidade d'espirito. Alguns dos principaes che- fes, satisfizeram, é verdade, a sua ambição apoderando-se do poder soberano e dos títulos de realeza; mas as suas coroas foram coroas cVespinhos. Atormentados por continuas e san- guinolentas guerras entre si, privados do repouso que exige o fim d'uma vida gasta nas lides das- batalhas, a maior parte foi victima da guerra ou da traição, e baixaram á sepultura com as cans tintas de sangue. Aquelle invencível exercito de bravos veteranos, educado por Philippe e conduzido por Alexandre á Azia, gastou-se em hostilidades infructiferas, e poucos dos valentes soldados que conquistaram a Pérsia re- gressaram á sua terra natal.

A subsequente historia dos reinos nos quaes se dividio o im- pério dos gregos na Europa e na Azia, apresenta a mais he- dionda scena de hostilidades e traições, d'infelicidade e de cri- mes, até* que successivamente caiiam em poder dos romanos. De todos elles, o Egypto, fundado por Ptolomeu Sagus, que na partilha geral do império d'Alexandre, se apossou d'aquel- le paiz, foi o único que floresceu num estado de estabilidade permanente. Sob o reinado dos Ptolomeus, o Egypto recon- quistou seu antigo esplendor e aquella celebridade que adqui- rira no tempo dos Pharaohs, seus príncipes naturaes ; Ale- xandria veio a ser o que tinham sido Thebas e Memphis, e até rivalisava com Athenas no numero e fama das suas es- colas de philosophia e litteratura. No reinado de Ptolomeu Philadelpho, o segundo príncipe da dynastia grega, a escri- ptura sagrada dos judeos appareceu pela primeira vez tradu- zida em lingua estrangeira. O illustre protector das sciencias, desejoso dearchivar amassa inteira de conhecimentos huma- nos, empregou homens intelligentes e sábios, para procura- rem livros de toda a parte onde fosse possível acharem-se ; e a seu particular pedido 72 judeos d'instrucção foram enviados

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282 annos antes de Jesus Christo, de Jerusalém, para tradu- zirem as escripturas para o grego, lingua que se fallava na Alexandria, sendo a lingua egypcia fallada taosouiente pelo povo rude. As particularidades que dizem respeito a esta ce- lebre traducção acham se detalhadamente mencionadas por Flávio Josephus, que, pertencendo á ordem dos sacerdotes, e sendo pessoa de qualidade e distincçao., tinha, sem duvida en- trada nos archivos da nação hehraica ; e estava por conse- quência no caso d'estar ao facto d'este negocio que devia necessariamente constar dos annaes d'aquella nação em Je- rusalém, como também dos archivos .d' Alexandria.

Esta traducção chama-se a Septuagente foi sempre tida em grande conta entre os primeiros mestres, como entre muitos modernos theologos e criticos. Ptolomeu Philadelpho merece a celebridade de ter sido um dos maiores protectores da litte- ratura antiga e na perseguição de tão louváveis esforços co- lheu elle mais louros que os que a sanguinolenta carreira das conquistas. Assevera-se que chegou a formar uma biblio- theca de 500:000 volumes ; e o seu reinado é memorável nos annaes da litteratura.

Se voltarmos a attenção do Egypto para as índias, vere- mos que os negócios d'aquella nação ofíerecem assumptos de bastante interesse durante aquelle periodo. O livramento d'quel- le povo da tyrannia e oppressão dos gregos pelo . heroísmo patriótico de Judas Macchabeo e seus irmãos, é um facto tão glorioso como qualquer d'aquelles practicados pelos mais illustres heroes da Grécia e Roma. A sua origem assenta so- bre justíssimos motivos, e, todas as circunstancias consideradas, foi mais árdua esta empreza, e consequentemente mais glorio- sa que não as conquistas da Pérsia por Alexandre, ou, talvez, que todas as proezas de Cezar. Aquelles conquistadores tive- ram de combater inimigos, cujas forças, por muito numero- sas, eram sem comparação inferiores ás suas em disciplina e táctica militar ; porem Macehabeu e seus irmãos emprehen- deram uma lucta importantíssima e perigosa, com um inimigo não superior em numero, mas incomparavelmente supe~-

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rior em disciplina, e theoría ; e por meio cTuma coragem per- severante, que difficuldade alguma podia abater, conseguio arrancar o seu paiz â oppressão politica e religiosa. Judas cahio nobremente, depois de conseguir o seu grande fim, e a sua família continuando nas vantagens obtidas com uma per- severança incançavel firmou a independência do seu paiz , e mudou a sua forma de governo, d'uma republica fraca e ins- tável que era, para uma monarchia vigorosa e cfioresente ; porque JoãoHyrcano, filho de Simão Macchabeo, reunindo em si as funcções de gran-sacerdote com as de generalíssimo dos exércitos, e no seu espirito todos os talentos precisos para o exercício de misteres clericaes militares e de realeza, tendo si- do victorioso sobre os inimigos do seu paiz, e firmado o seu governo, seus filhos, successivamente, assumiram não o po- der real mas o titulo de rei, e o supremo sacerdócio ficou egual- mente na familia, apesar de não estar reunida na pessoa do monarcha. Os descendentes de Hyrcano são conhecidos, na historia da nação hebraica pela denominação de=dynastiaas- nioneana. As desintelligencias d'esta familia Analisaram pela tomada de Jerusalém por Pompeo e a sujeição da nação ju - daica aos romanos. Depois d'este acontecimento vemos nova- mente o restabelecimento da monarchia judaica, por favor e soba protecção dos romanos, que collocaram sobre o throno de David, Herodes o Grande, filho de Antipater e de Idumea. Este príncipe demolio o velho templo de Jerusalém e o re- construioda maneira a mais magnifica e reinou com grande es- plendor mas com uma quasi assignalada tyrania. Herodes foi um príncipe de talento transcendente mas sem consciência nem sentimento, como prova a morte que mandou dar a sua formosa e querida esposa Marianna, e a seus dons filhos prín- cipes de primorosa educação e esperançosos talentos. Tinha egualmente condemnado á morte seu filho favorito Antipater, mas a sua própria morte suspendeu a execução da sentença. A narração das crueldades deste príncipe lê-se detalhadamen- te nas obras de Josephus, que pinta, em vivissimas cores, as traições e intrigas da sua corte, e descreve, em estylo robus-

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to e elegante, o seu reinado turbulento cheio de crimes e de infelicidade domestica.

De facto, de todos os principes cujos nomes a historia re- corda, nenhum n'esta ultima parte experimentou maiores dis- sabores. Pouco depois da morte de Herodes, tendo a Judea passado por differentes mudanças de forma de governo, ficou por íim reduzida a provinda romana, em cujo estado perma- neceu até ao tempo de que estamos tratando.

Durante elle, isto é, desde a morte de Alexandre e a vinda de Christo, o rápido progresso dos romonos nas artes e nas armas, no engrandecimento do poder, na acquisição de riqne- zas e na extensão de domínio, constitue a feição mais conspí- cua no aspecto politico do mundo e um assumpto importante e interessante da historia.

No tempo d' Alexandre vimos o território romano circuns- cripto a uma pequena parte da Itália, e requeria volumes pa- ra dar em detalhe a longa serie de guerras e conquistas que levaram Roma áquelle auge de poder e gloria a que ella de- pois chegou ; mas investigada a causa, vemos que abaixo de Deos deveram o seu engrandecimento ao rigor com que ob- servavam a disciplina militar, seu estudo aturado da táctica, junto a medidas rigorosas e decisivas nos seus conselhos. A arte da guerra e de réthorica eram, por muito tempo as únicas cultivadas e tidas em consideração entre os romanos ; e du- rante o periodo inteiro da existência da republica eram o prin- cipal objecto do seu estudo, por isso que constituíam o único caminho para a honra e fama, única ambição dos romanos. Ambição e não avareza, era a paixão dominante entre áquel- le povo e consequentemente o commercio era pouco apreciado e seguido. A conquista era o íim, a guerra o meio. Todo o ci- dadão era soldado e o seu tempo de serviço dez annos. O seu modo de acampar, a regularidade da sua disciplina e o intei- ro systema theorico que adoptaram, são objectos curiosos d 'investigação. Uma descripção de tudo isto encontra-se em escriptos anligos, e nenhum clássico as pode ignorar.

Um dos característicos particulares da republica romana

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é, que os revezes e as derrotas, não poderam nunca prevales- cer nos concílios. A coragem romana mostrava-se sempre su- perioras difíiculdades que tinha d'ai'rostar. D'isto, a sua gran- de contenda com a republica de Caríhago, sua rival, uma das mais importantes e obstinadas, que nos recorda a historia, é evidente prova. Os romanos, com quanto reduzidos ao ultimo extremo, jamais desanimaram nem afírouxaram cTesforços. Quando apertados por todos os lados por Annibal, que os ha- via derrotado em successivas batalhas, e saqueado o seu terri- tório até mesmo ás portas de Roma, nenhuma medida de pu- sillaninridade fora adoptada pelo senado; poz se em acção tudo quanto era possível, e não lhes passou nunca pelo pensamen- to a aceitação cFuma paz ignominiosa.

Tem se geralmente como um erro grave da ' parte d'Anní- bal deixando d'assaltor Roma immediatamente em seguida á sua assignalada victoria de Cannas ; e osechos da historia re- percutindo-se, .dizem-nos que Annibal sabia vencer mas não tirar partido das victorias. Todo o estudante conhece que so- bre o caracter de um dos maiores generfies que tem existido em qualquer idade e em qualquer paiz, se tem lançado este stigma,. mas não devemos precipitadamente censurar a con- ducta de tão distincto militar. O seu plano d'operações podia ser determinado por causas desconhecidas aos authores q' nos trans- mittiram a noticia d'aquelles acontecimentos. O bom resulta- do da guerra depende d'uma multidão de circunstancias, mui- tas das quaes poderão parecer de pouca importância a quem não estiver perfeitamente ao facto das cousas ; e consequen- temente é impossivel formar um juiso seguro de circunstancias que actuaram no momento, passados muitos séculos. Tanto, quanto podemos julgar pelo que nos diz a historia, achamo- nos authorisados a repellir qualquer idéa de pusilanimidade da parte de Annibal, despresando o favorável ensejo que lhe oííerecia a victoria de Cannas. Depois d'essa batalha ganha so- bre tropas como eram as legiões romanas, é de crer que o seu exercito, com quanto victorioso, deveria ter sonrido immen- so. Pela horrível mortandade do lado dos romanos, devemos

concluir que as perdas entre os curthnglnezes teriam sido con- sideráveis. Roma, apesar de ser a esse tempo incomparavel- mente inferior ao que depois veio a ser, era uma grande, forte e populosa cidade, e os seus habitantes dispostos a mor- rer com as armas na mão. Aquelies, versados nos negócios militares, são os mais aptos para decidirem a questrio, se teria sido mais prudente da parte de Annibal, assaltar, com os res- tos d'um exercito espedaçado uma cidade como Roma, defen- dida por gente como os romanos ; e se poderia dar o assalto, ou intentar um cerco com alguma probabilidade de bom suc- cesso, e comtudo, o facto de haver Annibal abandonado Ro- ma, aquartelando as suas tropas em Capua durante o inver- no, fossem quaes fossem os seus motivos, apresenta-se geral- mente como origem dos males que depois vieram aos cartha- ginezes ; mas deve-se antes presumir que a verdadeira causa de seus desastres proveio das intrigas dos inimigos de Annibal no senado de Carthago; cujo ódio áquelle illustre chefe foi su- perior ao amor da pátria, e que preferiam antes seus exérci- tos derrotados avel-os victoriosossob os seus estandartes.

Se esta facção não tem adquirido uma influencia predomi- nante no senado de Carthago ha toda a rasão para crer que o poder romano, seria, n'aquella guerra, completamente ani- quilado.

Não se podia esperar o contrario d'um general cuja cora- gem e prudência o haviam coroado de louros ; cujos feitos brilhantes o tinham tornado senhor de quasi toda a Itália ; cu- ja carreira militar o fizera considerar o maior general da an- tiguidade ; e que jurara sobre um altar ódio eterno a Roma.

A Divina Providencia, porem, não havia decretado o anni- quilamento de Roma. Os inimigos de Annibal ganharam de dia em dia terreno e não obstante as suas repetidas exigên- cias, nenhum reforço lhe era enviado ; e por consequência mu- dou a sorte da guerra. Os romanos, adoptando medidas enér- gicas, invadiram a Africa ; e com quanto tão recentemente em perigo de serem attacados na sua própria capital, appare- ceram repentinamente em frente d'aquella do inimigo.

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Annibal que pouco antes avançara até ás portas de Roma foi chamado para proteger os muros de Carthago, e batido por Scipião na celebre batalha de Lama 201 annos antes de Jesus Christo, que poz termo ao poder e grandeza da republica car- thagenense ; por que sendo os carthagenezes obrigados a aceitar uma paz com condições desvantajosas, nunca mais poderam readquirir o seu poderio perdido. Assim terminou a segunda guerra púnica. Todos sabem que o resultado da ter- ceira foi fatal para Carthago. Aquella grande e florescente cidade foi totalmente destruída 146 annos antes de Christo e os seus domínios reduzidos a província romana.

Até essa epocha, Roma havia feito um progresso continua- do mas lento. Ao principio todo o seu território não excedia 25 milhas em circunferência ; e quando Alexandre conquis- tou a Pérsia, 422 annos depois da fundação de Roma, 179 annos depois da expulsão dos reis romanos, e cerca de 330 antes de Christo, o território de Roma, como temos obser- vado mal excedia os limites da actual campania, e não foi se- não 262 annos antes de Christo e 490 depois da construcção de Roma, que os romanos levaram as armas alem dos con- fins da Itália.

Depois da subjugação de Carthago, na segunda guerra pú- nica, deixou Roma de ter rival, e, victoriosa em toda a parte, levou tudo adiante de si. Á Macedónia, a Grécia e os reinos Gregos na Ásia, cahiram successivamente nas suas mãos e dilatou o seu império desde o Euphrates até o oceano atlân- tico, e desde o Rheno e o Danúbio até os desertos da Arábia e da Africa, abrangendo no seu território todo o mundo en- tão civilisado e conhecido e o seu aspecto mudou completa- mente. Os diíferentes reinos e estados, que, durante uma lon- ga serie de annos, estiveram entregues a continuadas revolu- ções, erguendo-se, cahindo, destruindo-se mutuamente, foram absorvidos constituindo todos um immenso e poderoso impé- rio. Mas Roma, senhora do mundo, estava sendo espeda- çada por commoções internas. A causa d'aquelles males pa- rece coeva da mesma Roma, ou pelo menos da sua forma re-

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publicana de governo. Era ella uma distincção odiosa que di- vidio os cidadãos romanos em duas corporações distinctas, os patrícios e os plebeus, ou, como diríamos hoje, a classe aristocrática e a democrática. Rómulo, male diíicou Roma, or- ganisou o senado, mas o povo gosava também seus privilé- gios e parece que estas regalias do senado e do povo, como também a prerogativa real, estavam claramente definidas, com quanto seja difficil, passado tanto tempo, descriminar com exactidão os direitos do rei, do senado, e do povo. Os escri- ptores romanos pertendem, é certo, possuir conhecimentos es- peciaes sobre aquelle ponto; porem é tanto ou quanto questio- nável, se os historiadores, que viveram nas idades cultas de Roma podiam obter informações particulares sobre aquelle assumpto como elles pertendem

E' certo que os annaes de Roma, na sua primitiva, eram muito defeituosos, porque no principio os romanos eram imi povo sem instrucção ; e o estudo das lettras foi, provavelmen- te, introduzido entre elles por Numa Pompilio, seu segundo rei. Os dados históricos não authorisam a conjecturar que Rómu- lo, ou os seus súbditos tivessem idéas de litteratura. Na ex- pulsão de seus reis, e fundação do governo republicano, as duas classes de Patrícios e Plebeos foram tão perfeitamente separadas, estabelecendo-se uma linha de demarcação tão pronunciada, que constituíram duas corporações distinctas, cujos interesses eram diametralmente oppostos. Todos os car- gos da republica eram dados ás famílias patrícias, mas o povo tinha o direito d'eleição para aquelles cargos. Os plebeus, po- rem, viam-se excluídos não somente das honras, como também dos emolumentos da republica ; e eram considerados em es- tado de pobreza, em quanto os patrícios tinham todas as lar- gas para a acquisição de propriedade. elle e os seus ínti- mos possuíam as terras adquiridas por meio de conquista, em quanto que os plebeos que combatiam e perdiam o seu sangue nas lutas eram excluídos nas partilhas. Pela natureza da cons- tituição romana, parecia, que o que fosse conquistado pelos esforços reunidos dos cidadãos, devia ser dividido com egual-

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dade entre elles, por isso que ninguém era escuso do serviço militar. O povo comprehendia perfeitamente que uma tal di- visão era um direito indisputavelmente seu, e uma lei agraria era seu coustante e ambicionado alvo. Isto, porem, nunca se pode conseguir. Os patricios encontravam sempre algum pre- texto para deferir a sua promulgação, e quanto mais se defe- ria, maiores difficuldades sobrevinham para as levar a eífeito. E por certo, passado tempo, e apossados que fossem os ho- mens ricos d1aquellas terras, não era possível a existência de uma lei agraria sem lançar o paiz n'ám estado de confusão e anarchia. O partido plebeo, porem, fez repetidas tentativas para diminuir o exorbitante poder dos patricios. Appellou- se para uma lei chamada a lei liciniana, que prohibia a qual- quer cidadão a posse de propriedade excedente a 500 geiras; mas uma lei tão favorável ao povo, e tão contraria aos inte- resses dos poderosos, foi unanimamente combatida. A primei- ra vantagem d 'importância obtida pelo partido plebeu, foi a lei permittindo o enlace matrimonial entre patricios e plebeos que gradualmente aproximou as duas classes uma da ou- tra.

Mas sobre tudo, a eleição de tribunos, para proteger os inte- resses do povo, foi o golpe mais severo na authoridade da or- dem patrícia.

Todos que tem estudado a historia antiga, conhecem as lutas que se deram entre os dois partidos.

A historia recorda-nos a retirada cio povo para o Monte Sacro, a conspiração do Monte Arentino, os tumultos promo- vidos pelos graechi, e outras commoções populares. Eífecti- vamente a historia da republica quasi que não apresenta ou- tra cousa que constantes guerras no estrangeiro, e contendas internas entre as duas classes adversas ; e o resultado de ca- da lueta era quasi sempre favorável ao partido popular, até que em fim, Caio Mário, um plebeo, foi eleito cônsul não obs- tante a maior opposição da parte da ordem patrícia. Foi assim que a victoria, depois d'annos de perpetuas contendas se de- clarou finalmente pelo partido democrático. Todos teem lido

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na historia os males que a ambição patrícia e o licencioso fu- ror'popular successivamente acarretaram sobre a republica e que a final produziram o anniquilamento cTaquella forma de governo. As prescripçoes sanguinárias de Mário e de Sylla, aquelle do partido popular e este da classe patrícia, são factos notórios. A contenda finalmente acabou, quando acabou a republica. Os patrícios viram a perda, do que consideravam seu direito constitucional, com um desgosto igual á indigna- ção com que o povo sofíiêra a privação de seus privilégios. Em cada eleição de cônsul, ou em outras occasiões d'interesse publico, os velhos ódios renasciam, e as duas facções op- postas redobravam d'esforços. Cada um se alistava sob suas diflerentes bandeiras, como melhor lhe convinha, e a gradua- ção de posto cedia ante os interesses pecuniários. Os patrí- cios que ambicionavam o poder com o apoio popular espo- savam a causa plebea, e apregoavam-se amigos do povo, em quanto que muitos plebeos, por iguaes motivos faziam causa commum com os patrícios. Cezar, com quanto da classe pa- trícia, era o homem do partido popular, em quanto que Pom- peo era o idolo.do senado, o grande advogado da causa patrí- cia e o poderoso supporte de seu» interesses. Ambos capi- taneavam grandes exércitos; e Pompeo apesar de mais velho que Cezar, casara com a filha d'este; mas laço algum de parentesco pode modificar o espirito de partido, ou anniquilar o da ambição. Quem ignora o resultado d'aquellas contendas nada menos que o extermínio das liberdades romanas , se é que se pôde chamar liberdade a um nun<?,a interrompido estado de desordem, discórdia, falta de segurança individual, e sujeição ao serviço militar; e comtudo a historia tem dado a tudo isto o pomposo nome de liberdade.

Apoz a derrota de Pompeo, nos campos de Pharsalia, Ce- zar, vendo-se á testa de quasi toda a força militar da republi- ca, cedo achou meio de vencer toda a opposiçâo, e foi de- clarado dictador perpetuo, 46 annos antes de Christo; car- go este que lhe conferio o poder e authoridade real, faltan- do-lhe apenas o titulo de rei. Os derradeiros esforços do par-

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tido patriciano, foi o assassinato de Cezar no senado.

Seu sobriuho, Octávio, appelliclado depois Augusto, e seu amigo, Marco António, se constituiram vingadores da sua raorte; e tendo derrotado os conspiradores em Philippi, asso- ciando a si Lépido, assim formaram o segundo triumvirado; e Lépido, Octávio, c Marco António, conjunctamente gover- naram o império. A historia de Marco António e de Cleópa- tra, a celebre rainha do Egypto, não menos famosa por seus vicios, que por sua formosura e brilhante talento, é conheci- da de mais para ser aqui discutida, e menos ainda os acon- tecimentos da guerra civil entre Octávio, Cezar e Marco An- tónio; que tendo terminado com o derrota e morte do ultimo, como também da linda e illustrada Cleópatra, ultima da dy- nastia dos Ptolomeos, e na subjugação do Egypto, que ficou sendo provincia romana, Octávio, sem collega, ou rival, reinou dignamente como imperador elos romanos.

A singular sagacidade e prudência com que Augusto esta- beleceu a sua soberania em Roma, pôde servir de modelo de tacto politico; e durante o seu longo e glorioso reinado mos- trou ser um consummado politico. E talvez homem algum foi mais feliz na arte de governar.

Profundamente convencido da predilecção dos romanos pe- la forma republicana de governo, não procurou abolir os car- gos e formulas da republica; mas combinou as cousas de mo- do que as reuniu em si, e professando a maior deferência e respeito pelo senado, deixou-lhe apenas aquelle poder que julgou em harmonia com o seu.

De todas as suas medidas politicas, a de mais mestria foi aquella de limitar a sua administração por espaço de dez an- nos, no fim dos quaes fez publico que tencionava abdicar, e tendo sagazmente disposto as cousas, e assegurado uma gran- de maioria no senado, cedendo ás vehementes solicitações d'a- quella corporação, e de todo o povo romano, condescendeu em reassumir as rédeas do governo por um novo periodo de dez annos, e repetiu esta farça, até que viu consolidado o seu governo e removida toda a idéa d'opposição entre seus

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súbditos. Vimos pois como as discórdias dos patrícios e dos plebeos, depois de haver agitado a republica, acabaram em guerras civis que fizeram tremer seus vastos dominios e inundar Roma com o sangue de seus cidadãos; e que finali- saram com o aniquilamento do governo republicano, e a fundação da monarchia, que foi sem duvida a forma mais própria de governo para tão vasto império, composto de tan- tas differentes nações. Se a experiência fundada em factos, for admittida como base para o raciocínio, a monarchia, quan- do o sceptro se acha nas mãos dum principe prudente e bon- doso, é preferível ao governo republicana.

Roma fez a experiência e não teve motivo para lamentar a mudança; porque sob o equitativo e pacifico reinado de Au- gusto, os seus cidadãos e todo o império disfructaram mais tranquilidade e segurança, mais felicidade politica e civil, que jamais haviam experimentado durante todo o periodo da existência da republica. Apresenta-se agora um novo espectáculo, nunca antes presenciado; o mundo civilisado reunido em um vasto systema politico. A França, a Itália, a Hespanha e Portugal, a Suissa e a Bélgica, a Grécia e os demais paizes que constituem o império Ottomano, tanto na Europa como na Azia, com o Egypto e toda a parte septen- trional da Africa, que presentemente forma o império de Marrocos, e os estados Algerinos, Tunis, e Tripoli, tudo sob o dominio de Roma: todos aquelles extensos paizes reunidos em um vasto império, disfructando uma paz profunda sob a administração d'um imperador, prudente, justo e pacifico, que possuía o senso de conhecer que os seus interesses e os de seu povo, eram inseparáveis, apresentando uma perspecti- va que o espirito humano se deleita em contemplar,e que for- mava um notável contraste, comparada ao estado turbulen- to do orbe romano sob o governo republicano. Authores ha que discorrem amargamente sobre os tempos mais puros da republica, a liberdade de seus cidadãos e a sua perda com a usurpação, como elles o denominam, de Júlio Cezar, do car- go de dictador e mais ainda quando a soberania se consolidou

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em Augusto: mas perguntaremos nós em que consistia a re- publica de Roma. Seria no forçado recrutamento de todo o cidadão para o serviço militar, por espaço de dez annos, um período tão considerável na curta duração da vida? Seria no risco continuo de ser chamado áquellas guerras sanguinolen- tas e destruidoras de que estão cheias as paginas da historia romana e na exposição a todos os perigos e inclemências da vida militar ? Seria nos tumultos, nas discórdias civis e nas guerras de partido; ou seria no privilegio de perturbar a sua própria tranquilidade, e a do mundo inteiro que assentava a tão afamada liberdade do povo romano ? Não nos deixemos illudir com as declamações eloquentes de historiadores. A ver- dade mascara-se de diversos modos; nem sempre é necessá- rio subsíituil-a por falsidade declarada; uns ligeiros toques no sombreado do quadro desfiguram ás vezes a scena.

Uma pequena exageração, ou uma exposição artificiosa,, pode, em muitos casos influir para a creação d'idéas falsas. Quaesquer que sejam as cores com que nos pintem a liberda- de romana sob um governo republicano, é um facto incon- troverso que consistia principalmente na oppressão do rico sobre o pobre, privilegio este que tem merecido em outros paizes egualmente o nome de liberdade. D'este systema em que consistia o principal fim do Senado e da classe patricia, nas- ceram as continuas hostilidades em que os romanos andaram envolvidos; porque o Senado bem sabia, que em quanto o po- vo andava destraido em guerras estrangeiras, preoccupava-se menos dos seus direitos e para lhe desviar a attençao de seus males, não tinham mais que declarar a guerra. O Senatus Con- sultam, ou decreto do Senado era apresentado ao povo, cu- jo privilegio era confirmar as propostas d'aquella corpora- ção. Um orador eloquente, qualquer, subia á tribuna, haren- gava aos cidadãos, descrevendo-lhes em vivas cores o pre- juizo que soífria a republica, e os insultos cospidos á digni- dade do povo romano. Era bastante! Aquelle estylo guindado, a gloria da republica e a magestade do povo constituía o en- canto politico e magica que operava irresistivelmente sobre

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o espirito d' um povo valente e guerreiro, mas leviano, que inconsideradamente votava aquellas guerras, nas quaes era sempre a victima, em quanto os patrícios seus senhores accu- mulavam riquezas, honras e poder. Assim, quando o poder supremo parecia estar no povo, era elle, em realidade, nada mais que uma rnachina nas mãos de seus denominadores, que, por suas intrigas eleitoraes, e magica persuasiva de seus oradores, o traziam completamente sujeito á sua vonta- de.

JSTeste notável periodo, quando a constituição romana mu- dou da forma republicana para a monarchia: quando o impé- rio attingio o auge de seu engrandecimento e extensão; e quando o mundo repousava, tranquillo, sob a sua poderosa influencia, o espirito investigador deseja naturalmente entrar no conhecimento dos hábitos dos romanos e no modo de vida social d'aquelles celebres senhores do mundo.

O estado social dos romanos era, a muitos respeitos, ex- tremamente differente do que vemos entre as nações da mo- derna Europa. N'estes paizes, todo o individuo que não pos- sue propriedade, tem de prover pela sua subsistência, entre- gando-se a qualquer industria, e tem de contribuir para a sustentação do governo que lheextende protecção. Os tributos recaem, ou sobre a propriedade, ou sobre os differentes arti- gos de necessidade, conveniência e luxo; de modo que cada um contribue para o estado na proporção de seus haveres ou das suas despezas. Assim acontecia até certo ponto, na adminis- tração financeira dos romanos em relação aos habitantes das provindas e paizes conquistados; mas era differente para aquelles que gosavam o privilegio de cidadãos romanos.

Na infância de Roma, os cidadãos eram poucos em nume- ro, e o seu território de pequena extensão, compondo- se tão somente de seus sete montes, e os visinhos pântanos nas margens do Tybre: o estado devia forçosamente ser muito pobre.

Não podemos, n'esta era distante ajuizar perfeitamente de que modo se costeava a despeza publica, durante os

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reinados dos sete reis de Roma na primitiva da republi- ca.

Nenhum documento histórico existe já, que nos diga com rideliífade quaes fossem as instituições de fazenda d'aquelles remotos tempos.

Os romanos, comtudo, vagarosamente ao qriucipio, e de- pois pela mais rápida carreira de victorias e conquistas, dilataram os seus domínios do modo exposto; e proviacias e reinos vieram a ser tributários da republica. Aquelles tri- butos pagavam-se, parte em moeda e parte em género. A Sicília produzia cereaes e vinhos: o Egypto fornecia mi- lho; e todos os peizes conquistados ministravam a Roma uma parção de seus productos.

A lei agraria; tão desejada do povo romano, nunca se pôde levar a effeito; mas uma parte do menos, dos paizes subjogados, dividiu-se entre as classes mais pobres de Roma. Desde o tempo da derrota de Perseu, rei de Macedónia, até ao reinado d'Auguesto Cezar, os cidadãos romanos eram completamente isentos de tributos.

Mr. Grikbon estima em vinte milhões de libras sterlinas, os tributos pagos pelas províncias annualmeute; mas não nos diz se os cereaes, os vinhos, azeites e toucinhos entravam u'aquelle calculo, E', porém, a opinião de muitos historia- dores que os tributos em género não devem incluir-se n'esta conta e que as províncias pagavam umu somma superior aquella em espécie. Quando Roma chegou ao maior auge do seu poder, e que todos os paizes desde o Euphrates até ao Atlântico, e desde o Danúbio até aos desertos d'A- frica, vssavam seus impostos para dentro de seus cofres, a districuíção era tão copiosa que dava para a sustentação das classes inferiores dos cidadãos. Uma certa quantia de di- nheiro, cereal, vinho, azeite, e toucinho, e outros géneros, distribuiam-se pelos cidadãos que por seus poucos meios ti- nham direito a recebel-os. Aquellas distribuições, por algum tempo, tinham logar periodicamente, aos trimestres, mensal- mente etc conforme pediam as circunstancias; mas no decurso

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<àe tempo passaram a fazer-se diariamente. Construiram-âe fornos públicos, e em logar d'uma distribuição mensal cu semanal de cereaes, uma ração de pão e vinho etc. entre- gava-se diariamente áqudles cidadãos que a reclamavam legalmente; e assim ficavam suppridas as necessidades d'um povo soberbo, preguiçoso e imprevidente. Estas distribuições periódicas, foram, fora de duvida, adoptadas pelo senado com o fim de contentar as massas, e desvanecer a idéa dos Plebeos sobre a lei agraria, e era efíecti vãmente o meio mais efficaa de os conservar em dependência absoluta dos grandes; em quanto que uma divisão igual dos terrenos da republica tenderia necessariamente para a sua independência. Os dema- gogos que chegaram ao poder pelo favor popular, ou que a elle aspiravam, procuraram augmentar aquelles donativos, de modo que com o correr do tempo, os mais pobres não pre- cisavam trabalhar; mas aquella reunião heterogénea que cons- tituia a massa da população de Roma, como de qualquer ou- tra grande metrópole, estava em circunstancias differentes. Estes susíentavam-se á custa da sua industria, ou da pro- priedade que possuíam.

A labutação eocommercio de Roma eram feitos por escra- vos ou por estrangeiros; e os negociantes da província e me- chanicos industriosos, que demandavam Roma, e formavam o grosso de seus habitantes, geralmente accumulavamimmen- sas fortunas. Este systema de sustentação das classes pobres observava-se nas outras cidades do império; e com quanto este meio de recolher e destribuir os impostos de província deveria ser excessivamente incommodo, sujeito a muitas va- riantes, subsistio tanto quanto durou o império, ou ao me- nos durante o seu estado de florescência.

Nos primeiros tempos da republica, o vestuário como tudo o mais adoptado em Roma, era excessivamente sim- ples e uniforme. Uma simples toga era o vestuário universal- mente uzado pelos plebeos, a toga da ordem equestre destin- guia-se por uma estreita orla de purpura, e a dos patricioS por uma mais larga da mesma côr, mas o manto dos com-

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mandantes dos exércitos era todo elle de purpura. Poucos ca- sos haviào d'um desvio deste trajo no começo da republica ; mas á proporção que as riquezas augmentavam, a variedade na elegância de trajar andava a par do luxo em outros ramos, até que por fim, mormente nos tempos do governo imperial, não tinha limites. Os grandes de Roma entretinham- se em tomar ar nos subúrbios seguidos de numeroso e esplendido séquito, e em frequentar os theatros e outros logares públicos. Os banhos públicos eram os sitios predilectos das classes po- bres. Os jogos públicos, e os espectáculos no circo eram o grande divertimento de todas as ordens sociaes, e proporcio- navam amplos passatempos aos cidadãos indolentes. De facto não houve nunca outra cidade, tanto no mundo antigo ou moderno, que offerecesse tão brilhantes festas, nem governo algum tão solicito em proporcionar divertimentos a seus súb- ditos. Era assim que os chefes mantinham o socego publico. A guerra no estrangeiro, a distracção recreativa no paiz, a magnificência dos jogos e espectáculos públicos, e sobre tudo os soberbos triumphos de seus generaes e victoriosos exerci- tos> inspiravam o povo romano d'idéas exaltadissimas da grandeza da republica; e logo que o deslumbrasse a pompa e sumptuosidade de suas festas e divertimentos, a invencivel bravura do exercito, a gloria da republica, e a magestade da nação, deixava se governar á vontade de seus dominadores.

O Senado, porem, onde se achava investido constitucional- mente o governo, com quanto conservasse ostensivamente a sua autlioridade, não podia, por aquelles meios manter ver- dadeiro poder. Appareceram caudilhos populares, que ga- nharam a confiança do povo, e uma ascendência no próprio Senado.

Uma mudança de cousas produzio uma mudança de cos- tumes que influio sobre o systema em geral. Depois que os espólios da Azia enriqueceram Roma, a exorbitante riqueza corrompeu a moral de seus cidadãos, e os romanos deixaram de ser o que d'antes eram. A corrupção não reinou em to- das as repartições da administração, mas sendo a riqueza a

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fonte das commodidades da vida, tornou-se o alvo de todos. Os romanos deixaram de ser aquelles patriotas austeros, que, em todos os tempos, e em todas as occasiões, estavam prom- ptos a sacrificar sens interesses particulares aos interesses ge- raes. A avareza corrompeu agora a sua moral, e mudou seus costumes; e o interesse pecuniário antepunha-se ao bem pu- blico. Roma, aonde, durante os primeiros tempos, tudo era simples e ligeiro, aonde a ornamentação não tinha valor, mas aonde tudose reputava em relação ao seu uso e utilidade, tor- nou-se a sede do esplendor, da opulência, e do luxo que de dia em dia augmentava, até que por fim subio a um ponto de que a historia não apresenta nada egual. O mixto do luxo aziatico, com a ambição romana deu incremento ás differen- tes facções de que se compunha a republica.

Muitos cidadãos romanos podiam hombrear com príncipes soberanos em opulência e sumptuosidade e poderam exercer sobre o povo aquella influencia que o Senado, havia tanto tempo e com tanto successo, exercera; e as massas heterogé- neas da população estavam sempre á disposição de qualquer chefe que as recreasse com festejos, e que repartisse dinhei- ro ás mãos cheias pela multidão facciosa e indolente. A sol- dadesca romana prompta sempre a seguir o estandarte d'urn Mário, ou d' um Scylla, d'um Oezar, ou d'um Pompeo, d'um Octávio, ou d'um Marco António, tornaram-se mercenários, e aífeiçoando-se á causa de qualquer demagogo, esqueceram-se que eram cidadãos e soldados da republica. N'este estado des- moralisador, não admira que a discórdia dos bandos faccio- sos e adversos, que havião, de muito, agitado a republica, produzisse um vulcão , que ameaçou o anniquilamento de Roma, e determinou positavamente a abolição da forma republicana de governo.

O poder romano, á excepção d'algumas insignificantes con- quistas feitas pelos imperadores, chegara ao zenith da sua grandeza; e o império quasi que tomara as máximas propor- ções quando cahio a republica e se constituio o governo mo- narchico; mas se a capital attingira o maior grau de popula-

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ção, é algum tanto duvidoso. Nenhum documento estatístico ha que resolva esta incerteza, mas raciocinando em presença de circunstancias geraes, da experiência constante de causas e efíeiíos moraes e políticos, e sobre esta baze, aventurarmos uma conjectura, devemos suppor que a cidade imperial nào chegava ao máximo da sua extensão e população, mas não é improvável que fosse esta a era da sua maior opulência. Le- vou Roma 700 annos em subjugar e espoliar o mundo e con- centrando em si a riqueza accumulada das mais opulentas na- ções chegara ao termo das suas acquisições e achava-se nos primeiros tempos da sua dissolação.

A' excepção das províncias^ os espólios das nações, tinham, em grande parte, deixado (Taba.steçer seus cofres, e os seus exércitos voltavam menos carregados de espólios. As guerras rarearam, e faltavam inimigos dignos de competição dos con- quistadores. D'aqui infere-se que é esta a epocha em que Ro- ma chegou a enthesourar a maior massa de seus cabedaes. Depois, quando as fontes destas riquezas seexhauriram, e que as despezas desordenadas cresciam, grande parte da rique- za.accumulada em Roma necessariamente rtíluio para as províncias que, por meio da sua industria contribuíram lar- gamente para o luxo da metrópole. O contrario acontece nas capitães da moderna Europa. Nestas o incremento do com- mercio e da riqueza augmentam na proporção do luxo. Ro- ma não era commercial: a sua opulência não lhe recorda com- mercio, mas sim a guerra e a conquista, a rapina e o saque; nem mesmo se pode presumir que ella fosse uma ci- dade mercantil mesmo nos seus tempos mais florescentes. Alexandria era o império do commercio romano. Plinio ob- serva quanto o trafico da índia, feito pela porta daquella cidade, absorveu a riqueza de Roma; e parece por uma mul- tiplicidade de circunstancias que o commercio da cidade im- perial era geralmente de natureza que tendia mais a dimi- nuir que a augmentar a sua opulência; de modo que com quanto Roma fosse embellezada, e, talvez alargada a sua arca pelos imperadores, não parece provável que a sua opu-

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lencia fosse augmentada depois da dictadura de Júlio Cezar, ou, pelo menos depois do reinado d'Augusto, e qualquer que fosse a condição da massa collectiva do povo de Roma, é fo- ra, de duvida, que não obstante a immensa riqueza d'algunias famílias antigas, uma grande parte dos cidadãos romanos era pobre como claramente o provam os cálculos que nos tem sido transmitticlos do numero de cidadãos pobres, tanto na capital como em outras cidades do império que dependiam inteiramen- te dos donativos provenientes dos impostos.

A extincção de Carthago. 606 annos depois da fundação de Roma, 184 annos depois da conquista da Pérsia pelos ma- cedonios, e perto de 146 annos antes da era christã, consti- tue a epoclia memorável de que data o poder colossal de Ro- ma, e a origem da sua immensa opulência, com quanto fosse verdadeiramente a conquista da Macedónia e da Syria que vasou nos seus cofres a enorme massa de riqueza que produ- zio uma mudança completa nos costumes de seus habitantes. Roma, pela destruição de Carthago, sua formidável rival, su- bira acima de seus inimigos, e pouco mais tendo a fazer que voar de conquista em conquista, cedo se fez rica com os es- pólios das nações que havia subjugado.

A conquista da Macedónia e cios domínios gregos da Azia importou o luxo da Azia juntamente com os seus thesouros, e uma predilecção pelo faucto íornou-se geral em Roma.

Desde o tempo do primeiro triunvirato de Júlio Cezar, Pompeo, e Marco Cresso, ou um pouco antes, os esplendidos e dispendiosos festejos dos romanos, suas equipagens pompo- sas, seu3 séquitos numerosos, a magnificência dos seus espe- ctáculos públicos, e o deslumbrante esplendor de seus tri- umphos excederião os limites da credulidade, se não fossem confirmados por historiadores fidedignos, cuja authenticidade se acha sustentada por milhares de coincidências corrobora- tivas, que lhes imprime um cunho de verdade, inquestioná- vel. Descripções fieis de todas estas cousas subsistem ainda, feitas por authores conhecedores de cada uma circuustancia. Os factos eram mesmo de muita publicidade para se desfigu-

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rarera facilmente, e por consequência aquelles que os descre- viam não podiam incorrer em erro; nem podiam affoitamente apresentar ao mundo uma falsa exposição de cousas univer- salmente notórias. Desde o primeiro triunvirato até á queda do império, a historia de Roma é muito mais clara que a de outra nação alguma antiga, em rasão do estado florescente do paiz, da celebridade dos acontecimentos corroborados por diversas circunstancias, como também por causa de seus nu- merosos escriptores, não historiadores, mas também poe- tas, oradores, e moralistas, que todos alludiam frequentemen- te ás circunstancias geraes, politicas e moraes do povo roma- no. Se o luxo, qual torrente, invadio Roma logo que accumula- ra em si a riqueza do mundo por meio da conquista e da rapina, devemos ao mesmo tempo admirar o progresso das artes, da sciencia, e da litteratura entre seus cidadãos. Se nos é forçoso condemnar a corrupção da sua moral, não podemos, ao mesmo tempo, deixar de applaudir seu melhoramento intel- lectual. A conquista da Grécia introduzio entre os romanos o gosto pelas artes d'aquelle paiz e a sabedoria e a elegância grega, como também o luxo aziatico.

Todos os cidadãos de Roma que punham suas esperanças na vida publica, completavam seus estudos nas escholas de philosophia e rhetorica de Athenas, ou de outras cidades da Grécia. Romano algum, de posição ou meios deixava de ter uma educação esmerada; e Roma depressa rivalizou com Athenas nos differentes ramos de litteratura. Era a rhetori- ca o estudo predilecto dos romanos, e tinha mesmo sido, des- de a fundação do governo republicano, a parte mais impor- tante da educação. Como fossem elegíveis todos os cargos públicos, e como cada negocio publico, depois de discutido no Senado, era apresentado ao povo, cuja decisão não tinha appello nem aggravo, o dom da palavra era essencialmente necessária aquelles que aspiravam ás dignidades ou cargos do estado. Sobresair no Senado pelo brilho d'uina seductora eloquência, e acordar as paixões e dispor do suffragio popular pela persuasão e energia do discurso, era o alvo principal

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de seus esforços litterariose a máxima perfeição entre os roma- nos. Depois que as flores da rhetorica grega se enxertaram na eloquência enérgica e varonil romana, a oratória chegou ao ne pi lis ultra da perfeição. Isto passava-se no tempo de Cicero que, com Júlio Cezar, Marco António e outros, for- maram uma tão brilhante eonstellação cVoradores eloquen- tes como nunca fora vista no senado.

Grécia e Roma eram o solo nativo da eloquência, aonde esta primeiro se cultivou, e aonde se aperfeiçoou. A forma demo- crática de seu governo assim exigia. Os talentos militares e rhetoricos eram os degraus por onde se subia para as honras e riquezas tanto entre os gregos como entre os romanos ; e é de notar, que com quanto a experiência e recursos dos tem- pos modernos tenham feito grandes descobertas naphysica, na mathematica e na mechamca, ninguém os excedeu ainda na, elegância de seusescriptos, e mesmo é duvidoso se os temos egualado na eloquência verbal. Nos governos modernos, on- de tudo é regulado por princípios fixos, a rhetorica não étão necessária aos individuos que seguem a vida publica como sob os systemas populares da Grécia e Roma.

Considerando os poderosos effeitosda oratória antiga, des- perta se nos naturalmente a curiosidade a examinar de que princípios e circunstancias nasceu tão extraordinário motor das paixões, das resoluções e das acções dos homens. Deve- mos rasoavelmente suppor que os eífeitos tanto da rethorica antiga como da antiga poesia nos são apresentados sob cores muito vivas e por uma forma exagerada; mas dando-lhe o de- vido desconto, é forçoso reconhecer que o dom da eloquên- cia exercia um poder sobre os antigos que não poderia, por muito poderoso que fosse, exercer hoje.

Quaesquer idéas que tenhamos doestado das sciencias en- tre os antigos, devemos entender que aquelles conhecimentos limitavam-se a um pequeno numero d'individuos de génio, posição e riqueza. Os philosophos, os poetas, e os oradores da Grécia e Roma brilharam nos annaes da litteratura, e a celebridade de seus nomes, junto á elegância das suas compo-

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siçòes Ktterarias, dão-nos, ê verdade, uma idéa elevada maã ao mesmo tempo muito errónea da litteratura grega e roma- na. Muitos de seus homens de letras mereciam todo o applau-* so que os tempos vindouros lhes conferiram; mas é fora de toda a duvida que a grande massa do povo era analphabeta.

Assim succedia forçosamente em todos os paizes anterior á arte typographica. Antes d'aqnella era importante que figu- ra tão conspicuamente na historia do progresso intellectual, fora impossível estender a educação ás classes indigentes. As obras em manuscripto, pelo tempo que levavam a fazer, sa- iriam caríssimas e fora do alcance da maior parte, fazendo com que ninguém quizesse escrever, ou ensinar sem uma re- tribuição avultada.

D'aqui podemos imaginar o estado litterario de todas as na- ções civilisadas da antiguidade e concluir que, não obstante a tão apregoada sabedoria dos gregos e romanos, aquelles afamados mestres da humanidade, as massas d'aquellas na- ções era incomparavelmente mais ignorantes que hoje são as classes mais abjectas da Europa moderna, porque em ge- ral sabem ao menos ler; e aquelles que não gosam este bem adquirem conhecimentos pela conversação diária com os que tem uma pequena idéa de litteratura 5 porque ella, como o commercio, uma vez desenvolvida, espalha-se por mil diver- sos modos e n'uma infinidade de direcções.

O estado intellectual do homem, entre as nações da anti- guidade dava aos oradores d'aquelles tempos uma vantagem que não possuem os modernos, e contribuía, talvez, mais que outra circunstancia qualquer para o extraordinário effeito da sua eloquência. Os oradores da Grécia e de Roma dirigiam se nas suas assembléas populares, a um povo curioso e ávido de novidade, mas sem illnstração alguma, dependentes inteira- mente d'elles para informações sobre o estado das cousas. Hoje a circulação de noticias é tão activa que quasi ninguém igno- ra o que se passa. As gasetas correndo as povoações levam os acontecimentos do dia a toda a parte e quasi todos os lêem, cu ouvem alguma cousa do seu contheudo, quando se debate

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alguma medida cTimportancia. Deste modo preparam-se aa opiniões; os nossos estadistas não encontram a facilidade que encontraram os oradores gregos e romanos em accordar as paixões de seus auditórios, por isso que a matéria não lhes é nova, sendo por tanto necessário fallar-lhes á rasão e ao enten- dimento. O povo d'hoje não decidiria tão apressadamente co- mo entre os gregos e romanos; suspenderia o seu juizo até considerar maduramente o negocio, e diversos papeis e dis- cursos circularião de parte a parte,antes que a opinião publi- ca se pronunciasse, mas os cidadãos da Grécia e Roma caren- tes destes meios, tinham conhecimento dos negócios poli- ticos, quandoe como lhes eram apresentados da tribuna, e pe- lo prisma da deslumbradora eloquência dos oradores. O dis- curso cahia sobre os ouvintes como a claridade do relâmpago, as paixões acendiam-se; os ouvidos lisongeados, e a razão vencida com as pomposas phrases de, magestade do povo, gloria da republica, bem publico, e outras d'igual jaez de que os homeus d'estado tem sempre abundante reserva, e de que os demagogos não deixam nunca d'empregar como meios mais adequados para conseguir os fins.

Depois destas observações sobre a celebre republica de Roma, desde a sua fundação até que tomou a forma monar- chica; depois d'analysar os costumes, pobreza e simplicidade d'habitos nos primeiros tempos da republica, e o luxo, sum- ptuosidade e opulência em tempos posteriores; não podemos deixar de fallar da condição duma classe numerosa e infeliz que abundava nos dominios de Roma, e inquirir a causa d'um viver que se não contempla sem horror.

A par do immenso poder e deslumbradora sumptuosidade dos estados romanos, existia no seu seio uma classe desgra- çada d'iudividuos romanos que era excluída de todos os pri- vilégios da sociedade, e de todos os gozos da vida. Mr. Gib- bon orça em uma metade dos habitantes d'aquelle extenso império os escravos; e como os habitantes de todo o império romano não podiam ser em numero inferior áquelle da Euro- pa dos nossos dias, que segundo um calculo aproximado

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monta a 120,000,000, os escravos romanos deveriao andar por sessenta milhões, facto que traduz evidentemente a tyran- nia do homem sobre o seu semelhante. Aquelles desgraçados, á mercê do capricho de senhores absolutos, desprotegidos das leis, eram flagellados pelas mais leves transgressões. O go- verno, cônscio do seujestado desesperado, considerávamos uma classe perigosa e por tanto procurava opprimil-os o mais pos- sivel. Estavam por tanto completamente á mercê de seus se- nhores, que podiam d'elles dispor a seu bello prazer. Cada proprietário d'escravos tinha sobre elles illimitada authori- dade. Podia tortural-os, mutilal-os, ou fazei -os matar do mo- do que o seu capricho, ou crueldade dictasse. Não era res- ponsável perante as leis pelo tratamento que lhes desse ; na- da podia domar a sua tyrannia senão os seus sentimentos de humanidade, ou o próprio interesse da sua conservação. E' uma consideração melancholica que a escravidão existisse entre todas as nações da antiguidade de que temos conheci- mento, originada por diversas causas. Umad'ellas consistia no poder absoluto que em algumas nações tinham os pães sobre os filhos, que os authorisava a fazel-os perecer, vendei- os, ou dispor d'elles á vontade. Esta lei detestável foi uma das pri- meiras instituições romanas, estabelecida por Rómulo, logo depois da fundação de Roma. Durou considerável tempo en- tre os romanos, e era quasi geral nos tempos antigos, á ex- cepção dos judeos, que, por suas leis não podiam matar os fi- lhos sem consentimento dos magistrados; nem era permitti- do vender um hebreu a qualquer povo estranho. O castigo de crimes era outra fonte d'escravatura como eram as que- bras. Estas penas estavam subordinadas a differentes regula- mentos em diversos paizes : entre os judeos, pelo jubileo da- va-se perdão geral; em muitas outras nações a escravidão proveniente d'estas duas causas era perpetua e até mesmo as mulheres e filhos do criminoso, ou do devedor, eram complica- dos n'esta pena. Eram estas, até certo ponto, tantas outras causas de que nasceu o systema nefando de tornar um homem propriedade d'outro: mas a captura de prisioneiros, em tem-

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po de guerra, era a fonte mais abundante da escravaturar principalmente entre os romanos. Em todo o tempo em que existia a republica romana, o estado, sempre desinquieto, es- tava envolvido em perpetua hostilidade com as nações visi- nhas: cada victoria e cada conquista augmentava o numero descravos; e como a escravidão passava de geração para ge- ração, não nos devemos admirar do extraordinário numero d'escravos em Roma e outras partes dos domínios da republi- ca.

Nenhuns documentos existem de como fossem tratados os escravos entre os assirios e babylonios, persas e outras na- ções de remota antiguidade. Entre os judeos não estavam in- teiramente á mercê de senhores cruéis e arbitrários; como seres humanos, com quanto escravos, estavam sob a protec- ção das leis, que recommendava benevolência e misericórdia para o escravo e para o estrangeiro.

Estas recommendações da lei mosaica faz sobresair a ex- cellencia das suas doutrinas moraes comparadas com as ins- tituições dos mais celebres legisladores pagãos, eofferece uma prova evidente da sua origem divina.

Comtudo, se ignoramos como eram tratados os escravos nas mencionadas nações, são indisputáveis e melancholicas as provas do extremo rigor havido com esta desgraçada clas- se entre os gregosje romanos, mormente entre estes últimos. E' uma horrível mas, talvez, justa observação, corroborada por eminentes escriptores que as nações, que gosavam geralmente, a máxima liberdade, eram justamente aquellas que mais mal tratavam os seus escravos. A ser isto assim, o que é difficil de- terminar, custa attribuir a causa a um regimem constitucio- nal, devendo antes suppor que tivessem origem em outros motivos.

As mudanças que tiveram logar nos negócios politicos e moraes de Roma produziram, comtudo, uma mudança ma- terial nas condições da escravidão; e em quanto não podemos deixar de lamentar que o engrandecimento progressivo de Roma, pelas victorias das suas armas, augmentassem constau-

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temente o numero de seus escravos, ternos ao mesmo tempo o prazer de notar, que o luxo e opulência que as suas conquis- tas introduziram, melhoraram muito a sua sorte.

Nos primeiros tempos da republica em quanto os romanos eram pobres mas guerreiros, alheios ás grandezas, tendo mais em mira a acquisição que o goso, os escravos eram tratados com excessivo rigor, e empregados nos serviços mais traba- lhosos, a que acrescia a maior dureza que pode envenenar a vida. No estado mais adiantado da civilisação, quando as vi- ctorias de Roma, e a sua conquista dos reinos Áziaticos até o Euphrates, tinha introduzido entre os cidadãos o gosto pelo luxo, á proporção que augmentavam em riqueza e que a plii- losophia e a litteratura tinham modificado a indole, começou o corpo d'escravos a sentir os benéficos efíeitos d'essa opu- lência de seus senhores. Em logar de trabalho vi-dento e mau passadio, uma grande parte empregava-se como cosinheíros, confeiteiros, creados graves e outros misteres nas cazas das principaes familias e, como os domésticos da actuaudade, pas- savam também como os amos. Havia exemplos de serem 300 e 400 os escravos sustentados em casas particulares de cidadãos opulentos.

A distribuição dos fundos públicos pelas classes desfavo- recidas nos tempos florescentes da republica era de grande beneficio para a escravatura porque, sendo degradante a um cidadão romano servir seu concidadão, os grandes serviam-se com escravos, e a maior parte d'estes constituía a massa de seus familiares.

Outra causa não menos contribuía para modificar a sorte dos escravos.

A propagação d'esta classe devia necessariamente augmen- tar e tornar-se excessivamente numerosa com o andar do tempo.

Na idade primitiva de Roma os escravos aprisionados em batalha eram cVuma indole feroz e intractavel. Aquelles bár- baros de caracter guerreiro, inferiores em disciplina militar, não o eram em coragem e atrevimento aos próprios romanos

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e acostumados a um viver que todo elle eram emprezas milita- res e rapina, não era d'esperar d'elles uma sujeição passiva a uma vida laboriosa debaixo da oppressão de senhores tyran- nicos; e por isso conservavam-se estes na maior sujeição e ex- postos a trabalhos duros. Mais tarde, a grande massa de es- cravos não consistia tanto em prisioneiros de guerra cemo nos filhos d'aquel!es infelizes que tinham sido victimas d'a- quella sorte; e os seus descendentes, estando de ha muito ha- bituados aos romanos, familiarisando-se com os seus costu- mes, não tinham herdado o resentimento e disposição indomá- vel de seus antepassados,iuas faziam- se, quando bem tratados, bons e fieis creados; circunstancia esta que não podia deixar de dispor os amos em seu favor; e ha muitos exemplos|da de- dicação de escravos por seus senhores e da benevolência e amisade d'estes para com elles. Nos últimos tempos dava-se- Ihes carta d/alforria em recompensa de bons serviços, mas es- te costume ia-se tornando tão geral que o Senado julgou ne- cessário difficultar esta liberdade. Como o escravo não tinha pátria sua, era tido como cidadão/ depois de forro, do paiz a que pertencia seu senhor, e esta circunstancia podia provavel- mente influir para que muitos libertassem seus escravos, a íim de terão seu dispor um numero de homens livres, que, por motivos de gratidão ou de interesse, geralmente se liga- vam ao partido de seu antigo amo. Comtudo, como a alfor- ria dava os íóros de cidadão, a republica promulgou leis que excluía aquelles escravos libertos e seus descendentes, até cer- ta geração, dos cargos públicos do estado.

O melhoramento cia condição dos escravos é uma das con- sequências do augmento de riqueza em Roma, o que conside- ramos com praser, emais ainda quando vemos que cidadãos illustres como Pomponeo Attico, Marco Crasso, e outros, fa- ziam educar aquelles de seus escravos em quem percebiam ta- lento e génio, e parece que Crasso deveu uma grande parte da sua fortuna em mandar dar uma boa educação a seus es- cravos, dispondo cVelles depois com grande vantagem; porque ura escravo com habilidade era tido em grande conta. Em-

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pregavam se como mordomos e agentes de negocio, e a mui- tos se mandava ensinar grammatica e outros rudimentos das sciencias e litteratura. Mesmo muitos médicos e pharmaceu- ticos de Roma eram escravos; e a maior prova que pode apre- sentar-se do valor em que tinha os escravos, é que em ca- sos de doença desesperada, os grandes de Roma, se entrega- vam frequentemente nas suas mãos. Não obstante o fausto e opulência, o delicado gosto e aperfeiçoamento litterario dos romanos, encontramos certos traços, até mesmo nas mais cul- tas epochas, que não comportam a fama d'um povo civilisa- do. O prazer que elles tomavam nos combates dos gladiadores e escravos é repugnante á humanidade. Tal era, comtudo, o gosto geral do povo; e os mais esclarecidos e humanos entre- gavam-se, em preferencia a tudo, a estes divertimentos insti- tuídos sem duvida com o intuito de preparar e incitar os âni- mos para a guerra e mortandade; e o habito tornara lhes estas scenas agradáveis, constituindo parte essencial no seu syste- ma politico. O cruel tratamento aos prisioneiros de guerra é uma nódoa nos annaes de Roma; mas esta barbaridade era commum a todas as nações da antiguidade com raras exepções, uma das quaes é a maneira honrosa porque Alexandre tratou os captivos persas. De todas as nações da antiguidade os ci- vilisados e altamente polidos romanos eram talvez, n'este par- ticular os mais bárbaros. Poucos são os factos recordados pe- la historia d'um tratamento generoso aos prisioneiros, mor- mente nos tempos da republica. Os príncipes soberanos, os principaes chefes inimigos, que tinham a infelicidade de cair nas suas mãos, depois d'expostos publicamente, carregados de ferros, para abrilhantar os triumphos de seus vencedores, eram condemnados a uma morte cruel ; em quanto que aqu elles d'inferíor posição eram compellidos a se destruírem mutua- mente em duelio, ou a luctar com animaes ferozes para re- crear os bárbaros espectadores, que se vangloriavam do no- me de cidadãos romanos, ou então eram sentenciados a per- petua escravidão. Se um Europeo moderno tivesse presencia- do a sumptuosidade d'um triumpho romano, por mais lison-

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geira que fosse a idé*a concebida do poder e grandeza da re- publica á vista da pompa militar de semelhante espectáculo, qual não seria o seu sentimento contemplando a desgraçada sorte de tantos guerreiros, não menos valerosos, com quanto menos infelizes, que os seus vencedores insultuosos ? Quanto á barbaridade dos romanas para com a humanidade das na- ções civilisadas da Europa n'este particular, o contraste é cla- ramente em favor d'estes, e apresenta-nos um quadro hedion- do da inhumanidade dos antigos, especialmente dos romanos, esses cultos senhores do mundo antigo.

O esboço que damos do estado social e politico de Roma d'aquelles dias, é tão verdadeiro quanto os documentos histó- ricos, ainda existentes, nos fornecem. Roma estava então no auge do seu poder e o mundo civilisado, apoz annos de guer- ra e sangue, revoluções e commoções politicas , gosava de paz profunda á sombra de seus victoriosos estandartes ; tal era o estado das cousas quando o mundo estava nas vésperas d'uma revolução, de natureza muito diversa, e pela qual ainda não passara. Ia ter logar um acontecimento que deveria in- fluir sobre a condição da humanidade, até á ultima geração.

Annunciava-se a era christã. Os erros mais crassos da reli- gião envolviam então o mundo; e á excepção dos judeos, e, talvez os persaa, as massas da humanidade perdia- se no cam- po inintelligivel da mythologia e idolatria. Os persas, tanto quanto nos elucida a historia, nunca tinham adoptado outra forma d'adoração, nem admittido outra imagem do Ente Su- premo, senão o sol, e o seu symbolo, o fogo; pelos quaes pro- fessavam o maior respeito, como emblema vivo d'aquelle que é o creador e fonte da luz. E, com quanto esta religião se te- nha como idolatria, os persas não se podem reputar idolatras.

