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A RUA

DO OIRO

DE ALFREDO MESQUITA:

JcLio César Machado (retrato litterario) i vol.

Portugal Moribundo i vol.

Vida Airada i vol.

De Cara Alegre i vol.

Terras de Hespanha i vol.

Cartas da Hollanda i vol.

Lisboa i vol.

Memorias de um Fura-Vioas i vol.

A Rua do Oiro (romance) i vol.

ALFREDO MESQUITA

A RUA

DO OIRO

ROMANCE LISBOETA

LISBOA

Livraria Editora Viuva Tavares Capdoso

Largo de Camões, 3 e 6

igoS

Tjp Piobairo, R. Jiirdim do Regedor, 41

A RUA DO OIRO

as Camarás estavam abertas, havia quasi dois mezes, quando clieguei a Lisboa, numa ene- voada quarta-feira de Comadres, com grandes ameaços de chuva, e um vento forte, ás lufadas, que dos lados da Barra soprava e espalhava no céo as cinzas de um aguaceiro, e me levava o chapéo de coco de rebolao, pela ponte da Alfan dega, onde desembarcámos, ati á casa do Des- pacho, onde deyiamos esperar as malas.

Tínhamos que esperar por essas malas !

Eu devia achar-me em Lisboa, segundo os meus cálculos e os dos meus amigos políticos, desde os fins de dezembro, para comparecer nas Cortes logo no dia da abertura, e acompa- nhar desde esse dia, com muita assiduidade e zelo, todos os trabalhos parlamentares.

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Para isso havia eu recebido aquelle muito honroso mandato I

Era bem certo, porém, como sempre ouvira dizer a minha Tia Maria da Assumpção, senh.ora de amplas nádegas e de profundos conceitos que o homem punha e Deus dispunha. Uma inesperada angina pectoris surprehendera-me na véspera da partida, com a roupa mettida nas mahis e a passagem tomada no paquete.

Estive dez dias de cama, com febre de trinta e oito graus, cinco cobertores de papa, e duas tias á cabeceira : a minha querida Tia Genoveva Sampaio do Amarai. d\im lado ; e a minha prc- sada Tia Maria da Assumpção Carneiro de Ama- rante, do outro.

Ao decimo dia tive alta, que me foi dada pelo complacente Doutor Tristão, o mais alegre fa- cultativo que tem exercido clinica com a carta do curso da Escola Medica da Madeira, e que era o medico da nossa casa desde que eu me entendia mesmo antes de eu me entender pois fora elle quem assistira aos últimos mo- mentos de minha Mãe, que Deus haja, viuva ao Sexto mez de gravida, e victima, depois, de uma peritoniie puerperal, sobrevinda ao parto infeliz de que eu vim ao mundo.

Mas se eu fizera mal em pedir alta, peor fizera o Doutor Tristão em m'a conceder prom-

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piamente sempre muito receioso de que o doen- te podesse suppôr ter elle empenho em demorar a doença para augmentar a conta das visitas.

Quiz abreviar a convalescença, sahi de casa ao segundo dia depois de deixar a cama, apa- nhei humidade c recahi com febre ainda mais intensa.

Minhas Tias, embora se guardassem bem de m'o dizer, tinham tido com essa recahida um muito intimo jubilo.

A Tia Genoveva, irmã de minha Mãe, e a quem minha Mãe pedira, á hora da morte, apertando-lhe muito ambas as mãos, e com o vidro dos seus claros olhos azues embaciado que não me desamparasse e me amasse tanto como ella decerto me teria amado, se tivesse vivido— a Tia Genoveva, dizia eu, fora das qua- tro filhas do Desembargador Manoel Augusto Soares do Amaral, a única que se conservara solteira, e que muito propositadamente quizera ficar para tia para minha tia, tendo sido a mais formosa das quatro irmãs, e a mais re- questada de todas ellas, pelas condições de excepcional encanto com que a natureza a do- tara, já pelas condições de desusada fortuna com que a dotara João Maria Soares do Ama- ral, que tendo voltado do Brazil com uma ri- queza e um ataque de béri-béri, apaixonara se

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também por a sobrinha, mas guardara comsigo o segredo d'essa paixão, de que só^ se veiu a saber quando se lhe abriu o testamento, em que elle constituía minha Tia Genoveva sua universal herdeira...

Tanto a peito esta bondosa Tia tomou o meu triste caso de pequenino órfão desamparado, que me não deu maminha porque não poude ; pois de tudo o mais quanto sabe dar-nos em cuidados, caricias e cueiros sempre frescos, um verdadeiro amor de mãe, a Tia Genoveva foi pródiga, e comparável, nesses extremos por mim, áquella nossa velha gata maltesa Mange- rona, que d'uma vez creou e acarinhou com muito enleio materno, a um canto da estreba- ria, uma ninhada de patinhos cinzentos, como se fosse uma ninhada de gatos. '

Quando eu nasci, tinha a Tia Genoveva vinte annos, engrinaldados de purezas e de en- cantos simples, como de rosas brancas de tou- car. O luto de que ella se cobriu por morte de minha mãe, ainda mais pôz em realce a formo- sura da sua pelle clara e dos seus cabellos loiros, e mais amavelmente contornou as ma- ciesas redondinhas do seu busto.

A nossa casa, que ainda hoje é a mesma, fi- cava situada no caminho do histórico castello de São João Baptista, onde se achava aquarte-

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lado o regimento; e como por ali transitasse, todos os dias, á ida e á volta do serviço, a briosa oíficialidade de Caçadores lo, era de vêr, segundo ainda hoje se conta na familia, a chamma que brilhava no olho dos alferes, quando passavam, arrastando e tilintando as es- padas, por baixo das nossas janellas, e a Tia Genoveva assomava, descuidosamente, a algu- ma d'ellas.

Depois, quando se abriu o testamento do Tio João Maria, e a noticia da herança correu de serra em serra como corre uma levada, não eram os alferes, eram outros offi- ciaes de patente superior, majores e coro- néis, que chegavam a pedir transferencia de re- gimento, e vinham, todos empennachados, pas- sar por baixo das nossas janellas, com um barulho guerreiro de esporas e de espadas, co- mo nas cargas -rutilantes dos grandes quadros de Détaillel

Houve um momento em que o espirito oc- culto da Tia Genoveva influiu poderosamente na Ordem do Exercito.

E num dia de grande gala, em que o regi- mento sahia do Castello para vir formar em frente da Sé, onde havia Te-Deum, ao passar por casa do Desembargador Amaral, ruidosa- mente a banda rompeu o Noivado do Sepul-

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chro, que era a musica predilecta da Tia Ge noveva.

Tia Genoveva, porém, apenas sorria, muito á flor dos lábios, da maluqueira amoruda em que a sua pessoa lançava tanto official su- perior.

Debalde as Primas Rochas e as Primas No- ronhas, e o Primo Theodosio, secretario dos amantes e da Administração do Concelho, dili- genciavam estimula-la ao amor, com aquelle em- penho que tiveram sempre em arranjar casa- mentos, para sempre andarem mettidos em bo- das e em baptisados.

Em vão lhe preparavam ciladas de namoroi combinando entrevistas, entregando lhe missivas perfumadas, levando-lhe declarações e amores perfeitos espalmados entre folhas de livros de missa.

Com um leve gesto de recusa, a Tia Geno- veva sacudia-os a todos, galhofando ; e eram para mim, para mim, exxlusivamente para mim, a festa dos seus affectos e a prodigalidade dos seus mimos.

Tive sete amas, e todas ellas de freguezias diversas, porque desde que alguma se queixasse de uma dôrsinha no peito, ou acontecesse ende- iluxar-se nalguma corrente de ar, logo a Tia Genoveva a despedia, para que o leite pertur-

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bado não me contaminasse de algum mal, e iontractava outra.

Corri três collegios, e todos elles de meninas, antes de ser admittido a exame de instrucção primaria.

Todo o meu curso do Liceu o fiz com sen- tinella á vista, tendo sido necessário para a rea- lisação d'este complicado desideratum da Tia Genoveva, que o Reitor auctorisasse a entrada nas aulas, como alumno livre, ao Manoel Igna- cio, creado velho da casa de meu Avô, que an- dara com minha Mãe e minhas Tias ao collo, e agora me acompanhava á mathematica e á fí- sica, para tomar conta em mim, não perder de vista um único dos meus movimentos.

Tinha quinze annos quando acabei o curso, e todo um anno mais se passou antes que a Tia Genoveva se decidisse a separar-se de mim e a mandar-me para Coimbra cursar Direito, que era o meu sonho doirado de bacharel embrio- nário. Ainda se fosse viável a idéa, que a boa senhora chigou a expender, de mandar o Ma- noel Ignacio acompanhar-me durante a forma- tura I . . .

E como depois que me vira embarcar, muito recommendado ao capitão do navio e ao dispen- seiro de bordo, nunca mais me tornara a ter junto de si senão durante o breve tempo de fé-

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rias, agora, que eu regressara á Ilha, com o meu curso e com o meu diploma, feilo doutor e homem feito, ella não se atrevia a exercer sobre mim a mesma carinhosa vigilância d'ou- tros tempos, que era bem uma perseguição, mas uma doce perseguição ; e chegava então a rejubilar com os meus incommodos de saúde, desde que esses incommodos me obrigassem a não sahir de casa, sem que todavia tomassem o mais leve aspecto de gravidade.

Quanto á Tia Maria da Assumpção, o motivo que a prendia á minha cabeceira, e o seu parti- cular contentamento de me ver assim prostrado no leito da dôr, eram bem outros.

A Tia Maria da Assumpção Carneiro de Ama- rante, viuva aos trinta e oito annos de idade e ao segundo amo de casada, de meu Tio Ma- noel Felisberto de Amarante, irmão de meu Pae, e grande exportador de laranja para a In- glaterra, nunca tivera por mim um decidido aífecto, e bastas vezes me torcera beliscões em pequeno, para melhor demonstrar, por essa pratica fácil e muito intuitiva, uma das suas ponderações favoritas: «que era de pequenino que se torcia o pepino.»

Sempre embirrara commigo, nunca eu soube porquê, e me achava insupportavel, chamando- me de continuo grande bicho fervedoiro e alma

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do diabo, c não sendo cu senhor de mexer um dedo, nem dizer uma oalavra em sua augusta presença, sem que ella revirasse logo para mim o olho verde ameaçador, reprimindo um Ímpeto e mordendo o beiço de baixo se a Tia (}enoveva estivesse, chegando me logo um sopapo se eu estivesse com ella.

Tendo minha Mãe pedido á Tia Genoveva que na pia do baptismo me pozessem o nome de Joaquim (que era o nome de meu Pae) e tendo depois a Tia Genoveva decretado a toda a gente da casa, creadas e creados, quinteiros e quinteiras, que não queria que me tratassem por «Joaquimsinho», nem por «Menino Joa- quim», mas por esta mimosa abreviatura de o Quinino», que ainda hoje familiarmente se em- prega lá em casa, quando se fala de mim sempre a Tia Maria da Assumpção tirara d'esta simples coisa carinhosa, que era agradável á. Tia Genoveva, e de que eu gostava também, um estigma de ridículo para lançar sobre a mi- nha fraca pessoa: e quando a mim se referia, ou quando por mim chamava, tratando-me tam- bém por «Quinino», de tal modo transtornava, e tão propositadamente, o que naquelle diminui- tivo havia de mimo e de bondade, tal intonação de dois sentidos lhe dava, que eu bem percebia querer ella dizer, na sua, que aquelle «Quinino»

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lhe era tão desagradável e antipathico como o outro quinino que se toma para as febres, e cujo mau sabor lhe vinha á bocca, desde uma vez que, ainda em solteira, se lhe esborrachara na lingua uma hóstia d'esse sulfato.

muito mais tarde, depois que concluí o meu curso do Liceu, e comecei a entrar, ás apalpadellas, no entendimento aproximado das coisas d"este mundo, é que me veiu á idéa, na conjectura retrospectiva de alguns factos e epi- sódios que mais me haviam impressionado du- rante as primeiras lettras que o principio d^aqueila atroz embirração de m.inha Tia por mim, coincidira justamente com o periodo agudo da sua desditosa viuvez, em que a pobre se- nhora soffrcra de um permanente frenesi, fre- quentemente acompanhado de ataques de ner- vos que lhe davam para rasgar as mangas do •roupão e morder o travesseiro. E cheguei então a pensar que, se a esse tempo eu podesse saber o que depois vim a saber, talvez as coisas se tivessem harmonisado entre nós, a contento da Tia Maria da Assumpção e a meu contento, pois por mais d'uma vez cu pensara, contem- plando a sua frescura, que muito devia ter cus- tado ao Tio Manoel Felisberto separar-se d'ella tão cedo e para sempre I

Em Coimbra, com as noitadas e regabófes

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inherentcs á Faculdade, prejudiquei tanto os meus bronchios, que, depois de concluir a for- matura, e de voltar para a Ilha, continuei a sof- frer d'elles amiudadas vezes; e sempre era o alegre Doutor Tristão que me prestava os seus soccorros médicos.

O meu escriptorio de advogado, ao voltar da Rua da Esperança para a Miragaia, ficava mesmo defronte da casa da Tia Maria da As- sumpção ; e de cada vez que eu não ia ao es- criptorio, era sabido que logo apparecia em nossa casa a Gertrudes Gaga, sua creada de fora, a perguntar, com a fala muito tarda e a expremer-se muito nos quês se o senhor Dou- tor Quinino estava doente.-, se tinha sido preciso mandar chamar o medico. . .

E se lhe respondiam que sim, ahi largava elia a correr, a levar a noticia á Tia Maria da As- sumpção, e ahi tínhamos nós, pouco depois, a Tia Maria da Assumpção, toda açodada, aos puxões na borla de verde da campainha da porta, muito aíflicta, a querer que lhe dissessem, ainda na escada, se tinham mandado chamar o Doutor Tristão, e o que tinha elle dito, e se dissera que voltava.

Depois, sentava-se me á cabeceira, e dir-se-ía que toda ella se desfazia em cuidados e disve- los, como se quizesse penitenciar-se para com-

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migo, e por esse modo, do muito que me tor- cera e retorcera em pequenino, como quem tor- ce e retorce um pepino.

Eu nunca fui de guardar rancores, como cer- tas creaturas que tenho conhecido em minha vida, ou como a mula do Papa, que sete annos guardou o formidável coice ; e depressa esque- cera, com a ida para Coimbra, os beliscões, as reprimendas e os maus olhados da Tia Maria da Assumpção, que tanto me irritavam e me affligiam.

Mas de cada vez que a via apparecer á porta do meu quarto de doente, sorridente e affavel como uma irmã de caridade a consolar um tris- te, vinha me logo á lembrança o tempo em que ella me maltratava e me detestava, me chamava bicho fervedoiro, alma do diabo e Quinino... mas quinino sulfato I E attribuindo apenas a uma questão de tempo e de ausência a profunda mudança que se havia operado nas nossas rela- ções, que eram agora evidentemente cordeaes (como no Discurso da Coroa as relações de Por- tugal com as demais potencias), dava graças a Deus por ter cessado esse conflicto, e não pen- sava sequer em descobrir outras jazÕes.

Bem longe estava eu, bacharel ingénuo em Direito, de suspeitar que andava sendo intrujado por tão sabida senhora I

A RUA DO OIRO I7

Minha Tia Maria da Assumpção, vinte annos volvidos sobre o funeral de primeira classe de meu Tio Manoel Felisberto, não poderá confor- mar-se com a pouca sorte de ter estado ca- sada dois annos (lapso bem curto, com eífeito, quando os casados se entendem e de bom grado se submettem ás leis da Natureza no que res- peita ás relações dos sexos) ; e todas as suas attenções de viuva inquieta e inconsolável in- consolável não pela perda do primeiro marido, mas por a falta de um outro se voltaram para quem ? Para o Doutor Tristão I

Eu nunca teria dado por tal, se o Theodosio, ainda hoje secretario da Administração do Con- celho, m'o não houvesse denunciado, declarando que era eu, em toda a Ilha, talvez em todo o Archipelago, a única pessoa que o não sabia. Mas desde que o Theodosio m'o disse, e entrei a observar as attitudes de minha Tia quando e onde quer que estivesse em presença do Doutor Tristão, facilmente percebi que ella perseguia o nosso medico com o mais porfiante e descarado namoro que se possa imaginar. Porque não era com os olhos, verdes e fixos, que ella procu- rava perturbar a invejável tranquillidade de alma do Doutor Tristão, que tão sabiamente e parcamente regulava as necessidades do seu celibato pelos conselhos prudentes de Raspail :

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era com o pé, pisando o d'elle, de cada vez que podia ; era com a perna, sempre que se sen- tava ao seu lado; era com o joelho, se lhe fica- va na frente.

E auxiliando a acção d"estes meios mais dire- ctos, mas mais perigosos, de ataque, era com enormes travessas de fios dovos salpicados de confeitos, e levados a ponto pelas suas preciosas mãos ; ou com magnificos cabazes de fructa da sua quinta de São Carlos ; ou com soberbos ra- mos de dhalias colhidas no jardim da sua casa da cidade que ella se lhe declarava, se lhe escancarava. . .

Ella confessara uma vez á Tia Genoveva que fizera a promessa de andar vestida ao Carmo, com escapulário e correia, até ao dia em que Nossa Senhora lhe permittisse voltar aos pés do altar para ser recebida outra vez em casamento. Mas parecia que Nossa Senhora gostava mais de a vêr com aquelle habito, de escapulário e correia, e não a deixava mudar de figurino. O ale- gre Doutor Tristão ia comendo e saboreando, ás sobremezas, as travessas de fios d'ovos ; de- vorava as peras e os pecegos de São Carlos, cora a casca ; enchia de dhalias sempre frescas as jarras da sua sala ; e brandamente fugia á Tia Maria da Assumpção —com a perna e com o joelho por causa das conveniências, e com o

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por causa dos callos, que os tinha imperti- nentes, um em cada dedo mindinlio.. .

A minha eleição para deputado tinha-se feito limpamente, independentemente, sem violência, sem atropelo, sem carneiro e sem batatas.

Eu sahira eleito pelo voto livre, e esta circums- tancia anormal em actos eleitoraes, se por um lado era grata á minha vaidade ainda timida, e acariciava o meu amor próprio como a festa que se faz a um gato, passando-lhe a mão sobre o lombo, ao correr do pêlo, por outro lado im- punha-me responsabilidades e enchia-me de in- quietações.

Eleito deputado a sério, eu tinha de ser um deputado a sério ; e esse caso intimidava-me, as' sustava-me quasi, porque o papel de uni repre- sentante do povo a sério, no meio de cento e tantos que o eram por troça, tinha de ser uma verdadeira creação.

Mal eu chegara de Coimbra com o meu curso, e começara a exercer a advocacia, com uma certa frescura de loquela a que não estavam habituados o auditório e os jurados das causas crimes da minha Ilha, logo as attençÕes da terra se haviam voltado para mim, e se pensara e se dissera, á bocca pequena, que eu devia dar um

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excellente deputado. Mas ninguém se atrevera ainda a dizé-lo em voz alta, porque o respeito da tradição, solidamente enraizado nos ânimos terceirenses, não admittia a tentativa de uma disputa eleitoral, emquanto fossem vivos o Có- nego Pinto e o Machado da Botica, progressistas, o Barão da Terra-Cha e o Pompeu, regenerado- res, que ha vinte annos se davam a alternativa nas candidaturas por Angra.

Por isso, dobrado foi o espanto quando, uma vez, tendo chegado por uma mala inesperada a noticia de que haviam sido dissolvidas as Gama- ras, e em plena reunião do Centro regenerador, presidida pelo ferrenho Maia, grande amigo do Fontes, e cunhado e sustentáculo do Pompeu ; e tendo sido dada para ordem da noite «a atti- tude do partido em face da ultima prepotência do governo» o. Doutor Tarquinio, pedindo a pa- lavra, se assoara e tossira com estrondo, arras- tara os pés, estabelecera uma silenciosa atmos- fera de anciedade (porque a sua palavra era sempre esperada e ouvida como a ultima pala- vra) e depois de muito ponderar, muito consi- derar e muito fundamentar a necessidade de es- colher novos elementos de combate para as lu- ctas, cada vez mais alterosas, do Parlamento, abertamente e á queima-roupa alvitrara a minha candidatura nas próximas eleições !

A RUA DO OIRO 21

O golpe era de mestre, e mestre de maráus.

Toda a gente sabia que o Doutor Tarquinio não podia vér-me desde que eu abrira escripto- rio e entrara a advogar porque advogado era elle, e para Angra elle bastava. E eu bem o sentia, sem lhe querer mal por isso, que Tar- quinio era o meu grande inimigo !

Tarquinio exercia a advocacia desde os tem- pos remotos em que Tristão começara a exercer a clinica. Muito antes de mim, e muitos outros haviam tentado estabelecer na Ilha essa legitima concorrência de jurisconsultos, a que se oppu- nham sempre, tão encarniçadamiente, os interes- ses, aliás também legitimes, do açambarcante Doutor Tarquinio.

Acobardavam todos, porém, e succumbiam. Tarquinio, triumfador, tornou se facilmente Tar- quinio despótico ; c quando eu cheguei, e co- mecei, tive logo a minha sentença lavrada : Tar- quinio esborrachar me-ia como se esborracha uma pulga sob a pressão implacável do seu muito saber e da sua unha muito crescida e muito suja.

Alguns amigos e parentes chegaram a acon- selhar-me que pozesse de parte a idéa de advo- gar, e que pensasse noutra coisa. A lia Geno- veva, essa, foi mais longe : chegou a confessar me o susto constante em que a trazia agora o receio

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de que Tarquinio exercesse sobre a minha fraca pessoa alguma forte violência !

Por modo que, quando Tarquinio pediu a pa- lavra no Centro regenerador para lembrar o meu nome, quasi para propor a minha candida- tura, e quando depois, no Club, nessa mesma noite, e em toda a cidade ao outro dia, tal se ouviu e se espalhou, a surpreza fora ge- ral, não atinando ninguém com a explicação que tão estranho caso poderia ter ; e dos amigos e correliigonarios políticos do Doutor Tarquinio, os que não suppunham aquillo uma grande abnegação, diziam que o seu nobre amigo e correligionário perdera a mioleira.

eu e a Tia Genoveva não creámos illusões a tal respeito.

Evidentemente, para nós, Tarquinio tinha esta fisgada : preparar-me uma candidatura como se me preparasse uma embuscada ; fazer-me eleger como se me fizesse amordaçar ; e despe- nhar-me no Parlamento, como se me lançasse a um abismo.

Todas estas imagens, que faziam estremecer de terror a Tia Genoveva, me fizeram apenas sorrir a principio, achando divino esse|,Tarqui- nio em quem Tristão quizera"vêr um começo de mania de perseguição, quando aquillo era, afinal, um pittoresco e fundo despeito pelo mo-

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desto êxito que eu mal começava a disfructar no foro.

Porémi, franqueza, franqueza, a idéa da can- didatura não me fora desagradável de todo em todo, antes determinara em mim um certo so- bresalto, que não era outra coisa senão aquella cubica do prestigio e da influencia politica, de que uma tão risonha noção eu tinha desde o segundo anno do meu curso de Direito.

Procurei o Doutor Tarquinio, resolutamente, depuz nas suas mãos todos os penhores da mi- nha gratidão, e declarei-lhe que não deixava de me convir a candidatura, embora me sentisse mal provido de forças para corresponder hon- rosamente á sua tão espontânea quanto gene- rosa iniciativa.

EUe rejubilou com a minha annuencia, abra- çou me paternalmente, dissuadiu-me de piegui- ces, deu-me conselhos, veiu acompanhar-me até á porta, e chegou a sahir á rua, em chinelas de casimira bordadas.

«O meu amigo está novo, tem todo o san- gue na guelra, talento não lhe falta, um largo futuro o espera na politica e na publica admi- nistração. Folgo muito em que acceite a minha idéa, porque a sua eleição não será um grande bem para o meu amigo, será um grande bem para a pátria!»

24 A RUA DO OIRO

E como sentisse que era boa a frase, e lhe seria penoso encontrar outra melhor, ou pelo menos tão boa, para sellar com. solemnidade essa nossa primeira conferencia, apertou me muito sacudidamente a mão, e metteu-se á pressa para dentro, sem querer ouvir mais nada.

Na Rua de Jesus, onde Tarquinio morava, não apparecia viv'alma a essa hora da tarde. Era tarde de toiros em São João de Deus, e a cidade parecia morta.

Olhei para o lado da Rocha, olhei para o lado da Rua da Sé, olhei para todas as casas e para todas as janellas, ninguém... Tinha ido tudo para os toiros I

Dominado então por um único pensamento, que me absorvia e me obcecava nesse instante, parei a meio do passeio, carreguei o sobr'olho, estendi um braço para a frente, e disse, em voz alta :

«Senhor presidente, peço a palavral»

Uma voz conhecida, diabolicamente occulta por detrás de mim, respondeu :

«Tem a palavra o illustre deputado. .

Voltei-me, como por um salto de mola. E uma grande risota correspondeu a esse meu movi mento.

Era Theodosio, o Primo Theodosio, que de

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longe me vira entrar para casa do Doutor Tar- quinio, no momento em que atravessava a Rua da Sé, indo para os toiros; mas, voltando-sc para trás, e mettendo-sc num portão, ahi se pozera á espera de que a conferencra acabasse, para d'ella saber, antes de mais ninguém, o re- sultado.

Perdera dois toiros, com certeza, e Deur, sabia quanto isso lhe custava ; mas não seria a elle que eu poderia negar ter-me demorado cinco quartos de hora em casa do Doutor Tarquinio, a combinar a eleição.

«Agora, meu caro primo dizia me Theo dosio passas a ter em mim um adversário po- litico de temer. No meu tempo, a verdadeira politica era servir os amigos, e d'esse nobre principio aproveitei eu ainda, que muito galopi- nei sempre ao lado do Maia, e pelo Maia fui servido. . . Hoje, está tudo mudado, e o nobre principio, em politica, é servir os inimigos antes de mais ninguém. Ora, tu sabes que a Adminis- tração do .Concelho me uma miséria des- oito mil e tresentos, a secco. Ando ha cinco annos a pedir que me nomeiem para a biblio- theca do Liceu, que está entregue a um contí- nuo, desde que morreu o João Horácio, e o mais que tenho conseguido é que ainda não nomeias- sem outro, á espera, diz agora o Maia, de que os

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regeneradores caiam e voltem os progressistas, que talvez então me nomeiem... Os progres- sistas, primo I Nomeado pelos progressistas, eu, Theodosio, que tenho sido toda a minha vida, e com muita honra, ó grande inimigo dos pro- gressistas I»

Um foguete de três respostas estalou no ar, ao longe, para os lados de São João de Deus. Devia ser o recolher do segundo toiro. Theodosio teve um sobresalto, apressou a con- versa.

«...Sei que te propões a deputado indepen- dente. Não faço bem idéa do que seja um de- putado independente, mas tu o sabes, e isso basta. Mas imagino que os deputados indepen- dentes se inventaram para contento de progres- sistas e regeneradores ao mesmo tempo, e eu preferia então que fosses tu quem me arranjasse o logar na bibliotheca. Era uma nomeação extra- partidária, que me deixava os movimentos li- vres ...»

«Pois está ditol» respondi eu, para respon- der alguma coisa.

Mas logo Theodosio tomou essas palavras ditas no ar, mais para me vèr livre d'elle do que para outra coisa, como um compromisso politico. E numa carreirinha, pela rua abaixo, raspou-se para os toiros.

A RUA DO OIRO 27

mais tarde é que cu vim a saber que, em politica, muitas vezes uma simples palavra dita no ar vem a trazer-nos depois embaraços muito peores que os que pode crear-nos uma palavra de honra.

•II

o meu primeiro cuidado, logo que tive as malas despachadas, me metti numa tipóia e cheguei ao Hotel, foi informar-me com precisão do estado das coisas publicas, e do que se fizera no Parlamento durante a minha angina pectoris.

O Hotel era o Borges, ao Chiado, no coração da metrópole, em pleno foco da civilisação, a dois passos da Havaneza e da missa do Loreto, que eram as primeiras e grandes emanações d'esse foco.

O Borges reunia, então, uma avultada e distincta clientela de deputados, e embora o Governo se achasse sempre cm maioria entre os hospedes, era cordeal o convívio de todos, e estava-se ali perfeitamente, extra-parlamentar- mente á vontade.

3o A RUA DO OIRO

O meu quarto era em cima, no ultimo an- dar, numero 55, num dos ângulos do prédio, cem pouco direito mas com muito ar, que me entrava por duas janellas uma para a Rua Serpa Pinto, outra para o Chiado.

Eu chegava a Lisboa quasi sem relações, porque a maior parte da colónia açoriana fugira da capital em agosto, com medo do cholera, e não se atrevera ainda a voltar das Ilhas, apesar do cholera nunca ter apparecido e se estar em fevereiro, que não é tempo propicio a ville- giatura de micróbios ; e das amisades de Coim- bra pouco mais duradoiras que as rosas de Ma- Iherbe, que nunca chegaram a durar o espaço d'uma formatura, apenas me restavam o Fausto Guimarães, secretario do Presidente do Conse- lho, o poeta Chico Patrocínio, chefe da novíssi- ma escola nefelibata, e a Margarida Tricana, que o Fausto Guimarães tinha deitado a perder, e a quem todos nós, mais ou menos, naquella saudosa republica da Couraça dos Apóstolos, tínhamos dado alguma coisa a ganhar. . .

No Hotel Borges, porém, as relações eram fáceis.

Logo no primeiro dia, abrindo a janclla que deitava para o Chiado, e abeirando-me do an- teparo que corria em toda a volta da mansarda, ouvi ao lado um ligeiro trauteado do Boccacto,

A RUA DO OIRO 3l

que então rejuvenescera na Trindade e andava muito em voga.

Para o lado do trauteado olhei, e deparei com um cavalheiro idoso, que catav^a uns jacinthos lindamente creados num caixote, entre o para- peito da sua janella e o anteparo da mansarda.

Sem que desse pela minha presença, esse ca- valheiro idoso, que eu logo percebi ser meu vi- zinho de quarto, continuava catando os seus ja- cinthos e trauteando a serenata dos três mari- dos humilhados. . .

A' janella.

Minha bella, Corre, corre, Ligeira gazela !

E a miúdo olhava para o quarto andar fron- teiro, onde asjanellas se conservavam fechadas e de cortinas corridas, como num luto, ou numa ausência de inquilinos.

Uma certa curiosidade, e uma tal ou qual in- tuição dos pequeninos segredos da capital, por mais algum tempo me prenderam ao parapeito, na suspeita de que alguma das janellas d'aquella casa defronte não tardaria a abrir-se, e alguém, que o meu vizinho esperava, assomaria a ella.

Meu dito, meu feito, e quem appareceu vinha

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a ser, nem mais nem menos, uma grande mu- lher de magnifica estampa e de cabellos ruivos, amarfanhados e enrolados em volta da cabeça como um farto turbante. Vestia uma bata ás riscas, enviezadas e largas, azues e côr de grão. E por baixo da bata, bem denunciados, quadris, braços e seios de tempera rija e de primeira grandeza. Correspondendo a um respeitoso cumprimento de cabeça do meu vizinho de quarto, um complacente sorriso aflorou-lhe á face, e sobre o lábio superior mais lhe pronun- ciou a escurinha penugem de ura ligeiro buço.

Nesse momento espirrei, estranhando o cli- ma; e o meu vizinho, api.nhado de surpreza, pois provavelmente suppunha que o 55 ainda estivesse sem gente, voltou -se, deu de cara com- migo, e corou de leve.

Discretamente, receiando tornar-me importu- no, e constipar -me, metti-me para dentro, e fe- chei a vidraça. Ainda espirrei duas vezes, man- dei preparar um banho morno, e tratei de passar para as gavetas d"uma commoda, que me atra- vancava metade do quarto, todi a roupa branca e o fato melhor que trazia nas malas. Puz a casaca a arejar nas costas d'uma cadeira, para perder as rugas que tomara na viajem ; coUo- quei sobre a meza de cabeceira, e voltado para a minha cabeceira, o retrato da Tia Genoveva,

A RUA hO OIRO 33

que para esse fim m'o dera, e muito me re- commendara o logar e a posição em que o queria, para ter a certeza de que assim, ao menos em efígie, podia continuar a velar por mim. Fiz a miniia barba, tomei depois o meu banho morno com muito sabonete, vesti me de ^f lavado, perfumei-me um pouco, e desci para o almoço.

A' meza do almoço fui encontrar, sentado na minha frente, o meu vizinho de quarto.

Reconhecemo-nos, baixámos a cabeça. Eu passei-lhe os rabanetes, elle olTereceu-me pali- tos. Nas alturas de um arroz de marisco, forte- mente temperado de pimenta que parecia pól- vora, entalolámos conversa, com o céo dabocca a arder e as lagrimas nos olhos. A' fructa esta- belecerase entre nós uma certa corrente de simpathia. Durante o café, trocámos cigarros e algumas impressões.

A respeito das coisas publicas, que era o que eu queria saber, o meu vizinho do 55 oífere- ceu-me logo impressões muito peores que os seus cigarros, da irónica marca Delicias, capa de papel. Elle não dizia: «As coisas publi- cas...» Singularisava, amesquinhava a expres- são, dizendo simplesmente, depressivamente: «A coisa publica. . . » E teve uma grande satis- fação quando eu lhe disse que era deputado.

3

4 A RUA DO OIRO

Porque éramos collegas ! Porque também elle era representante da Nação.

«Ha vinte annos accrescentou. Tenho visto muito, sei muito, conheço tudo e todos. Não fale Vossa Excellencia a mais ninguém para lhe abrir os olhos. Aqui tem Vossa Excel- lencia o meu cartão.

Puxei também por a carteira, tirei um dos meus cartões, e entreguei-lh'o, agradecendo.

O cartão d'elle dizia :

LIBERATO POÇAS

Deputado da Nação

Conhecia-0 muito berrf de ncme. A fama dos seus apartes tinha chegado aos Açores. Muitas vezes eu ouvira o Barão da Terra-Chã, que ti- nha uma grande memoria e agradável conversa, referir vários d'esses apartes, que eram a nota mais pittoresca e mordaz das sessões parlamen- tares nos últimos vinte annos. Lembrei-me até de que o Primo Theodosio, tendo vindo uma vez ao Continente para se tratar em Faro de uma trabusana que lhe ficara de- emenda para nunca mais! conhecera o senhor Poças em uma casa de hospedes do Ferregial de Baixo, e demorara-se dois mezes em Lisboa depois de curado, para ouvir a Borghi-Mamo, porque

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A RUA DO OIRO 35

era doido por operas, e para ouvir o senhor Poças, porque se pelava por piadas. E disse-lh'o.

O meu vizinho do 55 sorriu, lisongeado, e sem . fingida modéstia. De facto, o seu maior prazer logo a seguir áqutUe que, acima de tudo, e em primeiro logar, lhe davam as mulheres era encontrar um bom dito, e mettê-lo bem a propósito. As Camarás prestavam-se excellente- mente para isso. O caso era ir para sempre cedo, antes que abrisse a sessão, e estar sempre attento, para não perder uma palavra do que elles dissessem. Por esse processo, e com uma certa pratica, como a que elle tinha, dos homens e dos apartes, as piadas sahiam quasi sem a gente se sentir . . . Não considerava isto um pri- vilegio seu: eu que experimentasse, e veria. Mas a verdade era que, ha vinte annos, disfructava na Gamara esse exclusivo da piada, e a tal es- pécie de condão attribuia a circumstancia, muito curiosa, de se achar sempre de bem com todos os Governos e com todas as OpposiçÕes . . .

«Quanto á coisa publica, dizia elle, tenho muito gosto em informar Vossa Excellencia de que algumas surprezas e muitas decepções o es- peram se, como julgo deprehender das suas pa- lavras, Vossa Excellencia crê. na possibilidade de que portugueses possam fazer alguma coisa boa de Portugal, ou em íavor de Portugal. Ha

36 A RUA DO OIRO

uma grande verdade universal, que não carece de justificação metafísica para ser facilmente admittida : é que ninguém, nenhuma força jróde oppôr resistência á chamada e bem conhecida força do Destino. Ora, meu caro senhor... (e tornando a olhar o meu cartão de visita, após uma curta pausa. . .) meu caro senhor Joaquim Maria do Amaral Amarante, o destino dos por- tugueses, desde que este reino se tornou, geo- graficarr.ente, um retalho integral da Peninsula Ibérica, tem sido o de dar cabo de Portugal. E em boa verdade ninguém poderá dizer que não tenhamos cumprido á risca esse nosso destino. Tem havido alguns díscolos, sem duvida, pois outra coisa não foram os Gamas e os Albuquer- ques, e todos os grandes descobridores e conquis- tadores que Vossa Excellencia conhece. Dobrá- mos, é certo, o Cabo da Boa Esperança, nave- gámos até á índia e Ceylão, torneámos o pro- montório de Singapura, estabelecemo-nos eni Macau, d'onde explcrámos as costas da China e do Japão. Ainda, seguindo outro rumo, descobri- mos e colonisámos o Brazil. Lisboa fci, toda a gente o sabe, e não serei eu que o conteste? num dado momento, o entreposto e o centro de distribuição dos productos do Oriente, e então attingiu um grau de riqueza e luxo de que não havia memoria desde a antiga Roma . . .

A RUA DO OIRO 'i']

Como sempre succede durante o período he- róico da historia das Nações, a Litteratura e a Arte floresceram para nós. E ahi tem \'ossa Excellencia outros discolos: Gil Vicente, de Miranda, Camões... Mas foram poucos. E o destino cumpriu- se ; e o destino curapre-se. O Marquez de Pombal foi apenas uma som- bra. Quem suppozer ainda que elle engran- deceu Portugal, leia o Camillo, e verá. O Pom- bal, meu caro senhor, não foi o nosso ultimo grande ministro; foi o primeiro dos nossos pe- quenos ministros. Ei cheu se. Fez elle muito b em. Depois, veiu o Senhcr D. Pedro Quarto e ou- torgou-nos a Carta. ... Os senhores, em An- gra, e na Praia da Victoria, sabem muito me- lhor do que eu como isso se passou. Nesse ca- pitulo da Historia pôde Acossa Excellencia dar-me quinau, se quizer. .. Mas a partir da implanta- ção do regimen constitucional para cá, e até aos nossos dias, prez o me de pcder dizer que pou- cos sabem tanto da nossa coisa publica, como eu. Olhe Vossa Excellencia.. . (e foi contando peles dedos...) Eu assisti á fundação da So ciedade de Geografia. E viu fazer- se o pacto da Grania. Eu andei encorpcrado no cortejo cí- vico do centenário de Camões . . Na rotação dos partidos, vi o Braancamp succeder vinte ve- zes ao Fontes, e o Fontes, vinte vezes, succeder

v^

A RUA DO OIRO

ao Braancamp. Nas finanças, vi contractar oito empréstimos em menos de oito annos, e vi gas- tar o dinheiro de cada um d"elles em menos de oito dias. Na economia, vi organisar o monopó- lio do tabaco, o monopólio do álcool, o mono- pólio da carne, o monopólio do pão, o monopo" lio do fosphoro, o monopólio do adubo, o ndo- nopolio da viação... Neste momento trata se de organisar o monopólio do exgôto. Deve ser excellente. . . O fomento agricola é uma coisa que tem servido }"ara arrotear o José Maria dos Ssntos. A Africa é uma villegiatura como agora se diz para funccionarios do Estado e administradores de Companhias, ou, na alter- nativa, vinte annos de Penitenciaria. A balança do commercio é uma espécie de balança de ta- lho, que não regula. Toda esta coisa tem du- rado assim ha muitos annos, e ha de durar por mais alguns. Mas não muitos. Isto desmo- rona-se. Quem viver verá. Talvez eu ainda veja I »

O meu vizinho dt quarto, dizendo isto, e me- neando a cabeça calva, reluzente, fazia um gesto de profecia, entendido e profundo, que p(jr um instante annuviou a clara esperança, em que eu vinha, de chegar ainda a tempo para algurra coisa de bom em beneficio da Pátria. Um resto de café, no fundo da chávena, que distraída-

A RUA DO OIRO Sq

mente levei aos lábios, dcu-me nesse momento o amargo da duvida. Cuspinhei, repontei cora o Poças :

«Mas o que pensa Vossa Excellencia do fu- turo ?

«O Futuro, com F grande, a Deus pertence. O outro, o nosso, com f pequeno, pertence aos estrangeiros. E' uma questão de tempo, de pouco tempo. Podemos dizer até que tudo isto é d'elles. O trigo é americano ; a manteiga é inglesa ; a cerveja é allema ; o queijo é flamen- go ; a mulher é hespanhola ; o bacalhau é no- rueguez... O gallego, até o gallego, o próprio gallego é gallego ! O porto de Lisboa é do Hersent ; os caminhos de ferro, do Kergall ; a Africa, do Cecil Rhodes ; a opera, do José Pac- cini . . . A única coisa verdadeiramente portu guêsa que ainda temos é a Divida Externa!»

Elle dizia estas coisas serenamente, convicta- mente, mas resignadamente, sob um grande peso de infortúnio, como quem acceita e se conforma com alguma tremenda determinação fatídica. Tinha de ser. Deixa-lo ser !

Eu olhava-o, como se olhasse uma esfinge; e ouvia o, todo ouvidos, como se a sua palavra fosse um evangelho.

O que, sobretudo, me surprehendia nesse Po- ças, era o contraste entre o seu devastador pes-

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simismo de hospede do Borges, irritado de vis- ceras pela cozinha picante do Hotel e o seu con- temporisador optimismo de homem publico, es- timado de todos os Governos, cultivando jacin- thos num caixote, alimentando um namoro de janella, e sabendo de cór as coplas do Boccacio.

Não o percebi logo ; levei algum tempo para o perceber; mas vim a percebê-lo.

Poças não era um grande magico, como logo suppuz nesse dia, emquanto durou a con- versa que entre nós se seguiu, e se prolongou, após esse primeiro almoço. Não era um grande ratão, como depois o julguei, quando elle apparecia na Gamara antes de mais ninguém, c da Gamara sahia no fim de todos, para não per- der uma palavra só, d'um discurso, não se fiando nos extractos levianos dos jornacs, e me- nos ainda no texlo official do DiayHo das Ca?7ia- i^as. . . Poças era bem mais que um tipo : Po- ças era um simbolo I

Logo nessa tarde fui procurar ao Ministério o meu amigo Fausto Guimarães, que era um outro simbolo.

Fui procura-lo ao Ministério da Justiça, onde Poças me dissera que eu o devia encontrar, por andar em obras a secretaria do Reino, que o Ministro d'elle preferia.

A RUA DO OIRO 4I

O Presidente do Conselho accumulava as duas pastas : a do Reino e a da Justiça o que logo eu soube não ser trabalho de Hercules, porque os serviços do Ministério do Reino alli- viam muito depois de feitas as eleições, eo Mi- nistério da Justiça apenas alimenta, em tempos ordinários, um débil movimento de transferen cias de juizes e de benefícios ecclesiasticos. As eleições estavam feitas, os deputados a postos, os governadores civis em descanço, os adminis- tradores de concelho entregues aos cuidados do seu pomar ou do seu pedaço de horta. Agora, pelo Reino, íipenas corriam alguns assumptos de Instrucção; e a Instrucçao, em Portugal, não é coisa que muito que fazer a um ministro.

Mesmo a chefia do Governo tornara -se Com moda e suave.

O momento da grande crise passara, e ha- via-se entrado num grato periodo de repouso e de esperança. Tinha-se inaugurado, quasi de um dia para outro, apenas com alguns artigos de fundo e uma queda de ministério, uma fase de prestigio politico a que se convencionara chamar de Vida Nova, e á sombra da qual se conse- guira realisar um novo empréstimo, quando toda a gente dizia, dentro e fora do paiz, que não se arranjaria nem mais uma libra sem a in- tervenção de uma administração estrangeira.

42 A RUA DO OIRO

Eram de fresca data os acontecimentos mais pungentes da pátria.

Por muito tempo não se acreditara nos boa- tos que corriam a respeito de muitos directores de Bancos e de Companhias, gravemente com- promettidos em transações illicitas ; e os accu- sados, de mãos dadas com todos os Governos, repoltreados nas suas cadeiras do Parlamento, ingerindo-se em todos os negócios do Estado, dando leis e distribuindo juros ficticios, desas- sombradamente continuavam transacionando, favorecidos pela cumplicidade dos indifferentes e dos Poças.