Seja qual for a interpretação que se a esta forma de ve- neração é um facto inquestionável que os persas, á semelhan- ça dos judeos, aonde quer que as suas armas triumphavam, aboliam a adoração de tudo quanto representava entes supre- mos feito pela mão do homem. Xerxes demolio os templos da Grécia, e destruio as imagens de seus deuses ; nem foi mais

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indulgente com os babyíonios, pois roubou e arrasou o tem* pio de Belo, que Cyro, Cambyses e Dário Hytaspe, sem du- vida por motivos politicos, pouparam. A religião dos persas inclinava-se mais para o deísmo que para a idolatria; ou, se- ria talvez um mixto dos dois systemas. Os pliilosophos d'ou- tras nações, especialmente os egypcios, gregos, e romanos, tinham estabelecido differentes formas e adoptado outras opi- niões. Muitos haviam concebido as mais elevadas idé.as da es* sencia e attributos do Ente Supremo e universal, mas as mas- sas de todas as nações, as massas da humanidade em summa, ignoravam completamente aquellas concepções e entretinham as idéas mais absurdas das cousas divinas. Desde que o ho- mem começou a raciocinar, não obstante a debilidade d'uma rasão inexperiente, o mysterio da sua existência não podia deixar de o surprehender. Deveria naturalmente reflectir so- bre a sua situação, e diligenciar descobrir a origem da sua existência, e a do mundo em que se achava, e não lhe deveria escapar a curta duração da vida. Depois que poderosas mo* narchias se estabeleceram, engrandecendo se por meio de con- quista, vindo mais tarde a ser victimas d'outros vencedores; depois que uma variedade de revoluções assombrara aquelles que observavam attentamente a mobilidade das causas huma- nas, e as numerosas e incessantes vicissitudes do mundo ; de- pois que a experiência trouxera a convicção da instabilidade do poder e grandeza dos homens, é de suppôr que devia cres- cer o desejo de descortinar o author da creaçào.

A inalterável lei do destino lhe teria necessariamente tra- sido a convicção que a vida tem um prazo fixo, estabelecido por um poder irresistível que não respeitava testas coroadas nem as posições mais elevadas da humanidade, e estas consi- derações o levarião naturalmente a meditar se a morte era o anniquilamento total do homem, ou se era simplesmente uma mutação, depois da qual elle tinha d'existir com uma renova- ção de forças n'um estado qualquer futuro.

Em quanto a parte philosophica da humanidade forcejava descortinar aquelle mysterio, as capacidades mais apoucadas

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nao podiâo deixar de presentií a existência d'um ente supe- rior, origem de todas as cousas e que, com poder absoluto, re- ge e dispõe de tudo a seu bello prazer, e que por consequên- cia era interesse e dever seu prestar-lhe homenagem e culto qualquer.

A pliilosophia então em voga demonstra como a rasão de- sajudada pode progredir na sciencia divina, não obstante di- vergir em princípios e forma de culto.

Temos dito que o Zabaismo dos Clialdeus consistia em adorar os corpos celestes, systema este que se generalisára e foi recebido no Egypto e na maior parte da Ásia. O homem em todas as idades, cônscio de quam pouco valia para se aproxi- mar do throno do ente supremo, sentio a necessidade dum mediador; e os babylonios, cujo principal estudo era a astro- nomia, imaginaram que os astros serião divindades subalter- nas, funccionando como mediadores entre um ente perfeito e o homem, creatura sua; e consequentemente veio a ser parte essen- cial da sua religião, a invocação d'aquellas entidades por meio dos sacrifícios e celebração de certos ritos. A religião dos egyp- cios era um tecido de representações allegoricas. Apresenta- vam os attributòs divinos, como também os phenomenos da natureza, sob o véo daallegoria,e isto deu origem ao culto de differentes animaes, com especialidade o boi, o mais útil da creação irracional. Hermes, o Egypcio, que se julga quasi contemporâneo de Moisés, como também do persa, Zoroastro, e entre os gregos, Orpheo, Anaximenes, Anaxágoras, Empé- docles, Melisso, Pherecydes, Thales, Pythagoras, Platão, Aris- tóteles, e muitos outros, acharam invenciveis rasões para provar a existência dum ente eterno e infinito, author do universo. As opiniões de todos estes homens, diz Lactancio, cifram- se em existir uma Providencia, quer seja a luz, ou a razão, ou o en- tendimento ou o acaso; é tudo aquillo a que nós chamamos Deos.

Em quanto á origem do Universo, alguns suppõe que fo- ra uma emanação eterna da Divindade; desta opinião foi Aris- tóteles, senão o fundador, ao menos um dos principaes sus-

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íentaculos; mas Platão, e a seita Platónica toda, suppunha qtte fora creado em um determinado tempo conforme um archity- po ou modelo d'eterna existência na mente divina.

Anaxágoras o philosoplio de Clazomena e preceptor de Péri- cles, o lieroe Atheniense, sustentou a unidade do Ente Supre- mo, e era tido na Grécia na conta de atheu, porque negava aos astros attributos divinos. (Vide Platão, de leg. pag. 886) Anaxágoras insistia que as estrellas eram soes e que os pla- netas eram mundos habitados. Tão longe está o systema da pluralidade de mundos de ser d'origem moderna como mui- tos imaginam.

Por outro lado, Anaximandro, contemporâneo de Phytha- goras e que viveu cerca de 600 annos antes de Christo, pelo tempo do captiveiro babylonico, foi o primeiro que, segundo consta, negasse a existência d'um Ente Supremo, e perten- deu attribuir tudo á acção d'uma massa immensa tomando necessariamente toda a qualidade de formas. A sua doutrina foi abraçada por Leucippo, Demócrito, Epicuro, Lucrécio etc. e combatida por Pytliagoras, Anaxágoras, Platão, Sócrates Aristóteles e muitos outros homens eminentes. Estas duas sei- tas, theistas e atheistas, por muito tempo dividiram a Gré- cia. Pyrrho formou então outra seita, cujo grande principio era duvidar de tudo. Levou-se esta doutrina ao maior auge de loucura, a ponto de sustentarem que tudo quanto vemos não passa d'uma illusão, â semelhança d'um sonho perpetuo. Ze- no fundou depois a seita dos estóicos. Este dizia que o Ente Supremo era omnisciente e todo perfeito mas que a sua es- sência era um puro ether, ou por outra que Deos não é* um espirito.

Quanto a um estado futuro, a maior parte dos philosophos da antiguidade acreditavam na preexistência da alma, ena sua perda, e ensinavam que as almas voltavão ao seu estado pri- mitivo. Esta doutrina da preexistência da alma foi sustenta- da por muitos dos antigos patriarchas e d'aqui provavelmen- te originou a idéa da transmigração das almas, generalizada entre os asiáticos, antiga e mesmo modernamente, em toda a

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parte da Ásia aonde a religião de Maliomed se não exer- ce.

Com quanto muitos pbilosopbos d'entre os idolatras entre- tivessem idéas tanto ou quanto boas sobre a essência e attribu- tos do Ente Supremo, tinham geralmente formado uma opi- nião errónea no que respeita o modo porque elle dirigia as cousas do mundo, e, quasi sem exepção, admittiam um nume- ro de divindades subordinadas aos quaes elle commettêra o governo das differentes parcellas do universo. Esta doutrina é ensinada por Aristóteles, que diz: «Devemos obediência a um Ser primitivo e superior, e a diversos outros, governan- do sob a sua direcção; e esta (diz elle) é a doutrina genuina dos antigos. Plutarcho um dos mais illustrados escriptores da antiguidade diz-nos : a Assim como o sol ê um para o mundo inteiro, apezar de ser conhecido por differentes nomes, nas diversas localidades, assim existe apenas um Ente Su* premo, uma e a mesma Providencia que governa o mundo, com quanto o adorem sob differentes denominações , e que tinha nomeado diversos poderes inferiores como minis- tros.

Suppõe alguns que esta doutrina da existência de divinda- des subalternas proveio da interpretação que davam ao modo allegorico porque os Egypcios fapresentavarn os diffe- rentes attributos da Deidade; suppõe outros que originara da consequência que tinham os homens da sua pequenez e necessidade d'advogado, ante o throno do grande Regulador de tudo, eque primeiro prevalescera em Babylonia aonde os sacerdotes pela continua contemplação dos astros, os conside- raram mediadores entre Deos e a creatura. Entre outros o dr. Russell parece ser d'esta opinião, e diz, que a substancia d'es- "ta doutrina, diversamente modelada, pode descobrir-se na maior parte dos systemas religiosos dos pagãos, e que os doze principaes deuzes dos gregos e romanos representam os sete planetas e os quatro elementos que regulavam tudo secun- dariamente conforme as crenças dos Chaldeos.

Em quanto a philosophia se perdia em conjecturas, as mas-

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sas nem tinham vagar, nem tendência, nem habilitações para aquellas cogitações. 0 polytheisino comtudo, adequava-se perfeitamente ao gosto depravado e entendimento do povo, in- capaz de comprehender o poder e energia d'um Ente Supre- mo superintendendo tudo na creação, e talvez, apresentan- do-se a mesma difiiculdade aos philosoplios, podia, em não pequeno grau, influir para admittir a hypothese estabelecida, com a differença que para os homens instruídos o polytheismo era subordinado ao theismo.

Os poetas aproveitaram o systema como campo fértil para espraiar a imaginação eembellcsar os seus poemas. Os deuses celestiaes, terrestres e os do inferno foram creados na imagi- nação ardente dos gregos; os penates, os deuses dos rios, das fontes, dos bosques e dos campos, eram admittidos n'este nu- mero; e satyras e nymphas, em que habitavam as almas de hcroes fallecidos, augmentavam esta monstruosa assemblda. D'este modo a mythologia pagã, mormente a dos gregos e romanos, tornou-se um complicado e ininteligível systema de absurdos mysteriosos, compondo uma phantasmagoria celestial de entes ideaes.

Até que ponto e com que modificação as especulações dos philosoplios e este variegado matiz de poesia estavam entre- laçados na religião popular de differentes povos pagãos, é impossível determinar com exactidão, os estadistas divergem segundo as differentes circunstancias moraes e pliysicas das gentes que elles tinham a governar: e consequentemente os seus systemas eram tão variados, e tão desfiguradas as idéas, que, determinar-lhes a origem, seria tão impossível como inútil. Mas, como as opiniões dos philosoplios actuavam pou- co sobre as massas, que as não podiam comprehender, e as ficções dos poetas não passavam d'uma exposição ideal, os legisladores e os inventores de systemas religiosos, entre os antigos, inventaram o meio d 'instruir o povo fallando-lhe aos sentidos, e esta foi a origem da idolatria. Suppõe-se que as explicações emblemáticas dos attributos do Ente Supremo, fo- ram primeiramente adoptadas pelo clero egypcio, que masca-

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rafa toda a sua sabedoria sob o véo da allegoria e expri- mia as suas idéas philosdphicas e theologicas por meio de hyToglificQS, mas outros inclinam-se a que tiveram origem em Babylonia, e que a idolatria teve eomeço n'esta eidade Quer tivesse origem entro os egypcios, quer entre os babylonios, o eerto é, que os estadistas da antiguidade, considerando que a humanidade se impressiona mais facilmente poro que lhe fere os sentidos, fizeram erigir estatuas áquellas divindades subalternaste a instituição de festividades soleinnes com sacri- fícios e ceremonias pomposas em honra sua, inspirou no po- vo veneração pelas deidades ideaes e por seus symbolos ma- teriaes, o d'este modo enraizou a idolatria e o polytheismo nos ânimos dos homens.

E no entanto a philosophia não eserupulisava cingir-se á religião das massas que ella considerava necessária como instituição politica tendente a refrear as paixões. Os testemu- nhos de Eusébio, Lactaneio, Santo Agostinho, e outros pa- triarchas da egreja primitiva o provam unanimemente.

Na epocha immediatamente anterior á vinda de Ohristo, a philosophia d'Epicuro ganhara preponderância em Roma. Accommodava-se á libertinagem d'um tempo culto, mas im- moral. A corrupção dos hábitos, e o seepticismo religioso, estavam então no seu auge; e muitos dos homens mais illus- trados vacillavam entre o deismo e o atheismo; entre os quaes conta-se o illustre Cicero, posto que se inclinasse mais para o primeiro systema.

Entregue a í=i, o homem perdeu-se no labyrintho de conjectu- ras, e a imaginação entre^ou-se ás maiores estravag-ancias de que ê susceptível a razão humana, quando não á convenien- temente dirigida.

Um estado moral e espiritual do mundo como fica des- cripto, e que ninguém averberá de desfigurado, claramente in- dica a necessidade da Kevelação Divina, que, apoiando os es- forços da razão humana, subordinasse os voos da imaginação, e nos orientasse acerca da eternidade.

Este grande propósito tinha de ser cumprido pela Revê-

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lação Christã, que tinlia de instruir o homem e dirigir o seu juizo sobre os attributos e acção do Ente Supremo, dos meios d'obter perdão, e do modo mais aceitável de lhe prestar culto. De todas as revoluções, esta era a mais importante e os seus effeitos, extraordinários, illimitados e eternos. O engrandeci- mento e queda dos impérios assyrio, persa, e grego, e o seu immenso augmento em Roma, eram acontecimentos mesqui- nhos e não soffriam o termo de comparação contrabalança- dos pelo christianismo, destinado a fundamentar uma revolu- ção d'idéas, e a produzir uma mudança completa no estado moral do mundo.

Todos conhecem sufficiente mente o evangelho, e portanto a sua citação seria aqui deslocada, e todos sabem que os seus pri- meiros propagadores, revestidos de coragem e perseverança, que nas suas circunstancias, nada d'este mundo podia inspirar, se dispersaram em direcções oppostus, para annunciar em diversos paizes a bem vinda nova da salvação. N'este accommettirnen- to, grande em demazia para as forças humanas, encontraram todas as difficuldacles e opposição que semelhante empreza poderia offerecer, nem menos era d'esperar. Pobres, despre- sados e incultos, destituídos de todas as vantagens, encarre- garam-se de propagar e estabelecer uma doutrina diametral- mente opposta a toda e qualquer religião até ahi seguida, uma doutrina que combatia altamente as paixões e os pre- juízos da humanidade; uma doutrina em summa subversiva de tudo quanto de tempos immemoriaes se havia respeitado. A religião christã prégou-se primeiro em Jeruzalern, theatro da paixão de Chrísto, como também dos principaes actos da sua vida.

Algumas conversões se fizeram, e uma joven egreja se es- tabelleceu na metrópoli da Judéa; mas o novo systema fora regeitado pela grande maioria da nação judaica, como se de- veria esperar. Em vista cio tratamento cruel de seu Fundador, durante a sua vida, pouca probabilidade podia haver que, depois de morto, elles o reconhecessem por seu Rei e Salvador; especialmente, considerando quanto estavam possuídos da

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idéa d'um Messias guerreiro e conquistador, sob cujos nctorio* sos estandartes, elles sacudirião o jugo romano, estabelecen- do um império poderoso como o dos babylonios, persas, e mesmo de Roma n'aquelles dias; ou ao menos restituir-lhes o antigo esplendor e poderio dos tempos de David e Salomão. Era isto que esperavam os sacerdotes, os chefes e quasi toda a nação judaica, e por tanto era muito improvável que elles quizessem reconhecer por Messias um individuo que elles tinham visto viver na mais humilde condição, e expirar no meio de tormentos como morriam os malfeitores, em virtude d'uma sentença por elles mesmo proferida, ou que tinham feito preparar contra elle.

Portanto, o evangelho, sendo regeitado pelos judeus, foi levado para entre os gentios. Fizeram-se conversões, edifica- ram-se egrejas, em quasi todas as cidades do império romano; na Antiochia, em Damasco, Philippi, Corintho, Athenas, Alexandria, Ephezo,na Thessalonia, e na própria Roma; aon- de, segundo as melhores informações históricas, os apóstolos, Pedro e Paulo, soífreram o martyrio na primeira persegui- ção de Nero, primeiro romano que promulgou decretos san- guinários contra os christãos; não por indisposição contra as suas doutrinas religiosas, mas como accusação d'elles ha- verem posto fogo á cidade, desejando afastar de si a imputa- ção de tão horrivel attentado.

O christianismo continuou, porém, a fazer progressos rá- pidos, e alguns philosophos e homens de conhecimentos, viam bons motivos para abraçar a sua doutrina e seguir os seus preceitos. Esta religião cedo adquirio uma nova prova da sua divina origem, com a celebre destruição da cidade e tem- plo de Jeruzalem, e a dispersão da nação judaica; aconteci- mento este circunstanciadamente predicto por Christo, cerca de 40 annos antes da sua realisação. Os promenores d'aquel- la scena de desolação e carnificina acham-se eloquentemente descriptos por Flávio Josephus, que, sendo primeiramente um dos chefes n'aquella guerra e depois prisioneiro dos roma- nos, estava bem ao facto, não das occorrencias princi-

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pães que r/eíla tiveram logar, mas até mesmo dos segredos de gabinete a que deveu sua origem; como por muitas vezes havia assistido ás reuniões do grande conselho, em Jeruzalem, aonde a guerra fora decretada e combinadas as medidas pa- ra a levar a efteito. Fora igualmente espectador dos aconte- cimentos occorridos durante o ultimo cerco de Jeruzalem; e devemos confessar que elle mostra haver contado as cousas com verdade, e com bastante imparcialidade, com quanto não ignoramos que elle escreveu as suas famosas obras sob a in- fluencia romana. A destruição do templo, e o inteiro arrasa- mento da cidade de Jeruzalem, offereceram um fortissimo ar- gumento a favor do christianisino. Era visível que o juizo de Deus caíra sobre aquelle povo, e que, segundo toda a pro- babilidade as mas esperanças de reganhar a sua nacionalida- de, e de readquirir preponderância na balança politica das nações, acabaram para sempre. Estas circunstancias combi- nadas com a notável prophecia de Christo, e outros muitos factos contemporâneos não podiam deixar d!iníluir profunda- mente sobre o espirito do homem pensador e que sabia ra- ciocinar sobre os acontecimentos moraes e suas causas; e co- mo a dispersão dos judeus, e o aniquilamento das suas aspira- ções á soberania temporal pesavam muito a favor do christia- nismo, a singular continuação cVaquelle povo no mesmo es- tado fortificou de século em século aquella crença até aos nos- sos dias; e a sua permanência como povo distincto, disper- so por todas as nações, sem incorporação em nenhuma, apresenta um phenomeno moral de que não ha exemplo na historia.

Chegados ao período em que fora conhecida a revelação christã, e até certo modo propagada no mundo, ainda que em embrião, olhemos o estado do império romano que constitue a feição principal dos tempos que estamos agora explorando.

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TYida a serie de factos políticos e militares que teve segui* inento sob o governo imperial está tão minuciosamente trata* do pelos authores antigos que, ninguém versado em bellas lettras, carece d'informações a este respeito. Cumpre observar que o império floresceu sem egual nos annaes históricos das nações, desde a sua fundação por Augusto Cezar, até á mor* te de Constantino; ou, até mesmo á morte de Theodosio e a fatal divisão do império entre seus dous filhos Arcádio e Ho- nório, periodo que abrange 430 annos. N'este longo espaço de tempo o império passou por vicissitudes provenientes de revoltas militares, de commoções intestinas, dos vícios e inca* pacidade d'alguns imperadores, e de depredações d'inimigos; mas o poder romano invulnerável a tudo, venceu todas as dif- iculdades e triumphou de todos os desastres. Durante o es- paço de quasi 200 annos, desde Augusto até Antonino Pio, o poder romano, estacionou, conservando-se no maior auge do Beu esplendor, e Roma gosou um estado de prosperidade po- litica e de felicidade que raramente é dado a nação alguma. Comprehendendo nos seus vastos domínios todas as nações versadas nas artes e nas armas, affamada pelo valor e disci- plina de suas invencíveis legiões^ possuidora d'immensos re- cursos, Roma, pelo terror de seu nome, fez tremer os povos bárbaros; e era raro quando algum a desafiava a desfraldar suas águias victoriosas Quando a tanto se aventuravam, a contenda era de pouca dura; as victorias de Roma eram bri- lhantes, seus triumphos gloriosos, e a derrota de seus inimi- gos decisiva e fatal. O systema politico dos imperadores era, em geral, mais pacifico que o da republica nunca fora, e á excepção da guerra de Vespasiano e de Tito contra os ju- deos, e aquella de Trajano contra os Parthos, encontramos poucas scenas importantes de carnificina e devastação du- rante o periodo mencionado. Três circunstancias desgraçadas apenas interromperam a felicidade de Roma, e são os vicios d'alguns imperadores, como Nero, Vitellio, e Domitiano; a es- cravatura, e a perseguição frequente dos christaos. Muito se tem escripto em desabono d'imperios vastos, mas ha também

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muito bons argumentos a seu favor. A união d'uma massa enorme de gente sob um systema politico ê uma das maiores seguranças contra a guerra, porque a divisão d'nm paiz em differentes estados, é origem certa d'hestilMádes, sangue, ra- pina e anarchia. Toda a vez que um paiz se divide, começam a apparecer tantos e tão oppostos interesses,e a desénvolver- se tantas ambições, que os conflictos são inevitáveis, arras- tando no seu vértice todas as classes da sociedade. Era fácil produzir immensos exemplos, mas basta citar o estado da In- glaterra no tempo da heptarcbia para evidenciar esta verda- de. N'uma grande monarcbia lia apenas um interesse poli- tico, e os alvos d'ambição, tenbão o attractivo que tiverem, são menos, e consequentemente ao alcance de pequeno nume- ro d'individuos; tudo converge para um centro em iogar de se desviar para as extremidades. Um interesse eornmum reú- ne a massa collectiva do povo, e as differentes províncias do império gosam as vantagens dum commercio livre e nunca interrompido, beneficio incalculável para toda a communida- de.

Admittindo mesmo um governo despótico inira vasto im- pério, e que o próprio monarcba seja um tyranno sanguiná- rio; assim mesmo, pela extenção de seus domínios, poucos in- divíduos, que quasi todos por vontade própria se acham em contacto com elle, sentem os effeitos da sua cruelda- de e despotismo. Aquelles, que por motivos d'interesse se aproximam da sua pessoa, e que são instrumentos da sua tyrannia, são os que geralmente sentem a severida- de do tyranno. As massas sentem menos a sua pres- são. Entre um e outros vae grande distancia, e os indiví- duos confundem se em multidão, o que não succede nos pe- quenos estados aonde o tyranno tem os olhos sobre cada um de seus súbditos, e por tanto é incomparavelmente meJhor tel-o a cem léguas longe do que á nossa porta. A historia univer- sal fornece-nos abundantes provas de quanto os grandes esta- dos concorrem para a tranquilidade do mundo e interesses geraes; e a historia de Roma abunda em argumentos convin-

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contes da superioridade do governo monarchico sobre o re- publicano.

Alguns imperadores eram monstros em vicios e crueldade; mas mesmo assim, comparando a condição de Roma sob as duas formas do governo, o estado de desassoccgoe persegui- rão a que estavam sujeitos seus cidadãos no tempo da repu- blica, o recenseamento militar obrigativo, os tumultos, as com- moções intestinas e incessantes hostilidades com as nações vi- sinlias, e por outro lado o seu esplendor e tranquilidade sob o governo imperial, tudo devidamente apreciado, não hesita- mos em declarar os romanos mais felizes sob o peor de seus imperadores, que sujeitos ao systema republicano. Ao menos, 6 incontroverso que disfructavam maior socego em certos rei- nados, como por exemplo n'aquelíes de Augusto, de Tibério, d'Arianno, e d'Antonino Pio, que jamais conheceram durante todo o tempo da republica. Muitos imperadores appellidados de tyrannos, não foram bem quistos da soldadesca mas até mesmo do povo. O principal objecto de perseguição para os tyrannos era o Senado, corporação aristocrática e orgulhosa, que por tanto tempo opprimira o povo.

O periodo mais florescente e tranquillo do governo impe- rial acabou com o reinado de Antonino. No tempo de Marco Aurélio, seu successor, os Quadi, os Altermanni etc. que ha- bitavam alguns pontos da Áustria, Bavaria, e outros districtos da Alemanha, ao norte do Danúbio, fizeram invazões terríveis no império, assim como depois fizeram os Dacios que occu- pavam a Moldávia, a Transylvania e a maior parte da Hun- gria ao norte daquelle rio. Depois d'estes os Godos tornaram- se inimigos terríveis do império romano. Esta nação, tao cele- bre na historia do império, e que tomou parte tão activa na sua queda, tinha primitivamente a sua sede na Scandinavia, hoje Suécia e Noruega, e d'ahi emigrou na era christã.

No tempo de Antonino, occupavam elles a Prússia e a Po- merania, nas immediações da foz do Vistula, e pelo mesmo tempo os vândalos habitavam o norte da Allemanha junto ás costas do Báltico, chegando até o Elba. Os Godos emigravam

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novamente na direcção do sud-este e apossaram-se da Utra- mia, e progredindo mais ainda pelo sul dentro, subjugaram os Dacios, e estabeleceram-se na Daeia, d'onde inquietaram terrivelmente os romanos. Os domínios dos Godos estrema- vam-se a leste pelo mar Euxino, ao sul pelo Danúbio, e divi- diam-se em dous reinos, o reino oriental, ou ostrogodos; e o occidental, ou visigodos. Seus territórios comprehendiam a parte occidental da Hungria, mas até onde chegavam para o norte se não sabe, porque o império Godo, ora abrangia uma grande parte da Polónia e da Alemanha, ora se limitava a territórios de pouca extensão. Os Godos, tendo-se apossado da Dacia durante o reinado de Philippe o Árabe, passaram o Danúbio no tempo de seu successor o imperador Decio, e pe- la primeira vez invadiram o império romano. Vindo aquelle imperador ás mãos com elles, foi derrotado e morto, sem que jamais lhe fosse encontrado o corpo, e o seu successor, Gál- io, celebrou um tratado de paz vergonhoso. Os Godos, era- prehendedores e aventureiros, no reinado de Gallieno atra- vessaram o Enxino em três grandes divisões, e saqueiaram a cidade de Nicomedea, e toda a Ásia Menor. Desceram até ao Hellesponto, tomaram Athenas, e expoliaram a Grécia toda, e as suas reiteradas invasões ameaçavam , nada menos, que a conquista, ou desolação das melhores províncias do império.

Para quem leu a historia de Roma é suffieiente um sum- mario dos acontecimentos, e por tanto bastará dizer que com quanto aquelles povos bárbaros fossem a maior parte das vezes derrotados e frequentemente com grandes perdas de gente, não cessavam de renovar as suas invasões, e no reinado de Gallieno, eram estas tão numerosas e tão repetidos os seus ataques ás fronteiras romanas que o império parecia aproxi- mar se ao seu fim. Além das calamidades d'estas guerras vá- rios chefes militares e governadores de provindas arvoraram o pendão da revolta, e o império romano veio a ser victima da anarchia, apresentando um quadro d'in felicidade politica, tão negro, quanto anteriormente fora esplendido e prospero. O

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reinado de Gallieno foi não somente infeliz, como tauribem de consequências humilhantes para a dignidade do nome roma- no, porque o imperador Valeriano, pae de Galieno, estava sen- do prisioneiro de Sapor, rei da Pérsia, que se diz o tratava indignamente, compellindo-o a curvar-se, fazendo do seu cor- po, assim dobrado, escabello, quando o soberbo vencedor mon- tava a cavallo. Diz se que Sapor o mandara esfolar depois da sua morte, e alguns julgam que o fora em vida, dependurando- se-lhe a pelle na sala das audiências e ahi conservada para at- testar que os romanos não eram invencíveis.

Em todo o caso é fora de duvida que Valeriano jamais recuperou a liberdade; e a sua desgraçada sorte é uma das muitas provas que offerece a historia de quanto é variá- vel a fortuna. N'este infausto reinado, as guerras civis e ex- ternas que conflagravam o império romano produziram a fo- me seguida d'uma tão devastadora peste, que por muito tem- to morriam por dia cerca de cinco mil pessoas na cidade de Roma, e segundo os cálculos d'alguns authores, apesar que os temos por exageradores, uma metade quasi da população do im- pério foi victima da guerra, fome e peste.

O reinado de Gallieno foi para Roma a epocha mais cala- mitosa desde a guerra Púnica até ao reinado de Honório. Cláudio, soldado de baixo nascimento, oriundo da Illy ria, uma provincia ao sul do Danúbio, confinando pelo norte e a lesle com o mar Adriático, sendo eleito imperador, fez quanto era possível para, em três anãos apenas de reinado, restaurar a gloria do império, e os reinados militares e fortes que lhe suc- eederam de Probo e Aurelieno, ambos como Cláudio, cam- ponezes Illyrios de origem, a consolidaram.

As victorias de Probo egualavam aquellas dos maiores he- roes da antiguidade; e o reino cVAureliano foi uma serie con- tinua de brilhantes feitos d'armas. No seu tempo os Altemani passando o Danúbio, chegaram a Milão, e achando cortada a retirada pelo imperador á frente d'um poderoso exercito, invadiram a Itália com tamanho arrojo que a própria cidade imperial esteve em perigo imminente de cair nas suas mãos.

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K'essa difficil conjui rotura, os habitantes de Roma, cercaram: a cidade e parte de seus subúrbios com a celebre muralha a que appellidaram, aureliana. Áquelle imperador, porem, tendo rechassado e quasi aniquilado o exercito invasor, foi assassi- nado, estando em marcha contra os persas.

Com quanto a gloria do império se recobrasse, e fossem os seus domínios restituídos ás suas antigas confrontações por aquelles illusíres camponezes das margens do Danúbio; não se imagine que Roma não sofTíesse os funestos effeitos da guerra e da anar.chia. As nações da margem septentrional do Danú- bio desde a sua nascente até á confluência com as aguas do Euxino, adquirindo informações sobre a riqueza do império romano, pairavam continuamente nas fronteiras; promptas a se aproveitarem do primeiro ensejo, para se lançarem, como uma torrente nas províncias.

Roma, porem, triumphoiv, e os dois inimigos tiveram de re- cuar ante o valor irresistível edesciplina de suas legiões sob o cominando de vários chefes, como Diocleciano, Maximiliano, Galerio, Constâncio, Cloro, e outros que haviam sido adestra- dos sob aquelles valentes imperadores, Cláudio, Aureliano e Probo; e que, de humilde posição, tinham, depois de subir os postos militares, passado a oceuparo primeiro logar no impé- rio do mundo.

Pelo espaço de cem annos anteriores ao reinado de Cons- tantino, o império romano apresentava um caracter politico extraordinário, pela rápida promoção, degradação e assassínio, de imperadores, revolta de chefes e com quanto fosse o tliea- tro da anarchia e guerra civil, não deixava de fazer terrível frente aos inimio-os externos.

E, não obstante, 6 forçoso notar que o povo gozava uma paz e socego que não conhecera sob o regimen republicano, porque essas revoluções limitavam-se á classe militar. Era es- ta que obrava e soffria em todos os negócios, o povo nenhuma parte tomava n'elles, e as invasões dos bárbaros eram cala- midades eventuaes e de pouca duração: mas no governo da republica a guerra era um accessorio á sua constituição e qua-

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si necessária a aua existência. Cada cidadão era soldado, e Roma semelhava- se a um acampamento. As hostilidades eram continuas; cada provincia apresentava scenas de rapina, até que, pela subjugação se pacificava. O systema adoprado pelo Senado era entreter o povo, conservando-o n'um estado per- petuo de guerra: aquelle dos imperadores era cie adoçar a Ín- dole militar, e preferiam confiar a sua segurança pessoal, ea do império a exércitos permanentes, acostumados ao seu com- inando, affeiçoados a si, e recrutados dentre as differentes classes, do que á eonscripção de cidadãos orgulhosos e refra- ctários.

Durante o espaço de cincoenta e seis annos que decorreu entre a morte de Gallieno e a enthronisaçào de Constantino no indiviso império do mundo, uma serie d'imperadores guer- reiros havia derrotado em toda a parte os bárbaros e desa frontado o nome romano.

O império recuperara seu antigo esplendor e ostentava a grandeza dos primeiros tempos depois do reinado de Augus- to; mas durante os últimos trinta e sete annos d'este periodo, o poder imperial achava se dividido.

Tendo Diocleciano repartido com Maximiliano a sobera- nia, estes imperadores dividiram o império, reinando o pri- meiro no Oriente e o segundo no Occidente. Este systema con- tinuou e as sub-divisões succederam-lhe, a ponto que houve tempo em que o império era regido por seis imperadores, Cons- tantino, Magnencio, e Maximiliano no Occidente, e Licínio, Maximino, e Galerio no Oriente. Com este singular systema cada imperador exercia authoriclade soberana na sua respecti- va parte, mas a sua authoridade unida extendia se a todo o império; e toda a legislação promulgava-se em nome de todos os imperadores. A divisão do império durou até que os im- peradores se começaram a olhar como rivaes, tornando-se por fim inimigos declarados, e lançaram o império na guerra ci- vil que terminou com a proclamação de Constantino á so- berania geral, 306 annos antes da vinda de Christo.

Este imperador tendo n'uma serie de campanhas suecessi-

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vaa, derrotado Magnencio c Licínio, fazendo se senhor abso* luto do território romano, voltou as suas armas victoriosas contra os inimigos de Roma. Passando o Danúbio, entrou até" mesmo o coração da Dacia, e reduzio os godos, e outros po- vos bárbaros a lai extremidade, que durante a maior parte do seu reinado, inimigo algum pode attaear o império, que então experimentou as doçuras da paz, e o seu poder chegou a ser o que fora no reinado d'Antonino.

O regimen politico do governo imperial não tinha prece- dente: podia cbamar-se o despotismo desfarçado pelas formu- las republicanas que ficaram, não obstante existir o funccio^ nalismo do senado e consular. Os empregos d'Edis, de Pre- tor etc. ficaram como no tempo da republica, mas existiam apenas em nome, e Augusto teve a sagacidade de os assumir, o que demonstra que aquelle hábil estadista conhecia bem a influencia que exercem certos títulos. O maior e mais sábio de seus successores seguio o seu exemplo, e todos os impera- dores que sabiam proteger os seus interesses,, fingiam respeitar aquellas formas republicanas; e nos primeiros tempos dogo- verno imperial, se o imperador nAo era eleito primeiro pelo Senado, a sua approvação ou sancção era indispensável para validar o acto. Com o andar do tempo, o exercito julgou di- reito seu exclusivo de eleger o imperador, e íez-se arbitro su- premo dos destinos do imperante. Os imperadores eram elei- tos ou depostos sómento pelo exercito, e o senado, para não perder ao menos as apparencias d'authoridade apressava-se a confirmar aquellas eleições militares. A guarda Pretoriana foi a primeira que se arrogou este direito e o seu exemplo de- pressa foi seguido pelos legionários. Esta fornia d'eleição de- generou em corrupção aponto, que a guarda Pretoriana, ten- do deposto e assassinado o imperador Pertinax, vendeu em hasta publica o cargo imperial, apresentando um facto de usurpação e licença militar sem paralello na historia; a sobe- rania do maior e mais poderoso império do mundo posto em leilão e entregue a quem mais lançasse 1 O preço porque foi vendido a Didio Juliano, segundo Mr. Gibbon foi de 6250

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ôlraclimas, cerca de um couto cento e vinte mil reis. Á cons- tituição de Roma era o despotismo militar puro. De- pois que se aboliram as assembleas populares, no começo do reinado de Tibério, a constituição ostensiva do império fa- zia eleger o imperador pelo senado como general em chefe dos exércitos do império, ou como dizião ainda os romanos, da republica, de modo que o senado era o corpo legislativo, mas o executivo estava todo nas mãos do imperador. Mas a constituição dos tempos de que falíamos fazia dependente os im- peradores de eleição militar, o exercito reinava e o imperador era meramente seu agente; a peior forma de monarchia electiva, porque imperador algum, por grandes que fossem as suas vir- tudes e merecimento, podia sustentar-se sem cuidar de con- ciliar a graça do exercito. Revestidos do poder executivo e tendo á sua disposição toda a força militar do império, os im- peradores desprezavam a authoridade legislativa do sena- do.

Até o reinado de Adrianno, os imperadores promulgavam leis na qualidade de magistrados romanos, Gom authorisação do senado; mas Adrianno concentrou em si a lei, e depois do seu reinado, não a admininistração publica, como toda a ju- risprudência do império modelava-se pela vontade do impe- rador.

Temos dito que os romanos nos últimos tempos da re- publica, tinhão-se afastado d'aquellas máximas que excluião do exercito indivíduos de classe inferior, e que Caio Mário fo- ra o primeiro que as renovou, sendo este exemplo seguido por outros chefes ambiciosos. Custa mesmo a acreditar que um Sylla, um Cezar, ou um Pompeo excluíssem de seus exérci- tos quaesquer pessoas aptas para serviço activo, e consequen- temente anterior á abolição do systema republicano, grande fora a mudança effectuada.

Depois do estabelecimento do governo imperial, os impera- dores, preferindo exércitos permanentes, recrutados nas por- vincias, á conscripção militar de cidadãos, hião buscar os seus soldados entre as classes ínfimas, e admittião gente sem dis-

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tincção nas legiões romanas, ficando desde logo gozando o foro de cidadãos, que, em consequência da isenção cVimpos- tos a que estavam sujeitos os provincianos e dos donativos públicos de dinheiro como fica dito, erão immunidades grandes, tendo aquellcs donativos antes augmentado que dimi- nuído sob os imperadores. O soldo animal d'um legionário foi fixado por Domiciano em doze moedas d'ouro, somma esta equivalente a quasi 56^000 rs. e no fim de 20 annos de ser- viço recebião 560$>000 rs. ou seu valor era terrenos.

O famoso corpo, intitulado a guarda Pretoriana foi orga- nisado por Augusto para defeza própria e da capital. Tinliào dobrados vencimentos em relação aos legionários. Ao prin- cipio compunha-se de 10000 homens. Três cohortes aquar- telavam em Roma, e o resto nas suas immediações. Depois foram todos reunidos em Roma por Tibério e acampados junto ás muralhas. Vitelli elevou o seu numero a quinze mil. A guarda Pretoriana recrutava- se cTentre a mocidade Italiana até ao reinado de Septimo Severo que a licenciou como castigo pelo assassinato do imperador Pertinax e pela venda do im- pério em hasta publica.

Severo formou então um novo corpo de guardas Pretoria- nas em numero de 50000 composto dos melhores soldados, escolhidos d'entre as legiões. Aquelle imperador augmentouo soldo e gratificações sem exemplo até ahi, acostumando-os a extraordinários donativos em todas as occasiões de festejos pú- blicos. Dioclesiano e Maximiliano dissolveram o corpo preto- riano de seu antigo cargo de guarda de corpo, connando-o a dois regimentos cie Ihyricos a que chamavam Jovianos e Her- culanos, tomando elles próprios os appellidos de Joviano e Herculano; querendo, segundo parece, fazer acreditar a seus súbditos que elles hombreavam com os deuses, ou que ao me- nos eram de origem celeste. Constantino apoz sua victoria sobre Maxencio, receiando a manutenção de tão perigoso cor- po dissolveu-o; e tendo, em consequência da sua opposição, tomado á viva força o seu acampamento, os distribuio entre as tropas das provincias. Assim se dissolveu aquelle celebre

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corpo do exercito que tantas vezes dispozera do império do inundo.

Quando terminávamos as nossas observações no período do reinado d'Augusto, contemplamos Romano zenitli da sua gloria, senhora do mundo, centro do poder, riqueza e scien- cias, como também do luxo e da dissipação; a sua riqueza e poder pouco mais poderiào augmentar; mas o luxo subio sob o governo imperial. Os cidadãos não sonhavam em conquis- tas e espoliações, pensavam em gozar pacificamente o que tinham ganho. As suas guerras rarearam depois d' expirar o regimen republicano, e quando se faziào era mais para de- feza que para dilatação das fronteiras do império.

Esta mudança da guerra para a paz deveu-se em parte á índole pacifica de vários imperadores e á pouca importância do senado , que não exercia sobre o povo a antiga influencia levando-o a pegar em armas sob pretexto de gloria e conquista e, talvez, sobre tudo á razão que o império, nada tinha a ganhar, mas muito a perder hos- tilizando as nações visinhas cujo estado não desperta- va sentimento algum d'ambição ou cubica. As magni- ficas representações no cerco eram de maior apparato, e os jogos públicos tinhão logar com mais pompa no tempo do império; e os triumphos de vários imperadores, com especia- lidade de Vespaciano, e de seu filho Tito, como também aquelles de Trajano, de Probo e d'Aureliano, appresentaram vistas d'uma magnificência sem igual. Parece que fora a po- litica dos imperadores, como tinha sido do senado, trazer os ânimos entretidos, proporcionando ao povo espectáculos gran- diosos e fazendo-lhe donativos ricos, como também embelle- zar a cidade, que quasi todos os imperadores, cujo reinado fosse de duração, não deixavam de fazer, erigindo um ou outro edifício magestoso como padrão do seu governo e estima pe- lo povo romano. Os edifícios de primeira ordem, e outros tra- balhos estupendos, que teem chamado a attenção da posteri* dade e dos quaes as veneráveis ruínas ainda hoje attes- tam as aspirações do homem, foram obra dos impera-

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dores; taes são o ampliitlieatrp de Nero e Tito, os arcos trium- phaes, a columiia de Trajano, o mausoleo d'Adrianno, hoje castello de Santo Angelo, os banhos de Diocleciano e muitas outras que seria fastidioso enumerar.

Durante o império é indubitável que a cidade fora muito alargada e embeílezada, e como acontece em todas as capi- tães ricas e luxuosas, devemos suppor que um grande nume- ro d'artistas e negociantes, de todas as classes, terião concor- rido a um logar que estava sendo a sede da prodigalidade.

Julga-se que nunca Roma foi tão populosa, nem mais ex- tensa que no reinado d'Augusto. Isto, porem, é um ponto impossível de precizar porque os historiadores desprezaram as particularidades importantes para nos contar por miúdo, o que souberam, e que mesmo não souberam, de batalhas, cer- cos, revoluções, e uzurpações; enchendo as suas paginas de narrações de mortandade e dissolação que deshonram a hu- manidade, em quanto que nos deixão advinhar qual fora o progresso das sciencias, do commercio e das artes.

A um author contemporâneo dos imperadores Constanti- no, Constâncio e Juliano devemos a melhor descripção do lu- xo romano d'aquelles tempos. Os grandes de Roma, diz elle manifestaram a sua posição e riqueza pela sumptuosidade de seus carros, muitos dos quaes eram de prata massiça d'eaque- sito lavor, e os arreios dos cavallos e muares ricameute embu- tidos de ouro, ostentando também espantosa magnificência no vestuário. Seus compridos mantos de purpura fluctuamlo á mercê do vento, descobrião, uma vez por outra, ricas túnicas, bordadas a ouro com figuras d'animaes. O exemplo dos no- bres era seguido pelas damas e pelos plebeos opulentos cujos carros se vião constantemente girando em volta da immensa cidade e seus subúrbios. Em sumiria, o luxo, nos ultimostem- pos do império foi excessivo. As muzas tinham emmudecido desde a abolição da republica. Sob o governo imperial foram substituidas por farças obscenas, musica effeminada e pela pantomima muito em voga, ultimamente, entre os romanos. Nos espaçozos e magníficos theatros de Roma, dançavam três

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mil bailarinas, três mil cantoras alem dos regentes dos difie- rentes coros, mas o divertimento favorito do povo consistia nos jogos públicos e espectáculos no circo. Pode-se acres- centar a isto os banhos públicos a que pessoas de todas as je- rarchias tinham accesso por um preço módico não excedente a três reis do nosso dinheiro. Nenhuma cidade oíierecia tan- tos e tão esplendidos passatempos, táo baratos, como Roma. Mas a par do augmento do luxo declinavam as sciencias. Os ajuntamentos populares encontraram opposição no tempo de Augusto e foram totalmente prohibidos no reinado de Ti- bério. A rhetorica perdeu a sua importância e de pouco aer- via a quem a cultivava e ao publico. Quaesquer formas que ainda existissem, a constituição estava mudada completamen- te. Os ânimos no senado e as paixões populares não se acor- davam já pela eloquência. Despunha de tudo um chefe mili- tar, engrandecido com o titulo de imperator ou general que nós traduzimos por imperador, e que entremos romanos, signi- ficava verdadeiramente generalíssimo ou commandante em chefe de toda a frrça armada da republica, como impropria- mente denominavam ainda o império romano. Perdido o gosto pela oratória, a litteratura deixou de progredir como nos últimos tempos da republica. Os mais distinctos escriptores dos tempos modernos não tem podido exceder as composições de Cícero e as da era Augustina. Durante o prospero e iilus- trado período que vae desde a fundação do governo imperial ate' o reinado de Marco Aurélio a declaração das lettras é me- nos sensível; porque posto haver a eloquência do povo deca- indo muito, os imperadores animavam a litteratura com o seu exemplo, como homens de lettras que erão, especialmente Augusto. Adrianno, Antonino e Marco Aurélio. Depois d'este período, as sciencias declinaram rapidamente. Muitos dos im- peradores que lhes succederam eram homens rústicos, que, por difTerentes circunstancias favoráveis, havião saindo das ultimas classes da sociedade e cingido a purpura imperial, tendo em pouca conta a litteratura. A phiíosophia dos chal- deos, dos egypcios, dos persas, gregos e romanos, consistia

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principalmente nos preceitos moraes, ou nas sciencias abs* trusas, em que a rasão, chegando até certo ponto, tinha de parar e perdia-se em conjecturas. A sua philosophia não se baseava na experiência que modernamente tem resolvido tan- tos pontos duvidosos e feito tão importantes descobertas. An- terior ao reinado de Constantino todas as sciencias tinhão de- caindo muito. O imperador, porem, protegeu os homens de génio, e com quanto lhe faltasse uma educação litteraria cleli- genciava, quanto podia, para fazer reviver o amor pela litte- ratura e bellas artes, mormente d'estas de que muito carecia para o embellezamento de Constantinopla; mas o estado de depreciação era muito grande para melhorar em um rei- nado, e aquelles que lhe succederain foram desfavoráveis á sua cultura. O reinado de Constantino, porem, produzio, ou achou feitos alguns homens d'extraordinario talento e eru- dição entre os christãos, particularmente o eloquente Lactan- cio, e o famoso Eusébio, bispo de Cesárea, homem d'uma erudição rara, como provam os seus escriptos; e em uma das suas obras, cita nada menos que quatro centos authores gregos. N'estes tempos, o estudo de tlieologia começou a pie valescer sobre os outros.

O melhoramento da sorte dos escravos mereceu a attenção do governo imperial e nos últimos tempos da republica as mudanças politicas e sociaes tinhão concorrido para benefi- ciar esta classe, completando a sua acção sob o regimen dos imperadores; por isso que o luxo uma das causas mais favo- ráveis aos escravos, tomara ainda maior incremento; e o sys- tema pacifico dos imperadores, desde o começo do império, ató a invasão dos bárbaros, fizera com que fosse pouco con- siderável a importação d'escravos; de que resultava necessa- riamente que o seu valor crescia a par da sua escacez, fazen- do com que fossem mais estimados.

Os principios republicanos, e a distribuição dos impostos entre as classes pobres da socidade, excluio toda a tendência entre os ricos e toda a necessidade entre os pobres de certos empregos que, modernamente, ninguém reputa deshonroso

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c todos aquelles cargos que nas cortes civilisadas se dão aos súbditos de superior graduação eram tio tempo do impé- rio romano exercidos por escravos. E de facto os imperado- res tinhão boas rasões para preferir os escravos aos cidadãos romanos para o seu serviço domestico. Imperadores houve que legislaram em beneficio d'esía infeliz classe. O imperador Adrianno, com especialidade, negou aos senhores poder ar- bitrário sobre seus escravos e de que estavam na posse des- de a construcção de Roma, e collocou os escravos sob a pro- tecção da lei. E'este exemplo, entre outros mil, que prova que o governo monarchico é geralmente mais favorável ás classes ínfimas do que o republicanismo ; porque em todos os tempos chamados da liberdade, nenhum regulamento se fez em fa- vor daquella desgraçada raça, que em todo o tempo cia repu- blica estivera sempre sem o abrigo da lei.

temos notado que nos dias mais opulentos da republi- ca a alforria aos escravos tornou-se moda, ou por generosida- de, ou por interesse.

O senado decretou leis para a exclusão dos escravos e seus descendentes dos cargos públicos do estado. Estas leis porem caducaram no tempo do império quando o recenseamento para o exercito conferia os direitos de cidadão a pessoas de todas as jerarchias sem excepção. As distancias entre a es- cravidão e a liberdade diminuiram gradualmente, e Diocle- ciano, o filho d' um escravo liberto, e que se diz nascera an- tes da liberdade do pae, tendo sentado praça em uma das le~ giôes romanas e subido os postos militares, cingio a purpura imperial, foi aclamado imperador pelo exercito, reconhecido pelo senado, e reinou com distineção sobre o orbe romano.

O que mais contribuio para fazer passar o governo impe- rial aos olhos da posteridade como iníquo e tyranno e para estigmatizar muitos imperadores de sanguinários foram as frequentes e cruéis perseguições entre os christãos; mas se exa- minarmos bem o caso, muitos imperadores ficarão justifica- dos; porque ê de notar, que não obstante essas injustas per- seguições, poucos erão maus por instincto. Muitos dos que

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promulgavam decretos sanguinários contra os cliristâos, nao tinham, como é sabido, indisposição contra o christianismo ou aquelles que o professavam, e pelo contrario os nomeavam para empregos honoríficos e lucrativos, até que eram sedu- zidos por maus conselheiros, que, ou tinhão ódio ás doutrinas enristas, ou ciúme de certos indivíduos d'aquella religião. Isto dava-se com Vaierianno que, no começo do seu reinado, era particularmente benigno para os christãos elevando-os aos mais altos e lucrativos cargos, até que por occasião da in- vasão das províncias romanas por Sapor rei da Pérsia, dei- xou-se convencer por cortezãos intrigantes e pelos sacerdo- tes que todas as calamidades que soffria e ameaçavam o im- pério eram mandadas pelos deuzes, pela protecção dada a uma raça de gente, inimiga capital do seu culto. Eram estes os laços de que se serviam para levar os imperadores a sanc- cionar as perseguições de que elles eram os authores.

As perseguições aos christãos tiveram três causas ; os ciú- mes das pessoas no poder, ou d'aquelles que ao mesmo aspi- ravam; as intrigas dos sacerdotes pagãos e d'aquelles empe- nhados na sustentação do paganismo; e finalmente a supers- tição das massas.

Quem sabe o que é a corte e o que são os cortezãos, sabe o que são os zelos dos favoritos, dos candidatos ás graças e os meios empregados para indispor aquelle de quem ha depen- dência contra os seus rivaes. Quando taes indivíduos viram os christãos elevados aos cargos que elles ambicionavam, e que não encontravam contra elles fundamento para os aceu- sar quer de traição, quer de mau proceder, lançavam mão do ultimo recurso, e aceuzavam-nos d'impiedade, como inimigos e desprezadôres dos deuzes do império. Assim fizeram os cortezãos de babylonia em relação a Shadrach, Meshech e Abdenago, e os persas a Daniel. Quando os primeiros viram •os referidos três homens gozando a protecção de Nabucodo- nozor, aceuzaram-nos áquelle Príncipe por não adorarem os deuses queelle adorava, e os últimos por iguaes motivos, quei- xaram se de que Daniel desobedecia ás ordens do rei. Con-

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cebe-se facilmente como os sacerdotes d'um culto, cujas cere- monias eram de grande pompa, tinham a peito a susten- tação cVum principio d'onde lhes provinham honrarias, proveito e influencia. Os ministros do paganismo não padiam deixar de notar o progresso gradual das doutrinas christãs. Viam escacear o numero das offertas, diminuir-lhes o credito e presentiam os males que ameaçavam a sua religião declinante. Os philosophos viam também abalados seus systemas, e em perigo a sua reputação. Os seus interesses coincidiam com os dos padres, e ambas estas classes arrastavam com- sigo os artistas encarregados das obras e ornamento dos tem- plos de que temos um exemplo frisante em Demétrio, ourives de Epheso. O paganismo era todo de pompas, e grandezas, próprias, não para fanatisar as massas, mas mesmo para attrahir os homens cultos. A quantidade e magnificência de seus templos, as soberbas estatuas de seus deuses, e os cu- riosos e ricos adornos de que se serviam nos sacrifícios e ceremonias, empregavam grande numero de artistas, e as festividades frequentes e explendidas recreavam o povo. De todo, empenhados em sustentar um systema de que colhiam tantas vantagens, os sacerdotes formavam á vanguarda, e não perdiam occasião de promover a perseguição, quando qualquer calamidade, como a peste, a fome, ou uma guerra infeliz, affligiam ou ameaçavam o império. Attribuiam estes males aos christãos, e persuadiam aos imperadores que a ira dos deuses, podia ser applacada com o sangue dos chris- tãos. As representações dos padres, secundadas por outras classes interessadas, operavam sobre os imperadores, vários dos quaes tinham, de condição humilde, subido ao throno, pelos seus merecimentos militares, ou pela intriga, ou pela uzurpação, e por tanto conheciam quanto era precária a sua conservação. As idéas supersticiosas do povo, vinhaiu em seu auxilio, e a fúria popular obrigava em muitos casos os governadores de provindas a executar as leis decretadas con- tra os christãos com maior rigor do que, aliás, se observa- ria.

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Vú-se pois que differentes causas concorreram para encher os kalendarios de inartyres, e povoar o céo de santos.

O Ente Supremo tinha, porem, resolvido que fosse a cruel- dade cios homens que fizesse sobresair a coragem e a f é de seus servidores, e que demonstrasse que todo o poder e artifi- cio, combinados contra o christianismo, provasse apenas quanto são inúteis os exforços da creatura, logo que estejam em opposição com a vontade Divina. O sangue dos niarty- res fora como semente cahida em terreno fértil; e o numero de christàos cresceu rapidamente, não obstante o destroço que lhes faziam seus perseguidores. Nos fins do terceiro sé- culo a egreja descançára longamente da perseguição, e du- rante este período de tranquilidade, tornou-se conspícua e opu- lenta. O clero aprendeu a arte de permutar os bens espiri- tuaes pelas riquezas temporaes dos que tinham sob a sua direcção, e muitos prelados viviam muito faustosamente, co- mo aconteceu a Paulo de Samosata. Os christãos viviam tranquillos, gosando todos os privilégios dos súbditos ro- manos por espaço de 40 annos, e eram altamente protegidos pelo imperador Diocleciano, quando sobre elles rebentou uma tormenta, que parecia ameaçar o aniquilamento do christianismo. Os seus sequazes tinham augmentado tanto, e gosavam por tal forma o favor do imperador, que as mas- sas pagãs temeram o incremento progressivo d'uma crença que os ameaçava de morte, e exigiram do imperador que fizesse sustar, pelo exterminio dos christãos, a vingança de seus deuses, prestes a cair sobre o império, pela tolerância d'um culto contrario. O imperador, com quanto tivesse pas- sado a vida nas campanhas, e fosse pouco versado em maté- rias religiosas, mostrou-se ao principio decididamente adver- so a medidas d'intolerancia.

Asseveram vários historiadores, que se passaram seis me- zes antes que o podessem persuadir a sanccionar com a sua authorisação o infernal projecto, resistindo com inabalável firmeza ás importunações dos padres e seus sequazes, enca- xando com horror as consequência d'uma perseguição contra

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tão considerável numero d'inoffensivos súbditos. Maximilianor a quem elle fizera seu collega no cargo imperial, havia dado seu assentimento ás sollicitacões dos inúmeros do christia- nismo, e Diocleciano, finalmente, assignou de mau grado o sanguinário decreto. Não tardou muito que elle se executas- se, e tudo quanto o infernal espirito da perseguição pode ideiar de bárbaro se poz em pratica contra os adeptos d'aquel- la religião. Esta foi a perseguição mais rigorosa que a egre- ja nunca experimentou; e julga-se que o numero de marty- res, foi maior do que em nenhuma outra. A Inglaterra foi a única provincia do império, que se subtraiu aos seus eífeitos. N'este paiz os christãos encontraram protecção e so- cego sob o governo recto de Constâncio Moro, pai de Cons- tantino, o grande, que, com quanto fosse pagão, era decidi- damente avesso a toda a qualidade de intolerância em ma- térias religiosas, sendo para elle doutrina corrente, que at- tendendo á diversidade d' opiniões sobre o modo mais agradá- vel ao Ente Supremo de lhe tributar homenagem, e sendo todos filhos d'um Pai commum, cada um estava no seu in- contestável direito de lh'a render como melhor entendesse. O espirito liberal d'este imperador protegeu os christãos n'aquella parte do império, sujeita á sua authoridade, até que Constantino, seu filho, appoderando-se do governo geral dos dominios do Occidente, de combinação com Licinio, seu colíega no Oriente, promulgaram em Milão- seu famoso edicto de plena liberdade de consciência, que immediatamente poz termo aos horrores da perseguição em todo o império.

Paremos n'este ponto da historia da egreja, a íim de pre- pararmo nos para a contemplação duma nova e extraordiná- ria revelação da Divina Providencia, do triumpho em favor do christianismo.

Olhando o novo e extraordinário aspecto dos negócios da humanidade n'esta melindrosa crise, não podemos deixar de

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considerar o reinado de Constantino como um distincto e importante período tanto na historia do império romano, co- mo da religião cliristã. Estabelece a linha de demarcação en- tre o paganismo e o christianismo, entre a predominação d'a- quelle systema de polytheismo e idolatria, que, por tantos séculos envergonhou a humanidade , e o triumpho das idêas christãs, que d'ahi por diante illuminou com a sua be- nigna e radiante influencia a razão humana.

Pôde asseverar-se, sem receio de contradicção, que o rei- nado de Constantino, pelo facto da consolidação do christia- nismo, adquiriu uma influencia mais duradoura sobre a con- dição moral da humanidade, que aquelle de qualquer outro monarcha que jamais appareceu no throno politico do mun- do. O império romano, a que Constantino presidiu, quando no auge da sua grandeza, não existe; e a cidade de Cons- tantinopla, que elle edificou, a fim de perpetuar a gloria do seu reinado, existe hoje nas mãos cl'um povo inimigo da reli- gião, que elle com tanta assiduidade estabelecera, e que, nos seus dias, era uma nação desconhecida; mas na consolidação do christianismo, levantou elle um munumento á sua memo- ria, mais duradouro que o bronze, ou que o mármore, um edi- fício que jamais cairá em ruinas, e que o tempo tem demons- trado ser inabalável.

Sem entrarmos em detalhes fastidiosos , bastará notar numa breve exposição dos acontecimentos d'este importante reinado, que Constantino, recebendo a' noticia da enfermida- de de Constâncio Chloro, partiu, ou antes evadiu-se de Nico- media, onde então residia com Galeria, e viajando com extra- ordinária rapidez, chegou a York, precisamente a tempo de receber o ultimo suspiro de seu moribundo pai, e suas derradeiras instrucções; nas quaes elle o aconselhara a go- vernar com rectidão e clemência, recommendando especial- mente á sua protecção os mal tratados e opprimidos christãos. Morto Constâncio, Constantino foi immediatamente procla- mado imperador pelo exercito em York; onde, tendo cingido a purpura imperial, e feito as exéquias e a apotheose de seu

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defunto pai, conforme o rito pagão, regressou á Gallia.

Não cabe na esphera da nossa obra detalhar miudamente as circunstancias que concorreram para tornar Constantino senhor absoluto do império romano. A historia deu conta da sua assignalada victoria, sobre Maxencio, junto á pon- te Milviana fora das portas de Roma; das duas guerras civis entre elle e Licínio; da grande batalha d'Adrianopla, onde se diz que Constantino obrara prodígios de valor, sem igual nos annaes dos feitos militares, e declarados quasi incríveis, pelos seus próprios inimigos; do cerco de Bysantio, e da der- rota final de Licínio na batalha de Chrysopolis, hoje Scu- tari, na costa da Ásia menor, defronte de Constantino- pla.

As razoes que determinaram Constantino a abraçar o christianismo, depois de atravessar um mar de sangue, para conquistar a soberania do mundo, acham se descriptas por difíerentes escriptores, de diversas formas, e merecem immi- nentemente a attenção do historiador e da philosophia mo- derna. E' hoje extremamente difficil descortinar os motivos que o levaram, a dar tão importante passo; e com tudo, por difierentes circunstancias, devidamente estudadas, podere- mos, talvez, conjecturar com muitos vizos de probabilidade, esses motivos, sem nos aflastarmos muito da realidade.

E', e foi sempre, opinião geral, que Constantino abraçara a religião christã, por convicção da sua verdade divina. Com tudo, Mr. Gibbon, e alguns outros escriptores d'etes últi- mos tempos, suspeitam que motivos políticos o determinariam a dar este passo, Sem querer profundar os segredos d'um prín- cipe que reinou ha mais de 1400 annos, diversos factos nos levam a pôr em duvida o fundamento das supposições de Mr. Gibbon. Aquelle mimoso escriptor imagina que Constantino conhecendo o génio turbulento dos romanos, e quanto era precária a conservação do poder imperial, vendo ao mes- mo tempo os hábitos pacíficos dos christãos, podia ter cal- culado que, abraçando o christianismo, as sanguinolentas revoluções, que a tantos imperadores tinham sido fataes, ter-

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minariam; e que chamando os christãos ao seu partido, poderia segurar, para si e para os seus descendentes, a soberania, invo- cando o direito divino á imitação dos reis de Judá, que d'a- quelle modo haviam conservado na sua famiiia a successão no throno de David; em quanto que os reis dlsrael, que de- viam a soberania á eleição popular , haviam partilhado a mesma sorte que coube aos imperadores romanos, cujo poder dependia da escolha do povo ou do exercito. Em apoio d esta idéa discorre Mr. Gibbon , com a sua costuma- da fluidez d'estylo, e imaginação fértil, como quem tem a convicção do que avança; e suppoe que os oradores christãos, entre os quaes era Lactando o mais eloquente, saudando Constantino, como o David dos romanos por direito divino, lançavam na sua famiiia os alicerces dum império que deve- ria passar de geração em geração para sempre. A imparcia- lidade, porem, pede que se diga que nas circunstancias do império romano d'aquelles tempos, nada ha que authorise a opinião de que Constantino abraçara a religião christã por mo- tivos políticos, ou d'interesse material; porque não obstante o raciocinio eloquente, mas poético de Mr. Gibbon os con- tras de semelhante passo, debaixo do ponto de vista politico, eram superiores a todas as razões que se podem adduzir em seu favor.

Ao tempo que Constantino subiu ao throno, e durante to- do o seu reinado, o paganismo era a religião da grande maio- ria do império, e a maior parte da força militar estava nos pagãos e não nos christãos. Segundo o calculo do próprio Mr. Gibbon, o numero d'estes não excedia uma vegesima parte da população pagã do império, calculo que pouca margem a suppor que o imperador seguira o christianismo com o fim de segurar o poder. E' até para admirar que esta apostasia não produzisse uma revolta entre os pagãos; e que expirante, tendo de seu lado a força material, não luctasse contra a sua queda iminente. E' um phenomeno que en- contra, abaixo da vontade de Deus, explicação satisfatória na giandc reputação militar do imperador, na affeição inviolável:

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que lhe tributava o exercito em quanto vivo. e extraordinária admiração depois da sua morte. A supposição de que Cons- tantino estabelecera a religião christã, arrogando-se o direi- to divino, deve-se antes attribuir á sua íê na verdade d'aquel- la religião, em consequência do que elle poderia esperar do coo aquelle auxilio, com que não poderia contar da parte de seus súbditos pagãos.

Se a celebre visão de Constantino, que se diz elle tiveYa na marcha contra Maxencio, e que, combinada com o seu so- nho anterior, foi, como geralmente se cre, a causa principal da sua conversão; fosse aquella visão um facto positivo, ou meramente uma ficção, aquella circunstancia por si bas- taria para resolver a questão, e silenciar todos os argumen- tos d'íiquelles que querem insinuar que elle adoptara o chris- tianismo por motivos d'interesse material.

Diz-se-nos que estando Constantino na Gallia, fora convi- dado pelo senado e cidadãos de Roma a emprehender a guerra contra Maxencio , que governava despoticamente capital e provincia, que constituía a sua parte do império.

Tão depressa Constantino recebeu este convite, que elle mesmo provavelmente solicitou, fez-se immediatamente em marcha para a capital do mundo.

As suas tropas compunham-se de soldados veteranos, mas eram incomparavelmente em numero inferior áquellas que elle sabia bem Maxencio trazia contra si. Elle marchava contra um inimigo de quem, no caso d'um revez, não pode- ria esperar misericórdia. A empreza em que embarcara era summamente perigosa, e o seu fim d'alta importância e magni- tude. O ponto a resolver era, se elle seria imperador do Po- nente, ou se seria expulso d'aquella parte do império, sob o seu dominio, e a ambição o levou a fazer a experiência.

Um dos nossos historiadores ecclesiasticos quer, que fosse n'esta conjuntura difficil, que Constantino meditara se- riamente sobre a existência d'um Ente Superior, e na inter- venção cVum poder invisivel, mas regulador das cousas do mundo; raciocinando ao mesmo tempo sobre a sorte tragi-

ca da maior parte dos imperadores que haviam rendido cul- to a sem numero de deuses; e que seu pai, Constâncio, â maneira dos philosophos, adorara sempre um Ente Supre- mo e Soberano do Universo, a cujo auxilio e protecção de- vera ser bem succedido em todas as suas emprezas. Como consequência d'estas reflexões, dia o hostoriador, Constan- tino ficou extremamente perplexo sobre o verdadeiro objecto d'adoração, e o modo mais acceitavel de culto. Elle então abriu o seu coração ao Senhor do Universo, pediu-lhe que visse a sua sinceridade, e que illuminasse o seu espirito no verda- deiro caminho que lhe cumpria seguir para invocar a sua protecção e auxilio, se, por intervenção de varias deidades, segundo o rito pagão, se, como um e indiviso Deus, como ensinavam as doutrinas da religião christã. São estas as en- genhosas supposições, mas supposieões.

No estado precário em que se achava Constantino na vés- pera d'uma contenda de tamanha magnitude, de cujo resul- tado dependia a sua vida e fortuna, é de crer que elle reflectis- se seriamente sobre este assumpto; e como fosse costume en- tre os pagãos, mais ainda do que entre os christãos, implo- rar o auxilio Divino, não é nada para admirar que Constanti- no, com quanto não convencido da verdade ão christianis- mo, começasse, bem como muitos outros pagãos, a confiar pouco nos seus deuses e a suspeitar que o paganismo não passava d'uma impostura.

N'aquelles tempos críticos, quando a falsa religião princi- piava a declinar, e que o christianismo não estava ainda es- tabelecido, é muito de suppor que os ânimos andassem agita- dos em relação a matérias religiosas. Dum lado viam um principio, que de tempos immemoriaes, merecera a venera- ção da humanidade, caindo em descrédito, menos entre a classe sacerdotal e mais interessados. Viam que este syste- ma não resolvia satisfactorimente o grande, o mais impor- tante, o mais difficil, e ao mesmo tempo o mais interessante de todos os problemas, se a morte era a extincção completa da existência, ou simplesmente a passagem para uma existência

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futura. Doutro lado, viaixi unia religião nascente diametral- mente opposta á antiga; uma religião que apresentava idéas infinitamente mais luminosas e rasoaveis sobre a natureza e attributos d'um Ente Supremo e dos deveres moraes e religio- sos do homem, do que nunca o Paganismo havia dado, e que, sobre tudo, resolvia o problema do futuro e final destino da humanidade, ensinando que a vida presente não é mais que uma provação, eque um futuro, incomparavelmente mais perfei- to, aguarda o homem, e que todos sem excepção, teem de comparecer na presença do Juiz eterno a responder pelos seus actos n'este estado provisório de existência, e receber o pre- mio das suas obras. Esta solução fez dissipar muitas outras duvidas que haviam fatigado o espirito e ludibriado os maiores philosophos de todos os séculos. A revelação christã aclarou este mysterio a que a philosophia não respondia satisfatoria- mente. Os pagãos tinham presenciado a constância, a fortale- za, e até mesmo o prazer com que os christãos sofíriam cruelis- simas torturas pela sua religião ; que elles não podiam expli- car, e que julgariam inacreditável, se não fossem testemunhas occulares. A parte pensadora contemplava, admirada, tão ex- traordinário phenomeno moral, e começou a crer que no chris- tianismo havia o quer que era de mysterioso. Não ha nos annaes da historia epocha mais interessante que o quarto sé- culo,durante o tempo que vae desde as primeiras perseguições de Diocleciano e Maximiliano, até á completa extincção do paganismo no reinado de Theodozio o Grande. Durante este tempo, mas sobre tudo no reinado de Constantino, o império Romano vacillava entre duas religiões diametralmente oppos- tas; porque, cumpre notar que, com quanto o christianismo fos- se o culto seguido na corte, desde o tempo de Constantino, ex- ceptuando o curto reinado de Juliano, a maioria do povo con- tinuava sendo pagão, até ao reinado de Theodosio. É preciso também dizer-se que a questão que preoccupava os ânimos n'a- quelles dias não era tanto em relação ás opiniões philosophicas} como aconteceu anteriormente, mas sobre as formas e cere- monias, doutrinas subalternas e outros objectos de pouca mon-

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ta, como posteriormente teem levantado conflictos entre os iheologos. A questão prendia com doutrinas e idéas essen- ciaes e fundamentaes.

Neste estado vago e indeciso da rasào humana sobre os negócios mais sérios e interessantes, é naturalíssimo que um homem d'intelligencia vigorosa como Constantino , ape- zar da sua educação philosophica, reflectisse sobre assumptos de tanta importância, tanto sob o ponto de vista politico como moral. No momento critico em que ellese dispunha a conquis- tar o mundo, a magnitude da contenda o deveria levar a pe- sar as circunstancias e, influenciado pela sua combinação, de- vemos admittir a versão dos historiadores como tendo o cu- nho da probabilidade acerca da maravilhosa visão que ti- vera o imperador que, com quanto merecesse, geral- mente, credito durante muitos séculos, tem sido ultima- mente disputada por vários historiadores e criticos ; mormen- te pelos inimigos do christianismo, com cujos dogmas se não harmonisa.

O facto alludido é-nos transmittido pela forma seguinte : Estando Constantino em marcha para Roma, e meditando sobre o arriscado da sua empreza, plenamente convencido do illimitado poder d'um Ente Superior, cujo nome elle não sa- bia invocar, ecuja protecção não sabia também pedir, figurou- se-lhe ver na atmosphera uma cruz resplandecente, com esta no- tável legenda ; «ifo hoc signo vinces. » Tanto, elle como o seu exercito ficaram attonitos ; mas ignorando como interpretar o aviso celeste, e sem poder achar uma explicação satisfacto- ria, segundo as regras do paganismo, ainda vacillou entre a esperança e o receio, entre a e a descrença. Accrescenta-se, porem, que na noite seguinte o próprio Christo appareceu ao imperador em sonho, mostrando lhe o mesmo estandarte triumphante da cruz que elle vira na véspera, afiançaudo-lhe d'um modo iniquivoco a victoria sobre o seu antagonista, sob os seus auspicios: Constantino adoptou immediatamente a cruz como estandarte, e fez abrir aquelle emblema nos escudos dos soldados ; c é certo que a cruz com o mysteroso monograrn-

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mo, significando o nome de Christo, circundada d'uma espécie de coroa, e collocada na parte superior usou-se corno guião imperial, tanto durante o reinado de Constantino, como de seus succcssores. Apoz esta milagrosa visão e sonho, Constan- tino marchou sobre Roma cheio de confiança, eás portas d'a- quella capital ganhou a Maxencio aquella assignalada victo- ria, que lançou por terra o tyranno e desembaraçou-o de toda a opposição. O triumpho de Constantino é veridico, com quanto seja posto em duvida o milagre que o prece- deu.

Eusébio, bispo de Cezarea, historiador de grande celebri- dade e geralmente tido na conta de verdadeiro, homem de extraordinária erudição, e intimo de Constantino, é o au- thor d'esta narração; e assevera que o ouvio ao próprio im- perador em conversação particular. Poucos acontecimentos históricos trazem tão authentico cunho, porque poucas são as authoridades tão respeitáveis como esta.

Mas, considerando a questão por outro lado, é de notar que Eusébio escrevesse isto depois da morte de Constanti- no, quando elle nem podia confirmar, nem negar o facto. Esta circunstancia colloca a questão em terreno menos fir- me; pois seria muito d'admirar que o imperador não reve- lasse aquelle acontecimento a mais ninguém. Mas, estavam aquelles que põe em duvida o que nos relata Eusébio, cer- tos que o publico ignorava a circunstancia da visão antes que o escriptor se encarregasse de a transmittir á posterida- de? Não parecerá provável que o facto fosse conhecido an- tes da sua publicidade por Eusébio?

Diz-se-nos que a visão fora presenciada por todo o exerci- to, composto de pagãos e christãos; e que Constantino con- sultara os sacerdotes e adivinhos do paganismo e bem assim os prophetas christãos sobre a significação d 'aquella apparição. Diz-se-nos mais que tendo-lhe estes prometíido a victoria sob as bandeiras invenciveis da cruz, elle fizera construir o lába- ro ou guião romano, que adoptou como estandarte militar. A ser isto veridico, era forçosamente do domínio pu-

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btie* mesmo salta aos olhog que, se não um facto fosse no- tório, Eusébio não imporia ao mundo um conto romântico, que o ridicularizaria aos olhos de pagão» e christãos in- telligentes.

Também se nos diz que o lábaro não foi adoptado por Constantino senão muitos annos depois d'aquelle aconteci- mento, porque não tendo ainda assumido o governo universal do império, não julgava politico reformar os emblemas mi- litares. Sem interferirmos n'este ponto da historia, deve- mos francamente convir que não è uma simples questão de tempo que pôde influir sobre a veracidade do facto; e é* na- tural que em quanto o governo do império se dividia entre vários imperadores, seria da parte de Constantino impolitico e talvez perigoso, adoptar a cruz por divisa militar numa parte do império, em quanto as águias fluctuavam n'uma ou- tra. A occasião mais própria seria sem duvida quando um christão se fizesse senhor absoluto dos domínios romanos.

DECIMA QUARTA

Depois da investigação que fizemos para anaíysar os moti- vos que levaram Constantino a proteger o christianismo e sanc- cional-o no império, aquelles que se deleitam em seguir passo a passo o progresso da humanidade, terão curiosidade de co- nhecer o estado da religião durante o resto deste reinado memorável, e acharão no meio das suas inquirições abundan- te matéria para a reflexão.

Durante os primeiros três séculos do christianismo, no seu progresso gradual , como um principio que unia um grupo d'homens, sob certas regras e regimen, tinha soffrido varias mudanças, não obstante conservarem-se intactas suas doutri- nas fundamentaes. Princípios fundados na verdade eterna teem forçosamente de se conservar puras. Nem o decurso do tempo, nem qualquer mudança d'opinião pode mudar a na-

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tureza da verdade. lia formas, ceremonias e opiniões secun- darias ligadas áquelles princípios fixos que constituem a base da religião, e estas são mudáveis. Em todas as communida- des, religiosas ou politicas, ha certas leis e regulamentos ne- cessários ao bem estar de seus membros. As leis e regulamen- tos das administrações politicas fazem-se conforme as circuns- tancias especiaes, physicas ou moraes, de cada communidade, e variam em harmonia com as variações, e vicissitudes huma- nas : d'aqui nasce a differença dos systemas políticos.

Na religião, as ceremonias, com as suas instituições par- ticulares estão sujeitas a modificações conforme as cir- cunstancias dos tempos e das nações, etem sido sempre con- sideradas por homens moderados e cTespirito liberal d'este modo sem prejuiso dos dogmas e doutrinas estabelecidos. E' isto que, em matéria de religião, estabelece a demarcação entre o essen- cial e não essencial. No começo do christianismo, quando os seus adeptos eram poucos, e que interesses pessoaes e op- postos não perturbavam o socego da egreja, o systema eccle- siastico era como se pôde bem suppor, de natureza mais sim- ples. A' proporção que crescia o numero de christãos, addicio- navam-se novos regulamentos para a manutenção da ordem. Os dignitários da egreja eram ao principio eleitos pelo suffra- gio combinado do clero e do povo, mas com o correr do tem- po o tumulto e a desordem que se davam nas eleições popula- res, fez pôr de parte o suffragio do povo, e o clero predo- minava na eleição de seus bispos ; porem, depois que Cons- tantino sanccionou e protegeu a religião christã, a educação dos prelados era dirigida directa ou indirectamente pelo im- perador. Durante o reinado dos imperadores pagãos, os chris- tãos tinham se tornado uma classe opulenta ; mas quando a sua religião recebeu a sancçâo imperial, uma nova épocha se offereceu á egreja sob os auspicios de Constantino. Esta foi a idade d'ouro dos ecclesiasticos : no periodo anterior algumas egrejas tinham sido liberalmente sustentadas pela devoção zelo das pessoas ricas ; mas ainda assim a posição do clero era precária e despresivel aos olhos dos pagãos. Mais tard« viveu

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coei fausto de príncipes, respeitado e estimado de todas as classes do império. Dantes esteve sumido nas trevas da obscu- ridade ; mas agora deleitava-se aos raios vivificantes das hon- ras, riquezas e protecção imperial. Começa agora uma era no- va. O polytheismo e a idolatria) que, de tempos immeraoriaes, pela pompa de suas ceremonias e esplendor cias festividades, mereceram a veneração da humanidade, cahiram em descré- dito ; e o christianismo, que por tanto tempo fora o objecto do desprezo universal, e frequentemente de cruéis persegui- ções triumphou finalmente de toda a opposição, e ficou sendo a religião do estado dos senhores do mundo. O império roma- no viu magnificas egrejas erigidas ao culto do Deos Crucifi- cado, cujo nome fora desprezado por tanto tempo; e os ritos da religião christã, celebradas com pompa e solemnidades, eguaes, senão mesmo superiores, ao que apresentava o pa- ganismo. Uma revolução completa estava tendo logar em ma- térias religiosas. Que diria a isto um christão do tempo dos apóstolos, ou mesmo da edade immediata se tivesse resuscita- do ? E que espectáculo para os que viveram no tempo cias hor- riveis perseguições de Diocleciano, Maximiliano, e Galerio !

Mas para estes havia ainda um outro ponto não menos ex- traordinário. Olhariam cora surpreza a recente opulência e explendor dos ministros da relegião. Veriam ecclesiasticos vivendo sumptuosamente e disfructanclo rendas de principes. Que diria o christão, cujas idéas foram modeladas pela simpli- cidade e desinteresse dos tempos primitivos, vendo os mi- nistros do humilde Jesus, que não tivera aonde abrigar a cabeça, ostentar a magnificência de reis ! E quaes não se- riam suas reflexões olhando os privilégios e proventos, ins- tituídos pelos suecessores d'aquelle cuja vida fora uma serie continuada de pobreza e privações, e cujas doutrinas respira- vam completo desprezo pelas cousas d'este mundo.

No reinado de Constantino a egreja floresceu; mas é certo que o espirito de genuíno christianismo, em grande parte, se extinguio. O imperador estabeleceu grandes côngruas ás differentes dioceses; e os prelados e mais ecclesiasticos co-

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meçavam a se esquecerem, não tlá humildade e desprezo do mundo de que dera tão vivo exemplo o Anthor da religião, mas até mesmo da caridade e beneficência que ô chrstianis- íiio tanto recommenda. A historia ecclesiastica, que até ahi apresentara paginas tão negras e sanguentas dos soffrimen- tos da egreja pelas perseguições pagãs, começoií^a desen- volver outras não menos hediondas de perseguição de chris- tãos a christãos; e com uma crueldade pouco inferior á que haviam exercido os sectários -do paganismo.

Antes de Analisar a idade apostólica, levantaram-se confli- ctos entre os christãos sobre matérias religiosas. Não ê hoje nada fácil descortinar as opiniões e crenças d'aqueíles here- ges da antiguidade, porque a maior parte dos escriptos fo- ram destruídos ou perdidos; consequentemente o que d'ellas sabemos provem dos argumentos do partido orthodoxo; e a experiência quotidiana bem demonstra quanto os escripto- res tendem a inverter as doutrinas de seus adversários. Com- tudo, algumas opiniões tem atravessado os séculos sem vicia- ção e tem achado sectários. Cerintho, herege, como o appellidavam, e que viveu nos fins do primeiro século, julga- se ter sido o primeiro que violou a doutrina do millennio, fundando se em alguma difíicil e obscura passagem do Apo- calypse. Esta opinião dura ainda hoje, e é sustentada por muita gente illustrada, respeitável e piedosa. Os Manicheos, que ensinavam a existência simultânea e eterna d'um prin- cipio bom e outro mau, eram, não menos, uma seita notável nos tempos primitivos; e o scisma dos Donatistas por muito tem- po dividiu a egreja em dous grupos oppostos. As differentes seitas do christianismo , que se tem estigmatisado com o nome de hereges, são demaziadamente numerosas para men- cionarmos em detalhe; e muito menos podemos tratar de seus princípios, porque sem duvida a sua ramificação é irnmensa.

Convém, todavia, notar que uma grande, e talvez princi- pal causa da diversidade d'opinião entre os christãos foi a di- ligencia que se fez para entrelaçar os absurdos do paganis- mo, e os prejuisos das tradições judaicas, com as doutrinas

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do christianisrno; e não deve passar desapercebido, que to- dos os proselytos d'esta religião, tendo sido educados naquel- la dos judeus ou dos pagãos, muitos dos quaes eram de avançada idade ao tempo da sua conversão, é naturalíssimo que conservassem muitos de seus antigos prejuisos; e que muitas idéas judaicas e pagãs sobre assumptos metaphysicos se introduzissem no culto christâo. Idéas arreigadas difficil- mente se destroem: alem de que, quando differentes indiví- duos argumentam sobre qualquer ponto duvidoso, é quasi impossível concordarem todos. As nossas idéas e actos são subordinados a mil eventualidades, e vistas as cousas por dif- ferentes formas, a differença d'opiniao em matérias religiosas é inevitável.

Durante o predomínio do paganismo aquellas contendas entre os christãos subjugavam-se. Em quanto christãos, or thodoxos ou heterodoxos, sem distineção, viam a espada da perseguição desembainhada contra si, ou suspensa sobre a ca- beça, o seu rancor abrandava, ou limitava se ao desabafo da penna, ou aos anathemas da intolerância, mas tão depressa o christianismo triumphante sobre o inimigo commum, obti- vera a saneção, e podia reclamar o apoio da authoridade im- perial, as differentes seitas christãs começaram a manifestar, umas contra as outras, uma animosidade, quasi igual ao rancor da perseguição pagã.

A differença d'opinião sobre objectos theologicos, origem do scisma na egreja, que mais tempo durou e que avulta na chronica religiosa mais que nenhum outro anterior á re- volução começada por Luthero, foi aquelJe conhecido pelo nome de heresia ariana. De todos os philosophos da anti- guidade, Platão dera largas ao seu génio sublime, procuran- do Bondar a incomprehensivel natureza d'um Ente superior, causa primaria e author preexistente de tudo. Este philoso- pho atheneu tendo-se entregue á contemplação da Deidade, não podia comprehender a essência divina senão sob a trí- plice modificação de, poder infinito, sabedoria perfeita, e bon- dade illimitada.

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Esta concepção denominava elle «Primeira grande caimã^ <ou origem de tudo, Sabedoria eterna, a que chamava Lo- gos alma ou espirito, que percorre e anima o universo. A sua imaginação poética personificou estas idéas abstractas; e no systema platónico estes três originaes princípios são representados como três entidades distinctas de poder, sabe- doria e bondade infinitos, co-iguaeseco-eternas, e indissoluvel- mente unidas, formando a mysteriosa trindade em uma uni- dade incomprehensiveh

Esta sublime e mysteriosa definição da Divindade denomi- nasse Trindade Platónica e aproxima-se mais das doutrinas fundamentaes da revelação do que se podia esperar dos esforços da razão desajudada.. Santo Agostinho, com outros padres das primeiras idades, admirando a sublime concepção de Pla- tão, diz, que com pequena difíerença, bem se podia ter aquel- le grande philosopho na conta de christão, e os Platónicos asseveraram que o começo do evangelho de San-João, fora uma reproducção fiel da sua doutrina.

A confirmação feita pela escriptura aos princípios funda- mentaes da theologia de Platão levou os christãos illustrados do segundo e terceiro século a estudarem os escriptos d'aquel- le incomparável philosopho; cujo génio penetrante, se dizia, antecipara as doutrinas da revelação, concebendo idéas sobre a essência divina que o christianismo confirmou. As conse- quências remotas e as illações possíveis das hypotheses de Platão foram investigadas em todas as suas ramificações; e suscitaram-se questões subtis e inexplicáveis em relação á na- tureza, egualdade, e distincção das Pessoas divinas da indivi- sa e mysteriosa Trindade; questões indubitavelmente superio- res á comprehensão da mais elevada intelligencia humana, mas mesmo assim a irrequieta curiosidade dos philosophos os incitava a explorar os segredos do profundo abysmo : e o mesmo espirito de curiosidade influio sobre os theologos chris- tãos, e philosophos do paganismo, nas escolas de Athenas e Alexandria.

Estas indagações, concernentes á incomprehensivel e mys-

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Durante o predomínio do paganismo aquellas contendas entre os christãos subjuga vam-se. Em quanto christãos, or tliodoxos ou heterodoxos, sem distineção, viam a espada da perseguição desembainhada contra si7 ou suspensa sobre a ca- beça, o seu rancor abrandava, ou limitava se ao desabafo da penna, ou aos anathemas da intolerância, mas tão depressa o christianismo triumphante sobre o inimigo commum, obti- vera a saneção, e podia reclamar o apoio da authoridade im- perial, as diferentes seitas christãs começaram a manifestar, umas contra as outras, uma animosidade, quasi igual ao rancor da perseguição pagã.

A differença d'opinião sobre objectos theologicos, origem do scisma na egreja, que mais tempo durou c que avulta na chronica religiosa mais que nenhum outro anterior á re- volução começada por Luthero, foi aquelJe conhecido pelo nome de heresia ariana. De iodos os philosophos da anti- guidade, Platão dera largas ao seu génio sublime, procuran- do sondar a incomprehensivel natureza d'um Ente superior, causa primaria c author preexistente de tudo. Este philoso- pho atheneu tendo se entregue á contemplação da Deidade, nfio podia comprehender a essência divina senão sob a trí- plice modificação de, poder infinito, sabedoria perfeita, e bon- dado illimitada.

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íeriosa JiaUireza da Divindade, não passaram de meras cem* -jeCHiras philosophicarj entre os pagãos illustrados. Não aconteceu quando a mesma questão começou a chamar a attejíçâo dos theologos cbristãos. Quando o eterno L'Qgos'j o verbo, ou o Filho de Deos foi revelado como objecto de fé" e culto, e base das esperanças da humanidade, uma idéa clara, ou antes uma crença implícita (Testes insondáveis mys- íerios, teve- se como essencialmente necessário aos interesses espirituaes. Estas duvidas subtis tornaram-se geraes, agitan- do os espíritos dos cbristãos em toda a parte, e por fim lan- çou a egreja n'um estado de confusão e discórdia. Os cbris- tãos duvidavam que opinião deviam seguir em relação á pes- soa e natureza de Christo. Estes pontos não tinham sido- de- terminados ainda pela authoridade da egreja universal e cada um modelou a sua opinião a seu modo.

A maioria adoptou o principio da natureza divina de Chris- to e perfeita egualdade das três Pessoas da Santissima Trin- dade, em quanto que uma parte numerosa, tendo por chefe, Ario, um padre de Constantinopla, sustentava que o Filho é essencialmente differente do Pai , e subordinado a este ; que é um Ente espontâneo e dependente, creado pela Suprema vontade do Pai, e gerado antes da creação dos mundos ; que o Pai estampara nelle os raios da sua gloria, envasando n'el- le o seu espirito ; que elle fora o architecto do mundo e que elle governa o universo sujeito e subordinado á primeira Pessoa da Trindade, seu pai e Soberano. Taes eram as idéas abstrusas e questões intrincadas que agitaram o orbe christão, e que perturbaram a paz da egreja durante o longo período de quasi trezentos annos ; mas especialmente no quarto sécu- lo, quando os que adoravam o Deos de misericórdia e amor, os pretendidos sequases do benévolo Redemptor , tendo adquirido o apoio do poder secular, divicliram-se em dous par- tidos oppostos e hostis, fulminando-se mutuamente em nome d'Aquelle, que, do cé*o, desceu á terra para a salvação da hu- manidade.

Concebe-se facilmente que Constantino, vendo aquelles quo

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professavam o christianismo divididos entre si, íiao poderia, sem magoa, contemplar um scisma que dividia a egreja e de- primia uma religião que elle tivera tanto a peito estabele- cer.

Com o intuito de por termo á discórdia, e assentar um principio de fé* cliristà, convocou o celebre concilio de Nice no anno 325, que se compoz de 378 bispos e outros ecelesias- licos em numero de 2048. Depois d'uma sessão de dous me- zesaque o imperador assistia frequentemente, a opinião d'A- rio foi condemnada, a egualdade das três Pessoas da Santís- sima Trindade foi declarada dogma, e as resoluções do conci- lio, comprehendidas no credo Niceno, foram publicadas como credo obrigatório e único orthodoxo da igreja christã.

Antes que Constantino abraçasse o christianismo, estabele cera a liberdade de consciência sobre bases liberaíissimas ; e nào se que elle perseguisse os pagãos, nem seria essa me- dida de modo algum politico, porquanto, em todo o tempo do seu reinado compunham elles a grande maioria de seus súbdi- tos. Comtudo, pouco depois do concilio de Nice, começou a perseguir os arianos : banio Ario para a Illyria, e excluiu o clero ariano dos benefícios de que os catholicos gosavam lar- gamente. Elle depois promulgou um edicto, prohibindo ex- pressamenre os ajuntamentos dos arianos, e d'outras seitas, sob pena de confisco de propriedade. Fora este o primeiro ca- so de perseguição de christãos contra christãos servindo se ão poder secular ; mas o exemplo tem sido constantemente se- guido. Não resta, porem, duvida alguma, que o procedimen- to do imperador a este respeito, fosse influenciado pelo clero? cujos motivos particulares elle não podara conhecer > e mais adestrado no commando e direcção d'exercitos, que não nos es- tratagemas das disputas theologicas, era facilmente arrasta- do, pelos seus conselhos, a medidas violentas e contradicto- rias mesmo. De facto, vemol-o, a instancias d'alguns bispos,re- vogar a deportação de Ario; e tão mal encaminhado fora por falsas accusaçÕes qué nerseguio Ath^nasio, o campeão do con* eilio de Nice o streiruo defensor das suas doutrinas, que o-

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imperador zelosamente sustentara como orthodoxo da ess- íholic-a.

O reinado de Constantino abunda em grandes e importan- tes acontecimentos * entre os quaes se pôde contar a cons-. trucçíío de Constantinopla sobre os alicerces da antiga Byzan- tio, e a transferencia da sede do império de Roma para aquel- la nova capital. A residência da corte tinha sido de facto mudada trinta annos mais cedo. Os imperadores associados. Diocleciano e Maxiniiliano, não residiam em Roma : o pri- meiro residia na Necomedia, e o segundo geralmente em Mi- lão, Galerio residia na Nicomedia, Constantino Cloro em York* e por espaço de trinta annos antes da fundação de Constan- tinopla, Roma pouco disfrutára a presença de seus imperado- res.

A transferencia da residência imperial de Roma para Cons- tantinopla mereceu a censura de vários escriptores, attribuin- do-se como causa principal da queda do império : comtudo difiicilmente se poderá affirmal-o. Não se pôde suppor que o desmembramento do império se não effectuaria subsistindo a sede do governo em Roma. As razões que levaram Constan- tino a preferir Bysantio a Roma são desconhecidas. Suppõe se que tendo Diocleciano e Maximiliano combinado um plano cTadministração mais regular e systematicamente despóti- co que aquelle de quaesquer imperadores precedentes, e de- sejando abolir todas as formas republicanas ainda existentes, e a pôr de lado inteiramente a authoridade nominal que o se- nado ainda possuía, haviam fixado a sua residência distante da antiga capital do império, a fim de se subtrahirem ás repre- sentações e queixas daquelle respeitável corpo. E' provável que motivos eguaes influissem sobre Constantino, porque a sua administração era mais despótica ainda que a de Dioclecia- no e Maximiliano, e seguia aquelle systema despótico que es- tes imperadores haviam começado. Anterior ao reinado dos mencionados imperadores, era o senado geralmente consul- tado, pro-forma que fosse, com quanto em nada alterasse o despotismo do governo ; porque o senado rarissimamente dei-

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xava de se conformar com a vontade do imperador, em quan- to que este estava á disposição da guarda pretoriana ou dos legionários. Diocleciano, pouco depois de subir ao poder» adoptou o systema de governar sem a formalidade de con- sultar o senado; e depois que Constantino removera a sede do império para Constantinopla, o poder do senado passou a ser honorário e quasi que se não podia reputar um poder do es- tado. Muitos attribuem a escolha feita por Constantino d'uma nova capital á indisposição que nutria contra Roma em razão da predilecção d'aquella cidade pelo paganismo. E' forço- so porem confessar que a posição de Constantinopla era, a to- dos os respeitos, quasi, infinitamente preferível áquella de Ro- ma ; e considerando a extensão, localidade e circumstancias dos domínios romanos, Constantinopla e Milão eram indubita- velmente os pontos mais apropriados para estacionarem os chefes militares do império. Milão situado junto á fronteira septentrional da Itália, proporcionava-se admiravelmente pa- ra aquelle fim ; porque ali estava o imperador sempre habili- tado a repellir as aggressões das nações germânicas que, no reinado de Aureliano lançaram Roma num estado de alarme e consternação. Constantinopla era o ponto mais importante do império para deter os Persas, e como barreira contra as invasões dos godos, aquelles inimigos terríveis de Roma que, nas suas embarcações de vime, saindo a foz do Danúbio, na- vegavam frequentemente noBosphoroeHellesponto, saquean- do e devastando a Grécia e a Ásia menor, e que no reinado de Galliano ameaçaram a devastação completa de todas as partes orientaes do império desde o Euphrates até ao Adriáti- co. Esta formidável invasão não foi, sem grande difficuldade e prodigiosa mortandade, repellidapelo talento militar e ener- gia do imperador Cláudio ; e no reinado de Phrobo, tendo os germanos invadido aGallia foram expulsos por este impera- dor com enormes perdas. D'ahi por diante, os godos e ger- manos tornaram-se inimigos terríveis de Roma, e tendo sabo- reado as ricas prezas das suas províncias prevalesciam-se cie todas as occasiões para invadir e roubar. .

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Por estes motivos a residência dos imperadores, com o cor- po piinoipal-das forças militares em Milão, ou em alguma ou- tra estação das províncias orientaes, não muito distante do Danúbio e do mar euxino, era mais necessária e mais condu- cente á segurança do império, que não em Roma.

Considerando a posição geograpbicaetopograpliica de Cons- tantinopla com a sua linda e pittoresca disposição de terra e mar, facilmente comprehendemos a razão da sua preferencia a Roma. Ambas as cidades estão em clima temperado; fican- do Roma em 41° 50' de latitude e Constantinopla em 41° 10'. Constantinopla assenta sobre um terreno elevado, suavemen- te acci dentado, subindo em amphitheatro e sem aquelles valles profundos que separam os sete montes sobre os quaes se aclia construída Roma ; e que com os pântanos juntos ao Tybre tornam insalubre o ar. A cidade espraia-se em forma de triangulo, cujos lados são o porto, o Bosplioro eo Propon- to ou mar de marmora. O porto, ao norte da cidade, é vasto e seguro, tendo a entrada cerca de quinhentos metros de lar- gura desde o Bosplioro e correndo, terra dentro, sete milhas. Desde o mar negro até á ponta do serralho, o Bosphoro tem 18 milhas de comprido, variando entre milha e milha emeia de largo, serpenteando graciosamente. Navegando pelo Pro- ponto em direcção a Constantinopla, as mais encantadoras vistas se offerecem ao viajante, que, de toda a parte d'aquel- le mar descobre as terras altas da Thracia e da Bithynia, sem perder nunca de vista o Monte Olympo, até que por fim a cidade, subindo da beira mar, prende-lhe a attenção com a sua magnifica perspectiva.

Constantinopla pode, pela sua posição, dispor do commer- cio das vastas regiões do norte pelo mar negro e pelos rios Don e Dnicper que no mesmo dtsaguam peloHellesponto que communica o Proponto com o Mediterrâneo, como o Bospho- ro dá passagem do mar negro para o Proponto,a sua posição favorece egualmente o commercio do sul e do ponente ; o quando o Egypto lhe está subordinada, a sua localidade pres- ta-se admiravelmente parao trafico da índia e costas orientaes

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iTAfrica. Em summa, dizem-uos o* g-eographos em gorai que Constantinopla á o ponto emmnercial de mais importância que pode haver; e quando lançamos os olhos sobre o mappa, geographico assim parece. Â sua posição tem porem um gran- de defeito, eommercialmente f aliando, e n'este sentido está muito inferior a Londres, a Lisboa e vários outros portos. O Hellesponto tem não menos que vinte léguas de comprido e a sua largura em geral não excede a uma légua, havendo partes em que ainda é mais estreito. Uma forte corrente esta- belece se no Bosphoro, no Proponto e no Hellesponto desde o mar negro até ao a^rchipelago grego, e um vento rijo do norto sopra frequentemente n'aquellas paragens mezes suecessivos, que junto á corrente na mesma direcção, atravez um canal tão estreito, torna Constantinopla inaccessivel aos navios proce- dentes do mediterrâneo. Aquelles portos que demoram nas costas do oceano, ou nas margens dos grandes rios, tem van- tagens que não possuem aquelles sitos em mares fechados, co- mo são o mediterrâneo, o mar negro, o Báltico etc. ou noa rios que n'elle desaguam, em razão cias marés que facilitam a navegação nos casos de calmas ou ventos contrários, em quan- to que senão pôde sem grande difficuldade arrostar as forças combinadas do vento e das correntes. Estas circumstancias são altamente desfavoráveis ao commercio e navegação de Constantinopla : em compensação, talvez não tenha rival em belleza e amenidade de clima.

Com quanto alguns escriptores entendam que a transferen- cia da corte contribuiu para a queda do império, é incontes- tável que a occupação de Constantinopla poz ponto á passa- gem dos bárbaros pelo Bosphoro, que jamais poderam forçar aquella invencivel barreira ; e a Grécia, como também a Ásia menor escaparam aos seus assaltos, até que Valens inad- vertidamente deixou os godos passar o Danúbio, e recebeu suas hostes armadas no coração do império. Tempos depois Constantinopla apresentou um obstáculo insuperável ao progresso dos Persas sob o commando de Chosroes, e offere- ceu resistência aos ataques dos ar&kes, dos godos, e outros

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iuhnigos do norte. Durante a existência do caliphado, aquellá cidade foi o baluarte da Europa contra os sarracenos; e cahio nas mãos dos turcos em 1453, mil e quarenta e três an* nos depois que Roma foi tomada e saqueada por Alarico e nove centos e setenta annos posteriores á inteira subversão do império occidental. De facto, rasão alguma plausivel ha para que se diga que o império não podia ser também defendido estando a sede do governo em Constantinopla ; e não é nada improvável que, se Roma fosse sempre a capital, todas as par* tes orientaes do império teriam cabido em poder dos persas, líuui lado,e dos godos pelo outro, sem dilatar, considerável* mente, a existência do império do occidente.

Entre outras considerações que naturalmente se nos apre- sentam ao contemplar um período tão importante e interessan- tíssimo, como é o reinado de Constantino, ha a notar que, comquanto elle governasse o império romano com mais peri* cia que a mór parte de seus predecessores, e fosse geralmente bem suecedido tanto nas suas medidas politicas, como nas suas emprezas militares, a sua tranquilidade d'espirito foi considera- velmente abalada pelos conflictos dos theologos e pelas intri- gas ecclesiasticas. A sua felicidade domestica perturbou-se egualmeute, pela necessidade real ou imaginaria da sua parte em fazer morrer seu filho Crispo, príncipe de grandes espe* ranças; cuja intelligencia fora cultivada pelo erudito e elo- quente Lactando que havia sido disciplinado na carreira das armas sob as victoriosas bandeiras de seu imperial pai, e que provara tão distinctamente o seu valor na memorável passa- gem do Hellesponto na ultima e decisiva contenda entre Cons- tantino e Licínio. As particularidades d'este desgraçado acon- tecimento contam-se de diversas formas; e o negucio todo tem um caracter tão mysterioso, que apenas sabemos com certe- za da existência do facto sem podermos descortinar nenhuma de suas peripécias e causas. Comtudo, é forçoso confessar que, ou Constantino commetteu um crime enorme, ou foi victima d' um grande infortúnio. Impedernido deve ser o coração que condemna á morte um filho assim esperançoso sem plena

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•convicção de tão terrivel passo ; e grande fora a desgraça M tal necessidade não existisse. F/ um facto digno de menção que muitos homens notáveis, tanto da antiguidade como dos ten> pos modernos, tem sido extraordinariamente infelizes na vida privada.

A revolta d'Absalão contra David, seu pae, e seu Trágico fim; o assassinato de Sennaclierib no templo do deus Nisricli commettido por seus próprios filhos Adrammelicke Sharezar; a severidade que Augusto Cezar fora obrigado a ter com sua filha única, Júlia, em razão do seu comportamento escan- daloso; e o destroço que Herodes o Grande fez na sua famí- lia, matando sua formosa e adorada mulher Mariamne, seus dous mais esperançosos filhos, e outros parentes mais próxi- mos, podem apresentar-se como exemplo, entre outros rnur- t-os que se encontram na historia antiga que nem sempre nas altas regiões do poder e gTandeza humana existe a felici- dade domestica.

A estes factos ajuntaremos outros d'igual natureza, aconte- cidos em tempos mais modernos, entre os quaes sobresaem as trágicas catastrophes de D. Carlos, filho de Philippe 2.° de Hespanha e do Czarowitz, filho do immortal Pedro e Grande da Rússia.

CâRTÃ GEGIÍM DOTO

Conclui a minha ultima com algumas reflexões sobre a inconstância do poder. O subsequente estado de Roma des^ de esta epocha da sua não igualada grandeza, apresenta um facto memorável, de que a grandeza das nações, como também a dos individues, está sujeita ás mais melancholicas vicissitu- des; e que a prosperidade e ventura, tanto nacional como in- dividual, são d'incerta duração.

Recaindo as nossas observações sobre aquelle período em que Roma, não sendo considerada como sede do império^

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liavia passado o zertitli de seu esplendor, e via começar a diminuição da sua gloria; a nossa curiosidade leva- nos natural- mente a examinar aquella cidade celebre no auge da sua o- pulencia. Teria sido bom se algum dos antigos escriptores nos tivesse fornecido meios de estabelecermos um termo de com- paração entre as mais notáveis cidades da antiguidade com aquehas dos tempos modernos, mormente no que respeita a população. E' esta uma lacuna na historia que se não pode remediar; e é* particularmente extraordinário que nenhum dos historiadores romanos nos deixasse relação alguma so~ bre a população de Roma.

Não se pôde presumir que os seus cálculos íòssem exactos; mas deveriam ter encontrado documentos authenticos sufíi- cientes para nos dar uma idéa aproximada do numero de habitantes d'aquella celebre metrópole do mundo, e se os seus cálculos não se apartassem muito da verdade, podiam servir para regular o nosso juizo a esse respeito. Os moder- nos que lêem estudado este assumpto, e dado um resultado de suas investigações, divergem de tal modo entre si, que em logar de nos elucidar, tornam mais complicada a questão. Basta apontar alguns factos para demonstrar quão pouco credito merecem.

Mr. Martin, nas suas viagens, diz-nos que no reinado do primeiro Cláudio, os habitantes de Roma subiam a 6,986.000; mas acrescenta que este calculo abrange os subúrbios, e estes estendiam-se em distancia de 40 milhas em redor, O mesmo author diz que a cidade conta 13 milhas em circunferência, e outros dizem que são 15. Diz mais que Roma antes de Au- reliano, tinha apenas nove milhas em circuito, e que pouco differia do tempo em que reinou Sérvio Tullio.

Na noticia que nos Mr. Martin da população de Roma, ou ha um erro crasso, ou elle conta como subúrbios a maior parte das cidades e villas de Campania. Seu engano parece provir do recenseamento dos cidadãos romanos feito no rei- nado de Cláudio, que succedeu a Calígula no império. Este recenseamento dava uma população de 6,945.000; mas cum-

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pre notar que este não era o numero de habitantes na cidade de Roma, mas sim dos cidadãos romanos dispersos por todo o império, e que como Mr. Gribbón assevera, podiam, com um numero proporcionado de mulheres e creanças montar a 20,000,000. Mr. Gibbon, descrevendo a cidade de Roma co- mo existia, sob o regimen imperial, diz-nos «A circunferên- cia das muralhas foi medida com exactidão pelo mathemathi- co Ammonio e achou ser de 21 milhas em forma quasi cir- cular. O architecto Vitruvio, que viveu no tempo d'Augusto, diz que as innumeraveis habitações dos romanos se entende- riam muito alem dos limites da cidade, e que sendo o espaço comprehendido entre muros muito tomados pelos parques e jardins dos cidadãos opulentos, adoptou-se o expediente de levar as casas a uma extraordinária altura, tanto que foi re- petidamente legislado no tempo d' Augusto e Nero, que ne- nhum edifício particular excedesse a 70 pés d'alto, mas te- mos sobejas provas em Plinio e outros authores, que nos demonstram a inefficacia d'aquelles edictos, tendentes á de- masiada altura dos edifícios. Muitas familias se hospedavam em um ediricio, como em Paris; cada familia occupava um andar. Alguns authores modernos escrevem que no reinado d'Àugusto , Roma tinha 50 milhas de circunferência e comportava 463,000 homens capazes de pegar em armas, que, com um numero proporcional de mulheres, creanças e velhos etc. deveria fazer subir a população de Roma a cerca de três milhões d 'ai mas.

Aquelle acreditado escriptor, Mr. de Messance, nos seus «Recherches stir la population» a Paris 23,565 casas, 71,124 familias, e 576,000 habitantes; e Mr. Gibbon escre- ve que se calcularmos o numero de habitantes d'aníiga Ro- ma, segundo os princípios de Mr. de Messance, podemos es- timal-os em 1,200,000, calculo nada improvável; um numero nada excessivo para aquella metrópole do mundo, com quan- to excedente á população das maiores cidades da moderna Europa. Em presença de tão contradictorias noticias, ne- nhum calculo aproximado é possível. Comtudo, o numero to-

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Saí cte e&sas aoha-.se fielmente deseripto numa descripção d'$- Koma no reinado de Theodosio, cerca de 50 ou 60 annos de- pois da trasladação da sede do império para Constantinopla;, ti consequentemente em. tempo,, quando a antiga capital devia estar na declinação. N'aquella narração o numero de domi- cílios dos homens ricos era de 1.780; e o das casas dos ple- beos de 46,602. Na estimativa da população de Roma, a mais segura base que podemos tomar é a construcção parti- cular adoptada em Roma, levando as casas a uma enorme al- tura como i.á fica dito;, a. extensão da cidade e o numero de casas d ruas» Se a muralha Aureliana encerrava a vasta área de 21 mil lias, era a cidade fora de duvida.de grande extensão;. e dado o caso que fosse circular a sua forma, como era quasi> deveria conter 38 milhas quadradas, uma área quasi duas ve- zes do tamanho da que occupa Londres. Uma tão. grande superfície com casas d'enorme altura, indica uma vasta po- pulação; mas as ruas de Roma eram poucas, em numero. não> excedente a 424., circunstancia que faz acreditar que uma* grande parte do terreno se compunha de quintas e outros pertences: comtudo o numero de casas de que ha uma con- ta exacta, tomada no tempo de Theodosio parece provar que. não, deveria haver muito terreno desoccupado: segundo esta descripção Roma não oecupava uma área duas vezes o tama- nho de Paris, e comtudo os edifícios n'aquella cidade exce- diam o dobro d'esta. De Ninive pouco ou nada sabemos a não ser o que se colhe do livro de Jonas, aonde se descreve- corno uma cidade excessivamente grande, de três dias de jor- nada, provavelmente, para a contornear. Também se dia que ella continha cento e vinte mil pessoas, que não distinguiam a mão direita da esquerda, o que se deve subentender por ado- lescentes. Se o giro de Ninive se fazia em três dias, devemos suppor que ella assentava sobre uma grande planície como Babylonia, e talvez mais dispersos os edifícios do que mes- mo n'aquella cidade. Isto mesmo se infere quando se nos diz que continha muito gado, o que authorisa a crer que en- cerrava campinas, e se o que ee diz da sua população deve-

te* sentido figurado, conforme o estylo orientar, cada* um ajuisará como melhor entender.

De Babylonia sabemos tão pouco em relação aos seus. habitantes e dos meios empregados para o seu sustento, como. sabemos de Ninive, a nienosque grandes porções de terreno nos. encruzamentos das. ruas serviam para as. necessidades da vi- da, mas o plano d'aquella cidade é uma prova evidente que a sua população não estava em relação com o espaço que oc- cupava segundo as idéas que nós temos, das populações de grandes cidades, e que os sens habitantes proporcionalmente nâo excediam a metade dos de Londres ou Paris. Mas a jul- gar de Roma, da sua extensão e numero d'edificios, os seus. habitantes deveriam, exceder os de Paris no dobro e consi- deravelmente a qualquer das populosas cidades do mundo;: porque por muito exageradas que sejam as descripções que- ixos dão de Constantinopla, do Cairo e de Pekin, é certo que nenhuma (Testas cidades egu-ala a Londres- em numero de ha- bitantes. Dos documentos mais authenticos em que n©s po- demos basear, é claro que Constantinopla não pôde conter mais gente que Paris, e que nenhuma, das duas contem tanta, como Londres. Pekim é hoje indubitavelmente a maior cida- de do mundo. Mr. Anderson, no seu relatório da embaixada de Lord Maeartney na. China, diz que é um quadrado de três, legtias em cada face, mas acrescenta que as ruas são. de 14G; pés de largura, e que todas as casas á excepção das dos-. mandarins, são apenas d'um andar, (Tende se infere facil- mente que não obstante a sua área, a sua população não pôde egualar a de Londres, e é muito singular a supposição do que nem Ninive, Babylonia ou. Roma, tivessem sufficiente- comraercio para sustentai* suas numerosas populações, quan- do dão a Pekim, pela sua posição no interior do paiz, com condições menos favoráveis, uma população, duas vezes maior- que a de Londres. Calculasse geralmente as populações das. grandes cidades sem base segura. Uns dão a Paris 800,000- o outros 600,000, mas o primeiro calculo parece ser o mais a^ proximado á verdade. —-Á supposição de que Roma se sustm-^

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íava á maneira do Londres, de seu commercio, é* errónea: a riqueza d'esta cidade vem das suas relações commerciaes, niiis Roma pelo contrario, vivia do roubo e da violência Londres 6 o império do commercio: Roma foi covil de ladrões c residência dos devastadores do mundo. Se por um lado Londres se enriquece do commercio estrangeiro, não menos é rica de seu commercio interno, em rasão de ser a sede e residência da corte, nobreza e burguesia, e bastava ser a ca- pital da Gran-iJretanha para ser uma grande e populosa cida- de, independente de seu commercio externo. Á capital d 'um opulento império tem sempre um trafico activo e chama muita gente a quem emprega, ministrando as conveniências da vida aos abastados favorecidos da fortuna. E' principal- mente o commercio interno que sustenta as numerosas hos- pedarias, lojas e estabelecimentos mechanicos. Paris é uma prova. Esta grande capital pela sua localidade não possuo vantagens algumas commerciaes, mas mesmo assim excede em esplendor e luxo todas as cidades do inundo e a Lon- dres é inferior em população. Isío provem tão somente de ter sido de longa data, capital d' um a grande e florescente nação e residência duma corte brilhante e duma numerosa e opulenta nobreza, como também o recurso dos viajantes . d'outros paizes. Todas estas vantagens tinha Roma. Esta ci- dade duranío quasi sete centos aníios de suecessivas guerras e rapina, accumulára a riqueza de todas as nações visinhas Ninguém ignora as immensas riquezas e enorme dispêndio de muitos de seus priíicipaes cidadãos. O luxo e esplendor com que viviam os grandes de Roma e nos suberbos edifícios que construíram necessariamente empregaram grande numero d'artistas. Os paizes de que são capitães Paris e Londres são de pequena extensão e população comparativamente com o império romano. Londres é a metrópole d' um paiz enrique- cido pelo seu commercio, e os seus homens de negocio riva- lisam em opulência com a nobreza da maior parte dos paizes, mas é muito duvidoso se todos os seus opulentos negociantes egualam os opulentos cidadãos d'aníiga Roma. O que é fora

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de duvida é, que haviam individuas que possuíam proprieda- des de muito maior exteução do que hoje se encontra cm qualquer moderna capital. Em quanto ao emprego e supri- mento das classes pobres deve notar-se que nem estas es- tavam isentas de contribuições, mas dependia quasi intei- ramente cie donativos; a opulência dos ricos deveria forne- cer trabalho a muita gente das provindas que, adquirindo fortuna, vinha por seu turno a hombrear com os grandes, co- mo é frequente \èr-se nas grandes cidades. Estabelecidos es- tes princípios apoiados em factos conhecidos e authorisados por evidentes provas históricas, é claro qne nenhuma com- paração, debaixo do ponto de vista commercial, pôde estabe- lecer-se entre Roma e Londres. Não ha a minima semelhança entre as suas circunstancias politicas ou sociaes, sua econo- mia ou meios de se supprirem Londres prospera pelo com»- mercio Roma prosperava pela rapina de seus tempos primi" tivos: porem á semelhança de Londres, Paris e outras gran- des capitães deveria manter um commercio interno, bas- tante activo, mas, em que escala, não se pôde saber.

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Procuramos delinear o aspecto do império romano, fett» nindo os fragmentos dispersos da historia, desde o comece* do governo imperial no tempo d 'Augusto, até os fins do bri- lhante e importante reinado de Constantino.

Passemos agora a revistar os acontecimentos que tiveram? logar desde a morte d'aquelle imperador, a fim de seguir o rasto não da historia politica do império, mas também da> revolução das idéas humanas.

E' bem sabido que Constantino julgando que o império ro- mano, pelas suas proporções, oíiereeia amplo património para todos os seus descendentes, dividiu seus vastos domínios en- tre seus três filhos, Constâncio, Constante e Constantino, nc

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1 :t-!ic ^dmníétteú um erro fatal.

Três annos não eram ainda passados depois da morte cie seu pai e Constante invadia os domínios de seu irmão Constantino que, victima da emhuseada que este lhe prepa- rara, o- deixou senhor de dois terços do mundo romano; mas pouco depois, Magencio revoltando se contra Constante, sur- prehendeu-o numa cacada -e fel-o perecer. Por seu tramo, MagescLo, sendo derrotado por Constâncio, suicidou-se; e d'es- le modo pela desastrada sorte de seus irmãos ficou Constân- cio -imperador único 853 annos depois de Christo. Vem pouco a propósito descortinar aqui as causas que deram o- rigem a estas guerras civis nem qual foi seu resultado^ mas o que nào podemos deixar de notar é que estas divisões fataes esgotaram-as forças do império, e que o valore a disciplina romana converteram-se contra si, em vez de se empregar contra es inimigos do estado.

Por morte de Constâncio, 361 annos depois de Jesus Christo, Juliano, chamado o apóstata, filho de Júlio Con-stan- "cio e sobrinho de Constantino, o Grande, assumiu o septro. O curto reinado d'este imperador, apresenta uma prova as- signaladadas maravilhosas disposições da Providencia a favor da religião enrista, que merecem a consideração da posteri- dade.

Marchando contra os persas, deixou-se seduzir de tal modo "pelas idéas de conquista, que fez destruir aponte de barcos qne tinha sobre o Tibre e imprudentemente internou -se n'um paiz inimigo^ deixando-se attrair por espiões fingidos deser- tores do rei da Pérsia, e que o fizeram persuadir que este se não atrevia a dar-lhe batalha e fugia diante d'elle.

Esta farça foi mantida até que o exercito romano tendo se internado n'um paiz desconhecido, foi (malmente involvido •no meio de areaes desertos e começou a sentir os efíeitos da fome. N'esta critica coujunctura seus guias desappareceram subitamente e o monarcha persa se lhe apresentou então com todas as forças militares de seu reino. O imprevidente imperador conheceu então seu erro. A falta de viveres tornou

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vtaeoessaria a retirada; entre esta medida ou morrer á míngua não havia meio termo. A retirada foi portanto resolvida , rfe em quanto se eifcctuava os romanos eram constantemente perseguidos poios persas, que cuidadosamente evitavam um eneontro séYio. As legiões de pesada armadura nem esta- vam acostumadas, nem preparadas para este modo de com- bate e nenhum partido tiravam contra aeavallaria persa, que as encommodavam a eada passo, e que tâo clepressadispersava co- mo se cncorporava, renovando o ataque. O exercito romã- lio, que á sua entrada na Pérsia era o melhor que jamais o império equiparara, apresentava agora um desastroso espec- táculo. N'estas lastimosas ■■circunstancias os romanos ganha- ram finalmente as margens do Tigre que, por falta de pon- te, mandada loucamente destruir por Julião, não poderam passar. A historia militar não recorda, nem a imaginação po- de bem conceber uma -situação mais desgraçada do que aquelía éo exercito romano exhausto de forças, morto de tome, com um rio fundo e caudaloso na frente e todo o poder ar- mado da Pérsia na retaguarda. N'esta conjuntura o rei da Bersia assai toai, durante a noite o acampamento romano. Seguiu- se uma scena de tumulto, confusão e carnificina, espantoza, até que atinai o valor romano conseguiu repellir o inimigo; mas no meio dos horrores d'aquella noite o imperador foi mor- talmente ferido, e em poucas horas teve de comparecer pe- rante o tribunal d'aque!ie Juiz. cujo rito elle abolira e-eujo nome quiz apagar da memoria dos homens.

Diz-se que Julião, tomando então um punhado do seu pró- prio sangue o lançara ao alto, esclamando:— -Viciste Gàíileeo.; viciste! Venceste oh Gralileo, venceste; sendo Galileu o ne- me que por escarne© dava a Christo. Esta circunstancia, bem qu« tenha seu romance, casa-se <som o caracter d'aqu elle imperador, e não deixa de ter seus visos de probabilidade attenta a aversão que Julião professava á religião chris- oaas por outro lado ha a considerar que 11'uma conjuntu- ra tão interessante para o império e -sobretudo para o partido

•christão. não é para admirar que os eseriptores exagerassem®

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©ti se deixassem seduzir pelas noticias que de propósito fízesè* sem circulai*. E comtudo, a morte do imperador Julião é uni acontecimeto que merece particular atterieão, por isso que, tal- vez, não influenciasse pouco sobre o actual estado religioso da Europa. Nenhuma duvida existe de que o seu intento era aniquilar o ckristiauismo; e se a Providencia houvesse per- mittido que o seu reinado tivesse a duração do de Constanti- no e alguns outros imperadores, quem sabe a . influencia que poderia ter tido; porque este imperador divergia muito de seus antecessores. notamos quede todos os imperadores pa- gãos, muito poucos, se algum mesmo houve, perseguio volun- tariamente os christãos ; em quanto que outros foram indíffeí en- tes, a ponto que muito instigados pelo clero, prestavam ten- ção ao progresso do christianisnto. Julião, pelo contrario, era seu inimigo declarado. Fora educado no grémio christão e não abjurou suas doutrinas, mas maniíestou-ihes a mais profunda aversão, começando a adoptar todos os meios- para abolir a nova religião.

A morte d'um tal homem num momento tão critico pode por tanto ser considerada um dos elos d'aquella mysíeriosa cadêa de causas e effeitos que constituem o plano da Divina Providencia. Os possíveis effeitos de causas moraes não se po- dem calcular com exactidão, mas se não fora a influencia do» acontecimentos no reinado de Constantino, e a desastroza s< r- te de Juliano, poderíamos ainda hoje dobrar o joelho perante os densos da Roma pagã, ou d'outros, horríveis ídolos das nações septentrionaes.

Devemos observar que se Julião tivesse mdieaóp, ou o exercito eleito, outro imperador de princípios egualmente adversos ao christianismo, a sua morte não teria dissipado a tempestade que ameaçava o horisoníe christão; mas Julião, naturalmente supersticioso, vendo na sua prematura morte um signal desapprovador dos deuses, temia incorrer mais ainda no seu desagrado, designando suceessor; e Juliano, of- íicial christão, foi eleito imperador, que na situação desespe- rada do exercito, foi obrigado a tratar uma paz desvantajosa..

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com a Pérsia e comprar uma retirada segura com a cessão d& Mesopotâmia e a forte cidade de Nisibia etc.

Ninguém rios diz que os soldados de Julião impugnas- sem a sua crença religiosa, nem possuimos documento pelo qual possamos saber se a maioria do exercito se compunha de cliristàos ou cVidolatras. E' comtudo certo que grande nu- mero de christãos serviam nas fileiras de Julião, inimigo ju- rado do christianismo, assim como era grande a massa de pagãos que seguiam o estandarte de Constantino, e se ê para sm-prehender que nenhuma revolta pagã se desse no tempo de Constantino, não é menos extraordinário que os christãos nunca, manifestassem disposições hostis ás medidas de Ju* liã •>. Parece que christãos e pagãos accordaram n'aquelles tempos primitivos a respeitarem mutuamente suas crenças.