Não apparecia quem ousasse atirar a primeira pedra, como se todo esse formidável escândalo se passasse em uma cidade inteiramente coberta de telhados de vidro. E todos esses estabeleci- mentos de credito, todas essss sociedades ano- I imas de responsabilidade limitada, haviam es- palhado em volta de si um certo ruido de pros- peridade, á sombra de nomes patrióticos, que inspiravam confiança, illudiam os incautos. Eram o Banco dos Luziadas, o Banco da Restauração de Portugal, o Banco 24 de Julho . . . Eram a Companhia Real das Vias Férreas Luzitanas, a Real Companhia da Agricultura Pátria, a Com- panhia de Credito Camoneano que nunca se soube o que era.

A RUA DO OIRO ^3

Cada uma d'essas Companhias e cada um d'esses Bancos tinha no seu conselho de admi- nistração, pelo menos, um ministro de Estado honorário, que era quasi sempre, por uma inex- plicável coincidência, o ultimo ministro da Fa- zenda ; e assim mantinham, todas ellas, e todos elles, Companhias e Bancos, as mais cordeaes relações com o Governo e, por intermédio do Governo, com o Thesouro.

Quando o Banco dos Luziadas suspendeu pa- gamentos, logo os outros se sentiram necessita- dos de longa moratória.

Houve um grande sobresalto, seguido de um grande movimento de pânico.

A corrida aos Montepios foi uma coisa pavo- rosa : eram os pães que salvavam o futuro de seus filhos I eram as mães que arrancavam, ás garras d'esses abutres, o dote de suas filhas I E o assalto, verdadeiro assalto, fazia-se a soco, a empurrão, a coice. . .

Os accionistas, vendo o seu rico dinheiro a ar- der, reuniam-se em assembléas geraes, e pediam sindicâncias em altos berros, como as creanças que pedem a Emulsão de Scott !

A policia interveiu. Chegou a ser preso, e mettido no calouço n.° 7, o presidente de um conselho de administração. Havia desfalques, havia falsificações, havia gazúas.

44 A RUA DO OIRO

O Cara linda, o Gaitei) o, o Moita e o Cai^- rasco, tão conhecidos do hábil Antunes, eram anjos, ao lado d'aquella confraria !

Os Tríbunaes, da primeira instancia ao Su- premo, foram atulhados de processos crimes.

A Opinião, desvairada, gritou que Portugal estava sendo governado por ladrões I

Os Jornaes, furibundos, cobriam-se de tarjas negras e de impropérios em normando.

Toda a gente prudente se abotoava, e não sahia de casa á noite.

Foi um terror !

Passou-se então esta coisa extraordinária, fu- nambulesca, única : a debandada dos homens públicos, dando ás de Villa Diogo com medo da forca e do candieiro, que es jornaes repubhca- nos queriam vêr funccionar no meio da praça, ferozmente, como no tempo em que os falsarios andavam menos seguros, mas mais seguros an- davam os dinheiros no erário. Todos esses ho- mens fugiam, positivamente fugiam, ás respon- sabilidades conhecidas do passado e ás contin- gências tenebrosas do que ainda estava por vir.

Fora um riso, e fora uma vergonha I

Era necessário organisar um governo desse por onde desse ; era urgente formar um ga- binete fosse como fosse. Mas os partidos constitucionaes, desmantelados, abandonavam a

A RUA DO OIRO 4D

Coroa. E até a Coroa se achou desamparada, quasi desequilibrada, atirada para trás, ás três pancadas, sobre a primeira cabeça do paiz por ordem hierarchica.

Esteve o paiz sem governo por espaço de três semanas ! E na inquietação e no desespero d'esse mau bocado, foram chamados ao Paço todos os politicos que andavam, ha muito, tresmalhados da Constituição, a pregar no deserto, a apregoar virtudes, e a mostrar elixires.

Appareceram dúzias d'elles, radiantes, cada qual sobraçando o seu prograrama de governo, cada qual desenrolando, aos olhos amortecidos do paiz, o seu plano de salvação, o seu projecto de reforma. Ao redor da chamada burra do Thesouro reuniu-se então uma espécie de junta de alveitares. E não foi ministro quem não quiz sê-lo.

Foi por essa occasião que voltou ao poder o Martiniano, o grande Martiniano, o incompará- vel Martiniano I

Martiniano, que tinha sido por três vezes ministro da Fazenda, andava de mal com o Paço. Como toda a gente que anda de mal com o Paço, mas que cora elle quer estar de bem, fundara um jornal satírico, a que dera o titulo de Piada Popular, e ahi começara a cultivar um género muito apreciado de critica galhofeira.

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mas mordaz, a que elle chamou «a bisca po- litica» e que depois guardou esta designação alegre.

Esse jornal tinha uma divisa, e essa divisa era esta : «Arde? é pimenta.» E ardia, que tinha diabo I Cada artigo da Piada era um cáustico ; cada folhetim um sinapismo de mostarda ; e as biscas, espalhadas pelo jornal, eram moscas de Milão.

O Paço torcia-se, os Ministros torciam-se, toda a gente se torcia uns com o. ardor do tópico sobre a própria pelle, outros com a risota que o caso provocava sobre a pelle alheia.

Declarada a crise dos Bancos e das Compa- nhias, Martiniano, que do tempo de ministro le- vara também sua rasca na assadura, habilmente desviara de si as attenções, e iniciara no jornal uma série de artigos furibundos, primeiro de ataque ás Instituições que haviam acobertado tanto e tão grosso escândalo, em seguida de al- vitre e de conselho sobre o que deveria fazer-se, sem demora, para remediar o mal e entrar no bom caminho.

Lembro-me que um d'esses artigos começava assim: «Bem fazem os que emigram, porque é um crime apodrecer na contemplação de se- melhante espectáculo!»

Mas logo um outro, emendando a mão, exor-

A RUA DO OIRO 47

tava os novos d peleja, e dizia: «SimI Por- que os novos têm fé, porque os novos têm coragem para remar contra a corrente. falta um homem que lhes indique o norte, e ein nome d'esta pala^ ra Pátria começará para nós o periodo das sublimes loucuras.»

O homem, estava-se a ver, era clle.

De dia para dia, os artigos cresciam de inte- resse; a opinião alarmava-se. D'uma vez, em que elle dissera isto: «Não se sabe ao certo se este paiz é Guatemala, ou Chili, ou Uru- guay...» e accrescentara, galhofeiramente: «A nosso vêr, uns dias parece Gerolstein, outros dias Pantana...» os estudantes do Liceu, onde Martiniano era professor de português, fi- zeram-lhe uma enthusiastica ovação defronte do jornal, com marcha aiix flambeaux^ vivas á Pá- tria, á Gramraatica portuguesa e á Piada na- cional I

Martiniano viera á janella agradecer. Ti- nham-se reunido muitos populares, arruaceiros e curiosos, ao grupo, de si numeroso, dos estudantes. Uma voz juvenil, vocalisando em voz grossa, gritou para cima:

«Fale ! Falei»

E esse grito fora uma chispa que tocara a ex- tremidade de um rastilho. Todos gritaram:

«Fale I Fale

48 A RUA DO OIRO

E Martiniano falara, e falara a sério.

«Quereis saber, meus amigos e meus con- cidadãos, qual é, neste momento, para Portu- gal, o desequilíbrio entre a sua importação e a sua exportação r »

E os rapazes, por baixo da janella, respon- diam em coro :

«Queremos, sim senhor!»

«... Quatorze mil contos I »

E um intenso ruido sublinhava, alastrando -se na multidão, aquella tremenda cifra.

«Quereis saber, meus senhores, quanto nos custam, no momento em que vos falo, os coupons e os juros do Estado e das Companhias a pagar no Estrangeiro

E os rapazes, em baixo, outra vez em coro :

«Queremos, sim senhor

«... Quatorze mil contos I »

E outra vez o mesmo intenso ruido sublinhava aquella outra cifra. . .

«Quereis saber, meus presados correligio- nários — e permitti que assim vos trate quem tem, como vós, a mesma politica de digni- dade nacional. . . quereis saber, vós, que dc- testaes as loterias e odiaes a taluda, quereis sa- ber quanto vos leva em cada anno. para fora da fronteira, por Villar Formoso e por Barca d' Alva, a loteria hespanhola ?

A RUA DO OIRO 49

«Queremos, sim senhor!»

«... Dois mil contos, meus amigos, dois mil contos I »

Martiniano, em começando a falar, tinha para horas. Falou, d'essa vez, cinco quartos de hora entrecortados de palmas, bravos e vivas. No fim, dirigindo-se especialmente aos estudantes do Liceu, disse ainda :

«Vamos a isto, meus amiguinhos. E não se diga que o budhismo invadiu a alma de todos nós. Ainda ha salvação possivel... Aproveite- mos do passado apenas a lição... E a propó- sito de lição. . . é verdade ! não se esqueçam de que temos amanha os pronomes e os verbos !r>

Mettera-se para dentro, cumprimentando, e descendo a vidraça, que era de guilhotina. Ainda havia guilhotinas I

No dia seguinte, a Piada trazia um artigo decisivo. A epigrafe dizia: Si fetais roi! o. o artigo mostrava, num resumo hábil, qual a verdadeira doença de que Portugal enfermava, e qual a verdadeira cura que havia para essa doença.

da epigrafe se deprehendia claramente o espirito d'esse artigo, que visava a Coroa, pro- curando bem indicar-lhe, numa linguagem me- tafórica, o que ella tinha de fazer, se real- mente queria fazer alguma coisa. .

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5o A RUA DO OIRO

. . . Martiniano voltara ao Paço, reconciliara-se com o Paço.

Ao outro dia, os leitores da Piada apenas notaram que ella vinha muito semsaborona. Houve uma suspeita. Poucas semanas depois, teve-se a confirmação d'essa suspeita: Marti niano entrava para o Ministério da Fazenda.

Ninguém estranhou. Elle estava, naturalmen- te, indicado. Nem a Piada se fizera para outra coisa !

No dia em que Martiniano, chamado aos con- selhos da Coroa, reappareceu na Arcada, todos os Partidos reunidos fizeram-lhe uma manifes- tação de simpathia sem precedentes na nossa historia tragico-financeira.

Foi um delirio.

Os amigos mais dedicados subiram-no ao cóIo pelas escadas do Ministério. De todos os lados irrompiam os vivas:

«Viva o salvador da Pátria!»

«Viva o credito do Paiz!»

E o paiz inteiro, a breve trecho, pinchava de regosijo, acreditando-se salvo.

Martiniano promettera mundos e fundos. O coupon externo pagar-se-ia integralmente. Os Bancos saldariam os seus encargos. As Compa- nhias distribuiriam, como d'antes, os seus divi- dendos. Estabelecer-se-ia o equilíbrio do Orça-

A RUA DO OIRO 5l

mento. Reduzir-se-iam as despezas. Reformar- se-iam as repartições do Estado. Modificar-se-iam os impostos. Consolidar-se-ia a situação econó- mica. Desenvolver-seiam a Agricultura e a In- dustria. Assignar-se-iani tratados de commercio. Aproveitar-se iam as Colónias. O Estado apos- sar-se-ia de todos os Caminhos de ferro. Resga- tar se iam os títulos da Divida de Dom Miguel. Experimentar-se-iam as vantagens do bimetalis- mo. Viria oiro de Manica. Viriam pérolas de Ba- zaruto. E a respeito da intervenção estrangeira, interpelado nas Camarás, Martiniano dissera, pe- remptoriamente:

«Isso se acceita debaixo da bocca dos ca- nhões!»

Depois de tanta e tão risonha promessa, faltava o dinheiro. E Martiniano, o maroto, ar- ranjara o dinheiro, pondo em movimento todas as machinas litográficas do Banco da Restau- ração, fabricando cédulas de meio-tostão, de tos- tão, de dois tostões, de cinco tostões, de vinte e cinco tostões, derramando todo esse papel so- bre o paiz, como numa prodigalidade de bodo.

Os Bancos e as Companhias receberam do Thesouro, em abonos e avales, quanto lhes foi preciso para livrar da cadeia os directores. As cotações da Bolsa entreabriram um sorriso para os lados de Portugal. Os cartazes de Reillac,

02 A RUA DO OIRO

diífamando nos a Pátria nas ruas de Paris, foram arrancados pela diplomacia. Os jornaes de chan- tage que, ainda na véspera, nos lançavam á cara os exemplos vil pendiosos da Turquia e do Eg}'-- pto em bancarrota, acharam que o nosso caso não era, afinal, tão desesperado como errada- mente se suppozera, «como até nós mesmo tí- nhamos chegado a suppôr» e que muito havia ainda a esperar da riqueza de Portugal e do ta- cto administrativo dos estadistas que tanto hon- ravam o nome d'esta pequenina, mas muito al- tiva nação! . . .

Foi neste feliz comenos, em que o pau, indo e vindo, deixava folgar as costas, que eu subi ao Ministério da Justiça, em procura do meu amigo e contemporâneo de Coimbra, Fausto Gui- marães.

«Nunca tinhas estado em LisboapB pergun- tou-me Fausto.

«Já, mas cora pouca demora. De cada vez que ia a férias, á Ilha. Apenas o tempo neces- sário para esperar aqui a saída dos paquetes.»

«Vaes gostar! asseverou-me. Lisboa é uma linda cidade. Eu adoro Lisboa. Um dos nossos peores defeitos é este, que todos temos, de di- zer mal de tudo quanto é nosso «naquelle ha- bito instinctivo de deprimir a pátria» de que se fala no Mandarim do Eça de Queiroz, quando

A RUA DO OIKO D->

O General Camilloff pergunta. a Theodoro : «Sabe chinez, Theodoro?» E Theodoro respon- de : «Sei duas palavras : mandarim . . . e chá». O General passa a sua mão de fortes cor- doveias sobre a medonha cicatriz que lhe atra- vessa a calva, e observa : «Mandarim., meu amigo, não é uma palavra chinesa, e ninguém a entende na China. E' o nome que, no século XVI, os navegadores do seu bello paiz . Quando nós tinhamos navegadores. . . » murmura Theodoro, suspirando ; e o General, continua : « . . Que os vossos navegadores deram aos funccionarios chineses. Yem do seu verbo, do seu lindo verbo mandar. . . » E Theodoro rosna, no habito instinctivo de deprimir a pátria : «Quando nós tinhamos verbos . . » Ha quem diga que Lisboa é insupportavel. Eu acho-a magnifica

Também eu achava Lisboa magnifica. Mas um pouco ainda sob a impressão de enfado que me causara a impertinência de trinta pobres an- drajosos atravessando-se-me no caminho desde o Hotel até ao Ministério, observei:

«Para quem não está habituado, o que aqui se torna desagradável deveras é a impertinência dos mendigos. Parece que toda gente pede es- mola Ib

«Ou, pelo menos, parece que toda a gente

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pede alguma coisa. Ha, porém, uma outra casta de pedintes muito peor, incomparavelmente peor do que esses que te perseguem na rua : são os mendigos dos Ministérios, os eternos pretenden- tes, os afilhados politicos, todo esse formigueiro espesso de cavalheiros de chapéu alto que viste em baixo, na Arcada, e que não abandonam a Arcada desde que o sol nasce até que alcan- çam despacho. O pobre da rua estende-te a mão, e passa, cobrindo-te de bênçãos se lhe dás um vintém, conformando-se com a sua sorte se tu apenas lhe recommcndas que tenha paciência. Mas o mendigo do Ministério perseguir-te-ha, importunar-te-ha, seringar te-ha, constranger- te-ha a fazer-lhe aquillo que te peça, porque desde o momento em que te entregou o seu memorial, que é a sua lamuria escripta, elle deixará de sahir á tua frente, a embargar-te o passo para que te lembres d'elle, no dia em que o Diário do Governo tenha pubhcado o decreto que o nomeia, que o promove, ou que o trans- fere. Elle saberá a que horas tu saes habitual- mente de casa, para que o vejas á tua porta. Elle acompanhará, a trote, os cavallos da tua carruagem, para que, de cada vez que a tua carruagem pare, seja elle quem te appareçaa abrir a portinhola. Em seguida, galopando, to- mará a deanteira, e quando fores a entrar para

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a tua secretaria, será elle ainda quem, sollicita- mente, te apparccerá a levantar o reposteiro.»

«E' um pesadelo

«E' uma carraça.»

«Mas é uma linda situação, a tua, de secre- tario de ministro. . . »

a Ha melhores, conforme os pontos de vis- ta . . Eu prefiro Buenos-Ayres. . . Mas concordo em que seja uma boa situação »

«Tu és também deputado, pois não és?» «Claro ! E' indispensável. Nem ha outro meio de furar. Ter um voto nas Gamaras, e fa- zer valer esse voto, é meio caminho andado para tudo o mais. Agora é que tu vaes vêr que pre- cioso tempo andaste perdendo em Coimbra. O que todos nós, mais ou menos, aprendemos na Universidade, não nos sen-e aqui para nada. Tudo isto está bem longe de nos dizer como se applica um methodo scientifico ao governo das sociedades I De resto, que nos importa. . . Hoje, em Portugal, e tanto em politica, como em arte, como em sciencia, como em litteratura, ganha-se facilmente uma reputação de grande homem, apenas com alguma audácia e com algum pe- dantismo.»

Estas revelações porque pa:a mim, ilhéo peludo e parvenu da politica, tudo quanto Fausto Guimarães acabava de me dizer eram verdadei-

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ras revelações não me assustavam, nem se- quer me intimidavam, perante a consciência bem alta, em que eu vinha, do meu honroso manda- to. Mas nessa manha, ao almoço, o Poças se encarregara de começar o desbaste das minhas nobres illusÕes, nobres e cerradas ; e comquanto eu bem houvesse percebido nelle, na sua frase hostil e no seu gesto amargo, um falso pessi- mismo, que elle devia envergar em cada ma- nhã, e ao sahir do seu quarto numero 56 para a vida publica, como quem enverga um jpjrí/es- sus^ não deixava de ser certo que a semente da desconfiança, lançada assim ás mãos ambas por Fausto Guimarães sob o terreno das rainhas fal- sas noções, encontrava esse terreno um pouco revolvido á superfície. . .

Quiz ouvir mais, não por precavido sentimento de cautella e caldo de gallinha, que nunca fize- ram mal a doente, mas por um natural desejo de me instruir depressa em matéria que, de sur- presa, se me afigurava inteiramente nova. E in- sisti :

«Em todo o caso, não é estadista quem quer, nem porque o Rei o quer. Verdadeiro esta- dista era o Fontes. Verdadeiro estadista é hoje o teu Ministro

«Talvez, talvez podesse sê-lo. Mas não o é. Falta-lhe a envergadura I »

A KUA DO OIRO Sy

E chamando mais especialmente a minha at- tenção para uma estatueta que estava collocada sobre o mármore saliente do fogão mettido na parede, observou :

«Queres a melhor prova ? Olha aquella pés- sima estatua. Conheces...»

Reparei, conheci.

«E' a estatua da Justiça, . . »

«Estás enganado I disse Fausto. E' a esta- tua da Injustiça. Eu te explico... No dia em que o meu Ministro aqui entrou pela primeira vez, possuido de uma verdadeira plethora de boas intenções, e sobraçando esse magnificente programma de governo que enterneceu a pro- víncia, aquella figura, que tu ali vês, tinha a venda descabida de um lado, e via, por um olho, tudo quanto lhe convinha, ao mesmo tempo que um dos pratos da balança pendia mais para o lado do olho a descoberto. E sabes tu o que elle fez, mal aqui entrou ? Foi-se á estatua, pu- xou-lhe a venda para cima, acertou o ponteiro da balança, e voltando-se para os chefes de re- partição que tinham vindo cumprimenta-lo, disse: —«-Fiat jmticia!y> Ora torna a olhar, fazes favor... tens a venda outra vez dei tada para baixo, e o ponteiro, outra vez, pen- dendo para o olho aberto... Emfim, tu vaes saber o que tudo isto é.»

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Um dos coçados reposteiros de reps verde, que pendiam da parede alta aos lados do fo- gão, franziu-se devagarinho, como se alguém, que atrás estivesse escutando, se decidisse a apparecer-nos. E logo um nariz descommunal, de larga venta, e rombo, e cavalgado por uma luneta desusada de aros de tartaruga, atraves- sou-se na conversa, entre as maçãs de um rosto rossdo e luzidio :

«Perdão. . Peço perdão. . . Vinha saber se estava o Ministro. . . »

Era o nariz impertinente de um cavalheiro exquisito, atarracado e sem barba, mettendo os pés para dentro e extremamente jovial. Vestia um casaco de astrakan com botões de madre- pérola, justo como uma luva, e muito curto, dando-lhe um grande relevo de formas, princi- palmente de formas posteriores. Calçava galo- chas de borracha e luvas amarellas, de ca- murça. Tinha pouco cabello ; e esse pouco que tinha, e ralo, apartava o ao meio, com muita pomada, cheirando forte a jasmim.

Mellifluamente, cumprimentou-me, inclinando a cabeça para o lado, esboçando um sorriso entre os lábios grossos, baixando os olhos e arqueando um pouco os braços, em delicada mesura.

Fausto disse-lhe quem eu era. Teve logo muito gosto em me conhecer. Ai, Jesus ! Pare-

A RUA DO OIRO St)

cia uma senhora. . . «A quem tinha eu tam- bém, já agora I o gosto de falar?»

« . . . Melecas, Melecas, creado de ^'ossa Excellcncia. . . »

E voltando se para Fausto, num reboliço :

«Como está o meu amigo ? como está sua esposa,'' como estão os seus filhos

«Bem, tudo bem. E vossê ? E a Opposição, como passa

«Ora, a Opposição I A Opposição passa bem quando se acha no governo

«A Opposição é muito exigente I exclamou Fausto. Parece que não lhe basta o actual regimen de liberdade de imprensai»

«A liberdade de imprensa, meu caro senhor, é uma liberdade tão cuidadosamente garantida, que não ha meio de a gosar devidamente. . . »

E dizendo isto, num risonho saracoteio de toda a sua pessoa, o pittoresco interlocutor de Fausto procurava lér me nos olhos se eu ha- via percebido que tinha na minha frente um es- pirito superior.

Fausto troçava-o, voltando-se para mim :

«Ouve isto e pasma, Joaquim do Amaral ! Este homem, que tu aqui vés, o argucioso Me- lecas, redactor do Phantasma, ainda esta ma- nhã publicava uma verrina tremenda contra o meu Ministro, attribuindo-lhe as peores infâmias,

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arrastando O pelas ruas da amargura, fusti- gando-o cora o látego venenoso da sua sátira, que é terrível, e da qual te aconselho a que te livres. . . E aqui o tens agora, calcando com as suas formosíssimas galochas de borracha, o ta- pete do gabinete d'esse mesmo Ministro, com a mesma semcerimonia Cv^m que amanha o verás calcar a própria consciência, se elle o despachar segundo official ! D'aqui a pouco vae chegar o .Ministro, e tu, que mal conheces o teu paiz, poderás ver então uma das coisas mais curiosas que ha para ver em Portugal : o estadista sorrir ao jornalista que o desancou, e apertar a mão que lhe bateu até o deixar em sangue . . Ha uma chamada brandura de costumes e uma li- berdade de imprensa que consentem tudo isto, e Melecas ainda ousa achar pouco

de si aflautada, a voz do outro silvou em flautim :

«Ora os ministros I os ministros! Os minis- tros são todos como aquella grande cocotte que dizia: «O maior prazer que tenho tido na mi- nha vida foi o de me sentir deshonrada!»

Era boa a piada. Rimos. E Fausto, applicando uma sonora palmada ao trazciro do redactor do Phantasma, riu mais e disse :

«E vossê, ó Melecas, qual tem sido o maior prazer de toda a sua vida ?

ÍII

Era de boa politica, mesmo para um deputado independente, como eu, procurar ensejo de ser apresentado ao Presidente do Conselho antes de entrar na Gamara e de prestar juramento.

Fausto sollicitaria para mim essa subida hon- ra, e no dia seguinte, áquella mesma hora, quando o Ministro voltasse da assignatura régia, proporcionar-se-ia o ensejo.

Assim foi.

Eu nunca tinha tido occasião de falar com um ministro de Estado, a não ser com o Pi- mentel Gouveia, lente da Universidade, mas que apenas estivera no governo mez e meio, e era ministro de Estado honorário quando an- dei na aula d'elle. E não era, por isso, sem um certo sobresalto, e uma tal ou qual intimidação.

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que eu aguardava, no gabinete de Fausto, o momento em que o meu amigo, correndo o co- çado reposteiro de reps verde, me chamasse e me levasse até junto do seu Ministro. . .

Porque emfim, ser recebido no gabinete de um ministro, falar a um ministro, apertar a mão de um ministro, mesmo quando se não tem de um ministro a errada noção que dos minis- tros tem o povo, considerando-os a todos, indif- ferentemente, capitães de ladroes ou grandes homens, segundo as necessidades do Orça- mento os levaram a crear mais um addicional, ou as conveniências da Politica os aconselharam a reduzir um imposto de barreira não era caso de todos os dias, neoi dos que menos con- tam na vida de quem, como eu, Julga imputar aos factos o seu exacto valor, e de tudo toma apontamento miúdo nalgum canhenho de me- morias.

E em vez de procurar desvanecer esse ligeiro sobresalto, aliás bem natural, emquanto não se franzia aquelle puído reposteiro de reps verde, a minha imaginação dava maior vulto, engran- decia de uma falsa importância o simples caso, lançava perturbação nas minhas funcçÕes psi- chicas, atrapalhava-me, em summa...

Para justificar, perante mim mesmo, a minha atrapalhação, imaginei-me transportado a uma

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extensa e doirada galeria onde se achassem re- unidos, em desusado congresso, todos os minis- tros que tem tido Portugal nos últimos sessenta annos e imaginei que todos elles, ao verem-me entrar, assim e sem mais nem menos, naquelle recinto que lhes era reservado como um pan- thdon, não occultavam surpreza e apenas procu- ravam dissimular, mas mal, como que uma certa suspeita receiosa pela minha inopinada presença de deputado independente, que vinha ali, sem duvida, para lhes pedir contas dos seus actos.

Avançando, porém, um passo para mim, cada um d' elles, e todos, por sua vez, me estendiam a mão.

Eu passava em revista essa immensa fileira de conselheiros da Coroa, e de todas as suas vozes, auctorisadas e convictas, ouvia o mesmo protesto: «Eis-nos oíferecidos em holocausto no altar da Pátria E eu pensava que, se os talentos abriam distancias- entre tantos homens de Estado, aproximava-os, a todos, o sacrifí- cio.. .

Mousinho da Silveira, informado de que eu vinha ás Cortes com propósitos terriveis de re- forma, chamava-me de parte, deitav^a o rijo braço sobre o meu hombro débil, dizia-me ao ouvido : «Meu caro amigo, peço-lhe que me poupe . . . Olhe que isto da gente se deixar ser

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ministro, não é pequeno sacrifício. Afiguram-se marclietadas de estrellas as cadeiras do gover- no, e são entretecidas de espinhos ! Poupe -me, poupe-me

José da Silva Carvalho e Agostinho José Freire, que cochichavam no vão de uma janella, vinham ao meu encontro, enleavam-me em bhm- dicias ; tinham ouvido falar de mim, sabiam que eu vinha disposto a metter tudo nos ei- xos, e appelavam para a minha clemência: eSe Vossa Excellencia nos aqui, um na Fa- zenda outro na Marinha, é porque cedemos ante as obrigações que nos impunha a nossa quali- dade de cidadãos portugueses. .

Ainda estes illustres estadistas me não haviam largado, e o Duque de Palmella e o Duque da Terceira me pediam desculpa, se não lhes fora possível reorganisar as finanças e consoli- dar o reino á medida dos meus desejos. . .

Joaquim António de Aguiar, receiando ter-se tornado antipathico a minha Tia Genoveva, com o seu decreto de abolição das ordens religiosas, encarregava-me de expor áquella devota senho- ra as razões ponderosas que o haviam forçado a desferir esse golpe mortal na influencia dos miguehstas.

Adeantando-se, com delicadas maneiras. Cos- ta Cabral desejou saber se eu me achava de ac-

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côrdo com a interpretação que elle dera á Carta, e se em meu entender fizera bem enfreando a liberdade de imprensa.

E eu procurava, atabalhoadamente, uma res- posta amável que lhe desse, sem muito me com- prometter, quando Saldanha, intervindo, me li- vrou do embaraço : «Diga-lhe que sim, Ama- rante, diga-lhe que sim!» E foi seguindo, im- pávido, sobraçando as suas sete pastas dos seus sete ministérios.

Perplexo e gaúche, entre tanto espectro illus- tre, eu vi passar nessa galena extensa, mais extensa, talvez, que a galeria dos Uffizi de Flo- rença, todos os ministros de todos os ministé- rios, desde i832 para cá: os da Restauração e os da Revolução de Setembro ; os da Revolução de Abril e os da Reacção de Outubro ; os da Maria da Fonte e os da Janeirinha ; os da Re- volta de Maio e os do Ultimatum de Janeiro.. . E todos esses ministros, de todos esses minis- térios — cartistas e setembristas, cabralistas e patuléas, granjolas e barjonaceos todos quantos implantaram, viciaram e desfructaram o sistema de governo parlamentar, em que eu agora inter- vinha, mettendo o meu bedelho e sobraçando o meu honroso mandato de representante do Po- vo, eleito pelo voto livre do Povo, se acercavam de mim com artes de sedução, Jisonjeando a

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minha força para lhe quebrar os Ímpetos, so- prando a minha vaidade para me verem himpar e arrebentar como a de Hisopete ; e todos elles, desde o Aguiar ao Fontes, e desde o Sal- danha ao Bispo de Vizeu, tinham o ar de solli- citar, de implorar a minha indulgência para os seus erros, lembrando-me, todos elles, que os homens que a Opinião precipitou hontem do po- der, são sempre os mesmos que essa mesma Opinião, moderada já, irá buscar amanhã para lhes confiar os seus destinos. . .

...Uma porta rangeu, vi correr-se o repos- teiro. A um aceno de Fausto, achei me introdu- zido no gabinete do Ministro. E o que immedia- tamente se passou, em realidade, foi o perfeito seguimento, quasi lógico, d'aquella espécie de allucinação patusca de que me saccudiam ape- nas com esta differença : é que não era o Mi- nistro que se amolgava perante a independência do meu honroso mandato, como o Costa Cabral e como os outros ; era eu, agora, que vergava o espinhaço na presença do Ministro, e mal me atrevia a avançar do limiar da porta :

« . . .Vossa Excellencia licença ?...» disse.

«Entre, faça favor!»

E logo estendendo-me a mão com Ihanesa, c como se me conhecesse de ha muito, o Mi- nistro continuou :

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«Ainda bem que veiul estava a fazer falta. Foi o diabo, essa angina. . . De mais a mais com recahida. E trinta e oito graus de febre, ein? Olhem que brincadeira... tinha estado cm Lisboa

«Já, mas com pouca demora...»

oVae gostar. Lisboa é uma Unda cidade. . . E vem decidido a trabalhar deveras na politica? Parece-lhe que se adaptará bem a este meio?»

Eu não sabia ao certo onde estava, nem de que terra era. Disse que sim, ao acaso.

«Creio que sim. . . Assim o desejo, pelo me- nos.»

«Ha-de adaptar-se ! insistiu elle, achando mole, e carregando. Sei que possue excellen- tes qualidades de orador. Seja bemvindo, porque é justamente d'isso que nós mais precisamos na Camará. Mas ser orador não basta. Convirá que adopte qualquer especialidade. . . No Parlamen- to, como na Medicina, é necessário ser-se um pouco charlatão, para conquistar rapidamente uma boa voga. Os especialistas têm sempre uma percentagem muito avultada para subir de- pressa Nós temos, como sabe, os especialistas dos orçamentos, os especialistas dos pareceres, os especialistas dos apartes, os especialistas dos apoiados. . . Temos até os especialistas de que- brar carteiras 1 E' necessário que o meu amigo

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comece desde a tatear o terreno, para des- cobrir a especialidade que mais lhe possa con- vir. . . »

Esta desataviada franqueza de acolhimento, esta correntia, familiar maneira de dizer, que desde logo deviam pôr-me á vontade, mais me perturbavam, me amachucavam. Desconfiado sempre, ilhéo pelludo, neófito e inexperiente nas ronhas da politica, eu não atinava em dis- tinguir o que podesse haver de sinceridade, ou o que podesse haver de intrujice, em recepção apparentemente tão aíFectuosa.

Depois, aquella miúda circumstancia de ter chegado ao conhecimento do Ministro a noticia da minha angina pectoris, e o facto, quasi en- ternecedor, d'ella não ter passado de lembran- ça a esse homem, que tantas e tão graves coisas devia ter em que pensar, chegando a precisar até, e depois de tanto tempo, o grau a que su- bira a intensidade da minha febre, e o caso da recahida, e os dotes de oratória que me eram at- tribuidos... tudo isso me enchia de surpre- za, me embrulhava e me engasgava em tão dif- ficultoso lance.

Oscillei, vacillei um instante, encarei Fausto Guimarães, que observava de lado o meu esta- do de alma, e sorria.

Fausto, argucioso, rapidamente leu no meu

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olhar uma urgente consulta, e respondeu de prorapto, com um gesto enérgico, muito d'elle: que me atirasse eu de cabeça I

Ao mesmo tempo, e sem me darem mais tem- po para deliberar, uma forte mão invisível cra- vou-me nas costas os cinco dedos aduncos, em- purrou-me para a frente. Senti que o chão me fugia debaixo dos pés, fechei os olhos, mergu- lhei no abysmo :

«Eu ponho-me, incondicionalmente, ao dis- por de Vossa Excellencia.»

Era a mão miserável do miserável Tarquinio!

a Muito obrigado disse o Ministro.

E eu fiquei sem saber se era a mim que elle agradecia o ter-me eu submettido, ou se era ao espirito do Doutor Tarquinio que o Ministro agradecia o ter-me elle empurrado...

Na marcação d'esta scena grotesca, entrava outra personagem, para quem o Ministro se vol- tou, tratando-o por Padre Eterno, e dizendo:

«Temos aqui (referia-se á minha pessoa) o vogal que nos faltava para a commissão do Có- digo. E' necessário aggrega-lo, inicia-lo já. Não podemos perder mais tempo. . . E a propósito, diga-me, em que alturas vae a discussão do pro- jecto ?»

«Vamos agora no artigo 32...» informou Pa dre Eterno, pachorrentamente. A questão das

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provas foi muito demorada. O Manoel de queria a todo o transe que se dispensassem as oífensas corporaes . . . Toda a gente sabe que elle será um dos primeiros, se não o primeiro, a aproveitar- se da lei do divorcio, mas parece que não lhe chega o animo para bater na mu- lher I E quasi toda a sessão de hontem se pas- sou a ouvi-lo . . . Não vejo meio de apressar a discussão. . . »

«Nem ha necessidade d'isso. Pelo contrario. Convem-me que o projecto se demore na com- missão até ser votada a reforma dos parochos. Temos ainda uns quinze dias... Mas também me convérn que as reuniões da commissão sejam mais frequentes, para que os jornaes falem, para que se veja que alguma coisa se faz. . . »

aNesse caso, concordava o Padre Eterno, não cortarei a palavra ao Manoel de

Este Padre Eterno era o director geral dos Negócios Ecclesiasticos desde 1847, nomeado ainda pelo Silva Ferrão Francisco António Fernandes da Silva Ferrão, que fora ministro com o Franzini, e com o Barão de Almofala. Reconhecio logo, vendo-o entrar no gabinete, sobre uma caricatura soberba de Bordallo, no Álbum das Glorias.

Era aquillo mesmo : a mesma hipertrofia dos tecidos adiposos, a mesma proeminência do

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mento sensualão ; e a perna curta e cambando para fora; e a larga venta atulhada de simonte, e o olho somnolento, de carneiro mal morto, ensopado na membrana volumosa dos bordos palp^braes; e todo elle eriçado de cerdas como um suino, nas sobrancelhas e nas fontes, nas ventas e nos ouvidos, nos pulsos e nos dedos. . . E aquella mesma faceira, e a cachaceira espar- ralhada transbordando da golilha roxa de cóne- go, como da bocca de um boiao de gordu- ras ...»

Mudando de tom, para um tom de enfado, o Ministro perguntou :

aTraz ahi muita coisa, Padre Eterno?»

«Trago o mais urgente, o que não pôde passar de hoje. E procurando um .processo entre os dois grossos maços de processos, que os seus braços curtos abrangiam a custo, conti- nuou, passando-o ás mãos do Ministro: Isto é o caso do Cónego Boavidinha. . . O Bispo tem ra/.ão. Na ha meio de lhe valer. Está averi- guado que os filhos do Administrador são todos d'elle. O ultimo tem dois mezes... E' um es- cândalo I O Administrador fechou a mulher num sótão, e tem-na, vae em três semanas, a pão e laranjas. O Cónego anda furioso, parece que armado de um bengalão de marmeleiro, á procura do Administrador por toda a parte, di-

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zendo a toda a gente que o desanca, se elle não lhe solta a nr.ulher!»

«E' espantoso ! E o Administrador o que é que diz a isso?*

a O Administrador não apparece na rua, e vae de casa para a Administração por cima do muro do quintal, que é pegado. Ainda no do- mingo passado, que era dia de feira, e houve desordem, por mais que o chamassem não houve meio de o fazer sahir, e appareceu á janella para dizer que não estava em casa! E foi o próprio Cónego que se pôz á frente dos guardas e varreu a feira.»

oE' uma situação insustentável. . . ponderou o Ministro. E o que diz o Bispo?»

«O Bispo ameaçou-o de que lhe tirava a missa, e quer que nós o tiremos d'ali p'ra fora.»

«Mas é o diabo, porque o circulo é d'ellel Havia uma revolução.»

«... Se Vossa Excellencia quizesse, talvez achássemos um meio: trazê-lo para Lisboa.»

«E como? era que situação?»

«Fazendo-o deão da Sé.»

aMas elle não deixa a mulher!»

O Padre Eterno era o decano dos Directores geraes, e o protótipo, fidedigno, de todos elles- Era o homem de confiança dos Ministros, o alto funccionario entre os altos funccionarios, aquelle

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que, dentro dos complicados, tortuosos mean- dros da burocracia, tudo sabe, tudo resolve, tudo explica; centralisando sob o domínio da sua garra todos os negócios ; fazendo depender do seu juizo todas as deliberações superiores ; monopolisando no seu conselho todos os conse- lhos. E creando, e sustentando, e avolumando embaraços sempre que fosse necessário emba- raçar; e admittindo, e patrocinando, e procu- rando facilidades sempre que fosse necessário facilitar. . .

«Traz-se também a mulher!» despachou elle. A mulher era professora de instrucção pri- maria, e Sua Excellencia podia, pelo Ministério do Reino, transferi-la para Lisboa.

«Mas o marido, o Administrador?»

«Ora! o marido, se Vossa Excellencia lhe fizesse constar que o demittia, sob qualquer pre- texto, largava mais depressa a mulher que a administração do concelho.»

O Ministro ainda hesitou um momento. To- lice ! Não havia que hesitar. Mandassem vir o Cónego; e elle trataria então, pelo Ministério do Reino, de transferir essa pecora da mestra.

O Padre Eterno escolheu outro processo metteu-o á cara do Ministro.

«Temos agora aqui um outro bico d'obra. . . E' o resultado do concurso para segundos of-

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ficiaes. Tivemos de pôr em primeiro logar o Me- lecas. . . »

O Ministro deu um salto, empertigou se na cadeira :

«Qual Melecas?!»

«O Melecas. . . o do Phantas}7ia.y>

«Isso não pôde seri Não, isso, meu caro Padre Eterno, tenha paciência... O Melecas I nomear eu o Melecas I Esse desavergonhado Melecas que me tem dito as ultimas... Não, isso, não

O Padre Eterno esclareceu :

«Assim o entendeu o jur}^ Se Vossa Excel- lencia o preterir, mais o exaspera. . . Se Vossa Excellencia o nomear, talvez elle se cale.»

«E as provas?» indagou o Ministro, mais manso, tendendo a uma possível conciliação de coisas.

«As provas. . . não foram boas. Mas ^'ossa Excellencia bem sabe que isto agora não é uma questão de provas, é uma questão de conveniên- cia para o Governo.»

«Pois sim, tem vosse razão. . . Mas. ó meu caro Padre Eterno, diga-me com franquesa : se esse Melecas tivesse escripto . a seu respeito o que de mim tem dito no Phaniasma desde que eu entrei para o Ministério, e se vossê tivesse de despacha-lo segundo official, mesmo num con-

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curso, e com boas provas, vossê despacharão, ó Padre Eterno? Olhe bem para mim, diga-me com franquesa . . . »

oEu não o despachava, não senhor: eu mct- tia-o num processo

«Mas então. . . »

«Mas então... E' que o Melecas nunca escreveu uma linha contra Vossa Excellcncia I Aquelles artigos não são d'elle. Nem elle sabe escrever.»

«Em todo o caso, assigna-os. E se elle nem sabe escrever, mais uma razão para que eu não me ache de accordo com a classificação do con- curso. Quem ficou em segundo logar

«Em segundo logar, ficou o filho do Conse- lheiro Paiva. Tem uma lettra magnifica.»

«E não tem mais nada ? Para segundo of- ficial, é talvez pouco. . . »

«Tem o tio, que é presidente do Tribunal de Contas

Sahi d'ali aterrado. Eram então assim os mi- nistros ! Era então assim a Politica ! Mas não deviam ficar por ahi as surprezas d'esse dia, agora memorável.

Fausto Guimarães descera comigo do Ministé- rio á Arcada, oíferecera-me logar na cai ruagem que tinha á sua espera. Chuviscava. E como eu nada tivesse que fazer de urgente nesse resto da

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tarde, nem o tempo convidasse a um giro na Baixa, acompanha-lo-ia ao Salitre, onde precisava deixar uma encommenda, daríamos depois a volta por cima, e elle viria pôr-me á porta do Hotel á hora do jantar, não me dizendo que fosse eu jantar em sua casa, porque estavam sem cozinheiro.

o meu querido Fausto me não dava sur- preza, depois de tanto que o não via, desde que nos tinhamos separado em Coimbra, na noite da recita do nosso quinto anno, e na balbúrdia final d'aquella ceia opípara, que coroara de espumas de Champagne o nosso curso de Direito. Estava o mesmo, era sempre o mesmo : expansivo, ale- gre, bom rapaz, mettendo-nos no coração !

Mas quando descíamos a larga escadaria do Ministério da Justiça, Fausto deixou-me avançar três degraus, e observou:

«O' Joaquim do Amaral! Olha que essa so- brecasaca não te está nada bem. . . Isso é sobre- casaca da Ilha, com certeza! Ein? Ora diz lá. . . »

«Pois está visto que é, e então ?! que defeito lhe achas?»

«Não sei . . . não sei. . . Nem admira que o não saiba : eu não sou o Strauss ! Mas vae-te mal, vae-te mesmo muito mal, muito curta e muito larga. . . E a gola a fugir do coUarinho, e as abas que arreganham . . E' um horror, Ama-

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ral, é um horror ! Vossês, na Ilha, sabem fazer admiravelmente eleições, mas não sabem fazer sobrecasacas ! desculpa que t'o diga. »

«Querias talvez que eu mandasse fazer a mi- nha roupa a Londres!»

«Ora essa! e porque não?! Não manda Lon- dres buscar laranjas á tua Ilha?»

Estava eu muito enganado se ainda julgava que essa coisa de mandar de Portugal fazer fatos a Londres era uma pura fantasia dos janotas que o Eça mettia nos seus romances. Em matéria de «costumes», como diria o Poças rejubilando com o trocadilho, tudo nos vinha agora da Inglaterra, de Londres.

Esquecera-se Kionga, esquecera-se o Ultima- tum, desembaraçara-se dos crepes d'esse pas- sageiro lucto nacional a estatua de Camões. Em menos de seis mezes, coisa curiosa ! ope- rara-se no animo dos portugueses uma singular transformação. Estávamos ingleses ! Éramos ingleses I Queriamos morrer ingleses ! Como se produzira este fenómeno ? Como se operara esta transformação ?

Ninguém o sabia !

Mas estava-se na presença de um facto, e de um facto perfeitamente assente, exacto, irreme- diável, consummado. Tínhamos de acceita-lo, assignala-lo apenas, sem controvérsias.

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E Fausto, empurrando-me para o fundo da sua carruagem, que logo rodou e metteu pela Rua do Oiro, foi dizendo em que consistira essa extraordinária mudança de caracter nacional, e qual a influencia d'essa mudança no animo e nos costumes da gente portuguesa. . .