Morrendo Juliano pouco depois da sua eleição, e conclu- são da paz com a Pérsia, Valentiniano, outro chefe militar ohrisrão, foi investido com a purpura e associou seu irmão Yaiens no poder, cedendo-lhe a parte oriental em quanto elle reinou no occidente. No reinade de Valens teve logar um acontecimento singular, que para muitos historiadores é con- siderado o primeiro passo para a queda do império.

Os Hunos, povo Tártaro, sendo expulsos de seu paiz pe- los Sienipi, depois de suecessivas emigrações, vieram com irresistível impeto sobre os godos ao norte do Danúbio. Subjugado aquelle paiz, uma herda immensa de godo3 apre- senta se nas margens d'aquelle rio, solicitando asylo nos do- mínios romanos, o que lhes foi concedido sob condição da entrega das armas e das creanças. Estas, ao menos as das classes elevadas, foram entregues como reféns, mas por um acto impolirico dos governadores d'aquellas províncias, se lhes permittio conservar as armas. Calcula se em 200,000 o numero de godos armados que n'aquei!a occasião passaram o Danúbio com suas mulheres e filhos. Então appareceu novo exercito nas margens do rio a pedir asylo, mas sendo-lhe negado, entrou sem licença, e achando-se faltos de viveres to- dos os godos unidos começaram uma guerra contra o impe*

rio; e depois' de vários combates o imperador Valens, nao- obstante achar se o sobrinko em caminho para o soccorrer, e não querendo partilhar com outro a gloria, offcreceu batalha aos godos nas campinas d'Adrianopola e foi completamente derrotado. A perda do lado dos romanos foi immensa, e es- ta derrota foi considerada a maior- desde a batalha de Gani- rias.— O imperador Valens nunca mais foi visto e suppõe-se que perecera no incêndio d'uma casa aonde se refugiara. Isto aconteceu no anno 378 da era christã.

Depois d'este terrível desastre, Theodosio, natural cias Hes-- panhas, foi feito imperador do Oriente, e em quatro annos e meio poz termo á guerra, na qual desenvolveu consummada habilidade e prudência Os godos tinham íeiras que lhes fo- ram doadas nas provincias romanas, e prestavam obediência ao governo romano, mas dirigiam-se pelas suas leis, forrimn- do um império, no império.

Theodosio foi a todos os respeitos um secundo Constanti- no. Como eíle, fez íriumphar o império de seus inimigos, apasiguou as comrnoçces internas e estabeleceu a orthodoxia christã sobre bases solidas; e linalmente, segundo seu exem- plo, dividio o império entre seus dois filhos Arcádio e Hono» rio, entregando ao primeiro o Oriente e ao segundo o Ocei- dente. Esta foi a ultima e fatal divisão do império romano, que d7este período em diante é geralmente considerado pelos historiadores como dois estados separados e independentes e esía parece ser a principal causa que apressou a sua queda. As duas differentes monarchias em que Koina foi então divi- dida, se tornaram pouco a pouco estranhos e olhavam-se com rivalidade.

Quando o império do occidente se achou atacado de todos os lados pelos invasores do norte, o império oriental tornou- se insensível ás suas calamidades, o nenhum esforço fez pa- ra impedir a eminente catastrophe. Esta alienação foi àugnièntandò em cada reinado successivo; e depois d'uma ', serie d'iníertimios, de que a historia nos fornece pagi- nas ensanguentadas, Roma. a sonho ra do mundo, foi preza-.

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dos cotios em quanto que Constantinopla olhava, testemunliao impassível, os acontecimentos. Antes que inimigos de fora sa- queassem a cidade imperial, o império do occidente havia muito quê dera signaos de decadência; mas mesmo assim a immensa mole cahio gradualmente e foi por muito tempo susrentada peio valor e disciplina do exercito. As legiões ro- manas d erro- ''aram muitas vezes os bárbaros, mas á adminis- tração publica faltava inergia, e a corte imperial, por pusilani- midade, encerrou se em Ravanna, cidade inaccessivel de to- dos os lados por causa dos pântanos. N'est;á vantajosa posi- ção conservou-se algum tempo á sombra da grandeza impe- rial, mas todo o império apresentou uma seena deplorável oUuiarchia, cahindo as províncias umas apoz outras em po- der dos invasores do norte, que cabiam em enxames sobre o império e cujo numero nem a derrota nem-, a- mortandade di- minuíam.

Em quanto, até* certo ponto, se ostentava em Ravanna o - fâustõ do poder e que a corte imperial, n'uma posição. htaGCèèsivel, cercada de pântanos, provia pela sua segurança', o resto da Itália estava sendo devastado pelo inimigo. Ala- ricí), o chefe dos godos, tendo assignado a paz com o impé- rio orienta^ sob condição de ser seu o domínio do oriente- foi i mmed ia t a mente proclamado rei dos visigodos na era 3#& e dois ânuos depois invádio a Itália, mas foi derrotado em Polencia por Stilicho, general romano. A Itália foi em segui- da invadida por Rliad'agasio$ outro chefe septentrional, que- eercou Florença e ameaçou a própria Roma. Este invasor foi também derrotado e morto por Stilicho, e todo o seu, exercito aniquilado no anno do Senhor de 406.

Deixa-se pois ver que os restos da disciplina romana, quan- do a inergia não íaltava ao governo, continha as hostes inimr- gas dos bárbaros. A corte imperial, porem, apressava a sua; queda: Stilicho foi substituído por líonorio traiçoeiramente assassinado em 408. Assim cahio aquelle grande general,, cujos feitos d'armas nvalisaram com os dos maiores heroes qr.e Roma, nos mais brilhantes tempos da sua, gloria, havia.

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produzido e que fôra, havia muito, o esteio do império va« cillante e o anjo tutelar da imperial cidade. Alarico renovou imniediatamente a guerra e sitiou Roma. D'essa vez, porem, aceitou um rasgate, recebendo 5000 libras de peso d'ouro, 30,000 de praia, 3000 peças de panno escarlate, 4000 man- tas de seda (que maquelle tempo tinham grande valor, a se- da valendo seu peso em ouro) e 3000 libras de pimenta que valia então 15 dinheiros, ou 2;800 réis do nosso dinheiro em libra. Alarico, porem, com pretexto desconhecido, voltou no aimo seguinte, mas depois retirou.

Finalmente, á terce vez sitiou Roma, tomou a d'assalto e deu -.lhe saque; levando a immensa riqueza que se accumu- lá-ra -n'uma longa serie :de guerras felizes. Assim Roma, & imperial;, que por séculos levara a espoliar as nações e que reinara senhora absoluta do mundo, foi tomada e espoliada pelos godos no anuo 410. cerca de mil cento e cineoenta e dons annos depois da sua fundação.

Alarico, pouco depois, morreu no vigor da vida, e seu ir- mão Adolfo, sendo eleito dos godos fez a paz como impe- ri--; e tendo evacuado a Itália e casado com Plácida, irmã do imperador H uiorio, marchou para a Gaulia, onde fundou o reino gotlnco de Tolouse, que eomprehendia as províncias si- ífiadas entre o Loire e o Graronna e que depois foi annexado ao reino da França por Cl >vis primeiro rei christão d'aquel- le paiz.

O império parecia agora sorrir lhe a paz; mas a sua qiiè cia estava registada nos livros do destino. Se?i grande adver- sário godo era agora seu amigo e alliado, mas hordas inimi- gas continuavam a invadil o. O período que vai de 435 a 453 é" memorável pe'o reinado d'Attila, rei dos hunos. Este carrasco espaihára por toda a parte o. horror e a desolação. Elie atacou o império do oriente e devastou as suas provin- das, até mesmo ás portas de Constantinopla no anno do Se- nhor de 441. Depois de assignar a paz com aquelle império, invadio a Gallia e sitiou Orleans. Os planos de Chalons na Chatnpagne se tornaram famosos pelo confiicto o mais san-

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gtunolenío de que ha recordação na historia, onde o rei doi hunos foi completamente denotado pelo exercito alliado ro- mano e godo, commandado pelo general romano Aecio e Theodorico, rei godo de Toulouse. Com quanto os historiado- res diffiram em particularidades, todos são concordes em que batalha alguma apresentou jamais uma mortandade egúâf. 0 calculo menor aos hunos uma perda de 130 mil ho- mens, mas o geral dos escriptores dão unia cifra muito supe- rior. Attilà, ewjo appellídode «Castigo de Deus» casara perfeita- mente com o seu caracter, não obstante esta derrota, inva- dio pouco depois a. Itália e levou a devastação até ás portas de Roma. Um anno depois mordeu d'uífi aneurisma no an- í o 453 ficando o mundo livre d 'um dos maiores inimi<ros da humanidade. Não é possível determinar os limites dos domínios d'este chefe; mas suppõe-se que elles abrangiam a maior parte da Alemanha e da Polónia," como também da, Hungria e a antiga Dacia, mas cré se que o seu império, de- pois da sua morte, se dis-ioiveu, porque nenhum de seus suc-- eessores figura na historia.

N*estes tempos calamitosos, tanto os crimes como os> infortúnios dos romanos, ultrapassaram todos os limites. O imperador Valentiniano terceiro, apunhalou com a sua, própria mão o patrieio Aeeio, a ultima colUmna do império e a quem se devia a sua prolongação. Valentiniano mesmo foi morto numa parada, um anno depois d'aqueíle crime. Era o ultimo descendente de Theodosio o grande.

Aecio quebrara a força dAttila na memorável batalha1 dos- 'Campos de Chalons; nma os inimigos de Roma não estavam exterminados, nem pela derrota nem pela mortie daqueile de- lapidador. Genserico,. rei dos vândalos, tomou Roma e deu lhe saque no anno 445. Desde a morte de Valentiniano em 455 até 476, o império ainda continuou a .existir, mas mo- ribundo, sob nove differentes imperadores, até que Odoacro,- cheíe dos herulos, sentou se no fchreno dos Cezares e com elle morreu o império do occidente.

Quem attender na serie de calamidades d aquelles tem

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■pos o considerar lia serio cie 'circunstancias que originaram a queda da mais maravilhosa obra politica do mundo, verá que a uma variedade de causas se deve o effeito. O luxo dos romanos e o despotismo do governo imperial abateram os a- nimos do povo e o inhabili-tou para as emprezâs militares. isto é mais que suppssiçào; parece ter sido verdadeiramente a causal. Durante os últimos tempos de Roma, a contar do remado do Commodo, a forçado império exliaurira-se, e mui- to de sen melhor sangue fora derramado em contendas es- téreis entre os chefes. Estas causas contribuíram indubita- velmente para a queda do império; e uma variedade d'ouíras, demasiadamente numerosas para se poderem examinar detalha- damente, muitas talvez inteiramente desconhecidas, formam uni conjuncto de circunstancias que decidiram a sorte do impé- rio, mas nenhuma certamente contribuio tanto como foi a •sua divisão em dois estados disiinctos e, quem sabe, talvez •systema algum politico, coragem ou disciplina militar, teria ■evitado a destruição d'este poder collossal. Uma causa exter- na havia que com com o tempo viria a vencer iodos os obstá- culos que se lhe podessem antepor,

' As nações do norte tinham sido, desde o tempo de Mário; inimigos formidáveis de Roma. A republica teve; então, com os Cimbros uma das mais arriscadas guerras que jamais em- prehendera e que não acabou sem immensa mortandade, para ro inimigo. Durante os tempos* felizes do império-;, o nome ro- -mano era uma formidável barreira, mas. em cada oceasiào pro- picia elles recomeçaram as suas delapidações nas fronteiras e com quanto fossem constantemente rechassados nao desaiai- mavam. Âqueiíes povos vivendT) \ ida traga!, ignorantes das artes, alheias á civilisaçào que contribuem para a sustentação das associações; pouco conhecedores da agricultura e menos ainda do comnaerciq e manufacturas,; achavam fracos os meios de subsistência e insufficieute o espaço para seu numero, sem- pre crescente, nas geladas regiões do norte. Dotados despin- to ■•aventureiro eemprehendedor estavam sempre clespostos a •emigrar para os climas mais férteis e amenos do sul mas o

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"predomínio do Roma que se extendia desde o Euphrates atè •ao Atlântico, offerecia-lhes em toda a parte tão invencível barreira, que os detinha nos paizes ao norte do Rkeno, do Danúbio e do mar negro. Pela ordem natural das cousas áqúellas nações deveriao ter augmentado extraordinariamen- te e, no seu estado inculto, tiveram, com o andar do tempo, a procurar vasante para a parte supérflua da popula- ção. Isto tem sempre acontecido em todos os paizes bárba- ros, e desde os mais remotos tempos a historia apresentamos repetidos factos da emigração dos povos do norte para os temperados climas do sul. Em cada paiz o solo não pôde sustentar senão um determinado numero de habitantes, e este numero è maior ou menor em proporção á sua natural fertilidade e conforme a temperatura do clima e o aperfeiçoa- mento da agricultura. Toda a vez que a população excede esta proporção, uma parte tem necessariamente de emi- grar até que se descubra meio para a sustentação da parte superabundante ; e isto o pôde eífectuar o corn- mercio e a industria. O systema manufacturario é uma gran- de fonte de recursos para os povos, porque os differentes ar- tigos d'industria são exportados para aquelles paizes que d'elles carecem, e cujos produetos superabundantes rever- tem em beneficio das classes manufacturarias d'aquelles que os não possuem na quantidade precisa.

As nações não civilisadas não possuem estes recursos e conseguintemente quando a sua população superabunda, a emigração e" a consequência necessária. D'aqui devemos in- ferir que mais tarde ou mais cedo as nações septentrionaes invadirião o império Romano que, pela extensão de fron- teira, se lhes oppunha em toda a parte, a não ser que aquel- les povos abraçassem a civilisação, ou que a quantidade su- pérflua fosse destruída nas guerras com os romanos. As circunstancias physicas e moraes do caso não admittiam meio termo. Os vastos paizes que se extendem ao norte desde o Rheno, Danúbio e o mar negro, comprehendendo a Allemanha, Polónia, Rússia, Suécia, Dinamarca e Noroega^

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eram, por assim dizer, um immenso viveiro da espécie m> manft. As nações mais septentrionaes, avançando para o sul e subjugando as tribus meridionaeS, assemelhavam-se a um diluvio, cujas ondas se impelliam mutua e successivamente, até que a grande massa de bárbaros se accumulou sobre as fronteiras romanas, como succedeu com os godos e com os hunos no reinado do imperador Valente. Durante os últimos annos do império aquellas invasões succediam-se umas apoz outras. Vemos que no reinado de Galleno, o império, que parecia desabar, fora ainda sustentado pela consummada pru- dência e vigorosos esforços d'aquelles imperadores guerrei- ros, Cláudio, Probo, e Aureliano; e a sua grandeza a muito custo mantida por Diocleciano, Maximiano, Galerio e outros, Constantino lke restaurou a sua antiga grandeza e poder; e a sua grande fama militar, reunida a energia, real, ou apparente de seu governo, repellio as tentativas dos inimigos de Roma; ruas no curto reinado de Valentiniano e de Valente, os go- dos e outras nações do norte, renovaram as suas invasões e durante quasi um século não cessaram seus ataques contra o império em todos os pontos da linha da sua fronteira septentrional desde a foz do Rheno até á foz do Danúbio. Com a resistência do império do oriente, o inimigo voltou as armas contra o império occidental, até que o poder romano succumbio aos seus reiterados ataques, e a própria cidade im- perial cahio nas mãos dos invasores.

Para que o império romano podesse resistir a semelhantes hordas selvagens, deveria ter ficado indiviso, e que os seus imperadores fossem um Cláudio, um Probo, um Aureliano, ou um Constantino.

Vemos a opulência, o luxo e o esplendor, e procuramos estimar a extensão e população de Roma no zenith da sua grandeza. Do seu estado, n'aquelles tempos da sua declinação, é difíicil formar idéa, e se ella começou entre o reinado de Theodosio o Grande, e a sua tomada por Alarico, é difficil de precisar. Comtudo, é natural que assim acontecesse e que a capital se resentisse do desmembramento do império. A per-

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da das provindas,, umas apoz outras e consequentemente dos respectivos tributos, não produziria um desfalque nos ren- dimentos públicos, mas os cidadãos romanos, dos quaes as classes pobres dependiam dos donativos, deveriam ter expe- rimentado grandes faltas. Muitos grandes de Roma perde- rião necessariamente as suas propriedades situadas nas pro- víncias oceupadas pelo inimigo; mas mesmo assim não ve- mos que o luxo diminuísse nos primeiros tempos. N'uma cidade onde se concentrara a principal riqueza do mundo, um grande desarranjo deveria dar-se na administração pu- blica e uma grande diminuição na vida particular antes que um povo luxuoso apresentasse symptomas visíveis de pobre- za. Alem de que é muito de suppôr que muitos indivíduos ri- cos das províncias se refugiassem na capital contra as depre- dações do inimigo, seguindo-se d'aqui que uma considerável parte das riquezas do império se agglomeraram na cida- de imperial que, por esta rasão, mais tarde come- çou a declinar. O que parece, porem, certo é que a de- clinação de Roma começou depois de ser Constantinopla a sede do gqverno, com quanto contasse 48:802 edifícios no reinado de Theodosio, sessenta annos depois da mudança da residência imperial. Deve-se suppôr que certo numero de ri- cos e ambiciosos cidadãos de Roma abandonassem n'esta occasião a velha metrópoli e se mudassem para Constanti- nopla, muito mais que Constantino seduzia, com a conces- são de grandes propriedades, aquelles que fixassem a sua re- sidência na nova capital. E considerando que Ravenna de- pois que a corte do império do occidente se mudou pa- ra lá, começou a florescer com a affluencia dos grandes de Roma, é fácil concluir que Roma deveria ter decaído muito de grandeza e esplendor, antes que fosse victima da expoliação dos godos. Em quanto aos costumes em geral dos romanos, é de notar que degeneraram consideravelmen- te nos últimos tempos do império. Encontram-se vestígios palpáveis no período que se seguio ao reinado de Constanti- no. Raros factos de patriotismo apparecem nos reinados pos-

in- teriores, e o espirito publico parece liaver-se extincto.. A fãt-- $a. denergia no governo, o luxo, a effeminação e uma depra- vação geral de costumes, começam a caracterisar. o império, romano.

Passemos agora a investigar o estado da religião durante os tempos que acabamos de percorrer,.

■xm sétima carta

A historia religiosa do império romano depois da morte de Constantino, merece attenção. Á religião, verdedeira oiu falsa, ê uma importante feição na historia, da humanidade. Tudo, por tanto, que dia respeito a um systema que até ho- je exerce influencia politica e moral, que dá. um curso parti- cular ás idéas e que forma a base das nossas esperanças, de- ve interessar consideravelmente. Tão depressa faltou Cons-. tantino que o seu favorito concilio de Nicea começou a perder a sua influencia e authoridade e o arianismo triumphou.. O partido orthodoxo vio se supplantado e quasi todas as grandes dignidades ecclesiasticas do império oriental foram conferidas aos arianos. Temos notado a perigosa situação da christandade no reinado de Juliano e a sua providencial salvação com a morte d'aquelle imperador na guerra com a Pérsia. D'ahi para nenhum pagão cingio a purpura; mas Valente, o imperador do oriente, era fortemente partidário do arianismo e perseguia os orthodoxos.

Depois da desastrosa sorte de Valente na batalha de Adria- nopla na guerra com os godos, foi eleito imperador, Theoclo- sio o grande, no oriente. Elle esposara o dogma da San- tíssima Trindade e privou os arianos das suas preferen- cias ecclesiasticas, alem d'outros procedimentos rigorosos que adoptou contra elles; e se não extirpou, ao menos subjugou inteiramente aquella heresia, que nunca mais ergueu o collo ^10 império. Este imperador, tornando-se único senhor do»

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orbe romano, aboliu a idolatria em todo o império; e no sani reinado o senado romano abraçou o christianismo no anno? de 388.

Durante um periodo de 40 annos, que vai da morte de- Constantino ao triumpho da orthodoxia no tempo de Theo- dosio, Constantinopla fora a sede do arianismo, e a crença, dos imperadores, dos prelados e da população, d^quella me- tiópoli, foi regeitada nas aulas de theologia de Roma e Ale- xandria. 0 celebre Athanasio, bispo d^Alexandria, de quem o credo athanasiano deriva a sua denominação, foi o strenuo defensor da doutrina, catbolica d& Trindade e soffreu por is- so muitas perseguições.

A controvérsia era a ordem do dia e o assumpto favorito das multidões ociosas de Constantinopla; e não os artistas, mas até mesmo os escravos eram profundos theologos, e per- tendiam descortinar os mysterios da Santissima Trindade e a natureza. incomprehensivel do Ente Supremo. A historia da igreja, a. este tempo, apresentava as scenas degradantes da^ facção, perseguição e anarchia; bispos condemnando bispos,., ooncilios fulminando concílios com toda a. acrimonia do fana- tismo.

A promoção cie Gregório Nazianzeno á arehipiscopal de- Constantinopla no anuo de 380 assignalou o triumpho do* partido orthodoxo. O imperador Tlieodosio em pessoa acom- panhou Gregório, collocou-o sobre o throno archipiscopal e: os arianos. foram expulsos das igrejas â viva força.

Tão depressa começou o arcebispo a pregai? a doutrina da Santissima Trindade e a divindade de Christo, um bando de- frades e vagabundos assaltaram a igreja, e não sem difficul-- dade foi obrigado a retirar. A- fim d'acabar com todos os pretextos para duvidas e disputas. sobre a natureza das Pes- soas da Santissima Trindade, Theodosio convocou a Constan- tinopla um concilio de cento e cincoenta bispos, no qual foi debatido o systema theologico do concilio de Nicea e clara- mente definido; e a divindade do Espirito Santo, a respeito., da qual se tinham levantado algumas duvidas, foi declarado.

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dogma de fé, e constitue parte essencial do credo do chrisfia- nismo. O concilio de Constantinopla é considerado o segun- do concilio geral, e completamente defmio e estabeleceu a sobre aquelles pontos. Nos reinados de Theodosio e Arcádio, seu filho, diversos grandes caracteres resplandeceram na igreja christã, especialmente San Gregório e João Chry- sostomo, ambos successivamente arcebispos de Constantino- pl a.

A corrupção da língua é visível ein quasi todos os padres da igreja latina d'aquelle tempo; mas os exemplos de San Gregório Nazeanzeno e San Chrysostomo são todos como modelos d'eloquencia; San Chrysostomo, especialmente, foi sempre reputado o mais elegante escriptor, como fora o mais eloquente pregador de todos os padres dos primeiros tempos. Fora originariamente sacerdote d'Antliiocliia e depois de ser arcebispo de Constantinopla, foi perseguido e exilado pelo imperador Eudoxio, no anno de 404; não sem uma revolta popular em seu favor, que elle, não obstante, desaprovou e com difíiculdade apasiguou.

Este grande homem morreu no desterro em 407 e os seus restos foram, com grande solemnidade, trasladados para Constantinopla pelo imperador Theodosio 2.° no anno do Se- nhor de 438.

Depois que Theodosio o grande eífectuâra a suppressão do arianismo, a ortliodoxa passou a ser a religião de todo o império romano. Os godos e varias outras nações limitrophes tinham sido em parte, ou no todo, convertidos ao christia- nismo, mas como tivessem embebido seus princípios religio- sos, na maior parte, dos arianos, expulsos pelo partido ortho- doxo no reinado de Constantino , ou pelos missionários de Constantinopla, durante os reinados dos imperadores arianos; a sua religião era o arianismo. Em consequência da perse- guição dos arianos sob Theodosio, e a expulsão dos bispos e outros clérigos, que se recusaram a reconhecer os artigos de dictados pelos concilios de Nicea e Constantinopla, um grande numero d'aquelles ecclesiastieos se refugiou entre os

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godos, aonde as suas doutrinas eram íoclas semelhantes áê da igreja. Estes sacerdotes eram bem recebidos entre as nações barbaras, respeitados como viçtimas da religião e fo- ram extraordinariamente bem succedidos na propagação das suas doutrinas; tanto que o arianismo tornou-se a crença de todos os povos do norte, convertidos antes da subversão do* império romano. Pondo de parte as difierentes seitas que de tempos a tempos appareeiam, e que tem sido acoimadas de heréticas, será bastante notar que o orbe christão se dividia em dous grandes partidos , o dos orthodoxos e dos arianos, um que defendia a divindade de Christo como pessoa insepa- rável da Santissima Trindade; e o outro ensinando a supe- rioridade do Pae. Esta era a crença do império do oriente e aquella do occidente, desde o reinado de Constantinopla até Theodosio; e desde esse tempo a doutrina trinitaria passou a ser a religião de todo o orbe romano, e o arianismo a de todas as mais nações que abraçam o christianismo; até depois da queda do império, quando começaram umas apoz outras a seguir a religião catholica romana e adoptaram a doutrina da Santissima Trindade, conforme os decretos dos concilios de Nicea e Constantinopla.

Nas eras que agora esboçamos appareceram homens que figuraram no theatro politico e religioso do mundo, e cujas noções da Divindade formam uma feição distincta e notável na historia da humanidade. N'aquelles tempos tenebrosos de perseguição, que começaram no reinado duplo de Dioclecia- no e Maximiliano, uma nova doutrina appareceu na igreja. António e Paulo, dois eremitas egypcios, tinham abandona- do o mundo, entregando se á vida contemplativa e á oração nos desertos de Thc-baida. Vários outros, ou desejosos de se porem ao abrigo da perseguição, ou para fugirem âs seduc- ções do mundo, ou talvez, por natural inclinação, aparta- ram-se da sociedade para melhor se entregarem ao serviço de Deos. António reunio alguns e os constituio em commu- nidade regular no anno do Senhor de 305.

Numero considerável de pessoas, dotadas cTespirito religio*

8 e'ii

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%o dedicou-se a este modo devida: muitos adoptaram regias excessivamente austeras, convictos que uma vida de morti- ficação voluntária seria bem aceita de Deos. Descobrir a origem ou examinar as regras e instituições cVestas differen- fces ordens religiosas, que foram, em differeutes tempos esta- belecidos na igreja, excederia os limites apropriados a uma revista geral da historiada humanidade. Bastará dizer que no reinado de Constantino e de seus successores, a vida as- cética tornou se moda dominante, e Santo Hilário fundou ■conventos na Palestina em 328, pouco mais ou menos: em Roma em 341. San Basilio no Ponto no anno de 360; San Martinho na Gallia em 37'0; e em pouco tempo generalisaram- se em todas as partes do mundo christão. Estes religiosos, pela sua real ou apparente sanctidade, começaram a gosar de gran- de reputação. Eram tirados das suas solidões, apresentados nas grandes cidades e villas, e erigiam-se-lhes mosteiros su- berbos para suas residências com magníficos templos para -n celebração da missa.

Com o andar do tempo, a piedade e a superstição tam- bém doaram estes estabelecimentos de grandes rendimentos. Deste modo aquelles devotos, que haviam renunciado ao mundo e feito voto de pobreza tornaram-se senhores de gran- des cabedaes; e com quanto individualmente pobres, pos- suindo tudo em co min uru, formaram oommunidades opulen- tíssimas.

Fallando d'uma classe d'individuos religiosos que consti- íue uma feição distincta de historia, seja-nos permittido an- tecipar a ordem das cousas e do tempo, para umas obser- vações que pertencem a outro período, mas que por analo- gia do assumpto, tem melhor cabimento aqui. Não ê diíficil perceber, que por muito grande que fosse a veneração pela vida monástica em tempos mais remotos, não se casa com o gosto moderno. Os povos que abraçaram a religião reforma- da abandonaram as instituições monásticas. Nos paizes ca- tholicos romanos perderam geralmente seu antigo prestigio, <e o seu numero tem diminuído consideravelmente, Na França

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í outros paizes for: im inteiramente abolidos, e figm , por tudo quanto vemos, que os conventos terão acabado de todo antes d'acabar o soculo presente» Em quanto ás vanta- gens d'estas instituições, muitas são as razões apresentadas contra a sua existência, umas com bons fundamentos, ou- tras que tem por base princípios errados, e falsos precon- ceitos. O homem cie boa fé, porem, olhará, despido de pai- xão e prejuiso, as cousas, não pelo prisma d'espirito faceio^ so, mas á luz da verdade e formará seu juiso com imparciali- dade.

Para bem ajaisar da utilidade das instituições monásticas, devemos consideral-as sob um ponto de vista tanto religioso como politico, visto prender com ellas a devoção e o interes- se da sociedade. Em quanto á parte religiosa, parece matéria indiíferente. O Ente Supremo, que domina o universo e en- che a immensidade com a sua presença, pôde ser adorado em todos os logares, dentro dos muros d'um convento, ou entre as turbas d'uma cidade; no meio do tumulto dum a- campamento, ou no meio do esplendor d'uma corte. Nem o re- tiro do claustro, nem o bulício da turba pôde facilitar ou im- pedir a aceitação da sincera veneração da creatura. Se, por- tanto, um agregado de pessoas convém em se associar, a fim cVempregar o tempo na contemplação e na prece, debaixo d'aquellas regras e preceitos que entende apropriadas e conducentes á sua conveniência mutua, taes associações não podem, por principio algum religioso, ser prohibiclas, mais que quaesquer outras sociedades litterarias: mas não são a qualquer respeito essencialmente necessárias á religião e, tal- vez, dispensáveis mesmo.

As instituições monásticas, imparcialmente consideradas, sem a menor sombra de prejuiso, e julgadas como objecto secundário, sob o ponto de vista religioso, devem ser estuda- das politicamente, a fim de se conhecer se são d'utilidade ou de prejuiso á sociedade, o que depende muito de diíferentes circunstancias, idades e paizes.

Tem-se apresentado as casas religiosas como asylos d'è

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ociosidade, e os monges como indivíduos imiteis á sociedaclèc Este argumento pôde parecer á primeira vista plausível, mas cae por falta de base na generalidade. Admittmdo, comtudo, ser verdadeiro, como cm parte é, aquelle principio, é forço- so convir que os conventos não são as únicas guaridas de ociosidade. Quantos asylos d'estes não se encontram por alii, particulares ? A chusma de familiares que compõe o sé- quito dos grandes e opulentos de todos os paizes são de pouca utilidade publica, a não ser que na qualidade de consurn- midores, contribuam para a actividade cia industria e corn- mercio; mas as ordens religiosas são cTeste modo úteis á so- ciedade. Em todos os paizes, e com todo o systema politico lia immensa gente que em nenhum trabalho útil se emprega. Nem todos são obrigados a trabalhar. Aquelles que possuem propriedade sufficiente para a sua sustentação e que se lhes proporciona os meios de viverem com commodidade, raras vezes se occupam na cultura cios seus terrenos, ou em qualquer outra industria proveitosa á sociedade. D'aqui podemos igualmente argumentar, que se as cercas dos con- ventos não fossem sustento dos frades, seriam d'outros in- dividuos igualmente ociosos, e tanto esta propriedade como a de particulares, demandam cultura e por consequência é o arrimo d'aquelles que a trabalham. O homem é demasia- damente susceptível a deixar-se levar pelas primeiras im- pressões e não reflecte maduramente. Se tivéssemos a cer- teza que cada conventual, no estado secular se empregas- se em beneficio commum, melhor fora que o mosteiro não existisse; mas isto está longe d'acontecer: em todos os pai- zes ha muita gente, cujo tempo e talento são de menos pro- veito que os dos frades. Suppõe-se que, antes da revolução, o numero de religiosos d'ambos os sexos nos conventos de França, não era inferior a duzentos mil. Toda esta gente não se empregava em utilidade do estado; mas ao mesmo tempo havia n'aquelle paiz o dobro talvez daquelle numero tio mesmo modo inútil á sociedade, e certamente mais peri- gosa. Era sem duvida grande o numero de casas religiosas

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na França, mas se outros tantos francezes se tivessem en> tregue á vida mystica, não teria sido talvez, peior para si e para a Europa. Na Inglaterra mesmo lia indubitavelmente muitos milhares d'individuos que se empregariam melhor es- tando em conventos do que está acontecendo fora.

Isto de representar os frades como uma classe ociosa e inútil, constitue uma falsa apreciação do caracter da insti- tuição monástica. Que muitos são cVaquella Índole é fora de questão; mas outros ha d'uma classe muito differente. Os fra- des não conservaram a sabedoria no meio do barbaris- mo dos godos, mas muitos d'elles foram authores das sciencias modernas, e instrumentos activos do renascimento das lettras, na dispersão das trevas da ignorância e da bar- bárie que por tantos séculos envolveu a humanidade. Se não são os monges, tinha-se irremediavelmente perdido to- da a li tteratura antiga, e a historia dos tempos passados no naufrágio geral. Faltar-nos-hião hoje as composições dos poe- tas e oradores da Grécia e Roma, e como conservadores d'a- quellas brilhantes produeções de génio e eloquência, são cre- dores ao reconhecimento da posteridade.

A devassidão que reinava em algumas casas religiosas, é-- nos descripta por alguns authores nas mais negras cores, e comtudo temos incontestáveis provas que muitos monges foram homens sábios e piedosos; e como taes ornamentos da idade em que viveram. Que muitos eram o opposto tam- bém é inquestionável, mas isto acontece em todas as cor- porações. Um corpo militar não deve ser julgado pusilânime, porque conta meia dúzia de cobardes no seu seio, nem. uma nação inteira taxada d'immoral, porque alguns malfeitores morreram ás mãos do carrasco. A boa razão não nos deixa suppôr devotos todos os frades, nem castas todas as freiras, é também igualmente desrasoavel e menos caritativo jul- gar a todos impios e incastos. O prejuiso não deve influir sobre nós a ponto de nos induzir a condemnar uma com- munidade inteira, por causa dos crimes d'alguns de seus membros; e a nossa boa razão não deve subordinasse a faL

sas argumentações; Cumpre-nos estudar maduramente uma questão qualquer por ambas as faces, antes de julgar o nos- so semelhante, seja de que seita, partido ou denomi- nação for. Finalmente, figurássemos que as instituições monásticas, não tendo por base preceito algum divino-, não constituem parte essencial da religião, e por tanto só" po- dem ser consideradas como obra do homem, e, â semelhan- ça d'outros estabelecimentos politicos e civis, a sua proprie- dade e merecimento devem ser apreciados conforme os fins para que foram estabelecidos e conforme as idades e paiaes em que existem. No tempo dos godos e da idade media, quando todo o orbe christão, ou aquella parte ao menos, que se compunha da igreja latina luctava com a ignorância e commoções perpetuas; quando os alarmes incessantes da guerra e o estado geral militar da Europa, privava seus ha- bitantes de tempo, e mesmo- da- vontade, para a cultura das sciencias e d'aquelles estudos que illuminam e abrilhantam a intelligencia; quando eram estas- as circunstancias dos pai- zes christãos, parecemos altamente acertado que uma classe dliomens, estranhos ao bulicio do mundo e ao abrigo da violência dos partidos,- pela veneração publica que gosava, tratasse unicamente da parte intellectual, instruindo as mul- tidões ignorantes e conservando os restos da litteratura antiga. O clero envolvia-se demasiadamente nos negócios públicos e commoções d'aquelles tempos turbulentos para cuidar convenientemente das lettras e artes, e instituição al- guma se prestava tanto para este fim, como era a monásti- ca; mas como esses tempos não existem, aquelles estabe- lecimentos deixaram de ter a utilidade que tinham e prova- velmente não tardará que acabem de todo».

As reflexões que* passamos a fazer teem pouco d' agracia* feia- Depois da queda do império romano, succede um pe?-

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riodo tenebroso, que forma como nm abysmo na historiai da humanidade. Desde aquella epocha memorável, até ao-- remado de Carlos Magno, os annaes da Europa por mais dej três séculos descrevem uma nunca interrompida serie de sam gue e anarchia. As paginas da historia reproduzem as in- cessantes e sanguinolentas revoluções que tiveram logar noa reinos e nos estados que as nações do norte levantaram so- bre as minas- do império romano; e os escriptores que tra- tam d'aquelles tempos, enchem as suas narrativas de mal authenticadas descripções- de batalhas, cercos, traições e as- sassinatos, que merecem apenas a attenção da posteridade^ por nos darem uma idéa como se formaram os reinos e os estados da Europa moderna.

Os godos tinham estabelecido o seu reino na Hespanhar no anno de 472, e Clóvis estabeleceuamonarchiafrance- za pelos fins do quinto século.

Os saxonios entraram na Inglatera em 449 e o sexto sé- culo foi testemunha da heptarchia saxonia n'este paiz, a con- quista da Borgonha e Aquitauia pelos francezes, e o comple- to estabelecimento da monarchia franceza. O reino d'Odoa~ cro na Itália foi conquistado por Theodorico, rei dos godos^- que era subsidiado e commissionado pela corte de Constan- tinopla, e reinou na Itália por saneção e authoridade do im- perador do oriente, de quem se reconheceu vassallo. Theo- dorico é representado como príncipe de grandes qualidades-1 diplomáticas, mas de tal modo ignorante que nem sabia fa- zer o seu nome. No entanto, a Itália floresceu no seu reinado. EUe conservou os godos e os italianos como duas nações dis- tinctas, reservando a primeira para a guerra e a segunda pa- ra a paz. A' morte de Theodorioo o seu reino passou á sua- formosa e instruida filha, Amalasontha, cujo exilio e morte,, teve logar no anno do Senhor de 535*

Theodorico reinara com a confirmação da corte imperial de Constantinopla, e com quanto rei da Itália, era alliado e- vassallo e como tal se houve sempre para com o império do- oiúente; mas depois do exilio e morte, da filha os godos da-

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Itália recusaram-se a reconhecer a authoridade absoluta daí corte imperial, e quebraram todas as suas relações com o império. Então Justiniano reinou no oriente e mandou seu general, Belisario, para a Itália. Belisario entrou em Roma, onde foi sitiado pelos godos. A sua heróica c quasi incrivel defeza d'esta cidade, apenas com 5000 veteranos, contra um numeroso exercito de godos, commandado por Vitiges, seu rei, durante um anno inteiro em 537, ê considerada um dos mais assignalados feitos militares que recorda a historia; com quanto se deve suppôr que ella exagera um pouco, por quanto seuauthor Procopio era affecto a Belisario. Os feitos d'armas d'este grande general, são comtudo suhiciente- mente garantidos, para que seu nome se immortalisasse. Belisario fez varias sortidas arrojadas e felizes, e n'uma d'ellas, se diz haver os godos perdido 30:000 homens. Fo- ram obrigados a levantar o cerco á chegada de novas tro- pas de Constantinopla. Belisario, finalmente, subjugou o rei- no godo da Itália. Viteges, seu rei, entregando-se com con dições, foi enviado a Constantinopla, e Justiniano deu-lhe Dará sua manutenção uma lucrativa propriedade na Ásia menor, e quando reconheceu o rito athanasiano, conferiu- lhe o grau de patricio e senador que ainda continuavam a ser titulos honoríficos no império. Gulimer, rei dos vânda- los, disfructava igualmente grande propriedade, mas não po- dia gosar de titulo algum honorifico por serem incompatí- veis com o arianismo que elle professava. Os godos nova- mente se revoltaram com Tetila á sua frente, a quem haviam eleito rei, levando Belisario, pela segunda vez a entrar na Itália. Roma foi então tomada pelos godos no anno de 547 sendo Belisario mandado recolher, Roma foi de novo toma- da pelo inimigo. O commanclo do exercito da Itália foi en- tão confiado a Narses, eunucho, homem de consummada táctica militar e de extraordinária coragem. Este general ma- tou Tetila, o rei godo, e fez se senhor de Roma no anno de 552. Também bateu e fez perecer Teia, que succedêra a Tetila, como rei dos godos em 553. Logo em seguida teve

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logar uma formidável invasão na Itália pelos Francos, cúá jos exércitos inundaram aquelle paiz; mas aquelles invaso- res foram derrotados por Narses, com prodigiosa mortanda- de no anno de 554. A Itália ficou então sendo província do império oriental, ou Bysantino, estabelecendo-se um gover- no sob a denominação de exarchado, do qual o eunucho Narses, que se distinguira por seus brilhantes feitos d'armaS) talentos militares e insigne valentia, era o primeiro exarcha. A longa e sanguinolenta serie de reiteradas invasões e der- rotas, de saques, depredações e carnificina que, desde o rei- nado de Honório, no occidente, até áquelle de Justiniano no oriente, por espaço de quasi cento e cincoenta annos, des- solou a Itália e enchem volumes d'historia d'aquelles calami- tosos tempos, mereciam antes ser entregues ao eterno esque- cimento que relembrar factos de tanto horror a não ser que um relance passageiro sirva para nos demonstrar como cahiu o império romano e como as nações do norte estabe- leceram o seu dominio sobre as ruinas daquelle collosso. No meio, porem, de tão revoltantes scenas, a historia cVaquelles tempos apresenta-nos alguns grandes e extraordinários ca- racteres, que merecem logar na memoria da posteridade ; es- pecialmente o imperador Justiniano e seus celebres generaes Belisario e Narses. A fortuna parece haver favorecido Jus- tiniano d' uma maneira singular. Elle deveu a sua elevação a seu tio, Justino, filho de gente obscura da Dacia ao norte do Danúbio, que com outros dous homens rústicos, abandonando a lavoura e mal aprevisionados, dirigiram-se para Constan- tinopla em busca de fortuna n'aquella capital, então centro do movimento do mundo e o theatro mais adequado para o desenvolvimento do génio. Não ha, talvez, nada na historia da humanidade mais agradável e mais digno d'attenção como é considerar as singulares vicissitudes que caracterizam as vidas d'alguns personagens extraordinários e que parecem destinados pela Providencia a desempenharem algum pa- pel de primeira ordem. Justino, tão depressa chegou a Cons-- tantinopla, em rasão das suas forças physicas e estatura foi

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''kdmittido no corpo de guardas cio imperador Leão. Nos doas reinados immediatos, . Justino, de pobre e obscuro passou a ser rico e grande. Tendo-se destinguido na guerra contra os persas, seu merecimento obteve-lhe successivos postos d'ac- cesso militar até que foi nomeado Senado v e commandantè da guarda imperial. Estava nesta vantajosa posição quando, morrendo o imperador Anastácio, aproveitou a occasião de se elevar á soberania do império do Oriente valendo-se da sua posição e influencia militar, contando então G8 annos d'idade.

Justino á semelhança de Theodorico rei dTtalia era com- pletamente analphabeto^ e não deixa de ser um facto singular que dons soberanos contemporâneos dos mais poderosos fos- sem destituídos de instrucção. Justino tirou seu sobrinho Jus- tiniano do mesmo obscurantismo era que fora creado. Deste modo foi subitamente este joven elevado e reconhecido her- deiro presumptivo do império. Recebeu uma excellente edu- cação litteraria em Constantinopla, e com todas as vantagens em seu favor subio ao throno imperial por morte de seu tio no anno de 527. Pela conquista da Itália e da Africa deu ao império do Oriente um explendor e extensão que até então não tivera desde a sua separação do império occidental; e tor- nou-se distincto por seu consumado tacto politico e legislati- vo durante um longo reinado de trinta e oito annos, appre- sentando um exemplo de continuada prosperidade que talvez se não encontre outra na historia.

Vários imperadores romanos como Cláudio, Probo, Aure- liano, Deocletiano, Maximino, Galerio e outros d'humilde con- dição tinham chegado a elevar -se ao império do mundo ; mas a sua elevação tinha sido, ou o premio de provado mérito, ou a consequência de grandes crimes. Aquelles imperadores ti- nlião gasto a sua mocidade nos perigos e sacrifícios da guer- ra, alguns, em posição subalterna, não tiveram nunca occasião de se educarem para occupar o elevado car- go para que depois foram chamados. O mesmo se pode dizer d'alguns imperadores do Oriente depois de Justiniano, como

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Basilio o Macedoniano.

Temos igualmente' visto no ultimo século Nadir Sliali, ralmentc conhecido por Kouli-Khan que de chefe de salteado- res, fez-se rei da Pérsia, conquistou o império do Mogol e tor- nou-se rival do poder Ottomano. Nunhum dos felizes aventu- reiros aqui citados tiveram educação liberal, vida ditosa, e reinado glorioso, como Justiniano.

A fortuna juncou-lhe a estrada de flores desde a mocida- de, e sem esforço algum, sem azares e legalmente, do estado mais humilde subio ao apogeo da grandeza humana, tor- nando-se distincto durante uma longa vida. A gloria de cur- ta duração e tão custosamente obtida dos outros imperado- res deveu-se a mérito militar, mas a boa fortuna de Justinia- no antecipou a siia celebridade.

Para o tornar um completo typo de felicidade, déra-lhe a natureza génio, vigorosa intelligencia, constituição robusta e uma saúde perfeita.

Alguns escriptores ha que procuram denegrir a sua re- putação, mas estes eram inimigos do christianismo, com os quaes não era favorito, e elle não se distingnio em devo- ção e zelo pela religião, edificando a soberba cathedral de Santa Sophia, como também na qualidade de 'strenuo de- fensor das doutrinas da egreja.

Parece mesmo que a única mancha no caracter de Justi- niano era de ser beato. Os seus mais declarados inimigos concordam no seu merecimento como .phiíosopho, politico, le- gislador, e homem versado nas lettras e artes. Legou um no- bre monumento no seu código, tido como fonte da jurispru- dência moderna com quanto modificada, conforme as exigên- cias do tempo. Ò magnifico templo de Santa Sophia, hoje mesquita mahometana, e do qual elle fora um dos principaes architectos, attesta a sua perícia em architectura. Deveu seus conhecimentos a um estudo aturado, ajtrtlado de ta- lento natural. Era sóbrio na dieta e homem de pouco repouso. Depois de dormir uma hora, erguia-se frequentemen- te para se entregar ao estudo até de manhã. Uma grande in.â

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reiligencía esmeradamente cultivada, uma actividade d'espiri- to, uma saúde vigorosa no decurso d'uma longa vida fizeram

i (pie fossou: vastos os seus conhecimentos. O seu tacto po- ; o manifesto u-se no modo porque dirigia a guerra, e na esco- lha de seus generaes a cuja habilidade consummada se deveu seremos reinos Godo e Vândalo da Itália e d' Africa annexados ao império Bysantino que carecia tão somente da Hespanha, França c Grran-Bretanha para lhe dar aquella grandeza que o império romano indiviso adquirira quando no zenith do seu explendor.

Belizario e Narses são caracteres pouco menos notáveis, ou distinctos na historia. Erão ambos d'origem obscura e creados mcdiocremente. Ambos elevaram-se e se distinguiram pe- la sua coragem nas crises mais sérias, dando uma incontesta- vel prova do descernimento de Justiniano em lhes descobrir tanto merecimento occupando logares tão secundários. Tem- se-nos entretido com um conto ricliculo dliaver sido Belizario privado de vista e reduzido á pobreza em rasão da confisca- ção das propriedades, ficando obrigado a pedir esmola.

O que ha de verdade é que Belizario sendo accusado de conspirar contra o imperador fora encarcerado ; mas verifican- do-se estar innocente foi absolvido; com quanto Justiniano lhe confiscasse a maior parte da sua immensa propriedade.

No reinado de Justiniano, o império do Oriente, então no zenith da sua gloria experimentou, como também a maior par- te do globo, calamidades de natureza physica impossiveis d'evi- tar. Tremores de terra espantosos tiveram logar quasi todos os annos em todo o império; mas a maior fatalidade n'este rei- nado foi a peste que primeiro se manifestou nas visinhanças de Peluso, no Egypto, uma cidade situada nas margens cio Ni- lo. Este terrível contagio extendeu-se á maior parte da Azia, 'Africa e Europa, e poucos foram os logares que lhe escaparam. Por espaço de três mezes de cinco a dez mil pessoas morriam diariamente em Constantinopla; muitas cidades do Oriente foram igualmente desimaclas e em alguns logares da Itália as coaras apodreceram nas terras. Esta epidemia manifestou-se

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fiq decimo quinto anno do reinado de Justiniano e íbi de tão

longa duração que se cxtinguio no fim de cihcoenta e dons annos.

A sujeição da Itália e Africa, com quanto engrandecesse o poder de Justiniano e estendesse o seu império, foi um acon- tecimento que influio menos sobre os destinos dos tempos que lhe succederam, que as emprezas de natureza commercial e que datam cVeste reinado. Os effeitos da primeira depressa se apagaram, aquelles das segundas teem sido permanentes ; el- les sobreviveram ao" império, e ainda se fazem sentir na mo- derna Europa. Desde o período em que Roma, tendo attingi- do o zeniíh de seu poder e grandeza, começou a dissipar por meio do luxo as riquezas que adquirira pelas armas, a seda era um cVaquelles artigos de despeza faustuosa que contribuio, ] nais que tudo, talvez, para passar para as partes orientaes d'Azia, as riquezas accumuladas nos saques cie todos esses pai- zes entre o Euplirates e as columnas dTIercules. A seda cons- tituirá, havia muito tempo, uma muito considerável parte do trafico entre Roma e índia pelo porto cVAlexandria duran- te o período mais florescente do império. Nos últimos tempos, quando a cidade imperial foi preza das nações septentrionaes, e que o império oriental estava fraca e vacillante, os Persas tinhão, por vários meios, cortado frequentemente a communi- cação entre o Oriente e o Occidente, e, até certo ponto, feito monopólio do commercio da seda. A Usbec Tártara, situada quasi no centro da Azia, é um paiz, que, com quanto pouco conhecido aos Europeos, tem sido ha muito notado pelo espi- rito industrial e mercantil cie seus habitantes, como também pela fertilidade de seu solo. Foi aqui que, em outros tempos, ZinghisKhan fundou um império, que depois Tamerlâo revi- veu e igualou áquelle cia antiga Roma em extensão de ter- ritório.

Aqui, também, em epocha muito anterior, commerciava-se com ambos os paizes orientaes e occiclentaes da Azia.

No reinado de Justiniano e nos tempos que o precederam, as caravanas de Samarcand traziam sedas da China, que eram

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geralmente compradas por negociantes persas, concorrentes bis feiras nas fronteiras dòs dons impérios, e que abasteciam Roma deste valioso artigo de luxo. Com quanto fosse uma mercadoria que comportava um grande valor em pequeno, volume, o que deveria diminuir as despezas. do transporte, a jornada das caravanas era longa e perigosa atravez os im- mensos desertos que se estendem desde o Jax.artç até ás fron- teiras da China, e nos quaes as hordas nómadas teem. sempre considerado o viajante como objecto de legal rapina.

A's vezes, para escaparem ás hordas Tártaras, as carava- nas da seda tomavam um caminho mais ao sul, e atravessai!-., do as montanhas do Thibet, desciam pelo Indo, e esperavam nos portas de Guzerat ou de Malabar a chegada das frotas annuaes procedentes do mar vermelho e do golpho Pérsico. Mas a fadiga e perda de tempo em atravessar aquelles cami- nhos pouco frequentados não eram menos intoleráveis que os perigos do deserto e aquelles que uma vez os experimentasse, raras. vezes repetião a experiência. Comtudo, o- oceano abria- se á cominunicacâo geral.

Os chins valião.-se doesta vantagem e estabeleceram uma navegação para os estreitos de Malacca; e provavelmente es- tendiam a sua derrota até á ilha de Sumatra. D'aqui, a dis- tancia cm linha recta a Ceylão orça por 3.00 léguas, e al- guns authores querem que elles navegaram até lá.

Os chins e os navegadores indios, favorecidos pela moi>. çào, talvez atravessassem aquelle grande espaço de mar; porém é certo que os mercadores de sedas, reunindo nas suas.;. viagens o aloés, o cravinho da índia, a noz, moscada, . e ou- tras especiarias, mantinham nos portos de Malacca, ou n'a- quelles-das mencionadas ilhas, francas e proveitosas rela-, coes comas nações circunvisinhas do már vermelho e golpho pérsico. A proximidade em que estavam os persas dos mer- cados da índia dava-lhes uma decidida vantagem sobre os súbditos de Justiniano, e facilita vam-lhes o monopólio.

Havia muito (pie a seda se tornara um objecto de luxo, e .!<> mesmo modo que esgotara as riquezas de Roma, esgotou,

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ra Constantinopla. Sommas immensas eram enviadas an- ruralmente para fora do império em troca de manufacturas estrangeiras, sem o minimo beneficio para a industria do paiz; é uma considerável parte dos lucros d'este commercio cabia nas mãos dos persas, inimigos implacáveis de Constantino- pla. Fosse- qual fosse o modo de fazer este commercio, é certo que a importação d'um artigo tão despendioso e em tão grande escala, deveria forçosamente empobrecer o impé- rio.— Justiniano tinha querido, desde muito, fazer romano, este lucrativo commercio, mas obstáculos invenciveis tinham- se anteposto aos seus projectos.

Aquellas dificuldades, porém, que toda a diplomacia do imperador não teve força para vencer, foram superadas pela emprehendedora sagacidade de dous monges persas, que, na qualidade de missionários, tinham residido havia muito tempo na China. No meio das suas occupações religiosas, tinham podido descobrir e estudar a maneira de manufactu- rar a seda n'aquelle paiz, tinham visto milhões de bichos de seda, e qual o seu tratamento. Conheceram a impossibilida- de d'importar um insecto tão delicado e tão ephemero de tal' distancia; mas imaginaram que os ovos podiam ser conser- vados, e por este meio reproduzir-se o bicho. Sabendo quão agradável seria na corte, de Constantinopla a realisa- ção d'esta empreza, chegaram depois de longa jornada á capital do império romano; e tendo revelado ao imperador o seu intento, foram animados a progredir n'elb pela libera- lidade de suas dadivas e esplendor de suas promessas.

Os dous monges, tendo regressado á China, e esconden- do as ovas do bicho de seda n\im canudo de canna, engana- ram um povo ciumento do seu commercio, entrando triumphan- tes em Constantinopla com as riquezas do Oriente, conquista maior que todas aquellas de Justiniano, ou do seu celebre general, Belisario. Sob a direcção dos monges foram as ovas desenvolvidas a calor artificial; os bichos foram sustentados com a folha da amoreira, e com os cuidados empregados propagaram-se em larga escala. A experiência e o estudo de--

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ssa corrigem defeitos inevitáveis nos primeiros ensaios; e em pouco tempo os súbditos de Justiniano egualavam os chins no tratamento dos bichos e na manufactura da seda. De Constantinopla passou este importante ir> secto para o sul da Europa, e o seu produeto é hoje manufacturado em toda a parte do mundo. t)'este modo, e devido a uma circunstan- cia singular nos animes do commercio, que se julga ter oc- corrido no anuo de 552, a moderna Europa gosa, a preço módico, um dos objectos de mais luxo e despeza da antigui- dade, limitado á China, e cujo valor em Roma era tal que se vendia a peso cVouro.

. Em quanto o reinado de Justiniano constituia o mais bri- lhante período da historia do império Bysantino, a Europa apresentava um notável contraste com a esplendida grande- za de Constantinopla.— A Itália nadava em sangue por causa das guerras dos godos, o reino de França não se achava con- solidado, os francos, e os borgonhezes etc, mas suas mui- tas contendas fizeram da França e da Alemanha um campo de carnificina e devastação, e a Inglaterra era o theatro de continuada guerra entre os bretões e os saxonios, que estabe- leceram a sua heptarchia n'este paiz durante o reinado de Justiniano. Poucas são as noções que temos dos costumes cVaquelles tempos tumultuosos, mas póde-se affoutamente dizer que eram elles bárbaros, guerreiros, e supersticio- sos.

As artes e sciencias estavam quasi extinctas, e a própria litteratura entre as nações do norte, cuja vocação era para a emigração e conquista; tornando-se objecto de desprezo todo aquelle que amasse a paz e a civilisação.

O império Bysantino era a parte única do mundo co- nhecido que se podesse dizer com propriedade civilisada; e Constantinopla, o centro de tudo que era grande e de méri- to na litteratura e nas artes. Cada estudo destinado a servir d'embelezamento ao espirito humano, e desenvolvimento das fa- culdades intellectuaes, estava em completo abandono e pro- vavelmente se teria perdido inteiramente no Occidente, a não

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o haver os monges conservado, tanto quanto lhes era possível . do naufrágio universal.

Pouco depois da morte de Justiniano o império oriental começou a declinar d'esplendor e em seguida aos reinados de Justino 2.° e de Tibério, que preencheram o intervallo entre a morte de Justiniano, acontecida no anuo de 565, a- que suecedeu Maurício em 582, um espirito faccioso e de revolta principiou a fermentar em Constantinopla, que final- mente acabou em despotismo e na morte de Maurício, elegen- do-se então Phceas, o Centurião em 602. Phceas por seu turno foi deposto e mandado matar por Heraclio, cujo reina- do*foi celebre por uma contenda das mais renhidas, conheci- da na historia, e que fo^ entretida longos aimos entre o impé- rio do oriente c a Pérsia; sendo as suas consequências fataes para esta e quasi também para o primeiro d'estes poderosos impérios. Esta guerra entre os impérios bysantino e pérsico é notável pela obstinação com que foi sustentada e pelos es- forços extraordinários dos contendentes; e mais memorável ainda como preludio d'uma serie d 'acontecimentos imprevis- tos, mas que d:everiào espantar o inundo. Alludimos á fun- dação do mahometanismo.

No começo da guerra, Chosroes, monarcha persa, tinha invadido os domínios bysantinos, conquistado a Syria e a Palestina, e saqueado Jerusalém.

Pouco depois acerescentou ás suas conquistas o Egypto e a Ásia Menor.

Por espaço de doze aimos, de 610 a 622, o iurperio do o- riente, apresentou um quadro de desastres sem exemplo. Em todo este tempo as provindas desde os confins do Adriá- tico até aos subúrbios de Constantinopla, foram assaltados pelo Khan dos Avars, que havia subjugado os hunos, e re- sidia na real villa d:Attila na grande planicie da Hungria. O exercito persa esteve, dez annos, acampado em Calcedonia, hoje Scutari, sobre as margens do Bosphoro, exactamente em frente de Constantinopla. A consternação geral era tal que o imperador esteve para sair da cidade e passar-se, lêvan-

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do coinsigo os thesouros do palácio imperial, para Cartliago. quando o patriarcha lhe embargou a fuga, e conduzindo-o ao altar da egreja de Santa Sophia, fel-o jurar que viveria e morreria com o seu povo.

Heraclio tendo-se obrigado por este solemne juramento a defender a sua pátria, deu um passo arrojado, mas perigoso, transportando-se com um exercito ao coração dos dominios persas pelo mar Euxino; e entregando seus filhos ao cuida- do e protecção do povo, dirigiu-se primeiro ás partes meri- dionaes da Azia menor, aonde derrotou completamente os persas, e regressou a Constantinopla, a fim de preparar nova expedição contra o território persa.

Deixando a authoridade militar e civil em mãos compe- tentes, e dando poderes descripcionarios ao patriarcha e ao senado para defender ou entregar a cidade, com forme as circunstancias exigissem, o imperador, com um séquito esco- lhido, fez-se de vela em Constantinopla para a Trebisonda, onde reunio todo o exercito, e marchou sobre o Tauro na Me- dia.

Em toda a parte extinguiu o fogo sacro e destruio os tem- plos dos Magos, demolindo as estatuas de Chosroes, arrasan- do a cidade d'Ormia, e libertou 500,000 captivos. Condu- ziu então seus exércitos victoriosos ás cidades de Casbin e Ispahhan, e derrotou totalmente as numerosas forças da Pér- sia. Chorões esgotou a força do seu reino, e dividio as suas levas em três formidáveis exércitos; o primeiro marchou con- tra Heraclio, o segundo para obstar á juncção d'este com seu irmão Theodoro, e o terceiro destinado a operar contra Cons- tantinopla, marchou para a Calcedonia. Do lado Europeu, os Avars, com um exercito de 80,000 homens, sitiaram aquella cidade, que se achava completamente cercada, e por espaço de dez dias successivos a atacaram sem resultado. Heraclio fez alliança com os turcos, que, por esta occasião figuram na historia pela primeira vez, e obteve d'elles um reforço de 40,000 homens de cavallo.

•Fendo reunido e passado revista ao exercito alliado.^ deu.

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batalha campal nas margens do Tigris, no próprio sitio onde se presume existira Nineve. N'aquella batalha foi morto o commandante em chefe dos persas, e todo o seu exercito des- baratado. Heraclio, fez prodigios de valor, segundo se diz, matando com a sua própria mão três chefes notáveis do exer- cito inimigo.

Então assollou a Asyria, e penetrou até ao Dastagar- do, residência real de Chosroes, logar de magnificência sem egual, que saqueou e ineendiou, levando a devastação e •a morte ao coração dos dominios da Pérsia. Tão continuados ■desastres provocaram uma revolta geral da parte dos persas, contra Chosroes, que sendo deposto, Siroes, seu filho foi pro- clamado rei. Siroes mandou então matar o pae e desoito ir- mãos, e fez a paz com Heraclio, em consequência do que fo- ram restituidas as antigas fronteiras dos impérios bysantino e persa.

As nações do norte, que haviam subjugado o império Rema- no, estavam ainda em estado desassocegado, e a Europa conti- nuava a apresentar um aspecto repugnante de barbarismo e anarchia; em quanto que Constantinopla triumphára apoz uma guerra feliz que ameaçara nada menos que o aniquila- mento do império bysantino. Era este o aspecto politico do mundo, quando aquelle império esteve para ser assaltado por perigos de magnitude egual ou superior ainda áquelle a que acabava de subtrahir-se pelos mais desesperados esforços: e o oriente pouco lhe faltou para apresentar scenas d'horror semelhantes áquellas com que o occidente se familiarisára no decurso de dois séculos; cuja causa, porem, fora de natureza mais extraordinária e inesperada. Um phenomeno politico, religioso, e moral appareceu no mundo, que, depois da propa- gação e estabelecimento do Chiistianismo tem exercido uma influencia maior e mais duradoura nas idéas e condições da humanidade que outro algum acontecimento registado pe- la historia. No anno de 599, pouco mais ou menos, Mahomed, árabe, natural da cidade de Mecca situada não distante da costa oriental do mar vermelho, assumindo o caracter de

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propiíeta enviado pelo Altíssimo, encarregado da missão ex- traordinária de levar seus compatriotas a aberrarem o zabaismo e a idolatria, e da conversão cio género humano, tinha com estas pretençoes chamado contra si a malversação de uma parte de seus concidadãos, em consequência do que foi obrigado a fugir com alguns parentes e apóstolos de Mecca para Medina no anno do senhor de 622. N'esta cidade, á sua qualidade de Phropheta juntou a de militar e tendo feito mui- tos proselytos e reunido um bando de homens destemidos cuja coragem animou com promessas d'um paraizo cheio de deli- cias sensuaes, especialmente para aquelles que fossem victimas da sua causa, atacou e tomou d'assalto Mecca, subjugando, uns apoz outros, todas as tribus Árabes.

Apreciando-se devidamente o caracter d'este homem extra- ordinário, o esj)irito mais acanhado e mais dado a prejuízos não pode deixar de fazer justiça ao seu tacto politico e parti- cular talento para conhecer os homens. Elle soube tirar partido da natural tendência sensual dos Árabes e dos povos dos pai- zes vizinhos; e inventou um paraizo apropriado ao seu gosto e nas circunstancias de lhe ganhar proselytos.

Não desconhecia as propensões humanas, e embalou as mas- sas com esperanças fagueiras de facilmente obter isso mesmo a que o geral da humanidade aspira, e sobre estes princípios fundou o seu systema religioso, inspirando deste modo os seus compatriotas de coragem para levar â execução seus planos de conquista.

Considerando avoluptuoza disposição dos povos d'aquel!e paiz, elle permittio a polygamia; mas expressamente prohibio o uzo do vinho, e bebidas espirituosas, a que naturalmente não erão propensos e cuja privação lhes não era sensível.

Diz-se que Mahomed adoptara esta abstenção do vinho pela experiência das funestas consequências da embriaguez, tendo sido em certa occazião, surprehendido pelo inimigo, e em im- minente perigo de vêr aniquilada a sua tropa, n'uma occazião em que ella estava entregue á embriaguez. Fosse, ou não, este o motivo verdadeiro que o levou a prohibir as bebidas cspiri-

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tuozas, parece fora de duvida que Mahomed reputava a em- briaguez uni dos vicios que mais degradava a humanidade e indispunha o homem para as grandes cmprezas. Descriminando com agudeza d'espirito entre as tendências impostas pela na- tureza e aquellas adquiridas por habito, deu as máximas lar- gas á primeira, mas nenhumas á segunda. O seu systema de religião parece bazear-se n'um estudo de varias circunstancias e na apreciação das tendências, prejuízos, e idéas da humani- dade.

Notou que a crença em um Deos era a crença dos Jude- deus e dos Christãos e q' ella triumphára de todos os difleren- tes systemas de paganismo estabelecidos entre os antigos. Com quanto Mahomed fosse completamente analfabeto havia, por meio d'um longo trato com os christãos da Palestina, e especi- almente pelos conhecimentos obtidos na convivência com o monge, Sérgio, seu coadjutor, podido iniciar-se nos preceitos da religião christâ, nas circunstancias da sua propagação e es- tabelecimento, e seu recente triumpho sobre o paganismo.

Podia, provavelmente, também considerar a unidade do Ente Supremo uma doutrina tão rasoavel que não podia, por fim de tudo, deixar de prevalescer contra todos os systemas de polythe- simo e idolatria; e por consequência que religião alguma podia sem aquelle principio capital estabelecer-se no mundo. Com- prehendeu também que os christãos, com quanto divididos em seitas differentes, e cVuma moralidade pouco austera, ti- nham uma tal veneração pelo nome de Christo, que com pou- cos proselytos devia contar entre elles, se pretendesse negar completamente a sua divina missão. Por tanto, reconheceu a divina authoriclade de Jesus Christo, mas regeitou o princi- pio da divindade da sua pessoa.

Este ultimo não podia elle de facto admittir, por que o seu reconhecimento seria incompatível com o seu plano de se in- culcar primeiro propheta. Partindo d'estes princípios, Maho- med declarou-se o maior dos prophetas do Altíssimo ; aiian- dou pregar a unidade da natureza Divina, e o verdadeiro culto do Ente Supremo.

Depois cie haver associado um numero considerável de pro- selytos e achar-se suficientemente preparado para tomar a offensiva, proclamou a sua missão divina, que o autliorisava a usar de meios compulsórios, quando os persuasorios não< fossem sufficientes para triumphar a sua propaganda. As or- denações que sobre esse assumpto publicou, inf orçavam que elle, e seus partidários fieis, se achavam inves-tidos do direi- to de fazarem valer a força armada, em ordem a compellir a humanidade inteira a abraçar as doutrinas do alcorão, que elle declarava publicamente ter-lhe sido transmittido do céo pelo anjo Gabriel; e que, no caso^ de recusa, sendo judeus ou christãos, ser-lhes-hia permittido o livre exercido da sua reli- gião, sob condição de pagarem tributo.

Aos pagãos não concedeu elle o direito drescolha, e não lhes deixou outra alternativa senão converterem-se ou morrerem. Tornandô-se vencedoras as asmas de Mahomed, a Arábia in- teira foi depressa subjugada,- mas apesar cTentrar em guerra com o império oriental, três anno& aproximadamente antes da sua morte, que occorreu na idade de 64 annos, 6321 annos da era cliristã, pouco se extendeu alem das fronteiras da Ará- bia. Seu suecessor, Abubekar, começou a guerra contra a. Pérsia, que ainda se não restabelecera da desordem1 em que & deixara a sua terrivel contenda com o império do oriente no reinado de GhosroeSy eque tão fatal foi áquelle principe e aos- seus estados.

Abubekar morreu no anno 63:4, depois do curto reinado- de dois annos, succedendo-lhe Ornar, em cujo reinado de dez annos, fizeram-se consideráveis conquistas no império bysan- tino. A Syria foi conquistada por Caled e Abu Obeida, gene- ral d'Omar; e Amrú, outro, general seu, apoderou-se do E- gypto no anno do Senhor de 638.. Estes golpes foram fataes ao exercito oriental, que jamais recuperou seu antigo poder e explendor. A perda do Egypto não podia deixar de ser severamente sentida pelo povo de Constantinopla, por isso que aquelle paiz fora sempre considerado o celleiro da capi. tal:, e toda a Syria estando em poder do inimigo, abria ca-

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jaiinlio á Azia menor, e deixou todas as províncias do impe1- rio bysantino na Azia, expostas á invasão.

Os acontecimentos occorridos no remado de Heraclio apre- sentam provas visiveis da incerteza da politica, e quanto é li- mitada a espliera da previsão humana. O império bysanti- no julgou-se livre de perigo, pelo triumpho adquirido sobre- um inimigo implacável, poderoso e por muito tempo victorio- so, e que ameaçara o seu anniquilamento-; e de seu lado a Pérsia, reduzida e enfraquecida como estava, não parecia, pe- lo menos nos primeiros tempos nas circunstancias de lhe dar sérios motivos de receiov N'este- prospero- estado d& cousas,, Constantinopla julgava haver attingido, a todos os respeitos,, © supra summum de segurança e felicidade politica pela sujei- ção da sua grande e perigosa rival, mas esta depressão dk Pérsia foi um grande passo para o- engrandecimento do im- pério Saraceno. O assignalado suecesso de Heraclio contra Chosroes, enfraquecendo e esgotando as- foiças da monarchia» Persa fez com que caísse em poder dos cáliphas mahometa- nos; que, com a acquisição de tão vasto território tornaram-se* mais formidáveis ao império do Oriente do que nunca os Per- sas tinham sido. Se não fora a guerra entre Heraclio e Chos- roes e que esgotou os recursos entre os impérios- persa e by- santino nunca os sarracenos se teriao tornado tão poderosos.. Conservando-se a monarchia Persa no goso de seu poder e- grandeza como antes da desastroza guerra, teria contrabalan- çado o poder do Cálipha que deste modo se teria tornado me- nos formidável ao império do oriente. Quando Heraclio, por quasi inexcediveis esforços, destruio inteiramente o poder da. Persia, podia eonjecturar-se com muito- boas probabilidades,, que o império de Constantinopla estava livre de seu mais for- te e perigoso inimigo, e que nada mais tinha a temer do lado* Asiático; quando, contra toda a expectativa, a queda da Pér- sia deu força a um poder nascente, que muitas vezes ameaçou a subversão do império do oriente, e que de facto lhe estrei- tou seus domínios.

Quasi ninguém ignora o que se diz da destruição da famo-

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bibliotheca 3.' Alexandria. attribuidaa Amru, depois da tomada d'aquella cidade: lia porem razões para duvidar da suaauthen- ticidade. Eutychio, patriarchà d 'Alexandria , que escreveu circunstanciadamente sobre a conquista sarracena não falia da conflagração da bibliotheca; e alguns authores modernos dizem que Abulpharagio, que escreveu seis centos annos depois d'a- quelle acontecimento, ea duzentas léguas do sitio aonde teve logar, é o único author d'essa historia. E' com tudo im- possível saber de que documentos se serviu quando escre- veu; e o silencio d 'Eu ty chio, que era mais antigo que A- bulpharagio, com quanto nos faça vacillar sobre o facto, não invalida de todo o testemunho do primeiro. Um author pôde ás vezes, por mero esquecimento, ou pouco caso, ou outra circunstancia qualquer, omittir um ou outro facto im- portante, que nem por isso deixou d'existir. A authenticida- de do incêndio da bibliotheca d'Alexandria não se pode pois arnrmar nem negar, porem é certo que esta celebre collecção de sciencia tinha diminuido muito antes d'aquelle tempo. Nos reinados dos Ptolomeus, ha quem lhe 500,000 volumes e outros 700,000. Era n'aquella épocha o maior deposito de litteratura existente no mundo, e provavelmente encerrava vastos conhecimentos dos antigos Egypcios. Hoje é impossi- vel investigar as causas da sua decadência, mas é certo que muitos volumes de sciencia antiga perderam-se no tempo da guerra Alexandriaca por Cezar, e não poderam ser restaura- dos.

O calipha Ornar morreu 644 annos depois de Christo; e no tempo d'Ottomano,seu successor, a conquista da Pérsia foi ultimado por Caled. N'este reinado Abdallah, um dos gene- raes d'Ottomano, invadio as provindas Africanas ainda sujei- tas a Constantinopla; e aquella parte d'Africa que antigamen- te estivera sob o dominio dos Romanos, e mais tarde o impé- rio bysantino e que se extendia desde o Egypto até o Atlân- tico, e desde o Mediterrâneo até o gram deserto, cahio em poder dos caliphas Mahometanos no anno do Senhor de 709. A invasão dlíespanha, por Tarik general de Muza, que go-

vernou na Africa na qualidade de Vice-Iiei, pelo Calipha We- lid, teve logar em 710, e antes do fim de 713 levou-se a efieito a conquista de todo o reino, á excepção d'algumas partes mon- tanhosas do lado do noroeste, para onde alguns chefes hespa- rinoés se retiraram com seus partidários e valentemente sus- tentaram a sua independência.

A historia do mundo não tinha, anteriormente a este perio- do, podido recordar uma tão extraordinária serie de conquis- tas como aquellas feitas pelos caliphas mahometanos, que, no espaço d'oitenta annos depois da morte de Mahomed, ha- viam-se assenhoriado da Pérsia, da Syria, do Egypto, de todos os paizes septentrionaes d' Africa, do reino de Hespa- nha, extendendo seu império desde o oceano indico ao ocea- no atlântico. As conquistas d'Alexandre tinham sido, de facto, mais rápidas e quasi tão extensas, mas muito menos notá- veis e extraordinárias no seu género.

As circunstancias politicas e militares dos gregos, que subjugaram o império persa, diíferiam largamente d'aquel- las dos árabes, ou saracenos. Alexandre, á testa dos exér- citos alliados da Macedónia e da Grécia, como se tem dito, tinha a seu favor a disciplina, a táctica militar, e um equipamento até* então nunca visto. Mas os árabes, surgindo de seus áridos desertos, nem eram numerosos nem discipli- nados. Os gregos tinham fama de longa data, sobre todas as nações do mundo, de superioridade nas armas, e os ma- cedonios tinham, pelos talentos e exforços do seu rei, guer- reiro e estadista, Philippe, adquirido uma reputação de dis- ciplina e táctica, egaal, senão mesmo superior aos projjrios gregos.

Mas os sarracenos do deserto e tribus selvagens das dif- ferentes partes da Arábia, nunca tinham sido classificados de povos guerreiros. Não apresentavam eropreza bellica de que se podessem vangloriar. O seu paiz não tinha nome nos an- naes da guerra. A sua historia não recordava conquistas. A que causa pois attribuir o progresso rápido e irresistivel das suas armas ? E' esta uma pergunta que o intelligente leitor

naturalmente faz, mas descendo á analvse do estado das cem* sas d'aquelle tempo, vêr-se-ha que duas notáveis causas pro- duziram este phenomeno. Em razão da ruinoza contenda, tanto tempo sustentada entre Heraclio e Cliosroes, com uma pertinácia sem parellelo na historia das nações, a monarchia Persa foi lançada n'um estado de fraqueza e anarchia; e o império bysantino, com quanto ultimamente vencedor, ti- nha, por muitos annos, vacillado ás bordas do abysmo, e, depois da feliz terminação da, guerra, achou seus recursos exhauridos totalmente em consequência dos grandes esfor- ços feitos. D'este modo estes dous poderosos impérios, que sustentavam a balança da politica no oriente, tinham sido abatidos e ficado á mercê de qualquer novo e inesperado ini- migo, A Pérsia caio nas mãos do caliphado,, e o império do oriente achou-se impotente, e destituído d'eneargia para impe- dir o progresso d'um invasor desesperado e enérgico.

O estado enfraquecido dos impérios bysantino e persa, n'esta critica conjunctura, foi a grande causa politica que fa- cilitou o progresso dos cáliphas sarracenos nas suas conquis- tas e propaganda da sua religião. O enthusiasmo com que Mahomed soube inspirar seus partidários, foi a causa essen- cial e activa do suecesso rápido das suas armas, e constitue uma circunstancia interessante na historia da humanidade.

Numerosos factos são citados dos surprehendentes effei- tos do zelo religioso sobre o espirito., mas tornam- se cons- pícuos e notáveis, quando nações e communidades inteiras são animadas d'este sentimento. O enthusiasmo militar e religioso, pôde em certos casos produzir effeitos nobres e louváveis, e acordar no homem impulso para acções as mais gloriosas ; mas por outro lado o demasiado .zelo é excessivamente perigoso, e geralmente causa do desassocego da humanidade. O enthusiasmo dos conquistadores sarrace- nos é, talvez, o facto mais notável desta natureza recorda- do na historia. Tinha por base seus princípios religiosos. O systema que Mahomed estabeleceu era particularmente calculado a excitar este sentimento; e pôde ser tido como

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chefe d'obra cm politica, superior a tudo que até então concebera homem algum d'estado.

Lisongeando as esperanças e as tendências de seus parti- distas com a idéa d'um paraiso de delicias sensnaes; paraí- so accommodadò á coinprehcnsão e adequado aos sentimen- tos natura es do homem, e promettendo a todos aquelles que abraçassem e sustentassem a sua causa, uma entrada im- mediata n'este céo de felicidades, inspirou-lhes o mais pode- roso estimulo de coragem e dedicação. Ao mesmo tempo que inculcava a doutrina de predestinação absoluta, ou de inevi- tável fatalidade, elle destruía aquelle primeiro e mais pode- roso motivo de cobardia, persuadindo-os que a pusillanimi- dade não lhes podia prolongar a vida e que a maior precau- ção contra o perigo não retardava a aproximação da morte. Estes princípios serviram de base áquelle fervor que tornou invencíveis os Árabes do deserto, em quan- to que o exhausto estado dos mencionados impérios dei- xava francos seus domínios á invasão de seus conquista- dores. Por espaço de quarenta e dois annos que vão desde a conquista da Hespanha á revolta d'aquelle paiz e que completou a tripla divisão do cáliphado, o império sarraceno, floresceu na plenitude de poder d'uma monarchia indivisa. A sede de conquista socegou, como sempre acontecece, principalmente nas nações que devem o seu engrandeci- mento á conquista e do saque e a ambição cedeu logar ao de- sejo do goso. Esta mudança é natural; a experiência mostra- nos que isto sempre foi, e a razão diz-nos que sempre será. Entre indivíduos podem haver excepções, devido a naturaes tendências ou excentricidade de caracter; mas em respeito a communidades, a grande machina social move-se á vonta- de das maiorias; e em todas as nações a maioria obra em conformidade com as propensões da natureza humana.

O systcma politico do cáliphado era o monarchico absolu- to. A authoridade dos cáliphas era, indubitavelmente, tão despótica como qualquer outra que tenha existido, porque o poder supremo, tanto espiritual, como temporal residia na

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pessoa do raonarcha, que era ao mesmo tempo, rei e summo pontífice da religião mahometana, e por consequência pos- suía toda aquella authoridade que pode dár ao homem po- der e influencia sobre o seu semelhante. Não vemos, porem, que os eáliphas exercessem a sua authoridade com injustiça, ou crueldade. Eram os interpretes da lei, mas não a sua fon- te. O Alcorão era a lei universal e obrigatória que deveria dirigir a condueta do soberano e do vassallo. Examinando os princípios políticos e religiosos do cáliphado parece que o governo, com quanto despótico era d'uma natureza essen- cialmente patriarchal. O cálipha não se considerava tão so- mente chefe d' uma grande e poderoza nação mas também pri- meiro ministro da religião e pai dos fieis. Se o desvio cVestes princípios da parte dos eáliphas, ou o exercício cValgum acto tyrannico, deu causa á revolta das províncias e ao desmem- bramento do seu império, é objecto do qual a historia nos não fornece informações certas; porque possuímos apenas poucos traços conspícuos da historia do cáliphado, e pouco sabemos das intrigas politicas e circunstancias domesticas cVaquelle império. O que sabemos ao certo, é, que depois da revolta do Egypto, os domínios do cáliphado, na Hespanha, seguiram o exemplo, e uma tripla divisão do império teve logar no anno de 755. quarenta e dons annos depois das ultimas conquistas sarracenas. Os três cáliphados distinctos, comtudo, floresceram por espaço de 180 annos : mas pelo meado do decimo século, o cáliphado do Oriente, do qual era Bagdad, sobre o Tygre, sede do governo, baqueou e o seu poder temporal foi comple- tamente aniquilado pela revolta de suas províncias pro- movida por chefes facciosos. Depois d'este período não possuí- ram mais que um titulo vão e a sua jurisdicção não passava dos negócios religiosos ; até que finalmente, expirou seu po- der espiritual também.

A historia do cáliphado é mui pouco conhecida, nem exis- tem documentos authenticos que lancem um raio cie luz sobre este campo, e cumpre aqui notar uma circunstancia digna de recordação que o prova. Quando os portuguezes, sob Vasco

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da Gama, dobraram o cabo da Bôa Esperança, e explora ram as costas d'Africa e da índia, acharam tanto a costa o- riental d'Africa como do Malabar em poder de povos que pro- fessavam a religião maliometana, fallanclo o árabe e dando evidentes provas de serem d'origem árabe; e não tendo os há- bitos e costumes dos mahometanos do Hindostão, evidente- mente formavam uma raça á parte. Descobertas subsequentes tem demonstrado que o estado das difíerentes ilhas no mar indiatico era, como quasi até hoje, idêntico áquelle da cos- ta do Malabar.

As costas de quasi todas aquellas ilhas eram possuídas por mahometanos, fallando um árabe viciado, e fera de duvida, de origem árabe: em quanto que o interior era povoado por pagãos de tez diversa, e fallando lingua diíferente. Se esta emigração teve logar, devido ao génio emprehendedor e a- ventureiro dos árabes, nos tempos prósperos do cáliphado ou se as costas d' Africa, da índia e das ilhas orientaes se colonisaram por emigrados que abandonaram o seu paiz quando o cáliphado cahio em anarchia, e fez-se preza da tyrannia de usurpadores e inimigos estrangeiros, é uma questão que documento algum histórico nos vem illucidar.

Depois d'esta revista da origem do Islanismo, das rápi- das conquistas dos primeiros cáliphas, successores de Ma--- homed e das suas causas, não será fora de logar voltarmos a attenção sobre o génio e hábitos dos árabes, estado da sua littcratura e scieneia no tempo do cáliphado.

Depois do engrandecimento do cáliphado, cessou a sede de conquista e enfraqueceu o impulso do fervor. Esta transformação trouxe outra não menos importante e interes- sante. Os árabes até então analfabetos e despresadores dos estudos, começaram a cultivar as sciencias, mormente a phi- losophia natural, a chimlca etc. illustrando-se com o estudo-

éía htteratura. Estes estudos^ com tudo, tomaram-, ao' dite parece, um curso difíerente âquelle seguido pelos gregos e romanos. Nos seus estudos scientificos e litterariòs, o seu gosto foi provavelmente determinado pelos seus princípios re- ligiosos, diametralmente em opposição áquelles dos gre'gôs e romanos e todas as mais nações do paganismo da antiguida- de; A ínythólogia pagã era um syStenia esplendido e varie- gado, calculado a deslumbrar o espirito pelo bello e românti- co de seus principios e formas, e proporcionava um vasto campo para <> estudo da estatuária, esculptura, arcliitectura e pintura.

A sua religião prohibia aosÁrábes a cultura das artes imi- tativas; sendo expressamente vedado pelo alcorão lazer uso representação de qualquer vivente. A natureza dera aos árabes uma. imaginação viva e poética; mas a, sua, poesia era, diversa ú poesia, dos gregos, e cVoutras nações que tiiiliam to- mado por modelo- o* estylo grego, incompatível Com o rigor de seus princípios religiosos, não podião aceitar o ma- ehinismo Inythologico de deuses e heroes, com que os pagãos embellezavato seus poemas, e que os christãos, menos escru- pulosos e menos enthusiastas não hesitaram adoptar julgando não haver n'isso perigo', exíineto como estava o paganismo; com quanto seja certo que durante os primeiros ires ou qua- tro séculos, os christãos não serião menos escrupulosos que os mahometanos a, este respeito; e (pie antes do paganismo estai' completamente abolido, elirislao algum teria inyocado Apollo, ou as Muzas, ou decorado seus poemas coma intervenção de deuzes c semideuv.es. O gosto, as idéas, os hábitos dos ho- mens modellam-se conforme as circunstancias. A poesia dos árabes semelhava-se áquella dos hebreus; e em logar da, my- thologia pagã, embcllesavam seus poemas com allusões aos i .1 mios e sumptuosos objectos da natureza. Este íôrn sempre o gosto dos orientaes, e qUem prestar ai tenção ás brilhantes imagens semeadas na escriptura sagrada, mormente nas Prophecias o nos Psalmos, q.ue outra cousa não Lo que composições poéticas, confessará que contem mais

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naturalidade, mais instrucção e interesse què não nos dos gregos que não offerecem mais que um scenario fictício, pbanr tasmagoria <!<• representações ill/usorias.

0 systema politico do cáHphado irifluio, nâo pouco, lit- terátura dos árabes. A eloquência oratória dos gregos c ro- manos1, <|iic entría elles^ era o ponto principal diurna educa- ção litteraria, era imiti!, c por consequência não esifcavSa- em moda entoe um p<>v<> que vivia sob o governo despótico d'um monarchàj era cuja pessoa se reunia a auíthoridadfi espiritual etemporal; que era o supremo interprete da lei, a-ssina como era <> supremo juiz. Esta forma degoverno explica o abando- no do eôtudo de rethorica entreos sarracenos, que pouca nc- cessidade; tinham de fallarrein publico^ Os seus principaes estudos litterarios eram a historia e a poesia, com alguns commentõs sobre o alcorão; mas os seus estudos theologi- cos eram circunècriptos a um campo estreito, por que o cáli- pha em virtude do seu officio de summo pontífice e supre- mo arbitro em negócios» espirituaes e temporaes, era juiz tudo quanto se escrevia em matéria religiosa, e a sua sane- c;'io ou desaprovação decidia a sorte de cada obra. Em phi- losophia natural, pqrem^ em medicina, em chimica^ os ára^ l;es fizeram algumas descobertas úteis. Adiantáramise iguala mente na álgebra; e ;i ellés devemos as figuras arithmeticaSj <iii caracteres hoje em uso, e que incomparavelmente são de maior conveniência e mais adaptados aos cálculos numeri- eos, que, antes da invenção das cifras pelos árabes^ se usa- vam nas operáfções arithmeticas.

O (pie podemos obter sobre os hábitos sociaés dosara* bes, das vagas informações que nos offerece a historia, pare- ce que eram polidos e humanos, ao menos comparativamen- te '-(i)ii íis Europeos d'aquellas epochas; e que no auge da. florescência do seu império nunca se entregaram aos exces- sos do luxo, que dominava na maior parte das primeiras e mais poderosas nações.

Em quanto a commercio n'aqúellas remotas idades, pode- mos, em termos geraes, dizer queiestáva de todo nas mãos

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do cáliphado e do império bysantino, ambos situados no cen- tro do continente, e senhores de todos os canaes de com- mimicação entre a parte oriental e o.ccidental do globo. An- tes do engrandecimento do cáliphado, o império do oriente dispunha do commercio do mundo; e Constantinopla e Ale- xandria eram os grandes mercados de todo o commercio. Depois que os cáliphas conquistaram o Egypto e a Syria; a communicaçâo entre Constantinopla e o Oriente estava intei- ramente interceptada, fazia-se, por tanto, necessário explo- rar outro caminho para a índia, e uma nova via de commu- nicaçâo para o Oriente, abriu-se pelo már negro, depois por terra até o már caspio.

Por esta longa e fastidiosa derrota se fazia o transporte para Constantinopla das ricas mercadorias da índia. Os ára- bes, senhores do Egyto disfructavam uma situação magni- fica para o commercio do Oriente; e, com o fim d'abrirem a communicaçâo entre o mar vermelho e o Mediterrâneo, cana- lizaram o Nilo até áquelle mar. Este canal passava pela cida- de do Cairo, edificada pelos sarracenos ; porem, á maneira d'outros canaes abertos para aquelle efíeito por diversos reis do Egypto, crê-se que nunca preencheram perfeitamente o pro- jectado fim. No entanto, o Egypto pela sua posição central entre a parte oriental e occidental do continente, possuindo vantagens superiores a qualquer outro paiz, continuou sob o império dos cáliphas a entreter um considerável commercio. Em quanto que a Europa, não restaurada ainda do abalo que soffrêra com a queda do império romano, e o estabelecimento de tantos reinos e principados sobre as suas ruinas, apresenta- va em toda a parte um estado de barbarismo e anarchia, o cá- liphado, florescente de litteratura e sciencia occupava o pri- meiro logar na politica do mundo.

O império bysantino, com quanto perseguido pelos cáli- phas, repellia vigorosamente as suas aggressões, e não a- presentava uma attitude respeitável ao inimigo, mas susten- tava as apparencias de poder e grandeza; e durante todo o tempo da duração do império sarraceno foi seu único rival e

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seu mais temido inimigo. Constantinopla foi, efíeetivamente, o baluarte do cliristianismo contra o poder exorbitante do cáliphado.

Durante a contenda entre os dous poderes, os sarracenos por duas vezes pozeram cerco â capital. Da primeira vez foi bloqueada do lado do Proponto pela esquadra sarracena de 668 a 675 da era christã. O segundo cerco de Constantinopla tornou-se notável pela descoberta do fogo grego, facto impor- tante na historia militar. Consistia em uma composição bitu- minosa, que ardia com incrivel intensidade debaixo d 'agua e podia ser apagada com urina ou arêa. Foi invenção de Ca- linio, engenheiro de Hierapolis, no Egypto; e por muito tem- po ignorada fora de Constantinopla, onde a reputavam um thesouro do estado.

Com o andar do tempo foi devulgado o segredo aos sarra- cenos e outras nações circunvisinhas e os cruzados experi- mentaram seus effeitos destruidores. Das informações -d'aquel- les que voltavam das guerras da cruzada sabe-se que o modo empregado eraexpellil-o por meio de grandes tubos de metal á semelhança das descargas d'artilheria moderna.

Esteve em uso entre os gregos e sarracenos até que foi subs- tituido pela pólvora ; mas parece, que o segredo nunca foi di- vulgado ás nações occidentaes. N'este memorável cerco pas- saram os sarracenos o Hellesponto, e, com um numeroso exer- cito, attacaram a cidade pelo lado da terra, bloqueando-a ao mesmo tempo com uma formidável esquadra composta de mil e oito centas embarcações que foram totalmente destruidas e Constantinopla salva pela recente invenção do fogo grego no anno de 716. O inimigo foi obrigado a levantar o cerco, com enormissimas perdas e depois de concluir uma paz desvanta- josa.

A historia da igreja christã não offerece n'estes tempos car- regados e tumultuarios, um aspecto agradável. O progresso do mahometanismo foi um acontecimento não menos desfa- vorável ao christianismo, que fatal ao poderio e brilho do im- pério do oriente; por isso que depois constituiram o império

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cios cáliphas á excepção da Arábia e da Pérsia. Para contra- balançar esta perda a orthodoxia tinha triumphado do aria- nismo e -presenciado o sen aniquilamento com a conquista do reino vândalo d' Africa; pouco depois do que, Becaredo, rei dos ksigodos, na Hespanlia, com a sua gente abjurou o aria- nismo, e abraçou a doutrina ortliodoxa. dissemos que de- pois do reinado de Theodosio o Grande, a doutrina ortliodo- xa da Santíssima Trindade foi dogma de em todo o impé- rio romano, sendo o arianismo, a crença das mais nações que haviam abraçado o cliristianismo ; mas durante o tempo que vae da queda do império do occidente, todas as nações que se haviam construído sobre as suas ruinas tinham adoptado a sua religião, entre os quaes foram os últimos os visigodos da Hespanlia, tendo abjurado o arianismo no anno de 586, con- formando-se com as doutrinas da igreja catholica, como aquel- la estabelecida e definida pelos decretos dos concílios geraes de Nicea e Constantinopla. Desde esta epocha a doutrina or- tliodoxa da Santíssima Trindade, e da divindade de Christo passaram a ser dogma de todo o orbe catholico. Muitos prin- cípios secundários e ordenações, não observadas nos primei- ros tempos da igreja foram-se gradualmente introduzindo. Entre estas instituições modernas, a mais notável, em conse- quência da divisão que causou na igreja,foi a introducção das imagens, ponto que em todos os tempos da igreja tinha trazi- do divididas as opiniões, a propriedade, ou impropriedade do qual e que está subordinado a circunstancias especiaes, tem sido objecto de discussão da maior importância.

A introducção d'irnagens nas igrejas teve origem sem du- vida na real ou supposta conveniência de fazer representar os objectos ausentes por symbolos visíveis, como meio d'instruir aquelles que pela sua ignorância eram incapazes de os conce- ber com o simples exercício das faculdades íntellectuaes. Nas idades anteriores á invenção da imprensa, o povo em todos os paizes era extremamente ignorante, e escaços os meios d'ad- quirir conhecimentos.

Foi, e será sempre um cargo difHcil imbuir a instrucção

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•aonde não lia outras idéas alem d'aquellas suggeridas por objectos familiares. E' reconhecida a difliculdade de íixar idéas abstractas cm espíritos incultos. Se, por estas considerações po- demos ajuizar imparcialmente do procedimento d'aquelle-s pri- mitivos mestres da igreja, cujo orneio era guiar o esphi:o hu- mano nos negócios importantes da religião e explicar os mys- •terios do christianismo a um povo rude e ignorante, a dimcul- dade que necessariamente tinham d'arrostar explica a conve- niência da adopção dos symbolos ou representantes visiveis de Christo e dos Santos, como meio fácil de lhes recordar os soffrimentos e a santidade d'aquelles gloriosos personagens ar- rebatados á sua vista. Eis, sem duvida o que originalmente se pertendeu não obstante degenerar em algumas partes em abuzo pela astúcia do clero ou fanatismo do povo. Os adver- sários d'imagens, comtudo, guerreavam vehementemeníe a sua presença nos templos com fundamento de que era um retrocesso para a idolatria; mas nos nossos dias a igreja, sem excepção, repelle toda a idéa d'adoração d'quelles repre- sentantes visiveis, e admitte a de simples veneração. Nos templos do Oriente são as imagens substituídas pela pin- tura. Se na preferencia do colorido para a symbolisação da divindade ha mais .sanctidade ou menos criminalidade do que na escolha de matérias mais duráveis em bronze ou em mármo- re é ponto que deixamos ao theologo profundo decidir. A igreja romana admitte uma e outra forma nos seus templos, como meio de chamar mais a attenção das massas menos ins- ■truidas; concorrendo também para o seu embelleaamento in- terno. Esta igreja tolera a veneração por aquelles symbolos, que todavia degenera ás vezes em uma apparente idolatria re- provada pela parte illustrada dos catholicos.

As eontendas sobre este ponto entram .aqui tãosomente sob um ponto de vista histórico, mas convém dizer que ponto algum foi mais debatido, chegando a produzir o primeiro scis- ma entre as igrejas grega e latina, acabando na .sua final sepa- ração.

A igreja christã, tinha,, desde a extineção da Arianismo, no

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sexto século, gozado tranquilidade e união.

A disputa sobre a admissão ou não admissão das imagens" teve logar no anuo do 720, no reinado de Leão, o Isaureano que se distingue na historia como o primeiro dos imparadores iconoclastas ou destruidores cVunagens. Como a contenda não podesse ser resolvida amigavelmente, reunio-se um concilio em Constantinopla em 754 composto de 388 prelados do império oriental. Neste concilio todos os symbolos, á excepção d'aquel- le da eucharistia, foram comdemnados como heréticos e man- dados destruir. Este debate, comtudo, entre os protogonistas e. adversários das imagens não foi o primeiro passo para a separação da igreja latina da grega, mas em grande parte a causa immediata separação da Itália do império do Orien- te, que se reA^oltou no decimo anno do reinado de Leão o iconoclasta ; dando logar ao estabelecimento d' uma nova re- publica romana, que, não podendo manter a sua independên- cia contra os Lombardos, foi socorrida por Pepino, rei de França, cujo filho e successor, Carlos Magno, recebeu do Pa- pa Adriano 4.° o titulo e dignidade d'iinperador dos romanos o que deu origem ao novo império do Occidente, hoje chama- do império Germânico, ou em phrase deplomatica, império romano.

Os decretos do concilio de Constantinopla, comtudo, não sustentaram por muito tempo a sua authoridade.

Irene, donzella Atheniense, cuja formosura c dotes natu- raes tinhão elevado ao throno imperial, começou, de combi- nação com seu filho Constantino G.°, a reinar enr Constantino- pla no anno de 780.

Esta imperatriz, d'uma ambição tão desmedida que, estranha ás affecçõesmaternaes, a ponto de mandar tirar os olhos a seu fi- lho Constantino para que fosse imperante única no Oriente, inclinava-se fortemente á restauração das imagens. O segun- do concilio de Niceia conhecido pelo sétimo concilio de Cons- tantinopla restaurou as imagens em 787. Esta contenda de quejâ originara o scisma temporariamente aplanou o cami- nho para a completa separação das duas igrejas do Oriente e

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Occidente que jamais se congraçaram cordealniente. A igreja do Oriente havia de facto restaurado as imagens ; mas Cons- tantinopla não restituirá á de Roma os estados da Calá- bria e a diocese lllyriana, de que se havião apossado os im- peradores e patriarchas iconoclastas durante a contenda.

Nas eras carregadas e tenebrosas que sobrevieram á des- truição, do império romano, cousa alguma quasi suecedeu na historia da Europa digna d'attenção. Podemos notar que os francos, nação habitando primitivamente as margens oppostas" do Rheno, tinhãojá no anuo 400 começado a invadir a Gral- ha, estabelecendo-se n'aquella provincia sob a raça Merovin- giana de reis. Clóvis, primeiro rei çliristão da França, ha- vendo por meio de conquista annexado o reino gothico de Toulouse á sua monarchia no anno de 508 estabeleceu a ca- pital dos seus domínios em Paris, e por sua morte dividio-os entre seus quatro filhos. Depois _d'isto a monarchia franceza foi alternativamente unida e dividida, entre os descendentes de Clóvis; mas a feição saliente da historia da França é o ex- horbitante poder que se arrogaram os ministros chamados mordomos do palácio. Os monarchas cahiram n'uma espécie de turpor, abandonaram os negócios públicos, e entrega- ram a sua direcção inteiramente ao cuidado d'aquelles of- ficiaes. Pepino d'Heristal, assim - chamado por derivar o seu nome do seu palácio d'Heristal , sobre as margens do Meuse, tendo-se engrandecido á- custa do seu soberano, adquirira uma authoridade illimitada, e lhe faltava o titulo de rei, em quanto que o monarcha era uma pura nullidade. Carlos Martel, affamado pela assignalada derrota dos Sarra- cenos no anno de 732, suecedeu a seu pae no cargo de mordo- mo mór do palácio, que aquelles ambiciosos ministros havião conseguido tornar hereditário e morrendo em 741, foi suecedi- do por seu filho Pepino, depois rei de França. Tendo Pepino feito enclausurar seu soberano n'um mosteiro, subio ao thro- no, succedendo-lhe por sua morte seu filho Carlos Magno, cu- j o reinado feliz e governo enérgico constitue uma epocha na historia da Europa.

TencTo subjugado a Lombardia ao norte da Itália, como- também a melhor parte da Germânia e, pela sua conquista da Itália, libertado Roma, foi coroado imperador dos romanoSy pelo papa Adriano 4.° no anno de 800; e sendo Carlos Magno rei de França, reinou sobre a Germânia e a Itália como im- perador dos romanos. D'aqui vemos, a um tempo, a origem tanto do império germânico ou romano- como do poder tempo- ral dos papas.

Carlos Magno é* um vulto distincto nos annaes da Europa. Viveu nos tempos mais bárbaros da ignorância gothica, e contava 40 annos antes que apprendesse a escrever, prova convincente do estado inculto d'aquelles tempos. Mas elle a-nir mou a litteratura e deu a mão aos sábios aonde quer que os encontrava. Fundou a universidade de Paris, e muitos outros seminários de litteratura em difrerentes pontos dos seus ex- tensos domínios, e fez quanto a seu alcance estava para a res- tauração das letras; porem a nuvem que obscurecia então o intellecto humano era demasiadamente densa para ser dissipa- da e alguns homens de génio e erudição que, pelos seus co- nhecimentos litterarios se distinguiram n'aquella epocha, não foram mais que meteoros passageiros, brilhando por um mo- mento no meio das trevas e desaparecendo. Carlos Magno, fez quanto um principe podia fazer, n'uma epocha de barba- rismo; mas as circunstancias geraes da Europa contrabalança- ram seus esforços. O reinado, portanto dreste principe não pas- sou d'um clarão transitório;- depois do que, as trevas que obs- curecião a atmosphera litteraria serraram-se de novo;

O estado do mundo durante o espaço de quatro séculos, ti- nha sido deplorável. A Europa n'um estado d'anarchia e bar- barismo; e o império do oriente apenas apresentando signaes de civilisação, por algum tempo florescente, mas depois cer- ceado na metade de seus domínios pela conquista dos cáliphas mahometanos. Os quatro séculos que decorrem da morte de Theodozio o grande ao reinado de Carlos Magno, pode certa- mente ser tido como o período mais calamitoso na historia da humanidade, pela effusão

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tro3 tempos antigos e modernos. No reinado de Carlos Ma- gno o mundo tomara um aspecto mais socegado do que até então. Todo o mundo conhecido, a esse tempo, dividia-se em três grandes potentados; o império do Oriente ou Constanti- nopla; o caliphado, que, com quanto então fraccionado, pode pela homogeniedade de hábitos, religião e origem, reputar se uma nação; e o império do occidente de Carlos Magno. De to- dos estes três impérios o caliphado sobresaia em conhecimen- tos litterarios; e Constantinopla, com quanto decaída a esse respeito, desde os tempos de Nazianzeno e San Chrisostomo ainda conservavam o segundo logar na hierarchia litteraria defferindo pouco de seus visinhos árabes. A Europa fazia progressos no mesmo sentido mas a que uma conjuncção de circunstancias desfavoráveis fez abortar. As condições politicas e sociaes da Europa erão taes a esse tempo que todas as ten- tativas para a restauração dalitteratura eram mallogradas.

No primeiro século depois da morte de Carlos Magno, a Europa começou a cair no mesmo estado d'anarchia politicai. Aquelle principe, seguindo os exemplos perniciosos de Cons- tantino e 1 heodosio, em dividir o império remano, partilhou o império entre seus filhos. Em pouco menos d'um século a família de Carlos Magno desappareceu e os nobres, cujo po- der tinha sido muito sopeado pelas mãos vigorosas d'aquelle imperador, tornaram-se independentes nos reinados de seus suecessores mais fracos e começaram a opprimir tyrannica- inente o povo.

Qualquer que fosse d'antes a condição das massas, tornou- se agora insupportavel. O systema feudal foi primeiro com- pletamente estabelecido na França e na Germânia sob os im- potentes successores de Carlos Magno, a nobreza d'aquelles; paizes assumiram um poder pouco inferior ao do soberano,, nos seus respectivos districtos, reduzindo o rei ao goso do ti- tulo, mas sendo elles que de facto exereião a authoridade real. Somos levados a crer que o systema feudal existia desde tempos immemoriaes, mais ou menos, entre quasi todas- as nações do norte; mas como este, á maneira de todos os-

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outros system as políticos é susceptível de modificações, não sabemos em que escala existia, quaes os regulamentos a que estava subordinado, e a que mudanças esteve sujeito entre um povo inculto, durante tantos séculos. Não temos a míni- ma noção da sua historia até ao tempo das invasões que fizeram no território romano; cumprindo notar que os seus costumes e instituições passaram por consideráveis ainda que gracluaes modificações pela adopção dos costumes ro- manos, religião romana etc. conservando com tudo os cara- cterísticos mais proeminentes dos costumes gotliicos. De- pois da extincção da raça de Carlos Magno o systema feudal attmgio o auge da sua grandeza. A uzurpação de Hu- go Capeio enraizou o seu poder na França, mediante a con- firmação de privelegios feita por aquelle príncipe aos nobres. .Na Germânia ena Itália dava-se o mesmo: os nobres appro- veitando-se da fraqueza dos imperadores e das continuadas desavenças entre elles e os papas, tornaram-se senhores in- dependentes, reconhecendo tão somente um feudo nominal ao imperante, como chefe commum aquém obedecião oa não con- forme seus caprichos ou interesses. Muitos prelados do império seguião o mesmo principio e fazião-se soberanos nas suas res- pectivas diocezes; e algumas cidades e villa.s com esses exem- plos constituíram-seem republicas independentes. D'estas con- tendas, e d'esfe estadofluetuante da anthoridade soberana nas- ceram os pequenos principados cia Itália. D'aqui também a constituição germânica, que consistiô em um numero dis- tados ecclesiasticos e temporaes, e de soberanias, individual- mente independentes, mas unidos em uma confederação po- litica sob um chefe. Tal, como algumas ligeiras difíeren- ças, era o estado cia França até o reinado de Luiz onze. que foi o primeiro a cercear o exhorbitante poder da nobreza ; e cujas medidas foram seguidas, até aniquilar a sua perigosa independência, na enérgica, posto que sanguinária administra- rão do cardeal de Richelieu no meado do século 17. Na Po- lónia existia o mesmo systema até os nossos dias na sua ple- nitude e com todos os seus horrores, até que uma parte coií»

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sideravel cVesse desgraçado povo foi libertado d'esse jugo oppressor, por aquillo a que se deu absurdamente o nome de extincção da liberdade da Polónia, pelos três poderes que a partilharam entre si. Nada mais absurdo que chamar aquel- la partilha a perda de liberdade, porque é fora de duvida que aquellas partes da Polónia que pertenceram á Áustria, á Rús- sia e á Prússia gosam uma liberdade sob aquelles governos que nunca haviào gozado nos tempos do seu governo feudal.

Estudando o estado da Europa nas idades medias, não se pode imaginar um quadro mais revoltante.

Reis, cujo poder era apenas nominal e cuja posição era precária e incerta. Nobres em guerra continua uns com os outros, ou em revolta contra seu soberano. O povo opprimi- do, tratado como animaes e á mercê dos grandes. O paiz abun- dava de castellos, viveiros de revoltas, receptáculos de la- drões e pilhagens, e focos de motins e debauche. Esses que teem profundado os annaes da idade media que digão se ha aqui exageração; ou se é possivel sobrecarregar o quadro d'a< quelles tempos cie desordem e infelicidade. Parece-nos que o systema feudal na Inglaterra não chegou nunca áquelle esta- do d'independencia da coroa como aconteceu em outros pai- zes mas em quanto a oppressão do povo não lhe ficava atraz; e a historia diz-nos que no começo do reinado de Hen- rique 2.°, existia para cima de mil castellos fortificados n'es- te paiz. Comparemos, por um momento o estado moderno da Europa com aquelle da idade media. E' inegável que nos úl- timos tempos as guerras hão sido frequentes. Paz perpetua é, talvez, incompatível com a imperfeita natureza da humanida- de; mas as calamidades da guerra não menos são deploráveis. No systema moderno da Europa, a sorte das armas restrin- ge-se a poucos potentados; e as operações da guerra são con- duzidas por uma classe que se dedica exclusivamente ao es- tudo da arte militar. Aquellas localidades apenas que são tlieatro da guerra soffrem as calamidades inlierentes, e estas mesmas são consideravelmente modificadas pela humanidade que distingue as raças d'hoje comparativamente com as atro-

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cidades da antinguidade. A tranquilidade das outras partes do paiz continua sem pei turbação e as outras classes da so- ciedade que não fazem da guerra profissão, gozam no meio d'ella a segurança e doçuras da paz.

Para a generalidade da nação, os effeitos da guerra fazem- se sentir pelo augmento de contribuições ou pela diminuição do commercio. Nos séculos onze e doze, depois que se dividio o império de Carlos Magno em muitos estados independentes e adversos, assumindo os mais poderosos chefes a realeza, a sua revolta foi seguida pela debellação da anarchia. O senhor de cada castello arrogava-se os foros de soberano, e desdenhando daautboridade das leis, appellavapara a sorte das armas. To- do o paisano era soldado, e cada aldeã uma fortaleza ; cada campo era banhado de sangue, ecada valle e cada bosque eram theatros de assassinatos e rapina. Tal era o estado deplorá- vel da sociedade, n'esta quarta parte do globo na idade me- dia

Apreciem pois as gerações presentes a tranquilidade e se- gurança que hoje disfructam, desconhecidas não nos tem- pos do feudalismo mas mesmo nos apregoados governos re- publicanos da Grécia e Roma.

Em quanto o estado politico e social da Europa era como aqui se descreve, o estado cio caliphado nãooíferecia um qua- dro mais animador. No decimo século o império sarraceno retalhado á maneira d'aquelle de Carlos Magno pela revolta de chefes facciosos, em um numero de estados independentes teve finalmente uma sorte semelhante á de Roma antiga; por que o império dos turcos, e d'outras nações barbaras da Azia do norte q' derrubando o seu poder, adoptaram a sua religião do mesmo modo que Roma quando foi preza das nações septentrionaes da Europa, que, desfazendo o machinismo po- litico, conservaram e abraçaram a sua religião.

Com a queda do caliphado morreu a litteratura árabe do mesmo modo que havião decaindo as artes e lettras de Roma com a invasão dos bárbaros do norte, em monoscabo de tudo quanto tendia a iilustrar o espirito. O império do Oriente era

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então a sede d'esse resto de litteratura ficara; e Constantino- pla ficou .sendo o centro da sciencia, e commercio, das artes e civilisaçào até ao tempo em que cahio sob o .domínio Qtto- mano.

.IMA CAI

O estado politico e social da Europa conservou-se sem alteração por muitos séculos, depois da fundação dos prin- cipaes reinos em que finalmente se dividio, nada ofterecen- do de notável alem d'aquelles acontecimentos políticos eommuns a todas as nações em meia civilisaçào, e sob um regimen de governo sem estabilidade.

Uma novidade porem, com visos do romântico, começou a mar as attenções pelo anuo 1096. ISPaquelles tempos o- costume de romarias ao Santo Sepulchro em Jerusalém tornou-se tão geral que, cerca de trinta annos anteriores, o arcebispo de Metz, com os bispos dTJtrecht, de Bamberg e de Ratis- bona, e alguns, sete mil companheiros, tinham ido em ro- maria a Jerusalém render homenagem ao ííedemptor. Sob o culto império dos cáliphas, aquellas romarias eram favoreci- das, e tanto individuo como propriedade encontravam pro- tecção da parte do governo. Áquelles príncipes mahometa nos, obedecendo aos princípios de boa politica, conheciam as vantagens que vinham aos seus domínios d'esta concor- rência annual d'estrangeiros, muitos cios quaes eram pessoas distinctas. Porem os bárbaros que -haviam derrubado o cálipha- do, nao vexavam os peregrinos com impostos pesadíssi- mos, mas juntavam a isto o insulto. Um Pedro, eremita, Gpie tinha visitado o Santo Sepulchro, homem fogoso e cie zelo ardente, indignado com as extorsões e vexames a que os peregrinos estavam expostos, pregou no seu regresso a cruzada para recuperar da. mao dos intieis a Terra Santa.

Este agitador teve a felicidade de merecer ao prpa a ap~ píòvacão do seu projecto: e como estivesse no gosto da epe-

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elia, os príncipes e nobres da Europa promptamente abraça- ram a idéa.

O mais romântico espectáculo de zelo religioso, e ardor militar, manifestou-se em toda a Europa subsistindo, com alguns pequenos intervallos, por espaço de quasi duzentos annos, desde a expedição da cruzada em 1095, até á perda d' Acre e de toda a Palestina em 1291. A historia da cruzada é digna de lêr-se, por isso que apresenta-nos a exaltação das paixões humanas no máximo ponto pela religião e ardor militar dViquelles tempos; e descreve-nos nas mais vivas co- res, as terríveis calamidades que um mal entendido zelo pôde trazer â humanidade.

Os annaes do mundo talvez não offerecem casos d'ardôr re- ligioso tão frenético e de tão lamentáveis effeitos como aquellas contendas entre a cruz e o alcorão; mormente os cercos de Antiochia, de Jerusalém e d' Acre. Nunca as chammas do zelo arderam com mais exterminadora fúria, nem se desenvol- veu nunca maior heroísmo e valor, levado ao desespero de parte a parte. Os historiadores divergem sobre a mortan- dade, como sempre acontece; mas o que é incontestável è que aquellas memoráveis guerras podem citar-se como pa- drões de sanguinolenta ferocidade e horror. Legiões sem conta armavam-se na Inglaterra, na França, na Alemanha, nos Paizes-baixos, na Itália etc, e animados por um fanatis- mo religioso pozeram-se a caminho para exterminar as popu- lações da Syria e da Palestina. A princeza A ima Commena, filha do imperador Aleixo Commeno, descrevendo aquelles exércitos do Occidente, alguns dos quaes ella vira na sua passagem por Constantinopla, diz-nos que parecia que a Eu- ropa se deslocava para cair sobre a Azia. E com tudo aquel- les inauditos esforços não produziram os erTeitos esperados, não deixando todavia de ser um facto notável e que n'aquel- les tempos era olhado como de bom agouro, o da entrada de Godefroi, conde de Bologna, em Jerusalém, em sexta feira santa, ás três horas da tarde, dia ehora da paixão de Christo, deuois de um desesperadíssimo assalto, atravessando rios

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de sangue de setenta mil mahometanos. Este memorável a- contecimento teve logar em 1099, e Grodefroi, como bem me- recera por seu heróico valor, foi em plena reunião dos che- fes guerreiros ploclamado rei da Cidade Santa e seus distric- tos circunvisinhos. A curta duração d'este reino ehristão de Jerusalém em razão da sua conquista por Saladino em 1187 ministra-nos uma prova evidente de que ao todo Poderoso, Deus de paz e misericórdia, não lhe são agradáveis estes ho- locaustos de sangue humano.

Um dos mais extraordinários acontecimentos occorridos no decurso d'aquellas guerras, religiosas no nome, mas na reali- dade, românticas, foi a tomada da cidade de Constantinopla pelos latinos, que fez cair o império do Oriente nas mãos de um bando de aventureiros italianos, francezes e flamen- gos. _

O imperador, Isaac Angelo, tendo sido desthronado, e pri- vado da vista por seu deshumano irmão, seu filho Aleixo, a- dolescente, ainda escapou-se para a Itália, e encontrou um grupo de barões francezes e flamengos, que andavam n'uma d'estas emprezas das crusadas, e que tinham vindo a Vene- za, áquelle tempo a primeira potencia marítima da Europa, aonde haviam contractado com a republica os navios neces- sários para poderem levar a eífeito seus planos. O joven A- leixo entrou em negociações com os francezes e venezianos, e assignarnm um tractado, pelo qual se comprometteram a col- locar de novo seu pae no throno imperial do Oriente; com- promettendo-se elle pela sua parte a unir as igrejas latina e grega. Os francezes e os venezianos, dando outro rumo á sua esquadrilha, cujo destino primitivo fora contra as costas da Syria e do Egypto, navegaram pelo Hellesponto acima até Constantinopla, romperam a cadêa do porto, e atacaram a cidade por mar e por terra. Os assaltantes- quando esta- vam já a entrar na cidade, o usurpador Aleixo evadio-se. Isaac Angelo, e seu filho, o joven Aleixo, foram acclamados imperadores; pelo que cessaram as- hostilidades; mas tão de- pressa foi sabido do clero, e principalmente dos monges, as-

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Condições estabelecidas pelos alliados e aceitas por Aleixo.» a idéa d'união com a de Roína foi reprovada, e o povo excitado a pegar em armas.. Esta insurreição geral foi tam- bém atiçada por Aleixo Mourzouste, da família dos Ducasr que assumiu o sceptro,. prendeu o imperador Isaac, e fez perecer o joven Aleixo.

Interrompida d'este modo a legitima suecessâo do knpe- rio grego, os francezes e os venezianos recomeçaram a guer- ra. Depois d-um cerco de mais de três mezes, atacaram a cidade pelo lado do porto, e, não obstante a superioridade numérica, levaram-na d'assalto no anno 1204, cerca, d'oi- to centos e oitenta, annos depois da sua fundação. Tendo sido a cidade entregue ao: saque pelos latinos, avaliou-se o roubo em 400,000 marcos, quasí equivalente a 800,000 li- bras sterlinas, somma enorme, excedente ao quádruplo da re- ceita publica annual de qualquer estado da Europa maquel- les tempos. Esta. massa enorme de riquezas foi a maior en- contrada até então em cidade alguma, conquistada^ e, como bem diz Villehardouin, cavalheiro da Cliampaigne na sua descripçâo d'aquelles feitos «Aquelles indigentes conquis- tadores acharam-se repentinamente opulentos cidadãos. » Bal- derico também,, na sua epistola papa Innocencio 3.° diz que nunca preza alguma fora feita de tão grande valor. A pilhagem particular suppõe-se exceder mesmo ao saque ofíicial, apesar das penas d'excommunhão e de morte mes- mo decretadas contra aquelles que a praeticassem. Na distri- buição publica, a cada soldado d'infanteria era dado um quinhão, dois a um de cavallaria, quatro a cada cavallciro e aos barões e príncipes, em relação ás suas eathcgorias. A. Bonifácio, marq.uez de Monserrate, coube em quinhão o rei- no de Macedónia, na divisão territorial. Henrique Dondolo, Doge de Veneza, que commandava os venezianos, não obstante ter perto de noventa annos e ser quasi cego foi um dos primeiros a escalar as muralhas no assalto geral. ( )s venezianos ficaram com a maior parte das costas mari- Sirnas, conjunctamente com ires outavas partes da cidade de

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I ^nstantinopla. Baiderico, conde de Flandres, foi eleito im- perador com n m quarto do império na partilha. O resto di- vidio-sc; em feudo/pelos cavalleiros, (knights) e_ "barões con- forme o systema feudal que entáo existia nos paizes oceiden- taes da Europa, sob o senhorio do imperador,

Villehardouin suppõe que Constantinopla possuia ífaquel- h tempo 400,000 homens em armas, mas por todos os da- dos que temos semelhante numero é grandemente exagerado. Mr. le Beau (Histoire du bas Empire) suppõe que esta capi- tal continha ao tempo que foi tomada pelos latinos uniim- hVio d'habitantes e ao presente quatro centos mil, calculo es- te o mais rasoavel.

Depois d'este desastre, os gregos fundaram, estados inde- pendentes em Nice, na Trebisonda e no Epiro. Os latinos mio foram bem suecedidos nos negócios da sua nova acqui- sicào. As dissenções que predominavam entre os barões ex- punham seus dominios aos ataques dos gregos, que continua- mente ganhavam terreno. Os búlgaros revoltaram-se, e o im- perador Baiderico de Flandres, sendo batido e feito prisionei» ro por elles, morreu no captiraro, snecedendo-lhe seu irmão Henrique em 1206. Bonifácio, Marquez de Monserrate, foi no mesmo anno morto pelos Búlgaros. Henrique de Flandres é presentado como um príncipe sábio e valente, apto tanto para go- vernar em tempo de paz como guerra. Era eguahnente dota- do de sentimentos liberaes, tolerante em principioSy & repri- rnio a perseguição que o- delegado do papa fazia aos gregos sysmaticos. Depois da sua morte, em 1216-, o império lati- no de Constantinopla declinou gradualmente; e tão excessi- vas eram as exigências do estado, que Baiderico 2.°, derradeiro imperador da dynastia latina, empenhou a coroa d'espinhos, que se diz ser aquella que pozeram sobre a fronte de Christo,, aos venezianos, de quem a remio San-Luiz, Hei de França,. que também comprou a Baiderico uns fragmentos da cruzr a lança com que feriram o Senhor, a vara cie Moizes, e ou- tras reliquias em grande veneração n'aquelles tempos, e que depositou na santa capella de Paris era 1225. Os gregos dai

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Azia, ganhando constantemente terreno, Miguel Paleologo, tendo usurpado o império -grego de Nicea, seu general Alei- xo Strategopulo, com uma força pouco considerável surpre- liendeu e reconquistou Constantinopla em 1261, e d'este modo, no fim de 57 annos aquella metropoli voltou ao do- minio dos gregos, mas uma parte considerável da cidade ti- nha sido destruída por três grandes incêndios, que tiveram logar por ocèasião do cerco feito pelos latinos, e nunca mais Constantinopla recuperou seu antigo esplendor, nem o impé- rio oriental sua primitiva grandeza e poder.