Os amigos da Inglaterra faziam da alliança inglesa o eixo de toda a historia de Portugal desde a conquista de Lisboa, assignando Dom Affonso Henriques o primeiro tratado. Não havia empreza nossa sem ingleses, e a honra de ser uma provincia da Inglaterra, como ficámos sendo depois do tratado de Metwen, não era pequena honra. A respeito d' esse tratado, ago- ra, nenhum português de lei poderia deixar de condemnar a opinião do Oliveira Martins, que dissera reunir elle, á concisão epigrafica de um texto romano, a agudeza penetrante de um ne- gociante carthaginês, ou judeu... Portugal da- ria fructas e vinho aos ingleses ; os ingleses da- riam a Portugal manufacturas e comer. Ficáva- mos sendo uma colónia vinícola da Inglaterra. E dizia- se agora, e escrevia-se nos jornaes, que esta era a tradição de toda a nossa historia !

Depois, em três grandes momentos, essa al- liança nos servira para mantermos a indepen- dência: em i383, em 1660, em 1808 .. E nin- guém lembrava que, da primeira vez, o que os

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ingleses quizcram foi garantir ao Duque de Len- castcr a coroa de Hespanha ; e consolidar, da segunda, o seu nascente império na índia ; e bater, da terceira, Napoleão, ateando em nós a raiva de termos perdido Olivença.

A Convenção, o Comité de Salvação Publica, o Directório e o Junqueiro teimavam em consi- derar Portugal uma provincia de Inglaterra, e não estavam contentes com isso? Pois que ti- vessem paciência !

E em cada manhã o Diário de Noticias oífe- recia, na sua secção de annuncios, tresentas mestras inglesas, que se promptificavam a ensi- nar o inglês sem mestre em menos de quinze dias. E as livrarias reeditavam e vendiam mi- lheiros do Novo Meihodo de Ollendorf para aprender a lêr^ escrever e falar a doce lingua inglesa em menos de seis mezes. . .

As mercearias, que por occasião do Ultima- tum tinham retirado das barricas de margarina o lettreiro de Manteiga inglesa, legitima, re- integravam o lettreiro nas funcçÕes do seu cargo.

O Ferrari, o Pucci e o Cócó expunham nas suas vitrines apetitosos exemplares de puding inglês traduzido ! ,

A elegante camisaria do Augusto Ribeiro, ao Chiado, vendera numa tarde doze dúzias, uma grosa I de collarinhos Príncipe de Galles,

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i5 centímetros de altura, que existiam na loja desde a fundação da Monarchia.

Um grupo de homens de lettras e artistas, que tinham andado atrás do deputado Eduardo Abreu na noite de ii de Janeiro, dando morras á Rainha Victoria e vivas a Camões, percorria agora as ruas da Baixa em bandó precatório, pedindo cinco tostões para uma manifestação de mesa redonda na Taberna Inglesa.

Eduardo Costa, á Pampulha, lançava no mer- cado uma nova marca de bolachas denominadas Pic-pockets, de delicado sabor e perfume de baunilha.

Na lista das casas de pasto, as comidas mais , vulgares recebiam nomes ingleses, deploráveis : peixe frito era —friedjish ; uma costeleta de vi- tela era a peai ciitlet ; uma almôndega era a forced-meat bali!

Os creados, se se lhes falava português, não respondiam. Para pedir um garfo, era necessário dizer :

Give me a fork !

E para pedir uma colher :

Gípe me a spoon !

A conversação familiar, a própria conversação familiar, isto a que se chama conversar cada um em sua casa, com a sua mulher e com os seus filhos, tornara-se uma verdadeira massada :

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Tem V. o meu chapéu ?

Have you my hat ?

Tenho o seu chapéu....

/ hare j'our hat.

Não tenho o seu chapéu, mas tenho o lápis do rapaz do seu sapateiro,

/ havc tiot rour hat, but I hare the pencil (if your shcemaker s hoy, . .

Levados nesta impetuosa corrente da Opinião, os jornaes tinham inaugurado plebiscitos sobre as probabilidades de uma nova alliança inglesa, e por esse meio se averiguara, se patenteara á luz do nosso bello sol, qiie a fina flor, o escol, a nata da intellectualidade de Portugal votava por unanimidade que se entrasse abertamente, immediatamente, nas negociações do tratado que devesse firmar a ambicionada alliança.

Respondendo a esse plebiscito, um alto func- cionario do Estado dissera : «... Porque to- dos nós devemos compenetrar-nos d'isto : a al- liança com a Inglaterra é o clarão de uma boa esperança a esperança de voltarmos a receber os nossos ordenados em libras

Uma illustre escriptora publica succintamente emittira, nestes termos, o seu voto na matéria :

«Ah! não me perguntem nada... Estou com os Ingleses

Um diplomata e poeta, parafraseando a

%

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Portuguesa, que fôra o canto de protesto inspi- rado pela humilhação do Ultimatum, compozera outro himno que começava assim :

Heroes do mar, nobre povo, Nação valente, immortal ! Isto não é nada de novo Entre Inglaterra e Portugal !

A's armas 1

A's armas I Sobre a terra, sobre o mar !

«Mas voltando á lua sobrecasaca, continuou Fausto, permitte-me que te aconselhe a que pro- cures o meu alfaiate, e lhe encommendes uma outra. E desfaz-te d'essa. Presenteia com ella o guarda-portão do Borges, que saberá enverga-la com elegância. . . O Parlamento é ainda um lo- gar de exhibição. O deputado tem de andar bem vestido, com boas luvas. . . Olha o Jaurés, em França, na democrática França, como elle cahiu em ridículo, por se apresentar no Parlamento de blusa socialista

Eu ainda tentei alguns argumentos em defesa dos meus princípios e da minha sobrecasaca. Afigurava-se-me que o tempo não devia muito sobejar para semelhantes futilidades de vestuário e de elegância a quem quizesse, deveras, preoc-

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cupar-se com as altas questões e com os altos assumptos que deviam absorver a vida parla- mentar. Mas Fausto sahiu-se-me logo, e com fú- ria, aos impedimentos. Estava eu muito engana- no, redondamente enganado ! E a nossa velha, e boa, e segura amizade não consentiria que elle me deixasse debater, espernear nesse engano, como uma mosca que se debate e esperneia na teia de uma aranha !

Em obediência ao Regimento, eu devia ser introduzido na Gamara por dois dos meus coUe- gas, deputados. Convidara-o a elle, Fausto Guimarães, para ser um d'esses meus padri- nhos. . . (O outro seria o Poças, convidado também). Pois ficasse eu sabendo que elle não limitaria esse seu grato papel á formalidade do Regimento ; iria até onde a sua estima por mim lhe permittisse ; e a sua estima por mim não lhe permittia, impunha-lhe o dever de bem me encaminhar naquella senda tortuosa por onde eu queria tomar ás cegas, quando me era preciso, ao contrario, arregalar muito os olhos !

«Já tens assignatura em S. Gados?» per- guntou-me.

«Nem pensei nisso sequer. . . »

«Pois tu não gostas de musica, homem da fortuna ? Uma coisa de que até os selvagens gostam ! »

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«Gosto, até gosto muito ; mas ainda esta manhã, ao almoço, se discutiu deante de mim essa coisa de assignatura em S. Carlos. Parece que é uma formidável burla. Os assignantes ouvem sempre a mesma opera, e quando ha opera nova a recita é extraordinária. Disse-me um hospede do Borges que, segundo os seus cálculos, o as- signante virá a ter, nesta época lirica, setenta e cinco por cento de Hugiienotes ! Ora eu acho preferível ouvir as operas que mais me agradem, a ouvir aquellas que mais agradem ao empre- zario ...»

«Joaquim do Amaral, o teu caso é outro ! Não se trata de saber se a opera é sempre a mesma, nem se a empreza te intruja. Quem tem uma cadeira em São Bento precisa ter uma ca- deira em São Carlos. E assim como para se es- tar em São Bento o que menos importa é fazer boa politica, assim para frequentar São Carlos o que menos importa é que seja boa a musica. . . Depois, quem não tem uma idéa para apresen tar no Parlamento, tem sempre uma casaca para exhibir na Opera ; e uma boa casaca é já, e por si, uma excellente recommendação!»

Risonhamente, e com affavel malicia, declarei a Fausto que o achava insupportavel. Parecia-me uma personagem deslocada do theatro do Du- mas filho, com a incumbência de animar o dia-

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logo d'e.ssa comedia em que eu me via mettido, fazendo frases á minha custa... Que fim le- vara então o meu Fausto, aquelle grande, e são, e incorruptível Fausto da Couraça dos Apósto- los, inimigo rispido de todas as convenções e de todos os paradoxos ? !

A carruagem parou.

Fausto abriu a portinhola, desceu, foi tocar no botão de uma campainha á porta da casa que naquella rua (que era a Rua do Salitre) ti- nha o numero 24b.

Não teria demora. Apenas entregar uma en- commenda, fazer uma pergunta, e mais nada. Cinco minutos, Amaral, cinco minutos I

Um creado de gravata branca veiu abrir. E percebi que Fausto perguntava se a Senhora D. Claudia estava em casa... Entrou, fechou-se outra vez a porta, e cu esperei, esperei, fartei-me de esperar.

Quando me parecia que era de mais e olhei o relógio, tinha passado meia hora. Eram cinco e vinte! Receei não chegar ao Hotel a horas de jantar. . .

Mas Fausto apparecia nesse mesmo instante, todo açodado :

«O' menino, perdoa ! Não foi minha a cul- pa.. . »

A culpa fora de D. Claudia, que o detivera

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todo esse tempo, com mil perguntas, mil re- commendações, mil coisas; e não o deixara sahir antes, apesar de saber que elle tinha alguém a espera-lo, era baixo, no meio da rua. Era uma seca, uma verdadeira sarna! E depois, menino, absorvente, despótica, absoluta, quasi tirannica! Irra, que era demais !

Pois sim. Podia elle ter carradas de razão. Mas eu é que não sabia quem era D. Claudia.

a O quê, Amaral? Pois tu não sabes quem é a D. Claudia ? Tu nunca ouviste falar da illus- tre D. Claudia? Mas isso é o mesmo que não saber quem foi Cleópatra, ou Agripina ! O que sabes tu, afinal, meu desgraçado amigo, da eterna rotação da Terra em volta do grande Sol

Pois nada sabia, não. E era eu, agora, que lhe pedia desculpa... Elle tomava, porém, so- bre si, e de motu-proprio, o bello encargo de ser meu farol e meu guia, meu roteiro e meu elucidário. Onde eu não soubesse, que lhe per- guntasse I Não sabendo quem era D. Claudia, acceitava o favor, e perguntava. . .

Vim então no conhecimento de que essa D. Claudia, essa «sarna de D. Claudia» fora a im- pulsora e era hoje a chefe do (para mim igno- rado) movimento de propaganda feminista que se fazia em Lisboa, á semelhança das grandes

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capitães, com o complicado e perigoso fim de obter a declaração dos Direitos da Mulher, como consequência lógica da declaração dos Direitos do Homem I

Nem eu, nem Fausto nenhum de nós sabia, a par d' essa prerogativa máxima que a mulher moderna se arrogava, o que viria a ser de tudo aquillo a que, até então, nós chamávamos, tal- vez com demasiada vaidade os Direitos do Homem ! Tanto se pregara que a causa da mu- lher era a grande causa do século ; tanto se dis- sera que o homem era a força, e a mulher a graça ; tanto se repetira que a escravidão das Evas se tornara indigna dos benévolos Adães que as coisas tinham chegado ao ponto de rebu- çado em que eu as vinha encontrar.

Na discussão muito acesa dos doutrinários modernos, entre Stuart Mill (que queria a mulher emancipada do seu triste papel de serva, ou da sua pouco invejável situação de odalisca) e Scho- penhauer (que, ao contrario do seu confrade in- glês, apenas concedia á mulher, e quasi que por muito favor, as funcçÕes domesticas, a sujeição e o trabalho no interior da casa) vencera Stuart Mill. A escrava fizera-se senhora : Senhora D. Claudia... A graça alargara com sorrisos as suas cadeias ; a fascinação fizera cahir a seus pés os seus dominadores.

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Os legisladores começaram então a preoccu- par-se com o destino da mulher nas suas condi- ções civis ; os pedagogistas procuraram mclho- rar-lhe as condições de instrucção ; os economis- tas alargaram-lhe as condições industriaes \ os filósofos acabaram de encher-lhe o cérebro de minhocas ; e assim se viu a mulher açambar- car todas as profissões e todos os ideaes do homem.

Ella foi, definitivamente, tudo quanto quiz ser. Ella foi advogado, ella foi medico, ella foi amanuense. Ella foi guarda livros, ella foi guarda- freios, ella foi guarda-fios. Ella foi telegrafista, ella foi ciclista, ella foi organista.

Ella vestiu calças e usou ceroulas. Ella fumou de cachimbo e poz chapéu de coco. Ella tocou pratos e foi clarinete.

Ella fez comícios, ella fez congressos, ella fez desordens.

Para alinhavar discursos, ella deixou de apon- toar meias ; para fazer frases, ella. deixou de ter filhos.

Seccaram-se-lhe os peitos, ccrraram-se-lhe os buracos para os brincos, cresceram lhe pellos na barba e cabellos no coração.

Em presença d'esta revolução, attonito, o ho- mem nem pensara em reagir. Conformara-se, tivera ao menos o critério de acceitar sem re-

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paro uma situação que tinha preparado pelas próprias mãos, submettera-se.

Quando a mulher veiu para a rua, metteu-se elle em casa. E varreu a casa, limpou o pó, la- vou as vidraças, sacudiu os tapetes, fez a cama, despejou a bacia, chamou a varina á escada, bateu as palmas da janella ao carvoeiro, acen- deu o lume, poz a panella a geito, abanou, aba- nou, abanou.

Foi, depois, sentar se á machina e coseu, co- seu a sua mágua comsigo mesmo, silenciosa Singer. Bordou a retroz, bordou a lãs, bordou a missanga. Passou a roupa a ferro, escovou as botas, deitou camfora nas roupas.

Depois, foi pôr a meza ; e quando tudo eslava prompto, antes que a senhora tivesse voltado para casa, teve elle tempo ainda de conceber um filho. A senhora, quando voltou, era pae I E elle foi depois, bondoso e amoravel, o verda- deiro modelo das mães ... isto o salvava, e o desculpava, de todo o seu descuido e de toda a sua ignominia I

Tudo aquillo que d"antes constituía a feição simpathica e nobre da missão da mulher, e lhe dava um risonho realce ao lado do esforço e do sacrifício do homerS, completando-se ambos na missão commum, era uma coisa que passara de moda, como a crinoline. Os Códigos modernos,

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querendo tudo aquilatar segundo a melhor fi- losofia da razão, haviam operado uma revolução assustadora, sanccionando conquistas pavorosas da egualdade civil dos sexos.

Obtida a conquista da egualdade civil, cami- nhava-se já, de fronte alta, para a conquista da egualdade politica.

A mulher fora assim arrebatada ao meio em que a sua dedicação enchia de alegrias doces a vida dos que ella amava irmãos, pães, esposo e filhos, quando toda ella se oc- cupava nas mil e uma applicações amoraveis da sua actividade, bondosa de sua Índole, con- tente do seu destino, vivendo para todos esses pequeninos sacrificios ignorados de que se com- põe a vida de uma mulher dedicada : sacrifício do seu tempo, dos seus gostos, da sua pessoa ^ alimentando esse terno, luminoso poema do si- lencio do lar, das escolas, dos hospitaes, onde ella, mãe, educadora, enfermeira, inteiramente se consagrava ao bera-estar dos outros, numa lenta e benéfica infiltração de bondade, de doci- lidade, de meiguice... A maternidade perdera os seus doces encantos de protecção, de vigilân- cia, de carinho, em volta de uma pequenina creatura a quem era preciso desenvolver o corpo, formar o coração, incutir o caracter, pelo leite, pela palavra, pelo exemplo ; e ficara sendo, re-

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pulsivamente, um longo e doloroso trabalho fisio- lógico . . .

Indo dos pequeninos sacrifícios aos grandes, aos ruidosos sacrifícios, que sempre dotaram de mulheres celebres a historia de todos os povos, até esses eram amesquinhados, quasi mettidos a ridiculo, pelo movimento empolgante das re- centes idéas, que arbitravam á mulher uma grande força e uma grande importância, mas uma força e uma importância toda de ordem puramente moral, apoiadas na Opinião tole- rante dos homens.

E neste capitulo, que formosa era, e que arrogante, a tradicção das nossas guerreiras e ardilosas patrícias I

Ahi tínhamos, por exemplo, aquella Deusadeu Martins, merecedora de que a sua municipali- dade adoptasse por brazão uma mulher que fora ella sobre as ameias de uma torre, com dois pães nas mãos, e em posição de os arre- messar aos inimigos. Exhausta de mantimentos, ia a praça de Monsão render-se pela fome. E que ideou a portuguesinha valente? De uns res- tos de farinha fez aquelles pães, trepou á mu- ralha, e atirou-os aos sitiantes, bradando que havia pão dentro d^ praça para dar e ven. der. . .

E a nossa Brites de Almeida, a graciosa pa-

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i-,LO-'-^ii

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deira, que amassara dentro de um forno alguns castelhanos fugitivos ?

E o caso de Margarida de Abreu, apunha- lando o rosto de um cavalheiro que a ultrajara ?

E aquellas que no memorável cerco de Diu formavam um batalhão, e acarretavam pedras, e levavam os aprestes necessários ao fogo, e ar- remessavam contra os inimigos tudo quanto lhes podia causar damno, «sempre promptas e op- portunas ? »

A perturbação que esse movimento feminista vinha trazer á doçura dos nossos costumes, ao socego dos nossos lares, ao regalo das nossas rotinas, ganhava terreno sobre o sentimento na- cional, sempre propenso á benevolência, á fan- tasia e á galhofa.

Esse golpe de audácia que a mulher portu- guesa, a nossa querida mulhersinha portuguesa, tão recatada, tão séria, tão bananinha, e tão boa filha, tão boa mãe, tão boa dona de casa, vibrara na situação de invejável garantia que disfructava tinha assarapantado o sexo forte.

Ella queria ser eleitora e queria ser ele- gível ; queria ser deputada e queria ser ministra^ queria ser administradora e queria ser juiza. Mas em vez de atroar os ares com um grande grito de guerra ; e em vez de pegar em armas, em pedras e cm pás do forno ; e em vez de vir

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para a rua, de braço arregaçado, cabellos des- grenhados, e o peito aberto ás balas, disposta á renhida lucta que bem sabia ter de travar para obter a conquista dos seus direitos politicos a lambisgóia traçara outro plano, lançara mão de outras armas, gizara outros ardis.

Para desarmar os exércitos, fundara a Liga da Paz. Para reunir e concentrar energias, creara a Associação. Para acirrar os exaltados, annunciara o Meeting. Para estimular os sim- ples, abrira a Conferencia. Para viciar a atmos- fera, lançara o Jornal. Para subjugar os re- beldes, atirara-se ao Namoro. Para chamar a attenção dos indifferentes, emprehendera a Co- cega ! E, finalmente, para melhor trabalhar, in- trigar, agitar, e ganhar a confiança dos gover- nos, mettera-se na Politica.

Neste afan de disputar ao homem todas as funcções da vida social, e para isso de peito feito a empregar todos os meios, todos os re- cursos, todos os expedientes, a mulher portu- guesa facilmente encontrara do seu lado todos os grandes pensadores, todos os grandes filó- sofos, todos os grandes pedagogos, todos os grandes economistas, todos os grandes publi- cistas, todos os grandes oradores.

Fizera-se um movimento poderoso de vulga- risação das novas doutrinas, todo um apostolado

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se erguera pregando a bella causa, pozera-se em acção uma claque enthusiastica applaudindo todos os dispauterios que a propaganda femi- nista fazia circular, pelo artigo, pelo rela- tório, já pelo discurso.

Quando chegou o momento de passar da theoria á pratica, e das palavras aos factos, a mulher portuguesa, a nossa querida mulhersi- nha portuguesa, que afinal não era tão simples como se suppunha, passou o aos pensadores e aos filósofos, aos pedagogos e aos econo- mistas, aos publicistas e aos oradores e lan- çou-se nos braços dos ministros.

Ora os ministros são homens, para determi- nados effeitos, como os outros homens. E no mo- mento em que eu chegava a Lisboa, e entrava na politica, a mulher do meu paiz, tendo subju- gado os ministros do meu paiz, convertia em leis todos os seus projectos.

«Já tu vês, dizia-me Fausto, que não po- dias chegar em melhor occasião. E' claro que o bom jogo vae todo para os ministros, que levam as reformas á Gamara. Mas somos nós que vo- tamos as reformas, e, por tabeliã, sempre al- guma coisa nos toca ...»

Mettido na commissão da reforma do Código, achava-me eu, sem o saber, ao serviço de D. Claudia, por amor de quem se tratava de re-

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formar o Código. Tudo isso era, porém, um complicado enredo que levava muito tempo a contar, e ficava para depois.

Arranjasse eu uma sobrecasaca contemporâ- nea, folheasse alguns capítulos da Ai^te de vi- ver na sociedade, que adeantava muito ao Manual da civilidade do João Félix Pereira, e quando estivesse prompto que lh'o dissesse, para elle me levar a casa de D. Claudia, e apresentar-me, lançar-me. . .

Chegávamos ao Hotel. não chuviscava, o céo aclarara um pouco, havia mais gente nas ruas. A' porta do Borges, aguardando o toque da sineta para o jantar, encontrámos o Poças.

Defronte do Hotel andava em obras a cana- lisação do gaz, e fora lançada uma prancha de madeira sobre a valia aberta para dar passagem de um lado ao outro lado da rua. E como nos Martyres houvesse lausperenne, as pessoas de- votas que sabiam da egreja e vinham para cima, chegavam ali e atravessavam a prancha. O chão revolvido e a chuva que cahira tinham espapa- çado um lamaçal naquelle ponto de maior pas- sagem ; e as mulheres, resguardando da lama a roda dos vestidos e os folhos das saias de bai- xo, que arrepanhavam em fru-frus, mostravam muito a perna.

Todo embebido no exame d'esse mostruário,

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e perseguindo com o olhar um certo tornoselo que ia longe, Poças nem dera pela nossa aproximação. Da portinhola do coupé, Fausto gritou-lhe: «O' Poças, guarda castidade E então é que o Poças nos viu, e sahiu ao passeio para nos vir falar.

Como não houvera Gamaras, aproveitara a

tarde para dar uma \ olta ; mas o tempo trans-

tornara-se, não havia mulheres na rua. Apenas

agora, naquella estiagem, appareciam algumas.

iMas poucas, e uns estafermos!»

IV

A chuva de mólha-tolos, que cahia sobre Lis. boa desde a segunda-feira de Entrudo, envol- vendo as collinas da cidade num panno de suja gaze, e cobrindo as casas da Baixa de uma humidade viscosa, a escorrer dos telhados como uma baba, resolvera-se por fim numa tremenda carga de agua que durara dois dias sem abran- dar por instantes, precipitando pelo Chiado uma enxurrada ruidosa que tudo varria, e gal- gava em catadupas alterosas.

Fora uma providencia, pois que o cheiro nau- s':;abundo dos tremoços, que a fina flor da Aris- tocracia despejara das janellas do Turf sobre os transeuntes, desde o sabbado gordo, e que revestia o passeio de uma camada espessa, fer- mentando, era um fedor que invadia tudo, in-

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supportavel, e chegara ao meu quarto, que todavia não ficava a uma pequena altitude 1

Poças e eu não nos tinhamos atrevido a sahir do Hotel durante esses dois dias, que julgá- vamos não terem fim, e me lembravam o Dilu- vio universal.

«Outra vez universal, não creio... dizia Poças. Isso foi tempo ! Hoje, se Deus pensasse em decretar de novo o exterminio da espécie humana, não o faria de animo leve, como então. A. moderna estatística das populações offerecer- Ihe-ia motivo para muito meditar e para muito hesitar. Ha uma tendência assustadora para o decrescimento ; e se as coisas devessem passar- se, em caso d'um outro diluvio, como se pas- saram no primeiro, não se afigure a Vossa Ex- cellencia que seria bastante metter numa arca apenas um casal de cada espécie para resistir aos destroços do grande cataclismo . . D'uma espécie, pelo menos, sei eu em que um casal, por si, não seria bastante ...»

«Que espécie é essa, ó senhor Poças?» quiz eu saber, intrigado.

«E' a espécie humana de Lisboa. Está ave- riguado. Para a propagação d'esta espécie, um casal, isto a que se chama em linguagem jurí- dica, marido e mulher, não offerece garantia. E' preciso que haja sempre um marido sup-

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plente para as necessidades bíblicas ...»

Achei forte. Poças achou mais forte a pan- cada de agua que nesse momento batia no te- lhado, com estrondo, revolvendo as telhas.

Olhámos para cima, instinctivamente, num receio de que o tecto se fendesse, e nos despe- jasse no quarto a tempestade. Fora, nas ruas, o vendaval soprava e assobiava. De vez em quando, alguma vidraça, sacudida, estilhaçava- se, e ouviase o tlintar dos cacos na calçada. . .

Para aproveitar o tempo, comecei a pôr em ordem os meus papeis e os meus livros.

Durante a minha estada na Ilha depois da for- matura, e nos largos intervallos que a fama do Doutor Tarquinio abria, como largas brechas, na minha advocacia, sempre desviando para elle as melhores causas, eu habituara-me ás longas e meditadas leituras, tendo principiado por de- vorar toda a livraria do Barão da Terra-Chá, que m'a facultara, e que era vasta e escolhida; passando depois á Bibliotheca da Camará, enri- quecida com a herança de todos os livros de José Silvestre Ribeiro ; embrenhando-me até no Fios Santorimi da Tia Genoveva ; e acabando na coUecção do Diário das Camarás pertencente ao Pompeu, que a mandara encadernar em ve- ludo azul com fechos e cantos de prata, como livros santos, e que «só por ser para mim» a

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deixava sahir de casa, um tomo por cada vez.

Depois, quando não havia na Ilha um hvro que eu não tivesse lido, incluindo o livro de ver- sos do João Hermcto, árcade, que m'o levara a casa em mão própria, com dedicatória passada a limpo por a filha, que tinha uma lettra magni- fica, toda em grossos e finos entrei a fazer encommendas ruinosas á Livraria do Gil, que por cada paquete recebia de Lisboa, e me re- mettia para o escriptorio, dúzias e dúzias de volumes.

Frequentando pouco o Club, pouco me de- morando na botica do Cunha, por onde fazia caminho para o Club, eu recolhia cedo e deitava-me habitualmente tarde, e assim enve- redei e vagueei, durante quatro annos, nas Lit- teraturas cultas e nas Litteraturas populares ; nas Religiões e nas Vidas dos Santos ; na Theo- logia, na Filosofia e na Historia da Filoso- fia ; na Moral, na Economia, no Direito ; nas Sciencias fisicas Je nas Sciencias naturaes ; na Geografia e nas Viajens; na Historia Universal e na Historia Pátria . . .

Inspirado no moderno e fecundo methodo da observação e da experiência, acompanhei de longe, mas tanto quanto me foi possível, o mo- vimento catapultuoso das sciencias novas, que por todos os lados e em todas as direcções re-

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colhiam e ordenavam os grandes factos positi- vos, comparando-os e classificando-os, e d'elles tirando todas as claras consequências.

Conheci então, nesse campo vasto e ubérrimo, resultados maravilhosos. Problemas que parecia deverem eternamente escapar ao conhecimento do homem, eram abordados, profundados, e em grande parte resolvidos luminosamente ; e todo um immenso thesouro de factos novos não renovava as sciencias conhecidas, mas consti- tuía matéria de outras novas sciencias de em- polgante interesse.

A Archeologia prehistorica reconquistava, para meu uso, na escavação paciente dos séculos des- apparecidos, antepassados de que eu nem se- quer suspeitava; e para meu uso reconstituía, á força de descobertas, as industrias, os costumes, os tipos do homem primitivo, apenas mal liber- tado ainda da animalidade. '^ A Anthropologia debuxava-me a historia na- tural do grupo humano no tempo e no espaço, convidava-me a segui-lo nas suas evoluções or- >ganicas, e a estuda-lo nas suas variedades, nas suas raças e nas suas espécies, alumiava-me nessas immensas questões da origem da vida, da influencia dos meios, da hereditariedade, dos cruzamentos, das relações com os outros grupos animaes ...

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A Linguistica explicava -me, pelo estudo com- parado dos idiomas, as successivas formas da linguagem, analisando as e preparando, por assim dizer, toda uma historia do Pensamento, seguida desde a sua origem e através de todas as edades.

A Mithologia comparada dava-me entrada no rutilante e matizado espectáculo da creaçao dos deuses, ensinava-me a classificar os mithos, permittia-me estudar as leis da sua origem e do seu desdobramento através das innumeraveis e pittorescas formas religiosas.

Todas as muitas outras sciencias a Bio- logia, a Astronomia, a Fisica, a Chimica, a Zoologia, a Geologia, a Geografia, a Botânica eu as vi, sob a influencia do mesmo methodo, amplificadas, enriquecidas, chamadas a presta- rem-se um mutuo auxilio. E essa influencia alar- gava-se ás sciencias que a fantasia e o espirito de sistema haviam despojado de toda a preci- são e de toda a realidade a Historia, a Filo- sofia, a Economia Politica. . .

Todas estas magnificas e surprehendentes acquisiçóes da livre investigação, dispersas numa multidão de compêndios, memorias e tratados, eu poderá condensa-las, para meu uso, num conjuncto elementar e methodico, obtendo de cada sábio a essência da sua sciencia, sob essa

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forma precisa, clara e accessivel dos Manuaes, limitado cada manual ao dominio em que a com- petência do sábio me parecesse incontestável. E ao mesmo tempo que, embebido nestas cons- tantes e utilitárias leituras, mastigando bem para auxiliar a funcção digestiva, eu me familiarisava com as conquistas do espirito scientifico moderno e adquiria noções mais amplas d'estas coisas que ninguém hoje pôde ignorar com decência Darwinismo, Atomismo, Theoria mecânica do Calor, Correlação das forças naturaes, Des- cendência do homem, Previsão do tempo, Theo- rias cerebraes... E sempre, e cada vez mais? eu considerava que era pela sciencia universali- sada, levada pelos sábios a todas as consciên- cias, como quem fizesse uma distribuição de ali- mento a domicílios que a humanidade poderia pôr um termo á tremenda anarchia intellectual do meu tempo I

Eu continuava arrumando os meus papeis e os meus livros. Poças persistia no seu monó- tono e habitual passeio, de mãos nas algibeiras das calças, dentro do limitado espaço que ficava livre entre a porta do meu quarto e a janella do lado do Chiado. E de cada vez que se approxi- mava da janella, disfarçando, deitava olhares furtivos, inquietos, para as janellas defronte.

Mas desde a terça-feira gorda que as cortinas

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d'aquellas janellas se conservavam corridas, im- placavelmente corridas, para desgosto do Poças, que não trauteava, que cantava já, em grande lamuria, e umas poucas de vezes ao dia, imi- tando o Leone, as suas coplas favoritas do Boc- cacio :

A' janella, Minha bella, Corre, corre, Ligeira gazela !

Toda a gente, no Borges, sabia do namoro, que entretinha a mexeriquice das creadas e di- vertia as hospedas dos quartos que deitavam para o Chiado.

A' meza do Hotel, ao almoço e ao jantar, .as piadas e as allusões ferviam d'um lado e outro, como uma fuzilaria em volta de Liberato Poças, que fazia ouvidos de mercador, fingindo não per- ceber. Umas meninas brazileiras, que occupa- vam com a mamã os aposentos mais caros do Hotel, alegres como duas cotias, e que tinham começado a brincadeira do Entrudo quinze dias antes, tomavam o Poças á sua conta e não havia judiaria que lhe não fizessem, pregando-lhe ra- bos, pondo-lhe estalos tremendos por baixo da cadeira, encharcando-o com bisnagas, despejan- do-lhe no pescoço mãos cheias de papel picado ;

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e entre outras partidas, que não tinham con- to, escreveram-lhe uma carta amorosa em nome da vizinha do quarto andar, e pagaram a um creado para que, á hora do jantar, quando to- dos estivessem á meza, a fosse entregar ao Po- ças, ali mesmo, a ver a cara que o Poças faria. E Poças cahira na ariosca, como o mais fino melro cae numa armadilha.

A carta era escripta com lettra de mulher, não havia duvida, e as baldas eram certas. Fa- lava-lhe do carinho que elle dava aos seus jacin- thos; pedia-lhe desculpa de que sem^pre tão tarde se abrisse aquella janella a que apparecia alguém para quem elle não era indifferente (antes pelo contrario) mas a razão era porque essa pessoa soaria horrivelmente de insomnias, e também muito tarde, pelas madrugadas, é que podia conciliar o somno ; fazia amáveis referencias aos seus dotes de orador parlamentar, e ao seu bello es,->irito de piadista insigne. E acabava por dizer que, nessa noite de sabbado gordo, elle encontraria se quizesse... no baile de D. Maria, um certo dominó preto, «a quem seria grato poder fazer com o senhor Poças um tour de valse ...»

Tão embebido andava elle com aquelle na- moro, que nem sequer lhe passara pek idéa a suspeita de uma brincadeira de entrudo.

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Poças, que de costume fazia todas as honras á cozinha do Hotel, servindo-se abundante- mente de todos os pratos que viessem á meza, tendo merecido mesmo a fama de «comilão do Borges» por analogia patusca com o «comilão de Almada», estando-se ainda no segundo prato quando essa carta lhe chegou ás mãos, de pouco mais se serviu, e debicando apenas, a espaços lentos, o pouco mais de que se serviu. . .

Aquella inesperada missiva tivera artes de lhe tirar o apetite; e quando veiu a travessa de orelheira de porco com feijão, de que havia noticia desde o almoço, noticia que Poças rece- bera com estrondosa manifestação de regosijo. Poças fez-lhe cara e arredou a travessa.

A mãe das meninas brazileiras, que lhe ficava ao lado, e que tanto reparava,- das outras vezes, na «impossível vontádi di cómêr qui sinhôr Po- ças tinha sempre... viu, ên?» chegara a perguntar-lhe se se sentia incommodado.

Um major da Administração Militar, que tinha quarto fora, e vinha ao Hotel para comer, e de facto para comer, pois não fazia outra coisa desde que se sentava até que se levantava da meza, vendo que Poças não quizcra servir-se da orelheira, desconfiara do caso, e perguntara- Ihe ao ouvido, emquanto a travessa dava a volta para chegar á sua vez :

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«Foi alguma barata que Vossa Excellencia encontrou

E como Poças lhe affirmasse que não, o Ma- jor insistia :

a Algum cabello, talvez ? . . . »

E como Poças, um pouco irritado, lhe de- clarasse, sob sua palavra de honra, que não vira baratas, nem cabellos na orelheira de porco com feijão, e que se não se servira fora apenas pela simples razão de que não lhe apetecera ser- vir-se, ainda o !Major referira, cuspinhando no prato caroços de azeitonas, que uma vez en- contrara, no fundo de uma molheira de coelho á caçadora, a luneta da dona da casa de hospe- des onde semelhante tragedia se passava ; e que, por isso, e desde esse dia, não havia surpre- zas para elle no fundo dos guizados. Mas tinha um grande nojo de cabellos e baratas na co- mida, e por isso perguntava. . .

O mais importante, porém, naquella partida de entrudo, era averiguar se Liberato Poças ac- cedera ao convite e correra á entrevista com o dominó preto, para fazer- lhe depois uma ruidosa montaria.

Ora quiz o acaso, que é um grande brinca- lhão quando lhe na veneta para o ser, que fosse eu quem levasse ás meninas brazileiras a alegre noticia de que o Poças não estivera no

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baile onde lhe fora marcada a entrevista, mas andara mettido numa aventura de mil diabos, de que me fez confidente ao outro dia.

«Imagine o meu amigo, dizia-me Poças, que eu sabia poder encontrar hontem no baile de mascaras de Dona Maria uma certa senhora, a quem não sou indifferente, mas com quem não foi ainda possível encontrar-me face a face, para lhe dizer meia dúzia d' estas coisas que to- das as mulheres gostam de ouvir, e a que quasi todas ellas cedem, se a gente sabe dizer-lh'as e a occasião se presta... A occasião não podia ser melhor, e, quanto ao resto, ficava isso por rainha conta, pois não é debalde que uma pes- soa, chegada á minha edade, tem dedicado me- tade da sua vida ao estudo aturado da psicho- logia feminina. . . Fui, e procurei. Essa senhora, sabia eu, devia vestir um dominó preto. Para si- gnal, era mal escolhido, valha a verdade, por- que em todos os bailes de mascaras apparecem sempre muitos dominós pretos. E logo que en- trei me appareceu um d'elles, que me metteu o braço e me arrastou na onda, começando por me dizer: «Ainda bem que vieste Cahi logo como um pato, e não mais o larguei, e com elle valsei, vilipendiosamente, até de madrugada ! Depois, meu amigo, que seio ! e que perfume que me vinha d'esse seio I Por fim, quasi

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sem poder comigo de tanto valsar, lembrei que fossemos comer alguma coisa, confortar nos, para maior empreza ; e fugimos do baile, met- temo-nos num coupé, fomos para um gabinete do Tavares... Veiu uma sopa de queijo, que estava deliciosa, vieram camarões, veiu tudo ! Mas o meu dominó, que absorvera dois pra- tos de sopa e pedira segunda dose de camarões, não consentia em levantar a viseira. . . Três ve- zes lh'o pedi, três vezes m'o recusou. então suspeitei de que estava sendo victima de um for- midável equivoco. Não era aquelle o dominó preto que eu procurava no baile ! Deixara então escapar,' assim, e tão estupidamente, o melhor ensejo da minha melhor aventura ! E o deses- pero d'essa suspeita e o meu amor próprio mal ferido, ter-me-iam dictado nesse momento uma grossa violência, se o Champagne me não hou- vesse lançado num enternecido quebranto, que me deixava estar por tudo. . . Depois, se o dominó preto que eu chamara para meu con- viva d'essa ceia do Tavares, não era bem aquelle dominó preto que me chamava ao baile do Theatro de Dona Maria, era em todo o caso um dominó condescendente em tudo o mais que não fosse levantar a mascara, e nessas alturas não se me dava trocar uma aventura por ou- tra, fosse ella qual fosse. . . Passei-lhe um braço

lio A RUA DO OIRO

em volta, inutilisei-lhe toda a resistência, segu- rei bem, e com a mão que me ficava livre ar- ranquei-lhe a viseira... Deus meu, que não sei de nojo como o conte !. . . Estava abraçado ao Melecas, o Melecas do Phantasma ! O que en- tão se passou foi uma coisa pavorosa. Atirei-o, de borco, para cima d'uma chaise-longue que havia ali a um canto, deitei-lhe esta mão ao pescoço, assim aqui, com gana, levantei-lhe as saias (vinha de saias, o malandro ! e calças de cambraia com muitíssimas rendas) e com esta mão lhe ferrei tantas e tão enérgicas palmadas no sitio apropriado, que lh'o deixei da côr dos camarões que o maroto comera á minha custa

Referindo-me este caso extremamente alegre, e que uma nova surpreza me dava sobre os es- cândalos recônditos da capital. Poças mostra- va-se convencido ainda de que a carta que lhe marcava a entrevista no baile devia ser, com effeito, da vizinha do Hotel ; e se ella não lhe apparecera mais á janella depois d'aquelle dia, a culpa fora d' esse viscoso Melecas, que o des- viara, o intrujara.

E o meu caro Poças, cahindo então num pro- fundo desalento, começou a soífrer secretamente do mal de amor.

Vi-o mergulhar nesse estado mental e físico que Bourget define, e que tudo deprime, tudo

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aniquila nacreatura liumana que uma vez cessou de pensar, de sentir, de desejar, e abandonou deveres, e esqueceu ambições, e perdeu hábitos para toda se dar, toda se votar á idéa fixa de um outro ser. . . E como certos doentes muito apprehensivos, que procuram nos trata- dos confusos da pathologia o conhecimento da origem, dos simptomas e da natureza da sua doença, e um mórbido goso experimentam quando descobrem que alguma indicação dos tratados bate certo com a origem, com os sim- ptomas e com a natureza do seu mal, elle se deitou aos tratadistas da pathologia do amor.

Mas de todos o que mais acirrava o seu mal era Bourget. E, segundo Bourget, Poças consi- derou-se em aiiiôr ~ um excliiido.

Pensando bem, recordando bem todos os in- cidentes amorosos em que se achara envolvido, elle reconhecia que atravessara uma longa vida árida e triste de solteirão sem esperança, e sem nunca ter visto atear-se, ao contacto do seu ser esbraseado, o incêndio calamitoso d'um coração de mulher.

o Mas excluido porquê ? grande Deus do céo I . . . » exclamava, levantando para o céo, e para o grande Deus do céo, ambos os punhos cerrados, num desespero.

«Talvez por íimide{. . . » aventava eu, recor-

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dando as causas d'essa exclusão irreparável, tão espirituosamente encontradas no manuscripto posthumo de Cláudio Larcher.

E, para consolar o- Poças, invocava a memo- ria desditosa do grande Rousseau, que fora também um timido. Para companheiro de des- graça não poderia elle encontrar melhor. Mas se esse não lhe bastava, e queria outro, ahi estava esse apaixonado e infeliz Sainte-Beuve, que ti- nha a mania das cozinheiras semelhança do próprio Poças que me confessara ter a mania das varinas) e ao qual se attribuia aquelle dito tão profundo e tão revelador, em resposta a alguém que lhe perguntava o que teria elle que- rido ser, em vez do grande pensador que era : «Sargento de cavallaria ! . . . »

Mas Poças protestava. Poças não era um ti- mido. Isso sim ! Antes pelo contrario. E logo referia dois ou três casos, comprovando, em que arriscara a pelle por sua audácia romântica á Paulo de Koch, andando de gatas por cima de telhados, escondendo se em armários de roupa, escorregando por chaminés . . . Timido elle, isso sim !

«Talvez por condição social... )> tornava eu então. E citava-lhe as conclusões a que tinha chegado aquelle divertido psichologo que se com- prazia na estatística comparad i das probabilida-

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des que cada individuo tem para triumfar no amor, segundo íis suas condições sociaes. . .

Entre os juizes, os procuradores, os escrivães, a percentagem dos felizes era apenas de cinco por cento ; entre os médicos e os músicos, dez por cento ; entre os romancistas e os poetas, quinze a trinta por cento ; entre os jornalistas, os tenores, os caixeiros de modas, cincoenta, sessenta e noventa por cento ; entre os actores cómicos, noventa e nove por cento I

Ora Poças não era, e ainda bem para elle, nem cómico, nem tenor, nem poeta. Poças era legislador ; e a percentagem, entre os legislado- res, era muito limitada, tão limitada como para os financeiros e para os agentes de cambio : uns tristes dois por cento. Mas havia peor, muito peor, pois que, segundo a estatística, a percen- tagem para os chefes de Estado era de um por dez mil. . .

Estas desgraças alheias não o consolavam das próprias. E a olhos visto, Liberato Poças aca- brunhava-se, entristecia, murchava. Houve um momento em que deveras cheguei a ter pena d'elle. Ninguém diria que estava ali o mais ale- gre espirito de Portugal I

Mas deixemos o Poças como se diz nos ro- mances, quando alguma personagem começa a

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embaraçar o fio do enredo, e o auctor não acha outro meio de se ver livre d'elle. De resto, Po- ças, que entrara neste romance para animar com a sua piada e com o seu commentario as passagens a que faltasse a graça natural dos factos, cahira numa infinita tristeza, uma d"essas tristezas que os francezes comparam, não sei bem porquê, á tristeza d'um barrete de dormir. E todo aquelle que a si próprio priva da alegria difficilmente pôde deseja-la aos outros.

Ao temporal succedera a bonança, como ao Entrudo se succedia a Quaresma.

então eu começara a occupar-me deveras, e com grande afan, da vida parlamentar.

Aquella nova atmosfera agradava-me, sobre- excitava-me com satisfação, e pouco a pouco me fazia crer que eu fora talhado bem para aquelle meio, e que teria errado a vocação se persistisse em fazer carreira pela advocacia, na Ilha, disputando os clientes ao Doutor Tarquinio.

A Camará era composta de rapazes, na maior parte imberbes, cheios de saúde e cheios de ale- gria, mal contidos no seu logar, e em compos- tura, pela tarracha do Regimento. Via-se que o sangue lhes pulava nas veias, e que deviam fa- zer os máximos esforços para conter os ímpetos d'uma mocidade irrequieta.

O Parlamento prolongava a Universidade ; ti-

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nha o aspecto d'Lim outro curso. E ao passo que o Abreu Viegas, na presidência, assumia a ca- tadura de um lente, podia- se suppôr que, quando algum deputado fazia uso da palavra, respondia ^ uma lição.

A representação nacional estava sendo, posi- tivamente, uma rapaziada comedida, com boas notas, comportamento exem|..lar.