A historia das cruzadas, com quanto apresente um espectá- culo lastimoso de fanatismo e mortandade, descobre também um adiantamento considerável nas sciencias. Em consequência d'aquellas guerras destruidoras, causa da morte de tantos Eu- ropeus na Palestina, os habitantes dos paizes ao occidente ^adquiriram noções a respeito da parte oriental que não ti- nham, especialmente do império Grego, ou Constantinopolita- no. Os conhecimentos geographicos dos europeus melhora- ram, a sua esphera politica alargo u-se, e introduziram-se os rudimentos de varias artes e sciencias desconhecidas no oc- cidente. Um dos eífeitos mais importantes das cruzadas foi o cerceamento do poder e numero dos nobres facciosos, que muito concorreu para a abolição do feudalismo. Muitos no- bres a hm de arranjarem dinheiro para aquellas expedições religiosas dispozeram dos seus estados; e muitos pequenos príncipes venderam seus principados ao soberano, como por •exemplo Roberto, duque da Normandia, que fez venda do seu ducado a seu irmão Guilherme, vindo assim a ser annexado <i coroa d'Inglaterra. Estas vendas lançaram muitos dos principaes chefes na dependência do throno. Muitos, também dos nobres facciosos foram anniquilados n'estas emprezas ro- manescas e morrendo alguns delles sem suecessão, devolve- ram seus feudos á coroa. As cruzadas, em fim, contribuíram muito para enfraquecer e derrubar o systema, feudal e pou- co depois de cessar o fanatismo pelas cruzadas, começou a Europa a apresentar um aspecto mais agradável. O poder

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dos soberanos adquirio mais estabilidade e promulgaram- se leis mais benignas e favoráveis ao povo. Os principes da Europa, conhecendo seus próprios interesses adoptavam in- variavelmente os meios de diminuir o poderoso poder dos nobres, elevando a burguezia até certo ponto na escala po- litica. De todas as medidas tomadas pelos principes euro- peus, para o complemento d'este grande propósito, nenhum mais eflicaz que a dadiva da constituição e privilégios a cida- des e villas, cujos habitantes ficaram libertos do domínio feudal, c que, a pouco e pouco deu logar á emancipação a toda a massa da população. A abolição, porem, do feuda- lismo, foi obra do tempo, e não se realisou de todo senão no fim d'alguns séculos. O seu progresso foi lento, c não obstan- te os esforços de muitos principes da Europa nada se conse- guiria sem o melhoramento da civilisação, e o augmeuto das transacções commerciaes. Os privilégios das cidades livres proporcionaram ás suas populações os meios de alargar o seu commercio, e a explorar diíferentes canaes para a sua ramificação; e assim augmentou a riqueza publica e a im- portância das classes plebeias. Os rendeiros em vez de pa- gar as rendas em espécie começaram a pagar a dinheiro, e os senhorios não tardaram a achar esta forma de pagamento mais commodo, e habilitou os nobres a viverem com mais commodidades e elegância; ao passo que o povo estava mais independente dos barões e mais sujeito á coroa. De facto, a abolição do feudalismo foi um bem para todas as classes sem excepção dos próprios senhores feudaes, mas não foi simul- taneamente em todos os paizes. Na Hungria ainda continuou a subsistir em 1785, com quanto a illustrada Maria There- za o tivesse subordinado a leis humanitárias em 1764: a abolição total se effectuou na Hungria , sob o rei- nado de José 2.°, ena Bohemia em 1781. Ainda existe mais modificado na Polónia e na Rússia, com quanto a immortal Catherina 2.a, cuja memoria será sempre venerada, pelas suas leis e regulamentos, esforços continuados pelo melhoramen- to do império a seu cargo, e felicidade de seus súbditos fez

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quanto ponde em tão curto espaço de tempo, para a liberda- de dos povos. O commercio internacional e a civilisação pro- duziram a pouco e pouco seus efteitos recíprocos, mas em quanto os qjovos não estiverem civilisados não estão nas cir- cunstancis de gosar a liberdade; e até mesmo seria perigoso dár-lha: A natureza humana é sempre propensa ao abuso, e não se julgue que por isso que temos dito do systema feudal que a humanidade fosse mais depravada antigamente do que hoje, nem que os senhores fendaes se comprazessem em ty~ ranisar os povos. A mutabilidade das circunstancias é que produz a mudança d'habitos, d'idéas, e costumes da socie- dade. Muitos dos antigos nobres da Europa eram homens de grandes viríudes, como o são hoje em dia. Muitos dos barões da Inglaterra, de quem descende a nobreza d'este paiz, ennobreciam a sua pátria e a humanidade, não me- nos distinctos por sua bravura que por suas virtudes. Da sua piedade e zelo pelo bem publico existem innumera- -veis monumentos. As desordens d'aquelles tempos provinham da instabilidade social, e as circunstancias especiaes que en- tão predominavam. O systema -feudal estava, talvez, tão a- propriado á ordem de cousas d'então, como outro qualquer tem- po em rasão da necessidade d'um jugo de ferro, para conter as naturaes tendências barbaras d'um povo ignorante, e era consequência necessária da escacez de numerário, e a impos- sibilidade em que se estava de pagar as rendas senão com o produeto das terras. Tão depressa começou o commercio a florir, e a crescer a prosperidade publica, esta necessidade cessou d'existir, eo regimen a que dera causa depressa desa- pareceu.

Desde o reinado' de Carlos Magno, a historia, tanto ecle- siástica como politica da Europa está subordinada ao espirito próprio do seu tempo; e até á reforma nada apresenta de no- tável, a não ser o progresso gradual da egreja; que, á seme- lhança do systema feudal, pôde ser olhada como consequên- cia necessária das circunstancias da epocha, e do estado da Hvilisação dos povos. Deve notar-se que das dhferentes na-

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do norte que vieram estabelecer-se sobre as ruínas império romano, algumas eram pagas e aquellas que haviam previamente abraçado a religião enrista, tinham apenas obs- curas noções das suas doutrinas. Alem de que eram baldos de 1 itteratura, e sem as qualidades precisas para tempos de paz e administração regular : o clero era a única clas- se apta para presidir aos tribunaes, ou para tomar assento nos conselhos d'estado, de modo que póde-se bem affirmar que a Europa houve a sua religião, conhecimentos e leis do clero romano.

Estas circunstancias deram a esta classe uma extraordiná- ria influencia, e que elia soube aproveitar. A elevação de Carlos Magno á dignidade imperial deu um acerescimo de poder á Igreja. Como aquelle príncipe recebeu o diadema por influencia do bispo de Roma, entendeu que lhe cumpria engrandecer a influencia e poder da Santa Sé*. Nos tempos de discórdia e anarchia que seguiram o desmembramento do império de Carlos Magno, prelados e fidalgos, não perderam occasião alguma de se. engrandecerem.

As contendas pelo poder entre os e eclesiásticos, semelhan- tes a todas d'igual natureza entre o resto da humanidade, deram logar a muitos interesses oppostos, que produziram scismas perigosos na igreja. A contenda a respeito d'ima- gens deixara uma animosidade entre as igrejas do oriente e do occidente, que nunca devera subsistir entre christãos. Photio, arcebispo de Constantinopla, homem de extraordiná- ria habilidade e applicação, distincto por seus volumosos es- criptos, cheios d'erudição, era inimigo declarado da Roma- na e resolveu romper de todo com a Igreja latina. Occupou a cadeira archipiscopal de Constantinopla por espaço de 29 ân- uos desde 857 até 886; e em todo esse tempo levaram, elle e o papa a fulminar um contra o outro excommunhões e a- nathemas. Depois da morte de Phocio estabeleceu-se uma es- pécie de armistício entre as igrejas grega e latina; mas em 1054 os delegados do papa excommungaram o patriarcha, e toda a igreja de Constantinopla, Aquelles mútuos anathe-

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mas eram certamente em deshàrmonia com o espirito genuí- no do christianismo, e com o amor pregado por Jesus Chrisío, que veiu ao inundo abençoar e não amaldiçoar a humanidade. No ultimo quartel do século treze, o im- perador, Miguel Paleologo, a fim d'evitar a cruzada que os latinos meditavam contra Constantinopla, entrou era negocia- ções com o papa, e ultimou uma concordata entre a igreja grega e a latina; mas por sua morte, em 1282, esta união dissolveu-se.

O imperador, Manoel Paleologo, vendo o império acerca- do por todos os lados peles Turcos, visitou Londres e Paris em 1400, no reinado de Henrique 4,° de Inglaterra e de Carlos 6.° da França, a demandar apoio, mas as circunstan- cias d'aquelles paizes não lhes permittiam enviar forças para a manutenção do império do Oriente. Este príncipe diligen- ciou igualmente estreitar relações com a Santa Sé, mas sem resultado permanente. Porem, João Paleologo, seu filho e suecessor, concluiu um tratado de paz em Florença, com o papa Eugénio 4.°, mas as corporações em peso dos monges e clérigos de Constantinopla o reprovaram formalmente. Por espaço de quasi seis séculos desde o tempo do patriar- cha Phoeio, até á extineção do império grego uma inimisade inveterada existiu da parte do clero c povo de Constantino- pla contra a igreja latina. Quando tinha logar uma recon- ciliação temporária, era sempre fictícia e promovida pela cor- te imperial com as vistas de obter auxilio das nações occi- dentaes, quando ameaçado de perigo. João Paleologo havia, anterior â sua morte, renunciado á união que fizera com a -Sé de Roma, vendo a indisposição do povo. Comtudo, seu filho e suecessor, Constantino, renovou-a quando temeu um cerco projectado pelos turcos. Um cardeal delegado, de Ro- ma, foi admittido em Constantinopla, mas quando elle cele- brou missa na cathedral de Santa Soplha, o clero reputou o templo profanado, e deixou de o frequentar; e Pranza confes- sa que o próprio imperador, com os poucos que assignaram o íi atado com a Santa Sé. não estavam cie bôa fé, e que os

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monges, e toda a cidade de Constantinopla, deram as maio- res demonstrações de fanatismo e indisposição contra a igreja latina.

O scisma e irreconciliável indisposição entre as duas igrejas attribuem diversos escriptores a differentes causas; querem alguns que fosse a causa necessária da divisão do império e diversidade de lingua. Não se pode, porem, presu- mir que a differença de lingua contribuísse por si para uma differença de religião.

Os differentes idiomas das nações europeas, que seguiam a igreja latina não influíam sobre os seus princípios religio- sos. Permaneceram longo tempo unidas á de Roma e não foi esta circunstancia que deu logar á reforma: á divisão do império mais facilmente. A divisão da Europa em tantos reinados e estados não produziu, porem, esses eífeitos; to- dos unanimemente submetteram-se aos dictames da igreja mãi, sujeição coeva á authoridade do pontífice romano e por consequência natural e voluntária.

A igreja grega, pelo contrario, considerou a supremacia dos bispos de Roma uma usurpação, á qual nunca de bôa mente se poude submetter. Desde a fundação do christia- nismo a sede do império passou de Roma, e Constantinopla ficou sendo capital. Não era, por tanto, nada provável que os patriarchas da metropoli se quizessem curvar á authorida- de do bispo de Roma, cidade que estivera longo tempo em poder d'aquelies que o povo de Constantinopla denominava bárbaros, e sob este ponto de vista, teve para si, que se a igre- ja precisava d'um chefe visível, o patriacha de Constantino- pla tinha mais direito a esse titulo do que não o bispo de Ro- ma; e por conseguinte não admira que os arcebispos e o clero de Constantinopla preferissem renunciar toda a communica- ção com a igreja latina, a submetterem-se á suprema authori- dade da romana. Esta é que parece ser a causa real do scis- ma entre as duas igrejas, servindo a divergência de certas doutrinas secundarias, instituições de disciplina e questões theologicas muito apenas de pretexto para assoprar a cham-

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na dia discórdia e alargar a brecha.

No seio da igreja latina as discórdias ecelesiasticas tinham qua si produzido os mesmos effeitos. Durante o longo perio- [e quarenta aimos desde 1378 até 1418, contava-se dons pontífices, um em Roma e outro em Avignón: A França, Sa- bóia-, Secilia, Aragão, Oastellá, Navarra e a Escócia adheri- rara á Se de Avignon; a Itália, Alemanha, Portugal e os pai- zes baixos, e os reinos do norte, encostaram-sè á de Ro- ma. Este scisma perigoso acabou com a deposição dos dons ante papas, e com a eleição de Martinho 5.° ao pontiíi reunido no concilio de Constança em 1418.

O extraordinário engrandecimento da igreja foi a consequên- cia necessária das circunstancias especiaès da idade media. IsTestes tempos esclarecidos nada peior nem mais repulsivo do que esta usurpação espiritual á primeira vista ; mas consi- derando as cousas desapaixonadamente, e o estado da huma- nidade nas epoehas de que tratamos veremos que não es- tava em harmonia comas circunstancias cl? então, como mesmo mais adequado ao estado da Europa. Para o bem geral da se- riedade ê necessário que o poder esteja depositado nas mãos d'um de seus membros ; e se considerarmos quam poucos. n'aquellas idades obscuras, possuíam os conhecimentos pre- cisos para bem dirigir os negócios do estado, devemos confes- sar que o clero era a única classe nas circunstancias para tão importante encargo. Daqui a sua extraordinária influencia e não é cia natureza humana renunciar uma authoridade que lhe veio naturalmente ter ás mãos. Attehdendo ao estado bár- baro e inculto dos povos d aquelle tempo, concorreu sem du- vida para a tranquilidade publica o facto de estar o poder investido nas mãos d nornens que pela sua especial posição eram os únicos a impor respeito ao povo; foi talvez necessário á própria existência do christianismo durante tantos séculos de ignorância e barbaridade. Os actos da Divina Providencia são i-mprescruptiveis, c muito alem da nossa compreliensão ; e (juaesquer incidentes que. aos menos illustrados pareçam ó'ii!radietoi'ios na direcção moral ej íca do globo, não se

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pode negar que no iodo reina uma harmonia perfeita.

Depois que cessou o zelo pelas cruzadas, a Europa Come- çou atenuar uma face mais tranquilla. A litteratura fez pro- bos lentos mas regulares e nas seiencias nota-sc melhora- mentos. Alguns homens d'extrardinario génio e erudição ap- pareceram em diííerentes periodos e brilharam deslumbrantc-

ntè nomeio das trevas universais. Entre estes o illustre frade Rogério Bacon fez honra á nação ingleza, e á univer- sidade de Paris aonde completou os seus estudos. Pedro Lam- bert, Abelard, e outros de grande merecimento, foram sueces- sivamente ornamentos d'aque!la universidade que n'aquelles tempos fora, segundo parece, o primeiro seminário e centro da lit- teratura europea. Tarde, porem, produziram os esforços d'a- quelles sábios qualquer mudança sensível no aspecto litterario da Europa. As densas trevas não se dissiparam facilmente.

Em todo este tenebroso perioclo, e, depois da extineção do cáliphado, Constantinopla com quanto em continuada decli- nação era o ponto onde se concentrava a sabedoria e sciencia do mundo. O decimo século que foi um dos mais obscuros períodos da ignorância gothica nos paizes do occidente, cons- íituio a mais florescente era da litteratura bysantina, sob os reinados de Leão o phiíosopho e de seu íilho Constantino Por- phyrogenito. O primeiro compilou uni tratado bem elabora- do de táctica, e o ultimo uma longa e minuciosa descripção do império em relação ao seu estado geographico e politico, o cerèmonial da corte e outros muitos particulares. Neste ad- ministratio imperii de Constantino Porphyrogenito, encon- tramos a primeira noção a respeito dos russos. O império rus- so alargava-se desde o mar negro ao Báltico; Kiow no Uktrai- ne, c Novagorod no norte, eram as capitães do império e os; dous centros de seu commercio, Era então poderoso e flores- cente, mas depois cahio cm poder dos tártaros, ficando então* eclipsado. Devemos aqui notar que os russos abraçaram o ehristianismo pelo anuo 088, reinando"© Gran-duque Wlada- mir: e como lhes viesse a religião cie Constantinopla e não de> Roma como acontecera ás nações occidentaes da Europa, num-

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ca se submetteram áauthoridade do Papa nem fizeram causa commum com a igreja latina. No reinado do Gran-duque Wla- damir, um bando de aventureiros russos alistou-se no serviço do imperador grego e foi empregado sob a denominação de Varangianos, e não é menos notável que outro bando d'aven- tureiros inglezes, fugidos ao tempo da conquista entrasse no serviço do império bysantino. O tempo que estes corpos mi- litares se conservaram no império grego é desconhecido, mas é sabido que ambos fizeram um papel conspicuo na famosa batalha de Durazzo, quando o imperador Aleixo Commeno foi batido pelo normando Roberto Guiscard, duque d'Apulea em 1081.

Os repetidos esforços d'individuos de consummada erudi- ção e talento, que de tempos a tempos, derramam um raio de luz sobre a crassa ignorância da Europa, começou finalmen- te a dissipar as nuvens que por tanto tempo obscureceram o hemisjDherio da litteratura. Aquelles homens illustres que ti- nham por seus aturados estudos conseguido dissipar a igno- rância d'aquelles tempos, tinham quasi sem excepção alguma saido d'entre o clero, particularmente dos monges, que nos seus retiros monásticos disfructavam um descançoque aanar- chia que reinava nas idades medias tinha geralmente negado ao clero secular. A' proporção que os governos adquirião for- ça e que a civilisação começava a ganhar terreno começavam a prosperar os esforços dos que promoviam a litteratura.

Varias circunstancias favoráveis concorreram para mudar os hábitos e o gosto da Eurapa. Canstantinopla, durante o periodo do barbarismo europeo, tinha sido não a sede das scicncias como também de riqueza, commercio e esplendor.

Os cruzados que visitavam aquella metropoli admiravam- se das suas riquezas, magnificência, commercio e população que não podiam deixar de os impressionar profundamente comparada com a mesquinha apparencia de Londres, Paris, o outras capitães europeas, cujas ruas, âquelle tempo, eram estreitas, tortuosas e irregulares; e cujas casas á excepção das d'alguns maioraes, eram construidas de madeiras, destituidas

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de chammniés, sendo esta utilíssima parte da architectura in- troduzida em Londres em 1160.

Durante a idade media os castellos dos poderosos barões construídos de pedra não passavam cVenormes massas sem elegância e destinados mais para defeza do que para commo- didadc e ornamentação. Porem a epocha das cruzadas ou aquella que lhe succedeu parece haver introduzido na Euro- pa um novo e mais refinado gosto cVarchitectura como se pode ver nas antigas cathedraes.

O estylo cVarchitectura introduzido então, demasiadamen- te carregado e sombrio para casas d'habítação, presta-se ad- miravelmente para os templos, pela valentia de construcção, e pelo respeito que inspira a solemnidade de que se reves- te e que não tem as ordens gregas sem duvida mais gracio- sas; e caracterisa o povo da idade media naturalmente som- brio, bravo e romântico. Constantinopla tinha sempre susten- tado um grau de esplendor, superior a tudo quanto se conhe- cia nos mediocramente civilisados paizes da Europa. O palá- cio imperial foi, por onze séculos, a admiração dos viajantes. Estava situado entre o Hyppodrome e o magnifico templo de Santa Sophia; e os seus jardins de plataforma em plataforma chegavam até ás praias do Proponto. O edifício primitivo cons- truido por Constantino devia rivalisar com a residência im- perial cia antiga Roma que assentava sobre o Monte Palatino; e posteriormente os seus suecessores augmentaram a sua ma- gnificência. No século treze, Lintprand, bispo de Cremona, embaixador do imperador Otho perante Nicephoro Phocas faz menção d'elle n'estes termos: «O palácio imperial de Cons- tantinopla excede, não em belleza e magnificência, mas em valentia de construcção todos os palácios e castellos que te- nho visto » . Depois d'esse periodo os imperadores da dynastia Commeniana continuaram a embellezal-a e não admira por consequência que se encontre tantos elogios nos escriptos de quantos escreveram n7aquelles tempos. Depois da conquista latina, a pilhagem da cidade e dos incêndios que tiveram lo- gar, recobrou seu antigo esplendor; e a grandeza do império,

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Tbem como o brilho e opulência cia capital declinaram rapida- mente.

Durante os tempos da declinação do império do Oriente, em quanto a ignorância, e barbarismo, a superstição e a anar- cliia feudal prevalesciam nos paizes occidentaes da Europa. Quasi toda a Azia andava agitada, sentindo-se seus efteitos nas partes mais remotas d'aquelle extenso continente. A his- toria d'aquellas nações, ou tribus que habitaram as vastas regiões do norte da Azia, è pouco conhecida; e não obstante as profundas investigações d'alguns modernos e sábios histo- riadores nada authentico se tem podido descobrir, a não ser alguns factos salientes como são aquellas emigrações e con- quistas extraordinárias que produziram as revoluções nos pai- zes meridionaes cuja historia ê mais conhecida. Aquellas re- giões immensas que se alargam por sobre o norte da Azia e parte do norte da Europa, desde o ponto do Oceano Pacifico, chamado pelos modernos descobridores o Archipelago Septen- trional até o mar Báltico; e desde os mares Caspio e Euxino e fronteiras da Pérsia, índia e China até os extremes limites habitados do norte, eram pelos antigos coinprehendidos sob a denominação geral de Scythia c os seus povos scythios. Os russos, que desde o século nono, ou talvez desde o século quinto nos quaes se edificaram as cidades de Kiof, na Uka- riia, e Norogorod, tendo feito um progresso gradual em civi- lisação, augmentando rapidamente nos tempos posteriores são d/origem Scythia, e o seu império exíende-sc sobre a maior parte da antiga Scythia, cujas differentes nações e tribus uni- ram sob um vasto systema politico. Do estado antigo d'aquel- les grandes paizes, da original população, e das imigrações, cruzamentos, guerras, e revoluções que tiveram logar entre aquellas tribus nómadas, comprehendidos antigamente sob a geral denominação de scythios, e ultimamente de tártaros, pouco ou nada sabemos, nada nos dizendo a historia com ca- racter de verdade. Em certos periodos as suas emigrações e conquistas figuram conspicuamente nos annaes politicos da humanidade, e originaram revoluções, cujos effeitos foram ex-

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tensos c duradouros. Os turcos, que fizeram tão dis-tincto pa- pel nos séculos quinze, deseseis e desesete, e cujo império è ainda tão extenso e populoso, são d 'origem Tártara ; assim como também os mouros da índia.

A mais notável o ocorrência na historia dos antigos scythios que se transmittio ao conhecimento da posteridade é a gran- de invasão daquelles povos nos paizes meridionaés, que se- gundo as conjecturas dos melhores escriptores teve logar no reinado de Josias, rei de Judá. O periodo exacto d'esta emi- gração e conquista não se pode saber ao certo, nem tão pouco até que ponto extenderam as suas conquistas. Asseverasse ge- ralmente que elles dominariam a Azia Menor por espaço de vinte annos, opprimindo extraordinariamente os Medas e Ba- bylonios. Se, porem, é certo que o domínio Scytha acabou um anno ou dous antes de começar o reinado de Nabochodono- zor, a conjectura de Sir Walter Raleigh não é nada imprová- vel, e consiste em que depois de enfraquecido seu poder e que muitos d' elles tinham regressado ás suas terras nativas do norte, muitos de seus bandos guerreiros se alistaram ao ser- viço d'aquelle príncipe e contribuíram consideravelmente para aquella serie de victorias que tanto engrandeceram o império Babylonico. Esta opinião acha~se corroborada também pelas tradições das nações do norte, seguindo o estandarte deNabo- uhodonozor e que se não pode entender com os babylonicos, assyrios e outros súbditos naturaes d'aquelle monarcha.

Os períodos mais notáveis da historia dos tártaros, descen- dentes dos antigos Scythas, são aquelles que se distinguem pelas conquistas de Zinghis Khan, e seus suecessores, no sé- culo treze; e por aquellas de Tamerlam nos fins do século qua- torze e começo do século quinze. Zinglis Khan começou a sua carreira conquistadora em 1206 e tendo subjugado uma par- te da China, Pérsia etc. morreu em 1227. Seus suecessores durante o periodo que váe desse tempo a 1272 conquistaram toda a China, Pérsia e Azia Menor ; e penetraram até Neustão na Áustria que limitou a sua invasão pelo lado Occi- dental. Tamerlam, que, á semelhança de Zinglis Khan, era

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da tribu Mogul, amais celebre e entrepida" das nações Taipa- ras, começou a remai" pelo anuo 1370, e morreu na idade de 63 em 1405, em cujo período conquistou a Pérsia, a Turquia, a maiorparteda Rússia, uma considerável perto do Hindostão, e aSyria; deu saque a Aleppo, Bagdade Damasco; conquistou a Azia Menor e aprisionou Bajazeío, imperador dos turcos na batalha d.' Angora; depois do que voltou para Samarcand, ca- pital do seu império, e tendo projectado uma expedição contra a China, morreu no caminho.

D'este modo parece que os invasores do norte foram tão turbulentos na Azia como na Europa e deram logar a revo- luções não menos importantes, com quanto menos conhecidas pelo pouco que se sabe d^aquellas nações, mas que mudaram a face da Azia, e que se fazem lembradas em rasãó de have- rem revirado o antigo império Hindoo da índia, tornando a- quelle paiz, desde esse tempo, um theatro de anarchia.

O império Mogol dos Tártaros floresceu extraordinariamente por espaço de dous séculos. No tempo de Tamerlão era Sa- marcand a capital; mas ignora-se aonde era a sede do império no reinado de Zinglis Khan e de seus suecessores.

A opinião de Mr. Palias, que, pelos soberbos mausoleos suppõe ter assentado a capital do império tártaro entre os rios Yaik e Irtish, ao sul de Tobolsld nos parece a mais bem fun- dada e o sábio Muller da academia de Moskow concorda tam- bém com aquelle escriptor. Lançando os olhos sobre o Conti- nente Aziaíico e contemplando as antigas, opulentas e gran- des nações da sua parte oriental, surprelíende-nos termos tão limitados conhecimentos. Porem, assim é: uma linha de per- petua e completa separação parece ter sido traçada entre a parte oriental e occidental da Azia. Os nossos historiadores - menção alguma fazem dos negócios dos Índios e dos chins cu- ja religião, costumes, e constituições differem tanto dos povos occidentaes, antigos e modernos, como se uma barreira insu- perável tivesse cortado entre elles toda a cormnunicação ; e ti á em pelo Cabo da Boa Esperança a

mesma gfcographià das partes òrientaes cia A^ia era tão obs-

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cura como a sua historia ; circunstancia que teremos occasião de notar com mais particularidade no decurso das nossas con- siderações sobre as variabilidades da humanidade.

Se arredarmos a vista das revoluções que trouxeram a Azia em continuadas e violentas comrnoções, resultado das conquis- tas dos tártaros, e dirigirmos a attenção para o império gre- go ou constantinopolitano, temos a lamentar um estado de- decadencia, effeito da falta total d'energia. Constantinopla, que por tantos séculos resistira a todos os ataques, e que desafia- ra os esforços hostis dos godos, dos hunos, dos avars e dos sarracenos, tinha-se exposto por suas dessidencias internas, e pelos crimes de seus chefes, â pilhagem dos crusados, e o im- pério cahira nas mãos d'um bando d'aventureiros francezes e italianos.

Apoz aquelle severo golpe, com quanto o império se resta- belecesse e a capital fosse reconquistada pelos gregos, o pri- meiro estava muito enfraquecido para poder de novo ostentar a sua antiga grandeza e opulência.

E de facto o império bysantmo desde a extincçao da dy- nastia commeniana pelo bárbaro mas. talvez, bem merecido assassinato do imperador Audronieo, ultimo d'aquella raça, apresentara o quadro d'um poder decaindo e exhausto de recursos, d'um governo sem vigor, e d'um povo sem virtudes, signaes inequívocos d' um estado na declinação. Pouco depois de Bajazeto subir ao throuo ottomano, pelo começo do século quinze, o império grego estava tão cerceado a ponto de se achar reduzido a um pequeno território entre o Proponto e o mar negro, não contando mais que mil e quinhentas milhas quadradas e pouco maior que qualquer província d outros pai- zes; e mesmo assim este pequeno ponto, restos melancholicos do mais poderoso império do mundo, era theatro de crimes e facções politicas que duraram por espaço de 50 annos até 1453 quando Constantinopla, apoz um cerco de 53 dias, foi tomada pelos turcos sob o cominando de Mahomet 2.°. As forças militares que atacaram a celebre metropoli são aprecia- das diferentemente pelos historiadores, como quasi sempre

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acontece n'estas occasiões. Pliilelplio ao exercito turco 60:000 homens d'infanteria e de cavallaria 20:000. Esta cifra acha-sc augmentada por Ducas Chalcondyles e Leonardo de Chias, que lhe dão 300:000; mas Phranza, que foi testemu- nha occuiar cliz-nos que os turcos montavam a 258:000 ho- mens. Fossem quaes fossem as forças inimigas é certo que a gente em armas para a defeza da cidade era em numero insi- gnificante, e prova a degeneração cVaquella raça que ainda arrogava a si o titulo de romanos, e ennobrecia a estreita lín- gua de terra que occupava com o pomposo nome dluiperio. Phranza escreve que se não pode alistar para cima de 4,-970 voluntários e incluindo os alliados italianos as forças defenso- ras não excediam a oito mil homens.

O imperador Constantino Paleologo sustentou uma defeza heróica; e quando a cidade fora levada cPassalto, depois de haver nobre mas imprudentemente recusado, uma capitulação em termos muito vantajosos, cahio heroicamente na brecha por onde o inimigo penetrou na praça. Phranza descreve pa- theticamente a horrível scena que se seguia. Á população e a propriedade foi posta por Mahomet á disposição do exercito ; e o povo aterrado tendo-se refugiado na cathedral de Santa Sophia, e outros asyios, foi arrastado para as ruas e sem dis- ti noção de sexo ou catliegoria, acorrentado e vendido como escravos, facto que horrorisa a humanidade e que estabelece um contraste entre as inauditas barbaridades nas guerras da antiguidade e os males muito minorados das nações civilisadas dos nossos tempos. Tal foi a horrível catastrophe de Constan- tinopla, outr'ora a capital, e por muito tempo a única lem- brança existente do império romano. D'este modo, assim co- mo fora sede d?aquelle império passou a sel-o do império otto.-- mauo em 1453 até hoje.

O império grego de Constantinopla andava tão tremido e eram tão evidentes os signaes da sua extineção, que ninguém podia duvidar da sua sorte imminente. -Muitos homens de let- tras e outros, entenderam ser uma necessidade procurar asy- lo mais seguro em outros paizes, a fim de não se verem en-

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volvidos nas ruínas do seu que não parecia inevitável, mas muito próximo; porque a existência do império grego, pelo conjuncto de diferentes causas prolongou-se mais do que ra- soavelmente se podia suppor; e o seu aniquilamento teria tido loirar oOannos mais cedo, anão serem as victorias de Tamer- Iam que frustraram os planos de Bajazeto.

Entre os litteratos de Constantinopla que se dissiminaram por entre os latinos, conta-se Leo Pilato que foi o primeiro professor grego em Florença, e o primeiro que introduzio o gosto pela lingua grega no occidente pelo armo de 1360, Manoel Chrysolcrio estabeleceu este estudo solidamente na Itália, e depressa ficou sendo um ramo d'educação entre os italianos. Alguns illustres protectores da litteratura começa- ram a apparecer entre os príncipes e primeiros homens da Eu- r®pa, especialmente na Itália. Cosmo e Lorenzo de Medíeis foram no século quinze, os pretectores das sciencias e artes; e não menos vigorosos e eíficazes foram os esforços emprega- dos pelo pontífice Nicoláo 5.° para a restauração das lettras em Roma, rivalisando com os Medíeis em Morença.

Estamos agora, depois d'uma viagem fatigante, em que temos atravessado caminhos ásperos por entre as trevas da ignorância e do vandalismo, entrando em plena civilisaçãar litteratura e commercio, o que excede infinitamente as mais bri- lhantes epochas da antiguidade.

O período em que entramos agora é infinitamente mais agradável e interessante comparativamente com aquelle que acabamos d'atravessar: trasborda de grandes acontecimentos que são outras tantas epochas memoráveis nos negócios hu- manos. Defmira-se a posição das diíferentes nações da Euro- pa na balança politica; e não se vêem poderosos impérios era- grandecendo-se exhorbitantemente, e absorvendo os estados

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visinhos corno em antigas eras. Os mais notáveis aconteci- mentos d 'estes últimos tempos contrastam com aquelles da an- tiguidade mas não são menos recreativos. O renascimento das artes, sciencias e lettras e seu rápido progresso, a invenção e aperfeiçoamento d 'artefactos, a exploração do globo, a desco- berta de paizes até então desconhecidos, a extensão do com- mercio, e o progresso da civilisação com todos os seus melhora- mentos e commodidades, caracterisam eminentemente o periodo que finda pelo meado do século quinze, era em que a renas- cença das lettras e bellas artes se desenvolveu tornando-se no- tável por um facto memorável na historia. Foi este a invenção cia arte typographica, único meio que podia descobrir-se para arrancar a grande massa da humanidade d'aquelle profundo abysmo d'ignoráncia em que mesmo nas eras mais illustradas estiver;!, immersa. Esta descoberta fez grande falta nas idades florescentes da litteratura grega e romana, quando, como se tem dito, ninguém que não fosse d 'alta jerarchia e riqueza podia aspirar a conhecimentos litterarios. Tal tinha de ser a sorte de todas as nações, a não ser a invenção da imprensa, que reduzi o os livros a uma centésima parte do seu antigo valor, facilitando e dilfundindo a sabedoria por entre o povo. Sabemos de bôa fonte que pelo anno de 1215, a condessa cVAnjou deu duzentos carneiros, cinco quartéis de trigo, e igual quantidade de cevada, por um volume de sermões, tal era a carestia de livros n'aqueííes tempos; e com quanto seja muito possível que tivessem abuzado da condessa, é Mr. Gib- bon que no-lo diz que o valor de copias manuscriptas da Bí- blia, para o uso dos monges e do clero, orçava por quatro cen- tas a quinhentas coroas, em Paris, que segundo o valor relati- \ o do dinheiro n'aquelie tempo comparado com o de nossos dias pôde calçul.ar-se sem exageração equivalerem outras tantas li- bras sterlinas. Estes manuscriptos eram em pergaminho, e sem duvida executados com primor; mas, admittindo mesmo que tivesse havido exageração e avaliando pelo mínimo, livros •jfaquelle tempo deverião custar cem vezes mais do custo ac- tual. A difíiculdade d'aequisição de conhecimentos, em rasão

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da escacez e careza de livros cansara necessariamente uma falta de mestres, e estas difficiildádes accnmnladas apresenta- vam tropeços invencíveis á diffusão da litteratura : de modo que por maior que fosse o gosto pelas lettras, as vantagens limitavam-se aos grandes e opulentos, e aos monges que ti- nham á sua disposição as livrarias de seus conventos. Os aii- thores da arte typographiea contribuíram mais para o melho- ramento da sociedade e para a civilisação em geral, que todas as phyJosophias especulativas da antiguidade e todas as intrigas dos theologos dos tempos modernos, e, se forem aquilatados conforme seu valor intrínseco, e apreciado o seu mérito em relaÇâo ao proveito que trouxeram á humanidade, devem seus nomes preferir aos de Cezar e Alexandre, e d'outros conquis- tadores celebres na historia como dizimadores da humanidade. Se alguma vez os bemfeitores da raça humana mereceram que se lhes erigissem estatuas em seu louvor, são certamente estes homens. Abaixo do Christianismo facto algum ha tão importante.

A' descoberta d'esta excellente quão útil arte seguio outro acontecimento não menos interessante e importante, com quanto de natureza diversa. Foi o descobrimento da Ameri- ca que operou uma mudança completa no systema politico e commercial da Europa. A descoberta das propriedades da agulha de marear, no principio do século quatorze, por um natural ou habitante de Amalri, cidade mercantil do rei- no de Nápoles, tornara comparativamente segura, commocla e abreviada a navegação do alto mar, evitando um sem nume- ro de contrariedades, perigos e demoras inevitáveis nas via- gens longas. D'ahi por diante continuados melhoramentos se fizeram na arte marítima, principalmente por parte dos vene- zianos, genovezes e outros povos italianos. Os portuguezes depressa hombrearam com as potencias marítimas da Itália e a situação da Hespanha não permittia que esta nação ficasse muito tempo na retaguarda. Os portuguezes, comtudo, con- ceberam primeiro que todos o plano das descobertas distantes. Os monarchas de Portugal, vendo o seu reino pesar pouco na

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balança da Europa, e frustradas todas as esperanças d'engra.11- deci mento no Continente, pela natureza de seus domínios que se limitavam a uma tira estreita de terra na costa do Atlânti- co, comceberam o nobre desígnio de doarem seu reino e povo com riquezas e importância, promovendo o espirito da desco- berta e do commercio. no anno de 1412 D. Joào 1.°, rei de Portugal apromptou uma armada para este fim»

Muitas outras emprezas de difíerente natureza foram succes- sivamente tentadas, e dirigindo-se sempre para o sul, os portu- guezes fizeram descobertas progressivas na costa d'África, e finalmente alcançaram a sua extremidade; mas os ventos tem- pestuosos e péssimo tempo impediram-nos de dobrar aquellc promontório que, por esse motivo, denominaram o Cabo das Tormentas, e que depois tomou o nome mais auspicioso de Ca- bo da Boa Esperança. Este promontório mais avançado do Continente africano foi descoberto por Bartliolomeu Dias, no reinado de D. João 2.°, que ao passo que as suas frotas ex- ploravam acosta occidental d'Africa,emprehenderam a desco- berta e commercio das partes orientaes d aquelle continente, enviando uma embaixada ao imperador d'Abyssinia, pelo an- no de 148G. Quando os reis de Portugal, inspirados pela am- bição do poder e engrandecimento, sentimento infinitamente mais rasoavel e mais digno do coração d'um monarclia do que o desejo extravagante e criminoso de gloria que caracte- risa a maior parte dos sanguinolentos heroes d'aquellas eras, andavam no affan das explorações longínquas de partes des- conhecidas do globo, abrindo assim novos canaes de riqueza publica, Cliristovam Colombo, natural de Génova concebeu o projecto mais arrojado até então empreliendido pelo homem. O commercio da Índia fora, em todas as idades, considerado objecto de primeira ordem c importância, e sempre chamara, mui particularmente a attenção do mundo mercantil. Os tjrios e os egypcios, como também os judeus no tempo de Salomão, não eram estranhos a este trafico. Ornar vermelho e o golpho pérsico, foram os canaes por onde o commercio indio se effe- '•i iiava na maior parte; ea Syria e o Egypto, paizes, que pela

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. - posição geograpbica., formavam o centro cie comínim

entre as partes orientaes e occidentaes do globo. No tem- po da prosperidade de Tyro, esta cidade rivalisava com oEgy- pto no trafico com o oriente: mais tarde, porém, os egypcios apoderaram-sc da maior parte d'elle. A posição central do

pio 6 particularmente adequada ao commereio da índia; e se aquelle paiz tivesse a necessária actividade e tacto com- mprcial, e um povo enrprehendedor, poderia ainda lioje, como em tempos remotos o fizera, monopolisar o commercio do oriente. Sob a dvnastia dos Ptolomeus, e mesmo depois da sua extracção, e a reducção do reino a província romana, o Egypto continuou a ser o centro commercial do oriente e do oceidente; c Alexandria era o grande empório do trafico in- diatieo. O trafico com o oriente era feito pelos mercadores

peies c Árabes; e as mercadorias da índia importadas de Musiris, mercado para aquelle commercio, nas costas do

bar, entravam no Egypto pela Alexandria, por canaes que communicavam, senão de todo, em parte, o Mar Ver- melho c o Nilo, ou então por terra, o que não era diflicil. aí- "endo a que a distancia íransponlia-se em ires ou quatro dias de jornada, e a que a mercadoria fazia pouco volume. Alexandria manteve esta posição eminente no inundo com- mercial, pelo estabelecimento rio reino Grego do Egypto, por Ptolomeu Lagos, pelo anno de 310 antes de Christo, até á sua conquista por Amrou, tenentedo CálipLa Ornar, em 638 depois de Christo, abrangendo um periodo de cerca de 948 annos; e, anterior á construcçã o de Constantinopla, fora sem- pre tida, tanto cm extensão, população, magnificência, e rique- za, como a segunda cidade do império romano. Depois da sua sujeição aos Sarracenos, os desgostos e revoluções difíerentes que sobreviveram, prejudicaram extraordinari mente seu com- mercio. As frequentes guerras entre o império do oriente e o Cáliphado obrigáramos negociantes de Constantinopla a abri- rem um meio de commumeação, novo mas commedo piara o commercio da índia pelo mar negro, emlogarde ofazrempor terra entre aquelle mar c o Caspio, e mais tarde pelo rio G-

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xus para o qual os commerciantes índios traziam suas mer- cadorias.

Este meio, porém, de transporte diffieultoso e demorado, não podia deixar de augmentar o valor das mercadorias da índia em Constantinopla, e o commercio do oriente voltou finalmente á sua antiga estrada natural. Os sarracenos ti- nham génio commercial e os cáliphas animavam as emprezas commerciaes, mas durante o estado florescente do cáliphado, a Europa conserváva-se sem commercio e quasi sem civilisa- ção. As commoçoes intestinas que dividiram em dois o im- pério dos cáliphas, e agitaram particularmente o Egypto com varias e frequentes revoluções, obstaram a que aquel- le paiz tomasse a ascendência commercial para que parecia destinado. Tão depressa, porém, os estados Italianos co- meçaram a sair da anarchia e barbarismo das idades go- thicas, começaram a commerciar com o Egypto. Os vene- zianos e os genovezes, particularmente, dirigindo as suas vistas espirituosamente para os negócios maritimos e com- merciaes, depressa deram consideração ao conimercio do Egypto e da índia.

A Alexandria tornou-se mais um vez o empório do commercio oriental, e os venezianos e os genovezes, pelo monopólio d'aquelle trafico, attingiram um estado d'opulencia e grandeza que assombrou o mundo. As outras nações da Europa, emergindo gradualmente do barbarismo para a ci- vilisação começaram a seguir aquelles exemplos e sem duvi- da desejariam descobrir os meios de partilharem d'aquelle commercio que elevara e dera tamanha importância aos, até ahi, insignificantes estados de Veneza e Génova. Foram os Portuguezes os primeiros, porém, que conceberam a idéa de rivalizar com os Italianos no seu lucrativo trafico, abrindo algum outro canal de commuuicação com a índia» Fora es- te o grande objecto de todas as viagens de descoberta que se haviam emprehen elido nos fins do século 15. Mas em quan- to os Portuguezes avançavam gradualmente sul, costeando o continente Africano, Colombo emprehendeu a viagem á In-

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dia atravez o Atlântico. E' para notar que este grande pro- jecto se fundara n'um erro dos geographos d'aquella idade e das idades precedentes, em relação á situação da índia e d'outros paizes orientaes da Azia. Os geographos da Grécia e de Roma não tinham nunca podido obter noticias exactas sobre a posição d'aquelles paizes, nem podia esperar-se na idade media. Marino Tyrio faz o paiz dos Seres ou a China a 225 graus leste do primeiro meridiano, atravessando as Canárias ou ilhas Afortunadas. Ptolomeu, que floresceu no segando século da era christã, reduzio a longitude da China a 180 graus; mas a verdadeira longitude da fronteira Occi- dental da China, hoje é sabido estar a 105 graus leste das Canárias.

Alguns aventureiros da idade media, especialmente Benja- min, Judeu de Tudela, na Navarra, pelo anno de 1160, e Marco Polo, de nobreza veneziana em 1265, haviam pene- trado até ás extremidades orientaes da Azia; mas segundo parece estes aventureiros emprehendedores eram destituídos dos necessários conhecimentos mathematicos, faltando-lhes os instrumentos indispensáveis para determinar a longitude dos logares que visitaram. Tinham igualmente formado opiniões erróneas quanto á extensão e posição geographica dos pai- zes orientaes da Azia, collocando-os mais a leste do que real- mente ficam. Aristóteles, muitos tempos antes, cahio no mes- mo erro, e julgou que a índia não demorava longe dos es- treitos de Gibraltar.

Aristóteles, de Coelo, Livro 2.°, artigo 14 e Séneca haviam abraçado as mesmas idéas, e com tanto ardor, que chegaram a affirmar que, com vento favorável era possivel passar da Hespanha á índia em poucos dias. Colombo estudara pro- fundamente a navegação e cosmographia, adquirindo conhe- cimentos senão superiores, ao menos iguaes a qualquer pes- soa erudita dos seus tempos, mas deixando-se impressionar pelas opiniões reinantes e pelas absurdas posições de diffe- rentes paizes, segundo os imperfeitíssimos máppas geographí- cos de então, imaginou não muito demorada a viagem á

Índia, seguindo sempre para o Oeste.

Via pelo mesmo prisma d'aquèllès tempos e as suas con- clusões não eram más com quanto fundadas em princípios erróneos. Se fora nos tempos de Colombo conhecida a geo- grapliia dos paizes orientaes como actualmente é, nem elle nem outro qualquer explorador teria concebido a idéa de a- fcràvessar o Atlântico para ganhar a índia; porque a viae por mui longa deveria inevitavelmente ser fatal a quem a in- tentasse. Suppõe-se geralmente que Colombo entretinha suas esperanças de encontrar maquellas regiões do. globo immen- sas porções de terra, mas isto não passa de conjectura, por isso orne o grande fim do navegador era encontrar alguns paizes mais avançados da Azia, que elle supponha extender- se muito para leste e por consequência não distarem muito das costas occidentaes da Europa e África. De facto esta o- pinião prcvalescia tão universalmente, que quando se avistou. terra, Colombo imaginou ser uma parte da índia, até qne a miséria e estado selvagem dos habitantes o convenceu do contrario. Em todas as suecessivas descobertas das diííereií- tes ilhas e paizes . uinente Americano, subsistiam as inesi ías; e pássára-se muito tempo antes que os Euro-

peus podessem resolver se a America era na realidade um ou- tro continente, ou. méraihe.ntG ama continuação do continente Ãziatioo.

Apreciando o Carácter de Colombo, não podemos hesitar em o pronunciar u:u dos primeiros entre os homens. Era fo- ra de duvida dotado de grande capacidade para conceber, o grande coragem para executar.— Uma constância que eon- tratempo algum pòcl um animo que perigo algum

podia abaier; s nina b fiiíle d-ej qifè nenhumas

: suldades' '(Xèá tavam", ÍJics iram es earecteristieos

s.iiòtavei ■- i . iiem conLu'ja'rái'iiíosv os seus.

leitos corn as façanhas da maior pane dos heroes da historia,

Ls suas éiiipr-ezáé é- taihacl ■:. d eh to da s.ciénciá e da extensão

r;ão da humanidade. Elle

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[órává è iíãõ despovoava o globo. Se dos seus deseobri- itos vieram cor iiifciàs nocivas1 á humanidade, riem

vYíc as podia prevê:1 - - ofo&tar. Quando estabelecemos um paralelio entre as em; prezas de Colombo e aqucílas cios nossos modernos nave ! :;, devemos confessar imparcialmente

elle oecupa o primeiro logar no roL Aqnelles que o suc- aim andaram nas suas pizadas, Nenhum como elle se eiífrfegoú aos mares d'um novo mundo; nenluun se aventurou a. atravessar o occeano hnmenso, enjos limites eram desconhe- cidos. A navegação atravez o Oceano Pacifico pelos fíespa- nhoes foi de grande arrojo; mas a esse tempo se conhe- êíátó as latitudes de Acapulco e de Manilha, e consequente- mente, a distancia das ilhas orientaes á costa occidental do México era ponto determinado por meio de observações as- tronómicas. Estes principies fixos faltavam a Colombo. Os conhecimentos geographicos daquelle tempo tinham limites, muito estreitos e tudo alem d'aquelle pequeno circulo mio passava de conjectura, A arte da navegação estava ainda A um estado imperfeito e sem de modo algum querer cercear a gloria dos modernos descobridores, para quem todo o elogio é pouco, diga-se com verdade qiie at:emleudo aos conhecimen- tos náuticos e ueoíia-anhieosda actualidade, a differenea dViui- pamentos e aprestes de toda a ordem, empreza alguma ,;::; o caracter arrojado e aventureiro da empreza de Colom- bo; a quem a posteridade deve a descoberta d'um novo mun- do, a creação d'uai novo svstema commercial e politico, co- mo também uma iuiinidade de novos hábitos e arranjos em to- das as ordens da sociedade.

Depois de oito annos de fastidiosas petições sempre balda- das ás clifíerentes potencias da Europa, pelas quaes na maior parte fora o seu projecto considerado romântico e extravagan- te, toda a força que pôde, depois de continuadas contrarieda- des e demoras, obter da corte de Hespanha, foi de três peque- nos navios, tripulados com apenas noventa homens, na maior parte marinheiros, e o resto de cavalheiros de génio empre- hendedor; com tudo, dotado d'animo superior a todo e qual-

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quer obstáculo, emprehendeu, com esta insignificante força, a passagem do vasto e nunca navegado Atlântico cujos limites eram desconhecidos, manifestando um exemplo de resolução decedida sem igual. Os particulares d'esta interessante expe- dição são conhecidos de todos, e constitue um assumpto im- portante na historia moderna.

Depois do regresso de Colombo do descobrimento do novo mundo, começaram a apparecer novos acontecimentos, abrio- se novo campo para se exercitar o espirito emprehendedor, primeiro na Hespanha, e depois por toda a Europa. Aven- tureiros audazes sahiram da Hespanha para este theatro d'es- peculações. Estabeleceram-se colónias : colonisaram-se as ilhas d'Hespaniola, Cuba e outras; e finalmente Fernando Cortez conquistou o México, depois d'uma serie d'aventuras succes- sivas inigualadas na historia e mesmo no romance. A con- quista do México terminou pela tomada da metrópole, depois d'um cerco de setenta e cinco dias no anno de 1521; e doze annos o Peru cahio nas mãos de Francisco Pizarro e Diogo Almagro, de combinação com Fernando Lugnes, ecclesiastico, aquém pertencia recrutar gente e arranjar munições. A con- quista do Peru, com quanto contrariada no seu começo por inúmeras difíiculdades, e acompanhada de grandes desastres levou-se a efíeito com menos difíiculdade e perigo que não a do México; mas as desavenças que nasceram entre os pró- prios conquistadores estiveram para lhes ser fatal. Seguiu-se a guerra civil, na qual sendo Almagro feito prisioneiro, foi mandado matar por Pizarro; três annos depois foi o mesmo Pizarro assassinado no seu palácio por Almagro filho; e no decurso d'um anno, o joven Almagro foi aprisionado por Vasco de Castro, e decapitado em Cusco, em 1542. Nunes Vela foi derrotado e morto por Gonçalo Pizarro, em 1546; e este ultimo, irmão de Francisco Pizarro, o conquistador, e que desempenhara um importante papel na conquista do Pe- ru, como também nas guerras civis que succederam, sendo abandonado pelos seus soldados, foi feito prisioneiro, e con- junctamente com o valente Francisco Carjoval sentenciados á

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morte em 1548. por Pedro de IaGrasca, ecclesiastico mandado da Hespanha para subjugar os rebeldes do Peru, e governar aquclle paiz na qualidade de vice-rei. Assim as principaes pessoas envolvidas na conquista do Peru cahiram ás mãos uns dos outros, ou em batalha, ou no cadafalso, ou por cons- piração e assassínio. E' digno de notar-se que as persona- gens que emprelienderam esta importante conquista, todas sem excepção, passavam de sessenta annos d'iáade, ao tempo do começo d'esta tão arriscada empreza e cujo bom succes- so póde-se comparar áquella dos macedonios e dos gregos, que, sob Alexandre, conquistaram a Pérsia. Os hespanhoes que conquistaram o Peru, á semelhança dos conquistadores macedonios, accumularam immensa riqueza e poder; mas, como elles, envolveram-se em guerras civis que lhes amar- guraram o resto de seus dias, acabando na sua ruina. A em- preza arrojada e perigosa a que se entregaram os conquista- dores do Peru em uma quadra tão avançada da vida é uma prova da avareza e ambição que actuaram sobre os primei- ros aventureiros do novo mundo, como também d'aquella febre ardente e aventureira que mui particularmente cara- cterisou o decimo quinto século, e para o qual muito concor- reu a descoberta da America. A idade que a succedeu e da passagem do Cabo da Boa Esperança pôde, com justa razão, chamar-se a idade das emprezas e aventuras; estas duas des- cobertas reanimaram os espíritos d'homens de fortuna arrui- nados, e acordou em quasi toda a Europa o espirito da es- peculação, e tanto que um império maior que a metade da Europa e contendo mais ouro e prata que todo o resto do mundo, fora, antes do meado do decimo sexto século, annexa- do á coroa de Hespanha, devido aos esforços de particula- res que, a expensas próprias, e sem auxilio do governo, im- portaram para o território Hsspanhol capitães enormes. Foi d'este modo que Carlos 5.°, que reunia os títulos de impera- dor d'Alemanha, rei de Hespanha, e soberano dos Paizes Bai- xos, como igualmonte d'uma grande parte da Itália, tornou- se, pela conquista do México, do Peru, e dos outros pai-

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£es da America inliola, senhor de riquezas c domínios

mais extensos que mqnarcha algum *d'antes possuíra, sem despender um seitii de seus cofres, até que as colónias se achavam nas condições necessárias para reembolsar o estado da despeza feita pelo p;ovcrno cm armadas e tropas na sua za.

As privações soífridas pelos primeiros aventureiros lies nlioes, as diffieuldades arrostadas, a firmeza manifestada, a coragem persistente e o indomável espirito emprehendedor que caracterizaram aquelles homens desesperados quasi que não tem paralello na historia. Alguns, porem, adquiriram ri- quezas enormes. Dos hespanljoes que conquistaram o Peru, nenhum era praça assalariada com quanto alguns receberam sominas adiantadas para as primeiras despezas, Na partilha, do resgate do Inca cada soldado dunfanteria recebeu 4,000 pesos, somina que correspondia a outras tantas libras sterii- nas da moeda actual; cada soldado de ca v aliaria 8,000 pesos, c os ofticiaes proporcionalmente; ediz-nos Herrera que o saque da cidade de Cusco importou em 4,000 pesos por cabeça. Alem cVesta preza *immensa, o pai z foi todo retalhado pelos conquistadores tornando-se cada hespanhol senhor de pro- priedade em relação á sua jerarchia .

O descobrimento d'um novo mundo estimulou por diver- sas formas a Europa inteira. A colonisação da America abria campo á industria pacifica, como tinha offereçido pasto á cobiça e conquista.

A colonisação pelos hespanhoes e sancclonado pelo seu go- verno, segundo o abbade Raynal, era regulada peio seguinte modo. Na distribuição de terras entre os conquistadores da America, cada infante recebeu 5,000 pés quadrados para construcções, 1,885 toezas quadradas para jardim, 7,543 toe- zas quadradas para pomar, 9 4, 2 8 8. para trigo, e 1,448 para milho, alem do chão necessário para a creação de dez porcos, vinte cabras, cem carneiros, vinte bois, e cinco cavaiios. O quinhão de cada homem de cavallaria andava pelo dobro do terreno dado para construcções e o quintuplo do resto. As ci-

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dades foram construídas por individuos activos e opulentos, sujeitos a condições e restricções impostas pela corte que lhe? conferia certos privilégios, como também áquelies que fixavam a sua residência e a quem se concedia terrenos em relação aos fundadores. As demais terras indivisas d'aquelles immensos territórios ficaram na pacifica posse dos naturaes do paiz, que se reuniram em povoações e eram governados pelos seus caci- ques, segundo as leis coloniaes promulgadas pelo concelho das índias na Hespanha, sob a authoridade da corte. As outras nações que estabeleceram colónias nas ilhas, ou no continente americano, adoptaram pouco mais ou menos os mesmos prin- cipios geraes, com algumas modificações, segundo as circuns- tancias especiaes. No decurso do tempo numerosas colónias se tinham estabelecido em differentes partes do novo mundo. A historia da descoberta, conquista e colonisação da Ame- rica tem um interesse particular. Desenvolve o progresso gra- dual da cultura e commercio de paizes d'antes não cultivados e cobertos de pântanos intransitáveis e florestas impenetráveis. A colonisação é um processo que em todos os tempos tivera logar em todos os pontos do globo; e os desertos da America representavam o que succedera no velho mundo. A histo- ria antiga nada nos diz em relação aos trabalhos Hercúleos em transformar uma immensa charneca n'um paraizo terres- tre, pelo processo de drenagem (esgoto) e cultura; ou ao mui- to insinua que no reinado de certos príncipes alguns pântanos se esgotaram etc. Se os sacerdotes do Egypto tivessem legado um relatório exacto do processo seguido na drenagem, tornan- do habitável aquelle paiz que antes dos diques do Nilo, levan- tados pelo trabalho e industria do homem, não passava d'um immenso pântano, sobre o qual aquelle rio extendia, sem op- posiçâo alguma, suas aguas, terião feito um serviço de muito mais proveito e mais digno da nossa gratidão do que todos esses contos allegoricos e legendas embusteiras em que instruíram os gregos, Todos os particulares relativos ás primeiras popula- ções e primeira cultura dos difíerentes paizes do velho conti- nente estão envolvidos em perpetuo esquecimento; e é tão so-

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mente na historia do novo mundo que se nos proporciona occa- siâo de presenciarmos estas acenas; Mr. L'Abbe Haynal na sua «Revista Pliilosopliica » da côloliisaçãó Europea descreve d'um modo explicito e circunstanciado as particularidades do esta- belecimento das differentes colónias. O descobrimento d' Ame- rica offerece novidades á consideração do naturalista e do philosopho.

No novo mundo quasi tudo difíeria da Europa: aves, ani- maes, arvores e plantas, totalmente differentes do que se via na Europa, chamavam a attenç.ão de quem visitava o novo continente; e a natureza humana ahi se exhibia com modifica- ções de que o velho mundo não offerecia parallelo. Paia algum conhecido dos europeos apresenta o homem no seu estado pri- mitivo. A natureza n'este sentido se podia contemplar na America. As idéas d/estes homens selvagens differia como se pode imaginar d'aquei!as dos habitantes dos paizes civilisados e os primeiros descobridores que nada tinham de philo- sophos, attribuiram a sua falta de comprehensão em re- lação ás regras porque se dirigia a sociedade , e suas idéas de nações civilisadas, a um defeito natural de capacida- de, sem considerarem que o seu estado de iuciviiisação lhes não proporcionava os meios de firmar outras idéas que não fossem as impostas por objectos familiares. Isto notava-se par- ticularmente quando se tratava de os instruir na religião enrista* Abraçavam promptamente esta religião e seguiam-naT mas via-se perfeitamente que não compreliendiam as suas dou- trinas. As forças do seu entendimento eram tão limitadas, as suas observações e reflexões circunscreviam-se a um circulo tão estreito que pareciam incapazes de formarem idéas abstractas, e não possuíam mesmo os termos para as expri- mir. Para espíritos n'este estado, as sublimes doutrinas do christianismo eram incomprehensiveis.

Poucos, por consequência, dos natura es da America foram julgados pelos ecclesiasticos hespanhoes dignos de gosarem os privilégios dos sacramentos da igreja. Um syuodo con- vocado em Lima, pronunciou os Americanos incapazes de

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se lhes administrar a Eucharistia; e decretou consequente- mente a sua excluzão d'aqueile privilegio. O soberano Pontí- fice, Paulo 3. "resolveu porem, com melhor bom senso e libera- lidade d'opinião, na sua famoza Bulia de 1537, declarando os Americanos criaturas racionaes, intitulados aos direitos da natureza humana e aos benefícios da sociedade em commum com todos, e nos termos de gozarem os benefícios dos sacra- mentos, e de receberem mesmo ordens sacras. Porem ainda hoje poucos são os índios a quem ellas se conferem, e menos ainda oceupam posições elevadas na igreja.

A peior de todas as consequências do descobrimento da America foi a introducção da escravatura preta. Os primeiros aventureiros Hespanhoes tratavam os habitantes do paiz recentemente descoberto como animaes de carga, impondo- lhes trabalhos incompatíveis com as suas delicadas constitui-, coes. Os naturaes d'aquellas partes da America conquistadas pelos hespanhoes, habitavam paizes aonde a fertilidade do solo produzia espontaneamente tudo que lhes era mister para a sua existência, e a natural benignidade do clima excluía a necessidade de vestimenta. N'este estado os Americanos, alheios ás necessidades e commodidades da vida civilisada, não estavam aífeitòs á actividade nem de corpo nem d'intel- ligencia.

Esta habitual indolência e o calor do clima enfraque- cia-os e tornava-os totalmente incapazes para o trabalho. A difíerença de força muscular e constituição entre os natu- raes da America comprehendidos na zona tórrida, compara- da com a dos europeus era tal, que um hespanhol desempe nhava o mesmo trabalho e exigia a mesma quantidade de alimento dada a cinco ou seis Índios; e os americanos admi- ravam-se das quantidades consumidas pelos hespanhoes, que é o povo mais sóbrio da Europa, como também do trabalho, que eram capazes de fazer. Homens acostumados a esta in- dolência e simplicidade de' díéta, eram totalmente inhabeis para supportar os trabalhos do campo, e das minas que os colonisadòres lhes impunham.

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Incapazes 'de soffrer o pesado cargo com que seus conquis- tadores os opprimiam, milhares destes infelizes encontravam na morte um doce allivio a seus males. Hespaniola, Cuba e outras ilhas, estavam sendo despovoadas antes que a corte de Hespanha tivesse conhecimento d'aquelles factos e provesse de remédio. A tyTannia cTestes homens sem principios in- dignou e commovcu alguns benévolos hespanhoes, tanto lei- gos como ecclesiasticos , testemunhas d'aquellas scenas de horror. Entre estes amigosfda humanidade nunca pode ser esquecido o nome do padre líartholomeu de las Casas. Este humano ecelesiastico, cuja coragem nada podia domar, e cu- ja firmeza vencia todos os obstáculos, presenciara indignado os vexames soffridoa pelos pobres naturaes das mãos dos. co- lonisadores, e elevou a sua voz protestando contra semelhan- te deshumanidade e oppressão.. Passando da America para a Hespanha, procurou por todos os modos possíveis commover a corte em favor de seus semelhantes opprimidos. Este ho- mem benévolo, cujo nome será sempre objecto de veneração, empregou todos os meios para acordar a indignação da corte de Hespanha e de Roma contra aquelles algozes da humani- dade. Por seu lado. os colonisadores não dormiam. Apresen- tavam os naturaes como uma raça inferior de seres nascidos para a escravidão e incapazes de comprehenderem os desti- nos do christianismo. Esta degradação dos americanos foi porem rejeitada e condemnada pelas decisões de Roma e Hes- panha, aonde a indignação publica se pronunciou contra a deshumanidade^dos tyrannos colonisadores. O padre de las Casas e outros homens humanitários eram incansáveis nos seus esforços; e deleita vêr os ecclesiasticos hespanhoes do século deseseis saírem a campo como advogados e defensores do3 direitos inabaláveis e naturaes da humanidade. A corte de Hespanha tomou um acalorado interesse na causa da op- pressao e resolveu adoptar medidas para a sua repressão. Os colonisadores pela sua parte, vendo que a sua causa perdia terreno de dia paia dia, e temendo os anathemas da egreja, como também a indignação da mãe pátria, entrincheiram-se

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))'utu campo novo, que suppunham e de facto veio a ser inexpugnável. Representaram sobre a necessidade de braços ]>;i» :l ;i cultura da terra e trabalho dns minas sem o que te- riam de as abandonar, ficando sem effeito todas as vantagens da descoberta e conquista d'estc riquíssimo pai/; e apresen- taram os indígenas como uma raça indolente, a quem nenhum salário, ou recompensa tinha poder para os impeliu* a fazer o mais pequeno trabalho útil. Esta representação não era des- tituída de fundamento.. O seu viver indolente tornara os mhabeis e pouco dispostos para qualquer género de trabalho, Desacostumados, como sempre foram, ao luxo da vida civili- sada, na ignorância do que lhes convínha,não imaginavam que merecesse a pena a sua acquisição, e admiravam-se que os euro- peus trabalhassem para si, ou que outros se votassem ao traba- lho para a posse de objectos dispensáveis a sua sustentação.

Ouro e prata eram artigos de nenhum valor para elles; não W' tinham nunca servido d'estes metaes, a não ser alguns bocados que achavam, e que usavam como ornamento; e não> podiam conceber o que induzia os hespanhoes a revolver as entranhas da terra, e a estabelecer um systema de trabalhos árduos na acquisiçào d'aque]les metaes, que lhes pareciam de pouco ou nenhum merecimento, e sem o que podiam pas- sar perfeitamente. E' claro pois que com este modo de pen- sar não havia lucros que os estimulassem a trabalhar, por que é um principio invariável da natureza humana não tra- balhar para a posse d'um objecto, reputado sem valor. Este argumento, por tanto , dos colonisadores era irree* pondivel.

O projecto de sacar enormes riquezas do novo mundo não se podia por de parte. Eram necessários braços para a cultura do solo e para o trabalho das minas. Os naturaes não queriam trabalhar pagando-se-lhes; era preciso portan- to compelli-los. Estas circunstancias excluíam a póssibiKd» de da sua emancipação. Os escorços dos amigos da humani? «bule abortaram : prevaleceu a sede do -ouro mas não deixaram com tudo de produzir alguns benefícios, A corte, de

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Hespanha estudou seriamente os meios de melhorar a sorte dos Americanos; e formaram-se vários planos e adoptaram-se diversas medidas para este fina. Todo e qualquer regulamento com relação aos negócios coloniaes era favorável á causa dos opprimidos. Corno fora impossível tirar vantagens das minas, e os naturaes não quizessem trabalhar por paga, circunstan- cia que obrigava a recorrer a meios coercivos, foi determina- do, que ficassem libertos da oppressão tyraimiea de seus se- nhores, e obrigados a trabalhar por turnos, recebendo salários certos nos dias em que se empregavam. Este era de facto o meio mais rasoavel de triumphar gradualmente da indolência habitual e enraizado tédio ao trabalho, fazendo cVeiles mem- bros úteis â sociedade. No Peru um sétimo, e no México um vigésimo quinto da população podia ser chamado a um tempo para o trabalho das minas situadas na área de dez lé- guas das suas moradas, e n'estas levas de gente os salários eram 620 por dia, que parece ser uma remuneração con- digna, attento o valor do ouro e prata n'um paiz abundan- te n'estes metaes.

Não obstante estas medidas humanitárias adoptadas pela corte de Hespanha, os advogados da liberdade não estavam satisfeitos; e o padre de las Casas, cujo caracter sobresaia pela firmeza e zelo com que defendia a sua causa favorita, decidiu-se a empregar outros meios para con&eguir a emanci- pação completa dos naturaes do novo mundo, e no seu lou- vável afan, originou infelizmente o desesperado expediente da escravatura negra, alliviando d'este modo os males da Ame- rica á custa da raça Africana.

A historia falia á razão e ao sentimento, apresentando-lhe o revoltante espectáculo da escravatura em larga escala entre as nações da antiguidade. Temos, n'um quadro geral do sys- tema social de Roma, sob os governos da republica e do im- pério, presenciado o rigoroso tratamento dos escravos nas ida- des da primitiva, e notado com prazer o seu melhoramento nos últimos tempos dos imperadores.

Esta feliz mudança na sorte dos escravos proveio, como

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se notou, de varias causas; o a instituição do christianismo finalmente acrescentou a sua influencia benigna para suavi- sar a condição cVaquelies infelizes, collocados n'aquelle estado de abjecção e desgraça. A religião christã foi, na verdade, particularmente destinada a produzir este effeito. 'Ensinando que escravoe senhor teein uin dia de comparecer sem distinc- çào perante o tribunal do Imparcial Julgador da humanida- de inteira, aconselhava ao primeiro paciência para soffrer a sua sorte, era quanto que inspirava ao segundo sentimentos de humanidade para com aquelíes que a Providencia submettê- ra á sua autlioridade. E com quanto o sysíema da escravatu- ra não fosse completamente abolido com a fundação do ehris- tianismo, as suas durezas foram consideravelmente suavisa- das; chrisíão algum, digno do nome, podia tratar seus escra- vos com crueldade, ou desnecessário rigor.

Os Turcos e outros povos, que supplantaram o império dos Câliphas, renovaram o systema de reduzir á escravidão seus prisioneiros de guerra; e o mesmo em represália faziam os cruzados. Depois do entlmsiasmo febril das guerras religio- sas, e á proporção que o espirito humano se esclarecia, a reli- gião ficou sendo comprehendida melhor, melhor practicada, e á proporção que o commercio e a civilisação espalhavam a riqueza por todas as classes, a escravatura foi gradualmente desapparecendo, e o próprio systema feudal, por um conjuncto de circunstancias abolido em algumas partes da Europa. E' porem um facto para lamentar que a abolição da escrava- tura na Europa fosse seguida da sua instituição na America. Acabamos de ver ccmo varias causas differentes concorreram para tornar inevitável este resultado.

Na vida o mal anda associado ao bem e a criatura na sua fragilidade não compreliende os desígnios da Providencia, que na sua infinita sabedoria tem permittido aquellas scenas de horror. A escravidão ê uma taça amarga, mas quantos não tem bebido d'ella, a que naturalmente logar a perguntar- mos : Com que direito exerce o homem acção despótica so- bre o seu semelhante? Para os christãos é esta questão da

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inaior importância e seriedade, que devem ás suas consciên- cias, por isso que crêem no juizo final.

A instituição da escravatura foi determinada por uma com- binação de circunstancias que a tornou necessária. O padre de las Casas,- o cardeal Ximenes, e outros illustres advogados da liberdade Americana, tinham inquestionavelmente as me- lhores tenções quando planearam e promoveram a escravatu- ra preta.

Se os naturaes da America tivessem abraçado o trabalho voluntariamente mediante uma recompensa pecuniária, a hu- manidade e a justiça da corte da Hespanha tel-os-hia iguala- do aos trabalhadores europeos, e nunca teria lembrado im- portar escravos d' Africa; mas a sua invencivel repugnância para o trabalho não abrandava e os meios coercivos empre- gados para os obrigar a trabalhar viria a dár n'um extermínio geral da raça. Os authores do projecto da escravatura pre- ta, homens indubitavelmente humanitários e bem intenciona- dos, imaginaram que arrancando d' Africa aquelles que escra- vos já eram, prisioneiros nas guerras que frequentemente ti- nham logar entre as tribus selvagens d'aquelle continente, ou aquelles julgados como malfeitores e sentenciados á morte, fariam d'elles homens úteis á sociedade.

E' provável que calculassem mesmo que escravos importados d'um paiz distante, e comprados caros deveriam esperar me- lhor tratamento, por isso que eram os seus senhores os primei- ros interessados em lhes conservar a vida e a saúde, o que não acontecia com os malaventurados naturaes d' America que para os colonisadores não tinham valor algum. Accrescia também que o negro não tinha aquella grande aversão ao tra- balho que caracterisava os habitantes do novo mundo, e que as suas robustas constituições os tornavam aptos para suppor- tar as fadigas que ameaçava exterminar os oriundos da Ame- rica. E' natural que fossem estas as considerações que influi- ram sobre o animo dos authores do projecto da escravatura Africana, e suficientemente evidenciam a rectidão das sus in- tenções. As consequências, é certo, foram uma vergonha para

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ide,.- mas -não era possível prevél-as. O homem e eptivel de errar; e muitos vêem-se em circunstancias tão extraordinárias que a mais leve falta commettida produz as mais fataes consequências, ou para si mesmos, ou para outros; se comtudo compulsarmos a historia da humanidade fa- cilmente reconheceremos que muitos homens se teem visto collocados em situações semelhantes ás que deram origem á escravidão d' Africa.

Mr. 1'Abbé Raynal, calculou a importação na America de ne- gros em oito a nove milhões, e que,ao tempo que escreveu,não restava milhão e meio. Se este calculo é verdadeiro, offerece-nos um quadro de devastação da espécie humana de que a historia nos fornece poucos exemplos, e que se deve attríbuir a uma in- finidade de maus trates de eterna vergonha para a humanidade. Imputar esta mortandade á mudança de clima, não, porque os paizes d'onde se tiravam os negros ficam na zona tórrida, com clima igual ao das colónias Americanas; e, á excepção da Ba- tavia, poucos paizes ha no globo mais insalubres e quentes que a Negrolandia e a Guinea. Esta singular e atterradora mortandade dos infelizes Africanos, pôde, sem duvida, attri- buir-se á violenta separação de seu paiz e parentes, e áquelle abatimento de espirito filho da escravidão,

Aquelle horrível trafico, offensivo ao christianismo, detes- tável aos olhos de Deus, e que o devia ser aos do homem, até ao ultimo quartel do decimo oitavo século, não mereceu aquel- 3a attenção, nem incorreu n'aquella censura como era d'espe- rar dos princípios moderados e dos preceitos evangélicos que então reinavam na sociedade. A primeira tentativa para a sua abolição começou entre os Quakers (a) da America; e na Gran-Bretanha esta mesma sociedade humanitária collocou- se na vanguarda d'esta santa causa, apresentando no parla- mento Inglez uma representação em favor dos opprimidos A- fricanos. A causa tornou-se depressa popular, publicaram-se

(a) Seita religiosa que diííere cm muitos pontos da religião protestante, adoptada pelo Estado. Esta comrminidade dislingue-se por sua pureza â<è costumes e acções humanitárias.

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vários escriptos sobre este assumpto de que se oceuparam al- gumas das mais distinctas peimas do Reino. Muitos ecelesi- asticos de grande saber tornaram-se advogados d'ella no púl- pito, e as duas Universidades e algumas das principaes cida- des e corporações da Inglaterra dirigiram á legislatura suas petições.

Mr. Pitt, Mr. Wilberforce, e Sir William" Dolben, foram os primeiros senadores Britannicos que advogaram a causa dos negros perante o parlamento, no dia 9 de Maio de 1788. Durante a sessão, lavraram-se varias actas tendentes a mino- rar os sofirimentos dos escravos nas viagens. Desde então a abolição da escravatura preta tornou-se o principal assumpto entre os pliilantropos da Gran-Bretanha, e em quasi todas as sessões do parlamento promulgavam-se leis sobre este objecto. Á causa dos infelizes Africanos íoi esposada e defendida elo- quentemente por todos aquelles grandes oradores Pitt, Burke, Fox, Wilberforce, alem d'outros demasiadamente numerosos para (Telles fazer menção, e Mr. Fox, tomou tanto a peito es- ta medida que declarou que, se depois de serviços de qua- renta annos no parlamento, tivesse a felicidade de obter a abolição de tão abominável trafico, retirar-se-hia da vida pu- blica satisfeito. Consigne-se com honroso louvor os nomes cl'es- tes campeões da justiça, religião e humanidade.

Mas se por um lado a medida foi valentemente sustentada, por outro foi longa e vehementemente combatida. Os defen- sores dos Africanos, porem, persistiram com um ardor que nada podia esfriar. As maiorias contra o projecto cVabolição foram gradualmente diminuindo, e em 1806 este projecto humanitário passou em ambas as casas do parlamento por grande maioria. O que restava era dirigir uma mensagem ao rei, pedindo-lhe para tomar as medidas convenientes e preci- sas, a fim d'obter, por tratados, a concorrência d'outras po- tencias e a execução dos regulamentos que se houvesse de confeccionar para aquelle effeito. Estas medidas foram propos- tas e na paz geral de 1814, a abolição da escravatura foi as- signada por todos os poderes contractantes. Mas com quan-

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to os respectivos governos çondemnem este trafico anti-christão, alguns particulares de vários paizes com muito custo se re- solveram abandonar um campo de que auferiam tantos lu- cros; e se não fora o cruzeiro, é muito de suppôr que este tra- fico illicito continuaria com a mesma impunidade. E' para lamentar que a religião, a justiça e a humanidade exerçam tão fraca acção sobre a consciência, quando esta se acha en- durecida por considerações d/interesse.

Quando a escravatura oceupava a attenção do senado e po- vo inglez, um novo phenomeno espantava o mundo a consti- tuição d'um império negro alem do Atlântico. Entre as com- moções nascidas da revolução Franceza, a gente de cor na Hespaniola, a maior e a mais fértil das West índias, expulsou os brancos, sob cujo jugo haviam gemido, e emancipando-se do poder da França, proclamou, depois d'uma luta sanguino- lenta, uma republica independente, com o nome de Hayti, original denominação d'aquelle paiz antes do seu descobrimen- to por Colombo, Os haytianos tem completamente desmenti- do os argumentos d'aquelles que queriam apresentar os ne- gros como uma raça inferior, abaixo da escaravelha geral da humanidade; porque o seu progresso na politica, no commercio, nas lettras, e artes, promette dar-lhes um distincto logar entre as nações civilisadas.

E' ainda para lamentar que a abolição da escravatura não tenha produzido todos os seus benéficos eífeitos e que apesar de tudo continue, posto que clandestinamente, este trafico, mas devemos confiar que com o tempo as circunstancias da parte transatlântica do globo soffram uma mudança tal, que desappareçam todos os argumentos politicos ou commerciaes em favor da sua necessidade.

VIGÉSIMA SEGUIDA CÃBTA

Passamos agora a analysar uma das mais notáveis conse- quências do descobrimento d' America, isto é, a sua influencia

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sobre os preços dos artigos de primeira necessidade nos diffe- penftes paizes da Europa.

A descoberta dAmerica é um d'estes importantes aconte- cimentos de que resultou uma mudança completa e duradou- ra no systema dos negócios da humanidade. Tem-se nota- do que este facto acordou o espirito das emprezas, a que se seguio o systema da colonisação que o mundo até então des- conhecia; como também que deu origem a um novo systema de escravatura que a humanidade deplora, com quanto se não possa desde realisar a sua completa abolição.

A agricultura Americana tornou baratas e abundantes um numero de conveniências e commodidades da vida, d'antes excessivamente caras e escassas; e introduzio muitas outras inteiramente desconhecidas. A canna d'assuear cnltivára-se de tempo immemorial em alguns logares da Azia e Africa; e o assucar foi um d'aquelles artigos de luxo, com o que o tranco do porto cTÁlexandria supprio Roma e outras partes do impé- rio.

O assucar era conhecido aos romanos com o nome de < sac- charum», mas era muito raro e caríssimo, tanto que não ser- via senão como remédio ou nas mezas da opulência, A cul- tura da canna iraportou-se na Sicilia pelo meado do século do- ze. Da Sicilia veio para as províncias meridionaes da Hes- panha. t)'ahi íbi levada á Madeira e á-s Canárias, e d'aquellas ilhas para a América, aonde o solo e clima favoreceram de tal modo a sua producção, que ficou sendo um artigo permanen- te de commercio em varias colónias. O café, oriundo d'Abys- sinia, tinha sido mui remotamente transplantado para a Ará- bia, e, como a canna, constituio um artigo de commercio na Alexandria, mas era pouco conhecido na Europa. Esta plan- ta também se importou na America, aonde floresce perfeita- mente; e os lucros provenientes d'estes dois artigos estimu- lando os colonisadores a uma cultura extensa, as quantidades trazidas para a Europa os tornou baratos e abundantes. O tabaco também se não conhecia n'estas partes do globo até que foi importado na Inglaterra pelo capitão Lane, que re-

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conduzia algumas pessoas mandadas por Sir Walter Raleigli para estabelecerem uma feitoria na Virgínia. Este artigo, á se- melhança do assucar, torno u-se geral.

A introducção de muitos artigos de luxo, desconhecidos dos gregos e romanos, como também a generalisaçâo d'outros, que, em razão da sua escaeez e alto preço, podiam apenas appare- cer nas mezas dos ricos e poderosos entre os antigos, não foi com tudo a alteração mais importante no systema commercial e social áa Europa, devida ao descobrimento e colonisação do novo mundo. A vasta e continua importação de ouro e prata das minas Americanas na Europa, tornando aqueiles

: -es incomparavelmente mais baratos que cVantes eram, e diminuindo consequentemente seu valor, alteou os preços de toda a producção Europea, e em geral de toda a qualidade de propriedade. Este augmento extraordinário de valor da pro- priedade na Europa, devido ás entradas da riqueza America- na, em £>ouco dobrou e quadruplicou e em alguns casos che- gou ao clécuplo e constituía a feição mais saliente que distingue aquelle grande acontecimento. O augmento e generalisaçâo de riquezas progredira tão vagarosamente na Europa, antes da.- inundação do ouro Americano, que ainda em 1531 quando a conquista do Peru não se completara, e que aquelia do Méxi- co e da Terra Firme, e outros paizes ricos apenas se consoli- dava, tendo vindo por consequência, ainda poucas riquezas para a Europa, as despezas feitas por occasião d'uma grande festa publica, que teve togar em Londres custou o seguinte:

LSD

24 bois a

1

6,

8

100 carneiros gordos a

0

2,

10

51 bezerros a

0

4,

8

gallinhas a

0.

o,

2

27 dúzias de pombas

(por dúzia) 0.

o,

2-

350 a de calhandras

( . ) 0.

o,

5

Henrique oitavo, e a rainha Catharina d' Aragão, honraram esta festividade com a sua presença, e o seu custo foi tão in-

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significante que não o acreditaríamos se não conhecêssemos as circunstancias especiaes cTaquelle tempo. Iníbrma-nos o mesmo author que em 153G os moinhos do Priorado de Bir- mondsey arrenclaram-se por 6 libras eterlinas.

A circulação d'aquelles metaes preciosos em differentes ida- des, e em diversas partes do globo, é um estudo curioso e interessante. Segundo parece usavam-se como intermédio de cornmercio nos tempos de Abraham, e como artigos orna- mentaes em epochas pouco mais remotas; e de facto, com quanto não tenhamos informações authenticas em relação a esta especialidade é* muito provável que servissem como tal an- tes que determinassem o valor dos objectos. Deprehendemos da historia sagrada que o ouro e a prata, bem como certas qua- lidades de pedras preciosas, abundavam no Egypto no tem- po do egresso dos Israelitas; por isso que as valiosas offertas do povo para a construcção do tabernáculo, com todos os ri- cos materiaes de que o mesmo se compunha, come* também da magnificência dos paramentos do summo pontífice, e de todas as ceremonias religiosas, sahiram d'aquelles thezouros que elles tinham trazido d'aquelle paiz; nem mesmo se expli- ca por outro modo a posse em que estavam os Israelitas de objectos de tanto valor. Expolio d'inimigos não, por que a guerra com os Medianitas foi a primeira e posterior á construcção do tabernáculo. Pelo cornmercio também não, porque em parte alguma consta, nem ha recordações d'actos commerciaes d'onde viessem aos Israelitas tamanha somma de materiaes valiosos em tão pouco tempo depois da sua en- trada no deserto. Na sua conquista das terras de Canaan, houve considerável espolio; mas não é senão no tempo de David que se uma profusão de riquezas que espanta em tão remoto período da antiguidade; e a abundância de ouro e prata no reinado que succedèu de Salomão tem feito vacillar a muitos leitores iniciados na historia Judaica. A historia das guerras de David faz crer que consideráveis quantidades de ouro e prata foram por quaesquer meios introduzidos nos paizes situados entre o Euphrates e o mar do Levante, e é

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de suppor que aquella aecumulação de riquezas foi em gran- de parte eífeito do trafico conduzido pelos Tyrios e Egypcios com as partes orientaes e meridionaes do globo.

As relações commereiaes entre Salomão e os Tyrios produ- ziram enormes riquezas; e parece que havia grande abundân- cia d'ouro e prata no Egypto, nas partes occidentaes da Ásia d'este lado do Eupbrates, e na Assyria e Clialdea, antes que a conquista de Sardes e de Babylonia tivessem transferido uma grande parte da sua riqueza para as mãos dos Persas, que anterior áquelle período parecem haver passado da pobreza e obscuridade á opulência e poder. Nenhum documento histó- rico, porem, existe que nos elucide sobre os meios pelos quaes entrou tantas riquezas íVaquelles paizes e nem a historia anti- ga ou moderna, sacra ou profana allude ao menos á existência de minas iraquellas ou em outras partes do mundo. N'este, co- mo em muitos outros pontos, estamos muito atrazados e a suppo- sição melhor é que o ouro e a prata dos antigos vinham da Africa, aonde aquellesmetaes, especialmente o ouro, abundam, tanto no interior como nas partes orientaes, sobretudo na Mo- nomoj)ata, Monceningi, e Sofala, que muitos suppõem ser a terra d'Ophir, para aonde se dirigiam as frotas de Salomão, em quanto outros, com menos bom fundamento julgam ser a ilha de Ceylon ou outras partes da índia, ou ilhas orientaes. Quaesquer, porem, que fossem as partes da Africa ou da Ásia aonde estes metaes se encontrassem, ha toda a probabi- lidade de que foram introduzidos no Egypto, e nas partes oc- cidentaes da Ásia, pelos negociantes Árabes, Egypcios e Ty- rios. Os Egypcios principalmente podiam trazer uma consi- derável parte cfessas riquezas nas suas caravanas que de tem- pos immemoriaes viajavam para a Ethiopia, sob cuja denomi- nação se comprehenclia todo o interior e sul d' Africa; assim, as caravanas da Ethiopia vinham ao Egypto. Nas idades flo- rescentes da Grécia, o ouro e prata entraram abundantemente n'aquelle paiz, mormente depois da conquista da Pérsia por Alexandre, estendendo a circulação da riqueza d'aquelíe im- pério para o occidente. Em quanto isto se passava Roma era

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extremamente pobre, c os seus cidadãos possuíam nina miu diminuta quantidade d'aqiielles preciosos metaes, até que a conquista da Macedónia e dos reinos gregos da Ásia fez afrluir para aquella cidade as riquezas do oriente. Depois que os Godos e outras nações do norte começaram a invadir com. bons resultados o império romano, o espolio das suas provín- cias deu-llies a posse d'uma parte das suas riquezas, e o ouro e a prata, que até então lhes eram inteiramente desconhecidos, foram introduzidos entre elles depois d'aquel!as guerras devas- tadoras. Depois da queda total do império occidental, as rique- zas que Roma accumulára no decurso de tantos séculos de feliz rapina foram gradualmente dispersas por toda a Europa, e os metaes preciosos penetraram nas regiões do norte. À abundância ouro e prata que, como nos diz a historia, se expunha com profusão nos palácios e decorava o vestuário e armamento dos antigos parece fabuloso anos modernos, e não sem alguma razão perguntamos que fim se deu a uma tal quantidade de metaes que aquelles paizes possuíam, por exemplo Jerusalém e Judah nos tempos antigos, e por que os não vemos na mesma. profusão depois das descobertas das mi- nas d' America? Â resposta, porem, é fácil. Antigamente o ou- ro c a prata nao entravam na circulação como hoje acontece. N'aquelles tempos a riqueza circunscrevia-se a um circulo es- treito. O Egypto e aquelle pequeno districto da Ásia que se extende desde o Levante e o Archipelago Grego, até ao Euphra- tes, conjunctamente com a Assyria e a Chaldea, eram os úni- cos paizes de que a historia, quer sacra ou profana, faz men- ção de tamanha abundância de ouro e prata. Estes metaes. não circulavam fora d'aquelles paizes e não passavam de cer- tas mãos. Eram propriedade tão somente dos príncipes e dos grandes.

O commercio não tinha n'aquèlle tempo deitado ramificações e por tanto não estavam dessirninados pelo povo. E' esta a razão por que se viam profusamente em certos c determina- dos logares e em poder de poucos indivíduos. Vemos a sua importação nos domínios israelitas pelas armadas de Salomão;

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mas é muito provável que este trafico fora monopolisado pe- la coroa, e não obstante o extraordinário apparaío de opulên- cia em Jerusalém, não se supponha que tamanha quantidade de ouro e prata andava em circulação entre lavradores, nego- ciantes e artistas como entre iguaes classes de muitos paizes europeus; nem que todo o ouro accumulado no reino de Sa- lomão sofTra comparação com o numerário circulante na In- glaterra e na França. A riqueza então junta n'um ponto do glo- bo, espalhou-se depois por entre os persas, depois entre os gre- gos e carthaginenses e mais tarde entre os romanos; e final- mente por toda a Europa, aonde nenhum ouro e prata se des- seminava até então. Os thezouros, que pareceram immensos quando concentrados n'um pequeno espaço, tornarain-se in- significantes n'esta grande subdivisão e esta circunstancia fez o ouro e a prata escassos em extremo quando tinham pareci- do d'antes tão abundante. O ouro era mesmo tão raro que foi no decimo oitavo anno do reinado de Eduardo 3.°, 1345, que pela primeira vez se cunhou; nem 'mesmo prata se- não em pequenas moedas.

Note-se também que nas transacções de compra e venda de propriedade a libra normanda era uma libra de peso em prata, segundo o bispo de Fleetwood, Sir Roberto Atkins e outros; e Mr. Folke diz-nos que esta libra normanda equivalia a 14:860 moeda fraca (11:888 rs. fortes). Nos tempos dos reis normandos, antes de Eduardo 3.°, as únicas moedas neste, e talvez em qualquer outro paiz da Europa, eram os Bysanthos de Constantinopla. Á fluctuação do valor das moe- das torna diíricil ajuizar do valor da propriedade em outras eras; mas é evidente que os preços dos difierentes artigos de producção europea augmentavam lentamente, e que o ouro e prata continuavam a ser escassos até á abertura das minas do novo mundo. A ostentação d'aquèlles metaes em quanto se restringiam ao ICgypto e outros paizes occidentaes da Ásia e a sua escacez depois da sua dessiminação por tantas nações di; /crentes, mostra que o produeto das minas, aonde quer que existissem, não eram suííieieníemente abundantes para que

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essem contrabalançar os effeitos da sua extensiva dessi-

s o eommércio não fora sufficientemente

activo e florescente para crear uma importação de rnetaes dos

;es da sua producção. Ambas estas causas poderião ter concorrido para produzir a escacez do euro e da prata por tanto tempo na Europa. Uma terceira causa podia ter contri- buído para esta mingua, alem da dessiminação d5estes metaes e a insufficiencia da sua producção ou importação. Não se po- de duvidar que grandes íbesouros tivessem sido enterrados nos tempos d'aquellas guerras devastadoras, conquistas e violentas revoluções, que tão frequentemente agitavam o velho mundo : e por consequência^ uma parte considerável do ouro e prata, d'antes tão abundantes nos primeiros tempos d'antiguidade, desappareceram por este meio.

O descobrimento da America, e a exploração das suas mi- nas produziram um effeito magico sobre o systema so- cial e çommercial da Europa. A entrada das riquezas ameri- canas na Hespanha e Portugal, que d'esse tempo em diante por innumeros canaes commerciaes, circulou rapidamente nos difTerent.es paizes da Europa produzia uma depreciação imine- diata no valor do ouro e prata e um augmento relativo nas producções Europeas. Afim de ajuizar do augmento d'aqueb les metaes na Europa, desde a exploração das minas da Ame- rica, bastará notar que o dr. Robertson, historiador de credito c conhecido pela elegância de seu estylo, diz-nos, que, segun- do um calculo rasoavel, a quantidade de ouro e prata impor- tada na Hespanha da America monta, termo médio animal, de 14.92 a 1775 á somma de quatro milhões de libras esterli- nas, que ' n'aquelle período importava em 1132,000,000 libras esterlinas; e que se levarmos em conta o que entrou clandestinamente, podemos reputar o valor dos metaes que a Hespanha importou das suas colónias em não menos que dous mil milhões de libras. O abbade Raynal também assevera que durante o período que decorre desde o descobrimento do Bra- zil até 1756, cem milhões de libras esterlinas, em ouro, entrou em Lisboa d'aquella colónia. Diz-nos o mesmo escriptor, dam

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do-nos ura exemplo do giro d'aquelles nietaes por melo do commercio, que nao obstante esta importação de ouro ém Portugal, o numerário em circulação n'este reino, segundo os mais seguros cálculos, nao excedia a 833,333 libras esterli- nas, e que a divida nacional andava a esse tempo por 166,600 libras esterlinas. Nao se poderasoavelmente julgar estes cál- culos exactos; mas podem ser, e sem duvida são sufficiente- mente seguros para nos habilitar a fazer uma estimativa, apro- ximadamente verdadeira, não das enormes quantias de ou- ro e prata trazidas da America, como também das forças da industria empregadas na agricultura, nas manufacturas e no commercio, para attraliir as riquezas de outros paizes; porque é fora de duvida que a maior parte dos thesouros vindos para a ílespanhae Portugal, param na Inglaterra, França eHollanda. À imputação da riqueza americana para o velho mundo tem alterado o valor relativo do ouro e prata por isso que as minas eram mais ricas neste ultimo metal. Esta alteração, porem, inílue mais naquelles paizes que tem relações commer- ciaes com a America. A proporção entre o valor do ouro e da prata, era segundo o Abbade Raynal, na antiga Grécia, na rasão dum para treze. Em Roma, ao tempo da morte da republica, como um para dez; e sob o império de um para treze. Na Europa, na idade que precedeu immediatamente o descobrimento da America, como um para doze no Japão, e presentemente como um para oito. Na China, como um para dez. Na índia, um para onze; e mais tarde um para doze ; treze ou quatorze á medida que se avançava para o poente ; e na Hespanha, e em todos os paizes da moderna Europa, na rasão de um para deseseis. Este valor relativo dos dois me- taes tende a soffrer alterações â proporção que forem appare- cendo minas d'ouro e desapparecendo as de prata^Quando as minas do Potosi foram primeiro exploradas a prata estava em relação com o minério na rasão de cincoenta por cento; pre- sentemente, porem, a mesma quantidade de minereo produz apenas dois por cento. As minas na America Hespanhola constituião propriedade do descobridor. Concedia-se-lhe uma

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determinada extensão de terreno, mas a exploração é objecto tão despendioso e tão incerto que muita gente tem sido ar- ruinada n'estas emprezas. A prata diminue consideravelmente em quanto que a descoberta das minas de ouro aagmenta. Para os fins do século passado foram encontradas quantida- des tão avultadas d'aquelle metal em alguns logares da Ame- rica hespanhola que surpreliendeu aquelles mesmos acostu- mados ás ricas producções daquelles paizes. N'uraa colina nas immediações de Pamplona, Nova Granada, um simples trabalhador juntava n'um dia uma centena de pesos e um dos últimos governadores de Santa trouxe para a Xiespa- nha uma pedra d'ouro puro avaliado em 740 libras esterlinas. Esta amostra, a maior encontrada nas minas do novo mundo, foi depositada no museu de curisiodades de Madrid. Em quan- to a prata não temos conhecimento de minas de consideração d'este metal. As minas argentinas da Styria produzem uma quantidade que concorre muito para a riqueza da casa d' Áus- tria; mas não tanto que produza sensivei augmento na circu- lação; e aquelias de Kongsberg, na Norwuega satisfazem muito apenas o costeio. Estas circunstancias tomadas colleetamen- te authorisam a julgar que se o augmento na importação do ouro venha a contrabalançar a diminuição da prata, virá no decurso do tempo a influir no seu valor comparativo sem al- terar em nada o valor relativo da moeda em relação aos pre- ços das necessidades da vida e dos vários artigos da proprie- dade e producçào da Europa. A este respeito o descobrimen- to da America é uma causa primaria que opera no systema commercial com incessante actividade até aos nossos dias, e tem necessariamente dexercer mais ou menos influencia pa- ra sempre; por .que se fora possível chegar um periodo em que se esgotassem as minas auríferas e argentinas, as mas- sas enormes lançadas em circulação, tem dado tal impulso e actividade á navegação e commercio, que, segundo toda a probabilidade, não deixará jamais de actuar sobre as empre- zas e especulações mercantis que encontrarão sempre inú- meros canaes de circulação.

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Os effeitos da descoberta e colonisação d' America não são eminentemente notáveis e conspicuos no systema politi- co e commercial do mundo como também claramente percep- tíveis no que respeita á religião. O christianismo soffrêra um grande desfalque de poderio e grande influencia em con- sequência do progresso do Mahometanismo, e a perda d'aquel- les ricos e extensos paizes que compunham o império dos ca- lifas. Em compensação d'estas perdas todas as nações septentrionaes da Europa converteram-se ao christianismo. Depois que os Turcos estabeleceram seu império na Ásia, in- vadiram a Europa, e favorecidos pelas continuas desavenças entre os christãos e muito principalmente pela rivalidade in- veterada entre a egreja grega e latina ganhavam gradual- mente terreno; até que Constantinopla, baluarte inexpugná- vel da Europa contra o poder do califado, caliio em poder dos mahomentanos então temíveis para toda a Europa. O po- der e os interesses do christianismo soffreram, e foram consi- deravelmente cerceados com a perda do império do Orienter e d'aquelles férteis e florescentes paizes, a Grécia e a Mace- clonea etc. que então passaram ao domínio Ottomano. O christianismo soffreu esta perda pelo meado do século quin- ze, tendo sido tomada Constantinopla em 1453; mas para os fins do mesmo século foi amplamente compensado com a des- coberta d'America em 1492, e cinco ânuos depois com a pas- sagem para a índia pelo cabo da Bôa Esperança. Estes des- cobrimentos e a importação de riquezas conjunctamente com o aug mento proporcional de poder deram ás nações enristas decidido predomínio na escala politica do mundo; e o chris- tianismo adquiiio uma influencia que nunca até então possuí- ra, de facto, o génio emprehendedor destas nações, a sua superioridade, tanto nas artes como nas armas, sobre todos os demais povos do globo, a que aceresciarn outras cir- cunstancias consideradas collectiva mente parecem authorisar- nos a esperar que a religião de Christo venha a ser a única predominante em todo o mundo, e considerando as circunstan- cias physicas e moraes da humanidade, um tal resultado ti-

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nhã manos ^extraordinário que a sua primeira propagação e estabelecimento.

Em quanto os hespanhoes se empregavam em projectos de descobertas, conquistas e de colònisação no novo mundo, os portuguezes nào desenvolviam menos energia no mesmo cam- po com quasi igual importância. Cinco annos depois da des- coberta d' America por Colombo, Vasco da Gama dobrou o Cabo da Boa Esperança, explorou a costa oriental da Africa e aportou á costa occidental da península Indiaíica, chamada geralmente, a costa do Malabar. Depois d'aquella felis via- gem, os portuguezes estabeleceram varias feitorias em quasi toda a costa d'Af rica, e fizeram ricas e extensas conquistas sob o cominando do intrépido e celebre Affonso d* Albuquerque, que tomou a cidade de Goa e conquistou toda a costa do Malabar; como também Malacca e Ormuz, e emprehendeu algumas ex- pedições pelo mar Vermelho dentro. Depois de haver desen- volvido um talento extraordinário, tanto na guerra como em matéria d'admmistração, morreu em Goa em 1515, deixando os portuguezes senhores de todo o trafico da índia e da Afri- ca, e d' um império commercial sem parallelo nos annaes dos tempos passados. Esta vasta extensão de dominio e commer- cio adquirida tilo rapidamente, foi comtudo quasi tao rapi- damente perdida depois do dominio dos'Philippes em Por- tngual. O commercio da índia e as colónias portuguesas mais importantes cahiram nas mãos dos hollandezes, e pouco mais ficou a Portugal que a sua cidade e ilha de Goa e alguns estabelecimentos na costa d* Africa.

Pouco depois d'estas grandes e importantes descobertas, outro facto de differente natureza, mas não menos importante, começou a demonstrar-se na Europa.

O enorme poder da egreja, que havia tantos annos hia em angmento, começou a ser considerado em muitos paizes co- mo um dominio usurpador das consciências; e a immoralida- de, como também o despotismo do clero, pediam uma refor- ma. Muitos ecclesiasticos e prelados da egreja estavam con- vencidos d'esta necessidade no que^clizia respeito á disciplina,

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e desejavam a reunião d'um grande concilio para regular a herarchia, e acabar com aquelles abusos, que, pela imperfei- ção da natureza humana se insinuam quasi insensivelmente em todos os systemas religiosos, e em tudo concernente aos negócios humanos. A obra da reforma porem, não foi em- prehendida, por que raras vezes vemos uma communidade religiosa ou politica reformar-se a si mesma em quanto a is- so não ê compellida por alguma causa imprevista, Esta ne- gligencia na reforma de abusos, que gradualmente se propa- gam nos systemas religiosos e politicos, produz muitas vezes aquellas violentas reformas que trazem comsigo consequên- cias fataes aos mesmos systemas e subversivas da ordem esta- belecida das cousas. Foi o que aconteceu á egreja no século deseseis. A corte de Roma julgando -se na posse segura duma authoridade e poder illimitados, em logar d'examinar e regu- lar a disciplina da egreja e os seus abusos que facilmente se teriam corrigido, preferio esmagar toda a qualidade d'oppo- sição por medidas arbitrarias; e a obra da reforma, que podia ter-se effectuado sem perturbar em nada a tranquilidade do christianismo, estava reservada a um Martinho Luthero, fra- de de génio arrojado e -impetuoso, cuja violenta opposição á arbitrariedade da santa sé, combinada com o orgulho e tei- mosia da corte de Roma produzio uma divisão e traçou uma demarcação na egreja christã que, segundo todas as probabi- lidades, jamais desapparecerá.

A corte de Roma mantendo seus princípios resolveu si- lenciar Luthero, impondo-lhe preceitos positivos, que elle, achando-se apoiado por um grande partido, corajosamente despresou e mais "audaz se tornou á proporção que a santa procurava esmagal-o violentamente. Luthero, por muito tem- po, manifestou desejos de submetter-se ás .decisões d'um con- cilio geral e vários príncipes christãos imploraram ao papa a sua convocação, a fim de assegurar a tranquilidade da egreja e a sua unidade. Por motivos porem, desconhecidos, estas solicitações foram desattendidas, e foi-se sempre deferindo a reunião do conselho, até que finalmente o papa, cedendo ás

ítostancias do imperador Carlos quinto, convocou o concilio de Trento em 1 545, vinte oito annos depois que LtitLero er- guera o estandarte da opposiçâo, intervallo sufíiciente para o seu partido adquirir forças e obter o apoio de muitos prínci- pes germânicos e outros homens d'elevada posição, alem de muita gente de todas as ciasses da sociedade, inclusivamente ecclesiasticos que abraçaram as suas doutrinas e recuzàram- se a reconhecer a authoridade da santa sé.

Era demasiadamente tarde para que os decretos d'um concilio sarasse as feridas abertas quando tão considerável parte da egreja repudiara a authoridade papal. Se tivessem reunido um concilio geral no começo d'aquellas disputas, ter- se-hia, sem duvida, restabelecido a tranquilidade e harmonia da egreja sem difficuldade. Ha todas as razões para crer que se hoje se dessem desintelligencias na egreja a moderação e sentimentos liberaes cia epocha illustrada em que vivemos abateria aquellas animosidades, que ao tempo da reforma nas- ceu entre os partidos oppostos, e tanto assim que quando na França se fez opposiçâo á authoridade do papa as hostilida- des contra Roma subiram a maior ponto e comtudo fizeram- se concessões de parte a parte, reconciliando-se os partidos adversos. Se o mesmo espirito de moderação prevalecesse ao tempo da reforma, íinha-se indubitavelmente acabado com os abuzos sem se effectuar a separação da egreja. Mas as cir- cunstancias da epocha actual são differentes d'aquellas de meado do século deseseis. ISPaqueJle tempo Roma julgava-se toda poderosa; mas presentemente conhece melhor a sua posi- ção e que a sua influencia e poder dependem inteiramente dos príncipes catholicos; e o soberano pontífice tem hoje a con- vicção que, com quanto respeitem o seu poder espiritual, nem todos se querem sujeitar ao seu poder temporal.

Os effeitos da reforma como aquelles de quasi todos os a- contecimentos, tem um mixto do bem e do mal, mixto inhe- rente ao actual estado da humanidade. D'ontro lado, a teimo- sia dos partidos oppostos, que, em vez de obedecerem a sen- timentos christãos de caridade, trabalhavam continuadamente

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para alargar a brecha e tornar irreparável o mal atearam o

fogo da animosidade, seguindo-se as mais horríveis consequên- cias. Considerações temporaes como quasi sempre acontece, acobertaram-se com pretextos espirituaes; e quaesquer que fossem as intenções d'alguns indivíduos de sentimentos pios e desinteressados d'um e outro lado, animados d'um zelo sin- cero por aquillo que criam ser a verdadeira religião de Chris- to, muitos outros em nome de Deus procediam de maneira mui diversa.

Os chefes da reforma estavam desejosos de sacudir o jugo de Roma, em quanto que a corte estava na resolução de em- pregar todos os meios para os reduzir á obediência. D'este zelo desmedido seguiram-se consequências de tenebrosa recor- dação. Roma não poupou anathemas e perseguições para sujeitar â sua authoridade aquelles que se lhe opp unham; e o partido reformista não perdia occasião para se desforçar logo que se achava com poder suíficiente.

Uma scena de perseguição manifestou-se em quasi toda a Europa, e os protestantes divididos em varias seitas, perse- guiam-se mutuamente com uma animosidade egual á que de- senvolviam contra a authoridade do Papa. As guerras religio- sas da Alemanha e da França, como também a revolta da In- glaterra no reinado do infeliz Carlos 1.°, são provas tristíssi- mas do fanatismo do decimo sexto e decimo sétimo século e d'aquelle espirito de intolerância contrario ao Christianis- mo e que actuava sobre as difTerentes seitas de Christâos.

Contemplando os effeitos da reforma sob outro ponto de vista, veremos que este notável acontecimento, depois que as commoções a que deu origem diminuíram, contribuio em não pequeno grau para o melhoramento da humanidade, não libertando os espíritos d'uma authoridade ingovernavel anteriormente exercida por juizes espirituaes como também pelas controvérsias profundas que nasceram d'essas disputas religiosas; por isso que em toda a matéria questionada o en- contro de opiniões oppostas faz rebentar faíscas de génio que esclarecem com a sua claridade o espirito ávido de conheei-

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mentos. Diversas investigações sobre objectos complicadíssi- mos exercitando as funcções mentaes amadurecem e robuste- cem a intelligencia. Quando uma questão se torna interessan- te pelas circunstancias que a reveste, a conversação ea leitura sobre aquelle objecto vem illucidar melhor a matéria. For- mam-se novas combinações e a espliera de conhecimentos alarga e as razões multiplicam-se. O olho vigilante da opposi- ção sempre prompto á censura e á revelação das faltas dos adversários concorreu para a morigeração do clero das diffe- rentes seitas religiozas. Foi uma necessidade que o clero de todas as denominações do christianismo regulasse o seu pro- cedimento de modo que não compromettesse a sua posição, expondo-se ao despreso censura de seus inimigos, circuns- pecção que sem duvida não teria observado se não fosse o receio da censura.

E é um facto que talvez ninguém ponha em duvida que o clero de toda a egreja christã tornou-se em consequência da divisão mais illustrado e mais devoto.

ÁdifTerença d'opinião em matérias religiosas ê inevitável. Aquelles que pouco reflectem poderão aceitar uma opinião qualquer e seguil-a e em geral a humanidade abraça doutrinas que se não pode bem dizer que acreditam, por isso que nun- ca as discutiu, nem diligenciou profundar a verdade d'ellas; mas não é de crer que aparte pensadora entretenha idéas em tudo semelhantes em matéria complicada e abstracta e que não podemos subordinar ás faculdades. A divergência portan- to em assumptos religiosos, não produziria effeitos perniciosos, se os homens no exercício livre da consciência concedessem aos outros egual direito; mas é para lamentar que o espirito diabólico da intolerância, e perseguição, seja a consequência necessária, e não n'estaou n'aquella seita, mas em quasi todas. Aquelles que mais clamam contra a perseguição, quando victimas d'ella, são os que menos escrupulizam em a exer- cer contra os outros ; e logo que tenho gonho força, acham sempre pretextos para impor aos outros o queelles tan- to lhes reprovavam. Mas por muito que o homem se illuda,

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todos os pretextos para o avanço da gloria de De©s ou dos interesses da religião por meios intolerantes, são negativos.

O Senhor conhece a fraqueza e a incapacidade das suas crea- turas, a natureza e alcance das suas forças intellectuaes, e a curteza da comprehensão humana, e contempla misericordiozo as faltas provenientes d'um erro d'entendimento e não de más intenções. Deve pois o homem no seu orgulho arrancar das mãos do Creador a vara da justiça para exercer a crueldade e oppressão em nome do Deus de misericórdia e amor? Não devem esses usurpadores das divinas attribuições receiar os mais severos castigos ? Riscaram-se felizmente esses dias de fanatismo religioso e as difíerentes seitas de christãos, discor- dando sobre um ou outro ponto e no ceremonial da egreja, estão todas d'acôrdo em liberdade de sentimento e tolerân- cia religiosa.

A nossa revista dos tempos passados está chegando a uma conclusão, e aproximâmo-nos dos nossos dias que, menos férteis em acontecimentos extraordinários, não são menos in- teressantes.

Desde o principio do mundo, periodo algum se tornou tão notável por uma cadêa suecessiva d'acontecimentos importan- tes como é aquelle que se conta entre 1440 a 1560, que a- brange a invenção typographica, a tomada de Constantino- pla, a descoberta d' America e da passagem para a índia, a conquistado México, do Peru, e d'outras partes do novo mun- do, e da exploração das ricas minas d'aquelles paizes pelos hespanhoes ; a conquista de Goa com a costa do Malabar, d'Ormus e Malacca pelos portuguezes; a que se seguio o es- tabelecimento d'ÍDnumeraveis colónias no Occidente pelos primeiros, e no Oriente e na Costa d'Africa pelos últimos; a reforma da religião; o engrandecimento da Casa d'Austria pela união de muitos estados europeus, sob o dominio de Car-

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los 5.° com a posse e accumulaçao de riquezas do novo mun- do. A cada um d'estes notáveis acontecimentos seguiram-se consequências que influíram d'um modo decisivo sobre as condi- ções da humanidade nos nossos dias, e continuarão a produzir seus efíeitos em futuras eras. Podemos também accrescentar as descobertas e melhoramentos na navegação, commercio, philosophia, artes, sciencias e manufacturas que então tive- ram logar; e que com quanto de menos importância em rela- ção aos grandes factos que distinguem aquelle período sobre todos os outros, como a idade das emprezas aventureiras, e dos melhoramentos, não têem deixado de actuar sobre o systema geral. A pólvora fora a invenção d'um frade Alemão, anterior ao meado do século quatorze; o seu aperfeiçoamento, e as suas varias applicações foram obra d' um periodo mais recente; e foi para os fins do decimo quinto século, princípios do de- cimo sexto que as armas de fogo chegaram a certo grau de perfeição. Querem muitos que as primeiras armas de fogo fossem usadas pelas Inglezes, no tempo de Eduardo 3.°, na batalha de Cressy, mas não se acha esta noticia comprovada por facto algum authentico, nem se sabe com mais certeza, aonde, ou em que tempo se empregou pela primeira vez o ca- nhão, com quanto é quasi fora de duvida que o uso da pól- vora era conhecida entre os indios e chins muitos séculos an- tes que fosse conhecida dos europeus. Esta descoberta, porem, ê um objecto interessante e de considerável importância na historia militar, por isso que produzio uma mudança comple- ta na arte da guerra e em todas as operações militares. A in- venção da pólvora deu logar a uma grande opposição con- tra a introducção d'um material tão clestructivo; mas é certo que as batalhas e assaltos tem sido acompanhados de menos efíusão de sangue desde então, como se pôde conhecer com- pulsando a historia.

Os acontecimentos occorridos desde o decimo sexto século, com quanto muitos tenham sido bastante interessantes não têem produzido efíeitos de tamanha magnitude, nem exercido uma influencia sobre o systema geral dos negócios da huma-

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nidade como aquelles anteriores. O tempo decorrido desde aquelle período apresenta uma linda perspectiva da extensão do commercio, da díffusão de riquezas, do adiantamento da civilisação, da declinação das perseguições religiosas, da in- troducção de sentimentos liberaes e humanitários, do rápido progresso da sciencia e litteratura, e do avanço geral em cada ramo dos conhecimentos humanos. Este quadro geral de me- lhoramento são consequências necessárias dos acontecimentos que tiveram logar nos séculos quinze e deseseis, e evidente- mente demonstram a potencia d'aquellas causas, que então começaram a operar, e cuja influencia jamais se pode extin- guir nem esgotar-se seus eííeitos.

As transformações por que passaram as nações europeas, desde o meado do decimo sexto século, são fielmente des- cripías por grande numero de historiadores com uma preci- são de que não ha memoria na historia d'eras mais remotas. Como fatiássemos no engrandecimento da casa d'Áustria no começo do século deseseis, devemos também notar a declinação do ramo hespanhol cFaquella casa no ultimo quartel d'aquel- Ie século, pela revolta dos Paizes Baixos que exhaurio os re> cursos da Hespanha e deu origem a uma nova potencia mari- tima que teve uma longa duração. Fora esta revolta a conse- quência de medidas violentas e arbitrarias de Philippe 2;.CV As sete províncias unidas deixaram de pertencer á coroa de Hespanha e converteram-se em republica hostil e o mais in- veterado e incommodativo inimigo, como também rival peri- goso do poder marítimo d'aquella monarchia. A força naval da Hespanha, a mais formidável da Europa, recebeu também um golpe fatal na derrota da armada invencível que Philippe destinava para invadir a Inglaterra em 1588.

O engrandecimento da França veio completar o abatimen- to da Hespanha, tornando-se aquella tão poderosa no tempo de Luiz 14.° a ponto de ameaçar a subjugação da Europa, e mirar á soberania universal. O equilíbrio, porem, do poder das nações tem sido tão bem entendido e tão firmemente es- tabelecido nos últimos dois séculos que é muito provável que

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assim continuarão os negócios politicos.

O engrandecimento da Rússia e o progresso das artes, sci- encias e civilisação n'aquelle império, como também no seu poder naval e militar, e importância politica pelo génio e es- forços do immortal Pedro, o Grande, seguido d-.outros gran- des monarchas seus successores, com especialidade Catharina 2.a constituo uma feição notável na historia do século desoito, o offerece uma agradável perspectiva áquelles que se delei- tam na contemplação do progresso da civilisação e melhora- mento da espécie humana.

A Europa não podia ver, sem espanto, uma grande e ele- gante metrópole, embellezada com magníficos edifícios e a to- dos os respeitos própria para a residência d'uma corte brilhan- te, erguer-se nos pântanos medonhos da Ingria e cobrirem-se as lamacentas margens do Neva de palácios esplendidos, con- vertendo-se em um paraizo terrestrial. A cidade de San Pe- tersburgo a medida da industria humana, e é um monu- mento eterno do génio emprehendedor de Pedro o Grande.

Entre os acontecimentos mais notáveis d'estes últimos tem- pos, vemos a creação de novos impérios alem do Atlântico, que sem duvida, igualavam em poder, extensão e população áquelles do velho mundo, sem mesmo exceptuar Roma. De- pois da imperfeita colonisação das melhores partes d'America pelas nações europeas as colónias reconheceram a soberania da mãe pátria, da qual estavam dependentes e estas como indenmisaçao monopolisavam o seu commercio e impunham- lhes aquellas restricções que julgavam necessárias.

Ás colónias não desconheciam as desvantagens da sua posi- ção, mas não se achando com forças para reagir, submette- ram-se á authoridade do seu respectivo paiz. Tão depressa, porem, foram augmentando em população, riqueza e força, começaram a aspirar á sua independência. Isto não era mais que a consequência natural da oppressão, por que não era possível que um continente vasto e fértil como o Americano permanecesse sempre sujeito á Europa, que virá a exceder em população assim como a excede em território. As colónias

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Britannicas marcharam na vanguarda desta grande car.za. Depois de muitas divergências e contendas com a mãe pátria, declararam-se independentes, e apoiados pela França e pela Hespanha, foi a sua independência finalmente reconhecida na paz geral de 1783 pela Grani Bretanha. As colónias Hespa- nholas, tanto do México como da America do sul começaram em 1810 a manifestar disposições semelhantes para se revolta- rem contra a Hespanha e estando este paiz exhausto de re- cursos em razão da sua guerra com a França, proclamaram a sua independência depois d'uma longa e sanguinolenta luc- ta sem auxilio estrangeiro. O rico e extenso Brazil pelo mes- mo tempo saccudio o jugo de Portugal e constituio-se um império independente sob o governo de D. Pedro filho pri- mogénito do Rei de Portugal, que assumio o titulo de Impe- rador.

Importantes revoluções geralmente produzem génios e re- velam á energia nacional. O império anglo americano deve, em grande parte, a sua independência aos dons politicos e militares do general Washington; e a America do Sul é deve- dora da sua ao general Dom Simão Bolivar. Estes dous cau- dilhos, um no norte, outro no sul do Novo Mundo mostraram- se iguaes em talento e dedicação civica aos maiores homens da Grécia ou de Roma nos seus tempos esplendidos.

O homem observador politico e philosophico facilmente co- nhecerá que a independência da America do Norte e do Sul devem com o tempo produzir effeitos importantes d'um al- cance muito superior a tudo quanto podemos imaginar.

Não se pode duvidar que os anglos americanos, com o an- dar do tempo deverão estender o seu poder sobre todo o con- tinente desde o Atlântico até ao Oceano Pacifico e desde o Golpho do México ás partes habitáveis mais longínquas do norte; mas o que resta saber ê se os seus immensos territó- rios continuarão a constituir uma vasta republica federal ou se se desconjunctará formando diversos estados hostis.

No velho mundo temos visto erguer-se impérios, florescer, declinar e finalmente extinguir-se Monarchias teem-se tor-

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nado em republicas e republicas em monarcliias, e a America tem necessariamente de passar por iguaes commoções. No decur- so d'alguns séculos a America tem de passar por novas pka- ses. O deserto immenso do seu interior tem de ser cultivado e essas vastas regiões inkabitadas encher-se-hão de cidades e villas. Então a America será o que hoje é a Europa; e quem pode prever as revoluções porque tem de passar ; que novas formas de governo a estabelecer e que novas republicas ou monarcliias poderão nascer ? Difficilmente porem podemos suppôr que o império americano do norte passados alguns sé- culos continuará unido n'um governo federal como presente- mente.

Sem querer levar as conjecturas demasiadamente longe 6 regulando-nos simplesmente pela ordem natural das cousas e conjuncto de circunstancias moraes, é de crer que algumas consequências devem necessariamente nascer do augmento enorme de população, extensão e grandeza crescente que os impérios americanos do Norte e do Sul estão tendo. Deixamos dito que a importação do ouro e prata das minas do novo mundo, diminuindo o valor relativo d'aquelles metaes, padrão pela qual se afere o valor de toda a propriedade, actuou mais decididamente sobre o systeraa commercial do que outros quaesquer acontecimentos nos negócios humanos. A entrada de riquezas, producto das minas americanas, que dos portos de Lisboa e Cadiz circulou por toda a Europa e pela maior parte dos paizes aonde os europeos possuem colónias ou in- fluencia, é uma causa activa actuando continuamente sobre o commercio nas suas numerosíssimas ramificações e sobre o va- lor dos productos europeos e sua propriedade. A actividade d'este potente moter ha de, segundo todas as apparencias, con- tinuar em quanto o mundo for mundo; muito embora soffra suas modificações. Quando se cobrir o continente americano desde o Oceano Atlântico até ao Pacifico, e desde o polo ar- tico até aos estreitos de Magalhães, ao Cabo Horn mesmo, d' uma população activa e industriosa, florescente nas artes e nas sciencias, no commercio enas manufacturas, o seu trafi-

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cd c circulação interna absorverá indubitavelmente a maior parte dos productos das minas até hoje descobertas, e quando isto acontecer a importação do ouro e prata na Europa dimi- nuindo considera velmente,aconsequencia será um depreciamen- to gradual no valor da propriedade Europea, a fi&o aer que ou- tras cauzas,presentemente impossíveis de prever,venhão contra- balançar a influencia d esta. baixa no fluxo da riqueza ameri- cana para o velho mundo.

Outra circunstancia, histórica dos últimos tempos é o au- gmento rápido e extraordinário da força naval da Gran-Bre- tanha desde o reinado da rainha Izabel, que foi quando dm- significánté que era, começou a adquirir importância, até que at- trahio a attenção e a admiração da Europa pelo triumpho com- pleto que teve sobre a armada hespanhola. A marinha ingleza desde esse tempo foi sempre em progressivo augmento; mas foi depois da paz d'Áix la Chapelle que se tornou formidável a ponto de desafiar o poder naval unido de todo o mundo.

A natural consequência d'esta superioridade naval é a so- berania indisputável dos mares, com estabelecimentos em todo o globo, e um commercio como não tem outra nação alguma. A maior parte do commercio para as índias Orientaes e para a China está nas mãos dos inglezes e a companhia das índias acha-se na possessão d'um território muito superior em dimen- sões ao reino unido da Gran-Bretanha, contendo cento e cin- coenta mil milhas quadradas em Bengalla, Bahar, e Orissa e doze mil mais no districto de Benarez, de modo que o im- pério da índia contem cento e sessenta e duas mil milhas quadradas, trinta mil milhas quadradas mais que a Inglater- ra e Irlanda; e a sua população monta a onze milhões; alem de vários estabelecimentos e sitios fortificados destacados e que não entram n'este calculo.

Mais tarde o acontecimnto mais notvel foi a revolução fran- ceza que sendo dos nossos dias dispensa commentarios. Diremos tão somente que constitue um attentado extraordiná- rio e sem precedentes na historia que teve por fim destruir a religião e o systemá politico da Europa; terminando de um

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modo não menos singular. Depois d'uma luta prolongada en- tre a infidelidade e as crenças estabelecidas, na qual a primei- ra teve por muito tempo a ascendência, a contenda acabou no triumpho e restabelecimento do Chrisíianismo, sobre bazes liberaes. Temos visto o começo e o fim de guerras que nasce- ram d'esta revolução; guerras que deixaram ensanguentadas as paginas da historia, que envolveram as nações em dividas co- mo não lia exemplo, e como outros muitos acontecimentos de- monstraram a instabilidade das cauzas humanas. Guerras algumas talvez tenhão havido em que se dessem tantas e tão sanguinolentas batalhas, e que apresentem tantas vicissitudes em tão curto espaço. Os esforços da França não tem paraleíío na historia das nações; e não obstante as victimas,as conquis- tas, e os triumphosde Roma, todos quantos conhecem a histo- ria romana reconhecem necessariamente que as façanhas mi- litares d'aquelle celebre povo nunca egualaram aquelías da I1 rança, nem .produziram effeitos tão promptos em tão pouco tempo.