O Parlamento era, com effeito, um outro cur- so, outro curso superior onde se professavam todas as disciplinas que constituem a formatura dos estadistas modernos. E eu verifiquei, não sem um certo receio pela responsabilidade que pe- sava sobre os meus hombros de deputado inde- pendente, que essas disciplinas eram : Velhaca- ria e Calculo integral. Filosofia e Cinismo, Prin- cipios de descaramento e Historia, Economia politica e Luvas, Colonisaçao e Sindicatos, Le- gislação e Bancos, etc, etc.

Nas sessões da Camará, recebiam os alum- nos o ensino theorico. Fora da Camará, era-lhes ministrado o ensino pratico. Para este fim se convocavam as reuniões da maioria e os conse- lhos de administração ; se creavam as direcções geraes, e os commissariados régios junto das Companhias ; se inventavam as concessões no Ultramar, e os Tabacos, e os Fósforos, e os Ca- minhos de ferro . , ,

Il6 A RUA DO QIRO

Quando se encerrasse a sessão parlamentar, terminaria o curso. E toda essa mocidade que então se sentava nos bancos escolares de São Bento se encontraria apta para se sentar nas ca- deiras do poder bacharéis formados, estadis- tas feitos.

Nestas condições de venturosa precocidade, na certeza de tcío boas facilidades, e na prom- pta conquista de tantas regalias, a mocidade do meu tempo entrava na vida publica cheia de confiança, cheia de alegria, e cheia de descaro.

Da Universidade, trazia ella a idéa de que o bacharelato era uma blague, a competência dos lentes uma mistificação, o ensino uma burla. O Parlamento é que era a verdadeira escola. O Orçamento é que era o verdadeiro livro da vida.

Quando essa mocidade assim preparada, as- sim educada, e assim investida no mandato da indifferença popular, entrava no seio da repre- sentação nacional, nenhuma surpreza a espera va, nem o menor sobresalto, nem o mais leve receio. Se algum mais timorato, como eu, hesi tava um momento antes de transpor o limiar d'aquella porta, logo dois o agarravam e o em- purravam, e a esse empurrão se chamava o acto solemne de introduzir na sala o novo deputado.

Ora a verdade era que todos os novos depu- tados, quando entravam na Gamara, sabiam

A RUA DO CIRO I 17

que eram obrigados a deixar á porta a sua ben- gala e o seu decoro.

Dentro do Parlamento, todas as questões se resolviam ou pelo sofisma, ou pelo socco. Aquillo a que noutros tempos se chamava, num sentido figurado a lucta parlamentar, chama- va se agora, nu 11 sentido muito positivo a lucta pela vida.

A eleição de um deputadj era um producto de mecânica.

Ao trabalho preparatório da constituição das Cortes chamava-se já, e com muita propriedade a montagem da machina eleitoral.

A designação exacta, o termo próprio ado- ptado pelas Acadenias, mettido nos dicciona- rios, explicado nas escolas, de toda essa com- plicada intriga de nomeações e transferencias? de beneficios e promessas, de chafarizes e es- tradas— era a eugi^eiiagem do suffragio.

Quando se verificava a impossibilidade de conseguir, por meio d'esta mecânica, o resul- tado desejado de uma determinada eleição, a politica nacional encontrava outra variante. Onde não podia applicar a mecânica, empregíiva a culinária. E havia então o prato do dia de elei- ções, que era o nacionalissimo carneiro com batatas.

Algumas vezes acontecia, porém, que onde a

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mecânica pouco ou nada poderá, e onde a cu- linária não muito mais avançara, a eleição se perdia. Mas a politica dos Governos é sempre fértil em expedientes, quando se trata de garan- tir a maioria dos Parlamentos ; e se a mecâni- ca falhava e a culinária esturrava, vencia por fim, e infallivelmente, a prestidigitação. Tinha se a chapelada.

D'esta quasi infinita variedade de processos seguros e meios efíicazes de fazer eleições, nas- ciam o desplante e a firmeza com que se annun- ciava, muitos dias antes do acto eleitoral, a ■vinda ás Gamaras do Pompeu ou do Machado da Botica.

Candituras e accordos, combinações e ma- chinações, tudo isso vinha minuciosamente con- tado, dia a dia, nos periódicos, que para esta reportage indecente abriam secções especiaes, e ou de caso pensado por conveniências, ou em caso diverso pori nconveniencias, assim se tor- navam do dominio publico todos os detalhes da estratégia eleitoral.

A liberdade do voto tornara-se uma coisa desnecessária. Para que queria o Povo a liber- dade de voto, se de cada vez que pretendesse fazer uso d'elle tinha a certeza de ser preso?

Eu não sei que pensador eminente disse, assoando-se que a grande força de uma na-

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cão c O pudor das suas mulheres. Mas por mais de uma vez pensei, no decurso d'aquella sessão legislativa que a verdadeira força de uma na- ção era o impudor dos seus políticos.

Viciado na sua origem e nos seus resultados, deshonrado por toda a parte, o sistema parla- mentar era ainda uma instituição de muita utili- dade e muito decorativa. Cahido no descrédito publico muito embora, e foco de corrupção, o parlamentarismo imprimia a sua influencia nas condições geraes, contaminava os espíritos, agi- tava a anciã das carreiras, alimentava a intriga dos partidos, e tornava-se, por uma espécie de convenção tacita entre esses mesmos partidos, o disfarce ignominioso das peores dictaduras.

Mas eu não viera ao Parlamento nem para arranjar dinheiro, nem para chamar concorrên- cia ás galerias, nem para ser instrumento de ministros e de sindicatos. Eu viera ao Parla- mento para fazer, interpretar, suspender e revo- gar leis ; para velar na guarda dos preceitos cons- titucionaes e promover o bem geral da Nação ; para fixar as despezas publicas e repartir as contribuições. Eu viera ao Parlamento para ser o censor dos actos do Governo ; para estabele- cer os meios convenientes ao pagamento da Di- vida; para regular a administração dos bens do Estado. . ,

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Mas, e acima de tudo, eu viera ao Parla- mento para defender os interesses da minha Ilha, para promover a felicidade do meu Archi- pelago . .

Por esse tempo realisava-se, entre as popula- ções açorianas, um vivo movimento de confra- ternisação, que tendia a estabelecer, sobre uma solida base de sentimento, todo um amplo pro- gramma de independência moral, económica, administrativa. E essa confraternisação affirma- va-se numa boa e profícua realidade, que a in- triga da metrópole não podia perturbar, que até ahi se conservara envolvida numa rrodesta aspiração platónica, mas que das palavras e dos desejos passava agora a uma propaganda activa e bem encaminhada, para que do accordo re- sultante de mutuas transigências, duma legisla- ção admini^ítrativa homogénea abraçando todas as Ilhas, a todas applicada sem repugnância, não escravisando umas ao proveito das outras, resultasse uma vida nova de descentralisação.

Falava se muito do direito que os açorianos tinham á sua independência, fundamentando-o em muitas razões de desproporcionalidade de garantias, da injustiça e inconveniência das leis, da ingratidão da metrópole, da errada gerência dos dinheiros públicos.

Na distribuição das garantias o favoritismo

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era flagrante, concedendo-se ao Continente do reino todos os melhoramentos e regalias supér- fluas, c negando-se aos Açores as de neces- sidade mais urgente, as estradas ordinárias, as docas, a melhoria das condições dos portos. . .

Atacando-nos em todos os direitos de liber- dade e de propriedade, em favor gratuito do Continente, a ingratidão dos governos esquecia quantos assignalados serviços, quantos heróicos serviços a Nação recebera dos povos açorianos, e opprimia-nos cada dia com novas leis vexató- rias. As garantias da Constituição, que tanto sangue nos custara, tinham sido violadas com perfídia ; á liberdade antepunha-se a escravidão ; ao direito da propriedade, a espoliação ; á egualdade perante a lei, a mais aviltante des- proporção e parcialidade.

Por tudo isto, e por muito mais, nos sorriam as vantagens que deviam resultar da indepen- dência das nossas Ilhas. E não eram poucos os estranhos que, tendo- nos vizitado, admirado e estimado, advogavam perante as nações civili- sadas o direito da nossa causa, quando os go- vernantes de Portugal mais nos escrs visavam.

Ah I que se as minhas queridas Ilhas dos Aço- res, situadas, como eram, a meio do Oceano Atlântico, entre os continentes do antigo e do novo mundo, e em linha recta de communica-

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cão para todos os navios que se dirigem á Eu- ropa, não das duas Américas mas de todas as possessões da índia, da China, e seus mares adjacentes, estivessem sob a influencia de uma actividade commercial, uma propriedade agri- cola, e uma geral industria, que naturalmente se levantam da concorrência de génios e empre- zas, entre os habitantes de um estado livre, quam importantes não seriam ellas, e inestimá- veis os seus recursos !

Como nós veriamos aproveitadas ainda as mais diminutas parcellas do nosso grande ter- ritório ; e levantarem-se edifícios sumptuosos ; e crearem-se estabelecimentos, portos, docas, vias férreas e até cidades, que em pouco tempo con- verteriam essas Ilhas, tão deploravelmente aban- donadas, numa populosa scena de aífluencia, de propriedade e de força. . E o mesmo commercio, auspicioso protector da riqueza das Nações, ver-se-ia definitivamente plantar o seu estan- darte nas praias açorianas, como em um dos grandes impérios do mundo !

Mas os governos de Lisboa queriam manter- nos numa situação aviltante, impedindo-nos de attingir o desenvolvimento a que nos davam di- reito as tradições históricas, a supremacia intel- lectual de muitos dos nossos, a pujança do solo, a salubridade do clima, a collocação geogra-

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fica, O génio emprehendedor e aventureiro dos ilhéos, a tenacidade para o trabalho, e as avul- tadas sommas com que saciávamos, em cada anno, a voracidade dos cofres públicos.

Nas discussões dos Centros, nas cavaqueiras da botica do Cunha e nas palestras do Club, chegara-se á conclusão de que o nosso mal tinha uma etiologia única o centralismo desmedi- do e absorvente ; e um remédio também, um a descentralisação completa, estimulante e impulsionadora.

Lançada á terra a semente germinadora d'essa bella planta que nós quizemos ver crear-se e florescer na tepidez do nosso clima ; assentada a primeira pedra d"esse edifício que nós quize- mos construir como demonstração de capacidade mental e de civismo immaculado, iniciara-se en- tão o movimento de propaganda, pedindo e obtendo a cooperação de todas as corporações e vultos importantes dos três districtos do Ar- chipelago, entrai.do nas luctas da imprensa, fa- zendo comicios e conferencias, elaborando um projecto de lei, que era publicado, e distribuído abundantemente. Queríamos a reforma do nosso sistema administrativo, que permittisse gastar-se em proveito exclusivo dos Açores o dinheiro dos açorianos, protegendo o nosso commercio, acti- vando o progresso da nossa industria, fixando a

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remuneração do nosso trabalho, agitando, vivifi- cando, fomentando I

Por modo que, na priíreira opportunidade, que foi aquella de que eu sahí eleito, os regene- radores e os progressistas congraçaram-se, e resolveram apoiar as candidaturas independen- tes dos deputíidos autonomistas. Foi nessa oc- casião que o Doutor Tarquinio, interpretando um sentimento muito geral entre os meus con- terrâneos, lembrou o meu nome e propoz a mi- nha candidatura, em sessão magna do Centro regenerador.

Emquanto esperava o propicio momento de levantar a minha débil voz nas Cortes para fundamentar e mandar para a meza o projecto de lei da autonomia administrativa dos Açores, dediquei-me com empenho aos trabalhos da corr missão do Código, a que o Ministro me ag- gregara.

então me viera de casa do Nunes Correia uma enorme caixa de fato novo, acompanhada de uma conta pavorosa, que eu paguei com lín- gua de palmo, e me deixou abalado de finan- ças para mais de um mez.

A sobrecasaca, de diagonal de duas libras, toda forrada de seda, cahía-me no corpo conco uma luva. Fiz no Augusto Ribeiro um forneci- mento de coUarinhos direitos e punhos de bre-

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tanha finíssima, tado o que havia de melhor. Escolhi vinte gravatas ; quiz três dúzias de pa- res de piugas do mais caro fio da Escossia ; en- commendei três chapéus : um chapéu alto, um de coco preto, e outro de coco cor de abóbora, que era a côr da moda, trazida de Inglaterra por um ministro nosso, arbitro de elegâncias, e amigo do Principe de Galles. No Serra, deixei a medida para muito calçado de verniz e pelica. No Godefro}', paguei vinte e três mil réis de aguas para o cabello, de cosméticos para a barba, de essências para o lenço. E, de cami- nho, entrei na livraria do Gomes, e comprei a Ai^te de vi per na sociedade que logo nessa noite serviu para me adormecer muito mais de- pressa, num sorano muito solto.

Fausto Guimarães constatara que tudo estava ana afinação» e levara-me a casa de D. Claudia, onde agora eu era recebido e acolhido com de- monstrações muito evidentes de sirapathia por parte da dona da casa, que ia precisar dos meus serviços, e por parte de sua filha, «sua gentilissima filha», que era o superlativo com que sempre a distinguia o lUiistrado no memo- randum do seu high-life, e que em boa verdade não precisava d" esse favor do Illustrado para ser, com eíFeito, e como eu logo notei, muito gentil.

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Chamava-se Clara. Na intimidade da casa, e dos amigos da casa, era a Clarinha.

Nesta grata intimidade dos amigos da casa entrara eu íacilmente, e facilmente fora dei- xando me enlear no convívio e na corrente de curiosidade que, pouco a pouco, de dia para dia, de conversa em conversa, de pequenino in- cidente em pequenino incidente, se iniciava en- tre nós.

D. Claudia pareceu-me desde logo uma excel- lente creatura, mas despropositadamente volun- tariosa, e tão despropositadamente voluntariosa, que a um capricho fútil, a um desejo de coisa minima, a um apetite de nada, sacrificaria a melhor occasião de se mostrar transigente.

Não era uma d'estas creaturas extravagantes que muito procuram dissimular o seu feitio, e que dizem uma coisa quando pensam outra, e tanto se arreceiam do mundo qiie toda a sua grande preoccupação consiste em dar ao mundo uma idéa enganosa d'aquillo que realmente são. Não senhor.

A seu modo, muito a seu modo, D. Claudia era uma mulher de princípios, e tinha-os seus, declarando bem alto para que quem quizesse ouvir a ouvisse que a vida sem aventuras e sem caprichos ruidosos seria d'um fastio mor- tal; e que a si e a mais ninguém, devia con-

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tas das suas acções, dos seus disparates, dos seus modos de vêr...

Fausto conhecia toda a historia de D. Clau- dia, e d'ella me poz ao facto. Era de Lisboa, de muito boa gente, filha d'um Pimentel, que fora juiz do Supremo e par do Reino, e d'uma senhora Medeiros, da illustre familia dos Arru- das de Medeiros, que eram também das Ilhas.

Esse Pimentel esbanjara duas fortunas de se- guida, uma atrás da outra, a sua e a da mulher, e tratara depois de arranjar um casamento bom para a filha mas que fosse principalmente bom para elle, que se enchera de dividas, e não via outro meio de poder livrar-se d'essas, para depois contrahir outras.

Claudia recebera de sua mãe uma educação primorosa, entre mil cuidados de virtude e advertências de bom critério ; mas herdara an- tes, do pae, o temperamento fogoso e o leviano pensar. E no meio em que houve de medrar, e em que as suas graças floriam, mais propicia atmosfera teve para a desenvoltura a que a natureza a impellia, do que para o recato que lhe teriam aconselhado as lições e o exemplo d'aquella nobilissima senhora.

A esse tempo, no turbilhão de prazeres mun- danos em que o imprudente Pimentel, juiz do Supremo e par do Reino, a iniciava e cxhibia,

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com a premeditada astúcia de llie arranjar casa- mento, levando-a de vestidos ainda curtos a bailes e saraus, kermesses e corridas, Clau- dia encontrara o seu primeiro homem. E o des- plante coin que esse homem perturbara e facil- mente avassalara aquelle pequenino coração cu- biçoso e movediço, fora até ao requinte de as- sistir elle, a firme, e bem impregnado da solemnidade do acto, ao sacrifício que Claudia fizera do muito amor que lhe tinha, consentindo nesse casamento que o senador Pimentel, inte- gro juiz do Supremo, considerava ultimo recurso, em ultima instancia, para o caso importante de pagar as suas dividas.

Poucas horas antes de se decidir a declarar que annuia a semelhante casamento, com aquelle mostrengo de suissas grisalhas e óculos defu- mados, que poderia ser seu avô, num repente de despeito por esse homem que ella vira com tão bons olhos e a quem se teria offerecido de tão bom grado, e num momento de piedade pela situação desesperada em que via o pae Claudia chegara quasi a implorar do namorado que a livrasse d'esse marido que lhe impunham, e que a livrasse fosse como fosse... E esse homem, o seu primeiro homem, afastara-a de si quando ella ia para se lhe deitar nos braços, dissuadira-a do leviano propósito, incitara-a.

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acirrara-a, tinha-a compellido a tomar a resolução que Claudia tomara, por fim, num desespero, numa debulha de lagrimas...

Depois, que reprehensivel audácia ! vendo-a casada, continuara a persegui-la, a namora-la, a excita-la; e o seu atrevimento chegara ao ponto de ir bater á porta do quarto de um hotel de Cintra onde Claudia fora vêr romper tristemente a sua lua de mel, informado de que o marido tivera de ir ficar noutro quarto, por não haver melhores acommodaçÕes de núpcias no hotel !

Mais tarde, vira-a mãe, mãe d'uma creança que não era filha d'elle, louvado Deus I mãe d'uma filha legitima ; e nem esta circumstancia poderá abrandar a fúria da sua perseguição, nem desorganisar o plano da sua encarniçada bata- lha. Dir-se ia até que tal circumstancia mais o exasperara na impertinência ; e, por fim, tanto fizera, tanto andara, tanto rodara, que tinha acabado por aproveitar se d"essa pobre mania de archeologo que descobrira no marido de Claudia, levando-o a- emprehender intermináveis viajens de estudo pelo paiz, viajens que não o deixavam repousar no seio da familia quinze dias seguidos em toda a volta do anno, muito convicto e tomando muito a sério o seu papel de vogal effectivo da commissão dos Monumentos Nacionaes.

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E tão bem soubera conduzir o fio diabólico do scu diabólico plano que, á hora em que Fausto Guimarães me contava esta historia, Claudia teria transposto o limiar fatal das portas do adultério, se o dedo da Providencia lhe não houvesse apontado, num momento que, por um tris, não fora para ella o ápice da perdição, a sombra redemptora da mamã Medeiros, dos bons Arrudas de Medeiros, da Ilha !

«Mas quem foi esse bandalho?!» quiz eu saber, revoltado.

Fausto sorriu, acalmou a minha indignação. O bandalho fora, e era, o actual Presidente do Conselho !

Entrou depois em minúcias, que recolhi com interesse. A' semelhança de Kéraban, o Cabe- çudo, que não teria feito uma tão grande volta se o tivessem deixado, como elle queria, atra- vessar o Bosforo, o Ministro não desistira, não desanimara um momento, não desesperara um instante. Mettera-se em casa de Claudia, perse- guira-a de perto, compromettera-a. Era um es- cândalo, de que até Já, por meias palavras que bastavam aos bons entendedores, se falava nos jornaes emquanto o marido percorria o reino dos Algarves, por sol e por chuva, muito occu- pado nas suas cómicas investigações acerca da queda do Califado de Córdova.

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Habituado á enxurrada de injurias e diíFa- maçÕes em frase impressa, o Ministro não fa- zia caso, dizendo que todo o homem superior devia libertar-se do medo tolo que tanta gente tem na presença de um ataque de jornal.

-- «Tornou-se necessário, dizia elle, que todo o homem de bem se adestre nessa nova forma de coragem. vae o tempo em que uma descompostura nos jornaes era o melhor memo- rial para o despacho dos ministros!»

Mas na diffamação do Ministro ia embrulhada a reputação de Claudia. Numa terra como é Lis- boa, onde toda a gente se conhece e onde tudo se sabe, o Ministro ganhara, muito antes de haver sido chamado aos conselhos da Coroa, a fama de grande femieiro. O físico ajudava-o, a audácia secundava o físico, era uma pouca- vergonha.

Transmontano, e solido, e bem arcaboiçado como um granadeiro, o olho vivo, a fronte alta, a sobrancelha espessa e áspera, o bigode farto e forte, a narina ampla, o lábio saliente, respi- rando saúde e garantindo energias, as mulheres estremeciam de o ver, revirávamos olhos, cahiam em convulsões, como sibilas e pithonisas no seu delírio fatídico ; ou quedavam-se em êxtase hipnótico, contemplando-lhe o nariz alentado e fumegante, como brahmanes abismados na con-

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templação do largo umbigo de Brahma. Que belleza de homerr I pensavam. E essa «belleza de homem» era disputada, quasi que a dentes e unhas, como que numa bulha de gatas ciumen- tas, entre o eterno feminino das classes altas a que elle soubera gaindar-se, da modesta condi- ção de filho de um sapateiro de Bragança, que fora o seu principio.

O Phantasma chegara a publicar uma vez^ com iniciaes em que logo se pozera o dedo, adi- vinhando os nomes por inteiro, a lista das aman- tes conhecidas do Presidente do Conselho. Eram trinta e seis. Trez dúzias ! Um serralho ! E achara-se-lhe graça, e acha^^a-se natural.

As amantes constituíam a esse tempo, na população da capital, uma das parcellas mais avultadas, pelo seu numero, pelo seu preço, pela sua influencia perniciosa nos destinos da pátria. Sem profundar as causas, limitando-me apenas a constatar os factos, deixando aos especialistas e aos estudiosos do género a busca das razões climatéricas, atávicas, fisiologico-recreativas do fenómeno, eu verificava que as amantes em Lisboa occupavam sempre as primeiras filas onde quer que uma multidão feminina se agglo- merasse, se acotovelasse, se agitasse : nas pri- meiras filas de São Carlos, nas primeiras filas da galeria das Camarás, nas primeiras filas das

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batalhas de flores, e em todas as festas, e em todos os espectáculos, e em todos os bazares.

Existia já, cultivava-se já, positivamente, o sport das amantes, tendo-se uma amante como se poderia ter um cavallo, apenas com esta dif- ferença : ser o dono que estava á mangedoura, e gndava pela arreata. E havia algumas tão ce- lebres como certos cavallos da Historia. Citava-se a amante loira do fallecido Conde da L. . . como se poderia falar do cavallo branco de Napoleão. A velha amante, então honorária, de um ou- tro ministro de Estado, também muito falado e também honorário, era tão conhecida em Lis- boa como o cavallo de Tróia,

Quando uma amante aturada não significava a natural satisfação de uma necessidade fisio- lógica d'aquelle que a aturava, facilmente e sem escrúpulos se admittia, para explicação do facto, qualquer d'estas hipotheses : por necessidade financeira, por medida económica, por conve- niência politica. Muitas vezes, a razão de ser de uma amante era uma poderosa razão de estado

Lisboa benévola acceitava facilmente, de animo leve e coração á larga, os peores escândalos no género. Nunca a cidade ousaria rir de uma mu- lher que cahisse. E quando a Opinião publica era soUicitada a manifestar-se sobre o caso de um ministro que acommodara no seu ministério o ma-

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rido da sua amante, o filho da sua amante, o irmão da sua amante ; ou quando a justiça dos Tribunaes era forçada a pronunciar-se sobre o caso de um recebedor de bairro que esvasiara no regaço da sua amante os cofres da recebedo- ria ; ou quando um marido ultrajado ia quei- xar-se á Policia de que entrando em sua casa, a uma hora em que não era esperado, se encon- trara substituído nas prerogativas do seu pró- prio leito a Opinião sorria, a justiça dos Tri- bunaes abrandava, e a própria Policia, o próprio 321 I se tornavam benevolentes.

Para os menos felizes que não podiam ter uma amante para si, havia um provérbio que dizia :

«As amantes dos nossos amigos, nossas amantes são I »

Entre as trinta e seis amantes do Ministro, de que o Phantasma dera a lista por ordem alfa- bética, tinham apparecido as iniciaes de um nome que, a julgar pelas apparencias, e por aquellas iniciaes, bem podia ser o nome de D. Claudia.

As apparencias, pelo menos, eram muito com- promettedoras.

Lançada a suspeita de ser ella, nesse mo- mento, a favorita do Ministro, tudo concorria para que a diífamação se propalasse e alastrasse como uma nódoa gordurosa, de azeite.

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A primeira celebridade de D. Claudia viera- Ihe da sua belleza, que era grande, e muito no- tável num meio restricto e deploravelmente mar- cado pela fealdade das suas mulheres, como é Lisboa, onde parece até que, quanto mais altas são as classes a que pertencem, mais as mulhe- res se obstinam em ser feias.

Não lhe perdoava o seu sexo que, aos qua- renta annos quasi galgados, nem um fio dos seus cabellos, negros como azeviche e finos como se- tim, branqueasse entre as dobras do seu pen- teado alto ; nem que o mais leve indicio de fla- cidez ameaçasse a elegância suprema do seu seio pouco desenvolvido e erecto ; nem que um pequenino sulco, uma pequenina vesícula, uma pequenina mancha de herpes lhe prejudicasse a perfeição cutânea. Não podia o seu sexo levar á paciência que, entre D. Claudia e Clarinha, entre a mãe e a filha, a differença apparente das idades fosse tão pouco sensivel, que a es- tranhos acontecesse supporem-nas irmãs.

E quando a celebridade de D. Claudia se alargara dos dominios da plástica ás preponde- rancias da politica, onde a sua influencia foi julgada decisiva, a onda da inveja, engrossada na corrente das intrigas e dos despeitos, tinha subido, escumosa e revolta, até áquella casa da Rua do Salitre, onde o Presidente do Conselho

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ousadamente e condemnavelmente alçara a tenda e fixara o seu quartel general, para a campanha amorosa que ha tanto tempo emprehendera, mas de que agora parecia possuir um seguro e definitivo traçado estratégico.

Não era, pois, sem alguma razão que os bons créditos de D. Claudia andavam na bocca dos rafeiros da Politica e das cadelas felpudas do Bom Tom.

Os trabalhos da commissão do Código iam seguindo lentamente, sob a presidência pachor- renta e acommodaticia do Padre Eterno, que para isso recebia instrucçÕes reservadas do Pre- sidente do Conselho.

Reuniamo-nos no Ministério do Reino, na sala grande contigua ao gabinete do Ministro. As reuniões eram agora frequentes e demoradas, mas a maior parte do tempo passava-se em conversa e de galhofa, discutindo -se muito para se chegar sempre ás conclusões que mais con- vinham ao Governo.

Tinha-se entrado no capitulo do casamento, que era o ponto culminante da reforma. Trata- va-se de introduzir no Direito portuguez uma in- novação magnânima : ia-se decretar o divorcio !

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E estávamos, um dia, numa d'essas reuniões, quando fomos interrompidos pela brusca en- trada de D. Claudia.

«Bem, meus senhores... dizia-nos ella eu não vim aqui para interromper os tra- balhos da Commissão... Peço-lhes que conti- nuem, e permittam me mesmo que censure a sua negligencia na discussão do projecto.»

Fausto desculpou-se e desculpou nos. A se- nhora D. Claudia era muito injusta. Ninguém poderia accusar-nos de negligencia nem mesmo aquelles que estivessem á espera de que o pro- jecto de lei passasse nas Camarás para reque- rer o próprio divorcio. . .

D. Claudia empallideceu ligeiramente. Fausto continuou :

«Vossa Excellencia provas de uma admirável dedicação pelo Governo, tomando tanto a peito a abundância de trabalho que elle possa produzir em cortes, mas esquece que para todo o trabalho é preciso tempo. . . »

«Pois sim I pois sim I Eu conheço bem a actividade das commissões parlamentares... Quer o senhor persuadir-me, talvez, de que se em vez da reforma do Código se tratasse de alguma concessão de terrenos no Ultramar, com interessados no seio da Commissão, não estaria tudo concluído ?I»

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«Vossa Excellencia exagera, minha se- nhora ! intervinha o Padre Eterno. Asseguro a Vossa Excellencia que não nos seria possivel fa- zer mais em tão pouco tempo ... Eu tenho chegado a trazer para aqui o lunch

D.Claudia, vivo demónio, soltando uma fres- ca risada, ironicou :

«Nobilissimo procedimento o seu, meu caro Padre Eterno I O Governo tomará tudo isso na devida consideração. . . »

Depois, mudando de conversa, e voltando-se para mim :

«Estou muito zangada comsigo, sabe? E a Clarinha também. . . Porque não tem appare- cido

Gaguejei uma escusa atarantada, pedi mil perdões. Tinha tido nesses últimos dias uns afazeres de urgência que me absorviam, me tomavam todo o tempo. Zangado ?I E porquê ? se não tinha recebido da senhora D. Claudia e da senhora D. Clara senão demonstrações de estima, que tanto me penhoravam, tanto me en- terneciam. . .

D. Claudia e o Ministro pouco mais se demo- raram ; e quando sahiram da sala, o Padre Eterno, cruzando os braços e arregalando muito os olhos papalhudos e injectados de ira. vol- tou-se para nós, rouquejando :

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«Que me dizem os senhores a isto, ein ? Achar-se uma commissão parlamentar assim ás ordens da amante de um ministro ! Eu peço a minha demissão ! »

Uma tal attitude no Padre Eterno, que todos tínhamos por demasiado cordato e transigente, surprehendeu-nos. Mas logo Fausto oppoz áquelle rompante grotesco a sua costumada troça iró- nica, que elle espetava na papeira do Cóne- go como quem criva de alfinetes uma prega- deira :

«Não faça isso. Padre Eterno, por quem é . . . Tome um pouco mais, para seu uso, d'essa mesma resignação christã que tanto prega aos outros I Dê-nos, sobretudo, o exemplo da sua cordura e da sua paciência evangélica. . . O meu amigo bem sabe que nós não estamos aqui para servir os caprichos, nem as conveniências d'uma mulher ! Estamos cumprindo um man- dato que muito nos honra, estamos attendendo a uma necessidade do Governo!»

Eu quiz também metter o meu bedelho, car- reguei nos tropos :

^ Estamos servindo o paiz

í tOra o paiz I o paiz! continuou o Padre

Eterno, mais irado ainda . . O' santa ingenui- dade ! Bem se que Vossa Excellencia chegou agora da Ilha ! O paiz. . . o paiz ! Mas o que

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entende q senhor por servir o paiz ? Imagina o senhor que é servir o paiz esta coisa de lhe re- formar o Código uma vez por anno ? Imagina o senhor que servir o paiz é isto, que nós anda- mos a fazer, levados como carneiros, de apoiar nas Camarás quantos projectos de Jei quer o Governo para defender as pessoas e os bens dos seus amigos politicos?. . . Imagina o senhor que servir o paiz é isto... isto que nós estamos aqui a praticar, sentados nestas cadeiras, á roda d'esta mesa, conscientes, ainda por cima, como eu e como Vossa Excellencia, do nosso triste papel, que seria o cumulo do ridiculo se estas paredes tivessem ouvidos para ouvir as nossas discussões... E para qué, meus senhores? E afinal para quê ? E no fim de contas para quê ?. . . Para introduzir no Código Civil Portu- guês um artigo que permitia a essa senhora di- vorciar-se do marido, que lhe não serve, e poder casar com o seu amante

«Oh! Oh:»

fAh ! os senhores dizem «oh!» Querem talvez fazer-me acreditar que eu lhes estou dando uma grande novidade ? Querem talvez dizer que isto não seja assim ? Querem talvez convencer-me de que andavam nesta manobra como Pilatos no Credo?! Pois tenham santa paciência, que os não acredito eu . . Os se-

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nhores sabem tudo isto tão bem, estão tão far- tos de o saber, como ea o sei e estou

«Meu caro Padre Eterno, voltou Fausto estou a desconhecê-lo... Essa sua attitude de hostilidade, assim de súbito, assim de repente, sem que se saiba porque, e desusada em pes- soa do alto critério de Vossa Reverendíssima, deixa-nos estupefactos I Uma bomba, doestas mo- dernas, de dinamite e bicos de pregos, que houvesse rebentado aqui, no meio de nós ; ou um raio, fabricado nas forjas de Vulcano e despe- dido pela mão do próprio Júpiter sobre as nos- sas pobres cabeças, não nos teria causado um tão grande assombro! Nunca, ninguém, em tran- ses bem mais difficeis, d'uma tão longa e ac- cidentada carreira politica como a sua, o viu indignado a tal ponto. . . O meu amigo, que foi o braço esquerdo do da Bandeira e o braço direito do Fontes I O meu amigo, a quem as la- grimas correram em fio pela face quando um outro ministro, seu amigo de infância, veiu pe- nitenciar-se perante as Gamaras da protecção que dispensara, pelos cofres do Estado, a va- rias sociedades anónimas de que era accionista I O meu amigo, commissario régio junto de quan- tas Companhias concessionarias têm passado o nosso território de Africa para mãos alheias ! . . . O meu amigo, que é ao mesmo tempo cónego da e grão-mestre da Maçonaria portugueza. . .

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O meu amigo a insurgir-se assim, com toda essa furia, contra uma minúscula irregularidade conju- gal d'essa respeitável senhora, a quem o animo não chega para enganar o marido, e procura, muito legitimamente, um meio airoso de se vêr li- vre d'elle I Não, não. . . Com franqueza, meu caro Padre Eterno, a sua attitude põe-nos a dois passos do fim do mundo

Desvairado, desembolado, espicaçado, como um toiro numa praça, o Padre Eterno, que ou- vira tudo isto sem responder palavra, bufando e raspando com a pata o chão da arena, avan- çou para nós, estacou um momento na frente de Fausto como se esperasse uma pega, enter- rou o chapéo na cabeça, e disse :

«Bem, meus senhores ! Eu não costumo voltar atrás. . . A minha resolução está tomada. Quem quizer que me sigal»

Metteu a pasta dos despachos debaixo do braço, deu meia volta á direita, e sahiu, em passos largos, tão largos quanto lh'o permit- tiam as pernas muito curtas e o ventre enorme, cahindo como um odre.

Levantada assim a sessão, da qual com muita propriedade se poderia dizer que correra agi- tada, e deveras agitada, Manuel de e Gon- çalinho Palha (que era também rapaz do meu tempo de Coimbra, e também deputado pela

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primeira vez naquella legislatura, e também vo- gal da Commissão do Código) despediram-se, deixando-me com Fausto, que ainda sabo- reava o mau bocado por que fizera passar o Padre Eterno.

Chegou então a minha vez de falar a sério. Todo aquelle episodio em que eu vira envolvi- dos, sob aquelle mesmo tecto, e respirando aquella mesma atmosfera de secretaria de Es- tado, comn:unicando por uma porta secreta- com o gabinete do Ministro todo aquelle episodio, que me divertira, me irritava ago- ra e me lançava num desanimo, m.e descoro- - coava . . .

«Se aquillo a que vossés por chamam politica não é alguma coisa de melhor e mais alto do que isto, deve haver mais de um desilludido entre os que para ella entram, como eu . . . Pela parte que me toca, com franqueza te declaro que me sinto desilludido I A noção de politica, com que sahimos de Coimbra, é uma coisa muito diversa. . . »

Mas aquelle maroto do Fausto não tomava nada a sério, positivamente, cortava-me logo as vasas :

«Bem sei. . . Dizes muito bem ! A íciencia politica I . . . Parte da sciencia social que trata dos fundamentos do Estado e dos princípios do

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Governo... Isso foi tempo, homem pre-histo- rico, e da Ilha

«Mas ouve cá, ó Fausto, dize-me cá... Tu acreditas que o teu Ministro seja homem que se preste a uma tão estupenda combinação como essa de que parece convicto o Padre Eterno, e que para salvar as apparencias de um adultério seja capaz de levar ás Gamaras uma reforma do Godigo?!»

tAcredito. A minha única duvida está em saber se o adultério se deu... Greio que não, porque se se houvesse dado, ellc teria pas- sado o a D. Glaudia, como o tem feito ás outras. . . Quanto á depravação dos usos e cos- tumes, esse Padre Eterno falou e fala sempre como um Evangelho I Mas não imagines que elle fosse d'aqui pedir a demissão, se não ti- vesse a certeza antecipada de que o Ministro Ih'a não dava. Gom esta, é a terceira vez que elle representa a mesma comedia, e volta sem- pre atrás, e onde diz que disse diz que não disse mas depois de ter obtido algum novo beneficio que trouxesse de olho. Não mette prego sem estopa. E" um malandro da peor es- pécie I Se vens disposto a ser um grande homem na Politica, podes abandonar ás traças da tua livraria o teu Royer-Gollard, o teu Benjamin Gonstant e o teu Gomte. Bastará que te dês ao

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trabalho de folhear este cónego. E' um magni- fico tomo ! E' um tratado completo I Comparado com a sciencia que elle encerra, tudo quanto até agora se tem dito haver de boa lição, para a gloria dos soberanos e para o bem-estar dos povos, no Trincipe do Machiavello, pôde con- siderar-se lettra morta. .

Assumi um grande ar de gravidade, endirei- tei-me nos chumaços da minha sobrecasaca de diagonal de duas libras, protestei, serenamente, mas resolutamente :

«Estás redondamente enganado a meu res- peito. Fausto. Eu bem sinto, porque bem me conheço, que nunca poderei chegar a ser o gi'ande-homem de que tantos outros julgam ter em si o gérmen.. . Mas se algum dia me visses subir alto na Politica, ficarias sab endo que al- guém poderá vencer, sem indignidade, toda essa formidável barricada de ignominias que te- rias acabado de levantar neste momento deante de uma ambição, se eu porventura trouxesse commigo essa ambição I . . . »

fNesse caso, não tens tempo a perder. Corre ao teu hotel, mette na tua mala essa impo- nente sobrecasaca com que te paramentavas para bem servir a tua pátria, e volta, pelo pri- meiro paquete, para a tua Ilha. Não te resta nada de melhor a fazer. Esquece Lisboa, es-

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quece a Politica, e esquece-te de mim, como deves, porque eu tive a desgraça de cahir no atoleiro e para mim não ha salvação possí- vel !»

«Estou quasi a dar-te a razão. . Mas não parto ainda I Uma vez que estou, quero apro- veitar quanto possa, observando. Mas de fora, mas de longe I Conhecite tão diverso, encon- tro-te agora tão outro, que receio muito deixar- me também contaminar do mal. . . Isso é coisa que se pega, com certeza I Parece-me que estou ainda a vêr-te nas festas do Centenário, á frente do curso, de gaforinha ao vento, o olhar illuminado, a capa deitada para trás, dando a Coimbra uma idéa do que seria Robespierre na aurora da Revolução... barafustando e gesti- culando contra todos os poderes constituídos, insurgindo-te com a forma do governo, com a tirannia dos lentes, com a imbecilidade dos compêndios I . . »

«E agora, que me vês apaziguado, domes ticado, conformado com a mesma ordem de coi- sas que então me exasperavam, desconheces-me. Pois olha: sou o mesmo.. . peor ainda do que nesse tempo porque tenho visto e aprendido muito mais. Em todo o caso, vou fazendo o meu jogo, como os outros, mas sem querer vacca

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com elles. E' mais difficil, é mais demorado, mas é mais seguro.»

Talvez eu tivesse feito as minhas malas, e voltado para a Ilha pelo primeiro paquete talvez 1 se uma outra razão, que nada tinha que ver com o meu mandato politico, me não hou- vesse já determinado a demorar-me em Lis- boa. . . E se é certo, como disse não me lem- bra agora quem, que a vida de cada um de nós, bem contada, é por si um romance, poderia eu dizer que o meu romance entrava então num dos seus capitulos mais interessantes.

A desculpa, que eu dera a D. Claudia, de não ter apparecido ultimamente em sua casa, fora uma desculpa de pura invenção. O verda- deiro motivo era outro ; mas esse não podia eu dizer-lh'o, não o dissera a ninguém, nem sequer ao Fausto, para quem, aliás, não tinha outros segredos.

Evitando a assiduidade das minhas visitas á Rua do Salitre, procurava eu escapulir-me aos perigos de uma seducção que logo nos primei- ros dias da minha ida ali começava a tecer os seus fios de ferro em volta do meu animo fraco e predisposto ás influencias perturbadoras do fatal feminino.

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Um dos grandes cuidados que a Tia Geno- veva não deixara jamais esmorecer na vigilância do meu desabrochar juvenil, fora o de me incu- tir noções preventivas muito exageradas contra o fácil commercio das mulheres.

Afigurava-se á boa Tia Genoveva que Deus, encarregando-a da minha educação christã, lhe dirigira aquellas mesmas palavras que outr'ora dirigira ao seu profeta : «Dou-te poder para arrancar e plantar, para derrubar e edificar». E assim investida de taes poderes, ella tratou de me desviar do mal e encaminhar ao bem, combatendo em mim os germens instinctivos e originaes do peccado, cultivando em mim as se- mentes de virtude e graça infundidas pelo ba- ptismo, mondando na minha alma pequenina o joio damnoso, e a]udando a crescer o bom grão, que mais tarde haveria dq. fructificar na vida eterna, pois bem sabia ella ser tal a natureza humana, que temos desde o berço de desapren- der o vicio, cuja sciencia nefasta é como que innata em nossos corações, e de aprender o bem á custa de muitos e continuos esforços.. .

Dividiu portanto a Tia Genoveva a minha educação cm duas e bem distinctas partes : uma, a que se poderia chamar negativa, consistiu em destruir a obra antiga do Demónio opera Dia- boli; a outra, que era a positiva, consistia em

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conservar e cimentar a obra regeneradora de Deus opera Dei. E começando pela primeira como que para limpar o terreno, ella emprehen- dera, antes de tudo, o trabalho preliminar de me inspirar um horror intenso pelo peccado como Tobias soubera inspira-lo aos filhos.

«Foge do peccado. Quinino! foge do pec- cado, como se fugisses da mais perigosa e mais venenosa serpente!»

Esse era o maior, o mais terrível de todos os males ! Mal perante Deus, mal perante os ho- mens, mal do corpo, mal da alma, do tempo, da eternidade o único mal verdadeiro ; porque dos outros, muitos até vinham ás vezes por bens, e não raro eram mercês da graça divina para proveito das nossas almas e fomento da perfei- ção christã.

Depois de me haver inspirado a aversão con- tra o peccado em geral, a Tia Genoveva tra- tava de precaver-me contra cada peccado em particular.

Ba Soberba, que avultava entre todos, e de todos elles vinha sempre á cabeça do rol, se originavam todos os mais. Não havia outro mais grave, nem mais tristemente fecundo.

aA Soberba, dizia-me a Tia Genoveva, é a mãe de todos os peccados!»

Tanto bastava dizer-me, para logo querer eu

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saber quem era então o pae. E ainda me lem- bro — pois ha certas e remotas minúcias da vida que não mais esquecem do embaraço com que ella me explicava terem os peccados vindo ao mundo sem pae... E como eu insis- tisse, intrigado, e com essa natural curiosidade insaciável da infância, que não admitte misté- rios, que quer logo tudo para ali em pratos lim- pos, a Tia Genoveva, com as faces vermelhas como as maçãs camoesas que perfumavam as gavetas da sua roupa branca, acabara por me confessar que todos os peccados, filhos da So- berba, tinham vindo ao mundo, eífectivamente, como eu suppunha, por obra e graça do divino Espirito Santo!

No encalço da Soberba vinha logo a Avareza; e, neste ponto, todo o cuidado da Tia Geno- veva consistia em me dar o exemplo do seu no- bre desinteresse, evitando que na minha pre- sença a Tia Maria da Assumpção, maniaca de grandesas, exaltasse a importância do Dinheiro no destino das gentes, e considerasse os bens do mundo como símbolo da felicidade. Para o céo, para o céo, é que era mister aferrolhar, en- thesourar, não para a vida caduca. . . E ao sab- bado, dia de esmolas, era a mim que ella im- cumbia a doce tarefa de despejar o saquinho de vinténs na palma das trinta mãos sujas e mirra-

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das, que outros tantos pobres, enchendo o por- tão da nossa casa da Boa Nova, estendiam para mim, sorrindo me e abençoando-me.

A' Soberba e á Avareza, intimamente se li- gava a Inveja, que aos meus olhos se pintou como tristeza malvada e esverdeado rancor em face dos bens e das venturas alheias. Movido pela Inveja, introduzira o Demónio neste mundo a desobediência e a morte. Ella assassinara o meigo Abel, perseguira David, crucificara apro- pria Divindade. E para melhor me compenetrar da hediondez d'este mal, a Tia Genoveva me ex- plicava que o invejoso era para si mesmo o mais inexorável verdugo, pois o seu peccado era como o abutre encarniçado, cujas garras lhe desfibram o próprio coração.

Combatendo a desarasoada tendência que eu, desde os mais tenros annos, manifestava para os acepipes e guloseimas, dando frequentes as- saltos ás travessas de croquetes de gallinha e presunto, que a nossa creada Conceição Velha aviava por uma receita divina, e obrigando a Tia Genoveva a guardar a sete chaves as latas de biscoitos, as tijelas de doce e os bandos de pombas de alfenim que todos os annos nos vi- nham, em revoadas, do império dos Quatro Cantos um dos exemplos de temperança e sobriedade que a Tia Genoveva me citava, e que

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muito me divertia, era aquelle do pequenino e ladino São Nicolau, que, ainda menino de colo, espontaneamente se abstinha de mamar ás sex- tas-feiras, «a não ser depois do anoitecer, e ainda assim uma vez I » .

A Ira, fugaz loucura, que assalta ás vezes as almas ainda as mais plácidas, não era em mim essa natural condição do temperamento infantil, de que fala o Abbade Pichenot, vigário geral da diocese de Sens. Eu nunca fui irrascivel, antes me mostrei sempre soffredor paciente de repri- mendas e contrariedades, propenso sempre a perdoar offensas, e fácil em reconciliações. Por isso não dava á Tia Genoveva o trabalho (que teria sido também para ella um vivo desgosto) de reprimir nem o meu mau génio, nem as minhas violências, que não me foram precisas á energia do caracter, nem á impetuosidade pró- pria e inseparável das virtudes viris, de que me prezo.

Também não era o receio da Preguiça que affligia, a meu respeito, a Tia Genoveva. Eu nunca fui preguiçoso, e com isto lhe proporcio- nei contentamento e alegria desde as primeiras lettras, em que a nota da minha applicação foi invariavelmente excellente^ e até á conclusão do meu curso de Direito, nemiiie discrepante.

O peor, o mais grave, o grande busilis estava

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em preservar-me, e instruir- me de modo a eu próprio me preservar do mais nefando de todos 03 peccados, do maior de todos os males da alma (e que ás vezes redundava num dos peo- res males do corpo) conservando o mais pre- cioso e o mais frágil entre todos os meus bens. . .

Não ignorava a Tia Genoveva aquellas enér- gicas palavras com que o apostolo São João re- sumia todos os maus instinctos da natureza corrompida pelo peccado original: «Quanto no mundo existe é concupiscência da carne, concupiscência dos olhos, soberba da vida!» Berr sabia ella que do peccado odioso da Luxu- ria existe o gérmen em cada um dos desgraça- dos filhos de Eva ; e, mais cedo ou mais tarde, em cada um de nós desperta esse sentido re- provado, que a somno solto e ditoso dorme na infância innocente e descuidada.

Mas aquillo com que ella, coitadinha, não podia atinar, e com o que tanto se inquietava e affligia desde que eu deixei a escola das Senho- ras Araujos, para me matricular no Liceu era a maneira mais segura de estabelecer em volta da minha innoccncia uma espécie de cor- dão sanitário que me preservasse do contagio d'aquelle mal que tão subtilmente se insinua por todos os nossos poros. . .

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Todo O seu cuidado era evitar que uma pa- lavra imprudente, uma reticencia malévola po- desse despertar a minha curiosidade, acender a minha imaginação, comprometter a minha inno- cencia. E que nem os meus olhos pousassem sobre alguma estampa como aquella que ainda cheguei a vêr na casa de jantar da Tia Maria da Assumpção antes que ella a retirasse para o sótão a instantes pedidos da Tia Genove- va, e em que um frade barbadinho, com a ca- beça perdida, agarrava pela cintura uma hespa- nhola toda engommada e de manton de Manilla, e iam ambos a saracotear-se como na zar- zuela. . .

Por esas calles

Va la gracia y Dics !

E que nem a minha attenção se demorasse no reparo do mais simples incidente de que po- desse resultar sugestão de acto prohibido como, por exemplo, o encontro fortuito, na rua, por baixo das nossas janellas, de um cãosinho galanteador com alguma cadela das suas rela- ções. . .

E todos os dias (era sabido I) quando eu sahia de casa para ir ao Liceu, acompanhado pelo Manoel Ignacio, ella vinha ao bota-fóra na es-

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cada , deitando-me a benção do patamar e re- commendando ao Manoel Ignacio que tivesse sempre muito cuidado commigo, e não me per- desse de vista, de cada vez avivando a lem- brança d'aquella sabia indicação dos antigos í que mandavam usar para com a infância a má- xima reverencia. Máxima debctiir puero reve- rentia !

Mas, ai! Um dia, dia de meus annos, que eram quatorze, e propositadamente escolhido parn tão solemne fim, a Tia Genoveva, depois de me haver presenteado, de surpreza, com o meu pri- meiro fato de calça até baixo, de flanella azul, á maruja, chamou-me ao oratório, para onde se passava pela sala grande dos Retratos, e onde se podia dizer missa com licença de Roma ; prostrou se deante do altar onde havia um grupo da Sagrada Familia que era o enlevo do Doutor Tristão, grande entendedor de obras de arte, e disse-me que me ajoelhasse eu a seu lado, e com ella resasse, a meia voz, a Salve Rainha. . .

Era uma terça-feira, 22 de Julho. O velho re- lógio de pesos, no corredor, acabava de dar as duas horas da tarde.

De costume, o oratório se abria aos sabba- dos, depois das Avé-Marias,para as longas resas em que a Tia Genoveva, a Tia Maria da As- sumpção, a Conceição Velha, a Gertrudes Ga

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ga, a Barbara, filha do Manoel Ignacio, e tam- bém nossa creada, o Manoel Ignacio, e eu nos afundávamos durante três quartos de hora, que eu começava a achar intermináveis quando ainda o primeiro não chegara ao fim.

E não foi sem estranhesa que segui a Tia, e me ajoelhei ao seu lado, e com ella resei, a meia voz, a Salvé-Rainha. . .

Mas nesse dia, e em seguida áquella incom- mensuravel satisfação das .minhas primeiras cal- ças compridas, eu teria resado o Terço, se pre- ciso fosse, sem oppôr a menor objecção, sem que me doessem os joelhos. Obedeci, aguardei os acontecimentos.

Como se quizesse que Nossa Senhora, o Se- nhor São José e o Menino Jesus, deante do qual se podia falar á vontade (pois Elle esti- vera entre os Doutores, e mais coisas sabia que Pico de Mirandola em sua tenra idade) fossem testemunhas da sua grande vontade de acertar, a Tia Genoveva, agora de pé, e tendo-me eu posto de também, julgou chegado o momento de não mais applicar ao estado inferior do meu desenvolvimento mental, aquelle dito do Divino Mestre aos seus amados discipulos : tMuitas coisas tenho ainda que vos dizer, mas por ora não podeis arcar com ellas». E o seu espirito tentou descer sobre mim, como um espirito

1 58 A RUA DO OIRO

santo, com suas graças e seus dons, para com- municar-me a intelligencia necessária ao enten- dimento do que ainda faltava ensinar-me.

Tu não o sabias bem ao certo, boa e santa Tia Genoveva ! Mas te queria parecer que aos quatorze annos, espigadinho como eu es- tava, e com um anno de Liceu para mais ajuda, não havia muito mais tempo a perder, não havia muito mais tempo a esperar.

E, a não serem as paixões, nada era, em teu criterioso entender, tão nocivo á infância como a ignorância, ou um conhecimento incompleto e superficial das coisas.

Para eu poder resistir aos perigos que por todos os lados sabias ameaçarem-me, era pre- ciso que me desses conhecimento da existência d'esses perigos ; era preciso que eu entrasse na comprehensão, tanto quanto possível aproximada d'elles, para d'elles aprender a livrar me por mim mesmo porque nem eu teria de andar por toda a vida agarrado ás tuas saias, nem se- ria possível que o Manoel Ignacio me não per- desse de vista também por toda a vida. . .

Foi então um supplicio para ella, e um sup- plicio para mim, esse momento solemne. Por que aquillo mesmo sobre que a Tia Genoveva se esforçava por me elucidar, entrando em com- plicados rodeios, perdendo se em embrulhados

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circumioquios, emaranhando-se em obscuras metáforas eu o sabia já, ai de mim ! ai de ti ! ai meu bem I ai de nós todos ! . . .

E tudo aquillo de que ella me falava tão obs- curamente, sem conhecimento de causa, apenas por informações, e voltando amiudadas vezes os seus olhos limpidos e ingénuos para Nossa Se- nhora, para o Senhor São José e para o Menino Jesus, como que a pedir-lhes desculpa, o co- nhecia eu como conhecia os meus dedos : pois não era debalde que a Barbara, filha do Manoel Ignacio, de vinte e seis annos de idade, fresca como uma alface, robusta como uma bezerra, tendo estado a servir em casa do Major Elias antes de vir para nossa casa, me atracava nos corredores ás escondidas, me ferrava grandes beijocas, e á noite, cmquanto a Conceição Velha resonava, de braços cruzados, encostada á mesa da cozinha, e a Tia Genoveva passava pelo seu somno reparador antes da hora do chá, e o Manoel Ignacio sahia para ir á loja do Gaiato, ou do Francisquinho das Flores, que era no fim da Rua da Sé, a buscar assucar, ou velas, ou algum bolo de massa sovada, demorando-se tempos infinitos em cada um d'esses recados me puxava para o quarto dos bahús e muito se divertia commigo, numa brincadeira a que ella chamava «instrucção de recrutas» e que apren-

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dera na perfeição com o impedido do Major I

Toda a ruina peccaminosa e irreparável da felicidade na Terra, que o Creador sonhara e quizera realisar tão magnanimamente, dando o Paraiso ao primeiro Homem e á primeira Mu- lher, fora devida á cubica nefanda d'essa pri- meira Mulher. . .

Depois, em todos os tempos e em todas as historias, onde quer que se assignalasse alguma grande catástrofe, alguma grande desventura, al- gum grande mal, quem procurasse bem, quem rebuscasse bem, iria encontrar, na escavação paciente dos factos e das lendas, conduzindo á origem, o sulco pernicioso d*uma maldita mu- lher!

E para d'isto me certificar, e me convencer, a boa Tia Genoveva empregava o seu melhor engenho, os seus melhores argumentos, compul- sando a sua Biblia e a sua Vida dos Santos.

Ella teria querido que eu fosse como o José do Egypto, casto e arisco, para sempre me sa- ber arredado dos ardis perigosos da mulher de Putifar.

Ella teria querido que uma fonte de miseri- córdia, nascendo do céo, gottejasse sobre mim, tornandome forte, como Santo Antão, para re- sistir a quantas perturbadoras e enternecedoras tentações me viesse offerecer alguma outra Rai-

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nha de Sabá. . . «Estende os teus lábios, meu amor, para que nelles recebas os meus beijos, que têm o sabor e o perfume do mais saboroso e perfumado fructo ! Desprende os meus vesti, dos, querido eremita, e em mim descobrirás os infinitos mistérios do goso que nunca sonhaste ! Toca a carne do meu hombro com a ponta de um dedo teu, e sentirás a chispa doirada do amor percorrer o rastilho que ha de incendiar o sangue nas tuas veias I. . . »

Ella teria querido que eu vivesse, crescesse, me desenvolvesse, tirasse o meu curso do Li- ceu, adquirisse a minha carta de bacharel, vol- tasse para junto d'ella e junto d'clla passasse o resto da minha vida, sempre puro e virgem como São Luiz de Gonzaga I

Mas nunca ella teria ousado pedir á Senhora do Livramento, minha madrinha, que me livrasse inteiramente de taes tentações não porque o pedido, concebido em tão apenados termos, iria collocar a Senhora do Livramento na con- tingência de não poder fazer-lhe essa vontade, mas ainda porque a Tia Genoveva queria-me muito, era muito minha amiga, e não lhe chegaria o animo para assim me privar, tão despoticamen- te, dos rasgados ofPerecimentos da Rainha de Sa- bá, e assim obstar a que eu, algum dia, viesse a experimentar, nessa mesma ordem de assum-

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ptos, outras coisas boas que São Luiz de Gon- zaga, coitadinho, não chegara a conhecer.

Agora, com respeito á mulher de Putifar, isso não senhor ! Pelo menos, com o seu consen- timento, isso nunca ! . . . Porque essa era uma mulher casada, e eu incorreria assim, logo d'uma cajadada, no desrespeito de dois graves manda- mentos : o sexto e o nono !

Emfim, do mal o menos. Se não fui casto, fui cauto. E assim me livrei, por mais de uma vez, das armadilhas que me preparavam as Primas Rochas e as Primas Noronhas, nos primeiros tempos que se seguiram ao meu regresso de Coimbra.

Queriam por força, e á viva força, casar- me, na certeza, diziam ellas, de que presenteariam a noiva com uma riquíssima Jóia, que era eu.

Mas eu resistia, sorrindo; e quanto mais re- sistia, mais ellas se exasperavam e se encarni- çavam no seu diabólico propósito de engatadei- ras. . .

«Não me engatem, primas ! Não me enga- tem ! »

«Ora, deixe-se d'isso. Quinino ! Isso é uma tolice. Toda a gente casa... Porque não hade o primo casar também?»

aPorque não quero, que é a melhor das razões ! Porque me sinto bem solteiro. . . »

A RUA DO OIRO l63

E ellas ? Elias porque não tinham casado ? Porque também não tinham querido, muito na- turalmente, e estavam no seu direito. Não por- que lhes tivesse faltado occasião para o fazerem com acerto.

A esta idéa de casamento, que ainda lhes sor- ria, ellas sorriam ainda. A mais nova de todas, que era a Prima Aldegundes, andava quasi a saltar os trinta e oito, e essa mesma estava condemnada ao celibato pela vida inteira. Mas não perdiam a esperança. . .

«Ninguém diga : d'esta agua não beberei...»

E fervorosamente se encommendavam, todas ellas em fila, de joelhos e mãos postas, e o olhar em alvo, a São Gonçalo de Amarante, casamen- teiro de durázias.

Emquanto lhes não chegava a sua vez, iam entretendo o tempo e a cobiça com arranjar na- moros e casamentos para os outros, e com isso se consolavam. Coadjuvadas pelo Primo Theo- dosio, que as acompanhava na desdita, consti- tuíam como que uma agencia de matrimónios acreditada e bem afreguesada. E regalavam-se em dizêlo.

Pois quem tinha arranjado o casamento do Manoel Torquato com a Zulmirinha Franco, se não ellas? E o do Barão da Terra-Chã com a D. Elvira Meyrelles, naquella idade, mais velha

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do que elle, que era velho ? E a filha do Con- selheiro Brito, filha única, herdeira de tresentos contos em águias, com o Jaymesinho Silva que, não desfazendo em quem se achasse presente, era a flor dos rapazes finos da Ilha ? E não eram felizes, todos esses? E não lh'o tinham agrade- cido ?

Oh I se eram. . . Oh ! se tinham. . . Então, como quem lhes abrisse a torneira de um banho frio de chuva sobre os penteados de popa, muito complicados e lustrosos, eu per- guntava-lhes :

«E quem arranjou o casamento do José Vi- ctorino com a Magdalena Avelar ? E o casamen- to do General Ayres com a Maria Demetilia Quem tinha sido, quem ? O José Victorino e o General Ayres eram os dois grandes bodes expiatórios dumas intrigas amorosas em que aquellas minhas primas tinham andado envolvidas, com flagrante registo na chronica escandalosa da Ilha.

Mal eu lhes tocava na ferida, iam aos ares, furiosas. A sua responsabilidade, nesses casa- mentos que promoviam, acabava aos pés do altar, no momento em que o padre, lançando sobre os noivos a benção da Egreja, pronuncia- va o irremissível: «Eu vos conjugo Era uma responsabilidade limitada.

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D'ahi por deante, o resto era com elles não com ellas. Se os casados se davam bem, se se julgavam e eram considerados felizes, muito gosto tinham em declarar bem alto que a ellas o deviam. Se não, não ! E d'ahi varriam, muito peremptoriamente, a sua testada.

Depois, ma's serenadas, acrescentavam: «...Que afinal de contas, nem o General se queixa, nem o José Victorino está arrepen- dido . . í

«Ora. . Oral. . . Pois a quem queriam as primas que o General se queixasse ? Ao Minis- tério da Guerra, talvez ? Faz elle muito bem, que um general nunca deve dar- se por venci- do.. . Quanto ao José Victorino, claro que não é elle quem deve mostrar-se arrependido : quem deveria mostrar-se arrependida era a Magda- lena

«O primo é um vivo diabo concluíam el- las, rindo.

Riamos todos, riamos muito, muito riamos ! E o Primo Theodosio, que desistira de me chamar para o bom caminho, aconselhava ás Primas Rochas e ás Primas Noronhas que de- sistissem também de me procurar casamen- to, porque perderiam commigo o seu tempo, como o tinham perdido com a Tia Geno- veva :

l66 A RUA DO OIRO

«Com este, primas, não' fazemos nós fari- nha.»

E abandonavam-mc á teimosia do meu celi- bato, cujas tristezas eu desvanecia, a esse tem- po, com uma rapariguinha de São Matheus que trouxera para a cidade sem escândalo, e a quem pozera casa numa d'aquellas ruasinhas discretas de Santa Luzia, onde o meu peccado se foi anichar com recato, entre as virtudes fa- miliares e tranquillas do alegre bairro.

Mas a Prima Aldegundes, voltando atrás, e como o Theodosio e as outras não podessem ouvi-la, embicava commigo afoitamente, entre portas :

«Olhe, Quinino, sabe que mais? Está-me a parecer que o primo não foi fadado para o amor. . . »

Eu agarrava-lhe então ambos os punhos, pu- xava a para mim com força, sentia-a toda es- tremecer-me nas mãos, dizia-lhe entre dentes :

«Quer experimentar, prima ? Quer experi- mentar ?»

«Não I Não

E emquanto ella, um momento, fingidamente se debatia para desenvencilhar-se de mim, eu pespegava-lhc dois grandes beijos na face es- braseada.

Clandestinamente, por distração, de brinca-

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deira, sim, minhas senhoras, c com immcnso gosto. A sério, porém, c á face da Egrcja, mu- dava o caso, e muito, de figura, fiava muito mais fino. Mulheres, para casar, eram todas o mes- mo ! E eu generalisava esta observação, não ad- mittia excepções.

Chegado a Lisboa, uma das primeiras recom- mendações que me fizera Fausto Guimarães, amigo certo, fora esta :

«Sobretudo, Amaral, livra-tc das ratoeiras para noivos, que são um dos maiores perigos que aqui pôde correr um rapaz na tua idade c nas tuas condições. Toda a cautela é pouca. Al- gumas d'essas ratoeiras são habilmente armadas por pães sem escrúpulos, que muitas vezes sa- crificam os seus parcos vencimentos de primeiro official ou de guarda-livros á mise-enscène das filhas, passando penúrias de portas a dentro, em casa... Depois, ha mistificações d'este gé- nero : um pae consente no casamento da filha, estipulando-lhe um dote de trinta contos, nomi- naes. Na occasião de se passar o contracto, en- trega elle ao noivo, muito bem embrulhados e atados com uma fita côr de rosa, trinta contos em acções da Companhia Promotora da Agri- cultura ou do Banco Lusitano . . . Quando o noi- vo abre o embrulho, o casamento está feito, e nunca mais as acções voltam ao par

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Depois, não era Fausto que me punha de atrás. Era o muito que eu tinha lido e ouvi- do em desprestigio das mulheres de Lisboa.

Afigurava- se me a capital uma estranha estufa onde a precocidade feminina faz da creança re^ cemnascida uma rapariguinha espevitada, da ra- pariguinha espevitada uma mulher sabida, e da mulher sabida um monstro de perfídia. E eu sa- bia que, em volta d'essa mulher, havia estra- tagemas subtis e profundas malicias, cujo segre- do era d'ella, e onde ella se mexia e remexia com a subtileza perigosa da serpente que mor- de e se esgueira para o seu esconderijo, sem que ninguém a adivinhe. . .

E tanto eu estava nesta idéa, e tão aferrado a ella, que logo no primeiro dia considerei D. Claudia uma vibora e Clarinha uma vibora pe- quenina.

Mas não fora preciso muito para que eu per- desse o medo, e me sentisse attraido paraaquel- le ninho de viboras, d' onde Clarinha se desen- roscava agora, e se transmudava aos meus olhos, como numa doce e luminosa magica, em prin- cezinha de Perrault, que sete fadas houvessem dotado com o melhor que tivessem : a formosu- ra, a intelligencia, a graça, o bom-senso, a mei- guice, a candura, o amor. . .

No meio em que eu a encontrava, em que

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ella vivia, e ao qual eu, agora, procurava ada- ptarme, não sem renitência e sem quebra de enraizados propósitos de dignidade e de intran- sigência, o convivio de Clarinha offerecia-me um suave parenthesis de encanto honesto, de grato repouso e de refugio amável, intercalando um pouco de poesia na grosseira e prosaica mixor- dia politica que o Presidente do Conselho e o Padre Eterno mexiam e remexiam.

Por modo que, depois d'aquelle encontro ines- perado com D. Claudia no Ministério, em que ella me dissera que Clarinha estranhara a minha ausência de tantos dias, comecei a cor- rer, todos os dias, com uma viva pressa, para a Rua do Salitre.

E entrei então a sentir, a ver, a observar em mim, nos meus movimentos, nas minhas idéas, nas minhas hesitações, nos meus actos, uma mudança exquisita do meu estado de alma uma coisa nova, absolutamente nova, que eu não sabia precisar, que não me era possível definir, mas que me dava muita alegria, muita vivacida- de, muito bom humor, muito estimulo.

VI

Numa terça-feira, que ei'a dia de grande gala e não havia Gamaras, fui, depois do almoço, com todo o meu vagar, até ao Campo de Santa Clara, para vér a Feira da Ladra, de que tanto ouvira falar e não conhecia ainda.

Estava um dia lindo, de fins de março, azul e desanuviado.

«Um dia creador!» me dissera o Poças, á porta do Hotel, onde o deixei, especado, na persistência do seu namoro com a mulher da bata ás riscas.

Eu começara então a percorrer a capital, que até ahi se tinha limitado para mim ás ruas da Baixa, ao Salitre, e a São Bento.

Afastava-me para os bairros novos, d'onde uma nova cidade surgia, em ligeiras e breves

172 A RUA DO OIRO

construcçÕes, de ripas e tijolo, recobertas de es- tuques claros e alegres azulejos.

Procedia-se a um plano geral de melhoramen- tos que abrangia ruas, praças, jardins, edifícios públicos e particulares, organisando-se projectos que deviam obedecer a todas as condições mo- dernas e rigorosas de higiene, decoração, com- modidade, bom gosto.

Queria-se uma cidade cheia de luz, bem ven- tilada, abastecida de aguas, modelar de exgo- tos. E na execução do amplo e magnifico pro- gramma, a que presidia um Conselho de sum- midades diplomadas, engenheiros, architectos, vogaes do Conselho de Saúde Publica, todos com opíparos ordenados, gratificações á larga, generosas ajudas de custo, deveria attender-se aos melhores sistemas de deposito, desinfecção, despejo, remoção de liquidos e sólidos ; á dre- nagem do solo, quando paludoso ou carregado de substancias orgânicas ; aos melhores proces- sos de encanamentos de aguas e tubagem de il- luminação ; á amplidão e declividade das ruas; á conducção das aguas dos telhados ; á altura das edificações em harmonia com a larguêsa das vias ; aos chanfrados dos ângulos das esquinas.

Eram declaradas de utilidade publica, e ur- gentes, grandiosas expropriações, pagas sem re- gateio, a olhos fechados, pelo preço que os ex-

A KUA DO OIRO IJJ

propriados quizessem. Fixavam-se alinhamentos e davam se cotas de nivel, tudo admiravelmente estudado e calculado.

Além do Governo, precedendo auctorisaçÕes legislativas, e da Gamara Municipal, nos termos do Godigo Administrativo, grandes empresas que o Estado subvencionava, isemptava de im- postos e favorecia ainda com garantias de juros, metiiam hombros titânicos á execução do mara- vilhoso plano, que se afigurava de proporções e molde a surprehender o próprio Marquez de Pombal, se elle resuscitasse.

Quem pretendesse construir novos edifícios e reconstruir os antigos, era obrigado a observar disposições e regulamentos apertadissimos, no proveito do conjuncto magnificente que se pre- tendia dar á capital. Se os terrenos particulares confinavam com as vias publicas, eram os donos constrangidos a nelles realisar as edificações que mais conviessem ao embellezamento das vias, e intimados a não demorarem o cumprimento d'esta deteriTÚnação absoluta além de um certo praso, que lhes era dado. Se nos novos alinha- mentos o proprietário era obrigado a recuar, o Estado indemnisava-o, e como o Estado é sem- pre «grand seigneur» quando se trata de indem- nisaçÕes, houve um momento em que todos os proprietários quizeram recuar. . . Se um prédio

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ameaçava ruina, e o senhorio teimava em não o demolir, a Gamara Municipal munia -se de pica- reta, arremcttia com o prédio, e deitava-o abaixo á custa do senhorio.

Para obter a purêsa do ar atmosférico, sub- sidiar empresas constructoras, agitar os capitães, evitar sarrasfuscas dos operários sem trabalho, que todos os dias percorriam a Baixa em ban- dos precatórios, com estandartes vermelhos e ameaças socialistas, o Estado mandava traçar novas ruas, rasgar avenidas, fazer aterros, plan- tar jardins.

Como a cidade não fora primitivamente cons- truida sobre um plano regular, que previamente se houvesse fixado, e que lhe desse configura- ção também regular e arruamentos simétricos, devendo ao acaso, depois da reconstrucção pom- balina, as principaes direcções das massas edi- ficadas, havia então necessidade de alterar, be- neficiar, alindar o que existia feito, e que não era possível deitar a terra.

Para modificar os effeitos da impetuosidade dos ventos, recorria-se ás curv^as de grande raio. Para facilitar o escoamento das aguas, dava se ás ruas outra inclinação, augmentava-se o numero das sargêtas. Para tornar suave o rodar das carruagens e o piso dos peões, refor- mavam-se as calçadas, introduziam-se novos

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sistemas de empedramento, derramava-se um mar de asfalto nos passeios. Para attenuar os grandes calores de agosto, e alegrar a cidade, plantavam-se arvores de folha caduca ao longo das ruas, cobriam-se de accacias as avenidas.

As encostas revestidas de vegetação transmu- davam-se, enchiam- se de fabricas, armazéns, estancias.

Assignado o fabuloso contracto com Hersent para as obras do porto de Lisboa, começava agora a realisação d'esse plano, que promettia um sonho de riquêsas, garantidas pela posição geográfica e pelas excellencias da barra e da bahia do Tejo. Em todos os sentidos se cruza- vam as vias. férreas interiores ; um immenso tunnel abria as fauces no meio da cidade e re- cebia a população que o atravessava e se alas- trava pelos arrabaldes.

Das antigas e abandonadas cercas dos con- ventos, arrancadas as laranjeiras e as amendoei- ras, irrompiam jardins talhados á inglesa, toda uma nova flora, colorida e decorativa, rebentava e crescia em opulentos macissos, entre farturas de relvas e de trepadeiras. Onde alguma velha casa histórica, abalada pelos ventos e roída pe- los carunchos, se aluía e desmoronava, com o ruído cavo de traves e caliças, logo um palácio de nova arte se erguia, em cantarias brancas e

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madeiras frescas, ao som matinal e cantante dos escopros e dos martelos.

Nos seus aspectos mais tipicos, na sua feição topográfica e esthetica, Lisboa transformava se vigorosamente, sem que nessa evolução apres- sada e nervosa attendesse um pouco á sua pró- pria tradição, nem ás suas recordações piedosas, nem á veneração dos seus archeologos e dos seus antiquários, nem ao seu inventario históri- co, nem ao respeito devido aos seus archivos.

O Poças observara-me :

«Se o Amaral quer conhecer ainda a Feira da Ladra, não tem tempo a perder. lá. Aquillo é feira que está no levantar. . . E olhe que vale a pena. Desapparecendo -ella, com ella terá desapparecido uma das mais características instituições do reino. Vá, meu amigo, vá, e verá que largo campo esse de divagação e entreteni- mento para a mais exigente fantasia

Porque na Feira da Ladra se encontrava tudo, se procurava tudo quanto fosse possivel desejar em matéria de objectos servidos, factos velhos e idéas em segunda mão ; roupas usadas, cal- çado gasto, chapéos acochichados, trastes euten- silios da mais variada espécie e dos destinos mais diversos.

Na Feira da Ladra iam alguns dos nossos mais laureados dramaturgos e romancistas dcs-

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encantar o cntrecho das suas peças mais applau- didas, a intriga dos seus romances mais palpi- tantes.

Era á Feira da Ladra que as noivas cm más circumstancias iam comprar a flor de laran.- gcira com que ornrvam a fronte para o ma- trimonio.

Na Feira da Ladra se encontravam, em excel- Icntes condições, fardas de ministros, bastões de marechaes, dragonas de almirantes, chumaços de coronéis, velhas armas e barões assignalados, em perfeito estado de conservação. Quanta no breza fora buscar os seus antepassados, e quantos titulares de voltaram trazendo de- baixo do braço os seus brazões I

Grandes oradores parlamentares e sagrados iam buscar á Feira da Ladra os melhores dis- cursos e sermões de José Estevão e do Padre António Vieira, que depois de sacudidos e pas- sados a ferro eram ouvidos nas Gamaras ou em sexta-feira da Paixão, como se fossem d'el les. . .

Era á Feira da Ladra que as nossas socieda- des anónimas iam escolher as suas mezas de assembléa geral, e onde as donas das hospeda- rias para pernoitar iam adquirir as suas mezi- nhas de cabeceira.

Era, finalmente, na Feira da Ladra que alguns

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dos nossos mais profundos pensadores iam be- ber da fonte que ali corria perenne, a saciar-lhes a sede de verdade sobre as misérias humanas.

A Feira da Ladra fora, por largos annos, a Senhora dos Affliclos para todas as classes e para todos os cérebros menos abastados.

«Desapparecendo ella, concluia Poças,' sempre desejarei que me digam se toda essa gente que ia vestir-se, calçar-se, mobilar-se e encontrar idéas na Feira da Ladra, ha de pas- sar a vestir-se no Amieiro, a calçar-se no Serra, a mobilar-se no Castanheira, e a encontrar idéas na Academia

ao fim, isolado do grande movimento da feira, mettido num recanto, junto do arco de São Vicente de Fora, estava um pequeno alfar- rabista com o seu taboieiro cheio de livros ve- lhos, de todos os formatos e grossuras, crivados uns pelas traças, outros roídos dos ratos, uns sem principio, outros sem fim, e todos elles tresandando a espelunca de trapeiro, d onde deviam sahir ás terças feiras para aquella. ara- gem, que não chegava a sacudir-lhes o bafio. E enfiados ao alto do taboieiro, entre três cordéis amarrados á ponta de dois sarrafos, muitos fo Ihetos d'essa tão pittoresca e ingénua litteratura popular da Edade Média não apagada ainda, antes conservada e transmittida com afinco de

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geração em geração, através de uns poucos de séculos de transfc rraaçÕes sociaes, sentiracn- taes, intellectuaes: eram o resumo dos antigos poemas carlingios e arthurianos, as lendas dos Santos e as sátiras, as aventuras facetas e os apparecimentos de monstros a Malícia das Mulheres e a Historia dos Três Corcovados^ o Bertholdo e o Cacasseno, a Don\ella Theodoí a e a Imperatri\ Porcina, mulher do Imperador Lodonio de Roma. . . toda uma livraria de re- botalho grosseiramente impressa, e ornada de gravuras que me pareciam manifestações de uma esthetica selvagem, ou pre-historica.

Um. a estampa solta, que se me afigurou va- liosa, attrahiu-me a attenção. Inclinei-me para vêr melhor; e logo o alfarrabista, percebendo talvez que encontrava em mim o primeiro com- prador d'esse dia, a puxava de baixo deumpe daço de ferradura que a livrava do vento, c m'a offerecia a exame de mais perto, quando uma outra mão, de alguém que chegara nesse mo- mento junto do taboleiro, se precipitou sobre ella e a arrancou para si.

Voltei-me, encarei o malcreado. Mas uma es- pontânea alegria me desconcertou no repente de azedume:

«Oh I Chico. . . »

«Oh ! Amarante

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E cahimos nos braços um do outro.

Era o Chico do Patrocínio, o poeta, o meu caro Chico do Patrocinio, que fora meu con- temporâneo de Coimbra, e commigo vivera, e com o Fausto Guimarães, naqueila mesma e sempre saudosa republica da Couraça dos Após- tolos. Mas como elle estava dififerente ! e de bi- gode rápido I E que tremenda cabelleira I Era o caso de lhe perguntar :

«Mas Chiquinho, por onde tens tu andado, que tão bom cabello tens creado?!»

eOra, por onde tenho eu andado! Na lua, sempre na lua

«E que tens feito

«Versos! Tenho feito versos... Pois que queres tu que eu faça ? . . . «

E o curso ? Não acabara o curso ! Dois annos no quarto anno, e nem para trás, nem para deante. Tinha sido o diabo, tinha. Mas que ha- via de fazer lhe ? Desistira, esmurrara o Pimen- tel Gouveia em pleno pateo da Universidade, fugira para Lisboa. Era amanuense da Biblio- theca Publica.

oMas estás magnifico, sabes tu? Estás pie- thorico ! »

íE' certo. Tenho passado admiravelmente.» Ainda comes muito bife

«E muito peixe, muitos ovos, muitos legu-

A RUA DO OIRO l8l

mes, tudo brutalmente, em doses máximas ! Os versos puxam muito por nós, é preciso dar-lhes que puxar.»

«De mais a mais, chefe da nova escola, tens que ter hombros largos. . . »

«E bom pulso, Amarante, e bom pulso ! que isto de implantar uma escola litteraria em Portugal, vae a socco, sabes tu? e socco va- lente, para a direita e para a esquerda. . . Tens lido os nefelibatas

«Experimentei. Não consegui entendê-los.»

uNão digas isso duas vezes, Amarante ! E' uma grave oífensa que fazes a ti mesmo. Não nos entender é ser tolo I E tu não és tolo, Ama- rante, tu nunca foste tolo

«Não sei, não sei.. . Eu bem quiz, eu bem lhe fiz a diligencia, mas não me foi possível, que queres tu ? De resto, um de vossês o disse : Para os raros, apenas...»

«Pois por isso mesmo. Quero que sejas um d'esses raros apenas... Tem paciência. te não largo

Metteu-me o braço, arrastou-me.

E a estampa ? A estampa não valia nada. Elle não a queria, nem de graça. E atirou a com desdém, mas desdém de quem não quer com- prar.

Lembrei me então de que o Chico era, em

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Coimbra, muito entendido em livros e gravuras antigas.

oE' verdade, tu ainda tens aquella mania de bibliófilo, que tinhas noutros tempos ? de «Bibliófilo Braga», como te chamava o Faus- to...»

«Ainda, ainda I E complicada agora de uma outra: a mania do bric-à-brac. Até faço nego- cio. . . V

«Pois tu também me sahiste feno velho, ó Chico do Patrocínio?!»

«Que queres I E' preciso viver. E' preciso comer. . . Muito bife, muitos ovos I Custa tudo um dinheirão ! E não era com dezoito mil e oi- tocentos, que recebo da Bibliotheca, que pode- ria aguentar-me. . . Faço eLtão negocio. . . Ando sempre nisto. A pesquizar, a rebuscar, a fare- jar. E como tenho bom faro, descubro ás vezes coisas maravilhosas, antigas. E aqui para nós, que ninguém nos ouve, e porque tu sempre foste discreto como um tumulo quando as coisas que descubro não são maravilhosas, fa- ço-as eu maravilhosas. . . »

Poeta e ferro velho, Chico do Patrocínio pa- tenteou-se-me então como um producto estra- nho, mas perfeitamente authenticado, do seu meio e da sua época.

A' revolução que eu notava na topografia da

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cidade, no tipo das suas architecturas, na pró- pria composição do seu ar atmosférico, cor- respondia, e coincidia nos simptomas, uma ou- tra revolução dos costumes, da arte, da littera- tura e da opinião.

Nos cruzamentos da raça, na transmissão da sifilis e da tuberculose, nas secretas precauções da lei de Malthus, nos abusos do prazer mo- derno, anniquilavam-se e extinguiam-se os últi- mos representantes directos das nobres casas e das tradições fidalgas.

Na agitação dos mecanismos e das indus- trias, na ramificação frondosa do. commercio, no estimulo das exposições internacionaes, nas ex- plorações das minas e da Bolsa, enriqueciam-se e engrandeciam- se os burguezes.

Na corrente das idéas ncvas de socialismo, no desrespeito dos patrões, no incremento das co- zinhas económicas, no êxito das repetidas gre- ves, o operariado conquistava todos os privilé- gios e todos os direitos.

A febre do dinheiro, como uma febre epide- mica, atacava indifferentemente todas as clas- ses.

E fazia-se dinheiro de tudo.

O Estado vendia as colónias, os morgados vendiam as terras, as mulheres vendiam as jóias.

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Trabalhava-se o menos possível, gosava-se o mais que se podia.

Floresciam então os bancos hipothecarios, os pregos e os agiotas. Quando não havia que vender, recorria-se ao empréstimo ; e o emprés- timo era sempre feito com as máximas garan- tias sobre penhores valiosos.

Depois, não havendo que empenhar, jcga- va-se. E entrava-se então no periodo áureo das operações da bolsa, da loteria, e da roleta.

Feliz com mulheres, infeliz ao jogo— o por- tuguês perdia ao jogo o pouco que lhe restava. Chegado a esse extremo, lançado nessa penú- ria, ficava-lhe o optar por uma d'estas duas coi- sas: ou pelo trabalho, ou pelo suicídio. E a per- centagem dcs suicidas, sobre aquelles que se decidiram pelo trabalho, foi uma coisa pavorosa, que vinha contada, todas as manhãs, nas folhas.

A meio deste escalavro, emergindo doestas ruinas, calcando este montão de destroços e ca- dáveres, appareciam então, numa aureola de ju- bilo, de bem-estar, de desafogo, radiantes c né- dios, os intermediários. E estes intermediários eram: os ministros, que estipulavam e contra- ctavara a transmissão do dominio português para a posse do Estrangeiro ; os banqueiros, que promoviam na Bolsa a alta e a baixa dos nos- sos fundos públicos, á medida dos seus desejos-

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OS cambistas, que faziam andar a roda das lo- terias; os prestamistas, que dos juros onzenei- ros constituiam novos capitães; os commissarios, que tratavam de despejar, por todo o preço, nos toneis de Bordéus as adegas necionaes; fi- nalmente, os ferro velhos, que dos solares d'onde se desalojavam os últimos fidalgos, e dos mosteiros onde morriam as derradeiras freiras, tudo compravam, tudo levavam, tudo varriam mobiliários, tapeçarias, jóias. . .

E como não ha miséria que não desande em fartura, a miséria de uns, neste caso, desandava em fartura para os outros.

-A cccasião era esplendida dizia me o Patrocinio. Estava tudo a liquidar. Arranjei um sócio, puz então um estabelecimento de pri- meira ordem no seu género. Has-de ir, tem muito que vêr. E' na Avenida, a Grande Liqui- dadora. Seis salas enormes, e um pateo tam- bém enorme, que mandei cobrir de zinco e vi- dro, tudo atulhado de coisas antigas, precio- sas... Vale a pena. Como a maior parte do velho mobiliário andava maltratado pelos netos e bisnetos dos primitivos donos, foi necessário montar uma officina para restaurar todos es- ses moveis, e nella tenho restaurado tudo.. »

«Es ainda capaz de fazer a restauração_de Portugal

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«Olé! se sou. .. Havendo quem pague.» Tínhamos sabido do Campo de Santa

Clara, para baixo. Aquillo estava visto. Era uma triste coisa, afinal, essa Feira da Ladra, um afflictivo espectáculo. Dir-se ia o montão de tarecos de uma familia desditosa de empregado publico, que não poderá pagar a renda do ul- timo semestre, e a quem o senhorio dera man- dado de despejo, pozera no olho da rua. «Conheces a historia do teu paiz, ó Chico?» «Um poucochinho. . . pelos trastes Apontei com a bengala para cima, onde se estendia a Feira, comparei não sem magua:

o Pois ali tens tu a melhor e a mais triste sinthese d'essa nossa historia : a familia do em- pregado publico é a nossa familia portuguesa ; o senhorio avaro é a Inglaterra; e o montão de tarecos o nosso pobre espolio. Espera outro ul- timatum, que será o mandado de despejo, e ve rás como vamos todos para o olho da rua. .

Entretanto, e ainda para muitos, a vida ia ro- lando satisfatoriamente, como se o fosse sobre rodas de cautchu, nas molas commodas e suaves dos laudaus modernos.

Toda essa gente, que ninguém síjbia quem era, nem d'onde vinha, nem como enriquecera, e que era hoje a gente da alta finança, a gen- te do alto commercio, a gente da alta roda, e

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que era queai dava as cartas do bom gosto e do bom tom, imprimia á cidade e á vida de Lisboa UTi caracter novo, em tentativas e ensaios de cosmopolitismo galante, trazendo e implantando do Estrangeiro, no regresso das viajens (que a frequência dos expressos e as regalias dos sle- epings tornavam commodas e fáceis) modas e gé- neros de chiquismo, de mundanismo, de pari- sianismo.

Obtida uma fortuna, que apparecia consoli- dada de um dia para outro, sem que a ninguém importasse saber como aquillo fora ; arranjado um titulo de nobresa com a mesma facilidade que ha em adquirir um titulo da Divida Publi- ca; construido á pressa um palácio com os ma- teriaes ligeiros e a mão de obra rápida das enii- preitadas de fancar ia \ recheiada essa residência de formosos moveis, tapetes acariciadores, bron- zes de arte e porcelanas, marfins e barros es- culptados, rendas e esmaltes ; contractada uma mestra inglesa para as creanças, e um cozinheiro francês para os folhados tinha- se grangeado uma prompta nomeada de elegância e distinc- ção, figurava se nas primeiras linhas do hig-hlife dos jornaes, ganhava-se a votação dos plebis- citos mais exigentes em matéria de refinadas elegâncias, dispunha-se, como appetecia, da opi- nião ...

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Essa gente promovia todas as festas aristo- cráticas, cobria as assignaturas de São Carlos, dava batalhas de flores, andava em caçadas, or- ganisava regatas, inaugurava o gosto das corri- das de cavallos e reconstituia toiradas de fidal- iéos á antiga portuguesa, fazendo ella os fidalgos.

Essa mesma gente estimulava, sob o patro- nato do seu dinheiro e da sua impostura, as ex" posições de arte, de pintura e de esculptura, en- commendava os seus retratos aos pintores recém- chegados dos pensionatos de Paris, subscrevia a lista de fundadores da Real Associação dos Amadores de Musica, enchia os primeiros thea- tros nas noites de primeiras recitas.

E a cidade ostentava um ar de alta vida, en- caixilhando de oiro o quadro d'essa geração es- pontânea, que conseguia dar a illusão de uma boa sociedade, rica e distincta desde o berço admittindo que ella houvesse tido um berço . . .

«Jantas hoje commigo !• intimou-me o Pa- trocínio, quando chegávamos ao Largo do Mu- seu de Artilheria, onde devíamos esperar o ame- ricano. Mas tinha passado um naquelle mesmo instante, que ainda avistámos ao longe, e d'ahi até que tornasse a passar um outro, tínhamos que esperar.

«Não esperamos ! disse eu. Vamos andando a pé. Até appetece, com este tempo.»

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E fomos andando a pé. Andando, e conver- sando.

O Chico fora sempre um grande cavaqueador. Em Coimbra, fizera elle os primeiros annos de Direito a conversar. Elle mesmo o dizia, á hora de entrar para as aulas: «Vamos então a essa conversa

Tinha graça, tinha pilhas de graça, e tinha mais que graça : tinha pilhéria. Dentro do seu pequenino cérebro redondo, que eu conhecera quasi rapado, á escovinha, as idéas, sempre sa- cudidas, faziam um barulho jovial, tlitante, de bolinhas de metal dentro de um guiso. Diver- tianos. Divertia os lentes.

Nas aulas, o seu sisterra era este: applicava- se com afinco ao estudo, emquanto não era cha- mado á primeira lição. E a sua primeira lição era sempre, invariavelmente, estupenda de sabedo^ ria. então o lente não o perdia de vista, adi- vinhando um portento. D"ahi em deante, não lia mais uma pagina, não abria mais um compen- dio, desdenhava a sebenta. Podia depois ser cha- mado quantas vezes quizessem : estava sempre prompto para a conversa.

D' uma vez, num exame, não me lembra de quê, teve o Chico o presentimento de que sahia reprovado. Um dos lentes trazia o então de pon- ta, por causa d"uma famosa sátira que elle lhe

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dirigira e publicara na Ca^ra. Não lh'o perdoa- ria. E aquelle seria o momento da revindicta.