Em quanto a nação Franceza excitava a admiração da Eu- ropa, a Gran-Bretanha não menos se tornava notável pelos gigantescos esforços que empregava para lhe fazer fren- te, tornando-se baluarte da Europa, manifestando ao mes- mo tempo sentimentos liberaes e espirito de conciliação, na generoza protecção e apoio do clero perseguido d'um paiz estranho, e de diíTerente communhâo; circunstancia que lhe traz tanta gloria como mesmo seus brilhantes feitos d'armas por mar e por terra.

Depois da republica seguio-se o império sob o celebre Na- poleão Bonaparte que, por seus talentos militares e extraordi- nária felicidade fez-se chefe administrativo e militar sob o ti- tulo de primeiro Cônsul; e pouco depois, por uma serie de bem combinados planos, elevou se á dignidade imperial e foi solemnemcnte coroado imperador dos francezes. Para descre- ver as campanhas d'este homem extraordinário seria mister volumes d'historia e não é este o logar para commemorar de- talhadamente as victorias esplendidas de Áusterlitz, de Jena,

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de Wagram e Friedland que pozeram a Europa inteira a seus pés. Basta observar n'esta revista geral, que no decurso cVestas guerras os exércitos francezes, ou sob o seu imperador, ou sob os seus generaes, entraram em triumpho em quasi todas as capitães da Europa, como por exemplo, Roma, Veneza Nápoles, Madrid, Lisboa, Berlin, Vianna, e Moscow. A espe- dição do imperador francez a Moscow é especialmente notável como sendo o Ne plus ultra das suas conquistas, trincheira fatal que poz termo á sua carreira politica e successo militar, •sem paralello na historia, e que foi assignalado por uma mor- tandade sem exemplo nos tempos modernos»

Pelos fins de junho de 1812, o imperador dos francezes in- vadio os territórios russos á frente d'um exercito não inferior a tresentos mil homens no maior primor d^quipamento e dis- ciplina. Depois de muitos sanguinolentos encontros e assigna- ladas victorias avançou sobre Moscow.

No dia 15 de setembro entrou n^aqnella metrópole, fixou o seu quartel general no Kremlin e assentou-se no throno dos Czars. Mas aquella cidade tendo sido incendiada, o invasor achou-se entre ruínas fumegantes. Napoleão offereceu então paz ao monarcha russo, que regeitou as suas propostas humi- lhantes. N'esta conjunctura conhecendo a impossibilidade de procurar abastecimentos para o inverno que se aproximava, começou o imperador francez a sua retirada, no dia 18 d'ou- tubro, na qual achou-se exposto a incessantes ataques da par- te dos exercito» russianos reunidos de todos os ângulos do im- pério. N'estes encontros sanguinolentos os francezes eram cons- tantemente derrotados, e o inverno sobrevindo prematuramen- te e com uma severidade pouco vulgar mesmo n'aquelle clima inhospito, este immenso exercito invasof foi quasi aniquilado, apresentando um quadro de carnificina sem igual nos annaes dos povos desde a retirada de Xerxes da Grécia. Os victorio- sos russos proseguiram nas suas victorias caminho de Alle- manha; e os prussianos e mais alguns estados aproveitaram o ensejo para sacudirem o jugo do imperador francez.

T^ndo Napoleão deixado na retaguarda os fragmentos das

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suas destroçadas forças effectuou a sua retirada para Paris, fez esforços prodigiosos para reunir um novo exercito, e logo que o eonseguio invadio novamente a Aílcmanlm e recomeçou uma campanha activa e vigorosa.

Por algum tempo a fortuna mostrou- se-lhe duvidosa, ate que finalmente a balança pendeu para o lado do imperador francez, e não obstante as suas immensas perdas na retirada de Mosco w no anno precedente, o mundo presenciou, confun- dido, os exércitos da Rússia e da Prússia em debandada adian- te d'elle. Interromperam-se as hostilidades temporariamente por meio d'imi armistício a fim de negociar um tratado de paz ; mas sendo julgadas inadmissíveis as propostas de Napoleão ; seu sogro, o imperador d'Ausfcria, que anteriormente assu- mira a posição d'uma neutralidade armada, reunio a grande confederação contra a França, como também tinham feito os reis da Suécia e da Baviera, a que a Dinamarca foi compellida a annuír. D'esíe modo todas as grandes potencias da Europa, apoiadas por enormes subsídios da Gran-Bretanha pozeram em campo as suas forças combinadas contra o imperador fran- cez e a guerra recommeçou com redobrado encarniçamento» As series d'operações militares desde esta critica conjunctu- ra até ao fim da guerra pela destreza de combinações, rapidez de movimentos., carnificina e importância de resultados, não tem paralello na historia moderna nem mesmo doa tempos antigos. A sanguinolenta batalha de Leipsig dada em dous differentes dias, 16 e 18 d'outubro do 1813, na qual as tro- pas da Saxonia, passando em numero de quinze mil para os alliados, decidiram da sorte do imperador francez, que foi completamente derrotado com a perda de noventa mil hcmens mortos, feridos e prisioneiros, obrigando-o a evacuar precipi- tadamente a Allemanha como no anno anterior acontecera na Rússia. Foi immediatamente seguido pelos alliados , que, pas- sando o Rheno em vários pontos, entraram na França.

Depois de tantos annos haver desempenhado o papel d'ag- gressor, Napoleão vio-se d'esta vez atacado na sede e cora- ção de seu poder, e durante uma activa campanha, o balan-

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ço da fortuna, parecia manter-se em equilíbrio, até que a final conseguindo os alliados tomar posições entre o exercito fran- cez c a capital, tomaram a deliberação de marchar com to- das as suas forças, entre duzentos e tresentos mil homens e caíram sobre Paris. Teve então logar um sanguinolento en- ' contro sobre as alturas de Mont-martré e Bellevue, no qual os alliados tiveram grande superioridade tanto em numero como em disciplina. Os írancezes foram derrotados; Paris ca- pitulou: Luiz 18.° foi chamado ao throno, e uma paz assigna- da. Napoleão foi obrigado a resignar a soberania. A ilha d'El- ba foi-lhe pelos exércitos alliados, designada como residência, com o titulo d'imperador, eortando-se honrosos subsidios aos differentes ramos da sua família. N'este asylo pacifico devia julgar-se contente, se uma ambição desmedida, que o lançara da summidade da grandeza humana, o não tivesse aguilhoa- do, causando-lhe a sua ruina.

Premeditando nova tentativa para reganhar o poder, reunio mil e cem aventureiros desesperados, á frente dos quaes de- sembarcou na França, e o exercito, adherindo ao movimento, marchou sobre' Paris sem disparar um tiro e foi novamente reconhecido imperador. Luiz 18.° com a sua família e a corte, tendo previamente procurado refugio na Bélgica, fixou a sua residência em Ghent.

Em razão d'este inesperado acontecimento, a Europa in- teira preparou-se de novo para a guerra. Uma poderosa for- ça de Inglezes, Hanoverianos, e Belgas juntou-se nos Paizes Baixos, apoiada por um poderoso exercito prussiano, comman- dado pelo marchai de campo, o príncipe Blucher; em quanto que os grandes exércitos da Áustria, Prússia, Baviera e Sué- cia estavam em marcha sobre a França. Napoleão para po- der lazer frente a tão poderosas forças reunio um grande exercito c uni formidável trem d'artilheria e com elle lançou- se na Bélgica, aonde derrotou completamente o exercito prus- siano. Mas a celebre batalha de Waterloo em 18 de Junho de 1815 decidio a sorte do imperador dos francezes, que em pessoa commandava o exercito, sendo derrotado pelos allia-

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dos sob o duque de Wellington. Os destroços dos francezes foram perseguidos junto a Paris. Esta metrópole rendeu-se por capitulação, e Napoleão depois d'assignar segunda abdi- cação e ançiar errante algum tempo pela França entregon-se aos inglezes, embarcando para bordo d'um navio de guerra britannico para não cair em poder de seus inimigos continentaes.

Luiz 18.° subiu novamente o throno de seus antepassados •6 a paa restabelecen-se na Europa.

Napoleão fm conduzido como prisioneiro d'estado para a ilha áe Santa Helena, obstando assim a que perturbasse a tran- quilidade do mundo.

•Ahi pe#m»neeera perto de seis annos até á sua morte, que teve logaf fto dia 5 de março de 1821, contando então 52 an- nos d'idadi, miecumbindo a um ataque de fígado, acompa- nhado d'um cancro no estômago, moléstia que levara o pae aos 38 afino*.

A carreira politica e militar d'este homem extraordinário, que por tanto» afinos foi & admiração e o terror do mundo, fornece-nos amplíssima matéria para considerações. Subira elle da obscuridade e pobreza a uma altura de grandeza, po- derio, e fama militar a que mortal algum jamais chegara. Devemos porem ter em attençâo que nos tempos da sua maior prosperidade, no aenith da sua gloria, e quando junta- va louros sobre louros, o seu paiz escorria sangue por todos os poros; a os aítisonos nomes de Marengo, Austerlitz, Jena, Friedland, e Wagram, não enchugaram as lagrimas das viu- vas e orphãos da França. A sua queda foi mais estrepitosa que a sua ascenção, e oíferece um exemplo das vicissitu- des da fortuna de que a historia não apresenta paralello na vida d'outro qualquer individuo* Demomtr» salientemente, os effeitos d'uma desmedida ambição, ê presumpção impru- dente, que, com quanto apoiadas por um consummado talen- to militar, coroadas, por muitos annos, de fortuna sem igual, arrastaram-no finalmente para o abysmo, e depois de victo- rks esplendidas ed'um poder exorbitante, levaram-no a morrer captivo n'u:na ilha longinqua.

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Nunca guerras algumas emprehendidas pela Gram Bretã-- nlia chamaram mais a attenção publica e provocaram maior divergência d'opiniâo, que os dois memoráveis conflietos com as colónias americanas e o governo revolucionário da França, Cada um foi por seu turno debatido no parlamento britanni- co com toda a subtileza d'argumentação de que é susceptível a razão humana, e com aquella energia e flores d'estylo que a rhetorica pôde desenvolver. Burke, Pitt, Fox e Sheridan, com muitos outros oradores inglezes disputaram a palavra a Cicero e Demosthenes, e o resto dos oradores celebres da Gré- cia e Roma, cujos discursos teem «ido considerados chefes d'obra, d'eloquencia, e primor de rhetorica.

Não foi, porem, tão somente no senado que aquelle impor- tante assumpto se discutia. O espirito publico insinuava-se por todos os ângulos do paiz e a agitação não conhecia limites. Em todos os paizes, e em todas as occasiões, o povo, com quanto não possua nem as habilitações nem as informações necessárias para que possa julgar dos actos d'aquelles que es- tão no poder, está sempre disposto a censurar as suas medi- das e a attribuir cada mal politico a uma administração. Os que condemnam os actos d'aquelles a quem estão con- fiados os destinos da nação deviam considerar seriamente nas dificuldades com que estão a braços, devido ás perpetuas vicissitudes dos negócios políticos , que dependem d'uma serie de circunstancias tão complicadas e notáveis, ora augmentando, ora contrabalançando influencias d'uns e outros, a ponto de produzir consequências impossíveis de pre- ver.

A tendência para os princípios revolucionários sempre cres- cente, e as conspirações traiçoeiras do partido jocobino no paiz, obrigou o governo inglez a romper com todas as com- municações com uma nação aonde o systema revolucionário dominava absoluto. Consideradas bem as circunstancias poli- ticas da Europa, n'aquella momentosa crize, a posição da Gram Bretanha tornára-se extremamente crítica, e a impar- cialidade cândida, sem influencia de paixões ou preconceitos,

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convirá que os seus ministros achavam-se n'uma posição sem precedente, difíicil como não havia exemplo.

Aqueiles sempre dispostos a censurar os actos dos outros nos negócios complicados, devem ter em vista que é absolu- tamente incerto se medidas diíferentes d'aquellas adoptadas teriam sido mais vantajosas. Vemos as consequências do que se fez, mas não se pôde avaliar as do que se deveria ter feito. A experiência é que as pôde demonstrar. Sabe-se quaes foram as consequências da guerra com a França, mas é impossivel prever quaes ellas teriam sido se a Gram Breta- nha tem optado pela neutralidade, por que se não experimen- tou, e por tanto a grande questão da conveniência ou incon- veniência da guerra ficará sempre por decidir.

Não se pôde negar que a divida nacional do paiz cresceu desmedidamente em consequência das despezas da guerra; e que as contribuições augmcntaram em proporção ás exigências nacionaes. Na theoria expeculativa isto é um grande mal, mas, depois cVuma apreciação bem combinada, achar-se-ha que a realidade não é tão assustadora como parece á primeira vista,

A lei tributaria encontra uma opposição universal, mas é pouco comprehendida. Os desaffectos e os ignorantes de to- dos os paizes a consideram um gravame, e as facções demagó- gicas e os cabeças de motim não falham nunca em fazer das contribuições objecto de seus discursos, servindo-se da igno- rância das massas e mascarando seus próprios desígnios si- nistros com o falso pretexto de reformar abusos. E' inegável que os tributos teem immediata influencia sobre os artigos de consumo, tanto de primeira necessidade como de luxo ou con- veniência; por que o valor total do consumo nacional é* sem- pre augmentado pela somma aggregada do interesse da divi- da nacional, e da despeza annual. Este augmento do valor do consumo nacional é o eífeito principal e mais prejudicial da lei tributaria. A idea de que as contribuições pesadas em- pobrecem uma nação é um erro. Quaesquer que sejam os im- postos levantados n'um paiz, se forem despendidos no pro-

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dueto nacional imo o podem empobrecei; produzem apenas uma circulação mais activa, porque o numerário levantado no paiz reflue. para o mesmo paiz por mil difíerentes cana/es. O produeto d'uma nação e suas colónias fornecem em parte ou no todo os equipamentos militares se é em tempo de guerra e o abastecimento da população em tempo de paz. Os salá- rios do funceionalismo publico consomem-se no paiz, e as o- bras publicas e varias construcções empregam os seus artis- tas. A importação dos artigos que um paiz não produz con- corre para estimular o commercio e crear mercados pa- ra a proclucção e manufacturas próprias, que as nações es- trangeiras não receberiâo senão em retorno d'uma remessa proporcional ás suas.

Se os effeitos dos impostos são elevar os artigos de consu- mo como não se pode negar, as nações nem por isso são mais pobres nem o povo mais oprimido; porque o valor da produe- çao. e o preço do trabalho estarão sempre em relação. Esta de- lineação do caso funda-se obviamente na razão, e a sua vera- cidade funda-se na experiência; porque é um facto inquestio- nável que apesar das grandes dividas nacionaesas classes me- dias e o povo não passam peior.

Observamos e não pód« escapar a ninguém que o in- fluxo d 'ouro e prata da America foi á principal causa e a primaria da extraordinária subida que desde a descoberta cTaquelle continente tem havido nas producções da Europa, que, como é natural, augmentou em proporção á diminuição do valor do ouro e prata á medida que avultava no velho mundo. D'aqui é claro que se a quantidade de numerário em giro dobrasse na circulação, dobraria, igualmente o valor da propriedade e yice-versa : a actividade do commercio não se resente pela quantidade em circulação, mas também por qualquer cousa que o represente; e o credito estabeleci- do opera a este respeito do mesmo modo que o numerário circulante.

Nos paizes aonde a moeda é escassa e o commercio fraco, tudo é barato, o soldo do militar é pequeno e baixos os sala-

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rios do artista e do operário; os salários do funccionalismo são fracos e todas as verbas de despeza publica na mesma proporção.

Exemplificaremos esta hypothese , estabelecendo urna comparação entre a Inglaterra e a Rússia. N'este paiz, segun- do Mr. Cox, um dos modernos viajantes mais intelligentes e escriptor imparcial, a sua receita não pode estimar-se em mais de sete milhões de libras sterlinas. (a) Com este rendimento, q ue não chega a um quinto do rendimento animal da Gran Bretanha, a Rússia tem em de guerra uma força de 400:000 homens de cav aliaria e infanteria, alem cias suas es- ouadras; e não exerce uma influencia preponderante na balança politica da Europa, como conduz as suas operações de guerra e administração com energia e em grande escala, gas- tando som.mas immensas na construcção de magníficos edi- fícios e apresentando um espectáculo cie esplendor publico nada inferior a qualquer das primeiras cortes da Europa, íi- cando-lhe ainda sufíiciente para a remuneração do mérito, promoção das artes e sciencias, e da litteratura e tudo o mais cia dependência dos governos. Se osproductos agrícolas, salá- rios cio artista, do jornaleiro, do soldado etc. estivessem altos, ou, em outras palavras, se o numerário abundasse na Rússia como na Inglaterra, o governo d'aquelle império seria obri- gado a levantar os impostos cinco ou seis vezes mais do que na actualidade.

Tomando a Gran-Bretanha como exemplo da nenhuma inconveniência dos pesados tributos, é fora de duvida que os seus grandes impostos é a consequência necessária da sua immensa riqueza, e que povo algum tem menos direito cio Gueixa contra os seus impostos como é o povo inglese, porque nenhum outro está tanto no ciso de os pagar; e também por que os inglezes em troca do dinheiro desembolsado para as despezas do estado gozam uma segurança individual e de pro- priedade desconhecida nos tempos antigos e, quando não su-

ía) Âo tempo que esta obra foi escripta.

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perior, nunca interior a qualquer outro governo d'estas eras. Cumpre também aqui notar que o súbdito britannico alem da prerogativa que tem de se impor as suas contribuições por meio de seus representantes, tem por assim dizer a regalia de fixar o seu quantitativo, porque á excepção das contribui- ções prediaes que são inevitáveis, os outros impostos, pelo fa- cto de serem indirectos, podem ser diminuídos prescindindo-se de certas regalias ou objectos de luxo, o que não acontecia com o systema instituído pelos romanos e adoptado por muitos outros povos. E' ainda muito duvidoso se, paga a divida na- cional e abolidos os impostos, o paia seria mais rico. O valor dos productos nacioriaes e da propriedade diminuiria e as classes pobres da sociedade nada lucrarião por isso que os sa- lários sofíreriâo uma baixa proporcional.

Parece, por tanto, que os fundos levantados pelo sys; tema tributário, gastos que sejâo nas producções do paiz, reverteu i ás nascentes d'onde foram derivados, e como aqueí- la parte consumida em productos estrangeiros tende a dar grande vigor e actividade ao commercio, uma grande divida nacional, e o augmento de contribuições, que deve necessaria- mente ser a consequência dos grandes juros, são males de muito menos considerar ã-0 do que geralmente se representa. Podia talvez íigurar-se-nos sob uma analyse miúda que o mal maior e o único real e considerável é actuar sobre a indus- tria interna pela sua irresistiveí tendência a fazer subir os preços do trabalho em proporção â elevação dos preços dos artigos de primeira necessidade; porque é obvio que o indus- trial, que não pôde sustentar-se por menos d' um tanto por dia, nào poderá reputar os seus artefactos pelo mesmo preço por que os pode vender áquelle para quem uma somma me- nor seja suíÈcieníe, suppondo mesmo que ambos comprem a matéria prima peio mesmo preço; e consequentemente quan- do as mercadorias são trazidas para o mercado, este ha de vender por menos do que aquelle, a não ser que o primeiro possa contrabalançar as suas desvantagens por uma mão d'obra superior; ou então que, possuidor de grande capital.

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e extenso commercio possa negociar em escala que o interes- se menor fique compensado pela superioridade do seu trafico..

Como circunstancias análogas devem operar d' um modo análogo sobre a industria d'um milhão de homens como sobre o trabalho d'um individuo, as consequências mais de te- mer dos elevados impostos são que a nação pesadamente tri- butada, pôde, em razão dos altos preços dos géneros de pri- meira necessidade vér-se na impossibilidade de desfazer-se dos seus artefactos nos mercados estrangeiros pelos mesmos preços por que o podem fazer outras nações aonde a vida ê mais barata. Toda a vez que duas nações eommereiaes, Fres- tas circunstancias rivalizam no mesmo género de manufactu- ra e exportam as mesmas espécies de mercadorias, aquella cujos operários não poderem sustentar-se senão por mais altos preços, não- pode co-mpatir com a sua rival no mercado estran- geiro, a não ser que a qualidade superior da mercadoria, ou a barateza de capital contrabalancem a desigualdade. Isto é o que suecede com a Inglaterra; os seus operários vencem maiores salários do que em outros paizes, mas fazem mais e melhor trabalho, e por isso as suas manufacturas tem maior procura e são mais estimadas fora. O seu cemmercio< é também sustentado por um capital immenso e conduzido em uma escala maior do que não acontece em muitos outros paizes. E se por outro lado ella tem a vantagem de reputar melhor as suas mercadorias, a sua opulência e extenso trafico habilitada a pagar bem as commodidades que importa para seu próprio consumo.

Sob um ponto de vista politico como moral, os males da guerra estão longe de serem de pequena monta. A riqueza e a prosperidade d'itm estado augmentam necessariamente á proporção que os seus súbditos se exercem aproveitosamente; e as riquezas de cada eonnn unidade cresce na razão do nu- mero de seus membros úteis. Deve por tanto ser uma gran- de calamidade que desde as primeiras idades um tão consi- derável numero de úteis súbditos se não empregue senão no exterminio de seus semelhantes

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A' perda de trabalhos de utilidade em beneficio da commu- nidade accresee as quantidades de mercadorias etc. frequen- temente destruídos pelo inimigo, ou que se corrompem pelo tempo que estão em deposito.

Compulsando as ensanguentadas paginas da historia, o lei- tor não pode deixar de lamentar os eífeitos desastrosos d'a- quellas guerras que tantas vezes tem deso'ado os mais for- mosos paizes, e envolvido um sem numero de victimas nas maiores calamidades. Parece, porem, considerando as cir- cunstancias do mundo e as imperfeições da natureza humana que as frequentes hostilidades são males inseparáveis do esta- do presente da humanidade. Em certos estados e communi- dades existe uma authoridade legislativa que promulga leis e regulamentos tendentes a refrear as paixões desordenadas e a Conciliar os interesses oppostos de seus membros, como ha também uma força executiva para impor a sua obediência, e é evidente que sem estes elementos não ha sociedade possiveL Mas quando se levantam contendas entre nações, não ha tri- bunal na terra a que appellar. Á decisão n'este caso é por meio das arniaS. A guerra por tanto pôde ser encabeçada Ti'aquellas mysteriosas disposições da Providencia, por meio das quaes as más paixões da humanidade são castigadas por si mesmas.

O systema tributário é uma d'estas feições que distingue o systema politico moderno do antigo. N'este, tanto as des- pezas ordinárias como extraordinárias eram votadas no mo- mento d'urgencia, pezando por tanto sobre os súbditos que não estavam preparados para satisfazer âs exigências publicas. Muitas vezes reconhecia-se a impossibilidade de levantar os fundos necessários, e não poucas vezes acontecia debandar um exercito nos momentos' mais criticos, na véspera mesmo da victoria e conquista por falta de meios para a sua susten- tação. Os tributos nacionaes quando assim cobrados esta- vam sujeitos a serem arrestados pelo inimigo de que ha mui- tos factos na historia. Este e outros muitos males deixaram cVexistir ou se modificaram muito com a adopção do syste-

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ma da contribuição indirecta, estabelecendo um meio regular e suave, equiparando a receita do thezouro ás despezas pu- blicas e providenciando para os casos extraordinários, sem vexame nem exigências exorbitantes e onerosas para a na- ção.

Como o systema de contribições é próprio ao systema mo- derno de finanças, desconhecido dos antigos, assim a balança do poder, desde o extraordinário engrandecimento da casa d'xlustria sob Carlos 5.° tem sido um dos pontos salientes no systema geral da politica europea e motivo para o derrama- mento de rios de sangue. Milhares, para não dizer milhões de creaturas humanas tem sido sacrificadas ao phantasma e mesmo alguns dos principaes poderes, parecem ter pouca in- fluencia no systema politico; até hoje a Gran Bretanha, a França, a Áustria e a Rússia são as únicas que pezam na balança politica e que decidem da sorte do mundo, até que os dous impérios americanos adquirão no novo mundo aquel- !a ascendência que os outros poderes possuem no velho.

Como sejão aquelles os traços mais robustos no quadro politico do globo, assim o progresso rápido da civilisação e suas appendices constitue uma feição distincta no quadro da moderna sociedade. Vimos como uma serie complicada de causas teem operado, atravez uma longa successão de idades, para o adiantamento ou retardamento da civilisação e melho- ramento da espécie humana. O poder da liberdade, o adian- tamento dos conhecimentos, a descoberta ou melhoramento das artes, sciencias, e manufacturas, a extensão do eommer- cio, a descoberta da America, e a importação de riquezas d'a- quelle ponto do globo constitue um conjuncío de causas que, por operações reciprocas c combinadas, produziram a civilisa- ção da moderna Europa.

Uma visível e necessária consequência d'esta civilisação geraJ Ú a difíusão da riqueza e consequentemente do luxo en- tre o povo. A prevalência do luxo entre todas as classes da Europa dos nossos dias, forneceu amplo motivo de discussão apra reformistas, moralistas e semi-politicos. Não é porem em

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realidade mais que a necessária consequência do progresso civilisaçâo e a Requisição de meios, em cooperação com aquelie principio universal da natureza humana que leva o homem a srozar aquillociue nossue. Aquelles declamadores recorclam-nos qiteoluxo causou a queria des maiores impérios da antiguida- de, edalai querem inferir que os seus efieitos devem ser os mesmos sobre todas as nações da. moderna Europa ; mas nào parece que fosse o luxo do povo, mas sim aquelie d'uma corte afeminada, que occasionou ou pslo menos apressou a queda das monarchias de Babyionia, Pérsia e dVuitras nações. Aquel- ie luxo que se difTunde por um paiz todo, que se extende a to- das as classes da sociedade, não tem aquelki fatal tendência, ao contrario, é o principal sustento do commercio e das manufa- cturas, eo grande estimulo da industria nacional e individual. Ha igualmente uma outra differença essencial entre os go- vernos e os systemas politicos dos antigos e dos modernos ; os primeiros, peia maior parte, devem a sua opulência como também o seu engrandecimento ás suas conquistas, e quando o enthusiasmo militar, a que deviam a sua grandeza, se apa- gava, cabiam victimas do primeiro invasor bárbaro. As nações da moderna Europa pelo contrario, devem a sua riqueza e a maior parte dos seus melhoramentos ao commercio ; e se o lu- xo produz a degeneração d'um povo, cuja Índole é inteira- mente militar, elíe excita a industria e acorda os brios n'uma nação commercial. Nào é por tanto o luxo, mas sim o abando no e a indolência que sãoprejudiciaes aos estados. O luxo e o es- plendor d'uma corte nào são incompatíveis com os negocio» públicos; nem o luxo individual destoa da administração par- ticular. Os gritadores populares contra es vicies politicos e moraes da actualidade farião bem em considerar que, como o luxo não pode bem ser definido como outra cousa que não seja uma despeza extravagante, demasiadamente pesada para aquelie sobre quem recae a imputação, não é fácil determinar o que é luxo em difrerentes situações da vida; porque o que é luxo em um, em outro é muito apenas uma commodidade. O luxo. começa sempre onde a commodidade acaba, mas a dif-

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nculclade está em lhe fixar a linha da demarcação.

Depois de contemplar o estado d'aquella parte do systema moral de que temos mais conhecimento e em que somos mais interessados, se estendermos as nossas observações mais lon- ge e olharmos a natureza humana sob um ponto de vista mais largo, influenciada como ella é e modificada por sys te mas po- líticos e religiosos, theorias intellectuaes e hábitos sociaes,com quanto vemos o christianismo de dia para dia adquirir dia- riamente mais áurea, em rasão do vasto império de Colombo, c poder sempre crescente da republica da America do Norte, como também pelo engrandecimento cio império E-usso, que se extende sobre todas as regiões do norte da Azia, como tam- bém pelas colónias da Grran-Bretanha c seus missionários nas nações europeus; mesmo assim vemos a maior parte da Azia e quasi toda a Africa sob o poder do despotismo e influenciada superstição. Todas as regiões septenírionaes da Africa, o Egy- pto, a Arábia, os dominios turcos, a Pérsia, uma grande par- te da índia e a Tartaria, professam a religião Mahometana, em quanto que uma parte ainda maior dos Índios e tártaros adhereá religião das Bhramanes e a da Lama do Thibet. Os habitantes dos vastos e populosos paizes da China, do Ja- pão, da Turquia e da Cochin China seguem os vários sys- temas de Foe e de Confúcio, ou então os de Thibet; e cada um d'estes sys tem as, estabelecidos n'estas nações do Oriente, se ramificam c se subdividem.

Os grandes paizes de Sião, Pegu, Ava etc. sitos ao nascen- te dabahia de Bengallatem systemas propriamente seus, igual- mente absurdos; e o vasto interior d'Aírica e suas partes me- ridionaes á excepção do império da Abyssinia, aonde a reli- gião compõe-se d'um mixto de judaísmo e christianismo, e tal- vez d'algumas ídéas mahometanas, estão immersas n'um bar- barismo profundo. Pouco se sabe dos systemas políticos e re- ligiosos estabelecidos em muitos dos paizes mencionados'. Pouco frequentados por viajantes intelligentes, a historia não nos oíferece informações algumas sobre a origem e forma cl/essas differentes instituições. Sabe-se, porem, o suficiente

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'para se ver que depois cVuma longa serie de períodos, aiiti inanidade sábio, ainda que vagarosamente, da ignorância & do barbarismo; e que a radiante illuminação do clnistianlsmo, por em quanto, esclarece muito apenas uma pequena parte da raça liumana.

Entre as numerosas questões históricas e moraes que se podem apresentar e que é impossivel resolver, podíamos per- guntar porque ê que existe tamanha diíferença entre os me- lhoramentos intellectuaes de difíerentes nações, e porque as artes e as sciencias, a litteratura e a civilisação, tem feito tan- to progresso em alguns paizes, quando em outros estão ainda no berço. Os mais notáveis elos d'aqiiella grande cadeia de causas e efTeitos que produziram esta distincção entre as na- ções, antigas e modernas, de cuja historia temos conhecimen- to, são até certo ponto visíveis. As circunstancias que deram origem ao nascimento, progresso e declinação das artes e •sciencias e dos conhecimentos litterarios na Babylonia e no Egypto, como também entre os gregos e romanos, e o seu ap pare cimento entre os modernos europeus sobresaem suffi.- cieníemente d'entre a turba d'occorrencias moraes que enchem as paginas da historia, e pelos efTeitos que hão produzido, tor- nam variadíssimo' o colorido do inconstante quadro da existên- cia humana. Da historia de muitas outras nações, comtudo, nada sabemos absolutamente; mas algumas, segundo parece, não passaram nuuca das artes necessárias; em algumas vemos que se attendeu ao que era de pura conveniência, em ou- tras certo grau de luxo, mas com pequenos melhoramentos intellectuaes. Algumas nações, como por exemplo, os hindoos e os chinas, fizeram segundo se considerável progresso no campo das sciencias e artes e no embellezamento da vida civilisada em remota epocha. E' fora de duvida que estas na- ções orientaes haviam feito não pequeno adiantamento n'a- quellas cousas, antes mesmo que se descobrissem signaes de civilisação nas nações mais cultas da moderna Europa, e pro- vavelmente antes que os próprios romanos e gregos tivessem feito progresso nos difíerentes conhecimentos; comtudo nu*i~

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ca os melhoramentos scientiíicos ou litterarios foram levados a tão alto grau entre as nações orientaes como entre os gregos e romanos e os modernos europeus ; pelo contrario, parecem ter ficado estacionários n'aquelles paizes. A declinação da lit- teratura dos liindoos n'estes últimos tempos, pode-se attribuir facilmente á circunstancia da subversão do seu poder e im- portância politica, e á sua sujeição ao jugo dos invasores tár- taros que estabeleceram a religião mahometana e o império Mogol da índia e tornaram aquelle celebre paiz o theatro de revoluções e de crimes. E' difficil, porem, achar uma rasão satisfactoria para que o chinas depois de haver, em remotas epochas, feito progresso na sciencia e na litteratura su- perior á maior parte das nações occidentaes, parassem de to- do nos melhoramentos começados, sem nada adiantarem no decurso de tantos séculos. E' um tanto difficil ex- plicar este phenomeno ; se estivéssemos mais ao facto da historia antiga e moderna daquelle povo, a diffieul- dade desappareceria, ou se aplanava. Os chinas, segundo os annaes d'aquella nação, escriptos pelos seus próprios histo- riadores, estiveram sempre menos expostos ás invasões estran- geiras, menos perseguidos por guerras de fora e menos agi- tados por commoções internas do que outra qualquer nação: em tão longo periodo d'existencia politica outra alguma passou portão poucas revoluções; porque a conquista teirtara, uma das mais importantes revoluções porque atravessou a China, não foi mais que a transferencia da soberania d'uma familiapara ou- tra, e pouca ou nenhuma alteração produzio nas instituições nacionaes e na indole do povo, por isso que foram os tártaros que se cingiram a todos os respeitos, até mesmo no vestuário, aos costumes chinas no que deram provas d'um grande tacto politico.

Este golpe de vista sobre a historia da China traçado em vista das narrações de seus próprios escriptores, parece, con- siderando as circunstancias locacs d'aquelle paiz, uma justa apreciação.

A China, em periodo distante, repleta d'habitantes e orga-

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nisada com um systema politico regular, foi decididamente o império mais populoso e poderoso da Azia oriental. Separada por immensos desertos dos paizes occidentaes pouco tinha a recciar um ataque por aquelle lado. As nações do sul ou do su-oeste eram muito inferiores em forças e estavam na maior parte sob o poder, ou ao menos sob a influencia, do império chi- nez. Pelo nascente confina com o mar, e por consequência a fronteira do norte era o unicoponto vulnerável ed'onde a Chi- na podia temer-se d'uma invasão inimiga. Esta fronteira fora fortificada com aquella celebre muralha tão fallada, e que com quanto seja um monumento da industria da nação chineza não foi sufficiente para resistir aos assaltos dos tártaros, úni- co inimigo que o império podia receiar. A invasão e con- quista d'aquelle paiz, pelos successores de Zinghis Khan, foi comtudo de natureza estéril e não parece que produzisse uma rttvoluçãoconsideravel na indole, hábitos, e geral estado do povo; e a ultima conquista tártara, como se disse, não foi mais productiva que a primeira. Em tal estado de segurança local e estabilidade politica, reunindo as vantagens d'um solo fértil e clima benigno, é para admirar que os chinas, tendo na antiguidade desenvolvido a actividade de sua indole na- cional no progresso das artes, sciencias e philosophia co- mo outra qualquer nação do seu tempo, tivesse chegado ao ne plus ultra das suas conquistas scientificas e litterarias, e que permanecessem até hoje no mesmo estado em que esta- vam ha séculos. As causas pois as poderemos attribuir a um apego invencivel a systemas estabelecidos, usos e costu- mes que extingue o espirito d'investigação e o desejo de melho- rar o seu estado. O Creador , preenchendo a immen- sidade do seu plano, povoou o globo de difíerentes ordens de seres, desde o homem, até ao ultimo insecto, e na sua in- finita sabedoria, julgou melhor estabelecer uma differença de forças intellectuaeg entre as diversas nações; mas nós que vemos a natureza humana modificada e influenciada por mil diversas circunstancias, não podemos comprehender a ra- zão nem conceber em que grau pod«w as circunstancia»

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physicas operar sobre as faculdades mentaes dos habitantes de difíerentes climas.

Contemplando e comparando o estado presente e antigo da Itália e da Grécia, como também de todas as nações da mo- derna Europa, e reflexionando sobre a declinação da littera- tura grega e do valor romano, como também do extraordi- nário progresso das, outr'ora nações barbaras da Europa, em todas as espécies de melhoramentos intellectuaes, parece- rá que as faculdades do homem são mais poderosamente in- fluenciadas e o seu progresso na seieneia mais decididamente fixado por circunstancias physicas. Em respeito á força corpó- rea e constituição, as causas physicas tem provavelmente uma influencia poderosa. Os habitantes dos paizes meridionaes sao geralmente descriptos como inferiores em força e coragem áquelles dos paizes do norte; mas não obstante esta supposi- çâo, temos d'admittir um grande numero d'excepções ; pro- vavelmente na generalidade assim não aco nteça,e estamos lon- ge de poder dizer que os povos d'Africa e algumas partes da Azia meridional sejam inferiores a esse respeito aos europeus e aos aziaticos do norte. E' comtudo certo que os climas quentes abrandam as molas de vitalidade e tornam os habi- tantes menos dados a exercícios violentos tanto do corpo co- mo do espirito.

A riqueza e a abundância, filhas geralmente do solo fértil e clima benigno das regiões do sul na supposição d'a)guns- dão aos seus naturaes esse amor pelo luxo, mas isto é um erro.

As nações do sul não vivem mais luxuosamente do que as do norte; o seu luxo, comtudo, é de differente natureza com um sainete de molleza e indolência, dando margem a sup- pôr que por este motivo tem ellas sido tão frequentemente vencidas pelas do norte. Convém notar que as maiores imegrações d? raça humana se teem feito do norte para o sul e que os povos d/estas regiões tem sido geralmente victimás dos seus conquistadores do norte; emquanto que o povo dos paizes mais quentes não teem nunca levado as suas conquis- tas muito para o. norte. Nem os babylonioSj nem os persas,.

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nem os serracenos, os. mais meridionaes de todas as grandes nações victoriosas, penetraram nunca muito norte ; mas de- vemos ter em vista que nada os induzia a levar as suas ar- mas para aquellas regiões. As nações septentrionaes tinham muitas e fortes rasões para imigrarem e procurar conquistas e riquezas nos paizes férteis, risonhos e opulentos do sul: mas o povo d'estes paizes não experimentavam tentações que os in- duzissem a invadir as charnecas e pântanos das regiões frias: e esta é provavelmente a rasão porque os povos do norte não eram conquistadas pelos do sul e que poderá ter operado mui- to mais poderosamente a esse respeito do que a supposta in- ferioridade de força e coragem, e outras qualidades bellicas, dos differentes povos.

Se podessemos ver claramente toda a variedade de cir- cunstancias que tem, durante successivas idades, mudado e determinado as condições das nações, encontraríamos talvez uma serie de causas moraes formando uma infinidade de com- binações e operando uma diversidade infinita d'influen^ cias, que tem determinado o grau de perfeição intellectual a que podem chegar, como também da posição qu« devem oo~ cupar na escala politica e que nenhuma differença physica essencial existe entre as differentes nações.

Lançando uma vista retrospectiva sobre as revoluções das idades passadas e contemplando a variada scena da existên- cia humana, surprehende-nos a maravilhosa exposição, e não^ podemos deixar de reflectir seriamente sobre a instabilidade das cousas do mundo. Quando se pensa na queda d'imperios e de conquistadores, na extincçao de suas familias e na inefi> cacidade de seus projectos efeitos vê-se de quão curta dura- ção é a ambição humana. Os reis, os heroes, e os conquista- dores da antiguidade não existem já, e os seus nomes não são mais que uma palavra sem sentido. A sua posteridade ou se extinguio, ou os seus descendentes confundem-se com as massas sem clistincção. Muitos descendentes em linha recta dos mais celebres personagens da antiguidade encontram-se entre, os pobres trabalhadores e artistas dos nossos dias, e em

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quanto os seus progenitores dominaram a humanidade, os antecessores dos príncipes, os philosophos e os litteratos do moderno mundo levaram uma vida nómada e selvagem nos immensos escampados da Dinamarca, Norwuega, Suécia, Rús- sia, Polónia e Allemanha, paizes que estavam num estado de barbarismo quando a Grécia e Roma estavam florescentes nas artes e nas armas, e no apogeo da sua gloria. Tão com- pletamente revirado tem sido todo o poder humano, que uni dos mais celebres escriptores do século passado diz, que se não encontra uma familia, quer em Roma, quer em parte alguma da Itália, que com certeza possa provar a sua descen- dência dos antigos romanos. Taes são as vicissitudes d'esta mutibilidade que apresenta o mundo moral.

O philosopho que lançar um golpe de vista sobre o passa- do da humanidade e que contemplar com reflexão, o com- plicado e interessante drama da sua existência, no decurso das suas suceessivas e variadas scenas, desde as mais remo- tas datas históricas até aos nossos dias, notará sem difficulda- de que circunstancias imperiosas regem os destinos das na- ções e dos indivíduos; que varias combinações de causas moraes e pbysicas, incalculavelmente numerosas, e extremamente com plexas, determinam a condição politica, religiosa, intellectual « social da humanidade; que tudo concorre para o comple- mento d'um vasto e mysteiioso plano; e que a historia dos negócios humanos e a historia da Divina Providencia, são essencialmente uma e a mesma.

Estas observações e reflexões sobre a historia da nossa espécie são-vos oííerecidas a vosso próprio pedido; e sem du- vida reflectireis sobre as vicissitudes das cousas do mundo. Por muito elevada que seja a posição de qualquer indi- viduo, por muito larga e notável a sua esphera d'acção, ã sua duração é extremamente curta. O decurso d'alguns an- nos põe termo a todas as distincções, trazendo ao mesmo nivel o grande e o pequeno, o rico e o pobre, o vencedor e o ven- cido. Deveríeis vir por tanto a esta conclusão, que, como ■'uma representação dramática, pouco importa desempenhar

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o papel de príncipe ou de servo, uma vez que, acabada a representação, fiquem todos iguaes. Do mesmo modo deve ser objecto de nenhuma importância o papel que somos chamados a fazer no drama da vida, sendo a grande questão desem- penhar bem a parte que nos foi distribuída.

FIM

OARTÀ PRIMEIRA

A curiosidade é inlierente ao homem; importância em lhe dar um curso regular. Necessidade da leitura e da conversa- ção para adquirir conhecimentos. Differença entre a poesia, romance, e historia; preferencia devida a esta ultima. Obser- vações geraes sobre a natureza e aproveitamento da historia» Negligencia dos historiadores antigos, relativamente ás mais importantes matérias. Progresso das artes, sciencias, littera- tura e commercio etc. (1 a 6)

CARTA SEGUNDA

Se o estudo de historia deixa impressões tendentes a inspirar um ardor guerreiro. As razões porque muitas vezes pôde pro- duzir aquelles effeitos sobre ânimos juvenis. (7 a 12).

CARTA TERCEIRA

A vantagem de conhecimentos históricos para exterminar prejuízos mesquinhos e menos liberaes, pela exposição da in- fluencia de aystemas, e opiniões abraçadas. (12 a 14)

CARTA QUARTA

Innumeraveis vantagens que resultam do estudo da histo- ria; difficuldade em descriminar entre a verdade e a ficção •; os meios a empregar para aquelle fim. Observações sobre os ■escriptos históricos dos gregos e romanos. Observações sobre

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a historia ecclesiastica; circunstancias que se devem ter em conta íia estimação da probabilidade de factos e authentici- dade geral d'inforrnações históricas. (14 a 18)

CARTA QUINTA

Necessidade de conhecimentos de geografia e de chronolo- gia na leitura d'historia ; erros geográficos mais facilmente emendados do que enganos históricos e más interpretações. Attenção á geographia e chronologia muito conducente â re- tentiva bem como á perfeita comprehensão das informações históricas. (19 a 22)

CARTA SEXTA

Os conhecimentos de historia e geographia essenciaes n'uma educação liberal. A reminiscência dos detalhes minuciosos ciosos da historia, nem possível nem necessária; basta que uma perspectiva geral de historia se estampe no entendi- mento; grandes traços, factos notáveis e acontecimentos importantes de fácil retenção. (22 a 23)

CARTA SÉTIMA .

Uma noção geral da historia do género humano primeiras idades; período fixado para datar o começo da historia pro- fana. Revista geral da Escriptura Sagrada; conjecturas phi- losophicas sobre a creação; descripção mosaica da creaçâp em perfeita harmonia com os princípios conhecidos dapbilosoj ma natural; conformidade dos seis dias de trabalho na creação, segundo a exposição de Moizes, com aquelles princípios, con- cisamente examinados e explicados. Os livros da Escriptura Sagrada considerados distinctamente; breves erros acciden- taes na historia sacra não destroem a sua authenticidade ge- ral e não colhem argumento solido contra a Divina Authori- <dadé da religião enrista. (23 a 3,0)

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CARTA OITAVA

Revista da, historia sagrada continuada, e observações es- peciaes sobre a família de Nabocodonozor. (31a 38)

CARTA NONA

Exame geral do género humano durante o período que abrange a historia sagrada; estado da instrucção e commer- cio entre os índios, Egypcios, Tyrios etc. Observações ge- raes sobre Egypcios e Babylonios; origem do Zabaismo ou adoração na Babyionia dos corpos celestes; origem da astro- logia na Babyionia; futilidade infundada daquella sciencia ; analogia com as idé"as dos babylonios e menos conformida- de com a philosophia natural; sua extensa propagação e conti- nuada influencia sobre o espirito humano. Degeneração do Zabaismo em idolatria, obscuridade da historia dos assyrios e babylonios. Varias conjecturas sobre o espirito nacional dos babylonios. Descripçào do observatório e torre de Belus. Des- cripçào de Babyionia. Vantagens provenientes do plano vas- to e rural de Babyionia. Degeneração dos babylonios depois da morte de Nabocodonozor. Conquista de Babyionia por Cy- ro. Aspecto geral do mundo no tempo do império babyloni- co. Fundação de Roma. Estado primitivo de Roma. (38 a 60)

CARTA DECIMA

Estado da monarchia persa. Invasão da Grécia por Dário Hytaspe; por Xerxes; retirada de Xerxes; derrota de Mar- donio em Platea. Subsequentes acontecimentos na Grécia e Pérsia; devoção e caracter de Philippe, rei de Macedónia, seus preparativos para a guerra da Pérsia, sua morte trágica. Observações sobre o aspecto geral e importância das guerras entre os gregos e persas; caracter politico e militar d'Alexan- dre; dispõe-se para a guerra; fundação d'Aiexandria; sua mor- te em Babyionia; Observações geraes sobre o progresso das

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artes, sciencias, litteratura etc. entre os persas, egypciòs}, hebraicos e gregos durante o período que decorre entre a con- quista- de Babylonia por Gyro e do império da Pérsia por Alexandre, estado de Roma durante aquelíe tempo. Estado selvagem da Europa n'aquellas idades, reflecções geraes so- bre a vicissitude dos acontecimentos e os admiráveis designios^ da Providencia. (60 a 77)

CARTA UNDÉCIMA

As consequências da morte d' Alexandre; dissensões e tra- gica sorte dos generaes da Macedónia; effeitos da conquistada Pérsia considerados. Estabelecimento do reinado grego do Egypto por Ptolomeo Lagos; Alexandria feita capital; funda- ção da livraria Alexandrina por Ptolomeo Philadelpho ; tra- ducção da historia sagrada por sua ordem. Negócios dós He- breus; fundação do reino Asmoneano pelos judeos;, destrui- ção d'aquella monarchia pelos romanos; seu restabelecimento na família de Herodes o Grande; reducção final da Judea a província romani*. Gradual mas vagaroso adiantamento do poder romano; pequena extensão do território romano ; cos- tumes dos primeiros romanos; anaíysedo comportamento de Hanibal deixando de sitiar Roma em seguida á batalka de Cannas; rápido engrandecimento de Roma depois da conquis- ta de Carthago; suas com moções internas provenientes dos- partidos oppostos de patrícios e plebeos, que acabaram coma estincção do systema republicano do seu governo. Fundação do governo imperial de Roma; aspecto geral d'aquelle impé- rio; estado deplorável de Roma sob o systema republicano; exame do que individamente se chamava liberdade romaua ; tstado geral da sociedade entr© os romanos; se Roma foi em algum tempo mais opulenta do que no reinado d'Augusto; pro- gresso da sciencia e litteratura entre os romanos durante o- governo republicano. Introducção do luxo aziatico em Roma. Considerações sobre os poderosos eífeitos da eloquência anti- ga e a causa da sua força no estimulo das paixões; estado dai

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escravatura entre os antigos, especialmente os romanos ; cau- sas da sua existência e progressivo melhoramento d'aquella. infeliz condição; causas d'aquelle melhoramento. Reflexões so- bre a deshumanidade dos romanos para com os »eus prisio- neiros de guerra; estado do espirito humano em relação a idéas religiosas, antes da promulgação do christianismo; systema dos philosophos; opiniões populares dos philosophos sobre divindades intermediarias e subordinadas; uma futura vida; origem de Polytheismo, mythologia dos gregos e romanos ; origem da idolatria; promulgação do christianismo; rasões da sua rejeição pelos Índios; seu progresso entre os gentios p provas da sua authoridade divina dadas aos gentios d'aquelle tempo e idades posteriores na destruição total da cidade e templo de Jerusalém e final dispersão dos judeos. (68 a 120)

CARTA DUODÉCIMA

Golpe de vista sobre o império romano; summario das oe- correncias mais notáveis durante o governo imperial ; seu.) systema politico mais pacifico que o do governo republica- no; vantagens d'uma monarchia vasta; os seus súbditos mais- felizes do que os dos pequenos estados. O governo monarchi- eo preferivel ao governo republicano;: os romanos mais feli- zes sob o prirneiro que o segundo. Invasão dos Quacli, Alle- mães e Godos no império; infausto reinado de Galliano; os bár- baros rechassados e o império restituido ao seu antigo esplen- dor por Cláudio, Probo, Aureliano etc. Divisão do império por Diocleciano, Maximiniano etc; plano d'aquella divisão;:, elevação de Constantino á soberania indivisa. Revista da constituição romaria sob o governo imperial; systema militar dos imperadores; soldo e privilégios dos soldados das legiões; creaçâo do famoso corpo de guardas Pretorianas, seu soldo etc. numero e abolição final. Augmento do luxo e embellesa- mento da cidade de Roma no tempo dos imperadores; ves- tuário, divertimentos etc. dos romanos, declinação da littera- tura romana durante aquelle período; melhoramento da con-

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dição dos escravos sob o governo imperial. Perseguição dos christãos no tempo dos impérios; investigação das causas re- aes d 'estas perseguições; desculpa dos imperadores; cessa a per- seguição com a elevação de Constantino ao poder. (122 a 14 i)

CARTA DECIMA TERCEIRA

O reinado de Constantino constitue um periodo importan- te e interessantíssimo na historia do mundo; sua influencia nas idades posteriores; vista geral das occurrencias politicas e militares d'este reinado. Investigação dos motivos que le- varam Constantino a abraçar e estabelecer a religião enris- ta; fundamento das suspeitas de Gibbon, examinado; ana- lyse critica da authentieidade da visão de Constantino. (141 a 150)

CAFtTA DECIMA QUARTA

Estado da religião no reinado de Constantino, origem da differença d'opiniões entre os christãos. Concilio de Nicea; perseguição dos arianos. Construcção de Constantinopla e remoção da sede do impeiio; rasões d'esta mudança; situa- ção de Constantinopla muito preferível á de Roma; varias observações sobre a situação de Constantinopla em relação ás suas vantagens e desvantagens commerciaes; consequências da remoção da residência imperial examinadas; aquellas consequências mal representadas por historiadores; infelici- dade domestica de Constantino; reflexões sobre a infelicida- de domestica de muitos que tem gosado de prosperidade na carreira publica. (150 a 163)

CARTA DECIMA QUINTA

Inquerição critica do estado d'antiga Roma em rela- ção á sua área, opulência e população, numero de habitantes de Roma no reinado de Theodozio; observações sobre uma nota n'um tratado popular de geographia, comparação de

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Babylonia , Roma e Londres em relação á sua área e popu- lação, Londres uma cidade commerciaí -Roma não commer- eial ; observações sobre a estimação da população de Constan- tinopla, Cairo, Pekin, Moskow e San Pefcersburgo como nos dão os nossos livros de geographia. (163 a 169)

CARTA DECIMA SEXTA

Estado politico do império romano áesde a morte de Cons- tantino até á sua final subversão pelas nações do Norte; observações sobre a morte de Juliano; admissão dos Godos no império por Valens; consequências deste passo; derrota e trágica morte de Valens; reinado de Theodozio; final divisão do império, consequências cTaquella divisão: invasão das na- ções septentrionaes; saque de Roma por Alarico; reinado sanguinário d'Alarico; subversão total do império do Occi- dente; investigações das suas causas; estado das nações do norte meios pelos qnaes a vasta popalação de nações civili- sadas se sustenta; mostt a-so como esses meios são carentes nos povos bárbaros; conjecturas sobre o estado geral do im- pério e da cidade imperial anterior â sua queda. (169 a 182)

CARTA DECIMA SÉTIMA

Estado da religião depois da marte de Constantino; o aria- nismo triumpba em Constantinopla e na maior parte do 0- riente até ao reinado de Theodozio; concilio geral de Cons- tantinopla; Gregerio Nazianzeno; João Chrysostomo; sup- pressàono arianismo no império romano; abolição total do pa- ganismo por Theodozio; o arianismo é a religião dos godos n'aqueí e tempo; divizão do orbe christão em duas grandes i ixas e arianas. Origem das instituições monás- tica;-.; .não vantagens e desvantagens consideradas sob o pon- to de vista religioso e politico; probabilidade da sua próxi- ma abolição em todos os paizes. Bellos effeitos das mesma» nas idades gothicas. (182 a 189)

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CARTA DECIMA OUTAVÂ

Estado da Europa depois da destruição do império; ori- gem da mornarchia franceza.; estabelecem-se os saxonios na Bretanha; reino gothico da Itália; conquista da Itália por Be- lizario e Narses; reinado de Justiniano; sua prosperidade e caracter; comparação da sua fortuna com a de muitos outros dos mais florescentes príncipes; caracter de Belizario e de Narses; estado do império do oriente no tempo de Justinia- no.— Introducção da seda na Europa vinda do Oriente. Estado do império do Oriente depois da morte de Justiniano; guerra destruidora entre aquelle império e a Pérsia; factos notáveis d'aquella guerra aspecto geral do reinado naquel- le período. Origem do mahometanismo; politica de Mahomet; plano e principies do seu systema; suecessos extraordinários de Mahomet e dos seus suceessores em consequência dista- rem exhaustos e debilitados os dous impérios de Constantino- pla e Pérsia pelos esforços mútuos empregados um contra o outro; observações sobre a destruição da bybliotheca d'Ale- xaudria; conquista dos califas mahoinetanos; seus feitos mi- litares mais espantosos que os d'Alexandre; investigação das causas a que se devem attribuir; systema politico do império dos califas; varias conjecturas sobre o estabelecimento dos árabes na península da índia e Ilhas Orientaes. (190 a 213)

CARTA DECIMA NONA

Desenho do génio e hábitos dos árabes e sarracenos; pro- gresso da sciencia e litteratura sob os califas; notável diífe- rença entre a sua litteratura e estudos scientificos e aquelle s dos gregos e romanos; commercio naquellas idades; aspecto geral do mundo; da Europa; do império do Oriente; do cali- fado; guerras entre estes últimos; invenção do fogo grego; seus effeitos; estado da egreja christã; conversão das nações arianas; introducção das imagens nas egrejas; causas a que se deve attribuir; suas consequências; rompimento entre as egrejas grega e latina por este motivo; segundo concilio de

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Constantinopla; vista da Europa durante aquelle período^ elevação de Pepino e Carlos Magno; fundarão do império germânico; esforços de Carlos Magno em favor da restaura- ção da litteratura. Desmembramento do império de Carlos Magno; rápido desenvolvimento do systema feudal; obser- vações sobre este systema; origem da constituição germâni- ca; desmembramento do califado; estado do império do Orien- te; origem e frequência das romarias a Jeruzalem. (213 a 227)

CARTA VIGÉSIMA

Origem das cruzadas; revista d'aquellas guerras religiosas; conquista de Jeruzalem; fundação e queda do império chris- tâo do Jeruzalem; tomada de Constantinopla e arrazamento d'aquelíe império pelas cruzadas francezas e venezianas; im- mensa preza; fundação do império latino de Constantinopla e do império grego da Nicea; recuperação de Constantino- pla pelos gregos e queda do império latino; efifeitos das cru- zadas; progressiva abolição do systema feudal; observações geraes; poderio da egreja e da papal; animosidade en- tre a egreja latina e grega; diligencias para a sua reconcilia- ção; investigação das causas d'aquella animosidade; grande scisma na egreja latina; procura-se saber a causa extraordi- nária da elevação da egreja e do p^der do papa; estado da Europa depois das cruzadas; estado do império do Oriente e da litteratura bysantina; primeiras noticias históricas do im- pério russiano; renascimento da litteratura e das artes na Europa; estado da cidade de Constantinopla, de Londres e d'outras capitães europeas; palácio imperial de Constantino- pla; conquistas dos tártaros sob Gengis Khan e seus succes- sores sob Tamerlan; decabimento do império de Constan- tinopla; tomada d'aquella cidade pelos turcos; eífeitos da to- mada de Constantinopla; sobre a litteratura europea; intro- ducção da lingua grega na Europa. (227 a 247)

CARTA VIGÉSIMA PRIMEIRA

Progresso rápido da litteratura e artes na Europa; in veti-

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çfto da imprensa; incalculáveis benefícios draquella descober- ta; rápidos melhoramentos no commercio; viagens de desco- brimento pelos Portuguezes; descobrimento da passagem para a Ilidia pelos Portuguezes; estado do commercio da índia an- terior áquelle acontecimento; descobrimento d'America; con- quista do México e Peru pelos hespanhões ; observações ge- raes; origem da escravatura; effeitos salutares do estabeleci- mento do christianismo sobre o systema d'escravatura entre os romanos; desapparecimento progressivo nas condições da escravatura negra, probabilidade do seu futuro acabamento; observações sobre a revolta de San Domingos. (247 a 269)

CARTA VIGÉSIMA SEGUNDA

Consequências importantes do descobrimento d'America; introducção de novos artigos de luxo; afHuencia na Europa do ouro e prata da America e seus effeitos sobre o systema so- cial e commercial; diminuto valor da propriedade europea an- terior ao descobrimento do novo mundo; observações geraes sobre a circulação d'ouro e prata em differentes idades e pai- zes; investigação de varias questões curiosas e interessantes levantadas sobre este objecto. Effeitos dos descobrimentos d'Amerioa em relação á propagação do christianismo. Esta- belecimentos feitos pelos portuguezes no Oriente sob o cele- bre general Albuquerque; vasto império commercial dos Por- tuguezes; sua elevação e queda; reforma de religião; suas cau- sas, progresso e effeitos ; as perseguições religiosas não se compadecem com a rasão e caridade ehristà; feliz predomínio do espirito de liberdade religiosa. (269 a 285)

CARTA VIGÉSIMA TERCEIRA

Progresso de melhoramentos geraes nos tempos modernos; observações sobre as consequências da invenção da pólvora; vista passageira sobre as transacções transcendentes nos mo- dernos tempos; engrandecimento da casa d^Austria, sua de- pressão; revolta dos Paizes Baixos; fundação da republica de Batavia; armada hespanhola; engrandecimento da França

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sob Luiz 14: civilisaçào e engrandecimento da Rússia: revolta (TÀmerica; fundação da republica americana: observações so- bre as consequências remotas ruas certas d'aqueile aconteci- mento: mudanças que forçosamente hão de produzir sobre os negócios do velho mundo: observações sobre o incremento rápido e extraordinário do commercio e poder naval da Grran Bretanha; sobre a revolução franceza e guerra que depois suecedeu: esforços extraordinários da Fiança e Gran-Breta- nha: differentes opiniões e sua analyse sobre as vantagens d'a- quella guerra; consequências prováveis se a Gran-Bretanha se conserva neutral ; posição diincil do gabinete britâni- co naquella conjunctura: inconsideração por parte d'aquelles que querem censurar as medidas dos seus superiores sem co- nhecimento de causa. Observações sobre a divida nacional e contribuições; a contribuição, objecto pouco comprehendido; os seus efieitos não são aquelles que geralmente se suppõe; exame da questão, até que ponto a divida nacional e pesadas contribuições tendem a empobrecer uma nação: efieitos recí- procos de riqueza nacional e contribuições pezadas entre si e sobre a sociedade; contribuições altas são consequências neces- sária de grande riqueza nacional; exemplificação do assum- pto na comparação entre a Gran-Bretanha e a Rússia; os súb- ditos britânicos podem melhor pagar contribuições que os de qualquer outro paiz; influenciadas contribuições sobre as ma- nufacturas. Observações sobre as consequências e tendência da guerra; vantagens do systema tributário observações so- bre a difiusão de opulência e luxo nos tempos modernos; ob- servações sobre a natureza e consequências do que se chama luxo- Estado das nações d' Azia e Africa; investigação das causas porque algumas nações tem excedido outras em me- lhoramentos scientificos e litterarios e porque muitas se achão ainda no estado selvagem; observações especiaes acerca dos índios e chinas concernentes a este importante ponto; in- querição geral se a differença que notamos no estado do espi- rito humano em differentes partes do mundo provem d'uma .differença essencial nas espécies.

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