Chegou-se ao acto ; chegou a vez ao lente de o interrogar. O lente era o Pedróza, muito ver- sado e tido por auctoridade em questões de filologia, grande defensor da ortografia sónica, incapaz de perdoar ao próprio pae a imprópria collocação de um acento tónico.

Todos lhe conheciam o fraco. E a propósito de não sei quê também, logo que elle come- çou a interrogar o Chico, aconteceu falar-se da Oceania, que o Pedróza dizia «Oceânia.»

oPerdão, Oceania. . . » dissera seccamente o Chico do Patrocínio.

O Pedróza deu um salto na cathedra :

«Oceânia, se me licença

Sem pestanejar, o Chico repontou :

aEu digo Oceania... Vossa Excellencia dirá como entender.»

«Mas porque diz o senhor Oceania, e não quer dizer Oceânia, que é como deve dizer-se?p

«Porque Oceania me sôa muito melhor ao ouvido. . . »

O Chico considerou, de soslaio, a areia que corria na ampulheta. E ainda disse :

«Vossa Excellencia terá então a bondade de esclarecer-me no meu erro. Eu desejo acer- tar.. . Mas será necessário que Vossa Excellen-

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cia me convença de que sou eu que realmente estou em erro. . . »

E não disse mais nada. Nem foi preciso mais nada. O Pedróza esticou os punhos, atirou os braços pela meza fora, caiu a fundo na questão do acento.

Oceânia, e não Oceania ! O facto de muita gente dizer Oceania, não era razão bastante para que não se devesse dizer Oceânia. . . E ahi vae elle, o Pedróza, por essa etimologia fora, como um cavallo que torrou o freio nos dentes, largou a toda a brida I Esqueceu o exame, esqueceu a areia que corria na ampulheta, esquecera a sá- tira do Patrocinio na Cabra. . .

Quando, passada a hora, o Pedróza serenou, se recostou, deu outro puxão aos punhos e dis- se, soberanamente concludente; (íErgo... Oceâ- nia e nunca Oceania!» o Patrocinio adquiri- ra a certeza de que licava approvado.

O Presidente tocara no braço ao Pedróza. E então o Pedróza cahíra em si. Mas tinha pas- sado a hora. Fora comido. Ainda teve um repe- lão. E a sátira ? não era tempo. Deixa-lo ! Não se perdera tudo. Oceânia, e não Oceania . Ficara o acento no seu devido logar.

«Estou satisfeito disse.

Não estava. Isso sim I Mas era como se esti- vesse. E quando todos, rindo á socapa d'aquella

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deliciosa mistificação do Patrocinio, imaginavam que não lhe restava outra coisa a fazer senão le- vantar-se, cumprimentar o jury, e passar ao ter- ceiro anno de Direito, ainda se ouviu elle dizer para o Pedróza, dobrando-se todo para a frente, estendendo os braços e espalmando as mãos para trás, numa profunda contumelia :

«Tcimbem eu estou satisfeito!»

Andando e conversar do, tínhamos chegado ao Terreiro do Paço. Cortámos pela Arcada, pas- sámos á porta do Ministerip da Justiça, entrá- mos na Rua do Oiro.

Eram quasi cinco horas.

Junto do marco postal que estava á esquina da Rua dos Capellistas, o Chico detivera-se e detivera-me um instante, tirara o largo chapéo de feltro, de copa alta e fendida ao meio, met terá os dedos recurvos pela grenha negra e lus- trosa, que lhe cobria o pescoço, o collarinho e as orelhas, tornara a pôr o chapéo de melhor geito, um pouco ao lado, mais fendido ao meio. Ainda olhou as botas, que queriam ser engraxa- das. Mas não fazia ao caso. Ora, ninguém lhe olhava para os pés. Aquella cabelleira offuscava o resto.

«Que tal

«A' devida altura ! approvei eu. E acrescen- tei : Pareces um tenor!»

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Metteu-me o braço, entrámos na Rua do Oiro, como num paiz conquistado.

Dir-se-ia o céo mais azul e o próprio ar mais tépido. Andava na rua um formigueiro de gente bem posta, arrastando os pés no asfalto dos pas- seios, entrando e sahindo das lojas, parando instantes no exame das vitrines, formando, aqui e ali, pequenos grupos, sacudindo apertos de mão, trocando beijos e risadas, falando alto, su- blinhando frases, remoinhando bengalas, ator- mentando cabos de sombrinhas, riscando fósfo- ros, acendendo charutos. Fru-frus de ricas saias, perfumes de boa marca, maciesas de ve- ludos, caricias de pelles de bicho, revoluteios de plumas, rangidos de botinas, coruscações de jóias, tudo se misturava e se fundia num zum- bido e numa cocega que nos percorria os senti- dos, a breve trecho excitados pelo cubicar e pelo roçar das mulheres em grande numero, umas bonitas, outras feias, umas formosas, outras hor- rendas, e todas ellas corrompidas na provoca- ção do outro sexo, na scintilla histérica dos olhos, na sasonada intumescência dos seios, no dolente saracoteio dos quadris, na fragilidade, quasi quebradiça, da cinta, na minúscula esqui- sitice do pé, na astúcia destra dos gestos e das attitudes. . .

«Céo azul, riso amarello ! Aqui tens tu

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dizia-me o Chico o lemma de uma nacionali- dade como a nossa, que não pôde ter no grande concerto europeu mais que uma parte muito li- geira, e que tem de resignar-se á condição se- cundaria que lhe cabe, contentando se com pouco em tudo, desde as chamadas despezas de representação, até ás mais Ínfimas e vagas despezas geraes, que no diário d'esta sociedade anónima, onde a gente se aborrece, representam as pequenas verbas de bom humor com que cada um de nós concorre para o custeio, pouco espiritual, da vida de Lisboa ! »

Eu, porém, observava :

«Mas toda esta gente, todos estes janotas, todas estas mulheres, têm o ar feliz de quem gosa a vida o mais que pôde, e parece pode- rem gosa-la exuberantemente. . . »

«E' o clima, Amarante ! E' este riquissimo clima ! »

Muito empoleirado na sua própria pessoa, dando-se uma grande linha de superioridade em que quasi se podia acreditar, envolto na nuvem de fumo do seu charuto, como convinha e com- petia a um deus, attrahindo olhares e provo- cando sorrisos, Chico do Patrocínio transfigu- rara-se, de repente, aos meus olhos, sem que eu soubesse como, levando o pelo meu braço. O ferro-velho dava logar ao chefe da escola nefe-

A RUA DO OIRO igb

libata. E eu levava agora, pelo meu braço, o poeta da moda. E senti-me lisongeado. Eu mesmo senti que partilhava da sua notoriedade e do seu triumfo.

A' porta das livrarias, muitos rapazes, tam- bém de guedelha comprida, de capinhas curtas ou de sobrecasacas enormes, de grande roda, com espantosas flores ao peito, uns de luneta, outros de monóculo, cumprimentavam o Chico com reverencia.

Outros, do sport, esguios, de calça muito justa, entalados em collarinhos altos, reluzentes como vidros, luvas amarellas, acenavam-lhe de longe, com a mão alta, familiares.

Algumas mulheres correspondiam com af- fecto, entreabindo os lábios, mostrando os den- tes, aos rasgados cumprimentos* com que o Chico se dignava obsequia-las.

E, de mais em mais animado, sem despegar da conversa, que apenas entrecortava de bre- ves cortezias e risonhos gestos para a direita e para a esquerda... «Como estás tu .. Adeus, ó Fialho. . . Minha senhora. . . Creado de Vossa Excellencia. . o Chico proseguia na mesma ordem de considerações.

Ainda os mais*pessimistas eram obrigados a reconhecer que em muitos dias de agosto não se nos mostrava o céo tão azul como o tínhamos

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visto nesses últimos dias de março, restos d'um inverno em que segundo o discurso da Co- roa, do qual não seria licito duvidar nem se- quer tinham esfriado as nossas relações diplo- máticas com as nações onde o thermometro baixara vinte e cinco graus abaixo de zero. aquelles que, porventura, soífressem de dalto- nismo, poderiam querer convencer-nos de que á vista dos seus olhos apparecia arroxeado e som- brio o céo, anilino e limpido, que a nossa vista alcançava, de norte a sul, e de leste a oeste.

Esse chamado «horisonte tenebroso» da pu- blica administração, não era mais que um tropo. A muito conhecida «atmosfera carregada» da nossa eterna questão colonial, não era senão um effeito de theatro applicado, com pouco êxito, á rhetorica parlamentar, velho panno de fundo esmaecido.

«E todavia, vês tu, sob este céo azul que felizmente nos cobre, e no desfructe amável das instituições que felizmente nos regem, nem o animo nos chega para grandes enthusiasmos, nem a alegria nos para grandes explosões. . . Assim como a temperatura do clima nos não deixa experimentar a sensação dos mais inten- sos frios, assim a dosagem humor nos não permitte a bemaventurança das fortes hilarieda- des. A todos os respeitos, vogamos em aguas

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mornas quer a metáfora alluda á nau do Es- tado, quer se refiia ao batel da nossa fantasia

Tc da a vida portuguesa estava sendo bem uma parodia, de que a muito custo se salva- vam poucos factos e poucas individualidades. Na politica e na sciencia, nas artes e nas lettras, na moda e no dandismo, a parodia florescia, como a laranjeira ao scl. Regulamentos e leis, theo- rias e problemas, seitas e escolas, estilos e gra- vatas, tudo isso assimilava, imitava, adaptava ao meio, macaqueava, emfim, quanto de fora nos vinha na corrente impetuosa das opiniões, nos artigos das revistas, nos jornaes de figuri- nos, nos mostruários dos caixeiros viajantes. Cada qual se julgava no direito de trazer para a rua um paradoxo de Max Nordau com o mesmo enbonpoint com que poderia envergar uma sobrecasaca do allaiate Amieiro. Trazia-se á flor dos lábios um dito de fim do Figaro como quem pozesse na lapela uma camélia do- brada . , .

«Uns bonifrates, Amarante ! Uns bonifra- tes que vivem, comem, bebem, vestem e pas- seiam por Lisboa, pela simples razão, para cada um d'elles, de ver fazer o mesrro aos mais. São bonecos de engonços, são fantoches, são saguins de realejo tudo quanto procura imitar alma christã pondo as mãos no ar

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Adaptava-se o bonifrate aos mais diversos meios ; accommcdava-se o bonifrate a toda a ordem de principies ; invadia o bonifrate as mais variadas profissões ; fingia assimilar o bonifrate as idéas mais complexas.

Na politica, o bonifrate seria tudo quanto dentro d'esse ramo de actividade humana fosse possivel ser-se : galopim, presidente de as Sembléa eleitoral, representante em Cortes, re- lator de pareceres, leader da maioria, ministro, presidente de Conselho ! Na sciencia, seria o medico, seria o mathematico, seria o botânico, seria o fisico, seria o zoologo. Nas artes, seria o que pinta, o que esculpe, o que entalha, o que musica. Nas lettras, seria o poeta, o dra- maturgo, o romancista, o polemista, o articu- lista. . .

aEm Lisboa, o bonifrate nasce, vegeta, cxhibe-se e triumfa, sem mais funcçÕcs nem mais esforço que o cogumelo, desde que ir- rompe do solo até que é metlido em latas, de conserva. E" de geração espontânea, e não tem vontade própria. Dentro do seu cérebro existe uma faculdade : a velhacaria. E essa é a mola real, a potencia motora de todo o seu modo de ser. . Ninguém, como elle, para fazer passar por sua a idéa que outro teve, nem para vestir pelo figurino por que outro veste.»

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Eu tentava respirar. Mas não me era pos- sível. O Chico acolchetava-se mais ao meu braço, redobrava de loquacidade :

«E' isto, Amarante, é isto! Nem ha que sahir d'aqui.. . Nem tu vês por ahi outra coisa. Os antepassados uns espantalhos, os descen- dentes uma sucia

«E os nefelibatas

. fOs nefelibatas não contam. Somos creatu- ras á parte. Somos os poetas, fugidos da chol- dra d'esta prosa para o refugio do nosso sonho. Achámos a dôr voluptuosa, e deitámo-nos nos seus braços . . Os poetas foram sempre de to- dos os tempos. Somos de todos os tempos. La- martine ou Mallarmé, Soares de Passos ou eu... tanto monta, tanto faz I A alma de um poeta transmigra para outro poeta. Em nós, apenas o invólucro, o vil invólucro, muda. Ape- nas mudam as formas. Ainda ha pouco, na Feira da Ladra, me dizias tu quç não eras ca- paz de perceber os nefelibatas... E não és tu, é toda a gente. Que admiração! Pois se até nós nos não percebemos uns aos outros. . . Ora nisto é que está toda a nossa força, nisto con- siste o nosso disfarce. Simples questão de for- mas. Simples questão de metros e de rimas. Que importa que Delfina se chame agora Brio- lanja ? Nada. Não importa nada I Não quer di-

200 A RUA DO OIRO

zer nada! Mas imagina tu que eu apparecia agora em Lisboa de calça côr de flor de alecrim e de bigode e pera, a fazer poesias pela medida e na toada das Flores d'Alma, quando nin- guém sequer se lembra do Dom Jayme, que ha tanto tempo passou de moda ! Corriam-me. Po- sitivamente, corriam-me ! E o que fiz eu então ? Rapei a barba, puz este chapéu, e implantei a nova escola. . . Agora, e depois d'esta elucida- ção amiga, para os raros apenas, folheia os ne- felibatas, e verás. . . tens as mesmas flores d'alma, que se alteiam bellas, puras, singelas, orvalhadas, vivas I As mesmas, as mesmas. Simplesmente, em vez de se chamarem Flores d' Alma, chamamos-lhes Silva isotérica. . . »

Não havia remédio senão dar-lhe razão. Assim era. O Chico punha as coisas em pés de ver- dade, era bem assim, como elle dizia. E toda- via, no meio d'aquella embrulhada comedia da vida de Lisboa, em que mesmo nós, e naquelle mesmo instante, andávamos contra-scenando, de braço dado, em plena Rua do Oiro, Patrocínio achava-se claramente á vontade dentro do seu papel, e papel que, dada a alta preponderância do seu metro e da sua guedelha no nosso meio litterario, não era nenhuma rábula, antes me parecia, e era, um dos melhores papeis.

Frisei o contraste, mostrei-lhe a flagrância da

A RUA DO OIRO 201

contradição que havia entre as suas palavras e o seu modo de proceder :

«Mas porque é que tu, ó Chico, que lalas cumo um revoltado, transiges como um servo ? Porque não protestas alto com palavras e com obras

«Porque nem me ouviam as palavras, nem me compravam as obras. . . Tu não sabes o que são, nem o que pensam, nem como se manifes- tam as multidões I Nas multidões, quer activas, quer espectantes, ha muita heterogeneidade, Amarante. Tenho, a este respeito, uma infini- dade de observações curiosas, de muito inte- resse. Quando publiquei o meu livro, os Oásis, que foi o grito de alarme que acordou e poz de pé, no seu devido pé, a nova escola, estabele- ceu-se logo, em volta da minha pessoa, uma multidão espectante, perfeitamente caracterisa- da, como essas multidões que se aglomeram nas ruas para vêr passar uma procissão ou um homem celebre. Que dose enorme de paciência, dirás tu, a d'essa gente que fica a firme qua- tro, cinco, seis horas, para vêr passar uma pro- cissão ou um homem I E todavia, nenhum d'el- les teria sósinho a mesma pachorra . . . Reuni- dos, estão sempre promptos para tudo. E o que acontece então ? o que acontece sempre ? E' que de toda essa multidão, apenas os que estavam

202 A RUA DO OIRO

á frente, nas primeiras filas, poderain vér o ho- mem celebre ou a procissão o que nãoimpede que todos os outros se dispersem satisfeitos, e persuadidos de que viram tudo. E' uma verda- deira sugestão alucinatória, por contagio. . . Pu- bliquei os Oásis, fiz barulho, os rapazes amigos dos jornaes fizeram também muito barulho, e juntou-se gente, formou-se a multidão que me quiz vêr passar, homem celebre, seguido do meu cortejo de prosélitos eu com esta enorme cabelleira, elles com as suas capinhas curtas e os seus girasóes nas mãos. .1 Exgotou-se logo a primeira edição, num abrir e fechar d'olhos, fez-se segunda, vendida, e vae entrar no prelo a terceira. .

E ahi estava formada, e desviada para o seu lado, a corrente da Opinião.

Imaginasse eu, agora, que elle, Chico do Pa- trocínio, duas vezes reprovado no quarto anno de Direito, e expulso da Universidade por ter esmurrado convenientemente o Pimentel Gou- veia, sem a carta de bacharel, sem bens de for- tuna, e sem amigos na Politica, chegava a Lis- boa com as mãos nas orelhas (como de facto chegara), e em vez de farejar um meio de vida, como fizera, vinha para a praça publica protes- tar contra o estado de coisas do seu paiz, tra- tando de ladrões todos os ministros, conside-

A RUA DO OIRO 2o3

rando imbecis todos os contribuintes, declarando adulteras todas as mulheres ! Elle bem sabia que ainda era possivel salvar d'aquella baralha algumas honrosas excepções, pois ainda havia ministros que não roubavam o Thesouro, con- tribuintes que não pagavam as decimas, e mu- lheres casadas que não ludibriavam os maridos. Mas suppozessemos que elle não admittia exce- pções, e na sua fúria de haver perdido o curso, e naquelle desespero de se achar sem um vin- tém, media tudo pela mesma bitola e ajustava todos pela mesma craveira, barafustando, inve- ctivando, disparatando...

«Estava prompto. . . explicava elle. Era um homem ao mar. . . Era um homem per- dido ! »

Todos nós gostávamos e nos regalávamos de dizer mal dos outros, mas nenhum gostava nem se regalava de ouvir dizer mal de si. O nosso grande periodo pamphletario passara e apaga- ra-se nas cinzas do esquecimento, como passara e se apagara o periodo áureo das descobertas e conquistas. As Farpas tinham tido a sua época, que correspondera ao inicio do escalavro nacio- nal, mas a sua época extinguira-se, passara e apagara-se também. As Farpas eram d'um tempo em que ainda se vivia no pleno e am- plo regimen de liberdades que o Senhor Dom

204 ^ ^^^ ^^ ^^^^

Pedro IV nos outorgara. Até ahi tinha-se gosado de todas essas liberdades com conta, peso e medida, mas entrara-se, e de cabeça, no abuso d'ellas. Verdade, verdade, uma d'aquellas de que mais se abusara fora a liberdade de im- prensa. O commentario do abuso chegara a ser mais abusivo, por vezes, que o próprio abuso.

O pamphleto, que rompera de um nobre sen- timento de protesto ou de uma viva comichão de troça, tornara se meio violento de violentos fins, e fora instrumento perigoso de diffamaçao e de chantage.

O espirito de imitação, muito nacional, muito nosso, lançara logo á publicidade, atrás das Farpas, uma chusma de pequenos folhetos de mordacidade e de audácia, que atulhararrí o mercado. Eram as Garrochas, eram as Banda- rilhas, eram os Ferros curtos, eram os Agiii- Ihôes, tudo quanto do vocabulário tauromachico podesse dar uma idéa sinonimica de ferroada no magro cachaço da sociedade portuguesa, que se deixava correr e espicaçar bonacheirona- mente, como um triste e derrancado boi de cu- riosos.

As Farpas, entretanto, tinham cumprido o seu programma de demolição e de reforma.

Fora arrasado o Passeio Publico, considerado foco grandemente nocivo de todos os miasmas

A RUA DO OIRO 2o5

e dc todos os males românticos. Rolara no pó, como um colosso apeado e conspurcado, o terrí- vel General Macedinho, que fora o principal ma- nutendor da desordem publica. O Bazorra con- seguira empregar o ultimo afilhado, e dispoze- ra-se, contente, a entregar a alma ao Creador. Tinham sido retirados de scena os Lazaristas, e emendada a traducção de Shakespeare, do fallecido Rei Dom Luiz. Montara-se em Lisboa um estabelecimento de banhos e duches, de limpeza e de therapeutica. Todas as famílias abastadas tinham adquirido uma banheira, e as de mais modestas posses um bidé, pelo m.enos. Estabelecera-se uma fabrica de sabão em Alcân- tara, e uma fabrica de escovas em Xabregas. Na educação nacional introduzira-se a gimnas- tica, a contabilidade, o pas de-quatre e o alle- mão. Os rapazes andavam de calção até á idade em que todos elles emagrecem e se es- canzelam ; e as meninas de saia curta até á idade em que todas ellas engordam e arredon- dam.

Pouco a pouco, porém, quasi sem que se desse por tal, as liberdades iam sendo coarcta- das. Os pamphletarios, que d' antes investiam como feras, iam sendo domesticados. Uns en- travam para os conselhos da Coroa ; outros en- travam para a Academia ; e assim foram en-

206 A RUA DO OIRO

trando, todos elles, na ordem uns na Ordem de Christo, outros na Ordem de São Thiago. . .

No dia em que restava de fora um único pamphletario, que teimava em não querer ser ministro, nem membro da Academia, nem com- mendador, não havendo outro meio de o fazer calar, metteram-no no Limoeiro para socego e para exemplo. E foi assim que o pamphleto passou de moda.

«Hoje o que vês tu, Amaral ? Vês um mi- nistro subir ao poder com os rompantes do Oli- veira Martins, que pôz tudo em pratos limpos, declarando que não encontrara um ceitil no fundo dos cofres públicos, que todos os seus predecessores tinham feito do governo um ne- fando ludibrio da Nação e dos credores exter- nos, e que para se entrar num periodo de renas- cimento e reacquisição de credito seria preciso metter tudo no são governos e governados. O relatório de fazenda do Oliveira Martins foi o primeiro, e até hoje o único que patenteou a inteira verdade aos olhos do Parlamento estar- recido. E o que aconteceu ao Oliveira Martins ? Correram com elle. . . Chasquearam-no. . . Vês um jornalista, como o Ennes, fundar o seu jor- nal e iniciar uma campanha tremebunda contra a dictadura de um governo desvairado de nevro- patas e de saltimbancos, que fazem uma reforma

A RUA DO OIRO 207

de lei eleitoral de cada vez que querem um bill de indemnidade para se pôr a salvo da res- ponsabilidade de quantas tratantadas empreen- deram e realisaram. . . E o que aconteceu ao Ennes ? Embucharam-no com doze contos de réis por anno, que é uma bucha com que toda a gente embucha, e assim se viram livres d'elle... Critica ? Boa critica ? Critica de costumes ? Isso é cada um em sua casa, com a sua mulher e os seus filhos !i)

Eu podia perguniar-lhe, e perguntava muito bem :

tMas porque transiges tu, ó Chico do Pa- trocínio, tu que não queres ser ministro, nem membro da Academia, nem commendador

«Porque não tenho nada de melhor a fazer I respondia elle. Eu ponho sempre o meu in- teresse acima de todos os interesses ; mas de- pois de servir o meu interesse, sendo-me possí- vel servir os interesses da minha pátria, dos meus concidadãos e até dos mieus amigos, teria nisso muito gosto e de bom grado o faria. . Ora eu não posso, infelizmente, senão servir o meu interesse. E o meu interesse é este : ven- der os meus versos, e, por via do reclame dos meus versos, encontrar compradores para os meus moveis antigos.. Aqui tens tu. Outros que barafustem e preguem nos desertos. Eu, e

208 A RUA DO OIRO

OS da minha caravana, descobrimos os Oásis, e refagiámo-nos nelles. .

Quando chegámos ao fim da rua, que havía- mos subido pelo passeio da esquerda, e elle propôz que cortássemos para o lado de lá, por onde andavam «outras caras», eu começava a pensar e a dizer com os meus botões, que aquelle maroto do Chico talvez tivesse razão.

«E tu, Amarante, que programma trazes? a que partido pertences

Eu nem trazia programma, nem pertencia a nenhum partido. Tinha vindo para a politica um pouco ao acaso, estava vendo em que para- vam as modas.

«Homem ! forma tu um partido. . . » Organisar um partido politico parecia uma

coisa difficil, e afinal era uma coisa fácil. O que era difficil era achar para isso a opportunidade. Essa opportunidade dava-se agora, precisamente agora, em Portugal.

Acabara-se o dinheiro.

Acabara-se a Uberdade.

Acabara-se a esperança.

Experimentados um a um, os homens de go- verno tinham dado o que podiam dar, dentro dos chamados partidos militantes. Um a um, todos elles haviam perdido a confiança que num dado momento houvera nos seus méritos, no

A RUA DO OIRO 209

seu pulso, na sua dignidade. Os que não tran- sigiam com a força das circumstancias, met- liam-sc em casa, liquidados. Os que transigiam com ellas, eram victimas da própria transigên- cia, e liquidavam, egualmente. O que sobejava dos velhos partidos constitucionaes, das suas tradições, dos seus credos, das suas energias, pertencia ao inventario dos museus e dos archi- vos. Eram velhas coisas arrumadas em pratelei- ras, dispostas em panóplias, mettidas em armá- rios, enfiadas em manequins, com números de catalogo, e rótulos summarios da sua historia, pregados com alfinetes. O que havia a fazer era simplesmente entrega-las aos cuidados d'um conservador que as tivesse sempre em ordem, mandasse limpá-las da poeira de vez em quando e tratasse bem de preservá-las da traça. O José Luciano e o António de Serpa, por exemplo, pre- cisavam bolas de naphtalina nas algibeiras da sobrecasaca, e um pouco de espanejador nas idéas.

Quem viria agora ?

Esta pergunta, que andava na bocca de todos, determinava a boa opportunidade para a orga- nisação d'um partido.

Bastava que uma voz se ouvisse, respon- dendo :

«Eu

14

210 A RUA DO OIRO

Fosse de quem fosse, essa voz seria immedia- tamente a voz de um chefe.

Todos se voltariam para o lado d'onde a voz partisse. Quem é ? Quem não é ? Levante o braço quem foi ! E então, um homem que nin- guém conhecia, erguia e agitava no ar o braço ousado.

«Ao estrado bradava a multidão.

«Que fale gritava a populaça.

E o homem trepava, atabalhoadamente, ao estrado, batia com a mão espalmada sobre o peito, revolvia a gaforina, procurava meia dúzia de frases sonoras, recorria á memoria de quantos velhos programmas de partido lhe ti- vessem passado pelos olhos, dando tudo isso como novo e como seu, encolerisava-se contra todos os abusos do poder, invectivava todos os despotismos, flagellava todas as fraudes, enu- merava todos os esbanjamentos, invocava to- das as grandes idéas, adoptava todos os novos princípios, oíferecia o peito á defeza de todas as santas causas. . .

a multidão, facilmente sugestionada, e como que toda ella percorrida pelo mesmo des- conhecido fluido de enthusiasmo, não ouvia bem o que elle dizia, nem percebia a relacionação d'aquillo que elle. dizia com os desconcerta- dos gestos que disparava ; e era possível

A RUA DO OIRO 211

apreender, por fim, claramente escapas á con- fusão dos sons roucos em que elle embrulhava e expellia os restos do discurso, uma ou outra palavra, uma ou outra promessa. . .

. . . Regeneração I

Pátria I

Questão financeira I

Isenção de caracter. . .

Forças vivas da nação I

A situação angustiosa do momento. . . a Agri- cultura... a Humanidade... o Código admi- nistrativo... o dia de amanhã!

Tudo aquillo andava, como se costuma dizer, no espirito de todos. Faltava quem o dissesse, faltava quem o bradasse, faltava, sobretudo, quem promettesse remediá-lo. Toda a gente ti- nha medo da Policia, e calava- se. Tinha se medo da Municipal, e mettia-se a gente em casa. Ap- parecia, porém, um homem que declarava não ter medo nem da Policia, nem da Municipal, e que promettia todos os desafogos, todas as ga- rantias, todas as liberdades, desde que lhe pas- sassem o poder para as mãos.

Mas quem era esse homem í

Mas o que era o poder ?

O homem, ninguém sabia quem era. O poder era uma coisa que não era de ninguém, mas de que toda a gente podia dispor. E toda a gente,

212 A RUA DO OIRO

nesse momento, dispunha do poder a favor d'esse homem que lh'o pedia. Em Portugal, quem dizia poder dizia Policia e dizia Munici- pal. Ter uma de prevenção e contar com a ou- tra, era quanto bastava para administrar um es- tado, onde as coisas se passassem como se pas- savam aqui.

«Bem ! dizia- se então a esse homem. Ahi tem você o poder. Agora governei»

Tinha-se acabado a esperança. Mas eis que a esperança renascia. Tinha-se acabado a liber- dade. Mas tornava a haver liberdade. Tinha-se acabado o dinheiro... Era todavia forçoso ar- ranjar mais dinheiro.

Evidentemente. Mas como ?

Augmentando os impostos. . .

Não podia ser. O que era preciso era redu- zi-los.

Reduzindo os juros da Divida...

Peor ainda. O que convinha era que se vol- tasse a pagá-los integralmente, como d'antes.

Cortar pelos ordenados ao funccionalismo, acabar com os empregos onde não houvesse que fazer ...

O quê ? ! O quê ? I

assim, meus amigos, assim! E' ter pa- ciência. E' soffrer. E' aguentar. . .

Nunca I Tudo, menos isso. Olhem que tal nos

A RUA DO OIRO 2l3

sahiu o sujeito, ein ? Então, não querem vêr? Não está máu Messias este, não . . Comí- cios I Toca a fazer comícios. Nada de graças. E' necessário protestar, é indispensável protes- tar. Então, não querem vér ? I

No domingo seguinte, a mesma multidão que dera o poder a esse homem, pretendia reunir-se num comício ím que se tratasse de obstar a que cUe viesse sobrecarregar com mais impostos, ou agravar com mais reduções, a vida nacional. Mas quando toda a gente chegava ao ponto onde combinara reunir-se, encontrava uma força de polícia, que a punha em debandada.

Ella queria resistir. A policia prendia-a. EUa recalcitrava. A policia espancava-a. Ella engal- finhava-se na policia. E o homem de governo, pelo telefone, mandava sahir a Municipal, que a desancava.

«Evidentemente concluía o Chico não são estes os homens de governo que o paiz precisa. Mas são estes, incontestavelmente, os homens que a multidão merece.»

Defronte da loja de modas do Lopes de Se- queira estava parada uma carruagem. O Patrocí- nio chamou-me a attenção, puxou me pelo braço:

«A D. Claudia e a filha. . . » Alvorocei-me. Onde as vira elle ? Mas onde ?

E descrevi um semi-circulo de relance, sobre o

214 A. RUA DO OIRO

calcanhar, numa viva pressa, olhando para to- dos os lados. Do fundo do coupé, forrado de claro, destacavam-se então, voltados para o nosso lado, os dois vultos conhecidos de Clarinha e da mãe, quando os meus olhos se encontraram com os olhos d'ellas. Corri á portinhola :

«Oh, minhas senhoras. . . »

E fora aquillo uma festa para mim e para ellas, como se nos não avistássemos ha muito tempo. j|Pois ainda na véspera eu tinha estado em casa !

«Anda gosando o seu feriado disse-me D. ^Claudia.

^lAndo entretendo o meu feriado... Está um dia lindo

Mas Clarinha quiz logo cortar o fio de bana- lidade cerimoniosa que ia tecendo esse pas- sageiro dialogo, para lhe imprimir o seu sainete risonho de despretenciosa familiaridade :

«E andava tão entretido, que foi preciso que o seu companheiro lhe fizesse signal para dar por nós ...»

«E' verdade. Eu não tinha conhecido a carruagem.»

D. Claudia engatilhara o lorgnon sobre o Chico do Patrocinio, media-o da cabeça aos pés, prescrutadora. Demónio ! pensei eu.

A RUA DO OIRO 2l5

está ella a reparar-lhe nas botas, que tanto pre. cisavam ser engraxadas.

«Quem é aquelle rapaz perguntou ella depois de demorado exame.

Inclinei-me mais na portinhola, informei com certo gosto :

«E' o Francisco do Patrocinio. . . o poe- ta... o nefelibata

«Ah !. . . fizeram as duas, mãe e filha, a um mesmo tempo. Este é que é o Francisco do Patrocinio ?I»

E Clarinha não poude ser senhora de si, oc- cultou-se precipitadamente para trás, no fundo do coupé, e riu, a bom rir, do Chico, da sua fi- gura, da sua cabelleira, de toda aquella aureola de reluzente disparate.

« Que ratão ! Mas que grande ratão ! »

D. Claudia, muito inquieta, dizia entre den- tes, reprehensiva :

«Oh, Clarinha, por amor de Deus ! olha que elle está a olhar para cá. . . Olha que elle está desconfiado. . . »

Eu serenei-a, tomei a responsabilidade, achei muita graça, e ri também, dissimulando, como se rissemos de coisa muito diversa. Nem elle prestava attenção. E que prestasse ! Estava ha- bituado. Elle mesmo o dizia : que até gostava de que o troçassem. Era metade do seu êxito.

2l6 A RUA DO OIRO

D. Claudia, interessada por estas singula- ridades do meu amigo poeta, de quem fizera uma idéa muito diversa «pelas poesias», mos- trou desejo de o conhecer, de lhe falar.

«Vossa Excellencia licença que o apre- sente ? . . . »

Mas ella receiou que Clarinha não podesse ter mão em si, se não contivesse. . . Sabia como ella era, e se a tomasse naquelle momento al- guma das estridentes convulsões de riso que costumavam dar-lhe, era uma semsaboria, era uma inconveniência.

Clarinha protestou. Não, isso não. Tam bem não era tanto assim. Ora ! não era ne- nhuma creança... E pôz-se muito séria, pro- metteu não nos comprometter. E ella mesmo pediu :

«Chame-o, chame o

o Chico percebera, muito fino, fino como um coral, que se falava d'elle, da sua pessoa, talvez dos seus versos, com certeza da sua gue delha. A um leve aceno meu, endireitou-se mais, arqueou alto o braço, levou a mão ao chapéu, adeantou um passo para a carruagem, descre- vendo uma profunda reverencia antiga, restaura- da ..

«O meu amigo Francisco do Patroci- nio . . . »

A RUA DO OIRO 217

D. Claudia tinha um grande prazer em o co- nhecer pessoalmente. Pelos seus versos, pelos seus lindos versos, ha muito tempo que o co- nhecia, que o admirava. E elle ! Oh, elle, que subida honra, senhora D. Claudia, que bem- aventurança ! Ha quanto tempo alimentava elle esse desejo, que agora estava sendo satisfeito, de ouvir o divino verbo da grande propugna- dora dos direitos da Mulher em Portugal ! Tanto empenho tivera, tanta diligencia empre- gara para assistir a alguma reunião da Liga Feminista em que a senhora D. Claudia fi- zesse uso da palavra, e não o conseguira,' uma vez porque fora forçado a ausentar-se de Lis boa, outra vez porque cahira doente, ora por isto, ora por aquillo, mas sempre por alguma razão ponderosa, por alguma causa inevitável ou inadiável . . .

Estavam preciosos, ella e elle, realisando essa generosa transacção de elogio mutuo. Mas Clarinha, dotada de uma precoce percepção de todos os ridículos, intervinha para reduzir aos meus olhos a impressão de alta caboti- nagem que resaltava da conversa, toda artificial e presumida, em que a mãe e o meu poeta se intrujavam e delambiam, como um peralta e uma sécia na modelação de um madrigal. E dirigindo-se ao Chico :

2l8 A RUA DO OIRO

« Quando publica outro livro de versos, se- nhor Patrocínio

t Ainda não sei, minha senhora... Tenho agora em preparação um pequenino poema. .

aE" que eu sei de cór quasi todos os versos dos Oásis. . . E quero mais !. . . »

O Chico não cabia em si de contente. Nem atinava com o que dizer. Teve até o ar mal geitoso de quem suppunha que aquillo fosse troça. Mas theatral, reentrando, apressado, no papel a sério, tomou a deixa :

«Vossa Excellencia deve ter uma excel- lenté memoria

«Pois olhe que é verdade ! confirmou D. Claudia. Eu ás vezes nem sei como ella pôde raetter tanta coisa na cabeça, sem as baralhar umas com as outras. . . Sabe de cór paginas e paginas inteiras de coisas que tem lido. .

Eu abundei na asserção, permitti-me um gra- cejo :

«Não se faz idéa ! Chega a ser inacreditá- vel... Imagina tu que foi pela senhora D. Clara que eu tive conhecimento do ultimo Dis- curso da Coroa I Disse-m'o todo, sem lhe faltar uma palavra, como um fonógrafo. . . »

Clarinha achou immensa graça. Riu muito. , oNão I isso não... Tudo quanto qui- zerem. . . menos o Discurso da Coroa

A RUA DO OIRO 219

Mas da loja de modas sahiu, a este tempo, e veiu a meio do passeio trazendo um grande embrulho., um caixeiro do Sequeira. Clarinha pe- diu-nos licença para receber o embrulho das mãos do caixeiro, que lh'o passava pela porti- nhola. D. Claudia ainda fez qualquer recom- mendação a respeito de uns alamares. E logo que o senhor Sequeira chegasse de Paris com as sedas, que lh'o mandassem dizer, para ella vir escolher alguma coisa bonita. Depoiá pe- diu-me :

«Olhe, ó senhorr Amaral, faz favor de di- zer ao cocheiro que ainda vamos pelo Ferrari ...»

Eu transmitti, lestamente. Chico descobriu-se outra vez á antiga, esperou que I). Claudia accommodasse o embrulho com outros que trazia no coupé, e lhe estendesse a mão.

fDê-nos o gosto de vir a nossa casa, se- nhor Patrocinio. . . quando queira.»

Clarinha ainda insistiu por mais versos. Chico agradeceu, confundido, extremamente penho- rado, o offerecimento de uma e a insistência da outra .

«Muito obrigado a Vossa Excellencia. mi- nha senhora... Vou apressar o poema, minha senhora ...»

D. Claudia ainda me disse :

«Não apparece esta noite por ?t

'^20 A RUA DO OIRO

Sem olhar Clarinha, eu percebia que ella me fazia, com os seus lindos olhos, aquella mesma pergunta. As suas mãosinhas inquietas procura- vam disfarçar a sua pequenina anciedade, repu- xando e ajustando-lhe ao pescoço a pelle de bi- cho. Estava bem galante, a Clarinha, nessa tarde, com aquelle vestido cor de coelho bravo, enfeitado d' uma formosa guipure Colbert, e o seu chapéo de plumas escarlates. Bem galante I Tive quasi vontade de lh'o dizer.

Talvez. Talvez me fosse possível. E se me fosse possível, iria. Mas não queria dar a cer- teza.

«Veja então se pôde...» disse ainda D. Claudia.

E quando me arredei da portinhola, e a pa- relha do carro levantou as patas a compasso para despegar, outra vez os meus olhos se em- beberam nos olhos de Clarinha, que me diziam também, e com mais vehemencia:

«Veja então se pôde

«Muito interessante esta D. Claudia dizia o Chico.

j^ «E a filha

tTambem muito interessante, muito gra- ciosa. . . »

Eu ia cahindo, por um triz, em confidencias. Contive-me a tempo. O Chico era um excellen-

A RUA DO ©IRO 22

te rapaz, mas não tinha a lingua segura, dava muito com ella nos dentes. E apenas disse :

«Oh ! não imaginas. . . Muito graciosa. . . e muito intelligente

«Ora aqui tens tu continuou o Chico um caso curioso de celibato forçado. . . »

Eu não percebia.

cAqui. . . onde ? qual caso ? . . . »

«O caso d'esta rapariga.»

«... Clarinha ?

«Sim. Pois não sabes

Estremeci. Fiz um grande esforço para do- minar a emoção que me tomava e me resfriava, como se um floco de neve me houvesse cahido entre o collarinho e o pescoço, e me fosse es- corregando ao longo da espinha.

«Não... Não sei nada... Mas o que é ? Conta

«E' uma coisa sabida ! foi o Chico di- zendo sem ter dado pela minha excitação. Uma coisa notória ! Não ha quem queira casar com ella. Coitadinha. . . Ella bem quer, ella bem lhe faz a diligencia, mas não ha meio. .

«E porquê ? disse eu ainda, gaguejando, sentindo que um me prendia a fala, me aper- tava a garganta, Algum escândalo ?

«Não... Por ella, não. E' por causa da mãe. . . Isso sabes tu. Vaes lá, dás-te com ellas

222 A RUA DO OIRO

andas mettido na politica, até o deves saber muito mellior do que eu

Mas logo o que me apertava a garganta se tornou lasso e frouxo, e me libertou a fala. Vol- tei a mim, com afan; empolguei outra vez, vigo- rosamente, a minha estimável faculdade de ra- ciocínio, increpei na pessoa do Chico do Patro- cínio a desarrasoada facilidade, a deplorável in- consciência com que se vilipendiava e se man- chava de um labéo afrontoso a reputação de uma mulher I E como essa mulher fosse mãe, a criminosa leviandade com que se fazia derivar e alastrar sobre a vida, o futuro, todo o destino da filha irresponsável, o desdoiro de uma accu- sação, que bem podia ser até uma falsa accu- sação ! Era uma indignidade. . . Era uma cana- lhice I Depois, a respeito de D. Claudia, que boas razões, que flagrantes provas havia para se acreditar na sua culpa de adultério ?

«Pois tu ainda estás ahi, ó Joaquim do Amaral ? I atalhava, troçando, o meu poeta e meu amigo. Pois tu ainda queres, tu ainda exiges provas jurídicas para que possas acredi- tar num caso de adultério

«E porque não ?

«Tu admittes então a existência de um adultério quando tenhas sido testemunha ocular do flagrante delicto ? . . .

À RUA DO OIRO 223

a . . Ou quando o flagrante delicto tenha sido presenceado por pessoa idónea!»

«Essa é forte, Amaral ! Essa é muito forte ! Has-de concordar que essa é fortissima ! Olha que não ha de ser fácil ... A gente, quando se mette nessas saborosas aventuras, quer sempre tirar d'ellas os máximos proveitos, e tem cau- tela, toma as suas precauções. ..»

«Pois tanto melhor para quem as tome, se é que sabe toma-las de modo a destruir as provas.»

«Tu não ignoras, com certeza, como essas coisas sempre se fizeram, e a perfeição com que ja hoje se fazem em Lisboa. . . Não se corre o menor risco I »

«Bem sei. . . Os par\iisos. . . Como o do Primo Bazilio

«Ora adeus, meu amigo! Estás atrazado vinte annos na historia côr de rosa da prostitui- ção... Os paraísos não ofFerecem seguran- ça, todos os maridos os conhecem, é matto des- bravado. Sáo paraísos .. . perdidos! Hoje ha coisa melhor, muito melhor, incomparavelmente melhor I Nós temos por cá, á semelhança das grandes capitães, um d'esses misteriosos Ren- de\-vous des Gourmets até onde sobem, sem correr a mais ligeira contingência de compro- mettimento, algumas das mais illustres filhas do

224 A RUA DO OIRO

Tejo, em parenthesis de desvario no rigoroso e pautado cumprimento dos seus deveres conju- gaes. . . Olha, não vamos mais longe. . . »

Estávamos á esquina da Travessa de S. Ni- colau. O Chico deteve-me um instante, apontou um prédio fronteiro, que formava a outra esqui- na, e deitava janellas para a Rua do Oiro. K continuou :

«Ali o tens tu, naquelle prédio. E' umn casa que gosa de excellente reputação no seu género. . . Installação de primeira ordem, todo3 os requintes do luxo e do conforto. . . Grandes espelhos de Veneza. . . Grandes pelles de leão... Estofos e molas magnificas I Não ima- ginas ! O Rendei-vous é no segundo andar. No primeiro, como vês, é o consultório de um den- tista. . . tem a taboleta. Tal e qual como se faz fora, nos grandes centros, nas grandes capitães... De modo que quem passa na rua, e parada áquella porta a carruagem da Se- nhora Baronesa ou da Senhora Condessa, o mais que pôde suppôr é que essas illustres damas de- vem soffrer horrivelmente dos seus bellos dentes, para que tantas vezes subam a casa do seu den- tista ! E' uma grande benemérita a dona d'aquella casa. . . Deves ter ouvido falar. . . A Antonieta!» E noutro tom, de quem não queria assumir a responsabilidade da calumnia : o Ha quem diga

A RUA DO OIRO 225

que esta D. Claudia é uma das melhores fre- guezas . . D

Redobrei então de indignada vivacidade. Quasi insultei o meu poeta, que sorria. Aquillo era, por força, uma refinada mentira, uma infundada e asquerosa diffamação, ditada e propalada pelo ódio dos politicos e por invejas de mulheres, que não perdoavam a D. Claudia nem a sua poderosa influencia no animo do Presidente do Conselho, nem o bello renome que lhe provinha do ruidoso movimento iniciado com a Liga Fe- minista. Elle o dissera, o próprio Chico o dis- sera : que eu, indo a casa, frequentando na intimidade a casa de D. Claudia, melhor o sa- bia, melhor o poderia informar. E assim era. E [com muito enthusiasmo o dizia bem alto: não acreditava em nada, absolutamente em nada, do que se podesse dizer e infamemente divulgar em desabono d'essa mulher, que eu estimava e respeitava I

«Bem I Bem I conciliava o Chico, ar- rependido. — Não podia suppôr que tomasses a coisa tanto a sério. Isto é falar, é conversar. Nem eu faço declaradamente profissão de lingua. Deixa estar que não serei eu que me en- tretenha em diíFamá la. . . Não, não. . . que ella compra-me os versos e ainda ha de comprar-me alguns moveis ...»

15

220 A RUA DO OIRO

Ainda encontrámos outras pessoas conheci- das : o Padre Eterno, carregado de papeis ; o Melecas, cheio de noticias ; o Gonçalinho Palha, todo perfumado de trevo. Eu queria que o Chico viesse jantar commigo no Hotel. Ficaria mal jan- tado, pois que o Borges despedira o antigo co- zinheiro e tinha agora um hespanhol que tem- perava a comida com explosivos. Mas era pelo prazer da companhia, pois ia longe, e sem deixar vestígios, aquelle momento de mau humor. E o Chico, annuindo, quiz que tomásse- mos absintho.

Desapparecia o sol, poucas mulheres anda- vam na rua, recolhiam apressadas. Escurecia brandamente. Entrámos no Café Áurea.

«Aqui me encontrarás todos os dias, inva- riavelmente, a esta mesma hora. . . dizia-me elle. Quando quizeres vêr-me, sabes. Nesta mesma mesa. Não falho».

Deitando o absintho nos copos e deixando correr depois, gotta a gotta, a agua que o tur- . vava, como na attenta observância de um pre- ceito ritual, o Chico continuava a falar, a falar, a falar... Mas entre os dedos compridos, ter- minando em compridas unhas, da sua mão os- suda, onde se engastava uma formosa ame- thista de Ceilão (que estivera no annel de Frei Bartholomeu dos Mártires, Arcebispo de Braga)

A RUA DO OIRO 227

a garrafa da agua oscillava, precipitando as gottas. Elle apoiava então o cotovello sobre o mármore da meza, mas nem assim evitava as oscillações.

«Tu entras muito pelo absintho, Patrocí- nio?»

aNão. . . Muito não. Mas não passo sem elle ! Grandes males, grandes remédios I En cas de doute, abs/nthes-toi . . . O grande remé- dio da duvida é o absintho.»

tMas faz-te mal.»

«Eu perdoo o mal que elle me faz por o muito bem que me sabe. ..»

«Pois sim ! E um beilo dia, sem saberes porque, nem como, começas a perder essas co- res, esses hombros, esse aprumo ...»

«Bem sei. . . Perturbação de funcções, en- fraquecimento de força muscular, perda de me- moria, anesthesia completa. . . Deixa lá. . . Deus é grande ! »

cE a forçasinha genésica

«Grande também, por emquanto

E tomou do copo dois abundantes goles. Depois, desviando-me a attenção para o lado da rua :

«Descobri aqui, para meu uso, o espectá- culo mais barato e um dos mais divertidos que é possivel des-fructar em Lisboa. Além do que,

228 A RUA DO OIRO

O espectador tem direito a quantas bebidas qui- zer, pagando-as. . . Através d'aquelle vidro fosco das portas passam por aqui, em diversos andamentos, ao sabor de qualquer musica trau- teada, quadros e figuras das mais pittorescas que tem a capital. Três minutos na presença d'este animatografo bastam para dar uma idéa da curio- sidade do espectáculo. Passa, por exemplo, um ministro a pé. Logo atrás, a cavallo, passa o correio do ministro. Porquê ? Porque o correio tem direito ao cavallo e o ministro não tem o mesmo direiío ao trem. E d'este simples caso decorre, naturalmente, com a fácil moralidade de uma fabula, a conclusão patusca, filosófica, de que o correio é o mais feliz dos três. .. No momento em que o ministro passa, ura pobre estende a mão a vêr se chove. O ministro espirra. E um outro transeunte, illudido com o movimento da mão do pobre, coincidindo com o borrifo que o nariz do ministro espalha, abre rapidamente o guarda-chuva, e apressa o passo. Dez, vinte, trinta pessoas que se cruzam no passeio, abrem no mesmo momento os guarda- chuvas ; outras levantam a gola, outras arrega- çam a saia. Durante quatro segundos tem-se a mais completa illusão da chuva uma verda- deira chuva de mólha-tolos. Ha então um cava- lheiro de chapéo alto, abrigado num portal, que

A RUA DO OIRO 229

faz O mesmo movimento do pobre d'inda agora, não querendo metter o chapéo fino á chuva ; e uma senhora caridosa, que passa, pára, pro- cura qualquer coisa no seu saquinho de velludo, e mette um vintém na mão do cavalheiro de chapéo alto. Do outro lado da rua cresce, em linha recta ao vidro, a sombra de um cão sem dono. Chega á porta, cheira, alça a perna, e es- guicha.. . a Salsaparrilha e soda!» grita um creado ao balcão. Um vulto de maltrapilho distribue prospectos. Passa outro de grandes barbas, quer um prospecto também. O homem diz-lhe que não. Não? Porque não?! Porque o outro usa crescida a barba e o prospecto an- nuncia navalhas para a barba... Mas o que é isto? que disparate é este?... Isto é a vida. O que não quer dizer que muita gente não ache a vida uma coisa divertida, mas muito di- vertida !»

VII

Uma noite, tarde, entrando no Hotel, ines- peradamente encontrei no meu quarto um volu- moso masso de cartas e jornaes da Ilha, vindos por um navio da carreira da America.

Eu recolhia massado, «esbodegado» como diziam as meninas brazileiras dos quartos mais caros após um demorado e muito animado serão em casa de Antonieta, com quem eu es- treitara relações, e de quem recebera um bi- lhetinho convidando-me a apparecer nessa noite, sem falta, para me encontrar com «um antigo conhecimento» que me havia de dar grande pra- zer.

Intrigado, e confiado nos bons créditos da casa, que primava na escolha dos seus artigos, para eu correra á hora indicada, cora prés-

232 A RUA DO OIRO

surosa pontualidade. E fora, com effeito, uma boa surpreza, que muito prazer me dera.

O antigo conhecimento era (mal poderia eu suspeitá-lo!) a Margarida Tricana, que estava uma maravilha, e que eu não poderá reconhe- cer á primeira vista, tão mudada ella estava ' Fora até muito bem preparada a surpreza, pois quando eu entrava na sala azul onde Antonieta recebia as suas visitas mais intimas, e achando- se ali algumas amigas da casa em attitudes expectantes, e cada uma d'ellas com o seu nome de guerra mirabolante, nenhum d'esses nomes me recordava qualquer creatura que houvesse conhecido noutros tempos em Coimbra, durante a formatura, ou em Lisboa nas férias, de pas- sagem para a Ilha. De modo que quando a An- tonieta, affectando um grande ar de cerimonia, concluía as apresentações, e eu estava per- suadido de que o antigo conhecimento não che- gara ainda, pois não o vira ali, uma unisona e fresca gargalhada rompia d'aquelle grupo ga- lante de mulheres, coroando o êxito da intriga que me tinha sido preparada. E uma d'ellas, então, avançando para mim, e plantando-se na minha frente, com mais viva jovialidade me dissera : «Pois tu não me conheces, ó ingrato ?!» E assim eu a reconhecera, e assim a

A RUA DO OIRO

233

teria reconhecido, porque estava inteiramente mudada, a nossa querida e saudosa Margarida Tricana ! Ella, que era magra, miudinha e dé- bil, apparecia-me agora cheia, fortalecida, rija. Ella, que era tiniida, modesta e encolhidita, es- tava agora desinvolta, pomposa, imponentís- sima ! Ella, que d'antes tinha o cabello mais lindamente castanho d'este mundo e do outro, era agora loira, d'um. loiro fulvo, excessivamente loiro ! Quem poderia tê-la reconhecido, quem ?!

Mas estava muito melhor, incomparavelmente melhor. Estava soberba. Estava óptima. Como se fizera uma tão grande e bella transformação? Como fora aquillo ?

Contou-me tudo. Para mim não havia segre- dos desde o tempo da Couraça dos Apóstolos. E depois, era um amigo, oh ! um velho e bom amigo. . .

Depois que eu e o Fausto tínhamos sahido de Coimbra, ella não poderá mais aguentar-se por lá. Affeiçoara-se-nos tanto, tanto se identificara comnosco e com a nossa alegria, que nunca mais, depois da nossa partida, poderá resignar- se a ficar e a viver por lá. Era do nosso curso, concluirá também o «seu curso». E lançara mão do primeiro ensejo para também fugir.

Offereceralhe esse ensejo um actor do Porto, um tal Bravo, que andava no verão por terras

234 ^ Í^UA DO OIRO

da província com troupes de opereta. Gostara d'elle, deixara que elle a levasse para o Porto. Mas sahira-Ihe um mariolao, que a maltratava, e que á custa d'ella, e chegando a bater-lhe, ti- nha querido viver uma temporada de inverno em que não arranjara theatro.

Deixara- o, fugira para Lisboa.

Foi a sua felicidade. Uma vez em Lisboa, tudo lhe correra ás mil maravilhas. Por inter- médio de uma prima, que tinha casa de hospe- des, arranjara um encosto muito vantajoso com um hospede que chegara do Brazil no mesmo dia em que ella chegara do Porto. Fora issp um romance. O homemsinho era de Braga, engei- tado e creado por uma pobre gente que o tinha levado para Manaus, ainda muito pe- queno. Marido e mulher, que eram, por ti- nham morrido. Elle trabalhara e enriquecera, chegara aos cincoenta annos solteiro, sem filhos, com um aneurisma e uma fortuna. Com o pre- sentimento de que morreria cedo, sem uma affeição sobre a terra alheia, e com um grande desejo de vir morrer a Portugal e de voltar a ver Braga, mettera-se no primeiro paquete e abalara por ahi fora.

Um companheiro de quarentena, no Lazareto, indicara-lhe a casa de hospedes da prima de Margarida, onde elle seria tratado e amimado

A RUA DO OIRO " 235

como pessoa da família. E assim acontecera.

A Margarida Tricana, emquanto não arranjava de vida, e como tivesse vendido os últimos oirinhos para fugir do Porto, não tendo génio para estar ás sopas da prima sem ao menos lh'o pagar com trabalho, declarara que tomava á sua conta o arranjo dos quartos, e nessa lida se fora aproximando do «brazileiro», que chegara muito amachucado da viajem, e passara quasi todo o dia na cama, sobre as roupas. Boasinha como era, como rós sempre a tinhamos conhecido, a Margarida, bem mais por bondade que por in- teresseiro calculo, insinuara-se no animo do hos- pede novo, e em tão boa hora, e com tanta sorte, que pouco tempo depois estava em casa sua, que elle lhe pozera em seu nome, com pro- messas de mais grossa e mais choruda fatia.

Então a vida entrara a ser para a Margarida Tricana uma boa coisa compensadora do seu pequenino sacrifício junto d'aquelle homem doen- te, que temia excitações e se contentava com aspirar o fresco perfume de saúde que d'ella se desprendia, da sua carne e da sua seiva. E ar- redondara, e engordara.

Por seu lado, o homemsinho tinha encontrado também, e finalmente, um bom affecto na terra. E assim durou ainda seu anno e meio, contente, sereno, confiado. Tão confiado e tão sereno,

236 A RUA DO OIRO

que o aneurisma, farto de esperar um sobre- salto, resolvera rebentar assim mesmo, no meio d'aquella confiança e d'aquella serenidade.

Margarida vestiu ainda, pelas suas próprias mãos carinhosas, o cadáver do seu homem, cho- rou-lhe sobre o caixão, e chorou deveras. Mas não quiz mais ficar naquella casa, onde o morto lhe apparecia entre todas as portas e nos vãos de todas as janellas. Agora, era minha vizi- nha. . .

«Minha vizinha?»

«Sim. Tua vizinha. Muitas vezes, das mi- nhas janellas, te tenho visto á janella do teu quarto. . . E' verdade : e como está o teu col- lega Poças

Cahi das nuvens ! Pois era ella, a Margarida Tricana, a nossa vizinha do terceiro andar da esquina ! Pois era por ella que o Poças andava apaixonado? !

Nem mais, nem menos. Mas pediu-rae logo as máximas reservas. Não queria que o Poças suspeitasse, nem por sombras, das nossas anti- gas relações, e que nem sequer podesse sonhar do nosso encontro, naquella noite e naquella casa.

Tantas precauções e receios aguçaram a mi- nha curiosidade. Queriam ver que era ella a amante do Liberato Poças ?

A RUA DO OIRO zSy

«Não, não! Palavra d'honra que não...» Elle apenas lhe falara uma vez, furtivamente,

no jardim da Escola Politechnica. Correspon- diam-se por carias. E eram cartas a sério, de que a Margarida pretendia tirar partido, «se ca- lhasse».

«Tenho soffrido muito, sabes ? dizia-me ella. E agora, que tenho alguma coisa de meu, que me deixou o «brazileiro» e não preciso andar por ahi á gandaia, quero também ser gente... Um homem sério, assim como o Po- ças, convém-me. Depois, ou gosto d'elle, ou não gosto. Se gosto, tanto melhor I se não gosto, o menos que falta por ahi são homens de quem a gente gostei Tudo se ha-de arranjar.»

Ella dizia estas coisas para mim, a meia voz, muito em confidencia. as outras tinham abalado, e Antonieta, por sua vez, deixara-nos sós. Sós, a um canto mais velado da salinha azul, mergulhados numa chaise-longue, recordá- mos com mais activa saudade os nossos tempos de Coimbra e as noites da Couraça.

«Por amor de Deus recommendava ella ainda á despedida não digas nada d'is- to ao Poças... an ? Olha que eu confio em ti ! . . . »

«Podes confiar assegurei. Nem pala- vra!»

238 A RUA DO OIRO

E quando entrei no Hotel, tarde, vinha moído, vinha derrancado.

No grosso masso de cartas e jornaes da Ilha, logo ao de cima, conheci a lettra apurada do Primo Theodosio, que puz de lado, para o fim. Depois, vinha a lettra graúda, muito egual, bem medida e bem lançada, do Doutor Tarquinio. Depois, a lettra confusa, deitada, corredia, do Doutor Tris- tão. E depois d'essas e de muitas outras, umas conhecidas, outras novas, é que me appa- recia a mais desejada de todas, a única desejada entre todas, naquelle momento de somnolento cançaço : a lettra miúda, muito compacta e acon- chegadinha, sem maisculas e sém parágrafos, da Tia Genoveva.

Era uma carta enorme, de três folhas atulha- das. Havia novidade, com certeza, e novidade de vulto, para que a Tia Genoveva tanto escre- vesse, ella que tanta difficuldade tinha em es- crever ! Logo ao voltar da primeira para a se- gunda lauda, dadas as noticias costumadas da saúde de todos, que era boa (Deus louvado !) e das coisas de nossa casa, que iam continuan- do na mesma percebi que a Tia Genoveva ensaiava complicados rodeios e se perdia em atormentados circumloquios, antes de entrar claramente no assumpto que tanto parecia affli- gi-la e que começava também a preoccupar-

A RUA DO OIRO l.

me, á medida que mais crescia a periferia dos circumloquios e rodeios.

«... Emquanto foi o Tlieodosio e tua Tia Maria da Assumpção, e também as Noronhas, que encontrei no domingo na missa de São Gon- çalo, eu não fiz grande caso, nem pensei sequer em t'o dizer, para q-.ie não te aborrecesses. Mas imagina que susto eu tive quando hontem me appareceu aqui o Doutor Tristão a dar-me conta do que se dizia de ti e do que se tramava con- tra ti, meu querido Quinino ! Eu ainda lhe pedi que te escrevesse e te dissesse a ti mesmo o que eu 'acabava de saber de certeza, mas re- cusou-se, poz os pés á parede, como se costuma dizer, e que lhe pedisse eu tudo menos isso, porque nunca tivera geito para se metter em vidas alheias nem para vehiculo de intrigas. Vi- nha dar-me parte do que ouvira e lhe constava, e trazia-me até um periódico que falava contra ti, para que eu t'o mandasse, pois que nem isso mesmo elle queria fazer directamente. Coitado, é assim, todo cheio de escrúpulos, e sempre assim o conheci. Nosso amigo é elle, e deveras. Deus sabe também quanto me custa affli- gir-te com estas coisas, mas parece que melhor é tu saberes tudo. Aqui, toda a gente começa a estar descontente comtigo, meu querido Quini- no, por se terem passado três mezes depois que

240 A RUA DO OIRO

ahi chegaste e nada constar do que tenhas feito a bem d'esta terra. O Doutor Tarquinio, que tanto tomou a peito a tua eleição (embora nós bem soubéssemos com que reservado fim) anda como doido, e brigou com o Pedro AíFonso, que te tinha dado trinta votos por lhe terem promettido que as Obras Publicas arranjariam a canada do Posto Santo, onde tem a quinta, para poder passar por com o carro, e que de tal coisa nunca mais se falou. O Pedro Affonso fez-lhe uma espera á porta do Tribunal, e dava conta d'elle, se não tivesse acudido gente que sahia da audiência. Isto tem dado muito que falar e até d"isso se diz que tu é que tens a culpa, porque se tu quizesses as Obras Publicas tinham mandado arranjar a canada... No Centro Re- generador tem havido reuniões secretas, mas não tão secretas que se não saiba que nellas se tem falado muito contra ti e contra o Doutor Tarquinio, a quem por chamam o Trai- dor I E tanta troça lhe fizeram na botica do Cu- nha e no Club, que ninguém o apparecer á noite em parte alguma. . . »

Por alto, vi que a Tia Genoveva nada mais me dizia de terrífico. O resto eram conselhos e recom.mendações. Mas tudo aquillo me irritara, me espalhara o somno. Canalhas I Sempre que- ria vê-los no meu logar, e saber o que fariam !

A RUA DO OIRO 24I

Elegiam-mc deputado independente, entrega- vam-me um mandato todo de arrogância e de isenção, encommendavam-me um sermão de al- tivo protesto paradizer nas bochechas do Poder Central e queriam que eu, á capucha, e por detrás da cortina, continuasse a servir os mes- quinhos interesses da politica do circulo, arran- jando lanços de estrada, obtendo empregos, aco- bertando contrabandos e emigrações clandesti- nas, livrando latagÕes do recrutamento, promo- vendo transferencias, exercendo vinganças... Canalhas !

Num frenesi, rasguei o envelope da carta do Doutor Tarquinio. Escrevia-me pouco, com ma- nifesto desgosto; mas discretamente, vendo bem as coisas, avaliando as circumstancias. Sabia o que era o Parlamento, sabia o que eram os Mi- nistérios. Por sua parte estava eu desculpado^ largamente desculpado. Até me dava toda a ra- zão na attitude reservada em que eu lhe decla rara manter-me perante as seduções do Go- verno. Ou bem que era deputado independente, ou bem que o não era. Mas fossem dizer isso aos outros aos Pedros Aífonsos I Estavam.os bem servidos... A autonomia que esses que- riam era uma autonomia que lhes permittisse gastar em seu proveito todo o dinheiro que até agora se mandava para a metrópole, não dis-

16

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pensando porém a metrópole de lhes mandar mais algum. E o que acontecia ? Acontecia que os Pedros Affonsos de ambos os partidos (pois não ha partido nenhum que não tenha o seu Pedro AíFonso) queriam dar agora o dito por não dito, e quebrar o accordo de que eu sahira eleito, cortando-me todas as vazas no Parla- mento, desprestigiando-me o mandato, se as primeiras tentativas da ignominiosa campanha que tramavam me não levassem a depô-lo im- mediatamente.

«Pois não hão-de ter esse gosto, sucia de malandros!» esbravejei, ferrando um valente murro sobre a commoda, que toda estremeceu. E não quiz ler mais nada, não quiz saber de mais nada.

Despi-mc apressadamente, aos repellões. Um botão de punho mais renitente em sahir da casa, saltou ao tecto, quebrado pelo pé. Cada uma das botas foi para seu lado, no desespero de não ter eu ali, naquelle instante, e a geito, o trazeiro d'esse velhaco do Pedro Affonso, onde podesse experimentar-lhes a resistência das bi- queiras. E mettido na. cama, e assoprada a vela, antes de puxar as roupas, de me ferrar no somno e esquecer aquella corja, com os punhos cerrados e rilhando o dente, ainda investi na treva, ameaçando-os de desforra !

A RUA DO OIRO 243

Ai de mim ! Eu não era o senhor, o antigo senhor, absoluto e ríspido, da minha própria vontade. Distrahido, contaminado, empolgado pela Capital, deixava-me agora levar, sem bús- sola e sem leme, todo o meu querer desmante- lado, na corrente impetuosa da sedução da Ca- pital. . .

Admittindo que o homem não é outra coisa senão um animal, que acha a vida péssima, ou que acha a vida óptima, conforme nelle se de- moram ou se abreviam as digestões, eu, animal, digerindo sem difficuldade a comida ruinosa do Borges, achava a vida excellente.

Bem longe andava eu de ser como aquelles catechumenos antigos, que depois de terem as- sistido ás visões terríveis de certos mistérios, podiam bem continuar a viver, mas nunca mais podiam rir. Iniciado e quasi familiarisado no mecanismo da alta politica portuguesa, que me oíferecera surprezas mas não me inspirara ainda fundas repugnancias ; desfructando todas as re- galias e todas as estimas devidas á minha con- dição, e estimuladas pela minha*natural affabi- lidade no commercio dos políticos, dos frequen- tadores da Havaneza, dos commensaes do Borges ; achando fácil e grato o trabalho que me era distribuído nas commissões da Camará, para que me haviam escolhido, ainda mesmo

244 A- RUA DO OIRO

naquella de que fora nomeado relator (que era a commissão de Instrucção) pois de todo esse trabalho eu me desempenhava folheando dois ou três livros e com uma perna ás costas ; re- cebendo amiudadas vezes o mot d'ordre do Go- verno, por intermédio do meu amigo Fausto, para não ir á Camará nos dias em que ao Go- verno convinha que não houvesse numero \ fre- quentando, talvez com demasiada assiduidade, os serões galantes da Antonieta, a respeito dos quaes o Illustrado guardava uma absoluta re- serva, mas que nem por isso eram menos agra- dáveis do que muitos outros de que nelle sempre vinha noticia minuciosa ; inscripto como sócio do Turf, onde o meu magico chapéo de coco cor de abóbora me franqueara a entrada, dis- pensando o inquérito acerca dos meus titulos de nobreza, como ordenava o estatuto, e onde me era grato assomar á varanda entre viscondes, á hora buliçosa da tarde a que passavam na rua as viscondessas a vida de Lisboa desabro- chara para mim, sob a tépida caricia do céo bem azul d'esses princípios de junho, a grande flor fatal da sedução ! E eu aspirei então, com delicias, e no goso da minha inadvertência, o perfume venenoso d'essa bella flor. . .

Ao primeiro periodo de jubilosa actividade que inaugurara a minha carreira politica, e em

A RUA DO OIRO 24b

que eu quiz abraçar e profundar todas as gran- des questões do meu paiz as de ordem poli" tica e as de ordem moral, as de ordem finan- ceira e as de ordem económica revolvendo a Historia, compulsando os Tratados, comparando as Legislações; sem abalo brusco de transição, sem que me fosse dado, sequer, apreciar a fase de mudança, seguira-se porém um outro periodo de fadiga intensa, d'uma exagerada sensibilidade pervertida, d'uma nonchalance per- sistente, d'uma generalisada irritabilidade, d'um desequilíbrio funccional, emfim, que me voltava o miolo, não me deixando fixar as idéas que procurava nos livros, deixando-me ler paginas inteiras c seguidas, capitulos até ao fim, sem que de tudo isso me fosse possivel fixar uma noção, nem uma formula, nem sequer uma frase, chamando-me incessantemente para algum ponto opposto áquelle onde eu me achasse, ati- rando-me para cima de todos os divans que os meus olhos descobrissem, obrigando-me a cha- mar carruagens para transpor as mais curtas distancias, mole, mole, espapaçado. . . Sentiame victima de uma lida que excedia muito as mi- nhas forças de adaptabilidade nervosa, desalen- tava, parava, recuava e acabava sempre, fati- gado, por dar fundo na Rua do Salitre, onde não me era consentida uma ausência de mais de

246 A RUA DO OIRO

vinte e quatro horas sem boas justificações e mil desculpas.

Tudo quanto a Tia Genoveva me insinuara, e tudo quanto eu depois aprendera e chegara a conhecer de nocivo e de fatal no convívio muito intimo da mulher, parecia tê-lo esquecido inteiramente, repentinamente, desde que trans- pozera o limiar da casa de D. Claudia. E todos os manejos, todas as ronhas, todos os ardis e todos os embustes attribuidos ao perigoso e eterno Feminino, tudo isso eu juntava agora, numa nova estrofe, ao himno límpido e sonoro do Mérito das Mulheres, sob a influencia ena- morada dos encantos de Clarínha, avassalado pela soberania da sua graça irresistível.

Muitas vezes, em sua casa, nos encontrámos sós, absolutamente sós, na mais descuidada e mais doce intimidade. E ahi, e assim, passavam para nós horas^esquecidas ella occupada com algum bordado, eu collocado em frente do seu bastidor, ora lendo em voz alta algum livro novo, ora entrecortando a leitura de largos tre- chos de conversa.

«Parece-lhe que bem aqui este ama- rello tão vivo perguntava-me ella, a propósito da applicação de alguma seda ao bordado.

«Acho lindo. .

«E d'este desenho, gosta?»

A RUA DO OIRO 24

«Gosto muito ! E' uma idéa sua, ou tirada de algum jornal

«Creio que é uma idéa minha. Admira-se ? E o senhor nunca teve uma idéa

«Já não ha meio de ter idéas novas. . . »

aE para quê ? Os jornaes dizem tudo. Basta ler os jornaes.»

«E' o que eu faço.»

«E quando encontra alguma que lhe serve fa-la depois passar como se fosse sua ...»

«Não, isso não ! Seria fácil perceber o truc, sobretudo quando se tratasse de alguma idéa boa. . . »

«O senhor é muito modesto. Precisa cor- rigir-se. A modéstia é uma péssima virtude.»

«Mas isto não é ser modesto. . . Isto é ser exacto.»

«Pois então, fique sabendo que não é nada d'isso. Quer que eu lhe diga o que o senhor realmente é

«Pois diga. . . »

«E' um intrujão

Eu ria, animava-me, protestava. Ella teimava, deliciosa :

«Certissimo ! Um grande intrujão. Nunca ninguém lh'o disse, talvez. . . Talvez nem o se- nhor mesmo o suspeitasse... Pois é, digo-lh'o eu

248 A RUA DO OIRO

«Bem. Acredito. Vossa Excellencia que o diz. . . »

Batia o pé, numa raiva. Torcia o narizito.

«Vossa Excellencia ! Outra vez ! Que mas- sada... Porque não me pede licença para tra- tar-me por tu

«Não me atreveria. . . »

«Pois atreva-se, ande I não será sem tempo. Ha três mezes que me conhece^ que vem aqui, que me diz coisas amáveis a meia voz. . . E hontem ?. . . que quasi me obrigou a fazer um pequenino esforço para lhe fugir com a mão, que o senhor teimava em apertar, depois de a ter beijado. . . »

«E o que podia haver nisso de mal ? Um beijo na mão ...»

o Um só, decerto. . . Nenhum mal ! Mas é que o senhor se preparava para me dar se- gundo ! E olhe que não foi para que m'o não desse que lhe fugi . . . Foi para que não podesse dizer depois que eu lh'o acceitara.»

«Mas se eu tivesse segurado bem a sua mão, c sempre lh'o desse, afinal

«Se fosse necessário segurar-me a mão, era porque essa mão lhe fugia. Nesse caso, da- va-me o senhor o direito da defeza, com a mão que me restasse livre. E eu teria sabido usar d'esse direito. . . »

A RUA DO OIRO 249

Depois, mudando de conversa :

«Quando faz o seu debute na Gamara

«Quando se discutir o projecto da reforma do Código. .

«Ah ! Isso é sério. De costume, para os discursos de debute não se escolhem coisas sé- rias. . . Decididamente, o senhor vem disposto a coisas espantosas

«Pois olhe, não fui eu que escolhi. Foi a senhora sua mãe que m'o impoz...»

«Não diga isso outra vez, senhor Amaral ! Um homem no seu caso não obedece a imposições de ninguém. Faz o que quer. Faz o que julga melhor. Teria o senhor preferido outra occasião para falar pela primeira vez na Gamara?»

«Não tinha pensado ainda nisso, quando sua mãe me fez essa mesma pergunta. E então ella, muito naturalmente, ' disse-me : «Porque não aproveita a discussão da reforma do Go- digo ? Porque não defende a questão do divor- cio ?» E accrescentou, como se me fizesse uma indicação : «... Até me seria muito agradá- vel... » A lembrança sorriu me, vi a possibili- dade de tirar d'ahi alguns effeitos, acceitei o al- vitre. . . »

Glarinha suspendera o trabalho do bordado, afastara- se um pouco do bastidor para mais se approximar de mim ; e como se tomasse, afinal,

25o A RUA DO OIRO

uma deliberação difficil depois de muito hesitar, e de muito deixar amadurecer um certo propó- sito, cujo segredo me ia confiar, disse-me as- sim :

«Minha mãe, quando fala com os se nhores, nunca diz nada muito naturalmente. Guarde isto para seu uso, como prova da muita estima e da muita confiança que tenho em si. Quero que o senhor o saiba, para seu governo. Faça a sua estreia quando quizer, e es- colha o pretexto que muito bem quizer. . . Mas livre-se de que alguém supponha que minha mãe se serve de si, como de tantos outros, para conseguir os seus fins!»

Vindo da rua, da Liga, dos Ministérios, D. Claudia entrava nesse momento. Clarinha fez-me signal para que me calasse.

D. Claudia não esperava enconirar-me. Mas não fez a festa do costume. Mal sorriu. Eu estranhei e attentei no seu aspecto, que deno- tava uma desusada fadiga, um evidente esforço de dissimulação.

«A estas horas por cá? E' caso! Aposto que não houve Camarás. . . »

«Deve ter havido, mas passaram hoje sem mim. .. »

Depois, chegando-se ao bastidor, examinando com attenção o bordado que Clarinha retoma-

A RUA DO OIRO 25 1

ra apressadamente, quando a sentira entrar :

«Bravo ! O crisântemo fica lindo. Está um apetite.»

Deu-lhe um beijo nos cabellos. E descalçou lentamente as luvas, foi tirar o chapéo, collocou num frasco, sobre uma étagère, umas rosas sol- tas que lhe dera o Plantier.

tSabes que combinámos ir á exposição do Grémio ? disse Clarinha. Dás licença ? Estava, mos á tua espera.»

«De mil vontades. Acho muito bem. O que me parece é que não terão muito tempo. . . São quatro horas.»

«Não é tarde. fecha ás seis. Damos uma volta. . . Podemos ver o melhor.»

«Pois vão. E voltandose para mim : Mas veja senhor Amaral, não compromet- ter-se. . . »

«Não, minha senhora. . . Creio bem que não.»

Clarinha deixou-nos, por instantes, para ir apromptar-se, concertar um pouco os cabellos. D. Claudia insistiu :

«Não sei, não sei... Veja lá! E cha mando por alguém que entrara com ella, mas ficara na ante-sala : Entre para aqui, ó Me- lecas !»

E eu vi entrar o Melecas, o Melecas do Phan-

252 A RUA DO OIRO

tasma^ rebolando-se de contentamento como um mops de estimação, e sobraçando duas enormes pastas de carneira vermelha. Arreou aquelle enorme peso sobre a secretária-ministre onde D. Claudia se instalara já, veiu compri- mentar-me, com immenso gosto.

Abrindo uma das pastas, e começando a tirar papeis, que dispunha em diversos montes, D. Claudia continuou, dirigindo-se-me :

«O senhor não teme as más linguas?»

«Absolutamente nada.»

«Não conhece então o Dom Bazilio?»

«Quem o não conhece!»

«E não lhe acha razão? Não acredita que de toda a calumnia alguma coisa fica?»

Respondi firmemente :

«Não acredito.»

A'oltando-se então para Melecas, gracejou :

«E vossê. Melecas, o que pensa?» D'olho em alvo, melado como um alfenim,

Melecas sorriu :

«Eu, minlia senhora, peço desculpa, mas não penso nada 'n

Vivamente, continuando o gracejo, D. Claudia increpou o :

«Para que anda então o senhor a apren- der esgrima, se arranja sempre maneira de não ter uma opinião

A RUA DO OIRO 253

fSaber esgrima, senhora D. Claudia, é uma excellente coisa para evitar os duelos. Mal isso consta, ninguém mais se mette comnos- co.»

«Ora ahi tem Vossa Excellencia disse eu uma excellente opinião

Clarinha voltava, prompta.

«Vamos

Mas a mãe levantara-se, fora escolher uma rosa do ramo que tinha trazido, e chegando-se a mim, pelas suas próprias mãos quiz collocar-ma no casaco.

«Deixe-me flori-lo um pouco.»

A lapela, porém, estava ainda fechada.

«Mas espere. . . Este casaco está novo em folha. .

«Precisamente em folha, não está. Mas não tive ainda occasião de lhe pôr uma flor.»

Clarinha, então, intromettia-se, obstando a que a mãe rompesse a lapela :

«Deixa, mamã. . . Talvez não goste, cjuem sabe ? Não teimes ...»

«Gosto, sim, minha senhora! affirmei viva- mente. Gosto até muito ! E que não gostas- se-.. »

Mas D. Claudia retirara subitamente a flor :

«Não, isso não I Diga com franqueza se gosta, ou se não gosta . . . Uma lapela deve es-

254 ^ ^^^ DO *^í^o

tar sempre aberta ou fechada! E vossê, Me- lecas, também gosta de flores?» Melecas estremecia, de goso :

«Oh ! as flores. . . Quem ha que não goste d'ellas...»

«Pois sim! dizia D. Claudia, frenética. Mas as rosas não se fizeram para os Melecas ! Para os Melecas fizeram-se as commendas!»

«Talvez, minha senhora. . .E' possivel. , . »

«Pois deixe estar que eu lhe arranjarei ainda uma commenda !d

Clarinha despediu-se. Eu procurava o meu chapéo e a minha bengala, que o Melecas avis- tara a um canto e correra a buscar, sempre amável, extremamente serviçal.

«Não se demorem muito!» disse ainda D. Claudia.

E sahimos sós eu e Clarinha.

Por que artes se introduzira Melecas em casa de D. Claudia? perguntara eu mais de uma vez a mim mesmo, sem atinar com a explicação de tão espantoso acontecimento. Melecas era o re- dactor do Phantasma, e o Phantasma esse pas- quim que chegara a publicar, numa supposta lista das amantes do Presidente do Conselho, as iniciaes de D. Claudia I

A RUA DO OIRO 255

Mas da própria bocca de Melecas vim a saber como aquillo fora.

«Eu passava uma vez naquelle corredor do Ministério do Reino que fica por cima da es- cada principal, sabe ? quando percebi que uma voz de mulher altercava com alguém na sala do Conselho de Estado, onde acabava de reunir a commissão do Código. Estava uma porta entre- aberta, puz o ouvido á escuta, achei que valeria a pena deter- me por ali alguns minutos e, por dever de officio, escondi-me atrás do repos- teiro. . . D

As traças tinham aberto, dir-se ia que de pro- pósito, uns pequeninos orifícios no estofo, por onde me era permittido assistir á impagável scena que ali se estava passando.

D. Claudia puxava por um braço do Padre Eterno, que resistia, declarando: «Não, mi- nha senhora... Tudo menos isso! isso, nunca ! »

Ella teimava, puxando sempre, encolerisada já.

«Não, minha senhora ! Tudo menos isso ! isso, nunca

Por fim, ella empurrou-o com violência, obri- gou o a sentar-se na cadeira da presidência, e carregando-lhe nos hombros, como se quizesse pregá-lo bem no assento:

256 A RUA DO OIRO

«Sente se ahi, lhe disse I Hque se ahil E saiba que não tornará a levantar-se d'esse le- gar emquanto não estiver tudo isto acabado, e bem acabado, ouviu? Muito lhe tenho eu atura- do, ao senhor, e não estou disposta a aturar- lhe muito mais. Ha de ficar, digo lh'o eu, até qu^ o mandem embora!»

O Padre Eterno resignava-se; não resistia :

«Bem. . . Que remédio I Manda quem pô- de.. . E quando Vossa Excellencia quizer, para variar. . . aqui tem a outra face. . . »

Mas D. Claudia não o tomava a serio:

tDeixe se de farças, reverendo! Bem sabe que não ha mão que lhe bata que não fique a arder. Mas hei de amarrotá-lo!»

«Bem, minha senhora. . . Eu fico.»

fNecessariamente ! tornava ella, exaltadis sima. Mas por quanto? Preço fixo, ouviu? Não me obrigue ainda a ter de regatear. . . »

O Cónego estava apopletico. Vi o momento em que lhe dava algum ataque.

«Ou Vossa Excellencia procede de fé, o que não está nos seus hábitos, ou o seu tacto a illude, senhora D. Claudia I Isto não é tão mole como parece ...»

«Deixe-se d'isso, lhe disse. O senhor é Um sapo ! Tem a pelle resistente doesse reptil batrachio. Pôde pôr-selhe um em cima,

A RUA DO OIRO 267

e carregar, que não estala. E' lepugnante!»

«Eu não sei, com franqueza, rouquejava o Padre Eterno, o que mais admirar em Vossa Excellencia : se a enormidade da sua audácia, se os seus profundos conhecimentos de historia natural ! . . . »

Bufou de raiva, afogueado, levantou-se e sahiu. D. Claudia, que parecia uma leoa excitada den- tro duma jaula, andava á roda da mesa numa grande agitação, e quando o viu encaminhar-se para a porta estacou, ainda lhe lançou um olhar rancoroso como uma chicotada que o envolvesse todo, da nuca ao calcanhar, e disse alto :

«Mariolai»

Eu não podia mais conter o meu enthusiasmo. Ergui o reposteiro, corri para D. Claudia, cahí- Ihe aos pés:

«Bravo, minha senhora I Bravo I. . Qualquer outra mulher, naquella situação e

naquelle momento, ter-se-ia sobresaltado com a minha inopinada apparição. EUa não. Até sere- nou. E pergutou-me friamente :

«Quem é o senhor?»

«Não me pergunte Vossa Excellencia quem eu sou, nem d'onde venho... desejo di- zer-lhe que vou. . . para Onde Vossa Excellencia quizer I Ha muito tempo que eu pasmava dos altos dotes que ornam o caracter de Vossa Ex-

i7

258 A RUA DO OIRO

^ellencia, mas nunca se me oíferecera occasião para tão bem poder avaliá-los, como agora. . EUa insistiu :

tMas quem é o senhor, afinal

lEu sou o Melecas, minha senhora ! O Me- lecas do Phantasma para servir ^'ossa Excel. lencia, voltado ! Todas as minhas antigas con- vicções politicas baquearam neste instante, sob o império das palavras de Vossa Excellencia exprobrando esse Director Geral

D. Claudia sorriu, como decerto não sabem sorrir os anjos.

iTrata-se então de uma profissão de

tPerfeitamente

«De boa ?d

«Da melhor

Estendeu-me a mão, que eu beijei, e ainda disse:

tMas conhece bem o senhor o meu credo politico

«Se conheço! Na minha qualidade de re- pórter, tenho seguido todos os passos de Vossa Excellencia através da publica administração, como um cão fiel segue o dono. E cheguei á conclusão de que Vossa Excellencia pode hoje dizer, como outr'ora dizia o grande rei de Fran- ça:— «O Estado sou eu!» Ha uma coisa para mim, nesta vida, que eu ponho acima de tudo,

A RUA DO OIRO 25g

e que é o amor pela minha pátria. E se Vossa Excellencia me vê, neste momento, rendido a seus pés, é porque eu sinto bem que o único homem capaz ainda de pôr tudo isto a direito é Vossa Excellencia!»

«Como pôde o senhor justificar-se então d'essa ignominiosa campanha que tem movido contra o meu programma de governo, atacando tão desapiedadamente o meu poder executivo, tendo mesmo chegado a ferir com algumas allu- sões muito directas a minha pobre pessoa irres- ponsável ? Não sabe o senhor, acaso ! que numa mulher não se deve bater nem com uma flor. . . de rhetorica?!»

Ahl meu caro senhor Amaral, que divina mulher! que mulher divina! Eu nem pro- curava justificar-me, eu queria arrepender- me; e disse-lh'o :

«Vire-me Vossa Excellencia I Vire-me Vos- sa Excellencia, e verá como um péssimo jorna- lista da opposição dá, do avesso, ura excellente jornalista do governo, .

Ella obrigou- me então, solemnemente, no mo- mento de passar para as suas fileiras, a jurar- Ihe fidelidade,

E eu jurei

Hoje, era o seu secretario particular. Mandara o Phantasma ao diabo, para que fizesse d'elle o

26o

A RUA DO OIRO

melhor uso que entendesse. E não sabia como podesse haver quem gostasse de estar na oppo- sição ! Estar na opposição, afinal, o que era ? Era estar por baixo, era andar por baixo, sempre por baixo, até por baixo das mesas, como elle che- gara a andar para colher algumas migalhas de noticias. Não era sem tempo que passava da cepa torta. Chegara-lhe também a vez de andar de cabeça alta ! Agora todas as portas se abriam na sua frente, todos os mistérios se lhe desven- davam, via-se no segredo dos Deuses I Estava ah e estava segundo oííicial. . .

Mas, arre I que não fora sem custo. Tinha ar- ranjado uma tal reputação de jacobino com essa burrice de assumir a responsabilidade de arti- gos, que nunca elle escrevera, contra as Insti- tuições, que Deus sabia as difficuldades, as penúrias em que se tinha visto para manter urra certa hnha. . . Mas era uma inclinação, era uma vocação, era uma paixão pelo jornalismo, que abandonara tudo tudo! o commercio, a fa- mília, a vergonha.. . para se lançar na impren- sa ! Fizera a sua estreia no Pitnpão. Com uma charada em verso. Uma charada para ho- mens. Depois mudara de género, e passara a coUaborar no Almanach das Senlioras ... E pouco tempo depois abandonava a loja de mo- das, onde estavc quasi a ser promovido a pri-

RUA DO OIKO I

meiro caixeiro, para ir dirigir o Pirolito, uma vez por semana, para ambos os sexos. Ao fim de seis mezes de Pirolito que bate, que ba- te, teve de suspender a publicação, o que não era coisa de espantar num paiz de seis milhões de analfabetos ; e andara outros seis mezes sem emprego, sem exame de instrucçao primaria, e quasi sem botas I

Afinal, um bello dia, encontrando-se num grande aperto, lançou mão de um jornal e co- meçou a ler os annuncios, por distração. E des- cobrira o annuncio em que se pedia um jorna- lista com alguma pratica, e robusto, para assu- mir sem desdouro a responsabilidade de uma série de artigos violentos, garantindo-se-lhe de- pois uma situação desafogada na imprensa... Correra, correra, imaginando ingenuamente que corria a salvar- se. Fora a sua perdição. Os ar- tigos foram logo querelados, elle assumira a responsabilidade, e toda essa comedia se lhe acabara em tragedia, com seis mezes de Li- moeiro e alguns conselhos do juiz, que ainda se ria por cima dos óculos, recommendandolhe que, para outra vez, fosse menos atrabiliário. . .

Cumprida a sentença, e voltando á vida activa dos jornaes, achara-se compenetrado de que em realidade era, como lhe dissera o juiz, um jor- nalista atrabiliário. E teimara em conservar-se

2Ò2 A RUA DO OIRO

na opposição. Mas tanto soíFrera, tanto, que lhe chegou o momento em que não poude mais. Pas- sara então uma borracha por cima do passado de jornalista independente, virara a casaca, em- brulhara as suas convicções num velho jornal como quem embrulha um feto, e fora deixá-las á porta do Directório. . .

Depois cahira, politicamente rendido, aos pés de D. Claudia!

VIII

No dia em que resolvi embrenhar-me nas Secretarias e comecei a distribuir pelos sete Mi- nistérios os numerosos memoriaes que deixara accumular de seis correios da Ilha, eu adquiri a certeza de que nunca poderia vir a dar um de- putado de geito.

Essa funcção subalterna de agente de negó- cios junto das Repartições, esse mister de pro- curador zeloso de mesquinhas causas, esse oííi- cio de corretor de empregos, de mercês e de obras publicas, esse sagrado dever de me pôr incondicionalmente ao serviço de todos os inte- resses privados de cada um dos meus eleitores eram coisas que, positivamente, mas positiva- mente ! não se davam com o meu feitio.

Depois, naquelle caminho de perdição que eu

264 A RUA DO OIRO

seguia para ir do Borges ao Terreiro do Paço, descendo o Chiado, cortando á Rua Nova do Carmo, dobrando para a Rua do Oiro eu ha- bituara-me já, irremediavelmente, a uma vida regalada de lagarto ao sol, que acabava por não me consentir o mais leve esforço, a diligencia mais fácil.

E quando naquelle dia, e logo a um dos pri- meiros deferimentos que eu sollicitava ccom muito empenho» para um dos meus eleitores, vi crearem-se os primeiros empecilhos burocrá- ticos, entre os lábios risonhos d'um Chefe de Re- partição «que todavia muito desejaria ser-me agradável e prestavel» sempre que alguma dis- posição legal se não oppozesse, como naquelle caso, a esse seu desejo enfiei pelo primeiro corredor que conduzia á rua, galguei escadas, e procurei o ar livre, e jurei nunca mais voltar ás Secretarias para patrocinar memoriaes. Era uma coisa decidida !

Depois, galhofando, contei isto mesmo na Rua do Salitre. Clarinha bateu as palmas de con- tente, julgando ganha uma aposta, que com- migo fizera, teimando ella que eu não seria ca- paz de seguir carreira pela politica, teimando eu que sim. . . E logo D. Claudia disse :

cPasse-me o senhor para todos esses papeis. Eu me encarrego d'isso. E pôde contar

A RUA DO OIRO

265

com o despacho que precise pára todos elles. Não se incommode mais com essas ninharias. Trate-me de coisas sérias. E quando tiver mais não os demore nas gavetas, traga-m'os. . . »

Que aliivio, e que pechincha-! Aquillo foi dito e feito. No primeiro paquete, que sahiu d'ahi a seis dias, logo expedi para a Ilha vinte e tantas cartas communicando o almejado despacho a vinte e tantos eleitores. Era um corno de abun- . dancia que eu despejava no circulo. «Mas d'esse corno, dizia eu em carta ao Doutor Tarquinio, como o meu amigo verá, o Pedro AfFonso não apanha nem sequer a ponta. Elle que se con- tente com aquellas que tem.»

E eu continuava, entretanto, arrastando neu- rasthenicamente o remorso da minha preguiça, quando recebi uma carta do Fausto, escripta pela mulher, communicando-me que recolhera' á cama com um forte ataque de"gripe, precisamen- te no momento em que, tendo tudo preparado para escrever o relatório sobre o projecto do di- vorcio, se dispunha a metter mãos á obra. Che' gara a enthusiasmar se pela idéa, achava a coisa muito viável mesmo sem escândalo (uma vez que o Ministro influisse nos Bispos e os Bispos in- fluíssem no resto para se evitar algum movi- mento prejudicial da padralhada) e tinha pena, deveras, de se achar agora impossibilitado de

266 A RUA DO OIRO

concluir o trabalho. D'ahi a dois ou três dias a commissão teria acabado de discutir o projecto, e o Ministro querici fazê-lo passar immediata- mente nas Gamaras. Era portanto um caso de força maior, uma questão de urgência. E ti- nha combinado com o Ministro que a tarefa vi- ria ter ás minhas mãos. Tivesse eu paciência e era escusado procurar evasivas. Concluindo, dizia :

<tDe mais a mais, terás assim bella occasião de prestar um serviço relevante, (d'estes que vão ao Diário do Governo com justos galar- dões) á nossa muito considerável e boa amiga D. Claudia. Ella está sobre brazas, pobre se- nhora! Façamos-lhe a vontade.»

E em post-scriptum:

«Remetto-te tudo quanto cheguei a reunir so- bre o divorcio, livros e apontamentos. Afunda- te bem nisso, meu grande mandrião. Meu grande mandrião e meu grande felizardo : porque vaes ter um assumpto para discurso de estreia, como hoje poucos se encontram. E as galerias, nesse dia, apinhadas de mulheres bonitas, que pedem o divorcio como pão para a bocca, cobrindo te de bênçãos, atirando te beijos, mandando-te as moradas !. . . Arranja- me conclusões de arromba para esse relatório, ouviste

então era para mim ponto de que D.

A RUA DO OIRO 267

Claudia, á semelhança do deputado Naquet, queria fazer votar a lei do divorcio para apro- veitar-se d'ella, e porventura, como se dizia, contrahir novo matrimonio com o Presidente do Conselho.

Mas que tinha eu com isso ? Que me impor- tava a mim que assim fosse ? Que duvida pode- ria eu ter em prestar a D. Claudia esse peque- nino serviço de defender o seu projecto nas Ca- marás ? Se eu nem conhecia o marido !

Depois, olhando de mais alto, não era ver- dade que esse projecto trazia á nossa legislação civil uma bem útil e grandiosa reforma ? Não era uma sociedade inteira que viria a colher o precioso, saboroso fructo d'essa galharda e fe- cunda iniciativa do Governo ? E não sentia eu mesmo, e bem vibrantemente, que o grito d'essa verdade se repercutia na minha consciên- cia como o echo de um clamor universal de jus- tiça ?

Para que era eu então deputado independente senão para que a minha opinião reconhe- cesse a soberania da minha consciência ?!

Portugal, que tão rasoavelmente acompanhava os outros poizes nas modernas applicaçÕes da sciencia juridica, não podia ficar-se n'ura Código que trinta annos antes representava talvez a me- lhor obra de legislação civilista, mas que não

208 A RUA DO OIRO

servia para agora, quando os códigos modernos e as resoluções justas dos Tribunaes tudo aquila- tavam segundo a filosofia da razão. Tudo se transformara o modo de sentir como o modo de pensar. A' tradição romanista e canónica suc- cedia-se uma orientação mais social e natural, mais livre e humanitária. E, todavia, essa idéa tão simples e de tanta justiça natural, e tão ne- cessária á dignidade do matrimonio e á felici- dade dos casados, não poderá ser ainda consi- gnada na legislação portuguesa, quando o di- vorcio era uma instituição em quasi todos os paizes do mundo civilisado.

Hoje, era uma necessidade instante, inadiá- vel. E aproveitando se no nosso Código Civil uma certa orientação de tolerância que nelle havia, e que admittia, a par do casamento reli- gioso o casamento civil, o divorcio continuaria e completaria essa orientação.

Entre os livros que Fausto me remettera para o Hotel, havia um, muito recente, que eu não conhecia ainda e que logo me forneceu um dos melhores, dos mais seguros effeitos do meu relatório. Era O Crime, de César Lombroso, onde todo um substancioso e lúcido capitulo de estatísticas comparadas estabelecia a conclusão de que a criminalidade era tenebrosamente maior nas sociedades sob o regimen da simples sepa-

A RUA DO OIRO 269

ração do que naquellas que tão gloriosamente se orgulhavam de terem o divorcio. E fácil me foi estabelecer, em aguilhoada frase, que sendo o divorcio uma questão de moral social, a sua negação levava a muitos crimes.

Conheci, manuseei, revolvi numa noite as le- gislações de todos os paizes onde, por ordem alfabética, fui encontrando o divorcio. E encon- trei-o na Allemanha, na Áustria e na Hungria, na Bélgica, na China, na Dinamarca, nos Estados Unidos, na França, na Inglaterra, na Grécia, no Japão, na Noruega, nos Paizes Baixos, nos Pai- zes Musulmanos, na Rússia, na Suécia e na Suissa. . .

Todos esses allemães, todos esses austríacos, todos esses chineses, todos esses dinemarquê- ses, todos esses americanos, todos esses france- ses, todos esses gregos, todos esses japoneses, todos esses noruegueses, todos esses hoUandê- ses, todos esses musulmanos, todos esses rus- sos, todos esses suecos e todos esses suissos re- conheciam, admittiam, proclamavam que, sendo o casamento um ideal de amor entre dois indi- víduos de sexo differente, devia elle ser em absoluto livre, tão livre e tão espontâneo como era o Amor !

As sociedades atravessavam, porém, um pe- ríodo transitório e tutelar. O Estado regulari-

270 A RUA DO OIRO

sava ainda a constituição da sociedade familiar de modo a evitar asfallencias. Porque na as sociação familiar, como nas outras associações, a intensidade e a variabilidade da vida traziam a desillusão, e a desillusão, em taes casos, era a fallencia aberta.

O que todos elles teriam querido seria pode- rem casar e continuar a casar, sem que a socie- dade tivesse o direito de intervir na associação do homem e da mulher, e sem outros deveres que não fossem os que nascem do Amor e com o Amor se apagam... Mas isso, que a tradição canónica confundia com a promiscuidade brutal da primeira fase da familia humana, era a suprema idealisação do Amor livre, era a re quintada aspiração da Humanidade, a eterni- dade no Amor I

E como a vida, em realidade, não deixara ainda de mostrar que bastas vezes os esposos se illudiam, e não existiam entre elles as afini- dades que tinham supposto haver ; e como o chamado santuário da familia se transmudava ainda com frequência num pequenino inferno insuportável ; e como não deixara ainda de ha- ver sogras, nem adultérios, nem incompatibili- dade de génios o Estado, que regularisara a constituição da familia, e fizera quanto estivera ao seu alcance para garantir o bem-estar dos

A RUA DO OIRO 27 1

cônjuges, não tendo podido consegui-lo, restituía os associados ao seu anterior estado de liber- dade, para poderem constituir novas socieda- des, em que os negócios viessem a correr me- lhor. . .

Logo que eu recebera a carta do Fausto, in- cumbindo-me da elaboração do relatório, fora procurar o Presidente do Conselho, e com elle tinha tido uma larga conferencia, em que ficara bem assente que eu não teria a preoccupar me com o supra-naturalismo da Gamara.

«Sciencia positiva, meu amigo ! Muita filo- sofia social ! dissera-me o Ministro. E dei- xe. . . »

Na grata posse d'esta carta branca, e com as costas bem quentes, regalei-me então em atacar o casamento indissolúvel, «ideal da sociedade domestica, conquista preciosa de uma civilisa- ção que traz o cunho dos séculos ...»

Todo esse largo trecho, bem adubado de ri- cas razões, do meu relatório, eu o lancei dex- tramente ás folhas de papel, deliciado com o antegoso do seu eífeito terrífico no animo das Primas Rochas e das Primas Noronhas, para as quaes seria sempre incompleta a natureza do vinculo, frustrando radicalmente o fim que se almejava, se a união matrimonial se celebrasse a termo ou sob condição. . . Que o mesmo era

272 A RUA DO OIRO

suprimir a solidariedade e a intimidade do vin- culo conjugal, a perpetuidade de dois seres numa natureza (e eu via-as meditarem nisto com os seus olhos inquietos em alvo). Ter-se- ia assim um vinculo meramente provisório, inteiramente destituido de valor e contheudo ethico !

Ah I Ah ! Pois sim, ricas primas, primas do meu cojação... Mas quando acontecesse que algum ou ambos os elementos componentes do organismo familiar, achassem difficuldade em cumprir a missão a que eram destinados (e ahj tinham ellas o General AjTes, por exemplo, ma. rido insufficiente da Maria Demitilia) de modo que a união forçada fosse causa de mal estar para o mesmo, de turbação e desordem para os outros órgãos similares, e até mesmo para o organismo social de que faziam parte ? Que me diziam ellas a isso ? . . .

Nada. Pois claro ! Nem tinham que dizer. Desde que se observasse uma tal desordem pa- thologica, uma lei suprema de necessidade so- cial queria que se restituísse a cada uma das moléculas que compunham o organismo soffredor a sua primitiva liberdade, para que podessem entrar em nova união com outra molécula mais adequada e indicada pela força espontânea da attração, e assim dar logar a novos organismos

A RUA DO OIRO- 2-73^

susceptíveis de cumprirem com regularidade a fuiicção social integrante e reproductora da es- pécie. . .

E eu deliciava-me, ria sósinho, com o ima- ginar as figuras das Rochas c das Noronhas quando tal lessem no Diário das Camarás, que eu fazia tenção de lhes enviar com sublinha- dos a lápis azul corando todas ellas até á ponta das orelhas com essa historia de desafo- radas moléculas descontentes, procurando ou- tras moléculas a que melhor se adequassem, se adaptassem... Gomo se o casamento podesse vir a ser uma pouca-vergonha de mulheres da Rocha !

Dando uma no cravo, outra na ferradura, eu admittia que o casamento, productor de uma funcçáo eminentemente social, deveria subsistir Sempre que fisiologicamente se ajustasse ao pro. prio mister. Mas nunca depois que o delicto, a infidelidade, vicios incuráveis, aversão completa e producto invencivel de causas graves e per- manentes rompessem a solidariedade do vinculo conjugal, tornando a vida marital uma coisa in- tolerável.

Concebido o divorcio como lei de alta mora- lidade, chegado o momento de estabelecer e justificar as suas causas, em harmonia com o projecto de lei de iniciativa do Governo, eu

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sabia onde encontrar, para a minha substan- ciosa argumentação de relator, a papinha. feita. E excluia desde logo o Código Napoleónico, que admittia o mutuo consentimento como causa de divorcio e alentava a inconstância, favorecia a ligeireza das propostas, facilitava a especula- ção dos interesses. Nada d'isso I

Um apontamento do Fausto, com a observa- ção de muito importante ao alto, chamara-me a attenção para um projecto de lei apresen- tado na Gamara italiana, da iniciativa fervorosa de Salvador Morelli, e moldado nos trabalhos persistentes de Naquet. Esse, e um outro do ministro Villa, também italiano, que nem se- quer fora admittido á discussão, eram para mim uma verdadeira mina.

Para obstar a que o divorcio podesse tor- nar-se o premio de uma culpa, a lei portuguesa não concederia ao cônjuge culpado a faculdade de o pedir.

Quando a separação pessoal dos cônjuges e o consequente divorcio tivessem por causa o adul- tério de um d'elles, declarado por sentença, o cônjuge culpado não poderia contrair casamento com o seu cúmplice. Neste caso, o casamento não seria considerado nullo, o cônjuge culpado seria condemnado a prisão pelo tempo de três mezes até um anno ; e a nullidade do casamento

A RUA DO OIRO 2']b

e a condemnação não se poderiam declarar se- não a pedido do cônjuge offendido. Isto pare- cia-me uma disposição de arromba. A parte fi- nal, sobretudo, permittindo aos esposos oífendi- dos, mas facilmente reconciliáveis e pacientes, a reparação da oíFensa por três mezes de cadeia, (c até um anno para os mais exigentes) e admit- tindo que depois tudo continuasse como d'antes, era assombrosamente filosófico. E ainda talvez se conseguisse que a pena de prisão podesse ser remivel a dinheiro, o que seria então, como que- ria o Ministro, verdadeira filosofia positiva !

A vida vagabunda do marido era admittida também como causa do divorcio. E era esta a disposição premeditada para condemnar o ma- rido de Claudia, que continuava percorrendo o reino dos Algarves, nas suas intermináveis in- vestigações archeologicas de membro da Com- missão dos Monumentos Nacionaes.

A dissolução do casamento não ficaria depen- dente de mero capricho dos cônjuges, mas per- mittia-se o divorcio sempre que o crime, a infi- delidade, a sevicia, a injuria grave, o ódio pro- fundo e inextinguível tornassem legalmente in- supportavel a subsistência do vinculo domestico. Assim o divorcio pacificaria os ânimos, faria cessar causas de ódio, de aversão, de crime ; diminuiria o perigo social das uniões illegitimas

276 A RUA DO OIRO

e dos nascimentos clandestinos ; satisfaria á ma- nutenção, á instrucção, á educação da prole ; regeneraria, em summa, a nossa familia moder- na, corroída e pervertida nas suas raizes mais profundas . . .

Ao cabo de dois dias e duas noites de traba- lho afincado, em que li, ruminei, digeri e assi- milei tudo quanto a respeito do divorcio se acu- mulou no meu quarto "do Hotel, por cima da mesa, por cima da commoda, por cima das ca- deiras e até por cima da cama, apenas me res- tava dar uma redação definitiva ao relatório. Fora um trabalho violento, quasi ininterrupto, absorvente, febril. O Fausto tinha razão : era assumpto excellente, era assumpto óptimo, de bem seguros effeitos. E um momento houve em que me senti envaidecido com as probabilidades de um grande êxito, na Gamara. Vi recuperado, nessas quarenta e oito horas, ao fim de um pe- queno esforço, todo o tempo perdido desde que chegara da Ilha e tomara o meu logar no Par- lamento.

O meu ouvido allucinado suppoz ouvir o que diria então, a berrata que faria, o clamo- roso triumfo em que iria explodir o Doutor Tarquinio, no Centro Regenerador, na botica do Cunha e no Club, logo que o Portugal, Ma- deira e Açores, distribuido no cães á chegada

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do paquete, lhe levasse a boa nova do meu grande êxito I Tardava, mas arrecadava.

aDá licença?» disse uma voz conhecida no corredor, ao mesmo tempo que uns nós de dedos batiam na porta.

aEntre, faça favor!»

Era o Poças, que ha muitos dias ninguém via á mesa do Hotel, nem na Camará, nem na Ha- vaneza. Justamente nessa manhã, a Augusta, a creada, perguntando eu que fim levara o senhor Poças, me tinha dito:

«Esteve na sexta-feira, de fugida. Veiu encher uma mala de roupa branca, mandou-a por um moço não sei para onde. . . E ninguém mais o viu.»

a Assim é, meu amigo dizia-me o Poças com a bocca cheia de satisfação, e uma buliçosa alegria a bailar-lhe nos olhos. A minha vida vae entrar, finalmente, numa definitiva e con- soladora fase. . . »

Não era o Libcrato Poças dos meus pri- meiros tempos do Borges, azedo e desalentado, que eu tinha ali no meu quarto, sentado na mi- nha frente, occupando com regalo o meu único fauteuil esfarrapado, que eu reservava e offere- cia ás visitas. Era um outro Poças era uma outra luz, uma outra claridade ! E tudo me foi explicado em muito breves palavras : a sua longa

278 A RUA DO OIRO

ausência do Hotel, a sua falta na Gamara, o seu desapparecimento da Havaneza. Andara em procura de casa, ia pôr casa, tinha casa. Ca- sava.

«... Palavra ? ! »

«Palavra. Está tudo prompto. E' d'aqui a três dias.»

«E a noiva

«O Amaral conhece-a. . . »

Tive um sobresalto. Pois seria possivel ? Se- ria com eíFeito a Margarida Tricana ? Oh ! Mas fiz-me inteiramente de novas, portei me á al- tura.

«Não posso suppôr quem seja...»

O Poças, intrujado, gosava com demorar a pequenina intriga :

«Veja se se lembra. . . » Recordei-me então de que elle em tempos me

falara de um começo de namoro com a Baro- neza do Paul, um distinctissimo estafermo, em São Carlos:

«Casa com a Baroneza!» Elle nem de tal se lembrava :

«Qual Baroneza

«A Baroneza do Paul ...»

«Ora! Ora! Onde isso vae. . . Coisa me- lhor, muito melhor, incomparavelmente me- lhor!»

A RUA DO OIRO 279

Ainda fingi um esforço de memoria, d'olho no vago, mordendo um dedo polegar. Mas não ha- via meio. Decididamente não havia meio.

Poças não se conteve então por mais tempo, descerrou o mistério :

«E' a nossa vizinha, senhor! A nossa vizi- nha ali defronte

Emquanto durara este curto dialogo, eu tinha estado perplexo entre a promessa que fizera á Margarida Tricana, de nada revelar do seu pas- sado a Libçrato Poças, e o desejo, que um mur- múrio de consciência inquietava, de tudo lhe re- velar. Deveria dizer ? Não deveria dizer ? Mas no momento em que elle, tão contente, me decla- rava quem era a noiva, eu entendia que, afinal, não deveria dizer-lh'o. E o que apenas disse foi isto :

aBravo ! Sim senhor. . . A julgar pelas ap- parencias, é caso para muitos parabéns. De- pois accrescentei, lisongeando-lhe o bom dedo : E parece-me bem que neste caso as apparen- cias não enganam. . . »

f Também me parece. . . « disse elle.

de pé, não podendo demorar se, e cumprin- do aquelle dever pois não esquecera o Poças quanto mau humor eu lhe tinha aturado por causa d'aquelle namoro que ia ter agora o seu desejado remate Poças interessou-se por esse

38o A RUA DO OIRD

excesso de trabalho em que julgava ter vindo desastradamente interromper-me. Contei lhe en- tão o que se tinha passado, a gripe de Fausto, a pressa do Ministro, as linhas geraes do rela- tório.

Elle andava alheio a tudo isso, não sabia nada d'isso. E, o que era mais, eu percebi que elle não se importava absolutamente nada com isso.

Por brincadeira, ainda lhe disse :

«Se o meu amigo deseja que se introduza no projecto de lei alguma disposição que lhe convenha, agora que está para casar. . . Ainda estamos a tempo. E' dizer ! Bem sabe que as leis, em Portugal, sempre se fazem á vontade dos amigos, e para servir os amigos ...»

Poças sorria jubilosamente :

«Assim é, assim é ! Mas eu não preciso. E estendendo-me a mão, muito apertada na luva cor de sangue de boi : Em todo o caso, muito obrigado, como se acceitasse. . . »

F^óra da porta, no corredor, ainda teimei, mais risonho :

«Veja lá. . . Não faça cerimonia. Que ff ais não seja senão como rr.edida preventiva. . . »

Elle ia descendo a escada, nos primeiros degraus, quando um hospede novo, que ainda nós não conheciamos, vinha subindo, em chine-

A RUA PO OIRO 281

las, depois do jantar das cinco, palitando os dentes. Poças esperou um momento, deu-lhe tempo de subir, e logo que o outro voltou cos- tas, sumindo-se para cima, baixou a voz e con- siderou :

o Quem casa, meu amigo, nunca pensou em divorcio nas vésperas do casamento I d

A' semelhança do investigador de bactérias, que se fechou por dentro no seu laboratório, e na anciã de saber se afundou no estudo e labo- rou nas experiências ; e na busca de um teme- roso bacillus se picou e inoculou em si o virus do mal que queria evitar aos outros; tanto eu me afundei, mexi e remexi na questão do casa- mento (que era o grande mal, tal como elle se achava ainda, indissolúvel) que não tardei a sen- tir, a observar em mim a apparição successiva de todos os signaes de quem trazia comsigo, assolapado e recôndito, o bacillus temeroso.

Era o divorcio uma grande, uma bella, uma humanitária idéa. Mas era o casamento, tal como o sonhavam e o queriam os seus mais fervorosos e vehementes partidários, uma idéa menos bella? Não era o casamento uma concepção bem clara da felicidade na terra, quando se imaginasse o casamento o encontro natural de dois entes que

282 A RUA DO OIRO

se identificaram na observação um do outro e que unem os seus destinos, e põem em commum o melhor do seu coração, a intimidade da alma e da carne, pactuando uma alliança que os acol- cheta para a alegria e para a adversidade, para o prazer e para a dôr, para a vida e para a morte ? Não seria esia a maior, a mais clara, a mais luminosa verdade humana ?

Casar no ar, casar por casar, casar por curiosidade, casar por impulso apenas sexual ou calculado interesse ; casar para fugir á condição inquietante da vida que se tenha; casar á ven- tura, casar para outro fim que não seja o do ca- samento por amor não ! Casar como em ge- ral se casa, quando se não attendeu a que o casamento é uma tão decisiva provação, nem á perturbação que elle exerce na alma de uma mulher, nem se presupoz o que poderão produ- zir as mutuas reacções dos caracteres, dos gos- tos, dos sentimentos, das opiniões ; casar ao fim de um curto namoro de janella, na missa e ro theatro, pelo telefone, por cartas e nos annun- cios do Diário Illustrado, em cifra não ! mil vezes não I

Mas casar depois que tudo bem se pesou, se avaliou, se preveniu, rodeando o casamento de todas as possíveis garantias ; casar sem que ape- nas baste o consentimento dos dois cônjuges, ca-

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sar não apenas segundo a doutrina jurídica da Egreja, e segundo o Código, mas casar tornando o casamento outra coisa mais alta que a cerimo- nia religiosa, um contracto civil, uma associação com estatuto ; casar depois de bem attentar no rifão: cAntes que cases o que fazes» c depois que ambos, elle e ella, mutuamente se sujeitaram a todas as provas admissíveis, de- liberando juntar-se por fim, e pondo nessa deli- beração o propósito firme, sereno, irreductivel, inabalável, de não admittirem nunca uma causa, nem sequer uma probabilidade de arrependi- mento ou desquite ; casar por amor, em summa, mas o amor alto, o amor quanto possível idea- lisado, o amor que quer dignidade, que quer bom senso, que quer respeito, que quer recato, que quer santidade isso sim I Isso sim... E sendo assim, podendo ser assim, que bella coisa o casar !

E assim pensando, eu ascendi, pela mão fina e tremula de Clarinha, a essa solida serenidade que nasce da justa e firme percepção das coi- sas. . .

Humano e são, eu tive o sentimento instinctivo das qualidades que me seria necessário encon- trar na mulher que houvesse de escolher para c minha mulher». E foi na doce atmosfera da sua intimidade, sob a temperatura branda do

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seu affecto, acarinhado pelo delicado, subtil cui- dado com que ella encetou e encaminhou até ao fim essa sua tarefa de suave jardinagem, que ir- rompeu, enfolhou, floriu, vicejou em mim esse sentimento.

Senti-me talhado para as doces alegrias do matrimonio e do lar. Tive uma outra concepção, muito diversa, do amor, da dignidade, da vida. O casamento era, de certo, uma arrojada em- preza, e muito embora tivesse, como todas as emprezas, o seu caderno de encargos, Clarinha estimulava-me para esse arrojo, mostrando-me bem, dentro do nosso caso, quão agradável seria para mim (segundo esse caderno) a maior res- ponsabilidade que ao marido cabe : a responsa- bilidade de uma grande parte da educação da mulher a educação da esposa pertencendo a elle, a elle, modelar a seu grado, formar segundo a sua idéa, elevar á dignidade dos seus sentimentos esse novo coração e esse novo es- pirito. . . Ella tudo via, ella tudo julgava ; e as suas maneiras de ver e de julgar, contrabalan- çando no meu espirito os arrebatamentos e os dispauterios da mãe, pouco a pouco desvanece- ram, tornaram bruxuleante, apagaram em mim, a seu respeito, o preconceito da hereditarie- dade.

Se o casamento era um abismo, eu achei-me,

A RUA DO OIRO 28S

sem a mais leve sombra de receio, á borda d'esse abismo, até onde chegara sem o suspei- tar, com os olhos fitos naquelia pequenina es- trella de felicidade que illuminava o meu ca minho !

IX

A Divina Providencia, sob cujos auspicios o Discurso da Coroa collocara a obra governamen- tal durante aquella sessão legislativa, não tendo até ahi intervindo em nenhum voto das duas Gamaras, nem numa das deliberações minis- teriaes, entendera chegado o momento de tomar em consideração o appello que tão solemnemente lhe fora dirigido no dia 2 de Janeiro, e para tal fira se incarnara e disfarçara, por um suave mi- lagre, na humilde pessoa do Melecas, a quem D. Claudia falara nestes termos :

«Eu preciso possuir uma flagrante prova de que o Presidente do Conselho tem relações muito intimas com a mulher d'esse alto funccio- nario de que fala hoje o Thantasma. Trate de arranjar isso com urgência. Deve saber que eu

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não fico a dever os bons serviços que me pres- tem. . . »

Melecas pozera em acção todas as suas ines- timáveis faculdades de repórter, instruirá conve- nientemente a sua policia secreta, estendera a uma grande área os seus imperceptíveis fios de informação como os fios de uma teia imperce- ptível, e tudo isso por tal modo que, breves dias decorridos, elle sabia dar noticia de quantos passos fazia o Presidente do Conselho desde que sahia de casa até que voltava a entrar em casa para não tornar a sahir. E no dia em que não lhe restava a menor duvida sobre o caso es- candaloso que quizera averiguar. Melecas apre- sentou-se, offegante, na Rua do Salitre.

cTrago-lhe a verdade, senhora D. Claudia! A pura verdade, como a não chegou a encontrar Diógenes. . . »

«O que averiguou então ? Que passos deu quizera elle saber, numa viva ancia.

*0 verdadeiro repórter, minha senhora, tem uma divisa que lhe prohibe revelar os pas- sos que deu para conseguir os seus fins . . . Não digas como . . é a nossa divisa. Se assim não fosse, nunca nós teríamos chegado á perfeição a que chega hoje a reportagem em Portugal, para que quando um ministro queira, por exemplo, fazer o elogio dos seus próprios actos, ou des-

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compor em lettra redonda alguns dos seus col- legas de gabinete, chame o repórter e lhe dite, palavra por palavra, o artigo que no dia seguinte apparece nos jornaes. . . »

«Bem. Adeante

«Todos os ministros têm os seus defei- tos . . . Um ministro é um homem e um gato é um bicho ! O nosso Presidente do Conselho tem o fraco das mulheres. Tudo aquillo nelle é moléstia. . . O que elle quer é variedade. En- gano d'alma ! As mudanças no amor são como as mudanças de casa: de cada vez que se muda, sempre se quebra alguma coisa.»

Mas D. Claudia estava sobre brazas, e queria as provas, as provas !

i^ «A grande prova dissera então Melecas eu posso fornecê-la se Vossa Excellencia quizer assistir a um encontro do Presidente do Conselho com a adultera!»

«E como será isso possivel

oMuito simplesmente. Diga Vossa Ex- cellencia se assim o quer. . . »

EUa não hesitara um instante. Dissera logo que sim. E Melecas, mexendo-se e remexendo-se dentro d'aquella intriga como uma barata no fun- do d'uma bacia, pozera D. Claudia em relações com Antonieta, em casa de quem o Presidente do Conselho se encontrava com a sua nova

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amante. D. Claudia entrara, levianamente, em pleno dia, apenas disfarçada numa toilette de luto rigoroso, cobrindo-lhe o rosto um espesso véo de viuva, em casa de Antonieta !

Ah ! que se o Chico do Patrocinio* a visse nesse momento, e podesse reconhecê-la sob aquelle disfarcei. . .

A uma grande distancia de datas, o acaso collocara aquelle mesmo homem que era hoje o primeiro Ministro no caminho d'es- sas duas mulheres. Muito antes que elle hou- vesse entrado nas relações de Claudia, havia sido das mais intimas relações de Antonieta, desfructando, quanto poderá, o capricho amo- rudo em que ella o envolvera. A esse tempo, Antonieta não era rapariga, e ainda elle andava na Escola Polytechnica. Por sua cau^a ella arruinara-se, arruinara um recebedor do 3.° Bairro, e teria arruinado todo o 3.° Bairro, se isso possível fosse. Empenhara-se, para o vêr sempre bem vestido, bem calçado, bem conten- te! E o garoto atraiçoava-a. Uma madrugada, andando com a pedra no sapato, e como elle não lhe apparecesse em casa, Antonieta saltara da cama, mettera-se numa tipóia, e gritara ao cocheiro :

«Bate para o Dafundo ! »

Chega ao Dáiundo e, seu dito seu feito : es-

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tava o tratante abancado, em grande regabófe de coelho á caçadora e muita vinhaça, com duas hespanholas do Arco do Bandeira. Quailto ella se raiara e quanto emagrecera I Até cahira doen- te. Depois o tempo, que tudo cura, curara-a. Mas tiniia-llie jurado uma desforra I Tiniia-llie dado «sua palavra de honra»... Era o mo- mento de cumprir.

E a desforra seria tremenda.

O Ministro chegara a esse ponto em que o amor começa a não querer correr aventuras, e procura o socego e a segurança no prazer, resolvera pensar a sério em casar-se. Claudia era ainda, e sempre, a sua grande preoccupa- ção. Na lucta que travara, e tão tenazmente sustentara para a possuir, como tinha possuído tantas outras, sentia-se vencido, dispunha-se a entregar-se. E resolvera, emfim, fazer votar a lei do divorcio, para que Claudia, liberta, podesse ser sua mulher.

Agora, era uma coisa decidida. Tudo estava preparado. Em poucos dias seria votado o pro- jecto. E elle despedia-se, á pressa, e sem sau- dade, da sua vida romanesca de solteirão, mar- cava as ultimas entrevistas ás suas três dúzias de amantes, de que falava o Phantasma com commentarios eróticos.

Dera uma d'ess£? s entrevistas em casa de An-

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tonieta, no dia em que Claudia ali devia ir. E Claudia vira-o enlaçar nos seus braços fortes de transmontano a mulher do Conselheiro Araújo, aquella pérola da Isabelinha Araújo, que desde as Salesas era a grande, a maior, a amiga mais intima de Claudia, e que Claudia lizera eleger secretária perpetua da sua Liga Feminista I

Mas uma coisa ha que se compare á inten- sidade de emoção com que uma mulher chega a amar o homem que ella suppoz ser-lhe orga- nicamiente necessário, aquelle que ella idealisou capaz de completá-la, e a quemi sacrificou ou teria sacrificado, com tcdo o seu amor, toda a sua vontade e todo o seu raciocínio : é essa ce- leridade com. que essa mesma mulher esquece aquillo que para ella, e num dado momento, foi tudo.

Serenada a crise violenta de despeito que a tomou na constatação d'aquella prova irrecusá- vel, Claudia pensava:

«E muito singular, tudo isto! Mas o que era então que me impellia para esse homem, e me trazia presa d'essa obcessão ? Era tudo isto apenas uma questão de temperamento? E pode assim o temperamento il!udir-nos, a ponto de nos convencer de que uma grande parte do que sentimos se passa no nosso coração? Depois,

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num momento, num repente, todo este despren dimento I Como se nada fosse. . »

Foi nesta excellente opportunidade que eu, ignorando ainda, e absolutamente, tão imprevis- tas peripécias, e tendo resolvido romper com embaraços e hesitações, bem decidido a definir uma situação que me preoccupava deveras, ousa- damente falei a D. Claudia.

Era o dia dos annos de Clarinha. Desenove annos. Mil parabéns ! E d'essa vez, como todos os annos, era dia de festa na Rua do Salitre.

Emquanto estivera no Collegio de Bemfica, ella tinha vindo sempre passar esse dia em casa e a sua vinda abria um parenthese de trégua, ajustava um grato armistício entre o pae e a mãe belligerantes. Mas d'esta vez o papá falta- va, pela primeira vez. Grande pezar, grande tristeza, no meio d'aquelle Algarve como no meio d'uma Africa, em dia de tanta e tão que- rida festa I lamentava elle, em carta recebida cá, na véspera. O dever, porém, acima de tudo! a pátria acima de família ! E elle bem sabia que a pátria o contemplava, nesse momento em que elle honrava a pátria, a firme e ao sol, no alto d'um descampado até onde o tinha condu- zido o fio d'uma recente investigação, dirigindo elle mesmo as escavações pacientes, chegando elle mesmo a revolver, com os dedos exreri-

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mentados no tactear archeologico, a terra que parecia incandescente, como se cobrisse numa delgada camada a própria cúpula do Inferno ! Estava-se na força do verão. «Tivemos hoje, aqui, quarenta graus de calor á sombra!» dizia elle no fim da carta. E um pingo de suor, despren- dido da sua testa esbrazeada, caindo sobre a escripta, diluirá e espapaçara no papel a tinta d'estas ultimas palavras.

Vinham á noite todos os amigos da casa e al- guns amigos do Governo. Viria também, a ins- tancias de Clarinha, o poeta Chico do Patrocínio, que se achava muito penhorado e promettera al- guma coisa de inédito para essa festa.

Mas ao jantar, de fora, seriamos apenas quatro pessoas: o Presidente do Conselho, o Fausto e a mulher, e eu. E fui eu o primeiro a chegar.

Clarinha, por mim prevenida, deixou me com a mãe. Não havia tempo a perder. Disse tudo.

«Senhora D. Claudia. . . Vossa Excellencia quer, em seu proveito, fazer-me o favor de acreditar na sinceridade de alguma coisa grave que eu tenha a dizer-lhe ?

«Porque não

«E consente que eu lhe diga tudo o que tenho a dizer como poderia consentir que lh'o dissesse um verdadeiro amigo?»

A RUA DO OIRO 29S

«Consinto, o senhor Amaral bem sabe que o considero meu verdadeiro amigo.»

Não foi preciso mais nada. Apontei, disparei.

a O seu procedimento, minha senhora, que Vossa Excellencia não soube encobrir, como talvez devesse ter feito, nessa malfadada ques- tão do divorcio, não podia passar-me desaperce- bido, ainda mesmo que eu assim o tivesse de- sejado. . . »

aE o senhor nisso, porventura, algum sentimento condemnavel

«Não, minha senhora, pelo contrario. Admi- ro-a. Mas o meu fim é outro. Agora, que Vossa Excellencia vae readquirir a sua inteira liber" dade de mulher, é ao seu coração de mãe que falo ...»

Claudia cahia, pouco a pouco, num grande abatimento, os braços quebrados estendidos so- bre os braçus longos do fauteuil, os olhos baixos e fixos no desenho polichromo do tapete persa. E apenas murmurou :

«Diga. . . Diga o que quizer. . . » Achei mole, carreguei :

«Sua filha, minha senhora, apesar de muito nova e inexperiente, não é tão creança que ignore o verdadeiro destino de todas as mulhe- res. Não sei porquê, entendeu ella que eu seria capaz de apreciar e guardar algumas das suas

296 A RUA DO OIRO

confidencias, e pôz me ao corrente de todas as suas maguas, que não podem ser muitas, bem de ver, mas que nem por isso deixam de mere- cer-me o cuidado de lhes procurar algum remé- dio. . . A intelligencia d'essa menina é uma intel- ligencia precoce, e o seu raciocínio não briga, por modo algum, com a sua intelligencia. D'aqui a impossibilidade, com que tive de luctar, para a persuadir de alguma coisa bem opposta a esta convicção, muito nitida, em que ella vive : a con- vicção de que se nenhum homem, dos muitos que a têm conhecido na boa sociedade que fre- quenta, se atreveu ainda a falar-lhe de casamento, é porque alguma razão muito poderosa os afasta, um preconceito os afugenta. . . » Vi-a estremecer, num anceio.

«E essa razão ? . . v perguntou.

« . . Essa razão, minha senhora, quanto a ella e quanto a mim, é a errada iriterpretação que se chegou a dar aos mais insignificantes actos da vida de ^'ossa Excellencia

Claudia endireitou-se no fauteuil, encarou-m e bem, levantou a voz, muito excitada :

aE qual a minha culpa ?!»

«Eu não accuso Acossa Excellencia. Nem accuso, nem defendo. Quem a accusa é toda a gente ; quem a defende é sua própria filha. E eu apenas me julgo na obrigação de pedir a

A RUA DO OIRO 297

Vossa Excellencia que cuide de destruir o erro da accusação e mostre a justiça da defeza.»

tE crê o senhor que essa liberdade de acção que cu tratava de obter não fosse o único remédio

iCom certeza. O que Vossa Excellencia tem tomado como remédio é precisamente o ve- neno. Mas ainda estamos a tempo de tudo evitar ...»

«E Clarinha ?b

«O futuro da senhora D. Clara está neste momento dependendo, por um fio, um tenuis- simo fio, da resolução de Vossa Excellencia. . . »

«Neste momento ?!»

«Neste momento I Vossa Excellencia tem deante de si alguém que, em boa consciência, sabe que nenhum perigo real existiria para a fe- licidade do homem que desposasse a senhora D. Clara, se sua mãe persistisse em aproveitar- se da lei do divorcio e contrahir outro casa- mento, mas alguém que ainda é bastante timido para também se deixar vencer pelo precon- ceito . . , D

Como em lance decisivo de bem urdida come- dia, um \ailto branco entrou e illuminou toda a sala d'uma clara e suavíssima luz. Era Clarinha. toda vestida de cassa branca, fina e vaporosa, infinitamente linda aos meus olhos enamorados.

gS A RUA DO OIRO

Calei-me. E ouvi então, mal acreditando o que ouvia, D. Claudia dizer :

«Vieste muito a tempo, Clarinha. . . O senlior Amaral tinha acabado de me pedir a tua mão ...»

Clarinha, num salto, deitou-lhe os braços ao pescoço, soluçando. E eu vi os olhos de Clau- dia arrazarem-se de agua.

X

«... Castevaes, Anadeis, Infançoens, nédios Bispos, Menestréis, almafres, cetras, balsas, alfarazes, cavalleiros marcados de gilvazes !

O' fulgido pretérito !

Hoje. irra 1 Iridia Rua da Irrisão! Esquálida e clownica procissão, torpe bando de brandos dandys pandos, bêbados de brandys, liquidos nefandos, alcatea surrada de mancipios, consciências sem e sem principios. Vejo-os passar sob o docel dos Astros, vil, asthenica prole d'esses Castros,

párvulos fructos pecos, de Ínclitos Aibuquerques e Pachecos . ..

^00 A RUA DO OIRO

E no Meu Peito, safaro calvário, cresce um cardeo lirio solitário:

A Saudade! a Saudade! A incongrua Saudade d'Outra Edade.

Quando o Chico do Patrocínio, alisando para trás com a mão tremula a guedelha, que se lhe desconcertara na vehemencia da recitação, disse o ultimo d'aquelles extraordinários versos que nos trouxera do seu novo livro inédito, e uma vibrante salva de palmas estrugiu, Fausto per- guntou :

«Que titulo dás tu ao poema

tA Rua do Oiro!* noticiou o Chico. Fausto não percebia, ou fingia não perceber,

para melhor desfructar o chefe da escola nefeli- bata, e repontava :

«Mas que tem que vêr a Rua do Oiro com isso

«Ora o que tem! Pois não comprehendes ? E' um símbolo... E' o poema da ficção: a fic- ção do Amor, a ficção do Talento, a ficção do Luxo, a ficção da Honra... Tudo o que luz, mas que não é oiro ! »

Depois, sobre esta frase do meu poeta, a mi- nha vida entrou, precipitadamente, num capítulo novo de boa e de corrente prosa.

A RUA DO OIRO 3oi

Ao mesmo tempo que D. Claudia declarava ao Ministro desistir do empenho que tivera em fazer votar a lei do divorcio, o marido morria subitamente, no Algarve. E D. Claudia mi- nha sogra exonerada, a seu pedido, da presi- dência da Liga Feminista, retirada da Politica, serenada de nervos, e conservando-se viuva vae em três annos, a um e um tem quebrado os dentes, agudos e esverdeados, que a calumnia lhe arreganhou um dia. Vendeu a casa da Rua do Salitre, deixou Lisboa, e aqui está hoje com- nosco, na Ilha.

Quando, do escaler que nos trazia de bordo do Açor^ bem picado de remos, me foi possí- vel reconhecer as pessoas que sobre a ponta do Cães aguardavam a nossa chegada, avistei logo, á frente, como uma filarmónica, as Primas Ro- chas e as Primas Noronhas, com o Primo Theo- dosio, esbracejando e regosijando. Sumptuosa de plumas brancas e vidrilhos, a fronte alta, protocollar, da Tia Maria da Assumpção Car- neiro de Amarante, sobresaía do grupo, um pouco atrás. E a seu lado, irradiando jubilo, os óculos de oiro do Doutor Tristão coruscavam.

Amigos políticos nem um! Ainda bem! Eu bem sabia que, para os ter, era necessário creá-los. E eu não soubera creá los. A única coisa que tinha pedido com empenho, e que con-

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seguira, fora a nomeação de Thedosio para a bibliotheca do Liceu. Trazia-lhe o decreto. E logo elle, em paga, me dava a noticia de que Tarquinio, o terrível, definitivamente arr azado pela diabetes, tinha recebido os últimos sacra- mentos nessa madrugada.

«Já não deve pertencer ao numero dos vivos!» ajuntou o Doutor Tristão, que tinha ido a casa, a uma junta.

Tia Genoveva, essa, não tinha vindo ao Gaes. Esperava-nos em casa, sobre o patamar da nossa larga e puída escada de pedra, na olorosa sim- plicidade do seu avental branco e dos seus ban- dós, enternecida e tremula, emquanto a Goncei- ção Velha e a Gertrudes Gaga, atabalhoadas de contentamento, vinham abaixo para ajudar o Manoel Ignacio a subir as malas de mão, as cai- xas de chapéus, os embrulhos. ..

O único desgosto que tenho tido depois que casei começa a dissipar-se agora, como névoa que pouco a pouco se funde numa aurora, em uma suave, inexprimível alegria. Clarinha sente- se gravida. não ha duvida. Mas custou ! Es- távamos casados ha dois annos.. .

Se for uma rapariguinha, ha-de chamar-se Ge- noveva.

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PQ Mesquita, Alfredo 9261 A rua do oiro

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